Você está na página 1de 177

Eneida Maria de Souza • Wander Mello Miranda

ORGANIZADORBS
ARQUIVOS
LITERÁRIOS

ORGANIZADORES

Eneida Maria de Souza


Wa nder Mello Miranda

Ateliê Editorial

Copynghtod material
Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.02.1998.

É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização,


por escrito, da editora.

Copyright© 2003 Autores

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Arquivos Literários / organizadores Eneida Maria


de Souza, Wander Melo Miranda. -- São Paulo :
Ateliê Editorial, 2003.

Vários autores.
ISBN 85-7480-155-0

1. Arquivos - Pesquisa 2. Crítica literária


3. Literatura - Recursos arquivísticos I. Souza,
Eneida Maria de. II. Miranda, Wander Melo.

03-0493 CDD-807.2

Índices para catálogo sistemático:


1. Arquivos literários : Pesquisa 807.2

Direitos reservados à
ATEU� EDITORIAL
Rua Manoel Pereira Leite, 15

06709-280-Cotia -São Paulo


Telefax: ( 11) 4612-9666
www.atelie.com.br

e-mail: atelie_editorial@uol.com.br

Printed in Brazil 2003


Foi feito o depósito legal

Copyrighted material
SUMÁRIO

APRE.SENTA ÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Com quantos Paus se Faz uma Canoa . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Silviano Santiago
O que Dizem os Arquivos de Archivos .. . . . . . . . .. . ... . 25
Amos Segala
Archivos e MemóriaCultural. ....................... 35
WanderMelloMiranda

Autores Brasileiros na Coleção Archivos . . . . . . . . . . . . . . . 43


Sylvie Josserand
Autores Argentinos na Coleção Archivos -
Um Caso Paradigmático . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . 55
FernandoColla

A Literatura Sai dos Archivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65


Louis Hay
O Manuscrito Será o Futuro do Texto . .. . ............. 83

Jean-Louis Lebrave

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

Vertentes e Processos da Criação Literária ............. 93


Maria Augusta Fonseca

Entre Periódicos e Manuscritos .. . .. . .. . .... . ....... 103


Júlio Castafíon Guimarães
,,
A "Casa Jor e Amado 117
EneidaLealCunha
Acervos Sulinos: A Fonte Documental e o
Conhecimento Literário . . . . ..... . ....... . . . . .. . 129
Maria da Glória Bordini

O Arquivamento do Escritor ....... . . . . . .... . . .. . . . 141


Reinaldo Marques

Acervos de Murilo Mendes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157


TerezinhaMariaScherPereira
Gilberto Freyre e o (Pós) Modernismo ...... . . .. .... 167
.

GuillermoGiucci
Nava se Desenha . . ...... . .... . . ... . ....... . . .. . .. 183
EneidaMariadeSouza
A Escrita e a Obra . . . . . . . .. . ........ . ... . .. ....... 203
Ben1hild Boie

SOBRE OS ÜRGANIZADORES • • • • • • • • • • . . . • • • .. ....... 213

SOBRE OS A UTORES • • • • • • . . • . • . . . . • . . • • . . . . • • • • • . • 215

Copyrighted material
APRESENTAÇÃO

A publicação deste livro pretende oferecer aos leitores a


abertura para uma das práticas mais laboriosas da crítica lite­
rária contemporânea. A pesquisa em arquivos não é atividade
que atrai a maior parte dos estudiosos do texto literário, por se
confundir, muitas vezes, com uma atitude conservadora e re­
trógrada frente à literatura. Teorias críticas dos últimos anos
contribuíram para o gradativo apagamento do interesse pelas
pesquisas em fontes primárias, ao ser valorizado o texto na sua
integridade estética, sem o interesse pelos bastidores da cria­
ção. Ou pela recusa em se deter no processo construtivo como
resultado do trabalho do autor, figura um tanto incômoda para
a crítica que ainda pouca importância dava para o contexto
histórico das obras .e significativo o retorno da crítica em di­
.

reção à figura do autor que, nos bastidores, reaparece com seus


rabiscos e traçados, suas marcas autorais, impedindo que se
considere a sua ausência como resultado de um pacto ficcional
com uma escrita que se apresenta de maneira fria e distancia­
da. Por muito tempo algumas vertentes críticas censuraram a

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

presença do escritor na cena literária, uma vez que a lingua­


gem se impunha como absoluta e a eliminação de qualquer as­
sinatura seguia o padrão de objetividade.
A prática analítica voltada para as fontes primárias não irá
revelar, portanto, um olhar conservador sobre a escrita literária,
mas a sua revitalização: o "manuscrito será o futuro do texto':
assim se expressa Jean-Louis Lebrave, um dos colaboradores des­
te livro e notável representante da crítica textual e genética.
Especialistas nacionais e estrangeiros se reuniram por três
dias em Belo Horizonte, em setembro de 2000, durante o Co­
lóquio A Invenção do Arquivo Literário, com o objetivo de de­
bater a situação atual de preservação do manuscrito literário,
da elaboração de conceitos operatórios na área arquivística, ao
lado de uma política de conservação da memória cultural do
país. Desse encontro, promovido pela Coleção Archivos e a
Universidade Federal de Minas Gerais, através do Centro de
Estudos Literários da Faculdade de Letras, resultou um saldo
positivo quanto ao aprimoramento das abordagens e técnicas
da pesquisa em arquivos. Numa época em que as instituições
se encarregam de promover não só as invenções atuais da ciên­
cia, mas a releitura da tradição como efeito de um olhar con­
temporâneo, o cuidado com o manuscrito permite a sua inser­
ção na história particular de cada grupo.
Dentre as realizações editoriais que compõem o projeto de
divulgação de obras canônicas da América Latina, a Coleção
Archivos de la Literatura Latinoamericana y del Caribe dei
Siglo XX desempenha um papel de relevância, ao contribuir
para a preservação do patrimônio literário e cultural dos paí­
ses que, no século passado, revolucionaram o conceito de lite­
ratura, atingindo índices de recepção no exterior até então
inexistentes. Com o boom da literatura latino-americana, que

10

Copyrighted material
A PRESENTAÇÃO

re percutiu na Europ a e nos Estados Unidos em meados da dé­


cada de 1960, um novo paradigma estético começava a se im­

p or, embaralhando os princí pios literários e trazendo uma di­


mensão mais política e alegórica p ara as realizações artísticas.
Verificadas as dimensões e as possíveis falhas desse boom, pro­
cede-se, hoje, à releitura das obras significativas do século XX,
a partir de uma cuidadosa edição crítica dos livros e do exame
e divulgação dos documentos que deram origem à sua escrita.
Reflete-se ainda sobre a conce pção da literatura como um
grande arquivo, constituído das mais diversas fontes documen­
tais, como a cultura oral, a letrada, a mitologia indígena, negra
e mestiça, componentes de uma possível identidade que a cada
dia se revela na sua complexidade.
Por se tratar de um projeto que reúne p aíses da Europa e
da América Ibérica, como França, Espanha, Itália, Portugal,
Argentina, Brasil, México, Costa Rica, Guatemala, Chile e Peru,
com a participação da UNESCO e com a adesão oficial dos paí­
ses acima mencionados, o programa atinge nível internacional
e se coloca como um dos maiores incentivadores do diálogo
entre culturas. De natureza translingüística, transdisciplinar e
transnacional, as edições críticas realizadas p ela Coleção reno­
vam e revisitam a historiografia ibero-americana, p ela utiliza­
ção rigorosa de métodos analíticos que vão do estabelecimen­
to do texto ao seu enfoque crítico e bibliográfico. O cuidado
em ampliar o círculo de leitura das obras constitui uma das
mais imp ortantes conquistas da Coleção Archivos, ao propor
a p articipação de especialistas oriundos de países diversos, o
que resulta na troca comp arativista e na presença do olhar do
outro em direção à sua cultura.
Com a doação de seus manuscritos à Biblioteca Nacional
da França, em 1971, Miguel Angel Asturias preparou o espírito

11

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

de seus futuros pesquisadores, incentivando-os a guardar não


apenas as obras publicadas mas também os rascunhos e as va­
riantes que acompanham o material de trabalho dos escrito­
res. Esse gesto foi o motivo da criação da Coleção Archivos, cujo
objetivo maior é a preservação do acervo dos escritores para
que sirva de fonte documental para o aprimoramento das edi­
ções comentadas e críticas. O destino material e analítico desse
acervo literário passou a ser uma das maiores metas da crítica
filológica e genética, no sentido de se considerar a obra não
mais como um objeto fechado e sem possibilidades de reto­
ques, mas sujeita a modificações e transformações interpre­
tativas. Se o trabalho de recuperação do texto original exige do
pesquisador o exame exaustivo das diferentes edições e mudan­
ças processadas pelo autor ou causadas pelos erros de edição, a
crítica genética revela o lado inconcluso e incompleto da cria­
ção, permitindo que a abordagem de um documento literário
não mais se restrinja ao texto publicado e ao seu estatuto de
objeto intocável e inerte.
� também digno de nota o material paraliterário existente
nos acervos do escritor, como a correspondência entre colegas,
depoimentos, material iconográfico, entrevistas, documentos
de natureza privada, assim como sua biblioteca e seus objetos
pessoais. Um esboço de biografia intelectual emana desses pa­
péis, ao serem incorporados ao texto em processo a cronologia
do escritor, o encarte de fotos, a reprodução de documentos
relativos à sua experiência literária, assim como a revisão da
bibliografia sobre o autor em pauta. A edição crítica enriquece
a leitura da obra ao ampliar o seu foco de produção e, como
conseqüência, tornar mais viva a sua recepção, ao inseri-la no
espaço de possibilidades de leitura e de futuros desdobramen­
tos realizados pelos leitores.

12

Copyrighted material
APRESENTAÇÃO

Pela primeira vez, os autores da Coleção Archivos recebem


um tratamento editorial que concede dignidade à sua obra, ao
introduzir metodologias de trabalho centradas nas fontes pri­
márias, procedimento analítico que se acha em pleno desen­
volvimento entre pesquisadores do manuscrito literário. A pos­
sibilidade de intercambiar experiências e de garantir a difusão
e a cooperação interinstitucionais imprime ao programa da
Coleção o papel de incentivador de um debate cultural que
transcende as fronteiras nacionais e se impõe como traço de
uma aspiração contemporânea de recuperação da memória.
Abandona-se o projeto totalizante e unificador da moder­
nidade para se fixar nas diferenças que delineiam o fragmenta­
do e vigoroso arquivo cultural da América Latina.
A tônica dos artigos deste livro se concentra na atividade
desempenhada pelos pesquisadores ligados à Coleção Archivos,
vinculada à UNESCO e sediada em Paris, ao CNRS, (Centre
National de la Recherche Scientifique), ao ITEM (Institut des
Textes et Manuscrits Modernes), e a vários centros de pesquisa
do Brasil, como a Fundação Casa de Rui Barbosa ( RJ); Centro
de Estudos Literários (UFMG), Centro de Pesquisas Literárias
da PUCRGS, Centro de Estudos Murilo Mendes (UFJF) e a
Fundação Casa de Jorge Amado (BA). Os textos, na sua maio­
ria, informam sobre o programa da Coleção Archivos, relatam
a metodologia utilizada nas edições críticas ou apresentam des­
crições de casos específicos de edição. Estão entre eles os arti­
gos assinados por Amos Segala, Fernando Colla, Sylvie
Josserand, Diretor Internacional e Diretores Adjuntos da Co­
leção, e por Wander Mello Miranda, membro do seu Comitê
Científico e um dos organizadores da edição crítica de Memó­
rias do Cárcere, de Graciliano Ramos, em fase de preparação;
por Júlio Castafion Guimarães, responsável pelas edições críti-

13

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

cas de Lúcio Cardoso, Manuel Bandeira e Carlos Drummond


de Andrade; por Maria Augusta Fonseca, colaboradora da edi­
ção da Obra Incompleta, de Oswald de Andrade; por Guillermo
Giucci, coordenador da edição crítica de Casa-grande & Sen­
zala, de Gilberto Freyre, e o artigo de Eneida Maria de Souza,
que coordena a edição crítica de Beira-mar - Memórias 4, de
Pedro Nava.
A contribuição dos pesquisadores franceses vincula-se à
teorização sobre a prática arquivística e a crítica textual e a ge­
nética - Louis Hay e Jean-Louis Lebrave - além da instigante
reflexão de Bernhild Boie sobre os manuscritos de Julien Gracq.
Os demais trabalhos, como os de Eneida Leal Cunha, Terezinha
Scher Pereira, Reinaldo Marques e Maria da Glória Bordini,
versam sobre a imagem criada em torno de acervos de escrito­
res brasileiros e o comportamento de cada pesquisador diante
do material a ser estudado. Referem-se a acervos como os de
Jorge Amado, Murilo Mendes, Henriqueta Lisboa, Murilo
Rubião, �rico Veríssimo, Josué Guimarães e outros.
Silviano Santiago, coordenador da edição crítica da poesia
de Drummond e membro do C.Omitê Internacional da Coleção,
sinaliza a necessidade de se prevenir, na atualidade, para o desa­
parecimento gradativo dos rascunhos e dos manuscritos dos
escritores, o que acarretará a inevitável perda do processo de
criação autoral e o fim da pesquisa genética. Estaríamos presen­
ciando uma transformação radical quanto ao futuro do arqui­
vo e da memória textual das obras? O escritor e crítico reforça o
alerta: "Tudo indica que, com o computador, o texto final da
grande obra literária perderá grande parte da sua memória': De
modo irreversível, já se instaura a memória do futuro.

Os ORGANIZADORES

14

Copyrighted material
COM QUANTOS PAUS SE FAZ
UMA CANOA
SILVIANO SANTIAGO

Ao ser associado à Coleção Archivos, o título desta inter­


venção ganhará obrigatoriamente um sentido metafórico bas­
tante previsível. Com quantos paus se faz uma obra de arte li­
terária? O título indiciará, por outro lado, que estaremos
subvertendo o campo não só da arquivística individualizada,
como também da memória cultural de uma nação, valores no­
bres dentro da configuração teórica da coleção, o seu lado di­
reito. As várias edi,ções feitas pela Coleção Archivos lembram
aos leitores de literatura o que os autores gostariam de ter es­
quecido ou esqueceram de dizer-lhes no momento em que lhes
entregaram uma obra de arte sob a forma comercial de livro.
Anotações de leitura, rascunhos, borrões de palavras e frases,
acréscimos, resumos, páginas abandonadas, versões negligen­
ciadas etc. etc. Todos esses textos fragmentados nos colocam
de imediato no terreno pedregoso em que se misturam lem­
brança, esquecimento e amnésia.
Daqui a pouco caminharemos pelo avesso da coleção, an­
tes, no entanto, convém dizer adeus ao Sr. Lembrete, persona-

15

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

gem caro ao historiador Peter Burke, esperando reencontrá-lo


na frase final. O Sr. Lembrete - informa-nos ele em Variedades
,
de História Cultural é um "cobrador de dívidas » cuja "tarefa
-

oficial [é] a de lembrar às pessoas o que gostariam de ter es­


quecido>� E o eminente historiador da cultura acrescenta: "urna
das mais importantes funções do historiador é a de ser um lem­
brete'� As várias edições feitas pela Coleção Archivos, seja dito,
o foram sob a responsabilidade do Sr. Lembrete.
Por que não encarar as primorosas edições publicadas pela
Coleção Archivos pelo seu avesso? Subverte-se o lado direito
de cada livro, para se entrar pelo seu avesso - o campo minado
da criação artística. Com quantos paus se faz urna canoa? A
pergunta pode ter uma primeira resposta insatisfatória bem
satisfatória, e por isso será ela simples e misteriosa. Faz-se uma
canoa com um único pau. Não é difícil adivinhar que, por de­
trás da resposta, está a idéia de gênio. O escritor pode ter co­
nhecimento e dominar todas as regras do gênero literário es­
colhido, mas caso careça de gênio, o resultado será medíocre
ou mediano. O que é o gênio? Entramos em terreno viscoso e
pouco propício a fabulações racionais.
Poucos meses antes de falecer, em conversa com Ecker­
mann, seu discípulo, Goethe tentava justificar o fato de A Teo­
ria das Cores ser livro difícil de propagar. Vale-se então de uma
comparação. Afirma ele, na tradução portuguesa de Luís
Silveira, que da mesma forma como não basta que aquele seu
livro seja lido e estudado para se assimilar a teoria que o infor­
ma, assim também "as leis da poesia e da pintura podem, até
certo ponto, ser transmitidas, mas para se ser um bom poeta
ou pintor é preciso ter-se gênio, e esse é que se não pode trans­
,,
mitir (21.12.1831).
O gênio é algo de pessoal e intransferível, de intransmis-

16

Copyrighted material

COM QUANTOS PAUS SE FAZ UM A CANOA

sível também, fundamento do criador solitário, do talento


combativo, garantia do produto fora de série. De maneira
límpida adverte Mallarmé: "O esplêndido gênio eterno não tem
,,
sombra . Continuemos, no entanto, a leitura do diário de
Eckermann onde o deixamos. Goethe acrescenta que o gênio,
apesar de todo o poder, não é suficiente para que o "espírito
produtivo" alce o criador à condição de artista. Citemos: "Por­
que assim como mesmo com todas as regras e todo o gênio se
não chega a ser pintor sem um ininterrupto exercício, assim
também, com a Teoria das Cores [ . ] ': Ninguém manufatura
..

uma canoa sem "um ininterrupto exercício>: Talvez seja isso que
Paul Valéry estivesse querendo dizer ao afirmar que "O talento
sem gênio é pouca coisa. O gênio sem talento não é nada':
O romancista André Gide, no início da sua carreira, emu­
lava o estilo seco e elegante de Stendhal, tomando como máxi­
ma a máxima do autor de O Vermelho e o Negro: "Escrever to­
dos os dias, com gênio ou sem': Esse ininterrupto exercício de
que fala Goethe, ao suplementar a genialidade, cria, por sua vez,
os seus próprios fantasmas, que são os obstáculos a serem, ou
não, transpostos no dia a dia da criação. Estamos nos referin­
do aos constrangimentos impostos pelas regras de toda e qual­
quer arte poética, obstáculos voluntários portanto; estamos nos
referindo também aos bloqueios produzidos pelo acaso da
criação e do talento, obstáculos involuntários e p�ssoais.
Em biografia de músicos famosos, escreve o mesmo
Stendhal: "Só é homem de gênio aquele que encontra um tão
agradável gozo em exercer a sua arte, que trabalha apesar de
todos os obstáculos". Não importam as comportas que se
opõem ao correr do rio da criação, o gênio saberá deitá-las
abaixo. Continua ele: "Coloquem diques contra essas torren­
tes, aquele que deve transformar-se num rio famoso saberá

17

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

bem como derrubá-los". A aparente simplicidade que se encon­


tra no fluir das grandes obras literárias, no fundo, é um disfar­
ce não-pessimista que resguarda da vista do leitor as dificulda­
des da criação. Estas podem ser tomadas ou como semelhantes
às dores do parto ou como semelhantes ao fruto do trabalho
de composição, para abrir espaço para outros dois paus com
que se faz uma canoa.
Essas duas concepções da atividade criadora - dores e tra­
balho - tentam explicar cada uma à sua maneira o caminho
que o escritor segue para atingir a forma desejada. De maneira
esquemática, a ela se chega de maneira orgânica (a metáfora
do parto, ou seja, um embrião original se desenvolve natural­
mente) ou de maneira mecânica (a metáfora do relógio, ou
seja, partes aparentemente soltas são articuladas numa com­
posição artificial).
Segundo René Wellek, na sua substantiva História da Cri­
tica Moderna, é Goethe quem adota a "analogia do organismo",
para diferençar a obra de arte de um "mero exercício de técni­
ca ou a expansão da sensibilidade': De tal forma é sublime a
forma interior alcançada que, no pensamento de Goethe, ela
vai justificar as imperfeições de língua e da técnica externa. A
forma interior da obra de arte se assemelha a um segundo cos­
mo, a uma segunda natureza. A obra de arte "é completa, per­
feita por si mesma", comenta Wellek as palavras com que
Goethe abstrai do julgamento da obra qualquer conotação de
tipo ético. Citemos a fonte germânica: "O belo nas belas-artes
aparece sem nenhuma consideração pelo bem ou pelo mal que
possa causar, puramente por si mesmo e pela sua beleza':
Em muitas e variadas reflexões de pensadores e escritores,
a criação literária será explicada pelo processo por que passa a
mulher durante a gestação e a concepção. As várias fases da

18

Copyrighted material
COM QUANTOS PAUS SE FAZ UMA CANOA

produção duma obra retiram a sua elucidação de metáforas


orgânicas, retiradas, por sua vez, do campo semântico huma­
no e evolutivo que recobre o processo de procriação, de que o
parto é o momento crucial. Ao retomar e criticar a compreen­
são que Goethe tinha dos gregos, o texto de Nietzsche não está
isento dessas comparações. No ensaio "O que Devo aos Anti­
gos'� Nietzsche grifa primeiro a frase em que diz que Goethe
não foi capaz de compreender os gregos, para em seguida afir­
mar que lhe faltou entender a realidade fundamental do ins­
tinto grego que é a vontade de vida. E continua:

Todos os pormenores do ato da geração, da gravidez e do nascimen­


to inspiravam aos gregos sentimentos elevados e solenes. Na ciência dos
mistérios, a dor é sagrada: e era o "trabalho do parto" que a tornava sa­
grada - todo o devir, todo o crescimento, tudo aquilo que nos garante
um futuro exige que haja dor... As "dores do parto" são indispensáveis à
alegria eterna da criação, à eterna afirmação da vontade de vida... (aspas
e grifos do filósofo).

Paul Valéry, um dos poetas mais sensíveis ao fenômeno da


criação literária, estava atento a um aspecto bem pouco dioni­
síaco que cerca, no entanto, a gestação da obra de arte. Foi ele
o propulsor das associações entre, de um lado, gênio, impaciên­
cia e transbordamento, e entre, do outro, talentp, paciência e
maturação. Sobre a primeira associação dirá no "Esboço de
,,
uma Serpente": "Génie! O longue impatience! Sobre a segun­
da temos o poema "Palme", em que desenvolve a comparação
entre o amadurecimento orgânico do fruto e a maturação do
poema. Ali se lê: " Paciência, paciência, / Paciência no azul! /
Cada átomo de silêncio/ É a possibilidade de um fruto madu­
,,
ro . Na dialética do gênio e do talento, da impaciência e da pa­
ciência, do transbordamento e da maturação, em que momen-

19

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

to o artista corta o cordão umbilical da obra? Valéry é ainda


quem nos responde, dizendo que não existe poema acabado, já
que ele é sempre passível de retoque. Existe poema abandona­
do pelo autor. Expelido por força das circunstâncias, abando­
nado, o escrito vira texto e, segundo a comparação platônica
retomada por Jacques Derrida, passa a circular entre os leito­
res sem os cuidados do seu pai, o autor. O texto sozinho e de­
samparado diz por si mesmo o que só ele pode repetir. Circui­
to tautológico que abre a fenda por onde o leitor penetra no
texto, interpretando-o como seu.
Retomemos, agora, a questão da analogia mecânica de
forma, aproveitando o viés teórico instaurado por Platão e
Derrida. Lembremos que, ao adotar a analogia do organis­
mo, Goethe irá ilustrar por ricochete a negatividade do ca­
minho escolhido. Declarará de alto e bom som a "repulsa"
que tem pelas analogias tiradas de reunião, composição ou
ajuntamento. Confirma Wellek: "Falando do Don Juan de
Mozart, [Goethe] fica muito indignado com a palavra 'com­
,
posição', a que chama 'vil e que lhe sugere cozinha, 'como se
fora um pedaço de bolo feito de ovos, farinha e açúcar'". Ou
seja, uma justaposição de achados felizes, ainda que dentro
de uma composição firme, tensa e forte, não fazem uma obra de
arte. Para Goethe, não adianta saber como compô-los, isto é,
como organizá-los a partir de uma reflexão lúcida e fria so­
bre os materiais. A analogia do trabalho artístico com o tra­
balho do arquiteto é que sempre vai contra-atacar a postura
negativa de Goethe e dar amparo e luz à analogia mecânica
de forma. A composição está, pois, associada à forma exterior
(e não à interior, como no caso da analogia orgânica). A com­
posição estaria associada à artificialidade, ao artefato de arte
enquanto tal.

20

Copyrighted material
COM QUANTOS PAUS SE FAZ UMA CANOA

Em célebre conferência pronunciada em 1952 e intitulada


"Poesia e Composição - A Inspiração e o Trabalho de Arte'�
João Cabral de Melo Neto resgatou do inferno goethiano a
positividade da composição na gênese da obra de arte. Para ele,
os poetas do transe apenas proporcionavam ao leitor o "espe­
táculo do seu próprio autor'� enquanto os frutos do trabalho
de arte encontravam vida independente, falavam por eles mes­
mos. Leiamos João Cabral na citada conferência:

E é ainda o trabalho [de arte] que vai permitir [ao poeta] desligar­
se do objeto criado. Este será um organismo acabado, capaz de vida pró­
pria. É um filho, com vida independente, e não um membro que se am­
puta, incompleto e incapaz de viver por si mesmo.

Há um fascinante oximóron no título de um dos livros de


João Cabral que explica de maneira sintética a sua opção. O
título do livro: Psicologia da Composição. Psicologia não traz à
baila a personalidade do poeta, do autor; tem antes como ob­
jeto algo que não tem corpo natural e orgânico, ou seja, seu
objeto para João Cabral é a composição literária.
As nossas reflexões poderiam tornar-se infindáveis. Sus­
pendamo-las para adentrarmos pelo tema proposto para esta
mesa redonda, grifando a parte final: "A Memória Arquivística
e o século XXI'� Peço-lhes permissão para de uma só cajadada
matar dois pássaros, ou seja, justificar por um lado o motivo
por que tomei o avesso da questão arquivística e alertar por
outro lado para o perigo que existe ao se associar a idéia de
novo à emergência do próximo século. Comecemos pelo se­
gundo pássaro.
Embutida na proposta de debate está uma concepção de
história que se vincula às grandes datas do calendário religio­
so. 1 900, 2000, fim de século, fim de milênio - eis os avatares

21

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

mais recentes desse calendário que tem motivado vasta biblio­


grafia. Jürgen Habermas, no seu recente Depois do Estado-na­
ção, adverte:

Mas os números redondos que engendram as pontuações do calen­


dário quase nunca coincidem com os nós com que os próprios aconteci­
mentos históricos marcam o fio do tempo. Anos como 1900 ou 2000 não
têm importância em comparação com datas históricas como 1914, 1945
ou 1989.

Acrescenta que as cesuras do calendário cristão mascaram


a continuidade das longas tendências da história, embora seja
sempre necessário perceber no interior delas os ritmos lentos
das mudanças.
Uma das três continuidades levantadas pelo filósofo nos
interessa de perto. �a do progresso científico e técnico. Desde
os seiscentos, essa continuidade é bem desrespeitosa das fron­
teiras, das cesuras, que delimitam os séculos. Há que com­
preender, no entanto, uma cadência específica que existe den­
tro da continuidade. Vários avanços científicos e técnicos,
conhecidos de todos nós, revolucionaram o século XX e conti­
nuarão a revolucionar os séculos por vir. Não faz sentido fazer
o seu longo inventário, mas deve-se chamar a atenção para o
fato de que cada um de nós, desde que não-especialista, mas
apenas o usuário de instrumentos altamente sofisticados, é
profano, já que cada um de nós tem uma confiança espontâ­
nea no funcionamento de técnicas e de circuitos cujo sentido
nos escapa. Habermas esclarece que, "nas sociedades comple­
xas, cada especialista se transforma em profano frente a todos
os outros especialistas". Segundo ele, foi Max Weber quem me­
,,
lhor descreveu essa "ingenuidade segunda que aparece quan­
do manipulamos um rádio transistor, um telefone celular, um

22

Copyrighted material
COM QUANTOS PAUS SE FAZ UMA CANOA

laptop etc. "Nossa consciência dos riscos': continua ele, "não


,
desestabiliza as rotinas cotidianas : Dentro desta configuração
geral é que Habermas pode concluir: "Num certo sentido, es­
sas conquistas espetaculares [do progresso científico e técni­
,,
co] não mudam por elas próprias os nossos hábitos .
A mesma cajadada para o segundo pássaro. Se, pelo lado
direito da Coleção Archivos, o aperfeiçoamento das técnicas
de estocagem e de tratamento da informação tem e continuará
a ter enorme impacto no trabalho dos especialistas em arqui­
vística, já pelo lado do avesso, o da criação artística, o mes­
mo e gradativo aperfeiçoamento científico e técnico afeta em
pequena escala o trabalho de criação dos escritores excepcio­
nais e tudo indica que pouco continuará afetando. Retoman­
do Habermas, diremos que 1900 ou 2000 pouco têm impor­
tância diante de outras e misteriosas datas, as que marcam os
impactos causados nos criadores de literatura pela invenção
da máquina fotográfica, da máquina de escrever e do cine­
ma. A passagem do século XX para o XXI, tema desta mesa­
redonda, parece que pouca importância tem diante do im­
pacto causado nos criadores de literatura pela invenção do
computador.
Em estudo já clássico, O Cinematógrafo das Letras, Flora
Süssekind analisa o confronto entre a produção literária brasi­
leira, que vai de 1880 a 1920, com "uma paisagem tecno-in­
dustrial em formação': Afirma que "não se trata mais de inves­
tigar como a literatura representa a técnica, mas como,
apropriando-se de procedimentos característicos à fotografia,
ao cinema, ao cartaz, transforma-se a própria técnica literária':
São pitorescas e instigantes as palavras de Mário de Andrade
sob o efeito da compra de uma máquina de escrever, a Manuela.
Em carta a Manuel Bandeira, narra-lhe a experiência:

23

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

Engraçado, por enquanto me sinto todo atrapalhado de escrever di­


retamente por ela [máquina de escrever]. A idéia foge com o barulhinho,
me assusto, perdi o contato com a idéia. Isso: perdi o contato com ela [a

máquina e/ou a idéia]. Não apalpo ela. Mas isso passa logo, tenho a cer­
teza, e agora é que você vai receber cartas bonitas de mim.

Flora associa a carta a poema de Losango Cáqu� para co­


mentar que

a mediação da máquina, dos tipos padronizados, das batidas rápidas é


não apenas assunto do poema, mas aquilo que lhe dá forma. E não se
trata mais aí de ocultar a mediação, mas, ao contrário, de exibi-la, de
explicitar o processo de composição gráfico-poético do texto.

Pelo lado do avesso, acontecimentos causados pelo impac­


to do computador na criação literária aguardam a inteligência
crítica dos nossos jovens pesquisadores. Sem dúvida, tecerão
comentários tão fascinantes e instigantes quanto os feitos por
Flora. No entanto, podemos prever que, pelo lado direito, esses
mesmos acontecimentos auspiciosos poderão surpreender ne­
gativamente os arquivistas. Tudo indica que, com o computa­
dor, o texto final da grande obra literária perderá grande parte
da sua memória. A não ser que se alertem os cri?dores para o
perigo. Que bom tê-lo de volta, Sr. Lembrete.

24

Copyrighted material
o QUE DIZEM os ARQUIVOS DE
ARCHIVOS

AMOS SEGALA

A medida que se aproximava a data deste Colóquio, às pri­


meiras reações de satisfação e até de vaidade, sucederam ou­
tras mais responsáveis e matizadas. Em Belo Horizonte apre­
sentamos, comentamos e analisamos , em muitas de suas
implicações , uma proposta - uma realização - que é obra de
todos nós e que agora devemos preservar e desenvolver, defen­
dendo sua especificidade metodológica , crítica e editorial.
Para que este novo discurso historiográfico prossiga seu
itinerário, e mantenha intacta sua vigência, é preciso recordar
quais são seus pontos fortes, essenciais, as condições de seu
êxito cientifico e de sua aceitação internacional.
Uma Coleção que já publicou cinqüenta títulos, convocou
mais de seiscentos pesquisadores do mundo inteiro, manten­
do alerta o interesse de seus sócios fundadores - entre os quais,
o Brasil ocupa um lugar prioritário -, e envolvendo um grande
número de proprietários dos direitos autorais, de tipógrafos,
de especialistas de todas as latitudes e enfoques, é, certamente,
uma realidade que cristaliza uma quantidade impressionante

25

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

de vontades, de recursos, de paixões, graças a uma química de­


licada e frágil, porém real, coerente e, sobretudo, aceita por to­
dos seus atores.
Quando se criou Archivos em Paris, os que estivemos pre­
sentes e atuantes nesses momentos, tratamos de propor uma
iniciativa que não fosse mera repetição de outras, mas um es­
paço de pesquisa e de diálogo inovador. As premissas e os re­
sultados que hoje podemos avaliar criticamente confirmam
a coerência e a continuidade, cada vez mais deliberada, de
nossas opções. A primeira opção é a de edições crítico-gené­
ticas, ou seja, uma preocupação prioritária pelo texto, sua in­
tegridade, integralidade e restauração/restituição. Neste ca­
pítulo específico, Archivos pode citar os casos exemplares de
Lezama Lima, Vallejo, Girondo, Vasconcelos, Sarduy, Arlt,
Asturias.
A preocupação sistemática pela genética textual (uma ge­
nética que procura ser acessível ao leitor) tem dado resultados
criticamente significativos, no sentido de que modificou con­
sideravelmente a recepção crítica anterior, como nos casos de
Guiraldes, Asturias, Alcides Arguedas, José Gorostiza, José
María Arguedas, Julio Cortázar, Lúcio Cardoso, Rómulo
Gallegos, Leopoldo Marechal, Haroldo Conti, Oswald de
Andrade, Manuel Puig, José Martí, Vicente Huidobro.
A preocupação textual exalta e finaliza outra que a motiva
e a alimenta, que é a salvaguarda, o acesso e o tratamento da
memória escrita. Nesse sentido, Archivos tem atuado como um
interventor direto nos casos, dos arquivos de Lezama Lima, José
Hernández, Pablo Neruda, Pablo de Rokha, José Enrique Rodó,
que têm sido explorados, ou o estão sendo, com a ajuda e os
auxílios técnicos e tecnológicos que lhes emprestamos, a partir
de sua adesão concreta ao programa.

26

Copyrighted material
O QUE DIZEM OS ARQUIVOS DE ARCHIVOS

Por outra parte, Archivos, com suas edições tem dado vida
e tornado patente o sentido e a importância dos acervos ma­
nuscritos, conhecidos até a data tão somente por um limitado
número de especialistas nacionais, como os de Mário de
Andrade, Teresa de la Parra, Enrique Amorím, José Asunción
Silva, Jorge Icaza, Julio Herrera e Reissig, e agora, Pedro Nava,
Martín Luis Guzmán, João Guimarães Rosa, César Moro e
Graciliano Ramos.
Esta orientação fundacional da Coleção, proposta, sistema­
tizada e realizada em um sem número de variações, é o que as­
segura sua originalidade e sua razão de ser distinta, em relação
às coleções nacionais e internacionais comparáveis (Coleção
Ayacucho, Scrittori d'ltalia, Pléiade).
No entanto, há duas outras características que convém re­
cordar:
A primeira é a da coexistência paritária de tratamento de
todas as línguas do continente: espanhol, português, mas, tam­
bém, francês e inglês do Caribe. O desconhecimento entre as
duas principais regiões lingüísticas da América Latina é um fato
enraizado e persistente, que somente em tempos recentes se
tratou de reequilibrar. Isso foi feito por razões eminentemente
políticas, estratégicas e econômicas, e não por razões culturais,
que são as únicas a oferecer referentes sérios de um diálogo
integrador e não efêmero. A Coleção Archivos é um instrumen­
to eficaz e comprovado dessa integração, já que pela primeira
vez na história, uma mesma Coleção apresenta e impõe, simul­
taneamente, pela força de um consenso negociado e operativo,
os textos emblemáticos de todos os países e todos os idiomas
da área.
Esse aspecto, .esse pacto tão revolucionário, foi paulatina­
mente aceito por todos os signatários, abrindo espaços de pes-

27

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

quisa, de contatos, de descobertas que se multiplicam e modi­


ficam a própria natureza do intercâmbio cultural entre as re­
giões.
A segunda é a supranacionalidade da Coleção, sua estru­
tura científica, editorial e distributiva, capaz de satisfazer a to­
dos os signatários em um jogo de equilíbrios, de fundo e de
forma, adaptados às circunstâncias cambiantes de cada um
deles. Os governos passam e as crises de muitos deles chega­
ram a colocar em risco seriamente o projeto. Entretanto, o
Comitê Científico Internacional, o esquema tipo de nossos li­
vros, o repertório de nossos títulos, mantêm intacta sua vigên­
cia e a continuidade de nosso trabalho. São os eixos perma­
nentes e consensuados de uma navegação, às vezes tempestuosa
e controvertida. Podemos afirmar que os resultados da Cole­
ção, bem como o serviço que ela presta a todas e a cada uma
das literaturas ibero-americanas, são evidentes, mas são suas
modalidades de produção o que determina o sucesso e a pró­
pria existência da Coleção:
O passo mais difícil de nossas edições é o trato com os pro­
prietários dos direitos autorais. Todos eles, mesmo os mais in­
flexíveis e suspeitos terminaram por compreender que o âm­
bito e a qualidade científica da Coleção, como conjunto, eram
razões suficientes para que pensassem e decidissem que
Archivos é uma Coleção onde têm que estar ( dixit Carmen
Bakells). A princípio, negociar era difícil; agora, a realidade da
Coleção, sua circulação, a rede de consensos internacionais que
a sustentam, seduzem até os mais reticentes. Bons exemplos
recentes não faltam, como o de Guimarães Rosa.
O segundo passo, delicadíssimo entre todos, é a tarefa do
coordenador e a montagem de sua equipe. O coordenador é
um especialista em linha de montagem, um diretor de orques-

28

Copyrighted material
O Q U E DIZEM OS ARQU IVOS DE ARCHIVOS

tra que coordena a nova interpretação da partitura, que é o tex­


to, convocando um grupo de solistas (filólogos, críticos literá­
rios, historiadores, sociólogos, eruditos etc.) para que cada um
deles intervenha neste concerto com seu som específico, sua
idiossincrasia, sua linguagem particular.
Porém, aqui começam a aparecer as dificuldades: o coor­
denador nem sempre quer, conhece ou reúne as condições para
este exercício dialógico, que exige paciência, habilidade, desejo
e disponibilidade para exigir de seus colaboradores, novos olha­
res, pesquisas extensas e um subjacente e implacável confronto
metodológico. O ideal seria que os coordenadores consideras­
sem este momento profissional de sua vida como um espaço
privilegiado, onde lhes é permitido construir um opus diferen­
te, socrático por sua natureza, função e difusão, daqueles que,
habitualmente, tomam sua atenção na cátedra, na escrita e na
pesquisa pessoal. f: uma percepção inédita e menos egoísta do
trabalho literário, que gente como Mario Goloboff, Raúl
Antelo, Ana María Camblong, Claude Fell e Jorge Schwartz en­
tenderam, produzindo livros profundos, atuais e graciosos.
Do lado das equipes, as coisas não são sempre fáceis, já que
é duro admitir que a contribuição de cada um é tão somente
parte do discurso geral, do coral, e que para esta edição é inútil
utilizar a famosa e concorrida técnica do requentado, que é
sempre um pecado profissional, mas que em Archivos é um
pecado que prejudica irreversivelmente seu autor no âmbito
internacional.
O terceiro momento que determina e garante a suprana­
cionalidade da Coleção é a estrutura de suas instâncias de con­
trole da conformidade, do cuidado editorial e da produção.
Quando os manuscritos dos títulos contratados chegam à
Direção Geral, são submetidos à avaliação contrastiva e confi-

29

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

dencial de três especialistas, externos à equipe. Eles devem as­


sinalar as lacunas, os erros e as omissões de tipo particular e/
ou geral, indicando, ao mesmo tempo, o que é preciso acres­
centar, suprimir ou formular de maneira diferente.
Em seguida, um relatório é enviado ao coordenador para
que tome as providências necessárias. Nunca houve querelas
sobre a oportunidade e legitimidade das sugestões de reparo
(quando as houve), emitidas pela Direção Geral, porque o ór­
gão que os emite não é somente considerado imparcial e ardo­
roso defensor dos interesses dos coordenadores e de seus livros,
mas porque foi criado e investido destas funções pelo conjun­
to unânime dos signatários. Além disso, este momento da pro­
dução da Coleção, assim como este órgão, além de serem
desvinculados de todo tipo de parâmetros ideológicos e nacio­
nalistas, tampouco são expressão de um centro coordenador
"imperial': uma vez que é a própria subalternidade que cons­
trói livremente este discurso, as regras do jogo e seu âmbito.
No caso de Archivos, o subalterno é o central, o próprio centro
desta situação e de seus desafios.
A própria produção da Coleção obedece a estes critérios,
ao garantir um planejamento equilibrado, dosificado e cuida­
do com imparcialidade, e sobretudo, distante das tentações
triunfalistas das coleções nacionais, que sempre lutam em ter­
mos de supervalorização e/ou exclusão. h por essa razão que a
Coleção cruza e segue cruzando fronteiras que as coleções na­
cionais não conseguem superar. Se este fenômeno adquiriu
valor de parâmetro constante, é porque suas colocações, sua
realização e sua produção são vividos por todos os países sig­
natários como uma realidade integrada, que articula um dis­
curso compartilhado, diversificador e unificador. E isso acon­
tece em todos os níveis da Coleção.

30

Copyrighted material
O QUE DIZEM OS ARQUIVOS DE ARCHIVOS

Estes são os ingredientes do sucesso que justifica o Coló­


quio de Belo Horizonte. O compromisso principal desta Dire­
ção é, e será sempre, assegurar que as condições que acabamos
de recordar continuem sendo as dos futuros títulos, que serão,
por outra parte, cada vez mais conformes ao que exigem as
novas relações latino-americanas no âmbito da região, do
mundo ocidental e do mundo tout court.
Neste quadro, que é um pouco a reflexão final do Diretor
de Archivos, quero acrescentar duas inquietações e uma infor­
mação:
Por seu preço de venda, a Coleção ainda não consegue che­
gar ao público usuário da América Latina. Há que se pensar e
procurar novos recursos extra-orçamentários, para mudar ra­
dicalmente esta situação. Não é possível' que os principais des­
tinatários da Coleção não consigam adquiri-la por sua distri­
buição cara e lacunar.
É importante que Archivos seja, muito em breve, a Cole­
ção de todo o continente e de toda a comunidade latino-ame­
ricana. A este propósito, considero alentadoras as últimas três
adesões do ano: Cuba, Chile e Uruguai.
A UNESCO decidiu se responsabilizar pela parte administra­
tiva e financeira do projeto, com uma presença e um savoirfaire
mais freqüentes. Quando fundamos Archivos éramos oito paí­
ses, a freqüência de publicação dos títulos era de dois a três por
ano. As tiragens eram entre 2 500 e 3 000 exemplares. Somos
agora uma realidade diferente, científica e politicamente: ca­
torze países, oito títulos por ano e nove mil exemplares para
cada título. Tudo isto impõe uma revisão, um aggiornamento
de nossas estruturas de decisão. Roma foi, em 2002, a sede des­
ta necessária reflexão que, enriquecendo nossas experiências e
as propostas que serão solicitadas a cada um dos signatários,

31

Copyrighted material
ARQU IVOS LITERÁRIOS

preparou a nova época dos novos Archivos. Esta época deverá


colocar e resolver os seguintes problemas:
1. Reequilibrar o plano geral de edição, levando em conta
o incremento dos países membros e dos recursos disponíveis,
como o dos novos títulos e direitos obrigatoriamente deriva­
dos. A dificuldade consistirá em se limitar, por razões de boa
estratégia editorial, a publicar oito títulos por ano e encontrar
soluções adaptadas à nova configuração associativa.
2. Criar canais práticos para estabelecer relações mais es­
treitas e freqüentes entre o Comitê Científico Internacional, a
Direção de Archivos e o Conselho de Signatários. A criação de
uma comissão com poucos membros poderia ser útil para as­
sessorar, acompanhar e controlar os aspectos de gestão técni­
ca, financeira e estratégica da Coleção, ou até mesmo de dele­
gados à Direção, por mandato dos signatários. A quantidade e
a complexidade da nova situação aconselharia adotar esta so­
lução. Essa comissão poderia, então, reunir-se uma vez por ano
na UNESCO de Paris, ou na sede do CERLALC de Bogotá.
3. Estudar paralelamente novas modalidades de produção
editorial, sempre e quando os custos, a confiabilidade tecnoló­
gica e a continuidade administrativa dos novos pólos sejam
examinados e avalizados pelo conjunto dos signatários. Isso
significaria passar de um regime centralizado, que tem dado
bons resultados, a outro policêntrico, cujos antecedentes na
história da Coleção são de infeliz memória. No entanto, a situa­
ção latino-americana e mundial é agora muito diferente e a
globalização parece autorizar uma mudança mais radical. Esta
mudança, por outra parte, poderia se adotar gradual e parcial­
mente (alguns livros, alguns países) para depois ser ampliada a
todos os países que o solicitem, se as lições desta experiência
forem consideradas satisfatórias e legitimamente alternativas.

32

Copyrighted material
O QUE DIZEM OS ARQU IVOS DE AR C HIVOS

4. Encarar e resolver industrialmente a evolução comple­


mentar e inseparável de nossas edições, do suporte papel ao
suporte eletrônico.
Quero, finalmente, dizer-lhes quanta emoção me produz
esta reunião, que compensa os sacrifícios passados e insta a
meus colegas e sucessores a não serem acanhados na dedica­
ção. Archivos é uma paixão exigente e devoradora. Eu lhe de­
diquei anos e anos. É tempo que outros vivam e alimentem esta
exaltante, ainda que esgotadora, experiência.
Muita sorte para eles e obrigado.

Trad. RôMULO MONTE ALTO

33

Copyrighted material
ARCHIVOS E MEMÓRIA CULTURAL
WANDER M ELLO MIRANDA

Para melhor ressaltar a tessitura da obra literária e o ilimi­


tado da reminiscência, W. Benjamin refere-se às provas da
Recherche, que Proust devolvia ao editor Gallimard sem nenhu­
ma correção gráfica, embora escritas até a margem, totalmente
preenchidos os espaços em branco por um novo texto1• Resga­
tar tal procedimento, hoje, diante dos volumes publicados de
Proust (ou de qualquer outro escritor), é restituir ao texto sua
gestualidade perdida de escritura, sua dinâmica de transforma­
ções, acréscimos, subtrações e apropriações. h como se numa
ampla rede discursiva cada variante fosse um ponto de inúme­
ras conexões, um rizoma cuja visibilidade o texto final não dei­
xa entrever.
,,
Esse ato de "recuperação mnemônica 2 desloca a noção de
texto como produto acabado ou integridade absoluta para a

1
1 1 . Cf. Walter Benjamin, "Per un ritratto di Proust", Avanguardia e rivoluzione, Torino,
Einaudi, 1973, p. 28.
1 2. Fausto Colombo, Os Arquivos Imperfeitos, São Paulo, Perspectiva, 1 99 1 , p. 38.

1
1
35

l
1
Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

de escrita, entendida enquanto memória espacializada, cujos


contornos são fruto não de um sentido pleno ou de uma ver­
são definitiva, mas de um jogo de intensidades, marcado pela
força de significação que cada elemento vai adquirindo no con­
junto significante que é o texto concluído e, a rigor, nunca ter­
minado. Nesses termos, a gênese textual deriva de articulações
e construções lógicas que vão se fazendo apres-coup, da pers­
pectiva de uma temporalidade não-linear, antievolucionista,
expressa por uma mnemotécnica capaz de se traduzir sob a
forma de uma organização arquivística.
Para Foucault, o arquivo é um sistema de discursos que
encerra possibilidades enunciativas agrupadas em figuras dis­
tintas, compostas umas com as outras segundo relações múlti­
plas e mantidas ou não conforme regularidades específicas.
Nesse sentido, o arquivo não é o depósito de enunciados mor­
tos, acumulados de maneira amorfa, como documentos do
passado e reduzidos a testemunhos da identidade de uma cul­
tura. Nas palavras de Foucault, "longe de ser o que unifica tudo
o que foi dito no grande murmúrio confuso de um discurso,
longe de ser o que nos assegura existir no meio do discurso
mantido, é o que diferencia os discursos em sua existência
múltipla e os especifica em sua duração própria"3•
A prática arquivística define-se, assim, pelo valor diferen­
cial que congrega e permite, ao mesmo tempo, a subsistência
de enunciados e sua regular transformação. Daí não ser o ar­
quivo descritível em sua totalidade, mas por fragmentos, re­
giões e níveis, distintos com maior clareza em virtude da dis­
tância temporal que dele nos separa. Em suma, ele "é a borda
do tempo que envolve nosso presente, que o domina e que o

3. Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, Petrópolis, Vous, 1972, p. 161.

36

Copyrighted material
A RC H I VOS E M E M Ó R I A C U LT U R A L

indica em sua alteridade [ ... ] Ele estabelece que somos dife­


rença, que nossa razão é a diferença dos discursos, nossa histó­
ria a diferença dos tempos, nosso eu a diferença das máscaras"4•
Pensar a Coleção Archivos da borda do tempo e da alteri­
dade que essa borda indicia é operar urna sorte de interrupção
metonímica no âmbito da vasta cadeia metafórica que confi­
gura, de maneira homogênea, o que se chama literatura lati­
no-americana e que um projeto anterior, também da UNESCO,
contribuiu para consolidar: o volume de ensaios América Lati­
na em sua Literatura. Idealizado nos anos 1 960 e publicado na
década seguinte, o livro aborda nossa pluralidade literária de
um ponto de vista unificador e globalizante, através do qual a
América Latina, enquanto urna das "regiões culturais" do mun­
do contemporâneo, define-se como uma "totalidade"5. A noção
de unidade, centralizadora e uniformizante, é aí pressuposto
básico de afirmação da identidade cultural, contraface politi­
camente necessária, embora discutível no plano das produções
artísticas, à posição de bloco econômico que o continente vi­
nha assumindo, à época, no mercado internacional.
A reiteração dessa perspectiva universalizante na maioria
dos ensaios - representantes do melhor que o pensamento
moderno produziu entre nós - resulta, pois, de circunstâncias
históricas bastante diversas das atuais e de interesses culturais
distintos daqueles que presidem a Coleção Archivos. Os crité­
rios metodológicos da coleção são bem conhecidos: estudo
filológico e lingüístico dos manuscritos e das edições aprova­
das pelos autores; compilação de documentação exaustiva so-

4. Idem, p. 163.
S. Cf. César Fernández Moreno (org.), América Latina em sua Literatura, São Paulo,
Perspectiva, 1979, pp. XI e XII.

37

Copyrighted material
ARQU IVOS L ITERÁR IOS

bre o autor e a obra; análise do texto e do contexto por críticos


regionais, nacionais e internacionais; aplicação sistemática de
enfoques interdisciplinares a cada obra e dossiê de recepção6•
Esses critérios delegam aos textos escolhidos o caráter de obje­
tos de coleção e, ao fazê-lo, vão contra a corrente do modelo
privilegiado pelos atuais arquivos eletrônicos, dotados de uma
linguagem universal suscetível de exprimir toda e qualquer rea­
lidade e apta a funcionar como chave de acesso aos mais diver­
sos sistemas de memória.
A lógica do colecionador vale-se, ao contrário, da singula­
ridade, em oposição ao típico e ao classific ável, atuando contra a
reificação, que é uma forma de esquecimento. Como objeto
colecionado, trazido da viagem pela literatura do continente,
cada texto é um objeto lembrado, uma citação do que parece
mais relevante no conjunto da obra de um autor falecido. Ci­
tar os mortos ou citar um texto é trazer o passado para o pre­
sente, é infundir outra vida ao que foi citado. Análoga à remi­
niscência, a citação tende a modificar o já fixado e a fazer
emergir uma ordem correlacionai direcionada ou apta a dar
lugar a um novo cânon. A questão do valor coloca-se, portan­
to, como uma questão de memória: a lembrança torna valioso
o objeto lembrado; mais do que isso, o objeto torna valiosa a
lembrança, ou seja, redesenha as fronteiras de uma tradição
esquecida, que se mostra então plena de atualidade.
O trabalho com os manuscritos e com a recepção dos tex­
tos latino-americanos conjuga o processo de anamnesis, que
lhe é inerente, com a busca de traços de uma identidade cultu­
ral diferida, cujos espectros - no duplo sentido de fantasma e

6. Cf. Samuel Gordon, "La colección Archivos y los cambios de paradigma en la crí­
tica !iteraria latinoamericana'� La colección Archivos: hacia u11 1111evo ca11011, p. 12.

Copyrighted material
A R C H I VOS E M E M Ó R I A C U LT U R A L

refração - as versões pré-textuais e as anotações marginais ar­


mazenam. Entrar nesses arquivos é deparar-se com um uni­
verso e lembranças exteriorizadas, resíduo de um saber
escriturai em ritmo acelerado de apagamento; salvar esses ar­
quivos é fazer do resíduo a ponte para a fixação, sob óptica
compara tista, de um corpus que possa oferecer respostas mais
convincentes à indagação do que é escrever entre nós7•
Trata-se, pois, de individualizar o percurso de práticas
significantes das diversas literaturas do continente, com o in­
tuito de detectar os mecanismos através dos quais uma tradi­
ção se transforma, construindo-se no processo de sua confor­
mação. Não interessa estabelecer continuidades no interior de
um sistema fechado (a tradição concebida como algo imutável
e consolidado para sempre), mas pensar nos deslocamentos e
agenciamentos textuais como um espaço privilegiado para in­
vestir, dentre outras questões, como a recepção do signo "es­
,,
trangeiro suplementa modelos anteriores e abre caminho para
a produção de novos valores, que, por sua vez, irão ampliar ou
reverter o horizonte de expectativas do leitor.
A problematização dos limites culturais - ponto nodal da
coleção - pauta-se, assim, pelo estabelecimento de novos mo­
dos de ler o cânon no âmbito de uma modernidade que se pro­
jeta e se experimenta como lembrança de exílio e desterrito­
rialização, polissemia e multiculturalidade - e, nesse caso,
Macunaíma., de Mário de Andrade, pode ser lido como volu­
me exemplar em meio aos demais. A constituição do saber li­
terário latino-americano, enquanto prática intertextual, inter­
disciplinar e metadiscursiva, articulam então localismo e

7. Sobre a indagação, ver Gustavo Guerreiro, "De los usos de archivos': em Gordon,
op. cit., p. 22.

39

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

universalismo, contribuindo dessa forma para a invenção de


uma origem literária em que o nacional ou latino-americano
possa deitar raízes e, ao mesmo tempo, deslocar-se em direção
aos movimentos mais gerais da cultura ocidental.
No âmbito dos estudos comparatistas, parece instigante
pensar Archivos através da lógica da suplementaridade,
sugerida de forma emblemática pelo ato mesmo que funda a
coleção: o gesto de Miguel Angel Astúrias ao decidir doar à Bi­
blioteca Nacional de Paris, em 1 9 7 1 , seus manuscritos8• Insi­
nuando-se no espaço hegemónico de referência do saber lite­
rário dominante, a coleção-suplemento desenvolve uma
estratégia específica de adição - e nisso se diferencia de outras
anteriores-, uma soma que não fecha, mas intervém no cálcu­
lo que visa a totalizar, pela semelhança unificadora, os traços
de identidade de uma cultura. Há nessa lógica suplementar um
vetor de secundariedade, de instância subalterna, que leva à
promoção de uma sintaxe cujos elementos formadores dão vi­
sibilidade (ou virtualidade) menos à identidade do que à dife­
rença cultural. Sendo assim, cada texto-fator dessa soma que
não fecha mantém sua singularidade, cada literatura sua do­
minante alternativa. Em conseqüência, ao serem considerados
no conjunto que formam, os textos produzem um espaço de
significação descentrada, onde a literatura passa a ser lida como
um fenômeno local, aberto a todas as modalidades de discurso
minoritário ou residual, o que impede a convergência da res­
posta do que venha a ser a literatura latino-americana para um
centro pleno de sentido.

8. Sobre a coleção, ver de seu diretor Amos Segala, "�diter la littérature latino­
américaine et cara'ibe: la collection 'Archivos' ': Ge11esis, n. l, Paris, 1992, pp. 1 6 1 -
166.

40

Copyrighted material
A RC H J VOS E M EM Ó R I A C U LT U R A L

A necessidade de marcar afinidades, discutir interesses e


gostos, definir espaços de intercâmbio transcultural, mostra­
se pela capacidade incomum da coleção de traduzir processos
gerais e diferenciados de afiliação e taxonomia, consiste em re­
fazer nossa história literária como "el movimiento mismo que
,,
se situa em el intervalo y lo crea ai mismo tiempo 9• Tem-se,
pois, uma história alternativa - outra e alternada -, nascida da
junção de textos-signos que vão se afirmando, por meio de re­
novada tensão entre si, como produto de uma relação e de um
processo.
Em virtude da própria diferença lingüística que instaura
no conjunto predominantemente hispânico, a presença da li­
teratura brasileira na coleção é um elemento a mais em favor
do descentramento, contra a unificação homogeneizadora e
propiciador de uma integração renovada. O resultado é uma
configuração constelar, que redefine os textos reunidos não em
termos de causalidades discursivas ou origens preconcebidas,
mas que deixa em aberto, com já dito, um espaço de suplemen­
taridade, onde possa ser articulado um novo cânon.
Macunafma, de Mário de Andrade, e A Paixão Segundo G.
H. de Clarice Lispector - dois dos volumes brasileiros já publi­
cados -, traduzem à sua maneira a criação desse espaço. A rap­
sódia andradina através do que Darcy Ribeiro chamou de "nos­
,,
sa circunstância inelutável . Diz o antropólogo:

[ . ] por mais exóticos que sejamos e queiramos ser, é neste curral, nesta
. .

dimensão que existimos. Nela é que estamos condenados a criar. Feliz­


mente - e quem inaugura esta moda é Mário - já não só papagaiando,
nem provendo material etnográfico e folclórico bruto para digressões

9. Walter Moser, '"El vaivén hermenéutico y la literatura comparada� Eutoplns,


Minneapolis / Valencia, p. 22, otoõo 1987.

41

Copyrighted material
ARQUIVOS LITER Á R IO S

alheias. Mas digerindo, nós mesmos, as nossas diretrizes, endofagi­


camente para exprimir, melhor que outro qualquer, o humano que
encarnamos'º·

A endofagia é aí o elemento catalisador de uma prática de


interferências e cruzamentos interculturais cuja medida e al­
cance as elaboradas versões do texto indicam. É nos interstícios
do trabalho escriturai resgatado pela crítica genética - ela tam­
bém uma modalidade comparatista - que se esboça a epifania
de um significado novo, porque nosso e outro, em construção
incessante. Momentos epifânicos irão compor, na sua radicali­
dade, a obra de Clarice Lispector, agora da perspectiva do em­
bate entre o ser e o nada (ou o não ser nada), entre linguagem
e silêncio. A comunhão profana de G. H. com o abjeto é traves­
sia da alteridade que nos constitui - "atravessando inclusive o
oposto daquilo que se var', nas palavras da advertência inicial
de Clarice ao leitor. Travessia emblemática, enfim, do "tempo
homogêneo e vazio" da história universal da exclusão e da in­
fâmia (Borges dixit) , na forma de uma descontinuidade que a
desconstrói, para então poder expressar, com todas as letras, a
agoridade da literatura latino-americana, sua "circunstância
inelutável", mas generosa e forte o suficiente para dinamitar
antigas fronteiras.

1 O. Darcy Ribeiro,"Liminar", em Mário de Andrade, Macunalma, Telê Ancona Lopez


(coo rd ) Brasília, CNPq, 1988, pp. XXI-XXII (Col. Archivos).
. ,

42

Copyrighted material
AUTORES BRASILEIROS NA
COLEÇÃO ARCHIVOS

SYLVIE JOSSERAND

A Coleção Archivos tem como objetivo suprir uma urgen­


te necessidade: a de dar novamente aos grandes textos da lite­
ratura latino-americana a sua idoneidade original - consertar
as correções erradas, as amputações e as reorganizações arbi­
trárias que ocorreram durante sua história editorial -, e
publicá-los, respeitando a vontade escriturai do autor, estabe­
lecendo um texto definitivo (considerado tal pelo autor), e es­
tudando os distintos momentos da escrita, as diferentes reda­
ções (completas ou fragmentárias) do texto em movimento.
t. o que a Coleção está realizando, graças ao Acordo Multi­
lateral Archivos assinado por oito países da América Latina e
da Europa (Argentina, Brasil, Colômbia, México, Espanha,
França, Itália e Portugal) em Buenos Aires em 1 984, que previa
a publicação de 120 títulos de literatura latino-americana, afri­
cana e do Caribe do século XX, em língua original (espanhol ,
português, francês e inglês).
Reúne edições críticas de obras já publicadas ou inéditas
cuja particularidade principal é a de apresentar um texto fiável,

43

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁR IOS

estabelecido a partir dos originais do autor (manuscritos ou


datiloscritos) e das diferentes edições controladas pelo próprio
autor, assim como seu percurso textual, através do registro
exaustivo das variantes, que leva em conta o conj unto textual,
pré-textual e paratextual, redacional e editorial existente. Por
outro lado, apresenta artigos pluridisciplinares e internacionais
que estudam os múltiplos aspectos de cada obra, sua originali­
dade e sua importância dentro da literatura nacional e inter­
nacional.
Após esta breve introdução para apresentar a Coleção
Archivos aos que ainda não a conhecem, falarei mais particu­
larmente dos volumes da Coleção dedicados à literatura brasi­
leira, publicados em português.
Originalmente, doze títulos estavam previstos no plano
geral da Coleção: Poesia Completa, de Carlos Drummond de
Andrade (coordenado por Silviano Santiago), Macunafma o
Herói sem Nenhum Caráter, de Mário de Andrade (coordena­
do por Telê Porto Ancona Lopez), Prosa (Memórias Sentimen­
tais de João Miramar - Serafim Ponte Grande) e Poesia de
Oswald de Andrade (coordenado por Jorge Schwartz) - que
passou agora a se chamar Obra Incompleta de Oswald de
Andrade -, Contos de Machado de Assis, Libertinagem - Estre­
la da Manhã, de Manuel Bandeira (coordenado por Giulia
Lanciani), Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto
(coordenado por Antônio Houaiss e Carmem Lúcia Negreiros
de Figueiredo), Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardo­
so (coordenado por Mario Carelli), Os Sertões, de Euclides da
Cunha (coordenado por Leopoldo Bernucci), A Paixão Segun­
do G. H., de Clarice Lispector (coordenado por Benedito
Nunes), Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos (coorde­
nado por Wander Mello Miranda e Godofredo de Oliveira

44

Copyrighted material
AUT ORES BRASI L E I R OS N A COLEÇÃO ARCHJVOS

Neto) , Fogo Morto, de José Lins do Rego e Grande Sertão: Vere­


das, de Guimarães Rosa (coordenado por Walnice Nogueira
Galvão; o texto está sendo estabelecido por Cecília de Lara).
A série brasileira se enriquecerá com quatro obras en­
saísticas de referência da identidade brasileira: Casa-grande &
Senzala, de Gilberto Freyre (coordenado por Guillermo Giucci,
Enrique Rodríguez Larreta e Edson Nery da Fonseca), Sobra­
dos e Mocambos, de Gilberto Freyre, (também coordenado por
Guillermo Giucci, Enrique Rodríguez Larreta e Evaldo Cabral
de Mello ), Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda
(coordenado por Fernando Novaes) , A Formação do Brasil
Contemporâneo, de Caio Prado J r. (coordenado por José Jobson
de Andrade Arruda); e com a obra do modernista Pedro Nava:
Beira-mar - Memórias 4 (coordenado por Eneida Maria de
Souza).
Novos títulos são regularmente propostos e submetidos à
decisão do Comitê Científico Internacional da Coleção. Essas
obras ilustram as correntes mais variadas da literatura brasi­
leira- tanto na área da prosa (romances, contos, ensaios) como
da poesia -, do modernismo ao regionalismo, do romance psi­
cológico à prosa experimental, e assim por diante.
Até hoje, cinco volumes desta série foram publicados:
Macunaíma, A Paixão Segundo G. H., Crônica da Casa Assas­
sinada, Triste Fim de Policarpo Quaresma e Libertinagem Es­ -

trela da Manhã, assim como uma segunda edição - corrigida


e aumentada - dos três primeiros títulos. Essas cinco obras
são representativas de facetas bastante variadas da literatura
brasileira. Quanto aos ensaios, foi publicado Casa-grande &

Senzala.
Gostaria de sublinhar rapidamente a originalidade das
nossas edições.

45

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

No caso de Macunaíma., o aspecto mais interessante é a ri­


queza do material, tanto redacional como editorial e para­
textual. Se não existem manuscritos integrais (Mário acostu­
mava destrui-los, uma vez que o texto estava publicado),
existem edições minuciosamente corrigidas à mão pelo autor.
A correspondência de Mário com seus amigos poetas (parti­
cularmente com Manuel Bandeira) e o dossiê que recolhe a
fortuna crítica trazem novos esclarecimentos a respeito da re­
dação da obra.
O volume A Paixão Segundo G. H. se distingue pela ausên­
cia total de originais, manuscritos ou datiloscritos, assim como
de edições corrigidas pela autora. Não é por acaso nem por
negligência, mas é o resultado de uma vontade, ou melhor, de
uma atitude de Clarice Lispector frente às suas obras e ao ato
de escrever. Uma vez a obra terminada, Clarice entregava seus
manuscritos ao editor e os abandonava. Não corrigia as provas
nem revisava as edições para edições futuras. Dizia que "um
livro pronto é um livro morto'� e se desligava completamente
da obra acabada para ocupar-se de outra.
Uma das particularidades do seu processo criador era a
composição fragmentária: escrevia direto, ou quase, fragmen­
tos do texto, tal como surgiam e depois os organizava. Isso ex­
plica a variedade infinita dos suportes onde aparecem esses
fragmentos {páginas ou pedaços de páginas de agendas, enve­
lopes, recibos, guardanapos de papel, programas de teatro etc.),
como se pode ver nos fragmentos do conto A Bela e a Fera ou a
Ferida Grande Demais, cujo manuscrito está reproduzido em
fac-símile- com a transcrição - na nossa edição, para ilustrar a
técnica de composição de Clarice.
No caso do volume dedicado a Lúcio Cardoso, Crônica da
Casa Assassinada, a edição pôde dispor de todo o material re-

Copyrighted material
AUTO RES B R A S I L E I R O S NA COLEÇÃO A RC H I VO S

!ativo ao romance: prototextos, paratextos, numerosos manus­


critos, todos alocados na Fundação Casa de Rui Barbosa, no
Rio de Janeiro. O problema que se colocou foi o da organiza­
ção do material, por causa da sua enorme quantidade, proble­
ma que foi magistralmente resolvido por Júlio Castafion Gui­
marães, que esteve a cargo do estabelecimento do texto, e que
lhes dará mais detalhes sobre o trabalho realizado1•
A edição de Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto, apresenta outra originalidade: o texto foi estabelecido
a partir da primeira edição (única em vida do autor), baseada
no folhetim: a obra foi publicada anteriormente, como era cos­
tume de Lima Barreto, em folhetim (em 52 partes), no Jornal
do Comércio do Rio de Janeiro. Cotejaram-se os manuscritos e
as edições posteriores. Existiu um exemplar do folhetim com
correções e acréscimos do autor (que foram integrados na 1 íl

edição), mas este exemplar desapareceu.


Para a edição de Libertinagem e Estrela da Manhã de Ma­
nuel Bandeira, a dificuldade foi a escolha do texto-base, já que
existiam discrepâncias entre as edições: havia uma edição por­
tuguesa que diferia das brasileiras e as edições sucessivas nem
sempre retomavam as correções do autor feitas na edição an­
terior.
Para esse tomo, as fontes eram muito numerosas: o Arqui­
vo Mário de Andrade (conservado e alocado no Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo) , sete edições
das duas obras (entre as quais uma pertencente a Francisco de
Assis Barbosa, com anotações manuscritas a lápis por Manuel
Bandeira, inéditas, que aparecem em nossa edição), nove edi­
ções parciais, jornais e revistas, antologias etc. A edição conta

1. Ver artigo de Júlio Castafion Guimarães nesta publicação das Atas do Colóquio.

47

Copyrighted material
A RQUIVOS LITERÁRIOS

também com dois cadernos manuscritos (de Estrela da Ma­


nhã), o caderno de trabalho que Manuel Bandeira havia ofere­
cido a Carlos Drummond de Andrade, que nos permitiu
publicá-lo em fac-símile; e outro que tinha dado a João Condé,
com um desenho de Santa Rosa na capa.
Entre os próximos títulos, só citarei os de próxima apari­
ção. Evidentemente, o volume dedicado ao Oswald de Andrade,
Obra Incompleta, do qual falará mais precisamente Maria
Augusta Fonseca, integrante da equipe2•
Só queria grifar a riqueza e a complexidade do material que
,,
foi encontrado - deveria dizer "cassado - pela equipe magis­
tralmente dirigida por Jorge Schwartz. O Caderno de Imagens,
separata em quadricromia que acompanhará o volume, é uma
mostra do que pode fazer o perfeccionismo científico. . . e so­
bretudo a dedicação e a paixão.
Se está demorando tanto a publicação deste livro3, é que
foram aparecendo manuscritos e elementos da fortuna crítica
muito importantes, que foram incluídos no livro; e também
porque a organização de um material textual (aparato de va­
riantes às vezes monumental, como no caso de O Santeiro do
Mangue), em conformidade com as normas da Coleção, exige
da nossa parte um cuidado particular, não só editorial, mas
também científico (a diagramação da página não pode de ne­
nhum jeito prejudicar o trabalho filológico nem a legibilidade
do texto), e nos obriga a encontrar soluções gráficas que rele­
vam às vezes da feitiçaria!. . .

2. Ver artigo de Maria Augusta Fonseca nesta publicação das Atas do Colóquio.
3. Quando este livro estiver publicado, Obra Incompleta, dedicado a Oswald de
Andrade, já estará pronto. O primeiro volume dedicado a Gilberto 'Freyre: Casa­
grande & Senzala já foi publicado ..

48

Copyrighted material
AUTO RES B R A S I L E I R OS NA COLEÇÃO A R C H JVOS

A edição de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa,


tem um interesse científico primordial: dará a conhecer, pela
primeira vez, de maneira exaustiva, o gigantesco laboratório
do escritor que, durante mais de vinte anos, trabalhou e
retrabalhou o texto, deixando preciosos rastros das fases
redacionais da obra que, ao lado dos numerosos testemunhos
das fases pré-redacionais (cadernetas, correspondência, notas
etc.) permitem ter uma visão precisa da escrita do escritor.
Essa edição contará com mais de 30 000 variantes, o que
traz inumeráveis problemas editoriais; as variantes, que são às
vezes mais compridas que o fragmento do qual dependem, de­
vem ser colocadas uma por uma, de forma artesanal, no espa­
ço da página, ou se forem muito grandes, para a página, em
anexo.
O caso da edição do Machado de Assis é também muito
interessante. A edição nacional das obras do escritor conseguiu
juntar a quase totalidade dos romances, mas deixou de lado
alguns dos contos que Machado escreveu ao longo de toda a
sua carreira. Uma parte dos contos foi publicada pelo próprio
autor, em revistas efêmeras. Alguns foram até publicados de
forma anônima.
A nossa edição tem como tarefa procurar estabelecer este
corpus disperso, corrompido e parcialmente desconhecido. Esta
situação dos contos era um fator de imprecisão e de confusão
cronológica e estilística grave, erros que a edição se propõe re­
solver. A edição dos contos de Machado de Assis permitirá ao
pesquisador ou ao leitor curioso de cultura brasileira - ver

com um olhar novo a obra do autor e perceber melhor as


imbricações na sua globalidade.
Deixarei de lado as edições de Pedro Nava e de Gilberto
Freyre que serão apresentadas por aqueles que as prepararam

49

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

ou que as estão preparando, Eneida Maria de Souza e Guillermo


Giucci. Deixarei também de fado os volumes dedicados a Carlos
Drummond de Andrade, Graciliano Ramos e Euclides da Cu­
nha, volumes em preparação, para não me estender muito.
Apresentarei brevemente um volume muito particular.
Trata-se do volume Los Misterios dei Plata de Juana Manso. A
originalidade deste volume reside no fato de que será bilíngüe
(português/espanhol), já que Juana Manso, autora argentina
da segunda metade do século XXI, exilada no Brasil, escreveu
o romance primeiro em português e depois, mais de vinte anos,
de volta à Argentina, o reescreveu em espanhol. A primeira ver­
são, brasileira, foi publicada em forma de folhetim, no jornal
das Senhoras; a segunda versão foi publicada em forma de ro­
mance, em livro.
Nesse caso, o aspecto mais interessante - não existem ma­
puscritos mas só as sucessivas edições - é a comparação com
as duas versões, tratando-se de ver as variações não só aquelas
impostas pelo contexto histórico, mas também as relativas à
substância lingüística. Trata-se de resgatar um texto esquecido
de uma mulher que, no seu tempo - e ainda hoje - brilhava
pelas suas idéias inovadoras sobre a sociedade e o papel aí de­
sempenhado pela mulher.
Esses exemplos mostram a diversidade e a riqueza do ma­
terial que oferecem os acervos dos escritores brasileiros, que
cada dia tomam uma dimensão mais importante dentro da
Coleção.
Tantas ramificações, tantos autores, tantos livros, entre os
quais os brasileiros ocupam uma parte proporcionalmente
considerável, levou o Centre National de la Recherche Scien­
tifique (o CNRS da França) a abrir uma vaga específica de En­
genheiro de Pesquisa para o setor brasileiro da Coleção. Essa

50

Copyrighted material
AUTORES B R A S I L E I R O S NA COLEÇÃO A R C H I VOS

vaga tem, como missão, a de realizar a coordenação científica e


editorial do conjunto dos tomos brasileiros, segundo as nor­
mas metodológicas da Coleção.
Último episódio da vida agitada da Coleção - último. . . até
hoje!4 -: no dia 1 8 de setembro de 1 995, Archivos e a Universi­
dade Nacional Autónoma de México (a UNAM ), assinaram um
acordo de co-edição para publicar a Coleção em suporte ele­
trônico - CD-Rom hipertextual e hipermídia - simultanea­
mente com o suporte papel.
Este complemento editorial permete aproveitar 1 ) a rapi­
dez do meio eletrônico na detecção, consulta e reorganizações
possíveis das variantes, das suas apreciações críticas, assim
como do glossário; 2) a existência das funções especificamente
eletrônicas (para o registro das ocorrências, as bases de dados
bibliográficas) e multimídias (na recriação contextual ou na
consulta das versões cinematográficas, musicais, teatrais que a
obra suscitou); 3) a possibilidade de uma consulta direta às
fontes do arquivo do escritor, numerizado, organizado e em
alguns casos, transcrito, e permite o cotejo de documentos,
consultáveis, simultaneamente, na janela fragmentada do com­
putador. Isso constitui não só uma forma de salvaguarda da
memória escrita, como também um instrumento eficaz de
interatividade científica.

4. Já não é mais o último! Neste momento da publicação das Atas do colóquio,


estamos preparando um site na Internet, "Archivos", que, além do catálogo das
edições em suporte papel e CD-Rom, das informações sobre as atividades e as
atualidades do Programa Archivos, oferecerá à comunidade cientifica
internacional um espaço de intercâmbio através de listas de difusão, de fóruns
dedicados a temas de interesse da Coleção e de uma série de seminários on line
(em paralelo com outros seminários não virtuais que estão sendo preparados
em vários países).

51

Copyrighted material
A RQUIVOS LITERÁRIOS

Não posso - novamente para não abusar do espaço que


me outorgaram - precisar mais as carateristicas e as implica­
ções deste CD-Rom Archivos. Só posso dizer que foram reali­
zados quatro protótipos experimentais e que, brevemente, co­
meçaremos a produção do primeiro5•
Essa história, esse percurso de Archivos até um novo
cânone da literatura latino-americana no seu conjunto de­
monstra, em cada etapa, a vontade e a necessidade permanen­
tes de integração cultural entre os países que são, ao mesmo
tempo, substância - com suas literaturas -, atores - com seus
acadêmicos - e apoios - com suas instituições.
Podemos dizer que hoje, após numerosos avatares e per­
calços, a Coleção Archivos achou um equilíbrio, uma maturi­
dade metodológica e um quadro institucional favorável que lhe
permite oferecer ao mundo latino-americano - e à comunida­
de científica internacional - a possibilidade de conhecer me­
lhor - ou de re-conhecer - suas próprias literaturas - forne­
cendo uma nova leitura de textos às vezes esquecidos ou
menosprezados -, assim como as literaturas dos seus vizinhos,
hispanófonos, anglófonos. . . e até lusófonos!. . . (Farei um pe­
queno parêntese para dizer que, para mim, talvez seja este o
passo mais importante da integração cultural que oferece
Archivos: que circule a literatura brasileira, na sua própria lín­
gua, pelos países hispanófonos - sendo que o contrário sem­
pre existiu).
A prova material do êxito do que começou sendo a aven-

5. Por diversos motivos, o primeiro CD-Rom não foi realizado em colaboração com
a UNAM mas sim com a ÜAVUP (Instituto Audiovisual da Universidade de Poitiers).
Está dedicado a El beso de la mujer araiía (O Beijo da Mulher Aranha) do autor
argent ino Manuel Puig. Está em fase final de reaJização e deverá ser publicado
junto com o volume papel em 2002.

52

Copyrighted material
A U T O R E S· BRAS I L E I R O S NA COLEÇÃO A R C H IVOS

tura de um (e que agora também é nossa aventura), são os li­


vros que, finalmente, graças ao novo sistema de co-edição e de
difusão adotado, se encontram e circulam - com a mesma qua­
lidade - tanto na Argentina, no Brasil, no México e na Colôm­
bia, como na Europa, nos Estados Unidos quanto no Peru,
Costa Rica, Guatemala e Chile, paises que se incorporaram ao
Programa. Que essa difusão se expanda a outros países da
América Latina, que não são ainda nem signatários nem co­
editores da Coleção, mas que se beneficiam do novo sistema
de difusão e distribuição dos nossos co-editores.
Foi difícil para todos, mas, hoje, conseguimos oferecer aos
principais interessados, todos nós - nativos ou adotivos - des­
te continente americano, um serviço de qualidade e prestígio
que, sem o desejo de integração cultural e sem aniquilar a
especificidade do Outro - e sobretudo, sem paixão, nunca te­
ria sobrevivido e nunca sobreviviria neste início do século XXI.

53

Copyrighted material
AUTORES ARGENTINOS NA COLEÇÃO
ARCHIVOS - UM CASO
PARADIGMÁTICO
FERNANDO COLLA

Antes de mais nada, espero que desculpem minha previsí­


vel ignorância da língua portuguesa (brasileira) - digo previsível
porque, vergonhosamente, compartilho isso com grande parte
de meus colegas latino-americanistas hispano-falantes -; esta
ignorância me obriga a impor meu dialeto castelhano no tem­
po desta breve - muito breve - comunicação.
Antes de entrar no tema, devo fazer dua ressalvas:
A primeira, é que o meu ponto de vista não é o de um es­
pecialista da crítica ou da história literária latino-americana
(ou, neste caso, argentina), mas o ponto de vista de um editor,
mais modestamente, de um dos editores responsáveis pela Co­
leção Archivos. Portanto, minhas opiniões têm a ver somente
com as partes finais do trabalho de pesquisa, ou seja, a comu­
nicação, o ordenamento eficaz dos achados e das informações
encontradas, tendo em vista sua transmissão, a mal chamada
"divulgação" dos resultados;
A segunda, é que o adjetivo paradigmático, presente no tí­
tulo de minha comunicação, não tem ressonâncias exaltadoras:

55

Copyrighted material
ARQU I V O S L ITERÁRIOS

por ter trabalhado diretamente em todas as edições que men­


cionarei, descobri (como, sem dúvida alguma, teria encontra­
do em qualquer outro corpus vizinho) que o caso dos autores
argentinos, presentes na Coleção Archivos, revelava aspectos e
problemáticas exemplares, tanto para o bem como para o mal.
Em nossa perspectiva editorial, o paradigma em questão
tem contornos bem definidos: os parâmetros de adequação es­
tão constituídos pelos objetivos gerais da Coleção, estipulados
no acordo multilateral que lhe deu origem, sustentados teóri­
ca e metodologicamente em vários encontros internacionais e
concretizados, sintética e funcionalmente, no chamado "esque­
ma tipo'>, que rege e estrutura todos os tomos da Coleção
Archivos. Esses objetivos podem se codificar (se acreditamos
no valor explicativo das generalizações) em quatro finalidades
conexas: preservar, interpretar, valorizar e difundir os textos
literários da região; finalidades que, em cada volume, estão co­
ligadas para conformar a substância de duas interrogações
maiores, cuja formulação seria a tradicional "O que quis dizer
o autor?'>, colocado sobre a base do menos usual "O que real­
mente escreveu o autor?"
No primeiro âmbito, hermenêutico, representado pelo vas­
to corpus crítico que ostentam os tomos da Coleção Archivos,
dois imperativos formam sua constituição: a internaciona­
lidade da equipe e o caráter pluridisciplinar dos enfoques. No
caso dos volumes argentinos, uma suposta peculiaridade do
mundo intelectual rioplatense - o tão comentado cosmopo­
litismo, o cultivo da curiosidade centrífuga, dos olhares univer­
salistas - combinada com a nutrida diáspora imposta pelos
avatares históricos, semeando seus representantes nos mais
variados recintos acadêmicos do mundo (sobretudo do primei­
ro), facilitaram o cumprimento exemplar desses dois requisi-

Copyrighted material
AUTORES ARGENTINOS NA COLEÇÃO A R C H I VOS • • •

tos. A partir do volume que inaugurou a série de publicações


argentinas - o tomo II da Coleção, Don Segundo Sombra, coor­
denado pelo pesquisador, argentino de adoção e francês de
nascimento e formação, o professor Paul Verdevoye - o con­
glomerado de especialistas convocados por ele e pelos coor­
denadores dos dez títulos argentinos seguintes conseguiram
harmonizar enfoques de procedência, de intencionalidade e de
esferas conceituais diferentes, em uma visão global da obra e
do autor editado. Essa visão implicou não poucas inovações,
descobertas e mudanças paradigmáticas na imagem canônica
dos mesmos. Citemos, de passagem, a edição de autores tão
controvertidos como Ezequiel Martínez Estrada, Domingo
Faustino Sarmiento ou Leopoldo Marechal.
[ Neste aspecto, os volumes argentinos contrastam com os
volumes brasileiros, nos quais é possível constatar uma avassa­
ladora maioria de pesquisadores de nacionalidade e procedên­
cia profissional locais. Atribuo esta peculiaridade à já evocada
e incompreensível ignorância, ou ainda um soberbo desinte­
resse, que boa parte da academia latino-americanista hispano­
falante sempre manifestou pelas letras brasileiras, submeten­
do assim sua mal-tratada irmã, a uma espécie de isolamento
forçado] .
No segundo âmbito, o textual, e mais precisamente o da
preservação documental, as edições argentinas nos oferecem
também casos paradigmáticos, ainda que pelo aspecto negati­
vo: o mais comentado tem sido o caso do manuscrito do
,,
Martin Fierro. A "epopéia nacional argentina - como se gosta
de chamá-la - consta de duas partes, conhecidas como A Ida e
A Volta do gaúcho Martín Fierro. Da segunda parte se conhe­
ce, desde muito tempo atrás, um manuscrito conservado pelos
descendentes do autor, sobre o qual se realizou uma prestigiada

57

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

edição crítica, em 1 945. Da primeira parte, apesar do empe­


nho de muitos pesquisadores, nenhum manuscrito tinha sido
achado até alguns anos atrás, quando uma professora do Colé­
gio Nacional de Buenos Aires recebeu, das mãos de um de seus
alunos, um livreto velho, bastante deteriorado, cuja história,
difícil de reconstruir, continua sendo muito misteriosa: parece
que José Hernández, autor do Martín Fierro, teria dado esse
livreto a uma professora da cidade de Salta, no noroeste argen­
tino, em 1 885, onde se encontrava realizando uma missão ofi­
cial. O livreto passou de mão em mão, até chegar, quase cem
anos depois, ao Colégio Nacional. Apesar do estado de degra­
dação do livreto (com páginas pregadas e carcomidas pela
umidade, pelos roedores etc.), o que tornava praticamente im­
possível sua manipulação, um grafólogo especialista, imedia­
tamente consultado, assinalou a possibilidade - depois efeti­
vamente confirmada - de que se tratasse de um manuscrito
hológrafo da primeira parte do Martín Fierro. Começou ali
outra longa história, cujos protagonistas foram eminentes pes­
quisadores argentinos, que, através de artigos jornalísticos, pe­
tições e solicitações oficiais, tentaram alertar e mobilizar as ins­
tituições culturais do país, para que oferecessem os fundos
necessários para a restauração do manuscrito, condição prévia
indispensável para seu estudo e difusão. Ainda que nos custe
acreditar, nenhuma entidade oficial se mostrou disposta a ou­
torgar os (reduzidos) subsídios solicitados. Finalmente, a Co­
leção Archivos decidiu assumir os gastos da restauração, com a
condição de poder utilizar o livreto como fonte para a edição
crítica da obra, antes de proceder à doação do mesmo às auto­
ridades argentinas. O resultado feliz desta iniciativa se traduz
na iminente publicação do volume Archivos dedicado ao
Ma rtín Fierro que, ao registrar e analisar as supressões, as

58

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

francês e ainda dos chamados estudos culturais. Dessas práti­


cas resulta uma originalidade metodológica, que transparece
com uma nitidez cada vez mais patente nos volumes da Cole­
ção Archivos. O já citado tomo II da Coleção, dedicado ao ro­
mance de Ricardo Güiraldes, Don Segundo Sombra, deixava
pressagiar esses avanços. Nele, a pesquisadora Elida Lois con­
seguia retirar, magistralmente, da exaustiva consulta às fontes,
na classificação estrita das variantes e sua análise interpretativa,
os resultados mais reveladores, ou seja, mostrar como se confi­
gura nos movimentos, na respiração e nas fases do ato criador,
o conjunto dos sentidos profundos que sustenta e estrutura a
obra. O caminho percorrido nessa direção, traçado nesse tomo
inaugural, se amplia nas edições mais recentes, como no já ci­
tado romance de Haroldo Conti, Sudeste, edição realizada por
Eduardo Romano, ou na Obra Completa de Oliverio Girondo,
preparada por Raúl Antelo. A extensão e a riqueza deste itine­
rário se manisfestará, sobretudo, na edição do Martin Fierro
que, doze anos depois de Don Segundo Sombra, é fruto do tra­
balho e da reflexão incessante da mesma pesquisadora - um
dos pilares intelectuais da Coleção Archivos -, a professora
Elida Lois.
É necessário assinalar outros elementos que aportam, nos
volumes dos autores argentinos, determinações conceituais
importantes ao texto editado. Poderíamos mencionar, por
exemplo, a inclusão e a exploração teórica de paratextos im­
portantes, como o Cuaderno de Bitácora, que acompanha a
edição de Rayuela, de Julio Cortázar. Esse livreto de trabalho,
no qual, a partir de 1 958, o escritor define e estrutura o projeto
de redação em cada uma de suas fases, marca um contraponto
permanente com o texto estabelecido, a partir do manuscrito
do romance, depositado na Universidade norte-americana de

60

Copyrighted material
AUTORES A R GENTINOS NA COLEÇÃO A RC H I VOS . • •

Austin, e suas variantes. Funciona como um intermediário


dialético entre a conceituação e a atualização textual da obra,
além de configurar uma imagem dinâmica do laboratório do
autor, da laboriosa g,ênese do romance. Poderíamos mencio­
nar também o Diário de Gastos, que acompanha a edição das
Viajes de Sarmiento, proporcionando detalhes enriquecedores
e saborosos a esse texto itinerante.
Também não podemos deixar de assinalar, no extremo
oposto ao da gênese escriturai, ou seja, o da recepção, a inclu­
são nos volumes argentinos da Coleção Archivos, de nutridos
conjuntos de textos críticos, que recolhem as apreciações mais
importantes suscitadas pela obra, desde sua aparição até o
momento atual. Estes "dossiês de recepção" (como os chama­
mos) permitem, sobretudo nos casos mais problemáticos,
como o foi, por exemplo, o de Leopoldo Marechal, iluminar o
traçado tortuoso do percurso que leva primeiro à exclusão e
depois à incorporação, no cânone, de sua obra prima, o Adán
Buenosayres. Pode-se ainda detectar, nesse itinerário, a intrin­
cada rede de critérios literários e, principalmente, extraliterá­
rios (ideológicos, políticos) que determinam essa valorização.
Ao mesmo tempo, a inclusão dos dossiês nos volumes de auto­
res argentinos vai constituindo, também progressivamente,
uma espécie de história da crítica nacional e da configuração
de suas visões e concepções culturais.
Poderíamos assinalar outras contribuições mais ou menos
inovadoras. Confessamos que este enriquecimento exponencial
do conteúdo dos volumes da Coleção - à medida que a refle­
xão metodológica avança e incorpora novas peças explicativas
ao enigma que, permanentemente, propõe a gênese, o estabe­
lecimento e o destino de cada texto literário - coloca, para os
editores, problemas técnicos cada vez mais árduos e, freqüen-

61

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

temente, insolúveis. Há um conflito permanente entre o pes­


quisador e o editor: aquele, pretende licitamente comunicar
exaustiva, detalhada e agradavelmente os avatares e os frutos
de seu trabalho; este, deve modular o volume da informação
contida nos limites de uma página, segundo o que supõe po­
der avaliar como as possibilidades máximas do olho e do cére­
bro de um leitor médio. Com bastante freqüência, a exaustivi­
dade atenta contra a legibilidade. As informações, às vezes
essenciais, se perdem em uma diagramação carregada que deve
dar conta do texto, do repertório das variantes, dos comentá­
rios filológicos, das notas explicativas, do glossário, quando não
de obscuras codificações ou de extravagâncias gráficas ideali­
zadas pelos programadores de textos. O aprofundamento dos
discursos teóricos e dos procedimentos críticos, com a conse­
qüente profusão de informações que caracterizam cada vez
mais os volumes da Coleção, têm nos levado a conceber como
única solução a edição simultânea de um complemento eletrô­
nico - o livro acompanhado de um CD-Rom - que recolha e
reorganize os materiais, incluídos e excluídos do suporte pa­
pel, propondo paralelamente novas vias de acesso ao texto. As
características deste CD-Rom hipermídia são aqui informadas
pela minha colega Sylvie Jo.sserand. Somente indicarei que, não
casualmente, a série de edições eletrônicas será inaugurada por
um texto argentino, o romance El Beso de la Mujer Arana, de
Manuel Puig, uma edição monumental que recolhe, ao mes­
mo tempo, caudalosa e harmoniosamente, todos os procedi­
mentos e intrumentos de aproximação ao texto aos que men-
c1one1 aqui.
. . .

O importante é que todo esse movimento, nascido de es­


forços teóricos e metodológicos importantes, não se reduza
nem a um espelho das veleidades dos pesquisadores, nem a

62

Copyrighted material
A LITERATURA SAI DOS ARCHIVOS

LOUIS HAY

Detentor do futuro, o Colóquio de Belo Horizonte - A In­


venção do Arquivo Literário - marca , também , uma etapa na
história: a de uma aventura científica que o programa Archivos
e a pesquisa genética viveram, paralela e conjuntamente, nos
últimos trinta anos.Ao olharmos para o passado, nos surpreen­
demos ao vermos como esta aventura foi rica em obstáculos,
em problemas a serem resolvidos e em descobertas imprevi­
síveis. No início, entretanto, seus atores não tinham a menor
idéia daquilo de que se tratava e não sabiam o que os esperava.
Os papéis de Asturias, para alguns, os de Henri Heine, para
outros, cairam , por assim dizer, em nossas mãos e nos projeta­
ram no mundo dos manuscritos , assim como a famosa maçã
que, com sua queda, revelou a Newton as leis da gravidade.
"Manuscritos, por que Fazê-los?" foi, em 1 968, o título de um
primeiro artigo: confissão de perplexidade ingênua, mas, tam­
bém, questionamento do qual nos ocupamos ainda hoje, trin­
ta anos mais tarde.
Isso não quer dizer que não avançamos. Para compreen-

Copyrighted material
ARQUIVOS LITl! R Á R I OS

der como as coisas mudaram, é preciso lembrar qual era o ce­


nário científico quando começamos. Na época, o simples en­
contro entre um especialista da América Latina e um ger­
manista era uma espécie de incongruência acadêmica. A
pesquisa era um trabalho solitário cujo objetivo era tornar-se
um especialista em Racine ou em Milton, em Balzac ou em
Goethe. A mesma coisa acontecia com os trabalhos de pesqui­
sa: professores, bibliotecários, editores e arquivistas, cada um
em um lado diferente. Neste ponto de vista, a genética, assim
como Archivos, tiveram uma dupla sorte. A primeira, pelo seu
lugar de nascimento. Estavam fora do sistema universitário, em
um CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) que,
na época, oferecia um verdadeiro contramodelo. Este grande
organismo já reunia em uma comunidade científica todas as
áreas do saber: da física nuclear à filosofia e da química
molecular à paleografia grega. Estava criado, assim, um vasto
espaço intelectual através do qual a pesquisa fundamental po­
dia se desenvolver livremente. Nossa segunda sorte foi chegar
na hora certa. Os anos sessenta e setenta do século XX eram
marcados, na França, por uma grande efervescência de idéias
em ciências humanas. A crítica genética pôde tornar-se um dos
pontos de cristalização desse movimento porque ela lhe ofere­
cia um objeto novo - o manuscrito - e uma problemática - o
estudo da produção intelectual - que era comum a outras dis­
ciplinas. De uma só vez, o ITEM (Institut des Textes et Ma­
nuscrits Modernes) pôde reagrupar pesquisadores pertencen­
tes a especialidades diferentes: literatos, lingüistas, historiadores
e editores, pesquisadores procedentes das mais diversas insti­
tuições e pertencentes a um grande número de países: Alema­
nha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá - para citarmos
apenas os mais representativos. Ele pôde, também, e sobretu-

66

Copyrighted material
A L I T E R AT U R A S A I D O S A RC H I V O S

do, construir suas bases graças a um trabalho de equipe - uma


inovação audaciosa para a época em nossas disciplinas - o que
modificou profundamente nossas condições de trabalho. De­
finitivamente, um novo modelo de pesquisa surgiu a partir dos
nossos trabalhos. Com o tempo, confirmou-se sua eficácia, seja
através da Archivos, que se tornou a maior empresa editorial
em sua área, seja pelo I TEM, que passou a ser a casa comum de
uma centena de especialistas. Mas, sobretudo, a pesquisa se
desenvolveu sobre o plano internacional. Ela está hoje repre­
sentada na Europa, de Portugal à Rússia, nas Américas, do Ca­
nadá até o Brasil. Não é necessário ver a simples propagação
de uma teoria espalhada pelo mundo a partir do celeiro da Es­
cola Normal de Paris. Os países que se interessaram pela ques­
tão têm suas próprias tradições científicas, quase sempre mui­
to antigas, e eles elaboraram a pesquisa em função de sua
própria realidade. É inútil insistir nisso, aqui, já que o Brasil
tem oferecido uma demonstração notável ao criar e manter
uma ativa associação nacional dos pesquisadores genéticos.
Entretanto, a grande tradição italiana nos estudos dos
scartifaci ou a muito antiga Editionswissenschaftalemã tiveram
igualmente um papel importante na história da pesquisa. Esta
diversidade foi certamente necessária para fazer avançar a crí­
tica genética. A confrontação das diferentes realidades cultu­
rais e das diferentes tradições científicas nos permitiu experi­
mentar nossas idéias, colocá-las à prova e fazê-las avançar.
Pergunto-me, além disso, se, desse ponto de vista, não seria útil
dispor logo de um site na internet sobre a pesquisa genética,
de forma a tornar rapidamente conhecido o que se faz nessa
ou naquela área. Poderíamos, assim, por exemplo, consultar,
na Alemanha, os diversos modelos da edição genética em pa­
pel, na França, os últimos tratamentos hipertextuais, no Brasil,

Copyrighted material
A RQ U I VO S L I T E R Á R I O S

as pesquisas genéticas em ciências humanas e nos arquivos li­


terários. A invenção do arquivo, o tema de nosso Colóquio, é,
além disso, uma fórmula que me chamou a atenção, visto que
na Europa os arquivos literários foram realmente uma grande
invenção e, mais, uma invenção relativamente recente. Tal
constatação pode surpreender e merece uma explicação. Gos­
taria de falar um pouco mais sobre isso.
Todos sabem que documentos literários foram colecio­
nados a partir do momento em que o culto ao grande escritor
surgiu no imaginário coletivo. Isso pode remontar muito atrás
e permite, hoje, encontrar manuscritos literários, compreen­
dendo aí documentos de trabalho, a partir do século XIV na
Biblioteca Vaticana de Roma, do século XVI, na Staatsbi­
bliothek de Berlim, do século XVII, na British Library de Lon­
dres, do século XVIU, na Biblioteca Nacional de Paris. O pes­
quisador que trabalha com a história das práticas de escrita
pode, dessa forma, voltar no tempo saltando, segundo a neces­
sidade, de um país a outro. Ele o faz, entretanto, em uma pers­
pectiva modernista e pagando o preço de um anacronismo. Os
contemporâneos de Petrarca, de Francis Bacon ou de Rousseau
não atribuíam nenhuma significação específica aos testemu­
nhos do trabalho literário. Os manuscritos desses célebres au­
tores eram conservados em sua qualidade de autógrafos e, por
assim dizer, a título de relíquias; às vezes, também, para servir
a seus contemporâneos de modelos na arte de escrever. Nos
espaços das bibliotecas, eles tomavam lugar ao lado de todos
os outros documentos preciosos, literários ou não. Foi preciso
esperar a passagem do século XIX para o século XX para ver­
mos as cortinas se abrirem sobre um outro cenário intelectual.
Em 1 889, o filósofo alemão Wilhelm Dilthey pronunciou seu
célebre discurso, intitulado "Os Arquivos Literários'» que foi a

68

Copyrighted material
A L I T ERATURA S A I D O S A RC H I VO S

primeira grande defesa deste novo conceito. Trata-se, diz ele,


de salvaguardar esses ''testemunhos diretos" da criação que são
importantes "para o historiador da literatura, assim como para
o esteticista': Sete anos mais tarde, a mais prestigiosa dessas
instituições - o "Goethe-und Schiller-Archiv" - será efetiva­
mente inaugurada em Weimar por uma alteza real, e as cria­
ções de centros literários vão, a partir daí, se multiplicar e servir
de exemplo na Europa. Na metade do século XX, a Alemanha
dispõe, assim, de vários grandes arquivos nacionais e de apro­
ximadamente cinqüenta estabelecimentos regionais. Na inven­
ção dos arquivos literários, um passo decisivo foi dado. Mas
não em sua exploração. Dois anos antes de seu manifesto,
Dilthey havia, entretanto, publicado um ensaio com o título
profético, "A Criação nos Escritores. Elementos para uma Poé­
tica': Diríamos que só faltou um elo entre os dois textos, o en­
contro de uma prática arquivística e de uma poética literária,
para que a crítica genética nascesse desde o princípio do sécu­
lo. Todavia, a filosofia de Dilthey, chamada "a ciência do espí­
rito" ( Geisteswissenschaft) queria: "Identificar a dinâmica do
imaginário, compreender sua natureza e suas formas [ . . . ] pe­
netrar no mais íntimo da vida do escritor [ . . . ] ':
Esta ambição psicologizante e, em resumo, de inspiração
bastante bergsoniana, não era feita para favorecer um trabalho
positivo sobre peças, uma análise textual e material dos docu­
mentos. Do ponto de vista da pesquisa moderna, este primei­
ro encontro entre crítica genética e arquivos representa a his­
tória de um insucesso. O mesmo acontecerá com o primeiro
encontro dos estudos de gênese com a literatura. A época de
Dilthey é também a de uma revolução poética que se anuncia
primeiramente na França, no círculo em torno de Mallarmé.
Para esses jovens escritores, a magia da literatura não se dá mais

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁR IOS

entre o leitor e a obra, "este ídolo imóvel que ele adora por ele
,,
próprio (a fórmula é de Proust), mas entre o artista e sua cria­
ção: "o fazer como prindpal e tal coisa feita como acessório, eis
,,
minha idéia , escreve, em 1926, Valéry, o mais importante pre­
cursor de uma reflexão genética que será ainda bastante discu­
tida aqui.
Esta nova visão da literatura vai de par com uma nova re­
lação do escritor com o manuscrito. Ela se manifesta em ter­
mos de conservação: "Aprendi a não rasgar nada que escrevo",
dirá Clarice Lispector; conservação mas, também, revelação. A
comunicação dos dossiês da vida do autor está na moda. Cons­
tituem-se, assim, através do mundo inteiro, as grandes cole­
ções, durante o período que cobre as duas grandes guerras
mundiais: Biblioteca Doucet em Paris, Centro Ransom em
Austin, Biblioteca Morgan em Nova York, Fundos Bodmer em
Genebra, para citar apenas alguns grandes nomes. Assistimos,
desse modo, ao nascimento de um novo modelo de arquivo,
que não é mais o conservatório do passado, mas o reflexo do
presente. Vale lembrar que, se, em Paris, o costureiro Doucet é
o mecenas de seus autores, seus manuscritos foram reunidos
por André Breton e por Aragon, que sempre salientou a im­
portância desse trabalho. Na segunda metade do século X.X, o
movimento se expande pelas instituições públicas. A partir dos
anos sessenta - logo, uma realidade recente - a Biblioteca Na­
cional de Paris se empenha em uma política de compra de
manuscritos literários, estes famosos manuscritos chamados de
modernos, que vão logo suplantar, nessas aquisições, os ma­
nuscritos da Idade.Média. Ao mesmo tempo, a Alemanha Fe­
,,
deral desenvolve os "Arquivos Alemães da Literatura , em
Marbach, e a Itália cria, em Pádua, um centro dos arquivos li­
terários contemporâneos. Enfim, em 1 987, a Assembléia Geral

70

Copyrighted material
A L ITERATURA SAI DOS A R C H I VOS

da UNESCO adota a resolução sobre a "Conservação da Memó­


,,
ria Escrita do XIX2 e XX2 século . Pelo próprio título, esse texto
estende a noção de arquivo cultural que ultrapassa a única área
dos manuscritos de escritores. Ao mesmo tempo, as condições
da pesquisa se modificam de maneira espetacular. Não pode­
mos nos esquecer que, na metade do século, um pesquisador
devia, freqüentemente, dedicar 95o/o de seu tempo à pesquisa
de um documento e 5% à sua interpretação - me sinto bem à
vontade para testemunhar isso! Com o desenvolvimento dos
arquivos e do trabalho de equipe, essas proporções começaram
a mudar e, no futuro, elas poderão se inverter completamente
graças à informatização dos catálogos. Temos, a partir de ago­
ra, un1 outro horizonte que se abre para os nossos trabalhos.
Os próprios escritores dão a seus manuscritos uma signi­
ficação completamente nova. Ao invés de permanecerem relí­
quias, esses dncumentos são utilizados como chaves para se al­
cançar a inteligência da criação literária. Ainda em 1926, Gide
diz, através de sua personagem principal de Os Moedeiras Fal­
"Não seria, talvez, absurdo pensar que a crítica literária
sos:

pudesse receber auxílios inesperados do estudo dos manuscri­


tos originais':
Mais uma vez, a crítica genética se apresenta a nosso al­
cance, visto que seus documentos e conceitos já estão em or­
dem. E, de fato, a imprensa começa a multiplicar pesquisas e
entrevistas dedicadas à psicologia dos escritores, enquanto al­
guns precursores, como Gustave Rudler, propõem uma primei­
ra reflexão sobre a gênese. Sua obra - e, notadamente, o im­
portante trabalho da crítica italiana -, será redescoberta pelos
geneticistas do fim do século. Naquela época, entretanto, ela
permanece isolada. Na França, é o longo reinado da história
literária, da biografia dos autores e da explicação dos textos.

71

Copyrighted material
ARQUIVOS LI TERÁRIOS

Será preciso esperar meio século para que a crítica penetre no


arquivo do escritor. Podemos ver uma marca dessa mudança
na doação de Aragon que, ao renovar o projeto de Miguel
Asturias, remete seus papéis aos pesquisadores do CNRS e co­
menta esta doação em seu último ensaio teórico, intitulado:
"D'un grand art nouveau: la recherche"1• Segundo o autor:

O campo de nossas relações, do escritor e do pesquisador, é o da


escrita [ . . . ) não somente a escrita petrificada pela publicação, mas o tex­
,
to ''no seu vir a ser , apanhado durante o tempo da escrita, com seus ras­
cunhos assim como com seus arrependimentos, espelho das hesitações
do escritor como espécie de sonhos que são revelados pelos obstáculos
do texto.

Este texto figura no início do volume que, pela primeira


vez, dá um nome a esta nova pesquisa e uma data de nasci­
mento para o público: Essais de critique génétique2, de 1 979.
A partir daí, as trocas se multiplicaram entre autores e
geneticistas e eu guardei para sempre a lembrança da presença -
no 12 Congresso Brasileiro de Crítica Genética - de Antonio
Callado e de seu apaixonante debate com os participantes. Na
França, escritores de todas as tradições e gerações participaram
dessas trocas: Louis Aragon e Francis Ponge, Claude Simon e
Yves Bonnefoy, Michel Butor e Robert Pinget, Pierre Oster e
Danielle Sallenave - e precisaríamos continuar citando. . . Es­
ses encontros aconteceram algumas vezes com peças na mão,
confrontando a palavra dos autores com testemunho de seus
manuscritos. Descobrimos, então, que a verdade sobre o vivi­
do nem sempre é a verdade do escrito. Do autor que se livra

1. "D'un grand art nouveau: la recherche� Essais de critique génétique, Paris, Flam­
marion, 1979.
2. Essais de critiqt1e génétique, Paris, Flammarion, 1979.

72

Copyrighted material
A LITERAT U R A SAI DOS ARCHIVOS

dos fantasmas de sua mem.ória até aquele que se arma do tes­


temunho dos dossiês - ou até aquele que descreve a história de
seu trabalho a ponto de fundi-la em sua obra - a relação com a
escrita é instável, a tal ponto que seria necessária uma outra
conferência só para falar sobre isso. Pelo menos, compreende­
mos que a literatura tem várias faces. Ela as apresenta sucessi­
vamente ao escritor que as vive, ao leitor que decifra sua pró­
pria partitura no texto, ao crítico que analisa a obra e a gênese
como um todo. Conseqüentemente, tornamo-nos mais cuida­
dosos na reflexão crítica dos próprios autores, quer se trate de
seus comentários ou textos teóricos, quer de seus diários, ca­
dernos de notas ou correspondências. Essa massa de informa­
ções e idéias permite completar o testemunho dos manuscri­
tos e de prolongá-los até mesmo às épocas ou às circunstâncias
em que os documentos de trabalho nos faltam. Entretanto, ela
nos ajuda também a melhor compreendê-los. Dessa forma, es­
ses trinta anos foram anos de aprendizagem, de conquista qua­
se sempre laboriosa e árdua de um novo continente. Foi preci­
so aprender a olhar um manuscrito, a decifrar seus sistemas
concorrentes de signos, a analisar traços, a identificar tintas, a
datar filigranas, mas também, e ao mesmo tempo, a encontrar
um momento, a compreender um sentido, a alcançar a litera­
tura antes de ela se tornar texto, obra, domínio público.
Assim, a literatura saiu dos arquivos e os pesquisadores
abriram os olhos para este espaço onde a obra do escritor tor­
na-se obra de arte. Mas para quem? Todo livro pode ser repro­
duzido em milhares ou milhões de exemplares e circular pelo
mundo inteiro. Todo manuscrito é único e bem guardado em
um lugar freqüentemente de difícil acesso. No fundo, uma
questão preliminar é colocada à crítica genética. Ela - a que tira
sua vitalidade de seu enraizamento em uma prática viva da es-

73

Copyrighted material
ARQUIVOS LITE R Á R I OS

crita - continua, entretanto, fechada nas mãos do especialista.


É verdade que o problema da difusão da genética, o problema
de seu retorno a uma cultura de onde ela saiu, está, a partir de
agora, na moda. É, talvez, no Brasil, onde senti mais diretamen­
te - no contato com uma literatura ao mesmo tempo popular
e de vanguarda - uma tradição que a literatura francesa de hoje
não vive mais e que torna mais sensível esse dever da crítica.
Hoje, esse dever está longe de ser cumprido. Contudo, pelo
menos um movimento parece engajado em vários níveis.
Primeiramente, no que diz respeito ao ponto de vista do
objeto manuscrito, que se tornou na Europa um objeto privi­
legiado de exposições, reproduções e publicações. Este sucesso
se deve, em parte, à sua expressividade, à força estética do
grafismo, mas, também, à presença pessoal do autor por detrás
da escrita. Tudo isso pode, levar a um certo fetichismo, que as
mídias favorecem, aliás, com prazer. Mas isso pode servir tam­
bém de alerta. A propósito de uma primeira exposição de ma-
. nuscrito, Paul Valéry - sempre ele! - escrevia, já em 1 93 7:

Foi urna grande e paradoxal novidade [ . . ] dar a este princípio invi­


.

sível, ao próprio espirito, não sei que cara, e fazer surgir aos olhos dos
visitantes a própria invenção. [ . . . ] O manuscrito original, o lugar de seu
olhar e de sua mão, onde se inscreve a cada linha o duelo entre o espírito
e a linguagem [ .. . ] todo o drama da elaboração de urna obra e da fixação
do instável.

Nenhuma exposição teve direito a uma apresentação des­


se tipo, mas, ao se multiplicarem, as exposições não pararam
,,
de ser uma "grande e paradoxal novidade para entrar na vida
cotidiana da cultura.
Um instrumento de difusão mais potente e mais durável é,
evidentemente, fornecido pela edição. A edição genética é uma

74

Copyrighted mater ai
A LITERATURA S A I D O S A R C H I V O S

invenção recente, como a dos arquivos que lhe deram uma pos­
sibilidade de existência. Para o que se propõe, não quero me
dedicar, aqui, a esses problemas e possibilidades técnicas, mas
à sua dimensão cultural, que a Coleção Archivos ilustrou
magnificamente ao lhe proporcionar urna verdadeira mudan­
ça de escala. Archivos apresenta um modelo notável, por sua
amplitude e, ao mesmo tempo, por sua concepção. Ela exerce,
ao mesmo tempo, uma função de restituição, de conservação,
de transmissão e de análise dos grandes textos literários, fun­
ção que se exerce através de uma vasta área cultural e a faz co­
municar-se com outras culturas. A Coleção tem sucesso, ao
valer-se das recentes concepções e instrumentos da ciência edi­
torial, quer se trate dos suportes informáticos , quer dos dossiês
genéticos. Com relação a esses últimos, a situação era compli­
cada na América Latina, pela dificuldade em se ter acesso à to­
talidade dos documentos e por sua conservação muito desigual.
Nessa diversidade de suas fontes, Archivos se adaptou, ao jo­
gar, sobre toda a paleta, apresentações gráficas. Notei, assim ,
entre outras coisas: o emprego do fac-símile para Mensagem,
de Pessoa, do fac-símile com transcrição para os Carnets de
Bitacora, de Cortázar, do fac-símile com edição genética para
El Arbol de la Cruz, de Asturias. O denominador comum des­
ses diversos modelos se encontra, assim , na utilização do fac­
símile; e acredito que temos que agradecer a Deus. Se exami­
narmos, por exemplo, uma página da edição tipográfica do
manuscrito no volume de Asturias, ElArbol de la Cruz, constata­
remos que ela restitui claramente, em caracteres de imprensa, as
diferentes camadas de correções feitas pelo autor. Não vou, aqui,
exaltar as qualidades e os méritos deste aparelho; cabe a Amos
Segala essa honra. Mas, se peço a um leitor da página impressa
para reescrever a página manuscrita a partir dessa transcrição,

75

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁ R I OS

valerá a pena imaginar o aspecto. Isso advém da incapacidade


de qualquer dispositivo tipográfico em restituir a realidade grá­
fica de um manuscrito. Não podemos nos esquecer de que a
imprensa foi inventada para produzir textos claros, limpos de
qualquer rabisco ou rasura. Não podemos, desse modo, lhe
pedir que faça o contrário e que reproduza o rascunho da pena.
Somente o fac-símile mostra o traço material das operações
genéticas: a organização da escrita sobre a página, os percursos
da pena, as funções do grafismo. É, aliás, tão verdadeiro que os
autores contemporâneos têm, eles próprios, acesso a esse pro­
cedimento, a começar, como sempre, por Valéry, que utiliza, em
1 924, o fac-símile para a única, que eu saiba, publicação de um
de seus Cahiers. Mas isso não é tudo. A edição genética não tem
somente como função fazer ler ou fazer ver. Ela deve, também,
fazer compreender. Qual foi o processo de trabalho do escritor?
Como interpretar a função de um caderno, o lugar de um
acréscimo, o destino de um rabisco? Daí, a utilidade de um co­
mentário de acompanhamento da gênese, tal como foi exem­
plarmente realizado, por exemplo, no volume Rayuela, de
Cortázar, feito por Ana Maria Barrenecha ou em Macunaíma,
de Mário de Andrade, feito por Telê Ancona Lopez. Esse tipo de
comentário é, aliás, indispensável nas publicações de cunho
pedagógico, aquelas que querem mostrar e fazer compreender
o que é uma gênese. Chego, assim, a um terceiro nível na difu­
são do saber genético: o do ensino.
Essa difusão começou, de uma certa forma, por dois cami­
nhos. Por um lado, na Universidade, nos seminários de tese,
por outro, na Escola, nos ateliês de escrita organizados por pro­
fessores que descobriram os manuscritos literários. Eles os in­
tegraram aos seus cursos e criaram uma documentação peda­
gógica sobre dossiês, até mesmo sobre suportes informáticos.

Copyrighted material
A LITERATURA S A I DOS A R C H J VOS

Nas Universidades assim como nas Escolas , todas essas ativi­


dades tiveram um certo desenvolvimento durante os últimos
anos. Mas , até aqui , elas representavam sempre a iniciativa dos
professores. É somente neste ano que se anuncia sua introdu­
ção nos programas oficiais dos Colégios. Em um país centrali­
zado como a França , a aposta é importante. Isso implica que
os estudos de gênese são, doravante, ensinados em todos os es­
tabelecimentos e figuram em seus manuais de classe - eis a crí­
tica genética transformada em disciplina clássica. É somente a
partir de tal difusão que será permitido dizer que a crítica ge­
nética começa a devolver à literatura tudo o que ela lhe deve.
A data dessas inovações é interessante por si só , já que ela
se situa no ponto extremo do longo percurso que acabo de evo­
car. Dito de outro modo, foram precisos trinta anos para que a
genética passasse de suas primeiras descobertas a um estado
oficial. É, evidentemente , muito tempo. Para explicar este lon­
go período, existem razões de ordens diversas , administrativas
ou técnicas por um lado, mas também , por outro, provocadas
pelas discussões em torno da nova disciplina. Já tive a oportu­
nidade de falar sobre isso e não gostaria , aliás, de voltar ao as­
sunto3. Em compensação, certas questões continuam em de­
bate para o futuro e gostaria de evocar duas para terminar.
A primeira diz respeito ao próprio estatuto da genética e,
mais precisamente, seu lugar entre as outras disciplinas. É uma
questão de atualidade, visto que as trocas entre a genética lite­
rária e outras áreas não pararam de crescer no Brasil assim
como na França. Elas estão, além disso, na ordem do dia para
uma próxima conferência franco-brasileira que nos permitirá
ir bem além daquilo que posso dizer aqui. Mas, mesmo antes

3. Cf. "Critiques de la critique génétique", Genesis. n. 6.

77

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

desse encontro, a revista Genesis já consagrou vários números


a assuntos como música, arquitetura, psicanálise ou semiótica.
Por outro lado, a Coleção Manuscritos dedicou um volume aos
diários de Pasteur. Enfim, publicamos toda uma série de tra­
balhos feitos por historiadores da arte ou da pesquisa em ciên­
cias experimentais. Logo, nossas trocas não foram menos ati­
vas com nossos vizinhos cientistas do que com os escritores.
Esse movimento de extensão da problemática genética em ou­
tras disciplinas nos confrontou com a questão de seu estatuto
epistemológico. Uma opinião radical quis ver na genética um
conceito de valor genérico, já que os fenômenos de gênese são
representados no conjunto do universo social e natural. E, às
vezes, chegamos a pensar que eles poderiam, no final das con­
tas, se aplicar ao crescimento de um brin d'herbe, como na ex­
pansão do universo. Parece-me que, em todo caso, uma tal ge­
neralização dependeria da filosofia mais que da ciência, na
medida em que parece difícil lhe atribuir uma eficácia opera­
cional em uma pesquisa empírica. É preciso, além disso, lem­
brar que os exemplos evocados não são todos da mesma natu­
reza. A psicanálise e a semiótica são sistemas teóricos que
podem ser empregados na pesquisa genética mas sem lhe per­
tencerem propriamente. O mesmo não acontece com a música
ou com a pesquisa científica, com a pintura ou com as artes do
espetáculo. Trata-se, aqui, de objetos estéticos ou intelectuais
que são produções do espírito e cujo estudo demanda a pre­
sença do arquivo. Esses elementos de similitude com a litera­
tura fizeram surgir o projeto de uma genética transversal. Mais
robusta que a genética universal, ela me faz, entretanto, hesi­
tar. Seu charme está em mostrar como a reflexão genética pode
circular por um vasto cenário intelectual. Seu risco está em unir
todas essas produções para serem destiladas em um conceito

Copyrighted material
A l. I T ERATURA S A I D O S A R C H I V O S

teórico, o da criatividade. Além disso, não é suficiente uma


competência única para explorar todas as produções da arte
ou da ciência. É justamente uma conquista recente da genética
o fato de ter mostrado como o escritor tem negócios com as
palavras, a pintura com as cores, o arquiteto com os materiais.
Cada um deles começou somente a nos falar dos segredos sin­
gulares de sua arte. Na genética das letras, vale refletir, agora,
sobre o que esta diversidade nos ensina sobre a especificidade
da nossa arte.
Nesse sentido, gostaria de pedir emprestada aos historia­
dores da música uma questão que nos concerne à nossa ma­
neira, a saber: se a crítica genética não chegou, ao mesmo tem­
po, muito tarde e muito cedo. Muito tarde porque o passado é
um monstro que devora os papéis; muito cedo porque o futu­
ro é um mágico que poderá passar sem isso. A crítica genética
seria, assim, um tipo de saber ocasional, além e aquém e limi­
tado a um século ou dois. Ela poderia justamente se consolar
sonhando que esses séculos são vastos o suficiente para garan­
tir ainda trabalho aos geneticistas de hoje e a seus filhos. Pare­
ce-me que tal visão faz o amálgama entre uma evidência e uma
hipótese. A evidênc.ia de que nossos documentos são os mais
abundantes nos séculos XIX e XX. A hipótese de que não sabe­
mos nada do passado mas sabemos tudo sobre o futuro. Gos­
taria de contestar as duas idéias. Na Europa, como vimos, dis­
pomos de manuscritos de trabalho literário desde o século
XVII, ou seja, mais ou menos depois da descoberta de um novo
suporte: o papel; e de uma nova maneira de trabalhar: o rascu­
nho. Dito de outra forma, depois da conjunção de um novo
instrumento e de uma nova prática - tal conjunção continua a
comandar as trocas através dos séculos. Evidentemente, o nú­
mero de papéis que atravessaram os séculos é muito menor que

79

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁR IOS

os documentos contemporâneos. O emprego e a conservação


dos manuscritos aconteceram de maneiras diferentes, em mo­
mentos diferentes e em lugares diferentes. Por isso, aliás, a his­
tória dos arquivos é hoje um elemento constitutivo da pesquisa
genética. Por que tal documento foi conservado por seu autor?
Por que ele foi objeto de uma transmissão e em que condições?
Para abordar o estudo de um manuscrito, é preciso começar
por comprender o que significa sua presença sobre nossa mesa.
Entretanto, é possível completar a lição dos documentos pelos
testemunhos indiretos de autores e de seus contemporâneos,
tais como os que evoquei. Por todas essas razões, um história
das práticas de escrita não é somente desejável, mas, também,
totalmente utópica. � verdade que, há alguns anos, estudos de
ordem genética se espalharam até a Antigüidade. Sobre a capa
de um livro que recebi neste verão, lê-se: "Quais eram as práti­
cas de composição de uma obra literária, o método de traba­
lho dos autores antigos?"
Eis uma questão que parece diferente daquelas que coloco
para a época moderna. Afinal de contas, o que toda a história
da gênese nos ensina é que ela depende, ao mesmo tempo, dos
instrumentos da escrita, das necessidades intelectuais de uma
composição e das práticas culturais de uma época. Isso é, ain­
da hoje, verdade para a escrita eletrônica. A informática revo­
lucionou os instrumentos. Resta, agora, observar o impacto
dessa revolução sobre os espíritos, os métodos de trabalho e a
cultura de nosso tempo. Já sabemos que a eletrônica suprimiu
o rascunho, mas multiplicou as possibilidades de conservação
e de anotação. A coleta desse novo tipo de documentos come­
çou, aliás, em primeiro lugar, nos Estados Unidos. Qual será o
efeito de todos esses fatores sobre o arquivo do escritor? Como
vão evoluir as relações entre o papel e a tela? E, sobretudo, de

80

Copyrighted material
A LITERATURA S A I D O S ARCHIVOS

que serão feitos os instrumentos informáticos do futuro? Abs­


tenho-me de responder: passaríamos da ciência à ciência-fic­
ção. Todavia, creio que o espírito humano será sempre curioso
em compreender o nascimento das obras. Nesse sentido, po­
demos realmente afirmar que a literatura saiu dos arquivos e
que não será mais possível fechá-la novamente. O trabalho da
crítica genética, se se continua a servir à literatura, será o de
manter abertas as portas para que possamos entrar no univer­
so da arte.

Trad. RENATO DE MELLO

81

Copyrighted material
o MANUSCRITO SERÁ o

FUTURO DO TEXTO

·JEAN-LOUIS LEBRAVE

Desde o início, a Coleção Archivos se fixou em um duplo


objetivo: salvaguardar a obra e os manuscritos dos grandes
autores latino-americanos do século XX - criando, assim, um
arquivo - e, ao mesmo tempo, efetuar a exploração editorial
dessas obras, pesquisando, desse modo, o arquivo criado. Esse
gesto ambicioso nos faz lembrar o nascimento da Biblioteca
de Alexandria, quando Ptolomeu enviou emissários por todo
o mundo grego para reunir o conjunto dos textos gregos co­
nhecidos. Daí podermos dizer que a filologia é a responsável
pelo surgimento da Archivos. Propor un cânone dos grandes
autores , estabelecer os textos, restituir a letra ou salvaguardá­
la são certamente objetivos filológicos que dão riqueza e quali­
dade à Coleção Archivos.
Desde 1974, entretanto, a genética se uniu à filologia para
conferir à Archivos sua originalidade. De fato, não se trata so­
mente de salvaguardar ou de restituir textos, objetos imateriais,
mas, também, de arquivar os manuscritos que trazem consigo
testemunho desses textos - como, por exemplo, os papéis de

Copyrighted material
A R QUIVOS LITERÁRIOS

Asturias confiados à Biblioteca Nacional. No programa da Co- -

leção, o estabelecimento do texto "confiável e completo" tem


como objetivo a avaliação do "itinerário de produção" do tex­
to, de forma que as variantes - no sentido filologicamente res­
trito do termo - estejam integradas em uma perspectiva mais
vasta, na qual a gênese da obra, as circunstâncias e as modali­
dades de sua criação tenham um lugar central.
Percebemos a polifonia da noção de arquivo assim defini­
da. Ela é a "biblioteca ideal" onde vêm se obter textos tidos
como canônicos. Mas ela é também a preservação do espaço
de sedimentação no qual são depositados os traços do traba­
lho de criação que deu origem a esses textos. Enfim, ela é o ter­
reno cuja exploração fornece ao crítico genético os materiais
com os quais ele vai construir o prototexto.
Podemos alegar que esse sincretismo entre o trabalho crí­
tico filológico e a construção genética advém de uma aposta,
visto que as relações entre o texto e o manuscrito são proble­
máticas. A crítica genética insistiu muito na radicalidade do
corte entre a produção e o produto e, no sentido inverso, ela
não parou de sofrer ataques de todos aqueles que lhe pergun­
tavam qual era sua contribuição para a conduta crítica. É ver­
dade que a essa pergunta podemos ficar, às vezes, tentados a
,,
responder: "nenhuma . A genética textual não se inscreve no
mesmo espaço que a crítica dos textos e o manuscrito não é
mais o princípio explicativo do texto. O iexto não é o fim do
manuscrito propriamente dito, seu objetivo e sua finalidade.
Eles são regidos por leis - enunciativas, discursivas, sociais -
diferentes.
Existem, entretanto, zonas com fronteiras incertas, onde
crítica textual e problemática genética se unem, sem que pos­
samos saber se já estamos no texto ou se ainda estamos no

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

Boileau, mas umas cinqüenta vezes, como no caso de certas


páginas de Madame Bovary1 .
A fronteira é ultrapassada quando a filologia editorial tra­
balha com manuscritos póstumos, quer se trate de Pensamen­
tos de Pascal ou de Passagenwerk de Benjamin. Tudo leva a que­
rer fazer dessas obras textos de pleno direito, mesmo quando
lhes falta o essencial para se pretender a isso: o gesto autoral
que decide que a obra acabou e que pode se desvencilhar de
seu scriptore e seu corolário editorial que organiza a difusão
autorizada. Assim, mesmo que tais dossiês sejam, sob todos os
pontos de vista, manuscritos, eles foram o tempo de um tipo
de filologia às avessas, que, levando em conta o dossiê genético
como campo de ruínas (essa é a expressão utilizada por Tieck,
,,
editor de Novalis), não hesita em "concluir o inacabado, con­
fundindo o terreno arqueológico e o campo do trabalho. Ain­
da assim, a Catedral de Colônia foi concluída no século XIX,
Viollet-le-Duc reconstruiu paredes inteiras da igreja de Vézelay
e Gérard Genette fez um catálogo das continuações, acabamen­
tos, prolongamentos, . . . cuja literatura sempre foi rica2•
É verdade que o caso dos manuscritos póstumos poderia
ser um tipo de prova crucial, uma prova de fogo, para a filologia
tradicional, que projeta neste caso o terminus a quo do arquéti­
po ideal no terminus ad quem do texto canônico que o autor
teria dado ao mundo se as circunstâncias o tivessem permitido.
Não retomarei, aqui, a - já antiga - questão das relações
entre a crítica genética e a filologia. Ela mereceria, além disso,

1. Cf. Marie Durei, Classement et analyse des brouillons de Madame Bovary de Gustave
Flaubert, tese de Doutorado. Universidade de Rouen, 2000.
2. Cf. Jean-Louis Lebrave, "L'écriture inachevée", em D. Budor e D. Ferrari (éds.),
Actes du colloque international: objets inachevés de l'écriture (22-23 de outubro de
1998).

86

Copyrighted material
O MAN U S C R I TO S E R Á O F U T U RO DO TEXTO

um tratamento particular, mas, talvez, sob a forma de uma his­


tória das relações entre as práticas de composição e as práticas
de transmissão. Gostaria, porém, de abordar somente um as­
pecto: as relações que a genética e a filologia têm com a edição.
Campo de discussão por excelência onde a Coleção Archivos
soube unir estes dois rivais com felicidade e praticar uma nova
forma de filologia bem antes que a philology se tornasse a
new

coqueluche de algumas universidades americanas. Indo um


pouco mais além, podemos dizer que a singularidade dos ma­
nuscritos de trabalho foi percebida mais tardiamente em paí­
ses como a Alemanha, com forte tradição editorial filológica,
do que na França, onde os grandes trabalhos "históricos e crí­
,,
ticos continuaram raros. De certa forma, a crítica genética
nasceu virando as costas para o trabalho estritamente editorial,
o que lhe permitiu descobrir manuscritos de trabalho, nos
quais um filólogo editor só captaria os testemunhos de um tex­
to. Todavia, após- o tempo da descoberta dos manuscritos -
poderíamos quase dizer de sua invenção -, era preciso discutir
a questão de sua edição: também o geneticista deve esclarecer
o que decifrou do processo criador ao analisar a substância
semiótica dos manuscritos. Sabemos que esta questão ficou
muito tempo sem resposta. Almuth Grésillon3 colecionou, de
,,
forma agradável, as queixas que as edições "genéticas sobre
papel sempre fizeram. Não é somente por diversão que pude­
mos afirmar que era o manuscrito original que permitia que
lêssemos a edição feita, e não o inverso, o que estaríamos, en­
tretanto, no direito de exigir. Tudo na edição crítica tradicio­
nal impressa vai contra o movimento da gênese: a rigidez dos

3. Almuth Grésillon, �léments de critique génétique. Lire les manuscrits modernes, Pa­
ris, PUF, 1 994, capítulo V.

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

princípios editoriais filológicos, sua fidelidade à noção de va­


riante como desvio com relação a um arquétipo textual, além
da linearidade e da seqüência imutáveis do impresso, sua fixi­
dez, sua incapacidade em reproduzir a elasticidade e o desdo­
bramento do texto que se busca.
Nesse campo particularmente difícil, a Coleção Archivos
abriu um caminho original e fecundo. No início, poderiamos
dizer que ela seguiu o conselho dado por Victor Cousin com
relação aos Pensamentos, de Pascal. Lembramos4 que, a propó­
sito das edições «apologéticas'' sucessivas dos Pensamentos,
Victor Cousin prometia a aplicação dos métodos filológicos
aos textos, salientando que, para um autor moderno como
Pascal, dispomos de uma vantagem inestimável com relação
aos textos clássicos, já que temos acesso aos manuscritos do
próprio autor. Para pegar o texto de Pascal no original, era pre­
ciso, dizia ele, atravessar a rua e ir consultar os manuscritos na
Biblioteca Nacional. Para sua infelicidade, Victor Cousin criti­
cava, não um texto, mas um dossiê póstumo, fazendo, assim,
urna demonstração a contrario da inadequação dos postula­
dos filológicos tradicionais para dar conta de um work in
progress. Mas, para o resto, e na condição de se lembrar que
encontraremos nos manuscritos outra coisa além de textos, seu
conselho permanece perfeitamente atual.
Os fundadores da Coleção Archivos não tinham que atra­
vessar a rua, visto que o depósito dos manuscritos de Asturias
na Biblioteca Nacional foi que deu início à Coleção. Tratava-se
muito mais de atravessar o oceano para lançar um vasto movi­
mento de salvaguarda, logo depois da exploração científica dos

4. Cf. Jean-Louis Lebrave, "La critique génétique: une discipline nouvelle ou un


avatar moderne de la philologie': Genesis, n. 1, 1992.

88

Copyrighted material
O MANUSCRITO SERÁ O F U T U RO DO TEXTO

arquivos literários latino-americanos. Logo de início, o traba­


lho foi um sucesso exemplar. Não me aterei mais a essas ques­
tões políticas e me contentarei em evocar os aspectos científi­
cos, que valeram o sustento de várias e grandes instituições de
pesquisa européias, dentre as quais o CNRS. Através de uma se­
leção judiciosa dos corpora - textuais e genéticos -, a Coleção
Archivos soube aplicar o método filológico nessa parte dos
dossiês manus·critos onde ela era legítima e indispensável, quer
tratando do restabelecimento de um texto mutilado pela cen­
sura ou pelas edições erradas, quer descrevendo as variações
que precedem imediatamente o gesto editorial. Através da
adjunção de um amplo aparelho crítico dedicado à gênese das
obras, às condições de sua produção, aos avatares de sua re­
cepção, a Archivos soube ultrapassar a fixidez da edição tradi­
cional e restituir os corpora em sua mobilidade de obras de cria­
ção vivas.
Nesse sentido� os pais fundadores da Coleção não podiam
deixar de sonhar - como também faziam ao mesmo tempo os
geneticistas do 1TEM - com edições mais completas, mais
límpidas, que restituíssem, enfim, o arquivo a sua polifonia e
tornassem clara a criação literária, em todo o seu percurso, dos
primeiros rascunhos até essa criação continuada que puderam
ser, para algumas obras particularmente ricas, as transposições
cinematográficas. Falei há pouco sobre a aporia que a edição
papel representa para o geneticista, que se desespera a cada
passo diante das impossibilidades materiais flagrantes que lhe
opõem os códigos tipográficos quando ele tenta restituir os
movimentos da gênese. Diante daquilo que parecia um impasse
definitivo, a edição eletrônica surgiu rapidamente como recur­
so salvador, trazendo, com o computador - verdadeiro deus ex
machina -, um conjunto de utilidades materiais e intelectuais

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

finalmente adaptadas aos corpora que precisavam ser restituí­


,,
dos. Gostaria de falar, é claro, sobre as interfaces «conviviais dos
microcomputadores - metáfora do escritório, mouse, multife­
netragem -, mas, também, e sobretudo, sobre os conceitos e as
técnicas ligados à noção de hipertexto.
Os geneticistas não se enganaram quando, desde o fim dos
anos de 1980, elaboraram sobre corpora experimentais (Flaubert,
Joyce) maquetes de edições genéticas eletrônicas que rompiam
com o universo do impresso através dos instrumentos· técni­
cos utilizados e, ao mesmo tempo, dos conceitos operatórios
que estruturavam os dados. Os primeiros CD-Roms da Cole­
ção Archivos ilustram perfeitamente essa revolução eletrônica
que permite mostrar e ler a interpenetração de objetos até en­
tão estranhos uns para os outros, fac-símiles de rascunhos,
transcrições, edições eruditas, comentários críticos, imagens -
iconografia e filmografia associadas a uma obra - e sons.
Se olharmos bem, é o conjunto do arquivo em sua abun­
dância originária que é, desse modo, transferido para o supor­
te eletrônico. Transferência do arquivo bruto, ou seja, dos da­
dos - manuscritos, fotografados, arquivos sonoros . . . -, mas,
também, transferência do arquivo construído pelos pesquisa­
dores - edição, comentário e análise crítica. Vemos, assim,
surgir, com a Internet (é o projeto HiperNietzsche de Paolo
,
D Iorio), uma transferência do conjunto do dispositivo de pes­
quisa, a rede albergadora em uma totalidade virtual (mas fun­
cional), a totalidade do universo textual -, instituições deten­
toras de arquivos, comunidades de pesquisadores explorando
esses arquivos, conjunto dos leitores dos textos e dos documen­
tos assim elaborados. Para quando um Hiperarquivos?
Todavia, as tecnologias da informação só não afetam o
mundo erudito. Vivemos, atualmente, uma profunda mutação

90

Copyrighted material
O MAN U SC R I TO S E R Á O F U T U RO D O TEXTO

das práticas e dos usos, quer se trate da leitura, da escrita, quer,


mais geralmente, do conjunto dos procedimentos de apropria­
ção dos conhecimentos e de construção de novos saberes. Con­
ceitos que acreditávamos serem eternos - o texto, o autor, o
leitor, a propriedade intelectual - se tornam, de repente, ques­
tionáveis. Este texto que coloco na web à disposição dos inter­
nautas, o que será dele quando for telecarregado, copiado, ano­
tado, redistribuído por várias pessoas? Quem será seu autor?
A própria crítica genética não está imune a essas intrusões
das novas tecnologias. Sob forma eletrônica, a escrita coloca
em situação difícil vários postulados de base da genética
manuscritológica. Primeiramente, ela faz desaparecer a espes­
sura da substância gráfica do manuscrito e só mostra a super­
fície impessoal e sempre lisa dos «textos" (mas trata-se, ainda,
de textos?) nos quais todo ductus individual desapareceu. Mais
grave: ela transforma profundamente a própria noção de traço
de escrita, escrita esta que se torna imaterial e instável. Não há
mais rasuras, notas, substituições interlineares: o traço da ope­
ração se dissolve inteiramente em seu resultado. Não há mais
fronteiras entre a criação em processo e seu resultado - a obra.
O texto guardou todos os atributos formais do impresso, mas
perdeu todas as qualidades substanciais: ele é ao mesmo tem­
po variante e invariante, definitivo e provisório, acabado e
maleável ao infinito.
Vertigem de um corpus no qual se misturariam sob as mes­
mas espécies materiais - caracteres voláteis em uma tela - os
manuscritos de autor e a totalidade dos estados atravessados
pelo texto após sua gênese até o último avatar de sua recepção:
dossiês preparatórios, rascunhos, correções, cópias manuscri­
tas, edições sucessivas. . . Como se a totalidade das formas tex­
tuais e das práticas de leitura e de escrita inventoriadas pelos

91

Copyrighted material
A RQUI VOS LITERÁRIOS

historiadores da escrita depois da Antigüidade fosse fundida


em um único envelope: os manuscritos dos copistas da Idade
Média e a carteira de Tallemant des Réaux, os in-folios de
Shakespeare e os rascunhos de Flaubert, mas também o últi­
mo romance coroado por um prêmio literário e a documenta­
ção técnica do avião Airbus. O texto está em via de desaparecer
na indistinção de um manuscrito generalizado que condena­
ria à morte a filologia e a genética?
Chego a escrever que se, ao invés de ter que recopiar e co­
lecionar suas leituras à mão, Flaubert tivesse podido dispor de
um computador, programas de hipertexto e motores de pes­
quisas, ele teria, talvez, terminado Bouvard e Pecuchet. Pode­
mos também inverter a proposição e ver na proliferação da in­
formação na Internet um tipo de Bouvard e Pecuchet in Progress,
monstruosos na sua própria multiplicação, e no qual sempre
lhes faltará um Flaubert para lhe dar um sentido.
Nesse contexto, a problemática do arquivo toma um outro
rumo. Não há memória sem esquecimento. Não há arquiva­
mento sem triagem - arquivar é classificar, organizar, escolher.
O manuscrito perderia toda a significação se ele não se cons­
truísse na complementaridade do texto. É certa a tarefa de uma
"filologia eletrônica" para o século XXI: a de redefinir o arqui­
vo, a de dominar sua evanescência constitutiva e sua prolifera­
ção exponencial, a de criar instrumentos de exploração dessa
imensa memória eletrônica indiferenciada. É nessa condição
que o jogo que fiz com o título desta comunicação torna-se
aceitável. Em Fils de Leoprepes, Jacques Roubaud lamenta que
o desenvolvimento da memória externa tenha matado a poe­
sia. Livremo-nos de expor a literatura à mesma sorte.

Trad. RENATO DE MELLO

92

Copyrighted material
VERTENTES E PROCESSOS DA
CRIAÇÃO LITERÁRIA
MARIA AUGUSTA FONSECA

O presente trabalho aborda questões concernentes ao es­


tudo de manuscritos literários modernos, parte substantiva do
estudo genético de uma obra de arte verbal. O assunto a ser
explorado tem como ponto de referência a edição crítica de
Mem6rias Sentimentais de João Miramar ( 1 924) e Serafim Pon­
te Grande ( 1 933), dois únicos romances que integram o volu­
me Obra Incompleta de Oswald de Andrade, coordenado por
Jorge Schwartz para a Coleção Archivos. Os problemas apre­
sentados fazem parte de um conjunto amplo de indagações
voltadas para o inventário e para a análise de manuscritos, com
o objetivo de explicá-los nas suas especificidades, confrontá­
los entre si e com o texto publicado, por meio de um estudo de
suas variantes. Esse trabalho de caráter comparativo é funda­
mental para a fixação do texto, objetivo de uma edição crítica.
Com respeito às duas obras de Oswald de Andrade, Mira­
mar e Serafim (como também passam a ser referenciadas),
embora sejam as mais representativas de sua produção e ponta
de lança do modernismo brasileiro, vale lembrar que tiveram

93

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁR IOS

apenas uma única edição em vida do autor. Sendo assim, na


falta dessa tradição impressa, a tradição manuscrita tornou-se
ainda mais imprescindível para o resgate da forma original das
obras.
Esses documentos manuscritos, todos de punho do autor,
e de muita importância para o trabalho, são work in progress,
nenhum deles é o definitivo que serviu de base para o editor.
Cada qual a seu modo, todos apresentam oscilações de percur­
so, são lacunares, assim, crivados de dúvidas, próprias de um
,,
fazer inacabado, "provisoriamente definitivo , como bem sin­
tetizou Oswald de Andrade na abertura de um manuscrito de
Serafim Ponte Grande.
A pesquisa feita para esta edição crítica passou por muitas
etapas. O material recenseado de Memórias Sentimentais de
João Miramare de Serafim Ponte Grande foi difícil de ser loca­
lizado. Quase todos os autógrafos foram encontrados fora das
bibliotecas públicas, exceto alguns fragmentos esparsos, con­
tendo parte de capítulos das obras, que estavam disponíveis
para consulta no Centro de Estudos de Documentação "Ale­
xandre Eulalio" (UNICAMP) Para os demais testemunhos de
.

acesso restrito, foi necessário peregrinar por bibliotecas parti­


culares, remexer papéis do próprio artista de posse dos familia­
res, de amigos do escritor, de colecionadores de raridades. No
conjunto estão autógrafos integrais e parciais, que datam dos
anos de 1 9 1 O e 1 920, dispostos em cadernos ou em folhas avul­
sas, provas tipográficas pardais, alguns excertos das obras en­
tranhados em cartas, cartões. Há trechos extraídos de um diá­
rio coletivo da garconniere de Oswald ( O Perfeito Cozinheiro
das Almas deste Mundo. . . ), todos eles integrando o inventário
genético. Localizados e coligidos, em tempos descontínuos,
cada um desses testemunhos da tradição direta foi posterior-

94

Copyrighted material
VERTENTES E PROCESSOS DA C R I A ÇÃO L I T E R Á R I A

mente descrito nas suas especificidades e temporalmente clas­


sificado. Por fim, os autógrafos também foram dispostos num
estema. A organização preliminar desses segmentos da obra
orientou notas, rumos da análise das variantes e auxiliou na
fixação dos textos.
Reduto da intimidade do artista, os manuscritos de uma
obra guardam muitas histórias do fazer, diferentes entre si. De
uma perspectiva crítica, o estudo de manuscritos permite re­
gistrar caminhos intrincados da elaboração do artista, sendo
parte substancial de processos da criaç'ão (mas não apenas) e
· lugar de inúmeras incertezas. Para dizer com Louis Hay (La
naissance du texte), "nos domínios do manuscrito a única cer­
teza que temos é a da diversidade"1• Em torno desse tema,
Theodor Adorno manifestou-se, entendendo o trabalho com a
palavra como resultado de amadurecimento. Assim, no frag­
mento 5 1 de Minima Moralia2, observou: "não se deve achar
que algo mereça existir só porque já está aí, porque foi escri­
,,
to 3. E, reforçou o argumento, objetivando:

Se várias frases pare·cem variações do mesmo pensamento, com fre­


qüência designam apenas diferentes abordagens para aprender algo que
o autor ainda não dominou. Deve-se então escolher a melhor formula­
ção e continuar a elaborá-la. Faz parte da técnica de escrever ser capaz de
renunciar até mesmo a pensamentos fecundos, se a construção o exigir.

De outra perspectiva crítica, temporalmente mais distante


(meados do século XIX), E. A. Poe também se posicionou so-

1. Louis Hay, "L'Ancien et ) e Nouveau Monde': La naissance du texte, P-aris, 1 material


ArchivesJ p. 143.
2. Theodor Adorno, Minima mora/ia, São Paulo, Atica, 1 993, trad. Luiz Eduardo
Bicca, Frag. 5 1 .
3. Idem, p. 73.

95

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

bre o trabalho do artista e o ato de escrever. Em A Filosofia da


,
Composição, franqueando ao público sua "casa de segredos »
mostra faces dessa intimidade:

Muitos escritores, especialmente os poetas, preferem ter por enten­


dido que compõem por meio de uma espécie de sutil frenesi, de intuição
estática; e positivamente estremeceriam ante a idéia de deixar o público
dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e
trabalhosas do pensamento, para os verdadeiros propósitos só alcança­
dos no último instante, para os inúmeros relances de idéias que não che­
gam à maturidade da visão completa, para as imaginações plenamente
amadurecidas e repelidas em desespero como inaproveitáveis, para as
cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpolações; [ ... )
que constituem a característica do histrião literário•.

Como parte expandida desses bastidores, a discussão en­


tre pares deverá merecer a atenção do crítico. Um exame da tro­
ca de correspondência entre Mário de Andrade e Manuel Ban-

4. "Most writers- poets in special - prefer having it understood that they compose
by a species of fine frenzy - an ecstatic intuition - and would posetively shudder
at letting the public take a peep behind the scenes, at the elaborate and vacillating
crudities of thought - at the true purposes seized only at the last moment - at
lhe innumerable glimpses of idea that arrived not at the maturity of full view -
at the fully matured fancies discarded in despair as unmanageable - at the
cautious selections and rejections - at the painful erasures and interpolations -
in a word, at the wheels and pinions - the tackle for the scene-shifting - the
step-ladders and dernon-traps - the cock's feathers, the red paint and the black
patches, which, in ninety-nine cases out of the hundred, constitute the properties
of the literary histrio': Edgar Allan Poe, "The Philosophy of Composit ion",
Selected Wrirings, Ed. David Galloway, Londres, Penguin, 1967, p. 481. Tradução
extraída de "Método de Composição': em Edgar Allan Poe, Novelas Extraor­
dinárias, Livro de Bolso, 1942, pp. 14- 1 5. Idem, "A Filosofia da Composição",
Poemas e Ensaios, trad. Oscar Mendes e Milton Amado, São Paulo, Globo, 1999,
p. 102.

Copyrighted material
VERTENTES E PROCESSOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA

deira5 (de 1922 a 1944) mostrará, de outros ângulos> aspectos


férteis deste problema relacionado com o trabalho em progres­
so de um escritor. Em muitas de suas cartas, Mário e Bandeira
trocam idéias sobre seus projetos em andamento, poemas em­
brionários, outros já finalizadós, contemplando exposições de
dúvidas, reiteração de convicções, comentários gerais, suges­
tões idiossincráticas, críticas contundentes, sempre deixando
explícito que a leitura feita foi exigente. De fôlego muito me­
nor, mas ainda manifestação de troca, cartas e cartões postais
de Oswald de Andrade, endereçados a Mário de Andrade e a
Tarsila do Amaral, servem para adensar o material recenseado.
Esses exemplos dos muitos caminhos pelos quais passam
as obras, antes de sua visibilidade pública, reforçam a necessi­
dade de um olhar objetivo do estudioso de manuscritos no
confronto de variantes, ao analisar escolhas, rejeições, reformu­
lações, resgates do que foi anteriormente desprezado. Trata-se
de um campo em que ocorrem muitas e diferentes rebeliões
do artista a perseguir sua palavra organizada. Essa matéria em
ritmo de forja guarda assim discórdias e concórdias, questio­
namentos e desassossegos. Na história de uma obra, sintetiza
Almuth Grésillon, o manuscrito é objeto material, cultural e
de conhecimento6, aqui ecoando a lição de Luigi Pareyson so­
bre a arte - fazer (construção), conhecer (conhecimento) e ex­
primir (expressão)7. O manuscrito literário é assim passagem,
testemunho de perseguições, registro de um trabalho contínuo
e descontínuo, cujas palavras postas e superpostas sobre papel,

5. Marcos Antonio de Moraes (org. e notas), Correspo11dência Mário Andrade &


Ma11uel Bandeira, São Paulo, Edusp, 2000.
6. Almuth Grésillon, Eléments de critique génétique- lire les man uscrits rnodernes, Pa­
ris, PUF, 1 994, p. 35.
7. Luigi Pareyson, Teoria dei/a formatività, Turim, Ed. Filosofia, 1954.

97

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

com seus acréscimos e supressões, gravadas com tintas e lápis


(com variações de cores) e tipos de máquina de escrever con­
tam muitas histórias paralelas. Há nele a constante dialética, já
que afirma e nega para superar-se, produzir nova ordem.
No manuscrito literário corre o fio de uma história em
mutação, exercício de sensibilidade e técnica, mas sempre ob­
jeto precário, provisório. De marca temporal variada, misto de
presente, de passado distante ou recente, de véspera, neles é
possível errar diversas vezes, arrepender-se, deslocar e trans­
formar, como atestam as rasuras gravadas no papel. Nesse pro­
cesso do fazer o escritor reveza-se consigo mesmo no difícil
papel de leitor e criticÓ. Trata-se, por assim dizer, de um traba­
lho simultâneo de aprendiz e de mestre (em outro contexto,
mas seguindo de perto a sugestão de Walter Benjamin no en­
saio "O Narrador")8 na luta do individuo para sair do privado
para a esfera pública, campo de tensão estabelecido "entre o
que se pode escrever e o que se deve publicar" (Balzac)9•

A assertiva é corroborada por G. Flaubert, em carta-desabafo a


Louise Colet, quando trata da penosa tarefa de um escritor, de seu traba­
lho interminável de reler, deparar-se com problemas, e refazer: t
embrutecedor. [ ... ] Quantas repetições de palavras eu acabo de surpreen­
der! Quantos todo, mas, pois, entretanto! t isto que é diabólico na prosa,
que faz com que nunca esteja terminada. [ ... ] Que creme desgraçado de
bater, que vale por mármores a serem carregados! 10

8. Walter Benjamin, "O Narrador", Os Pensadores, XLVIII, São Paulo, Abril Cultural,
1975.
9. Honoré de Balzac, citado por Claude Duchet, «Sociocritique et génétique -
Entretien avec Anne Herschberg Pierrot et Jacques Neefs': Genesis, n. 6/94, Enjeux
critiques, Paris, Jean Michel Place, 1994, p. 1 1 7.
10. Gustave Flaubert, Cartas Exemplares, São Paulo, Imago, 1993, p. 120 (Carta data­
da de 28-29 de junho de 1853).

Copyrighted material
VERTENTES E PROCESSOS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA

Sob as camadas de tintas e lápis, as rasuras (acréscimos e


supressões) são testemunhos dessas lições conflitantes e de suas
marcas temporais. Mas embora se reconheça a importância das
unidades verbais mutántes, o estudo que as envolve deverá
sempre levar em conta o grau de complexidade das mudanças
operadas, em todos os níveis - sintático, fonológico, lexical,
estilístico. Do mesmo modo, precisam ser consideradas as di­
ferenças entre manuscritos, sejam alterações localizadas, sejam
mudanças estruturais. Os textos de Oswald de Andrade são fér­
teis em exemplos como esses.
Nessa leitura crítica dos manuscritos de Oswald de Andrade
não se tentou esgotar o problema, pelo contrário. As explica­
ções, os roteiros de pesquisa e de análise trai.em apenas um re­
corte significativo de processos de sua criação, e do trabalho em
torno deles, sinalizando mudanças e radicalizações de percurso,
dificuldades, impasses, soluções. O objetivo foi o de exemplificar
por meio de planos diferentes e significativos, e documentar
com propriedade exercícios exaustivos do escritor, praticados com
a palavra escrita, servindo para desmentir os que apregoaram
(ou os que ainda apregoam) a gratuidade e falta de trabalho de
oficina em sua produção artística, pecha que em seu tempo atin­
giria também outros companheiros modernistas. Foi o próprio
Oswald de Andrade que certa vez trouxe à baila esse tipo de
desconsideração, identificando o desprezo como uma atrofia
local no modo de ver a arte, como exemplifica este seu impera­
tivo contra-ataque endereçado ao amigo Leo Vaz: ''Apenas vocês
que fazem uma guerra infernal à arte moderna aproveitam-se
de tudo para darem um grande ar de entendidos, jogando para
,,
cima de nós o estulto rótulo de improvisadores e palpiteiros 1 1 •

1 1 . Oswald de Andrade, "Correspondência': Po,,ta de Lnnça, Rio de Janeiro, Civiliza-

99

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

O estudo de Memórias Sentimentais de João Miramar e


Serafim Ponte Grande, na edição de Obra Incompleta de Oswald
de Andrade (a ser publicada proximanente), servirá para evi­
denciar muitas dessas questões, em especial pela análise das
variantes (parciais e integrais). De um modo geral, no preparo
do texto, destacam-se problemas de ordem literária, histórica,
filológica e outros de modalidades auxiliares. Com isso em vis­
ta, observa-se o conjunto por muitas vertentes. Há descrições
amiudadas dos manuscritos em seus aspectos externos - do
suporte material às lições; das cores das tintas ao grafismo etc.
Também faz parte dessa edição dos romances um dossiê gené­
tico de função filológica substantiva e uma breve história dos
textos. Ainda, incluem-se um apêndice com transcrições de
autógrafos e reproduções de fragmentos publicados em revis­
ta e jornais, anteriores à edição das obras. Como auxiliar de
leitura, foi incluído um glossário. Por fim, dois ensaios, um
sobre Miramare outro sobre Serafim, completam o estudo, re­
sultado de urna pesquisa de muitos anos.
Se não existem começos, como quer Sartre12, há pelo me­
nos na tradição manuscrita dos textos modernos muitos em­
briões que dão vida a uma obra, assim como há muitos outros
cruzamentos que fecundam e encorpam o trabalho artístico no
seu caminho construtivo. Oswald de Andrade, por exemplo,
descartou versões de seus trabalhos, recuperou outras, mistu­
rou partes, dando mostras da complexidade de seu "processo

ção Brasileira, 1 972, p. 1 O. Leo Vaz foi freqüentador assiduo da garçonniere de OA,
entre 1917-19 19.
12. "II n'y a jamais de commencements" (J.-P. Sartre). Trecho citado por Michel
Contat, "Une idée fondamentale pour la génétique littéraire: l'intentionnalité",
Pour quoi la critique génétique- méthodes, théories, Paris, CNRS �itions, 1998, p.
1 1 1.

100

Copyrighted material
V E R T E N T E S E PROCESSOS D A C R I AÇÃO L I T E R Á R I A

,,
de fabricação a expressão é de Maiakóvski em "Como Fazer
-

,,
Versos 13 ou, seja, do árduo trabalho para chegar ao biscoito
-

fino (seguindo aqui suas próprias palavras).

13. V. Maiakóvski, "Como Fazer Versos", em Boris Schnaiderman, A Poética de


Maiak6vski, São Paulo, Perspectiva, 1980. Trad. de Boris Schnaiderman.

101

Copyrighted material
ENTRE PERIÓDICOS E MANUSCRITOS

JÚLIO CASTAfJON GUIMARÃES

Manuscritos e bibliotecas ao longo do tempo não só vêm


exercendo enorme fascínio mas também têm tido enorme im­
portância ficcional. Lembrem-se, um pouco ao acaso, as biblio­
tecas e sua função narrativa em romances como Auto-de-Fé de
Canetti ou A Náusea de Sartre. A presença de manuscritos, com
sua carga de documento efetivamente comprobatório , é longa
na ficção. Em datas mais recentes e na literatura brasileira, pode
ser lembrado um romance como Rainha dos Cárceres da Grécia
de Osman Lins , em que há uma reduplicação de manuscrito
dentro do manuscrito - um manuscrito em processo que se
faz pela análise de um outro manuscrito preservado. Se nesses
casos, porém , o manuscrito é ficção , temos os casos em que o
texto literário é concretamente manuscrito. Valéry, a par de sua
obra resultante de rigoroso processo de elaboração, salientou
com ênfase a importância da instância da instabilidade produ­
tiva. De fato, salientou como o conhecimento das etapas de
experimento e desordenação na produção podem ser fecundas
para a leitura do texto. Mesmo que não tivesse exposto essas

103

Copyrighted material
ARQU IVOS L I TERÁRIOS

idéias, elas de qualquer modo ressaltariam do inesgotável uni­


verso de anotações e rascunhos que deixou.
João Cabral de Melo Neto, no seu Serial, ao elaborar poe­
mas distintos por permutação de versos dentro do mesmo poe­
ma e de poema para poema, faz com que reciprocamente um
poema seja etapa de outro. Mais recentemente, em seu livro
Cortes / Toques, Sebastião Uchoa Leite inclui duas versões de
,
um mesmo poema intituladas "A Linha Desigual , e "A Linha
Desigual / 3íl Versão''. Com a omissão da segunda versão, não
só fica aberta a possibilidade de outras tantas versões, como
também a possibilidade de· supor que o(s) poema(s) na verda­
de só se atualiza(m) na continuidade de sua escrita. Já Francis
Ponge não só faz de seus textos uma permanente reescrita,
como também transforma seus rascunhos em texto, do que dão
testemunho seus últimos livros, que apresentam os dossiês tex­
tuais, expondo todas as etapas da produção do texto, um texto
que muitas vezes não chega a se concluir, existindo apenas
como produção.
Com os casos mencionados, procurou-se exemplificar os
possíveis encurtamentos da distância entre o arquivo e a obra.
Indo assim da ficção do manuscrito ao manuscrito erigido em
efetivo texto literário, o arquivo torna-se uma realidade mais
palpável. E naturalmente muitas indagações podem surgir
diante de um arquivo: para que serve? como utilizá-lo? Mas
deslocando a ênfase para outro pólo da relação, talvez seja mais
rentável indagar: o que se quer do arquivo? ou o que o arquivo
oferece?
Casos de edição de textos, seja no âmbito da crítica textual,
seja no âmbito da crítica genética, propõem situações em que
surge a necessidade de delimitar procedimentos. Em ambas as
perspectivas, há naturalmente um conjunto mínimo ou de

Copyrighted material
ENTRE PERIÓDICOS E MANUSCRITOS

normas ou de princípios que orientam os trabalhos. Por diver­


sas razões, no caso de um tratamento genético, esse conjunto
se mostra menos estrito, menos ordenado, o que se explica tan­
to pelo desenvolvimento bem mais recente da crítica genética,
quanto pela própria natureza da abordagem proposta. O lon­
go desenvolvimento da crítica textual e a massa de trabalhos
de edição existentes tornam as questões relativas a esse trata­
mento mais sedimentadas, embora sua rediscussão seja per­
manente, tanto por imposição de novas situações de edição,
quanto por novas questões teóricas - como o próprio desen­
volvimento da crítica genética. Essa encruzilhada tem sido, em
particular, objeto de numerosas abordagens1•
A aproximação de dois trabalhos de edição - o da edição
do romance Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso, e
o da edição de alguns livros de poesia de Carlos Drummond
de Andrade - permite considerações em diversos planos: a crí­
tica textual diante da contribuição da crítica genética; peculia­
ridades da edição de texto de ficção e texto de poesia; proble­
mas da edição de um corpus alentado. Não se trata aqui de
descrever em minúcia as duas edições, mas antes de expor
pontos fundamentais dos trabalhos de edição, ou melhor,
aqueles momentos que se apresentam como especialmente
problemáticos, críticos, e que exigem tomadas de posição es­
pecíficas no curso do trabalho. O projeto da coleção Archivos -
na qual se inserem as duas edições referidas - envolve uma

1. Cf. Almuth Grésillon, "Crit ique génétique et édit ion': Elements de critique
génétique, Paris, PUF, 1 994, e Pierre-Marc de Biasi, "�dition horizontale, édition
verticale. Pour une typologie des éditions génétiques (le domaine français 1 980-
1995) ·� em Béatrice !Didier e Jacques Neefs ( orgs.), �diter des manuscrits. Archives,
complétude, lisibilité, Paris, Presses Universitaires de Vincennes, 1 996.

105

Copyrighted material
ARQUIVOS L I T E R Á R I O S

proposta de edição orientada por alguns princípios2, mas que,


pela amplitude da coleção e pelas características desses mes­
mos princípios, possibilita também uma permanente rea­
valiação. Esse, sem dúvida, é o estado necessário diante de si­
tuações em que a crítica textual pode correr o perigo de se
resumir à simples aplicação de critérios já estabelecidos, en­
quanto a crítica genética se debate entre questões teóricas e di­
ficuldades materiais de concretizar suas propostas em edições
viáveis3•
Veja-se inicialmente o caso Lúcio Cardoso. De um lado,
tem-se um conjunto manuscrito de 634 folhas. Estas, na maior
parte soltas, encontram-se completamente embaralhadas, em­
bora seja possível perceber que se agrupam em capítulos, nem
sempre completos, às veres repetidos. Foram escritas ao longo de
pelo menos sete anos, tendo sido utilizados variados tipos
de papéis, canetas, tintas, máquinas de escrever. O conjunto in­
clui ainda anotações nas margens ou em outras folhas soltas.
Embora a escrita seja regular e legível, há periódicas rasuras.
Esse conjunto, assim sumariamente descrito, é o manuscrito
do romance Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso4•
De outro lado, tem-se um volume em que em cerca de 600 pá­
ginas o texto do romance é acompanhado nas margens e nos
rodapés de praticamente todas as páginas por inúmeros ou-

2. Cf. Giuseppe Tavani, "Metodologia y práctica de la edición crítica de textos lite­


rários contemporaneos': em Amos Segala (org.), Littérature latino-américaine

et des carai'bes du x.x� siecle. Théorie et pratique de l'éditio11 critique. Roma,


Bulzoni, 1988.
3. Cf. Ivo Castro, Editar Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1 990.
4. Encontra-se depositado no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação
Casa de Rui Barbosa. Cf. Inventário do Arquivo Lúcio Cardoso, Rio de Janeiro, Fun­
dação Casa de Rui Barbosa, 1989.

106

Copyrighted material
ENTRE PERIÓDICOS E MANUSCRITOS

tros textos que constituem variantes do primeiro. Trata-se da


edição crítica5, em que se apresenta, sistematizado, o trabalho
de organização do manuscrito, de seu confronto com a versão
publicada, de recuperação, na medida do possível, do processo
de realização do texto6•
Mas qual é esse trabalho que leva do conjunto aparente­
mente informe inicial ao volume aparentemente acabado final?
Como encarar, de um lado, esse «informe", esse "inicial" e, de
outro, esse "acabado'� esse "final"? Diante dessas questões, põe­
se a possibilidade de que o "informe", deixando-se de vê-lo
como tal, poderia levar a outro tipo de trabalho, que por sua
,,
vez desmentiria o "acabado e produziria outro resultado, onde
"inicial" e "finar estariam deslocados para outros limites? Re­
troativamente, a leitura da edição crítica permite reconsiderar
o trabalho efetuado e, ao mesmo tempo, a leitura do manus­
crito. Até que ponto a leitura da edição crítica permite avaliar
o trabalho do autor? Até que ponto é possível à edição dar uma
idéia do trabalho do autor? São perguntas que parecém natu­
rais diante desse tipo de edição. Na verdade, porém, estão mal
formuladas, pois não abordam propriamente o material e a
questão, deslocando o foco do elemento concreto disponível
para a suposição de uma ação já passada, já concluída. O mais
razoável parece ser indagar como o manuscrito se organiza, o
que se quer fazer com o manuscrito e o que é possível publicar
em termos de edição.

5. Lúcio Cardoso, Crônica da Casa Assassinada. Edição crítica de Júlio Castaflon


Guimarães, coordenação do volume por Mário Carelli, Madrid, Archivos, 1991.

6. Na "Nota filológica: proçedimentos de edição", na edição crítica, são expostos de

forma mais detalhada os dados aqui referidos. No texto "Alguns Procedimentos


na Produção do Texto", da mesma edição, são desenvolvidas várias das questões
aqui apenas apontadas.

107

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

A discussão entre crítica textual e crítica genética tende


mais recentemente a arrefecer diferenças7, de modo a permitir
a existência de edições que se intitulam "edição genética e crí­
,,
tica (como a de Balança, Trombeta e Battleship, de Mário de
Andrade, preparada por Telê Ancona Lopez), ou «edição gené­
,,
tico-crítica (como a de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães
Rosa, preparada por Cecília de Lara e ainda inédita), ou ainda
várias outras combinações8• Na aproximação entre as questões
teóricas e a prática editorial, ou melhor, a viabilidade editorial,
parece ser sempre pertinente a indagação sobre qual livro é
factível. Assim como Giuseppe Tavani se refere aos problemas
de resultados práticos das edições críticas9, Almuth Grésillon
trata do mesmo tipo de problemas na área das edições com
preocupação genética.
No caso da Crônica, o manuscrito, tal como encontrado,
constituía-se num conjunto em desordem. Era preciso perce­
ber uma ordem, isto é, uma organização de leitura - uma or­
ganização para leitura ou uma organização pela leitura. De
imediato, dois caminhos se oferecem. Um, é o da seqüência da
escrita - a ordem de produção. Outro, é o romance - a ordem
da narrativa. Pelo menos n o caso em pauta (e que parece ser
habitual), os dois caminhos como que se desfazem reciproca­
mente'º. Isto porque a seqüência da escrita não corresponde

7. Cf. A. Grésillon ( 1 994) e 1. Castro ( 1 990).


8. A denominação é empregada por O!cilia de Lara em "A Edição Genético-crítica
de Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa", Gênese e Memória. N Encontro
Internacional de Pesquisadores do Man1Jscrito e de Edições, São Paulo, Annablume;
Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário, 1995.
9. Cf. G. Tavani ( 1988).
10. A questão é exposta em Pierre-Marc Biasi, "Parano'ia-genese. Remarques sur
l'identité des recherches en génétique textuelle'� em A. Grésillon e M. Werner
( orgs.), Leçons d'écriture. Ce que dsent
i les manuscrits, Paris, Minard, 1985.

108

Copyrighted material
ENTRE PERIÓDICOS E MAN USCRITOS

ao texto do romance. O importante é ter o cuidado de não pre­


tender impor uma ordem de força (de fato, uma desordem),
que oculte a ordem efetiva (em que está inclusa mesmo aquela
dimensão "informe inicial"). E a ordem efetiva, de que partici­
pa o "informe iniciar: é na verdade um processo de forma­
lização. Aí, cuidados como aqueles com o estilo ou a coerência
narrativa, na sucessão de reescritas, rasuras etc., constituem
exatamente a face mais visível das etapas em que o texto ad­
quire forma.
Basta atentar para a própria construção da Crônica para
perceber como facilmente pode não haver aquela correspon­
dência entre estado da escrita e seqüência narrativa. Os capí­
tulos do romance são constituídos por trechos de cartas, diá­
rios, confissões, depoimentos etc. Esses diversos trechos se
intercalam. Assim, por exemplo, ao fim de um capítulo com­
posto por trecho de um diário, este se interrompe, dando lu­
gar, na seqüência do capítulo seguinte, a um trecho de carta.
Ora, em vários passos fica claro que pelo menos parte de uma
seqüência foi escrita de uma só vez, depois se escreveu parte de
outra seqüência e depois ainda houve uma intercalação, em
diferentes capítulos, das duas seqüências. Desse modo, há ca­
sos evidentes em que um determinado capítulo foi escrito pos­
teriormente a outro que o precede na sucessão dos capítulos.
Esta, é claro, é uma simplificação relativamente esquemática,

mas o testemunho dos manuscritos revela que, de modo mais


complexo, este foi o procedimento que se verificou na escrita
do romance.
A massa de materiais e o conjunto de operações em jogo
na organização da edição crítica fica em geral muito depen­
dente de um elemento derradeiro, a lição que represente a von­
tade última do autor. Se o percurso do aparato da edição, aten-

109

Copyrighted material
A R Q U I VOS L I T E R Á R I O S

to a esse marco, deixa então de corresponder à sucessão dos


fatos da escrita, muito provavelmente corresponde à imagina­
ção ficcional, à estruturação romanesca que o autor perseguiu
,,
por vias "tortas': Para expor essas "vias tortas , uma edição ge­
nética estaria mais habilitada, pois que mais desapegada de um
suposto texto final. No entanto, aparatos genéticos têm-se
mostrado de leitura ainda mais difícil. Longe se está aqui de
simplistamente opor essas construções, resultados de análise,
a um suposto contato direto com a criação . Esse contato não
existe, já que mediado pela própria escrita, pelo próprio ma­
nuscrito, já que desfeito por frações perdidas do manuscrito,
pelo embara1hamento físico das folhas, pela rasura do tempo.
As diferentes opções de edição correspondem não apenas
à preocupação com uma eficácia da prática, com uma adequa­
ção a leitura mais ou menos funcional; correspondem a dife­
rentes elaborações teóricas e, em última instância, talvez apon­
tem para a efetiva impossibilidade de realizar a ambição
teórica. A edição, deste ou daquele tipo, tenderá a ser parcial, já
que atendendo tendencialmente um tipo de leitura do percur­
so do texto e, assim, como que dando sobrevida àquele "infor­
me inicial': Em todas as opções, porém, a aparentemente fria
arquitetura das edições não deve perder de vista o espaço
imaginário em que a ficção transborda e subjuga critérios de for­
ça dt como no caso da Crônica, esse manuscrito ficcionalizado
que surge de um manuscrito hoje preservado em um arquivo.
Passando-se a levar em conta elementos presentes no pre­
paro da edição dos poemas de Carlos Drummond de Andrade,
o primeiro dado que ganha relevo é próprio da grande maio­
ria tanto dos romances quanto das obras poéticas. Trata-se do
que se poderia definir como o caráter unitário dos primeiros e
como o caráter independente dos poemas. Mesmo lembrando

110

Copyrighted material
ENTRE PERIÓDICOS E MANUSCRITOS

o caráter fragmentário do romance de Lúcio Cardoso - com­


posto essencialmente pelo entrelaçamento de diferentes formas
de expressão privada (cartas, diário, confissão) -, cada unida­
de só alcança significação plena em sua posição correta no con­
junto; embora possa haver apreciação dos fragmentos isolados,
essa apreciação será parcial. Já no caso dos poemas, o que ocor­
re é que os livros se constituem pelo agrupamento de poemas
que subsistem autonomamente. É. claro que a reunião de tais e
tais poemas para formar um livro, e não de tais outros, é ele­
mento definidoramente forte da leitura. Mas o fato é que em
sua maioria esses poemas tiveram existência inteiramente au­
tónoma antes da reunião em livro. Desse modo, quase se po­
deria dizer que, em última instância, cada poema pediria o seu
trabalho de edição.
Alguns números representam as diferenças. O romance de
Lúcio Cardoso teve uma única edição a ser levada em conta na
edição crítica; tem um único conjunto manuscrito, de difícil
organização, mas não de difícil leitura em termos de grafia. Já
a série de dez livros de poemas de Carlos Drummond de Ane
drade que vai de Alguma Poesia a Lição de Coisas (o corpus da
edição em preparo) engloba os seguintes dados: o número de
poemas em versão datiloscrita é de 142; o de poemas em ma­
nuscrito é de 1940; o de poemas publicados em periódicos
é de 303; o de periódicos em que se localizaram os poemas é de
74; o período dessas publicações se estende por cerca de trinta

anos. (Lateralmente, observe-se, por exemplo, que para um


poeta do século XXI não seria viável essa proporção, tendo em
vista a inexistência de tal número de periódicos- o que já esta­
belece uma distinção importante entre procedimentos de ela­
boração textual e, conseqüentemente, no trabalho de preparo
de edição.)

111

Copyrighted material
A RQUIVOS LITERÁRIOS

A grande dificuldade da edição do romance de Lúcio Car­


doso estava na organização do manuscrito; já a grande dificul­
dade da edição dos poemas de Drummond está na localização
das numerosas versões de seus poemas publicadas em periódi­
cos antes da inclusão em livro, o que aponta seja para um tra­
balho fora do arquivo propriamente dito, seja para uma am­
pliação da noção desse arquivo. Para além de problemas como
estes, de ordem eminentemente prática, as diferenças aí ressalta­
das indicam uma distinção que se situa num plano da própria
elaboração do texto. O romance de Lúcio Cardoso foi essen­
cialmente elaborado no manuscrito. Já no caso de Drummond,
chama a atenção o pequeno número de manuscritos subsis­
tentes - em sua maioria são da fase inicial, tornando-se espar­
sos com o passar do tempo. Além disso, os manuscritos subsis­
tentes não são manuscritos de trabalho, mas cópias autógrafas
fornecidas a amigos. O poeta ocultou as fases talvez mais pro­
blemáticas da elaboração. Por outro lado, o grande número de
poemas divulgados pela imprensa, antes da inclusão em livro,
permitia ao poeta realizar ainda numerosas modificações em
seu trabalho, que têm continuidade, ainda que em menor pro­
porção, nas sucessivas edições dos livros. Observa-se, porém,
que o controle do poeta se acentua de tal modo, que a partir de
certo momento diminuem muito as diferenças entre textos
publicados em periódicos e sua versão em livro, ou seja, o poe­
ta passaria a só divulgar poemas quando já considera que nada
mais há a fazer neles.
A publicação sistemática - pode-se mesmo dizer - de seus
poemas na imprensa, ao lado da também sistemática e intensa
atuação como cronista, estabelece algumas características es­
peciais para a recepção da obra de Drummond. Se um roman­
ce como Crônica da Casa Assassinada só tem a precedê-lo no

112

Copyrighted material
ENTRE P E R I Ó D I C O S E MAN USCRITOS

conhecimento do público uma eventual publicação de um ca­


p ítulo isolado em jornal e, naturalmente, os outros livros pu­
blicados do autor, no caso de Drummond, quando um livro
v inha à luz, os textos que o compunham já haviam sido testa­
dos, já tinham sido comentados1 1 , seja publicamente, em co­
mentários na imprensa, seja privadamente, na correspondên­
cia com o escritor. O apreço pelo escritor era aumentado ainda
por sua atuação bem sucedida como cronista, uma leitura com
certeza menos árdua que a dos poemas e que provavelmente
contribuía para p redispor à leitura dos poemas, oferecidos à
leitura aos poucos, em pequenas doses, com a publicação iso­
lada na imprensa.
Essa presença de enorme freqüência na imprensa 12 estabe­
lece uma série de peculiaridades para o trabalho de edição.
Duas delas, em especial, merecem referência. Em primeiro lu­
gar, o trabalho de levantamento dos poemas publicados em
periódicos leva a um percurso por grande número dos órgãos
de imprensa - da grande imprensa e especializados - que de­
ram espaço à literatura (de modo específico, à poesia). Assim,
com a listagem desses poemas tem-se também parcela de um
p anorama da veiculação da literatura modernista na impren-

1 1 . São numerosas as cartas guardadas no arquivo do escritor em que os remetentes


se referem a poemas que ainda não tinham sido inclufdos em livro. Cf. Inventário
do Arquivo Carlos Drnmmond de Andrade, Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui

Barbosa (a sair).
12. Alguns trabalhos importantes de exploração e levantamento nessa área já foram

realizados: Fernando Py, Bibiliografia Comentada de Carlos Drummond de Andrade


(1918-1930), Rio de Janeiro, José Olympio / Fundação Casa de Rui Barbosa;

Brasllia, INL, 1980; John Gledson, Poesia e Poética de Carlos Drummond de


Andrade, São Paulo, Duas Cidades, 1981; e Rita de Cássia Barbosa, O Cotidiano e

as Máscaras, tese de doutoramento. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu­

manas, Universidade de São Paulo, 1984, (mimeo).

113

Copyrighted material
A ((CASA JORGE AMADO"

ENEIDA LEAL CUNHA

O que desejo é que nesta Casa o sentido da vida


da Bahia esteja presente e que isto seja o sentimento
de sua existência. Que, ao lado da pesquisa e do es­
tudo, seja um local de encontro, de intercâmbio cul­
tural entre a Bahia e outros lugares.

JORGE AMAoo1

[. . . ] o sentido de "arquivo'; seu ún ico sentido,


vem para ele do arkheion grego: inicialmente uma
casa, um domidlio, um endereço, a residência dos
magistrados superiores, os arcontes, aqueles que co­
mandavam. [. . . ] Levada em conta sua autoridade
publicamente reconhecida, era em seu lar, nesse lu­
gar que era a casa deles (casa particular, casa de fa­
mília ou casa funcional) que se depositavam então
os documentos oficiais.

JACQUES DERRIDA, Mal de Arquivo.

1. Trecho do discurso do escritor, pronunciado dia 2 de julho de 1986, no Palácio do


Planalto, em Brasüia, quando foi assinada a escritura pública de constituição da

117

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

O volume amplo, azul claro, de muitas janelas e portas, que


se destaca no alto do Largo do Pelourinho, no Centro Históri­
co de Salvador - a "Casa Jorge Amado'� como coloquialmente
dizemos na Bahia, - é muito mais do que o abrigo de um acer­
vo, desde o planejamento arquitetônico à utilização do espaço
dos dois prédios tombados, conjugados internamente. Há no
térreo uma loja, onde são vendidos os livros editados pela Fun­
dação (uma das suas atividades mais férteis), livros que tenham
alguma relação com a obra do romancista ou com a cidade,
souvenirs e material publicitário resultante de apropriações da
obra, como em qualquer museu de nossos dias. Ainda no tér­
reo, há um café e um pequeno palco, no primeiro andar, a ga­
leria e um auditório, e nos dois últimos está o acervo, cujo ves­
tíbulo é uma sala de leitura. Nas entranhas fechadas da Casa,
em grandes armários de aço, recolhe-se a extensíssima corres­
pondência passiva do escritor.
A Fundação guarda cerca de 200 mil documentos, distri­
buídos em três acervos: o principal, que reúne a documenta­
ção pessoal de Jorge Amado e os registros da gênese, da publi­
cação, da circulação e das leituras da obra; o "Acervo Zélia
Gattai", uma coleção de exemplares dos livros publicados pela
escritora, suas traduções, sua recepção crítica e um valioso ar­
quivo de fotografias, que plasmam a trajetória de Jorge Ama­
do nos últimos sessenta anos; e um terceiro e mais sintomático
acervo, estimado em 45 mil documentos sobre a própria Casa,
abarcando desde as primeiras idéias e providências para sua
criação aos registros de atividades e promoções, ao longo de
seus 1 5 anos de existência.

Fundação Casa de Jorge Amado. Myriarn Fraga, Uma Casa de Palavras. Salvador,
FCJA, 1997, p. 36.

118

Copyrighted material
A " CASA J O R G E A MADO ,,

,,
A parte do "Acervo Jorge Amado aberta ao público é pri­
mordialmente relativa à obra do escritor. Inclui os manuscri­
tos originais dos romances, na sua maioria integrais, as edições,
traduções e adaptações havidas e numerosos registros da for­
tuna crítica. Para cada livro foi montado um dossiê da sua re­
percussão, principalmente na mídia impressa, com recortes de
jornais guardados pelo escritor. Dois desses dossiês estão já
,,
publicados na série "Boletim Bibliográfico - Mar Morto ( 1936)
e Seara Vermelha ( 1 946). Outros documentos da vida pública,
como prêmios, condecorações, diplomas, discursos, além de
uma vasta coleção de teses, biografias, estudos, citações, rotei­
ros, vídeos e filmes resultantes de adaptações, cartazes e entre­
vistas do escritor, ou sobre ele e sua obra, integram o acervo.
Grande parte da documentação pessoal depositada na
Fundação é posterior à década de 1 950, uma conseqüência,
previsível, dos anos de perseguição política e de exílio. Sua fra­
ção mais relevante - a correspondência passiva, assinada por
escritores e outros artistas, por intelectuais, políticos e diferen­
ciadas figuras de dimensão pública inquestionável, no Brasil e
no estrangeiro, com as quais conviveu ou se correspondeu Jor­
ge Amado em sua longa, intensa e variada trajetória política e.
literária -, permanece fechada a qualquer consulta, inclusive
de estudiosos da obra2• Entretanto, foi aberto à pesquisa, por
algum tempo,. um segmento da correspondência organizado
sob a rubrica "cartas de fãs", datadas a partir da década de 1 970,
que constituem uma excepcional fonte para estudos da recep-

2. No folheto de divuJgação da FCJA pode-se ler: "O arquivo de correspondência está


provisoriamente fechado para consulta. Após o período de reconhecimento e or­
ganização técnica, o pesquisador terá acesso à documentação referente à vida pro­
fissional do escritor. A correspondência pessoal continuará fechada à consuJta'�

119

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

ção literária no Brasil, inclusive da circulação dos romances


através das adaptações para a televisão e o cinema.
Fatores diversos, como a familiaridade do escritor com ar­
tistas plásticos - e não só da Bahia -, a dedicação continuada
de Zélia Gattai à fotografia e, em especial, a permanente inter­
venção político-cultural do escritor e sua larga exposição na
mídia impressa - convergiram para produzir uma numerosa
coleção de "retratos': imagens de Jorge Amado em diferencia­
dos suportes, a qual pode ser avaliada como um dos itens mais
peculiares e instigantes do acervo. Desenhos, pinturas, carica­
turas e fotos, de datação diversa, possibilitam tanto a constru­
ção de fotobiografias (uma já publicada), quanto, por exem­
plo, a montagem de uma cronologia das transformações da
imagem pública do escritor, a partir da série de caricaturas da­
tadas desde a década de 1 930, que organizamos através do pro­
,,
jeto "Dossiê Jorge Amado 3, ainda por ser publicada.
O acervo da Fundação contém documentos que consti­
tuem um manancial de informações inesgotável, não só capaz
de abrir renovadas perspectivas de leitura da obra, mas espe­
cialmente propício à compreensão das relações de amizade, das
posturas políticas e das opções estéticas que desenharam a
atuação de intelectuais modernistas brasileiros, primordial­
mente aqueles considerados "de esquerda'� entre as décadas de
1 930 a 1 960. Os documentos da atuação política articulada à
longa atividade literária de Jorge Amado ultrapassam o pano­
rama nacional, não só graças à diferença cultural dramatizada

3. "Projeto de Pesquisa Oossiê Jorge Amado: Intelectuais Brasileiros em Diálogo"


(ago. 1995 a jul. 1997), ao qual deu seqüência o Projeto "As Surpreendentes Faces
e Falas do Leitor" (ago. 1997 a jul. 1999) ambos financiados pelo CNPq e desen­
volvidos com participas:ão de estudantes bolsistas, no Instituto de Letras da Uni­
versidade Federal da Bahia.

120

Copyrighted material
A << CASA J O R G E AMA00 11

nos romances, mas pela paradoxal convergência de dados bio­


gráficos - os vínculos com o Partido Comunista Brasileiro, a
conseqüente inserção do escritor nas redes que conectavam in­
ternacionalmente os intelectuais militantes e, um seu correlato
imposto pela história política brasileira, os anos vividos no
exílio e as amizades que então desenvolveu.
Em contrapartida, os documentos mais recentes que inte­
gram o acervo dão ensejo a que se reconstitua e avalie, a partir
da crescente familiaridade de Jorge Amado com o "mundo ofi­
,,
cial - governos e governantes, academias literárias, representa­
ções diplomáticas estrangeiras, editores ou mercado editorial,
mídia televisiva e ainda organismos empresariais diversos4 -,
muitos dos aspectos da institucionalização e mercantilização
da cultura e da literatura, que sobremodo interessam à crítica
cultural contemporânea.
Infelizmente, tem-se que admitir, com a morte de Jorge
Amado, os controles sobre a documentação de caráter mais
pessoal tornam-se mais rígidos e mais restritivos ao acesso dos
estudiosos interessados, especialmente no que se refere à cor­
respondência. As cartas dos leitores ditos comuns, por exem­
plo, manipuladas pela equipe de pesquisadores que coordena­
mos entre 1995 e 1 997 sem qualquer restrição, passaram a
exigir seqüenciadas intermediações junto a bibliotecários da
Fundação, ou mesmo a sofrer interdições, por exigência do
próprio escritor, segundo declara a administração do acervo.
Em contraste com outros acervos de escritores existentes
no país, três aspectos têm forte interferência no acesso de pes-

4. Um quadro nitido dessas relações ou do prestígio e circulação de Jorge nesse âm­


bito pode ser lido no relato que Myriam Fraga faz da criação e instituição da FCJA,
op. cit., nota 1.

121

Copyrighted material
ARQU I VOS LITERÁRIOS

quisadores aos documentos depositados da Fundação Casa de


Jorge Amado: por um lado, a atenção permanente à circulação
da imagem pública e à máquina promocional bem articulada,
que estimularam o arquivamento, estão também na origem da
publicização do acervo, da constituição e da gerência da Casa;
por outro, o grande valor comercial de tudo aquilo que porte
o nome Jorge Amado e a competente administração familiar
desse patrimônio; sobre tudo isso, o fato incontornável de que
o trabalho com o acervo de um escritor vivo pressupõe um ní­
vel alto de dificuldades e permanentes estratégias de negocia­
ção com os seus representantes.
Mas é em outra dimensão que pretendemos marcar aqui a
singularidade do a1cervo Jorge Amado. Na escolha do endereço
para instalar a Fundação, em 1 986, na eleição do Centro His­
tórico de Salvador e do Largo do Pelourinho - em data anterior
à restauração e sua transformação em uma das áreas de atra­
ção turística mais bem "cuidadas do país, convém lembrar -,
podemos começar a ler a vontade e a feição primordiais da
Casa. Nas vizinhanças da mesma rua Alfredo Brito, onde estão
os dois imóveis ocupados pela Fundação, morou, no número
68, o jovem romancista Jorge Amado enquanto escrevia Suor,
publicado em 1 934. A população que então habitava as ruas
estreitas, os muitos prédios arruinados, transformados em çor­
tiços, é a mesma que povoa esse romance, que retorna em ou­
tros romances, e que ainda ocupava a paisagem do Pelourinho
quando foi criada a Casa, na década de 1 980: negros, mulatos,
pobres, operários, pequenos comerciantes, prostitutas, boê­
mios, artesãos, marinheiros; camelôs, artistas, estudantes vin­
dos das cidades do interior para as suas pensões baratas, como
o escritor. Como nos diz o próprio Jorge Amado, em seu dis­
curso na solenidade de inauguração da Casa:

122

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

as inscrições da memória e plasmar a narrativa autobiográfica.


Lá são reproduzidas, cotidianamente, as marcas mais próprias
ou reconhecíveis da vida e da obra amadiana. Seja a sua familia­
ridade com as tradições religiosas de matriz africana, fonte
alimentadora de tantos personagens e lances narrativos da
obra, que está reposta na homenagem ao Exu, guardião da
Casa, plantado na ,entrada principal em escultura de Tati Mo­
reno. Seja, em ângulo bem diverso, a planejada vocação para o
patrocínio das artes em geral e da literat:ura em particular, bem
concretizada pelos administradores da Fundação, principal­
mente através da atividade editorial e da promoção de sucessi­
vos eventos que reúnem escritores e público6• Esse perfil recu­
pera e reproduz a vasta interferência de Jorge Amado n o
lançamento de novos escritores e no mercado editorial brasi­
leiro - documentada no acervo pela quantidade de livros de
terceiros cujas dedicatórias ou autógrafos registram o agrade­
cimento pelos conselhos do autor mais experiente ou pelo
apadrinhamento da publicação.
:B também significativo da reconstituição da vida e da obra
de Jorge Amado, que estamos lendo na Casa, o seu slogan, esta­
belecido pelo próprio escritor ainda na fase de concepção e rei­
terado na abertura de suas portas ao público: "Se for de paz,
pode entrar'� Trata-se de um convite feito de acordo com o
modo de dizer característico das antigas casas de famílias
baianas, que por isso mesmo reitera, condensando-os, a feição

6. A Fundação Casa de Jorge Amado desenvolve, por exemplo, em parceria com o


Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, o projeto Com a Palavra o

Escritor, série de encontros mensais entre escritores baianos e o público, há quase


já seis anos. A transcrições dos registros fonográficos desses debates, mediados
sempre por um crítico ou um profe.ssor de literatura, estão sendo editados em
livro, para publicação pela própria Fundação.

124

Copyrighted material
A "CASA JORGE A M A D O "

doméstica da Casa e o imaginário da baianidade fixado na


obra, como a cidade do acolhimento, da troca, da convivência
íntima do diverso, da amizade fácil e fértil, que produziram a
mestiçagem das raças e a hibridização cultural. Essa abertura
ao mundo, sempre marcada na cidade-porto escrita por Jorge
Amado e também marcante na história de um homem que
habitou muitas cidades, está preservada tanto nos liames sóli­
dos da Casa com o exterior do país quanto na hospitalidade
com que a Fundação hoje recebe a visita de boa parte dos tu­
ristas que vêm a Salvador. A parte térrea do prédio da Funda­
ção, com suas portas largas, a loja e o café, cada vez mais desem­
penha o papel de anfitriã e se firma como lugar de recepção,
informação e repouso para os que circulam pelo Centro His­
tórico. Ao adentrarem aquele volume central e destacado na
Praça do Pelourinho, esses visitantes entram também, de certa
forma, em contato com o cerne ou as matrizes das imagens de
sensualidade, cordialidade e exuberância que consagraram "a
,,
cidade negra da Bahia .
Através da Casa, Jorge Amado continua protagonista nos
papéis que, enquanto escritor, desempenhou ao longo de uma
trajetória que intensamente articula a escrita e o vivido: o de
,,
mediador entre o "povo e os segmentos sociais letrados; o de
,,
eficiente embaixador da "baianidade em outras regiões do país
e no estrangeiro.
A Casa Jorge Amado é, por tudo isso, uma construção au­
tobiográfica com forte assinatura, que desconhece as frontei­
ras entre vida e obra e tumultua os limites entre a esfera públi­
ca e os domínios do privado. Como um texto autobiográfico, a
Casa impõe a sua própria narrativa, aberta à leitura, mas resis­
tente às interpretações que a desvirtuem, que rasurem ou alte­
rem a imagem instituída do escritor; resistente, sobretudo, à

125

Copyrighted material
A R Q U I VOS L I TE R Á R I O S

elaboração de biografias alternativas. Nada pode ser mais ex­


pressivo dessa feição e dessa força do que palavras do próprio
Jorge Amado, na década de 80, as quais fazem eco ao trecho do
seu discurso posto em epígrafe:

Quanto a esta casa de Jorge Amado, o que desejo é que ela não seja
um museu, museu é coisa de mortos e eu estou vivo, grávido de novos
personagens na recriação da humanidade brasileira e baiana, como ve­
nho fazendo há 50 anos. Desejo que esta Fundação seja um centro de
estudos da literatura brasileira, em especial da literatura baiana [... ) da ,

ficção brasileira e da ficção baiana'.

Jorge Amado, ao descartar a idéia do museu - vulnerável


ao itinerário dos passos que o visitam e sempre passível de ter
seu acervo reorganizado, revitalizado através de novas e for­
tuitas narrativas -, nos diz claramente contra o que se fez a
Casa, sob a sua supervisão - seu olho próximo e sua regência
firme: uma ação sua contra a morte, não aquela que traz o es­
quecimento, mas a que faz cessar o poder da enunciação de si
próprio.
Como as ficções, ou como qualquer operação ficcional que
torna possível a recuperação e ressignificação dos traços da
memória, a construção simbólica da Casa não pode prescindir
dos "atos de fingir"8, das operações que selecionam ou recal­
cam, combinam, condensam ou deslocam as inscrições frag­
mentárias do vivido, para reencená-las em um outro lugar. Esse
trabalho é feito cotidianamente na Casa. Ao constituir-se como
abrigo e gestora de um acervo e, ao mesmo tempo, como cen-

7. Citado por Myriarn Fraga, Uma Casa de Palavras, p. 15.


8. Iser, Wolfgang, "Os Atos de Fingir ou o que é Ficticio no Texto Ficcional", em Lurs
Costa Lima ( org.), Teoria da Literatura em suas Fontes, 2. ed., Rio de Janeiro, Fran­
cisco Alves, 1 983, vol. li.

126

Copyrighted material
A "CASA J O R G E A M A D O "

tro cultural atuante na vida da cidade e no mercado editorial


brasileiro, a Fundação Casa de Jorge Amado detém a prerroga­
tiva de uma "atividade", que se faz em prol da divulgação, au­
torizada, de uma determinada imagem do escritor e de uma
1

determinada vertente leitura de sua obra.


Os cuidados e controles do acesso aos documentos do acer­
vo da Fundação, vistos por este ângulo, podem dizer mais do
que o habitual, em circunstâncias e acervos análogos, que hoje
proliferam em instituições de pesquisa isoladas e nas universi­
dades. Porém, não estão em grande dissonância com os aspec­
tos constituintes dos arquivos, na nossa tradição letrada e oci­
·dental, apontados por Jacques Derrida9• Aos arcontes, guardiães
primeiros dos arquivos, além da responsabilidade pela locali­
zação e segurança física do suporte, são reservados também "o
direito e a competência hermenêuticos"'º· No "princípio arcôn­
tico" que rege os arquivos até os nossos dias, as funções de uni­
ficação, identificação e classificação não podem ser dissociadas,
segundo Derrida, do "poder de consignação'� no sentido cor­
rente de "designar uma residência ou confiar", mas igualmente
como "o ato de consignar reunindo os signos. [ . . ] A consigna­
.

ção tende a coordenar um único corpus em um sistema ou uma


sincronia na qual todos os elementos articulam a unidade de
uma configuração ideal"11•
A "configuração ideal" do romancista e homem público
Jorge Amado, pode ser depreendida das motivações, definições
e práticas da Casa autorizadas por seu efetivo arconte - o pró-

9. Jacques Derrida, Mal de Arquivo. Uma Impressão Freudiana, Rio de Janeiro, Relume
Dumará, 200 l .
10. Idem, pp. 1 2 - 1 3.
1 1 . Idem, p. 14. Grifos do autor.

127

Copyrighted material
A C E R VOS S U L I N O S : A F O N T E D O C UM E N TA L. . .

textos raros, de primeira mão, bem como a documentação se­


cundária a eles relativa , preservar os achados fisica e digital­
mente e difundi-los por meio da Internet , pensando-os em sua
dimensão teórica ao mesmo tempo, tais projetos, especifica­
mente voltados para acervos de escritores , trabalham o docu­
mento como fonte objetiva para a construção de uma história ,
de uma crítica e de uma teoria literárias ciosas da precisão de
seus dados e de uma praxis interdisciplinar e transtextual.
Os Acervos de Escritores Sulinos derivam da organização,
a partir de 1982, dos documentos legados por t:rico Veríssimo,
por solicitação de D. Mafalda. Em 1984, foi aprovado um pro­
jeto de pesquisa pelo CNPq que resultou num sistema original
de acondicionamento, arquivamento e catalogação de docu­
mentos literários, concebido por mim. O sistema foi pensado
com vistas à interação digital entre os fichários e os documen­
tos, de modo que, ao longo do trabalho, a profusão de dados
oferecidos pelo acervo reunido e constantemente ampliado
pudesse ser manuseada eletronicamente e colocada em rede.
Desse modo, um pensamento reticular entre a variedade de es­
pécies documentais seria facultado , podendo iluminar com
maior abrangência os fenômenos literários.
A designação de acervo a essa matéria documental produ­
zida ou referida à produção literária de Erico Veríssimo não foi
impensada. À diferença do que "espólio,, designa , ou seja , a he­
rança deixada por alguém após a morte e que, no caso de um
escritor, pode incluir todas as suas propriedades pessoais , além
de prototextos , textos e paratextos, e para evitar as conotações
de "arquivo'� que sugere imobilização e simples classificação, a
opção por um termo mais geral, como "acervo", quis significar
um trabalho que não apenas conserva em ordem e cataloga
para consulta documentos literários, mas promove a obra e a

13 1

Copyrighted material
ARQUIV OS LITERÁRIOS

imagem do escritor, propicia investigações de cunho teórico,


crítico e histórico, tanto quanto acolhe mais do que normal­
mente os arquivos ou espólios literários costumam conter.
Essa tomada de posição investigativa, bem como o êxito,
em termos de relação com o público acadêmico e também com
o não especializado, do "Acervo Literário de Érico Veríssimo",
levou à constituição de dois outros acervos, por iniciativa de
Regina Zilberman, enquanto dirigia o Instituto Estadual do
Livro do Rio Grande do Sul. Formaram-se então, em 1 986, o
de Dyonélio Machado e, em 1991, o de Reynaldo Moura. En­
quanto, nesse mesmo ano, se iniciava, com os fichários já dis­
poníveis, a informatização dos dados de identificação dos do­
cumentos referentes a Verissimo, novo acervo foi implantado,
o do poeta e artista plástico Pedro Geraldo Escosteguy, que
trouxe novos desafios ao sistema antes pensado apenas para
escritores.
Em 1993, em virtude da expansão dos acervos e do conhe­
cimento por eles disponibilizado, o Centro de Pesquisas Lite­
rárias da PucRs promovia o primeiro encontro nacional de
acervos brasileiros, com receptividade altamente positiva e de­
manda de continuidade, o que vem sendo efetuado desde en­
tão bienalmente, proporcionando o intercâmbio de estudos e
tecnologias entre os especialistas que foram se encaminhando
para essa relativamente nova área do conhecimento literário
no País.
Em 1 995, são implantados três novos acervos, os de Mario
Quintana, Zeferino Brasil,, um poeta da Belle Époque porto­
alegrense e o do dicionarista e cronista Francisco Fernandes.
Institucionalizam-se os Encontros Nacionais de Acervos Lite­
rários Brasileiros, sempre com sede na PucRs, e o conhecimen­
to produzido gradualmente se desloca do estado da arte e dos

132

Copyrighted material
ACERVOS SULI N O S : A FONTE D O C U M ENTAL • • •

sistemas de preservação e restituição física dos materiais, para


aspectos éticos e para o impacto das novas tecnologias sobre o
documento literário.
Em 1 996, constitui-se o "Acervo Literário de Josué Guima­
rães': seguido, em 1 997, pelo do crítico e ensaísta Manoelito de
Ornellas e, em 1 998, pelo da poeta militante Lila Ripoll. Todos
estes vêm unir-se ao conjunto dos demais graças à confiança
granjeada junto à comunidade literária pelas equipes de pes­
quisa e pela visibilidade obtida para autores que a passagem
do tempo tendia a restringir apenas ao âmbito da critica uni­
versitária.
Segundo a concepção que pauta sua organização, os Acer­
vos de Escritores Sulinos são geridos através de um sistema,
descrito em detalhe no primeiro número do primeiro volume
dos Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS- lan­
çado em janeiro de 1 995 , o Manual de Organização do Acervo
-

Literário de Érico Veríssimo - que estabelece as diretrizes a se­


rem observadas na coleta, acondicionamento , arquivamento e
catalogação não só do acervo de Érico Veríssimo, mas de qual­
quer dos acervos pertencentes ao Centro de Pesquisas Literárias
da Universidade.
Nele pode-se constatar que o sistema dos acervos do Cen­
tro de Memória Literária da PucRs prevê quinze arquivos do­
cumentais possíveis, conforme as características da produção
de cada autor. Esses arquivos, em combinações múltiplas, con­
forme o interesse teórico, crítico ou histórico do pesquisador,
possibilitam relacionar aspectos intrínsecos e extrínsecos do
texto literário a partir de evidências físicas.
Para edições críticas e estudos genéticos, a "classe O I - Ori­
,
ginais , abrange os manuscritos das obras do autor que resulta­
ram na primeira edição ou alguma das versões anteriores, na

133

Copyrighted material
A RQ U I V O S LITERÁRIOS

como estimular a pesquisa interinstitucional, a formação de


quadros especializados e de equipes multidisciplinares, como
Letras/Química, Letras/Informática, por exemplo.
Diante da heterogeneidade dos elementos que constituem
um acervo, impõe-se a necessidade de estudos interdiscipli­
nares, mobilizando a história, a sociologia, a psicanálise, a ciên­
cia política, a antropologia cultural, a biblioteconomia, as ciên­
cias da comunicação, bem como a modernização de disciplinas
de Letras longamente estabelecidas, como a crítica textual, por­
que não se pode mais ver o evento literário como autotélico e
auto-suficiente. A existência de acervos, na concepção aqui de­
fendida, longe de representar uma cristalização do conheci­
mento, imobilizando o objeto num lugar sagrado, requer um
pensamento reticular, que estabelece constantemente novas
associações e se irradia para sempre mais distantes contextos,
dessacralizando a literatura e religando-a à realidade de que a
afastaram para que não se contaminasse.
Por outro lado, uma teoria ou uma história da literatura,
ou igualmente sua crítica, que se queiram científicas, quando
se sabe que a posição do observador afeta o objeto observado,
precisam levar em conta o lugar de onde fala o investigador, o
que poderia ser regulado pela materialidade das fontes docu­
mentais. Esse é o objetivo atual do Projeto Integrado Fontes da
Literatura Brasileira, direcionado ao tratamento da documen­
tação já reunida e trabalhada nos diversos projetos de consti­
tuição de acervos. Embora tais fontes também impliquem
intenções, desvestidas das camadas históricas de discursos defi­
nidores por um estudioso que ao mesmo tempo seja um cole­
cionador atento e inclusivo e um arqueólogo em busca de sen­
tido onde só há ruínas, expressam todo o jogo de poderes que
as institui enquanto matéria para a teoria e a história literárias,

Copyrighted material
ACERVOS S U L I N O S : A FONTE D O C U M ENTAL . . .

revelando, nesse ato, também de onde estão sendo considera­


das.
Uma investigação dessa ordem não pode ser discrimina­
tória, essencialista, hierárquica ou periodológica. Valendo-se
da noção de transtextualidade, uma das idéias em processo
parte de determinado lugar, à luz dos interesses do investiga­
dor, e de seu tempo, de um texto-chave, e, num moto-contí­
nuo de associações com as circunstâncias de produção-recep­
ção, tanto psíquicas, quanto econômico-sociais, manifestas ou
veladas, com a tradição literária e os movimentos de ruptura,
com os intertextos com que dialoga , reconstitui os espaços de
tempo e as construções teóricas que essa chave pode abrir. A
inumerabilidade de conexões possíveis é controlada bipolar­
mente, pela intencionalidade do pesquisador, intersubjeti­
vamente ligado a sua época, e pelos documentos-fonte relacio­
nados à obra-objeto.
O agenciamento de fontes primárias para a investigação
teórica ou histórica da literatura, entretanto, também não pres­
cinde da precaução ante a consciência ingênua. Toda fonte ad­
quire sua condição através de um ato significativo, o de quem
a preserva para o futuro, tanto quanto o de quem a recupera
para o presente: é um construto, como a narração ou descri­
ção histórica ou a explicação teórica o são. Tem a seu favor,
porém , uma vantagem - sua materialidade, que lhe garante um
núcleo estável, mesmo que ao seu redor gravitem interesses.

13 9

Copyrighted material
o ARQUIVAMENTO DO ESCRITOR
REINALDO MARQUES

Encarregado por Abgar Renault de receber de O Diário


,,
Carioca os «caraminguás devidos por duas colaborações an­
teriores, Drummond solicita do amigo de Belo Horizonte, em
carta de 26.5. 1 953, a informação da data de publicação de um
dos poemas - «Retorno de Pasárgada" -, a fim de agilizar o re­
cebimento. E esclarece: «(Já vê você que eu recorto todos os seus
poemas e os guardo; ponho mesmo as datas respectivas, mas
,,
no «Retorno" me esqueci disso) . Já Abgar, numa carta datada
de 19.3. 1959, após considerações sobre as causas de seu afasta­
men�o do cargo de Secretário de Estado da Educação de Minas
Gerais, assim finaliza sua missiva ao amigo residente no Rio de
Janeiro: «Mando-lhe mais alguns recortes para seu precioso
arquivo. Constituem prova de que você está presente sempre,
,,
até nos meus silêncios infames .
A leitura da correspondência recíproca entre Carlos
Drummond de Andrade e Abgar Renault revela a existência
neles de uma cumplicidade arquivística. Em ambos há uma
compulsão para arquivar papéis, recortes de jornais, cartas, bi-

Copyrighted material
ARQUIVOS L I T E R Á R I O S

lhetes, cartões postais etc. Revelador de um desejo de memó­


ria, trata-se de hábito antigo, posto que, em outra carta de
30.4. 1 948, diz Drummond:

Remexendo papéis velhos, a fim de escrever alguma coisa sobre o


Milton [ .. ], encontrei uma carta de 1925 em que ele se queixa de você,
.

por falta de noticias e diz textualmente: "Saberei não aproveitá-lo quan­


do for governo, como disse o Nilo e ainda diz o João Pinheiro'� Achei
uma delícia e apressei-me a levá-lo ao seu prezado conhecimento'.

É interessante observar como um alimenta o arquivo do


outro, enviando recortes dos jornais com as publicações do
amigo, entre outras coisas. São várias as cartas em que acusam
e agradecem o recebimento desses recortes. E tal envio consti­
tui prova de apreço, de amizade, contrapondo-se aos períodos
de silêncio, indiciador de esquecimento, quando prolongados.
Assim, prover o arquivo do outro com tais recortes, e outros
materiais, a par de afirmar a estima do amigo distante, suple­
menta uma memória alheia, de outrem. Trata-se de uma du­
pla operação de arquivamento, por meio da qual o escritor exe­
cuta uma série de práticas arquivísticas, constituindo arquivos
literários, e, ao mesmo tempo, se arquiva. Constrói sua ima­
gem de autor e preserva a memória de sua formação e relações
afetivas e intelectuais. Nesse sentido, gostaria de lhes propor
algumas breves reflexões e observações sobre o trabalho de ar­
quivamento do escritor, com vistas a explicitar as motivações e
funções do arquivo na vida dos escritores e a considerar nossas

l. As cartas aqu.i mencionadas fazem parte dos arquivos de Abgar Renault e Carlos
Drummond de Andrade, sob a guarda do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira
da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Atualmente, com apoio do
CNPq, estamos trabalhando na organização da correspondência recíproca entre
os dois escritores com vistas a uma futura publicação.

142

Copyrighted material
O ARQUIVAMENTO DO E S C R I T O R

com aspectos metodológicos e técnicos de elaboração de in­


ventários, organização de arquivos e conservação de documen­
tos, o trabalho com os fundos dos escritores mineiros, no âmbi­
to da UFMG, contribuiu para sensibilizar a comunidade
acadêmica quanto ao problema dos inúmeros acervos existen­
tes na Universidade. Nesse sentido, a sua administração cen­
tral, na gestão 1 998-2002, criou uma Comissão para estabele­
cer a Política de Acervos da Universidade.
Dotada de caráter transdisciplinar, constituída por repre­
sentantes e especialistas de diversas áreas do conhecimento, a
referida Comissão elaborou e executou o projeto Inventário
de Acervos da UFMG, com o objetivo de mapear os acervos
existentes, descrevendo o estado atual de cada um deles, a fim
de propor ações e instrumentos com vistas à recuperação, con­
servação e organização. Tal inventário envolveu o mapea­
mento de fundos, arquivos, coleções, museus, edificações, en­
tre outras coisas, colaborando para a consolidação de uma
política de acervos. E resultou na criação de uma Comissão
Permanente de Acervos dentro da Universidade, com vistas a
assessorar as decisões da Reitoria. Nesse trabalho, constituí­
ram-se em aspectos bastante positivos a interlocução e o en­
trosamento maior entre agentes culturais, pesquisadores e ad­
ministradores ligados à questão dos acervos. Foi possível
refletir com colegas de várias outras áreas (Biblioteconomia ,
Belas-artes, CECOR, História, Música, Arquitetura) sobre dife­
rentes problemas relativos ao patrimônio histórico, à organi­
zação, descrição e conservação de arquivos, coleções e fundos
documentais.
Após explicitar o lugar a partir do qual estou enunciando
o meu discurso, quero voltar ao tema do arquivamento do es­
critor.

1 45

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRI OS

UMA DUPLA OPERAÇÃO

Ao examinar a constituição pessoal de arquivos de vida,


Philippe Artieres ressalta três aspectos relacionados ao arqui­
vamento do eu3• Trata-se, primeiramente, de uma injunção
social; os indivíduos arquivam suas vidas como cumprimento
de um mandamento social: «arquivarás tua vida'� Tal manda­
mento reflete, sobretudo nas sociedades letradas, o poder da
escrita sobre o cotidiano. Como lembra Artieres, "para existir,
é preciso inscrever-se: inscrever-se nos registros civis, nas fichas
médicas, escolares, bancárias"4• Daí a necessidade de zelarmos
pela boa organização de nossas vidas, eliminando suas lacu­
nas; de uma gestão diferente de nossos papéis, mantendo ar­
quivos domésticos, locus de uma escrita ordinária. Inescapável
submissão ao controle gráfico, os arquivos nos provêem de re­
cordações e lembranças, de um passado com que aprender, para
melhor construir o futuro. Inserem-nos num espaço de nor­
malidade, garantem-nos uma identidade.
Como segundo aspecto, a exigência da constituição de ar­
quivos pessoais leva os indivíduos a desenvolverem práticas de
arquivamento do eu. Para tanto, são acionadas práticas múlti­
plas de arquivamento: guardar papéis ou documentos em pas­
tas, gavetas ou cofres; montar álbuns fotográficos; manter um
diário ou, ainda, redigir uma autobiografia. São executadas di­
ferentes operações intelectuais e manuais: analisar, selecionar,
fazer triagem, manipular, omitir, sublinhar, rasurar, riscar, re­
cortar etc. Nesses procedimentos importa salientar, a meu ver,

3. Philippe Artieres, "Arquivar a Própria Vida", Estudos Históricos: Arquivos Pessoais,


Rio de Janeiro, vol. 1 1 , n. 2 1 , pp. 9-34, 1998.
4. Idem, p. 12.

Copyrighted material
O A R Q U I VA M ENTO DO E S C R I T O R

tanto o gesto seletivo e classificatório quanto a intencionali­


dade por parte do indivíduo que constitui seu arquivo pessoal.
As práticas de arquivamento do eu apresentam, ainda, uma
intenção autobiográfica, evidenciando um movimento de
subjetivação. Prática mais refinada de arquivamento do eu, por
meio da autobiografia certos acontecimentos de uma vida são
selecionados e organizados numa forma narrativa. Tal proce­
dimento faz com que o sentido de nossas vidas resulte das ope­
rações de escolha, classificação e organização dos acontecimen­
tos que a marcaram. Escrever um diário e guardar papéis
equivale a escrever uma autobiografia, práticas que se inserem
no âmbito daquelas que, segundo Foucault, revelam uma preo­
cupação com o sujeito. Arquivar a própria vida possibilita for­
jar uma imagem íntima de si mesmo, como contraponto à ima­
gem social. Para Artieres, "o arquivamento do eu é uma prática
de construção de si mesmo e de resistência"5•
No trabalho com os acervos dos escritores mineiros, o pes­
quisador logo se depara com a compulsão arquivística mencio­
nada acima. Se não se pode dizer que se trata de característica
exclusiva desses escritores, é possível afirmar, no entanto, que
neles é um traço saliente. Diria até mesmo atávico, fruto de
forte inclinação memorialística e autobiográfica, emblema­
tizada por aquelas arcas e baús muito comuns nas fazendas
coloniais mineiras, funcionando como arquivos de uma Mi­

nas arcaica e ancestral. Dessa inclinação própria dos autores


mineiros já tratou, por sinal, Antonio Candido6• Percebe-se nos
nossos escritores um empenho zeloso para guardar papéis e

5. Idem, p. 1 1 .
6. Cf. Antonio Candido, "Poesia e Ficção na Autobiografia'� A Educação pela Noite &
Outros Ensaios, São Paulo, Atica, 1987, pp. 51 -69.

1 47

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

documentos, armazenar recortes de jornais, arquivar e orde­


nar originais manuscritos ou datiloscritos, correspondências
(cartas, bilhetes, cartões postais, telegramas}, acumular foto­
grafias, montar bibliotecas, preservar objetos pessoais. E tam­
bém a prática do colecionar: revistas, suplementos literários,
obras de artes, obras de artesanato. Disso dão testemunho, por
exemplo, os álbuns fotográficos de Abgar Renault, registrando
sobretudo a trajetória do homem público, ocupado e preocu­
pado com os rumos da educação no país; a correspondência
de Henriqueta Lisboa, evidenciando uma rede de relações lite­
rárias e afinidades intelectuais e afetivas; a coleção de peças de
artesanato popular, de Oswaldo França Júnior, figurando ná­
degas femininas e cenas eróticas; a coleção do Suplemento Lite­
rário de Murilo Rubião, sua biblioteca pessoal. Este é talvez o
escritor mais atacado pela prática arquivística, marcada pelo
rigor na ordenação e classificação dos materiais, pelo cuidado
com sua conservação e preservação, como indica seu hábito de
colocar capa dura em todos os livros.
Retomando aqueles aspectos apontados por Philippe
Artieres na constituição de arquivos pessoais, gostaria de assi­
nalar algumas semelhanças e diferenças no caso dos escritores
mineiros, dos arquivos literários. As práticas de arquivamento,
menos que fruto de uma injunção meramente social, resultam
de uma rede de relações literárias e afinidades intelectuais na
qual esses escritores se inscrevem. Revelam um cuidado com a
memória do escritor, com sua formação intelectual, que possi­
bilita a construção de sua imagem enquanto autor significativo.
Ao arquivar correspondências de amigos e críticos que tratam
de seus textos, artigos em jornais contendo críticas sobre seus
livros, o escritor preserva uma fonte inesgotável de paratextos,
que ajudam a entender a produção e recepção de sua obra.

Copyrighted material
O ARQUIVAMENTO DO ESCRITOR

Mas importa anotar uma diferença no caso dos nossos es­


critores: na tarefa com que se põem a arquivar, percebe-se como
que um ganho de prazer, como se pode apreender da corres­
pondência entre Drummond e Abgar Renault. Talvez isso se
explique pelo importância que o outro assume no processo,
evidenciando se tratar a prática arquivística desses escritores
de uma ação compartilhada. Esse olhar de outrem que perpas­
sa a construção dos arquivos literários destaca o papel do des­
tinatário, ao zelar pelas memórias e lembranças alheias, suple­
mentando a memória do outro. Indica que os arquivos dos
escritores tendem a extrapolar o domínio do propriamente
privado, ganhando a cena pública e solicitando a atenção de
leitores e pesquisadores. Pesquisadores estes aos quais, como
destinatários virtuais dos arquivos literários, caberá continuar
cuidando da memória do escritor, preservando sua obra e vi­
vendo uma memória vicária.
Nessa direção, pode-se afirmar que está presente no arqui­
vamento do escritor uma clara intenção autobiográfica, volta­
da especialmente para os aspectos intelectuais e culturais de sua
trajetória de vida. Ao recorrer a múltiplas e incessantes práti­
cas de arquivo, ele parece manifestar o desejo de distanciar-se
de si mesmo, tornando-se um personagem - o autor. O que
permite compor outra imagem de si, neutralizando de certa
maneira o eu biográfico, sua precariedade e imprevisibilidade.
Arquivando, o escritor deseja escrever o livro da própria vida,
da sua formação intelectual; quer testemunhar, se insurgir con­
tra a ordem das coisas, afirmando o valor cultural dos arqui­
vos. Mas como é impossível arquivar nossas vidas de uma vez
por todas, e em sua totalidade, os arquivos apresentam um ca­
ráter lacunar, de inacabamento. Conservando seus papéis e
documentos, funcionam como suplementos da memória e da

149

Copyrighted material
ARQUlVOS LlTERÁRlOS

obra do escritor. Com seu poder de rasurar, intervir, modificar


e suplementar, afirmam o caráter também inacabado não so­
mente de sua autobiografia, mas também da obra do escritor,
problematizando a noção de texto último, definitivo.
Ao recorrer a práticas inúmeras de arquivamento de seus
papéis, documentos e materiais, organizando-os e intencio­
nando-os de certo modo, o escritor realiza uma segunda ope­
ração inerente à primeira: ele também se arquiva. Vale dizer,
ele se desvencilha da natureza evanescente da experiência coti­
diana, escapa do fluxo incessante e imprevisível do tempo pre­
sente; estanca-o, ao intervir e articular o seu passado. Torna o
seu passado significativo, em termos de sua formação como
escritor, ao selecionar e preservar certos detalhes, passagens,
acontecimentos, atestados por um documento, um registro
qualquer. Afirma-se como ausência no mundo visível, do pre­
sente, e como presença no mundo invisível, do passado. Des­
vencilha-se do presente, a fim de se perpetuar no passado, pela
memória, como alguém digno de vir a ser lembrado pela obra
literária e intelectual que construiu. Ao se arquivar, o escritor
manifesta o desejo de vencer o tempo, permanecendo na me­
mória de um povo ou de um país. Confronta-se, enfrentando
à sua maneira, com aquele "mal de arquivo", aquela força des­
truidora de todo arquivo, que Derrida identifica com a pulsão
de morte7•
Arquivando-se, o escritor procura estabelecer nexos e co­
nexões não apenas com seu passado pessoal, mas com o passa­
do de toda sua comunidade. Sugere possibilidades para sua re­
presentação e conhecimento. E talvez o faça por desconfiar que

7. Cf. Jacques Derrida, Mal de Arquivo. Uma Impressão Freudiana. Rio de Janeiro,
Relume Dumará, 2001, p. 23.

150

Copyrighted material
O A R Q U I VA M ENTO DO E S C R I T O R

a natureza do passado não seja nada transparente; ao contrá­


rio, é opaca. Uma história de vida não se dá de forma linear e
progressiva no tempo, como sucessão harmônica e natural de
momentos, fases; é marcada, antes, por descontinuidades e
rupturas. Nesse sentido, como forma de intervenção e articu­
lação do passado, de construção da memória, os arquivos dos
escritores são marcados pelo artifício, por uma intencio­
nalidade.
Trata-se de um passado, de uma memória que atuam no
presente, pavoneando o imaginário do escritor. A propósito,
lembro aqui que Murilo Rubião mantinha em seu escritório,
bem à vista, uma foto de seu batizado, em que se vê ele ainda
bebê com sua roupa branca de batismo. Essa indumentária,
ele preservou cuidadosamente e se encontra também no seu
acervo.
Os arquivos literários resultam do cruzamento daqueles
princípios examinados por Derrida em sua descrição arqueo­
,,
lógica da própria noção do "arquivo , ao tomá-la a partir da
sua raiz grega - arkhê. Um princípio topológico, de natureza
física, relativo a começo e que remete ao lugar, ao suporte do
arquivo; e um princípio nomológico, da lei, relativo a coman­
do, implicando um direito, exercício de autoridade8• No caso
dos arquivos literários, cabe destacar, quanto ao aspecto
topológico, uma operação de localização, de domiciliação, em
que a casa, a morada do escritor torna-se o depósito/suporte
de seu arquivo. Em relação ao segundo aspecto, o nomológico,
remete à forma como o escritor ordena, organiza o seu arqui­
vo, revelando uma intencionalidade, garantindo certa autori­
dade hermenêutica. Outro ponto importante reside naquela

8. Idem, pp. 1 1- 1 4.

151

Copyrighted material
A RQ U I VOS LITER Á R I O S

passagem - de natureza complexa - do privado ao público


apontada anteriormente, em que a casa do escritor torna-se um
museu, um arquivo, aberto ao público. Ou em que seu acervo
é confiado à guarda de uma instituição pública e de seus ar­
contes, os guardiães dos arquivos - universidade, centro de
memória, de documentação, biblioteca etc.
À guisa de conclusão, queria chamar a atenção para dois
aspectos do trabalho do pesquisador de arquivos literários, que
se vê freqüentemente desempenhando uma função arcôntica,
investido do poder de interpretação desses arquivos9• Um pri­
meiro relacionado ao papel do arquivista; o outro, ao caráter
transdisciplinar da pesquisa com arquivos.
1 ) Na busca de informações especializadas junto aos cen­
tros de documentação aos arquivos literários nos vimos muitas
vezes desempenhando, por várias razões, as funções de arqui­
vistas. Por isso precisamos tomar consciência das transforma­
ções que estão ocorrendo nesse campo. Cabe destacar a passa­
gem de uma compreensão moderna do trabalho arquivístico
para uma compreensão pós-moderna. Conforme evidenciou
Terry Cook1º, a visão moderna atribuía à atuação do arquivista
uma função de neutralidade e imparcialidade, tendo em vista
o princípio de respeito à proveniência dos fundos e à ordem
original, capaz de preservar o contexto da criação do documen­
to. Tal função estava ligada a uma perspectiva de administra­
ção weberiana, mono-hierárquica e centralizadora. Dentro de
tal compreensão, operou-se uma distinção entre arquivos pú-

9. Cf. Idem, ibidem.


10. Terry Cook, "Arquivos Pessoais e Arquivos Institucionais: Para um Entendimento
Arquivístico Comum da Formação da Memória em um Mundo Pós-moderno':
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 1 1 , n. 2 1 , 1998, pp. 129-1 49.

152

Copyrighted material
O ARQUIVAMENTO DO E S C R I T O R

blicos, vistos estes como resultados de uma acumulação natu­


ral e orgânica de órgãos da administração pública, enquanto
que aqueles seriam de caráter mais artificial e artificioso,
construídos por certa intencionalidade de seus organizadores.
Com o desenvolvimento da informática, dos arquivos ele­
trônicos, das novas formas de organização administrativa, le­
vando à construção de redes hipertextuais de informação,
aquela perspectiva mono-hierárquica e centralizadora da
modernidade foi substituída por uma perspectiva descentrada
e fragmentada de arquivamento da informação e dos docu­
mentos, colocando em xeque diversos procedimentos e tradi­
ções, como a criação de séries e subséries. Sem um centro hie­
rárquico de controle, o que prevalece é a idéia de função, de
navegação e associação na rede hipertextual, caracterizando
uma existência de nós e nódulos intercomunicantes de infor­
mação.
Com as novas tecnologias eletrônicas de arquivamento, a
possibilidade de estocagem de informação tornou-se espanto­
sa. Ante o número quase infinito de dados, informações e do­
cumentos, o trabalho do arquivo não pode mais se reduzir à
mera manutenção dos fundos. Como bem demonstra Terry
Cook, ele deve também selecionar, interpretar e deliberar so­
bre quais documentos devem ser memorizados, guardados, e
quais não. Dai que Cook defenda uma atitude de intervenção
ativa do arqui_vista, deixando de lado a antiga postura de im­
parcialidade e neutralidade. O arquivista se torna um "agente
de formação da memória': Cabe a ele desnaturalizar o que se
toma como natural, orgânico, desconstruindo a intenção que
totalizou um arquivo, e desvelando o seu caráter de universo
fragmentário, de artifício, de construção social, numa atitude
típica da pós-modernidade, que desconfia do que se presume

1 53

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

natural, da verdade absoluta. Dessa forma, para Cook se desfaz


a oposição entre arquivistas de arquivos públicos e arquivistas
de arquivos pessoais, possibilitando uma visão de trabalho
mais integrada, urna vez que ambos criam, conformam, filtram
e distorcem os arquivos.
Acho interessante na formulação de Cook o fato de que,
na medida em que se rompe com a visão de imparcialidade e
neutralidade do trabalho arquivístico, e na medida em que se
assuma a dimensão subjetiva e de intervenção do arquivista,
seus critérios de seleção, seus procedimentos técnicos de arqui­
vamento possam ser discutidos, debatidos e se tornarem mais
transparentes. O que, a meu ver, tornaria o exercício e a cons­
t rução da memória coletiva, bem como o acesso a ela, mais

aberto e democrático.
Por fim, seria importante assinalar, conforme mostrou
Renato Janine Ribeiro11, que se queremos deslocar a história,
operando outras análises e interpretações, cabe desconstruir a
ordem original, a intencionalidade que erigiu os arquivos, afir­
mando outras possibilidades de ordenamento e de articulação.
Tal desconstrução não implica obviamente desfazer a organi­
zação original de um acervo, alterar a ordem dos arquivos que
a intencionalidade do escritor previamente estabeleceu; deve­
se dar antes no âmbito do trabalho do pesquisador, na sua
maneira de percorrer e apreender o arquivo, na forma de ler e
interpretar seus documentos, seus signos.
2) O trabalho com arquivos e acervos literários exige cada
vez mais uma perspectiva transdisciplinar, de colaboração en­
tre diversos saberes. Transdisciplinar tanto no sentido de de-

1 1 . Renato Janine Ribeiro, "Memórias de si ou . . .': Estudos Históricos: Arquivos Pessoais,


op. cit., p. 40.

1 54

Copyrighted material
A R Q U I VOS L I TE R Á R I O S

uma boa discussão sobre a questão do contexto histórico e cul­


tural dos documentos, sobre os problemas atinentes à memó­
ria social. Esse trânsito entre os saberes, que proponho aqui,
certamente aumentará as nossas possibilidades de exploração
e uso dos acervos literários, intensificando os prazeres do ar­
quivo. Mais ainda, minimizaria os problemas decorrentes de
uma formação ainda deficiente de muitos profissionais que li­
dam com arquivos em nosso país. Sobretudo num momento
em que se prega uma intervenção mais efetiva dos arquivistas.

Copyrighted material
ACERVOS DE MURILO MENDES

TEREZINHA MARIA SCHER PEREIRA

Um grupo de professores do Curso de pós-graduação em


Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora reuniu-se em
torno de um projeto integrado de pesquisa que tem por obje­
tivo construir uma bibliografia literária que apresentará não
mais o Murilo Mendes autor, uma vez que a fortuna crítica do
poeta já se compõe de conhecidos e relevantes trabalhos. O
projeto pretende apresentar Murilo Mendes como leitor e
interlocutor de outros autores e leitores, e, principalmente, o
Murilo Mendes colecionador.
A primeira reflexão que fizemos sobre esse Murilo Men­
des colecionador foi quando eu e outros professores manipu­
lávamos, fascinados, o acervo de livros do poeta que foi doado
à Universidade. Olhando os livros , catálogos de exposições de
arte, cartões, fragmentos de correspondência, lendo as dedica­
tórias dos autores e anotações do próprio Murilo Mendes, per­
cebemos que estávamos diante de duas coleções: uma, de li­
vros; a outra, de textos.
Esses textos, que chamamos de marginália, confirmavam

1 57

Copyrighted material
A R Q U IVOS LITERÁRIOS

o dado biográfico muito conhecido de que Murilo Mendes cul­


tivava amigos artistas e intelectuais, entre os quais se incluem
nomes expressivos da arte do século XX. Os livros, muitas ve­
zes, tinham dedicatórias afetuosas que, mais tarde, quando che­
gou o acervo de artes plásticas, encontraríamos também nos
quadros e gravuras. Trabalhos valiosos eram ainda mais espe­
ciais porque doados pelos autores ao poeta.
Essas coleções de livros, de quadros, de textos, certamente
significavam algo. A hipótese de uma pesquisa começava a se
formar: Murilo, que escolheu a Europa para viver, certamente
teria, de alguma forma, escolhido os autores e as obras em re­
lação aos quais queira se filiar.
Segundo Luciana Stegagno Picchio, Murilo Mendes, ao
longo da vida, reuniu obras e livros formando uma "coleção
,,
preciosa, nascida toda da amizade e do convívio 1• Assim, para
esse poeta desterritorializado, colecionar significava estabele­
cer laços e conexões, formando uma espécie de rede feita de
dados culturais, artísticos, mas também pessoais e afetivos cujo

sentido revelava sua própria busca identitária. Pela estratégia
de colecionar amigos, contemporâneos ou não, Murilo Men­
des escolhe sua própria gênese e a marca como uma filogênese.
O menino, que em Juiz de Fora "colava pedaços da Europa
e da Ásia em grandes cadernos: fotografias de estátuas e qua­
dros, cidades, lugares e monumentos': torna-se o escritor que
usa a mesma estratégia nas suas obras. Livros como Retratos­
Relâmpago, Janelas Verdes, A Idade do Serrote e A Invenção do
Finito, são coleções de retratos de amigos e de cartões-postais
de lugares visitados; retratos e postais feitos de palavras, bem

1. Murilo Mendes, Poesia Completa e Prosa, em Luciana Stegagno Picchio, (org. e


preparação do texto), Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, p. 29.

Copyrighted material
ACERVOS D E M U R I L O M E N D E S

entendido. Isso significa que Murilo Mendes é o colecionador


no sentido que Walter Benjamin atribui a esta palavra.
Há, segundo Benjamin, no processo de colecionar uma
tensão entre a ordem e a desordem, entre o todo e o fragmen­
to, pois o colecionador gostaria de encerrar o objeto em uma
ordem, mas como cada peça faz limite com uma lembrança, já
se vê que é preciso renunciar ao ideal de totalidade, para se ater
ao reino da alegoria. Essa se torna mais compatível com a lógi­
ca da coleção inacabada, do lugar da falta, sem remédio, do
Outro.
Sobre o processo poético e (poderíamos dizer) de cole­
cionador de Murilo Mendes, é interessante o que Raúl Antelo
anotou sobre a parte em espanhol do acervo bibliográfico do
poeta:

A crise do liberalismo e da autonomia individual se traduzem, en­


tão, para Murilo não só na busca de um complexo barroco, jesuítico e
ibérico; de fundo anticartesiano que representaria a primeira manifes­
tação da cultura supra-nacional. Ele passa a apostar, com a mudança
para a Itália, na impossibilidade de desenvolver a personalidade num
mundo em que a descontinuidade, a desintegração e a dissociação se
alastram. Fica-lhe apenas a certeza da construção a partir dos restos
(grifos nossos)2•

Enquanto colecionador de restos e rastros, Murilo dá à ló­


gica afetiva uma dimensão política. Vejamos um exemplo de
valorização do afeto. Em um dos livros do seu acervo biblio­
gráfico, pode-se ver que o próprio Murilo valoriza a marginália,
isto é, o que outros manuscreveram em livros, que1 de alguma

2. Raúl Antelo, "Murilo Mendes Lê em Espanhol", Anais I e II Congressos de Literatu­

ra Comparnda, Belo Horizonte, UFMG, 1987, p. 537.

159

Copyrighted material
A R Q U I V O S L I TE R Á R I O S

forma, passaram a pertencer ao poeta. No caso específico, refe­


rindo-se a um livro de Johannes Joergensen, lido por Ismael
Nery. Murilo constrói sua própria margem no livro com a se­
guinte anotação:

Este livro contém, a pp. 175, 176 e 240, anotações de Ismael Nery, e
as suas iniciais autógrafas. � um livro reliquia.
Rio, 6.4. 1934 - M.M.3

Agora vejamos a perspectiva política, no sentido amplo do


termo, que a coleção do poeta também abrange. Entre o afetivo
e o social, o fabular e o histórico, o que se ten1, notadamente, é
o traço compósito e híbrido deste processo específico de cole­
cionar. Murilo Mendes adota o procedimento da re-utilização
que detectamos no pensamento benjaminiano. A re-utilização
do objeto revela, necessariamente, o enfoque da margem e da
periferia.
A alegoria, tal como foi concebida por Benjamin, aponta
para o lugar do Outro, ou melhor, de vários Outros. Estes, si­
tuados na margem, formam com o suposto centro um quadro
desconforme e precário. O mérito do pensador alemão, acre­
dita Willi Bolle, foi ter

[ . ] transfuncionalizado a alegoria , de signo legitimador do status quo,


..

representando um tempo parado, mítico, num signo radicalmente his­


tórico. [ . . . ] Benjamin redescobriu a ambigüidade e com isso o potencial
dialético da alegoria. Se a alegoria é fragmento, caducidade, ruína, ela é

3. Anotações de Murilo Mendes no livro pertencente ao acervo bibliográfico do


CEMM da UFJF: Johannes Joergensen, Pélérinages franciscains, trad. Teodor de
Wyzewa, Paris, Perrin, 1 922, 320 pp. Com anotações de Ismael Nery e Murilo Men­
des [n. 73).

160

Copyrighted material
ACERVOS D E M U RJ LO M E NDES

também a forma adequada para falar da falta de liberdade, da imperfei­


ção e da degradação [ . } 4 . .

A visionária paisagem alegórica de Walter Benjamin mos­


tra a dimensão da periferia e o seu lugar sempre desestabiliza­
dor. Vinculando o problema da alegoria como reveladora da
opressão e, conseqüentemente, do Outro (da margem) à pes­
quisa que desenvolvemos com os acervos de Murilo Mendes,
podemos observar como essa questão perpassa a vida e a obra
do poeta.
De seu livro-coleção Retratos-Relâmpago, retiramos o exem­
plo. Ao fazer o «retrato" de De Chirico, Murilo aproveita para
incluir o Brasil que entra em cena, através de urna referência do
português Jorge de Sena, também recolhida pelo poeta:

Desde a primeira época da formação do surrealismo informei-me


avidamente sobre essa técnica de vanguarda, a qual, embora eu não ado­
tasse como sistema, me fascinava, compelindo-me à criação de uma at­
mosfera insólita, e ao abandono de esquemas fáceis e previstos. Tratava­
se de um dever de cultura. O Brasil segundo Jorge Sena, é surrealista de
nascimento, de modo que minha "conversão'>, ainda que parcial, àquele
método, não foi difícil. Fenômeno análogo verifica-se com Ismael Nery.
Não é um pintor surrealista ortodoxo, mas em muitos quadros e dese­
nhos levanta uma realidade autre, na linha surrealista da invenção e me­
tamorfose; sem perder a força plástica. Entre os anos 20 e 30 fora à Euro­
pa duas vezes, conhecendo pessoalmente alguns membros do grupo, em
Paris. Trouxe-me abundante documentação sobre o movimento, em es­
pecial sobre De Chirico e Max Ernst (outro que me inspirou), cujos no­
mes ainda estavam longe da irradiação atuais.

4. Willi Bolle, "Grande Sertão: Cidades'� Revista USP, São Paulo, dez./fev. 1994- 1 995,
p.83.
5. Murilo Mendes, Poesia Completa e Prosa, op. cit., pp. 1270- 1 2 7 1 .

Copyrighted material
ACERVOS O E M U R I LO M E N D E S

menos certo que o sentido único das coisas. Mistério sem iniciação, o
olhar requer memória e imaginação7•

Este trabalho com os acervos de Murilo não deixa de ser


absolutamente fascinante, sobretudo porque resgata um pro­
cedimento investigativo em geral desprestigiado pela crítica li­
terária estruturalista, que vem a ser o enfoque da vida do au­
tor, além do de suas obras. Esta pesquisa poderá contribuir para
os estudos de Murilo Mendes, do m.odernismo brasileiro e até
para a investigação das formas de discurso de identidade no
Brasil.
A idéia de se fazer uma biografia literária de Murilo Men­
des formaliza-se nos vários subprojetos que compõem o pro­
jeto integrado dos pesquisadores de Juiz de Fora, desde a for­
mação na província (Terezinha Zimbrão ); o contexto marcado
pelo pensamento religioso brasileiro na primeira metade do
século XX (Geysa Silva); a relação de Murilo Mendes com ou­
tros artistas brasileiros (Maria Lúcia Ribeiro); suas relações
afetivas e pessoais, vindas de circunstâncias da vida, como o
casamento com a poeta portuguesa Maria da Saudade Corte­
são Mendes, sua amizade com o intelectual português, torna­
do sogro, Jaime Cortesão, e seus longos séjours em Portugal
(Maria Luiza Scher) ; e, finalmente, sua vivência na Europa e as
relações pessoais e intelectuais que lá se construíram, sob mi­
nha responsabilidade.
Esses caminhos de reflexão nasceram das suas próprias
coleções, sobretudo da sua coleção de livros, mais que de sua
obra literária. Mais de Murilo Mendes leitor do que de Murilo
Mendes autor. Diante da sua coleção de livros podemos dizer

7. Olgária Matos, "Willi Bolle por Olgária Matos", Literatura e Sociedade, São Paulo,

1996, pp. 127-1 28.

Copyrighted material
A RQUIVOS LITERÁRIOS

que nós, pesquisadores, nos sentimos um pouco como Benja­


min se sentiu um dia, ao desempacotar sua biblioteca, e regis­
trar num dos seus mais belos textos sobre o trabalho de colecio­
nar e sobre o colecionadorª. Nesse texto, há um destaque
especial para o colecionador de livros.
Muito simplificadamente podemos dizer que para Benja­
min há quatro maneiras de os livros atravessarem o limiar de
uma coleção. A forma mais louvável de se obter um livro é
escrevê-lo. Cita o pobre professorzinho Wutz que, sem dinhei­
ro para comprar os títulos que o interessavam nos catálogos
das feiras de livros, dedicava-se ao expediente de os escrever
ele próprio. O modo mais conveniente de adquirir livros, con­
tinua, é tomar emprestado sem a subseqüente devolução, e fa­
zer ouvidos moucos às advertências provenientes do mundo
da legalidade.
O terceiro modo seria a larga estrada da compra, que é lar­
ga, mas não cômoda porque o colecionador não compra o li­
vro que quer.
A última e mais pertinente maneira de formar uma biblio­
teca é a herança. Ganhar ou herdar os livros é a maneira que
responde à qualidade que sempre constituirá o traço mais dis­
tinto de uma coleção: sua transmissibilidade.
Nós que herdamos não só livros e quadros, mas coleções
deixadas por Murilo, temos na reunião dos subprojetos, a pos­
sibilidade de fazer, então, uma espécie de perfil do escritor
como leitor e colecionador.
Nós poderíamos nos perguntar, diz ainda Walter Benja­
min, se, faltando o colecionador, o fenômeno de colecionar não

8. Walter Benjamin,"Desempacotando minha Biblioteca': Rua de Mao Única, Obras


Escol/ridas II, São Paulo, Brasiliense, 1 987.

Copyrighted material
ACERVOS D E M U R J LO M EN D E S

perderia seu sentido. Citando Hegel, ele diz que não, porque,
da mesma maneira que só com a escuridão a coruja de Minerva
inicia seu vôo, só quando extinto, o colecionador será com­
preendido. Isso é possível por causa da relação especial entre o
colecionador e suas coisas: não é que elas estejam vivas dentro
dele; ele é que vive dentro delas. Como o colecionador Murilo
Mendes vive nas suas coleções, julgamos que pesquisá-las é, de
alguma forma, encontrá-lo.

Copyrighted material
GILBERTO FREYRE E o (Pós)
MODERNISMO
GUILLERMO GIUCCI

Enquanto o modernismo hispano-americano é um movi­


mento fim-de-século que reage contra os excessos do roman­
tismo, o modernismo brasileiro localiza-se diretamente no
âmbito das vanguardas. É, como toda vanguarda, um movi­
mento renovador, de caráter agressivo, polêmico e experimen­
tal. Segundo Jorge Schwartz, no panorama continental da
América Latina nenhum movimento de vanguarda o iguala em
riqueza, diversidade e amplitude de reflexão crítica'.
Durante as décadas de 1920 e de 1930 foi comum o debate
sobre o impacto do modernismo paulista na cultura brasileira.
É preciso acrescentar, à rivalidade São Paulo-Rio de Janeiro, a
rivalidade Norte-Sul, em particular a influência sobre o regio­
nalismo nordestino. José Lins do Rego foi um ferrenho defen­
sor da postura de independência do movimento literário nor­
destino em relação ao modernismo paulista. Em seu lugar,

1. Jorge Schwartz, Las Vanguardias Latinoamericanas. Textos Programáticos y Críti­


cos, Madrid, Cátedra, 199 1 , p. 1 1 8.

Copyrighted material
ARQUIVOS L I T E R Á R I O S

aparecia Gilberto Freyre, como o responsável pela vitalidade


do movimento literário nordestino e por seu traço de autenti­
cidade.
Curiosamente, quando surgem referências aos modernis­
tas por parte de Gilberto Freyre nos anos 1920, notamos o in­
telectual formado no exterior. Este intelectual recifense que fala
de si mesmo, que descreve a visita em Boston à poetisa Amy
Lowell, as horas que caminha no Museu Rodin de Paris, a con­
versa com Antônio Torres em Londres, o jantar com o pintor
Guilherme Filipe em Coimbra, é o mesmo que reclama contra
os abusos da modernização regional e denuncia o caráter pos­
tiço da prédica modernista em Recife.
Quando o modernista paulista Guilherme de Almeida' vi­
sita Recife e oferece duas conferências no Teatro Santa Isabel2,
Freyre o retrata como um menino ingênuo que começa a ver e
a viver temas brasileiros Transmite-se a imagem inversa à ima­
ginada: o provincianismo dos modernistas. Invertem-se os pa­
péis. O provinciano Freyre é o cosmopolita, estudioso da New
Poetry e amigo pessoal de Amy Lowell; Guilherme de Almeida,
um poeta promissor, mas a voz de barbaridades quanto à dou­
trina. Nada entende de "regionalismo" nem de "tradicionalis­
mo". Não distingue entre a tradição que se vive e a tradição em
que se cultiva o discurso, o fraque e o hino nacional. Tampouco
distingue a caricatura de Jeca Tatu do regionalismo, que é uma
forma mais direta e sincera de ser brasileiro.
Aos modernistas falta mundo: volta-se ao tema no artigo
número 5, do Diário de Pernambuco, de 20.5.1923, no qual se
acusa a juventude paulista da neurose chamada "futurismo".

2. Gilberto Freyre, "A Propósito de Guilherme de Almeida", Diário de Pernambuco,


15. 1 1 . 1925.

168

Copynghted matar ai
G I LBERTO FREY R E E O ( P Ó S ) M O D E R N I S M O

Não somente está em discussão o valor da tradição. A rebeldia


juvenil que se justifica na Europa, onde o cansaço dos museus
e das bibliotecas amolece o espírito criativo próprio da juven­
tude, é inadmissível em terras brasílicas. Incorpora-se aqui a
necessidade do esforço mental nos trópicos como um elemen­
to de relevância. Nos trópicos, é de vital importância evitar a
iconoclastia cultural, que se mistura lamentavelmente com a
complacência da incultura.
A idéia da dificuldade do pensamento nos trópicos tem
uma longa história. "Si ou ainmein moin) pa combiné - non!" -
sussurrava uma das mulatas da Martinica ao viajante no relato
"Pa combiné, che!" de Lafcadio Hearn. Freyre aproveita esta
idéia para explicar o fracasso da exposição do pintor De Garo
no Recife, no Diário de Pernambuco, de 7. 1 0. 1 923. Serve de ar­
gumento para desenvolver a tese da escassez de autênticos pen­
sadores no Brasil:

1: uma natureza, essa dos trópicos a espreguiçar-se toda pelo chão


dolentemente e a intoxicar-nos dum suor viscoso de sexualidade. No
meio dela o puro pensar é como uma tortura de virgindade de adoles­
cente. De virgindade supliciada. E aqui só os heróis pensam. E são ainda
heróis os que se interessam pelas idéias. Há alguma coisa de heróico em
ler um soneto de Mallarmé ou uma página de Browning ou de Lessing à
sombra maternal de uma jaqueira3•

E assim como aparecem críticas de um provinciano cos-


'-,
mopolita que ironiza a formação intelectual dos cosmopolitas
provincianos, emergem de modo salpicado minúsculas teorias
estéticas. Como se deve escrever uma novela, que objetivos
persegue um artista. Trata-se, já em 1 923, da idéia de que não

3. Gilberto Freyre, Diário de Pernambuco, 7.10.1923.

Copyrighted material
A R QU IVOS LITE R Á R I OS

convém exagerar os deveres de fidelidade do artista às minú­


cias da cronologia e exterioridades da história. Semelhantes
deveres são relativos. Para o artista, a grande preocupação é a
do sentido íntimo, não a verdade exterior, seja esta de fisiolo­
gia ou de história, de astronomia ou de mecânica. O artista
exagera e deforma na ânsia de verdade íntima, que é o objeti­
vo de toda grande arte ( Diário de Pernambuco, 22. 4. 1 923).
Contra os sentimentos de seus companheiros de mo­
dernismo, inicialmente Joaquim lnojosa considerou Freyre
um deslocado do meio que o criticava e destacou, no artigo
,,
"Mascates da Literatura , do jornal O Fogo, de 2 1 .7. 1 923, sua
cultura moderna e sólida. Era este jovem estudioso, que
chegava dos Estados Unidos e da Europa, um possível dis­
cípulo da Arte Moderna. Mas rapidamente Inojosa passou
a percebê-lo como o tenaz defensor do tradicionalismo e
do regiona-lismo.
É indubitável que Freyre exagerou o antitradicionalismo
do modernismo. Independentemente das diversas correntes
que o compõem, a busca de raízes históricas e a investigação
do passado são elementos que distinguem o modernismo bra­
sileiro das vanguardas européias. O relativo vazio histórico da
nação permitiu que máquinas e selvas, velocidade e folclore,
cidade e patrimônio cultural, coexistissem. Tanto a ruptura
como a tradição foram para os modernistas temas dignos da
produção artística em busca da renovação das linguagens e da
construção de símbolos nacionais.
Gilberto também exagerou, ainda que em menor grau, do
anti-regionalismo do modernismo. Os furibundos ataques dos
modernistas anarco-experimentalistas ao regionalismo são
bem conhecidos. Mas na produção cultural esses vanguardistas
de estilo essencialmente experimental, primitivismo de inspi-

170

Copyrighted material
GI LBERTO PREYRE E O ( PÓS) M O D E R N I S M O

ração cosmopolita e visão social anticonservadora\ estabele­


ceram vínculos sumamente criativos entre o universalismo, o
nacionalismo e o regionalismo.

Os Ossos Do MUNDO

O assunto é mais complexo quando se aborda a noção de


Modernism e a temática da temporalidade. Assim como costu­
ma apresentar novos autores, Freyre reinterpreta as tradições.
É indiscutível que a sua relação com o modernismo paulista
tenha sido ambivalente. Quando, em 1 936, escreve o prólogo
do livro de Flavio de Rezende Carvalho, Os Ossos do Mundo,
tal disputa é clara.
,,
Os Ossos do Mundo é um livro "selvagem . Como narrativa
vanguardista da viagem à Europa tem um precedente em Pa­
thé-Baby { 1 926) de Antônio de Alcântara Machado. Mas me­
nos que a apresentação fragmentada e experimental dos cená­
rios materiais e urbanos - dinamismo, cheiros, cores -, se trata
da obra de um viajante altamente idiossincrático, cujo cader­
no de notas, despreocupado da ordem e da estética, se conver­
te em uma inusual narrativa de viagem, mistura de reflexões
sobre o caráter nacional com delirantes observações sobre a
virilidade da barba de Cristo, o temível turista vegetariano e a
fecundidade simlbólica da imagem italiana da "Madona e o
Bambino".
O viajante privilegia os espaços inusitados - coleção de
conchas, coleção de retratos de ditadores, museu de botões (em
oposição aos tradicionais museus italianos). Durante a viagem

4. Guilherme Merquior, O Fantasma Româritiço e Outros Ensaios, Petrópolis, Vozes,


1 980.

171

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

coleciona papel higiênico dos diversos países. O tipo de papel


higiênico constitui para Flávio de Carvalho uma das indica­
ções do grau de civilização de um povo e do desejo de elevação
do indivíduo. A maneira como cuidam os povos de seus ânus,
e como esse cuidado varia com as classes sociais, assinala o ní­
vel de vida do povo e do indivíduo. Flavio de Carvalho percebe
na sofisticação do papel higiênico a valorização de um dos lo­
cais mais desprezados do corpo humano. Possivelmente, o mais
desprezado, destruído pelas pilhérias e pelos gestos.
Para além das persistentes boutades, o aspecto que mais
afinidade apresenta com o trabalho de Freyre é a teoria, confu­
sa e sugestiva, da "atmosfera'� O que é a "atmosfera"? É a capa­
cidade evocativa do passado a partir do resíduo histórico. Uma
coisa lançada no acaso do mundo transforma-se com o tempo
em um objeto transbordante de sugestões: adquire "atmosfe­
ra'� São insinuações e sensações não mensuráveis pela física
moderna, pois esta fracassa quando a noção de tempo perde
seu sentido vulgar de cronômetro. A atmosfera de um objeto
está constituída pelas lembranças que este objeto oferece ao
observador. Estabelece-se, então, um vínculo entre as camadas
do inconsciente, que devolvem o objeto à consciência, não pro­
priamente como uma imagem, mas como a sugestão de uma
lembrança longínqua. A atmosfera, escreve Carvalho, é a soma
algébrica de todas as sugestibilidades perceptíveis no objeto.
Ainda que deslocados e abandonados, os resíduos não es­
tão destruídos. Permanecem em um lugar indefinido, até que
uma espécie de ressonância no inconsciente os traz de volta à
vida. Reconstrução do passado que freqüentemente requer a
intuição poética da origem das coisas, onde se misturam for­
ças cósmicas e traumáticas. Implica compreender o uso ani­
místico do objeto na fase amorosa da formação pelo artista, o

172

Copyrighted material
G I LBERTO FREYRE E O (PÓS) MODERNISMO

posterior abandono, o descobrimento pelo arqueólogo e final­


mente a posição de destaque no museu. Mas de nada servem o
descobrimento e a exposição do resíduo se falta a intuição poé­
tica. Todo descobrimento científico é imperfeito quando se li­
mita a registrar, classificar e formalizar. O arqueólogo-artista
dissolve a cronologia temporal, compreende o não-tempo e es­
tabelece um contato amoroso e sentimental com o passado.
O museu é o espaço privilegiado para preservar a memó­
ria do resíduo. Não porque oficialize a memória, mas porque
ao registrar, acumular e redistribuir os objetos oferece ao ob­
servador distanciado uma visão mais ampla que a do observa­
dor situado dentro da civilização. No museu - ossos do mundo
organizados em coleção - o tempo comprime-se, o observador
distancia-se do próprio ambiente que o limita e adquire um
ponto de vista sobre o passado que ilumina o presente. No
museu - espécie de túnel do tempo adornado de resíduos - o
mundo objetivo tem o aspecto de um vasto cemitério onde
cada objeto funciona como um fetiche capaz de agüentar um
processo de magia.
A reconstrução da história regional e nacional efetuada por
Freyre na década de 1930 parte de um resíduo - a casa grande.
A casa grande se irradia em direções múltiplas, tanto no tempo
quanto no espaço. E enquanto é relativamente simples rastrear
a genealogia do espaço na obra freyriana, é muito mais com­
plexo rastrear a sua dimensão temporal.
Freyre desenvolve, na década de 1 930, especialmente em
Casa-grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, a concepção da
sobrevivência do tempo passado, atualizando o método da
résurrection intégrale de Jules Michelet e tomando Marcel
Proust como artista-guia. Uma escritura da revelação, com algo
de catarse psicanalítica, através do esforço imaginativo, apoia-

173

Copyrighted material
ARQUI VOS LITE R Á R I O S

do no método socioantropológico. Emerge um passado que se


nega a perecer, e que exige os direitos da vida contra as deman­
,,
das do histórico. Analogamente à "Visão de Anáhuac do me­
xicano Alfonso Reyes, na qual a emoção histórica é parte do
fulgor da vida atual, o passado persiste no presente. A liberdade
de Freyre, que está longe de ser um historiador profissional,
deriva precisamente do uso um tanto idiossincrático que faz
dos documentos históricos. Apodera-se dos documentos como
parte de um processo de intimidade com o objeto de estudo. E
tal proximidade, que permite a conversão do passado em um
vívido pathos, levanta ao mesmo tempo o problema da objeti­
vidade histórica.
Pela combinação da arte e da ciência recupera-se o resí­
duo. A imagem do passado que surge supera a memória vo­
luntária. Deriva da intimidade, do não pensado, do cotidiano.
Como uma memória involuntária dispersa na oralidade, nos
ditos, nos anúncios, nas formas de socialização. Essa memória
não se vê nem se pensa. Está aí, fenomenologicamente dada no
mundo, sob a forma do hábito, despercebida� E essa memória
coletiva, contida em inventários, diários íntimos, testamentos,
cartas de sesmaria, livros de viagens de estrangeiros, roman­
ces, cantigas, histórias de assombrações, será recortada pela
percepção do escritor-sociólogo, que a retira da cotidianeidade
como se fosse um tesouro escondido.
Se Proust comparou a ação da memória voluntária ao fo­
lhear das páginas de um álbum de fotografias, a memória in­
voluntária forma 'O pano .de fundo despercebido. O que se re­
cupera na escritura é menos a atualidade que a realidade, ao

mesmo tempo empírica e imaginativa. Há na narrativa frey­


riana uma inconclusão e uma simplicidade pouco modernis­
tas, ainda que sem dúvida modernas. Nem Casa-grande & Sen-

174

Copyrighted material
G I L BERTO FREYRE E O (PÓS) M O D E R N I S M O

zala nem Sobrados e Mucambos concluem. Para muitos leito­


res, essa inconclusão de seus livros foi motivo de crítica. O pró­
prio Freyre se·mpre defendeu sua postura, alegando que prefe­
ria sugerir a afirmar. Em todo caso, não foi um mestre na arte
do fecho: os finais são abertos e não proporcionam nenhuma
chave especial para a compreensão do sentido do texto.
A escritura deve transmitir o sentimento da totalidade, não
da finalidade. Totalidade sem finalidade. Narram-se processos,
nunca conclusões. Tampouco se descrevem origens, essa ob­
sessão pelo começo tão típica do século XVIII, pois a cronolo­
gia se dissolve em uma história antiga. O que se rastreia é uma
identidade plástica, que é mais o resultado de processos múlti­
plos ou o surgimento de uma essência imutável. Pela escritura
se recobra o sentido íntimo do passado como uma forma cole­
tiva do presente. Ao contrário do projeto modernista, que atua­
liza os motivos nacionais de inspiração artística para expressar
o moderno.
No prólogo a Os Ossos do Mundo, privilegia-se o moderno
em detrimento do "modernismo,, literário. Tanto pela idade -
trinta e sete anos - quanto pelas circunstâncias - paulista edu­
cado na Europa - Flávio de Carvalho (tendo nascido no Rio
de Janeiro, mudou-se aos sete anos para São Paulo e depois es­
tudou na França e na Inglaterra) poderia ter sido "modernis­
ta,, em 1 922. Modernista como Oswald ou Mário de Andrade.
Mas não o foi. Pertenceu em vez disso a outra geração intelec­
tual, que Freyre denomina "pós-modernista,, :

Ele é pós-modernista legítimo: apareceu depois do "modernismo" e


com outra mensagem. Intensamente moderno, mas despreocupado do
"modernismo" literário em que aqueles dois escritores admiráveis se
extremaram até quase o ridículo.

175

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

Que significa ser pós-modernista? Basicamente, o triunfo


do humanismo sobre o tecnicismo. Implica o estabelecimento
de novas relações com o mundo, guiadas pela curiosa mirada
infantil baudelairiana, com algo de loucura, e orientadas por
um intenso lirismo compatível com a objetividade do arquite­
to. Menos a novidade que o novo; menos a técnica literária que
o ser humano espantado no mundo. Ser pós-modernista quer
dizer ter coragem de ter medo, criar a partir do medo, falar a
partir do medo.
Ser pós-modernist(! significa também ter a coragem de de­
testar os ruídos das máquinas e de confessar essa repugnância.
Nisso Freyre é muito explícito: o pós-modernista pertence à
idade neotécnica de Lewis Mumford, que superou a idade

paleotécnica do homem agachado diante de máquinas gran­


diosas e com desgosto de ser como as, próprias máquinas.
Technics and Civilization de Lewis Mumford havia sido publi­
cado poucos anos antes, em 1 934, e já aparece incorporado à
bibliografia de Freyre. Trata-se historicamente do primeiro es­
tudo abrangente em inglês a oferecer um panorama do desen­
volvimento da máquina durante os últimos mil anos. A fase
paleotécnica se havia caracterizado, segundo Mumford, por
examinar uma concepção quantitativa da vida, dirigida pela
vontade de poder e por demonstrar que a produção massiva
de bens não era suficiente para produzir resultados sociais de
valor. Pelo contrário, a fase neotécnica propiciou o sentido da
ordem e estimulou a aplicação do conhecimento científico à
técnica e à conduta da vida quotidiana. Ainda que Mumford
não fosse tão otimista em relação à superação definitiva da fase
paleotécnica, para Freyre o pós-modernismo assinala que o
homem retoma seu lugar de elemento mais importante que a
máquina na paisagem do mundo.

Copyrighted material
A RQUIVOS L I T E R Á R I O S

tim da Sociedade Felipe de Oliveira (número 4), dedicado ao


,,
estudo do ''sentido atual da literatura no Brasil . Freyre contri­
buiu com o ensaio "Sociologia e Literatura': Desta vez, no en­
tanto, a edição era distinta de todas as anteriores. Constituía a
primeira tentativa de inventário crítico do modernismo, assim
como um estudo das características da atualidade literária.
Os críticos examinaram de ângulos diversos a situação da
literatura brasileira. Quase sempre denunciando os "passa­
,,
distas e as servis imitações estrangeiras, mas concomitante­
mente afirmando a falta de atualidade do modernismo. Afonso
Arinos de Melo Franco, que se ocupou da moderna poesia
mundial, definiu sua época como intensamente poética. Por
"sua época" se referia especificamente ao período de crise que
atravessavam o mundo e o Brasil desde 1 929. E comparou de
modo favorável a poesia de 1930 - subjetiva sem ser pessoal,
hermética, intencional, algumas vezes preocupada com assun­
tos políticos e sociais - com a anterior, já que era a síntese
interpretativa do grande esforço humano para dominar a de­
sordem do mundo, não podia deixar de ser muito mais impor­
tante, profunda e vital que a fase poética que a antecedeu, anti­
introspectiva, antilírica, simplista e crítica.
,,
"Acabou o modernismo no Brasil? - pergunta-se Manoel
de Abreu. Por. modernismo entende Abreu a liberação das for­
mas literárias gastas e a criação de novas formas de expressão.
Uma cultura moderna, que constrói a realidade de uma pers­
pectiva subjetiva. O modernismo brasileiro cumpriu a missão
histórica de liberar as formas literárias mumificadas. Através
de uma linguagem livre e direta, cantou de modo plenamente
brasileiro os acontecimentos contemporâneos. Mas sua glória
foi transitória e já se apagava na distância. Segundo a opinião
de Abreu, muito pouca coisa permaneceria desse movimento

178

Copyrighted material
GI LBERTO FREYRE E O (PÓS) M O D E R N I S M O

de transição que teve momentos inesquecíveis de alegria e de


sinceridade, mas ao qual faltara inquietação e profundidade.
Apesar de seu potencial, o modernismo trazia desde o início o
germe de sua fraqueza. Faltou-lhe seriedade, sofrimento e sen­
tido da totalidade. O modernismo no Brasil sem dúvida aca­
bou, tal é a conclusão de Manoel de Abreu, e o período pós­
modernista que se esboça, será essencialmente caracterizado
pelo sentimento humano e pela transcendência.
Murilo Mendes, em "O Eterno nas Letras Brasileiras Mo­
dernas", situa o movimento modernista no contexto mais am­
plo da declinação religiosa da sociedade e cultura moderna. O
afã de ruptura absoluta do modernismo com a tradição, com a
cultura clássica e com os valores eternos o conduziu a uma
poetização excessiva do supérfluo, do decorativo e do aciden­
tal. De modo semelhante a Manoel de Abreu, Murilo Mendes
entende o modernismo como uma fase transitória, destinada
a perder-se ante o reencontro da arte e da poesia com os valo­
res religiosos eternos.
Mais radical é Octavio de Faria em "Mensagem Post-mo­
dernista'>. Radical porque de acordo com seu testemunho, o
modernismo europeu já não existe, nem sequer existiu. A rea­
lidade essencial da literatura - o universal - nega a importân­
cia·d os movimentos ao cancelar o valor do efêmero. Nada em
sua produção se compara às obras dos gênios, Dante, Shakes­
peare, Goethe, Dostoiévski, Proust. Mas em relação ao caso
particular do modernismo brasileiro, no entanto, Octavio de
Faria mostra-se mais compreensivo. Se bem inicialmente o
modernismo imitou os excessos estrangeiros - os hinos à má­
quina de Marinetti, as bebedeiras de klaxons e as danças dos
arranha-céus - depois o movimento criou raízes no país. Na­
cionalizou-se e humanizou-se. Inventou uma tradição onde

1 79

Copyrighted material
A RQUIVOS LITERÁRIOS

não existia, e em sua atenção para o prosaico e o cotidiano in­


fluenciou a novelística regionalista nordestina. Mas os valores
do modernismo - condenação do sublime e obrigação do pro­
saico - não podiam subsistir.
Encerrada a fase modernista, segundo Tristão de Athayde
(Alceu Amoroso Lima), ela é sucedida por uma etapa pós-mo­
dernista ( 1 930- 1936) que possui características próprias, de
espírito mais grave, mais profundo, mais social e mais espiri­
tual do que o modernismo.
Modernismo significa, no contexto do inventário de Lan­
terna Verde, a tentativa de criação de uma arte nacional, autô­
noma e contemporânea. É um movimento preocupado com o
tema do passadismo e da imitação estrangeira. O experimen­
talismo e o humorismo se dirigem contra os valores estéticos
vigentes, e tal afã de ruptura com o passado significou que pou­
cas obras transcenderam sua própria época. Com o pós�mo­
dernismo o interesse desloca-se do campo literário para o po­
lítico e social, ao tempo que surge uma nova literatura com
,,
características próprias. E a denominação "pós-modernismo
pretende demonstrar que não se despreza ou nega o período
anterior. Simplesmente o superou, pela ampliação de objeti­
vos e realizações5•
O artigo de Freyre "Sociologia e Literatura" se inscreve nes­
te contexto histórico de revisão do impacto do modernismo
paulista na cultura brasileira. Trata-se de um ajuste de contas
com o modernismo. Por outro lado, prossegue-se com a análi­
se do método das disciplinas, examinando em particular os
pontos comuns e as diferenças entre a literatura e a sociologia.

5. Roselis Oliveira de Na poli, "Lanterna Verde", Boletim da Sociedade Felippe


d'Oliveira, 4, Rio de Janeiro, 1936.

180

Copyrighted material
G I LBERTO FREYRE E O ( PÓ S } M O D E R N I S M O

Argumenta Freyre que a nova geração intelectual, que


substitui os modernistas paulistas e cariocas, caracteriza-se pelo
"sociologismo". O romance, que seria um gênero mais adequa­
do para expressar as preocupações. sociais da época, passa a
ocupar o lugar da poesia. Mas tal reatualização do romance rea­
lista dificulta o estabelecimento de fronteiras nítidas entre as
belas-artes e a sociologia. Literatura e sociologia já não seriam
disciplinas claramente diferenciadas, mas seriam portadoras de
uma escritura híbrida, a mistura de ambas as disciplinas. Quais
são as possibilidades e os limites da sociologia e da literatura?
O sociólogo, preservando as técnicas próprias de pesquisa de
seu campo de estudo, deve adaptar-se a uma escritura artística,
como fazem Simmel e Nietzsche; o escritor de ficção, manten­
do o elemento humano como centro da narrativa, deve supe­
rar a noção literária de graça de estilo e de correção gramatical
para adaptar-se à "masculinização" da cultura moderna.
O exemplo para Gilberto Freyre de escritor novo nos Esta­
dos Unidos é Upton Sinclair. Escolheu Sinclair o tema do abas­
tecimento de carne à população americana em seu romance
The Jungle. Para escrevê-la apoiou-se na investigação socioló­
gica: foi viver entre os trabalhadores dos matadouros de Chi­
cago. O escritor converteu-se em uma mistura de sociólogo e
de trabalhador para descrever com verossimilhança as condi­
ções nos matadouros (o romance foi realista a tal ponto que o
presidente Roosevelt iniciou uma investigação sobre as leis da
comida que forçou reformas na indústria da carne). Sinclair
vestiu o macacão azul, sujou as mãos de sangue, impregnou-se
do cheiro das carnes podres, tomou notas, registrou casos e
anotou estatísticas. O mesmo que fizeram, direcionados a
outros problemas, os escritores Frank Norris, Sherwood
Anderson, Theodore Dreiser, John Dos Passos.

Copyrighted material
A RQUIVOS L I TE R Á R I O S

Como ocorre com a novelística americana, a ficção brasi­


leira se torna plebéia e se enriquece com a investigação socio­
lógica. Mas corre o risco "do mais horroroso mongrelismo in­
telectual". Sem que a literatura deva desprezar as técnicas
sociológicas, nem que a sociologia deva escrever mal, as ten­
dências naturais de cada disciplina devem ser respeitadas. Por­
que o perigo é a má literatura e a má sociologia. Cabe à litera­
tura preocupar-se fundamentalmente com a personalidade do
homem; à sociologia, com a técnica científica de investigação.
Uma confederação são literatura e sociologia, não Estados in­
dependentes, com interesses em comum, preocupando-se com
o elemento humano e com a vida social do homem em seus
aspectos mais ou menos dramáticos.
Estamos em um contexto cultural que não somente supe­
rou as virtudes técnicas do modernismo brasileiro. Esse movi­
mento de vanguarda influenciou, sem dúvida, a linguagem li­
terária no Brasil, mas seu impacto devia ser situado em um
contexto mais amplo.
Ao definir o pós-modernismo, Freyre se refere à superação
do modernismo literário paulista, não ao fim do Modernism.
Em nenhum sentido se antecipa o chamado "Pós-moderno"
como substituição do Modernism, nem no exemplo hispano de
Federico De Onís, nem em caso brasileiro de Gilberto Freyre e
de Lanterna Verde. Muito ainda de raízes. Nada de rizoma,
mutante, esquizofrenia, ausência, dispersão, imanência, cida­
de-collage, raiva do humanismo. Estamos cronologicamente
longe do fim das metanarrativas decretado por Lyotard em A
Condição Pós-moderna ou da lógica cultural do capitalismo tar­
dio de Fredric Jameson. E também territorialmente distantes
dos centros acadêmicos europeus e norte-americanos que dis­
cutirão o vocábulo "pós-modernismo" até a exaustão.

Copyrighted material
NAVA SE DESENHA

ENEIDA MARIA DE SOUZA

A pintura busca sempre elementos de eternida­


de, e por isso ela tende ao divino. O desenho, muito
mais agnóstico, é um jeito de defin ir transitoria­
mente, se posso me exprimir assim. Ele cria, por
meio de traços convencionais, os finitos de uma vi­
são, de um momento, de um gesto. Em vez de buscar
as essências misteriosas e eternas, o desenho é uma
espécie de definição, da mesma forma que a pala­
vra "monte,, substitui a coisa "monte" para a nossa
compreensão intelectual.
MARlo DE ANDRADE1

Ao considerar a natureza do desenho diferentemente da


pintura ou da escultura, a estética moderna elege as artes do
inacabado e do esboço como reação ao conceito de arte total e
perfeita. Mário de Andrade, em artigo sobre o desenho ("Do
Desenho") reafirma a sua opção pela abertura oferecida por

1. Mário de Andrade, "Do Desenho': Aspectos das Artes Plásticas n o Brasi� São Paulo,
Martins, Brasília, INL. 1975, p. 75.

Copyrighted rriaterial
ARQUIVOS LITERÁRIOS

esta arte, pela capacidade de romper com os limites impostos


pelo papel ou pela moldura. Relaciona-o ainda à escritura, à
caligrafia, admitindo ter a escrita hieroglífica nascido do dese­
nho, pelo grau de proximidade entre eles. A qualidade transi­
tória e minimalista do desenho associa-se ainda à poesia, ao
provérbio, a uma certo tipo de sabedoria popular à qual Mário
de Andrade tanto lutou por preservar. Na sua natureza hetero­
gênea, entre grafia e imagem, o desenho atinge a mobilidade
das folhas soltas, do traço infinito, que se presta sempre a múl­
tiplas transformações e se integra à grafia de maneira contun­
dente. f: por demais difundida a idéia de ser o ato da escrita
uma variante do desenho, considerando-se não apenas o cui­
dado estético com as linhas e riscos, mas as imagens criadas a
partir de anotações à margem da página, rasuras sobre as pala­
vras, dotando o espaço escriturai de maior plasticidade e visi­
bilidade.
Antoine Compagnon, no seu já clássico livro sobre o tra­
balho da citação2, restaura o antigo estatuto do livro como um
objeto que se lê na sua materialidade. À feição de um corpo,
recebe enxertos, cortes, supressões e grifos que serão igualmen­
te inscritos em outros corpos. Conceber as aspas como cicatri­
zes, as epígrafes como medalhas sobre o peito do autor e a cita­
ção como cirurgia estética realizada no coração da escrita
traduz uma leitura em que são realçadas as letras e sinais em
alto relevo na superfície da página.
No processo de substituição entre imagem e coisa, recor­
re-se ainda ao conceito de suplemento, se o relacionamos à
teorização de Jacques Derrida e o comparamos ao que Mário

2. Antoine Compagnon, O Trabal110 da Citação, Belo Horizonte, Editora UFMG,


1996.

Copyrighted material
NAVA S E DESENHA

de Andrade entende ser o "desenho uma espécie de definição>�


,
No importante artigo "Freud e a Cena da Escritura : o filósofo
discorre sobre a inscrição de traços mnemônicos na superfície
da escrita sobre o bloco mágico, operação que remete ao duplo
gesto de escrever e apagar os rastros de textos anteriores, além
do movimento contínuo de escrita e leitura. A pretensa pro­
fundidade existente entre a inscrição original e seu posterior
apagamento ilustra o que se entende por suplemento, definido
pela substituição de um traço por outro, repetição que não é a
soma nem o complemento desses traços, mas a sua diferença3•
O mecanismo de substituição se aplicaria não só à arte da es­
crita e à do desenho, mas a textos em que a sua gênese registra
a conjunção entre imagem e grafia, como é o caso dos origi­
nais de Pedro Nava. Neste ensaio, pr,etende-se abordar o movi­
mento sempre desconstrutor e suplementar efetuado entre o
tempo de gestação de Beira-mar- Memórias 4 e a sua posterior
elaboração sob a forma de um texto memorialista.
Os bastidores da criação presentes nos arquivos de Pedro
Nava são um verdadeiro desafio e um convite ao leitor de ra­
biscos e de rascunhos textuais. O material exposto à pesquisa
de sua obra - principalmente de Beira-mar, - encontra-se dis­
seminado no arquivo do escritor, revestindo-o de riqueza do­
cumental e biográfica. O processo criativo é composto por três
momentos, assim compreendidos: o primeiro, organizado em
fichas, contém pedaços de papel ou folhas soltas com anota­
ções, além de recortes de jornal, reproduções de obras artísti­
cas, cartões postais de Belo Horizonte e desenhos ilustrativos
de perfis dos amigos; o segundo momento, denominado pelo
autor de boneco (Figura 1 ) , é constituído de roteiros dos capí-

3. Jacques Derrida, A Escritura e a Diferença, São Paulo, Perspectiva, 1971.

Copyrighted material
ARQUIVOS LI TERÁRIOS

tulos a serem escritos, com seus mapas, questionários envia­


dos aos colegas de geração e recortes de artigos sobre as perso­
nagens a serem retratadas. O datiloscrito, terceira fase da gêne­
se textual, tem como suporte uma folha dupla de papel almaço
que se compõe de duas faces, a da esquerda, reservada ao texto
batido à máquina, com correções a tinta, e a da direita, reser­
vada aos acréscimos feitos à caneta, após a primeira revisão, ao
lado de recortes de colagens de textos e de desenhos assinados
por Nava.
Pelo fato de ser um arquivo de um memorialista, que ini­
cia sua obra em 1 968, aos 65 anos, é natural que a maior parte
do material utilizado tenha sido o resultado da experiência acu­
mulada pelos anos, somada à reconstrução de um discurso da
memória sempre de segunda mão. Nesse sentido, a revisita ao
passado vale-se tanto da ajuda dos amigos que contribuem
com textos e reflexões já publicados - como é o caso _de
Drummond, cronista e poeta de Minas, voz que ecoa nos li­
vros de Memórias - quanto pela pesquisa realizada através da
leitura, troca de cartas e de fragmentos textuais retirados do
noticiário contemporâneo à escrita, nos quais se confrontam
fatos do presente com os do passado. A escrita da memória se
exercita ainda pela articulação entre grafia e desenho, e1n que
se condensa o traço caricatural dos perfis com a descrição de
cada tipo físico das personagens que irão integrar o texto de
Nava.
Pedro Nava iniciou a escrita das Memórias após ter-se apo­
sentado da profissão de médico, exercida durante mais de trin­
ta anos. A sua experiência Hterária, iniciada na década de 1 920
em Belo Horizonte, contou com a companhia dos jovens es­
critores que começavam a se integrar ao movimento moder­
nista de São Paulo. Carlos Drummond de Andrade, Abgar

186

Copyrighted material
NAVA SE DESENHA

Renault, Emílio Moura, entre outros, tornaram-se poetas de


renome nacional, ao contrário de Nava, que só em 1 972 publi­
ca Baú de Ossos, primeiro volume de suas Memórias. O encon­
tro com a literatura viria cumprir um compromisso com os co­
legas de sua geração, uma vez que o escritor, com exceção de
alguns poemas publicados em A Revista, era rotulado poeta bis­
sexto, destacando-se entre as poucas realizações poéticas, «Mes­
,,
tre Aurélio entre as Rosas e "O Defunto», textos reeditados por
Manuel Bandeira, em 1 946, na Antologia dos Poetas Bissextos.
O acerto de contas com o passado fez de Nava ·º grande nome
do memorialismo brasileiro, por se empenhar na tarefa
infindável de uma escrita marcada pelo saber enciclopédico e
pela paixão demonstrada na reconstrução de histórias de fa­
mília, da formação profissional do escritor e da geração inte­
lectual à qual pertencia. Carlos Drummond de Andrade (Boi­
tempo, Menino Antigo) e Murilo Mendes (A Idade do Serrote)
já haviam realizado obras de teor memorialístico, recriando as
lembranças da infância , refletindo sobre a estrutura patriarcal
e latifundiária mineira, mas nenhum deles se propôs realizar
uma narrativa de dimensão épica e monumental da maneira
como o texto de Nava se notabilizou.
Seis volumes são publicados, num intervalo de pouco
mais de dez anos - 1 972- 1 983 - compreendendo os trinta
anos de vida do biografado, além das trinta e seis páginas iné­
ditas de Cera das Almas, o livro que daria continuidade à série.
Baú de Ossos ( 1 972), Balão Cativo ( 1 973), Chão de Ferro
( 1976), Beira-mar ( 1978), Galo-das-Trevas ( 1 98 1 ) e O Círio
Perfeito ( 1 983 ) 4 compõem o painel memorialístico do autor,

4. Pedro Nava, Baú de Ossos, Memórias 1, Rio de Janeiro, Sabiá, 1972; Balão Cativo.
Memórias 2, Rio de Janeiro, José Olympio, 1973; Clião de Ferro. Memórias 3, ruo

Copyrighted material
A RQUIVOS LITERÁ RIOS

texto que se situa a meio caminho da ficção e do documento,


pela reinvenção dos fatos vividos tanto pelo escritor quanto
pela sua geração. Em plena década de 1970, o impacto causa­
do pela publicação do primeiro volume das Memórias propi­
ciou a releitura do cânone literário brasileiro. A retomada da
tradição memorialística representava para a crítica a necessi­
dade de refletir sobre conceitos até então recalcados pela van­
guarda literária, tais como o de tradição, de memória e de
autobiografia. Com a estréia de Nava, descortina-se novo
panorama para as letras nacionais, no qual se mesclam a his­
tória e a ficção, a tradição e o novo, com o objetivo de ampliar
a concepção de escrita memorialística e de modificar o estatu­
to do texto literário. Confirma-se não só o resgate de um gê­
nero que se encontrava em baixa, mas este se impõe como re­
ferência para a história, a política e a cultura das primeiras
décadas do século XX. A crítica acompanha as mudanças pro­
cessadas no cânone e propõe rever metodologias de interpre­
tação textual, estendendo-se para abordagens de caráter mais
interdisciplinar, ampliando-se o conceito do literário e enfati­
zando o lugar do sujeito no ato da escrita, seja ela de natureza
ficcional, memorialística ou ensaística. O boom da escrita au­
tobiográfica não tardaria a ter lugar na história da literatura
contemporânea, principalmente com a abertura política no
Brasil e com a volta dos ex-exilados ao País. Inaugura-se outra
modalidade de relato, principalmente devido à necessidade de
se registrar a experiência vivida durante o período da ditadu­
ra militar.

de Janeiro, José Olympio, 1 976; Beira-mar. Memórias 4, Rio de Janeiro, José


Olympio, 1 978; Galo-das-Trevas. Memórias 5, Rio de Janeiro, José Olympio, 1981;
O Cfrio Perfeito. Memórias 6, Rio de Janeiro, José Olympio, 1983.

188

Copyrighted material
NAVA S E D E S E N H A

Na elaboração do vasto material armazenado pela memó­


ria, Nava utiliza-se de um número razoável de metáforas, de
bom rendimento para a compreensão de seu processo criador,
além de ter sido bastante explorado pela crítica especializada
em sua obra. Imagens se multiplicam e se suplementam atra­
vés do desejo de recorrer à metalinguagem e à teorização do
ato de escrever. Escrita frankenstein , elaborada à maneira
de um puzzle, de um caleidoscópio, de um texto-palimpsesto e de
uma bricolagem, em que são colados os fragmentos e restos de
textos, lembranças e objetos guardados no baú de ossos. A crí­
tica apropria-se também dessas imagens e elabora conceitos
que se relacionam ao processo naviano de escrever: «móbile da
,,
memória'� «construção arbórea (Davi Arrigucci) , "pentimen­
,, ,,
to , "memória esponjosa (Antônio Sérgio Bueno), "escrita
,,
frankenstein (Celina Fontenele Garcia) , "memória-esqueleto
,,
com muitas vért,ebras ( Joaquim Alves de Aguiar ) , "baú de
,,
madeleines (Maria do Carmo Savietto )5•
Uma das fontes mais significativas do estudo dessa obra é
a consulta ao arquivo de Pedro Nava, sediado na Fundação
Casa de Rui Barbosa. Constata-se aí o entrecruzamento do ar­
quivo, da escrita e da memória por meio da profusão de fotos,
cartões postais e desenhos que permitiram a construção das
variadas fases de elaboração do texto. No corte cirúrgico desse
material , procedeu-se à eliminação de muitos dados, tornan-

5. Os titulos referentes aos estudos sobre Pedro Nava são os seguintes: Davi Arrigucci
Jr., "Móbile da Memória", En igma e Comentário, São Paulo, Companhia das Le­
tras, 1987; Cetina Fontenele Garcia, A Escrita Frankenstein de Pedro Nava, Fortale­
za, UFC, 1997; Joaquim Alves de Aguiar, Espaços da Mem6ria - Um Estudo sobre
Pedro Nava, São Paulo, Edusp, Fapesp, 1 998; Maria do Carmo Savieto, Baú de
Madeleines, tese de doutorado, FFLCH-USP, 1 998; Antônio Sérgio Bueno, Vísceras
da Memória, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1997.

Copyrighted material
A RQ U I VOS L I T E R Á R I O S

do-se difícil avaliar, com base na versão em livro, a exata di­


mensão da atividade escritura! que precedeu a sua efabulação.
O exame deste arquivo revela ser o trabalho anterior da escrita
semelhante à técnica da bricolagem, em que se cruzam as in­
formações e a vivência pessoal de quem se introduz como su­
jeito, ainda que fragmentado do discurso.
Como se desenha, portanto, o gesto autobiográfico de um
escritor que se comporta ao mesmo tempo como obsessivo co­
lecionador de provas legitimadoras da veracidade dos fatos e
como desmitificador dessa verdade? Ao transformar as pessoas
de seu convívio em personagens, pelo grau de ficcionalização a
elas conferido, ou ao se inspirar em imagens presentes nos livros
e nas obras de arte, Nava embaralha os limites entre ficção e rea­
lidade. A composição das Memórias, marcada pelo olhar do pre­
sente, já se manifesta contaminada pela distância em relação ao
vivido, o que permite reconhecer o efeito mediatizado e oblíquo
do texto. A gênese textual de Beira-mar revela um procedimen­
to construtivo semelhante ao da colagem, explorada em grande
medida pela arte moderna, pelo entrecruzamento de enxertos
textuais colhidos nos depoimentos e informações recebidas e de
desenhos ou reproduções de imagens artísticas canônicas. A obra
proustiana, leitura de cabeceira e modelo da escrita memoria­
lista, conduz o autor na invenção de sua obra, a ponto de se la­
mentar estar escrevendo à sombra do escritor francês. A convic­
ta percepção de serem suas personagens reconstruções ficcionais
e não reprodução de tipos e enredos pessoais, encontra apoio
no universo romanesco da literatura, uma dos maiores paixões
e referências de Nava. Para a escrita das Memórias, o autor se ali­
menta da vivência virtual com personagens literárias, a par de
sua formação intelectual como participante do modernismo em
Minas e leitor exemplar da literatura estrangeira:

Copyrighted material
NAVA S E D E S E N H A

graças a um processo arquivístico de transformação: na troca


conseguida pelo pacto memorialístico, os objetos se abstraem
do valor de uso e recebem valor de culto. Adquirem significa­
ção original, à medida que se anula a sua função utilitária. A
cidade-relíquia se fetichiza e o seu retrato é estancado para
melhor deter o tempo e congelar a imagem. Mas o traço vivo
do desenho movimenta a lembrança, sendo possível promo­
ver a revisita ao passado com a cumplicidade do olhar móvel
do tempo presente (Figura 2).
Outros tipos de desenhos são inseridos nos rascunhos de
Beira-mar, quer pela reprodução da árvore genealógica do mé­
dico Hugo Werneck, quer pela composição do boneco referen­
te ao próprio médico, onde a figura desenhada de corpo intei­
ro atua como ilustração das anotações feitas pelo memorialista;
ou a ficha de D. Olívia Penteado, que se inscreve como um de­
calque, mesclando o desenho à escrita. Ambos procedimentos
participam do exercício complexo e paradoxal da memória,
que guarda, simultaneamente, imagem e letra. Separá-los para
melhor compreendê-los seria trair o percurso de Nava em di­
reção ao passado (Figuras 3, 4 e 5)
É curioso ainda examinar a prática mnemônica usada pelo
escritor na listagem de vários temas comuns, como nomes de
cidades de Minas, o que lembra as enumerações poéticas de
Guimarães Rosa, nomes de mulher, de artistas de Hollywood,
de filmes da época, de bares de Belo Horizonte, além de regras
para se prescrever um remédio. O cuidado com a caligrafia, o
papel e a maneira clara de se aviar uma receita, assim como o
comportamento do médico diante do cliente, revelam um tipo
de ritual em que se conjuga a arte da escrita com a ética profis­
sional. A transparência da prescrição depende em grande par­
te dos dotes escriturais de seu autor. Não é gratuito o cuidado

1 93

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

de Nava na arte da caligrafia, mas é gratuita a sua disposição


em aproveitar qualquer papel que tem em mãos, para servir de
registro dos rascunhos da memória: papéis da Santa Casa de
Belo Horizonte, de receitas, lista de clientes do dia, e assim por
diante.
Na reprodução da árvore genealógica de Hugo Werneck,
delineia-se a concepção de genealogia do memorialista, enten­
dida segundo a visão orgânica e naturalista, pela utilização do
modelo arbóreo como simulacro da genealogia de família. Esse
hábito reproduz a retórica comum à alta classe social, no dese­
jo de instaurar raízes e tradições. Para o escritor, a organização
do sistema arbóreo possibilita a legitimação dos nomes de fa­
milia através do gesto da escrita fundadora. O desenho de
grande parte dos grandes troncos brasileiros recebe de Nava
tratamento cuidadoso, com o objetivo de restaurar laços de pa­
rentesco e de revelar valores herdados pelos bens de sangue. As
Memórias representam, portanto, o desejo de construir gran­
des narrativas familiares, compreendendo não só a sua, como
também a de ami,gos, colegas de geração e professores. Pela
epicidade da empresa memorialística, o autor não poderia ter
deixado de lado uma de suas mais emblemáticas figuras, a ár­
vore genealógica. Nesse sentido, a recomposição de fábulas fa­
miliares constitui um dos traços que determinam a constru­
ção do projeto moderno e totalizante da obra memorialística
de Nava.
No entanto, torna-se difícil estabelecer uma analogia en­
tre o teor orgânico do modelo genealógico e a escrita das Me-
1nórias. No estágio de sistematização dos dados e listagem de
nomes segundo uma ordem cronológica e hierárquica, exige­
se um esforço de precisão e ordem; no arranjo do texto da me­
mória, esquece-se a rigidez e a mimetização do modelo. O de-

1 94

Copyrighted material
NAVA S E D E S E N H A

senho utilizado funciona tanto como fixação de uma estrutu­


ra profunda e reprodutiva quanto um mapa de entradas múl­
tiplas e erros de percurso. A leitura desse texto mostra-se aber­
ta à articulação entre a verticalidade sugerida pelo traçado
genealógico na sua dimensão temporal e a horizontalidade es­
pacial que se mostra na superfície da linguagem. É possível co­
meter equívocos, pois o trabalho do texto da memória com­
porta também erros, lapsos e esquecimentos.
Mesmo depois de publicado, o volume de memórias é con­
servado no seu estatuto de obra em processo e de errata im­
pressa em pé-de-página, quando alguns leitores alertam o es­
critor sobre equívocos biográficos cometidos na descrição de
suas personagens. Um dos resíduos da presença da memória
como contraparte do esquecimento encontra-se na 21 edição
de Beira-mar, em que o autor, ao ser corrigido por Drummond
a respeito de um dado pessoal, ao invés de reconhecer o erro
no corpo do texto, o faz através de uma nota de pé-de-página.
Para Nava, a escrita possui uma sobrevida que se consegue atra­
vés do diálogo com os futuros leitores, da mesma forma que o
arquivo do memorialista é um convite a pesquisas que revita­
lizarão o patrimônio cultural referente a várias gerações de es­
critores.
Como reflexão final, gostaria de estabelecer a relação entre
a inscrição do desenho sobre os bonecos e entre a escrita-ras­
cunho como uma leitura que aponta o impasse do texto
memorialista, construído a partir de duplo procedimento, a fi­
delidade e a traição ao modelo original. Ao se considerar o de­
senho como suplemento, configurando-se como representa­
ção, a sua atuação se realiza sob o efeito de um trompe l'oeil
Quando é enxertado à página de rascunho, através de um re­
curso de rememorização de pessoas ou de lugares, o desenho

1 95

Copyrighted material
ARQUIVOS LITE RÁRIOS

guarda tanto a dimensão de referencialidade biográfica - a


reprodução de imagens já publicadas ou retidas pela memória -,
quanto a de representação romanesca. (Ao lado do desenho de
Dona Olívia Penteado, o autor tenta recuperar as impressões
anteriores referentes à personagem, escrevendo: "como guar­
dei sua fisionomia"). O descolamento em relação à fidelidade
das fontes é conseguido graças à reelaboração posterior pela
escrita, que supera o mito da profundidade textual e se impõe
na sua exterioridade de superfície. As impressões do passado
já estão filtradas pelo esquecimento, se reconstroem na sua
condição de rasura e de falha impostas pelo momento presente.
Esse efeito de linguagem permite ainda refletir sobre o es­
tatuto da intertextualidade e a sua relação com a crítica genéti­
ca. Por se acharem os pré-textos expostos na sua total genero­
sidade, tais como o registro das leituras, das fontes de pesquisa
e das afinidades entre escritores, é mais seguro estabelecer com­
parações e provas relativas à gênese dos textos. No entanto,
todo cuidado é pouco para que o leitor não caia na armadilha
criada por uma pesquisa detetivesca e comprobatória, com ris­
cos de realizar uma análise de natureza descritiva e parafrásica
da obra. O processo criativo vivenciado pelo escritor não con­
,,
tém toda a chave do "mistério da escrita, pois as afirmações
autorais nem sempre são fidedignas. São esses os equívocos que
a crítica positivista nos legou, com seu raciocínio causalista e
sua lógica empirista. A inutilidade de tal trabalho pode ainda
comprometer a crítica biográfica e a retomada do lugar do au­
tor nesse processo. Da mesma forma que entre o desenho e a
escrita não se deve estabelecer uma relação naturalista e orgâ­
nica, entre obra e autor, grafia e bios, o procedimento é seme­
lhante, por ser difícil e delicado o confronto entre o escrito e o
vivido. A dificuldade se impõe em virtude da instabilidade en-

Copyrighted material
NAVA SE DESENHA

tre as margens do texto e da experiência autoral, dos modos de


inscrição através dos quais o sujeito se inscreve na obra. Os
desenhos de Nava, situados entre a grafia e a vida, estão aí para
comprovar o inevitável jogo entre memória e ficção.

1 97

Copyrighted material
Fig. 2. Reprodução do mapa de Belo Horizonte - Boneco (Beira-Mar).
(Arquivo - Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa).

Copyrighted material
-';. -< \
,A' . ..

.
.� '-'

Fig. 4. Desenho de Hugo Wemeck - Boneco (Beira-Mar).


(Arquivo - Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa).

Copyrighted material
A ESCRITA E A ÜBRA

BERNHILD BOIE

A crítica genétiéa tem duas imagens: a de uma teoria lite­

rária e a de um estudo das obras. Na universidade e fora dela,


é, sobretudo, este segundo aspecto que a tornou conhecida.
Pelo estudo de um corpus manuscrito, a crítica genética escla­
rece as práticas de trabalho de um autor e as significações de
um texto. Completa, assim, as abordagens da filologia, da her­
menêutica, da história literária e torna-se uma p arte consti­
tutiva dos estudos literários. Sabemos, entretanto, que ela se
presta a uma outra conduta. Consiste em interrogar os proce­
dimentos da criação em sua natureza, em SU<i:S condições cul­
turais e sociais, seus modelos formais ou tipológicos. Por isso,
pudemos nos perguntar se não havia duas críticas genéticas e
nos perguntar sobre a coerência do conjunto. Proponho-me a
mostrar, aqui, que não é nada disso e que a verdade e a eficácia
da genética se constroem, ao contrário, em um vai-e-vem en­
tre estudo de corpus e questionamento teórico. Gostaria de ilus­
trar esta tese com o exemplo de uma pergunta que já fez jorrar
muita tinta: qual a relação entre a escrita e o texto? Trata-se de

203

Copyrighted material
ARQUIVOS LITE RÁ R I O S

saber se existe ou não uma relação entre os procedimentos de


criação, o gênero literário e a estética da obra. Esta questão re­
cebeu até o momento respostas contraditórias. Gostaria de
mostrar como a confrontação entre o estudo exemplar de al­
guns corpora, sua interpretação teórica permite enriquecer este
debate e fazê-lo avançar, sem ficarmos simplesmente entre um
sim e um não.
O número de procedimentos de escrita não é infinito, mes­
mo se levamos em conta variações sempre possíveis no inte­
rior de um mesmo modelo. Para cada percurso individual - a
genética comparativa nos ensinou - há, então, esquematica­
mente, um modelo tipológico. Resta saber qual relação se esta­
belece entre este modelo e sua prática, entre a maneira de es­
crever e a obra projetada. Relação neutra, sem valor nem
ensinamento para a poética do projeto ou para a obra por vir?
Relação à distância, exterior, mas estruturante, tal como pode
existir entre uma forma dada - o soneto, por exemplo - e o
poema que se criou nesta forma? Ou, ainda, proximidade, tro­
ca, ligação íntima, orgânica entre o que se escreve e o como se
escreve? Não tenho, evidentemente, a ambição de analisar, aqui,
todas essas possibilidades. Gostaria somente de examinar a
idéia segundo a qual a maneira de escrever não está em relação
com a poética ou o gênero de uma obra. Gostaria de fazê-lo
mostrando como, da confrontação entre uma gênese individual
e uma teoria geral, pode nascer uma dúvida fecunda e um sa­
ber vivo.
O que está em jogo entre a escritura e a obra? Usarei, para
minha reflexão, o caso de um escritor, Julien Gracq, no qual
encontramos o exemplo particularmente impressionante de
uma perfeita adequação entre a concepção da obra e a manei­
ra de escrever. O título de um de seus livros, En lisant en

204

Copyrighted material
A E S C R I TA E A O B R A

écrivant, assinala que para esse autor escrever, ler, refletir sobre
,,
a escrita e a leitura são, de fato, «uma única coisa . Para com­
preender como essa consonância se desenvolve através da obra
e da gênese, é preciso lembrar rapidamente o que faz a singula­
ridade dos romances de Gracq. Além da diversidade dos assun­
tos e dos estilos, eles têm em comum um itinerário, um movi­
mento fundamental cujas diferPntes etapas são: a espera, a
acumulação de tensões, o surgimento de um impulso e seu re­
colhimento. Poderíamos dizer que eles unem, estreitamente, a
curva do desejo. Em Le rivage des syrtes, temos a história do
surgimento de um mundo mítico, seu acordar sonolento e sua
destruição final. Em La presqu'íle, temos a evocação de uma
tarde tensa por causa de um encontro, um perambular sofrido
diante da espera e do desejo. A curva da narrativa permanece a
mesma para todos os romances de Gracq: uma narração basea­
da na cronologia e que progride seguindo um vetor único. Com
relação à linha narrativa de Le rivage des syrtes, Gracq diz que
ela é « [] filha do tempo, de uma espécie de deriva temporal
• • •

delineada': Com relação a Un balcon en forêt, ele diz:

Os episódios nasciam deles próprios, da única cronologia da "guer­


ra estranha': que vinha desfazê-los, um a um.
Recomeçar do zero, ou simplesmente recompor toda uma parte, é
tot almente contra-indicado para mim, e sem esperança: é quase tão cla­
ro quanto no caso de um lençol d'água, após o esvaziamento, inútil per­

furar d e novo•.

O autor explicitou e comentou essa prática do romance em


uma reflexão teórica essencialmente fundada nas categorias do rit­
mo e do tempo. Gracq define o romance como um movimento

J. Entrevista com Bernhild Boie, Genesis, n. 1 7, no prelo.

20 5

Copyrighted material
A E S C R I TA E A OBRA

corpo em uma sucessão ajustada de linhas e de páginas. Segun­


do Gracq:

Sigo a narrativa como um vetor que não comporta uma volta atrás,
talvez porque todos os meus livros de ficção figuram, mais ou menos, a
maturação de um acontecimento, que é quase de ordem orgânica, e que
não comporta paradas nem regressões3.

No momento de passar a limpo - feito a mão, aliás - algu­


mas modificações podem, ainda, acontecer. Trata-se, essencial­
mente, de supressões. E Gracq continua: "Desconfio desses
ajustes executados friamente, que não são feitos no movimen­
to da estrutura unificada do livro, e que acabam por não serem
bem incorporados ao texto"4•
t notável essa concordância entre uma concepção da obra,
seu conteúdo, seu ritmo e a conduta geral da escrita. A essa es­
crita singular corresponde um grafismo que reflete muito cla­
ramente a necessidade de avançar em pequenas unidades fe­
chadas e limitar o aperfeiçoamento do texto no espaço estreito
da página. A folha é dividida em duas. A parte da direita,
recoberta pelas linhas fechadas, é ocupada pelo texto que com­
porta somente correções rápidas. Essa divisão não tem nada
de singular; ela se encontra em muitos escritores. Entretanto, a
vasta praia branca da margem nos reserva algumas surpresas.
Para Gracq, a margem não é como o é para Stendhal, por
-

exemplo - esse espaço de liberdade íntima onde se encontram


as notas particulares sobre a atividade de escrever, sobre a hora,
o tempo, o humor do momento. Ela também não oferece uma
superfície de expansão onde se desenrola o texto, como é o caso

3. Idem, ibidem.
4. Idem, ibidem.

207

Copyrighted material
ARQUIVOS LITERÁRIOS

de Hugo, nem esse espaço de trabalho, de comentário, de reto­


mada e de amplificação, tal como encontramos nos manuscri­
tos de Flaubert. Aqui, alguns ajustes, algumas correções que
não encontraram lugar no texto saturado da página podem, às
vezes, se inscrever nas margens, mas sua função essencial é ou­
tra. Ela permite colocar à espera palavras, imagens, frases que
se antecipam sobre o traçado, sempre lento demais da pena,
marcando, assim, a tensão que se cria " [ . . . ] entre a agitação ca­
,,
lorosa do espírito e a fixação material da obra 5• Mas há, tam­
bém, nessa impaciência da invenção e da falta de correspon­
dência da criação, algo dessa força antecipadora do desejo da
qual a própria narrativa se alimenta. Gracq, em La presqu'ile,
diz: '' [ . . ] ele se perguntava [ . . . ] por que a emoção nunca coin­
.

cidia totalmente com sua causa: era antes ou depois, antes mais
,,
que depois 6• Assitn, essas notas marginais confirmam, por sua
vez, o quanto, em Gracq, invenção, escrita e poética da obra se
correspondem. O texto é a imagem de sua gênese e as opera­
ções de escrita obedecem à mesma lei poética que a obra. Po­
deríamos dizer que a possibilidade de levar a cabo com sucesso
u1n trabalho criat ivo depende completamente dessa con­
sonância perfeita entre escrita e projeto de obra. Entretanto, um
romance inacabado de Gracq traz uma prova do contrário. Tra­
ta-se de um romance que Gracq trabalhou entre 1 953 e 1 956.
Permanece dessa tentativa abortada um dossiê de 250 páginas
que são, de fato, duas tentativas de escritas distintas, duas ver­
sões: uma narrativa na primeira pessoa que segue a linha con­
tínua do tempo, e uma outra redação sob forma de diário aber-

5. Idem, ibidem.
6. Julien Gracq, "La presqu'ile'� Oeuvres Completes. Biblioth�que de la Pléíade, Paris,

1995, t. II, p. 449.

208

Copyrighted material
A ESCRITA E A O B RA

to a digressões da memória. Passo sobre os problemas que te­


riam suscitado cada uma dessas duas formas narrativas e que
poderiam ter impedido o término da obra. Isso porque o es­
sencial é, sem dúvida, o único fato de se tentar, por exceção,
uma reescrita que havia decidido pelo abandono final. Assim
como Orfeu se voltando para Eurídice, Gracq, voltando-se para
o seu material de trabalho, havia condenado uma obra que re­
presentava uma infração às suas próprias leis de escrita.
Gostaria de falar um pouco mais sobre o caso de Gracq,
mas, agora , dando ênfase à sua incursão na área do teatro. De
fato, quando escreveu sua peça Le roi pêcheur, Gracq mudou
sensivelmente sua maneira de escrever. Fixa de antemão seu
projeto por um esquema preciso e redige os atos da peça fora
de ordem , sem sentir necessidade - tão imperiosa quanto
quando escreve um romance - de começar pelo princípio e de
seguir um único caminho até o fim. Além disso, o clima e, até
então, a curva da ação permaneceram os mesmos tais quais
nos romances. Desse modo, é a passagem de um gênero a ou­
tro - do discorrer de uma narração às peripécias de um dra­
ma - que muda a maneira de escrever. O próprio Julien Gracq
se justifica: "Na idéia, sem dúvida um pouco restrita, que te­
nho sobre teatro, um peça se constrói, um pouco, como um
,,
mecanismo 7•
Estamos, assim , diante de um caso polêmico que contra­
diz duas hipóteses de ordem geral. A primeira , que supõe que
a maneira de escrever não depende da poética de um escritor, é
contestada pelos romances; a segunda, que supõe que a ma­
neira de escrever não depende do gênero, é contestada por sua
incursão na área do teatro.

7. Entrevista com Bernhild Boie, Genesis, n. 17, no prelo.

209

Copyrighted material
A E S C R I TA B A O B R A

mostra o quanto uma maneira de escrever está ligada a uma


poética, os manuscritos de Éluard dão provas do contrário. Sua
estética é a de uma pura espontaneidade. Ele declara que, com
cada rascunho , " [ . . . ] a imbecilidade apaga o que a inspiração
criou'� E, no entanto, cataclismos de correções invadem seus
manuscritos. Sabemos que Breton , quando publica o manus­
crito Champs magnétiques, revê e retoma friamente um texto
escrito "sob o ditado mágico". Seria fácil multiplicar tais exem­
plos , entre os quais o mais marcante seria, talvez, o de Pessoa.
A propósito do ciclo O Guardador de Rebanhos, os trabalhos
de Ivo Castro negaram a lenda de uma criação espontânea e de
uma inspiração fulgurante, já que os manuscritos revelam a
existência de uma série de trabalhos de revisão. E, enfim , en­
contramos , também , vários corpora nos quais a maneira de es­
crever não depende , de forma alguma, do gênero literário. Tive,
por exemplo , a ocasião de mostrar que, para o poeta alemão
Eichendorff, a poesia , as novelas e os romances surgiam de um
mesmo tipo de gênese.
Percebemos que a crítica genética está entre a cruz e a es­
pada. O estudo de um corpus particular pode dar ao critico um
sentimento de certeza: ele não fala senão daquilo que ele viu.
Entretanto, está ameaçado de ver mal , se não pode opor essa
experiência particular a outras, remarcar o que seu autor não
fez e que u1n outro teria feito em seu lugar, compreender que
uma maneira de escrever não adquire sentido senão quando é
relacionada a outras práticas de escrita. E , inversamente, quan­
to às hipóteses generalizadoras da genética , não se deve esque­
cer de que elas não são senão hipóteses , chamadas para mode­
lar e para enriquecer uma experiência jamais acabada. É
assim que a genét�ca atravessa um cenário contrastado, ba­
lizado de marcas provisórias, atravessado por vias que levam ao

211

Copyrighted material
ARQUIVOS LITBRÁRIOS

abrigo de certezas efêmeras. A solução poderia ser aquilo que


,,
Starobinski chama de "uma crítica impura e de operações da
gênese:

[ . } impura em razão mesmo de sua amplitude, de sua polivalência, de


..

sua recusa da tecnicidade limitada. Uma critica inquieta, advertida de­


mais sobre os perigos que nos envolvem, para se contentar em aperfeiçoar
um código descritivo das obras literárias.

A crítica genética seria uma soma capaz de responder aos


desejos de dois escritores tão opostos em suas atitudes diante
do ato de escrever como Aragon e Julien Gracq. "Dar os ma­
nuscritos aos pesquisadores para que se diga menos besteiras
sobre a literatura." Dizia Aragon numa frase freqüentemente
usada, e Gracq conclui sua entrevista dizendo que:

[ . . ] e se o estudo dos manuscritos melhora a compreensão, o que espe­


.

ro, e o que me parece estar a caminho, que a arte é um mundo onde a


exceção mexe sem parar com a regra, que ela não é cartesiana, continua
pouco amiga da ordem e do encadeamento das r azões, que está, em seu
modo de andar, mais perto do more geometrico da exuberante e anár­
quica liberdade de invenção e de solução manifestada pelo mundo vege­
tal e pelo mundo animal, ser-lhe-ei, sem reservas, eternamente grato8•

Trad. RENATO DE MELLO

8. Idem.

212

Copyrighted material
E
S TA R Í A M O S P R E S E N C I A N D O
U M A T R A N S F O R M A Ç Ã O RAD I CA L
Q U A N T O A O F UT U R O D O
A R Q U I VO E D A M E M Ó R I A T E X T U A L
D E O B R A S R E P R E S E NTAT I VA S DA
M O D E R N I D AD E ? O S A R Q U I V O S
L I T E RÁR I O S E S TA R I A M C O M O S D I A S
C O N TA D O S ? E S T E L I V R O P R E T E N D E
D I S C U T I R E S S E I MPAS S E E R E G I STRAR
A TA R E FA D E P R E S E RVA ÇÃO D O S
B EN S C U L T U RA I S L E VADA A T E R M O
POR INSTITUIÇÕES E F U NDAÇ ÕES
N A C I O N A I S E E S T R A N G E I RA S . S Ã O
D I S C UTIDAS QUESTÕES S O B RE A
G t N E S E D O T E X T O L I T E RÁ R I O E
S O B R E A C O L E Ç Ã O A R C H I V O S D E LA
L I T E RAT U R A LATI N O A M E R I CANA Y D E L
C A R I B E D E L S I G L O X X , A P A RT I R DA
E D I ÇÃ O C R ÍT I C A D E O B RA S D E C A R L O S
D R U M M O N D D E A N D RAD E , G I L B E RT O
F R E Y R E , P E D R O NAVA , O S WALD D E
A N D RAD E , -E N T R E O U T R O S .

ISBN 85-7480·155·0

9 88574 801551

Você também pode gostar