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PauloBezerra

DOSTOIÉVSKI: "BOBÓK*
Tradução e análise do conto

editora 34
EDITORA 4

Editora34 Lrda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
SioPaulo- SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com he

Copvright O Editora 34 Ltda., 2005


Dostozctski: "Bobók" ©Paulo Bezerra, 2005

AFOTOCOrIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO ÉILEGAL, E CONFIGURA UMA


ATROPRIAÇÃO INDEVTDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

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Apartir de desenbo abico-de-pena de Oswaldo Goeldi
autoriada sua reprodução pela Associação Artistica Cultural
Oswaldo Goeldi - wuw.oswaldogoeldi.com.br)
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:
Bracher o Malta Produção Gráfica
Revisao:
Cide Piquet
Marna Kater
lara Roln1k

1 Ediçao- 2005,

CIP Brasil. Catalogação-)a-Fonte


Sndicato Naional dos Editores de
Livros, RJ, Bras1l)
B240 Bczetta, Paulo
Dostoievsk1: Bobok". Traducão e
LOnto /Paulo Bezera. Sâo Paulo: anál1se do
|76p Ed. 34, 2005.
ISBN 85 7326-3326
1
literaa. 3 Dostoev ski, Iodor,
itealura russa. I. I821I881. 2. Anal1se
itulo
DD- 801
DOSTOIÉVSKI: BOBÓK"

Nota introdutória 11

"Bobók" 13

Ouniverso de "Bobók" G4- 163


1. Noslabirintos da tradução 41
2. "Bobók": históriae polêmica 49
3. Dialogismo e autoria 67
4. No reinoda menipéia edo fantástico 109

Bibliografia 165

Sobre Paulo Bezerra 170


Sobre Fiódor Dostoiévski 171
IPÉIA E DO FANTÁSTICO

Bakhtin define "Bobók" como "uma das mais grandio


sas menipéias de toda a literatura universal" (Bakhtin, 1981,
P. 118) e faz uma breve análise do conto centrada nas pe
culiaridades do gênerg, além de situá-lo entre as obras que
? considera formadoras dessa tradição narrativa. Neste capítu 7
lo não procederemos a uma análise de Bobók" da perspec
tiva exclusiva da sátira menipéia; queremos estabelecer rela
çaoentre ele e passagens de obras congêneres, como Diálogo
dos mortos (séc. II d.C.), de Luciano de Samósata, e Apoco
loguintose dodivino Cláudio, de Sêneca (séc. Id.C.), típicas
Z
sat1ras menipéias; ououtras que apresentam grande atinidade
e "A dama de
Com ogenero, como "O fazedor de caixões"
espadas",12 de Púchkin, e "O morto vivo" (ivói mertviétz),
de
de V. Odóievski.Não visamos a um estudo comparado
daqueles
"Bobók" com asreferidas obras, mas tão-somente
uma perspectiva de
traços que as caracterizam dentro de
elementos do fantástico
genero, entre os quais enfatizamos
tipo de análise./A estes so
Como imprescindíveis ao nosso luz da
menipeia, que, à
mamos algumas categorias da sátira mostram como Dos
cOncretude de cada exemplo arrolado,
aplica àexauståoem
toievski retom ofiodessa tradiço e a
fantásticO sÓ nos in
Bobók". Além do mais, a menipéiae o
para ampliar
teressamn na medida emque podenn contribuir

Ambos publicados enm A duma deespudas, Sao Paulo, Editora 34,


1
1999, com traduço de Boris Schnaiderman.

109
Dostoiévski: "Bobók"
a análise de "Bobók" e mostrar como essa
obra
atualidade e se posiciona diante dela. Não
cabe aqui
discute
sua
vantamento histórico do gener0, de suas um le-
origens, etc., para o
que remetemnos ao capítulo IV de Problemas da poética de
Dostoiévskie ao capítulo "Epos e romance" de
literaturae estética, ambos de Bakhtin. Ouestões de
Vejamos, em termos breves, o que
menipéia eque papel lhe coube na caracteriza daa sátira
como gênerg. consolidação prosa
A sátira menipéia
consolida a tendência de
aproximar a
narração de seu objeto, os tempos da
ciado, eliminando qualquer tipo de enunciação e do enun
componentes douniverso representado, distância entre os pólos
c¡mento radical docentro operando um deslo
axiológico-temporal da orientação
artística (Bakhtin, 1975, p. 468) e
do espaço e do tempo, que subvertendo a hierarquia
passam a ser livres de qualquer
injunção de gênero. Desaparece qualquer resquício de barrei
ra hierárquica, social, etária,
Cional, lingüística, etc.; entre sexual, religiosa, ideológica, na
os participantes do
há nenhuma espécie de diálogo não
medo, resultando daí uma reverência, regra de decoro, etiqueta,
sob a qual as coisas são ditas completa liberdade de expressão
com naturalidade e o riso de
sempenha um papel mais grosseiro do que desempenhara atë
então. A ausência de formas de
ralmente de pernas para o ar, criareverência põe o mundo lite
ainmpresso de um
soluto ma ordem universal das Caos a
de seriedade nO coisas. Desaparece a sensação
comportamento
relação com omundo, das personagens e em Sud
tudo éalvo de rebaixamento grosser
TO e nversoes ousadas, nas
quais os momentos elevados do
nundo aparecemasayessas, com uma faceta oposta aqueld
em que antes se
mundo representa manifestavam, C caos que tOma conta do
um questionamento do status qu0, o pre-
sente está em
mais cOMO processO0 de foormaçäO ee o passado não serve
modelo. riso lproxma e dá o tom a tudo, sua
ambivalência vislumbra WIma lOva Perspectiva de constru-
mut
Paulo Bezerra
cão do universo, assumindo, em casos
cões utópicas. O riso familiariza tudo e particulares, conota
não deixa mais lugar
Dara aimagem elevada do passado absoluto, todo o
da representaçao se constitui numa zona de contato espaço
familiar
entre o mais sagrado e o mais profano, o mais alto eo
mais
baixo, e nessa zona tudo pode ser fisicamente tocado. Como
predomina a familiarização, como tudo édado no contato
imediato, não háqualquer restrição espácio-temporal para o
enredo, que se desloca com total liberdade de fantasia do céu
erra, destaao inferno, do presente ao passado, etc. O rei
hode além-túmulo éo espaço de disputas e do
congraçamen
fo universal, e aí os protagonistas do passado absoluto, dos
tempos lendário e histórico e "os contemporâneos vivos se
encontram de maneira familiar para debates e atécontendas'
(Bakhtin, 1975, p. 4659). Surge, assim, um modelo utopico de
mundo ideal, onde cada indivíduo édono de si mesmoe da
sua palavra, que flui livre de qualquer injunção, uma vez que
não háleis para reger o comportamento dos homens (Bezer
ra, 1989, pp. 64-86).
Acaracterização geral da sátira menipéia que acabamos
de apresentar refere-se àobra de Luciano de Samósata, par
ticularmente ao Diálogo dos mortos, mas muitos desses ele
mentos permaneceram no gênero ou oram reelaborados.
Ao apresentar a arquitetônica da menipeia, Bakhtin a
Subdiv1de em catorze categorias que, mesmo mantendo cada
uma suas peculiaridades, apresentam entre si vários elemen
tos comuns que freqüentemente se repetem, ainda que sem
prejuízo para as referidas peculiaridades. São essas cate
e
gorias que nos permitem ver o gênero em seu dinamismo
funcionamento.
E muito forte na menipéia o peso especítico doelemen
gênero. Em
to comico, que oscila segundo avariedade do
LLuciano de Samósata, particularnmente no Dialogo dos mor
imenso, pois o elemen
tOS, esse peso específicoérealmente
ocupação
tO comico começa coma proposiçaodo riso cOmo

111
Dostoiévski: "Bobók"
prnpalnoreino Plutäo. Diógenes dede
de
Sinope manda
Polux oscgunte recado aa Menipo no Liceu, onde ele ri por
dos
tilosofos quc ali debatem: pede que ele, Menipo, Siga
o Hades, pois lá encontrará mais motivos para rir do queparana
Terra, onde dúvidas como "Quem sabe o que vai acontecer
depojs da morte?" impedem de riràvontade. Lá, no Hades
cle poderá rir sempre, principalmente aover OS ricos, sátra
pas e tiranos rebaixados a ponto de só serem reconhecidos
por seus gemidos. No diálogo XII, Diógenes ri de Alexan-
dre, que em 324 ordenara que os gregos o reconhecessem
ilho Zeus e nem depois de morto abandona aaidéia de
sua
apoteose, tentando transtormar-se em Amon ou Osíris (Il
ano, 1987, pp. 154-5). Este tema já fora utilizado por Sé
necacomo núcleo do enredo da sátira Apocoloquintose do
divino Cláudio.
Aqui o reino dos mortos éo lugar ideal para o riso, pois
está livre das leis que regem a vida terrena, não existe a preo
cupação com a pÓS-Morte nem com o desconhecido, e todos
estãofora doalcance das restrições do mundo dos vivos (das
"cordas podres" de Kliniêvitch em "Bobók"), experimentam
uma vida "nova" (as outras bases" de Kliniêvitçh) em con
dições excepcionais. Por isso podem rir dos ricos, sátrapas
tiranos, que, quando vivos, faziam suas leis e tolhiam o ho
mem, mas aqui, nesse mundo invertido, sentem-se tão "im
potentes e deploráveis" que sópodem servir de objeto de riso.
Na Apocoloquintose do divino Cláudio, de Sêneca, 0
elemento cômico jáse instala no título da obracomo paro
dia da apoteose dos imperadores, isto é, de sua
çaoem deuses depois de mortos. transforma
morto, não se transforma em deusCláudio, porém, uma vezdo
Olimpo edevolvido ao Hades, onde Éaco mas acaba expulso
berto Menandro para que taça dele um o entregainstruçäo
a seu
dos processos. esbirro na
Cláudio sofre um grande rebaixamento cÙ-
mico: começa com a pretenso a deus e
acaba
serviçal de
ex-escravo, transformado en bobo ou abóbora, símbolousda
112
Paulo Bezerra
ie na cultura latina. Esse final cômico é
antecipado pelo
próprio narrador em sua linguagem irreverente, quando, em
um quase dialogo com oleitor, afirma "se alguém me per
guntar de onde tirei estas notícias tão exatas, em primeiro
lugar, se não tiver vontade, não responderei",e aplica a Cláu
Cláu-
dio o provérbio: *Um homem nasce ou rei ou idiota" (Sêne
a. 1980, p. 251). Portanto, o Cláudio que tanto aterroriza
ra em vida e fora tão zeloso na aplicação das leis para coa
gir os homens, morto se torna impotente e deplorável, mero
objeto do riso.
Em Bobók", o elemento cômico ésugerido na abertu
rapor Semión Ardalónovitch, mas só ganha força a partir do
momento em que o narrador chega ao cemitério, introdu
zindo a história do enterro em umn estilo de quase piada: M
"Saípara me divertir, acabei num enterro [..] Com uns quin
ze mortos fui logo dando de cara". Portanto, divertimentoe
mortos numa contigüidade de cunho carnavalesco, forman- (
do o par vida-morte. Bakhtin lembra ovalor simbólico da
combinação ambivalente morte-riso-(alegria)-banquete na
assagem por ele grifada: Notei muita alegria e animação
sincera. Comiuns salgadinbos e tomei um trago" (Bakhtin,
1981, pp. 119-20).Mas écom a inserço das falas dos mor
tos que o conto retoma efetivamente o fio da tradição do ci
clodos diálogos no reinodos mnortos. Aliás, após uma des
crição do enterro, do cemitério e de algumas digressões um
tanto despropositadas, feitas pelo narrador - *Por que os
Imortos ficam tão pesados no caixão?",ele se senta numa
Sepultura e cai em reflexões, passando sintomaticamente de
fosse
"uma exposição de Moscou" àadmiração, "como se dú
é, sem
um tema geral", e conclui: Admirar-se de tudo
tolice bem
VIda, uma tolice |...] nãose admirar de nada é uma Não.
maior". Estranha essa digress£osobre a admiraç£o?
ligado ao ge
Ela éinteriormente motivada por um elemento
citada tem du
nero dos diálogos dos mortos. A passagem
que equi
Plo sentido: primeiro ode polêmica com Paniútin,
113
Dostoiévski: "Bobók"
folko
narara Dostoiévski ao louco de Gogol e assinava seus
artigosde jornal como NI Admirari; segundo, re
tins e gue troes
diretamente a um tolhetim do mesmo Paniútin,
em Petersbureoeos
das visitas ao cemitério de Smolienski
meca descrevendo orgias alcoólicas nos túmulos. Um folheti.
nista ocioso observa diversas cenas e ouve por acaso conver
sas de bêbados, afasta-se e resolve descansar: "estirei-me an
sol, com um cigarro entre os dentes, pedindo mentalmente
desculpas aos mortos pelo incômodo". Mas esse pedido men
tal éouvido por um morto, que desculpa o folhetinista e põe
se a conversar com ele:

« Não háde quê; no entanto, fazei O peque


no esforço de deslocar-se para a direita disse-me
alguém.
-Com licença,pergunto, com quem tenho a
honra de conversar?
-Um dia fuicontínuo de palácio.
-E agora, posso ter o atrevimento de pergun
tar?
- Agora,eh-eh-eh, não faço parte do rol dos
Vivos.
Quer dizer então que encerrastes inteira
mente a existência terrestre?
Inteiramente, graças a Deus.
-E não lamentais o nosso vale de lágrimas?
-Nem um pouco. E verdade que aqui éúmi
do eapertado, mas minhas cinzas não têm motivo
para temer resfriado.
Entretanto, a julgar por vossa conversa, e
e se supor que vossa língua se encontre em estado
normal.
Estais enganado. Tive a contrariedade de
perder a lingua ainda em vida.
- De que jeito?

114
Paulo Bezerra
Cortaram-na, porque em estado de embria
guez cu chameium conde de cavalariço." (Paniú
tinapud Tunimánov, 1976, p. 161)
Observe-se que a alusão à admiraço anteriormente re
ferida éa última fala do narrador de Bobók" antes de co
mecar a dormitar e ouvir as vozes dos mortos, o que nos
per
mite supor que ela visa a esse folhetim de Paniútin com uma
intenção estruturalmente motivada pela idéia da inserção
imediata do diálogo dos mortos. Portanto, estamos diante do
tema do reino dos mortos, onde se abre o espaço para o
riso
que exerce a função de elemento deflagrador da verdade (cf.
as palavras de Kliniêvitch: "com o intuito de rir, aqui não va
mos mentir") graças àausência das leis que regem a vida ter
rena, e todos estão fora do alcance das restrições do mundo
dos vivos, isto é, das "cordas podres" aludidas por Kliniê
Vitch, eexperimentam o que lhes resta de vida "em outras
bases", eliminando inteiramente as barreiras hierárquicas,
etárias e sociais que separam os homens em vida, suprimin- d
do todas as formas de reverênciae familiarizando a comuni
cação, criando um discurso absolutamente livre. Cabe ob
servar que em Bobók" mantêm-se as formalidades do rela
CIonamento entre as pessoas na sociedade hierarquicamente
estruturada; contudo, tais formalidades são meramente su
perficiais e vão-se relativizando até serem inteiramente neu
tralizadas para se tornarem mero simulacro de relacionamen
to hierárquico no tratamentoe nas atitudes dogeneral Pier
VOiedov, que tenta preservá-las e termina a história comica
mente reduzido também a simulacro do antigo general.
Voltando ao aspecto cômico na menipéia, verificamos
que a comicidade de Alexandre em Luciano e de Cláudio em
Sênecadeve-se àcontradição entre a pretensao à apoteoses
Suaimpossibilidade real. Em "Bobók", essa mesma questão
oCorre com a pretensão de Piervoiêdov a manter sua digni
dade de general noreino dos mortos esacar da espada para

115
Dostoiévski: "Bobók"
defende-la, mas nesse mundo a d1gnidade écoisa absoluta
meute descartada, sua simples ideia soa inoportuna epor isso
ninguém lhe dá omenor crédito e só0 narrador o ouve Écô
mica egrotesca a sanhaerótica de Avdótia Ignátievna come
écômica egrotesca a sensualidade do conselheiro Tara seik
vitch:é profundamentecômica a cena em que Lebieziátnikoy
quer inteirar-se da saúde de Tarassiêvitch, etc. Trata-se de
elementos dogênero que Dostoiévskimanteve essencialmen
te intactos,o que sófoi possível porque a ação se desenvolve
no reino subterrâneo doS mortos.
Aparticularidade mais importante da menipéia como
gênero, segundo Bakhtin, consiste na motivação interior da
fantasia mais audaciosa e da aventura, tudo isso articulado
com o objetivo de criar situações extraordinárias para pro
vocar eexperimentar uma idéia filosófica, uma palavra, uma
verdade (Bakhtin, 1981, p. 98). Neste caso, a fantasia não
serve à materializacão positiva da verdade, mas tão-somen
te àsua exnerimentação, em função da qual o protagonis 19
ta élevado a passar por situações extraordinárias ora no
Céu, ora no Olimpo, ora no inferno, ora em países e lugares
fantásticos.
Em Luciano, essa situação extraordinária já ocorre pela
simplescondição de se realizarem os diálogos no reino dos
mortos, onde a idéia filo_ófica, a palavra ou averdade são ex
perimentadas a todo instante. Na sátira de LucianoOZeus
trágico, Zeus tem plena consciência do perigo "mortal" que
paira sobre clee todo oresto do Olimpo, perigo este repre
sentaó pelo ateísmo Crescente e, principalmente, pelo mate
rialismo filosófico de Epicuro e seus seguidores. Zeus assiste
Por acaso, disfarçado no meio da multidão, aum debate em
praça püblica entre o epicurista Dâmido e o estóico Timocles,
que termina com a vitória do epicurista. O povo dá preteren
Cia ao epicurista e atéo próprio Zeus reconhece que ele ven
ceu o debate, ou seja, venceuo debate quem considerou inu
teis os deuses enegou-lhes a existência,
experimentandoere
116
Paulo Bezerra
|eitando a ideia
nciano, 1987). filosófico-religiosa
da
Na Apocoloquintose, existência
dos deuses
a
verdade obedece a mais de um plano, e experimentação da
Anis. Na vida real, Cláudio tinha a maniavamos referir apenas
de
leis, e por isso seus bajuladores criaram para administrar as
ele aimagem do
imperador justo e humano. No Olimpo, porém, Augusto usa
da palavra e desmascara os crimes
cometidos por
«Fste sujeito ... depois de ter ficado tantos anos Cláudio:
àsombra
do meu nome, agradeceu-me desta maneira:
tar duas Júlias, minhas sobrinhas, uma por mandando
ma
ferro, outra por
fome: depois um sobrinho,Lúcio Silano [...]Dize-me, ódivo
Cláudio, por que todos os que mandaste matar, os condenas
te sem processo nem defesa?" (Sêneca, 1980, p. 257). Logo,
verdade acalentada por Cláudio e seus bajuladores é ex
perimentada e desmascarada. O outro plano éo da própria
apoteose ou deificação de heróis e imperadores, que estava na
tradição greco-romana não escrita mas que os imperadores
usavam a seu bel-prazer,pressionando o Senado para deifi
car outras pessoas, como o fez Cláudio no ano 42, mandan
do deificar Lívia (Júlia Augusta),ex-mulher de Augusto. Ja
nofaz uso da palavra, fala da majestade dos deuses e afirma
que não se devia dar essa honra a um sujeito qualquer, e diz,
dirigindo-se a Cláudio: "nostempos idos [..]era grande hon
ra ser feito deus: agora foi tudo reduzido por vós a uma pa
Ihaçada" (Sêneca, 1980, p. 256). Conseqüentemente, a idéia
da apoteose, acalentada por todos os imperadores romanos
esde Augusto,é experimentada na pessoa de Cláudio e tam
bém desmascarada como farsa, Apesar de ser considerada es
Crita contra Cláudio e a favor de Nero, a Apocoloquintose
acaba parodiando e ridicularizando a verdade-sonho de to
dos esses imperadores.
Em "Bobók",a experimentação da idéia filosófica, da
palavra e da verdade assume características bastante amplas,
aDrindo uma interlocucão com outros textos do mesmo au
alem dos li
tor e de outros autores e levando a questão para

117
Dostoiévski: "Bobók"
ites do próprio texto, a comneçar pela idéja da relação
en
tre vida e morte. Ofilósofo da casa, Platon Nikoláievitch,
desenvolve a idéia segun
autor de vários livros de filosofia,
do a qual quando eles, isto é, os atuais habitantes desse rei
rej-
no dos mortos, ainda estavam vivos, ulgavam "erroneamen.
como se
te a morte como morte". AlL naquele reino, "é
Corpo tornasse a viver", "osrestos)de Vida seconcentramL I
continua coms
em algum ponto d¡ conscIÇncia ..] a vida
que por inércia". Bakhtin assoCia essa discussão aos diálogos
socráticos, gênero precursor da menipéia, e verificamos gue
aconcepção alidesenvolvida é muito próxima da gue Platäo
desenvolve no Fédon.15 Ao discutir a questão da morte como
libertação do pensamento, Sócrates chega a dizer que

"por todo o tempo em que durar nossa vida, estare


mos mais próximos do saber [...]quando nos afas
tarmos o mais possível da sociedade em união com
ocorpo." (Platão, 1972, p. 74)

Aplicada ao ambiente de "Bobók", essa passagem pode


ser assim resumida: enquanto julgarmos "erroneamente a
morte comomorte", segundo Platon Nikoláievitch, será im
possível atingir esse saber socrático. Ecomo Sócrates está in
teressado no saber como forma de chegar àverdade, tem ele

"a firme convicço de que depois, da morte há qual


quer coisa qualquer coisa de resto ,.." (Platão,
1972, p. 70);

13
Devemos essa associação das concepções filosóficas de Platon
Nikoláievitch com as do Fédon de Platão aos autores das excelentes no
tas da edição russa a "Bobók" (Arkhípova-Bogdánova et al., 1980, PP.
405-6). Nós apenas ampliamos a discussio, inserindo passagens do als
curso de Sócrates que consideramos indispensáveis ao enriquecimento d
compreensão de "Bobók".

118
canpien Paulo Bezerra
melhor, há `o_kestos, de vida", como quer Platon Niko
ieitch. Sócrates, pOrem, usa de critério axiológico e deli
Oacesso a esSes restoS de vida, argumentando que "uma
otioa tradição diz Ser muit0 melhor para os bons do
raoS maus". que pa
Sócrates argumenta que, estando a alma livre da prisão
Ja corpo, pode
"cÍncentrar-se em si mesma e sobre si mes
ma (ou "na consciência»,"em algum ponto'
nto" desta, segun
A Platon Nikoláievitch), e acrescenta:

"[...]se tal éo seu estado, épara o que se Ihe


assemelha que ela se dirige, para oque éinvjsível,
para o que édivino, imortal e sábio [...] onde diva
gação, irracionalidade, terrores, amores tirânicos e
todos os outros mnales da condição humana ceSsam
de lhe estar ligados, onde, como se diz dos que re
ceberam ainiciação, ela passa à companbia dos
Deuses o resto de seu tempo." (Platão, 1972, p. 92 ]
grifonosso).

Essa concepção dos iniciados, dos bons, se aplicada in


tegralmente, não daria oportunidade aos sensuais como Kli
niêvitch, Avdótia lgnátievna, Tarassiêvitch, Lebieziátnikov e
a "canalhinha" Kátich, pois estes têm a alma poluída por
compartilhar da existência do corpo que ela "cuidava e ama
va".;epor isso a trazia "enfeitiçada por seus desejos e pra
Zeres"; e por ter sido liberada em estado de impureza, essa
alma estádestinada a rondar "os monumentos tunerários e
as sepulturas",ao redor dos quais "foram vistos certos espec
tros sombrios de almas", porque todas essas almas são

"as dos maus, que se vêem obrigados a vagucar


sua
nesses lugares, que recebem assim o castigo de
má." (Platão,
maneira de viver anterior, que foi
1972, p. 93)
119
Dostoiévski: "Bobók"
Em essência, há semelhança entre as reflexões do Só-
Crates de Fedon e as de Platon Nikoláievitch; Sócrates fala
do resto da existência das almas puras, isto e, sua perspecti.
va de sobrevivência éindefinida, ao passO que Platon Niko-
lájevitch fala de "dois a três meses" e"... às vezes até meis
.".
ano..." Cabe, porém, mais uma observação: Platon Niko.
láievitch fala que ali se sente um fedor moral, e, na perspec
riva socrática, tal fedor seria uma advertência para que, nos
dois-três meses restantes, os mortosse dessem conta da vida
provavelmente mal vivida. O próprio Lebieziátnikov quali.
fica tais reflexões de delírio místico", Kliniêvitch, de toli:
ce. Cruzadas e experimentadas, as verdades filosóficas de
Sócrates e Platon Nikoláievitch acabam tachadas de delírio
místico etolice por aqueles que ainda continuam presos à
Vida do corpo".
Uma característica do processo dialógico em Dostoiév
ski édeixar sempre um espaço aberto à inserção não só de
outras vozes, mas também de outros textos, quer do mesmo
autor, quer de outros autores, pois o dialogismo pressupõe
uma inter-relação de enunciados e esses textos, sendo enun M

ciados, acabam estabelecendo relações entre enunciados, isto


é, relações dialógicas na plenitude do termo. Trata-se de re
laçöes de tipo especial no campo dos sentidos entre enun
ciados integrais que têm por trás de si sujeitos reais, isto é,
seus autores./Ainda que estejam distantes entre si no espaço
e no tempo, ainda que nada saibam um do outro, revelam re
lações diatógtcas quando há entreeles um mínimo de conver
gencia no campo dos sentidos (Bakhtin, 1997, p. 335). As
Sim, interagem vozes entre si, autores e obras, e interagem
igualmente os próprios textos entre si, que "se cruzam e se
chocam, entram enm conflito, lutam pelo direito de existir"
(Saráskina, 1989, p. 110) e completar um sentido em aber-
to deixado por outrotexto, pois o texto vive necessariamen
te na tronteira com outro texto, No sistema de Dostoiévski,
Os vários textos entram em "complexa interação, e a situaça

h20 Paulo Bezerra


M

do 'texto no texto' impl1ca imensas possibilidades estéticas"


(idem,p.108).
Aquesto do fedor moral não énovidade em
Dostoiév
ski, pois ele já aparece em Humilbados e ofendidos, roman
ce de 1861, na sontissão que o príncipe Valkovski faz ao
rador, afirmando que, se cada um de nós descrevesse todos
nar- a
0s seus podres,"nao so O que ele teme dizer aos
seus me
lhores amigos, mas inclusive o que às vezes teme confessar
si mesmo, o mundo seria tomado de "tamanho fedor"
que
todos nós acabaríamos morrendo sufocados (Dostoiévski,
1972a, p. 361). Essa mesma reflexão em torno da verdade
obscura da alma humana -ofedor moral - seráencon
trada nas palavras quase idênticas do protagonista e narrador
de Memórias do subsolo(1864), segundo quem o homem ar
mazena em sua memória

"coisas que ele só revela aos seus amigos. Há ou


tras que não revela nem aos amigos, mas apenas a
SI próprio, e assim mesno em segredo. Mas tam
bém há, finalmente, coisas que o homem tem me
do de desvendar até asi próprio." (Dostoiévski,
1992, p. 99)
O mesmo sensualismo de Kliniêvitch, Avdótia lgnátiev
na, Tarassiêvitch eKátich também jáaparece em Humilba
dos e ofendidos, onde opríncipe Valkovski define bem seus
Ideais aristocráticos ao dizer que "no mundo pode-se viver
de modo tão alegre e belo sem ideais, que gosta de "pom
Pa, patente, hotel, imensas apostas no baralho", mas gosta
principalmente de mulheres, ede mulheres de todas as es
PeCies": "gosto até de uma libertinagem secreta, obscura,
mais inusitada e mais original, até com um poucode sordi
Valkovski
dez para variar ..." (Dostoiévski, 1972a, p. 365).
choca o narrador, seu interlocutor, contando com a mais
da gente de
dbsoluta sem-cerimônia segredos intimos seus e

121
Dostoiévski: "Bobók"
seu mundo. Conta a história de uma dama da alta socied,
de, uma condessa de uns vinte e sete a vinte e oito anos, Dri.
meira classe em beleza, e "que busto, que postura, que an
dar!". No seu meio aquela mulher tinha enorme importân.
cia. "As velhas mais orgulhosas e das virtudes mais terríveis
arespeitavam eadulavam... Uma única observação... ou insi
nuação dela podia arruinar uma reputação, tal era a maneira
como se colocara ela na sociedade; até os homens a temiam"
(ibidem). Aquela dama de tantas virtudes e alvo de tanto res
peito e admiraço lançou-se em um "misticismo contem
plativo, aliás também sereno e majestoso... E oque se viu?
Não havia uma devassa mais devassa que aquela mulher, e
eu tive a felicidade de merecer inteiramente sua confiança.
Numa palavra, era seu amante secretoe misterioso". Aque
la mulher era "tão voluptuosa que o próprio marquês de
Sade poderia aprender com ela. Contudo, o mais intenso, o
mais penetrante e emocionante naquele prazer era seu mis
tério e a impudência do engano. Aquela zombaria de tudo o
que a condessa propagava na sociedade como o mais ele
vado, inacessível e inviolável e, por último, aquela diabóli
ca gargalhada interiore a humilhação consciente de tudo o
que não se pode humilhar, e tudo isso sem limite, levado
àquele último dos últimos graus, àquele grau que nem a ima
ginação mais ardente poderia conceber...É, ela era opróprio
diabo em carne e osso", mas um diabo "invencível de tão en
cantador. Até hoje não consigo me lembrar dela sem êxta
se" (idem, pp. 364-5).
Aimagem da condessa devassa, cuja história Valkovski
acaba de narrar, tem relação direta com a imagem de Avdótia
Ignátievna.
Quem éesse príncipe Valkovski? Um descendente de um
ramo nobre arruinado, que começa sua carreira casando-se Vei
com afilha de um comerciante exclusivamente pelo dote. Faz
carreira no serviço público, ocupando cargos que usa Para
enriquecimento e passando por cima de tudo e de todos no

122 Paulo Bezerra


fi de acumular e ampliar sua fortuna. O crítico
Tchirkóv de
fine sua carreira comoa de um "experiente negociante-abu
tre", um "aventureiro com um
passado marginal em cuja
história Dostoiévsk1levanta pela primeira vez e de forma ní
rida o motivo da acumulação. Um nobre
arruinado, que ga
nhou muito dinhero com especulação etoda sorte de
frau
de (Tchirkóv, 1967, p. 37).
Valkovski reúneem si o perfil da decadência da nobre
Za e do capitalismo ascendenge, tem plena
consciência e or
gulho da sua condição de burguês, como se observa nesse
diálogo-confissão com o narrador:
<0 que não é absurdo éa pessoa, sou eu
mesmo. Tudo épara mim, e todo o mundo foi cria
do para mim... é preciso olhar a coisa de um pon
to de vista mais simples, prático.. Eu só me con
sidero obrigado quando isto me traz algum pro
veito... Ame a si mesmo eis uma regra que eu
reconheço. Avida éuma transação comercial.."
(Dostoiévski, 1972a, p. 365)
Aí está ocredo filosófico de Valkovski: um individualis
mo exacerbado e narcísico, o pragmatismo burguês que vÁ
tudo como objeto de proveito, de lucro, e avisão daprópria
vida à luz desse pragmat1smoque a considera mera transação
Comercial. Esse híbridode aristocrata decadente e novo bur
guês vÁ o mundo como sua vontade e por isso deseja que a
Vida seja longa, e declara que quer "viver forçosamente até os
I0venta anos" (idem, p. 366), ao que o homem do subsolo
parece responder,
*Viver além dos quarentaé indecente, vulgar,os
imoral! Quem é que vive além dos quarenta?..
Imbecis e os canalhas." (Dostoiévski, 1992, p. 67)

123
Dostoiévski: "Bobók"
Diante de tudoiss0, a proposta de Kliniêvitch, no sen-
tido de passarem os restantes dois ou três meses da manei-
ra mais agradável possível", sem se envergonharem de nada
"contando em voz alta" suas histórias eestabelecendo o rei.
no da "nnais desavergonhada verdade", já encontra ante.
cedentes no príncipe Valkovski. Essa verdade aristocrática
experimentada por esse príncipe e pelo barão Kliniêvitch é.
na visão de Dostoiévski, produto da civilização do século
XIX burguês, objeto,por sua vez, de uma análise implacável
do homem do subsolo, que assim a define:

"se o homem não se tornoumais sanguinário


com a civilização, ficou com certeza sanguinário de
modo pior, mais ignóbil que antes." (idem, p. 84)

Essa experimentação da verdade passa pelo próprio Kli


nievitch, que agora, vivendo em "novas bases" no inferno
carnavalizado, livre das "cordas podres" que sustentam a
. sociedade "lá em cima", quer a verdade, quer "que não se
minta...", porque na terra "é impossível viver e não mentir,
pois vida ementira são sinônimos". Se vida e mentira são
sinônimos, então todos os viwentes são mentirosos, eentre
estes se incluem os próprios escritores,especialmente os que
escrevem autobiografias. Refletindo a ese respeito, o homem
do subsolo diz:

"Heine afirma que uma autobiografia exata é


quaseimpossivel, e que uma pessoa falando de si
mesma certamente há de mentir. Na sua opiniáo,
Rousseau, por exemplo, com toda certeza, mentiu
a respeito de si mesmo, na sua confisso... Estou
certode que Heine tem razäo..." (idem, p. 99)

Aqui amentira édiscutida no plano exclusivo do ima


ginario, pois são personagens ficcionais que a debatem.

124
Paulo Bezerra
nortante observar que, em
importante
Dostoiévski, o imaginário
real cstão de tal forma imbricados que aa discussão da verda-
de passa diretamente das personagens ficcionais para o
pró
nrio Dostoiévsk1 jornal1sta, como se verifica no artigo "AI
guma cOisa sobre a mentira" (Niétchtoo
on a90stode 1873no Grajdanin, onde o vranió), publicado
autor escreve:
«Uma delicada reciprocidade da mentira qua
se chega a ser a primeira condição da sociedade rus
sa: em todas as suas reuniões, saraus, clubes, socie
dades científicas, etc... Na Rússia, a verdade quase (A)
sempre tem caráter perfeitamente fantástico... es
tána mesa há um século diante das pessoas e estas
não a tocam, mas correm atrás do inventado jus
tamente porque consideram averdade coisa fan
tástica e utópica... cada um de nós carrega consi
go uma quase nata vergonha de si mesmo e da sua
própria cara." (Dostoiévski, 1980f, p. 119)

Jáque nãomentir éimpossível, a mentira éa primeira


condição da sociedade russa, a verdade sempre tem caráter
fantástico, entãoé necessário que o plano do real seja subs
tituído pelo fantástico para que se invertaessa situação, a prl
meiracondição não seja mais a mentira e sim a verdade e os
Tussos não se envergonhen de nada. Essa passagem do pla
no real para o fantástico éfacilitada por um elemento nada
SeCundário: esse mundo real, que fica "lá em cima,ésusten
tado por "cordas podres", istodenuncia seu equilibrio pre
Cario, que pode ser violadoa qualquer momento, e sugere
fantástico, que
que e muitotênua fronteiraentre oreale o
Klinievitch e
VIVen em planos paralelos. Daí ser facil a
podres
seUs contrades aristocratasabolirem as tais "cordas
aristocrático, hO
Instituírem uma sociedade utópica ao modo
onde iro passar os "dois ou três meses" que Ihes restam na
T L
mais absoluta liberdade, senm se envergonharem de nada nem

125
Dostoiévski: "Bobók"
terirem o princípioda veross1milhança, pois, como reconbe.
ceo próprio Dostoiévski jornalista, na Rússia as pess0as cor
rem atrás do inventado em detrimento da verdade, que con
sideram coisautópica e fantástica. Como a verdade que pre
domina nÍ mundo real éa da aristocracia, é ela também que
vai predominar noreino dos mortos, mas com um adendo: é
uma "verdade desavergonhada", em perfeita sintonia com a
verdade cinica da vida sem princípios acalentada pelo prín
cipe Valkovski, não havendo sequer necessidade de obser
v-ncia de qualquer preceito moral, como ocorre na socieda
de do mundo real da qualesse reino dos nmortos é metonímia.
Mais tarde, em artigo denominado A um mestre" (Utchítie
liu), publicado no Grajdanin de 6de agosto de 1873, Dos
toiévski comenta que ascamadas "estética e intelectualmen
te desenvolvidas" da sociedade russa são incomparavelmen
te "mais devassas que o nosso povo grosseiro" e tão atra
sado; nas sociedades masculinas até velhotes calvos, depois
de lautos jantares e altas discussões de assuntos de Estado,
passam a temas estéticos que transbordam rapidamente em
2 "libertinagem e obscenidade" tais que a imaginação popu
7 lar jamais poderia conceber. Acrescenta que isso acontece
com muita freqüência e envolve todos os matizes desse cír
culode pessoas tão situadas acima do povo" (Dostoiévski,
1980g, p. 116).
Otema da provocação e experimentação da verdade en
volve a história do conselheiro da corte TarassiÇvitch, que
deudesfalque de um dinheiro público destinado a viúvas e
órfãose teve Kliniêvitch como cúmplice. O próprio Klini
vitch narra o fato e também se autodenuncia com a maior
naturalidade. Tarassiêvitch não
não se
se perturba, e limita-se a di
zer que tudo isso éinútil lembrar, uma vez que na vida "hà
tanto sofrimento, tanto martírio e tão pouco castigo.O
mesmo tema envolve também Avdótia Ignátievna, que aca
ba denunciada comocaloteira pelo vendeiro. A experimen
tação dessas verdades acaba em um autodesmascaramento

126
Paulo Bezerra
da aristocracia, pronunciado pelo baro Kliniêvitch, que se
autodetine como "um pulha da
pseudo-alta sociedade", um
dos *baronetes sarnentos", filho de um generalote qual-
quer" esimplesmente ladrão e canalha da pior espécie; pôs
en circulação cinqüenta mil rublos em notas falsas em
socie
dade com Zifel, aquem denunciou para apoderar-se do di
nheiro sozinho.
Contudo, háem "Bobók um conflito de verdades no
aual se chocam essa aristocracia decadente eo remanescen
te de uma aristocracia que ainda guarda alguns vestígios de
princípio e dignidade. Eocaso do general Piervoiêdov, que
também teve os seus pecadilhos em vida, mas não aceita a
máxima do tudo épermitido com que Kliniêvitch e compa
nhia desejam governar o reino dosmortos nas tais novas ba
ses. Mas o general Piervoiêdov está só, seus valores nada sig
nificam nesse mundo sem valores nem princípios, e por isso
ele estáirremediavelmentecondenado ao silêncio.
Por tudo isso, a sociedade tumular em "Bobók" é uma
metonímia da sociedade aristocrática russa, através da qual
se provoca eexperimenta a verdade do universo aristocrático.
Hána menipéia uma modalidade específica do fantás
tico experimental, que é uma observação feita de um ângulo
de visão inusitado,de uma posição situada no alto (Bakhtin,
1981, p. 100), isto é, de cima. Na Apocoloquintose, depois
de expulso do Olimpo, Cláudio éarrastado por Mercúrio e
do alto avista um cortejo imenso e festivo, com todo mun
doalegre, "o povo romano passeava,sentindo-se livre". Ven
que
do, do alto, seu próprio enterr9, "Cláudio compreendeu fan
Bobók", o
CStava morto" (Sêneca, 1980, p. 258). Em
tastico éintroduzido por essa categoriaexperimental; o nar
rador, deitado sobre um "longo bloco de pedra com forma
ouvir "coisas
to de caixãode mámore", dormita e começa a
tapadas
Uiversas, "sons surdos. como se bocas estivessem
posIçao passa
POr travesseiros". Desperta, senta-se, e nesta
narrador estáacordado,
d escutar atentamente". Logo, o

B( 127
Dostoiévski: "Bobók"
atento. e do altosó não vÁ os falantes mas ouve as vVozes, Fstá
introduzido o tema do fantástico pelomodo característico da
menipéia. Vamos encontrar essa mesma categoria do fantás
tico experimental em "O morto vivo" deVOdóievski, on
de o narrador, morto, usa essa condição privilegiada para es
pionar como anda transcorrendo a vida dos outros.
Játivemos oportunidade de citar uma passagem de Dos
toiévski, na qual ele afirma que a sensação do fantástico é
umaconstante em sua vida, de tal forma que ele não conse
gue "renunciar ao estado de espírito fantástico" e continua
um fantasista" mesmo depois de entrado em anos, apesar da
"calvície", da "experiência de vida", etc., etc. E esse espírito
fantástico que preside àconstrução de Bobók", onde o au
tor atinge um virtuosismo tão excepcional na articulação dos
elementos composicionais quea simples perguntaformulada
por Semión Ardalónovitch, na abertura do conto, já introduz
na narrativa um clima de liminaridade de cuja evolução gra
dual brotaráo fantástico como aquela experiência dos limi
tes" de que fala Todorov (1975, p. 101). Esses limites" se
traduzem numa contigüdade e até mesmo numa ju_taposição
de planos em que, na obra de Dostoiévski, o real se manifes
2ta nas suas várias facetas, o empírico mistura-se
"ao simbólico, arealidade aparentemente chãé,
muitas vezes, paródia, estilizaão de uma outra rea
lidade [...] num jogo de máscaras, de duplicaçãodo
mundo, de fragmentação da imagem numa oposi
ção de 'espelhos' [...]na inserção da novela ou ro
mance numa totalidade múltiplae variada ao inti [R/
nito, dinâmica e fluida, em que o real é máscara de
outro real ...J" (Schnaiderman, 1982, p. 67)
Desde o início de Bobók", assistimos auma justapo
sição velada de dois planos -1 um reale um imaginári0, 0
primeiro sugerido por Semión Ardalonovitch ao lançar a
128
Paulo Bezerra
divida quanto ao estado de sobriedade do narrador. Essa
dúvida projeta o espaço liminar emn que se mesclam o real es
rado de espírito do protagonista, povoado pelo sonho per
manente eobsessivo de publicar seus escritos, e oresultado
Psteticamente filtrado do tratamento dispensado por parte da
eritica a Dostoiévskicomo autor de Os demônios, tratamen
to este que ele, como autor primárioß transfigura) em autor
secundário e narrador em "Bobók", que resiste tanto a esse
tratamento. Avoz de Semión Ardalónovitch e os ecos da crí
ica aDostoiévski são dados do mundo real. Aresistência do
protagonista e narrador a esses dados, somada àsua reaçãoL
ao boicote que esse mesmO mundo real lhe impõe, e até àten
tativa de pubicação dos aforismos de Voltaire ("Isso lá é
tempo de Voltaire: é tempo de palerma, não de Voltaire!"),
vai configurando um afastamento gradual do protagonista
em relação a esse mundo emn que ele não encontra espacg, /
porque aí não há lugar para sentenças inteligentes os afo
rismos de Voltaire e vive-se o tempo dos palermas; como
ele, protagonista, é"orgulhoso", não tem o que fazer em um
mundo com o qual não se identifica. E se não se identifica
no plano da sobrevivência, jáque lhe negam a possibilidade
lite
de realizar-se como escritor -"seja como for [...]é um
rato" recusando-lhe a publicação dos escritos e conde
identifica
nando-o a uma atividade estéril e absurda, não se
a única in
Sequer no plano afetivo das raízes fanmiliares, poistambém da
afastado
10rmaço que o textoaventa mostra-o
distante
família, que para ele se esgotana morte do parente : como
"com descortesia
emcuja casa sempre foi recebido
"orgulhoso", não assiste ao Réquiem, pois, se o recebem
e
por que iria ele meter-se
Penas por extrema necessidade,
Seus jantares., ainda gue fossem de tunerais? Por isso vai
Cm como paralele- e real,
COnstruindo seu nmundo imaginário
realidade e crian
CStabelecendo uma distância entre ele e a
alicerçatodo even
do a dualidade de mundossobre aqual se dos dois planos
velada
tO fantástico. Assim, ajçstaposição
129
Dostoiévski: "Bobók"
quc detectanjos no início
do textoe explicitamos na cate
goria de liminaridade evolui e acaba perdendo seu caráter
velado, Como narrador mudando de "caráter", sentindo
doer a cabeça e "ouvindo coisas estranhas"., que não são
"propriamente vOzes mas e como se estivesse algu¿m a0
lado" repetindo "bobók, bobók, bobók", abre-se o espaco
para a ruptura como real e a explicitação do segundo pla
noa do fantástico.
E assim que se articula o movimento do enredo no sen.
tido de chegar ao ponto em que a manifestação do fantásti
. co propriamente-dito parece "natural.Portnova foi muito
feliz ao perceber o quanto as relações "paradoxais" entre o
literatoe o meio foram essenciais para esse movimento do
enredo, que acaba culminando na objetivação desse mundo
real(1a Torma dediálogo dos mortos, na forma do fantásti
co. Para ela, o afastamento entre onarrador e o mundo real
oaproxima do sentido do convívio humano, e quanto mais
ele se dhstancia mais se aproxima detal sentido. Basta que ele
distancie um passo amais dessa vida «normal" em direcão
"ao sonho ou àalucinação" para que essa vida comece a "de
monstrar suas leis com extrema evidência. E essa a motiva
ção estética do fantástico" (Portnova, 1987, p. 97).
Entretanto, não nos interessa a modalidade fantástica
propriamente dita, mas tão-somente aqueles elementos fan
tásticosque poderão somar-se à menipéia ecombinar-se or
ganicamentecom outros componentes desse gênero, abrin
do caminho para uma relação dialógica de "Bobók com J
Qutros_ textos.
Oconto "O morto vivo", de Odóievski, começa com
umagrande interrogação do narrador, que não sabe se esta
VivOOu morto. Depois de apalpar-se de todas as maneiras,
chega àconclusão fatal: estámorto e bem morto. Espanta-se
com a alma se separando do corpo, a alma já separada con
templa o corpo morto estirado nacama, solta um blasfema
tório "Que diacho!" e sai caminhando pela casa, vÁ a sobri

130
Paul Begerra
aha desmaiada, os filhos chorando, tenta
falar com eles, não
ouve a propria v0Z,grita, 05 pulmões parecem emitir um
ven
tinho, pergunta-se se seria um sonho, lembra-se de que na
véspera estivera muito saudável, jogara cartas,
jantara com
apetite, jogara conversa foracom os amigos, enfim, o morto
estáde posse de todas as suas faculdades
cas aisso vaiempreender um passeio mnemonicase gra
pós-morte por todos os
lugares que Ihe marcaram a vida. E interessante como a
mor
te nesse conto éleve, alegre, descontraída, e a partir de
dado
momentoo detunto-narrador começa agostar e a turar pro
veito da condição de morto (como Klinievitch e seus confra
des): nenhuma preocupação, não precisa barbear-se, tomar
banho, trocar de roupa, pode percorrer o mundo inteiro sem
Correr nenhum risco, pode atravessar paredes, penetrar em
todos os segredos... Aqui a narrativa entra na járeferida ca
tegoria do fantástico experimental, a partir da qual o prota
gonista se colocanuma posicão privilegiada e dela observ o
que acontece ao redor. Eomorto, um terrível corrupto em
vida, que teve como credo tudo éabsurdo, tudo é porcaria
|...] no mundo só existe uma coisa: dinbeiro" (Odóievski,
1987, p. 202), que do nada chegou a milionário, resolve per
correr as repartições burocráticas, incluindo a sua, e começa
a ver a possibilidade de tirar vantagem da condição de mor
to. "Quer dizer que para mim não existem portas, nem techa
duras; logo, de mim também no se guardam segredos? [...]
nada mal, palavra, pode ser bastante útil para alguma even
tualidade ...]" (idem, p. 193). Como diria Kliniêvitch em
"Bobók": Aos diabos, ora, pois otúmulo significaalguma
coisa!". O protagonista continua em sua "peregrnação".
Depois de constatar que em todas as repartiçóes por onde
Passa, em vez dos lamentos por sua morte, com0 ele espera
Va, estão de fato contando os podres de sua vida corrupta,
COMentando seus casos amorosos com as duas amantes, en
Tim, se ele pode inteirar-se dos segredos dos outros, inteira
Se também de que os outros eståo a pardos seus. Fica indig

131
Dostoiévski: "Bobók"
nado, resolve verificar CoMo as amantes estão tristes e
sofren-
do comsua mortC; encontra a primeira Com outro, a segun-
da foi a um baile de máscaras. Ele retoma a peregrinação,
entra enm casas de amigoS e vai constatando que se tornou
narração revela que o morto, cha
objetode falações e riso. A
um indivíduo totalmente inescru-
mado Vassili Kuzmitch,foi "esquecendo-se
puloso, que roubou atéa própria sobrinha, pai iá mn
que Ihe deixara o
de aplicar em nome dela letras Kuzmitch está morto
to, que eraseu irmão. Como Vassil1
apoderar
seus filhos discutem a maneiramais adequada de
o outro o ma
se de tais papéis, e estando um deles indeciso,
pai.
ta, o que "choca" ofalecido vivo" estabe
Ofantástico experimental em "O mnorto
Apocoloquintose e "Bo
lece uma pequena ponte entre ele, a pesSoas
bók": como Cláudio, que vÁ Sen próprIO enterroe aspróprios
com os
alegres com sua morte, Vassili Kuzmitch vÇ mal de
estão falando
olhose constata que em toda parte ou
narrador de "Bo
le ouestão alegres com sua morte; como o
ouve as conversas sem ser visto nem molestado. Vassili
bók",
Kuzmitch lembra muitoo Tarassiêvitch de "Bobók" pela sen
sualidadeepelo caráter desenfreadamente corrupto. Entre
comentários sobre
tanto não énosso propósito tecer maiores
como mo
"Omorto vivo', porgue o texto só ns interessa
dalidade do fantástico: ao términoda narração, ficamos sa
bendoque se trata de um sonho,variedade do fantástico mui
XIX. O
to em voga nos idos de trinta e quarenta do século
protagonista reclama da veracidade desse sonho "bobo
"tão vivo...] como se fosse realidade.." (idem, p. 213). Efi-
Camos sabendo que, antes de dormir, ele havia lido um con
to fantástico. Ele reclama dos escritores fantásticos que ficam
"desenterrando os podres" das pessoas em vez de escreverem
cOIsa util, deseja que eles sejam proibidos de escrever e ter
mina a história com uma dúvida típica do espirito dos
suais Valkovski, Tarassiêvitch, Kliniêvitch, etc.: com qual das
duas amantes irá
divertir-se?
132
Paulo Bezerra
Cabe mais uma observação acerca de "O morto vivo":
quando aparece o sonho em obras
fantásticas, estas costu-
mam passar por três estágios: preparação do sÍnho, osonho
e odespertar. O conto de Odóievski evita o primeiro
está
gi0, jácomeça no sonh0, e vela de tal modo a fronteira en
tre realidade efantasia que
que os acontecimentos são descritos
omo reais e sÓno final o leitor fica sabendo que se
tratava
de sonho.
Outra modalidade semelhante de sonho fantástico é0
fazedor de caixões, de Aleksandr Púchkin. Aqui a prepara
ção do sonho se manifesta no pequeno detalhe do desloca
mento: o protagonista se muda com todos os seus petrechos
da rua Basmánaia para a Nikítskaia, experimentando certa
ansiedade com a mudança, e no trajeto já se insinua qualquer
coisa de estranho:

*Aproximando-se da casinha amarela, que ha


via tanto tempo lhe seduzia a imaginação e fora
comprada finalmente por uma soma considerável, o
velhopercebeu surpreendido que o seu coração não
se alegrava." (Púchkin, 1999, p. 237-grifo nosso)

Um primeiro elemento de insinuação do fantástico jáse


apresenta no clima de estranheza que se esboça: a surpresa
com que Adrian Prókhorov, fazedor de caixões, percebe
estranheza irá
que seu coração não está alegre. Esse clima de hu
Intensificar-se com um detalhe abstruso com sabor de
vizinhoalemão Gottlieb
or negro: num almoço na casa do todos
Schulz, que comemorava bodas de prata, os convivas, àsaú
lurko, bebem
artesaos, com exceção apenas do vigia Adrian Prókhorov
de dos seus clientes. Iurko sugere qu
caixões che
beba "àsaúde dos seus defuntos". Ofazedor de brincadei
ofendido com a
5d em casa bêbado e zangado e,
d, Convida todos os mortos para quem tez caixÖes a
Parecerem no dia seguinte àsua caSa:
com
(
133
Dostoivski: "Bobók"
""Peço-lhes, mcus benfeitores, que venham
amanhâ à noite para uma festa em minha casa: vou
me deu'.
deu' Ditoisso, o
fazedor
servir-Ihes o que Deus
depois rones
de caixões foi para a cama e pouco
242)
va." (idenn, p.
do sonho fantástico: Adrian
Está lançada a preparação
está bêbado, faz o convite, deita-se e logo adormece fundo.
evea
Entretanto, entre a primeira impressao de estranheza
mentada por Prókhorov ao chegar a nova casa e o momen
topropriamente deflagrador do sonho, onarrador introduy
um elemento intermediário cuja funçãoestrutural de manei
nenhuma pode ser desprezada. Diz o narrador:
"O leitor culto sabe que tanto Shakespeare
como Walter Scott representaram os seus coveiros
como homens alegres e brincalhões... Em respeito à
verdade, não podemos seguir o seu exemplo e so
mos obrigados a confessar que o gênio do nosso
fazedor de caixões condizia de modo absoluto com
lúgubre ofício. Adrian Prókhorov era habi
tualmente sombrio e calado." (idem, p. 238)

As informações fornecidas pelo narrador são essenciais


para apreparação do sonho fantástico: antes de embebedar
se echegar zangado, Adrian Prókhorov jáera "som
brio e calado". Em sua profissão, enterrava seres calados et
cerimônias sombrias, logo, homem e profissão estavam e
perteita simbiose, o geniodo homem condizia de modo ab
Solutocom o "lúgubre ofício" numa espécie de homologd
Cnure o ser soturno da profissão e a maneira soturna e ser o
nomem. Logo, esse gênio era propenso ao lúgubre e c
natural não podia ser alegre ebrincalhão como Os coveiros de
Shakespeare
lando a
e Walter Scott. Conseqüentemente, só obnubi-
fronteira entre o seu real eo insólito, o que lhe serid

134
Paulo Bezerra
nossível unicamente em estado de transe alcoólico, ele seria
capaz de fazer a brincadeira de convidar seus fregueses defun
ros a um banquete. Quando os convida, Prókhorov já neutra
lizou a fronteira entre realidade epura fantasia, após o que
0ato subsequente de dormir e sonhar émera continuidade da
precondição fantástica por ele deflagrada, eoque vem em se
guida assume tonalidade tão natural que os acontecimentos
do sonho ganham uma aparência de real que sóse desfaz com
odespertar do protagonistaea constatação de que tudo não
passara de sonho. Antes disso, o leitor nem desconfia de que T
está entre dois planos, naquela atmosfera em que se turvam
e seconfundem os contornos do real, dificultando a percep
çãoeatingindo aquele ponto de que fala Jacqueline Held:
"0 fantástico éfeito de atmosfera, e o mo
mento em que se deixao 'real', no sentido estrito e
usual do termo, nem sempre étácil de ser fixado
com precisão." (Held, 1980, p. 67)

Contudo, para que o leitor chegue a esse desfecho da


narrativa, há todo um jogo de peripécias que o retarda ar
dilosamente. Em Ofazedor de caixões" tudo édescrito da
ótica do narrador, que cria a precondição fantástica e vai
cadenciando a narração até chegar à deflagração dos episó
dios do sonho propriamente dito. Depois de dizer que Adrian
Prókhorov adormeceu num sono profundo, já na linha se
narrador intorma que
guinte, que inicia novo parágrafo, o acordaram Adrian".
quando
la rora "ainda estava escuro impressãode
Esse ardildesorienta o leitor, pois cria anítida bebedeira da
inteiro apósa
que oprotagonista dormiuo dia restauradas, vai
Vesperae agora, acordado, com as energias acalentando na vida
sonho que vinha
realizar na prática um nmulher rica, morrera nessa
eal: acomerciante Triúkhina,
noite e um mensageiro especial deseu administrador
nesma imediatamente tomou to
rouxe a notícia para Adrian, que

135
Dostoiévski: "Bobók"
das as providências para o enterro. Acontece que, antes de
todos esses cpisódios relacionados àfesta do alemão Schulz,
Adrian já vinha acalentando o sonho real de ressarcir-se,
comos funerais de Triúkhina, dos prejuízos que tivera uma
semana antes, quando organizara os funerais de um briga
deiroe caíra uma chuva torrencial, causando sérios preiuí.
zos aos petrechos do agente funerário. A velha Triúkhina
estava àmorte em lugar distante, e Adrian tenia que os her
deiros o deixassem na mão por causa da distânciae fizessem
negócio com empreiteiro mais próximo. E de um virtuosismo
extraordinário a justaposição do sonho real ao sonho fan
tástico que o narrador estabelece. Neste, todos os desejos da
quele são realizadoseo narrador faz um adendo essencial
que dáao sonho fantástico estatuto de realidade: na casa da
morta, Adrian vai ao herdeiro de Triúkhina, sintomatica
mente descrito como "jovem comerciante" que vestia uma
"sobrecasaca da última moda', comunica que todas as pro
videncias para o enterro foram tomadas, e o herdeiro lhe diz
que não regateia preço, confiando naconsciência do agente
funerário. Considerando que o narrador jáinformara bem
antes que Adrian cobrava por suas obras um preço exage
rado àqueles que tinham a infelicidade (e, às vezes, o prazer)
de precisar delas", verifica-se a plena realização do sonho de
ressarcimento daqueles prejuízos, e o leitor conclui que se
trata de uma feliz coincidência e que Adrian ésimplesmente
um homem de sorte. Assim, o narrador joga muito ardilo
samente com dois planos: um do real, configurado no sonho
Concreto de ressarcimento dos prejuízos, o outro, do tantas
tico, que torna "real" aquele desejo de Adrian.
Cabe uma comparação do estatuto do narrador na Cons
trução dosonho em "0 fazedor de caixões" e "Bobók. NO
Conto de Púchkin, o narrador étodo presença,
plano objetivo em que a voz do narrador é predomina
aautenticidade dos fatos quase absolula
clusiva de um narrador quenarrados
fica por conta quase
tudo vê e a tudo assiste. Enu
136
Paulo Bezerra
tanto, cle se
permite pequenas incursões de ordem subjeti
d. propriasdo fantástico, como "teve aaimpresso", "Ihe pa
rvcu de repente ","com mil diabos!", mas é extremamente
narcimonioso.ao dar voz ás personagense sófaz essa
conces
io no rápido episodio dos brindes e cumprimentos mútuos
entre oS convidados de Schulz e na conversa dos mortos Com
Aeian. Em "O morto vivo,de Odóievski, todas as perso
nagens falam e externam seus pontos de Vista, oque nao
noderia ser diferente, jáqueo narrador édefunto e, ainda
aue tente, não consegue estabelecer diálogo com as persona
gens. Ademais, ali a narrativaéo próprio sonho, começa
sonhoe sem nenhum preparativo nem necessidade de digres
s£opara introduzi-lo, desprezando elementos psicológicos
que presidem àintrodução da precondição fantástica. Em
"Bobók", oplano subjetivo predomina absoluto, onarrador
já"ouve coisas estranhas uns sons indefinidos que não são N
propriamente vozes, e isso antes de ir ao cemitério, onde des
ambiente,
taca "em primeirolugar o espírito" que domina o "com
fica horrorizado com o estado das sepulturas, olha
da própria
cautela para as caras dos mortos, desconfiado
"impressionabilidade", não gosta dos sorrisos dos mortos
porque os acha "maus e sonhacom
eles. Conmeça a dormi
tar deitado em um "longo bloco de pedra em
formata de cai
identitica conn os
Xão de mármore" e, nessa posição queo
diversas". Desperta, senta-se,
Inortos, passa a "ouvir coisas tumu
vozes que ven dos
POe-se a escutar atentamente as
l0s, Uma vez desencadeados os diálogos entre os mortos, o
aouvi-los como o faz
narrador nãointerfere neles, limita-se
com a diterençade que
VassiliKuzmitch em "O morto ivo",
consegue participar das Conversas. Em
e tenta mas não respeito aos mortos é da alçada
Dobók", tudo ogue diz
e, uma vez iniciados os
CACIusiva do discurso do narrador
quatro intervençöes, nas quais utili-
diálogos, ele faz apenas
za 379 palavras em 34 linhas contra 3.724
palavras e 361 li-
mortos em seus dialogos, o que mOS
nhas Produzidas pelos
137

Dostoiévski: "Bobók"
tra odomimio absoluto- t so oobjetivo
pBana subjetivo sobre
articulação de tais diátoges e revela o cordão
na
que associa drctamente "Bobók" ao Diálogo dos mortos de urmbilical
Luciano. Quanto àpreparação do sonho ou criação da
pre-
condição fantástica em "Bobók" , essa questão já foi exaus-
analisada. Em "O"O morto vivo" e "0
tivamente

caixòes", osonho literário se articula à


fazedor de
semelhança de um
sonho real, mas cabe observar uma diferença: no primeiro &
o próprio protagonistaquem narra, e este desperta sabendo
aue despertava de um sonho; em "O fazedor de caixões
udo é dado pelo narrador e o despertar do protagonista é
profundamente vacilante, pois ele não tem a plena certeza
de estar saindo de um sonho, tudo ainda permanece muito
confuso em sua imaginação, ele espera em s1lêncio que a cria
da puxe conversa e fala sobre "as conseqüências daquelas
aventuras noturnas" (Púchkin, 1999, p. 140). Em "Bobók".
Oprotagonista ouve as conversas acordadoeatento, a dúvi
da fica mesmo é com o leitor, uma vez que a história termi
na sem que possamos dizer se o que houve foi sonhoou pro
dutoda imaginação doentia de quem andava ouvindo "coi
sas estranhas".
Em outra obra-prima, "Adama de espadas", Púchkin
trabalha com um virtuosismo ainda mais apurado ao criar
a liminaridade em que convivem e interagem o plano do real
eo do fantástico. Nessa obra o enredo não se alicerça no
jáclássicO sonho do fantástico propriamente dito; na medir
da em que se desenrolam as ações, o enredo vai se basean
do gradualmente em um devaneio incontido, que evolui para
a possessão pelo jogo de cartas e transborda naquelas pal
xões limítrofes com aloucuraque são um dos componentes
da menipéia.
Nas primeiras informaçôes que oferece sobre Hermann,
personagem central, ainda na primeira parte da novela, 0
narrador jáinsinua seu estado excepcional: jovem oficial e
genheiro, vive em um meio onde oj0go é rotina, mas nuted

138 Paulo Bezerra


da cgou em ma carta de
ohorasseguidas baralho, embora passe cin
sentado
stindo ao jogoe cartas evendo outros jogarem.palavra:
Ele está as-
0 narrador lhe dáa
«0 jogo me interessa muito -
mann , mas sou incapaz de disse Her
sacrificar indispen
sável, na esperança de conseguiro
o
supérfluo.
Hermann éalemão e,
eis rudo! -observou portanto, calculista,
170)
TÓmski." (Púchkin, 1999, p.
Informação parcimoniosa porém de excepcional con
densação de sentidos: Hermann éalemão, ou melhor, é rus
so filho de alemão, e nessa condição
reúne o
culturalmente liminar
calculismo do alemão com a paixão quase obsessi
va do russo de seu meio pelo jogo, que o "interessa muito"P
ocupando-o intensamente. Ainda assim, éincapaz de "sacri
ficar o indispensável" por ser incerta a esperança de con
seguir o supérfluo"; isto é, sendo ele calculista, não lhe inte
ressam Oprazer e a aventura do jogo, mas tão-somente o
em algo tão
ganho certo. E como poderi£haver ganho certo em
Incerto como ojogo?
Comovemos, Hermann parece inabalável em seu lado
racional, e nessa condição parece imune à tentação de algo
tao imprevisível como o desfecho de uma partida de baralho.
Eeai que entra ovirtuosismo do narrador na articulação da
rama que lançará oclima de inserção do fantástico e criará
Oparalelismo deste com o real. O mesmo Tômski, que defi
nu Hermann como $calculista", diz em seguida, no mesmo
Fiedó
Periodo, que não entende sua avó, a condessa Anna
taz apostas
tovna, que não consegue atinar por que ela não
jogadores, ele
jogo, Instado pela curiosidade dos outros
uma grande
Conta uma longa história em que aa avó perdedivida por ela
Soma emn dinheiro, O marido se nega a pagar a
e, com ela,
SSmida no jogoe. sem meio de resgatar a divida

139
Dostoiévski: "Bobók"
sua honra aristocrática, cla acaba apelando para um
cadmirador, oconde Saint-Germain. Em vez de amigo
dinheiro, porém, Saint-Germain lhe revela
revela o
segredoemprestar
cartas misteriosas, com as quais ela resgata a dívida.
de três
Está lançado o elemento do insólito, que irá abalar o
lado racional de Hermann. Mas o narrador não passa direta-
mente da história da condessa, contada por Tômski, a0 es.
tadode espírito provocado em Hermann pela misteriosa his.
tória. Do meio para o final do segundo capítulo da novela
ficamos sabendo que um misterioso oficial de engenharia
anda rondando a casa da condessa, flertando com sua dama
de companhia Lizavieta lvánovna,e só depois Tômski pede
permisso àavò para Ihe apresentar um amigo cujo nome
não menciona mas que percebemos tratar-se de Hermann.
Logo, a história das três cartas misteriosas abala o lado a
cionalefrio do protagonista, que se revela propenso a acre
ditar no insólito, isto é, na sorte que ele imagina estar nas
três cartas misteriosas. Isto o leva a crer que a condessa pos
sa lhe revelar o segredo dessas três cartas, mesmo jáestando
informado de que ela é mãe de quatro filhos, todos jogado
res inveterados, a quem ela jamais revelou tal segredo, co
monão o revelara ao neto Tômski.
Sódepois da solicitação de Tômski o narrador introduz
novos dados sobre o protagonista, através dos quais fica
mos sabendo que Hermann herdara do pai, um alemão rus
Siticado, "um pequeno capital", que ele estava "firmemente
convencido da necesidade de firmar a sua independência"
e por issO não tocava nem nos juros, vivia do soldo e "não
se permitia a menor extravagância", era reservado e am
bicioso".', tinha "fortes paixöes eumaimaginação estoguea
da", era dotado de uma alma de jogador, embora nunca tl
vesse pegado em carta, mas passava noites inteiras (antes
eram sócinco horas!) ao redor das mesas de jogo, observan
do "com uma perturbação febril" os diversos movimentoS
do baralho.

140
Paulo Bezerra
Ao completar, com esses dados, o perfil em
firmeza de que se mes
lam
tambémn
Consciência,
reserva, paixões
extrema parcimônia, ambição
c fortes, imaginação esfogueada e
serturbação febril, o narrador nos fornece uma imagem am
bivalente capaz de absorver elementos dos dois pólos contí
guosda existência o real e o insólito,
lesneito do lado racionale frio, Hermann era mostrando que, a
uma persona
Sem capaz de atravessar a fronteira do real no sentido de sa
ristazer os desejos da sua imaginação esfogueada. Daí sua
recepção da história da condessa:
Ahistória das três cartas
atuou-lhe fortemen
te sobre a imaginação, e não lhe saiu da cabeça a
noite inteira." (Púchkin, 1999, p. 181)
Agora já sabemos que Hermann éambicioso, que pre
tende no só consolidar mas aumentar seu capital, pois no
toca sequer nos juros, isto é, acalenta o sonho real de enrique
cer mas, ao mesmo tempo, e apesar de seu lado calculista,
que Púchkin identifica com aformação alem, cede à imagi
nação esfogueada que o coloca sob o forte efeito da história
das três cartas. Ele só jogará para ganhar, mas esta circuns
tância depende inteiramente da velha condessa, a quem ele
passa a ver como fada madrinha capaz de mobilizar um po
der
que estáacima de simples mortais como ele. Mas Her
mann vai aos poucos tirando um pédo chão batido do real,
atraído por histórias baseadas no me contaram, no ouvi di
io Onteceu comfulano, con sicrano, com beltrano, em
ma, vai ficando com um pé no plano do real e o outro no
plano paralelo do fantástico. Sua antiga firmeza começa li
teralmente aoscilar, ele vai entrando gradualmente em um
movimento pendular em que a vontade de experimentar o
insólito vai-se sobrepondo de modo sub-reptício eincons-
Cte aquela certeza no real: ele jáse pergunta Por que não
htar a minha felicidade?.. ", sua imaginação estogueada,

Dostoiévski: "Bobók" 141


aliada àambiçào, leva-o n£o Só a desejar cair nas graças da
velha condessa - "e que tal se a velha condessa me reve-
L.s seu segredo?! Como ate meSMO tornar-se amante
dela, mas isto requer tempo e ela, COm oitenta e sete anos,
node morrer aqualquer momento. O
antigo núcleo racional
ameaça resistir, ele se pergunta se pode crer na história da
três cartas e, como se voltasse a si depois de um sonho deses-
tabilizador, procura consolar-se lançando seu lema de vida:
"Não! Cálculo, moderação e operosidade:
as minhas três cartas seguras, eis que há de tri
plicar, multiplicar por sete o meu capital, e o que
me traráindependencia e tranqüilidade!" (ibidem)

Assim raciocinava Hermann caminhando pelas ruas de


Petersburgo, quando se viu diante da casa da condessa. Até
aqui ele ainda parece vacilar entre a antiga segurança e a
aventura do insólito representada pelo jogo, mas uma for
ça misteriosa se alia à paixáo forte que o caracter1za e o em
purra para o quarto da condessa. Os limites espaciais que o
separavam da fonte do mistério foram ultrapassados, do
ravante ele estarátotalmente dominado pela atmosfera do
fantástico. O narrador informa que a condessa, como todos
os velhos, "sofria de insônia", e assim prepara estrutural
mente a narrativa para o encontro dos dois, Eis Hermann
finalmente diante da condessa. Ele Ihe pede para revelar o
segredo das três cartas, a condessa alega que essa história
tinha sido uma "brincadeira", ele diz que com isso não se
brinca, passa a implorar de joelhos, e como a velha não reve
la osegredo, ele faz uma declaraçãoque o coloca de vez no
territóriodo fantástico:

Talvez ele esteja ligado a um pecado horrível,


à perda da salvação eterna, a um pactodemonia
co... estou disposto a tomar oseu pecado sobre a

142 Paulo Bezerra


iba alma. Desvende-me apenas oseu segredo."
idem, p. 190 -gr1tos nossos)
Ai estáum elo
fundamental da cadeia do fantástico:
Hermann lança a suposição de
um pecado decorrente de
que osegredo esteja ligado a
um pacto demoníaco,
assumir esse
pecado epropõe, talvez serm se dar dispõe-se a
aacto com odemonio. Poderia conta, um
parecer
clusãosobre pacto com odemônio tiradaexagero uma con
de simples supo
sicão subjetiva do protagonista. Contudo, essa conclusão
ganha plena justificativa com a definição objetiva de Her
mann feita por Tömsk1 a Lizavieta Ivánovna, apenas
duas
páginas adiante:

"Este Hermann... éuma pessoa verdadeira


mente romântica: tem perfil de Napoleão e alma de
Mefistófeles." (idem, p. 192)
Achave do fantástico estáforjada: Hermann reúne em
imagem o perfil heróico de Napoleão, que é capaz de
derrubar todas as barreiras do mundo realcom forças deste
mesmo mundo para realizar seu projeto, e o perfil demonía
co de Mefistófeles, força superior capaz de superar qualquer
obstáculo do mundomaterial dos homens e levar Hermann
a realizar seu sonho de enriquecimento porque, no dzer de
uma estudiosa dos pactos com odemönio,
"odiabo vai trazendo outras possibilidades de vi
da, atéentão nãoexperimentadas" (Pires Ferreira,
1995, p. 66),
clima
CeSsas possibilidades estão nas três cartas. Portanto, o
pacto com o
dO 1antástico estálançado: Hermann propöe osust0,
velha morre de ele nào
demônio
Sente
em troca dosegredo, aabafar
mas não pode
"totalmente a voz da
remorso,
143
Dostoiévski: "Bobók
acusa de "assassino da velha":;
cOnsciencid que 0 ele
"poucate autentica... porem, muitos preconceitos" , vaitem ao
morta o olha com deboche e
velório cparece-lhe que a pisca
um olho, cle tropeça e
cai para trás. Passa esse dia
mente transtornado e, contrariando seus
hábitos. extrema-
bebe mui-
to "na esperança de abatar a perturbação interior» , mas 0

citaainda
vinho lhe excita mais a imaginação. Volta para
para casa e
cainumsono pesado.
Assim, onarrador cria todo um clima psicológico que
solapa a estabilidade daquele Hermann seguro do início da
narrativa elança os ingredientes para airrupção do clássico
sonho fantástico: remorso, infinidade de preconceitos, "teve
a impressãode que a morta dirigia-lhe um olhar de mof
entrecerrando um olho", transtorno d'alma, muito vinho e.
excitação da imaginação. Entretanto Hermann desperta, per
de o son0, senta-se na cama e fica pensando nos funerais da
velha condessa, e aqui se chega ao "ponto culminante de uma
história de fantasmas, que éa aparição do espectro" (Todo
rov, 1975, p. 95). E digna de nota a naturalidade com que o
narrador prepara a cena da apariçãoda morta: Hermann es
tá sentado na cama, alguém olha da rua para dentro de seu
quarto, um instante depois ele ouve alguém abrir a porta do
vestíbulo, pensa que éseuordenança voltando bêbado como
sempre, mas ouvepassos desconhecidos de alguém arrastan
do suavemente os chinelos. Aporta se abre e entra uma mu
Iher de branco, que ele confunde com sua velha ama-de-lei
te, mas tica surpreso com sua presença àquelas horas. Amu
Iher branca desliza e posta-se de súbito diante dele. Hermann
reconhece acondessa, que lhe declara com voz firme:

"- Vim àtua casa contra a minba vontade,


mas tenho ordem de cumprir o teu pedido. Um três,
um sete e um ás vão ganhar seguidamente para tl,
mas com acondição de que não apostes mais de
uma carta por dia... Dito isso, virou-se suavemen

144 Paulo Bezerra


te, caminhou para a
portac desapareceu, sempre
arrastando os chinclos.
ter na ante-sala, e viu queHermann ouviu a porta ba-
pela janela do quarto." alguém tornara aespiar
gritos nossos) (Púchkin, 1999, p. 198 -

Portanto, a morta não voltou por iniciativa própria,


mas contrasua vontade e com ordem de
Hermann, isto é, apareceu por imposiçãocumprir
o pedidode
de força superior,
o que insinua a ideia de ja estar em vigor o
pacto de Hermann
com o demônio,
A partir desse momento intensifica-se a obsessão de Her
mann pelas três cartas. Chega o momento do grande teste, e
as cartas são postas na mesa. Cumprindo a condição
impos
ta pela morta, ele joga uma carta por dia. No primeiro dia sai
o três e ele acerta; no segundo dia saio sete e ele
acerta; no
terceiro dia saemoás e uma dama, ele a exibe pensando ter
um ás, mas em seu lugar tem uma dama de espadas. A dama
está morta pela presença do ás, e aqui se repete a cena do
velório, pois neste momento ele

"teve a impressão de que a dama de espadas en


trecerrava um olho esorria com mota. Espantou-o
aquela semelhança extraordinária...
Avelha! - gritou horrorizado."" (idem, p.
203)
Adama morta confirma para Hermanno logro do pac
t0. Ele enlouquece, e fica o resto dos seus dias em um hospí
CI0, murmurando as palavras fatídicas: "Três, sete, ás! Três,
Cle, dama!...". Como nas histórias de demônio logrado, o
Hermann-Mefistófeles também acaba logrado. Elouco.
Entre "A dama de espadas" e "Bobók" há varios pon
dos pla
e contato, e um deles diz respeito àdualidade
nos do real e do fantástico, o que éé observado com muita

145
Dostoiévski: "Bobók"
pertinácia por luri Mann, segundo quem a representação
nessa obra de Púchkin "desenvolve-se o tempo todo no limite
do fantástico e do real", sendo que em nenhum momento
Púchkinconfirma ou desvela o mistério, deixando com o lei.
tor "duas leituras e sua complexa interação" (Mann, 1988.
D.65).Mann observa ainda que se trata de paralelismo de
versões, da possibilidade de uma leitura dupla (do "fantásti
co" e do "real"), oque pressupõe "a inserção de detalhes
fantásticos no plano real". Jáobservamos que em Bobók"
ocorre esse paralelismo de versões do real e do fantástico, e
a entrada do fantástico no plano real étão notória e indis
cutível que a narração termina sem que se saiba se ocorreu de
fato a assembléia dos mortos. Aliás o próprio Dostoiévski
comenta a obrade Púchkin dentro desse espírito:

"Púchkin, que nos deu quase todas as formas


de arte, escreveu A dama de espadas', 0 apogeu da
arte fantástica. Você acredita que Hermann viu um
espectro eprecisamente em contormidade com sua
concepço de mundo, mas [...] no final da novela
... vocênão sabe ..] se terásaído essa visão da
natureza de Hermann ou se ele era realmente um
daqueles que esteve em contato com o outro mun
do [...]Isso sim que é arte!" (apud Búrsov, 1974, p.
400)

Dostoiévski parece falar de "Bobók", pois também aí o


leitor fica com a dúvida: o narrador teráouvido mesmo as
falas dos mortos ou isto não haverásido decorrência de sua
própria natureza, uma vez que antes ele jáandara ouvindo
vozes?
Quanto à organizaçãoda cena da aparição da condes
sa e da fala dos mortos, é notório o paralelismo estrutural en
tre Bobók" e "A dama de espadas". Em Púchkin, Herman
chega em casa com a imaginação muito excitada pelo vinho,

146 Paulo Bezerra


deita-se e adormecc
fundo.
Mas
ta-se na cama e nesse momento desperta,
perde osono, sen-
alguém olhada
tro do seu quarto pela janela. Ele no dá a rua para den
isso nenhuma
atenção. Em DostoIévski, o narrador já parece bêbado des
de as primeiras linhas da história, no
hloco de pedra em formato de caixãocemitério deita-se num
de mármore, dormita
ecomeca a
cão eaté
ouvir"coisas várias". Aprincípio não presta aten
desdenha. Mas a conversa continua. Ele escuta sons
Surdos, como se as bocas estivessem tapadas por
mas, a despeito de tudo, sons nítidos e muito travesseiros,
próximos. Des
perta, senta-se e passa a escutar atentamente. Em Púchkin,
um minuto depois de olharem da rua pela janelae
não dar atenção, ele ouve alguém abrindo a portaHermann
da ante
sala. Pensa que é seuordenança chegando da rua bêbado co
mosempre. Mas ouve um andar desconhecido, alguém arras
tando chinelos. A porta se abre, entra uma mulher vestida de
branco, ele a confunde com sua velha ama-de-eite mas estra
nha a presença dela ali àquela hora. No entanto a mulher de
branco desliza, posta-se diante dele eele reconhece a condes
sa. Ela fala com voz firme. Como o narrador de *Bobók".
Hermann ouve com muita nitidez as palavras da morta,
A dama de espadas" e Bobók" se aproximam ainda
pela linha do gênero da menipéia. "Bobók" éuma sáira me
nipéia típica, como o demonstrou Bakhtin. A obra de Púch
kin, não sendouma sátira menipéia, apresenta elementos in
discutíveis desse gênero. A menipéia é ogenero que inaugura
arepresentação do tema da "experimentação moral e psico
lógica", de "inusitados estados psicológico-morais anormais
do homem, de toda espécie de loucura... da dupla personali
dade, do devaneio incontido, de sonhos extraordinários, de
paixões limítrofes com a loucura... As fantasias, os sonhos e
a loucura destroem aintegridade épica e trágica do homem
e de seu destino, nele se revelam possibilidades de um outro
homem e de outra vida, ele perde sua perfeição e sua uni
valência, deixando de coincidir consigo mesmo" (Bakhtin,

147
Dostoiévski: "Bobók"
|81, D. 100). Cabe veriticar como esses traços característi.
cOs da menipeiacomo genero se manifestamn em "A dama de
espadas".
Noinicio da história, aimagem de Hermann éa de um
homen absolutamente seguro de suas posses, incapaz de s
crificar o essencial ao supérfluo, dotado da frieza racional do
alemo ecalculista, como o define Tômski. Contudo, está
sob odomínio da paixão pelo jog0, passando noites intei
ras em volta das mesas observando o movimento das cartas
"com uma perturbaçãofebril". Ahistória da condessa e das
três cartas tira-o de seu equilíbrio rotineiro, ele começa a en
trar em um inusitado estado psicológico, anormal para sua
personalidade até então marcada pelo equilibrio, tem seu pri
meiro sonbo extraordinário onde lhe aparecem cartas, uma
mesa coberta de verde, pilhas de notas e montões de moedas
de ouro. Põe uma carta após outra, ganha sem parar, arras
ta para Si O ouro e mete as notas no bolso. Acorda, lamenta
com um suspiro a perda de sua riqueza fantástica, saia an
dar pela cidade enovamente se vê diante da casa da condes
sa, para onde parecia arrastado por uma força ignota". Está
passando por uma experimentação psicológica, que, com o
decorrer da narrativa, irátranstormar-se em experimentação
também moral, o que o levará àpresença da condessa, a exi
gir a revelação do segredo e a sacar da pistola que, mesmo
descarregada, será fatal para a velha. Dominado por um de
vaneio incontido com as cartas, a essa altura reveladas pela
morta, ele passa a comparar moças jovens com o três de co
pas, lembrando oprocedimentodo fetiche em que a forma
fisico-corporal de um produto da cultura épersonificada co
mo símbolo de beleza e objeto do desejo em um ser vivo ou
não; se Ihe perguntam as horas, responde: "cinco para o Se
te". Dominado pela paixão limítrofe com a loucura, Her
mann, que antes não sacrificava o essencial ao supérfluo,
aposta todo o produto da vida de seu pai e da sua qua
renta e sete mil rublos de
economias -e, mesmo ganhando
148
Paulo Bezerra
s duasprimeiras apostas, que játransformavam essas eco
nommas emfortuna,
e Os sonbos e a aposta toda a fortuna e perde. As fanta-
loucura destroem a integridade épica do
bomem eseu destino, e o
culista, que tão bem Hermann inteiro, racional e cal-
cidir consigo
administrava seu
mesno, revela-se outro destino,
deixa de coin-
e acaba com tudo isso
Aestruído, louco destinado a passarorestode seus dias em
e
um manicômio.
Os elementos da sátira
menipéia
tástico, encontrados em "A dama de conjugados com o fan
espadas e "O morto
vivo, mostram que, ao conceber "Bobók" e outros
contos
fantásticos, Dostoiévski jáencontrou o caminho devidamen
te pavimentado por essa tradição na literatura russa. MA
Voltemos àsátira menipéia. Hánesse gênero a catego
ria denominada publicística atualizada, uma espécie de gë M
nero "jornalístico" da Antiguidade, que enfoca em tom mor

daz a atualidade ideológica. Aíocorre uma polêmica aber


ta e velada com escolas ideológicas, filosóficas, científicas,
com tendências e correntes da atualidade, com personalida
des vivas emortas. O gênero perscruta novas tendência_ na
evolução do cotidiano, mostra tipos sociais em surgimento
em todos os segmentos e éuma espécie de diário de escritor
(idem, p. 102).
Atéaqui tratamos a polêmica exclusivamente como ele
mento constituinte do dialogismo. Doravante, seu enfoque
estarádiretamente vinculado ao gênero da menipéia e será
desenvolvido exclusivamente da perspectiva deste gênero.
Apolêmicaem "Bobók" abrange os mais vastos cam
pos da atividade intelectual, especialmente o jornalismo e a
literatura. Na primeira página do conto lemos que "o humor
eobom estilo estão desaparecendo e se aceitam insultos em
Vez de gracejos". A palavra "insultos" tem endereço certo:
a polêmicasobre temas da atualidade desenvolvida pelo fo
Ihetinistae crítico V. P. Buriênin e pelo jornalistae crítico N.
K, Mikhailóvski nos jornais S.-Peterbúrgskie Viédomosti e

Dostoiévski: "Bobók"
Otetchestrene Zapiski, representantes dos campos de-
mocrátio)e liberal, respectivamente, na crítica
tomacalorado da polêmica atingia amiúde
baivando freqüentemente
literária.
questöes 0
pessoais,
nível da linguagem e desembo-
candocmxingamentos, o que muito Dostoiév-
ski. Isto podemos constatar lendo "Duas notas do redator"
(Dr Zamiétki Redaktora), texto publicado no número de
iunhode 1873 no Grajdanin, onde Dostoiévski se queiya
muito da má qualidade intelectualle principalmente do bai-
Xo tom do estilo e dos xingamentos que dominam os escritos
dos seussconfrades da crítica literária e da imprensa. Mostra
que nãose trata de fatos isolados, mas de uma tendênciade
sua atualidade. Aprimeira preocupação desses jornalistas
fazer com que acoisa "saia liberal". Mas, para Dostoiévski.
esse tipo de jornalista não sabe como escrever de forma libe
ral, simplesmente

"porque nunca teve uma única idéia própria e des


conhece inteiramente o que, na essência, deva ser
liberal... Uma menina enfia um alfinete na cabeça
de outra criança, e ele acha que isso é bom porque
é liberal: ela estava protestando contra o despotis
mo. Não sabe, absolutamente, o que fazer com os
casos de suicídio, que se tornaram freqüentes, e
com o terrível índice atual de embriaguez. Não ou
sa correr o risco de escrever sobre esses assuntos
com repugnância e horror: jáque isso não sairia li
beral; por via das dúvidas publicaos seus deboches.
Para isso se elaborou o mais repugnante e 0 mais
tolo dos tons." (Dostoiévski, 1980h, pp. 158-9)

Dostoiévski diz ainda que se Bielinski (morto em 1848)


aparecesse e não informassem esses jornalistas que se trata
va de Bielinski, eles começariam imediatamente a xingá-lo. E
mesmo que Ihos informassem, após algum tempo passariam

150
Paulo Bezerra
axnga-lo do nesmo jeito. Ele
envolva um crítico e jornalista lamenta que essa tendencia
como Mikhailóvski, a quem
considera como "um dos
haver em publicistas mais sinceros que pode
Petersburgo", e diz não entender "a animosidade
rãoobstinada e continua que nutre por o
nhor Z do S.-Peterbúrgskie Viédomosti" ele(idem,respeitável
pp.
se
Sabe-se que esse senhor Z é Buriênin, e Dostoiévski156-7).
diz la
mentar
"sinceramente" situação e estar certo de que es
essa
ses dois jornalistase críticos poderiam
perfeitamente vir a ser
amigos se nao nutrissem tanta animosidade um pelo outro
(ibidem).
As referências acima mostram que os tais
"insultos" não
são casos isolados, mas constituem uma tendência da atua
lidade jornalística de Dostoiévski, tendência essa que serviu
de motivo àquela alusão na primeira página de "Bobók". O
mesmo tema volta no parágrafo seguinte em tom mais acen
tuado: *De tanto se morderem acabaram quebrando uns aos
outros até o últimodente". Aqui aquestão jádesemboca no
campo da violência. Como informaGalagan, oponto culmi
nante dessa polêmica toi um processo movido contra os jor
nais S.-Peterbúrgskie Viédomostie Viéstnik Eevrópi, motiva
do por um duelo entre os jornalistas E. I. Iútin e A. F. Jókhov
em maio de 1872, que culminou na morte do último. Infor
ma Galagan que um dos envolvidos no processo foi V. P. Bu
riênin, padrinho de Iútin no duelo, e que, nos materiais do
processo, havia uma carta escrita pela vítima ao irmão, onde
se lê: "Iútin disse a uma pessoa que conhece tatos que me
comprometem". Galagan acrescenta que a palavra grifada
dos membros
e empregada em substituição ao nome de um
do círculo literário liberal'", isto é, Buriênin, e isto dá ain
reterência de Jókhov
da mais fundamento para supor que a
atenção de Dostoiévski
a "uma pessoa" tenha chamado a
(Galagan, 1978, p. 161). como
Dostoiévski usa o episódio referido por Galagan
mordem e não
matéria de polêmicacom os jornalistas que se

151
Dostoiévski: "Bobók"
so quebram 0s dentes unsdos Outros, mas atése matam a ti.
ros em duclos. Com excepcionalcapacidade para condensar
Sentidosen um mínimo de palavras, ele consegue, em apenas
Na inha, registrar uma tendência da sua atualidade jorna
listica efazer de Buriênin, um dos representantes dessa ten
dencia, oprotótipo do protagonista enarrador de "Bobók».
Apreocupação de Dostoiévski com o nível ea qualidade
do jornalismo estádiretamente relacionada ao problema da
formaço profissional eda propriedade da opinio, fenôÓme
nos que ele vê negligenciados, percebendo essa negligência
também como uma tendência da vida russa em geral e de sua
atualidade em particular. E dentro desse espírito que ele diz:
"Não gosto quando alguém apenas com instrução geral se
mete a especialista: entre nós isso acontece a torto e a direi
to.Civis gostam de julgar assuntos militares, e até da alçada
de marechais-de-campo, gente com formação em engenharia
discute mais filosofia e economia política". Os autores das
notas da edição russa a "Bobók" comentam essa passagem
da seguinte maneira:

"Entre os 'civis' que gostam de julgar assuntos


de marechais-de-campo deve ser mencionado [..] o
sociólogo A.P. Strónin (1827-1889); uma resenha
de seu livro A política como ciência foi publicada
no mesmo número do Grajdanin em que saiu 'Bo
bók' [...] Gente com formação em engenharia', que
discute filosofia e economia política, é principal
mente N. K. Mikhailóvski, gque de 185S6 a 1863 es
tudou no instituto de geologia de Petersburgo (.."
(Arkhípova-Bogdánova et al., 1980, p. 403)
Anota, porém, omite o nome de P. N. Tkatchov, que
havia estudado direito mas escrevia praticamente sobre todos
os temas da área de humanidades, inclusive sobre crítica li
teråria, e começara a publicar no jornal Epókba dos irmãos

152
Paulo Bezerra
)ostoicvski. Tkatchov fez. a crítica maisimplacável de Os de
òMOS, na qual vaticinou a ruína de
a. Demais, com0 Dostoiévskicomo artis
representante um dos
de
querda russa, I katchov certamente se sentiusegmentOs da es
la representada de forma tão atingido ao ve
pouco lisonjeira nesse roman
ce, o que talvez tenha
crítica, além do
influenciado o reducionismo de sua
evidente
meandros de um romance despreparo para compreender os
tão complexo e tão inovador em
termos formaiscomo Os demônios. Isso não
passou
cebido a Dostoiévski, quecertamente incluiu Tkatchovdesper
entre
as tais pessoas que tem apenas "instrução geral, mas
se
metem a especialista".
Em "O morto vivo", também
encontramos essa publ1
cística atualizada em forma de crônica do cotidiano e da vi
da burocrática. Através de uma espécie de viagem sentimen
tal" do defunto narrador, o leitor vai tomando conhecimento
da corrida por cargos, na qual os burocratas se digladiam,
cada um caluniando o concorrente, bem como da maneira
sórdida e impune como os altos burocratas usam a máquina
do Estado para enriquecimento pessoal, apropriando-se de
recursos que seriam destinados a pessoas socialmente des
protegidas, como ocorre com Tarassiêvitch, que é desmas
carado em Bobók".
Outra polêmica desenvolvida por Dostoiévski em Bo
bók" estácentrada na atualidade literária. Segundo os mes
mos autores das notas da edição russa a Bobók",a socieda
de erótica instituída por Kliniêvitch e seus pares no reino dos
mortos se baseia em protótipos da literatura erótica antiga,
mas principalmente no romance Sacrifício noturno' (Jertva
Vietchérnaia), de P. D. Boboríkin (1836-1891). Aqueles au

14 Não estamos seguros de que essa seja a tradução mais adequada


desse título, jáque não nos foi possível ter acesso ao próprio texto do ro
vítima,
mance. A palavra russa "jertva" tanto pode ser sacrifícioquanto
oblação, oferenda, etc.

153
Dostoiévski: "Bobók"
rores citan longamente a resenha crítica de Saltikóv-Seha.
acsse romance, intitulada "Inovadores de tipo especial: So.
crificio noturno" (Novátoriossóbovo roda: Jertva Vietchér.
2i). Como não nos foi poss1vel ter acesso ao romance de
Boborikin, que integra ovolume IX das obras do escritor
rtica e publicística, 1868-1883, resolvemos consultar dire
y tamente o texto de Schedrín.
Schedrín começa tecendo comentários gerais
sobre a
gente vazia einsignificante, que ele chama de trastes (kblam).
e faz uma afirmação que nos interessa por estar relacionada
aoobjeto de nossa discussão.

"Em si mesmos, os trastes ... não passam de


trastes, mas é notável sua persistência histórica [...]
não se pode dar um passo na vida sem se enredar
neles ou ao menos senti-los sob os pés ...]Tudois
so leva a pensar que o mundo da nulidade das as
pirações, da vulgaridade dos ideais e da licencio
sidade do pensamento nem de longe foi erradicado ,
[...]sua influência negativa sobre os êxitos da so
ciedade ainda é enorme eé de duvidar que não cres
ça na mesma proporção com que diminuia influên
cia positiva." (Schedrín, 1970, p. 36)

Schedrín aborda a presenca dos trastes" não como te


nomeno particular, mas como um mundo arraigado que,
apesar da nulidade de suas aspirações e da vulgaridade dos
Ideais, continua a envolver os indivíduos do mesmo modo e
com a mesma persistência comn que o fazia no mundo dos
Valkovski, lançando uma ponte entre esse mundo represe
tado em Humilhados e ofendidos, de 1861, e
n0, de 1868. Isto abre Sacrificio noture
perspectiva paraconsiderar que aquert
mundosem princípios, narrado e acalentado
tem continuidade em Sacrificio por Valkovsi
tendencia da atualidade com quenoturno, constituindo um
Dostoiévski polem1za d
154
Paulo Bezerra
retamente, ao levar seus reflexos imediatos para o reino sub
terrâneo de Kliniêvitch e companhia.
Oromance de Boboríkin éescrito em forma de diário
de uma jovem viúva, que recorda o falecido, e a primeira coi
sa que lhe vem àmente são as carícias dele. A viúva diz não
saber se, quando ele a cortejava, falava algo de si ou lhe
"corria as pupilas pelo corpo". Agora "compreendicom to
do omeu corpoo que significa um homem olhar daquele jei
to para nós... Ele era tão arrebatado em suas carícias que
tudo voava" (apud Schedrín, 1970, p. 39grifos de Sche
drín). Schedrín cita outra passagem em que a heroína narra
um encontro com Dombróvitch, o protagonista e seu novo
parceiro:

"Não tenho que me justificar nem me enver


gonhar perante ninguém. Eu me defendi como pu
de. E verdade que podia gritar; mas eu estava fora
de mim. Foi um acesso, a princípio de uma alegria
nervosa, depois de prostração [...]Não hápalavras
adequadas para exprimiro que uma mulher sente
quando a tratam como objeto! (idem, p. 41)
os ho
A heroína narra detalhes de sua intimidade com
envergonhar
mens sem necessidade de se "justificar nem se
ora se
perante ninguém". Atingiu o mesmo estágio em que
assim
encontra Avdótia Ignátievna no reinodos mortos, que
reage à proposta de Kliniêvitch:
envergonhar de
*Ah, como eu quero não me
envergonhava,
nada! [...]apesar de tudo láeu me terrível von
terrível, uma
mas aquiestoucom uma
nada!"
tade de nãome envergonhar de
duas mulheres såo inequí
Os pontos comunsentre essas
Schedrín concluique a jovem viúva faz parte do ciclo
vOcos.
155
Dostoiévski: "Bobók"
daquelas "mulheres russas ociosas" , que desde
desde tenra moci-
dade sempre tiveram seus designios direcionados sexclusiva
mente para o prazer. E acrescenta que a
perversão
"é resultado do ócio", O mesmo pode ser dito
Ignátievna. sobre corporal
Avdótia
Se nas imagens da jovem viúva e de
OS traços Se cruzam, o mesmo Avdótia lgnáievna
serve para aproximar Kli-
niÁvitch Dombróvitch, protagonista de Sacrificio
e
n0, Como mostra Schedrin, esse notur
protagonista uma célébri.
té literária, um daqueles canalhas tão
é
ples fato de tocá-los faz a gente sentir
pegajosos que o sim

necessidade de esfregar-se. Mas canalha épara


canalha e o canalha mais acanalhado vence, como
sempre, e absorve o menos canalha." (Schedrín.
1970, p. 40)
Ao caracterizar esses "canalhas, Schedrín acrescenta
que são aqueles vadios puros-sangues que não
olhar conseguem
para uma madona sem que a associem a mulheres de
Vida fácil, e sempre "salivam ao verem uma mulher bonita.
Nesse rol de indivíduos com incontinência erótica entra tam
bém o velho conselheiro Tarassiêvitch de "Bobók".
Os autores das notas a Bobók" levantam em Sacrifi
CIOnOturno outros elementos sobre a personagem Dombro
Vitch que aproximam ainda mais sua imagem da
imagem de
Kliniêvitch. Os próprios autores comentam que as dc
que Dombróvitch incute àfogosa viúva são
tas e muito semelhantes ao mot (sic) de simples, concre
Kliniêvitch":
.]épreciso saber auferir prazer davida au
têntica. Com frases agridoces não se faz nada. INu
ma sociedade mundana comoa nossa de
go ainda dápara viver; Petersbur
Ivan evidentemente, sabendo |]
Alieksándrovitch Khliestakóy diz que gosta
156
Paulo Bezerra
de'colher as flores do prazer'. Mas ficai
que não énada fácil colh-las de sabendo
ediverso ...] Viver na modo inteligente
moleza e não temer nada."
(Boboríkin, pp. 46-8, apud
et al., 1980, p. 405) Arkhípova-Bogdánova
Acrescentam oS autores das notas: o "não se envergo
nhar de nada" de Kliniêvitch é, no fundo,
uma variante do
apelo de Dombróvitch não temer nada". E concluem: na
prática, a teoria de Dombróvitch se realiza nas "noites ate
nienses,onde tudo épermitido" e todos se reúnem para
*divertir-se"; aheroína do romance declara que todos que
rem amar "sem quaisquer frases nem melodramas" e *viver
muito, curtindo "nosso prazer". Com esse climae essa dis
posição, as noites alegres desembocam rapidamente em or
gias incontroláveis:

"O jantar setransformou em verdadeira orgia.


E eu superei a todos. Em mim não restara uma go
ta de vergonha. Eu estava como no alguma endemo
niada [...]Por entre os vapores do vinho (tínhamos
bebido uma quantidade enorme de champanhe) ou
via-se o ruidoso gargalhar dos homens, gritos, ga
nidos, um riso histérico, e em toda a sala o êxtase,
oêxtase, o êxtase!" (Boboríkin, p. 169, apud Ar
khípova-Bogdánova et al., 1980, p. 405)

Observe-se oparalelismo com "Bobók": "Ergueu-se


uma berraria demorada e frenética, motim e alarido, e sóse
Avdó
Ouviam os guinchos impacientes e quase histéricos de
depravados che
tia lgnátievna". Em Sacrifícionoturno, os cada um dos ho
"Fizemos
5am a participar de um petit jeu: amor. Quanto riso!". Em
primeiro
ens contar sobre o seu contar em voz
Bobók", diz Kliniêvitch: "Todos nós vamos
envergonharmos de nada.
alta as nOssas históriasjá sem nos

157
Dostoiévski: "Bobók"
Screi oprimeiro de
todos a contara minha história.
sou dos sensuais".
Eu [...
Os exemplos citados mostram, de modo bastante palpá.
vel, oquanto Dostoiévskirecria no reino dos mortos um cli:
ma de tarra erótica muitosemelhante ao do Sacrificio notur-
20, SÐ que em tom de paródia. Aliás, segundo os autores das
noras a "Bobók, no início dos anos setenta chamoua aten
ção de Dostoiévskio pseudônimo Bob", um dos vários de
Boboríkin, que Buriênin transformou em Pierre Bobó(Arkhí.
pova-Bogdánova et al., 1980, p. 404). Eesse nome que figu
ra em um folhetim de Dostoiévski, publicado em 1878 no
Grajdanin com o título "Dos passeios de Kuzmá Prutkóv no
verão", onde ele narra que, num final de tarde, na ilha de
leláguin, um Tritão emergiu de repente, e nuzinho, iante do
público. As senhoras acorreram de todos os lados para lhe
oferecer bombons, mas o ser mitológico, sem querer negar a
antiga natureza de sátiro das águas,começou a dar tais vol
teios com ocorpo diante das senhoras quetodas fugiram dele
com risos esganiçados, escondendo suas filhas mais crescidas,
atitude que o Tritão acompanhou com uma saraivada de ex
pressões bem desavergonhadas, tornando a coisa ainda mais
divertida. Feito isso, o ser misterioso mergulhouese foi, dei
xando as pessoas discutindo, homens emulheres dizendo que
se tratava de um Tritão absolutamente igual ao dos relógios
de bronze das salas de jantar. Alguns sustentaram a opiniao
de que aquele ser seria o tal de Pierre Bobó, que havia emer
gido comointuito de exibir originalidade. O narrador apr0
veita para acrescentar que essa hipótese está descartada, por
que Pierre Bobóemergiria forçosamente de fraque... (DoS
toiévski, 1980i, p. 248).
Agalhofa desse folhetim, publicado cinco anos depois
de "Bobók"., mostra que Dostoiévski continua a manter a
mesma atitude paródica em relação a Boboríkin, transtor
mando atéa imagem do próprio autor de Sacrificio noturno
em objeto de paródia.

158
Paulo Bezerra
Cabe observar que Boboríkin, adespeito dos
1ào estamuito longe da verdade ao recriar em seuexageros,
o clima das orgias que emreatidade imperava na romance
sociedade
de Petersburgo. O próprioDostoiévski, no iáreferido folhe +

tim "A um mestre", descreve a alta sociedade de


Petersburgo
numa imagem que lembra muito o romance de Boboríkin.
Ele escreve que

"...]nas sociedades masculinas, compreendendo as


mais altas rodas, até velhotes calvos e cobertos de
medalhas [...] depois do jantar e de fartas conver
sas sobre todos os assuntos importantes, inclus1ve
de matéria de Estado, passam às vezes a tratar em
cascata de temas estétiCOs. Esses temas em casca
ta, por sua vez, transbordam rapidamenteem liber
tinagem, em obscenidade, em desbocamentos tais
que a imaginação popular jamais poderia conceber.
Isso acontece com muita freqüência entre todos os
matizes desse círculo de pessoas tão situadas aci
ma do povo. Eles gostam justamente das obsceni
dades e do requinte das obscenidades, e não tanto
da palavra indecente quanto da idéia que ela encer
ra; gostam da vileza da degradação, gostam exata
mente do fedor..." (Dostoiévski, 1980g, p. 116)

recriar
A longa citação mostra que "Bobók", além de
dialogicamente um tema desenvolvido por Boboríkin, tem
alta
suas raízes profundamente fincadas na realidade da
SOciedade russa, observada pelo próprio Dostoiévski. A li
bertinagern dominante nesse luciânico reino dos mortos é
esteras sociais.
mera projeção do que acontecia nas altas
onde imperavam normas de vida soc1alque esses mortos pre
tendem prolongar pelos dois ou três meses de vida que lhes
representa algu
restam, porque, aofim e aocabo, o túmulo
ma cIsa.

159
Dostoiévski: "Bobók"
Ouecomparaçoes caberia estabelccer, a guisa de cncer.
ramento, cntre Sacrifício noturno e "Bobók"? Pelo que se
depreende da critica, oromance de Boboríkin teve como t t
o fm distrair seu leitor, seim qualquer perspectiva crítica em
relacão a0 mundo que represcntou. Já Dostoiévski produziu.
metonimicamente, uma representação Complexa desse mun
do, tazendo imperar no reino dos mortos um clima de ak
solutaliberdade paraque seus representantes se revelassem
Integralmente e externassem sua última posição "em vida"
naqueles dois ou três meses que lhes restavam. Recriou esse
mundo a partir da perspectiva de suafinitude, mostrando-0
humanamente pobre e desprovido de um sentido duradou
ro, ummundo sem um projeto mnaior, restrito a personalid
des sem alcance histórico. Parodiouo Sacrifício noturno,
polemizandocom ele comno tendência de uma literatura eró
tica de baixa qualidade estética.
Dostoiévski tinha um amplo conhecimento das formas
de representação antigas, e adaptou-as com virtuosisno às
novas conquistas da arte narrativa. Em Bobók", funde o
fantástico experimental da antiga sátira menipéia comfor
mas modernas do fantástico, aplicando a estas o princípio da
verossimilhança num sentido bem próximo de Aristóteles,
preterindo "coisas impossíveis mas críveis" a coisas possí
veis mas incríveis" (Aristóteles, 1973, p. 467), pois, como
nag e possivel que mortos falem e o narrador os ouve acor
dado, era necessário que0 impossível se tornasse crivel para
assum1raqualidade de verossímil. Assim, ocritério de veros
SImilhança dos discursos e pensamentos emitidos pelos mo
tos obedece a uma coerência interna do plano estetiCO ou
CompositivO, uma vez que dessa perspectiva oque de t«
Importa n£o éa verdade, mas a aparência de verdade ou
TOSSImilhança. Aqui o autor transpõe paraa construçdo
princípio da yerossimilhança- peratetisme-ede planos real e
fantástico que alicerça a narratiya, estruturando-os sobre
dois planos estéticos: no primeiro plano, ocritério de veros-
160
Paulo Bezerra
M

wilnillhança serve para tornar críveis as falas dos mortos, pois


wi0ouvidas por um
autro plano, tambemprotagonista
jápredisposto para tal; no
estetico porém mais elevado, a veros
eimilhança jáse traduz na correspondência das falas e pen
eamentos dos MortoS aos seus caracteres sociais, estéticOS e
ideológicos. E através deste segundo plano estético que se
manifesta o plano do tantástico, que, para Dostoiévski, não
&seno uma das formas de manifestação do real.
Essas formas se concretizam na absoluta
liberdade de
palavra e ação que o autor dá àquelas personagens aristo
ráticas, usandoo método da anácrise como meio de experi
mentá-las moral e psícologicamente, experimentando-lhes as
verdades, tendências e hábitos, fazendo-as externar suaúlti
ma posição diante da vida" e do mundo. Eo que se verifi
ca? Elas se revelam capazes apenas de continuar por inércia
omodo de vida que na sociedade aristocrática as caracteri
zava como classe usufruidora;agora, livres das mínimas nor
mas sociais de comportamento que lhes impunham as *cor
das podres", esses aristocratas só são capazes de propor o
usufruto da liberdade total. Como antes nunca tiveram um Kern
projeto de vida respaldado em princípios evalores, agora não
conseguem ir além da proposta de abolir a vergonha e insti
tuir o desnudamento total.
E importanteassinalar quea proposta de desnudamen
dos
to total, mesmo sem ter sido posta em prática no reino
mortos porque foi interrompida pelo espirro do narrador,
+efetua de fato o desnudamento-da sociedade aristocrática dos
VIvOs. (A afirmacãodo filósofo Platon Nikoláievitch, segun
apenas na Cons
do quem os restos de vida se concentram
que
Cienciae a vida continua comoque por inercia,mostra
começara ain
a decomposição desses cadáveres aristocratas
atitudes de Kliniêvitch, Le
da em vida, pois. pelas palavras e
que
Dieziátnikov, Tarassiêvitche Avdótia lgnátievna, vemoscima
e passavam por
Cies desprezavan adignidade humana dota-
norteiam uma comunidade humana
dos princípios que
Dostoiévski: "Bobók" ptzt5w 161
da daquclegrau minimamente aceitável de civilidadee decén-
cia.Como para Dostoiévski oo homem decaido que não ten-
ta reabilitar-se perde aprópria dignidade, a condição huma-
a razão de viver, esses mortos
na c, com esta,
aristocratas
Nerderamo sentido da dignidade humana e a razão de viver
e, por iss0, não passam de cadáveres em decomposição. E
uma vez que estão afastados de quaisquer princípios morais
eacham desnecessário observa-os ainda que seja por pura hi.
pocrisia, resolvem não mentire passar o tempo que Ihes res.
ta namais desavergonhada verdade. Daía propostade todos
tirarem a roupa, recebida com entusiasmo pela mulridäo
Neste ponto chocam-se duas verdades: a verdade
desavergo-
nhada da aristocracia eaverdade do autor, que reage através
do narrador: "Não, isso eu não posso admitir... Perversão em
um lugar como este, perversão das últ1mas esperanças.. De
ram-lhes, presentearam-nOs com esses lampejos e..."
As reticências falam por si; écomo seo autor dissesse:
esses aristocratas receberam de presente esses últimos lam.
pejos de vida e consciência como uma experimentação e não
foram capazes de propor senão o mesmo hedonismo vazio,
as mesmas trivialidades que lhes marcaram a existência en
quanto vivos. A única nota destoante desse universo éo ge
neral Piervoiêdov, que resiste e protesta, porém seus protes
tos caem no vazioe só onarrador os ouve. Asimbologia do
pão que onarrador atira ao chão, dizendo que não épeca
do esfarelar pão sobre a terra, é sintomática para qualificar
esses aristocratas: Bakhtin observa que esse episódio evoca
uma simbólica de tipo carnavalesco, aludindo aos temas da
semeadura eda fecundação (Bakhtin, 1981, p. 120), isto é,
ao tema da perpetuação e renovação permanente do ciclo vi
tal. Oresto de sanduíche láem cima, "coisa boba einopor
tuna" pelo lugar em que se encontra, evoca fertilidade, ao
passo que os aristocratas lá embaixo evocam apenas esterj
lidade, a esterilidade de sua classe, cuja vida continuam "por
inércia", segundo palavras do filósofo tumular Platon Niko

162 Paulo Bezerra


Jáievitch. Carentes de um princípioe de valores que Ihe[ jus
tifiquem aexistência, desprovidos de iniciativa
criadora, es
ses aristocratas, já representados por Dostoiévski em crise
profunda em Os demônios, Sóconseguem reproduzir sua ro
tina social, os mesmos velhos modelos de
comportamento
que lhes caracterizaram a existência, agora reduzida a dois
outrês meses de resto de vida.
Dostoiévski usou com grande virtuosismo a sátira me
nipéia, explorando quase àexaustão suas potencialidades
dialógicas em "Bobók" e recriando o gênero em uma moda
lidade compacta de excepcional concisão formal e extraor
dinária abrangência temática. Revelou agrande capacidade
do genero para experimentar as diversas tendências de sua
época, recriou o diálogo no reino dos mnortos de Lucian0 e
mostrou que a sátira menipéia éum importantíssimo gêne
rode representação realista das relações sociais, culturais e
ideológicas.

163
Dostojévski: -Bobók"

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