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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE

TERRITÓRIOS E MEMÓRIAS DE UMA CARTOGRAFIA ACRE:


A COLÔNIA CINCO MIL COMO UM LUGAR NARRADO

RIO BRANCO- ACRE


2023
JULIA LOBATO PINTO DE MOURA

TERRITÓRIOS E MEMÓRIAS DE UMA CARTOGRAFIA ACRE:


A COLÔNIA CINCO MIL COMO UM LUGAR NARRADO

Texto apresentado ao Programa de Pós-Graduação em


Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal
do Acre como requisito para a obtenção do título de
Doutora em Letras: Linguagem e Identidade.

Área de Concentração: Linguagem e Cultura.

Linha de Pesquisa: Culturas, Narrativas e Identidades


Amazônicas.

Orientadora: Professora Doutora Maria de Jesus Morais.

Rio Branco- Acre


2023
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: LINGUAGEM E IDENTIDADE
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE

FICHA DE APROVAÇÃO

Nome do(a) discente: Julia Lobato Pinto de Moura

Título da Dissertação/Tese: Territórios e memórias de uma cartografia acre: a Colônia


Cinco Mil como um lugar narrado

Linha de Pesquisa: Culturas, Narrativas e Identidades Amazônicas.

Data: 18 de outubro de 2023

(X) Aprovada

Banca Examinadora:
Profa. Dra. Maria de Jesus Morais (UFAC) - Orientadora/Presidente
Prof. Dr. Durval Muniz Albuquerque Júnior (UFPE/UFRN) - Examinador Externo
Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque (UFAC) - Examinador Interno
Prof. Dr. Francisco Aquinei Timóteo Queirós (UFAC) - Examinador Interno
Prof. Dr. Francisco Bento da Silva (UFAC) - Examinador Interno
AGRADEÇO

À Vida, à Natureza e a toda Divindade que nela há, pela oportunidade de existir, e
existindo, poder sonhar, apreciar, aprender, ensinar, criar, faço aqui os meus sinceros
agradecimentos aquelas pessoas que, de diferentes formas, ajudaram a tornar possível a
travessia deste importante rito de passagem na minha formação profissional.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a
Universidade Federal do Acre (Ufac), em especial ao corpo docente do Programa de Pós
Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, àqueles que foram meus professores e
professoras, por me proporcionarem intensos e impactantes momentos de aprendizado.
Agradeço por, mesmo com todos os desafios postos com o sucateamento da Universidade
Pública, agravados no contexto da pandemia de covid-19 que nos atravessou esse período,
cultivarem esse curso com profunda dedicação, fazendo dele um espaço de formação teórica e
política de excelência nesta Universidade, que desde a grande área da Linguagem e Cultura,
proporciona mergulhos e experiências transdisciplinares nos universos pan-amazônicos, suas
questões, criando um biodiverso e ecológico intercâmbio de conhecimentos: minha admiração.
Agradeço especialmente à colega professora e orientadora Maria de Jesus Morais pela
boa companhia e por fincar pé na importância da proximidade entre Geografia, Linguagem,
Cultura e Sociedade; aos professores Marcos Almeida e Jerônimo Silva, pelas provocações
trazidas no Seminário de Tese 2; ao professor Gerson Rodrigues Albuquerque pela leitura
criteriosa, por todas as sugestões apresentadas no exame de qualificação, que foram
determinantes no alinhamento da rota da escrita, por sua imprescindível participação na defesa.
Agradeço aos professores Durval Muniz Albuquerque Jr., Francisco Aquinei e Francisco Bento
pelas leituras e apontamentos poéticos feitos na ocasião de avaliação derradeira; ao professor
Fernando Peixoto pelas contribuições no exame de qualificação, pela amizade e disposição à
conversa, e à professora Maria Betânia Albuquerque, da UEPA, pelas leituras prévias, por sua
amizade e companhia às distâncias, sempre relembrando que “é proibido desanimar”.
Agradeço a companhia dos colegas desta histórica primeira turma de doutorado do
PPGLI pelas boas trocas vivenciadas, pelo carinho e apoio nos perrengues diversos. Também
aprendi muito com vocês. Agradeço aos colegas da área de Ensino da Geografia da UFAC que
assumiram as funções nas coordenações do Residência Pedagógica e Estágio quando precisei
entregar, considerando a feitura do doutorado sem liberação do trabalho. Agradeço a todas e
todos que já foram minhas alunas/os, por serem companhias de trabalho por mim tão estimadas.
Agradeço aos pesquisadores do campo da Ayahuasca/Daime que vêm ao longo das
últimas 4 décadas abrindo caminho na academia e enriquecendo as abordagens sobre o tema,
sobretudo àqueles que são referência neste estudo e os que estão no nosso grupo virtual de
pesquisadores do Santo Daime, um espaço diverso de boas trocas de informações, inquietações,
definição de parcerias e projetos. Agradeço em especial à Fernanda Cougo pelas indicações de
leitura e diálogos, os demais companheiros Glauber Assis, Lucas Rehen, Saulo Conde e Dávila
(em memória) que estiveram comigo na realização do I Encontro de Pesquisadores do Santo
Daime: Homenagem ao Centenário do padrinho Sebastião, evento on line que, em 2020,
também marcou a trajetória desta pesquisa. Obrigada ainda Jéssica e Maíra pelas boas trocas.
Agradeço a toda a comunidade da Colônia Cinco Mil e Pronto-socorro pela acolhida ao
longo de todos estes anos, à Graça, ao Nonato e a toda família. Agradeço à Ita e à Luzia por
apoiarem o sonho de revitalizar a escolinha e criar o Centro Cultural e Memorial, a todos que
participaram dos mutirões, e aqueles que ajudaram no acesso às informações e documentos.
Agradeço à Eliane e a toda a equipe do Censo comunitário pela companhia no levantamento
dos dados quantitativos que mapearam a situação socioeconômica atual da Cinco Mil. Ao
Flaviano e a Golby, pela disposição para revisar partes do texto. Aos amigos Júlio, Celeste,
Maria na transcrição dos áudios e revisões numa verdadeira força-tarefa. Sem vocês, não teria
sido possível. Agradeço à Maria Gregório, presidenta do CEFLUWCS, que foi desde o início
uma apoiadora da pesquisa. Por sua confiança e acolhimento, gratidão.
Agradeço aos meus amigos e amigas, à minha mãe Irene, ao meu irmão Pedro pelos
ricas trocas de sempre e ao meu saudoso pai Lilo Moura, em memória, por me ensinar que a
natureza e a música são as melhores formas de se conectar com o divino. Vivenciar o luto, sua
partida durante a escrita da tese foi a pior coisa que me aconteceu, muito doloroso, pois trouxe
à tona a dor e a culpa por todas as ausências que foram necessárias para chegar aqui. Agradeço
ao meu filho Francisco, tão pequenino, pela compreensão que teve com minhas faltas e crises.
Ainda ecoam em mim os rogativos: “mamãe, termina logo este trabalho pra gente brincar”.
Agradeço ao companheiro Raimundo, por ser tão atencioso, carinhoso e compreensível.
O agradecimento mais especial é para os mais de 20 narradores que aceitaram o convite
e participaram deste estudo. Seus relatos, as linhas de memórias narradas que (d)escrevem as
istórias do lugar Colônia Cinco Mil, constituem o que de mais precioso a pesquisa tem. Meus
sinceros agradecimentos pela partilha. Por fim, agradeço ao Mestre Irineu por ter me acolhido
em sua irmandade, ao Padrinho Sebastião por ter aberto a estrada para que mais pessoas
seguissem nela e ao Padrinho Wilson por ter me chamado e me guiado até aqui, para perto de
sua família. Agradeço ao Daime e à Santa Maria, minhas professoras nesta escola.
Dedico

Ao meu pai Lilo Moura, em memória, com muitas saudades.

Aos moradores, membros, amigos e amigas da Colônia Cinco Mil,


Pronto-socorro/Luau, que ajudaram e ajudam a manter vivos os saberes
do povo do Daime do padrinho Sebastião em Rio Branco, Acre.
RESUMO

A tese teve como objetivo geral realizar uma cartografia de memórias do Daime na Colônia
Cinco Mil, comunidade ayahuasqueira localizada na área rural do município de Rio Branco,
Acre. Formada no limiar da década de 1970, sob liderança do seringueiro Sebastião Mota de
Melo, a comunidade imprimiu marcas significativas no Daime, uma espécie de contracultura
daimista. Como proposta teórica-metodológica, a partir de referências como S. Rolnik, G.
Deleuze, M. Foucault e F. Süssekink, a cartografia aponta para a necessária problematização
das narrativas, documentos e fontes. A cartografia como um pensar-fazer-sentir aberto, se fez
como caminhadas pelo lugar, na companhia de escritos, documentos e dos mais de 20 (vinte)
narradores que integraram a pesquisa, traçando comigo estradas, rotas, desvios, atalhos e trilhas
narrativas, um mosaico polifônico de possibilidades de se contar as istórias do/no lugar: um
coro de muitas vozes, um bailado com muitas fontes. Em textos orais e escritos, os narradores
ressoam sobre movimentos, trajetórias de deslocamentos, encontros, fraturas, conflitos, buscas
individuais e coletivas que fazem o lugar Colônia Cinco Mil existir, com seus saberes e sabores.
Procurei comparar e cotejar versões, observar as lembranças e esquecimentos, os ditos e não
ditos que vão constituindo territorialidades e fatos de memória. A perspectiva a partir do Acre
e de sabor acre, na companhia de Albuquerque Jr., trouxe o gosto por uma versão menos
adocicada das istórias do povo do Daime do padrinho Sebastião: uma cartografia acre. Na
companhia de W. Benjamin, penso a produção das narrativas e a formação dos narradores a
partir dos “lugares-do-entre” – as fronteiras entre a ciência e literatura, etnografia e história
oral, istórias com i, como propôs o poeta J. Veras, as crônicas-lugar. Nesse percurso procurei
investigar como a irmandade da Cinco Mil deu prosseguimento aos trabalhos espirituais e
cotidianos a partir da saída do líder fundador e de grande parte dos moradores para a floresta e
analisar como as tensões intracomunidade foram constituindo novas tessituras socioespaciais,
atualizando a produção histórico-literária sobre o tema. O estudo procurou evidenciar como um
conjunto de relatos inventam e reinventam o lugar como criação da linguagem, enquanto o ato
de nomear e renomear os espaços, de contar e recontar as histórias, redimensionam os limites e
fronteiras internas na Colônia Cinco Mil como um lugar narrado, com suas
multiterritorialidades, Vila Carneiro e Colônia Luau.

Palavras-Chave: Daime, Narrativas, Cartografias acre, Territorrialidades, Colônia Cinco Mil;

ABSTRACT
The general objective of the thesis was to carry out a cartography of Daime memories in Colônia Cinco
Mil, an ayahuasque community located in the rural area of the city of Rio Branco, Acre. Formed at the
beginning of the 1970s, under the leadership of the rubber tapper Sebastião Mota de Melo, the
community left significant marks on Daime, a kind of Daime counterculture. As a theoretical-
methodological proposal, based on references such as S. Rolnik, G. Deleuze, M. Foucault and F.
Süssekink, the cartography points to the necessary problematization of narratives, documents and
sources. Cartography as an open way of thinking-making-feeling took place as walks around the place,
in the company of writings, documents and more than 20 (twenty) narrators who took part in the
research, tracing roads, routes, detours, shortcuts and narrative trails with me, a polyphonic mosaic of
possibilities for telling stories of/in the place: a choir of many voices, a ballet with many sources. In
oral and written texts, the narrators resonate about movements, trajectories of displacement,
encounters, fractures, conflicts, individual and collective searches that make the place Colônia Cinco
Mil exist, with its knowledge and flavors. I tried to compare and to quote versions, observe the memories
and forgetfulness, the said and unsaid that constitute territorialities and facts of memory. The
perspective from Acre and with an acrid flavor, in the company of Albuquerque Jr., brought a taste for
a less sweet version of the stories of the Daime people of godfather Sebastião. In the company of W.
Benjamin, I think about the production of narratives and the formation of narrators from the “places-
of-between” – the borders between science and literature, ethnography and oral history, stories with s,
as proposed by the poet J. Veras, the place-chronicles. Along this path, I sought to investigate how the
Cinco Mil brotherhood continued its spiritual and daily work after the departure of the founding leader
and a large part of the residents to the forest and to analyze how intra-community tensions were
constituting new socio-spatial fabrics, updating the historical-literary production on the topic. The study
sought to highlight how a set of reports invent and reinvent the place as a creation of language, while
the act of naming and renaming spaces, of telling and retelling stories, resizes the limits and internal
borders in Colônia Cinco Mil as a narrated place, with its multi-territorialities, Vila Carneiro and
Colônia Luau.

Keywords: Daime, Narratives, Acre Cartographies, Territorialities, Colônia Cinco Mil;

RESUMEN

El objetivo general de la tesis fue realizar una cartografía de las memorias Daime en la Colonia Cinco
Mil, una comunidad ayahuasquera ubicada en la zona rural del municipio de Rio Branco, Acre.
Formada a principios de la década de 1970, bajo el liderazgo del cauchero Sebastião Mota de Melo, la
comunidad dejó importantes huellas en el Daime, una especie de contracultura daime. Como propuesta
teórico-metodológica, basada en referentes como S.Rolnik, G.Deleuze, M.Foucault y F.Süssekink, la
cartografía apunta a la necesaria problematización de narrativas, documentos y fuentes. La cartografía
como forma abierta de pensar-hacer-sentir se desarrolló a través de paseos por el lugar, en compañía
de escritos, documentos y más de 20 (veinte) narradores que participaron en la investigación, trazando
caminos, rutas, desvíos, atajos y senderos narrativos conmigo, un mosaico polifónico de posibilidades
para contar historias de/en el lugar: un coro de muchas voces, un ballet con muchas fuentes. En textos
orales y escritos, los narradores resuenan sobre movimientos, trayectorias de desplazamiento,
encuentros, fracturas, conflictos, búsquedas individuales y colectivas que hacen existir el lugar Colônia
Cinco Mil, con sus saberes y sabores. Intenté contrastar y comparar versiones, observar los recuerdos
y los olvidos, lo dicho y lo no dicho que constituyen territorialidades y hechos de la memoria. La
perspectiva desde o Acre y con sabor agrio, en compañía de Albuquerque Jr., trajo el gusto por una
versión menos dulce de las historias del pueblo Daime del padrinho Sebastião: una cartografia agrio.
En compañía de W. Benjamin, pienso en la producción de narrativas y la formación de narradores
desde los “lugares intermedios” –las fronteras entre ciencia y literatura, etnografía e historia oral,
istorias con i, como propone el poeta J.Veras, el lugar-crónicas. En este camino, busqué investigar
cómo la hermandad Cinco Mil continuó su labor espiritual y cotidiana tras la partida del líder fundador
y gran parte de los pobladores al selva y analizar cómo las tensiones intracomunitarias fueron
constituyendo nuevos tejidos socioespaciales, actualizando la producción-literatura histórica sobre el
tema. El estudio buscó resaltar cómo un conjunto de reportajes inventan y reinventan el lugar como
creación del lenguaje, mientras que el acto de nombrar y renombrar espacios, de contar y volver a
contar historias, redimensiona los límites y las fronteras internas en la Colônia Cinco Mil como un
lugar narrado, con sus multiterritorialidades, Vila Carneiro y Colônia Luau.

Palabras clave: Daime, Narrativas, Cartografías agrio, Territorialidades, Colonia Cinco Mil;
LISTA DE SIGLAS

AGB- Associação de Geógrafos Brasileiros


APARIS - Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra
CECP- Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento
CECLU- Centro Eclético de Correntes da Luz Universal
CEDOC - Centro de Documentação e Memória
CEEDUAPAZ – Centro de Estudos Ecléticos de Desenvolvimento Universal, Amor e Paz
CEFLI – Centro Eclético Flor de Lótus Iluminado
CEFLUMAC- Centro Eclético da Fluente Luz Universal Manoel Corrente
CEFLURIS- Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra
CEFLUWCS - Centro Eclético da Fluente Luz Universal Wilson Carneiro de Souza
CEPSERIS- Centro e Pronto-socorro Espiritual Raimundo Irineu Serra
CICLU–Alto Santo - Centro de Iluminação Cristã Luz Universal-Alto Santo
CICLUJUR - Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Juramidam
CICLURIS- Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Raimundo Irineu Serra
CONAD- Conselho Nacional de Políticas Anti-Drogas
CONFEN- Conselho Federal de Entorpecentes
CRF – Círculo de Regeneração e Fé
ENCA – Encontro Nacional de Comunidades Alternativas
ENG - Encontro Nacional de Geógrafos
FLONA-Purus- Floresta Nacional do Purus
GMT- Grupo Multidisciplinar de Trabalho
ICEFLU- Igreja de Centro Eclético da Fluente Luz Universal – Patrono Sebastião Mota
ITERACRE – Instituto de Terras e Regularização Fundiária do Acre
IHGB- Instituto Histórico Geográfico Brasileiro
LIF- Laudo de Identificação Fundiária
MPAC- Ministério Público do Estado do Acre
MOVAYA- Movimento Nacional de Combate e Prevenção ao Abuso em Meio Ayahuasqueiro
OMS- Organização Mundial da Saúde
UFAC- Universidade Federal do Acre
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
LISTA DE FIGURAS

Figura 1— Cartografias rascunhadas de uma tese ------------------------------------------------- 32


Figura 2— Croqui: Localização da Cinco Mil e centros ayauasqueiros em Rio Branco ----- 98
Figura 3— Croqui: Setores de Daime na Vila Rio Branco e colônias arredores em 1960--- 109
Figura 4— Croqui: As 25 colônias que compunham a Cinco Mil em 1970 -------------------123
Figura 5 – Croqui: Localização da Colônia Cinco Mil e Céu do Mapiá ----------------------- 125
Figura 6 – Croqui: Área total da Colônia Cinco Mil atualmente (cerca de 60 hectares) ---- 143
Figura 7 – Mapa mundi com destaque para os países com rituais do Daime ----------------- 282
Figura 8 - Mapa Rede Iceflu no Brasil (Colônia Cinco Mil ausente) ---------------------------- 390
Figura 9- Mapa dos setores censitários (1 a 6) --------------–-------------------------------------- 398
“Tudo isso, sim, a história é história. Mas sabendo antes para
nunca esquecer que a palavra é fruto da palavra. (...) A ação desta
história terá como resultado minha transfiguração em outrem e
minha materialização enfim em objeto. Sim, e talvez alcance a
flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó.”

Clarice Lispector

“Escrever nem uma coisa


Nem outra -
A fim de dizer todas -
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.”

Manoel de Barros

“Vou contar minha história


Desde quando começou
Santo Daime é minha vida
Meu caminho, meu professor
Eu agora vou dizer
O que Ele me ensinou.”
Rita Gregório de Melo

“E só acha se tomar. Tomando acha-se a si mesmo e fazendo


pesquisa eu não sei se vai achar alguém, ou não.”

Sebastião Mota de Melo.


SUMÁRIO

ABERTURA DO TRABALHO -------------------------------------------------------------------- 14

1 – SOBRE TERRITÓRIOS, MEMÓRIAS E SABORES ACRES


1.1 A cartografia como referencial teórico-metodológico e outros conceitos ----------------- 33
1.2 Apresentando os narradores: quem viu de perto pra contar de certo ------------------------57
1.3 Primeiros escritos e a Cinco Mil como um tema (até 1980) ---------------------------------75
1.4 Mapas, percursos: contextuando as trajetórias de deslocamentos ---------------------------9
1.5 As artes do bem viver e do bem morrer: O Daime como uma irmandade -----------------134
1.6 A cartógrafa e a primeira vez no Acre e no Mapiá -------------------------------------------144
1.7 Pedir a benção ou “só escreve o que for verdade” --------------------------------------------153

2- A CINCO MIL É LOGO ALI: A CONTRACULTURA NO DAIME


2.1 As Bandeiras do novo seguimento: afirmação de uma territorialidade -------------------164
2.2 Organização comunitária, construção da sede, espacialidades do sagrado -------------- 180
2.3 A Santa Maria e a Cinco Mil na rota dos andarilhos ----------------------------------------198
2.4 Cogu-rei e outros estudos: uma linha psiconauta --------------------------------------------218
2.5 Tranca-Rua, Exu no Daime e experimentações esquisotéricas -----------------------------236

3- TRAJETÓRIAS DE DESLOCAMENTOS: TERRA E MOVIMENTO


3.1 O Ituxi e Nova Revolução: messianismo ecológico ou feudo monárquico? -------------258
3.2 O Rio do Ouro e a limpeza nos Trabalhos de São Miguel ---------------------------------283
3.3 A Porta e a Chave de Ouro: transições e continuidades--------------------------------------295
3.4 A despedida do padrinho Sebastião -----------------------------------------------------------323

4- REDIMENSIONANDO FRONTEIRAS: QUANDO UM PODE SER TRÊS


4.1 Os anos 90: feitios, cisões e a formação da Vila Carneiro ---------------------------------334
4.2 Os encontros, o padrinho hippie, os novos hippies e a expansão ------------------------- 364
4.3 A neopajelança na Colônia Luau e a questão da terra ----------------------------------------392
4.4 Fronteiras e Limites na Colônia Cinco Mil às vésperas de seus 50 anos ----------------- 405

5 CONSIDERAÇÕES DE FECHAMENTO --------------------------------------------------- 419

6 REFERÊNCIAS ----------------------------------------------------------------------------------- 437


ABERTURA DO TRABALHO

“Conhecimento, êta coisinha difícil!”1


Padrinho Sebastião

“Narrativas do povo do Daime da Colônia Cinco Mil: uma cartografia dos afetos” foi
o título do projeto de pesquisa apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Letras:
Linguagem e Identidade, da Universidade Federal do Acre, e desenvolvido durante o curso de
doutorado, na linha de pesquisa “Culturas, Narrativas e Identidades Amazônicas”. Se
dicionarizada, a Colônia Cinco Mil pode ser apresentada como “Localidade nos arredores de
Rio Branco onde o Padrinho Sebastião morou e iniciou a formação do seu povo”, conforme
definição de um glossário escrito por um dos membros da comunidade2. Almeida Ramos, autora
de um dos poucos trabalhos acadêmicos que tem o lugar como tema, vai caracterizá-la como
“minifúndio a nove quilômetros de Rio Branco, resultou da união de vários lotes de um seringal
desapropriado, adquiridos por famílias de agricultores, ao preço de cinco mil cruzeiros cada
um, no início dos anos setenta.”3 No ato de consultar diferentes fontes orais e escritas, abre-se
a possibilidade de escavar outras definições já elaboradas, assim como produzir novas.
A pesquisa aborda os cinquenta anos de ocupação, saberes e fazeres culturais nesta
comunidade ayahuasqueira/do Daime, localizada na área rural do município de Rio Branco,
Acre, que se formou nos primeiros anos da década de 1970 e imprimiu marcas significativas no
Daime, uma espécie de contracultura daimista sob liderança do seringueiro Sebastião Mota de
Melo. O estudo teve como objetivo geral realizar uma cartografia de memórias do Daime na
Colônia Cinco Mil. Por cartografias de memórias entende-se o exercício de reunir um
compilado de narrativas da oralidade e da escrita, que ressoam interpretações e experiências
múltiplas, refletindo as muitas camadas de sentidos que inventam e reinventam a
geografia/história de um lugar. É uma forma de mapear, em linhas de palavras, lembranças e
experiências de indivíduos e grupos de uma determinada localidade, e que visa promover
diálogos interculturais, registrar, contar e valorizar histórias pessoais e coletivas como parte da
construção e das lutas em torno das identidades sociais e territorialidades.

1
MELO, S.M. In: ALBUQUERQUE, M.B. (org.) Padrinho Sebastião: máximas de um filósofo da floresta.
Belém: EDUEPA, 2009.
2
ALVERGA, A. P. (Org.) O Evangelho segundo Sebastiao Mota. CEFLURIS Editorial: Boca do Acre/ AM,
1998, p. 209.
3
ALMEIDA RAMOS, M. F. H. Santo Daime: a colônia Cinco Mil e a contracultura (1977-1983). Dissertação
de Mestrado em História do Brasil. Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Pernambuco, Recife. 2002. p. 65.
14
Que lembranças ressoam da/na Colônia Cinco Mil, nas vozes de seus narradores e nos
textos escritos, constituindo narrativas, territorialidades e fatos de memória acerca do lugar, os
saberes e sabores de suas cartografias? Como um campo complexo do conhecimento como o
Daime toma forma e passa a existir como tal e como a Colônia Cinco Mil constituiu-se um
território de produção destes saberes, espaço de memória, aprendizado e resistência das culturas
daimistas/ayahuasqueiras em Rio Branco? A partir dessas questões centrais e gerais, procurei
observar os movimentos, as trajetórias de deslocamentos, desde o seu surgimento até os dias
atuais, procurando atualizar a produção histórico-literária acerca da comunidade, cujos textos
versam sobre contextos apenas até meados dos anos 1980. Os objetivos desta pesquisa foram
sendo continuamente redesenhados ao longo do processo, seja porque eles nunca estiveram bem
definidos, seja porque à medida que a pesquisa avançava, o campo e a vivência na comunidade
apresentava outras questões - ainda que mantendo uma relação com aqueles traçados no início.
Um dos objetivos descritos no projeto era dialogar com as pessoas na comunidade e
produzir documentos orais sobre suas motivações, afetividades, mobilidades, buscas
individuais e coletivas, que fossem ecos de suas percepções sobre como é viver, frequentar e
visitar o Daime na Colônia Cinco Mil. Porém, no percurso da pesquisa, constatou-se que a
simples produção do documento oral não seria objetivo de uma tese. A partir desses diálogos,
procurei traçar as linhas desta cartografia, conduzindo o desenho da escrita não mais pelos meus
objetivos previamente estabelecidos, cheios de pré-noções, mas deixando-me ser conduzida por
aqueles que eu convidava para compor comigo essas narrações. Considerando o conteúdo das
quatro partes que compõem este estudo, procurei readequar os objetivos específicos para
apresentá-los da seguinte forma:
1) Compreender a formação dos narradores e das narrativas na literatura oral e escrita
sobre a Cinco Mil, e quem são os indivíduos e instituições mais atuantes nas diferentes funções
de enunciação neste campo, onde também as plantas são professoras, vistas como seres de
conhecimento que não só tem ciência e linguagem, como fazem escola.
2) Comparar e cotejar versões e fatos de memória acerca de acontecimentos que
marcaram a fundação e formação do lugar Colônia Cinco Mil, e do seguimento do Daime ligado
ao padrinho Sebastião, suas utopias e projetos comunitários, observando os efeitos da produção
de sentidos e esquecimentos na relação entre o dizer e não dizer, e mirando outras possibilidades
de escrita da história local.
3) Investigar como esta comunidade do Daime deu prosseguimento aos trabalhos
espirituais e cotidianos a partir da saída do líder fundador e de grande parte dos moradores para

15
a floresta, no início dos anos 1980, procurando evidenciar narrativas sobre como essa ruptura
foi dimensionada por quem ficou, por quem foi e voltou, o que se partiu e que laços foram
mantidos.
4) Analisar as continuidades e descontinuidades presentes nas dinâmicas afetivas e
práticas culturais ali vivenciadas e como as tensões intracomunidade foram constituindo
territorialidades na Colônia Cinco Mil, como a Vila Carneiro (Pronto-socorro) e a Colônia
Luau, exemplificando a ideia da produção do lugar como narrativa – e o ato de nomear.
Como um mapa, o texto pretende permitir a leitura do território Colônia Cinco Mil por
diferentes itinerários e traçados, múltiplas entradas e saídas. Apresenta linhas de palavras,
pensamentos e sentimentos que se desenham à medida que se caminha e se aprende a andar na
companhia dos diferentes narradores que contribuíram com este estudo, no intercruzamento de
ideias, vozes e textos. Dialogando com o que foi escrito antes, ideias e vestígios de sentidos
datados, discursos que inventam e reinventam o lugar Colônia Cinco Mil a algum tempo, fui às
produções acadêmicas de diferentes áreas das ciências humanas, às produções literárias,
autobiografias, e toda sorte de documentos que me foi disponibilizado, atas de reuniões, livros
de registro de presença, relatórios da disputa fundiária, arquivos de jornais, mapas.
A tese é composta por ensaios-crônicas. As fontes escritas intercruzam-se com os
depoimentos orais, os relatos de memórias provocados e produzidos por ocasião desta pesquisa,
uma literatura oral que ecoa desde as Amazônias, para contar a geografia/história de um lugar,
com lugar e sua gente. Este trajeto que vai das fontes orais aos escritos, passa também pelos
versos cantados dos hinos, principal meio para acessar a poética cosmologia e filosofia do
Daime, seus conceitos, seus ensinos. É a cartografia que, como experimento, como um fazer
pesquisa performático, nos convida a viabilizar a passagem de outros tipos de afetos, trabalhar
nas margens, fronteiras, limiares que torcem os limites entre ciência, literatura e outras artes.
Os hinos são os “poemas cantados que constituem a base do culto”,4 em seu conjunto formam
os hinários e são vistos pelos adeptos do Daime como revelações, recebidas de fontes divinas -
do astral - com letra e música5. “O hinário não é inventado na cabeça de ninguém. Tem cara
que recebe hino e nem sabe ler”6, certa vez explicou Sebastião Mota. Entendo que, ainda que
os hinos não possam ser reduzidos à fonte de pesquisa, e nem devam ser submetidos à análises
literais e lógicas que fujam o domínio da hermenêutica, é preciso destacar que, durante a

4
RABELO, K. B. Daime Música: identidades, transformações e eficácia na música da Doutrina do Daime.
Dissertação (mestrado em Música) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Música. – 2013, p.9.
5
REHEN, L.K.F. “Receber não é compor”: música e emoção na religião do Santo Daime, Revista Religião e
Sociedade, Rio de Janeiro, 2007.
6
MELO, S.M. In: ALBUQUERQUE, M.B.(org.), 2009, p. 38.
16
contação das histórias, muitos narradores citam trechos de hinos, como forma de exemplificar
um entendimento, um aforismo, e portanto são fontes de conhecimento, que expressam os
pensamentos e a filosofia do grupo.
A pesquisa me levou a um envolvimento ainda maior com o lugar e as pessoas entre os
anos de 2018 à 2023, quando participei de reuniões, apresentei o projeto de pesquisa aos
membros da comunidade. A Colônia Cinco Mil em minha vida nunca foi somente um objeto
de investigação – uma parte da história do Daime, uma comunidade para se observar, descrever,
esmiuçar, analisar, etnografar. É muito além ou antes, um lugar formado por pessoas, que são
amigos, conhecidos, vizinhos, parte da família, colegas, conhecidos, irmãos e irmãs no contexto
da irmandade. É o lugar que me colheu como uma deslocada da metrópole em busca de um
pedacinho de chão na natureza, com um horizonte, um céu azul, estrelas à observar. Espaço no
qual me reterritorializei, escola onde vim aprofundar os estudos nestes saberes outros que
compõe a doutrina do Daime, tecendo novas relações familiares e vínculos de afeto e apoio.
Sebastião Mota de Melo ou Padrinho Sebastião (1920-1990) foi um dos discípulos de
Raimundo Irineu Serra (1892-1971), fundador da irmandade do Daime. Filho de cearenses que
vieram para o Acre no fluxo de trabalhadores para a Amazônia no início do século XX, nasceu
no dia 7 de outubro em um seringal no vale do Rio Juruá, não se sabe ao certo se nos limites do
Acre ou do Amazonas. De pele branca, Sebastião se auto identificava um índio, “porque eu
nasci e me criei nas matas do Amazonas, sou um índio, que mudei a cor.”7 Registrado como
cidadão amazonense, no município de Eirunepé, as literaturas mais conhecidas apontam o
seringal Monte Lígia, colocação Estorrões, como local de seu nascimento8, porém pesquisas
mais recentes em fontes orais9 indicam que ele teria nascido em um afluente do alto Rio
Liberdade, no Acre.
Como destacou Betânia Albuquerque, pesquisadora ayahuasqueira e dirigente de um
centro de Daime em Colares/PA, uma referência no campo dos saberes e epistemologias da
ayahuasca, e em específico do seguimento do padrinho Sebastião 10, tal fato acerca do lugar de
nascimento “agrega importante significado à identidade de Sebastião como um ser fronteiriço,
com profundas reverberações na construção do seu pensamento.”11 Em 1920, as fronteiras do
Acre ainda não estava bem demarcadas, incluindo os limites entre Acre-Amazonas, cuja linha

7
MELO, S.M. In: Alverga (org.), 1998, p. 106.
8
MORTIMER, 2000; FRÓES, 1986.
9
Segundo ALBUQUERQUE (2021, p. 61), Elisabeth C. Mendes registrou a fala de Francisco Mota, irmão de
Sebastião.
10
ALBUQUERQUE, Sabenças do padrinho. Belém: EDUEPA, 2021.
11
Ibid., p.62.
17
de definição de territórios foi alterada algumas vezes na história. O que se sabe ao certo é que
Sebastião nasceu e cresceu nas florestas, passando a infância nos seringais. Ele era do Juruá,
dizia, uma vez que “a referência espacial dos povos da floresta sempre foi muito mais o
pertencimento às matas e aos rios do que à unidade territorial”12.
B.Albuquerque destaca as “sabenças” de muitos tipos e fontes de inspiração que
compunham a visão de mundo de Sebastião, e constituem a seu ver uma filosofia da floresta.
São as “florestofias” da Amazônia, “de onde ele retirou a seiva que nutriu seu pensamento”.13
“Quanto mais índio o senhor for, melhor”14, dizia Sebastião, que também evocava metáforas
cristãs. Seu carisma, dons de rezas e trabalhos espirituais junto aos aflitos e doentes fizeram
dele um dos mais conhecidos seguidores do mestre Irineu, uma liderança religiosa e comunitária
na Colônia Cinco Mil, responsável por significativas releituras no culto do Daime, e pela
expansão da irmandade para além das fronteiras amazônicas, até tornar-se como é hoje, em
memória, reconhecido como patrono do Santo Daime dentro e fora do Brasil. Foi seringueiro,
canoeiro, mateiro, pescador, agricultor, construtor, médium, curador, rezador, músico, um
indivíduo múltiplo de sentidos, identidades e saberes.15
O Daime é um tipo específico de preparo e consagração da bebida ritual psicoativa, de
uso milenar e tradicional nas culturas de vários povos indígenas andino-amazônicos16, que a
chamam cipó, oaska, cadaná, yagé, kamarampi, nixi pae ou huni, natema, uni, nepe, kahi,
iyona, pinde, shori, entre outros mais de 40 nomes17. Formada do cozimento de um cipó e uma
folha, na academia e no meio jurídico convencionou-se chamá-la de Ayahuasca, que é o nome
no idioma quéchua, língua de diversos grupos étnicos ao longo dos Andes. A palavra indígena,
uma vez apropriada por setores hegemônicos na produção de conhecimentos e definição de
sentidos, se mundializou. É formada pelas expressões aya, isto é alma, espíritu muerto, e wasca,
que é cuerda, liana, daí possíveis traduções mais literais como “cipó das almas”18 ou mais
poéticas como “vinho das almas”19.
O cipó e a folha têm vários nomes, assim como a bebida a que dão origem, sendo
também muitas as receitas e combinações possíveis. Existem várias subespécies do cipó caapi

12
ALBUQUERQUE, 2021, p.62.
13
Ibid., p. 31.
14
MELO, S.M. em ALVERGA (org.), 1998, p. 106.
15
ALBUQUERQUE, 2021, p. 62.
16
LUNA, L. E. Bibliografia sobre el ayahuasca. In: América indígena 46, Cidade do México, nº1, 1986.
17
Ibid., p 235-245.
18
Ibid.
19
ASSIS, G. L. A Religião of the Floresta: Apontamentos sociológicos em direção a uma genealogia do Santo
Daime e seu processo de diáspora. Tese de Doutorado em Sociologia. Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017, p. 44.
18
e da folha psychotria utilizadas, como também são diversos os usos conhecidos, combinações
e receitas usadas no preparo da bebida entre os povos nativos e tradicionais, seringueiros,
ribeirinhos. No Daime, o cipó é chamado de Jagube, e a folha é chamada de Rainha. Na União
do Vegetal, outro culto ayahuasqueiro eclético que surgiu na Amazônia no século XX, o cipó é
chamado de Mariri, e a folha é chamada de Chacrona. Como a nomenclatura e taxonomia
científica são muitas vezes tomadas como universal, convencionou-se dizer que a Ayahuasca é
a bebida feita do cipó de Banisteriopsis caapi e da folha de Psychotria viridis e, desde então,
esta vem sendo descrita como a fórmula da bebida, como preconiza a resolução sobre o uso
religioso da Ayahuasca no Brasil20. Como não iremos nos aprofundar nesta diversidade e nos
aspectos fito-etno-botânicos da composição da bebida, seus componentes químicos, enzimas e
seus diferentes usos nas diversas tradições ayahuasqueiras, limito-me a destacar que

Em torno das experiências de forte caráter místico que proporciona,


desenvolveram-se práticas xamanísticas voltadas para a cura, a adivinhação,
a caça, a guerra e outros propósitos em que a bebida serviria como um veículo
de comunicação, dando aos homens o acesso ao mundo espiritual.21

Para Albuquerque, o daime com letra minúscula é usado para se referir à bebida, “uma
ressignificação da milenar bebida indígena de nome Ayahuasca” 22, enquanto Santo Daime é
“uma religião brasileira de caráter híbrido, surgida no interior da floresta amazônica no início
do século XX.”23 Oportuno situar nesta introdução que há um debate acerca das denominações
Daime e/ou Santo Daime, o quanto elas se equivalem ou são marcadores de diferenças entre os
grupos de seguidores que se dizem vinculados a Irineu Serra e àqueles que se dizem discípulos
de Sebastião, questões que retomo ao longo da pesquisa. Por hora, situo que, nas trilhas e na
companhia de Clodomir Silva, autor da primeira dissertação sobre o tema, Daime ou “Santo
Daime identifica o ritual de consumo e a hierofanização da própria bebida”24, isto é, opto por
não separar a bebida de seu contexto ritual de uso e por usar o termo Daime, com letra
maiúscula, indistintamente para se referir tanto à bebida, ao Ser Divino que ela é, e aos
diferentes grupos que buscam seguir e manter viva a doutrina de Raimundo Irineu Serra,
incluindo a escola do padrinho Sebastião.

20
BRASIL. Conad. Resolução n.º 1, de 25 de janeiro de 2010, pp. 57-60. 219.
21
MOREIRA, P., MACRAE E. Eu venho de longe: Mestre Irineu e seus companheiros. Salvador: EDUFBA,
2011, p, 87.
22
ALBUQUERQUE, M.B. Epistemologia e Saberes da Ayahuasca. Belém: EDUEPA, 2011, p. 165.
23
Ibid., p. 164.
24
SILVA, C. M. Palácio de Juramidan – Santo Daime: um ritual de transcendência e despoluição. Dissertação
de Mestrado em Antropologia Cultural. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1983, p. 8.
19
Por sua postura mais receptiva aos visitantes, a vertente do Daime ligada a Sebastião foi
estabelecendo novas práticas no âmbito da experiência religiosa e da vida comunitária,
dialogando e incorporando novos elementos, por vezes controversos. Estes acréscimos não
configuram, necessariamente, uma nova doutrina, como estabelecido no Estatuto de Fundação
da entidade formada por Sebastião e seus seguidores na Cinco Mil no final da década de 1970,
intitulada Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (Cefluris) 25, mas
deu origem a uma vertente mais psicoativa e expansionista26 da irmandade. Há também aqueles
que consideram que esta vertente “não estão apenas seguindo os trilhos de uma tradição, estão
criando uma nova tradição”27, que tem sido descrita como mais aproximada do movimento
Nova Era28, o que evidencia que a questão da identidade é sempre um campo de disputas, jogos
de poder, de marcação de diferenças e delimitação de espaços.
O Daime enquanto prática religiosa nascida no meio rural, ou o que podemos considerar
uma face do campesinato amazônico29, nas fronteiras entre as cidades e florestas de Rio Branco,
tem muito “das tradicionais práticas do catolicismo popular brasileiro, como a festa de Reis, do
Divino, o baile de São Gonçalo, a Congada etc., nas quais a dança e a festa são meios
privilegiados para a comunicação com os seres divinos e o mundo sobrenatural” 30, como
destacou Goulart. Romancistas, biografistas e pesquisadores ao longo do tempo, empenhados
em produzir a história de uma cultura da Amazônia, narraram a Colônia Cinco Mil como lugar
que agregou ao Daime as experiências da contracultura e da espiritualidade nova era trazidas
pelos viajantes, os cabeludos, os andarilhos, os hippies que chegaram na comunidade a partir
de meados da década de 197031. A partir daí, narraram uma Colônia Cinco Mil que era uma
comunidade ecológica32 e sobre as “formas de produção não capitalista, geradas dentro e apesar
do sistema capitalista”33, baseadas em um “socialismo cristão”34, num sistema de “cooperação

25
FRÓES, 1986, p. 49.
26
ASSIS, 2017.
27
ALVES, A. Comentário da Carta aberta de Alex Polari. In: Comunidades tradicionais da Ayahuasca:
Construindo Políticas públicas para o Acre –Seminário. Assembleia Legislativa do Estado do Acre. Rio Branco,
2010, p. 46.
28
ASSIS, 2017.
29
PUPIM, A. C. Territorialidades na cidade de Rio Branco/AC: conflitos e tensões na área de proteção
ambiental Raimundo Irineu Serra. Mestrado desenvolvimento regional, UFAC, 2016.
30
GOULART, 2004, p. 50.
31
ALMEIDA RAMOS, 2002; GOULART, 2004; ASSIS, 2017.
32
COUTO, F. La R. Santos e Xamãs – Estudos do uso ritualizado da ayahuasca por caboclos da Amazônia, e,
em particular, no que concerne sua utilização sócio-terapêutica na doutrina do Santo Daime. Dissertação de
mestrado em Antropologia, Universidade de Brasília, Brasília, 1989.
33
FRÓES, 1986, p.19.
34
ALMEIDA RAMOS, 2002, p. 11.
20
e solidariedade no trabalho”35, “organização comunitária e solidária”36 a própria “imagem de
um comunismo na mais perfeita expressão”37, “comunidade autossustentável”38 entre outras
definições que melhor couberam a cada narrador/ pesquisador a partir de seus repertórios.
Como consequência, no contexto das políticas públicas para as comunidades
ayahuasqueiras em Rio Branco, temos o acirramento de tensões no campo de uma geopolítica
dos discursos, isto é, um jogo de forças em que o discurso, manifesto como prática social,
antagoniza, por exemplo, os tradicionais, e em tese mais legítimos, em detrimento dos ecléticos,
lidos como corruptela ou impuros. A antropóloga Sandra Goulart já destacara que desde as
décadas de 1970-80, o grupo de Sebastião é envolto de “Novas e velhas acusações: a ‘droga’,
a ‘Umbanda’, os ‘de fora’”39, e no contexto do Acre, vive certo “isolamento local”40, o que para
Bia Labate, também antropóloga do campo ayahuasqueiro, está ligado entre outras coisas, à
falta de interesse do grupo ou capacidade de articulação política em Rio Branco.
No desejo de escutar o maior número de vozes possíveis, e dentro da disponibilidade de
cada um, procurei dialogar não apenas com as lideranças, mas com antigos e novos moradores,
representantes dos diferentes setores. Os encontros, depoimentos, entrevistas com os mais de
20 narradores, aconteceram principalmente nas residências de cada um deles, visitadas
mediante agendamento e confirmação prévia, o que contribuiu para que eu pudesse conhecer
ainda mais os diferentes espaços da Colônia e seus setores. Alguns depoimentos aconteceram
na Fundação, território descontínuo ligado à Cinco Mil, localizado no bairro Alto Alegre.
Alguns trechos citados são resultado de comunicações mais livres e menos planejadas. Alguns
destes “trabalhos de campo” passaram a acontecer de forma assíncrona e a distância, em
conversas através das redes sociais, principalmente o WhatsApp, dentro das condições impostas
pela pandemia de covid-19, que dificultou o contato presencial a partir de abril de 2020 até o
início de 2022.
A cartografia não é um método, mas um campo teórico-metodológico-crítico. Como
proposta por Suely Rolnik, psicanalista e uma das referências no campo de uma cartografia
sentimental/dos afetos, a cartógrafa é uma pesquisadora, uma investigadora que faz análises a
partir de suas vivências, na escuta e diálogos com os relatos das experiências de outros, disposta

35
ALVERGA, A. P. O guia da floresta. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1992, p. 218.
36
Ibid., p. 155.
37
MORTIMER, 2000, p. 167.
38
CARVALHO, 2019, p. 9.
39
GOULART, S. L. Contrastes e continuidades em uma tradição Amazônica: as religiões da Ayahuasca.
Tese de Doutorado. Campinas, SP: [s. n.], 2004, p. 79.
40
LABATE, B. C. As religiões ayahuasqueiras, patrimônio cultural, Acre e fronteiras geográficas. Ponto
Urbe Revista do núcleo de antropologia urbana da USP, n/7, 2010.
21
a perceber as diferentes facetas de um fenômeno, cuja sensibilidade — espera-se — lhe permita
trabalhar com o que está além do visível e do já extensamente dito e repetido.
À cartógrafa que adentra em comunidades de saberes tradicionais, de saberes e sabores
outros, andando atrás de conhecer e contar as histórias e geografias afetivas, cabe se colocar na
companhia e na escuta das pessoas e dos lugares. Silva define que “A cartografia é uma postura
de criação ou abertura liminar das forças da Vida. O ofício cartográfico é apenas uma maneira
de capturar-predar tais forças.”41 Considerar quais afetos, emoções, aberturas, entregas, que
disposições estavam envoltas nos contextos em que a produção das narrativas se deram, ajuda
a situar que sentidos e sentimentos perpassaram a pesquisadora e os narradores nos momentos
de “relembrar lembranças”42.
Busquei critérios de representatividade que me pareciam apropriados e coerentes para a
escolha dos narradores mas não obedeci a um critério específico e pré-definido rígido, de
antemão. Ao longo do processo, noto que priorizei a escuta, registro das vozes e lembranças
dos mais antigos, aqueles que vivem ou viveram na Colônia há mais tempo, que conviveram
com o padrinho Sebastião. Alguns textos foram feitos em um único encontro, outros em
distintos momentos. Participaram ao todo 30 entrevistados, dos quais 16 mulheres e 14 homens.
Dos 30 entrevistados, 27 moram ou já moraram durante algum período na comunidade, e a
maioria tem mais de 60 anos.
Aos narradores eu explicava previamente qual o objetivo da pesquisa, em linhas gerais,
dizendo se tratar de uma tese sobre a história da Cinco Mil, e quando aceito o convite para
participar, agendava o encontro. Eles tomaram ciência de que o seu depoimento seria gravado
e transcrito, ocasião em que tendo concordado, assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido e de Cessão gratuita de direitos sobre depoimento oral.
Uma experiência é comum a todos aqueles que participaram como narradores neste
estudo: a trajetória de deslocamento e encontro com a Colônia Cinco Mil em algum momento
de suas vidas. O diálogo com os narradores foi aberto, para provocar “um estilo de resposta
mais adequado à autobiografia, que é o estilo narrativo”43, como propôs Ecléa Bosi, uma
referência no campo dos estudos de memória, oralidade e cultura popular. Não houve roteiros
pré-estabelecidos. Ainda na companhia de Bosi, entende-se que “Em termos acadêmicos de

41
SILVA, J. S. Cartografia de afetos na Encantaria: Narrativas de Mestres da “Amazônia Bragantina”. Tese
de Doutorado. Programa de Pós Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura, da Universidade Federal do
Pará, 2014, p. 39.
42
Mota, S.M. “Beija-Flor”, Hinário Justiceiro, n°63.
43
BOSI, E. O tempo vivo da memória: Ensaios de Psicologia Social. 3ª e. Ateliê Editorial: São Paulo, 2003,
p.55.
22
técnica de pesquisa, na verdade se combinam bem os procedimentos de história de vida e
perguntas exploratórias, desde que deixem ao recordador a liberdade de encadear e compor, à
sua vontade, os momentos de seu passado.”44 Semelhante a Albuquerque, em seu estudo sobre
os saberes de Sebastião Mota, procurei estabelecer que “da oralidade livre, fluíssem as respostas
que buscava.”45
Ao percorrer as territorialidades que compõem a Colônia Cinco Mil em diálogo com os
moradores e frequentadores do lugar, ativo seus corpos, suas memórias e vozes, como partícipes
da construção do texto. É a experiência da pesquisa, na qual a cartografia como
caminho/método confunde-se com o próprio objeto da pesquisa – as narrativas sobre a Colônia
Cinco Mil – se espelhando naquela performance “Caminhando”46, da artista Lígia Clark, na
qual se propos que a arte não é o produto final, acabado, a tese, o livro, mas o próprio ato de
fazê-lo como experiência partilhada – aqui, uma escrita acadêmica pautada numa escuta e
escrita coletivizada, polifônica, que favoreça a “integração dos elementos vindos dos horizontes
múltiplos.”47
O texto, como linhas de palavras, não traz as pessoas e nem o vivido por cada uma delas
no lugar, o fato, o real, pois são memórias, acontecimentos feitos de linguagem, tecidos de
narrativas. Na companhia do filósofo e crítico literário Walter Benjamin procuro com esta
pesquisa alimentar o gosto pelas narrativas como “faculdade de intercambiar experiências”48.
Assume-se de antemão a impossibilidade – e por isso despretensão – de definir o que é o Daime
da/na Colônia Cinco Mil, de fazer “A História” do lugar, este território vivo, a partir de uma
visão única ou estanque, pretensamente comprovada por documentos, neutra ou universal, do
alto de uma autoridade da autoria. Esta perspectiva está dada à história oficial e institucional,
ou à outros tipos de cientistas, noutros textos com pretensão de trazer uma verdade definitiva.
A seleção dos textos escritos, o entrecruzamento entre eles, a provocação de tensões
entre as diferentes visões e versões, não estão dissociadas da forma como tenho vivenciado e
sido afetada pelo lugar e pelas leituras e, portanto, os caminhos e descaminhos percorridos nesta
cartografia são escolhas conceituais, teórico-metodológicas, éticas e estéticas tomadas a partir
da longa vivência no campo e no percurso da pesquisa como produção de conhecimento

44
BOSI, 2003, p. 55.
45
ALBUQUERQUE, 2021, p. 33.
46
Cf. MAGALHÃES, T.F.R. AZEVEDO, M.T. Fios da Vida: micropolítica e macropolítica na proposição
“Caminhando” de Lygia Clark. Revista Do Colóquio. 2020.
47
ROLNIK, 1989, p. 78.
48
BENJAMIN, W. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. IN: Magia e Técnica, Arte e
Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987a., p. 198.
23
entendido como prática política. Em se tratando de documentos, sejam eles orais ou escritos,
precisamos dialogar e interpretar não só o que eles registram com suas letras, as lembranças,
mas também os esquecimentos, os não ditos – quem produziu o documento e em que contexto,
atendendo a quais interesses.
Gostaria de ter ouvido outras pessoas que moram/frequentam a Colônia, mas muitas
pessoas não se sentem à vontade para se abrir diante de um gravador, nem todos que conhecem
as histórias porque as vivenciaram sentem prazer ou facilidade de contá-las e passá-las adiante
dentro de um sentido. Pude perceber isso em campo, pois algumas entrevistas eram muito
rápidas, porque a pessoa dizia que já esqueceu muita coisa ou não gosta de falar, enquanto
outras duraram mais de duas horas.
Outra coisa foi a necessidade de considerar qual é o impacto social da pesquisa feita
com as comunidades e sobre elas, qual é a contrapartida que os pesquisadores oferecem àqueles
que se abrem, participam dos estudos de forma voluntária, doam seu tempo, descortinam seus
saberes, suas memórias, para que a produção do documento oral e novos conhecimentos
aconteça. Considerando uma perspectiva teórico-crítica é fundamental o envolvimento dos
intelectuais com o grupo social em que estão inseridos e estudam, o que significa estar
comprometido não apenas com o entendimento de determinadas questões de investigação, mas
também com a transformação da realidade social estudada.
Tais levantamentos sobre a Colônia Cinco Mil se tornam justificáveis por se tratar de
uma parte da história do Acre, das culturas ayahuasqueiras e, mais específico, do Daime do
seguimento49 do padrinho Sebastião, que vem sendo apagada, silenciada, marginalizada e,
portanto, é pouco documentada, sobretudo a partir da saída do líder em sua busca messiânica
por um lugar na floresta para fundar sua comunidade ideal, a Nova Jerusalém – mítica cidade
bíblica – na Amazônia. Analisadas as questões que envolvem as diferenças de sentido e grafia
nas palavras “seguimento” e “segmento”, e mesmo considerando que ocorreram rupturas e
fraturas entre os grupos, o que poderia nos levar a pensar que o termo "segmento" é mais
apropriado em muitas situações, optei por utilizar "seguimentos" para se referir à essas
ramificações, evidenciando-as não como partes separadas/cortadas de um todo, mas como
formas de seguir, dar continuidade, continuação. Também considerei que esse é um sentido que
aparece em muitos hinos do Daime, seguir a doutrina e dar seu seguimento. Entre as motivações
que me impulsionaram a propor a pesquisa está o interesse em problematizar uma percepção

49
Ver, por exemplo: “Tomei esta bebida; Para ver meu seguimento”, n°53; “Deus nos deu um bom seguimento.
Para adiante nós sermos bem feliz”, n°92, de Melo, A.G In: Cruzeirinho, 2002.
24
naturalizada de que a comunidade da Colônia Cinco Mil é algo que ficou no passado, cuja
importância hoje em dia seria mínima ou irrisória no contexto das culturas ayahuasqueiras,
especialmente no Acre.
A Colônia Cinco Mil geralmente figura nos textos acadêmicos apenas como um capítulo
da história do Daime e de sua expansão, uma etapa na saga do “povo do Padrinho Sebastião” e
seu projeto de vida comunitária, sendo ausentes textos que tematizem um passado mais recente.
Os estudos e a história institucional que narra a epopeia do seguimento do Daime ligado a
Sebastião vem ignorando as dinâmicas contemporâneas que mantêm a Colônia Cinco Mil como
um lugar vivo, com intensos fluxos de visitantes do Brasil, do mundo, e do próprio Céu do
Mapiá. São temas e lacunas que interessa-me preencher, contribuindo para ampliar os arquivos
e os registros de suas memórias.
Entre os adeptos do seguimento do Daime do padrinho Sebastião é comum notar uma
supervalorização do Céu do Mapiá e, às vezes, um certo desprestígio da Colônia Cinco Mil,
como se a comunidade e a igreja fundada pelo patrono deste seguimento do Daime fossem
apenas “um pontinho” com alguns poucos moradores que sobraram, e todo o patrimônio
material e imaterial ali construído e preservado fosse de pouca relevância. É como se, diante de
um quadro de expansão nacional e internacional tão pulverizado, o que “restou” do “povo do
Daime do padrinho Sebastião” no movimento do Acre pouco importasse. Que acontecimentos
podem estar relacionados a estas narrativas que, de alguma forma, provocam o apagamento, o
silenciamento e produzem esquecimentos referentes à história da Colônia Cinco Mil? Como
esta comunidade do Daime deu prosseguimento aos trabalhos espirituais e cotidianos a partir
da saída do líder fundador e de grande parte dos moradores para a floresta, no início dos anos
1980?
Nesta caminhada contei com a participação de moradores e frequentadores da Colônia
Cinco Mil não apenas como narradores, mas também como parte da equipe que me ajudou a
transcrever os textos falados, a maioria estudantes ou egressos da Ufac. Também atuei na
organização do movimento que, em 2020, mesmo nas condições adversas impostas pela
pandemia de covid-19, reestruturou o Coletivo Amigos da Cinco Mil (Cacim) para desenvolver
ações de revitalização dos espaços de memória e atividades de arte-cultura e lazer na sede da
antiga escola, que estava abandonada e sem uso. Na companhia de Benjamin, considero que

a atuação literária significativa só pode instituir-se em rigorosa alternância de


agir e escrever; tem de cultivar as formas modestas, que correspondem melhor

25
à sua influência em comunidades ativas que o pretensioso gesto universal do
livro, em folhas volantes, brochuras, arquivos de jornais, cartazes.50

É a prática de cada um que dá conteúdo real aos debates, reflexões e teorias, quando o
agir, o fazer, se dá em um movimento indissociável do pensar e refletir. Neste curso, encontro
na cartografia a possibilidade de deixar fluir na direção de uma prática que reflita sobre o seu
significado, e de uma teoria que se apresente como prática. Através do Cacim, com apoio da
Fundação de Cultura Garibaldi Brasil, da Prefeitura de Rio Branco, e de vários membros da
comunidade, através dos mutirões para reforma e revitalização da escola, em 2021 inauguramos
o Centro Cultural Sebastião Mota de Melo e Memorial Colônia Cinco Mil. No espaço, como
um dos movimentos resultantes desta pesquisa, está uma exposição de fotos que conta um
resumo da história do lugar, uma pequena biblioteca, um parquinho, quadra de vôlei, e o espaço
passou a ser utilizado para desenvolvimento de atividades de lazer, esporte, ensaios, projetos
de arte, educação e valorização das memória na comunidade.
Em 2022, numa parceria com Eliane Carvalho, outra professora da área da Geografia da
Universidade Federal do Acre que é membra da comunidade, através de uma articulação entre
nossos projetos de pesquisa e extensão, desenvolvemos o Censo Comunitário Colônia Cinco
Mil, que considero parte desta pesquisa de Doutorado, e da cartografia que dela emerge.
Resultado de um trabalho concomitante que realizei como professora da Ufac não afastada para
qualificação e formação na pós-graduação, de alguma forma o censo contribuiu para a
produção, atualização e ampliação dos registros sobre a vida e os arranjos socioespaciais nesta
comunidade do Daime: quantas casas e moradores a compõe, qual é o perfil sócio-econômico-
ecológico-cultural-religioso de seus moradores, características das moradias, o grau de
satisfação de morar ali, entre outras informações.
Constatou-se que a comunidade é pequena, com pouco mais de 100 moradores, e
atualmente está repartida em três localidades/setores, a saber: a Colônia Cinco Mil
propriamente dita, marcada pela presença da Igreja-sede fundada por Sebastião Mota e suas
imediações, que antigamente era conhecida como Vila Santa Maria, com cerca de 72
moradores; a Vila Carneiro, onde está o centro de Daime chamado Pronto-socorro, e vivem os
familiares de Wilson Carneiro – e é onde eu moro – contém aproximadamente 23 pessoas; e a
Colônia Luau, onde são realizados trabalhos com Ayahuasca em volta da fogueira, e cuja área
está em disputa no processo de regularização fundiária, devido aos moradores não entrarem em

50
BENJAMIN, W. Rua de mão única: Posto de Gasolina In: Obras escolhidas, Volume II. São Paulo:
Brasiliense, 1987b. p. 11.
26
consenso e acordo em relação às definições dos limites e repartição das terras, vivem cerca de
6 pessoas. Ainda consideramos, para efeito deste mapeamento, a área vizinha à Cinco Mil,
denominada Jardim de Juramidã, espécie de loteamento privado, cujos lotes foram vendidos
apenas para membros e simpatizantes destas comunidades, e moram cerca de 7 pessoas.
À minha frente uma literatura-história-geografia de meio século ou mais que isso,
dependendo do marco inaugural escolhido para datar seu início. Múltipla, simples, complexa,
plural. Um território que é constituído na e pelas relações cotidianas, comunitárias. Uma
convivência marcada pelas experiências com o sagrado, os cantos, as músicas, as rezas, o êxtase
ritual com o Daime/Santo Daime ali consagrado, os ciclos cósmicos que dão sentido ao
calendário e às liturgias católicas/cristãs, bem como pelos jogos de poder-saber, a micropolítica,
as relações de vizinhança, as tensões e as persistentes utopias de trabalho cooperativo e
coletivizado, valorizando a terra, a floresta e as tradições festivas do lugar.
Ao passo que também estou na companhia de referências do campo da história oral,
como Alessandro Portelli51 entre outras, aproximo-me de suas reflexões sobre “a arte da
escuta”52, e concebo uma cartógrafa que se vê como uma biografista de lugares, que no
movimento de dialogar e provocar lembranças, compõe narrativas com as pessoas, e não sobre
elas, em um mosaico polifônico de possibilidades de se contar a história do lugar, mapeando
versões, traçando linhas de palavras que ressoam memórias e esquecimentos, ditos e não ditos.
Fernanda Mendonça53 e Paulo Moreira54 são pesquisadores do Daime que tomei como
inspiração no sentido de pensar os objetivos da tese e as aproximações desta cartografia de
memórias com os saberes-fazeres da história oral e da ficção etnográfica por eles apresentadas,
respectivamente.
No seu “Manual do cartógrafo” Rolnik, estabelece como “Critério” considerar o “grau
de intimidade que cada um se permite, a cada momento, com caráter finito ilimitado da
condição humana desejante”.55 Assim, entendo que não se conversa qualquer assunto com
qualquer um, não se pergunta determinadas coisas para qualquer pessoa, porque muitas vezes
existem afetos que nem sempre querem ser revividos no ato de rememorar, e assim o grau de

51
PORTELLI, Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral. In: Projeto
de História. Tradução de Elenice Mazzilli; et.al. São Paulo: PUC, nº 15, p.13-50, 1997.
52
PORTELLI, História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
53
MENDONÇA, F. C., Memórias e artes verbais de Luiz Mendes do Nascimento: o orador do Mestre Irineu.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, Rio Branco: UFAC,
2016.
54
MOREIRA, P.A. Estou aqui, eu não estando como é? A rotinização do carisma de Raimundo Irineu Serra na
comunidade do Daime. Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia- Salvador, 2013.
55
ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. Editora Estação
Liberdade, São Paulo, 1989, p.280.
27
intimidade ilimitado se reconhece de antemão como finito na medida em que se deseja respeitar
os limites de cada um. No processo de transcrição, trechos de narrativas também foram
suprimidos, pois entende-se que, em alguns casos, é desnecessário expor o entrevistado, ou os
envolvidos, os acontecimentos e os próprios narradores solicitaram: “Isso você não coloca” ou
“Isso você dá uma disfarçada” ou “Isso eu te conto no particular”.
Moreira, uma das referências neste estudo, observa que este tipo de trabalho com
narrativas, com “levantamento de dados dentro da comunidade do Daime”56, o pesquisador
precisa adotar uma postura ética em relação a questões como os segredos, os dados sigilosos que
são observados em campo, e na “barganha entre o etnógrafo e o sujeito”57, bem identificar o que
pode vir a público e o que deve ser restrito, silenciado, sob pena de expor demasiado e
desnecessariamente os fatos e as pessoas.
Como “Princípio”, Rolnik fala em uma espécie de antiprincípio, extramoral, aberto à
expansão da vida. Ponderar em relação as narrativas ditas “espinhosas, polêmicas, tabus”
também não significa se limitar à autocensura, negar as sombras e contradições inerentes ao
movimento de pensar, abster-se da crítica e adocicar a história, florescer e romancear tudo, a
partir de um julgamento moral. O princípio da escrita desta história é o lembrar, o ato de
registrar as lembranças, ante à produção de apagamentos, esquecimentos e silêncios.
A “Regra” desta ética, na companhia de Rolnik é não esquecer que há um limiar de
desterritorialização possível a cada momento de cada existência, isto é, o texto falado é
resultado de um momento específico, é um recorte feito pelo narrador nas condições possíveis
em que se deram os encontros e diálogos conseguidos. Os narradores, por sua vez, escolhem o
que e como contar, levando em conta o nível de proximidade, intimidade e confiança que
sentem diante da cartógrafa que lhes provocava à memória, e o quanto o momento possibilitou
e favoreceu a abertura para passagem das lembranças.
Para lidar com este conjunto de fragmentos produzidos, sentidos escavados, há que pôr
em suspensão os sentidos das palavras58, como sugeriu Michel Foucault, e no seu rastro busquei
a companhia de Durval Albuquerque Jr., uma referência quando pensamos as narrativas tecendo
a invenção dos lugares. Albuquerque Jr. situa-nos num debate sobre o processo de invenção
do Acre, como parte da invenção do Nordeste brasileiro, que por sua vez remete à invenção do
Brasil, daí já na companhia de Flora Süssekink, e nos coloca diante da encruzilhada de
caminhos como quem questiona: Como tem sido o processo de invenção e reinvenção do lugar

56
MOREIRA, P.A., 2013, p. 28.
57
Ibid.
58
FOUCAULT, A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p 220.
28
Colônia Cinco Mil? Quem são os diferentes indivíduos e instituições que, com diferentes forças,
ocupam posições privilegiadas de enunciação no campo daimista?
Albuquerque Jr. aponta para a perspectiva de uma escrita de saberes que tenham sabores,
os sentidos da produção de uma história de sabor acre, que nos inspira o desenho de uma
cartografia acre, que traz uma história do povo do Daime do padrinho Sebastião a partir do
Acre, uma versão menos adocicada. Estudar histórias, territórios e memórias do povo do Daime
em geral, e em específico na Colônia Cinco Mil, é como mergulhar num “copo de cultura” 59,
uma cultura que se bebe, e tal qual a bebida, sua cartografia tem muitos gostos, cheiros, texturas,
cores, sombras e sabores, ora azeda, fermentada, ácida, ora doce como um mel. Albuquerque
Jr. comenta que existem diferentes estilos de se pensar e de se escrever, que por sua vez se
relacionam com diferentes estilos de vida. Um saber pode ser lido como de bom ou mau gosto
dependendo de quem lê, pois um saber está sempre vinculado às escolhas e questões
epistemológicas, metodológicas, éticas, estéticas de quem o produz, e sujeito à apreciação de
gosto.
Esta cartografia de memórias e territórios é um percurso na companhia de muitos
narradores, mas inevitavelmente guiado por mim, as limitadas ferramentas conceituais e
emocionais que disponho para pensar o lugar que eu frequento e vivo desde quando me mudei
de Belo Horizonte para o Acre em 2008. Morei na Colônia entre os anos de 2008 a 2011, e
retornei a morar em janeiro de 2021. Albuquerque Jr. na defesa de uma historiografia de sabor
acre, me aponta para a necessidade “de uma historiografia de gume afiado, capaz de cortar todas
as certezas e verdades”.60 Como escrevo de um lugar onde eu vivo, de uma cultura da qual sou
parte, me ocorre o desafio de cortar na própria pele. Uma história ao sabor acre, ao invés de
privilegiar “a harmonia, a unidade, o encontro, a mistura, a miscigenação, a semelhança, a
identidade (...), o açucarado”61, volta-se para “uma história ácida, não necessariamente azeda,
de maus bofes, ressentida”62, (...) mas que se dispõe ao sabor amargo, “não atravessada pela
amargura mas uma história amargosa”63, capaz de “fazer vacilar nossas certezas, nossas
verdades, impossibilitar a adesão a consensos limitadores”64.

59
WEBER, Um copo de cultura, 2006.
60
ALBUQUERQUE JR, D.M. Por uma história acre: saberes e sabores da escrita historiográfica. In:
Albuquerque, G.R. e Antonacci, M.A. (org.) Desde as Amazônias: colóquios – volume 2. Rio Branco Nepan
Editora, 2014, p. 128.
61
Ibid.
62
Ibid.
63
Ibid.
64
Ibid.
29
Sugere Albuquerque Jr. uma historiografia que “rompa com a visão de que a linguagem
é um espelho ou um mero instrumento de expressão, é preciso que deixem de acreditar ainda
que as palavras dizem as coisas, realisticamente.”65 Tentei, tanto quanto possível foi até aqui,
reconhecer que há um conjunto de conhecimentos sobre a história da Colônia Cinco Mil que
são sentidos naturalizados de tão repetidos. Aqui estes sentidos são postos sob suspeita, a fim
de “problematizar os conceitos que nos definem e que nos servem para dizer e inventar o mundo
à nossa imagem e semelhança.”66 É uma forma de suspender, mesmo que temporariamente, as
narrativas tornadas senso comum, e fazer uma “istória do povo do lugar”67, que não é a História
com H maiúsculo, como a pretensa verdade última, e nem a estória com E, assumidamente
fabulosa: quer ser a Istória com I, a “crônica-lugar”68, pegando emprestado o conceito
rascunhado pelo poeta João Veras. Essa cartografia é uma istória “que caminha na estrada dos
poréns mapeando uma geopoesia do meu tempo/espaço vivido”, que gira gira, “que nada ignora
e nada.”69
Foucault, em sua análise do discurso, difere o saber do conhecimento: o saber não é feito
para fazer sentido, é feito para cortar o conhecimento. Por saberes consideramos o conjunto de
conhecimentos independentes das ciências, que encontram suas regras de formulação nos mais
variados campos discursivos70 e nesta pesquisa se apresentam nas narrativas que ecoaram do
campo e que por vezes contradizem um já dito e instituído.
Para Foucault, todo saber é uma prática discursiva, que “pode definir-se pelo saber que
ela forma”71, um domínio constituído por diferentes objetos, e que podem ou não adquirir status
de científico. “Um saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados
em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam.”72 Neste caso, há que
considerar que diferentes sistemas culturais possuem suas próprias formas de produção
discursiva, seus saberes, suas ciências. “Toda forma de saber possui uma positividade, que não
está condicionada a cientificidade e que não pode ser julgada por uma referência que não seja o
próprio saber.”73 No caso de uma pesquisa como esta, sobre oralidade, texto escrito, território e
memória em uma comunidade ayahuasqueira como o Daime, recomenda-se uma aproximação

65
Ibid., p. 129
66
ALBUQUERQUE JR, 2014, p.129.
67
VERAS, J. Istórias do povo do lugar e outros poemas crônicos. Rio Branco: Nepan, 2022.
68
Ibid., 2022.
69
Ibid., 2022.
70
FOUCAULT, 2008.
71
Ibid., p. 205.
72
Ibid., p. 204.
73
GIACOMONI e VARGAS, Foucault, a Arqueologia do Saber e a Formação Discursiva. Veredas on line –
Análise do Discurso. 2/2010, P. 119-129 – PPG LINGUÍSTICA/UFJF – Juiz de Fora, 2010.
30
da lógica xamânica, da epistemologia da Ayahuasca como proposta por Albuquerque74. Estamos
diante de uma forma de ver o mundo, produzir e validar conhecimentos, que potencialmente
dissolve a dicotomia natureza-cultura que caracteriza o pensamento ocidental moderno.
Este pensamento agencia outras formas de existências, onde uma planta é concebida
como um ser divino, professora, onde uma bebida é elevada à categoria de santidade – e este
intercâmbio entre seres humanos e não-humanos é posto como paradigma e pressuposto. Neste
sentido, a Colônia Cinco Mil é vista como uma escola, lócus de aprendizagens de saberes outros
ligados e preservados no contexto das culturas ayahuasqueiras/do Daime, práticas ancestrais
ligadas às artes dos xamãs, como o morrer, o sonhar, o intercambiar conhecimentos com seres
da natureza, os animais, as árvores e os rios, que ensinam e “que dão suas palavras aos xamãs”75.
A tese traz um conjunto de ensaios-crônicas que guardam alguma autonomia entre si,
mas estão articulados e organizados num eixo inevitavelmente linear, que vai das narrativas dos
primeiros tempos de formação da comunidade às narrativas sobre as reconfigurações
contemporâneas no espaço. Está estruturada em 4 capítulos, cada um com seus movimentos.
O primeiro capítulo “Territórios, memórias e sabores acres” é feito de 7 movimentos
introdutórios que procuram detalhar a proposta teórico-metodológica, os principais conceitos
mobilizados na análise, apresentar os narradores e as narrativas, a formação da literatura oral e
escrita sobre a Cinco Mil, procurando traçar os primeiros rascunhos sobre o processo de
invenção e reinvenção do lugar, e como eu chego e me situo neste campo.
No segundo capítulo “A Colônia Cinco Mil é logo ali: a contracultura no Daime”,
procuro comparar narrativas, cotejar versões e fatos de memória que marcaram a fundação e
formação do lugar Colônia Cinco Mil, e do seguimento do Daime descrito como “linha do
padrinho Sebastião”, suas utopias e projetos comunitários, e experimentações ecléticas,
observando os efeitos da produção de sentidos e os esquecimentos na relação entre o dizer e
não dizer. Este capítulo foi organizado em 5 movimentos.
No terceiro capítulo procuro mapear os desafios enfrentados pela comunidade para
ajustar-se às novas interações sociais que se estabeleceram nos anos que seguiram à saída de
Sebastião e grande parte dos moradores em direção à floresta, como esta ruptura foi
dimensionada por quem ficou, por quem foi e voltou, procurando evidenciar o que se partiu,
que laços foram rompidos e mantidos. Para tanto vou mapeando os contínuos processos de

74
ALBUQUERQUE, 2011.
75
KOPENAWA, A., BRUCE, D. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução Beatriz Perrone-
a
Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

31
deslocamentos, partidas e chegadas, alternância de lideranças, que foram configurando as
histórias, memórias e narrativas sobre Colônia Cinco Mil a partir dos 1980 até a passagem do
líder Sebastião em janeiro de 1990.
No quarto capítulo procuro pensar as continuidades e descontinuidades presentes nas
dinâmicas afetivas, práticas culturais e tradições ali vivenciadas, as pontes, as fraturas, e como
as tensões intracomunidade foram constituindo territorialidades na Colônia Cinco Mil, como a
Vila Carneiro (Pronto-socorro) e a Colônia Luau. A partir do diálogo com os moradores e outros
documentos escritos, percorremos memórias e histórias de acontecimentos que foram
reinventando a Colônia Cinco Mil nos últimos 20 anos: uma comunidade do Daime
fragmentada, marcada por cisões que constituem territorialidades na esfera micropolítica
cotidiana. Este percurso é feito em 4 movimentos.
Cartografar estas memórias me pareceu arrazoado mesmo acreditando que o registro
escrito em nada garante a sobrevivência das narrativas, dos conhecimentos e saberes culturais,
se eles também não estiverem vivos, sendo praticados e experienciados pelas pessoas. Os
registros aqui apresentados são apenas um exercício de tessitura de crônicas, narrações e
contações de histórias, para que saberes referentes à história do lugar, com suas
multiterritorialidades, mantenham-se vivos na comunidade, e que as memórias continuem
sendo narradas de boca a ouvido, entre olhares, por múltiplos ângulos, em diálogos e encontros
daqueles que ali vivem e praticam suas devoções à Rainha da Floresta.

Figura 1: Cartografias rascunhadas de uma tese

Fonte: Elaborado pela autora, 2022.

32
1 SOBRE TERRITÓRIOS, MEMÓRIAS E SABORES ACRES

“Eu faço versos como quem chora


De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto”.

Trecho de “Desencanto”, Manuel Bandeira

1.1 A cartografia como referencial teórico-metodológico e outros conceitos

A cartografia aqui apreendida na companhia de Rolnik76, como uma cartografia


sentimental ou dos afetos, não é aquela que desenha mapas com o interesse estratégico de
controle político, para representar um real-visível, criar mundos, definir rígidos limites para os
territórios e suas fronteiras. A cartografia de memórias e territórios da/na Cinco Mil anuncia
uma forma de fazer pesquisa: caminhando no lugar, marcando encontro com as pessoas,
conversando, gravando suas vozes, produzindo documentos orais que ressoam histórias, que se
transformam em textos escritos que, por sua vez, também dialogam com outros escritos,
diferentes tipos de registros que compõem e recompõem a Cinco Mil como um lugar narrado.
Autores como Silva77, Prado Filho e Teti78, Rosa79 ao falarem da cartografia dos desejos,
dos afetos, das memórias, dos sentidos, buscam salientar que ela não está em relação de
continuidade ou oposição com a cartas geográficas, como a conhecemos usualmente, a ciência
cartográfica com sua métrica espacial, instrumento de poder estratégico, espécie de extensão da
Geografia, ligada à produção dos mapas, à definição de Estados-Nação e zoneamentos
ecológicos-econômicos.
Como geógrafa des-reterritorializada nos estudos no campo da linguagem, cultura e
análise do discurso, olho para em que e no que as diferentes cartografias e os atos de cartografar
se diferem e têm em comum, e o que elas podem me ensinar no decurso desta investigação
sobre a Colônia Cinco Mil, sobretudo no sentido de conceber para onde caminha a pesquisa —

76
ROLNIK,1989.
77
SILVA, 2014.
78
PRADO FILHO, K.; TETI, M. M. A cartografia como método para as ciências humanas, Revista Barbarói,
Santa Cruz do Sul, n.38, p.45-59, jan./jun. 2013.
79
ROSA, R. M. A cartografia como estratégia de pesquisa: agenciamento de afetos. Rizoma: experiências
interdisciplinares em ciências humanas e sociais aplicadas. 1 (2), (pp.191-202). 2017.
33
ou como se faz a leituras destes territórios durante a caminhada. Evoco, no diálogo com Ferraz,
a potência de uma

Geografia não restrita a um mundo enquanto realidade idealizada


racionalmente, mas como vida a criar a si mesma de múltiplas e diferenciadas
formas, como um poema arcaico a fecundar o mundo com toda sua opulência,
atualizando no agora e sempre o que se produziu de força intensiva em sua
gênese.80

Remetendo à poesia de Hesíodo, e “o poder do canto poético em dizer como a vida


acontece”81, Ferraz sugere o potencial de uma geografia que vise instaurar sensações, expressar-
se por meio de imagens e palavras não necessariamente dispostas numa descrição racional,
linear. Uma geografia que busque a origem ou essência, mas voltada para a força dos
movimentos, da criação intensificadora de vivências espaciais múltiplas, a dinâmica dos
acontecimentos. Uma geografia que, para cartografar, dá-se a experimentar os sabores que tem
os saberes que compõem as istórias do lugar narrado como Colônia Cinco Mil.
Ao cartógrafo que se pretende acre é recomendável se despir de pressupostos:
recomenda-se apurar a escuta, o olhar, o tato, o cheiro, o paladar, sentir os gostos que as
histórias trazem, para traçar a carta/geo grafia acre. Espera-se que o campo surpreenda. Como
um sentir-pensar-fazer, a cartografia se constrói na ação, na prática, no diálogo e no movimento
da pesquisa. É uma forma de pesquisa cujas etapas vão sendo definidas e sendo ajustadas
conforme as questões vão se apresentando durante os estudos, as leituras, e o campo, a escuta
do outro, as trocas de experiências e diálogos em eventos acadêmicos e outras vivências. Para
Silva, não há um cartógrafo, mas posturas cartográficas, experiências de criação singular e
relacional, a cartografia como uma perspectiva transdisciplinar, indisciplinada, “campo repleto
de descontinuidades e imprevisibilidades no registro dos percursos de investigação.”82
“Por que chamar de cartografia o que todo mundo sabe que é história?” foi uma
provocação feita pelo professor/antropólogo Marcos Matos durante o Seminário de Tese 2, uma
das ocasiões em que a pesquisa foi avaliada durante o processo, o que me levou a investigar,
com ainda mais afinco, de onde surge esta cartografia como perspectiva teórico-metodológica-
crítica no contexto das ciências humanas, e em que sentido ela condizia com o percurso e a
definição desta pesquisa.

80
FERRAZ, C.B.O. Geofilosofia: de Nietzsche para a geografia. Geograficidade, v.7, Número 2, Inverno 2017,
p. 22.
81
FERRAZ, 2017, p. 22.
82
SILVA, 2014, p. 38.
34
Este movimento me levou à ideia da cartografia como um tipo de fazer história, “um
instrumento para uma história do presente”83 que foi originalmente rascunhado pelo filósofo
Gilles Deleuze no diálogo com Foucault, a quem Deleuze se referiu como um cartógrafo84, por
sua predileção pelas metáforas espaciais. Ao propor a sua “Arqueologia do Saber”, Foucault
sugeriu uma “espacialização da história”, isto é, uma espécie de tradução do tempo/da história
no/pelo espaço, e uma “geopolítica dos discursos”, dizendo das relações de poder e campos de
forças que condicionam a formação dos discursos como prática social. “Cartografia ou
geopolítica dos discursos à medida que faz uma descrição não apenas histórica, mas também
espacializante, exterior e panorâmica de domínios discursivos, mostrando enfrentamentos e
relações de força em movimento num campo.”85
Para Foucault “a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar status e
elaboração à massa documental de que ela não se separa”86. Em relação às fontes, a cartografia
como proposta por Rolnik sugere que “Todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam
múltiplas. Por isso a cartógrafa serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não só
escritas e nem só teóricas.”87. É a possibilidade de compor de forma intercultural relações entre
diferentes tipos de documentos, pensamentos, saberes científicos, literários, das experiências,
dialogar com epistemologias outras, escrever numa perspectiva narrativa. Nas palavras de
Silva, a cartografia “embaraça a ciência, alegra as artes e logra ao pesquisador a necessidade de
indisciplinar o saber acadêmico convencional”88.
A pesquisa cartográfica é um caminho que torna possível intercruzar as diferentes
fontes, como também diferentes territórios teóricos e empíricos, as diferentes áreas de produção
de saberes/dizeres/conhecimentos, e é aqui que eu vislumbro sua relação com a
interculturalidade crítica89. A cartografia, por comportar uma “ambiguidade ilimitada”, é “uma
forma interessante de perder-nos para achar-nos em outras redes de experiências.”90 A
cartografia se nutre de muitas referências, teóricas e não teóricas, escritas e da oralidade, fontes
de diferentes campos, pois na companhia de Deleuze e Guattari seja na ciência, na arte, na
filosofia ou literatura, tudo é criação do pensamento91, todas as formas de saber, filosofias,

83
PRADO FILHO, K.TETI, M.M. 2013, p. 45.
84
Idem.
85
Ibid., p. 58.
86
Ibid., p. 8.
87
ROLNIK, 1989, p.66.
88
SILVA, 2014, p. 39.
89
FERRAO CANDAU, V. M. Educacion Intercultural en America Latina: distintas concepciones y tensiones
actuales. Valdivia/Región de los Ríos Chile, Estud. pedagóg. [Online]. 2010, vol.36, n.2.
90
Ibid., p. 38.
91
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia? São Paulo: Editora 34, 2010.
35
ciências e artes, são formas de criar pensamentos. Os domínios que distinguem as diferentes
expressões dos saberes, conhecimentos, se diferenciam pelas formas como cada um deles cria
pensamentos: se por exemplo com conceitos, como a filosofia, ou se com blocos de imagens
em movimento, como o cinema, ou se com fragmentos de lembranças como nas narrativas, eu
diria. A cartografia é uma metodologia que abre-se à experimentação, à degustação, à
instabilidade, imprevisibilidade, contradição e incoerência.
Segundo o professor Roberto Machado92, em uma das ocasiões de aperfeiçoamento e
formação oferecidas pelo PPGLI/Ufac como parte de suas ações de extensão, Deleuze coloca
em evidência a questão do espaço, um pensamento que privilegia o espaço, uma “geografia do
pensamento”93. Desde que ouvi esta expressão, fiquei encantada e inquieta: eu preciso entender
melhor o que estes caras estão querendo dizer com isso... Pelas palavras de Machado, entendo
que Deleuze faz uma leitura da filosofia que se propõe mais como geografia do que como
história do pensamento, pressupondo eixos e orientações pelos quais o conhecimento se
desenvolve, o que faz considerá-los não a partir de uma história linear e progressiva (a linha do
tempo), mas como constituição de espaços e tipos de pensamentos (uma cartografia).
Machado comenta, a partir de sua leitura de Deleuze, que os espaços antagônicos
presentes no pensamento filosófico estão presentes também nas ciências, diferenciando os
conhecimentos das exatas, humanas, biológicas etc., as geografias físicas e humanas. Espaços
antagônicos que demarcam limites e fronteiras também estão presentes nas artes, nas literaturas,
nas mais variadas formas de sabenças e criações de pensamentos. Deleuze parece interessado
na procura de uma filosofia da multiplicidade e da diferença, e me encontrei com ele quando
vim atrás da origem do termo cartografia como uma metodologia que é espécie de
(anti)método94.
Como Rolnik alerta, “ninguém é deleuziano”95, e reconheço minha dificuldade diante
da escrita hermética e estética pós-moderna de suas adjetivações. Mas essa escrita cartográfica
de sabores diversos seria uma escrita para se sentir e não para se entender – no sentido racional
limitante — e isso me conforta. Entendi que era importante situar minimamente a fonte desta
perspectiva de cartografia que me encantou e, mesmo dando mergulhos rasos em sua filosofia

92
MACHADO, R. Conferência durante o seminário temático “Filosofia e Linguagem”, promovido pelo
PPGLI-UFAC, em Rio Branco, Acre, no dia 2 de setembro de 2014. Disponível em: Acesso:
93
Ibid.
94
ROSA, 2017.
95
ROLNIK, S. “Ninguém é deleuziano”. Entrevista a Lira Neto e Silvio Gadelha, originalmente publicada com
este título in O Povo, Caderno Sábado: 06. Fortaleza, 18/11/95; com o título “A inteligência vem sempre depois”
in Zero Hora, Caderno de Cultura. Porto Alegre, 09/12/95; p.8; e com o título “O filósofo inclassificável” in A
Tarde, Caderno Cultural: 02-03. Salvador, 09/12/95.
36
— e na de seus companheiros — conseguir aprender algo sobre “o que significa pensar?”, “o
que é ter uma ideia?”96, ou parafraseando pra melhor caber, o que é defender uma tese?
As comunidades do Daime foram fundadas “por uma poderosa e marcada tradição
oral”97, e reconhecendo a impossibilidade de uma narrativa única, evidencia-se que há um jogo
de poder em torno dos saberes, que influencia na configuração das territorialidades que hoje
constituem a Colônia Cinco Mil, bem como sua relação com outras territorialidades do Daime
em Rio Branco.
A “espacialização da história”, e a história das ideias, é uma prática questionadora da
documentação histórica, das verdades consolidadas pelos aparatos institucionais e oficiais.
Porque uma coisa é escrever a história, outra é escrever a história de como a história vem sendo
construída – o lugar narrado. Neste sentido, o objeto deste estudo não é o lugar Colônia Cinco
Mil em si ou seus narradores, mas as narrativas sobre este território, feito de memórias, e as
múltiplas camadas de produção de sentidos, significados e esquecimentos que forjam o lugar.
Ou melhor dizendo, se as narrativas são as fontes (orais e escritas), e não podem ser o objeto da
pesquisa em si, há de se definir que o objeto são as histórias da Colônia Cinco Mil. Ou ainda, é
menos sobre a história do lugar, e mais sobre a história da história, isto é, ver os discursos e as
formas como a Cinco Mil vem sendo narrada, descrita, sentida e significada por diferentes
narradores, em diferentes tipos de textos e documentos.
A pesquisa como cartografia sugere uma reflexão no campo do discurso para perceber
como a linguagem estrutura e ordena os sentidos, cria mundos 98 e formas de ler e enxergar as
coisas. Como proposto por Foucault, analisar os discursos não significa desvendar a
universalidade de um sentido, ao contrário: é procurar detectar de um discurso a outro, pelo
jogo das comparações, o sistema de correlações funcionais, descrever as transformações de um
discurso, e suas relações com as instituições. O discurso aqui entendido como uma prática social
é um jogo de escritura e de leitura, que põem em disputa os signos. “Em todas as sociedades a
produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída
por certo número de procedimentos que tem por função conjugar seus poderes e perigos.”99
Entendo que a produção e circulação dos textos, as estratégias de nomeação e renomeação de
agentes e lugares, enquanto aspecto da prática discursiva, num contexto religioso fragmentado

96
MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia, Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 13.
97
MOREIRA, MACRAE, 2011, p. 30.
98
ROLNIK, 1989.
99
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no College de France pronunciada em 2 dezembro
1970. São Paulo: Loyola, 1996.
37
como o dos saberes do Daime, e em específico na Cinco Mil, está veiculado a um jogo de forças
e interesses que buscam demarcar territórios e identidades.
A questão para Foucault é o que se entende por documentos, sejam eles orais ou escritos
— se como um “feliz instrumento de uma história que seria em si mesma”100 ou como sugere,
documentos são monumentos, pedaços, recortes, indícios, vestígios escavados, procurando
definir, “no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações”101. Estas questões
de procedimento e problemas teóricos precisam ser consideradas por aqueles que desejam
estudar a descontinuidade, rupturas, limiares, transformações na análise histórica. A história
das descontinuidades, como pensada por Foucault, significa pensar o fluxo da história, e como,
em diferentes épocas, as coisas podem ser percebidas, descritas, expressas, caracterizadas,
classificadas e conhecidas de diferentes formas.102 Tratar os documentos como monumentos é
tratá-los como arquivos do que foi dito, registrado numa determinada época, e desta forma é
possível ver as regras que determinam o aparecimento e o desaparecimento dos enunciados e
discursos ao longo dos tempos.
Foucault103 explicita sua atração pelas metáforas espaciais por acreditar que elas podem
expressar bem as relações existentes entre poder-saber. É uma referência para compreensão dos
sentidos sobre território, ferramenta conceitual/categoria de análise central neste estudo. Ele
destaca que é uma metáfora geográfica, mas, antes de tudo, uma noção jurídico-política,
referente a “aquilo que é controlado por um certo tipo de poder”.

Desde o momento em que se pode analisar o saber em termos de região, de


domínio, de implantação, de deslocamento, de transferência, pode-se
apreender o processo pelo qual o saber funciona como um poder e reproduz
os seus efeitos. Existe uma administração do saber, uma política do saber,
relações de poder que passam pelo saber e que naturalmente, quando se quer
descrevê-las, remetem àquelas formas de dominação a que se referem noções
como campo, posição, região, território. E o termo político-estratégico indica
como o militar e o administrativo efetivamente se inscrevem em um solo ou
em formas de discurso.104

Deleuze e Guattari narram que, no contexto da filosofia moderna, Friedrich Nietzsche


foi o primeiro a destacar que o pensamento não se elabora apenas no tempo, como contingência

100
FOUCAULT, 1996, p. 7.
101
Ibid.
102
FOUCAULT, M. The Order of Things: An Archaeology of the Human Sciences. Vintage; Reissue edition
1994.
103
FOUCAULT, M. “Sobre a geografia”, In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
Graal, 1984, p.153-165.
104
FOUCAULT, M., 1984, p. 155.
38
da História, mas é também potência de um espaço, um meio, um ambiente, uma atmosfera que
favorece que um determinado pensamento se elabore ali.

A geografia não se contenta em fornecer uma matéria e lugares variáveis para


a forma histórica. Ela não é somente física e humana, mas mental, como a
paisagem. Ela arranca a história do culto da necessidade, para fazer valer a
irredutibilidade da contingência.105

Pensar uma cartografia do Daime na Colônia Cinco Mil, uma cartografia de territórios
e memórias acres, é pensar como as pessoas, seus corpos, vozes, olhares e lembranças
expressam e ressoam afetos, desejos, alegrias, tristezas, que potencializam diferentes formas de
narrar, contar as istórias, as crônicas-lugar. Ressoar é dar a ouvir, repercutir a escrita de istórias
que criam espaços de memórias. Ressoar é também retumbar, soar com força, com intensidade,
uma rede polissêmica de saberes e sabores que se somam e se contrastam ora mais doces, ora
mais acres.
Cartografias de memórias e territórios: linhas de palavras, de afetos que traduzem
experiências de vida a partir de lembranças que vão se intercruzando; conjunto de monumentos
orais e escritos que tecem e tencionam narrativas, compõem histórias e fragmentos que
desenham e redesenham um lugar, criam mundos na e pela linguagem. As linhas que perpassam
o fazer desta cartografia são ora mais duras, respaldadas em dualidades que visam controlar,
normatizar, enquadrar, definir, caracterizar, identificar/diferenciar os grupos, ora mais
maleáveis, flexíveis, que permitem maior fluidez entre múltiplas perspectivas, a formação de
outros fluxos, “a possibilidade do desejo criar novas relações ou formas de vida”106, formas de
pensamentos, formas de textos, formas de pesquisa.
O fazer historiográfico-ficcional do cartógrafo não está aí para criar mapas como quem
retrata um pretenso real-visível, mas ocupa-se de observar a intensidade dos afetos, a
multiplicidade de percepções, os movimentos do sentir e dos sentidos sobre o lugar, que vão se
reterritorializando no ato de relembrar as lembranças. Em contraponto ao “pensamento da
imagem”, que seria segundo Rolnik “dogmático, ortodoxo, metafísico, moral, racional”, a
cartógrafa estaria à procura de um espaço do pensamento que Deleuze chama “sem imagem”,
no sentido de que é “pluralista, heterodoxo, ontológico, ético, trágico”107.
A cartógrafa se vê como aprendiz das pessoas e dos espaços, pois não interessa um

105
DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 125.
106
CASSIANO, M. & FURLAN, R. O processo de subjetivação segundo a esquizoanálise. Psicologia &
Sociedade, 25(2), 373-378, 2013.
107
ROLNIK, 1989.
39
conhecimento que não escute as vozes, e não apreenda os olhares daqueles que vivem a prática
social estudada. “O que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando
expressão. E o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar
pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem.”108 A cartógrafa vai a campo como quem
vai aos acervos vivos da história do povo de um lugar, para ouvir, observar, dialogar, como
quem vai aos livros, arquivos, ou outras fontes escritas consultadas, para aprender, registrar,
analisar, comparar versões, problematizar conceitos, suspender sentidos. A cartografia é a
performance da caminhada, o pensar em movimento, com o corpo-território intercruzando falas
e pensamentos com outros corpos-territórios. “Toda imagem, para o cartógrafo, é corpo fazendo
e destruindo corpos e não representação, assim como toda mensagem e também todo texto são
corpos fazendo e destruindo outros corpos, bem como a si mesmos.”109
Na companhia de Silva, entendo que “A cartografia não é a imagem, e sim toda a força
vital expressa nela.”110 Nestes termos, esta pesquisa propõe-se como uma cartografia da/na
Colônia Cinco Mil, no sentido de uma história produzida no espaço, pelo espaço, com o espaço,
que é parte do espaço, portanto sociedade, movimento, relações, corpos, territórios, memórias,
com suas formas específicas de “organização e de produção”, “significação e relações
simbólicas”111. É de onde estamos, do lugar que ocupamos, que podemos pensar e sentir o
mundo, por isso não escrevo de qualquer lugar, ou de qualquer povo ou cultura outra, mas de
um lugar onde eu vivo, experiencio. Uma escrita que ressoa ecos do que somos ao ser/estar na
comunidade.
Adriana Cavarero112 destaca que o fazer/escrever a História de um lugar, numa tradição
científica logocêntrica, tende a valorizar a visão única, que seria pretensamente a verdadeira ou
mais próxima da realidade, validada por documentos escritos ou pela narrativa institucional.
Uma perspectiva mais voltada para as lembranças que ecoam das vozes, olhares dos relatos de
vivência e dos documentos orais que são gerados a partir do diálogo pesquisador-narradores,
tendem a apontar para uma pluralidade de versões, sendo cada uma única, como caminhos que
se encontram e se bifurcam e se redesenham durante a própria caminhada.

108
ROLNIK, 1989, p. 67.
109
ROSA, 2017, p. 196.
110
SILVA, 2014, p. 39.
111
BONNEMAISON, Joel. Viagem em Torno do Território. In: CORRÊA, Roberto Lobato e ROSENDAHL,
Zeny (orgs.). Geografia Cultural: um século (3). Rio de Janeiro: UERJ. 2002, p. 103.
112
CAVARERO, A. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. . Belo Horizonte: UFMG, 2011.
40
Como também destacou Moreira e Macrae, neste tipo de estudo, com depoimentos,
narrativas, memórias, oralidades, muitas vezes os “dados disponíveis”113 se mostram
contraditórios, nos cabendo registrar a existência de uma diversidade de versões. Bosi salienta
que o relato de experiências, ao passo que pode, em parte, afirmar e repetir os mesmos eventos
cristalizados na memória coletiva de um grupo, também opera com os pontos de vista
contraditórios, distintos entre si, e esta é a sua maior riqueza.114 Algumas narrativas colocam
em descrédito a narrativa institucional na medida em que ressoam aspectos mais críticos e
controversos, e a narrativa oficial, por sua vez, atua na produção e circulação de ideias mais
mitificadas, adocicadas. Ainda na companhia de Bosi, há que considerar que nem sempre as
testemunhas orais são mais autênticas que a memória institucional.115
Por documentos orais entende-se, na companhia de Portelli, o resultado das entre/vistas,
a relação intersubjetiva entre a pesquisadora e as pessoas participantes, o momento em que se
estabelece uma interação, aproximação, escuta, diálogo, “troca de olhares”, e “os conteúdos da
memória são evocados e organizados”.116 O relato portanto, o documento oral, não é um fim
em si mesmo, pois do texto produzido pelas vozes, gravado no momento do encontro, se
produzem novos textos.
Moreira e Macrae destacam um fato que é sempre necessário lembrar: os entrevistados
escolhem “o que contar e como, levando em conta, não só a quem faziam as revelações, mas
também os longos anos e tudo que se sucedeu a partir dos fatos narrados (...) o que poderia ser
motivo de orgulho no passado, hoje talvez seja melhor esquecer.”117 Albuquerque também
chama atenção para o “colorido da própria testemunha, bem como da própria pesquisadora que
imprime seu olhar, não constituindo o resultado final a verdade última sobre a história
investigada.”118 Bosi aponta que “a fonte oral sugere mais que afirma, caminha em curvas e
desvios, obrigando a uma interpretação sutil e rigorosa.”119
O documento escrito não é necessariamente mais verossímil que os relatos orais,
depoimentos e registros da memória coletiva. Na companhia de Moreira, entendo que a
pesquisa nos documentos oficiais ora consultados, ou em registros da imprensa escrita por
exemplo, tem importância nesta pesquisa como parte de uma arqueologia dos escritos, não para
“uma simples verificação, em que o documento seria tomado como sendo mais confiável e

113
MOREIRA, MACRAE, 2011, p. 125.
114
BOSI, 2003, p. 15.
115
Ibid., p. 17.
116
PORTELLI, 2010, p. 19-20.
117
MOREIRA, 2013, p. 26-27.
118
ALBUQUERQUE, 2021, p. 52.
119
BOSI, 2003, p. 18.
41
verídico do que a memória”120, mas como narrativas também construídas em determinados
contextos e finalidades. Propõe escavar e juntar fragmentos do que se disse, pensando quem
disse, de que lugar institucional e em relação ao objeto foi dito, observando também a produção
de um não dito, o silenciado, o esquecido.
Foucault tece sua crítica à disciplina histórica tradicional definindo-a como aquela que
tentar reconstruir o passado, e olha para os documentos como verdadeiros, autênticos e bem
informados sobre os fatos que dizem meias palavras do passado de onde emanam. Sobre a
ressignificação do documento histórico, Foucault propôs: “O documento, pois, não é mais, para
a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou
disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros.”121 Propõe uma outra abordagem teórico-
metodológica, da qual procuro me aproximar:

É preciso desligar a história da imagem com que ela se deleitou durante muito
tempo e pela qual encontrava sua justificativa antropológica: a de uma
memória milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para
reencontrar o frescor de suas lembranças; ela é o trabalho e a utilização de
uma materialidade documental (livros, textos, narrações, registros, atas,
edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objetos, costumes etc.)122 (grifo
nosso)

Tanto os escritos, o já dito sobre o Daime na Colônia Cinco Mil em pesquisas


acadêmicas que me antecederam, os documentos oficiais e arquivos de jornais consultados,
como os relatos orais aqui transcritos, produzidos a partir das vozes e olhares dos narradores
participantes, são vistos como monumentos, fragmentos de um passado, recortes, indícios, fatos
de memórias, vestígios de lembranças e esquecimentos, linhas de articulação, ora mais duras,
ora mais maleáveis, que estão para serem analisadas, problematizadas e não tomadas como o
passado em si, as verdades sobre o real dos acontecimentos. A cartografia de memórias é vista
como o trabalho de reunir e utilizar este conjunto de narrativas para contar istórias do lugar.
São territorialidades de sentidos justapostos, também linhas de desterritorialização, que
sugerem a contínua mudança, o deslocamento e a produção de outros novos sentidos, nomes,
significados e espacialidades.
Trabalhar com as memórias de uma comunidade é falar de histórias do cotidiano, de
microcomportamentos como definiu Bosi. É trabalhar com textos em forma de crônicas, que se

120
BOSI, 2003, p. 18.
121
Ibid., p.8
122
FOUCAULT, 2008, p. 7.
42
diferem da história como apreendida nas escolas, “sucessão unilinear de lutas de classe ou de
tomada de poder por diferentes forças.”123 A história do cotidiano traz “as paixões individuais
que se escondem atrás dos episódios”124, e muitas vezes permite que “camadas da população
excluídas da história ensinada nas escolas, tomem a palavra.”125
Na companhia de Süssekink126, reconheço que método arqueológico está interessado no
contexto de produção do documento – seja ele oral ou escrito – e não na narrativa em si. O ser
humano produz narrativa e o ser humano em sociedade é uma narrativa. As narrativas rodeiam
e dão diferentes sentidos a nossa existência. No movimento entre o dito e o não dito é sempre
preciso fazer escolhas entre o que dizer ou não, e estas escolhas estão acontecendo em vários
momentos, durante as entre/vistas, as transcrições, a elaboração das reflexões, as leituras com
as quais dialogo.
Eni Orlandi nos convida a pensar que a dimensão do não dito, do silenciado, é
absolutamente distinta das significações implícitas, do que está dito nas “entrelinhas”. Nos
mostra que “há um processo de produção de sentidos silenciados”, “há um sentido no
silêncio”127. Por silenciamento entende-se algo além das noções de censura, de produção do
discurso, chamando-nos a atenção para que todo o dizer tem uma relação com o não dito.
Há uma política de silêncio que indica o silêncio constitutivo, relacionado ao dizer isso
para não dizer aquilo (uma palavra apaga outras palavras) e indica o silêncio local, que pode se
referir a uma censura propriamente dita (o que é proibido dizer em certas conjunturas), ou outras
formas de silenciar. Os sentidos se desdobram em outros sentidos, pois eles nunca estão lá,
como dados evidentes, e isso nos dá a dimensão da complexidade da análise do discurso
segundo Orlandi e no contexto de uma cartografia de memórias e territórios do Daime na
Colônia Cinco Mil, os sentidos instituídos na relação entre o dizer e não dizer.
Na composição de uma escrita polifônica, tecida na companhia de vários narradores,
que se apresentam, se complementam, formando uma rede de opiniões e comportamentos
variados, a cartógrafa se vê em um coro de muitas vozes, um bailado com muitas fontes,
procurando experienciar diferentes formas de compreensão e interpretação do lugar Colônia
Cinco Mil. Ou ainda, “não há nada a compreender, nada a interpretar”128, nada a refletir,

123
BOSI, 2003, p. 13.
124
Ibid., p. 15.
125
Ibid., p. 15.
126
SÜSSEKINK, F. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. Companhia das Letras (São Paulo) 1a.
edição. 1990.
127
ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 42ed. Campinas, SP. Editora da
Unicamp, 1997. p. 12.
128
DELEUZE, 1977 em Guattari e Rolnik, Cartografias do desejo, 1996, p. 8.
43
analisar, explicar ou revelar – o que há são narrativas, compilado de versões, fatos de memórias,
lembranças de acontecimentos, um gênero multivocal, que, a partir de “uma pluralidade de
autores em diálogo”129, ressoam afetos que definem significados, criam e recriam
territorialidades na Colônia Cinco Mil.
Seguindo as proposições de Rolnik, a cartógrafa aqui não quer “entender”, dar razão,
regionalizar, explicar ou revelar algo sobre este território. Ela se interessa por contar as
histórias, composições de linguagem que dão passagem às intensidades, os sentimentos que
buscam expressão e percorrem seu corpo, como pesquisador, no encontro com outros corpos
que ele pretende dialogar como sujeitos do lugar, e são da investigação, importantes
compositores.
Se na companhia de Deleuze, pelas penas de Rolnik e Guattari130, entende-se que as
linhas desta cartografia são feitas de palavras e conceitos, e estes por sua vez são sons, cores,
imagens, significados, intensidades que fazem ou não sentido para nós, que nos tocam ou não,
sugere-se que esta pesquisa seja lida como “se escuta um disco, como se olha um filme ou um
programa de televisão, como se é tocado por uma canção”131, ou de forma mais particular, como
quem aprecia uma contação de istórias, como quem degusta crônicas-lugar. Pode ser que as
linhas de memórias que se seguem te afetem ou não - e se aqui estão, é porque de alguma forma
me afetaram, mas reconhece-se que “o texto é um tecido, tem uma textura, que pode ou não nos
agradar, que pode ou não cair no nosso gosto.”132
Ao pensar a relação entre saber e sabor, Albuquerque Jr. vai divagar sobre as raízes
semânticas da ideia de saber, destacando que geralmente está associado à ideia de ciência,
conhecimento, informação e notícia, mas que saber poderia estar associado também a sapere,
a palavra latina que significaria algo como “lembrar um dado sabor”133. Quer nos propor que o
sabor de um saber tem a ver com os diferentes estilos de pensar e escrever, preferências não
apenas epistemológicas e metodológicas, mas também éticas e estéticas.
Albuquerque Jr. comenta que, para os antigos, “o saber era para ser degustado (...), ser
provado, experimentado”134, mas que no mundo moderno “essa relação entre saber e sabor
parece ter se perdido”135. Para ele, a mentalidade século XIX, a partir da hipervalorização do

129
PORTELLI, A. Ensaios de história oral. Tradução de Fernando Luiz Cássio e Ricardo Santhiago. São
Paulo: Letra e Voz, 2010. 222, p. 20.
130
GUATTARI E ROLNIK, 1996.
131
Ibid.
132
ALBUQUERQUER JR, 2014, p.115.
133
Ibid, p. 111.
134
ALBUQUERQUER JR, 2014, p. 112.
135
Ibid, p. 113.
44
racionalismo, e da ênfase em questões teóricas, metodológicas e epistemológicas, distanciou a
ciência das preocupações éticas e estéticas. A partir dos pressupostos positivistas, “a relação
entre saber e sabor, conhecimento e gosto”136 é apartada, na busca por uma neutralidade, um
saber isento de paixões, imparcial, “um saber sem sabor”137.
A questão da cartografia orientada para uma percepção acre, produzida desde o Acre,
sugere um fazer historiográfico, nos rastros das proposições de Albuquerque Jr., onde se reaviva
a relação entre saber e sabor — e acrescento o espaço —, que favorece a confluência entre estilos
de vida, pensamento e escrita, que possibilite produzir “ideias nutritivas”. No Dicionário
Houaiss lê-se acre, do século XVII, descrito como adjetivo do que tem sabor “amargo, ácido,
azedo”, também “de cheiro ativo, forte, penetrante”, ou ainda “de som agudo, pungente.” Ex.:
o gosto acre do limão, o odor acre das conservas, o timbre acre de algumas vozes. Há ainda no
adjetivo acre, em um sentido figurado, a ideia “de rudeza desagradável; áspero, mordaz,
ríspido”, exemplo da pessoa com um gênio acre, que por sua vez pode significar aquele “que
provoca amargura; aflitivo, doloroso, tormentoso.”138
Há numa outra direção, ainda segundo o Dicionário Houaiss, numa datação que remonta
ao século XIX, a ideia de acre como substantivo masculino referente à unidade de medida para
superfícies agrárias, variável segundo a localidade, do inglês acre, como “campo, medida
agrária”, ou do germânico como “campo, terreno cultivado”.139 Como destacou o historiador
Gerson Albuquerque em seu ensaio-verbete Acre140, “não pretendemos fazer incursões para
evidenciar que ‘acre’ — definidor de uma medida agrária — não tem nada a ver com ‘acre’ –
definidor de um sabor”141 e tampouco com o Acre, o nome dado por colonizadores a um rio
amazônico no século XIX e, mais recentemente, Acre como unidade da federação brasileira,
esta última, uma invenção datada do início do século XX. Interessa chamar atenção para a
“permutação presente nos movimentos históricos das palavras/conceitos”142, e que de território
a estado do Acre, passando por todos seus derivados como acreano, acreanidade etc. o que
temos são palavras/conceitos

136
ALBUQUERQUER JR, 2014, p. 13.
137
Ibid.
138
HOUAISS, A., VILLAR, M.S. Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Elaborado no Instituto
Houaiss de Lexicografia e Branco de Dados da Lingua Portuguesa S/C Ltda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
139
Ibid.
140
ALBUQUERQUE, Acre. In: Uwakürü: dicionário analítico. Volume 1. Organizado por: Gerson Rodrigues
de Albuquerque, Agenor Sarraf Pacheco. – Rio Branco: Nepan Editora, 2016a.
141
Ibid.,p. 15.
142
ALBUQUERQUE, 2016a., p. 15.
45
produzidas ou subproduzidas por diferentes narrativas, historicamente datadas
e articuladas a determinados interesses, intenções ou projetos de grupos
sociais e, em seguida, propagandeadas e difundidas de múltiplas e repetidas
formas para que parecessem/pareçam e sejam sentidas ou incorporadas como
coisas naturais.143

Problematizar o óbvio, as coisas e sentidos dados como naturais, questionar os


documentos é o que nos sugere, de diferentes formas, este conjunto de referências teóricas até
aqui apresentadas. O saber como algo que corta o conhecimento 144, e o saber acre como um
fazer historiográfico afiado145, sugere colocar as palavras/conceitos naturalizados para se referir
ao Acre “ao escrutínio da interrogação”146: afinal, existe um “falar acreano”, uma “cultura
acreana”, uma “música acreana”, uma “religião acreana”? Seguindo esta trilha, entendo que é
preciso olhar para as narrativas naturalizadas que inventam e reinventam a Colônia Cinco Mil,
a ideia de uma “contracultura no Daime”, de uma “religião da floresta” como uma comunidade
ecológica, igualitária e sustentável etc. Afinal, existe “um povo do Daime do padrinho Sebastião
na Colônia Cinco Mil”?
Pensar as narrativas de fundação e formação do Brasil e do Acre, na companhia de
Süssekink e dos Albuquerques, nos serve de inspiração para problematizar as narrativas épicas
sobre a Colônia Cinco Mil, os marcos da invenção do lugar, e acompanhar a obsessão nossa de
cada dia pelas “origens disto ou daquilo.”147 Que paralelos entre as narrativas sobre a formação
do povo e do território brasileiro e acreano podem ser traçados com as narrativas de formação
do povo do Daime do padrinho Sebastião e da Colônia Cinco Mil? Essas são questões
adjacentes que foram aparecendo no percurso da escrita, cujas respostas nem sempre
alcançamos a contento.
É preciso lembrar que Foucault não é um pensador interessado nos temas e tópicos que
dão corpo a esta pesquisa, que margeiam e se aproximam do místico, do sagrado e do campo
que ele chamaria de “encantamento dos mágicos”148 e das culturas ditas tradicionais. O conceito
e a noção de tradição em seus estudos são vistos como parte de uma perspectiva histórica

143
ALBUQUERQUE, G. R. Escutar interpretações e interpretar: memórias do “povo da Ayahuasca”.
Muiraquitã, UFAC, ISSN 2525-5924, v. 4, n. 2, 2016b, p. 16.
144
FOUCAULT, 1996.
145
ALBUQUERQUE JR, 2014.
146
Ibid., p.17.
147
ALBUQUERQUE, G. R., 2016b, p. 19.
148
FOUCAULT, O corpo utópico: As heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. Tradução Salma Tannus
Muchail. São Paulo, n.1, Edições, 2013.p. 10.
46
“demasiado mágico para poder ser bem analisado”149, e que olha para o tema da continuidade
e da permanência. A tradição é como uma “importância temporal singular” dada a

um conjunto de fenômenos, ao mesmo tempo sucessivos e idênticos (ou, pelo


menos, análogos); permite repensar a dispersão da história na forma desse
conjunto; autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para
retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da origem.150

A formação do povo brasileiro, acreano, e também do Daime, tem sido narrada como
um mosaico étnico, onde a miscigenação “teria sido feito em perfeito equilíbrio, com processos
de fusões e misturas que cristalizaram uma dada forma de ser nacional.”151 Há que se chamar
atenção para a tradição de se pensar e se narrar a formação de um povo, de uma nação, uma
linha do Daime, vinculada a formação de um território. Alguns personagens, segundo o modelo
de narrativa épica da conquista, são colocados como protagonistas, espécie de demiurgos,
heróis e guias da população em busca da terra prometida.
Lembremos da metáfora da caminhada, o movimento da pesquisa. A pesquisa é um
convite a caminhar com as gentes que compõem o lugar, por suas trilhas, trechos de ramal,
casas e espaços ritualísticos. No fazer destas caminhadas, ir conhecendo suas territorialidades,
mapeando as memórias vivas, escrevendo, lendo, encontrando, perseguindo a tese. Uma vez
que estou inserida no contexto da pesquisa, a cartografia como uma metodologia aberta
favorece a interferência da subjetividade da pesquisadora – e a perspectiva acre se impõe como
desafio de encarar o desencanto, escrever aos prantos, dar vida textual aos desalentos 152, não
para ver ruir os sonhos na infelicidade, mas para reviver as memórias da comunidade em
descaminhos porque trilham esta pesquisa, e valorizando trajetórias que nos trouxeram até aqui,
continuar sonhando com modos outros de vida, as florestopias de um bem viver e bem morrer
que se aprende e se ensina nesta escola da floresta e das plantas maestras. Como disse o poeta
Antônio Machado, ao “caminhante, não há caminho, se faz o caminho ao caminhar. Ao
caminhar se faz o caminho e ao voltar a vista atrás se vê a senda que nunca se há de voltar a
pisar.”153
Tão importantes quanto os movimentos de chegada são os movimentos de partida, as
idas e vindas. Na Colônia Cinco Mil, a experiência do contínuo-descontínuo pode ser percebida
nos fluxos de entradas-saídas, rearranjos, partilhas e centralizações, tessituras, redes e nós que

149
FOUCAULT, 2008, p. 24.
150
Ibid., p. 23.
151
ALBUQUERQUE JR, 2014, p. 123.
152
Ibid.
153

47
se apertam e se desfazem ao longo do espaço-tempo. Todos elementos de sua cartografia
apontam para estas trajetórias de deslocamentos, errâncias, trânsitos cidades-campos-florestas,
intercâmbios culturais, intensos processos de desterritorialização e reterritorialização,
constituindo e reconstituindo o lugar pelas narrativas, memórias, atos de nomear e renomear.
De início, identifico em mim e nos narradores essa busca das origens. Dos antigos, quase
todos ressaltam que começaram no Alto Santo, que vieram de lá, ligando-se a um passado
original, em muitos sentidos valoroso e incontestável. Para além da narrativa dos inícios, onde
o tempo é senhor do pensamento, persigo uma narrativa da relação terra-território-
territorialidade, pensando a força da geografia na constituição das ideias, identidades, na
invenção e reinvenção dos lugares, de um fazer geofilosófico como aponta Ferraz154.
Além de pensar como os discursos se espacializam em eixos e orientações — espaços
do pensamento — Deleuze, com Parnet, também vislumbram “uma geografia nas pessoas, com
linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fuga” uma vez que “(...) as coisas, as pessoas são
compostas por linhas muito diversas, e que não sabem, necessariamente, em que linhas estão,
nem onde fazer passar a linha que estão em vias de traçar”155.
Ao contrário das linhas abissais, como descritas por Boaventura Santos156, que
estabelecem os limites rígidos que separam diferentes saberes e campos de conhecimento como
opostos, em relações antagônicas, linhas duras, dicotomizadas e rigidamente definidas, procuro
na cartografia um saber-fazer das fronteiras/limiares, das linhas maleáveis, como criação de
espaços de transdisciplinaridade, de aberturas para as contradições, transições, diálogos,
polifonias e polissemias, pontes, cruzamentos, misturas, trocas.
Benjamin é um pensador que sugere pensar os “lugares-do-entre”, o limiar como uma
zona, “os sentidos de mudança, passagem, flutuação [...]”.157 Limiares são lugares, zonas de
abertura e expansão da vida por oposição à linha, que delimita os problemas, com a pretensão
de chegar a uma resposta ou solução definitiva — o que para Benjamin é o lugar de morte —
como são as pretensões de uma narrativa definitiva, a história única, verdade última. O Daime,
e em específico a Colônia Cinco Mil, é um espaço das fronteiras e limiares, perto da cidade,
acessível, onde o controle na recepção de visitantes e novos adeptos é menos restrito se
comparado a outros centros de Daime em Rio Branco. Ao mesmo tempo, também perto da

154
FERRAZ, 2017.
155
DELEUZE & PARNET, 1977/2004 em GUATTARI E ROLNIK, 1996, p. 21.
156
SANTOS, B.S. Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista
Novos Estudos, n. 79, Novembro 2007.
157
BENJAMIN, P., O Livro das Passagens, O 2a, 1.
48
floresta, e para muitos visitantes de fora, chegar na Cinco Mil é como chegar na Amazônia
edenizada, e ela constitui parte da floresta e seus saberes vivos.
Na companhia do professor Cássio Hissa e suas geografias, entendo que as fronteiras,
não se confundem com os limites, não é a linha que divide, separa, intersecciona e fecha, mas
os limiares, lugares de contatos, de aberturas, diálogos, trocas, conflitos, da tensão e afetação
entre as partes. A fronteira pode ser vista como aquilo que borra e questiona os limites. 158 A
metáfora do trabalhar nas fronteiras/limiares entre os diferentes conhecimentos e fontes aponta
para uma perspectiva de descolonizar os saberes. Também me sugere único meio de lidar com
as contradições que se apresentam no percurso, o estar lá e cá.
Estar nos limiares e fronteiras entre os lugares também foi uma necessidade de adotar
uma posição no campo. Estando numa comunidade que está marcada por divisões que criam
territorialidades, e de alguma forma pertencendo mais a uma delas que às outras, posicionar-se
nas fronteiras também foi um caminho para construir pontes de diálogos. Caminhei no sentido
de uma escrita da Cinco Mil que valorizasse o registro e pertencimento a uma história que é
comum a todos, é coletiva, constituída nas fraturas e rompimentos que surgem da reacomodação
das forças, criando territorialidades no lugar.
É assim que aproximamos dos relatos de experiências, reconhecendo a impossibilidade
de uma cartografia do lugar — e suas territorialidades — que não perpasse pelas pessoas e suas
trajetórias de vida, subjetivadas, narradas em fatos de memórias. Na companhia de geógrafos
como Jörn Seemann, evidencia-se que “nas pesquisas sobre memórias, tanto as pessoas como
os lugares precisam ser contemplados na investigação, pelo fato de estarem intimamente
entrelaçados”159 e que o “território mostra que a compreensão dos lugares e das paisagens não
se realiza sem limites e limitações propostas, opostas ou imposta pelos homens.”160
Bonnemaison comenta que os espaços sociais e culturais adquirem a dimensão de
território quando assumem duas funções principais: “uma de ordem política — a segurança —
e outra de ordem mais especificamente cultural – a identidade”161 — que também é política. Já
o conceito de lugar geralmente está associado ao espaço do vivido, do cotidiano, da sensação
de pertencimento, das memórias, um olhar que leva em consideração os vínculos mais “afetivos
e subjetivos do que os racionais e objetivos entre as pessoas e o espaço no passado e no

158
HISSA, C. E. V. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade. Belo Horizonte:
UFMG, 2002.
159
SEEMANN. J. O espaço da memória e a memória do espaço: Algumas reflexões sobre a visão espacial nas
pesquisas sociais e históricas, Revista da Casa de geografia de Sobral. V. 4/5, p. 43-53, Sobral, 2003, p. 45
160
Ibid.
161
BONNEMAISON, 2002, p. 105.
49
presente”162. Contudo, não é muito diferente do território quando observado a partir de uma
visão e sensibilidade cultural, como diria Bonnemaison: o território, não é à toa, pertence ao
campo semântico de terra, e é “ao mesmo tempo, raiz e cultura”163, territorialidades.
Entende-se por territorialidade a maneira como grupos sociais se espacializam e definem
seus limites e fronteiras, seus mitos fundadores, seus processos de formação e afirmação de
uma forma de existir no mundo. No caso do Daime, a sede de um centro, com seus devidos
espaços, o salão, a serventia, a casa de feitio, o cruzeiro, são elementos que demarcam a
presença material do grupo. Por territorialidade entende-se a síntese da inter-relação território-
identidade como construção política dos sujeitos e dos lugares. Süssekink comenta que o
espaço, o lugar, o território são os dispositivos mais eficazes para dizer o que somos.164
A arquitetura das igrejas, dos cemitérios, os símbolos, as praças, os espaços de memória
são aparatos que disciplinam o corpo de uma nação, como conjunto de indivíduos ligados a um
território, seja no nível político instituído como a república, o estado e seus cidadãos, seja no
nível dos territórios simbólicos, comunidades imaginadas, geograficamente descontínuas165.
Como comentado por Silva Kambeba “A territorialidade como um componente de poder, não
significa somente criação e manutenção da ordem, mas é um esquema para criar e manter o
contexto geográfico através do qual experimentamos o mundo e lhe damos significados.”166
Hissa destaca que o território não é apenas um dado circunstancial, visto que é parte
integrante da experiência coletiva, pois “a vida não é um movimento desterritorializado.”167
Conceitos como território e multiterritorialidades são ferramentas usadas neste estudo feito na
Colônia Cinco Mil porque apontam para “o nível dos micropoderes disciplinares e
institucionalizadores de microterritórios cotidianos”168.
Olhar para a Colônia Cinco Mil com o território do Daime do padrinho Sebastião em
Rio Branco é olhar para um ponto numa rede de práticas e culturas ayahuasqueiras no Acre,
que guarda uma relação de continuidade e descontinuidade com a tradição fundada por Irineu
Serra. Foi o ponto a partir do qual a doutrina do Daime se expandiu para outras regiões, e onde

162
SEEMANN, 2003, p. 45.
163
BONNEMAISON, 2002, p. 107.
164
SÜSSEKINK, 1990.
165
HALL, S. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG,
Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
166
SILVA KAMBEBA, M. V. Reterritorialização e identidade do povo Amágua- Kambeba na aldeia
Tururucari- Uka. Manaus, AM: UFAM, 2012, p.36.
167
HISSA, C. E. V. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade. Belo
Horizonte: UFMG, 2002, p.40.
168
HAESBAERT, R. Hibridismo, mobilidade e multiterritorialização numa perspectiva geográfico-cultural
integradora. In. SERPA, Ângelo (org.). Espaços culturais: vivências, imaginações e representações. Salvador,
EDUFBA, 2008.
50
novos elementos foram se territorializando no campo do Daime, a Cannabis como planta
professora, a Umbanda como uma linha irmã, entre outros.
Silva Kambeba destaca que o território é “tradicionalmente visto enquanto ‘solo’, ou
seja, a base material do Estado-Nação” e que na “Geografia há múltiplas concepções de
território que servem como ponto de partida para a discussão desse conceito.”169 Interessa-nos
na sua companhia o entendimento de que identidade e território são indissociáveis, e “a
apropriação de um determinado espaço constitui-se a partir do momento em que o indivíduo ou
grupo o representa para si e para os outros. Enquanto espaço da ação, o território passa a ser a
mediação entre dois indivíduos ou grupos.”170
O território é também nosso corpo, nossa casa, morada, a nossa comunidade ou um setor
específico dela. O território pensado na escala do indivíduo relaciona-se à construção de sua
identidade e subjetividade. “O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a
um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’.”171

a noção de território é entendida aqui num sentido muito amplo, que ultrapassa
o uso que dela fazem a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam
segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos
fluxos cósmicos. (...) O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação
fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações
nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de
comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais,
culturais, estéticos, cognitivos.172

A Geografia como um campo do conhecimento que se dedica a pensar o espaço, não


como um pano de fundo da ação social, mas em suas nuances mais específicas como lugar,
território, paisagem, região, fronteira, redes etc., oferece muitas teorias e definições para estes
importantes conceitos, mas não tem se dedicado com o mesmo afinco ou profundidade às
questões da memória, cuja relação mais imediata geralmente se estabelece com o tempo e não
com os espaços. Estudos que versam sobre as relações de território, memória, cidade,
mapeamento, toponímia173 abrem-nos perspectivas para se pensar a espacialidade das
lembranças que são narradas, e como os espaços, as relações sociais, a arquitetura e as ruínas,
podem ativar memórias individuais e coletivas.

169
SILVA KAMBEBA, 2012, p. 34.
170
Ibid, p. 37.
171
GUATTARI E ROLNIK, 1996, p. 323.
172
Ibid.
173
FLÁVIO, L. C. Memória(s) e território: elementos para o entendimento da constituição de Francisco
Beltrão-PR. Tese Programa de Pós-Graduação em Geografia –Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita
Filho”, Campus de Presidente Prudente. Presidente Prudente, SP, 2011.
51
Por memória, outra categoria de análise central neste estudo, entende-se a capacidade
de lembrar, uma construção mental-abstrata, quase inacessível e volátil174. Para Benjamin, “a
memória é a mais épica de todas as faculdades”175, é a “musa da narrativa” 176 e o “cronista é o
narrador de histórias” 177. Para Bosi, “a memória oral é um instrumento precioso se desejamos
constituir a crônica do quotidiano”178. É fonte valorosa e incerta de informações,
conhecimentos, registros, pontos de vista. Parafraseando o geógrafo Flávio179, diria que a
memória também é um elemento fundamental da produção simbólica dos lugares, criação de
interpretações que muitas vezes “traduzem embates de grupos e classes sociais em disputa pelo
domínio e controle do território.”180
Bosi comenta que “A memória se enraíza no concreto, no espaço, gesto, imagem, objeto.
A história se liga apenas às continuidades temporais, às evoluções e as relações entre as
coisas.”181 Benjamin destaca a necessidade de se estudar as relações entre as formas épicas
(narrativas, crônicas, lendas etc) e a historiografia, investigando

a diferença entre quem escreve a história, o historiador, e quem a narra, o


cronista. O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os
episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representa-
los como modelos da história do mundo.182

No conhecido ensaio chamado “O narrador: Considerações sobre a obra de Nicolai


Leskov”, Benjamin faz importantes reflexões sobre a relação entre experiência, o ato de narrar,
a arte de contar histórias. O oficio do narrador, descrito por Benjamin como um trabalho quase
manual, foi ao longo do processo de consolidação da burguesia e do capitalismo se perdendo
no tempo e no espaço. Benjamin sugere que o aparecimento do romance, como um gênero
textual, presente em livros, focado nas questões do indivíduo isolado, vai distanciando
lentamente a tradição oral. Porém, considera que seria um erro apontar que esta espécie de
desaparecimento estaria relacionada apenas a um “sintoma da decadência” ou uma
“característica moderna”. Sugere que haveria um lento processo, tal qual os que presidem “a

174
SEEMANN, 2003.
175
BENJAMIN, 1987a, p. 210.
176
Ibid., p. 211.
177
Ibid., p. 209.
178
BOSI, 2003, p. 15.
179
FLÁVIO, 2011.
180
Ibid., p. 6.
181
BOSI, 2003, p. 16.
182
BENJAMIN, 1987a, p. 209.
52
transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios”183, em que à narrativa novas belezas
estariam sendo dadas – ou novos conteúdos sendo incorporados.
A narrativa, seguindo os passos benjaminianos, “não está interessada em transmitir o
‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório.”184 Por outro lado, há na
narrativa “em si mesma, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária”185, isto é, o narrador
geralmente é alguém que sabe dar conselhos. Como comentou Mendonça, seria alguém “capaz
de tirar da experiência, um saber (...) e transmitir esse saber contando histórias.”186
Comentando os escritos de Leskov, Benjamin se admira da possibilidade de narrar com
grande exatidão o miraculoso e extraordinário das histórias, sem lhes impor uma explicação na
sequência, sem aprofundar nas sutilezas psicológicas, deixando o leitor “livre para interpretar a
história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na
informação.”187 Chamou-me atenção o que soou como postulado: “Metade da arte narrativa
está em evitar explicações”188. Algo semelhante já foi dito a respeito do fazer da cartógrafa, que
se vê como escritora de uma história, criadora de mundos, sem pretensão de compreender ou
explicar – o que me deixou confortável no manejo destas fontes teóricas e ferramentas
conceituais, e de uma coerência entre elas.
Para Benjamin tão melhores são as narrativas escritas quanto mais elas se aproximem
de como as narrativas orais são contadas, e levei este conselho em consideração no ato de
escrever, transcrever e revisar os pensamentos aqui trazidos com palavras, como sons que
ressoam as vozes e memórias do povo do lugar. Benjamin define que a informação só tem valor
no momento que é nova, ao contrário da narrativa, que conserva suas forças, se repete. “Contar
histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais
conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história.”189
Albuquerque ao coordenar um curso sobre memória oral em comunidades
ayahuasqueiras, destaca que se trata de um movimento de “escutar interpretações e interpretar”.
Destacando a fala de um de seus alunos, o jovem Antônio Gomes da Silva Neto, com 15 anos
na época, compactuo com a ideia de que “o interessante é escutar interpretações de pessoas
diferentes, que viveram e viram, sob vários ângulos, de vários lados e que te falam cada detalhe

183
BENJAMIN, 1987a, p. 202.
184
Ibid., p. 205.
185
Ibid., p. 200.
186
MENDONÇA, 2016, p. 19.
187
BENJAMIN, 1987, p. 203.
188
Ibid.
189
Ibid., p. 205.
53
minúsculo. Ao mesmo tempo, se você comparar depois, no final, para você, não será a mesma
história.”190
A cartógrafa que se vê como a tecelã de histórias, emaranha linhas de palavras que
ressoam notas e sabores que dão formas aos territórios e memórias do lugar narrado. Ao passo
que dialogo e reconto uma história da Cinco Mil já escrita, produzo o documento oral na
companhia dos narradores, na produção de uma literatura que ecoa da oralidade, compondo
crônicas do cotidiano e novas istórias/geografias da/na comunidade. E porque este texto é uma
tese, e não arte ou filosofia, procuro analisar, interpretar, refletir, compreender aspectos da
formação/criação/invenção da história/cartografia do lugar Colônia Cinco Mil a partir deste
conjunto de narrativas.
Em torno destas identidades, no contexto do Daime, foram se constituindo muitas
narrativas sobre legitimidade, autenticidade, tradição, apropriação cultural, de modo que a
identidade parece algo sempre em disputa, numa relação de afirmação da diferença em relação
ao outro. Estas diferenças no contexto do Daime, e em específico na Cinco Mil, se manifestam
de muitas formas: nos arranjos socioespaciais que constituem a organização dos grupos, nos
aspectos ritualísticos, detalhes, vocabulário utilizado. Estas nuances podem ser imperceptíveis
para um visitante, que muito provavelmente acharia um trabalho num centro do Irineu Serra
muito parecido com um trabalho na Cinco Mil — as rezas, o bailado, o canto —, mas que não
passam desapercebidas quando se vivencia e se estuda a doutrina do Daime e seus ritos e
fundamentos.
Mendonça comenta “a existência de cismas dentro da referida doutrina” e destaca que a
saída de Sebastião Mota da sede do Daime, fundando um novo seguimento, pode ser comparada
a uma “família espiritual interna”, semelhante às ordens diferentes “no interior do
catolicismo”191. Relações entre as pessoas e grupos sociais sempre envolvem um jogo de forças
que podem ser lidos com os óculos da micropolítica. No caso de organizações sociais e de
representação como religiões, irmandades, igrejas, núcleos, centros, terreiros etc., via de regra,
este jogo alavanca disputas pelo saber-poder, que precisam por sua vez se espacializar, delimitar
seus territórios de atuação e agregar um povo. Na Cinco Mil os deslocamentos envolvem
mudanças, o desarticular-se de algo, desterritorializar-se de algum lugar para se reterritorializar

190
Reflexões de Antonio Gomes da Silva Neto, 15 anos, em Trabalho de Conclusão do Curso “Formação de
Agentes Culturais nas Comunidades Ayahuasqueiras”, Rio Branco, Acre, abril de 2010” em ALBUQUERQUE,
2016, p. 120.
191
MENDONÇA, 2016, p. 20.
54
em outro, como uma característica das experiências do sujeito moderno e das formas de
afirmação da diferença no campo das identidades religiosas/de grupo.
Dos depoimentos dos moradores apreende-se que versões e afetos diversificados ecoam
do campo e que alguns temas e eventos são recorrentes, tais como a saída do Alto Santo como
narrativa fundadora da Colônia Cinco Mil, com destaque para o episódio da bandeira, o trabalho
e a produção agrícola dos tempos primeiros, os processos de sucessão das lideranças. Estes
eventos acabam sendo selecionados e lembrados como marcadores de uma memória coletiva,
que serve para consolidar, validar e legitimar a identidade territorial, suas diferentes fases,
enquanto outros personagens e acontecimentos acabam sendo esquecidos ou silenciados.
Para Stuart Hall, considerado um dos criadores do movimento conhecido como Estudos
Culturais, existe o mito da identidade cultural como algo fixo192 desde o nascimento ou origem,
ligada a um núcleo imutável e atemporal, que tem por intuito moldar comportamentos dentro
de uma determinada tradição — no contexto do Daime de Rio Branco, este grupo é o Ciclu–
Alto Santo — e no contexto do Daime da expansão, a principal referência é a do seguimento
do Padrinho Sebastião representada pela Igreja de Centro Eclético da Fluente Luz Universal
(Iceflu). Seguindo em sua companhia, entendemos que a identidade cultural não é ontológica,
do ser, mas do se tornar – e por isso alguns centros, e mesmo algumas pessoas, às vezes iniciam
em uma linha do Daime e depois mudam para outra. É uma questão histórica, pois a condição
humana mostra que os movimentos de deslocamentos são uma constante e, via de regra, todos
os povos e culturas sempre possuem origens diversas, são misturas, resultados de trocas e
intercâmbios.
Esta noção parece fundamental para pensarmos questões relativas ao multifacetado,
sincrético, eclético, plural e híbrido universo do Daime no contexto dos usos da Ayahuasca, e
em específico na Colônia Cinco Mil, onde se sonhou construir uma utópica comunidade
espiritualista alternativa – igualitária e autossuficiente. Para Chirif193 a categoria de identidade
é sempre problemática, pois essencialmente baseada no antagonismo, no estabelecimento dos
limites, na delimitação da diferença que, quase sempre, é vista como um problema. Alguns
grupos vivem processos de fechamento em busca das tradições e de afirmar suas identidades
invisibilizadas, constituindo guetos e círculos mais fechados, como é o caso do Daime na vila
Irineu Serra no contexto das culturas ayahuasqueiras de Rio Branco. Outros grupos são mais

192
HALL, 2003.
193
Ibid.
55
abertos aos diálogos multi e interculturais, notoriamente a corrente eclética, dinâmica e
expansiva que se funda a partir da criação do Cefluris na Colônia Cinco Mil.
A Santa Maria foi o primeiro grande ponto de divergência entre o Daime fundado pelo
mestre Irineu, representado pelo Ciclu–Alto Santo, e o seguimento expandido por Sebastião
representado aqui pelo Cefluris/Iceflu. Santa Maria é o nome dado à erva Cannabis, consagrada
entre os fardados do Daime da linha do padrinho Sebastião. A questão da Santa Maria foi a
pedra fundadora da separação identitária que se construiu como prática discursiva a partir do
final dos anos 1970, e mais intensamente da década de 1980 adiante, quando vários pés da
planta foram apreendidos na Cinco Mil, se dão os processos de investigação das comunidades
ayahuasqueiras pelas instituições do Estado e as pesquisas acadêmicas sedimentam uma
abordagem em termo de diferentes linhas ayahuasqueiras e linhas do Daime. A consolidação
desses dois grandes campos, com suas aproximações e antagonismos, foi sendo reproduzida em
diversos textos, naturalizada, introjetada pelos próprios grupos e institucionalizada, mas
também tem seus contradiscursos.
Esta divisão é lida aqui como resultado de um embate político, que foi se intensificando
ao longo do tempo desde a separação dos grupos, alguns anos depois da passagem do mestre
Irineu em 1971, mas, sobretudo, a partir da grande repercussão midiática sobre denúncias de
mortes violentas, usos de drogas e comércio de Daime envolvendo as comunidades fundadas
por Sebastião, no final da década de 1970 e entre os anos 1980 e 1990. Somadas às
desconfianças e preconceitos já enfrentados pelo grupo de Irineu Serra desde a década de 1930,
estes acontecimentos colocaram o Daime/Ayahuasca na pauta de investigação da Polícia
Federal, ameaçando a liberdade do culto e consagração da bebida, que chegou a ser proibida
entre os anos de 1985-86194. Durante dois anos de investigação a liberdade de uso da Ayahuasca
foi suspensa. “Seguindo as recomendações do relatório final, datado de agosto de 1987, a
ayahuasca foi excluída da lista de produtos proibidos e liberada para uso ritual.”195
Assim, fui impelida a pensar um fazer cartográfico acre que mantém “uma relação
problemática com as memórias, com as lembranças, tornando nossa relação com o passado
distanciada e crítica, longe de saudosismos e nostalgias, mesmo as populistas.”196. Procurei ver
no movimento de questionamento e problematização dos documentos orais e escritos, a reflexão
sobre os conceitos e fatos tecidos na/pela linguagem.

194
GOULART, 2004.
195
Ibid., p. 91.
196
ALBUQUERQUE JR, 2014.
56
1.2 Apresentando os narradores: quem viu de perto pra contar de certo

A fala e o canto têm lugar central na produção, circulação e condições de funcionamento


dos discursos no âmbito das culturas daimistas, que são historicamente organizadas por meio
da música e da oralidade. As instruções, preleções e mensagens musicadas que compõem a
doutrina do Daime estão materializadas nas centenas de hinos que compõe os hinários.

A primeira organização cultural/social/espiritual do daime se articula em torno


da palavra falada, cantada. Raimundo Irineu Serra, o Mestre fundador da
doutrina, era um homem da oralidade, da escola da oralidade em suas
múltiplas dimensões. Negro maranhense, filho das diásporas africanas,
praticante de uma nova abordagem da dimensão espiritual das
humanidades197.

Numa espécie de ode à oralidade no âmbito das culturas daimistas, e tendo os centros
mais tradicionais de Rio Branco como campo de interação, G. Albuquerque defende que parte
da virtude e força da organização social consiste do não domínio da escrita por parte dos
primeiros mestres e demais integrantes da irmandade, e que a transmissão dos conhecimentos e
saberes se davam predominantemente pela oralidade.

As primeiras comunidades do Daime foram formadas por mulheres e homens


da palavra falada, gesticulada; da escola oral que escreve/inscreve no e com o
corpo; da “fala cabocla”, como preferem alguns. Ouviam as mensagens do
mestre e internalizavam seus conhecimentos; “recebiam” os hinos e cantavam
para os outros ouvirem; os que ouviam, repetiam, entoavam, cantavam,
dançavam e, nesse processo coletivo, os produziam/reproduziam em seus
corpos. Desse modo a palavra era instrumentalizada pelos gestos, olhares,
sons. A escrita nunca lhes fez falta e seus saberes/ensinamentos ecoaram com
força para além das fronteiras de grupos de negros, afroindígenas e outras
misturas que aí se socializavam.198

Com o tempo os relatos orais dos seguidores mais antigos, das pessoas que conviveram
com o mestre Irineu e com outras antigas lideranças, passaram a ser referências nos
ensinamentos da doutrina, seus detalhes ritualísticos e princípios éticos e estéticos. Suas
narrativas quando coletadas e compiladas pelos pesquisadores, vão se constituindo documentos
orais e escritos, referências sobre o que se diz das realidades vividas, às vezes tomados como
descrição dos fatos, às vezes como “ficção etnográfica”.199

197
ALBUQUERQUE 2016, p.120.
198
Ibid., p.123.
199
MOREIRA 2013, p.26.
57
Muitos dos familiares mais próximos destas famílias mais antigas na doutrina passaram
a ser referências destes ensinamentos, ocupando lugares privilegiados na rede de formações
discursivas. Recentemente B.Albuquerque estava à procura da data exata em que o padrinho
Sebastião teria tomado Daime com o mestre Irineu pela primeira vez, pois em duas importantes
referências lê-se 1964 e 1965. Após contato com o padrinho Valdete, um dos filhos de
Sebastião, ouviu a confirmação de que a data correta é 1965, e a fonte oral, neste contexto, teve
uma força de enunciação, de confirmação e correção ante ao que, porventura, escritores não
souberam precisar, porque não “viu de perto pra contar de certo.”200
A partir dos anos 1980, há uma diversificação ainda maior dos suportes para os discursos
sobre o Daime, que passam a figurar no mundo das letras escritas, sobretudo a partir da
expansão para além das fronteiras amazônicas. Cada vez mais presentes em textos de jornais
locais e nacionais, pesquisas acadêmicas e relatórios científicos, resoluções e marcos
regulatórios de órgãos fiscalizadores, o Daime, Santo Daime, Ayahuasca, também ocupava
mais espaço nas reportagens de televisão, relatos de experiência, biografias, incluindo as de
denúncia e, mais recentemente, figura em páginas, vídeos e grupos na internet e redes sociais.
Os membros de comitivas também se tornaram importantes vozes na função de
enunciação no campo do Daime. Comitivas são pequenos grupos de pessoas compostos por
cantoras, músicos e lideranças que viajam em conjunto como representantes “oficiais” de um
seguimento do Daime, e “ganham crescente importância na transnacionalização do grupo e
passam a funcionar como porta-vozes do Santo Daime e fortalecedores da identidade daimista
no exterior.”201
Süssekink analisa que há uma relação entre as primeiras narrativas ficcionais sobre o
Brasil, dos viajantes dos séculos XVI e XVII, e os relatos de viagem dos exploradores e
naturalistas dos séculos XVIII e XIX, uma vez que os relatos, nos dois casos, visam servir
verossimilhança com seus textos, tomar o discurso literário em sua veracidade. O mesmo vale
para os narradores, os documentos orais e escritos com os quais dialogamos. Ao se propor
pensar a invenção do Brasil, ou o Brasil dos narradores e viajantes, Süssekink afirma não buscar
as origens do narrador brasileiro de ficção, mas seu começo histórico e a maneira como se
relaciona com um olhar de fora (seja do paisagista, seja do cronista). A mim, em sua companhia,
coube talvez situar o começo histórico dos narradores (romancistas e viajantes) da Colônia

200
Referência a um ditado comum entre os seringueiros e agricultores acreanos, que é: “ver de perto pra contar
de certo”. Cf. MESQUITA, E. Ver de perto pra contar de certo: as mudanças climáticas sob os olhares dos
moradores da floresta do Alto do Juruá. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, SP. 2012.
201
ASSIS, 2017, p.169.
58
Cinco Mil. Quem são estes que narram, de que lugar, em que contexto eles produziram suas
narrativas, a partir de quais suportes elas circulam, de que maneira se intercruzam, se
confundem, se influenciam mutuamente os olhares de dentro e de fora. O diálogo com um vasto
número de narradores possibilita-nos mapear uma rede de relações, produção de saberes e
significações acerca do lugar Colônia Cinco Mil.
A diferença nos relatos de viagem sobre o Brasil destas diferentes épocas, como
apontada por Süssekink, é que a primeira fase desta ficção brasileira o narrador-viajante é um
aventureiro, sujeito errante, e no século XIX, o Brasil é descrito “não mais inferno ou paraíso
do qual se tenta extrair ouro, não mais mina, mas curiosidade, paisagem pitoresca, objeto de
estudo a ser cuidadosamente classificado. E não mais por viajantes aventureiros, mas por
naturalistas, zoólogos, paisagistas.”202 Marcados por uma certa “obrigação de descrever e
definir um território nacional”203, estes viajantes, naturalistas eram uma espécie de “museu de
tudo”, e produziam “trama historicofolhetinesca” e a “atemporalização cartográfica da
paisagem-só-natureza”204 a que chamavam Brasil, inserindo em suas novelas seus relatos de
viagem. O interessante aqui é notar o Brasil – e a Cinco Mil - como um território-nação
inventado e reinventado em diferentes épocas.
Inspirada na abordagem de Pantoja, que inicia seu texto apresentando “alguns de seus
protagonistas, em muitos sentidos coautores”205 de sua tese, trago uma breve apresentação dos
narradores, as fontes orais que nos acompanham no exercício de escuta, escrita, leitura e
contação destas histórias. As pessoas que participaram deste estudo são as guias que levam a
pesquisadora, como cartógrafa, a conhecer o espaço por diferentes rotas e caminhos, trilhas e
atalhos. Seus textos produzidos por suas vozes, a partir das lembranças de acontecimentos que
vivenciaram, são transcritos e intercruzados com outros textos. Formam uma malha de caminhos
pelos quais podemos experienciar conhecer istórias de como esta comunidade do Daime vem
sendo narrada, os sabores acres e doces destas crônicas-lugar.
Nestas notas ainda introdutórias, procuro apresentar um pouco mais detidamente os
narradores que muito gentilmente aceitaram o convite para participar deste estudo, partilhando
suas memórias sobre suas trajetórias de vida ou de passagem pela comunidade da Colônia Cinco

202
SÜSSEKINK, 1990, p.45.
203
Ibid, p .71
204
Ibid. p..64
205
PANTOJA, M. C. P. Os Milton: cem anos de história familiar nos seringais. Tese de doutorado, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.

59
Mil, e uma descrição dos contextos em que se deram os encontros com suas narrativas, as
principais ideias trazidas na ocasião de produção do documento oral.
Os narradores como descritos por Benjamin são aqueles que viajam muito, que têm
muito o que contar, aqueles que vêm de longe, como comerciantes, pescadores, mas também
entre os camponeses fixos à terra, que conhecem as histórias e tradições de onde se vive, se
encontram os bons narradores. Seria como dois estilos de vida, dois tipos arcaicos que
produziram os narradores arquetípicos. Não quero dizer, de antemão, que todos os participantes
que narraram suas experiências e lembranças neste estudo podem ser considerados como
narradores em um sentido benjaminiano stricto senso – e esta não é uma questão de
investigação. Limito-me a situar que considero que as ideias de Benjamin sobre as narrativas e
os narradores como gênero textual e categorias de análise são importantes na composição destes
fragmentos e movimentos, dão suporte à essa a cartografia como escrita da história e contação
de histórias — e, portanto, no limiar/fronteira entre o fazer da historiadora e o fazer da
narradora.
Seria difícil demarcar uma linha rígida, um limite entre os narradores da Colônia Cinco
Mil que os definissem como narradores benjaminianos ou não, viajantes ou camponeses que
conhecem as histórias do lugar. Moradores da Colônia Cinco Mil que participam deste estudo
são narradores com diferentes estilos, conhecem as histórias do lugar onde vivem, são em sua
maioria também viajantes, ou migrantes, alguns andarilhos, que chegaram na Colônia dos anos
1970, outros que viveram significativas trajetórias de deslocamentos da floresta para as colônias,
ou da colônia para a floresta, ainda adolescentes, até voltarem e se estabelecerem na Cinco Mil
novamente. Entre os narradores que participaram da pesquisa estão os dirigentes de centros de
Daime, moradores e frequentadores antigos, e outros mais recentes. São mulheres e homens,
acreanos, brasileiros de outros estados e estrangeiros, que o próprio caminhar da pesquisa me
foi permitindo encontrar, conhecer melhor e dialogar.

Rita Gregório de Melo (1925-), natural do Rio Grande do Norte onde nasceu na
localidade de Várzea do Açu, irmã mais velha de três irmãos e quatro irmãs, entre elas Tereza
e Julia, suas companheiras na doutrina do Daime. Rita cresceu nesta família de humildes
trabalhadores rurais e extrativistas que migraram para a Amazônia em meados da década de
1940 ainda no rastro dos soldados da borracha. Nos seringais do rio Juruá conheceu e se casou
com Sebastião Mota por volta de 1947206, e teve alguns de seus filhos. Posteriormente se

206
MORTIMER, 2000.
60
mudaram para Rio Branco onde se estabeleceu na Colônia Cinco Mil, tornando-se ao lado do
marido, uma importante liderança da comunidade. É a matriarca do maior seguimento do Daime
(em número de filiados), a Iceflu, instituição que teve início como Cefluris na Colônia Cinco
Mil, e inspira grande parte das igrejas e centros do Santo Daime que ultrapassaram as fronteiras
de Rio Branco e expandiram-se pelo Brasil e o mundo.
Sempre que a madrinha Rita está de passagem por Rio Branco fica hospedada na
Fundação Padrinho Sebastião Mota de Melo, espécie de vila daimista localizada ainda nos
limites urbanos de Rio Branco, no bairro Alto Alegre, há aproximadamente 5 km da Colônia
Cinco Mil e criada no início dos anos 2000. É comum os amigos, familiares e membros da
irmandade lhe fazerem visitas, e a casa fica sempre cheia. Em 2018, quando eu estava ainda na
fase de elaboração do projeto para seleção do doutorado, numa daquelas costumeiras visitas à
madrinha Rita na Fundação, eu tive a oportunidade de comunicar a ela minha intenção de fazer
esta pesquisa sobre a Colônia Cinco Mil e pedir a sua benção. Madrinha Rita sempre muito
receptiva e amorosa, com sua narrativa muito breve, mais um aconselhamento por certo,
questionou-me algumas escolhas, dando-me uma recomendação e de prontidão disse “Deus
abençoe...”207
Alfredo Gregório de Melo (1950-), amazonense do vale do Juruá, é um dos filhos de
Sebastião e Rita, sendo aquele que desde muito cedo foi um dos companheiros do pai nos
trabalhos espirituais e administração das comunidades do Daime. Atual presidente da Iceflu,
cuja sede está localizada na Vila Céu do Mapiá/AM, foi a liderança responsável pela expansão
internacional do Santo Daime. Tem uma vasta obra de hinos recebidos, que compõem três
hinários de sabedoria e louvores à natureza: “O Cruzeirinho”, com 186 hinos; “Nova Era”, com
31 hinos; e o mais recente, ainda em aberto, denominado “Nova Dimensão”, com 15 hinos. Sua
fala é uma espécie de resumo de toda a história da Colônia Cinco Mil.
Considerando o lugar de onde ele enuncia sua voz, como liderança do grupo,
orador/narrador experiente, sua fala tem o gosto da narrativa de um ancião de uma comunidade
de saberes tradicionais, cuja história se registra na oralidade, e cujos conhecimentos não se
aprendem em livros e, sim, através da experiência. Ao mesmo tempo sua narrativa também é
degustada como narrativa oficial, aquela que ecoa de dentro da instituição, que cria sua própria
autoimagem, que demarca os elementos centrais, personagens e eventos fundadores que

207
R.G.M., 2018. Narrativa de Rita Gregório de Melo, gravada no dia 03 de outubro de 2018, Fundação
Sebastião Mota de Melo, Rio Branco, Acre.
61
caracterizam a história da comunidade, no entrelaçamento com sua história pessoal, e o que se
diz e o que se silencia – ou o que se lembra e o que se esquece.
Em novembro de 2019, na sala da hospedaria da Fundação, eu tive a oportunidade de
ouvir o padrinho Alfredo falar sobre a Colônia Cinco Mil. Estava ele de passagem por Rio
Branco quando aceitou me receber para conversar um pouco. Apresentei a ele o projeto da
pesquisa em linhas gerais, e ele se pôs a falar. Não fiz intervenções. Fiquei atenciosamente
ouvindo aquele resumo costurado de 50 anos de história da Colônia Cinco Mil em 50 minutos
de narrativa de um dos pioneiros de sua formação. Depois de contar sobre a chegada da família
em Rio Branco e seus tempos de escola, narrou sobre o encontro com o Daime do Mestre Irineu,
a saída do Alto Santo, a construção de um projeto comunitário na Cinco Mil, o retorno para a
floresta. Seu relato é uma espécie de resumo de toda a história da Colônia Cinco Mil. Ali ainda
uma criança, Walfredo “nascido Walfredo e registrado Alfredo por um engano do cartório”208,
chegou junto de seu pai, sua mãe e seus irmãos. E assim ele iniciou sua narrativa: “É uma
história de vários anos. Mas foi isso...”.209
Francisca Corrente (1946-) é uma das filhas de Manoel Corrente e dona Maria. A
família dos Correntes acompanhou Sebastião em todo o percurso, desde a saída do Alto Santo,
depois da Cinco Mil para o Rio do Ouro e a fundação da Vila Céu do Mapiá. Em agosto de
2022, numa passagem pela Colônia Cinco Mil, quando ficou hospedada na casa de seu filho
Aluízio, pude começar a conversar com ela, que é uma das anciãs e madrinha do Céu do Mapiá.
Esteve na minha casa muitas vezes e conversamos sobre diversos temas em diferentes ocasiões.
Lembrou da convivência com Percília Matos no tempo da Cinco Mil, e muitos outros aspectos
relacionados às histórias da doutrina, os saberes da floresta, o pensamento crítico desde dentro
da irmandade – que como eu entendi caminhando com ela, é sempre uma autocrítica.
Francisca é uma narradora detalhista e de excelente memória. Tocou em diversos outros
assuntos, e sempre com um olhar muito lúcido para as contradições e as relações de poder que
se apresentam como desafios da vida cotidiana e institucional nas comunidades fundadas por
Sebastião – e administradas por sua família -, as quais a família Correnre dedicou-se por
extensos anos e ainda se dedica, os filhos, netos e bisnetos. Na sua companhia, entendo que
“quando eu falo deles, estou falando de nós, de mim, que eu também sou parte.”210

208
ASSIS, 2017, p. 85.
209
A.G.M., 2019. Narrativa de Alfredo Gregório de Melo, gravada no dia 11 de novembro de 2019, Fundação
Sebastião Mota de Melo, Rio Branco, Acre.
210
F.C., 2022. Narrativa de Francisca Corrente, gravada no dia 25 de agosto de 2022, Residência na Vila
Carneiro, Rio Branco, Acre.
62
José Teixeira de Souza (1944-), acreano de Tarauacá, filho mais velho de Wilson
Carneiro e Zilda Teixeira, é um dos mais antigos seguidores desta primeira geração da Colônia
Cinco Mil, da qual anda um pouco afastado ultimamente por somar “algum desgosto”, mesmo
assim, ainda é reconhecido pelo grupo como “membro da velha guarda da Colônia.” Ainda
jovem teve graves problemas de saúde mental que levaram seus pais a buscarem todos os tipos
de ajudas médicas e espirituais disponíveis naquele contexto. Foi assim que Wilson e Zilda
chegaram ao Alto Santo e no Daime do Mestre Irineu, onde José Teixeira recebeu sua cura.
Trabalhou com diversos ofícios, cortou seringa, morou muitos anos em Manaus onde
foi de madeireiro a trapezista de circo. Retornando a Rio Branco, ajudava o pai no comércio e
também tornou-se funcionário da prefeitura como motorista, profissão na qual se aposentou.
Lúcio Mortimer, que foi um dos primeiros andarilhos a chegarem na Colônia Cinco Mil em
1975, e teve uma longa convivência com Sebastião e seus seguidores, publicou em 2000 o livro
intitulado “Bença, Padrinho!”, um clássico da chamada literatura daimista, se refere a José
Teixeira como “o motorista dedicado, (...) Carretel para os mais íntimos.”211 Diz-se que o
apelido era porque ele tinha uma aparência muito magra, outros dizem que era porque ele vivia
na correria, resolvendo as coisas. Casado com Neucilene, sua narrativa conta a história de
errância como trabalhador destas Amazônias, seu encontro com o Daime e um pouco de sua
vivência na Colônia Cinco Mil. Foi gravada no dia 16 de janeiro de 2021, no dia do seu
aniversário. “Rapaz, como é que eu cheguei no Daime é uma história muito longa(...)”212
Raimundo Nonato Teixeira de Souza (1949-), acreano de Tarauacá, é filho de Wilson
Carneiro e Zilda Teixeira. Chegou na doutrina tinha 13 anos em 1962, acompanhando seus pais
nos trabalhos no Alto Santo e, posteriormente, na Cinco Mil. Casou-se com Maria das Graças
com quem teve seis filhos, foi comerciante por muitos anos, inclusive ajudando na criação de
um mercadinho na Cinco Mil da década de 1970. Dirigiu os trabalhos na Colônia Cinco Mil de
1990 a 1997. Desde 1998, é o dirigente do Centro Pronto-Socorro, que foi entregue a seu pai
Wilson Carneiro pelo mestre Irineu, e onde se faz os trabalhos de cura da Linha de Arrochim,
localizado a 1 km da sede da Cinco Mil. Agricultor, liderança comunitária e exímio feitor, viaja
por diversos centros do Brasil onde possui afilhados que aprendem com ele a arte/ciência do
feitio do Daime e ajudam a zelar seus hinários “O Peregrino”, com 142 hinos, e “Aconteceu”,
ainda aberto com mais de 40 hinos.

211
MORTIMER, 2000, p. 183.
212
J.T.S., 2021. Narrativa de José Teixeira de Souza, gravada no dia 16 de janeiro de 2021, residência no Bairro
Alto Alegre, Rio Branco, Acre.
63
As narrativas de Nonato relembram momentos da construção da comunidade, fortes
passagens na época dos trabalhos com Sebastião, entre outros tópicos como sua entrada e saída
da administração de Cinco Mil. Foram gravadas em duas diferentes ocasiões, em abril de 2019
quando nos reunimos na Casa de Feitio do Pronto-Socorro em Rio Branco, Acre, e em maio de
2022 na varanda de sua casa. Ele iniciou dizendo: “Vamos começar saindo lá do Alto
Santo...”.213
Maria das Graças Nascimento (1950-) nasceu em Xapuri, e além de dona de casa,
aposentada como agricultora é jardineira, colecionadora de um vasto repertório de plantas e
flores ornamentais e recebeu um hinário chamado “A flor que desabrochou”, com 38 hinos,
entre os anos de 1978 e 1979. Liderança comunitária, também possui afilhados espalhados pelos
centros do Brasil por onde passaram. A narrativa de Maria das Graças foi difícil de fazer
acontecer. Mesmo tendo uma relação de mais proximidade — e talvez por isso mesmo — ela
demorou a se dispor a participar, pois como ela mesma disse: “São mais de 40 anos morando
neste estirão, daqui pra lá, de lá pra cá, mas nesta Cinco Mil é tanta coisa, tanta história, que
um ‘bucado’ de coisa eu já esqueci.”214 As narrativas de Graça foram gravadas em setembro
de 2022, no gramado da casa da minha vizinha, que é o ponto de encontro na Vila Carneiro, ela
narrou sobre a vivência na comunidade, as transformações que viu acontecer ao longo do tempo,
as divergências, bem como a importância e o sentido do Daime na sua vida.
Neucilene de Souza Santos (1955-2021), amazonense de Boca do Acre, chegou na
Doutrina do Daime em 1974 ainda no Ciclu–Alto Santo acompanhada do marido José Teixeira,
tendo seguido logo com o padrinho Sebastião na sua saída. Desde então, segue os trabalhos de
Daime na Cinco Mil, sendo responsável durante muitos anos pela abertura dos hinários com o
terço, por puxar os hinos, pois sempre foi uma grande cantora da doutrina. Quando Sebastião
realizou a mudança da comunidade para o Rio do Ouro e, posteriormente, para o Mapiá,
Neucilene ficou com toda a família de Wilson Carneiro, seu sogro, responsável pela
manutenção dos trabalhos na Cinco Mil. Durante muitos anos foi uma das responsáveis pela
abertura dos hinários com o terço, rezado geralmente às 6 horas da tarde, por puxar os hinos,
zelar os fundamentos e sempre foi uma potente e alegre cantora e estudiosa da doutrina.
Ajudou muitas pessoas do Céu do Mapiá quando vinham resolver problemas na cidade,
como aposentadorias etc. Trabalhou como merendeira de escola muitos anos, como se

213
R.N.T.S. 2019. Narrativa de Raimundo Nonato Teixeira de Souza, gravada no dia 29 de abril de 2019, Casa
de Feitio do Pronto-socorro, Rio Branco, Acre.
214
M.G.N., 2022. Narrativa de Maria das Graças Nascimento, gravada no dia de setembro de 2022, Residência
na Vila Carneiro, Rio Branco, Acre, 2022.
64
aposentou. Teve dois filhos e uma filha com o companheiro, e criou mais uma, uma neta como
filha. Suas narrativas foram gravadas em vários momentos e situações, em maio de 2020 na
varanda da sua casa na cidade de Rio Branco, Acre, e por mensagens de WhatsApp, entre junho
e setembro de 2020. Suas falas sobre temas variados iam sendo motivadas por minhas várias
perguntas, soltas e espaçadas. Eu tinha uma relação de amizade próxima com a Neucilene, que
chamava de tia Neu, pelo parentesco dela com meu companheiro. Muitas das histórias que ouvi
foram em situações cotidianas de visitas, onde o gravador não estava presente. Ainda assim,
consegui fazer os registros aqui trazidos antes de sua despedida. Desde que foi diagnosticada
com graves tumores, Neucilene lutou bravamente, sem perder a alegria, mostrando-se forte no
enfrentamento do difícil tratamento.
Minha estimada amiga e professora fez sua passagem no dia 27 de janeiro de 2021.
Contribuiu muito com esta pesquisa, sempre muito sincera e importante incentivadora.
Preencho-me com as boas lembranças de sua voz potente, seu espírito alegre que cantava como
os passarinhos e agradeço pelas palavras que nos presenteou para compor este estudo. Ela
amava muito a Cinco Mil, ou como ela gostava de falar, “Ih, essa história é longa... deixa eu
te dizer até onde eu sei...”215
Em meados da década de 1970 começaram a chegar os primeiros hippies e andarilhos
na Cinco Mil e um deles foi o mineiro ouro-pretano Maurílio José Reis (1954-), que tendo se
casado com Maria Gregório (1957-), uma das filhas de Sebastião e Rita, assumiu a
administração da Cinco Mil entre os anos de 1984-86 e 1999-2019. Maurílio saiu da diretoria
do Cefluwcs em 2019 e Maria Gregório assumiu a presidência do centro, sendo a primeira
mulher a comandar a instituição. O relato de Maurílio durou mais de 2 horas e foi gravado em
maio de 2022, na casa em que estava hospedado de passagem por Rio Branco. Seu relato falou
sobre a chegada da Santa Maria na comunidade, como foram fortes seus primeiros trabalhos na
Cinco Mil, como foi receber a Colônia de seu Wilson quando ele estava perto de fazer a
passagem, muitas histórias. O relato de Maria Gregório foi mais sucinto, mas ela participou da
pesquisa. Preferiu escrever do que falar e mandou por aplicativo de mensagens algumas de suas
lembranças de quando iniciou a expansão do daime para o Japão, entre outras impressões sobre
a Cinco Mil do tempo-hoje.

215
N.S.S., 2020. Narrativa de Neucilene de Souza Santos, gravada no dia 19 de maio de 2020, residência no
bairro Alto Alegre, Rio Branco, Acre, e entre os dias 4 de junho até 29 de setembro de 2020, por mensagens de
áudio no aplicativo WhatsApp.

65
Ele narrou que também gostaria de escrever um livro, contar a versão dele dos
acontecimentos narrados por seu conterrâneo Lúcio Mortimer, com quem chegou na Cinco Mil
e cujo texto até hoje é uma referência para esta irmandade. “Aí que veio a história da Santa
Maria que eu tô doido pra escrever essa história da Santa Maria, que é o depoimento do povo
que usou Santa Maria...”.216
Marinês Morais (1962-), acreana de Rio Branco, é moradora da comunidade desde
criança, filha de Manuel Morais um dos primeiros que vieram a se juntar com padrinho
Sebastião na Colônia Cinco Mil. Acompanhou seu pai com seus irmãos e irmãs, seguindo com
o padrinho Sebastião nos primeiros anos do Rio do Ouro e do Céu do Mapiá, onde morou
muitos anos e atuou como professora na comunidade. Moravam metade do ano na Cinco Mil e
outra metade na França, com seu marido Claude Bauchet (1947-). Foi em setembro de 2019
na varanda da casa de Marinês e Claude, na Colônia Cinco Mil, que tive a oportunidade de
ouvi-los, acompanhada do meu filho Francisco de 2 anos na época e do pai dele. Estavam se
preparando para nos dias seguintes retornarem à Europa.
Na varanda desta aconchegante casa, que fica próxima ao cemitério da comunidade e ao
lado de um dos açudes da Cinco Mil, com um belo pôr do sol que ornou o final da tarde,
apresentei a eles o projeto de pesquisa em linhas gerais e me pus a ouvi-los. Enquanto escutava
Claude, Marinês cuidava de algumas coisas até o momento em que me ofereceu um café e
chegou mais perto. Não demorou muito, pus-me a ouvi-la. Seus relatos trazem memórias de
sua infância, de quando conheceu o Daime — e a miração — ainda criança acompanhando os
pais nos trabalhos no Alto Santo. Fala de um tempo que a Cinco Mil estava em construção e
ela crescia junto com a comunidade. Expõe algumas das dificuldades enfrentadas pela sua
família neste processo de mudança para a floresta, as perdas e ganhos na saga da Cinco Mil
para o Rio do Ouro e depois para o Mapiá, suas impressões sobre a Cinco Mil do tempo-hoje.
Ela iniciou, gentilmente, me encorajando na trajetória da pesquisa: “Que bom que tem outros
afirmando a história. Assim... reafirmando a história do Padrinho Sebastião, a doutrina. É o
que eu tenho pra contar… eu comecei de nova. Bem jovenzinha, né!? Comecei bem jovem...”.217
Após uma reunião realizada semanas antes, quando eu aproveitei a oportunidade para
comunicar aos membros do Cefluwcs que estava iniciando a pesquisa e que contava com a
participação daqueles que quisessem e pudessem colaborar, ele logo se prontificou. Lembro

216
M.J.R., 2022. Narrativa de Maurílio José Reis, gravada no dia 18 de maio de 2022, Residência no Bairro
Raimundo Melo, Rio Branco, Acre.
217
M.M., 2019. Narrativa de Marinês Morais gravada no dia 10 de setembro de 2019, na residência na Colônia
Cinco Mil, Rio Branco, Acre.
66
que Claude foi o primeiro morador da Cinco Mil que se dispôs a participar da pesquisa. Parecia
muito empolgado com a possibilidade de narrar sua história e tão logo pus-me muito empolgada
a ouvi-lo. Era o primeiro trabalho de campo oficial da pesquisa.
Claude chegou na Cinco Mil pela primeira vez em 1998, retornou em 2002, quando
passou a frequentar com mais assiduidade, até conseguir fazer sua casa. Sua narrativa traz um
pouco de como ele conheceu a Ayahuasca no Peru, posteriormente o Daime, e de sua luta com
a justiça francesa, os argumentos da defesa, um pequeno panorama do cenário do Daime na
Europa. Também faz sua leitura sobre a comunidade da Cinco Mil nos dias de hoje. Claude e
Marinês eram o que poderíamos chamar de moradores sazonais: moravam metade do ano na
Cinco Mil e outra metade na França. Porém, desde 2020, Claude encontra-se impedido de sair
da França, enfrentando uma batalha com a justiça francesa pelo direito à liberdade religiosa e
consagração da Ayahuasca em seu país, onde a prática vem sendo criminalizada. “Bom a minha
batalha na França...”218
Quem também ouviu primeiro falar de Ayahuasca, e depois de Santo Daime, vindo bater
aqui na Colônia Cinco Mil ainda no final da década de 1970, foram os narradores Flaviano e
Túlio. Flaviano Schneider (1951-) é capixaba e morador da Colônia Cinco Mil, onde chegou
em 1977, no movimento dos primeiros andarilhos e suas buscas pelas plantas professoras.
Desde lá, saiu e voltou para a Cinco Mil várias vezes. Viajou pelas aldeias indígenas no Acre,
pelo Peru, retornou à Cinco Mil na época do padrinho Wilson, foi para o Céu do Mapiá, depois
morou alguns anos no Espírito Santo, trabalhou mais alguns como jornalista em Cruzeiro do
Sul – AC até seu retorno à Cinco Mil, onde reside com a esposa Maria Garibaldi desde 2000.
Maria, acreana nascida em 1956, também faz uma breve narração no capítulo sobre a chegada
dos andarilhos e dos usos de cogumelos mágicos.
Flaviano é membro da atual diretoria da Cinco Mil, no cargo de secretário, tem sido uma
importante referência na atualidade por ser um dos mais antigos moradores e seguidores da
irmandade. Tem se comprometido com a abertura e fechamento dos trabalhos, com a realização
das missas das almas e com o cumprimento do restante do calendário do Daime. Sua narrativa,
além de descrever esta trajetória de deslocamentos, relembra suas vivências na Colônia da
época do padrinho Sebastião, de quando foi professor na escola da localidade, das suas
experiências com o Daime e suas interpretações sobre o que é a Nova Jerusalém e o ideal de
vida comunitária.

218
C.B., 2019. Narrativa de Claude Bauchet gravada no dia 10 de setembro de 2019, Residência na Colônia
Cinco Mil, Rio Branco, Acre.
67
Foi em julho de 2020 na varanda de sua casa na Colônia Cinco Mil, em Rio Branco,
Acre, que mantendo uma distância de segurança, ficamos a conversar naquela tarde. Havia
levado meu filho Francisco, de 3 anos recém-completos, para brincar com seu neto, o Pedro de
4 anos, filho do também professor, amigo e pesquisador da Colônia Cinco Mil, Rodrigo
Monteiro com Flávia Schneider. Ao som da criançada animada que se divertia, Flaviano parecia
estar motivado a contribuir com a pesquisa e narrou sobre as rixas e divisões que configuram a
organização socioespacial da comunidade. Foi logo perguntando: “Qual o tema central seria?”,
e a partir daí, pôs-se a falar: “É que fica meio complicado aqui na Cinco Mil, porque na época
do Padrinho Sebastião era uma coisa, né? Agora é outra completamente diferente!”219
Túlio Cícero Viana (1957-) é mineiro também da cidade de Ouro Preto, e atualmente
mora em Goiânia. Escreveu suas vivências na comunidade durante os anos de 1978-1981 no
livro “O consagrado defensor”, no qual narra as histórias de um ponto de vista problematizador
e crítico, que ecoava de parte da turma dos trabalhadores, do roçado. As narrativas do Túlio
sobre seu retorno à Cinco Mil de 1982 a 1984 foram gravadas em abril e maio de 2021 por
mensagens de aplicativo de mensagens no celular. Na companhia destes relatos inéditos do
“consagrado defensor”, produz-se linhas narrativas de um tempo em que a Cinco Mil era o
centro da expansão do Daime e faziam-se numerosos feitios para abastecer as comunidades que
tentavam refundar a vida na floresta e os novos centros que foram surgindo em outras regiões
brasileiras. Ele iniciou assim: “Isso aqui não é fácil. [risos] Fiz uma gravação que eu acabei
de jogar no lixo, porque eu fiquei meio perdido. É... Isso aí que ‘cê começou me falando, né?
Nós ‘chegamo’ no calor da confusão... Exatamente! Então, é...”220.
Da turma antiga que chegou na Cinco Mil ainda nos anos 1970-80, e está aqui até hoje,
apresento também o casal João e Átila. João Alberto Soares da Silva (1962-) chegou na
Colônia Cinco Mil com 17 anos, em 1979. Nem a mãe nem o pai tomavam Daime, ele foi o
único em sua família a seguir na doutrina. Narra como chegou no Daime e passou a frequentar
a Cinco Mil na companhia de seus vizinhos, seu Nabor e dona Ilma, pais do seu amigo, e antigos
fardados. João casou-se com Átila, tiveram 6 filhos, já vários netos e netas, e todos estes anos
o casal acompanhou e ajudou os dirigentes que passaram pela Cinco Mil. Com a saída do
Maurílio, João é o feitor responsável pelo preparo de Daime na Cinco Mil há alguns anos. No
meio de uma tarde, em maio de 2022, sentamos na varanda da sua casa na Colônia Cinco Mil,

219
F.S., 2020. Narrativa de Flaviano Schneider gravada no dia 28 de julho de 2020, residência na Colônia Cinco
Mil, Rio Branco, Acre.
220
T.C.V., 2021. Narrativa de Tulio Cícero Viana gravada entre os dias 27 de abril à 01 de maio de 2021 por
mensagens de aplicativo de mensagens de Whatszapp.
68
no espaço que chamam de ilha, pois é circundado por um açude e tem aos fundos o Igarapé
Redenção – e ilhados ficam na alagação. Ele começou contando como conheceu o Daime: “Eu
morava na rua, né? Eu morava na cidade, eu tinha dezessete anos. Aí tinha um vizinho lá, que
vinha aqui, já tomava Daime aqui com o padrinho Sebastião, nós morava perto!”221
João Poeira, como é mais conhecido, conta da relação muito estreita que as comunidades
da Cinco Mil e do Mapiá mantiveram principalmente ao longo da década de 1980, quando se
faziam grandes feitios, mandava-se alimentos e produtos industrializados da colônia para a
floresta. A Cinco Mil foi uma ponte entre a cidade e as vilas abertas nos antigos seringais,
servindo também de pouso e estadia durante as idas e vindas feitas pelos moradores, desde o
Rio do Ouro ao Mapiá. Seu relato também evidencia muito a convivência com padrinho Wilson.
Não consegui gravar a Átila Rufino, mas sentamos e conversamos em diversos momentos, de
modo que ela foi uma das incentivadoras e também partilhou narrativas, as quais trago alguns
ecos ao longo do texto.
Aluízio Figueira da Silva (1965-), nascido no Amazonas, filho de Pedro Figueira e
Francisca Corrente, cresceu e passou parte da juventude no Céu do Mapiá, tendo se mudado
para a Cinco Mil quando se casou com uma das netas de Wilson Carneiro, Rejane Nascimento,
em 1989, com quem teve 3 filhos, e vive até hoje na localidade. Seu relato expõe uma certa
revolta de parte da sua família para com os rumos da administração das comunidades fundadas
por Sebastião Mota, principalmente no que toca o incentivo à produção de uma vida
autossustentável, agricultura, floresta e a partilha igualitária dos recursos financeiros para
construção do bem coletivo. Segundo seu relato, o que se viu foi a criação de alguns clãs
privilegiados e uma periferia empobrecida.
Aluízio estava servindo o almoço quando passei na casa dele. Era no final do mês de
agosto de 2020. Em plena pandemia, na Colônia Cinco Mil, como em muitas comunidades
rurais, vigorou a arriscada lógica dos “isolados coletivamente”. Pedi que ele participasse da
pesquisa e ele pôs-se a falar... “Sou do tempo antigo, do começo da história... É, Júlia, muita
história que tem.... eu sei disso porque eu acompanho essa história desde que tenho oito, nove
anos. Comecei a tomar Daime lá no Mestre Irineu, ainda no Alto Santo.”222
Assim como ele, muitos dos narradores destes tempos antigos fazem questão de dizer
que começaram lá no mestre Irineu, no sentido de afirmar uma ligação com uma origem, uma

221
J.A.S.S., 2022. Narrativa de João Alberto Soares da Silva gravada no dia 18 de maio de 2022, Residência na
Colônia Cinco Mil, Rio Branco, Acre.
222
A.F.S., 2020. Narrativa de Aluízio Figueira da Silva gravada no dia 28 de agosto de 2020, Residência na Vila
Carneiro, Rio Branco, Acre
69
relação de continuidade na descontinuidade com a sede fundada no Alto Santo. Marizete
Auxiliadora Siqueira da Silva (1964-), acreana, moradora da Cinco Mil desde a infância,
chegou à Colônia com sua mãe e outros irmãos, e frisou que sua mãe também “começou lá no
padrinho Irineu.”. Morou com a madrinha Júlia na Cinco Mil quando ainda era moça, mas
segundo ela mesma disse, demorou para se interessar pelo Daime. Com o tempo se descobriu
uma exímia cantora da doutrina e passou a dedicar-se ao estudo. Seguindo os passos da mãe, já
na década de 1990, Marizete foi professora na Cinco Mil, época em que chegou a funcionar
duas escolas públicas na comunidade, uma do estado e outra da prefeitura. Voltou para a cidade,
cursou a graduação em Pedagogia numa turma especial aberta na Universidade Federal do Acre
para os professores que atuavam sem diploma. Desde 2000 e pouco, retornou à Cinco Mil como
moradora, onde vive numa casa com o marido Roberto Morais (irmão de Marinês), o filho mais
novo, a nora e o neto.
Gravado em junho de 2020 no terreiro da casa dela, à beira de um filete d’água que vai
de encontro ao igarapé Redenção na Colônia Cinco Mil, em Rio Branco, Acre, estávamos
sentadas num banco de madeira e comentávamos o fato de que seríamos, em breve, vizinhas,
pois meu lote, que nesta época a gente começava a limpar para iniciar a construção da casinha,
dá de fundo com o fundo do dela. Daí eu propus algumas questões iniciais e pus-me a ouvi-la,
que contou bastante de suas histórias, tendo ao fundo o canto de pássaros e o chacoalhar dos
ventos nas folhas. Sua narrativa fala da trajetória de sua mãe e irmãos no Daime, seu
aprendizado como cantora na força do Daime, dos desfiles que se fazia no 7 de setembro, as
brigas e desentendimentos que envolveram sua atuação na escola e outros pormenores de sua
vivência na comunidade. “Quando nós começamos a entrar no Daime, minha mãe começou lá
no Padrinho Irineu, né? Nós era tudo criancinha, minha mãe começou lá...”.223
Lourival Bento Aleixo (1962-), sul mato-grossense, chegou na Colônia Cinco Mil
acompanhado de sua mãe e outros irmãos em 1979. Chegou a ir para o Rio do Ouro com sua
família, mas retornou e estabeleceu morada por muitos anos na Colônia Cinco Mil, onde ajudou
diversas administrações. Pai de duas filhas e avô de várias netos e netas, hoje é dirigente de um
núcleo do Daime em outra região de Rio Branco, denominado Casa São Bento, onde realiza
feitios e é reconhecido como exímio feitor nos circuitos ayahuasqueiros do sudeste. Como gosta
de dizer, ainda tem o “seu setor” lá na Cinco Mil, onde mora sua ex-mulher, uma ex-cunhada e
uma de suas filhas com a família.

223
M.A.S.S., 2020. Narrativa de Marizete Auxiliadora Siqueira da Silva gravada no dia 26 de junho de 2020,
Residência na Colônia Cinco Mil, Rio Branco, Acre.
70
Os diálogos com Lourival aconteceram entre junho e julho de 2020, em vários
momentos e por mensagens de Whatzapp, devido ao contexto de isolamento imposto pela
pandemia covid-19. As mensagens ficaram gravadas e foram transcritas. Seu relato aborda
como se dava a expansão do Daime no início, quando Sebastião começa a distribuir as primeiras
garrafas. Narrou sobre a vivência na comunidade, sua contribuição para a Cinco Mil, os amigos
que ali fizera, os motivos que o levaram a se separar e montar um centro independente.
Começou assim “O que eu posso dizer, e ajudar um pouco, é que...”224
Marinez Rodrigues (1961-), acreana de Rio Branco, formada em História na Ufac,
chegou na Colônia Cinco Mil no início dos anos 1980 acompanhada de outros jovens e amigos
da universidade. Marinez casou-se com Feliciano, um antigo seguidor do padrinho Sebastião,
é mãe de três filhas e um filho, e atualmente é a liderança feminina da Colônia Luau, uma
dissidência dentro da Cinco Mil. Desenvolve projetos para a comunidade ligados ao turismo de
base comunitária. Enfrenta conflito por conta das controvérsias em relação a posse e os limites
das terras da Cinco Mil, onde a Luau hoje configura-se uma espécie de enclave.
Certa vez que fui em sua casa, Feliciano me narrou toda a sua história, mas eu não o
gravei naquele dia. Para minha sorte, encontrei uma detalhada entrevista na qual ele conta muita
coisa da sua relação com o Daime e a Cinco Mil. Ele nasceu em um seringal em Xapuri, teve
muitos irmãos e veio para Rio Branco com seis anos, onde a mãe e o padrasto trabalhavam
como agricultores. Aos 10 anos saiu de casa por não ter uma boa convivência com o padrasto,
e depois de passar um tempo na casa de uma irmã, aos 12 anos pediu para viver com aquele que
na época atendia como seu Sebastião. Feliciano narrou: “Cheguei lá, Seu Sebastião estava na
janela assim, digo: ‘E aí, Seu Sebastião, o nosso negócio?’, ele disse: ‘Está em pé, está aqui,
seu armador é esse aqui’”.225
Feliciano Silvia conheceu o Daime na Colônia Cinco Mil nos idos da década de 1970,
e na década de 1980, quando Sebastião com um grupo de aproximadamente 48 famílias
decidiram sair da zona rural de Rio Branco em direção à floresta para o Rio do Ouro, e
posteriormente para o Céu do Mapiá, Feliciano acompanhou o grupo. Foi um trabalhador ativo
no processo de abertura das matas, primeiros plantios, colaborando para a fixação das famílias
nas novas terras. Circunstâncias da vida trouxeram Feliciano novamente para a capital acreana,
onde fixou moradia na Colônia Cinco Mil, com sua mãe dona Elza e, posteriormente, com sua
esposa e filhos.

224
L.B.A., 2020. Narrativa de Lourival Bento Aleixo gravadas nos dias 27 de junho de 2020 à 29 de julho de
2020, em vários momentos e por mensagens de Whatszapp.
225
F.S.F., Narrativa de Feliciano Silva de Freitas ouvido em 2022.
71
A narrativa com Marinez foi a primeira gravada por ocasião deste estudo. Era dia 26 de
novembro de 2018 e o projeto para concorrer no edital de seleção do doutorado ainda estava
em elaboração. Havia preparado uma apresentação para um evento acadêmico sobre os
trabalhos de pajelança na Cinco Mil, que tinha como foco os trabalhos na Luau. Fui conferir
algumas informações numa visita à casa de Marinez e Feliciano no bairro do Bosque em Rio
Branco, os responsáveis por estes trabalhos. Queria avisá-los deste meu ensaio introdutório e
perguntar o que achavam da ideia de fazer a pesquisa mais ampla sobre a Cinco Mil. Aproveitei
a ocasião, para iniciar o registro das narrativas. E foi assim que, na sala da casa, ficamos a
conversar.
Ela relembra os tempos da sua chegada, ainda jovem, no Daime, a força dos trabalhos
daquela época, a convivência com os padrinhos e madrinhas, e os motivos que levaram à criação
da Luau, como coletivo de arte-cura que realiza aproximações do Daime com a pajelança
indígena, encantarias, experiências com as medicinas da floresta, sagrado feminino, inclusive
mulheres realizando o feitio do Daime. “Eu comecei ouvindo as rodas, né?”226
Cristina Profeta (1955-), nascida em São Paulo, foi artesã, frequentadora da Colônia
Cinco Mil desde a década de 1980, hoje residente no Rio de Janeiro. É também mãe, avó,
naturalista e daimista. Tem um sítio bem próximo à Cinco Mil, que já atendeu como hospedaria
para adeptos do Daime, funcionou uma oficina de artesanato, que cheguei a visitar em 2008.
Cristina Profeta foi uma das primeiras daimistas da Colônia Cinco Mil que eu conheci quando
cheguei no Acre em 2008, quando visitei uma loja de artesanato que funcionava no antigo
Mirashopping, prédio na região central de Rio Branco. Não demorou muito, conheci sua história
por outras fontes, como um dos relatos de cura ali presenciados.
Gravados entre os dias 26 de junho de 2020 e 11 de julho de 2020, em vários momentos
por mensagens de WhatsApp, sua narrativa cheia de emoção conta-nos de sua busca espiritual
como andarilha do mundo, pessoa que enfrentou graves doenças, suas aventuras pela Amazônia
até chegar ao Acre, seu encontro com o Santo Daime na Colônia Cinco Mil e sua trajetória de
cura ao lado do padrinho Sebastião, do padrinho Wilson e tantas irmãs-amigas como dona Elza.
Faz um tempo que ela se mudou de Rio Branco, e entrei em contato pelo aplicativo,
aproveitando os preparativos de comemoração do centenário do padrinho Wilson Carneiro, em
julho de 2020. Preparava, nesta ocasião, um vídeo com um conjunto de depoimento de pessoas
que conviveram com ele e aproveitei para convidá-la para participar da pesquisa. A participação

226
M.R., 2018. Narrativa de Marinêz Rodrigues gravada no dia 26 de novembro de 2018, Residência no Bairro
do Bosque, Rio Branco, Acre.
72
dela no vídeo não deu certo, mas o relato de sua vivência ela enviou. “Boa tarde, Júlia, por
agora eu vou dar o depoimento só falando, tá bom?”227
Ladislau Nogueira (1948-), acreano de Sena Madureira, foi um discípulo do mestre
Irineu que chegou no Alto Santo no ano de 1967 e que gentilmente aceitou o convite para
participar da pesquisa, sendo também um dos narradores neste estudo. Ele é dirigente de um
dos núcleos de Daime localizados no bairro/vila Irineu Serra, o Ciclujur, fundado em 1994. Ele
foi um dos que acompanharam Percília Matos na vinda para a Cinco Mil, ajudando Sebastião a
levantar os trabalhos no novo centro até 1977. Nos encontramos na varanda de sua casa em Rio
Branco numa manhã de abril de 2022. Ele narrou sobre sua amizade com Sebastião, que
perdurou mesmo após a saída do Alto Santo e sua ida para a floresta.
Thalis Barduzzi (1957-2022), chegou à Amazônia acompanhando sua mãe no final da
década de 1970. Na Colônia Cinco Mil, Thalis fez alguns amigos e frequentou alguns trabalhos,
mas não se fardou. Conheceu Sebastião, seu projeto comunitário e vislumbrou que poderia com
ele tecer parcerias, uma vez que sua mãe era dona de grandes espaços de terra na Amazônia,
em uma área de floresta densa, e precisava de ajuda para ocupa-las. Nesta viagem, que
aconteceu em janeiro de 1980, a comitiva de Sebastião viajou com Thalis, sua mãe e seu irmão,
para conhecer as terras no Rio Ituxi. Entrei em contato com ele através do Túlio por mensagens
em aplicativo e ele se dispôs a participar da pesquisa, narrando suas lembranças em outubro de
2021. Através das redes sociais soube que aproximadamente 1 ano depois de nosso “encontro
às distancias”, Thalis Barduzzi fez sua passagem, e pela sua partilha nessa pesquisa serei
eternamente grata.
Desta colheita de novos jardineiros da doutrina, que chegaram na Colônia Cinco Mil
nos anos 2000 em diante, poderíamos citar muitíssimos nomes. Alguns ficaram um tempo e
partiram de volta à estrada, outros estabeleceram-se no Céu do Mapiá, alguns aqui fincaram
suas raízes. Pela extensão do percurso traçado, limito-me a apresentar a argentina que vive no
Chile, Noélia Contrans (1987-) que participou como narradora e é um exemplo destes novos
visitantes, destes que vão e voltam com alguma periodicidade. Chegou pela primeira vez em
2014. Seu relato situa seu não planejado encontro com o Daime, que por sua vez lhe apresenta
a espiritualidade e uma nova forma de ver o mundo. Sua narrativa foi produzida em uma tarde
na qual ela me visitou em dezembro de 2020.

227
C.P., 2020. Narrativa de Cristina Profeta gravada entre os dias 26 de junho de 2020 à 11 de julho de 2020, em
vários momentos por mensagens de Whatszapp.
73
Também conversei mais informalmente com Luzia Schneider (1985-), Raimundo
Nonato Junior (1982-), Wilsiane Santos (1977-) que nasceram na Cinco Mil dos anos 1970-
80, entre outros moradores ou frequentadores como Francisca Arlene (1956-), mineira de Belo
Horizonte que chegou na Cinco Mil ainda nos anos 1980 e Gecila Teixeira de Souza (1951-),
filha de Wilson e Zilda, moradora e madrinha no Céu do Mapiá.
G. Albuquerque comentou que a oralidade vem perdendo força nas comunidades
ayahuasqueiras desde a inserção da linguagem escrita – “a palavra escrita com suas
racionalidades e narrativas ‘congeladas’, seus estatutos científicos e ordenamentos sociais
racionalistas.”228 Macrae e Moreira observaram que os adeptos mais antigos do Daime em Rio
Branco não sentem

a necessidade de ter a história de seu fundador escrita. Não por mera recusa
ou dogmatismo. Apenas porque, no caso da vida de Mestre Irineu, ela é tão
metafórica quanto existencial, tão mítica quanto histórica — tão inerente ao
cotidiano, à cultura local, e, ao mesmo tempo, ao universo do extraordinário e
do religioso — que torna qualquer outro tipo de explicação insuficiente ou
dispensável.229

Contar histórias é sempre uma construção do passado que acontece no presente e que
ressoa de um lugar, de determinados corpos e vozes que enunciam suas lembranças. Ainda que
a oralidade seja, por excelência, a forma de transmissão do repertório de hinos e histórias no
Daime, cada vez mais o texto e o documento escrito têm sua importância neste movimento de
registrar e salvaguardar as lembranças dos antigos, aqueles que conviveram “no tempo dos
padrinhos” e estão aos poucos se despedindo dos mais novos.
Mesmo afirmando que o saber do Daime é um saber da experiência, ouvindo que fazer
pesquisa, falando do passado que já passou, não se sabe se vai encontrar algo de valor — até
porque bem vive quem foca no momento presente, e a escrita por si só, também não garante a
preservação de nenhum saber — acredito que conhecer, problematizar e contar as istórias do
lugar onde vivemos ajuda-nos a entender como estamos hoje, como irmandade do Daime e
comunidade do padrinho Sebastião no contexto das culturas ayahuasqueiras em Rio Branco,
que continua atraindo muitos visitantes de várias partes do Brasil e do mundo em busca das
tradições e de experiências com os ritos, festejos e plantas professoras ali consagradas.

228
ALBUQUERQUE 2016, p.124.
229
MOREIRA e MACRAE, 2011, p.30.
74
1.3 Primeiros escritos e a Cinco Mil como um tema (até 1980)

A Colônia Cinco Mil está longe de ser um tema inédito. São vários os textos nos quais
a Cinco Mil aparece como um capítulo introdutório, fase inicial na história do Daime do povo
do padrinho Sebastião, dentro de um panorama mais amplo sobre seu trabalho de expandir a
doutrina para o Brasil e o mundo, ao mesmo tempo em que fazia um movimento de retorno à
floresta. Depois disto, pouco ou quase nada se escreveu sobre a Colônia Cinco Mil. São poucas
as pesquisas e produções literárias que tem a Cinco Mil como tema central e, entre estas,
nenhuma sobre o que foi e tem sido a Colônia após a saída de Sebastião, os desdobramentos e
transformações socioespaciais neste território das culturas ayahuasqueiras em Rio Branco, Acre.
O Daime até 1980 foi fundamentalmente um campo de conhecimentos produzidos e
circulados por meio da oralidade e circunscrito nas fronteiras amazônicas. Ainda que alguns
textos escritos definissem normas rituais, alguns cadernos com as letras dos hinos copiados à
mão fossem usados, sobretudo pelas/os puxadoras, algumas revistas esotéricas e orações em
livros fossem acessadas ajudando a constituir os fundamentos filosóficos e ritualísticos, no geral
era de memória que se aprendiam as rezas, se cantavam os hinários, se transmitiam os saberes.
Era somente nas rodas de conversa que se conheciam as histórias da irmandade, e somente
vindo à Amazônia para se tomar o Daime.
Em todos estes pioneiros estudos da década de 1980, a Cinco Mil já aparecia como um
importante capítulo. São eles o do professor Clodomir Monteiro Silva230, o da historiadora Vera
Fróes231 e o do antropólogo Fernando La Roque Couto232. Seus trabalhos irão influenciar as
futuras produções textuais de várias formas, assim como o trabalho do antropólogo Edward
Macrae, intitulado “Guiado pela Lua: xamanismo e ritual da ayahuasca no culto do Santo
Daime”, publicado em 1992.
Silva é o autor da primeira dissertação de mestrado sobre o Daime, na área de
antropologia cultural, intitulada “O Palácio de Juramidam, Santo Daime: um ritual de
transcendência e despoluição”. Sobre a Colônia Cinco Mil, o autor considera que o lugar, apesar
de ter se formado da dissidência do Alto Santo, não guardava significativas diferenças à época
da pesquisa, e também ilustrava bem o que ele classifica como os Sistemas de Juramidam, pois
manteve-se “repetindo os mesmos rituais e doutrinas centrais” 233 fundadas por mestre Irineu.

230
SILVA, 1983.
231
FRÓES, 1986.
232
COUTO, 1989.
233
SILVA, 1983, p.64.
75
Já Fróes apresenta o mestre Irineu como o tronco genealógico da doutrina do Santo
Daime, salientando que, a partir dele, vão surgir vários centros como o Ciclu–Alto Santo por
ele fundado, a Casa de Jesus Fonte de Luz (posteriormente conhecida como Barquinha, do
mestre Daniel), entre outros nas colônias distantes do Alto Santo como o Cefluris na Colônia
Cinco Mil. Fróes destaca que a Cinco Mil tornou-se “o mais conhecido e procurado pela sua
proposta de vida comunitária, interpretando na ‘práxis’ os ensinamentos da doutrina de
Juramidam”234.
Silva sugere que em manifestações mágico-religiosas como o Daime a “música, dança,
transes extáticos e sonhos expressam, conduzem e produzem formas criativas de envolvimento
do corpo, arte, mente”235. Para ele, os grupos do Daime estudados são organizados “segundo
tradição mítica comum”, surgem e se desenvolvem como uma resposta à crise e às necessidades
impostas pelo novo contexto socioespacial concreto – a saída da floresta, dos seringais, a
reterritorialização no espaço rural-urbano das vilas e cidades em formação.
Fróes é uma jovem estradeira que chegou na comunidade ainda no finalzinho da década
de 1970, tornou-se pesquisadora e publicou o primeiro trabalho acadêmico sobre a Cinco Mil236.
Publicado com o título “História do povo de Juramidam: a cultura do Santo Daime”, o texto
tornou-se referência para grande parte dos estudos posteriores.237 É o trabalho acadêmico que
mais detalha a organização da vida comunitária da Cinco Mil daquela fase inicial. Fróes
mantém um estreito laço com a Iceflu apesar de morar no Rio de Janeiro, sendo uma das
pesquisadoras mais requisitadas pela instituição no que toca dialogar com o conhecimento
acadêmico, o que reforça a ideia de uma narradora que, desde dentro, produz uma espécie de
história oficial do “povo de Juramidam”, especialmente o “povo do padrinho Sebastião”. Nos
últimos anos, se dedicou a escrever sobre as comunidades da Iceflu criadas no vale do Rio
Juruá, na área conhecida como os Estorrões.
Fróes faz uso de alguns conceitos para descrever o Santo Daime que ficaram em grande
parte consagrados e abriram caminhos para futuros campos de exploração. É uma pesquisa de
história oral, cuja metodologia foi descrita como história das mentalidades coletivas. Além de
relacionar o Daime, e em específico às experiências na Colônia Cinco Mil, a conceitos como

234
FRÓES, 1986, p. 38.
235
SILVA, 1983, p. 55.
236
FRÓES, 1986.
237
Foi premiado no II Prêmio Suframa de História em 1983. Uma nova edição do seu livro foi publicada por
ocasião das comemorações alusivas ao Centenário do Padrinho Sebastião em 2020, publicada pelo selo Yagé,
dedicado às publicações de literatura daimista e ayahuasqueira. Tornou-se uma das mais importantes narradoras,
no sentido da escrita de uma história da instituição.
76
xamanismo, movimento messiânico, ecologia e anticapitalismo, Fróes também apresenta suas
definições para os conceitos e formas de significações que ecoam de dentro do Daime como
miração e hinário – as chamadas categorias nativas.
Entre os escritos pioneiros temos a dissertação de mestrado em antropologia de
Fernando La Roque Couto, intitulada “Santos e Xamãs: estudos do uso ritualístico da ayahuasca
por caboclos da Amazônia e em particular no que concerne sua utilização socioterapêutica na
Doutrina do Santo Daime”, defendida em 1989. Couto é dirigente do Céu do Planalto, centro
do Daime fundado em 1983, um dos primeiros frutos da expansão a partir do núcleo de
Sebastião. Ele também chegou na Colônia Cinco Mil no tempo dos andarilhos, buscadores.
Couto faz a pesquisa de campo em 5 centros do Daime, entre eles a Colônia Cinco Mil. Destaca
que o seguimento do padrinho Sebastião no Cefluris, foi o que “teve um contato mais estreito
e intenso” de 1982 a 1989, e caracteriza como “vertente comunitária que sai em busca da ‘Nova
Jerusalém’”238, constituindo o que denomina como um movimento religioso ecológico.
Couto descreve a estrutura social da doutrina que denomina “Família Juramidã”, os
rituais do Santo Daime e seus diferentes usos. Seguindo as proposições de Silva sobre os
sistemas de Juramidam, Couto apresenta diferentes linhas doutrinárias correspondentes ao
Santo Daime como Família Juramidã239, “uma descendência mítica, simbólico-espiritual, que
tem Juramidã como pai e a Rainha da Floresta como mãe”240, abordando também os processos
de apadrinhamentos. Tem como enfoque os ditos aspectos socioterapêuticos, os rituais de curas
espirituais, de exorcismo, operações astrais, oráculo etc.
Foi um dos primeiros a publicar textos que fazem a relação entre a religiosidade
daimista, o movimento ecológico e o xamanismo, tendo aprofundado as reflexões apenas
iniciadas por Fróes. Depois de abordar “o fenômeno da ingestão ritualizada da ayahuasca” para
situar perspectivas sobre os conhecimentos das culturas ameríndias e as manifestações
xamanísticas, Couto procura perceber que as doutrinas religiosas formadas em torno do uso da
ayahuasca indígena são, por um lado, a “‘cristianização’ da ‘pajelança indígena’ assim como
‘indianizam’ o cristianismo, representado aqui pela sua vertente católica”241. Desta forma,
Couto inaugura a ideia do Daime como um xamanismo coletivo. Sua ideia foi reelaborada por
Jaqueline Rodrigues242, que sugere que mestre Irineu cristianizou a Ayahuasca ao passo que

238
COUTO, 1989, p. 20.
239
A grafia Juramidam ou Juramidã são existentes, variando entre os autores.
240
COUTO, 1989, p.20.
241
Ibid., p. 17.
242
RODRIGUES, J. A. “Eu não me chamo Daime, eu sou é um ser divino”. Apontamentos antropológicos
sobre o Santo Daime a partir da experiência de seus adeptos. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Belo
Horizonte: UFMG. 2019.
77
também fez o inverso, a “cabloclização do cristianismo”. Alberto Groisman, sintetizou estes
processos de mesclas, hibridismos e ecletismos no contexto do Daime como “‘amazonização’
do cristianismo e síntese da religiosidade e subjetividade contemporâneas.”243
Sistema, Povo, Família de Juramidã. Assim os três primeiros autores que escreveram
textos acadêmicos sobre o Daime variaram sobre os mesmos temas a partir daquela realidade
que viram em Rio Branco do início dos anos 1980. Movimento religioso ecológico, xamanismo
coletivo, síntese sincrética, uma série de categorias passaram a ser evocadas para significar as
práticas sociais ali vivenciadas, e irão contribuir para a construção de sentidos e imaginários
sobre o ideal de vida comunitária projetado e experienciado na Colônia Cinco Mil.
Procurei evocar, sempre que possível, o que podemos chamar de categorias nativas, ou
melhor, os conceitos que ecoam dos hinos, os termos êmicos, pois como destacou Fernando
Peres Peixoto, pesquisador ayahuasqueiro que mora no Irineu Serra, a doutrina são os hinos244.
Irineu salienta em seu hinário, fazendo a sua narração, “para sempre se lembrarem do velho
Juramidã”245, e este é o único hino do hinário Cruzeiro que a expressão aparece. Difundiu-se
entre os adeptos a interpretação de que Juramidã é o nome espiritual que Irineu Serra ganhou
no cumprimento de sua missão, quando tornou-se um encantado. Lembrar de seu nome é manter
viva a memória daquele que abriu essa estrada para que diversas pessoas pudessem se iniciar,
estudar e tentar ser irmãos e irmãs, membros deste reinado simbólico plantado pela Rainha da
Floresta.
Livros desta primeira fase de publicações que também são muito referenciados sobre o
grupo e a história de Sebastião no Acre, incluindo vários capítulos de passagem pela Cinco Mil,
foram escritos por membros da instituição religiosa, como do escritor paraibano Alex Polari de
Alverga, que em 1982 buscou a comunidade do Daime em Rio Branco. Alex encontrou
Sebastião e seguiu com ele para o Rio do Ouro, acompanhando, apoiando e sendo um dos
cabeças da reorganização institucional, que resultou na paulatina transferência do Cefluris da
Cinco Mil para o Céu do Mapiá.
Em 1992 Alverga publicou “O guia da floresta” e, em 1995, “O livro das mirações”. Em
ambos, o autor se diz declaradamente inspirado por Carlos Castañeda e seus livros sobre o uso
de plantas de poder, nos quais descreve os aprendizados com um xamã do povo Yaqui, Don
Juan, um “homem de conhecimento”, sábio indígena vegetalista mexicano – talvez um

243
GROISMAN, A. Eu venho da Floresta. Um estudo sobre o contexto simbólico do uso do Santo Daime.
Florianópolis: EDUFSC, 1999.
244
PEIXOTO, F. P. A escada de Jacó: xamanismo e Santo Daime. Tese (titular) - Universidade Federal do
Acre, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Rio Branco, 2022.
245
Serra, R.I., “Estou aqui”, hino n.111.
78
personagem da ficção etnográfica de Castaneda. Alverga traz um relato biográfico de suas
interpretações acerca das experiências religiosas com o Daime/Ayahuasca/Santa Maria/etc., e
a convivência com os ensinamentos de Sebastião nas comunidades por ele fundadas.
Sandra Goulart, antropóloga e pesquisadora ayahuasqueira, também comenta que
Sebastião foi visto por aqueles que chegavam à Colônia Cinco Mil “como uma espécie de ‘Don
Juan’, o qual, ao invés de Peiote ou da Datura, utiliza o Ayahuasca, igualmente uma ‘planta de
poder’”246. Sua tese intitulada “Contrastes e continuidades em uma tradição Amazônica: as
religiões da Ayahuasca”247, se dedica ao método comparativo para “captar os contrastes e as
semelhanças” entre os diferentes grupos dentro de uma “tradição religiosa ayahuasqueira” e é
uma das referências consultadas. A autora dá ênfase “à análise de eventos de crise e conflitos
que envolvem os adeptos das três linhas religiosas enfocadas”248 e sobre a Colônia Cinco Mil,
Goulart detalha o processo de desligamento e independência de Sebastião do Alto Santo, após
a passagem de Irineu Serra, bem como outros eventos fundantes, como os motivos que levaram
a saída de Sebastião para a floresta, entre eles a Santa Maria.
Sebastião dava muitas preleções e palestras, que foram gravadas em fitas k7 nos anos
1980, transcritas e publicadas em livros, como o “Evangelho segundo Sebastião Mota”249,
organizado por Alverga, publicado em 1998, sendo ecos de sua voz e seus pensamentos.
Alverga além de escrever uma robusta introdução, com mais de suas interpretações teológicas
sobre o Daime e a figura de Sebastião como líder religioso, traz transcrições das preleções dadas
por Sebastião no dia a dia e após os trabalhos, que foram gravadas por diversos pesquisadores
e colaboradores. Estas gravações das falas de Sebastião aconteceram sobretudo no início da
formação do Rio do Ouro e Mapiá, e nos permitem acessar ecos de sua voz, seu pensamento.250
Textos de pesquisas publicadas que tem a Cinco Mil como tema central, e não apenas
um capítulo citado, são quatro: a já apresentada pesquisa de iniciação científica da historiadora
carioca Veras Fróes, publicada em 1986, uma das pioneiras na sistematização das reflexões
acadêmicas sobre o Daime; o trabalho de mestrado intitulado “Santo Daime: a colônia Cinco
Mil e a contracultura (1977-1983)”, da historiadora acreana Maria de Fátima Almeida Ramos,
defendido em 2002; o romance biográfico do mineiro Túlio Cícero Viana, e seu relato dos anos
vividos na Cinco Mil de 1978 a 1982, publicado em 1997; e, mais recentemente, a dissertação

246
GOULART, 2004, p. 86.
247
Ibid., 2004.
248
Ibid., p. III.
249
ALVERGA (org.), 1998.
250
Existe uma nova edição, revisada e ampliada, em vias de ser publicada depois de uma campanha de
financiamento coletivo.
79
de mestrado do historiador Rodrigo Monteiro de Carvalho, apresentada em 2019, sobre os
saberes e usos da Santa Maria na comunidade de 1975-1982.
Fróes conta em seu livro que, a partir de 1979, começou a participar dos trabalhos
espirituais na Colônia Cinco Mil e a estudar graduação em História na Ufac. Se envolveu num
projeto de iniciação científica intitulado “O Daime e as relações comunitárias da Colônia Cinco
Mil” desenvolvido nos anos de 1982-83. Em fala durante o I Encontro de Pesquisadores do
Daime, Fróes situou que, no momento em que escrevia seu texto, sua preocupação era que

tivesse um documento, um estudo científico que servisse à comunidade, que


a comunidade tivesse, quando chegasse uma autoridade, ou tivesse que
apresentar algum documento, sobre quem era, o que fazia, qual era sua
história, seus mitos, seus símbolos, né, tivesse algum estudo pra apresentar.
Porque eu sempre achei que a pesquisa científica que não dá um retorno à
comunidade... Seus direitos de propriedade intelectual, material, que não eleve
as condições de vida da comunidade, não faz nenhum sentido...251

Esta fala evidencia que Fróes adotou a postura de uma intelectual comprometida com
seu grupo social, uma intelectual orgânica no sentido cunhado por Antônio Gramsci para se
referir àqueles pensadores que mantêm laços com o contexto de onde partiram. Esta é uma
postura que me inspira, dar um retorno do trabalho para a comunidade e tentar com ela
contribuir neste processo de escrita, entendimento da própria história – e sobretudo do tempo
presente. Desde que iniciei a pesquisa, procurei me envolver em frentes de trabalho, focada na
recuperação dos espaços como territórios de memórias, o que culminou com a inauguração do
centro cultural e do memorial.
O texto de Fróes é pioneiro na abordagem do tema, uma espécie de narrativa oficial da
história do Daime da vertente do padrinho Sebastião e seu começo na Colônia Cinco Mil. Suas
interpretações e escritos são citados em diversos trabalhos acadêmicos sobre a formação e
expansão do Daime, e os conceitos mobilizados pela autora influenciaram significativamente
as pesquisas posteriores. Seu estudo, realizado numa época de grande efervescência na
comunidade, possibilitou que a autora vivenciasse, desde dentro, os saberes ali praticados. Na
escuta das pessoas, sobretudo atenta às palavras do líder Sebastião, Fróes pode ocupar um lugar
de pertencimento à irmandade, o que dá a seu texto, lido nos dias de hoje, um status de literatura
institucional, intencionada em retratar a realidade, “apresentar um documento”, mas também
passar a melhor imagem possível da Colônia Cinco Mil.

251
FRÓES, I Encontro de Pesquisadores do Santo Daime - Mesa de abertura: Histórias do/com o Padrinho
Sebastião, 2020.
80
A pesquisa de Fróes foi importante para afirmar a positividade daquela organização
religiosa, tendo inclusive integrado a comissão científica que esteve junto aos órgãos de
fiscalização instituídos a partir do ano de 1982 para “averiguar denúncias” 252 envolvendo o
grupo de Sebastião. As equipes multidisciplinares ligadas ao antigo Conselho Federal de
Entorpecentes (Confen), com representantes da Justiça, Exército, Polícia Federal e comunidade
científica, ficaram encarregadas de elaborar os dossiês e relatórios sobre as comunidades
ayahuasqueiras que estavam sob vigilância neste período.
Durante os anos no Rio do Ouro aconteceu a visita do Exército Brasileiro na
comunidade, responsável por produzir um relatório sobre o que a mídia do centro-sul brasileiro
noticiava ser “uma comunidade religiosa ‘muito doida’ dentro do Amazonas. Falavam em mais
de mil pessoas que viviam as libertinagens da vida no comando de um velho de longas barbas
brancas”. 253
Mortimer fala que nesta época, os jornais “deram ciência desta psicodélica
existência no coração da floresta amazônica. Todas as notícias não passavam de fantasias da
imaginação do redator, com um pequeno fundo de realidade.”254
Além das narrativas e dados de sua pesquisa, Fróes produziu um rico acervo de
gravações, áudios, vídeos e fotografias, feitas juntas com seu companheiro na época, Marco
Grace Imperial, fundador da igreja Rainha do Mar, em Pedra de Guaratiba/RJ, lugar onde
Sebastião fez a passagem em 20 janeiro de 1990. Marco Imperial nunca publicou nenhum livro,
mas é um importante narrador e memorialista – de uma história outra, crítica e não oficial.
Compartilha seus numerosos escritos, suas críticas ao modelo de expansão do Daime
perpetuado pelo seguidores de Sebastião após sua morte, suas lembranças na Cinco Mil e da
convivência com Sebastião, suas concepções acerca dos princípios da doutrina, em um grupo
em uma rede social, intitulado ‘Santo Daime’, e que tem mais de 21 mil membros.
Mortimer ouviu histórias, registrou com gravadores e anotações, detalhou as trajetórias
de idas e vindas por florestas-seringais-colônias-cidades que caracterizam a biografia de
Sebastião Mota como liderança de um seguimento do Daime. Tornou-se um importante
membro da comunidade, contribuindo nos primeiros anos para sua organização institucional e
registro de suas memórias, ao escrever dois livros com relatos de suas vivências na comunidade.
No “Bença, Padrinho!” conta toda a saga de peregrinação de Sebastião Mota desde seu
nascimento, o início na Colônia Cinco Mil, à trajetória épica até o Rio do Ouro e o dia de sua
despedida no Céu do Mapiá. É um texto literário muito citado, referência para diversos

252
ASSIS, 2017, p. 220.
253
MORTIMER, 2000, p. 223.
254
Ibid.
81
trabalhos e também circula como uma espécie de narrativa institucional dos fatos. O texto, além
de uma biografia, é uma espécie de documento, relatório, que cita nomes, datas, como quem
descreve a história dos acontecimentos, organiza sentidos, para de alguma forma, preservá-los
enquanto memória social do grupo.
Entre todos os escritores e biografistas desta primeira geração de escritos que
conviveram com o padrinho Sebastião, Mortimer é o que mais se apresenta predisposto a relatar
mesmo os assuntos considerados espinhosos, procurando à sua maneira suavizar mas não deixar
de registrar acontecimentos e assuntos que fizeram parte da história do lugar, mas para a
comunicação institucional acabaram com o tempo se produzindo como silêncio. Em 2001,
lançou “Nosso Senhor Aparecido na Floresta” no qual ele reconta sua chegada na Colônia Cinco
Mil e apresenta uma narrativa de diversos eventos importantes desde o início da doutrina,
procurando construir uma espécie de teologia do Santo Daime como interpretado pelo grupo
que seguia padrinho Sebastião. Também detalha episódios da vida comunitária na Cinco Mil
não narrados no primeiro livro.
Mortimer, que chegou a estudar no Seminário da Igreja Católica para tornar-se padre,
escreve à luz de suas mirações com o Daime, uma interpretação simbólica das relações entre o
cristianismo católico e o universo daimista, propondo que “na linha do povo, nosso cristianismo
é rico e dinâmico e já temos muitos santos.”255 Propõe interpretações que sugerem que “Jesus
havia ocupado o aparelho de Raimundo Irineu Serra”256. Nesta teologia, Sebastião é o “rei São
João Batista”257 e na sua corte estão “quatro fortes guerreiras”: as irmãs Rita, Julia, Tereza
Gregório e Cristina Raulino, também descritas como “as quatro estrelas da bandeira de São
João”258. Estas associações são acatadas por alguns seguidores do Daime, e controversas para
outros, não havendo uma interpretação única, dogmática e definitiva.
Retornando à Fróes e suas palavras introdutórias, a historiadora conta que foi necessária
uma convivência prolongada, participando dos diversos trabalhos espirituais e vivências
comunitárias, para que, aos poucos, com sua experiência pessoal, tecida nos fortes laços de
confiança, fosse entendendo o que chamou de “aquele universo mítico” 259. Esta foi uma questão
que eu levei em consideração quando, no doutorado, optei por estudar a Colônia Cinco Mil, por
saber que, de alguma forma, eu teria um acesso facilitado ao campo construído pela e na relação
de pertencimento. Ela apresenta a Colônia Cinco Mil como um espaço sagrado possuidor de um

255
MORTIMER, Nosso Senhor Aparecido na Floresta. 2001, p. 68.
256
Ibid.
257
Ibid., p. 83.
258
Raulino, Bandeira de São João, Hino 14.
259
FRÓES, 1986, p. 15.
82
universo mágico-religioso próprio, com suas próprias leis internas, o que nos leva as definições
de territorialidades, e a concepção de um território, de um povo que se identifica por se reunir
para manter vivas suas práticas culturais.
Seu texto traz recortes de uma leitura historiográfica crítica clássica, que narra o
processo de formação econômica do Acre e as transformações territoriais à medida que as
tensões e rearranjos para acumulação do capital definem novos rumos para a região amazônica:
da seringa à pecuária. Assim como Silva, Fróes comenta que é neste contexto macropolítico de
deslocamento de pessoas e mudanças no ordenamento econômico que a Ayahuasca se
reterritorializa em outros espaços, sai da floresta, chega às margens das cidades em formação na
Amazônia, através de um conjunto de mestres que recriam tradições, ganham seguidores,
fundam comunidades, cultos e irmandades.
Fróes260 comenta que na década de 1970 toda a região amazônica passava por
significativas mudanças com o avanço da frente agropecuária sobre o bioma. Descreve que “a
Colônia Cinco Mil ficou assim conhecida, porque antigamente, com a desativação do seringal
Empresa, a terra foi loteada em colônias e vendidas a cinco mil cruzeiros antigos, cada uma.”261
Chama atenção para a “devastação dos seringais e castanhais nativos devido à implantação da
pecuária, ocasionando a expulsão dos seringueiros e colonos da zona rural e o inchamento da
periferia das cidades”262, nos moldes de como preconiza a tradição historiográfica.
Nota-se que a autora procurou dar conta de apresentar ao leitor um panorama geral das
características do que chamou “cultura do Santo Daime” e “povo de Juramidam”, como uma
expressão da religiosidade amazônica, num tempo em que eram raríssimos os estudos
acadêmicos, e o Daime se tornava cada vez mais conhecido através da mídia. Descreve as
características básicas e os objetivos de cada um dos diferentes tipos de trabalhos espirituais –
as festas oficiais, trabalhos de concentração, missa, e os trabalhos de cura, incluindo aí os
trabalhos de mesa, bem como alguns elementos simbólicos utilizados pela doutrina, que
incluem a Cruz de Caravaca, denominada Cruzeiro, e a Estrela de Salomão, estrela de seis
pontas que simboliza o fardamento dos membros da irmandade. Aborda sobre os preceitos
relativos à abstinência sexual e de bebidas alcoólicas por três dias antes e três dias depois,
recomendados para participar das sessões e tomar Daime. Também narra sobre as
características das duas fardas (a branca e a azul), e outros rituais como o batismo e o casamento,

260
FRÓES, 1986.
261
Ibid., p.43-44.
262
Ibid., p. 17.
83
sendo este último, feito apenas entre os seguidores de Sebastião, pois no mestre Irineu não se
realizava casamentos – sendo esta, mais uma das várias distinções entre os grupos.
Da expansão para além das fronteiras amazônicas, impulsionada em grande parte pelos
grupos ligados ao Daime de Sebastião, surgem movimentos independentes e novas releituras,
práticas espiritualistas que passaram a ser denominados de neoayahuasqueiras, umbandaime,
entre outras.263 Para Mendonça, que escreve depois de 30 anos da publicação de Fróes, parece
que não é mais possível falar de “cultura do Santo Daime”, e sugere que é importante pluralizar
a ideia pois

não existe uma cultura do Daime no singular. Ela não pode ser fixada em
inventários fixos ou a partir de essencialismos enganosos, porque se trata de
uma tradição viva; aprendida, vivida, constituída, atualizada por diferentes
pessoas, em diferentes tempos e contextos.264

A proposta de Mendonça, a partir de uma perspectiva decolonial, vem questionar aquilo


que é exatamente o que os cientistas — nos moldes da ciência ocidental moderna logocêntrica
— de matriz positivista, são especializados em fazer: nomear, classificar, descrever, comparar,
rotular, especificar, extrair conclusões pretensamente universais através, e a partir de,
experimentos e análises pontuais, estudos de caso.
O registrado, aquilo que é falado e ficou escrito nos documentos, são resultados de
escolhas, tessituras, arranjos, simbolizações e jogos de poder, e geralmente implicam além de
um dito, um silenciado. Ler os esquecimentos e silenciamentos pode nos apresentar outras
perspectivas num estudo. Fróes não cita, por exemplo, a questão da Santa Maria e do uso
experimental de outras plantas de poder, tampouco as experiências inter-religiosas com os
trabalhos do Tranca Rua, que findaram em episódios de violência. Ou seja, a autora evitou
descrever acontecimentos em que houve muita exposição negativa para o Daime no contexto
local e posteriores interpretações e rearranjos controversos. Porém, vale destacar também que
em outras situações, como no caso da Santa Maria, Fróes não se esquivou de falar e sair em
defesa da comunidade, escrevendo inclusive uma carta à Polícia Federal em 1983, por meio da
qual procura esclarecer sobre a segurança do uso em contexto religioso, citando as milenares
formas de utilização da erva, cientificamente chamada Cannabis por civilizações egípcias,
chinesas, indianas a mais de 2 mil anos antes de Cristo265.

263
LABATE, 2004.
264
MENDONÇA. 2016, p. 49.
265
Carta de Vera Fróes à Polícia Federal, 1983.
84
A dissertação de mestrado em História da professora acreana Almeida Ramos é um dos
poucos estudos acadêmicos dedicados exclusivamente à Colônia Cinco Mil. A pesquisadora
aborda em sua dissertação a relação e os impactos da chegada dos andarilhos e hippies do
Daime, defendendo que o fato de Sebastião Mota ter aberto a comunidade para as gentes de
outras culturas, e seus saberes, fez com que o Daime fosse ganhando lugar de destaque na mídia
local e nacional.
Almeida Ramos enfatiza que são estes estradeiros que irão trazer influências dos
movimentos da contracultura das décadas de 1960-70, imprimindo significativas
transformações nas práticas culturais vivenciadas no contexto do Daime naquela localidade.
Fróes cita que, apesar dos adjuntos e mutirões terem sido formas esporádicas de trabalho
coletivo, que ocorriam tradicionalmente desde a década de 1960 na Cinco Mil, foi com a
chegada dos estradeiros que houve uma “proposta de uma forma mais elevada de organização
comunitária”.266 Entre as novas influências, destaca-se além do ideal coletivista-comunitário,
maior ecletismo religioso e o uso de outras plantas professoras, com destaque para a Cannabis,
introduzida de forma ritualizada e cotidiana.
Referindo-se ao Daime como uma bebida libertária mas controlada por um sistema
patriarcal ultrapassado, Almeida Ramos diferencia-se dos textos anteriores por seu teor mais
crítico, e procura destacar a singular aliança entre os jovens da contracultura e os ex-
seringueiros e agricultores familiares, que produziram uma experiência única, uma espécie de
sociedade alternativa naquele período. Neste percurso faz algumas comparações imprecisas,
como aquela que associa a bebida enteógena ao psicoativo LSD, e expõe o que considera falsos
moralismos e o “ranço do patriarcado”. Ainda que apontando para as contradições, defende que

A singularidade da Colônia Cinco Mil em relação a todas as demais Igrejas ou


organizações que utilizam o chá, sob nomes diferentes, foi a de fomentar uma
comunidade rural nos moldes de um socialismo cristão em interface com uma
proposta de sociedade alternativa.267

A ideia de que a experiência na Colônia Cinco Mil teria sido, ou almejado ser, algo
próximo a um socialismo cristão, foi evocada algumas vezes em seu texto. Almeida Ramos
parece convencida de que naquele período, graças à aproximação de jovens da classe média
urbana, com nível universitário, “em grande parte contestadores”268, um modelo socialista

266
FRÓES, 1986, p. 97.
267
ALMEIDA RAMOS, 2002, p.72
268
Ibid.
85
utópico teria sido construído. Fróes, anos antes, definiu como são “formas de produção não
capitalistas, geradas dentro e apesar do sistema capitalista”.269
A historiadora reforça a importância da chegada dos andarilhos, que Sebastião dizia se
tratar de uma “nova colheita de irmãos”270. Estes são descritos como agentes na idealização e
realização de um sistema comunitário coletivista, baseado na máxima “somos todos irmãos”271.
Almeida Ramos narra que embora influenciado pelo script judaico-cristão, motivados pelo
Evangelho, o povo da Cinco Mil estava buscando um socialismo utópico e pautado no
romantismo de um “retorno à natureza”. Almeida Ramos destaca que a Cinco Mil “ampliou
leque das possibilidades do uso do Daime”272, não só porque incorporou outras plantas
professoras nos estudos da comunidade como também porque absorveu porosamente
influências advindas de outras correntes espiritualistas.
Há um movimento de aproximação com o panteão afro-iorubano, através das
interpretações da Umbanda pelo Daime incorporadas, sobretudo a devoção a orixás como
Ogum, Oxóssi e Iemanjá, que figuram entre os mais presentes nos hinários e datas
comemorativas. Mas há uma abertura bem mais expandida quando pensamos que “já se
encontram hinos que remetem ao rei Huásca do Peru incaico ou ao Krshna do panteão hindu”273.
Atualmente, o campo do Daime no Brasil também está marcado pelas alianças com o
rastafarismo e com o neoxamanismo urbano. Dentre estas entidades incorporadas ao panteão
da cosmologia daimista eclética, Tranca Rua foi aquela que, no contexto da Cinco Mil, ocupou
um espaço mais marcante nas vivências que marcam o imaginário e a memória coletiva.
Almeida Ramos relembra sua juventude, quando frequentava a Colônia com outros
universitários e amigos interessados nas experiências de alteração de consciência e psicodelia,
e mostra que a Colônia era um importante lugar na cena cultural alternativa daquela Rio Branco
das décadas de 1970 e 80. Artistas acreanos como o pintor Ivan Campos, o músico Pia Vila,
entre outros, frequentaram o lugar. Ao rememorar e fazer uma cartografia de suas experiências
na comunidade, a historiadora sugere

ser o Daime ou Ayahuasca um vetor de mutação da sensibilidade capaz de


propiciar uma revolução molecular, conceito empregado por Guattari para
processos de diferenciação permanente que se chocam, como fatores de

269
FRÓES, 1986, p.19.
270
MORTIMER, 2000, p. 180.
271
ALMEIDA RAMOS, 2002, p.72.
272
Ibid., p. 80.
273
Ibid.
86
resistência consideráveis, contra a produção de subjetividade capitalística e a
tentativa de controle social.274

Um contraponto a esta visão de que Sebastião foi o primeiro a propor a formação de


uma comunidade rural entre os seguidores da irmandade do Daime pode ser colocada se
olharmos para as narrativas que nos chegam sobre o modelo de organização socioespacial
construído por Irineu Serra e seus seguidores nas colônias do antigo Seringal Empresa, na
Estrada Custódio Freire, para a qual se mudaram na década de 1950, quando saíram da Vila
Ivonete. Ana Pupim, em sua dissertação de mestrado em desenvolvimento regional, a partir de
suas entrevistas com antigos moradores do bairro Irineu Serra, apresenta um histórico de
formação da vila e suas territorialidades, evidenciando a organização do trabalho comunitário
e os sistemas de adjunto como uma característica, tanto na agricultura quanto nos trabalhos com
o Daime, e caracteriza esses saberes e fazeres como manifestações tradicionais praticadas até
os dias atuais.
Podemos pensar que diferentes sistemas comunitários surgiram em torno das práticas
do Daime, e estes apontam para distintas faces da organização campesina-colonheira no Acre.
Com Pupim275, vimos que Irineu Serra e parte de seus seguidores eram grandes agricultores,
que produziam em sistemas de mutirão e adjunto nas colônias da Custódio Freire, e vendiam
sua produção nas feiras da cidade onde tinham grande destaque. Luiz Mendes narrou à
Mendonça sobre sentidos da vivência comunitária nesta época

O Mestre, ele era de espírito cheio! Da coisa... comunitária! Mas era um... um
sistema, que cada um tinha as suas dependências, principalmente tendo
família, né? A sua casa, o seu pedacinho de terra. Seus aposentos, tal, tal, tal...
Não era aquela é, a coisa comunitária aonde come tudo numa só panela, não!
Não era assim, né? Agora, com liberalidade de cada um procurar a ganhar o
recurso que, que era muito difícil na época. Mais era diária. Aí, chegava a
época de brocar o mato pra fazer os roçados. Juntava todo mundo... vamos
botar o roçado do Mestre! E aí como era um tanto de gente bom, a lavoura
dele era de repercussão né, em Rio, em toda Rio Branco (...) dali já saía
marcado o próximo. E assim sucessivamente ia fazendo, a ronda, até fechar,
então tá todo mundo com o roçado pronto, né? Então cada um que lutasse pra
ter a sua particularidade, até o seu dinheirinho, que ele também defendia que
ele também, defendia ele tinha, sempre o di, o dinheirinho dele. Aí a gente era
de, dessa, desse sistema. Agora na hora de juntar aí, juntava todo mundo, aí
não tinha dificuldade, né? Então essa era a vivência comunitária dele.276

274
ALMEIDA RAMOS 2002, p.14.
275
PUPIM, 2016.
276
MENDONÇA e NASCIMENTO, L. M. do. O Orador do Mestre Raimundo Irineu Serra: diálogos,
memórias e artes verbais. Rio Branco (AC): Nepan Editora, 2019, p. 221.
87
É possível ver que a comunidade que pouco a pouco Sebastião foi consolidando na
Colônia Cinco Mil, organizada no sistema de produção coletivizada e mutirões, não foi,
necessariamente, um traço da chegada da contracultura ou algo exclusivo da identidade deste
grupo — apesar de ser uma máxima muito evocada. Descrita como uma novidade incrementada
pelos hippies, Sebastião na Colônia Cinco Mil, ao propor a vida em comunidade, de alguma
forma dava continuidade aos sistemas de adjunto e mutirões que preexistiam entre aqueles que
se reuniam em torno de Irineu Serra.
Destaca-se que a palavra comunidade pode ser lida e ser dada a muitos sentidos. Fróes
salienta que as famílias de agricultores na Cinco Mil desenvolviam esporádicas formas de
trabalho coletivo “em que todos assumiam o trabalho mais pesado dos roçados e a construção
de casa em sistema de rodízio”, mas destaca que “o resultado do trabalho era individual”.277
Tem sido narrado, com o passar dos anos, que por influência dos primeiros hippies que ali
chegaram como Daniel Lopes, Lúcio Mortimer e Maurílio Reis, Sebastião passou a propor um
projeto mais audacioso, de propriedade coletiva da terra e produção cooperativa.
Posteriormente, uma utopia de retorno às florestas e aos seringais, para ter uma menor
dependência da cidade, do dinheiro278. Talvez o que se sonhasse fosse sim, um ensaio de
organização não capitalista, um socialismo cristão/utópico como descritos até aqui por Fróes279
e Almeida Ramos280, mas se se sonhou, a pesquisa aponta que apenas sonhos foram, sonhos
que seguem inspirando parte de seu povo a perseguir metas de um bem viver, ou ainda produzir
imagens idealizadas de realizações contra dizentes.
Na Cinco Mil, em relação a forma de trabalho, um pouco ou quase nada diferenciava-
se de como funcionava tradicionalmente os sistemas adjuntos. Pupim destaca que este “sistema
de produção coletiva, que reunia as famílias” funcionava assim:

[...] se juntavam doze, catorze, dezesseis, vinte e tantos homens, que em um


dia trabalhavam numa área, no preparo da terra, semeadura, colheita. No outro
dia era na terra de outra pessoa que fazia parte do adjunto. Não tinha
pagamento em dinheiro em espécie. Naquele tempo a união era grande, era
todo mundo junto. Neste processo de “empeleita”, executavam-se a broca,
queimada, plantio e colheita.281

277
FRÓES, 1986, p. 57.
278
MORTIMER, 2000.
279
FRÓES, 1986.
280
ALMEIDA RAMOS 2002.
281
Copaíba, entrevista em 04/04/2015, em PUPIM, 2016.
88
Almeida Ramos também vai abordar a formação da Colônia Cinco Mil procurando
situá-la no contexto de transformações sociais, políticas, econômicas, culturais e ambientais
vividas no Acre no contexto da década de 1970. Como já excessivamente descrito em muitos
estudos, era o tempo dos conflitos entre os povos da floresta com as forças dos fazendeiros e
madeireiros que, alinhados à política do governo estadual e federal durante os 20 anos de
ditadura militar, chegaram de forma devastadora colocando a floresta abaixo. A finalidade seria
o mito do progresso, implantar uma nova fronteira socioeconômica que, no Acre, se
materializava pela decadência do extrativismo, violência com as populações nativas e avanço
da pecuária, sobretudo de corte. Nada muito diferente do que é hoje, no contexto do capitalismo
verde e do agronegócio.
Destaca que as famílias que formaram a Colônia Cinco Mil eram marcadas por uma
existência sem privilégios e de muito trabalho nos seringais. “Negros e caboclos de baixa
escolaridade e frágil situação socioeconômica”282, como destacou Glauber Loures Assis, que é
um sociólogo daimista/ayahuasqueiro que também nos acompanha na caminhada. Almeida
Ramos visando entender as marcas que a contracultura imprimiram no Daime a partir da Cinco
Mil, também mapeou narrativas e memórias sobre outros psicoativos na comunidade. Dentro
destes estudos com as plantas de poder realizados nas décadas de 1970-80 inclui-se os fungos
do tipo Psilocybe cubensis, conhecidos como cogumelos mágicos, que por um curto período de
tempo foram estudados na comunidade, inspirando inclusive um hino em saudação ao Cogu-
Rei, no hinário “O Cruzeirinho” do padrinho Alfredo.
Não só o cogumelo, mas muitas outras potências psicoativas foram chegando e sendo
estudadas naquela comunidade, configurando ali um devir-planta como descrito pela
pesquisadora Jessica Rocha em seu mestrado em Estudos Culturais, intitulado
“Experimentações Enteogênicas: Santa Maria e Exu no Santo Daime”, de 2021. Na companhia
da pesquisadora percorro trilhas, os rastros de um devir-planta que se expressa também como
devir-xamã e devir-exu. O devir pode ser entendido como algo que acontece, que provoca
mudança, movimento, “é rizoma, contágio”283. É difícil estabelecer uma definição única, como
todos os conceitos trabalhados por Deleuze e Guattari, mas o devir pode ser entendido como
uma relação de afetos, da ordem daquilo tudo que nos afeta, que atingem e por isso provocam
modificações, mudanças. O devir não tem e nem propõe assumir forma definitiva, nunca

282
ASSIS, 2017.
283
DELEUZE e GUATTARI, Mil platôs: do capitalismo à esquizofrenia. V.4. São Paulo: Ed 34, 1997, p. 19.
89
conclui, é multiplicidade, é ser nômade284. “Devir-jiboia, ou, ainda, um devir-cipó, um devir-
espírito”285 são expressões que aparecem no trabalho do antropólogo Guilherme Menezes,
evidenciando pesquisas que também utilizam esses referenciais no campo dos estudos da
Ayahuasca.
O uso de outras substâncias psicoativas na Colônia Cinco Mil vem sendo documentado
por mais que às vezes ainda figure uma espécie fato para ser esquecido e silenciado, sobretudo
porque são experiências muito associadas à ideia do “uso de drogas”, um signo recente, mas
muito poderoso na consolidação de um discurso que figura essas práticas como algo marginal,
fora da lei. Rocha destrincha alguns destes tópicos como uma espécie de caixa preta onde se
guardam os registros de um período o qual uma literatura mais oficial e institucional evita
enfatizar.
O outro trabalho que tem como tema principal as vivências na Colônia Cinco Mil é o de
Túlio Cícero Viana, já brevemente apresentado também como um dos narradores. Ele, jovem
mineiro, chegou na Cinco Mil em 1978, isto é, no início da formação da comunidade, e ficou
lá até 1982. No texto “O consagrado defensor”286 faz um relato de suas experiências e
percepções na Colônia Cinco Mil, numa espécie de biografia/autoetnografia publicada em 1997
— e uma segunda edição em 2020. É parte importante da malha documental que nos permite
traçar linhas imaginárias que definem cartografias da Cinco Mil daqueles consagrados anos
1970 e 80. Suas narrativas, ainda que catalogadas como um romance, permitem-nos acessar
ecos da história-memória daquela comunidade do Daime que se formava em torno de Sebastião
e sua família.
Viana chegou à Cinco Mil como muitos outros jovens, assim como eu, interessados no
uso das substâncias psicoativas em contextos ritualísticos, de experiências com o sagrado. Ao
encontrar toda uma irmandade e doutrina marcada por uma ética e moral cristã cabocla, sentiu
muitos estranhamentos. Túlio faz um relato de sua intensa experiência de mergulho, reflexão
sobre os ensinamentos da irmandade e as práticas sociais ali desenvolvidas naquele período.
Destaca as coisas que lhe incomodavam: hierarquização do poder, desigualdade entre as
pessoas, o excesso de formalismos, e narra como sonharam fazer ali uma Nova Revolução de
valores, pautada no amor e na paz. O texto de Túlio Viana pode ser considerado um dos

284
ROCHA, J. Experimentações Enteogênicas: Santa Maria e Exu no Santo Daime. Dissertação (Mestrado em
Filosofia) - Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais, Escola de Artes, Ciências e Humanidades,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.
285
MENESES, G.P. Nos caminhos do nixi pae: movimentos, transformações e cosmopolíticas. Tese
(Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2020.
286 VIANA, T. C. O Consagrado Defensor. Belo Horizonte: Líttera Maciel Ltda, 1997.

90
primeiros que apresenta uma crítica às formas de organização socioespacial construídas no
contexto do Daime do seguimento do padrinho Sebastião.
Ainda apresentando os trabalhos acadêmicos e literários que, até aqui, escreveram sobre
a Colônia Cinco Mil tomando-a como tema principal, mais recentemente Rodrigo Carvalho,
que foi morador da Colônia Cinco Mil, escreveu a dissertação intitulada: “A consagração da
Santa Maria do Padrinho Sebastião na Colônia Cinco Mil (1975 -1982)”. Veio se somar ao
conjunto de trabalhos sobre a Colônia Cinco Mil da época de Sebastião, mas não procurou ir
além, pensar a história mais recente da comunidade ou a consagração da Santa Maria hoje.
Mais uma vez, os registros e análises situam a Cinco Mil apenas no passado, como se
não houvesse necessidade/interesse de atualizar a invenção da história do lugar nos anos que se
seguiram à saída de Sebastião e grande parte do grupo. Carvalho explicou-me que as
investigações e os usos contemporâneos da Santa Maria acabariam sendo uma questão
problemática devido às questões de ordem legal, seria um assunto difícil de ser abordado, e
possivelmente poderia trazer problemas para a comunidade, por isso a necessidade de se manter
a descrição. Na companhia de Orlandi, leio a política de silêncio que indica o silêncio
constitutivo, relacionado ao dizer isso para não dizer aquilo287.
Como trabalho calcado na história oral, trouxe depoimentos de partícipes daqueles
momentos de formação da Cinco Mil, época que, como dizem muitos moradores, “de fato havia
uma comunidade”. Procuro discutir a formação da Colônia Cinco Mil e o caráter sagrado
atribuído a Cannabis, rebatizada como Santa Maria pelos adeptos do Daime do grupo do
padrinho Sebastião. Diz-se que nomear é instituir, é fazer existir, é criar uma realidade. Assim
foi o processo de ressignificação da Cannabis no contexto do Daime na Colônia Cinco Mil. Um
processo de subjetivação no qual enunciações modificaram sentidos instituídos para atender
demandas individuais e coletivas.
Carvalho escreve sobre as formas de cultivo, usos e significados desta planta no contexto
ritualístico, e o discurso político de Sebastião como defensor do uso religioso de plantas
psicoativas. Partindo do pressuposto de que a Santa Maria é uma “planta ensinadora”, procurou
apontar “quais ensinos seus membros atribuíam à consagração dos pitos de Santa Maria”,
“considerada ilegal pela legislação brasileira, a canabis”288, mas consagrada entre membros

287
ORLANDI, 1997.
288
CARVALHO, R.M. A consagração da Santa Maria do Padrinho Sebastião na Colônia Cinco Mil (1975 -
1982). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, Rio Branco:
UFAC, 2019.
91
daquele grupo em suas práticas religiosas. Nesta parte, há um diálogo com hinos voltados para
a consagração, ou que tem Santa Maria como tema.
Existe uma tendência até agora predominante nos estudos sobre o Daime na área das
ciências humanas que é o fato da maioria das pesquisas serem feitas por pessoas que tiveram
um contato com a bebida, seus rituais e cosmologias, como destacou Assis289. Estes estudos
fazem parte daquilo que os antropólogos chamam de literatura êmica, isto é, que ecoa desde
dentro do sistema cultural em estudo, “que interpreta e aborda os agrupamentos religiosos a
partir de suas próprias ideias, conceitos e relações sociais internas.”290
A primeira publicação conhecida em tom de exaltada crítica ao Daime é a da escritora
argentina Alicia Castilla, que apresenta no texto publicado em 1995291, “Santo Daime:
fanatismo e lavagem cerebral”. A autora apresenta o texto como um livro de denúncia, alegando
desvios na doutrina do Daime, sobretudo no seguimento de Sebastião, representado naquela
época pelo Cefluris. Faz questão de dizer na introdução de seu livro-denúncia que é importante
“a separação do joio do trigo, já que nem tudo que acontece é denunciável. Há muita coisa
louvável.”292 A autora se decepcionou com diversos arranjos e passou a denunciar o grupo
ligado à Sebastião como um deturpador da obra de Irineu Serra, agitando ainda mais os ânimos
e os afetos rivalizados entre os núcleos tradicionais e os ditos ecléticos. Castilla culpa o Cefluris
e seus adeptos por separá-la da filha, e “iniciou sua campanha de calúnias e acusações”293, desde
que perdeu a guarda da jovem, que denunciava a mãe por maus tratos. Castilla frequentou o
Daime a partir de 1984 na comunidade de Mauá, no Rio de Janeiro, uma das pioneiras na
expansão, e só depois de alguns anos tornou-se fervorosa crítica.
A escritora narra certa dificuldade de conciliar o uso de plantas expansoras de
consciência, com o que entendia como valores obsoletos, vinculados ao universo da culpa, do
moralismo patriarcal e judaico-cristão. Castilla se posiciona favorável à Ayahuasca e ao Daime,
e dirige suas críticas exclusivamente ao Cefluris, que considerava fazer um mau uso da bebida,
tendo inclusive visitado diversas lideranças do Daime em Rio Branco, para deixar clara sua
insatisfação com aquele grupo em específico.
Castilla faz um longo preâmbulo sobre a contracultura e suas facetas, a popularização
nos anos 1960 do uso de maconha e LSD, as relações do uso destas substâncias com viagens

289
ASSIS, 2017.
290
Ibid., p. 27.
291
CASTILLA, A. Santo Daime: Fanatismo e Lavagem Cerebral. São Paulo: Imago,1995.
292
Ibid.
293
ALVERGA, A. P. Dossiê encaminhado ao CONFEN: em resposta às denúncias. 1995. Disponível em
http://www.mestreirineu.org/argumento_alex.htm. Acesso: 23/05/2021.
92
espiritualistas, transcendentes, e parece centrar suas críticas não no uso de substâncias
psicoativas para se alcançar estados alterados de consciência e percepção, mas na maneira como
essa vertente do Santo Daime, ao seu ver, estaria fazendo uma espécie de “lavagem cerebral”
em seus seguidores. Sua revolta está muito relacionada ao fato de sua filha, que chegou à
irmandade junto com ela, não compactuar com as desavenças da mãe e insistir em ficar na
doutrina, mesmo sendo menor de idade — ela tinha 17 anos quando, em 1994, chegou à Cinco
Mil, vinda da comunidade do Daime do Rio de Janeiro. As acusações de Castilla contra a
instituição foram diversas: assassinatos e ocultações de crimes, exportação e venda de Daime
para Europa, mistura de drogas no Daime, sequestro de sua filha. A jovem alegava que a mãe
lhe causava maus tratos, e pediu ajuda ao líder da Cinco Mil, na época Raimundo Nonato, que
chegou a conseguir a guarda provisória da filha de Castilla.294
Ela retrata os seguidores do Daime de Sebastião como fanatizados e a si própria como
alguém que era vítima de uma inquisição. Sobre a Cinco Mil, Castilla dispara desapontamentos:
“A Colônia 5000 é considerada, naquela cidade, como um ‘buraco negro’, a vergonha da cultura
daimista.”295 Para os adeptos do Daime no Acre, e aqueles ligados às famílias mais antigas e
aos núcleos no bairro Irineu Serra, parecia importante marcar uma diferença em relação às
comunidades que levantam a bandeira de Sebastião, e uma das principais características, como
já dito, é a permissibilidade de incorporar o uso de outros enteógenos e outras práticas
espiritualistas.
De uma forma geral, pouco se registrou sobre o importante papel das mulheres na
preservação das tradições do Daime/Ayahuasqueiras, o que vem mudando nos últimos anos.296
Estudos sobre biografias de mulheres do Daime297, questões pertinentes à temática de gênero,
evidenciando as marcas do patriarcado na organização do culto, feminismos e femininos
amazônicos, o tema do parto e das parteiras no Daime298, acolhimento e discriminação à
população LGBTQIA+ são temas que têm motivado novos pesquisadores.

294
CASTILLA, 1995. ALVERGA, 1995.
295
CASTILLA, 1995. p. 38.
296
Ver trabalhos como do sociólogo Pietro Benedito, de 2020, que se debruça sobre o debate sobre gênero no
contexto do Santo Daime, da educadora Sabrina Arrais, que apontam uma tendência em curso de que aumente o
número de estudos e publicações que destacam a questão do feminino no meio daimista, historicamente ocultado
nas narrativas, e mais raro na produção literária. A pesquisa em andamento de Fernanda Cougo Mendonça sobre
as dimensões do feminino e as matriarcas do Cefli, dona Rizelda, Francisca Mendes, Percília Matos, Ana de Souza
entre outras, é mais um exemplo a enriquecer este campo.
297
“Costurando retalhos: Crônicas do Céu do Mapiá”, de Albina Luiza Autran de Mendonça Pinto, publicado em
2021, que traz relatos e memórias da vó Biná, uma das mais antigas moradoras da comunidade.
298
Ver: “A arte de partejar: o mito-mistério do nascimento na Luz do Santo Daime”, de Adelise Noal, de 2015, e
“O Parto na Luz do Daime: corpo e reprodução entre mulheres na vila Irineu Serra”, da pesquisadora Juliana
Barretto, publicado em 2022.
93
Outra tendência é o número de pesquisas dedicadas a estudar e escrever sobre os
seguimentos do Daime ditos mais tradicionais, seus personagens. Alguns membros de núcleos
mais tradicionais do bairro Irineu Serra, e de outros centros do Daime em Rio Branco, vem
colaborando com importantes pesquisas sobre o tempo do mestre Irineu, como no caso da mais
completa biografia que temos até agora, o livro “Eu venho de longe”299, de 2011, que é fruto da
dissertação de mestrado em antropologia de Paulo Moreira orientada por Edward Macrae.
Com seus estudos de mestrado e doutorado, ambos orientados por Macrae, Moreira
também tem se consagrado como uma referência obrigatória para qualquer pesquisador que se
inicie no campo dos estudos sobre o Daime. A tese de doutorado intitulada “Estou aqui, eu não
estando como é: a rotinização do carisma de Raimundo Irineu Serra na comunidade do
Daime”300 é uma espécie de “continuação” do trabalho de mestrado, e está para ser publicada
em livro. Ao meu ver é o trabalho mais completo sobre o contexto de intensas transformações
vividas no Daime após a passagem do líder fundador, principalmente no que toca a
consolidação dos setores/extensões que já existiam de forma relativamente independente e a
expansão da doutrina. Tem um capítulo específico sobre a Colônia Cinco Mil, com o qual
interessa-nos dialogar. Comenta também sobre o destino dos “prontos-socorros”, entre outras
passagens que tratam de temas como “Os tradicionalistas e os ecléticos” e “O Daime e a
contracultura”, que nos ajudam a mapear as teias de relações, aproximações e distanciamento
que foram se estabelecendo após a passagem do líder e fundador do Daime, Irineu Serra.
Ao falar sobre “as diferentes segmentações do Daime”301, Moreira ressalta que a maior
parte das pesquisas, desde a década de 1980, é realizada entre os grupos ligados ao padrinho
Sebastião, e que este grupo teria desenvolvido uma cosmologia própria, “com ditames rituais
diferentes da cosmologia do grupo inicial”302. Apresenta seu estudo como um contraponto a
estes, visto que se propõe a enfocar “adeptos da religião ligados inicialmente ao Alto Santo”303.
Esta tendência crescente de trabalhos sobre o Daime realizados no âmbito da vila Irineu Serra
tende a descortinar continuamente a diversidade das culturas do Daime/Ayahuasqueiras em Rio
Branco, e os pontos de identificação e diferenciação entre os grupos e as linhas, processos de
continuidades e descontinuidades inerentes ao movimento da vida e das tradições vivas.
Ao descrever a metodologia da sua pesquisa, Moreira destaca que pôs-se na tradicional
posição do antropólogo “observador participante”, comungando a bebida nos momentos rituais,

299
MOREIRA e MACRAE, 2011.
300
MOREIRA, 2013.
301
Ibid., p. 21.
302
Ibid., p. 22.
303
Ibid.
94
com consciência autocrítica de que, como pesquisador, é “expectador e ator na cena social”304,
posto que, assim como eu e todos pesquisadores aqui já apresentados, Moreira também era
seguidor do Daime quando no decorrer da pesquisa.
A principal questão da tese de Moreira foi “elucidar como a comunidade de seguidores
do daime deu prosseguimento a religião depois da morte do fundador”305, e assumidamente em
sua companhia me oriento nestes termos ao passo que me proponho, parafraseando-o, elucidar
como a comunidade de seguidores do Daime, na Colônia Cinco Mil, deu prosseguimento a
irmandade e doutrina depois da saída de Sebastião, liderança da comunidade, que se deslocou
para a floresta no início dos anos 1980 com um grande grupo — que laços foram mantidos e
rompidos com o processo de deslocamento.
Em seu estudo, Moreira destaca o período de 1971-1985 como de grande importância
na definição dos encaminhamentos da religião, bem como as defecções 306, as separações de
alguns grupos, e a consolidação de parte das extensões existentes como centros independentes
– e neste contexto, a formação da Colônia Cinco Mil e do Pronto-socorro de Wilson Carneiro.
Procurou descrever e fazer um registro etnográfico destes agrupamentos, percebendo então que
o Daime constituía “uma rede de relações, que envolvia laços de parentesco, relações de
famílias, lealdades e muitos conflitos”307. Esta descrição me parece muito pertinente para
definir também os arranjos e tessituras socioespaciais instituídas na Colônia Cinco Mil.
Para entender como a Colônia se insere no movimento de continuidade do Daime após
a passagem de Irineu Serra, e as descontinuidades no sentido das transformações, Moreira se
propôs a investigar essa “intricada rede”308 destacando de forma detalhada, em um dos capítulos
de seu estudo, relatos sobre os acontecimentos que levaram a saída de Sebastião Mota e, com
ele, os participantes da extensão da Cinco Mil e outros simpatizantes, num episódio que Moreira
quis nomear como “uma grande defecção na gestão de Leôncio Gomes.”309 Destaca que, a partir
dessa época, a heterogeneidade de gentes que passaram a fazer parte da irmandade aumentou.
No início predominantemente ex-seringueiros, agricultores e pequenos comerciantes e,
posteriormente, mais funcionários públicos, profissionais liberais, hippies, mochileiros.
Um outro exemplo expressivo da incorporação de novos elementos pela linha do Daime
do padrinho Sebastião, que criou as bases dessa diferenciação entre os grupos, tem relação com

304
MOREIRA, 2013, p. 28.
305
Ibid., p. 22.
306
Ibid.
307
Ibid.
308
Ibid., p. 22.
309
MOREIRA, 2013, p. 17.
95
a maneira como práticas da Umbanda chegaram e passaram a ser pressupostos e fundamentos
ritualísticos para boa parte dos fardados desta vertente. A aproximação do seguimento do Daime
de Sebastião com a Umbanda tem origens nos episódios traumáticos que aconteceram na
Colônia Cinco Mil no ano de 1977, com a chegada de Joselito, seus trabalhos com os Exus, e
um crime que teve grande repercussão em Rio Branco, relacionado com controversos
envolvimentos do jovem estradeiro com mulheres casadas e meninas da comunidade. A
dissertação em Ciências da Religião de Alves Junior310 corrobora com a mitificação da
passagem deste personagem como fundadora de uma aliança entre o Santo Daime e a entidade
denominada Exu Tranca Rua. Ele sintetiza e repete o conhecido enredo sobre a saída de
Sebastião do Alto Santo, a chegada dos hippies na Cinco Mil, a introdução do uso da Santa
Maria, a ida para o Rio do Ouro e Mapiá, mas dedica uma especial atenção ao episódio da
“chegada do Ceará”.
Alves Junior foi uma das lideranças religiosas de uma vertente própria de Umbandaime
denominada Reino do Sol, em São Paulo, mas foi acusado e é investigado por abusos sexuais311,
e por isso foi perdendo prestígio. Uma das vitórias comemoradas pelo Movimento Nacional de
Combate e Prevenção ao Abuso em Meio Ayahuasqueiro (Movaya), após um ano de atuação
como coletivo criado em 2020, foi ter conseguido tirar os dois hinários deste ex-dirigente, mais
conhecido como Gê Marques, do catálogo de produtos vendidos pela Gráfica Rainha (oficial
da Iceflu) .312 Grupos ligados ao padrinho Sebastião também passaram a se mobilizar e, no final
de 2020, criaram frentes de atuação para combater a recorrente violência de gênero, como o
Grupo de Trabalho de Mulheres da Iceflu, para conscientizar e educar sobre questões de gênero
no âmbito da instituição e centros coligados.
Estou certa de que existem muitos outros importantes textos, dissertações, teses e outros
tipos de literaturas que até aqui não foram citadas, com as quais não caminhei por não ter
encontrado no percurso. Considero razoável destacar que, com o crescimento vertiginoso de
pesquisas sobre o Daime nas primeiras décadas do século XXI, e a diversidade das temáticas e
áreas envolvidas nestes estudos, seria impossível fazer todo este mapeamento. Neste interim,
apresentei as primeiras pesquisas sobre o Daime, os textos que têm a Colônia Cinco Mil como
tema e outras fontes acadêmica/literárias que me chegaram até o momento e são citadas e/ou
tomadas como referência neste estudo.

310
ALVES JUNIOR, A. M. Tambores para a Rainha da Floresta: A inserção da umbanda no Santo Daime.
Mestrado em Ciências da Religião. Pontifícia Universidade Católica: São Paulo, 2007.
311
CARVALHO, Eu, leitora. 2021.
312
Rede Social, Instagram @movaya, 2021.
96
Até aqui procurei mostrar/dialogar com uma diversa gama de textos que abordam a
história da doutrina do Daime do mestre Irineu, com foco no seguimento inaugurado por seu
mais conhecido seguidor, Sebastião Mota de Melo, na Colônia Cinco Mil. Vimos que há textos
que circulam como uma espécie de narrativa institucional/oficial dos acontecimentos, como os
de Veras Fróes, Lúcio Mortimer, Alex Polari Alverga, Fernando La Roque Couto, jovens que
chegaram à Colônia Cinco Mil nos primeiros anos de sua formação, estiveram devotos com o
padrinho até o final de sua vida, tornaram-se importantes lideranças e escritores ligados ao
seguimento do Daime de Sebastião.
Também há aqueles textos, entre os acadêmicos ou não, que dão outros tons à malha de
significações, constroem outros conjuntos de enunciados, outras práticas discursivas, como as
denúncias de Castilla, os relatos de Viana e a “turma do pesado”, a pesquisa de Almeida Ramos,
que critica e observa o jugo hierárquico e a subjetividade capitalística do patriarcado ali
reinantes, entre outros. Nota-se que neste amplo acervo de estudos sobre o Daime, aqui
parcialmente apresentados, são adotados diferentes métodos, perspectivas teóricas, literárias e
conceituais, e tudo o que estas escolhas implicam nas análises e reflexões feitas pelos autores
de diferentes áreas.
Inevitavelmente atravessada pela perspectiva historiográfica proposta por Albuquerque
Jr.313, o exercício sinestésico de trazer sabores ao texto, tornou-se importante encarar que era
preciso perseguir uma escrita que, desde dentro, fosse capaz de lidar não só com as cores, o
êxtase ritual, o mel, a versão sonhada de um saber decolonial que leva a um bem viver na
natureza e em comunidade, mas também com as sombras, o gosto acre a partir do Acre, o
amargo das contradições inerentes à condição humana, o picante, o áspero da convivência
comunitária, a acidez expressa nas histórias contadas por quem viveu e as vive, misturado e
contrastado com as versões institucionais, mais adocicadas, idealizadas e canonizadas.

313
ALBUQUERQUE JR., 2014.
97
1.4 Mapas, percursos: contextuando as trajetórias de deslocamentos

A Colônia Cinco Mil está localizada no km 4 da Estrada de Porto Acre (Figura 2), a
pouco mais de 12 quilômetros do centro da capital do Acre, na parte alta da cidade e, apesar de
ser área rural do município de Rio Branco, está a menos de 5 quilômetros do perímetro urbano,
sendo o Alto Alegre o bairro mais próximo.

Figura 2—Croqui: Localização da Colônia Cinco Mil e outros centros ayauasqueiros em Rio Branco/AC

Fonte: Croqui elaborado a partir de “Mapa dos Grupos de Rio Branco” de Goulart, 2004, p. 179.

98
O ramal que leva à Colônia Cinco Mil tem aproximadamente 3 km e tem o nome da
comunidade do Daime, mas também é chamado Ramal Rui Lino. Circundada ao norte e a oeste
por fazendas e pequenas propriedades rurais, ao sul e a leste pelos Igarapés Fidêncio e
Redenção, ou o que ainda resta deles, a Cinco Mil preserva um dos poucos remanescentes de
mata na parte norte de Rio Branco, localidade com uma densa e crescente ocupação popular,
onde se localizam algumas pequenas empresas e indústrias e por onde avançou o desmatamento,
fazendo a substituição das florestas pelos pastos com muito boi e capim braquiária.
Fróes descreveu que são terras remanescentes do antigo Seringal Empresa, que foram
destinadas à formação de colônias agrícolas e negociadas pelo valor de CR$ 5.000,00
cruzeiros.314 Mortimer também destacou a Cinco Mil como resultado do desmembramento do
Seringal Empresa em pequenos lotes de 12,5 hectares, e que “o exótico nome Cinco Mil era
devido ao preço de cada um destes lotes de doze e meio hectares. Custavam cinco mil contos
de réis, quantia modesta que hoje significaria de quinhentos a setecentos reais
aproximadamente.”315 Certamente não era essa moeda (contos de réis) e sim o Cruzeiro (em
vigor de 1942 a 1967 e 1970 a 1986) ou o Cruzeiro Novo (entre 1967 e 1970). Ou seja, acredita-
se que os lotes eram adquiridos ao valor de cinco mil cruzeiros, ainda que nenhuma menção à
essa quantia, nem ao nome “colônia 5000”, nem ao tamanho dos lotes, apareçam nos escassos
documentos consultados referentes a “Licenças de Ocupação à título provisório” de terras
agrícolas na localidade.
Na companhia de Pupim, situo que ainda no ano de 1942, no então Território do Acre,
o capitão-governador Oscar Passos negociou com os antigos herdeiros do Seringal Empresa
para iniciar a formação destas colônias agrícolas nos arredores de Rio Branco, mas foi com o
final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, com a queda nas exportações de borracha, já no
governo de José Guiomard dos Santos, que os seringueiros foram incentivados a migrarem para
as colônias agrícolas316. Seguindo com o relato de Mortimer, sabe-se que

o baixo custo da borracha determinara o fim dos seringais, principalmente dos


que rodeavam Rio Branco. A atividade dos trabalhadores se voltara para a
terra. Agora todos queriam derrubar um pedaço da mata para fazer lavoura,
criar gado e ter produtos agrícolas negociáveis na cidade.317

Silva situa os primeiros seguidores do Santo Daime como integrantes do movimento

314
FRÓES, 1986.
315
MORTIMER, 2000, p. 39.
316
PUPIM, 2016.
317
MORTIMER, 2000, p. 39.
99
das populações de seringueiros, a maioria descendentes de nordestinos que, pressionados a se
deslocarem para as cidades em formação, saíam de suas colocações nas florestas, tendo que
recriar a vida no ambiente pseudourbano e seus arredores ruralizados.318 Em 1945, Irineu Serra
já gozava de algum prestígio público, sendo reconhecido como liderança carismática e bom
rezador. Amigo de políticos influentes como José Guiomard dos Santos, comprou uma parte e
ganhou uma outra grande partilha de terras na antiga estrada Custódio Freire, na antiga colônia
Espalhado, onde formou a comunidade por ele fundada – o Centro de Irradiação Mental Luz
Divina, posteriormente renomeado de Centro de Iluminação Cristã Luz Universal-Alto Santo
(Ciclu–Alto Santo). Hoje o bairro e a estrada levam o nome de Raimundo Irineu Serra. Além
dos trabalhos da irmandade, Irineu

e um grupo de seguidores, alguns que o conheciam dos tempos da colocação


onde hoje se localiza o bairro Vila Ivonete, formaram um grupo de pequenos
produtores rurais, uma das faces do campesinato acreano, que se assemelha
com o campesinato de outras regiões do Brasil e do mundo.319

Sebastião e Rita chegaram na Colônia Cinco Mil com os filhos por volta de 1957. 320
Ganharam uma partilha de terra e passaram a viver e plantar para a própria alimentação e vender
nos mercados de Rio Branco. Mortimer diz que “Sebastião ainda conseguira chegar no Acre
com algum dinheiro trazido do Juruá. Conferiu notas e moedas e viu que davam para comprar
mais uma colônia de cinco mil com os doze e meio hectares, encostada da que fora presenteada
pelo sogro.”321
Nesta época, o processo de registro de terras e documentação no Acre ainda era muito
incipiente, mas os relatos que nos chegam da tradição oral, e alguns dos documentos escritos
relativos à questão da terra, cedidos pela diretoria do Cefluwcs, ajudam a mapear como foi se
dando a configuração territorial da Cinco Mil. Tive acesso a três “Licenças de Ocupação à título
provisório” de terras agrícolas pertencentes ao “Núcleo Colonial Seringal Empresa”, que são
os documentos mais antigos referente à questão das terras na Colônia Cinco Mil. As áreas estão
assim descritas: Colônia Governado[sic] José Rui Lino, fora concedida a Francisco Araújo da
Silva em junho de 1962, transferida para Sebastião Mota de Melo em junho de 1963322; Colônia
Mâncio Lima, concedida a Manuel Gregório de Lima em dezembro de 1962323; um segundo

318
SILVA, 1983.
319
PUPIM, 2016, p. 76-77.
320
MORTIMER, 2000.
321
Ibid., p.42.
322
Governo Territorial Federal do Acre. “Licença de Ocupação à título provisório” N°876-A, 1962.
323
Ibid., N°1247, 1962.
100
lote da Colônia Governado[sic] José Rui Lino, concedida a Manoel Antônio Filho, em junho
de 1962, foi transferido para Sebastião Mota de Melo em junho de 1973324.
Em comum, os documentos de “Licença de Ocupação à título provisório” não detalham
a área e as dimensões dos lotes, pois está descrito que estes “ficam dependentes de posterior
demarcação, para obtenção do título definitivo”325, processo que até agora não aconteceu. O
documento descreve que o “adquirente desta licença”, entre outras coisas, ficava obrigado a
residir e trabalhar no lote, com atividades agrícolas e pastoris; refere-se a um débito contraído
com o governo para aquisição do lote — mas não há referência ao valor de cinco mil cruzeiros
— salienta que apenas após a quitação deste débito poderia hipotecar, vender, transferir o título;
cita a obrigatoriedade de preservação de ¼ da área de mata ou reflorestamento, caso já tivesse
sido devastado; e o plantio de 2 hectares de seringueira.326 Nestes três documentos consta a
transferência das terras, ou melhor, da licença de ocupação, para o Cefluris, no ano 1981.
Os pais de Rita Gregório, e seus irmãos Francisco e Manuel Gregório, com sua esposa
Cristina Raulino, foram os primeiros da família a se deslocarem dos seringais do Juruá para as
terras no entorno de Rio Branco, nas colônias chamadas de Cinco Mil, em meados da década
de 1950. Durante muitos anos, o rádio foi uma importante forma de comunicação entre as
comunidades dos rios e florestas amazônicas, sendo as mensagens radiofônicas um gênero
discursivo que faz o movimento oralidade-escrita-oralidade, no intuito de prestar um serviço
social, como dar notícias de familiares, parentes, tratamentos médicos, questões judiciais etc.327
Quando já estavam estabelecidos na região, Manoel passou uma mensagem pelo rádio para sua
irmã Rita recomendando que a família também viesse para Rio Branco e as novas terras, já que
o trabalho com o látex extraído da árvore da seringueira estava muito difícil, e nas colônias, era
mais promissor.
Quem fez o relato destas trajetórias de deslocamento na Amazônia foi Alfredo. Sobre a
chegada de sua família na Colônia, narrou suas lembranças, as formas como significou para si
as experiências de deslocamento e mudança, o processo de transformação do espaço, de floresta
e seringal para a formação dos campos, numa época em que a derrubada das matas era sinônimo
de progresso e desenvolvimento.

324
Governo Territorial Federal do Acre. “Licença de Ocupação à título provisório”, N° 883, 1962.
325
Governo Territorial Federal do Acre. “Licença de Ocupação à título provisório, 1962.
326
Governo Territorial Federal do Acre. “Licença de Ocupação à título provisório”, 1962.
327
OLIVEIRA, N. M. S. Texto para ser falado: um estudo sobre o gênero discursivo mensagem radiofônica
utilizado por ribeirinhos de Cruzeiro do Sul – AC /2014.
101
“A Cinco Mil no começo mesmo já tem este nome porque ela faz parte do Seringal
Empresa, cujo Seringal Empresa era situado na beira do rio onde o começo desta
cidade aqui foi justamente neste Seringal Empresa que se estendia até aqueles
confins lá das colônias. Aí foi sendo colonizado, destronado, quando o meu tio seu
Manuel Gregório, irmão da minha mãe, na situação da demarcação só tinha aquela
área ali beirando o Fidêncio e o Redenção e ele foi e negociou aquelas colônias ali.
Doou aquela parte ali para o Sebastião Mota de Melo, meu pai, e a gente morou ali
muito tempo, aquelas estradas não corria carro, só no verão quando dava uma
ajeitada, que conseguia ter transporte, mas era de pés. Era uma época dos começos,
eu vendo assim que as feiras, na época, a gente adquiria algum recurso, o arroz era
pilado no pilão, ele meu pai e o vô Nel, eles ficavam ali pilando o dia inteiro, tum
tum tum até ter um saco de arroz pilado, jogava nas costas, e vinham vender aqui
na vila Rio Branco. E foi aumentando, se destonando e foi ampliando também, que
os caminhos ali tudo era de carroça, tinha muito carreto de carro de boi na época.
Aí motivado pela família ter vindo para cá, o vô Nel como já tava falando, já estava
ali na Cinco Mil, minha mãe começou a dizer que queria vir, ele veio, meio
constrangido porque lá é dez vezes mais farto do que aqui, era tudo muito mais
assim, fácil de viver, nós chegamos aqui, a gente não conhecia feijão, arroz, a gente
só conhecia aquelas comida carne, peixe e farinha. Nós chegamos ali era só floresta,
floresta e estrada de seringa, mas como o preço da seringa caiu, virou todo mundo
para o assunto de agricultura, que foi com o que acabou com a floresta daqui, a
floresta começava aqui em Rio Branco mesmo, era tudo mato. Aí foi a gente
conseguiu aumentar ali os campos, criando uns bois, fazendo ali um manejo de vida
e posteriormente desenvolvendo a doutrina. Então nós sofremos muito, meu pai
aqui quase não comia quando chegou aqui, pra ele comer um arroz era um sacrifício,
peixe não existia esta fartura, o peixe aqui que aparecia, era quando vinha do Purus,
um peixe seco, aí a gente ia no mercado, comprava seco e quando ele trabalhava no
terçado num tinha tempo nem de ir pescar nos igarapés, mamãe pescava e daí nós
fomos aprumando a vida né, ficando aí.”328

Ao comentar que “o preço da seringa caiu, virou todo mundo para o assunto de
agricultura”, Alfredo faz uma síntese da política territorial iniciada na década de 1950, a
formação das colônias agrícolas que impulsionou o deslocamento de famílias de seringueiros e
castanheiros das florestas e seus rios para Rio Branco, onde estas pessoas iam sendo
direcionadas para o trabalho com a atividade agropecuária, madeireira etc. Na jovem cidade,
ainda uma vila, as atividades comerciais se concentravam em alguns pontos como as feiras,
onde as produções das colônias eram vendidas. Muitas destas famílias que chegavam dos
seringais vão morar nos assentamentos rurais nas margens da vila Rio Branco, e era uma
significativa mudança no modo de vida, da floresta e do extrativismo ao trabalho rural com
plantios. Como diz o poeta trovador ao cantar as transformações do espaço amazônico,

328
A.G.M., 2019.
102
“castanheiro, seringueiro já viraram até peão, afora os que já morreram como ave de
arribação”329.
Manuel Gregório, o vô Nel como ficou conhecido na comunidade, tornou-se um
importante personagem para aquele grupo, sendo professor de muitas gerações que vieram
posteriormente, admirado sobretudo por seus conhecimentos em relação aos aspectos
fundamentais da vida na floresta, a produção de alimento, a ciência de extrair da natureza com
o trabalho, o fruto do seu sustento. Manuel Gregório e Cristina Raulino são descritos como um
casal que era muito unido, pessoas muito simpáticas, receptivas, hospitaleiras e generosas.
Tiveram muitos filhos, filhas, algumas delas se casaram com filhos mais velhos de Sebastião e
Rita, seus primos, formando uma grande aliança intrafamiliar com muitos netos e netas.
Ao relembrar as histórias que seu pai nos seringais do Juruá, Alfredo relatou sobre o que
Albuquerque categoriza como saberes espirituais330 do padrinho Sebastião e seus dons de cura.
Narrou que Sebastião, no tempo em que viveu na floresta, tivera contato com o espiritismo e
fora iniciado nos conhecimentos sobre incorporação de médicos espirituais, cirurgias e outros
trabalhos em prol da saúde daqueles que o procuravam. Na narrativa que segue, Alfredo faz
rápida alusão aos encontros de Sebastião com o personagem que ficou conhecido como mestre
Osvaldo, um dos seus primeiros professores nos estudos da espiritualidade.

“Meu pai trabalhava com os guias de luz, com os guias de cura, meu pai ele era
visionário, ele era vidente e ouvidente. Lá ele se desenvolveu, tinha uma pessoa que
conhecia um pouco de mediunidade, e se desenvolveu e lá, e lá mesmo ele fez
muitas curas, naquela época que não tinha doutor, era seringal, os medicamentos
que pareciam e alguns remédios assim pra vermes, alguns que tinham o nome tudo
diferente. E como era atrasado assim, os doentes procuravam muito ele, a casa dele.
E ele fazia os tratamentos, ele trabalhava com o professor Antônio Jorge, que era o
guia de cabeça dele, uma entidade muito forte e potente, que tornou-se familiar
entre nós, a mamãe quando tinha qualquer problema, ela já se pegava com ele e eles
realizavam bastante curas, e ele trabalhava com o doutor Bezerra de Menezes, um
médico conhecido nos trabalhos espirituais, e fazia cirurgias. Ele realizou várias
cirurgias, de hérnia, de qualquer coisa que chegava lá com Deus consentia a cura,
ele tinha um poder muito grande com a espiritualidade.”331

Mortimer332, Fróes333 narraram que o encontro de Sebastião com Oswaldo foi marcante
na sua formação. Pouco se sabe da trajetória deste homem que, pelo que nos chega destas

329
FARIAS, V. Sagas da Amazônia. Rio de Janeiro: LANÇA/ POLYGRAM, 1982. DISCO DE VINIL.
330
ALBUQUERQUE, 2021.
331
A.G.M., 2019.
332
MORTIMER, 2000.
333
FRÓES, 1986.
103
memórias escritas, era migrante vindo de São Paulo, e foi orientador na iniciação espiritual do
Sebastião, seu compadre, amigo e conselheiro. Albuquerque destaca que a partir da vivência
com mestre Oswaldo a presença de “professores-espíritos” vão adentrar na vida de Sebastião,
e “passaram a se tornar parte da família numa relação de simetria entre encarnados e
desencarnados”.334 Couto narrou que “com o Mestre Osvaldo, o Sr. Sebastião aprendeu a
trabalhar com mesa de atuação espírita, onde incorporava principalmente os guias José Bezerra
de Menezes, e o professor Antônio Jorge”.335 Estes eram os guias de luz, um médico e outro
professor, com quem Sebastião trabalhava nas curas e doutrinações que realizava.
Albuquerque comenta que Sebastião, apesar de não ter sido escolarizado, foi aluno de
muitos mestres, professores e professoras, humanos e não humanos, antes de se tornar também
um líder e professor. As primeiras professoras na infância e juventude foram as árvores, os
animais, o rio, a floresta. Albuquerque destaca que

Aqui entra em ação uma noção ampliada não apenas de educação, mas
também dos múltiplos agentes mediadores da formação, que tanto podem ser
humanos, tradicionalmente chamados de professores, mas também não
humanos a exemplo da própria floresta ou das entidades que nela habitam,
com quem também é possível aprender coisas.336

Segundo Mortimer, para o menino Sebastião que crescia nos seringais, “o caudaloso Rio
Juruá, pródigo em peixes, era outra fonte de estudos e mistérios.”337 Antes de conhecer o Daime,
Sebastião também teve contato com a Bíblia, através do sogro, Idalino Gregório, que todas as
tardes gostava de cantar hinos, fazer oração, costume que trouxera de sua terra natal, o Rio
Grande do Norte. Por isso, apesar de não saber ler, Sebastião tinha apreço pelas histórias
bíblicas e era conhecedor das parábolas. “Sebastião tinha sede de conhecimento e ouvia com
interesse as passagens e interpretação bíblica comentadas pelo velho.”338
Alfredo narra que a trajetória de Sebastião como líder espiritual antecede os trabalhos
no Daime, tendo ele, ao lado de mestre Oswaldo, ficado conhecido naquelas porções do Juruá
como um poderoso rezador. Tão logo Sebastião chegou na Colônia Cinco Mil, não demorou
muito passou a realizar os trabalhos espíritas que aprendera desde jovem339. Outros colonos
foram chegando nas terras, e muitos deles passaram a frequentar as sessões espíritas de
Sebastião.

334
ALBUQUERQUE, 2021, p. 73.
335
COUTO, 1989, p. 91.
336
ALBUQUERQUE, 2021, p. 67.
337
MORTIMER, 2000, p.14.
338
Ibid. p.45.
339
ALBUQUERQUE, 2021, p. 73.
104
“E o papai continuava por aqui ainda, trabalhando com os guias dele. Inda fez
muitas curas aqui, foi, tinha muita gente que vinha aqui, botava muita fé nele, a
gente já tava no Daime, aí a gente foi no Manezinho, pai do Francisco, nunca tomou
Daime mais tinha uma fé muito grande nos guias né, do meu pai, e ai foi
desenvolvendo os trabalhos com o Santo Daime, as curas, os benefícios, a união.”340

Contam que Cristina Raulino, desde esta época, já o acompanhava como médium nos
trabalhos de mesa e atendimentos espíritas que fazia junto às famílias e colonos da Cinco Mil.
Ela foi uma das importantes lideranças femininas quando da fundação e formação das
comunidades da Cinco Mil, Rio do Ouro e Mapiá, sendo madrinha para muitos afilhados.
Parteira, pegou várias crianças nas comunidades do Sebastião, que geralmente nasciam na força
do Daime, um costume que vem desde o tempo de Irineu Serra. 341 Entre as mulher parteiras da
Colônia Cinco Mil as mais lembradas foram madrinha Cristina, dona Elza, Albertina Corrente,
entre outras, que ajudaram e facilitaram a chegada ao mundo de muitas crianças.
Ao que parece, não demorou muito, depois que chegou em Rio Branco, Sebastião
precisou buscar ajuda e foi procurar atendimento em médicos e em centros espirituais para se
curar das dores descritas por Fróes como “um desconforto no esôfago, com sensação de
engasgos constantes e uma baba viscosa”342. A doença o levou ao “encontro com o Daime: ‘o
professor dos professores’”343, como destrincha Albuquerque na rota dos mestres que formaram
Sebastião como um filósofo da floresta. Mortimer narrou que “na busca de um aperfeiçoamento
religioso, descobriu um Centro Espírita no bairro 6 de Agosto em Rio Branco. Era muito longe
e difícil. Com raridade frequentava alguma seção e aprendeu um pouco mais.”344 Nestas
andanças por Rio Branco ficou sabendo da existência de um famoso curandeiro da região que
atendia pelo nome de Raimundo Irineu Serra.
Alfredo narrou que Sebastião provavelmente procurou Irineu Serra no Alto Santo pela
primeira vez ainda no final da década de 1950, pois consta que foi na época que o Irineu fazia
a viagem à sua terra natal, São Vicente de Ferrer, no Maranhão. Como não o encontrou, o
destino o levou a um outro centro do Daime, onde conheceu o Daime pela primeira vez: era o
Centro Espírita de Culto e Oração Casa de Jesus Fonte de Luz. Este é o centro do Daime mais
antigo da Barquinha fundada pelo mestre Daniel Pereira de Matos. Este antigo seguidor do

340
A.G.M., 2019.
341
Ver: “O parto na luz do Daime: corpo e reprodução entre mulheres na Vila Irineu Serra”, de Juliana Barreto.
342
FRÓES, 1986, p. 44.
343
ALBUQUERQUE, 2021, p. 77.
344
MORTIMER, 2000, p. 46.
105
mestre Irineu, em meados da década de 1940345, recebera as instruções para fundar um trabalho
de caridade espírita numa aproximação maior com os cultos de matriz africana. Foi apoiado
pelo mestre Irineu com cinco litros de Daime para que iniciasse o cumprimento de sua missão,
o seguimento de seu trabalho.346 Este movimento pioneiro de mestre Daniel pode ser
considerado a primeira ramificação ou seguimento do Daime, que surgiu a partir do núcleo
criado por Irineu Serra, e a primeira aproximação mais evidente do Daime com as ritualísticas
e entidades da Umbanda.
Nesta época, o centro já era dirigido pelo senhor Antônio Geraldo, e ali Sebastião
frequentou algumas sessões, até que nos anos seguintes, ao que consta no ano de 1965, quando
já estava muito doente, teve seu encontro com Irineu Serra, que mudaria toda sua história de
vida e de sua família. Alfredo assim narrou:

“E teve um problema sério nele, que fez com que ele procurasse um centro espírita
de mais força para resolver aquele problema, era como que foi, uma demanda né,
jogaram nele, pegou um problema na goela dele, sofria muito com aquilo. Nisto nós
procuramos os centros aqui, os centros diziam que não davam jeito, até que alguém
falou do mestre Irineu pra ele, e nós fomos até o mestre Irineu. Isso foi na época
que o mestre Irineu estava fazendo uma visita ao Maranhão, e daí a gente foi na
Vila Ivonete, na época era o primeiro mestre, era o primitivo da Vila Ivonete, Seu
Antônio Geraldo. Aí participamos lá, um trabalho, dois, seu Antônio disse para
passar no mestre Irineu que era o Padrinho geral desta história do Santo Daime,
história do Daime. E aí foi quando o mestre voltou e aí nós fomos lá de novo. O pai
foi e recebeu, mirou bastante e recebeu uma cura, importante, não só recebeu mais
viu toda uma história espiritual entre ele e o mestre Irineu, o que se afirmara ali
como um tempo novo, uma hora importante assim, para ver o que a doutrina
realmente estava anunciando, que a doutrina estava profetizando, que a doutrina é
uma espécie de profecia, que está bem colocada, que no final dos anos dois mil, né?
Nós chegamos lá ainda em 1965 até 1971, e convivemos com o mestre um pouco
de tempo, eu era ainda novo, acompanhava, mas meu pai tinha umas conversas, uns
reservado lá com o mestre. O mestre repassava muita história para ele até do que ia
acontecer na continuação... do próprio povão de lá depois ia se desmanchar, se
desunir...”347

Narra-se que na Colônia Cinco Mil, Sebastião foi se desenvolvendo não apenas como
agricultor, mas também como médium e rezador, juntando um pequeno grupo de pessoas que
participava dos trabalhos de mesa que eventualmente ele realizava. Em meados da década de
1960, Sebastião conheceu o Daime do mestre Irineu, passou a frequentar os trabalhos no Alto

345
MOREIRA e MACRAE 2011, p.328.
346
Ibid, 2011, p. 328.
347
A.G.M., 2019.
106
Santo e foi se fortalecendo na Cinco Mil como liderança carismática. Pelo que nos chega, depois
que Sebastião passou a frequentar o Alto Santo, não demorou muito já era considerado um
soldado de confiança no batalhão de Irineu Serra, tanto que entre 1968 ou 1969, tornou-se um
dos feitores da sede.
Passou a realizar na Cinco Mil os feitios e pequenos trabalhos com o Daime, autorizados
por Irineu Serra, numa época em que Irineu fora consentindo a abertura de núcleos familiares
e de preparo da bebida em diferentes áreas de Rio Branco. Couto narra que o Daime produzido
por Sebastião e seus companheiros era levado para a sede, que Sebastião “mantinha um trato
com o Mestre, ou seja, que cinquenta por cento (50%) do Daime produzido por ele deveria ser
entregue ao Alto Santo.”348
No início Sebastião realizava os pequenos trabalhos em espaços simples, na sala de sua
casa e depois numa tapera coberta de palha construída para este fim, feita a partir da estrutura
da sua casa antiga. Nos trabalhos oficiais, os membros destes setores e núcleos familiares se
reuniam no Alto Santo, nas ocasiões que aconteciam os festivais, e toda a irmandade se juntava
novamente. Alfredo narrou assim:

“Nos dias dos trabalhos oficiais a gente ia para lá. Isso foi dando o desenvolvimento
da Colônia Cinco Mil. Aí a gente trabalhou um tempo no feitio lá no mestre Irineu,
na época era muito simples, só se cozinhava uma vez o jagube, tirava bem pouco
Daime, batia doze panelas por dia, no final do dia era um trampo, era só uma vez
cozinhado, aí já jogava fora, então tinha uma agilidade grande no feitio, entrava na
bateção duas horas da manhã ia sair dali onze horas do dia. Assim a gente fazia o
Santo Daime, botava nas costas, andava este trajeto todinho para entregar o Daime.
Como na época ninguém falava em dinheiro, num tinha esta situação financeira,
não entrava nenhum recurso, a gente fazia os daimes a custa da gente mesmo, com
aquele recurso que a gente tinha, muitas vezes ia pra mata o dia todo, buscando
folha, e a gente não tinha mais que uma farofa de feijão, as vezes até sem óleo,
depois é que foi melhorando, e a equipe do mato levava uma lata de doce, umas
bolacha, e ai a gente foi desenvolvendo a igreja.”349

Francisca Corrente, uma das antigas seguidoras do Daime, contou-me como conheceu
mestre Irineu no início do ano de 1971, pouco antes de sua passagem, e suas lembranças deste
tempo em que sua família já frequentava a Cinco Mil, mas todos estavam ligados ao Alto Santo.

“Porque tinha bastante gente que levava Daime, Loredo, Pedro Fernandes,
Francisco Fróes, mas ele vai passar a limpo, e deixa o de Sebastião pra cura. Que
nesta época assim que eles conheciam ele por Sebastião Idalino, não era Sebastião
Mota, que o mestre gostava de separar o Daime dele pra cura. O Daime do Sebastião
348
COUTO, 1989, p. 93.
349
A.G.M., 2019.
107
Idalino era pronto pra cura. Aí a Peregrina me perguntou: você conhece ele? Eu
disse, olha madrinha, conhecer eu não conheço. – ‘Vocês faz trabalho lá com ele
é?’ Aí eu falei, já, já fiz trabalho lá com ele já, que eu tinha meus filhos doente, fui
lá, levei eles lá, pra ele rezar nos meninos. Ele rezou, o menino ficou bom, graças a
Deus. Aí a gente sempre vai lá, visitar, já tomei Daime lá. – ‘É bom o trabalho lá?’
É uma beleza, muito bom, muito positivo mesmo. – ‘Pois é Francisca, então assim,
eu tenho muita dó de vocês, que tem muita boa vontade, mas é muito longe pra vir
pra cá, muito difícil.’ Era maninha, ali depois que a gente vira assim pra ir pra lá, a
gente pegava lama até os joelhos, na lama, na lama mesmo até chegar lá. Aí ela
falou: - ‘Pois é, então você faz assim, estes trabalhos paralelo que tem assim, que
não é oficial, se você quiser ir pra lá, você vai, e pra cá você vem nos festivais.’ Era
tudo ligado, uma coisa só.” 350

Na década de 1960 a irmandade de Irineu Serra ia crescendo e muitos de seus membros


moravam em colônias agrícolas mais distantes do Ciclu–Alto Santo. O acesso até as colônias de
Irineu era difícil até o início da década de 1990 351, sobretudo no período, quando as distâncias
eram percorridas a pé. Desta forma algumas famílias de seguidores vão receber autorização de
Irineu Serra para fazerem os trabalhos com o Daime em suas casas, em pequenos grupos. Desta
forma sabe-se que foi ainda com o mestre Irineu em vida, e designando os rumos da irmandade,
se constituíram os primeiros núcleos de Daime fora da sede do Ciclu–Alto Santo. Durente muito
tempo eu imaginava, a partir das versões que eu conhecia de ouvir as conversas, nas rodas onde
os fardados mais antigos procuravam situar os mais novos, o seguimento de Sebastião teria sido
o único a romper com o Alto Santo e trilhar um caminho independente. Goulart sugere que

A dificuldade de locomoção até o Alto Santo, entretanto, não parece ter sido
o único motivo pelo qual o mestre Irineu autorizou o padrinho Sebastião a
dirigir trabalhos com o Daime na Cinco Mil. Ele considerava, como podemos
perceber através de sua atitude, que Sebastião Mota estava em condições de
preparar adequadamente a bebida – um sinal de que ele possuía uma posição
de destaque entre outros discípulos do mestre Irineu.352

Na companhia de Moreira e Macrae, podemos considerar que não apenas Sebastião, mas
um conjunto de pessoas eram reconhecidas por Irineu como capazes de guardar e conduzir os
trabalhos do Daime. Alguns deles, como Raimundo Ferreira (Loredo) na colocação Saituba
(hoje Barro Vermelho), Pedro Fernandes na estrada da Apolônio Sales353 também faziam feitios
para ajudar na produção de Daime da sede no Alto Santo, que já contava com centenas de

350
F.C., 2022.
351
FROES 1986; GOULART, 2004.
352
GOULART, 2004, p. 67.
353
MOREIRA e MACRAE, 2011, p. 330.
108
membros frequentando os festejos oficiais. Segundo levantamento de Moreira e Macrae,
somam-se 7 ou 8 setores, que podem ser considerados os embriões da expansão do Daime.
(Figura 3) Estes núcleos familiares, denominados por eles de extensões354, reuniam membros
da irmandade mais próximos para fazerem realização dos feitios, trabalhos de concentração ou
atender doentes que o Daime procurassem, como no Pronto-socorro do Bosque, de Wilson
Carneiro.

Figura 3— Croqui: Setores de Daime na Vila Rio Branco e colônias arredores em 1960.

Fonte: Croqui elaborado a partir de “Croqui do entorno de Rio Branco final década de 50 (Mapa das extensões
do Daime na década de 60)” de Moreira e Macrae, 2011, p. 329.

354
MOREIRA e MACRAE, 2011.
109
Sobre a denominação Pronto-socorro, Moreira e Macrae sugerem que o termo era usado,
de forma geral, para se referir aos centros/setores/extensões ligadas à sede no Alto Santo. Neste
sentido sustentam que “o primeiro ‘Pronto-socorro’ ou extensão do Daime teria sido o de Daniel
Pereira de Matos (fundador da Barquinha) em meados da década de 1940.”355 Os pesquisadores
comentam que “Fala-se que algumas vezes Mestre Irineu se referia a estes centros como
‘Prontos-socorros’”356. Tem-se notícias de que, na época do seu Leôncio, foi instituído um outro
Pronto-socorro, do senhor Joaquim Baiano e sua esposa, dona Maria Luiza, no bairro Aviário,
em Rio Branco357.
Aqui mantenho a perspectiva que se apresentou em campo com maior frequência onde,
para se referir aos primeiros núcleos de Daime de mestre Irineu fora do Ciclu–Alto Santo, usa-
se o termo setor/setores ao invés do termo extensão/extensões. A designação Pronto-socorro se
refere ao núcleo entregue a Wilson Carneiro, e não uma expressão genérica sinônimo de
núcleos/extensões ligados ao Ciclu da década de1960. Desta época, além dos já citados, tinha
um setor no ramal do Limoeiro de José Nunes, no Ca-te-espera de Manuel Cabeludo, o setor da
família Granjeiro, que chegaram à doutrina ainda na década de 1950, mas também moravam
longe do Alto Santo, dificultando a frequência quinzenal nas concentrações marcadas para os
dias 15 e 30 de cada mês. Ainda fruto desta primeira expansão do Daime feita por Irineu, surgiu
a extensão de Porto Velho, o Centro Eclético de Correntes da Luz Universal (Ceclu), que foi o
primeiro centro do Daime fundado fora de Rio Branco.
Wilson Carneiro de Souza (1920-1998) é um dos importantes personagens na
cartografia da Colônia Cinco Mil, tem uma história familiar parecida com a do amigo Sebastião.
Nasceu nos seringais do município de Tarauacá, Acre, também filho de pais cearenses. Passou
a infância na floresta, foi seringueiro e marreteiro, que é o pequeno comércio ambulante nos
rios. Foi numa destas ocasiões em que percorria os rios a marretar que avistou no barranco a
jovem Zilda Teixeira, com quem se casou na década de 1940. Juntos se deslocaram para Rio
Branco já com alguns dos seis filhos que tiveram. Quando chegaram em Rio Branco em 1951,
Wilson trabalhou como magarefe, comprando animais de corte nas colônias da zona rural, para
cortar e vender a carne na vila e mercados de Rio Branco. Depois de muitos anos na luta, por
volta de 1963, estabeleceu-se como pequeno comerciante fixo numa mercearia de “secos e
molhados” no Bairro do Bosque.

355
MOREIRA e MACRAE, 2011, p. 328.
356
Ibid.
357
MOREIRA, 2013.
110
Raimundo Nonato, seu filho, narra que um dia passava tangendo os porcos e bois na
Estrada da Colônia Custódio Freire, onde já ficava o Alto Santo e a casa de Irineu Serra. Tendo
avistado exemplares da bela criação, chegou a negociar com ele uns suínos, com o direito a
pechinchar no preço, como bom comerciante que era. “Ele nem imaginava que, passados alguns
anos, a cura de seu filho viria daquelas mesmas grandes mãos que lhe vendera os suínos.”358
Alfredo ao lembrar do tempo do mestre Irineu, narrou sobre este contexto inicial, e cita
a existência de “vários setores”.

“O Mestre tinha uma união grande, na época chegou a ter assim vários setores, até
Porto Velho ele tinha, a união assim, comunitária, era bem comunitária o Mestre
Irineu. O Mestre então desenvolvia lá e nós recebemos as ordens de poder fazer
alguns trabalhos em casa, na Colônia Cinco Mil, e foi nestas idas no Mestre Irineu
que a gente conheceu também o Padrinho Wilson, e a gente houve uma união muito
boa, meu pai e família Carneiro, foi um tempo que nós fomos crescendo, e o Mestre
autorizou que a gente fizesse os Daimes para ajudar no estoque de lá. Aí a gente
começou, o papai se alistou no batalhão do mestre Irineu, alistou várias pessoas da
Colônia Cinco Mil neste batalhão e no batalhão da folha. ”359

Do Ceclu de Porto Velho muitos novos preceitos influenciaram os adeptos do Cefluris


nos seus primeiros anos de fundação na Colônia Cinco Mil, como por exemplo a presença
feminina nos feitios, o uso da Bíblia e de uma estátua de Nossa Senhora da Conceição na mesa,
“a substituição de hinários nas datas do calendário ritual, hinários com mais de 132 hinos dos
estipulados como limite por mestre Irineu, mudanças na farda e no tamanho do maracá”360 são
algumas delas. Esta descentralização pioneira provavelmente contribuiu, segundo Moreira, para
a pouca uniformização dos detalhes ritualísticos. Ele destaca que o setor do Daime em Porto
Velho foi o primeiro a adotar o termo eclético na sua designação.
Wilson ia com certa frequência à Rondônia para comprar mercadorias que revendia em
Rio Branco, e nestas viagens costumava visitar o casal Virgílio e Francisca, dirigentes do Ceclu.
Construíram uma amizade e, acredita-se que devido à proximidade entre seu Wilson e seu
Virgílio, houve muitas trocas entre estes dois grupos, unidos pela insígnia do eclético. Quem
narrou para Moreira foi Geraldo Freitas, uma das lideranças do Ceclu, em 2010: “Nos dias do
aniversário do Seu Virgílio, ele vinha bater aqui para apreciar o hinário. O dia do aniversário
do Seu Virgílio era 11 de abril. Sempre que seu Wilson podia, vinha para o aniversário do Seu

358
MOURA, J.L.P. As origens de uma casa de cura do Daime. Revista Marupiara. Dossiê Diversidade
Cultural e Religiosa na Região Norte. Ano 2, N. 3, p.171-193, 2018.
359
A.G.M, 2019.
360
MOREIRA,2013, p. 201.
111
Virgílio.”361 No contexto de desvinculação do Ciclu–Alto Santo alguns anos após a passagem
de Irineu Serra, o Ceclu e o Cefluris teriam se apoiado mutuamente e estabelecido uma “sintonia
identitária”362.
Wilson e Zilda buscaram o Daime e o mestre Irineu no São João de junho de 1962,
buscando um tratamento para seu filho mais velho José Teixeira que, ainda bem jovem,
apresentou graves problemas de saúde mental, que levaram seus pais a buscarem todos os tipos
de ajudas médicas e espirituais, até ouvirem falar de Irineu Serra. Zilda Teixeira de Souza
(1920-1986) é uma das mulheres do grupo pioneiro do padrinho Sebastião na Colônia Cinco
Mil. Ela acompanhava Wilson Carneiro nas sessões de Daime no Alto Santo desde o início dos
anos 1960. Também nascida e criada nos seringais amazônicos, para além de uma vida
resignada no matrimônio, cuidando dos filhos e afazeres domésticos, trabalhava como
costureira, tocava violão, bem como ensinava os primeiros acordes às crianças da comunidade.
Era rezadeira e benzedeira, conhecedora de várias plantas e seus usos.
Gecila Teixeira, uma das filhas de dona Zilda, sempre gosta de se referir a sua mãe como
senhora de grande sabedoria: “Mamãe era índia, índia mesmo né...? Ela sabia, conhecia muito
destas coisas de usar as rezas, as ervas e eu fui aprendendo com ela... Mamãe era muito na dela,
silenciosa, mas entendia tudo, via tudo, sabia de tudo.”363 Nascida no mesmo ano que Sebastião
e Wilson, Zilda foi uma das homenageadas no ano de 2020, ano que marcou as comemorações
dos centenários dos padrinhos Sebastião e Wilson, mas também foi marcado pelo início da
pandemia de covid-19, que impôs o afastamento, o luto e também a revolta com o agravamento
das crises e colapsos que vivemos como sociedade, sobretudo no desgoverno de Jair Messias
Bolsonaro (2018-2022). Na Colônia Cinco Mil, o centenário da madrinha Zilda, em março, foi
o último trabalho realizado de forma presencial, antes de um longo período de suspensão dos
trabalhos como medida de prevenção.
Teve início a “era das lives”, o trabalho remoto foi inventado e, de repente, aquela que
eu conheci como uma religiosidade esotérica, discreta, que evitava fotografias dos rituais e
aparições na internet, estava reconfigurando os rituais para adaptar-se frente às câmeras,
estabelecendo protocolos de participação e comportamentos online. Albuquerque observou que
“com os trabalhos de Daime suspensos nos centros religiosos, cada casa converteu-se em um
igreja uma vez que vigorou, neste período, um estado de confinamento social”.364 Não demorou

361
MOREIRA, 2013, p. 203.
362
Ibid., p. 204.
363
G.T., 2021. Narrativa de Gecila Teixeira gravada no dia 11 de março de 2021, residência na Vila Carneiro,
Rio Branco, Acre.
364
ALBUQUERQUE, 2021, p. 34.
112
muito, se diversificaram os canais nas redes sociais e um boom nas cibercomunicações no
Daime aconteceu, diversificando as formas de produção e circulação dos discursos.
Como vimos o Wilson Carneiro procurou o Daime pela primeira vez em 1962, em busca
de uma cura para seu filho mais velho, e é o próprio José Teixeira quem nos conta a história:

“Rapaz, como é que eu cheguei no Daime é uma história muito longa. (...) O que
aconteceu comigo é assim: tinha tudo nas minhas mão, médico do quartel do
Exército, o meu médico da minha professora que lá dos estudos, e o doutor Ary,
que fez esse sangue seguir, se não fosse ele, ia ficar aleijado. Aí ele chamou – ‘seu
Wilson, não vamos lhe enganar não, nós não temos mais condições, seu filho não
tem mais condições, leve seu filho pra morrer em casa’. Era chá, era aquele outro,
era gergelim. Aí tudo que ensinava pra minha mãe, minha mãe fazia. Aí quando
chegou o major Horderness disse: ‘seu Wilson só tem uma pessoa que pode fazer
seu filho ficar bom: mestre Irineu’. Ih! O pessoal pularam do outro lado da rua,
papai e mamãe, porque era muita das coisas que falavam do mestre Irineu. Aí com
um dia Horderness disse ‘seu Wilson! Não é coisa que o senhor tá pensando não,
eu sou um major da polícia militar do Estado do Acre, guarda territorial’, como
quem diz... Assim mesmo me levaram, no primeiro Daime, no segundo, no terceiro
recebi meu tratamento completo. Eu tinha 18 anos, marcado pra morrer. Mas graças
a Deus chegou essa luz, eu cheguei a alcançar essa graça em 1962. Foi trabalho
mesmo. Eu acho que eu tive um grande privilégio óh, de ser curado naquela casa.
Aí o médico... o papai disse ‘Médico! O Daime curou meu filho’, disse, ‘seu
Wilson! O que cura é a fé.’ Eu tomei Daime na mão do Mestre, mas não lembro.
Era muito novo, e o negócio tava... era os maléfico que queria me levar óh cara!
Não, eu, eu tava no meu inconsciente, num vou mentir”365.

Agradecidos pela melhora de seu filho, Wilson e Zilda foram se perfilando e se juntando
ao povo do Alto Santo, onde passaram a frequentar. A fama de Irineu Serra como um curador
se espalhava pela Rio Branco da década de 1950 e 1960, enfrentando também todo o
preconceito e desconhecimento. Mestre Irineu, um homem preto, forte e de alta estatura, era
conhecido por curandeiro, mas também como macumbeiro366, um termo que foi durante muito
tempo usado de forma pejorativa para se referir aos adeptos dos cultos de matriz africana.
Rocha comenta que “Mestre Irineu, como milhares de pessoas de cor que, assim como
ele, tentavam expressar suas crenças, cultuar suas divindades e praticar seus saberes ancestrais,
fora perseguido, punido.”367 Moreira e Macrae368 destacam as influências destes elementos de
matrizes afro-brasileiras e indígenas, como o uso de tabaco, os chamados, os atendimento com
reza e defumação, que eram mais presentes nos primeiros anos de organização do culto, mas

365
J.T.S., 2021.
366
GOULART, 2004, p. 56.
367
ROCHA, 2021, p. 299.
368
MOREIRA e MACRAE, 2011.
113
foram sendo pouco a pouco minimizados, possivelmente como estratégia para melhor se
posicionar, se aproximar mais do modelo das irmandades católicas, para ter o reconhecimento
e aceitação social necessária para que não proibissem a prática. “Era muita das coisas que
falavam do Mestre Irineu”369, como sintetizou José Teixeira. Nonato também comentou:

“Contavam muitas coisas do mestre Irineu... Papai tinha um comércio e na frente


do comércio, tinha uma praça de carro, você sabe que é uma coisa certa: motorista
e estudante só não conversa peixe frito… Aí papai ouvia tudo que os motoristas
falavam sobre mestre Irineu.”370

Vimos que Wilson foi um dos escolhidos por Irineu Serra para dirigir um dos setores
abertos na segunda metade da década de 1960. Pelo que é narrado, em 1966, o mestre Irineu
entregou a Wilson a missão de amparar e cuidar dos doentes e necessitados que o procurassem,
concomitante à época em que o Daime se desligava oficialmente do Círculo Esotérico da
Comunhão do Pensamento (CECP). O CECP é uma ordem esotérica iniciada no Brasil, em
1909, fundada pelo português Antônio Olívio Rodrigues, e que propunha entre outras coisas,
“promover o estudo das forças ocultas da natureza e do homem”371, através de sessões semanais
de meditação, leituras e cursos.
Como destacam Moreira e Macrae372, os primeiros estudos de Irineu com a bebida
aconteceram em Brasiléia, na companhia dos irmãos André e Antônio Costa, no chamado
Círculo de Regeneração e Fé (CRF). Como sugere Silva373, o CRF foi possivelmente o primeiro
núcleo de consagração da Ayahuasca em novos moldes, associada a estudos esotéricos e fora
das florestas/colocações/aldeias/seringais. Consta que nessas sessões eram lidas passagens das
publicações do CECP.
O contato dos irmãos Costa com estas leituras eram possíveis porque “desde o início do
século XX, o CECP vinha dando ampla divulgação à sua filosofia, através de uma publicação
chamada Revista do Pensamento, que circulava pelas regiões mais longínquas do Brasil, como
a Amazônia e o sertão nordestino.”374 Ao que parece não havia uma relação institucional
formalizada entre os grupos de Brasileia e a sede em São Paulo, mas como nos chega a partir

369
J.T.S, 2021
370
R.N.T.S. 2019.
371
MENDONÇA, 2016, p. 351.
372
Ibid., 2011.
373
SILVA, 1983.
374
MOREIRA e MACRAE, 2011, p. 294.
114
dos relatos dos antigos, os princípios do CECP influenciaram de diversas formas as
configurações ritualísticas do Daime, o conjunto de orações e enunciados que o fundamentam.
Sobre como teria sido a saída de Irineu do CECP em Rio Branco, quando Wilson
Carneiro foi convidado por ele a assumir um ponto de cura, uma espécie de Pronto-socorro do
Daime na cidade, Raimundo Nonato narrou:

“Pois bem, aí o compadre Wilson, quando ele tava lá no Alto Santo, os trabalhos
de cura era com o Francisco Ferreira, era no Círculo Esotérico e o Santo Daime. Aí
quando foi um belo dia o Francisco Ferreira disse: ‘Mestre vamos separar o Daime
do Círculo Esotérico’, aí o Mestre: ‘Oh meu filho, porque não?’, aí separou o Daime
do Círculo Esotérico. Aí quando foi dia 17 a casa encheu como sempre, encheu,
papai olhou lá e o mestre não tava no canto dele. Ele pôs o pé no caminho, e foi lá
na casa do Mestre: ‘Mestre o senhor não vai pra sede?’ – ‘Oh, Wilson, o homem
não quer meu Daime lá, e também não me quer, porque eu sou Daime e o Daime é
eu. Não vou’. Dia 27 ainda deu um tanto de gente, papai não foi mais, papai ia pelo
mestre não pelo Chico Ferreira. Aí quando foi dia 17, bem pouquinha gente, dia 27
menos gente ainda, aí o mestre foi e abriu as concentrações nos dias 15 e 30. O
Chico Ferreira tava na cidade, e o Daime estava na mão dele para atender os
doentes, o mestre chamou o meu pai: ‘Oh, Wilson, o senhor não quer tomar de conta
dos meus pacientes lá na cidade?’ Aí o papai disse: ‘É mestre, se o senhor ver que
eu mereço’. Aí disse: ‘Pois bem, o senhor vai tomar de conta dos meus pacientes lá
na cidade, e a ordem é essa, essa, essa, essa, e não me ofereça Daime a ninguém,
mas também não negue. Se o paciente puder ir até a sua casa, sirva o Daime a ele,
dê uma assistência de duas horas e se nesse período de duas horas o paciente ainda
estiver em alto astral, em miração, pode prolongar o trabalho, mas se o paciente já
estiver lúcido já pode encerrar o trabalho. Não precisa fazer trabalho muito longo,
trabalho muito longo pra paciente em vez de melhorar faz é adoecer mais, muito
longo, né?’ Cinco, seis horas sentado é demais para um paciente. Aí papai fazia os
trabalhos pequenos... Aí ele foi e passou tudinho para o meu pai. Ia tanto paciente
na casa de meu pai que só visto, ia paciente desenganado mesmo, Jesus curava
através do meu pai, né? Graças a Deus aconteceu muitas coisas, né?”375

Moreira conta que no final da década de 1950, quando este senhor de nome Francisco
Ferreira, que era filiado ao CECP, começou a participar do Daime, foi uma oportunidade de
Irineu Serra, mais uma vez, se aproximar das leituras e princípios da ordem esotérica, como no
tempo dos primeiros contatos com os irmãos André e Antônio Costa no CRF. O Centro de
Irradiação Mental Luz Divina Tattwa, que era o nome do centro do Daime do mestre Irineu
nesta época (final dos anos 1960) tornou-se uma filial registrada no CECP nacional, numa
parceria que parece ter durado de 1963-1970376. Pelo que consta em muitas fontes377, era

375
R.N.T.S., 2019.
376
MOREIRA, 2013, p. 201.
377
MORTIMER (2000), FROES (1986), MOREIRA (2013).
115
recomendado aos membros da primeira geração de adeptos do Daime que se filiassem ao CECP,
e Sebastião, Wilson, entre outros antigos seguidores da Cinco Mil fizeram parte da ordem.

O período da parceria do Daime com o CECP parece ter sido também o


momento de maior influência da cultura escrita e erudita junto ao centro
acreano, devido às leituras dos textos esotéricos. Até então os “estudos”
empreendidos pelos daimistas haviam se limitado ao aprendizado dos hinos,
além, é claro, das experiências de revelação direta proporcionadas pela
ingestão da bebida sagrada.378

Na escuta de muito interlocutores na comunidade do bairro Irineu Serra em Rio Branco,


Moreira e Macrae detalham o episódio e trazem narrativas semelhantes a explanada por
Raimundo Nonato, como o depoimento de João Rodrigues “Nica”, que ao contar que chegou
uma carta para o mestre Irineu da diretoria do CECP nacional explicando a incompatibilidade
com o “uso da aoasca”, ele teria respondido de imediato: “Se não querem o meu daime, também
não me querem, eu sou o daime e o Daime sou eu”379. Moreira e Macrae também destacam, que
o desligamento do mestre Irineu do CECP provocou o esvaziamento da filial em Rio Branco.
“O Mestre Irineu saiu, todo mundo acompanhava ele, saiu todo mundo.”380
Sobre como Irineu Serra teria designado a Wilson a missão do Pronto-socorro, ele
mesmo, em uma entrevista concedida em 1993 ao pesquisador Eduardo Bayer, e compilada por
Antunes381, narrou como ficou responsável por administrar os trabalhos de cura com o Daime
na cidade.

Aí um dia eu andando lá, estava com quatro anos de serviço, andando lá, ele
disse: “Meu filho, eu preciso de uma pessoa para tomar conta do meu Daime
lá na rua, na cidade. Você quer assumir essa responsabilidade?”. Eu digo:
“Mestre, eu não sei se eu mereço. O senhor é que sabe se eu mereço. Se o
senhor achar que eu mereço eu abraço de coração.” Ele disse: “é pesada a
missão, você quer?”. Eu digo: “É como eu disse pro senhor. Se o senhor achar
que eu mereço eu quero”. Então ele disse: “Pois bem, olhe, primeiro, o Daime
de Porto Velho vai daqui. Quando for para ir Daime para Porto Velho, o
senhor vem apanhar o Daime aqui, leva no aeroporto, põe dentro do avião e
só sai de lá depois que o Daime voar. Outra, o pessoal de Porto Velho quando
vier em festejos aqui, vem para sua casa. Aí quando sair daqui do centro vai
para sua casa. O senhor vai também cuidar dos doentes que acredita no Dai-
me. Não ofereça Daime a ninguém, mas quem procurar não negue. Se o doente
pode ir na sua casa, o senhor atende na sua casa, se não puder, o senhor vai à
casa do doente, dá o Daime e dá pelo menos duas horas de assistência”. Essa

378
MOREIRA e MACRAE, 2011, p. 203.
379
João Facundes Nica, em MOREIRA e MACRAE, 2011, p. 302.
380
Chico Granjeiro in a Arneide Cemin (1998, p. 138) apud MOREIRA e MACRAE, p. 303.
381
ANTUNES, H.F. Drogas, religião e cultura: um mapeamento da controvérsia pública sobre o uso da
ayahuasca no Brasil. Mestrado em Antropologia Social. Universidade de São Paulo: São Paulo, 2012.
116
é a causa de eu, em concentração e trabalho de cura, exigir o povo dentro do
centro 2 horas.382

Nesta mesma entrevista, Wilson narrou que a entrega em definitivo do Pronto-socorro


pelo mestre Irineu foi confirmada em julho de 1971, um dia antes da sua passagem, quando ele
fez uma visita a Irineu, que já estava muito enfermo. A narrativa reafirma que Wilson recebeu
a zeladoria do Pronto-socorro e as instruções finais, de modo que continuou o responsável por
administrar os trabalhos de cura com o Daime na cidade:

Quando ele estava para desencarnar, eu fui visitar ele no dia 5 de julho de
1971. Lá conversei com ele, na hora da saída que eu tomei a benção, disse:
“Benção, papai!” Ele disse: “Deus te abençoa meu filho.” “Meu filho você
quer trabalhar?”. “Quero”. “Quer trabalhar?”. “Quero, sim senhor”. “Então o
Pronto-socorro fica em suas mãos”. Isso foi no dia 5 de julho, no dia 6 ele
desencarnou. Aí Leôncio perguntou: “Peregrina, como fica esse Daime lá pela
cidade?”. Ela disse: “Leôncio, eu vi quando o mestre disse que o Pronto-
socorro ficava na mão do Wilson”. E ele: “Então com isso ninguém mexe.”383

Graça narra que, no início, seu sogro Wilson chamava para os trabalhos de cura Clícia
Cavalcante, uma senhora fardada na doutrina há mais tempo que ele. Por sua experiência, ela o
ajudava a prestar o atendimento aos doentes. Cantavam o hinário por ele preferido, que era o
da irmã Maria Marques Vieira, uma das primeiras seguidoras de Irineu Serra. Nonato conta a
passagem que foi também registrada por Bayer384, que diz que Percília Matos, também uma
referência para irmandade, teria corrigido Wilson, dizendo ser necessário que ele começasse
sempre pelos hinos do mestre Irineu, pois este era o tronco da Doutrina, e devia-se iniciar o
estudo e a “subida” pelo tronco e não pelas ramas. Wilson Carneiro começou a formar um
caderno de hinos para seus trabalhos de cura, que hoje conhecemos como “Linha de Arrochim”,
e começa com o hino “Sol, Lua, Estrela” do hinário O Cruzeiro, de Irineu Serra, cantado três
vezes. Diz-se que nos aniversários de Wilson era cantado em sua residência o hinário de
Raimundo Gomes, o primeiro que cita o espírito curador de Arrochim, ‘que vem como um
beija-flor’”385. Mortimer narrou que

O Sr. Wilson foi um dos primeiros frequentadores do Alto Santo que


reconheceu o Padrinho Sebastião em sua missão espiritual e lhe deu apoio. Ele
foi um importante aliado, além de amigo e companheiro em todos os dias de
vida. O Mestre Irineu tinha também Wilson em alta consideração e confiança,

382
Entrevista com Wilson Carneiro de Souza. 29/08/1993. p. 3. apud Antunes,. 2012.
383
Entrevista Padrinho Wilson apud Antunes, 2012.
384
BAYER, Wilson Carneiro de Souza, 2005.
385
Ibid.
117
e lhe havia entregue o Pronto-socorro do Santo Daime em Rio Branco, visto
que o Alto Santo distava alguns quilômetros, por estradas às vezes difíceis.
Ele era o guardião dos poderes de cura do chá sagrado na cidade, em casos de
emergência.386

Muitos que frequentavam o Pronto-socorro na cidade acabavam também chegando na


Colônia Cinco Mil, onde Wilson e sua família passaram a fazer os trabalhos oficiais a partir de
1975. Marinês Morais rememorou o encontro do seu pai com a doutrina do Daime em 1972,
um pouco depois da passagem do mestre Irineu, época que o centro no Alto Santo já vivia seus
conflitos e processos de cisões internas.

“Assim, o pai, ele escutava falar do Mestre Irineu, ele não tinha ainda conhecido o
mestre, e no comecinho da história foi assim. E aí, meu pai tinha uma serralheria,
ali no centro da cidade, que trabalhava com móveis. E conheci muito, muita gente
da sociedade ali, Rio Branco crescendo, né? Trabalhava pro governo mesmo. Fazia
móveis até pro governo. Pras escola, tudo. Aí escutava ouvir falar do mestre. Aí
escutava falar: ‘Você já foi conhecer o mestre?’ – ‘Ah, não. Logo mais vou ter que
ir lá. Vou ter que conhecer o Mestre’. Aí, quando foi lá, poucos dias, aí escutou: ‘o
Mestre faleceu’ ... Ele falou: num acredito! Com essa história do mestre ter falecido
ele disse: agora vou ter que ir conhecer o lugar, nem que Mestre tendo falecido.
Tenho que ir conhecer, mesmo o Mestre tendo falecido. Eu não sei se ele foi assim,
no dia né, no velório... eu sei que a partir daí, o mestre fez a passagem, aí foi lá
conhecer. Aí papai encontrou o padrinho Sebastião lá, também já tava tendo as
divisões, né? Já várias pessoas querendo formar seus grupos, se achando que tinha
condições de levar a sessão assim, os mais antigos lá, e assim. Aí meu pai gostou
do padrinho Sebastião, fez maior amizade com ele. Gostou muito da história do
Daime e, assim, da energia. Aí, meu pai começou também a tomar, fazer sessão,
antes da gente se mudar da cidade pra cá pra Cinco Mil, frequentou o Pronto-
socorro lá do seu Wilson, até meu irmão mais novo, Reinaldo, afilhado dele, era
deste tamanhinho aí do teu filho... Esta época a gente começou a tomar lá também,
pra fazer trabalho de cura, né?”387

Vê-se que o Pronto-socorro também foi um ponto importante nesta colheita, reunindo
um povo que seguiu com o padrinho Sebastião. Neucilene narrou sobre os trabalhos de cura nos
primórdios do Pronto-socorro de Wilson Carneiro.

“O seu Wilson fazia os trabalhos de cura em casa, que seu Wilson era o dono do
Pronto-socorro, que o Mestre tinha entregue para ele. Teve uma época que toda
quarta feira ele fazia trabalho, embora que não tivesse gente pra ir tomar daime,
mas ele fazia trabalho toda quarta feira em casa, aí juntava muita gente. Era no
Bosque... Em frente a Santa Casa, do lado da Santa Casa. Aí eu via muita gente...
Aí ele fazia o Pronto-socorro dele era em casa, e eu sempre ajudava ele. Logo que
386
MORTIMER, 2000, p. 85.
387
M.M., 2019.
118
eu casei, aí eu passei a ser tipo uma filha adotiva, que eu era tipo uma filha para ele,
para dona Zilda, e eles eram meus segundos pais, que morava no mesmo terreiro,
só trocava de casa. Linha de Arrochim ele fazia mais em casa, sempre que algum
doente lhe procurava, e em algumas épocas, durante os dias 27, ou às quartas feiras,
ele fazia... mas não tinha um calendário... era quando os doente procuravam.”388

A relação doença e cura sempre foi parte da história da doutrina do Daime, pois desde
o início na década de 1930, quando Irineu Serra começou a reunir os primeiros seguidores em
trabalhos na Vila Ivonete, e durante os aproximados 40 anos em que esteve à frente dos
trabalhos, ele recebeu pessoas como Sebastião, Wilson, seu filho e muitos outros. São muitos
os relatos que dão conta que as pessoas que chegavam no Daime/em Irineu Serra já estavam
doentes e desenganadas de outras tentativas, e o procuravam para tratar de problemas e
enfermidades diversas.
Nonato também detalhou alguns episódios da época do Pronto-socorro na casa de
Wilson ainda na cidade, no bairro do Bosque, destacando que ele atendia tanto na sua casa,
numa movimentada área de Rio Branco, ou na casa do doente.

“Aí o papai ficou lá, trabalhou um tempo, todo trabalho que ele fazia, ele vinha dar
ocorrência para o mestre, quando foi um belo dia, Mestre, disse assim: ‘Wilson
quando o senhor tiver nas suas folgas você têm seu livre arbítrio vai pra onde quer,
faz o que quiser, só não faça o que não é aconselhável para o seu corpo nem pros
olhos de Deus, mas o mais pode fazer’. Aí o papai foi para o cinema, tava no cinema
e ele disse assim: ‘Meu filho tava no melhor do filme, tava o melhor do filme, né?
Aí chamaram ele lá na portaria, aí ele foi lá na porta lá, quando ele chegou lá era
dona Raimunda, a esposa do José Lima, aí disse: ‘seu Wilson vai atender Joselino,
pelo amor de Deus, tá lá em cima de uma cama se acabando lá"... aí papai não
contou conversa, né? Saiu mais ela, chegou em casa pegou uma garrafinha de
Daime, só ele e Deus, pegou a garrafinha de Daime colocou de baixo do braço, foi
lá na casa dele que não era tão longe.”389

Interessa destacar que o sentido de “Pronto-socorro” do Daime aparece como um


atendimento de urgência. Uma vez que o acesso ao Daime no Alto Santo era difícil e distante,
e que o Daime é estruturado num sistema de calendário com datas fixas, o Pronto-socorro abria
brecha para realização de trabalhos avulsos e mais acessíveis, efetuados conforme as
necessidades mais imediatas se apresentavam. Outro eco que ressoa desta narrativa, no
entrecruzamento com outras, é que Irineu Serra, pelo que nos chega, não tinha um pensamento
religioso sectário e que, ao invés de ditar comportamentos, incentivava a liberdade de pensar

388
N.S.S., 2020.
389
R.N.T.S., 2019.
119
de seus seguidores, que estes exercessem o livre arbítrio com consciência na hora de apreciar
produtos culturais, por exemplo. As narrativas que nos chegam falam de um mestre Irineu que
gostava de fazer festas com danças e boas músicas (tem-se notícias de que, no início, havia
inclusive forró com Daime390), bem como recomendava aos seus que, nas horas vagas, tivessem
na companhia de “boas conversas e bons livros”391.
A passagem de Raimundo Irineu Serra no dia 6 de julho de 1971 comoveu toda a
irmandade e mobilizou homenagens em toda a Rio Branco. Apesar de ter enfrentado muito
preconceito no início de sua trajetória como liderança espiritual, Irineu Serra quando faleceu já
gozava de notoriedade pelos frutos de seu trabalho comunitário, tendo reconhecimento público,
amigos na política e relativo prestígio social. Foi declarado luto oficial por ocasião de sua morte
e, a partir dali, uma série de transformações foram vivenciadas, novos arranjos foram
consolidando nos rumos da irmandade do Daime.
Moreira narra que, mesmo antes do falecimento de Irineu, “uma série de rivalidades já
havia se manifestado entre seus seguidores, tendo em vista a formação de uma nova
liderança”392 e que “a possível escolha do Mestre estaria entre Zé das Neves, Raimundo Gomes,
e Leôncio Gomes.”393 Ao que tudo indica, com a preparação do estatuto de institucionalização
do Daime fez-se necessário definir uma diretoria e o documento oficializou Leôncio Gomes
como presidente do centro, numa reunião que, segundo Moreira, aconteceu no dia 7 de janeiro
de 1971394, seis meses antes da passagem do mestre fundador.
Após a passagem de Irineu Serra, uma série de desentendimentos com a nova diretoria
iriam acontecer, principalmente devido à tentativa de centralizar o Daime. Moreira detalha bem
os meandros das relações entre as comunidades do Alto Santo e os outros setores, como a
Colônia Cinco Mil nos anos de 1971 a 1974.395 Ao comentar as mudanças propostas pela gestão
de Leôncio Gomes, já no início do ano de 1972, destaca que ele “pediu que todo o daime
produzido nas extensões fosse trazido para a sede central” e que “os líderes não podiam mais
ficar com parte do Daime”396, o que na prática obrigava este núcleos a pararem de funcionar
em suas localidades.
Couto narra sobre estas mudanças e a recepção inicial de Sebastião a elas: “Quando o
Sr. Leôncio assumiu, ele continuou com o mesmo procedimento por algum tempo, até que um

390
MOREIRA e MACRAE, 2011.
391
MENDONÇA e NASCIMENTO, 2019.
392
MOREIRA, 2013, p. 51.
393
Ibid., p. 40.
394
Ibid., p. 43.
395
Ibid., 2013.
396
Ibid., p. 65.
120
dia o Sr. Leôncio quis ficar com todo o Daime produzido pelo Sr. Sebastião Mota, que não
concordou, embora continuasse a frequentar o Alto Santo.”397 Ao que parece, Sebastião seguiu
fazendo o Daime, pois Mortimer narra: “O fato deu o que falar na irmandade. Muita gente
desaprovou. As propostas de mudança não tiveram força de concretizar. Ficou tudo do mesmo
jeito.”398
Em decorrência dos novos arranjos propostos pela nova diretoria do Ciclu, alguns dos
setores/extensões vão se desligar do Alto Santo nos anos que se seguiram à passagem do líder.
Moreira aponta que o primeiro a se desligar da sede no Alto Santo foi a extensão Barro
Vermelho liderada por Raimundo Loredo, e que até hoje é um centro de Daime independente,
um núcleo familiar. A segunda a se desligar foi o Ceclu de Porto Velho, que depois acabou
estabelecendo uma importante rede de trocas e influenciando o grupo na Colônia Cinco Mil,
quando estes se desvinculam do Alto Santo em 1974.399
Sebastião e seu grupo passam a seguir com os trabalhos de Daime de forma
independente na Colônia Cinco Mil. Alguns antigos seguidores também acompanham
Sebastião e passaram a frequentar a Cinco Mil, Wilson Carneiro foi um deles, que inclusive
compôs a primeira diretoria do Cefluris formalizado na Colônia Cinco Mil em 1976400.
Moreira comenta que as medidas de fiscalizar e restringir o Daime nas extensões
estavam direcionadas a vários grupos que já tinham autorização do mestre Irineu. Mortimer
anos antes, porém, faz uma narrativa mais inflamada em seu texto, que apesar de citar “os
setores regionais”, nos leva a entender que a atitude tinha como objetivo atingir principalmente
o grupo de Sebastião na Cinco Mil.

Bastava tirar o Santo Daime do poder de Sebastião, que ele viria abaixo. A
diretoria finalmente achou a saída: centralizar todos os feitios de Daime no
Alto Santo. Acabar com os setores regionais. Permitir a cada fardado ter em
casa no máximo um litro da bebida para uso em família no caso de doença.
Com isto, ficavam centralizados todos os rituais. Tudo no poder da diretoria.
Um autêntico golpe de Estado declarando a ditadura, ou linha dura.401

Moreira comenta que as mudanças introduzidas e a falta de padronização em alguns


destes núcleos familiares eram aspectos que motivaram a nova diretoria a empreender as
tentativas de fechar as extensões. Moreira destaca, sem entrar em detalhes, que principalmente

397
COUTO, 1989, p. 94.
398
MORTIMER, 2000, p.86.
399
MOREIRA, 2013.
400
FRÓES, 1986.
401
MORTIMER, 2000, p.85.
121
“a do Bosque, de Wilson Carneiro, e a de Porto Velho, liderada por Virgílio. A sede central não
aceitava determinadas mudanças no ritual de Daime e questionava também a ética dos
líderes.”402 Estas extensões, por sua vez, vão interpretar a medida como autoritária, e por já
gozarem de certa autonomia, seguiram os trabalhos de forma autônoma. Neucilene contou que
as medidas da nova diretoria do Alto Santo visaram restringir os trabalhos do seu Wilson no
Pronto-socorro, o que fez com que ele se aproximasse ainda mais do amigo Sebastião.

“Aí o seu Wilson que era muito amigo do padrinho Sebastião acompanhou ele, veio
para onde ele veio também. Aí queriam tomar o Daime do Pronto-socorro, vieram
para fechar. Ele foi na Cinco Mil chegou lá, foi e falou para padrinho Sebastião,
que respondeu: não tenha medo que dá sua mão ninguém nunca vai tirar o Pronto-
socorro, porque o mestre lhe entregou, e nem nunca vai faltar Daime para você dar
para os seus doentes, porque se não vier da banda de lá, mas vai daqui, porque eu
levava daime para os trabalhos do Mestre, eu fazia e levava, então você vai
continuar dando daime para as pessoas doentes que lhe procurar.”403

A saída de Sebastião e do grupo da Cinco Mil do Ciclu–Alto Santo vem sendo narrada
em suas muitas versões, cuja simbologia recorrente gira em torno do tema da bandeira, como
destacou Goulart404. O episódio da bandeira e a menção a uma lendária reunião estão presentes
nas linhas que se desenharam com diferentes vozes que ressoaram no campo, bem como são
metáforas e alusões presentes no hinário “O Justiceiro”, que foi recebido por Sebastião nos
tempos que ele frequentava o Alto Santo e a Colônia Cinco Mil.
Pelo que nos chega da tradição oral, em uma reunião, que aconteceu depois do festival
de São João de 1974, possivelmente se discutiu sobre os pedidos de Sebastião para cantar seus
hinos, e de hasteamento de uma bandeira, que seria a do Brasil. Como Sebastião não era
atendido em seus pedidos, acabou se selando uma separação entre os dois grupos, que ficou
registrado na memória coletiva na máxima “Então você levanta a sua bandeira lá”.
Na companhia de Mortimer, Goulart e Fróes, outros escritos, e dos relatos orais que
guiam o percurso narrativo, destaco que foi no ano de 1974 que Sebastião se desligou do Alto
Santo e em 1975 foram realizados os primeiros trabalhos oficiais no novo centro na Colônia
Cinco Mil, ainda uma casinha de madeira coberta de palha. A construção da igreja em alvenaria
começou em meados de 1975 e durou aproximadamente três anos, construída pouco a pouco,
através de mutirões e doações, até ser inaugurada em 1978.

402
MOREIRA, 2013, p.289.
403
N.S.S., 2020.
404
GOULART, 2004, p. 70.
122
Assim tem sido descrito: que de 1975 a 1980 construiu-se ali, sob liderança de Sebastião,
uma experiência comunitária de trabalho com a agricultura e o Daime, através da união dos
lotes que totalizavam 25 colônias e mais de 300 hectares, “congregando aproximadamente 45
famílias de seringueiros organizados sob princípios comunitários que se estabeleceram à
medida que realizavam um trabalho espiritual profundo com o Santo Daime.”405. (Figura 4)

Figura 4— Croqui: As 25 colônias que compunham a Cinco Mil em 1970.

Fonte: Croqui elaborado a partir de documento do Incra/Acre disponível em Fróes, 1986.406

405
FRÓES, 1986, p. 17.
406
Ibid., p 55.
123
Há controvérsias quanto ao número preciso da área ocupada por este conjunto de
colônias, como também seus limites e área total remanescentes, pois ainda não foram
precisamente demarcadas nos dias atuais. Enquanto Fróes fala em 380 hectares, Mortimer fala
que
Juntando toda a área, faziam trezentos e cinquenta e três hectares que
correspondiam à soma da parte de cada irmão doada ao Cefluris, que este era
o nome de nossa organização religiosa. O Padrinho Sebastião entrou com vinte
e cinco hectares. O Nel e o Zé Bravo com o mesmo tanto. Para ficar registrado,
vou citar o nome de todos que acrescentaram ao mapa comunitário sua área
de terra registrada no Incra. Além dos três mencionados, acrescente Julia
Chagas da Silva, Francisco Chagas, Paulo Carneiro, Lorival (pai do Jurival),
Valdete, Roberto Corrente, Viegas, Eduardo e Maria Brilhante, Manoel
Corrente, Manoel Paulo, João Batista.407

A família Corrente tinha umas colônias na região da estrada Apolônio Sales, onde
viviam da agricultura familiar, perto do setor do Pedro Fernandes. Conheceram Sebastião e
passaram a tomar Daime também na Colônia Cinco Mil, porque o trajeto, que era vencido a pé
naquela época, era menor. Nos trabalhos oficiais iam pro Alto Santo. Lembrando Francisca,
do trajeto que era percorrido a pé, narrou: “De onde nós morava pra lá eram 4 horas, pro
padrinho era 2, já economizava”408.
Manoel Corrente, Vô Corrente ou ainda Padrinho Corrente nunca recebeu hinos, mas é
um dos homenageados no panteão de padrinhos e madrinhas do Cefluris/Iceflu, com um hinário
de hinos ofertados chamado Caboclo Guerreiro, cantado geralmente no final do mês de
setembro, junto às comemorações do Dia do Arcanjo São Miguel. Seu filho Francisco Corrente
foi o primeiro da família a começar a frequentar o Daime, ainda no finalzinho da década de
1960, depois seus pais e irmãos foram acompanhando.
No início da década de 1980, Sebastião vai reunir o seu grupo no intuito de sair da
Colônia Cinco Mil num movimento de retorno à floresta, convidando a irmandade para seguir.
A Colônia Cinco Mil tinha ficado pequena para as mais de 300 pessoas que procuravam viver
ali e tirar da terra o sustento para suas famílias. Cerca de 260 entre adultos, jovens e crianças
fizeram a mudança para os seringais, acompanhando o líder. Muitos lotes foram vendidos para
adquirir os bens para a viagem de mudança. Nesta saída de Sebastião e seus companheiros, os
380-353 hectares reduziram-se até chegar nos aproximadamente 63 hectares que compõem a
Colônia Cinco Mil hoje409 e onde ainda moram cerca de 40 famílias do Daime e “ex-daimistas”.

407
MORTIMER, 2000, p. 181.
408
F.C., 2022.
409
Baseado no documento que define o perímetro da área, cedido pelo Cefluwcs, e parte do processo de
regularização fundiária.
124
A pedido de Sebastião, Wilson e sua família se mudam para a Colônia Cinco Mil,
ocasião em que ele lhe entrega uma partilha das terras para “viver com filhos e netos”410. Wilson
recebeu o encargo de assumir a direção dos trabalhos da igreja após a saída de Sebastião e
grande parte da irmandade para a floresta.411 A maior parte dos moradores da Cinco Mil
acompanharam o líder neste movimento descrito por Fróes como messiânico.412 Após a visita
de conhecimento na região do Ituxi, da experiência no seringal Rio do Ouro, Sebastião faz um
novo movimento de deslocamento até que no ano de 1983 funda a sua comunidade na floresta
chamada de Céu do Mapiá, localidades no estado do Amazonas. (Figura 5)

Figura 5— Croqui: Localização da Colônia Cinco Mil e Céu do Mapiá.

Fonte: Croqui elaborado a partir de Imagem de Satélite Google Earth (fotointerpretação)

410
Um dito repetido por muitos narradores.
411
MORTIMER, 2000.
412
FRÓES, 1986.
125
No Mapiá mora grande parte daqueles que seguiram Sebastião no início dos anos 1980
e seus familiares, “na sua segunda e terceira geração de moradores.”413 Localizada no município
de Pauini, às margens do igarapé Mapiá, um tributário do rio Purus, a área do Céu do Mapiá
está dentro da Floresta Nacional do Purus (Flona Purus), criada em 1988. Na vila vivem
aproximadamente 1.000 pessoas que trabalham com extrativismo florestal, agricultura familiar,
e principalmente em pequenos comércios e serviços ligados ao movimento de peregrinos e o
turismo religioso.
Na Cinco Mil, durante as décadas de 1980 e 1990, Wilson Carneiro vai se tornar a
referência como padrinho, conselheiro e ancião da comunidade, pois Sebastião havia solicitado
que ele, como um “filho mais velho”414, tomasse de conta da Colônia, da continuidade dos
trabalhos, para receber as muitas pessoas que ainda iam chegar. Como Wilson era amigo de
Sebastião desde o tempo do Alto Santo, e também já dirigia em sua casa o núcleo chamado
Pronto-socorro, foi identificado por Sebastião como o mais confiável para a missão. Wilson,
porém, com o passar dos anos, com a idade já avançada e saúde um pouco debilitada, vai
partilhar a administração da Cinco Mil com outros companheiros em diferentes períodos, entre
eles Maurílio Reis, que fica de 1984-1986, Chico Corrente que passa de 1987-1989 e seu filho
Raimundo Nonato, que ajuda o pai sobretudo no período de 1989-1996.
Quando Wilson se mudou para a Cinco Mil em 1981, o Pronto-socorro do Daime foi
com ele e, como antes, funcionou na sala de sua casa, até um ano antes de sua passagem. A
sede do Pronto-socorro foi inaugurada em junho de 1997. Era uma construção simples a poucos
metros de sua casa. Está localizado dentro da área historicamente conhecida como Colônia
Cinco Mil, mas que hoje, devido aos processos de fraturas e cisões investigados ao longo do
estudo, define-se como Vila Carneiro.
Esta parte da Cinco Mil foi doada a Wilson Carneiro por Sebastião e é uma das
territorialidades/desdobramentos que foram se reconfigurando na Colônia ao longo dos anos.
A área da Vila Carneiro originalmente seria de uma curva à outra do ramal, mas os moradores
relatam que seu Wilson, ao longo da década de 1990, doou partes dos lotes para outros membros
da irmandade, e por sua vez alguns já venderam para terceiros, reduzindo a área da família, que
atualmente equivale a cerca de 5 a 7 hectares, ainda a se definir considerando o processo de
regularização fundiária em andamento. O espaço guarda uma relação histórica de proximidade

413
ASSIS, 2017, p.271.
414
G.T.S., 2021.
126
e distanciamento com o núcleo central da comunidade, marcado pela presença da sede/igreja
construída pelo padrinho Sebastião.
A partir daí, novas narrativas inventam e reinventam os limites e as fronteiras tentando
instituir o que é ou não é parte da Colônia Cinco Mil: “Vila Carneiro da bueira pra cá, Cinco
Mil da bueira pra lá”, ou ainda “ali não é Cinco Mil, é 4500”. Nesta fala parece que o termo
Cinco Mil não se refere ao preço dos lotes, mas a kilometragem da estrada/ramal, e é apenas
um trocadilho, que nos permite perceber como as palavras vão tomando múltiplos sentidos.
Estes relatos parece que surgem como uma necessidade de diferenciação entre os grupos na
medida que afirmam uma identidade própria e procuram com isso um reconhecimento,
estabilidade, autonomia. Na companhia de Hall, entende-se que identidades são “criações
sociais e culturais”415, “criadas por meios de atos de linguagem”416, e de igual forma, os lugares
são produzidos como narrativas.
No final da década de 1980, iniciou-se uma reorganização administrativa e institucional,
que teve como ponto de partida a transferência da sede do Cefluris para a Vila Céu do Mapiá.
O centro na Cinco Mil foi renomeado, ficando intitulado Centro Eclético da Fluente Luz
Universal Wilson Carneiro de Souza (Cefluwcs), isto é, a igreja da Cinco Mil leva o nome do
patrono do Pronto-socorro, o que é mais uma evidência da relação intrínseca e histórica entre
as duas localidades. Pelo que consta no Livro de Atas da entidade foi em uma reunião no dia 8
de maio de 1989 que oficializou-se a mudança de nome, e no dia 07 de setembro foi oficializado
o novo nome do centro, com leitura e aprovação do Estatuto.
O texto do documento, escrito pelo secretário da assembleia Eduardo Bayer, narra que
Wilson teria aberto os trabalhos da reunião dizendo que: “Sentia-se honrado e agradecido por
ter sido seu nome previamente escolhido para esta nova denominação.”417 Um ponto que chama
atenção nesta ata é que Sebastião é apresentado como Mestre Imperador, reforçando as
narrativas que apontam que, nesta época e para este grupo, Sebastião era visto como um
sucessor de Irineu Serra em toda a sua majestade.
Esta interpretação é controversa mesmo entre os fardados do seguimento de Sebastião
pois o próprio mestre Irineu teria advertido para que ninguém ocupasse seu posto. Para a
tradição do Daime, como aprendida pelos mais antigos, quando Irineu fez a passagem,
encarnou-se na bebida, tornou-se um encantado, o “velho Juramidã” à quem se refere em seu

415
HALL, SILVA, KATHRYN, W. (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p.76.
416
Idem.
417
Livro de Atas do CEFLUWCS (1989-1997).
127
hinário, e como narram antigos seguidores, ele dizia “eu sou o Daime, o Daime sou eu.” A partir
desta máxima, os adeptos do Daime acreditam que podem entrar em contato diretamente com
mestre Irineu, chefe do Império Juramidã, para pedir ajuda, aconselhamento, buscar um
entendimento sobre determinada questão. Peregrina Gomes, sua esposa, é guardiã desta ciência:

“Foram estas as palavras da instrução que o Mestre Raimundo Irineu Serra


nos legou: — Quando eu me ausentar daqui, vocês reúnam, tomem Daime e
me chamem que eu venho. Não me deixem inventar moda e ninguém queira
ser chefe. O dono daqui sou eu.”418

Sobre a reorganização administrativa e institucional na comunidade de Sebastião,


destaca-se que em 1997 houve a separação da esfera religiosa da administrativa. O Cefluris
passou a se chamar Igreja do Centro Eclético da Fluente Luz Universal (Iceflu), a entidade
espiritualista. Para gerir as questões socioambientais foi criado o Instituto de Desenvolvimento
Ambiental Raimundo Irineu Serra – Instituto IDA/Cefluris atual Idaris.419 Esta mudança no
nome da instituição parece que começou a ser desenhada no contexto de assinatura da Carta de
Princípios, no início da década de 1990, quando diferentes entidades ayahuasqueiras,
capitaneadas pela União do Vegetal, se reuniram e assinaram um acordo sobre diretrizes
comuns para uso da Ayahuasca em contextos religiosos, mas o nome Iceflu se popularizou ao
longo dos anos 2000.
Pelo que chegou dos relatos, as lideranças do Ciclu–Alto Santo expressaram seu
descontentamento em ver o nome de Raimundo Irineu Serra na entidade que representava o
grupo de Sebastião, ao qual pretendiam fazer uma respeitosa oposição – no sentido de se
diferenciar. Alves, no Seminário das Comunidades Ayahuasqueiras, ao comentar a Carta
enviada por Alex Polari Alverga e endereçada ao Seminário, expressou contentamento em saber
que o grupo “não usa aquela denominação do Cefluris na qual ainda consta o nome do mestre
Raimundo Irineu Serra que de certa forma nos incomoda um pouco, porque a gente vê o nome
do nosso mestre, nosso patrono, colocado sob o uso de outra entidade”420. Sobre a entidade se
apresentar como Iceflu, Patrono Padrinho Sebastião Mota salientou: “Nos agrada esta
diferenciação, porque estabelece realmente uma distinção de identidade”421.
Na câmara temática ayahuasqueira de Rio Branco não raramente fora defendida a tese
de que a Colônia Cinco Mil, como representante da linha de Sebastião Mota, não era um tronco

418
SERRA, P.G., Manifesto Alto Santo, 2006.
419
GUIMARÃES, O. (Org.), Revista da Edição especial comemorativa dos 40 anos da Vila Céu do Mapiá.
Ano 1, n° 1. 2023. p.21, 2023.
420
ALVES, 2010, p.46.
421
Ibid.
128
legítimo da tradição herdada de Irineu Serra e, portanto, não se definiria como uma das
manifestações das religiões ayahuasqueiras tradicionais. Isso significa que num contexto rio-
branquense, é como se a maior parte da irmandade do Daime, dispersa pelo Acre do Purus ao
Juruá, Brasil e mundo afora, que são filiadas à linha do Padrinho Sebastião ou a vertentes
independentes dela derivada, fossem uma corruptela da tradição/ou, na melhor das hipóteses,
uma outra tradição, ainda em construção.
A comunidade do Ciclu–Alto Santo, por exemplo, na fala de um de seus representantes
no Seminário “Comunidades tradicionais da ayahuasca: construindo políticas públicas para o
Acre”, destacou que todos os problemas com o Estado e o poder judicial sofridos ao longo das
décadas de 1980 e 1990 pela irmandade do Daime, e que chegaram a ameaçar a liberdade de
culto e uso da bebida nos rituais, são decorrentes de eventos que aconteceram nas comunidades
fundadas e sob a liderança de Sebastião Mota, como exemplo as “denúncias de surtos psicóticos
e comportamentos bizarros no Céu do Mapiá.”422 Neste embates sobre identidade, tradição e
dissidências no Daime, é interessante pensar

como a origem pode estender seu reinado bem além de si própria e atingir
aquele desfecho que jamais se deu – o problema não é mais a tradição e o
rastro, mas o recorte e o limite; não é mais o fundamento que se perpetua, e
sim as transformações que valem como fundação e renovação dos
fundamentos.423

Nota-se que há a institucionalização de um jogo de forças que antagoniza a ideia de


religiões ayahuasqueiras tradicionais e ecléticas, o que tem tido reflexos no âmbito das políticas
públicas de valorização das histórias e memórias das culturas ayahuasqueiras/do Daime em Rio
Branco, Acre. A necessidade de demarcação das origens para estabelecer as diferenças com
base no ideal de preservação das tradições é um enunciado marcante nesta geopolítica dos
discursos. Como analisei em outra oportunidade424, o seguimento da Iceflu parece reconhecer
que é uma derivação legítima e autêntica do tronco do mestre Irineu, mas que agrega elementos
significativos de diferenciação graças aos dons, visões, profecias e trabalhos feitos pelo
padrinho Sebastião, e é neste sentido que se tenta construir e instituir uma diferenciação entre
o culto do Daime, fundado por Irineu Serra, e o culto do Santo Daime, que conforme algumas
narrativas mais recentes em materiais institucionais e redes sociais, vem sendo narrado como
fundado por Sebastião Mota.

422
ALVES, 2010, p.46
423
FOUCAULT, 2008, p. 6.
424
MOURA, J. L. As identidades no Santo Daime: os caminhos da tradição e da inovação. Revista de Estudos
Amazônicos UFPA, v. X, p. 20, 2015.
129
Os grupos do Daime de Rio Branco, que por vezes outorgam para si o título de
tradicionalistas, constituem um conjunto de centros que adotam uma postura mais
conservadora, no sentido de preservação de ritos e fundamentos e, portanto, menos eclética em
comparação aos seguimentos de Sebastião, e outros como os do padrinho Luiz Mendes do
nascimento que também é mais dinâmico na incorporação de novos elementos ritualísticos. O
Daime tem sido descrito como uma doutrina cristã sincrética, híbrida, miscível, eclética, e todos
os termos que vem sendo usados pelos pesquisadores para se remeter ao caráter plural da obra
do mestre Irineu, uma obra viva, construída em vida, bebendo em muitas fontes, como o próprio
cristianismo, que ao longo da história vem se manifestando e se misturando com as diferentes
tradições locais por onde foi se expandindo, absorvendo muitos costumes e princípios anteriores
a ele.
Múltiplas influências confluíram na composição do culto do Daime, mas para aqueles
que se identificam como fazedores das práticas tradicionais, ela é concebida como uma obra
pronta e completa, concluída, isto é, não está a mudar dinamicamente e indefinidamente
incorporando tudo que chega. Outra coisa é a concepção de doutrina em construção, com novos
mestres, padrinhos, novos chefes, “novo mundo, novo povo, nova era e novo professor”425,
nova dimensão. Toda esta inclinação às novidades aponta para simbologia de algo que estaria
em evolução, que incorpora dinamicamente novos elementos, cria novos ordenamentos...
Para estes grupos da Vila Irineu Serra, principalmente no Ciclu–Alto Santo, é
fundamental diferenciar o Daime do mestre Irineu dos grupos tidos como dissidentes e mais
ecléticos, com destaque para a vertente expansionista de Sebastião, bem como destacar a
particularidade das religiões ayahuasqueiras diante das práticas originárias dos povos indígenas,
e dos grupos mais recentes, os neoayahuasqueiros urbanos como sugere Labate426. Para Alves,

A doutrina do Mestre Irineu está pronta, ele colocou um ponto final. Ela se
atualiza, mas não muda, ela não está se transformando e incorporando novas
coisas. (...) Outras doutrinas estão em construção, incorporando elementos
novos e se transformando. Não estão apenas seguindo os trilhos de uma
tradição, estão criando uma nova tradição.427

Sobre o relativo isolamento local do seguimento do padrinho Sebastião nas políticas


públicas para as comunidades ayahuasqueiras em Rio Branco, no contexto daquele Seminário,

425
Melo, A.G. “Ciranda do Santo Daime”, Hinário Nova Dimensão, n 2.
426
LABATE, B. C. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas, Brasil: Mercado das
Letras. 2004.
427
ALVES, 2010, p. 46.
130
Átila Maria Rufino que participava do evento como representante do Cefluwcs na câmara
temática ayahuasqueira, comentou em tom de protesto que se sentia realizada por ter participado
do evento “apesar de nos sentirmos, por uns momentos, meio marginalizados pelos irmãos, que
se intitulam Tradicionais.”428 Evocando algumas frases de hinos, Átila fez um apelo à união e
afirmou que não concorda com a divisão proposta, destacando: “Quero que todos saibam que
somos do Tronco de Raimundo Irineu Serra, sim, mas temos, como Padrinho, nosso querido
padrinho Sebastião Mota, e ninguém vai tirar o seu valor.”429
Chirif430 reflete sobre as identidades tradicionais como constructo de enredos
consensuados entre os grupos, que surgem como categorias e são naturalizados, feito discurso.
No Daime, o grupo representado pelo Ciclu–Alto Santo, fundado pelo mestre Irineu e localizado
no bairro que hoje leva o seu nome, apresenta-se, naturalmente, como legítimo herdeiro da
tradição. Por extensão, os três centros localizados próximo à sede primeira, e dela células
repartidas, também são lidos como pertencentes à linha tradicional, ainda que já sejam adeptos
de alterações no calendário. Assis e Rodrigues bem sintetizam que,

Sem nos delongar sobre a história desses grupos religiosos, cabe lembrar que
Alto Santo, Barquinha e UDV possuem uma relação diplomática e
estabelecem algumas alianças políticas que impactam na questão da
ayahuasca no Brasil, e que em grande medida essas relações são estabelecidas
em oposição à Iceflu e outros grupos religiosos.431

Neste período, na Colônia Cinco Mil, não havia divisão e nem grandes conflitos
internos, pois seu Wilson e seus familiares, ao mesmo tempo que fazia os trabalhos do Pronto-
socorro na sua casa, também estava na presidência do Centro na Cinco Mil, onde toda sua
família frequentava. O movimento de ruptura e fratura se inicia quando seu filho, Raimundo
Nonato, em 1996, opta por se afastar da administração da Colônia Cinco Mil e fundar o Pronto-
socorro como um centro independente, em janeiro de 1998. Este foi o primeiro movimento de
fragmentação simbólica do lugar, reconfigurando suas territorialidades, rearranjos espaciais e
fronteiras internas.
Nos anos 2000 a Colônia Cinco Mil voltou a ser administrada pela família de Sebastião
e Rita, desta vez na pessoa de sua filha Maria Gregório, que se casou com um dos primeiros

428
RUFINO, A.M.F. Protesto em Seminário Comunidades Ayahuasqueiras, 2010, p. 132.
429
Ibid.
430
CHIRIF, A. C. Identidad y movimento organizativo em la Amazônia peruana. Porto Alegre, Horizontes
Antropológicos, ano 3, n. 6, p. 135-159, out. 1997.
431
ASSIS, G.L., RODRIGUES, J. A. De quem é a ayahuasca? Notas sobre a patrimonialização de uma “bebida
sagrada” amazônica. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 37(3): 46-70, 2017, p. 49.
131
hippies e andarilhos que chegaram na Colônia Cinco Mil em 1975, o mineiro ouro-pretano
Maurílio Reis432. Diferente dos outros dirigentes que passaram pela Colônia, Maurílio e Maria
Gregório, mais conhecida como Neves, não ficaram morando na comunidade. Compraram um
terreno perto da sede de uma outra religião ayahuasqueira, a União do Vegetal (UDV) Núcleo
João Lango Moura, e construíram a Fundação Sebastião Mota de Melo. A área localizada no
bairro Alto Alegre, tornou-se espécie de vila daimista em Rio Branco, a aproximadamente 5
km da Cinco Mil. Luzia Schneider, fardada do Daime, nascida na Colônia Cinco Mil e moradora
da Fundação, uma das cantoras-puxadoras da igreja explicou:

“A Fundação foi criada no início dos anos 2000 com o objetivo de manter viva a
memória do padrinho Sebastião, captar recursos e desenvolver projetos sociais e
ambientais, tanto na Colônia, como também no Céu do Mapiá”.433

Também foi Luzia quem narrou, através de mensagens de aplicativo, que entre os
projetos da Fundação estavam uma fábrica de beneficiamento de leite da castanha para merenda
escolar, uma pousada, entre outros. Devido à falta de recursos e uma equipe qualificada para
desenvolver as atividades, os projetos não vingaram, apenas a ideia da pousada deu
relativamente certo. A Fundação durante anos tem recebido pessoas da irmandade que estão de
passagem por Rio Branco, vindas do Céu do Mapiá ou de outros lugares, funcionando assim
como a Cinco Mil, como um ponto de apoio para moradores e visitantes da vila na floresta, que
por motivos diversos precisam se deslocar para a capital do Acre, por exemplo, para tratamento
de saúde.
Em maio de 1997, a primeira sede do Pronto-socorro ficou construída e depois de 10
anos, em julho de 2007, a sede foi reformada, ganhou uma varanda e novos banheiros, além de
uma fachada imponente, e assim como a sede da Cinco Mil, lembra mais a arquitetura de igrejas
católicas do que das sede tradicionais do Daime em Rio Branco. Ali, em 2008, a família
Carneiro passou a fazer também os trabalhos oficiais do calendário da doutrina do Daime.
Um outro expressivo movimento de ruptura e fratura acontece neste período, quando
Marinez e Feliciano, antigos moradores e frequentadores do Daime na Colônia, passam a
reivindicar direito sobre a posse de uma significativa área das terras que compõe a Cinco Mil,
cercando a parte que contém o maior fragmento contínuo de mata e restringindo o acesso aos
demais moradores. Este espaço está sendo denominado de Colônia Luau, e tem realizado

432
MORTIMER, 2001.
433
L.S., 2023. Narrativa de Luzia Schneider gravadas em vários momentos por mensagens de WhatsApp ao
longo de 2020-2023.
132
diversos projetos, incluindo com empresas de turismo de Rio Branco, oferecendo vivências de
imersão na floresta, rituais com as medicinas, yoga, trilha ecológica, para pessoas que estejam
dispostas a pagar pelo pacote de serviços.
A consolidação de outros espaços na Cinco Mil, como o Pronto-socorro e a Luau, e as
tentativas individualizadas de regularização fundiária, estão relacionadas com a afirmação de
uma diferença, ao “ato ou processo de diferenciação”, que tem a criação de identidades e
agrupamentos como resultado, que por sua vez precisam encontrar sua forma de se espacializar,
definir seus territórios, limites e se legitimar. Na medida que se renomeia uma fração do espaço,
se apropria dele, como a Vila Carneiro e a Colônia Luau, que forjam as narrativas que
constituem identidades e novos arranjos à configuração do que podemos entender como a
Colônia Cinco Mil hoje, um espaço multiterritorializado.
Apresentei até aqui, em linhas gerais iniciais, os principais percursos desta cartografia
para melhor ambientar o leitor no conjunto de narrativas, fontes orais e escritas sobre o lugar,
os mapas-croquis, rascunhos que indicam uma imbricada rede ayahuasqueira, cheia de pontos,
nós, tensões, enlaces. Como parte deste início, agora procuro agora me apresentar e situar-me
como aquela que, guiada pelos narradores, guia essa caminhada.

133
1.5 As artes do bem viver e do bem morrer: O Daime como uma irmandade

Quando eu conheci o Daime em 2001 tinha 17 anos e havia saído da Igreja Presbiteriana
há uns dois anos. Tocava num grupo de percussão de Minas Gerais, o Maracatu Lua Nova, com
quem frequentava terreiros de Candomblé, festas de Congado e Moçambique, fazendo as
obrigações, festejos e alimentando as redes afetivas do grupo. Cursava o final do ensino médio,
e comentava com meu amigo de escola sobre meu interesse pela bebida, que eu conhecia de
ouvir falar, porque na casa de duas irmãs, amigas da adolescência, tinha sessão da UDV.
Eu às vezes pernoitava lá depois das nossas saídas, e me recordo da gente ter que passar
pela porta dos fundos que dava acesso à cozinha, todas muito discretamente, sem barulho para
não interferir na concentração dos participantes na sala do apartamento. Hoje fico imaginando
se passava algo na cabeça dos participantes, que na força do Vegetal, sentiam quando as duas
ou três jovens, vestidas de preto e alcoolizadas, passavam nas margens da sessão. Meu amigo
Leo me disse que seus pais pertenciam a um grupo que tomava o chá, mas não era o Vegetal,
era o Daime. Fomos até a casa deles, eu e meu irmão mais velho.
Os pais do meu amigo ressaltaram a seriedade do trabalho, que seria a noite inteira, que
era necessário se preparar como um todo, corpo-mente-espírito, e que teríamos que chegar um
pouco mais cedo para realizar uma entrevista mais detalhada com um dos membros do Centro,
responsável por receber os visitantes iniciantes, para passar mais algumas instruções sobre o
ritual etc. Dava para sentir que havia toda uma aura de mistério, esoterismo e cuidado
envolvendo a admissão de novos adeptos, ainda mais no meu caso, que era menor de idade.
Fomos instruídos a respeito da dieta recomendada e das roupas que deveríamos usar:
vestimentas claras, de preferência brancas, saia e calça comprida para mulheres e homens,
respectivamente. O Daime é uma experiência de um sagrado que acontece no corpo, para o
qual, segundo os adeptos, ele precisa ser preparado, para receber a “bebida que tem poder
inacreditável”434 da forma mais confortável possível.
Chegando lá, tivemos a tal conversa chamada de anamnese. Respondemos algumas
perguntas sobre histórico familiar e religioso, espiritualidade, saúde mental, uso de remédio
controlado e de drogas lícitas e ilícitas. Este foi um dos procedimentos instituídos e
recomendados pela Resolução 01/2010 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas
(Conad), que regulamenta o uso religioso da Ayahuasca no Brasil, e o Relatório Final do Grupo
Multidisciplinar de Trabalho Ayahuasca, publicado em 2010. Como nota-se, já era praticado

434
Serra, R.I., “Eu tomo esta bebida”, Hinário O Cruzeiro, n° 124.
134
antes da resolução por alguns centros do Daime, como forma de cuidado e atenção na acolhida
de novos adeptos, uma prática que apesar de falha, tem sido defendida como protocolo de
cuidado prévios para evitar os cada vez mais conhecidos casos de denúncias de surtos e até
mortes em rituais. Se funciona, se é suficiente, não há consenso, sobretudo com a expansão e
diversificação de centros ayahuasqueiros pelo país e do chamado xamanismo urbano. Há
extensos debates no circuito daimista sobre a importância de uma anamnese bem feita, no
intuito de tornar estes espaços mais seguros.
Naquele dia recebemos instruções, assinamos um termo de compromisso. Pronto:
estávamos autorizados a participar do trabalho. Era dia 23 de junho de 2001, uma noite de São
João, que depois eu viria a saber que é uma data muito especial e simbólica para todos os
fardados do Daime. Tomei o Daime pela primeira vez no Centro Eclético da Fluente Luz
Universal Manoel Corrente (Ceflumac), um lugar na região metropolitana de Belo Horizonte,
no município de Santa Luzia, que só se chegava de carro ou depois de uma longa caminhada
do ponto de ônibus até a comunidade. Foi o primeiro centro de Daime aberto na região
metropolitana de Belo Horizonte, em 1989, e o primeiro a fazer os feitios da bebida em Minas
Gerais, a partir de 1992.435 É uma comunidade do Daime com aproximadamente 14 casas e 25
membros, numa área de 8 hectares onde se planta jagube, rainha, além de cultivo de gêneros
alimentícios, criação de animais e jardins436.
Naquele final de tarde, depois de ir varando por entre os morros, descendo e subindo
ladeiras pelos remanescentes das matas de transição, na região do Angu Duro, avistava algumas
casinhas, uma igrejinha adiante, de meias paredes, com uma cruz de dois braços à frente e o
terreiro enfeitado com bandeirinhas de festa junina. Com estandartes, bandeiras e flores, aquelas
pessoas uniformizadas com trajes elegantes verde e branco de fitas coloridas, coroas e símbolos
nas roupas, toda a paisagem me remetia ao cenário das irmandades católicas de Congado e
Moçambique, confrarias de mulheres e homens pretos das Minas Gerais cujas festas eu
participava junto com o Maracatu Lua Nova, em procissões que uniam muitas guardas, com
seus cantos e seus batuques em louvação à Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e outros
santos.
As irmandades e confrarias católicas de homens e mulheres pretas fundadas no século
XVIII, como a Nossa Senhora da Boa Morte, na Bahia, os congados e moçambiques em louvor
à Nossa Senhora do Rosário Minas Gerais, por exemplo, estão ligadas à criação de um modo

435
Página CEFLUMAC: http://www.ceflumac.com.br/historico/. Acesso 03/01/2022.
436
http://www.ceflumac.com.br/localizacao/ Acesso 03/01/2022.
135
de devoção distinto do catolicismo apostólico das catedrais e capelas. São frutos de uma
violência colonial, pois surgem de uma adesão forçada do povo negro ao catolicismo, no
contexto de escravidão e colonialidade de corpos e mentes, mas são também formas de
recriação de suas práticas ancestrais e repertório de saberes, uma potente estratégia de
reexistência e reterritorialização que vem se atualizando há séculos, como a coroação de Reis e
Rainhas do Congo. Maristela Simão comenta que além da relevância social e econômica, os
aspectos religiosos destas irmandades “eram vistos com grande seriedade, sendo considerados
de importância fundamental.”437
As irmandades associadas à devoção de Nossa Senhora, com suas singularidades,
diferenças e semelhanças, através de um “sincretismo mágico” 438, foram trazendo para dentro
do catolicismo práticas ancestrais de África, a musicalidade dos cantos, dos tambores, as ervas,
as rezas, a circularidade das danças. Um dos principais intuitos destas irmandades era
providenciar os enterros do povo negro, grande parte sem condições de um funeral. João José
Reis em “A morte é uma festa”439 mostra a importância destas irmandades na realização dos
ritos fúnebres a partir do contexto de um revolta popular em Salvador, em 1836, que ficou
conhecida como Cemiterada.
Reis narra que por interesses econômicos, a elite política local, através de Decreto da
Câmara Municipal, estabeleceu que um grupo particular de negociantes seriam os novos
administradores dos enterros, que deveriam ser feitos no recém-criado cemitério público. Assim
fora retirado o poder das irmandades e outras ordens religiosas de fazer os enterros no interior
das igrejas, o que gerou revoltas que uniram os membros das irmandades, clérigos, homens e
mulheres livres e pobres. Considero importante destacar aqui é o papel destas irmandades
oitocentistas – e o quanto o Daime herdou destas influências, no sentido de conceber que é
importante se preparar nesta vida para um bem morrer.
As irmandades eram associações corporativas no interior das quais se teciam
solidariedades fundadas nas hierarquias sociais e simbólicas440, e também por esses motivos
assemelham-se com o modelo de irmandade instituído por Irineu Serra no Acre. As festas em
louvor aos padroeiros, com os congados e moçambique, com eleições de seus reis e juízes,

437
SIMÃO. M. S. As irmandades de Nossa Senhora do Rosário e os africanos no brasil do século XVIII.
Tese de mestrado, História da África, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2011, p. 15.
438
MENDES, M. C. O Congado e a Constituição das Irmandades Religiosas em Minas Gerais, Trabalho de
Conclusão de Curso. Departamento de Ciências Sociais. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo
Horizonte, 2007.
439
REIS, J.J., A morte é uma festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, São Paulo,
Companhia das Letras, 1991.
440
Ibid.
136
cortejos e coroações, constituíam-se uma estratégia de reterritorialização no contexto da
diáspora, uma forma de “manifestar valores culturais próprios”441. Irineu Serra reterritorializa
o uso da Ayahuasca em meio a uma população não indígena, fora da floresta e no contexto de
práticas cristãs e esotéricas.
Paulino Cardoso destaca as irmandades como espaços ambíguos, ao mesmo tempo de
assimilação de normas e valores culturais da sociedade colonial, e também um exercício de
recriação e resistência, pois através de um catolicismo leigo e popular, movimentava-se espaços
de sociabilidade e de invenção de visões de liberdade442. Apesar de reconhecidas pela Igreja
Católica, sobretudos nos séculos XVIII e XIX, estas irmandades eram alvo do olhar desconfiado
dos administradores das províncias, das autoridades eclesiásticas e da Coroa, pois poderiam
ameaçar o propósito de conversão — leia-se projeto de dominação plena dos indivíduos.
Voltando à minha chegada no Daime, daquela noite de São João me recordo do frio, da
fogueira e do foguetório que vinha junto com as muitas chamadas de “viva!”, que também me
lembravam as louvações e as procissões de Congado. Lembro que havia gostado muito da força,
que tive ótimos momentos de suspensão e mergulho noutra dimensão do sentir, sobretudo em
contato com uma delicada, resistente e orvalhada teia de aranha. Ao longo do aparentemente
repetitivo ritual, os cânticos me soavam ora belíssimos, ora um estridente, inteligível e cansativo
rosário de ladainhas de Ave Maria e Jesus sem fim, cujo bailado nem sempre era fácil
acompanhar. Inquieta, passei um bom tempo fora do salão, nome que se dá ao espaço principal
onde acontecem os rituais, geralmente denominado festejo, trabalho ou sessão.
À medida que o hinário cantado naquele dia avançava madrugada adentro, fiquei deitada
no carro, no estacionamento, tendo mirações com todo o infinito que se apresentava — miração
é o nome dado pelos fardados do Daime para o efeito do chá, sobretudo os aspectos visionários.
Assim eu fui, até ser acordada por um fiscal, que batia no vidro molhado e me anunciava que o
trabalho estava findando e eu precisava voltar ao salão. O culto do Daime tem uma série de
ordenamentos e fundamentos rituais que visam disciplinar os corpos durante a execução do
ritual que, em essência, é rezar as preces, cantar hinos e se compor no seu lugar como uma
soldada/soldado do batalhão da Rainha da Floresta. Nos trabalhos sentados, espera-se
concentração e uma postura contrita, e nos festejos, quando acontecem os bailados, os fardados
do Daime marcham com entusiasmo e apresentam seus trabalhos aos seres divinos que
observam a sessão, buscando, assim, um aperfeiçoamento de si, um autoconhecimento. A

441
SIMÃO, 2011, p. 15.
442
CARDOSO, P. Negros em Desterro: Experiências de populações de origem africana em Florianópolis na
segunda metade do século XIX. Itajaí, SC: Casa Aberta, 2008, p. 261.
137
ênfase no Daime é na introspecção, na concentração e na firmeza durante o ritual, dando pouca
margem para relaxamento, descontração e liberdade de expressão durante o mesmo. Espera-se
que o cântico, o bailado, o toque do maracá estejam o máximo possivel harmonizados.
Cada um enxerga o mundo a partir das suas vivências e do lugar onde está. Há aqueles
que definem o Daime como doutrina, irmandade, culto ou ainda uma escola espiritual, uma
religião da floresta, religião ayahuasqueira, xamanismo coletivo, “doutrina da floresta”, “uma
seita”, “um santo barato”, “alucinógeno” e “perigo à saúde coletiva”, dentre outras muitas
possibilidades de significações. Cada um destes sentidos está datado, foi construído em um
determinado contexto histórico. Escolho olhar para o Daime como irmandade pois é a maneira
como eu vivencio o estar e o ser uma comunidade do Daime em Rio Branco. Peixoto enfatiza
o Daime como uma irmandade, destacando que

como a totalidade da sua doutrina foi revelada, sua definição como irmandade
nasceu após o irmão de Germano Guilherme, o amigo mais próximo de Irineu
Serra, presenciar o hinário do mestre no astral e ver os hinos serem anunciados
por uma sequência de saudações:
Viva o Divino Pai Eterno
Viva a Rainha da Floresta
Viva Jesus Cristo Redentor
Viva o patriarca São José
Viva todos os seres divinos
Viva toda irmandade
Viva o Santo Cruzeiro443

Entendo que irmandade, doutrina, culto, escola, ciência, festejo foram os termos
utilizados pelo próprio Irineu Serra e primeiros seguidores para se referir a esta prática cultural,
que não se limita à expressão de uma religiosidade amazônica. Procuro no rascunho destes
registros, escutar o que dizem os antigos, posicionar-me como uma zeladora de memórias,
mesmo sabendo que “zelar pelas coisas traz uma enorme ansiedade. Está tudo sempre
morrendo, sempre mudando, e o zelador sua, com seus paninhos e o álcool em gel.”444
A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte na Bahia, o Congado, o Moçambique de
Minas Gerais, o Daime no Acre são exemplos de irmandades que devotam à Nossa Senhora
como padroeira, e ainda que tenham surgido em contextos distintos de reelaboração do
cristianismo/catolicismo, com diferentes níveis de aliança e reconhecimento por parte da Igreja
Católica, guardam relações entre si, como já apontadas também por Goulart445 e Labate446 se

443
PEIXOTO, 2022, p. 30-31.
444
MOURA, P.L.P. Zelar pelas coisas.
445
GOULART, 2004.
446
LABATE, 2004.
138
referindo às proximidades do Daime com outras tradições populares que reelaboram o
cristianismo espalhadas pelo Brasil.
Ainda que alguns séculos separem a fundação das primeiras irmandades de homens e
mulheres pretas na Bahia e Minas Gerais, que surgem ainda no século XVIII, do Daime que
surge na Amazônia nas primeiras décadas do século XX, o contexto da escravidão está muito
próximo de cada um deles. O Daime também foi fundado por homens e mulheres pretas,
convivendo com os efeitos perversos da exploração violenta do trabalho e exclusão social, e
pode ser lido como estratégia de reterritorialização e resistência de práticas afro-indígenas,
socialmente estigmatizadas. Apesar da abolição do trabalho escravo no Brasil ter ocorrido em
1888, corpos não brancos, sobretudo afrodescendentes e indígenas, continuaram sendo
explorados de muitas formas e, na Amazônia, a economia da borracha do final do século XIX
e primeiras décadas do XX, estabeleceu-se um sistema em condições análogas à escravidão,
através dos aviamentos e servidão por dívidas.
A musicalidade, a festividade como elemento central de conexão com o Divino, que está
na natureza, em tudo e está em nós, é um pilar destas práticas culturais. Para execução desta
musicalidade imanente e transcendente, os corpos não se posicionam e nem se movem no
espaço de qualquer forma ou à toa durante os rituais. No caso das guardas de maracatus e
congados, o coral de vozes se ancora nos tambores e, no caso do Daime, quem faz a base são
os maracás, espécie de chocalho tocado com as duas mãos, feitos de latinhas de metal. Em
comum, estas irmandades preservam, repassam e recriam conhecimentos tradicionais, ritos e
hierarquias, conjuntos de rezas, ensinamentos, cosmologias, obrigações, concepções de mundos
e além-mundos, diferentes ritmos, passos de dança, artes de cura e sobretudo, preceitos para
enterrar seus mortos.
São diferentes ritmos, músicas, performances que têm em comum a simbologia católica
misturada com elementos dos saberes afro-indígenas, e o fato de serem manifestações culturais
essencialmente musicais, nas quais a repetição serve como mantra, que se intercalam com rezas
conhecidas do terço e do rosário, entre outros repertórios. São grupos unidos pelo sentimento
de pertencimento a uma coletividade, que se define como povo, nação, guarda, família, império,
com suas bandeiras, seus instrumentos, suas fardas coloridas e elegantes, apresentam-se para
cantar e cumprir um calendário de festas sagradas.

139
Labate e Pacheco447 apontaram para essas raízes maranhenses do Daime, e que Irineu
Serra teria se inspirado no Baile de São Gonçalo na composição da ritualística do Daime.
Kastrup448 também pesquisou essas raízes durante o projeto de pós-doutorado em Antropologia.
Cabe destacar as já notadas influências dos festejos típicos da baixada maranhense, os
chamados Baile de São Gonçalo, que é uma tradição musical, performática, ligada à devoção
ao Santo e que também emerge do catolicismo popular, “uma forma de pagamento de promessa,
de origem portuguesa”449. Nas fronteiras entre religiosidade e folguedo, ao som de diferentes
ritmos, “os brincantes dançam em filas, vestidos com roupas parecidas às vestimentas do
Daime, todos de branco usando fitas coloridas, as mulheres com coroas ou grinaldas na cabeça
e os homens com chapéu de veludo bordado”450 e festejam com toda a seriedade fazendo
rogativos, pagando promessas e agradecendo pelas graças.
Moreira e Macrae comentam que “a similaridade entre essa celebração e os rituais
daimistas é bastante impactante” e de lá teria vindo os termos como “dias de festejo” ou
“bailado”.451 Acrescentam que “a disposição arquitetônica das igrejas do Alto Santo costuma
ser muito parecida com as ‘ramadas’ como são chamados os barracões retangulares onde se
realizam os festejos maranhenses.”452
Peixoto também destaca, por sua vez, a institucionalização do Daime por Irineu Serra
como uma irmandade, e não uma religião, “seguindo a forma clássica de organização dos leigos
na Igreja”453, expressa bem esta relação idealizada entre o Daime e a Igreja Católica nos moldes
das antigas confrarias. Depoimentos de antigos seguidores dizem que o Irineu dizia que “o
Daime é católico’454, que esperou a visita do padre de Rio Branco ao Ciclu, no intuito de firmar
um reconhecimento por parte da Igreja, e este era um dos motivos pelo qual não eram realizados
casamentos nos centros de Daime.455
Esta relação intrínseca do Daime com o cristianismo tende a ser, por vezes, minimizada
e relativizada pelos grupos sociais frutos da expansão, que tendem a preferir destacar a relação
do Daime com o Xamanismo, ou com a Umbanda, ou com toda a sorte de ecletismos,

447
LABATE, B.C.; PACHECO, G. Matrizes Maranhenses do Santo Daime. In: LABATE, B. C.; ARAUJO, W.
S. (org.). O uso ritual da Ayahuasca. Campinas: Mercado de Letras; FAPESP, 2002. p. 303-344.
448
KASTRUP, L. Exposição “Baile de São Gonçalo: Retrato da Baixada Maranhense”. Pesquisa “As origens
culturais do Mestre Irineu”, pós doutorado em Antropologia, Museu Nacional da UFRJ, 2023.
449
MOREIRA e MACRAE, 2011.
450
Ibid, p. 38.
451
MOREIRA e MACRAE, p. 269.
452
Ibid.
453
PEIXOTO, 2022.
454
Ibid.
455
Ver também: MOREIRA e MACRAE, 2011.
140
orientalismos, situando o cristianismo/catolicismo apenas como uma parte do caldeirão
sincrético, ou ainda, como herança colonial. Entre os seguidores de Sebastião, depreende-se
que o “Santo Daime em tudo se soma”456, e tende-se a destacar mais o Daime como culto
eclético e não somente como culto cristão-ayahuasqueiro, como é mais frequentemente
caracterizado nas raízes acreanas do Daime.
Em 2001 e 2002 dediquei-me assiduamente aos compromissos com o Maracatu Lua
Nova, e voltei no Daime algumas poucas vezes, oportunidade em que conheci outra igreja, que
surgiu de um desdobramento do Ceflumac, e localiza-se bem ao lado da primeira: a Flor do Céu
ou Ciclumig. Passei a frequentar o Daime com assiduidade em 2003 no Centro de Estudos
Ecléticos de Desenvolvimento Universal, Amor e Paz (Ceeduapaz). Em 2004, eu e meu irmão
nos fardamos no Daime, na passagem do dia 6-7 de outubro, aniversário do Padrinho Sebastião
e dia de Nossa Senhora do Rosário.
Para nós fazia todo o sentido a iniciação nessa data, pois era uma aliança que tecíamos
em nós entre as duas irmandades, as duas fardas, os dois ritos, os dois festejos: o sentimento de
pertença à nação Lua Nova, com suas loas e batuques ao Rosário de Maria, e à nação de
Juramidã e seu império no Astral, com seus hinos e maracás à Rainha da Floresta. Estávamos
há um ano e seis meses frequentando com assiduidade no Ceeduapaz, também localizado no
município de Santa Luzia, Minas Gerais, mas em outra localidade, no Bonanza, a poucos
quilômetros do centro histórico da cidade de mais de 300 anos.
O Ceeduapaz, que também se intitula Alto Santo de Minas, não tem nenhuma relação
direta com a sede do Ciclu–Alto Santo em Rio Branco, mas procura copiar em alguns aspectos
o seu modelo, o que inclui a configuração do salão, quadrado ao invés de hexagonal, o estudo
dos hinários, o tratamento do dirigente do trabalho como presidente e não como padrinho, entre
muitos outros detalhes. Porém, também está ligado às práticas do povo do padrinho Sebastião,
e tem uma ligação afetiva com Wilson Carneiro e seus trabalhos de cura da Linha de Arrochim.
O Daime como uma irmandade fundada pelo mestre Irineu é onde se estuda e se aprende
uma doutrina cantada e bailada, à luz de um sagrado vinho da floresta, e a Colônia Cinco Mil é
uma de suas escolas. É assim que eu procuro vivenciar o pertencimento à irmandade nestes 20
anos de trajetória. Irmandade não quer dizer, necessariamente, as pessoas vivendo com fortes
laços de fraternidade, solidariedade, igualdade, em comunhão e harmonia cotidiana e recíproca.
É mais como sociedade, confraria e associação, uma aliança entre pessoas com o mesmo fim,
geralmente ritual-religioso, que é também político, econômico, cultural pois se trata de uma

456
Mota, A.G., “Mãe das mães”, n 7.
141
forma de estar no mundo como indivíduo e como ser social, parte de um coletivo que segue a
tradição dos festejos, do auto aprimoramento nas concentrações e consagrações de plantas
maestras, “o divino calendário”457 para “trabalhar para os irmãos, aqueles que estão doentes”458.
Irineu Serra apresentava o Daime como uma doutrina, escola, um estudo fino, feito em
irmandade. Em seu hinário, Irineu afirma sobre a natureza de seus trabalhos: “aqui tem muita
ciência/ que é preciso estudar/estudo fino, estudo fino/que é preciso conhecer”459. Rufino
destaca que o termo ciência é utilizado por outras tradições, destacando que “A ciência sempre
teve um tanto de macumba. Não à toa, os mestres encantados dos cultos da jurema, do catimbó
e da encantaria chamam os ofícios de saber de ‘ciência encantada’.” 460 É parte dos princípios
fundamentais para fazer ciência numa perspectiva intercultural461 reconhecer que outras formas
de produção de conhecimento também são ciências, tratando-as em igualdade, sem produzir
hierarquias – e neste caso problematizar versões que descrevem o Daime como “folclore da
regional”462, “seita”. A Colônia Cinco Mil, com todas as suas especificidades, é lócus de
aprendizado desta ciência à que se refere Irineu Serra em seu hinário, a “ciência da
ayahuasca”463, a “ciência do Daime”464.
Com o tempo reconhecer-se e afirmar-se como religião – e daí as diversas adjetivações
criadas como “religião ayahuasqueira”, “religião da floresta” – tornou-se necessário, com o
objetivo de salvaguardar a legitimidade e o direito de praticar o culto e o uso ritual da bebida.
Na escolha dos conceitos com os quais pensamos há uma inerente dimensão política, ética,
estética, e como os conceitos mudam e as práticas também, é interessante notar quais as palavras
eram usadas pelos antigos, seus significados e quais expressões vem sendo esquecidas.
Quando escolho falar de plantas professoras à enteógenos ou psicoativos como
categorias para apresentar o Daime e a Santa Maria nesta pesquisa, não é porque exatamente
um termo seja mais correto que o outro, mas que do ponto de vista de uma abordagem
intercultural, decolonial, se aproximar dos conceitos que ecoam do campo (que os antropólogos
chamam nativos, êmicos) é mais coerente que ficar utilizando termos exógenos. Nos hinos do

457
Melo, A.G. “Calendário”, Hinário Nova Dimensão, n.3.
458
Serra, R.I. “Sou filho do poder” Hinário Cruzeiro, hino n 116.
459
Serra, R.I., “Sou filho desta verdade”, Hinário “O Cruzeiro”, nº102.
460
RUFINO, 2017, p. 56.
461
FONSECA, G. S. ¿Epistemologías culturalmente específicas? In: LIORENTE, Juan Carlos e SACONA,
Unai. Investigación aplicada a la educación intercultural bilingüe: algunas reflexioes epistemológicas.
Helsinki, Instituto de Ciencias del Comportamiento, 2012.
462
COUTO, 1989.
463
PANTOJA FRANCO, O uso do chá entre os seringueiros do alto Juruá. 2002.
464
MENDONÇA, 2016.
142
Daime, aparece várias vezes como a expressão professor e até “o professor dos professores”
para se referir ao ser Divino que se manifesta na bebida.
Observo que, no contexto da expansão, muito da cultura que é parte constituinte dos
rituais do Daime tem se perdido e se transformado, sobretudo fora do Acre e isso passa,
inclusive, pelo vocabulário utilizado. Por exemplo, por que chamar de egrégora ou fraternidade
se temos o termo irmandade, que ecoa e ressoa no campo originário? Acredito que nomear o
que fazemos e escolher bem as palavras não é uma questão de terminologia, “não são atividades
ocas ou vazias, não são mero palavrório”465, como destaca Larrosa. Procurei nesta parte, a partir
da minha vivência nesse campo, traçar algumas cartografias de memórias para evidenciar que,
além das conhecidas relações com o Baile de São Gonçalo e outras manifestações da encantaria
maranhense, há muitos elementos que apontam para as semelhanças do Daime com outras
irmandades leigas, como expressão de um catolicismo popular, como território de resistência
de saberes afro-indígenas, que ensinam a agradecer, festejar a vida, rezas e práticas de cura,
estudos dos sonhos e providenciar os ritos fúnebres – as práticas culturais para um bem viver e
um bem morrer.

Figura 6 – Croqui: Área total da Colônia Cinco Mil atualmente (cerca de 60 hectares)

Fonte: Croqui elaborado a partir de Imagem de Satélite Google Earth (fotointerpretação)

465
LARROSA, Linguagem e Educação depois de Babel, 2004, p. 153.
143
1.6 A cartógrafa e a primeira vez no Acre e no Mapiá

Cheguei pela primeira vez na Colônia Cinco Mil em julho de 2006. Era uma atividade
de campo ligada à disciplina optativa “Amazônia na produção do espaço brasileiro” ministrada
pelo professor Claudinei Lourenço (1966-2023), do curso de Licenciatura em Geografia da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Vínhamos de ônibus, no melhor clima de
trabalho de campo com um professor universitário do rock. Cortamos as estradas do centro-
oeste brasileiro por quatro dias, parando em alguns pontos no Mato Grosso e Rondônia até
chegar no Acre para participar do Encontro Nacional de Geógrafos (ENG) organizado pela
Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB), naquele ano na Universidade Federal do Acre
(Ufac).
Eu e Marina, minha companheira nesta viagem, estávamos determinadas a participar de
um outro encontro de estudantes em outro lugar de Rio Branco, e em um outro tipo de escola,
onde não se matricula em faculdades, mas as desenvolve466. Articulamos previamente isso com
o professor orientador da disciplina que, emerso numa prática educativa que valoriza a vivência
dos alunos e a experimentação, também não se opôs. Dessa forma, conseguimos chegar no
Encontro dos Prontos-socorros e Centros Filiados, que acontecia em julho — até a interrupção
durante a pandemia de covid-19 —, reunindo dezenas de adeptos em dez dias de trabalhos
espirituais no Centro e Pronto-socorro. A programação consistia em participar dos rituais de
feitio da bebida, rezas, terços, e dos trabalhos no salão, de bailado, concentração e,
principalmente os de curas. A sede do Pronto-socorro ainda era uma casinha de alvenaria com
telhado simples, sem as torres e o sino que hoje ornam a construção.
Terminado o Encontro, fomos convidadas por Gecila Teixeira de Souza, uma das filhas
de Wilson Carneiro, para irmos ao Céu do Mapiá, acompanhando-a na viagem. Gecila foi a
única representante da família Carneiro que acompanhou Sebastião na trajetória para o Céu do
Mapiá, onde hoje é uma das mais antigas madrinhas, dona de um hinário de mais de 100 hinos.
Nesse processo de irmos para o Mapiá, nos desvencilhamos de vez do grupo de
estudantes da UFMG, o que nos rendeu um conceito D na avaliação final da disciplina, mas
possibilitou que embarcássemos na nossa iniciação espiritual floresta adentro. Por terra, fomos
até Boca do Acre, no estado do Amazonas, em um táxi lotação e, de embarcação, começamos
a descida do rio Purus e subida do igarapé Mapiá, onde pernoitamos na casa de um senhor
chamado Bernaldo, que nos foi apresentado como antigo feitor do padrinho Sebastião. Ele

466
Melo, V.G. “Meu livrinho”, n 16.
144
morava numa residência muito simples às margens da Vila, no igarapé Mapiá, e assim nos foi
possível conhecer um pouco da vida dos moradores da periferia do Céu do Mapiá, espécie de
capital mundial do Santo Daime na floresta.
De fato, como eu já havia ouvido falar, aquela comunidade que seria um céu na Terra,
sonhada por Sebastião como uma escapatória da cidade para a floresta, sinônimo de saída do
mundo da ilusão, alternativa para viver de forma mais coletiva, fraterna, próspera e conectada
à natureza, estava irremediavelmente absorta nos encantamentos possibilitados com a chegada
do mundo do dinheiro, da mercadoria, “das ajudas”, inevitavelmente imersas no mito do
desenvolvimento, do progresso e, com eles, o aprofundamento das desigualdades sociais, a
devastação ambiental e a dependência externa.
Seu Bernaldo ofereceu-nos o alimento para a ceia. Pela manhã, um pouquinho de Daime
para passarmos melhor a viagem no barco e mergulharmos na experiência. Da sua casinha de
madeira, alta para melhor se adaptar as periódicas cheias, relembro da simplicidade e da
calorosa acolhida, e principalmente do seu altar: o Cruzeiro, o Daime, uma vela, uma fotografia
do Mestre Irineu, outra do Padrinho Sebastião, numa estante de canto de parede. Nos
despedimos e embarcamos novamente na voadeira até chegar na vila.
Gecila, que se casou pela segunda vez com um dos filhos de Sebastião e Rita, o José
Mota, nos recebeu na sua casa, localizada bem próxima à igreja. Não diferentemente de uma
cidade capitalista, que espacializa e hierarquiza os corpos e seus locais de moradia, a
organização do Céu do Mapiá também expressa relações de prestígio e poder. A área mais
central da vila, próxima à Igreja e à capela onde jaz o túmulo de Sebastião e outras lideranças,
se concentra as atividades comerciais e estão localizadas as moradias de familiares mais
próximos da família Mota e Raulino. Essas, por exemplo, tem um acesso mais constante à
energia elétrica. Dali, vão se espalhando as outras famílias, algumas nas margens do Mapiá,
outras nas margens do igarapé Repartição, que também compõe a área da comunidade, e onde
nem todas as famílias tem acesso à energia elétrica 24 horas por dia. A vila possui placas solares
mas nem todos possuem as baterias para armazenar energia para usar à noite, ou um gerador.
Na capela onde jaz o túmulo de Sebastião íamos todos os dias, e pudemos ver madrinha
Júlia Gregório, uma das moradoras mais antigas da comunidade, zelando religiosamente o
trabalho da Oração do padrinho Sebastião, um conjunto de 10 hinos e uns anexos, cantados
naquela época às 16 horas, sempre de forma pontual, firme, generosa, exemplar. Ela, um
pequeno grupo de jovens da vila e alguns visitantes, como eu e Marina, acompanhávamos a
reza, que é também uma cantoria, um estudo, um ensaio. É nestes momentos que os adeptos do

145
Daime podem se dedicar ao desenvolvimento da musicalidade, seja através do canto, seja
através da aprendizagem de um instrumento musical.
Felizmente tive a oportunidade de conhecer e fazer um trabalho na antiga igreja, erguida
ainda no tempo de Sebastião em 1986, uma obra lindíssima, toda em madeira, mesa e porta
entalhadas com lindas imagens esculpidas pelo artista Júlio César nos meados dos anos 1980.
Uma verdadeira catedral da floresta! Apesar de ser um galpão aberto com varandas,
diferenciava-se da sede do Alto Santo pelo fato da sede no Mapiá ser a primeira em um formato
hexagonal. Desde que começaram as obras de demolição e construção da nova sede para os
trabalhos, colocando abaixo a igreja de madeira construída, patrimônio histótico e material
construído com muito custo no tempo do padrinho Sebastião com seus companheiros, estas
orações deixaram de ser feitas no túmulo, e passaram para a varanda da casa da madrinha Rita.
Pelo que narrou Francisca Corrente, nenhuma das antigas moradoras de sua família
foram consultadas sobre a mudança na sede, e a falta de uma justificativa e de diálogo com a
comunidade gerou certo descontentamento. Apesar do discurso de que era necessário atender o
sonho do rei Salomão, como alguns adeptos referem-se à “pessoa espiritual” do padrinho
Alfredo, preparar um templo maior para receber visitantes e moradores, o custoso e desgastante
— em muitos sentidos — processo de demolição e construção de uma nova sede tem sido
narrado também como “mania de grandeza”, “ideias do povo do sul”. Dizem que as senhoras
choravam vendo a igreja ser desmontada “sem vê nem pra quê”, sem saber o que viria nos
próximos anos:

“Aquilo tá lá no meio do tempo, acabou tudo, o pessoal da obra chegaram e


meteram o pau pra arribá. Aquele Cruzeiro, que tinha um Cruzeiro bonito, cabou.
Me dá um negócio tão ruim de ver aquele negócio. Uma agonia, um desespero na
minha mente. Já entrou três empresa. Primeiro a Sobrosa, ciscaram por lá, cavaram,
escavocaram, foram embora. Aí veio a Igese, batalhou, atalhou, batalhou não deu
muita coisa. Agora tá a G.camp, em agosto eu conversei com o chefe, o chefe da
chefia... ele falou pois é, é muito complicado, pois fizeram tudo errado. Agora eles
disseram que vão terminar o grosso, e vamos vendo quando é que vai conseguir
terminar mesmo...”467

A demolição da igreja de madeira para dar lugar a uma obra de alvenaria de concreto e
aço provocou a derrubada de muitos trechos de mata para abertura da estrada, assim como a
perda de um patrimônio material de considerável relevância. Comento isso porque, como Assis
já destacou, diferente da comunidade do Daime em Rio Branco, o Céu do Mapiá “é pobre em

467
F.C., 2022.
146
símbolos que evoquem sua história e memória. (...) não conta com nenhuma ‘casa de memória’,
tampouco com símbolos fortes, como estátuas e bustos de seus principais personagens
históricos.”468 Uma das filhas de Sebastião que veio do Mapiá para morar na Colônia Cinco Mil
recentemente comentou: “Lá no Mapiá não tem mais nada que foi feito com a mão de papai,
destruíram tudo. Aqui ainda tem a igreja. Deu umas modificadas, mas ainda é igual ao que o
papai deixou.”469
Assis comentou que a nova construção foi motivo de tristeza, desconfiança e crítica470
para alguns antigos moradores, pelo grande impacto ambiental e social que causou. Desta
forma, o atraso, o alto custo, não raramente tem provocado críticas, afinal foram mais de 10
anos em obras. Toda uma geração de crianças e jovens cresceram sem ter a igreja como
referência, o que em alguma medida explica o notório e comentado envelhecimento das
lideranças no Mapiá e pouco protagonismo juvenil nos trabalhos. A construção da nova sede
começou em 2012, e desde então, “uma corrente global, que envolve pessoas de dezenas de
igrejas de várias partes do Brasil e do mundo e tem até grupo no Facebook, se mobiliza
constantemente para viabilizar arrecadações financeiras para a obra.”471 A ausência de uma
prestação de contas clara, que comprovasse o uso dos volumosos recursos das doações na obra
fim também gerou desconfianças e descontentamentos em vários adeptos do seguimento.
Também existem muito fiéis e entusiastas que estão comemorando porque, felizmente,
após a pandemia que dificultou a situação financeira na comunidade com a diminuição
expressiva de visitantes, conseguiram avançar no empreendimento e realizar a cobertura do
espaço, que foi um grande desafio. A pré-inauguração aconteceu no festival de junho de 2023,
quando também se comemorou o aniversário de 98 anos da madrinha Rita, e a nova sede ficou
cheia, recebendo visitantes de outras regiões do Acre, Amazônia, Brasil e do mundo.
De alguma forma, a demolição da igreja original, sem um motivo plenamente
esclarecido e sem consulta prévia à comunidade, evidencia o pouco apego à memória material
deixada pelo fundador Sebastião Mota, pois o espaço, a própria construção, poderia ser lida
como monumento de toda comunidade e se devidamente restaurada, envernizada, poderia ter
durado ainda muitos anos.
Assis, que além de pesquisador é dirigente do Daime ligado à Iceflu, também membro
do conselho técnico-científico da instituição, destaca que “foi demolida por conta de problemas

468
ASSIS, 2017, p. 330.
469
Comunicação oral, 2021.
470
ASSIS, 2017.
471
Ibid., p. 271.
147
em sua infraestrutura” e cita por alto que “sua estrutura acabou ficando comprometida,
especialmente pela infestação de cupins.”472 Francisca narrou de outra forma:

“Cupim dá, mas cupim a gente trata. O erro foi este, porque tinha um esteio, bem
no centro, central, que era ligado no chão, o pé dele era chumbado, eu não sei de
quem foi a ideia, porque eu não sei mesmo, cortaram lá em cima, pra tiver este
esteio, que era pra fazer um negócio assim, ficar tipo uma estrela, um coração lá em
cima. Mas aí não deu certo, os pau foram arriando. Mas o Dario, meu cunhado, ele
falou o que está acontecendo, ali dava pra resolver, com uns vergalhão de ferro.
Mas aí começaram viajar, começaram viajar... se engrandeceram... o negócio foi
entrando, entrando, daí veio um e disse vamos fazer assim, fazer assim...”473

Voltando aos idos de 2006, Gecila, nos poucos dias que ficamos lá, procurou nos
apresentar o Céu do Mapiá da melhor forma possível: fizemos visitas à casa da anciã Rita
Gregório, generosa matriarca desse seguimento do Daime, com direito a boas conversas e
consagração da Santa Maria; caminhadas por lindas trilhas na mata, que nos levaram às casas
de diferentes famílias, como a visita à Dalvina e Maria Corrente, da qual me recordo terem as
varandas de madeira rodeadas de flores. Fomos à casa da Vó Nogueira, uma das mais antigas
moradoras. Passei uma tarde participando do feitio de Daime, na limpeza das folhas dentro da
igreja, junto com outras mulheres, que me ensinaram o procedimento e cantavam hinos.
Também me recordo de saudosos banhos refrescantes no igarapé Mapiá, não sem antes sermos
advertidas sobre o risco de topar com uma arraia; dos trabalhos na igreja me recordo como uma
experiência inigualável do Trabalho de Mesa Branca, realizado no dia 27 de julho de 2006,
quando participei pela primeira vez de um trabalho com incorporação mediúnica, de várias
entidades ao mesmo tempo, na corrente do Santo Daime.
O trabalho começou como uma sessão de cura normal, farda azul, todos sentados,
concentração, cantorias alternadas de louvores, súplicas, aconselhamentos e advertências.
Passou um tempo, um dos senhores sentados à mesa e dirigente do trabalho, iniciou a leitura de
um texto espírita. Não demorou, exus, pombas-gira se manifestaram no salão puxando o
hinário, caboclos flecheiros, tudo isso brindado com um Daime mel, que é especialmente forte.
Lembro de me sentir em um espetáculo teatral, uma espécie de Ópera Daime — foi a primeira
expressão que me chegou, por achar um tanto teatral o musical-macumba-daime, onde cada
atuação ali manifestava, parecia contar uma história à medida que puxava os hinos e pontos
intercalados. Eu já havia frequentado alguns terreiros de Candomblé e Umbanda, em dias de

472
ASSIS, 2017, p. 291.
473
F.C., 2022.
148
festas e atendimentos, também já havia conhecido alguns centros de Daime, mas a fusão
ritualística me surpreendeu. Tudo muito forte, me soava espetaculoso e barulhento em relação
ao que estava acostumada — nem participei da repetição da bebida.
Procurei me firmar em duas caboclas que cantavam bem firmadas numa fila à minha
frente e, de vez em quando, elas esboçavam um meio sorriso diante das cenas que se
apresentavam na sessão. Era realmente estranho ver manifestações de exus perturbando a
madrinha Rita, mexendo em seus cabelos, enquanto ela permanecia impávida. A estrangeira ao
meu lado manifestava uma pomba-gira muito alvoroçada, gesticulando afoitamente, o que me
impedia de entrar em qualquer estado meditativo ou de concentração a maior parte do tempo.
Sobre estes trabalhos de mesa branca, depois fui entendendo a história, que o objetivo é alinhar-
se ao espiritismo kardecista e à Umbanda para iluminar as almas sofredoras474, considerando as
experiências e o cabedal que o Sebastião tinha mesmo antes de chegar ao Daime do mestre
Irineu. É parte do ecletismo que caracteriza a releitura do Daime proposta por Sebastião.
Assis475 descreve que essa “miscibilidade” isto é, a capacidade de se misturar a outras religiões,
é um dos traços estruturais do Cefluris, destacando que a palavra eclético no seu nome seria um
sinônimo desta natureza porosa que se mistura e absorve elementos diversos.
Depois do momento mais agitado com os exus e pomba-gira, e do repertório de
demandas e contentas entre os caboclos, flecheiros e toda sorte de guerreiros atuados, como
quem faz chumbo trocado, houve momentos de preleção. O ápice ao que parece era a
incorporação do espírito do padrinho Sebastião na sua filha Nonata. A preleção foi pesada.
Muita cobrança e desapontamento com a irmandade. Falou dos homens e das mulheres que não
se respeitam e muitas outras coisas. Cobranças por atitudes, por mudanças! Muitas! Exaustivas!
Descascava críticas sobre a vida cotidiana, condenação ao uso de drogas, o apego a dinheiro e
a promiscuidade sexual, incluindo homens e mulheres casados. O que me recordo de ter ouvido,
literalmente nestes termos, foram as palavras ditas assim: “porque vocês vão ver como vai ser
quando a peia descer. Porque a Rita está aí, por enquanto eu estou segurando, quando a Rita
vier pro lado de cá, vocês estejam preparados, eu não vou segurar mais.” Nunca me esqueci
desta profecia em sinal de alerta, que no contexto da ritualística ali experienciada, era dita pelo
próprio Sebastião através do corpo de sua filha.
Interessante notar que Albuquerque também relata ter participado de um trabalho de
Mesa Branca no Céu do Mapiá durante seu trabalho de campo, no qual presenciou estes

474
ALVERGA, 1992.
475
ASSIS, 2017.
149
momentos de preleção com tons de insatisfação, e que teria sido esclarecido de que, naquele
contexto, acredita-se que era o próprio padrinho Sebastião a chamar a atenção de seu povo. “A
voz reclamava que ninguém estava mais plantando nada, que não tinha um pé de macaxeira nos
quintais, que tudo se comprava na mercearia. Falava da dependência do dinheiro e exortava a
todos sobre a necessidade de plantar, de cuidar da terra.”476 Já ouvi de outros peregrinos e
viajantes que, ao voltarem do Mapiá e passarem pela Cinco Mil, relataram também ter ouvido
estas palestras inflamadas que o padrinho Sebastião dá a seus filhos/filhas e seguidores nos
Trabalhos de Mesa Branca. É como uma profecia que anuncia “que o estrondo está formado e
ninguém mais pode entender”477, como diz um hino do Alfredo, entre outros tantos hinos que
fazem um “sinal de alerta”, como destacou Maria das Graças, a madrinha no Pronto-socorro,
em uma de nossas conversas: “Porque está tudo mudado, os padrinhos, que eram quem
seguravam a história, já não são mais exemplo de nada... eu não sei o que vai ser desta doutrina
mais pra frente.”478
Para boa parte dos adeptos do Daime com quem convivi, se deslocar para a região Norte
é uma espécie de iniciação nas raízes da história, uma peregrinação desejada, especialmente em
se tratando de Acre e sul do Amazonas, pois significa estar mais próximo das raízes e tradições
da doutrina que segue. Assis compara com ir a Meca para um muçulmano479, ou um
candomblecista ir a Salvador, um cristão em Jerusalém, algo a ser feito pelo menos uma vez na
vida. A possibilidade de aprender e trocar experiências com membros dos núcleos familiares
mais antigos, além de consagrar o Daime nestas cidades que estão nos limiares da floresta, e
onde se deram importantes eventos fundadores da doutrina, é uma espécie de mergulho na
cultura e na história para os adeptos do Daime. Muitos, como eu, optam por se mudar
definitivamente para alguma dessas porções das Amazônias, tendo como principal motivação
esse desejo de frequentar um centro de Daime aqui.
Quando voltei do Acre, tão logo concluí o curso de Geografia, em meados de 2008,
mudei para Rio Branco e passei a morar na Vila Carneiro. Meu destino foi chegar no Pronto-
socorro por influência do centro de Santa Luzia no qual eu iniciei no Daime, que tinha especial
afinidade com a figura de Wilson Carneiro, já que o dirigente havia conhecido e acompanhado
seus trabalhos no tempo em que passou por Minas Gerais na década de 1990. Esta relação

476
ALBUQUERQUE, 2021, p. 47
477
Melo, A.G. “Caduquices de menino”, n. 15.
478
M.G.N., 2022.
479
ASSIS, 2017.
150
afetiva se estendeu durante um longo período a seu filho Raimundo Nonato e sua família, que
visitaram algumas vezes o Ceeduapaz, onde eu os conheci.
Quando cheguei, não mais como visitante temporária, mas como futura moradora, a
sensação era realmente de entrar em um outro mundo. Não que eu esteja apegada a uma lógica
cristalizada e dicotomizada entre cidade-campo-floresta, que pressupõe que existam estes
diferentes mundos de formas separadas e estanques, não intercambiantes e intercruzadas. Falo
de uma nova rotina, regrada pelo relógio e os horários rígidos, de novos hábitos, que incluía
mudanças simples como tomar banho gelado, ao controle das vestimentas adequadas para serem
usadas nos espaços coletivos. Todo um novo cotidiano que se apresentava na experiência de
uma vida em uma comunidade religiosa na Amazônia. Ao passo que conhecia, achava tudo
bonito, grandiosamente colorido, florido, úmido e cheio de vida e percebia também o aspecto
áspero da convivência, os espinhos, a rigidez – a disciplina de sabor acre.
Na Vila Carneiro, naquela época, cheguei com um ex-companheiro e moramos dois
anos na casa de Raimundo Nonato e Maria das Graças, que foram os dirigentes com quem eu
estive mais próxima estes anos, entregue à disciplina de horários e trabalhos materiais e
espirituais bem regrada. O sino badalava todos dias às seis horas da manhã, ao meio-dia e às
seis horas da tarde, fazendo com que a hora do despertar, das refeições e do trabalho fosse a
mesma para todos. À semelhança de numa heterotópica colônia jesuítica, como narrada por
Foucault480, os símbolos do cristianismo marcavam a centralidade do espaço: o cruzeiro, a sede
da igreja. O calendário dos trabalhos espirituais era uma prioridade para todos, sobretudo um
dever de um bom soldado que chega de fora para se alistar em um novo batalhão e mora sem
pagar aluguel.
Durante algum tempo o debate em torno das identidades no Daime481 foi o que mais me
interessou: perceber as diferenças entre as versões mais tradicionalistas, representadas pelos
grupos que têm como referência o Ciclu–Alto Santo e aquelas mais ecléticas, ligadas ao “povo
do Padrinho Sebastião” e autodenominadas Santo Daime. Em 2016, por ocasião da II
Conferência Internacional da Ayahuasca, comecei a ensaiar uma escrita sobre o contexto que
eu vivenciava no Daime. Neste evento, a cidade de Rio Branco foi descrita como “a capital
espiritual da Ayahuasca”482, por concentrar um grande número de tradições ayahuasqueiras que
saíram da floresta, se reterritorializam e expandiram mundo afora.

480
FOUCAULT, 2013, p.120.
481
MOURA, 2015.
482
https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2016/10/rio-branco-e-capital-espiritual-da-ayahuasca-diz-organizacao-
de-evento.html
151
A intensa vivência durante os sete dias, acompanhando os debates em torno dos diversos
usos e significações da bebida, acenderam em mim a vontade de dedicar aos estudos na área.
Confesso que o incentivo da Bia Labate, renomada pesquisadora ayahuasqueira e uma das
organizadoras do evento, que comentou comigo sobre o meu resumo, e o fato do antropólogo
Henrique Antunes ter citado uma versão preliminar em sua tese, antes mesmo de ter sido
publicado, foram também importantes estímulos, pois senti que tinha algum potencial e que
havia interesse nestes recortes temáticos.
Apresentei um texto sobre a história da comunidade que eu frequento intitulado “As
origens de uma casa de cura do Daime em Rio Branco, Acre: O Pronto-socorro Raimundo Irineu
Serra”. Eu tinha acabado de concluir o mestrado no PPGLI/Ufac e sonhava com a possibilidade
de fazer parte da primeira turma de doutorado, se os professores conseguissem aprovar o curso.
Morando na Cinco Mil desde 2008, com o tempo foi chamando-me a atenção ver toda aquela
movimentação de visitantes, de diversas partes do Brasil e do mundo, o que acendeu o desejo
de estudar e escrever sobre a Colônia Cinco Mil e seus movimentos contemporâneos.
O fluxo de visitantes e moradores temporários, interessados nos ritos e trabalhos de
Daime ali realizados, persiste ao longo de todos anos, sendo especialmente maior nos períodos
dos festivais no meio e no final do ano. Quais as continuidades e descontinuidades entre os
movimentos populacionais vivenciados nas décadas de 1970-80, que resultaram no contato da
comunidade com uma “contracultura”, e os eventos, encontros e trânsitos que eu observava?
Era uma questão que me parecia interessante investigar.
Em 2018, saiu a notícia de que a Capes havia aceitado o projeto e, em 2019, sairia o
edital para a primeira turma de Doutorado em Letras: Linguagem e Identidade da Ufac. Uma
grande conquista e alegria. Comecei a pensar no projeto de pesquisa. Meu filho Francisco estava
completando um ano de idade quando me pus a rascunhar as primeiras ideias, participar de
alguns eventos acadêmicos apresentando esboços de abordagens para a temática, fazendo
aquilo que iriam se constituir as primeiras entrevistas.

152
1.7 Pedir a benção ou “só escreve o que for verdade”

“Ninguém sabe melhor do que tu, sábio Kublai, que nunca


se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve.
No entanto, há uma relação entre ambos.”

Ítalo Calvino.

Pedir a bênção à mãe, ao pai, familiares ou a padrinhos e madrinhas é um hábito


cotidiano, muitas vezes automatizado, mas é também um rito que funda e expressa uma relação
de poder entre duas pessoas, dois corpos que se afetam através das mãos e da palavra dita. No
plano semântico e simbólico é invocar a presença de um sagrado, é um alguém em posição de
humildade que solicita a outro alguém a atuação de uma graça benfazeja em sua vida. É
expressão de um tratamento respeitoso, que produz afetos e cria laços – por vezes materiais e
espirituais.
Não é uma coisa que eu tenha aprendido em casa com meus pais, dois jovens
simpatizantes da contracultura, do movimento hippie, adeptos do uso de psicoativos e críticos
dos valores tradicionais associados à família e à religião. Também não foi algo que eu aprendi
logo que entrei para o Daime de imediato, pois no centro em que eu me fardei em Minas Gerais,
o Ceeduapaz-Alto Santo de Minas, os dirigentes não se intitulavam padrinhos e se opunham de
sair distribuindo bênçãos aos irmanados.
Foi depois da minha primeira visita ao Acre em 2006, quando fui para a Colônia Cinco
Mil, e sobretudo depois que me mudei e passei a morar na comunidade em 2008, que passei a
valorizar a prática de pedir bênção aos padrinhos e madrinhas, sentindo-me honrada por estar
com anciãos e anciãs da irmandade, que conheceram o mestre Irineu e conviveram com
padrinho Sebastião. Como forma de expressar meu respeito e rogar por boa sorte, passei a tomar
a bênção daqueles que, naquele momento me acolhiam em sua casa e no caminho na estrada do
Santo Daime. Tomei a bênção durante muitos anos.
Quando voltei do Acre, eu até tentei acostumar minha mãe e avós a tomar-lhes a bênção,
como um ato de respeito a meus ancestrais. Meu avô e pai, os mais céticos dos familiares
próximos, acho que hesitei. Meu pai, nos seus últimos anos conosco, havia começado a se
habituar a abençoar o neto, que lhe pedia a bênção estendendo a mãozinha muito
espontaneamente (isso às distâncias mediadas pelas câmeras). Minha mãe no início estranhava
a minha afeição a hábitos tão conservadores na visão dela, mas com o tempo foi se tornando
simpática à prática, e também acostumou-se a abençoar o neto.
153
Minha avó protestante me abençoava da forma dela, nas orações, pedindo intercessão
de Deus em minha vida. Já a minha avó de formação católica, foi quem mais aderiu à minha
mudança e ao ato devocional partilhado em família. Introduzimos a tradicional fórmula rogativa
nos momentos da despedida: — Então tchau, bença vovó Hebe! — Deus te abençoe. (E fazia o
sinal da cruz na minha testa.)
Em 2018, quando eu estava ainda na fase de elaboração do projeto de pesquisa para
seleção do doutorado, fui pedir a bênção à uma importante madrinha do Daime. Ainda tinha
dúvidas sobre ser um bom caminho abordar o tema Colônia Cinco Mil, a viabilidade de
realização deste trabalho ante aos desafios de falar do lugar onde se vive experiências da ordem
do sagrado e do místico, do contato com inteligências não humanas, em um texto acadêmico,
que exige uma boa dose de criticidade, racionalismo e pretenso distanciamento. Fui falar com
a madrinha Rita Gregório, conhecida por sua amorosidade, sempre disposta a receber todos que
a procuram para tomar-lhe a bênção e, sempre que ela vem, tenho o prazer de ir visitá-la com
minha família. Numa daquelas costumeiras visitas, tive a oportunidade de comunicá-la sobre
minha intenção de fazer esta pesquisa sobre a Colônia Cinco Mil e de prontidão ela disse: “Deus
abençoe” ... Na sequência, demonstrou certa incompreensão acerca dos motivos que me
levavam a estudar a Cinco Mil, quando falou:

“— Mas minha filha, porque você não vai pro Mapiá? Tem tanta coisa bonita
acontecendo lá para você escrever... já aqui...”483

No auge dos seus mais de 95 anos na época, Rita já não era de falar muito, diferente de
quando a conheci em 2006, no Céu do Mapiá, ainda bastante comunicativa. Suas palavras me
soaram naquele momento, como uma espécie de confirmação de uma percepção relativa à
Cinco Mil: a ideia de que a comunidade é parte de uma história do passado, que não tem o que
mostrar, de que está “abandonada”, ou “só tem confusão”, que não há sobre o que escrever, ou
se há, é melhor calar. Trazer um contraponto a isso e propor uma contestação a esta ideia de
comunidade decadente, que ficou no passado, ou que é apenas ruínas, era o ponto que me movia,
minha motivação para tentar contar uma história-outra. A historiadora Almeida Ramos por
exemplo, considera que:

Passados quase trinta anos do despontar do Padrinho Sebastião da Colônia


Cinco Mil, aquela área de terra, onde ainda habitam algumas famílias para

483
R.G.M., 2018.
154
receber visitantes, adeptos e aqueles que vêm pousar antes da viagem para o
Céu do Mapiá, não detém nenhum vestígio do que foi aquele lugar.484

A ideia de “nenhum vestígio do que foi aquele lugar” me pareceu exagerada, categórica
e definitiva demais. Esta percepção também trazida pela madrinha Rita, ao contrário de me
desanimar ou desapontar, motivava-me ainda mais. Será que o projeto comunitário iniciado e
sonhado aqui na Colônia Cinco Mil havia se realizado plenamente na vila na floresta,
justificando a valorização de uma comunidade em detrimento de outra? Isso eu já sabia que
não. Mas e os relatos de campo, corroborariam com meu intuito de mostrar a Cinco Mil como
uma comunidade viva, ou afirmariam a negação do presente, a preservação de apenas ruínas do
que já foi?
Desde que me mudei para o Acre para frequentar e viver na comunidade, percebo a
Cinco Mil como uma territorialidade do Daime dinâmica, ativa, diversa, conflituosa, mas
também existente e resistente, praticando, zelando um conjunto de tradições legados por Irineu
Serra e Sebastião, e transmitindo seus repertórios de saberes às novas gerações. Procurei
justificar minha escolha para a madrinha Rita, improvisando breves palavras: — Sobre o Mapiá
já tem muita coisa escrita, e muita gente escrevendo, muitas pesquisas, muitos livros. Sobre a
Cinco Mil, não tem quase nada depois do tempo que o padrinho Sebastião foi embora.
Madrinha Rita fez um semblante de que entendia minha escolha, ainda que um pouco
desapontada, sorrindo apertando os lábios e balançando positivamente a cabeça. Então pôs-se
a me aconselhar, falando poucas e firmes frases:

“— Pois é, minha filha, Deus abençoe seu estudo, e que você fale só a verdade,
porque tem muita coisa que falam da Cinco Mil, mas não é. Só escreve o que for
verdade.”485

A advertência havia sido certeira e desconcertante: “Só escreve o que for verdade”.
Precisei pensar o sentido evocado por Rita ao recomendar para que eu só escrevesse o que fosse
verdade. Por ser da irmandade do Daime desde 2004, eu já estudava e conhecia muitas das
histórias difíceis de se escrever, os tabus que fazem parte da memória destes lugares, as
controvérsias em torno das lideranças, principalmente na Cinco Mil. Quis logo rascunhar sobre
a existência dos mecanismos de produção de verdades e jogos de poder, como estes instituem
os discursos, a verdade como uma metáfora, as subjetividades que envolvem os atos de lembrar

484
ALMEIDA RAMOS, 2002, p.104.
485
R.G.M., 2018.
155
e narrar, as limitações da própria linguagem, como política do conhecimento, de dizer a
verdade, ou ainda quais os sentidos de verdade no contexto da cosmovisão, filosofia e doutrina
do Daime, a verdade da miração, dos sonhos, da experiência, e o que é verdade afinal?... Ufa!
O que importava mesmo era reconhecer que ela estava expressando sua preocupação
com o que se escreve sobre a história da Cinco Mil, porque sabe o poder que a palavra escrita
tem de criar formas de enxergar a realidade e no limite, de instituir verdades. Principalmente
porque sabe as dores que sofreu, tudo o que passou, inquéritos policiais, manchetes de jornais,
revistas e livros de denúncia difundindo imagens achincalhadas das comunidades fundadas por
ela, Sebastião e seu povo.
Sua advertência para que eu prezasse pela verdade remeteu-me às suas vivências de anos
ao lado do marido Sebastião e à frente de um grande movimento de deslocamento dos seringais
até a formação da comunidade agrícola na Cinco Mil, e depois novamente para as florestas no
Rio do Ouro e Mapiá. Sua luta para levantar esta história, este tronco, esta linha, este
seguimento, esta instituição. Alguém que é parte de um povo festivo, mas também sofrido, que
viveu árduos sacrifícios e provações, materiais e espirituais, enfrentando dificuldades e
problemas advindos no tempo, com a escassez de recursos e conforto, na vida matrimonial com
períodos conturbados, com autoridades policiais, com a mídia sensacionalista, também com
escritores e com importantes setores da própria irmandade do Daime em Rio Branco/Acre.
Busco acomodar seu pedido em mim e escrever só verdades, não a verdade absoluta
sobre os fatos, intranscritíveis e irrecuperáveis, nem a verdade como pretensão de criar uma
interpretação fixa, uma história oficial sobre como os acontecimentos foram ou deixaram de
ser, tampouco a verdade dos documentos, sejam orais ou escritos. Trago a verdade do texto
literário, do texto falado naquele momento, por aquele narrador, a verdade da experiência do
diálogo, do contar as histórias com as pessoas que a viveram. Me acompanho de Moreira, que
apresenta o resultado de seu estudo como o que só o que pode ser uma “ficção etnográfica”486,
ou o que os antropólogos definem como representação mimética da realidade.
Neste estudo foi central o conceito de narrativas/narradores, tratados aqui numa
composição com Bosi como testemunhos vivos487 da história, pessoas que através de seus
relatos permitem que os saberes e histórias circulem numa comunidade. Neste caso, me recordo
do enxerto de outro pesquisador do campo da história oral, Hampaté Bá, que coloca em questão
os diferentes graus de confiança que se concede quando se trata do testemunho de fatos

486
MOREIRA, 2013, p.26.
487
BOSI, 2003, p. 16.
156
passados à escrita e à oralidade. “No meu entender não é esta a maneira correta de se colocar o
problema. O testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale
o que vale o homem.”488 Em muitos contextos como o acadêmico, há uma primazia da escrita,
como portadora de uma verdade ou de um relato mais fidedigno em relação à oralidade. A data
de nascimento de Irineu Serra é um exemplo. Diversos autores adotaram o ano de nascimento
como 1890, porque foi encontrado um registro de batismo, a despeito do que sustenta a tradição
oral, que considera o ano de 1892.
Pedir à bênção é um hábito comum entre famílias que professam o catolicismo sendo
mais um exemplo da influência desta religião majoritária nas práticas do Daime. Alguns autores
descrevem que este hábito é mais comum entre os adeptos do Daime da região Norte, e veem-
no como uma herança da migração nordestina489. Acompanhando as reflexões de Albuquerque
Jr.490, compreendo que “os recortes geográficos, as regiões são fatos humanos, são pedaços de
história, magma de enfrentamentos que se cristalizaram, são ilusórios ancoradouros da lava da
luta social que um dia veio à tona e escorreu sobre este território.”491 A Amazônia ou o Nordeste
não existem como uma região em si, naturalmente definidas, antes isso são resultado de
construções discursivas ligadas a processos de colonização.
Nesse passo, não vejo muito sentido nesta insistência em associar o hábito de pedir à
bênção a “um nordeste”, que em muitos sentidos teria constituído a “identidade acreana”492,
posto que também é tão comum no interior de Minas Gerais, por exemplo. Parece uma
necessidade de criar uma justificativa para o hábito, que se justifica por si se considerarmos a
marcante presença dos elementos do catolicismo na constituição do Daime, ou ainda que outras
religiosidades também criam formas específicas de saudação entre os adeptos.
Mortimer fala sobre o significado de pedir a bênção para os adeptos do Daime: “É um
tom positivo fazendo uma corrente de boa vibração e bons desejos”493, explica. Os estradeiros
que chegavam na comunidade em meados da década de 1970, mochileiros, hippies, buscadores
em geral, tinham resistência ao hábito de pedir a bênção, que isso em geral era visto como um
despropósito, coisa antiquada. Na comunidade foram chamados de cabeludos e a maioria dos
que chegavam demoravam a tornar um hábito chamar Sebastião de padrinho, sendo comum, ao

488
HAMPATE BÁ, A. A tradição viva. IN: KI-ZERBO, J. História geral da África: Metodologia e pré-história
da África. 2 ed. Brasília: UNESCO, 2010, p. 168.
489
MORTIMER, 2000, BOMFIM, 2015, VIANA, 1997;
490
ALBUQUERQUE JR. “A invenção do nordeste e outras artes”, 2016.
491
Ibid., p. 79.
492
MORAIS, M.J. “Acreanidade”: invenção e reinvenção da identidade acreana / Maria de Jesus Morais. – Rio
Branco: Edufac, 2016.
493
MORTIMER, 2000, p. 70.
157
que parece, uma referência respeitosa “ao velho”. “Depois fomos mudando nossos conceitos e
um dia também elegeríamos Sebastião e Rita como nossos padrinhos.”494
Como destacou Juarez Bomfim495, pesquisador do Daime, na tradição católica, o
padrinho e a madrinha são aqueles que ajudam, que amparam numa situação de desalento, na
ausência de um pai e uma mãe, geralmente nomeados através do ritual/cerimônia de batismo.
Os termos também são utilizados para se referir, de forma mais genérica, àquelas pessoas que
têm uma importância e destaque em determinado grupo social e que, por estarem em posições
privilegiadas, geralmente oferecem algum tipo de ajuda material e/ou espiritual para seus
afilhados, que costumam tomar-lhes a bênção.
No caso do Daime, o termo padrinho remonta às suas origens. Era assim que Irineu era
chamado por seus seguidores: padrinho Irineu. Bomfim é categórico ao dizer que “na Doutrina
do Santo Daime, padrinho é Irineu; madrinha é Peregrina Gomes Serra, viúva do Mestre
Raimundo Irineu Serra e dignitária do Ciclu–Alto Santo”496. O escritor, autor de vários textos
sobre o Daime, reconhece, porém, que devido à liderança e carisma “para aquele povo
espalhado entre o Mapiá e a Colônia 5000 a expressão ‘padrinho’ é usada como sinônimo do
Sr. Sebastião Mota” e, ainda que, “para este sofrido povo madrinha é a dona Rita Gregório de
Melo”.497
É interessante destacar que o adjetivo “sofrido” que vai na descrição do “povo do
padrinho Sebastião” dada por Bomfim, não está desacompanhada do contexto no qual ele
afirma que podem até existir outros, mas o padrinho do Daime é Irineu Serra. O pesquisador
da Bahia, que também tem morada no bairro Irineu Serra em Rio Branco, é ligado aos
seguimentos descritos como mais tradicionais, predominantes e mais organizados politicamente
na capital do Acre, e para quem a grande madrinha do Daime, reconhecida, condecorada e
homenageada é Peregrina Gomes Serra. A esposa do mestre Irineu e dignitária do Ciclu–Alto
Santo é conhecida por sua postura mais discreta e reservada. Para milhares de adeptos do Daime
no Brasil e no mundo a maior referência como matriarca da irmandade acabou sendo a madrinha
Rita Gregório de Melo, a esposa de Sebastião.
Outros grupos do Daime, independentes, ramificados, também possuem seus padrinhos,
suas madrinhas, e pode-se perceber que o Daime tem uma forte relação com o culto aos anciões
e ancestrais de determinadas famílias, às quais os seguidores se sentem afetivamente ligados,

494
MORTIMER, 2000, p. 115.
495
BONFIM, J.D. Padrinhite: A doença que acomete os daimistas. In: Jornal Grande Bahia, 2015, s/p.
496
Ibid.
497
Ibid.
158
colocam foto nos altares, prestando devoção. Ao longo dos anos, além de festejarem os santos
e datas do calendário cristão, os seguidores do Daime foram incorporando ao calendário
homenagens ao vivos e aos mortos, sobretudo às lideranças daquele clã, uma vez que as relações
familiares são um forte elemento de coesão nas comunidades do Daime – o que inclui distinções
entre famílias menos e “mais prestigiadas”498.
Assis analisa a questão dos títulos de padrinho e madrinha no contexto do Daime pelo
viés da ressignificação do que seriam os termos nativos, uma característica do processo de
expansão, “que no contexto nortista do Daime se referia exatamente àquele ou àquela que
possui muitos afilhados ou agregados”499, mas passou a designar, de forma controversa, “um
título social, sinal de capital religioso e poder dentro da doutrina, até se tornar sinônimo de
‘dirigente de igreja’”500.
Alfredo chegou na Colônia Cinco Mil ainda criança, junto com seus irmãos, tendo por
volta seus 7 anos. Ele e seu irmão mais velho, Valdete, foram os primeiros a acompanharem
Sebastião no Alto Santo e destacaram-se como lideranças na sucessão do pai. Goulart percebeu
que “a legitimidade dos líderes de várias religiões ayahuasqueiras está intrinsecamente
relacionada com a sua vocação e qualidades pessoais místicas, embora vincule-se, também, a
critérios de outra ordem, como a tradição e a hereditariedade.”501
Este modelo de sucessão das lideranças dentro das famílias fundadoras dos centros,
como tudo e a depender de cada realidade, pode ser lido de muitas formas. Tem sido descrito
por alguns críticos como espécie de reprodução de “um feudo em território brasileiro”502. Viana
narra, ao criticar esta configuração hierarquizada, que chegou a ouvir: “Aqui nada de república,
no meu canto o que vale é a monarquia, cujo poder segue de pai o para filho, como nos bons
tempos do rei David e Salomão. A Nova Jerusalém é um império, o Império Juramidam, se é
império, é monarquia”503. Guardadas as devidas proporções, essa passagem ressoa as relações
e semelhanças que o movimento em torno da figura de Sebastião teve com outros movimentos
messiânicos, como os conselheiristas em Canudos, que eram acusados de serem contra a
república recém instituída, e defendiam o império como o melhor modelo de organização social.
Neste sentido é necessário refletir os ecos do passado colonial e das heranças das
irmandades dos séculos XVIII, fortemente inspiradas nestas simbologias de coroação e

498
ASSIS, 2017, p. 312.
499
Ibid, p. 189.
500
Ibid, p. 189.
501
GOULART, 2004, p. 142.
502
CASTILLA, 1995, p. 23.
503
VIANA, 1997, p. 298.
159
condecoração de reis e rainhas, que ressoam na irmandade do Daime, e são traduzidas e
interpretadas sob diversas considerações.
Existe também uma dimensão que deve ser levada em consideração que é a preparação
ao longo da vida, que acontece quando se acompanha um mestre de algum ofício como
aprendiz, como aquele que herdará os conhecimentos e técnicas, seja ele pai/mãe ou não. Em
se tratando de conhecimentos tradicionais como os das irmandades, o aspecto geracional é
fundante e tende-se a valorizar e respeitar os mais velhos, como guardiões dos saberes e
professores da cultura. Como destacou Bonfim, não se aprende a ser uma ou um dirigente de
trabalho, e muito menos padrinho ou madrinha do Daime, em cursinhos preparatórios como
estão sendo vendidos por aí, “tentando transformar essa Santa Doutrina em um negócio de
venda de ayahuasca”504.
Tampouco o fato de uma pessoa reunir condições materiais para abrir e dirigir trabalhos
de Daime não deveria torná-los padrinhos e madrinhas automaticamente, um título que se
carrega por ser proprietário de um centro. Porém, como as tradições não são fixas e as palavras
são dadas a muitos sentidos, que se transformam no espaço-tempo, variam em diferentes
regiões, está cheio de autointitulados padrinhos e madrinhas do Daime por aí, independentes
do que os antigos seguidores da irmandade, os pesquisadores, jornalista — ou os agora
produtores de conteúdos nas redes sociais — estejam pretensamente desejosos de definir o que
é ou não ser padrinho e madrinha no Daime.
Bomfim destaca que entre os adeptos do seguimento do Daime expandido a partir de
Sebastião é comum que os termos padrinho e madrinha sejam utilizados de forma genérica para
se referir a todos os dirigentes do Daime, mas destaca que não há uma institucionalização ou
formalização sobre o uso do termo. Padrinhos e madrinhas no Daime seria o equivalente à pais
e mães de santo de um terreiro das religiões de matriz africana, ou os capitães e os reis e rainhas
de uma Guarda de Congado, os responsáveis dentro da hierarquia da casa/irmandade pela
condução do ritual, a transmitir as tradições, orientar e admitir novos adeptos. Os títulos de
padrinhos e madrinhas, além de serem um reconhecimento de uma liderança espiritual e de sua
capacidade de distribuir bênçãos, estão associados a um poder que é também patrimonial, pois
a estrutura física do salão, da casa de feitio do Daime, o terreno e bens materiais geralmente
pertencem aos dirigentes.
“Há uma tendência aos novos adeptos urbanos da Doutrina do Santo Daime copiarem
e imitarem tudo o que consideram como original, do ponto de vista ritualístico e

504
BOMFIM, 2015, s/d.
160
comportamental”505, destacou Bonfim, que neste caso, ironiza a ideia de que os dirigentes do
Daime sejam “padrinhos da doutrina”, sugerindo que “sofrem de padrinhite, doença que
acomete os daimistas”506, “vocês são no máximo padrinhos dos afilhados que batizaram, e
ponto final.”507
Ser considerado um padrinho ou madrinha no Daime pode colocar os indivíduos em um
lugar privilegiado de enunciação, como fontes autorizadas dos conhecimentos doutrinários, de
aconselhamentos e de produção de verdades. Podem ditar comportamentos e, em alguns casos,
nota-se “a infeliz prática de centralismo, autoritarismo e mandonismo existente na gestão
organizacional de muitos grupos daimistas.”508 Isso leva algumas pessoas a se aproximarem e
se afastarem de padrinhos e madrinhas, e até mesmo do Daime, conforme o andamento das
relações, os possíveis afetos envolvidos e cultivados nas redes de articulações e de trocas.
No Alto Santo de Minas, os dirigentes — um casal de homens — alertavam para as
responsabilidades de apadrinhar e se deixar apadrinhar. Foi lá que eu aprendi, nas conversas
após os trabalhos, muito antes de ler nos livros, ouvindo aqueles que tinha mais tempo de escola
do que eu, que mestre Irineu haveria dito que quando ele se ausentasse, que ninguém quisesse
ser o chefe, era para tomar Daime e procurar ouvi-lo, que ele era o Daime e o Daime era ele, e
não deixaria ninguém desamparado. Em outras palavras, também diziam que o Daime era uma
ferramenta para se acessar o Eu-Superior, Deus-em-si, o melhor lugar para se encontrar
respostas para possíveis angústias, dilemas, questões existenciais, isto é, o exame da própria
consciência.
No fundo, era isso: os dirigentes do centro não queriam ocupar este lugar de liderança
carismática, espécie de encantado, conselheiro e pregador de uma verdade, herdada do pai ou
de um período de convivência com algum “padrinho do Norte”. Creio que, desde lá, eles
reconheciam que essa “lógica dos padrinhos”, quando, além de dirigentes dos trabalhos
espirituais, aqueles que ministram a sessão com o Daime, passam a função de guia, orientador,
guru, as vezes psicólogo, terapeuta, acaba abrindo brechas para uma série de tranças, expressão
nativa usada para se referir a relações e pensamentos confusos e conflituosos.
Assim como existem casais homoafetivos dirigindo trabalhos de Daime existem
padrinhos e madrinhas que expressam pensamentos homo e transfóbicos, que denotam
preconceito social contra a população LGBTQIA+, e muitos adeptos podem se sentir

505
Ibid.
506
BOMFIM, 2015, s/d.
507
Ibid.
508
Ibid.
161
constrangidos e violentados dependendo do centro ayahuasqueiro que frequenta. Como nas
escolas seculares, apesar de existir um currículo único e diretrizes educacionais comuns, cada
sede do Daime é singular, assim como cada escola, cada sala de aula, cada núcleo está sujeito
a diferentes lógicas de poder-saber, dependendo de quem são os indivíduos em interação nestes
espaços e quem está em posição de liderança. Desta forma, do mesmo jeito que existem centros
de Daime dirigidos por mulheres, pessoas trans e não binárias, há centros do Daime onde se
pratica abertamente um discurso semelhante à “cura gay”.
Em alguma medida esses discursos podem se sentir respaldados em literaturas como de
Alverga, e mesmo em falas de Sebastião registradas no seu Evangelho transcrito, que misturam
interpretações pessoais sobre binarismo e questões de gênero com narrativas sobre a história da
doutrina. Acabam que, por estarem em posição de liderança, as afirmações destes narradores
podem ser lidas como dogma, verdade ou concepção predominante da irmandade em si. São
algumas passagens que, por exemplo, contam do tempo da Babilônia, tomada por aquilo que é
descrito por Sebastião como vícios, “porque a sacanagem era grande. O uso, era homem com
homem, mulher com mulher. Não queriam outra coisa. Virou Sodoma. Daí, Gomorra
também”509, sugerindo uma reprovação às relações homoafetivas.
Em “O masculino e o feminino”, Alverga tece longas elaborações sobre a
complementariedade entre esses princípios polarizados, que se harmonizariam. Faz críticas ao
“amor livre” dos hippies, que poderiam conduzir a um vazio existencial e propõe que conhecer
os desígnios da matéria é conhecer as “regras” da relação do homem com a mulher, num claro
anulamento de outras possibilidades de manifestação do amor. Ao citar uma série de coisas que
prejudicariam o “circuito sexual-afetivo” demandando perda de energia desnecessária “estão as
pulsões homossexuais, contidas ou concretizadas com culpa”.
Sem pretender me aprofundar nas concepções de gênero desse narrador e liderança do
Daime, apenas comento como mais um exemplo de como a lógica dos padrinhos pode estar
relacionada com uma série de incômodos que são relatados por adeptos do Daime, pois alça
indivíduos à posição de conselheiro ou professor, com forte poder de influencia. Deste feito,
confunde-se a doutrina com opinião pessoal dos dirigentes. Por isso reforça o entendimento de
que a doutrina do Daime está nos hinos e não nos livros, nas histórias e interpretações
teológicas, filosóficas e hermenêuticas de seus seguidores e/ou lideranças.
No limite, cada dirigente e cada adepto faz suas escolhas, de forma mais ou menos
consciente, de como lidar com o costume de se tornar padrinhos e madrinhas ou se afilhar a

509
Melo, S.M. em ALVERGA (org.), 1998.
162
eles e pedir-lhes a bênção. Aprendi ao longo da caminhada, ouvindo os mais antigos, que nos
foi ensinado por Irineu Serra que, quando se tem alguma dúvida sobre algo, deve-se meditar,
esperar o dia do trabalho. Quando for invocar o Daime, isso é tomar a bebida, pedir que ele
mostre um esclarecimento, sendo o melhor guia e conselheiro de um daimista. Desta forma,
percebo que é possível os fardados do Daime estabelecerem diferentes tipos de relações com
os dirigentes e lideranças, aderindo ou não às suas ideias e normativas, a partir de suas
identificações, de onde se está frequentando, as influências que irá receber ao longo da sua
formação nesta escola, a busca ou necessidade de ter um guru ou alguma figura como orientador
espiritual, o quanto se submete voluntária ou criticamente as essas orientações, qual é a postura
dos dirigentes em relação aos assuntos que geralmente provocam mais tensões, etc.
Assis destacou que alguns antigos companheiros de Sebastião “se esquivaram de se
identificar com o termo, ainda que houvesse um séquito considerável de pessoas prontas para
reconhecê-las como tal”510, como é o caso de Regina Pereira, um das mais antigas seguidoras
de Sebastião desde o tempo da Cinco Mil, dona de lindos hinários, que apenas mais
recentemente, depois que saiu do Céu do Mapiá depois de uma brusca ruptura com a instituição,
está dirigindo os trabalhos com sua família como uma autêntica madrinha. Acrescenta-se que
mesmo um fardado ou fardada no seguimento de irmão/irmã, tornando possível que mesmo um
seguidor de poucos anos já se intitule padrinho e madrinha, difundindo-se ainda mais o costume
do apadrinhamento e as trocas de bênçãos.
Procurei até aqui evidenciar quem são os indivíduos e instituições mais atuantes nas
diferentes funções de enunciação no campo do Daime, identificando a importância de
seguidores antigos, padrinhos e madrinhas, integrantes de comitivas, pesquisadores, escritores
em geral, que acabam tendo destaque na produção dos discursos sobre essa prática cultural que
não se aprende nos livros, pois as plantas professoras que ali atuam como seres de
conhecimento, que têm ciência, linguagem e fazem escola, ensinam fundamentalmente pela
experiência. E com as bênçãos da madrinha Rita iniciei a pesquisa.

510
ASSIS, 2017, p. 189.
163
2 A COLÔNIA CINCO MIL É LOGO ALI: A CONTRACULTURA NO DAIME

“Foi ela quem mandou


Eu me unir com meus irmãos
Para a reunião
Da separação.”

Hinário O Justiceiro, Padrinho Sebastião

2.1 As bandeiras do novo seguimento: afirmação de uma territorialidade

“Levanto esta bandeira


Porque assim meu Pai mandou
Todos que olharem para ela
Têm o mesmo valor.”

Hinário O Justiceiro, Padrinho Sebastião

Ao dar “sugestões para um jovem pesquisador”511 da memória como eu, Bosi destaca
que no subjetivo tecido da lembrança é possível encontrar “constantes universais: são os marcos
em que os signos sociais se concentram apoiando a memória individual.”512 O evento guardado
na memória coletiva como o levantamento da bandeira simbolizou a separação e ao mesmo
tempo a continuidade da obra do mestre Raimundo Irineu Serra sob a liderança de Sebastião
Mota de Mello. Expressa bem a demarcação de um novo território/territorialidade dentro de um
campo de conhecimentos.
Sobre os motivos que levaram à saída de Sebastião com um grande grupo de seguidores
nos anos que se seguiram à passagem do mestre Irineu existem muitas narrativas, quase sempre
com menção ao episódio da bandeira que não fora hasteada do Alto Santo como sendo a gota
d’água. O episódio remonta à época do festival de São João, em junho de 1974. Recorrentes
também são as menções à uma lendária reunião, após uma concentração, que teria sido o último
trabalho que Sebastião e seu grupo fez no Alto Santo, em 30 de junho do mesmo ano. Segundo
relatos encontrados em textos escritos e falados, neste dia se teria debatido sobre possibilidade
ou não de atender aos pedidos insistentes de Sebastião para cantar um hino, fazer o hasteamento
da bandeira, ou apresentar seu hinário, o que acabou selando a separação entre os dois grupos.

511
BOSI, 2003, p. 59.
512
Ibid., p. 62-63.
164
Como nos chega a partir de várias narrativas, Sebastião teria apresentado ou pedido para
apresentar o hino 89 “Levanto esta bandeira” e solicitado/sugerido à nova diretoria uma
cerimônia para hasteamento da bandeira nacional, pois como ele explicava, havia tido um sonho
que dizia para assim o fazer. Sobre os simbólicos episódios da bandeira e da “reunião da
separação”, Alfredo narrou:

“Bom, aí foi chegou àquela hora que a gente viu assim o Mestre Irineu já tá fazendo
a despedida, recebendo os últimos hinos “Dou viva a Deus as alturas”, Hinos Novos
né que chamam. Naquela ali, a gente sempre ia tal, quanto pá, o Mestre Irineu fez
a passagem. Como a gente já era, meu pai era do grupo de lá, era companheiro do
finado Nica, também Luiz Mendes, aquele povo da mata, da floresta, Chico
Granjeiro, o cozinheiro do Mestre, que tal agora? sem o Mestre... vamos ver como
é que vai ser... Aí houve uma reunião, aí nessa reunião nós fomos de pés, já tinha
até uma estradinha... tanto é que, eu acho que na volta, padrinho Wilson já tinha o
carro amarelinho, que veio pela Juarez Tavares513... passava trás da igreja que tem
aí, cuja igreja eu fiz a primeira comunhão. Como eu tava dizendo nessa reunião
meu pai pediu para cantar um hino para firmar a união com a nova diretoria,
Presidente passou a ser o senhor Leôncio Gomes e aí na hora enrolaram o velho ali,
ele disse como é que é, a noite tá chegando, nós precisamos voltar, era muito longe.
Aí eles enrolaram, ele disse que queria cantar um hino, levantar essa bandeira
brasileira ali, para consagrar, sacramentar aqui a nossa união. Eu sei que por lá eles
disseram - Bastião, já chegou a noite não é possível levantar a bandeira a noite. Ele
disse não tem problema, que queria cantar um hino. Sei que o senhor Leôncio
chegou para ele e disse: ‘- eu acho que é melhor tu levantar a bandeira lá, onde tu
já começou, o mestre já autorizou, que agora nós estamos assim muito, estamos
começando a ficar assim mais só, mais junto aqui, só nós. E daí que foi a expansão,
que aí papai disse: ‘é neste caso eu vou cuidar de lá.’”514

Os acontecimentos vão ganhando múltiplos sentidos ao longo do tempo a partir de


diferentes espaços e dos distintos narradores. Parece não haver dúvidas de que a bandeira que
Sebastião pretendia hastear na sede do Daime era a bandeira do Brasil. Alfredo em seu relato,
assim como os escritos de Alverga, Couto e também Macrae, sustentam e repetem esta
narrativa, que “Sebastião Mota propôs que se hasteasse a Bandeira Nacional na sede, como uma
forma de se consagrar a união, para dar cumprimento ao hino que recebera: ‘Levanto essa
bandeira, porque assim meu Pai mandou’ (...)”.515
Fróes também traz a sua versão: “O Leôncio não aprovou a ideia, era de opinião que só
podia preparar o Daime os feitores da igreja e aconselhou-o a levantar uma bandeira no quintal

513
Referência à Colônia Agrícola Juarez Távora, batizada por decreto por Guiomard Santos. O Acre,
25/09/1949, p. 02.
514
A.G.M., 2019.
515
ALVERGA, 1992, p. 96.
165
da casa dele.”516 Couto narra que Sebastião tinha recebido o hino “Levanto esta bandeira” nesta
época e calhou de sugerir para a diretoria do Alto Santo que apresentassem o trabalho às
autoridades, daí poderia cantar seu hinário e hastear a bandeira do Brasil, ao lado da bandeira
do Daime, com a Lua Nova e a águia, que já era tradicionalmente hasteada nos dias dos
trabalhos. Leôncio Gomes depois de meditar sobre o pedido, não teria autorizado tal intento,
“dizendo que ele queria inventar moda na doutrina e que fosse levantar a sua bandeira na casa
dele.”517
A expressão “inventar moda” ecoa como instrução passada pela tradição oral desde os
antigos seguidores. Como registrou Moreira, eles relatam que mestre Irineu advertia com
frequência para que seus seguidores não “‘inventassem moda’, isto é, não modificassem o ritual
construído por ele.”518 Outras expressões presentes nos hinos, mesmo no seguimento de
Sebastião, denotam essa busca por conservação e preservação dos ritos, como nos versos
“seguir realmente a doutrina e não alterar nem um til”519, ou “para mim isso é engrandecimento
não vejo nenhum fundamento em mudar o que o mestre falou”520, cantado nos hinários de
Alfredo e Valdete Melo, mesmo que isso soe contraditório quando presenciamos o
assentamento de outros ritos neste mesmo contexto.
Ao que parece, o contexto dos acontecimentos coincide com a chegada da Polícia
Federal recém-instalada no Acre, e a idealização do hasteamento da bandeira seria uma
estrategia de aceitabilidade, de demonstração de que o Daime não perturba a ordem legal. Havia
um receio de uma visita para realizar a apreensão da bebida, o que fez com que membros do
Alto Santo escondessem as garrafas com o Daime enlitrado. Sebastião teria se recusado a
esconder o Daime ou suspender os trabalhos. Goulart destaca que os integrantes do Cefluris
gostam de contar essa história como mais um aspecto da diferença de postura entre Sebastião e
as lideranças do Alto Santo e acrescenta que “A diligência policial, no entanto, não passou de
uma ameaça. Pois, o delegado responsável optou por apenas chamar os dirigentes de centros
daimistas para uma conversa, procurando obter informações sobre eles e sobre a bebida aí
utilizada.”521 Moreira relata que “a visita da Polícia Federal tinha apenas caráter de convocação
para depoimento.”522

516
FRÓES, 1986, p. 46.
517
COUTO, 1989, p.94.
518
MOREIRA, 2013, p. 71.
519
Melo, A.G., “A justiça é reta”. Hinário Nova Era, n. 18.
520
Melo, V.G. “Peço à meu mestre”. Hinário Livrinho do Apocalipse, n. 38.
521
GOULART, 2004, p. 90.
522
MOREIRA 2013, p. 147.
166
Mortimer e Fróes, por sua vez e posteriormente outras fontes como Albuquerque e
Rocha, vão se referir ao episódio da bandeira dando margem para múltiplas interpretações
acerca deste símbolo: a bandeira de São João523, a nova bandeira524, a bandeira da Santa
Maria525, etc. “Em 1975 inaugurou a etapa da Nova Bandeira, erguendo um templo e
estabelecendo um ponto de trabalho”526, registrou Fróes.
Raimundo Nonato também narrou sobre o conhecido episódio que envolve a
apresentação do hino, o pedido negado de hasteamento da bandeira e sobre uma reunião que
teria consumado a separação dos grupos.

“Aí o padrinho Sebastião foi apresentar um hino lá no Alto Santo: “Levanto esta
Bandeira porque assim meu pai mandou...’. Aí o Leôncio disse assim: ‘vá levantar
lá na sua casa, vai levantar na sua casa’. Aí ele foi e cantou outro hino: ‘Eu fiz uma
viagem para ver como é que está, encontrei tudo trancado, quase não pude passar’.
Aí o Leôncio Gomes disse: ‘viu, tá vendo aí?’. Padrinho disse, ‘tava tudo trancado
eu quase não pude passar, mas passei, eu passei, né?’ Aí não entraram num acordo
de formas alguma sobre o hino... aí o Padrinho Sebastião pegou o povinho dele,
veio para Cinco Mil.”527

Fróes, de forma resumida, faz referência a uma assembleia geral, que teria acontecido
em 1974, quando Sebastião “propôs levantar uma bandeira para formar uma nova união,
oportunidade em que havia recebido o hino ‘Levanto esta bandeira’”.528 Alverga fala de uma

“reunião de diretoria” para avaliar a proposta de hasteamento da bandeira e


que “a proposta não foi aceita por um pretexto formal (...). Mas desse
momento em diante, sem que nunca tivesse se consumado um rompimento,
ficou claro para ambas as partes que doravante os caminhos seguiriam
paralelos.529

Macrae também olha o episódio da bandeira como estopim para a separação definitiva,
visto que os desentendimentos vinham se arrastando desde a passagem do mestre Irineu em
1971 e as tentativas de centralização do Daime. Também faz relação com o fato de que naquele
período, havia investidas policiais contra o culto, e:

Padrinho Sebastião, para demonstrar seu apego à ordem, propôs fazer um


trabalho para as autoridades que incluiria o hasteamento solene da bandeira

523
MORTIMER 2000.
524
FRÓES, 1986.
525
ROCHA, 2021.
526
FRÓES, 1986, p. 46.
527
R.N.T.S., 2019.
528
FRÓES, 1986, p. 46
529
ALVERGA, 1992, p. 96.
167
brasileira. Leôncio Gomes não concordou com a ideia, dizendo que se ele
queria introduzir modificações no ritual que fosse levantar bandeira em sua
própria casa.530

Francisca também narrou sobre este episódio da separação, a reunião tensa que teria
acontecido em junho de 1974, e que sacramentou a saída de Sebastião e do grupo da Cinco Mil
do Alto Santo. Suas lembranças ecoam memórias que foram narradas a ela por dona Percília.

“a polêmica, negócio de grandeza, porque tudo que o padrinho Sebastião fazia tava
errado pra eles... teve uma vez que eu ouvi um deles lá falando que ‘Sebastião só
tem de grande os pés’... daí teve um dia, cantar um hino, um hino que ele tinha
recebido “Sou eu, sou eu, sou eu, o Mestre afirmou”... eles não queriam aceitar este
hino... aí fizeram uma reunião, pra explicar a história, que o mestre saiu, ia mudar
umas coisas, o Leôncio ia ser o mestre imediato, José das Neves como conselheiro,
Chico Granjeiro o servidor do Daime, cada um dá uma coisa né, não apareceu nada
pro padrinho. Sei que o padrinho foi dá uma preleçãozinha também, pediu a palavra,
mas mandaram ele se calar, que ele não tinha que dar palpite ali, diz que teve um
que armou o socou pra dar nele, mas o outro segurou. Ai padrinho disse não: de
hoje pra frente, eu quero paz, não vim aqui brigar com ninguém. Ai quem me contou
isso tudo foi a Percília, que eu não estava lá. No ano seguinte, na Cinco Mil, eu vi
a cerimônia da bandeira, ‘levanto esta bandeira, porque assim meu pai mandou’...
maninha, aquela lua minguante, lindo, lindo, lindo, prateada, que hoje em dia nem
o prata da lua é mais quinem era... estrela d’dalva, sete estrelo, as três marias, os
três reis magos, zumm, o céu tão estrelado, maninha, eu vi tanta coisa, eu vi Deus
baixar, os anjos, arcanjos, eu vi, eu vi, Deus mostrou... por isso que eu não quero
deixar.”531

A saída de Sebastião do Alto Santo pode ser interpretada como um rompimento, uma
cisão ou conflito, mas também como um feito que teria sido acordado com a própria diretoria,
na pessoa do presidente Leôncio Gomes, isto é, um acordo de cavalheiros – resultante de uma
discordância mas, não necessariamente, uma briga. Mortimer endossa esse relato ao contar o
episódio da conversa sobre a bandeira e acrescenta um elemento que enfatiza o caráter
divinatório, profético, referente aos sonhos de Sebastião, que embasava suas proposições
ritualísticas. Tendo recebido o hino da bandeira:

Como sempre, foi passar a limpo com o Sr. Leôncio, inclusive precisava
aconselhar-se com o Presidente sobre como proceder com a bandeira, pois
tinha recebido esta mensagem dentro de uma miração na qual hasteava uma.
Era uma profecia que precisava ser realizada. Era simbólico demais. A
bandeira só poderia ser da missão de São João Batista e este era assunto
polêmico no Alto Santo. O Sr. Leôncio se viu apertado e se inspirou no

530
MACRAE, Guiado pela Lua: xamanismo e ritual da ayahuasca no culto do Santo Daime. Editora
Brasiliense: São Paulo, 1992, p. 72.
531
F.C., 2022.
168
Mestre. Não foi com raiva ou rancor, pelo contrário, foi com muita calma que
aconselhou o dono do hino: ‘O melhor que você pode fazer é levantar esta
bandeira na sua casa, na Colônia Cinco Mil’.532

Nota-se que as versões transitam do sagrado/profético para o terreno e institucional.


Sobre o assunto da bandeira de São João Batista ser polêmico, Moreira conta que Raimundo
Gomes teria sido repreendido pelo próprio mestre Irineu, que em suas preleções, dizia “que ali
no Daime não tinha santo, que os santos estão em seus lugares, na memória de seus devotos.”533
Muito se comenta na comunidade do Alto Santo que o mestre Irineu “não gostava de idolatria
e fanatismos e que ali não tinha santo”534 e que Irineu quando perguntado se era Jesus
encarnado, dizia que não. Mesmo assim, muitos de seus discípulos seguiram associando,
sobretudo depois de sua morte, a imagem de Irineu Serra à do mestre Jesus Cristo e a de alguns
de seus seguidores a outros santos, num imaginário reencarnacionista. Jesus, São João, Rei
Salomão, São Francisco, são alguns dos mais conhecidos.
No Alto Santo, o maior entusiasta desta concepção foi Sebastião Jaccoud, que chegou
no Daime ainda na década de 1960 e segundo Moreira, tornou-se “uma espécie de intelectual
aliado da família Gomes”535, produzindo textos que explicitavam a relação entre São João e
Raimundo Gomes. Sebastião afirmava sua relação com São João através dos hinos que recebia,
desde o de número 28, “Sou eu”, que traz um verso que diz “Jesus filho de Maria e eu sou filho
de Isabel” – este hino, inclusive teria sido revisado por dona Percília e pelo mestre Irineu. No
Cefluris, Mortimer e Alverga também se arriscaram como teólogos do Daime e teceram
narrativas sugerindo a imagem e a crença de que vários santos resolveram reencarnar no início
do século XX em um pedacinho da Amazônia sul-ocidental.

Mestre Irineu fala a palavra de Jesus, que se fez presente em seu hinário
denominado “O Cruzeiro”. Sebastião Mota fala a palavra de São João Batista,
manifesta em seu hinário chamado “O Justiceiro”. O novo hinário que canta a
trilha principal deste povo é o do Rei Salomão que é a música de Alfredo
Gregório.536

Diz-se que até hoje, por vezes, às senhoras da doutrina, que por tradição rezam um terço
por dia, as vezes se vêem às voltas conversando se o mestre Irineu é mesmo Jesus – e portanto,
se o Daime seria a segunda vinda de Cristo - procurando uma verdade nos hinos, nas rezas, nas

532
MORTIMER, 2000, p. 87-88.
533
Serra, P. em MOREIRA 2013, p. 119.
534
Serra, D., ibid, p. 130.
535
MOREIRA 2013, p. 119.
536
MORTIMER, 2000, p.170.
169
mirações, vivenciando saberes de uma doutrina não dogmática e que permite múltiplas
interpretações. Isso quem me contou foi uma fardada do Daime que morava no bairro Irineu
Serra e cujas avós uma é do Alto Santo e a outra do Pronto-socorro na Cinco Mil.
Fato é que após a passagem de Irineu Serra, ambos os discípulos, Raimundo Gomes e
Sebastião Mota, sustentaram a imagem de que eram como São João na Terra. Este em muitos
hinos do seu hinário O Justiceiro, faz referência à sua bandeira de São João até a Nova
Jerusalém (seu segundo hinário e metáfora de seu projeto comunitário). Neste processo de ver
quem é quem, a separação entre os dois grupos também ficou registrada na memória coletiva
dos seguidores do Daime através da máxima: “Então vocês ficam com o seu São João, que a
gente fica com o nosso”537.
Antes destas contendas entre os grupos no Alto Santo, a presença agregadora do mestre
Irineu unia toda a irmandade, especialmente nos festivais, no meio e no final do ano, nas
passagens marcadas pelos solstícios e o calendário católico, quando são comemorados São João
e as festas juninas, a Virgem da Conceição, Natal e o dia de Reis, respectivamente. Mortimer
descreveu:

Quando era o dia dos rituais na Igreja, o grupo da Colônia Cinco Mil se unia
e caminhava na direção do Alto Santo, a pé como de costume. A jornada feita
em conjunto trazia a natural alegria do coleguismo. Cada um levava na mão a
sacola com a farda. A distância e o calor obrigavam ao banho. A chegada do
grupo era bem notada. Entre outros motivos, trazia força na corrente musical
com os bons cantores e músicos que vinham se formando. Muitas vezes se
repetia a cena do povo chegando. Numa destas ocasiões, o Sr. Wilson
Carneiro, um fardado muito conceituado, proprietário de uma camionete
Chevrolet C20, prometeu dar uma força e levar o povo de volta em seu
automóvel.538

Moreira traz uma narrativa que aponta que os desentendimentos e disputas no contexto
da nova gestão já se arrastavam desde 1972 e iam para além da questão da autorização dos
feitios ou despachos do Daime nos setores já existentes. Envolviam de um lado “a família
Gomes e seus apoiadores e de outro, os críticos da gestão” - leia-se o grupo da antiga secretária
do mestre e comandante da ala feminina Percília Matos e de Sebastião. Moreira destaca um
episódio contado por seus interlocutores no Alto Santo e imediações, envolvendo Raimundo
Gomes e Sebastião Mota acerca da definição de qual hinário iria ser cantado no aniversário da
passagem do mestre Irineu no dia 06 de julho de 1972.

537
Ouvi de antigos seguidores à muito tempo atrás.
538
MORTIMER, 2000, p. 84.
170
Diz que naquele ano toda a comunidade de Cinco Mil tinha se preparado para ir cantar
o Hinário O Justiceiro que na época tinha 75 hinos, pois Leôncio Gomes teria autorizado
Sebastião. De última hora, Peregrina pediu a seu tio que fosse cantado o hinário de Raimundo
Gomes por conta de uma promessa feita por ele pela cura de sua esposa. A mudança foi
comunicada a Sebastião e os participantes da extensão da Cinco Mil apenas no dia, na hora do
hinário, causando surpresa e descontentamento. “Diante da mudança, mesmo frustrados na
expectativa, a maioria participou do hinário de Raimundo Gomes, muito provavelmente a
contragosto.”539
Diz-se que nos dois anos seguintes Sebastião teve o pedido de cantar seu hinário no dia da
passagem do mestre negado. O hinário de Raimundo Gomes havia sido privilegiado devido a uma
promessa e ele ser da família que estava na gestão do Daime. Moreira defende que esta foi apenas
uma questão, das mais aparentes, que evidencia as disputas e conflitos entre a família Gomes e seus
críticos. Neucilene ao comentar sobre sua chegada na doutrina do Santo Daime em junho de
1974, rememora os acontecimentos deste período, incluindo uma lendária reunião que teria
culminado na efetiva separação entre os grupos.

“Fui a primeira vez na Custódia540, que era lá na igreja do Mestre Irineu. Foi numa
noite de São João em 1974, foi a primeira vez que eu tomei Daime lá. Eu cheguei
no Daime através do seu Wilson, do meu sogro. Quando eu casei com o José foi a
primeira vez que eu fui na igreja, foi lá no Alto Santo. Eu fui no dia de São João,
dia 24 de junho de 1974. Aí eu vim, aí eu não fui mais. Foi, no último que eles
tiraram, porque São Pedro lá não tinha e 30 tinha a concentração. Aí teve uma
reunião, nessa reunião o Padrinho já saiu... e eu nem fui nesse dia... que o Seu
Wilson comprava a borracha na estrada, aí todo sábado e quinta... aí nesse dia a
gente foi pra estrada. O Seu Wilson foi pro trabalho, fretaram até um ônibus, que a
estrada era muito ruim; aí fretaram até um ônibus e foram, o povo e nos fomo pra
estrada. Aí quando chegamo muito tarde já da noite, aí eles tava pra lá. Quando foi
de manhã, a dona Zilda me disse que o Padrinho tinha ido embora de vez, tinha
decidido que vinha embora de vez.”541

Além dos registros de memórias, contados oralmente, é nos hinários de cada uma destas
lideranças que as brigas e querelas também ficaram manifestas de forma mais êmica e literal.
Da tradição oral ao texto escrito, são grafadas versões sobre o contexto de recebimentos dos
hinos, que “vêm do astral”, mas não estão dissociados das biografias daqueles que os recebem
e o contexto em que viveram. Alverga segue esta linha narrativa, quando versa sobre os hinos

539
MOREIRA, 2013, p. 114.
540
Referência a Estrada Custódio Freire que levava ao Alto Santo, renomeada de Estrada Irineu Serra.
541
N.S.S., 2020.
171
que Sebastião recebia nesta época, por volta do hino setenta em diante, quando ele tentava se
afirmar como uma liderança junto à diretoria do Alto Santo, mas nem todos aceitavam “que ele
estivesse com aquela bola toda.”542
No livro “Bença, Padrinho!”, Mortimer procura apresentar todo o processo de separação
entre os grupos como parte dos planos superiores e a separação como algo sem rancor ou
inimizade. No “Nosso Senhor Aparecido”, Mortimer reforça a ideia de que pairava um clima
de desconfiança em relação a Sebastião, sobretudo quando este, “um novato que havia estado
com o mestre por apenas 7 anos”543, se declarava São João nos versos que cantava “Sou Eu, Sou
Eu, Sou Eu/Eu posso afirmar/ O Mestre me chamou!/ Para eu me declarar!”544 Mortimer procura
sustentar a interpretação de que Sebastião foi uma espécie de sucessor do mestre Irineu,
responsável por divulgar o Daime no mundo, “levar a boa nova a outros povos”545, “o principal
discípulo de mestre Irineu”.546

Concluído o afastamento da sede do Alto Santo a nova bandeira, representada


por seu hinário, foi fincada no chão da Colônia 5.000. Passada a fase da
contenda disciplinar, os hinos se tornam mais poéticos, quase líricos. Seus
ensinos se alargam e assimilam várias fontes esotéricas.547

Moreira também usa desta estratégia narrativa ao comentar os embates entre Raimundo
Gomes e Francisco Filho. Estes embates aconteceram também no contexto de sucessão das
lideranças, após a passagem de Leôncio, já no início dos anos 1980. Analisando os versos dos
hinos, Moreira entende que eles remetem a este ambiente de rivalidade, onde estas lideranças,
como poetas, quase Mcs, faziam uma verdadeira “batalha dos hinos”.
Em 1981, Tetéu também se desligou do Ciclu-Alto Santo, levando com ele uma revoada
de seguidores que, pelo que nos chega a partir das pesquisas de Moreira548, foi muito maior e
mais impactante que a saída do povo da Cinco Mil em 1974. O hinário Assessor, do Tetéu, é
um dos hinários dos antigos que, de um tempo para cá, foi incorporado ao calendário oficial de
trabalhos da Iceflu, sob responsabilidade de Valdete Melo. É cantado na data da passagem do
mestre na sede no Céu do Mapiá e algumas outras filiais. Na Colônia Cinco Mil não houve essa
mudança e continua sendo cantada a missa e o hinário O Cruzeiro. Em comum, Sebastião e
Tetéu vivenciaram, em diferentes épocas, relações difíceis com outros membros do Ciclu, por

542
ALVERGA, 1992, p. 94.
543
MORTIMER 2001, p. 88.
544
Melo, S.M. “Sou eu”, Hinário O Justiceiro, n.
545
MORTIMER, 2001, p. 87.
546
Ibid., p. 102.
547
ALVERGA, 1992, p.98.
548
MOREIRA, 2013.
172
serem não terem sido reconhecidos ou aceitos como lideranças, questionados em seus
comandos, o que culminou, em diferentes contextos, nas duas grandes e significativas revoadas
e rupturas no Alto Santo.
Na noite de São João de 1975 aconteceu a abertura dos trabalhos oficiais na Cinco Mil,
com a cerimônia de hasteamento da bandeira nacional no final do festejo, e presença de muitos
seguidores do Alto Santo que acompanharam Sebastião. Mortimer traz um levantamento
detalhado dos nomes dos familiares, agregados da Colônia e seguidores do Alto Santo que
acompanharam Sebastião na sua saída e compuseram a primeira geração da Cinco Mil.

É muito importante para um líder a qualidade das pessoas que o rodeiam. (...)
Brilhante a participação dos jovens Valdete e Valfredo ao lado do pai. (...)
Madrinha Rita vinha crescendo neste papel que era a sua missão. Possuidora
de grande carinho e amor maternal, soube distribuir para todos este
aconchego. (...) Tetê, como chamavam a Tereza Gregório, irmã da madrinha
e a caçula da família (...) Júlia, a viúva, também se dedicou à vida religiosa.
(...) Cristina Raulino também demonstrava refinados dotes espirituais, sendo
uma figura de força no setor feminino. O cunhado Nel, que mais tarde seria
um baluarte da doutrina, neste tempo acompanhava os passos de Sebastião
mantendo uma certa distância. (...) Fora a família, os vizinhos (...) destacam-
se o Eduardo e a Maria Brilhante, o João Baé e a dona Mundica e o Chagas,
que virou companheiro predileto do Padrinho (...) casado com dona Elza (...).
Todos os filhos deste primeiro matrimônio de dona Elza vieram se incorporar
ao povo. Eram o Luis Lopes, o Neném, o Feliciano ainda menino, a Zilda e
por último a Raimunda. (...) O Seu Dário tinha uma boa colônia na região (...)
com a força da mão de obra de muitos filhos, entre eles o Pedro, (...) conhecido
na irmandade por Pedro Dário. (...) Na vizinhança, ainda tinha a família de
Seu Paulinho e dona Raimunda, Bernardo e dona Maria, o Val e a velha
Juliana, esta senhora bem mais idosa que o marido. Outro freqüentador era o
Gabriel, irmão de Chagas (...) Outros colonos de fora da área da Cinco Mil
também davam sustentação ao Padrinho, como o Sr. Manoel Paulo, o
Anderson, Pedro Roque, etc. Juntando o povo que vivia da terra com os da
cidade, dava esse expressivo número de cento e tantos fardados que
começaram o novo ponto de Santo Daime. O Chico Corrente veio do seringal
para a cidade. (...) Era o filho mais velho de Manoel Corrente. (...) a numerosa
família Corrente passou a freqüentar o novo ponto. (...) Do povo da cidade
tinha um grupo de novos daimistas, isto é, posteriores ao tempo do Mestre (...)
Reinaldo Bento, Mário Rogério da Rocha, Manoel Queiroz, João Pelágio,
Manoel Moraes, Rodolfo Rocha e Regina Pereira, Ruskin e seu irmão Shafir.
(...) registram-se também os veteranos daimistas que fizeram parte da revoada,
como o Major Odernes, Daniel Serra, Luís Mendes, Pedro da Percília, Ladir e
Jorge, entre outros.549

549
MORTIMER, 2000, p. 94.
173
Além dos nomes citados por Mortimer, Moreira acrescenta: “Wilson Carneiro (líder do
Pronto-socorro do Bosque), (...) Nabor (delegado) e dona Ilca (esposa de Nabor) entre
outros.”550

Esta era uma oportunidade especial, comparável a uma colmeia quando nasce
uma nova rainha e fica pronta para a vida. Ela se despede, levando parte do
enxame para formar uma nova sociedade. Cerca de cento e trinta fardados
fizeram a revoada e foram começar um novo tempo na Colônia Cinco Mil.
Para o Alto Santo era uma boa saída, porque assim aliviavam-se as tensões.
Para Sebastião era ótimo porque poderia trabalhar e desenvolver sua missão
sem ser reprimido ou reprovado por alguns. Precisava da unanimidade para
crescer, formar um povo e levantar uma Igreja.551

O citado Ladir é por certo Ladislau Nogueira, narrador apresentado nos textos de
introdução, que lembrou do tempo que chegou no Alto Santo, ainda jovem, e conheceu
Sebastião, sobre quem narrou com respeito e carinho, lembrando da época em que ele começou
a construir a Cinco Mil.

“Eu encontrei com Sebastião Mota lá na sede do Mestre, lá na sede do mestre Irineu
no Alto Santo, isso em 1967, faz um bocado de tempo, né? Ele era um dos irmãos
lá que chegou em 1965 e eu cheguei em 1967, e os meninos eram tudo já
rapazinhos... Os filhos dele e eu também tinha dezoito anos quando eu encontrei
com ele, que ele começou lá que ele recebeu os hinos dele até chegar naquele hino
que é o nome do hinário ele recebeu lá no Alto Santo, né? E a gente... e como ele
sempre foi uma pessoa extremamente agradável, muito agradável, inteligente e aí a
gente se deu bem e quando o Mestre fez a passagem a gente começou ir para casa
dele lá para ir cantar hinário lá, fazer hinário... na casinha dele, que era uma casinha
que tinha cerca de cajazeira, então a gente sempre ia para lá. Depois veio a ideia de
surgir, de fazer a sede lá e a sede saiu e nessa época todos nós compartilhávamos lá
com o feitio da sede porque não existia uma separação naquela época, não existia,
era uma amizade e interesse em ver as coisas crescerem. Eu fiquei lá um bocado de
tempo até mais ou menos 1977, 1978 sempre eu tava lá. Mas eu participava muito
da sede que eu trabalhava com seu Loredo, fazendo Daime lá no seu Loredo e a
gente era daquela equipe lá e até o seu Loredo ia lá também, de vez em quando ia
lá fazer uma visita a ele.”552

Ladi também destacou sua relação com dona Percília Matos, antiga seguidora do Alto
Santo, a quem o Mestre Irineu tinha uma profunda consideração e que, como vimos, em 1974,

550
MOREIRA, 2013, p. 131.
551
MORTIMER, 2000, p. 88.
552
L.N., 2022. Narrativa de Ladislau Nogueira gravada no dia 07 de abril de 2022, Residência no Bairro do
Aviário, Rio Branco, Acre.
174
após desavenças com a família Gomes, também acompanhou Sebastião na Cinco Mil alguns
anos:

“A dona Percília é maravilhosa, né? dona Percília também participou com a gente
em muito trabalho lá no Padrinho Sebastião e ele considerava ela muito bem viu,
os dois se davam muito bem, porque dona Percília foi uma pessoa que trabalhou
com mestre Irineu desde novinha, de uns nove anos de idade e tal e ela sempre ia
com a gente pra lá e quando tinha trabalho lá no Padrinho Sebastião a gente ia.
Inclusive uma vez eu lembro que ele ia cantar o hinário do seu Antônio Gomes e
era um final de semana e eu digo ‘quando a gente for a noite a gente vai’. Era no
inverno e o ramal pra lá era muito difícil, né? Aí eu fui numa picape, minha a picape
atolou e a gente ficava ouvindo o hinário lá até que a gente saiu, quando chegamos
lá, aí já tava terminando o hinário. Aí eles: ‘opa’ aí fizeram o intervalo e disseram:
‘agora nós vamos cantar outro, chegou o Ladi, chegou a Percília’. Aí cantamos João
Pereira. Era muito assim, era uma amizade fabulosa até hoje graças a Deus, acho
que agora que é mesmo, né? E dona Percília gostava muito dele, apoiava ele nas
coisas que ele precisava e tal, porque ela tem um conhecimento, né?”553

Moreira narra que Percília acabou acompanhando Sebastião e foi acompanhada por
outros descontentes pois, para muitos, ela também era uma liderança. O autor narra que a
separação do marido Raimundo Gomes foi o estopim para que um mal-estar com a família
Gomes fosse aumentando. Acrescenta-se o fato de que Percília e Peregrina não se davam bem
e, nos anos seguintes, vivenciaram disputas fundiárias, que culminaram com um “processo
judicial de reintegração de posse por parte de dona Peregrina e a saída de dona Percília da
comunidade e das terras do Alto Santo.”554 A presença dos antigos, por sua vez, trazia
legitimidade para o empreendimento de Sebastião. Nonato narrou:

“No ano seguinte, no dia do hasteamento da Bandeira, veio Major Odernes e casa
cheia mesmo e o hasteamento da bandeira foi fora, na frente da igreja. O pessoal do
Alto Santo tava quase todo aqui: Luís Mendes, Percília Matos, tava quase todo o
povo acompanhando o Padrinho Sebastião, aí depois pela outra história foram
saindo, saindo. O padrinho Sebastião ficou, mas pisou no batente como mestre
Irineu falou, né?”555

Já em 1975 começaram a chegar andarilhos interessados em conhecer a “bebida de


poder inacreditável”556 na comunidade. Mortimer narra que foi um artesão pernambucano que
rodava o mundo e também parou em Rio Branco encantado pelo Daime e seu ritual, quem

553
L.N., 2022.
554
MOREIRA, 2013, p. 88.
555
R.N.T.S., 2019.
556
Serra, R.I. Hino “Eu tomo esta bebida”, Hinário Cruzeiro, n. 124.
175
indicou a Cinco Mil para ele e Maurílio. Foram os primeiros andarilhos que chegaram na
comunidade e marcaram sua história. Narra-se que não demorou muito foi feito um trabalho de
farda azul e os dois estradeiros puderam conhecer o Daime. A partir daí a cada dia chegavam
mais cabeludos e Sebastião a todos recebia. Em um destes trabalhos, os novos membros
tomando lugar ao centro da mesa por convite de Sebastião, causando estranhamentos e ciúmes
nos mais antigos. Maurílio narrou:

“Quando nós entramos na igreja, de cara a mesa tava tomada pelos caras, que eram
os belos amigos do padrinho, tava tudo sentado na mesa, que eram as pessoas que
tinha vindo com ele do Alto Santo né… aqueles que o padrinho tinha dito que não
era mais com eles. Logo que nós chegamos no trabalho ele comunicou as pessoas
da mesa, que os trabalhos dali pra frente seriam com os cabeludos, que no caso era
o Lúcio, o Daniel e eu. Ele comunicou, ‘olha, de hoje pra frente, na minha mesa,
quero sentar com esses cabeludos, porque tô começando uma nova caminhada nos
trabalhos’. E fizemos assim… nós fizemos 1 ou 2 trabalhos nesse estilo que ele
estava dizendo. Muito bem. Aí quando eu vi, eu sentei no meu canto assim né, a
direita e o Daniel sentou mais ou menos a minha diagonal, que eu podia ver ele e o
Lúcio eu não vi onde tava. Isso tudo nos anos 75, a luz de vela, aquela velinha lá
em cima da mesa, aquela coisa né... bem escurinha... Mas nesse dia, a gente pitamos
antes com o Cabo né, tinha dado pra nós, antes. Tomamos o Daime, que atravessava
o terreiro pra ir pra igreja – pra casinha né e eu fui o primeiro a tomar antes do Lúcio
e o Daniel, lembro de passar perto do Lúcio e falar pra ele, ‘rapaz hoje o Daime tá
forte cara, hoje o negócio tá forte’, porque eu senti que tava forte assim, mais do
que o normal. E aí me lembro de ter tido uma guerra, assim de guerra nas estrelas
na minha mente, era uma guerra que eu fechava os olhos e via rajada de raios
ultravioleta partindo na minha mente em direção a mesa e de lá pra cá vinha, o pau
torava… aquelas energia se encontrava no meio do caminho, se explodiam… era
uma coisa fantástica, eu tinha 19 anos né…. tava totalmente livre, mente livre, todo
alegre e satisfeito e pra mim era um divertimento sentir aquela força, aquela coisa…
aí eu naquela luta e olhava pro Daniel e na minha mente o Daniel tava todo tempo
acompanhando, assim, como se nós tivéssemos numa batalha fechada naquela
situação. Um cara bate nas minhas costas e fala pra mim: ‘oh o teu companheiro tá
lá fora no chão deitado lá’. Aí eu já fiquei sem saber, olhei pro Daniel e recebi
ordem dele, ‘pode ir que eu tô na retaguarda’. Falei: acertaram o Lúcio rs... na minha
mente sabe que é essa brincadeira... puxa vida rsrs… e barulho... e barulho… eu
chego lá, ele tá deitado no chão, lá do lado de fora da igreja e o fiscal, que se eu
me lembro era o Zé Teixeira e o Pedro Dário, com as lanterninha na mão iluminando
ele assim. Aí o Lúcio levanta do chão, olha pra mim e fala: ‘Ah meu companheiro
me ajuda que eu tô morrendo’ e quis me abraçar assim na hora e eu lembrando do
padrinho que dizia, ‘não tenha dó, que se não você pega peia’. Empurrei o Lúcio
pra lá e falei: ‘ó meu amigo, aguenta ai porque o negócio ali dentro tá grosso’ e
voltei pra dentro da igreja rapidinho.”557

557
M.J.R., 2022.
176
Entre os presentes no pelotão, aqueles antigos seguidores que saíram do Alto Santo
acompanhando Sebastião. Goulart reforça a ideia de que havia conflitos e que, a partir dali, a

disseminação da ideia de que o ‘povo’ do padrinho seria representado pelos


novos adeptos, começou a gerar um certo desconforto e disputas entre
diferentes grupos da Cinco Mil, que passavam a se opor entre ‘locais’ e ‘de
fora’, ou ‘antigos’ e ‘cabeludos’. O grande conflito surgirá com a adoção do
uso ritual da Cannabis sativa pelo padrinho Sebastião, fato que mostra uma
clara influência da cultura hippie neste grupo daimista.558

Quem também seguiu para a Cinco Mil por alguns anos, ajudando Sebastião a levantar
a igreja no início foi Luiz Mendes do Nascimento, que narrou a Mendonça suas lembranças
sobre o episódio relacionado às investidas da polícia federal e as diferentes reações que as
lideranças do Alto Santo e da Cinco Mil tiveram ao saberem desta possibilidade. Também
relembra o tempo em que saiu do Alto Santo e mesmo tendo Leôncio em grande consideração,
seguiu por aproximadamente 2-3 anos os trabalhos com Sebastião na Cinco Mil.

E eu andei me desgostando... Não ligado à pessoa dele, é um uns


acontecimentos assim que eu não achava que aquilo, às vezes eu até
concordava pra não discutir e eu num, comecei a num me adaptar com aquela
história. E aí foi o tempo que aconteceu o padrinho Sebastião... Se afastar.
Ficar independente. E dado uma amizade que a gente tinha que... As amizades
sinceras, é desde aqui à eternidade, né? Então, até porque na época era muita
perseguição, não foi fácil e a gente... é... eu pelo menos, fui um dos que ajudei
a esconder Daime. Tirar Daime da sede, eu e aquele Júlio Carioca, tanto eu
como ele contrariado, mas... “Que os hômi vem aí”! E retirar das casas o
Daime... “Os hômi tá chegando aí”! Passar trabalhos inteirinhos, grandes,
trabalhos de noite toda, sem uma gota de Daime, não tinha Daime pra
ninguém. Hé, hé, hé. Porque, “os hômi vem aí”. E aí, enquanto isso, o
Padrinho Sebastião, na Cinco Mil, num desafiava. Até com certo respaldo,
porque no Alto Santo já era fácil chegar. Lá na Cinco Mil num era fácil, a não
ser que fosse assim proposital. Então, ele, mas ele diz que botava o Daime na
mesa e dava pra todo mundo e ainda demonstrava que se fosse preciso: -Tá
aqui! Pode tirar, mais o meu, não escondo Há, há, há, há, há. É. Ele fez isso.
E nessa eu, “vou lá pra onde tem Daime”. He, he, he. he... ...he... ...he. E aí
rapaz... foi um contingente comigo! Puxei muita gente de lá, a sede ficou oca.
Coitado do Leôncio! Ficou e eu levei muita gente. E aí passei, dois anos,
ligado ao trabalho da Cinco Mil com o Padrinho. [Pausa]559

Neucilene, no seu relato, também deu destaque ao fato de que muitos veteranos,
insatisfeitos com a gestão da família Gomes, seguiram com Sebastião, na Colônia Cinco Mil,
mas salienta que não ficaram por muito tempo, foram cerca de três anos. Luiz Mendes narrou
à Mendonça que ele cumpriu o tempo determinado e retornou ao Alto Santo quando o mestre

558
GOULART, 2004, p. 87.
559
MENDONÇA e NASCIMENTO, 2019, p. 82.
177
Irineu lhe chamou em pensamento, como um menino que é pego pela mão, mas ainda assim,
destaca que foi um período de muitos aprendizados:

“Fui... Já levava alguma coisa. Lá, se avolumou. Trouxe de lá muita coisa boa.
Muita coisa boa. Até o período que me foi determinado, que não chegou ser
nem mais de dois anos não, que eu retornei e eu já vinha com, esse
conhecimento assim, já, bem ampliadão. Foram uns trabalhos muito bonitos
também, com a presença dele.”560

Luiz Mendes manteve a amizade com o povo na Colônia Cinco Mil até o final de sua
vida e fazia frequentes visitas tanto na sede, como no Pronto-socorro. Em 1977, muitos destes
antigos seguidores retornaram ao Alto Santo, outros foram até seu Loredo561. Na Cinco Mil
permaneceu um bom grupo, mas nomes como Luiz Mendes, Ladislau, Daniel Serra, Percília
Matos não permaneceram. Nesta época, com o movimento de recepção dos andarilhos e
estradeiros na comunidade, começaram a se produzir significativas mudanças no contexto de
uso e consagração do Daime e, por isso, estes membros antigos, “pela outra história foram
saindo, saindo...”. Como destacado por Neucilene em seu relato, “o negócio da Santa Maria”,
“mais a história do homem lá também” se apresentaram como motivações para o afastamento
destes antigos.

“Aí nessa vinda foi que veio, o povo que veio, veio todo com ele. Veio a família do
seu Luiz Mendes, veio a família do sobrinho do mestre, como era o nome dele?
Daniel Serra. Veio a dona Percília com o esposo, veio seu Reinaldo Bento, veio
João Pelágio que era o seguidor de lá de onde é fardado, veio seu Aristácio, ele era
muito grande e chamavam ele de “Tonelada” mas o nome dele num era esse não, aí
tinha outro também que chamava de “Pescossim”, era... mas ele tinha um nome,
Gerônimo. Aí o Ladir, com a família, todos esses que veio foi com a família. Aí o
Ladi com a família, aí veio outros rapaz também que seguia lá, vieram, veio junto
e seu Manuel Queiroz que era advogado. Esse povo todinho do Alto Santo saiu da
Cinco Mil. Misturou o negócio da Santa Maria, acho que desestimulou o povo
também... mais a história do homem lá também, o povo foi se distanciando mais.”562

Mortimer conta que neste período Sebastião tinha feito uma nova casa, com uma boa
varanda, para receber seu povo para as conversas no fim de tarde, casa essa que existe até hoje
na Colônia Cinco Mil. A velha casa, segundo Mortimer, “agora sem paredes”563, se transformou
“num salão com espaço razoável para receber duzentas pessoas.”564 A partir de então Sebastião

560
MENDONÇA e NASCIMENTO, 2019, p. 82.
561
MOREIRA, 2013.
562
N.S.S., 2020.
563
MORTIMER, 2000, p. 120.
564
Ibid., p. 89.
178
começou a organizar o centro de forma independente, o que envolvia organizar os feitios do
Daime e fazer melhorias na sede para realização dos trabalhos.
A casa onde padrinho Sebastião e sua família moraram ainda existe na Cinco Mil, a
poucos metros da Igreja e é chamada casa-grande, numa provável referência ao tamanho da
moradia que se destacava se comparada às demais daquela época. É um dos patrimônios
materiais que remontam à paisagem da Colônia dos tempos do padrinho, e hoje tem funcionado
como hospedaria, moradia temporária e centro de convivência da comunidade.
Nessa parte do texto vimos que fincar ou levantar uma bandeira é como simbolizar a
conquista de um espaço. Reivindicar uma territorialidade é sempre algo que acontece no
processo de afirmar-se no mundo diante de algum tipo de necessidade ou ameaça - ao mesmo
tempo é afirmar um direito à diferença, resistência e também o domínio de um poder, no sentido
de defender uma interpretação da vida, a partir de um lugar. Acompanhando de Süssekink
observo a distinção entre origem e começo histórico. O episódio do hasteamento da bandeira é
uma espécie de rito simbólico que, a partir do deslocamento e distanciamento do Alto Santo,
produz um processo de reterritorialização.
As narrativas das origens como processos fundantes são parte do empreendimento
político de nomear lugares, de formar um discurso sobre o território. São elementos importantes
na construção das identidades a ele conectadas, com seus heróis, símbolos, rivalidades
regionais, comemorativas, “uma série de intocáveis ‘acontecimentos’ e nomes de ‘pioneiros’
que não sucumbiram à ‘desmemorização’, constituindo o panteão da fabular ‘fundação’”. 565 A
história da Colônia Cinco Mil também pode ser lida a partir das narrativas dos eventos
fundantes, marcações no espaço-tempo que, de alguma forma, são arbitrárias, mas estão
presentes na memória coletiva. Como em todo mito fundador há um povo escolhido, um
território predestinado e a construção de um sentimento de pertencimento ao lugar. As
narrativas das origens, como um conjunto de enunciações que definem os marcos de um início,
apontam que o episódio da bandeira tem um relevante simbolismo.

565
ALBUQUERQUE, G.R. Uma certa cidade na Amazônia Ocidental. Universidade Federal do Acre. (Tese
Professor Titular). Centro de Educação, Letras e Artes: Rio Branco, 2019.
179
2.2 Organização comunitária, construção da sede, espacialidade do sagrado

“O que eu estou dizendo,


Só quem sabe foi quem viu,
Os trabalhos do Padrinho
Na Colônia Cinco Mil.”

Hinário José Kleuber

Contam que Sebastião não demorou, começou a sonhar construir uma igreja, um templo
para a realização dos trabalhos espirituais na Cinco Mil. Seu desejo foi compartilhado com a
irmandade que se reunia junto a ele, moradores e frequentadores da Colônia, que foram
“construindo devagarzinho, bem devagarinho, como Francisco”566. Mortimer narra que Wilson
Carneiro e seu filho Raimundo Nonato eram comerciantes e foram importantes colaboradores.
Foi feito um livro onde quem contribuía assinava, como um incentivo para conseguir recursos.
Raimundo Nonato contou a Moreira: “Na época foi feita uma lista para mim e outra para meu
pai e pro Reinaldo Bento, fomos pedir onde nós nunca deixamos nada, foi com a cara limpa
mesmo. Até no Medeiros, o da relojoaria eu fui. Ele ajudou um pouquinho.”567
Mortimer descreve que a obra foi sendo levantada aos finais de semana quando eram
realizados os mutirões para a construção. Para ficar toda pronta demorou uns três anos. A
casinha de feitio, espaço onde a bebida ritual era preparada, bem como os utensílios, passaram
por um melhoramento.

Os primeiros Daimes feitos na Colônia Cinco Mil eram de forma bem


precária, com latas de vinte litros. Agora tinham construído a casa própria com
a fornalha de três bocas e sala de bateção. Em vez de latas, agora se utilizavam
panelões de 125 litros, comprados em Porto Velho.568

Também houve uma preocupação com a legalidade do novo centro. Foi feito um
estatuto, criado uma diretoria, a exemplo da organização firmada no centro do mestre Irineu.
Mortimer narra que “O pessoal da ‘caneta’ tratou logo de ser eficiente. O novo Centro precisava
de registro na repartição pública. Precisava duma vida legal e do reconhecimento das
autoridades.”569 O povo da caneta era ele mesmo e mais algumas pessoas que já haviam chegado
nesta época. Mortimer data a fundação simbólica do Cefluris no dia 07 de outubro de 1974,

566
R.N.T.S., 2019.
567
MOREIRA, 2013, p. 135.
568
MORTIMER, 2000, 101.
569
Ibid., 2000, p. 94.
180
aniversário do padrinho Sebastião mas ele mesmo só chegou na Colônia para ajudar Sebastião
a tomar estas providências legais em 1975. Ao que parece, segundo Fróes, o Cefluris como
entidade organizada começa a ser idealizada e criada mesmo em 1976570 e, segundo Goulart,
teve seu primeiro Estatuto publicado no Diário oficial do Estado do Acre em 30 de março
1978571.
Parece que em 1976 o ideal comunitário começou a tomar forma através do projeto de
coletivização das terras, ou seja, a doação dos lotes para a instituição religiosa. “Foi assim
mesmo. De repente a ideia tomou vulto e o plantio de feijão, a primeira experiência da produção
conjunta, foi planejado junto aos vizinhos do Daime, que toparam fazer parte da novidade. A
liderança do Padrinho era forte e atraiu a participação de todos.”572
No que toca às diretrizes estatutárias, Fróes destaca que “a linha do centro é a mesma
implantada pelo mestre Irineu, fundamentada no ritual do Ecletismo Evolutivo”573 e as
preocupações “contra a comercialização do Santo Daime, o aspecto da cura e o
desenvolvimento das relações comunitárias”574 já estavam postas como objetivos originais.

Vivíamos ali motivados pela comunhão com o Santo Daime e a participação


no ritual que se expressava na música. Todos gostavam muito de cantar os
hinos da doutrina. Às vezes até mesmo trabalhando nos roçados e nas colheitas
de arroz. Eram muitas composições musicais.575

Foi convocada uma assembleia geral com os membros da Cinco Mil para apresentar a
criação do Cefluris, seu Estatuto e sua primeira diretoria:

Presidente, Sr. João Pelágio; Vice Presidente, Dr. Manoel Queiroz


(advogado); 1º Secretário, Sr. Reinaldo Bento; 2° Secretário, Sr. Luís Mendes;
Tesoureiro, Alfredo Gregório de Melo; Gestor, Wilson Carneiro e Mestre
Imediato, Padrinho Sebastião Mota.576

Diz-se que, depois disso, foram criadas carteirinhas para os filiados do novo centro, em
que constava a data de 06 de outubro de 1969 como a de fundação, provavelmente uma
referência ao ano em que mestre Irineu autorizou os trabalhos e feitios na Cinco Mil e como
forma de dar mais legitimidade ao centro. Posto desta forma, destaca-se que a existência da

570
FRÓES, 1986.
571
Ibid., p.41.
572
MORTIMER, 2000, p. 134.
573
FRÓES, 1986, p. 49.
574
Ibid.
575
MORTIMER, 2000, p. 167.
576
Ibid., p. 94.
181
Cinco Mil teve aval do mestre Irineu, como destacou Moreira577, e também Alfredo, naquela
narrativa que ele frisa que seu Leôncio teria dito a Sebastião: “lá, onde tu já começou, o mestre
já autorizou”578. Segundo Goulart “sua regularização mais sistemática, com a elaboração de
estatutos e outros documentos se dá só em 1989.”579 Quando a doutrina do Daime do
seguimento de Sebastião começou a se expandir, já existindo alguns núcleos fora da Amazônia
no final dos anos 1980, foi se tornando cada vez mais necessário ter o respaldo legal para o
funcionamento das entidades e centros, o que inclui o registro em cartório enfim, o poder
legitimador da palavra escrita. Mortimer comenta que

Embora não tivesse convivência com o mundo das letras, da intelectualidade,


a legalização da nova Igreja, com toda papelada e muitas assinaturas, trouxe
segurança e alegrou a Sebastião, que conhecendo o Evangelho sabia que tinha
que ‘dar a César o que é de César’580.

Sebastião gostava de chamar o espaço dos trabalhos do Daime de igreja, diferenciando-


se do grupo do Alto Santo, que chamam o lugar de culto de sede. Para se referir ao espaço em
geral também é comum se usar a expressão centro, que seria uma das palavras mais antigas
utilizadas pelo mestre Irineu581 - centro livre como ele se referia. Se esmiuçarmos, pode-se dizer
que a ideia de centro está mais ligada ao nome da entidade/instituição ali territorializado e não
ao espaço ritual em si. Chamar a sede e o salão dos trabalhos de Daime de igreja é parte do
léxico característico do grupo mais ligado a Sebastião e a partir do momento que o Daime se
expande para outros territórios, sobretudo com a alcunha de Santo Daime, novas analogias,
novos conceitos, palavras e significações são incorporados no vocabulário: templo, terreiro,
catedral, casa de cura, etc., são denominações utilizadas.
O geógrafo Gil Filho, que teoriza sobre uma geografia do sagrado, propõe a
espacialidade do sagrado como categoria de análise e destaca quatro “instâncias analíticas
possíveis do sagrado”582, como cerne da experiência religiosa, sendo uma delas a que se refere
a materialidade fenomênica apreendida por nossa percepção mais imediata, isto é, referente “a
exterioridade do sagrado e sua concretude” – o templo, as edificações, os espaços ritualísticos,
seus marcos na paisagem e as tessituras espaciais que, por exemplo, caracterizam
territorialidades típicas do Daime.

577
MOREIRA, 2013, p. 133.
578
A.G.M., 2019.
579
GOULART, 2004, p. 102.
580
MORTIMER, 2000, p.95.
581
MOREIRA, 2013.
582
GIL FILHO, Por uma geografia do sagrado, 2001, p. 4.
182
A construção do centro do Daime na Cinco Mil lembra a arquitetura das igrejas
católicas, com suas colunas, torres, pinturas. Como destacou Moreira583, a primeira sede do
Cefluris não seguiu o modelo do Alto Santo, que é um galpão quadrado, aberto e com telhado,
rodeado de varandas. Em comum, a mesa de centro com um Cruzeiro, jarros de flores, velas e
a presença de bandeiras. Porém, nota-se que a arquitetura dos centros da Colônia Cinco Mil,
incluindo a do Pronto-socorro, tem este aspecto diferenciado em relações às demais sedes de
Daime em Rio Branco.
Joca, irmão de Peregrina Gomes, contou a Moreira que José Lima, um comerciante de
Rio Branco e frequentador do Alto Santo, teria apresentado ao mestre Irineu uma maquete, feita
a partir dos esboços de uma miração, com a arquitetura da sede dos trabalhos do Daime. Mestre
Irineu teria agradecido a sugestão mas dito que o formato da sede era aquele mesmo e segundo
Moreira, “Tudo indica que esta maquete recusada por Mestre Irineu foi levada com José Lima
quando saiu do Alto Santo e foi para o Cefluris na Colônia Cinco Mil.”584 Mortimer, por sua
vez, diz que o desenho arquitetônico foi baseado no sonho do padrinho Sebastião, que havia
projetado no onírico a estrutura com seis arcos e duas torres585
A construção da sede da Cinco Mil teve como mão de obra os moradores e
frequentadores da Colônia que, nos finais de semana, realizavam os mutirões para levantar a
estrutura. Naquela época eram grandes as dificuldades de acesso para chegar com o material e
também de captação de recursos financeiros. Os primeiros tijolos, aqueles utilizados na base da
igreja, foram feitos ali mesmo na comunidade. Mortimer narra que Chico Arigó é quem sabia
modelar os tijolos feitos manualmente, do barro amassado com os pés, colocado em uma forma.
Assim foi feito o baldrame da construção. O “restante para as paredes foram comprados através
de doações.”586 A madeira utilizada na construção também foi tirada na própria Colônia, quando
uma imensa castanheira foi ao chão pelas serras manuais, narrou Mortimer.
Sempre muito lembrada é a ajuda dada por Wilson Carneiro que garantiu a chegada da
luz com motor na Cinco Mil e, depois, como dirigente da comunidade, na década de 1980,
acionou vários políticos atrás de melhorias para a localidade, conseguindo inclusive parceria
com a Prefeitura e o Estado, garantindo a construção e funcionamento de duas escolas durante
anos. Neucilene contou sobre o primeiro trabalho feito na Colônia Cinco Mil após a saída do
Alto Santo em 1974 e a chegada da energia:

583
MOREIRA, 2013, p. 134.
584
Ibid.
585
MORTIMER, 2000.
586
Ibid., p. 120.
183
“Aí fui em outro trabalho com o Padrinho, ainda não fazia hinário oficial lá na Cinco
Mil. Aí o próximo trabalho depois que saíram foi no dia foi de 15 de julho, isso,
quando foi aí o seu Wilson pediu o Padrinho pra fazer o hinário lá, dia 18, que foi
o aniversário do seu Wilson. Mataram até um boi, aí teve o hinário e de manhã teve
o churrasco. E já tinham saído do Irineu Serra, já tinha vindo todo mundo aqui para
o Padrinho, porque teve um desentendimento e o Padrinho saiu. Aí quando foi o
primeiro trabalho que teve lá na colônia, assim de hinário mesmo assim, foi o
aniversário do seu Wilson. Foi cantado O Justiceiro, era farda azul. Eu acho que o
último era “Peço que vós me clareie, peço que voz me sustente”587 é o último hino
do Padrinho quando ele veio pra cá era esse... aí cantaram, aí quando foi no outro
dia teve o churrasco, mas foi de farda azul ainda. Aí quando foi... aí ficaram fazendo
lá assim, mais ou menos. Toda quarta feira tinha trabalho de cura, o Padrinho fazia...
aí a gente passou pra fazer... Que ali era um varadouro assim bem estreitinho, a
gente varava pelo Mutum, era uma luta pra chegar lá. Aí quando foi no outro ano
75, o seu Wilson queria o hinário do Padrinho de novo. Aí ele foi falar com Padrinho
pra cantar o hinário dele no aniversário... aí o Padrinho disse que tava difícil, porque
o hinário dele já tava muito grande e ele não queria mais fazer sem luz, porque fazia
trabalho na vela. Aí ele disse que era muito ruim, ele não queria mais fazer de farda
azul, queria fazer de farda branca e sem luz era muito ruim. Aí o Seu Wilson disse:
- ‘ah, se for por isso não!’ Só fez voltar em casa, veio na rua e comprou um motor,
comprou o fio, comprou pra fazer a instalação né, aí pegou, botou luz na Colônia.
Ainda era a casa do Padrinho, nesse ano ainda era a casa, porque ele fazia trabalho
dentro da casa mesmo... e dia de trabalho assim de concentração, ficava aquele
monte de gente sentado no pé da parede, que num tinha banco... aí umas mulher
que tinha menino ia pra dentro dos quarto, fazer os menino dormir, ficava deitada
por lá. Eu também corria, tomava Daime e corria ia me deitar lá. Aí foi bom esse
hinário do seu Wilson, animado. Aí ele começou, aí começaram fazer na igreja já,
ir fazendo os trabalhos. Aí sei que foi, foi até hoje, até hoje faz este hinário no
aniversário do seu Wilson, canta O Justiceiro, a igreja enchia de visitante, vinha seu
Luiz, às vezes vinha Ladir, povo antigo, gente de fora, de Minas, do Mapiá...”588

O aniversário de seu Wilson foi o primeiro trabalho de hinário realizado aqui na Cinco
Mil depois que padrinho Sebastião e seu grupo saíram oficialmente do Alto Santo e, desde
então, é uma data muito comemorada na Colônia Cinco Mil. Sobre esta fase inicial de
construção da comunidade e da igreja, Ladislau também lembrou:

“Então para mim foi ótimo, às vezes eu ia pra lá no fim de semana aí... quando tava
construindo a sede, eu ia de final de semana pra levar algumas coisas na picape,
aquele negócio e tal. Chegando lá, a gente ficava conversando até meia noite pra
poder voltar pra casa, ele era maravilha e aí a madrinha Rita fazia uma galinhazinha
pra gente comer, aquela coisa toda... então isso fica na memória da gente, essas
coisas boas. E dele eu só tenho boas lembranças, não tenho más lembranças e acho
que ele foi muito importante na expansão da Doutrina, hoje não só eu reconheço

587
Melo, S.M., “Peço que Vós me clareie”, Hinário O Justiceiro, hino n° 128.
588
N.S.S., 2020.
184
isso, mas tem muitas pessoas que reconhecem. E aí as falhas que as pessoas fazem
e tal, não é culpa dele, tá certo? Há umas modificações e tal, mas isso em todo canto
há e é preciso a gente ter muito cuidado porque, porque às vezes até prejudica a
gente, essas modificações, mas ele era uma pessoa trabalhadora, honesta, sabe? E
acolhedor, que acolhia todo mundo com um carinho enorme. Quem conviveu com
ele, que já vai fazer trinta e dois anos que ele faleceu, fez trinta e dois anos, né?
Quem conviveu com ele sabe o quanto ele era uma pessoa legal, né? Não é à toa
que todo mundo hoje, até hoje, se lembra dele, né? Do Sebastião Mota e a gente
roga a Deus que ele esteja na altura onde merece, sabe?” 589

Alverga escreveu que na “Comunidade da 5.000, a construção do templo e o hinário do


Padrinho foram crescendo juntos. Seus filhos mais velhos, Alfredo e Valdete, dedicavam-se aos
roçados e às tarefas mais práticas de organização.”590 Alfredo narrou sobre estes tempos de
formação da Cinco Mil:

“Num dado momento, o papai era uma pessoa que atraía muita união e, também
com o povo do Padrinho Wilson, nós conseguimos começar aquela igreja que antes
era uma igreja feita por nós, casa de paxiúba, no máximo um assoalho de tábua. Daí
apareceu um mestre de obras chamado Paraíba, que trabalhou muito aqui em Rio
Branco, conheceu o Daime, conheceu papai, ele falou: - ah não! vou te ajudar a
fazer esta igreja! Vai vendo as doações aí, quem pode, quem pode dar um tijolo,
quem pode dar um cimento, aí aos domingos ele chegava lá, juntava a nossa galera,
nós todos, juntos, começava a trabalhar. Sendo mestre de obra mas também
trabalhador né, ele juntava ali os mais inteligentes, os outros ficavam fazendo
massa, aí a gente foi crescendo aquela igreja aos domingos. Todo domingo ele ia, a
gente fazia um mutirão, levantava ali meio metro, aí noutro domingo mais outro
meio metro e assim chegamos a fazer a Igreja. A cobertura que foi feita male má,
depois foi feita outra, mas que o corpo da igreja mesmo, é o mesmo.”591

A construção foi obra de um coletivo de pessoas que se reunia em torno da figura


carismática de Sebastião. Marinês Morais narrou sobre o tempo que a Cinco Mil estava em
construção e ela crescia junto com a comunidade. Também muito lembrado na Colônia Cinco
Mil por ter ajudado Sebastião na construção da igreja e da comunidade, seu Manuel Morais
chegou na irmandade com sua esposa e filhos. Tinha uma serralheria na área central de Rio
Branco e vários maquinários, serras, que foram doadas ao Cefluris.

“É tanto que na época, ele ajudou a subir a igreja. Aí, ele caiu lá de cima. Quase
que morre! Tava fazendo as tesouras da igreja. Aí mãe falou: ‘Ah, teu pai caiu lá.’
Eu tava chegando do colégio, do ginásio, do Colégio Acreano até. – ‘Teu pai caiu
lá da obra da colônia, da Cinco Mil. Tá no hospital.’ Daí eu quase dei um chilique

589
L.N., 2022.
590
ALVERGA, 1992, p. 112.
591
A.G.M., 2019.
185
também. – ‘Mas parece que ele tá bem. Não está muito mal não, levou uns arranhões
mas tá sobrevivendo.’ Aí, tratou por ali e continuou a obra. Formação da igreja, né?
Nessa época mesmo. Aí, foi feita a proposta para ele vim. Aí ele quis vir. Quando
começou aqui, muitas vezes a gente já vinha se mudar pra cá, meu pai já tinha uma
Rural, nos enchia o carro de rancho, de comida e vinha na estrada. A gente entrava
lá pela fazenda e vinha aqui pelos fundo oh. Aqui tudo era, tudo era caminho dos
parentes da Madrinha Rita, o sobrinho, o Chico lá. É tanto que, como é que se chama
o caminho lá ... Moreira, o caminho dos Moreira... Porque o ramal aqui quando
dava na época de chuva ninguém andava muito não. Só carroça e muita lama. É do
varadouro aqui. Quatro hora, meu pai tardezinha, fim da tarde, já fazia feira e tudo.
Pois é, aí a gente vinha cedinho, quatro hora da manhã, saia de lá, pegava comprava
o pãozinho quentinho, vinha, vinha caminhando, né? Trazia as bagagem nas costas
e tudo, chegava aqui na vila do padrinho Sebastião, pra cedinho a gente ir pro
roçado. Colher, começava a aprender a colher os legumes, colher arroz, colher
feijão. Então mesmo limpar. Aí sete e um o padrinho Sebastião juntava as mulheres,
as vezes, um, dois, três, homens pra apoiar, né? Pra ajudar. Dar uma força. O que
eu aprendi com o padrinho Sebastião é trabalhar na enxada, tanto que eu tô
magrinha, sofri tireoide mas, adoro capinar, rastelar, plantar, aiiii… meu Deus! É a
minha vida! Tomei gosto assim, pela terra… Porque a gente saia as cinco horas da
manhã, o dia clareado, tipo assim e eu tava de pé, fazendo cuscuz e tudo. Se juntava
aqui nós tudinho pra fazer. Entrava aí nesse ramal lá pro lado aqui onde o Robson
comprou, plantação do seu Chagas, casado com a dona Elza na época. Aí onde tudo
começou. Colhia as coisas. Era muito bom! Pescava os peixinhos, tinha as frutas
batida. Lá tinha laranja, muita laranja. Muita banana.”592

Outro ponto que Marinês destaca e é recorrente nas falas dos mais antigos, refere-se às
estradas, a dificuldade que era andar ali nos períodos de chuva e os caminhos alternativos que
existiam, ligando as várias colônias que formavam a Cinco Mil e levavam à Vila Santa Maria,
onde estava a igreja. Uma destas trilhas era o caminho dos Moreira, varando por uma fazenda,
e encurtando a distância percorrida hoje pela estrada convencional, o ramal recém asfaltado.
Marinês narrou como seu pai ajudou na construção da igreja. Diz-se que depois de uns
três meses de iniciada a construção, já estavam sendo realizados os trabalhos espirituais dentro
da obra em andamento. Mortimer narrou:

A vida na Colônia estava em ritmo de trabalho. Não tinha boa vida para
ninguém. Até as crianças estavam inseridas na força de trabalho. Porém, era
uma rotina saudável para a juventude e para os mais velhos, porque tudo
dependia do físico, da força bruta.593

Aluízio, filho da Francisca Corrente, também lembrou desta época:

592
M.M., 2019.
593
MORTIMER, 2000, p. 121.
186
“Depois que o Mestre morreu que nós viemos para cá pra Cinco Mil, era mais perto,
nós andava a pé do final da Jarbas até o Alto Santo, aí aqui era quase metade da
viagem. Mas a gente começou a vir pra cá para o padrinho, veio o vô a mãe,
conheceram o Padrinho lá na igreja, lá no Alto Santo. O velho começou a fazer os
trabalhos na casa dele mesmo, o pai serrou madeira na serra manual para fazer essa
igreja aí, eu ajudei a bater malho, piso... eu ergui o primeiro piso batendo malho, o
finado Paraíba, que era o mestre de obras da igreja.”594

Além da igreja que ia sendo erguida aos poucos, a vila ia aumentando de tamanho a
cada nova casa construída para receber uma família ou grupo que chegava e se apresentava
desejoso de ficar. Somando esforços da irmandade, consta que a sede ficou pronta em 1978,
quando aconteceu o casamento de Alfredo e a prima Silvia da Silva Melo, filha de Manuel
Gregório e Cristina Raulino. Com Silvia, Alfredo teve sete filhos. Pouco depois da inauguração,
Dario Ibaceta e Jorge Zuloaga, dois estrangeiros que viviam na comunidade, fizeram uma
pintura na fachada da igreja, uma imagem do Sagrado Coração de Jesus no Sol, à esquerda e a
Rainha da Floresta, a Virgem da Conceição, à direita e vários outros simbolismos.
Marizete Auxiliadora narrou a trajetória de sua mãe Mariza, como ela começou lá no
Alto Santo, destacou o aspecto acolhedor de Sebastião como liderança, que prestava apoio
material e espiritual aos afilhados e também o contexto das brigas e desentendimentos que a
levaram, ainda jovem, para a Colônia.

“Quando nós começamos a entrar no Daime, minha mãe começou lá no Padrinho


Irineu né, nós era tudo criancinha, minha mãe começou lá. Minha mãe era
oficialmente fardada e ela teve muita dificuldade financeira da vida e saúde assim....
E de imediato a minha mãe era sofredora da história do meu pai, ele era mulherengo
né. Então ela procurava muito tirar meu pai das bebidas, das mulheradas né, do
mundão. Então ela conheceu o padrinho Mota e achou apoio né, teve apoio e quê
que ela fez? – ‘é aqui que eu vou me apoiar’. Aí ela começou a frequentar lá, aí
ficamos até o padrinho Irineu falecer, quando padrinho Irineu faleceu nós viemos
para cá, padrinho Mota. Nós já viemos na equipe do padrinho Mota né, minha mãe,
Mariza. Lá era uma casa muito engraçada, as casinhas que a gente bailava aí, na
casa do padrinho Sebastião. Minha mãe morava na cidade e a gente, todos nós né.
Quando foi um tempo eu era muito sapeca, aos meus 14, 13 anos, eu não parava
mesmo não e um dia eu no colégio lá, eu briguei por lá né, tive raiva da menina e
brigamos. Aí minha mãe imediatamente, a família era perigosa, minha mãe joga eu
pra cá e eu fui morar com a dona Júlia, fiquei com o padrinho uma semana na casa,
mas como a casa era muito cheia e era só um corredorzinho, era rede pra tudo que
era lado... cama menina, não tinha... a gente foi ter cama aqui nesta colônia muito
tempo depois... Aí eu –meu Deus eu não quero ficar nessa colônia... mas aí o que é
que vou fazer? Aí a dona Júlia ‘se tu se comportar eu deixo, se tu ficar com isso, eu

594
A.F.S., 2020.

187
não quero tu lá em casa não.’ Aí eu digo tá. Aí conheci vários meninos né, comecei
namorar, dona Júlia na regra ali, mas eu fugia (risos). Morava dona Júlia e o Pedro
Mota, a Maria José, o Antônio José e o Gomes, era bom que só.”595

Júlia Gregório foi quem deu abrigo à jovem de jeito impetuoso, que protagonizou muitas
outras e mais atuais contendas na Vila Santa Maria. Júlia é uma das irmãs da madrinha Rita,
que acompanhou de perto o desenvolvimento espiritual de seu cunhado Sebastião, desde os
tempos do seringal no Juruá, de onde seguiram para a Colônia Cinco Mil na década de 1950.
Ficou viúva muito jovem e, assim como sua irmã Tereza Gregório, tornou-se uma dedicada
zeladora dos fundamentos ritualísticos da irmandade do Daime. Teve três filhas, e uma delas, a
Dodô, se casou com o primo, filho mais velho de Sebastião, Valdete, com quem teve uma filha.
Com o tempo, mais pessoas iam chegando para perto e Sebastião, além da construção
da igreja, foi criando condições para que pessoas que quisessem seguir o Daime fizessem uma
casinha na Colônia Cinco Mil. Alfredo narrou:

“A gente foi crescendo a ponto de ir juntando alguém que queria morar na Colônia
Cinco Mil, até aí só moravam os donos, os membros só iam para igreja e voltavam
para seus locais. Aí papai começou a ver a possibilidade, quem quer morar faz aí a
sua casinha, quem quer morar faz aí um local, mas pra viver unido e seguindo a
doutrina e ocupando a Igreja que foi feita com muita luta com bastante união, aquilo
ali, ninguém tinha dinheiro.”596

Assim, Sebastião foi cedendo parte de suas terras para quem queria ajudar na
comunidade e frequentar os trabalhos espirituais. Um conjunto de casas na redondeza da igreja
foi crescendo e ficou conhecida como Vila Santa Maria. Alverga destaca que:

Ao receber o sinal espiritual de Mestre Irineu para a construção da igreja e a


organização do povo, o Padrinho insistiu cada vez com mais ênfase que essa
forma de organização deveria ser comunitária. No seu entender, a comunidade
era o tacho novo para ser usado em um apuro cada vez mais forte. E este apuro
era o prenúncio de uma nova instrução que o Padrinho receberia anos depois,
para que entrasse com seu povo ainda mais para dentro das matas.597

Lourival Bento chegou em 1979 junto com sua mãe, vindos do Mato Grosso do Sul,
guiados por seu tio, Reinaldo Bento, que conhecera Sebastião anos antes. Ele narrou:

595
M.A.S.S., 2020.
596
A.G.M., 2019.
597
ALVERGA, 1992, p. 107.
188
“Minha mãe, professora nesse tempo, nós tudo criancinha. Nesse trabalho que meu
tio levou esse Daime, minha mãe teve uma miração vendo o mestre Irineu e o
padrinho Sebastião (nesse tempo ela não sabia quem eram), do outro lado de um rio
chamando ela: ‘um senhor todo morenão, alto, com um cajado na mão’, ela dizendo
né e ‘um senhor todo de branco com chapéu na cabeça e uma barbona, que só fazia
chamar ela, chamar ela’. E nesse chamado meu tio voltou para o Acre e minha mãe
uns meses depois veio a conhecer Rio Branco, conheceu a comunidade da Cinco
Mil com o padrinho Sebastião morando lá né, isso antes do Rio do Ouro ainda. E
ela gostou muito, tomou Daime com o padrinho e com a madrinha na igreja e
gostou. Voltou para Campo Grande, vendeu tudo que tinha: nossa casa, nossos lotes
e todas as coisas que a gente tinha né. Nesse tempo minha mãe já era separada do
meu pai e, então minha mãe com cinco filhos teve essa confiança de vim viver na
floresta. E assim vendeu tudo e nós se mudemos para cá, fomos direto para Colônia
Cinco Mil, justo na casa do Rodolfo e da Regina, que era lá nossos conterrâneos,
né. Nós ficamos morando na casa da madrinha Regina um tempão... Na época que
eu cheguei na Cinco Mil com o padrinho Sebastião tinha muitos serviços de
mutirão. O padrinho Sebastião ia com as mulheres, colhia arroz, colhia feijão. As
mulheres e até as moças tudinho com ele se ajeitavam, colocavam chapeuzinho,
tudo bem arrumadinha, pegava a enxada e ia para o roçado.”598

Os sonhos, visões, imagens oníricas e visionárias de diferentes tipos, povoam o


imaginário do Daime e seu compêndio de histórias. A ideia de “um chamado” é também
recorrente. Este chamado, recebido ou ouvido, é capaz de mobilizar movimentos,
deslocamentos, buscas transformadoras. Foi por acreditar na miração, que parecia confirmar
essa espécie de chamado, que Maria Bento corajosamente embarcou no projeto de vida
comunitária na Amazônia. Vendeu seus bens, largou o cargo de professora e mudou-se para o
Acre com os cinco filhos.
Aos poucos, um ideal mais comunitário e coletivista foi sendo construído, segundo
Mortimer, por influência dos hippies e suas ideias de sociedade alternativa. Daniel teria
sugerido ao Valdete e Alfredo, filhos mais velhos de Sebastião: “De noite nós estamos na Igreja
cantando juntos, somos irmãos. No outro dia, somos vizinhos e nem sempre muito amigos,
principalmente quando o gado de um invade o roçado do outro”599. Mortimer narra que “mesmo
que nem tudo fosse perfeição, nós vivíamos um tempo muito promissor. A vida no sistema
comunitário dava a imagem de um comunismo na mais perfeita expressão. É muito vantajoso
ser guiado por um líder autêntico e verdadeiro.”600
Neste período, a Cinco Mil foi se organizando em setores: desde a década de 1960 o vô
Nel e outros assentados já cultivavam roçados de arroz, de feijão, de cana de açúcar e de

598
L.B.A., 2020.
599
MORTIMER, 2000, p. 133.
600
Ibid., p. 167.
189
macaxeira, base da alimentação para o sustento familiar. Consta que a partir do contato com
este jovens, a alimentação vai se diversificar, com a introdução das hortaliças. Perto da horta
ficava a casinha dos cabeludos, onde viviam os chilenos, onde ficavam hospedados outros
hippies e viajantes temporários. “Deste pessoal novo que chegava, se fossem ripes, seu destino
eram as chamadas casas dos cabeludos. Quando era um visitante mais delicado para passar
pouco tempo, normalmente se hospedava na minha casa ou na casa do casal Rodolfo e
Regina.”601
Viana relata diversos tópicos referentes à alimentação e neste, em especial, fala do difícil
início do trabalho comunitário a partir de 1978. Narra também que teve participação central no
início da produção das hortaliças para diversificar a alimentação na comunidade.

Fizemos a primeira sementeira, semeamos cenoura, alface, rabanete, tomate,


repolho, beterraba, cebolinha, cebola, pimentão, almeirão, chicória. Cercamos
a área para que o gado não invadisse. (...) O canto da horta tomava um colorido
especial. (...) A horta era símbolo marcante de nossa presença, não havia como
negar este fato.602

Ali se passou a colher couve, alface, cheiro verde, pepino e quiabo, diversificando a
alimentação à base de macaxeira. Narra com satisfação que a partir dos roçados coletivos e do
projeto da horta, “o progresso chegaria passo a passo em nossa comunidade e não teríamos mais
que passar tantas privações pela falta do que comer.”603

Como tínhamos plantado o primeiro roçado comunitário, éramos mantidos


com alimentos estocados pela família do Padrinho da colheita passada. Estas
provisões acabaram antes de iniciarmos a colheita do que plantamos. Foi então
que passamos a nos alimentar somente de macaxeira. Eram pedaços cozidos
de macaxeira com café pela manhã, no almoço macaxeira ao caldo com
farinha e na janta novamente sopa de macaxeira. Este foi o pior período da
alimentação. Mesmo com muita fome, era difícil comer com prazer. Um dia
estávamos limpando o arrozal, quando descobrimos a presença de um tatu.
Acho que foi o tatu mais perseguido da região. Foi um alvoroço danado, todo
mundo correndo atrás do tatu com os terçados, por fim ele foi encurralado
numa moita e capturado. No almoço, comemos macaxeira ao caldo de tatu. 604

Viana narra muito orgulhoso do tempo em que esteve trabalhando na horta, “uma beleza
sem igual, cada leira parecia abrir um sorriso para mim.”605 A horta enriquecia e diversificava
a alimentação que vinha dos roçados e, por vezes adoçava a difícil lida. Os jovens que vinham

601
MORTIMER, 2000, p. 198.
602
VIANA, 1997, p. 119.
603
Ibid., p.111.
604
Ibid., p.104
605
Ibid.
190
de fora aprendiam a trabalhar com a turma daqui. “A horta era linda, a delicadeza de cada
verdura deixava transparecer uma riqueza única, repleta de vitalidade” 606 A partir de 1978, o
fluxo de visitantes vai se intensificando. Mortimer, assim como Viana, narram que a
concretização do projeto da horta comunitária foi um grande feito e ambos reinvindicam a
autoria da novidade implementada. Mortimer diz:

Nessa preocupação em fazer o melhor por todos, constatamos a pobreza do


cardápio local, baseado no feijão com arroz, farinha e carne, peixe ou ovo
frito. Nada de verde, couve, cebolinha; tudo era cozido no feijão. Resolvemos
fazer uma horta. Ficamos muito entusiasmados com a idéia. Com o apoio de
Dom Sebastião, que indicou o lugar ideal, passamos os três a nos empenhar
nesta empreitada, limpando a terra e batalhando as sementes.607

A produção de outros gêneros alimentícios como frutas foi crescendo, nos campos
sempre limpos, criava-se um pequeno rebanho. Fróes e Mortimer, mais imbuídos de escrever
uma história oficial, narram que a horta, além de atender o consumo da comunidade, vendia o
excedente na cidade. Descrevem também as demais atividades desenvolvidas na Cinco Mil: o
artesanato, impulsionado pela chegada dos mochileiros, que plantaram muitas árvores
produtoras de sementes para artesanato. Havia também colheita de urucum, atividade que
envolvia as crianças, a farinhada, o engenho de cana que produzia rapadura, mel, açúcar e o
setor do gado que fornecia leite e queijo e era abatido e vendido quando necessário.
Na colônia da Jarbas Passarinho, para onde a família do seu Manoel Corrente se mudou
depois que saíram da Apolônio Sales, tornou-se um ponto de encontro dos cabeludos que
apreciavam a companhia do carinhosamente chamado Vô Corrente. Com a ajuda dos
estradeiros que acompanhavam o Daime na Cinco Mil, derrubaram parte das matas para fazer
plantios que garantissem a alimentação da comunidade que crescia a cada dia. Viana narra que
chegou a trabalhar lá nos roçados da Jarbas, com a “galera da pesada”, onde o serviço era
“incomparavelmente mais duro” que na horta, embora também não fosse fácil. Narra que em
1980, Chico Corrente e seu Gildo moravam lá e a turma do trabalho era Severino, Roberto
Paraná, Adriano, Dácio, Oscar, seu Manoel Paulo e seu João Baé “o chefe zangado, o eterno
cumpridor de ordens.”608 Mais adiante, a família Corrente vendeu suas colônias na Jarbas
Passarinho para adquirir terras anexas à Cinco Mil.

606
VIANA, 1997, p. 177.
607
MORTIMER, 2000, p. 125.
608
Ibid., p. 236.
191
Lourival descreve a organização do trabalho na Cinco Mil, a divisão em setores, o que
implicava uma certa diferenciação dos corpos: tinha os cabeludos que compunham a turma do
pesado, tinha os cabeludos do apoio administrativo, institucional, documental; tinha a divisão
por gênero, sendo que haviam as mulheres que acompanhavam Sebastião no roçado, geralmente
as mais jovens, outras tantas que cuidavam dos preparos na cozinha geral e lavanderia, as que
cuidavam da alfabetização das crianças. Os jovens também compunham uma turma. Mortimer
registrou esta organização: “João Baé comandava o grupo de trabalho dos novatos. Ele era
muito metódico e obediente ao comando do Padrinho. Eu preferia trabalhar na turma do Nel,
que incluía seu filho Antônio Jorge e João, filho da viúva Júlia.”609
Na divisão do trabalho comunitário por gênero, as mulheres se dedicavam à colheita, à
capina de pequenos roçados e, principalmente, todo o trabalho doméstico ligado a alimentação,
limpeza, cuidados com os filhos etc. Aos homens cabiam os serviços no roçado, de construção
de casas e também o trabalho de gestão e administração. Esta divisão rígida nos papéis de
mulheres e homens no Daime, que define, por exemplo, que o cuidado com os filhos seja feito
preferencialmente pela mãe, tem sido lida, em parte, como o lugar sagrado do feminino e, em
parte como herança patriarcal e machista. Múltiplas perspectivas ecoam neste campo.
Em outra passagem, Mortimer acrescenta: “Era admirável o grupo de trabalho dos
meninos. Eles estavam entre doze e quinze anos. O chefe da turma era o Roberval, filho do Nel,
tão jovem quanto os companheiros, mas cheio de responsabilidade e de dedicação. Eles
trabalhavam pesado”.610 Em 1970 ainda não existia o Estatuto da Criança e do Adolescente que
proíbe o trabalho infantil e há toda uma dimensão intercultural sobre mecanismos de
aprendizagem e transmissão de conhecimentos e saberes intergeracionais nas sociedades
tradicionais que precisam ser considerados. Isso porém, também não nos impede de olhar para
a privação destas crianças e adolescentes, que viveram e cresceram nas comunidades fundadas
neste seguimento do Daime, sem terem acesso a uma escolarização de qualidade, sobretudo
quando se deslocaram para a floresta. Onde as dificuldades, nos primeiros anos, foram ainda
maiores que na zona rural de Rio Branco.
Alfredo conta da luta que foi para conseguir se formar nos primeiros anos de escola,
para se ter acesso à educação formal, ao letramento, trafegando naquelas antigas estradas e
varadouros que iam da Colônia à Vila Rio Branco.

609
MORTIMER, 2000, p. 166.
610
Ibid., p. 171.
192
“Eu vinha da Cinco Mil no caminho de boi, na lama, por aqui todo dia para estudar
na Mário Lobão e estudava Catecismo na igreja e fiz a primeira comunhão com
direito a traje de padre. Eu sei que era uma luta mesmo, mais uma luta primitiva,
que a gente dá graças a Deus que a gente tinha muita força assim, porque todo dia
a gente fala, aquela distância de ir e voltar quase noite, a gente correria naqueles
caminhos ali, mas fiz a quarta série e pagando ainda fiz um particular da quinta
série, que ainda tinha na época. Até hoje tenho meu diploma. Na quarta série de
primeiro a gente recebia um diplomazinho, inda hoje eu tenho guardado lá com a
minha mãe, da quarta série primário. Mas os professores queriam me empurrar pros
estudos, que já tinha assim mais jeito.” 611

Alfredo comenta ter sido um menino estudioso, que completou o antigo primário com o
esforço típico dos alunos da área rural, que precisam andar horas para chegar à escola.
Interessante notar que esse narrador destaca aspectos da sua curta mas promissora vida escolar
e salienta que seus professores o incentivavam a estudar “porque enxergavam que eu já tinha
uma tendência de aprender muito, mas como a gente era muito da selva, fui me conformando
por ali”612. Aqui eu me recordo, mais uma vez, das analogias e comparações que adeptos do
Daime fazem entre Alfredo e sua vasta obra de lindos hinários recebidos e a sabedoria dos
Salmos bíblicos de Salomão.
O texto de Lourival fala da fartura que era a produção agrícola para garantir os itens
fundamentais para alimentação das famílias.

“Padrinho Nel, ele plantava muita macaxeira: quinze mil, trinta mil, quarenta,
cinquenta mil pés de macaxeira e cuidava do engenho de cana que tinha um
canavial, que você andava dias nesse canavial e não andava todo. No tempo do
padrinho era assim, os bananal você andava dias dentro do bananal, no laranjal você
andava que se perdia e as plantações de cana também. Tinha a turma do seu
Paulinho, que era do outro lado do Redenção. Tudo ali era Cinco Mil naquele
tempo, tempo de comunidade, o pessoal do outro lado do Redenção tudo tinha terra,
seu Chagas, seu Roberto Corrente, Paulinho, muita gente tinha terra e foi doada
para a comunidade para formar uma só, quando a gente ia trabalhar com a turma do
seu Paulinho, a gente até dormia lá, porque ficava muito tarde para ir e vir, a gente
passava até três dias lá.”613

José Teixeira também narrou:

Padrinho Sebastião, ele tinha um pessoal dele que trabalhava, mas papai levava o
rancho dele, todo final de semana. Peixe e carne. Mas lá tinha muita produção. Meu
amigo! Só eu aqui, o Zé Teixeira, todos os finais de ano eu arrastava 8 mil laranja.

611
A.G.M., 2019.
612
Ibid.
613
L.B.A., 2020.
193
Fora as outras coisas... banana, ovos... farinha, arroz... feijão. Tudo! Hoje não tem
nada cara, é até uma vergonha dizer isso, tem terra pra fazer.614

Almeida Ramos também descreveu a organização:

Todas as crianças trabalhavam na coleta de urucum para produção de coloral;


as mulheres também trabalhavam no setor agrícola, além do doméstico,
costura, artesanato e escola. A chegada dos artesãos (mochileiros) fez com que
o artesanato fosse incorporado à produção da Colônia, mesmo porque eles não
sabiam lidar com o trabalho mais pesado da colônia. Em pouco tempo, disse
ela, o artesanato apresentou resultados financeiros consideráveis para a
economia do lugar.615

A Cinco Mil continuava a receber visitantes de outras regiões do Brasil e de outros


países, diversificando ainda mais o perfil dos participantes e suas práticas. Viana narrou assim:

Para as matas, aquela rapaziada veio de diferentes partes do planeta,


atendendo a voz interior. Ali juntamos nossas forças e anseios, na busca de
um mundo melhor. Cada um com uma distinta problemática, mas todos
sedentos do desconhecido e de emoções fortes. Largamos famílias,
comodidades e medo, para podermos conhecer de perto os segredos da selva.
Encontramos aquela figura peculiar do Padrinho, que mesclava discursos
escatológicos com plantas de poder.616

Sebastião, pouco a pouco, ficou sendo reconhecido por sua receptividade aos que
chegavam na irmandade. Sua disposição para acolher, ensinar e também aprender com os que
chegavam, o levou inclusive a incorporar novos elementos aos rituais e ao cotidiano da
comunidade, fundando uma espécie de contra-cultura do Daime – foi lido como um rebelde,
desertor, usurpador da doutrina do mestre Irineu, por aqueles que, sobretudo no contexto de Rio
Branco, não admitiam estes novos arranjos – sendo essa uma conhecida e antiga rixa. Labate
destaca que durante um tempo, o Alto Santo atribuía ao Cefluris sentidos como “desvio do
original”, “perversão” e portanto associados a um uso não legítimo da Ayahuasca617. É uma
fase lida por Assis, em sua genealogia do Santo Daime, como experimentalista, de “abertura
para o diálogo com outras matrizes culturais e religiosas.”618

614
J.T.S., 2021.
615
ALMEIDA RAMOS, 2002, p. 73.
616
VIANA, 1997, p. 222
617
LABATE, 2004, p. 258.
618
ASSIS, 2017, p. 15.
194
Como narrado por Alfredo, aconteceu que a Colônia Cinco Mil “foi aumentando, se
destornando e foi ampliando também.”619 Outras pessoas vieram a comprar outros lotes
naquelas redondezas e muitos deles foram se juntando a Sebastião Mota, que já se destacava
como uma liderança religiosa na localidade. Fróes aponta que “a convivência com fortes laços
de solidariedade e união”620 como sendo um diferencial do grupo da Colônia Cinco Mil em
relação aos “outros centros espirituais e grupos sociais do meio rural acreano.”621 Acrescenta
que, para o grupo, “a relação com a terra tem um sentido sagrado, uma vez que é a mãe-natureza
que fornece a matéria-prima da bebida: o cipó jagube e a folha rainha.622
De Rio Branco apareciam famílias que pouco a pouco foram se somando àquele
movimento. Algumas delas moravam na cidade, onde trabalhavam e vinham para a Colônia nos
dias de sessões. Alguns chegavam e se integravam à vida comunitária, ocasião em que se
faziam mutirões para construção de casas, como narrado por Alfredo. Mortimer cita Manoel
Paulo, Lorival, Luís Campeio, Raimunda Lopes, Manoel Moraes, Rodolfo, Viegas, Omar, com
suas respectivas famílias, como companheiros que foram chegando. Alfredo narrou:

“E fomos agregando mais gente e começou a chegar a gente de fora, chegaram um


e outro, chegaram os chilenos, os argentinos, os peruanos e ele foi recebendo o povo
e dando Daime e mostrando. Chegou o pessoal do Sul e um e outro que foram
começando a expansão, mas isso já bem mais para cá. Eu já tava começando a
administrar, ajudar ele, administrar os feitios, a vila, fui fazendo as vilas, eu aprendi
a carpintaria , então ia ajudar cada pessoa que não tinha casa que chegava lá, era
tipo assim pobre, a gente passava pelos serrador, tinha muito serrador na época por
aqui né e ia fazendo as casas das pessoas, como fizemos várias casas, fomos
colocando o povo e administrava esse povo sempre na união, no mutirão, aí não nos
faltava nada né, a gente tinha muito arroz e muita farinha, feijão, começava a
desenvolver uma agricultura familiar mas com muita união, muita gente. Meu pai
era muito trabalhador, na época ninguém ouvia nem falar em motosserra, era tudo
na base machado, na faca, tinha os mutirões dos roçadeiros tanto pra brocar quanto
pra derribar, se juntava quatro cinco homens para fazer a derribada, sei que era uns
homens muito forte, muito trabalhador.” 623

No relato de Mortimer os cabeludos, estradeiros buscadores, os hippies, junto com o


“pessoal da caneta”, foram os responsáveis por uma revolução na vida local no contexto desta
colheita de irmãos. Raimundo Nonato comentou:

619
A.G.M, 2019.
620
FRÓES, 1986, p. 63.
621
Ibid.
622
Ibid.
623
A.G.M., 2019.
195
“Em1975, aí chegou os meninos, né? A passagem do padrinho Sebastião na Cinco
Mil foi aquela passagem de um pastor, que abraçava como abraça a todos os seus
filhos, afilhados, amigos e companheiros, colocava uma enxada no ombro ia para
roça para capinar, não ficava parado não, ele fazia como eu faço aqui sempre,
sempre tá na luta junto com os companheiros. Agora quando chegava na hora do
trabalho, se nós não tivéssemos preparados, nós podia se aprontar porque nós ia
passar um acocho, porque ele nunca brincou em serviço, nunca. Ele dava Santo
Daime, sentava-se lá no canto dele, muitas vezes quando um irmão tava em apuro,
ele só fazia olhar, como quem dizia assim: ‘eu sei o que que eu faço, eu não sei o
que você fez’. E aí ele foi passando as mesmas lições para todos.”624

Para ficar na Colônia, precisava se dispor ao trabalho: “Tinha tempo para tudo. Ninguém
era obrigado a nada, porém, tomar Daime nos dias de rituais e trabalhar pelo sustento nos
mutirões comunitários era da justiça coletiva. Quem não gostava desta vida durava pouco.”625
Nem todos os hippies e estradeiros aderiam à caminhada espiritual, marcada por certa rigidez e
disciplina. Muitas pessoas passavam pela Colônia Cinco Mil, ficavam um tempo e seguiam
viagem. Mas de alguma forma a Cinco Mil ia ganhando fama dentro e fora das fronteiras
acreanas, como destacou Mortimer. Viana comenta que muitos

não puderam resistir à imensa soma de visões e ao cotidiano da gente do


campo: a luta debaixo do sol que queima e faz suar no dia-a-dia. Estradeiros
da Alemanha, da Polônia, da Dinamarca, dos Estados Unidos, da França, por
passaram procurando alguma coisa nova e se não ficaram, testemunharam que
o Brasil é feito de muita imaginação e tão vasto que qualquer coisa se pode
encontrar dentro de seu território.626

Outros ficavam em definitivo na comunidade, alguns acompanharam Sebastião até o


Céu do Mapiá. Fróes destaca oito pessoas, que teriam ganhado “a consideração de ‘irmão’”: o
argentino Daniel, os italianos Adriano e Marina e os chilenos Dario, Verônica, Raul, Cristiano
e Xavier. A essa lista de novatos que iam chegando continuamente à Cinco Mil, Mortimer
acrescenta Tiziana, italiana que até hoje segue o Santo Daime e é dirigente de um centro em
seu país, Gil da França, Roberto do Paraná e Severino da Paraíba. Todos compunham o “povo
do Padrinho Sebastião” que “não parava de crescer.”627 Fróes descreve que no final da década
de 1970 viviam na Colônia Cinco Mil cerca de 300 pessoas.628

624
R.N.T.S., 2019.
625
MORTIMER, p. 168.
626
VIANA, 1997, p. 222
627
MORTIMER, p. 166.
628
FRÓES, 1986, p. 17.
196
Goulart também descreve o que seria um “outro segmento do ‘povo do sul’”, diferente
dos “hippies e mochileiros que passaram a integrar o Cefluris”629. Era o grupo dos
“intelectuais”, que contribuíram na tessitura dos primeiros relatórios favoráveis à prática
daimista. Vera Fróes como historiadora, Fernando La Roque Couto como antropólogo e Paulo
Roberto como psicólogo são exemplos deste grupo e acompanharam a comissão do Conad que
estudava as comunidades daimistas, tendo inclusive visitado o Rio do Ouro em 1982.
A casa onde morava o padrinho Sebastião e sua família era o coração da comunidade
no dia-a-dia, onde aconteciam as refeições comunitárias, todos juntos numa grande mesa
dividindo o alimento, que em boa parte era produzido ali mesmo. “Nunca se cobrou um centavo
por um prato de comida na Cozinha Geral ou um abrigo em nossas casas. Também, há de se
considerar que a grande maioria de nossos visitantes, quando não era um estradeiro mais pobre
do que nós, era um estudante com o dinheiro contado.”630
O nome Colônia Cinco Mil rodava as estradas e cada um fazia a sua narrativa acerca de
um lugar no Acre que consagrava Ayahuasca e Santa Maria e tinha um projeto de vida e
produção comunitária, estudo com as plantas professoras e ritualização da vida, festejando os
santos, a natureza e seus ciclos, o sagrado que está em tudo, no sol, na lua, nas estrelas, na terra,
no vento e no mar. E é desta mesma forma que até hoje chegam na comunidade hippies e
estradeiros, que, às vezes nem conhecem o Daime, mas ouvem falar da comunidade e aparecem
aqui, interessados em conhecer, e participar dos trabalhos.

629
GOULART, 2004, p. 102.
630
MORTIMER, 2000, p. 199.
197
2.3 A Santa Maria e a Cinco Mil na rota dos andarilhos

“Disse o nosso Mestre: Todo aquele que se


segurar nos raminhos verdes, segure mesmo!”

Padrinho Sebastião

Eu conheci a Cannabis como maconha, fumar um beck, skunk quando era uma erva de
melhor qualidade. A primeira vez assim, de sentir o cheiro, sentir e pegar foi quando eu tinha
13 anos e acampei em uma cachoeira com meu pai, meu irmão e toda uma galera. Na época eu
ainda frequentava a igreja presbiteriana e, por mais que estivesse crescendo e amando dar
aqueles rolês com meu pai, ainda estava condicionada a vê-lo como “um drogado”, “dependente
químico” com altas doses de julgamento moralista. Passaram três anos e eu já estava pegando
lascas e lascas escondida dele, para “salvar” os amigos – salvar era a expressão que a gente
usava quando queria que alguém apresentasse um baseado:- salva aê! Djamba, Fumo, Verdinho,
Cabrobó, Prensado, Maria Juana. Minha mãe diz que eu me chamaria Joana, se não fosse Julia.
Muitos são os nomes e os usos desta famosa plantinha: recreativo, sagrado, mágico-
ritual, medicinal. Usada há milênios na Índia e na Pérsia, teria chegado na África pelo Egito
por volta do século X.631 Nas Américas, chegou no tempo de sua fundação como continente
invadido e colonizado, sendo parte dos repertórios de saberes trazidos pelo africanos aqui
territorializados através das diásporas negras em terras brasileiras. Até sua chegada ao século
XX como Erva do Diabo, Coisa de maloqueiro, Cigarrinho de Artista, como “droga ilícita”,
essa plantinha percorreu diferentes espaços e tempos e diversas normas, ordenamentos
discursivos e práticas sociais perpassaram seu uso. Para Macrae632 este rótulo de “droga ilícita”
é parte dos esforços legislativos que, mais recentemente, vem enumerando as substâncias
proscritas, “atribuindo-lhes uma natureza demoníaca, não muito diversa daquela com que se
via a farmacopeia pagã na Idade Média.”633
O processo de ressignificação da Cannabis no contexto do Daime na Colônia Cinco Mil
nos encaminha novamente ao ato de nomear como meio de instituir, fazer existir, criar uma
realidade, um processo de subjetivação onde enunciações modificam sentidos instituídos para
atender demandas individuais ou coletivas. A tradição oral conta que mestre Irineu conheceu a

631
SAAD, L. A maconha nos cultos afro-brasileiros. In: MACRAE, E., ALVES W. C. (Org.). Fumo de
Angola: canabis, racismo, resistência cultural e espiritualidade. Salvador: EDUFBA, 2016, p. 391.
632
Ibid, 2016.
633
MACRAE, E.; ALVES W. C. (Org.). Fumo de Angola: canabis, racismo, resistência cultural e
espiritualidade. Salvador: EDUFBA, 2016, p.445.
198
bebida Oaska com feiticeiros vegetalistas e, ao invés de fantasmas e maus espíritos, viu cruzes
e luzes de Nossa Senhora e assim renomeou a bebida de Daime, instituindo uma série de
princípios e simbolismos que a difere da Ayahuasca dos indígenas. Semelhante processo de
subjetivação foi feito por Sebastião quando, ao conhecer o galho verde apresentado pelos
estradeiros, reconheceu o poder da planta e a renomeou de Santa Maria, para diferir-se da erva
como é usada “no mundo”, fora do contexto sacralizado, instituindo um novo mito e um novo
rito no Daime que até hoje é motivo de grande controvérsia.634
Foi na horta que se deu o cultivo da Cannabis na comunidade da Cinco Mil. A erva, no
início, era usada de forma escondida pois era um segredo dos cabeludos que já apreciavam seu
uso antes de chegarem ao Daime. Conta-se que, aos finais de semana, a Cinco Mil era
frequentada por jovens de Rio Branco também ligados ao espírito da contracultura que, de vez
em quando, levavam uns fumos e logo fizeram amizade com os cabeludos que chegavam de
fora. “Eram pessoas bem resolvidas financeiramente. Um deles, arquiteto influente na cidade,
trazia a turma na sua caminhonete.”635 Mortimer conta que “isto era um acontecimento dos fins
de semana. O dia a dia era na ‘cara limpa’”636. Numa dessas ocasiões, recolheram algumas
sementes boas da erva e se puseram a plantar. Colocaram as primeiras sementes no meio das
outras verduras e aguardaram a colheita.
Cabo Moraes, natural do Rio Grande do Norte, um antigo fardado ainda do tempo do
Alto Santo, era um dos que frequentavam a Cinco Mil nos finais de semana e, nessas ocasiões,
fazia uso reservado da erva de muitos nomes. Numa desas ocasiões, em um sábado, dia de
concentração, conta Mortimer: “O Cabo Moraes foi ao trabalho. Pouco antes de começar, fiquei
sabendo de suas características especiais e, fui convidado a participar de uma rodada de pito.
Em seguida fui tomar o Santo Daime. A miração pegou mais forte que o de costume.”637
Nesse dia, com certa crise de consciência por estar ocultando o cultivo e uso da planta
do líder da comunidade, Lúcio pegou uma peia, expressão usada pelos daimistas para se referir
a um desconforto físico e/ou moral quando se ingere a bebida (a bad trip, como chamam os
psiconautas). “Uma voz poderosa soava dentro de minha cabeça, fazendo-me grandes
acusações por estar mantendo aquele segredo. Ordenava que eu declarasse toda a verdade sobre
o uso da maconha e das plantinhas que estavam trepadas lá no salão como se fossem

634
Parte deste capítulo é constituído com trechos do verbete “Santa Maria” publicado em Moura, Uwakuru vol.
7, 2023.
635
MORTIMER, 2000, p. 125.
636
Ibid., p. 124.
637
Ibid., p. 126.
199
verduras.”638 Depois de dar um certo trabalho para os fiscais, Mortimer conseguiu retornar para
o salão para encerrar a sessão.
Segundo a narrativa fundadora, quase mítica, Sebastião certa vez tivera um sonho em
que um cavaleiro lhe dizia que ele receberia uma outra linha e que neste mesmo sonho um
homem todo vestido de branco lhe entregou um galho de uma planta dizendo-lhe que era para
curar. Quando Mortimer foi confessar-se e explicar todo o acontecido a Sebastião, “Fez-se um
pequeno silêncio ao fim do relato. Dom Sebastião olhava curioso as plantinhas”639. Ele então
narrou que, acreditando que aquela planta poderia ser a mesma anunciada em seus sonhos “Dom
Sebastião aceitou o convite de pitar, para logo conhecer o mistério desta erva. Ele gostou
muito.”640 Mortimer relata que Daniel chamava o padrinho de Don Sebastian641, certamente
influenciado pelas ideias do já citado Carlos Castañeda, antropólogo latino-americano, autor de
premiados livros de relatos sobre o universo das plantas de poder.
Consta que a comunidade passou a cultivar a plantinha tão especial, cuidadosamente
estudada por Sebastião e que aos poucos, com muita discrição, foi sendo apresentada para
outros membros da sua família e da irmandade. Com o tempo, Sebastião foi estipulando normas
de uso e cultivo para a consagração da Santa Maria. Considerava-se a lua certa para plantar e
colher (respectivamente luas novas e cheias) e dietas de uso, como aquelas estipuladas para o
Daime, as interdições sexuais de “três dias antes, três dias depois”. Entre outros detalhes
ritualísticos, recomendava-se o silêncio no ambiente durante a consagração, um vocabulário
um jeito específico de pegar e passar o pito. Existe também uma oração específica para os
momentos de uso e um hinário próprio para a consagração, uma coletânea de hinos diversos,
denominado Hinário da Santa Maria. Sobre o assunto, Alfredo narrou inicialmente:

“Não é negócio, este negócio de maconha em roda, a gente até usava nos mutirões,
para dar força de união e progresso no trabalho, que foi o que ela ensinou para gente,
espiritualmente. No que até aí, a gente fazia trabalho espiritual com ela, mas não
existia, como se fala, não existia esta falta de respeito, pitando toda hora e aquela
confusão, eram umas plantas consagradas, feito no jardim sagrado, rezado, tal...”642

Macrae destaca que “a vigência de uma política oficial proibicionista em relação à


canabis introduz algumas dificuldades no controle ritual de seu uso, especialmente em relação

638
MORTIMER, 2000, p. 126.
639
Ibid., p.128.
640
Ibid.
641
Ibid.p. 101.
642
A.G.M., 2019.
200
ao acesso à substância.”643 Com os impedimentos para se fazer o uso ritualístico da Santa Maria,
como prescrito por Sebastião, é “comum aos seguidores dessa linha daimista específica, pitar
antes e depois das cerimônias”644, nos intervalos dos trabalhos, também sendo frequente seu
uso cotidiano.
Assis destacou que a questão da Cannabis foi um divisor de águas que trouxe vários
desdobramentos pois, com a ritualização da Santa Maria, um outro psicoativo passava a ser
sacralizado no contexto das práticas do Daime, o que acirrou os conflitos internos pois “os
adeptos do Alto Santo não aceitaram a inserção da Santa Maria, considerada uma ‘droga’ e uma
deturpação ritual grave.”645 Para o grupo de Sebastião no Cefluris passou-se a construir a ideia
de complementaridade entre o Daime e a Santa Maria. “Padrinho Sebastião dizia que Ela (a
Santa) é a colhedora e Jesus Cristo (o Daime), o Salvador. Isto porque as pessoas que tinham o
uso desta planta mais facilmente encontravam a bebida sagrada.”646
É neste contexto que vai se forjando a narrativa controversa de que Daime é uma coisa
e Santo Daime é outra. Nas palavras de dona Peregrina: “Nós tomamos Daime. Apenas Daime.
Daime do Mestre Raimundo Irineu Serra. Daime foi o nome com o qual o Mestre Raimundo
Irineu Serra batizou a ayahuasca, que outros posteriormente apelidaram de santo Daime.”647
Porém a expressão Santo Daime aparece em hinos anteriores ao Cefluris, bem como aparece
grafado no Estatuto do Ciclu de 1971.648
Embora a Ayahuasca já tenha em si mesma o princípio feminino, representado pela folha
Rainha e masculino representado pelo cipó Jagube, no contexto de inserção da Santa Maria no
imaginário social, associou-se a planta à figura da mãe consoladora, sintetizando na bebida, a
figura de um pai ensinador e disciplinador. “Em nosso estudo já se tinha compreendido que
aquela planta era feminina, pois nossa cultura urbana, cheia de informações, levava o Padrinho
a viajar nos princípios Yin-Yang, o masculino e feminino na concepção chinesa.”649
Ao se perguntar “Que subjetividades outras a cosmovisão daimista produz ao se aliar às
plantas, ao devir-planta?”, Rocha650 destaca que, no Daime, busca-se um processo de conexão
e intuição com a inteligência existencial dos enteógenos – lidos como professores, curadores,

643
MACRAE e ALVES, 2016, p.466.
644
Ibid., p.465.
645
ASSIS, 2017, p. 110.
646
MORTIMER, 2000, p.176.
647
SERRA, P.G., 2006.
648
Estatuto do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (CICLU)-Alto Santo, 1971.
649
MORTIMER, 2000, p. 137.
650
ROCHA, 2021.
201
seres divinos, do astral – o Santo Daime e a Santa Maria - que podem trazer uma “cura”, ou um
afecto, uma percepção e entendimento.
É factível dizer que Sebastião sabia que a erva era ilegal nos termos da lei, pois os
próprios hippies que apresentaram a plantinha e seu uso, o fizeram em meio a um sentimento
de culpa e sigilo. Porém, como um homem da mata, certamente Sebastião reconheceu o bem e
o potencial daquela planta, tão mal utilizada pelo “mundo de ilusão”. Marinês Morais também
contou-nos sobre como conheceu a Santa Maria no contexto da comunidade:

“A Santa Maria eu conheci aqui com o padrinho Sebastião, com a idade dela ai
(apontou para uma jovem de aproximadamente 14 anos). É tanto que nós sempre
fumava, fumava, né? É tanto que, o padrinho Sebastião começou a plantar, ainda
era pequeno, um talinho. Tinha um pezinho sozinho, ele dividia com as famílias.
Chegava no sábado, ai dava aquele mata a boquinha, com um socadinho pra cada
família e seu pouquinho. Me lembra uma vez, eu ainda peguei um pouquinho da
minha mãe. Era assim, nós pegava folhinha, misturava com pouquinho… Menina
eu ria… mas eu ria muito, sabe? Fumava ali, tinha pegado e bebido Mas, com eles
também. Tudo começando. Padrinho: “Ah, eu vou fumar ali.” O que? Pra trabalhar,
eu fumava direto com o padrinho. Era uma maravilha! Nossa, fumava em casa e
tudo rindo… kakakaka… Qualquer besteirinha a gente ria. A gente era feliz e não
sabia.”651

A Santa Maria na comunidade de Sebastião, idealmente, era aquela plantada e colhida


nos jardins sagrados que passaram a ser zelados por pessoas específicas designadas para este
fim e seguindo toda uma ritualística. Carvalho detalha que eram “cultivados em formato de
estrela de Davi em uma área reservada da comunidade.”652 Átila Rufino, uma antiga moradora
da comunidade da Cinco Mil narrou: “O padrinho aproveitava o pé todinho. Das raízes se fazia
remédio para tosse, abrir os pulmões... as folhas ele fazia chá, as sementes torrava, a gente
comia com arroz, como, tipo gergelim. Usava tanto a planta fêmea quanto a planta macho.”653
Os relatos de Viana654 dão a entender que o uso da Santa Maria era algo feito com certa
discrição nesse período na Cinco Mil, um segredo dos iniciados, que era compartilhado com
muito cuidado com aqueles que iam chegando aos poucos. Ele e Dácio, seu companheiro de
viagem, teriam ouvido falar da Santa Maria ainda perto da rodoviária de Rio Branco, quando,
segundo sua narrativa, encontraram com uma rapaziada e um deles teriam perguntado à dupla:

651
M.M., 2019.
652
CARVALHO, R.M. A consagração da Santa Maria do Padrinho Sebastião na Colônia Cinco Mil (1975 -
1982). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, Rio Branco:
UFAC, 2019, p. 105.
653
A.M.F.R., Narrativa de Átila Maria Farias Rufino ouvida em 2021.
654
VIANA, 1997.
202
“- Vieram para a colônia Cinco Mil? A comunidade do Santo Daime e da Santa Maria?”655
Túlio respondeu que estavam à procura da Ayahuasca, do Daime e perguntou o que era a Santa
Maria, no que escuta como resposta: “- O nome sagrado da marijuana lá. Moram uns malucos
que trabalham com o Padrinho, o chefe do pedaço. Santa Maria é um segredo, só depois de
muito tempo é que revelam.”656
E foi nesse clima de confraria que Viana, depois de um dia de fortes emoções, foi
agraciado. Ele narrou que os chilenos Xavier e Cristiano levaram “um cigarrillo de Santa
Maria”, apresentando-a como “um segredo nosso” e “um regalito”, visto que já corria a notícia,
em toda a vila, que os dois jovens haviam passado um apuro naquele dia, depois de terem
tomado cogumelo e viajado muito. “Quanto tempo fazia que não fumava marijuana! Neste
gesto, via uma atitude de aproximação e solidariedade. Fizemos a roda e o cachimbo da paz foi
passando de mão em mão. Insistiram para que não comentássemos com ninguém.”657
Alfredo faz referência em um dos hinos a este que seria um segredo, como quem
alertasse para o cuidado necessário e recomendasse um uso discreto. “Para ser filho Seu, Seguir
nesta linha e ter o conforto, Que nos traz a Rainha (...) Se deve cuidar Enquanto é cedo Seguir
a Doutrina E guardar seu segredo.”658 Lourival narrou sobre como conheceu a Santa Maria no
contexto da Colônia Cinco Mil, seu uso sacralizado e ritualizado, seus muitos nomes:

“Quando a gente veio de Campo Grande não conhecíamos a Santa Maria, essa
história da maconha. Então, quando chegamos na Cinco Mil, na casa da Madrinha
Regina, ainda era segredo, nem todos pitavam. Eu comecei a pitar Santa Maria no
dia que o padrinho Sebastião foi lá no Rodolfo e na Madrinha Regina, dentro de um
quartinho. O Rodolfo, esposo da Madrinha Regina, tinha uns pergaminhos
legítimos com o hinário do Cruzeiro, todos escritos à mão. Esses pergaminhos eram
desenhados nas laterais de cada hino, eram coloridos, a coisa mais linda! Sei que o
Padrinho ia lá dar uma olhada e nós pitamos a primeira vez. Sempre acontecia de
nós irmos trabalhar e pitava Santa Maria, cada pitada era do jeito que ele gostava,
era dar aquelas três pitadinhas, passa, segura a fumaça e quanto menos fumaça
soltar é melhor, porque é a Santa Maria e tem vários jeitos que a gente aprendeu...
E aí, fomos pro Rio do Ouro, teve comitivas que foram no Rio do Ouro e a gente
teve capacidade de ver o padrinho Sebastião, ele não escondia não. Tinha seu pito
ali enroladinho, ele tirava, pitava, quando acabava o pito ele acendia outro e falava
palavras lindas sobre a Santa Maria. Aí passou... Passou os anos de Santa Maria e
aí que a gente foi saber que tinha outros nomes. A gente não podia acreditar que
tinha o nome de maconha, que esse era o nome que dava à Santa Maria. O que a
gente usa é a Santa Maria, do jeito que o padrinho ensinou, nós trabalhando.”659

655
VIANA, 1997, p. 34.
656
Ibid., 1997.
657
Ibid., p. 54.
658
Melo, A. G., “Me lembrei de mamãe”, Hinário Cruzeirinho, n. 22.
659
L.B.A., 2020.
203
O nome Santa Maria pode ser lido como um processo de ressemantização, como chamou
Assis660. O nome maconha para os daimistas fazia alusão ao uso profano da planta e foi
substituído pelo nome Santa Maria, designando-lhe um caráter sagrado e divino. Com o tempo,
outros termos vão compor o novo glossário, ou como definiu Groisman661, “o grupo criou um
idioma especial para tratar a Santa Maria e passou a promover seu uso respeitoso, rodeado por
interdições e cuidados especiais””.662 Assis também descreveu: “‘Fumar’ se tornou ‘pitar’,
‘baseado’, que se refere ao cigarro feito de Cannabis, se tornou “pito”, a “seda”, termo utilizado
no meio hippie para designar o papel de enrolar o fumo, virou “papelim” e assim por diante.”663
O ato de renomear a planta como estratégia de ressignifica-la, leva-nos à recorrente
análise da relação entre as coisas e as palavras que as nomeiam. O ato de nomear é criador de
uma realidade específica, pelo nome carregar mais que palavras, sentidos. No Acre, mesmo no
circuito do Daime ligado ao padrinho Sebastião, seja em Rio Branco, ou nos centros do Alto
Acre e Juruá que já andei, vigora uma perspectiva de que não é toda maconha que é Santa
Maria, assim como não é toda Ayahuasca que é Daime.
Raimundo Nonato conta sobre as forças que se apresentavam nos trabalhos de Daime
com a Santa Maria que eram feitos nesta época na Colônia Cinco Mil:

“Aí eu vim aqui na colônia, padrinho disse: ‘oh Nonato, eu ouvi falar que você só
vive doente, vou fazer um trabalho aí para ti’. Ele foi abrir um trabalho para mim,
aí me deu um copo cheio de daime e depois foi a consagração. Aí ele olhou, tava
com meia hora mais ou menos, aí ele olhou assim e disse: ‘a história quando vier
aqui pro Nonato, não vai vir muito fácil não, porque ele tomou dois copos de Daime
e participou da Santa Maria.’ Aí passou, passou aí daí a pouco começou vim a força,
uma força, uma força, aí eu olhei para um lado, olhei para o outro, aí eu olhei bem
pro cantinho assim da porta, assim da casa. Aí eu olhei para lá ‘que que eu vou fazer
aqui agora? Com tanta força’ parecia que ia estourar tudo, sabe? Aí daí a pouco
uma pessoa, não! Eu achava eu que ia gritar, aí daí a pouco uma pessoa bateu umas
três vezes a cabeça na mesa. Aí daí a pouco o padrinho Sebastião levantou e foi lá
onde eu tava... antes disso ele pegou uma cadeira dessas confortável e disse: ‘meu
filho sente aqui’, aí pegou no meu braço e eu digo: ‘não padrinho aqui tá bom’. Aí
ele disse: ‘não meu filho levante sente aqui nessa outra’. Aí ele foi, fez força e eu
não quis fazer força, né? Aí me levantei, ele tirou a cadeira, só deu tempo de colocar
outra, quando eu me sentei, aí a miração desceu e aí... lá vai a carne caindo dos
ossos, lá vai, lá vai. Aí daí a pouco a força foi tão grande que eu olhei assim e disse:’
O meu pai, oh meu Deus não é possível. Será que eu vou aguentar?’ Aí passou, daí
a pouco eu comecei a chorar, chorar, chorar as lágrimas caía e eu me lembro do dia
660
ASSIS, 2017.
661
GROISMAN, 1999, p. 102
662
Ibid., 1999.
663
ASSIS, 2017, p. 108.
204
que a madrinha Rita enxugou meu rosto. Aí as minhas lágrimas caíam, as lágrimas
tudo era prata, tudo era prata. Aí eu peguei olhei para o Padrinho Sebastião e quando
eu olhei para ele, já estava olhando para mim. Aí, saiu assim, um raio de luz para
dentro dos meus olhos. Aí nesse momento eu fiquei olhando para ele, olhando para
mim, eu não neguei e ele não negou, ficamos olhando, olho no olho. Aí daqui a
pouco, uma hora, era ouro, outra hora era prata e eu fui ficando alegre, vendo aquela
maravilha todinha de novo. Aí prata, ouro, depois prata, ouro, aí foi que me deu
vontade de me levantar e ir lá abraçar, beijar, cheirar e eu me contive no meu lugar.
Isso foi num trabalho que ele fez para mim.”664

Raimundo Nonato já narrou diversas vezes sobre como estes trabalhos do Daime com a
Santa Maria eram fortes. Sessões de farda azul, geralmente de cura. Diz-se que, às vezes, se
distribuía um pito para cada 3 pessoas e tinha uma hora específica para a consagração da Santa
Maria, o que acontecia depois de algum tempo de ter consagrado o Daime, quando todos já
estavam na força, que é um dos conceitos utilizados para se referir ao estado provocado pela
bebida.
Em relação à Santa Maria, Mortimer ressalta a ritualística: “Tinha ordem na Colônia:
usar os pitos só nas horas certas, nos trabalhos. Tudo é feito em forma de oração para não
acontecerem acidentes e todos contarem com uma proteção extra.”665 Mas o que se sabe é que
essa proteção e segredo, bem como toda essa ritualização não perduraram.
A primeira visita da Polícia Federal aconteceu entre 1978 e 1981 e no momento houve
grande preocupação com a possibilidade de eles encontrarem os jardins sagrados, mas naquela
ocasião, estavam à procura de estrangeiros que estariam ilegais no país. Mortimer precisa que
foi no dia 22 de setembro do ano de 1980 ou 81, quando boa parte dos estrangeiros já estavam
no Rio do Ouro, seguindo o padrinho na abertura do seringal.

Realmente, nestes últimos cinco anos, haviam chegado alguns estrangeiros


que se incorporaram à população. Eram italianos, argentinos, chilenos e um
espanhol, que possivelmente teriam alguns problemas de imigração. Naquele
momento a Colônia estava vazia. Ninguém ilegal por ali, pois os
problemáticos estavam no Seringal Rio do Ouro.666

A visita é narrada numa outra versão por Viana em que destaca que o episódio afetou
sim muita gente e dá a entender que foi antes da partida para o Rio do Ouro, pois o Sebastião
ainda estava na Colônia e foi ele mesmo quem recebeu os federais.

664
R.N.T.S., 2019.
665
MORTIMER, 2000, p. 168.
666
Ibid., p. 206.
205
Tomei o maior susto, quando numa pacata manhã, encontro aquele bando de
homens armados com metralhadoras que estavam chegando. Pensei: É o fim
do sonho e começo do pesadelo. Assim que me viram gritaram: -Você aí, vem
aqui. Não podia acreditar, eles chegaram. Perguntei: - O que está
acontecendo? – É a polícia federal. Você é estrangeiro?667

Daí Viana conta que eles queriam conversar com o responsável pelo lugar, que nessa
hora ele foi chamar o Sebastião enquanto a madrinha Rita recebia os incômodos visitantes.

Padrinho vinha pelo caminho ofegante e morrendo de raiva. Ao chegarmos no


pátio do templo, lá estavam eles sentados nos bancos, armados até os dentes.
Padrinho disse: - Nossa! Quantas armas vocês trouxeram. Eu aqui não tenho
uma bala...668

Viana conta que os policiais explicaram que era uma missão de rotina pois ficaram
sabendo que havia estrangeiros ali e era necessário averiguar e legalizar a situação de todos.
Quanto às armas de grande calibre explicaram que, como haviam atolado o carro, não podiam
deixá-las lá. Sebastião respondeu que se o problema era este, que não se preocupassem, pois
ele iria mandar todos os estrangeiros que estavam naquele momento trabalhando pela colônia
se apresentarem à polícia federal e convidou os policiais para um café. Preocupados em
desatolar o carro, os federais seguiram viagem. “Percebia-se que eles não se sentiam à vontade
com aquelas metralhadoras em meio à nossa gente simples e trabalhadora. Acabou outra vez
sobrando para mim e outros companheiros, que fomos desatolar o carro deles.”669
Ao contrário do que narrou Mortimer, Viana salienta que Sebastião estava presente,
ficou incomodado e que

para os estrangeiros, foi uma visita inconveniente. Muitos tiveram que se


apresentar e viajar para a Bolívia, para tornar a voltar e conseguir um novo
visto. Na verdade, não legalizaram a situação de nenhum deles, apenas
ensinaram como podiam se legalizar e permanecer na colônia e a maneira mais
fácil era casando com uma brasileira e ter filhos no Brasil.670

Mortimer salienta que mesmo depois da primeira visita da Polícia Federal em busca dos
estrangeiros ilegais, que a todos assustou, “as plantas não foram arrancadas. O jardim estava
muito bem situado em local fora da visão dos caminhos.”671 Como já fora citado, havia uma
grande expectativa desde anos antes, de que a polícia chegaria na Cinco Mil, por conta das

667
VIANA, 1997, p. 117.
668
Ibid., p.118.
669
Ibid., p. 119.
670
Ibid., p. 119.
671
MORTIMER, 2000, p. 206.
206
investigações acerca do Daime, como naquele episódio de esconder Daime na sede do Ciclu.
Acredita-se que devido ao fato de que a estrada que dá acesso à Cinco Mil ser naquela época –
e até muito recentemente - mais precária que a do Alto Santo, isso tenha adiado a chegada da
polícia.
À partir de 1981, a Cinco Mil passou por uma “temporada na ausência da Família do
Padrinho. Estão todos no Rio do Ouro, mas a Igreja continua ativa na sua missão de receber as
pessoas.”672 E foi um destes visitantes que acabou entregando e existência dos jardins de Santa
Maria da Cinco Mil, o que resultou numa segunda visita da Polícia Federal na comunidade,
com desdobramentos mais impactantes. Mortimer comenta que as coisas teriam acontecido por
descumprimento das ordens do padrinho, que a tudo antevia, intuía, alertava. Segundo ele,
depois do episódio, “ficava ainda mais claro entender porque ele tinha levado seu povo para um
lugar de acesso tão difícil, lá no meio da floresta, bem longe da cidade”.673 O episódio é descrito
por Mortimer como “um grande problema motivado pela desobediência de moradores da
Colônia Cinco Mil.”674 A narrativa de Raimundo Nonato segue esta mesma linha:

“Quando foi na época de 1979 a 1980 ele disse assim: ‘Santa Maria aqui na colônia
tá cortado, quem fizer é por sua livre e espontânea vontade por sua conta, não diga
que eu tô no meio de jeito nenhum, não diga que eu tô no meio, tá cortado! Até hoje
eu aguentei!’ Foram vários anos, tomava um copo de Daime e pegava um pito na
cuia, vários anos podia ter polícia podia ter o que tivesse, mas ele aguentou, aí
quando ele tirou a mão de cima, a polícia veio e pegou porque houve a
desobediência, né? 1980, padrinho foi pro Rio do Ouro em 1980 aí ele falou que
até setembro ele garantia tudo de setembro em diante ele não garantia nada e aí foi
que pegaram a Santa Maria depois que ele tirou a mão de cima.”675

O episódio foi narrado por Alfredo como “a queda da Santa Maria”:

“Foi só aí que é que entrou a queda da história da Santa Maria... Valdete tinha um
plantio grande pros trabalhos, foi quando não deu muito tempo, teve um cara que
foi lá e na saída pediu uns pito, não sei o que que aconteceu que ele pediu uns três
pitos e um litro de Daime e a gente fomos ser bom, quando é bom pros outros e é
ruim pra si. Quando ele chega no aeroporto foi pego, aí ele entregou, quando
entregou nós, já tava de saída abrindo o Rio do Ouro e aqui já tava entregue pro
padrinho Wilson, tinha o Veríssimo também na época, que eram as pessoas que
tinham ficaram tomando conta ali da Cinco Mil. Aí foi um auê. Um auê! Aí nós
voltamos de lá, fomos chamados aqui pela Polícia Federal, se apresentamos, o papai
falou a verdade dele - ‘eu não conhecia, eu vi num anjo, chegou pra mim numa

672
MORTIMER, 2000, p. 197.
673
Ibid., p. 203.
674
Ibid., p. 205.
675
R.N.T.S., 2019.
207
visão e apresentou um galho verde e disse, feliz daquele que segurar no galho verde
do Mestre Irineu. E esse aqui é um dos galhos que quem souber consagrar, que isso
aqui pode tá usando para desenvolver suas qualidades da reza, mas não pode fazer
como o mundão fazem aí.’ Aí que nós fomos saber que a história era perigosa né...
bom aí foi aquela onda toda, fomos assim depor, falando toda nossa verdade na
Polícia Federal, contudo era muito... vocês estão listados no artigo tal, perigoso,
então vocês vão ter que responder... sei que a gente foi pro Rio do Ouro, depois nós
voltamos aqui de novo... Ficamos já sujeito de vir pro juiz. E viemos, papai já tava
meio doente com problema do coração e foi e foi assim, meio sofrido, mas nós
fomos no juiz, na lei. Papai falou, deu um arrobou de cansaço nele e ai até a janela
do tribunal e chegava até provocar, que era muito forte tudo isso, parecia um Cristo
ali perante a Pilatos. Sério mesmo. E eu lá em num quarto, o Valdete no outro, pra
vim depor, pra ver se batia. Aí o juiz passava duas, três partes e fazia uma pergunta
para o meu pai, daquele jeito... aí retiraram ele direto para o hospital, para fazer
uma avaliação... E aí eu entrei... aí o juiz: - você conhecia isso? – Não senhor, não
conhecia. Aí foi 40 minutos de perguntas e respostas, aí eu disse a gente tem isso
como uma erva espiritual e sempre usou em caráter experimental nos estudos
espirituais e assim terminei o meu lado. Entrou o Valdete, disse que era responsável
da planta, nunca vendemos, nunca compramos, a gente não conhece deste nome.
Sei que assim, nós vencemos a parada, acho que ficamos sujeito a ir pra a chave
mas nunca fomos, porque também não tinha nenhum motivo pra gente ser
considerado traficante ou alguma coisa do gênero. E com tudo isso, Padrinho
Wilson também teve que ir depor, teve depoimento dele, do Veríssimo, do pessoal
que lidava com a situação espiritual da história.”676

Quando se trata de descrever como teria acontecido a segunda visita dos federais e a
apreensão dos pés de Santa Maria, mais uma vez as narrativas, ao mesmo tempo que se somam,
se confundem. Alfredo se refere à alguém que teria sido pego no aeroporto após sair da Cinco
Mil com “três pitos e um litro de Daime”, porque havia pedido e “a gente fomos ser bom,
quando é bom pros outros e é ruim pra si.” Mortimer se refere à um ripe (sic.) pego na praça,
em frente ao Palácio Rio Branco no centro da cidade, um “estradeiro micróbio”, que teria
furtado um galho da planta e colocado em sua mochila, o que contrasta com o relato de Alfredo,
que narrou ter entregue ao rapaz um pouco da erva, a seu pedido. “O rapaz foi preso em
flagrante pela posse do pacote. Levado à delegacia, não resistiu ao primeiro interrogatório.
Disse que tinha obtido aquele produto em um plantio na Colônia Cinco Mil.”677
O jovem em questão foi Eder Cândido e o Relatório do Inquérito Policial, de dezembro
de 1981, descreve que “foi preso em flagrante delito portando certa quantidade da erva
conhecida por Maconha quando transitava nas proximidades do Club ‘Juventus’, nesta
capital.”678 O Relatório detalha ainda que ele “informou residir na Colônia Cinco Mil” e não

676
A.G.M., 2019.
677
MORTIMER, 2000, p. 207.
678
Relatório Inquérito Policial nº185/81 DPF.
208
fez questão de guardar o segredo. Foi logo dizendo que “durante os rituais próprios do culto se
fazia uso de ‘maconha’, sendo que a mesma era cultivada e semeada na Colônia, usada
indistintamente por adultos e crianças ali residentes.”679 Sendo assim não tardou para a Polícia
expedir o mandado de Busca e Apreensão para conferir a veracidade do depoimento do jovem,
ocasião em que, ainda segundo esta fonte documental, encontraram sementes, folhas, “670
gramas de maconha preparada” e “68 pés de maconha pesando aproximadamente 57 quilos.”680
Um mesmo fato, real e objetivo, pode ser rememorado e criado de distintas formas
dependendo do narrador. Enquanto Alfredo diz que tinha ficado “um plantio grande pros
trabalhos” do Valdete, Mortimer se refere a “um morador veterano que tinha uma bela
plantação, em forma de uma estrela hexagonal, com os pés já ‘embuchando’, faltando pouco
para amadurecer, resolveu resistir à data e colher um pouco mais na frente, numa autêntica
desobediência.”681 Talvez como quem exime o padrinho Sebastião da culpa, Alfredo e Mortimer
procuraram ressaltar que a administração da Colônia Cinco Mil já havia sido entregue ao
padrinho Wilson e seus companheiros como o senhor Veríssimo, zelador do jardim.
Com a apreensão de pés de Santa Maria na comunidade no início dos anos 1980,
Sebastião e seus seguidores foram indiciados. As denúncias sobre o “uso de drogas” na
comunidade chegaram à mídia e, além dos processos, renderam muitas reportagens e
visibilidade negativa. Foi estratégico e fundamental o argumento da defesa ante aos juízes de
que eles não usavam e nem conheciam a tal maconha, pois a planta, ainda que fosse a mesma,
eram dados outros nomes e assim outros sentidos, era outra coisa.
Durante os interrogatórios realizados no ano de 1982, praticamente todos os moradores
da Colônia Cinco Mil que foram envolvidos, a saber Wilson Carneiro, Clícia Cavalcante,
Francisco Francklin (Veríssimo), entre outros membros antigos da comunidade, defenderam a
tese de que “não aceita a acusação que lhe é feita, porque a erva que usava tinha denominação
de Santa Maria e não de maconha.”682 Mário Rogério, que era o presidente do Cefluris na época,
disse que “não conhece a erva com a denominação de maconha; que é presidente da comunidade
e aceita como verdadeira a acusação que lhe é feita, isto é, perante a justiça dos homens, mas
não perante a justiça de Deus.”683
Mortimer data que a ida ao delegado para um longo depoimento foi um episódio de
novembro de 1981. Em Rio Branco, diante das autoridades, certamente curiosas com aquele

679
Relatório Inquérito Policial nº185/81 DPF
680
Relatório Inquérito Policial nº185/81 DPF
681
Mortimer, 2000, p. 205.
682
Relatório Inquérito Policial nº185/81 DPF– Interrogatório janeiro de 1982.
683
Relatório Inquérito Policial nº185/81 DPF – Interrogatório janeiro de 1982.
209
inusitado episódio de uma comunidade religiosa de ex-seringueiros e agricultores e seus jardins
da “erva proibida”, Mortimer ressalta que Sebastião

contou sua verdade. Tudo conforme o ocorrido. Disse ter tido a revelação do
uso da Santa Maria em sonho, que havia recebido a primeira vez da mão de
viajantes também conhecido por ripes (não disse o nome deles). Falou dos
poderes de cura da erva e de sua missão espiritual.684

Segundo o documento, Sebastião e seus filhos Valdete e Alfredo foram ouvidos no


inquérito no ano de 1983. Devidamente orientados e seguindo essa linha de defesa, Sebastião
argumenta “que não é verdadeira a acusação que lhe é feita conforme consta da denúncia.”685
Alfredo confirma que participou dos “três anos de pesquisa sobre as propriedades da erva Santa
Maria conforme indicação que o ente espiritual fez ao chefe Sebastião” 686 e que “na Colônia
Cinco Mil havia pequenas antigas (sic) de ervas Santa Maria estrito ao uso comunitário em fase
de necessidade de cura, como remédio.”687 Já Valdete teria destacado em seu depoimento que
“não tem conhecimento se era usado para menores; que não havia permição (sic.) para os
membros do Santo Eclético saírem da Colônia a erva Santa Maria.”688
O inquérito descreve que o primeiro a ser ouvido foi “o Senhor Wilson Carneiro de
Souza, atual administrador (...) pessoa que na ausência do senhor Sebastião Mota de Melo, é o
responsável pelas atividades materiais e espirituais.”689 Nas palavras de Mortimer, “O Sr.
Wilson Carneiro, administrador chefe da Colônia, transferiu para o Padrinho Sebastião a
responsabilidade daquele plantio.”690 Consta que 18 pés foram arrancado pelas raízes.

Toda população acompanhou a polícia até o jardim e lá fizeram um último


pedido: ‘Seria possível cantar um hino de despedida?’ O comandante da
operação, entre surpreso e curioso, consentiu. Com a grande emoção que o
momento proporcionava, as ótimas cantoras abriram o peito e entoaram um
hino em louvor àquele vegetal que tinha poderes de cura e de confortar os que
sabiam fazer o bom uso. Também um garoto de doze anos, corajoso e
desembaraçado, pediu para cantar um hino que havia ele próprio recebido.
Com rimas bem simples o menino dizia que a Santa Maria era perseguida
devido à maldade dos homens.691

684
MORTIMER, 2000, p. 215.
685
Relatório Inquérito Policial nº185/81 DPF - Interrogatório dezembro de 1983.
686
Relatório Inquérito Policial nº185/81 DPF - Interrogatório dezembro de 1983.
687
Relatório Inquérito Policial nº185/81 DPF - Interrogatório dezembro de 1983.
688
Relatório Inquérito Policial nº185/81 DPF - Interrogatório dezembro de 1983.
689
Relatório Inquérito Policial nº185/81 DPF
690
MORTIMER, 2000, p.207.
691
Ibid., p.207.
210
Uma reportagem do Jornal do Brasil de dezembro de 1983 intitulada “Justiça começa a
ouvir Seita do Santo Daime”, acessada através das pesquisas de Carvalho, diz que “Na ocasião
o dirigente da colônia, Padrinho Wilson Carneiro foi detido e levado ao Departamento de
Polícia Federal em Rio Branco para responder a inquérito, sendo solto mediante a promessa de
não mais plantar e consumir a erva.”692 O texto da reportagem aborda o episódio da descoberta
dos jardins de Santa Maria na Colônia Cinco Mil e o andamento do processo, quando a justiça
já ouvia as outras principais lideranças, principalmente Sebastião e seus filhos.
Carvalho traz um trecho da reportagem no qual é descrito o momento da batida policial
e retirados os pés de Santa Maria pela polícia ainda em 1981, “quando crianças, mulheres e
velhos cantavam músicas, em clima de grande comoção.”693 O cantor-menino citado na
reportagem e no texto de Mortimer era Ramiro de Souza, neto de Wilson Carneiro. O hino da
Santa Maria por ele recebido diz em um dos versos: “minha Santa Maria todo mundo judiou,
porque ela aqui na Terra a Deus louvou.”694
Mortimer narra a saga dos policiais, “carregados com pesadas metralhadoras, mochilas
e outros badulaques”695 para chegarem até a colocação no Rio do Ouro, município de Lábrea
(AM), onde estava Sebastião e entregar-lhe a intimação de comparecer para prestar depoimento
sobre o episódio da Santa Maria. “O Padrinho de imediato se prontificou a comparecer, até para
retribuir a visita que acabou em clima cordial.”696 Mortimer gosta de ressaltar, em várias partes,
o que seria um tratamento cordial da polícia para com o padrinho Sebastião e seu grupo. “Como
se pode notar, a polícia agia com a maior fineza”697, relata. Isso de alguma forma reforça a
imagem de grupo ordeiro, religioso, humilde e respeitado. “Este assunto que nos envolvia com
a Federal ainda levaria um bom tempo para ter um desfecho”, destacou Mortimer.698
Como Alfredo narrou: “Aí foi um auê. Um auê!” A maneira detalhada como descreveu
o episódio dá dimensão da importância que foi este enfrentamento com a lei, que envolveu
várias idas e vindas do Seringal Rio do Ouro a Rio Branco para cumprir uma agenda de
depoimentos e audiências com o juiz – e a Cinco Mil era este elo entre a floresta e a cidade.
Como vimos, entre os anos de 1985-87, a Ayahuasca passou a ser investigada, regulamentada
e até proibida durante esse período, até que depois do trabalho de comissão de avaliação, a

692
Jornal do Brasil, 1983, p.15 in CARVALHO, p. 106.
693
CARVALHO, 2019, p. 106.
694
Souza, R.N.T. Hino “Santa Maria”.
695
MORTIMER, 2000, p.208.
696
Ibid., p.208.
697
Ibid., p.209.
698
Ibid.
211
recomendação do antigo CONFEN (Conselho Federal de Entorpecentes) foi a exclusão
temporária do chá da lista de substâncias psicotrópicas ilícitas.699
Em 1992, depois da articulação política entre diferentes linhas ayahuasqueiras, processo
liderado pela União do Vegetal que culminou na assinatura da “Carta de Princípios das
entidades religiosas usuárias do chá Hoasca”, o uso ritual da Ayahuasca foi ganhando mais
reconhecimento e sendo acordado a proibição do comércio da bebida, “até mesmo o consumo
quando fora das regras ali estabelecidas, tal como sua combinação com outras substâncias
proibidas por lei.”700 Para Assis701 estes princípios procuravam, entre outras coisas, dificultar a
expansão da Ayahuasca especialmente a partir dos grupos ligados ao seguimento de Sebastião.
Assis pontua que depois da fase experimentalista, consolidou-se que a posição oficial
da instituição é de não incentivo ao uso da Santa Maria702. Alverga, respondendo às denúncias
que deram grande visibilidade negativa para as comunidade fundadas por Sebastião na década
de 1990, salientou em um relatório que

O CEFLURIS não autoriza o uso da planta nos trabalhos realizados sob sua
orientação. Mais recentemente em 1992, endossamos a Carta de Princípios
das entidades usuárias do chá AYAHUASCA, onde todos os signatários se
comprometeram a não fazer uso, em seus rituais, de nenhuma substância
prescrita por lei. Nossas cerimônias são públicas e todos podem constatar o
que lá acontece. Além do mais nossa prática é ajudar as pessoas a se libertarem
da dependências de drogas, conforme atesta os depoimentos.703

Rocha entende que esta lógica discursiva do uso em segredo institui uma espécie de
“maçonaria do Santo Daime” pois, só se apresentaria a Santa Maria aos fardados, aos iniciados
na irmandade. Para ela, a manutenção da questão com discrição remete aos acordos feitos nos
“tempos de outrora”, quando Sebastião, ao receber a visita do Exército Brasileiro na
comunidade que havia fundado no Seringal Rio do Ouro em 1981-82, ouviu do coronel Guarino
“para não saírem da floresta com ela.”704 Hoje há muitos daimistas, sobretudo próximos aos
grandes centros urbanos e ligados à linha expansionista, que participam ativamente de
movimentos pela liberação da Cannabis, seus usos terapêuticos e religiosos. Rocha questiona
a ausência de um posicionamento público e um movimento político por parte das instituições
ligadas à linha de Sebastião.

699
GOULART, 2004, p. 91.
700
ROCHA, 2021, p. 71.
701
ASSIS, 2017.
702
Ibid., 2017.
703
ALVERGA, 1995.
704
ROCHA, 2021, p. 169.
212
Não deixa de ser intrigante uma religião com um alcance internacional, com
milhares de filiados e centenas de filiais, não se perceber com força política
para pleitear a liberdade da Santa Maria. Permanecem sem respostas às
questões da militância cannábica: ‘A quem serve a proibição?’; ‘Para quem
ela é proibida?’; ‘Quem a Guerra às drogas está matando?’.705

A sociedade começa a questionar cada vez mais o modelo importado dos Estados
Unidos de, sob a desculpa de combater o uso entorpecentes e o tráfico, gerar um encarceramento
em massa de pessoas negras, latinas, trabalhadores mais vulneráveis e promover uma guerra as
drogas que ao longo dos anos, se mostrou ineficaz. Alguns avanços na direção da
regulamentação do uso da cannabis medicinal têm sido parte importante do que podemos
considerar novas formas de regulamentação dos usos medicinais de psicoativos.
Lourival enfatizou os aspectos ritualísticos que aprendeu na consagração da Santa
Maria, bem como as contradições que envolviam seu uso, uma vez que nem toda Santa Maria
era plantada e colhida nos jardins da irmandade e que era muito difícil alguém fazer uso de
Santa Maria como Sebastião ensinou.

“E aí passou o tempo não tinha mais Santa Maria, essa aqui que nós estamos
plantando do jeito que o Padrinho ensinou, planta na lua certa, cata na lua certa, tira
as folhas na lua certa, colhe na lua certa, a Santa Maria. Findou que não, não teve
mais desse jeito, teve que comprar. Mas não podemos comprar, porque se comprar
não é Santa Maria. Então as pessoas compravam, doavam pra nós e diz “isso aqui
é Santa Maria”, na ilusão da cabeça. Aí nós pegava, colocava dentro do santuário
do Daime, defumava e usava a Santa Maria. Daí vai passando o tempo e estamos
do jeito que é hoje em dia. Tem que trocar a contribuição, se não a gente não tem a
Santa Maria e te digo, sem ela não consigo ficar! Eu trabalho diariamente, então
pelo menos isso eu mereço! Lá na Cinco Mil, no começo da história, tinha uma
casinha de música atrás da igreja, aonde se enrolava. O Padrinho Sebastião ficava
ali, o Padrinho Alfredo, o pessoal tocando violão. Depois de enrolado ali, o pessoal
levava pra igreja e na hora do trabalho, depois de tomar uma dose de Daime, recebia
um. Tinha que pitar ele todinho, não podia deixar a ponta. Era toda uma história
bem séria e a gente cumpria mesmo bem direitinho. Existiam os resguardos, as
abstinências. Hoje em dia as regras estão esquecidas, mas bem dentro de mim,
quando eu transgrido elas, talvez dentro do feitio, o que acontece ali tudinho eu sei
que é por causa daquilo, mas não precisa ninguém ficar sabendo. Até hoje quando
eu transgrido alguma regra e acontece as coisas, eu sei que foi por causa daquilo.”706

A fala de Lourival reforça a ideia de que a marijuana utilizada no dia a dia só é Santa
Maria na ilusão da cabeça dos usuários, pois neste caso, planta e cultura não poderiam ser

705
ROCHA, 2021, p. 169.
706
L.B.A., 2020.
213
dissociados. Nesta perspectiva forja-se uma espécie de sentimento de culpa que não raramente
assola os marianos do Daime, quando estes, por hábito e gosto pelo uso recreativo e terapêutico
da planta, dependem do tráfico de drogas e toda a violência que ele incita.
A sua proibição e o que ele julgava ser seus “maus usos” no “mundo da ilusão”, não
impediram Sebastião e sua comunidade de estudar a espiritualidade que a planta lhe ensinava.
Quando foi necessário, defendeu com convicção sua tese, a de que um anjo lhe apresentou a
planta em sonho, para ser usada para curar, para fazer estudos espirituais, não era a maconha,
era Santa Maria. Groisman comentou que assim como Irineu converteu a Ayahuasca em Daime,
Sebastião converteu a Maconha em Santa Maria.707
A maioria destes andarilhos e buscadores chegam à Colônia Cinco Mil nos rastros da
contracultura, com a difusão do debate sobre psicodélicos a partir dos anos 1960-70, incluindo
a Ayahuasca, pelos seus usos como parte de um conjunto mais amplo de plantas professoras na
América Latina. Ali, formou-se uma rede de práticas, circuitos, deslocamentos – um certo
turismo psiconauta – ao qual o Acre e sobretudo a Cinco Mil acabou se integrando. Goulart
comenta que

Vários destes, hoje ex-hippies, que ingressaram no CEFLURIS, contam que


chegaram até a Cinco Mil ao seguir uma “rota mística”, a qual, naquela época,
começava a se popularizar. A rota abarcava as cidades Incas do Peru, como
Machu Pichu, consideradas “sagradas”, passava pela Bolívia e chegava à
Amazônia brasileira, ao atravessar-se a fronteira pela cidade de Cobija.
Pertencia ao imaginário de tais viajantes, além da busca pelas aventuras, pelo
exótico e pelo místico, um desejo de aprofundar ou concretizar experiências
com as chamadas substâncias psicodélicas, sobretudo com as plantas
“mágicas” e de “poder” descritas nos livros de Castaneda (1968 e 1971).708

Mortimer narrou que

A cada dia a Colônia Cinco Mil ia ficando mais conhecida e procurada.


Intensificou o fluxo de ripes. Abriu-se uma rota dos Andes para o Acre cujo
destino final era o Santo Daime. O Padrinho Sebastião estava ficando famoso
pelas estradas. As cidades de Cusco e Machu Pichu no Peru eram uma meca
do ripismo mundial. Milhares de mochileiros das Américas e da Europa
passavam por estas lendárias cidades durante o correr do ano. Lá, uma boa
parte deles ouvia falar da Colônia Cinco Mil.709

Macrae também narrou sobre como parte daquele grande contingente de jovens
interessados em visitar as regiões andinas acabavam

707
GROISMAN, 1999.
708
GOULART, 2004, p. 86.
709
MORTIMER, 2000, p. 160.
214
indo para o Acre conhecendo lá a fama do Daime e, em certos casos, provando
a beberagem. Para esses indivíduos, a Colônia 5000 certamente se apresentava
como resposta aos seus anseios mais profundos. Encontravam lá uma
comunidade agrícola implantada, liderada pelo venerável e hospitaleiro
Padrinho Sebastião, que lhes acenava com sua eclética doutrina de origem
indígena e apontava para uma bem demarcada senda de conhecimento
iniciático.710

O relato sobre as especificidades dos usos consagrados da Santa Maria e o ato de


renomear a planta, como estratégia de ressignificá-la para o grupo, leva-nos à análise da relação
entre as coisas, as palavras que as nomeiam e os sentidos socialmente produzidos em diferentes
contextos, considerando diferentes agentes com poder de produzir o discurso de nomear. Toda
forma de nomear é criadora de uma realidade específica, uma expressão de dominação e
apropriação de algo. O nome carrega mais que palavras, carregam sentidos. Existem muitas
formas de nomear a planta e os cientistas chamam Cannabis, descrevendo-a como um gênero
das angiospermas, que inclui pelo menos três variedades diferentes: Cannabis sativa, indica e
ruderalis. Por vezes, tendemos a tomar o nome científico, a taxonomia, como o nome universal,
em contraponto a denominações outras.
Se olharmos pela perspectiva de epistemologias outras, que não admitem uma separação
entre o humano e a natureza, enxergamos as plantas como inteligências não-humanas711, como
plantas professoras712, admitimos sua existência – como sujeito-planta – que se territorializa em
diferentes espaços. Se olharmos pela perspectiva do pensamento ocidental-moderno, na
interação com essas existências, os seres humanos as classificam, as controlam, criam diferentes
sistemas de validação e restrição de seus usos ao longo do tempo e, dependendo do espaço,
fazendo com que essa passe a ser concebida como objeto a ser dominado, ritualizado, legislado,
demonizado ou sacralizado.
A questão da Santa Maria e a mudança em busca de novas terras para assentar a
comunidade no estado do Amazonas renderiam desdobramentos nos anos seguintes.
Influenciado pelos hippies que chegavam a comunidade e suas ideias acerca da existência de
muitas plantas de poder na natureza, Sebastião, como um estudioso da espiritualidade e da vida,
não se esquivava do intercâmbio e da troca de saberes com os estradeiros, incorporando novos
elementos ao Santo Daime, como praticado por seu seguimento/ramificação. Desde o início,
este aspecto tem sido o principal ponto de tensão entre os grupos que se auto intitulam

710
MACRAE, 1992, p. 78.
711
MCKENNA, T. O alimento dos deuses. Rio de Janeiro: Record, 1995.
712
LUNA, 1986.
215
tradicionalistas e os grupos dissidentes, o que tem gerado um sentimento de ressentimento e
muitas cisões identitárias no campo.
Para Almeida Ramos “teria sido precisamente a tolerância para o uso da maconha que
construiu a ponte entre o Padrinho da Colônia Cinco e os jovens de classe média, do meio
urbano dos mais variados estados e países.” 713 A historiadora destaca ainda que “No hinário O
Justiceiro, encontramos na frase melódica: ‘a estrada está aberta’ o que melhor reflete essa
posição da Cinco Mil em meio às demais seitas daimistas, a abertura irrestrita às pessoas
condutoras das mais variadas influências.”714
A aproximação e trocas interculturais dos seguidores do Daime na Colônia Cinco Mil
com aqueles que foram descritos como adeptos da contracultura, acabou por instituir uma
contracultura do/no Daime, isto é, um modo de ser e se afirmar como membro da irmandade de
mestre Irineu que vai destoar em alguns pontos do que seria a cultura do Daime narrada como
mais tradicional, “hegemônica e dominante” no contexto de Rio Branco.
Macrae comenta a força da contracultura nas décadas de 1960-70, quando o movimento
New Age começou a buscar nas culturas orientais e de povos nativos uma espécie de passado
perdido e apagado pelas grandes instituições majoritárias como o Cristianismo, o “uso de certas
substancias psicoativas como a Cannabis, o LSD e certos cogumelos apresentava-se também
para muitas pessoas como um caminho possível para o desenvolvimento da espiritualidade”715,
ainda que tenha se popularizado pelo uso recreativo, “mero escapismo hedonista.” 716
Este movimento inseriu o Daime e, depois de uma maneira mais genérica a Ayahuasca,
no chamado circuito “Nova Era”, expressão que deriva do inglês New Age e caracteriza um
movimento difuso e heterogêneo, voltado pra uma contracultura religiosa ou da espiritualidade,
isto é, um movimento questionador das grandes religiões, vistas como “contaminadas pelas
mazelas da sociedade ocidental”717. Os territórios são construídos nesta dinâmica de
apropriações, mudanças e resistências e, conforme os impulsos geradores de produção, novos
afetos e arranjos, novos territórios são criados e recriados. As trocas que sempre existiram,
resultantes dos processos de deslocamentos e encontros entre diferentes grupos e povos – por
exemplo, as relações culturais andino-amazônicas que incluem os usos da Ayahuasca - se
intensificaram com os fluxos e redes cada vez mais mundializados nas últimas décadas do

713
ALMEIDA RAMOS, 2002, p. 80.
714
Ibid.
715
MACRAE,1992, p. 77.
716
Ibid.
717
GUERRIERO, S. A influência da Nova Era nas religiões tradicionais. Sociabilidades Religiosas: mitos,
ritos, identidades. I Simpósio Nacional da Associação Brasileira de História das Religiões, 2009.
216
século XX e a Cinco Mil foi um ponto dentro desta rede. Guerriero718 comenta que as religiões
ditas “tradicionais populares e dos grupos nativos” e aqui podemos situar o Daime como
irmandade, doutrina e culto amazônico, deixam cada vez mais o contexto local, difundindo-se
e ganhando visibilidade nos grandes centros urbanos secularizados e sobretudo de classe média.
Guerriero comenta que os mais puristas dentro de suas tradições, não raramente, acusam
que estes movimentos protagonizados pelas classes mais abastadas dos meios urbanos deturpam
suas práticas religiosas, pasteurizando-as, embranquecendo-as e mercantilizando os saberes
ancestrais como “aventura exótica de distração”719. A Nova Era como pensada por Guerriero
apresenta-se como “o espírito de uma época”, em que tensões entre a ortodoxia e a heterodoxia
se manifestam, principalmente devido ao questionamento da autoridade das instituições para
regulamentar a vida, e mediar a relação dos indivíduos com um sagrado, um Divino.
Dentro destes estudos com as plantas de poder realizados nas décadas de 1970-80 inclui-
se os fungos do tipo Psilocybe cubensis. Mas nem só a Santa Maria e os cogumelos foram
estudados, Muitas outras potências psicoativas foram chegando e sendo experimentadas,
configurando o devir-planta como descrito por Rocha, entendido como os agenciamentos que
povoam o plano de imanência e asseguram a transição da erva e outros psicoativos do profano
ao divino através de subjetivação de acontecimentos720. Alguns destes tópicos são uma espécie
de tabu, onde se guardam os segredos para serem esquecidos e por isso não-ditos, a que bem
poucos gostam de se referir. Merecem aqui, na escuta dos narradores e na apresentação desses
textos, vozes e memórias, uma sessão à parte.

718
GUERRIERO, 2009.
719
Ibid.,p. 1.
720
ROCHA, 2021.
217
2.4 Cogu-rei e outros estudos: uma linha psiconauta

“Amar e ter amor


Com respeito às coisas superior
Se firmar em tudo que existe
Tudo isso Cogu-Rei me mostrou”.

Hinário O Cruzeirinho, Alfredo Gregório

O uso de outras substâncias psicoativas na Colônia Cinco Mil já vem sendo


documentado por mais que, as vezes, ainda figure como uma espécie de evento para ser
silenciado. Diz-se que Sebastião fazia o estudo de tudo o que chegava, pois segundo sua
filosofia, tudo era de Deus, do Divino. Há registros do uso milenar de psicoativos nos cinco
continentes e, como destacou Macrae, eram “utilizados para os mais variados fins, mas
principalmente na busca de cura e contato com o divino.”721 Por este motivo um grupo de
pesquisadores na década de 1970, entre eles Gordon Wasson (1898-1986), propõe o uso do
termo enteógeno para se referir a este conjunto de plantas com propriedades psicoquímicas, de
uso tradicional por parte de diversos povos e que estavam reunidas sob a alcunha pejorativa de
alucinógenos.722 Enteógeno resgata uma expressão do antigo grego e é formada pelas
expressões éntheos que significa “inspirado divinamente” traduzido mais livremente como
“deus dentro” ou “manifestação interior do divino”.723
Por plantas professoras, plantas maestras ou plantas de poder entende-se, à partir dos
conceitos empregados por vegetalistas de vários países da América Latina, o conjunto de
plantas e alguns fungos que tem propriedades psicoativas, chamadas também, dependendo do
contexto, de enteógenos, psicodélicos, alucinógenos entre outros e são exemplos daquilo que
antropólogos chamam “categorias nativas”.724 O conceito chegou à academia através das
relações de contato, pesquisas e definições propostas pelos antropólogos, entre eles Eduardo
Luna e se refere às plantas que, sob certas condições, são

possuidoras de sábios espíritos, teriam a faculdade de “ensinar” às pessoas que


os procuram. A ayahuasca – acompanhada sempre do tabaco como planta que
possibilita seu manejo – seria uma dessas plantas mestras, porta de entrada
que permitiria um conhecimento cada vez maior do mundo natural, em

721
MACRAE,1992, p. 35.
722
ASSIS, 2017.
723
“Entheogen”. En: Oxford English Dictionary Online (1989).
724
GOULART, 2004.
218
especial do reino vegetal e que por sua vez indicaria a presença e uso de outras
plantas de poder.725

No campo dos estudos etnofarmacológicos, por exemplo, as pesquisas de Dennis


McKenna, irmão de Terence McKenna, dois grandes entusiastas dos estudos no campo dos
psicodélicos, esclarecem que todas as espécies no planeta estão organizadas como um ser
consciente. Estas plantas-professoras podem ser lidas como inteligências não-humanas726 e
“estão tentando ensinar nossas espécies sobre a natureza e sobre como nos encaixamos
nisso”727. Rocha evoca o conceito de inteligência existencial como utilizado pelo professor
Kenneth Tupper, da University of British Columbia, para pensar os enteógenos e situar a ciência
num campo que pressupõe a existência de múltiplas inteligências.
Os enteógenos, as plantas maestras ou plantas mestres são como instrumentos
cognitivos e, como entes personificados, podem fazer alianças com aqueles que os procuram.
Agenciando singularidades, podem potencializar e ampliar capacidades cognitivas, processo
mais conhecido como expansão da consciência. “O uso de um enteógeno como a ayahuasca é
um exemplo de uma tradição antiga e ainda viva em muitas culturas de empregar psicoativos
como instrumentos que estimulam tipos fundamentais de compreensão”728 Fazendo coro à
proposições de Tupper, acredito que considerar a existência, a linguagem e a ciência das plantas
maestras é uma “possibilidade que precisa ser seriamente considerada por aqueles que têm
interesse por uma educação nova e transformadora.”729
São questões, conhecimentos que intelectuais/pensadores indígenas já vêm falando e já
vêm pensando há muito mais tempo mas que parecem ainda meio incompreensíveis e nebulosos
à lógica ocidental moderna positivista e eurocentrada. Ailton Krenak comenta que as narrativas
que concebem a existência de pessoas e inteligências e sensibilidades não-humanas estão
“sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial”730

Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama
da mineração. A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio, na direita tem
uma serra. Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak e personalidade. De
manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se

725
LUNA, Xamanismo amazônico, ayahuasca, antropomorfismo e mundo natural. In: LABATE, B.C.;
ARAÚJO, W.S. (org.). O uso ritual da Ayahuasca. Tradução de Cláudia Rosa Riolfi e Valdir Heitor Barzotto.
2. ed. Campinas: Mercado de Letras, 2002, p.181.
726
MCKENNA, 1995.
727
“These plants are trying to teach our species about nature, andabout how we fit into that.” McKenna in Maps
bulletin, 2009, s/p. MCKENNA, 2009, s/p)
728
TUPPER, K. W. Enteógenos e Inteligência Existencial: Plantas Mestres como Instrumentos Cognitivos.
Tradução de Mauro Sá Rego Costa. Revista Periferia, volume III, número 2, 2011.
729
Ibid., p. 18.
730
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 10.
219
o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara
do tipo ‘não estou para conversa hoje’, as pessoas já ficam atentas. Quando
ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando a sua
cabeça, toda enfeitada, o pessoal fala: ‘Pode fazer festa, dançar, pescar, pode
fazer o que quiser’. Assim como aquela senhora hopi que conversava com a
pedra, sua irmã, tem um monte de gente que fala com montanhas. No Equador,
na Colômbia, em algumas dessas regiões dos Andes, você encontra lugares
onde as montanhas formam casais. Tem mãe, pai, filho, tem uma família de
montanhas que troca afeto, faz trocas. E as pessoas que vivem nesses vales
fazem festas para essas montanhas, dão comida, dão presentes, ganham
presentes das montanhas.731

São nestas mesmas tradições e sociedades que ainda conseguem estabelecer relações de
parentesco, amizade e trocas com seres não humanos, que resistem também as tradições de usos
de plantas maestras. Betânia Albuquerque escreve sobre os saberes e a pedagogia das plantas
professoras, aprofundando-se no que chamou de epistemologias e saberes da ayahuasca732. Com
foco no seguimento do Daime do padrinho Sebastião, a autora destaca que o campo das plantas
professoras constitui um universo teórico e conceitual próprio e, para acessá-lo é necessário
perceber os limites da lógica ocidental moderna para compreender estas experiências e outros
tipos de conhecimentos.
As plantas maestras podem ser cactáceas, flores, cascas, raízes, combinações de cipós e
folhas, fungos que têm propriedades psicoativas. Da África, sabe-se do uso da planta
Tabernanthe iboga há milênios nos rituais Bouiti do povo Mitsogho e Fang, ambos grupos
Bantu do Gabão733. Da Europa podemos citar o uso de beladona (Atropa belladona),
meimendro (Hyosciamus niger) e mandrágora (Mandragora officinarum), associadas às
práticas de ditas feitiçaria e magia. Da Ásia, podemos citar o cogumelo Amanita muscaria como
exemplo que, adaptado às regiões frias do inverno boreal, era utilizado por xamãs da Sibéria.
Os Vedas, livros sagrados da cultura indiana, descrevem o Soma, preparada com o Amanita
muscaria, como a bebida sagrada mais antiga da humanidade. Da Ásia também vem o ópio,
uma espécie de papoula (Papaver somniferum). “Os textos sagrados da Índia e os poemas
épicos de Homero, na Grécia, trazem relatos sobre o uso de plantas e outras substancias naturais
para provocar alterações de consciência.”734
Alverga narra que nas suas primeiras experiências com o Daime, na Colônia, o salão,
“se transmutou diante dos meus olhos numa celebração ancestral. Sentia-me parte de um culto

731
KRENAK, 2019.
732
ALBURQUERQUE, B., 2011.
733
LABATE, B.C. Viagem ao encontro da Iboga. Publicado em:
http://www.terramistica.com.br/index.php?add=Artigos&file=article&sid=56&ch=4.
734
MACRAE, 1992, p. 35.
220
cuja memória era resgatada das brumas do inconsciente coletivo da Humanidade.” 735 Alverga
conjectura se o Daime seria o mesmo Soma, ressurgido no crepúsculo dos deuses, “inaugurando
a nova era de Juramidam, o Ser Divino que habita as florestas telúricas” e comenta que na
medida que é possível conceber que o grande Vishnu viera como tartaruga, peixe e pássaro e o
próprio Logos, o Verbo Divino viera na forma humana na pessoa de Cristo, “o que o impediria
de manifestar-se novamente como um ser vegetal?”736
Tem-se registros do uso de cogumelos do tipo Psylocibe entre os povos maias há pelo
menos 3.500 anos.737 Maria Sabina, no México, foi uma sábia reconhecida na sua comunidade
por fazer uso dos cogumelos em processos curativos.738 Sabe-se que o Cogumelo tem uma
época específica de brotar, que não está disponível na natureza o tempo todo, a não ser que
sejam quando colhidos e desidratados. O fungo que se desenvolve nas fezes das vacas aparece
sobretudo em época de chuva, quando os raios do Sol esquentam o chão. Caracterizados por
sua coloração, os chapeuzinhos dourados se diferem de outros fungos por seu anel de cor
azulada, como aprendi a diferenciar em campo quando, em janeiro de 2001, eu comi pela
primeira vez.
Apesar destes usos difundidos, como destaca Macrae, é “nas Américas que se concentra
o maior número dessas substâncias e onde até hoje mais frequentemente se faz uso delas”739. E
foi no Brasil, especialmente na primeira metade do século XX, que surgiram práticas religiosas
de grupos não-indígenas com o uso da bebida ritual, posteriormente institucionalizadas como
religiões ayahuasqueiras. Macrae afirma que “Seu emprego nesta região do mundo está mais
ligado a fins sagrados, não recreacionais, para validar ou retificar a cultura e não como uma
maneira de temporariamente escapar dela.”740
O historiador Marcos Vinícius Neves intitula “campo originário” a área do grande arco
panamazônico, uma extensão mega-diversa, multilinguística, plurinacional, que se estende ao
leste, do sul da Bolívia à Roraima, passando por Rondônia, Acre e Amazonas e, a oeste,
atravessa Peru, Equador, Colômbia, Venezuela até o Panamá, com no mínimo mais de 2.000
anos de uso da Ayahuasca. 741 Entre outros enteógenos/ psicoativos conhecidos das Américas,

735
ALVERGA, 1992, p.41.
736
Ibid., p.41-42.
737
ROMERO, María Sabina, Cogumelos e Extrativismo Colonial. https://chacruna-la.org/maria-sabina-e-
cogumelos/
738
Ibid.
739
MACRAE, 1992, p. 35.
740
Ibid.
741
NEVES, M.V. História Política recente da Ayahuasca no Acre. In: Comunidades tradicionais da
Ayahuasca: Construindo Políticas públicas para o Acre –Seminário. Assembleia Legislativa do Estado do Acre.
Rio Branco, 2010. p. 100.
221
citamos as cactáceas Peyote (Lophophora williamsii), utilizada por povos nativos do México e
Estados Unidos e a Wachuma ou San Pedro, na região dos Andes, utilizada por pajés e xamãs
de diferentes culturas em curas, artes visionárias e adivinhação. Em ambas o princípio ativo é
a mescalina.
Há quem diga que a Ayahuasca figura no topo das plantas maestras, descrita pelos
daimistas como o “professor dos professores”. Segundo Almeida Ramos, a ayahuasca é “tido
entre os indígenas do Acre como o remédio dos remédios.”742 Para Sálvio B. Kaxinawa, “O
cipó é o chefe de todos os outros remédios da mata: com ele podemos fazer qualquer coisa que
quisermos fazer; para matar muitas caças e para ser trabalhador; para não pegar doença e ficar
bem feliz da vida”.743 Sem primar por modelos classificatórios que fixam hierarquias entre as
plantas professoras, é bom destacar que as tradições são diversas

e, segundo Luna, o tabaco pode, de certa forma, ser considerado até mais
importante que a ayahuasca, pois ele atua como um mediador entre o
vegetalista e os espiritos das plantas. Como diz um de seus informantes: ‘Sin
el tabaco no se puede usar ningún vegetal’...744

O Daime dos daimistas difere-se de outras Ayahuascas justamente por fundamentar seu
preparo na fórmula “o cipó, a folha e a água”745 como ensinado por mestre Irineu, sem
acréscimo de outras plantas na hora do cozimento, o que pode acontecer em preparos indígenas.
Temos visto que a territorialização no campo do Daime de outras plantas professoras como o
Tabaco, a Santa Maria, o Cogumelo etc. não é consenso na irmandade. Porém os relatos que
chegam pela tradição oral dão conta que mestre Irineu fazia uso de tabaco, indicava o uso de
ervas medicinais e alimentos como repertório de receitas e indicações de tratamentos, nos
trabalhos de cura e com o Daime.

São cinco os produtos mais comumente usados junto com o daime: 1. Chá de
erva cidreira; 2. Charutos e cigarros de tabaco bruto; 3. Rapé (tabaco,
sementes de imburana, erva-doce, cravo, pião e cabacinha); 4. Caissúma
(bebida feita de macaxeira, erva-doce e gengibre fermentados); 5. Macaxeira
insossa (Manihot utilíssima, cozida sem sal).746

Interessa destacar, na companhia de Moreira e Macrae, que “Antigos seguidores de


Mestre Irineu se lembram de discursos que ele fazia estimulando esse uso: ‘O bom aoasqueiro

742
ALMEIDA RAMOS, 2002, p. 12.
743
KAXINAWÁ, S. B. Estórias de Hoje e de Antigamente dos índios do Acre, 1984.
744
MACRAE,1992, p.56.
745
Serra, R.I., “Eu balanço”, n. 46.
746
MOREIRA E MACRAE, 2011, p. 141.
222
usa tabaco””747, apesar de hoje em dia o uso de tabaco, sobretudo aquele que vem da indústria
do fumo, ser associado a um vício prejudicial. Seu uso é desestimulado tanto entre os seguidores
dos grupos mais tradicionalistas do Acre, quanto entre muitos adeptos do Daime dos meios
urbanos, sendo em geral, o uso do tabaco permitido apenas longe dos espaços rituais como o
salão e a casinha de feitio. No centro que eu frequentava em Santa Luzia/MG, tabaco apenas
do portão para fora: só na área externa era permitido fumar, isto é, na rua mesmo.
Assis destaca que são traços estruturais do Cefluris, “que tem a palavra ‘eclético’ no
próprio nome”748, a “miscibilidade” e “psicoatividade”, o que tornou esse grupo mais aberto
que outras religiões ayahuasqueiras às experimentações com outras matrizes culturais
espiritualistas e também outros psicoativos. Sebastião Mota, sem dúvidas, esteve à frente deste
movimento de transformação da doutrina do Daime com a incorporação de novos elementos e
práticas, rechaçados por grande parte dos antigos seguidores que não acompanharam e nem
aprovaram as inovações, mesmo aqueles que se desligaram do Alto Santo na década de 1970
ou em rachas posteriores. Goulart comenta que o Cefluris, no início, configurava-se uma
simples “dissidência do grupo originalmente fundado pelo Mestre Irineu.”

Mas, a partir de um determinado momento, o CEFLURIS começa a se


caracterizar como um grupo muito mais complexo, maior e bastante distinto
dos demais centros que iriam surgir nesta linha, transformando-se num
segmento à parte. Destacam-se como suas peculiaridades, que o opõem mais
drasticamente ao Alto Santo, um maior experimentalismo em relação às
plantas psicoativas ⎯ representado sobretudo pelo uso da Cannabis sativa ao
lado do Daime ⎯, a aproximação com cultos afro-brasileiros e um estímulo à
expansão.749

Para os adeptos do Daime no Acre, e aqueles ligados às famílias mais antigas e aos
núcleos no bairro Irineu Serra, parece importante marcar uma diferença em relação às
comunidades750 que levantam a bandeira de Sebastião e uma das principais características,
como já dito, é a permissividade para incorporar o uso de outros enteógenos. Sebastião as
chamava de plantas sagradas e narrou que conheceu muitas delas:

Cogumelo, São Pedro, Santa Maria. Todas são linhas muito serias, tem seus
usos espirituais. A Santa Maria é a mais conhecida. Lá fora chamam de
maconha. Mas é por causa dos homens que não se respeitam. Nem respeitam
a força das ervas, nem respeita-se a si mesmo. Só botam ela no bico para uso
de dinheiro, de peia, de confusão e o Diabo a quatro! Mas não é para isso! O

747
MOREIRA E MACRAE, 2011, p.140.
748
ASSIS, 2017, p. 111.
749
GOULART, 2004, p. 100.
750
ALVES, 2010.
223
uso dela é pra um conhecimento, para abrir o lado espiritual. Foi do espiritual
que eu recebi. Por isso eu estudei. Foi porque me entregaram; O Daime, as
outras plantas sagradas, a própria floresta.751

Sebastião se posicionava a favor do estudo com todas as plantas e destacava que as


formas de uso e não a substância em si, é que definiam o seu valor. Ao comparar o seguimento
do Daime desenhado por Sebastião com os núcleos mais tradicionais como o Alto Santo,
Goulart cita que “Tanto o padrinho Sebastião quanto outros dirigentes do Cefluris realizaram
várias experiências”752, destacando o uso do cacto San Pedro e dos cogumelos mágicos.
No conjunto das experiências que aconteceram na Colônia Cinco Mil com outros
psicoativos, o uso da Santa Maria foi o que se consolidou, mas o uso do cogumelo também teve
sua importância nesta fase descrita como experimentalista, tanto que o Cogu-Rei é saudado em
um hino como entidade que personifica este fungo-professor. Seguindo a trilha de Rocha,
entende-se que “sendo os cogumelos pertencentes ao Reino fungi, não se trata de sua
identificação como planta, mas sim de refletirmos essa composição como um movimento que
devém na mesma intensidade do devir-planta.”753
Muitas foram as pessoas que chegaram na Cinco Mil nesta época, algumas tiveram suas
vidas transformadas para sempre e foram escrevendo seu nome na história da comunidade,
outras tiveram seus nomes apagados ou não são lembrados nos registros. Flaviano foi um desses
andarilhos, chegou neste período.

“Aí o rapaz me falou de ayahuasca. Quando ele falou aquilo eu achei, eu fiquei
curioso que a palavra me soou assim... (faz um gesto de inexplicável)... Nós tava
exatamente tomando chá de cogumelo, nós dois saímos pra tomar um chá de
cogumelo lá nas colônia, quando ele me falou da ayahuasca sabe, aí eu senti uma
vibração assim naquela palavra. Aí ele me falou que "ah eu conheci", que ele tinha
andado no Peru, Bolívia, Colômbia, todo mundo tomou ayahuasca com os índios e
tomou Daime na Cinco Mil também... Aí ele chegou e falou assim pra mim: ‘rapaz
lá tem um pessoal lá que toma a bebida lá que chama daime, fundaram uma religião
lá, que parece que tá tudo virando santo’, ele falou assim... eu fiquei com aquilo na
minha cabeça, pensei um povo assim, todo diferente né, tomando essa bebida, eu
fiquei curioso de vir aqui. Aí, nessa época, eu saí do jornal e caí na estrada sabe, saí
pra estrada que nem tipo hippie aí né. Saí do jornal e fiquei e fui nessa jornada e
vim bater na Cinco Mil.... Conheci o Padrinho Sebastião em 77, cheguei aqui no
meio do ano, lá pelo verão, uma época dessa assim, depois dos Hinários de São
João. Quando eu cheguei, eu cheguei pela estrada, eu tinha virado hippie né, aí
quando eu cheguei, eu e outro maluco, o Padrinho Sebastião morava na casa grande.

751
Mota, S.M. in ALVERGA,1998, p. 196.
752
GOULART, 2004, p. 100.
753
ROCHA, 2021, p. 294.
224
A primeira pessoa que me deu Daime mesmo aqui na Cinco Mil foi ele, foi numa
oração na casa dele, no segundo dia depois que eu cheguei. Eu me lembro ainda
que ele falou, que ele mesmo falou assim: ‘vocês vieram atrás de daime né?’”754

Estes psicoativos de uso milenar agem neste contexto influenciados pela cultura
dominante, o cristianismo católico, mas a seu modo transfigurado no imbricamento com as
ancestralidades indígenas e cosmologias afro-brasileiras que perpassavam e constituíam mestre
Irineu e seus seguidores. Como parte de um estudo coordenado pelo padrinho Sebastião e a
partir das trocas com os hippies e estradeiros que chegavam trazendo esses saberes, pode-se
dizer que o estudo com os cogumelos mágicos e outras plantas de poder na Colônia Cinco Mil
marcou uma época e a identidade desses grupo em oposição a outras manifestações e grupos
ayahuasqueiros/do Daime no Acre.
Assis traz um depoimento de um daimista antigo, que fora seguidor tanto do mestre
Irineu quanto do padrinho Sebastião e narrou sobre suas experiências com a Santa Maria e o
Cogumelo.

Uma pessoa me falou que o Padrinho estava fumando maconha. Eu não pude
acreditar. A pessoa replicava dizendo que tinha acabado de fumar com o
Padrinho. Aí eu resolvi ir até a casa do Padrinho para tirar essa história a limpo
e falar com ele que o estavam caluniando. Quando eu cheguei, pedi para
conversar em particular e ele disse: “pois não!”, me levando para a casa do
Chagas. Chegando lá, eu disse a ele que estavam espalhando a notícia de que
ele estava fumando maconha e que a pessoa falou que tinha fumado com ele
agora mesmo. Ele então me respondeu: É verdade, L. Mas essa pessoa não foi
legal comigo, porque tínhamos combinado que o assunto ia ficar entre nós.
Mas é verdade sim, L. e foi tão bom. Tão bom que eu até pensei em ti na hora
e guardei um pouquinho aqui pra você. Quer experimentar? Já que era o
Padrinho que estava falando, eu fui, né e saí de lá mariano. (...) Quanto ao
cogumelo, uma vez eu visitei o Padrinho e ele tinha tomado o cogumelo.
Nunca vi ele tão inspirado para falar na vida! Depois eu até aprendi a
identificar e uma vez encontrei um e resolvi dar uma mordida. Achei o gosto
ruim e não quis mais saber daquilo.755

Maria Garibaldi também traz linhas dessas narrativas que registram memórias deste
tempo:

“É porque naquele tempo chegava gente direto, chegava era gente saindo, gente
chegando, tinha movimento que às vezes chegava 40 mochileiro, você tava ali de
repente aparecia 40 hippies aí. O cogumelo muita gente tomou, o pessoal daqui
aprenderam com os maluco de estrada né. Que tinha o Padrinho Mário que
trabalhava com cogumelo. Fizemos até, uma vez eu me lembro que cantamos um

754
F.S., 2020.
755
L.M., comunicação pessoal, 2016, in ASSIS, 2017, p. 112.
225
hinário, eu acho que foi o hinário do Padrinho Alfredo oh, tomando chá de
cogumelo. Maninha porque o cogumelo é forte, não é negócio de ficar tomando
assim direto não, eu te digo oh. Quando o Nonato morava aqui, ele tinha uma horta
aí, lá pra baixo pra ali, lá pra a beira do Redenção pra acolá, era um lugar bonito,
então tinha uma horta dele né e sempre assim uma hora dessa assim, às vezes, o
Padrinho Mário vinha pra cá e a gente ia lá, ajeitava os pitos e menino, fazia aquele
trabalho... nossa era forte e bom, ele é bom só mesmo pra fazer um estudo e pronto,
sair fora, tomamos com o Padrinho Mário, com Padrinho Alfredo.”756

O citado padrinho Mário é Mário Rogério da Rocha (1910-1986), amazonense de


Lábrea e dentre os mais antigos que seguiam com Sebastião parece que foi um dos grandes
incentivadores destes estudos experimentais com outras plantas de poder. Morava na Rua
Epaminondas Jácome, no centro de Rio Branco, às margens do rio Acre e sua casa era um dos
pontos de encontro dos jovens que frequentavam a Cinco Mil. Descrito como alguém que tinha
uma “grande cultura esotérica”, foi membro da Maçonaria e do Círculo Esotérico no Acre, foi
presidente na primeira diretoria do Cefluris. Mortimer o descreve como “um destaque”.

Ele sempre gostou da linha espírita e esotérica de estudar religiões, tendo em


casa uma estante com mais de duzentos livros bem ordenados. Entre outras
atividades havia sido maçom, membro da loja acreana. Porém, ao conhecer o
Santo Daime, descobriu que aquela doutrina cabocla era a síntese de tudo.757

Alverga narra que seu Mário considerava que as outras plantas divinas eram tributárias
do Daime, que “tudo estava contido no Daime” e neste sentido eram apenas “aliados” acessados
eventualmente. O descreve como um “erudito”.

Na simplicidade de sua linguagem, explicava todos os sistemas filosóficos e


correntes espiritualistas. Velho esoterista, colheu influencias de várias escolas.
Demonstrava grande largueza intelectual e ausência de preconceitos. Em tudo
via algo positivo. Todos os que dele se aproximavam sentiam grande paz e
segurança.758

Sobre os trabalhos de cura com plantas de poder que seu Mário fazia, Alverga narra que
nestes trabalhos, além da estimada Santa Maria, fazia-se o uso de “são-pedrito, cogumelos,
folha de coca etc.”759 Os trabalhos aconteciam cercado pelos pés de cupuaçu no fundo do quintal
da sua casinha de madeira, muito simples, como toda moradia às margens do rio Acre. Este
trecho da narrativa de Alverga difere dos outros narradores de dentro como Mortimer e Fróes

756
M.G., 2020. Narrativa de Maria Garibaldi gravada no dia 28 de julho de 2020, Residência na Colônia Cinco
Mil, Rio Branco, Acre.
757
MORTIMER, 2000, p.165.
758
ALVERGA, 1992, p. 24.
759
Ibid., p. 24.
226
por fazer referência aos poucos mencionados estudos com outros psicoativos na comunidade
de Sebastião.
Rocha narra que um episódio em específico tornou-se uma espécie de “lenda
assombrosa”, que seria o fato de que, dentro deste estudo de abertura para outras substâncias
psicoativas, ter sido utilizada a “merla”, que é derivada da folha de coca, a Erythroxylum coca.
É uma pasta à base da cocaína, isto é uma mistura das folhas de coca com produtos químicos
como ácido sulfúrico, querosene, cal virgem entre outros, também chamada de mescla, ou
mesclado, quando misturado nos cigarros de tabaco ou de maconha.
A partir de suas investigações e comunicações com membros da irmandade, Rocha
narrou que o uso da merla ajudava Sebastião a reduzir as dores que sentia em seu corpo
adoecido. A partir de meados dos anos 1980, depois da picada de arraia que sofreu, houve o
agravamento de seu estado de saúde, das doenças do coração. Cito a partir de sua dissertação,
que Marco Grace Imperial narrou que Sebastião lhe:

(...) pedia para acabar com a dívida e com a mescla. Falou para mim: filho,
para meu uso é uma maravilha, fico sem dor. Consigo respirar e consigo
dormir. Se não é eu ficar agarrado neste pau que você está vendo a madrugada
e o dia todo. Só consigo ficar assim, em pé, com os braços levantados
segurando neste pau. Mas para mim é bom, mas para o povo é uma desgraça,
atinge logo as mulheres. E atingindo as mulheres todos são atingidos. Acabe
com isto para mim (...).760

A menção à esse pau, espécie de instrumento terapêutico usado por Sebastião ao final
de sua vida para tentar diminuir as dores que sentia no peito, apareceu nas lembranças de
Maurílio:

Ele tinha um trapézio que ele costumava botar assim pra esticar os braço e esticar
o pulmão quando ele tava com falta de ar né, problema de coração e aquilo ele
esticava assim… era até uma cena feia de ver ele agarrado naquele trapézio
pendurado mesmo porque era um jeito que ele abria os peito pra respirar né, aquela
barba pendurada, era uma cena assim até meia triste.761

Quem também comentou sobre a chegada dos cabeludos em Rio Branco e na Cinco Mil,
detalhou como se dava a produção de artesanato na Colônia nos primeiros anos de 1980, como
a Colônia era um point da contracultura, foi a historiadora e narradora Marinez Rodrigues, uma
jovem estudante universitária que frequentava a Colônia Cinco Mil aos finais de semana:

760
Publicação no grupo “Santo Daime” do site Facebook.
761
M.J.R., 2022.
227
“Porque na época eu era muito ligada tipo assim, eu vou para Colônia para tomar
Daime, pra fumar, pra fazer chá de cogumelo, a gente botava mesmo para se
experimentar, a gente fazia chá de cogumelo passava o dia com a galera tomando,
pitando, outros dias tomando Daime e não me ligava muito na questão da história.
Isso aí foi uma coisa bem depois, naquele momento eu queria saber de tomar Daime,
tomar Daime. O feitio era uma festa, eu fazia uma feirona, aí minha mãe já estava
se conformando em me deixar ir para lá, aí me ajudava a fazer a feira e tal e me
mandava... eu fiquei até de meses lá. Aí bom, conheci o padrinho Sebastião, conheci
tudo, mas não pensava em me fardar, nada disso não. Geraldo veio bem novo ainda
de mochila nas costas, tava começando o movimento de artesanato na Colônia em
1983, o Geraldo Bill era o chefe dos artesãos, tinha ele, tinha o Armando e aí chegou
o Carioca, aí tinha uma casa alta, que era do lado ali da casa grande, descendo, tinha
uma casa alta e o padrinho Wilson cedeu pros artesões. Aí eles começaram a fazer
uma produção em conjunto. Até aí não tinha aqui no Acre, em Rio Branco, em canto
nenhum produção deles assim, em conjunto. Aí o Geraldo, uma galera que era
hippie, aí eles juntaram traziam umas coisinhas, missangas de cerâmica, traziam do
Peru e aí os meninos começaram a aprender e fazer lá na Colônia mesmo e aí o
Geraldo foi quem começou a fazer essa história de artesanato com semente:
Mulungu, Açaí, não sei o que, aí a gente pitava muito e ficava ajudando ele. Aí o
padrinho Wilson deu dois dias na semana pra eles virem na cidade e três dias era lá
na Colônia, trabalhava pra casa grande e aí eles montaram a casa deles. Era legal,
tinha a coisa de artesanato, você chegava lá era um monte de cuia com semente,
eles tinham um bocado. Mas aí foi na época que veio a história da mescla, que
também foi uma passagem muito forte que teve na Cinco Mil derrubou muito
economicamente foi isso.”762

Maurílio lembrou desta época, quando voltou para administrar a Cinco Mil pela
primeira vez, recém-casado com Maria Gregório.

“E nesse Rio do Ouro veio a história, veio a história que eu me caso com a filha do
padrinho Sebastião e retorno a Cinco Mil em 83. E justamente é esse período, que
é um período assim que a gente brinca que foi um período meio sombrio da história
da doutrina. Foi um período que ele se envolveu, se envolveu com… com, com
coisas mais fortes assim. Teve a época da droga pesada, que o padrinho, por
experiência dele mesmo, era um cara que não tinha medo de nenhuma
experiência… como foi com a Santa Maria, o dia que ele fumou e falou: Olha, quero
saber mais! Porque ele sempre tinha algo e realmente nunca foi fora do estudo
espiritual, isso é o mais importante… ninguém nunca fumou para poder curtir,
ninguém usou nada nesse pra não ser por uma caminhada espiritual. A gente ia
procurando o que é que isso espiritualmente, aonde é que dá isso. E foi quando o
padrinho, no trabalho dele, alertou: ‘não vejo vantagem nenhuma nisso, vamos sair
disso. Isso não é coisa pra nós, isso não tem vantagem. Os espíritos disso não
evoluem, eles param naquela né’ …”763

762
M.R., 2018.
763
M.J.R., 2022.
228
Além de Marinez e Maurílio, quem falou muito abertamente sobre o contexto de uso de
outras substâncias psicoativas no Daime, sendo um dos aspectos que passou a caracterizar o
seguimento de Sebastião e sua ligação com a contracultura foi Aluízio, que confirmou que a
merla tornou-se um hábito na comunidade, mas com o tempo, Sebastião havia recomendado
que todos parassem, pois não era uma coisa positiva, que “não tinha verdade”.

“O apelido dela era santa clara porque ela é branquinha clarinha... depois o velho
Mota foi e disse “não! Não dá certo não, quem me ouvir falar é isso, que isso aí não
vai não.” Foi mais ou menos na época do cogumelo também... 1977,1978 por aí...
em 1981 eu estava no Rio do Ouro... eu lembro o velho pediu para parar, finado
Mário Rogério, foi lá para o Mapiá fazer o estudo dele aí ele morreu lá, fumando,
aí o estudo foi este, a morte, o final é morte, ele morreu, que ele já era velhinho e
lascou, como falava. Aí o resultado é esse, a morte, a destruição... que o Velho Mota
fez o estudo e ele disse que só achou espírito cocho, aleijado e desconfiança,
mentiroso. Então ele disse: ‘não tem nada de verdade aí não, quem me ouvir a partir
de hoje para’ ... aí está, onde ela está lá, não tem prosperidade, não tem verdade, é
desconfiança, é mentira. Na época do cogumelo também pediu para parar de usar o
cogumelo, a gente fumava com chá de cogumelo e entrava numa miração. Teve
alguns trabalhos, mas não na igreja... sem farda... a gente tomava mais em casa
mesmo... tomava chá de cogumelo, fazia o chá ou mesmo comemos... várias vezes.
Padrinho tomou também, mas parou. Padrinho usou tudo, até chá da papoula...
tomava um chá ficou tudo doido, parou também.”764

Rocha considera que estes estudos que Sebastião fazia com a merla “supriam o seu
desejo de aprender com uma possível inteligência existencial”765 desta planta, mas pelo fato de
a comunidade ter apresentado um quadro de usos abusivos, “ele teria dito que nela ele não viu
luz”766 e “não foi possível agenciar subjetividades”767. Flaviano rememorou brevemente sobre
a Cinco Mil de meados da década de 1980:

Lá por 1983, eu estava vivendo em uma aldeia Ashaninka, no Alto Rio Envira, onde
conheci a forma tradicional desse povo usar a folha de coca e gostei muito. Depois
de meio ano por lá, decidi retornar para a Cinco Mil e, quando cheguei, me deparei
com esse cenário de algumas pessoas fumando pasta base. Eu também entrei na
onda e fiquei algum tempo usando e o número das pessoas que queriam
experimentar foi aumentando. Foi uma época difícil, algumas pessoas saíram da
igreja, outras ficaram tremendamente dependentes. No meu caso, nunca me
entreguei ao vício devido ao Daime; todas as vezes em que entrava fundo na pasta
base começava a me dar uma grande crise de consciência e só conseguia consolo
764
A.F.S., 2020.
765
ROCHA, 2021, p. 82.
766
Ibid.
767
Ibid.
229
quando tomava uma dose caprichada de Daime e ficava remoendo o porquê de eu
estar usando aquela droga e me prometia parar. Várias vezes quebrei minhas
promessas até que um dia parei mesmo.768

Túlio Viana também narrou com detalhes sobre a chegada da merla na comunidade.

“A gente chamava merla, eu acho assim que quando eu conheci a primeira vez ali
com a minha recordação, era o pessoal que ficava mais em contato com a cidade e
os chilenos, porque viajavam para regularizar o passaporte. Mas eu me lembro que
a primeira vez foi com os chilenos no ano de 1979, então a merla já tava entrando
né? E eu me lembro que quando eu peguei a primeira vez já era uma coisa muito...
Os chilenos falaram ‘ah Santa Clara’, né... eu só ouvia por parte dos chilenos falar
Santa Clara, o Raul, o Cristiano e o Xavier. Então quando eu peguei, eu lembro que
a primeira vez foi um vidrinho e era uma coisa assim muito... era um negócio muito
especial, muito especial, a gente não fumava assim... era na hora de sei lá, cortar
uma lenha... Não tinha um vício, mas logo a princípio... depois eu vi que alguém
trazia de presente pro Padrinho sabe? ‘Ah o Padrinho gosta’ e tal e eu vi que havia
um conflito, que o Padrinho tinha um conflito, então meio que era uma coisa velada,
era uma coisa que ninguém comentava muito, mas que ia aparecendo aos poucos
dentro da Colônia. Ela ligou mais o pessoal da cidade com o pessoal da Colônia,
ela aproximou mais a galera. Porque antes todo mundo ficava, o pessoal da Colônia
tinha tipo um preconceito com o pessoal da cidade né? Tipo assim, nós somos
salvos e eles são os condenados e isso foi um momento, na mescla teve um
equilíbrio assim, porque como o pessoal da Colônia também ia lá fumar com a
galera e a galera vinha, ela acabou criando assim, de repente uniu mais.”769

Entre os adeptos do Daime que circulam na Colônia Cinco Mil é recorrente a narrativa
que reforça que Sebastião recomendou que “quem estivesse com ele era pra largar”, ou mais
precisamente como narrou Aluízio, “O velho Mota foi e disse ‘não! Não dá certo não, quem me
ouvir falar é isso, que isso aí não vai não.’” Túlio narrou que também via com insatisfação
aquele uso, mas realmente estavam todos envolvidos.

“Um momento especial que eu lembro assim, tava tendo um feitio, eu tinha batido
jagube durante a madrugada, tinha saído pra minha casa, que eu morava na horta já
e vinha voltando pro feitio de novo... ali tinha os tal dos cagador né? Aí eu... ‘Vou
passar ali... tô meio apertado aqui da barriga, vou passar lá porque já fico liberado
pro feitio’. No que eu vou pro cagador eu começo ver uns negócio branco no chão,
umas manchas assim e eu falei ‘uai, que que é isso?’, já perto do cagador assim
mesmo. Aí eu achei estranho... aí peguei falei assim ‘mas será que é isso que eu tô
pensando?’ Botei um pouquinho na boca e nossa era a merla. Aí falei ‘mas no chão
assim?’ aí peguei uma folha e comecei a juntar. Juntar, juntar o que dava, tava meio
espalhado parece que jogaram meio espalhado. E nisso eu fui juntando, juntando,

768
F.S.,2020.
769
T.C.V., 2021.
230
juntando o que deu... fui no cagador e tinha ali no meio e tal... aí juntei um bocado
na folha aí falei ‘nossa tenho que falar com o povo’... Por que isso aí eu pegar eu
vou ter que repartir’. E aí tudo bem né? Mas porque tinha esse merla no cagador?
Aí eu fui no feitio ali, eu fiquei sabendo de que antes, o Padrinho tinha ido lá no
feitio e tinha dado tipo uma preleção. E falando que a mescla era tipo Satanás que
tava invadindo a Colônia, um trem assim. Uma coisa ruim do mal e não sei o quê e
que tinha que cortar isso e não sei o que, isso os caras me contando... O Ximiná
tinha tido uma visão com São Francisco, que dizia para jogar aquilo tudo fora, daí
foi pro cagador jogar tudo no cagador, ele tinha comprado um monte na Cobija e
espalhou por todo lado. Quando chegou no ano de 1984 acho que era início do ano...
Essa foi uma balada forte, começou um pouco balançar as coisas tudo. Que eu
lembro que foi num dia assim que eu encontrei um maluco na cidade e ele me deu
um pulseirinha, era uma pulseira muito bonita que ele tinha feito e ele falou: ‘Túlio
eu vou amarrar essa pulseirinha no seu braço e vou fazer três nós e em cada nó você
faz um pedido da sua vida do que você quer’ e eu lembro que um dos pedidos que
eu fiz, já no final, o último pedido, era que tinha que parar aquele negócio da mescla.
Eu achava que era um negócio que sei lá, foi como um pedido a Deus que a gente
tinha que se livrar daquilo.”770

Assis e Rodrigues771 escrevem que a folha de coca, enquanto uma medicina sagrada,
tem sido historicamente uma importante aliada na adaptação à vida em regiões de grandes
altitudes e portanto baixa pressão atmosférica como na cordilheira dos Andes. É um patrimônio
histórico e cultural em alguns países como a Bolívia e tem um uso tradicional por diversas
etnias indígenas. Desta forma, Assis e Rodrigues relembram a sacralidade da psicoatividade da
planta em si.
Outra medicina de conhecimento dos povos indígenas que os adeptos do Daime desta
vertente experimentalista e psicoativa incorporaram, desde o início da abertura para outros
estudos empreendida nas décadas de 1970-80, foi o uso da secreção do sapo conhecido como
kambô, kampô, a Phyllomedusa bicolor, popular vacina do sapo que contém peptídeos
analgésicos. Essa resina de caráter medicinal descoberta pelos indígenas é usada como vacina
por nativos na Amazônia, para prevenção e combate a doenças. Sua aplicação é realizada sobre
a pele, que leva pequenos pontos de queimaduras para que a resina seja colocada em cima e
transportada rapidamente para todo o corpo pelos vasos linfáticos.
Quem narrou sobre os primeiros usos de kambô junto ao povo do Daime do padrinho
Sebastião foi Viana, que contou sobre o dia que Dácio, seu amigo, teve a experiência com Chico
Corrente. “A sensação foi de converter-se em sapo, ele só lembrava do primeiro pulo na poça

770
A.F.S., 2020.
771
ASSIS e RODRIGUES, 2017.
231
d’água. A mata escureceu e seu coração disparou. Quando novamente deu por si, estava na casa
do Chico, numa rede, sendo cuidado por ele e sua esposa.”772
Almeida Ramos, interessada em entender os rastros que a contracultura imprimiram na
Cinco Mil, também mapeou narrativas sobre o uso de cogumelo e outros psicodélicos na
comunidade. Para ela, a principal motivação dos jovens que se dirigiam à Colônia

era a de realizar experiências com plantas capazes de promover alterações na


consciência e desencadear viagens interiores com o mesmo material dos
sonhos de forma mais nítida e intensa com a participação do corpo desperto e
capaz de captar e identificar sensações outras não comuns no estado usual de
consciência.773

A historiadora narra seu encontro com Geraldo Costa, conhecido como irmão Bil, um
dos mochileiros que, chegando na comunidade, ali viveu muitos anos trabalhando com
artesanato e na enxada, nos plantios, feitios, construção de casas. Quando seu Bil morava ali,
seu cantinho na Colônia, numa casa bem próxima à sede da igreja, o quintal estava sempre bem
cuidado e com vistosas espécies de rainha. Muito desiludido com tudo e com todos, se mudou
da Cinco Mil. Para Almeida Ramos ele “comentava naquela manhã, sobre suas habilidades em
fazer bolinhos de cogumelo”774 e que “falava com muita propriedade, como um expert no
assunto, do San Piedro, um alucinógeno do Peru, cujo vôo era alto mas criticava o Daime ou
ayauásca que, segundo ele, promovia um vôo rasante.”775 Túlio também comentou sobre a
importância dos cogumelos na sua trajetória de iniciação com o uso de psicoativos:

“É. Como cê falou, né. O cogumelo ser importante procê quando cê começou... eu
também tem muito a ver, porque o cogumelo aparece na minha vida logo após a
Santa Maria, a marijuana... E... eu tô no Rio de Janeiro e esse primeiro chá de
cogumelo ele realmente vai marcar minha iniciação, né. A partir daí eu começo ver
que a coisa é bem diferente. É uma iniciação mística mesmo. Uma iniciação que
eu... eu começo a me compreender como ser humano, como... a questão do
autoconhecimento. Eu repenso sobre mim mesmo e me encontro desde a infância,
né. Vendo que tudo tem uma ligação, que tudo tinha um porém... E foi o cogumelo
que me propiciou isso, me deu essa iniciação que... Que vai mudando a minha vida
muito rapidamente.”776

Túlio detalhou que o uso de cogumelo na Colônia, que no início, era uma coisa que só
os estradeiros faziam e que depois o padrinho Sebastião foi começando os estudos. Destaca que

772
VIANA, 1997, p. 181.
773
ALMEIDA RAMOS, 2002, p. 12.
774
Ibid.
775
Ibid.
776
T.C.V., 2021.
232
ainda no final da década de 1970, até a Santa Maria era algo usado com muita reserva, que eles
ouviam falar que o Sebastião fazia uso da erva na comunidade, mas demoravam a ver ou ter a
oportunidade de consagrar com ele.

“Na comunidade o cogumelo foi assim, né... Foi aquilo que eu conto no livro, que
a gente saia e ia pegando... Padrinho dá um dia livre pra nós e a gente saia pegando
cogumelo... A gente não via falar nada sobre cogumelo na comunidade. Isso era
bem da gente, né. Que a gente já tinha de maluco. Que nem a Santa Maria eles
falaram pra nós, né. A gente não sabia... A gente suspeitava, né. Porque tinha ouvido
falar, mas não víamos nada lá... Aí nesse primeiro cogumelo que eu vou tomar que
eu acho um reinado, aí falou: Realmente aquela viagem, ela é uma coisa assim...
Acho que até hoje é uma coisa que eu penso, é uma coisa que eu ainda posso refletir
muito. Ela é muito forte! É... E essa viagem ela me coloca mesmo numa... Nessa
coisa, de ver a questão do Cristo Cósmico, sabe? Essa coisa... O humano e o
crístico... É... É muito forte... Ali eu vou em todos os tempos, eu acho... Em todos
os tempos, em tudo o mais profundo que eu já passei. É uma coisa que eu penso...
Naquele momento eu penso que não vou me recuperar mais de tão profundo que é
tudo. Mas logo depois dali começou... Aí os pessoal, começou depois desse
cogumelo aí, o Roberto Paraná pegar cogumelo, aí o Alfredo começou a receber
um hino de Cogu Rei, aí começou umas concentração que deu cogumelo e depois
fez algum trabalho, mas não foi uma coisa assim... Não foi uma coisa que rolou
com constância não. Foi bem pouca, foi um tipo um modismo de uma época. A
época do Cogu Rei... E rolou alguns trabalhos e rolou algumas coisas e todo mundo
tomou... que veio da natureza dos cabeludos, como veio a Santa Maria, né. Aquilo
ali foi um experimento do Padrinho como todos os experimentos que ele fazia.”

Assis destaca que

Com o tempo, as experimentações psicodélicas com fins de indagação


religiosa foram diminuindo, até que o uso ritual de cogumelos no CEFLURIS
cessou. Já a Santa Maria não só manteve, como aumentou sua força na
doutrina, estando bastante presente também no movimento diaspórico do
Santo Daime ao redor do mundo.777

Sobre os boatos de que Sebastião teria morrido de overdose, difundidos sobretudo a


partir da escrita de Castilla, Raimundo Nonato comentou, sem que eu perguntasse ou tocasse
no assunto, referindo-se a uma conversa que teve com um afilhado de outra região, que havia
lhe perguntado algo sobre este tópico:

“Outra coisa, padrinho não morreu de overdose, não conta essa história, porque o
senhor tá se aterrando, não conte essa história de um homem santo não, porque o
senhor não tava lá pra provar e para falar de um homem igual ao padrinho Sebastião,

777
ASSIS, 2017, p. 112.
233
ou de outro qualquer, meu irmão, vamos lá, olhar de perto para contar de certo, para
ver como é que é.”778

Durante as décadas de 1980 e 1990 o Daime e as religiões ayahuasqueiras em geral, que


até então eram movimentos esotéricos locais, amazônicos, passam a serem vistos como uma
preocupação nacional, na medida em que se expandia rapidamente do trânsito entre culturas
das cidades-florestas amazônicas para os centros urbanos de outras regiões brasileiras. Rocha
fala das tensões que caracterizam esse tempo de fundação das comunidades do padrinho
Sebastião, destacando que foram muitos os “balanços” enfrentados pelo grupo, entre eles a
investigação da comunidade pelo uso da Santa Maria, que enuncia um devir xamã e o processo
de legalização da ayahuasca, sobre o qual Rocha disserta acerca do devir planta.

Entre subjetividades convergentes e divergentes, minoritárias e dominantes,


as alianças no circuito daimista ao devir planta, tendo no consumo de plantas
um meio facilitador de gerar técnicas e cuidados de si que, por sua vez,
transgridem a medicina moderna, enunciando um devir xamã aos humanos
modernos que buscam tecnologias para lidar com os males físicos, psíquicos,
emocionais e psicológicos que os acometem e afligem.779

A partir dos anos 2000, novos arranjos socioespaciais e comunitários vão se


desenhando, numa época de muitos encontros e festivais, que recolocaram a Cinco Mil na rota
de estradeiros e no mapa das comunidades alternativas sonhadas nos movimentos
contemporâneos de contracultura, hippies espiritualistas, psiconautas. O termo psiconauta vem
sendo usado há algum tempo para se referir as pessoas que buscam experiências com
psicoativos, como plantas professoras, enteógenos ou mesmo alguns psicodélicos sintéticos.
São peregrinos, andarilhos que, viajando países, continentes, o mundo, buscam experiências
com esses psicoativos e suas diferentes tradições de uso, entendidos como ferramentas ou
tecnologias para atingir estados alterados de consciência, que possibilitam formas de ampliar a
percepção.
Almeida Ramos narra que embora influenciado pelo script judaico-cristão, o povo da
Cinco Mil “ampliou leque das possibilidades do uso do Daime”780, não só porque incorporou
outras plantas professoras nos estudos da comunidade como também porque absorveu
porosamente influencias advindas de outras correntes espiritualistas. Além da aproximação com
o panteão afro-iorubano dos orixás, através das interpretações da Umbanda e suas entidades,

778
R.N.T.S., 2019.
779
ROCHA, 2021 p. 125.
780
ALMEIDA RAMOS, 2002, p. 80.
234
neste seguimento do Daime de Sebastião, “já se encontram hinos que remetem ao rei Huásca
do Peru incaico ou ao Krshna do panteão hindu”781. Mas dentre estas entidades incorporadas ao
panteão da cosmologia daimista eclética, Tranca-Rua foi aquela que primeiro ocupou um
espaço mais marcante no imaginário. A chegada de um macumbeiro à comunidade, Rocha
associa a um devir-exu e é sobre isso que precisamos falar adiante se quisermos percorrer os
caminhos que nos levam aos acontecimentos que marcaram a fundação e formação do
seguimento descrito como “linha do padrinho Sebastião” no lugar Colônia Cinco Mil.
A expressão macumbeiro é dotada de múltiplos sentidos e é aqui utilizada porque é a
expressão que apareceu na literatura que ecoa do campo. É usada para se referir aos adeptos das
mais diversas práticas religiosas de matriz afro-americana ou, num sentido restrito, macumbeiro
é o adepto da Macumba, vertente do Candomblé difundida no Rio de Janeiro. Lembro que a
expressão macumba e macumbeiro é comum entre os adeptos dos cultos afro-brasileiros, para
se referirem entre si a si mesmos e suas práticas culturais. Alguns colocam a palavra como
inadequada e salientam que o termo, originalmente, significaria uma instrumento musical.
Alverga narrou que este personagem, o Ceará, assim se auto intitulava inclusive com orgulho:
“Nós chamava ele de macumbeiro mesmo e ele tinha o maior prazer, né?”782

781
ALMEIDA RAMOS, 2002, p. 80.
782
ALVERGA, 1992, p. 127.
235
2.5 Tranca-Rua, Exu no Daime e experimentações esquisotéricas

“Sou da porteira, sou da encruzilhada


Vou chamar meus camaradas
Pra mostrar como é que é
Salve o Seu Tranca-Rua...”

Porteiro Tranca-rua, Agarrube Melo

Exu é um orixá originalmente cultuado no reino Iorubá na África Ocidental, conhecido


como “aquele que tem a primazia das oferendas e faz a ponte entre o orun e o ayê”783 e que
chega ao Brasil como parte do patrimônio das diásporas negras nas Américas por ocasião da
escravidão, sendo expressão da resistência dos afro-brasileiros em preservar suas linguagens,
símbolos, conhecimentos e leituras do mundo. Exu, no Brasil, reinterpretado no Candomblé
baiano do século XIX, vai ocupar as entradas e guardar as portas dos terreiros. Exu, em outras
religiosidades como na Umbanda - e suas Quimbandas – e em outras manifestações de matriz
afro-espíritas do início do século XX, é associado às falanges de entidades e espíritos do povo
das ruas, zombeteiros, ditos de esquerda, malandros, exus, pomba-giras, etc. Por sua
aproximação com o cristianismo kardecista, a Umbanda já inaugura sentidos que remetem Exu
ao imaginário católico do Diabo, dos desviados, dos malandros, das mulambas, do povo da rua,
o que vai afastando do sentido de Èsù no Candomblé de matriz iorubana.
Luiz Rufino, em sua “pedagogia das encruzilhadas”, já comentou sobre a problemática
relacionada ao uso do termo e a “construção de categorias que definem as múltiplas expressões,
efeitos e operações assentados no signo Exu a partir da divisão entre as noções de
divindade/orixá e entidades/espíritos.”784 Na sua companhia entendo que

as definições também expõem os limites entre os contextos em que as mesmas


são reivindicadas. Assim, as definições que compreendem os limites e
diferenças entre o que se significa enquanto orixá e enquanto entidade são
lançadas em um debate que muitas vezes se dá em torno das reivindicações e
legitimidades em torno de uma possível essência e fixidez dos fenômenos.785

Reginaldo Prandi nos auxilia na distinção, em linhas gerais, da Umbanda e do


Candomblé, no que toca a concepção das entidades que compõe a cosmologia de cada um dos
cultos: “A umbanda é uma religião de espíritos de humanos que um dia viveram na Terra, os

783
PRANDI, R. Mitologia dos orixás. Companhia das Letras, São Paulo: 2001a.
784
RUFINO, 2017, p. 165.
785
Ibid.
236
guias. Embora se reverenciem os orixás, são os guias que fazem o trabalho mágico, são eles os
responsáveis pela dinâmica das celebrações rituais.”786 Tranca-Rua é uma das falanges dos exus
da Umbanda e, segundo essa cosmologia, atuam numa espécie de pólo negativo para fazer o
resgate das almas pecadoras e sofredoras.
No meio cristão das grandes religiões institucionalizadas, sobretudo aquelas vinculadas
à corrente neopentecostal, uma interpretação peculiar da figura de exu ocupa certa centralidade,
como uma representação da personificação do mal. Desde os padres católicos do século XIX
às milícias neopentecostais do século XXI, que organizam ataques a terreiros de matriz africana
em vários estados brasileiros, Exu vem sendo associado ao diabo dos infernos cristão,
personificação do mal, antítese do bem, evidenciando mais uma problemática faceta da
colonização que é a violência etnocida, que ataca cosmologias, modos de afirmação da vida e
da existência. O sincretismo, explica Prandi, não é apenas a correspondência dos santos
católicos e dos orixás, ou uma forma de disfarce para que o culto aos orixás pudesse existir sem
a intransigência da igreja.

O sincretismo representa a captura da religião dos orixás dentro de um modelo


que pressupõe, antes de mais nada, a existência de dois pólos antagônicos que
presidem todas as ações humanas: o bem e o mal; de um lado a virtude, do
outro o pecado. Essa concepção, que é judaico-cristã, não existia na África.787

O personagem Joselito ou José Lito, ou ainda Joselito Freitas dos Santos, o Ceará, foi
um dos estradeiros que chegou na Colônia Cinco Mil e marcou sua história. Sabe-se que este
homem deveria ter seus vinte e tantos anos quando chegou na Cinco Mil, nos primeiros meses
de 1977, frequentou o espaço até seu desfecho fatídico no mês de agosto daquele ano. Não se
sabe ao certo de onde era o Ceará, pelo que consta em Mortimer era natural da Paraíba, mas
relataram-me que poderia ser amazonense. Descrito como feiticeiro788, “maior macumbeiro”789,
“mariposa negra”790, “aparelho preferido do ‘Maioral das Trevas’ ou ‘Tranca-Rua’”791, “esperto
macumbeiro, charlatão, tarado”792, “o rei dos Exus”793, “o macumbeiro mais poderoso do

786
PRANDI, Sincretismo católico e demonização do orixá Exu. REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 46-63,
junho/agosto, 2001b, p. 54.
787
Ibid., p. 51.
788
ALVERGA, 1992, p. 124.
789
MORTIMER, 2000, p. 145.
790
ALVERGA, 1992, p. 123.
791
Ibid.
792
VIANA, 1997, p. 129
793
MORTIMER, 2000, p.142.
237
mundo”794, “um show-man”795, entre outras definições. Depois de sua chegada, a Cinco Mil e
o seguimento do Daime de Sebastião não seriam mais o mesmo. Francisca Corrente é uma das
que lembra dele com carinho e descreveu-o:

“ele tinha o cabelo ondulado, meio claro, não era muito moreno não, e tinha o olhar
agatinhado. O homem era bonito, bonitão mesmo. A gente pegava na mão dele
assim sentia uma energia, muito forte, mas era coisa boa, não era ruim não. Eu
fiquei muito amiga dele. Ele me contou tudo, as mulheres que ele ficou tudinho.
Ele me dizia que não tinha vindo pra cá atrás de mulher não, que ele amava a mulher
dele, pote de ouro, ele dizia, meu pote de ouro.”796

O contato com os trabalhos do Ceará tem sido lido como parte dos estudos
experimentalistas que Sebastião empreendia com os estradeiros que chegavam. A presença do
Tranca-Rua na liturgia do Daime traz à tona incômodas confusões de interpretação sobre os
sentidos de Exu no Daime, que antagonizam com a potência que Exu Orixá personifica, como
catalizador da energia vital, do axé, o verbo primordial de toda criação, ponte de comunicação
entre os mundos, para além do bem e do mal. A simbologia do Tranca-Rua no contexto da
cosmologia do Daime foi forjada nas narrativas que acabaram positivando episódios
controversos na comunidade da Cinco Mil, como quem evoca o provérbio que diz “que não há
um mal que não traga um bem”.
Foi durante aproximadamente cinco meses que Ceará apresentou seus trabalhos
espirituais para a comunidade, apoiado por Sebastião que, ao que parece, estava encantado com
os episódios de adivinhação, números com garrafas, cacos de vidro e as promessas de aliança e
poder que oferecia. Segundo Mortimer, “O Padrinho, na sua simplicidade e gana de aprender,
acreditou em tudo. O povo todo que o seguia foi junto e o Ceará ficou muito poderoso. Passou
a manipular todas aquelas pessoas. O homem não era fácil.”797 Alverga por sua vez narra que o
“velho Mota”798 teria recebido uma instrução do Astral para deixar o Ceará trabalhar na
comunidade durante aquele período, mas que ele precisava ficar atento.
Ele teria dito a Sebastião que iria ensiná-lo a dominar os exus e que a polícia não
chegaria na sua Igreja e ela iria crescer e ter “filiais por toda parte do mundo.”799 “Ele era muito
esperto e já sabia um pouco do Padrinho, de sua liderança religiosa e de seu povo”800, destacou

794
MORTIMER, 2000, p. 142.
795
Ibid.
796
F.C., 2022.
797
MORTIMER, 2000, p. 142.
798
ALVERGA, 1992, p. 124.
799
MORTIMER, 2000, p. 144
800
Ibid., p. 142.
238
Mortimer. Selaram um pacto. Moreira comenta a semelhança do acordo entre Sebastião e
Joselito com os pactos com os demônios descritos em folhetos literários, “edições de livros de
São Cipriano e orações da Cruz de Caravaca”, presentes no folclore brasileiro. Viana comenta
que ele se apresentou ao padrinho como alguém de “muito poder e sabedoria”801, que mostrou
que “podia rolar em cacos de vidro ou sobre o fogo” e que, por isso, “impressionou bastante,
prometendo ao Padrinho ensinar-lhes valiosos segredos”802.
No livro Viana conta que soube da história através do Oscar, que era catarinense, mais
um dos estradeiros que frequentava a Cinco Mil e que tinha ganhado a incumbência de ser o
motorista do Ceará. O fato de ter um motorista designado para atendê-lo indica o prestígio com
o qual ele passou a ser tratado naqueles meses em que Sebastião se comprometeu a deixá-lo
atuar na comunidade e realizar seus trabalhos.
Tudo indica que Ceará manipulava as pessoas e os objetos de sua encantaria de muitas
formas e em diferentes situações, aproveitando-se da fé, vulnerabilidade e da passividade de
seu público, posto que ele se apresentava consulente para orientação espiritual em situações de
conflito e tinha todo o aval da liderança da comunidade. Seu trabalho não era de caridade.
Mortimer e narradores que participaram desta pesquisa, como Neucilene, comentaram sobre os
altos preços que cobrava por seus serviços de adivinhação e trabalhos com oferendas. “Se dizia
capaz de mudar o curso tenebroso da vida. Cobrava caríssimo para resolver questões. Dizia
precisar do dinheiro para comprar o material do despacho.”803
Ao passar de alguns meses, descobriu-se que entre as estratégias de manipulação
utilizadas incluía-se o abuso de moças e o envolvimento com mulheres da comunidade.
Mortimer não deixou a questão no esquecimento e narrou:

Passou a molestar sexualmente as adolescentes, algumas tiveram seu corpo


apalpado e acariciado por sua mão pecaminosa. Sua maior maestria era criar
as oportunidades certas para dar o bote. A mais bonita das donzelas, uma
criança ainda de doze anos, foi estuprada e intimada a guardar segredo. O
garanhão investia também contra os lares. Houve caso dele enganar o marido,
dominar e possuir a esposa na própria cama do casal. Era um algoz flagelando
o povo. Estava encoberto por uma capa de poder. Sustentado pelo medo. Fazia
parte de sua estratégia manter as pessoas intimidadas.804

801
VIANA, 1997, p. 129.
802
Ibid., 1997, p. 129.
803
MORTIMER, 2000, p. 143.
804
Ibid., p. 148.
239
Viana narra que, ao que soube, “o Ceará deitava e rolava nas terras do Padrinho, fazia
os mais absurdos trabalhos, conseguia enganar homens enquanto seduzia suas esposas e as
jovens da colônia.”805 Mortimer narra um pouco sobre os detalhes do ritual e as entidades que
ele dizia trabalhar:

O povo sentava nos bancos ordenados, como uma platéia e ele, na frente,
garantia o espetáculo durante toda noite. Garrafas e mais garrafas de cachaça
eram bebidas e derramadas. Fazia parte de seu ritual despejar a aguardente na
cabeça dos participantes chamados ao palco. Ceará trabalhava com umas
tantas entidades. Me lembro de alguns, como o Zé Pilintra, Galo Preto, Tranca
Rua etc. Tinha um que era mudo, só dizia “ababaú”. Eram uns seis ou oito
personagens que ele atuava, ou seja, espíritos que recebia. (...) 806

A maneira como os estudos de Sebastião com o Ceará impactaram a vida naquela


comunidade do Daime não é um tópico de menor importância, visto que até hoje os aparatos
simbólicos acionados para dar significação aos traumas que se encrustaram na memória coletiva
do grupo produzem desdobramentos, sendo um capítulo de controversas interpretações e que
não caíram no esquecimento.
Perguntei a Neucilene, que foi uma das mais antigas seguidoras na Cinco Mil, o que ela
lembrava do Ceará e seus trabalhos. Ela foi uma das poucas que se dispôs a conversar sobre
esse tópico. Perguntar sobre o assunto àqueles que o vivenciaram é sempre induzi-los a
acessarem memórias de momentos de sofrimento e nem sempre foi possível, sabendo o
desconforto que é induzir uma pessoa a relembrar lembranças que trazem à tona feridas ou
cicatrizes. Neucilene acabou contando uma versão de como Joselito chegou à Colônia Cinco
Mil, além de detalhar a relação pouco amistosa que tinha com aquela figura que desestabilizava
a comunidade.

“Conheci sim. Faço nem questão de me lembrar. A gente pensava que ele era
macumbeiro, não tinha vantagem não, Julia. Eu sou muito descrente, eu tenho muito
medo às vezes, mas eu tenho muita fé em Deus. Eu tava grávida da Wilsiane quando
esse homem chegou, quem trouxe ele foi o Ivan... o Ivan foi, acho que pelos
cascalhos do inferno e por lá armou ele e trouxe e quando deu fé, o Ivan chega com
esse homem dentro do carro. A Gecila estava recebendo um hino lá na casa da dona
Zilda, em casa, nos se embalamos numa rede e a Gecila cantando um hino que ela
estava recebendo, eu não lembro qual era o hino... era um do comecinho do hinário
dela... Quando o Ivan chega, ele trabalhava num carro de empregado com um
homem lá, eu acho que do Manoel Moraes, aí foi num sei aonde quando voltou com
esse homem dentro do carro... encontrou o homem num sei onde que morava lá na

805
VIANA, 1997, p.129.
806
MORTIMER, 2000, p. 144.
240
6 de agosto... que tinha vindo para cá, porque ele era de Manaus no final das
contas... Aí quando dá fé, lá chega o Ivan com esse homem, colocando o homem
nas alturas, que o homem sabia disso, sabia daquilo, sei que aí, por sorte sempre
tem esses macumbeiros que, que te dizer alguma coisa que aconteceu contigo, que
é para tu poder crer nele né? Foi desse jeito que ele chegou, eu não me entrosei
muito na época que ele chegou não, a gente morava bem pertinho, todo mundo aqui
na cidade. Mas eu ficava assim, mais por fora porque, quando eu era criança, lá
perto de casa, tinha um homem que trabalhava com espiritismo, mas o homem
trabalhava que tu, ele trabalhava e tu via o resultado sabe? E esse, que Deus me
perdoe, quando ele chegou que eu vi as conversas, eu não tive fé, eu não vi resultado
nenhum sabe... porque eu acho que quem toma Daime, que nem eu via muito a dona
Percília falando isso, que o Daime era para todos, então quem toma Daime não
precisava se meter com outras coisas... Pois é, aí Julia eu não me abalei muito não...
aí logo o Padrinho chegou lá com seu Wilson... aí ele se entrosou lá, ele chamava o
Padrinho de barbudo... eu sei minha filha, que logo marcamos um trabalho... aí fui
conversar com a Madrinha Rita... ela ficou acreditando nele. E eu não acreditava...
lutavam para ir nos trabalho e eles mandavam me chamar. Fui em vários.”807

Mortimer narrou de outra forma sobre a chegada desta figura na Colônia Cinco Mil:
“Um dia, Seu Wilson chegou na Colônia com o tal homem que já há algum tempo estava na
cidade.”808 Como o Ivan era genro de Wilson Carneiro, Mortimer pode ter preferido narrar que
foi a partir dele que Ceará chegou à comunidade, ou talvez desconhecesse esta relação prévia.
Neucilene, por sua vez, fez questão de frisar que foi o Ivan quem o levou até Sebastião. Narra
que muitos seguidores antigos do Daime viam os novos rituais com desconfiança, não apoiavam
e que ela também sentia esse estranhamento, destacando o que aprendeu com Percília Matos:
“quem toma daime não precisava se meter com outras coisas”809.
Mas, para muitos, a liderança de Sebastião era inquestionável naquele lugar e, portanto
acompanhavam os trabalhos com o Ceará. Mortimer comenta sobre os apelidos que o Ceará
dava a Sebastião e a Rita, demostrando certo desdém: “o Padrinho por barbudo e a Madrinha,
que era gorda, por bolo fofo e, às vezes, por bola fofa. Uma completa irreverência por todo
mundo.”810 Sobre como eram os trabalhos do Ceará e sua resistência em frequentá-los,
Neucilene narrou:

“Você já foi em trabalho de macumba? Era trabalho de macumba mesmo, quebrar


vidro... riscar... Só besteira sabe? Da parte maligna, que olhava e via que de Deus,
não tinha nada ali. E ele dizia assim para mim “a senhora vai me pagar” e eu digo
“eu não estou lhe devendo nada, nem favor”... “deixa você ter esse menino que você

807
N.S.S., 2020.
808
MORTIMER, 2000, p. 142.
809
N.S.S., 2020.
810
Ibid.
241
vai me pagar”... eu digo “tá, pagar hein”. E o Padrinho Sebastião ia, uns tanto ele
foi. Aí uma vez ele disse se todo mundo não ficar concentrado o Padrinho ia morrer
atropelado... quando chegou diz que o padrinho tinha caido virando no sinal e o
Padrinho ia morrendo porque tinha ficado gente vacilando ... devia ter sido eu nesse
dia, eu fiquei fazendo figa e cruzando as pernas (risos). Até que chegou um dia que
eu disse para ele que eu não ia mais, a partir daquele dia não me chamasse. Porque
a gente não ia, ficava em casa, quando dava fé ele mandava o carro buscar, dava fé
chegava “o homem está te chamando”. Aí eu disse para ele “eu não vou mais não,
eu fico muito cansada de ficar sentada aqui... nem... não tenho precisão disto não,
me chame que eu não vou...”811

No ano de 1977, Mortimer conta que estava voltando de uma viagem que tinha feito a
Minas Gerais e chegando em Rio Branco foi à casa de Wilson Carneiro, no Bosque, que por ser
uma região relativamente central, “era um ponto de encontro da irmandade”812, assim como a
casa do seu Mário Rogério, no bairro 6 de agosto. Contou como ficou sabendo das impactantes
novidades e narrou sobre o seu estranhamento.

Eu não engoli aquele personagem e o senti como um intruso. Neste mesmo


dia quis contestá-lo, mas vi que o povo estava cego e dominado. Precisava de
uma melhor estratégia para vencê-lo. Além do mais, eu era recém-chegado.
Era necessário reconquistar minha posição.813

Neucilene na passagem seguinte contou algumas das formas como Ceará trabalhava,
influenciando com números mágicos e jogos mentais toda aquela comunidade.

“Mas era, isso tudinho aconteceu. Sabe o que ele fazia? A gente saía de noite, tava
num trabalho lá na casa do Padrinho, na casa grande, quando era nove horas da
noite ele dizia o meu caboclo, o burro, o meu burro tá dizendo que tem que ir em
tal canto, fazer um trabalho, se não vai acontecer isso isso e isso... e firma o
pensamento, não pode fazer figa, não pode cruzar as pernas, não pode fazer não sei
o que, aí ele escalava aquele povo que ia sabe... e uma vez eu caindo no Igarapé,
quem me segurou foi o Valfredo, eu ia bater lá dentro. Aí vinha pra rua um carro
cheio de gente, lá ele levava na casa de seu Manoel Moraes, ou então para a casa
dele na 6 de Agosto, mas ele só inventava o que não prestava... aí um dia ele foi e
disse para o compadre Nel que ele tinha que comprar não sei quanto, eu sei que era
muito dinheiro que o compadre Nel ia gastar, porque se o compadre não fizesse isso
a filha mais velha dele ia virar uma prostituta, que ele tinha que vender. Aí o
compadre Nel disse que não podia comprar, que não tinha dinheiro para comprar
aquilo tudo, “ah vai se tiver de ser ela vai virar, porque eu não vou gastar um
centavo’... Aí ele disse: ‘mas você não tem boi? Venda uma vaca’. E ele disse ‘eu
não vou vender nem um bezerro, não vou de jeito nenhum gastar sem necessidade’.
Não aconteceu nada. Então, o pessoal era besta sabe...”814
811
N.S.S., 2020.
812
MORTIMER, 2000, p. 141.
813
Ibid., p.142.
814
N.S.S., 2020.
242
Neucilene comenta que os trabalhos eram feitos em vários lugares diferentes, nas casas
de diferentes pessoas que, às vezes, ele se ausentava com algumas pessoas e pedia que todos
ficassem concentrados enquanto ele fazia o trabalho com o “seu burro”. Interessante chamar a
atenção para a expressão “meu burro”, que dá pistas da maneira muito própria que Ceará era
influenciado e também criava sua releitura de termos conhecidos do universo religioso de
matriz afro-americana. “Cavalo” é uma das expressões utilizadas nas religiões de terreiro para
se referir aos médiuns que recebem as entidades.
Alverga narrou que o macumbeiro destilava ameaças aos companheiros do padrinho
Sebastião: “— Agora é que eu quero ver quem está mesmo com o Barbudo! Eu vou mostrar os
podres todinhos que estão escondidos nessa comunidade!”815 Neucilene detalhou um pouco das
estratégias de intimidação, ameaças e sobre a criação de situações propícias ao abuso
empreendidas por Ceará.

“Eu acho que foi uma nuvem negra que passou na frente dele sabe? Eu nunca vi,
porque o Padrinho não era de se iludir não, mas dessa vez ele se iludiu mesmo... eu
acho que foi uma coisa mesmo pra que, era igual o hino da Tetê, “essa volta que
nós fomos dar é para agora nós ir se acordar, meus irmãos fiquem sabendo aquilo
que Deus deu ninguém toma”. Nessa época, ela já estava recebendo hino, já tava
para terminar o hinário. Pois é, aí ele, nesse dia ele disse que era para ficar todo
mundo concentrado, que ele ia não sei aonde mais com uma das mulheres, que era
justo na casa dela, era meia-noite, aí pulou os dois para dentro do carro e se
mandaram... chegaram parecia que não tinha acontecido nada acho... tenho pra mim
que nesse dia ele comeu ela dentro do carro... Aí ele disse que eu ia pagar ele mas
graças a Deus eu não paguei não...mas era sério.”816

Mortimer também comentou sobre o lugar onde os trabalhos eram realizados,


destacando dois deles:

Seu Manoel Moraes havia construído um galpão ao lado de sua casa na cidade.
Na Colônia ergueu-se a tronqueira, uma casa dentro da mata. (...) às vezes ele
chegava já perto da meia-noite na Colônia e acordava todo mundo, porque
precisava fazer um trabalho na ‘tronqueira’ e os moradores necessitavam estar
juntos. Fazia isto para impressionar e extorquir alguma vítima trazida da
cidade.817

815
ALVERGA, 1992, p. 124.
816
N.S.S., 2020.
817
MORTIMER, 2000, p. 143.
243
Alverga narrou que “Mal terminava um trabalho, que às vezes durava vários dias, já
começava outro sob o pretexto de que “tinha uma coisa enrolada na casa do fulano ou do
beltrano”818. Não é de se admirar que Mortimer narre que até as obras da Igreja pararam. “O
povo não tinha mais tempo para nada.”819 Sobre a Tronqueira e sobre estas convocações
repentinas para trabalhos avulsos, até cancelamento de trabalhos oficiais do calendário do
Daime, Neucilene narrou:

A Tronqueira era pro rumo da casinha do Daime, mas é para lá eu nunca fui lá. Teve
uma vez que fomos fazer um trabalho das mulheres e disseram ‘olha ali é a
Tronqueira não sei o que’, mas eu não procurei nem saber porque nunca fui lá, não
sei onde era... Nas casas onde ele chegava tinha trabalho. No seu Wilson, tinha
trabalho na casa do Padrinho, na casa grande, na igreja ele nunca fez. Teve uma vez
que tinha um trabalho na casa do seu Wilson, que era perto da Santa Casa aqui no
Bosque, daí ele deixou todo mundo lá e todo mundo tinha que ficar concentrado
com o pensamento subindo já para o céu porque se não ia acontecer isso, isso e isso.
Os únicos que eu não fui foi na Tronqueira. Naquele dia, no dia do trabalho da
Tronqueira, eu fiquei muito puta, eu e o compadre Nel ficamos muito puta, porque
era o dia do hinário da Semana Santa cara... e a gente foi daqui, nem sabia onde era
que ele tava... mas era assim, ele sumia um pouquinho, mas como não tinha que
desse atenção para ele, quando dava fé ele chegava no meio do povo de novo. Nesse
dia era o dia do hinário da Semana Santa e nós fomos cedo, fomos lá para o
compadre Nel, para a comadre Cristina, só me arrumava lá na comadre Cristina...
E nós fomos cedo, aí eu estava conversando mais o compadre Nel, na varanda e
quando a gente olha lá vai, que primeiro a gente andava a pé, varando pela outra
colônia quando da fé, lá vem ele. Tu acredita que ele passou lá para o Padrinho e
quando foi de repente, já chegou a notícia que não ia ter hinário, que ia ter esse
trabalho na Tronqueira. Aí eu digo ‘meu Deus do céu o mundo está para se acabar’.
Aí o compadre Nel disse: tá. E eu disse ‘porque que não vai ter trabalho?’ Porque
fulano vai fazer trabalho lá na Tronqueira, aí eu digo ‘atá só que eu não vou’... o
compadre Nel também disse que não ia...820

Neucilene reforça a linha narrativa que relembra que muitos seguidores de Sebastião
viam a aproximação do macumbeiro com desconfiança porém se sentiam incapazes de intervir
e se antepor à sua autoridade. Cancelar um trabalho oficial do calendário do Daime é lido, na
dinâmica ritualística, uma alteração das grandes. Túlio Viana além das passagens descritas no
livro, narrou:

“Nós chegamos no calor da confusão do Ceará. Foi uma coisa muito sentida pela
gente, assim, rapidamente, porque tava realmente nesse calor. Inclusive, pelas
informações que repassava o Oscar, que tinha sido motorista dele no Jeep velho que

818
ALVERGA, 1992, p. 124.
819
MORTIMER, 2000, p. 143.
820
N.S.S., 2020.
244
tinha na Colônia. Ele era designado pra ser motorista do Ceará... E o Ceará né...
Tem toda visão da Colônia, da história... Eu acho que ele tem um lado assim, que é
o lado que ele foi um ilusionista. Um lado que atraiu as pessoas que ele influenciou,
né? Esse pessoal era mais novo, eles receberam muita influência do Ceará. Porque
o Ceará também tinha essa simbologia, né... Do homem nordestino, do corpo
fechado... Aquele que deita e rola em caco de vidro, o conquistador... Isso de certa
forma também causava uma atração, as pessoas viam com sei lá... Até onde foi que
o pessoal sabia e não sabia, é difícil também dar essa linha, né. Porque... Havia um
tipo, digamos assim, de feitiço sexual coletivo... Foi tudo isso...”821

Os relatos sobre a figura do Ceará e seus feitos na Colônia Cinco Mil são narrativas
dúbias e que causam confusão, parecem querer evocar a presença de Exu, aquele “que leva dois
amigos a uma luta de morte”822. Alverga diz que no São João de 1977 Ceará tomou o Daime
pela primeira vez. Narrou que “Quando as atuações do feiticeiro tomavam Daime, denunciavam
muitas coisas erradas que aconteciam no meio do povo, causando um grande rebuliço, que era
por onde o poder da baixaria aumentava.”823 E que o padrinho seguia dando Daime para as
atuações do Ceará, que segundo ele mesmo diria, eram uns caboclos “tudo ruim e bravo”824.
Alverga narrou ainda que o padrinho Sebastião “teve uma visão em que saiu pelo Astral”
e encontrou uma enorme lona numa casa que encobria os trabalhos do Ceará: “Só porcaria e
pretensão” 825
, ele teria encontrado. O que de tão poderoso o macumbeiro Ceará poderia
oferecer a Sebastião e sua irmandade através desta aliança, senão um arsenal de mentiras,
intrigas, ameaças, intimidação, extorsão, desestabilização e, o pior, abusos contra mulheres?
Pelo que se sabe do decorrer dos acontecimentos, das investidas da polícia, o Tranca-rua não
livrou a comunidade como prometera.
A simbólica noite de São João de 1977 aconteceu depois deste tempo com os trabalhos
de Daime suspensos por causas dos estudos e experimentações com o repertório de encantarias,
macumbas e feitiços que o Ceará trazia. Mortimer narra que “Nesta noite de São João, o encanto
do macumbeiro se esvaiu. Como se a capa que o encobria fosse retirada. (...) Como isto
aconteceu, ninguém sabe explicar. Foi um toque que acordou o Padrinho e todo o povo para o
disparate que estavam vivendo.”826 A narrativa de Mortimer, que estava lá presente, diverge da
de Alverga em relação ao fato do Ceará ter ou não ter tomado Daime. Diz que nesta noite de
São João, “o Ceará foi ver, embora sua vontade fosse impedir aquela realização. Era a primeira

821
T.C.V., 2021.
822
PRANDI, 2001, p. 48.
823
ALVERGA, 1992 p. 125.
824
Ibid., p. 127.
825
Ibid., p. 126.
826
MORTIMER, 2000, p. 148.
245
vez que encontrava o povo todo engalanado com sua farda branca. Não esperava por tanto. Não
aceitou tomar o Santo Daime. Foi embora para casa dormir. 827
Diz-se que foi a partir desta noite de São João que a dona Percília Matos, antiga
seguidora do Ciclu, recomendou e se prontificou a fazer o antigo Trabalho de Cruzes ensinado
pelo mestre Irineu para caso excepcionais de possessão, “Uma extensa oração em que se vai
benzendo com uma pequena cruz de madeira.”828 A intenção era “afastar o macumbeiro que
dizia possuir o maior dos capetas.”829 Segundo Mortimer, foi a primeira vez que o Trabalho de
Cruzes foi realizado na Cinco Mil. Neste trabalho, ele teria confessado “sem nenhum
arrependimento ou escrúpulo”, “sua investida sexual contra senhoras” e, ainda segundo
Mortimer, “Terminou num tom ameaçador: ainda tinha poder para prejudicar todo mundo. Que
ninguém fosse contra ele.”830 As ameaças de Ceará causavam certa preocupação principalmente
porque ele conhecia o segredo da Santa Maria e todos, de alguma forma, temiam as investidas
policiais. A narrativa de Alverga não cita a realização do Trabalho de Cruzes, e os narradores
que conversei também não guardam muitas memórias.
Muito se especula se as relações que Joselito teve com mulheres da comunidade teriam
sido abusivas ou consentidas. Sabe-se que algumas destas relações foram consentidas pois
Joselito também teria um charme e uma gentileza no trato com as mulheres da comunidade que
geralmente faltava em seus maridos, mais dados ao imperante machismo. Dizem que até pouco
tempo, um dos maridos traídos punia a mulher, culpando-a por tudo de desagradável que
acontece, remetendo aos resquícios e fantasmas desse acontecimento. Já o envolvimento com
as adolescentes parece que foi um pouco mais controverso e, em uma das situações, envolveu
a mãe e a filha, de modo que a presença do jovem cabeludo, cheio de presença de espírito,
causou feridas em pelos menos duas famílias bem próximas de Sebastião. Alverga narra que
“O feiticeiro havia feito grandes estragos e ofensas à honra de muita gente de bem.”831
Mortimer narrou que, desde então, Joselito foi avisado para que fosse embora da
comunidade “porque tinha muita gente com raiva. Principalmente o pai que teve sua filha
molestada, os maridos enganados e um outro senhor de cujo automóvel ele havia se
apossado”.832 Ainda segundo Mortimer, Sebastião “queria que o povo se conformasse e
deixasse o Ceará seguir a sua rota, um dia ser justificado e, quem sabe, arrepender-se e pedir

827
MORTIMER, 2000, p. 148.
828
Ibid.
829
Ibid., p. 149.
830
Ibid.
831
ALVERGA, 1992 p, 126.
832
MORTIMER, 2000, p. 149.
246
perdão a Deus.”833 Aluízio narrou que Sebastião teria orientado a todos os envolvidos que não
fizessem nada.

“Que vai ter quem faça e já vinha um cara, já vinha gente atrás no rastro dele pra
pegar, que por onde ele passava era destruição. Mas aí, o cara come a mulher e a
filha do cara, a filha dele bonitinha a menina bonitinha pra caramba e o cara ia
deixar? O cara pegou a mulher do cara e a filha do cara e ainda vai ficar
engravatando os dentes? A ideia era capar direitinho mas este pai e marido
revoltado, com ajuda dos outros, arrancou foi com tudo, cortou com tudo jogou lá
no meio da rua. Queriam fazer direitinho que nem capa boi e porco, pra ele olhar o
bolo e não poder comer mais. Mas quem fez o serviço não teve a calma... ele tava
louco mesmo... a família destroçou... tudo acabou, ficou tudo meio abestalhado... a
véia endoidou mesmo.”834

Quando descobertos, os episódios geraram grande revolta em pais e maridos que


resolveram a questão de forma radical: caparam o homem abusador que havia sido, de forma
controversa, acolhido pela irmandade na Colônia Cinco Mil. Porém, o homem acabou tendo
uma hemorragia grave e morreu. Assassinaram um homem, um crime de vingança.
Mortimer narra que Ceará chegou a ir para Brasiléia, município vizinho, mas logo
retornou a Rio Branco, quando teve o encontro com seus algozes na casa de Wilson Carneiro.
Joselito não baixava a guarda e teria enfrentado os antigos seguidores de Sebastião com a
mesma arrogância de sempre, “engravatando os dentes”, ameaçando-os e inflamando-lhes o
ódio. Eis que o crime acontece: “com a faca de cozinha”, cortaram “de forma grosseira a
genitália do macumbeiro, que foi jogada pela janela à rua.”835 Mortimer narra que então o corpo
ia sendo trazido na caminhonete até a Colônia Cinco Mil quando, no caminho, o atiraram no
mato, nas redondezas da Cinco Mil. Foram aconselhados por Sebastião a se apresentarem para
as autoridades mas, antes disto, a Polícia Militar já estava na Colônia pronta para prender os
três diretamente envolvidos em flagrante.
Neucilene fez uma síntese, ressaltando que Ceará ficava “de olho nas mocinhas” e citou
os versos do daimista de Boca do Acre/AM, Odemir Raulino, composto no dia que o mataram.
Ela narra que ambos, quando souberam da notícia, ficaram muito mal.

“aí pegou um papel e uma caneta, aí começou a escrever no caderno. E eu não sabia
o que era que ele tava fazendo, até que ele: ‘olha aqui nega!’ e eu olhei: ‘Na colônia
Cinco Mil na beira do Redenção, mora um homem barbudo chamado Sebastião. Foi
aí que esse outro cara começou a traição; Começava a chamar guia só para dizer

833
MORTIMER, 2000, p. 151.
834
A.F.S., 2020.
835
MORTIMER, 2000, p. 150.
247
besteira e mandou que o pessoal caprichasse em uma Tronqueira, foi aí que as
mocinhas caíram na ratoeira, esse cara só dizia que fazia caridade, carregando o
pessoal da colônia para cidade e no fundo do coração era pura falsidade.’”836

Os envolvidos estiveram presos por um período de aproximados três meses,


responderam criminalmente e, após troca de advogados, um segundo julgamento, foram
absolvidos837. Viana narrou que “Os que participaram do crime foram presos, processados,
humilhados e muito sofreram, até que, finalmente, foram absolvidos pela justiça.”838 Pelo que
se escuta das narrativas foi nesta época que a maioria dos antigos seguidores do Ciclu que
acompanharam o Sebastião na saída do Alto Santo, se desligaram da Cinco Mil.
Este acontecimento foi amplamente noticiado na mídia local e, segundo Moreira, “os
jornais tiveram recorde de vendas”; “os meios de comunicação chegaram até a realizar uma
pesquisa de opinião sobre se os acusados deveriam ou não ser condenados.”839 Almeida Ramos
citando reportagens que saíram no Jornal O Rio Branco, em agosto e dezembro do ano de 1977,
narra que os três estavam sendo acusados pelo crime de homicídio qualificado, “por motivos
fúteis e meios que dificultavam a defesa da vítima”840, artigo 121, parágrafo 2º, itens III e IV.
Condenados em primeira instância, recorreram e, no segundo julgamento “os réus foram
absolvidos pelos jurados que acataram a tese da defesa de que “mataram sob coação moral
irresistível, sob o domínio de violenta emoção, após injusta provocação da vítima, legítimas
defesas próprias, de terceiros e da honra”.841
Mortimer destaca que “os mais prejudicados” com as indevidas investidas do Ceará
“foram os moradores da cidade, os mesmos que o levaram ao Padrinho”842, que este desfecho
trágico teria sido um acontecimento fora da curva e dos planos e que a missão e o desejo do
padrinho Sebastião era “fazer dele um irmão”.843 Há aqui um movimento que isenta Sebastião
de qualquer responsabilidade em relação aos episódios, transferindo para Wilson e família, que
o apresentaram Ceará a Sebastião, sem considerar que, no limite, era Sebastião a liderança dos
trabalhos espirituais na Colônia Cinco Mil, que autorizou e firmou um acordo com Joselito, que
ordenou o cancelamento de trabalhos na igreja para atender as demandas dos novos estudos,
independente de como o dito macumbeiro chegou ali. Mortimer salienta ainda que “Depois de

836
Raulino, O. narrado por N.S.S., 2020.
837
ALMEIDA RAMOS, 2002; MORTIMER,2000.
838
VIANA, 1997, p 129.
839
MOREIRA, 2013, p.226.
840
O Rio Branco, ano 9, n. 173, p. 7, 8,1977 In: ALMEIDA RAMOS, 2002, p.97
841
ALMEIDA RAMOS, 2002, p. 7.
842
MORTIMER, 2000, p. 151.
843
Ibid.
248
tudo acontecido, o Padrinho Sebastião consolava a irmandade dizendo que, tudo se passara, foi
porque Deus consentiu. Visto sermos todos um povo que tinha e tem o propósito de ama-lo e
seguir um bom caminho.”844
Os centros de Daime, que já estavam neste contexto sendo investigados pela Polícia
Federal, foram ainda mais estigmatizados. Estabelecer os limites e linhas rígidas que separavam
o grupo do Daime da Cinco Mil daquele mais antigo no Alto Santo tornava-se cada vez mais
essencial para os setores tradicionalistas. Moreira narra que João Rodrigues, secretário do Ciclu,
na época, “deu entrevistas dizendo que o Cefluris da Colônia Cinco Mil não tinha vínculo com
o centro de Mestre Irineu.”845
Pelo lado do Cefluris, procurou-se produzir narrativas que evidenciassem aspectos
positivos e ensinamentos a partir do ocorrido. A leitura do enredo como uma “batalha entre o
bem e o mal”, como algo que já teria sido previsto pelo padrinho em sonhos e que “veio trazer
uma verdade”, atende à lógica apaziguadora e consoladora da mitificação. Desta forma, acaba
por não questionar as razões pelas quais aqueles espaços rituais, a partir da abertura irrestrita a
novos elementos, deixaram de ser seguros para seus frequentadores e como uma adesão acrítica
às lideranças que conduzem os rituais pode ter consequências desagradáveis.
Alfredo, já com algum cansaço pois estava narrando havia quase 50 minutos, fez uma
breve menção ao acontecimento, quando comenta:

“Fora outros assuntos que chegou, que foi aquela história do Ceará, que chegou ali,
mas trouxe também uma espiritualidade, ele era um cara que dizia assim também:
- Barbudo, o povo não estão contigo. Só tão mas não tem firmeza. Padrinho dizia:
não mas nós estamos trabalhando. Aí ele: - Não, mas eu vou te provar como não
estão contigo. Aí houve muita confusão, não vem ao caso.”846

O fato do episódio ser mencionado na narrativa de Alfredo foi significativo, como quem
diz, “olha, tem este outro acontecimento aqui, que também foi importante, mas estou cansado
para aprofundá-lo neste momento”, ou resumindo, “não vem ao caso”. Talvez não tenha sido
cansaço, mas uma forma de dizer que não ia falar sobre aquilo. Que havia coisas que não
deveriam ser ditas. É um assunto que não se conversa com qualquer um pois, sabendo do
envolvimento direto de diversas pessoas próximas com o caso, entende-se, de antemão e por
longa vivência no campo, que há aqui um claro limite entre o que se pode e o que se deve fazer,

844
MORTIMER, 2000, p. 153.
845
MOREIRA, 2013, p.226.
846
A.G.M., 2019.
249
o que é adequado, respeitoso e ético perguntar. Com o tempo, foi necessário acomodar os afetos
referentes aos diferentes traumas deixados. Como narrou Viana, “Morto o homem, a maldição
continuou cada dia mais viva.”847 Túlio segue a narrativa:

“Depois eu acho que o Padrinho ficou meio deprê, que com essa coisa, né, que eu
até narro um pouco. Ele andava muito deprimido... A doença que se instalou na
Cinco Mil, eu vi muito isso numa pessoa, uma mulher que ficou muito doente, né.
Era muito simbólica, né. E quando ele foi pro mato, foi pro Rio do Ouro, ele soltou
um pouco isso, que foi a tal da doutrinação do Tranca Rua. É um marco, não deixa
de ser... De ter uma influência grande no que foi o começo de tudo isso.”848

Sebastião, ao consolidar sua liderança, não se restringia ao que tinha aprendido no


Daime do Mestre Irineu. Mostrava-se aberto às composições com aqueles que chegavam à sua
comunidade, fazia suas releituras e acréscimos nos rituais da doutrina do Daime, o que com o
tempo passaram a caracterizar como um novo seguimento – não muito distante do original, mas
com várias particularidades. Tanto a história da Santa Maria como o “envolvimento com o
Ceará” tiveram “um custo social alto”849. Mortimer assim reconhece mas prefere destacar que
“depois de tudo passado, o povo seria mais unido e fortalecido”850, pois como um dos
narradores oficiais do grupo, é um agente produtor do discurso que se oficializa como prática
social. “O porquê do envolvimento com este homem, o próprio Padrinho foi esclarecendo (...)
ele era um homem aberto, desejoso de aprender e compartilhar das novidades. O Ceará era um
forasteiro como nós”, narrou.851
Os anos que se seguem estiveram marcados por este episódio de grande simbolismo,
violência e camadas múltiplas de significação. De alguma forma, todo acontecimento adverso
que passou a acontecer na comunidade, principalmente os quadros de doenças e perturbações
mentais que acometeram não apenas os seguidores, mas o próprio padrinho Sebastião, passaram
a ser relacionados à figura ressentida do espírito do Ceará, identificado principalmente como
Exu Tranca-Rua. Esta entidade teria passado a se manifestar em Sebastião, causando-lhe dor e
sofrimento nos anos que coincidiram com a saída da Colônia Cinco Mil e a instalação do
seringal no Rio do Ouro e a mudança para o Mapiá, que também foi concomitante a uma
ferroada de arraia que debilitou sua saúde e vários casos de malária na irmandade. A narrativa
que se constrói a partir daí é que essas tormentas eram como provações que ele e a irmandade

847
VIANA,1997, p 129.
848
T.C.V., 2021.
849
MORTIMER, 2000, p. 146.
850
Ibid., p. 146.
851
Ibid., p. 143.
250
enfrentavam nessa busca pela floresta como forma de melhor viver e construir a sonhada
comunidade.
Sobre estas tentativas de entendimento e acomodação deste episódio no conjunto das
epopeias e profecias do povo do Daime do seguimento do padrinho Sebastião, Alverga se
debruça a construir os pilares da malha interpretativa que sintetiza o episódio como uma
profecia sonhada pelo padrinho e uma batalha do bem contra o mal. Alverga enfatiza que a
meta de Sebastião era realizar a doutrinação do macumbeiro e das entidades que o
acompanhavam, que o que estava acontecendo era um estudo espiritual e que, aos poucos,
“Ceará ia entregando toda a sua legião ao Daime. Faltava apenas ele próprio, ou melhor, ‘Seu
Maioral’”852.
A doutrinação daquele que causara grande estremecimento nas relações comunitárias é
narrada por Alverga no diálogo com Alfredo de forma mais sutil e com significativas
diferenças, como as já citadas em relação ao Joselito ter ou não tomado Daime. No seu texto,
Alverga narra que Joselito teria tomado Daime naquela noite de São João e também na casa de
seu Wilson três dias antes de morrer. Que neste dia ele havia se rendido ao poder do bem. Ele
teria incorporado Tranca-Rua e pedido que fizessem uma casinha, nem que fosse do tamanho
de uma caixa de fósforo, para realizar os trabalhos de iluminação para os espíritos sofredores
que iriam chegar. Não há relato literal sobre o desfecho trágico.
No texto, Alfredo teria narrado a Alverga: “— Em três dias ele foi se entregando
lentamente. Eu interpreto assim. Primeiramente ele tentou abafar todos nós. Depois ele viu que
o poder que estava com a gente era superior ao dele. Aí ele foi perdendo a força daquela
macumba e feitiçaria toda, entende?”853 Neste trecho da narrativa, contam que casa de Estrela
foi feita no Rio do Ouro, depois no Céu do Mapiá e, em 1989, também foi feita uma na Colônia
Cinco Mil, atrás da sede da igreja, ampliando a antiga casa dos músicos.
Independente de existir um espaço ritual específico para trabalhos de incorporação,
energia de Exu teria assim se territorializado no Daime. Muitos centros, na ausência de uma
casa de estrela, assentam um ponto de vela na entrada, em alusão à Tronqueira, para que,
sobretudo nos Trabalhos de Estrela e outros de banca aberta, possa se acender uma vela para
Tranca-Rua abrir os caminhos para os trabalhos com as entidades. É assim no Pronto-socorro
de seu Wilson Carneiro. Na Cinco Mil, hoje em dia, não há nenhuma referência à Tronqueira e
pontos de velas para a entidade, apenas as velas do Cruzeiro na entrada. Como ressaltou Alves

852
ALVERGA, 1992, p. 126.
853
Ibid., p. 127.
251
Jr. “Encontramos aqui uma similaridade com a Umbanda, que possui seus assentamentos, como
locais que, através de procedimentos mágicos, estabelecem a proteção ao terreiro de
determinados Orixás.”854
Ceará é uma personagem que pode ser lido pela ótica do charlatanismo, do embusteiro,
do malandro aproveitador mas também pela ótica dos diálogos inter-religiosos. Rocha, a seu
modo, adere à tese de que o grupo do caboclo Sebastião855 tinha uma alta capacidade de compor
com novos elementos, de outras religiosidades e sua cartografia narra o caso Ceará como
agenciamentos de um devir-exu. O episódio, visto por sua lente, sugere que o Daime é afetado
pelo racismo religioso/intolerância religiosa, advindo do carrego colonial, que marca a
formação do nosso continente a partir da chegada dos europeus. Neste sentido, a ideia de
iluminação de Exu, como sendo a manifestação do mal, seria resultado desta influência judaico-
cristã maniqueísta, mas mesmo assim, o Exu orixá teria fincado sua pedra no Daime e seria, um
“orixá é assentado, mesmo quando não o enunciam como tal.”856
Para Rocha, nessa cartografia de afetos o devir planta trazido pela Santa Maria também
agencia o devir-exu, argumento que tece ao constatar o uso da Cannabis como erva de Exu nos
rituais de matriz Iorubá, citando o famoso etnólogo do Candomblé, Pierre Verger. Negar
presença de exus nos rituais do Daime seria fazer coro “às tentativas de uma história que sufoca
e silencia os devires minoritários.”857 Sob sua lente, foi a retina colonial que impediu que a
aliança da Umbanda com o Santo Daime acontecesse sem oposição, referindo-se que o episódio
Joselito marcou a comunidade pelo medo e não pela questão dos abusos sofridos.
O exercício de relembrar essas memórias traz à tona questões de gênero e abuso no meio
religioso, e como as comunidades de Daime responderam e respondem ainda hoje às diferentes
situações. Um exemplo é o lugar do homem de não-aceitação de uma traição por parte da esposa
e isso levar a um crime bárbaro e uma punição ao longo de toda a vida e, no outro polo, o
discurso da mulher como imagem e semelhança de Maria, sempre apta a perdoar as traições
dos maridos.
Outro acontecimento marcante deste período foi a relação extra-conjugal que Sebastião
teve. Foi um relacionamento que, pelo que nos chega nas narrativas orais, durou por volta de
um tempo e, mais uma vez, temos as encruzilhadas entre os documentos/textos ditos e escritos,
que se bifurcam em muitos caminhos e possibilidades de interpretações, que se cruzam, se

854
ALVES JR., 2007, p. 153.
855
ROCHA, 2021.
856
Ibid., p. 289.
857
Ibid., p. 291.
252
acham e se perdem no jogo de comparações. Mortimer narra o episódio como uma tentação, à
qual Sebastião teria tentado resistir sem sucesso, que tudo se passara “num período de cegueira
espiritual”, que coincidia “com a chegada do Ceará”858.
A jovem Jaci foi descrita por Mortimer como alguém que era considerada “fraca da
cabeça”, “que fazia coisas inconscientemente”859 e por isso teria sido deixada na casa de
Sebastião para se tratar. Mortimer destaca que “pessoas dedicadas ao serviço religioso não estão
isentas de tentações”860 e sintetiza dizendo que após várias investidas da mulher, que o
procurava em visitas noturnas, finalmente foi cedendo e tudo aconteceu. Jaci ficou grávida e
nasceu a menina Glória, que foi registrada como filha de Rita, que já tinha com Sebastião outras
4 filhas, Maria (Neves), Marlene, Isabel, Nonata e os 4 filhos Valdete, Alfredo, Pedro e José.
Na 2ª edição do livro “Bença, Padrinho!”, lançada pelo selo Yagé, observamos alguns
cortes, que trechos da narrativa foram suprimidos, evidenciando isso que estou chamando de
produção de esquecimentos ou uma história adocicada. Nesta segunda edição não há referência
explícita à dona Jaci, seu nome não aparece mais na obra, bem como foram suprimidas as
passagens que narravam em detalhes, suas investidas na rede de Sebastião e as reações de Rita.
Parece haver essa espécie de código, que procura santificar a imagem de Sebastião, assim como
os aspectos da vida de Jesus que evidenciavam sua condição humana foram sendo extintos das
narrativas dos evangelhos, e não à toa, muitos se referem à ele como São Sebastião ou mestre
Sebastião.
Sebastião e Rita chegaram a perder uma filha, ainda bem criança e nesta mesma época
do nascimento de Glória, eles adotaram uma outra menina, filha de um casal de seguidores.
Conforme narrativa de Francisca Corrente, ela entregou sua filha Iracema aos cuidados do
padrinho e da madrinha porque “O padrinho tinha visto num sonho que ela era a encarnação da
filha que eles haviam perdido e daí ele me pediu pra criar ela” e assim doaram a filha para
Sebastião depois de insistentes pedidos. Mortimer limitou-se a narrar assim: “Por esta época
nasceu também a graciosa moreninha que recebeu o nome de Iracema. Era da família Corrente,
mas sua mãe a doou aos Padrinhos e assim a alegria da casa redobrou com a chegada das duas
meninas.”861 A referência às duas crianças, como narram os antigos, aparecem no hinário de
Rita nos versos do hino “Duas flores”, que diz: “Eu recebi duas flores, para eu amar no meu

858
MORTIMER, 2000, p. 156.
859
Ibid.
860
Ibid., p. 155.
861
MORTIMER, 2000, p. 157
253
coração, quem me entregou estas flores, foi meu Mestre Juramidã. Zele bem estas flores, de
todo seu coração, o que Deus faz é bem feito, não se desmancha com a mão.”862
Neucilene contava que nesta época, os filhos mais velhos de Sebastião ficaram muito
revoltados com o pai pela traição de sua mãe, ressaltando que anos seguintes ambos fizeram o
mesmo com suas esposas. Ao comentar isso, Neucilene procurava não só recordar e partilhar
memórias do passado que constituem a “história do povo do padrinho”, mas ressaltar que
ninguém era ou é santo e, como a vida é feita de ciclos e padrões que se repetem, é preciso ter
“cuidado no julgamento”, pois quem aponta muito o dedo hoje, pode lá na frente fazer igual.
Estes são registros de conversas que tínhamos quando eu a visitava não necessariamente com o
intuito de gravar.
Mortimer finaliza dizendo que “a Madrinha Rita sofria, vendo seu velho companheiro
envolvido com este amor temporão”863, mas ressalta características que seriam pretensamente
naturais em mulheres, da força feminina, que inspiradas por Maria, como bem já analisou
Benedito864, seriam aptas à aceitação, à submissão de uma vontade divina de que tudo que
acontece é porque tem que ser. “Como toda esposa numa situação desta, ela sofreu, mas acabou
superando tudo com seu expressivo amor maternal.”865
Sobre o entrelaçado caótico e esquisotérico de significações sobre a presença do Exu
Tranca-Rua no Daime, Alverga relata que já sentiu que “em várias ocasiões, quando tal tema é
mencionado, um certo escárnio indulgente, quando não uma resistência declarada, por parte de
alguns daimistas.”866 Ele adverte que essa postura seria daqueles que optam pelo caminho mais
fácil e supõe que no Daime vai tratar apenas das coisas superiores. A minha resistência em
situar Exu no Daime, todavia, é de outra ordem. Tenho dificuldade de aceitar o maniqueísmo
binário da moral amparada em princípios absolutos de bem e mal e que, neste caso, coloca Exu
num polo oposto à ideia de Deus. Tenho por compreensão e respeito aos Orixás, uma recusa à
interpretação que aproxima o Daime mais do neopentecostalismo que do xamanismo
ayahuasqueiro ao naturalizar a apropriação colonial-cristã da figura de Exu como o Diabo, ou
um mal a ser doutrinado, cristianizado, iluminado, batizado, ou, ainda a entidades menos
iluminadas, sofredoras, “das ruas”.

862
Melo, R.G., Duas flores, n 8.
863
MORTIMER, 2000, p. 156.
864
BENEDITO, C. P. “Maria que me ensina ser mulher”: Religião e Gênero no Santo Daime. Tese
(doutorado)-Universidade Federal de São Carlos, campus São Carlos, São Carlos, 2019.
865
MORTIMER, 2000, p. 156
866
ALVERGA, 1992, p. 132.
254
O termo esquisotérico é um neologismo que vem sendo utilizado em diferentes
literaturas para se referir as práticas espiritualistas na contemporaneidade caracterizadas por
misturar diferentes e contraditórios elementos, constituindo novas amálgamas, sincretismos. O
termo pode soar aparentemente pejorativo, mas nem sempre é empregado assim. Melhor seria
talvez dizer que o termo aparece em algumas literaturas no sentido de uma confissão. Merege
e Kaihatsu utilizam o termo quando comentam sobre um personagem viajante que teria
percorrido “De questionáveis grupos xamânicos que veneram a ayahuasca à feitiçaria quântica
por teleconferência, (...) havia passado por quase tudo, considerando-se hoje um turista
esquisotérico.”867
Guimar, já no início da parte sexta de seu livro intitulada “A onda cármica”, meio que
se autoproclama um esquisotérico, como quem se denuncia em sua excentricidade: “Depois que
entendi o que é o Karma, entendi o Universo conspirando a meu favor. Mesmo que isso pareça
esotérico demais, tudo bem, assumo que sou um ‘esquisotérico’”.868 Evoco aqui o esquisotérico
pois, ao caminhar na companhia desses muitos narradores, entendo que supor uma batalha
rivalizante e definitiva, onde Sebastião e o Daime como uma personificação do bem venceriam
uma personificação do mal que seria o Tranca-rua do Ceará, é aprofundar-se em uma lógica
mítica, na ideia de um herói redentor e um bode expiatório, que se sacrifica para que algo mais
relevante aconteça.
Supor que a chegada do macumbeiro inaugura uma aliança com a Umbanda na linha do
Daime para fazer trabalhos de incorporação, de doutrinação de exus, etc, é desconhecer a
história do Daime e a fundação dos centros de caridade à partir da missão e obra do mestre
Daniel, a Barquinha, hoje lida como uma das religiões ayahuasqueiras tradicionais. Mestre
Daniel foi o primeiro a fazer trabalho com o Daime e a incorporação, manifestação de caboclos,
pretos-velhos, princesas e sereias encantadas e outras entidades, sob as benções de Irineu Serra,
incluindo trabalho de conversão dos exus, que recebem o santo batismo.
São legítimas as controvérsias que envolvem o processo de territorialização,
desterritorialização e reterritorialização de Exu no Daime, uma vez que os relatos são
controversos e a própria figura de Exu-orixá ou o Seu Tranca-Rua como rei de uma falange de
espíritos também o são. Penso que é parte de um repertório de performances esquisotéricas,
cujo fundamento nem sempre encontramos o lastro. Com o tempo os Trabalhos de Estrela, de

867
A. T., Merege, C. B. Kaihatsu, Terrores asiáticos, 2022, p. 226.
868
GUIMAR, R., O coração já sente, 2023, p. 6.
255
São Miguel, de Mesa Branca passaram a ser vistos como de banca aberta, para dar passagem a
estes afetos que rompiam caminho no culto do Daime.
Depois das experimentações como a do Ceará, os ritos no seguimento da Iceflu foram
se aproximando do Espiritismo kardecista, da “Umbanda-branca”, como alguns denominam,
aquela “sem sacrífico de animais, que trabalha mais com as ervas, com as energias”, como ouvi
certa vez de uma antiga mapiense. Em meados da década de 1980 inicia-se a formação dos
Trabalhos de Gira na linha do Daime, sobretudo para os orixás Oxóssi, Iemanjá e Ogum. Rocha
destaca as importantes alianças feitas à partir de 1985, quando Sebastião visita o Rio de Janeiro
e conhece a médium umbandista Arlete Coutinho, a Baixinha. Em um Trabalho na mata nesta
época, teria se afirmado uma união espiritual entre a entidade Caboclo Tupinambá e o padrinho
Sebastião. Com o tempo “a mãe-de-santo Baixinha tornou-se referência de proposta mediúnica
para o contingente daimista que crescia exponencialmente nos estados brasileiros do
sudeste.”869
Mais recentemente, uma nova aproximação da Quimbanda vem se manifestando,
reatualizando e firmando ponto e afetos com os trabalhos de Estrela da Mata idealizados por
Agarrube Melo, um dos filhos de Valdete e Decinha. Estes trabalhos propõe toda uma saudação
ao chamado “povo da rua”,nele canta-se hinos e depois pontos para essas entidades (exus,
pomba-giras, etc.). Pelos relatos que já me chegaram, essas sessões acontecem geralmente em
terreiros preparados em clareiras na mata e é servido um preparo muito forte da bebida. Não
são raros os relatos manifestações com forte frenesi, possessões violentas que demandam as
vezes contenção. Esses tipos de trabalhos não são feitos na Cinco Mil, mas aos poucos estão
sendo conhecidos fora do Céu do Mapiá e constituindo, de forma oficial, o conjunto de
trabalhos da Iceflu – haja visto que esteve presente na programação do festival que marcou a
pré-inauguração da “catedral da floresta” em 2023.
Inovações referentes aos trabalhos com incorporação, como as Umbandaimes, e os
trabalhos de São Miguel, instituídos por Sebastião e os seguidores já no tempo do Céu do
Mapiá, não foram incorporados como fundamentos estudados e zelados na Colônia Cinco Mil.
Neste aspecto, em específico, é um território do povo Daime do padrinho Sebastião mais
próximo das raízes do mestre Irineu, não apenas em termo de distâncias geográficas. Acredito
que a experiência com os trabalhos do Ceará não tenha deixado boas lembranças entre aqueles
que ficaram na Cinco Mil, ainda que tenham, na literatura que versa sobre o tema, sido
ressignificadas por Sebastião nos trabalhos do Rio do Ouro.

869
ALVES JR., 2007, p. 174.
256
O decurso da história na Colônia Cinco Mil nunca mais seria o mesmo depois daquele
agosto de 1977. Nos anos que se seguiram, ainda que a comunidade continuasse no mesmo
ritmo, finalizando a construção da igreja, implementando a horta, procurando aprimorar o
trabalho comunitário e recebendo uma grande leva de pessoas que ali chegavam, o padrinho
Sebastião se mostrava entristecido, descontente e um ciclo de doenças e infortúnios
atravessaram seu caminho. Alverga descreve que Sebastião, além de “profeta visionário da
Nova Jerusalém e construtor da nova arca de Noé”870, estava a empreender na “doutrinação e
cura do próprio Tranca-Rua”, numa batalha que se estende por muitos anos, dando origem aos
trabalhos “mediúnicos e de caridade na Doutrina do Santo Daime”871. Enquanto isso, na
Colônia Cinco Mil, Alfredo introduzia os trabalhos de São Miguel para limpar a corrente, na
“fase de transição da Colônia para Rio do Ouro”872.

870
ALVERGA, 1992, p. 80.
871
Ibid.
872
Ibid., p.132.
257
3 TRAJETÓRIAS DE DESLOCAMENTOS: TERRA E MOVIMENTO

“Eu brilho aqui, Eu brilho ali, Eu brilho lá


Todos vão ver o mundo balançar
Que as palavras do meu Pai não passam
Mas o povo estão a duvidar.”

Hinário O Justiceiro, Padrinho Sebastião

3.1 O Ituxi e Nova Revolução: messianismo ecológico ou feudo monárquico?

“Eu não estou atrás de dinheiro, não vivo por


dinheiro. Estou vivendo por Deus, pela terra,
pela mata que é o que tem valor.”873

Padrinho Sebastião Mota.

Janeiro, 1980. A Colônia Cinco Mil tinha ficado pequena para as mais de 300 pessoas
que procuravam viver ali e tirar da terra o sustento para suas famílias. Segundo Fróes, Sebastião
desabafava:

Daqui vou me mudando, porque já me acho cansado de tanta luta aqui e os


pastos já estão mal divididos que se planta uma coisa não dá mais, não tem
aquele rendimento. Os próprios campos já estão acabados com carrapicho
coisa dura. Não se tem dinheiro pra botar um trator e virar a terra e as
condições de vida cada vez mais difíceis o preço das coisas cada vez mais alto.
Não dá pra mim não. Vou tratar da seringa, ele já está na mata, tá trancada,
mas se tratar de zelar dela, vai dando o que comer. Aqui não dá mais.874

Sebastião decide sair da Colônia Cinco Mil num movimento de retorno à floresta,
convidando a irmandade para seguir consigo. Fróes destaca que “a devastação acentuada da
floresta do município de Rio Branco e a falta de recursos para aquisição de tratores e
implementos agrícolas a fim de melhorar as técnicas de cultivo da terra”875 teriam sido os
principais fatores que motivaram a mudança de Sebastião com o seu “povo” para o interior da
“selva amazônica”876.

873
Melo, S.M. em Albuquerque (Org.), 2009.
874
Melo, S.M. em FRÓES, 1986, p. 50-51.
875
FRÓES, 1986, p.17.
876
Ibid.
258
Macrae narra que entre os principais fatores que o levaram à saída da Colônia Cinco Mil
foi o número crescente de pessoas na irmandade877. Mortimer comenta a dificuldade de
produção em terras já desgastadas e que Sebastião falava:

Veja que nós temos vizinhos lá na frente, nos fundos e dos lados, gente que
não vem tomar Daime porque não são deste rebanho. Estamos encurralados.
Nosso povo está crescendo. Sinto a alegria de ver todas estas crianças que
amanhã serão adultos. Nós precisamos nos expandir. Abrir as fronteiras para
caber todo o povo que ainda falta chegar.878

A distância das matas dificultava a obtenção do cipó e da folha utilizados no preparo


ritual, o que complicava ainda mais situação. Mortimer narra que “As florestas ao redor de Rio
Branco estavam em fase de extermínio. Obter o Jagube e a Rainha para o feitio de Daime estava
cada vez mais penoso.”879 Ademais,

Todas as famílias tinham muitos filhos, de maneira que, para a segunda


geração, faltaria onde plantar. Era bom evitar futura reclamação de herdeiros.
Melhor era uma terra sem dono. O Padrinho pensava longe e via na frente
porque tinha a experiência de muitas luas e muitos dias vividos na Terra.
Também ouvi dele a afirmação: “E o Poder que está mandando eu sair e buscar
um novo lugar”. Ele queria dizer que estava obedecendo uma ordem divina.880

É como se Sebastião enxergasse adiante e na medida em que via o povo em torno de si


crescer cada dia mais, era necessário também ampliar a área produtiva, para garantir
alimentação para as famílias que aumentavam e ter boas condições de habitação. A proximidade
da cidade era um dos fatores que impulsionava a saída de Sebastião pois, a cidade ao mesmo
tempo que possibilitava acesso à mais recursos, melhores condições de vida, acesso a novos
conhecimentos através dos estradeiros e da educação escolarizada, também era lida como a
ausência de conexão com a floresta e, portanto, com a divindade, origem dos maus costumes
que assolaram a Cinco Mil, a síntese espacial do mundo de ilusão, à imagem de Babilônia,
mítica cidade da perdição do imaginário cristão.
A utopia de Sebastião era replantar a Nova Jerusalém, sua meta era uma espécie de bem
viver em comunidade com a irmandade do Daime, construir a mítica cidade celestial aqui na
terra ou, como ele dizia, “para eu levar em frente que o Daime ia guiando. Ia guiando para ir
tirando o povo de Juramidam do meio da cidade e colocando no Paraíso.”881

877
MACRAE,1992, p.74.
878
MORTIMER, 2000, p. 179.
879
Ibid., 2000, p.180.
880
Ibid., p. 181.
881
S.M.M. em Alverga (org.), 1998, p. 62.
259
Mortimer destaca também as perturbações da mídia local que, desde esta época, já
produziam muitas críticas e ataques em relação ao grupo de Sebastião na Cinco Mil. Entre os
possíveis motivos que fizeram o grupo de Sebastião despertar a atenção da mídia local
certamente destacam-se os episódios de violência ocorridos em 1977, envolvendo membros
importantes da comunidade e a notícia sobre o uso ritual de outras plantas de poder, lidas
socialmente como drogas ilícitas.

Um jornal de Rio Branco, ou um jornalista, não perdia uma oportunidade de


falar mal da comunidade, com mentiras e depoimentos de pessoas
desequilibradas. Muita imbecilidade que não deixavam de ler para o Padrinho.
‘Vou-me embora para ver se estes linguarudos me deixam em paz’, arrematou
ele.’882

A projeção na mídia nacional aconteceu sobretudo devido à presença de artistas de


relevância como Lucélia Santos, Maitê Proença, Ney Matogrosso, Carlos Augusto Strazzer,
entre outros, que passaram a frequentar as comunidades fundadas por Sebastião na Amazônia
e Rio de Janeiro. Mortimer relaciona a projeção e atenção dada ao grupo ao fato de que “até
uma reportagem na revista Manchete”883 saiu, por intermédio do Marco Grace Imperial, o que
teria despertado a inveja de algumas pessoas dos núcleos mais tradicionais em Rio Branco.
Soube através das conversas informais que, nesta época, em que não havia o impacto
das redes sociais e as notícias circulavam muito de boca a ouvido, antigos seguidores do Daime
exclamavam espantados: “É mesmo verdade que o Sebastião é chamado de padrinho aí pra
fora?”, posto que não reconheciam a legitimidade de sua liderança e carisma. Enquanto isso,
Sebastião reclamava também que os roçados na Cinco Mil estavam

...empestados de mato, porque ficar plantando em capoeira tem este problema.


Temos que trabalhar mais do que o dobro. Não podemos a cada ano botar
abaixo um pedaço novo de mata. Se derrubar tudo ninguém agüenta o calor.
Não é certo acabar com o pouquinho de floresta que sobrou de pé (...)’884

Diz-se que história é como cebolas: muitas camadas. A saída de Sebastião da Cinco Mil
pode ser descrita por muitas, diferentes e complementares perspectivas. Geralmente lido como
“um retorno à floresta”885, como forma de expandir a comunidade iniciada na Cinco Mil,
Sebastião ao que parece realmente buscava ampliar as terras para conseguir uma produção
autônoma, para garantir a segurança alimentar e consolidar a formação de “um povo

882
MORTIMER, 2000, p. 180.
883
Ibid.
884
S.M.M. em MORTIMER, 2000, p.180.
885
MORTIMER, 2000, p.183.
260
diferente”886 que, a partir das experiências e ensinamentos com o Daime, afirmariam
possibilidades outras de ser/estar no mundo, menos dependente do dinheiro e do consumo de
produtos da cidade. “Deus me disse pra sair das cidades, porque as cidades vão virar covil de
leão. Pra todos nascerem de novo.”887
Esta trajetória de deslocamento passou a ser significada em seu aspecto messiânico,
profético, salvacionista, a partir dos sonhos e visões que teriam guiado Sebastião como líder.
Alverga narra que Sebastião “disse ter sido visitado pelo espírito da Verdade, que o mandou
transferir todo o povo, dos arredores de Rio Branco para dentro da floresta, no seringal
denominado Rio do Ouro.”888 Mas o deslocamento também tem este sentido de crítica ao
sistema social que explora a floresta, que se constrói a partir da divisão por classe e a exploração
do trabalho, que não reparte as riquezas produzidas, onde tudo gira em torno do dinheiro e da
mercadoria. Sebastião, ao que parece, se sentia deslocado na colônia, cada vez mais dependente
dos produtos da cidade, do emprego formal de seus e do dinheiro para conseguir alimentar todo
aquele povo.
Eu estou seguindo cedo, enquanto é hora. Não estou dizendo que o mundo vai
se acabar. Porque se acaba cada um, como estão se acabando. E o mundo
mesmo não se acaba. E eu estou procurando a minha vida. Melhoria para a
minha vida eterna. Não quero ficar dentro de fogo de ninguém. Por que eu vou
ficar agora preso dentro de uma cidade? Não tenho que saber de nada. Não
sou empregado de ninguém, porque não tenho saber. Quem não sabe escrever
não pode ter emprego. Ser isso e aquilo também não interessa pra mim. Vim
para a mata pra ser seringueiro.889

Neucilene cita também que o fato do uso da Cannabis na comunidade ter sido descoberto
havia deixado o negócio apertado, motivando ainda mais a mudança para floresta, um lugar
mais reservado.

“Quando foi em 80 eu acho, foi a primeira viagem que o Padrinho deu pro Rio do
Ouro, pra ver se achava um lugar pra ir... Que aí foi quando chegou a Santa Maria,
aí o negócio tava ficando muito apertado, aí ele disse que ia procurar um lugar, que
num dava mais pra ficar aqui. Aí foi pra outro canto. Aí chegou ir num lugar, que
eu num sei onde era aí, foi... Aí depois ele foi pro Rio do Ouro. Sei que seu Wilson
foi mais ele... Lá no Rio do Ouro era muito bom, muito bonito. Sofreram que só
num sei o quê... eu fui várias vezes lá...”890

886
FRÓES, V.F. Hino “Estudo fino”, n 47.
887
S.M.M. em MORTIMER, 2000, p. 158.
888
ALVERGA, 1992 p. 13.
889
S.M.M. em MORTIMER, 2000, p. 79.
890
N.S.S., 2020.
261
Neucilene comentava que antes da partida pro Rio do Ouro, Sebastião foi ver um outro
lugar. Pouco se sabe e se escreveu sobre esta primeira viagem. Mortimer narrou brevemente,
mas no material institucional da Iceflu e outras literaturas, raramente encontra-se alguma
referência.

A viagem foi preparada com uma pequena comitiva assim constituída: Valdete
e Chagas na função de mateiros, para verem as reais possibilidades do local.
Maria Toca na função de cozinheira e outros afazeres domésticos, Mirim
como o negociador, encarregado de compras etc. Finalmente, o próprio
Padrinho comandando o grupo. (...) Da comitiva também faziam parte a
Senhora, proprietária do Seringal e um filho rapaz, cujo nome a lembrança
deixou escapar. O carro era a camionete do Sr. Wilson e o motorista o Zé
Carretel.891

Viana descreveu mais detalhadamente sobre essa primeira viagem. O rapaz em questão,
propositor do negócio, era o já apresentado Thalis, que frequentava a Colônia e era amigo de
Túlio e Dácio. Thalis tomava o Daime na Cinco Mil esporadicamente e, ao conhecer o desejo
de Sebastião de “construir esta comunidade no meio da selva, longe de qualquer cidade, de
curiosos, de polícia federal”892 empolgou-se em fazer negócio. Consta que ele, seu irmão e sua
mãe possuíam muita terra na Amazônia, “quase cem vezes todas as colônias aqui somadas,
numa região onde o solo é muito mais produtivo e com fartura de caça e pesca” 893. Com
dificuldade de desbravar toda esta grande área de floresta, Thalis vislumbrou a possibilidade de
se associar a Sebastião e sua comunidade para colonizá-las num regime de comunhão. Porém,
nem ele e muito menos sua mãe, “uma mulher de personalidade forte e muito distante do nosso
mundo”894, tinham uma relação de identificação forte com a doutrina do Daime. Mortimer
comenta:

Um dia chegou uma senhora cujo nome não é possível recordar. Ela veio fazer
uma proposta ao Padrinho: trocar o seu seringal no Estado do Amazonas pela
Colônia Cinco Mil. A proposta interessou imediatamente. Apreensivo, vi nos
olhos a alegria daquele homem frente à possibilidade de retornar a seu querido
Amazonas. Começaram as negociações. O primeiro passo era organizar uma
comissão para o reconhecimento do local.895

Viana lembra que, quando Sebastião estava irritado, falava “muito em mudar com todo
o povo para mata adentro”896 mas nunca havia levado a sério. Até aquele momento, a proposta

891
MORTIMER, 2000, p. 182.
892
VIANA,1997, p. 227.
893
Ibid., p. 226.
894
Ibid.
895
MORTIMER, 2000, p. 179.
896
VIANA1997, p. 227.
262
soava algo remoto, inatingível, “seria um sacrifício de todo o povo, pior para os mais velhos e
as crianças”897. Mas, com o tempo, Túlio foi se convencendo de que era realmente possível que
isso acontecesse. Rememora que Sebastião desabafava desanimado e preocupado com a
possibilidade de ter que recomeçar a experiência comunitária em outro lugar, justamente numa
época em que se estava colhendo bons frutos. A comunidade começava “a se organizar, a
produzir o suficiente para as carências básicas. (...) A ameaça da malária e outras doenças, não
tinha romantismo que me convencesse de pagar o preço desta batalha para uma suposta
tranquilidade e maior proximidade com Deus”898, questionava. Aqui, a questão produtiva e da
terra infertil perde protagonismo, e contrasta com versões mais oficiais.
Couto também enfatiza que a Colônia Cinco Mil estava numa fase boa, de
desenvolvimento, quando Sebastião resolveu sair dali. “No momento da mudança, a
comunidade estava começando a construir a padaria comunitária e a mudança teve para todos
um sentido de provação.”899 Mortimer comenta que eles estavam “empenhados em produzir
açúcar, farinha, colorau e produtos agrícolas para comprar nosso abastecimento doméstico.
Quando a coisa apertava, vendia-se um boi. Como nos velhos tempos, o dinheiro continuava
curto.”900
As narrativas sugerem que em janeiro aconteceu a primeira viagem de pesquisa para
encontrar uma área para se mudar com a comunidade. Foi a viagem ao Rio Ituxi, no município
de Lábrea, Amazonas, para ver as possibilidades de negócio com a senhora que se interessava
em trocar parte de suas terras na floresta pelas colônias na Cinco Mil. Em contato com o Thalis
Barduzzi, suas memórias e seus relatos, foi possível mapear como se deu este primeiro
deslocamento ao Rio Ituxi, que precedeu a chegada ao Rio do Ouro e quase nunca é mencionada
na história institucional, narrada pela literatura daimista clássica e canais de comunicação da
Iceflu. Thalis narrou que foi uma viagem de um mês floresta adentro e como foi a convivência
entre sua mãe e Sebastião para negociar parte das terras naquela região.

“A vida me levou para a Amazônia com quatorze anos de idade com essa história
do rio Ituxi. Minha mãe é uma mulher muito poderosa, é uma guerreira, da força de
natureza mesmo né, uma mulher com uma história fantástica, digna de filme né? O
nome dela é Urasília, um nome indígena, a mulher que mais fez ouro no Rio
Madeira né? A mulher que todo mundo tinha respeito, então pelo fato de ser mulher,
bonita, no meio da floresta né? Mas na verdade o negócio da Serra do Ituxi foi
quando eu ofereci né? Quando eu estive lá na colônia, nesse dia que o Túlio e o

897
VIANA, 1997, p. 227.
898
Ibid.
899
COUTO, 1989, p. 109.
900
MORTIMER, 2000, p.180.
263
Dácio me convidaram, eu fui lá e tal, eu ofereci as terras para o padrinho... eu
sempre tive um sonho e já morei numa comunidade e tal e eu sempre sonhei com
uma comunidade em harmonia com as pessoas, onde todos são iguais. Então foi
isso que aconteceu: a gente foi, eu, minha mãe e meu irmão, nós três e diante das
nossas dificuldades, que nós tínhamos uma terra na beira do Indimari e outras áreas
de terras no rio Ituxi. Para chegar no Ituxi você tinha que passar pelo Indimari né?
Então, como a dificuldade era muito grande foi isso e foi feito uma proposta
comercial. Foi aí que entra minha mãe na história, em trocar a Colônia Cinco Mil
por parte dessas terras lá do rio Ituxi né? Então o Padrinho queria sair lá de Rio
Branco, em função de incômodos. De visões erradas negativas em relação a conduta
da Colônia e ele queria ficar mais chegado, mais livre e tal, mais tranquilo.”901

Aqui, novamente, nota-se a multiplicidade de narrativas sobre os motivos que


motivaram a saída pra floresta e que contrasta com o discurso da terra infértil e pouca. A
primeira viagem de Sebastião e sua comitiva floresta adentro, na procura de um seringal para
se mudar da Cinco Mil, ainda que escassas as narrativas, é um exemplo que como um fato, nas
diferentes literaturas que se dedicam a descrevê-lo, é passível de muitas versões ou mesmo ser
silenciado e esquecido. Ou noutros termos, em diálogo com as proposições de Cavarero902, as
narrativas que forjam os acontecimentos são feitas por vozes, que são únicas, singulares e
expressam a experiência daquele corpo naquele contexto, por exemplo, se ele vivenciou o fato
ou só ouviu falar e, também, de que perspectiva/ lugar ocorreu esta vivência, etc.
Mortimer comenta de forma mais resumida que a viagem começou em direção ao
município de Boca do Acre, no Estado do Amazonas, que a distância relativamente pequena
(cerca de 210 km de Rio Branco) foi difícil de ser vencida pela “precariedade da estrada de terra
esburacada e cheia de poças d’água.”903 Thalis narrou detalhadamente sobre as dificuldades da
viagem:

“Então foi aí que a gente conversou e daí eu falei olha padrinho eu tenho essa área
de terra é uma região muito forte, muito linda eu conheço bem lá, tem muito jagube
ali, não tem que plantar nada né? É um paraíso, beira de rio, cachoeiras, ele não
conhecia as cachoeiras e o sonho dele era conhecer as cachoeiras, ele nunca tinha
visto pedras. E foi aí que a gente começou a iniciar a história da viagem... Quando
nós chegamos... fomos na beira do Indimari, seu Antônio, aquela coisa e tal, aí
pegamos as canoas e descemos o rio. A gente foi em duas canoas nessa viagem,
descemos em duas canoas e nisso, numa delas ia bastante gente: o Valdete, Mirim,
a Maria, o Chagas e o padrinho também... Enfim, era com duas canoas que nós
descíamos, foram sete dias de viagem nesse Rio até chegar nas cachoeiras. Então

901
T.B., 2021. Narrativa de Thalis Barduzzi gravadas em vários momentos de outubro de 2021 por mensagens
de Whatszapp.
902
CAVARERO, 2011.
903
MORTIMER, 2000, p. 182.
264
saímos de Rio Branco, todos juntos pra ir pra lá, pro rio Ituxi, mas nós não voltamos
juntos. A viagem começou na camionete. Então aí nessa viagem teve as
dificuldades de parte terrestre né? O ramal, a camionete atolada... Foi aí que eu te
falei sete dias de canoa, algumas cachoeiras no percorrer dessa viagem. Daí nós
adentramos a mata pra fazer um varadouro, entrar pra varar do Endimari pro Ituxi,
numa região que nós achamos que era na colocação Santa Helena... acho que nós
ficamos uma semana no meio da mata... Sair nós saímos, mas não chegamos no
outro lado, nós não conseguimos... nós nos perdemos na floresta... aí quando eu
falei pra você que a floresta judiou e machucou bastante, foi nesse período. Dentro
dessa história desses sete dias, nós passamos um mês dentro da mata, desses
somente, foram sete dias remando, sete dias dentro do ramal, depois mais sete...
Enfim, nessa colocação nós fomos atacados por bando de queixadas, tipo umas
duzentas queixadas na floresta correndo em velocidade, foi uma loucura, imagina
o som que não faz né? Formigueiros assim, nossa senhora! Tipo quinze, vinte
metros quadrados, em volta só de formigas, nós passamos por lugares incríveis. E
muitas cobras... eu sei que foi bem difícil. Então tipo algumas coisas assim bem
interessantes sabe? Essa queixadas, nós tivemos que subir em árvores pra se escapar
das queixadas né? A gente fazia os nossos ranchos, a gente fazia os ranchos no
igarapé, baixava os espetos de madeira e botava as mochila tudo em cima da água,
porque fora da água não tinha condições, muito mosquito... Abelha, era muita
abelha. Cara, foi uma doidera muito legal e graças a Deus não aconteceu nada, né?
Eu vi alguns sacrifícios que eu nunca vi, de águia, águias crucificadas na mata, um
negócio incrível, que devem ser dos indígenas, com certeza né? E nós sem nenhuma
arma, sem um garfo, nós não tínhamos um garfo, e sendo seguido por onça, então
foi uma longa história sabe? Nisso eles e eu também machucamos bastante, muitas
feridas, machucados não, ferida brava... Tinham dado bastante, a floresta foi
bastante impiedosa também, então são fatos que aconteceram ali dentro. Enfim,
eram com duas canoas que nós descíamos, foram sete dias de viagem nesse Rio até
chegar nas cachoeiras e daí foi quando nós nos separamos. Eles voltaram... Era um
local que não passa ninguém, absolutamente ninguém não existe, ninguém. Do nada
me aparece um seringueiro com duas canoas. Aí foi que eles fretaram... foi uma
oportunidade também né? O destino fez com que eles não fossem para essas terras
que eram no rio Ituxi.”904

Mortimer não fala das dificuldades enfrentadas até chegar às “margens do Rio
Intimari905, afluente do Ituxi, que deságua no Purus no município de Lábrea” 906, onde a
estradinha terminava, mas as narrativas se coincidem algumas vezes mais. A referência ao
encontro de Sebastião com o senhor chamado Japonês e sua família aparece em ambas.
Mortimer é sintético: “Do lado direito de quem chega, estava a fazenda do japonês, com mais

904
T.B., 2021.
905
Referência ao Rio também nomeado como Endimari, afluente do Rio Ituxi, não é o Rio Antimary, mais a
sudoeste, outro rio que corta o estado do Acre.
906
MORTIMER, 2000, p. 182.
265
de três mil hectares de mata derrubada inutilmente, quase tudo no abandono. Do lado esquerdo
da estrada a tal propriedade, que estava disposta a negócio.”907 Já Thalis narrou assim:

“estivemos lá na beira do rio do Endimari a ajuda do seu Antônio, o japonês, a Jane


que é minha amiga, o pai dela, o Japonês, foi o que protegeu ele e o seu Jorge
Luinguinani e eu tenho relação com a família deles até hoje, que eram meus amigos.
Foram os que deram a guarida pra eles ali né?”908

É interessante que neste escavar de escritos e cartografar de vozes, o entrecruzamento


das narrativas nos permite comparar e cotejar versões, encontrando os elementos que
constituem uma espécie de raiz ou via principal, por onde ramificações e traços ecoam ou
silenciam diferentes detalhes sobre os acontecimentos narrados. No desfecho, Mortimer fala
que “Na verdade, a Senhora não tinha um Seringal. Era possuidora apenas de uma área de
floresta virgem, nunca habitada. Isto fazia uma diferença muito grande.”909 Aqui torna-se
relevante considerar que a ideia de floresta não é sinônimo de seringal pois, seringal se refere a
uma unidade produtiva, um espaço na floresta demarcados pela lógica da empresa, que
compreende estradas de seringas, varadouros, colocações, e em outros tempos, os barracões de
aviamento de mercadorias, etc, isto é, um espaço já intensamente transformado ao contrário da
floresta como vegetação, área de caça e coleta.
Thalis ao longo de seu depoimento vai mostrando como a viagem teve várias tensões e
desavenças devido às diferentes formas de lidar com as situações que apareceram. Comenta
atitudes controversas de Sebastião, como numa cena de desdém e até certa intolerância a outras
práticas religiosas, que contrasta com a imagem de Sebastião acolhedor e experimentador de
diálogos inter-religiosos, como comumente é narrado.

“E fora isso, tipo assim, paramos numa casa, foi um acúmulo de situações né? O
Valdevino seringueiro né? Uns seringueiros... porque eu morava ali e eu conhecia,
eu já tinha viajado outras vezes, feito essa viagem outras vezes, então nós estávamos
levando eles pra lá né? E paramos na casa do Valdevino, ele era um evangélico, é
crente né? E foi quando na beira do rio o Valdevino falou ‘ó seu Junior’. Tava o
Mirim, o Charles, o Valdete, Padrinho. Eles vieram me falar que eles iam ler a bíblia
assim... Aí foi quando o Padrinho fez o comentário do mundo de ilusão, ‘esse
pessoal que vive no mundo de ilusão, esses crentes com essas gritarias todas. Nós
vamos fazer o que?’ – ‘Nós tamos aqui, nós vamos na casa deles’, eu disse. E foi
quando essa pessoa, ele dando comida pra nós, o peixe dele, a farinha dele né? Nos
recepcionou com maior carinho né? Com maior alegria ele e a família dele, na

907
MORTIMER, 2000, p. 182.
908
T.B., 2021.
909
MORTIMER, 2000, p. 182.
266
simplicidade de um tapiri... Paxiúba, coisa de seringueiro mesmo e foi uma comida
que até hoje não esqueço, o amor naquela comida e o comentário negativo em
relação a uma outra identidade religiosa, então você vai condensando, vai
analisando essas coisas né?”910

Um outro aspecto que as narrativas de Thalis nos permitem escavar para encontrar
fragmentos de uma história outra é aquele que contrasta a visão de uma comunidade e um povo
da floresta ecológico, ambientalista, amante e harmonizado com a natureza. Thalis comenta de
muitas maneiras as atitudes que julgava contradizentes a um ideário por vezes romantizado,
construído sobretudo pelo “povo do sul”, de que o grupo do Daime lidava com a floresta, a
ocupação e produção do espaço de forma ecológica - como quis definir a historiografia escrita
por Fróes e Couto, por exemplo.

“Na mata aconteceu cenas assim né? De animais, eu acho que já comentei com
você, de matarmos sete animais num dia só... você precisa do animal no caso, como
nós pessoas carnívoras e tal, é pra se alimentar, mas não para ostentação né? Então
você matar um animal pra comer é uma coisa, mas você matar o animal por matar
é uma outra coisa né? Então num dia só foi morto sete animais, sempre o número
sete acompanha essa história... Então foram mortos sete animais, comemos um e
fizemos o que do outro né? Então às vezes a gente dava umas vaciladas ali. E uma
cena muito forte foi quando um desses animais, foi uma guariba, um tipo de macaco
e ela tava grávida e o Charles atirou nela e eu não sei porque ele atirou na guariba...
o rio tinha alagado, então eles entraram no meio da mata, então você ficava meio
perdido, não sabe onde era o canal... E nesse momento ele viu uma guariba e tal e
atirou né? E ali é muita piranha, piranha gigante de um kilo, um kilo e meio, piranha
preta, piranhas gigantes e o sangue.... O João Canudo, o mateiro que trabalhava com
a gente, que vivia com a gente, era nosso parceiro, que era um seringueiro do
Indimari, que convivia com nós, ele que era nosso guia! O cara da floresta, ele via
uma folha e ele já sabia árvore que tinha o barreiro de animais, ele falava ‘vou
buscar tal animal’ e ia lá e voltava com o animal que ele queria. Então nós não
precisávamos sair dando tiro, o João era o cara. Esse cara me mergulha no rio atrás
da guariba... A cara da minha mãe... ficou apavorada, né? Um pânico por causa do
sangue né? E as piranhas? Me mergulha assim ele, já descolado na floresta, o cara
era mata, esse cara era a floresta né? Aí o João me mergulha naquela água e me
sobe, só com a guariba assim, pega no pescoço dela e sai só com a cara dela pra
fora assim e o sangue saindo da boca dela e ela assim... cara, aquilo foi muito
horrorizante, sabe? E foi o confronto forte mesmo, o padrinho e ela e isso foi lá
dentro da mata, duas pessoas muito poderosas, pode ter certeza e ela com uma visão
né e ele com outra. Então a noite nós fomos comer a guariba e foi aí que foi o
confronto forte com minha mãe com padrinho, ali determinou a separação e o
desencontro dos poderes né? Comer a macaca ali, foi difícil para minha mãe, a
minha mãe não se segurou e a partir daquele momento a minha mãe não aceitou
mais nada, sabe? Então foi um momento que... eu vejo que foi uma diferença da
água para o vinho na história, né? Que aí passaram a ser de pessoas que conviviam,
910
T.B., 2021.
267
mas que não eram amigos. Tinham um bom relacionamento e tal e estavam fazendo
uma certa negociação, mas aí o astral pesou e eu não tiro a razão da minha mãe.”911

O relato de Thalis traz interessantes elementos que nos permitem divagar sobre o
aspecto ligado à diferenciação dos corpos no contexto do Daime, que levam em conta a
distinção entre “os de dentro e os de fora”, os nortistas, homens e mulheres da floresta, caboclos,
como sujeitos diferentes e diferenciados dos sulistas, dos estrangeiros, andarilhos, viajantes de
outros rincões, critérios esses regionalistas e calcados nos estereótipos inventados,
naturalizados e essencializantes. É preciso lembrar que a Amazônia tem sido historicamente
narrada, descrita, definida, inventada, segundo uma lógica externa, e isso também prevalece
nos estudos sobre o Santo Daime publicados até hoje. São os olhares dos colonizadores, dos
naturalistas, dos cientistas e artistas europeus que fundaram a região amazônica ao nomeá-la e
descrevê-la em relatos de viagens, mapas, gravuras. Seus discursos, na maioria das vezes
encomendados, ressoam nos espaços-tempos como verdades naturalizadas. No caso do Daime,
a maioria das teses e dissertações publicadas foram produzidas por “viajantes”, por
pesquisadores de fora, com seus trabalhos de campo e convivência temporária com o lócus da
pesquisa, vinculados à programas de pós-graduação fora do Acre/Amazônia sul-ocidental.
Gerson Albuquerque usa a expressão amazonialismo912 para se referir a um certo modo
de ver, descrever e catalogar a região, que é um compêndio deste olhar exógeno: vista como
distante, vazia, inóspita, atrasada, homogênea, monótona, selvagem, exótica, misteriosa,
mágica, mística, fascinante, paraíso e inferno verde. Suas gentes: rudes, bravos, incivilizados,
indolentes, sem história ou cultura ou quando muito, folclóricos, primitivos, carentes de tutela,
vítimas do abandono, eternos condenados, mas também heroicos, fortes e dotados de uma
sabedoria peculiar. Estas imagens sobre as Amazônias, muitas vezes opostas e contraditórias,
que misturam medo e fascínio, encantamento e pena, também foram fundadas, no caso do
Brasil, pela pena de Euclides da Cunha, que a definia, entre outras poéticas antíteses, como
“maravilhosa e chata”913
Sem acordo e diante de novas oportunidades que cruzaram seu caminho, no final de
junho daquele mesmo ano, Sebastião e seu grupo estavam realizando a primeira expedição ao
Rio do Ouro. Para tanto, Sebastião formou uma equipe de vinte pessoas.

911
T.B., 2021.
912
ALBUQUERQUE, Amazonialismo. In: ALBUQUERQUE, G. R. de; PACHECO, A.S (Org.) Uwakürü:
dicionário analítico. Rio Branco: Nepan Editora, 2016.
913
CUNHA, 2018, p. 37.
268
Três na frente e dezessete na carroceria. Estou lembrando do carro parado no
pátio da Igreja, momentos antes da partida. O forte da expedição era o grupo
de meninos da turma do Bal. Lá estavam ainda mal acomodados o Chico Leal,
o Raimundão, o Pinheiro, o Feliciano, o Zerildo, o Auricélio e o próprio
Roberval. Os outros meninos ficaram para desenvolver os muitos trabalhos
que restavam.914

Mortimer narrou que o hinário de São João de 1980 marcou a transição do comando da
Colônia para o Alfredo. “Simbolicamente, o dia do Padroeiro é o dia da transformação. São
João batizava nas águas aqueles que se convertiam a uma nova vida.”915 Sobre o início da saída
da Cinco Mil para o Rio do Ouro e as visões e intuições que guiavam Sebastião, Alfredo narrou:

“Quando chegou a hora que ele teve a visão que a expansão ia crescer muito e que
aqui era muito apertado para uma expansão maior e teve a visão de caçar um
seringal, que meu pai era muito ligado no seringal, ele era perito em abrir estrada
em mata virgem, era mateiro assim, de primeira qualidade, além disso era
seringueiro muito bom, era fiscal, trabalhou de fiscal, pessoa que fiscalizava os
trabalhos dos seringueiros, que para ver se os cortes da seringa estavam dentro do
conveniente. E também ele foi caçador de profissão, nos seringais, lá ele era um
caçador de profissão então ele era um homem de muito conhecimento na floresta.
Bom, aí quando eu fui tomando mais maturidade eu comecei a administrar a vila
no local. A maior parte da área foi negociada. Trezentos hectares foram trocados
por um caminhão Mercedes Benz 11-13, com tração nas quatro rodas. Uma jóia de
veículo, com seis anos de uso. Entrou também um pouco de dinheiro para dar folga
no nosso orçamento. Foi uma transação razoável e o Mirim foi o nosso negociador.
A Colônia ficou reduzida a cinqüenta e três hectares que compreendiam as
propriedades do Padrinho, do Nel e do Zé Bravo. Era nesta área que estava situada
a Igreja e a maior parte das casas.916 Aí começamos a expandir, ali foi chegando
gente e num dado momento com essa visão que ele teve nós começamos a preparar
saída e caçar quem ficasse tomando conta. E tanto é que quando nós entregamos
para o padrinho Wilson.”917

Mortimer em algum momento lamenta não ter participado desta primeira expedição,
para poder narrar com minúcias os detalhes daqueles momentos de contato e assentamento na
floresta, que marcariam o espaço pois “por mais ecológicos que fôssemos, muitas árvores iriam
rolar até todo povo estar vivendo no novo local.”918 Relembra ter ouvido de Sebastião o consolo:
“Você precisa ficar com o Alfredo, que o peso da missão continua aqui. Eu vou mudando o
povo aos poucos.”919 “A Igreja e o ponto da Colônia Cinco Mil continuam de pé. Neste primeiro

914
MORTIMER, 2000, p. 184.
915
Ibid., p. 183.
916
Ibid., p. 199.
917
A.G.M., 2019.
918
Ibid.
919
MORTIMER, 2000, p. 183
269
momento sua presença é importante, para ajudar a receber o povo que vem chegando.”920 E
relembra que ganhou de presente um hino de Sebastião, “A Instrução é o décimo segundo da
Nova Jerusalém. Foi o último hino recebido na Colônia Cinco Mil, já próximo da viagem de
ida para o Seringal.”921
Couto define que o Daime é um movimento religioso ecológico, associando a busca da
Nova Jerusalém narrada por Sebastião como a procura de “viver em equilíbrio e harmonia com
a natureza.”922 Para Couto, o movimento pode se caracterizar como ecológico porque

não se enquadra nos modelos tradicionais previstos pelo INCRA, pois trata-se
da ocupação de um seringal nativo, onde imperam padrões do associativismo
comunitário, embasadas em práticas religiosas específicas e que fortalecem
um elevado espírito de reciprocidade e solidariedade.923

Estar dentro da floresta, “contar com a proteção da floresta” era parte do projeto de
Sebastião para sua comunidade tendo em vista o “balanço que está por vir, ou seja, a crença de
que momentos difíceis estão reservados para a humanidade neste final de milênio.”924 Couto
sugere que o Daime, como ser divino, é quem guiava o grupo, num chamado que vinha da
própria floresta e, neste sentido, reforça o aspecto profético. Porém se afastando da perspectiva
messiânica e se aproximando da ideia de movimento ecológico, ressalta que o meio ambiente
enfraquecido na Colônia Cinco Mil impossibilitava a expansão daquele movimento social
comunitário e cooperativista e que a ida para a floresta era pautada pelo ideal coletivista.
Recentemente, em material institucional da Iceflu em homenagem aos 40 anos de fundação da
Vila Céu do Mapiá, Couto narrou que “O Padrinho disse que não, que não queria terra em nome
de ninguém em particular, não era para aceitar aquela proposta do Incra, que o título era para
sair em nome do coletivo”925
Sobre este caráter ecológico e ambientalista do Daime como movimento religioso, Assis
comenta que é o imaginário ocidental dominante que cria a ideia de uma “doutrina da floresta”
associada aos princípios ecológicos e ligados à uma ideia de natureza. “Um olhar mais detido
na vila Céu do Mapiá revela uma ambivalência em torno dessa questão, que foge bastante desse

920
MORTIMER, 2000, p.184.
921
Ibid.
922
COUTO. 1989, p. 104.
923
Ibid., p. 107.
924
Ibid., p. 109.
925
Id., Padrinho e o sonho da comunidade na Floresta. In: Guimarães, 2023.
270
estereótipo romantizado de ‘harmonia’ com as matas e o meio ambiente”926, criado e reforçado
sobretudo pelos “de fora” da Amazônia.
A partir de suas experiências durante a pesquisa, Assis narra que, no Céu do Mapiá, a
educação ambiental “é repleta de deficiências. Moradores ainda hoje jogam lixo na mata e nas
águas com frequência”927 e que muitas pessoas da Vila não têm nenhuma consciência ecológica.
Estas são questões que eu também pude verificar quando estive lá em 2006, sendo que o que
mais chamou a atenção era a poluição do igarapé, com muito sabão utilizado pra lavar roupas.
Embora a comunidade se apresente como de cunho ambientalista e muitos adeptos do Daime
gostem de ver o Mapiá como uma “ecovila”, como um exemplo de “uma nova era na prática”,
que realiza a experiência de vida comunitária, coletivista, ecológica e cooperativista, “segundo
suas próprias lideranças a comunidade esteve mais próxima da ideia de uma Ecovila no tempo
do Padrinho Sebastião do que hoje.”928
“De seringal a ecovila, em busca do sonho de seu fundador” foi a definição dada à Vila
Céu do Mapiá na revista institucional que saiu em comemoração aos 40 anos da comunidade.
“A organização comunitária é uma herança dos tempos da Colônia Cinco Mil, quando Padrinho
Sebastião e seus seguidores desenvolveram um sistema de convivência comum exitoso.”929
Apesar de iniciativas de organização comunitária, grupos de trabalho, associações, planos
elaborados, ações individuais e projetos pontuais, reconhece-se que “o desenvolvimento
sustentável da vila” ainda é “um caminho longo”930. É difícil encontrar sucos e frutas no
comércio local e não há um movimento de produção cooperativa forte na vila, sendo que as
hortas existentes são de pequena produção nos próprios quintais, geralmente cultivadas por
mulheres.
É como se houvesse uma expectativa e romantização acerca dos “povos da floresta” e
suas práticas culturais enteogênicas, por parte daqueles que vivem em ambientes urbanos,
muitas vezes adoecidos com a vida moderna, individualista, auto-centrada, que geralmente leva
ao vazio existencial e quadros de adoecimento metal. Como comentou Ailton Krenak, os
grandes centros urbanos fazem dos seres humanos pessoas sozinhas, que tendem a perder a
dimensão da coletividade, “deixamos de ser social porque estamos num local com mais de 2
milhões de pessoas.”931 Muitos vêem, a partir da proximidade com o Daime, ou outras

926
ASSIS, 2017, p. 297.
927
Ibid., p. 298.
928
Ibid., p. 298.
929
MENDES, E. De seringal à ecovila, em busca do sonho de seu fundador. In: Guimarães, p. 19, 2023.
930
Ibid.
931
KRENAK, 2019, p.84.
271
manifestações das culturas ditas tradicionais ou outros usos de psicoativos, por exemplo em
contextos terapêuticos, uma forma de se conectar com a natureza, com a Amazônia, com a
floresta, com uma ancestralidade ou melhor, uma ideia de meio-ambiente, de Amazônia e de
floresta construída no imaginário moderno-colonial, marcado pela cisão sociedade-natureza.
Na companhia de A. Krenak, entendo que as práticas culturais no Daime podem ser
lidas como saberes outros capazes de romper com a visão dicotomizada sociedade-natureza,
que nos alienou o pertenciamento à Terra e ser um caminho para se perceber, enquanto
humanidade, parte deste organismo maior ao qual todos pertencemos, onde tudo é vida em
movimento. “Tudo é natureza. O cosmo é natureza. Tudo o que eu consigo pensar é
natureza.”932
Na companhia de Süssekink, reconheço também uma certa “Sensação de não estar de
todo” que a autora evidencia, ao ler os relatos de estrangeiros e as discrepâncias entre a imagem
do Brasil criada e o Brasil real. Em mim, ressoam as contradições entre as imagens produzidas
pelas narrativas institucionais acerca da Colônia Cinco Mil e, posteriormente do Céu do Mapiá,
como comunidades do Daime do povo do padrinho Sebastião onde aconteceram um
revolucionário sistema de produção coletivizado e cooperativista e que teria evoluído para uma
ecovila. A sensação é de que essas narrativas que inventam e reinventam os lugares se
assemelham ao Brasil narrado pelo cronistas, posto que as imagens e sentidos produzidos
parecem “não estar de todo” na realidade concreta. Assis comenta que no

imaginário New Age, o Santo Daime é tratado muitas vezes como sinônimo
de ‘amor à natureza’, o que inclui, dentre outras coisas, a dieta vegetariana.
Assim, não é de se surpreender que alguns peregrinos se sintam’ em choque’
quando presenciam churrascos feitos em praça pública no Céu do Mapiá.933

Nestes encontros marcados por estranhamentos, o que é uma prática comum para
seringueiros, ribeirinhos, populações indígenas - como comer macacos, queixadas, jacarés –
passa a ser visto como excessivamente diferente e até incômodo ou anti-ecológico para aqueles
“de fora”. O relato de Thalis aqui novamente nos leva a um olhar para um Sebastião que, mesmo
em posição de liderança, também estava aprendendo no seu caminhar, com tropeços, acertos e
erros – um relato que humaniza Sebastião, ao passo que outras narrativas buscam sacralizá-lo
como profeta, homem iluminado, um São João na Terra.

932
KRENAK, 2019, p. 49.
933
Ibid., p. 297.
272
“No Rio do Ouro eu não quis que eles entrassem ali... Eu vi umas coisas ali que eu
também não gostei, sobre questões ambientais né. Mesmo sendo nós, ou eles, o
povo da floresta, na época tinham algumas pessoas envolvidas que... um dia eu
chego no barreiro, eles colocaram uma rede de pesca nesse barreiro, nessa árvore e
estavam umas cem maritacas presas ali, sangrando e uma mordendo a outra, todas
cortadas e desesperadas. Aquilo... eu fiquei indignado, eu fiquei muito, muito,
muito, até hoje. O pessoal tirava essas penas, porque aí tinha um envolvimento com
moçada hippie, moçada do mundo, viajantes que baixavam muito aí e começaram
a fazer muito colares, brincos de maritacas e mandar pra fora, pra São Paulo, Rio e
pra Europa. E isso pra mim foi muito, eu fiquei muito chateado. Aí foi uma outra
vez, que eu entrei lá no meio do Rio do Ouro e eu vi assim pendurado um couro de
queixada, uma centena de couros esticados também. Então sabe? Eu sou totalmente
natureza, não importa, eu sou bem natureza, eu não gosto de ver nada morrer né?
Apesar de eu ser um sulista e não ser um cara da floresta, mas eu não gosto de ver
morte de nenhuma coisa. Mas sei lá, é uma questão de costume, de hábitos...
Necessidade também, as queixadas eram pra se alimentar e tudo, mas essas coisas
me chocaram... eu sei muito bem que eles usaram aquilo para se alimentar das
queixadas, mas quanto as maritacas, aquilo ali para mim foi muito triste. O negócio
da macaca e tal e as coisas foram pegando sabe? E isso foi criando um certo...
ressentimento... Mas isso são momentos, são coisas que acontecem com a gente,
indivíduos, a gente tá aprendendo, tudo é uma escola, tanto pro Padrinho também,
o Padrinho era uma pessoa que tava aprendendo também, em muitas coisas ele tava
aprendendo. E fez coisas, muitas coisas maravilhosas, boas e certas e coisas que
não devem ter sido tão boas assim, né? Como todo ser humano normal, né? Só que
ele tinha uma missão muito grande e essa missão dele continua e eu acho
maravilhoso, não tenho nada contra e tenho um carinho muito especial. Então
bacana sabe? Eu fico feliz porque tudo tem dado certo.”934

Túlio narra que, com a saída de Sebastião, as formas de organização social lhe pareciam
cada vez mais austeras e que se assemelhavam a uma “instituição monárquica com base no
‘poder divino’”935. Incomodava lhe a narrativa de que todos ali eram escolhidos de Deus, alguns
representantes da corte celestial, santos reencarnados para um projeto de salvação da
humanidade, que demandaria sacrifícios e obediência rígida dos seguidores para com os líderes.
O autor expõe os conflitos vivenciados nos últimos meses em que viveu na Cinco Mil e como
ele e alguns de seus amigos passaram de “bons meninos”936 a rebeldes e “desmiolados”937.
No “O consagrado Defensor”938, Viana narra que eles sonhavam com um cristianismo
mais amoroso, com uma ritualística menos rígida. Questionavam o que seria um excesso de
regras, que iam desde o uso de gravatas e alinhamento da farda completa, para eles
despropositado em vista ao calor amazônico, ao pouco contato permitido entre homens e

934
T.B., 2021.
935
VIANA, 1997, p. 369.
936
Ibid., p. 292.
937
MORTIMER, 2000, p. 167.
938
VIANA,1997.
273
mulheres, reflexo da misoginia e excessiva erotização dos corpos femininos, visões distorcidas
sobre sexo e pecado, passando pela crítica à postura por vezes militar e autoritária dos fiscais
da sessão. Também questionavam a organização comunitária muito hierarquizada, a pouca
participação da coletividade nas decisões de âmbito geral, sobretudo a partir do período em que,
tendo Sebastião iniciado suas viagens a procura de um seringal para se mudar, a comunidade
ficou sob a liderança do filho Alfredo, que já se destacava como seu sucessor.
O movimento contestatório destes jovens, narrado por Viana como “Nova Revolução”,
foi anunciado em junho de 1980, na noite de São João. Túlio e seu amigo, Dácio Mingrone,
companheiro de viagem pelas estradas, depois de alguns anos de trabalho e dedicação ao projeto
comunitário em fase de implementação na Cinco Mil, tinham uma proposta ousada: fazer uma
revolução, no sentido de incitar um movimento questionador que provocasse significativas
mudanças e rupturas a fim de corrigir as contradições humanas ali manifestas. Inspirados pelo
hinário “O Mensageiro” de Maria Marques, uma das mais antigas seguidoras do mestre Irineu,
sobretudo numa interpretação literal dos versos sobre as “novas revoluções aqui com os
estrangeiros”939, buscavam questionar o que viam como marcas do velho cristianismo
patriarcal, que carrega na culpa, no castigo, no antigo testamento, no tom ameaçador e no
trabalho árduo como penitência, formas de limpeza e purificação. Tudo isso seria contradizente
com as estradas e caminhos de liberdade e amor possibilitados na consagração da bebida, a
alegria genuína vivenciada nos festejos em irmandade, cheios de cânticos de louvores às forças
da natureza.
Para tanto eles organizaram alguns cartazes e Jorge Zuloaga, um dos artistas
estrangeiros que morava na Colônia, ajudou também. O chileno Oscar se convenceu a
participar. Foi planejado ao que parece uma manifestação bem no formato das marchas que
tomavam as ruas clamando por mais democracia, porém, com baixíssima adesão do povo.
Conseguiram comprar tintas, faixas, cartolinas e fogos de artifício, para levantar uns cartazes
após um hinário, na tentativa de cobrar da diretoria mudanças na maneira como se exerce o
comando, tentar convencer outras pessoas da necessidade de renovar os valores que norteavam
a vida comunitária. “Aqui na Cinco Mil, na teoria, enquanto cantamos os hinos, Jesus é louvado
e colocado em seu devido lugar, mas, na prática, o que vemos é outra coisa.”940 “Uma renovação
de mentalidade é urgente por aqui”941, alertavam. “A gente podia adotar este tema: Nova

939
Vieira, M.M., “A minha mãe me mandou”, n 46.
940
VIANA,1997, p. 280.
941
Ibid., p. 279.
274
Revolução é Paz, Justiça e Amor”942. Mortimer destaca que nos cartazes havia “propaganda
indiretamente contra Alfredo, que tinha legitimidade e o apoio da maioria esmagadora para ser
o sucessor do Padrinho.”943
Sebastião já estava à procura de um seringal para se mudar com a comunidade para uma
área maior na floresta. É narrado que Alfredo e a diretoria do Cefluris acompanhavam a
movimentação com descontentamento mas alguma tolerância e cuidado, aguardando que
Sebastião chegasse do Rio do Ouro e tomasse uma atitude. Viana narra diferentes diálogos que
teve com Alfredo e, depois, com Sebastião, que estavam desaprovando toda aquela agitação,
mas também não impediram. “Podem pregar as papagaiadas de vocês, mas na manhã de São
João, vocês mesmos vão limpar tudo. Estou garantindo-lhes estes direitos, mas não apoiando
esta palhaçada” 944
relembra Túlio das palavras de Sebastião e reconhece que, para a
comunidade, eles passaram a serem vistos como “moleques metidos a besta, ou melhor, metidos
a Cristo, que não respeitam o dono do pedaço.”945
Viana narra suas vivências externando sentimentos que misturam encantamento e
comprometimento com o propósito de uma vida alternativa em comunidade, a utopia em vias
de realização e as dores de estar submetido a um sistema de trabalho exaustivo com o qual não
se estava acostumado, com privações diversas de alimentação e afeto e uma organização social
que identificou como “política monárquica”.

Mesmo vivendo tantas experiências novas, sentia-me castigado por um velho


mundo. Nadei, nadei e morri na praia. Não me conformava com a ideia de
uma verdade universal se apresentar trazendo o inédito condicionado as velhas
formas e rígidas formas.946

Neste sentido, não é à toa que alguns críticos caracterizem o Daime, sobretudo como
vivenciado entre os seguidores de Sebastião, como um sistema monárquico, feudal, teocrático,
onde valores republicanos e participação democrática não é a regra, e alguns toques de
pensamento seita. O relato de Roberto Macedo, um ex-daimista que viveu alguns meses no Céu
do Mapiá, vem somar ao conjunto de relatos críticos que envolve o grupo:

Não é democrático o regime, é teocrático, eu fui designado para ser o


controlador da comida e eu percebi que não tinha igualdade nenhuma, eu
percebi que a família do..., a família real no caso, né, tinha muitos privilégios
e o povo, no caso o povo né, tinha um suprimento muito baixo, muito baixo

942
VIANA,1997, p. 279.
943
MORTIMER, 2000, p. 167.
944
VIANA, 1997, p. 292.
945
Ibid, p. 297.
946
VIANA, 1997, p. 94.
275
até... dava pra perceber. Foi exatamente esta desigualdade na instituição que
me chocou muito.947

Na mesma direção do paradoxo narrado por Viana, a pesquisadora Almeida Ramos


apresenta inquietação com o fato de a constituição doutrinária ser em torno da ayahuasca e ao
mesmo tempo de inspiração na mitologia judaico-cristã. Questiona: “como uma bebida de efeito
liberalizante como a Ayahuasca pode produzir um recrudescimento do fundamentalismo?”948
Para Rocha, o Santo Daime, apesar das influências indígenas e da contracultura, reproduz
mecanismos de poderes disciplinares e da sociedade do controle, através da institucionalização
de hierarquias e docilização dos corpos. Rocha observou que o modus operandi marcado pelos
princípios das sociedades disciplinares como descritas por Foucault em “Vigiar e Punir”949
atravessa a dialética do trabalho daimista, onde a peia, o desconforto, é visto em seu caráter
“disciplina-dor, que educa/ensina através da dor”.950 Para Rocha, esta característica do Daime
está relacionada ao contexto ditatorial em que se deu a formação da doutrina.
Os relatos de experiência enquanto narrativas de memórias evocam diferentes versões
para os acontecimentos pois eles ecoam de diferentes corpos, que assumem diferentes lugares
no espaço das ideias, simbolizam diferentes lutas, perspectivas e afetos. Túlio e Dácio por
exemplo, por terem sido os primeiros questionadores do ordenamento hierarquizado instituído
na comunidade, são personagens silenciados em narrativas mais oficiais, que ecoam em textos
como de Fróes, Mortimer e Alverga e dos materiais institucionais que alimentam sites e redes
sociais do grupo. Não raramente, são personagens lembrados, pela força do acontecimento, mas
quase nunca nomeados, que é uma outra forma de produzir apagamentos. Mortimer narra que
“Eles a princípio se empenharam no trabalho a ponto de serem elogiados” 951 mas depois “um
deles começou um processo megalomaníaco. Passou a dizer que era o Mestre, o sucessor do
Padrinho”952.
Viana e Mortimer tinham perfis parecidos – jovens mineiros que chegaram a irmandade
no movimento dos andarilhos, da contracultura – mas ocuparam lugares distintos na
comunidade: enquanto Mortimer era mais um homem das letras, integrando-se a diretoria e ao
séquito que cercava Sebastião no dia a dia, Viana era mais da turma do serviço pesado, do

947
SBT, Reporter. file:///D:/Videos/Daime/SBT%20Reporter%20Santo%20Daime.webm, 1995. (O link não está
mais disponível na internet.)
948
Ibid., p. 66.
949
FOUCAULT, Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis/RJ: Vozes,
1987.
950
ROCHA, p. 126.
951
MORTIMER, 2000, p.167
952
Ibid.
276
roçado, da horta. Isso não quer dizer que Lúcio também não participasse dos trabalhos na
agricultura, apenas ressalta que, como ele também tinha outras funções, ocupava um lugar
diferente do Túlio, o que não está dissociado do teor das narrativas por eles produzidas. Este é
um aspecto marcante da estrutura comunitária da Cinco Mil daquela época: a hierarquia e
diferenciação dos corpos e suas funções na coletividade, que contrasta com os aspectos mais
utópicos do ideal comunitário, onde todos teriam acesso igualitário aos benefícios produzidos
pelo trabalho comum. Sobre Túlio, Dácio e companhia, suas tentativas de questionar certos
ordenamentos, Mortimer ainda narrou:

Este trio, durante algum tempo, foi uma canseira para nossa cabeça. O povo,
com muita paciência, suportou os jovens possuídos por esta atitude inusitada
e sem fundamento. A manifestação deles culminou com um dia de cartazes e
faixas de propaganda indiretamente contra Alfredo, que tinha legitimidade e
o apoio da maioria esmagadora para ser o sucessor do Padrinho. A favor dos
desmiolados, só mais um desmiolado argentino. Diante deste fracasso de
público eles desistiram da empreitada. Tem um velho ditado que diz: ‘O
caminho do feio é por onde veio’. Um dia foram todos embora.953

Enquanto no relato de Túlio, ele e seus apoiadores teriam tentado causar uma verdadeira
revolução na comunidade, outros dizem que eles eram muito gente boa, trabalhadores, mas
tomaram cogumelo demais e acabaram endoidando, com mania de grandeza. A grande
revolução, na verdade, são “fatos que praticamente não tiveram relevância, e foram
superdimensionados pelo Túlio”954, narrou Flaviano. Aluízio lembrou assim, quando eu
perguntei se ele lembrava da noite dos cartazes: “Lembro de tudo, o Túlio entrou numa história
de Jesus de num sei o quê, viagem, viagem era o Túlio e o Dácio, finado Dácio.”955
Padrinho Sebastião teria autorizado que eles organizassem a manifestação com cartazes,
mas foi inevitável que os ânimos se exaltassem e os jovens passassem a ser perseguidos, lidos
como problemáticos, insubordinados, gente que “saiu da casinha”, “rodaram”, tornando-se
insustentável a manutenção ali por mais tempo. Sentindo que não cabiam mais naquele espaço
e ameaçados de apanhar, Túlio e Dácio saíram e passaram um ano longe da Colônia. Depois de
um tempo viajando, voltaram para a Cinco Mil entre os anos de 1982 a 1984 e Túlio me narrou
sobre suas experiências desta época, na gestão de seu Wilson, até a chegada de Maurílio.
Como vimos, Fróes956 foi quem primeiro escreveu sobre um possível caráter messiânico
da narrativa de Sebastião, a ideia de que ele seria o líder da formação de um novo povo, o povo

953
MORTIMER, 2000, p.167.
954
F.S., 2020.
955
A.F.S., 2020.
956
FRÓES, 1986.
277
de Juramidam, predestinado a construir e herdar uma cidade santa na floresta, uma Nova
Jerusalém. Assis957, que apresenta em sua tese uma proposta de genealogia e periodização, se
refere ao contexto de interiorização na floresta como “fase profética” e também destaca os “tons
de messianismo ou sebastianismo, que nesse caso parece um termo mais do que apropriado”958.
Trata-se da busca simbólica por uma Nova Jerusalém, para fundar a colheita de “um novo povo”
que estava por se formar para viver longe do “mundo de ilusão”.
A associação entre o movimento de Sebastião e seus seguidores à outros movimentos
políticos-religiosos e figuras messiânicas aparece em alguns escritos, como a breve referência
ao Sebastianismo959 feita por Assis, e a comparação de Sebastião à Antônio Conselheiro960 que
aparece na música de rock do compositor acreano Pia Vila, escrita em parceria com o
antropólogo Terry Aquino. A música reflete, acompanhando Pompermaier, a “modernização
capitalista da economia implementada pelo projeto da frente de expansão agropecuária do
governo Militar”961, e compara as duas lideranças especialmente no primeiro verso: “Padinho
Sebastião da Colônia Cinco Mil / Do Santo Daime, da Santa Maria / Em corrente com Antônio
Conselheiro/ Está anunciando / Que o Acre vai virar pasto de boi.”962
Couto contesta o argumento de que se tratou de um movimento messiânico pois, ao seu
ver, não se encontram ali elementos fundantes do messianismo como um contexto de “exaltação
social e ‘deprivation’, assim como de destruição da família.”963 Para Couto, o movimento de
deslocamento de Sebastião com mais de 40 famílias deveu-se muito mais a “uma chamada
espiritual do Daime” do que a um “estado de exaltação emotivo provocado pelas tensões
sociais”964, como no conflito na região do Contestado, um episódio de messianismo e revolta
que o antropólogo evoca a título de comparação. Porém, se tomarmos a própria definição trazida
por Couto ao citar Vinhas de Queiroz, parece que a peregrinação em direção à floresta para
fundar uma Nova Jerusalém, por diversos motivos, mais aproxima-se que distancia-se da ideia
de messianismo. O autor entende que o movimento messiânico é

todo aquele em um número maior ou menor de pessoas, em estado de grande


exaltação coletiva, provocada pelas tensões sociais, se reúnem no culto de um

957
ASSIS, 2017.
958
Ibid., p.121.
959
Movimento que surgiu em Portugal e chegou ao nordeste brasileiro no século XIX, uma crença e promessa
redentora na volta de Don Sebastião, Rei de Portugal, que desapareceu numa batalha na África em 1578.
960
Conhecido movimento de Canudos, que culmunou com uma das mais violentas guerras do período de transição
entre o império e a república, de 1896 a 1897, no sertão da Bahia.
961
POMPERMAIER, http://keltonmizael.blogspot.com/2019/02/linguagem-musical-e-identidade-cultural.html
962
AQUINO, Terry; VILA, Pia. Padrinho Sebastião. [Compositores]. Rio Branco, [198-]. I fita cassete.
963
COUTO. 1989, p. 108.
964
Ibid., 1989, p. 109.
278
indivíduo considerado portador de poderes sobrenaturais e se mantem
reunidas na esperança mística de que serão salvas de uma catástrofe universal,
e/ou ingressarão em vida num mundo paradisíaco: a terra sem males, o reino
do céus, a cidade ideal. 965

No Dicionário Houaiss, messiânico é o adjetivo relativo ao messias ou ao messianismo,


movimento ideológico que prega a missão de que estaria investido um homem (ou grupo de
homens) na salvação da humanidade. O messias é o indivíduo aceito como líder, capaz de
propiciar um estado ou condição desejável numa sociedade, o reformador social, o salvador. A
medida que a irmandade ao seu redor crescia, cada vez mais Sebastião ia se tornando um líder,
um guia, simbolizado por seus seguidores como um profeta, rezador e curador, a própria
encarnação de São João Batista, como é cantado em seus hinos. Pelo que nos chega, estava ele
imbuído da utopia de conseguir realizar uma comunidade alternativa na floresta, de modo que
considero que, em certa medida, Sebastião foi uma espécie de messias no Daime. Um relato de
Alfredo sobre as visões que seu pai tinha quando vivia nos seringais, ilustra e reforçam estas
associações entre os santos católicos e adeptos do Daime, que são parte de sua afirmação como
liderança do grupo.

“E neste meio tempo que ele atendia lá, ele já tinha ouvido falar de Daime,
ayahuasca, porque na época mais conhecida como oasca né e ele já tinha ouvido
falar mas ele nunca tinha tomado. Tanto é que ele teve uma visão, isso ainda no
Juruá, que ele estava no meio da mata onde não tinha ninguém, de repente ele viu
um homem, ele ia na beira da estrada, a estrada faz sempre volta assim, pra pegar
as seringas, ele tava aqui e viu lá na outra volta assim aquele homem passando e ele
olhava e não via a cabeça do homem, só era o corpo. De modo que neste dia quase
que ele corre na mata e se perde, mas aí aguentou, ‘não já tô acostumado a ver visão,
isso é visão’ ... Realmente ele não tinha nenhum histórico ainda, não tinha hino, não
tinha nada, não falava nem São João, foi depois quando começou a receber hino,
São João, São João, São João, tiraram a cabeça, foi aí que ele acreditou que aquela
visão já era uma dica pro que ele tinha que se descobrir, pra poder deixar uma
doutrina firme na justiça de São João.”966

Pode-se perceber que a esperança mística de alcançar uma vida melhor e as faculdades
de cura e profecia faziam de Sebastião um indivíduo diferenciado por seus poderes e carisma.
Com suas narrativas salvacionistas, tornava-se um aglutinador destas forças e pessoas que se
uniam ao seu redor. Neste movimento de saída da Cinco Mil em direção à antigos seringais,
motivados pela crença de serem um povo escolhido, estavam animados com as promessas de

965
Vinhas de Queiroz, 1977, p. 287 apud COUTO, 1989, p. 108.
966
A.G.M., 2019.
279
viverem numa cidade-santa na floresta, a salvo das mazelas, do fogo e destruição que estariam
por vir conforme os sonhos e profecias de Sebastião o guiavam.
Há que se considerar também que havia as já narradas persistentes dificuldades e tensões
vivenciadas na Colônia Cinco Mil, que também motivaram o deslocamento e podem cair bem
na definição de “estado de grande exaltação coletiva”, como os traumas que ainda ecoavam em
relação aos episódios de violência ligados ao Ceará e às denúncias sobre a Santa Maria, que
marcaram a imagem da comunidade em Rio Branco. Mas, para Couto, trata-se de um
movimento religioso ecológico e não messiânico, posto que não deve ser entendido como uma
“fuga para mundos imaginários, pelo contrário, trata-se de uma entrada na floresta com o intuito
de colonizá-la e preservá-la, além de uma caminhada para dentro de si mesmo.”967
A escolha dos conceitos diz mais dos óculos que cada um escolhe colocar para falar do
mundo narrado que da realidade em si. Existe uma tendência de nomearmos as coisas pra caber
em nossos sentidos e formas de interpretar, pensar e sentir. Muitas vezes, algo que se idealiza,
mas que de fato não necessariamente existe, ou se existe, é porque alguém assim quis nomear
e não necessariamente é um real em si.
Couto defende que no movimento de Sebastião em direção à floresta não há um
“radicalismo extremado” que, ao seu ver, seria uma característica dos movimentos messiânicos.
Enfatiza que uma das características do movimento messiânico é “a destruição da família
natural, em função da família mítica” e destaca que, pelo contrário, há entre os adeptos do
Daime uma acentuada valorização da estrutura familiar. Porém, apesar da valorização da
família natural - inclusive com a prática de casamentos consanguíneos - entre familiares
próximos- há que se considerar que muitas pessoas, como eu, se distanciam das suas famílias
biológicas para viverem junto da família constituída na irmandade religiosa, a família mítica de
Juramidã. A escolha das palavras, definições e seus sentidos podem expressar sempre muitas e
diferentes percepções pois ecoam de contextos diversos.
Sobre o deslocamento da comunidade da Cinco Mil para a floresta, Carvalho968
incorpora o conceito de migração messiânica e dá destaque para a questão do uso da Santa
Maria e seus desdobramentos como um dos principais motivos que levou o grupo a sair do
Acre. A “migração para a floresta”, como é descrita, é vista como “um contradiscurso” que põe
em questão “os estigmas referentes ao grupo”969 devido à incorporação desta outra planta nos
rituais com o Daime junto à liderança de Sebastião. Carvalho enfatiza que a saída da Colônia

967
COUTO, 1989, p. 108.
968
CARVALHO, 2019.
969
Ibid., p. 23.
280
Cinco Mil para os seringais na floresta foi “como resposta às perseguições e investigações a
que o grupo estava sendo submetido no Acre”970 e, assim, procurou olhar para “a formação
daimista que Padrinho Sebastião constitui como discurso político sobre o uso religioso de
plantas psicoativas”971.
Depois do São João daquele ano de 1980, Sebastião e sua equipe providenciavam os
últimos preparativos para a saída, para a primeira visita ao Rio do Ouro, e Sebastião pediu a
Tetê que cantasse seu hinário no dia de seu aniversário, em julho. Neucilene relembra que neste
dia aconteceu algo triste. Tetê não festejou com a alegria que lhe era de costume, pois a filha
da dona Elza, que estava doente, havia feito a passagem. Nessa ocasião ela previu que era a
última vez que cantaria seu hinário, chamado Arca de Noé. Neucilene narrou:

“Quero falar um pouco sobre a Tetê... esse hinário que nós cantamos! Porque era
um hinário que a dona dele era muito risonha! Ela só cantava sorrindo! Olhando pra
gente sorrindo, sorrindo, que não parava mais! Quando terminava abraçava...aí teve
um dia que a gente foi cantar o hinário dela em julho. Fomo festejar o aniversário
dela! Daí tinha acontecido a passagem de uma irmã nesse dia. Aí o padrinho
Sebastião mandou trazer o caixão pra dentro da igreja e fomo cantar o hinário da
Tetê. Mais aí tu... quem olhava pra ela que tinha costume de vê-la, sabia que ela
não tava legal! Ela cantou porque o padrim mandou! O padrim era tudo pra ela,
né?! Ela foi não desmanchou o aniversário. Quando foi umas certas horas, nós
saímos, lá fora e ela disse assim: Neucilene, é a última vez que eu tô cantando meu
hinário na igreja! Eu disse por que Tetê? Ela disse por que eu não vou mais cantar!
É a última vez que eu tô cantando! E eu queria muito que tu e a Rosa, ficasse
responsável por esse hinário. Eu disse não senhora! Você tem um monte de
sobrinha, muita amiga por aí. Ela disse: Mas eu acho tão bonito tu e a Rosa Maria
cantando meu hinário, que eu quero que vocês fiquem nesse hinário. Só que eu não
fiquei! (Risos) Da minha parte, eu digo muito obrigado! Se me dê um ramo de flor,
outra coisa, um hinário não! Aí ela foi indo, foi adoecendo, foi adoecendo, quando
foi em novembro, ela não voltou mais pra igreja mermo, pra cantar o hinário, nunca
mais! Quer dizer... eu como tenho a língua solta, digo meu Deus do Céu! Teve um
dia que cantaram a comadre Cristina, da dona Julia e o da madrinha. Eu digo e o da
Tetê? Porque se o padrinho tivesse vivo era o hinário que ele não deixava passar
era o da Tetê. Porque a Tetê, todo dia, no dia do hinário, era quem chegava na mesa
com cruzeirinho na mão. Cansei de encontrar ela no caminho... Era o maior
divertimento eu mais Tetê, eu amava ela!”972

O hinário de Tereza Gregório geralmente é cantado na Cinco Mil nos trabalhos de


mulheres realizados na mata. É um hinário pouco cantado na comunidade Céu do Mapiá e, por
conseguinte, toda a irmandade ligada à Iceflu. Neucilene sempre se opunha à este esquecimento,

970
CARVALHO, 2019. p.9.
971
Ibid.
972
N.S.S., 2020.
281
sobretudo quando comentava sobre a realização do “Hinário das Madrinhas”, que é uma
coletânea geralmente cantada no dia das mães, que inclui apenas os hinários de Rita, Júlia e
Cristina. Tereza foi enterrada no Cemitério da Colônia Cinco Mil, que existe desde essa época
e até hoje é utilizado pela comunidade. Atualmente leva seu nome, sendo conhecido como
Cemitério Jardim Santa Tereza.
É na segunda metade da década de 1980 que começou a expansão internacional do
Daime, a “fase diaspórica.”973 Sebastião cada vez mais doente, alternava períodos no Mapiá
com períodos viajando nas igrejas fundadas no centro-sul do país, onde por vezes buscava
tratamentos médicos mais especializados. Diz-se que Sebastião sofria de “coração crescido”,
mal causado pela Doença de Chagas e também enfisema pulmonar, que sentia muita dificuldade
para respirar. Aos poucos, seu filho Alfredo Gregório foi assumindo a liderança, sendo o
protagonista destes voos mais distantes que o Daime foi dando. Por meio das pesquisas de Assis
e Labate974, sabe-se que rituais daimistas tendo sido realizados em pelo menos 43 países, em
todos os continentes habitados.975 (Figura 7).

Figura 7 – Mapa mundi com destaque para os países que se tem notícias de rituais do Daime

Fonte: Elaborado pela autora. 2023.

973
ASSIS, 2017.
974
ASSIS e LABATE, 2014.
975
“22 países europeus: Alemanha, Armênia (Eurásia), Áustria, Bélgica, Eslovênia, Eslováquia, Espanha,
Finlândia, França, Grécia, Holanda, Inglaterra, Irlanda, Itália, País de Gales, Polônia, Portugal, República Tcheca,
Romênia, Suécia, Suíça e Turquia (Eurásia). – 7 países da América do Sul: Argentina, Colômbia, Chile, Equador,
Peru e Uruguai, além do Brasil (eu acrescentaria a Bolívia à lista, pois recentemente conheci um grupo de Daime
de La Paz.); – 3 países asiáticos: Índia, Japão e Rússia; – 3 países da África: África do Sul, Marrocos e Quênia; –
3 nações do Oriente Médio: Irã, Israel e Palestina; – 3 países da América do Norte: EUA, Canadá e México; – 2
países da Oceania: Austrália e Nova Zelândia;” (ASSIS e LABATE, 2014, p. 20-21)
282
3.2 O Rio do Ouro e os Trabalhos de São Miguel

“Com o poder do céu


Da terra e também do mar
Ordeno a São Miguel
A força Deus é quem dá.”
Hinário O Cruzeirinho, Alfredo Gregório

Data de março de 1981 o registro da doação para o Cefluris dos títulos provisórios das
terras que Francisco e Manuel Gregório e Sebastião Mota tinham posse na Colônia. Como
vimos no início, Francisco, Manuel e sua família foram os primeiros familiares de Rita a vir
para as terras que depois ficaram conhecidas em seu conjunto como ‘colônia cinco mil’. No
entrecruzamento com o que nos chegou até aqui dos relatos orais e escritos já apresentados,
podemos entender que a área correspondente a estas três colônias são os aproximadamente 60
hectares remanescentes das antigas 25 colônias. Somaram mais de 300 hectares na década de
1970. Os demais lotes foram vendidos para conseguir custear a viagem e investir no transporte
necessário para a mudança, como relatado. Couto também narra que “com a venda das terras
da Colônia 5000, permanecendo apenas os 50 hectares mais significativos da área original, a
comunidade comprou um caminhão duplamente tracionado”976.
A saída da Colônia Cinco Mil como movimento nômade, messiânico, de deslocamento,
desterritorialização e reterritorialização de sonhos, desejos e afetos, pode ser lida como uma
trajetória imersa numa necessidade política de se afirmar como diferente, a busca por um
espaço-outro para viver mais ligados à floresta e menos a ilusão, com mais liberdade para
estudar as plantas maestras. Lourival comentou que houve “outros e outros motivos que eu
posso te contar depois” sobre a saída do padrinho da Cinco Mil. É tocante como existem certos
assuntos que alguns membros da comunidade preferem não comentar ou fazê-lo apenas no
reservado; mesmo conversando com Lourival por mensagens de áudio à distância, pude
perceber os momentos em que ele se emocionou ao lembrar de alguns acontecimentos.
Mortimer reforça a ideia de que “O Padrinho Sebastião idealizava voltar à vida de
Seringal.”977 Ele também traz passagens que evidenciam este desejo por parte de Sebastião: “É
isto, meus filhos, eu estou procurando reunir os irmãos para formar este povo de Deus.”978

976
COUTO, 1989, p 105.
977
MORTIMER, 2000, p. 115.
978
Ibid.
283
imaginava possível o povo se manter com a extração do látex. Como
seringueiro humilde, sempre soube que o patrão era um explorador. Agora se
pensava numa nova justiça, onde não haveria nem patrão nem empregado.
Todos filhos e herdeiros.979

As vivências na Colônia Cinco Mil foram narradas por Alverga e por Mortimer como
experiências comunitárias adquiridas e que seriam usadas para levantar a outra comunidade,
em um espaço maior, com um núcleo ainda mais produtivo, material e espiritualmente. Como
nos chega, a partir de narrações de Francisca, estes processos de busca por um lugar ideal na
mata/floresta estavam associados a uma vida de muito sacrifício para aqueles que
acompanhavam Sebastião com esperança de dias melhores. A promessa utópica que guiava o
deslocamento: “Novo tempo, nova vida, novo mundo, essa era a proposta do retorno à
floresta.”980
Lourival ao rememorar sua adolescência no Rio do Ouro, narrou sobre o aspecto
messiânico deste deslocamento para a floresta empreendido por Sebastião, ligado à uma ideia
de cumprimento de uma providência divina, inspiração dada por Nossa Senhora para guiar
aquele povo para sair da cidade e buscar uma nova vida. Destacou também sobre a passagem
do comando da Cinco Mil da família de Sebastião para seu Wilson e sua família.

“Então, nesses anos 1980 para 1981 surgiu a necessidade do Padrinho Sebastião
abrir novas terras... nesse momento que o Padrinho Sebastião achou a necessidade
de abrir um outro lugar, ele fez uma expedição, foi para o rumo do Amazonas e
conheceu esse lugar, que foi o Rio do Ouro e foi só três anos no Rio do Ouro, depois
ele retornou dizendo que era para lá, que ele ia mesmo porque ele tinha tido a visão
que Nossa Senhora mostrou para ele. O que o Padrinho fazia era uma coisa
mandada, ele não dizia ‘eu acho que é assim’, as palavras dele eram bem claras, ‘fui
mandado fazer isso e isso na minha miração, o poder me mandou Nossa Senhora
da Conceição e Juramidam’, a história dele era essa. Partindo daí, minha irmã,
fomos acompanhar o padrinho para o Rio do Ouro e ficamos lá um tempo. Mas para
fazer toda essa mudança ele precisava de uma pessoa para ficar cuidando da Cinco
Mil e nesse momento o mais preparado era o padrinho Wilson, que já tinha o
Pronto-socorro aqui na cidade e também tinha um comércio. Eles eram melhor de
vida e ajudavam muito o Padrinho Sebastião e por terem comércio.”981

Ladislau narrou que sua amizade com Sebastião e sua família continuou mesmo após o
distanciamento com a partida do grupo para a floresta, comentando também, com considerável
discrição, os motivos que teriam impulsionado Sebastião a se deslocar:

979
MORTIMER, 2000, p. 180-181.
980
Ibid., p. 183.
981
L.B.A., 2020.
284
“Aí depois que ele viajou foi que a gente se distanciou porque a minha preferência
era uma né? Eu já tinha aberto uma lojinha ali na Isaura Parente, que se chamava
Casa Nogueira... Aí ele disse para mim: ‘não, porque bom, Ladi, eu num tenho
lojinha e tal, eu vou lá pra mata, porque eu gosto de cortar seringa, gosto de fazer
outras coisas e tal’, era brincadeira dele, mas ele queria um lugar que fosse mais
tranquilo para ele, porque aqui sempre tem problemas e tal. E foi para lá e primeiro
ele foi para um lugar e não deu certo e depois ele resolveu ir lá para o Mapiá. E aí
sempre que ele vinha aqui eu ia encontrar com ele, era uma pessoa maravilhosa que
eu tinha uma consideração enorme. E aí ele dizia para mim ‘tem que ir lá fazer uma
visita’ e eu dizia ‘eu vou...’, mas nunca tive condições de ir, ocupado. Depois que
ele faleceu, uns dois ou três anos depois, aí eu fui lá conhecer e eu tenho até foto de
lá, né? E aí gostei muito, que a madrinha Rita é uma pessoa que a gente tem um
carinho enorme, até hoje quando ela vem por aqui, eu vou lá visitar ela.”982

Marinês narrou detalhes das lembranças de seu ser-criança, como foi o deslocamento
com sua família. Expõe algumas das dificuldades enfrentadas pela sua família neste processo
de mudança para a floresta, as perdas e ganhos na saga da Cinco Mil para o Rio do Ouro e
depois para o Mapiá:

“Pois é menina e aí viemos para a Cinco Mil! Isso aqui pra nóis foi uma alegria! E
ajeitando os dentes às pressas, meu pai pagando os tratamentos de dente, pra gente
se mudar pro Rio do Ouro né… Tinha máquinas de abrir madeira. Toras de madeira,
toras imensas, partes de ferro e engrenagens. E tanto que foi doando, foi levando
para o Rio do Ouro, Mapiá, algumas coisas, outras foram se perdendo. O povo foi
pegando um bucado das coisas no meio do caminho. O carro ficou aí. Estragou.
Ficou na mão não sei de quem. Foi uma história assim, foi uma passagem muito
difícil. Também não foi muito fácil. Mas a gente era muito novinho, não deve ter
sido fácil pro pai e a mãe... Que sai do seu habitat pra outra situação, sem conhecer,
ir de cara assim. Pra dentro da floresta. Minha mãe não quis ir, né!? Horrorizada.
E, também ela passou por umas passagens psicológicas também, assim... depressão
e perturbação mental, desde a época que aconteceram aquelas coisa lá (em 77). Aí
logo ela ficou com a irmã, ela ficou se tratando, né!? Neste ritmo, nós fomos
tudinho. Meu pai pegou nós tudinho, assim pelo braço e saiu... eram duas mulheres
e cinco homens. E os homem ajudavam padrinho Sebastião nas obras... O Ricardo,
o Roberto, o Ronaldo… Todos eles. Aí nós, a Marisita ia na parte do roçado, com
padrinho Sebastião e as mulheres e eu ficava na parte da casa, cozinhando e
lavando. Fomos pra floresta. No Rio do Ouro, no Mapiá também. Ruim foi assim,
por causa da escola... Paramos de estudar mesmo, foi na época do ginásio. É tanto
que assim, tinha só o básico ali né. Aí é tanto que lá precisou até de gente mesmo,
que já tinha um pouquinho de noção de alfabetização, teve que ajudar os
menininhos de lá... Então trabalhei um pouco nessa época na escola, ajudava as
professoras. A primeira comitiva a Marisita foi na frente. Foi a primeira turma de
mulheres, foi a Francisca, até aqui da dona Elza, se eu não me engano. É, é... Seu
Chagas, que era mais o Pedro né... É, a Francisca, acho que a Raimunda, também,
982
L.N., 2022.
285
as Correntes. E foram as primeira mulheres que foram, a Toca, eram as cozinheiras,
as lavadeiras e as que ajudaram na agricultura, pra começar a plantar alguma coisa.
E aí no caso eu fiquei com meu pai, na segunda, terceira leva. Na época depois, que
montou a casa grande, saiu montando as casas assim… que demorava pra montar
uma casa naquela época...” 983

José Teixeira também partilhou lembranças:

“Aí quando o pessoal foram pro Rio do Ouro, eu levei tudinho. Ficou com muita
fartura, aquela parte que mora lá o Feliciano, aquela parte nós fizemos bananal e
um canavial, pra todo mundo da comunidade. E o gado, o homem que tomava de
conta era o seu Veríssimo, do gado. Eu tomava de conta da agricultura. Passei 10
anos aí. Eu morei lá. Eu nunca comprei um nada, só comprava o sal e o açúcar que
eu não sabia fazer.”984

Marinês, em seu relato, comenta sobre a divisão de trabalho, por gênero e idade, que
costumava vigorar na comunidade de Sebastião desde a Cinco Mil: as mulheres se dividiam
entre os trabalhos no roçado geralmente acompanhadas por Sebastião e os trabalhos domésticos,
que incluíam lavar as roupas de todos e o funcionamento da cozinha. Os homens também se
dividiam em diferentes frentes: limpar terrenos para os roçados, plantar, colher, caçar,
construção de casas e barcos, além daqueles que saíam para tirar seringa.

“Aí foi quando ele chamou nossa família. O pai... nós, meus irmão pra fazer, fazer
as obras, né, a turma do seu Nel também, que é agricultor, um pouco do seu
Paulinho, outros das outras família, né? Um grupo de homens né? Os apoiadores,
os solteiros. Na época é tanto que tinha as lavadeiras, que me ajudavam a lavar as
muitas roupas. Muitas bacias de molho dentro do Igarapé, por ali, nas canoas aliás,
tinha as roupas dos trabalhador de molho, dentro das canoas. A Daíde foi uma das
lavadeiras, de ficar até bem baquiada assim, lavando muita roupa dos trabalhadores.
A Toca, minha irmã, Marisita. Na época da comunidade mesmo. Aí foi crescendo,
foi levando, né? Assim... fomos levando, a parte de agricultura comunitária né? Se
dividia tudo. Aí passou pouquinho tempo. Aí o padrinho veio conhecer o Mapiá
acho que final de oitenta e dois, por aí. Oitenta, oitenta e dois que mudou, até oitenta
e quatro, aí apareceu uma pessoa que era dona das terra lá... era pura mata verde...
Findou que não tinha dono nenhum, só pro Padrinho sair, “ah vou fazer confusão
não, eu vou sair”, ele dizia. As casas já feita, tirada na mão mesmo. Toras assim,
largas... Tudo na mão. Meus irmãos ajudaram a fazer as casas. Ai ficaram os
Correntes por último, para cuidar das últimas plantações, colher sementes de
algumas frutas, coisas assim né... da parte da agricultura. Tinha umas sementes da

983
M.M.,2019.
984
J.T.S., 2021.
286
feijão, da mandioca, pra trazer pro Mapiá. Vamos supor que nós plantamos a
semente e transportamos pro Mapiá.”985

Para Benedito, um dos pesquisadores que se propôs a estudar as questões de gênero no


Daime, há, no geral, uma naturalização da perspectiva de que os serviços domésticos são melhor
executados pelas mulheres, enquanto que “Aos homens haveria uma facilidade natural para a
provisão e o trabalho bruto, por isso eles se dedicariam aos cuidados de infraestrutura e ao
cozimento do sacramento.”986
Marinês Morais ainda narrou das aventuras, dos aprendizados e das dificuldades
encontradas a partir da saída da Cinco Mil.

“Pois é, aí a gente fez essa migração da Colônia para o Rio do Ouro e depois para
o Mapiá, durante quatro anos, de oitenta à oitenta e quatro. E fomos abrir, quando
ele foi na primeira turma pro Mapiá... Padrinho levou a picada da arraia, veio
correndo do Mapiá, voltando, pra dizer que ia ficar lá, né? Veio já se mancando, o
povo apoiando ele. Preto! Preto! Vomitando sangue, tudo... sofreu muito! Quando
voltou pro Rio do Ouro, aí, já disse: ‘Vão ter que se mudar. Eu gostei de lá. Então
a gente vai pra lá’”.987

É sempre bom lembrar, para que não se esqueça, o quão difícil foi para as pioneiras e
pioneiros seguidores de Sebastião a busca pela realização de sua utopia/profecia de criar um
espaço-outro para viverem e morarem em união e harmonia na floresta, construírem as
primeiras casas, a primeira sede da igreja na floresta. “Doenças, a malária, pereba na perna”,
como descreveu Lourival, são apenas parte do enredo. Fome, muito trabalho, pouco conforto
eram dificuldades enfrentadas pelas famílias que encaravam a viagem com seus filhos e
provações diversas desafiavam a fé e determinação daqueles que buscavam seguir Sebastião.
Mortimer narrou que no Rio do Ouro, só de malária, “Podemos dizer que, dos duzentos e
sessenta habitantes, apenas uns quarenta não se contaminaram.”988 “No fim deste período
tenebroso, computamos três baixas em nosso povo. Registraram-se três óbitos.989”
Sobre as mortes causadas pela malária no Rio do Ouro, Francisca narrou ter visto em
uma miração que era uma espécie de castigo e açoite pelo qual estavam sofrendo porque desde
o Ituxi até o Rio do Ouro, o povo não estava respeitando a floresta, os animais. “Muito bicho,
muito bicho, muito bicho, que não tinha precisão daquela matança toda. As vezes atirava, o

985
M.M., 2019.
986
BENEDITO, 2019, p. 137.
987
M.M., 2019.
988
MORTIMER, 2000, p. 215.
989
Ibid., p. 214.
287
bicho não morria... a guariba, mataram uma guariba grávida... então assim, isso deu muito azar
pra gente”990.
Das famílias que fizeram parte desta trajetória de deslocamento, foram para o Rio do
Ouro e voltaram para a Cinco Mil, conhecemos a de Maria Bento e Lourival, Manuel e Marinês
Morais e também a de Marizete, filha da dona Mariza, que narrou suas lembranças destes
tempos:

“Aí comecei ficar na dona Júlia, aí houve toda aquela mudança de Rio de Ouro, de
processo, de Mapiá, de tudo, de tudo, de tudo, de tudo, voltei pra minha mãe, muito
doente já, de lá para cá do Rio do Ouro. Eu fui, morei um tempo no Rio do Ouro,
mas peguei malária e tava grávida do Marcos, o meu mais velho. E eu tava muito
mal mesmo, então lá não tinha recurso e o Padrinho Mota mandou minha mãe me
pegar, que eu viesse pro Acre. Ele olhou pra mim e disse – ‘se você acredita, quer
vir comigo?’ eu disse ‘-quero ficar, eu acredito, eu vou.’ Quando nós chegamos em
Boca do Acre eu, as queda, eu num reconhecia mais ninguém, eu sabia nem quem
era quem, aí quando nós tava indo pra embarcar pra ir pro Mapiá, minha mãe
chegou e me trouxe pro Acre de novo.”991

Flaviano também acompanhou o período de saída de Sebastião em busca de um novo


lugar para recomeçar a comunidade, mas foi um daqueles que preferiu não se deslocar para a
floresta nesta travessia – e só posteriormente, passou alguns anos morando no Mapiá com a
família, já em 1986.

“Até que chegou um dia, um ano depois de chegar na Cinco Mil, que eu tomei um
Daime aqui, e eu saí andando fui bater em Feijó, acho que até eu já te falei uma vez
isso né. E aí pronto! Aí foi mudando as coisas, que eu fui pra Feijó, fui tomar daime
com os índios. Tomei Daime com índios né e aquelas pessoas também que tomavam
cipó que chamava né, tomava cipó que tinha o Antônio Inácio, eu passei muito
tempo morando com a família dele também né, trabalhei com eles no seringal, até
cortei seringa, aprendi a cortar e fiquei, fiquei por ali rodando, até que no final das
conta eu voltei aqui pra Cinco Mil de novo. Em 82 eu tava lá nos Ashaninka, lá em
cima no alto do Rio Envira, aí uma coisa foi me chamando assim, pra vir aqui pra
Cinco Mil, coisa forte mesmo assim, sentindo a presença do Mestre Irineu, Maria
Damião, pra mim vir aqui pra Cinco Mil. Aí eu voltei. Quando eu cheguei aqui o
pessoal tava no processo de se mudar pro Rio do Ouro sabe. E aí naquela minha
volta eu pensei: será que eu vou pra lá? mas assim uma coisa dentro de mim dizia
pra eu não ir sabe, não ir. Aí eu fiquei aqui na Cinco Mil, encontrei o Padrinho
Wilson que eu já conhecia também e aí eu fiquei por aqui.”992

990
F.C., 2022.
991
M.A.S.S., 2020.
992
F.S., 2020.
288
No decorrer da partida gradual de Sebastião, os trabalhos na Colônia Cinco Mil ficaram
sob liderança de Alfredo, seu filho, que deu início a uma sequência de trabalhos com o Daime
que ficaram conhecidos como Trabalhos de São Miguel, como narraram Neucilene, Graça,
Lourival e outros. Estes trabalhos passaram a envolver toda a comunidade da Cinco Mil, dos
grandes aos pequenos, em diversos rituais de limpeza e purificação, trabalhos que iam além de
consagrar a bebida diversas vezes e realizar os louvores, cantorias, rogativos e rezas no salão.
Maria das Graças assim lembrou:

“Depois que veio toda a história do padrinho Sebastião procurar terra, sair pro Rio
do Ouro né, foi a época que o Robson nasceu… 81, 82… 82 né. Aí então o Robson
nasceu, padrinho tava pro Rio do Ouro procurando uma terra pra lá… quando foi
pro batizado do Robson em São João, o padrinho veio, fez o batizado dele e nessa
época também entrou os trabalhos do Alfredo com São Miguel né, trabalhando
assim, foi uma época muito forte… de atuação, ele atuado, ficamos debaixo de
vamos dizer assim, que eu não sei empregar a palavra certa agora, que não é a
palavra que eu quero, mas vamos dizer assim, debaixo de ordem… porque todo
mundo tinha que comer macaxeira insossa com chá de cidreira. Como eu tava
gestante, eu fiquei mais por fora, sabe? E teve assim, muita escaldação de roupa…
hahaha, muita roupa perdida porque tinha que escaldar a roupa e tinha roupa que
não prestava pra ferver… então foi uma época muito forte e ter aqueles trabalho e
foi quando teve os trabalhos de São Miguel na igreja. Não podia usar nada no
cabelo, nem um grampinho... E… era obrigado a gente ir assim, tinha que ir, embora
que eu, com o buxo bem no pé da guela rs, vamos dizer assim... mas ia participar,
porque todo mundo tinha que tá reunido junto, era uma corrente só. Compadre
Wilson participava… Eram trabalhos de limpeza, a origem era limpeza, né… então
tudo isso aconteceu para muita limpeza. É o que eu sei contar um pouco dessa
época, que eu ainda me lembre foi isso né. Aí depois que padrinho Sebastião foi…
pro Rio do Ouro, aí de lá mudou pro Mapiá e quando o Alfredo mudou pro Rio do
Ouro, que aí o compadre Wilson ficou na casa grande né, comandando lá na casa
grande e o compadre Alfredo foi e aí já ficou.”993

Sobre os primeiros trabalhos de São Miguel na Colônia Cinco Mil, Neucilene narrou:

“Teve uma época, em 1981 foi o tempo que teve os trabalhos de São Miguel... pense
o que era um trabalho de São Miguel!! Aí começava os trabalhos, a gente fazia
trabalhos, fazia trabalhos, fazia um monte de trabalho, aí quando terminou, a gente
pensava que ia terminar, aí Alfredo foi disse que ia montar uma equipe para fazer
uns trabalhos para o pai dele, que o pai dele tava lá e tava doente. Aí juntou uma
equipe, aí fomos para lá. Minha filha, aí lá no Rio do Ouro, pesava era a mata Julia,
fazia trabalho assim, como tinha as vezes que só enchia a mesa mesmo com esse
povo, que era pouquinha gente. Fazia trabalho hoje, aí folgava amanhã e depois

993
M.G.N, 2022.
289
fazia outro e depois fazia outro, daí naquela floresta assim, tinha vez que quando a
miração estava forte demais começava a repetir o Daime todo mundo não tinha
coragem, hoje o pessoal diz que toma muito Daime né? Mas eu não tomo mais
Daime não Julia, já tomei muito Daime, a gente já tomou muito Daime de primeira.
Você acredita que quando começava a servir o Daime, você jurava que você não ia
levantar! Parece que na hora chegava aquela força, aquele poder que fazia tu se
levantar, mas tinha vez que o joelho da gente fazia assim, um no outro e ele batendo
lá no litro “témmm” “témmmm” chega doía no juízo... e a mata zunia assim, que
era no meio da mata, só tinha aquela cabana, aquela casona sem parede... que era
onde a gente dormia e se hospedava... e quando a gente começava a cantar, minha
filha... Tinha uns hinos que o Valfredo recebia... a gente daqui pra lá, esse hino do
Zé, o Daime é o Daime, ele recebeu nós andando no carro e ele começou
“mmmmm”... eu perguntei o que você está fazendo mesmo? Aí ele disse ‘estou
recebendo um hino para dar para o compadre Zé’... aí mandou o Zé parar e nós
fomos cantar na beira da estrada, quatro horas da manhã ... lua cheia... aí fomos
cantar e quando chegamos lá, quando puxava esse hino assim menina, eu chorava...
e o Padrinho quando começava a dar aquelas palestras dele, num tinha jeito de não
chorar... tinha vez que a miração estava forte mesmo e o negócio pegava. Aí foi
assim, o padrinho foi embora e nós ficamos e até hoje eu estou nessa batalha. Esses
trabalhos de São Miguel em 1981 teve um pouco a ver assim com exorcizar aquela
história que tinha acontecido na Cinco Mil. Pois é, eu nem sei te explicar não,
porque pra mim, foi tipo uma limpeza sabe? Mas depois o pessoal ficou encafifando
que não limpou... ainda hoje, tudo que acontece volta aquela história no meio... e
eu não ponho, eu acho que já passou... eu acho que passou... porque nós passamos
tantas coisas, a gente fez Trabalho de Estrela, a gente depois ainda, depois disso, a
gente fez trabalho de São Miguel e teve um dia num trabalho forte que nós tomamos
Daime a noite inteira, cavaram um buraco imenso na porta da igreja, que era onde
ele tinha enterrado uns carvão. E nesse dia o Alfredo recebeu ordem para cavar e
cavaram e eu acho que eles tiraram esses carvão. Nesse dia o Alfredo me botou
para cuidar da casa grande com os menino tudinho e a Dodô, mulher do Valdete.
Daí ficou eu, a Dodô e os meninos tudinho, tudo que era de criança ficou dentro da
casa grande... porque não ficou ninguém sem tomar Daime, aí toda vez que repetia
o Daime dentro da igreja, a dona Mariza, mãe da Zete, ia com uma frasqueira de 5
litros lá para casa grande e a gente tinha que acordar aquelas crianças tudinho e dar
Daime para tudinho e depois ia agasalhar tudinho. E a gente num sabia se chorava,
se achava graça porque tomava também um copo né? Toda vez.”994

Como muito tem sido narrado, Mortimer também reforça que “a história trágica daquele
homem nunca abandonou o inconsciente das pessoas. De vez em quando, alguém tinha algum
caso para contar de uma passagem espiritual.”995 Cada um acaba tendo uma percepção do
ocorrido. Há quem acredite que até hoje o Ceará exerce algum tipo de influência negativa nas
comunidades do povo de Sebastião e exerce forte influência sobretudo no Céu do Mapiá, onde

994
N.S.S., 2020.
995
MORTIMER, 2000, p.192.
290
os trabalhos com os chamados “povo da rua”, exus e pombagiras, tem se consolidado, ganhado
cada vez mais espaço e notoriedade.
Os trabalhos de São Miguel eram feitos no intuito de limpar definitivamente aquela
corrente que, segundo muitos acreditavam, estava atraindo doenças para várias pessoas. Aluízio
a seu modo também lembrou:

“Não era o Alfredo, diz que era São Miguel atuado no Alfredo e o vô Corrente e
meu tio dando aquela sapatada... O pau fumava mesmo, meu irmão ficava se
tremendo mesmo, pulou nego que nem paca, blouuuu! Espirrou! acompanhei tudo...
meu irmão, trabalho ia terminar era oito horas da manhã, a noite todinha e o pau
fumava sete horas e eu digo: ‘não vai acabar mais não? Beleza’. Quem não podia
se levantar pra ir lá no filtro, o Daime vinha na cadeira, nem que seja um pouquinho
pra melar a língua, mas ia lá na cadeira na hora do Daime ‘tu não levanta não’ ‘não!’
então o fiscal pegava um... ia lá e tã ‘toma, mela pelos menos a língua mas a ordem
é essa: tem que tomar, tem que tomar’. Trabalho de São Miguel era uma limpeza
assim mesmo, pra limpar mesmo. Eu sei que foi forte, as entidades baixavam direto
lá, o pau fumou e eu ficava só observando. Eu tirei de letra eu passei tudo esses
trabalhos de São Miguel, uma maravilha... depois no Rio do Ouro. Teve outro no
Rio do Ouro, foi o que teve uma queimação de pito chegava cinco, seis pitos assim,
pow pow pow...”996

Mortimer narra que neste período Alfredo passou cerca de quinze dias doente, tomando
Daime, fazendo jejuns e trabalhos, que todos acompanhavam para dar força à corrente. “Alfredo
conclamou os moradores da vila para fazerem uma limpeza geral em todas as casas e terreiros.
Recomendou que todos fervessem as roupas.”997 Mortimer narrou que

Foi um período muito intenso, Alfredo recebeu muitos hinos em um dia,


graças a Deus se achou curado, sem febre. Depois de passado tudo, nós
supomos que foi uma malária a causadora dos delírios. Uma coisa é certa:
Alfredo nunca mais voltou a sentir semelhantes sintomas. Ficou vacinado
contra esta doença que assola o norte do Brasil.998

Alfredo explicou a Alves Jr. que os Trabalhos de São Miguel eram “uma forma de
cultivar várias coisas que aprendeu com o Ceará, que era considerar os espíritos sofredores e
tentar lhes dar Daime. Porque o Ceará é que começou a inventar de dar Daime pros Exus.”999
Atualmente é o trabalho de Estrela da Mata que vem praticando essa espécie de gira voltada

996
A.F.S., 2020.
997
MORTIMER, 2000, p. 193.
998
Ibid.
999
A.G.M. em Alves Jr., p. 156.
291
para as entidades “da esquerda espiritual”, como é descrita no campo. Lourival também faz uma
síntese sobre os acontecimentos que lhe marcaram nesta época dos trabalhos de São Miguel:

“E nisso surgiu essa mudança para o Rio do Ouro. Nessa mudança pro Rio do Ouro
teve uns balanços, que é justo a passagem de São Miguel, que o Padrinho Alfredo
realizou na Colônia Cinco Mil. Essa história de São Miguel é um pouco longa...
Então o Padrinho Sebastião arrumou uma turma e foi abrir o Rio do Ouro e o
Padrinho Alfredo ficou fazendo um limpa geral na Colônia Cinco Mil para entregar
para o Padrinho Wilson. Essa entrega foi uma coisa seríssima que foi uma passagem
de São Miguel que teve e não dava para desconfiar e nem, assim, uma coisa assim,
uma coisa muito legítima... Estou tentando dizer... que nessa passagem de São
Miguel aconteceu de ele receber quatro hinos em um dia. Entrava todo mundo para
a Igreja e tinha que tomar Daime, das mulheres às crianças, chamava todo mundo
para dentro, dava Daime pra todo mundo.”1000

De forma resumida, Couto narra sobre o processo de assentamento da comunidade no


Seringal Rio do Ouro, entre os anos de 81 e 83 e os controversos problemas com a posse das
terras na região, para os quais também se encontra algumas versões. Diz-se que mesmo após
um ano de trabalho, Sebastião dizia que “ali ainda não era a Nova Jerusalém” 1001. Consta que
Sebastião e sua comunidade no Seringal Rio do Ouro “estava inserido na Gleba Santa Filomena,
que pertenciam à Agropecuária Paraná, num total de 119.500 hectares.”1002 O Incra negociou a
saída deles do Rio do Ouro, prometendo uma indenização que nunca chegou pelas benfeitorias
feitas. Indicaram a região do Igarapé Mapiá e o povo com Sebastião seguiu em um novo
deslocamento. “O INCRA nos ofereceu nova área de assentamento a ser escolhida nos igarapés
Mapiá ou Teuinim, afluentes do Rio Purus, abaixo da Boca do Acre. Ficou combinado que o
Padrinho estudaria onde melhor colocar o povo.”1003
Foram aproximadamente quatro anos desde a saída da Cinco Mil em 1980 até a
formação e fundação da Vila Céu do Mapiá em 1983. O ano de 1984 marcou a definitiva
desocupação do Rio do Ouro, que foi gradual e progressiva pois era preciso aproveitar as
últimas colheitas cuja responsabilidade ficou com a família Corrente. 1004 Francisca Corrente
contou da insegurança que sentia ao ver que teria que se mudar novamente, expondo seus filhos
e a si mesma às novas dificuldades para garantir as condições de vida básicas:

“Bom, vamô pro Rio do Ouro, mas lá tem ouro mermo? É o Rio do Ouro que tem
ouro? Não, é só o nome, só o nome... com três anos que nóis tava lá, na verdade

1000
L.B.A., 2020.
1001
COUTO, 1989, p. 104.
1002
Ibid., p. 106-107.
1003
MORTIMER, 2000, p. 223.
1004
Ibid., p. 244.
292
com dois anos, lá inventaram uma história que apareceu o dono da terra, mentindo,
tudo mentira maninha, a mentira é um bicho danado, ela vai longe e apareceu essa
história do dono da terra, dona Lia mas o Seu Jorge e o seu Antônio Japonês, que
não tem nada de besta, inventaram essa história pra nós sair de lá, o padrinho já
tinha dito, se aparecer o dono eu entrego, que eu não quero briga com ninguém, eu
não sou homem de confusão, não quero confusão com ninguém. Pronto, apareceu
o dono das terras, mas que ninguém nunca foi atrás do documento, cadê o
documento do dono da terra, me passa a escritura sagrada sua, tudo é assim no bolo,
na loucura sabe! Pois é, um dia, o padrinho chegou lá na tábua, onde eu tava, tava
lavando roupa até: ‘palmas…’, quem é? o padrinho, opa padrinho tudo bom? ‘-
tudo! Deus te abençoe!’ mas eu vi que não tava, pelo rosto dele eu vi que não tava.
Falei: - padrinho o que que tá acontecendo? – ‘não, nada não!’ não, nada não, o
senhor não vem aqui à toa… -o compadre Pedro foi lá pra casa da Nilza, foram
buscar macaxeira, cozinhar pra gente comer e trazer maniva pra nóis plantar. “Pois
é, vim aqui conversar com compadre Pedro, vim dizer pra vocês que nós vamo sair
daqui.’ Ahh não me diga uma coisa dessa, pra onde é que nós vamos? Mas nós
somos ciganos, ou judeus errante? Que não herda nada de ninguém!? Bom aí… dai
ele contou. Ontem o Constantino mais o Cláudio chegou lá, era de noite, deixando
uma carta que seu Antônio Japonês mais dona Lia, mandou pro padrinho, pedia que
eles desocupasse as terra, que tinha aparecido o dono das terra e que eles já iam
comprar as terra, tudo tudo já era deles, ia ser deles, eu falei: Padrin… fiz que nem
o loro José, pera…vô cair pra trás, pelo amor de Deus o tanto que nós já trabalhamos
aqui, quer dizer vamos viver desse jeito, todo tempo fazendo coisa e deixando pros
outros? ‘É minha filha, mas é o seguinte, nós não podemos fazer confusão, que nós
não compremo. Eu falei: Padrinho sabe de uma coisa, o senhor sabe o que vai
acontecer? Eu vou voltar pra Cinco Mil, que foi a burrada que eu fiz foi aí, que eu
devia ter voltado, ter dito vou voltar e vou voltar mesmo e ter vindo pra cá, que tava
todo mundo vivo. ‘-Ah, vai me deixar?’ Não, eu vou pra lá, por que eu não vou
ficar nesse lenga, lenga, vai pra cima e vai pra baixo, uma hora aqui, outra acolá,
aqui tá fundo ali, tá raso, eu só tô pensando na minha vida, eu já tô ficando velha,
meus filhos tão tudo crescendo e ninguém estudou ainda, é só nessa história de
cortar seringa, fazer borracha pra alimentar quem? Os outros? Que nóis tamo muito
é mal alimentado! O padrinho falou: ‘-Não minha filha, por acaso você tá valente?’
Não padrinho, não é valentia, é a real, é caindo na real, porque hoje em dia essas
coisa só vão pra frente e quem não sabe de nada é um burro parecido com gente,
não é um cidadão brasileiro, é um burro parecido com gente, não sabe ler, não sabe
escrever, não sabe fazer uma conta boa, legal, o que que eu sou? Nada, perante os
homens, a lei da capacidade, quem não sabe ler é um burro parecido com gente, né
não? Ramm!! – ‘Não, mais vai dar certo, vou procurar um lugar pra gente ir’.1005

Apesar dos assertivos questionamentos críticos feitos por Francisca a Sebastião, sobre
o tempo de dificuldades porque passaram aqueles que o seguiam em busca da utopia de projeto
comunitário, ela seguiu viagem em direção ao Mapiá onde vive até hoje. Apesar de considerar
que a saída do Rio do Ouro foi um mau negócio, se pensar que eles já tinham feito muitas
benfeitorias, que nunca não foram indenizados e que não havia uma comprovação inequívoca

1005
F.C., 2022.
293
de que eles de fato não podiam ficar ali, Francisca hoje considera que acabou sendo bom, afinal
tudo é como tem que ser. O acesso às terras no Ituxi, uma área mais ao pé da serra, cheia de
cachoeiras e também o acesso ao Rio do Ouro eram muito mais difíceis que as estradas fluviais
que levam ao Céu do Mapiá sem grandes dificuldades, o que favorece o trânsito de peregrinos
e turistas que movimentam economicamente a vila na floresta.
Sebastião como uma liderança carismática e idealizador de um projeto comunitário,
impulsionou um conjunto de famílias a se deslocarem para a floresta, desfazendo-se de seus
poucos ou muitos bens para enfrentar uma nada fácil batalha que foi o assentamento de mais de
200 pessoas na mata com poucos recursos financeiros. Acredita-se que durante essa fase inicial,
quando Sebastião ainda exercia poder de comando nas decisões e guiava a comunidade, estava
vivo o espírito da utopia de um outro modo de vida. Sebastião em várias situações pregava
contra um mundo que gira em torno do dinheiro. “Eu não estou atrás de dinheiro, não vivo por
dinheiro. Estou vivendo por Deus, pela terra, pela mata que é o que tem valor.”1006
Nesta busca por um lugar ideal para construção de um espaço-outro para se viver, a
Cinco Mil continuou sendo uma comunidade do Daime e, como já dito, depois destes trabalhos
de limpeza de São Miguel, quando houve a partida definitiva para o Rio do Ouro, em 1981, a
Colônia foi entregue à zeladoria de Wilson Carneiro, o amigo de Sebastião e antigo seguidor
do Daime desde o tempo do Alto Santo e que também dirigia um pequeno núcleo em sua casa,
o Pronto-socorro. As narrativas contam que Sebastião e Alfredo então entregaram a Wilson a
“Chave de Ouro”1007, uma forma simbólica de dizer que ele seria o guardião da Igreja da Cinco
Mil, que seria a porta de entrada para a comunidade que estava sendo fundada na floresta.
Durante essa fase de deslocamentos e rearranjos, a Cinco Mil tornou-se uma espécie de
estágio obrigatório pelo qual deveriam passar aqueles que pretendiam ir para o Mapiá.
Formalmente, até 1989, a Colônia continuou sendo a sede do Cefluris, apesar da história
institucional-oficial pouco documentar a relação mantida entre as duas comunidades, o que
incluía, como vimos na companhia de muitos narradores, os feitios realizados na Cinco Mil
para abastecer os primeiros festivais no Mapiá e também o início da expansão do Daime para
outras regiões do Brasil. É nessa época que começou a entrar o dinheiro com mais intensidade,
de alguma forma para financiar os custos dos feitios de Daime que iriam ser enviados para
outras regiões e assim novas relações de produção e circulação de saberes neste campo
começam a se estabelecer.

1006
S.M.M. em Alverga (org.), 1998, p. 80.
1007
Faz referência a um hino recebido por Alfredo Gregório de Melo ofertado ao Padrinho Wilson.
294
3.3 A Porta e a Chave de Ouro: transições e continuidades

“É um segredo
É um tesouro
Que agora recebes
Desta chave de ouro.”

Hinário O Cruzeirinho, Alfredo Gregório

Muitos não iriam naquela difícil peregrinação para o seringal no Rio do Ouro e
posteriormente para o Céu do Mapiá. Nestas idas e vindas da floresta em busca do lugar ideal
para a construção da Nova Jerusalém, a Colônia Cinco Mil continuava sendo de uma
importância central. Vários narradores reforçam que Alfredo administrava a comunidade já
preparando a transferência da direção para Wilson Carneiro. Wilson Junto com sua família e
companheiros, Zilda, José Teixeira, Neucilene, Raimundo Nonato, Graça, Tânia Maria, George
Washington, Chiquinha entre outros netos e antigos seguidores que também ficaram, como o
senhor Veríssimo (Francisco Franklin), Clícia Cavalcante, Maria e Reinaldo Bento, Francisco
Oliveira, seu Gilberto, Viegas, passaram a zelar pela manutenção da irmandade na Cinco Mil.
Sebastião teria orientado seu povo:

Agora que estou indo para dentro do mato, seguindo as ordens espirituais que
recebi, eu peço a vocês que estão ficando na Cinco Mil que tenham muita
calma, muita paciência. Amem uns aos outros assim como eu mostro o meu
amor à todos. A maioria está por fora dessa verdade, pouco conhecimento tem.
Mas, assim mesmo, com todo amor e com toda sinceridade, quando se cuida
que não, um se descobre no outro. O que um comer, o outro come. Isto é
União. Isso é uma palavra muito difícil de pronunciar e mais ainda de realizar,
mas é assim mesmo. Quem compreender, compreenda o que eu estou
dizendo.1008

A simbologia da Chave de Ouro é citada e explicada por Gecila Teixeira, filha de Wilson
e que se tornou uma das madrinhas do Mapiá: “só seguia pra onde o padrinho tava quem
passasse por aqui e papai autorizasse, tivesse pronto né? Aqui era a porta, papai tinha a chave,
abria ou não a porta”1009. Mortimer comenta que

caberia ao Wilson Carneiro comandar a Igreja. Ele tinha sido a pessoa que
tornara viável a transferência para a floresta, porque era proprietário de um

1008
S.M.M. em Alverga (org.), 1998, p. 71.
1009
G.T.S., 2021.

295
bom veículo disponível ao trabalho e agora recebia esta incumbência como
uma graduação. Ele também cuidaria da Igreja de um pequeno povo e se
tornaria um autêntico Padrinho na doutrina.1010

Foi inclusive nesta época que Wilson mudou-se com sua família para as terras da
Colônia Cinco Mil – e com ele, seu Pronto-socorro. Sebastião havia lhe feito o convite para que
largasse “a vida na cidade, o comércio, a casa de alvenaria” e viesse “para a Colônia cuidar de
uma missão espiritual”.1011 Nesta ocasião, Wilson vendeu as terras que possuía naquela Rio
Branco, que se estendiam por alguns quarteirões do que hoje é uma valorizada esquina
comercial no Bairro do Bosque, onde fica o Hotel Guapindaia, dando parte para a sua esposa
Zilda e a outra parte ajudando na mudança para o Rio do Ouro. Maria das Graças narrou como
foi a mudança gradual de sua família para a Cinco Mil:

“Se eu não me engano 78, pode eu tá enganada ter sido 79, entre esses dois, não
tenho bem certeza, então mudamos pra cá, depois o compadre Wilson veio… o
Ramiro né, que era o mais velho e tava estudando então ele ficou lá… eu vim
primeiro, morei um ano né, Nonato ficou no comércio lá na cidade, que mantinha a
comunidade né, ele quem abastecia… Nonato vinha nos finais de semana, quando
era segunda feira cedo já tava voltando né... e eu ficava aqui na colônia. Quando
estava fazendo um ano, aí voltei pra cidade pra ficar mais junto do Nonato no
comércio. Quando tava fazendo um ano, voltei pra cá de novo né. Então depois o
compadre Wilson veio... E ficou - como é que eu digo, como é que eu posso dizer?
- ficamos morando bem próximo e a gente ia pros trabalho né, acompanhando o
padrinho, morando aqui na colônia… pro começo da história foi essa.”1012

Antes de se mudar para a Colônia Cinco Mil, Wilson Carneiro fez um importante
resgate, que foi procurar os zeladores de um antigo hinário no Alto Santo que estava
praticamente esquecido. Assim, foi trazido para o repertório do Cefluris o hinário “Relógio de
Luz” ou “Menino Jesus”, recebido pelo irmão João Pedro, reconhecido geralmente como um
hinário de cura, para ser cantado sentado. A professora Geovânia, também daimista e
pesquisadora no campo da Ayahuasca estava junto. Neucilene quem me contou como foi:

“O que eu sei do João Pedro é que o João Pedro era um senhor que ele recebia os
hino dele e ficava assim, com ele mesmo, não apresentava. Apresentava só pro
mestre, mas nunca era de cantar o hinário dele na igreja, ele cantava o hinário dele
assim, nos intervalo. Era que ele ficava lá dentro da igreja cantando e quem queria
ouvir, ouvia e ele foi, pediu pra mulher do Joaquim Baiano, que é Maria Baiano se

1010
MORTIMER, 2000, p. 199.
1011
Ibid., p. 200.
1012
M.G.N., 2022.
296
eu não me engano, cantar, tomar conta pra ele né. Quem ficou com esse hinário foi
a Maria Baiano, mulher do Joaquim Baiano. Eu lembro o dia que o seu Wilson foi
pra lá conversar com ela e ela foi e gravou. O seu Wilson resgatou num foi no Alto
Santo, isso foi no Aviário, pra acolá. A mulher do Joaquim Baiano que zelava, dona
Maria. Aí seu Wilson um dia foi lá, só pra pedir pra ela gravar esse hinário e foi
quem trouxe, que ninguém cantava ele, nem o pessoal do seu Luiz, ninguém,
ninguém, ninguém cantava. E essa fita tava... Eu não sei que fim levou essa fita,
que seu Wilson tinha essa fita, aí ele deu pra mim ensaiar, pra Tânia, pro
Washington. Aí ficamo cantando no trabalho de cura é tanto que as vezes tinha
Estrela e a gente cantava. A primeira vez que nós cantemo o hinário do João Pedro
na igreja foi no velório do seu Nelson, que ele pediu pra mim cantar mais a Tânia,
que até o Nonato tava viajando mais a Graça quando o seu Nelson fez a passagem,
era irmão dele. Aí depois ele soltou essa fita pro Alex. E eu num sei bem o ritual
desse hino, desse hinário porque a mulher, ela cantava bem devagarinho, sabe? Ele
era pra trabalho de cura e o Alex Polari pegou e colocou em ritual de hinário mesmo,
bailado, que até bailava. Parece que dum tempo pra cá pararam de bailar. Mas o
Alex, ele botou num ritmo bem sacudido. E o pessoal do seu Luiz vinha lá pra Cinco
Mil, pros trabalho pra cantar o hinário do João Pedro com nós... mas depois eles
botaram num ritmo deles lá. Mas foi isso...1013

O seguimento do Daime do padrinho Sebastião, que começou a se formar na Cinco Mil


na década de 1970, ficou conhecido por ter sido o mais aberto à recepção de visitantes e
viajantes, pessoas de diferentes lugares e tipos que chegavam em Rio Branco à procura do
Daime. Muitas vezes, Sebastião não se negava em entregar um pouco de Daime, inclusive para
viagem, como aconteceu com Reinaldo Bento, tio de Lourival, que levou o Daime para Campo
Grande em 1979. Assim saíram as primeiras garrafas da região Norte. Lourival conta como
conheceu o Daime com seu tio, ainda na década de 1970.

“O que eu posso dizer e ajudar um pouco, é que no começo de 1977, 1978, 1979,
1980 meu tio trabalhava na Funai e era telegrafista e com esse negócio, ele começou
a fazer os aparelhos para as aldeias, aqueles aparelhos antigos e mexendo com as
matas e com os índios, conheceu o Padrinho Sebastião aqui. E eu sei que nas férias
dele, da Funai, ele conheceu e ganhou um litro de Daime do Padrinho Sebastião e
levou para Mato Grosso. Isso era no ano de 1979 e lá ele fez um trabalho de Daime
com nós, dizendo que era uma réplica dos trabalhos que ele fez com Padrinho
Sebastião, em Campo Grande. O Daime chegou no Mato Grosso do Sul antes de
chegar no sudeste e no Rio de Janeiro... Isso é certeza absoluta, porque eu lembro
na Cinco Mil, quando Paulo Roberto chegou, quando o Alex Polari chegou, a gente
já estava na Cinco Mil... eles tudo de rabo de cavalo né, fazendo reportagem. Mas
meu tio, Reinaldo, quando foi no ano de 1980 a gente já estava vindo, então 1979
ele estava fazendo trabalho lá em Campo Grande com nós.”1014

1013
N.S.S., 2020.
1014
L.B.A., 2020.
297
A Cinco Mil, na década de 1980, passou a ser um ponto de apoio para aqueles que
empreendiam a luta de desbravar e construir a comunidade na floresta, deu suporte para as
famílias que estavam acompanhando Sebastião nas idas e vindas da floresta. Mesmo com a
saída de Sebastião e grande parte do grupo, a Cinco Mil continuava sendo o “polo de irradiação
da doutrina do Santo Daime”1015, recebia visitantes que vinham de Rio Branco, de outros
estados brasileiros e países, num fluxo relativamente contínuo de interessados em conhecer o
Daime – e a Santa Maria. A postura dos dirigentes da Cinco Mil era realmente expansiva, de
modo que são frequentes as narrativas sobre a maneira pouco controlada e metódica como o
Daime saída da comunidade. Marinez narrou:

“Aí foi quando eu viajei em 1984, porque a mamãe queria muito que eu saísse do
Daime, ela aceitava mas não muito... aí antes de eu viajar eu falei com padrinho
Nonato e ele me deu até uma garrafinha de 600ml, que era pra eu levar... Quando
chegou em Cuiabá, eu já tomei com a galera hippie, que tava na rodoviária expondo,
aí eu comecei a falar em Daime, todo mundo ‘Daime!’ ficaram louco, queria saber
o que era e ali mesmo a gente já tomou deu um pouquinho para cada um. Quando
eu cheguei lá na Paraíba, eu fui para uma cidadezinha lá do interior... aí na missa
de passagem de ano minha prima, ficou reclamando que tava com uma dor de
cabeça... – ‘ah tenho um remédio da floresta’! Dei um copinho daquele de cafezinho
sabe? Aí ela disse ‘aiii nunca tinha visto um padre tão lindo, a missa tão linda, tão
maravilhosa como é que foi, que remédio bom menina, passou minha dor de
cabeça’...”1016

Sobre a saída para o Rio do Ouro e a entrega da administração da igreja para o Wilson
Carneiro, Neucilene narrou:

“Aí no ano 1980, nós fomos para igreja, pra Cinco Mil, pra morar, foi o tempo que
o Padrinho saiu e nós ficamos lá na Cinco Mil. Seu Wilson sempre foi muito sério
com negócio de hinário, trabalho, quando ele dizia são tantas horas, naquela hora
ele estava dentro da igreja. E não queria ficar na Cinco Mil mas o Padrinho pediu
para ele. Ele foi lá pediu o padrinho, que não queria ficar na Cinco Mil, na igreja,
ele disse ‘padrinho como é que você vai levar, diz que vai com seus filhos para
floresta e o senhor vai me deixar aqui?’. E ele disse: ‘justo por isso eu vou lhe deixar
aqui, porque você é meu filho mais velho, então você vai ficar com a chave, só
passa lá para aonde eu vou se passar aqui e disser o que veio fazer’. E aí ficou assim,
o padrinho viajou e nós ficamos lá, ficamos em cinco famílias: Seu Wilson, nós, o
Nonato, seu Veríssimo e Chiquinho Corrente.”1017

1015
FRÓES, 1986, p. 17.
1016
M.R., 2018.
1017
N.S.S., 2020.
298
O relato de Neucilene reforça sobre a importância de Wilson como parceiro do Sebastião
nesta empreitada e de seu esposo, Zé Teixeira, também citados por Mortimer:

O Padrinho Sebastião contava com um aliado fundamental, que era o Sr.


Wilson Carneiro. Ele acabara de comprar uma camionete a diesel, nova e
robusta para agüentar o tranco da viagem com a carga pesada. O motorista era
o mesmo dedicado José Teixeira, ou Carretel para os mais íntimos.1018

Gecila narrou a mesma história que a Neucilene:

“Aí o papai disse assim: mas padrinho, então eu não sou seu filho, porque o senhor
diz que vai levar todos os seus filhos e eu não vou. Aí o padrinho disse assim né:
mas é por isso mesmo Wilson, você é meu filho mais velho e vai ficar como o
responsável aqui, porque a gente precisa continuar a história aqui.”1019

Raimundo Nonato também comentou sobre a saída de Sebastião para o Rio do Ouro e
sobre a entrega da comunidade para seu pai, Wilson Carneiro:

“Aí ele partiu para ir, foi primeiramente olhar lá, depois voltou, mas não, não foi.
Padrinho Sebastião primeiramente entregou a colônia para gente... quando tava para
viajar para o Rio do Ouro, aí foi e chamou o meu pai disse: ‘oh Wilson, tá na hora
de cê vim para o pé da obra’. Aí chegou o tempo, aí o papai disse assim: ‘mas
padrinho como é que eu vou assumir uma história dessas, se eu não sei para onde
vai?’ - ‘mas vai aprender’ diz ‘como que eu vou aprender padrinho Sebastião?’ –
‘como eu aprendi meu filho’. ‘E como foi que o senhor aprendeu?’ – ‘Foi
apanhando muito meu filho, até chegar o ponto que aqui estou’".1020

É interessante notar que, apesar de Wilson ter aberto mão de uma vida de comerciante
já bem estabelecido em Rio Branco para viver na Colônia Cinco Mil e acompanhar os trabalhos
espirituais no Daime com Sebastião, tinha uma postura relativamente relutante em assumir a
administração/ responsabilidade/ liderança da Cinco Mil. Numa entrevista dada a Eduardo
Bayer em meados da década de 1990, o próprio Wilson narrou como se deu essa transição:

“Quando foi a 15 de fevereiro de 1981 eu cheguei [para morar] na Cinco Mil.


(...) Eu disse: Padrinho, eu não quero ficar de diretor da igreja, eu não tenho
capacidade disso. ‘Mas é o senhor o escolhido, o senhor não tem pra onde
correr’. Padrinho, mas eu reconheço de mim que não tenho capacidade de
dirigir um centro espírita. ‘Aprende como eu aprendi, mas não tem pra onde
correr: o escolhido é o senhor’. Aí eu fui com o Alfredo, que é o comandante

1018
MORTIMER, 2000, p. 183
1019
G.T.S., 2021.
1020
R.N.T.S., 2019.
299
geral da Doutrina e disse: Alfredo, o Padrinho quer que eu fique como
dirigente da igreja, eu conheço de mim que não tenho capacidade de dirigir
um centro espírita. ‘Padrinho, mas é o senhor o escolhido, não adianta correr
que o escolhido é o senhor. (...) Aí nisso quando eles me entregaram a chave
da igreja, o Alfredo me entregou um hino que fala ‘Agora tu recebes esta chave
de ouro’. Foi o hino que me entregaram, quando entregaram a chave da igreja.
Mas que a minha missão mesmo é cuidar dos doentes, essa foi a missão que o
Mestre me deixou. Eu vivo dirigindo a igreja, mas a minha missão mesmo é
cuidar dos doentes.” 1021

Nonato também narrou sobre sua relação com Sebastião neste contexto de saída para o
Rio do Ouro, as idas e vindas na Colônia e como ele e sua família foram se tornando uma
referência para dirigir a Cinco Mil.

“Foi ano novo, eu sempre cantava o hinário dia de ano. O Padrinho veio do Rio do
Ouro, ele queria assistir. Aí eu tava cantando o hinário aí passou um pouco, eu
dando tudo que tinha, porque eu nunca gostei de enrolar cantando o hinário né? Eu
tinha 60 hinos, aí eu olhei o Padrinho Sebastião, tava na cadeira dele aí digo: ‘poxa
vida só do pensamento, o padrinho pediu pra mim apresentar meu hinário pra ele,
passar a limpo e foi embora’. Aí que eu viro assim, o padrinho tá lá na janela mesmo
aqui assim, quem tá de fora, observa mais de quê quem tá dentro, tá observando
tudo. Aí depois, quando eu terminei de cantar o hino, ele foi até onde eu tava, aí
disse assim: ‘meu filho, falta quantos hinos?’ eu digo: ‘faltam dois, Padrinho’.
‘Quando terminar o hinário vá lá que eu tenho um presente pra você’. Isso era dia
de ano, aí terminou o hinário, eu fui pra lá, aí foi aquela festa sabe, festa, mas muita
festa mesmo. Então a minha história com o Padrinho Sebastião sempre foi essa
assim. Eu passei a limpo pra ele, aí ele falou pro Alfredo: ‘olha Alfredo, o Nonato
quer te ajudar’, ele olhou pelo hinário, então graças a Deus, o compadre Alfredo
sempre teve a máxima confiança na minha pessoa ali.”1022

O ano novo não é um trabalho que faz parte do calendário oficial dos adeptos do Daime,
mas na Cinco Mil, durante muito tempo, o trabalho do dia 31 de dezembro foi realizado como
parte dos festejos. Na época que Raimundo Nonato esteve na gestão, geralmente era cantado o
hinário dele, ou pelo menos uma parte, na passagem de ano. Observo que Raimundo Nonato
gosta de frisar sua boa relação com Alfredo, que os dois são compadres, se respeitam, apesar
de os dois não se encontrarem há anos e, mesmo quando Alfredo vem a Rio Branco, é difícil
que eles se visitem.

1021
W.C.S. em Bayer Neto, 2005, p. 4.
1022
R.N.T.S., 2019.
300
Lourival destacou a passagem da administração da Cinco Mil para seu Wilson, quando
começou a saída pro Rio do Ouro, comentando o período que esteve acompanhando sua mãe
na ida para o seringal e seu posterior retorno para a Colônia Cinco Mil.

“Padrinho Alfredo recebeu o hino ‘eu estou aqui, eu estou lá, eu sou o Daime é só
consagrar’ e foi indo, foi indo... Lá no final ‘que agora recebe essa chave de ouro’.
O Padrinho Alfredo tirava a chave do coiso da calça dele e botava na frente do
Padrinho Wilson todo dia, na hora da oração e como era o último hino que o
Padrinho Alfredo tinha recebido, todo dia ao terminar a oração a gente cantava esse
hino. Quando chegava nessa hora ‘e agora recebe essa chave de ouro’, o Padrinho
Alfredo colocava a chave na frente do Padrinho Wilson. Então eu vi isso tudo
acontecer. Chegamos no Rio do Ouro pau, pau, pau a gente não tinha pai, minha
mãe com cinco filhos, a gente ficava num cantinho da sala do Padrinho Sebastião e
nessa salona grande é que se fazia os hinários lá no Rio do Ouro. Como mamãe
tinha pedido uma escola para Cinco Mil, essa escola foi minha mãe que pediu e ela
estava sendo feita, tudo novinha, de repente minha mãe saiu e foi para o Rio do
Ouro. E foi no ano de 1981 nós estávamos indo para o Rio do Ouro e é mais ou
menos o que eu posso me lembrar. E cada vez que o Zé Teixeira mais o Odemir,
que estavam fazendo a mudança para o Rio do Ouro na D10 amarela, o Zé chegava
com uma carta do padrinho Wilson dizendo para mamãe voltar, porque ele queria
ver a escola funcionando. E numa dessas viagens a gente sofrendo muito, já todo
mundo com doenças, a malária, pereba na perna, minha mãe falou chorando para o
padrinho Sebastião e o padrinho falou que ela voltasse para Cinco Mil, que pedisse
para o Wilson uma casa para ficar. Então essa casa minha mãe negociou com o
Padrinho Valdete e quando voltamos para Cinco Mil já tínhamos esse setor onde
ficar, agora onde quem mora é a minha filha, aquele setor ali. Desses trinta a
quarenta anos aí é nosso setor na Cinco Mil até hoje.”1023

Arlene, que também chegou na Cinco Mil dos anos 1980, conta como conheceu os
padrinhos e se mudou para a Amazônia.

“Quando o padrinho Sebastião me viu, perguntou da onde eu era e disse que era de
Belo Horizonte, de Minas Gerais e que tava chegando, não tinha dois meses que eu
tava em Rio Branco. Ai fui tomar um Daime lá na Cinco Mil e aí o padrinho
Sebastião disse: ‘mais um beija-flor chegando na Amazônia’, falou pra mim. E aí o
tempo se passou e eu voltei com 22 anos, com uma criança no braço, que era o
André, pra morar aí. O padrinho Sebastião me aceitou, me deu uma casinha aí, que
é aí pro lado da Maria Garibaldi... Ai morei um tempo… e aí eu resolvi, combinando
com padrinho Wilson, fiz uma grande amizade com o padrinho Wilson e respeitava
ele demais da conta, nunca me desrespeitou, me tratava com dignidade, ia na minha
casa todo dia, todo dia ele ia na minha casa. Então tá, um belo dia eu disse pra ele:
“padrinho, eu quero comprar uma terra pra minha família, vejo que aqui tá muito

1023
L.B.A., 2020.
301
caro e eu passei lá por Boca do Acre e vi uma terra lá, pra segurança dos meus filhos
e de filhos futuros que eu vou ter”. E comprei a terra e me mudei pra cá.”1024

Mesmo morando em Boca do Acre, Arlene manteve forte relação de proximidade com
a Cinco Mil, onde frequentava sobretudo nos períodos de festivais. Diz-se que Wilson Carneiro
desde o tempo do comércio no Bosque conseguira fazer amizade com políticos influentes como
Nabor Júnior e Edmundo Pinto. Arlene também corria atrás das benfeitorias para a Cinco Mil
e ambos, através de seus contatos, conseguiram alguns êxitos. Foi o caso do prédio da escola,
feito em alvenaria aproximadamente no ano de 1985. Ali funcionou durante muitos anos a
escola pública e na década de 1990, projetos de educação e alfabetização das crianças e jovens
da comunidade. Maria Bento e Mariza foram as primeiras professoras da comunidade a atuarem
como professoras da escola. Também vinham professoras da cidade, graças a um acordo feito
com o Estado do Acre, que se responsabilizou por administrar a unidade, pagar os professores
e enviar merenda.
Além de garantir o sustento das crianças, parte desta merenda escolar ajudava na
alimentação dos adultos e foi utilizada para suprir necessidades de suprimentos no início de
formação do Mapiá. Mortimer conta que era “uma ajuda preciosa vinda do Acre. Era a merenda
escolar. Conseguimos manter um vínculo com este Estado porque a maioria das crianças e
jovens em idade escolar eram acreanos.”1025
Ao que se sente, a década de 1980 foi um período de rearranjos dos afetos na Colônia
Cinco Mil, que trouxeram à tona as continuidades e descontinuidades possíveis de realização
de um modo de vida comunitário e coletivo e a manutenção das relações institucionais com o
Cefluris. A igreja na Cinco Mil permanecia cheia, os feitios de Daime cada vez mais frequentes
e continuavam chegando pessoas de todas as partes. Marinez lembrou da sua chegada na
Colônia Cinco Mil, no início da gestão de Wilson e como foi intensa a sua primeira experiência.

“Ai entrei na fila né, aí foi, foi, foi, foi, quando cheguei lá na frente o compadre
Nonato olhou assim para mim, mas não falou nada, aí botou o Daime, só sei que eu
tomei, sentei e fiquei né, tal ali e não aconteceu nada, porque eu achava que era que
nem o pito né, que a gente acende e já, que se tomasse já sentia alguma coisa. Aí
nada e eu digo: “rapaz tomei esse negócio, vou é tomar mais” só fiz levantar e daí
fui, a fila ainda não tinha acabado, a fila que eu tinha terminado de sair... ai eu só
fiz entrar na mesma fila e fiquei lá, quando eu cheguei o compadre Nonato olhou
assim, eu senti que ele hesitou sabe? Ficou assim, mas não falou nada, de novo, aí

1024
F.A.P.O., 2023. Narrativa de Francisca Arlene Pereira de Oliveira, gravada no dia 13 de julho de 2023, por
mensagens de Whatszapp.
1025
MORTIMER, 2000, p.249.
302
tchuuuuuuuu. Aí me deu o Daime, ai fui e me sentei, só que aí já foi diferente, na
2º vez (risos), já sentei aí eu já fui sentindo algum negócio, comecei a olhar né e tal,
olhar para trás, olhar pela janela, eu tava naquele banco alto que tem até hoje lá na
igreja, botava a cara assim para fora da igreja no banco, olhando e tal e a mão foi
mudando e já fui sentindo um negócio estranho, aí os menino já tinham atravessado
e me chamando para a gente pitar. Aí eu saí e fui pitar né e era tudo diferente como
você falou, a geografia ali era totalmente diferente. Tinha a casa grande e atrás da
casa grande, do lado da casa grande, tinha um terreiro, ali tudo era um terreirão, não
tinha muitas árvores, era mais pasto... eu tenho até uma foto de como era quando
eu cheguei lá... Vou, vou te passar depois, tinha só um terreirão assim e atrás tinha
um igarapezinho, a gente atravessa e tinha três casa uma dessas casa era até do
irmão do Feliciano e a da Maria Schneider, Maria era novinha ainda, Ricardo era
pequenininho. E aí os meninos chamaram pra gente pitar lá no terreiro da casa dela
e nós fomos, saímos da casa grande, atravessamos o igarapezinho e fomos lá pro
terreiro pitar, nisso chegou o Zé Teixeira: - “Eh, quê que tão fazendo aqui no
quintal, num pode sair do trabalho”. Ele era fiscal. - “Num pode ficar aqui e tal,
ainda mais mulher e tal”... Só que eu não sabia que era o Zé né? O que eu sabia que
era um homem chato que já tava me botando pra igreja... aí “Vixi que negócio
estranho, a gente não pode nem fumar nada”... bom já tinha pitado e lá vamos voltar
né, menina! Quando eu cheguei lá na frente… só fiz sentar. Nisso já mudou tudo,
mudou tudo, eu não via mais nada, tava tudo diferente, aí tinha uma menina que
tava mirando, começou a me mostrar umas florzinhas no chão, umas florzinhas e
não sei o quê e naquela conversa com ela, eu terminei minha irmã, me perdi, abri o
coco e pronto! E lá vem, depois foi o pessoal me falando né? Que eu falava, que eu
fazia e tal, só sei que apagou tudo... a noite todinha aquela miração forte mesmo.
Aí deu o intervalo e lá vem as mulheres tudo me arrudiando assim e nada, quanto
mais falava, mais me agoniava e eu na minha miração longe, longe, longe...
(pequena pausa). Aí a dona Zilda veio para me dar assistência, padrinho Wilson
morava na casa grande nessa época começou a me dar assistência, eu me lembro
bem do rosto dela e da mãe do Lourival na época. Quando eu olhei pra ela, eu vi
uma figura assim muito esquisita, não gostei, aí nisso a dona Maria chegou, botou
a mão assim na minha testa e começou a rezar a Prece de Caritas. Aí aquilo foi me
buscar longe aonde eu estava, sabe? Eu sentia que eu estava muito longe, eu olhava
e via só palheira se mexendo, umas coisas, ouvia vozes e um trabalho lá onde eu
tava... quando ela botou a mão assim e começou a rezar Prece de Cáritas, aí foi
quando eu fui voltando, voltando, voltando e tal nisso o hinário começou. Tentaram
me levar para a igreja de novo aí, quando eu chegava na frente da porta para entrar
na igreja, tudo... tudo… era como se puxasse uma cortina de luz assim como se
fosse no meu olho, um negócio no meu olho, era como se tivesse uma fumaça, uma
cortina, que eu não via o outro lado do salão, então eu barrava, quando chegava na
porta, eu não conseguia entrar e as mulher não entendia porque né, só que eu não
conseguia ver mais nada dali, era para eu entrar e eu não via nada, ai eu tinha
medo…, eu ficava né naquilo... Até que padrinho Wilson foi e mandou me colocar
uma saia, arrumar uma saia para pôr por cima da calça, que eu tava de calça... e me
levar pra bailar, sentar lá do lado dele lá. Aí foram lá, conseguiram uma saia e me
sentaram numa cadeira lá do lado dele... aí foi quando eu prestei atenção ao
padrinho Wilson, até aquele momento eu não tinha visto padrinho Wilson, nada.
Quando eu fui observar, olhar, porque que eu tava ali, aí ele chamou a mulher, a
mulher veio e falou comigo se eu queria bailar, ai eu quis, aí levantei e fui lá, fui lá
pra trás bailar aí pronto... quando acalmei, quando eu fui chegando né, realmente,
303
na igreja assim, entender que aquilo ali era religioso, que tinha um Deus ali… a
noite toda eu escutava o hinário, eu só escutava a Nossa Senhora, Nossa Senhora,
Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora da Conceição. Aí bom, nisso eu
acalmei e já tava terminando o hinário, já tavam cantando aquele hinário final né,
como é que chama? o Cruzeirinho... aí o pessoal veio embora e me deixou, porque
eu tava nessa pegação mirando muito... no outro dia eu não sabia nem onde tava, a
minha mochila, não sabia de nada... acabou o trabalho né e eu não sabia nem pra
que rumo era o ramal pra cá, pra cá, pra acolá. Eu sei que já vai naquela né, já vai
falando com um com outro... que da cidade naquela época era difícil, não vinha
muita gente da cidade. Aí eu sai andando e tal, aí desci ali e fui parar na casa da
Maria, porque tinha um banquinho, era onde ela mora hoje em dia, só que era
diferente a casa, tinha uma jaqueira assim e tinha um banquinho, eu sentei nesse
banquinho que era na frente da casa dela, aí ela abriu a porta e tal, de manhã e foi
falar comigo se apresentar e tal e começamos a conversar. E o Ricardo muito
conversador era pequenininho e já começava a conversar e tá e aí por coincidência
esses meus amigos aqui da cidade lá da escola tavam lá na casa dela, que eram os
amigos dela, a galerinha lá que tava lá aí eu: - ‘Ah, cês tão aqui e tal’ comecei a já
a me interessar de perguntar para ela né. Aí começou a falar do padrinho Sebastião,
essa época já tinha ido pro Mapiá, mas ainda tinha muita gente lá, madrinha Júlia
ainda morava lá na Cinco Mil, lá na casa dela, o padrinho Alfredo ainda ficava
muito, ainda tinha um monte de gente que tá no Mapiá hoje em dia, que ainda
morava lá. - Quando é que vai ter de novo? – ‘É tal dia, tu vem?’ Eu digo –Venho.
Aí pronto, aí comecei a ir pros trabalhos... marcados”.1026

Mortimer narrou que a partir de 1981 a Cinco Mil passou por uma “temporada na
ausência da Família do Padrinho. Estão todos no Rio do Ouro, mas a Igreja continua ativa na
sua missão de receber as pessoas.”1027 Maria das Graças narrou sobre os arranjos e costumes
instituídos no tempo de Wilson Carneiro como comandante:

“E nós ficamos acompanhando… muito bom os trabalhos, ele… com aquele jeito
dele… então trouxe ainda muito, como é que se diz… os mochileiros, vamos dizer
assim, porque só era só o que chegava mais era isso, quando a gente pensava que
não, tava chegando né e assim, ele recebia todos… e dava três dias de descanso pra
saber e esclarecia como que era o ritmo né, então tinha três dias pra descansar, pra
ficar sem fazer nada né, só mesmo descansando. Tinha que cortar o cabelo se fosse
cabeludo… E assim foi a época dele né, trabalhava sempre com Washington que
era pequenininho. A comadre Zilda sempre na cozinha recebendo o pessoal…”1028

Durante a década de 1980 e 1990 a Colônia Cinco Mil continuou bem movimentada,
com muitos viajantes chegando. Uns ficaram um tempo, outros adentravam para o Mapiá,
outros seguiam viagem para outros rumos. Em proporções menores, o sistema comunitário

1026
M.R., 2018.
1027
MORTIMER, 2000, p. 197.
1028
M.G.N., 2022.
304
continuava funcionando, com a casa grande oferecendo alimentação, hospedagem para aqueles
que queriam se envolver com os trabalhos na comunidade, sobretudo os feitios de Daime,
roçados e horta. Mortimer narrou:

Na Colônia ficariam a Neucilene, esposa do Zé e a Graça do Nonato. Além da


Tânia, que embora criança, já tinha força na voz e sabia a música de todos os
hinos. Alguns músicos, como o Viegas, permaneceriam e outra dos vinham se
formando, entre os netos do Patriarca Wilson Carneiro. Só sua filha caçula,
Gecila, preferiu se mudar para o Seringal. Ela era muito apegada ao Padrinho
Sebastião.1029

A ida de Gecila Teixeira para o Céu do Mapiá, de alguma forma ajudou para que a
memória da contribuição dada por Wilson no projeto comunitário de Sebastião não fosse
apagada, esquecida, como parte do silenciamento da Colônia Cinco Mil. Wilson ficou à frente
da Colônia de 1982 a 1984 aproximadamente. Com a idade avançada, a saúde um pouco
debilitada, Wilson passou a compartilhar a responsabilidade pela Colônia com outros
administradores. Wilson teria assumido a posição de comando dos trabalhos espirituais da
Cinco Mil, conselheiro e referência na doutrina, enquanto vários dirigentes foram revezar a
liderança/presidência/direção do projeto comunitário de produção agrícola, segurança alimentar
e movimentação dos feitios. Pelo que João Poeira narrou, as relações afetivas se
reconfiguravam mais ou menos assim:

“O padrinho Sebastião ele entregou pro padrinho Wilson, porque sempre o padrinho
Wilson teve do lado dele. Sempre o padrinho teve do lado do padrinho Sebastião.
Ele disse: Oh meu filho! Wilson você é o dono da porta! Quem manda aqui é você!
Palavra do padrinho, então aí o padrinho vem. O padrinho Wilson recebeu a porta,
aí ele ficou tomando de conta da porta, da igreja, de quem mandava era o padrinho
sempre! Só que nessa época do Maurílio voltou pra cá e ficou aí, o Maurílio tinha
o controle da administração da colônia, tá entendendo? Ele administrava a colônia
e tudo e o padrinho Wilson ele tinha o controle da igreja, dos trabalhos de tudo,
sabe! Só que o Maurílio era da colônia, aí, aí, não foi muito pra frente por causa que
ele estourou tudo a primeira vez que ele veio, não foi um bom administrador, né,
pra hoje tá tudo bonito! Tudo tranquilo! Não soube! Aí foi embora pro Mapiá.” 1030

Raimundo Nonato narrou assim:

“Aí ele foi em 1980 papai assumiu, aí depois veio Maurílio, não deu conta, aí o
padrinho Sebastião, entrega na mão do meu pai de novo, aí papai administrou junto
com o compadre Francisco Corrente, papai na igreja e compadre Francisco Corrente
1029
MORTIMER 2000, p. 200.
1030
J.A.S.S., 2022.
305
na administração. Aí o papai 8 anos, né? O campo era limpo, limpo de um lado você
via o outro. Ele levava o Washington, era menino, só para ser pastor dele se
acontecesse alguma coisa, que ele tinha problema de coração, pro Washington
avisar a família, né? Mas o campo era limpinho todo tempo, então ele fazia isso
para dar gosto ao dono da casa, né? Que ele ficou como zelador.”1031

O movimento de cruzar ideias que se desviam, que vão em sentidos opostos, que se
intercruzam, que se sobrepõem, grafar estas linhas de memórias considerando suas contradições
é parte desta caminhada pelos diferentes espaços-tempos narrados que constituem as
cartografias da Colônia Cinco Mil. Ao passo que recordava dos tempos da Cinco Mil na
transição do Rio do Ouro, lembrando das dificuldades e sofrimentos, Neucilene também sorria,
como quem relembrava satisfeita a participação num “feito histórico”.

“A gente fazia mil litros de Daime na geração de seu Wilson, que era para distribuir
para o Rio do Ouro, para o Mapiá e aí foi chegando gente de fora e ele distribuía o
Daime. E na igreja ele era muito pontual quando ele dizia assim “seis horas é para
tá na igreja”, seis horas ele tava e eu sempre tava junto com ele, porque se eu não
fosse parece que não tinha graça... (risos.) Ixe fui muitas vezes no Rio do Ouro, que
o Zé era quem levava o pessoal e eu ia. A gente saía daqui, sempre saía de noite.
Andava a noite todinha de carro na Estrada de Boca do Acre, aí entrava 40 km de
ramal, aí andava três horas a pé, tinha cada ladeira, menina... Passava ponte dessa
grossura, se segurando, àquelas ponte comprida que tremia, que tu ia andando e ela
balançando, hoje em dia eu penso... aí! quando que chegava lá... Enquanto era pouca
gente era bom, que a gente levava as coisas, aí tudo dava né... aí depois que
começaram a fazer a muda mesmo, a mudança, aí era difícil... acho que o Zé passou
dois anos fazendo mudança de gente, aí tinha muito trabalho, também porque tinha
pouca mulher e muita coisa pra fazer, sabe? Eu fazia, não parava um instante de
trabalhar, que a gente tinha que lavar roupa, fazer comida, limpar a casa, aquelas
casa que tu limpava aí quando acabava de limpar, tava do mesmo jeito, aí tinha bem
pouquinho, assim, três famílias. Aí o Padrinho levava só os mateiro que chamava,
que era pra tirar a estrada né, aí o Zé é que carregava, tudo que fosse pra levar era
o Zé. Acho que trabalhou uns três ou quatro ano pra lá, até no Mapiá ele ainda levou
gente, aí a gente ia... sofria... (risos).”1032

Outro aspecto que foi ressaltado nas falas da Neucilene é a relação de continuidade e
mútua dependência estabelecida entre a Cinco Mil e as comunidades fundadas no Rio do Ouro
e posteriormente no Céu do Mapiá nos primeiros anos de formação. Consta que pelo menos até
meados da década de 1980, a administração dos feitios na Colônia Cinco Mil eram
fundamentais para abastecer a vila Céu do Mapiá e os pontos de Daime que começavam a se

1031
R.N.T.S., 2019.
1032
N.S.S., 2020.

306
espalhar. Foi nesta época que Maurílio Reis retornou para a Cinco Mil, chegando com outro
mineiro ouro-pretano, o Amilton, cujo apelido era Ferro Velho. Não demorou, os dois se
juntaram ao grupo de Sebastião no Rio do Ouro e Maurílio e Maria Gregório (Neves), a filha
mais velha de Sebastião e Rita, se aproximaram e se casaram, já no Mapiá.
Na Cinco Mil faziam-se vários feitios de Daime para abastecer o Rio do Ouro e os
primeiros anos do Céu do Mapiá, naquele que foi um difícil movimento de deslocamento e
assentamento da comunidade. Túlio relembrou que teve uma boa relação com seu Wilson,
quando em 1982 ele voltou à Colônia Cinco Mil e se reintegrou à comunidade. Ajudava nos
feitios durante os primeiros anos de 1980, mas também sofria com certa desconfiança da parte
do dirigente por seus episódios de rebeldia nos anos anteriores. Narrou sobre seu retorno à
Colônia já nessa gestão e comenta sobre os feitios e a continuidade dos trabalhos nesta época.

“Nós saímos em abril de 1981 e voltamos no inicinho de 1982. Aí também e quando


chegamos, a gente trouxe uma Santa Maria da Colômbia e a gente tinha enrolado
num cisal, num cordão muito grande que a gente usava para fazer bolsas. E
passamos tudo na federal, carimbamos passaporte, não deu nada, não deu nada. Foi
muito legal esse momento com seu Wilson, a gente era uma turma legal. Era eu e o
Lourival, Carlinhos, o irmão do Lourival, era o Poeira, era todo mundo muito
amigo, a Nair, a Tânia, era filha criada pelo seu Wilson e dona Zilda, tinha a Mônica
que era filha da Gecila e a gente morava ali, o Washington era pequenininho e foi
um momento muito mágico da Cinco Mil, muito bonito. Tinha o Chico, era filho
de seu Nel. Eu sei ele não fazia parte, ele não tomava Daime, mas ele já tava muito
vinculado com a questão do roçado da Cinco Mil, da divisão de coisas, porque eles
eram da família da Cristina e de seu Nel e esses também, depois que o Padrinho foi
pro Rio do Ouro, eles ficaram bem vinculados ao nosso trabalho na Cinco Mil
também, com seu Wilson. Daí nessa época como a gente trabalhava com silk e
artesanato, né? Nós começamos a montar um ateliê. Então ficava divido entre mim
e o Dácio, se dedicava com o silk com a Help, eu ficava mais na Colônia. E aí já
tinha ido embora, o padrinho né? Eu ficava ajudando seu Wilson, era tipo um braço
direito, porque não tinha mesmo quem pegasse duro... outro pessoal, os filhos dele,
o Nonato trabalhava na cidade, o Zé Carretel também tinha suas coisas, né? No final
quem tinha mais tempo e tinha uma graninha era eu, que podia ajudar por causa do
meu trabalho, porque além de eu ter o artesanato, eu podia ajudar lá o seu Wilson.
O Padrinho não tinha, o pessoal não conseguia muito cipó ali no Rio do Ouro, nem
folha, então nós ficamos praticamente encarregados de fazer o Daime pra eles. Bom
e acabou que quem assumiu essa função fui eu, porque seu Wilson era mais de
idade, os meninos dele na cidade e acabou tocando pra mim, porque eu já tinha uma
longa carreira no feitio né? Comecei como lenhador, depois ajudante de panela,
cuidador do fogo e aí me tocou ser cozinheiro, né? E eu ajudando ali o seu Wilson
a cozinhar Daime pro padrinho e eu tornei um cozinheiro. Aquele que todo mundo
praguejava contra, agora era o feitor oficial de Daime do pessoal que tava no Rio
do Ouro né? Eu acho que eles tentavam esconder isso o máximo possível, porque
não caía muito bem né? De saber que eu era o feitor. Mas tudo bem, eu que ajudava
e isso também fazia seu Wilson também ter uma coisa comigo né, uma

307
consideração... Esse foi um período muito bonito, que foi o período que o Lúcio foi
embora né? Deixou a casa dele, que era uma casa muito bonita, que ficava quando
você descia, passava pela cacimba, onde morou seu João Baé, tinha uma cacimba e
depois da casinha dos cabeludos, descia num campo, passava numa cacimba, ia
mais ao fundo e tinha a casa do Lúcio, que era perto do Jardim Dourado, era uma
casa no fundo já, beirando o Redenção e que na frente tinha um folhal muito bonito,
muito maravilhoso, muito limpinho, um monte de rainha. E ali eu herdei aquela
casa né? Passei a morar nela e também morava uma jiboia no teto. fiquei amigo
daquela jiboia, botava ela nas costas né? De vez em quando eu subia pro terreiro lá
do templo... Pra fazer festa né? Que era coisa quase de adolescente e povo "ahh olha
o Túlio com a cobra!" (risos) Era jiboia, mansinha. Bom, foi um período mágico
né? Porque foi um período bonito da minha vida porque eu não imaginava depois
daquela confusão, da nova revolução, que a coisa ficasse tão amistosa como ficou
e realmente o pessoal acabaram gostando muito de mim assim, o Nonato, o Zé
Carretel, o Viegas, o pessoal que tinha ficado ali. Porque eu era trabalhador, eu
contribuía, eu ajudava né? Então aí eu comprei uma caixa de som pra nós tocar o
hinário e nós ligava os aparelhos e foi um momento muito mágico... Nesse intervalo
eu comecei a namorar com a Mônica e isso foi bem legal, porque eu fiquei
apaixonado, a Mônica era novinha e eu tava numa idade já tinha feito tanto negócio
de abstinência e tudo. Mas era claro aquele namoro ali... da mata... ela era bem
novinha, a Mônica tinha uns quatorze anos né? Só que a gente ficava até com medo,
né? Os cara já tinha capado o Ceará, aí falava ‘meu Deus’ né? Mas nada, todo
mundo no final me tratava bem, o Nonato, o Zé Carretel, a dona Zilda nem fala... a
madrinha Zilda foi um momento também mágico. dona Zilda me dava um apoio
porque eu era muito trabalhador. Nesse comecinho de 1982, foi nesse ínterim, a
gente cantava muito hinário, às vezes a gente cantava hinário fora do templo, de
dia, no terreiro e era... tudo saía muito lindo! A gente cantava Antônio Gomes, o
Germano e às vezes sem farda e aquele vento soprando e eram momentos muito
mágicos assim... muito... Com isso nós ia vivendo, fazia uma grana e com essa
grana eu ajudava na Colônia... aí eu comprei uma moto grande, que eu não gostava
muito de carro. Eu ia pra cidade vender artesanato e nós tocando a Cinco Mil né?
Acabou que seu Wilson me deu a casinha do chá, que vendia chá nos intervalos do
trabalho. E aí seu Wilson me deu aquela casinha e eu fiquei dono desse
comerciozinho de chá e de comida na hora do intervalo do hinário, no dia que vinha
o povo da cidade. E era gozado, que eu fazia uma grana com aquilo ali, nunca
imaginei e eu ficava besta... é claro o pessoal que morava na Cinco Mil eu dava chá
e chocolate de graça pra todo mundo né? E o pessoal da cidade eu cobrava, mas no
final dava uma grana, era impressionante e eu ficava contando aquele dinheiro e
falava ‘nunca pensei que eu ia ganhar dinheiro aqui no intervalo do hinário
vendendo chá, chocolate, bolo’... isso me tocou, era gozado essas coisas. Mas era
porque eu tinha capacidade de administrar, de abastecer, de tocar aquilo, pro pessoal
eu dava tudo de graça também né? E aí por isso me deram. E eu fiquei com aquilo
até 1986 quando eu fui embora.”1033

São recorrentes as narrativas que dão conta da beleza da vida em comunidade, a


dinâmica recepção de visitantes e a mística magia das vivências no ritual com o Daime ao

1033
T.C.V., 2021.
308
mesmo tempo em que não faltam referências a uma certa insatisfação e dificuldade de seu
Wilson em lidar com a administração da Colônia, como quando um de seus filhos atribuiu, certa
vez, o nervosismo de seu pai a “esse negócio da Cinco Mil tá pesando e tal”. Esta insatisfação
pode estar muito relacionada aos fatos já citados por Maurílio, sobre ser uma época pesada na
Cinco Mil. Foi Túlio quem narrou um episódio em que Wilson teria ficado muito irritado e
explica que só não tinha uma relação melhor com ele devido ao ciúme da dona Zilda.

“E como já havia toda uma história comigo também né? Uma coisa de um pouco
me marginalizar, então seu Wilson ficava meio na dúvida, às vezes ele não sabia se
me amava, ou se me odiava... Teve um dia, eu voltando de viagem, dona Zilda
pegou e veio me cumprimentar feliz da vida né? Me abraçou, me deu um beijo na
face... rapaz, seu Wilson.... Parece um coisa assim... Era como ele sentisse tudo no
astral. Esse seu Wilson partiu pra cima de mim, me agredindo, dando porrada e
dando porrada de todo jeito, tava o Nonato, tava o Zé Carretel, mas eu não podia
fazer nada, só desvencilhar ‘Que isso? Que isso seu Wilson?’ e foi um loucura só.
E aí todo mundo entrou, o Nonato me ajudou e controlaram o pai e foi aquela
doidera. Até depois ‘nossa Túlio me desculpa pelo meu pai, meu pai tá nervoso, ele
tá com esse negócio da Cinco Mil tá pesando e tal’. Aí ‘não tudo bem, tudo bem’ e
eu já sábia e falei ‘Deus o livre’... ai ouvi: ‘eu não sei porque que eu tô batendo,
mas você sabe porque que tá apanhando uma coisa assim. Minha Nossa
senhora!’”1034

A Cinco Mil continuava fazendo seus trabalhos e feitios, recebendo visitantes e


encaminhando muita gente para o Mapiá. Sua fama se espalhava no boca a boca e corria, como
corre até hoje, pelas estradas dos caminhos das medicinas psicoativas na América Latina, dos
circuitos psiconautas andino-amazônicos. Foi assim que Cristina Profeta chegou no Daime e
foi encontrando a sua saúde. Cristina relatou que, em fevereiro de 1989, chegou na Cinco Mil
“mais morta que viva” e não tardou, seu Wilson marcou um trabalho de cura para ela.

“Enfim, chegamos na Cinco Mil eu andando, que eu já um aguentava mais aquela


lama, que era época de carnaval, aquela lama naquele tempo, que enterrava quase
o joelho da gente... ah e aquela mochila pesada que quando chegou ali na porta da
Cinco Mil, ali pra casa grande eu caí, eu num aguentei mais, meu marido teve que
me pegar no colo e me levar. Quando eu cheguei lá na casa grande tava a finada
dona Iolanda, esposa do Chico Corrente, que abriu os braços e disse assim: ‘por
fim, minha filha, chegastes, mas que tanto peso é esse?’ Foi incrível, foi
maravilhoso ‘tua casinha já está pronta’. Aí fui morar numa casa que havia sido da
Maria Corrente, depois da Gecila. Aí logo conheci o Padrinho Wilson, logo contei
para ele da minha doença e logo na mesma semana ele resolveu fazer o trabalho de
cura pra mim. É... aí eu cheguei mais morta que viva né, porque eu cheguei com 33
quilos, doente, é... nervosa... é... eu não ia no banheiro assim, ficava uma semana

1034
T.C.V., 2021.
309
com o intestino preso. Eu tô te contando tudo assim como que foi né, esse tumor
enorme na minha barriga e... Enfim, bem caída mesmo, sem energia nenhuma,
minha filha do meu lado dizia “mãe, não morre mãe, você tem que cuidar da gente,
não morre por favor”. Enfim, assim que eu cheguei. E então na semana o Padrinho
Wilson marcou um trabalho, isso na Cinco Mil, no ano 1989, eu lembro era Chico
Corrente, era o seu Nonato, dona Graça, era muito gostoso viver ali. Os irmãos era
o Adriano, a Marli, Arlete, dona Elza que foi minha madrinha, comadre, dona Clícia
finada, nossa era muito lindo morar ali, a mãe da Marizete, dona Mariza, muito
bom. As crianças do Seu Nonato era tudo mocinha, enfim. Ali cheguei eu, tinha a
Vera, tinha o Seu Viegas, o Cleuber né. Eu lembro 6 horas da manhã, a dona Graça
chamar todo mundo pra colher a folha, para fazer o feitio, aquela cozinha com
aquele fogo a lenha ardendo, aquelas comidas gostosas que eles faziam. Eu cheguei
assim muito bem recebida na casa, o Padrinho Wilson foi um pai, um pai pra mim
ele... Ele me atendeu com todo amor e carinho. Depois, depois no dia que eu tomei
Daime por primeira vez, eu já na igreja eu senti que eu já nunca ia sair mais dessa
doutrina.”1035

Seu relato sobre os primeiros trabalhos de cura que participou evidenciam a histórica
relação da Cinco Mil com o Pronto-socorro do seu Wilson, onde realizavam-se os trabalhos de
cura em períodos específicos, todos pertencentes a uma só igreja e comunidade nesta época.

“A primeira vez eu fui andando aquele ramal da igreja ali até o Padrinho Wilson,
que hoje é a casa Tânia, morrendo de medo, morrendo de medo, na metade do
caminho disse ‘eu não preciso tomar o daime não, eu acho que eu vou embora’ e a
dona Elza finada né, madrinha Elza minha comadre, disse pra mim: ‘nada disso,
você chegou até aqui vamos para frente, não tem medo não, não tem que ter medo.
Você vai receber sua cura, vamos para frente’ me deu a mão e ali fui eu tomar
aquele copão cheio, copo americano cheio até à risca... uhuuu... fazia trabalho, fazia
trabalho e era trabalho, trabalho era trabalho. O Washington era um menino, subia
no telhado pra rezar um terço, me vendo eu ali mirando. Eu tomava Daime de
madrugada, tomava de tarde e tomava de noitezinha. Às quartas-feiras havia
trabalho de cura pra mim e aos sábados havia também trabalho de cura. Foram
tantos trabalhos, eu perdi a conta... foram muitos trabalhos de cura. O povo já dizia
pra mim: ‘é pra aquela mulher? ela não se cura mais não’... ‘tu não se cura mais
não’... na igreja não conseguia nem ficar de pé... assim, as irmã diziam... ‘é melhor
vim de pijama se é para ficar deitada’... mas o padrinho me fardou e disse: ‘não
repare não minha filha, tu vai se curar’. Às vezes ele me chamava de doutora,
porque ele via que eu me cuidava, colocava argila, tava mirando, mas eu colocava
cataplasma de argila em mim e, no certo dia, eu tava no quarto, que hoje é a casa
da Tânia, tava no quarto da Tânia, eu dormia lá, eu morava lá... E nesse dia o
trabalho de cura correndo na sala e eu ali, no quarto, a madrinha Elza sempre
segurando minha mão, sempre do meu ladinho cuidando de mim, nesse dia eu
escutei uma voz dizendo assim “relaxa presta atenção nos hinos”. No que eu prestei
atenção eu já estava num ambiente de cor azul moderno e na minha frente tipo

1035
C.P., 2020.

310
aqueles computadores antigos cheios de botões sei lá, uma coisa meio estranha
assim, mas tinha uma equipe, uma equipe de seres, magros, altos vestido de branco
que diziam ‘respira’. Nesse momento eu senti como que se eles tivessem me
colocado numa maca de hospital, numa cama de hospital, uma cama de hospital e
aquela, como que se tivessem atado minhas pernas e minhas mãos que era para mim
não me movimentar. Nesse mesmo momento, eu senti os instrumentos me operarem
como se fosse uma, como se fosse se tivessem arrancando um dente sabe? Que você
não sente a dor mas você sente todos os movimentos mexer ali... assim... foi e olhei
para o meu lado direito e vi uma asa de águia gigantesca branca e dourada. E ali
mesmo padrinho Wilson anunciou para o povo ‘a dona Cristina acabou de ser
operada’... e já providenciou no final do trabalho, já providenciou para mim ficar
numa rede, que quem lavasse a roupa para mim, que quem cozinhasse para mim,
que hoje dia é uma comadre minha e enfim... na outra semana ainda teve outro
trabalho, que era para os curativos. Eu tenho 64 anos eu tinha 33... eu não tenho
artrose, artrite, não tem o cansaço, não tenho nada no estômago, meu intestino
minha cabeça é boa, rs. Eu trabalho com medicina natural, eu sou vegetariana, tô
aprendendo o veganismo, cuido da terra, gosto de ecologia, gosto de plantar. Eu
tenho sítio em frente a Cinco Mil. Eu já vi muitos casos de cura dentro do trabalho
de cura. Então a minha vida é, eu sou muito agradecida muito muito muito muito
muito agradecida ao Santo Daime não só minha saúde física mas minha saúde
mental. Eu não tenho vício nenhum, eu sou sadia, eu tenho a cabeça boa, minha
família é linda, eu sou próspera, tudo de bom na minha vida, sou feliz.”1036

O relato de Cristina, observado no contexto em que aparecem muitos outros


depoimentos de pessoas que buscaram a Ayahuasca no Daime e em específico na Cinco Mil,
no intuito de encontrar uma cura, sugere uma reflexão sobre as muitas e fluidas concepções de
doença e cura no contexto da irmandade. É mais um pequeno-grande exemplar de narrativas de
muitas pessoas que chegaram no Daime desde o tempo de Irineu Serra em busca de uma cura,
um amparo, uma experiência transformadora em sua vida.
No Daime, ora a causa das doenças é apresentada como consequência dos próprios atos
e responsabilidade do indivíduo, resultado de suas ações, como bem sintetizou um hino que diz
“Se eu estou doente, é porque eu mereci, o meu pai não faz doença, o meu pai não é ruim”1037.
Ora a doença pode ser vista como resultado da quebra de um tabu ou preceito, como na já citada
fórmula “três antes, três depois para afastar todas doenças”1038. Ora a doença também é
associada a uma interferência espiritual, um feitiço, um mal pensamento lançado por outrem,
uma perseguição ou perturbação por entidades obsessoras, demanda espiritual enviada, que
precisa ser desfeita; ou como um encosto, ou espiritualidade mal desenvolvida, como no caso

1036
C.P., 2000.
1037
Sérgio, “Se eu estou doente”, n.II.
1038
Serra, R.I., “Sexta-feira Santa”, n.104.
311
narrado por Mortimer acerca da mãe de Sebastião: “assolada por problemas psíquicos atribuídos
à sua forte mediunidade não trabalhada.”1039
Na obra literária cantada de Irineu Serra acha-se que os “remédios bons para curar os
cristãos” são os caboclos que trazem, numa louvação, os saberes e povos da floresta e suas
medicinas. “Os caboclos já chegaram de braços nus e pés no chão”1040, evoca o hino. Para
muitos daimistas, o fato de Irineu citar os caboclos como agentes de cura implica uma
aproximação da cosmologia da Umbanda, que há alguns anos vem se misturando com o Daime
de diversas formas e sob muitas matrizes, principalmente a partir da chegada dos trabalhos com
os exus do Ceará. O termo caboclo sugeriria, para alguns daimistas não a identidade social,
como grupos mestiços, povos da floresta, mas as entidades, a falange espiritual de espíritos
curadores. Mendonça sintetiza as possibilidades afirmando que na doutrina do Daime o termo
caboclo se refere aos primeiros contatos de Irineu com a bebida e seja em sua forma humana
e/ou espiritual, são “amplamente valorizados como colaboradores do trabalho desenvolvido por
Mestre Irineu.”1041
Cristina relatou um trabalho em que esteve com a Mãe Baixinha na Cinco Mil e que
também vem detalhar as formas como seu Wilson tem sido lembrado pela comunidade, como
trabalhou para dar continuidade ao calendário de estudos e festejos da irmandade da Colônia e
receber os doentes no Pronto-socorro do Daime:

“Padrinho Wilson vivia me contando caso, a gente andava de braço, ele foi um
papai, um papai pra mim. Acho que pra muitos outros, muitas outras também foi
um grande papai, mais do que padrinho. Ele foi guardião e com ele que eu recebi
minha cura e com ele que muitos receberam a cura também. Eu tenho vários casos
do padrinho, um dia no trabalho de cura, tava o pessoal aqui do Sul e tava a
Baixinha, finada agora né, dona Arlete, mãe de santo e no trabalho de cura e ela deu
aquela incorporada tal, baixou de joelho na minha frente... agora eu não tenho
certeza, mas pra mim que foi naquele dia que ela recebeu aquele hino, que aí ela
deu pra ele: ‘Meu Deus como eu amo meu padrinho, quando eu cheguei nessa
doutrina não conhecia ninguém, ninguém me conhecia’... ali e o hino era a minha
cara, o hino era eu, ela com braço levantado, de joelho na minha frente, eu
sentadinha na cadeira e ela cantando esse hino começou... Pra mim que ela recebeu
esse nesse dia, nesse momento... Ah sim, outra coisa que ele dizia pra mim, que eu
sempre deveria ser testemunha da minha cura, toda minha vida eu deveria contar
minha cura pras pessoas e eu faço sempre isso, sempre estou contando a cura que
eu recebi tanto que eu não tenho doença nenhuma, nenhuma, sou curada mesmo

1039
MORTIMER, 2000, p. 26.
1040
Serra, R.I., “As Estrelas”, Hinário O Cruzeiro, n. 75.
1041
MENDONÇA e NASCIMENTO, 2019, p. 346.
312
graças a Deus, sã, sadia, trabalho com medicina natural, ensino as pessoas, me cuido
muito também, mas firme e forte tá, é isso aí.”1042

Em 1984, Maurílio Reis e Maria Gregório agora casados, chegam do Mapiá para
assumir a administração da Cinco Mil. Nessa época, Wilson se mudou da casa grande mas ainda
morava na Colônia, à um quilometro da área central da comunidade, continuou como membro
e patrono da Cinco Mil, respeitado como padrinho e conselheiro, apoiando as diferentes
diretorias que por ali passaram. Mortimer narrou:

Com o casamento, Maurílio ganhou status na irmandade. Será o substituto do


Sr. Wilson Carneiro na administração da colônia Cinco Mil. Nos próximos
três anos terá a responsabilidade de comandar um pequeno povo. O velho
Wilson, agora considerado um Padrinho, está cansado das lutas e da falta de
dinheiro.1043

Wilson tinha apoio dos seus filhos Raimundo Nonato e Zé Teixeira, mas o primeiro
trabalhava na cidade, no comércio da família e o segundo acompanhava o pai, era motorista,
mas também trabalhava na cidade para garantir o sustento de sua família que crescia. Wilson
acabava contando com aqueles seguidores que chegavam de fora, dispostos ao trabalho
comunitário e voluntário nas hortas, roçados e feitios. Túlio narra essa istória, do tempo que na
Cinco Mil se fazia litros de Daime para mandar para o Rio do Ouro e o Mapiá e os episódios
que teriam marcado a primeira transferência da Colônia para Maurílio:

“Sei que nessas histórias de feitio, tinha alguns maiores outros menores, até que nós
pegamos um feitio muito grande pra fazer, eu acho que esse é o ano de 1984, foi
quando o Maurílio chegou. Foi gozado esse feitio, porque nós fomos tirar um cipó
na mata e apareceu um cipó muito, muito grande, nós procurando cipó né? Inclusive
eu tinha alugado um caminhão e eu tava na coordenação total, porque ajudava seu
Wilson ali e nós procurando cipó na mata, achamos um cipozão, um general, a coisa
mais linda, aí o pessoal olhou assim, falou assim: ‘Ah não, seguinte, vamos deixar
esse aí, esse aí é muito, a gente não vai dar conta nem de carregar!’ E eu ouvi aquilo
e falei ‘rapaz pra que caminhão? Tá doido, essa batalha toda e os cabra querendo
correr...’ Eu sei que eu olhei pra aquele cipó, terçado na mão, só dei uma terçadada
nele e aquilo foi assim, cinematográfico! Eu acho que eu nunca mais faço isso na
minha vida, foi uma coisa totalmente um raio do espírito santo. Porque eu dei um
terçadada no cipó com uma potência, que o cipó torou de enorme, os cara, teve uns
cara que até caíram pra trás, foi um negócio de louco. Aconteceu, aí agora acabou,
eu falei ‘cortei o cipó agora nós temos que levar, se não nós vamos ser castigados’,
o povo não acreditava, aí só eu sei que esse cipó ele deu 49 sacos... foi uma coisa
de louco. Nós passamos quase um mês fazendo Daime e foi exatamente no final

1042
C.P., 2000.
1043
MORTIMER, 2000, p. 250.
313
desse feitio que o Maurílio chegou. Tava pra acabar no dia seis de julho, não sei se
era de 1984, mas penso que sim. Era no dia da concentração do mestre Irineu, nós
no feitio terminando esse cipó, já estava quase um mês fazendo Daime, já tinha
feito mais de 1000 litros, porque a gente apurava e reapurava e aproveitando o
máximo que dava. O Maurílio chegou com essa carta que o Padrinho mandou. Aí
chegou lá no feitio, acho que ele já tinha falado com seu Wilson, mas seu Wilson,
ele tinha me dado o comando do feitio né? Tipo assim, porque o feitio era a coisa
mais importante e era gozado isso né? Porque o pessoal respeitava e quando o
Maurílio chegou, ele veio dar a carta, porque eu acho que quando ele foi dar para
seu Wilson, ele falou: ‘O negócio tá tendo feitio, tu vai lá com Túlio’, uma coisa
assim, muito interessante. E o Maurílio chegou lá comigo e com a carta, me deu a
carta, eu li sentado lá na casa do feitio e era aquela história, que era pra ele assumir,
que não sei o que, a partir de agora era ele que ia tocar a Cinco Mil, falava umas
coisinha lá, mas não tinha muita conversa não, era bem direto. Aí eu olhei para o
Maurílio e falei: ‘Maurílio, o negócio é o seguinte, tudo bem que você vai
comandar, tá claro aqui a carta, você que vai assumir a Cinco Mil, mas você vai me
desculpar o seguinte, isso vai ser depois que terminar esse feitio. Porque agora nós
estamos no meio de um processo e não vamos te entregar o negócio assim,
entendeu? Só quando terminar, terminou esse feitio, você assume o comando, você
assume a Colônia e agora eu quero o seguinte: você vai botar uma farda e vai pra
concentração do mestre Irineu, não quero você aqui na casinha do feitio não’. Eu já
tava chateado mesmo e dei logo uma dura e de tardezinha ia ter concentração do
mestre Irineu, a missa, aí ele saiu teve que obedecer né? Foi bem isso, a era das
mudanças né? E aí vai coincidir também que, a partir daí, depois que a gente sai, o
Dácio vai embora, eu assumo a oficina de Rio Branco e eu começo a ficar mais em
Rio Branco depois que o Maurílio assumiu.”1044

Maurílio Reis narrou sobre sua chegada na Colônia no contexto desse histórico feitio,
narrando uma outra versão.

“Casei com a Neves, vamos pra Cinco Mil, aí eu falei vou pra Cinco Mil depois do
São Pedro, mas o empecilho de vir pra Cinco Mil era o Túlio. Nessa época tinha até
uma turma ali, o Adriano mesmo falou pra mim pessoalmente: ‘óh, não adianta
você ir pra Cinco Mil porque o Túlio é poderoso, ele tem moto, ele tem dinheiro,
ele ajuda a gente, você é um pobre, o que você vai fazer lá? Não vai dar certo não,
deixa o Túlio que o Túlio tá resolvendo...’ E eu fiquei me batendo por ali que já
tinha recebido era mensagem espiritual no meu modo de pensar né. Aí falei, ah tudo
bem, se o Túlio tá lá fazendo alguma coisa, que bom! Conheci o Túlio em Ouro
Preto, em Minas Gerais, nós já se conhecia antes do Daime, lá em Ouro Preto. Aí
já viemos se encontrar na Cinco Mil por destino, pois é, não tenho nada contra o
Túlio, que bom que ele tá cuidando né, eu vou junto ajudar e vamo trabalhar junto,
que bestera achar que eu vou brigar com o Túlio, eu vou lá ajudar ele. E nessa eles
tinham tirado um jagube que dava assim umas 35 panela, 40 panela de cipó, eles
tinha tirado esse cipó, aí eu chego na Cinco Mil… o seu Wilson fez assim: uns 20
saco de jagube pra igreja, que ele ainda era comandante da igreja. O Túlio fez umas
15 panela pra ele e sobrou lá umas 20 panela lá pra mim terminar, inclusive eu

1044
T.C.V., 2021.
314
nunca tinha feito Daime, eu só sabia como é que era, mas eu nunca tinha mexido.
Aí quando o seu Wilson tirou o dele, o Túlio tirou o dele, aí eles falaram pra mim:
óh tá aí, o resto do jagube, tá aí a folha, faz aí já que você veio tomar de conta, cuida
aí e vai fazer. Aí eu juntei mais o Lourival, que sempre foi um cara que a gente
trabalhamos muitos anos junto. Aí pegamos junto e fizemos, bora fazer, é com nós,
aí fizemos, fizemos muito bem feito, ficou um Daime muito bom. Eu e o Túlio
ainda fizemos uns trabalhos bonitos, eu gostava dele, ele era muito animado, pegava
o violão, trazia uns cara da rua tocador de tambor, no hinário o pau comia mesmo,
somzera, sanfona e violão a toda altura, maior festa!”1045

Alverga narrou que em agosto de 1985 foi organizado o primeiro grande feitio/encontro
das igrejas, na Colônia Cinco Mil e que nesta época Sebastião

Atravessava mais uma difícil crise de coração, o que vinha se tornando cíclico
desde os esforços materiais e espirituais realizados em Rio do Ouro. Quando
seu coração queria se alegrar com o nosso movimento, com a alegria que ele
tinha em receber seus filhos mais novos, nos quais depositava tantas
esperanças, as emoções eram muitas e ele sucumbia ao seu peso. Somava-se
a isso um momento particularmente difícil na implantação da Vila Céu do
Mapiá, porque o Incra não indenizara a comunidade pelos dois anos de
trabalhos e benfeitorias realizados em Rio do Ouro.1046

Maurílio ficou este período na Cinco Mil, com a Neves e os filhos ainda bem novinhos,
quando em 86-87 retornaram com sua família para o Céu do Mapiá. Sobre esta sua primeira
passagem como dirigente da Cinco Mil, Maurílio narrou:

“É nesse tempo que nós desenvolvíamos muito, porque hora que eu cheguei, em
83-84, a gente… foi a época que começou a desenvolver… a própria chegada das
pessoas com mais poderio econômico, altos amigos que vieram da Argentina,
pessoas com dinheiro, que naturalmente ajudavam a gente comprando máquina,
comprando as coisas pra gente desenvolver né. Então a gente conseguiu durante ao
menos um tempo que eu fiquei lá, de 84 a 85-86, era muita fartura, a gente via muita
coisa, produzia muito. Naquele tempo as coisas tudo que plantava dava né, tudo
produzia, não era assim igual hoje né. Hoje pra você ter um pé de mamão é um
problema, naquele tempo mamão você perdia, a gente não sabia o que fazer com
tanto mamão. Hoje em dia, a banana para ter um pé, é um problema. Então assim,
tinha muita fartura nessa época de 85 a 86, foi interessante. Teve todo um
movimento né, assim, vamos dizer, espiritual da história né, o Padrinho Wilson…
Pra você ver a que ponto nós chegamos!! Quando eu resolvi largar, eu envolvido
com essa confusão toda, mexendo com droga, o padrinho manda recado pra mim:
‘vem embora que eu não quero você mais na Cinco Mil’ rsrs e eu era poderoso,
porque o Daime, quase todo Daime do Brasil inteiro, quase do mundo todo e onde
se podia falar de Daime, é lá na Cinco Mil, isso no ano de 85-86, não tinha outro
canto, todo canto era a Cinco Mil que produzia Daime, aqui que era a central do

1045
M.J.R., 2022.
1046
ALVERGA, 1992, p. 136.
315
Daime no Brasil, no mundo, não era outro canto... Mapiá ainda engatinhando... E
eu era o governante desse sistema né rs era o cara, que era o diretor da igreja, a
única produtora de Santo Daime pro mundo... rs.”1047

Na Cinco Mil dos anos 1980, a agricultura e pecuária em pequena escala continuava
sendo praticada na localidade, mas não com o mesmo volume pois a produção foi diminuindo.
Quando em 1986 Zilda Teixeira faz sua passagem deste mundo, Wilson decide não se casar
novamente. Nesta época, ele já morava na casa que passou os últimos anos de sua vida
realizando os trabalhos de cura de seu Pronto-socorro. A casa, cuja sede do Centro e Pronto-
socorro foi construída ao lado, foi herdada por sua filha Tânia Maria (1967-2021) e por seus
netos Thomas e Tamara. Marinez lembrou:

“Quando ele fez na casa dele, lá onde Tânia mora, já foi depois que ele saiu lá da
casa grande, porque ele já tava, ele tava doente, não aguentava mais, porque o
padrinho Wilson ele nunca apartou da igreja. Na verdade, o Nonato também não
apartou, porque ele pediu um tempo pra ele... falou que não ia sair da igreja, ele
pediu um afastamento para tratamento, trabalho, necessidades dele, do filho. O
trabalho de cura, trabalho de cruz, ele fazia muito trabalho de cruz, aí esses trabalho
aí sim, esses trabalhos era pouca gente, eu lembro que era pouquíssima gente que
dava, era praticamente o pessoal que fechava, que fechava a estrela ali, mas um
pouco de gente de cada lado. Aí eu lembro que eu entrei e sentei e eles serviam
Daime na estrela mesmo, não tinha luz, era a luz de vela, era um trabalho para uma
senhora que tava numa cadeira, tipo naquelas espreguiçadeira, levantaram a perna
dela, botaram ela lá e a mulher ficava ‘ai ai ai ai ai ai ai’. Aí quando eu entrei menina
eu senti... e eu pensava , isso tudo pra mim era novo né, aí o padrinho foi levantou,
deu Daime pra todo mundo tal, menina mas foi um desses, foi rápido tomou o daime
eu já tava mirando... quem tava dentro não ia sair, quem tava fora não ia entrar ,
quando ele falou isso, eu saí do corpo assim, eu fui lá em cima rapidamente eu vi
tudo embaixo como que se a gente tá aqui e eu levantasse e visse essa mesma cena,
só que de cima e como que as janelas todas fechassem na mesma hora, eu lembro
disso. Aí a noite e tal "eu nunca mais quero ficar sem saber o que eu vou fazer". Aí
comecei a frequentar na madrinha Julia, que ela morava lá, ela ia pro Mapiá, mas
ela ficava mais aqui, ela, o Alfredo. Aí nisso o padrinho Sebastião chegou em 1982,
aí o Padrinho Sebastião chegou porque ele ia fazer um grande feitio, ia responder
ainda o processo da Santa Maria e fazer um tratamento do coração que ele tava
precisando. Aí ele ficava lá na Madrinha Júlia, ele tinha uma cadeira de balanço,
que eles levavam para igreja para ele sentar, ele sentava lá no terreiro, ficava lá
sentado, tinha um banco assim e a gente ficava lá...”1048

Em 1987, com o retorno do Maurílio e Neves para o Mapiá, Chico Corrente assumiu a
administração da Colônia e os feitios. É difícil achar quem questione que Wilson Carneiro – e

1047
M.J.R., 2022.
1048
M.R., 2018.
316
por extensão sua família –ficaram responsáveis pela gestão da comunidade daimista na Colônia
Cinco Mil. Porém, ao que se vê, seu Wilson já se via muito comprometido com os trabalhos de
seu Pronto-socorro e a Cinco Mil acabou sendo uma responsabilidade compartilhada com outras
famílias e seguidores em diferentes períodos, entre eles o Maurílio e o Chico Corrente. Maurílio
se recorda do contexto da chegada de Chico Corrente na Colônia:

“A gente começou receber os estrangeiros e ter uma fase boa de 83-86. Aí nesse
meio tempo, o Chico Corrente tava lá na Bahia morando com Marcial, no cacau lá
da Bahia, lá na Feira de Santana né e nessa eu encontro com padrinho lá no Mapiá
e ele comentou isso… ‘como é que nós vamos fazer agora, porque lá vem o Chico
e o que que nós vamos fazer, onde vamos botar o Chico Corrente?’ Pensando com
ele, porque não tinha moradia nessa época no Mapiá, porque não tinha como morar
as pessoas e uma casa pra fazer nós demorávamos 3-4 meses pra fazer uma casa,
então o Chico Corrente vinha e ainda tinha que ter uma residência pra ele, como
fazer?! Eu me lembro como se fosse hoje, como diz o ditado, eu na varanda com
ele, conversando, eu falei pra ele isso: Oh padrinho eu venho da Cinco Mil e o
Chico fica lá morando na Cinco Mil, né... é o tempo que ele mais o Nonato se
entende muito bem, vai dar certo e vamos tocando o barco pra frente.”1049

João Poeira é um dos que estão até hoje na resistência de cultivar os ensinos do Daime
na Cinco Mil. Contribuiu com as diferentes diretorias e atualmente é o responsável pelo feitios
e está sempre presente nos mutirões. Também relembrou a época:

“O Chico Corrente era comunitário. Ele foi o homem mais comunitário que eu já vi
aqui trabalhando no nosso meio, pra ver esse lado mais até do irmão, do vizinho,
olhar e saber pra ver se ajuda. Ele foi um dos caras que eu mais vi assim, legal pra
administração. Fazia horta e se virava fazendo roçadinho e fazendo tudo sabe, pra
ter ali pra gente comer. Ele era uma pessoa assim! O Chico era incrível! Um cara
sempre tava naquela luta ensinando pra nós, ensinando pra nós e dizendo ‘oh! Faz
assim! Faz isso assim, bota isso pra terra. Bota isso na terra! Mete isso na terra! É
alimento! Que vai precisar!’ Ainda hoje eu me lembro. Oh, o Chico Corrente falava:
‘-Bota batata na terra! Bota batata na terra! Que é isso que vai precisar no futuro,
né!’ As coisas que as vezes eu fico me lembrando, ainda tô, ainda tô, na esperança
de fazer tudo isso ainda, né! Também junto com os meus netos, junto com os meus
netos, né! Por que quando o padrinho, quando ele foi, ele falou isso pra mim. ‘Olha,
isso aqui se for preciso é pra você criar filhos e netos’, ele disse pra mim, né! ‘É pra
criar filhos e netos aqui’ e essa é a palavra que eu cumpro dele aí. Criar filhos e
netos. Meus filhos já tão tudo grande, já tenho é neto! Tão tudo criado os filhos, né!
Agora é os netos, aí já responsabilidade dos filhos. Mas tão aqui, eles chegam aqui,
eles gostam de vir pra cá, beleza. Que tem o espaço! Tem o lugar pra eles vim, né!
Viver bem, ir pra igreja tocar, cantar, aprender a tocar, né! Eu fico feliz pelos meus
netos. Que é uma palavra que o padrinho deixou pra nós cumprir. Não é viver

1049
M.J.R., 2022.
317
brigando não, que tem umas pessoas que são revoltadas, aí se revoltaram com certas
coisas e ficam na revolta, mas não adianta! Trabalhar e seguir a doutrina, cada um
segue sua vida assim! História é nossa mesmo! Aí o Chico Corrente ficou né e tal,
na casa grande, veio aí ficou um tempão muito legal, depois o Nonato veio.”1050

No finalzinho da década de 1980, Chico Corrente, depois de aproximadamente dois anos


contribuindo com a Colônia, se mudou para a Fazenda São Sebastião, na entrada do igarapé
Mapiá. Segundo Maurílio

“o plano do princípio, era os Correntes todos irem pra Fazenda, por isso que o
padrinho colocou o Chico na Fazenda, virar o império dos Correntes, ele disse
assim... eu e o padrinho viajamos nessa onda. Então o Chico Corrente fica aqui na
Cinco Mil uns 2 anos junto com o Nonato, seu Wilson. Aí o Marcial compra a
Fazenda, aí o Chico já vai e o Nonato fica cuidando da Cinco Mil, por aí.”1051

A Fazenda São Sebastião foi uma das grandes aquisições possibilitadas pelo dinheiro
das doações que chegavam de pessoas abastadas que simpatizavam com Sebastião e sua
comunidade, tornaram-se adeptos do Daime e dispostos a ajudar. Mortimer cita que entre estes
estavam Marcial, que era do grupo dos “de fora” e Mirim que era acreano. Depois deles, muitos
outros e a partir dos anos 2000, espanhóis e japoneses sustentaram um período de relativa
bonança no Céu do Mapiá, com forte incremento do turismo e movimentação econômica
através da prestação de serviços de hospedagem e alimentação. Lá ficou uma parte da família
Corrente para levantar a história da agricultura familiar e de subsistência na localidade e
atualmente lá vivem cerca de 150 pessoas.
Tornou-se um “polo de produção agroflorestal, com implantação de uma mini usina de
beneficiamento de banana, lago para piscicultura, plantio de Rainha e Jagube, madeiras e
fruteiras”1052 Na Fazenda São Sebastião “A casa da família do Chico Corrente se transformou
em um Memorial”1053. Outras aquisições deste período, segundo Mortimer, foram “a Praia
Gregório no Purus, casa em Boca do Acre, fazenda em Mauá, muitos motores, roupas, colchões,
utensílios domésticos, trator etc.”1054 Iniciaram ali um “plantio de grãos, legumes e frutas,
necessários para o abastecimento da vila.”1055 Em 1997, uma grande alagação “obrigou boa
parte da população a se mudar para a sede da Vila.”1056

1050
J.A.S.S., 2022.
1051
M.J.R., 2022.
1052
GUIMARÃES, 2023, p. 25.
1053
Ibid.
1054
MORTIMER, 2000, p.252
1055
GUIMARÃES, 2023, p. 25.
1056
Ibid.
318
Os moradores da Cinco Mil no período em que Sebastião ainda estava vivo tinham uma
relação ainda mais forte com o Mapiá e todos que podiam iam até lá visitar com frequência,
sobretudo nos períodos dos festivais. Diz-se que sempre eram reservados os barcos em Boca
do Acre que iam levar o povo da Cinco Mil nos festivais. João Poeira comentou sobre essa
época e como viu acontecer as transformações no Mapiá a partir da passagem de Sebastião:

“Quando foi um tempo eu disse caramba! Tenho que conhecer o Mapiá, aí fui!
Várias e várias vezes fui no Mapiá! Quando o padrinho tava lá eu fui várias vezes
assim todo hinário, todo seis de outubro, aniversário do padrinho eu ia lá, eu tava
lá oh! No último trabalho aniversário dele lá, o último que ele fez lá dentro do Mapiá
eu tava lá, que ele saiu de lá pra ir pro Rio de Janeiro de helicóptero, pois é.… muito
diferente. O Mapiá muito diferente! Muito diferente o Mapiá! Muito legal de
primeiro quando o padrinho começou, né! Lá muita plantação de arroz, muita
plantação, era uma imensidão, foi a primeira vez que eu vi. Caramba! Como é que
esse povo faz isso cara? O padrinho tava no meio, tá entendendo? Por isso que digo
o padrinho tava no meio, rapaz o povo tinha vontade de fazer, depois ficaram tudo,
o Mapiá ficou uma coisa... muito incrível. A gente não entende como é que pode
ter ficado uma coisa daquela... Eu pensava na minha cabeça o Mapiá era pra ser a
coisa mais linda! Na floresta do nosso Daime, aquela coisa. Mas mudou muito, a
gente vê muita coisa que o pessoal fala, né! Que cresceu demais num cresceu assim
aquela coisa legal dentro da linha do Daime não! Muito diferente!”1057

Marinez narrou sobre este período, em que passou morando alguns meses na Cinco Mil:

“Também foi na época que meu pai fez a passagem, em 1987. Quando eu vi, meu
pai fez a passagem, eu vim, fiquei uma época, fui fiquei tomando Daime uns dias,
fiquei aqui uns três, quatro meses, aí de vez em quando eu ia lá. Nessa época era
seu Chiquinho Corrente que tava na direção da Casa Grande. Mas foi pouco tempo
acho que o Chico passou só um ano ou dois anos uma coisa assim. Por que o Nonato
era o braço do seu Wilson né, como ele mesmo dizia ‘eu não enxergo mais, não
tenho mais tanta força e tal, o compadre Nonato é que é o meu olho, os braços e as
pernas.’ Aí fui de novo. O padrinho Wilson tava na administração da Igreja mas
acho que foi quando o ele se mudou para aquela casa hoje é da Tânia, ele teve
período aqui na cidade por causa de doença da dona Zilda uma coisa assim também.
Aí sim, aí eu fui, fiquei lá, morando, toda a vida nem pensava em me fardar...”1058

Wilson Carneiro é às vezes descrito como “manso e cordeiro” e ora como alguém que
exigia dos companheiros e companheiras muita seriedade e disciplina nos trabalhos, incluindo
um certo militarismo e pontualidade, a farda da igreja deveria estar sempre bem arrumada,
cabelos cortados, barbas bem feitas e “seis horas é seis horas, não é seis e um”, “Meu filho quer
se fardar? Então primeiro corte os cabelos” ... essa foi uma das leis que passaram a vigorar na

1057
J.A.S.S., 2022.
1058
M.R., 2018.
319
Cinco Mil ainda com o padrinho Alfredo e os Trabalhos de São Miguel.1059 Marinez lembrou
da importância de dona Clícia e outras mulheres, nesta época, quando ela passou a frequentar
mais os trabalhos e aprender as histórias da comunidade. Relembra de quando participou de um
trabalho de cura com seu Wilson pela primeira vez:

“Aí depois eu fui fazendo amizade, fui ficando com dona Clícia, aí com a dona
Clícia que eu comecei a aprender alguma coisa, principalmente dos trabalhos do
padrinho mesmo nessa época, ela dizendo que ela tava louca, mas num era, ela tava
num momento dela, de iluminação mesmo. Então ficava muita gente lá na casa dela,
a gente ficava muito com ela e aí eu passei a ter um ligação muito forte com ela,
que fui ficando, ficava de um mês, dois meses, três meses, ela contava que seguiu
lá no mestre Irineu... Quando padrinho se mudou para colônia, que foi um grupo
com ele, ela foi uma delas e ela era responsável pelo hinário do mestre lá na Colônia.
Aí depois quando ela começou ter uns problemas e tal, aí começou a ficar a
Neucilene, a Graça. Aí fiquei acho que mais ou menos um ano, aí que eu fui
conhecer o trabalho de cura também, que eu conheci de um jeito assim: tava lá na
dona Clícia, passando um final de semana, mas nessa época não tinha luz na
Colônia, tinha um motor que acendia só pra igreja, nos dias de trabalho, só na hora
do trabalho, terminou o trabalho apagava a luz, só trabalho oficial, porque trabalho
de cura, trabalho simples assim, era na vela. Aí lá na dona Clícia: - ‘vai ter um
trabalho de... Seu Wilson vai fazer um trabalho de cura’... - Trabalho de cura? – ‘é
trabalho de cura!’ - ‘ah eu vou’... ‘Ah vai ser seis horas, seis horas’. Seis horas eu
tava lá. Nessa época era só a igreja, aí era pouquinha gente porque o padrinho
Wilson ele selecionava as pessoas que faziam, iam fazer o trabalho de cura, num é
com é hoje em dia, calendário de trabalho de cura... quando ele estava para fazer a
passagem, ele já botava, tinha um quadro na casa grande, ele colocava o nome das
pessoas que ele queria.”1060

Em 1989, com Chico Corrente já indo para a Fazenda e Maurílio e Neves retornando
para o Mapiá, a presença de Raimundo Nonato como dirigente dos trabalhos marcou uma nova
época. Nonato narrou que no início de 1989 foi chamado por Sebastião para ir ao Mapiá. Lá,
pode ver nascer o Trabalho de Estrela, um tipo de trabalho de cura organizado por Sebastião e
que hoje em dia é mais conhecido apenas como Trabalho de Cura (dividido em partes 1(um) e
2 (dois), com ou sem acompanhamento dos instrumentos, respectivamente). É uma coletânea
de hinos, cantada em trabalhos sentados e de farda azul, geralmente acompanhado por músicos.
Estes trabalhos realizados no Céu do Mapiá foram uma forma de preparar e convidar Raimundo
Nonato para assumir a Colônia Cinco Mil, uma vez que Francisco Corrente assumiria a Fazenda
São Sebastião e seu Wilson já estava com a idade avançada e saúde também debilitada. Nonato
narrou:

1059
M.R., 2018.
1060
Ibid.
320
“Aí quando foi à noite, no outro dia, padrinho Sebastião, ele andando para lá e pra
cá, que nem um menino novo, novo, novo, novo e eu me vazando de sangue, eu
sofria de hemorroida, aí ele foi passou por mim falou: ‘Oh Nonato, eu ouvi dizer
que tu só vive menstruado, rapaz’. - Eu digo: - ‘padrinho o pior é que são todos os
dias, a mulher tem a época dela, mas eu é todos os dias’. – ‘pois é meu filho eu vou
fazer um trabalho aí pra você, que se você não ficar bom eu vou lhe mandar lá para
o Paulo Roberto pra você fazer a cirurgia’. Aí fez o primeiro trabalho, primeiro
trabalho ele foi e me colocou bem na cabeceira da mesa, do lado pro padrinho
Alfredo e ele ficou lá do lado de fora na janela, só aqui, olhando o que acontecia lá
dentro. Aí foi mamão com açúcar o primeiro trabalho. Aí no outro dia eu fui para o
compadre Bernaldo Corrente, aí almocei lá com ele, era longe... eu olhei no relógio
e eu digo: - ‘rapaz não vai dar tempo de chegar lá seis horas’. Aí pisei, pisei, pisei
quando eu cheguei já tinha passado da hora, mas eu fui tomei banho, coloquei a
roupa de dormir, aí fiquei em claro: Aí daqui a pouco chegou a embaixada: ‘Seu
Nonato eu vim lhe chamar’. Aí eu digo: ‘meu filho eu não vou não, porque eu não
sou desordeiro, já passou da hora e padrinho Sebastião falou que era 6 horas’ - que
o caboclo fala 6 horas, né? Não fala 18 horas, né? – ‘mas tão mandando lhe chamar
lá’, eu digo ‘meu filho, o horário que ele marcou trabalho são 6 horas... Aí – ‘seu
Nonato, o padrinho Sebastião mandou lhe chamar’!!! Aí, aí é outra história, né? Aí
eu fui, tirei a roupa, troquei a farda e fui para lá. Aí nesse dia foi diferente, né?
Como eu cheguei atrasado, foi cinco daime, o último daime foi dois dedos de mel.
Teve um momento que o Padrinho Sebastião tava lá fora e passando a mão na barba,
fazia assim (gesto alisando a barra alongada)... e o couro descendo lá dentro, era
couro mesmo, não era brincadeira não. Aí passou um pedaço, aí veio uma pessoa
colocou a mão assim na cadeira e o outro estava sentado aqui só fez – ‘uhhhh’ e
cabeça desceu por aqui assim e disse: -‘eu tô por tudo’, não tinha perna para
levantar, ‘eu tô por tudo’... ai o outro sentou em cima da mesa, bolou pelo chão lá
fora também, bolou pelo chão... Aí passou, passou, passou... Aí passou, daí a pouco
a miração foi fechando, fechando, fechando, aí chegou um ser bem pertinho de mim
aí: ‘tu vai lá para Cruz’...aí eu irradiei e quando eu irradiei, aí eu falava muita coisa...
Aí a pouco quando tava nessa situação, aí eu olhei pro canto assim, olhei pra outro
aí digo: a vontade era de correr, me embrenho dentro do Mapiá e ninguém nunca
mais me vê, aí chegava a força do bem e eu me aquietava... aí depois chegava a
outra força, aí eu levantava de novo, aí queria sair. Aí terminou o trabalho uma
hora da manhã, quando terminou o trabalho, Manoel Corrente veio para conversar
comigo: ‘Nonato, o pessoal tão ali fora uma patotinha praqui, outra pracolá, falando
que amanhã você vai amanhecer doido, mas você não veio para cá para endoidar, o
senhor veio pra cá pra aprender a fazer esse trabalho’, que está saindo da Boca do
Forno, que era Trabalho de Estrela que nasceu em 1989. Quando foi no outro dia,
de manhãzinha cedo, o padrinho Sebastião, compadre Alfredo, a família do
secretário me chamaram lá para uma reunião. Aí eu fui, quando eu cheguei lá,
depois da reunião pegou aqui documentação da Colônia Cinco Mil, disse: ‘tá aqui
compadre Nonato, de hoje em diante você é o novo administrador da Colônia Cinco
Mil’. Aí foi que eu fui mesmo, me rebolar pra dar gosto ao homem, fazer tudo que
eu tinha ao meu alcance que eu pudesse fazer pra dar gosto a ele. Quando eu voltei
do Mapiá, foi que eu fiz o primeiro Trabalho de Estrela na Colônia.”1061

1061
R.N.T.S., 2019.
321
Luiz Mendes, em diálogo com Mendonça, também relembrou ter participado de um
Trabalho de Estrela no Céu do Mapiá, onde Sebastião apresentou seus dons de falar em outras
línguas dentro de um trabalhos de Daime pela primeira vez:

Isso começou num trabalho lá no Mapiá. Aí, um trabalho de Estrela. Aquela,


aquela Estrela assim de portão fechado! Há, há, há, há! Eita! Aí o padrinho
[Sebastião] lá umas tantas, aí ele desdobrou-se. E parará e papapá e papapá. E
eu aqui comigo e até entendendo. Aí quando eu bem num pensei também a
minha língua deu assim um... Aí pronto, eu entrei também traçando. E aí já a
gente conversava. Ele me perguntava, eu respondia. Assim, uns três minutos,
durou. Aí isso, um encontro de dois seres. E aí depois aí eu andei, tomado por
essa coisa.”1062

Na sequência ele narra que também Irineu Serra falava em línguas, mas não era com
frequência. Luiz Mendes se recorda especialmente de um Trabalho de Concentração no qual
Irineu Serra teria feito uma preleção em Tupi-guarani e depois feito a interpretação ou tradução.
Narra que seu Wilson chegou a gravar e que tentaram de todo jeito recuperar este áudio. Em
uma das partes mais visíveis, entende-se algo como “O Daime não pode estar onde tem
guerra.”1063
Notou-se durante essa trajetória que uma das formas de dimensionar a ruptura na
comunidade a partir da saída de Sebastião foi estabelecer uma espécie de repartição dos
poderes, isto é, a gestão da sede, dos trabalhos espirituais, inquestionavelmente sob liderança
de seu Wilson até o final da década de 1990, a gestão dos afazeres cotidianos e feitios sendo
alternada em alguns momentos. Há uma espécie de narrativa de descontinuidade entre a Cinco
Mil e o Céu Mapiá, devido as micropolíticas que envolveram a gestão de feitios, as concepções
sobre hierarquia, administração e relações interinstitucionais entre as duas comunidades (mãe
e filha). A produção de apagamentos, silêncios e silenciamentos sobre a continuidade da Cinco
Mil como território do Daime do padrinho Sebastião em Rio Branco, que até hoje dá apoio aos
moradores e visitantes do Mapiá, sugere formas de como essas rupturas foram dimensionadas
por aqueles que inventam e reinventam os lugares nas narrativas institucionais. É como se a
Cinco Mil e seu legado fosse algo pra ser esquecido e/ou ficar no passado dos tempos fundantes,
como se não houvesse um depois e um agora, ou como se a Cinco Mil não fosse parte da Iceflu.

1062
MENDONÇA e NASCIMENTO, 2019, p. 139.
1063
Ibid., p. 140.
322
3.4 A despedida do padrinho Sebastião

“Deus é fogo, Deus é água, Deus é tudo


Eu convido meus irmãos
Para começar nossos estudos.”

Hinário O Justiceiro, Padrinho Sebastião

A terra, é por excelência, desterritorializadora; é o caos que a tudo engole. Como


território, a terra é o suporte dos movimentos, que exploram e criam novos espaços. Pensar a
relação que o pensamento estabelece com a terra, como propôs Deleuze e Guatarri, é uma
possibilidade de pensar as diferentes trajetórias de deslocamentos não apenas como atritos, mas
como a busca de habitar a terra de uma forma sadia e alegre – e não se trata de criar outros
mundos mas vivenciar esse mundo – o único que temos, de outras formas, a partir de outros
valores. Por isso, o pensamento que fica preso a um passado idealizado ou a um futuro que,
como promessa e utopia que nunca chega, é um pensamento desenraizado da terra e
envenenador. O melhor tempo é o tempo-hoje, o tempo que temos vida, o tempo presente – daí
a geofilosofia como “a necessidade de retornar para os problemas deste mundo, desta vida (...)
para não afundar no caos e no cinza das indeterminações.”1064
Em 1989 a administração da Cinco Mil voltou integralmente para a família do padrinho
Wilson, quando Raimundo Nonato assumiu a direção da Colônia, com o pai ao lado e sua
numerosa família, até meados do ano de 1997. Maria da Graças narrou como foi a entrega da
Cinco Mil de Sebastião para a família Carneiro, na pessoa do seu Raimundo Nonato, em um
memorável Trabalho de Estrela que aconteceu no Mapiá.

“Aqui acolá a gente ia no Mapiá, uma viagem longe uma da outra, mas ia né, pra
fazer uma visita ao padrinho. Então teve um belo dia… que nós vínhamos e ele
disse: ‘vocês não vão amanhã porque eu vou fazer um Trabalho de Estrela e vocês
têm que tarem presente’, que foi quando ele passou pro Nonato a Cinco Mil pra ele
administrar, então foi quando foi entregue. Então quando o Chico Corrente saiu, foi
o Chico Corrente saindo de manhã e a gente se passando de tarde, porque a Colônia
não podia ficar sozinha, a casa grande não podia ficar só né, então a gente tinha que
passar logo. Isso foi pelo 4 de dezembro, bem próximo de Nossa Senhora da
Conceição e tinha um Trabalho de Estrela que eu nem fui, que nessa época os
trabalho era muito bom, muito forte… e daí pra frente, seu Raimundo Nonato
assumiu e logo em seguida quando foi em janeiro o padrinho Sebastião fez a
passagem. É tanto que aí… eu não me lembro se foi eu ou se foi o Nonato que disse
que ia entregar, né… porque o padrinho tinha feito a passagem, aí eu acho que foi

1064
Imanencia –Terra, https://razaoinadequada.com/2017/10/20/imanencia-terra/.
323
eu que disse pra ele que a gente tinha mesmo que segurar, porque ele tinha entregue
com confiança e sabia que de lá de onde ele tivesse, ele tava vendo o que é que a
gente tava fazendo. E aí ficamos lá... mas muita guerra, tava aquela guerra de poder
né… e tava muito forte, muito forte e eu já tava vendo que não dava pra gente ficar
assim… no prazo de seis anos né, porque nós ficamos ainda seis anos na direção;
compadre Wilson entregou pro Nonato a direção da Colônia e ficou dirigindo o
Centro, mas a direção da Colônia era com o Nonato. E foi indo, foi indo, compadre
Wilson foi passando devagarzinho, devagarzinho, deixando o Nonato tomar de
conta né. Mas foi ficando muito severo, as coisas muito… muita confusão e a gente
tava vendo que tava muito forte e aí construímos essa casa que hoje em dia nós
moramos… devagarzinho, quando nós passamos pra ela não tava nem terminada...
a gente tava também numa situação difícil com o Ramiro né… e saímos, entregamos
e viemos pra cá, até que o Nonato entregou de vez pra madrinha Rita né, que não
dava mais pra ele continuar. Pediu um tempo, um afastamento sem tempo pra
voltar… pediu um afastamento, aí de lá pra cá até hoje.”1065

A nova diretoria foi empossada em 7 de setembro de 1989 e foi composta por:


Presidente- Wilson Carneiro de Souza; Vice-presidente- Francisco de Oliveira; 1°secretário-
Eduardo Bayer Neto; 2° secretário- Maria das Graças Nascimento de Souza; 1° tesoureiro-
Ramiro Nascimento Teixeira de Souza; 2° tesoureiro- Roberto Araújo da Silva. A escolha do
nome Wilson Carneiro de Souza para o centro que ficaria na Colônia Cinco Mil evidencia a
importância e o reconhecimento de sua figura no contexto dessa irmandade, sobretudo naquela
época. O Estatuto aprovado com quatro capítulos e vinte e cinco artigos, versava sobre a
finalidade do Cefluwcs, sobre os membros filiados, seus direitos e deveres, a diretoria e suas
atribuições, além de disposições gerais.
É interessante notar a presença de Roberto, filho de Manuel Morais, nesta primeira
diretoria, pois ele é um dos que viria a fazer oposição à gestão do Nonato mais adiante na
caminhada. Mais importante é destacar Francisco de Oliveira, que ocupou o cargo de vice-
presidente e é chamado carinhosamente de ‘Padrinho Chiquinho’. Nasceu no dia 5 de novembro
de 1928, na cidade de Brasiléia, no Acre. Foi um dos antigos seguidores do mestre Irineu que
seguiram com Sebastião na Cinco Mil. Como narrou Luzia Schneider, sabe-se que ele veio para
Rio Branco no ano de 1938, casou-se em 1957 com Raimunda Silva Oliveira, com quem teve
seus 3 filhos. Assim como muitos outros, buscou o Daime por motivo de uma doença e
sentindo-se agraciado, formou nas fileiras do batalhão da Rainha da Floresta.

“No ano de 1967, através de sua irmã Iraci Oliveira, Francisco procurou o Mestre
Irineu em busca de cura para dona Raimunda. Foram feitos alguns trabalhos e, no
último, sua esposa estava curada. A mesma chegou carregada por outras pessoas no
Mestre Irineu, mas sua melhora foi tão boa, que dona Raimunda conseguiu chegar
1065
M.G.N., 2022.
324
andando no final dos trabalhos dedicados a sua cura. Assim, agradecidos, o casal
resolveu que toda família iria se fardar. No dia do seu fardamento, recebeu a
orientação de esperar pelo sobrinho do Mestre, Daniel Serra, que iria lhe mostrar
seu lugar. Para sua surpresa, ele recebeu a ordem para ocupar a fila ao lado do
padrinho Sebastião.1066

Nota-se, neste primeiro momento de institucionalização do Cefluwcs, a ausência de um


registro formal da responsabilidade atribuída à Raimundo Nonato como dirigente. Seu nome é
citado no documento como integrante da comissão eleita na assembleia de fundação para
elaboração do Estatuto do Centro, junto com Bayer, porém não ocupa o cargo nem de
presidente, nem de vice presidente, oficialmente. Os narradores costumam diferenciar: seu
Wilson no comando do centro, Nonato na gestão dos afazeres da comunidade. A família de
Wilson Carneiro na Cinco Mil era numerosa, composta por um conjunto de excelentes cantoras
e músicos, filhos, noras, netos. Maurílio destaca a força e beleza do canto da irmandade e
sustenta que

nunca teve desavença, respeito muito os menino e gosto muito deles, era muito
bonito nessa época, os menino do Nonato cantava muito, tinha o Ramiro né que
cantava muito bem, era muito bonita a nossa festa, seu Wilson era muito divertido.
Ele sempre cochilava no pé da mesa, já velhinho né, sempre quando cantava o
último hino ele… ‘acabou é’ rsrs, ficava o tempo todo só… rs, aqui acolá a gente
cutucava, seu Wilson mais pouquinho de Daime, ai tomava mais um pouquinho
mas quando chegava o último hino ele “acabou é? rsrs.”1067

Esta narrativa de que não houve brigas entre os grupos que foram se constituindo e se
fragmentando na Cinco Mil parece uma vontade de criar uma verdade onde tudo é néctar e
jardim de flores e brilhantes pedras finas, mas que não se sustenta no conjunto de outras
narrativas de sabor mais áspero e pela própria experiência comunitária.

“Aquela história né assim, é muito em paz né, até por causa das igreja mesmo né, o
Nonato, até o próprio Feliciano com as loucuras dele lá, mais nós nunca se
incomodamos, ninguém criou briga com ninguém, cada um faz a igreja onde quiser,
eu tô lá preocupado com isso, o cara pode fazer no seu terreno dele, se quiser o
Daime eu te dou rs, vai lá fazer… não me enche o saco não rs, faz ai, eu lá tô
preocupado, se for bem feito prospera...”1068

1066
L.S., 2023.
1067
M.J.R., 2022.
1068
Ibid.
325
Em janeiro do ano seguinte ocorreu a passagem de Sebastião, no dia de São Sebastião.
Mortimer comenta que o peso de uma vida dedicada ao trabalho braçal requeria o repouso da
luta. Conta que sua saúde agravava e que ficara combinado que ele sairia do Mapiá para buscar
médicos mais especializados depois da data de seu aniversário, no dia 07 de outubro. Era o final
do ano de 1989. No seu aniversário, por tradição instituída, é cantado o hinário do Mestre Irineu,
O Cruzeiro, seus familiares haviam deixado tudo preparado. Quando terminou a cantoria, veio
o raiar da manhã e, passados alguns dias, o helicóptero que levaria Sebastião para Boca do Acre
e posteriormente, em outra aeronave, para o Rio de Janeiro. Francisca Corrente num relato
emocionado, me contou suas lembranças da despedida como moradora do Céu do Mapiá:

“O padrinho ele saiu de lá do Mapiá mesmo, deixa eu ver, seis foi o aniversário dele
né, do 8 ao 9, o helicóptero foi buscar ele lá, aí foi ele, Maria Tôca e a madrinha
Rita no helicóptero e o resto foi por água, pelo rio, mas chegando na Boca do Acre
se encontravam né e ele seguia de avião e os outro em outro avião... só ficou no
Mapiá o Valdete e o Pedro Mota, o Zé Mota... aí o Padrinho foi, ficou no Paulo
Roberto, mas o doutor sempre dizendo que ele tava muito fragilizado já, o coração
dele tava bem devagar, que não sabia nem se ele podia voltar a morar no Mapiá,
mas era melhor ele ficar ou lá, no Rio ou aqui em Rio Branco porque aqui é mais
fácil, tem doutor, tem hospital, até pro Rio Janeiro é mais fácil pegar um avião e
ir, do que vir dacolá pra cá né. ‘Seu Sebastião só se o senhor melhorar mesmo, mas
senão, não é muito aconselhável o senhor ir pra lá por conta da dificuldade das
coisas. O padrinho: ‘- tá, mas eu quero ficar com meu povo, ficar com meus
caboclo, eu não quero deixar meu pessoal sozinho, eu estando lá com eles mesmo
que eu esteja passando, mas eu tô lá junto, tô vendo, eles tão me vendo.’ Ai
melhorou, o padrinho deu uma melhorada, melhorada, melhorada boa mesmo, digo
porque a Madrinha Rita me disse, a Maria Brilhante que tava acompanhando, a
Biná, todas falaram que foi uma boa melhorada. E aí minha filha, começou o
negócio tipo um ciúme sabe, ninguém podia ver o Padrinho e o Padrinho não podia
conversar com ninguém, que tinha aquele horário certo X, é 10 minuto, é 10 minuto,
20 minuto, 20 minuto, sei nem quanto era, mas esse Nonato sabe que ainda foi lá,
foi lá e o Padrinho pelejou pra ainda dar um abraço nele, era o padrinho se
despedindo dele e ele não entendia, a hora da despedida né, do tchau. E o padrinho
gosta muito do Marco Imperial, muito mesmo, é por isso que ele diz, eu não sei,
dali começou um negócio que o Marco não podia ver o padrinho, o Marco não podia
ir lá onde o padrinho estava, na casa de não sei de quem, nem quero saber... o Marco
queria ir lá visitar o padrinho e não podia, até que o padrinho disse ‘não, o Marco
vai vir’, falou lá pro doutor dele, que tava lá com ele, Paulo Roberto e tal. O
Padrinho: ‘Eu quero ver o Marco Imperial’, você não deixou ele vir aqui, aí ele foi...
na hora da saída disse que foi um negócio muito animado ainda, parece que andaram
trocando soco por lá, umas coisas. Padrinho ficou muito chateado, oh…, porque ele
soube, por muito que esconderam mas como ele disse um dia, de mim ninguém
esconde nada, porque quanto mais se esconde mais se apresenta, ele soube. Aí
quando foi nesse Hinário do dia 20 de Janeiro, que é São Sebastião, aí era pra fazer
lá em Mauá, na igreja do Alex. Aí o padrinho falou: ‘Eu não vou, porque eu tô
muito fraco, eu não vou aguentar ir pra Mauá que é subindo montanha, de qualquer
326
maneira mesmo no carro mas balança muito né, eu não vou pro Alex não, vou ficar
aqui mesmo. Aí quando foi no outro dia, que era o dia mesmo de ir pra Mauá, aí ele
falou: ‘Quero ir lá pro Marco Imperial, eu quero ir pra casa do Marco.’ Aí parece
que não deu muito certo, parece que não queriam deixar. Ele falou: ‘Eu vou, vocês
vão me deixar ir pra casa do Marco!’”1069

Como narrou Francisca, chegando lá no Rio, as pessoas passaram a tentar controlar a


vida de Sebastião: quem poderia vê-lo e por quanto tempo. Alguns outros relatos dão conta de
que isso irritava-o profundamente. Um deles é do próprio Marco Imperial:

Padrinho dizia que gostava da Rainha do Mar porque aqui ele era livre e que
as pessoas podiam conversar com ele sem que alguém ficasse ali ouvindo.
Dizia ele que na Rainha do Mar não tinha ramramram e que aqui todos eram
felizes e tratavam a todos com alegria. Padrinho detestava a dureza de coração,
detestava a falta de amor para com os que chegavam.1070

O relato de Raimundo Nonato, que foi visita-lo no Rio de Janeiro, traz memórias desta
época das despedidas e dos olhares controladores e vigilantes de seus cuidadores durante sua
estadia no Rio de Janeiro.

“Aí eu fui ao Rio de Janeiro e cheguei lá encontrei com padrinho Sebastião. Aí tinha
uma senhora, ela só deixava para ficar cinco minutos com padrinho Sebastião, não
podia ficar mais que cinco minutos. Mas afilhado, um filho e um padrinho, pastor-
pai, não tem como ele querer soltar o filho logo... e não tem como o filho querer
soltar o pai, o seu pastor logo, né? Aí dona Maria, o Marcelo e o Roberto saíram
logo e foram lá para fora, a mulher olhava a gente, fazia assim apertava os lábios e
eu digo: ‘ela vai morder os lábios, vai ficar cortado’. Aí eu fiquei e o padrinho
Sebastião foi pegou na minha mão: ‘não meu filho, não vai agora não, fica mais um
pouco comigo’. Aí eu fui e fiquei lá um pouco com ele e a moça lá na porta lá,
escorada, mordendo os lábios. Aí disse assim: ‘Padrinho eu já vou, padrinho’ – ‘não
meu filho fica mais um pouco comigo’. Aí quando eu me levantei, ele foi levantou,
não minto, eu tava em pé, quando eu ia saindo, ele foi e saiu, pegou uma cadeira
colocou no canto, com outro assim: ‘sente aí’, aí eu sentei e ele foi e sentou bem
pertinho de mim e ficamos conversando. Conversa vai, conversa vem, aí quando
passou um tempo eu digo: ‘Padrinho eu tenho que ir padrinho, que compadre
Francisco está me esperando lá e o compadre Alfredo está esperando ele para tomar
conta da Fazenda e ele quer me entregar a Colônia Cinco Mil lá, como o senhor já
tinha passado, né? Mais a minha família, né? Aí ele disse: ‘meu filho fica mais um
pouco comigo...’ Ele foi e me deu um abraço, ele abraçou, adornou a cabeça no
meu ombro: ‘o meu filho, não vai agora não, fica mais um pouco comigo’. Aí virou
para o outro lado, ele estava abraçado comigo e eu não ia soltar era falta de respeito,
né? É um chefe me abraçando e me abraçando mesmo, eu pegar largar, não... aí fui
e abracei também, aí fiquei abraçado dele lá. Aí passou e ele foi me dizer: ‘meu

1069
F.C., 2022.
1070
Postagem no Grupo Santo Daime do Facebook, dia 31 de julho de 2014
327
filho tu vai, estamos precisando de você lá, você tem compromisso, vá’. Ele estava
se despedindo de mim e eu não entendi né, como o Mestre mesmo se despediu do
meu pai e o papai não tava entendendo.”1071

Como vimos no relato de Francisca, Sebastião havia optado por fazer o hinário na sede
Rainha do Mar, dirigida na época por Marco Imperial e Vera Fróes, localizada na Pedra de
Guaratiba, Rio de Janeiro. Contrariados, ao que parece, seus filhos tentaram impedir com todas
as forças que Sebastião fosse para o Rainha do Mar. A relação entre as lideranças do Cefluris e
Marco não era das melhores, uma vez que Imperial já se apresentava como um crítico dos novos
arranjos institucionais promovidos na gestão dos filhos e sentia que Sebastião também estava
insatisfeito com os rumos da irmandade. Daqui, Francisca continua:

“Eu sei que foi, não sei direito como foi lá a história, os detalhes lá, mas a certeza
é que ele foi. Padrin, Tôca, Biná e Maria Brilhante, os outros foram pra Mauá, fazer
o hinário lá com o Alex, o Alfredo também tava pra lá e madrinha Rita com
Padrinho Sebastião, ela não deixava ele não. Biná falou que o padrinho tava tão
animado, aí falou assim: ‘Eu acho que agora Rita, acho que eu vou ficar bom
mesmo, eu tô me sentindo assim forte já, até com vontade de voltar pro Mapiá’, a
Biná disse que ele conversou bastante com elas e chegou lá no Marco comeu um
pouco, deitou, dormiu bem e disse que ia ficar olhando pro mar né... aí sentou, ficou
olhando, curtindo o mar né, lá o mar é bem pertinho da casa, aí parece que ainda
tomaram um pouco de Daime, mas ele não tomou não, que tava tomando remédio,
eu sei que aí a Biná disse que quando foi a base de umas 3h da madrugada já, ele já
tinha se acordado, dormiu e acordou e teve por ali conversou com elas ali e tal, que
elas tavam no quarto mais ele, aí ele falou: Olha, Rita eu vou ali no banheiro! Aí a
madrinha Rita disse: Você quer que eu vá com você? Ele falou: ‘Não mulher é bem
aqui.’ Tava sentado perto do banheiro assim: ‘Precisa não eu vou só mesmo.’ Aí
foi, a Maria Tôca disse que deu vontade de ir, mas também poxa o padrinho não
tem um sossego com essas mulher em cima dele né, olhando ele, aí ficou quieta. Aí
diz que ela escutou uma tossida, deu assim uma tossida forte aí ela escutou um
barulho, Pah… correram todo mundo, chegaram lá o Padrinho tava caído no chão,
ainda bateu com isso assim no vaso do banheiro que cortou, que quando deu agonia
nele, ele agarrou naquele negócio que coloca pra segurar a toalha que é de plástico
né, no que fez força quebrou, aí ele caiu e bateu com isso assim dele, eu sei que
cortou um pouco. Pronto, Padrinho tava no chão, Padrinho Sebastião caiu e não
levantou mais, pronto, foi assim, a passagem foi muito ligeira, porque ele já tava
passando os processos né, mas ele andava, ele conversava, ele já comia um pouco,
se alimentava devagarzinho, se alimentava.”1072

A derradeira visita de Sebastião ao Rainha do Mar e sua passagem neste dia, ao findar
dos festejos, foi narrada por Marco Grace Imperial em algumas postagens sobre o tema:

1071
R.N.T.S., 2019.
1072
F.C., 2022.
328
Padrinho na época da sua passagem, chegou na minha casa me pedindo ajuda.
Dizia que estava cheio de gente zangada, mau humorada e brigonas. Que
estava sem entender mais nada e tinha esquecido de tudo no astral. Dizia que
o dinheiro tinha deixado os que o acompanhavam loucos. Dizia que via um
bando de pessoas insensíveis. Padrinho dizia que tinha esquecido dos
caminhos que ele trilhou e que olhava para o firmamento e não se lembrava
de mais nada do mundo espiritual. Sua reclamação era de que não tinha mais
vontade e que agora estavam fazendo dele o que queriam e o que o deixava
mais triste era saber que as pessoas estavam sendo barradas ao tentarem vê-
lo. Hoje eu lembro sempre quando toco este hino da expressão dele de
horrorizado me dizendo que eu não me unisse a este povo do dinheiro e do
ramramram. Palavras dele: Eu falo algo e não me escutam, sempre dizem ao
contrário. Eu digo que quero ir para sua casa e me dizem que o médico não
permite. Se o médico não permite porque eu posso morrer, então eu me
enforco logo na varanda do bichão e ele vai me ver pendurado morto ali
quando acordar para respirar o ar puro que ele tanto fala. Se o problema é eu
morrer, ai morro e deixo uma boa lembrança para ele. Fui buscar o Padrinho
no local que ele estava e ali só ouvi ele amaldiçoar este povo que é da briga,
do ramramram como ele dizia. Só pensam é coisa atoa, só querem dinheiro e
mais dinheiro. O regime implantado de arrecadação financeira é um fracasso
e insustentável (...). Vemos só uma crescente evasão de igrejas do maior grupo
do Santo Daime. (...) A arrecadação caiu demasiadamente. Modelo falido.1073

Sobre o referido sistema de arrecadação financeira convém comentar, ainda que


brevemente, que os centros de Daime em Rio Branco (como a Cinco Mil, o Pronto Socorro,
aqueles localizados no bairro Irineu Serra) – e noutras partes das Amazônias - se diferenciam
da maioria daqueles que se estabeleceram em outras partes do Brasil e no exterior justamente
por não praticarem cobrança financeira dos participantes dos trabalhos espirituais. Há sim,
valores referentes às mensalidades, que variam de centro para centro e são de responsabilidade
dos fardados/iniciados para arcar com os custos de manutenção dos espaços rituais e coletivos,
além dos custos de que envolvem o preparo da bebida. Já nos centros que se estabeleceram fora
das Amazônias, em sua grande maioria, nota-se que há uma “contribuição sugerida” aos
visitantes, geralmente obrigatória, as vezes até com o uso de pulseira de identificação, que
certifica que você fez o acerto na secretaria, e autoriza para acessar os espaços rituais.
Assis comenta que nos centros filiados ao Cefluris (atual Iceflu), as tentativas ao longo
da década de 1990 de criar um modelo burocratizado e institucional de filiais envolvia, além
das mensalidades destinadas à matriz, a partilha da bebida preparada nos feitios, entre outras
cobranças, o que não foi muito exitoso. Com a progressiva autonomia alcançada por vários
centros de Daime em relação ao preparo do sagramento, através de seus plantios de jagube e
rainha, e o desejo de “não subordinação a nenhuma instituição”, ocorreu “um movimento

1073
Postagem no Grupo Santo Daime do Facebook, dia 26 de março de 2018.
329
considerável de desfiliação dos centros mais antigos e não filiação de grupos novos”1074, um
“‘efeito manada’ (cada grupo que se tornava independente influenciava outros a trilhar o mesmo
caminho)”, o que coaduna com as interpretações de Grace acerca de um “modelo falido”.
Hoje com as redes sociais e a diversidade de canais de comunicação que se
desenvolveram, sobretudo durante o período mais intenso de isolamento social devido à
pandemia de covid-19 em 2020-2021, novas formas de arrecadação e de interação, articulação
e fortalecimento dos laços identitários e de pertencimento entre a matriz no Ceú do Mapiá e
suas filiais foram desenvolvidos, bem como a campanha de filiação individual intitulada “Sou
Midam”.
Voltando aos desdobramentos após a passagem de Sebastião, em uma outra postagem,
de janeiro de 2014, Marco comentou mais sobre o assunto, num relato intitulado “Um caminhão
de calúnias e safadezas.”

A passagem do Padrinho Sebastião foi uma guerra, muitos escondem e nem


tocam no assunto, mas foi uma guerra. Mentiras antes e mentiras depois da
passagem do Padrinho marcou em demasia a guerra que foi naqueles dias. Eu
Marco Gracie Imperial, recebi um pedido de asilo praticamente, um pedido de
socorro e fui buscá-lo e encontrei-o aos berros, xingando palavrões e
amaldiçoando a todos que o estavam irritando. Os últimos dias do Padrinho
foram de maldições e repulsa aos que eram do ramramram, dos maus
educados, dos daqueles que cobram para distinguir o sacramento. Pelas
palavras do Padrinho quem cobrava para distribuir o sacramento era do outro
lado, do lado do cramunhão. (...) Uns dizem que ele se arrependeu no final da
vida de ter introduzido a Santa Maria na doutrina. Uma mentira das grandes,
pois eu graças a Deus pitei muito com ele nos últimos dias e ele sempre falava
que o trabalho da Santa Maria era um dos mais nobres sobre a Terra.1075

Neucilene, daqui da Colônia, narrou sobre a passagem de Sebastião e o breve velório


que aconteceu no aeroporto de Rio Branco. Narrou sobre o que ouviu dizer da saída de Sebastião
do Mapiá para o Rio de Janeiro e, depois, como foi seu retorno, já falecido, para o sepultamento
na floresta. Passaram-se 7 dias desde a passagem do padrinho no dia 20 de janeiro até a chegada
do corpo no Céu do Mapiá e seu enterro, concomitante a ocasião da missa de sétimo dia.

“Quando foi dia 07 de outubro, ele ficou o dia do aniversário dele, aí quando
amanheceu o dia, umas dez e meia pra onze horas, chegou um helicóptero e foi
buscar ele lá no Mapiá. Quando o helicóptero chegou, diz que o gado, ainda tinha
boi lá naquele tempo, diz que os gado virava tudo de cabeça pra cima, diz que
uivava menino, diz que era um sofrimento, pessoal que contaram. Aí ele viajou, aí

1074
ASSIS, 2017, p. 274.
1075
Postagem no Grupo Santo Daime do Facebook, dia 19 de janeiro de 2014.
330
foi pra lá. Aí quando foi dia 19-20 de janeiro, aí ele fez a passagem mas aí ele veio,
passou acho que foi uns quatro dias no IML pendurado lá, que num teve nem
velório, segundo eu sei num teve velório... eu sofria mais porque eu digo poxa vida,
Padrinho Sebastião não merecia isso. Por que não enterra lá onde tá? Do que ficar
lá no IML pendurado lá. Aí ele veio, o povo veio e até rezou aqui no Aeroporto, pra
quem quisesse visitar... eu não quis, que eu era muito mole, ainda sou. Aí seu
Wilson mandou fardar todo mundo, todo mundo se fardou, os que tinha coragem,
todo mundo foi. Agora eu, euzinha não fui, não tinha coragem. Aí eles ficaram aqui
acho que uma hora e meia, tem que rezar terço, rezar prece, rezava no Aeroporto...
aí eu num fui lá ver ele não. Aí pegaram o helicóptero, a Madrinha e num sei qual
era a outra que foi pro Mapiá. E os outros ficaram que tava lá um monte de gente,
tava a Neves, tava a Marlene, tava a Nonata, tava Izabel, tava a Madrinha, a Gecila.
Ele foi aí o pessoal foram indo depois. Aí eu sei que no dia que nós fizemos a Missa
do Sétimo Dia, foi o dia do sepultamento dele. Só o que eu sei contar é até aí.”1076

Para Sebastião, ao que parece, foram muitos anos de doenças e sofrimentos. Mortimer
diz que “desde o Rio do Ouro não teve mais uma boa saúde.”1077 Se lembrarmos de passagens
anteriores, veremos que a saúde de Sebastião nunca foi muito boa, alternando períodos de
maiores e menores desconfortos. Mortimer diz que ele “Só não perdeu a disposição para o
trabalho. Quando não estava nas crises de falta de ar e dor no peito, estava na floresta
construindo alguma canoa, porque era mestre na profissão.”1078
Provocadora, Castilla aponta para esta questão das enfermidades, chamando a atenção
para o que seria uma aparente contradição: “o padrinho vivia doente. No meu entendimento, a
doença é sinal de desequilíbrio. Os hinos sustentavam a mesma ideia (...) O padrinho tomava
daime há décadas! Era esse estágio que eu poderia almejar após anos de daime, hinários,
vômitos e sacrifícios?”1079
No mesmo mês e ano, um dia antes, aconteceu o falecimento de uma outra reconhecida,
adorada e controversa liderança espiritualista: Rajneesh Bhagwan mais conhecido como Osho,
um indiano que criou uma escola espiritualista no ocidente. A coincidência rendeu repercussão
e foi noticiada na Revista Manchete. “A reportagem enaltecia estas lideranças religiosas.
Comentava sobre o crescente prestígio de um no plano nacional e da importante influência do
outro no mundo todo.”1080
Guardadas as devidas proporções, pode-se traçar aproximações e distanciamentos entre
os personagens de brancas barbas. Sebastião toda vida viveu na simplicidade do campo e da

1076
N.S.S., 2020.
1077
Ibid. p. 254.
1078
Ibid.
1079
CASTILLA, 1995, p. 36.
1080
MORTIMER, 2000, p.264-265
331
floresta, da colônia e dos seringais e na época em que o dinheiro começou a chegar com mais
força na sua comunidade, coisa a que, inclusive, ele se opunha, coincidiu com a época que ele
já estava fazendo a sua despedida do plano material. Ao contrário, Rajneesh Bhagwan,
construiu um império de milhões e milhares de seguidores, teve apoio de grandes empresários,
publicou diversos livros com circulação internacional. Sem dúvidas, muito diferente de
Sebastião e seu povo, umas duas centenas de pessoas que lutavam para conseguir terra para um
assentamento na floresta para produzir o alimento e uma vida de forma independente da
sociedade do dinheiro, o “mundo de ilusão”.
Mas a comparação não é tão absurda se pensarmos que a chegada dos hippies e
andarilhos em Rio Branco e a ligação destes com a Colônia Cinco Mil, parece ter causado um
alvoroço tamanho ou similar ao que aconteceu com a pequena cidadezinha do interior dos
Estados Unidos, para onde Osho se mudou para montar sua comunidade alternativa que já
contava com milhares de pessoas. Marinez narrou neste sentido:

“Vinha um hippie, aliás, nem hippies eram conhecidos, os primeiros que chegaram
na cidade começaram a chamar a atenção da moçada, muitas famílias empavorosas
porque as menininhas iam pra praça ver os hippies, a gente ia pra praça ver os
hippies, por que era coisa de outro mundo aqueles caras cabeludão, sentados,
tocando Ave Maria!”1081

Mortimer destaca que estes andarilhos, hippies e visitantes não apenas participavam dos
trabalhos espirituais e materiais na comunidade, para aprender a doutrina do Daime e seus
ensinos, mas também partilhavam seus saberes num intenso intercâmbio intercultural, que
marcou a presença de elementos da contra cultura e da espiritualidade nova-era no Daime como
ensinado pelo grupo de Sebastião. Mortimer comenta que dentro deste “lado intelectual”,
Sebastião gostava que lessem para ele passagens de livros que os estradeiros traziam e
recomendavam, entre estas leituras, as do Osho.

Era presenteado com livros e sabia das manifestações religiosas orientais mais
conhecidas. Leu obras, ou melhor, escutou as meditações Seicho-Noé, do
Rajneesh, que depois virou Osho, a “Ponte para Liberdade”, de Saint-Germain
etc. Entre todos os livros elegeu o “Eu Sou”, do Mago Jefa (Jorge Adoum),
como sua obra predileta.1082

1081
M.R., 2018.
1082
MORTIMER, 2000, p. 161.
332
Albuquerque também reforça o paralelo entre as duas lideranças destacando a
importância de compreender os saberes espirituais de Sebastião e sua abertura para diferentes
linhas e correntes da espiritualidade como um traço característico de suas sabenças e
especificidades: “Os ensinamentos de Osho, multiplicados mundo afora por diversos
seguidores, tiveram impacto notável no universo Nova Era, respingando, também, na
Amazônia, nomeadamente, nos saberes espirituais de Sebastião Mota.”1083 Ela também
entrevistou Maurílio Reis, que relatou que “lia muito o Osho, ele era o grande homem dos anos
80 (...) toda noite se cantava a oração e, depois da oração, se não era eu era o Lúcio, nós tinha
que ler, nós lia uns capítulos do Osho para ele”1084.
Como vimos até aqui, são muitos os legados deixados por Sebastião na irmandade do
Daime. Figura controversa no contexto ayahuasqueiro de Rio Branco, o mais conhecido
discípulo de Irineu Serra, mesmo depois de ausente na Terra, continua sendo liderança e
inspiração para grande parte da irmandade do Daime que se expandiu para além das fronteiras
acreanas. Ao buscar, na companhia dos narradores, investigar como a Cinco Mil deu
prosseguimento aos trabalhos espirituais e cotidianos a partir da saída de Sebastião e seus
seguidores para o Rio do Ouro, no início dos anos 1980 até a passagem de Sebastião no início
dos anos 90, vimos que o deslocamento para a floresta era motivado por um conjunto de causas
e que foi uma época em que o Daime, neste contexto, se assemelhou às seitas milenaristas e
movimentos messiânicos, bem como à um discurso ambientalista e ecológico. A necessidade
dos trabalhos de cura e limpeza de São Miguel evidenciam tempos difíceis, de adoecimento,
que marcaram a saída da Cinco Mil e a abertura da floresta e do assentamento no Rio do Ouro.
Foi a época de transição do comando da família Mota para a família Carneiro.

1083
ALBUQUERQUE, 2021, p. 202.
1084
Entrevista Maurílio Reis em ALBUQUERQUE, 2021, p. 202.
333
4 REDIMENSIONANDO FRONTEIRAS: QUANDO UM PODE SER TRÊS

“Eu não deixei assim


Deixei foi para juntar
Não fizeram como eu disse
Fizeram foi espalhar.”

Hinário O Justiceiro, Padrinho Sebastião.

4.1 Os anos 90: feitios, cisões e a formação da Vila Carneiro

Com a despedida do padrinho Sebastião chegam os anos 1990. Na Cinco Mil, Raimundo
Nonato passou a morar na casa grande com Graça e filhos já no início do ano. A presidência
do centro continuou no nome de Wilson Carneiro até janeiro do ano de 1993 e segundo os
registros do livro de atas, dá-se a entender que a diretoria era reconfigurada e eleita em
assembleias a cada 2 anos, a instituição de uma aparente democracia. A diretoria eleita em 1993
era composta pelos seguintes membros: Presidente- Raimundo Nonato Teixeira de Souza; Vice-
presidente- Aluízio Figueira da Silva; 1°secretário- Reinaldo Renê Ferreira Cavalcante; 2°
secretário- Fernando Borba Ramos; 1° tesoureiro- Manoel Batista de Moura Neto; 2°
tesoureiro- Ramiro Nascimento Teixeira de Souza1085.
Interessante notar que, em alguma medida, considerava-se que os trabalhos na igreja
continuavam dirigidos por Wilson Carneiro em sua maioria, conforme as anotações nos
registros do livro de presença consultados, que referem-se aos trabalhos no período entre julho
de 1994 e outubro de 19971086. Com algumas exceções, Alfredo e Nonato aparecem,
eventualmente, como dirigentes dos trabalhos. A partir de 30 de julho de 1997 é o nome de João
Alberto que aparece e com algumas exceções, seu Wilson, na dirigência dos trabalhos
sinalizando e reforçando os relatos da oralidade que contam que a partir de meados deste ano,
Nonato oficializou sua saída do Cefluwcs, mas seu Wilson nunca saiu.
João Alberto se lembra que um dos legados da gestão do Nonato foi a reforma e
ampliação da antiga casinha de músicos, que ficava atrás da igreja e se tornou a casa da Estrela,
onde eram feitos estes trabalhos de cura.

“A casinha de estrela de trás da igreja. De trás da igreja tinha uma casinha, que na
verdade era a casinha de música, da música onde o padrinho deixou! Ai guardava

1085
Livro de Atas do CEFLUWCS (1989-1997)
1086
Livro de Registro de Presença CEFLUWCS (1994-1997).
334
o Daime, aí se chamava casinha da música. Aí na administração do Nonato, ele foi
e botou a Estrela lá! Aí nós fizemos lá, aumentou um pouco e fazia dentro mesmo.
Ficou apertadinho, mas a gente fazia Estrela lá dentro! Trabalho de cura, era legal
demais oh! Aí depois aumentou um pouco. Aí fizemo lá foi tempo! Aí depois dessa
Estrela, como ia muita gente, arriou! Muita gente, aí ficou pequeno...”1087

Lourival também se refere à casinha de música que, na década de 1990, virou a casinha
de Estrela, onde eram feitos trabalhos de cura. Dizem que nos anos 2000, na gestão do Maurílio,
a casinha que estava em ruínas foi desmontada e virou lenha pro feitio. Raimundo Nonato
narrou sobre como contribuiu com a comunidade durante sua administração na Colônia Cinco
Mil, promovendo reforma na casa grande, colocando o piso verde da sede, que está até os dias
de hoje. Voltaram a casinha de feitio pro lugar original, pois, em anos anteriores haviam
modificado. Nonato porém, também convivia com a insatisfação de parte dos seguidores.

“Eu cheguei aqui com a permissão do padrinho Sebastião e da madrinha Rita, de


toda família. Eu não entrei aqui a martelo! Então por isso tudo que eu tô falando
aqui é em nome do padrinho Sebastião e da santa doutrina pregando o certo, né! A
gente arrumou a igreja, trouxemos a casinha do feitio pro canto, fizemos a Estrela,
arrumei a casa grande. Fiz o santo cruzeiro, fiz o piso da igreja, aí depois fomos
trabalhar! Brocar tudo! Brocamo tudo que tinha! Que o mato tava invadindo, aí
fizemos a cerca daqui do Batista até encosta lá. Aí depois daqui, acolá, foram
cortando um pouquinho, daqui acolá, aí depois acabou a cerca. Acabou a cerca. Aí
começou a confusão, confusão. Aí um belo dia tava cheio, lá o pessoal tomando
café, aí chegou uma pessoa e disse assim: Donde é que tira tanto dinheiro pra dá de
comer esse pessoal? Aí eu digo, eu nunca cobrei nada de ninguém, mas têm pessoas
que têm coração! Aí uma comadre disse: ‘Ah! Assim até eu sustento a casa grande.’
É, mais eu não cobro nada de ninguém! Dormida, comida, não cobro nada de
ninguém. Tudo vem das bênçãos divinas e do nosso trabalho. Graças a Deus quando
foi é... em 97, eu falei papai, 30 de julho, eu vou entregar aqui, a administração da
colônia e da igreja. ‘- Meu filho pelo amor de Deus não faça isso não, meu filho! O
padrinho colocou isso aqui na nossa mão definitivamente! Nós somos vitalícios
aqui, que não tem quem meta a mão aqui!’ Aí eu me achei desgostoso. Eu digo, eu
fui comerciante, num tinha briga... Nós vem pra cá pra tomar uma santa bebida,
que mostra do bom e do melhor e do especial e hiperespecial. Só têm confusão, mas
o Alfredo fala que “meu pai não ensina assim”, né! Então, a senhora sabe o que é
que acho, por que existe a confusão? Falta de compreensão, de entendimento e
estudos na santa doutrina. Que se estudar a santa doutrina, não tem como fazer
confusão consigo mesmo, que é a primeira confusão... ouvindo as palavras do
mestre, tá difícil deu entender, então eu vou ver comigo mesmo, estudar, até ver se
eu destrincho. Eu destrinchei e vou contrito nele, o mestre tá falando o que é bom
e positivo. Então se todos procurasse fazer nessa meta, acabava toda confusão e a
doutrina ia ser pela fineza.”1088

1087
J.A.S.S., 2022.
1088
R.N.T.S., 2019.
335
Uma das mudanças introduzidas na sua época foi em relação à organização do salão,
mais especificamente sobre a disposição dos corpos no espaço. Dentre as peculiaridades da sede
da Cinco Mil, destaca-se a disposição invertida de homens e mulheres no salão. De costume,
seguindo a tradição, mulheres bailam a esquerda e homens à direita de quem adentra o espao
ritual. Fui atrás de pistas, caminhos que pudessem nos levar a entender esta diferença na
organização do corpo de baile. Nonato narrou:

“No tempo do Padrinho Sebastião, agora as mulheres baila do lado direito né, pois
bem, o Padrinho Sebastião quando fez a igreja, ele fez a igreja com o fundo da igreja
pro sol e tinha a terra pra ele fazer do outro lado, com a frente da igreja pro sol, aí
dava certo, os homens pra direita e as mulher pra esquerda, como é lá no Alto Santo,
né? Mas não foi... Aí quando eu entrei lá na Cinco Mil, eu fui e conversei com o
compadre Alfredo, eu digo: ‘compadre, todas as igrejas, núcleos, pontos à direita é
homem e a mulher à esquerda’. Aí eu falei com ele: ‘eu posso mudar?’. Aí ele disse:
- ‘compadre o administrador é o senhor’. Aí eu fui e mudei, né? Na minha
administração, o tempo que eu passei lá, foi as mulheres na sua ala esquerda e os
homens na direita. Aí depois que o João Poeira entrou aí foi e mudou né? Voltou
pro tempo do Padrinho, mas eu quando eu fui conversar com o Alfredo, o Padrinho
Sebastião tava em matéria e o Padrinho Sebastião foi lá, lá na Colônia e não chamou
atenção não. Eu fui lá e ele disse assim ‘Nonato, eu quero que você passe o seu
hinário a limpo pra mim’, eu tava do lado direito como é né, a meta. Então ele não
reclamou, porque se fosse pra reclamar ele tinha reclamado, que nem ‘eu não deixei
assim, deixei assim’, mas ele não reclamou, então ele aderiu, né?”1089

Nonato explica que entre os muitos detalhes ritualísticos ensinados e deixados por
mestre Irineu através da tradição oral chama atenção aquele que se refere à orientação espacial
das construções das sedes do Daime. Diz-se que a porta da sede deve ser voltada para leste, o
sol nascente, assim como a entrada da casa de feitio. Este arranjo espacial demonstra a
centralidade da adoração ao sol, aos astros, proposta na doutrina de mestre Irineu e expandida
por Sebastião, que nos ensinou a cantar que “é no Sol e na lua que é preciso se firmar”1090 e a
dimensão afetiva de uma geografia mística e cosmológica que nos leva a uma ideia de território
que
se constrói, ao mesmo tempo, como um sistema e um símbolo. Um
sistema porque ele se organiza e se hierarquiza para responder às
necessidades e funções assumidas pelo grupo que o constitui. Um
símbolo porque ele se forma em torno de polos geográficos

1089
R.N.T.S., 2019.
1090
Mota, S.M. “É no Sol e na Lua”, n. 66.
336
representantes dos valores políticos e religiosos que comandam sua
visão de mundo.1091

A Igreja da Cinco Mil, porém, tem sua porta apontada para oeste e a sede do Pronto-
socorro tem sua face frontal voltada para direção norte. De forma geral, esta não é uma instrução
que os adeptos da Iceflu e centros mais independentes parecem seguir ou conhecer, sendo mais
um traço das diferenças entre os grupos e de como detalhes e fundamentos esotéricos vão sendo
perdidos, esquecidos, recriados mesmo dentro de uma tradição. Nonato nos narrou que, na
época em que administrou a Cinco Mil, tentou ajeitar o “lado certo” de se posicionar mulheres
à esquerda e homens direita e mudou a disposição do corpo de baile ainda sob as vistas do
padrinho Sebastião. Podemos pensar que Nonato fez a adequação possível, já que seria inviável
colocar a porta de entrada nos fundos da construção. Essa aparente correção ou ajuste, feito
para se aproximar das raízes do mestre Irineu e de seus fundamentos, foi desfeita quando João
ou Maurílio assumiram a administração e voltou ao que era antes da mudança, sob a justificativa
de deixar como Sebastião deixou. A Cinco Mil, ao que se sabe, é a única do Daime que as
mulheres bailam a direita e os homens à esquerda de quem adentra o salão. Às vezes tenho a
sensação de que é como se a Colônia Cinco Mil “girasse ao contrário”, ou estivesse espelhada.
Os registros fotográficos mostram que a atual configuração na Cinco Mil é mais antiga
e o motivo talvez seja que, no início, o caminho mais usado que dava acesso à vila Santa Maria
chegava por detrás da igreja. Lourival, que nos narrou as possíveis origens desta disposição
singular, suas causas, é quem nos leva a esta linha narrativa:

“A Cinco Mil é a única igreja que é diferente de todas as outras, que quando você
entra os homens geralmente é pro lado direito, no Mapiá e tudo, na Cinco Mil é
desse jeito diferente que quando você entra, os homens são pro lado esquerdo. Então
o compadre Nonato mais o padrinho Chiquinho tinham trocado essa história, tinha
colocado os homens pro lado direito. Essa igreja ficou desse jeito e eu perguntei pra
Madrinha Rita uma vez por que nossa igreja era trocada, o padrinho Alfredo tava
junto, foi ali e ficou naquele lugar que é hoje em dia, e disse: ‘O papai bailava aqui
porque ele olhava pra ali e via o Sol nascer e olhava pra ali via o pessoal entrar no
portão’, explicou. Essa igreja como eu falei antigamente, a entrada da Cinco Mil
era lá pelo caminho dos Moreira, era por outro canto, a gente entrava lá pelo
Redenção aonde o sol nascia. A igreja foi começada de frente pra lá... com o andar
da carruagem, viram que fizeram mal e aí o Padrinho Sebastião botou a frente da
Igreja pra cá e continuou bailando onde ele bailava antes, quando começou a
história e até hoje tá assim.”1092

1091
BONNEMAISON, 2002, p. 106.
1092
L.B.A., 2020.
337
Esta questão se o sol nasce à frente, aos fundos ou ao lado da sede dos trabalhos de
Daime parece não ser de relevância para alguns e quase nada se tem escrito sobre isso, contudo
se considerarmos a importância do Sol e seus movimentos, descritos na poética cosmologia do
Daime, compreende-se que essa organização espacial é um fundamento do culto, um de seus
princípios ritualísticos que, entre tantos outros, estão sendo esquecidos ao passo que, como um
culto marcado pela tradição oral, se não há bons contadores de istórias - e pessoas dispostas a
conhecé-las-, as coisas vão-se esvaindo.
Conversando com a Neves, a presidente e dirigente da Colônia Cinco Mil, sobre o que
ela achava dessa diferença e ela disse que é da opinião de deixar como está, “como papai
deixou”1093. Disse que a ideia é que se a entrada fosse nos fundos, a leste, estaríamos bailando
no lugar certo e, por isso, o padrinho Sebastião bailava ali, como antigamente, que no início a
entrada era ali, uma vez que não havia o traçado das ruas como há hoje, tal como narrado por
Lourival.
Alguns relatos dão conta de que a Colônia Cinco Mil na época do Nonato ainda era um
espaço produtivo, com várias atividades agrícolas e pequena pecuária sendo desenvolvidas com
o intuito de gerar renda. Nonato lutava para manter a Colônia economicamente ativa e seu relato
procura reforçar a autoimagem de trabalhador eficiente e incansável, no dia-a-dia e nos
trabalhos espirituais, como também não esconde sua insatisfação com o desenrolar dos
acontecimentos na Cinco Mil. Na sua época a Colônia tinha gado, horta, roçados, assim como
dedicava-se ao plantio de jagube e rainha. Também foi montada uma pequena fábrica de
beneficiamento de castanha, que funcionou entre os anos 1992 até 1995 como recordou João:

“Nonato veio ficou uma temporada dele, trabalhemos muito também com horta, né!
Ainda. Aí foi mexer com negócio mais de castanha, tinha muita castanha. Fábrica
de castanha que mandava castanha pra fora, né! Foi muito trabalho isso aí! Aí...
aumentou o movimento também mais.”1094

João Alberto lembrou que na época do Centenário do mestre Irineu, em 1992, a comitiva
do Cefluris, composta por integrantes da Colônia Cinco Mil e do Mapiá, se fizeram presentes
nos festejos que acontecerem na sede do Ciclu-Alto Santo, na época administrada por seu Luiz
Mendes. O anfitrião propunha uma comemoração conciliadora entre os diferentes grupos de
Daime que já haviam se formado, se dividido e se desentendido. Seria o marco de um novo
tempo, tempo da união. Nos anos seguintes ao Centenário, a Vila Irineu Serra recebeu

1093
M.G.M., 2023.
1094
J.A.S.S., 2022.
338
significativas obras de infraestrutura e melhoria urbana, como pavimentação parcial, que
possibilitou maior circulação de transportes e mercadorias e instalação da energia elétrica. 1095
Na época do Centenário do Mestre foi feito um grande plantio de rainha na Colônia
Cinco Mil, ação que integrava o movimento “Daime Eterno” e simbolizou o início das
preocupações com a sustentabilidade da expansão da doutrina – com o aumento da demanda
por Daime crescente, era necessário aumentar os plantios de jagube e rainha. Seguindo os fios
de sua memória, João narrou assim:

“Nós tinha um grande projeto aí que eu trabalhava dentro dele, que era um plantio
de rainha, que nós plantemos quatro mil pés. No dia do centenário do mestre nós
plantemos o primeiro pé, no dia do aniversário que nós fomos pro trabalho lá. Nós
plantemos os primeiros pé de rainha que era aqui na frente da igreja, que vai até por
ali lá pra trás ali da casa da Nair, do João pra li, sabe? Até chegar ali, por aquela
casa do Ramiro, tinha pé de rainha que nós plantemos nesse dia pro centenário, era
quatro mil pés, nós cavemos cova por cova, quatro mil cova. Plantemos pé por pé.
Que eu ainda consegui aguar até crescer tamanho assim. Da parte aqui da frente,
vêm de lá, foi ficando e fui deixando e ninguém tomou de conta. Acabou! Se tiver
acho que uns cem pés, duzentos pé de tudo é muito oh cara! Quatro mil pé oh cara!
Nós trabalhava dentro desse projeto aí na administração, junto, quando o Nonato
tava na casa grande. Nós num deu muita trela, num sei porque que acabou, num era
pra acabar nunca! Mais aí o projeto num foi muito pra frente, aí nós toquemos o
barco! Junto aí com o padrinho Wilson, o barco aí oh! Fizemos muito trabalho de
cura junto, na época do padrinho Wilson curava mermo! Agora não tá muito fácil
pra curar. Eu vejo que agora não tá muito fácil pra curar, não tá! Não adianta, é
muito trabalho... te digo o padrinho Wilson quando era, curava mermo! O pessoal
vinha fazer os trabalhos quando saía com tantos dias agradecendo, porque vinha
cura. Aí agora tá precisando de nós ter força, nós tem poder de fazer a mesma coisa,
mas pra isso tem que tá unido todos grupos, se não têm! Se não tiver unido mermo
todo o grupo de cura, epâ legal, não tem cura! Ela vem a gente toma Daime e tal,
beleza, mais fica um negócio e tal... tá entendendo? Sério a história né! Eu vejo
assim eu, eu, eu vejo assim dentro do meu estudo. Mas cada um né, sabe! Mais eu
vejo assim que nós aprendemos com o padrinho Wilson a história, como é que é pra
fazer, né! Agora não sei, o pessoal muda e vão querendo mudar pra fazer a coisa
como eles acham que deve fazer, né?!”1096

A Colônia Cinco Mil pode assim ser lida como a porta de entrada e saída, um entre-
lugar cidade-floresta. Foi por onde partiram os primeiros litros da bebida utilizados para abrir
os primeiros centros de Daime fora da região norte, ainda na década de 1980, no Rio de Janeiro
(Céu da Montanha e Céu do Mar) e em Brasília (Céu do Planalto). E foi por onde entraram e

1095
PUPIM, 2016.
1096
J.A.S.S., 2022.
339
fincaram território outros elementos na cultura do Daime, caracterizando o seguimento do povo
do padrinho Sebastião.
Na década de 1990 teve início uma expansão ainda maior para o nordeste, sul e outros
países, geralmente seguindo o modelo ritualístico aprendido com Sebastião, Rita, seus filhos,
filhas e seguidores, isto é, o modelo do Cefluris, atualmente denominado Iceflu. Esta expansão
do Daime de forma mais acelerada, começou a gerar uma preocupação maior e mais organizada
com o manejo florestal das espécies nativas que compõem a bebida. Os feitios passaram a
acontecer com maior frequência para abastecer a demanda dos centros em formação. Assim
tiveram início projetos de plantio de cipó e rainha em diferentes localidades.
É interessante destacar que nessa época também a Ayahuasca começou a reexpandir ou
“voltar” para muitas aldeias, pois muitos povos indígenas no Acre, após décadas de contatos
violentos marcados por relações de colonialidade, haviam diminuído ou até parado o seu uso e
passaram a resgatar tradições e viajar para outras regiões do Brasil, sobretudo ao sudeste, para
realizar cerimônias com as chamadas “medicinas da floresta”, integrando-se ao circuito de
xamanismo e espiritualidade nova era.1097 O antropólogo Guilherme Menezes estudou o caso
do nixi pae, nome dado à Ayahuasca entre os Huni Kuin, o movimento contemporâneo e a
história recente. Nas Terras Indígenas Kaxinawá do Rio Humaitá, observou que

“o Santo Daime, tradição ayahuasqueira cristã, teve forte influência no


reflorescimento da cultura local e contribuiu para a criação de uma “união”
(grupo que se reunia para tomar a bebida), que depois deu origem aos festivais
– deflagrando um processo de daimificação do nixi pae e de reinvenção de
tradições.”1098

Um caso interessante que carece de pesquisas mais aprofundadas é a inserção do Daime


junto aos Apurinã em Boca do Acre, através de uma ligação com a Cinco Mil. Trago breves
lembranças enunciadas por Francisca Arlene, da ida de seu Wilson até à aldeia, em meados dos
anos 1990, para fazer um trabalho de cura para o pajé Francisco Kamicuã, que havia sonhado
com ele, e tinha mandado chama-lo. Arlene conta que ele já estava de idade e um pouco
enfermo mas que, devido à insistência do pajé, ele e sua comitiva fizeram um belo trabalho de
cura no território Apurinã, alcançando a graça de o pajé apresentar alguma melhora. Desde
então, durante alguns anos, os Apurinã de Boca do Acre compareciam ao aniversário de seu
Wilson em julho.

1097
MENESES, 2020.
1098
Ibid, p. 39.
340
“Quando pensa que não, com poucos dias que eu tava aqui, aí uma bela manhã bate
na minha porta, eu abri a porta e… Eu abri a porta e aí tinha quatro índios, o cacique
da aldeia, tinha o Francisco mais três, que um já até morreu, afogado aqui no rio…
E eu mandei entrar, disse que queria conversar comigo, aí eu mandei entrar, servi
um café, aí fomos conversar. Tá, lá na aldeia tinha um pajé velhinho, que ele já não
levantava mais de um ano. E quando pensa que não, ele sonhou comigo e o padrinho
Wilson e eles pediram pra mim que eu fosse buscar o padrinho Wilson. Conversei
sobre os trabalhos de cura dele e eles pediram pra mim que eu fosse buscar o
padrinho Wilson. Agora eu diz pra eles que o padrinho Wilson já era muito… já
estava de idade. E eles disseram: “Não! Nós vamos resolver tudo. A gente vai estar
com a rede esperando vocês e traz ele”. Então tá, aí viemos, fizemos a equipe,
lembro muito da Átila… não me lembro mais quem veio... Tá, aí o pajé tinha
sonhado comigo e o padrinho Wilson pra fazer esse trabalho, pra que fosse buscar.
E realmente eu fui buscar, veio um cara da TV aí filmar também… e aí filmaram a
história. Fizemos o trabalho, foi belíssimo o trabalho. No outro dia, o pajé estava
de pé, aí levantou, conversou com o padrinho Wilson, disse que queria uma igreja
lá, aí foi lá olhar o local da igreja e realmente… levantou-se essa igreja, mas o pajé
disse que só queria mesmo… mas falava na língua dele e tinha um intérprete … ele
não falava português, tinha um intérprete pra traduzir o que ele dizia né. E ele falou
com padrinho Wilson, que ele viu no Daime que ele ia fazer a passagem dele, não
ia demorar muito não… falou com padrinho Wilson e fez amizade com o padrinho.
Me lembro… nunca esqueci isso, a casa que eles preparam para receber nós, você
podia comer no chão de tão limpo que era. A roupa de cama cheirava um perfume
daquelas flores brancas que dá aí no igapó, sabe? Aquelas cheirooosas… eles
lavaram a roupa de cama com essa flor. E assim sucessivamente sucedeu o trabalho,
foi muito bom. Então é essa a história da aldeia, foi muito bonito, padrinho Wilson
na rede, eles cantando a língua deles. Esta é a história dos índios que até hoje tomam
Daime. E teve um aniversário do padrinho Wilson que foi um ônibus, que eu
arrumei um ônibus pra eles irem pra ver o padrinho Wilson. Eles fizeram fila pra
pedir benção, foi a coisa mais linda ai na Cinco Mil. E assim é a história do padrinho
Wilson aqui na aldeia. Vixi! Padrinho Wilson, o nome da igreja dele, leva o nome
do padrinho Wilson.”1099

No final da década de 1990, outros seguimentos ecléticos, expansionistas e inovadores


das tradições daimistas, também ligados afetivamente ao padrinho Sebastião, vão se consolidar
no Acre, diversificando ainda mais o campo, como o seguimento do Cefli, liderado pela família
mestre-conselheiro Luiz Mendes e o seguimento do Pronto-socorro, liderado pela família do
padrinho Nonato. Ambos atuam no acompanhamento e orientação de novas filiais e centros de
Daime abertos em outras regiões do Brasil e são uma alternativa para aqueles que não se
identificam com o seguimento majoritário da Iceflu, mas também não são tradicionalistas
ortodoxos.

1099
F.A.P.O., 2023.
341
O ideal propagado à partir da expansão é que os centros também tivessem condições de
plantar as espécies vegetais consagradas. Assim espécies mais utilizadas de jagube e rainha
passaram a ser plantadas em outros biomas brasileiros, adaptando-se bem. Mas até os novos
centros alcançarem a autossuficiência, uma rede de filiais começou a se formar para organizar
a produção e circulação do Daime. E nesta época a Colônia, ligada ao Cefluris, era parte
fundamental, o centro desta engrenagem, espaço onde se realizavam grandes feitios.
Em outros continentes, com climas e solos muito diferentes do amazônico, o cultivo das
espécies é mais difícil e a dependência da produção de Daime no Brasil permanece na maior
parte dos casos, com exceção, por exemplo do plantio nas ilhas do Havaí, onde o clima mais
quente favorece a grande irmandade do Daime que se reúne na América do Norte.
O preparo da bebida é um dos rituais mais importantes do Daime. O ritual envolve várias
etapas e, com a expansão da doutrina, se diversificaram os procedimentos de preparo e
armazenamento do chá. O feitio pode ser lido como mais um elemento que difere as diferentes
linhas do Daime. Enquanto no centros mais tradicionais apenas os fardados participam do ritual,
que deve necessariamente se iniciar na lua nova e segue dias a fio, obedecendo a forma de
cozimento ensinada por Irineu Serra, os centros oriundos da expansão tendem a inovar nos
procedimentos para otimizar a produção e melhor aproveitar o material. Alverga narra que

Descobriu-se que o mesmo bagaço podia ser recozinhado várias vezes,


obtendo-se disso um Daime com a mesma forca e a mesma luz daquele que se
prepara na primeira apuração. Foi a partir desse ano de 86 que se firmou o
‘Projeto Daime Eterno’, como o Padrinho Alfredo denominou, para que o
nosso sacramento não nos faltasse, apesar de todas essas dificuldades. As
pesquisas passaram a ser feitas com alguma antecedência e o planejamento de
produção, estoque e consumo passou a ser rigorosamente controlado.1100

A pesquisa do cipó e da folha era a primeira etapa, sobretudo na época em que se ia para
as matas para coletar o cipó jagube e a folha rainha. Atualmente, o mais comum é que os centros
de Daime tenham um espaço para fazerem os plantios e garantir sua autossuficiência, como
preconiza a Resolução do Conad 01/2010. A colheita e limpeza do cipó e da folha, a maceração
das ramas, a montagem das panelas, o cipó em camadas intercaladas com a folha e depois a
alquimia do cozimento com água e fogo, a troca de panelas, novos cozimentos, apuração, é todo
um conjunto de ordenamentos. Tudo é feito com o máximo silêncio e, por costume, nos centros
mais tradicionais do Daime, além de fardados, só os homens participam diretamente do feitio.

1100
ALVERGA, 1992, p. 159.
342
A participação de não-fardados nos feitios pode ser considerada mais uma característica do
seguimento do padrinho Sebastião e linhas ecléticas e expansionistas.
Os homens fazem a maior parte do trabalho e essa divisão por gênero é uma das coisas
que vem sendo contestada pelos novos adeptos, que apresentam novas demandas aos arranjos
consolidados como tradição. Esse é um traço que, muitas vezes, é denunciado como
manifestação do machismo1101, da reprodução do patriarcado, onde os homens acessariam
conhecimentos privados às mulheres. Ladislau deu um depoimento interessante sobre o
assunto, que relativiza a questão como norma imperativa. Destaca que, em um dos centros de
Daime mais antigos, como do seu Loredo, as mulheres já participavam do feitio e com
consentimento de Irineu Serra:

“A participação das mulheres no feitio é só na parte de tirar folha e tal só isso e até
hoje é assim porque lá no seu Loredo também era assim , só que na época do seu
Loredo era assim a gente ia pra mata lutar , primeiro a gente ia procurar jagube,
ninguém tinha plantado, hoje a gente tem... e aí achava e no dia a gente tirava o
jagube e aí outra pessoa, duas ou três pessoas iam buscar as folhas, mas as folhas
viam num saco que eles... era tudo quebrado os galinhos e jogado dentro do saco
tipo poda, né? Era jogado dentro do saco e aí a noite a gente se reunia homens e
mulheres pra fazer a catação das folhas para a limpeza é assim que funcionava. Hoje
como a gente cata a folha direto do pé, né? Agora eu estou fazendo outra plantação
lá no Bujari, eu comprei um área no Bujari, quatrocentos hectares e aí tô fazendo
lá. Aí assim agora a gente vai e as mulheres vão também, aí casa, só não vão pra
bateção, o que também não é proibido, tá certo? É porque na época, eu por exemplo,
é o que eu vejo, eu acho que na época era assim, trabalho pesado e as mulheres
ficavam em casa e os homens faziam lá, hoje é diferente, né? Hoje tem mulheres
que querem fazer. A dona Otília, mulher do seu Loredo, ela me disse que ela pediu
uma vez para o mestre Irineu pra ela fazer um feitio pequenininho, porque seu
Loredo era o responsável do feitio e aí o mestre ‘pode fazer, escolha o dia’ e ela
nunca escolheu o dia... ‘vamos fazer dona Otília, eu vou lhe ajudar’ e ela ria quando
dizia vou lhe ajudar, então ele permitiu, disse que poderia fazer. Então isso significa
que isso não é proibido, então às vezes a gente vê... assim a mulher tem um período
que ela não né, tem que ter a consciência disso, mas fora isso pode, do mesmo jeito
que o homem também se tiver errado, sem dieta, não vem pro feitio.”1102

Ladislau reforça que no centro que ele dirige, no bairro Irineu Serra, as mulheres podem
participar do feitio, sobretudo na colheita das folhas, desde que ela não esteja naquele período,
isto é, na sua lua ou menstruação. Este é um tipo de interdição presente em várias culturas, que
acreditam que neste período a mulher deve optar por mais resguardo, recolhimento e evitar

1101
BENEDITO, 2019.
1102
L.N., 2022.
343
frequentar determinados espaços e funções rituais. Por outro lado é muito interessante que
mestre Irineu tenha concedido a dona Otília a realização de um feitio completo e, de alguma
forma ter deixado expresso na memória de seus seguidores que a participação das mulheres em
outras funções do feitio não seria uma proibição.
Sabe-se que na linha do Daime do mestre Daniel as mulheres participam do feitio junto
com os homens, tanto nas etapas de preparo do cipó e da folha, quanto na etapa do cozimento.
Em alguns centros independentes e também em alguns centros ligados à Iceflu, a participação
das mulheres em feitios tem se tornado cada vez mais comum, não havendo um posicionamento
oficial em oposição a isso. No caso dos centros da Iceflu, depende muito da vontade do grupo
e seus dirigentes implementarem ou não novas práticas em relação às questões de gênero,
considerando a autonomia dada aos grupos filiados.
Me lembro de entre os anos 2005 a 2007 ter participado de um feitio no Ceeduapaz em
Santa Luzia e ter recusado o convite para participar da bateção feminina que aconteceria em
um dia, à tarde, pela primeira vez naquele centro. Preferi tomar um banho na fonte e descansar,
mas aquelas que quiseram, puderam participar. Há registros também de mulheres que estão
participando do feitio cada vez mais próximas da panela, do cozimento, rompendo barreiras
instituídas por questões de gênero no acesso à produção do saber, como Betânia Albuquerque,
em Colares/PA. “Se o Daime é uma escola, o feitio é uma espécie de matéria, de disciplina no
curso e não é justo que as mulheres não acessem esta parte do currículo”, certa vez a professora
e pesquisadora comigo comentou.
Sobre o feitios, Alfredo narrou, relembrando dos tempos que participavam dos feitios
no/para o Ciclu-Alto Santo:

“Aí a gente começou, o papai se alistou no batalhão do Mestre Irineu, alistou várias
pessoas da Colônia Cinco Mil neste batalhão e no batalhão da folha. Nos dias dos
trabalhos oficiais a gente ia para lá. Isso foi dando o desenvolvimento da Colônia
Cinco Mil. Ai a gente trabalhou um tempo no feitio lá no Mestre Irineu, na época
era muito simples, só se cozinhava uma vez, o jagube tirava bem pouco Daime,
batia doze panelas por dia, no final do dia era um trampo, era só uma vez cozinhado,
aí já jogava fora, então tinha uma agilidade grande no feitio, entrava na bateção
duas horas da manhã ia sair dali onze horas do dia. Assim a gente fazia o Santo
Daime, botava nas costas, andava este trajeto todinho para entregar o Daime. Como
na época ninguém falava em dinheiro, num tinha esta situação financeira, não
entrava nenhum recurso, a gente fazia os daimes à custa da gente mesmo, com
aquele recurso que a gente tinha, muitas vezes ia pra mata o dia todo, buscando
folha e a gente não tinha mais que uma farofa de feijão, as vezes até sem óleo,

344
depois é que foi melhorando e a equipe do mato levava uma lata de doce, umas
bolacha e ai a gente foi desenvolvendo a igreja.”1103

Sobre os procedimentos para otimizar a produção e melhor aproveitar o material inclui,


em alguns casos, substituir parte do trabalho manual de maceração do cipó pela trituração em
máquina de moer, cozimento a gás e não à lenha, além fazer novos cozimentos e apurações do
Daime de uma panela já utilizada. Também tem-se produzido texturas de daimes cada vez mais
concentradas para facilitar a exportação, como os chamados Daime mel, gel. Como destacou
Assis,
Existem muitas críticas à dessacralização dos feitios no movimento de
expansão, direcionadas à diminuição de orações, flexibilização de jejuns e,
principalmente, industrialização e ‘comercialização’ da bebida que estariam
sendo operadas no movimento de diáspora.1104

Entre os críticos, destaco o israelita Tom Orgad e sua pesquisa intitulada de “Daime:
from a local, community-based ritual –to an expanding messianic religion”, ainda não traduzida
do hebraico para o português. No resumo da tese, disponível em inglês1105, Orgad sintetiza seu
objetivo de demonstrar as diferenças entre as duas principais versões do Santo Daime: o
primeiro é esotérico, evita o título de religião no sentido convencional, o outro tem um forte
caráter messiânico, expandindo filiais dentro e fora do país, com o intuito, segundo o
pesquisador, de globalizar o Daime.
Assis comenta que o projeto “Daime eterno” foi sendo paulatinamente substituído, no
âmbito da Iceflu, pelo assim chamado ‘Feitio Escola’, “um movimento de realização de feitios
e capacitação de feitores coordenado pelo Padrinho Alfredo.”1106 Comitivas de fardados do
centro-sul passaram a visitar, alguns com frequência, os festivais e feitios de Daime na Colônia
Cinco Mil. Alfredo narrou sobre a importância e centralidade da Cinco Mil no início deste
processo e a importância de afirmar o caráter religiosos destas organizações sociais:

“Então é isso assim, um relato que eu vejo assim que dá é no sentido da expansão,
foi dali que começou a expandir pro Rio de Janeiro, pra Mauá, pra São Paulo e
também fomos juntando toda esta união de pessoas e expandindo aos poucos e
crescendo a irmandade. Então assim, frisar bem no seu estudo que é uma religião,
que tem toda uma diretriz religiosa, não é produto das pessoas querer viver como

1103
A.G.M., 2019.
1104
ASSIS, 2017, p.282.
1105
ORGAD, T. Daime: from a local, community-based ritual –to an expanding messianic religion. Thesis
submitted for the degree "Doctor of Philosophy". Tel-Aviv University –School of Philosophy: July 2013, p.16.
1106
ASSIS, 2017, p. 277.
345
fazem muito jogo, isso sujou muito, porque fazem jogo com ele, fazem jogo com
outras histórias, isso trouxe muito peso pra Colônia Cinco Mil. Mas aí, a meta
positiva é essa, a gente expandiu dali pra dentro da floresta e expandiu para fora,
religiosidade e ai fomos trabalhando na época era o CEFLURIS, hoje a ICEFLU
está legalizada como entidade religiosa.”1107

Interessante o destaque feito por Alfredo no sentido de reconhecer que há um tendência


crescente de comercialização do Daime/Ayahuasca e ter citado que, entre tantos
acontecimentos, as denúncias relativas à venda de Daime é parte do enredo que vem, ao longo
dos anos, povoando um imaginário que desqualifica a comunidade, sobretudo no contexto de
Rio Branco, em relação a outras, nas suas palavras “muito peso pra Colônia Cinco Mil”. A
Ayahuasca/ Daime tem se tornado um sagrado gourmetizado e plastificado para consumo, na
medida que se diversificam e se reinventam tradições e formas de usos em contextos não-
amazônicos. Apesar deste seguimento ser o principal acusado de realizar o comércio indevido
da bebida no contexto de Rio Branco, Alfredo complementa ao narrar sobre os feitios:

“A vontade do papai nunca foi de, nunca foi de vender daime, é proibido isso, de
fazer, vender, chegou uma hora a própria lei disse isso. Agora cada igreja tem o
direito de fazer o movimento de sua expansão. E através do povo da expansão,
formamos uma associativa, para plantar, cada igreja ter seu potencial de plantar,
que é obrigado a plantar pra poder expandir. E nossa meta é essa. Todo mundo ter
este cuidado de que a expansão, ela é religiosa, não são plantas para as pessoas
plantarem porque querem vender ou comercializar, caracterizar um produto de
venda. Ela tem seu preço de custo, porque é uma coisa assim, que dá muito trabalho,
é muito caro, existe um preço de custo para as igrejas contribuir para poder tocar os
plantios e feitios.”1108

Sobre a relação deste seguimento do Daime com a bebida, o pesquisador israelense, que
é membro fardado do Ciclu-Alto Santo ressalta suas impressões:

“Devemos também ter em mente que a atividade do CEFLURIS tem uma


importante faceta comercial: suas comunidades centrais distribuem a bebida
para igrejas em todo o mundo em troca de contribuições financeiras. Portanto,
talvez influenciado pelas idéias de "mercantilização religiosa", afirmo que as
relações financeiras entre os líderes do CEFLURIS e os membros de suas
igrejas podem torná-los mais flexíveis e receptivos às visões religiosas que
são populares entre os recém-chegados.” 1109 (Tradução livre )

1107
A.G.M., 2019.
1108
A.G.M., 2019.
1109
“We should also keep in mind that the CEFLURIS activity has a significant commercial facet: its central
communities distribute the drink to worldwide churches in exchange for financial contributions. Therefore, in a
manner perhaps influenced by "religious marketization" ideas, I claim that the financial relations between
CEFLURIS leaders and members of their churches may render them more flexible and accepting towards religious
views which are popular among newcomers.” (Orgad, 2013, p. 13)
346
Em meados da década de 1990, o Santo Daime e a Colônia Cinco Mil novamente
estiveram no alvo da mídia e não apenas devido às denúncias de comércio de Daime. Foi o caso
da jovem que, ainda menor de idade, lutava com sua mãe, acusando-a de maus tratos, buscou
apoio e refúgio junto às comunidades do Daime, primeiro no Céu da Montanha, no Rio de
Janeiro, depois na Cinco Mil, na época gerida por Raimundo Nonato. O caso teve repercussão
nacional, pois a guarda da adolescente, ao que parece, passou a ser disputada na justiça entre a
mãe e o grupo do Daime. Numa reportagem da Folha de São Paulo1110, Roni Lima escreveu que
desde pelo menos 1991, a filha optou por viver nas comunidades do Daime contra a vontade de
sua mãe, que a havia levado anos antes, mas depois se decepcionado com o grupo.
Pelo que foi narrado, a filha, inconformada com a convivência com aquela que
considerava ser uma má cuidadora e companhia, veio para o Acre onde buscou a Colônia Cinco
Mil. Como consta na reportagem, Raimundo Nonato “teria conseguido a guarda provisória de
Verônica”1111, mas com um “novo mandado de busca e apreensão da filha”, expedido pela
Justiça de Rezende (RJ), a mãe veio buscar sua filha acompanhada de uma equipe de televisão
do SBT, que gravara a cena em que Nonato, na varanda de sua casa, quando perguntado se a
jovem deveria continuar na Cinco Mil, recomenda que ela poderia ficar mas deveria se entender
com sua mãe. “Causando os problemas com a mãe dela não, pra tá aqui sem problema, ela pode
estar, de livre espontânea vontade, como eu falei pra senhora, o centro é livre e nossa casa
sempre foi aberta pra todos que chegam aqui”.1112
O caso, por transcender as fronteiras amazônicas e envolver uma estrangeira, a argentina
Alicia Castilla, teve grande repercussão em diversos jornais e uma sequência de três reportagens
publicadas na Folha de São Paulo procurando mapear as diferentes versões dos acontecimentos.
Numa delas, intitulada “‘Ela é doente mental’, diz líder”, o jornalista Roni Lima escuta
diferentes lideranças do Daime do Cefluris. À reportagem, Rosas afirma que “suas denúncias
são calúnias” e “Cada um fala a loucura que quer”, que a jovem “tem horror da mãe, não quer
nem ouvir falar” e por isso acabou fugindo de casa para se abrigar no Daime de Rio Branco
(AC). Alverga “Diz que há muita deturpação do trabalho espiritual e social realizado pelo
Daime”1113.

1110
Folha de São Paulo, Cotidiano. São Paulo, segunda-feira, 26 de setembro de 1994.
1111
Ibid.
1112
SBT, Reporter. file:///D:/Videos/Daime/SBT%20Reporter%20Santo%20Daime.webm, 1995.
1113
ALVERGA, 1995, s/p.
347
Devido à grande repercussão das acusações de Alicia Castilla contra o Cefluris, que
teria entregue ao Confen um conjunto de denúncias, que além do “sequestro de sua filha”,
envolvia o uso de drogas, até mesmo por crianças, comércio nacional e internacional da bebida,
lavagem cerebral e a falta de assistência nos casos de surtos psicóticos, o Secretário Nacional
do Cefluris, em janeiro de 1995, elaborou um relatório em resposta às acusações. O dossiê
encaminhado à um dos relatores do antigo Confen, diz ter por objetivo “contribuir para melhor
compreensão da realidade atual da Doutrina do Santo Daime e, assim, esclarecer fatos e tratar
de questões recentemente veiculadas na imprensa”1114. Destaca os danos causados “por
acusações infundadas que atingem não só a nós, freqüentadores, como também nossas famílias,
amigos e mesmo as relações profissionais de muitos de nós.”1115
O documento dividido em 8 (oito) partes traz depoimentos que detalham a relação
conturbada e violenta entre mãe e filha e apresenta a decisão final do processo, no qual a mãe
terminou perdendo a guarda da jovem. Para Alverga, o livro de Castilla, “Santo Daime e
lavagem cerebral” nada mais é que “um conjunto de informações truncadas”, que a autora
“criou versões distorcidas para fatos dolorosos e lançou suspeitas sobre a seriedade com que
conduzimos nossa instituição”.1116 Para Castilla eram incompreensíveis as decisões da Justiça
do Acre, que ao final concedeu a guarda de Verônica para Raimundo Nonato, a quem Castilla
acusa reiteradamente de diversos crimes, relembrando episódios anteriores e envolvimentos
com a polícia dos anos 77 e 81.
Este não é um assunto que Raimundo Nonato goste muito de falar, mas pelo que se sabe,
quando a jovem completou 18 ou 21 anos, Nonato pediu revogação da guarda e Verônica seguiu
seu destino, finalmente emancipada. Verônica chega a dizer na reportagem que o que a mãe
dela “tinha para acusar já acusou, agora falta pouca para eu alcançar o que eu tanto esperei né,
a minha emancipação, aí depois disto tá liberto.”1117
Acompanhando o registro das reuniões da diretoria, disponibilizados no Livro de Atas
de 1989 a 1997, nota-se que já no final do ano de 1994, a gestão do Nonato passava por críticas,
como notamos também em seu depoimento quando ele relata que os opositores lhes
questionavam: “Donde é que tira tanto dinheiro pra dá de comer esse pessoal?”1118. Uma
oposição à diretoria por ele representada começava a marcar território, encabeçada por Roberto
Araújo Morais. Pelo registro escrito que ficou da reunião que elegeu a diretoria para o biênio

1114
ALVERGA, 1995, s/p
1115
Ibid.
1116
Ibid.
1117
file:///D:/Videos/Daime/SBT%20Reporter%20Santo%20Daime.webm
1118
R.N.T.S., 2019.
348
1995-96, diz-se que foi apresentado por Roberto seis nomes para compor o pleito, mas que
algumas pessoas citadas “declinaram do convite para compor uma nova chapa.” 1119 Raimundo
Nonato continuou na presidência do centro, tendo sucessivas alterações em outros cargos da
diretoria ao longo dos anos e lembra um pouco das tensões vividas na época.

“Aí daí a pouco chega o Manoel Moraes, tava no feitio aí chegou e me observava o
máximo que podia, pra eu me invocar, não me invoquei, porque quem não deve não
teme, né? Aí passou um pedaço e eu tava na apuração de uma panela, aí ele foi
chegou junto: ‘Nonato vamos ali comigo ali no mato?’ aí eu disse: ‘não Manoel
agora eu tô fazendo a apuração’, ‘não é rapidinho, rapidinho a gente termina é um
assunto bem pouco’, aí eu digo: ‘mas Manoel eu não gosto de fazer assim, não
gosto, isso aqui é responsabilidade minha, eu vou entregar na mão de uma pessoa
que não sabe dá o ponto, não está certo. Aguarda um pouco.’ Aí dei o ponto na
panela, tirei, fui e entreguei para o João Poeira, aí ele foi e ficou lá e eu fui sair para
conversar com ele: ‘aqui tá bom’, ‘não vamos mais ali na frente, mas pra dentro do
mato’ e eu digo: ‘mas aqui tá bom, Manoel’, ‘não vamos mais acolá pra dentro’. Aí
fomos ele sentou e aí pediu para mim sentar e eu sentei, ele foi meteu a mão no
bolso puxou um pito e: ‘vamos pitar esse pito’, ‘não irmão Manoel, não vai dar
tempo amigo, eu tenho compromisso lá e eu não gosto de falhar, né? Eu tô aqui e
tem um lá que tá me olhando, né? Principalmente quem me ensinou está me olhando
lá e eu não estou no local que devo estar no momento’. ‘Nonato é rapidinho a
história, é rapidinho. Nonato a história que corre lá no Mapiá é que tu tá passando
as mulheres daqui tudinho, tu passa uma, já tem outra esperando ali.’ Eu digo:
‘Manuel rapaz...’ ‘não Nonato’, ‘pare não precisa o senhor falar não, eu já vi tudo,
já vi tudo, você não deve nada a ninguém, o homem que passa o dia aqui e de noite
tá lá no sermão, bailando e cantando e os faladores tudo correndo, você já me deu
toda a meta, você não deve nada pra ninguém’. E aí depois nós fomos conversar de
novo: Manuel eu não devo nada pra ninguém graças a Deus, mulher casada pra mim
é homem. Não devo nada a nenhuma até hoje graças a Deus, eu tenho um máximo
respeito com minhas irmãs, não devo nada a ninguém. Aí ele saiu lá, abraçado
comigo, muito meu amigo... porque a história era mais com o filho dele, com o
Roberto. Aí depois para melhorar a história, a dona Maria disse assim: ‘Roberto,
deixa a vida desse homem em paz, olha esse homem tá ficando seco de procurar dá
conta dessa doutrina. Vê as casas limpas, a igreja, a casa grande, o homem tá aí
dando de tudo e vocês perseguindo ele, o homem tá seco, seco, seco e vocês
perseguindo ele’. Aí foi que ele me deixou em paz, né? Me deixou em paz, aí eu
falei direto pra Deus: eu tenho muita fé em Deus e Nossa Senhora que todos que
procuraram me prejudicar depois bateram na minha porta e eu ajudei.1120

Nonato, além de um exímio feitor de Daime, puxador dos hinos, receptor de dois
hinários, zelador dos detalhes ritualísticos e da firmeza necessária na execução dos trabalhos, a
rigidez, disciplina e a auto-exaltação também tornaram-se características marcantes de sua
trajetória. Pelos relatos que nos chegaram, era menos flexível que o pai ante os desafios que a

1119
Livro de Atas do CEFLUWCS (1989-1997), p.09.
1120
R.N.T.S., 2019.
349
convivência entre os irmãos apresentava e, por isso, aos poucos, ia colecionando opositores.
Segundo alguns narradores “muita ditadura disfarçada de tradição”1121 e exploração do
trabalho. Marizete narrou:

“Por exemplo, o Nonato tinha uma equipe maravilhosa, mas ainda saiu como
safado, como um devedor, como miserável que não pagava as pessoa, porque meu
marido odeia ele e o João Poeira também por causa dessa história né, que nunca
pagava, que tal, tal, tal. Mas eu nunca trabalhei pro Nonato assim de né, era outra
história e às vezes eu ia lá mais pra pitar, pra conversar, mas nada de compromisso,
só que esses que trabalharam tinha muita mágoa do Nonato, muita mesmo.”1122

Neucilene deu alguns palpites de possíveis acontecimentos que geravam insatisfação


em parte dos adeptos do Daime na Cinco Mil:

“O que botou um monte de gente para correr eu te digo... eles tinham um costume
que só quem faz é eles... e a vida não é essa... tu não pode dizer assim ‘eu fiz’...
quando a gente termina de cantar um hinário, ninguém pode dizer ‘Bem minhas
irmãs, meus irmãos, a minha parte, o que me tocava, eu já fiz’... porque e os outros,
fizeram o que? Merda? Passaram a noite todinha sendo besta? Então isso ia
desgostando povo e o povo ia saindo. O povo ia saindo... porque seu Wilson juntou
muita gente, mas depois que ele foi ficando mais doente, entregando... Aí diziam:
‘ai porque o dirigente gosta assim, assim’... não é assim não, eu, o que eu entendo,
é que uma andorinha só não faz verão... então eu acho que tu tem que pôr na rédea
certa, porque tem a ordem, agora tu não pode diminuir quem tá te ajudando, porque
se não tu vai ficar só.”1123

Nesta época, era comum que Luiz Mendes e sua família também visitassem a Cinco Mil
nestes festivais, para reafirmar uma relação de amizade e respeito entre os grupos. Mais de 100
pessoas compunham o público médio dos festivais nesta época. Pelo que nos chega dos registros
dos livros de presença, em 14 de julho de 1997, dia do aniversário do Nonato, foi cantado o
hinário “O Centenário” do seu Luiz Mendes. Depois deste hinário, Raimundo Nonato vai
começar a se desligar do Cefluwcs. No aniversário do padrinho Wilson, neste mesmo ano, o
livro registrou mais de 200 participantes.
Uma das datas que sempre reuniu muitos visitantes - até a pandemia de covid-19 e o
fechamento parcial dos trabalhos de 2020 e 2021 - era o aniversário de Wilson, em 18/19 de
julho. Como foi narrado, foi primeiro hinário cantado e bailado na Cinco Mil depois que eles

1121
L.S., 2023.
1122
M.A.S.S., 2020.
1123
N.S.S., 2020.
350
saíram do Alto Santo em 1974 e desde os primórdios da Cinco Mil, quando ainda era um hinário
de farda azul, já se cantava O Justiceiro, do padrinho Sebastião, neste dia. Esta data foi sempre
muito festejada na Cinco Mil, quando recebia comitivas de muitos lugares.
Além das questões relativas a ciúmes entre os casais, questionamentos sobre a gestão
dos recursos financeiros e visibilidade negativa com a mídia, devido ao caso Castilla, Nonato e
sua família tinham problemas com o filho mais velho, que nos ecos daquela maré difícil dos
anos 80 embarcou e tornou-se dependente químico. Os dois protagonizaram momentos de
brigas e desentendimentos na Colônia, que também contribuíram para que Nonato preferisse se
afastar da administração para cuidar da família. Vários narradores relembram que o jovem,
muito alterado, chegou a agredir o Alfredo e outros membros da comitiva do Mapiá que estavam
de visita na comunidade.
Neucilene comentou que teve um dia, próximo da data em que Raimundo Nonato
entregou a Colônia, que a irmandade teria presenciado uma forte briga entre pai e filho: “num
tinha quem não chorasse da situação, pensa o que era uma tristeza... aí tá. Nesse tempo seu
Wilson já foi ficando fraco... Aí daqui a pouco ele saiu... Nonato saiu e depois entrou o João
Poeira...”1124 Neucilene conta que:

“Um dia foi um destroço muito grande, que foi cantado era o aniversário da
madrinha acho, a gente cantou o hinário do Padrinho. Aí nessa hora eu escutei uns
gritos, era uma mãe pedindo socorro, nós corremos para lá e o pau tava feio...
Menina, mas você acredita que aí nós fomos terminar o hinário... tava na metade...
nesse dia não foi mais ninguém lá, da confusão... não voltaram do intervalo... aí nós
fomos fechar o trabalho, terminar o trabalho... valência que tinha ido um pessoal do
Luiz Mendes, eles davam uma força boa...1125

Um dos casos onde o vigor de Nonato se transparece de rigor é notável numa narrativa
que envolveu a desavença com o próprio Wilson Carneiro, seu pai. Diante de uma situação de
briga e conflito, Wilson aconselhava que era necessário prezar pelo perdão do irmão que
cometera uma exaltação ou alteração, enquanto Nonato insistia em punições mais rigorosas
para os envolvidos, como a suspensão. Neucilene narrou assim:

“Às vezes eu dizia pro seu Wilson: - o senhor, ou vai perder, porque as pessoas
brigavam, tinha desentendimento e depois vinha tudo para ele e ele para agradar
todo mundo, botava, amenizava um, amenizava outro, no fim deixava do mesmo
jeito que estava, porque ele dizia assim: ‘você tem que fazer mil amigos e nenhum
inimigo’. Daí quando o Nonato assumiu. Um dia eu até disse para ele, porque as

1124
N.S.S., 2020.
1125
Ibid.
351
vezes o Nonato fazia umas coisas que seu Wilson não achava bom... aí seu Wilson
omitia. Aí nesse dia eu disse para ele assim: seu Wilson eu queria que você fizesse
um negócio para mim e ele disse assim: - ‘o que é?’, na hora do intervalo a gente
veio para casa, eu disse: você não se meta na vida do Nonato não, na administração
do Nonato, ele não disse que ele sabe administrar? O senhor lembra que quando o
senhor estava na igreja o Nonato pouco ia... só ia quando queria, a mulher só ia
quando ele deixava... Então deixa ele fazer.”1126

Quando a severidade ocupa mais espaço que a amorosidade, abre-se espaço para as
insatisfações com o comando, denúncias de exploração e abuso, num tempo em que os
dirigentes não possuem mais o brio e o poder agregador carismático das lideranças fundadoras,
como Irineu Serra e Sebastião Mota. Moreira comenta que mestre Irineu, como liderança
carismática tinha um grande poder de atrair as pessoas, mediar e conciliar conflitos, – e
podemos estender semelhantes atributos a Sebastião - e quando estas lideranças fizeram a
passagem, processos de rompimentos tornaram-se inevitáveis e contínuos.
Flaviano comentou que, na ausência de Sebastião e sua liderança junto àquele conjunto
de pessoas, ficaria difícil manter a comunidade unida. Não foi diferente, como vimos, na
comunidade fundada por Irineu Serra após a sua morte, quando também se deflagraram disputas
pelo comando do centro espiritual e por partilhas de terras1127.

“Mesmo no tempo do Mestre Irineu, nem o Mestre o pessoal não respeitava né


porque ele chegou parar os trabalhos numa época né, por causa de tanta confusão,
que ele parou. É difícil cara, unir as pessoas viu, agora pelo menos assim, naquele
primeiro período que eu morei aqui na Cinco Mil, que eu achei muito bacana assim
é autoridade do Padrinho Sebastião sabe, todo mundo tinha respeito pelo Padrinho
Sebastião... Ali era o líder mesmo sabe... 1128

Na escuta de diferentes vozes, Raimundo Nonato apresenta outros percursos e narrativas


sobre a sua administração e saída da Colônia:

“Aí papai na igreja de 1981 a 1989, são oito anos, né? Oito anos. Aí eu fui assumir,
eu passei de 1989 a 1997 e em 1997 eu entreguei, entreguei a dona Júlia, chorou...
A Madrinha Rita não ficou muita satisfeita porque ela sabia que tava em boas mãos,
né? Aí a dona Júlia disse assim: ‘quem quer trabalhar não pode’ e as lágrimas
descendo, ‘porque os invejosos não deixa’ e as lágrimas descendo e as lágrimas
descendo. Eu nunca fui prum setor para mim fazer pela metade, se eu puder fazer o
total eu faço, porque nem um pai ensina o filho fazer as coisas pela metade, ensina
fazer tudo, pra depois começar uma outra obra, né? Então assim eu aprendi com
meu pai. Quando eu sai e eu pedi afastamento do CEFLURIS, eu pedi a madrinha

1126
N.S.S., 2020.
1127
MOREIRA, 2013; PUPIM, 2016.
1128
F.S., 2020.
352
Rita um afastamento por um tempo indeterminado, se o pessoal da Colônia quisesse
trabalhar eu voltaria, mas se continuasse na meta que estavam eu não voltaria,
porque eu fui pra lá pra trabalhar. Eu larguei comércio, larguei carreira de cavalo,
larguei briga de galo, larguei jogo de sinuca, larguei tudo, que de tudo eu gostava e
tudo eu tinha em casa, né? Então eu larguei tudo para vir trabalhar na
espiritualidade, ainda vim para cá pra trabalhar, né? Então não volto mais não. Aí
ela veio lá, entrou aqui em casa, na casa grande, né? Sentou e... ‘vem cá’, sentou na
cama, lá aí foi meter a mão no bolso, a madrinha Rita, né? Aí ela: ‘vamo meu filho
consagra aqui’. Aí fomos consagrar e de vez em quando ela dava um ... pra mim
voltar e aí eu dizia: Madrinha nós já conversamos, né? Quando o pessoal quiser
trabalhar eu volto, mas enquanto não quiserem eu não volto, porque eu estou dando
murro em ponta de faca, estou remando contra a maré. Eu faço uma coisa e eles
desfazem, você está num trabalho espiritual dentro de um hinário, você está ali
naquela primozia, daqui a pouco lá um se agarra com outro acolá, daí a pouco um
grita com outro acolá. Madrinha eu não vi isso no Alto Santo a senhora viu? ‘-não
meu filho’ - pois aqui também é a mesma coisa, porque pro padrinho, o mestre
Irineu é uma só pessoa, não pode haver confusão dentro da casa dele. Tinha muita
briga... eu já vi uma pessoa agarrar outra dentro da igreja. Eu suspendi pessoas lá
na minha época, papai pediu para mim revogar e eu digo: ‘não, o senhor, passou
uma ordem e essa ordem vai ser executada porque traz a sua palavra, você passou
a palavra para mim e me colocou de comandante geral, né? Então o senhor é o
chefe, mas o senhor passou a meta, se eu não cumprir com essa meta, eu não sou
um bom soldado de formas alguma. Depois a pessoa vai dizer: ‘ah, vamos fazer e
acontecer, no fim a gente vai e ganha, porque o padrinho Wilson é mesmo assim’ e
eu digo: não é bem por aí não meu filho, tem o decreto lá... o decreto, leia o decreto
e veja se pode estar passando por cima do dirigente e fazendo da sua meta, não se
pode fazer da sua meta, o mestre deixou uma meta e deixou tudo... Aí teve um belo
dia que ele desgostou-se porque se agarraram lá dentro da igreja e ele desgostou-se
um pouco, porque é até uma falta de respeito se agarrar dentro de um centro espírita,
né? Acredito que é uma falta de respeito até consigo próprio mesmo, né? "1129

Goulart é imprecisa quando diz que “No final dos anos noventa, após o falecimento do
senhor Wilson Carneiro, ⎯ o ‘padrinho Wilson’, que foi responsável durante vários anos pela
Cinco Mil ⎯, Raimundo Nonato, seu filho, passou a ocupar a direção da Colônia”1130. Pelos
documentos consultados, registros de presença nos trabalhos e as fontes orais, a saída de Nonato
se dá ainda em 1997, com Wilson em vida, assistindo o nascimento do Pronto-socorro como
centro independente. Pelo que nos chega foi com grande pesar que Wilson viu a Colônia Cinco
Mil ser entregue novamente para a madrinha Rita e sua família. Diz-se que na época da entrega,
seu Wilson com muita tristeza “abaixou a cabeça e nunca mais levantou.” João Poeira relembra
deste período:

1129
R.N.T.S., 2019.
1130
GOULART, 2004, p. 101.
353
“O padrinho Sebastião entregou pro padrinho Wilson e o padrinho Wilson ele ficou
muito triste, muito triste, de não poder ter dado conta do que o padrinho Sebastião
entregou pra ele, tá entendendo? Ele ficou muito triste, muito triste, que ele queria
dá conta do que o padrinho Sebastião entregou na mão dele, que era essa história,
dessa administração dessa Colônia. Num era pra vim ninguém do Mapiá e se meter,
a família do padrinho Wilson que era pra mandar aqui, junto com todos nós, a
irmandade. Essa era a história do padrinho Wilson, ele pedia muito que não fosse
abandonado e não foi ouvido, ninguém ouviu da família. A família não ouviu ele,
que era pra tomar conta. Aí ele ficou meio triste e me pegou pela munheca um dia
e me chamou lá dentro da igreja num hinário, dia dos pais. Lá dentro de sala que
tinha e me disse pra mim assim: Compadre, que ele é meu compadre também! Do
Israel! Ele disse ‘compadre tome de conta dessa casa, não deixe os bagunceiros
bagunçar, compadre!’ Aí ele falou essa palavra pra mim três vezes, essa palavra,
compadre não deixe os bagunceiros bagunçar, tome de conta dessa casa! Aí fui falei
pra ele disse tudo bem! Eu vou tomar de conta dessa casa! Eu vou dizer pro senhor,
eu vou pra mim pra mandar, que eu não vou ficar lá com ninguém mandando na
minha cabeça não! Aí ele disse: Tome de conta dessa casa! Não deixe os
bagunceiros bagunçar! Aí eu me sinto naquela responsabilidade disso aí sabe! Só
que quando o padrinho me entregou essa casa, aí né ele...fui morar na casa grande,
fui morar na casa grande... me lembro em noventa e oito. Noventa e oito eu fui
morar na casa grande, o padrinho Wilson fez a passagem em noventa e oito!”1131

Marinez também relatou lembranças:

“E aí foi num momento também, aí foi quando o Nonato resolveu se afastar também
para cuidar da vida dele e tal, não era nem o Pronto-socorro nada, como ele falou
queria cuidar da vida dele, até procurava seguir lá na dona Peregrina, a dona
Peregrina que aconselhou que ele ficasse lá mesmo, foi quando ele resolveu ficar
na dele. Era mais os trabalhos de cura mesmo, até chegar a ser igreja mesmo foi um
processo. Nonato se afastou antes do Padrinho Wilson fazer a passagem. Quando o
padrinho Wilson foi lá pra dizer pra Madrinha Rita que não estava mais em
condição porque o Nonato já tinha deixado ele. Aí é como o padrinho Wilson
falava: ‘minha filha meus braços, minhas pernas, meus olhos que eu não enxergo
mais, eu pra andar daqui para igreja, eles tem que levar de carro, eu tenho que andar
agarrado pra poder entrar e sair igreja’.”1132

Assis comenta muito brevemente sobre estas mudanças nos arranjos socioespaciais e
afetivos da Cinco Mil e, por não ter adentrado nos meandros da Colônia, acaba repetindo o
desacerto posto por Goulart, ao dizer que a Colônia Cinco Mil, “após o falecimento de Wilson
Carneiro passara a ser dirigida por seu filho Raimundo Nonato.”1133 Mais precisamente, o que
se pode dizer é que o Raimundo Nonato administrou a Cinco Mil ao lado de seu pai Wilson

1131
J.A.S.S., 2022.
1132
M.R., 2018.
1133
ASSIS, 2017, p.131.
354
Carneiro a partir de 1990 e entre 1996/1997, um ano antes da passagem do pai, que foi em julho
de 1998. Marinez narrou sobre este período de transição:

“Aí nessa mesma reunião, o compadre Nonato pediu afastamento, aí ficou todo
mundo assim... aí na mesma hora o pessoal do Mapiá também já tinha na mente
trazer o Maurílio ou o Zé Mota, ou não sei quem... Inclusive, até hoje, tá essa coisa
que nunca é resolvida, parece que o Maurílio vem por um tempo, enquanto o Zé
Mota vinha, o Zé Mota nunca veio, o Maurílio também nunca assumiu, pra mim na
minha cabeça fica assim sabe, o desenho. Aí ficou lá... bom “como é que vamos
fazer?" porque ninguém tinha pensado nisso, Padrinho Wilson sair, Nonato sair,
pelo menos na minha cabeça era aquela coisa assim, tinha as arengas, mas era como
família, arenga, arenga, arenga mas no fim tudo se resolve. ‘Ai quem vai ficar?’ Aí
foi quando começou a surgir a história de ajudas da igreja, passou e até então, eu
pelo menos nem tinha muito conhecimento disso, dessa parte de dinheiro que rolava
no feitio e não sei o quê e bebebe, que foi tudo isso colocado nesse dia lá nessa
reunião. Bom a pessoa que mais faz o Daime aqui, fica lá com o Nonato e o Nonato
vai não sei o quê, que divide a panela lá com o Nonato, é o João – ‘E o João tem
muitos filhos precisa de ajuda’. Ele se abastecia lá na cozinha da casa grande, as
criança comia lá todo dia, como ele mesmo. Já tava num momento que a Átila tava
muito forte, já indo até na igreja né... Então foi tipo assim ‘tá vamos deixar eles
morar na casa grande porque eles querem muito, pra não ter mais briga vamos ver
se a gente muda’... todo mundo ‘ah o João jovem, tá com esse interesse, a Átila e
tal, vai ser bom’, num sei o quê bebebe, força jovem, parará. Que nada. Então vai
ficar até que venha o Maurílio ou o Zé Mota".”1134

Os resumos apressados de Goulart e Assis são ainda, porém, valiosos, posto que estão
entre os raros trabalhos que se atentaram para a Colônia Cinco Mil após a saída de Sebastião,
que se dedicaram a tecer algumas linhas sobre a continuidade de sua existência. Neles consta
que “a diretoria geral do CEFLURIS, situada no Céu do Mapiá, no princípio do ano de 1999,
optou por transferir a direção da Cinco Mil para Maurílio Reis”1135, “legitimado especialmente
por seu casamento com Neves. A decisão fez com que Nonato e sua família se desligassem da
Cinco Mil”.1136 Ouvindo alguns interlocutores, Goulart narra sobre a oposição enfrentada por
Raimundo Nonato e sua gestão: “As críticas implicavam, principalmente, em questões
relacionadas com a gestão de recursos para a melhoria material da comunidade da Cinco
Mil.”1137 Assis, na sua companhia, limita-se a situar que ele “recebia diversas críticas em
relação à sua administração”1138 Ainda sobre a saída de Raimundo Nonato da Colônia Cinco
Mil ouvimos dele mesmo:

1134
M.R., 2018.
1135
ASSIS, 2017, p.131.
1136
GOULART, 2004, p. 101.
1137
Ibid., p. 105.
1138
ASSIS, 2017, p.131.
355
“Em 1997 eu saí, de lá aí eu não fazia o trabalho aqui, a dona Maria ficou lá mais
os meninos, eles não iam em todos os trabalhos, aí quando passou, passou, aí nos
hinários oficiais, eu fazia lá no Zé, eu fazia lá, eu era muito bem recebido, eu
chegava lá me colocavam na linha de frente, eu ia tomar daime, eles davam o litro
pra mim mas eu dizia: ‘não sirva, a casa é sua’. As pessoas conhecem a meta, daí
ele ia e servia, aí eu tomava. Eu ia pra lá, eu não saía não, o pessoal saía quase tudo,
eu não saía de jeito nenhum, porque seu eu saísse, eu tava fazendo vergonha ao meu
chefe, a todos os dois, a todos os três: padrinho Irineu, meu pai e padrinho
Sebastião, tava fazendo vergonha a eles. ‘Ó lá o soldado do Mota, veio lá da Cinco
Mil chegou aqui quando a força chegou, o caboclo caiu fora’, aí não, saía de jeito
nenhum. Meu pai continuava indo pra lá, ele não me chamava, ele tinha o respeito,
né? Porque ele viu as grandes confusões, né? Aí ele tinha respeito. Não tinha tempo
determinado, era por tempo indeterminado nas nossas mãos, não fosse a confusão,
nós estávamos lá ainda, porque nós estávamos zelando e compadre Alfredo tava
satisfeito né? Principalmente pelo zelo, né? Mas ele não me chamava, ele sabia do
que tinha ocorrido e como é que estava o pessoal lá.”1139

A construção da sede do Pronto-socorro foi um desejo de Wilson ainda em vida, pois os


trabalhos sempre foram na sala de sua casa. Nonato, Neucilene contaram que Holderness, um
antigo seguidor do Daime e velho amigo de Wilson, teria lhe orientado que as doenças ficariam
impregnadas na sua casa, que era necessário um espaço específico para a realização dos
trabalhos de cura e que era por isso que ele vivia doente. Nonato narrou que, para atender o
desejo do pai, foi correr atrás de recursos. A sede do Pronto-socorro começou a ser construída
em maio de 1997 e um mês depois, em 03 de junho, já estava sendo realizado o primeiro
trabalho de cura da ‘Linha de Arrochim’ na sede do Pronto-socorro.1140 Maria das Graças
narrou sobre a época da construção da sede:

“e assim ele conseguiu levantar o Pronto-socorro ainda com o padrinho Wilson em


vida. Foi devagarzinho mas graças a Deus, não sei te dizer o ano mesmo que ele fez
o primeiro trabalho, sem, sem tá pronto ainda… mas já dava pra fazer. E o compadre
Wilson sempre cada vez piorando mais, mas ainda conseguiu realizar os trabalhos
dentro do Pronto-socorro, da casinha de cura né. Então o Nonato foi fazendo os
trabalhos de cura junto com ele… eu não gostava! Não vou dizer que eu gostava
não, porque eu não gostava não… quando ia fazer os trabalhos de cura dele sempre
quem seguia junto com ele era dona Elza… dona Clícia, então eu me fugia…
mesmo que pudesse ir eu dava um jeito de me escapulir porque eu não gostava. Aí
depois que ele foi adoecendo, adoecendo e saiu o Pronto-socorro e foi preciso a
gente trabalhar pra ele, pra fazer trabalho de cura pra ele, então eu cheguei pra perto
e comecei a ajudar.”1141

1139
R.N.T.S., 2019.
1140
MOURA, As origens de uma casa de cura do Daime, 2018.
1141
M.G.N., 2022.
356
O registro do estatuto do Pronto-socorro como centro independente é de janeiro de 1998.
Antes de sua passagem, Wilson teria entregue a zeladoria do Pronto-socorro para seu filho
Nonato e Maria das Graças narrou como se deu:

“Até que um dia ele falou que por quê que o Nonato não tomava de conta… eu fui
e falei pra ele, pro compadre Wilson né: ‘Mas o senhor não entregou, o senhor
apenas pediu pra ele dar uma força, ajuda, mas não passou pra ele comandar, então
o comando é seu. Ele tá ali só pra ajudar’. Aí a partir desse dia ele chamou o Nonato
e entregou pra nós, que dali pra frente o comando era dele, ele tava ali do lado
assistindo junto, mas quem dirigia o trabalho era o Nonato né. E foi… foi indo, foi
indo, foi indo e cada vez ficando mais ruim e terminou que deixou nas mãos do
Nonato mesmo né. Onde a Átila mesmo queria que fosse o Washington, por quê
que não entregava pro Washington né… então ele disse que pra dirigir o Pronto-
socorro tinha que ter pulso firme e o Washington ainda era muito jovem… Então
era o Nonato, mas assim de começo mesmo não foi muito de acordo, teve uns contra
e ficamos, fazendo os trabalhos de cura e indo os trabalhos na igreja, oficiais…”1142

A passagem de Wilson Carneiro foi mais um episódio onde se evidenciou o racha


controverso na comunidade, momento em que essa divisão começou a se presentificar na
paisagem, materializando-se nos espaços. Diz-se que a briga começou ainda no hospital,
quando alguns familiares e membros da Cinco Mil decidiam onde o corpo seria velado e
posteriormente enterrado. Átila contou que seu Wilson queria ser enterrado no cemitério, “entre
a Cinco Mil e a igreja, porque ele tava lá, era de lá...”1143 mas a decisão foi que o mausoléu seria
colocado em frente à sede do Pronto-socorro recém inaugurada.
Diz-se que muitas pessoas da Cinco Mil deixaram de ir prestar as últimas homenagens
ao patriarca porque, segundo acreditavam, a vontade do falecido não estava sendo respeitada,
pois o hinário e o enterro estava sendo feito no Pronto-socorro e não na sede da Cinco Mil. Este
também tem sido um dos assuntos historicamente silenciado e pouco comentado ao longo do
tempo. Wilsiane, neta de seu Wilson, assim narrou:

“Teve uma parte do velório do vô que ficou praticamente só a família, porque a


galera lá da Colônia, ainda com esta rivalidade com o Pronto-socorro, poucas
pessoas foram pro velório, poucas pessoas foram para o enterro. Ai eu me lembro
que teve uma passagem assim, porque o vô ainda em vida, falou o lugar que ele
queria ser enterrado, me parece assim que ali perto do Cruzeiro, não sei se na frente
ou atrás. Mas ai quando ele morreu, o tio Nonato não estava mais frequentando a
igreja e bateu o pé que seria ali no Pronto-socorro, não quis enterrar o vô lá. Ai teve

1142
M.G.N., 2022.
1143
A.M.F.R., 2020.
357
um desentendimento do Nonato com a Átila, porque ela foi a única que não era da
família e questionou porque a vontade do falecido não estava sendo respeitada. Sei
que foi o velório a noite e o dia todo e o vô foi enterrado, quase 24 horas de velório,
que estavam esperando a Graça, o seu Chiquinho e o Washington chegarem de
viagem. Também para a missa do sétimo dia não foi quase ninguém da Colônia.”1144

Foram quase 20 anos que a família Carneiro esteve à frente da Colônia, mesmo que
partilhando a administração em alguns períodos com outros irmãos, Wilson Carneiro manteve-
se como uma referência, como padrinho e conselheiro na comunidade desde 1981 quando
Sebastião e Alfredo seguiram para o Rio do Ouro, até 1998 quando fez a passagem. Seu filho
Nonato ficou à frente da administração os sete anos, de 1990 até 1997 e como se vê na Colônia
Cinco Mil, a gestão do Nonato acabou sendo narrada a partir de muitas e diferentes
perspectivas.
Quando propôs seu afastamento, Nonato se desligou da Colônia Cinco Mil, mas sua
família continuou frequentando os hinários oficiais. Nonato ficou administrando o Pronto-
socorro que herdou de seu Wilson, conhecido também, por alguns, como “Pronto-socorro do
Padrinho Nonato”1145. Inicialmente, se faziam apenas os trabalhos de cura, depois iniciaram a
fazer as concentrações. O registro do estatuto do Pronto-socorro como centro independente é
de 20 de janeiro de 1998. O documento tem 4 páginas que descreve os objetivos da entidade:

“1- Cultivar a doutrina espiritualística implantada pelo iminente Mestre-


imperador Raimundo Irineu Serra, tendo por princípio básico e fundamental o
Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. 2- Adorar à Deus em Espírito
e verdade, sob o ritual específico do ecletismo evolutivo. 3– Proporcionar
sessões especiais aos que buscam o socorro espiritual para sanar seus males
físicos ou psíquicos”.1146

Uma coincidência interessante é que os seis meses que separam o registro oficial do
Pronto-socorro da data de falecimento de seu Wilson, seu zelador, são os mesmos seis meses
que separam o registro oficial do Ciclu, em 23 de janeiro de 1971, da passagem do mestre Irineu
em 06 de julho daquele ano. Dizem que Wilson morreu no hospital, sem nenhum familiar por
perto. Mas não estava sozinho. Um amigo chamado Chico do Miru teria visto o suspiro
derradeiro e colocado uma vela em suas mãos. “Tudo que ele não queria era morrer no hospital,
ele queria morrer em casa”, narrou seu neto, Raimundo Jr., que continua:

1144
W.S.S, Narrativa de Wilsiane, gravada no dia 01 de julho de 2023, por mensagens de Whatszapp.
1145
GOULART, 2004.
1146
Estatuto do Centro e Pronto-socorro Raimundo Irineu Serra (cópia digital do mimeo)
358
“Em 96 ele tava muito ruim, com muita crise de falta de ar. Daí fizeram uns trabalho
de cura pra ele. Eu não participei, eu ficava em casa, cuidando da Graciane. Não sei
se foram 3, 6 ou 9 trabalhos, sei que depois disto ele ficou bom, ficou bem melhor,
feito um menino... pois é, aí depois destes trabalhos ele ainda viveu mais dois anos...
teve uma época que era assim: ele ia pro hospital e voltava, ia pro hospital e voltava,
até que um dia ele foi e não voltou mais. Foi muito triste. Eu lembro que foram
feitas muitas homenagens, foi cantado o hinário do Cruzeiro, eu acho... lembro que
cantaram a madrugada inteira e foi enterrar no anoitecer do dia seguinte, porque
foram esperar a mãe e seu Chiquinho chegarem de viagem... foi tudo lá na sede do
Pronto-socorro, o velório, o hinário. Daí foram preparando o espaço, que hoje é
aquela capela. Ele tá lá enterrado, sete palmos abaixo do chão. E hoje nós fazemos
alguns trabalhos ali, cantamos missa, hinários.”1147

Como destaca Peixoto, a maneira como se dá o sepultamento dos seguidores já falecidos


é um traço que atesta “a influência católica na irmandade do Daime” 1148. A construção de
jazigos para as lideranças que, posteriormente se tornam espaços de culto, também é uma
característica da forma como se espacializa o sagrado na religião, presente no Ciclu-Alto Santo
e outras comunidades do Daime. Peixoto narra que “padrinho Irineu Serra pediu para ser
inumado em uma pequena colina, distante cerca de 300 metros da sede do Alto Santo. Assim
foi feito. Em torno da sua sepultura foi erguida uma pequena capela, tornando-se local de
devoção da irmandade como um todo.”1149
É interessante notar que, ao contrário do Memorial de mestre Irineu, que fica dentro da
propriedade do Ciclu-Alto Santo, cujo acesso é mais restrito à comunidade externa, a capela
onde jaz o túmulo de mestre Irineu é aberta à visitação para todos os membros da irmandade.
Para alguns, é um sinal de que o Mestre sabia que haveriam muitas divisões e, desta forma, uma
relativa distância favoreceria que o espaço fosse mais acolhedor a todos os filhos e membros
da irmandade, mesmos aqueles considerados debandados em vôos independentes.
Peixoto destaca que foram enterrados “na frente da entrada da sede do Alto Santo, ao
lado do Santo Cruzeiro, outros dois destacados membros da irmandade”1150 e este mesmo
padrão foi seguido na comunidade do Céu do Mapiá, onde o túmulo de Sebastião e
posteriormente Manoel Corrente, foram colocados em frente à sede dos trabalhos (igreja),
mesmo a comunidade tendo um cemitério próprio. Na Colônia Cinco Mil, não foi diferente e
como vimos, na Vila Carneiro, em frente à sede do Pronto-socorro recém erguida, foi feito o
túmulo de Wilson. Mais recentemente aconteceu o mesmo na Comunidade Fortaleza, no

1147
R.N.T.S.J., 2021. Narrativa de Raimundo Nonato Teixeira de Souza Jr. gravada no dia 09 de setembro de
2021, Residência na Vila Carneiro, Rio Branco, Acre.
1148
PEIXOTO, 2022, p. 26.
1149
Ibid.
1150
Ibid.
359
“Centro Eclético Flor de Lótus Iluminada (Cefli), fundado pelo padrinho Luís Mendes do
Nascimento no interior do Acre”, “quando da passagem espiritual do seu fundador foi erguida
uma ermida para seu repouso, próxima da sua sede.”1151 Como destacou Peixoto:

Evidentemente a criação de adros, de campos de mortos, no terreno das


sedes/igrejas do Daime, precedendo a entrada principal, reitera a tradição
católica nos hábitos funerários da irmandade e a durabilidade das diferenças
de status, mesmo após a morte. Como nas antigas igrejas, só são inumados em
sua entrada, pessoas de destaque ou de famílias influentes. A obtenção de um
jazigo em tais condições significa prestígio para os consanguíneos do morto e
prova de poder junto à irmandade.1152

Maurílio narrou suas impressões sobre a saída do Nonato da Cinco Mil:

“Realmente nesse tempo de 97, o Nonato não queria mais voltar a Cinco Mil, o
plano dele mesmo era ter o canto dele, cada um tem seu direito né… e todo mundo
pode… o Nonato já tinha saído, nem por causa dele né, o destino ninguém consegue
mudar né... as coisas acontecem né, já tinha confusão dos próprios moradores,
porque a Colônia é um problema eterno assim… na sua organização né, porque
realmente já é um bando de amigos né… e amigos velhos, como é que resolve o
problema de briga entre amigos velhos? É complicado... rsrs… amigo velho é
complicado rsrs... E realmente foi esse impasse né, como é que vamos fazer da
Cinco Mil e eu sempre brinquei de fazer as coisas, mas aí o seu Wilson falou pra
mim direto, que eu não podia deixar de vir. Nem era muito eu, ele falava mais da
Neves, que a Neves era filha do padrinho... que o padrinho tinha dado pra Neves a
Cinco Mil de presente…”1153

Com a saída de Nonato e após a passagem de Wilson Carneiro, em 1998, seu Francisco
de Oliveira, o padrinho Chiquinho, passou a desempenhar uma função muito importante na
Colônia Cinco Mil: a de ancião do grupo, conselheiro e zelador dos fundamentos da irmandade,
da boa convivência, sempre pronto a dar uma boa palavra, conselho, apaziguar os ânimos. Foi
um dos pilares da gestão do Maurílio nos anos seguintes, sempre zelando pelo bom andamento
dos trabalhos, como um soldado veterano do tempo do mestre Irineu. Quando ele ainda estava
vivo, eu costumava fazer, pelo menos uma vez ao ano, visitas à sua casa, que era lá na cabeceira
da rua mais conhecida como Ladeira do Bola-Preta, que dá acesso ao bairro Sobral, um dos
maiores de Rio Branco.
Na sua varanda, certa vez ele contou toda a sua história, de quando ele chegou no Daime
do mestre Irineu, procurando uma ajuda para acalmar o estado de saúde de sua esposa. Eu me

1151
PEIXOTO, 2022, p. 28.
1152
Ibid., p. 27.
1153
M.J.R., 2022.
360
lembro de ter ficado com muita vontade de gravar sua fala e eu já usava celular nesta época,
mas fiquei muito acanhada e não tive coragem. Eu nem sonhava me tornar uma pesquisadora
neste campo. Cheguei em casa com aquela história linda na cabeça, uma voz intuitiva ainda me
disse “escreva a história ou você vai perde-la”, mas acabou que fiquei rememorando as imagens
e não escrevi. Aconteceu de fato: eu perdi todos os detalhes da narrativa, com exceção de um,
que fala que um dia ele recebeu uma cura – e viu uma rosa muito bonita, vermelha e iluminada
saindo do coração.
Diz-se que o Encontro dos Prontos-socorros começou em Ouro Preto, MG, por volta de
2004-2005. Em 2006, a primeira vez que participei deste encontro, lembro que ele se encerrou
com a festa em comemoração ao aniversário de Wilson Carneiro na sede da Cinco Mil, onde
todos ainda se reuniam nesta data. Foi o último ano que a família Carneiro esteve junta para
festejar o aniversário do patriarca na Cinco Mil. A partir daquele ano, parte da família mais
ligada ao Pronto-socorro anunciou o desligamento total da igreja e que passariam a fazer os
trabalhos oficiais do calendário do Daime no Centro e Pronto-socorro, prática que teve início
em 2008, coincidentemente o ano em que me mudei para a comunidade. A partir de então,
também procuram estudar a versão do hinário “Cruzeiro” mais próxima de como é cantado no
Alto Santo, diferenciando-se da versão do Cefluris em vários hinos em relação à detalhes
melódicos, repetições e letra.
Cantar e bailar o hinário “O Justiceiro” do padrinho Sebastião em 2006, pela primeira
vez na igreja fundada por ele, foi inesquecível. Lembro que foi um trabalho muito especial e
que parte da família Carneiro foi embora ao término da primeira parte. Dava para sentir que o
clima não estava muito amistoso, mas eu e Marina, minha companheira na viagem, ainda pouco
entendíamos destas relações comunitárias conflitivas e ficamos para finalizar o festejo. Maria
das Graças narrou que, quando iam no “aniversário do compadre Wilson, a gente fazia lá junto,
com todo o povo”1154 e levavam o Daime do Pronto-socorro para ser servido à todos na primeira
parte do trabalho. Daí a segunda parte era com o Daime da Cinco Mil mesmo. “Nonato sempre
quando era o aniversário do compadre Wilson, ele fazia um feitio e levava o Daime… a primeira
parte era um Daime, a segunda parte era outro Daime né…”1155 Maria das Graças relembra
como foi esta época de separações e rearranjos:

“Quando o Nonato entregou, quem assumiu de novo foi o Maurílio né, então nós
ficamos frequentando ainda, ficamos seguindo um pouco, mas aí foi… a coisa foi

1154
M.G.N., 2022.
1155
Ibid.
361
pegando outro rumo… ficando um pouco mais diferente… e a minha família
mesmo já não gostava mais de, de ir pros trabalhos… ia aqui acolá, só os oficiais.
Quem ia mais era eu… Depois aquela uma história, uma conversinha daqui… outra
conversinha dacolá… e a gente tirando por menos… na presença uma coisa, na
ausência outra… e a gente ia vendo isso e… ia deixando pra lá, fazendo de conta
que não sabe de nada, ouvir muito e fala pouco e até que chegou um ponto que não
deu pra continuar né… não deu mais de jeito nenhum e então teve a divisão.”1156

Dizem que o trabalho de inauguração da nova sede do Pronto-socorro, amplamente


reformada, foi muito forte e contou com a participação de muitos membros da Colônia Cinco
Mil, principalmente os remanescentes da família Carneiro que foram acompanhar o nascimento
do novo centro em 2007. Porém ocorreram momentos de fortes atuações, onde pesadas
acusações foram feitas ao comando da casa. Graça lembrou um pouco mais desta época da
transição, evitando detalhar estes acontecimentos:

“Aí em fizemos um hinário do compadre Wilson aqui no Pronto-socorro, que eu


não vou relatar, o que houve, o que fez a gente ficar aqui no Pronto-socorro… abrir
os trabalhos de hinário né, porque… não deu mais pra gente seguir lá. Embora
assim, dizendo assim, eu de vez em quando, eu vou, a gente não tem nada contra…
agora eles, o restante da família mesmo não gostam de ir, depois que nós fomos,
assim, praticamente… expulsos... Aí nós, pra não ter guerra nenhuma, nós
preferimos ficar em casa. Passou um ano… eu falei com toda a família pra pensar
durante esse ano o que que íamos fazer, se a gente tocava os hinários pra frente,
fazia os festivais aqui, ou se continuava só com os trabalhos de cura. Então todos
opinaram pra gente fazer os hinários aqui… quem quisesse vir, as portas tavam
abertas, mas praticamente… a família né. E assim aconteceu e assim nós estamos
fazendo… que é o Pronto-socorro que praticamente é familiar, né porque assim,
recebemos quem vem e tal, mas a família mesmo que faz mais presença.”1157

E foi a partir de 2008 e 2009 que o Pronto-socorro se desligou totalmente da Colônia


Cinco Mil e começou a fazer os trabalhos oficiais da doutrina do Daime, seguindo todo o
calendário. O processo de orientação de abertura de novos centros e filiais em outras regiões
brasileiras já havia iniciado em 2004, com o primeiro Pronto-socorro de Daime de Ouro
Preto/MG, que também se desdobrou em outros pontos e centros. Na cidade centenária, famosa
por sua arquitetura e história que remete ao século XVIII, já funcionaram 3 (três) centros de
Daime, fruto destas divisões internas – o que evidencia que os rachas e cisões entre os grupos
de Daime, que motivam processos de desterritorialização e reterritorialização, gerando novas
sedes e redes, são uma constante.

1156
M.G.N., 2022.
1157
Ibid.
362
Na noite de São João do dia 23 de junho de 2008, Francisco de Oliveira, o padrinho
Chiquinho, passou a presidência do Pronto-socorro para Robson Nascimento, um dos filhos
mais novos de Nonato e Graça. Eu estava presente nesse dia, e foi emocionante a fala daquele
amoroso ancião. Desde então, a Vila Carneiro tem recebido muitos visitantes que passam
estadias de diferentes tamanhos ali, onde Raimundo Nonato e sua família buscam manter um
modelo de organização socioespacial, hospedagem e moradia semelhante ao que existia na
Cinco Mil no tempo dos padrinhos e madrinhas na casa grande, com toda uma disciplinada
rotina de trabalhos materiais e espirituais.
O Pronto-socorro é atualmente um núcleo pequeno, praticamente familiar e, com
exceção dos trabalhos de cura realizados mensalmente, ou no período dos Encontros, que
geralmente atraem muitos visitantes, os trabalhos do calendário são realizados por um conjunto
de em média 15 pessoas. A média de trabalhos no Pronto-socorro são de no mínimo 4 trabalhos
no mês, sendo geralmente as duas concentrações dos dias 15 e 30 e dois trabalhos de cura, sendo
de Estrela no sábado, antes do 15, e da Linha de Arrochim no sábado, antes do 30.
Ao fazer uma cartografia de memórias da Colônia Cinco Mil dos anos 1990 evidenciou-
se as continuidades e descontinuidades que perpassam a história do lugar. Se por um lado é
narrado por algumas pessoas que o Pronto-socorro tem uma existência que independe da Cinco
Mil, pois Wilson Carneiro teria recebido direto do mestre Irineu a autorização para realizar
esses trabalhos de cura, uma escuta e registro mais apurado dessa parte da história, sobre a qual
quase nada se tem escrito, evidencia uma relação de proximidade, uma histórica ligação entre
os dois pontos do Daime. O Pronto-socorro de seu Wilson no Bosque, levava este nome porque
ficava em um lugar central e acessível, servindo como espécie de “serviço de urgência do
Daime”, já que o acesso ao Irineu Serra era mais difícil. Sua transferência para a Colônia,
contrariando esse aspecto, se justifica apenas na medida que Sebastião convoca seu Wilson para
assumir os trabalhos espirituais na Cinco Mil.
Vimos que a descontinuidade entre os dois centros, como narrativa, é expressão das
fraturas intracomunidade mais recentes, assim como no passado também se partiram os laços
entre as comunidades da Cinco Mil e do Alto Santo. As narrativas que inventam e reinventam
os lugares vão, de certa forma, selando a divisão da comunidade da Cinco Mil em duas,
posteriormente em três. Depreende-se disto que a saída de Sebastião como liderança carismática
e agregadora causou significativas mudanças nos arranjos socioespaciais da Colônia Cinco Mil,
intensificadas na época da passagem de Wilson Carneiro.

363
4.2 Os encontros, o padrinho hippie, os novos hippies e a expansão

Com a saída de Nonato, algumas pessoas vão ocupar a casa grande até a chegada do
Maurílio. Sobre as várias lideranças que passaram pela Cinco Mil, Lourival narrou, como quem
sintetiza:

“Teve várias administrações. Quando voltamos do Rio do Ouro e fomos para a


administração do Padrinho Wilson, o Chico Corrente, teve várias administrações,
depois passou para o Padrinho Nonato, aí pela frente e eu fui acompanhando
tudinho. Teve o João Alberto, anos e anos mais à frente né, o João Poeira e depois
anos e anos nós retornamos, o Maurílio retornou, nós fizemos outra diretoria, que
eu acho que é a que estava prevalecendo até hoje, que eles estão formando outra,
com a Madrinha Neves.” 1158

A casa grande havia até então sido ocupada pelo dirigente da comunidade e sua família,
onde os visitantes eram recebidos, encaminhados para seus setores de estadia e trabalho e onde
aconteciam as refeições coletivas, preparadas na cozinha geral. João Alberto narrou sobre este
período de transição e mudanças, com a saída da família Carneiro:

“Aí o Nonato saiu da casa grande em noventa e seis. Ele saiu da casa grande e foi
morar lá pra lá. Aí o Reinaldo ficou, um irmão. Uma coisa que aconteceu, que eu
também trabalhava muito com o Nonato. Aí quando ele saiu da casa grande, ele não
me entregou a casa grande. Eu não fiquei entendendo, ele fala que foi tipo uma
coisa que aconteceu. Nós trabalhemos muito junto, muito junto em tudo, feitio,
horta, tudo era eu e ele ali, né! Mas quando ele saiu da casa grande, ele não me
botou, eu com a minha família lá, cara! Que eu contava que ia! Da minha parte que
o Nonato dissesse: Oh João! tô saindo, mais é o seguinte, tu vai ficar na casa grande!
Tá aí! Mora aí com a tua família. Entra pra dentro... Ele não fez isso comigo! Não
sei, não entendi por que, não entendi de jeito nenhum! Aí botou o Reinaldo. O
Reinaldo não tinha cacife pra nada! Aí depois foi quando o padrinho Wilson chegou
pra mim e me entregou a casa grande. Eu disse pra ele então tá tudo bem, aí fui
morar na casa grande, fui morar na casa grande, aí eu fui até o Alfredo, daí quando
cheguei lá: Alfredo, assim é o seguinte: tá acontecendo assim, assim, né! O padrinho
Wilson me entregou a Colônia tá entendo! O padrinho Wilson, o Nonato não quis
tomar de conta da Colônia mais! Então ele tá meio triste, mas me entregou a Colônia
e disse pra mim num deixar o barco, o pessoal bagunçar lá! ‘- Ih! Rapaz!’ Ele foi e
disse: ‘Mas é mesmo João? Tá acontecendo isso?’ - o Alfredo falou! É tá
acontecendo isso... aí ele disse: então João é o seguinte, já que o papai entregou a
Colônia Cinco Mil pro padrinho Wilson, mas eles não querem tomar de conta, nós
vamos retomar a Colônia Cinco Mil, viu João. Aí eu digo tudo bem! O padrinho
Wilson sempre foi ligado ao Alfredo, né! Nunca teve nada, vixe! Aí ele foi disse:
‘Volta pra lá fica lá tranquilo que nós vamos retomar. Vai pra lá, que vai alguém
1158
L.B.A., 2020.
364
tomar conta da Cinco Mil. Eu acho que o Valdete vai morar lá! Aí vocês vão ajudar
por lá! Eu digo tá bom então! Eu pensei assim. Depois eu digo... rapaz o Valdete
não vai querer vir não! Tá começando ali no Mapiá, tem tudo ali, né! Não vai
querer... dito e feito! O Valdete não quis de jeito nenhum! Aí tá! Aí voltei, aí fiquei,
né! Tava na casa grande mermo! Fiquei morando na casa grande. Então depois o
padrinho Wilson fez a passagem e tudo! Aí fiquei lá um pouco. Aí entreguei pro
Maurílio porque ele veio.”1159

Como vimos no início do estudo, no Daime, os dirigentes dos trabalhos espirituais


acabam ocupando espaços de destaque e relativo prestígio, além de muita responsabilidade.
João tinha uma companheira forte e muito filhos e era um dos responsáveis pelo feitio da bebida
na gestão anterior, de modo que acabou assumindo a Colônia neste período transitório. Apesar
de Nonato ter deixado o Reinaldo na casa grande, não demorou muito para João e sua família
ocupassem o espaço. Marinez lembrou:

“Quando o João ficou, a intenção era essa, de a gente levantar a Colônia, como a
gente ficava falando, que aí saiu a pecuária, saiu todos os gados saíram, não tinha
mais gado pra acabar com a terra, então a gente podia plantar, a ideia era voltar né,
a agricultura, as hortas. Aí começou a se criar situações e tal. Aí então foi isso, dois
anos, um ano que a gente ainda aguentou legal, no segundo ano já não foi legal e já
foi quando partiu a Átila, partiu o João, aí já foi outro momento também, muita
confusão num sei o quê, que o Maurílio estava chegando, só que na verdade o
Maurílio não veio do Mapiá para assumir a igreja, o Maurílio veio para assumir a
vida dele, os negócio dele e tal, os andamentos dele, que já não tava dando certo.
Só que quando ele chegou e viu esse vácuo, o João já tinha debandado da igreja,
debandado da casa grande, a comunidade toda em atrito, ele se apossou da direção
e já dirigiu tudo isso e pronto.”1160

A promessa era boa: a de que o Valdete, ou o Zé Mota, filhos de Sebastião, detentores


de belos hinários, assumiriam a Colônia Cinco Mil. Porém isso não aconteceu, frustrando
muitos moradores que tinham esperança que a Colônia viveria novos e pacíficos tempos, com
a presença de um dos filhos de Sebastião no comando da comunidade e trabalhos espirituais.
Quem veio foi sua filha, Maria Gregório e a administração da Colônia foi entregue novamente
a seu esposo Maurílio. João Alberto relatou sobre a expectativa de que viesse alguém do Mapiá,
da família de Sebastião e Rita, para a Colônia Cinco Mil e de que ficaram felizes quando
souberam do retorno de Neves e Maurílio.

1159
J.A.S.S., 2022.
1160
M.R., 2018.
365
“Aí ele veio, eu só entreguei pra ele porque eu não sabia que a cabeça dele era
daquele jeito! Totalmente, totalmente, fora do padrão da nossa, vixe Maria! Foi
muito horrível! O que eu passei com o Maurílio, vinte anos... Te digo se isso foi
duro pra mim demais! E eu entreguei pra ele só por causa disso, por que ele chegou
aí, o Alfredo disse é tu, vai pra lá que o João tá lá, então vocês vão trabalhar junto,
né! Só que ele agiu totalmente diferente, errado. E eu só entreguei por causa da
Neves também, que nós, quando a Neves veio pra cá, pra nós era muito legal, uma
filha do padrinho, tudo!! Nós adoramos! Nosso grupo que tava ali sempre, vixe, foi
legal demais a notícia que a Neves vinha morar aqui e tal. Aí eu poxa, que legal! Aí
eu fui entregando o cargo, entreguei pra ele! Mais depois se eu soubesse não tinha
entregado não, cara! Tinha nada! Não tinha entregado de jeito nenhum! Só fez
muita... não foi muito legal! Não vou falar muito mal porque num adianta, mas não
foi muito legal! Assim, a parte assim da administração, que poderia ter sido
melhor... Correu muito dinheiro na época, muito dinheiro sim! Correu mermo! O
pessoal doava as doações que era pra fazer as coisas na igreja. Os estrangeiros que
vinha, porque vinha pra ajudar a Colônia Cinco Mil, então ajudava, isso aí
aconteceu! Eu não sei dizer que é! Sei que não tem nada feito, porque era pra fazer
as coisas legais na igreja. A igreja hoje tá bonita, nós não tá na maior luta atrás de
reformar a igreja do padrinho. Que era a primeira igreja do padrinho, que era pra
ser a maior primozia, né! Que essa igreja era pra ser tudo quando chegarem: ‘- rapaz
essa igreja do padrinho, é? Essa é a igreja do padrinho!’ Aí o pessoal essa é a igreja
do padrinho? É meio assim sem né! É meio sem vontade de dizer! A igreja tá toda
deteriorada. Quarenta ano, né! Cinquenta ano já vai fazer! Porque quando eu
cheguei ainda tava dando os acabamentos, setenta e sete pra setenta e oito, aí chegou
um ajudante, veio que ajudou o padrinho legal. Teve um piso que nós butemos foi
na época do Nonato aquele piso, que tem lá até hoje, foi na época do Nonato! Que
quando o padrinho saiu, não botaram azulejo, era cimento!”1161

Goulart comenta que o Maurílio assumiu a Cinco Mil em 2000, mas assim como Nonato,
acabou estabelecendo um certo distanciamento e independência do Cefluris, que passava por
novas reorganizações institucionais, tendo Alex Polari como um dos principais mentores. Como
sintetizou Goulart, “o crescimento dessas religiões torna mais complexo o próprio jogo de poder
entre os seus grupos, fazendo emergir diferentes contrastes e novas redes de alianças, que
aumentam as possibilidades de segmentações.”1162 Estes novos arranjos, que de alguma forma,
submetiam a Cinco Mil às decisões da sede no Mapiá, provocava no Maurílio alguns
descontentamentos, como expresso na passagem narrada à Goulart em entrevista:

Eu não concordava com muitas coisas dessa nova administração. Por isso,
inclusive, começou a ficar difícil a situação no Mapiá (...) Porque esse pessoal
do Alex quer mandar em tudo (...) Como eu tenho a minha própria história no
Daime (...) e já que a Cinco Mil estava precisando de uma direção, o Alfredo
me colocou aqui. Porque ele sabe, que eu tenho competência. Eu cheguei aqui
muito antes de Alex, de todo esse pessoal que está na direção hoje. Eu fui um

1161
J.A.S.S., 2022.
1162
GOULART, 2004, p. 103.
366
dos primeiros a chegar, cheguei junto com o Lúcio (...) Fomos dos primeiros
de fora a chegar, desse novo povo do padrinho e fomos nós que ajudamos a
construir a Cinco Mil, a comunidade, os primeiros roçados coletivos (...)
Agora, o Alex inventou uma Igreja, o CEFLURIS, é uma instituição. Eu fui
hippie, eu nunca gostei desse negócio de instituição, de burocracia. Agora,
eles querem inventar até carteirinha para daimista (...) Para mim, que fui
estradeiro, hippie... tudo isso é muito careta (...).1163

Existe uma espécie de arranjo muito comum entre os centros independentes, que os
permitiram adotar um certo distanciamento do Cefluris /agora Iceflu e ao mesmo tempo estarem
vinculados a uma rede que compõe a linha do padrinho Sebastião no Santo Daime, no sentido
de seguir suas diretrizes doutrinárias, calendário de trabalhos, ecletismos, etc. É o caso, dentre
muitos outros exemplos, da Cinco Mil e também do Céu do Mar, igreja do Rio de Janeiro,
dirigida por Paulo Roberto e sua esposa Nonata, filha do padrinho Sebastião e Rita e que não
possui uma filiação institucional e burocratizada com a Iceflu. Nesses dois casos, como
destacou Goulart, as relações entre os dirigentes e “o genro, padrinho Alfredo, presidente do
Cefluris, são freqüentes e envolvem alianças e cooperação mútuas”1164 apesar de oficialmente
desvinculadas do Cefluris. Alfredo, no final de seu relato, sintetizou assim:

“Mas o que se sabe mais decerto é que, daí mais na frente, o Padrinho Wilson
entregou, passando pro Maurílio, para Neves que é uma das herdeiras né... E aí o
Maurílio tem aquele jeito dele também, de administrar, um pouco assim, muito
amigável com todo mundo, mas também assim, daquele jeito assim, foi dando
aquela diferença da Colônia Cinco Mil.”1165

Esta “diferença da Colônia Cinco Mil” pode estar bem relacionada ao fato de que, ao
contrário dos dirigentes que passaram anteriormente, Maurílio e Neves não ocuparam a casa
grande, moradia central, espaço referência para chegada e recepção dos visitantes, com a
cozinha geral para os mutirões. Sobre isso, Marizete comentou:

“Porque a casa grande quando o padrinho vivia lá tinha o respeito e tinha ordem,
por isso todos que entravam na casa tinha que ter aquela força, dos padrinhos, que
nunca entrou foi o Maurílio entendeu e já não deu, levando até agora não tá bem,
então a pessoa confundia quem tava mandando.”1166

1163
GOULART, 2004, p. 102.
1164
Ibid.
1165
A.G.M., 2019.
1166
M.A.S.S., 2020.
367
Outros importantes esteios do Cefluwcs, anciãos e antigos frequentadores do tempo de
Sebastião, como os casais Neucilene e Zé Teixeira, seu Chiquinho e dona Raimunda, todos
moravam na cidade. Outros muitos não frequentavam mais, como dona Clícia Cavalcante,
Mariza e Maria Bento, alguns saídos insatisfeitos com a gestão anterior, como seu Gilberto. Por
parte de alguns moradores, criou-se um certo sentimento de abandono, provocado pela ausência
de uma liderança para mobilizar os visitantes, moradores e frequentadores para o trabalho
coletivo com a terra, a zeladoria do espaço, a regularidade dos trabalhos na sede, que chegou a
ficar alguns períodos fechada, com os trabalhos sendo realizados na Fundação, o que se
justificava em alguns casos devido às péssimas condições de tráfego no antigo ramal, noutros
devido às reformas no espaço.
Um episódio de desavença entre as professoras é apontado por vários narradores como
estopim para o fechamento da escola, no final da década de 1990. As professoras se caluniaram
mutuamente para a Secretaria de Educação e escola foi desativada. Maurílio relembra:

“Rapaz aquela escola... ela não existe mais como escola, até por confusão, das
próprias, confusão delas mesmo lá entendeu, elas mesmo brigaram uma com a
outra, acusaram uma a outra e a escola foi e tirou o nome delas, não pode nem ter
escola que vocês tão brigando uma com a outra rs, eu não sei te dizer... Eu sei que
ela não é uma escola reconhecida pelo governo mais, ela é um prédio que ficou de
uso da comunidade, em 85 ela já existia, 85-86 ela existia, porque eu e a Maria
Bento, nós tinha o maior amor pela escola. Nesse tempo a merenda era toda feita
na casa grande, era uma comida geral assim, a gente dava pras crianças e o que
sobrava os adultos não deixavam se perder... era um movimento muito bonito, agora
tô me lembrando, a gente fazia questão de buscar a merenda. Nesse tempo a gente
ia na rua buscar a merenda, levava pra Cinco Mil, guardava lá tudinho. Ela era
cozinhada na cozinha geral, ainda me lembro das crianças e tudo, Maria Bento, mãe
do Lourival, que era grande professora, grande mulher desse tempo lá, uns 3-4-5
anos ela deu aula na escola lá. Ela ficou aqui, eu fui embora em 86, Chico Corrente
veio e ela continuou um tempo aí na Cinco Mil, funcionou um tempão, parou de
funcionar porque não teve aluno, que aí foi embora todo mundo e acabou 3-4 alunos
e não justificava, parou de funcionar por não tem aluno, bem pouquinho.”1167

Marizete, uma das professoras na época da confusão, narrou que na década de 1990
existiam duas escolas na Colônia, uma “escola municipal lá em cima, onde hoje é a casa do
Robson e eu tinha essa estadual aqui”1168, referindo ao espaço que hoje é o Centro Cultural
Padrinho Sebastião/ Memorial Colônia Cinco Mil. Como uma das partes envolvida na
contenda, narrou que a desavença começou quando a outra professora, junto com algumas mães,

1167
M.J.R., 2022.
1168
M.A.S.S., 2020.
368
“começaram a me julgar, aí falar que eu não tava com nada dando aula e que eu tava inventando
muita moda na escola, porque eu inventei o fardamento das crianças. Seu Wilson puxava o meu
saco, pessoal dizia que eu tinha caso com ele.”1169 Sua intenção era colocar uniforme nas
crianças e, para comemorar, realizar um desfile na data cívica do sete de setembro, que é a data
de fundação do Cefluwcs.

“Eu digo, escute aqui seu Wilson, eu quero lhe pedir uma coisa me ajude, ele - ‘que
é minha filha? você manda’, eu digo oh seu Wilson eu queria fazer um fardamento
pras criança e falar na igreja que as mães precisam fardar os filhos, é uma coisa boa
não suja muito as roupas, tem a fardinha todo dia de ir, não gasta roupa, aí o seu
Wilson - ‘deixa comigo, na oração eu vou falar’. Tinha oração todo dia... Tinha
todo dia, a Tânia veia... Não seu Wilson, não fale na oração não, tem que falar no
dia do hinário, que muita gente vai apoiar. Aí ele – ‘é, eu vou falar’. Aí foi no
hinário maninha, ele olhou pra mim e disse ‘eu me esqueci Zete’... Aí eu digo ‘ele
ia falar que é bom a gente fazer as datas comemorativas aqui na Colônia, pelo menos
os alunos da escola e montar uma roupa padrão pra todos vir... eu escolhi assim
uma blusa branca e o short verde, vocês vão e botar o nome da escola’. Aí tudo:
‘ah, eu tenho vários, quem vai dar as fardas do meu filho?’, aí o seu Wilson ‘calma
minha filha, calma, vamos primeiro resolver aqui, depois a gente ver as fardas’.
Mana, aí começou a discussão e um falava, o outro bodejava, seu Wilson - ‘bem, tá
decidido né, o fardamento vai ser esse e dia 7 né, minha fia, tem um desfile né, 7
de setembro aqui? Eu vou vir, vou marchar com os menino’, pois ele veio, bem na
frente marchando e os meninos atrás, fiz até lá no açude do cemitério, aí dei a volta
pelo açude e viemos pra cá, fomos pra escola.”1170

Marinez também comentou sobre o funcionamento das escolas na comunidade e sobre


a época em que as mesmas foram fechadas:

“Nesse meio tempo, como eu te falei, deu muita gente indo embora, muitos viajaram
porque eram de fora, tinham criança, outros vieram embora, outros as crianças
cresceram, não precisava mais de escola né. Aí foram fechando as escolas, fechou
primeiro a da prefeitura, depois fechou a do estado. Só que aí eu fiquei insistindo
em fazer sala de recreação, fazia atividade, ‘então vamos fechar mesmo’, eu digo
‘pelo menos tem que ter uma ideia de escola aqui na comunidade’”.1171

Por volta de 1997-1998 aconteceram as últimas turmas que estudaram no espaço.


Flaviano também lembrou que deu aulas em um curso de alfabetização voltado para os
moradores nesta época. Ainda no início da pesquisa, comentei que um dos projetos associados

1169
M.A.S.S., 2020.
1170
Ibid.
1171
M.R., 2018.
369
à pesquisa seria realizar a reforma da escola para criar ali um espaço de arte e cultura e ele
narrou:
“Pois é, é isso que precisava, cara. Nossa se a gente conseguisse isso, aquela
escolinha lá funcionar... Teve uma época que até funcionou, eu até dei aula de
alfabetização ali naquela escolinha. Cheguei dar aula de alfabetização mas é porque
exatamente em 97, quando eu voltei do Sul pra cá sabe, aí cheguei aqui, tava sem
serviço, aí o governo fez um projeto pra alfabetização, aí eu formei uma turma aqui
dentro assim né, pessoal tudo, era tão legal aquele tempo da escolinha. A Flavinha
era bem pequenininha, ela ficava toda alegre ‘pai, vamo pra escolinha agora’, tem
uns 4 anos eu acho que ela tinha, 3 anos né, 3 anos e pouco, aí todo mundo sentava,
era uma a diversão aqui sabe.”1172

À partir dos anos 2000, o prédio da escola ficou praticamente abandonado, foi usado
como moradia temporária por um curto período. Iniciativas muito pontuais marcaram as
tentativas de trazer vida ao espaço, como em 2014, quando através de uma parceria com a
Secretaria de Estado de Políticas para as Mulheres (SEPMulheres) realizou-se um curso de
Corte e Costura, oferecido às moradoras do Ramal da Cinco Mil, promovido dentro da
comunidade, na sede da antiga escola, beneficiando 25 mulheres. A atividade foi uma iniciativa
de moradora Átila, junto à Concita Maia, antiga frequentadora do lugar no início dos anos 1980
e então responsável por esta secretária na época.
Átila contou-me que a escola ficou equipada com diversas máquinas de costura, de
diferentes tipos, além de mesas próprias para modelagem. Porém, depois do curso, não houve
uma mobilização efetiva para potenciar a ação, as máquinas acabaram se deteriorando, foram
sumindo dali e a oficina de costura não foi para a frente. De lá pra cá, o espaço foi se
deteriorando e foi utilizado algumas poucas vezes para realizar atividades de lazer, como no dia
das crianças.
Há quem saliente o fato do Maurílio ser “um padrinho hippie”, no sentido de menos
afeito ao tradicionalismo e ao rigor administrativo, organizacional, teria dado à Cinco Mil um
certo aspecto de pouco cuidada e menos rígida com questões que envolvem a disciplina com o
fardamento, os rituais, a organização do salão, os trabalhos nos mutirões, nos feitios, etc. Não
é raro, por exemplo, pessoas com a farda incompleta, sem bater maracá, bailando na primeira
fila, um ordenamento diferenciado para entrar e sair da fila, menor rigor com horário e
pontualidade. Por outro lado e concomitante, Maurílio como “um padrinho hippie”, era adepto

1172
F.S., 2020.
370
do “paz, amor e liberdade”, que contrastava, num outro extremo, com o militarismo, as
cobranças e conservadorismo da gestão anterior.
Marizete relatou suas impressões, como alguém que acompanhou ali os diferentes
períodos e a sucessão de dirigentes, que por influenciarem a dinâmica socioespacial, cultural e
produtiva no lugar, acabaram marcando diferentes épocas.

“E aí foi mudando, mudando e mudou e mudou…e tá desmudando toda hora e já


passei por mão de todos os presidentes que passou nessa casa, todos eles né, sei
quem passou, quem não passou e te digo que todos tiveram ordem, menos um pouco
que o Maurílio teve também, mas não teve a segurança né de segurar naquilo ali,
ele não teve, ele abriu mão de muitas coisas até porque muitos já tinham raiva dos
que tinham passado, que era carrasco, que tinha ordem, então o Maurílio abriu mão
e hoje em dia a gente sente falta de um conselho, de um dirigente, de um apoio, de
uma palavra amiga, de regras na casa, a gente sente tudo isso mas vai fazer o quê?
Eu passei por várias, várias mãos, aqui te digo eu não tenho problema, não tive
problema com nenhum deles, só com os nossos vizinhos mesmo, mas com os
presidentes, seu Wilson, Chico Corrente, passou tudo aí né.”1173

Nesta espécie de vácuo de lideranças ali presentes para receber as pessoas que não
paravam e não param de chegar com maior ou menor frequência, Feliciano e Marinez
começaram a se organizar e a se destacar como aqueles que vão receber um grande número de
visitantes nos anos seguintes na Cinco Mil. Pelo lado do Pronto-socorro, Nonato e Graça
também receberam uma leva de visitantes e pessoas que passaram temporadas ali, buscando o
Daime e a convivência na comunidade.
Conhecidos por seus “trabalhos mais fortes”, com mais doses de Daime, mais disciplina
e rigidez, o Pronto-socorro atrai, em maior número, um perfil de viajantes que procuram estudar
a doutrina, ou se livrar da dependência química. A Vila Carneiro funciona como uma espécie
de comunidade terapêutica, onde tem rotina de trabalho diário estabelecida, horários fixados
para as refeições, um intenso calendário de trabalhos de cura. Já a Cinco Mil e a Luau são os
espaços preferidos dos viajantes mais andarilhos, hippies, mochileiros, artesãos e dos que estão
iniciando nos estudos com a Ayahuasca ou com a doutrina do Daime. Pelo que Marinez narrou,

“Eu sei que em 2000, 2001, o Maurílio fazia o Daime pra levar para o Japão e ficava
esse movimento, como num tava afim de se envolver com a comunidade, foi cuidar
da Fundação, que na ideia era um hotel, que ele tinha pego justamente a ideia do
hostel que a gente tinha feito antes, ele queria fazer lá... pegar essa galera que vinha
de fora, pra ir para o Mapiá. Aí quando ele começou a ver os questionamentos:

1173
M.A.S.S., 2020.
371
vamos limpar açude, vamos plantar, vamos num sei o quê e aí chegou uma ordem
desse tamanho, um papel lá, que era a igreja ia tá fechada por tempo indeterminado
num sei o que, assinado pelo Padrinho Alfredo, pregado lá na porta na igreja,
pregado na casa grande. ‘Meu Deus onde é que a gente vai parar com isso?’ Acho
que foi em 2002, isso aí... 2003, por aí... em 2005 foi quando apareceu o problema
do Sol, meu filho, até aí a gente fazia trabalho no Pronto-socorro, porque a igreja
tava fechada. Às vezes a gente teimava, fazia alguns trabalhos lá, Ave Maria só
faltava vir o exército lá na igreja e a gente se sentindo mal, porque passava de lá pra
cá e aquela igreja fechada, apagada, tudo escuro e a gente morando lá e ia fazer
trabalho lá no Pronto-socorro, que ainda era Pronto-socorro. A gente teve um São
José, que a gente fez lá em casa, porque veio uma galera da cidade, a Lenilda nessa
época tava chegando... começaram a tomar Daime com a gente, a gente dava Daime
lá em casa, era uma galera que vinha pra tomar Daime e a igreja fechada... eles
queriam porque queriam Daime, aí o Feliciano ainda nem fazia Daime, mas como
ele era o feitor lá da igreja do Pronto-socorro, também quem abastecia de jagube,
fazia e tal, sempre tinha um daimizinho de guarda lá em casa. Quando precisava de
mais, pegava com o compadre Nonato. Aí a gente ficou por casa, o Sol adoeceu
mesmo em 2005 e eu vim pro hospital. Quando eu cheguei lá na Colônia, aí aquele
pedido né, era pra eu ter fé no Daime, que o Daime ia curar ele tal. Aí começamos
fazer concentração. Aí fomos pra igreja, abrimos a igreja, tiramos ela do cadeado
mesmo, isso foi pra polícia entendeu? A gente tem os processos de arrombamento
de igreja, de arrombamento de cadeado, de arrombamento de porta, tudo isso
denunciaram. Aí vinham denunciar no 8º DP, que eu tinha arrombado cadeado... aí
lá vim eu explicar ‘não porque eu não arrombei eu só abri porta nãnñãnã’. Bom aí
ficou aquela queda de braço né...”1174

Seguindo outras linhas narrativas, Maurílio contou como recebeu o convite do próprio
Wilson que, após a entrega do Nonato, tendo a idade avançada e saúde debilitada, preocupava-
se com a sucessão dos trabalhos na Cinco Mil, pela qual ele ainda se sentia responsável, pelo
fato de Sebastião ter entregue a ele e sua família os cuidados da Colônia.

“Quando foi 97-98, o padrinho Wilson um dia falou pra mim: ‘venha pra Cinco
Mil’, porque ele morrendo, coitadinho, bem fraquinho e… até brincadeira a gente
falar isso... Mas pra relaxar... rsrs. E eu falei pra ele: - ôh seu Wilson, o senhor podia
me dá um quadradinho aqui na frente de 2x2, assim pra mim fazer um
quiosquezinho? – ‘Mas por causa de quê?’ – Não, porque o senhor vai falecer, vai
fazer a viagem, aí vai começar a fazer milagre e vou fazer uma barraquinha de
cachorro quente e vou ficar milionário vendendo cachorro quente pros homem aí
né... então eu brincava com ele assim, nós tínhamos um nível de brincadeira bom.
Mas ele insistia muito que eu viesse pra Cinco Mil, ele insistia muito que eu viesse
de novo pra cuidar da Cinco Mil né, até que eu brinquei com ele falei: - seu Wilson,
pra mim vir pra Cinco Mil eu tenho que arrumar um dinheiro, senão eu não venho
não, porque como é que eu vou vir pra Cinco Mil pobre? E ele: “é né...” Eu brinquei
com ele: -Oh quando o senhor morrer fala com os agentes lá em cima que arrume
um jeito, que se me arrumar um dinheiro venho pra 5 mil. E seu Wilson morreu e

1174
M.R., 2018.
372
eu consegui um milagre difícil de contar, mas realmente com 3-4 meses eu arrumei
um dinheiro que… quando arrumei o dinheiro me lembrei do seu Wilson… não
tinha como… eu vi que ele tinha cumprido a promessa dele. Foi interessante isso…
que imediatamente eu vi que ele tinha realizado a promessa dele, que eu falei que
se ele me desse o dinheiro eu vinha cuidar... aí ele conseguiu e foi como eu passei
essa época né, do 2000 a 2020.” 1175

Na passagem seguinte, Maurílio expõe sua relação com o dinheiro, ao passo que se
recorda porque resolveu aceitar o pedido de seu Wilson e vir novamente para a Cinco Mil:

“Eu peço pra ele, essa brincadeira, dele me ajudar materialmente e com poucos
meses eu vinha vindo de viagem do Japão, eu tinha realmente bastante dinheiro na
época... rs e honestamente era todo meu, podia abrir a porta do avião e jogar ele
todinho fora, que era a mesma coisa que ficar com ele no bolso, porque era
honestamente ganho e não tinha ninguém que viesse cobrar um real dele. Eu podia
fazer o que eu quiser com ele, jogar até fora… rs pronto, não mudava nada na minha
vida… Mas realmente me lembrei do padrinho Wilson dentro do avião, o que me
deixou numa situação assim muito forte, que eu comecei a passar até mal e só fui
me consolar quando aceitei a promessa. Falei, rapaz, realmente, eu vou cumprir o
que eu falei pra ele, realmente a viagem transformou assim, minha natureza e me
senti envolvido de alegria e satisfação de tá... de poder cumprir a promessa do seu
Wilson né… cheguei no Mapiá, não contei pra ninguém o que tinha acontecido, só
fiquei mais uns dias e comuniquei meu padrinho Alfredo que eu pretendia voltar
pra a Colônia, que tava esse impasse com o Nonato e que eu queria muito cuidar
assim na época... então, eu queria dizer assim, que eu nunca fui dono da Cinco Mil
e nem padrinho da Cinco Mil, claro né… A Cinco Mil é dela mesma... Então por
causa disso mesmo, até acredito que é por causa disso mesmo, os motivos até do
próprio Nonato saiu… a Cinco Mil nunca será de ninguém e cada um tem que cuidar
do seu cantinho mesmo.”1176

As duas primeiras décadas dos anos 2000 foi o “tempo dos encontros” na Colônia Cinco
Mil, quando adeptos do Daime e peregrinos de outras regiões e países não pararam de chegar à
procura de vivências com o Daime. Em 2012, o Cefluwcs realizou o I Encontro de
Confraternização das Igrejas, entre os dias 18 e 30 de julho daquele ano. Realizado após o
término do Encontro dos Pronto-socorros, o evento conseguiu atrair parte dos peregrinos que
já estavam por aqui no Acre e reuniu membros de diversos centros do Daime do Brasil.
Em 2014, a chilena Noélia foi uma das várias andarilhas que estiveram pela Cinco Mil,
teve ali suas primeiras experiências e foi uma prazerosa companhia neste estudo. Um ex-
companheiro seu ouviu falar do Daime no Peru e ao encontrar um outro amigo chileno, que já
era fardado, foi levado para a Colônia Cinco Mil.

1175
M.J.R., 2022.
1176
Ibid.
373
“Nós já falamos de Colônia Cinco Mil pra outros viajantes e daqueles têm vários
que foram e chegaram até lá e conheceram o Daime. A Colônia Cinco Mil é um...
pra mim é um lugar de treinamento, entende? Tipo se tu é fraco, tu passa um tempo
aí e tu já é forte, se tu quiser encarar esse treinamento porque também pode sair,
tem pessoas que dura três dias e sai fora, já conheci, fardados e tudo... lá do Chile
por exemplo uma vez uma mulher que leva dez anos tomando Daime e já foram pra
Céu de Maria, pra não sei onde, pra São Paulo pra outros cantos né? Aí foram para
Colônia Cinco Mil, aí não aguentaram saíram fora, porque o Daime da Cinco Mil é
forte, os trabalhos são fortes e as pessoas são fortes. Então são muitas coisas que
vão... é só força, força, força é o que dá pra perceber como alguém que vem de fora
e eu também já conheci daimistas de outros lugares do Brasil, que alguma vez
conviveu em casa e tal, fardados, eles falavam assim ‘ah mas tu aprendeu lá no Acre
né? Na Colônia Cinco Mil, uhh agora entendo’, tipo, eu acho que é reconhecido
isso também aqui na Colônia, no Acre também.”1177

Em 2015, o Encontro do Nova Bandeira marcou as comemorações de 40 anos de


fundação da Colônia Cinco Mil, a partir da abertura dos trabalhos oficiais com o hasteamento
da bandeira em 1975. Comitivas de outras igrejas como da Barquinha da madrinha Francisca
Gabriel, seu Luiz Mendes do Nascimento e a irmandade do Cefli, além de grande parte da
família do Céu do Mapiá, estiveram presentes neste encontro.
Em 2020, com a pandemia de covid-19, esse fluxo de pessoas reduziu drasticamente.
Porém, a partir de 2022 já passaram por aqui vários estrangeiros de diferentes nacionalidades e
brasileiros de outras regiões. Mesmo quase não saindo de casa para conseguir finalizar essa
pesquisa, ainda conheci uma indiana, um alemão, uma peruana, um venezuelano, cinco
bolivianos, um argentino, um francês, um uruguaio, dois espanhóis, dois italianos, duas
estadunidenses, etc. Tanto os Encontros dos Pronto Socorros, como os encontros realizados na
Cinco Mil e depois na Luau, contribuíram para recolocar e reacender diferentes rotas de
viajantes ligados ao universo do Daime e da busca por experiências com plantas de poder na
Colônia Cinco Mil.
Maurílio, além da gestão da Cinco Mil nos últimos 20 anos, foi responsável por fazer a
ponte que expandiu o Daime para o Japão, onde segundo Goulart, “existem cerca de trezentos
fardados do Daime (...) a maior parte deles ligada à Colônia Cinco Mil”1178. Neste sentido, ainda
acompanhando a antropóloga, destaca-se que “o grupo dirigido por ele coaduna-se com

1177
N.C., 2020. Narrativa de Noélia Contrans gravada no dia 18 de dezembro de 2020, Residência no Bairro das
Placas, Rio Branco, Acre.
1178
GOULART, 2004, p. 100.
374
movimentos e processos que vêm acompanhando a expansão e a institucionalização do
CEFLURIS”.1179 Sobre a expansão do Daime no Japão, Maurílio narrou:

“E foi quando aconteceu essa história de eu ter esse contato com o exterior né, em
1994 fui ao Japão pela primeira vez e depois voltei lá 35 vezes... Olha, talvez tenha
outra pessoa ido fazer algum trabalho lá, mas um trabalho de Daime, eu fui o
primeiro. Porque um trabalho de Daime seria cê cantar o hinário completo né…
então acredito que deve ter algum irmão, algumas pessoas que com ayahuasca,
ayahuasqueiro e talvez até algum irmão que tenha cantado alguns hinos, mas botar
uma farda e cantar o padrinho Sebastião, a Maria Damião, Antônio Gomes, hinário
completo... acredito que fui o primeiro no Japão.”1180

Maria Gregório contou sobre essas viagens:

“Sim, eu fui no Japão 15 vezes e foi maravilhoso cada trabalho, com um pouco de
medo, pois fazer trabalhos por aí pelo mundo não é fácil como muitos pensam, mas
de todos os lugares foi o que eu mais gostei, apesar dos tremores de terra que de
vezes em quando tremia... mas gostei muito... Pensa você fazer trabalho de frente
pro Monte Fugi... Conheci todos os templos budistas e também muita gente boa por
onde passei.”1181

Marinez narrou sobre essa relação dos dirigentes com o Japão, a construção da Fundação
e um relativo afastamento da Colônia Cinco Mil da nova gestão em relação às anteriores, que
moravam na comunidade e administravam a casa grande de forma mais ativa.

“O Maurílio chegou, aí ficou até 2002, ele não ficava direto, ele vinha, ia, vinha, ia
e fazendo ali construindo a Fundação e tudo, porque foi ele precisava também, que
foi quando ele ganhou um espaço no Japão com o pessoal do Japão, então ele
chegou lá e falou para o Padrinho Wilson. Eu tava lá com Padrinho Wilson na
varanda... eu gostava de falar: - padrinho Wilson, aqui parece o mar, esse verdão
do campo parece o mar, a gente tá aqui na beira mar’ e tal, brincava às vezes,
falando besteira com ele, ele fazia umas piadas, era engraçado. Aí nisso o Maurílio
chegou no carro de tarde assim: ‘Oi padrinho Wilson, padrinho Wilson, tamo rico,
eu to chegando do Japão agora nós vamos para o Japão e num sei o quê, trouxe
trinta e cinco mil num sei, o quê dinheiro drálálá’ aí o padrinho ‘O meu filho graças
a Deus agora vamos sair do comércio do Daime’... aí tá, ele fez aquela festa toda
‘eu vou lá na colônia num sei o quê dradradra’... eu sei que o padrinho Wilson já ia
tão logo sair, daí a gente nem pensava né e o Maurílio construindo a fundação o
padrinho Wilson ainda estava vivo nessa época.”1182

1179
GOULART, 2004, p. 100.
1180
M.J.R., 2022.
1181
M.G.M, 2023.
1182
M.R., 2018.
375
Goulart comenta que o núcleo da Cinco Mil nesta época, além do Japão, possuía “filiais
em países como a França” e que ali “o contato e o trânsito entre os adeptos do Daime locais e
os de fora é tão intenso e constante”1183, que o grupo planejava organizar uma agência de
turismo, com perspectivas e “anseios ecológicos e esotéricos mais amplos”.1184 Claude é a
ligação entre a Cinco Mil e os fardados do Daime franceses. Detalhou como conheceu a
Ayahuasca no Peru, através do contato com um médico francês que organizava experiências e
viagens até aquele país e como em seguida conheceu o Santo Daime.

“Eu... eu descobri a Ayahuasca, em 1996. Ayahuasca no Peru, procurei a mim e


depois, acho 6 a 8 anos, não sei... fiz uma psicanálise e uma amiga, me falou da
Ayahuasca. Eu não sabia o que era Ayahuasca, não havia ouvido falar da palavra
Ayahuasca. Foi em 1996, já muito tempo. E... então ela diz ‘- Eu vou ao Peru lá,
quando eu voltar, vou te contar como foi lá’. E quando ela voltou do Peru, ela me
contou, imediatamente já tenho o desejo de fazer a experiência. No que fui ao
Peru… Foi uma coisa, uma coisa extraordinária para mim, não... depois, depois
minha vida que mudou, a visão de minha vida. A visão de minha vida mudou muito.
Muito, muito… Na realidade não sei se você já ouviu falar de um médico francês:
Então, que se chama Jack Mabi. Você conhece? É médico francês e ele abriu um
centro, para... eh... trabalhar com as gentes que se drogam. Com ayahuasca... Um
dia acabou. Um dia… enfim, cortaram. Ele decidiu abrir esse centro, pra gente da
França, da Europa, de Estados Unidos, então organiza quatro estágio pra fazer a
experiência da Ayahuasca no Peru. E descobri com ele. E depois teve um Xamã,
que faz uma ritual e tomamos Ayahuasca. A primeira Ayahuasca foi boa, a segunda
foi forte demais. Eu vi muitas coisas. E… e… depois que voltei na França e quer
continuar a usar Ayahuasca mas não ter Ayahuasca. Aí uma amiga me falou que
tem no sul da França, tem um grupinho de gente que toma o Santo Daime. Bom,
ouvi falar já do Santo Daime, no Peru, mas mal, mais como uma seita, ‘Ele toma
Ayahuasca de fração inadequada… Coisa, negativa, seita’. Encontrei esse amigo na
França que disse, que tem um grupo, no sul da França e, eu bom vou tentar a
experiência, no que fui lá, e... gostei muito e nunca sai. Então comecei na França.
Então fui lá e foi muito gostoso! Fantastique! Fantastique!”1185

Embora sejam muitas vezes tomados como sinônimos, a distinção entre Ayahuasca e
Daime aparece com frequência e acaba sendo um capítulo a mais na geopolítica dos discursos
sobre identidade neste campo ayahuasqueiro. Uma série de questões que envolvem o modo de
preparo, as diferentes técnicas e rituais, frequência de uso, fazem com que os diversos grupos
sociais as diferenciem entre si, ainda que, quando necessário, se unam no intuito de maior
reconhecimento, visibilidade e luta por direitos sociais. Foi assim com as chamadas religiões
ayahuasqueiras. Até a chegada dos anos 2000 tinham pouca visibilidade e não dialogavam

1183
GOULART, 2004, p. 103.
1184
Ibid.
1185
C.B., 2019.
376
muito entre si, sendo comum a troca de farpas e acusações entre a União do Vegetal e Santo
Daime e também uma certa recusa destes grupos em se definir como uma religião, no sentido
institucional. Porém, com a necessidade de buscar legitimidade e amparo legal na legislação
para continuarem a realização das práticas culturais/sagradas, passaram a unir forças para
debater conjuntamente a regulamentação da liberdade religiosa e uso sacramental da bebida.
Entendo na companhia de Chirif1186 que as identidades são representações estratégicas
e imaginárias que visam construir uma suposta unidade do ser enquanto coletivo e é sempre um
processo de assimilação e aprendizado cultural, nunca concluído. Como todos os pares de
opostos, identidade e diferença podem ser abordadas com olhar dicotômico, dialético,
dialógico, antinômico, a escolha do pesquisador e com base no que ele quer encontrar. Na
companhia de Chirif1187, que nos coloca diante das definições de políticas públicas identitárias
como resultado de conflitos e conquistas históricas, destaca-se que “No existe una identidad
inmutable, estática. Sociedad y cultura son realidades que conllevan el cambio. Suponer
sociedades estáticas es tener uma visión a-histórica de la realidad.”1188
O avanço nas políticas públicas referentes à ayahuasca, positivas por garantir a liberdade
do culto, por sua vez levaram a criação de “modelos hierarquizados de pertencimento” 1189 que
silencia práticas e pessoas, como notou Mendonça. Da busca por uma essência, origem e
tradição, surgem categorizações pretensas a definir o que podem e o que não podem ser as
gentes. No contexto desta pesquisa, nota-se que a categorização do que são as “religiões
ayahuasqueiras tradicionais”, em oposição ao que seriam usos religiosos não-tradicionais
tornou-se evidência Na medida em que buscou-se delimitar o que seria a vertente do mestre
Irineu, ou mesmo a definição de “povo do padrinho Sebastião”, o que estaria dentro e fora de
cada um destes compartimentos identitários. Maria Gregório frisou que “para que seja uma
corrente só não tem separação, é mestre Irineu e padrinho Sebastião, juntos com todos os que
já se foram e com esta união, sem confusão e sem fantasia, somos todos herdeiros, é só fazer
por onde ser.”1190
Os diferentes povos indígenas também diferenciam suas ayahuascas entre si, bem como
sabem diferenciá-las do preparo realizado no contexto das religiões, como no relato de Claude,
que destaca a passagem do xamã peruano, que disse que o Daime é “Ayahuasca de fração

1186
CHIRIF, 1997.
1187
Ibid.
1188
Ibid., p. 227.
1189
MENDONÇA, 2016, p.8.
1190
M.G.M., 2023.
377
inadequada”.1191 As formas específicas de preparo e uso em relação ao tempo de colheita do
material ou tempo de cozimento, as receitas, espécies de cipó e folhas utilizadas, formas de
armazenamento, modos de se montar a panela, comportamento silencioso diante delas, são
aspectos significativos que diferenciam as ayahuascas, com seus diferentes nomes e usos, pois
ayahuasca nunca é apenas um cozimento de duas plantas ou compostos químicos sintetizados,
bebida psicoativa, mas também um conjunto de sistemas culturais que guardam entre si
semelhanças e diferenças.
O Daime é um preparo específico da ayahuasca, não é apenas um nome diferente.
Durante a 2ª Conferência Internacional da Ayahuasca em 2016, em Rio Branco, este debate
ficou muito bem explicitado nas falas de algumas lideranças indígenas, que se opunham à uma
certa visão universalista da bebida sob o nome de Ayahuasca, proclamada pelos organizadores
do evento. Assis e Rodrigues sintetizaram algumas reflexões:

Para muitos desses povos indígenas, o que eles tomam não é a mesma coisa
que se convencionou chamar de ayahuasca. Em um relato de campo colhido
durante a conferência, um pajé ayahuasqueiro afirmava: “eu não sei o que é
ayahuasca”. Isso porque, para ele, a bebida que seu povo comungava era outra,
nixi pae. Isso revela como os contextos culturais determinam fortemente a
ideia que se tem sobre o chá. Bebida e cultura não poderiam ser vistas de forma
isolada. Não seria somente a partir dos princípios ativos em comum que se
poderia classificar a planta sagrada; igualmente importante seriam o ambiente
e a forma pela qual ela é utilizada.1192

Nesta narração que se segue, Claude comenta como chegou na Colônia.

“O Santo Daime no sul da França eu tomei Daime, que vi a força do Daime. E bom,
quero saber quem é o Daime de verdade, é vou me organizar uma viagem pro Brasil,
para descobrir o Daime, donde fui a Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte,
Manaus, Belém. Tem outros, através de encontrar gente das igrejas. E quando voltei
na França, para mim, é o Santo Daime, para mim é minha linha. Não tenho dúvida.
Moramos 8 meses na França e 4 meses aqui. E na França moramos a 15 km de
Paris. E lá temos um ponto do Daime, que bom, situação na França, o Daime é
muito complicado, depois de vinte anos. Então fazemos Daime segredo em nossa
casa, tem pouco de gente... então todo ano viemos aqui, quatro meses… para
carregar a força da floresta… É… Cheguei aqui, em 1998, primeira vez. E… e
voltei depois, 2002, eu encontrei o Maurílio e gostei muito da Colônia Cinco Mil
imediatamente, gostei muito! Aí, perguntei a Maurílio: “Posso construir uma casa
aqui?” bom... com certeza, com certeza se pode construir uma casa, bom, então,
faremos, decidido, não conhecia Marinês nesta época… Bom… Todo ano eu voltei
aqui e encontrei Marinês em 2005. Ela é frequentadora da igreja daqui. E… então

1191
C.B., 2019.
1192
ASSIS, G.L., RODRIGUES, J. A. De quem é a ayahuasca? Notas sobre a patrimonialização de uma
“bebida sagrada” amazônica. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 37(3): 46-70, 2017. p. 63.
378
eu encontrei ela… bom, essa história, como de súbito em minha vida, mudou
completamente depois. Do que estar aqui e ela também em Paris. É um choque
cultural, você sabe, porque o povo é muito diferente. Então acabou decidido
construir a casa, foi em 2012/2013…”1193

O processo de expansão internacional da Ayahuasca/Daime para países de fora da


América Latina vai acontecer articulado a diferentes movimentos, seja através das trocas com
o xamanismo andino, trabalhos e estudos terapêuticos como os de Jack Mabi, seja através das
chamadas religiões ayahuasqueiras que surgiram no Brasil. Sobretudo a União do Vegetal
(UDV) e o seguimento do Daime ligado ao Cefluris/Iceflu, irão protagonizar a formação de
redes em diferentes países que atuaram pela liberação do sacramento em outros países.
Pelo levantamento descrito por Assis, entre 1985 e 1988 são feitos os primeiros
trabalhos fora do Brasil, na Espanha e nos EUA. Em 1989, teria acontecido “o primeiro ritual
‘oficial’ do Santo Daime na Europa, na cidade de Caravaca, Espanha, conduzido por lideranças
da igreja Céu do Mar, do RJ”1194.
Ainda no final dos anos 1980, o culto do Daime através da Iceflu foi chegando na
América do Norte e Europa: Estados Unidos, Bélgica, Espanha, Portugal, Holanda, Itália, mais
adiante o Canadá, são países do hemisfério norte dos quais se tem notícia de agrupamentos do
Daime a partir do “povo do padrinho Sebastião”. Foram Assis e Labate que mapearam esta
cronologia.1195 Como destacam os pesquisadores “Esse crescimento foi acompanhado, contudo,
de diversos conflitos, polêmicas midiáticas e disputas judiciais”1196, que por falta de espaço e
tempo não cabem recordar aqui. Atenho-me no relato de Claude e sua batalha pela liberdade
do Daime na França, por sua ligação com a Colônia Cinco Mil, sua casa no Acre.

“Bom a minha batalha na França pois é, foi, a polícia me pegou em 1999. Fim do
ano. Foi preso durante três semanas. E fizeram acusação de utilizar uma droga,
tráfico internacional de substancia, foi difícil. 14 anos de batalha jurídico. O
primeiro processo foi condenado a oito meses de preso. Fazemos apelação desse
julgamento e ganhamos porque disse, dizemos a ele que Ayahuasca não era
proibido na França. Me mostra onde é proibido, onde é proibido. Ninguém conhece
a Ayahuasca. Ah, mas dentro da ayahuasca tem DMT e DMT é proibido. Ah é
verdade. E graças a Deus achamos um farmacológico, médico do mundo, ele muito
aberto, ele bom, se você pega este advogado, eu vou escrever uma letra e você vai

1193
C.B., 2019.
1194
Ibid., p. 169.
1195
ASSIS, G.L., LABATE, B.C. Dos igarapés da Amazônia para o outro lado do Atlântico: A expansão e
internacionalização do Santo Daime no contexto religioso global. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 34(2):
11-35, 2014.
1196
Ibid., p. 20.
379
sair daqui. Então que ele escreveu uma carta farmacológica pro governo e disse:
para fazer acusação da gente tomar DMT precisa fazer isso. Preciso pegar
Ayahuasca fazer extração da DMT e criar provas práticas. Não a fusão, cocção de
duas plantas, uma tem DMT a outra não, quantidade infinitíssima pequena. Então,
ele escreveu que não havia nada prescrito sobre o produto ali. A gente não tomou
DMT, a gente tomou Ayahuasca. Tem DMT tem, mas tem outros plantas que tem
DMT. Ok, passou, ganhamos este processo. E, três meses depois o Ministério da
Saúde saiu a resolução que proibia toda a compra nova de Ayahuasca. Na França a
vontade política é de que não quer que o Daime seja livre. Porque eu não sei.
Procuramos e não sabemos porquê. Tem o fato proibido de fato de medicamente,
pode ser uma questão moral também. É a argumentação deles é dizer que a
Ayahuasca pode manipular a gente. Que bebe o Daime e se perca nisso. Lavagem
cerebral, o sujeito usa porque ele não quer. Depois foi proibida em 2004, o Daime
é. O Daime não é proibido mas é ilícita. Não. O Daime é só uma religião. O Daime
não existe nenhuma bebida que é proibida. Agora então nós fizemos firme, mas se
não temos sacramento, não podemos fazer nosso ritual. Não podemos seguir a nossa
religião. Então você proíbe essa religião. Se você proíbe de tomar, você proíbe essa
religião. Porque são duas coisas inseparadas. Nós que estamos aqui, que estamos
sempre na luta. Só que agora temos advogado. Fazemos o estudo em demasia, para
achar um caminho para perguntar de novo onde eu vou para autorização.
Perguntamos mas ainda não há uma classificação, é muito difícil. Mesmo uma
declaração para autorização religiosa da Ayahuasca, dentro do contexto religioso
do Santo Daime. Bom, nós estamos na batalha. E na Europa, é a mesma coisa. Tem
que brigar. Na Holanda foi proibida. Dois anos de julgamento foi proibida. Outro
país, Espanha, Itália, também é toda errada. Não autorizada, não proibida. Muita
política. Não autorizada, não proibida. Não tem proteção do governo. Na França e
na Alemanha a mesma coisa. A Alemanha não tem lei. A França tem dois pedidos
de lei que proíba Ayahuasca. Então, para mim, em Paris, faz um trabalho do Daime
todo 15, todo 30. Fazemos todo o festival também. Em Paris. A nossa casa. Temos
um espaço em casa. Temos lugar para fazer, podemos receber trinta, trinta e cinco
pessoas pro sessão. Pegamos daqui para levar Daime, é complicado. É muito custo,
é complicado, perigoso também. Se ele te pega, é prejuízo financeiro. E também
um processo. Tem que arrumar advogado. É complicado. Bom... Faz parte do
caminho. Porque vai se liberar um dia. Questão de tempo. Acompanhamos o
surgimento. Fica os quatro meses aqui pra recarrega a bateria. Este sol
maravilhoso.”1197

Claude segue com algumas restrições de liberdade, mas em casa, na França.


Recentemente conseguiu vir ao Brasil, esteve na Colônia e visitou o Céu do Mapiá, de onde
recebe apoio da Iceflu. Enquanto aguarda o andamento do processo, prepara um dossiê com
relatos de especialistas e cientistas de diversas áreas sobre os benefícios e segurança do uso
ritual da Ayahuasca. Assis e Labate há tempos destacam “que a proibição, longe de extinguir a
prática religiosa daimista, promove a pulverização e clandestinidade dos grupos, força o exílio

1197
C.B., 2019.
380
de lideranças e torna o controle do uso da ayahuasca mais difícil e menos organizado” 1198. Os
pesquisadores também frisam que “na França, a situação é ainda mais proibitiva”1199.
Comentam que “a ayahuasca foi classificada como produtos sectoidal, ou seja, associada à
‘lavagem cerebral’ e ao pejorativo epíteto de ‘seita’”1200.
Um dos efeitos da expansão nacional e internacional da Ayahuasca é o aumento da
demanda pelo sacramento e sua instituição como um produto num mercado de psicodélicos, à
revelia de normativas e saberes associados à tradição e ao sagrado e à revelia do que diz a
Resolução do Conad de 2010. Este documento regulamenta o uso religioso da Ayahuasca depois
de longos processos de negociação e sugere que “o plantio, o preparo e a ministração com o
fim de auferir lucro é incompatível com o uso religioso que as entidades reconhecem como
legítimo e responsável.”1201
A Ayahuasca no Brasil tem seu uso regulamentado entre as populações não-indígenas
apenas para fins religiosos, sendo vedado o comércio, o proselitismo, o uso terapêutico ou
recreativo, o que não impede que se popularize cada vez mais a compra e venda da bebida na
internet e que cresça o número de espaços rituais que oferecem cerimônias – claro, para aqueles
que podem pagar - como forma alternativa de supostamente acessar estes saberes ancestrais
sem necessariamente vincular-se às normas das instituições religiosas de maior tradição no
campo ayahuasqueiro, como o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal.
Na contemporaneidade a bebida tem se transformado numa espécie de iguaria
facilmente comercializável no mercado e, apesar da prática capitalista contrariar a resolução do
Conad 01/2010, as experiências com Daime/Ayahuasca também tornaram-se uma espécie de
atração turística religiosa. Assis, em comunicação informal, já elabora pensar que a Ayahuasca
pode estar beirando se tornar uma espécie de commoditie, produzida em larga escala para
abastecer um mercado externo. Retomo a companhia de Krenak, que comentou sobre a
habilidade nefasta que o mundo moderno tem, que herdamos do avanço das técnicas e das
ciências, de capturar todos os processos que conhecemos numa grande máquina de fazer coisas,
de converter tudo em mercadoria.1202
Estas trajetórias de deslocamento do Daime envolvem muitas questões legais pois a
prática, como ressaltou o relato de Claude, é proibida em alguns países – e em outros não há
nenhuma legislação que regule. Muitas pessoas acabam se mudando para o Brasil para poder

1198
ASSIS e LABATE, 2014, p. 25.
1199
Ibid.
1200
Ibid.
1201
CONAD, Relatório Final, p. 8
1202
KRENAK, 2019.
381
vivenciar a sua fé. As comunidades religiosas ayahuasqueiras na Europa e América do Norte
têm enfrentado os desafios com a legislação desses países na luta pelo reconhecimento e
garantia de seus direitos religiosos.
A título de conclusão de sua fala, Alfredo, que nos acompanhou ao longo de todo o texto,
finalizou destacando a importância simbólica, afetiva e material da Colônia Cinco Mil, como o
espaço da onde se deu a expansão do Daime, no retorno às florestas e em direção as cidades.

“Fiz um relato meio longo, ai você pega os esclarecimentos, como eu arrematei


dizendo, a Cinco Mil foi o começo da expansão, dali que expandiu pra dentro da
floresta e para fora e hoje está expandindo também para o exterior. É isso.”1203

A expansão do Daime, a formação de novos pontos, cada vez mais espalhados pelo
Brasil e mundo, fez surgir uma nova rede de relações e itinerários e como já dito, estando
Sebastião já bem adoentado nessa época, a principal liderança desta expansão e reorganização
institucional acabou sendo de seu filho Alfredo, na companhia da família e com o apoio,
orientações e aconselhamentos do “povo do sul”. Sobre estas novas redes de relações que se
estabeleciam, destacam-se dois principais fluxos: “Viajar até a floresta, conhecer o Padrinho,
participar de um ritual, passou a ser a meta de cada um que conhecia a doutrina”1204 ao mesmo
tempo que se organizava o movimento para “levar a floresta” até outros lugares, onde iam se
abrindo os novos pontos e centros do Daime. Assim surgiram as comitivas, grupos de fardados,
geralmente padrinhos e madrinhas, seus filhos/as, músicos e cantoras que passaram a ter suas
viagens financiadas pelos grupos que os recebiam em seus centros para realizar os trabalhos de
Daime, que geralmente levaram um Daime feito na floresta para apresentar aos anfitriões. 1205
Assis comenta que este novo arranjo gerou “um sabor de desigualdade de oportunidades
dos membros da comitiva em relação aos demais moradores do Mapiá”1206 pois os membros
destas comitivas de viagens acabam tendo um “acesso a bens de consumo muito maior do que
aqueles que não viajam.”1207 Mortimer destaca que quando iniciaram as doações, as ajudas, o
dinheiro foi entrando na comunidade e a partir dali “Nunca mais o povo voltou a ser seringueiro,
que é sinônimo de pobreza.”1208 Comenta também que, “com a chegada do dinheiro, desde os

1203
A.G.M., 2019.
1204
MORTIMER, 2000, p. 253.
1205
ASSIS, 2017.
1206
Ibid.
1207
Ibid.
1208
MORTIMER, 2000, p. 252.
382
tempos do Marcial, o movimento de caçadas caiu radicalmente.”1209 Aluízio relatou que a
chegada do dinheiro e as transformações que observou:

“Cortei seringa muito tempo, cortei seringa de quatorze até vinte e um anos, quando
o chegou, chegou com uma grana boa e aí acabou negócio de seringa, acabou o
dinheiro dele todo, depois chegou mais. Jogou grana mesmo na história, mas
acabou, não tem mais comunidade. É cada um por si e Deus por todos. Falam
comunidade, comunidade, num sei o que. Fala ‘eu vou no Mapiá não sei o quê’. Eu
digo: ‘olha se tu quiser ver o rio, a floresta tudo bem, vai lá. Mas se tu for lá atrás
de doutrina mesmo, cuidado na tuas coisas, porque senão você começa a ser
roubado da Boca do Acre e quando chega lá também".1210

A identidade seringueira como fator depreciativo é tomada por Mortimer sem nenhuma
problematização e, muitas vezes, naturalizada pelos próprios acreanos e nativos do Daime como
algo ruim, evidenciando as marcas da colonialidade. Wilson antes de ser comerciante, foi
seringueiro, como Sebastião e grande parte daquela primeira geração de adeptos do Daime.
Nesta fala, José Teixeira, pelo contrário, expressa orgulho das origens:

“A primeira fruta que meu pai me deu no fundo da floresta tinha por nome sapatá,
uma fruta gostosa assim, deste tamanho assim, amarela. O pessoal diz: ‘Esse cara
não é filho de seringueiro!’ – ‘Sou meu amigo, sou sim!’ A minha filha dizia ali:
‘Papai, em duas palavras o senhor esculhamba a gente’, ‘Por que?’, ‘Esse negócio
de filho de seringueiro’. Aí vocês estudaram pra quê? Viva o filho de seringueiro!!!
Me empreguei e tô aposentado.”1211

O dinheiro e a vida dependente de produtos consumidos da cidade, que até então


estavam associados ao “mundo da ilusão”, foram ficando cada vez mais próximos, não só da
Colônia Cinco Mil mas também na comunidade na floresta, contrariando tudo que Sebastião
havia sonhado. O velho sistema, do qual Sebastião queria se distanciar, deu um jeito de se
colocar no horizonte da utopia e minar qualquer perspectiva mais radical de criar os espaços
outros que tornariam possíveis a existência de “um novo mundo, novo povo, novo sistema”,
com uma organização comunitária para produção do alimento material e espiritual na floresta,
enfim anticapitalista apesar de no capitalismo, como quis mirar Fróes1212.

1209
MORTIMER, 2000, p. 254.
1210
A.F.S., 2020.
1211
J.T.S., 2021.
1212
FRÓES, 1986.
383
Podemos encontrar rastros dos pensamentos críticos de Sebastião em relação à
dependência ao dinheiro - e por extensão da mercadoria – em vários lugares, como nesta
narrativa colhida e transcrita por Alverga, em que Sebastião teria dito:

“Segurem o tempo, não vão se iludir com negócio de carne, dinheiro, essas coisas,
nem ficar dando gosto a matéria. É muito feio a gente ser uma vela apagada. Eu já
falei isso tantas vezes para vocês! Espero que vocês vão pegando a coisa aos
pouquinhos, pra quando virem poderem reconhecer.”1213

Albuquerque refere-se a estas reflexões como “saberes sociopolíticos e ambientais” de


Sebastião e sua florestofia. “Assumindo-se como intérprete de um povo sofrido, Sebastião
refletiu sobre a condição humana e propôs uma alternativa à vida urbana assentada na lógica
do mercado, em que tudo precisa ser comprado.”1214 De potenciais críticos à sociedade da
mercadoria e do consumo, com a chegada das ajudas, o dinheiro passou a ser visto como algo
do qual não se podia ter medo.

Os perigos da ilusão, da vida velha, estão na mente e no coração dos homens.


Não é tendo medo do progresso, do dinheiro e da própria prosperidade que
vamos combater a ilusão. O que faz medo é se enrolar e não saber usar tudo
isso de forma que o crescimento traga para cada um mais saúde, um colchão
melhor, condições melhores de vida.1215

Muitos foram aqueles que passaram a ajudar com doações e presentes. Se por um lado,
ajudavam a comunidade a sair das dificuldades objetivas de prover segurança alimentar e
conforto para seus moradores, por outro fez os esforços se voltarem mais para a prestação de
serviços ligados ao turismo religioso e ecológico do que para o cooperativismo extrativista,
agroflorestal e comunitário. Assis reconhece que o “forte catalizador de recursos para a
comunidade (...) são os festivais religiosos de dezembro/janeiro e junho/julho”1216 e
desenvolveu-se portanto uma dependência externa.
Embora Mortimer reforce que todos procurassem “com justiça e bom senso fazer uso
deste dinheiro a benefício de todos”1217, as reclamações sobre como a desigualdade social foi
se reproduzindo naquela comunidade que sonhava ser um exemplo de “novo mundo, novo
sistema”, comunitário, coletivista e igualitário, onde “todos comiam na mesma mesa e a mesma
comida”, mas nem todos pegavam no trabalho pesado por igual. Com o tempo, os pratos de um

1213
S.M.M. em ALVERGA, 1992, p. 183.
1214
ALBUQUERQUE, 2021, p.289
1215
ALVERGA (org.), 1998. p. 13.
1216
ASSIS, 2017, p. 294.
1217
MORTIMER, 2000.
384
foram ficando mais cheios e diversificados que o de outros, o que foi promovendo um não-
ignorável sentimento de insatisfação com as novas lideranças, pelo menos por parte
considerável dos adeptos. A partir de algumas destas dissidências, surgem muitos centros
independentes, que se sentem aliados da doutrina do mestre Irineu como ensinada pelo padrinho
Sebastião, porém não tem filiação institucional nem ao antigo Cefluris e nem à atual Iceflu.
Assis comenta em seu estudo que “segundo um dos veteranos do Mapiá que trabalha no
feitio, ‘se você quiser ajudar o povo do Mapiá, não dê dinheiro para a Iceflu. Dê direto para as
pessoas. Nós nunca recebemos um centavo da instituição. Dependemos da ajuda dos
amigos’”.1218 Aluízio fez um desabafo nesta direção, como quem ecoa a voz de muitos que são
das famílias pioneiras nessa história do Daime, seguiram e ajudaram Sebastião de muitas
formas, mas por vezes sentem o gosto da ingratidão, se veem injustiçados e menos beneficiados
pelos louros da expansão.

“Cadê a verdade? Se tu vai lá e faz uma arrecadação para uma coisa, faz aquilo,
num desvia não, porque teus filhos nenhum trabalha e é cheio de carro novo, de
moto nova, gastando gasolina, frescando aqui na vila com o dinheiro que tu vai lá
arrecadar para fazer uma coisa. Quando chega... Então tu é o que? tu é verdadeiro?
Eu digo: por que teve uma época que entrou sessenta mil na mão para dar um banho
nas mulheres do Mapiá, comprar coisas para as mulheres, roupas, fazer uma
lanchonete, não sei o que, virou tudo merda de alma, acabou tudo, não deu nada
para as mulheres. Então é mentira e isso é culpa de quem? Da administração. Aí
vem um monte de secretário do Rio de Janeiro, não sei da onde, bota na cabeça,
fica tipo uma barata véia tonta... umas casas que são umas puta de uma casa, que a
escada... eu vi aquilo e eu digo: mas como é isso? Isso tá errado, um monte de gente
que não tem casa direito pra morar, o cara viaja ganha tudo de grana aí, uma puta
de uma casa mesmo, tipo de novela, porque é do padrinho e os outros tá arrastando
as cachorrinha... pô, isso é verdade? Isso é coisa certa? O Daime ensina isso? Não
meu irmão, vamos dividir o pão... Num é revolta, é a verdade, mas eu tô falando
coisa aqui, que eu já falei pra ele, na cara dele eu digo: ‘olha, lembra da cacimba do
Rio do Ouro? E tu falou que o tempo bom ia chegar? Eu acreditei naquela história,
como quem acredita que o sol vai nascer amanhã. E o tempo bom chegou, num foi?
E ele disse: ‘Chegou’! E e eu digo ‘mas foi dividido?’ – ‘ééé’... eu digo ‘óh aí óh,
enquanto eu tô no roçado, ralando macaxeira no ralo para fazer farinha, teu filho tá
na boca do Mapiá, gastando gasolina de um motor de rabo numa canoa. Então pra
mim, o tempo bom chegou, só que não foi dividido não’. Rapaz, você não sabe o
que é o quibebe da macaxeira que nem eu, tá entendendo? Tirar folha de pito pra
botar no caldo de feijão e cortar a macaxeirinha, comer aquela sopa, aquele quibebe
mesmo. No Rio do Ouro, enquanto a gente, meu pai era canoeiro e nós cortava
seringa. Se fosse na grana nós tava feito! O pai fez foi de oitenta canoa, não ganhou
um real por essas canoas na comunidade, tá entendendo? E o pai fazia canoa e eu e
meu irmão cortava seringa. Era dois trabalhando, daí pegava nossa borracha, vendia
pra dar dinheiro de feira pros outros que não trabalhava. Rapaz, depois que eu soube
1218
ASSIS, 2017, p. 289.
385
disso me deu uma raiva. E eu não tô falando mentira não, aí isso vai... pra mim que
fui da raiz? Meu pai serrou madeira na serra manual, aí deu um título de uma colônia
e agora tá tudo brigando por causa de terra. É por isso que agora tô meio quieto,
vou ficar em casa comendo, bebendo suco, enchendo minha barriga, escutando hino
de um lado para o outro, se tomar Daime salva, eu já tô salvo. Só faltava morrer de
azia com aquela farofa.”1219

Assis comenta ainda que este sistema econômico do Céu do Mapiá, baseado
principalmente na prestação de serviços – como em uma cidade - vem sofrendo abalos nos
últimos anos, mesmo antes da pandemia de covid-19, que restringiu a entrada de visitantes na
vila por quase dois anos. Em 2017, Assis já destacava que o

“fluxo de pessoas, especialmente de estrangeiros, tem diminuído ao longo dos anos,


não só devido às dificuldades inerentes à viagem para o Mapiá e à perda de
exotismo do Santo Daime na medida em que este foi ficando conhecido na
sociedade Ocidental e novas formas de consumo da ayahuasca foram se
popularizando, mas também por conta de supostos abusos financeiros por parte da
ICEFLU e dos prestadores de serviço da comunidade de uma forma geral, além de
diversas ocorrências de furtos na vila.”1220

Noélia ao relatar as dificuldades para se tomar Daime no Chile, detalhou um aspecto


interessante que é a estadia e convivência na Amazônia acreana como lócus de aprendizagem
das culturas ayahuasqueiras. Narra o privilégio que é tomar um Daime recém preparado, ainda
quentinho, saindo da panela do feitio, em contraponto a bebida feita tipo exportação, como o
chamado Daime gel. Em linhas gerais, esse Daime é obtido do processo prolongado de
cozimento até que ocorra a máxima evaporação, alcançando um estado quase sólido da bebida,
que depois, ao chegar ao seu destino, é dissolvida em água quente.

“Eu dou valor ao Daime quando eu venho eu gosto de sentir o sabor dele, porque
nós tomamos um daime que tem um sabor.... que tá guardado, tá muito tempo na
geladeira, já a garrafinha foi aberta, entende? Tem hora que temos também, não
pode levar aquele daime mais líquido, geralmente os irmãos levam aquele que é
bem grosso e é tipo um iogurte que quase nem entra... tomar um Daime recém feito
com gosto de cacau, docinho assim que dá pra sentir sabor. Um Daime morno da
panela que tá trabalhando assim no feitio, no preparo. Ter essa experiência de tomar
o daime de dentro da panela, não é uma coisa que seja fácil, nós tem que viajar
dispor de recursos, de um esforço, de se planejar pra vir até aqui E participar e
aguentar a força da floresta. Quem não tem costume não é igual vocês que nascem
aqui e cada vez que tu quer participar tu vai, aqui aproveitar o máximo a chance de

1219
A.F.S., 2020.
1220
ASSIS, 2017, p. 294.
386
trabalhar no feitio, de tomar Santo Daime de fazer todos os trabalhos, usar farda
né?”1221

Os personagens nesta cartografia de memórias e territórios acres e agridoces são


apresentados em linhas discursivas que transpassam diferentes afetos e dão-se às muitas
perspectivas intercruzadas. Ao longo de sua gestão Maurílio, além de abrir essas novas redes e
manter o funcionamento da Cinco Mil, procurando melhorar os açudes, plantar rainha, café e
outras coisas, realizou obras na igreja, como a expansão dos fundos do salão, mexendo na
arquitetura original. Também fez a reforma dos banheiros. Fez uma construção destinada à
casinha das crianças, que acabou sendo dispensada pelas mulheres, por considerarem as
instalações inadequadas e longe do espaço feminino, sendo reativada em 2023. A construção
da lua criou um espaço de convivência. Porém ele destruiu o muro em volta da sede, que
delimitava o espaço da igreja, a qual se adentrava apenas depois de passar pelo portãozinho
ornado com os dizeres: Hei de Vencer.
Luzia comentou que essas mudanças na arquitetura da sede não eram debatidas com a
comunidade e geralmente expressavam a vontade da liderança sem que as pessoas pudessem
opinar. Maurílio mesmo comentou:

“Eu sempre fui meio enjoado que eu acho que foi grande defeito meu que eu nunca
pedi opinião pra ninguém, sempre fui cismado de fazer do meu jeito, nem aceitava
opinião e nem ajuda, cara chato …rsrsrs, queria ver eu ficar com raiva era o cara
falar pra mim que ia me ajudar, ficava morrendo de raiva...”1222

Em 2022, participando de uma reunião do Cefluwcs, percebi que muitos membros


consideram importante a existência do muro, que achavam um erro a derrubada e estavam
empenhados em fazer campanhas para comprar material e reerguê-lo. Átila certa vez comentou
que o muro foi destruído de implicância mesmo, com a desculpa de que precisava abrir mais,
mas era só porque tinha sido o Nonato e seu Wilson que tinham feito. A mesma coisa com a
Nossa Senhora da Conceição que havia pintada na parede.
A pintura da fachada da igreja foi restaurada pela última vez por volta de 2012, quando
modificou a imagem original, substituindo a imagem do Sagrado Coração de Jesus pela imagem
do mestre Irineu. Nossa Senhora da Conceição aparece pintada como a Rainha da Floresta e
adornada com a mata, arvores e animais. Alguns reparos mais emergenciais são urgentes na

1221
N.C., 2020.
1222
M.J.R., 2022.
387
parte de trás da sede, que foi descaracterizada e ampliada e apresentou problemas, como
goteiras na casinha do Daime – a serventia – e rachaduras na parede.
Existe uma grande expectativa em torno de que seja realizada a reforma da igreja para
as comemorações dos 50 anos da Colônia Cinco Mil em 2025, a pintura da fachada que está
muito deteriorada. Uma ampla reforma da sede construída pelo padrinho Sebastião e seus
seguidores entrou no planejamento de alguns apoiadores, no sentido de que existe um projeto
arquitetônico feito - destaca-se sem a consulta à comunidade, um projeto que apareceu pronto.
Porém não há previsão de recursos e nem de início das obras. A comunidade tenta se mobilizar
para fazer, pelo menos, a restauração da pintura e reformas mais urgentes com recursos
próprios.
João seguiu com seu relato tecendo diversas insatisfações em relação a aplicação das
doações que chegaram durante os últimos 20 anos, que poderiam ter trazido mais benfeitorias
do que as alcançadas até aqui, ao passo que relembra:

“Esses últimos vinte anos pois é exatamente, isso aí foi uma coisa muito incrível,
desmanchou, destruiu muita coisa cara! Por isso é que a gente, nós fica, até nós
morador, passa cada vergonha aqui por causa da casinha. Essa casinha do Daime,
as vezes vem visitante, a gente fica assim daquele jeito. Hoje em dia não! Passar na
casinha tu já ver uma coisa mais legal! Mas nós lutemos! Nós lutemos pra fazer!
Saiu deixou a casinha caindo, quebrada e o telhado caindo tudo.”1223

Átila, sua esposa, anos antes, declarou para Almeida Ramos, que “não agüentava mais
ver seu marido trabalhar para produzir seiscentos litros de Daime a cada quinze dias sem ganhar
nada, em benefício de Maurílio Reis, genro do padrinho, que faz exportação de Daime.”1224
Almeida Ramos sugere, a partir da sua pesquisa, que a “Fundação Padrinho Sebastião” foi
criada para “angariar fundos, em especial doações de norte-americanos e outros estrangeiros,
para quem ele fornece barris de Daime que são produzidos na colônia a cada quinze dias, onde
existem cultivares de jagube e chacrona.”1225
Ao escutar narrativas sobre como as tensões intracomunidade foram constituindo
territorialidades na Colônia Cinco Mil, fica claro que diferentes lideranças não estão imunes às
contradições típicas das formas de organização e ordenamento social-territorial que vivemos,
onde o poder centralizado conduz a formas desiguais e hierarquizadas relações e trocas.
Denúncias de apropriação indevida dos recursos coletivos advindos da expansão do Daime,

1223
J.A.S.S., 2022.
1224
ALMEIDA RAMOS, 2002, p. 101.
1225
Ibid.
388
sentimento de desigualdade entre os irmãos, são parte de um enredo que se repete e estão
possivelmente no âmago dos processos de desterritorialização e reterritorialização que
acontecem na Cinco Mil, e possivelmente em outras comunidades do Daime, formando essas
multiterritorialidades que se sobrepõe e se tangenciam.
Maurílio e Neves estiveram juntos praticamente 20 anos à frente da Cinco Mil, desde
1999 até 2019. Quando se separaram, Neves assumiu oficialmente a presidência do centro e
numa reunião daquele ano, a diretoria foi recomposta. Desde então, a reaproximação tímida
com a Iceflu tem sido um dos efeitos sentidos desta pequena, mas significativa mudança. Há
um sentimento entre a maior parte dos daimista da Cinco Mil de pertencimento à linha do
padrinho Sebastião e portanto à Iceflu, apesar do histórico de rupturas. Flaviano e muitos outros
seguidores da Cinco Mil acomodam em si essas questões nestes termos:

“Aí porque afinal de contas mesmo que aqui a presidente seja a Neves, mas a gente
sempre considera o padrinho Alfredo como o nosso presidente geral né, ele que
quando chega e, já senta lá no trono lá, no lugar dele, que compete a ele, que ele é
o chefe geral né. Então nós, nós somos filiados também a Iceflu praticamente né,
só não pagamos mensalidade da Iceflu, mas, mas somos filiados todo mundo que é
daqui da Cinco Mil, eu pelo menos me considero filiado da Cinco Mil e filiado da
Iceflu também, porque eu acho o bom é continuar aquela tradição mesmo sabe. Não
sei, eu me achava, não me achava tradicional, agora eu acho, me acho muito
tradicional agora.”1226

É interessante que Flaviano demarca uma relação afetiva e um sentimento de


pertencimento à Iceflu, em grande parte partilhada por outros dos membros da Cinco Mil,
porém não há oficialmente essa vinculação institucional, uma relação de filiação. Recentemente
a Iceflu divulgou uma figura/mapa indicando a sua rede de filiais espalhadas pelas 5 (cinco)
regiões do Brasil, e não considera a Cinco Mil como demarcação da sua presença em Rio
Branco. (Figura 8) Na Cinco Mil prevalece o sentimento de que a comunidade seria a mãe do
Céu do Mapiá e da Iceflu, uma mãe que, de alguma forma, ficou em uma posição periférica e
viu a comunidade-filha assumir a posição central como “sede mundial do Santo Daime”, como
se autodenominam.
Destaco que houve apoio da Iceflu às iniciativas da comunidade de reformar a antiga
escola para abrigar o Centro Cultural Padrinho Sebastião e Memorial Colônia Cinco Mil, por
ocasião desta pesquisa. Inaugurado em 2021, como parte da contrapartida e benfeitoria para a
comunidade proporcionada em articulação ao fazer desta pesquisa sobre suas histórias-

1226
F.S., 2020.
389
memórias-cartografias, o espaço tem sido o novo ponto de encontro da comunidade, que se
reúne para atividades de lazer, esportes, estudo de hinários. Alfredo se reuniu conosco, apoiou
a proposta e mobilizou esforços para direcionar recursos, que foram fundamentais na reforma
do espaço. Valdete e familiares estavam aqui e prestigiaram a inauguração.

Figura 8 – Mapa Rede Iceflu no Brasil (Colônia Cinco Mil ausente)

Fonte: “Rede Iceflu no Brasil” disponível em:https://www.facebook.com/santodaimeiceflu/

Desde 2019, aconteceram algumas reuniões para atualizar a composição da diretoria.


Em 2023, em uma Assembleia com poucos participantes, João Alberto assumiu a vice-
presidência, Flaviano a tesouraria. Há ainda os secretários e o conselho fiscal que, em tese,
acompanha o trabalho da diretoria. Não há um conselho doutrinário instituído e qualquer
necessidade deste, no caso dos não raros eventos de agressão verbal e até física entre os
membros da comunidade, as conversas e aconselhamentos mais informais são as opções mais
frequentes. A imagem do abandono, da ruína, da queda, da ausência lideranças carismáticas
que morem na comunidade, aptas as receber os visitantes que constantemente por ali passam, a
necessidade de um renascimento, são demandas muito presentes no imaginário daqueles que
ainda estão tentando dar continuidade e levantar a igreja e a comunidade. João destacou:

“Na colônia é pra casinha do Daime, a igreja, casa grande, essas coisas que as
pessoas chega e diz ‘poxa, que legal’! esses três pontos é o que eu acho mais
importante! Casinha de feitio, a igreja e a casa grande. E aí as outras coisas a gente
vai zelando, limpando, fazendo limpeza, né! É a coisa que eu mais quero agora é
começar essa reforma aí, que eu tô pedindo todo dia que ele venha, que vai ficar
bonito a igreja. Vai ter mais como ter o padrão direitinho da igreja, tudo feito nela,
as portas tudo direito, tudo fechado! Isso fazer uma coisa assim direito, né! Tá aí
graças a Deus eu tô aqui na Colônia Cinco Mil, sou um dos zelador mesmo, que o
padrinho Sebastião deixou aqui, né! Pra eu ser um dos zelador, eu num quero, eu
sempre digo que eu sou um dos zeladores, eu sempre digo que eu não sou dono ou
390
que eu mando. Eu tenho assim que a gente sempre tem que ter a pessoas que tá na
direção, dentro do sistema pra ver as coisas andar, não pra mandar, pra querer
mandar nos outros. Pra gente vencer a batalha agora a gente tem que começar, a
minha finalidade é chamar os irmão pra nós produzir. Produzir pra nós plantar, nós
os moradores, tô dizendo pra eles, nós vamos começar com essa terra que nós tem,
essa terra todinha aqui é nossa, da igreja.”1227

Marizete também comentou que, apesar das dificuldades, acredita que o tempo trará
melhorias necessárias para a manutenção dos espaços e das práticas culturais ali vivenciadas.

“Tá faltando gente, gente de garra para lutar e não ter medo não, porque tu sabe que
lutar com ser humano é difícil, que tu é professora tu tem o aluno bom, mas tem
outro, que tá te olhando ali, que pudesse te comer no dente comia, outro já tem um
carinho tão grande, outro já tão ‘tomara que vai embora né’... ser humano é o bicho
mais ruim do mundo, é mana e é o mais podre também, mas quer ser valentão doido
né... Agora quê que vamos mudar, aqui dentro do salão, o grupo vai mudar o quê,
vamo fazer uma diretoria aqui e botar cada um pra dar conta de levantar a história
entendeu, que a única atrasada, o começo da história, é a única atrasada é Cinco
Mil, porque não foi o meio nem o fim, foi o começo e nós ficamos no meio, num
terminou. Não vai ser nunca como era nunca mais nada né, porque nós também não
vive mais como era, quando nós for, já vão vir outra era assim, vai o povo, mas que
o importante é que não deixa acabar a origem da doutrina né, a história da nossa
história. Se cada um viver sua vida aqui é o melhor lugar para se viver. A gente não
vai viver a vida do outro, porque aí tu não tem como viver não!”1228

A sede da Colônia Cinco Mil continua atraindo muitos visitantes e sobretudo nos
períodos de festivais, que favorecem a reunião de toda a irmandade, os trabalhos registram em
média mais de 100 pessoas. A construção tem uma acústica excepcional, além de um excelente
conjunto de músicos e cantoras que conduzem a realização dos hinários com capricho. Nos
trabalhos de concentração nos dias 15 e 30 e nas Missas das Almas, que são realizadas uma vez
por mês, o número de participantes é bem menor, restringindo-se principalmente aos moradores
mais próximos e alguns membros da cidade.
Flaviano destaca que na Cinco Mil de hoje também tem “os trabalhos do Feliciano”,
que tem sido um dos principais pontos de tensão na atualidade, não exatamente por causa dos
trabalhos em si, mas porque nos primeiros anos de 2000 iniciou-se um litígio relativo à
demarcação das terras. Falar da Colônia Cinco Mil é também falar da Colônia Luau, espécie de
enclave-dissidência que compõe suas multiterritorialidades, o que demanda mais um capítulo
nesta caminhada.

1227
J.A.S.S., 2022.
1228
M.A.S.S., 2020.
391
4.3 A neopajelança na Colônia Luau e a questão da terra

Quando Feliciano e sua esposa Marinez Rodrigues foram desligados do Cefluwcs


depois de uma sequência de desentendimentos, agravados após a saída do Maurílio e o
acirramento das disputas pelas terras, a Colônia Luau passou a se organizar ainda mais como
uma territorialidade independente, realizando com regularidade os trabalhos com a bebida
Ayahuasca/Daime. Com uma ritualística própria e pouco sistematizada, em uma clareira na
mata, as práticas espiritualistas da Colônia Luau poderiam ser descritas como integradas ao
movimento que vem sendo intitulado como “neoxamanismo” para se diferenciar das práticas
indígenas tradicionais (xamânicas) e das religiões ayahuasqueiras ditas tradicionais. Porém tudo
indica que o termo xamã e seus derivados xamanismo, neoxamanismo, cuja origem remete aos
pajés dos povos siberianos, eram estranhos para grande parte dos povos indígenas e caboclos
das Amazônias, que preferem seus sinônimos: o pajé, a pajelança e a partir daí, podemos chamar
de neopajelança as práticas na Colônia Luau aqui analisadas.
O termo pajelança remete ao fato de que alguns indígenas Huni Kuin ficaram
hospedados com o casal, ajudando na fundação da Luau, tais como o Mapu Huni Kuin e Pajé
Agostinho. Feliciano comentou que nestas ocasiões em que consagravam o Daime na Cinco
Mil, havia uma “ligação muito grande com os indígenas” e que “Eles me botaram como pajé,
eles queriam Daime forte, eles diziam: ‘Pajé’, me chamava né, me condecoraram, colocaram
cocar na minha cabeça.”1229 Além de fazer uma alusão aos rituais indígenas, o termo pajelança
serve para se diferenciar dos tradicionais trabalhos do Daime realizados na sede da Cinco Mil,
que exigem um preparo bem mais específico, que envolve uma dieta, o uso de roupas
apropriadas, separação por gênero durante o ritual, comprimento de normas e horários entre
outros detalhes que caracterizam o disciplinado rito da doutrina do Daime. Certa vez Feliciano
me disse: “A Luau nasceu para colher quem não tem oportunidade nas igrejas, nasceu de um
projeto universal, não estamos surrupiando nada de ninguém... aprendemos com o mestre
Irineu, com o padrinho Sebastião, com padrinho Wilson, com os indígenas, é um louvor
universal.”1230
Marinez contou como se deu a aproximação com culturas indígenas e com os
movimentos alternativos no período de afirmação da Luau.

1229
F.S.F. 2022.
1230
Ibid.
392
“Em 2014, quando veio o Rainbow, foi que vieram muito índios, mesmo antes já
tinha vindo o Pajé Augustinho, que foi quem introduziu nós, o Feliciano, todos
nós... eu tenho essa ligação muito grande com ele, mas em 2014 que firmou mesmo.
Foi quando o Feliciano recebeu o cocar, foi quando o Shaneihu, os meninos tudo
vieram, fazia trabalho das pajelanças e tal. Aí a gente disse – bom, foi uma coisa
que foi nascendo naturalmente porque por conta do cocar e tudo né e ‘pajé, pajé’,
‘que trabalho é esse?’ ‘Pajelança! Pajelança.’ Coletivo Arte Cura Luau porque a
gente faz sempre essa ligação justamente a Pajelança é como uma arte curativa
então a gente fala arte cura Luau, coletivo Arte Cura Luau, família Luau num é um
ponto, um centro. Pois é, eles (do Rainbown) foram se identificando por conta da
gente participar dos encontros com eles e tá nesse movimento e num ter aquela coisa
de igreja né, como eles também a maioria desse povo é tudo da linha xamânica,
toma daime, toma ayahuasca, as medicinas e tudo porque tem a inclusão de outras
medicinas, mais não é só o daime, aí vem o rapé, vem a sananga, num sei que... a
identificação começou por aí”1231

Feliciano e Marinez reúnem semanalmente grupos em noites em volta da fogueira para


consagração da Ayahuasca, o que acontece geralmente aos sábados. “O teto da igreja são as
estrelas, o chão é de barro e as paredes são as árvores, bem integrado à natureza”1232, descreveu
Feliciano. A Luau se apresenta como um coletivo de arte e cura e os rituais envolvem diversos
tipos de musicalidades e performances. Consagram o Daime entoando hinos da doutrina e
cânticos diversos, usam rapé, folhas aromáticas para defumações entre outras práticas
espiritualistas. Eles ainda não possuem um registro oficial, estatuto, CNPJ e tudo o que
oficialmente seria exigido de uma instituição, mas estão procurando regularizar a situação para
não terem futuros problemas.
Conduzem uma vertente própria que sintetiza elementos do Daime com outras
referências nesta espécie de neopajelança. O espaço tem atraído visitantes de Rio Branco e
outras localidades, incluindo estrangeiros e em parceria com empresas locais, tem buscado
promover um turismo sustentável de base comunitária, com experiências de imersão na
natureza, trilhas ecológicas, performances artísticas e outras medicinas da floresta.
Destaca-se o uso de outras plantas professoras e animais curadores, com destaque para
o uso do rapé, feito a partir da combinação de diversas plantas, o uso do Kambô, a “vacina da
floresta” extraída a partir da secreção de uma rã e também uma espécie de colírio indígena,
denominado Sananga. A Sananga é obtida da extração de um sumo de um arbusto brejeiro
catalogado pela ciência como Tabernaemontana Sananho. Um dos princípios ativos
encontrados é a Ibogaína e para preparar o colírio são batidas as raízes do arbusto com água

1231
M.R., 2018.
1232
F.S.F. 2022.
393
limpa e potável, que resultam na extração do princípio ativo da planta. A tradição do uso da
sananga pelos Huni Kuin é de pingar uma ou duas gotas em cada olho antes de irem para a caça.
A substância aguça a percepção facilitando a identificação dos movimentos sutis na floresta e
por ressaltar texturas, profundidade, cores, dizem os indígenas que auxilia o caçador em sua
busca visual pela presa. Com o tempo a Luau foi se tornando um espaço independente dentro
da Cinco Mil, onde se fazem os feitios da bebida consagrada.

“Aí bom, aí nisso a gente já fazia, começamos a fazer concentração, começamos a


fazer hinário bailado fizemos lá em casa, aí o Feliciano já tinha a folha, já tinha o
jagube, já tinha tudo, aí teve a ideia de pegar uma peça de ferro que tinha lá que é
nossa mesinha até hoje. Aí saiu lá do feitio lá do Pronto-socorro e foi fazer o nosso
né...”1233

A Luau vem se territorializando como um enclave, que é a expressão usada para se


referir a um território dentro do outro. É uma área em litígio, pois como temos visto não há
consenso entre os moradores em relação à partilha das terras no processo de regularização
fundiária. Marinez conta como conheceu o Feliciano, da época em que tiveram a primeira filha
juntos e eles passaram a morar na Cinco Mil novamente.

“Aí conversa vai, conversa vem com a madrinha Julia, foi me contar que aquela
casa era do filho dela, porque ele tinha casado com a França, que é a ex cunhada do
Feliciano, que era casada com o irmão do Feliciano, que separou e estava com o
filho dela, não sei o quê, eu sei que ela foi ficar nessa casa. Aí botou o negócio da
terra, ‘porque a terra é o bem que meu marido deixou, um pedaço que sobrou dali
e daqui, eu quero vender aquela terra porque aquilo ali é a única herança que ficou
e hoje em dia tá lá o pessoal tomando de conta, diz que é dono que não é dono
nenhum’. Ai foi vindo aquelas conversas de terra não sei o quê, que ela queria
vender, bababa ‘eu tô morando ali na casa que o padrinho me emprestou pra eu
morar’, ‘é mas aquela casa tem dono’. Aí eu vim aqui para cidade, eu queria
trabalhar. Nessa época tinham fechado a escola, que até então a escolinha lá
funcionava, funcionava duas escolas lá, eu cheguei a dar aula. Aí vim pra cá pra
cidade, a gente fazia era tipo uma coisa que hoje chamam de hostel, tinha cozinha
onde as pessoas, pousada. Mariana era pequenininha nessa época, 95. Foi passando
muitas coisas e tudo, aí nisso o Vanja veio, aí eu decidi voltar para Colônia.
Resolvemos voltar, porque eu já queria firmar no espaço né e eu não queria ficar
aqui na cidade, eu queria ficar lá, eu já tinha largado tudo aqui para ficar lá. Eu não
me interessava mais por trabalhar aqui na cidade não, queria mais morar aqui na
cidade nada!!! Eu queria morar lá e de preferência de um jeito bem, sem depender
de ninguém, autossustentável. Eu não queria mais depender de empresa, de
governo, que eu tinha me magoado muito, que eu trabalhava para o governo na

1233
M.R., 2018.
394
mesma época do Collor, foi horrível o jeito que a gente saiu da Fundação, trabalhava
em um monte de projeto legal, de repente tive que largar tudo. Ixi foi horrível!”1234

É a partir de então, já bem no finalzinho da década de 1990, que o casal começa a se


organizar para negociar com o Vanja, filho da madrinha Julia, aquelas que eram tidas como
suas antigas colônias, apesar dessas demarcações serem bem controversas e sobreporem muitas
versões orais e poucos documentos escritos de registro de posse da terra. Segundo alguns
narradores, Vanja teria assinado uma procuração que consentia que Marinez negociasse as
terras porque é um homem de pouco estudo, mas não tive acesso ao documento. Ela narrou:

“Aí a gente tava lá, chega o Vanja: Aí Feliciano tô aí com a mãe, queria até falar
com vocês mesmo porque a mãe disse que essa aqui é único bem, de herança que a
mãe tem, num sei o quê, tá bom a gente também está interessado... Conversa vai,
conversa vem, passaram uns dia e tal, ficaram hospedados lá no compadre Nonato.
Aí eu digo ‘tá, mas para ficar uma coisa mais certa então, não tem nada a ver com
a igreja não, num tem nada a vê com igreja, com terra, com ninguém, com nada
isso, aqui é nosso, da mãe’. Aí então fomos fazer um papel para não ficar aqui só
na boca, foi a minha sorte. Aí viemos no Fórum teve uma procuração pública né e
mandou eu ver porque na época tudo era pelo Incra. Aí pronto, quando já pude
entrar no processo da terra e tudo, aí nisso a Cinco Mil foi, quando o compadre
Nonato também se afastou, se afastou da igreja e muita gente foi embora da igreja,
teve uma saída grande de gente, porque o pessoal que morava na Colônia foi tudo,
foi uma época de movimento meio escasso.”1235

Em setembro de 1999, foi realizado um contrato de compra e venda de uma área


250x500 metros, por 9,000 reais, da Marinez para o Feliciano1236. No relato abaixo, Marinez
detalhou o contexto em que se inicia a reconfiguração das terras, que coincide com a saída do
Nonato e a entrega da Colônia Cinco Mil da família de seu Wilson de volta pra madrinha Rita:

“Depois que o padrinho Wilson, padrinho Wilson tava para fazer a passagem, num
tempo antes já tava um movimento político assim meio feio e nisso ele chamou o
pessoal do Mapiá, foi quando veio a madrinha Rita, o pessoal da secretaria e tal e
ele para entregar... que ele não enxergava mais, o povo não tinha mais paciência de
escutar ele e escutar ele significava o que? Que você ir pra igreja, você ia ser
praticante da Doutrina. Aí bom, tivemos essa reunião foi muito boa essa reunião,
marcou muito. Num dia a gente via bem claro assim, o padrinho Wilson tipo
passando né, aquela responsabilidade que ele segurou até ali de volta para a
madrinha Rita. Daí ficou meio assim, a colônia tudo bom, mas aí a gente foi morar
lá... aí foi quando o Vanja veio, aí fez essa passagem da terra, que foi significativa
também. E a gente toma essa responsabilidade de produzir naquele espaço e fazer

1234
M.R., 2018.
1235
Ibid.
1236
Contrato de Compra e Venda, 1999 (cópia digital mimeo)
395
com que aquele espaço crescesse, já de uma outra maneira, que a gente queria que
era na verdade resgatar o que o padrinho Sebastião tinha feito ali, tinha deixado e
de qualquer maneira que o padrinho Wilson também fazia esse trabalho, que era na
terra e trabalhar na igreja que tinha se perdido essa coisa.”1237

Em junho de 2001, Feliciano apresenta declaração junto ao Instituto de Meio Ambiente


do Acre (IMAC) de que detem a posse “justa e de boa fé” de uma área de 12,5 hectares havia
28 anos localizada “entre a Colônia Cinco Mil e o sr. Francisco Gregório1238”. Feliciano foi
colaborador das diversas diretorias que comandaram o Centro daimista, além de jagubeiro
oficial, isto é, aquele que sabe ir até as áreas de mata extrair o cipó indispensável para o preparo
do cozimento. Apoiou diversos feitios na Cinco Mil e no Pronto-socorro antes de construir sua
própria casinhade feitio, o que evidencia que, apesar de dividida, as territorialidades e as
pessoas mantém relações de apoio, trocas e convivências. Até hoje, ele e sua equipe (filho,
sobrinhos e afilhados) ajudam nos feitios do Pronto-socorro. Por volta de 2012, Feliciano
começou a viajar para outras regiões do Brasil, como fazem os “padrinhos” do Daime e suas
“comitivas da Floresta”, nos intercâmbios entre os centros do Daime.
A própria Marinez narrou como se deu o início da Colônia Luau, sobre como seus ideais
comunitários e ecológicos representariam a verdadeira essência do pensamento do padrinho
Sebastião, ao seu ver, perdida na Colônia Cinco Mil. Este trecho de seu relato permite-nos situar
brevemente os múltiplos processos de desterritorializações e reterritorializações que estão
compondo a cartografia da Colônia Cinco Mil.

“E aí aquela história de que a Colônia é do Maurílio, foi quando o Maurílio começou


a entrar nas confusões por causa da terra e aí foi quando a gente decidiu que daqui
pra frente vamos fazer o movimento que a gente quer. Aí foi quando Feliciano já
tinha o registro da terra com nome, porque tinha que botar lá no IMAC no papel,
num sei o que trálálá. Aí a gente pensou bem a levantar o nome Luau, a história do
processo que a gente pensava, eu comecei pela história do Feliciano, de onde o
Feliciano veio e o que que ele tava fazendo agora, agora era aquele espaço novo lá,
da Colônia Luau, que a gente tava recebendo gente e daí foi nascendo a história
através da história. Viver num movimento comunitário como um todo, mesmo
porque agora o que nos une ali é a igreja, o que tem de comum ainda ali, porque aí
veio essa questão da terra ficou muito individualizado, cada um acha que ‘a porque
eu tô no meu quintal’... então não tenho mais responsabilidade com o quintal do
outro, com a floresta num sei o que. Aí eu comecei a observar isso, aí que o
momento que as pessoas se sentem dona daquele pedaço, acha que pode sair
derrubando a floresta sabe? Minha intenção era manter a floresta em pé, porque só
1237
M.R., 2018.
1238
O morador vizinho à Cinco Mil que atende por nome Francisco e é mais conhecido como Chico do Manezinho
apesar de não participar do Daime, é primo da matriarca Rita Gregório e desde o início da Cinco Mil, esteve
envolvido com as atividades agrícolas ali coletivizadas, de modo que acompanhou todas estas transformações.
396
com essa possibilidade de ter a terra ali que eu consigo isso, porque do jeito que
era, tá aí tanto que a gente abriu mão com vizinho, a primeira coisa que fizeram foi
derrubar árvore centenária ali, coisa que faz parte da Colônia Cinco Mil, árvores
que hoje em dia nem tem mais, tipo de manga, que nem tem mais, tipo de fruteira
que nem tem mais, a primeira coisa que o pessoal faz é sair derrubando. E o conceito
sabe da Cinco Mil, de comunidade, de trabalhar a terra, da autossustentabilidade,
da preservação da cultura do Daime, do que o Padrinho abriu, pra essa parte de
Umbanda, da cultura africana, da cultura indígena, tudo isso o Padrinho abriu...”1239

O casal tem sido acusado por parte da comunidade de tentarem roubar as terras,
impedindo a livre circulação dos moradores na área, o que inclui acesso aos antigos plantios de
rainha, a trilha da Samaúma e outras espécies centenárias, ao terreiro aberto para realização de
trabalhos espirituais ainda na época de Sebastião. Luzia narrou que a trilha e o reconhecimento
das espécies vegetais ali presentes foram resultado de uma iniciativa da chamada Escola da
Floresta. Gilcélio, seu Francisco Matiole foram os membros da Cinco Mil que estiveram mais
diretamente envolvidos no projeto que culminou na abertura da trilha e reconhecimento de
várias espécies presentes no caminho.
Com o tempo, a comunidade foi deixando de lado como área de preservação e Feliciano,
como antigo morador, passou a reivindicar um espaço de aproximadamente 12 hectares das
terras reflorestadas remanescentes da Colônia Cinco Mil. Já em 2005, Feliciano recorreu ao
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Branco para firmar Declaração de Posse de uma
área “fazendo divisa pelo lado direito com a Associação do Moradores da Colônia Cinco Mil e
pelo lado esquerdo com o Sr. Francisco Antônio da Silva Pereira, onde mora na área desde o
dia 8 de setembro de 1999.”1240 A declaração cita o Contrato de Compra e Venda de Imóvel
Rural acima referido e é este o principal ponto de contestação, pois nem a Associação de
Moradores da Colônia Cinco Mil1241 e nem a diretoria e membros do Cefluwcs aceitam os
termos desta negociação, uma vez que, segundo eles, as terras não pertenciam a Marinez e,
portanto, não poderiam ter sido vendidas para seu próprio companheiro.
Também em 2005, Raimundo Nonato registrou no cartório a Planta de Imóvel Rural da
propriedade rural intitulada Vila Carneiro, com 5.834 ha e um perímetro de 1030 m. Esta área
não tem sido, desde então, considerada como uma parte da Colônia Cinco Mil e sim como uma
territorialidade autônoma, ainda que, historicamente, fosse parte da antiga Cinco Mil. Esta por

1239
M.R., 2018.
1240
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Branco para firmar Declaração de Posse.
1241
A Associação de Moradores da Colônia Cinco Mil foi fundada em 1985 e foi criada no intuito de representar
a comunidade em situações diversas, que iam além da dimensão ritualística-espiritual, gerida pelo Centro. Sua
atuação na comunidade hoje é mínima, restringindo ao envio de ofícios à órgãos públicos reinvindicando melhoria
nos serviços, como reparos na ponte que dá acesso à localidade, iluminação pública, etc.
397
sua vez, também não é objeto de contestação por parte da Associação dos Moradores e
Cefluwcs, pois a doação, dada para Wilson Carneiro e família, é por todos reconhecida. Na
área, pelo levantamento e registro feito pelo Iteracre em 2015, registrou-se 6 ocupações, 2 lotes
sem construções e 3 residências nesta área. No censo comunitário, feito em 2022, foram
identificadas 9 residências na Vila Carneiro (setor 1), sendo destas, 6 efetivamente ocupadas,
uma moradia coletiva/hospedagem, uma casa da família Corrente usada como moradia
temporária, além dos 2 lotes sem construções, uma casa vazia, totalizando de 20 a 25 pessoas.
(Figura 9)

Figura 9- Mapa dos setores censitários (1 a 6)

Fonte: Moura, 2023.

Em junho de 2007, como parte das iniciativas para regularizar sua posse na área que
passou a intitular como Colônia Luau, Feliciano conseguiu uma declaração, expedida pelo
Iteracre, de que reside e explora um lote na área. Já em outubro de 2010, Feliciano registra o
pedido no Iteracre de regularização fundiária dos 12 hectares, alegando que ele e sua família
vivem na área desde 1975 e que a Colônia Luau funciona como um centro de recuperação de
dependentes químicos.
Cientes desta movimentação, em 2009 o Cefluwcs procurou o Iteracre solicitando cópia
do processo de regularização fundiária que Maurílio, em nome do Cefluwcs, teria aberto no ano
398
anterior (n°673/2008). Na resposta dada pelo Iteracre, destaca-se a existência de dois pedidos
anteriores incidindo na mesma área: o de Raimundo Nonato e o de Feliciano. O documento
então dispõe que, para dar continuidade ao processo de regularização e entrega dos títulos
definitivos, “será necessária a vistoria de todos os moradores ali existentes, com o respectivo
preenchimento do um Laudo de Identificação Fundiária (LIF); verificação da área de cada um
dos requerentes, com suas dimensões e limites, georeferenciada.”1242
Acompanhando os relatos dos documentos, em abril de 2014 aconteceu uma audiência
pública promovida pelo Iteracre junto com Ministério Público Estadual (MPAC) e Secretaria
de Articulação do município de Rio Branco e a comunidade. Eu participei desta reunião por
curiosidade e para me inteirar melhor do assunto, ainda sem nenhuma pretensão de fazer
pesquisas sobre o Daime ou a comunidade. Lembro que o debate foi acalorado. Estavam
presentes o secretário do Iteracre, promotor da vara conflitos agrários e da vara de registros
públicos na época, o que indicava a intenção do Estado de regularizar a propriedade e facilitar
o processo. Um dossiê com o levantamento topográfico já havia sido feito. Uma reportagem
divulgada no site do governo do Acre, do dia 12 de abril de 2014, relata que

o resultado foi o consenso de regularização de toda a área em nome do centro,


não em nome de particulares, preservando os interesses de solidificar a
comunidade. E como encaminhamento, no dia 30 deste mês, será assinado o
Termo de Acordo de Conduta no Ministério Público pelos representantes.1243

Porém, o que se sabe é que os Termos de Acordo de Conduta (Tac) não foram assinados
por vários moradores, impedindo a consolidação e continuidade do processo. Uma outra
reportagem, do mês seguinte, divulgada no site do MPAC, descreve que “O TAC objetiva
conceder o título definitivo das terras em nome da igreja, o que impede qualquer pessoa de
vender o imóvel. Os moradores, para ter direito às terras, devem solicitar concessão ao
administrador do centro.”1244 A questão, colocada nestes termos, dificultou a conciliação, uma
vez que muitos moradores já não se sentem representados e nem frequentam a igreja, isto é, a
entidade religiosa Cefluwcs, que seria a herdeira do antigo Cefluris e portanto destas áreas que
somam pouco mais de 60 hectares.
Uma nova reunião ficou agendada para o mês de maio e uma nova visita à localidade
foi feita, em 2015, desta vez com a Promotoria Especializada de Conflitos Agrários e do Núcleo
de Apoio Técnico (Nat), que visitaram o local juntamente com as equipes do Iteracre, atendendo

1242
ITERACRE, Despacho, 2009.
1243
https://agencia.ac.gov.br/iteracre-realiza-audiencia-publica-na-colonia-cinco-mil/
1244
http://www.mpca.mp.br/wp-content/uploads/Daime-visita
399
“a um pedido da comunidade que não aceita o resultado das medições feitas pelo
ITERACRE.”1245 Ainda segundo a reportagem, após a visita técnica, o promotor de Justiça
Vinícius Menandro Evangelista, relatou que

Basta apenas os moradores entrarem em consenso com a divisão das terras.


Alguém precisará ceder um pouco para a situação ser resolvida
amigavelmente. No mapa do ITERACRE, é clara a medição de toda a área,
mas os moradores insistiram em uma nova avaliação e nós fomos
acompanhar in loco.1246

O trabalho de identificação dos moradores (cadastro) e de medição foi feito, como


descreve o Relatório de Vistoria de setembro de 2015. A divisão proposta em 2014 e que foi
recusada por parte dos moradores, identificou 27 ocupantes e que a área seria regularizada
considerando a seguinte divisão: 5,8 há para Raimundo Nonato e família (a Vila Carneiro);
Feliciano e família ficariam com 12,5 ha (a Colônia Luau); e o restante dividido em três áreas
pertencentes não ao Cefluwcs mas à Associação dos Moradores da Colônia Cinco Mil, divididas
em lotes de 5,9; 9,6; e 31,4 ha, totalizando aproximados 46,9 há conforme os dados dos
memoriais descritivos de 2014.
Em maio de 2014 foi realizado o Encontro Rainbow Gathering, que reuniu artistas e
artesãos de várias partes do mundo, andarilhos autônomos, que chegaram a Cinco Mil/Colônia
Luau, numa nova efervescência de visitantes. O Encontro do Arco Íris surgiu provavelmente
nos Estados Unidos em 1971, com a intenção de reunir pessoas ligadas ao movimento, em
florestas remotas, durante um ciclo lunar, para formarem comunidades temporárias para troca
de experiências. Promovem o vegetarianismo, os ideais de paz, amor, o ideário hippie de
liberdade. O grupo se apresenta “como uma alternativa ao consumismo, capitalismo e costumes
vigentes”, como destacou uma reportagem da Revista Trip em 2012.1247
O tradicional evento hippie não esteve vinculado ao centro do Daime, como noticiado
por Ribeiro1248 e confirmado com os apoiadores locais, mas o uso ritualístico da Ayahuasca foi
uma das atividades no Encontro, que aconteceu com o aval e apoio da diretoria do Cefluwcs.
Em linhas gerais, o Rainbow Gathering acontece anualmente há mais de 40 anos em locais que
favoreçam o contato com a natureza.

1245
http://www.mpca.mp.br/wp-content/uploads/Daime-visita
1246
Ibid.
1247
https://revistatrip.uol.com.br/trip/rainbow-gathering
1248
https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2014/05/encontro-rainbow-atrai-comunidades-alternativas-de-todo-o-
mundo-ao-ac.html
400
Segundo alguns participantes ouvidos, o evento não foi muito bem organizado, não
havia uma estrutura bem planejada para receber as centenas de visitantes. Ocorreram surtos de
doenças de pele, por exemplo, devido às más condições de higiene e gestão dos dejetos.
Também decorreu-se um profundo mal-estar devido ao fato da Colônia não ser uma área
consideravelmente produtiva, sendo que apenas algumas moradores praticam agricultura
familiar pra consumo próprio e portanto até mesmo a macaxeira, os ovos, o alface e outros itens
básicos tiveram que ser comprados na cidade.
Voltando a questão da terra, o Laudo de Identificação Fundiária de 2015 concluiu que
os moradores se dividiram em duas vilas: A Vila Carneiro e a Vila Santa Maria. Porém, relata
que “alguns lotes já foram vendidos e/ou doados para filhos e/ou amigos, e/ou amigos, e/ou
parentes, e/ou amigos do Céu do Mapiá e os mesmos continuam se afrontando por causa da
divisão interna dos lotes.”1249
Em 2017, o Ministério Público voltou a recomendar ao Iteracre que regularizasse e
situação fundiária de posseiros da 'Colônia Cinco Mil' em 60 dias. A reportagem de Quésia
Melo, do G1/Ac, explica que o diretor do Iteracre marcaria nova audiência pública no local para
conversar com os moradores e destaca o trecho do Diário Eletrônico do Ministério Público de
06 de outubro de 2017, que explicita que há um “‘intenso litígio coletivo pela posse de terra na
área’ que fica na divisa do Seringal Panorama e Extrema, no Seringal Empresa, na Gleba
Mâncio Lima.”1250 Outros jornais como o Ac24 horas também noticiaram a questão, destacando
que, segundo o MPAC, a área em questão não pode ser objeto de usucapião pois pertence ao
Estado do Acre, mas que o órgão recomenda a regularização fundiária dos moradores1251.
Mesmo depois de uma tentativa não muito vitoriosa de realização do Rainbow
Gathering, Feliciano e sua esposa Marinez não desistiram de sediar uma outra versão do
tradicional evento hippie e assim atrair parceiros para fortalecer práticas sustentáveis,
comunitárias e alternativas na Colônia Luau. Entre 2014-2017 viajaram por diversas regiões
brasileiras participando do Encontro de Comunidades Alternativas (Enca), no intuito de
conseguir trazer o evento ao Acre em julho de 2018.
O Enca é um dos mais antigos encontros de comunidades alternativas no Brasil e desde
meados da década de 1970 reúne, durante um mês, pessoas interessadas em práticas diversas
de imersão em espaços naturais, visando a produção de uma alimentação natural, troca de
sementes crioulas, vivencias de arte e cura, rituais com fogo sagrado, rodas de conversa etc.

1249
Iteracre, Relatório de vistoria, 2015.
1250
Reportagem G1
1251
Ac24 horas. A pedido do MPAC, Iteracre deve regularizar situação fundiária de posseiros da ‘Colônia Cinco Mil’.
401
geralmente em lugares afastados. Em grande medida, assemelha-se e confunde-se com o
Encontro da Família Arco-Íris, tendo uma história comum, mas pelas desavenças e diferenças,
desmembraram-se em dois movimentos, como narrou Marinez a partir da experiência com os
dois grupos:

“Porque eu não sabia achava que era tudo a mesma coisa cheguei lá toda oooooooo
sabe? Levei muito fora, muitas cara feia, muitos tipo se manca sabe assim? Não
aceitavam não e a galera do Rainbow dizia que não ia para o Enca, porque o Enca
era elitista, que a galera do Enca é nariz empinado... Veio um bocado de galera que
não ia... Então tem uma divisão, o pessoal do Enca torce o nariz o pessoal do
Rainbow, também aí até então eu não conhecia nada disso e ainda tô
conhecendo.”1252

Nota-se que esses processos de cisões e fraturas entre os grupos é uma constante,
potencializada pelas relações de poder e mesmos nesses grupos alternativos e menos
institucionalizados ela acontece. O 42° Enca foi realizado dentro da Colônia Cinco Mil e
contribuiu para a consolidação e demarcação do espaço chamado de Colônia Luau, isto é o
lugar vai se forjando como narrativa e realidade. O evento daquele ano reuniu mais de cem
pessoas e correu tudo de forma bem mais organizada que o evento anterior. Durante os dias do
evento funcionou uma cozinha comunitária com refeições coletivas e vegetarianas e tudo fora
pensado para minimizar os impactos da presença humana no ambiente natural, incluindo a
construção de um banheiro seco e uma fossa ecológica, que fizeram falta no evento de 2014. O
Enca foi descrito por uma dos participantes como

“Encontro de almas que vivem lado a lado lutando por um ideal mesmo a
quilômetros de distância. Encontros de histórias e fatos que fortificam a
aprendizagem de uma alternativa viável. Encontro de conhecedores que trocam
informações para a criação e formação de estruturas bases para esta nova sociedade
que emerge com tantas dificuldades, porém com muita força.”1253

No Enca realizado na Colônia Cinco Mil aconteceram trabalhos com o uso ritual da
Ayahuasca, porém o movimento não adota nenhuma filosofia religiosa, sendo alternativo,
eclético, por isso nem todos os participantes do encontro participaram das cerimônias. O mesmo
mal-estar repetiu-se quando os visitantes perceberam a pouca produtividade agrícola e que
teriam que comprar os alimentos na cidade. Muitos no grupo sugeriam que era melhor transferir
o evento para um lugar floresta adentro, porém as lideranças optaram por ficar. Maurílio contou

1252
M.R., 2018.
1253
http://www.geocities.ws/coisavive/enca.htm
402
que estava junto com Feliciano na empreitada de realização destes eventos em 2014 e 2018,
contrariando as narrativas que sustentam não haver ligação dos eventos com a Cinco Mil, assim
como narrou sobre as desavenças que aconteceram, porque parte do grupo não curtia muito a
ideia de ficar na Colônia:

“Até lembro que o ENCA e o Rainbow nunca mais foram os mesmos depois que
passaram pela Cinco Mil, porque… muitas experiências, até com a própria
divindade, tivemos uns trabalhos dentro na Colônia, dentro do trabalho da igreja né.
E fora também, eles se aproximaram mais do Daime né, que quando foram embora
por exemplo, eles mesmo levaram 2 litros ou 4 litros mel forte, que foram tomando
no ônibus. Lá na Cinco Mil tinha a turma que ficava no acampamento e eu convenci
pra uma grande diretoria deles que por tá aqui na Cinco Mil já não precisava ir pra
dentro do mato mais - meu veio, cê vai pra mais onde pra dentro do mato? Já tá em
Rio Branco, no Acre, na 5mil, na casa de padrinho Sebastião, cê quer mais o que?
Ir pra onde?! Deixa de besteira, fica aqui dentro. Chovia muito, chovia muito, essa
época choveu muito, a grande diretoria preferiu ficar na casa do padrinho, com
fogão de lenha, cobertinha rsrs e isso criou assim, um certo desequilíbrio estrutural
do Enca, é a turma que morou lá na chuva, que praticou o enquismo no modo de
dizer né, não gostou muito dessa atuação.”1254

Os participantes do Enca exaltam o fogo sagrado como um símbolo de luz que se


mantem acesso durante todo o evento. Periodicamente, fazem uma roda, onde dão-se as mãos,
ecoam cânticos e dão alguns avisos sobre as atividades planejadas. Também evocam o OM.
Geralmente, dependendo de onde o evento acontece, fazem bioconstruções para abrigar, por
exemplo, espaços de cura e para as crianças, mas isso não aconteceu na Cinco Mil. Outra
simbologia usada pelo grupo é o bastão, que utilizam em roda, para falarem e serem ouvidos,
em um exercício de escuta, posicionamento, construção de uma identidade grupal e princípios
coletivos.
Na Luau frequentam principalmente a família de Feliciano e Marinez, os visitantes e
turistas. Além das cerimônias aos sábados, que tem um número de participantes que variam
dependendo do sábado, na Luau tem acontecido aulas de Ioga na mata e outras vivências,
incluindo parcerias com uma empresa júnior do curso de Engenharia Florestal da UFAC. Com
o fim da pandemia de covid-19, a partir de 2022, a Luau também começou a trabalhar com uma
empresa de turismo local, a “Destino Acre” e oferece um pacote de atividades que inclui trilha
interpretativa e contemplativa com guia local, identificação de espécies, apresentação da cultura
do Daime/Ayahuasca. Pelo anunciado, sabe-se que as vivências custam em média 100,00 reais

1254
M.J.R., 2022.

403
e inclui seguro e alimentação. Na rede social da empresa, a Luau é descrita como “um quintal
florestal dentro da cidade, onde a família anfitriã da Colônia Luau sempre nos recebe com muito
carinho e ensinamentos das medicinas da floresta.”1255 Assim a mercantilização do espaço para
fins de turismo de vivência e práticas espiritualistas-ecológicas começou a acontecer de forma
mais sistemática e organizada.
A produção dos lugares como narrativas vai se elucidando às nossas vistas na medida
que percebe-se que os territórios, não apenas no contexto macro político e econômico das
guerras e da geopolítica mundial, também no micropolítico das territorialidades, dos território-
cotidianos dos espaços vividos, as fronteiras se redesenham e se redefinem ao longo do tempo.
Neste processo de redefinição, novos marcos temporais e espaciais são estabelecidos e se
afirmam e se legitimam por meio das narrativas e dos atos de nomeação. As fraturas, rupturas
disjunções ora são lidas como rompimentos que geram exclusão, no sentido de ou é um ou é
outro, “não pode ser ambos”1256, ora possibilitam que, mesmo no reconhecimento da disjunção,
haja inclusão, diálogos, trocas, isto é, que fraturas não significam, necessariamente, oposição.
Isso abre possibilidades para experimentações entre os divergentes, o que potencialmente
implode a lógica binária, polarizada e excludente.

1255
DESTINO ACRE. Trilha Luau + Yoga. Edição Março 2023! Acre. 02/03/2023. Instagram @destinoacre.
1256
LOPES e TRINDADE. “Esquizoanálise- Síntese Disjuntiva”, 2016.
404
4.4 Fronteiras e Limites na Colônia Cinco Mil nos seus 50 anos

“Rezo prece e canto hino


Para levantar esta torre
Viver com alegria
Ter gosto e ter amor.”

Hinário Seis de Janeiro, João Pereira.

Nos anos que se seguiram, após a saída definitiva do Maurílio, as tensões entre membros
da nova diretoria com alguns moradores que opõe-se a tese da unidade territorial para
regularização fundiária se mantiveram. Anexo ao processo, consta que outro antigo morador da
Cinco Mil, herdeiro da antiga seguidora do Cefluris/Cefluwcs Clícia Cavalcante, procurou o
Ministério Público em 2019 “informando que sofre ameaça por parte de sua vizinhança,
decorrente de conflitos agrários”1257. Em um Boletim de Ocorrência de 2021, o morador
também declara sofrer ameaças por parte de alguns dirigentes do Cefluwcs, que estariam
coagindo para que ele abandonasse a área da Colônia Cinco Mil. Por sua vez, a diretoria do
Cefluwcs garante que reconhece o direito de posse de todos os ocupantes, que não pretende
expulsar ninguém, mas que as terras são de uso coletivo, não podendo haver apropriações
privadas que excedem os relativos quintais de cada morador.
Assim, os aproximadamente 63 hectares1258 remanescentes da antiga Colônia Cinco Mil
seguem em processo de regularização fundiária há pelo menos duas décadas. As dificuldades
dos moradores conciliarem seus interesses individuais e coletivos advêm de viverem intensos
processos de rachas e iniciativas individualizadas de demarcação, que desconsideram o
processo histórico de formação do lugar e suas potencialidades como território coletivizado.
Devido ao fato de os moradores não entrarem em consenso, o processo vem se arrastando no
Iteracre e se judicializando ao longo dos últimos 20 anos.
Uma das propostas de demarcação, conforme “Planta da Situação”, de 2020, elaborada
pelo engenheiro Sebastião Cordeiro Braga, os aproximadamente 63,24 ha ficariam no nome do
Cefluwcs, divididos em Parte A, referência à área doada à Wilson Carneiro, com 12,07 ha e um
perímetro de 2.032,03 m, a parte B com 51,16 há e um perímetro de 4.952,38 m. Alfredo chegou
a comentar muito brevemente sobre este impasse envolvendo a questão da terra:

1257
ITERACRE, Relatório de vistoria, 2015. (Anexos)
1258
Baseado em COUTO (1989, p 105.) e no documento que define o perímetro da área, cedido pelo
CEFLUWCS e parte do processo de regularização fundiária, respectivamente.
405
“Sei que com esta expansão era uma beleza, todo mundo unido não tinha problema,
não tinha briga, não tinha ambição, não tinha ninguém querendo tomar de terra,
dando problema, até porque essas terras foram tudo doada para a igreja religiosa,
toda ela.”1259

Sobre estas transformações na dinâmica e configuração socioespacial da comunidade


Flaviano narrou:

“Tá, tá difícil pra fazer união, se acertar com relação a terra, seria o ponto mesmo
né... que as terras daqui pertencem à igreja, isso aí eu não tenho dúvida nenhuma
disso não e é o certo desde o tempo do Padrinho era esse, morava aqui dentro quem
era da igreja... não é!? Não tinha pessoas que não pertencia a igreja, quem é que
ficava por aqui, todo mundo pertencia... então se nós vamos recuperar esse sonho
não sei, será? Fiquei pensando a importância da definição de comunidade, que tipo
de comunidade somos…Vamos integrar o povo do Nonato, do Cefluwcs e do
Feliciano debaixo do mesmo chapéu? Ou será apenas nosso movimento no
Cefluwcs. Eu até me pergunto se somos uma comunidade ou um povoado surgido
a partir de uma comunidade fundada pelo Padrinho Sebastião. Ou então tratar o
assunto sob o enfoque de na Colônia Cinco Mil existe uma comunidade
espiritualista com três vertentes, sem muita interação entre elas?” 1260

Aluízio relatou sobre seus sentimentos e descontentamentos em relação à doutrina como


vivida hoje em dia, as mudanças que sentiu, o cenário de brigas e confusões que marcou os
primeiros anos à partir de 2000. Ele, que mora na fronteira entre as terras reconhecidas como
Vila Carneiro e a Cinco Mil, narrou:

“A Cinco Mil eu não ando ali porque pra mim, do jeito que eu conheci, do jeito que
nós deixemo e do jeito que tá agora, é tipo um negócio velho, sabe assim... Não tem
prosperidade, eu não vejo. Vejo um monte de maluco, que vão lá pra rua rodar a
coisa no sinal, pegar uns troquinho ali, tudo cheio de mato. Chega ali num tem um
pé de macaxeira, num tem nem água para beber e nós deixemo ali tudo bonitinho,
com poço bacana, tudo beleza. Eu não tenho prazer de ir lá na igreja tomar Daime.
Como eu conheci no começo, até a gente largar tudo - e eu sei como é que era, pra
o que tá hoje, nem dá prazer entendeu assim, vigor... aí eu fico em casa. Mas... tudo
bem, né? É uma escola, agora até deu uma melhorada, mas de primeiro todo
trabalho era maluco de UFC dentro da igreja, porrada, briga dentro da igreja. Agora
deu uma aliviada mais, não tá tendo mais muito briga. Tem que ter uma liderança,
tem que ter uma ordem, não pode ser bagunçado, vem, faz qualquer coisa, tem um
estatuto que o Mestre deixou, têm uma hierarquia vamos cumprir do jeito que ele
deixou, senão não dá certo.”1261

1259
A.G.M., 2019.
1260
F.S., 2020.
1261
A.F.S., 2020.
406
Claude relatou sobre este sentimento ambíguo, esta sensação contraditória de pertencer
a uma irmandade que tanto canta o amor, mas que no dia a dia enfrenta tantos desafios para
uma convivência próspera e unida:

“Cinco Mil é bom, eu gosto muito da Cinco Mil! Me sinto muito bem aqui. Bom,
mas tem muita confusão. Depois que estou aqui. Tem confusão. Em um ponto de
vista, sinto falta de liderança aqui. É bom, quem me conhece sabe que eu sou muito
respeitoso da gente aqui. Tem a cultura, tem o conhecimento da linguagem também.
Não posso dar muita opinião, não posso interferir muito. Minha visão há falta de
liderança porque aqui é um lugar maravilhoso! Podemos fazer, aqui é lugar também
da representação da linha do padrinho Sebastião, cuidar desta igreja também, hoje,
é o rio do Jordão do padrinho Sebastião, que está ligado a São João, é uma missão
maravilhosa! E eu querer, quero ajudar. Para manter. Bom, não é fácil. E tem muita
pobreza também, gentes, situação dificílima, dificílima! É aqui no Santo Daime, no
meu ponto de vista, eu acho que o espírito comunitário da época do padrinho
Sebastião acabou. Acabou, vai ser muito recuperar, ser dificílima. É outra coisa hoje
em dia. Eu acho que é outra época, a direção também, eu acho que hoje a direção é
um pouco do cada um para cada um se responsabilizar também. A comunidade era
o pai, onde está tudo, vamos seguir o pai, o padrinho Sebastião. Agora não, não tem
liderança pra fazer isso. Então cada um que vai ser responsável, cada uma, deve
cuidar de si. E acho que vamos entrar numa nova era de responsabilidade de cada
um. Não esperar do estado ou do governo que vai ter ajudinha. Não. Você vai. Você
mesma. Eu acho que é o principal. Esse é um ponto de diferença, um ponto muito
interessante.1262

Maria Gregório, em breve narrativa, destacou que apesar da satisfação em cumprir a


missão que lhe foi designada com boas companhias, desejaria ver na comunidade mais
harmonia: “Pra mim eu me sentiria mais feliz se tivesse um povo mais firmado na União sem
confusão. Todos juntos. Já que estou aqui, tenho essa missão a cumprir e a minha expectativa
é que todos se acorde e se unam para que a prosperidade chegue para todos.”1263
A independência de cada uma destas territorialidades vai se afirmando e se instituindo
aos poucos e está relacionada, entre outras coisas, à autonomia para o preparo da bebida, por
isso existem três casinhas de feitio na localidade. Os centros/espaços instituem cada qual seu
calendário de trabalhos, que criam uma regularidade e, como vimos, também promovem
encontros, festividades que atraem visitantes e peregrinos de outros países e estados brasileiros
para vivenciar as experiências com o Daime, seus cânticos, orações. Alguns destes visitantes

1262
C.B., 2019. Narrativa de Claude Bauchet gravada no dia 10 de setembro de 2019, Residência na Colônia
Cinco Mil, Rio Branco, Acre.
1263
M.G.M., 2023.
407
conseguem frequentar os três espaços, ou dois deles, outros ficam apenas em um. Não seria
exagero dizer que há uma certa política de cerceamento, que condiciona em alguns casos, quem
está em uma destas territorialidades não frequentar ou visitar as outras, não se misturar como
quem diz, mas isso não é uma prática generalizada e nem determinante.
Dependendo do contexto e pessoas envolvidas nos encontros, ora a disjunção excludente
se manifesta mais, ora a disjunção inclusiva. As pessoas lidam de diferentes formas com os
ecos destas fraturas e divisões na comunidade. Quando cheguei em 2008, para morar na Vila
Carneiro, a narrativa era de que ali não pertencia à Colônia Cinco Mil e até hoje alguns dos
moradores tem esse entendimento, de que lá é lá e cá é cá, são duas coisas diferentes
inexoravelmente repartidas. Observei que a dissertação de Antunes que aborda sobre o Pronto-
socorro reafirma esta narrativa que situa o CEPSERIS e a Vila Carneiro como “próximo à
Colônia Cinco Mil”1264 e não como parte dela.
Concomitante às fraturas, há laços familiares e de amizade que mantem elos entre a
Cinco Mil e o Pronto-socorro e, não raramente, pude presenciar as visitas de um centro no outro,
como nas festas das mães no final de maio ou trabalhos de cura que acontecem no Pronto-
socorro, assim como membros do Pronto-socorro eventualmente também participaram dos
festejos ou missas na Cinco Mil. Em relação à Luau as rivalidades atualmente estão mais
acirradas e eu pude ouvir declarações do tipo: “estamos de olho pra ver quem é que está andando
lá, vai tomar suspensão, não é pra estar lá e aqui.”
Raimundo Nonato como dirigente na Vila Carneiro ainda hoje recomenda aos visitantes
e novatos que passam pelo Pronto-socorro e são hospedados por algum tempo, que não fiquem
“tomando Daime de outra administração”, que o bom, o recomendável, é a pessoa fazer o estudo
em uma casa só. E foi assim que eu fiz durante muitos anos, frequentando praticamente apenas
o Pronto-socorro entre os anos de 2008 a 2020. Graças à pesquisa e à criação do Centro Cultural
e do Memorial fui me aproximando da Cinco Mil e assim novos laços estão sendo refeitos e
fortalecidos entre as duas localidades, principalmente entre os mais jovens.
Com os dados do censo comunitário, identificamos que os moradores em sua maioria
declaram que frequentam algum dos núcleos do Daime ali localizados, mesmo que a frequência
não seja tão regular em parte dos casos. A maioria frequenta o Cefluwcs, uma parte menor o
Pronto-socorro. Alguns declaram frequentar os dois centros, o que evidencia que há uma
interação entre eles, constituídos por pessoas que mantem laços familiares ou afetivos com
ambos os lugares e pessoas. Há também um grupo que, de ambos os lados, evitam essa

1264
ANTUNES, 2012.
408
interação. É possível presenciar trabalhos onde os membros do Cefluwcs se reúnem com os do
Pronto-socorro em ocasiões excepcionais, datas notórias como aniversários, a exemplo de 2015,
nos 70 anos do Zé Teixeira, em 2019 nos 70 anos do Raimundo Nonato, em 2020, no Centenário
da madrinha Zilda, ou ainda em outubro de 2021 na missa de corpo presente da saudosa Tânia
Carneiro.
No início de sua fala, Flaviano comentou as diferenças do que foi no tempo do padrinho
Sebastião do que é hoje, repensando e problematizando os vários sentidos que a palavra Colônia
Cinco Mil tomou quando ali, a partir dos anos 2000, se estabeleceram múltiplas
territorialidades. Ele se refere aos “trabalhos do centro do Nonato do Pronto-socorro”,
destacando que “todo mundo também considera que a Cinco Mil começa ali né, ali é Cinco
Mil”1265. Esta percepção se funda no fato de que originalmente, tudo era Colônia Cinco Mil,
uma área bem maior que se entendia do igarapé Fidêncio ao Redenção.
Flaviano chamou atenção para esta impermanência das coisas, as mudanças e as
descontinuidades de se ser e viver em uma comunidade do Daime/ayahuasqueira como a Cinco
Mil, que já passou por diferentes fases e continua passando. Traz à tona a impossibilidade de
uma definição única sobre o que é a Colônia Cinco Mil, fechada, estanque, indiferente ao espaço
e ao tempo, posto que é um lugar vivo, feito por pessoas vivas, em movimento e em
transformação.

“É que fica meio complicado aqui na Cinco Mil, porque por exemplo, na época do
Padrinho Sebastião era uma coisa né, agora é outra completamente diferente!
Porque naquela época todo mundo tava ligado na igreja né, todo mundo
participando dos trabalhos, todo mundo participando do projeto. Hoje não, tem
pessoas que passam também, que não são nem da igreja né, assim, pessoas então
ficam por aí e são da Colônia Cinco Mil. Às vezes já toma Daime muitos anos, mas
nunca se firma também, ou então passa um tempo, toma daime, depois larga, depois
volta de novo. Vamos ver quem que mora daqui, quem que é membro da igreja?
Então é até complicado pra poder dizer o que é a Cinco Mil hoje né. Porque tem os
trabalhos do Nonato, todo mundo também considera que a Cinco Mil começa ali
né, ali que é a Cinco Mil, tem os trabalhos do centro do Nonato do Pronto-socorro,
tem os trabalhos na igreja, tem os trabalhos do Feliciano e tem o trabalho fora parte
aí também sabe. Então o que que é a Cinco Mil isso aí, todo mundo diz que isso é
a Cinco Mil, tudo vira Cinco Mil e virou uma coisa totalmente... tem nada a ver
com o que era mesmo assim, não tem... Mas de qualquer maneira tem o pessoal da
igreja mesmo, que é o centro que ficou né, o centro tá organizado, tem diretoria,
nós estamos com trabalho parado porque, por causa da pandemia, mas o sistema vai
continuar, vão continuar os trabalhos”.1266

1265
F.S., 2020.
1266
Ibid.
409
Dois sentidos ecoam desta fala: o primeiro da Colônia Cinco Mil como localidade num
sentido genérico, com os diversos núcleos do Daime ali presentes, que são lidos aqui como
consequências de diferentes motivações, de desejos que impulsionaram processos de
reterritorialização, nem sempre amistosos, nas terras remanescentes da antiga Colônia; o
segundo, da Colônia Cinco Mil como a primeira sede do Cefluris, fundada pelo padrinho
Sebastião, hoje Cefluwcs, a igreja do Daime que, tem diretoria, cumpre o calendário e está
vinculado à família do padrinho Sebastião e, portanto mesmo que indiretamente à Iceflu, e não
guarda profundas relações com os outros dois espaços ayahuasqueiros ali presentes.
Assim como as histórias, as palavras também podem ser lidas de muitas formas. Não é
de hoje que o nome Colônia Cinco Mil é usado para se referir à localidade como um todo, que
possuía setores diversificados. Mortimer precisou que a “denominação de Cinco Mil era
genérico de uma área maior”1267 e que a “Vila Santa Maria” era o núcleo central composto pela
igreja e casas. Pode-se ler que aconteceu na Colônia Cinco Mil processo semelhante ao que se
deu nas terras que eram conhecidas como Alto Santo, hoje bairro Irineu Serra, onde um intenso
processo de rachas, divisões e fragmentações, a partir do Ciclu-Alto Santo, deu origem a pelo
menos três outros centros1268 de Daime, que estão localizados, inclusive, na mesma rua.
O termo Alto Santo, porém, é reivindicado pelos membros do Ciclu-Alto Santo, que no
documento intitulado Manifesto Alto Santo1269, contestam e repreendem seu uso de forma
genérica, para se referir ao que seria “um bairro ou uma comunidade” ou uma “suposta ‘linha
do Mestre Irineu ou do Alto Santo’”1270. O documento assinado pela dignitária do Ciclu-Alto
Santo, Peregrina Gomes Serra, ressalta que Alto Santo é “uma área onde o Mestre Raimundo
Irineu Serra construiu o Centro e a casa na qual ele e eu convivemos.”1271 Alguns pesquisadores
tem utilizado o termo Alto Santo para denominar o que seria uma linha ou seguimento do Daime
mais tradicional1272 ou mesmo a localidade onde está a sede do mestre Irineu e os outros três
centros que seguem esta linha1273.
Mais recentemente, percebo que o termo Vila Irineu Serra tem sido mais utilizado para
se referir ao conjunto de moradores e centros que compõe as práticas do Daime naquela região

1267
MORTIMER, 2000, p. 173.
1268
PUPIM, 2016.
1269
Documento-manifesto assinado pela dignitária do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Peregrina Gomes
Serra e enviado para o Seminário Ayahuasca realizado em 2006 pelo CONAD, do qual ela desistiu de participar e
enviou o documento que não foi lido na ocasião, no qual ela expõe entre outras coisa, sua insatisfação com a
expansão desordenada e comercialização do uso da Ayahuasca.
1270
SERRA, P.G., 2006.
1271
Ibid.
1272
ASSIS, 2017; ROCHA, 2021.
1273
MENDONÇA E NASCIMENTO, 2019; GOULART, 2004, MORTIMER, 2000.
410
de Rio Branco. Porém, entre os moradores e visitantes, têm quem considere que “toda aquela
região ali era o Alto Santo, porque tudo eram as terras do mestre, então eu vejo assim, eu me
sinto no Alto Santo, que o nome bairro Irineu Serra também veio depois.”1274 Percebe-se que
as palavras, as denominações, os atos de nomear e renomear os espaços, acabam produzindo
sentidos sobre os lugares que são plurais, polissêmicos e alvo de disputas no campo das
identidades.
Não diferentemente, o termo Colônia Cinco Mil também tem sido utilizado para se
referir apenas à área em torno da sede do Cefluwcs, onde está a sede da Cinco Mil. Acaba que
a área do Pronto-socorro e da Vila Carneiro, praticamente não é considerada mais como uma
parte da Cinco Mil. Porém, quando se trata da questão fundiária, advoga-se que as
territoritorialidades estão intrinsecamente ligadas, com uma história e geografia cultural comum
e há iniciativas de demarcação de todas áreas remanescentes da Cinco Mil como pertencentes
ao Cefluwcs ou Associação de Moradores da Colônia Cinco Mil – o que inclui as terras da Vila
Carneiro e Luau. Vimos que também há iniciativas isoladas para demarcação dos lotes, que
sugerem a regulamentação da fragmentação do espaço.
Tanto no bairro Irineu Serra quanto na Colônia Cinco Mil, e não diferentemente nos
núcleos do Pronto-socorro em Ouro Preto e nos centros em Santa Luzia/MG, como narrado no
início da pesquisa, essas divisões criam novos arranjos comunitários, desdobramentos, fraturas
e cisões. Quase sempre são resultado de longos anos de convivência, embates,
desentendimentos, rixas e discordâncias. Se por um lado estas rupturas refletem afetos raivosos,
descontentes, que provocam rompimentos e marcas, por outro também tem sido lidas, descritas,
interpretadas e ressignificadas como movimentos que fazem parte da vida e que criam novas
portas que se abrem, para que mais pessoas conheçam e entrem na escola/doutrina/irmandade
do Daime.
Mendonça em diálogo com Luiz Mendes, que participou de vários rachas no Alto
Santo/bairro Irineu Serra até a fundação do núcleo independente com sua família no final da
década de 1990, narrou sobre as divisões: “Como era é que isso crescia? Como era que se
expandia como é hoje, né? Como é que Deus pode estar funcionando entre, só entre quatro
paredes. Não tem lógica! Né. Então teria que haver”1275. Luiz Mendes se orgulhava de ter sido
sócio-fundador de quatro centros do Daime no Acre, todos em funcionamento, a saber:
Participou da fundação do Cefluris em 1976 na Cinco Mil, do Ciclu-2 em 1980, do Cicluris em

1274
Narrativa de Gregória Serra, comunicação oral.
1275
MENDONÇA e NASCIMENTO, 2019, p. 84.
411
1994 que, em 1998, foi renomeado de Ciclujur, ambos no bairro Irineu Serra e do Cefli em
1998, que compreende a comunidade Luzeiro da Manhã, no município do Bujari e a
comunidade Fortaleza, no município de Capixaba, ambos na regional Baixo-Acre, próximo a
Rio Branco. Assim narrou: “Isso foi uma coisa que eu sempre objetivei, né. A coisa da amizade,
né. Cada um, até com a sua identidade própria, né. Mas que nos respeitemos, né. E aí a gente
entrou dentro dessa classe, a gente gosta de respeitar”.1276
A Vila Carneiro e a Colônia Luau podem ser vistas como expressão, no território dos
movimentos de ruptura dentro da comunidade da Cinco Mil, sendo ao mesmo tempo processos
de continuidades e descontinuidades. São pulsões de corpos que buscam conferir e afirmar
outras relações de saber-poder, demarcar autonomia e diferença e consolidar a emergência de
novas lideranças. Em curso, o movimento de três distintas territorialidades, identidades
espaciais, que vão se afirmando como espaços religiosos, onde as práticas culturais ligadas às
tradições do Daime, como ensinadas por padrinho Sebastião, são estudadas, vivenciadas,
ensinadas. Enquanto isso o processo de regularização fundiária segue indefinido nas terras
remanescentes da antiga Colônia Cinco Mil.
Na companhia de Rolnik, como cartógrafa de afetos que potencializam territórios e
memórias, estes movimentos podem ser lidos como estratégias de realização dos desejos que
demandam uma reterritorialização, a atualização das formas de organização socioespacial.
Estes deslocamentos, guardando relações variadas de proximidade e distanciamento, resultam
de novos processos de subjetivação, produção de narrativas e identidades que vão sendo
atualizadas, umas em relação às outras. Estas territorialidades existem e parte desta afirmação
se sustenta no ato de ganharam um nome, serem narradas, como lugares que vão sendo recriados
e reinventados no tempo e no espaço, através das poderosas maquinarias discursivas. Mortimer
enquanto comentava a saída do povo do Alto Santo com Sebastião, narrou:

Separação é também desdobramento. Está na dinâmica da vida. As células se


desdobram, se multiplicam e daí vem o progresso e o crescimento. Na união
está a força. Quando mais unido for um grupo, mais prosperidade e mais
segurança individual serão desfrutadas.1277

Se por um lado há aqueles que rivalizam e buscam traçar linhas duras entre as
localidades, há também aqueles que mantem relações de amizade e proximidade, ocupando um
entre lugar fronteiriço entre os espaços, buscando as linhas maleáveis que permitem o transitar

1276
MENDONÇA e NASCIMENTO, 2019, p. 296
1277
MORTIMER, 2000, p. 8.
412
sem ordenamentos limitantes. No momento em que escolho fazer o trabalho sobre a Colônia
Cinco Mil como esse espaço concebido no seu todo, fragmentado a partir dos anos 2000,
busquei uma maneira de narrar o lugar que me pareceu coerente com o passado comum que
interliga os três espaços que constituem a Cinco Mil do tempo hoje.
O lugar Colônia Cinco Mil continua sendo inventado e reinventado por narrativas da
oralidade e da escrita. Como um território das culturas ayahuasqueiras em Rio Branco é visitada
por pessoas de diversas partes do Brasil e do mundo, lócus de aprendizado das práticas culturais
e ciências do Daime, como aprendidas e ensinadas pelo povo do padrinho Sebastião. E como o
território é algo sempre propício ao devir de fazer-se e desfazer-se, estas experiências de
fraturas e abertura são possibilidades de novas experimentações, podem ser lidas não apenas
em seus aspectos conflitantes mas também como vida, pulsante, expansiva, ativa, se renovando.
Nessas fragmentações, nenhum dos territórios se desfaz por completo, evidenciando que, se for
possível estabelecer relações qualificadas entre os territórios, “dois não devem um, mas pode
ser vários”1278.
Lugar de trânsito de pessoas de várias partes que ali chegam geralmente por um
chamado que lhe chega ao ouvido, o Daime na Colônia Cinco Mil, com suas
multiterritorialidades, tem sido um espaço onde pessoas buscam aprendizados, um alívio ou
alento para suas dificuldades ou doenças, sejam elas do corpo ou da alma. Mesmo entre os
estradeiros e psiconautas de passagem, há geralmente uma convicção de que ali se pode
conhecer o que não se sabe através das experiências com as plantas de poder, as professoras e
medicinas da floresta associadas aos ritos, cânticos, rezas, introspecções e meditações ali
praticadas. Noélia, que visitou a comunidade diversas vezes, comparou as vivências na Colônia
Cinco Mil ao mundo do país das maravilhas de Alice:

“A minha relação com o Daime e com esse lugar aqui, com Rio Branco, com a
Colônia Cinco Mil e o Pronto-socorro, é um lugar que onde tu entra e sai diferente.
E tem essa hora que eu me sinto no país das maravilhas, Alice no País das
Maravilhas. Onde são todos doidos, as plantas falam, comem cogumelos, fica
perdido, chora, uma hora ninguém briga, outra um quer matar o outro. Se junta pra
beber o chá, né? Que no País das Maravilhas tem isso aí, que todos entram pra
tomar, o coelho, o cara do Sombreiro, do chapéu, o Chapeleiro, o gato, a Alice, aí
todo mundo vinha pra beber o chá.”1279

1278
LOPES e TRINDADE. "Devir Nuvem - Por um Amor Leve", 2015.
1279
N.C., 2020.
413
Termino a última etapa desta esticada caminhada lembrando que toda escrita é datada e
este estudo traz as marcas do seu tempo e da porção do espaço de onde ele ecoa. O contexto da
pandemia de alguma forma trouxe à tona as evidências que apontam que o planeta Terra está
passando por rápidas e aceleradas transformações, provocadas entre outras causas pela
intensiva e expansiva forma como nós, humanos, nos distanciamos e transformamos os espaços
naturais de forma cada vez mais desequilibrada. “Uma atmosfera sinistra envolve o planeta.
Saturado de partículas tóxicas do regime colonial-capitalístico, o ar ambiente nos sufoca”.1280
Ao analisar as dinâmicas afetivas e práticas culturais vivenciadas na Colônia Cinco Mil,
em suas continuidades e descontinuidades, entendo que mesmo com as transformações nas
formas de organização e nos sentidos sobre o que é ser uma comunidade ayahuasqueira/do
Daime, a Cinco Mil pode ser lida como uma territorialidade viva, espaços de ensino e
aprendizagem e circulação de saberes outros, como propõe Albuquerque1281. “A religião do
Santo Daime é, assim, interpretada como um espaço educativo no qual circulam saberes
fundamentais na construção da identidade dos sujeitos envolvidos e na sobrevivência de suas
tradições”1282. Albuquerque identificou, considerando as mensagens presentes nos hinos,
entrevistas com adeptos e fontes bibliográficas, que os saberes do Daime são “saberes
ecológicos-ambientais, cognitivos, estéticos, medicinais e para a paz.”1283

Eles louvam a natureza e suas forças; invocam entidades católicas e de outros


panteões; reforçam princípios como o amor, verdade, justiça; disciplinam a
conduta, dentre outros significados que expressam a diversidade cultural da
religião, bem como sua dimensão estética.1284

Em um contexto de acelerado crescimento tecno-científico e demográfico, diante de um


mundo social ordenado pela lógica das sucessivas crises, que prolongam intencionalmente as
desigualdades estruturantes do sistema colonial-capitalista-neoliberal que vivemos, observamos
irredutíveis o racismo, a misoginia, a pobreza, a fome, o desemprego, as ideologias autoritárias
associadas ao fundamentalismo religioso e toda sorte de mazelas sociais. O planeta Terra está
passando por transformações profundas, mudanças climáticas, que impactarão cada vez mais a
disponibilidade e o acesso à água e alimentos, sobretudo nos centros urbanos. Na companhia de
Guatarri, penso que “o que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esse

1280
ROLNIK, Esferas da Insurreição. Notas para uma vida não cafetinada, 2ªedição, p. 29.
1281
ALBUQUERQUE, 2011b.
1282
Ibid., p. 6.
1283
Ibid., p. 7.
1284
Ibid., p. 13.
414
planeta”1285 e, através do Daime, tenho procurado entender as possibilidades, desafios e limites
de um viver em comunidade, no sentido do ser não apenas como indivíduo, mas como corpo-
território, ligado a uma coletividade e suas tradições.
Muitos de nós têm pensado, sentido, ouvido e falado sobre a necessidade de
construirmos outras formas de estar no mundo, arranjos mais coletivos de existência, que
desorganizem a lógica da individualidade capitalista, da sociedade do consumo e da mercadoria.
Com o crescimento das pesquisas com os usos dos psicoativos, enteógenos, plantas de poder,
há aqueles que são entusiastas de uma “renascença psicodélica” e defendem o potencial destas
substancias para despertar sensibilidades outras, que poderiam servir em tratamentos
terapêuticos e também nos conduzir para formas de organização social mais justas. Porém,
como destacou Assis, “não seria essa uma responsabilidade muito grande para ser colocada
sobre os ombros de substâncias?”1286 Conhecendo o histórico de muitas irmandades
ayahuasqueiras/ do Daime, constato que é perfeitamente possível as pessoas serem adeptas de
religiosidades ligadas à floresta, às ancestralidades indígenas, que pregam o amor, a paz e a
união e, mesmo assim, serem madeireiros, pecuaristas, autoritários, defender políticos de
extrema-direita, homofobia, etc., por mais que isso soe absurdo e contraditório.
Na companhia de Acosta, destaco que a ideia de um buen vivir, bem viver, Sumak
Kawsay, vem de uma expressão originária da língua quéchua, onde “Sumak”
significa plenitude e "Kawsay", viver. A concepção de um “bem viver” na contemporaneidade
é parte das utopias necessárias e brota no contexto de um novo constitucionalismo latino-
americano, que tem sido proposto em países como Equador e Bolívia. Um bem viver seria uma
relação mais respeitosa com os outros seres vivos e ambientes naturais, uma lógica contra-
capitalista de objetificação das coisas e seres, espaços onde a desigualdade e a acumulação
expansiva do capital e das coisas, não fossem a lógica dominante. É um dos caminhos que tem
apontado para a necessidade de novos paradigmas de relação sociedade-natureza. É quando o
direito à existência de todos os seres é colocada em pauta, todas as formas de vida do planeta
Terra, humanos e não-humanos - uma política intercultural em construção e cujos desafios ainda
são inúmeros.1287
Penso que Sebastião, ao seu modo, com suas florestofias, compreendia estas questões e
por isso convocava seu povo, isto é, aqueles que o seguiam como uma liderança, para buscarem

1285
GUATTARI, 1990, p. 8.
1286
ASSIS, G. L. Conspiritualidade: A face oculta da revolução psicodélica, 2023. https://chacruna-
la.org/conspiritualidade-a-face-oculta-da-revolucao-psicodelica/
1287
ACOSTA, A. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Fundação Rosa Luxemburgo.
Rio de Janeiro: Editora Elefante, Autonomia Literária. 2016.
415
uma outra forma de vida, de trabalho, de relação com a natureza, com a terra, com a coletividade
e consigo mesmo, na sua utópica Nova Jerusalém. Ao que parece, ele entendia que não era
possível mudar o mundo, controlar a vontade e os desígnios da humanidade, então, buscou
transformar sua forma de estar no mundo e de sua comunidade.
A utopia de construção de um modo de vida coletivista, cooperativo, de um retorno para
as florestas, para a vida nos seringais, autossustentável e afastado das coisas do mundo da
cidade, do mundo do dinheiro e da ilusão, apresentou-se para Sebastião, ainda em vida, como
o que sempre foi: uma utopia, um sonho a se perseguir, um caminho a se seguir, não uma
realidade efetiva. Alverga mesmo narrou que

Por muito tempo, Sebastião Mota de Melo teve a esperança de ver a


transformação deste Novo Mundo ainda com os olhos da matéria. A medida
que a doença no coração piorou e que tomou consciência de que o seu povo
ainda estava longe de corresponder as suas metas, é que ele começou a dizer
que iria nos esperar do lado de lá. Mas nunca perdeu a fé na nossa capacidade
de ser um povo acordado e preparado para receber o seu Deus.1288

Guattari explicou como as relações capitalísticas afetam os três domínios, o existencial,


social e ambiental, que todos estão em degradação e por isso, “mais do que nunca a natureza
não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar ‘transversalmente’ as
interações entre ecossistemas, mecanosfera e universos de referência sociais e individuais.”1289
É preciso destacar que não é possível separar as ações sobre a psique (o mundo dos psicoativos,
usos rituais de enteógenos e plantas professoras, etc.), daquelas que acontecem no social e no
ambiente, tal qual não é possível separar corpo-alma-mente-espírito. Neste sentido, é preciso
diminuir a distância entre o que se canta nos hinários e o que se pratica no dia-a-dia da vida
comunitária se quisermos mesmo nos afirmar como espaços de conhecimentos ancestrais, de
saberes outros, de resistência e resistente aos desafios que os próximos 50 anos definiram.
Nas comunidades do Daime fundadas por Sebastião, a utopia de “Novo Mundo, Nova
Vida, Novo Povo, Novo Sistema”1290, pautado pelo ideal comunitário de um “Eu Sou” coletivo,
uma existência em irmandade cujos indivíduos buscam o seu aprimoramento pessoal, “ligados
em natureza”, acabou sendo até hoje uma promessa de futuro, uma esperança, não
diferentemente de como vem sendo narrada a História do Brasil, a História do Acre, cujo
desenvolvimento se persegue como promessa que se renova, que se repete e nunca chega.

1288
ALVERGA (org.), 1998, p. 51.
1289
GUATTARI, 1990, p. 25.
1290
Sebastião Mota de Melo em Alverga (org.), 1998, p. 128.
416
Quando chega, é como um bolo, que cresce mas não é repartido, como foi narrado por muitos
antigos moradores: “o tempo bom chegou, num foi? Mas cadê? Foi dividido?”
A perspectiva de resgate de um modo de vida que seja mais ecológico e garanta direito
à existência, segurança alimentar e dignidade a todos os humanos sem distinções - e também
os não-humanos – o direito à vida nas florestas, nos oceanos, em todos os biomas terrestres,
continua no horizonte das utopias espaciais no século XXI. Flaviano também teceu linhas
acerca desta “nova vida, novo sistema”, que ainda é algo à se buscar.

“Eu tô vivendo mais é o dia a dia porque a gente, o planeta tá de um jeito assim, tão
conturbado, tanta coisa acontecendo que, que eu acho que cada um deve procurar
fazer um pouco a sua parte também, pra tentar equilibrar pelo menos perto de si
né... Equilibrar o que pode, orar, pedir a Deus sua misericórdia divina, dessa terra
cara... porque a Terra tá precisando é de misericórdia mesmo sabe, no jeito que a
gente está agredindo o planeta, que ela já tá dando o resultado aí né, apresentando
já a contraproposta, uma proposta de parar a economia. Que negócio de economia
crescer, crescer, crescer, parar com isso cara! Vamos parar de crescer a economia,
diminuir a economia, viver simplesmente né, viver de maneira simples, parar com
tanto consumo de coisas inúteis que não levam a nada sabe. Então a minha
esperança nunca morre de que o planeta, que nós vamos passar, estamos passando
por um apocalipse, uma Armagedom né, mas eu acho que quanto mais pessoas
estiverem consciente do planeta, estiverem orando, pedindo a Deus e se
transformando, essa passagem vai ser mais suave né... Não sei cara, o quê que é, eu
penso no Mapiá, penso na doutrina, penso na Cinco Mil, mas qual é mesmo futuro
da humanidade? Qual o futuro do planeta? O que é a Nova Jerusalém, né? Onde
será a Nova Jerusalém?”1291 A Nova Jerusalém é um estado de consciência não é
um local, um local né geográfico, é um estado de consciência, ele tá na terra na
verdade, então tanto faz onde você esteja, mas o ideal é que seja ampliada assim,
comunidades sustentáveis né, que possam quando chegar na hora mesmo, no final
dos tempos mesmo, quem que vai se sustentar né, vai se sustentar eu acho quem
tiver um senso de comunidades, pequenas, sustentáveis vivendo ali, de repente se
faltar comida Deus manda um maná do céu que desce aí pronto, não sei.”1292

Krenak comenta que estamos vivendo não o fim do mundo, mas possivelmente o fim
do nosso mundo. A Terra se renova e a biodiversidade não precisa de nós. O que vivemos é o
“desastre do nosso tempo, ao qual algumas seletas pessoas chamam Antropoceno. A grande
maioria está chamando de caos social, desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas
relações e estamos todos jogados nesse abismo.”1293 Se como sociedade e humanidade, estamos
caindo ante as aceleradas mudanças que o mundo moderno tem causado na Terra, a sugestão é

1291
F.S., 2020.
1292
Ibid.
1293
KRENAK, 2019, p. 34.
417
que façamos e abramos nossos paraquedas1294 para apreciar a descida. Viver em comunidade,
com todos os seus desafios, é como tecer e abrir paraquedas, ser capaz de dançar, cantar e usar
aparatos coloridos, como as fitas de nossas alegrias, para que a vida, no seu sabor acre, não
perca a graça, o prazer e a fruição do navegar impreciso, pois “nenhum não se domina, o poder
é quem nos leva.”1295 É no contexto das práticas do Daime que procuro me distanciar do
distanciamento que “muita gente que vive na cidade”1296 tem em relação àquilo que chamamos
de natureza e ao contrário, buscar uma comunhão cada vez mais íntima com ela.
Numa coisa acredito, que Sebastião estava certo e segue inspirando muitos de seus
seguidores: é necessário pensar e tentar construir outras formas de se viver em sociedade, é
necessário se voltar para os saberes da terra, da reprodução da vida e da existência. Por mais
que a utópica Nova Jerusalém que ele sonhava construir com seus companheiros e
companheiras na floresta tenha se constituído apenas como isso, uma utopia, podemos acreditar,
se quisermos, que é de grande inspiração seu trabalho, seu exemplo. É a partir da Colônia Cinco
Mil que procuro afirmar uma existência que leva em conta a necessidade de estar em comunhão
com o que chamamos natureza, pensarmos, preservarmos e construirmos espaços de saberes
outros, modos de vidas mais coletivos e ecológicos, consigo mesmo, com as pessoas e com o
ambiente.
Eu precisei sair da cidade, num primeiro momento de Belo Horizonte, num segundo
momento de Rio Branco. Ainda que a cidade não tenha saído de mim, sinto que viver na
Colônia, ter acesso a um céu de estrelas, ao nascer e ao se pôr do sol, à presença das árvores,
dos pássaros, dos remanescentes das águas, tem um efeito terapêutico e benéfico em minha
saúde. Concordo com as palavras do xamã Kopenawa que destaca que na cidade o pensamento
fica confuso e obscuro, pois só se ouvem “o ruído de seus aviões, carros, rádios, televisores e
máquinas. Por isso suas ideias costumam ser obstruídas e enfumaçadas.”1297

1294
KRENAK, 2019, p. 34.
1295
Vieira, M.M., “A minha mãe me mandou”, Hinário “O Mensageiro”, n. 46.
1296
KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
1297
KOPENAWA, A., BRUCE, D., 2015, p. 436.
418
5 CONSIDERAÇÕES DE FECHAMENTO

“Oh meu Juramidam


Foi Ele quem me mandou
Para relembrar lembranças
Da salvação do amor.”

Hinário O Justiceiro, Padrinho Sebastião

Tão perto da cidade, tão dentro da floresta, a Colônia Cinco Mil é um lugar das fronteiras
entre mundos: mundos humanos e não-humanos, rurais e urbanos, ancestrais e contemporâneos,
onde as linhas que dividem a terra e o astral, os vivos e mortos, a cidade, o campo e a floresta,
não são rígidas, nem precisas, são linhas maleáveis. Essas nos levam a compreender que não se
trata de diferentes mundos que se encontram mas da possibilidade de experienciar este mundo
– o único que temos - de diferentes formas. A cartografia foi o caminho para composição de
uma escuta e escrita ampliada, polifônica, que me permitiu destacar as muitas vozes, por vezes
dissonantes, que se somam e se contradizem, se cruzam nas fronteiras e contam istórias do/no
lugar Colônia Cinco Mil.
Nos limiares entre o fazer da historiadora/geógrafa e o fazer da narradora/contadora de
histórias fui caminhando pelo espaço com o intuito de criar cartografias de territórios e
memórias, um tanto literatura, um tanto história oral, isto é cartografia, literatura produzida com
método, ficção científica. A pesquisa foi uma espécie de procura da Cinco Mil narrada pelos
próprios moradores, dirigentes, e acabou sendo um convite aos membros e amigos da
comunidade visitarem suas histórias, lembranças, esquecimentos, como quem percorre lugares
narrados.
Considerando a relação da cartografia com a arqueologia dos saberes, me pus a fazer
uma história de como as histórias sobre a Colônia Cinco Mil tem sido contadas, o que levou às
reflexões sobre o papel da linguagem na criação de mundos, e como há relação entre os atos de
nomear e a formação de novas territorialidades. Se toda forma de saber é dado um sabor, uma
cartografia acre é para apreciadores de uma literatura ácida, amarga, as vezes agridoce, mas não
necessariamente uma escrita de gosto ruim. Ao investigar quais lembranças ressoam no lugar
Colônia Cinco Mil, das vozes de seus narradores, constituindo os saberes e sabores de suas
cartografias de territórios e memórias, vê-se um espaço partilhado e constituído de/nas relações
entre pessoas, outros seres e afetos que ali vivem, por ali passam, e tem sido descrita, pensada,
sentida, vivida, em diferentes espaços-tempos, a partir de múltiplas perspectivas.

419
Como um primeiro objetivo, busquei entender a formação dos narradores e das
narrativas na literatura oral e escrita sobre a Cinco Mil, isto é, como tem sido o processo de
invenção e reinvenção do lugar, quem são os indivíduos e instituições mais atuantes, com
diferentes forças, nas diferentes funções de enunciação neste campo, onde também as plantas
são professoras.
O Daime como uma instituição religiosa e prática social possui suas regras, nem sempre
explícitas, de formação de discursos, onde determinados indivíduos e instituições acabam
desempenhando um relevante papel na produção e circulação dos saberes no âmbito de seus
grupos, evidenciando relações de saber-poder. Ao olhar para os narradores e as narrativas orais
e escritas sobre a Cinco Mil, notou-se o papel dos padrinhos e madrinhas, dos dirigentes de
centros, receptores de hinos, pesquisadores, jornalistas, antigos seguidores e seus familiares
como exemplos de indivíduos em posições privilegiadas de enunciação.
Ao pensar que paralelos há entre as narrativas sobre a formação do povo e do território
brasileiro e acreano e as narrativas de formação do povo do Daime do padrinho Sebastião e da
Colônia Cinco Mil destaquei os aspectos mais gerais em relação à escrita da história. Destaca-
se processos semelhantes de produção dos lugares à partir dos discursos que fundam territórios,
sob determinadas lógicas, que refletem relações de poder-saber e ordenam os sentidos da
produção de ditos e não ditos. Segui as trilhas de uma “literatura como cartografia”, e vejo que
o retorno às origens, a uma Colônia Cinco Mil dos tempos áureos, da utopia socialista cristã em
realização, só existe como passado idealizado, que aparece forjado em diferentes tipos de textos
e, tal qual o Brasil “originário” narrado por Süssekink, ela é ficcional.
Romancistas, biografistas e pesquisadores ao longo do tempo, empenhados em produzir
a história dessa cultura da Amazônia, narraram uma Colônia Cinco Mil como lugar que agregou
ao Daime, enquanto prática religiosa nascida nos remanescentes de florestas do Acre, as
experiências no campo da contracultura e da espiritualidade nova era. A partir daí inventaram
uma comunidade ecológica e não capitalista, baseada em um socialismo cristão ou sistema
cooperativista, entre outros conceitos que melhor couberam a cada narrador a partir de seus
repertórios. Dizer que foi inventada não quer dizer que, de alguma forma, não tenha existido,
pelo contrário. A ciência, tal qual a literatura, é feita e se aperfeiçoa a partir de invenções.
Trajetórias de deslocamentos, errâncias, entendidas por alguns intérpretes como
messiânicas, provocaram processos desterritorialização, a Cinco Mil deixou de ser a referência
para grande parte destes que se identificam como povo do Daime do padrinho Sebastião,
sobretudo a partir dos anos 1990. A comunidade idealizada, a partir de cartografias doces e

420
dóceis, passou a ser o Céu do Mapiá, descrita como espécie de eco vila, de localização
privilegiada dentro de uma floresta nacional, exemplo de assentamento e desenvolvimento
socioambiental. A produção de um esquecimento e apagamento dá-se por exemplo, quando a
Cinco Mil se situa como uma territorialidade que ficou no passado idealizado, do tempo das
origens, quando o Sebastião estava ali.
Ao ler vários trabalhos e livros que são resultados de projetos de pesquisa, biografias,
textos de denúncias e reportagens de jornal sobre o Daime, para fazer aquilo que chamam
revisão da literatura, ou ainda estado da arte, evidenciou-se como são bastante diversificados
os repertórios conceituais, pressupostos e conclusões de seus autores/autoras, que escrevem
evidentemente influenciados por suas perspectivas políticas, conceituais, teórico-
metodológicas, religiosas, éticas e estéticas. Procurei fazer dessa cartografia um espaço que,
desde dentro da academia, olhasse para outros espaços culturais, não para descrevê-los à luz de
um esclarecimento essencialmente científico, mas para ouvi-los, evidenciando suas vozes.
Os pesquisadores e romancistas, autores de biografias que se tornaram consagradas, e
foram incorporadas como parte do conjunto de produções literárias do cânone do Cefluris/Iceflu,
na ausência de melhor definição, chamei de narradores oficiais/narrativas institucionais.
Percebo que são autores que estiveram comprometidos com a produção de uma história
institucional, quando escreveram desde dentro, seus ditos e não ditos, cujos sabores tendem a
ser mais adocicados, exaltando os aspectos culturais, a descrição etnográfica dos aspectos
ritualísticos, os saberes de cura, da miração, místicos, etc.
Parece claro que muitos narradores que escreveram desde dentro da irmandade e do
povo do padrinho Sebastião, como Fróes, Mortimer, Alverga, estavam empenhados em
produzir registros de memórias que ficariam escritas, documentadas, e poderiam ajudar
futuramente o grupo a se legitimar socialmente. Cada um com seu estilo, trouxe diferentes
versões dos acontecimentos. Mesmo pesquisadores mais contemporâneos, como Assis e
Albuquerque, que se dedicam a refletir e analisar o conjunto da obra atribuída à Sebastião, seus
saberes e seguidores, e abordam algumas das contradições e problemas sociais presentes nas
comunidades fundadas por ele, sobretudo no Céu do Mapiá, não destoam da narrativa elogiosa.
Como destacou Almeida Ramos, há um esforço para registrar uma “imagem do Padrinho como
se este fosse um cânone, um beato”1298, minimizando ou produzindo esquecimentos que
remetem à sua dimensão mais humana – tal como fizeram os evangelistas com Jesus?

1298
ALMEIDA RAMOS, 2012, p.99.
421
Outros narradores e viajantes igualmente pesquisadores ou romancistas, autores de
textos de denúncias, escreveram suas experiências no lugar, e produziram narrativas que
acabaram imprimindo outras nuances na descrição e produção de saberes e sentidos sobre as
comunidades fundadas por Sebastião. Enfocando questões como o culto aos líderes, poder
hierarquizado, divisão desigual do trabalho e de seu rendimento, falta de consciência ambiental,
discurso moralista, comercialização do sacramento etc., são textos que trazem uma perspectiva
mais acre às narrativas.
Cartografar é um movimento de valorizar as práticas de diálogo, a escuta de diferentes
vozes, a pluralidade, partilhando trajetórias de vida nos espaços, que criam diferentes sentidos
e significações sobre os lugares. São fragmentos de experiências singulares e individualizadas
que, por sua vez, relacionam-se aos diferentes processos histórico-geográficos movidos e
moventes das variantes socioeconômicas e culturais hegemônicas. A cartografia foi o
movimento de caminhar pela Cinco Mil, percorrendo com os narradores os fios de lembranças
que me permitiram traçar linhas de palavras, como quem rascunha mapas, não como imagens
e representação do real vivido, mas como diagrama de afetos, em busca da quase perdida arte
de contar a história1299.
Os depoimentos, os relatos, as narrativas aqui trazidas não foram dados coletados em
campo para comprovar uma hipótese, ou responder questões que estavam postas de antemão.
O texto produzido pelas vozes, gravado no momento dos encontros, foram transcritos e
produziram novos textos, e trazem, nesta pesquisa, fatos de memórias que criam e compõe uma
cartografia do Daime da/na Colônia Cinco Mil. Os objetivos e as questões de investigação
foram sendo desenhadas ao longo da caminhada. As pessoas que mantêm vivas estas tradições
não estiveram ali para serem estudadas, como quem faz uma pesquisa cartesiana, destrinchando
as partes, mas foram antes de tudo, partícipes da construção do texto escrito, o que leva-nos às
muitas possibilidades de pensar o que são as literaturas na pan-amazônia, a pesquisa
intercultural crítica e um fazer literário que ecoa da oralidade a partir das culturas do Daime.
No percurso da investigação, as fontes escritas e orais me acompanharam e foram
compondo comigo o traçar dos passos, as estradas, rotas, ramais, desvios que levaram às
partidas e chegadas. Foram veredas, travessias, trechos retos e tortuosos de uma cartografia
acre, provisória, incompleta, talvez incômoda, que traz apontamentos sobre os ditos e não ditos
acerca do lugar Colônia Cinco Mil. Com estes mapas-diagramas, feitos de linhas de palavras e
vozes, podemos conhecer um pouco como o Daime, e mais específico como o seguimento do

1299
BENJAMIN, 1987a.
422
padrinho Sebastião tomou forma e passou a existir como um campo de conhecimento próprio
e diferenciado da doutrina, uma espécie de contracultura daimista em Rio Branco, ao mesmo
tempo que é modelo inspirador para a maior parte dos centros de Daime do Brasil e em outros
países.
A Colônia Cinco Mil é feita de pessoas, que chegaram ali em diferentes épocas, algumas
tantas que ali nasceram, e muitas trajetórias de idas e vindas. São pessoas que, a partir de uma
posição neste território de vivências, criam o lugar com suas narrativas, impressões,
lembranças, registros guardados na memória do corpo, e tornados texto a partir da voz. O lugar
tem sido descrito como o caminho pelo qual se deu a expansão do Daime, para fora e para
dentro da floresta, muito graças a chegada dos “cabeludos”, os “hippies” e andarilhos, narrada
geralmente como cumprimento de uma profecia, pois Sebastião dizia que “já esperava” um
“novo povo” que o Santo Daime iria colher.
A pesquisa teve como um segundo objetivo comparar e cotejar versões acercar de
acontecimentos que marcaram a invenção do lugar Colônia Cinco Mil, e do seguimento do
Daime ligado ao padrinho Sebastião, com suas utopias de projetos comunitários e
experimentalismos. Reconheço que, em alguma medida, as narrativas sobre a Cinco Mil vêm
sendo ora mitificadas e idealizadas em narrativas institucionais, ora vilipendiada e achincalhada
em narrativas críticas, ora apagadas e produzidas como esquecimentos em diferentes espaços
de circulação dos discursos institucionais: seja no contexto dos debates sobre as culturas
ayahuasqueiras em Rio Branco, seja no contexto de produção de uma história oficial do Daime
do seguimento de Sebastião, capitaneada pelas instituições e canais de comunicação ligados à
Iceflu. E mesmo no canal de comunicação da Colônia Cinco Mil, notoriamente sua página nas
redes sociais, observa-se o apagamento de algumas partes da história, como a ausência de
menção a algumas antigas lideranças, por exemplo.
Vimos que a produção destes apagamentos pode estar relacionada aos episódios
controversos de diálogos inter-religiosos, uso de outros psicoativos, violências de diferentes
tipos, entre outros acontecimentos que geraram exposição midiática negativa para a doutrina do
Daime em geral, incluindo a sua proibição em meados da década de 1980. A Santa Maria, o
encontro com o Ceará, e seus desdobramentos, o uso de outros psicoativos, a
distribuição/repasse de Daime inaugurando a mercantilização da bebida, foram episódios
marcantes e ponto de tensão entre os grupos que se auto intitulam tradicionalistas, herdeiros
diretos do tronco do mestre Irineu, e os grupos dissidentes, o que tem gerado uma espécie de
ressentimento, e muitas cisões e fraturas.

423
A partir daí, a definição de linhas poucos maleáveis no campo das identidades passaram
a estabelecer limites entre o ideal purista, tradicionalista, elementar da irmandade do Daime,
ligado às comunidades localizadas no bairro Irineu Serra, e suas expressões mais ecléticas,
experimentalistas, expansionistas, ligada à comunidade da Cinco Mil e a toda uma enorme
irmandade que se sente pertencente ao seguimento do Daime do padrinho Sebastião, sendo ou
não filiado à Iceflu, dentro e fora do Brasil.
Durante as décadas de 1980 e 1990 o Santo Daime e as religiões ayahuasqueiras em
geral, que até então eram movimentos esotéricos amazônicos, irmandades e cultos nascidos do
intenso trânsito entre culturas que se deram nas cidades-florestas do Acre-Rondônia, passaram
a serem vistas como uma preocupação nacional, na medida em que se expandia rapidamente
para os centros urbanos, lida geralmente pelos jornais da época como espécie de seita com uso
de alucinógenos.
Padrinho Sebastião é figura controversa no contexto do Daime em Rio Branco, amado
e respeitado por muitos, contestado, acusado de surrupiar e usar de forma indevida os hinos e
os símbolos da doutrina do mestre Irineu Serra por outros1300. Tem sido descrito, em textos mais
familiarizados com o seu seguimento, como um estudioso da espiritualidade e da vida, um
sujeito de múltiplos saberes, como alguém que se abria para o intercâmbio e a troca de
conhecimentos com os estradeiros, incorporando alguns novos elementos no Daime como
praticado por sua linha e ramificação. Sebastião desde o início se diferenciou de outras
lideranças do Daime em Rio Branco, sobretudo por seu caráter inclusivo, de permitir que
visitantes participassem do ritual, recebe-los na corrente do bailado, nos feitios, espaços
tradicionalmente frequentados apenas pelos membros fardados da irmandade.
O conjunto de narrativas mapeadas neste estudo são registros historiográficos e literários
na contramão das políticas de produção de apagamentos e esquecimentos, ainda que tenha
consciência de que, com isso, também produz silêncios e silenciamentos, porque todo dito
implica um não dito. Em relação aos trabalhos com o Tranca-Rua, além de traumas profundos
na comunidade do Daime na Colônia Cinco Mil, o acontecimento nos remete as formas caóticas
com que se deram as diferentes alianças inter-religiosas dentro desta vertente do Daime mais
eclética, miscível, híbrida, holística e rizomática. A chegada do “devir-exu” no Daime, fundou
uma confusa e controversa teia de composições que intercruza saberes, cosmologias e
repertórios diversos, por vezes antagônicos. Uma teia de afetos que se reatualiza numa malha

1300
Ver: SERRA, P.G. Manifesto Alto Santo, 2006.
424
de produção não-uniforme de interpretações e novos significantes sobre as relações entre a
Umbanda, as entidades como exus e pomba-giras, e o Daime.
As muitas versões de um mesmo fato – sejam elas contadas oralmente pelos narradores
que participam desta pesquisa, sejam elas contadas nos escritos dos pesquisadores e demais
escritores, formam linhas, imagens, símbolos, cores e palavras. O ofício da cartógrafa foi
combinar de forma criativa, e em estruturas significativas, as memórias pessoais e coletivas que
surgiram nas istórias sob diferentes gostos, tons, sentidos, intensidades, como quem reelabora
saberes e sabores que, com seus gostos, seus aromas, suas texturas, inventam e reinventam o
lugar Colônia Cinco Mil e suas territorialidades do/no tempo hoje.
Se sociedade é espaço, são as relações entre as pessoas, formando grupos sociais, que
constitui os espaços como existentes e dotados de significados. Desta forma, a Colônia Cinco
Mil não é um dado objetivo na paisagem geográfica de Rio Branco, “objeto ‘natural’, neutro,
histórico”1301, se transformando no tempo, mas o próprio movimento social da vida, refazendo-
se dia a dia no lugar como território vivido, espaço de memórias, patrimônio político-cultural
que transforma-se, a partir das experiências de seus moradores, dirigentes, visitantes, suas
trajetórias de deslocamentos, redes, fluxos, nós e itinerários.
Hoje sabe-se que existem muitos centros de Daime em Rio Branco e outros municípios
do Acre, alguns deles como a Colônia Cinco Mil são setores antigos que remontam à década de
1960-70, outros mais recentes, da década de 1990, são frutos de novos desdobramentos de
ramas desta grande árvore sombreira que o Daime do mestre Irineu tornou-se. Outros são ainda
mais recentes, e já se tem notícias de centros de Daime em pelo menos 5(cinco) municípios do
Acre fora Rio Branco (Capixaba, Bujari, Cruzeiro do Sul, Rodrigues Alves, Tarauacá). Estes
centros, como zeladores de uma tradição (com ou mais inovações), são diversos quanto aos
detalhes ritualísticos, frutos destes movimentos de ramificações, deslocamentos, rupturas,
rachas, atualizações desagregadoras que geram novas agregações, ressignificações, e
sedimentação de novos grupos e práticas.
A Colônia Cinco Mil como território do Daime do seguimento do padrinho Sebastião é
parte de um conjunto de territorialidades que compõe o potente e diverso tecido das culturas
ayahuasqueiras em Rio Branco. São espaços demarcados sob a lógica do sagrado, que permitem
a diversas pessoas de todas as idades, diferentes classes sociais, origens, etnias, no contexto de
suas vivências em coletividade e em irmandade, manterem vivas as tradições e as práticas
ancestrais ligadas ao uso de plantas professoras e ritos musicados para se conectar com o divino.

1301
ALBUQUERQUE JR., 2014, p. 79.
425
Nestes espaços atualizam-se possibilidades de experienciar, sonhar, construir outras formas de
ser, estar e perceber-se neste mundo em balanço, formas mais festivas, mais ecológicas, mais
encantadas, que não admitem que percamos a graça na vida. Seriam essas experiências tipos de
revoluções moleculares, de que nos falaram Guattari e Rolnik, referindo-se as estratégias de
resistência e diferenciação as formas de controle social subjetivadas e difundidas como
ordenamento e lógica hegemônica?
A história da Colônia Cinco Mil também tem sido lida e dita a partir das narrativas dos
eventos fundantes, que são marcações no espaço-tempo de alguma forma arbitrárias, mas que
permanecem vivas na memória coletiva como espécies de atos inaugurais. A noção de
descontinuidade é quem deveria tomar um lugar importante nas disciplinas históricas como
propostas pela arqueologia, e reconheço que, na medida em que me deixo ser guiada pelos
narradores da Colônia, e os percursos e sentidos por eles evocados, foi impossível não lidar
com as metáforas e signos já estabelecidos no repertório das memórias coletivas. Mesmo
buscando referenciais teórico-metodológicos que apontavam fazeres espacializantes e
historiográficos diferenciados, foi difícil não reproduzir a lógica dos grandes eventos, das
lideranças e a sucessão linear entre eles. Ao invés de negá-los, procurei evidenciar processos
de produção de apagamentos e silenciamentos, e coloca-los numa perspectiva de suas múltiplas
significações, diferentes sabores que os saberes tem, sem pretender fechar uma interpretação
única.
Estas datas são úteis do ponto de vista de identificar os acontecimentos importantes
praquele grupo social, que foram dando origem a novos ordenamentos, processos de
desterritorializações e reterritorializações, que marcam diferentes épocas justamente porque
organizam o espaço de diferentes formas. São eventos que costumam com frequência serem
lembrados pelas vozes de diferentes narradores, e essas diversas versões são como camadas de
significação, cruzadas, interpostas com outros escritos ao longo do caminho.
Cada narrador rememora uma peça de um grande mosaico de ideias que vão compondo
as cartografias do lugar, que também é feita de uma busca, um utópico horizonte que se coloca
sempre como promessa de afirmar uma existência coletiva, comunitária, voltada para os saberes
da floresta e o trabalho cooperativo, a devoção aos ancestrais do grupo, às artes de bem viver,
cantar, bailar, festejar os ciclos da vida, e bem morrer, homenagear e enterrar seus mortos.
Para “relembrar lembranças” aqui neste estudo sobre memórias, não foi um exercício
de regressão para se achar um passado místico/mítico de outras encarnações, que santos ou
hereges nós fomos ou deixamos de ser, mas uma procura pelo passado das ações e

426
acontecimentos que nos conduziram até aqui, como pessoas deste e neste mundo, como
indivíduos e coletivos pertencente a uma irmandade, a uma tradição, um culto, uma doutrina
replantada aqui, no planeta Terra.
Ao definir como um terceiro objetivo investigar como esta comunidade do Daime deu
prosseguimento aos trabalhos espirituais e cotidianos a partir da saída do líder fundador e de
grande parte dos moradores para a floresta, no início dos anos 1980, a pesquisa procurou
atualizar a bibliografia sobre o lugar e evidenciar narrativas sobre como esta ruptura foi
dimensionada por quem ficou, foi e voltou, o que se partiu e que laços foram mantidos. Um
movimento para atualizar e ampliar os registros e reflexões acerca da produção literário-
acadêmica sobre a Cinco Mil, com foco no período após a saída do fundador, de meados da
década de 1980 a 2020, para os quais são praticamente inexistentes os registros escritos de sua
história.
Vimos que a Cinco Mil, mesmo após a saída para a floresta, continuou durante vários
anos sendo o centro de referência para o povo do padrinho Sebastião, onde se faziam os grandes
feitios que forneciam o Daime para os festivais na floresta, e de onde saíram as primeiras
garrafas de Daime que propiciaram a expansão da doutrina. As comunidades da Cinco Mil, Rio
do Ouro e Mapiá mantiveram uma relação de proximidade e apoio mútuo, sendo que até hoje a
Cinco Mil é um lugar de passagem e hospedagem de moradores do Céu do Mapiá que estão em
Rio Branco. Essas redes afetivas entre os lugares vêm sendo ao longo do tempo pouco
evidenciadas, narradas, o que é analisado como um dos traços da produção de silêncios e
esquecimentos referentes à Cinco Mil.
Nas trilhas desta cartografia mostrou-se que esse processo pode estar relacionado com
o fato das duas comunidades não terem mantido uma relação institucional, uma vez que os
dirigentes que passaram pela Cinco Mil tiveram dificuldades de se submeterem aos
ordenamentos vindos da nova matriz, sobretudo a partir da reorganização institucional que
marcou a mudança de Cefluris para Iceflu, que começou a ser desenhada no início dos anos
1990. Como uma mãe que não se submete as ordens que vem de seus filhos, a Cinco Mil trilhará
com Raimundo Nonato e com Maurílio um caminho mais autônomo do ponto de vista da
organização institucional, ainda que afetivamente ligados à comunidade da floresta.
Vimos que Wilson Carneiro assumiu o posto de patrono da Cinco Mil, e compartilhou
a direção da Colônia com outros dirigentes até o final da sua vida, zelando também os trabalhos
do Pronto-socorro que aconteciam na sua casa. Até o final da década de 1990, não havia divisão
dentro da comunidade. A institucionalização do Pronto-socorro como um centro independente

427
da doutrina do Daime aconteceu em janeiro de 1998, pouco antes da passagem de Wilson,
marcando o início da formação e fundação da Vila Carneiro como narrativa e territorialidade
na Colônia Cinco Mil. No ato de nomear, o ato de diferenciar-se, afirmar uma autonomia, que
redefine limites e fronteiras nos microterritórios cotidianos.
Contar a história do lugar onde vivo experiências intensas, transformadoras e
contraditórias é uma forma de reconhecer o valor daqueles que vieram antes, construíram e
mantiveram vivas estas tradições, essas histórias, essa comunidade enquanto escola e
irmandade do Daime. Penso no papel de nós, que aqui estamos, mantermos vivos estes
conhecimentos, práticas, saberes que ressoam na oralidade, na performance ritual e na
experiência, passando para as novas gerações, incluindo através dos textos escritos e transcritos,
enquanto isso fizer sentido para nós.
Um quarto objetivo deste estudo foi analisar as continuidades e descontinuidades
presentes nas dinâmicas afetivas e práticas culturais vivenciadas na Colônia Cinco Mil, mapear
como as tensões intracomunidade foram constituindo distintas territorialidades, exemplificando
a ideia da produção do lugar como narrativa. As cisões e fraturas deram origem a Vila Carneiro
e a Colônia Luau, demarcadas no espaço e produzidas como lugares narrados, o que evidencia
o poder do ato de nomear e as mudanças na Cinco Mil no limiar do século XX para o século
XXI.
A formação destas microterritorialidades, além de jogos de poder em todos dos saberes
mostram a pulsão da vida em direção ao movimento, à mudança, à multiplicação. Mesmo em
comunidades que buscam preservar suas tradições, inevitavelmente elas se reatualizam, com
maiores ou menores velocidades e intensidades. A existência destas cisões na Cinco Mil
evidenciam uma tendência de fragmentação observada também em outras comunidades do
Daime, sobretudo a partir da ausência das lideranças com maior poder agregador.
A desterritorialização como a dimensão do imprescindível é “traduzida como sensação
de estar se desagregando”1302 e, em si, é criação de novos territórios. O espaço é sempre um
processo de relações sociais, sempre se transformando, e territorializar-se no mundo envolve
aspectos fundamentais da vida humana. Nas palavras de Bachelard evocadas por Rolnik, sabe-
se que “não se encontra o espaço, é sempre necessário construí-lo”1303. Pensar os arranjos
espaciais, os rearranjos, reterritorializações nas comunidades do Daime, e em específico na
Cinco Mil, é pensar como os territórios existenciais se modificam, no individual e nos coletivos,

1302
ROLNIK, 1989, p. 285.
1303
Ibid., p. 256.
428
são criados, se destroem, são abandonados, recriados, para permitir a afirmação de outros
modos de viver, novos arranjos sociais, de saber-poder.
No caso da Colônia Cinco Mil, o território cultural vai se fragmentando com a ausência
do poder agregador das antigas lideranças. O ato de nomear vai criando novas denominações,
se efetivando como estratégia de produção dos lugares e consolidando a fragmentação do
espaço no imaginário coletivo, uma vez que as identidades são discursos, são construídas. Olhar
para os documentos orais e escritos que vêm constituindo diferentes saberes e sabores sobre as
territorialidades e memórias da/na Colônia Cinco Mil é olhar para sua invenção e reinvenção
como um lugar narrado e produzir espaços e tempos de diálogos, escuta e escrita, para mapear
a existência de uma cartografia acre: “embora amarga não é aquela que busca fazer chorar, mas
aquela que busca contorcer, distorcer e torcer sentidos (...) que ajude a superar o desencanto,
pelo encanto da beleza, que sempre há em qualquer vida, mesmo quando ela é Severina. Uma
historiografia que nos leve novamente a acreditar na vida”1304.
O Céu do Mapiá outorga para si o título de matriz e “sede mundial do Santo Daime-
ICEFLU”, mas observou-se com a pesquisa que considerável parte do patrimônio material e
imaterial legado por Sebastião permanece vivo é na Colônia Cinco Mil, onde os espaços rituais
e de convivência como a sede da igreja, a casa grande, a casa de feitio, o cemitério, são espaços
que remontam a época que Sebastião morava ali, lugares de memórias construídos por ele e
seus seguidores, enquanto no Mapiá praticamente não existe patrimônio material que remeta à
esse tempo. Seu Wilson, como encarregado de dar continuidade aos trabalhos, é narrado como
um padrinho que presava muito pela tradição, pela pontualidade, pelo zelo com o fardamento,
o cumprimento do calendário sem alterar os dias, a doutrina sem muita invenção de moda, o
que possivelmente explica a manutenção de um formato ritual mais próximos das raízes.
Desde a chegada dos primeiros andarilhos e hippies em meados da década de 1970, a
Colônia Cinco Mil ainda segue sendo um lugar que recebe pessoas de diferentes partes do Brasil
e do mundo, ao longo de todo o ano. São diversos tipos de viajantes, visitantes, peregrinos,
andarilhos, mochileiros, que buscam conjecturar outros tipos de experiências com a natureza,
seus seres, inteligências e sensibilidades, outras formas de nos relacionarmos coletivamente,
com o planeta, com o próximo, conosco mesmos, diferentes tipos de auxílios, cura para doenças
e dores, dependência química, por exemplo.
Sem dúvidas uma das coisas mais legais de morar na Cinco Mil é a possibilidade de
conhecer e receber pessoas de várias partes do mundo, trocar experiências, ouvir e conhecer

1304
ALBUQUERQUE JR, 2014, p. 130.
429
exemplos de como está a expansão do Daime/Ayahuasca por outros países e regiões do Brasil.
Muitas destas pessoas chegam interessadas em conhecer ou aprofundar seus estudos na
Doutrina do Daime, como quem busca seus fundamentos, isto é, aprender mais perto da fonte.
São lideranças brasileiras e estrangeiras, que estão dirigindo trabalhos de Daime em outros
estados ou em seus países.
Às vezes são estradeiros que sequer nunca ouviram falar do Daime, mas que ouviram
sobre “uma comunidade lá no Acre que recebe os hippies”, e acabaram chegando aqui para
conhecer, passar uns dias, alguns ficam meses, outros passam anos. Devido ao trabalho feito no
Centro Cultural Padrinho Sebastião e Memorial da Cinco Mil, tenho muitas oportunidades de
narrar sobre o lugar, passar essas cartografias adiante, dialogando com diversas perguntas que
me chegam e mantendo de alguma forma viva a chama da arte de contar istórias no/do lugar.
A cartografia como um fazer e um campo teórico-metodológico-crítico de antemão se
opõe e se diferencia dos manuais das ciências que defendem a neutralidade e o distanciamento
na relação pesquisador-objeto-sujeitos. Se por um lado o fato de pertencer à irmandade e morar
na comunidade, estar imersa no campo, frequentando há 15 anos, me trouxeram facilidades em
relação a “conhecer seus segredos”, as pessoas, envolvê-las com o processo da pesquisa, ter o
aval das lideranças comunitárias, por outro lado, o campo e a pesquisa tornaram-se uma
atividade permanente da vida, que se vive na experiência de cada vez mais estar presente no
lugar, participar, observar a dinâmica das relações, e refletir a condição, por vezes desencantada
e desolada, de ser e estar numa comunidade do Daime no Acre.
Os começos e novos recomeços que se impuseram à vida comunitária na Colônia Cinco
Mil é como a natureza e seu movimento, que independem da consciência que façamos dela, e
de como a nomeamos, segue seu fluxo. Toda narrativa precisa ter um início, todo território
precisa de um nome, e todos os lugares na história são feitos de começos e recomeços diários,
rearranjos contínuos, de modo que todo começo, como marco temporal, é uma produção da
linguagem, da consciência, na atividade de tentar conhecer o mundo, ordenar, dar sentido.
Se em algum momento deixei-me levar pela hipótese utópica de que a Cinco Mil
continuou e continua sendo, em alguma medida, a comunidade romanticamente idealizada nos
anos 1970-80, com suas revoluções moleculares e repertórios de resistência, assumir as cisões
e rupturas e fraturas como marcas das trajetórias humanas tornou-se caminho inevitável no
percurso narrativo desde o Acre. Tornou-se necessário admitir que, em grande parte, Almeida
Ramos tem razão quando destaca que a romântica comunidade da contracultura e da

430
contraordem do Daime não mais existe. Ou ainda, na perspectiva do fazer desta cartografia
acre, reconhecer que foi idealização cristalizada, que como cristal, era de vidro e se quebrou.
Quando se escava distintos fragmentos de memórias, ditos, escritos, relatos de
experiências sobre a vida da/na Colônia Cinco Mil, as discrepâncias entre as imagens
idealizadas de uma vida ecológica e em comunidade, como sonhada pelo líder fundador, e a
lógica do poder centralizado, a má gestão dos recursos, reprodução das desigualdades sociais,
o machismo entre outras evidências de um “inconsciente capitalístico em nós”1305, são trazidas
à superfície.
A Colônia Cinco Mil vive muito das memórias de seu passado, que vão se tornando
presente pelas narrativas dos participantes. Os mais antigos adoram repetir os versos de um
hino que choram as “lembranças de uns bons tempos, tempos que não voltam mais”.1306
Sobretudo entre esses, o passado é quase sempre narrado como um tempo melhor, o que
evidencia na maior parte das vezes, que as pessoas que narram não estão tão satisfeitas com o
presente, as ruínas, os resquícios e fragmentos do que ali já foi. Os dados do censo comunitário
que realizamos em 2022, por sua vez, apontaram um alto índice de satisfação. Mesmo com as
dificuldades econômicas, de mobilidade e de acesso à internet, a maioria dos moradores (cerca
de 70%) declararam que gostam de morar na Colônia Cinco Mil.
A Colônia Cinco Mil não é mais uma área de produção agrícola considerável, e a
agricultura familiar é praticada apenas em alguns quintais em pequena escala. Não existem mais
os grandes roçados coletivos dos tempos áureos da vida comunitária, descritos nos livros e
saudosos nas lembranças da época em que na Colônia Cinco Mil se produzia muita coisa, do
urucum ao açúcar e a farinha, e os trabalhos eram organizados em sistemas de mutirão. Hoje
cultiva-se nos quintais em pequena escala principalmente macaxeira, milho, cana, hortaliças
como couve, alface, rúcula, cheiro verde, e árvores frutíferas tais como: goiaba, mamão, manga,
cupuaçu, acerola, banana, graviola, limão, laranja, coco.
Na Vila Carneiro tem uma horta onde os visitantes ou hospedes ajudam como forma de
participar do dia-a-dia da comunidade. Ali se cultiva com alguma frequência, alface, rúcula,
pepino, pimenta, tomates, jambu, mamão, feijão verde, entre outros, mas a maior parte da
produção também é pra consumo mesmo e são raras as produções com excedentes, que são
levadas aos mercados para vender. Há ainda um viveiro de produção de mudas e plantas

1305
GUATTARI e ROLNIK, 1996.
1306
Souza Neto, W.C. Hino Saudades.
431
ornamentais, comercializadas nas feiras de economia solidária e empreendedorismo feminino
na capital.
Na Colônia Luau também não existe uma considerável produção agroflorestal, e como
dizem os moradores, “a floresta recuperou sozinha ali porque ninguém foi mexer”. Existem
sim, pés de cacaus, cupuaçu, bananas e outras espécies típicas plantadas em outras épocas e que
rendem alguma colheita. O foco dos trabalhos da Luau tem sido a questão do investimento na
questão do turismo ecológico e de vivências. Por sua participação ativa nos fóruns de cultura e
das comunidades ayahuasqueiras e inovação, tem se afirmado cada vez mais como um espaço
autônomo em relação a Cinco Mil, integrando-se no movimento artístico cultural e
empreendedor de Rio Branco. Cenas do premiado filme do diretor Sergio de Carvalho, “Noites
Alienígenas”, foram gravadas na grande Sumaúma da comunidade, e uma das filhas de
Feliciano e Marinez, é cantora e se apresenta em eventos.
O censo constatou que a renda média da comunidade é baixa. Dez moradores declararam
que vivem com renda mensal de até meio salário mínimo, e muitos não tem acesso às políticas
de auxílio social e transferência de renda. A maioria das famílias declarou que recebe de 1 à 2
salários mínimos (no valor de 1302,00 reais na época). A maioria trabalha de forma autônoma,
como diarista, sem vínculos trabalhistas formais. Muitas vezes as diárias de trabalho são
conseguidas na Colônia mesmo, com serviços de pedreiro, auxiliar de pedreiro, roçadeira,
pintor, etc. Funcionários públicos e privados, pequenos empresários, estão nos grupos de
maiores rendas.
Quanto ao critério cor ou auto identificação étnico-racial o perfil dos moradores se
apresenta parecido ao perfil nacional, onde a maioria é considerada negra, que configura a soma
das pessoas que se declaram pardas e pretas. Declaram-se pretos quase 7%, próximo à média
nacional (10,6% declararam como pretos na Pnad 2022). Declararam-se pardos a maioria, um
total de 66 pessoas, média um pouco maior que a média nacional (45,3% se declararam pardos
na Pnad 2022). Há uma minoria, porém significativa presença indígena, de seis pessoas, sendo
todos da etnia Apurinã, maior que a média nacional. Se declaram brancos um percentual de
24% das pessoas, menor que a média nacional (42,8% dos brasileiros se declararam como
brancos na Pnad 2022). No período de realização do censo, aproximadamente 10% da
população da Cinco Mil era composta por estrangeiros, sendo a maior parcela de argentinos,
mas também um mexicano, um uruguaio, uma alemã, uma estadunidense. A maioria é de
moradores fixos, mas também existe um contínuo fluxo de moradores temporários na Cinco
Mil, na Vila Carneiro e na Luau. Isso porque, além dos visitantes, algumas famílias tem casa

432
na Colônia, e também na cidade, e ficam na Cinco Mil aos finais de semana. A maioria das
casas são de alvenaria ou construção mista, e em quase todas, há fossa impermeabilizada. Porém
também encontramos 8 moradias com fossa rudimentar e ainda outras 6 que despejavam o
esgoto em vala ou direto no igarapé. Diz-se que na época das primeiras moradias nos anos 1970,
assim como não tinham cama e nem cozinha, tampouco haviam banheiros, e várias vezes
escutei no campo à referência aos cagadouros, que eram fossas rudimentares e coletivas, com
estrutura improvisada de palha para resguardar alguma privacidade.
A questão da água tem sido cada vez mais um problema, uma imagem que contrasta
com as narrativas de que, até o final da década de 1990, as cacimbas eram muito boas, e nunca
tinha faltado água na Cinco Mil. Na área da Vila Santa Maria o problema com água é maior, e
alguns moradores sofrem com o desabastecimento na estiagem do verão amazônico. Uma das
melhores cacimbas desta área está localizada na Colônia Luau, que cede água para os vizinhos
mais próximos. Muitos moradores precisam comprar água do carro pipa no auge da estiagem.
Na Vila Carneiro há algumas boas cacimbas que garantem o abastecimento de água mesmo nos
períodos mais secos, mas mesmo essas, nos últimos anos, nos meses mais críticos, forçou os
moradores a racionarem água.
No sentido de uma prática contra colonial, entendo que o contexto das culturas
Ayahuasqueira/do Daime são saberes que não cabem em papéis e livros, nos modelos
classificatórios, estudos de caso e generalizações a que são dados os cientistas sociais, etc.
Consideráveis esforços estão sendo feitos por autores de diferentes campos como etnobotânica,
antropologia e outros, que apontam para a memória, a sensibilidade, a linguagem de formas de
vida não-humanas, mas essas ainda são experiências que, para a episteme ocidental, são difíceis
de conceber, quem dirá compreender, a inteligência das plantas maestras, dos enteógenos,
historicamente acessadas por pajés, xamãs, feiticeiros e bruxas há milênios.
A cartografia é sempre uma narrativa, e como tal, nunca é inocente. Daí a importância
de pensar como tradições orais lidam com o ato de registrar seus saberes em textos escritos, os
arranjos, conflitos, tessituras e redes de afetos que possibilitam tais feitos. Como é cantado em
um hinário, “O que há aqui dentro, não está em nenhum livro, não é só filosofia e não precisa
de dizer, o que há aqui dentro é a mais pura experiência, é a própria experiência, o caminho do
saber.”1307 No limite, o Daime como um complexo conjunto de práticas e fazeres culturais, uma
escola, uma irmandade de saberes outros, amazônicos, periféricos, com sua própria ciência,

1307
Neto, D.T., Hino “Enxotando os maus fazejos”, nº 9.
433
que não se diferencia de sua poética, sua literatura, seu “estudo fino”, não precisa das teses,
dissertações.
Ao refletir sobre a oralidade e a escrita como suportes das práticas discursivas em
comunidades tradicionais da ayahuasca e religiões de terreiro1308 como o Daime procuro
integrar-me num movimento que visa valorizar a diversidade de cosmovisões coexistentes em
espaços pluriculturais como o Brasil, a Amazônia, o Acre. Refletir sobre a memória e a
importância do ato de lembrar, registrar lembranças e contar histórias, no contexto de
comunidades ayahuasqueiras, envolve falar de histórias e geografias de resistência, muitas
vezes invisibilizadas. Com estes estudos espero fazer coro aos questionamentos em relação aos
apagamentos das trajetórias de grupos sociais marginalizados no contexto de uma geopolítica
do conhecimento, que hierarquiza ciências e saberes, e no contexto das micropolíticas e jogos
de poder entre as instituições e indivíduos, que dar a dizer e silencia determinadas vozes,
ordenando os discursos.
Há que lembrar que todo fazer científico é um fazer político. Problematizar essa
percepção naturalizada por alguns setores de que a comunidade da Colônia Cinco Mil é uma
deturpação e deformação da tradição do Daime, ou algo de importância menor, que ficou no
passado da história da expansão do povo do padrinho, foi desde o início uma das motivações e
justificativas para esta pesquisa.
Na companhia de Benjamim, entendo que as práticas de conhecimentos assentadas na
oralidade foram se tornando cada vez mais raras, ou foram se literatizando também na sociedade
capitalista, por meio do advento da imprensa, e o surgimento do romance como um novo gênero
narrativo.1309 No contexto das práticas culturais do Daime, também a narrativa oral foi com o
tempo sendo desprestigiada em relação a narrativa escrita, e não é raro ouvir enunciados do tipo
“o mestre não deixou nada escrito” como espécie de salvo conduto para o estabelecimento de
um vale-tudo quando o assunto é recriar as tradições e customizar a fé.
De certo, os saberes que se aprendem no Daime estão ali para serem experienciados e
transmitidos através do ritual, da performance, da oralidade, do canto, do imagético que se
apresenta durante os estados de “força” e “miração” provocados pela ingestão da bebida
professora. Estas são questões tomadas como pressupostos, e que me ajudaram a situar as
dificuldades, os sentidos, os limites e as possibilidades de se escrever uma tese sobre o Daime

1308
ALBUQUERQUE, G., 2016.
1309
BENJAMIM, 1987a.
434
e em específico sobre a Colônia Cinco Mil. Sebastião mesmo dizia: “Eu sei porque sei, não
porque li.”1310
A Colônia Cinco Mil é um espaço onde a dissolução dos limites inventados entre
sociedade-natureza-cultura sugere, sobretudo através do saber da experiência com as plantas
maestras, possibilidades outras de significar o mundo, a vida, as relações, mas isso depende das
buscas individuais. Os repertórios de resistência ali enunciados e ressoados enquanto
comunidade de saberes tradicionais, ligados à terra, à floresta, ao território, à tradição oral, à
produção de uma cultura festiva, devocional e geracional, podem nos indicar caminhos para um
bem viver e um bem morrer. Ao mesmo passo ali, como em tantas outras comunidades do
Daime/Ayahuasca, se reproduzem violências seculares, em diversas camadas e recortes de
gênero, raça, etnia e classe. É preciso permanentemente refletir e tentar acomodar essa dialética
existente, assumir as contradições e incertezas, espécie de “dupla consciência”, e ocupar os
limiares e as fronteiras, bailando firme sob linhas maleáveis.
Com este estudo apresentei uma cartografia de territórios e memórias do Daime na
Colônia Cinco Mil para evidenciar como um conjunto de narrativas, que ressoam em textos da
oralidade e escritos, vai produzindo o lugar como criação da linguagem – com suas
territorialidades, lembranças, interpretações, saberes, relatos de experiências, silêncios e
esquecimentos. Os atos de nomear e renomear os espaços, de contar as istórias, redimensionam
os limites e fronteiras internas na Colônia Cinco Mil como um lugar narrado, com suas
multiterritorialidades.
Fazer esta cartografia com sabores acre, ora mais adociacados, foi a possibilidade de
criar um espaço para refletir as inquietações que me moveram durante a investigação, como
pesquisadora e como ser no mundo, que é objeto e sujeito no campo, com posições,
pensamentos e sentimentos contraditórios em relação à própria pesquisa e vivências. Na
companhia de Porto-Gonçalves, lembrei que “Não devemos deixar de levantar uma questão
simplesmente porque não temos respostas para ela. O importante é não silenciar sobre aquilo
que incomoda.”1311
Com esse pesquisa espera-se contribuir com o reconhecimento da Colônia Cinco Mil
como parte dos espaços de memórias e patrimônio das culturas e tradições ayahuasqueiras no
Acre. O lugar narrado, com suas multiterritorialidades, é uma comunidade viva e lócus de

1310
Melo, S.M. em Albuquerque, M.B., 2009.
1311
PORTO-GONÇALVES, C.W. O ensino de Geografia em questão: Notas de um debate In: AGB, Associação
dos Geógrafos Brasileiros (org.) O Ensino de Geografia em questão e outros temas: São Paulo: Terra Livre
AGB, Julho de 1987, p. 21.
435
aprendizagem da doutrina do Daime, território de referência e resistência do povo do Daime do
padrinho Sebastião em Rio Branco, que existe como narrativa e sentimento de pertencimento
nas pessoas, cujas memórias, saberes, ciências e práticas mantiveram-se vivas mesma após a
saída do líder fundador.
Na Colônia Cinco Mil a irmandade segue realizando os festejos, as orações, os feitios,
cumprindo o calendário de trabalhos essenciais, as concentrações, bailados, trabalhos de cura,
missas, outras práticas que constituem os saberes-fazeres do Daime, como os ritos fúnebres. Os
conhecimentos e as tradições desta doutrina poética, ciência e filosofia da floresta, seguem
sendo aprendidos e ensinados entre as gerações, mesmo diante das tensões e dos desafios da
convivência em comunidade. A Cinco Mil, com suas multiterritorialidades, que inclui a Vila
Carneiro e a Colônia Luau, às vésperas de seus 50 anos, continua sendo uma escola de saberes
outros - o Daime com seus estudos finos. Uma comunidade que, mesmo com suas fraturas,
processos de silêncios e silenciamentos e contradições latentes, procura afirmar a vida enquanto
coletividade, o dançar, o cantar, o festejar ante às durezas e o trágico do cotidiano, para com o
amparo das plantas professoras que nos ensinam, aprender sobre um bem viver e um bem
morrer possível, pelo menos enquanto utopia, narrativa e miragem.

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