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A conversa impossível com a comunidade do ser.

Washington Drummond

Clio

para W.B.

“O passado e o futuro

Aninham-se nas dobras das palavras

Até que a História resolva ler o passado.

E os sábios, o futuro

O presente caminha à beira do abismo”

Raimar Rastelly

1. A escrita do lugar-de-falha.
Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se falar sem cessar. Como se a linguagem fosse um
desdobrar infinito de enunciados e esses, por sua vez, volutas de volutas de volutas sem fim. É
essa a conversa tão infinita quão impossível. E esse o tecido espraiado sobre o sem-fundamento
(talvez possamos dizer no sem-fundamento) que uma genealogia – a última farsa que tomamos
como espelhamento – se arrisca sobre a invenção de um “dentro”. Mas nosso folego é curto e
esse drama é tomado sem que nem mesmo possamos nos deslocar de suas marcações, seus
pequenos delitos, suas tramas perversas. Esquecemos muito rapidamente – incautos suspeitos
– de suas estratégias sujas para encobrir a trama que o entretece. Os procedimentos
genealógicos instauram um abismo entre a filosofia e a operação historiográfica.
Deveríamos pensar nos deslizamentos de uma para outra, nos escorregões e o que daí,
desaprendemos. Além disso só nos caberia o olho pineal e metafísico – o que pode ser pensado
sem tempo, de elipses rítmicas, de irrupções. Tudo o que desestabiliza, por um instante, o
desenho por demais institucionalizado dos saberes historiográficos, filosóficos ou mesmo
genealógicos. (O conjunto do que alguém, bastante sagaz e perverso, há bem pouco tempo
nomeou como saberes do mestre?). O que poderia parir esse desafio entre, por um lado, o que
configura um espelhamento, em sua pobreza obsessiva de flagrar vocabulários, seguir rastros e
inversões, detectar cortes e adensamentos; e por outro, o que parece nos assombrar e que
apenas insta sem cessar os espelhamentos, impondo aos “vocabulários” um dizer mesmo de
uma comédia infinda que escapa & escapa &... orbita em torno da linha dura do “real” e suas
implicações quase geológicas do corpo, do tudo que é “vivente”? É desse lugar-de-falha (mis-
en-abyme) que se enuncia o sujeito.
2. O sujeito, um vazio.
A genealogia do sujeito, enquanto objeto de uma operação historiográfica, nos informa que a
argumentação batailleana não pode escapar de seu tempo, logo, das margens imperativas do
“vocabulário” à disposição. Aí, encontra seus aliados, seus inimigos; seus movimentos
centrífugos e – por que não? – centrípetos; repousos e fugas. A presença hegeliana nos escritos
de Bataille aloja-se fortemente de dentro das interpretações de Kojéve e, de imediato, lhe
inspira sua refutação. As cartas trocadas (e aqui me desculpem o trocadilho que se remete
sobretudo ao livro do Agamben) pelos dois amigos em torno do conceito de “negatividade”
deveriam ser pensadas numa encruzilhada entre o romantismo do século XIX e os conceitos
oriundos da mística cristã. Não esqueçamos a perspicácia deleuzeana, ao ensaiar uma
genealogia própria, de apontar o uso do “negativo” em Hegel como a dívida do filósofo alemão
com a dialética cristã. As questões fundamentais que Bataille – místico sem deus - agencia para
descrever as convulsões do sujeito moderno, na tentativa de ultrapassá-lo, também se
circunscrevem em parte aos dilemas do ateísmo, da culpabilidade do gozo, da tormenta da vida
e da morte. (Alias, tangenciando, nessa rota, outro importante filósofo alemão do período que
elege a “angústia” como essa marca do sujeito).
A “experiência interior” perambula então, para o genealogista, pelos destinos do romantismo
redivivo da primeira metade do século XX – o surrealismo afirmaria ostensivamente essa filiação
– sejam filosóficos (dos seus expoentes da linhagem alemã do sec XIX e XX) ou estéticos (num
amplo leque de exemplos). A singularização dessa incrível conceituação da “experiência” que
Bataille empreende se dá pela incorporação (ou para o genealogista um aprofundamento) do
“vocabulário” dos místicos cristãos ao “vocabulário” dos românticos. A “negatividade” e o “não-
saber” presentes, ao menos, desde os textos do Pseudo-Dionisius, percorrem os escritos de
diversos místicos - cuja forma mais acabada é a “Noite Escura” de São Juan de La Cruz – e são os
pilares da “experiência interior”. Caberia também a análise das “práticas” constitutivas do
sujeito – as quais Bataille e Foucault estão atentos – mas fogem ao escopo desse texto.
Assim potencializada, a perspectiva de Georges Bataille, afasta-se dos outros empreendimentos
que procuram se acercar do sujeito naquele momento afirmando-o, isso se pensarmos a
fenomenologia e o existencialismo como exemplos. Numa entrevista de 1978, Foucault revela
sua atração pelo projeto batailleano, por este descrever o sujeito como uma instância esvaziada,
dissolutiva e aberta a um processo de reconstituição permanente. A expressão será um
momento fulcral, mas perderá o seu status de revelação do fundamento, anterior e interior, do
sujeito. Podemos, assim, exorbitando o conceito de “experiência interior”, afirmar que a
enunciação não precederia o sujeito como expressão de algo que lhe é interior, antes, seria a
afirmação de um lugar-de-falha, colapsando “enunciado”, ”enunciador” e o conjunto das
“práticas”. O sujeito, por se situar nessa “falha”, se “constitui” no momento mesmo de sua
“enunciação”: nenhuma” identidade” fundante lhe garantiria a clareza ou a verdade do discurso.
Sempre circunstancial, sempre pautado na incompletude e na instabilidade e ao mesmo tempo
proporcionando inversões de lugares, reinventando e proliferando cenas e enunciados.
Destacando-se o caráter disruptivo que atravessa enunciados, sujeitos e práticas.
Ao contrário do “positivismo” foucaltiano, é a “negatividade sem emprego” de Georges Bataille
que incide no “vazio” do sujeito (logo, a inexistência de um lugar de fala!) e que somada ao “não-
saber” – a instância daquilo que em nós não é acessível – nos inspira a descrevermos algo como
o “lugar-de-falha”. O “fora de si” persegue a constituição do sujeito como a noite persegue o
dia, mas suscita também a sua inversão: não seria o dia a perseguir a noite? Ou, mesmo, os
sombreamentos que daí pululam e volvem, revolvem, “pli sur pli”. Não mais o interior do interior
mais os deslizamentos instáveis e epidérmicos, em que não se joga jamais a identidade, mas a
metamorfose, a mascarada. Mas, não já estaríamos assim, longe demais da cena ainda
romântica e cristã em que Bataille nos teria lançado? Ou mesmo da cena “epistemológica” que
nos legou o “poisitivismo” historiográfico foucaltiniano?
3. Da comunidade impossível ao mundo inóspito.
Bataille é um Heidegger que não se furta de dizer o nome de Deus. A “culpa” por estar vivo, a
“angústia” como o modo do ser, o desafio a uma instancia oculta e opressiva. É a ela que visa a
“suma a-teológica”, marcada pelo desespero, imersa na sufocante cena histórica das guerras
mundiais, da força diabólica do poder de destruição e extermínio do homem. O tema da
“comunidade” parece sucumbir na primeira metade do século XX e tanto Bataille quanto seu
amigo Blanchot, esforçam-se de acelerar essa queda propondo a “comunidade dos que não tem
comunidade”. A impossibilidade do comunal é a renúncia de erguer sobre os homens aquilo que
inevitavelmente se tornaria – uniformizando as formas insólitas de vida – uma ignominia,
abatendo toda raridade, invenção e acaso, sob a égide do igual. O “impossível” é a fissura na
formalização da vida, efeito cifrado da reviravolta imprecisa, agônica, ainda ancorado no
“resíduo” teológico e no “resíduo” humanista. (Como pensar o humano sem o inumano? As
categorias mobilizadas por Bataille enfrentam esse desafio e apelam, em momentos de perigo,
para a poesia intensa e trágica de seus escritos). Assombrado pelo tanto alcançado, o
genealogista não deixa de admirar esses dois homens que ao externarem tão lucidamente os
extertores desse humano, abrem caminho para que a cultura rodopie sobre os seus próprios
limites: o inumano, o real, o incomunicável. Enfim, os “impossíveis” para tudo que se projeta
como uma utopia comunitária. Mesmo que ao figurarem - cada um a seu modo - o último
homem, Bataille e Blanchot, tenham acolhido a idéia do mundo como esfera hostil à espécie.
Em certo sentido, o genealogista se solidariza com esse gesto duplo: pelo seu arremedo de ofício
sabe que o “vocabulário” de uma cena sempre se fecha aos caminhos para a sua transgressão e
ultrapassagem para uma outra e imprevisível encenação. Bataille pretende abrir com a força
destrutiva de uma escavadeira aquilo que poderá, numa visagem, encenar, aí, uma outra cena.
Angústia, morte, estética e comunidade, apesar de formarem uma rede que já parece implodir
- confrontados pelo “êxtase”, o “dispêndio”, o “impossível” e “comunidade dos que não tem
comunidade” – garantem (ainda com essa outra rede que é apenas seu anverso) o ponto fulcral
de sua sustentação discursiva: o mundo inóspito ao homem.
Se impõe a tarefa de arqueologizar o “vocabulário” que abriga o mundo como inóspito e o
homem como habitante dessa “estranheza”. Sempre à mercê de uma comunidade que não virá,
sempre submetido aos perigos obscuros de sua condição. Um ponto de inflexão: encaramos
essa descrição como a “condição humana” e encerramos a aventura genealógica ou - ao
desconfiarmos do que se elabora em torno desse novo eixo - recomeçamos nosso exercício de
ironia? A animalidade do vivente já não seria essa comunidade nunca alcançada e sempre aí?
Esse “resto” sempre retomado e que figura em Bataille no “jogo das formas”, no “olho pineal”
e no “anus solar”?

4. A cena barroca: artifício e invenção.


O mundo da cultura, ou como o genealogista prefere nomear, o mundo do simbólico, mantém
a esquiva ao real como constituição mesma de sua forma. Houve um deslocamento da
genealogia, tentada por Nietzsche, quando de sua recriação por Foucault: a entrada do pretenso
rigor epistemológico que acompanhou o “pensamento estrutural” na virada ciumenta das
ciências humanas. O estruturalismo é um transcendentalismo que não ousa dizer o nome e
como tal rejeita qualquer esforço de se pensar além da cultura. Não é à toa que, em seus piores
momentos, a ontologia histórica foucaultiniana, seja pensada como um “culturalismo
construtivo”. É desse “malentendu” que se forjou os enclaves políticos contemporâneos desde
a definição das construções de gênero até o “identitário” e o “lugar de fala”. Em todo caso o
que está em jogo é um abandono de uma categorização do “real”, seja lá o que isso possa ainda
significar. O propalado “retorno ao real” é apenas uma comédia, alimentada pelo mesmo
“culturalismo” que avança, metastático, sobre o “pensamento” contemporâneo. O novo ponto
fulcral que reordena o novo “vocabulário”. (Mais uma vez caberia a análise das “práticas”
concomitantes ao “vocabulário” e que constituiriam os sujeitos sob essa nova rede...)

A genealogia que se quer barroca, trafica conceitos de alhures para compor seu vocabulário que
nunca lhe será próprio: cena, farsa, personagens, encenações, inversões, desvios, comédias.
Niilista, desconfia dos “vocabulários” e os toma como provisórios e raros, farsescos e datados.
Sobretudo desconfia da cultura (ou como lhe é mais familiar, do simbólico) que, narcísica, se
imunize do que não é espelho. O exercício da genealogia “temperada” aprendeu a usar grande
parte do arsenal batailleano, entretanto não se furta de se desfazer, com rapidez, daquilo que o
impediu de ultrapassar o próprio “vocabulário” do seu tempo, de sua “cena”. Retomando uma
questão expressa no ínicio do texto, a dimensão efêmera do simbólico ronda a insistência que
revém da “crudeza” do “real”. O intenso ir-e-vir evoca a figura barroca da elipse, pois não se
repete, sempre num certo nível diferencial, embora não deixe de nomear algo que nunca terá
nome. Um movimento que não deixa de alimentar um riso incontrolado das últimas nomeações
e de como foram encaradas com tanto comprometimento. O termo de um ofício, a agenda de
um operador historiográfico.

A “ontologia do presente” é, então, segundo essa genealogia barroca, apenas a forma última da
farsa que se repete sem fim. Se sem fundamento, se vazio – embora tenha que dar conta daquilo
que não pode se desfazer facilmente e que lhe implica na mudez e cegueira de sempre – o sujeito
e sua analítica deve sempre desconfiar dos enunciados que o enredamos em cada cena. A
aventura genealógica nos lembrará sempre dessa hiância quando de seu último fracasso.

Por sua vez, o genealogista sabe que não escreveu o seu próprio programa. Coube ao irlandês
Samuel Beckett escrevê-lo: “falhar. falhar sempre. falhar melhor.”

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