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116 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 117

PROLEGÔMENOS PARA UMA NARRATIVA HISTORIOGRÁFICA

Somente a ficção dá acesso ao real.


Michel Schneider

A escrita historiográfica, que tem seus regimes constitutivos próprios,


estabelece uma relação complexa com as fontes documentais, sejam
elas escritas, imagéticas ou objetuais.

O que foi nomeado por Michel de Certeau (2017)1‌ de “operação historio-


gráfica” nos chama a atenção para as relações entre a narrativa histórica
e a formação e exploração de um arquivo – esse “corpo morto” que fala
e que nos faz falar. Isso implica estabelecer um vínculo incontornável
entre a narrativa que se quer produzir e a materialidade das evidências
manipuladas no arquivo. Mas o que é um arquivo senão o produto de um
“gesto duchampiano”? Trata-se realmente de um exercício por parte dos
GENEALOGIA DO pesquisadores de “deslocar” da funcionalidade, da mudez e da invisibili-

SUJEITO E DA IMAGEM
dade cotidianas objetos, cartas, bilhetes, aparelhos, escritas em direção
a um arquivo, o qual, após conceptualizações e ordenações – mesmo de

ARACY ESTEVE GOMES


ordem prática –, é submetido aos regimes de produção narrativa. Reali-
zam-se, assim, os prolegômenos da tal operação historiográfica.

E SEU TEMPO Para o livro, nossas principais fontes estão localizadas no acervo pessoal
da fotógrafa amadora Aracy Esteve Gomes, nascida em 1923 em Santo
JUNIA CAMBRAIA MORTIMER 1
A primeira edição do livro foi Antônio de Jesus, Bahia, e residente em Salvador desde 1934. O hetero-
WASHINGTON DRUMMOND publicada em 1975. gêneo conjunto de fotografias, álbuns, rolos de filmes, cartas, bilhetes,
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impressos, câmeras e outros objetos está reunido em armários da sala Minas Gerais (IFMG) e a Universidade de São Paulo (USP), configurando
de estar do apartamento para onde a família de Aracy se mudou no final o início de uma rede de interlocutores em torno do legado de Aracy Este-
da década de 1960 e onde hoje mora seu filho.2 Optamos por realizar um ves sob os temas elencados – imagem, arquivo e cidade.
recorte temporal entre 1950 e 1966, datas que concentram os álbuns que
Atravessar um arquivo é também um dar-se conta da multiplicidade dos
a fotógrafa confeccionou com muito cuidado e delicadeza dedicados aos
discursos possíveis e, concomitantemente, da singularidade das situa-
dois filhos, Arlindo e Núria.
ções, das trajetórias, dos sujeitos, que, mesmo ao se inserirem no regi-

Além do recorte temporal, empreendemos também uma seleção da me de enunciação de um determinado período histórico, podem tam-

natureza dos documentos, conforme os entendemos como adequados bém desdobrá-los, reinventá-los, desviá-los, demarcando sua duração
e sua situação particulares. Nesse sentido, a potência do arquivo está na
para o desafio de ficcionalizar, a partir das evidências presentes nesse
possibilidade de evidenciar a variedade dos objetos e enunciados que
arquivo pessoal, uma narrativa historiográfica em torno das práticas ur-
podem ser deslocados para possibilitar a produção de narrativas que
banas e dos hábitos cotidianos – contemplando a cidade e o urbanismo
tenham como objetivo realçar a singularidade tanto da constituição do
– da vida soteropolitana. Nesse sentido, “deslocamos” objetos – máqui-
sujeito quanto dos acontecimentos, suas descontinuidades – sem aban-
nas fotográficas, sobretudo –, livros, manuais, correspondências, foto-
donarmos as grandes linhas históricas – em suas durações específicas.
grafias avulsas e álbuns da dispersão imposta pelo tempo e pelo cuidado
pessoal para o que chamamos de “arquivo da pesquisa”. Daí, há o desenrolar de genealogias acerca do sujeito e da prática foto-
gráfica no âmbito da cidade, resultante do imbricamento das “fontes” e
Esse “processo duchampiano” de formação do “arquivo da pesquisa” foi
dos temas, regidos por procedimentos de diferenciação e singularização
acompanhado, ao longo de 2017 e 2018, de encontros semanais, leituras
dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, há uma abertura para o impre-
e debate de bibliografia especializada com os participantes do projeto,
visto das linhas de força que podem constituir essas genealogias e que,
o que culminou no seminário Imaginários e Visibilidades, realizado em
por vezes, modificam os caminhos propostos na pesquisa. Michel de
novembro de 2018, na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal 2
O acesso ao arquivo foi Certeau (2015, p. 1), novamente, nos alerta que os arquivos do historiador
da Bahia (UFBA). O seminário contou com a participação de pesquisa- gentilmente possibilitado pelo
filho de Aracy, Arlindo Esteve podem lhe desviar de suas possíveis certezas:
dores locais e externos, provenientes de outras instituições de ensino e
Gomes, que nos acompanhou em
pesquisa do país, incluindo a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), cada momento de pesquisa no O pesquisador pode também esperar que seus arquivos modifiquem o
a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Instituto Federal de arquivo. aparelho de que ele se serve para analisá-lo e que as questões que eles
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colocam desviam o que ele lhes pede. Ele espera, então, não somente um c) as cartas, que uma vez efetivaram a comunicação entre irmãos e que
meio de renovar seus modelos segundo um processo que caracteriza toda agora nos permitem acessar outras dimensões da construção de si, por
ars inveniendi, mas a sorte de encontrar-se à beira de um insólito. esse sujeito feminino naquele momento histórico.

O arquivo da pesquisa, delimitado em torno de três categorias de fontes Pode parecer contraditório, mas não é esse o percurso da historiografia?
– escrita (correspondências/impressos), visual (imagens) e objetuais (câ- De contradizer a memória, através de genealogias, numa operação que
meras) –, condicionou a narrativa que criamos a partir dele, submetendo comprime o passado numa escrita e configura-o segundo regimes de
tudo aquilo que foi possível imaginar aos vestígios ali encontrados: um verossimilhança, perspectivas teóricas e resistências dos arquivos? Tra-
conjunto relativamente desordenado, empilhado e raramente “consulta- ta-se de uma outra maneira de ficcionalizar “o que aconteceu”.
do”, mas que resistia para a família de Aracy como uma reserva emocio-
O resultado dessa “ficção científica” em que a vida de uma mulher e sua
nal fantasmática. Diante desses vestígios – manuseados e apresentados
prática fotográfica se confundem com a exploração de um espaço afetivo
pelos membros da família, sempre com muito cuidado, reverência e um
e urbano é este livro, que se propõe como uma experiência que mixa –
pouco de melancolia –, nos impusemos a tarefa de “organizá-los”, dentro
como na música eletrônica – trechos de estudos fotográficos, urbanos
da dimensão ficcional característica da historiografia, no sentido de efe-
e da cidade e historiografia contemporânea. Algumas questões iniciais
tivamente construirmos uma escrita a partir dessas fontes:
orientaram esse processo de escrita: o que fundamentava o regime de
a) os aparelhos técnicos, hoje rudimentares, mas que à época se apre- enunciação e de visibilidade no qual estavam inseridos esses vestígios
sentavam como inovadores, garantindo a passagem para um novo cam- que constituem o arquivo de Aracy? O que era ter uma câmera e um la-
po de visibilidades por meio de usuários/consumidores aliados com boratório fotográfico naquele momento histórico em Salvador? O que
uma estratégia global de distribuição de mercadorias e de afirmação de significava ter uma Rolleiflex? Quem fotografava naquele momento? O
uma classe média mundializada; que era fotografia amadora? Que outras mulheres também fotografa-
vam nesse período? O que era fotografar enquanto prática feminina?
b) as imagens fotográficas, que, uma vez voltadas para produção e uso domés-
Quais eram as práticas urbanas das mulheres nessa época?
ticos, agora seriam recolocadas enquanto chaves de interpretação do passado
recente da técnica, da vida urbana e da difusão crescente de um império ima- Buscamos fazer um ensaio historiográfico que assume uma perspectiva
gético que modificaria substancialmente a vida coetânea aos anos 1960 e 1970; genealógica. Mas essa nossa perspectiva está distante do desenho ex-
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uma suposta repetição; a invenção de enunciados e práticas, distancian-


cessivamente “epistemológico” (e cinza!) elaborado por Michel Foucault
do-se das buscas originárias; a dispersão documental, sem o abandono
– pautado pelo pretenso “rigor” e pelas “relações de força”, que apenas
das condicionantes e dos rigores próprios do arquivo. As máscaras – não
denunciam sua filiação a Nietzsche e ao imaginário do século XIX. Ao
confundidas com os “rostos” – são explicitadas em detrimento de essên-
contrário, nossa genealogia se aproxima mais de um campo aberto e
cias profundas, pois o olhar genealógico se afasta dos pressupostos de
experimental atento à emergência de valores que criam e ressignificam
origem e essencialização para flagrar os acontecimentos nos seus des-
práticas e narrativas em circunstâncias históricas dadas e que são sub-
vios e acidentes, num conjunto de “valores” agora expostos às novas dra-
metidos a movimentos imprevistos oriundos de outro regime de regras.
maturgias.
Lançando mão das metáforas teatrais, nossa perspectiva genealógica,
sem abrir mão de sistematizações próprias, traça a dramaturgia de um Nesse sentido, o descontínuo aparece por meio do procedimento do
jogo entre atores segundo a proliferação de erros, inversões, surpresas corte, efetuado segundo o entendimento de que as relações entre práti-
e deslocamentos onde antes eram flagradas rotinas, profundidades, ori- cas e narrativas é um espaço aberto em que – sob o signo da invenção –
gens e desenvolvimentos inevitáveis. as diversas combinações emergem para configurar a tessitura histórica.
Embora se credite importância a um certo nominalismo4,não cessamos
Para aqueles que associam a historiografia diretamente com a realida-
de submetê-lo ao movimento mudo e cego das práticas. Por sua vez, o
de do acontecido, essa narrativa estaria sempre ao redor de algo duro,
foco, longe de apagar as grandes linhas de continuidade, está em jogar
empírico. Como uma fruta a descascar até atingirmos seu caroço, como
com as emergências que caracterizam a raridade ali expressas enquanto
uma tentação positivista apoiada nas evidências: “um fruto com caroço
rugosidades do descontínuo. Se, por um lado, percebem-se as perma-
[...] a polpa sendo a forma e a amêndoa, o fundo”. (BARTHES, 2004)3 Aqui,
nências – embora expurgadas de qualquer essencialidade originária –, o
no entanto, trata-se mais de um modo de fazer, uma poética, em que a 4
Segundo o Dicionário de
Filosofia, a corrente filosófica
que norteia essa nossa visada genealógica é abrigar o que ainda não tem
concepção de realidade metaforiza a figura da cebola, como “combina-
nominalista defende que nome, o que é desviado, perscrutar seus traços: as relações disruptivas
ção superposta de películas [...] cujo volume não comporta finalmente “a significação não pode derivar entre a miríade de enunciados e práticas num interminável jogo.
nenhum miolo, nenhum caroço, nenhum segredo, nenhum princípio das coisas, como se elas mesmas
comportassem o significado;
irredutível [...] a não ser o próprio conjunto de suas superfícies”. (BAR- Novamente lançando mão de movimentos transdisciplinares, talvez o
deverá originar-se, pois, por
THES, 2004, p. 158-159) Para isso, a genealogia, conforme a entendemos, 3
Primeira edição do livro foi meio de uma ‘convenção’”. conceito musical de heterofonia possa dar conta dessa multiplicidade
acentua o corte em detrimento da continuidade; a raridade, ao invés de publicada em 1969. (MORA, 1996, p. 514) de vozes, rastros, deslocamentos, elipses, esquecimentos, descolamen-
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acontecimentos que se desenrolaram e que emergem, hoje, no momen-


tos, reapropriações, formas e sons, estridentes ou quase inaudíveis,
to do perigo, como clarões benjaminianos sobre nossa condição política.
empreendidos pelas práticas e suas narrativas. E é aí que, entre escri-
Ainda “que isso seja uma redundância, é necessário lembrar que uma
tos, imagens e objetos, procura-se flagrar as modulações ou aparições
leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise de docu-
inesperadas tanto no que concerne às formas de constituição do sujeito
mentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente. Com efeito, tanto
quanto às práticas fotográficas urbanas.
uma quanto outra se organizam em função de problemáticas impostas
Vale observar também que o uso dos conceitos de “cena” e “encenação”, por uma situação” (CERTEAU, 2017, p. 8): a genealogia aqui desenvolvida
enquanto estratégia de análise, potencializa a operação historiográfica é o resultado desse embate ficcional entre um passado imaginado e as
em dois pontos: de um lado, aborda a constituição do sujeito como um emergências do presente.
fenômeno histórico, a partir de uma escrita e de uma imagem de si – o
que chamaremos de “cena do sujeito”5–; e de outro, analisa a experiência
O SUJEITO, A ESCRITA E A IMAGEM
histórica na qual esse sujeito está imerso, a qual denominaremos de “en-
cenação dos acontecimentos”. Esse movimento nega uma hierarquização O exercício de uma história genealógica que ora apresentamos se deu em
dos gêneros documentais, o que significa tomar com igual importância torno de uma história do sujeito – “cena do sujeito” – que implicou, ao
diferentes fontes, escritas e visuais, sejam elas ficcionais, documentais 5
O conceito de “cena do sujeito” mesmo tempo, uma exploração do seu ambiente urbano técnico e polí-
ou ensaísticas, abarcando problematizações da teoria literária, da teoria é utilizado por Eneida Maria tico, numa análise das relações entre acontecimento, imagem, escrita e
de Souza no texto “Sujeitos à
da imagem e do fazer historiográfico. A encenação dos acontecimentos é deriva”, do livro Tempo de pós- sujeito – “encenação dos acontecimentos”. No intuito de ampliar as fon-
uma experiência histórica desse sujeito, mas também uma experiência crítica (2012), quando procura tes documentais, para complexificar as relações desse sujeito com a ci-
histórica do urbano do período. Nesse sentido, interessam-nos as cama- destacar o “grau de encenação dade, decidimos incluir álbuns, fotografias avulsas, impressos, objetos e
e dramaticidade que constrói
das, as películas não somente referentes às dinâmicas sociais, mas tam- o cenário textual da obra assim
a correspondência ativa e passiva entre Aracy e seu irmão Barcino Esteve.
bém às transformações urbanas que, ocorridas naquele período, foram como da existência”. (SOUZA, Além disso, resolvemos também utilizar as anotações fragmentárias de
determinantes para a cidade de Salvador. 2012, p. 111) Dessa forma, não Aracy nos álbuns de fotografia, que ela mesma confeccionou.
se pretende “naturalizar as
diferenças”, mas “tornar menos
As questões que nos movem são, portanto, questões contemporâneas A ideia é que o universo criado por essas fontes escritas e imagéticas pos-
rígida [...] a barreira entre a ficção
em torno de processos de transformação urbana, de práticas cotidia- e a vida, ou entre a teoria e a sibilita uma experiência histórica em torno de uma “escrita de si” como
nas e de hábitos sociais que, ocorridos outrora, foram definitivos para os ficção”. (SOUZA, 2012, p. 111) forma de constituição do sujeito num dado momento. Especificamente,
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interessa-nos no arquivo de Aracy essa constituição de si em relação a do”: para uma historiografia que se arma do conceito de genealogia, não
determinadas práticas – práticas fotográficas urbanas. Em que medida há fundamento para o sujeito; há apenas várias armações, deslocamen-
uma “escrita de si” nos permite acessar a “cena do sujeito” que emerge tos na superfície e posições que aí ocupa, numa ligação acidental entre
das relações de Aracy com a imagem fotográfica, enquanto uma prática? um conjunto de práticas e discursos. Digamos que, quando tomamos a
E como o percurso da Aracy também nos permite pensar a constituição questão do “sujeito” na historiografia, esse termo passa a ser conside-
do sujeito por meio de uma prática fotográfica, isto é, uma “imagem de rado como uma instância, uma posição nas redes de práticas sociais, si-
si”? Em sua introdução ao livro Estética da desaparição (2015, p. 11), de tuado entre as demandas contingentes (cultura) e as necessidades (na-
Paul Virilio, Jonathan Crary demonstra que, para o ensaísta francês, “o tureza) que se implicam mutuamente. O que, de certa maneira, retoma
indivíduo nunca está organicamente situado num rio a priori do tem- os pressupostos de nossa ficção genealógica mediada por uma “cena do
po, e sim que a história sempre foi uma questão de remanejar arranjos sujeito” - o conjunto de enunciações produzidas, escritas e imagéticas
e técnicas através dos quais são produzidos sistemas temporais provi- - e a “encenação dos acontecimentos” - as demandas sociais, políticas,
sórios.” técnicas, que, de alguma maneira, caracterizam um determinado tempo
histórico.
Sob o impacto das profundas transformações históricas da primeira
metade do século XX, ancoradas em processos globalizantes de homo- O sujeito é “um oco de alma”, como escreveu Clarice Lispector (1984, p.
geneização das formas de vida, identificamos nesse período das déca- 20); nunca totalmente preenchido, refém do corpo herdado e das cir-
das de 1950 e 1960 uma crise do sujeito correlata a uma “reinvenção de cunstâncias históricas. Em cada recorte histórico, deveríamos nos per-
si”. Nessa perspectiva, nossa proposta também se relaciona com uma guntar sob quais discursos (e práticas!) o sujeito estabelece relações
historiografia do “sentimento de si”6,compreendida como uma análise consigo mesmo, constituindo-se. Como argumenta Foucault (2002, p.
histórica dos registros que apontam para uma relação, cada vez mais 329-330):
presente na primeira metade do século XX, entre o sujeito que enuncia e
a percepção de seu corpo como fundamental para o desenvolvimento de Na época em que o estudante que eu era lia as obras de Lévi-Strauss e os
uma dimensão “interior”, única, singular. primeiros textos de Lacan, parece-me que a novidade era a seguinte: nós
6
Sobre a historiografia de um descobríamos que a filosofia e as ciências humanas viviam sobre uma
Entretanto, não é possível fazer uma história do sujeito e as modalida- sentimento de si, ver Vigarello concepção muito tradicional do sujeito humano, e que não bastava dizer,
des de sua constituição sem assumirmos um certo “niilismo tempera- (2016). ora com uns, que o sujeito era radicalmente livre e, ora com outros, que
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ele era determinado por condições sociais. Nós descobríamos que era ramente como martírio confessional e representação da vida dolorosa
preciso procurar libertar tudo que se esconde por trás do uso aparente- dos indivíduos. O ponto de partida é a recusa de entender tais escritos
mente simples do pronome ‘eu’ (je). O sujeito: uma coisa complexa, frágil, como representações; antes como intervenções numa determinada
de que é tão difícil falar, e sem a qual não podemos falar. experiência histórica, seja estética, política ou comportamental, e a in-
venção de novas formas de práticas e discursos que tensionam o “si” e o
Embora, a sociedade capitalista tenha se especializado na produção e no
“mundo”.
consumo de mercadorias, convergindo para a segurança dos compor-
tamentos, enquadrados em formas constantes, repetitivas e ordenadas, O uso genealógico do conceito de “escrita de si”, do filósofo Michel
ao dobrar-se sobre si, num jogo disruptivo entre práticas e narrativas, o Foucault, nos permite analisar as relações entre a escrita e a reinven-
sujeito que aí emerge torna-se uma inflexão acidental entre o fazer e o ção de si. Ao deslocar esse conceito para a contemporaneidade, ten-
dizer. A prática da escrita é uma dessas modalidades de constituição de si sionamos as normas vigentes e redimensionamos o “sentimento de
que se espalhou em cartas, diários, romances, crônicas etc. Nossa hipóte- si”, como faz o historiador e sociólogo Georges Vigarello. Enquanto
se, com este trabalho, é a de que, além da prática escritural, a prática foto- Foucault desenvolve tardiamente esse conceito – sobretudo nos dois
gráfica também constitua outra dessas modalidades – pelo uso massivo últimos volumes da sua História da sexualidade – abrindo mais uma
da produção de imagens – na primeira metade do século XX. frente em sua genealogia do sujeito ocidental –, Vigarello dedica-se a
investir num estudo do conjunto de escritos, dos manuais médicos à
escrita íntima, visando a identificar a lenta percepção de uma dimen-
SUJEITO E ESCRITA são interior e, em seguida, do corpo próprio como parte importante
desse “sentimento de si”.
Cartas e diários sempre estiveram submetidos, quanto a sua importân-
cia, aos documentos oficiais e à escrita literária propriamente dita, numa Na correspondência de Aracy e seu irmão Barcino Esteve, durante o ano
espécie de limbo historiográfico. Limitadas a uma dimensão coadjuvan- de 1963, quando este residiu por um tempo com a família na Inglaterra,
te na pesquisa histórica, raramente tiveram como foco de análise ques- é bastante perceptível o quanto o perfil feminino de Aracy desvia-se de
tões que lhes são específicas, como aquelas delineadas pelo conceito de um horizonte de expectativa socialmente estabelecido no período para
“escrita de si”, tomada mais como invenção ou “sentimento de si” – o que a mulher de classe média. Ao contrário da figura feminina dedicada ex-
apontaria caminhos inusitados da pesquisa historiográfica – do que me- clusivamente à intimidade do lar, como parece sugerir o grande volume
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(um amigo de José Maria) tiramos por preço de atacadista. A brincadeira


de fotografias dos filhos e do marido no seu acervo, Aracy assume uma custa cerca de US$230,00.
condição feminina mais complexa, responsável por relações sociais
Aliás ia esquecendo, além dos casacos há também um vestido de camur-
múltiplas, que envolvem tanto uma dimensão íntima, maternal, organi- ça para Nêda. Mandarei por via marítima o catálogo com os modelos e
zadora do universo doméstico, como também uma dimensão pública, de mostruários para vocês verem. Já estamos convidados devidamente pelo
liderança e articuladora de negociações econômicas e políticas. amigo de José Maria, Carlos Caldaya, para assistirmos em Setembro, em
Paris, aos desfiles de moda de inverno, pois o dito senhor tem casa em
De fato, parte do conteúdo das cartas cumpre com o tal horizonte de Paris. (ESTEVE, 1963a)
expectativa e detém-se sobre um mundo relativamente “limitado” e
pequeno burguês, que envolve as atividades do cotidiano, sobretudo as Também as revistas fazem parte desse universo da classe média urbani-
notícias dos filhos, e também da saída do regime de trabalho por alguns zada em vias de globalização. Manchete e Visão são aquelas que Barcino
dias para veranear durante o São João. São características dos hábitos solicita a Aracy o envio, se possível semanal, para se manter atualizado
de uma vida marcadamente moderna. A atenção de Barcino, seja ao co- com as notícias do Brasil. Barcino orienta com detalhes a irmã sobre como
mentar nas cartas a magazine onde realizaram compras no Rio de Janei- proceder com o envio das revistas, em carta do dia 27 de julho de 1963:
ro, antes de partirem para a viagem transcontinental de navio, ou o des-
Esta [carta] é para tratar exclusivamente de um assunto - um pedido a
lumbre com a moda – expresso nas descrições dos casacos comprados
vocês: revistas para nós. Pois em toda carta para aí me esqueço de pedir e
em Barcelona, no envio do catálogo de roupas da loja, na viagem para o só me lembro quando estou no correio com a carta lacrada.
desfile em Paris –, testemunha uma vida social, muito cara aos dois, que
Você terá que me mandar a revista pelo correio aéreo, uma de cada vez,
é cercada de novos objetos que geram distinção e gozo, como relatado na
para o pacote não ficar muito grande. Vem como impresso. Basta colocar
sua carta do dia 11 de junho de 1963: numa cinta de papel com o endereço em volta da revista, não a embale to-
talmente.
Amanhã ficarão prontos o meu sobretudo, casacão de Nêda e capotes
com fecho éclair para os meninos. São de camurça pela face externa e in- Preferimos MANCHETE e VISÃO. Caso não seja muito caro envie de vez
ternamente o próprio pêlo de lã de carneiro. São de fato um espetáculo e em quando o CRUZEIRO também. (ESTEVE, 1963d, grifo do autor)
abrigam até contra o frio do pólo Norte. Como vê, já estamos preparados
para enfrentar Londres. É de fato um material de primeiríssima ordem e É importante salientar o interesse de Barcino pela revista Manchete em
bastante caro. Entretanto como compramos diretamente do fabricante preferência à revista O Cruzeiro, tendo em vista que esses periódicos
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eram rivais e que o diferencial da Manchete, criada em 26 de abril de 7


Consta no texto de apresentação fenômeno editorial: chegou a ter 2006, p. 58) As aventuras da imagem a partir dessas duas décadas –
1952, se deu justamente pelo incremento do aspecto visual da revista, desse periódico, no site da tiragem de milhões de exemplares
como o duplo fantasmagórico do mundo das mercadorias – concorrem
Biblioteca Nacional Digital do naquele período. Isso, todavia,
característica comum a esse segmento, viabilizada pela qualidade téc- para mediar a relação entre os homens e talvez deles consigo mesmos.
Brasil: “Manchete foi uma revista não durou muito tempo. Após
nica de impressão de Werbendorfer, primeira offset instalada no Bra- semanal de grande circulação, o fim de sua publicação regular
lançada no Rio de Janeiro (RJ) como semanário, marcada pelo Nota-se que esse tipo de periódico hebdomadario incluía no seu univer-
sil.7 Isso nos remete a nossa hipótese – apoiados nos textos da época
em 26 de abril de 1952, tendo fim da Rede Manchete, que puxou so matérias assuntos internacionais, como o assalto ao trem pagador,
escritos por teóricos como McLuhan, Debord, Flusser, Baudrillard – de à falência a Bloch Editores, em
circulado regularmente até 29 sobre o qual Aracy comenta ter se inteirado por meio de uma edição da
que nossos personagens se encontram em meio aos processos de afir- de julho de 2000. Criada pelo 2000, após um longo período de
imigrante ucraniano Adolpho crise deflagrado na década de Manchete enviada ao irmão: “Numa das Manchetes tinha até reportagem
mação da imagem frente ao escrito e aos intensos processos de rear-
Bloch, fugido da Revolução Russa, 1990, Manchete foi adquirida pelo sobre grande roubo ocorrido aí. Visão e Fatos e Fotos além de Manche-
ticulação na produção de sentidos a que as décadas de 1960 e 1970 es- a publicação se estabeleceu empresário Marcos Dvoskin, e
te”. (GOMES, 1963c) Ela se refere muito provavelmente à edição de 24 de
tavam submetidas. como principal concorrente continuou circulando, mas como
da então extremamente bem- produto de uma nova empresa, a agosto de 1963 da revista Manchete, cuja capa exibe a chamada: “O maior
Por outro lado, uma hipertrofia do fetichismo da mercadoria alavanca- sucedida revista O Cruzeiro, dos Manchete Editora. A partir desse roubo do século” e a reportagem se inicia com os dizeres: “A Inglaterra
Diários Associados, de Assis momento, a publicação veio a
ria tanto um verdadeiro “sistema dos objetos”, como defendido por Jean volta sensacionalmente às manchetes da imprensa mundial com uma
Chateaubriand, a qual viria a lume esporadicamente, numa
Baudrillard em obra homônima, quanto uma “sociedade do espetáculo”, superar. Manchete foi, afinal, o espécie de ‘sobrevida’: a partir de versão elegante e opulenta do nosso Assalto ao trem pagador. Diante da
órgão fundador do extinto Grupo sua edição nº 2.521, de abril de perfeição e rapidez do crime, os famosos detetives da Scotland Yard per-
preconizado por Guy Debord em seu livro de 1967, hoje já clássico. Para
Manchete, que se estabeleceria 2001, e até sua edição nº 2.537, de
os dois pesquisadores, um mundo fantasmagórico se interpôs, daí em deram a fleuma e acham que o próprio Sherlock Holmes se considera
de fato em 1983, com o início das fevereiro de 2007, a revista veio
transmissões da Rede Manchete sendo publicada em cerca de três desnorteado”. (O MAIOR..., 1963, grifo do autor)
diante, entre e sobre os indivíduos como uma segunda natureza. Como
de Televisão, composta de cerca edições por ano, normalmente
se os acontecimentos fossem agora tomados numa outra “encenação”, Dialogando com uma dimensão mais pública, como a referida no roubo
de dez emissoras de TV (e mais datadas dos meses que cobriam
agora “espetacular”: a potência da imagem, seu impacto, sua circulação, dezenas de afiliadas), todas o carnaval. [...] Com redação do trem em agosto de 1963 na Inglaterra, surgem na correspondência os
seja como mercadoria, seja como fantasma do acontecido. Nas cartas levando o nome do periódico instalada no prédio da Frei Caneca
desafios enfrentados por Aracy na coordenação da execução de uma obra
impresso. Foi em paralelo a essa – que seria mantido como sede
trocadas entre os dois irmãos, Aracy e Barcino, vemos como os objetos do empreendimento dos irmãos de saneamento no Dique do Tororó, pela qual a empresa do irmão estava
expansão comercial dos negócios
são citados como acesso a esse mundo mágico que afirma um lugar de de Adolpho Bloch e sua família, até 1968, quando a empresa responsável. Nos interstícios, surge a cidade de Salvador, daquele período,
nos anos 1980, que o semanário – mudou-se definitivamente
classe, distintivo, ao mesmo tempo em que denuncia essa cópula infer- em seu arrastar frente a uma modernização que nunca alcança, espremi-
com seu slogan ‘Aconteceu, virou para a Rua do Russel, no bairro
nal entre o vivente (indivíduo) e o não vivo (mercadoria), tão bem expres- Manchete’ – atingiu seu ápice, da Glória –, Adolpho seguiu a da entre a gestão do espaço público e a ascensão financeira de estratos da
sa no conceito benjaminiano do “sex appeal do inorgânico”. (BENJAMIN, firmando-se como verdadeiro fórmula de seus concorrentes, classe média, que, por sua vez, dependem dos planos governamentais mu-
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nicipais ou do Estado. Relata Aracy Gomes na carta de 21 de julho de 1963e: no nicho das revistas ilustradas
a cores, porém, dando um passo Ainda que sua formação seja em Matemática, em licenciatura, perce-
“Tenho muito o que escrever e contar, vamos primeiro aos negócios [...]”.
à frente: investindo na qualidade bemos nas cartas a desenvoltura de Aracy para dispor os dados e co-
visual do periódico, o imprimiu
Essa dimensão da conversa entre os irmãos ocupa sempre a primeira mentar sobre o andamento dos trabalhos, balizando-se marcadamente
por uma rotativa Webendorfer,
parte das cartas, anterior aos assuntos familiares; portanto, com eleva- a primeira offset do Brasil. Fora numa ideia moderna de produção e de maneira positiva quanto à alta
do grau de prioridade. São meandros de negociações de pagamentos, isso, agências estrangeiras de produtividade:
contratação de funcionários, andamento das obras, controle dos gastos, fotografia foram contratadas
para fornecimento de imagens de
recebimentos que enovelam os irmãos no esforço de dar continuidade Zé Aires parece agora mais acessível, já está se animando com a pro-
qualidade, o que impulsionou as
aos trabalhos e que nos revelam uma outra face de nossa protagonista, dução e tem visto e sabido das dificuldades que surgem não nos permi-
vendas da revista, logo de início”.
diferente do perfil construído pela historiografia do período, da mulher tindo maior rapidez - esta semana por exemplo para se cravar 1 estaca
(BRASIL, 2019, grifo do autor)
de 2m foi preciso tirar pedra de mergulho. 1m depois desciam estacas
presa ao mundo doméstico. Aracy – aqui como que ensaiando essa “cena
de 5m com facilidade. A produção tem sido no mínimo de 5 diárias e
do sujeito” contemporâneo em torno do “feminino” – parece percorrer
no máximo 10. A Concentral está achando dificuldades para o aterro.
com desenvoltura esse campo de excepcionalidade, para sua época, que
A terra que eles acharam que era muito caro o que Rosalvo cobrou co-
só se afirmaria a partir da década seguinte: a dupla jornada de trabalho, meçaram retirando e era tão liguenta que a caçamba virava e não caía,
entre a casa e o lar, entre o doméstico e o público. abandonaram esta terra e estão pegando outra - mas acharam que era
exagero de Rosalvo na ocasião - Eles têm produzido pouquíssimo. (GO-
Na carta de 21 de julho de 1963, logo após tentar situar aquela escrita no
MES, 1963b)
conjunto de correspondências, Aracy adentra o assunto do trabalho no
Dique e mostra-se versada nas práticas de negociação necessárias para Além dessa gestão compartilhada pelos irmãos da obra do Dique, per-
dar seguimento à obra: cebe-se também nas cartas uma outra dimensão pública de Aracy por
meio de tentativas de estabelecer alianças políticas, bem como pela sua
Tenho muito o que escrever e contar, vamos primeiro aos negócios:
_Como lhe mandei dizer Luciano cumpriu o pagamento das folhas de 28-
participação na implementação de um plano trienal em escolas da pe-
6, 5-7 e 12-7. [...] Fui falar com ele, disse que queria dinheiro para cimen- riferia da cidade. Todas essas são também instâncias nas quais Aracy se
to, vendas a vista, etc ele deu-me então um cheque [...] Já vi que o meu narra constituindo um universo de ação mais ampla que aquele da do-
jogo tem de ser este, pegar os vencimentos e ir atormentar ele senão não mesticidade e da intimidade. Também sua inserção no círculo de políti-
sai. [...] Não se preocupe que agora eu estou perita em só sair de Luciano cos atesta esse deslocamento a que nos referimos:
quando ele me solta dinheiro. (GOMES, 1963b)
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quinho e em frente aparece um vidro onde a pessoa centra a imagem.


Quando cheguei aqui, já no dia imediato, tive que andar às voltas para
A partir desse momento pisca uma luz vermelha de aviso e logo pisca
receber o ministro da Educação e comitiva. Renato é agora diretor ge-
luz de flash 4 vezes, que corresponde a 4 fotografias. Daí a exatamente
ral do Ministério de Educação. Lugar ótimo, muito melhor que o da outra
3 minutos aparece numa caixinha ao lado as 4 fotos em tira já reveladas.
vez. O Paulo de Tarso, ministro, veio com a mulher e Leda Jesuíno e eu é
(ESTEVE, 1963b)
que ficamos incumbidas de receber e conduzir a Sra. Paulo de Tarso. Pes-
soa ótima, jovem, simples e muito politizada. Tivemos um carro a nossa
disposição, o almoço foi no Palácio. Tive como surpresa quando estava
Embora, o conjunto dos comentários da ambiência técnica seja expres-
no campo antes do avião chegar a aproximação de Lomanto que esten- sivo, como o que acabamos de apresentar – indicando não só o seu im-
dendo a mão disse: Aracy, como vai? Como vai a família? (GOMES, 1963b) pacto na primeira metade do século XX, mas também o lugar distinti-
vo de classe que possibilita esse contato e consumo –, os relatos sobre
O trânsito público e político de Aracy, no entanto, não aparece do mes- a cidade e a vida pública, apesar de existirem, são escassos. As cartas
mo modo nas fotografias dos álbuns de família, nas quais predomina, obedecem uma hierarquização do espaço do sujeito e sua cena, sobre
para além das poucas dezenas de fotografias urbanas, o universo da in- aquela dos acontecimentos, atualizando as negociações econômicas –
timidade. Curiosamente, a fotografia pouco ou nada aparece nas cartas. como uma instância privada, a despeito de sua inserção social (a forma
Ou melhor, é denunciada pela ausência: em quase nenhum momento a da cidade, o regime coercitivo dos trabalhadores, a dependência da polí-
fotógrafa se detém sobre o assunto, a não ser quando comenta os pos- tica local para o andamento dos contratos da empresa) – e as demandas
tais recebidos ou quando promete imagens, seja da obra do Dique ou da afetivas e familiares.
primeira comunhão da filha. Escreve na carta de 21 de julho de 1963: “Te-
nho muitas fotografias do dique e prometo nestes próximos enviar – já Entretanto, em algumas cartas de agosto e setembro de 1963, a situação
mandei revelar pois estou sem tempo”. (GOMES, 1963d) De resto, o irmão do Brasil emerge com mais força em meio às observações – levemente
detém-se – reafirmando seu deslumbre pelos objetos técnicos – para assustadas – de Aracy em torno da elevação de preços, como consta em
descrever uma Photomatic, máquina de retratos instantâneos instalada carta de 24 de agosto de 1963: “O custo de vida continua subindo desme-
em estação de metrô em Londres. didamente. Esta última subida de dólar e subida de transportes aqui em
Salvador tem refletido bastante em altas de tudo”. (GOMES, 1963a)
Seguem juntas três fotos nossas. Foram tiradas em uma estação de me-
trô (que aqui se chama UNDERGROUND) numa cabine onde se coloca Há também apontamentos mais diretos sobre o clima de tensão política:
uma moeda de 2s/6d (um half-crown) = $248,00. Senta-se em um ban- “A situação política continua insegura mudanças todos os dias, greves,
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marchas sobre Brasília para forçar reformas tudo cheirando intranqui- natureza mais conservadora, Aracy critica as insurreições que consti-
lidade e insegurança. Repare que o dólar continua subindo”. (GOMES, tuem esse momento político, atribuindo-lhes a responsabilidade pela
1963g) A reiterada preocupação com a subida do dólar deve-se, eviden- instabilidade e pela tensão características a esse período. E confirma a
temente, à preocupação com os gastos do irmão e à estabilidade da em- tese de Starling (2017, p. 334) de que:
presa, afirmando essa visão nitidamente da classe média brasileira as-
cendente que mede os acontecimentos públicos e políticos pela ótica da Começou aí, entre setembro e outubro de 1963, a inversão de sentido que
cena privada. Num rascunho sem data AEG.AC_162, p.55, provavelmente permitiu a quem estava atrás de motivos para apear Jango do poder se
apropriar de maneira convincente da bandeira da defesa da legalidade.
escrito em torno do dia 29 de setembro, a narração em torno da situação
Mais grave, talvez: a rebelião dos sargentos materializou as ameaças de
política se prolonga um pouco mais:
anarquia e indisciplina militar que até então, bem ou mal, eram só retó-
rica e entravam na conta da disputa política. O levante em Brasília suge-
Quando leio os jornais fico com vontade de recortar muita coisa para lhe
ria que a qualquer momento as forças de esquerda que apoiavam Jango
mandar. Porém de bom mesmo, nada. Por aqui só se fala em termos de
poderiam sair da legalidade, tal como os sargentos, e impor ao país um
greve, motins, inquietação. No dia 12 de setembro o ‘motim dos sargentos
governo nacionalista e popular – a antessala para a implantação de um
em Brasília’, daí para cá, sempre a expectativa. Os bancos fecharam pelo
regime comunista, afirmavam grupos de direita, setores conservadores
motim e depois de dois dias de funcionamento começaram o seu ‘motim’
e até mesmo alguns moderados.
também, que tem atrapalhado o país inteiro. Nós mesmos, se não fosse
a Argos que tem consignado dinheiro para folha e etc e Sr. Arlindo tam-
Em cartas posteriores, até janeiro de 1964, Aracy raramente volta a fazer
bém se oferecido estaríamos em apuros como muita gente, já pensou?...
(GOMES, 1963h) comentários mais diretamente relacionados ao clima de insegurança
instalado naquele momento no país. Sua preocupação com os aspectos
Aracy refere-se provavelmente à Revolta dos Sargentos, ocorrida em econômicos, no entanto, reiterada a cada carta, é característica de seu
agosto de 1963, em Brasília. Essa revolta manifestava, nos termos da his- posicionamento político, sugestivamente conservador, paradoxalmente
toriadora Heloísa Starling (2017, p. 332), “uma demanda por participação contraditório com seu engajamento no programa trienal de educação,
política entre os subalternos nas Forças Armadas; então os sargentos planejado para 1963-1965 e sua aproximação com o progressista Waldir
idealizaram uma instituição militar disposta a ecoar o interesse popular, Pires. Na mesma carta de 21 de julho de 1963, a fotógrafa relata seu en-
de alguma maneira análoga aos moldes dos levantes militares ocorridos contro com Pires, então consultor geral da República – a convite do pre-
durante a Primeira República”. Numa posição política possivelmente de sidente João Goulart. Menciona a presença de Paulo Moreira, secretário
140 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 141

de Viação de Obras Públicas de Salvador8 no ano de 1964, e faz referência Fica evidente que a própria ideia de uma linearidade entre a comunica-
a outros nomes, como Antônio Balbino, do Partido Social Democrático ção através das cartas não se sustenta. É uma invenção anacrônica para
(PSD), então ministro da Indústria e do Comércio e posteriormente mi- lidar com a forma da correspondência epistolar, tendo em vista que al-
nistro da Fazenda – mas que tinha sido, em 1961, membro do Conselho gumas chegam em tempo, outras não, afastando uma ideia de regulari-
Geral da Educação. dade na alternância. Pois algumas se acumulam, outras extraviam, e a
comunicação vai se dando dessa forma incerta e irregular. Nesse senti-
Outro aspecto importante de se observar sobre a correspondência de do, é como se o tempo das cartas como fluxo contínuo fosse fictício, uma
Aracy com seu irmão é a incerteza implicada no próprio meio de comu- projeção anacrônica de nosso tempo sobre outro. A leitura e a análise
nicação e que finda por atravessar o conteúdo das cartas: há uma incer- das cartas indicaram que era uma comunicação marcadamente lacu-
teza sobre o compartilhamento da narrativa que cada um constrói com nar em que o tempo se fragmentava, redobrava sobre si, enquanto in-
o outro. Testemunham essa tensão as anotações nas capas dos blocos formações que por vezes se cruzavam, habitavam um tempo distinto. Os
de rascunho AEG.AC_145, p. 54, realizadas por Aracy no intuito de organi- irmãos, dessa maneira, tentam alguns artifícios para se contrapor a essa
zar a correspondência com o irmão. Além disso, em alguns momentos, comunicação tão estranha a nós. Em busca de controlar melhor esse
Barcino chama atenção sobre a numeração das cartas, corrigindo a irmã fluxo de narrativas, Barcino altera o endereço de destino das correspon-
quanto à organização da correspondência. Como nessa carta escrita em dências, deslocando da residência da irmã, no bairro do Barbalho, para o
Londres, 25 de junho de 1963: bairro do Comércio, onde está localizada a loja Argos, que ela administra
8
Em relação a Paulo Moreira, junto com o marido. Esse é o estratagema criado para compensar o de-
Ciça,
encontramos um documento, o sencontro das informações.
Hoje acabamos de receber, remetida por José Maria, de Barcelona, a sua Decreto nº 2.511, de 9 de junho de
carta de 11/6. Esta carta você numera erradamente de nº 2 e no entanto 1964, referente à aprovação de
Fiquei alarmado em mamãe dizer que você não recebeu nenhuma carta
loteamento e outras providências,
já é a n 3. Reveja a sua relação e caso não a tenha feito (pois é o mais certo minha de Barcelona, quando de lá lhe fiz duas cartas. A primeira no fim
no qual consta a assinatura de
que está [sic] contando de cabeça), faça logo _ de maio e a segunda no dia 10 ou 11 de junho. Esta é a minha 5ª carta para
Paulo Moreira de Souza na função
de secretário de Viação e Obras você, desde aqui da Europa, sem contar com a do Rio. Sendo assim, estou
CARTA nº 1 de 18/5
Públicas. Antes dessa data, não mudando o seu endereço de remessa para a loja, pois acho que há algu-
CARTA nº 2 de 4/6 c/ croquis em envelope separado
conseguimos localizar nenhuma ma coisa com o endereço do Barbalho. (ESTEVE, 1963c)
CARTA nº 3 de 11/6 e não nº 2 _ certo? (ESTEVE, 1963b) outra referência.
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Podemos dizer que há também uma dimensão técnica no tratamento


do cheguei de Cipó. Fiz lá e não achei pessoa de segurança para colocar
das correspondências naquele período, pensando que se trata de uma
aqui no correio por isso tinha data atrazada [sic] Chegando encontrei 2
ordem internacional de distribuição das correspondências. É essa orga-
cartas suas de 25/6 e 1/7 _ Realmente a numeração que você considera
nização técnica que dá o tempo da conversação por cartas e que precisa está certa porém eu considerei assim. As cartas que fiz para o Rio e para
ser o tempo todo verificada pelas informações compartilhadas – como Barcelona não numerei. Só comecei a numerar a de 4/6 para cá e colocar
o próprio carimbo registrado nos envelopes. É um tempo de centros transmissor para que eu possa me lembrar o que mando lhe dizer. Na
urbanos, com um certo grau de desenvolvimento das suas funções. Por realidade foram:

exemplo, na carta do dia 4 de agosto de 1963, Aracy se refere a corres- Para o Rio - 1
pondências enviadas pelo irmão e considera, enfim, o tempo que a carta 18/5 - 2
leva para chegar (quatro dias) e para ser distribuída (dois dias). É um pro- 4/6 - 3 com cópia
11/6 - 4
cesso de racionalização da distribuição das correspondências.
2/7 - 5
Nessas correspondências, o desejo de exatidão imediata e cronológica 21/7 (esta) - 6

é apenas uma ficção, pois o meio não permite essa precisão. Há, assim, Vamos então estabelecer essa numeração que é realmente a verdadeira.
um zigue-zague, uma pequena confusão de número de cartas e datas (GOMES, 1963e)
que é bastante presente. As cartas demoram de chegar e se acumulam
no processo de envio, chegando muitas de uma só vez com datas di- Entretanto, o que poderíamos creditar às cartas e aos diários do século

ferenciadas, gerando mal-entendidos e incertezas sobre o que foi dito passado, com toda a sua tessitura de saberes capsulados entre a esté-

e a resposta recebida. Acompanhamos também, na escrita de Aracy, tica literária e uma disciplina como prática da escrita – reservada aos

tentativas de ordenamento das narrativas, como no rascunho através restritos círculos dos que dominavam a técnica de escrever – parece ter

do uso de carbono da carta de 21 de julho de 1963, em resposta aos co- se deslocado, com o advento das imagens reprodutíveis, de telas e apa-

mentários do irmão: relhos para o terreno da produção massiva, anônima e banal. As práticas
de uma “escrita de si”, enquanto constituição do sujeito, se apegavam de
Carta 6 alguma maneira a uma fronteira entre a literatura – como distinção e
Querido Barcino uso de classe – e um esforço autobiográfico, em que a rememoração ou a
Você já deve ter recebido a minha carta 3 que coloquei no correio quan- escrita não se afastava jamais de uma relação consigo mesmo. A escrita
144 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 145

não estaria – assim como a laca japonesa descrita por Junichiro Tanizaki
imagem, apontando para a importância cada vez maior desta última.
– envolta em “camadas e camadas de sombra”, como o lustro dos anos
Presença incontornável no ambiente doméstico e urbano, a imagem,
derivado da “escuridão” que tudo envolvia? Segundo o escritor japonês:
desde os gadgets até os aparelhos, exacerba o “valor de exposição”, nos
Lustro dos anos é expressão poética, pois tal lustro na verdade nada termos expostos pelo pensador alemão Walter Benjamin. A “escrita de
mais é que sebo acumulado. Ou seja, é o brilho resultante da contínua si” ainda continha o “tempo morto”, negativo, da espera, evocando o té-
manipulação de áreas ou de objetos: tocadas e acariciadas constan- dio e o desconforto do segredo e a clausura da escrita; a fotografia, por
temente, tais peças acabam absorvendo a gordura das mãos. [...] Seja
sua vez, nos porta-retratos e nos álbuns familiares, lança o sujeito – ou
como for, as coisas que apreciamos como belas e requintadas têm em
o que resta dele inscrito em fragmentos – numa “claridade” imediata
sua composição parcelas de sujeira e desasseio, não há como negar.
(TANIKAZI, 2017, p. 30) que provoca outros níveis de sombreamentos. Como hipótese, situamos
Aracy nesse desdobramento do sujeito entre escrita e imagem fotográfi-
Com as imagens reprodutíveis e a presença crescente dos aparelhos, ca como demanda de sua época, a que ela estava submetida.
impôs-se ao sujeito um sistema de produção e circulação das imagens –
No que se refere à metodologia, reitera-se que tanto as cartas e ano-
como já mencionou Benjamin com a noção de valor de exposição – carac-
tações quanto a produção de imagens encontrada no acervo de Aracy
terizado por um grau elevado de iluminação das coisas em que tudo deve
Esteve Gomes, autorreferenciadas ou não, foram abordadas enquanto
ser visto, mostrado, revelado, sem cessar. A “cena do sujeito” passa a abar-
fontes para explorar a cena do sujeito urbano entre os anos de 1950 e
car paulatinamente, além da escrita, uma espécie de imaginária9 técnica,
1970. Segundo o historiador Vigarello (2016), na obra O sentimento de si,
na qual a fotografia pessoal e o álbum familiar ocupam um importante 9
Utilizamos aqui o termo
“imaginária” para nos referir é na segunda metade do século XVIII que, nos escritos de Diderot, o ter-
lugar no desenvolvimento de uma imagem e um “sentimento de si”.
a um conjunto de imagens de mo “alma” cede lugar ao “si”, expressão à época ainda não dicionarizada.
natureza técnica, desviando-nos,
Durante o século XIX, século da invenção da fotografia, a cena do sujei-
assim, do termo “imaginário”
pela sua conotação lacaniana ou to associa esse “si” a uma “evidência” corporal, o que nos prepara para
SUJEITO E IMAGEM
sua conotação antropológica, adentrarmos nas formas da “sensibilidade” contemporânea que vão se
segundo Gilbert Durand, de
A partir dos anos 1960, com a difusão da máquina fotográfica e de seu afirmar no século seguinte, quando tanto a escrita quanto a imagem
repositório de representações
uso doméstico, a constituição do sujeito se dá, sobretudo entre alguns produzidas por uma sociedade técnica passam a desdobrar a constituição desse “sujeito” que se reco-
estratos sociais da sociedade brasileira, no cruzamento entre escrita e numa determinada época. nhece a partir da pertença a um corpo. (VIGARELLO, 2016)
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Se o corpo passa a ser a mais importante “evidência de si”, podemos


imagens técnicas, da fotografia aos filmes caseiros. Ao estudar a foto-
imaginar a modulação que aí teve a imagem fotográfica no âmbito, so-
grafia no fim dos anos 1970, Barthes (2018, p. 18) escreve: “ah, se ao me-
bretudo, da intimidade do sujeito. Entre os anos 1960 e 1970, surge uma
nos a fotografia pudesse me dar um corpo neutro, anatômico, um corpo
“corpolatria” que se estende desde a adoção de práticas naturalistas,
que nada signifique! Infelizmente estou condenado pela Fotografia, que
orientalistas, como a ioga, até ao uso de drogas, relações amorosas mais
pensa agir bem, a ter sempre uma cara: meu corpo jamais encontra seu
livres e o consumo das mercadorias centrados na exuberância corporal.
grau zero”. Logo em seguida, Barthes (2018, p. 18) aproxima essa espe-
É sintomático que a psicanálise, em sua versão lacaniana, tenha, no final
rança do corpo próprio e neutro ao cuidado materno, indagando-se: “tal-
da década de 1940, concebido um “estádio do espelho” em que o na “as-
vez apenas a minha mãe? Pois não é a indiferença que retira o peso da
sunção jubilatória de sua imagem especular” manifesta “numa situação
imagem [...] é o amor, o amor extremo”. E acrescentamos: maternal! O
exemplar, a matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma pri-
álbum, como conjunto dessas imagens familiares criadas a partir des-
mordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e
se desdobramento maternal, se encontra aí na emergência de um novo
antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito”.
afeto enquanto cuidado de si.
(LACAN, 1998, p. 97)
Ver-se a si mesmo (e não em um espelho): na escala da História esse ato
A nossa genealogia do sujeito, embora registre com interesse o ges-
é recente, na medida em que o retrato, pintado, desenhado ou miniatu-
to psicanalítico de perceber a “imagem especular” como fundante na rizado, era, até a difusão da Fotografia, um bem restrito, destinado, de
constituição do sujeito, percebe a limitação que daí decorre ao centrar resto, a apregoar uma situação financeira e social - de qualquer maneira,
a questão do imaginário no espelho. A psicanálise parece se recusar a um retrato pintado, por mais semelhante que seja (é o que procuro pro-
admitir que a imagem especular daquele momento era acrescida da fo- var) não é uma fotografia. (BARTHES, 2018, p. 18)

tografia de si. O álbum familiar, a sua elaboração, o cuidado, as consultas


Dessa maneira, esse gesto recente se encontra nos fundamentos de uma
permanentes e o acompanhamento das mutações corporais assumem
história da intimidade contemporânea – entendida comumente como
um caráter afetivo, e disciplinar.
história do olhar ou da fotografia – em que se dá o deslocamento para
Esse novo espelho técnico (a fotografia) acentua as fantasmagorias do um contingente populacional mais amplo. A fotografia no papel e o filme
“outro” e do “si”, embaralhando ainda mais as relações (já complicadas) passam a ser os substitutos do quadro ou do espelho, e a vida privada
entre o sujeito e sua imagem. Agora, o sujeito se encontra sitiado pelas passa a orbitar em torno dos corpos e de suas fantasmagorias técnicas.
148 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 149

Nota-se, nos álbuns confeccionados por Aracy, essa mesma demanda


social – por vezes sugerida em revistas e publicidades da época – de uma AEG.AI-1.N2_015, p.38-39, ou a encenação da datilógrafa e da professora

prática feminina, índice de dedicação e responsabilidades domésticas. AEG.AI-1.N2_005, p.40-41, em contraponto às imagens do irmão com o jor-

Nessa mesma dimensão, também é perceptível, nos álbuns da filha Nú- nal ou com os blocos de brinquedo AEG.AI-1.A4_016, p.42-43, são indícios de
ria, sobretudo aquele dos anos de 1963 e 1964, o que chamamos de uma diferenciações dos processos de educação do feminino e de masculino.
“pedagogia do feminino”. Com esse termo, nos referimos a uma série Não esqueçamos que “ser mãe, esposa e dona de casa era considerado o
de hábitos cotidianos ou atividades festivas que perfazem um processo destino natural das mulheres”. (PINSKY, 2017, p. 609)
de educação específico para as crianças meninas, bastante distinto dos
A presença de ensaios fotográficos de Núria, já então com cerca de nove
meninos. No livro de Mary Del Priore, História das mulheres no Brasil,10
anos, em diferentes ângulos, bem como a série de imagens da meni-
a historiadora Carla Bassanezi Pinsky (2017, p. 608) analisa as mulheres
na como Rainha da Primavera AEG.AI-1.N4_008, p.44-45 ou desfilando
nos Anos Dourados e escreve que:
AEG.AI-1.N4_023, p.46-47, sugere ainda uma introdução, desde muito cedo,

As distinções entre os papéis femininos e masculinos [...] continuaram ao universo das misses, bastante presente no imaginário social daque-
nítidas; a moral sexual diferenciada permanecia forte e o trabalho da le momento. Como vemos em carta de Barcino de 27 de julho de 1963:
mulher, ainda que cada vez mais comum, era cercado de preconceitos e “Ontem à noite assistimos o [sic] filme da coroação de Miss Universo na
visto como subsidiário ao trabalho do homem, o ‘chefe da casa’. Se o Bra- televisão daqui. Finalmente Miss Brasil foi eleita desta vez. Estamos com
sil acompanhou, à sua maneira, as tendências internacionais de moder-
a ‘bomba’!”. (ESTEVE, 1963d) O concurso de misses, que representa uma
nização e de emancipação feminina [...] também foi influenciado pelas
adequação do corpo feminino aos padrões vigentes, acaba por mobilizar
campanhas estrangeiras que, com o fim da guerra, passaram a pregar a
volta das mulheres ao lar e aos valores tradicionais da sociedade. o país e revelar personagens femininas que se tornaram ícones nacio-
nais, como advento da articulação das revistas de grande circulação com
Os álbuns familiares de Núria, confeccionados por Aracy, criam um o impacto da televisão nos lares das classes médias.
universo feminino: habilidades musicais, como o aprendizado do pia-
Ainda na correspondência dos irmãos, há, na carta de 4 de setembro de
no; habilidades maternais, como as brincadeiras de Núria com bonecas
1963, menção a um acontecimento especial, a festa da primavera, na qual
ou mesmo quando segura nos braços um bebê de verdade; e habilida-
Núria teria participado como baliza e, para isso, recebeu treinamento de
des domésticas, como o brincar de cozinhar. Além disso, a fantasia de Primeira edição do livro foi
10
Stella Maria, Miss Bahia 1961:
bailarina de Núria, em contraponto à fantasia de sambista do irmão publicada em 1997.
150 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 151

Sábado dia 31 foi a festa da primavera com aquele desfile dos colégios
vam os pais, preparavam-se adequadamente para o casamento, con-
na Fonte Nova. Na sexta 30 eu havia ido a Mataripe com um grupo de
versavam sua inocência sexual e não se deixavam levar por intimidades
professores de um curso que estou dando o Plano Trienal de Educação.
Núria foi comigo e às 19h quando voltamos encontrei uns estudantes de físicas com rapazes”. (PINSKY, 2017, p. 610, grifo do autor)
Arquitetura pedindo para Núria ser baliza da Escola. Só havia o sábado
É interessante observar, no entanto, que, apesar de todos os vestígios pre-
de manhã para arrumações mas ela quiz [sic] e confiaram que ela apren-
sentes nos álbuns e nas cartas dessa pedagogia do feminino que conduzia
deria com um só treino que tive que me virar para fazer a fantasia a jato
(só de mãe doida). Modéstia a parte ela é danada. Stella Maria (Miss Bahia a menina à construção de um lugar social muito específico, encontramos
61) deu um treino de ½ hora com ela e ficou encantada. Saiu-se muito também nas mesmas fontes pequenos desvios nos gestos de Núria. Esses
bem, não esperava nem metade. Quando adquirir os retratos mandarei desvios traem ou suspendem momentaneamente as normas. Por exem-
um. (GOMES, 1963g) plo, quando o olhar maroto é capturado mais à vontade e espontâneo
AEG.AI-1.N2_011, p.49, especialmente ao Núria ser flagrada brincando no es-
Em outra carta, de 11 de junho de 1963, Aracy narra ainda outra ocasião corregador ou na escada AEG.AI-1.N2_021, p.50-51; se equilibrando na roda do
em que Núria se envolve com o universo de referência em torno das mis- jipe AEG.AI-1.N2_024, p.53 ou se aventurando para fora da carroceria AEG.AI-1.
ses, ao relatar: N2_027, p.56. Mesmo a razão do convite para ser baliza da escola de arquite-
tura, apontada por Aracy na carta para Barcino, sugere uma criança que,
Nurinha também foi miss, sabem!? No colégio houve um desfile e ela foi
ao mesmo tempo em que se insere, desvia-se pelas ousadias do horizon-
miss bahia 63. Vai junto uma foto que ela pediu para tirar para mandar
para vocês. O desfile miniatura foi uma graça. Desfilaram de vestido e te de expectativa criado para as meninas desse tempo: “Sim, a causa do
maiô. Cópia exata do que elas assistiram na televisão. O juri era de crian- convite é que alguns rapazes haviam assistido ela dansar [sic] twist numa
ças também. (GOMES, 1963f) festa de 15 anos (ela fez um progresso enorme no twist), gostaram e como
estavam sem baliza lembraram-se dela”. (GOMES, 1963g)
Inserida, portanto, numa pedagogia do feminino, Núria se desenvolvia, O álbum familiar, como o diário pessoal do século anterior, pretende co-
como as meninas de classe média daquele momento, sob “a educação tejar as nuances do “si” na auscultação das mínimas variações corporais,
moral e a vigilância” (PINSKY, 2017, p. 610), preparada para ser “moça de substituindo as narrativas pormenorizadas e cotidianas dos percalços da
família”. Segundo Pinsky, como aquelas “que se portavam corretamente, vida interior e seus desdobramentos físicos – como nos diários íntimos
de modo a não ficarem mal faladas. Tinham gestos contidos, respeita- de Amiel ou Baudelaire – pelo conjunto das imagens fotográficas.
152 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 153

A família, sob o regime dos álbuns, lembra o que escreve o historiador ção aos demais, indicando uma pretensa “pedagogia do masculino”, per-
Certeau sobre o ambiente fechado do convento e seu ordenado conjun- cebemos um grande esforço de apresentar a vida da criança e da família
to de testemunhas que observavam dos internos “os menores detalhes seguindo uma ordenação dos acontecimentos de maneira progressiva
nos acontecimentos físicos e suas sutis variações”, traçando, através do no tempo e aparentemente contínua. As fotografias de abertura do pri-
registro dessa pletora de particularidades, uma verdadeira “dramaturgia meiro álbum mostram, por exemplo, Aracy ainda grávida, não somente
corporal da sociedade”. (CERTEAU, 2015, p. 9) apontando para uma possível origem criada para aquele agrupamento
social, como também evidenciando que a fotografia, nesse regime de vi-
São registros visuais que captam gestualidades de filhos e esposo, nos
sibilidade dos álbuns, estava menos relacionada à habilidade de Aracy
mais sensíveis momentos íntimos, e que não mais dependem da narra-
enquanto fotógrafa e mais ao papel de mobilizadora da construção de
ção que se fia na memória ou na acuidade da escrita. São a evidência dura
uma memória visual familiar.
de uma realidade “psicofísica” do que já se foi enquanto uma exacerbada
atenção ao corpo. O diário e o álbum se aproximam pela capacidade de As anotações desse primeiro momento, que acompanham a imagem da
“descrição” do outro no momento mesmo de uma prospecção do “si”. A gestante, relatam em primeira pessoa o estado de saúde da mãe, seus
fotografia e sua prática concorrem para a afirmação desse processo de cuidados dedicados ao bebê e seus deslocamentos entre Salvador e a fa-
“superficialização” do “si”: a aparência corporal, seus contornos, plasti- zenda Canabrava, em Maracás, Bahia. Posteriormente, a escrita assume
cidade, mutações. Figuram os embates, transgressões e normatizações um destinatário, a criança por vir. Colada às imagens, essa escrita intro-
que lentamente se constituem fisicamente, pois o corpo se dá a ser visto duz o destinatário, e o leitor do álbum, ao núcleo familiar que se configu-
e possuído enquanto instância territorializada. A imagem fixa a aparên- ra com o nascimento esperado, materializando num entrecruzamento
cia que nem sempre coincide com esse “si” que, disperso, se interroga de vidas e de tempos, que se pretende impossivelmente contínuo. Mas
sobre a pertinência dessa verossimilhança, flagrada na expressão “esse está na sua descontinuidade, no seu tortuoso e galopante caminhar pe-
aí sou eu?”. O álbum familiar, que irrompe na “cena do sujeito” contem- las vidas dos sujeitos que lhe ocupam as páginas, a sua singularidade.
porâneo, responde com essa nucleação dura, forçando uma adequação,
O álbum configura, assim, uma “forma fantasiada” (BARTHES, 2005b, p.
ainda que precária, entre o que se vê, o que se sabe e o que se sente.
115), uma invenção que nos permite, pelos seus critérios, adentrar um
Nos três primeiros álbuns que Aracy produziu para o filho Arlindo, nos regime, imaginar histórias, especular possibilidades de vir a ser. Mas
quais o esmero e a dedicação com a produção sobressaem-se em rela- isso acontece segundo critérios específicos dos álbuns: de acordo com
154 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 155

Barthes (2005b, p. 123), a “circunstância e [o] descontínuo”. Na sequência, fício Oceania ao fundo, emergem nesse círculo de domesticidade, alar-
há santinhos do nascimento do filho, fotos dos primeiros dias no hospi- gando a esfera de construção da memória familiar para além da casa e
tal e em casa. As anotações titubeiam entre a brandura acolhedora das dos membros familiares mais imediatos, em direção à cidade. Parece ha-
imagens, fotografias posadas, que evidenciam a criança em semblante ver um deslocamento de um parâmetro rigoroso e marcadamente tem-
tranquilo, e a tensão do puerpério. Questões de gênero já emergem no poral para outro mais circunstancial e concernente à multiplicação das
relato em torno do choro noturno, da amamentação e da falta de sono. experiências possíveis à criança e à família. O que circunscreve, assim,
“Ai, como gostaria de dormir uma noite todinha...!”. O destinatário osci-
11
tanto as peripécias individuais do filho como as relações sociais do grupo.
la entre a criança e a própria Aracy, como se o álbum também ainda osci-
Mas, a despeito dos esforços, tanto de Aracy quanto nossos, em ordenar
lasse entre um regime memorialístico escrito e visual, fazendo ouvir os
ou em perceber a ordenação do álbum, o que realmente impera ao fim
últimos suspiros de uma prática do diário que se vai progressivamente
é uma “ausência de estrutura: um conjunto factício de elementos cuja
subsumindo à prática fotográfica que ali predomina.
ordem, a presença ou a ausência são arbitrárias”. (BARTHES, 2005b, p.
Ainda no mesmo primeiro álbum, estão imagens de Arlindo com um, 130) Também as inúmeras lacunas – páginas cujas fotografias foram ar-
dois, três meses, e assim sucessivamente até os oito meses, quando rancadas, em cujos espaços vazios figuram descrições ou pequenos es-
percebemos, enfim, algumas visíveis desorganizações desse suposto boços do retrato ausente – nos remetem para a natureza contingencial
plano sequencial e contínuo, a partir de indícios como a fragmentação do mundo, que atravessa toda feitura desse artefato de memória. O ál-
de ensaios fotográficos em páginas não sequenciais. Seria essa uma in- bum representa, assim, a família e o universo de domesticidade, que se
terrupção de um “desejo de escrever”? (BARTHES, 2005b, p. 10) Como se pretendia construir uno e coeso; mas o faz à sua maneira e “representa
a contingência da vida evidenciasse a condição necessariamente des- pelo contrário um universo não-uno, não hierarquizado, disperso, puro
contínua da natureza do álbum, apesar de um desejo também presente tecido de contingências, sem transcendência”. (BARTHES, 2005b, p. 130)
na correspondência com o irmão de organização rigorosa e cronológica
As anotações, abundantes nos primeiros meses do filho primogênito,
da memória.
progressivamente reduzidas ao longo do tempo, ora se aproximam de
No álbum nº 2 de Arlindo, essa sequência cronológica não aparece como uma enunciação, característica da escritura, e ora tendem, majorita-
A anotação consta em um
11

uma chave de construção tão explícita quanto no primeiro. Outros atores, dos álbuns de família de riamente, a uma espécie de arrebatamento pelo presente vivido. (BAR-
como a babá, Guiomar, e outros lugares, como a praia do Farol com o Edi- Aracy Esteve Gomes. THES, 2005b, p. 36) Reitera-se, assim, no universo dos álbuns de Aracy, a
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aproximação entre fotografia e haikai: há um apelo insistente pelo “isso” 12


Sobre a imagem como fonte de algumas fotografias e que sugere um esforço memorialista. Nesse
de pesquisa no campo da sentido, reiteramos a existência de uma íntima relação da fotografia, no
que é e que já não é mais, colocando em jogo “o sentir-ser do sujeito, a
arquitetura e do urbanismo,
pura e misteriosa sensação da vida”. (BARTHES, 2005b, p. 80) Tanto na conferir trabalhos anteriores arquivo de Aracy, menos com a dimensão artística e mais com a dimen-
fotografia quanto na anotação, há algo da ordem da pulsão e da nuance destes autores: Arquiteturas são da memória, como se se tratasse de uma questão proustiana, tendo
do olhar (MORTIMER, 2017),
que atravessa do indivíduo à individuação: “a irredutibilidade, a nuan- em vista que algumas anotações são claramente posteriores à época da
“Problematizações da arquitetura
ce fundadora, o Tal, o Especial do indivíduo (sujeito civil e psicológico) e do urbanismo em fotografia” tomada da foto, ao situar o evento num intervalo temporal muito mais
a determinado momento desse indivíduo: portanto, imediatamente ao (MORTIMER, 2016), “Visibilidades” amplo. Esse gesto de escrita, que aparece no momento em que fotogra-
Tempo que faz, à cor, ao fenômeno, à alma, ao instante que passa e não (MORTIMER et al., 2017) “Pensar
far se torna mais escasso, ajuda a compor uma persona entre o artístico
por imagens: diante do arquivo de
passa mais”. (BARTHES, 2005b, p. 90) Aracy Esteve Gomes” (MORTIMER, e a reconstrução memorialística. Mas, a despeito dessa nossa hipótese,
2018). E ainda: “Pierre Verger: existe um conjunto de slides, das décadas de 1970 e 1980, que talvez te-
Como se fotografia e escrita operassem conjuntamente uma espécie de Retratos da Bahia e Centro
Histórico de Salvador (1946 a
nha sido produzido nessa passagem entre a prática fotográfica domici-
filosofia do instante, os primeiros álbuns que fez Aracy, nesse compos-
1952) – uma cidade surrealista liar e um projeto com ambições estéticas. De todo modo, argumentamos
to híbrido de escrita e imagem, remetem a um gesto arquivístico que se
nos trópicos” (DRUMMOND, que, como num processo de “fazimento do sujeito, tessitura do sujeito”,
relaciona com a memória involuntária de Proust. Mas se diferenciam 2009). A imagem como fonte
em virtude de uma percepção do instante como uma “vocação de tesou- para a operação historiográfica vemos que os álbuns, esse híbrido de escrita e imagem, de fotografias e

ro” (BARTHES, 2005b, p. 102), como se fotografar e anotar permitissem desse campo de conhecimento de anotações, sobretudo os três primeiros de Arlindo, o filho primogê-
se beneficia das reflexões,
lembrar imediatamente. Nesse sentido, há tanto um impulso em trans- nito, sugerem que a tessitura do sujeito se trata menos do percurso de
no âmbito nacional, de Boris
formar o acontecimento em memória como também um consumo ime- Kossoy, Maurício Lissovsky, Lília um rio ondulante e mais de algo da ordem da metamorfose. (BARTHES,
diato dessa memória, conjugando nessa dinâmica movimento e imobili- Schwarcz, Margareth Pereira da 2005b, p. 91)
Silva, Guilherme Wisnik, Ulpiano
dade. A anotação parece querer restituir algo, uma nuance radical, uma Bezerra, entre outros; num âmbito
irredutibilidade do real, por meio de uma espécie de iluminação, apari- internacional, ressaltamos as
ção, fagulha: “é isso”. De modo semelhante, a fotografia faz aparecer uma reflexões de Eduardo Cadava, A FOTOGRAFIA, AS FOTÓGRAFAS
Beatriz Colomina, Anthony Vidler,
raspa/casca do real por meio de seu “isso foi”.
Claire Zimmerman, Martino Stierli; Um dos principais desafios teóricos deste trabalho, que partiu da ima-
e numa dimensão teórica mais
Além da escrita no álbum, em certa medida contemporânea à produ- ampliada, Georges Didi-Huberman
gem fotográfica12 para delimitar um campo de discussão no âmbito da
ção das imagens, há também uma outra escrita que aparece no verso e Giorgio Agamben. história da cidade, foi desviar-se do risco de clausura implicado numa
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leitura exclusivamente semiológica das fotografias. Trata-se de uma possibilidade de reprodução sugeria: a oposição da existência única e da
prática comum ao campo, mas que nos parece já esgotada em seus pro- duração à possibilidade de reprodução e à fugacidade. Com isso, ocorre
cedimentos ainda marcadamente estruturalistas, os quais privilegiam que, pela primeira vez, o valor de exposição começa a suplantar o valor
uma leitura sígnica em detrimento de um confronto com a materialida- de culto, sendo mais importante o aparecimento visual do que a ritualís-
de objetual das coisas: aparelhos técnicos, fotografias, ruas, corpos, edi-
13
O Capítulo “A ordem visual: uma tica da imagem:
introdução à teoria da imagem de
ficações. Isso não significa ignorar, por exemplo, a força crescente des-
Pierre Francastel”, do professor
sa teoria semiológica no período de 1950 e 1970, mas entendê-la, para É na expressão fugaz de um rosto humano nas fotografias antigas que a
Renato da Silveira, traz uma
abordagem crítica dos conceitos aura acena pela última vez. É isso que lhes dá a sua beleza melancólica e
este trabalho, como parte de um processo de construção historiográfica
mais importantes do historiador incomparável. Mas, quando o ser humano desaparece da fotografia, o valor
que não se esgota nela, e sim a insere no inventário dos regimes de vi-
da arte Pierre Francastel. Embora de exposição revela-se pela primeira vez superior ao de culto. Cabe a Atget
sibilidade da fotografia naquele momento. Nesse sentido, a riqueza dos tenha chegado tardiamente em o mérito incomparável de ter dado relevo a esse processo ao fotografar, nos
diferentes elementos existentes no arquivo de Aracy, como os escritos nossas mãos, foi de fundamental princípios do século XX, as ruas de Paris sem vivalma. Com razão se disse que
importância, pois indicava a
mencionados anteriormente, contribuiu para multiplicar as fontes, in- ele as fotografou como o local do crime, onde também não se vê ninguém.
proximidade de algumas de
corporando outras naturezas documentais. Essa multiplicidade não so- Ele apenas é fotografado por causa dos indícios. (BENJAMIN, 2017a, p. 23)
nossas análises com a crítica
mente incrementou o que tomamos como evidências para a produção da pintura do ensaísta francês,
principalmente no que se refere Pesa sobre o que chamamos de fotografia o anátema de uma reprodu-
da narrativa historiográfica, como também contribuiu para um trabalho
à autonomia da imagem, pois ção mais próxima do real até o exagero de concebê-la como um acesso
de análise fotográfica, ao situar e interpelar as próprias imagens, toma- “o signo plástico é diferente do
direto à verdade. A crítica oscilou entre o senso comum do “verdadeiro”
das como meio, e não como fim. signo verbal e exige apreciação
específica”; à relação com a e a sofisticação teórica que postulou o seu desligamento com qualquer
Por muito tempo, considerou-se a interpretação sígnica das imagens técnica, já que “a arte nunca está realidade e a sua desconstrução semiológica. Não deixa de ser trágica
em contradição com a técnica,
como derivada de uma tradição do enfrentamento teórico com as ima- a trajetória do teórico francês Roland Barthes, que, ao final da vida, es-
uma não é capaz de criar sem a
gens pictóricas e suas relações com a realidade e sua representação.13 outra”; e finalmente por recusar creveu essa história através da modulação entre os conceitos de stu-
Essas relações foram brutalmente ameaçadas pelo desenvolvimento a ideia de representação como dium e punctum, estabelecendo para a fotografia, por meio desse jogo,
espelhamento e entendê-la como
dos aparelhos de produção das imagens técnicas a partir do desenvol- a dimensão irredutível do “isso foi”. Ao definir esse noema da imagem
um processo entre “o mundo
vimento de sua possibilidade de plasmação e reprodução. Walter Ben- real, o percebido e o imaginário”. fotográfica, Barthes insere-se no que percebemos como emergência de
jamin (2017a) colocou em evidência o jogo de extremos que essa mesma (SILVEIRA, 2003, p. 123-147) uma teoria fotográfica que articula tanto o momento histórico-cultu-
160 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 161

ral (studium), quanto a perspectiva do sujeito (punctum). Ao remontar


em torno da dimensão técnica dessa imagem. Mesmo antes de encon-
a Benjamin, nos coloca diante da imagem como diante de um indício,
trar essas evidências, já percebíamos a necessidade, a partir de Walter
uma marca, um vestígio, o qual podemos situar em termos de códigos
Benjamin (2017a, 2017b), de pautar como a forma de desenvolvimento do
e leituras no processo histórico (BENJAMIN, 2017b), mas que, ao mesmo
campo estético da fotografia e do cinema está intrinsecamente vincula-
tempo, arrisca desestabilizar essa mesma construção pela sua dimen-
da ao regime técnico disponível. Dentro dessa perspectiva benjaminia-
são negativa: o indecifrável e irredutível que é próprio do visível.
na, que nós assumimos neste trabalho, a análise das imagens fotográfi-
Interessa, no âmbito deste livro, trabalhar a imagem fotográfica como cas não prescinde de um enfrentamento com as questões técnicas que
resíduo, que instaura no tempo presente um corte ou um desvio, ao definem as possibilidades do fotográfico e do “visível” no período trata-
suspender momentaneamente a lógica dos códigos culturais de cidade do. Entendemos que os regimes de visibilidade são forjados pelos meios
vigentes e dominantes. A suspensão da inteligibilidade segundo os có- técnicos disponíveis e que esses meios não se restringem aos aparelhos
digos culturais vigentes, no que concerne às práticas de cidade e à so- fotográficos, mas também a outros processos técnicos da prática foto-
ciabilidade urbana, se daria, enfim, por algo que escapa a esses mesmos gráfica, inclusive laboratoriais. No nosso entendimento, aquilo que é
códigos – escapar no sentido de evidenciar seus limites, os limites das visto nas imagens é possibilitado, portanto, por um determinado regime
próprias construções culturais. Estamos diante de códigos que podemos técnico disponível.
decifrar ou ler e que regem o que a imagem apresenta, tanto no sentido
A cidade de Salvador, na dimensão das práticas sociais, urbanas e do-
do referente – hábitos, gestos de outro momento histórico – quanto da
mésticas registradas por Aracy em suas fotografias, é uma cidade que
proposta compositiva da imagem. Ao mesmo tempo, sustentando esse
se faz visível dentro do gradiente de possibilidades fotográficas daquele
código, nos deparamos com o que Benjamin (2017b) chamou de “ser-
tempo e naquele espaço geográfico. A presença no acervo da fotógrafa
-assim”; que Barthes (2018) chamou de “isso foi”; que Agamben (2007)
de aparelhos tão diferentes, como uma Rolleicord e uma Olympus Pen,
chamou de “exigência”: algo (o real?) cujo resto, na fotografia, pode atra-
e seu acesso a processos de revelação e ampliação de pequena e larga
vessar quem a vê.
escala – laboratório caseiro e laboratórios comerciais, como o da loja
A presença das câmeras, dos manuais fotográficos e de outros docu- Mesbla – lhe permitiram um relativo alargamento dessas possibilidades
mentos que configuravam o campo da prática da fotografia no arquivo visuais. Isso fica explícito na presença tanto de ampliações pequenas,
de Aracy tornou ainda mais premente a necessidade de uma reflexão customizadas segundo os padrões dos laboratórios comerciais, quanto
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de ampliações maiores, em papéis com gramatura superior e que privi- 14


Gabeira, em seu livro de acompanhar pelo conjunto de aparelhos fotográficos e dos processos
legiam os tons cinza das imagens, possivelmente realizadas no próprio memórias Onde está tudo aquilo que eles desencadeiam e que darão à imagem um lugar de centralidade
laboratório de Aracy. agora?: minha vida na política – que ainda hoje nos assombra.
(2012), relata que, no final dos anos
1950 e início dos anos 1960, uma
Além disso, a presença dessas câmeras incorpora dois tipos de dimen- Uma das interpretações mais importantes desse fenômeno – e prova-
importante inovação acontece
sões para a prática fotográfica de Aracy: de um lado, uma dimensão mais nas redações: a introdução velmente a mais famosa – é a sua caracterização como “sociedade do
automática e instantânea, regida pelo aparato facilitador do processo de do aparelho fotográfico nas espetáculo”, uma modulação extemporânea do capitalismo de meados
tomada de fotos, da câmera Olympus Pen; de outro, uma dimensão mais atividades jornalísticas, do século XX, conforme estruturado pelo seu autor, Guy Debord. Trata-
particularmente, a Rolleiflex
construída e lenta, regida pelo aparato da Rolleicord/Rolleiflex – câme- 4x4. O que se colocava era a -se de um estágio de dominação extrema – a partir não mais das rela-
ras de lentes gêmeas – que exigem um determinado nível de conheci- potencialidade da imagem frente ções entre os homens, mas entre imagens. Nesse sentido, o mundo das
mento pelo operador e implicam um cuidado compositivo, com a ima- ao escrito e uma reelaboração mercadorias ressurge com a força quase atávica dos rituais mágicos, por
do design da página dos jornais
gem espelhada que aparece no visor. tensionada pela sociedade
meio de imperiosas imagens, em detrimento do mundo real e dos ho-
da imagem. Embora ainda mens que as produziam.
--- tuteladas, as fotos jornalísticas
vinham acompanhadas de Essa teoria acompanhou a radicalização política do período, a falência
Por ora, o mais importante é evidenciar que pautamos uma diferencia- título e legenda, e a imagem da esperança de uma revolução proletária e mesmo a tentativa frustrada
ção entre o conjunto de produção de imagens – nosso material analisa- reprodutível estava sob o impacto
dos processos informacionais da tomada de poder por forças difusas embebidas no excesso discursivo
do dentro de um ensejo historiográfico – e o campo das novas imagens
cada vez mais globalizados por de maio de 1968, na França. Sem perder de vista essa situação teórica, a
técnicas em sua ligação expressa com a materialidade da técnica não importantes agências de notícias pesquisa traz as imagens reprodutíveis enquanto imagens fotográficas
apenas compositiva, mas como uma instância que exige uma manusea- e de fotografias, como a Magnum,
fundada por Robert Capa e Henri-
oriundas de aparelhos que começavam circular e que tinha basicamente
bilidade, uma prática específica. Dentro desse campo, recortamos o mo-
Cartier Bresson. Somam-se a como características a sua popularização por meio de facilidade de ma-
mento de sua ampliação através da disponibilidade de aparelhos duran- essa disputa entre o que se lê e nuseio e portabilidade14 – mas ainda restritos às classes médias urbanas.
te os anos 1950, 1960 e 1970 numa difusão surpreendente de imagens o que se vê o aparecimento e a
difusão do aparelho de televisão
reprodutíveis que acompanhavam uma espécie de endocolonização do As fotografias desse período fazem parte, portanto, de um élan de mo-
e sua paulatina centralidade no
imaginário de amplos contingentes espalhado pelo globo. É um período conjunto de “novidades” diárias e dernidade caracterizado pela modificação das formas de memorizar e
em que as formas de produção de imagem se diversificam, o que se pode mundiais das famílias brasileiras. registrar os acontecimentos importantes; pela valorização e celebração
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dos instantes; e pela reinvenção da familiaridade e domesticidade ur- Vistas como catalisadoras do universo doméstico, as mulheres se tor-
banas, como indicam a publicidade do período e os inúmeros álbuns fa- nam figuras fundamentais para a absorção desse mesmo universo pelo
miliares. Exemplos disso são aqueles álbuns encontrados e alocados no mundo dos gadgets que modernizavam o ambiente indoor das famílias.
arquivo desta pesquisa, alguns dos quais primorosos pelo cuidado, pela No Brasil, há uma avalanche industrial alavancada pelo governo de Jus-
disposição e pelo acompanhamento íntimo dos corpos familiares. Com celino Kubitschek, com seu Plano de Metas, que acabou “facilitando a en-
a fotografia doméstica, a intimidade não seria mais a mesma, como se trada de capitais externos no país por meio da concessão de privilégios
um novo regime de visibilidade lhe fosse atribuído, sendo um dos prin- fiscais e econômicos, e aceitando depender de financiamentos interna-
cipais aspectos o espelhamento dos corpos – uma espécie “estádio do
cionais para acelerar o crescimento industrial”. (SCHWARCZ; STARLING,
espelho” técnico, para remontar à teoria lacaniana (1949), contemporâ-
2015, p. 422) O Brasil moderno, restrito a certas camadas sociais do mun-
nea ao nosso objeto de estudo. Além disso, destacamos a exposição dos
do urbano e da cidade, se construía em torno da ampliação das “possibi-
momentos infantis, que antes se perdiam na memória ou eram suscita-
lidades de acesso à informação, lazer e consumo” (PINSKY, 2017, p. 608)
dos pela narrativa dos velhos e que agora ficam plasmados nos negati-
e se fazia visível, ainda segundo Pinsky, sobretudo nos inúmeros bens
vos ou nas imagens envelhecidas. Por fim, apontamos ainda a avaliação
de consumo. João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais, no ca-
permanente do acontecido e seus desdobramentos na “psicologia” dos
pítulo “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna” da História da vida
indivíduos presentes no gesto de manusear os álbuns da infância numa
privada no Brasil, volume 4, descrevem minuciosamente essa alteração
retroalimentação imagética e também sentimental.
no mundo da produção e do consumo:
A intimidade e o cuidado maternal da família, até então direcionados ao
marido e aos filhos, se estendem agora para a produção amorosa de suas [...] Nos trinta anos que vão de 1950 ao final da década dos 70, tínhamos
sido capazes de construir uma economia moderna, incorporando pa-
cenas, nas situações familiares de carinho, encontro e júbilo mediadas
drões de produção e de consumo próprios aos países desenvolvidos. [...]
pelo clic das máquinas empunhadas pelas esposas e mães. Isso nos leva
Dispúnhamos, também, de todas as maravilhas eletrodomésticas: o ferro
a pensar que a comercialização dessas imagens reprodutíveis tenha
elétrico, que substituiu o ferro a carvão; o fogão a gás de botijão, que veio
sido destinada pelo mercado para o público feminino e, sobretudo, para
tomar o lugar do fogão elétrico, na casa dos ricos, ou do fogão a carvão, do
aquelas mulheres que, nas décadas de 1960 e 1970, seguiam a “ideologia fogão a lenha, do fogareiro e da espiriteira, na dos remediados ou pobres:
dos Anos Dourados”, segundo a qual “maternidade, casamento e dedi- em cima dos fogões, estavam, agora, panelas – inclusive a de pressão –
cação ao lar faziam parte da essência feminina”. (PINSKY, 2017, p. 608) ou frigideiras de alumínio e não de barro ou de ferro; o chuveiro elétrico;
166 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 167

A câmera fotográfica participa desse momento de tecnicização da casa


o liquidificador e a batedeira de bolo; a geladeira; o secador de cabelos; a
máquina de barbear, concorrendo com a gilete; o aspirador de pó, subs-
e invade os lares como dispositivo de salvaguarda da memória fami-
tituindo as vassouras e o espanador; a enceradeira, no lugar do escovão; liar, reinventando a intimidade. No entanto, ela não deixa de ser aquele
depois veio a moda do carpete e do sinteco; a torradeira de pão; a máqui- dispositivo do urbano, tão evidente tanto na tradição amadora – como
na de lavar roupa; o rádio a válvula deu lugar ao rádio transistorizado, AM aquela do turista-fotógrafo analisado por Lívia Aquino no seu livro Pictu-
e FM, ao rádio de pilha, que andava de um lado para o outro junto com o
re ahead: a Kodak e a construção do turista-fotógrafo (2016) – como tam-
ouvinte; a eletrola, a vitrola hi-fi, o som estereofônico, o aparelho de som,
o disco de acetato, o disco de vinil, o LP doze polegadas, a fita; a TV preto-
bém na tradição profissional – como aquela do fotojornalismo. Desde
-e-branco, depois a TV em cores, com controle remoto; o videocassete; o 1930 na Europa e nos Estados Unidos, o fotojornalismo se consolidava, o
ar-condicionado. (MELLO; NOVAIS, 1999, p. 563-564) que ocorre posteriormente, no Brasil, com o incremento da importância
das fotografias em reportagens de O Cruzeiro, Manchete e Realidade, das
Vale ressaltar que escapam à descrição minuciosa dos historiadores
quais participaram fotógrafos como José Medeiros, Marcel Gautherot e
as ágeis e leves máquinas fotográficas, igualmente modernizadoras
Claudia Andujar.
do estilo de vida. Esses inúmeros objetos adentravam o lar de maneira
facilitada por estratégias publicitárias veiculadas sobretudo em revis- Também podemos perceber essa insistente dimensão urbana das câ-
tas “femininas”, como a revista Claudia, instalada primeiramente em meras, nesse mesmo período histórico, nas expedições etnográficas,
Buenos Aires e depois em São Paulo, e a revista Casa & Jardim. Como como aquelas de Pierre Verger em 1940 e 1950, em Salvador, ou mesmo
avalia a pesquisadora Anahi Ballent, a propósito da edição argentina de nas propostas artísticas, como aquelas de Edward Ruscha, na costa oeste
Claudia, a revista: dos Estados Unidos, na década de 1960. Nesse sentido, a câmera aparece
nesse momento como elemento-chave que permanece do urbano e que
[...] operava como conselheira e incentivadora, oferecendo minuciosos
opera, ao mesmo tempo, a modernização da intimidade, colocando, por-
e detalhados relatórios elaborados pela ‘equipe técnica’, que orienta-
vam sobre como comprar bens duráveis básicos – como um automóvel, tanto, esses dois universos em relação. Ao invadir a intimidade, a câmera
um aquecedor a gás ou uma geladeira –, ou menos presentes nas casas conta com as mães e esposas como principais operadoras e se torna, ao
naquele momento, como condicionadores de ar ou máquinas de lavar mesmo tempo, uma espécie de passaporte ou visto legitimador da pre-
pratos. Esse foi um momento de intensa tecnicização da casa [...]. (BAL-
sença feminina – especialmente aquela inserida na ideologia dos Anos
LENT, 2017, p. 401)
Dourados – em lugares inesperados, fronteiras do universo público e do
168 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 169

No período em estudo, as possíveis inspirações femininas para a atua-


privado. Configura-se nesse momento um espaço feminino em torno de
ção fotográfica de Aracy não seriam raras, especialmente no âmbito do
uma sobreposição entre a dimensão da casa e da cidade.
fotojornalismo: Claudia Andujar, Alice Brill, Hildegard Rosenthal, Judith
As fotografias que Aracy realizou da Rua Chile, do Forte de São Marcelo Munk. Não foi possível identificar no arquivo de Aracy nenhuma menção
ou do Elevador Lacerda, imagens escassas diante do grande número de específica a nenhuma dessas mulheres atuantes no Brasil, coincidente-
fotografias domésticas nos álbuns, nos levam a pensar sobre a câmera mente todas elas estrangeiras ou descendentes de estrangeiros, como a
como esse instrumento que, ao ativar uma relação entre a moderniza- própria Aracy. Nem menção a nenhum outro fotógrafo encontramos no
ção da intimidade e o urbano, expande a presença do público feminino arquivo diretamente. Mas as inúmeras fotografias que Aracy realizou da
como público produtor de imagens. Desconfiamos que, nos anos de própria família e de membros inseridos num círculo de domesticidade
1950 e 1960, a dimensão do turista-fotógrafo, também dirigida ao públi- relativamente expandido, evidenciando despropositadamente aspec-
co feminino por meio das diversas atualizações da Kodak Girl (AQUINO, tos controversos da formação social brasileira, nos conduzem para dois
2016), foi acrescida da dimensão de salvaguarda da intimidade e da me- acontecimentos do mundo da fotografia. O primeiro é a série Famílias
mória familiar doméstica e/ou cotidiana, por parte da mulher. brasileiras, que Claudia Andujar realizou entre 1962 e 1964, antes de sua
entrada, nos anos 1970, no universo dos índios yanomami, movimen-
Essa mudança passa a incluir entre seus temas desde a visita de paren-
to que conduziria desde então sua carreira. O segundo, de modo mais
tes a brincadeiras no jardim ou animais de estimação, como percebemos
indireto, é a exposição de grande alcance e fama intitulada The Family
em uma campanha publicitária da Kodak presente na revista O Cruzeiro,
of Man, realizada no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, em
ao longo do ano 1963. A campanha apresenta inúmeras situações do
1955, por Edward Steichen.
universo doméstico, envolvendo momentos de “gaiatice”, de descoberta,
de alegria, de estreia, de faz de contas, de confidências, diante dos quais Na série Famílias brasileiras, Andujar acompanhou:
reina o imperativo “bata uma foto”, reiteradamente. Assim, além do re-
[...] o cotidiano de quatro famílias de contextos distintos: uma famí-
gistro da excepcionalidade das viagens ou das datas especiais, volta-se
lia dona de uma próspera fazenda de cacau na Bahia; uma família que
agora também para o registro do ordinário, incrementando o mercado
morava em um bairro da classe média paulistana; uma família de pes-
fotográfico por meio do apelo memorialístico da intimidade doméstica cadores caiçaras que vivia em Picinguaba, Ubatuba, no litoral norte de
e do dia a dia. São Paulo; e uma família mineira, tradicional e religiosa. A fotógrafa não
170 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 171

estava interessada em construir uma visão idealizada do brasileiro, mas marido, empregados, amigos, na qual Aracy estava inserida, as ima-
em olhar, com um viés antropológico, para a experiência concreta e pro- gens da fotógrafa baiana nos conduzem ao segundo acontecimento que
saica. (CLAUDIA..., 2015)
mencionamos anteriormente: a exposição The Family of Man, realizada
no MoMA de Nova York, entre janeiro e maio de 1955, no âmbito das co-
A prática fotográfica de Aracy, entre 1950 e 1970, não passava pela di-
memorações dos 25 anos de aniversário da instituição, organizada pelo
mensão jornalística nem antropológica de Andujar; nem, àquele mo-
então diretor do Departamento de Fotografia, Edward Steichen. Nessa
mento, apresentava indícios de ambição artística. Mas avizinhar algu-
exposição, Steichen reuniu imagens de fotógrafos de todo o mundo, os
mas fotografias da série Famílias brasileiras, na qual Andujar é externa
quais submeteram voluntariamente seus trabalhos para apreciação,
à organização social que ela fotografa, às fotografias de Aracy, nas quais
numa espécie de celebração da solidariedade humana, uma década
a fotógrafa é parte estruturante, torna bastante evidente a problemática
após ao fim da Segunda Guerra Mundial. O evento rodou o globo, pas-
histórica das disputas sociais atreladas à domesticidade. O que expan-
sando por Europa, Ásia e América Latina, durante oito anos, até 1963,
de nossa discussão em torno da mulher naquele período histórico para
atingindo um público de cerca de 9 milhões de visitantes. Para Steichen,
incluir também o debate racial, questão cara ao contexto de 1960, sobre-
o investimento massivo do museu numa exposição fotográfica “dava
tudo nos Estados Unidos, com o movimento dos direitos civis (civil rights
maior ênfase e escopo para o reconhecimento da fotografia como arte”.
movement). Esse debate já estava sugerido nas fotografias que Pierre
(STEICHEN, 1954 apud MUSEUM OF MODERN ART, 1954, p. 1, tradução
Verger realizou entre 1948 a 1952, algumas delas publicadas na revista O
nossa) Dava-se uma íntima relação da fotografia com o cotidiano, com o
Cruzeiro e posteriormente no livro Retratos da Bahia, em 1980. Também
trivial e até com o banal, mas segundo parâmetros estéticos específicos
nas imagens que José Medeiros realizou para Candomblé, publicado
e próprios ao meio naquele momento histórico. “Essa exposição”, segun-
em 1957, a partir de uma reportagem de 1951 da revista O Cruzeiro. Vale
do as declarações de Steichen para a imprensa, “vai requerer fotografias
ressaltar, no entanto, que essa questão não era propriamente um tema
de todas as partes do mundo, de toda a gama de vida desde o nascimen-
fotográfico para Aracy, mas uma presença na própria domesticidade na
to até a morte, com ênfase nas relações cotidianas do homem consigo
qual ela estava inserida e que aparece implicada na sua preferência pela
mesmo, com sua família, com a comunidade e com o mundo em que
temática cotidiana familiar.
vivemos”. (STEICHEN, 1954 apud MUSEUM OF MODERN ART, 1954, p. 1,
Ao trazer para diante das lentes numa posição de igualdade esse círcu- tradução nossa) Curiosamente, Steichen menciona de forma direta o
lo de pessoas que compõem a dimensão da domesticidade, entre filhos, interesse da exposição por motivos familiares, enfatizando o sentido de
172 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 173

lações, suas profundas devoções e seus antagonismos [...]. (STEICHEN,


amor materno naquele momento: “fotografias que revelem a abnegação
1954 apud MUSEUM OF MODERN ART, 1954, p. 1, tradução nossa)
do amor materno, não somente o elemento Madonna na ‘mãe’ mas todo
seu amor envolvente, com a sensação de segurança que ela dá a seus fi- Para Susan Sontag, no entanto, a exposição The Family of Man evoca
lhos e à casa que ela cria em todo seu calor e magnificência, suas mágoas uma espécie de humanismo sentimental que teria consolado e distraído
e suas exaltações”. (STEICHEN, 1954 apud MUSEUM OF MODERN ART, a população naquele momento, constituindo um “entendimento histó-
1954, p. 1, tradução nossa) rico da realidade”, segundo o qual assume-se a existência de “uma con-
dição humana ou de uma natureza humana dividida por todos”. (SON-
As fotografias de Aracy dialogam com as expectativas de Steichen para
TAG, 2004). No livro Sobre a fotografia, coletânea publicada em 1977 com
aquela exposição de 1955, não somente quanto ao cotidiano, como, es-
textos escritos entre 1973 e 1977, Susan Sontag argumenta, no ensaio
pecialmente, quanto à maternidade. Explicitam-se o zelo e a dedicação
“Estados Unidos, visto através da fotografia, de um ângulo sombrio”, que
da fotógrafa amadora ao longo dos dez álbuns da família, que ela con-
a exposição renega diferenças, injustiças e conflitos genuína e histori-
feccionou entre 1950 e 1966. Não encontramos vestígios no arquivo de
camente embutidos – renega o peso da história. De modo semelhante
Aracy que indiquem se ela teve ou não conhecimento dessa exposição,
à exposição de Diane Arbus, mas em sentido oposto ao horror das anor-
mas essa justaposição que sugerimos indica que o sucesso de público
malidades, há um gesto de dessingularização tanto em uma quanto em
da exposição misturou-se com uma espécie de sentimento de fraterni-
outra experiência. Do lado de The Family of Man, isso acontece por meio
dade, num âmbito mundial, que se construiu nos pós-guerra com base
de um sentimentalismo pacificador; do lado da Arbus, por meio do que
numa aproximação dos sujeitos, deslocados de suas condições históri-
Sontag (2004) chama de uma “tendência da alta arte em países capitalis-
cas de possibilidades. Algo em torno de um suposto humano do homem,
tas: superar, ou pelo menos reduzir, a náusea moral e sensível”.
condição irredutível, que seria partilhada por todos de modo equivalen-
te – mas não igual. Uma ideia que percorre o campo desde a aparição da Evidentemente, não queremos inferir com isso a adesão de Aracy a essa
chamada “fotografia humanista” nos anos 1930 e 1940. ou aquela vertente no debate artístico nem teórico sobre a fotografia na-
quele momento, seja com o trabalho de Andujar ou com a curadoria de
Dos bebês aos filósofos, do jardim de infância à universidade, dos brin-
quedos de criança feitos em casa à pesquisa científica, dos conselhos Steichen, muito menos com as fotografias de Arbus. Mas identificamos
de povos primitivos aos conselhos das Nações Unidas. [imagens que] nuances importantes que relacionam a prática de Aracy a um universo
sustentem a unidade familiar com suas alegrias, suas tentativas e tribu- mais amplo de atividades no campo do fotográfico.
174 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 175

Em termos locais e regionais, essas aproximações de Aracy são menos Foto Cine Clube da Bahia, em 1968 e 1969, respectivamente, no foyer do
imediatas. Há um certo distanciamento por parte de Aracy daquela Sal- Teatro Castro Alves. (FATH, 2009, p. 96)
vador popular que figurava nas fotografias de Pierre Verger, José Me-
Ainda que toda essa circulação de imagens pudesse de fato afetar a
deiros, Marcel Gautherot e Alice Brill, em torno de 1940 e 1960, e poste-
produção de Aracy, tendo em vista, por exemplo, as premiações reali-
riormente nas lentes de Miguel Rio Branco e Mario Cravo Neto, em favor
zadas por magazines que ela frequentava, como a Mesbla,15 são poucas
de uma Salvador desejosa dos produtos do progresso. Além disso, era
as fotografias dela nas quais percebemos uma aproximação com essa
predominante nos salões de fotografia da época, realizados por asso-
herança moderna específica, que concerne a grafismos e abstração,
ciações de fotógrafos amadores ou por Fotoclubes, a preferência pela
das décadas de 1920 e 1930. Isso não significa que não vejamos, ainda,
abstração, pelo grafismo da imagem, herança estética das décadas de
uma relação muito próxima de algumas dessas imagens com a tradição
1920 e 1930, sobretudo na Europa. Havia motivos populares nesses sa-
humanista da fotografia francesa de 1940, que inspirou Steichen para a
lões, inclusive no arranjo de muitas dessas composições – cestos de pa-
curadoria de The Family of Man. Essa espécie de função social da foto-
lha, artefatos e objetos de uso cotidiano –, mas a tônica do conjunto das Encontramos um pequeno
15
grafia enquanto meio de problematização ou elogio da vida cotidiana é
fotografias incidia mais no aspecto gráfico da composição do que nas envelope de revelação no arquivo
de Aracy proveniente da loja parte da tradição humanista que mencionamos e que caracteriza, por
questões sociais implicadas no fora da fotografia, no extracampo com-
Mesbla. exemplo, muitas das imagens de Henri Cartier-Bresson. Um exemplo
positivo.
A noiva da fotografia,
16 dessa possível relação que especulamos aqui – mesmo que tal função
As exposições fotográficas realizadas em Salvador reiteram a preferên- cujo paradeiro ou nome é social não estivesse necessariamente presente na intencionalidade da
desconhecido, era parente de
cia, naquele momento histórico, por uma relação entre fotografia e arte fotógrafa – é a fotografia que Aracy realizou de uma noiva, cuja figura
um empregado da fazenda,
que se constituía, então, segundo uma estética compositiva, tendendo segundo informação que nos aparece enquadrada pelo batente da porta, com um véu a encobrir o
à preferência por abstração e grafismos. Enfatizam essa preferência as foi fornecida por Arlindo Esteve rosto da mulher AEG.AI-4.PCT-CR_021, p.61. A relação entre velamento e
Gomes, filho de Aracy, numa das
fotografias presentes no Primeiro Salão Nacional da Arte Fotográfica – desvelamento da visão que a presença do elemento véu evoca se es-
visitas ao arquivo da fotógrafa
realizado no Museu de Arte Moderna da Bahia em 1961, pela Associação ao longo de 2017 e 2018, quando tende para o campo do fotográfico e para o velamento/desvelamento
de Fotógrafos Amadores da Bahia (Afab), em parceria com Lina Bo Bar- ele conversava conosco sobre de uma estrutura social desigual, tendo em vista a condição social da
as imagens, acompanhando-nos
di, diretora museu. E também aquelas que aparecem no Primeiro e no atenciosamente na atividade de noiva.16 Como num “efeito do real”, o “isso foi” dessa fotografia, seu noe-
Segundo Salão Bahiano da Fotografia Contemporânea – realizado pelo pesquisa. ma, funciona, seguindo as aulas de Barthes no ano de 1979, como um
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haikai: há um “desvanecimento da linguagem, deixando a nu o que diz”. neste texto. Mas contribui para situar a produção fotográfica da professo-
(BARTHES, 2005b, p. 143-144) É interessante perceber como esse autor, ra de Matemática em termos locais, para além das imagens com foco no
depois de todo um envolvimento profundo com a ciência dos signos, as popular, e também mais conhecidas, de Pierre Verger e José Medeiros. No
mitologias, o sistema da moda, da linguagem, dedica-se à nuance, ao âmbito nacional, a fotografia urbana era intensamente explorada na épo-
prazer do texto, à câmara clara, desviando-se de uma teoria semiológi- ca por fotógrafos como Marcel Gautherot, Alice Brill e Maureen Bisilliat
ca para uma teoria da recepção. os quais se deslocaram a Salvador para fotografar e também a inúmeras
outras cidades brasileiras, sobretudo São Paulo e Brasília, esta última fo-
As fotografias urbanas de Aracy, como aquelas da Praça da Aclamação
tografada por Gautherot ainda em construção e recém-inaugurada.
e do Passeio Público AEG.AI-4.PCT-SSA_014, p.65 e ou das torres sineiras
da Conceição da Praia AEG.AI-4.PCT-SSA_021, p.62, nos remetem a algu- As fotografias urbanas de Aracy, sobretudo aquelas mais descritivas da
mas instruções de manuais técnicos encontrados no seu arquivo, como cidade, não estavam nos álbuns de família; as encontramos somente no
aquele intitulado Tudo sobre fotos na cidade, de Dieno Castanho, segun- arquivo digitalizado disponibilizado por seu filho, parte do trabalho rea-
do analisa Cícero Menezes no seu artigo presente neste livro. Essas ima- lizado pela equipe da Pinacoteca de São Paulo para fins da exposição de
gens nos lançam também sobre as fotografias de cidade produzidas em 2012. Esse tipo de fotografia, ainda que aparentemente não tenha sido o
Salvador, como aquelas realizadas por Voltaire Fraga no Centro Histó- foco de Aracy, situa sua prática fotográfica numa cidade aquém dos de-
rico de Salvador desde 1930. Munido de sua Linhof, Fraga produziu fo- sejos de modernização que a fotógrafa amadora nela projetava e que são
tografias noturnas da Rua Chile e arredores nas quais percebemos uma expressos na correspondência com seu irmão. Nos álbuns, como vimos,
riqueza de detalhes possível pela combinação técnica do grande forma- o foco estava sobre os filhos, a família e o círculo que compõe a esfera de
to com prolongados tempos de exposição. Fraga já havia construído seu domesticidade.
próprio laboratório nessa época e foi o primeiro a se utilizar de uma câ-
mera desse porte na capital baiana.
PUBLICIDADE E CONSUMO
O aparato técnico era central às invenções do pai de Aracy, que construiu
sua câmera de grande formato no interior da Bahia para fotografar aque- Aracy guardou ao longo do tempo inúmeros aparelhos fotográficos que
le ambiente urbano-rural e familiar. Não é, definitivamente, o mesmo sugerem seu interesse não somente pela fotografia, no sentido mais am-
aparato técnico de que fez uso Aracy, como já analisamos anteriormente plo, mas também pelo consumo de câmeras enquanto diferentes possi-
178 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 179

bilidades técnicas. Esse consumo de variados modelos remete à relação


que observamos entre publicidade fotográfica e público feminino, muito 161: “dá prazer fotografar com esta camara [sic] jeitosa de preço popu-

presente nesse período, sobretudo no âmbito internacional. lar” (BOAS..., 1968, p. 4);

A publicidade internacional do período de várias marcas, como Rollei- b. como sugestão de profissionalização, a exemplo da publicidade da

flex, Linhof e Leica, evidencia a mulher por trás das lentes e a sua va- Pentacon Six no boletim do Foto-Cine nº 161 “a câmera para você que é

lorização na construção do arquivo familiar. A memória passa a ser profissional” (CONHEÇA..., 1968, p. 5);

massivamente imagética. A despeito da enorme quantidade de peças c. e até mesmo como espectro feminino que se funde com a máquina, pro-
publicitárias internacionais com a presença feminina demonstrando o porcionando o prazer na aprendizagem da técnica e no seu uso, a exemplo
uso do aparelho fotográfico, no Brasil, talvez seja necessária uma pes- da publicidade da câmera Miranda, veiculada no Foto-Cine nº 136.
quisa mais aprofundada para identificar um movimento semelhante,
tendo em vista que a maior parte das propagandas de fotografia parece Na publicidade dos filmes Kodak que circulou na década de 1960, mais
abarcar um público geral mais abrangente em relação à publicidade in- especificamente aquela que consta no boletim do Foto-Cine nº 158, ,um
ternacional. dos apelos mais fortes é da possibilidade de um registro factual (“slides
vivos e brilhantes”), operando na criação técnica de uma memória ima-
Vale ressaltar que a publicidade de todos os demais objetos que consti- gética, maquínica “Como é maravilhoso poder lembrar – e ser lembrado!
tuem esse ambiente doméstico do consumo, como geladeiras, encera- Basta o ‘click’, e um momento como este fica retido para sempre – para
deiras, automóveis e máquinas de costura, têm a presença feminina. O ser vivido e revivido através dos anos. E não é para isto mesmo que os
que é mais evidenciado na publicidade fotográfica nacional é a facilida- filmes Kodak são feitos?”. (QUERO..., 1967, p. 2) O que fica latente é, pri-
de de uso e a possibilidade de manuseio por todas as idades. Ainda as- meiro, a ideia de que a fotografia fixa a memória; e segundo, a garantia
sim, em determinadas publicidades da década de 1960, em consonância de que ela reproduz fiel e realisticamente os momentos de felicidade.
com as revistas internacionais, a mulher aparece em diversas situações:
O mesmo processo foi verificado nas publicidades de gravadores de áu-
a. como sujeito fotografável, o que é relativamente recorrente no con- dio, como o gravador da marca General, em publicidade no boletim do
junto de publicidades de eletrodomésticos da época, e fica evidente, por Foto-Cine nº 136: “Momentos inesquecíveis exigem gravador General
exemplo, na publicidade dos produtos Agfa, no boletim do Foto-Cine nº [...] um momento que precisa estar sempre vivo! [...] Grave os dias mais
180 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 181

festivos de sua vida com gravador General”. (MOMENTOS..., 1963, p. 20) No período histórico de nosso trabalho, a Kodak, a Rolleiflex, a Rolleicord
Assim, em detrimento da memória humana, difunde-se uma memória e a Yashica foram marcas com larga presença no mercado, com desta-
maquínica, facilmente manuseável e de qualidade superior àquela hu- que para a Kodak e para as câmeras de lentes gêmeas da Rolleiflex e da
mana, seja visual ou auditiva. Rolleicord. Percebemos que, no acervo do jornal O Globo, nas décadas
de 1950 e 1960, as publicidades da Kodak destacam-se como constru-
Para entender o debate teórico do período sobre a importância fulcral
ção de uma identidade da marca por meio de um forte apelo à dimen-
da imagem e as tensões com o campo da escrita, recorremos, também
são científica, cultural e institucional, para além da fotografia cotidiana
no regime de documentos históricos, ao texto de Vilém Flusser “Linha e
em si. “Kodak se tornou símbolo de fotografia, em todo o mundo, no seu
superfície”, publicado pela primeira vez em 1973-1974. Segundo Flusser,
sentido mais popular. Mas Kodak serve à humanidade em muitos outros
as superfícies adquiriam “cada vez mais importância no nosso dia a dia.
setores: na medicina, na odontologia, na ciência em geral, na imprensa,
Estão nas telas de televisão, nas telas de cinema, nos cartazes e nas pági-
na indústria, no comércio, no cinema”.
nas de revistas ilustradas”. (FLUSSER, 2017, p. 98) Para o filósofo tcheco, as
imagens são superfícies em contraposição às linhas, cujo regime é aquele A marca Kodak era associada tanto ao cotidiano popular da fotografia
da escrita, destacando a experiência histórica segundo a qual as imagens como também àquilo que os olhos humanos não podiam ver – “Onde
invadem o arquivo familiar em substituição aos vestígios escritos. Aquilo não chega o olhar humano, chegam os filmes Kodak!” –, o que demons-
que se dava no campo das linhas passa a se dar no campo das superfícies. tra uma popularização da afirmação da superioridade do olhar maqui-
Nesse período, entre 1950 e 1970, é como se as formas de construção de si nal e da tecnologia de captura, tanto na possibilidade de ver como na
e de expressão passassem a se dar também progressivamente por meio de possibilidade de “fixar”. Seja no espaço sideral ou no fundo da terra, a
imagens. Portanto, Flusser, num momento histórico próximo ao de nosso Kodak se posiciona num avizinhamento à dimensão de progresso pre-
objeto de pesquisa e em concordância com outros teóricos da época, como sente tanto na ideia de corrida espacial, característica desse momento
McLuhan, Guy Debord e Roland Barthes, definem de maneira particular histórico, como nas explorações de recursos subterrâneos, pautando-se
a experiência histórica que viviam e que percebemos nas publicidades: sempre num discurso de popularização das tecnologias. O apelo a uma
uma abundância de imagens, modificando a própria apreensão do mun- visibilidade ampliada nos remete aos primórdios da fotografia, quando
do, e, particularmente em Flusser, uma rivalidade da abertura de um outro Nadar produziu imagens de Paris a partir do sobrevoo de um balão - que
campo expressivo, o imagético, em detrimento daquele outro, escrito. contribuíram nos planos da reforma haussmanniana da capital france-
182 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 183

sa, empreendida pelo imperador Napoleão III - além das imagens sub- No arquivo da pesquisa, nos manuais técnicos encontrados, percebe-
terrâneas que o fotógrafo realizou nos esgotos da cidade. mos que algumas prescrições direcionam a prática fotográfica para a
intimidade, sobretudo os manuais da editora Íris, do tipo Instantáneos
No que se referem às demais marcas, além da Kodak, as publicidades são mejores, evidenciando situações domésticas sobre as quais o fotógrafo
majoritariamente de magazines anunciando os produtos, como a Mes- deveria lançar o olhar. Nesse sentido, fica implicado um público marca-
bla, e não diretamente da marca, de modo que não há explicitamente damente feminino, dada a forte identificação cultural desse momento
um conceito associado ao consumo desses aparelhos. Embora não tenha entre mulher e domesticidade.
um conceito explícito, há, ainda assim, uma construção estética da peça
publicitária referenciada na dimensão técnica da máquina. Verificamos De uma forma indireta, o que gostaríamos de pensar é que, no início dos
ainda que não há um apelo à dimensão artística da fotografia, algo de fato anos 1960, a máquina fotográfica é inserida na cultura de consumo. É
recente naquele momento, quando as primeiras fotografias começavam a preferencialmente nesse lugar do registro doméstico, na formação de
adentrar as coleções museográficas enquanto objeto do mercado da arte. um novo arquivo familiar agora imagético, que se instala; mais do que
propriamente numa esfera artística. Podemos pensar que o movimen-
Vale reiterar que a associação contemporânea entre produção fotográfi- to das imagens de Aracy para o espaço de exposição artística seja talvez
ca e arte é relativamente recente. Alguns fotógrafos, como Ansel Adams menos um movimento almejado ou projetado na origem do gesto foto-
ou Eugène Atget, fotografaram de acordo com regimes de visibilidade gráfico e mais um movimento curatorial que busca evidenciar as qua-
nos quais os critérios de realização e circulação se davam segundo ou- lidades das fotografias, enquanto um conjunto construído em torno da
tros parâmetros. Atget, por exemplo, exercia a prática fotográfica por so- relação entre mulher, domesticidade, cidade.
brevivência econômica e fornecia, com isso, postais da cidade de Paris
para pintores. O conjunto de seu arquivo dos diversos recantos da capital
francesa, no fim do século XIX e início do XX, está mais relacionado a um A TÉCNICA, AS CÂMERAS
esforço memorialista do que propriamente artístico. Os surrealistas o
O regime técnico disponível para Aracy em Salvador entre 1950 e 1970
consideravam de um caráter exótico, afastando qualquer dimensão ar-
corresponde a uma rede de consumo inserida no cotidiano urbano da-
tística – para eles, o que o diferenciava era o insólito das imagens. Atget,
quela cidade, sobretudo por meio do público amador. A fotografia ama-
por sua vez, recusava qualquer associação ao movimento, o que indica
dora configura uma parcela considerável do público consumidor, es-
uma sucessão de mal-entendidos de ambas as partes.
184 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 185

pecialmente nesse período, tendo em vista a crescente campanha de velmente mais caras do que as demais voltadas para a popularização da
popularização do meio por parte das principais marcas, como verifica- técnica fotográfica. Essas câmeras possibilitavam, de fato, uma acuidade
mos em campanhas publicitárias da Kodak no jornal O Globo da época. ou precisão visual, sobretudo em termos de nitidez, superior aos outros
modelos presentes no arquivo de Aracy, o que justificou, provavelmente,
O consumo amador da fotografia concerne tanto aos aparelhos, ma-
a escolha dessa máquina por fotógrafos como Pierre Verger ou Vivian
nuais técnicos e insumos, como à visitação de exposições, salões e ou-
Maier, do mesmo período.
tras atividades, o que esboçava um imaginário específico em torno da
imagem fotográfica. Esse imaginário transitava pela fotografia como A escolha deve-se possivelmente aos atributos técnicos e a um certo fe-
imagem-documento, imagem-memória e também imagem-arte, numa tiche criado ao redor desse objeto, que tinha grande apelo e recepção de
perspectiva segundo a qual a virtuose técnica, no domínio da operação público, sobretudo da classe média. Podemos dizer que há uma história
e na efetividade do resultado, era um fator fundamental e positivo de da imagem mediada por regimes técnicos, segundo os quais diversas
diferenciação. Como em quase toda a história da fotografia, esses eram máquinas são produzidas e disputam entre si a criação e a plasmação do
aspectos medidos pelo grau de desenvolvimento em direção a uma re- visível e são consumidas por diferentes estratos sociais. É como se uma
produção cada vez mais acurada do real. É o anátema, como menciona- historiografia da imagem estivesse circunscrita aos regimes técnicos de
mos anteriormente, que acompanha a história da fotografia: uma re- um determinado tempo, sendo que, dentre esses regimes, alguns pou-
produção maquinal e objetiva do real, o lápis da natureza, como Henry cos ou somente um prevalecesse. As câmeras de lentes gêmeas, como
Fox-Talbot intitulou seu trabalho em 1847. a Rolleiflex, predominaram durante as décadas de 1940 e 1950, e foram
usadas em grande parte das fotografias produzidas para veículos de in-
A utilização de câmeras de lentes gêmeas por Aracy sugere que, nesse
formação, como revistas, a exemplo da O Cruzeiro e Manchete, que se ins-
momento de sua trajetória, mas sobretudo durante a década de 1950,
piravam nos padrões internacionais da revista Life e Time.
seu interesse pela fotografia a levou a ingressar numa parcela de públi- 17
Sobre a construção da máquina
co relativamente mais restrito. Pela habilidade técnica exigida, tanto no fotográfica e sua operação com O aparato técnico fotográfico já estava presente na família de Aracy, por
que concerne ao domínio necessário para operação da câmera quanto placas de vidro pelo pai de Aracy, meio do envolvimento de seu pai, José Esteve, com a fotografia desde a
José Esteve, conferir entrevista
para utilização do laboratório fotográfico que ela construiu na sua resi- década de 1930, quando construiu sua própria máquina fotográfica em
de Aracy Esteve concedida ao
dência no bairro do Barbalho em Salvador, em 1952. E também pela con- caderno Muito, na edição de julho Santo Antônio de Jesus.17 No verso das fotografias enviadas por Barcino,
dição econômica, já que as câmeras de lentes gêmeas eram considera- de 2012. junto com as cartas durante 1963-1964, há em quatro delas observações
186 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 187

WR (1991) e Olympus AZ100 Zoom (1995). À exceção da Rolleicord III, os


referentes à fotografia na sua composição: “quase cortaram a cabeça”,
demais modelos são opções marcadamente preferíveis do público ama-
“Foi batida por Barcino, o qual deixou fora de foco e perdeu muito cam-
dor, tendo em vista tanto os recursos facilitadores da prática fotográfica
po na chapa” – usou os termos “foi batida” e “foi tomada” para se referir
quanto o caráter compacto, características que contribuíram para dife-
ao gesto de realizar a foto. Essa linguagem sobre o fotográfico pode ser
renciar esses modelos no mercado quando de seus lançamentos.
relacionada com uma cultura técnica sobre a fotografia que os dois te-
riam compartilhado em função do pai fotógrafo. Tal desenvolvimento da Restringindo-nos aos modelos circunscritos na delimitação temporal
habilidade técnica possivelmente inspirou Aracy na sua relação com a de 1950 a 1970, duas das câmeras que Aracy provavelmente utilizava
fotografia, de modo que sua inserção nesse universo aconteceu acom- nesse período eram câmeras médio formato (Zeiss Ikon e Rolleicord) e
panhada por um suporte instrumental na forma de manuais práticos, uma delas de filme 35 mm (Olympus Pen). Tanto a Zeiss Ikon com lente
inclusive laboratoriais: Instantáneos mejores, Tudo sobre fotos na cidade Novar-Anastigmat (1949) quanto a Olympus Pen EES-2 (1968) estavam
e Como fazer boas revelações. Esses são alguns dos títulos dos 11 impres- inseridas num movimento de ampliação de mercado e popularização da
sos que encontramos. técnica, cada uma no seu respectivo estágio tecnológico. O argumento
de publicidade dessas câmeras era associado à facilidade operacional
No arquivo de Aracy, estão presentes diferentes modelos de câmeras fo-
desses aparelhos pelos recursos disponíveis.
tográficas que se estendem de 1949 até 1995. Além desses objetos, Aracy
e o filho, Arlindo, relatam sobre uma Rolleiflex que Aracy teria utiliza- Já a Rolleicord III, uma câmera também de médio formato, fazia parte do
do desde meados dos anos 1950, mas que, furtada em 1968, não cons- conjunto de câmeras Twin Lenses Reflex (TLR), cuja representante mais
ta no arquivo atual. Apesar de ausente no arquivo, essa câmera é sen- conhecida era a marca Rolleiflex, marca da câmera cujo modelo não foi
sivelmente presente no discurso da fotógrafa e do filho - que reiteram possível identificar, mas que teria sido aquela preferida de Aracy, até
conjuntamente o pesar pelo furto do aparelho. Os dois aparecem jun- o furto ocorrido em 1968. Sua presença no imaginário popular daque-
tos numa fotografia de meados de 1950 abrindo uma embalagem com le momento é sensível, como sugere o verso “fotografei você na minha
a marca Rolleiflex nela inscrita. As câmeras hoje existentes no arquivo, Rolleiflex”, da canção “Desafinado”, de Tom Jobim e Newton Mendonça,
com suas respectivas datas de fabricação/lançamento aproximadas, são: popularizada pela voz de João Gilberto, em 1959, no álbum Chega de sau-
Zeiss Ikon Novar-Anastigmat (1949), Rolleicord III (1950), Olympus Pen dade. A voz delicada que caracteriza esse cantor – e todo o “estilo bos-
EES-2 (1968), Yashica ME1 (1977), Canon AE-1 (1976), Pentax Zoom 90- sanovista” – é o resultado da junção de sua refinada técnica vocal com
188 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 189

a recente tecnologia de microfonização em estúdio, o que viabilizou o


18
Entre obras de abordagem de aparecimento de seu tempo; por outro lado, apontar a rasgadura na
memorialista, outras de
registro de pequenas variações sonoras, antes restrita às interpretações narrativa histórica sobre Salvador em que se constituem o sujeito e sua
abordagem técnica, no âmbito da
operísticas dos cantores populares. história do planejamento urbano, ambiência urbana. Esse arquivo apontou questões importantes no que
e outras de dimensão teórica concerne ao campo de debates em torno do sujeito e da imagem foto-
É curioso observar que a referência ao universo técnico é aparece tam- investigativa, destacamos o livro
gráfica, e sobretudo no que concerne a Salvador e suas transformações
bém na canção “Triste”, que surge na sua forma instrumental no LP Pelo Pelô, organizado em 1995 por
Marco Aurélio Filgueiras Gomes que explora fontes como álbuns de família, correspondências pessoais e
Wave, de 1967. Numa gravação com Frank Sinatra de 1969 para o disco
(GOMES, 1995), com a participação anotações avulsas, comumente preteridas no movimento historiográfi-
Sinatra & Company, lançado em 1971, a canção aparece com letra em in- de autores como Milton Santos, co em torno do urbano e da cidade.18
glês composta por Tom Jobim e foi lançada no disco Elis e Tom em 1974, Antônio Heliodório Sampaio,
Ana Fernandes, Ubiratan Castro
já com a letra em português. Na gravação de Sinatra, está presente a Aracy vive desde 1934 numa Salvador em processo de transformação,
de Araújo, dentre outros. O livro
metáfora da relação entre a beleza feminina e o avião (“your beauty is reúne autores que se tornaram no qual a afirmação de uma internacionalização por meio da cultura do
an aeroplane”), que no disco Tom e Elis será cantada como “sua beleza referências importantes para consumo é bastante presente, sobretudo no período entre 1950 e 1970.
discutir em perspectiva histórica
é um avião”. Na década de 1950, Milton Santos escreveu e publicou trabalhos, dentre
as transformações urbanas da
cidade de Salvador. Em torno os quais sua tese sobre o centro da cidade de Salvador, com argumen-
dos aspectos imagem, cidade, tos favoráveis à industrialização como saída do subdesenvolvimento,
FOTOGRAFIA, COTIDIANO E CIDADE urbano, destacamos o livro de apoiando as propostas desenvolvimentistas que Celso Furtado imple-
Isaías de Carvalho dos Santos
Neto, Memória urbana: poética mentaria à frente da Superintendência do Desenvolvimento do Nordes-
A fotografia do menino que empunha um papagaio, na qual vemos ao
para uma cidade (SANTOS NETO, te (Sudene), criada em 1959. Na época, ao analisar o tema da centralida-
fundo o Farol da Barra e o Edifício Oceania, construído em 1942, compõe 2012), a dissertação de mestrado de, o geógrafo sugeria e apoiava a ideia de criação de um novo centro,
a cena da ludicidade infantil na paisagem soteropolitana AEG.AI-1.A5_002, de Marcos Antônio Nunes
Rodrigues, Cidades, imagens,
estimulado por preocupações empíricas: “Centro antigo, monopólico,
p.36-37. Essa fotografia estava solta em um dos dez álbuns produzidos
discursos (RODRIGUES, 2002), a era o Pelourinho do tempo que escrevi aquela tese [...] tirânico porque
por Aracy, dedicados aos filhos Arlindo e Núria, entre 1950 e 1966. Por tese de Claudia Andrade Vieira ele comandava toda a vida da cidade, não apenas a vida econômica, mas
meio dela, adentramos o arquivo pessoal dessa fotógrafa amadora, re- (VIEIRA, 2013) e a dissertação de
também a vida política e a vida cultural”. (SANTOS, 1995, p. 14)
Telma Cristina Damasceno Silva-
cepcionados pela pista desse claro enigma configurado em torno do su-
Fath (FATH, 2009). Por fim, vale
jeito, do arquivo e da cidade: o enigma de um “isso foi” que, ao emergir no destacar os trabalhos de Antônio Mas, já em 1960, quando coincidem as novas diretrizes da política de
presente, nos demanda, de um lado, situar essas imagens nos regimes Heliodório Sampaio (SAMPAIO, industrialização da Sudene com o início da implementação dos planos
190 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 191

elaborados pelo Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador 1999) e Eloisa Petti Pinheiro de uma carta sem data, mas muito provavelmente do dia 27 de setembro de
(PINHEIRO, 2011) como importante 1963: “O volks continua ótimo. [...] Esta semana fui a Santo Amaro e voltei e
(Epucs) na década de 1940, ocorre um processo crescente de “multipo-
rede em torno da historiografia da
larização, já com especializações, uma redistribuição das funções ini- rodei ainda 2 dias e muito só com um tanque cheio”. (GOMES, [19--].)
cidade de Salvador.
cialmente tímida, e depois, mais ousada. Há um certo espraiamento do
Na perspectiva do exercício de uma ego-história, para o historiador Ubi-
centro tradicional que invade artérias vizinhas, paralelamente à criação
ratan Araújo, o acesso ao Fusca, bem que ele ganhou de seu pai em 1969,
de um centro turístico na Barra e orla marítima”. (SANTOS, 1995, p. 16) A
fez o centro de Salvador deixar de existir para ele, ao deslocar sua circu-
atuação de Antônio Carlos Magalhães (ACM), a partir de 1967, foi crucial
lação toda para a orla:
para a implantação dos planos das avenidas de vale e de outro estilo de
vida que permitia sair “de carro para ganhar a cidade dos brancos, para Toda uma vida começa a mudar, e a gente começa a esquecer o centro,
ganhar a orla marítima e para não precisar mais desta área do Pelouri- não desce mais a Ladeira do Alvo. Minha vida mudou para o outro lado,
nho”. (ARAÚJO, 1995) e eu comecei a entrar na cidade dos brancos, que comecei a frequentar,
passando de carro pelo Rio Vermelho, pela Barra, até a Pituba. E aí come-
Além disso, a criação, na década de 1970, do Centro Administrativo da ça a se ouvir a história de que o centro ficou perigoso, de que o centro é

Bahia e de outro centro comercial, o Iguatemi, junto à Estação Rodo- perigoso. (ARAÚJO, 1995, p. 76)

viária, contribuiu ainda mais para reconfigurar a cidade de Salvador


Ubiratan associa ao Fusca a figura de ACM, cantado na rádio como “Pelé
de modo a valorizar o deslocamento automobilístico, incrementando o
Branco das construções públicas”. As figuras do fusca e de ACM – aos
consumo desse bem.
quais podemos acrescentar a mudança de centralidade proposta com
O automóvel mereceu comentários específicos e reiterados na corres- o deslocamento de serviços e equipamentos para a região do Iguatemi
pondência de Aracy com seu irmão Barcino. Na avaliação da professora, – operaram juntos, na perspectiva de Araújo, uma mudança radical na
o Volks, codinome do Fusca, era muito superior ao antigo De Sotto que fa- experiência urbana do centro da cidade de Salvador nas décadas de 1960
mília possuía. Com o Volks, Aracy se deslocava em Salvador e imediações e 1970: “Sei que havia planos antigos dos arquitetos, que havia propostas
não somente em função das crianças, mas sobretudo em função da admi- para o crescimento da cidade que ele não inventa, mas que implementa,
nistração da obra do Dique e também de sua participação no Plano Trienal permitindo que a gente saísse de carro para ganhar a cidade dos bran-
de Educação, o que implicava a realização de cursos em outros municípios. cos, para ganhar a orla marítima, e para não precisar mais desta área do
Ou viajava para o interior a lazer com a família. Aracy escreve no rascunho Pelourinho”. (ARAÚJO, 1995, p. 77)
192 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 193

É sabido que, entre 1943 e 1948, o Epucs, “capitaneado pelo engenhei-


(2019, p. 118), o “EPUCS seria um projeto perfeito, desde que no seu cami-
ro e urbanista Mário Leal Ferreira (1895-1947), baiano de Santo Amaro,
nho não existissem indivíduos os quais não poderiam ser aniquilados de
[...] congregou uma equipe multidisciplinar” (FERNANDES, 2014) a fim
um dia para a noite”. A autora continua:
de formular planos para transformação de Salvador. Predomina uma
perspectiva regida pelo conhecimento científico como premissa para Promíscuo era a palavra que definia o modo de vida daquele ‘extrato in-
qualquer intervenção, expandindo a vertente da técnica que marca uma ferior da população’, ali viviam misturados, sem ordem e em meio a toda
certa urbanística moderna; ao mesmo tempo, a estética, outra vertente obscenidade. Na cidade ‘civilizada’ do EPUCS os corpos negros e mesti-
dessa urbanística, deixa de ser um complemento da técnica e passa a se ços que nos relatórios, inquéritos e fotografias tomavam forma de ‘ab-
jeto’, um corpo banal, baixo, vil e desprezível, coordenavam mesmo que
tornar “ela mesma uma expressão de modernidade muito próxima ao
precariamente ‘as rédeas’ da própria vida e para o desespero dos médicos
International Style”. (FERNANDES; SAMPAIO; GOMES, 1999, p. 177) É nes-
e urbanistas sacrificavam as formas do que se almejava civilizado e mo-
sa chave de estética e técnica que o Epucs planejou suas intervenções derno. (SANTOS, 2019, p.119)
para Salvador:
É nesse contexto de relação entre técnica e estética, o qual pretere a vida
A partir de um modelo espacial radioconcêntrico, o EPUCS problematiza
cotidiana das classes populares, que são pensados os planos de reforma
e equaciona as principais questões do desenvolvimento urbano por ele
e embelezamento do Dique do Tororó, em torno do qual se constituiria
levantadas: a articulação regional, o duplo sistema de deslocamentos – o
de avenidas de vale e o das cumeadas –, os aspectos sanitários e os sis- um núcleo de lazer e entretenimento composto ainda por um estádio,
temas de infraestrutura, o sistema de áreas verdes, o centro urbano e os uma vila olímpica, um jardim zoológico e um jardim botânico. Mas, como
centros cívicos, o zoneamento, a distribuição dos equipamentos de saú- nos apresenta Adele Carvalho, em seu texto “Joguei bola, subi em pé de
de e educação e habitação proletária. Esse conjunto de diretrizes guiará, pau, usei maiô transparente: tensões de gênero na Cidade da Bahia”, pre-
efetiva ou referencialmente, o planejamento da cidade, mesmo conside-
sente neste livro, “as obras foram iniciadas apenas em agosto de 1959,
rando a brusca interrupção dos trabalhos do EPUCS em 1947, em função
após a conclusão da construção do já citado Estádio Otávio Mangabeira
da morte inesperada de seu principal mentor e coordenador, Mário Leal
Ferreira. (FERNANDES; SAMPAIO; GOMES, 1999, p. 177) – mais conhecido como Estádio da Fonte Nova –, edifício vizinho ao Di-
que e projetado pelo mesmo arquiteto da reforma, Diógenes Rebouças”.
Sobre a atuação do EPUCS, há pesquisadores que desenvolvem uma ou- Somente em 1962 iniciaram-se as obras de saneamento, nas quais Aracy
tra perspectiva de análise crítica, a qual endossamos. Segundo Santos Esteve Gomes se envolveu, por meio da empresa de seu irmão Barcino.
194 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 195

Uma série de outras intervenções urbanas ocorreu nesse mesmo perío- que ganharam muita visibilidade na ativação do arquivo de Aracy Esteve
do e, balizando-se igualmente nos parâmetros do Epucs, transformou a Gomes, empreendida por Diógenes Moura quando da exposição na Pi-
cena urbana do sujeito soteropolitano: a abertura de importantes vias, nacoteca, em 2012.
como Avenida do Contorno e Avenida Centenário, e a construção de edi-
Bahia de Todos os Santos, guia romanceado escrito por Jorge Amado,
ficações, como o Estádio Otávio Mangabeira (1951), o Edifício Sulamérica
apresenta, em sua versão de 1966, a Rua Chile como o centro nervoso da
(1951) e o Teatro Castro Alves (1957).
cidade do Salvador. É aí onde acontecem o footing, as conversas de ne-
Mas a implantação do sistema de deslocamentos associando o de gócio e de namoro e a exibição dos extratos mais elevados da sociedade
cumeadas com o de vales, na década de 1970, como relata Ubiratan soteropolitana, que circulam pelas grandes lojas de roupas masculinas,
Araújo, provocou de fato uma alteração da cena urbana ainda mais radi- femininas e acessórios que ali se localizavam: “Ali estão os ricos sem que
cal. Houve o deslocamento considerável do público do centro de Salva- fazer, os desocupados, os aventureiros, os turistas, gente que sobe e des-
dor, em torno do Pelourinho, para outras regiões, a partir da criação do ce a rua, ali as mulheres mostram seus novos vestidos, exibem as bolsas
Iguatemi e do Centro Administrativo da Bahia, planejado por Lucio Costa caras, esperam o bonde após o passeio diário”. (AMADO, 1969, p. 95) Na fo-
e com edifícios de João Filgueiras Limas, o Lélé. Tudo isso implicou uma tografia de Aracy, vemos que ela optou por registrar um momento tenso
mudança no universo de hábitos e atividades que aconteciam na região e movimentado da Rua Chile. Vemos na foto uma profusão de diferentes
da cidade hoje conhecida como Centro Histórico de Salvador. grupos de pessoas, algumas que conversam, outras que circulam, outras
ainda que observam, além dos inúmeros automóveis e dos bondes, um
Era nessa região da cidade, mais especificamente no bairro do Comér-
ambiente próximo àquele narrado por Amado (1969, p. 95):
cio, onde Aracy e o marido dirigiam a Argos, loja de utensílios domés-
ticos e variedades, na década de 1960. Nessas imediações, Aracy foto- Pelas cinco horas da tarde a rua está repleta. Comerciantes, advogados,
grafou a Rua Chile AEG.AI-4.PCT-SSA_020, p.64, o antigo Mercado Modelo médicos, políticos, funcionários, que fecham os consultórios, vêm es-
perar o bonde que os levará para o jantar. Mas demoram-se um pouco
com o Elevador Lacerda ao fundo AEG.AI-4.PCT-SSA_017, p.68, alguma la-
nos grupos em conversas, em busca de novidades, de boatos políticos,
deira de ligação entre Cidade Alta e Baixa - na qual vemos elementos
de notícias da guerra, comentários sobre as mulheres formosas, olhares
inusitados, como um grande regador na fachada de um comércio AEG. lânguidos, um pouco de vida alheia para completar. Igual que em todas
AI-4.PCT-CR_003, p.67 - e o Forte de São Marcelo AEG.AI-4.PCT-SSA_012, p.66, as cidades, apenas o baiano é mais tranquilo, mais descansado, não há
com os saveiros no cais. Apesar de pouco numerosas, essas são imagens pressa, tudo marcha a seu tempo.
196 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 197

Com essa imagem, Aracy aponta sua objetiva para a elite econômica da nos quartos subdivididos, nas salas transformadas em moradia de duas
cidade, registrando os “grupos solenes das classes conservadoras, na e três famílias. [Entretanto] Antigamente aqui moravam nobres. Esses
sobradões, as frentes de azulejo hoje substituído pela tinta azul ou roxa,
Rua Chile se encontra toda a gente importante da cidade. As mulheres
hospedavam as famílias finas.
mais belas e os homens mais considerados”. (AMADO, 1969, p. 96). Em-
bora se possa ver na mesma imagem, além dessa ocupação descrita por
Aracy e sua família se deslocaram do Centro Histórico em direção ao
Amado, transeuntes de outras classes sociais. Segundo Aracy, para rea-
Corredor da Vitória no fim da década de 1960, deslocamento que pare-
lizar essa imagem, ela teve “que implorar para o homem da Confeitaria
ce acompanhar os movimentos urbanísticos de valorização econômica
Triunfo me deixar subir no prédio para fazer. Contei minha vida toda,
imobiliária da cidade: eles saem da casa do Barbalho para o apartamento
teimei, e ele deixou”. (GOMES, [19--] apud SANGIOVANNI, 2012, p. 22)
na Avenida Sete, na região do Corredor da Vitória, área que concentra
Há poucas imagens de Aracy do Pelourinho, ou de outras áreas mais in- iniciativas imobiliárias de classe média e média alta.19
ternas do centro, o que poderia parecer contraditório para alguém que 19
Ainda que o contexto dessa Amado apresenta o desenho de classe do bairro do Barbalho na seção
vivia no Barbalho. Talvez porque, segundo Araújo, “as coisas mais loucas mudança de endereço da família “Bairros da pequena burguesia”:
rolavam pelo Pelourinho, a vida em Marte, as sessões de mediunidade seja narrado pelo filho Arlindo
Esteve como resultante de
[...] a prostituição no Pelourinho, a prostituição no centro. [...] A gente ti- Brotas tem construções novas e é um dos raros pontos da cidade onde
contenção de gastos, é inegável
nha de aprender o que era casa de família e o que não era, para não en- essa relação que sugerimos ainda é possível encontrar uma casa para alugar. Mas quem pode residir

trar em casa de família agindo como se fosse brega e levar pau”. (ARAÚ- entre a dinâmica urbana de tão longe do centro, apesar do agradável da moradia, ali onde ainda há um
valorização de alguns lugares resto de roça, quase desaparecendo? No Barbalho, em Santo Antônio, na
JO, 1995, p. 75) Na fotografia que Aracy fez do Pelourinho, há pessoas na
em detrimento de outros e o Lapinha, onde entraram os exércitos libertadores vindos pela Estrada da
rua, mas o trânsito de veículos parece restrito. Alguns caminham, outros movimento do Barbalho para o
Labatut, na Soledade, residem os pequenos burgueses. (AMADO, 1969, p. 78)
se apoiam nas esquinas; duas mulheres conversam na calçada. Amado Corredor da Vitória, tendo em
vista a desvalorização, posterior
(1969, p. 103-104) reforça a descrição de Araujo: Na carta enviada pelo irmão em 1 de julho de 1963, como comentamos
à criação do centro, da região
de onde eles saem e a extrema anteriormente, Barcino decide por alterar o endereço de remessa do
No Maciel estão as prostitutas. Velhas e meninas, parecendo todas da
valorização da região para onde
mesma desgraçada idade, a idade da doença, do hospital. Mas no Pelouri- Barbalho para aquele da loja Argos. A mudança de endereço é significa-
eles se mudam, hoje um dos
nho mora gente de toda espécie e de todas as raças. É impossível calcular metros quadrados mais caros da tiva em termos urbanísticos, pois se altera o endereço para o bairro do
o número incrível de pessoas que cada um destes abjetos cortiços aloja capital baiana. Comércio, o que implica uma confiança maior neste bairro para maior
198 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 199

Na perspectiva de Araújo, essa era a cidade dos brancos e, segundo He-


eficácia da comunicação em detrimento do Barbalho. A mudança suge-
liodório Sampaio, responde a um projeto mais amplo “cuja estratégia foi
re já um início do processo de desvalorização das áreas centrais como
esboçada nos anos 50-60 e detalhada nos anos 60-70, que define para
áreas de moradia para a elite vinculando a ineficiência de serviços com
Salvador um papel de cidade voltada para o turismo e o lazer”. (SAMPAIO,
especificidade de seus assentamentos urbanos, marcados com arrua-
1995, p. 110) Esse deslocamento para as proximidades do Farol da Barra
mentos mais estreitos e casas unifamiliares, de arquitetura eclética de
parece ser um desejo já presente no imaginário de Aracy desde a década
início do século. Justifica-se assim também a mudança para o eixo de
de 1950, pois vemos no arquivo fotográfico que as idas à praia aconte-
crescimento e valorização da cidade, o corredor da Vitória.
ciam provavelmente nas cercanias do Farol da Barra. Sobre essas locali-
Essa cidade dividida de que fala Ubiratan Araújo aparece na seção “Barra dades, Amado (1969, p. 126) escreve no seu guia, na seção “Praias”:
e bairros grã-finos”, do guia de Amado (1969, p. 69):
As duas praias da Barra, a do farol e a do Porto de Santo Antônio, talvez se-
jam as mais concorridas da cidade, devido à facilidade de transporte. Aos
Os bairros de moradias mais elegantes, os mais caros, aqueles onde vive
demais os clubes que ali têm sua sede facilitam aos sócios mudança de
a grande burguesia e parte da média, ficam na cidade alta, para além do
roupa e banho de água doce. A praia do farol é extraordinariamente bela, a
Campo Grande. Os grã-finos há muito tempo que abandonaram os so-
do porto é uma pequena praia ao pé do forte. No entanto, não se sabe mes-
brados da Avenida Sete, no trecho compreendido entre São Pedro e o
mo por que, é mais frequentada. Fica literalmente entupida de banhistas.
Palácio da Aclamação. Antigamente era chique morar ali, hoje os casa-
rões têm os seus andares térreos invadidos pelo comércio e nos andares
superiores formigam hóspedes e pensões mais ou menos habitáveis. Já Em algumas fotografias do início da década de 1950, identificamos o
não é com orgulho que os elegantes dizem residir na Avenida Sete, no marido e o filho de Aracy, novamente com o Edifício Oceania ao fundo.
Rosário ou nas Mercês, nomes que sugeriam antes o grã-finismo ou o Numa delas AEG.AI-1.A2_041, p71, pai e filho estão em pé sobre as pedras,
dinheiro. Hoje as famílias pequeno-burguesas, moças funcionárias, ra- sozinhos. Não aparecem multidões, apesar das observações de Amado
pazes estudantes, apertam-se nos quartos de pensão nesses trechos da
sobre o número de frequentadores. Ainda assim, a construção da ima-
Avenida, pois casa está muito difícil, os alugueis elevados. Os granfas fo-
gem sugere um isolamento dos fotografados, afinal é o bairro dos grã-fi-
ram para adiante do Campo Grande. A Vitória – o Corredor e a Ladeira
– Graça, Barra, certos trechos de Barra-Avenida, Avenida Oceânica, eis nos: “A Barra era para a gente uma entidade muito diferenciada. A Barra,
onde estão os homens de dinheiro. O mar da Bahia é sua paisagem. O que era Barra-Vitória-Graça, era o lugar onde tinha grã-fino”. (ARAUJO,
verão ali é delicioso. 1995, p. 73)
200 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 201

Também pelas fotografias e cartas, identificamos que a família de Aracy baiano, na figura do governador Luiz Viana Filho e do prefeito Nelson de
possuía uma casa de veraneio em Mar Grande, Itaparica. Segundo re- Oliveira, através da Superintendência de Turismo da Bahia (Sutursa), as-
latos de Arlindo José Filho, a casa de Itaparica foi comprada de seu avô sume as festas populares, iniciando uma indústria estatal do turismo. De
paterno durante os anos 1950, que possuía ali outras propriedades, con- acordo com Veiga, a fixação do polo turístico se dá na articulação entre os
tíguas à casa de veraneio da família Esteve Gomes. E teria sido ali que aspectos culturais e mercadológicos, no sentido de apreender o potencial
seu pai, Arlindo, teria se tornado escultor, e sua mãe, fotógrafa, como se da cultura negra. Em 1967, indicado pelo governador Luiz Viana Filho, o
o isolamento gerado pela ausência até mesmo de energia elétrica propi- deputado federal pela Arena, ACM, assume a prefeitura da cidade do Sal-
ciasse as condições necessárias para o florescimento da atividade artís- vador em plena ditadura militar. Em 1972, há uma intensificação desse
tica criativa. Ainda Amado (1969, p. 126-127) diz: processo com a criação do órgão estatal Superintendência de Fomento
ao Turismo do Estado da Bahia - Bahiatursa (DRUMMOND 2009).
Na época do verão muita gente sai da capital para a Ilha de Itaparica ou
para outras ilhas na Baía de Todos os Santos. Em Itaparica além da praia
que serve à pequena cidade, existe a do Mar Grande, belíssima. Itaparica
CONCLUSÃO
está ligada à capital por um pequeno navio, que faz uma viagem diária.
Mar Grande é servido por um lancha a gasolina. A memória é menos um instrumento de
exploração do passado que o seu teatro.
Nesse momento, a cidade de Salvador agarra-se ao turismo como pos- Walter Benjamin
sibilidade de superar suas crises econômicas no bojo de uma moderni-
zação fundada numa política extremamente conservadora. A adminis- Fazer da trajetória da fotógrafa Aracy Esteve Gomes uma experiência
historiográfica a partir de uma concepção genealógica exigiu a explo-
tração carlista, ao tempo que renova o traçado urbano da cidade, suas
ração de documentos variados e dispersos e a formação de um arquivo
famosas avenidas de vale, o deslocamento do centro administrativo,
experimental, montado especificamente para o andamento desta pes-
exerce uma política agressiva no sentido de transformar a cidade como
quisa. O objetivo era relacionar produção de imagem e escrita, enquanto
centro de lazer e turismo. A história recente desse processo que se aba-
constituição do sujeito, sem abandonarmos uma perspectiva de gênero
te sobre a cidade do Salvador - revelando sua turistização - segundo o
que é hoje um aspecto incontornável. Também articulamos a prática da
pesquisador Benedito Veiga (2001, p. 286), coincide com o lançamento do
fotografia da intimidade enquanto prática urbana. Não abandonamos o
livro de Jorge Amado Dona Flor e seus dois maridos, quando o governo
202 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 203

estudo da cidade, mas incorporamos uma camada geralmente relegada fotografia em busca de verdades, menos identificáveis se tornam seus
aos estudos da vida privada. Nosso ponto de inflexão é máquina fotográ- elementos e mais distante fica a ideia de fotografia como prova docu-
fica como esse dispositivo duplo que transita da rua para a casa e vice- mental”. (MORTIMER, 2017) Procuramos desviar-nos do afogamento
-versa. Por fim, entendemos que o estudo da cidade pode se beneficiar no “dentro” da fotografia ao imergir essas imagens no emaranhado de
das análises dos processos de consumo e de desenvolvimento da técnica acontecimentos e discursos que condicionaram a produção e a sobre-
na contemporaneidade. vivência dessas superfícies, enquanto artefatos técnicos de memória.
Nessa fronteira, “não bastam as análises de recursos pictóricos na cons-
Evitando qualquer novidade, o que se almejou foi acionar inflexões e
trução da imagem, pois ganha fundamental importância a dinâmica de
questões que, longe de serem marginais, poderiam criar opções meto-
afetos que na cidade é ativada pela circulação das fotografias como cons-
dológicas sistemáticas nas pesquisas que relacionam imagem e cidade.
trutoras da realidade cotidiana”. (MORTIMER, 2017)
O procedimento genealógico de inspiração foucaultiana:

elide a memória, substituída pelo arquivo, pelas séries documentais e des-


substancializa o sujeito histórico inspirando-se na proveitosa leitura de REFERÊNCIAS
Nietzsche, Blanchot e Bataille. [...] O que se coloca é uma profunda descon-
AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: na revista Claudia da Argentina. In: LIRA,
fiança nas evidências e na forma de narrá-las. Não que exista algo de sólido, Boitempo, 2007. J. T. C. de et al. (org.). Domesticidade,
verdadeira, atemporal, essencial sob elas, não esqueçamos que o nomina- gênero e cultura material. São Paulo:
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lismo atua nas superfícies, mas que não passam de um arranjo, constructo EdUSP, 2017.
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oriundo de uma historicidade radical. (DRUMMOND, 2015, p. 109) BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre
AQUINO, L. Picture ahead: a Kodak e a
a fotografia. Tradução de Julio Castañon
construção do turista-fotógrafo. São
Por último, ao acionarmos a imagem como uma centralidade deste tra- Guimaraes. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova
Paulo: Ed. do Autor, 2016.
Fronteira, 2018. (Clássicos de Ouro).
balho, buscamos explorar a tensão entre o aspecto abissal e o de trama,
ARAÚJO, U. Repassando pelo centro
constitutivos da fotografia. Nos termos de Adolfo Navas (2017, p. 21), ex- BARTHES, R. Inéditos. São Paulo: Martins
da Bahia (ou memórias em trânsito). In:
Fontes, 2005a. v. 1.
ploramos o limiar entre a “construção sobre o mesmo lugar” e a “cons- GOMES, M. Pelo Pelô: história, cultura e
cidade. Salvador: Edufba, 1995. BARTHES, R. A preparação do romance.
trução de um curso” ou, acrescentamos, de uma malha. No filme Blow
São Paulo: Martins Fontes, 2005b.
Up (1967), de Michelangelo Antonioni, quanto mais o fotógrafo perscru- BALLENT, A. A casa jovem: imagens da
(Coleção Roland Barthes, v. II).
modernização do lar nos anos 1960 e 1970
ta “a imagem resultante, quanto mais ele amplia a estrutura visível da
204 ENTRE IMAGEM E ESCRITA ARACY ESTEVE GOMES E A CIDADE DE SALVADOR GENEALOGIA DO SUJEITO E DA IMAGEM 205

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