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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

Centro de Artes
Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Artes

Aos olhos dos que não vemos:


Expressividades artísticas dos moradores da Unidade de Acolhimento Abrigo
Institucional Residência Inclusiva II, em Pelotas/RS

Isabela Maria Santos Silva

Pelotas, 2023
Isabela Maria Santos Silva

Aos olhos dos que não vemos:


Expressividades artísticas dos moradores da Unidade de Acolhimento Abrigo
Institucional Residência Inclusiva II, em Pelotas/RS

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Artes do Centro de
Artes da Universidade Federal de Pelotas,
como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Artes.

Orientadora: Eleonora Campos da Motta Santos

Pelotas, 2023
Isabela Maria Santos Silva

Aos olhos dos que não vemos:


Expressividades artísticas dos moradores da Unidade de Acolhimento Abrigo
Institucional Residência Inclusiva II, em Pelotas/RS

Dissertação aprovada, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre


em Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes do Centro de Artes da
Universidade Federal de Pelotas.

Data da defesa: 01 de dezembro de 2022

Banca examinadora:

Prof.ª Dr. Eleonora Campos da Motta Santos (Orientador)


Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia

Prof. Dr. Édio Raniere da Silva


Doutor em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul

Prof.ª Dr. Ana Clara Correa Henning


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
Nestas poucas, mas emocionadas linhas, dedico
este trabalho à minha vó e a todos aqueles que
passaram, em algum momento da vida, pelo
processo de internação.
Agradecimentos

Primeiramente, agradeço a cada um dos moradores e funcionários da Residência


Inclusiva II. Agradeço pelas trocas, pelos aprendizados, pela parceria. Seria
impossível construir este trabalho sem vocês.

Agradeço aos meus pais, Rosana e Claudinei que, por mais esses anos, me
amaram, incentivaram e auxiliaram nessa longa jornada acadêmica e pessoal.
Sempre se fazendo presentes, mesmo com tantos quilômetros entre nós.

A Carol, uma linha que cruzou na minha linha e que, agora, trama comigo nessa
aventura que é estar viva. Me ajuda, me inspira, me faz melhor.

A minha orientadora, Eleonora, que me compreendeu e incentivou com muita


paciência e dedicação durante toda a caminhada.

Aos professores da banca, Édio Raniere da Silva, Rebeca da Cunha Recuero e


Ana Clara Correa Henning, que se dispuseram a colaborar e a enfrentar os desafios
acadêmicos comigo.

Por fim, agradeço a todos que me ajudaram a chegar até aqui e que, direta ou
indiretamente, fizeram possível a realização deste trabalho.
“E aqueles que foram vistos dançando
foram julgados insanos por aqueles
que não podiam escutar a música”

Friedrich Nietzsche
Resumo

SILVA, Isabela Maria Santos. Aos olhos dos que não vemos: Expressividades
artísticas dos moradores da Unidade de Acolhimento Abrigo Institucional Residência
Inclusiva II, em Pelotas/RS. Orientadora: Eleonora Campos da Motta Santos. 2023.
109 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes,
Centro de Artes, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2023.

Esta dissertação investiga como as práticas artísticas podem desenvolver espaços de


expressividade. Neste sentido, busca-se pensar na realidade da arte que caminha em
convergência com a saúde mental, dado que ambas trabalham com a subjetividade
dos indivíduos. A subjetividade é aqui compreendida, como algo que é construído e
modificado diariamente, a partir dos encontros. Mesmo na atualidade, muitas
instituições sociais ainda, de certo modo, dominam e, pelas suas condições
estruturais, isolam os indivíduos da vivência cotidiana, dentre elas, os hospitais
psiquiátricos. Diante deste contexto, o Abrigo Institucional Residência Inclusiva II, na
cidade de Pelotas/RS, surge como uma alternativa à internação compulsória e ao
isolamento severo impostos por essas instituições e, por isso, foi objeto de pesquisa
desta dissertação. A partir de uma metodologia estruturada em torno da pesquisa de
campo, da realização de entrevistas e da pesquisa participante através da mediação
de atividades que trabalhassem com diversas linguagens artísticas, foi possível
recolher observações e desenvolver reflexões acerca das subjetividades, emergentes
nos processos de experiência em arte, dos e das moradoras do referido abrigo. Nas
considerações finais são trazidas reflexões quanto as dificuldades e fortalezas na
aplicação das oficinas, com o objetivo compartilhar as observações e aprendizados
sobre a temática, dentre os quais destacam-se a importância de uma aproximação da
realidade em que as atividades serão aplicadas, a problematização da expectativa do
“belo” no campo da arte e a obrigatoriedade da participação das oficinas como um
obstáculo à plena expressividade.

Palavras-chave: Práticas artísticas; Subjetividades; Instituições totais


Abstract

SILVA, Isabela Maria Santos. In the eyes of those we don't see: artistic
expressions of the residents of the Institutional Shelter Residência Inclusiva II, in
Pelotas/RS. Advisor: Eleonora Campos da Motta Santos. 2023. 109 f. Dissertation
(Masters in Art) – Postgraduate Program in Arts, Arts Center, Federal University of
Pelotas, 2023.

This research investigates how artistic practices can develop expressive spaces. In
this sense, we seek to think about the reality of art that walks in convergence with
mental health, given that both work with the subjectivity of individuals. Subjectivity is
understood here as something that is constructed and modified daily, based on
meetings. Even today, many social institutions still, in a way, dominate and, due to their
structural conditions, isolate individuals from everyday life, among them, psychiatric
hospitals. Given this context, the Institutional Shelter Residência Inclusiva II, in the city
of Pelotas/RS, emerges as an alternative to compulsory hospitalization and severe
isolation imposed by these institutions and, therefore, was the object of research in this
dissertation. Based on a methodology structured around field research, conducting
interviews and participating research through the mediation of activities that work with
different artistic languages, it was possible to collect observations and develop
reflections about the subjectivities, emerging in the experience processes in art, of the
residents of the aforementioned shelter. In the final considerations, reflections are
brought regarding the difficulties and strengths in the application of the workshops, with
the objective of sharing the observations and learnings about the theme, among which
we highlight the importance of an approximation of the reality in which the activities will
be applied, the problematization of the expectation of “beauty” in the field of art and
the mandatory participation in workshops as an obstacle to full expressiveness.

Keywords: Artistic practices; Subjectivities; Total institutions


LISTA DE FIGURAS

Imagens 1 e 2 Bijuterias feitas pelo morador “B” .................................... 47


Imagens 3 e 4 Desenhos impressos e coloridos pelo morador “B” 48
através da técnica de hachura .........................................
Imagem 5 Organização dos materiais .............................................. 67
Imagem 6 Mosaico multicolorido em hachura do morador “B” e 70
desenho de uma flor com a palavra “paz” da moradora
“LI” ...................................................................................
Imagem 7 Autorretrato de uma moradora ......................................... 72
Imagem 8 Autorretratos diversos ...................................................... 72
Imagem 9 Sala ao final da atividade ................................................. 73
Imagens 10 e 11 Moradora “M” manuseando a argila ................................. 75
Imagem 12 e 13 Peças modeladas durante a atividade ............................. 77
Imagem 14 Bauruzão ........................................................................ 77
Imagens 15 e 16 Exibição do filme “Shaun, O Carneiro: A Fazenda 81
Contra-Ataca” ..................................................................
Imagem 17 Brinquedos disponibilizados para a oficina ...................... 83
Imagem 18 Print do aplicativo Stop Motion Studio ............................. 83
Imagem 19 e 20 Moradoras comemorando com suas ecobag ................... 89
Imagem 21 Auxiliando na construção das ilustrações ........................ 89
Imagem 22 Morador exibindo sua ecobag .......................................... 89
Imagem 23 Sacolas produzidas na oficina ......................................... 90
Imagem 24 e 25 Registros da festa de aniversário ..................................... 92
Imagem 26 Caixa organizadora das bijuterias do morador “B” ........... 93
Imagem 27 Morador “B” e os saquinhos personalizados com suas 93
bijuterias ..........................................................................
Imagens 28 e 29 Registros do processo de planejamento do lettering ........ 95
Imagem 30 Julcinara ajudando a pintar o lettering ............................. 95
Imagem 31 Eu e a Julcinara ............................................................... 96
Imagem 32 Morador “MA” ajudando na pintura do lettering ............... 97
Imagem 33 Moradora e educador interagindo com o mural ................ 97
Imagem 34 Eu e o mural finalizado ..................................................... 97
Lista de Tabelas

Tabela 1 Roteiro da primeira oficina: Atividade de Autorretrato.................... 59

Tabela 2 Roteiro da segunda oficina: Atividade de Modelagem................... 60

Tabela 3 Roteiro da terceira oficina: Atividade de Stop Motion..................... 60

Tabela 4 Roteiro da quarta oficina: Atividade de Dança/Música/Teatro........ 61

Tabela 5 Roteiro da quinta oficina: Atividade de Isogravura......................... 62


Sumário

1. Introdução ....................................................................................................... 13

1.1 Linhas e tramas da vida ................................................................................ 13

1.2 Uma arte que surge em meio a vida ............................................................. 17

2. Referencial Teórico ......................................................................................... 25

2.1 Instituições e uma vivência de isolamento .................................................... 26

2.2 Abrigo do corpo, morada da mente ............................................................... 30

2.3 Aplicação artística em instituições totais ....................................................... 32

3. Estrutura metodológica ................................................................................... 35

3.1 Construção da proposta de atividades artísticas........................................... 37

3.1.1 O primeiro contato ...................................................................................... 37

3.1.2 Entrevista com os técnicos......................................................................... 39

3.1.3 Entrevista com os moradores..................................................................... 49

3.1.4 Revisão de iniciativas já realizadas ............................................................ 56

3.1.5 Roteiros das oficinas .................................................................................. 59

3.2. A escrita em cartas ...................................................................................... 63

4. Resultados e reflexões: “Cartas para (os) nós” ............................................... 65

4.1 Oficina 1: Atividade de Autorretrato .............................................................. 67

4.2 Oficina 2: Atividade de Modelagem ............................................................... 74

4.3 Oficina 3: Atividade de Stop Motion .............................................................. 80

4.4 Oficina 4: Atividade de Dança/Música/Teatro ............................................... 84

4.5 Oficina 5: Atividade de Isogravura ................................................................ 87

4.6 Aniversário da “M” ......................................................................................... 91

4.7 O Amor Mora Aqui ........................................................................................ 94

5. Considerações e reflexões finais .................................................................... 98

6. Referências .................................................................................................. 102

7. Apêndices.......................................................................................................105
13

1. Introdução
1.1 Linhas e tramas da vida

Este trabalho surge a partir de vivências, experiências e observações. Parte de


relatos vividos e narrados, linhas sozinhas que se tramam quando observadas de fora.
Aqui, busca-se pensar na realidade da arte que caminha em convergência com a
saúde mental, dado que ambas trabalham com a subjetividade dos indivíduos.
A delimitação deste trabalho é pesquisar as experiências na produção artística,
as poéticas e o acesso à arte, no sentido mais amplo da terminologia, durante uma
intervenção de ações artísticas de 5 encontros, entre os meses de agosto e setembro
de 2022, a partir da realidade do Abrigo Institucional Residência Inclusiva II, na cidade
de Pelotas. A Residência acolhe pessoas adultas, com idade entre 18 e 76 anos, de
ambos os sexos, que apresentam alguma deficiência e que se encontram em situação
de vulnerabilidade social e/ou tiveram seus direitos violados. Ambientes que, mesmo
diante da proposta de reinserção social e de resgate da cidadania, são estruturas
distantes do conhecimento da sociedade e que lidam diariamente com corpos
estruturalmente invisibilizados.
Desta forma, entendendo que a arte se manifesta como expressão do ser,
capaz de dar passagem a forças singulares que ultrapassam paredes e barreiras,
unindo os seres em um emaranhado de relações, busca-se aqui visibilizar e
oportunizar experiências criativas de sujeitos que, por sua dita loucura ou dificuldade
de convívio social dentro de um suposto padrão de normalidade, precisaram recorrer
a estes ambientes como lugar de moradia.
Iniciei as tramas desta dissertação almejando analisar e estudar relatos,
partindo do ponto de vista de outras pessoas, mas ao longo dessa caminhada vi o
quanto de mim há nessa pesquisa. Ao pensar na vida, na casa, na loucura dos outros,
voltei o olhar para minha própria. Conhecer esses espaços e os corpos que nele
habitam é um divisor de águas, tanto para minha construção pessoal e artística,
quanto para a construção deste trabalho.
Sendo assim, é a partir das histórias da minha casa e de tantas casas que esta
dissertação se estrutura, partindo da visão também daqueles que por motivos mais
fortes que a própria vontade, não puderam escolher onde morar. São linhas que se
apresentam inicialmente como soltas, linhas que as instituições mais opressivas
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anseiam cortar, segregar a partir do isolamento, mas que a olhos atentos constroem
esse emaranhado de relações.
Dito isso, duas grandes e resistentes linhas tramam minha jornada pessoal
como inspirações para este trabalho. Uma delas foi quando visitei pela primeira vez
um hospital psiquiátrico. Quando uma pessoa que amo passou pelo processo de
internação, adentrar e conhecer esse tipo de ambiente mostrou-se necessário, o que
acabou sendo um grande marco para minha história e para minha forma de encarar o
mundo. O tempo passa e as lembranças se esvaem. Lembro do branco e do frio, com
a constante presença do silêncio que ora era calado pelos gritos. Muros altos, portas
fechadas, grades e câmeras, além dos olhos que nos seguiam sempre atentos. Era
uma sensação intimidadora, que hoje vejo a importância em relatar. Poucas palavras
foram trocadas naquele local, não havia muito o que ser dito, mas me lembro com
bastante intensidade do pedido de ajuda, de amparo, um pedido para sair de lá. Foi
uma experiência instigante que se tornou linha guia nessa breve tecitura.
Somado a isso, outra linha que também estrutura essa trama é meu contato
próximo com o autismo. Na convivência diária com uma pessoa autista é que se
percebe as minúcias do cotidiano. A presença incessante e necessária da rotina como
um dos elementos na construção do indivíduo com autismo faz com que meus olhos
se voltem para a beleza nas banalidades, nos hábitos, na criatividade que surge a
partir do mais singelo movimento.
Parafraseando o poeta baiano Jorge Salomão (1974), é quando o meu olho
direito encontra com seu olho esquerdo que as trocas acontecem. Em outras palavras,
é preciso olhar nos olhos uns dos outros, frente a frente, para verdadeiramente
entender a importância das relações, num encontro de singularidades. Foi necessário
adentrar nesses espaços, conversar com essas pessoas, para compreender o local
que me coloco dentro do campo artístico. Um local de construção coletiva, de trocas.
Olhar para o outro possibilitou me descobrir enquanto mediadora de arte. Mediador,
segundo o dicionário Oxford (2017), é aquele que atua como intermediário, criando
um elo. Definição que converge com os pensamentos apresentados por Vigotski
(1989), que cita a importância da existência de uma pessoa que auxilie na criação de
um caminho que ligue o objeto até o receptor, como é o caso da relação entre o
professor e o aluno.
O conceito de mediador, também pode ser inserido dentro do campo das artes,
passando a ser conhecido também como “mediador cultural”. Neste caso, o mediador
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passa a atuar dentro de ambientes como museus, galerias e exposições, trazendo


informações sobre um determinado artista, sua obra, o conceito e o contexto por trás
de sua criação. A artista Isabela Nascimento (2018) define que:

Grosso modo, pode-se entender que mediação cultural é um processo de


troca, um movimento dialógico, cujo mediador inicia um discurso, apontando
questões sobre os elementos mediados, no qual se leva em conta a bagagem
e a vivência de cada pessoa que participa, fazendo com que pontos de vista
particulares se tornem importantes, bem como seja possível uma provocação
para novas reflexões e uma saída do senso comum ou mera opinião. Uma
boa mediação cultural pode criar um interesse no público em entender melhor
aquela obra de arte ou artefato que estão sendo apreciados. Ao mesmo
tempo, também deve criar um elo entre mediador e público; um elo de
identificação ou até mesmo de empatia, mesmo que aconteça de modo
efêmero ou operacionalizado.

Em concordância com as definições apresentadas, Faria, Dias e Camargo


(2019) explicam o conceito de mediação a partir da criação artística, bem como
relatam os desdobramentos que surgem a partir dela:

A criação artística, para Vigotski (1965/1999b), não visa transmitir os


sentimentos particulares do autor para o fruidor; vai além das emoções
individuais, generalizando-as em um plano social no qual são reelaboradas e
transformadas, revelando algo inteiramente novo que não pode ser
encontrado diretamente na obra, mas só pode ser objetivado concretamente
nas relações humanas com a mediação da arte.

Assim, a obra por si só já comunica algo. Como dito por Deleuze e Guattari
(1996, p. 213) a arte é a única coisa no mundo que se conserva. Você sempre pode
rever um quadro, uma cena do filme ou página do livro, a arte perdura mesmo na
ausência de um espectador. Ela independe até mesmo de um criador, já que ela se
conserva por ser um composto de sensação, de perceptos e afectos, conceitos mais
a frente abordados. Ela existe em si mesma. Mas é apenas através da mediação que
se pode ir além, possibilitando descobertas que ultrapassam e transformam em algo
novo o que a obra por si só não conseguiria comunicar. É a beleza das relações
humanas e dos desdobramentos da criação artística dentro do plano social.
Em concordância, para mim, o conceito de mediação transcende a ideia de um
mero transportador de informação, definição que pode restringir de forma redutora e
simplista este papel. Vejo o mediador como alguém que anseia pela construção
conjunta de conhecimento, através de ações provocadoras e criativas, que
pressupõem essas trocas a partir do diálogo e da reflexão. E é essa escolha de me
colocar como mediadora e artista que torna mais simples acessar aquilo que é
sensível para mim e para o outro, criando uma conexão, gerando trocas riquíssimas
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na construção subjetiva que forma e une a todos, derrubando as paredes e os muros


que nos separam, que invisibilizam. Uma arte que permite extrair o que é belo em
meio ao caos, vendo também a beleza do caos e de todos os que foram esquecidos
pelo caminho.
Portanto, esse texto é escrito a partir das trocas, de me colocar como
mediadora e possibilitar a visibilização de experiências artísticas que surgem e
adentram nas intimidades de espaços que lidam com realidades tão singulares,
ambientes que acolhem indivíduos com sofrimentos psíquicos e histórias de vida
marcantes, buscando conhecer um pouco da intimidade de moradores e funcionários
destes locais, bem como suas relações com a arte.
A escolha do termo “sofrimento psíquico”, bem como suas possíveis variações,
para referenciar as situações aqui contempladas, segue em concordância e
continuidade às pesquisas por mim iniciadas em 2018, durante meu processo de
graduação. Tendo como embasamento os pensamentos de Januário e Tafuri (2009),
Belfort (2009) e Costa (2003), a escolha deste termo permite questionar o sofrimento
humano a partir da situação psíquica do indivíduo, indo além das descrições de um
quadro patológico, focando em todas as possibilidades alcançáveis quando se pensa
em uma pessoa em estado de sofrimento, tentando, assim, evitar reduzir a pessoa à
sua patologia.
A utilização dessas expressões é também uma breve tentativa de ampliar as
reflexões sobre os estigmas que algumas palavras trazem consigo quando tratamos
sobre saúde mental. Expressões como “doente mental” podem conduzir o
pensamento para um lugar onde a doença é entendida no sentido fisiológico,
pressupondo geralmente uma cura, fato que muitas vezes não se aplica quando
tratamos da mente. Em síntese, é importante sempre sermos cautelosos com falas
psicopatológicas que reduzem o indivíduo ao seu adoecimento, na qual a doença
passa a ser o protagonista.
Já quando falo de loucura, volto o pensamento para aquilo que foge a dita
“normalidade”, construção social que será posteriormente minuciada. Aqui, a ideia de
loucura é abraçada e acolhida em sua totalidade, valorizando as múltiplas
possibilidades de existências, enxergando a beleza em toda sua complexidade.
Afasto-me aqui da loucura vinculada a uma conotação depreciativa, muitas vezes
atrelada a ideia de insanidade, pois não há insensatez maior do que aquela praticada
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pelos ditos “sãos”, quais aprisionam e matam diariamente todos aqueles que destoam
desse padrão de normalidade.
A concepção de casa e de lar se farão também bastante presentes neste
decorrer, pensando nas instituições que abrigam tantos corpos, abrangendo
perspectivas da casa enquanto conceito empírico de moradia física, construção
material, sólida, com paredes, portas, janelas e um teto. Enquanto o lar é este mesmo
espaço físico quando preenchido por sentimentos, memórias, rotinas, histórias,
sonhos, afetos. Será pensada também a ideia da casa-corpo, estrutura feita de carne
que abriga as subjetividades. Nascemos nesse corpo e nele habitamos, sem escolhas
ou trocas, como uma casa que somos.
Se estamos falando de linhas como forças que nos atravessam, ou linhas
enquanto próprias narrativas, para mim, neste contexto, a arte pode ser vista como os
nós, amarrações que surgem através desses encontros, que na grande trama da vida,
formam pontos de conexão entre as pessoas. Não existem nós sem o cruzamento das
linhas. Da mesma forma, entende-se aqui que a arte se produz nas trocas diárias,
influenciando os processos de criação.

1.2 Uma arte que surge em meio a vida

Como já sinalizado, a arte e a saúde mental traçam juntas um belo emaranhado


de relações, uma vez que ambas trabalham com a subjetividade. Em termos teóricos,
a subjetividade surge inicialmente em uma sociedade que acreditava na dicotomia, a
partir do dualismo entre mente e corpo, de modo que o humano era pensado enquanto
um ser racional e autônomo, único e individual dentro da sociedade, trabalhando na
perspectiva da interioridade, pensamentos apresentados por filósofos como Platão
(428 a.C.-347 a.C.) e Descartes (1596-1650), como assinala Soares e Miranda (2009,
p. 411):

A discussão sobre a relação entre “o mundo de fora” e “mundo de dentro”, o


mundo sensível e o mundo inteligível, em suma, a questão da representação,
iniciada pelo platonismo, se constituirá, finalmente, como problema a ser
investigado somente quando René Descartes formular pela primeira vez a
questão da subjetividade como objeto de meditação filosófica.

A subjetividade era vista, neste panorama, como característica exclusiva de um


universo interno, composto pelas emoções, sentimentos, pensamentos, interesses e
desejos particulares. Desta forma, o sujeito era compreendido como um ser
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consistente, singular, com uniformidade, identidade, um “eu”. Ao falar sobre a


produção da subjetividade, Guattari (1992) faz um contraponto a esse modelo clássico
e propõe que a subjetividade está relacionada agora com instâncias individuais,
coletivas e institucionais. Desta forma, passa a considerar também a relação do ser
com o panorama externo, de modo que as características singulares na formação do
indivíduo são frutos do encontro com o outro, com os valores culturais, históricos e
coletivos da sociedade. Bourriaud (1998) também defende essa postura, pontuando
as considerações de Guattari, que por sua vez define a subjetividade como o resultado
das relações entre o indivíduo e os vetores de subjetivação que ele encontra, quais
podem ser instâncias individuais ou coletivas, humanas ou inumanas.
Assim, para a construção de um ser único, em sua bela complexidade,
subentende-se todas as relações coletivas e distintas das próprias experiências que
o fizeram existir, as quais, Deleuze e Guattari reconhecem como múltiplos fatores:

Sob a influência de Foucault (1985[1984]), a subjetividade é concebida por


Deleuze e Guattari (1996[1980]) como um sistema aberto e "pulsátil" que se
constitui em um movimento contínuo na medida em que se conecta com a
multiplicidade de fatores que compõem a realidade. Essa multiplicidade é
denominada por Guattari (1993 [1987]) "equipamentos coletivos de
subjetivação ou componentes de subjetivação". Segundo Guattari
(2000[1992]), este termo designa os diferentes fatores sociais, animais,
tecnológicos, históricos, psíquicos, mnemônicos, etc. que atuam no processo
de subjetivação. (PARPINELLI; FERNANDES, 2011. p. 198)

Relembrando um pouco sobre o que Bourriaud (1998, p.127) aborda: “Em


outros termos, a subjetividade só pode ser definida pela presença de uma outra
subjetividade; ela só constitui um "território" a partir de outros territórios que encontra;
formação evolutiva, ela se molda pela diferença que a constitui em princípio de
alteridade”. Desta forma, a subjetividade parte da trama das relações, e essas trocas
possibilitam com que o ser se sinta potente, descobrindo e explorando as
possibilidades a partir das trocas com o mundo, seja com o outro, com a natureza ou
com tudo o que nos atravessa pelo caminho.
Nesta direção, a subjetividade é construída diariamente através da sua
permanente mudança, considerando que as questões individuais são constantemente
atravessadas pelo contexto em que o ser está inserido. Isso é o devir, onde a única
constante é mudança. Mas para essa transformação acontecer, é preciso do contato
com o que está à volta. Para se ser outro, é preciso do outro. Não à toa, na qualificação
deste trabalho, o professor Édio Raniere, chamou esse devir de “outrificar”. Por isso,
o devir implica em um encontro.
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Desenvolvo esta pesquisa também neste panorama, em que as minhas


histórias íntimas e pessoais são constantemente atravessadas, modificadas,
compartilhadas e construídas coletivamente por outras histórias que se cruzam com
as minhas. É a partir desse encontro de universos que a arte se manifesta, dando
caminhos para o indivíduo experienciar o mundo, aquilo que vê, aquilo que sente,
aquilo que o afeta, aquilo que o “outrifica”.
Em concordância com os autores, para mim, a inspiração e potência criadora
está em meio a vida, fruto de suas redes de relações. Assim, a criação surge a partir
dos encontros, através das trocas entre os universos internos e externos que nos
constituem enquanto indivíduo. As histórias que compõem a escrita, a escolha deste
tema, bem como minha inspiração poética tramam linhas individuais e coletivas, que
me impactam e me formam, pois a criação é fruto de uma “complexa composição de
linhas de forças que nos atravessam” (DA SILVA; DA SILVA, 2020, p. 11). Segundo
Deleuze e Guattari (2004), todos os indivíduos em uma dada sociedade são
atravessados por diferentes linhas:

Indivíduos ou grupos somos atravessados por linhas, meridianos, geodésicas


trópicos, fusos, que não seguem o mesmo ritmo e não têm a mesma natureza.
São linhas que nos compõem, diríamos três espécies de linhas. Ou, antes,
conjuntos de linhas, pois cada espécie é múltipla. Podemos nos interessar
por uma dessas linhas mais do que pelas outras, e talvez, com efeito, haja
uma que seja, não determinante, mas que importe mais do que as outras...
se estiver presente. Pois, de todas essas linhas, algumas nos são impostas
de fora, pelo menos em parte. Outras nascem um pouco por acaso, de um
nada, nunca se saberá por quê. Outras devem ser inventadas, traçadas, sem
nenhum modelo nem acaso: devemos inventar nossas linhas de fuga se
somos capazes disso, e só podemos inventá-las traçando-as efetivamente,
na vida. (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 76).

Savazzoni (2012) explica que os três tipos de linhas acima citados se referem
a diferentes nichos, sendo linhas de segmentaridade “dura”, linhas de segmentaridade
“maleáveis” e “linhas de fuga”. Basicamente, as chamadas “linhas de segmentaridade
dura” são associadas a processos de subjetivação ligadas ao Estado, como por
exemplo, as instituições, normas, centros de poder e controle. Elas são associadas a
uma segregação que polariza, visando sempre uma organização que trabalha através
do binarismo, nos dividindo em grandes séries, como homens e mulheres por
exemplo. Porém, com suas linhas duras, o aparelho de Estado necessita também de
linhas mais “flexíveis” para poder atingir outros segmentos, onde se encontram os
indivíduos e suas práticas, também chamado de plano das “molecularidades”,
abrangendo nossa casa, nosso bairro, nossa família, nosso trabalho, nossa
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comunidade etc. O terceiro tipo de linha diz respeito às “linhas de fuga”, divididas por
sua vez em dois polos, onde de um lado temos as linhas de fuga “construtivas” ou
“inventivas” que operam rupturas em direção ao novo, e as linhas de fuga
“abolicionistas”, ou linhas de morte, que desembocam numa desintegração absoluta,
ou seja, no próprio aniquilamento.
Não é a intenção deste trabalho se aprofundar nestas questões, contudo, em
um breve paralelo a essas linhas que nos atravessam apresentadas por Deleuze e
Guattari (2004), foi possível traçar breves apontamentos que coincidem com uma
investigação que transitará nessas três instâncias, sendo o Estado e as instituições
enquanto linhas de segmentaridade dura; o nicho dos abrigos e da relação entre
casa/família que ele constrói enquanto linha das molecularidades; e a criação artística
enquanto linha de fuga que nos liberta.
Devido sua relação mais íntima com o campo artístico, o conceito de linhas de
fuga, em especial neste trabalho, merece breve destaque. Para Deleuze e Guattari
(2004), a linha de fuga é uma linha que arrasta a subjetividade em direção ao novo,
da descoberta, do desconhecido. Por isso, não se deixe enganar pelo nome, as linhas
de fuga não se tratam de passividade, do simples evadir, pelo contrário, não há nada
mais ativo que a fuga. Para ir em direção ao desconhecido, é preciso que haja o desejo
de mudança, um desejo de deslocamento, de se desterritorializar. É a busca por uma
experimentação das multiplicidades, de novos mundos, que só se tornam possíveis
através dos encontros.
Uma vez que estamos lidando com pessoas e espaços que, num primeiro
momento, não estão diretamente vinculados ao mundo da arte, é preciso inicialmente
desconstruir alguns conceitos. Acreditando na premissa de uma arte que surge em
meio a vida, a concepção de artistas passa a diferir da ideia de seres geniais isolados
e inacessíveis, que monopolizam as galerias, mas passa a acreditar no artista como
um ser expressivo, que surge através de uma rede de relações, de encontros, cujo o
criar se relaciona com o todo à sua volta. Em direção a isso, em uma entrevista para
o professor e coordenador do Laboratório de Arte e Psicologia Social Édio Raniere
(2020), a artista, pesquisadora, escritora e filósofa, Anne Sauvagnargues traça pontos
de conexão entre sua poética e os textos de Gilles Deleuze, seguindo um diálogo que
aproxima a filosofia com seu processo de criação. Para Sauvagnargues, sua pintura
“emerge dos encontros inesperados entre sua técnica, o transporte e a cidade” (DA
21

SILVA; DA SILVA, 2020, p. 5). Pode-se compreender melhor estas questões nas
palavras de Sauvagnargues:

Em alguns aspectos, Deleuze permanece preso ao antigo enquadramento,


mas ao mesmo tempo permite que nos libertemos do velho paradigma da
arte, atualmente obsoleto e perturbador onde o artista – sempre masculino,
obviamente – o “grande artista de exceção”, o grande artista que é diferente
das pessoas comuns porque é genial, e sua alma é justamente o que lhe
permite sentir melhor a realidade do que todos os demais. (...) Então, por um
lado, Deleuze conserva um pouco a ideia do artista genial, mas de outro, ele
nos permite pensar os indivíduos e os sujeitos humanos como algo diferente
de pequenas almas separadas umas das outras. E é por isso que, um dos
grandes interesses do meu trabalho, tanto em pintura, como em filosofia e
escrita, se entrega ao impessoal, ao pré-individual. Ou seja, não é que eu
pense que o “eu” não exista: eu existo! Mas eu existo como um nó complexo
de relações exteriores. E assim, quando penso, não sou eu sozinha pensando
– e eu agradeço! (risos) –, é a relação entre mim, o transporte, a cidade e o
acontecimento singular desse trajeto, com seus encontros que permitem
alinhar, organizar, agenciar signos. (RANIERE, 2020, p. 7-8)

Seguindo o pensamento de Sauvagnargues e dos autores já citados até aqui,


a perspectiva aqui proposta, foge também da visão do artista enquanto um ser
superior, em que suas produções surgem da “ação isolada de um sujeito especial,
distinto dos demais, o ato de criação do artista genial, o gesto metafísico do Deus
criador” (DA SILVA; DA SILVA, 2020, p. 6), um pensamento que muitas vezes segrega
e fortalece ainda mais as paredes brancas dos museus e galerias.
Assim, conforme os apontamentos do professor Édio Raniere durante o
processo de qualificação, “ao retirar o artista da clássica posição eurocêntrica do
gênio, quase sempre masculino e branco, os processos de criação são
reposicionados.” Ou seja, se assumimos que o processo de criação acontece em meio
a vida, nos encontros e na rede de relações cotidianas, e não mais como fruto de um
homem branco, genial, talentoso por natureza, passa-se a assumir também que todos
podemos e estamos envolvidos com os processos de criação, mesmo os latino-
americanos, os loucos, os pobres, ou qualquer outra minoria invisibilizada.
Como afirma Sauvagnargues, o artista existe como um nó complexo de
relações, respondendo também aos estímulos de seus meios. Dito isso, é inegável
que as paisagens e as trocas cotidianas influenciam e impactam a produção do artista.
Os singelos detalhes da rotina, da cidade, da convivência, dos percursos, são fonte
de reflexão e inspiração, são elementos que edificam uma bagagem afetiva importante
na construção artística. Zinker (2007, p. 35) afirma que o processo criativo começa
com a compreensão do que está à volta, a essência, a clareza e o impacto. Todos os
dias nos deslocamos, por percursos iguais ou não, na saturação do vai e vem
22

banalizado pelo dia a dia. Mas o que vê os olhos que não transitam mais por esses
espaços? Que por algum motivo ou força maior foi obrigado a se isolar do que se tem
habitualmente por cotidiano. O que é arte aos olhos dos indivíduos que não vemos?
De quem são os corpos invisibilizados pelas instituições sociais? Há arte nesses
espaços? Quais tipos de arte são produzidos em ambientes assim? São perguntas
que surgem quando se acredita em uma arte que surge em meio a vida. Perguntas
que esta pesquisa procura investigar.
A sensação de isolamento abrange incontáveis espaços que, por muitas vezes,
são esquecidos, já que se encontram distante do olhar cotidiano. Turner (1988, p.
171), considerou a liminaridade "como um tempo e lugar de afastamento dos
procedimentos normais da ação social". Considerando então a liminaridade como
ponto de partida, não é apenas na atualidade que os marginalizados são isolados e
afastados dos olhos higienistas da sociedade ocidental, de modo que a marginalidade
pode ser vista como uma consequência de uma estrutura hierárquica. A política de
aprisionar o indivíduo para se ter o controle social e estabelecer o poder hierárquico,
é aplicada na sociedade há muitos anos. Numa construção histórica, os leprosos, as
pessoas com sofrimentos psíquicos, os infratores, os idosos, os doentes, entre outros,
eram obrigados a desaparecer da visibilidade cotidiana, carregando, assim o estigma
da discriminação e exclusão (CAMARGO, 2003).
Historicamente, o paradigma de “normalidade” sempre trouxe consigo opiniões
bastante controversas. Canguilhem (2009) e Dalgalarrondo (2008) trazem,
atualmente, um riquíssimo debate do que poderia diferenciar o “normal” do “anormal”.
Canguilhem (2009) apresenta em seu livro “O Normal e o Patológico” diferentes
noções de normalidade a partir da ótica da medicina e da biologia, na qual definir um
padrão de normalidade é essencial para a preservação da vida. Contudo, Canguilhem
(2009, p. 37) explica que esses conceitos se retificam quando se adentra a área da
psiquiatria, justificando como possível desdobramento da relação com a psicologia e
a filosofia.
A partir disso, Dalgalarrondo cria classificações possíveis para o que se pode
considerar como “normalidade” dentro da psicopatologia: 1. Normalidade como
ausência de doença, sendo caracterizada pela ausência de sintomas e sinais
patológicos; 2. Normalidade ideal, em que se estabelecem critérios do que é sadio; 3.
Normalidade estatística, na qual se identifica quantitativamente o que é normal a partir
do que é observado com mais frequência na população geral; 4. Normalidade como
23

bem-estar, que considera saúde como o completo bem-estar físico, mental e social a
partir de apontamentos da Organização Mundial de Saúde (1946); 5. Normalidade
funcional, em que o patológico é considerado como disfuncional, produzindo
sofrimento para si ou para o todo; 6. Normalidade como processo, que considera os
aspectos dinâmicos e mutáveis de desenvolvimento, próprios a certos períodos
etários; 7. Normalidade subjetiva, na qual são consideradas as percepções do próprio
indivíduo em relação a seu estado de saúde; 8. Normalidade como liberdade, qual
parte de princípios fenomenológicos e existenciais definindo a doença mental como
perda da liberdade existencial. 9. Normalidade operacional, sendo a forma pragmática
de definir o que é normal e o que é patológico, e trabalhando operacionalmente com
esses conceitos.
Em suma, os critérios que definem e segregam o que adentra a ordem da
normalidade ou do patológico variam consideravelmente a partir de diferentes
contextos, épocas e visões filosóficas, podendo ser moldadas de acordo com o
objetivo em questão. Por esse motivo, é necessário manter uma postura
permanentemente crítica e reflexiva para a definição desses padrões. Em tempo, não
se objetiva aqui trazer um extenso material que argumente sobre as diferenças e as
aplicações dessas definições, tampouco definir a “mais correta” dentre elas, mas sim,
promover uma breve reflexão do que pode ser considerado como “normal” na
sociedade e, a partir disso, acolher e dar visibilidade aos “anormais” marginalizados
por meio da experiência artística.
Assim, diante do exposto até aqui, esta dissertação vem sendo construída
instigada pela seguinte questão: Como práticas artísticas podem desenvolver espaços
expressivos de subjetividades em integrantes de ambientes que, a exemplo do Abrigo
Institucional Residência Inclusiva II, em Pelotas, por sua construção histórica e social,
suprimem o indivíduo do convívio social ampliado?
O objetivo geral busca compreender como experiências de práticas artísticas
constituem-se enquanto alternativa expressiva das subjetividades dos moradores do
referido abrigo, na direção de, mais especificamente: a) identificar o perfil dos
moradores e das moradoras do abrigo e suas relações com experiências artísticas; b)
propor atividades artísticas aos moradores e às moradoras; c) analisar teórico-
reflexivamente o desenvolvimento e resultados destas atividades ofertadas e se ou de
que forma apresentaram-se como oportunidade de expressão de subjetividades dos
e das participantes.
24

Esta dissertação está dividida em cinco capítulos principais. O primeiro capítulo


é dedicado à introdução, na qual se discorre brevemente sobre a minha motivação
pela temática, são expostos os questionamentos e delimitações da pesquisa, além de
problematizar a concepção de artista a partir de um viés social. Já no segundo
capítulo, são trabalhados os referenciais teóricos, que basicamente se dividem nas
problematizações acerca das instituições totais, nas relações do corpo com o espaço
que se habita e discorre sobre arte que é aplicada no panorama das instituições totais.
O terceiro capítulo identifica e justifica as escolhas metodológicas para o
desenvolvimento da pesquisa e apresenta as entrevistas realizadas com os técnicos
e moradores da Residência, utilizadas como instrumento coleta da pesquisa. O quarto
capítulo se dedica a escrita de cartas como método descritivo e reflexivo das
atividades propostas. Por fim, no quinto capítulo, são feitas as considerações finais e
conclusão da dissertação. O texto conta com Apêndices nos quais compartilho o
roteiro da entrevista feita com funcionários do abrigo, bem como a autorização para a
coleta de dados e divulgação da pesquisa.
25

2. Referencial Teórico

A construção teórica deste trabalho se fundamenta nos conceitos artísticos,


antropológicos e filosóficos sobre corpos e espaços, e sua aplicação artística se
inspira em autores que problematizam a arte que é vista como um monopólio cultural
e enxergam seu potencial a partir de novas concepções de artistas. Por isso a escolha
dos materiais teóricos e o estudo prático desse projeto, se embasa fortemente em:
BOURRIAUD, Nicolas – Estética Relacional: O curador francês propõe uma
investigação sobre as novas formas de arte e sua relação com o cotidiano, o convívio
e as interações humanas, repensando a prática artística como uma criadora de laços
e de relações sociais. Embasará na percepção teórica e metodológica, vista de dentro
do nicho artístico, sobre a desmonopolização da arte e quebra hierárquica das
relações inter-humanas, de modo abrangente à reformulação do conceito “artista”.
DUBUFFET, Jean – Arte Bruta: Produções e apontamentos sobre a “Arte
Bruta”, conceito cunhado pelo artista plástico Jean Dubuffet em 1945, para designar
“produções de toda espécie - desenhos, pinturas, bordados, modelagens, esculturas,
etc., que apresentam um caráter espontâneo e fortemente inventivo, que nada devem
aos padrões culturais da arte, tendo por autores pessoas obscuras, estranhas aos
meios artísticos profissionais” (Thévoz, 1975 apud Mello, 2002). O conceito de arte
bruta ajuda a compreender a produção e a expressividade artística de pessoas que
não apresentam ideais mercantilistas.
FOUCAULT, Michel – Vigiar e punir: sobre o processo de institucionalização da
sociedade e seus possíveis efeitos, abordando disciplinarização e aprisionamento do
indivíduo, revelando o controle aplicado à sociedade através de processos de
adestramentos desenvolvidos no cárcere. Contribuirá no entendimento dos corpos
aprisionados e do surgimento de instituições para controle popular.
GOFFMAN, Erving – Manicômios, Prisões e Conventos: faz um levantamento
crítico sobre as instituições fechadas e mostra como este tipo de segregação atua
sobre o indivíduo. Contribuirá na compreensão da construção histórica dessas
instituições, bem como na reflexão sobre a vivência em isolamento.
Outros autores e autoras são trazidas para estabelecer relações e diálogos com
estes citados acima, conforme a necessidade da discussão e da argumentação.
26

2.1 Instituições e uma vivência de isolamento

Para suprir diversas necessidades das relações humanas, a sociedade se


consolidou através de instituições. Hodgson (2006), por sua vez, as define como
sistemas firmemente estabelecidos e socialmente prevalentes de regras que
estruturam as interações sociais para a satisfação de interesses coletivos. Assim, o
conceito de instituições muito se aproxima à ideia de cultura, pois são os meios pelos
quais uma sociedade estabelece o que é permitido e proibido, o admirável e o
repugnante, define as regras de comportamento e de algum modo as justifica, ditando
a interação humana. Normas essas que evidentemente foram e continuam sendo
criadas pelos aristocratas que dominam e controlam o capital. São consideradas
exemplos de instituições: as familiares, as de ensino, as religiosas, as jurídicas, as
econômicas, as políticas, entre muitas outras.
As instituições que circundam nosso cotidiano têm características
determinadas a partir dessas regras e normas sociais que as classificam na
sociedade, deliberando diretrizes relacionadas à sua disposição, estrutura e
circulação, por exemplo. Neste sentido, Erving Goffman (1974) afirma que os
estabelecimentos que constituem as instituições possuem diferentes restrições
direcionadas ao fluxo de pessoas, ou seja, quem pode circular pelos espaços, que
podem ser maiores ou menores de acordo com as funções sociais desses locais.
Alguns ambientes são totalmente abertos ao público, tendo como critério apenas o
comportamento dos indivíduos para frequentação, como um shopping, por exemplo.
Já outros possuem um conjunto de participantes mais regular e constante, restringindo
minimamente o fluxo existente internamente, como, por exemplo, um clube privado.
Sendo assim, as instituições podem ser mais flexíveis ou rígidas em relação ao
seu contato com mundo social exterior e, partindo disso, Goffman percebeu que, para
se manter no controle, toda instituição tem “tendência a fechamento”:

Seu fechamento ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação


social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão
incluídas no esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas,
arame farpado, fossos, água, florestas, pântanos. (1974, p. 16)
27

Deste modo, em um grau máximo de restrições, encontram-se o que Goffman


chama de “instituições totais”, que são classificadas de acordo com as barreiras físicas
e psicossociais utilizadas para segregar as pessoas que habitam esses ambientes do
contato com o mundo exterior. Segundo Goffman (1974, p.11):

Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho
onde muitos indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade
mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e
formalmente administrada.

Neste modelo de estrutura social, não são permitidos qualquer contato entre o
indivíduo institucionalizado e o mundo exterior, para que propositalmente seja feito o
apagamento das individualidades em função do “adestramento” para os moldes da
instituição. Sendo assim, sem o vínculo e o contato com o mundo externo, torna-se
mais fácil a aprendizagem das regras internas e a manipulação das rotinas para que
se padronize as atividades dos institucionalizados. Essas instituições chamadas de
“totais”, foram divididas por Goffman (1974, p. 16-17) em cinco categorias:
Na primeira categoria estão as instituições criadas com o objetivo de abrigar as
pessoas consideradas socialmente como incapazes e inofensivas; nesta seção estão
incluídos os abrigos para cegos, idosos, órfãos e indigentes.
A segunda categoria trata dos locais estabelecidos para cuidar de pessoas
consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são de alguma forma uma
ameaça à comunidade, mesmo que de maneira não intencional. Nessa classificação
se encontram os hospitais psiquiátricos e, mais antigamente, os leprosários e
sanatórios para tuberculosos.
A terceira categoria abrange as instituições criadas para abrigar pessoas que
de alguma forma são consideradas como um perigo para a comunidade, de modo que
seu isolamento é um meio de proteger as pessoas “comuns” que nela habitam. Nesta
divisão encontramos as cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra e
os antigos campos de concentração.
A quarta categoria trata das instituições que surgiram com propósito de
alcançar uma evolução profissional ou que de alguma forma tem a intenção de realizar
de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho e sua existência se justifica apenas
através de tais fundamentos instrumentais, como é o caso dos quartéis, navios,
escolas internas, campos de trabalho e colônias.
28

Por fim, a quinta categoria abrange os estabelecimentos destinados a servir de


modo proposital como isolamento do mundo externo, tal qual como um refúgio social
para introspecção, de modo que esse afastamento do convívio mundano também
contemple os locais de instrução para os religiosos. Entre exemplos de tais
instituições, é possível citar abadias, mosteiros, conventos e outros claustros.
As instituições totais de Goffman se aproximam muito do que Foucault
chamava de “instituições de sequestro”, que incluem quartéis, escolas, hospitais e
prisões, nas quais predomina uma “espécie de autoridade arbitrária que se apodera
de algo, a retira da livre circulação e a mantém fixa em um certo ponto, durante um
certo tempo, até uma decisão do tribunal” (FOUCAULT, 2013, p. 214). Em Vigiar e
Punir (2014), são inúmeras as passagens em que Foucault mostra a relação que
existe entre esses ambientes, que nas palavras de Veiga-Neto (2007), são instituições
que retiram compulsoriamente os indivíduos do espaço familiar ou social e os
internam, durante longos períodos, para moldar suas condutas, disciplinar seus
comportamentos, dominar aquilo que pensam ou como agem, submetendo-os a
variadas tecnologias de poder.
Para que o funcionamento destas instituições aconteça como esperado pelo
Estado, os indivíduos são tratados como sujeitos, conceito este que aqui foge da ideia
de pessoa ou identidade, mas sim, agora se relaciona ao verbo sujeitar, que é
associado à ideia de obediência e submissão. Estes indivíduos são sujeitados por
técnicas de disciplinamento dos corpos, através de mecanismos de premiações e
punições, que se desdobra na fabricação do indivíduo em favor da norma, conceitos
elaborados por Foucault no livro Vigiar e Punir (2014).
Os processos de assujeitamento dentro da sociedade, pontuados por Streva
(2016) ao relacionar os pensamentos de Foucault aos de Deleuze, são a condição
subjetiva através da qual os indivíduos são normalizados, ou seja, dominados através
da aplicação de normas sociais e seus valores. Assim, o assujeitamento está
relacionado às relações de poder e hierarquia com base nos lugares de visibilidade
em determinada relação, qual determina um dominante e um dominado. Candiotto
(2020) afirma que o “indivíduo moderno é, segundo Foucault, o efeito de um processo
de sujeição no âmbito da normalização disciplinar - que torna a multiplicidade dos
corpos marcados pela vigilância e punição e objetivados por saberes com pretensão
de se tornarem ciências.”
29

Essa normalização e disciplinarização dos indivíduos gera o que Foucault


chamava de “corpos dóceis”. Sobre conhecer, dominar e aprisionar esses indivíduos,
Foucault (2014, p. 140) afirma: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode
ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. Trata-se, enfim, do efeito
esperado pelo poder disciplinar na criação de sujeitos que podem ser dominados para
que se tornem produtivos dentro da máquina capitalista.
Hoje, a lembrança do hospital psiquiátrico que visitei em minha jornada pessoal
me lembra das palavras de Foucault (1987), sobre a construção arquitetônica e todo
planejamento acerca das técnicas que permitem e induzem a efeitos de poder e
coerção.

Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura que não


é mais feita simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou para vigiar
o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle
interior, articulado e detalhado — para tornar visíveis os que nela se
encontram; mais geralmente, a de uma arquitetura que seria um operador
para a transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar
domínio sobre seu comportamento, reconduzir até eles os efeitos do poder,
oferecê-los a um conhecimento, modificá-los. As pedras podem tornar dócil e
conhecível. O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento
— do muro espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou de sair —
começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, dos cheios e dos vazios,
das passagens e das transparências. (FOUCAULT, 1987, p. 197)

Nesses ambientes, a institucionalização, em sua maior parte, não é voluntária.


É a própria sociedade que apresenta essa necessidade devido ao pressuposto da
incapacidade de cuidar de si próprio ou de conviver socialmente, diante da premissa
de que este afastamento resulta em maior segurança para si mesmo ou para o bem
comum. Assim, o isolamento do convívio cotidiano é também necessário para que
esse sujeito absorva totalmente as normas internas, para que ele não atrapalhe a
funcionalidade do sistema ou para que se torne, de alguma forma, útil e produtivo
mediante a sua segregação.
Tendo como partida os apontamentos sobre as instituições levantadas por
Goffman e Foucault, para a construção do presente trabalho serão analisados
ambientes inseridos especificamente no contexto dos hospitais psiquiátricos e abrigos
de acolhimento para pessoas com sofrimentos psíquicos, tendo como recorte o Abrigo
Institucional da cidade de Pelotas. Diferentemente dos hospitais psiquiátricos, os
Abrigos Institucionais tem como intenção o acolhimento provisório, com estrutura
semelhante a uma residência, com a proposta de inserção social e o resgate da
cidadania.
30

A justificativa desta escolha se dá ao fato de que, mesmo diante da existência


de um hospital psiquiátrico na cidade, era importante que a realização deste projeto
sempre mantivesse a essência do Movimento da Luta Antimanicomial. Esse
movimento tem uma longa jornada histórica em defesa aos direitos humanos e em
busca da cidadania para pessoas em sofrimento psíquico. A luta é contrária ao modelo
institucionalizado de atenção à pessoa em sofrimento psíquico, que possuía práticas
assistenciais que violentavam e centralizavam o cuidado em instituições produtoras
de exclusão social, através do isolamento que aqui é amplamente abordado e
criticado. O Movimento da Luta Antimanicomial mantém viva a lembrança de que todo
cidadão tem o direito fundamental à liberdade, o direito a viver em sociedade, além do
direito a receber cuidados e tratamentos sem que para isto tenham que abrir mão de
seu lugar de cidadão. Dito isso, não faria sentido para esta produção, pesquisar e
fortalecer ambientes que necessitam urgentemente de uma reestruturação.

2.2 Abrigo do corpo, morada da mente

Partindo da problematização do convívio social, na contemporaneidade, é


inegável que existem diversos ambientes transitórios onde as relações interpessoais,
primordiais para a construção identitária individual e coletiva, são existentes.
Ambientes de trocas, de atravessamentos, que auxiliam o artista em sua formação
pessoal e estética e que, muitas vezes, são refletidos em suas obras.
Contudo, é possível destacar como uma característica determinante desta
contemporaneidade, a vivência inédita de afastamento social. Dentre as muitas
transformações operadas pela experimentação de uma situação pandêmica, o
confinamento às nossas habitações, a (com)vivência íntima e cotidiana com a casa
se destaca. Ficou evidente o quanto a arquitetura é uma extensão do corpo.
Nesse momento de clausura, foi necessário redescobrir os espaços
diariamente, na contemplação do dia e na passagem das horas através da luz que
adentra os ambientes, observar as nuances das paisagens que são sempre iguais,
emolduradas pelas mesmas janelas, trazem um respiro na ausência de contato
humano.
O processo de escrita em um programa de pós-graduação, somado às
produções artísticas que dele resultam, em plena pandemia e em presente
confinamento, volto os olhares para onde se está. As paredes, as janelas, as pessoas,
31

o toque, o cheiro, o vento, a vista. Essa atípica situação nos levou a vivenciar de forma
bastante intensa uma pequena dimensão da sensação de estar em estado de
isolamento do convívio amplo e irrestrito, um estado de solidão que as pessoas
enclausuradas pelas instituições totais costumam experimentar num momento
anterior à pandemia.
Diante deste período de isolamento, é condição indispensável para o
desenvolvimento argumentativo desta pesquisa pontuar que, devido à pandemia,
atentou-se ainda mais para como a sensação de isolamento perpassa a constituição
subjetiva do ser humano. Em outras palavras, já se mostrava de extrema importância
para minha construção poética e pessoal a necessidade de olhar para as
manifestações das pessoas em sofrimento psíquico enclausuradas e suas relações
com a arte, contudo, a pandemia e suas implicações potencializaram a necessidade
de levar em consideração as condições e características quanto aos níveis e formas
de isolamento social que essas instituições acabam impondo.
Sabendo-se então que os corpos institucionalizados não habitam os ambientes
de transição, onde as trocas, as relações interpessoais, primordiais para a construção
identitária individual e coletiva acontecem, é somente conhecendo a influência dos
espaços de longa permanência na construção do sensível, do poético, para
compreender melhor o íntimo daqueles que se encontram de alguma forma
aprisionados.
A casa que habitamos, as pessoas que convivemos, as trocas que
presenciamos, tudo o que nos rodeia e nos permeia, de alguma forma nos constitui
enquanto ser humano e se faz presente na estruturação das subjetividades. Este ser
que abriga o eu como uma casa, um corpo que não se TEM, fugindo da essência
possessiva capitalista, mas que se É, enquanto ser, uma moradia indissociável em
que não se escolhe onde habitar. Uma casa-corpo, um corpo que é casa, é lar, ora
movimentada, ora quieta, como a mente durante o processo criativo. E o que vê este
corpo onde se mora? Onde mora esse corpo que habitamos? As pessoas que não
escolhem onde morar, conseguem encontrar um lar no lugar onde se está?
Uma casa vislumbrada com a abundante intimidade entre os espaços e
conexões entre cômodos incômodos pela constante presença diária. Sabendo-se que
a vivência estética trabalha em unidade com as qualidades do sensível,
inegavelmente a observação dos espaços que compõem o universo em que se habita,
em uma relação de corpo, espaço e afeto, influencia a construção da expressão
32

artística. Um olhar poético-crítico que desvela o entorno como uma janela no rosto,
reeducando o ver e reconhecer as nuances na repetição, possibilitando enxergar
outras realidades nas várias janelas que desnudam as mesmas paisagens cotidianas.
Muitas vezes se desconsidera a importância e o impacto daquilo que nos cerca,
subestima-se o entorno como influência na formação pessoal. A constante revisitação
do que nos abriga, torna obsoleto o que se vê, mas quando se trata de uma constante
permanência, o espaço que nos envolve torna-se mais que paredes, mas parte de
nós. Mas as mesmas paredes que constituem o lar são aquelas que a separam da
rua. Dentro desses ambientes invisibilizados por tijolos, grades e anos de repressão,
preconceito e apagamento existem corpos, corpos fragilizados, corpos formados pela
mais sensível poética, que é atravessada constantemente pela experiência do
isolamento. Existem artistas. Existem produções. E são esses resultados que este
trabalho almeja alcançar.

2.3 Aplicação artística em instituições totais

Geralmente, espaços como as instituições de sequestro de Foucault, ou


instituições totais de Goffman, utilizam as longas permanências e a constante ação
do tempo como um forte aliado no processo de apagamento do ser. Foucault já
abordava este assunto em Vigiar e Punir (2014), sugerindo que a supressão do tempo
é um forte aliado nos processos de adestramentos desenvolvidos. Dito isso, a arte
entra como uma importante ferramenta de mudança:

É dessa luta contra ou dentro do tempo que a arte entra como necessidade,
caminho, transformação. A arte transcende o tempo, devolvendo ao ser
humano sua natureza atemporal e limitada. A arte é uma das máximas
expressões do homem sobre o tempo, a permissão e a necessidade do ser
humano de transcender os limites físicos da vida, explorando e ampliando o
poder de sua capacidade criativa, transformando e recriando novas
realidades (CIORNAI, 2004, p. 255).

Desta forma, dentro das instituições totais, a produção artística é geralmente


vista como importante ferramenta terapêutica, auxiliadora do controle das emoções
podendo aliviar o sofrimento psíquico. A arte, partindo da premissa da sua
deselitização, saindo das instalações e indo em direção aos mais distantes, pode ser
aplicada em diversos ambientes. A médica psiquiátrica alagoana Nise da Silveira
(1905-1999) percebeu há muito tempo que as artes plásticas eram um potente canal
de comunicação com os pacientes que apresentavam dificuldades na linguagem
33

verbal. As obras produzidas por seus clientes, Nise preferia chamá-los assim,
proporcionavam um momento para expressar os conflitos internos e perturbações que
os cercavam.
A Arteterapia é uma aplicação terapêutica que utiliza da arte em sua totalidade
para se aproximar da realidade do indivíduo, acolhendo-o em sua diversidade e
complexidade. Ciornai (2004, p. 6) define a Arteterapia como “uma abordagem
processual na qual tanto o fazer da arte quanto o processo de elaboração e reflexão
sobre o que é produzido, é visto como tendo potencialmente valor terapêutico”. Ela é
amplamente aplicada em ambientes como hospitais, CAPS, presídios, asilos,
hospitais psiquiátricos, enfim, locais onde o ser humano se encontra em situação de
vulnerabilidade, como uma alternativa de expressividade, comunicação e
principalmente para trabalhar com a criatividade e a subjetividade do indivíduo. Essa
prática possibilita, também, a compreensão da realidade intrínseca do indivíduo.
Dito isso, a arteterapia tem sido um importante referencial teórico, tendo em
vista a imensa quantidade de materiais disponíveis que relacionam arte e saúde
mental com esta perspectiva expressiva e terapêutica. Contudo, esta é uma pesquisa
do campo da arte. Não é do meu interesse, tampouco da minha capacidade,
dimensionar os impactos, sejam positivos ou negativos, que as minhas propostas
causam. O objetivo não tem sido avaliar a eficácia da prática artística enquanto uma
terapia. Aqui, não se busca uma finalidade. Reforço, então, a ideia de Dubuffet, que
via a arte habitando apenas no que chamou do “campo do capricho” e não a uma
“subordinação e a uma razão para o Estado, a sua administração através da
coletividade, implicando assim o seu controle” (DUBUFFET, 1968, p. 37). Segundo
Costa (2019), Dubuffet defendia a ideia de que a arte bruta acontecia em qualquer
lugar ou época, independentemente das condições, de modo que os artistas brutos
criam apenas pela necessidade de se expressar. Assim, ele discordava dos
psiquiatras que viam o potencial artístico apenas para análise psicológica, pois seria
o mesmo que atribuir uma função social para a arte. Costa (2019, p. 125) afirma que
Dubuffet acreditava “que o processo criativo do artista bruto se fazia de forma tão
instintiva, que parecia espontâneo e natural, como um gesto cotidiano”.
Diante disso, será feita agora uma breve revisão teórica, através do
levantamento de algumas produções acadêmicas que se relacionam com a temática
da aplicação artística dentro do universo das instituições totais e de isolamento
compulsório, como embasamento e justificativa da real relevância deste trabalho.
34

No artigo “Efecto de la arteterapia en la ansiedad y depresión, la capacitación


sociocultural y la reducción de la reincidencia penitenciaria de personas reclusas”,
Pilar Maria Dominguez e Maria Dolores López fazem a revisão bibliográfica de
diversos programas focados em arteterapia implementados no sistema carcerário ao
redor do mundo. Nele, elas quantificam através de cálculos e tabelas quais seriam os
efeitos da aplicação artística no Centro Penitenciário Huelva II, na Espanha, durante
os anos de 2006 a 2009. Foi constatado que a taxa de reincidência caiu drasticamente,
havendo também uma redução significativa no nível de depressão e ansiedade dos
detentos.
A diretora do Módulo de Saúde do Mato Grosso do Sul, Angélica Rosa de
Almeida e psicóloga responsável pelo projeto “Um Olhar Além das Grades”, afirma em
entrevista realizada pela Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário
que desde que a arteterapia foi implantada no grupo que coordena, grandes avanços
já foram conquistados com os detentos, principalmente em relação ao respeito,
irritabilidade, a ansiedade e a impaciência.
A monografia de Fabiana De Carvalho Ferraz, intitulada “Transpondo cercas
reais e imaginárias: Arteterapia dentro da Instituição de Longa Permanência para
Idosos”, faz o recorte da aplicação artística no contexto das ILPS e vê como resultado
uma considerável diminuição de doenças físicas, a estabilização e até leve regressão
de sintomas indicadores de doenças físicas e psicológicas, como baixa autoestima,
depressão e Alzheimer, além de mudanças visivelmente positivas no comportamento
individual e coletivo.
Na dissertação “Arteterapia com crianças hospitalizadas" de Ana Claudia
Affonso Valadares, foi criado um riquíssimo material com tabelas e gráficos, qual
estabelece um extenso instrumento de coleta de dados e de validação dos
instrumentos, na qual ela conclui que houve um aumento considerável nos escores
de comportamento, desenvolvimento plásticos e produções plásticas de crianças
hospitalizadas que realizaram atividades artísticas durante seu período de
hospitalização.
Foi com base neste contexto teórico apresentado até aqui que busquei
desenvolver o exercício descritivo e reflexivo referente às oficinas desenvolvidas no
abrigo, apresentado no Capítulo 4 desta dissertação.
35

3. Estrutura metodológica

Foi escolhido um ambiente para a realização desta pesquisa, localizado no


centro da cidade de Pelotas, chamado Unidade de Acolhimento Abrigo Institucional
Residência Inclusiva II, local que melhor se enquadra na temática aqui proposta. A
metodologia desta pesquisa está dividida, então, a partir de dois grandes blocos de
atividades, havendo um movimento inicial, que se estrutura através da realização de
pesquisas de campo (GERHARDT e SILVEIRA, 2009), bem como entrevistas
(LAKATOS e MARCONI, 2001); e um segundo momento, uma pesquisa participante
(GERHARDT e SILVEIRA, 2009), em que foram desenvolvidas atividades de diversas
linguagens artísticas que buscaram possibilitar que a expressividade e a criatividade
dos participantes fossem trabalhadas no ambiente selecionado.
De forma mais aprofundada, o primeiro passo dado para o desenvolvimento
metodológico desta pesquisa foi a criação cautelosa e estratégica de perguntas para
a realização das entrevistas, o primeiro instrumento de coleta desta dissertação, num
momento anterior às saídas de campo, para qualificar e dar suporte a esta jornada
(Apêndice A).
Dando início a etapa de entrevistas, para adentrar nesse ambiente que lida com
histórias e corpos tão singulares, foi necessário realizar primeiramente uma
aproximação, quase como um flerte, uma abordagem ponderada diante da construção
de um relacionamento, em que previamente se adquirisse confiança antes de
conhecer as intimidades e conseguir, mesmo que minimamente, uma imersão no
grupo. Por isso, em primeira instância, foi feita uma visita exclusivamente introdutória,
onde a ideia do projeto foi apresentada, bem como se investigou as possibilidades e
a realidade do ambiente.
Após esse contato inicial, foi realizada uma entrevista com os funcionários e
coordenadores do Abrigo, contemplando principalmente os servidores que atuam na
área da saúde ou que lidam diretamente com os moradores, bem como sua
organização, iniciando as trocas, conhecendo os espaços e se familiarizando com as
pessoas.
Se opondo à ideia do artista genial, um ser especial e distinto dos demais, indo
ao encontro com o que Sauvagnargues (2020) afirma na já referida entrevista, o
presente trabalho também se aproxima dos pensamentos de Joseph Beuys (1921 -
1986), artista alemão, que acreditava que todos somos artistas. Assim, na segunda
36

etapa de entrevistas, a pesquisa foi realizada com os moradores deste abrigo, se


aproximando principalmente daqueles que apresentarem algum interesse ou
habilidade artística. Neste momento, buscou-se mergulhar nas individualidades,
conhecendo suas histórias e suas poéticas. Esta investigação também se deu por
meio da observação atenta dos corpos, seus movimentos e sua forma de se
comunicar, partindo da problematização da esfera das relações cotidianas e
exclusões sociais em que estejam imersos.
Propondo descobrir as práticas artísticas e os processos de criação poética que
porventura aconteçam nestes espaços, vislumbrou-se aqui enxergar seus moradores
como potenciais artistas, sujeitos de capacidade expressiva, independentemente da
linguagem artística que utilizam como ferramenta para comunicar. Adentramos, então,
em ambientes em que a exteriorização criativa refletida nas produções não visa
qualquer vínculo mercantil ou monetário, focando apenas na criação pelo prazer de
criar, pela necessidade de se expressar, tal qual na chamada arte bruta, concebida
por Jean Dubuffet em 1945, para designar a arte produzida por criadores autodidatas
e livres de influências da tradição artística (DUBUFFET, 1949). Dubuffet via nesses
criadores, oriundos de fora do meio artístico, a mais pura forma de arte, postura
bastante valorizada nesta minha jornada.
Com as entrevistas realizadas, bem como o registro das observações e
apontamentos que delas se desdobram, inicia-se o planejamento para uma aplicação
das atividades artísticas. Nesse momento, buscou-se inicialmente fundamentar a
realização das oficinas através da pesquisa de bibliografias e produções que se
relacionam com a temática aqui proposta, a fim de inspirar e conhecer as
possibilidades.
Deste modo, foi feito um breve levantamento de iniciativas que relatam a
aplicação de atividades em espaços similares ao selecionado, conhecendo os
projetos, os profissionais, relatos e formas de abordagem. Este levantamento está
localizado no subcapítulo 3.1.4, o qual relata minimamente como cada uma das
iniciativas puderam contribuir com o planejamento das atividades. Para realização
desta pesquisa, foi importante conhecer o trabalho dos mediadores que auxiliam e
fazem o incansável trabalho de aplicação artística nesses espaços, conhecendo a arte
que é aplicada e como é aplicada em contextos de privação de liberdade, situações
que excluem os indivíduos minimamente do convívio social cotidiano, principalmente
considerando as condições do Abrigo.
37

3.1 Construção da proposta de atividades artísticas

Este subcapítulo foi construído de forma similar, mas não idêntica, a um “Diário
de Campo”. Esta importante ferramenta é utilizada há muito tempo pela Antropologia,
diante da necessidade de sistematizar as observações realizadas nas pesquisas
etnográficas. Segundo Falkembach (1987), o diário de campo é um instrumento de
anotações, um caderno para realizar comentários e reflexões, para uso individual do
pesquisador no cotidiano. Nele, podem ser registradas as observações,
acontecimentos, diálogos, relações, bem como experiências pessoais do investigador.
Os diários ultrapassam os limites de procedimentos unicamente técnicos, abrangendo
também conversas que "acontecem em filas de ônibus, no balcão da padaria, nos
corredores das universidades; outras são mediadas por jornais, revistas, rádio e
televisão" (Spink, 2003, p. 29).
A escolha deste formato se deve ao fato de que a estrutura metodológica desta
dissertação se fundamenta principalmente em dois pilares: entrevistas e realizações
de atividades artísticas, moldes que lidam diretamente com a obtenção de
informações através de variáveis humanas e, muitas vezes, uma linguagem não
verbal. A relação entre uma pessoa e sua casa é, também, uma relação bastante
subjetiva. Desta forma, viu-se necessário adotar uma postura mais informal para
conseguir extrair o máximo de informações durante as visitações, entrevistas e
proposta de atividades.

3.1.1 O primeiro contato

A primeira relação que tive chegando na Residência foi a percepção de que o


espaço era realmente uma moradia, que passava despercebida no meio de tantas
outras. Não tinha placa de identificação, nada que indicasse as características de
funcionamento do lugar. Um quintal com grama, sem grandes grades nas janelas, nem
câmeras evidentes, tampouco grandes muros altos para barrar o acesso, prontamente
já diferenciando a Residência de tantos outros hospitais que enclausuram seus
internos tal como prisioneiros, nas estruturas aqui já abordadas.
No primeiro contato, fui recebida pela moradora “AL”, ela tomava sol na varanda
enquanto folheava um livro, e a seu lado a moradora “LS”, que brincava passando
38

seus dedos pelo chão. A moradora “AL” prontamente me atendeu e foi chamar sua
supervisora. Nesse curto tempo de espera falamos sobre o clima, sobre estar um dia
ensolarado ainda que estivesse nublado logo antes. Foi bem fácil e simples a
comunicação.
Logo se aproxima uma funcionária para abrir o portão, que após uma breve
apresentação, me recebe gentilmente e me leva para falar com a equipe, chamada
por ela de “técnicos”. Nesse percurso, ela me conta que cursou artes em 2015 e que
ficou feliz em ver a motivação do meu projeto. Comentou que tinha planos de aplicar
algo artístico ali, mas faltavam recursos para isso.
Subindo algumas escadas nos fundos da residência ficava o escritório dos
“técnicos”. Falei com Helton, o psicólogo e um dos responsáveis pela parte de
coordenação da Residência. Me apresentei, falei da minha familiaridade com o
ambiente, falei um pouco sobre mim, minhas vivências, meu projeto de pesquisa e
sobre o meu interesse em conhecer e colaborar com o lugar.
Então, primeiramente Helton me falou um pouco sobre o lugar. Segundo ele, é
um ambiente que abriga pessoas maiores de 18 anos, que apresentam alguma
deficiência e que não tem outro lugar para morar. Explica que a ideia do ambiente é
ser mesmo uma residência, então o primeiro ponto a ser levado em consideração era
que diante da possibilidade da aplicação de atividades, elas deveriam acontecer em
outro lugar, fora dali, a não ser em último caso, para tentar manter essa essência da
integração e inclusão social. Ele falou em termos informais, que o espaço público é
para ser utilizado por todo cidadão, que o “louco” também deve frequentar a praça, o
parque, a universidade. Comentou que essa era uma tentativa de parar de concentrar
as atividades todas naquele mesmo espaço, já que dessa forma a pessoa acaba
ficando limitada aquele perímetro para fazer tudo, fortalecendo as exclusões sociais.
Então, solicitou que as atividades de estudo e lazer deveriam ocorrer fora dali, aos
poucos conquistando outros territórios. Argumentou que ali era uma residência e tudo
o que a abrange, mas que se fosse um CAPS, a ideia ainda seria “desencapsular” as
atividades. Ali senti que estava no lugar certo, falando com as pessoas certas, que
pensavam como eu.
Ele me perguntou se, agora sabendo disso, eu tinha alguma ideia da atividade,
e se envolveria algum nicho artístico em específico, como a arte plástica por exemplo.
Respondi que a ideia inicial do projeto era primeiramente conhecer a realidade do
lugar, dos moradores, para que a proposta tivesse uma efetividade prática dentro das
39

especificidades que eles trouxessem, já que alguns materiais ou atividades poderiam


trazer desconforto para alguns dos moradores. Depois, informei que minha formação
era em cinema, mas que abraçaria todo tipo de arte para a realização deste projeto.
Perguntei, então, se eles observaram se algum morador apresentava alguma
expressividade artística ou que de alguma forma gostasse de arte, e ele prontamente
levantou o nome de “B”, que trabalha com bijuterias e artesanato. E comentou também
que o caminho da música seria uma ótima opção, porque a grande maioria gostava
de música, inclusive uma das moradoras que é autista e que tem pouca interação com
outros moradores.
Agradeci, peguei o contato para marcarmos uma primeira entrevista e
apresentação mais formal do projeto para alinharmos as expectativas de ambos os
lados. Em geral, fui muito bem recebida e agradeceram o interesse pelo espaço, que
mesmo tendo a iniciativa de inclusão, ainda segue sem muita visibilidade por não
apresentar placas ou algo que indique o funcionamento do lugar.

3.1.2 Entrevista com os técnicos

Retornei para um segundo encontro. Neste momento o objetivo foi conhecer e


me aproximar mais da realidade da Residência a partir de algumas perguntas. Fizeram
parte da entrevista o psicólogo Helton e a assistente social Jéssica. A conversa iniciou
com uma breve apresentação deste projeto, discorrendo sobre a minha história e a
busca em conhecer a realidade da Residência, dos seus funcionários e moradores,
de modo que, dessa parceria surja, acima de tudo, a possibilidade de apresentar as
potencialidades da arte como caminho de expressividade e de trocas, tendo como
possíveis desdobramentos encontrar os artistas escondidos por trás dos muros das
instituições.
Após uma rápida contextualização, expliquei que as perguntas surgiram como
uma estruturação para a linha de raciocínio que eu almejava trabalhar, mas que se
sentissem tranquilos para que juntos pudéssemos construir um diálogo leve e
informal. Assim, iniciamos com a entrevista.
Jéssica me informou que a Residência Inclusiva II está enquadrada dentro das
Políticas de Assistência Social. Num comparativo didático com o Sistema Único de
Saúde (SUS), outra política pública bem conhecida e talvez mais familiar, ela explicou
sobre o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), pois ambos são divididos por
40

níveis de complexidade. Desta forma, tal qual o SUS, que se divide em Unidades
Básicas, Unidades de Pronto Atendimento e grandes hospitais, a Assistência Social
também se organiza em hierarquias. A atenção básica atua com enfoque na
prevenção, como é o caso do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Já
a atenção de média complexidade, atende pessoas que tiveram algum direito violado
ou vivenciam situações de violências, como o Centro de Referência Especializado de
Assistência Social (CREAS). E, por fim, a atenção de alta complexidade, que intervém
quando os vínculos do indivíduo com o meio em que está inserido foram também
rompidos, como é o caso da Residência e de outras variações de Abrigos
Institucionais.
Portanto, os atuais moradores da Residência já passaram pelas etapas e
estágios anteriores dentro desta organização, tendo residido até mesmo em outros
Abrigos. Contudo, diferentemente do SUS, que pode ser utilizado por qualquer
cidadão, para usufruir das políticas de assistência social, é necessário se enquadrar
dentro de critérios de renda. Segundo Jéssica: “a política de assistência está
disponível para quem dela necessitar”.
A assistente social explica que a especificidade da Residência II é acolher
pessoas com deficiência que tiveram seus direitos violados ou que apresentem
alguma dificuldade que não pôde ser suprida pela família. O psicólogo pontua que a
Residência atua, então, dentro das políticas de assistência social, sendo
erroneamente relacionada apenas à saúde mental. O espaço recebe pessoas com
diversas necessidades especiais, fato que abrange tanto deficiências mentais quanto
físicas, já tendo sido ali moradia de uma pessoa cega, por exemplo. Todavia, por uma
casualidade, atualmente a Residência está apenas com pessoas que apresentam
deficiências mentais.
Os entrevistados contextualizaram que em algum momento historicamente
dentro das políticas do município de Pelotas houve uma divisão etária dentro do
sistema de acolhimento, fazendo com que atualmente existam, além dos Abrigos da
Infância, dois ambientes que acolhem pessoas dentro das características já citadas,
sendo a Residência um local para pessoas de 18 a 76 anos e havendo um outro local
para pessoas acima dos 76 anos. Contudo, por não atender a todos os critérios da
assistência, tampouco receber verbas públicas, a única que legalmente se enquadra
como Residência Inclusiva seria ali, o espaço em que a pesquisa estava sendo
realizada.
41

Sobre a atuação dos entrevistados dentro da Residência, Helton responde


sorrindo: “minha atuação é apagar incêndio geralmente”. Ele elenca, então, algumas
atividades que desempenha dentro da Residência: articular para que as pessoas
retornem para suas casas, num processo que ele chama de “desacolhimento”; apoiar
os educadores sociais e os funcionários que trabalham na Residência; mediar os
conflitos na casa; intervir quando qualquer morador apresentar alguma
desestabilidade; e segundo ele, principalmente, preservar e cultivar as relações dentro
da Residência, tanto entre os próprios moradores, quando em relação aos
funcionários, fazendo com que a convivência se torne mais leve.
Já para Jéssica, sua atuação está relacionada diretamente com a garantia de
direitos, um dos principais focos da assistência social, bem como garantir o acesso
dos moradores a esses direitos, sejam eles de saúde, educação, financeiro, entre
outros.
Ambos reforçam o esforço e o desejo em relação ao desacolhimento dos
moradores, apontam que “o ideal, a maior conquista, o ápice” é a reinserção dos
moradores em suas famílias, sendo este o ponto final almejado dentro de suas
atuações. Argumentam que, socialmente, seria como "desencapsular os CAPS”,
fazendo com que a pessoa com deficiência ocupe todos os espaços: “tirar daqui, levar
pra rua, pra praça pública”.
Sobre a gestão do espaço, Helton explica que a organização de servidores no
espaço é dividida por turnos, sendo o período da manhã e da tarde formado por três
educadores sociais, uma cozinheira e uma pessoa responsável pelos serviços gerais,
e o período da noite por três educadores e um responsável pelos serviços gerais. Já
a equipe técnica é composta por ele, o psicólogo, pela Jéssica, a assistente social,
pela Silene, a técnica de enfermagem e a coordenadora Tina.
Quando questionado sobre qual seria a principal diferença da Residência para
os outros atendimentos psicossociais, como os hospitais psiquiátricos e CAPS, Helton
prontamente responde: “A diferença é que aqui é uma casa, aqui é a casa do pessoal”.
Ele relembra que o espaço está articulado com as políticas de Assistência Social e
não com a saúde, desta forma, o ambiente não deveria apresentar tantos vínculos
com a saúde mental. Contudo, informa que geralmente ocorre essa indissociável
relação, visto que o sistema que rege nossa sociedade possui lacunas nas quais, em
alguns momentos, as pessoas não têm destino certo, falha presente tanto no SUS,
quanto no SUAS. Ele exemplifica: “Uma pessoa que tem esquizofrenia… ela não é
42

nosso público, ela não tem uma deficiência, ela tem um transtorno mental. Então, ela
deveria estar sendo tratada no CAPS e indo pra casa. Tá, mas ela não tem uma
casa… no caso das pessoas que não tem casa, não tem família, não tem ninguém e
tem um transtorno mental grave e persistente. Ela teria que ir pra um Residencial
Terapêutico, que é um outro tipo de serviço e que é vinculado ao SUS, à saúde, mas
aqui na cidade só tem dois e tá lotado. Aí essa pessoa é de lugar nenhum. É o buraco
da reforma psiquiátrica”. Ele prossegue justificando que pessoas com deficiência,
abrigadas pelas instituições, acabam muitas vezes desenvolvendo transtornos
mentais, fazendo com que, independentemente do propósito com o qual as
Residências surgiram, seja impossível distanciar-se totalmente do enfoque na saúde
mental, um assunto sempre importante nesses espaços.
Em relação ao sentido de “residência” no Abrigo, e ainda seguindo a
racionalidade de que aquele espaço é de fato uma casa, Jessica ressalta que o ideal
seria que atividades e propostas de oficinas ocorram num espaço externo, para
manter a essência do lar. Sinaliza que, atualmente, os moradores se deslocam para
ir até a escola, até o CAPS e para realizar outras atividades. Embora exista a
constante presença dos técnicos e educadores, a Residência é um espaço dos
moradores, espaço de descanso, de atividades rotineiras. Helton complementa que
aumentando a frequência com que as atividades são realizadas externamente,
proporcionalmente será o uso da residência será apenas para fins domésticos.
Os entrevistados reforçam também a existência de uma rotina diária, “assim
como em qualquer casa”, com momentos para as refeições, tomar banho, dormir,
entre outros. Além disso, a partir de conquistas dentro das políticas públicas, foi
assegurado o direito de que cada morador tenha seu guarda roupas, sua cama, sua
individualidade.
Jessica relembra que, dentro desse formato, a política prevê também que as
Residências tenham no máximo dez moradores, para que se mantenha minimamente
uma rotina de “casa”. Ela argumenta sobre o incansável trabalho de manter,
minimamente, o contato dos moradores com suas famílias, dentro das possibilidades,
estreitando relações e afetos a partir de visitas.
Ela conta que, mesmo com todas essas iniciativas, os moradores ainda
cultivam o desejo de sair da Residência e voltar para suas famílias. Lembra também
da expectativa que se criou sobre a chegada de uma assistente social e uma possível
liberação dos moradores, fato que criou alguns rumores sobre sua contratação.
43

Quando questionados sobre a inexistência de uma placa de identificação na


fachada da Residência, eles explicam que sua ausência é proposital, justamente para
que se mantenha o conceito de casa no espaço. Bem como a localização, que é
previamente pensada para incidir em regiões centrais, facilitando locomoção e
inclusão.
Sobre a visibilidade deste ambiente dentro do contexto social/cotidiano da
cidade, eles relatam que é um lugar pouco conhecido, até mesmo dentro dos serviços
sociais. Explicam que muitas vezes o sistema de moradias é relacionado apenas à
infância e que o acolhimento de adultos é um espaço ainda pouco discutido
socialmente.
Em relação a atual quantidade de moradores na Residência, eles relatam que
atualmente residem oito pessoas, de ambos os gêneros.
Sobre a relação de convívio entre os moradores, Helton explica que, em geral,
a relação é pacífica, tranquila, podendo apresentar algumas dificuldades relacionadas
ao constante convívio, já que o ser humano é um ser complexo e de relações
interpessoais. Ele discorre que a maior dificuldade está relacionada ao ciúmes e a
carência. Ele explica que muitos moradores apresentam comportamentos
infantilizados. Justifica que, em determinadas situações, isso ocorre em função de
alguma deficiência. Outra possibilidade elencada por Helton é o fato de que muitos
moradores costumam ser oriundos de outros abrigos, fazendo com que suas vidas
sejam constantemente tuteladas, havendo a permanente necessidade de ensinar
habilidades sociais básicas. Esses fatores fazem com que sempre haja o carecimento
de aprovação e atenção, podendo aflorar o ciúme, ocasionando os conflitos.
Ele ressalta que esses fatores devem ser considerados antes do planejamento
das atividades, para que a atenção não fique centrada em apenas um dos moradores
e para que nenhum deles se sinta excluído ou favorecido durante as atividades. Helton
reforça que é necessário saber lidar com estas questões relacionadas ao ciúme, que
costumam ser bastante triviais quando bem mediadas, caso contrário, podendo
desencadear uma crise e até mesmo uma internação.
Ele comenta que, através de muito esforço, a equipe tem conseguido manter a
tranquilidade na Residência, já contabilizando alguns meses desde que algum
morador foi internado no Hospital Psiquiátrico da cidade. Helton reforça que a
internação é momentânea e que, mesmo não sendo a melhor alternativa, ainda é a
única possível disponível dentro da rede do município.
44

Os entrevistados complementam que, de forma utópica, o essencial seria a


existência de uma ala dentro do Hospital Universitário da cidade para situações
semelhantes a estas, por se tratar de uma questão relacionada à saúde, sem que
fosse preciso recorrer a internação aos antigos moldes dos manicômios.
Quando questionados sobre os projeto de iniciativa externa que tenham sido
aplicado com os moradores, eles relembram algumas atividades aplicadas pelas
estagiárias em psicologia e comentam sobre a possível existência de outros projetos
de iniciativa externa, anteriores a suas atuações na casa. Pontuam que nenhum
projeto ocorreu desde que assumiram os respectivos cargos.
Helton explica sobre a alta rotatividade de funcionários. Argumenta que a atual
equipe é composta por novos contratados e que os intervalos de contratação podem
provocar brechas, fazendo com que laços sejam bruscamente cortados. O psicólogo
comenta sobre sua proximidade com os moradores e sobre os laços que criou desde
que começou a atuar na Residência, construindo uma relação bem íntima, familiar,
sendo até mesmo associado à figura paterna por alguns moradores. Ele comenta
sobre os funcionários que passaram pela residência, sobre as perdas e chateações
que essas ausências desdobram.
Aproveitei para discorrer sobre o meu interesse no desenvolvimento de
propostas que pudessem ter continuidade, ainda que eu não pudesse me fazer
presente, consciente do quanto é desagradável a ideia de me aproximar dos
moradores, apresentar as atividades e finalizá-las com a minha partida. Helton reforça
que essa preocupação é extremamente importante, pois esses distanciamentos e
cortes de laços acontecem constantemente com os moradores: “pô, era tão bom e
agora não tem mais. Se tu pensar a dinâmica deles é justamente essa: eles não têm
mais”. Ele continuou dizendo que essas perdas geram carências, ausências imensas
dentro de uma realidade bastante cruel, fato que ocorre com tamanha frequência que,
infelizmente, os moradores acabam se acostumando. Ele afirma que, através da sua
perspectiva de psicólogo, consegue enxergar a existência de uma dor muito grande
na Residência, uma dor reconhecida pelos os funcionários, fazendo com que, muitas
vezes, não haja a iniciativa de se despedirem quando ocorrem essas partidas.
Quando pergunto para Helton sobre sua compreensão e relação pessoal com
a arte, ele revela que tem uma relação bem íntima com a arte e que gosta de escrever
poesias, embora não conseguisse quantificar a frequência, visto que sua escrita
depende de inspiração. A arte, para ele, é uma sensação interna que “vem ou não
45

vem, ponto”. Informa que, quando questionado em seu cotidiano sobre o desejo de
escrever com maior frequência, responde que a arte não é algo que possa ser forçado.
Que a arte são “momentos”, com dias mais sensíveis que outros, onde a emoção pode
simplesmente surtir de coisas banais, assim como grandes momentos podem não
gerar nenhuma emoção. Comenta que vê desta mesma forma o funcionamento da
Residência, na qual alguns dias fluem com naturalidade e as situações vão
simplesmente acontecendo, mas em outros, não se desenvolvem, ficam travadas.
Já Jéssica relaciona a arte com um momento de expressividade, manifesta seu
grande apreço pela dança. Em seus momentos com a família, ela aproveita para
dançar com sua filha, encarando como oportunidades para se conectar, seja para
comemorar ou espairecer. A música e a dança como um refúgio. Ela relembra que se
surpreendeu com a marcante presença da música na Residência. Comenta que os
moradores gostam muito de ouvir música, conhecem até algumas coreografias e que
essa poderia ser uma ferramenta interessante para esta pesquisa.
Quando perguntado sobre a existência de alguma atividade que aconteça
atualmente na Residência e que possa ser vista como arte, eles respondem que a
música se apresenta como a atividade artística mais presente e com melhores
resultados dentro da Residência. Produções audiovisuais como clipes musicais, filmes
e novelas também fazem bastante sucesso entre os moradores.
Sobre as sugestões e desejos relacionados a como a arte poderia ser aplicada
no espaço, eles sugerem a música e a dança como possíveis caminhos para as
futuras atividades.
Em relação a qual abordagem inicial seria mais apropriada para o projeto, eles
recomendam a tentativa de me aproximar individualmente dos moradores, num
primeiro momento, podendo, assim, extrair mais informações de cada um. Reforçam
que a maioria das atividades na casa já acontecem coletivamente. Explicam que
alguns moradores são mais comunicativos que outros, geralmente ocasionando
tumulto e sobrecarga no ambiente, fato que poderia inibir os demais moradores e
dificultar a coleta dos dados. Por isso, sugerem que seria interessante que algumas
conversas acontecessem de forma individual, em um momento mais tranquilo e
controlado.
Sobre a existência de qualquer restrição ou dificuldade (mobilidade,
interatividade, contato com materiais, gatilhos) em relação a aplicação das atividades,
46

Jessica me informa que alguns moradores têm maior dificuldade motora que outros,
contudo, nada que impeça a realização de atividades.
Sobre a existência de algum morador que apresentasse um contato
perceptivelmente maior com arte ou que se reconhecesse artista, eles prontamente
levantam o nome de um dos moradores, aqui nomeado como “B”. Ele tem um contato
muito próximo com artesanato e bijuterias. Ele também tem paixão por colorir usando
lápis de cor desde a infância e atualmente tem uma numerosa quantidade de obras
em seus aposentos. Eles lembram também que uma das moradoras tem uma ligação
especial com o samba, tendo inclusive membros da família que atuam como passistas,
fazendo com que exista uma conexão muito forte com a música, motivando-a a cantar,
dançar, se empolgar e se emocionar.
Quando questionados sobre a possibilidade de entrevistar alguns moradores
abordando a temática da relação individual com a arte, eles respondem que sim, seria
possível e aconselham usar os horários da tarde para realizar essas entrevistas, por
ser um momento mais tranquilo.
Com o encerramento das perguntas, o Helton sugeriu que a melhor forma de
conhecer a realidade da residência seria “olhando com meus próprios olhos”, indo
diretamente ao encontro com o título e tema deste projeto “aos olhos dos que não
vemos”. É interessante observar a harmonia com a qual a iniciativa deste projeto tem
tido em congruência com a proposta da Residência.
Assim, após o diálogo, fiquei mais algumas horas conhecendo os moradores,
num primeiro contato tímido e despreocupado. Estavam, em grande maioria, na sala,
juntamente com os educadores. Alguns assistiam a novela, outros ouviam música em
um pequeno rádio. Fui apresentada em meio a olhares curiosos. Helton explica para
eles minha proposta e minha relação com a Universidade. Um dos moradores
questiona se sou aluna da psicologia e Helton responde que eu trabalho com artes,
sendo interrompido por “B”, que prontamente se impõe: “conta pra ela que eu faço
bijuteria!”. “B” afirma que é artesão e pediu para que eu aguardasse, pois ele gostaria
de mostrar seus trabalhos.
Retomei para a dinâmica coletiva. Me falaram seus nomes e aos poucos fui
explicando minha atuação. Fui me aproximando de cada um, perguntando como
estavam através da retórica saudação: “oi, tudo bem?”, sendo surpreendida com um
impactante “não” de uma moradora. Conversamos um pouco e ela comentou ter
47

saudades da família, o diálogo foi interrompido por um longo abraço. Dediquei alguns
momentos de atenção para ela e continuei com as apresentações.
Conheci brevemente seus gostos e idades. Alguns me perguntavam sobre
minha profissão, outros faziam perguntas pessoais, outros pareciam indiferentes à
minha presença. Mais tarde, “B” me leva para conhecer seu trabalho. Ele me leva até
uma mesa com seus trabalhos, há vários colares, brincos e anéis, feitos de diversos
materiais, em maioria miçangas (Imagens 1 e 2). Ele comenta que todas as suas
peças custam dois reais e que faz bastante sucesso com seus clientes.

Imagens 1 e 2 - Bijuterias feitas pelo morador “B”

Na outra mesa ele exibe uma pilha de desenhos impressos, coloridos com lápis
de cor através de uma técnica muito peculiar de hachura, uma técnica de desenho
que se baseia em traçar linhas paralelas e próximas (Imagens 3 e 4). Todos os
desenhos apresentam essa variação gráfica surpreendente de pintura, em que as
cores se alternam através de um padrão de linhas paralelas e verticais. Ele me conta
que gosta de colorir desde a infância e que seus desenhos também estão à venda.
48

Imagens 3 e 4 - Desenhos impressos e coloridos pelo morador “B” através da


técnica de hachura

Uma moradora me apresenta os quartos e exibe alguns de seus pertences


pessoais. Outra puxa assunto e conversamos sobre possíveis cores para pintar o
cabelo. Procuro, na medida do possível, conversar com todos, aproveitando as
brechas que alguns oportunizam, respeitando sempre os espaços e limitações quando
percebidas. Alguns me contam sobre seu histórico na instituição, pontuando os
Abrigos pelos quais já passou. Percebi que um dos moradores tinha dificuldade de se
comunicar oralmente, mas compreendia algumas coisas do que eu falava, por isso,
encontrei usei a música que tocava no rádio ao seu lado como meio de comunicação.
Dançamos um pouco, mexendo nossos corpos ainda sentados, surtindo alguns
sorrisos tímidos.
Depois de algumas horas ali, fui avisada sobre a troca de turno dos funcionários
para o período da noite, onde achei pertinente minha saída.
Conversei rapidamente também com as educadoras sociais que estavam no
turno em que fiz as visitas. Uma delas me relatou que tem trabalhado como educadora
social faz anos e acompanha alguns dos moradores desde outros abrigos, os quais
acolhem menores de idade. Disse que é interessante acompanhar o crescimento
deles, tendo um contato de bastante intimidade, e relatou algumas brincadeiras e
piadas internas com os moradores.
49

3.1.3 Entrevista com os moradores

Essa entrevista foi construída de forma muito mais objetiva, com linguagem
bastante simples, a partir dos conhecimentos obtidos nas visitações anteriores, nas
quais pude investigar e constatar que uma parte dos moradores apresenta
dificuldades para se comunicar, além de comportamentos aparentemente
infantilizados. A quantidade de perguntas também é reduzida para que o diálogo seja
breve, não desgastando o entrevistado.

a) Quantos anos você tem?


b) Quanto tempo você mora na Residência II?
c) O que você acha da Residência II?
d) O que deixa você feliz?
e) O que você gosta muito de fazer?
f) Você gosta de desenhar e pintar?
g) Você gosta de mexer com massinha de modelar?
h) Você gosta de ouvir música?
i) Você gosta de dançar?
j) Você gosta de assistir televisão, ver novelas e filmes? Já foi ao cinema? O
que achou da experiência?
k) De todas essas (repetir: pintar, desenhar…) qual tu gostas mais?
l) E o que tu sentes quando faz isso?
m) Pra você, o que é arte?

Mesmo que construída com uma linguagem bem simples, esta etapa da
pesquisa tem o propósito de conhecer a intimidade, os gestos, os corpos, os
sentimentos dos moradores, bem como tentar aprofundar alguns temas para se
pensar na arte com outros olhos. As respostas obtidas e as gesticulações observadas
ajudaram a me aproximar desta realidade, como também adquirir dados sólidos
anteriores à aplicação das oficinas. Alguns ficaram bastante empolgados para serem
chamados e gostavam de “chamar o próximo”, mostrando bastante seriedade e
respeito para aquele momento.
Tendo em vista as características muito específicas de cada morador e
moradora, considerei apresentar as respostas dos moradores de forma
50

individualizada. Esta organização colaborou para que eu mantivesse facilidade maior


em identificar preferências ou incômodos de cada morador ou moradora no momento
em que planejei as oficinas. Por esta razão, a seguir apresentarei cada uma das
respostas obtidas na íntegra, mantendo todas as informações no corpo de texto da
dissertação.

Entrevista com “M”.


Ela parecia um pouco apreensiva com a conversa, cabeça baixa, se atentava
a responder somente o que foi perguntado. As educadoras da residência me disseram
que ela costuma ser bem quieta e que demora para se abrir com as pessoas.
a) Tem 31 anos;
b) Não sabe quanto tempo está na Residência, só afirma que faz tempo;
c) Acha a residência legal. Comentou que no dia anterior ajudou uma amiga
que tinha machucado o dedo;
d) Não soube me dizer o que a deixa feliz;
e) Gosta de plantar flores, plantar feijão, mexer com a natureza, mas
comentou que tem chovido muito, o que tem atrapalhado;
f) Não gosta de desenhar ou pintar;
g) Comentou que não tem massinha na Residência, mas que gostaria se
tivesse;
h) Gosta de ouvir música, especialmente o funk;
i) Não gosta de dançar;
j) Gosta de ver televisão, especialmente filmes e novelas. Já foi ao cinema e
achou a experiência legal;
k) Disse que gosta de todas as opções artísticas;
l) Quando realiza uma atividade artística se sente alegre;
m) Disse que não gostava de artes e que nem queria me responder sobre isso.
Questionei por que ela não gostava e o que ela entendia quando eu falava de “artes”.
Ela me respondeu que arte “é prova”. Eu expliquei que a arte a qual me referia eram
similares as que havia citado anteriormente, como a dança, a música, ver filmes, e ela
respondeu que gosta dessas atividades.
51

Entrevista com “LC”.


Essa moradora entrou há pouco tempo na universidade e tem conseguido
bastante espaço para exercitar suas habilidades sociais. Ela estava empolgada,
brincou se era uma entrevista de emprego, quis olhar meu bloco de notas, em que eu
tinha escrito as perguntas da entrevista. Coloquei o papel no nosso meio e fomos
acompanhando juntas a leitura das perguntas:
a) Tem 23 anos;
b) Mora a 7 anos na casa;
c) Disse que preferiria morar em sua casa ou com outra família. Comentou
que as visitas que faz pra sua mãe a deixa ansiosa, querendo saber quando seria sua
saída da Residência. Argumentou que fica insatisfeita com as brigas, pois é uma
pessoa séria e não aceita conflitos na casa;
d) Fica feliz quando vai visitar sua família, quando encontra seus amigos,
quando recebe notícias boas. Sua mais recente conquista é a de poder realizar o
estágio durante a graduação.
e) (sorriu com a pergunta) Gosta de ler, gosta de ajudar as pessoas, gostava
de fazer balé e ajudar as crianças no Carinho (Casa do Carinho é o abrigo institucional
para menores de idade, do qual vários outros moradores são oriundos), gosta de ter
independência e poder andar sozinha nessa nova residência, sem depender de
terceiros;
f) Pinta de vez em quando, mas parou um pouco;
g) Costumava manusear massinha, mas hoje não muito;
h) Gosta de ouvir música, gosta de qualquer gênero;
i) Riu bastante e perguntou se era piada, mas disse que gosta de dançar.
Comentou que fazia balé e gostava bastante, mas preferia fazer os alunos dançarem
em seu lugar. Explicou que sua relação com a dança e com a movimentação do corpo
lhe dá maior satisfação quando atua como professora, instigando as pessoas a se
exercitarem;
j) Gosta de ver televisão. Já foi ao cinema e gostou;
k) Ouvir música e ver televisão são suas atividades favoritas;
l) Disse que quando assiste televisão se sente bem, mas comentou que
depende do que está passando na televisão. Argumentou que a casa tem regras e
que alguns programas de televisão podem gerar problemas na casa;
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m) “A arte tem a ver com o corpo, a mente… uma pintura corporal é uma arte.
qualquer coisa que tu desenhar… uma obra de arte que tu pegou de um artista, é uma
arte… o jeito de tu dançar, o corpo faz uma coisa… uma arte corporal com o corpo,
isso é uma arte... trabalha o corpo, trabalha a mente, isso é uma arte. A arte que os
artistas se expressam, em forma de um quadro com sentimento, aquilo é um
sentimento que o artista tem que ele expressa de forma exagerada, de forma mais
clara, pra mostrar pros espectadores como aquela arte é expressada. Isso que eu
acho que é arte”.

Entrevista com “B”.


Este morador estava animado com minha visita porque tem um contato
bastante íntimo com a arte. Quando cheguei no portão da residência correu para me
atender e prontamente me atualizou sobre as novidades da casa. No momento da
entrevista estava bem tranquilo, animado com a conversa.
a) Tem 30 anos;
b) Não se lembra, faz bastante tempo. Este morador, assim como outros, já
está no sistema de acolhimento desde a infância;
c) Disse que gosta mais ou menos da Residência, não quis se aprofundar;
d) Gosta de visitar os parentes, gosta de ser bombeiro. Me relatou sobre seu
sonho em ser bombeiro e sua experiência ao visitar o corpo de bombeiros da região.
Exibiu seu boné com o título de “Bombeiro mirim” que adquiriu em sua última visita;
e) Disse que gosta de fazer quadros e fazer bijuterias. Também gosta de
assistir televisão;
f) Gosta de pintar com lápis de cor;
g) Gosta do contato com argila/massinha;
h) Gosta de ouvir música, especialmente Paula Fernandes;
i) Riu e disse que gosta de dançar, mas pontuou: “sozinho!”;
j) Gosta de ver filmes na televisão. Já foi ao cinema, assistiu a “Os Smurfs” e
gostou;
k) Disse que pintura é sua atividade favorita;
l) "Eu to calminho, assim, pessoas brigando, vou fazer minha pintura, pintar,
fazer bijus, esse é o meu cantinho”. Me contou que pinta desde pequeno;
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m) Comentou que é uma pergunta difícil, mas depois argumenta que arte é
fazer quadros, pinturas, assim como o que ele faz. "Pega o papelão, pintei colorido,
cortei, peguei o papel, colei, é arte minha, minha arte é assim, eu faço quadros”.
● Perguntei se ele se vê como um artista e ele me respondeu que sim: “faço
bijus, faço pulseira, faço anel, tudo fui eu que fiz, é a minha arte”;
● Disse que começou a trabalhar com bijuterias com uns 22 anos, quando
uma amiga comentou que seria uma fonte de renda interessante para ele, e ele se
apaixonou;
● Perguntei como ele se sentia fazendo bijuterias e ele disse que se sente
bem “calminho”. Relatou que em anos anteriores ficava nervoso e passava muito mal,
quando presenciava alguma briga na casa, chegando a desmaiar, mas que agora está
feliz, está sempre calmo, está bem agora.

Entrevista com “AM”.


A moradora estava bastante empolgada, se mostrou bastante interessada com
a pesquisa e com a minha proposta. Puxava assuntos para se aproximar e me auxiliou
a organizar meus materiais e realizar alguns registros fotográficos.
a) Tem 18 anos;
b) Está há 1 ano na casa, é a moradora mais nova e a recém chegada. Assim
como outros, veio de um outro abrigo;
c) Acha a Residência legal, comenta que não gostava muito do abrigo
anterior. Justifica que na Residência tem mais pessoas da mesma idade para
conversar, pode ouvir suas músicas tranquilamente, usar fones de ouvido, solicitar
carregador, mexer no computador, jogar um pouco, ver filmes na televisão. Finaliza
dizendo que acha a atual residência ótima;
d) Fica feliz ouvindo música romântica;
e) Gosta de ficar no computador ou no celular;
f) Gosta de desenhar e pintar;
g) Não gosta muito de argila, mas gosta de massinha de modelar;
h) Gosta muito de ouvir música, especialmente funk, músicas românticas,
sertanejo e forró;
i) Gosta muito de dançar;
j) Gosta de ver televisão, especialmente filmes. Ainda não foi ao cinema;
k) Sua atividade artística favorita é dançar;
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l) Quando está dançando se sente feliz;


m) Questionei o que é arte e ela respondeu: “tudo!”. Pedi para me explicar
melhor o que seria a afirmação e obtive a seguinte resposta: “eu acho que tudo é arte
porque… como eu posso explicar? porque a arte começou no tempo antigo né, já era
no tempo da história antiga, foram com os primeiros pincéis que aqueles traços,
pequenos traços, que a gente foi tendo os nossos desenhos, que é assim, assim e
assim (gesticulando formas geométricas no ar), e a gente começou a pintar, depois
começa o nosso tempo com o lápis de cor, com giz de cera, aí entrou a massinha de
modelar, a argila, a tinta guache, então foi começando assim aos poucos a arte, e a
arte me inspira sabe? E continua me inspirando”.

Entrevista com “LI”


Essa moradora mostrou inicialmente certa resistência pela conversa, disse que
estava ouvindo música quando a chamei e que isso a atrapalhou. Pedi desculpa pela
situação e argumentei que seria rápido, mas ao longo da conversa se empolgou com
o assunto.
a) Tem 30 anos;
b) faz tempo, mas não sabe quanto tempo
c) Gosta da casa, mas comenta que às vezes tem muita briga;
d) A família a deixa ela feliz;
e) Gosta muito de ouvir música e dançar;
f) Gosta de desenhar, mas no momento está com o dedo machucado, o que
a impede de fazer esse tipo de atividade;
g) Gosta “mais ou menos” da Residência, não gosta muito;
h) Ama ouvir música, especialmente Alexandre Pires, Seu Jorge, pagode e
samba;
i) Adora dançar, “um sambinha, dançar coladinho”;
j) Gosta de ver novelas. Nunca foi ao cinema;
k) Sua atividade artística favorita é cantar
l) Riu e disse que se empolga quando vai dançar, chegando a quase cair, fato
que poderia ser muito vergonhoso pela presença das câmeras na Residência. Em
seguida, puxou uma música do Seu Jorge, “Ela é amiga da minha mulher”, na qual eu
prontamente acompanhei. Cantamos alguns trechos, enquanto ritmávamos com as
mãos.
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m) Para ela, a arte é uma coisa boa, que traz alegria, mas não a toca muito.
Argumenta que é uma pessoa quieta.

Entrevista com “AL”


Essa moradora estava empenhada em ajudar com as tarefas domésticas da
casa, uma educadora comentou que ela é muito prestativa, que não suporta ficar
parada e sempre auxilia com as atividades. Ela me pediu que a conversa fosse rápida
para poder continuar com suas tarefas, se mostrou impaciente.
a) Tem 20 anos;
b) Não se lembra quanto tempo mora ali, mas sabe que faz bastante tempo;
c) Disse que é chato morar na Residência;
d) Fica feliz ao falar com a mãe e com o pai;
e) Gosta muito de pintar e desenhar;
f) Respondeu na pergunta anterior;
g) Gosta de mexer com massinha de modelar e argila;
h) Gosta de ouvir música, especialmente funk;
i) Gosta de dançar;
j) Não gosta muito de ver televisão, mas gosta de ver filmes. Foi no cinema,
mas não gostou muito da experiência;
k) Sua atividade favorita é desenhar e pintar;
l) Disse que se sente tranquila, mas se lembra sempre da mãe e do pai
enquanto faz essas atividades;
m) Para ela, arte é o que ela faz no CAPS, faz latinhas com retalhos de pano
e faz educação física.

A moradora “LS” mostra traços de um grau severo de autismo e apresenta


dificuldade para se comunicar verbalmente. Estava um pouco intimidada com a minha
presença, por isso pedi o auxílio de uma educadora para obter alguma informação
sobre seus gostos. Dentre as opções apresentadas, ela expressou gostar bastante de
música. Na visita anterior também observei que ela movia seu corpo enquanto ouvia
algumas músicas.
Uma moradora não estava naquele momento na Residência, pois tinha sido
necessário interná-la no hospital psiquiátrico. Outra moradora relatou que ela estava
ficando um pouco agressiva e o psicólogo argumentou que ela estava diariamente
56

muito agitada. Ele disse que a moradora em questão passaria alguns dias internada
e posteriormente retornaria para a Residência.
Foi possível observar que, salvo uma moradora entrevistada, grande parte dos
moradores perderam a noção do tempo em que estão na Residência, principalmente
por estarem a muitos anos dentro de instituições. A perda da noção do tempo é um
sintoma observado nas “instituições de sequestro” por Foucault, como já apresentado
anteriormente. Talvez o adestramento através da supressão do tempo apresentado
por Foucault não seja a verdadeira intenção da Residência, já que ela apresenta uma
proposta diferente das instituições totais. Contudo, é inegável que a permanência
ininterrupta desses corpos num mesmo espaço dificulta qualquer marco ou
experiência temporal. Os moradores da Residência são conscientes sobre estarem há
muitos anos dentro do sistema de acolhimento, mas não conseguem mais quantificar
esse tempo, em que alguns inclusive mostraram certa angústia quando feita a
pergunta.

3.1.4 Revisão de iniciativas já realizadas


Neste primeiro momento, busca-se fundamentar a realização das oficinas
através de pesquisa de bibliografias e produções que se relacionam com a temática
aqui proposta. Desta forma, foi realizado um breve levantamento de iniciativas
brasileiras que relatam a aplicação de atividades artísticas em espaços similares a
Residência, conhecendo os projetos, os profissionais, os relatos e as formas de
abordagem.
Arteterapia como dispositivo terapêutico em saúde mental, um relato de
experiência de Neusa Freire Coqueiro, Francisco Ronaldo Ramos Vieira e Marta Maria
Costa Freitas - Segundo os autores, o texto relata as observações e experiências
obtidas através da aplicação de atividades artísticas em um dos grupos terapêuticos
do Centro de Atenção Psicossocial da Secretaria Executiva Regional III, do município
de Fortaleza. A atividade foi aplicada com 13 membros, homens e mulheres, com
idades de 20 a 54 anos. Durante as sessões, foram utilizadas duas técnicas distintas,
escolhidas a partir do comportamento dos participantes: quando reconhecido certo
grau de agitação, foram utilizadas técnicas de relaxamento, como músicas
instrumentais por exemplo, objetivando reduzir o nível de tensão e angústia do grupo.
Por outro lado, quando os participantes se demonstraram desanimados, foram
empregadas técnicas de expressão corporal através de jogos coletivos e danças,
57

visando animar e melhorar os potenciais emocionais de forma lúdica. Em ambos os


momentos, foram desenvolvidas ações que desenvolvem as capacidades expressivas
dos participantes, tanto em instâncias que se referem ao corpo quanto ao intelecto,
não apenas de forma coletiva, como também em relação à descoberta de si, sendo o
indivíduo o próprio autor de suas descobertas. O texto trouxe maior atenção à
sensibilidade necessária antes de aplicar a atividade.
Oficinas expressivas: uma inclusão de singularidades, um artigo de Flávia
Helena Passos Pádua e Maria de Lima Salum e Morais - Segundo as autoras, o texto
é uma reflexão crítica sobre as atividades artísticas realizadas nos serviços de saúde
mental e nos espaços sociais. A análise baseou-se em nove artigos científicos, duas
dissertações de mestrado e dez livros que discutem o tema apresentado. Um ponto
interessante levantado por este trabalho foi a percepção de que a maioria das oficinas
artísticas e terapêuticas realizadas pelos serviços de saúde mental se concentram
exclusivamente nos CAPS, não havendo a preocupação de ocupar outros espaços
destinados à comunidade em geral, tais como galerias, praças, escolas etc. Desta
forma, não se quebra a herança excludente em relação aqueles que possuem
transtornos mentais. As autoras pontuam que esse acontecimento promove apenas
uma substituição de instituições que segregam, retirando os internos dos hospitais
psiquiátricos e apenas transferindo-os para os CAPS, deste modo, não se promove a
desinstitucionalização dos usuários, e sim os segregam em outros espaços, ao invés
de circularem em outros locais da cidade.
Deliberadamente Desvelando Criações: Processos artísticos na Oficina
de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, Trabalho de Conclusão de
Curso de Leandro Silveira Rodrigues - O texto relata as experiências de estágio
realizadas no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), em Porto Alegre, apresentando
os resultados de uma pesquisa processual de criação e expressividade em artes
dentro da Oficina de Criatividade do Hospital. Para este trabalho, Leandro concentra
atividades terapêuticas feitas com argila e justifica que o barro é, sem dúvida, um
elemento que pode acalmar o frequentador da oficina, independentemente de sua
condição mental. “As mil faces” é um projeto criado no início das atividades de Leandro
como professor de cerâmica na Oficina. Nesta proposta, ele trabalha juntamente com
outros frequentadores da oficina, criando diversas peças originais que carregam
expressões únicas em torno do seu modelar, em um paralelo às múltiplas formas de
58

existir e de se expressar. O trabalho traz importantes relatos sobre a aplicação artística


em um Hospital Psiquiátrico bastante conhecido no Brasil.
As Artes Visuais no Contexto da Saúde Mental, monografia de José
Claudinei de Assis - A pesquisa analisou como as atividades em Artes Visuais podem
auxiliar no tratamento de pessoas portadoras de transtornos mentais, através de
atividades artísticas aplicadas a beneficiários do Centro de Atenção Psicossocial do
Município de Ibirité, em Minas Gerais. Segundo o autor, verificou-se de que forma a
Arte pode contribuir no processo de reabilitação e de inclusão desses indivíduos no
espaço social, promovendo a melhora no equilíbrio emocional e, também, como o uso
dessas técnicas pode elevar a autoestima e minimizar os efeitos negativos dos
sofrimentos psíquicos. O ponto forte desta pesquisa é a escolha e o relato das oficinas
planejadas: oficina de colagem e pintura; oficina de monotipia e oficina de papel
reciclado. Esta intervenção auxilia a projetar possibilidades menos convencionais de
práticas artísticas, bem como relata possíveis dificuldades na aplicação.
A experiência com arte na Colônia Juliano Moreira na década de 1950,
artigo de João Henrique Queiroz de Araújo e Ana Maria Jacó-Vilela: O autor traz uma
importante observação sobre o constante destaque dos trabalhos de Osório César e
de Nise da Silveira quando se investiga a relação entre expressão artística e a
psicologia no Brasil em torno da década de 1950. João traz a problemática de que
outras experiências importantes ocorreram no mesmo período, como as atividades
realizadas na Seção de Praxiterapia da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no
município do Rio de Janeiro, através da análise dos números do Boletim da Colônia
Juliano Moreira. Um ponto interessante levantado pelo autor é o fato que os resultados
apontam características peculiares da experiência artística na colônia, como o
incentivo à cópia e reprodução de fotografias como método terapêutico, o que a
diferencia das outras experiências constantemente mencionadas.
Com esse breve levantamento em mãos, construí e propus aplicar, de forma
autônoma, atividades artísticas no local. Um desdobramento potente, que, na minha
percepção, me deu a oportunidade de atuar experimentalmente como mediadora,
possibilitando observar de forma atenta as reações, as poéticas, as possibilidades e
as expressividades dos moradores a cada atividades. Busquei permitir que a arte
invadisse os muros da instituição através desta singela brecha que foi aberta.
Nesta direção, desde 2004, o Ministério da Saúde lançou um manual chamado
“Saúde Mental no SUS”, que discorre sobre deliberações e possibilidades dentro dos
59

Centros de Atenção Psicossocial, popularmente conhecidos como CAPS, bem como


justifica sua atuação dentro do serviço público com enfoque na saúde mental. Neste
manual, é definido que os CAPS devem oferecer oficinas com caráter terapêutico e
pontua que estas oficinas são uma das principais formas de tratamento encontradas
nesses estabelecimentos. Estas oficinas podem ser classificadas como expressivas,
geradoras de renda ou de alfabetização. Para este trabalho, interessa investigar as
oficinas expressivas, que segundo o Ministério da Saúde (2004):

Oficinas expressivas: espaços de expressão plástica (pintura, argila, desenho


etc.), expressão corporal (dança, ginástica e técnicas teatrais), expressão
verbal (poesia, contos, leitura e redação de textos, de peças teatrais e de
letras de música), expressão musical (atividades musicais), fotografia, teatro.

Foi justamente com o enfoque em atividades que usufruem de diversas fontes


e linguagens artísticas, possibilitando diferentes potências na expressividade do
indivíduo, que a elaboração das propostas de atividades foi estruturada.

3.1.5 Roteiros das oficinas


A partir das informações reunidas com as observações ao ambiente do Abrigo,
com as entrevistas dos funcionários, com a entrevista dos moradores e moradoras e
tendo acessado o manual do SUS, elaborei a escolha das expressividades artística a
serem trabalhadas nas oficinas bem como o roteiro final de cada uma das atividades
aplicadas individualmente, uma vez por semana, ao longo de cinco semanas. Os
roteiros, abaixo descritos, foram base das atividades, sem que fossem restritivos ou
determinantes, abertos a adaptações de acordo com as percepções no decorrer das
oficinas:

Tabela 1 - Roteiro da primeira oficina: Atividade de Autorretrato


Oficina 1
Título ATIVIDADE DE AUTORRETRATO
Objetivo: Explorar a percepção de si, do próprio corpo no espaço, da beleza
na diferença entre as pessoas e na construção identitária em
relação à comunidade. O autorretrato é um momento de reflexão,
permitindo reconhecer a própria existência, trabalhando a
sensibilidade do olhar em relação a si e aprimorar a capacidade
de observação. Além disso, o contato com materiais como a tinta,
lápis de cor e giz de cera propiciará um momento de experiências
e exploração de habilidades motoras.
Materiais: Espelhos, folhas de papel, tinta, lápis de cor, giz de cera, entre
outros;
60

Metodologia: Iniciaremos a atividade de modo livre, para que os moradores se


sintam livres para testar e conhecer os materiais. Posteriormente,
a atividade focará na exploração e percepção de si propondo aos
participantes que sintam os seus rostos com as mãos. Daremos
enfoque a alguns detalhes do rosto, sugerindo percepções como
a textura da pele, do cabelo, o formato do rosto e dos seus
elementos. Depois disso, alguns espelhos serão distribuídos para
os participantes. Após breve momento de observação, serão
sugeridas algumas expressões faciais/caretas para serem feitas
diante do espelho. Após esse momento de auto percepção, será
proposto o autorretrato, de forma que a escolha desses materiais
seja livre, enfatizando a inexistência de um resultado “certo e
errado”. Ao fim da atividade, observaremos as obras, instigando a
observação dos diferentes resultados e a beleza da pluralidade
existente.

Tabela 2 - Roteiro da segunda oficina: Atividade de Modelagem


Oficina 2
Título ATIVIDADE DE MODELAGEM
Objetivo: Trabalhar com materiais modeláveis permite que os participantes
explorem a expressividade e o desenvolvimento criativo através
de experiências menos convencionais, como o contato com a
argila. Por ser um material maleável, além de desenvolverem a
coordenação motora, a argila permite a exploração tátil para a
estruturação de formas, sendo um excelente meio de estimular a
experiência sensorial e desenvolver a concentração.
Materiais: Argila, palitos de dente, palitos de sorvete, garfos.
Metodologia: Iniciaremos a atividade apresentando alguns trabalhos e
possibilidades relacionados a linguagem da modelagem, como a
construção de esculturas, estátuas, objetos, personagens etc.
Apresentaremos alguns processos/técnicas como, por exemplo,
amaciar a argila sovando-a antes da modelagem, umedecê-la
quando necessário, a criação de ranhuras na peça e o uso da
barbotina (argila diluída em água em consistência cremosa) para
unir pedaços. Depois disso, deixaremos que os participantes
explorem o material livremente, a partir da temática e/ou da forma
que desejarem se expressar

Tabela 3 - Roteiro da terceira oficina: Atividade de Stop Motion


Oficina 3
Título ATIVIDADE DE STOP MOTION
Objetivo: O stop motion é uma técnica de animação muito simples e
divertida, que traz resultados através da execução de etapas bem
curtas e processuais, o que permite que ela seja aplicada com
públicos de vários perfis e idades. Sua linguagem dinâmica
trabalha conceitos relacionados ao movimento e auxilia no
desenvolvimento de um pensamento estratégico, além de
proporcionar a exploração de ferramentas digitais, como os
61

processos da fotografia. Trabalhar na construção de um material


audiovisual desenvolve a criatividade, a concentração, o
planejamento e trabalha o senso de coletividade, além do
sentimento de empoderamento do participante, que passa de
consumidor a produtor de um conteúdo audiovisual.
Materiais: O item que foi modelado na semana anterior e um celular.
Metodologia: Iniciaremos a atividade introduzindo os participantes no mundo do
audiovisual através da exibição do longa metragem em stop
motion “Shaun, o carneiro: a fazenda contra-ataca”. Shaun, o
carneiro é uma série de televisão voltada para o público infantil,
reconhecido mundialmente pelo seu humor, simplicidade e
ausência de falas, fatos que facilitarão a compreensão da narrativa
e da técnica em questão. Após a exibição, faremos um breve
diálogo sobre a construção e as etapas de um stop motion, que
consiste basicamente em tirar uma foto a cada movimento
realizado. Para isso, utilizaremos as modelagens realizadas na
oficina da semana anterior (atividade de modelagem), a fim de
agilizar e tornar cada experiência única e personalizada. Um a um,
todos os participantes terão seu momento de realizar a atividade,
enquanto os demais acompanham o processo. Ao final da oficina,
exibiremos os resultados e conversaremos sobre a experiência.

Tabela 4 - Roteiro da quarta oficina: Atividade de Dança/Música/Teatro


Oficina 4
Título ATIVIDADE DE DANÇA/MÚSICA/TEATRO
Objetivo: O contato com a dança, com a música e com elementos teatrais
permite que o participante explore as potencialidades do corpo que
se habita, trabalhando com a expressividade, criatividade,
autoconhecimento e o movimento do corpo. Sabendo que os
participantes da oficina se encontram em uma realidade muito
delicada, em corpos fragilizados e institucionalizados, refletir sobre
o próprio corpo e estimulá-lo a se movimentar é extremamente
importante e necessário.
Materiais: Caixa de som.
Metodologia: Iniciaremos a atividade propondo alguns movimentos de
alongamento, trabalhando especificamente cada parte do corpo,
como o rosto, pescoço, ombros, braços, pulsos, coluna, quadril,
pernas e pés. Depois disso, será proposto alguns exercícios que
estimulam o movimento corporal, bem como a imaginação dos
participantes, refletindo sobre como o corpo se comportaria em
diferentes cenários (no cotidiano, dentro da água, na lua, envolto
de gelatina, andando de bicicleta, agindo como um robô etc.) e em
diferentes velocidades (desde completamente imóvel até a forma
mais acelerada). Após esta proposta, os participantes serão
estimulados a se movimentarem pelo espaço, guiando seus
movimentos através de diferentes ritmos musicais, da valsa ao
samba, passando por músicas sugeridas pelos próprios
participantes. Ao final da atividade, faremos um momento de
relaxamento e percepção corporal, com atividades direcionadas a
62

concentração e respiração, além de dialogar sobre a experiência


da atividade.

Tabela 5 - Roteiro da quinta oficina: Atividade de Isogravura


Oficina 5
Título ATIVIDADE DE ISOGRAVURA
Objetivo: Trabalhar com gravuras possibilita a experimentação e a
introdução dos participantes à conceitos milenares no mundo da
arte, que se sustenta em duas pequenas etapas: a
ilustração/construção da imagem, que permite que o participante
explore o seu lado criativo e expressivo ao construir a matriz, e a
impressão, que explora a experiência da reprodução/multiplicação
da imagem em uma nova superfície. Além disso, a confecção de
um novo material personalizado por suas próprias mãos, com
ilustrações originais, pode enaltecer a identidade e promover a
sensação de orgulho próprio e realização pessoal.
Materiais: Bandejas de isopor (discos para pizza), papel, caneta
esferográfica, rolinhos para pintura, tinta e ecobags.
Metodologia: Iniciaremos a atividade introduzindo os participantes na trajetória
histórica da gravura, apresentando os conceitos e exemplos de
trabalhos desenvolvidos com essa técnica. Após breve conversa,
será distribuído o papel, a caneta e o isopor. Os participantes
serão instruídos a inicialmente planejarem o desenho no papel,
depois replicarão esse desenho no isopor, de forma que o
processo de ilustração cause o “afundamento” da superfície. A
escolha do tema da ilustração será livre. Os participantes irão
aplicar a tinta na bandeja de isopor com o auxílio do rolinho para
pintura. Depois disso, irão colocar a ecobag sobre a bandeja e irão
pressioná-la delicadamente para que se obtenha a impressão. No
final da atividade, iremos conversar sobre a experiência e os
participantes ficarão com as ecobags, feitas por suas próprias
mãos, como agradecimento pela participação e recordação das
oficinas

Ao final das oficinas, tendo consciência que, pela natureza das partidas, em
algum momento seria inviável dar continuidade nas atividades, buscou-se durante
toda a pesquisa uma alternativa criativa que pudesse, de alguma forma, prolongar a
minha colaboração com a Residência e retribuir a contribuição e disponibilidade dos
moradores. Essa intervenção artística aconteceu através da criação de um mural,
melhor detalhado no capítulo 4.7, para que, seguindo os ideais e objetivos desta
dissertação, os moradores pudessem ter um espaço para se expressarem.
63

3.2. A escrita em cartas

Para se registrar os atravessamentos que aconteceram durante a realização


das oficinas, a metodologia escolhida se baseia em uma escrita ensaística, ordinária
e epistolar, em outras palavras, uma prática narrativa e reflexiva muito próxima da
escrita em cartas. Seguindo a ideia do diário de campo, para a coleta e o registro dos
pensamentos e observações que surgem durante as atividades, era necessária uma
metodologia flexível, que contemplasse as minhas percepções de forma válida, sem
que fosse necessário justificar ou comprovar todas essas sensações.
Muitas vezes dentro da academia, para legitimar uma pesquisa, espera-se
dados científicos, números, fontes. Em “O que é filosofia?” (1996), Deleuze e Guattari
argumentam que não há uma hierarquia entre filosofia, ciência e arte. Explicam que a
filosofia atua com conceitos, a ciência opera com funções e a arte trabalha com
sensações, planos tão distintos, mas igualmente importantes, podendo ser explorados
a partir de uma mesma estratégia. Desta forma, ao adentrar o mundo da arte, criadora
de sensações, se trabalha com um composto de perceptos e afectos, que segundo
suas palavras:

“Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado


daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou
afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles.”
(DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 213)

De modo bastante simplificado, compreendo que os perceptos são o conjunto


de sensações que vão além daquele que a sente e, por isso, se diferencia de
percepção. Assim como um livro pode descrever sensações que seu autor nunca
sentiu, podendo ser sentidas de forma diferente por cada pessoa que o leu e que,
mesmo se não for lido, seguirão existindo. É mutável, é eterno, impalpável. De modo
que não há perceptos sem afectos. Para mim, os afectos são a força de mudança,
esse devir nos encontros que transborda, uma transformação de sensações que não
se limitam ao humano, é algo que atravessa os seres. Esse “algo” é a sensação que,
segundo os autores, é uma zona de indeterminação, de indiscernibilidade e, talvez por
isso, sejam tão complexos de explicar.
Mas por que falar aqui de termos tão complexos? Justamente porque a
observação qual se baseia esta pesquisa lidará com complexidades, lidará com as
experiências humanas, as sensações, a expressividade. E para relatar todas essas
64

complexidades, necessita-se de uma metodologia versátil, porém eficaz e de extrema


potência. Abrir mão da roupagem acadêmica fria, distante e racional, e escolher
produzir um gênero predominantemente expositivo, narrativo e reflexivo torna possível
adentrar com maior facilidade no mundo do sensível, um espaço potente de invenção
autoral do registro.
O filósofo e educador Jorge Larrosa (2019) considera que a experiência é o
processo pelo qual as coisas nos passam, nos acontecem, nos tocam. Os
acontecimentos que envolvem a minha pesquisa estão diretamente relacionados às
experiências, ao que foi vivenciado, sentido, tocado por mim e por aqueles que se
emaranharam a mim. E agora também a você que lê este trabalho, já que “ninguém
pode aprender com a experiência de outro a menos que essa experiência seja de
algum modo revivida e tornada própria” (LARROSA, 2019, p. 32). Vê-se então a
importância de registrar as experiências vividas com a fluidez narrativa que a escrita
ensaística, ordinária e epistolar permite. Para que a minha experiência possa ser
agora lida, revivida e se tornado um aprendizado que agora é compartilhado com você.
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4. Resultados e reflexões: “Cartas para (os) nós”

O sentimento no qual escrevo essa carta, aflora um dia antes da primeira oficina.
São pensamentos em um momento de espera, de planejamento e confesso que me
sinto um pouco ansiosa. A experiência de mediar uma atividade artística, que espero
ser construída e celebrada coletivamente, traz consigo tamanha responsabilidade e
comprometimento. Com a correria cotidiana, acabei me esquecendo da sensação de
um “fazer” artístico que não depende de uma finalidade, que não me seja demandado,
tampouco tenha um propósito avaliativo. Além disso, por ser formada em cinema e
atualmente trabalhar mais ativamente com o audiovisual, minhas práticas acabaram
se distanciando um pouco das artes plásticas, linguagem que algumas das atividades
das oficinas propõem.
Diante dessas inseguranças e inquietudes, principalmente por causa da minha
singela experiência com a tinta, que será um dos materiais base para a oficina de
amanhã, senti que precisava me reconectar com o “fazer” artístico de alguma forma.
Assim, em plena madrugada, sem muitos recursos à disposição, decidi tonalizar meu
cabelo. Sei que não foi convencional, mas foi tão gostoso experienciar novamente a
adrenalina do descontrole e contemplar a nuance das cores impregnadas nas minhas
mãos como terra, pelo tom acobreado que tenho usado. Observar os respingos que
manchavam as paredes. Tomar um banho, sentir a água na pele, ouvir os barulhos
da noite, perceber a vida acontecendo ao meu redor. Um ato simples, tão pequeno,
que me auxiliou a entrar nesse estado potente dentro do meu processo criativo, e que
ganha ainda mais força ao escrever essa carta.
A ideia de escrever este capítulo em cartas surgiu a partir dos diálogos com a
minha orientadora sobre Jean-Georges Noverre e sua obra Cartas Sobre a Dança, na
qual são trazidas inquietações sobre ser professor e sua postura enquanto mestre de
balé, diante da necessidade de um olhar mediador mais sensível (MONTEIRO, 1998).
Escrever sobre esse estado de espera, as reflexões que se passam aqui, numa busca
de poder contribuir com a melhor experiência possível, me alivia e me torna mais
potente. Quase como um respiro calmo, mas forte em meio ao caos. Um dos
incontáveis desdobramentos da arte.
Quando comecei a pensar sobre a metodologia da escrita em cartas, fiquei me
questionando sobre quem seria o destinatário. Num primeiro momento, pensei em
escrevê-las apenas para mim, sem um destinatário ao certo, com o intuito de organizar
66

meus pensamentos que, assim como a minha arte, surge e flui em um ritmo frenético
e fugaz. Mas conforme essas palavras surgem, percebo que não são cartas para mim,
são cartas para nós, artistas e mediadores que se preocupam em propiciar momentos
potentes e sensíveis para que as trocas aconteçam. Independentemente do motivo
que te trouxe aqui, as nossas linhas acabam por se entrelaçar, formando mais um nó
nessa grande trama da vida. Não somos mais quem éramos, a arte acaba de
possibilitar que esse encontro de mundos aconteça e nós renascemos deste encontro.
Nesse sentido, Freire (2011) pontua que o educador precisa ter a consciência de
que sua atuação parte do inacabado, do constante aprendizado, da reflexão crítica
sobre a sua prática, com comprometimento e respeito pelo ato de educar sem nunca
deixar de aprender, em uma jornada recíproca e coparticipativa (FREIRE apud
BORBA, 2013). E por isso, a pessoa que sou hoje vê imensa importância em falar
sobre os processos e sentimentos que antecedem as atividades de um mediador.
Todo o planejamento, preparação e entrega para garantir que o ambiente seja propício
para que as trocas aconteçam. Sinto-me verdadeiramente uma mediadora quando
tenho a segurança de que usei minhas melhores ferramentas para construir as
atividades que me proponho, criando assim um espaço de trocas. E é diante do desejo
de me tornar uma mediadora consciente, que reflete sobre sua atuação, bem como
os desdobramentos que dela surgem, que escrevo essas cartas.
67

4.1 Oficina 1: Atividade de Autorretrato

A primeira oficina trouxe consigo toda a energia de expectativa, na espera de um


bom resultado, me obrigando a constantemente relembrar que todos os resultados
fazem parte de uma experiência artística.
Para mim, o momento de mergulho que ajudou a imergir nas atividades foi o
momento de organização da sala. Assim como afirmei na carta anterior, tenho me
sentido potente quando tenho a segurança de que dei o meu melhor para mediar a
atividade, com o comprometimento e respeito que a atuação exige. Por isso, iniciei o
processo da oficina com a organização dos materiais e a distribuição das mesas e
cadeiras na sala 113 do bloco A do Centro de Artes. Desmontei a configuração
clássica de fileiras em que a sala se encontrava e criei um ambiente em “U”, para que
as trocas acontecessem mais naturalmente. Deixei sobre a maior mesa todos os
materiais necessários para a atividade, de forma que eles ficassem bem convidativos
(Imagem 5).

Imagem 5 - Organização dos materiais

Me dirigi até a entrada do prédio e encontrei os moradores do abrigo, com quem


tenho desenvolvido aproximação ao longo deste estudo, sentados na recepção me
esperando. Assim que me viu, a moradora “M” se levantou e correu para me abraçar.
Ainda abraçadas, ela me relatou que sentia muita falta de ambientes assim, porque
sentia muita saudade de uma tia que trabalha no Tholl, um grupo circense da cidade
bem conhecido na região. Essa situação foi muito inesperada para mim,
principalmente porque no momento das entrevistas a moradora “M” não tinha
demonstrado muita abertura para conversar comigo e tinha se mostrado muito
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apreensiva durante todo o processo. Conversamos um pouco sobre como estava


sendo essa experiência para ela e ela relatou que estava bastante empolgada, me
perguntou se eu conhecia a tia dela, em alguns momentos me chamava por outros
nomes, ela parecia se confundir um pouco sobre quem eu era, misturando algumas
informações com memórias antigas.
Ainda é uma linha tênue pra mim, dosar a atenção de forma individualizada sem
permitir que os outros se sintam excluídos, principalmente nesse contexto em que
essas pessoas se mostram bastante carentes e acabam disputando a minha atenção.
Por isso, a escutei e a acolhi nesse turbilhão de lembranças e sentimentos, mas
rapidamente me aproximei dos outros moradores para dar as boas-vindas. Eles
pareciam um pouco agitados. Para o primeiro dia, quem acompanhou os moradores
para a realização das atividades foi o Helton, o psicólogo. Ele relatou que houve
alguns problemas com o ônibus da prefeitura que, a princípio, iria trazer os moradores
até o Centro de Artes e por isso eles vieram com o ônibus circular. Ouvindo o relato,
eles começaram a me contar que um caminhão tinha “fechado” o ônibus que eles
estavam e arrancado o retrovisor, então entendi o que tinha causado tal agitação. Para
não perdermos muito tempo, os convidei para nos dirigirmos até a sala em que
aconteceriam as atividades. Fui apresentando o trajeto entre os prédios em um passo
bem calmo e não pude deixar de observar os olhares curiosos que corriam para dentro
das salas. Alguns relataram ter medo de escadas e por isso escolhemos subir os
andares de elevador. Os instiguei a observarem as diversas intervenções que o
elevador possui, cheio de adesivos, rabiscos e cartazes.
Chegando na sala, disse para eles que se sentassem onde quisessem, se
organizando da forma que achassem melhor. Alguns não pareciam muito empolgados
e se sentaram mais distantes, outros mostraram maior interesse e logo se
aproximaram da mesa de materiais. Comecei a explicar sobre algumas opções.
Demonstrei o uso da aquarela, falei um pouco sobre o nanquim, tentei apresentar
diferentes usabilidades através dos diferentes materiais. Pouco a pouco eles foram
escolhendo os materiais e se sentando. Imagino que por serem materiais mais
convencionais, nenhum trouxe muito interesse. É frustrante para o mediador quando
a atividade parece desinteressante. Eu tinha passado muito tempo me planejando
para aquele momento que, aparentemente, se mostrava tedioso. Talvez a escolha de
deixá-los livres para escolher como realizar a atividade nesse primeiro momento, com
o mínimo de interferência, tenha causado isso. Embora a falta de direcionamento para
69

uma temática específica ou a não imposição de uma finalidade possa tê-los deixado
dispersos, quando me lembro que a atividade se propõe a plena experimentação dos
materiais com enfoque na experienciação artística, volto a acreditar que essa tenha
sido a melhor escolha para iniciar a oficina.
A moradora “M” me perguntou se poderia usar suas mãos para pintar com a tinta
guache e, enquanto todos os outros se aventuravam fazendo desenhos de casas,
corações e pessoas, foi esse breve momento foi que me fez sentir confiança
novamente. Não me entenda mal. Não é que eu não estivesse animada com tudo o
que todos os outros estavam fazendo. Pelo contrário, eu fiquei muito animada em ver
como eles estavam se empenhando em experimentar as novas tintas e materiais. Mas
foi tão empolgante acompanhar aquela moradora, que até então estava sempre tão
cabisbaixa e indiferente, mergulhando seus dedos nos pequenos potes de guache e
lambuzando aquelas folhas com cores e mais cores, num movimento bastante
sensorial da experimentação.
Segui acompanhando os demais participantes em suas atividades. O morador “B”
optou por trabalhar com lápis de cor, por ser o material que já tinha maior intimidade,
e se dedicou ao mosaico multicolorido em hachura, sua marca registrada (Imagem 2).
A moradora “AM” disse que gostava de trabalhar com tinta e pediu ajuda com as
aquarelas. A moradora “LI” não demonstrou muito interesse num primeiro momento,
relatou estar com dor de cabeça, mas depois de observar o trabalho dos colegas, se
aproximou e começou a perguntar sobre o uso da aquarela também. Depois de um
tempo de atividade, ela começou a ficar mais sorridente e passou a escrever palavras
como “paz” e “luz” nas cartolinas coloridas (Imagem 6). Conversamos um pouco e ela
me disse que se sentia melhor. Busquei sempre incentivá-los com doses de elogios
para cada pequeno resultado, sempre evitando que alguém se sentisse excluído.
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Imagem 6 - Mosaico multicolorido em hachura do morador “B”


e desenho de uma flor com a palavra “paz” da moradora “LI”

Quando percebi que o momento já tinha rendido ao máximo e que a atividade


estava ficando um pouco tediosa, disse para eles que traria uma surpresa. Peguei
então os espelhos e comecei a distribuí-los sem ainda explicar a atividade. Quando
eles viram o que era aquele objeto, alguns se mostraram envergonhados e
começaram a rir, alguns diziam “ah não” em meio a gargalhadas. Era justamente o
impacto que eu esperava.
É engraçado observar como a autopercepção quando compartilhada traz consigo
tamanha vergonha, estranheza, insegurança. Saber que a Residência não dispõe de
muitos espelhos me leva a entender como o simples contato com o próprio reflexo
poderia gerar tamanho desconforto. Lembro-me agora da dissertação “Identidades
submersas: uma análise do cárcere feminino como crônica visual”, de Renata Aguiar
Rodrigues, que discorre sobre a ausência de espelhos no sistema penitenciário e
propõe a percepção da autoimagem através da fotografia e aponta:

O exercício diário e corriqueiro de se ver, quando negado por período


estendido, pode gerar déficit da autoimagem, já que o corpo e a aparência se
modificam com o tempo, podendo levar esse déficit a um esfacelamento da
própria identidade; a mudança que o corpo sofre por ação do tempo não pode
ser percebida e a memória que se tem de si distancia-se cada vez mais da
imagem presente na própria corporeidade, que não pode ser constatada,
apenas intuída. (RODRIGUES, p. 10, 2013)

Sendo assim, não é difícil de compreender a lógica da ausência de espelhos nas


instituições totais. Mesmo sabendo que a Residência não se enquadra em totalidade
nessa categoria e conhecendo todos os esforços que a equipe de funcionários da
Residência faz para que o ambiente seja minimamente individualizado, algumas
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heranças e sintomas dessas instituições são inevitáveis. Nessa perspectiva, a perda


do contato com a própria imagem pode significar a perda de um referencial identitário,
da percepção de si, claramente importante na constituição biopsicossocial do
indivíduo. Assim, essas micro agressões auxiliam no apagamento identitário, que
serve de munição para um sistema que disciplinariza e dociliza os corpos. Essa parte
da atividade foi pensada exatamente como uma oportunidade de romper essa
realidade, em uma singela tentativa de recuperar o contato e a autonomia dos corpos.
Para quebrar um pouco aquela tensão inicial e embalando nas risadas que
surgiram, comecei a explicação da atividade de uma forma bem teatral e cômica. Falei
sobre como cada um de nós é único, com nossas características e diferenças tão
bonitas, e comecei a instigá-los a pararem um pouco e olharam para si. Instruí que
eles colocassem as mãos no rosto e pausadamente fui falando partes do corpo para
que eles tocassem e observassem. Orelhas, olhos, nariz, boca, bochechas, cabelos,
marcas de expressão, enfim, todas essas características faciais que nos compõem.
Conforme fui dizendo as palavras e eles tocavam seus rostos, riam e comentavam
algumas características. Muitas vezes também eles olhavam para os lados para
observar as características do outro, e riam da experiência.
Estava um momento leve e descontraído, o Helton participou durante toda a
atividade e me ajudou a incentivá-los nesse momento de autoconhecimento. Quando
já tínhamos percorrido todo o rosto, pedi para que eles abaixassem o espelho e
fizessem um autorretrato. Alguns se animaram e outros ficaram um pouco
desconfortáveis, afirmaram que não conseguiriam, mesmo quando eu afirmava que
não existia “desenho bonito e desenho feio” e que eu poderia ajudá-los se fosse o
caso. Não era uma reação que eu esperava, mas agora vejo como era provável de
acontecer. Olhar para si não é uma proposta tão simples como parece, principalmente
levando em consideração todos os anos de invisibilidades que as instituições
causaram nessas pessoas. Por isso, quando comecei a sentir certa relutância, afirmei
que não teria problema em não fazer o autorretrato e que poderiam usar esse tempo
para fazer outro desenho, se fosse o caso. A maioria participou.
Ao fim da atividade, conversamos sobre a experiência e eles relataram ter gostado
da proposta. Percebi que muitas vezes eles respondiam de forma bem automática. Às
vezes tentava instigá-los a responder se não haviam gostado de algo, se tiveram
algum incômodo durante a atividade, mas em grande maioria tive a resposta de que
“foi legal”.
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Surgiram autorretratos bem variados, alguns só do rosto, outros de corpo inteiro,


alguns com acessórios no cabelo, outros menos detalhados (Imagens 7 e 8). Mas vale
pontuar que meu objetivo com essas atividades não tem enfoque em analisar essas
obras, tampouco os impactos da minha atividade em suas realidades enquanto
pessoas com sofrimentos psíquicos, mas sim, proporcionar esses espaços seguros
para que as experiências aconteçam através da arte.

Imagem 7 - Autorretrato de uma moradora

Imagem 8 – Autorretratos diversos


73

Imagem 9 - Sala ao final da atividade


74

4.2 Oficina 2: Atividade de Modelagem

Me senti um pouco mais empolgada e mais tranquila pra essa segunda oficina. O
Helton tinha me confirmado mais cedo que dessa vez estava tudo certo com o ônibus
da prefeitura, que tinha ficado encarregada pelo transporte do grupo até o Centro de
Artes. Somado a isso, nesse momento, eu também já conhecia melhor o espaço em
que a atividade aconteceria, estava mais confiante na minha atuação e tinha a
hipótese de que a argila se mostraria mais interessante para os moradores.
Novamente, fui com antecedência até o Centro de Artes e organizei a sala com
muito carinho e atenção aos detalhes. Disponibilizei alguns elementos que pudessem
ser usados para interagir com a argila, como garfos, espátulas, palitos de churrasco,
algumas colheres e garfos. Levei também copinhos descartáveis caso fosse
necessário umedecer a argila e panos para limpar as mãos e superfícies.
Quando estava finalizando a montagem do ambiente, recebi a ligação do Helton
para informar a chegada dos moradores no local. Desta vez, quem os acompanhou
foi outra educadora, Carmen, que se apresenta muito sorridente e pergunta: “É você
a responsável pela atividade com essa galerinha aqui?”. Rimos, nos apresentamos,
cumprimentei os moradores e conversamos um pouco enquanto nos deslocávamos
até a sala.
Chegando no local da oficina, os moradores pareciam curiosos para saber qual
seria a atividade, imagino que essa expectativa sobre qual vai ser a “oficina do dia”
pode se tornar interessante com o tempo. Entrando na sala, estavam na mesa apenas
os materiais de apoio e, com calma, comecei a tirar dos blocos de argila da sacola e
revelar o que faríamos nesta atividade. Eles se questionavam em voz alta e tentavam
identificar o que seria aquele material na minha mão. Perguntei se eles gostavam de
mexer com argila e alguns prontamente disseram que sim, enquanto outros
pareceram indiferentes. Pedi para que eles se sentassem e se organizassem
livremente e distribuí algumas folhas para proteger minimamente as mesas.
Iniciei a atividade entregando os blocos de argila e comecei a falar um pouco sobre
o material. A partir de uma perspectiva freiriana, no intuito de aproximar o material da
realidade dos moradores e proporcionar uma atmosfera de maior intimidade, comecei
a falar sobre as semelhanças da argila com o barro e sobre como ela pode ser
facilmente encontrada nas encostas e leitos de rios. Depois, expliquei sobre a
75

necessidade de sovarmos o material antes de iniciarmos a modelagem, retirando o ar


de dentro dela para deixa-la mais maleável e uniforme.
Utilizei esse momento para incentivá-los a manusear a argila e sentir sua textura.
Nenhum dos moradores mostrou resistência em tocar no material. Para descontrair e
aliviar a tensão, que sempre parece presente no início das atividades, brinquei que a
sova da argila é o momento que os artistas usam para descarregar os sentimentos
“ruins” e sugeri que eles usassem o momento para se libertarem de qualquer
incomodo ou situação desconfortável do dia. Instruí-los a batê-la na mesa, apertá-la e
amassá-la como no fazer do pão. Eles se mostraram bem empolgados e começaram
a interagir com o material.
Assim como na oficina da semana anterior, separei o primeiro momento para a
livre experimentação do material, sem propostas ou interferências. Observei que um
morador modelou um sol, outro criou uma flor, outros se mostraram um pouco
inseguros, então eu sugeri que experimentassem modelar uma “cobrinha”, uma das
formas mais simples de manusear o material. A moradora “M”, tal qual na oficina
passada, me surpreende com a forma que interage com o material e começa a enfiar
seus dedos na argila. Em alguns momentos, aplicando bastante pressão e deixando
alguns buracos cravados no material, em outros, de forma bem suave, ficando apenas
marcas de unha e leves depressões (Imagens 10 e 11).

Imagens 10 e 11 - moradora “M” manuseando a argila

Pude observar que, em ambas as oficinas, os momentos que separei para que os
moradores ficassem mais à vontade para criar algo a partir da proposta, acabavam
deixando-os confusos, talvez diante de tantas possibilidades. Lembrei-me, assim, da
primeira entrevista que fiz com o Helton, em que ele comenta que grande parte dos
moradores tiveram suas vidas quase que integralmente tuteladas. Diante do contato
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que tenho construído com essas pessoas, não é difícil de assimilar o porquê de haver
certa resistência em lidar com a autonomia e a liberdade de escolha. Vivendo em um
ambiente em que até as refeições lhes são determinadas, realmente é compreensível
o dilema.
Evidencia-se aí, a importância de o educador/mediador/pesquisador conhecer a
realidade em que está se inserindo. Assim como Freire (1996, 1983, 2011) afirma que
para se construir uma educação libertadora e emancipadora, é essencial que se
entenda primeiro a realidade e o entorno do educando, assim também se potencializa
o trabalho do artista/mediador em suas atividades. As ideias de Freire surgem aqui
em concordância com a definição de mediador cultural de Nascimento (2018)
apresentada no primeiro capítulo deste trabalho. Ora, se no campo da arte o mediador
trabalha como uma ponte entre a obra e seu público, ou, como no meu caso, um
criador de oportunidades para que a democratização da arte aconteça, conhecer o
contexto em que suas atividades estão sendo inseridas, não apenas potencializa,
como também auxilia na escolha das ferramentas e métodos das práticas artísticas.
Tendo observado também que na atividade anterior o momento de
experimentação livre do material acabou se estendendo um pouco, deixando os
moradores levemente dispersos, dessa vez decidi reduzir o tempo para essa etapa da
atividade. Assim, quando os moradores começaram a ficar agitados, passei para o
segundo momento da oficina, propondo que eles modelassem algum personagem
para usarmos na atividade da próxima semana.
Diante das observações que acabo de citar, com o propósito de auxiliá-los na ideia
um tanto quanto genérica de se criar um personagem, mas com o cuidado de não os
persuadir ou manipular a um resultado, argumentei que esse personagem não
precisava ser necessariamente uma pessoa, que poderia ser um animal, uma planta
ou até mesmo um alimento que gostassem. A tática foi efetiva. Começaram a surgir
alguns bonecos, um peixe, algumas cobras, o oceano e até mesmo um ovo frito
(Imagens 12 e 13).
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Imagem 12 e 13 - Peças modeladas durante a atividade

E o ovo frito de uma moradora, incitou a criação de um hambúrguer por outro


morador, que levou à modelagem de um tomate, que os lembrou da alface, batata
frita, o pão... que assim se estendeu em uma criação colaborativa do que chamamos
de “bauruzão”, uma pilha de placas de argila nada realista que vários moradores
puderam contribuir e que, no fim da atividade, tinha se tornado um momento criativo
e coletivo entre todos (Imagem 14).

Imagem 14 - Bauruzão

Depois de certo tempo, alguns moradores começaram a relatar que estavam se


sentindo cansados, mas como tínhamos marcado um horário mais distante para o
retorno do ônibus, ainda teríamos que esperar por quase uma hora. Aproveitando
então o momento e seguindo a temática da oficina, convidei os moradores e a
educadora para conhecerem Ateliê de Cerâmica, no qual estava acontecendo uma
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atividade prática da disciplina Cerâmica I, do curso de bacharelado em Artes Visuais,


ministrada pelo professor Paulo Renato Viegas Damé. Ao perceber nossa
movimentação na porta, o professor Paulo Damé gentilmente nos convidou para
conhecer o espaço. Entramos, e eles logo se dispersaram pela sala. Alguns
observavam a execução das atividades, conversando e fazendo perguntas para os e
as estudantes. Outros me acompanhavam enquanto eu exibia algumas das peças
queimadas que ali estavam. Os moradores ficaram bastante impressionados com os
detalhes e a variedade das peças queimadas. Mostrei para eles o tanque de barbotina
e expliquei sua funcionalidade na cerâmica. Consegui ouvir a moradora “M” dar
sugestões referentes a modelagem para uma das estudantes. É interessante relatar
que em nenhum momento eu fiz a apresentação dos moradores, então, toda essas
interações simplesmente fluíram de forma natural, sem que nenhum rótulo fosse dado.
Ficamos ali por um tempo, observando as atividades e depois os conduzi até o
forno artesanal, localizado na saída do Ateliê, no qual algumas peças são queimadas
todos os anos. Eles se mostraram bastante interessados enquanto eu falava.
Para aproveitar o tempo que ainda se excedia, continuei a apresentação dos
prédios que compõem o Centro de Artes levando-os para conhecer o bloco 2, no qual
acontecem aulas dos cursos de cinema, dança, música, teatro, design, entre outros.
Como tínhamos bastante tempo, andamos bem calmamente entre os corredores,
enquanto eu falava um pouco sobre os cursos e as aulas que lá acontecem.
Começamos pelo quinto andar, onde acontece a maior parte das aulas práticas de
música e era possível ouvir alguns instrumentos. Pedi para que eles me dissessem
quais instrumentos conseguiam reconhecer conforme passávamos pelas portas. A
bateria estava em bastante evidencia no começo do corredor e, ao reconhecerem, a
educadora Carmen nos surpreende dizendo que também sabia tocar bateria.
Seguimos andando pelo corredor até chegar na última porta, bem escondida, da
qual era possível ouvir o som de um piano. Paramos e ficamos em silêncio por alguns
minutos, apenas ouvindo a peça. Nesse momento, a moradora “AM” sussurra para
mim: “A música toca na alma né? Lá dentro, chega a dar arrepio. Eu gosto muito de
música, até me emociono”. Conversamos por um tempo e logo seguimos o percurso,
descendo andar por andar, olhando as salas e conhecendo o espaço. Aproveitei o
momento para falar que a Universidade é pública e que eles podiam se sentir sempre
convidados a entrar e usufruir do espaço. Comentei brevemente sobre as cotas para
pessoas com deficiência e falei sobre a importância de tê-los naquele espaço.
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Chegando no térreo, uma moradora perguntou se eles podiam esperar sentados no


sol, então caminhamos até um espaço na entrada do prédio, que possui grama. Nos
sentamos ali, no chão, e ficamos conversando um pouco sobre nossas vidas,
relacionamentos e sobre as atividades que eu estou realizando com eles. Logo depois
chegou o ônibus e assim se encerrou mais um dia de atividade.
80

4.3 Oficina 3: Atividade de Stop Motion

A terceira oficina, a que eu mais esperava, a única que realmente trabalha com a
minha área de formação. Esta terceira oficina foi sobre o Cinema de Animação e, em
uma brincadeira gostosa do destino, aconteceu no dia do meu aniversário. Assim
como nas outras vezes, iniciei o mergulho na atividade através do preparo da sala.
Dessa vez de um modo um pouco diferente, com telão, projetor e caixa de som.
Comprei algumas pipocas doces e salgadas, além de um refrigerante. Foi dia de festa!
Recebo a notificação de que os moradores chegaram.
Para minha surpresa, desta vez, outra educadora acompanhou a atividade, a Rita.
Me apresentei para ela e cumprimentei os moradores que, mais uma vez, chegavam
com certa agitação. A moradora “M”, assim como em outra vez, se levanta e corre
para me abraçar. Então, ela me relata que uma das moradoras havia “fugido” da
Residência, mas a educadora logo pontua que, na realidade, agora ela estava
morando com os pais. Alguns dos moradores se mostraram um pouco abatidos com
o surgimento do assunto, principalmente os que, ao longo do tempo, observei terem
uma ligação mais próxima com a moradora que se mudou. É muito importante que o
mediador esteja constantemente atento com o que acontece ao seu redor, para
minimizar ou contornar possíveis situações de descontrole, principalmente quando se
está lidando com realidades tão sensíveis e mudanças tão bruscas de humor quanto
as que venho observado. Essa percepção surge da minha experiência de convívio
com uma pessoa autista e a partir das recomendações do Helton. Tentei, então, mudar
um pouco a atenção do assunto e perguntei para a educadora se ela já conhecia o
Centro de Artes. Ela me relembra que chegou a cursar Artes na UFPel e passamos a
conversar um pouco sobre o prédio enquanto nos deslocávamos até a sala.
Chegando na porta, faço um pequeno mistério e digo que tenho uma surpresa
para eles. Eles estavam meio abatidos, mas quando abri a porta e eles viram as
comidas sob a mesa, vibraram sem parar. A moradora “AL” me abraçou de forma
bastante espontânea, o que me deixou muito surpresa. Pedi para que eles se
organizassem nas cadeiras e avisei que a atividade do dia teria início com uma sessão
de filmes em animação. Mais uma vez eles vibraram. Por fim, os comuniquei que era
o meu aniversário e eles ficaram boquiabertos. Alguns se levantaram e vieram me
abraçar, e aproveitei o momento para começar a distribuir as pipocas e servir o
refrigerante.
81

O filme escolhido foi “Shaun, O Carneiro: A Fazenda Contra-Ataca” (2019), uma


animação em stop motion sem falas, que ilustra bem a técnica e é acessível para
todos os públicos (Imagem 15). Com um enredo simples, engraçado e emocionante,
aborda temas como a amizade, a família e o medo do desconhecido. Depois de todos
terem se acomodado, me sentei junto a eles e começamos a assistir. (Imagem 16)

Imagens 15 e 16 - Exibição do filme “Shaun, O Carneiro: A Fazenda Contra-Ataca”

Passado um tempo, percebi que minha cadeira estava levemente na frente da


moradora “M”, e quando me desculpei, ela respondeu: “Não tem problema. Eu gosto
quando você fica do meu lado”. Pode parecer bobagem relatar esse tipo de comentário
em uma dissertação, mas para mim, nada tem sido mais gratificante do que essa
aproximação com os moradores e os laços que temos criado ao longo das atividades.
Principalmente se levarmos em consideração o quanto eles têm gradativamente se
aberto para as minhas propostas e para minha presença. Não existe uma unidade de
medida para as relações, tampouco uma quantificação universal sobre os impactos
da arte na vida de uma pessoa. Então quando se adentra em temas que abordam
tamanha sensibilidade, se torna difícil de mensurar seu êxito. Por isso, tenho tentado
sempre ressaltar aqui todos esses pequenos comentários que recebo e todas as
percepções que tenho tido ao longo das atividades; para que na união de todos esses
relatos, a minha pesquisa possa contribuir minimamente com qualquer outro
pesquisador/artista/mediador que, assim como eu, vê a arte como uma potente
energia que emana dos encontros.
Quando o filme terminou, pausei a reprodução em uma imagem que pudesse
ilustrar a técnica do stop motion. Evidenciei para eles o uso dos materiais e expliquei
toda a mecânica por trás da produção. De forma bem sucinta, stop motion é uma
técnica relativamente simples, que se baseia essencialmente na captura de uma foto
82

a cada movimento do objeto. Os movimentos devem ser bem delicados, apresentando


uma pequena mudança a cada foto. Quando essas fotos são colocadas em sequência
em uma certa velocidade, é possível visualizar o objeto em movimento. Atualmente,
existem diversos aplicativos gratuitos para celular que tornam esse processo ainda
mais fácil e acessível. Para a realização da oficina, eu utilizei o aplicativo Stop Motion
Studio (Imagem 18). Por se tratar de uma mecânica bem simples, essa atividade pode
ser aplicada com diversos públicos.
O plano inicial era criarmos pequenos filmes a partir das peças em cerâmica
modeladas por eles na oficina anterior, contudo, a argila seca é um material
relativamente frágil e a forma como algumas das peças foram modeladas poderiam
acabar se desfazendo com o excesso de toques que a técnica necessita. Sendo
assim, levei para a atividade alguns brinquedos meus e os distribuí na mesa para que
os moradores escolhessem seu protagonista (Imagem 17).
Num primeiro momento, eles estavam um pouco dispersos, mas me olhavam
atentos enquanto demonstrava o passo a passo. Tentei utilizar frases simples como:
“mexe um pouquinho, tira a foto, mexe um pouquinho, tira a foto...” para que a
repetição tornasse o processo mais simples de compreender. Fui chamando e
instruindo um a um sobre a atividade, enquanto os outros assistiam. Depois que o
primeiro morador executou a dinâmica, todos se agruparam para ver o resultado. Ao
ver o movimento, eles vibravam, falavam “uaaau” e se mostravam maravilhados. É
uma atividade extremamente simples e potente de ser realizada. Depois disso, eles
disputavam sobre quem seria o próximo a realizar a atividade e aumentavam a
quantidade de personagens em cena.
No geral, a maior dificuldade foi a compreensão de que as alterações entre um
movimento e outro precisavam ser bem delicadas, caso contrário, o personagem
parecia se teletransportar de um ponto a outro. Com o tempo, os moradores que
entenderam essa dinâmica com mais facilidade, ajudavam os que tinham maior
dificuldade. Ao final, tivemos 8 vídeos, com cerca de 2 a 4 segundos de animação
cada, disponibilizados de forma pública no YouTube e que podem ser acessados pelo
link: https://youtube.com/playlist?list=PL2Gv_xiwycxgsJYkFjEKCIWHKSmVYxtAk.
Esta atividade foi muito bem recebida pelos moradores. Talvez essa adesão se
dê ao fato de que eles são bem jovens, de modo que uma atividade artística tão atual
e que envolve tecnologia se torne bastante interessante. A oficina encerrou com um
dos moradores iniciando o “Parabéns pra você” e me deram um abraço coletivo.
83

Imagem 17 - Brinquedos disponibilizados para a oficina

Imagem 18 - Print do aplicativo Stop Motion Studio


84

4.4 Oficina 4: Atividade de Dança/Música/Teatro

Confesso que criei certa expectativa para a oficina de hoje, já que nas entrevistas
individuais com os moradores, a música foi uma linguagem artística bastante citada e
exaltada. Logo no começo do dia o Helton me manda uma mensagem avisando que
tiveram algum problema com o ônibus e que estavam buscando outros meios de
comparecer na oficina. Com isso, achei mais prático me deslocar até a Residência e,
desta vez, fazer a atividade lá. Como a atividade envolvia essencialmente o
movimento corporal, levei apenas uma caixinha de som.
Chegando lá, a casa estava bem silenciosa, avistei apenas três moradores
circulando pelo espaço, alguns estavam na escola e outros estavam dormindo. Uma
educadora disse que tinha acontecido uma briga bem agressiva entre duas moradoras
e, por isso, também dava para sentir um clima de tensão e irritabilidade. Inicialmente,
isso me preocupou um pouco com a dinâmica da oficina, mas depois de refletir, notei
que uma atividade que envolve dança, teatro e música poderia ser bastante potente
para aquele momento.
Uma das vantagens de a atividade de hoje ter acontecido na Residência, é que os
moradores que antes não participavam por apresentarem alguma dificuldade motora
ou relacionada ao seu sofrimento, desta vez puderam comparecer. Convidei os
moradores que ali estavam para participar da proposta e tive o auxílio da educadora
para levar a moradora “LS” até o refeitório, onde aconteceria a atividade. A moradora
“LS” apresenta um grau mais severo de autismo, de modo que a sua comunicação é
em grande parte não verbal. Contudo é muito perceptível o quanto ela gosta de
música. Então, ter a sua presença ali conosco foi muito especial para o projeto. Junto
a ela, outros dois moradores aceitaram participar e, quando começamos a organizar
o espaço, um quarto morador acordou e se juntou a nós.
Iniciei a atividade propondo alguns alongamentos. Começando pelo rosto, sugeri
que fizéssemos algumas caretas, mexendo com as bochechas, sobrancelhas, olhos,
boca. Depois, alongando o pescoço, mexendo os ombros, braços, mãos, quadril,
pernas e pés. Tentei fazer todo esse processo com bastante calma, estimulando-os a
sentir seus corpos e os movimentos. A moradora “LC”, que estava participando da
oficina, está atualmente cursando licenciatura em Educação Física, na UFPel, e vi
nisso uma oportunidade de torna-la protagonista da atividade. Então, perguntei para
ela se teria algum exercício de alongamento que ela achasse pertinente para aquele
85

momento. Ela prontamente se dirigiu até o centro, e começou a mostrar alguns


movimentos. Ela explicava, exemplificava, fazíamos o alongamento, contávamos
juntos até 10 e passávamos para o próximo movimento. Todo o tempo ela estava
bastante sorridente, assim como os demais moradores. Reforçando o que foi dito
muitas vezes ao longo deste trabalho, é extremamente importante para este projeto,
que os moradores pudessem se sentir protagonistas nas atividades, podendo utilizar
das práticas artísticas como momento de empoderamento e liberdade, no qual eu
busco ser apenas um canal.
Finalizado os alongamentos, iniciei uma atividade que tinha como proposta alguns
movimentos corporais que experimentassem diferentes qualidades expressivas.
Comecei perguntando para eles como seria uma caminhada “normal”, como eles
andavam no cotidiano. Andamos em círculo por alguns segundos. Depois, questionei
como seria essa caminhada se ela ocorresse na lua e, assim, fui sugerindo cenários
imaginativos que proporcionassem movimentos bem expressivos e com qualidades
de ação corporal diferentes, como a experiência dentro da água, envolto de gelatina,
andando de bicicleta e agindo como um robô. Aos poucos eles foram soltando seus
corpos, tão rígidos, e deixando a timidez de lado. Brincavam entre si. Sugeriam
movimentos.
Tendo corrido um tempo de atividade, quando percebi que eles já estavam mais
à vontade, mais desinibidos, com os corpos mais soltos a partir da atividade realizada,
passei para a proposta que envolvia maior ênfase na dança e na música. Preparei
anteriormente uma playlist com nove músicas, cada uma com um gênero diferente,
para explorarmos um pouco as formas diferentes de se movimentar e de experienciar
os ritmos. A escolha das músicas tinha apenas o critério de priorizar as mais
populares, consagradas no gênero e que fossem, de alguma forma, dançantes. Foram
elas: a) Música clássica: Orquestra de Londres - The Blue Danube, Op. 314; b)
Reggae: Bob Marley - I Wanna Love You; c) Samba: Zeca Pagodinho - Deixa a Vida
me Levar; d) Forró: Rastapé - Colo de Menina; e) Sertanejo: Zé Neto e Cristiano -
Largado às Traças; f) Eletrônica: PSY - Gangnam Style; g) Rock: Nirvana - Smells
Like Teen Spirit; h) Rap: Racionais Mcs - Nego Drama; i) Funk: L7NNON e os
Hawaianos - Desenrola Bate Joga de Ladin.
Assim que coloquei a primeira música, uma valsa clássica, e começamos a
dançar, a moradora “M” teve uma mudança brusca de humor e saiu bastante nervosa
dizendo que não participaria, que não gostava de ouvir “esse tipo de música”. O Helton
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já tinha me aconselhado que, quando situações de crise como essas acontecem, é


preciso saber acolher e respeitar os limites apresentados e, quando possível,
contornar a situação, sem deixar que os outros moradores também fiquem exaltados.
A partir das entrevistas e das vivências na casa, é do meu conhecimento que a
moradora “M” gosta bastante do funk, por isso, eu disse para ela que esse gênero
seria o último da lista e que ela poderia se sentir à vontade para participar quando se
sentisse confortável. Assim, ela preferiu ficar no quarto por um tempo, mas sempre
retornando curiosa para ver o que estávamos fazendo.
Nesse tempo, seguimos com a dinâmica. A moradora “LC” disse que tinha
aprendido a dançar valsa para o seu aniversário e me tirou para dançar. Trocamos os
pares entre os poucos que ali estavam, tentando sempre incluir a moradora “LS” que,
embora sentada, movimentava seu corpo e se balançava conosco. O início da
atividade foi um pouco tumultuado, pois havia muita movimentação na casa com a
chegada das novas estagiárias em psicologia.
Para tornar a dinâmica mais interessante, sugeri que fizéssemos uma variável da
mímica, em que um de nós iria propor uma forma de se dançar o gênero tocado. Um
a um, íamos nos expressando através de alguns passos improvisados. Em alguns
momentos dançamos sozinhos, em outros, em pares, em outros, fizemos passos
coreografados, como em “PSY - Gangnam Style”. O funk sem dúvida foi o gênero mais
apreciado. A moradora “M” retornou nesse momento, participou da atividade e sugeriu
outras músicas de funk para dançarmos, como “Bonde do Tigrão - Cerol na mão”,
“Pedro Sampaio e MC Pedrinho - Dançarina” e “Ludmilla - Cheguei”.
Reservei o último momento da atividade para desacelerar. Depois de tanta
movimentação e agitação, é importante reservar um espaço para relaxamento e
percepção corporal. Ainda em pé, fizemos alguns exercícios de alongamento e
respiração. Depois, ficamos um tempo sentados e eu os instiguei a escutar o que
acontecia a nossa volta. Disseram estar ouvindo os passarinhos cantando, a televisão
ligada, pessoas falando na rua, carros passando. Ficamos um tempo de olhos
fechados, escutando a vida acontecer, e depois conversamos um pouco sobre a
experiência com a atividade. Eles relataram que se divertiram bastante, mas que
estavam cansados, por que não era habitual se movimentarem tanto.
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4.5 Oficina 5: Atividade de Isogravura

Para a última oficina, eu gostaria de produzir com os moradores algum tipo de


material que pudesse ficar com eles como um singelo agradecimento pelos momentos
vividos e construídos coletivamente. Por isso, decidi usar a isogravura, que se trata
da aplicação da técnica da gravura a partir do isopor. Para essa atividade,
combinamos de realizá-la novamente na própria Residência, para que todos os
moradores pudessem participar.
Chegando na Residência, novamente foram poucos os moradores que estavam
disponíveis para a atividade, o que me deixou um pouco aborrecida, já que seria o
encerramento. Mas me concentrei no fato de que a experiência de cada pessoa é
única, então não faria tanta diferença para a proposta estarmos em poucos.
Nos organizamos na mesa, e eles olhavam curiosos para a bandeja de isopor.
Quando comecei a explicar a atividade, a moradora “M” percebeu que seria necessário
fazer um desenho para realizar a transposição do isopor para a ecobag, fato que a
deixou novamente bastante nervosa, dizendo que não gostaria de participar. Não é a
primeira vez que ela age dessa forma quando proponho algo e comecei a perceber
um padrão. De alguma forma, algumas atividades práticas parecem deixá-la nervosa
e ela age como se estivesse constrangida, insegura em não apresentar um bom
resultado. É compreensível que as atividades artísticas possam desencadear esse
sentimento. São séculos de um suposto refinamento e higienismo na nossa sociedade
que, impulsionadas pelo capitalismo, acabam refletindo em uma arte que dita o que é
belo, o que é esperado, o que é exposto nas galerias e quais são os corpos presentes
nos palcos. Não à toa muitos movimentos e artistas tentaram desafiar essa norma.
Seguimos então, em um número ainda menor. Felizmente, novamente foi possível
ter a participação da moradora “LS” que, da sua maneira, passou o tempo da atividade
rabiscando o isopor e interagindo conosco. Os outros moradores também se sentiram
um pouco intimidados em desenhar, sabendo que a imagem ficaria permanentemente
no tecido e, por isso, ofereci ajuda durante toda a confecção. Como éramos poucos,
as educadoras também participaram conosco, ajudando com os moradores e
trabalhando em suas próprias criações.
O morador “B” pediu minha ajuda para escrever seu nome no isopor, afirmando
que aquela seria marca da “empresa” dele, já que ele usaria a ecobag para colocar
suas bijuterias (Imagem 21). A moradora “M” viu que eu realmente estava ajudando
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na confecção das bolsas, desde a ilustração até a aplicação, e decidiu participar


também. A moradora “LI” acordou, se animou quando descobriu que a ecobag ficaria
como lembrança das atividades e também se juntou a nós. Nesse tempo, os
moradores que estavam na escola também chegaram e quiseram participar. E foi
assim que, pela primeira vez em uma atividade, todos os moradores estavam
presentes.
Já que todos os moradores estavam presentes, a atividade tornou-se bastante
colaborativa, de modo que os próprios moradores se ajudavam no processo. Os que
chegaram mais ao final da atividade contaram com o apoio e a experiência dos que já
estavam finalizando.
Foi chegado o momento de “carimbar” o tecido com a tinta. Estávamos todos em
volta da mesa. Disponibilizei duas cores de tinta para que pudessem escolher, vinho
ou marrom. De forma até um pouco cômica, a moradora que estava mais animada em
ser a primeira a realizar a transposição era a moradora “M”, que inicialmente se
desinteressou pela atividade. Todos olhavam curiosos enquanto a “M” fazia todo o
processo de passar a tinta e pressionar o isopor no pano. Sugeri que eles “rufassem
os tambores” e todos começaram a bater com os indicadores na mesa enquanto a
moradora “M” descolava o tecido do isopor.
Para a alegria de todos, deu super certo. A expressão de felicidade da “M” foi
impagável e indescritível. Com a boca aberta, ela ergueu os braços em posição de
vitória e seus olhos brilhavam muito (Imagem 19). Todos ficaram bastante
empolgados e queriam rapidamente executar a sua versão da isogravura.
Percebemos então que as letras ficavam espelhadas com o processo da transposição
e, por isso, refizemos a arte do morador “B” já que ela era exclusivamente seu nome.
Os demais não se importaram com isso e finalizaram a atividade.
Quando encerrei a proposta, ainda fiquei um tempo na Residência, conversando
com os moradores no quintal. O morador “MA”, que estava a poucos dias na
Residência e, por isso, participou pela primeira vez da minha oficina, notou que eu
tinha ido de bicicleta até lá e pediu para andar um pouco. E ali ficamos por um tempo,
alguns sentados na calçada, outros andando de bicicleta, outros correndo atrás da
bicicleta, alguns conversando. Era notável a tranquilidade e a harmonia, como eu
ainda não tinha visto naquele local. Ali senti verdadeiramente o êxito das minhas
atividades. Pude ver a potência libertadora que uma atividade artística tem quando
compartilhada.
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Imagem 19 e 20 - Moradoras comemorando com suas ecobag

Imagem 21 - Auxiliando na construção das ilustrações

Imagem 22 - Morador exibindo sua ecobag


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Imagem 23 - Sacolas produzidas na oficina


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4.6 Aniversário da “M”

Ao final da última oficina, quando eu já estava indo embora, a moradora “M” me


convidou para participar da sua festa de aniversário, que aconteceria na semana
seguinte. Foi um gesto muito gentil da parte dela, eu realmente não esperava. Acredito
que em ambientes assim, toda noção de afeto fica muito evidente. Uma vez que você
adentra esses espaços, formam-se laços muito fortes de carinho e amizade e, por
isso, reservei esse pequeno espaço para relatar brevemente mais um dia vivendo e
convivendo com os moradores da Residência, com todos os desdobramentos que
disso surgiu.
Sabendo de todas as situações de abandono e negligência que essas pessoas
passam, era bastante simbólico me fazer presente. Quando cheguei na festa, a
moradora “M” veio ao meu encontro gritando “Isabela! Eu não acredito que você veio
mesmo!”. Nos abraçamos e fiquei um tempo sentada na sala, interagindo com os
outros convidados.
Então, a moradora “LC” me chama, pedindo ajuda para entender os enunciados
da avaliação online de uma disciplina do curso de Educação Física. Passei ali algum
tempo, lemos os enunciados e, quando a compreensão ficava um pouco prejudicada,
eu sugeria que pesquisássemos o significado das palavras na internet.
Foi interessante observar como ela era ágil em todas essas funções. Ela se
mostrou claramente muito consciente do que estava fazendo, trocando abas,
pesquisando definições, escolhendo sites confiáveis, transitando entre os conteúdos
disponibilizados pelo professor e até mesmo na navegação dentro do ambiente virtual
de aprendizagem da universidade. Quando algumas dificuldades surgiram, foi
necessário apenas que eu dedicasse o meu tempo auxiliá-la com paciência e escuta,
qualidades essenciais a todo mediador.
Gostaria de enfatizar nessa carta que, em poucos minutos, ficou bastante evidente
o quanto ela é capaz e merecedora de frequentar a universidade pública,
exterminando qualquer tipo de julgamento e preconceito muitas vezes direcionado a
uma pessoa em sofrimento psíquico ao utilizar o sistema de cotas. Encerramos a
atividade e ela ficou muito satisfeita com o resultado da avaliação. Reforcei para ela
que aquela nota era totalmente um mérito pessoal, já que meus comentários foram
necessários apenas para a compreensão dos enunciados, não havendo nenhuma
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interferência nos resultados da atividade. Inclusive, tratava-se de um conteúdo muito


distante da minha área de atuação.
Depois disso, nos juntamos aos demais moradores e participamos da festa. Nela
conheci um morador e uma educadora que fazem parte da Residência Inclusiva I,
destinada a pessoas idosas na mesma condição da Residência II, ou seja, que
apresentam alguma deficiência e que não possuem suporte familiar. Conversamos
um pouco, comemos bastante e cantamos parabéns. Depois alguns moradores foram
para a sala e pediram para colocarem uma música. Um morador me convidou para
dançar com ele, outros se juntam a nós e ficamos ali, juntos, aproveitando aquele
momento de leveza e descontração mais uma vez potencializado pela arte.

Imagem 24 e 25 – Registros da festa de aniversário

O morador “B” aproveitou para me mostrar a nova caixa organizadora usada para
guardar as bijuterias (Imagem 26). É visível o quanto ele tem evoluído em sua técnica.
Agora ele tem disponível uma maior variedade de miçangas e passou a criar conjuntos
de bijuterias com combinação de cores. Além disso, ele as tem colocado em
saquinhos personalizados para vender (Imagem 27). Claro que eu comprei algumas.
Por fim, conversei com a Julcinara, estagiária da psicologia que também
participava da comemoração. Ela me contou da sua iniciativa de pintar um mural em
uma das paredes da Residência, ideia que se alinhou bastante com a minha proposta
e decidimos executar juntas.
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Imagem 26 - Caixa organizadora das bijuterias do morador “B”

Imagem 27 - Morador “B” e os saquinhos personalizados com suas bijuterias


94

4.7 O Amor Mora Aqui

É importante para mim relatar a pintura desse mural, porque desde o começo, tive
muito receio do modo como aconteceria o término das atividades. Simplesmente
encerrar e ir embora? Como dito na conversa com o Helton, constantemente
acontecem distanciamentos e cortes de laços afetivos com os moradores, não apenas
familiar, várias pessoas passam pela casa com alguma proposta e simplesmente vão
embora. A vida desses moradores é extremamente fragilizada pela dinâmica de
perder as coisas que amam, até mesmo a casa e a família.
Como a minha pesquisa propõe atividades práticas, é insustentável que elas
ocorressem para sempre. Então eu gostaria de deixar algum tipo de desdobramento
artístico para os moradores, de modo que não fosse necessária a minha presença. Eu
já tinha cogitado a pintura de um painel, cheguei a conversar com o Helton, mas como
a Residência estava passando por um momento de transição na gestão, o assunto
acabou sendo esquecido.
Contudo, esse trabalho fala de encontros. Fala de linhas que se cruzam, não é
mesmo? Então, não foi à toa que depois de já ter encerrado as oficinas, bem quando
eu me preocupava com a despedida, meu caminho é atravessado por uma pessoa
que precisava justamente de alguém com conhecimento artístico para criar um mural.
A ideia foi criar um espaço para que eles pudessem se expressar, anotar coisas,
deixar recados ou qualquer outro tipo de interação necessária. A parede foi pintada
também por um voluntário, amigo da Julcinara, com uma tinta com efeito de “lousa”,
permitindo assim, uma secagem mais rápida e a possibilidade de escrever e apagar
em sua superfície.
A minha contribuição foi criar um lettering para compor esse mural. Para isso,
busquei algumas referências visuais e textuais. A frase precisava ser curta, de simples
compreensão e, de alguma forma, inspiradora. Optei pela escrita da frase:
“O amor mora aqui”.
Acredito que ela une tudo o que foi dito e visto, tanto neste trabalho quanto na
Residência. Ela fala sobre o amor entre os moradores, que mesmo com as brigas e
dificuldades, seguem cuidando uns dos outros. O amor dos funcionários, que zelam
pelo lugar, prezando não apenas pela manutenção do prédio físico, como também das
pessoas. O amor que dá importância ao ato de “morar”, desde a atenção ao local físico
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onde se vive, mas principalmente em respeito a casa-corpo que se habita. O amor


pela arte, que possibilita que as sensações sejam exploradas e demonstradas.

Imagens 28 e 29 - Registros do processo de planejamento do lettering

Quando cheguei na Residência, os moradores estavam em um momento de


descontração, recebendo serviços estéticos, como corte de cabelo, pintura das unhas,
entre outros, oferecidos por outros voluntários parentes da Jéssica, a assistente
social. Eu e a Julcinara começamos então a planejar a execução. Ela me ajudou
durante todo o processo.

Imagem 30 - Julcinara ajudando a pintar o lettering


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Imagem 31 - Eu e a Julcinara

Uma moradora estava bastante chateada, chorou, disse que sentia falta da família
e perguntou se podia escrever algumas palavras no mural. Pediu ajuda para escrever
“família eu te amo do fundo do meu coração”, juntamente com as palavras “fé”, “luz”
e “paz”. Depois disso, olhava orgulhosa para o mural, era visível a mudança de humor
através do simples ato de conseguir se expressar.
Enquanto pintávamos “O amor mora aqui”, começou uma discussão bastante
violenta entre duas moradoras. Depois que os ânimos se acalmaram, algumas
pessoas começaram a se aproximar e escrever os seus recados e desenhos. Algumas
frases foram: “Estamos aqui por vocês e para vocês”; “gratidão, amor, paz, respeito,
fé, são palavras boas para a mente e o coração”; “Se todos plantassem girassóis, as
guerras seriam apenas pétalas de amor”; além de alguns desenhos de paisagens e
de corações.
Um morador perguntou se podia ajudar a pintar o lettering e depois de alguns
conselhos sobre como lidar com a tinta fresca que escorria, ele pintou um dos R’s
(Imagem 32). Uma moradora comentou que o espaço seria interessante deixar
algumas anotações da rotina, a fim de organizá-la.
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Imagem 32 - Morador “MA” ajudando na pintura do lettering

No final do dia, o mural estava terminado e já repleto de expressividade, objetivo


principal da proposta de intervenção, bem como principal reflexão desta pesquisa.

Imagem 33 - Moradora e educador interagindo com o mural

Imagem 34 – Eu e o mural finalizado


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5. Considerações e reflexões finais

O presente trabalho buscou compreender quais as possibilidades da prática


artística quando aplicada como alternativa expressiva de subjetividades presentes em
ambientes que suprimem o indivíduo do convívio social ampliado, bem como elencar
as percepções durante sua mediação.
Para isso, primeiramente foi realizada uma fundamentação teórico-
metodológica para amadurecer e analisar as diferentes possibilidades de abordagens
dentro da temática da pesquisa. Depois, atentou-se para a elaboração cautelosa de
um instrumento de coleta, que possibilitou a aproximação da realidade do ambiente
escolhido. A partir desta aproximação, foram realizadas entrevistas com os
funcionários e os moradores da Residência, nas quais foi possível obter resultados
bastantes elucidadoras e potentes. Feitas as entrevistas, pôde-se elencar algumas
atividades artísticas viáveis que, posteriormente, foram realizadas e utilizadas como
objeto de estudo através do relato das percepções da mediadora.
Ficou bastante evidente a importância de uma prévia aproximação em relação
ao objeto de pesquisa, neste caso, a Residência e seus moradores, pontos aqui
fortalecidos por Freire (1996, 1983, 2011) e Nascimento (2018). Somente a partir
deste contato próximo é que se conheceu verdadeiramente a realidade do ambiente,
tornando possível analisar antecipadamente quais seriam as possibilidades e as
dificuldades das minhas propostas, bem como facilitou a lidar com situações mais
complexas, próprias destas realidades mais sensíveis, que de fato ocorreram durante
a mediação.
A partir de uma observação participativa foi possível concluir que não houve
grandes dificuldades quanto as possibilidades da prática artística na Residência II.
Todas as linguagens artísticas apresentadas foram facilmente aplicadas e
amplamente aderidas pelos moradores, com destaque para a atividade musical, de
stop motion e de isogravura.
Em geral, os moradores sempre solicitavam que fosse colocada alguma música
durante as oficinas, o que deixava o ambiente mais tranquilo e propício a
experimentação. A atividade de desenho/pintura, em seu período de experimentação
livre, pareceu inicialmente interessante, mas ficou rapidamente saturada. O fato de
esta atividade ter sido a primeira e ter acontecido em um ambiente “novo” pode ter
colaborado com a dispersão. Já a proposta do autorretrato, possibilitou um momento
99

de experienciar a aproximação de si, ficando perceptível que a institucionalização dos


corpos possa ter colaborado com um distanciamento das individualidades, causando
certa timidez na prática da atividade.
A oficina com argila foi bem recebida, mas precisa ser planejada para períodos
mais curtos. Trabalhar com modelagem exige paciência e tranquilidade, adjetivos
quase opostos às características desses moradores. Ao contrário do que eu esperava,
não houve em nenhum momento preocupação em relação a sujeira e/ou a sua textura.
Por utilizar uma técnica bastante atual e por ter uma execução rápida e simples,
sem necessitar tamanha entrega para se conseguir um resultado, a atividade de stop
motion cativou quase que instantaneamente. Sua compreensão foi mais efetiva a
partir de comandos curtos e estratégicos.
Como esperado, a atividade que explorava a música/dança/teatro foi muito bem
recebida. Ter um momento para que esses corpos institucionalizados possam se
movimentar, mostrou-se essencial. A atividade permitiu também que a moradora “LC”
conduzisse de forma autônoma a atividade, colocando em prática e compartilhando
conosco seus aprendizados. Para esta proposta, foi preciso que eu também me
libertasse de qualquer roupagem tímida ou cautelosa, sentindo até certo alívio em
poder extravasar sem medo de julgamentos.
A oficina de isogravura se mostrou extremamente simples, potente e possível
de ser aplicada. Os moradores se divertiram muito com a expectativa de ver seus
desenhos surgindo conforme o isopor era descolado do tecido. Essa atividade trouxe
um sentimento especial por ter sido, pela primeira vez, experienciado por todos os
atuais moradores da Residência.
É importante lembrar que a moradora “M” que pareceu ter ficado intimidada
diversas vezes com as propostas. Esses momentos mostram como o mediador
sempre deve estar preparado para lidar com as bruscas mudanças de humor e
contornar prováveis crises quando adentra em ambientes que lidam com sofrimentos
psíquicos. Esses acontecimentos permitiram, também, reflexões acerca das
expectativas sobre o que é considerado belo no campo da arte.
Um acontecimento curioso observado durante as atividades, foi o fato de que a
maioria dos moradores assinavam seus nomes em praticamente todos os trabalhos.
Em um ambiente onde quase todas as atividades e elementos são coletivos e
compartilhados, nota-se aí uma possível necessidade de diferenciação e de
demonstrar sua individualidade.
100

Uma grata surpresa foi a descoberta do morador “B” na Residência. Um dos


desejos dessa dissertação era descobrir e, de alguma forma, dar visibilidade para
artistas que estivessem escondidos atrás dos muros das instituições. Com esta
pesquisa foi possível conhecer a arte do “B” e observar a evolução das suas práticas
artísticas.
Vejo que o principal problema enfrentado a partir destes objetivos e, que agora
surge como aprendizado, tenha sido a sensação de “obrigação” que os moradores
podem ter sentido em participar das oficinas. Em um ambiente onde todas as
atividades lhes são constantemente impostas, as oficinas podem ter sido recebidas
como apenas mais uma responsabilidade, fazendo com que, muitas vezes, as
atividades fossem realizadas com certa pressa em acabar, ou feitas pelo “dever” de
apresentar o que lhes foi solicitado. Essas situações divergiram totalmente da
proposta aqui idealizada, que buscava momentos potentes e criativos pelo prazer de
criar e puramente pela necessidade de se expressar, sem que houvesse efetivamente
uma finalidade.
Dito isso, será possível impor um momento para que a expressividade
aconteça? A partir desta pesquisa, percebo que não. Para que essa proposta fosse
mais efetiva, acredito que um outro tipo de abordagem fosse necessário, talvez a partir
atividades que tivessem maior frequência e disponibilidade, como uma sala fixa e
aberta, por exemplo, com materiais sempre disponíveis, de modo que a vontade de
mergulhar no processo criativo e expressivo possa ser uma escolha pessoal, e não
uma proposta com hora marcada e prazos de entrega.
Entretanto, vejo que a simples ideia de proporcionar esse espaço para que a
expressividade possa acontecer, já é uma imensa conquista. Relembro agora das
“linhas de fuga”, traçadas por Deleuze e Guattari, linhas que caminham em busca do
próprio conhecimento através do desconhecido, de novos mundos e oportunidades.
Os autores já as pontuavam como a mais difícil de acessar: “As linhas de fuga — não
será isso o mais difícil? Certos grupos, certas pessoas não as têm e não as terão
jamais” (2004, p. 76). Mesmo sendo difícil alcançar a plena expressividade dos
moradores que colaboraram com a pesquisa, tal como a Arte Bruta de Dubuffet (1949),
as oficinas podem ter oportunizado, através da arte, uma rota de fuga para se
mergulhar nesse deserto desterritorializado dentro de si, local este que muitas
pessoas vivem a vida toda sem jamais conseguir acessar.
101

Como desdobramento da pesquisa, espera-se que materiais desenvolvidos nas


oficinas sejam coletados e será feita uma catalogação das obras encontradas a partir
da criação de um produto final, aos moldes de um catálogo de obras. Com isso,
almeja-se reunir as obras coletadas em um único local, materializando essas
produções em um formato reconhecido no meio artístico, como método de valorização
destes artistas.
Com essas obras, desejo também realizar uma exposição, com o intuito de
valorizar e prestigiar essas produções, bem como meio de retorno para a comunidade
e divulgação destes artistas escondidos atrás dos muros e dos preconceitos da
sociedade, sabendo-se que a arte tem um inegável papel de criar vínculos e promover
inclusão. Nesta exposição, também serão apresentados obras e registros da
mestranda, desenvolvidos durante sua trajetória investigativa, num movimento de
aproximar também fisicamente esse vínculo entre academia e sociedade.
Por fim, somente aqui, já ao fim desta pesquisa, percebo que a minha forma de
ver a arte está muito atrelada com a perspectiva do afeto. A construção da vida a partir
da vivência coletiva me é algo caro, faz parte da minha personalidade, de quem eu
sou, sobre como eu lido com as relações e com os encontros ao longo dessa jornada.
Talvez seja esse o ponto que trago de como reflexão neste trabalho, pensar na
mediação, na pesquisa e na arte que ganha potência através do afeto.
Em uma leitura atenta, é possível perceber que este trabalho falou
constantemente sobre afeto. Afeto pelo lugar onde se mora, pelas pessoas que
encontramos, pela arte que surge em meio a vida.
Com isso, espero ter te afetado.
102

6. Referências

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ZINKER, Joseph. Processo Criativo em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.


107

APÊNDICE A

TERMO DE AUTORIZAÇÃO PARA COLETA DE DADOS

Eu, Isabela Maria Santos Silva , matriculado(a) no Programa de Pós-


Graduação em Artes da Universidade Federal de Pelotas , sob matrícula
20201344 , e-mail isabelamariassilva@gmail.com , sob a orientação do(a)
professor(a) Dra. Eleonora Campos da Motta Santos , venho solicitar a V.
Sa. a autorização para coleta de dados na Unidade de Acolhimento Abrigo
Institucional Residência Inclusiva II, em Pelotas/RS , com a finalidade de realizar
a pesquisa de mestrado intitulada: Aos olhos dos que não vemos:
Expressividades artísticas dos moradores da Unidade de Acolhimento Abrigo
Institucional Residência Inclusiva II, em Pelotas/RS , cujo objetivo é
compreender como experiências de práticas artísticas constituem-se enquanto
alternativa expressiva das subjetividades dos moradores da Residência II .A
coleta de dados ocorrerá mediante observações e entrevistas com os
funcionários e moradores da Residência, bem como através da realização de
oficinas relacionadas ao tema . Igualmente, assumo o compromisso de utilizar os
dados obtidos somente para fins científicos, bem como de disponibilizar os resultados
obtidos para esta instituição.

De acordo.

________________________________ __________________________________
Assinatura do responsável Assinatura do aluno(a)

Pelotas, _____ de _____________________ de __________


108

APÊNDICE B

Termo de autorização assinado pelo técnico responsável pela Residência II


109

APÊNDICE C

Roteiro da entrevista com os funcionários

a) O que é a Residência Inclusiva II?


b) Qual é a sua atuação dentro da Residência?
c) Você pode falar um pouco sobre a gestão deste espaço?
d) Você acha que há diferença da Residência para os outros atendimentos
psicossociais (hospitais psiquiátricos/caps)? Qual seria essa diferença?
e) Como vocês trabalham o sentido de “residência” neste espaço?
f) Por que não há uma placa de identificação?
g) Como você vê a visibilidade deste ambiente dentro do contexto
social/cotidiano da cidade?
h) Quantos moradores estão atualmente na Residência? Você pode falar um
pouco sobre eles?
i) Como é a relação de convívio entre os moradores?
j) Já houve algum projeto de iniciativa externa aplicado com os moradores?
Algum desses projetos já foi artístico?
k) Para você, o que é arte? Qual é sua relação com a arte?
l) Existe alguma atividade que aconteça atualmente na Residência que você
veja como arte?
m) Como você acha que a arte poderia ser aplicada nesse espaço? Tem
alguma sugestão ou desejos?
n) Qual abordagem inicial você recomenda? Coletiva ou individual?
o) Teria algum tipo de restrição ao aplicar atividades na Residência? Alguma
dificuldade específica de algum morador (mobilidade, interatividade, contato com
materiais, gatilhos)?
p) Tem algum morador que você percebe um contato maior com arte ou que
se reconheça artista?
q) Seria possível entrevistar alguns moradores abordando esse tema?
(relação pessoal com a arte)

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