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Resumo
O presente artigo propõe apresentar um breve olhar sobre o descobrimento do “povo” a partir de
provocações compartilhadas por Peter Burke e Mikhail Bakhtin bem como amadurecer os conceitos de
tradição, cultura popular, comunidade, arte e vida e suas interligações com o Projeto “Arte e
Comunidade” da Escola de Artes da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). A proposta tem
buscado oferecer uma prática artística para/com os discentes a partir de metodologias de criação
contemporâneas e, ainda, reflexões teóricas em processos dialógicos junto a comunidades de periferia
em Manaus. Assim, o objetivo do trabalho é buscar relações que contribuam para a construção de uma
rede de sensibilidades poéticas. Sugere-se que ao viabilizar o intercâmbio entre os saberes populares e
acadêmicos é possível conceber uma proposta artístico-pedagógica complexa que valoriza a composição
natural tanto dos seres humanos como da condição planetária em que estamos imersos.
Palavras-chave: Comunidade. Cultura Popular. Arte e Vida.
Introdução
O artigo propõe apresentar um breve olhar sobre o descobrimento do “povo” a partir de
provocações compartilhadas por Peter Burke e Mikhail Bakhtin bem como amadurecer os
conceitos de tradição, cultura popular, comunidade, arte e vida e suas interligações com o
Projeto “Arte e Comunidade” da Escola Superior de Artes e Turismo (ESAT) da Universidade
do Estado do Amazonas (UEA). A proposta tem buscado oferecer aos estudantes do curso de
teatro a experimentação da prática artística a partir de metodologias de criação contemporâneas
e, ainda, reflexões teóricas em processos dialógicos junto a comunidades de periferia em
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Professora da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Atriz e Diretora Teatral. É doutoranda do Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC-UFBA), na linha de Pesquisa:
Processos Educacionais em Artes Cênicas sob orientação da Professora Antônia Pereira Bezerra. Possui Mestrado
(2013) e Especialização (2011) em Educação, pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). É
graduada (2006) em Artes Cênicas pelo Departamento de Artes Cênicas da UnB. Integrou a equipe do Programa
Pró-Licenciatura em Teatro da UnB de 2008 a 2013. Atua principalmente nos seguintes eixos: Teatro,
Comunidade, Processos Criativos, Educação e Tecnologias Contemporâneas. E-mail:
amandaaguiarayres@gmail.com
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Estudante do 6º período de licenciatura em teatro, na Universidade do Estado do Amazonas – UEA/Escola
Superior de Artes e Turismo – ESAT. Atriz e Produtora do Grupo Arte e Cultura Allegriah. E-mail:
jackeline.monteiro@live.com
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Estudante do 6º período de licenciatura em teatro, na Universidade do Estado do Amazonas – UEA/Escola
Superior de Artes e Turismo – ESAT. Ator e diretor teatral. E-mail: leandrolopess013@gmail.com
Manaus. Dessa maneira, o processo de formação se estabelece para todos os sujeitos
envolvidos: educadores, estudantes de graduação e as comunidades atendidas. O
desenvolvimento de uma proposta dessa natureza assume o desafio, e todas as dificuldades, de
propor uma formação humana e complexa em contraponto a atual estrutura mecanicista,
fragmentada, rígida e burocrática que compõe, em diferentes âmbitos, o espaço em que estamos
situadas (os). Assim, o objetivo do trabalho é buscar relações que contribuam para a construção
de uma rede de sensibilidades poéticas pautada em valores humanos, solidários, colaborativos
e transformadores. Sugere-se que ao viabilizar o intercâmbio entre os saberes populares e
acadêmicos é possível conceber uma proposta artístico-pedagógica complexa que valoriza a
composição natural tanto dos seres humanos como da condição planetária em que estamos
imersos.
As nossas ações e reflexões têm relacionado as dimensões de ensino, pesquisa e
extensão, linguagens artísticas diferentes, bem como docentes, discentes e comunidades. Para
a composição de todas essas relações temos proposto o campo do projeto “Arte e Comunidade”
como o espaço de costura de todas essas esferas. O projeto compõe parte das ações do curso de
teatro da Universidade do Amazonas (UEA) e por meio de uma série de experiências coletivas
vem apresentando avanços significativos na formação de professores-pesquisadores-artistas de
teatro.
Desse modo, o projeto “Arte e Comunidade” tem buscado garantir que os estudantes do
curso de teatro vivenciem em um momento previamente planejado de sua graduação, práticas
artísticas pautadas em metodologias de criação contemporâneas bem como reflexões teóricas
em um processo dialógico junto a comunidades de periferia em Manaus. Consideramos que o
intercâmbio, diálogo e encontro proporcionado entre universidades, docentes, discentes e
comunidades populares da Amazônia.
Com seis anos de existência o projeto “Arte e comunidade” tem possibilitado, a partir
de uma proposta pautada na pedagogia de projetos, contemplar múltiplas pedagogias. Entre elas
destaca-se a formação de espectadores, o exercício de experimentação da prática artística no
desenvolvimento de processos criativos colaborativos, o uso de espaços não convencionais e o
estudo da cultura popular como ponto de partida fundamental para o diálogo entre todas as
instâncias propostas pelo projeto. Muitos são os olhares e as dimensões trabalhadas em nossas
ações e reflexões, seria inviável esgotá-las nesse espaço. Dessa maneira, propomos pontuar
nesse momento parte dos conceitos que inspiram o desenvolvimento da nossa proposta.
No âmbito da contextualização, parte de nossas reflexões teóricas estão presentes as
provocações iniciais levantadas por BURKE (2010) e BAKHTIN (1987) ao que refere a
descoberta do povo e o interesse em investigar as suas tradições no período da Europa pré-
industrial. Nesse contexto compreendemos uma concepção que envolve a cultura popular
relacionada com a natureza em uma dimensão integrada com o todo complexo ao qual fazemos
parte. Nesse sentido encontramos elementos em diálogo com MORIN (2011) e LE BRETON
(2016), no que se relaciona a composição natural do ser humano e o seu potencial intrínseco de
relação com a natureza, o cosmo e o universo. Essa concepção nos orienta no sentido de propor
uma visão holística sobre a vida, a arte, a educação e as demais dimensões que se relacionam e
nos compõem como seres complexos, viventes de uma comunidade planetária também
complexa.
A proposta caminha no sentido de valorizar as matrizes que compõe a arte de viver em
comunhão com o cosmo e a natureza. Vivenciar experiências práticas e buscar compreender o
sistema de complexidades presentes na formação de coletivos em comunidades populares bem
como propor a ampliação dos conceitos no processo de composição de uma grande rede
formada por pessoas, comunidades e universidades. Para tanto, vamos abordar aqui parte dos
conceitos que inspiram a proposta artístico-pedagógica vivenciada no contexto do Projeto “Arte
e Comunidade”: a) A descoberta do povo em diálogo com Burke e Bakhtin, este tópico nos
possibilita traçar olhares e reflexões a respeito do interesse dos intelectuais pela cultura popular
no período da Europa pré-industrial e, assim, identificar elementos que ainda hoje nos parece
presentes no diálogo junto as classes populares. b) “Tradição”, nessa perspectiva sugerimos
olhares e escutas sensíveis as sociedades tradicionais, as concepções comunitárias e as
representações das tradições populares. O diálogo entre PAREYSON (2001) e OLIVEIRA
(2011) nos possibilita compreender a ideia de tradição como algo dinâmico que organicamente
propõe a relação entre o antigo e o novo em um processo de transformação continuado. No
campo que envolve este tópico. O conceito de Tradição NOGUEIRA (2007), FRENDA (2013)
E OLIVEIRA (2011) nos orientam no sentido de compreender conceitos que costuram os
aspectos comunitários (comunidade local, comunidade de interesse e suas relações) aos
conceitos de arte e vida bem como cultura popular. c) A comunidade e suas relações com a
cultura popular; NOGUEIRA (2007), FRENDA (2013) E OLIVEIRA (2011) nos orientam
no sentido de compreender conceitos que costuram os aspectos comunitários (comunidade
local, comunidade de interesse e suas relações) aos conceitos de arte e vida bem como cultura
popular. O diálogo com as autoras e as possíveis relações com nossas experiências abrem
caminhos para o desenvolvimento do próximo tópico. d) Arte e vida e as perspectivas de
resistência, neste espaço, propomos pontuar reflexões que contextualizam parte das
inquietações que nos instigam a intervir na realidade apresentada e dar continuidade ao trabalho
inspirado no movimento espiralado de reflexão-ação-reflexão proposto pela pesquisa-ação e,
por fim, e) provocações para se refletir, propomos apresentar alguns apontamentos que
compõem o alinhavar da nossa colcha de retalhos criada na costura desse trabalho.
a) A descoberta do povo em diálogo com Burke e Bakhtin
A descoberta do povo é algo discutido tanto por Burke como por Bakhtin e teve o seu
processo marcado por uma série de movimentos que tinha por objetivo reviver a cultura
tradicional mais antiga. Vale destacar que a denominação “povo” é um conceito bastante amplo
dado pela elite para denominar a não elite formada por pessoas diversas que apresentavam suas
especificidades, mas que, nesse contexto, eram incluídas nessa categoria comum: mulheres,
crianças, pastores, marinheiros, mendigos e demais grupos das classes menos favorecidas.
A aproximação entre o povo e a natureza é um aspecto que pode ser observado tanto em
Bakhtin como em Burke. Nesse sentido a nossa hipótese propõe relacionar tanto os povos
tradicionais, a cultura popular como dimensões que possibilitam a construção de espaços
humanos pautados nos valores de colaboração, afeto, solidariedade, abundancia, e integração
com a natureza. Aspectos que ainda hoje podem ser observados no cotidiano das comunidades.
Le Breton (2016) no livro a Antropologia do corpo também irá auxiliar nessa discussão e vamos
buscar relacionar parte de seu olhar no decorrer de nossas argumentações.
Segundo Burke (2010) no momento em que a cultura popular tradicional começa a
desaparecer, no final do século XVIII e início do século XIX, o povo (o folk) passa a ser um
tema de interesse aos intelectuais da Europa. Trata-se de um momento de abertura para novas
ideias e termos. Nesse sentido, a perspectiva de uma cultura popular, que os intelectuais
europeus acreditam estar descobrindo por volta de 1800, corre o risco de desaparecer e, por
isso, surge a preocupação em registrá-las.
Nesse contexto observa-se que a canção popular e a poesia estabelecem relações com a
natureza e o divino como aspectos integrados a vida. Dessa maneira, reconhecemos aspectos
que se aproximam as dimensões vivenciadas hoje pelos povos tradicionais amazônicos bem
como o nosso interesse em investigar a composição de uma pedagogia teatral que contemple os
aspectos de ancestralidade. Os acontecimentos tendem a se repetir ao longo da história em um
movimento espiralado que apresentam elementos comuns e outros diferenciados. Por isso é
importante refletir sobre os trajetos vivenciados anteriormente para que na atualidade possamos
trazer novas contribuições que não foram possíveis se realizar no passado. No atual contexto
de nossa pesquisa identificamos, entre outros, dois aspectos que vale aqui destacar: Em primeiro
lugar a relação com uma pedagogia que proponha trabalhar a contação de histórias, os
ensinamentos por meio da oralidade, a identificação com os mitos, saberes universais e a
valorização da ancestralidade presente nos povos tradicionais a considerar que ela apresenta
uma organicidade que oferece o despertar do sentido a arte, a educação e a vida como um todo.
Esses elementos trabalham a composição natural da dimensão que nos formam enquanto seres
humanos. Por outro lado, vale destacar o cuidado que devemos ter ao abordar os saberes que
envolvem a vida dos povos tradicionais para evitar recorremos aos mesmos erros do passado.
Nas entrelinhas, tanto nos relatos de Burke como de Bakhtin, observamos um discurso
no que diz respeito a relação proposta pelos intelectuais. O que é do povo pertence a todos, mas
o contrário não é verdadeiro. O que pertence a elite não é acessado pelo povo. Reconhecemos
a importância de discutir o conceito de cultura no sentido de compreender que não existe cultura
menor e cultura maior, existe cultura. E que a construção de uma nova sociedade pautada por
novos valores deve reconhecer tanto a inserção dos conhecimentos populares na academia como
compartilhar com o povo o acesso a produção acadêmica, possibilitar o acesso das classes
populares as universidades bem como viabilizar o intercâmbio de novos saberes.
No contexto de uma sociedade fragmentada, individualizada e desumanizada a busca
pelo estudo da cultura popular, das comunidades, dos povos tradicionais se faz cada vez mais
necessários. Nos parece pulsar uma necessidade desesperada em resgatar as migalhas que ainda
possam existir de uma humanidade dilacerada. O mergulho no campo de pesquisa sobre a
cultura popular e a dimensão dos aspectos de arte e vida e o saber da experiência mantidos pelos
povos tradicionais nos mobiliza e pode ser uma resposta a própria existência. Como diria Brecht
“Que tempos são esses em que precisamos explicar o óbvio?”
b) Tradição
Na flor da germinação poeticamente refletida nos propomos a valorizar os princípios
presentes nas tradições. Buscar um resgaste histórico e, assim, a compreensão dos fundamentos
universais que naturalmente alimentam a dimensão orgânica, complexa e originária dos
princípios que nos constituem como um todo integrado ao cosmo e a natureza. Acredita-se que
o momento é propicio para uma ação de distanciamento dos modelos atuais em que estamos
imersos para um mergulho que possibilite olhares e escutas sensíveis4 as sociedades
tradicionais, as concepções comunitárias e a representações das tradições populares.
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No contexto da pesquisa-ação compreendemos a importância da perspectiva poética, libertadora e complexa que
orienta nossas ações e reflexões. "A escuta sensível apoia-se na empatia. O pesquisador deve saber sentir o
universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro para ‘compreender do interior’ [...] A escuta sensível reconhece
a aceitação incondicional do outro. Ela não julga, não mede, não compara.[...] É preciso sem dúvida saber apreciar
o ‘lugar ’diferencial de cada um no campo das relações sociais para poder escutar sua palavra ou sua capacidade
‘criadora’[...]. Antes de situar uma pessoa no seu ‘lugar’, comecemos por reconhecê-la em seu ser, na qualidade
de pessoa complexa dotada de uma liberdade e de uma imaginação criadora" (BARBIER, 2005, p.95-96).
(2012) como por Le Breton (2016). Contudo antes de mergulharmos nessa proposta, julgamos
pertinente realizar uma breve contextualização ao que se refere aspectos conceituais no âmbito
da tradição, da comunidade e da cultura popular. Para discutir a primeira dimensão proposta
compartilhamos a definição apresentada por PAREYSON:
A discussão proposta por Oliveira não é uma novidade. A reflexão sobre as práticas
propostas por meio do diálogo junto às comunidades, culturas e classes populares se apresentam
como uma busca incessante no sentido de intervir/resistir “a ordem não natural das coisas”.
Diversos intelectuais/pesquisadores/artistas/educadores, com suas especificidades, trilharam
caminhos que questionaram, das mais diferentes maneiras, o sistema de divisão de classes bem
como as fragmentações estabelecidas nos diferentes âmbitos da vida cotidiana. Entre eles estão
Oswald de Andrade, Hélio Oiticica, Ligia Clarck, Paulo Freire, Augusto Boal, entre muitos
outros. A investigação com o intuito de identificar traços de universalidade, relações mais
orgânicas no campo do todo complexo que envolve o conceito de arte e vida.
Vale abrir um rápido parênteses para destacar que essas práticas demonstram que a
academia e o campo da intelectualidade, geralmente, se surpreendem ao diagnosticar que tem
muito mais a aprender com o intercâmbio junto às comunidades do que imaginam no início do
processo de vivência/investigação. Não precisamos estabelecer territórios de disputa, pois
compreendemos que não existe cultura superior e nem cultura inferior, existe cultura
(argumentos contrários a essa dimensão podem, inclusive, respaldar movimentos que
consideramos radicalmente equivocados a exemplo do nazismo). Assim, como não existe
saberes superiores e nem inferiores, existe saberes!
REFERÊNCIAS