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José Francisco Guelfi Campos
Marta Eloísa Melgaço Neves
Verona Campos Segantini
Resumo >
Palavras-chave:
Arquivos pessoais. Grupo Opinião. Teatro.
“Joãos”: João das Neves e seu arquivo
Pitágoras 500, Campinas, SP, 9. , n.2, [17], p. 80 - 97, jul. - dez. 2019 82
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das relações que podem ser traça- Como sublinhou Ana Maria
das entre documentos, arquivos e Camargo (2015), em ensaio dos
memória; contudo, convém evocar mais provocativos, os arquivos não
a conclusão a que chegou a arqui- são dotados de vida própria, nem
vista canadense Laura Millar: os da força necessária para promover
arquivos, bem como os documentos determinada versão dos fatos. Ma-
que os compõem, não armazenam téria inerte, os arquivos não falam
a memória de seus criadores, mas por si sós. A garantia de sua capa-
funcionam como gatilhos que acio- cidade especular, atributo congê-
nam processos de rememoração nito que os caracteriza e os distin-
(MILLAR, 2006), isto é, oferecem gue das coleções,6 avalizando seu
acesso à matéria-prima da memó- uso em situações e para finalidades
ria, garantindo a possibilidade de muito distintas daquelas que presi-
construí-la e moldá-la segundo as diram sua acumulação, repousa jus-
circunstâncias do presente (MEN- tamente na manutenção do elo en-
NE-HARITZ, 2001, p. 59-61). tre os documentos e as atividades
Antes de dar vazão às di- de que se originaram (CAMARGO,
versas possibilidades de interpre- 2009a, p. 36). Nisto reside a especi-
tação que podem ser extraídas a ficidade dos arquivos – sua condi-
partir da leitura dos documen- ção probatória – e também da dis-
tos, convém ter sempre em men- ciplina que se dedica a estudá-los,
te o fato de que o arquivo não a Arquivologia, definida por Ange-
constitui um fim em si mesmo: lika Menne-Haritz (1998) como “a
ciência dos contextos e relações”.
Se os arquivos não fossem meios, não lo-
grariam possuir a capacidade de refletir as
diferentes atividades de que participam. Su- Caminhos e descaminhos: a
por que todo arquivo, porque pessoal, tem
uma dimensão autobiográfica, eivada de formação do arquivo
distorções e conscientemente produzida, Se os arquivos não falam por
é ignorar a condição probatória que ema-
na das atividades ménagères. O contrário si sós e também não são capazes de
é verdadeiro: se o arquivo pessoal fosse ati-
vidade finalística, empenhada na constru- oferecer uma via direta de acesso à
ção de determinada imagem, deixaria de memória de seus titulares, é certo
ser arquivo. (CAMARGO, 2009a, p. 36)
que oferecem a possibilidade de ob-
6
Eivados de organicidade, “os arquivos refletem a estrutura, funções e atividades da entidade acumuladora em suas rela-
ções internas e externas” (CAMARGO; BELLOTTO, 2012, p. 65). Já as coleções se definem pelo agrupamento artificial
de documentos de origens diversas, geralmente sob a égide da afinidade temática. Não atendem, portanto, aos princípios
norteadores da teoria e da prática arquivísticas (proveniência, organicidade, unicidade, indivisibilidade e cumulatividade).
Sobre os princípios arquivísticos e a caracterização dos conjuntos documentais, recomenda-se ver Heredia Herrera (2015)
e Bellotto (2002).
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ver com a representatividade do de não perder aquilo ali, não perder aquela
história e preservar tudo o que estava ali, in-
conjunto documental em relação dependente da importância do documento,
à trajetória do indivíduo. Em que da significação ou não [...] se aquilo se dissol-
vesse, aquilo ia o quê? No máximo nós íamos
medida seria o arquivo capaz de jogar fora metade das coisas, a outra metade
ia para cada um de nós, se espalhar, e se per-
refletir a vida de João das Neves, deria aquilo. (NEVES, 2018)
tendo em vista o extenso volume
de documentos que, num primeiro Já em 2004, o interesse sobre
momento, pareciam mais retratar o acervo do Grupo Opinião ganhou
as atividades do Grupo Opinião e as páginas dos jornais, em matéria
de outros grupos teatrais que parti- publicada em O Globo por ocasião
cipou? Aos poucos, a questão foi se do aniversário de 70 anos de João
desdobrando em outras: faz sentido das Neves e de sua mudança para a
pretender dissociar as trajetórias cidade de Lagoa Santa (MG), onde
de João das Neves e dos grupos por se estabeleceu após residir por cer-
ele fundados e dirigidos? Afinal, o ca de dez anos em Belo Horizonte.
que seria o arquivo de João e o ar- Na reportagem, o conjunto de foto-
quivo do Opinião? Seria possível grafias, recortes de jornal, cartazes
(ou até mesmo desejável) delimitar e gravações de espetáculos e sho-
onde um acaba e o outro começa? ws recebeu o status de “tesouro”
Embora fizesse questão de guardado na residência do artista,
ressaltar o sentido verdadeiramen- “material precioso para um livro”
te coletivo do Grupo Opinião, no (OLIVEIRA, 2004).
que tange à criação artística e tam- Os documentos atualmente
bém no que diz respeito às atribui- sob custódia da Biblioteca Univer-
ções de cunho administrativo, João sitária da UFMG não representam,
reconhece que, mesmo sem talento contudo, a totalidade do arquivo de
inato de gestor, teve de assumir a João das Neves. Com o falecimen-
posição de administrador dos negó- to do titular, a aquisição de outras
cios do grupo, sobretudo depois das parcelas de seu arquivo agora de-
cisões ocasionadas por desentendi- pende de tratativas e negociações
mentos entre seus integrantes. Ao com os familiares. Mesmo que ou-
assumir as dívidas do Grupo, le- tros documentos sejam incorpora-
vou de “brinde” também o arquivo: dos ao fundo, por meio de doação,
não se poderá falar em um arqui-
[...] eu tomei a decisão de não acabar com o vo “completo”: a totalidade dos ar-
Grupo [...] eu vou assumir as dívidas do Gru-
po e quero ficar com o acervo, tudo que está quivos é sempre inatingível, haja
aqui vai ser meu. [...] eu sentia a necessidade
vista que passam, inevitavelmente,
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pelo crivo de seus titulares, que não e exposição),8 parecem ter deter-
raro avaliam os documentos ainda minado a decisão de doar os docu-
em vida, excluindo periodicamente mentos para uma instituição capaz
aquilo que não mais lhes convém, de acolhê-los, tratá-los e promo-
seja porque os documentos perde- ver o acesso irrestrito ao arquivo.
ram a funcionalidade original ou o
Então chegou um ponto que eu disse não, não
potencial de reutilização, seja por dá pra guardar tudo. O que que eu vou fazer
outras razões às vezes insondáveis. agora? Eu vou jogar fora? Quer dizer, eu vou
doar para uma instituição [...] ver o que é re-
Outras intervenções, no sentido de levante nisso, o que não é relevante, afinal de
seleção dos documentos também contas é tanto papel que não é relevante [...]
me assustou o grande interesse da UFMG em
podem ser realizadas pela família e torno do arquivo. Eu não tenho ainda noção
da dimensão que esse arquivo possa ter quan-
até mesmo pela instituição de cus- do vocês começam a falar dele [...] Quinze
tódia, de modo a atender aos inte- pessoas na minha casa por causa desse arqui-
vo? Meu Deus do céu, deve haver algum equí-
resses que qualificam sua linha te- voco aí! (NEVES, 2018)
mática ou esfera de especialização.
O arquivo de João das Neves esteve O arquivo de João das Neves e
também sujeito a situações fortui- os vários “Joãos”: sondagens e
tas que resultaram em perdas irre- desafios
paráveis: Vasto e multifacetado, o arqui-
vo de João das Neves – ou, melhor, a
[...] esse arquivo, eu perdi parte dele. [...] parcela dele que atualmente se en-
numa dessas tempestades das águas de mar-
ço no Rio de Janeiro [...] meu telhado tinha contra na Biblioteca Universitária
muitas telhas quebradas [...] a laje se encheu da UFMG – é composto de docu-
de água, né, a água não costuma ficar para-
da, procura sempre um lugar por onde sair, mentos que registram suas ativida-
e achou, né? E achou em cima de onde? [...]
Da minha biblioteca. Eu tive perdas também des profissionais no campo das artes
da minha biblioteca, perdi mesmo, e parte do cênicas no período que se estende
arquivo que tava ali também foi embora. (NE-
VES, 2018) da década de 1960 aos anos 1990.
Destacam-se, no conjunto,
O aumento progressivo do documentos de gênero textual (isto
volume do conjunto documental, é, aqueles que utilizam a palavra es-
mais a escassez de espaço para man- crita na comunicação de seu conte-
tê-lo em casa e também certa no- údo), produzidos em suporte papel,
ção acerca de sua utilidade pública embora note-se também, em me-
(vale recordar que parte do acervo nor volume, documentos de gênero
já havia sido objeto de digitalização
8
Parte do acervo foi exposta na Ocupação João das Neves, que ficou em cartaz de 27 de setembro a 8 de novembro de 2015
na sede do Instituto Itaú Cultural, em São Paulo (SP).
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Convém frisar que a extensão exata do arquivo, no que diz respeito ao número de unidades documentais, tende a se
alterar, dado que o processo de conferência tem revelado a existência de itens que não foram identificados na listagem
preliminar ou que estavam identificados coletivamente, carecendo de desmembramento.
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Segundo João das Neves relatou em entrevista, o Grupo Opinião chegava a realizar até nove apresentações por semana
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(NEVES, 2018).
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Universidade Federal de Minas Gerais, Biblioteca Universitária, Divisão de Obras Raras e Coleções Especiais, Arquivo
de João das Neves, série 3, caixa 19/23, pasta 44.
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referências
CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Arquivos não falam. In: OLIVEIRA, Lucia
Maria Velloso de; VASCONCELLOS, Eliane (org.). Arquivos pessoais e cultura:
uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,
2015. p. 11-13.
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Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 10 jul 2014.
LANE, Victoria; HILL, Jennie. What do we come from? What are we? Where are
we going? Situating the archive and archivists. In: HILL, Jennie (ed.). The future
of archives and recordkeeping: a reader. London: Facet, 2011. p. 3-22.
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______. What can be achieved with archives?. In: The concept of record: report
from the Second Stockholm Conference on Archival Science and the Concept of
Record. Stockholm: Riksarkivet, 1998. p. 11-24.
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Abstract
This paper discusses, from the perspective of Archival Science, the challenges of the ap-
proach to João das Neves’ archives, under custody of the Federal University of Minas
Gerais, prospecting the circumstances of the recordkeeping and finally shedding light
over its informational potential for understanding the artist’s journey.
Keywords
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