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MUSEUS EM MOVIMENTO: DANÇA, ANTROPOLOGIA E MEDIAÇÃO

CULTURAL

Raíssa Batista Fonseca1


Giorrdani Gorki Queiroz de Souza2

Resumo

Os museus de antropologia se erguem sobre um conhecimento etnográfico proveniente da


experiência de campo dos antropólogos. Conhecimento científico que parte do mundo social,
a etnografia é mediada pela experiência e interpretação do antropólogo. Ao pensar o ambiente
museológico da antropologia, como seria possível um retorno à experiência? Como
possibilitar ao público produzir conhecimentos através da experiência no museu? Este artigo
propõe-se a afirmar a potencialidade da dança enquanto experiência mediadora de
conhecimento por meio do corpo e do movimento (na apreensão, aquisição e internalização da
experiência da alteridade e da diversidade) em espações museológicos com cunho histórico-
antropológico, de modo que o mediador/educador museal se afirme como elemento fundante
desta experiência. A articular de tais ideias é feita por meio de noções de experiência, dança e
mediação cultural e com o apoio nos estudos da antropologia da dança, da mediação museal,
educação e cognição corpórea.
Palavra-chave: Museu e dança. Experiência museológica. Mediação cultural.

INTRODUÇÃO

O museu, enquanto senso comum, pode ser compreendido historicamente como um


lugar de memória, um lugar para o tempo parar. Na modernidade a concepção de museu
modificou-se bastante, assim como a própria ideia do que pode habitar um museu. Hoje, é
possível vivenciar e conceber o museu enquanto um espaço não só de arquivo, mas também –
e principalmente – como um espaço reflexivo e de experiências.

Pensar o museu de antropologia neste contexto mais amplo permite perceber uma
modificação: num primeiro momento, buscou-se construir uma espécie de arquivo de culturas

1. Graduada em Ciências Sociais pela UFPE; Estudante do Master 1 de Anthropologie na Université Lumière
Lyon 2, França. Email: raissa.fonseca@hotmail.com
2. Giorrdani Gorki Queiroz. Email: giorrdani@gmail.com
2

“exóticas” e atualmente vêm empenhando-se em ser não apenas um lugar de reserva cultural,
mas também um espaço reflexivo para a produção do conhecimento antropológico.

Segundo os moldes tradicionais, o público vivencia, ao entrar o espaço do museu, um


modelo que direciona o pensamento, de forma a transmitir as informações de cunho
informativo e de modo explicativo. Nesse contexto, o mediador/educador3 tem um papel
fundamental para a condução da experiência, pois pode desenvolver estratégias para mediar
esse caminho.

Este artigo surge como resultado das minhas experiências enquanto mediadora cultural
em museus, e mais especificamente no Museu de Antropologia do Homem do Nordeste,
situado em Recife, Pernambuco. Ali percebi que o mediador/educador, em sua grande
maioria, tem um papel quase exclusivo de explicador/informador nas ações educativas:
percepção que não deixou de me inquietar. Como artista, arte-educadora e antropóloga senti o
desejo de expandir a mediação para além dos percursos temáticos habituais, da abordagem
linear pautada pela fala do mediador, o qual torna-se um explicador das obras – e não um
provocador de questões favoráveis à experiência e ao aprendizado.

Meu interesse pelo tema iniciou-se com uma mediação temática (intitulada
Medi(ação): movendo o museu através do sensível), elaborada para o Museu do Homem do
Nordeste (MuHne), elaborada em conjunto com a dançarina e arte-educadora Rebeca Gondin.
O objetivo era que o corpo se tornasse protagonista da experiência no museu através da dança
e jogos lúdicos. Buscávamos aguçar os sentidos e a percepção do visitante e, desta forma,
possibilitar formulações de questões a partir do corpo em movimento (ACSELRAD, 2018).

Dessa primeira experiência, surge à intenção de aprofundar tal temática: desenvolver


estratégias de mediação em museus de antropologia, pautadas numa perspectiva na qual o
corpo em movimento é utilizado como ferramenta para documentar e investigar
(BUCKLAND, 2013) elementos artísticos e políticos abordados dentro do museu. A
elaboração e a aplicação desta mediação conduzem-me a duas indagações: qual o lugar da
experiência em museus de antropologia? Como o corpo em movimento pode potencializar a
reflexão no museu?

Partindo do pressuposto do museu como um espaço de aprendizado através da


experiência (bem como do corpo em movimento como formulador de questões), busco propor

3. Alguns trabalhos discutem o uso do termo educador em vez de mediador (MARANDINO, 2008; GUERRA,
2016). Neste artigo usarei os dois como sinônimos, pois estimo que designam indiscriminadamente os sujeitos
que mediam o público, as obras e a instituição através de ações ou propostas educativas.
3

maneiras de pensar visitas a museus de antropologia que favoreçam , via movimento, as


experiências pedagógica e estética a partir da vivência do corpo sensível.

Este desejo de elaborar novas práticas de mediação em museus de antropologia surge


em correlato com as reflexões acerca da antropologia e da dança. Essas duas disciplinas – que
em muitos momentos se distanciam por seu caráter apenas teórico ou apenas prático –
partilham caminhos metodológicos e epistemológicos que se aproximam (ACSELRAD, 2018;
BEAUDET, 2018; CITRO, 2012; CAMARGO, 2013; MARULANDA, 2018). Nos estudos da
antropologia da dança, o fazer antropológico pautado na experiência de campo (e do corpo em
movimento como formulador de questões) tem sido evidenciado nos últimos anos. Trata-se
em outros termos, da busca pela “compreensão das relações sociais, dos corpos em
movimento e da construção da identidade” (MARULANDA, 2018, p. 41).

No que concerne às questões museológicas, importa compreender o propósito dos


museus de antropologia. Os objetivos do museu etnográfico são, segundo alguns autores,
pautados na difusão e na valorização da diversidade cultural da humanidade. Vale ressaltar
que tais espaços desempenham também o papel de instituições com funções político-
pedagógicas (ABREU, 2008). Dessa maneira, a atuação dos educativos4, através de suas
ações pedagógicas da mediação com o público, torna-se essencial para o cumprimento de tais
objetivos.

Torna-se relevante salientar que as reflexões acerca da experiência e da construção de


pensamentos desenvolvidas neste artigo, estão apoiadas em algumas noções indicadas nos
estudos sobre a cognição corpórea (SILVA NETO, 2015; PETITMENING, 2010), nas quais
se afirma que “os conceitos são produzidos também com as emoções e os sentimentos”
(SILVA NETO, 2010, p.6). Abarcar tais ideias permite admitir que o conhecimento não é
construído de maneira apenas linear e objetiva, e que que devemos explorar as múltiplas
formas e potencialidades dos corpos quando buscamos produzir conhecimento crítico e
sensível. Dessa maneira, proponho uma reflexão tanto sobre o lugar da experiência
cinestésica5 nas mediações em museus de antropologia, quanto sobre suas possíveis
contribuições à educação museal e ao campo da antropologia.

4. “Educativo”: setor que elabora e propõe atividades educativas voltadas para a exposição ou outras atividades
nos museus.
5. “Cinestesia sf: sentido da percepção de movimento, peso, resistência e posição do corpo, provocados por
estímulos do próprio organismo (HOUAISS e VILLAR, 2001)”. Ou seja, experiência corporal se refere à
experiência vivenciada através dos sentidos do corpo.
4

MUSEUS E ANTROPOLOGIAS: MU (DANÇAS) E PERSPECTIVAS

Tratar acerca de museus de antropologia é adentrar nos primórdios da própria


antropologia como disciplina. No Brasil, o surgimento desses museus data do século XX e
tinham por interesse os estudos das sociedades indígenas e a emergência da então sociedade
nacional, o objetivo era a difusão da riqueza e da diversidade cultural do país com suas
diferenças e particularidades. Como aponta Abreu (2008), os museus de antropologia vêm se
reformulando ao longo dos anos e consequentemente, adaptando-se às maneiras de entender e
vivenciar a noção de cultura. Nesse sentido, torna-se necessário também a análise do papel
dos educativos nesses museus, assim como suas estratégias de mediação.

A antropologia modificou-se ao longo dos anos. Em seu fazer: com a passagem de


uma antropologia de “gabinete6” para uma antropologia que se faz no campo –
desenvolvimento da técnica de observação participante e da etnometodologia7. Em suas bases
epistemológicas: a distinção das ciências humanas das chamadas ciências naturais –, como
também a passagem dos estudos de sociedades “tribais” e/ou “primitivas” ao estudo das
culturas de maneira mais ampla (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988; LAPANTINE, 2003). Do
mesmo modo foram os museus de antropologia.

Os museus antecedem a antropologia como disciplina, desde os gregos – Museion8 ou


templo das musas –, passando pelas cortes europeias que reuniam suas coleções privadas de
relíquias; chegando ao marco histórico da Revolução Francesa – da qual resulta a publicação
tais coleções, até então privadas aos nobres (ABREU, 2008). Foi apenas no inicio do século
XIX, com o desenvolvimento do movimento iluminista e universalista que se constituíram os
museus de ciências ou museus enciclopédicos cujos modelos ainda hoje perduram. Abreu
(2008) aborda o surgimento dos museus de antropologia e nos propõe três modelos
paradigmáticos de museu antropológico

Em primeiro lugar, os museus etnográficos enquanto lugares essencialmente de


produção e difusão de conhecimento científico; em segundo lugar, os museus
etnográficos que foram criados com o intuito de subsidiar e instrumentalizar
políticas públicas no âmbito estatal; em terceiro lugar, os museus etnográficos que

6. A pesquisa antropológica realizada a partir de relato de terceiros. Quando a prática de pesquisa de campo e
da observação participante não existia como método próprio da disciplina.
7. Como mostra a autora Daniela Marulanda, trata-se de uma proposta metodológica surgida em 1960 em
Chicago, que se instaura com uma perspectiva de investigação. Em busca de uma postura intelectual que
privilegie o compreensivo mais do que o explicativo, ressaltando o sentido que as pessoas atribuem aos
fenômenos que as atravessam e em compreender o conhecimento a partir dessas concepções. (MARULANDA,
2018).
8. Μουσεῖον, de μοῦσα, musa. Templo das Musas, filhas de Zeus com Mnemosine, a Memória (CARLAN,
2008).
5

partem de iniciativas dos movimentos sociais ou da articulação entre aqueles a quem


chamamos de “nativos” e os antropólogos (ABREU, 2008, p. 122).

Os museus de antropologia, atualmente, baseiam-se em um desejo de partilhar a


diversidade e as singularidades culturais humanas e/ou locais, e têm em vista os conceitos de
cultura e alteridade (VASCONCELLOS, 2011) – pontos essenciais para o pensamento
antropológico. Sendo a antropologia “um certo olhar”, “um certo enfoque” (LAPLANTINE,
2003) sobre algo, torna-se necessário – como assinala Dias (2013) – refletir sobre: que tipo
de saber antropológico é disponibilizado; que conteúdo acerca da diversidade cultural é
preconizado; e, que mensagem política veiculada por estas instituições. Dessa maneira,
podemos nos questionar: que atenção é dada às atividades de mediação nos museus
etnográficos? de que maneira o mediador participa da compreensão da diversidade cultural
humana?

Os museus, enquanto espaços de experimentos críticos e artísticos, desenvolveram os


serviços e/ou ações educativas, mediadoras entre as instituições, o público e as obras
expostas. São ações focadas em determinados públicos e muitas vezes visando funções
pedagógicas. Nesse sentido, vale cruzar alguns apontamentos de Studart (2004) com outros de
Creton e Pinto (2012) para mencionar

“A importância de conceber as ações educativas como processo, em que a tônica


seja o diálogo, a troca e a construção conjunta do conhecimento” (STUDART, 2004,
p. 38). [E que] o objetivo da educação, em seu sentido amplo, “é oferecer
possibilidades para a comunicação, a informação, o aprendizado, a relação dialética
e dialógica educando/educador” (STUDART, 2004, p.37). (STUDART, 2004, p. 37
apud CRETON e PINTO, 2012, p. 136).

Partindo da importância dos educativos nos espaços museais torna-se necessário


refletir sobre seu papel, e sobre como suas estratégias de mediação auxiliam a efetivação de
museus de antropologia. Por conta das atualizações nos modos de fazer antropológico dos
últimos anos, importa revisar as ações nos espaços de desenvolvimento dos estudos
antropológicos (como, por exemplo, os museus de antropologia). Ao entender o museu como
um espaço de educação não-formal9 aberto a exploração da experiência para a tessitura de um
conhecimento; e acreditar nas múltiplas formas de conhecer, experimentar e articular
pensamentos através dos corpos em um espaço expositivo, é fundamental pensar novos
percursos de mediação pautados em uma maneira de articular conhecimentos através dos
corpos. Entrelaçando movimentos e teorias, produzimos discursos e maneiras de produzir

9. Como indica MARANDINO (2008) a “educação não-formal é qualquer atividade organizada fora do sistema
formal de educação, operando separadamente ou como parte de uma atividade mais ampla, que pretende servir a
clientes previamente identificados como aprendizes e que possui objetivos de aprendizagem” (p. 14).
6

conhecimentos através da experiência onde seja possível mover os pensamentos e pensar a


partir dos movimentos (CITRO, 2012).

Isto posto, refletir acerca de como são desenvolvidas as ações dentro dos museus
apresenta-se como o prelúdio desta análise. Nos museus que pude visitar ou em que tive a
oportunidade de trabalhar, percebi que o educador/mediador desempenha, na maioria dos
casos, um papel meramente informativo no que tange às obras, sendo importante mencionar a
pouca atenção dada ali à função dos educativos.

A visitação nos museus torna-se, desse modo, uma transmissão de informação, ou seja,
“uma acumulação de verdades objetivas” (LARROSSA, 2002, p. 28). São verdades que
permanecem externas ao ser humano e em muitos casos não proporcionam uma experiência
onde se dá sentido “por si próprio”, considerando “o que se passa [consigo]”, “o que [se é]
capaz de sentir e pensar”. Acreditando que “o mediador deve ser menos a pessoa que
transmita conteúdos e mais alguém que estimule o público a estabelecer algumas relações de
seu próprio modo” (COCCHIARALE, 2007, p. 15 apud SILVA, 2017.1, p. 392), tornam-se
necessárias propostas de mediação que tenham a experiência como base, que abram “a
possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque” (LARROSA, 2002, p. 24). Nesse
sentido, partindo de ações corporais, baseadas nos movimentos e nos sentidos do corpo,
acredito em visitas museais em que a experiência seja o caminho da compreensão da
diversidade, da cultural e da alteridade.

Acreditar na potencialidade do espaço do museu etnográfico no que diz respeito ao


aprofundamento e ao compartilhamento das questões antropológicas é dar por necessário
refletir sobre maneiras desenvolvimento das atividades dos educativos por eles mesmos, em
se aproximando do pensamento antropológico atual.

PERCURSOS POSSÍVEIS: EXPERIÊNCIA CORPORAL VIA MOVIMENTO

O estudo de uma mediação cultural em museus de antropologia que visasse à


experiência como prática pedagógica só foi possível através da experimentação de uma
mediação temática pautada nesses elementos. Realizada na 15ª Semana Nacional de Museus10
– que tinha por tema “Museus e histórias controversas: dizer o indizível em museus” –, a
proposta da mediação tinha por premissa a tentativa de explorar os sentidos, utilizando-se da
composição sonora do museu, de brincadeiras e movimentos corporais ao longo da visita de

10. A Semana Nacional de museus é uma temporada cultural coordenada pelo IBRAM que acontece todo ano
em comemoração Internacional dos Museus.
7

seus espaços. O desejo, portanto, era de possibilitar outras maneiras de vivenciar o museu
percorrendo as questões históricas e antropológicas abordadas nesse espaço.

A mediação aconteceu com jovens de escolas públicas do Recife, que visitavam pela
primeira vez o Museu do Homem do Nordeste. A exposição permanente intitulada “Nordeste:
territórios plurais, culturais e direitos coletivos” é constituída de sete salas divididas por
temáticas (Nordeste plural; Brasil global e periférico; Terra, trabalho e identidade, Povos
indígenas do Nordeste; Açúcar: organização da economia e escravidão; Revoltas, revoluções
e resistências; Expansão e interiorização através do gado), contendo certa diversidade de
materiais expostos (como por exemplo fotografias, vídeos, colares, flechas, moedas, tapeçaria,
mobílias e etc.). A exposição conta também com trilha sonora produzida pelo músico Naná
Vasconcelos, utilizada para atividades pedagógicas durante a mediação. Para cada sala
temática produzimos uma ou mais atividades para abordar as temáticas propostas, através de
estratégias pautadas em: sentidos, movimento, corpo e improvisação. Com base na ideia de
autonomia de percepção, o intuito foi, portanto, o de transformar a experiência – via
movimento corporal – em fio condutor para reflexões críticas.

É acreditando que prestar atenção nos conteúdos sensíveis da própria experiência é


uma prática pedagógica em si que eu me baseio no pensamento de Larrosa (2011), quando,
por exemple, considero que a leitura pode

Ajudar-me a formar ou transformar minha própria linguagem a falar por mim


mesmo, ou a escrever por mim mesmo, em primeira pessoa, com minhas próprias
palavras [...]. Pode ajudar-me a formar ou transformar minha própria sensibilidade, a
sentir por mim mesmo, na primeira pessoa, com minha própria sensibilidade [...]
(LARROSA, 2011, p. 11).

Nesse sentido, a experiência se apresenta como um caminho em que os sujeitos


possam trilhar em busca de um conhecimento crítico, baseados no “isso que me passa”
(LARROSA, 2011, p. 1), pressuposto que segundo Larrosa (2002; 2011) é a base do conceito
de experiência. A educação não-formal no museu através da experiência corporal, deve estar
baseada “sobretudo em dar sentido ao que somos e ao que nos acontece” (LARROSA, 2002,
p. 21). A experiência elaborada em uma mediação meramente explicativa – em que a fala é o
único recurso do mediador – pode ser considerada não como um saber ativo que alimenta e
ilumina, mas como algo que flutua no ar, estéril e desligado dessa vida em que já não pode
encarnar-se (LARROSA, 2002, p. 28). Se aproximarmos a atividade desenvolvida pelo(a)
educador(a) de museus das habilidades desejáveis de um(a) antropólogo(a), torna-se evidente
a necessidade de defender a escuta, a observação e a compreensão da alteridade como bases
8

para a construção de um conhecimento partilhado e sensível, ou seja, através de uma


experiência encarnada, corpórea.

Quando se defende a importância de um conhecimento encarnado – como aponta


Larrosa (2002) ao analisar o saber da experiência –, este se torna um caminho relevante para a
elaboração de estratégias que valorizem a experiência como forma de conhecer. O corpo “é o
vinculador do homem a todas as energias visíveis e invisíveis que percorrem o mundo” (LE
BRETON, 2011, p. 50), sendo através dele que percebemos e interagimos com e no mundo, e
que podemos, também, elaborar conceitos e reflexões.

No artigo intitulado “Em busca do corpo perdido: o movimento como ponto de partida
para a pesquisa antropológica em dança”, Maria Acselrad (2018) destaca, partindo das ideias
de Merleau-Ponty, que a experiência perceptiva é uma experiência corporal, porque a
experiência corporal é criadora de sentidos e interpretações (ACSELRAD, 2018). Como
ressalta a autora, a experiência encarnada, ou seja, focada na percepção corporal, não almeja
separar o corpo da mente:

Porque assim como não há um equipamento mental apartado do corpo, responsável


por uma consciência transcendental, não há sentidos que se destinem objetivamente
à função de transmitir informações. O que há, quando nos movimentamos, é “uma
circularidades entre os acontecimentos do meio ambiente e os acontecimentos no
próprio corpo, ocorrendo aprendizagem, ou seja, uma nova interpretação desses
acontecimentos” (NOBREGA, 2008, p. 146). A percepção seria, portanto,
indissociavelmente, psíquica, sensória e motora. (ACSELRAD, 2018, p. 57).

Seria então possível elaborarmos uma mediação no museu partindo dos métodos da
própria antropologia – pesquisa de campo, observação participante, etnografia e
etnometodologia –, em conjunto com o corpo em movimento? Quais são as possibilidades da
antropologia da dança contribuir com visitas em museus de antropologia alicerçadas na
experiência do corpo em movimento?

Acselrad (2018) aponta para a importância do engajamento corporal do


pesquisador(a)-dançarino(a) numa pesquisa antropológica em dança, aliado ao que a
antropóloga da dança Silvia Citro (2012) aponta como etno-coreo-grafia, ou seja: elaboração
de novas metodologias. Dessa forma, se pensarmos a experiência nos museus etnográficos
como uma maneira de abordar a própria antropologia, seria necessário “[...] substituir a
objetivação da dança como estrutura pelas sensações da dança como processo. [...] Em favor
das narrativas em primeira mão, que utilizam seu próprio corpo como ferramenta para
documentar e investigar a dança [...] (ACSELRAD, 2018, p. 61)”.
9

Nesse mesmo sentido, o corpo serviria na mediação sensorial como meio para
documentar e investigar o museu. O ponto de partida é o corpo em movimento; de suas
sensações produz-se uma reflexão mais autônoma e, por conseguinte, mais transformadora
enquanto prática pedagógica.

A fricção entre dança e antropologia surge trazendo novas abordagens para ambos os
campos do conhecimento. Tal relação contribuiu na investigação de como vivências
cinestésicas e jogos lúdicos podem auxiliar na visitação do museu: para que esse momento se
transforme em uma experiência (Aiesthesis11, sensível e cinestésica); e para que, assim,
através do movimento, o visitante possa ampliar sua percepção acerca das questões ali
abordadas. Reivindicar a experiência do corpo em movimento como estratégia de mediação
no museu torna-se necessário, pois “a lógica da experiência produz diferença,
heterogeneidade e pluralidade” (LARROSA, 2002, p. 28) – sendo este um dos objetivos
fundamentais dos museus de antropologia. A experiência vivenciada dentro do museu surge,
nessa perspectiva, como uma proposta de auto-etnografia12 do processo vivido em que se
valoriza a percepção do indivíduo na construção de seu próprio conhecimento.

Ao falarmos em experiência cinestésica – ou seja, em percepção dos movimentos


corporais –, podemos inferir sobre uma aproximação feita com a abordagem do teórico e
bailarino Rudolf Laban13, em O domínio do movimento (1978). Ao conceituar a dança, o autor
considera os movimentos mentais e emocionais e não apenas os movimentos físicos
(LABAN, 1978 apud SILVA, 2017.1), abarcando a dança em sua complexidade. Já a
cognição corpórea14 se apresenta como uma área dos estudos da cognição que volta seu
pensamento para a compreensão do “corpo como organismo que dinamicamente produz
significados para ações e pensamentos – para a cognição – e também é modificado por meio
de ações e pensamentos” (SILVA NETO, 2015, p. 215), ou seja, há uma compreensão ampla
do corpo além do dualismo corpo-mente.

11. Termo apresentado pelo autor Walter Mignolo (2010). O autor propõe a diferencia entre estética – que estaria
baseado na ideia do belo – e aiesthesis – baseada na ideia de experiência.
12. Segundo FORTIN (2009) a auto-etnografia “se caracteriza por uma escrita do „eu‟ que permite o ir e vir
entre a experiência pessoal e as dimensões culturais a fim de colocar em ressonância a parte interior e mais
sensível de si” (p. 82).
13. Rudolf Laban (1870-1950), dançarino, coreógrafo, pedagogo e teórico do movimento. Desenvolveu um
modelo de notação do movimento chamado Labanotation. Foi uma importante influência para o
desenvolvimento e difusão da dança moderna (FRANCO, 2016).
14. SILVA NETO (2015) apresenta as principais abordagens dessa área: corpóreo-enativista; corpóreo-
conceitual e corpóreo-afetiva (p. 213). O autor aponta as diferenças entre cada perspectiva e os principais pontos
de interesse de cada linha de estudo.
10

Os conceitos são produzidos também com as emoções e os sentimentos, as


diferenças individuais dos corpos e as experiências fundamentais na geração dos
significados imanentes, o que se opõe a qualquer imagem padronizadora e
transcendente da cognição e a toda concepção de mente e corpo como sendo
substâncias distintas ou separadas (SILVA NETO, 2015, p. 6).

De maneira geral, os estudos da cognição corpórea nos auxiliam no entendimento da


integração entre corpo, cérebro e ambiente, e, portanto, da importância da percepção, e da
imaginação – emoções conjuntas à experiência vivenciada pelos sujeitos na elaboração de
conceitos, na produção de conhecimento sobre si e sobre o mundo.

As estratégias de mediação focadas na experiência cinestésica possibilitam a presença


ativa do sujeito, a imaginação e as emoções de volta ao museu “na construção de momentos
que, sutil e ludicamente, traçam uma linha de conexão entre a obra de arte e espaço físico”
(SILVA, 2017.1, p. 394), ampliando a papel dos educativos e suas pedagogias, repensando os
métodos e questões da antropologia.

Nesse sentido, ao aproximarmos os conceitos da dança, da antropologia e dos estudos


da cognição corpórea podemos perceber a importância das práticas corporais para os
educadores de museus. Ressaltar a relação entre as práticas do mediador cultural e do
antropólogo – apontando possíveis cruzamentos necessários e factíveis no fazer das duas
profissões – tornar-se, pois, importante. Pensar acerca dos educativos em museus de
antropologia é também refletir sobre a atuação dos antropólogos, sobre o papel da própria
antropologia em nossos tempos – o mediador de museus etnográficos deve utilizar as
ferramentas da própria antropologia para elaborar mediações que ressaltem a experiência na
construção de reflexões e pensamentos. Assim, ao aproximar o indivíduo de uma experiência
etnográfica – ou seja, experiência descontínua e imprevista (MAGNANI, 2009) –, o mediador
desenvolve um importante percurso de seu trabalho nos museus de antropologia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao refletirmos acerca da relação entre os museus etnográficos e a antropologia,


observamos as mudanças ocorridas desde os aspectos conceituais às bases epistêmicas – e em
suas práticas –, e identificamos a necessidade de desenvolver maneiras de mediar a
experiência museal que auxiliem a efetivação de tais mudanças. Parece-me necessária uma
reflexão profunda sobre os objetivos dos museus de cunho etnográficos tradicionais atuais –
como nos casos Museu do Homem do Nordeste, do Musée du Quai Branly e Museu Nacional
do México, por exemplo, pois tais espaços nos revelam como os estudos antropológicos e
11

museógrafos têm sido produzidos nas (e compartilhados pelas) sociedades onde estão
inseridos.

Outro ponto a ser destacado refere-se à importância da experiência – corpórea,


sensorial e cinestésica – na elaboração de um conhecimento que vá além de informações
previamente disponibilizadas numa visita em museus. Podemos observar, em vista dessa
reflexão, que o cruzamento dos pensamentos e das práticas da dança, da cognição corpórea e
dos métodos da pesquisa antropológica podem contribuir para a experiência como prática
pedagógica em museus de antropologia.

É necessário assinalar que a mediação não deve ser a única maneira de compor as
ações educativas em um museu de antropologia. Atividades permanentes que possibilitem o
contato com as comunidades onde estão inseridos os museus são essenciais para o
fortalecimento de uma relação entre o público e a instituição. O fortalecimento de atividades
de mediação – e, consequentemente, dos educativos – através da valorização do mediador nos
museus (com a possibilidade de elaboração de novos métodos pedagógicos, mais amplos e
integrativos) deve ser considerado como parte fundamental do fortalecimento dos próprios
museus etnográficos e das atividades antropológicas.

Foi, portanto, movida pelo desejo de elaborar uma reflexão sobre a prática (e de dar
uma prática às reflexões), que pude concluir que a fricção entre a antropologia e a dança
parece necessária e importante para ambas as áreas de conhecimento. A busca pela
aproximação entre práticas e pensamentos emana da tentativa de construir um conhecimento
crítico e sensível, bases tanto da antropologia quanto da dança.

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