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DOSTOIÉVSKI: "BOBÓK*
Tradução e análise do conto
editora 34
EDITORA 4
Editora34 Lrda.
Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000
SioPaulo- SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com he
Imagem da capa:
Apartir de desenbo abico-de-pena de Oswaldo Goeldi
autoriada sua reprodução pela Associação Artistica Cultural
Oswaldo Goeldi - wuw.oswaldogoeldi.com.br)
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:
Bracher o Malta Produção Gráfica
Revisao:
Cide Piquet
Marna Kater
lara Roln1k
1 Ediçao- 2005,
Nota introdutória 11
"Bobók" 13
Bibliografia 165
109
Dostoiévski: "Bobók"
a análise de "Bobók" e mostrar como essa
obra
atualidade e se posiciona diante dela. Não
cabe aqui
discute
sua
vantamento histórico do gener0, de suas um le-
origens, etc., para o
que remetemnos ao capítulo IV de Problemas da poética de
Dostoiévskie ao capítulo "Epos e romance" de
literaturae estética, ambos de Bakhtin. Ouestões de
Vejamos, em termos breves, o que
menipéia eque papel lhe coube na caracteriza daa sátira
como gênerg. consolidação prosa
A sátira menipéia
consolida a tendência de
aproximar a
narração de seu objeto, os tempos da
ciado, eliminando qualquer tipo de enunciação e do enun
componentes douniverso representado, distância entre os pólos
c¡mento radical docentro operando um deslo
axiológico-temporal da orientação
artística (Bakhtin, 1975, p. 468) e
do espaço e do tempo, que subvertendo a hierarquia
passam a ser livres de qualquer
injunção de gênero. Desaparece qualquer resquício de barrei
ra hierárquica, social, etária,
Cional, lingüística, etc.; entre sexual, religiosa, ideológica, na
os participantes do
há nenhuma espécie de diálogo não
medo, resultando daí uma reverência, regra de decoro, etiqueta,
sob a qual as coisas são ditas completa liberdade de expressão
com naturalidade e o riso de
sempenha um papel mais grosseiro do que desempenhara atë
então. A ausência de formas de
ralmente de pernas para o ar, criareverência põe o mundo lite
ainmpresso de um
soluto ma ordem universal das Caos a
de seriedade nO coisas. Desaparece a sensação
comportamento
relação com omundo, das personagens e em Sud
tudo éalvo de rebaixamento grosser
TO e nversoes ousadas, nas
quais os momentos elevados do
nundo aparecemasayessas, com uma faceta oposta aqueld
em que antes se
mundo representa manifestavam, C caos que tOma conta do
um questionamento do status qu0, o pre-
sente está em
mais cOMO processO0 de foormaçäO ee o passado não serve
modelo. riso lproxma e dá o tom a tudo, sua
ambivalência vislumbra WIma lOva Perspectiva de constru-
mut
Paulo Bezerra
cão do universo, assumindo, em casos
cões utópicas. O riso familiariza tudo e particulares, conota
não deixa mais lugar
Dara aimagem elevada do passado absoluto, todo o
da representaçao se constitui numa zona de contato espaço
familiar
entre o mais sagrado e o mais profano, o mais alto eo
mais
baixo, e nessa zona tudo pode ser fisicamente tocado. Como
predomina a familiarização, como tudo édado no contato
imediato, não háqualquer restrição espácio-temporal para o
enredo, que se desloca com total liberdade de fantasia do céu
erra, destaao inferno, do presente ao passado, etc. O rei
hode além-túmulo éo espaço de disputas e do
congraçamen
fo universal, e aí os protagonistas do passado absoluto, dos
tempos lendário e histórico e "os contemporâneos vivos se
encontram de maneira familiar para debates e atécontendas'
(Bakhtin, 1975, p. 4659). Surge, assim, um modelo utopico de
mundo ideal, onde cada indivíduo édono de si mesmoe da
sua palavra, que flui livre de qualquer injunção, uma vez que
não háleis para reger o comportamento dos homens (Bezer
ra, 1989, pp. 64-86).
Acaracterização geral da sátira menipéia que acabamos
de apresentar refere-se àobra de Luciano de Samósata, par
ticularmente ao Diálogo dos mortos, mas muitos desses ele
mentos permaneceram no gênero ou oram reelaborados.
Ao apresentar a arquitetônica da menipeia, Bakhtin a
Subdiv1de em catorze categorias que, mesmo mantendo cada
uma suas peculiaridades, apresentam entre si vários elemen
tos comuns que freqüentemente se repetem, ainda que sem
prejuízo para as referidas peculiaridades. São essas cate
e
gorias que nos permitem ver o gênero em seu dinamismo
funcionamento.
E muito forte na menipéia o peso especítico doelemen
gênero. Em
to comico, que oscila segundo avariedade do
LLuciano de Samósata, particularnmente no Dialogo dos mor
imenso, pois o elemen
tOS, esse peso específicoérealmente
ocupação
tO comico começa coma proposiçaodo riso cOmo
111
Dostoiévski: "Bobók"
prnpalnoreino Plutäo. Diógenes dede
de
Sinope manda
Polux oscgunte recado aa Menipo no Liceu, onde ele ri por
dos
tilosofos quc ali debatem: pede que ele, Menipo, Siga
o Hades, pois lá encontrará mais motivos para rir do queparana
Terra, onde dúvidas como "Quem sabe o que vai acontecer
depojs da morte?" impedem de riràvontade. Lá, no Hades
cle poderá rir sempre, principalmente aover OS ricos, sátra
pas e tiranos rebaixados a ponto de só serem reconhecidos
por seus gemidos. No diálogo XII, Diógenes ri de Alexan-
dre, que em 324 ordenara que os gregos o reconhecessem
ilho Zeus e nem depois de morto abandona aaidéia de
sua
apoteose, tentando transtormar-se em Amon ou Osíris (Il
ano, 1987, pp. 154-5). Este tema já fora utilizado por Sé
necacomo núcleo do enredo da sátira Apocoloquintose do
divino Cláudio.
Aqui o reino dos mortos éo lugar ideal para o riso, pois
está livre das leis que regem a vida terrena, não existe a preo
cupação com a pÓS-Morte nem com o desconhecido, e todos
estãofora doalcance das restrições do mundo dos vivos (das
"cordas podres" de Kliniêvitch em "Bobók"), experimentam
uma vida "nova" (as outras bases" de Kliniêvitçh) em con
dições excepcionais. Por isso podem rir dos ricos, sátrapas
tiranos, que, quando vivos, faziam suas leis e tolhiam o ho
mem, mas aqui, nesse mundo invertido, sentem-se tão "im
potentes e deploráveis" que sópodem servir de objeto de riso.
Na Apocoloquintose do divino Cláudio, de Sêneca, 0
elemento cômico jáse instala no título da obracomo paro
dia da apoteose dos imperadores, isto é, de sua
çaoem deuses depois de mortos. transforma
morto, não se transforma em deusCláudio, porém, uma vezdo
Olimpo edevolvido ao Hades, onde Éaco mas acaba expulso
berto Menandro para que taça dele um o entregainstruçäo
a seu
dos processos. esbirro na
Cláudio sofre um grande rebaixamento cÙ-
mico: começa com a pretenso a deus e
acaba
serviçal de
ex-escravo, transformado en bobo ou abóbora, símbolousda
112
Paulo Bezerra
ie na cultura latina. Esse final cômico é
antecipado pelo
próprio narrador em sua linguagem irreverente, quando, em
um quase dialogo com oleitor, afirma "se alguém me per
guntar de onde tirei estas notícias tão exatas, em primeiro
lugar, se não tiver vontade, não responderei",e aplica a Cláu
Cláu-
dio o provérbio: *Um homem nasce ou rei ou idiota" (Sêne
a. 1980, p. 251). Portanto, o Cláudio que tanto aterroriza
ra em vida e fora tão zeloso na aplicação das leis para coa
gir os homens, morto se torna impotente e deplorável, mero
objeto do riso.
Em Bobók", o elemento cômico ésugerido na abertu
rapor Semión Ardalónovitch, mas só ganha força a partir do
momento em que o narrador chega ao cemitério, introdu
zindo a história do enterro em umn estilo de quase piada: M
"Saípara me divertir, acabei num enterro [..] Com uns quin
ze mortos fui logo dando de cara". Portanto, divertimentoe
mortos numa contigüidade de cunho carnavalesco, forman- (
do o par vida-morte. Bakhtin lembra ovalor simbólico da
combinação ambivalente morte-riso-(alegria)-banquete na
assagem por ele grifada: Notei muita alegria e animação
sincera. Comiuns salgadinbos e tomei um trago" (Bakhtin,
1981, pp. 119-20).Mas écom a inserço das falas dos mor
tos que o conto retoma efetivamente o fio da tradição do ci
clodos diálogos no reinodos mnortos. Aliás, após uma des
crição do enterro, do cemitério e de algumas digressões um
tanto despropositadas, feitas pelo narrador - *Por que os
Imortos ficam tão pesados no caixão?",ele se senta numa
Sepultura e cai em reflexões, passando sintomaticamente de
fosse
"uma exposição de Moscou" àadmiração, "como se dú
é, sem
um tema geral", e conclui: Admirar-se de tudo
tolice bem
VIda, uma tolice |...] nãose admirar de nada é uma Não.
maior". Estranha essa digress£osobre a admiraç£o?
ligado ao ge
Ela éinteriormente motivada por um elemento
citada tem du
nero dos diálogos dos mortos. A passagem
que equi
Plo sentido: primeiro ode polêmica com Paniútin,
113
Dostoiévski: "Bobók"
folko
narara Dostoiévski ao louco de Gogol e assinava seus
artigosde jornal como NI Admirari; segundo, re
tins e gue troes
diretamente a um tolhetim do mesmo Paniútin,
em Petersbureoeos
das visitas ao cemitério de Smolienski
meca descrevendo orgias alcoólicas nos túmulos. Um folheti.
nista ocioso observa diversas cenas e ouve por acaso conver
sas de bêbados, afasta-se e resolve descansar: "estirei-me an
sol, com um cigarro entre os dentes, pedindo mentalmente
desculpas aos mortos pelo incômodo". Mas esse pedido men
tal éouvido por um morto, que desculpa o folhetinista e põe
se a conversar com ele:
114
Paulo Bezerra
Cortaram-na, porque em estado de embria
guez cu chameium conde de cavalariço." (Paniú
tinapud Tunimánov, 1976, p. 161)
Observe-se que a alusão à admiraço anteriormente re
ferida éa última fala do narrador de Bobók" antes de co
mecar a dormitar e ouvir as vozes dos mortos, o que nos
per
mite supor que ela visa a esse folhetim de Paniútin com uma
intenção estruturalmente motivada pela idéia da inserção
imediata do diálogo dos mortos. Portanto, estamos diante do
tema do reino dos mortos, onde se abre o espaço para o
riso
que exerce a função de elemento deflagrador da verdade (cf.
as palavras de Kliniêvitch: "com o intuito de rir, aqui não va
mos mentir") graças àausência das leis que regem a vida ter
rena, e todos estão fora do alcance das restrições do mundo
dos vivos, isto é, das "cordas podres" aludidas por Kliniê
Vitch, eexperimentam o que lhes resta de vida "em outras
bases", eliminando inteiramente as barreiras hierárquicas,
etárias e sociais que separam os homens em vida, suprimin- d
do todas as formas de reverênciae familiarizando a comuni
cação, criando um discurso absolutamente livre. Cabe ob
servar que em Bobók" mantêm-se as formalidades do rela
CIonamento entre as pessoas na sociedade hierarquicamente
estruturada; contudo, tais formalidades são meramente su
perficiais e vão-se relativizando até serem inteiramente neu
tralizadas para se tornarem mero simulacro de relacionamen
to hierárquico no tratamentoe nas atitudes dogeneral Pier
VOiedov, que tenta preservá-las e termina a história comica
mente reduzido também a simulacro do antigo general.
Voltando ao aspecto cômico na menipéia, verificamos
que a comicidade de Alexandre em Luciano e de Cláudio em
Sênecadeve-se àcontradição entre a pretensao à apoteoses
Suaimpossibilidade real. Em "Bobók", essa mesma questão
oCorre com a pretensão de Piervoiêdov a manter sua digni
dade de general noreino dos mortos esacar da espada para
115
Dostoiévski: "Bobók"
defende-la, mas nesse mundo a d1gnidade écoisa absoluta
meute descartada, sua simples ideia soa inoportuna epor isso
ninguém lhe dá omenor crédito e só0 narrador o ouve Écô
mica egrotesca a sanhaerótica de Avdótia Ignátievna come
écômica egrotesca a sensualidade do conselheiro Tara seik
vitch:é profundamentecômica a cena em que Lebieziátnikoy
quer inteirar-se da saúde de Tarassiêvitch, etc. Trata-se de
elementos dogênero que Dostoiévskimanteve essencialmen
te intactos,o que sófoi possível porque a ação se desenvolve
no reino subterrâneo doS mortos.
Aparticularidade mais importante da menipéia como
gênero, segundo Bakhtin, consiste na motivação interior da
fantasia mais audaciosa e da aventura, tudo isso articulado
com o objetivo de criar situações extraordinárias para pro
vocar eexperimentar uma idéia filosófica, uma palavra, uma
verdade (Bakhtin, 1981, p. 98). Neste caso, a fantasia não
serve à materializacão positiva da verdade, mas tão-somen
te àsua exnerimentação, em função da qual o protagonis 19
ta élevado a passar por situações extraordinárias ora no
Céu, ora no Olimpo, ora no inferno, ora em países e lugares
fantásticos.
Em Luciano, essa situação extraordinária já ocorre pela
simplescondição de se realizarem os diálogos no reino dos
mortos, onde a idéia filo_ófica, a palavra ou averdade são ex
perimentadas a todo instante. Na sátira de LucianoOZeus
trágico, Zeus tem plena consciência do perigo "mortal" que
paira sobre clee todo oresto do Olimpo, perigo este repre
sentaó pelo ateísmo Crescente e, principalmente, pelo mate
rialismo filosófico de Epicuro e seus seguidores. Zeus assiste
Por acaso, disfarçado no meio da multidão, aum debate em
praça püblica entre o epicurista Dâmido e o estóico Timocles,
que termina com a vitória do epicurista. O povo dá preteren
Cia ao epicurista e atéo próprio Zeus reconhece que ele ven
ceu o debate, ou seja, venceuo debate quem considerou inu
teis os deuses enegou-lhes a existência,
experimentandoere
116
Paulo Bezerra
|eitando a ideia
nciano, 1987). filosófico-religiosa
da
Na Apocoloquintose, existência
dos deuses
a
verdade obedece a mais de um plano, e experimentação da
Anis. Na vida real, Cláudio tinha a maniavamos referir apenas
de
leis, e por isso seus bajuladores criaram para administrar as
ele aimagem do
imperador justo e humano. No Olimpo, porém, Augusto usa
da palavra e desmascara os crimes
cometidos por
«Fste sujeito ... depois de ter ficado tantos anos Cláudio:
àsombra
do meu nome, agradeceu-me desta maneira:
tar duas Júlias, minhas sobrinhas, uma por mandando
ma
ferro, outra por
fome: depois um sobrinho,Lúcio Silano [...]Dize-me, ódivo
Cláudio, por que todos os que mandaste matar, os condenas
te sem processo nem defesa?" (Sêneca, 1980, p. 257). Logo,
verdade acalentada por Cláudio e seus bajuladores é ex
perimentada e desmascarada. O outro plano éo da própria
apoteose ou deificação de heróis e imperadores, que estava na
tradição greco-romana não escrita mas que os imperadores
usavam a seu bel-prazer,pressionando o Senado para deifi
car outras pessoas, como o fez Cláudio no ano 42, mandan
do deificar Lívia (Júlia Augusta),ex-mulher de Augusto. Ja
nofaz uso da palavra, fala da majestade dos deuses e afirma
que não se devia dar essa honra a um sujeito qualquer, e diz,
dirigindo-se a Cláudio: "nostempos idos [..]era grande hon
ra ser feito deus: agora foi tudo reduzido por vós a uma pa
Ihaçada" (Sêneca, 1980, p. 256). Conseqüentemente, a idéia
da apoteose, acalentada por todos os imperadores romanos
esde Augusto,é experimentada na pessoa de Cláudio e tam
bém desmascarada como farsa, Apesar de ser considerada es
Crita contra Cláudio e a favor de Nero, a Apocoloquintose
acaba parodiando e ridicularizando a verdade-sonho de to
dos esses imperadores.
Em "Bobók",a experimentação da idéia filosófica, da
palavra e da verdade assume características bastante amplas,
aDrindo uma interlocucão com outros textos do mesmo au
alem dos li
tor e de outros autores e levando a questão para
117
Dostoiévski: "Bobók"
ites do próprio texto, a comneçar pela idéja da relação
en
tre vida e morte. Ofilósofo da casa, Platon Nikoláievitch,
desenvolve a idéia segun
autor de vários livros de filosofia,
do a qual quando eles, isto é, os atuais habitantes desse rei
rej-
no dos mortos, ainda estavam vivos, ulgavam "erroneamen.
como se
te a morte como morte". AlL naquele reino, "é
Corpo tornasse a viver", "osrestos)de Vida seconcentramL I
continua coms
em algum ponto d¡ conscIÇncia ..] a vida
que por inércia". Bakhtin assoCia essa discussão aos diálogos
socráticos, gênero precursor da menipéia, e verificamos gue
aconcepção alidesenvolvida é muito próxima da gue Platäo
desenvolve no Fédon.15 Ao discutir a questão da morte como
libertação do pensamento, Sócrates chega a dizer que
13
Devemos essa associação das concepções filosóficas de Platon
Nikoláievitch com as do Fédon de Platão aos autores das excelentes no
tas da edição russa a "Bobók" (Arkhípova-Bogdánova et al., 1980, PP.
405-6). Nós apenas ampliamos a discussio, inserindo passagens do als
curso de Sócrates que consideramos indispensáveis ao enriquecimento d
compreensão de "Bobók".
118
canpien Paulo Bezerra
melhor, há `o_kestos, de vida", como quer Platon Niko
ieitch. Sócrates, pOrem, usa de critério axiológico e deli
Oacesso a esSes restoS de vida, argumentando que "uma
otioa tradição diz Ser muit0 melhor para os bons do
raoS maus". que pa
Sócrates argumenta que, estando a alma livre da prisão
Ja corpo, pode
"cÍncentrar-se em si mesma e sobre si mes
ma (ou "na consciência»,"em algum ponto'
nto" desta, segun
A Platon Nikoláievitch), e acrescenta:
121
Dostoiévski: "Bobók"
seu mundo. Conta a história de uma dama da alta socied,
de, uma condessa de uns vinte e sete a vinte e oito anos, Dri.
meira classe em beleza, e "que busto, que postura, que an
dar!". No seu meio aquela mulher tinha enorme importân.
cia. "As velhas mais orgulhosas e das virtudes mais terríveis
arespeitavam eadulavam... Uma única observação... ou insi
nuação dela podia arruinar uma reputação, tal era a maneira
como se colocara ela na sociedade; até os homens a temiam"
(ibidem). Aquela dama de tantas virtudes e alvo de tanto res
peito e admiraço lançou-se em um "misticismo contem
plativo, aliás também sereno e majestoso... E oque se viu?
Não havia uma devassa mais devassa que aquela mulher, e
eu tive a felicidade de merecer inteiramente sua confiança.
Numa palavra, era seu amante secretoe misterioso". Aque
la mulher era "tão voluptuosa que o próprio marquês de
Sade poderia aprender com ela. Contudo, o mais intenso, o
mais penetrante e emocionante naquele prazer era seu mis
tério e a impudência do engano. Aquela zombaria de tudo o
que a condessa propagava na sociedade como o mais ele
vado, inacessível e inviolável e, por último, aquela diabóli
ca gargalhada interiore a humilhação consciente de tudo o
que não se pode humilhar, e tudo isso sem limite, levado
àquele último dos últimos graus, àquele grau que nem a ima
ginação mais ardente poderia conceber...É, ela era opróprio
diabo em carne e osso", mas um diabo "invencível de tão en
cantador. Até hoje não consigo me lembrar dela sem êxta
se" (idem, pp. 364-5).
Aimagem da condessa devassa, cuja história Valkovski
acaba de narrar, tem relação direta com a imagem de Avdótia
Ignátievna.
Quem éesse príncipe Valkovski? Um descendente de um
ramo nobre arruinado, que começa sua carreira casando-se Vei
com afilha de um comerciante exclusivamente pelo dote. Faz
carreira no serviço público, ocupando cargos que usa Para
enriquecimento e passando por cima de tudo e de todos no
123
Dostoiévski: "Bobók"
Diante de tudoiss0, a proposta de Kliniêvitch, no sen-
tido de passarem os restantes dois ou três meses da manei-
ra mais agradável possível", sem se envergonharem de nada
"contando em voz alta" suas histórias eestabelecendo o rei.
no da "nnais desavergonhada verdade", já encontra ante.
cedentes no príncipe Valkovski. Essa verdade aristocrática
experimentada por esse príncipe e pelo barão Kliniêvitch é.
na visão de Dostoiévski, produto da civilização do século
XIX burguês, objeto,por sua vez, de uma análise implacável
do homem do subsolo, que assim a define:
124
Paulo Bezerra
nortante observar que, em
importante
Dostoiévski, o imaginário
real cstão de tal forma imbricados que aa discussão da verda-
de passa diretamente das personagens ficcionais para o
pró
nrio Dostoiévsk1 jornal1sta, como se verifica no artigo "AI
guma cOisa sobre a mentira" (Niétchtoo
on a90stode 1873no Grajdanin, onde o vranió), publicado
autor escreve:
«Uma delicada reciprocidade da mentira qua
se chega a ser a primeira condição da sociedade rus
sa: em todas as suas reuniões, saraus, clubes, socie
dades científicas, etc... Na Rússia, a verdade quase (A)
sempre tem caráter perfeitamente fantástico... es
tána mesa há um século diante das pessoas e estas
não a tocam, mas correm atrás do inventado jus
tamente porque consideram averdade coisa fan
tástica e utópica... cada um de nós carrega consi
go uma quase nata vergonha de si mesmo e da sua
própria cara." (Dostoiévski, 1980f, p. 119)
125
Dostoiévski: "Bobók"
terirem o princípioda veross1milhança, pois, como reconbe.
ceo próprio Dostoiévski jornalista, na Rússia as pess0as cor
rem atrás do inventado em detrimento da verdade, que con
sideram coisautópica e fantástica. Como a verdade que pre
domina nÍ mundo real éa da aristocracia, é ela também que
vai predominar noreino dos mortos, mas com um adendo: é
uma "verdade desavergonhada", em perfeita sintonia com a
verdade cinica da vida sem princípios acalentada pelo prín
cipe Valkovski, não havendo sequer necessidade de obser
v-ncia de qualquer preceito moral, como ocorre na socieda
de do mundo real da qualesse reino dos nmortos é metonímia.
Mais tarde, em artigo denominado A um mestre" (Utchítie
liu), publicado no Grajdanin de 6de agosto de 1873, Dos
toiévski comenta que ascamadas "estética e intelectualmen
te desenvolvidas" da sociedade russa são incomparavelmen
te "mais devassas que o nosso povo grosseiro" e tão atra
sado; nas sociedades masculinas até velhotes calvos, depois
de lautos jantares e altas discussões de assuntos de Estado,
passam a temas estéticos que transbordam rapidamente em
2 "libertinagem e obscenidade" tais que a imaginação popu
7 lar jamais poderia conceber. Acrescenta que isso acontece
com muita freqüência e envolve todos os matizes desse cír
culode pessoas tão situadas acima do povo" (Dostoiévski,
1980g, p. 116).
Otema da provocação e experimentação da verdade en
volve a história do conselheiro da corte TarassiÇvitch, que
deudesfalque de um dinheiro público destinado a viúvas e
órfãose teve Kliniêvitch como cúmplice. O próprio Klini
vitch narra o fato e também se autodenuncia com a maior
naturalidade. Tarassiêvitch não
não se
se perturba, e limita-se a di
zer que tudo isso éinútil lembrar, uma vez que na vida "hà
tanto sofrimento, tanto martírio e tão pouco castigo.O
mesmo tema envolve também Avdótia Ignátievna, que aca
ba denunciada comocaloteira pelo vendeiro. A experimen
tação dessas verdades acaba em um autodesmascaramento
126
Paulo Bezerra
da aristocracia, pronunciado pelo baro Kliniêvitch, que se
autodetine como "um pulha da
pseudo-alta sociedade", um
dos *baronetes sarnentos", filho de um generalote qual-
quer" esimplesmente ladrão e canalha da pior espécie; pôs
en circulação cinqüenta mil rublos em notas falsas em
socie
dade com Zifel, aquem denunciou para apoderar-se do di
nheiro sozinho.
Contudo, háem "Bobók um conflito de verdades no
aual se chocam essa aristocracia decadente eo remanescen
te de uma aristocracia que ainda guarda alguns vestígios de
princípio e dignidade. Eocaso do general Piervoiêdov, que
também teve os seus pecadilhos em vida, mas não aceita a
máxima do tudo épermitido com que Kliniêvitch e compa
nhia desejam governar o reino dosmortos nas tais novas ba
ses. Mas o general Piervoiêdov está só, seus valores nada sig
nificam nesse mundo sem valores nem princípios, e por isso
ele estáirremediavelmentecondenado ao silêncio.
Por tudo isso, a sociedade tumular em "Bobók" é uma
metonímia da sociedade aristocrática russa, através da qual
se provoca eexperimenta a verdade do universo aristocrático.
Hána menipéia uma modalidade específica do fantás
tico experimental, que é uma observação feita de um ângulo
de visão inusitado,de uma posição situada no alto (Bakhtin,
1981, p. 100), isto é, de cima. Na Apocoloquintose, depois
de expulso do Olimpo, Cláudio éarrastado por Mercúrio e
do alto avista um cortejo imenso e festivo, com todo mun
doalegre, "o povo romano passeava,sentindo-se livre". Ven
que
do, do alto, seu próprio enterr9, "Cláudio compreendeu fan
Bobók", o
CStava morto" (Sêneca, 1980, p. 258). Em
tastico éintroduzido por essa categoriaexperimental; o nar
rador, deitado sobre um "longo bloco de pedra com forma
ouvir "coisas
to de caixãode mámore", dormita e começa a
tapadas
Uiversas, "sons surdos. como se bocas estivessem
posIçao passa
POr travesseiros". Desperta, senta-se, e nesta
narrador estáacordado,
d escutar atentamente". Logo, o
B( 127
Dostoiévski: "Bobók"
atento. e do altosó não vÁ os falantes mas ouve as vVozes, Fstá
introduzido o tema do fantástico pelomodo característico da
menipéia. Vamos encontrar essa mesma categoria do fantás
tico experimental em "O morto vivo" deVOdóievski, on
de o narrador, morto, usa essa condição privilegiada para es
pionar como anda transcorrendo a vida dos outros.
Játivemos oportunidade de citar uma passagem de Dos
toiévski, na qual ele afirma que a sensação do fantástico é
umaconstante em sua vida, de tal forma que ele não conse
gue "renunciar ao estado de espírito fantástico" e continua
um fantasista" mesmo depois de entrado em anos, apesar da
"calvície", da "experiência de vida", etc., etc. E esse espírito
fantástico que preside àconstrução de Bobók", onde o au
tor atinge um virtuosismo tão excepcional na articulação dos
elementos composicionais quea simples perguntaformulada
por Semión Ardalónovitch, na abertura do conto, já introduz
na narrativa um clima de liminaridade de cuja evolução gra
dual brotaráo fantástico como aquela experiência dos limi
tes" de que fala Todorov (1975, p. 101). Esses limites" se
traduzem numa contigüdade e até mesmo numa ju_taposição
de planos em que, na obra de Dostoiévski, o real se manifes
2ta nas suas várias facetas, o empírico mistura-se
"ao simbólico, arealidade aparentemente chãé,
muitas vezes, paródia, estilizaão de uma outra rea
lidade [...] num jogo de máscaras, de duplicaçãodo
mundo, de fragmentação da imagem numa oposi
ção de 'espelhos' [...]na inserção da novela ou ro
mance numa totalidade múltiplae variada ao inti [R/
nito, dinâmica e fluida, em que o real é máscara de
outro real ...J" (Schnaiderman, 1982, p. 67)
Desde o início de Bobók", assistimos auma justapo
sição velada de dois planos -1 um reale um imaginári0, 0
primeiro sugerido por Semión Ardalonovitch ao lançar a
128
Paulo Bezerra
divida quanto ao estado de sobriedade do narrador. Essa
dúvida projeta o espaço liminar emn que se mesclam o real es
rado de espírito do protagonista, povoado pelo sonho per
manente eobsessivo de publicar seus escritos, e oresultado
Psteticamente filtrado do tratamento dispensado por parte da
eritica a Dostoiévskicomo autor de Os demônios, tratamen
to este que ele, como autor primárioß transfigura) em autor
secundário e narrador em "Bobók", que resiste tanto a esse
tratamento. Avoz de Semión Ardalónovitch e os ecos da crí
ica aDostoiévski são dados do mundo real. Aresistência do
protagonista e narrador a esses dados, somada àsua reaçãoL
ao boicote que esse mesmO mundo real lhe impõe, e até àten
tativa de pubicação dos aforismos de Voltaire ("Isso lá é
tempo de Voltaire: é tempo de palerma, não de Voltaire!"),
vai configurando um afastamento gradual do protagonista
em relação a esse mundo emn que ele não encontra espacg, /
porque aí não há lugar para sentenças inteligentes os afo
rismos de Voltaire e vive-se o tempo dos palermas; como
ele, protagonista, é"orgulhoso", não tem o que fazer em um
mundo com o qual não se identifica. E se não se identifica
no plano da sobrevivência, jáque lhe negam a possibilidade
lite
de realizar-se como escritor -"seja como for [...]é um
rato" recusando-lhe a publicação dos escritos e conde
identifica
nando-o a uma atividade estéril e absurda, não se
a única in
Sequer no plano afetivo das raízes fanmiliares, poistambém da
afastado
10rmaço que o textoaventa mostra-o
distante
família, que para ele se esgotana morte do parente : como
"com descortesia
emcuja casa sempre foi recebido
"orgulhoso", não assiste ao Réquiem, pois, se o recebem
e
por que iria ele meter-se
Penas por extrema necessidade,
Seus jantares., ainda gue fossem de tunerais? Por isso vai
Cm como paralele- e real,
COnstruindo seu nmundo imaginário
realidade e crian
CStabelecendo uma distância entre ele e a
alicerçatodo even
do a dualidade de mundossobre aqual se dos dois planos
velada
tO fantástico. Assim, ajçstaposição
129
Dostoiévski: "Bobók"
quc detectanjos no início
do textoe explicitamos na cate
goria de liminaridade evolui e acaba perdendo seu caráter
velado, Como narrador mudando de "caráter", sentindo
doer a cabeça e "ouvindo coisas estranhas"., que não são
"propriamente vOzes mas e como se estivesse algu¿m a0
lado" repetindo "bobók, bobók, bobók", abre-se o espaco
para a ruptura como real e a explicitação do segundo pla
noa do fantástico.
E assim que se articula o movimento do enredo no sen.
tido de chegar ao ponto em que a manifestação do fantásti
. co propriamente-dito parece "natural.Portnova foi muito
feliz ao perceber o quanto as relações "paradoxais" entre o
literatoe o meio foram essenciais para esse movimento do
enredo, que acaba culminando na objetivação desse mundo
real(1a Torma dediálogo dos mortos, na forma do fantásti
co. Para ela, o afastamento entre onarrador e o mundo real
oaproxima do sentido do convívio humano, e quanto mais
ele se dhstancia mais se aproxima detal sentido. Basta que ele
distancie um passo amais dessa vida «normal" em direcão
"ao sonho ou àalucinação" para que essa vida comece a "de
monstrar suas leis com extrema evidência. E essa a motiva
ção estética do fantástico" (Portnova, 1987, p. 97).
Entretanto, não nos interessa a modalidade fantástica
propriamente dita, mas tão-somente aqueles elementos fan
tásticosque poderão somar-se à menipéia ecombinar-se or
ganicamentecom outros componentes desse gênero, abrin
do caminho para uma relação dialógica de "Bobók com J
Qutros_ textos.
Oconto "O morto vivo", de Odóievski, começa com
umagrande interrogação do narrador, que não sabe se esta
VivOOu morto. Depois de apalpar-se de todas as maneiras,
chega àconclusão fatal: estámorto e bem morto. Espanta-se
com a alma se separando do corpo, a alma já separada con
templa o corpo morto estirado nacama, solta um blasfema
tório "Que diacho!" e sai caminhando pela casa, vÁ a sobri
130
Paul Begerra
aha desmaiada, os filhos chorando, tenta
falar com eles, não
ouve a propria v0Z,grita, 05 pulmões parecem emitir um
ven
tinho, pergunta-se se seria um sonho, lembra-se de que na
véspera estivera muito saudável, jogara cartas,
jantara com
apetite, jogara conversa foracom os amigos, enfim, o morto
estáde posse de todas as suas faculdades
cas aisso vaiempreender um passeio mnemonicase gra
pós-morte por todos os
lugares que Ihe marcaram a vida. E interessante como a
mor
te nesse conto éleve, alegre, descontraída, e a partir de
dado
momentoo detunto-narrador começa agostar e a turar pro
veito da condição de morto (como Klinievitch e seus confra
des): nenhuma preocupação, não precisa barbear-se, tomar
banho, trocar de roupa, pode percorrer o mundo inteiro sem
Correr nenhum risco, pode atravessar paredes, penetrar em
todos os segredos... Aqui a narrativa entra na járeferida ca
tegoria do fantástico experimental, a partir da qual o prota
gonista se colocanuma posicão privilegiada e dela observ o
que acontece ao redor. Eomorto, um terrível corrupto em
vida, que teve como credo tudo éabsurdo, tudo é porcaria
|...] no mundo só existe uma coisa: dinbeiro" (Odóievski,
1987, p. 202), que do nada chegou a milionário, resolve per
correr as repartições burocráticas, incluindo a sua, e começa
a ver a possibilidade de tirar vantagem da condição de mor
to. "Quer dizer que para mim não existem portas, nem techa
duras; logo, de mim também no se guardam segredos? [...]
nada mal, palavra, pode ser bastante útil para alguma even
tualidade ...]" (idem, p. 193). Como diria Kliniêvitch em
"Bobók": Aos diabos, ora, pois otúmulo significaalguma
coisa!". O protagonista continua em sua "peregrnação".
Depois de constatar que em todas as repartiçóes por onde
Passa, em vez dos lamentos por sua morte, com0 ele espera
Va, estão de fato contando os podres de sua vida corrupta,
COMentando seus casos amorosos com as duas amantes, en
Tim, se ele pode inteirar-se dos segredos dos outros, inteira
Se também de que os outros eståo a pardos seus. Fica indig
131
Dostoiévski: "Bobók"
nado, resolve verificar CoMo as amantes estão tristes e
sofren-
do comsua mortC; encontra a primeira Com outro, a segun-
da foi a um baile de máscaras. Ele retoma a peregrinação,
entra enm casas de amigoS e vai constatando que se tornou
narração revela que o morto, cha
objetode falações e riso. A
um indivíduo totalmente inescru-
mado Vassili Kuzmitch,foi "esquecendo-se
puloso, que roubou atéa própria sobrinha, pai iá mn
que Ihe deixara o
de aplicar em nome dela letras Kuzmitch está morto
to, que eraseu irmão. Como Vassil1
apoderar
seus filhos discutem a maneiramais adequada de
o outro o ma
se de tais papéis, e estando um deles indeciso,
pai.
ta, o que "choca" ofalecido vivo" estabe
Ofantástico experimental em "O mnorto
Apocoloquintose e "Bo
lece uma pequena ponte entre ele, a pesSoas
bók": como Cláudio, que vÁ Sen próprIO enterroe aspróprios
com os
alegres com sua morte, Vassili Kuzmitch vÇ mal de
estão falando
olhose constata que em toda parte ou
narrador de "Bo
le ouestão alegres com sua morte; como o
ouve as conversas sem ser visto nem molestado. Vassili
bók",
Kuzmitch lembra muitoo Tarassiêvitch de "Bobók" pela sen
sualidadeepelo caráter desenfreadamente corrupto. Entre
comentários sobre
tanto não énosso propósito tecer maiores
como mo
"Omorto vivo', porgue o texto só ns interessa
dalidade do fantástico: ao términoda narração, ficamos sa
bendoque se trata de um sonho,variedade do fantástico mui
XIX. O
to em voga nos idos de trinta e quarenta do século
protagonista reclama da veracidade desse sonho "bobo
"tão vivo...] como se fosse realidade.." (idem, p. 213). Efi-
Camos sabendo que, antes de dormir, ele havia lido um con
to fantástico. Ele reclama dos escritores fantásticos que ficam
"desenterrando os podres" das pessoas em vez de escreverem
cOIsa util, deseja que eles sejam proibidos de escrever e ter
mina a história com uma dúvida típica do espirito dos
suais Valkovski, Tarassiêvitch, Kliniêvitch, etc.: com qual das
duas amantes irá
divertir-se?
132
Paulo Bezerra
Cabe mais uma observação acerca de "O morto vivo":
quando aparece o sonho em obras
fantásticas, estas costu-
mam passar por três estágios: preparação do sÍnho, osonho
e odespertar. O conto de Odóievski evita o primeiro
está
gi0, jácomeça no sonh0, e vela de tal modo a fronteira en
tre realidade efantasia que
que os acontecimentos são descritos
omo reais e sÓno final o leitor fica sabendo que se
tratava
de sonho.
Outra modalidade semelhante de sonho fantástico é0
fazedor de caixões, de Aleksandr Púchkin. Aqui a prepara
ção do sonho se manifesta no pequeno detalhe do desloca
mento: o protagonista se muda com todos os seus petrechos
da rua Basmánaia para a Nikítskaia, experimentando certa
ansiedade com a mudança, e no trajeto já se insinua qualquer
coisa de estranho:
134
Paulo Bezerra
nossível unicamente em estado de transe alcoólico, ele seria
capaz de fazer a brincadeira de convidar seus fregueses defun
ros a um banquete. Quando os convida, Prókhorov já neutra
lizou a fronteira entre realidade epura fantasia, após o que
0ato subsequente de dormir e sonhar émera continuidade da
precondição fantástica por ele deflagrada, eoque vem em se
guida assume tonalidade tão natural que os acontecimentos
do sonho ganham uma aparência de real que sóse desfaz com
odespertar do protagonistaea constatação de que tudo não
passara de sonho. Antes disso, o leitor nem desconfia de que T
está entre dois planos, naquela atmosfera em que se turvam
e seconfundem os contornos do real, dificultando a percep
çãoeatingindo aquele ponto de que fala Jacqueline Held:
"0 fantástico éfeito de atmosfera, e o mo
mento em que se deixao 'real', no sentido estrito e
usual do termo, nem sempre étácil de ser fixado
com precisão." (Held, 1980, p. 67)
135
Dostoiévski: "Bobók"
das as providências para o enterro. Acontece que, antes de
todos esses cpisódios relacionados àfesta do alemão Schulz,
Adrian já vinha acalentando o sonho real de ressarcir-se,
comos funerais de Triúkhina, dos prejuízos que tivera uma
semana antes, quando organizara os funerais de um briga
deiroe caíra uma chuva torrencial, causando sérios preiuí.
zos aos petrechos do agente funerário. A velha Triúkhina
estava àmorte em lugar distante, e Adrian tenia que os her
deiros o deixassem na mão por causa da distânciae fizessem
negócio com empreiteiro mais próximo. E de um virtuosismo
extraordinário a justaposição do sonho real ao sonho fan
tástico que o narrador estabelece. Neste, todos os desejos da
quele são realizadoseo narrador faz um adendo essencial
que dáao sonho fantástico estatuto de realidade: na casa da
morta, Adrian vai ao herdeiro de Triúkhina, sintomatica
mente descrito como "jovem comerciante" que vestia uma
"sobrecasaca da última moda', comunica que todas as pro
videncias para o enterro foram tomadas, e o herdeiro lhe diz
que não regateia preço, confiando naconsciência do agente
funerário. Considerando que o narrador jáinformara bem
antes que Adrian cobrava por suas obras um preço exage
rado àqueles que tinham a infelicidade (e, às vezes, o prazer)
de precisar delas", verifica-se a plena realização do sonho de
ressarcimento daqueles prejuízos, e o leitor conclui que se
trata de uma feliz coincidência e que Adrian ésimplesmente
um homem de sorte. Assim, o narrador joga muito ardilo
samente com dois planos: um do real, configurado no sonho
Concreto de ressarcimento dos prejuízos, o outro, do tantas
tico, que torna "real" aquele desejo de Adrian.
Cabe uma comparação do estatuto do narrador na Cons
trução dosonho em "0 fazedor de caixões" e "Bobók. NO
Conto de Púchkin, o narrador étodo presença,
plano objetivo em que a voz do narrador é predomina
aautenticidade dos fatos quase absolula
clusiva de um narrador quenarrados
fica por conta quase
tudo vê e a tudo assiste. Enu
136
Paulo Bezerra
tanto, cle se
permite pequenas incursões de ordem subjeti
d. propriasdo fantástico, como "teve aaimpresso", "Ihe pa
rvcu de repente ","com mil diabos!", mas é extremamente
narcimonioso.ao dar voz ás personagense sófaz essa
conces
io no rápido episodio dos brindes e cumprimentos mútuos
entre oS convidados de Schulz e na conversa dos mortos Com
Aeian. Em "O morto vivo,de Odóievski, todas as perso
nagens falam e externam seus pontos de Vista, oque nao
noderia ser diferente, jáqueo narrador édefunto e, ainda
aue tente, não consegue estabelecer diálogo com as persona
gens. Ademais, ali a narrativaéo próprio sonho, começa
sonhoe sem nenhum preparativo nem necessidade de digres
s£opara introduzi-lo, desprezando elementos psicológicos
que presidem àintrodução da precondição fantástica. Em
"Bobók", oplano subjetivo predomina absoluto, onarrador
já"ouve coisas estranhas uns sons indefinidos que não são N
propriamente vozes, e isso antes de ir ao cemitério, onde des
ambiente,
taca "em primeirolugar o espírito" que domina o "com
fica horrorizado com o estado das sepulturas, olha
da própria
cautela para as caras dos mortos, desconfiado
"impressionabilidade", não gosta dos sorrisos dos mortos
porque os acha "maus e sonhacom
eles. Conmeça a dormi
tar deitado em um "longo bloco de pedra em
formata de cai
identitica conn os
Xão de mármore" e, nessa posição queo
diversas". Desperta, senta-se,
Inortos, passa a "ouvir coisas tumu
vozes que ven dos
POe-se a escutar atentamente as
l0s, Uma vez desencadeados os diálogos entre os mortos, o
aouvi-los como o faz
narrador nãointerfere neles, limita-se
com a diterençade que
VassiliKuzmitch em "O morto ivo",
consegue participar das Conversas. Em
e tenta mas não respeito aos mortos é da alçada
Dobók", tudo ogue diz
e, uma vez iniciados os
CACIusiva do discurso do narrador
quatro intervençöes, nas quais utili-
diálogos, ele faz apenas
za 379 palavras em 34 linhas contra 3.724
palavras e 361 li-
mortos em seus dialogos, o que mOS
nhas Produzidas pelos
137
Dostoiévski: "Bobók"
tra odomimio absoluto- t so oobjetivo
pBana subjetivo sobre
articulação de tais diátoges e revela o cordão
na
que associa drctamente "Bobók" ao Diálogo dos mortos de urmbilical
Luciano. Quanto àpreparação do sonho ou criação da
pre-
condição fantástica em "Bobók" , essa questão já foi exaus-
analisada. Em "O"O morto vivo" e "0
tivamente
139
Dostoiévski: "Bobók"
sua honra aristocrática, cla acaba apelando para um
cadmirador, oconde Saint-Germain. Em vez de amigo
dinheiro, porém, Saint-Germain lhe revela
revela o
segredoemprestar
cartas misteriosas, com as quais ela resgata a dívida.
de três
Está lançado o elemento do insólito, que irá abalar o
lado racional de Hermann. Mas o narrador não passa direta-
mente da história da condessa, contada por Tômski, a0 es.
tadode espírito provocado em Hermann pela misteriosa his.
tória. Do meio para o final do segundo capítulo da novela
ficamos sabendo que um misterioso oficial de engenharia
anda rondando a casa da condessa, flertando com sua dama
de companhia Lizavieta lvánovna,e só depois Tômski pede
permisso àavò para Ihe apresentar um amigo cujo nome
não menciona mas que percebemos tratar-se de Hermann.
Logo, a história das três cartas misteriosas abala o lado a
cionalefrio do protagonista, que se revela propenso a acre
ditar no insólito, isto é, na sorte que ele imagina estar nas
três cartas misteriosas. Isto o leva a crer que a condessa pos
sa lhe revelar o segredo dessas três cartas, mesmo jáestando
informado de que ela é mãe de quatro filhos, todos jogado
res inveterados, a quem ela jamais revelou tal segredo, co
monão o revelara ao neto Tômski.
Sódepois da solicitação de Tômski o narrador introduz
novos dados sobre o protagonista, através dos quais fica
mos sabendo que Hermann herdara do pai, um alemão rus
Siticado, "um pequeno capital", que ele estava "firmemente
convencido da necesidade de firmar a sua independência"
e por issO não tocava nem nos juros, vivia do soldo e "não
se permitia a menor extravagância", era reservado e am
bicioso".', tinha "fortes paixöes eumaimaginação estoguea
da", era dotado de uma alma de jogador, embora nunca tl
vesse pegado em carta, mas passava noites inteiras (antes
eram sócinco horas!) ao redor das mesas de jogo, observan
do "com uma perturbação febril" os diversos movimentoS
do baralho.
140
Paulo Bezerra
Ao completar, com esses dados, o perfil em
firmeza de que se mes
lam
tambémn
Consciência,
reserva, paixões
extrema parcimônia, ambição
c fortes, imaginação esfogueada e
serturbação febril, o narrador nos fornece uma imagem am
bivalente capaz de absorver elementos dos dois pólos contí
guosda existência o real e o insólito,
lesneito do lado racionale frio, Hermann era mostrando que, a
uma persona
Sem capaz de atravessar a fronteira do real no sentido de sa
ristazer os desejos da sua imaginação esfogueada. Daí sua
recepção da história da condessa:
Ahistória das três cartas
atuou-lhe fortemen
te sobre a imaginação, e não lhe saiu da cabeça a
noite inteira." (Púchkin, 1999, p. 181)
Agora já sabemos que Hermann éambicioso, que pre
tende no só consolidar mas aumentar seu capital, pois no
toca sequer nos juros, isto é, acalenta o sonho real de enrique
cer mas, ao mesmo tempo, e apesar de seu lado calculista,
que Púchkin identifica com aformação alem, cede à imagi
nação esfogueada que o coloca sob o forte efeito da história
das três cartas. Ele só jogará para ganhar, mas esta circuns
tância depende inteiramente da velha condessa, a quem ele
passa a ver como fada madrinha capaz de mobilizar um po
der
que estáacima de simples mortais como ele. Mas Her
mann vai aos poucos tirando um pédo chão batido do real,
atraído por histórias baseadas no me contaram, no ouvi di
io Onteceu comfulano, con sicrano, com beltrano, em
ma, vai ficando com um pé no plano do real e o outro no
plano paralelo do fantástico. Sua antiga firmeza começa li
teralmente aoscilar, ele vai entrando gradualmente em um
movimento pendular em que a vontade de experimentar o
insólito vai-se sobrepondo de modo sub-reptício eincons-
Cte aquela certeza no real: ele jáse pergunta Por que não
htar a minha felicidade?.. ", sua imaginação estogueada,
citaainda
vinho lhe excita mais a imaginação. Volta para
para casa e
cainumsono pesado.
Assim, onarrador cria todo um clima psicológico que
solapa a estabilidade daquele Hermann seguro do início da
narrativa elança os ingredientes para airrupção do clássico
sonho fantástico: remorso, infinidade de preconceitos, "teve
a impressãode que a morta dirigia-lhe um olhar de mof
entrecerrando um olho", transtorno d'alma, muito vinho e.
excitação da imaginação. Entretanto Hermann desperta, per
de o son0, senta-se na cama e fica pensando nos funerais da
velha condessa, e aqui se chega ao "ponto culminante de uma
história de fantasmas, que éa aparição do espectro" (Todo
rov, 1975, p. 95). E digna de nota a naturalidade com que o
narrador prepara a cena da apariçãoda morta: Hermann es
tá sentado na cama, alguém olha da rua para dentro de seu
quarto, um instante depois ele ouve alguém abrir a porta do
vestíbulo, pensa que éseuordenança voltando bêbado como
sempre, mas ouvepassos desconhecidos de alguém arrastan
do suavemente os chinelos. Aporta se abre e entra uma mu
Iher de branco, que ele confunde com sua velha ama-de-lei
te, mas tica surpreso com sua presença àquelas horas. Amu
Iher branca desliza e posta-se de súbito diante dele. Hermann
reconhece acondessa, que lhe declara com voz firme:
145
Dostoiévski: "Bobók"
pertinácia por luri Mann, segundo quem a representação
nessa obra de Púchkin "desenvolve-se o tempo todo no limite
do fantástico e do real", sendo que em nenhum momento
Púchkinconfirma ou desvela o mistério, deixando com o lei.
tor "duas leituras e sua complexa interação" (Mann, 1988.
D.65).Mann observa ainda que se trata de paralelismo de
versões, da possibilidade de uma leitura dupla (do "fantásti
co" e do "real"), oque pressupõe "a inserção de detalhes
fantásticos no plano real". Jáobservamos que em Bobók"
ocorre esse paralelismo de versões do real e do fantástico, e
a entrada do fantástico no plano real étão notória e indis
cutível que a narração termina sem que se saiba se ocorreu de
fato a assembléia dos mortos. Aliás o próprio Dostoiévski
comenta a obrade Púchkin dentro desse espírito:
147
Dostoiévski: "Bobók"
|81, D. 100). Cabe veriticar como esses traços característi.
cOs da menipeiacomo genero se manifestamn em "A dama de
espadas".
Noinicio da história, aimagem de Hermann éa de um
homen absolutamente seguro de suas posses, incapaz de s
crificar o essencial ao supérfluo, dotado da frieza racional do
alemo ecalculista, como o define Tômski. Contudo, está
sob odomínio da paixão pelo jog0, passando noites intei
ras em volta das mesas observando o movimento das cartas
"com uma perturbaçãofebril". Ahistória da condessa e das
três cartas tira-o de seu equilíbrio rotineiro, ele começa a en
trar em um inusitado estado psicológico, anormal para sua
personalidade até então marcada pelo equilibrio, tem seu pri
meiro sonbo extraordinário onde lhe aparecem cartas, uma
mesa coberta de verde, pilhas de notas e montões de moedas
de ouro. Põe uma carta após outra, ganha sem parar, arras
ta para Si O ouro e mete as notas no bolso. Acorda, lamenta
com um suspiro a perda de sua riqueza fantástica, saia an
dar pela cidade enovamente se vê diante da casa da condes
sa, para onde parecia arrastado por uma força ignota". Está
passando por uma experimentação psicológica, que, com o
decorrer da narrativa, irátranstormar-se em experimentação
também moral, o que o levará àpresença da condessa, a exi
gir a revelação do segredo e a sacar da pistola que, mesmo
descarregada, será fatal para a velha. Dominado por um de
vaneio incontido com as cartas, a essa altura reveladas pela
morta, ele passa a comparar moças jovens com o três de co
pas, lembrando oprocedimentodo fetiche em que a forma
fisico-corporal de um produto da cultura épersonificada co
mo símbolo de beleza e objeto do desejo em um ser vivo ou
não; se Ihe perguntam as horas, responde: "cinco para o Se
te". Dominado pela paixão limítrofe com a loucura, Her
mann, que antes não sacrificava o essencial ao supérfluo,
aposta todo o produto da vida de seu pai e da sua qua
renta e sete mil rublos de
economias -e, mesmo ganhando
148
Paulo Bezerra
s duasprimeiras apostas, que játransformavam essas eco
nommas emfortuna,
e Os sonbos e a aposta toda a fortuna e perde. As fanta-
loucura destroem a integridade épica do
bomem eseu destino, e o
culista, que tão bem Hermann inteiro, racional e cal-
cidir consigo
administrava seu
mesno, revela-se outro destino,
deixa de coin-
e acaba com tudo isso
Aestruído, louco destinado a passarorestode seus dias em
e
um manicômio.
Os elementos da sátira
menipéia
tástico, encontrados em "A dama de conjugados com o fan
espadas e "O morto
vivo, mostram que, ao conceber "Bobók" e outros
contos
fantásticos, Dostoiévski jáencontrou o caminho devidamen
te pavimentado por essa tradição na literatura russa. MA
Voltemos àsátira menipéia. Hánesse gênero a catego
ria denominada publicística atualizada, uma espécie de gë M
nero "jornalístico" da Antiguidade, que enfoca em tom mor
Dostoiévski: "Bobók"
Otetchestrene Zapiski, representantes dos campos de-
mocrátio)e liberal, respectivamente, na crítica
tomacalorado da polêmica atingia amiúde
baivando freqüentemente
literária.
questöes 0
pessoais,
nível da linguagem e desembo-
candocmxingamentos, o que muito Dostoiév-
ski. Isto podemos constatar lendo "Duas notas do redator"
(Dr Zamiétki Redaktora), texto publicado no número de
iunhode 1873 no Grajdanin, onde Dostoiévski se queiya
muito da má qualidade intelectualle principalmente do bai-
Xo tom do estilo e dos xingamentos que dominam os escritos
dos seussconfrades da crítica literária e da imprensa. Mostra
que nãose trata de fatos isolados, mas de uma tendênciade
sua atualidade. Aprimeira preocupação desses jornalistas
fazer com que acoisa "saia liberal". Mas, para Dostoiévski.
esse tipo de jornalista não sabe como escrever de forma libe
ral, simplesmente
150
Paulo Bezerra
axnga-lo do nesmo jeito. Ele
envolva um crítico e jornalista lamenta que essa tendencia
como Mikhailóvski, a quem
considera como "um dos
haver em publicistas mais sinceros que pode
Petersburgo", e diz não entender "a animosidade
rãoobstinada e continua que nutre por o
nhor Z do S.-Peterbúrgskie Viédomosti" ele(idem,respeitável
pp.
se
Sabe-se que esse senhor Z é Buriênin, e Dostoiévski156-7).
diz la
mentar
"sinceramente" situação e estar certo de que es
essa
ses dois jornalistase críticos poderiam
perfeitamente vir a ser
amigos se nao nutrissem tanta animosidade um pelo outro
(ibidem).
As referências acima mostram que os tais
"insultos" não
são casos isolados, mas constituem uma tendência da atua
lidade jornalística de Dostoiévski, tendência essa que serviu
de motivo àquela alusão na primeira página de "Bobók". O
mesmo tema volta no parágrafo seguinte em tom mais acen
tuado: *De tanto se morderem acabaram quebrando uns aos
outros até o últimodente". Aqui aquestão jádesemboca no
campo da violência. Como informaGalagan, oponto culmi
nante dessa polêmica toi um processo movido contra os jor
nais S.-Peterbúrgskie Viédomostie Viéstnik Eevrópi, motiva
do por um duelo entre os jornalistas E. I. Iútin e A. F. Jókhov
em maio de 1872, que culminou na morte do último. Infor
ma Galagan que um dos envolvidos no processo foi V. P. Bu
riênin, padrinho de Iútin no duelo, e que, nos materiais do
processo, havia uma carta escrita pela vítima ao irmão, onde
se lê: "Iútin disse a uma pessoa que conhece tatos que me
comprometem". Galagan acrescenta que a palavra grifada
dos membros
e empregada em substituição ao nome de um
do círculo literário liberal'", isto é, Buriênin, e isto dá ain
reterência de Jókhov
da mais fundamento para supor que a
atenção de Dostoiévski
a "uma pessoa" tenha chamado a
(Galagan, 1978, p. 161). como
Dostoiévski usa o episódio referido por Galagan
mordem e não
matéria de polêmicacom os jornalistas que se
151
Dostoiévski: "Bobók"
so quebram 0s dentes unsdos Outros, mas atése matam a ti.
ros em duclos. Com excepcionalcapacidade para condensar
Sentidosen um mínimo de palavras, ele consegue, em apenas
Na inha, registrar uma tendência da sua atualidade jorna
listica efazer de Buriênin, um dos representantes dessa ten
dencia, oprotótipo do protagonista enarrador de "Bobók».
Apreocupação de Dostoiévski com o nível ea qualidade
do jornalismo estádiretamente relacionada ao problema da
formaço profissional eda propriedade da opinio, fenôÓme
nos que ele vê negligenciados, percebendo essa negligência
também como uma tendência da vida russa em geral e de sua
atualidade em particular. E dentro desse espírito que ele diz:
"Não gosto quando alguém apenas com instrução geral se
mete a especialista: entre nós isso acontece a torto e a direi
to.Civis gostam de julgar assuntos militares, e até da alçada
de marechais-de-campo, gente com formação em engenharia
discute mais filosofia e economia política". Os autores das
notas da edição russa a "Bobók" comentam essa passagem
da seguinte maneira:
152
Paulo Bezerra
)ostoicvski. Tkatchov fez. a crítica maisimplacável de Os de
òMOS, na qual vaticinou a ruína de
a. Demais, com0 Dostoiévskicomo artis
representante um dos
de
querda russa, I katchov certamente se sentiusegmentOs da es
la representada de forma tão atingido ao ve
pouco lisonjeira nesse roman
ce, o que talvez tenha
crítica, além do
influenciado o reducionismo de sua
evidente
meandros de um romance despreparo para compreender os
tão complexo e tão inovador em
termos formaiscomo Os demônios. Isso não
passou
cebido a Dostoiévski, quecertamente incluiu Tkatchovdesper
entre
as tais pessoas que tem apenas "instrução geral, mas
se
metem a especialista".
Em "O morto vivo", também
encontramos essa publ1
cística atualizada em forma de crônica do cotidiano e da vi
da burocrática. Através de uma espécie de viagem sentimen
tal" do defunto narrador, o leitor vai tomando conhecimento
da corrida por cargos, na qual os burocratas se digladiam,
cada um caluniando o concorrente, bem como da maneira
sórdida e impune como os altos burocratas usam a máquina
do Estado para enriquecimento pessoal, apropriando-se de
recursos que seriam destinados a pessoas socialmente des
protegidas, como ocorre com Tarassiêvitch, que é desmas
carado em Bobók".
Outra polêmica desenvolvida por Dostoiévski em Bo
bók" estácentrada na atualidade literária. Segundo os mes
mos autores das notas da edição russa a Bobók",a socieda
de erótica instituída por Kliniêvitch e seus pares no reino dos
mortos se baseia em protótipos da literatura erótica antiga,
mas principalmente no romance Sacrifício noturno' (Jertva
Vietchérnaia), de P. D. Boboríkin (1836-1891). Aqueles au
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Dostoiévski: "Bobók"
rores citan longamente a resenha crítica de Saltikóv-Seha.
acsse romance, intitulada "Inovadores de tipo especial: So.
crificio noturno" (Novátoriossóbovo roda: Jertva Vietchér.
2i). Como não nos foi poss1vel ter acesso ao romance de
Boborikin, que integra ovolume IX das obras do escritor
rtica e publicística, 1868-1883, resolvemos consultar dire
y tamente o texto de Schedrín.
Schedrín começa tecendo comentários gerais
sobre a
gente vazia einsignificante, que ele chama de trastes (kblam).
e faz uma afirmação que nos interessa por estar relacionada
aoobjeto de nossa discussão.
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Dostoiévski: "Bobók"
Screi oprimeiro de
todos a contara minha história.
sou dos sensuais".
Eu [...
Os exemplos citados mostram, de modo bastante palpá.
vel, oquanto Dostoiévskirecria no reino dos mortos um cli:
ma de tarra erótica muitosemelhante ao do Sacrificio notur-
20, SÐ que em tom de paródia. Aliás, segundo os autores das
noras a "Bobók, no início dos anos setenta chamoua aten
ção de Dostoiévskio pseudônimo Bob", um dos vários de
Boboríkin, que Buriênin transformou em Pierre Bobó(Arkhí.
pova-Bogdánova et al., 1980, p. 404). Eesse nome que figu
ra em um folhetim de Dostoiévski, publicado em 1878 no
Grajdanin com o título "Dos passeios de Kuzmá Prutkóv no
verão", onde ele narra que, num final de tarde, na ilha de
leláguin, um Tritão emergiu de repente, e nuzinho, iante do
público. As senhoras acorreram de todos os lados para lhe
oferecer bombons, mas o ser mitológico, sem querer negar a
antiga natureza de sátiro das águas,começou a dar tais vol
teios com ocorpo diante das senhoras quetodas fugiram dele
com risos esganiçados, escondendo suas filhas mais crescidas,
atitude que o Tritão acompanhou com uma saraivada de ex
pressões bem desavergonhadas, tornando a coisa ainda mais
divertida. Feito isso, o ser misterioso mergulhouese foi, dei
xando as pessoas discutindo, homens emulheres dizendo que
se tratava de um Tritão absolutamente igual ao dos relógios
de bronze das salas de jantar. Alguns sustentaram a opiniao
de que aquele ser seria o tal de Pierre Bobó, que havia emer
gido comointuito de exibir originalidade. O narrador apr0
veita para acrescentar que essa hipótese está descartada, por
que Pierre Bobóemergiria forçosamente de fraque... (DoS
toiévski, 1980i, p. 248).
Agalhofa desse folhetim, publicado cinco anos depois
de "Bobók"., mostra que Dostoiévski continua a manter a
mesma atitude paródica em relação a Boboríkin, transtor
mando atéa imagem do próprio autor de Sacrificio noturno
em objeto de paródia.
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Paulo Bezerra
Cabe observar que Boboríkin, adespeito dos
1ào estamuito longe da verdade ao recriar em seuexageros,
o clima das orgias que emreatidade imperava na romance
sociedade
de Petersburgo. O próprioDostoiévski, no iáreferido folhe +
recriar
A longa citação mostra que "Bobók", além de
dialogicamente um tema desenvolvido por Boboríkin, tem
alta
suas raízes profundamente fincadas na realidade da
SOciedade russa, observada pelo próprio Dostoiévski. A li
bertinagern dominante nesse luciânico reino dos mortos é
esteras sociais.
mera projeção do que acontecia nas altas
onde imperavam normas de vida soc1alque esses mortos pre
tendem prolongar pelos dois ou três meses de vida que lhes
representa algu
restam, porque, aofim e aocabo, o túmulo
ma cIsa.
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Dostoiévski: "Bobók"
Ouecomparaçoes caberia estabelccer, a guisa de cncer.
ramento, cntre Sacrifício noturno e "Bobók"? Pelo que se
depreende da critica, oromance de Boboríkin teve como t t
o fm distrair seu leitor, seim qualquer perspectiva crítica em
relacão a0 mundo que represcntou. Já Dostoiévski produziu.
metonimicamente, uma representação Complexa desse mun
do, tazendo imperar no reino dos mortos um clima de ak
solutaliberdade paraque seus representantes se revelassem
Integralmente e externassem sua última posição "em vida"
naqueles dois ou três meses que lhes restavam. Recriou esse
mundo a partir da perspectiva de suafinitude, mostrando-0
humanamente pobre e desprovido de um sentido duradou
ro, ummundo sem um projeto mnaior, restrito a personalid
des sem alcance histórico. Parodiouo Sacrifício noturno,
polemizandocom ele comno tendência de uma literatura eró
tica de baixa qualidade estética.
Dostoiévski tinha um amplo conhecimento das formas
de representação antigas, e adaptou-as com virtuosisno às
novas conquistas da arte narrativa. Em Bobók", funde o
fantástico experimental da antiga sátira menipéia comfor
mas modernas do fantástico, aplicando a estas o princípio da
verossimilhança num sentido bem próximo de Aristóteles,
preterindo "coisas impossíveis mas críveis" a coisas possí
veis mas incríveis" (Aristóteles, 1973, p. 467), pois, como
nag e possivel que mortos falem e o narrador os ouve acor
dado, era necessário que0 impossível se tornasse crivel para
assum1raqualidade de verossímil. Assim, ocritério de veros
SImilhança dos discursos e pensamentos emitidos pelos mo
tos obedece a uma coerência interna do plano estetiCO ou
CompositivO, uma vez que dessa perspectiva oque de t«
Importa n£o éa verdade, mas a aparência de verdade ou
TOSSImilhança. Aqui o autor transpõe paraa construçdo
princípio da yerossimilhança- peratetisme-ede planos real e
fantástico que alicerça a narratiya, estruturando-os sobre
dois planos estéticos: no primeiro plano, ocritério de veros-
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M
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