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ARTE E COMUNIDADE: UMA PROPOSTA QUE CONSIDERA UMA

FOMRAÇÃO HUMANA INTERCONECTADA COM A NATUREZA E O


COSMO
Amanda Aguiar Ayres1 1 - UEA/UFBA
Jackeline dos Santos Monteiro2 2 - UEA
José Leandro da Cruz Lopes3 3 - UEA

Grupo de Trabalho Formação de Professores: GT - 03

Resumo
O presente artigo propõe apresentar um breve olhar sobre o descobrimento do “povo” a partir de
provocações compartilhadas por Peter Burke e Mikhail Bakhtin bem como amadurecer os conceitos de
tradição, cultura popular, comunidade, arte e vida e suas interligações com o Projeto “Arte e
Comunidade” da Escola de Artes da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). A proposta tem
buscado oferecer uma prática artística para/com os discentes a partir de metodologias de criação
contemporâneas e, ainda, reflexões teóricas em processos dialógicos junto a comunidades de periferia
em Manaus. Assim, o objetivo do trabalho é buscar relações que contribuam para a construção de uma
rede de sensibilidades poéticas. Sugere-se que ao viabilizar o intercâmbio entre os saberes populares e
acadêmicos é possível conceber uma proposta artístico-pedagógica complexa que valoriza a composição
natural tanto dos seres humanos como da condição planetária em que estamos imersos.
Palavras-chave: Comunidade. Cultura Popular. Arte e Vida.

Introdução
O artigo propõe apresentar um breve olhar sobre o descobrimento do “povo” a partir de
provocações compartilhadas por Peter Burke e Mikhail Bakhtin bem como amadurecer os
conceitos de tradição, cultura popular, comunidade, arte e vida e suas interligações com o
Projeto “Arte e Comunidade” da Escola Superior de Artes e Turismo (ESAT) da Universidade
do Estado do Amazonas (UEA). A proposta tem buscado oferecer aos estudantes do curso de
teatro a experimentação da prática artística a partir de metodologias de criação contemporâneas
e, ainda, reflexões teóricas em processos dialógicos junto a comunidades de periferia em

1
Professora da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Atriz e Diretora Teatral. É doutoranda do Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC-UFBA), na linha de Pesquisa:
Processos Educacionais em Artes Cênicas sob orientação da Professora Antônia Pereira Bezerra. Possui Mestrado
(2013) e Especialização (2011) em Educação, pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). É
graduada (2006) em Artes Cênicas pelo Departamento de Artes Cênicas da UnB. Integrou a equipe do Programa
Pró-Licenciatura em Teatro da UnB de 2008 a 2013. Atua principalmente nos seguintes eixos: Teatro,
Comunidade, Processos Criativos, Educação e Tecnologias Contemporâneas. E-mail:
amandaaguiarayres@gmail.com
2
Estudante do 6º período de licenciatura em teatro, na Universidade do Estado do Amazonas – UEA/Escola
Superior de Artes e Turismo – ESAT. Atriz e Produtora do Grupo Arte e Cultura Allegriah. E-mail:
jackeline.monteiro@live.com
3
Estudante do 6º período de licenciatura em teatro, na Universidade do Estado do Amazonas – UEA/Escola
Superior de Artes e Turismo – ESAT. Ator e diretor teatral. E-mail: leandrolopess013@gmail.com
Manaus. Dessa maneira, o processo de formação se estabelece para todos os sujeitos
envolvidos: educadores, estudantes de graduação e as comunidades atendidas. O
desenvolvimento de uma proposta dessa natureza assume o desafio, e todas as dificuldades, de
propor uma formação humana e complexa em contraponto a atual estrutura mecanicista,
fragmentada, rígida e burocrática que compõe, em diferentes âmbitos, o espaço em que estamos
situadas (os). Assim, o objetivo do trabalho é buscar relações que contribuam para a construção
de uma rede de sensibilidades poéticas pautada em valores humanos, solidários, colaborativos
e transformadores. Sugere-se que ao viabilizar o intercâmbio entre os saberes populares e
acadêmicos é possível conceber uma proposta artístico-pedagógica complexa que valoriza a
composição natural tanto dos seres humanos como da condição planetária em que estamos
imersos.
As nossas ações e reflexões têm relacionado as dimensões de ensino, pesquisa e
extensão, linguagens artísticas diferentes, bem como docentes, discentes e comunidades. Para
a composição de todas essas relações temos proposto o campo do projeto “Arte e Comunidade”
como o espaço de costura de todas essas esferas. O projeto compõe parte das ações do curso de
teatro da Universidade do Amazonas (UEA) e por meio de uma série de experiências coletivas
vem apresentando avanços significativos na formação de professores-pesquisadores-artistas de
teatro.
Desse modo, o projeto “Arte e Comunidade” tem buscado garantir que os estudantes do
curso de teatro vivenciem em um momento previamente planejado de sua graduação, práticas
artísticas pautadas em metodologias de criação contemporâneas bem como reflexões teóricas
em um processo dialógico junto a comunidades de periferia em Manaus. Consideramos que o
intercâmbio, diálogo e encontro proporcionado entre universidades, docentes, discentes e
comunidades populares da Amazônia.
Com seis anos de existência o projeto “Arte e comunidade” tem possibilitado, a partir
de uma proposta pautada na pedagogia de projetos, contemplar múltiplas pedagogias. Entre elas
destaca-se a formação de espectadores, o exercício de experimentação da prática artística no
desenvolvimento de processos criativos colaborativos, o uso de espaços não convencionais e o
estudo da cultura popular como ponto de partida fundamental para o diálogo entre todas as
instâncias propostas pelo projeto. Muitos são os olhares e as dimensões trabalhadas em nossas
ações e reflexões, seria inviável esgotá-las nesse espaço. Dessa maneira, propomos pontuar
nesse momento parte dos conceitos que inspiram o desenvolvimento da nossa proposta.
No âmbito da contextualização, parte de nossas reflexões teóricas estão presentes as
provocações iniciais levantadas por BURKE (2010) e BAKHTIN (1987) ao que refere a
descoberta do povo e o interesse em investigar as suas tradições no período da Europa pré-
industrial. Nesse contexto compreendemos uma concepção que envolve a cultura popular
relacionada com a natureza em uma dimensão integrada com o todo complexo ao qual fazemos
parte. Nesse sentido encontramos elementos em diálogo com MORIN (2011) e LE BRETON
(2016), no que se relaciona a composição natural do ser humano e o seu potencial intrínseco de
relação com a natureza, o cosmo e o universo. Essa concepção nos orienta no sentido de propor
uma visão holística sobre a vida, a arte, a educação e as demais dimensões que se relacionam e
nos compõem como seres complexos, viventes de uma comunidade planetária também
complexa.
A proposta caminha no sentido de valorizar as matrizes que compõe a arte de viver em
comunhão com o cosmo e a natureza. Vivenciar experiências práticas e buscar compreender o
sistema de complexidades presentes na formação de coletivos em comunidades populares bem
como propor a ampliação dos conceitos no processo de composição de uma grande rede
formada por pessoas, comunidades e universidades. Para tanto, vamos abordar aqui parte dos
conceitos que inspiram a proposta artístico-pedagógica vivenciada no contexto do Projeto “Arte
e Comunidade”: a) A descoberta do povo em diálogo com Burke e Bakhtin, este tópico nos
possibilita traçar olhares e reflexões a respeito do interesse dos intelectuais pela cultura popular
no período da Europa pré-industrial e, assim, identificar elementos que ainda hoje nos parece
presentes no diálogo junto as classes populares. b) “Tradição”, nessa perspectiva sugerimos
olhares e escutas sensíveis as sociedades tradicionais, as concepções comunitárias e as
representações das tradições populares. O diálogo entre PAREYSON (2001) e OLIVEIRA
(2011) nos possibilita compreender a ideia de tradição como algo dinâmico que organicamente
propõe a relação entre o antigo e o novo em um processo de transformação continuado. No
campo que envolve este tópico. O conceito de Tradição NOGUEIRA (2007), FRENDA (2013)
E OLIVEIRA (2011) nos orientam no sentido de compreender conceitos que costuram os
aspectos comunitários (comunidade local, comunidade de interesse e suas relações) aos
conceitos de arte e vida bem como cultura popular. c) A comunidade e suas relações com a
cultura popular; NOGUEIRA (2007), FRENDA (2013) E OLIVEIRA (2011) nos orientam
no sentido de compreender conceitos que costuram os aspectos comunitários (comunidade
local, comunidade de interesse e suas relações) aos conceitos de arte e vida bem como cultura
popular. O diálogo com as autoras e as possíveis relações com nossas experiências abrem
caminhos para o desenvolvimento do próximo tópico. d) Arte e vida e as perspectivas de
resistência, neste espaço, propomos pontuar reflexões que contextualizam parte das
inquietações que nos instigam a intervir na realidade apresentada e dar continuidade ao trabalho
inspirado no movimento espiralado de reflexão-ação-reflexão proposto pela pesquisa-ação e,
por fim, e) provocações para se refletir, propomos apresentar alguns apontamentos que
compõem o alinhavar da nossa colcha de retalhos criada na costura desse trabalho.
a) A descoberta do povo em diálogo com Burke e Bakhtin

Na era da chamada “descoberta” do povo, o termo “cultura” tendia a referir-se a


arte, literatura e música, e não seria incorreto descrever os folcloristas do século XIX
como buscando equivalentes populares da música clássica, da arte acadêmica e assim
por diante. Hoje, contudo, seguindo o exemplo dos antropólogos, os historiadores e
outros usam o termo “cultura” muito mais amplamente, para referir-se a quase tudo
que pode ser aprendido em uma dada sociedade — como comer, beber, andar, falar,
silenciar e assim por diante. Em outras palavras, a história da cultura inclui agora
a história das ações ou noções subjacentes à vida cotidiana. O que se costumava
considerar garantido, óbvio, normal ou “senso comum” agora é visto como algo
que varia de sociedade a sociedade e muda de um século a outro, que é
“construído” socialmente e, portanto, requer explicação e interpretação social e
histórica. Essa nova história cultural é às vezes chamada história “sociocultural” para
distingui-la das histórias mais tradicionais da arte, da literatura e da música. (BURKE,
2010, p.16)

A descoberta do povo é algo discutido tanto por Burke como por Bakhtin e teve o seu
processo marcado por uma série de movimentos que tinha por objetivo reviver a cultura
tradicional mais antiga. Vale destacar que a denominação “povo” é um conceito bastante amplo
dado pela elite para denominar a não elite formada por pessoas diversas que apresentavam suas
especificidades, mas que, nesse contexto, eram incluídas nessa categoria comum: mulheres,
crianças, pastores, marinheiros, mendigos e demais grupos das classes menos favorecidas.
A aproximação entre o povo e a natureza é um aspecto que pode ser observado tanto em
Bakhtin como em Burke. Nesse sentido a nossa hipótese propõe relacionar tanto os povos
tradicionais, a cultura popular como dimensões que possibilitam a construção de espaços
humanos pautados nos valores de colaboração, afeto, solidariedade, abundancia, e integração
com a natureza. Aspectos que ainda hoje podem ser observados no cotidiano das comunidades.
Le Breton (2016) no livro a Antropologia do corpo também irá auxiliar nessa discussão e vamos
buscar relacionar parte de seu olhar no decorrer de nossas argumentações.
Segundo Burke (2010) no momento em que a cultura popular tradicional começa a
desaparecer, no final do século XVIII e início do século XIX, o povo (o folk) passa a ser um
tema de interesse aos intelectuais da Europa. Trata-se de um momento de abertura para novas
ideias e termos. Nesse sentido, a perspectiva de uma cultura popular, que os intelectuais
europeus acreditam estar descobrindo por volta de 1800, corre o risco de desaparecer e, por
isso, surge a preocupação em registrá-las.
Nesse contexto observa-se que a canção popular e a poesia estabelecem relações com a
natureza e o divino como aspectos integrados a vida. Dessa maneira, reconhecemos aspectos
que se aproximam as dimensões vivenciadas hoje pelos povos tradicionais amazônicos bem
como o nosso interesse em investigar a composição de uma pedagogia teatral que contemple os
aspectos de ancestralidade. Os acontecimentos tendem a se repetir ao longo da história em um
movimento espiralado que apresentam elementos comuns e outros diferenciados. Por isso é
importante refletir sobre os trajetos vivenciados anteriormente para que na atualidade possamos
trazer novas contribuições que não foram possíveis se realizar no passado. No atual contexto
de nossa pesquisa identificamos, entre outros, dois aspectos que vale aqui destacar: Em primeiro
lugar a relação com uma pedagogia que proponha trabalhar a contação de histórias, os
ensinamentos por meio da oralidade, a identificação com os mitos, saberes universais e a
valorização da ancestralidade presente nos povos tradicionais a considerar que ela apresenta
uma organicidade que oferece o despertar do sentido a arte, a educação e a vida como um todo.
Esses elementos trabalham a composição natural da dimensão que nos formam enquanto seres
humanos. Por outro lado, vale destacar o cuidado que devemos ter ao abordar os saberes que
envolvem a vida dos povos tradicionais para evitar recorremos aos mesmos erros do passado.
Nas entrelinhas, tanto nos relatos de Burke como de Bakhtin, observamos um discurso
no que diz respeito a relação proposta pelos intelectuais. O que é do povo pertence a todos, mas
o contrário não é verdadeiro. O que pertence a elite não é acessado pelo povo. Reconhecemos
a importância de discutir o conceito de cultura no sentido de compreender que não existe cultura
menor e cultura maior, existe cultura. E que a construção de uma nova sociedade pautada por
novos valores deve reconhecer tanto a inserção dos conhecimentos populares na academia como
compartilhar com o povo o acesso a produção acadêmica, possibilitar o acesso das classes
populares as universidades bem como viabilizar o intercâmbio de novos saberes.
No contexto de uma sociedade fragmentada, individualizada e desumanizada a busca
pelo estudo da cultura popular, das comunidades, dos povos tradicionais se faz cada vez mais
necessários. Nos parece pulsar uma necessidade desesperada em resgatar as migalhas que ainda
possam existir de uma humanidade dilacerada. O mergulho no campo de pesquisa sobre a
cultura popular e a dimensão dos aspectos de arte e vida e o saber da experiência mantidos pelos
povos tradicionais nos mobiliza e pode ser uma resposta a própria existência. Como diria Brecht
“Que tempos são esses em que precisamos explicar o óbvio?”
b) Tradição
Na flor da germinação poeticamente refletida nos propomos a valorizar os princípios
presentes nas tradições. Buscar um resgaste histórico e, assim, a compreensão dos fundamentos
universais que naturalmente alimentam a dimensão orgânica, complexa e originária dos
princípios que nos constituem como um todo integrado ao cosmo e a natureza. Acredita-se que
o momento é propicio para uma ação de distanciamento dos modelos atuais em que estamos
imersos para um mergulho que possibilite olhares e escutas sensíveis4 as sociedades
tradicionais, as concepções comunitárias e a representações das tradições populares.

Nas sociedades tradicionais, de composição holista, comunitária, nas quais o


indivíduo é indiscernível, o corpo não é o objeto de cisão, e o homem [a mulher] está
misturado [a] ao cosmos, à natureza, à comunidade. Nessas sociedades, as
representações do corpo são, de fato, representações do homem, da pessoa. A imagem
do corpo é uma imagem em si, alimentada das matérias-primas que compõe a
natureza, o cosmos, em uma espécie de indistinção. Essas concepções impõem o
sentimento de um parentesco, de uma participação ativa do homem [da mulher] na
totalidade do vivente, e, ademais, encontramos ainda traços ativos dessas
representações nas tradições populares de curandeirismo (LE BRETON, 2016, p.26).

Nos permitimos inserir a mulher no campo de discussão do autor: “Nas sociedades


tradicionais, de composição holista, comunitária, nas quais o indivíduo é indiscernível, o corpo
não é o objeto de cisão, e o homem/ a mulher está misturado/a ao cosmos, à natureza, à
comunidade. Nessas sociedades, as representações do corpo são, de fato, representações do
homem, da mulher, da pessoa”. As reflexões apresentadas impulsionam parte significativa
dos desdobramentos que propomos amadurecer. Principalmente no que se refere ao desejo de
considerar as dimensões que envolvem a preservação de coletivos complexos no âmbito das
tradições populares presentes em comunidades da Amazônia. Acredita-se que a composição
desses coletivos, de alguma maneira, manteve ao longo das gerações princípios que permitem
reconhecer organicamente a presença do todo complexo universal discutido tanto por Morin

4
No contexto da pesquisa-ação compreendemos a importância da perspectiva poética, libertadora e complexa que
orienta nossas ações e reflexões. "A escuta sensível apoia-se na empatia. O pesquisador deve saber sentir o
universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro para ‘compreender do interior’ [...] A escuta sensível reconhece
a aceitação incondicional do outro. Ela não julga, não mede, não compara.[...] É preciso sem dúvida saber apreciar
o ‘lugar ’diferencial de cada um no campo das relações sociais para poder escutar sua palavra ou sua capacidade
‘criadora’[...]. Antes de situar uma pessoa no seu ‘lugar’, comecemos por reconhecê-la em seu ser, na qualidade
de pessoa complexa dotada de uma liberdade e de uma imaginação criadora" (BARBIER, 2005, p.95-96).
(2012) como por Le Breton (2016). Contudo antes de mergulharmos nessa proposta, julgamos
pertinente realizar uma breve contextualização ao que se refere aspectos conceituais no âmbito
da tradição, da comunidade e da cultura popular. Para discutir a primeira dimensão proposta
compartilhamos a definição apresentada por PAREYSON:

O conceito de tradição é um testemunho vivo do fato de que as duas funções, do


inovar e do conservar, só podem ser exercidas conjuntamente já que continuar sem
inovar significa apenas copiar e repetir, e inovar sem continuar significa fantasiar no
vazio, sem fundamento; e além disso, exige criatividade e obediência ao mesmo
tempo, porque não pertencemos a uma tradição se não a temos em nós (PAREYSON,
2001, p.137).

Dessa maneira, compreendemos a ideia de tradição como algo dinâmico que


naturalmente estabelece o diálogo entre antigo e novo em um constante processo de
transformação. Nesse contexto identificamos a compreensão da importância de conjugar as
dimensões que envolvem conservação e inovação nas manifestações da cultura popular no
âmbito das comunidades. OLIVEIRA (2011) nos orienta no sentido de observar que no Brasil
até a metade do século XX parte significativa das manifestações culturais e artísticas
tradicionais se mantinham preservadas no sentido de geograficamente restrita à sua localidade.
Vivenciar as manifestações se consistia primordialmente em viver de maneira profunda a
experiência comunitária em um grupo sócio-cultural limitado a determinada região geográfica.
Nesse caso, o sentido da preservação se estabelecia no próprio contexto da comunidade, da
experiência, gerando as necessidades reais de expressão de determinado coletivo. A autora
acrescenta ainda que a partir do advento da democratização das tecnologias contemporâneas
nos diferentes âmbitos da vida social, é possível observar uma alteração na perspectiva das
fronteiras de modo a ampliar o alcance das informações. Assim, o espaço de convivência das
comunidades tem a possibilidade de se ampliar por todo o mundo. Essas transformações acabam
se inserindo no fazer tradicional, que alimenta, em grande parte, a vivência cotidiana
comunitária.
c) A comunidade e suas relações com a cultura popular
Ao considerar a diversidade de contextos que vivenciam os sujeitos na sociedade
contemporânea NOGUEIRA (2007) questiona a possibilidade de sobrevivência da comunidade
frente à industrialização. A autora propõe o diálogo entre Kershaw (1992), Willians (1965) e
Boal (1996) e provoca o entendimento que a unicidade aparente das comunidades são
simplificações, elas apresentam também diversidades e hierarquias fundamentadas em
diferentes campos (idade, posição social e outros). Contudo a comunidade apresenta pontos de
culminância ao que se refere as diferenças internas que a compõe e a perspectiva de mediação
que assume entre o indivíduo e a sociedade. Assim, toda a comunidade (rural ou urbana)
cumpriria a função estrutural e ideológica de mediar os indivíduos e a sociedade mais ampla.
Nessa perspectiva, NOGUEIRA (2007) propõe ainda a compreensão de duas concepções
referentes a comunidade: comunidade local e comunidade de interesse. Como o próprio nome
indica a comunidade local é composta por uma rede relacional formada por interações
próximas, delimitada por determinada área geográfica. Já a comunidade de interesse se
estabelece por meio de uma rede de associações caracterizadas pelo comprometimento relativo
a um interesse comum. No campo da prática acreditamos que também é possível conjugar essas
duas definições e agregar uma proposta orgânica que integra a perspectiva de uma comunidade
local e de interesse formando, assim, uma terceira possibilidade no campo conceitual.
A cultura popular se apresenta para nós como um campo que converge as diferentes
proposições no âmbito da vivência comunitária. Compreendemos que ela emerge junto à
comunidade local, permitindo a criação de comunidades de interesses e, possibilitando assim,
a interconexão entre comunidades locais e comunidades de interesse. Nesse sentido,
identificamos o universo da cultura popular como um campo amplo, porém privilegiado ao que
se refere a proposição de espaços de encontros, compartilhamentos, aprendizados e
intercâmbios. Entre diferentes aspectos, destacamos as manifestações populares como um dos
locais de resistência que contribuem significativamente para a composição de coletivos
complexos. OLIVEIRA (2011) contribui com as nossas reflexões ao identificar que as festas
populares (como São João, o Boi Bumbá, a Ciranda, o Cacetinho entre muitas outras já
contextualizadas ao universo Amazônico), surgem no formato de festa justamente por serem
espaços em que as pessoas da comunidade se reúnem para expressar tudo o que trazem consigo
(aspectos religiosos, sociais, afetivos, históricos entre outros) por meio da brincadeira coletiva,
da vivência e partilha comunitária.
d) Arte e vida e as perspectivas de resistência
A concepção de arte e vida se apresenta potencialmente integrada ao dia a dia dos povos
da floresta desafiando, de maneira singela e singular, o olhar reducionista veiculado pela elite
e, consequentemente, pelos meios de comunicação de massa. É possível, por exemplo, citar
como um dos pontos de referência o cotidiano dos povos indígenas. A complexidade presente
nesse amplo universo de significações não poderia ser brevemente descrita (nem amplamente
discutida ao considerar a perspectiva reducionista das letras pretas dispostas no fundo branco).
Contudo propomos apontar alguns indicadores iniciais com o intuito de contextualizar um
possível caminho que possa ser amadurecido em uma etapa posterior. As cosmologias indígenas
podem representar estruturas complexas que expressam concepções diversas a respeito da
origem de todas as coisas presentes no mundo e no universo. As variadas mitologias apresentam
perspectivas relacionais entre o universo, os seres humanos, a natureza e todo complexo ao qual
estamos inseridos. Essa perspectiva orgânica compõe também o campo ritualístico. A
comunidade indígena costuma se entregar para um longo tempo de preparação que se realiza
em diferentes etapas. Certamente cada etnia (Tikuna, Yanomami, Tukano entre uma infinidade
de muitas outras), cada comunidade, cada ritual apresenta suas especificidades que trazem
consigo toda a potência da tradição compartilhada de geração em geração. Contudo, é possível
observar que o conceito de arte e vida pode se relacionar em parte significativa da vivência no
ritual. As experiências estéticas integradas as manifestações artísticas diversas (como a pintura,
a dança, a música, as representações cênicas e outras) se relacionam ao processo de formação
dos sujeitos (compartilhamento dos saberes) tecendo uma trama natural que compõe o todo
complexo das ações presentes no processo do ritual e da arte de saber viver em comunhão com
o cosmo e a natureza.
Nesse mesmo campo de complexidades poéticas podemos observar também a
reverberação das diversas manifestações da cultura popular (quadrilha, ciranda, boi bumbá,
cacetinho entre muitas outras) que se multiplicam em composição uma grande teia que interliga
a capital ao interior do estado do Amazonas. Nas diferentes comunidades observa-se uma
potência intercultural que articula a presença indígena, africana, europeia e seus
desdobramentos por meio do olhar ribeirinho e caboclo. Nesse campo podemos destacar ainda
duas dimensões que nos interessam investigar: a presença do processo colaborativo e a prática
que interconecta diferentes áreas do conhecimento. O processo colaborativo se estabelece no
sentido dos coletivos se organizarem com divisões de funções claras que formam um complexo
estrutural sistematizado que possibilitam os festejos se realizarem harmonicamente. É possível
observar o espaço destinado as mestras e mestres, que geralmente puxam a voz principal para
o coro responder, as pessoas que tocam, outras que dançam, o grupo que propõe a interação
com o público, a equipe que faz a comida, entre várias outras funções que possibilitam que a
festa se realize como um todo complexo integrado. Na perspectiva da interconexão com
diferentes áreas do conhecimento podemos observar o diálogo entre diferentes linguagens
artísticas que se relacionam para que o festejo se realize. Para citar algumas podemos observar
a presença da música, da dança, das artes visuais e aspectos de teatralidade.
Contudo, para além do olhar romantizado, é importante pontuar que essas
manifestações têm se consolidado como campo de resistência continuada para garantir a
sobrevivência das tradições. A discussão é ampla e não pretendemos esgotá-la aqui. Com o
intuito de realizar uma breve introdução citamos alguns contrapontos:1) a manutenção de
coletivos organicamente organizados em uma era de fragmentação e individualização; 2) a
valorização da cultura regional/nacional em tempos de imposição ao consumo da cultura
estrangeira (do homem branco, heterossexual, europeu/estadunidense) ; 3) o entendimento de
arte, vida e educação como um todo potencialmente integrado em contraponto ao conhecimento
disciplinar disseminado cotidianamente; 4) a conservação da tradição popular em meio a
determinação de um gosto comum arbitrariamente definido pela cultura de massa e de consumo;
5) a preservação da natureza em contraponto ao violento desmatamento da floresta em nome
do desenvolvimento e ampliação dos grandes centros urbanos; 6) a multiplicação dos valores
éticos, formação de coletivos e práticas solidárias em meio a crescente valorização da
exploração de pessoas, individualismo e segregação; 7) a auto sustentação financeira em meio
a carência de investimentos e políticas públicas bem como o sucateamento do patrimônio
cultural e imaterial. A lista é enorme e poderíamos enumerar várias outras contradições.
Contudo, nesse universo bastante amplo de complexidades nos propomos, incialmente, destacar
uma das várias dimensões que compõem o aspecto de resistência cotidianamente presente nas
ações-reflexões-ações dos povos da floresta. Nesse sentido, Oliveira propõe contribuições ao
problematizar:
É importante desconstruirmos também a ideia tão difundida entre nós de que, na
formação da cultura brasileira, as matrizes africana, indígena e europeia, as quais
constituíram majoritariamente o Brasil, amalgamaram nossa diversidade
pacificamente, misturando-se e criando uma mestiçagem tolerante. Nossa cultura,
fortemente composta por essas três matrizes, é marcada também pela diferença de
espaço e de aceitação destinados a cada uma delas (OLIVEIRA, 2011, p.18)

A discussão proposta por Oliveira não é uma novidade. A reflexão sobre as práticas
propostas por meio do diálogo junto às comunidades, culturas e classes populares se apresentam
como uma busca incessante no sentido de intervir/resistir “a ordem não natural das coisas”.
Diversos intelectuais/pesquisadores/artistas/educadores, com suas especificidades, trilharam
caminhos que questionaram, das mais diferentes maneiras, o sistema de divisão de classes bem
como as fragmentações estabelecidas nos diferentes âmbitos da vida cotidiana. Entre eles estão
Oswald de Andrade, Hélio Oiticica, Ligia Clarck, Paulo Freire, Augusto Boal, entre muitos
outros. A investigação com o intuito de identificar traços de universalidade, relações mais
orgânicas no campo do todo complexo que envolve o conceito de arte e vida.
Vale abrir um rápido parênteses para destacar que essas práticas demonstram que a
academia e o campo da intelectualidade, geralmente, se surpreendem ao diagnosticar que tem
muito mais a aprender com o intercâmbio junto às comunidades do que imaginam no início do
processo de vivência/investigação. Não precisamos estabelecer territórios de disputa, pois
compreendemos que não existe cultura superior e nem cultura inferior, existe cultura
(argumentos contrários a essa dimensão podem, inclusive, respaldar movimentos que
consideramos radicalmente equivocados a exemplo do nazismo). Assim, como não existe
saberes superiores e nem inferiores, existe saberes!

e) e) Provocações para se refletir


A Proposta interdisciplinar, pautada na pedagogia de projetos, que o “Arte e
Comunidade” tem buscado viabilizar desafia-se no campo de integrar: disciplinas, linguagens
artísticas diferenciadas, ensino, pesquisa, extensão, universidades, docentes, discentes e
comunidade. E nessa costura, de diferentes complexidades, tem como parte do fio condutor as
reflexões propostas por MORIN (2011) e LE BRETON (2016) no sentido desafiador de buscar
a construção bem como a (re) integração de conhecimentos orgânicos e complexos em
contraponto a contextos tecnicistas de fragmentações, isolamentos e individualizações
fortemente presentes em todos os âmbitos da sociedade em que estamos imersos.
Reconhecemos que o caminho que ainda estar por vir é longo, repleto de
questionamentos e inquietações. Por outro lado, já conseguimos identificar muitos avanços.
Entre eles observamos que a presença da academia nas comunidades começa a provocar o
fortalecimento dos laços de solidariedade já presente nos diferentes grupos, a colaborar com o
processo de valorização da identidade regional/nacional e a agregar interventivamente no
processo de resistência vivenciado por esses coletivos. Por meio de nossa experiência junto às
comunidades em Manaus já podemos destacar que a presença da Universidade tem oferecido
contribuições no compartilhamento de informações, na ampliação do círculo de proteção em
situações de violência e vulnerabilidade social. Dessa maneira, propõe-se intervir no ciclo de
opressão imposto as classes sociais populares e assim, sugerir o intercâmbio de conhecimentos
acadêmicos e populares de modo a viabilizar a construção de saberes complexos sistematizados
pela troca de experiências que consideram o processo de integração dos sujeitos ao cosmo e a
natureza na composição do todo orgânico natural ao qual estamos inseridos. E, dessa maneira,
busca-se oferecer uma formação humana e significativa tanto para os nossos estudantes da
graduação como para as comunidades envolvidas nos processos.
A escolha pelo espaço tanto da comunidade como da cultura popular no contexto
amazônico se potencializa pelo fato de observar, em ambas as dimensões, a presença dos
conceitos anteriormente apresentados. E, assim, propor a busca pelo retorno de uma
composição mais holística, naturalmente presente na formação dos seres humanos. Nesse
contexto, nos provocamos a compreender e intervir nos desafios que situam o campo de
resistência em que a rede propõe atuar. Dessa maneira, agregamos o conceito de arte e vida por
considerar que ele integra, de maneira orgânica, todas proposições apresentadas no passo a
passo do alinhavar de nosso costurar. Possibilitando pontuar aspectos iniciais que compõem
parte da nossa grande colcha de retalhos, repleta de diversidade, desafios e complexidades.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. São Paulo, HUCITEC, 1987.
BARBIER, René. A pesquisa-ação. Brasília: Liber Livro, 2005.
BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna. São Paulo, Editora: Companhia das
Letras, 2010.
FRENDA, Perla. Arte em interação. São Paulo: IBEP, 2013.
LE BRETON, David. Antropologia do corpo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários a educação do futuro. São Paulo: Cortez:
Brasília, DF: Unesco, 2011.
NOGUEIRA, Marcia Pompeo. Tentando definir o teatro na comunidade. IV Reunião
Cientifica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE), 2007.
OLIVEIRA, Joana Abreu Pereira de. Módulo 26: Arte e Cultura Popular. Brasília, 2011.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Tradução: Maria Helena Nery Garcez São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
SOUZA, Ivete. Arte na Amazônia: conversas sobre o ensino da Região Norte. Boa Vista:
Editora da UFRR, 2016

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