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Centro de Artes
Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Artes
Pelotas, 2023
Isabela Maria Santos Silva
Pelotas, 2023
Isabela Maria Santos Silva
Banca examinadora:
Agradeço aos meus pais, Rosana e Claudinei que, por mais esses anos, me
amaram, incentivaram e auxiliaram nessa longa jornada acadêmica e pessoal.
Sempre se fazendo presentes, mesmo com tantos quilômetros entre nós.
A Carol, uma linha que cruzou na minha linha e que, agora, trama comigo nessa
aventura que é estar viva. Me ajuda, me inspira, me faz melhor.
Por fim, agradeço a todos que me ajudaram a chegar até aqui e que, direta ou
indiretamente, fizeram possível a realização deste trabalho.
“E aqueles que foram vistos dançando
foram julgados insanos por aqueles
que não podiam escutar a música”
Friedrich Nietzsche
Resumo
SILVA, Isabela Maria Santos. Aos olhos dos que não vemos: Expressividades
artísticas dos moradores da Unidade de Acolhimento Abrigo Institucional Residência
Inclusiva II, em Pelotas/RS. Orientadora: Eleonora Campos da Motta Santos. 2023.
109 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Programa de Pós-Graduação em Artes,
Centro de Artes, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2023.
SILVA, Isabela Maria Santos. In the eyes of those we don't see: artistic
expressions of the residents of the Institutional Shelter Residência Inclusiva II, in
Pelotas/RS. Advisor: Eleonora Campos da Motta Santos. 2023. 109 f. Dissertation
(Masters in Art) – Postgraduate Program in Arts, Arts Center, Federal University of
Pelotas, 2023.
This research investigates how artistic practices can develop expressive spaces. In
this sense, we seek to think about the reality of art that walks in convergence with
mental health, given that both work with the subjectivity of individuals. Subjectivity is
understood here as something that is constructed and modified daily, based on
meetings. Even today, many social institutions still, in a way, dominate and, due to their
structural conditions, isolate individuals from everyday life, among them, psychiatric
hospitals. Given this context, the Institutional Shelter Residência Inclusiva II, in the city
of Pelotas/RS, emerges as an alternative to compulsory hospitalization and severe
isolation imposed by these institutions and, therefore, was the object of research in this
dissertation. Based on a methodology structured around field research, conducting
interviews and participating research through the mediation of activities that work with
different artistic languages, it was possible to collect observations and develop
reflections about the subjectivities, emerging in the experience processes in art, of the
residents of the aforementioned shelter. In the final considerations, reflections are
brought regarding the difficulties and strengths in the application of the workshops, with
the objective of sharing the observations and learnings about the theme, among which
we highlight the importance of an approximation of the reality in which the activities will
be applied, the problematization of the expectation of “beauty” in the field of art and
the mandatory participation in workshops as an obstacle to full expressiveness.
1. Introdução ....................................................................................................... 13
7. Apêndices.......................................................................................................105
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1. Introdução
1.1 Linhas e tramas da vida
anseiam cortar, segregar a partir do isolamento, mas que a olhos atentos constroem
esse emaranhado de relações.
Dito isso, duas grandes e resistentes linhas tramam minha jornada pessoal
como inspirações para este trabalho. Uma delas foi quando visitei pela primeira vez
um hospital psiquiátrico. Quando uma pessoa que amo passou pelo processo de
internação, adentrar e conhecer esse tipo de ambiente mostrou-se necessário, o que
acabou sendo um grande marco para minha história e para minha forma de encarar o
mundo. O tempo passa e as lembranças se esvaem. Lembro do branco e do frio, com
a constante presença do silêncio que ora era calado pelos gritos. Muros altos, portas
fechadas, grades e câmeras, além dos olhos que nos seguiam sempre atentos. Era
uma sensação intimidadora, que hoje vejo a importância em relatar. Poucas palavras
foram trocadas naquele local, não havia muito o que ser dito, mas me lembro com
bastante intensidade do pedido de ajuda, de amparo, um pedido para sair de lá. Foi
uma experiência instigante que se tornou linha guia nessa breve tecitura.
Somado a isso, outra linha que também estrutura essa trama é meu contato
próximo com o autismo. Na convivência diária com uma pessoa autista é que se
percebe as minúcias do cotidiano. A presença incessante e necessária da rotina como
um dos elementos na construção do indivíduo com autismo faz com que meus olhos
se voltem para a beleza nas banalidades, nos hábitos, na criatividade que surge a
partir do mais singelo movimento.
Parafraseando o poeta baiano Jorge Salomão (1974), é quando o meu olho
direito encontra com seu olho esquerdo que as trocas acontecem. Em outras palavras,
é preciso olhar nos olhos uns dos outros, frente a frente, para verdadeiramente
entender a importância das relações, num encontro de singularidades. Foi necessário
adentrar nesses espaços, conversar com essas pessoas, para compreender o local
que me coloco dentro do campo artístico. Um local de construção coletiva, de trocas.
Olhar para o outro possibilitou me descobrir enquanto mediadora de arte. Mediador,
segundo o dicionário Oxford (2017), é aquele que atua como intermediário, criando
um elo. Definição que converge com os pensamentos apresentados por Vigotski
(1989), que cita a importância da existência de uma pessoa que auxilie na criação de
um caminho que ligue o objeto até o receptor, como é o caso da relação entre o
professor e o aluno.
O conceito de mediador, também pode ser inserido dentro do campo das artes,
passando a ser conhecido também como “mediador cultural”. Neste caso, o mediador
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Assim, a obra por si só já comunica algo. Como dito por Deleuze e Guattari
(1996, p. 213) a arte é a única coisa no mundo que se conserva. Você sempre pode
rever um quadro, uma cena do filme ou página do livro, a arte perdura mesmo na
ausência de um espectador. Ela independe até mesmo de um criador, já que ela se
conserva por ser um composto de sensação, de perceptos e afectos, conceitos mais
a frente abordados. Ela existe em si mesma. Mas é apenas através da mediação que
se pode ir além, possibilitando descobertas que ultrapassam e transformam em algo
novo o que a obra por si só não conseguiria comunicar. É a beleza das relações
humanas e dos desdobramentos da criação artística dentro do plano social.
Em concordância, para mim, o conceito de mediação transcende a ideia de um
mero transportador de informação, definição que pode restringir de forma redutora e
simplista este papel. Vejo o mediador como alguém que anseia pela construção
conjunta de conhecimento, através de ações provocadoras e criativas, que
pressupõem essas trocas a partir do diálogo e da reflexão. E é essa escolha de me
colocar como mediadora e artista que torna mais simples acessar aquilo que é
sensível para mim e para o outro, criando uma conexão, gerando trocas riquíssimas
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pelos ditos “sãos”, quais aprisionam e matam diariamente todos aqueles que destoam
desse padrão de normalidade.
A concepção de casa e de lar se farão também bastante presentes neste
decorrer, pensando nas instituições que abrigam tantos corpos, abrangendo
perspectivas da casa enquanto conceito empírico de moradia física, construção
material, sólida, com paredes, portas, janelas e um teto. Enquanto o lar é este mesmo
espaço físico quando preenchido por sentimentos, memórias, rotinas, histórias,
sonhos, afetos. Será pensada também a ideia da casa-corpo, estrutura feita de carne
que abriga as subjetividades. Nascemos nesse corpo e nele habitamos, sem escolhas
ou trocas, como uma casa que somos.
Se estamos falando de linhas como forças que nos atravessam, ou linhas
enquanto próprias narrativas, para mim, neste contexto, a arte pode ser vista como os
nós, amarrações que surgem através desses encontros, que na grande trama da vida,
formam pontos de conexão entre as pessoas. Não existem nós sem o cruzamento das
linhas. Da mesma forma, entende-se aqui que a arte se produz nas trocas diárias,
influenciando os processos de criação.
Savazzoni (2012) explica que os três tipos de linhas acima citados se referem
a diferentes nichos, sendo linhas de segmentaridade “dura”, linhas de segmentaridade
“maleáveis” e “linhas de fuga”. Basicamente, as chamadas “linhas de segmentaridade
dura” são associadas a processos de subjetivação ligadas ao Estado, como por
exemplo, as instituições, normas, centros de poder e controle. Elas são associadas a
uma segregação que polariza, visando sempre uma organização que trabalha através
do binarismo, nos dividindo em grandes séries, como homens e mulheres por
exemplo. Porém, com suas linhas duras, o aparelho de Estado necessita também de
linhas mais “flexíveis” para poder atingir outros segmentos, onde se encontram os
indivíduos e suas práticas, também chamado de plano das “molecularidades”,
abrangendo nossa casa, nosso bairro, nossa família, nosso trabalho, nossa
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comunidade etc. O terceiro tipo de linha diz respeito às “linhas de fuga”, divididas por
sua vez em dois polos, onde de um lado temos as linhas de fuga “construtivas” ou
“inventivas” que operam rupturas em direção ao novo, e as linhas de fuga
“abolicionistas”, ou linhas de morte, que desembocam numa desintegração absoluta,
ou seja, no próprio aniquilamento.
Não é a intenção deste trabalho se aprofundar nestas questões, contudo, em
um breve paralelo a essas linhas que nos atravessam apresentadas por Deleuze e
Guattari (2004), foi possível traçar breves apontamentos que coincidem com uma
investigação que transitará nessas três instâncias, sendo o Estado e as instituições
enquanto linhas de segmentaridade dura; o nicho dos abrigos e da relação entre
casa/família que ele constrói enquanto linha das molecularidades; e a criação artística
enquanto linha de fuga que nos liberta.
Devido sua relação mais íntima com o campo artístico, o conceito de linhas de
fuga, em especial neste trabalho, merece breve destaque. Para Deleuze e Guattari
(2004), a linha de fuga é uma linha que arrasta a subjetividade em direção ao novo,
da descoberta, do desconhecido. Por isso, não se deixe enganar pelo nome, as linhas
de fuga não se tratam de passividade, do simples evadir, pelo contrário, não há nada
mais ativo que a fuga. Para ir em direção ao desconhecido, é preciso que haja o desejo
de mudança, um desejo de deslocamento, de se desterritorializar. É a busca por uma
experimentação das multiplicidades, de novos mundos, que só se tornam possíveis
através dos encontros.
Uma vez que estamos lidando com pessoas e espaços que, num primeiro
momento, não estão diretamente vinculados ao mundo da arte, é preciso inicialmente
desconstruir alguns conceitos. Acreditando na premissa de uma arte que surge em
meio a vida, a concepção de artistas passa a diferir da ideia de seres geniais isolados
e inacessíveis, que monopolizam as galerias, mas passa a acreditar no artista como
um ser expressivo, que surge através de uma rede de relações, de encontros, cujo o
criar se relaciona com o todo à sua volta. Em direção a isso, em uma entrevista para
o professor e coordenador do Laboratório de Arte e Psicologia Social Édio Raniere
(2020), a artista, pesquisadora, escritora e filósofa, Anne Sauvagnargues traça pontos
de conexão entre sua poética e os textos de Gilles Deleuze, seguindo um diálogo que
aproxima a filosofia com seu processo de criação. Para Sauvagnargues, sua pintura
“emerge dos encontros inesperados entre sua técnica, o transporte e a cidade” (DA
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SILVA; DA SILVA, 2020, p. 5). Pode-se compreender melhor estas questões nas
palavras de Sauvagnargues:
banalizado pelo dia a dia. Mas o que vê os olhos que não transitam mais por esses
espaços? Que por algum motivo ou força maior foi obrigado a se isolar do que se tem
habitualmente por cotidiano. O que é arte aos olhos dos indivíduos que não vemos?
De quem são os corpos invisibilizados pelas instituições sociais? Há arte nesses
espaços? Quais tipos de arte são produzidos em ambientes assim? São perguntas
que surgem quando se acredita em uma arte que surge em meio a vida. Perguntas
que esta pesquisa procura investigar.
A sensação de isolamento abrange incontáveis espaços que, por muitas vezes,
são esquecidos, já que se encontram distante do olhar cotidiano. Turner (1988, p.
171), considerou a liminaridade "como um tempo e lugar de afastamento dos
procedimentos normais da ação social". Considerando então a liminaridade como
ponto de partida, não é apenas na atualidade que os marginalizados são isolados e
afastados dos olhos higienistas da sociedade ocidental, de modo que a marginalidade
pode ser vista como uma consequência de uma estrutura hierárquica. A política de
aprisionar o indivíduo para se ter o controle social e estabelecer o poder hierárquico,
é aplicada na sociedade há muitos anos. Numa construção histórica, os leprosos, as
pessoas com sofrimentos psíquicos, os infratores, os idosos, os doentes, entre outros,
eram obrigados a desaparecer da visibilidade cotidiana, carregando, assim o estigma
da discriminação e exclusão (CAMARGO, 2003).
Historicamente, o paradigma de “normalidade” sempre trouxe consigo opiniões
bastante controversas. Canguilhem (2009) e Dalgalarrondo (2008) trazem,
atualmente, um riquíssimo debate do que poderia diferenciar o “normal” do “anormal”.
Canguilhem (2009) apresenta em seu livro “O Normal e o Patológico” diferentes
noções de normalidade a partir da ótica da medicina e da biologia, na qual definir um
padrão de normalidade é essencial para a preservação da vida. Contudo, Canguilhem
(2009, p. 37) explica que esses conceitos se retificam quando se adentra a área da
psiquiatria, justificando como possível desdobramento da relação com a psicologia e
a filosofia.
A partir disso, Dalgalarrondo cria classificações possíveis para o que se pode
considerar como “normalidade” dentro da psicopatologia: 1. Normalidade como
ausência de doença, sendo caracterizada pela ausência de sintomas e sinais
patológicos; 2. Normalidade ideal, em que se estabelecem critérios do que é sadio; 3.
Normalidade estatística, na qual se identifica quantitativamente o que é normal a partir
do que é observado com mais frequência na população geral; 4. Normalidade como
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bem-estar, que considera saúde como o completo bem-estar físico, mental e social a
partir de apontamentos da Organização Mundial de Saúde (1946); 5. Normalidade
funcional, em que o patológico é considerado como disfuncional, produzindo
sofrimento para si ou para o todo; 6. Normalidade como processo, que considera os
aspectos dinâmicos e mutáveis de desenvolvimento, próprios a certos períodos
etários; 7. Normalidade subjetiva, na qual são consideradas as percepções do próprio
indivíduo em relação a seu estado de saúde; 8. Normalidade como liberdade, qual
parte de princípios fenomenológicos e existenciais definindo a doença mental como
perda da liberdade existencial. 9. Normalidade operacional, sendo a forma pragmática
de definir o que é normal e o que é patológico, e trabalhando operacionalmente com
esses conceitos.
Em suma, os critérios que definem e segregam o que adentra a ordem da
normalidade ou do patológico variam consideravelmente a partir de diferentes
contextos, épocas e visões filosóficas, podendo ser moldadas de acordo com o
objetivo em questão. Por esse motivo, é necessário manter uma postura
permanentemente crítica e reflexiva para a definição desses padrões. Em tempo, não
se objetiva aqui trazer um extenso material que argumente sobre as diferenças e as
aplicações dessas definições, tampouco definir a “mais correta” dentre elas, mas sim,
promover uma breve reflexão do que pode ser considerado como “normal” na
sociedade e, a partir disso, acolher e dar visibilidade aos “anormais” marginalizados
por meio da experiência artística.
Assim, diante do exposto até aqui, esta dissertação vem sendo construída
instigada pela seguinte questão: Como práticas artísticas podem desenvolver espaços
expressivos de subjetividades em integrantes de ambientes que, a exemplo do Abrigo
Institucional Residência Inclusiva II, em Pelotas, por sua construção histórica e social,
suprimem o indivíduo do convívio social ampliado?
O objetivo geral busca compreender como experiências de práticas artísticas
constituem-se enquanto alternativa expressiva das subjetividades dos moradores do
referido abrigo, na direção de, mais especificamente: a) identificar o perfil dos
moradores e das moradoras do abrigo e suas relações com experiências artísticas; b)
propor atividades artísticas aos moradores e às moradoras; c) analisar teórico-
reflexivamente o desenvolvimento e resultados destas atividades ofertadas e se ou de
que forma apresentaram-se como oportunidade de expressão de subjetividades dos
e das participantes.
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2. Referencial Teórico
Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho
onde muitos indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade
mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e
formalmente administrada.
Neste modelo de estrutura social, não são permitidos qualquer contato entre o
indivíduo institucionalizado e o mundo exterior, para que propositalmente seja feito o
apagamento das individualidades em função do “adestramento” para os moldes da
instituição. Sendo assim, sem o vínculo e o contato com o mundo externo, torna-se
mais fácil a aprendizagem das regras internas e a manipulação das rotinas para que
se padronize as atividades dos institucionalizados. Essas instituições chamadas de
“totais”, foram divididas por Goffman (1974, p. 16-17) em cinco categorias:
Na primeira categoria estão as instituições criadas com o objetivo de abrigar as
pessoas consideradas socialmente como incapazes e inofensivas; nesta seção estão
incluídos os abrigos para cegos, idosos, órfãos e indigentes.
A segunda categoria trata dos locais estabelecidos para cuidar de pessoas
consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são de alguma forma uma
ameaça à comunidade, mesmo que de maneira não intencional. Nessa classificação
se encontram os hospitais psiquiátricos e, mais antigamente, os leprosários e
sanatórios para tuberculosos.
A terceira categoria abrange as instituições criadas para abrigar pessoas que
de alguma forma são consideradas como um perigo para a comunidade, de modo que
seu isolamento é um meio de proteger as pessoas “comuns” que nela habitam. Nesta
divisão encontramos as cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra e
os antigos campos de concentração.
A quarta categoria trata das instituições que surgiram com propósito de
alcançar uma evolução profissional ou que de alguma forma tem a intenção de realizar
de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho e sua existência se justifica apenas
através de tais fundamentos instrumentais, como é o caso dos quartéis, navios,
escolas internas, campos de trabalho e colônias.
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o toque, o cheiro, o vento, a vista. Essa atípica situação nos levou a vivenciar de forma
bastante intensa uma pequena dimensão da sensação de estar em estado de
isolamento do convívio amplo e irrestrito, um estado de solidão que as pessoas
enclausuradas pelas instituições totais costumam experimentar num momento
anterior à pandemia.
Diante deste período de isolamento, é condição indispensável para o
desenvolvimento argumentativo desta pesquisa pontuar que, devido à pandemia,
atentou-se ainda mais para como a sensação de isolamento perpassa a constituição
subjetiva do ser humano. Em outras palavras, já se mostrava de extrema importância
para minha construção poética e pessoal a necessidade de olhar para as
manifestações das pessoas em sofrimento psíquico enclausuradas e suas relações
com a arte, contudo, a pandemia e suas implicações potencializaram a necessidade
de levar em consideração as condições e características quanto aos níveis e formas
de isolamento social que essas instituições acabam impondo.
Sabendo-se então que os corpos institucionalizados não habitam os ambientes
de transição, onde as trocas, as relações interpessoais, primordiais para a construção
identitária individual e coletiva acontecem, é somente conhecendo a influência dos
espaços de longa permanência na construção do sensível, do poético, para
compreender melhor o íntimo daqueles que se encontram de alguma forma
aprisionados.
A casa que habitamos, as pessoas que convivemos, as trocas que
presenciamos, tudo o que nos rodeia e nos permeia, de alguma forma nos constitui
enquanto ser humano e se faz presente na estruturação das subjetividades. Este ser
que abriga o eu como uma casa, um corpo que não se TEM, fugindo da essência
possessiva capitalista, mas que se É, enquanto ser, uma moradia indissociável em
que não se escolhe onde habitar. Uma casa-corpo, um corpo que é casa, é lar, ora
movimentada, ora quieta, como a mente durante o processo criativo. E o que vê este
corpo onde se mora? Onde mora esse corpo que habitamos? As pessoas que não
escolhem onde morar, conseguem encontrar um lar no lugar onde se está?
Uma casa vislumbrada com a abundante intimidade entre os espaços e
conexões entre cômodos incômodos pela constante presença diária. Sabendo-se que
a vivência estética trabalha em unidade com as qualidades do sensível,
inegavelmente a observação dos espaços que compõem o universo em que se habita,
em uma relação de corpo, espaço e afeto, influencia a construção da expressão
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artística. Um olhar poético-crítico que desvela o entorno como uma janela no rosto,
reeducando o ver e reconhecer as nuances na repetição, possibilitando enxergar
outras realidades nas várias janelas que desnudam as mesmas paisagens cotidianas.
Muitas vezes se desconsidera a importância e o impacto daquilo que nos cerca,
subestima-se o entorno como influência na formação pessoal. A constante revisitação
do que nos abriga, torna obsoleto o que se vê, mas quando se trata de uma constante
permanência, o espaço que nos envolve torna-se mais que paredes, mas parte de
nós. Mas as mesmas paredes que constituem o lar são aquelas que a separam da
rua. Dentro desses ambientes invisibilizados por tijolos, grades e anos de repressão,
preconceito e apagamento existem corpos, corpos fragilizados, corpos formados pela
mais sensível poética, que é atravessada constantemente pela experiência do
isolamento. Existem artistas. Existem produções. E são esses resultados que este
trabalho almeja alcançar.
É dessa luta contra ou dentro do tempo que a arte entra como necessidade,
caminho, transformação. A arte transcende o tempo, devolvendo ao ser
humano sua natureza atemporal e limitada. A arte é uma das máximas
expressões do homem sobre o tempo, a permissão e a necessidade do ser
humano de transcender os limites físicos da vida, explorando e ampliando o
poder de sua capacidade criativa, transformando e recriando novas
realidades (CIORNAI, 2004, p. 255).
verbal. As obras produzidas por seus clientes, Nise preferia chamá-los assim,
proporcionavam um momento para expressar os conflitos internos e perturbações que
os cercavam.
A Arteterapia é uma aplicação terapêutica que utiliza da arte em sua totalidade
para se aproximar da realidade do indivíduo, acolhendo-o em sua diversidade e
complexidade. Ciornai (2004, p. 6) define a Arteterapia como “uma abordagem
processual na qual tanto o fazer da arte quanto o processo de elaboração e reflexão
sobre o que é produzido, é visto como tendo potencialmente valor terapêutico”. Ela é
amplamente aplicada em ambientes como hospitais, CAPS, presídios, asilos,
hospitais psiquiátricos, enfim, locais onde o ser humano se encontra em situação de
vulnerabilidade, como uma alternativa de expressividade, comunicação e
principalmente para trabalhar com a criatividade e a subjetividade do indivíduo. Essa
prática possibilita, também, a compreensão da realidade intrínseca do indivíduo.
Dito isso, a arteterapia tem sido um importante referencial teórico, tendo em
vista a imensa quantidade de materiais disponíveis que relacionam arte e saúde
mental com esta perspectiva expressiva e terapêutica. Contudo, esta é uma pesquisa
do campo da arte. Não é do meu interesse, tampouco da minha capacidade,
dimensionar os impactos, sejam positivos ou negativos, que as minhas propostas
causam. O objetivo não tem sido avaliar a eficácia da prática artística enquanto uma
terapia. Aqui, não se busca uma finalidade. Reforço, então, a ideia de Dubuffet, que
via a arte habitando apenas no que chamou do “campo do capricho” e não a uma
“subordinação e a uma razão para o Estado, a sua administração através da
coletividade, implicando assim o seu controle” (DUBUFFET, 1968, p. 37). Segundo
Costa (2019), Dubuffet defendia a ideia de que a arte bruta acontecia em qualquer
lugar ou época, independentemente das condições, de modo que os artistas brutos
criam apenas pela necessidade de se expressar. Assim, ele discordava dos
psiquiatras que viam o potencial artístico apenas para análise psicológica, pois seria
o mesmo que atribuir uma função social para a arte. Costa (2019, p. 125) afirma que
Dubuffet acreditava “que o processo criativo do artista bruto se fazia de forma tão
instintiva, que parecia espontâneo e natural, como um gesto cotidiano”.
Diante disso, será feita agora uma breve revisão teórica, através do
levantamento de algumas produções acadêmicas que se relacionam com a temática
da aplicação artística dentro do universo das instituições totais e de isolamento
compulsório, como embasamento e justificativa da real relevância deste trabalho.
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3. Estrutura metodológica
Este subcapítulo foi construído de forma similar, mas não idêntica, a um “Diário
de Campo”. Esta importante ferramenta é utilizada há muito tempo pela Antropologia,
diante da necessidade de sistematizar as observações realizadas nas pesquisas
etnográficas. Segundo Falkembach (1987), o diário de campo é um instrumento de
anotações, um caderno para realizar comentários e reflexões, para uso individual do
pesquisador no cotidiano. Nele, podem ser registradas as observações,
acontecimentos, diálogos, relações, bem como experiências pessoais do investigador.
Os diários ultrapassam os limites de procedimentos unicamente técnicos, abrangendo
também conversas que "acontecem em filas de ônibus, no balcão da padaria, nos
corredores das universidades; outras são mediadas por jornais, revistas, rádio e
televisão" (Spink, 2003, p. 29).
A escolha deste formato se deve ao fato de que a estrutura metodológica desta
dissertação se fundamenta principalmente em dois pilares: entrevistas e realizações
de atividades artísticas, moldes que lidam diretamente com a obtenção de
informações através de variáveis humanas e, muitas vezes, uma linguagem não
verbal. A relação entre uma pessoa e sua casa é, também, uma relação bastante
subjetiva. Desta forma, viu-se necessário adotar uma postura mais informal para
conseguir extrair o máximo de informações durante as visitações, entrevistas e
proposta de atividades.
seus dedos pelo chão. A moradora “AL” prontamente me atendeu e foi chamar sua
supervisora. Nesse curto tempo de espera falamos sobre o clima, sobre estar um dia
ensolarado ainda que estivesse nublado logo antes. Foi bem fácil e simples a
comunicação.
Logo se aproxima uma funcionária para abrir o portão, que após uma breve
apresentação, me recebe gentilmente e me leva para falar com a equipe, chamada
por ela de “técnicos”. Nesse percurso, ela me conta que cursou artes em 2015 e que
ficou feliz em ver a motivação do meu projeto. Comentou que tinha planos de aplicar
algo artístico ali, mas faltavam recursos para isso.
Subindo algumas escadas nos fundos da residência ficava o escritório dos
“técnicos”. Falei com Helton, o psicólogo e um dos responsáveis pela parte de
coordenação da Residência. Me apresentei, falei da minha familiaridade com o
ambiente, falei um pouco sobre mim, minhas vivências, meu projeto de pesquisa e
sobre o meu interesse em conhecer e colaborar com o lugar.
Então, primeiramente Helton me falou um pouco sobre o lugar. Segundo ele, é
um ambiente que abriga pessoas maiores de 18 anos, que apresentam alguma
deficiência e que não tem outro lugar para morar. Explica que a ideia do ambiente é
ser mesmo uma residência, então o primeiro ponto a ser levado em consideração era
que diante da possibilidade da aplicação de atividades, elas deveriam acontecer em
outro lugar, fora dali, a não ser em último caso, para tentar manter essa essência da
integração e inclusão social. Ele falou em termos informais, que o espaço público é
para ser utilizado por todo cidadão, que o “louco” também deve frequentar a praça, o
parque, a universidade. Comentou que essa era uma tentativa de parar de concentrar
as atividades todas naquele mesmo espaço, já que dessa forma a pessoa acaba
ficando limitada aquele perímetro para fazer tudo, fortalecendo as exclusões sociais.
Então, solicitou que as atividades de estudo e lazer deveriam ocorrer fora dali, aos
poucos conquistando outros territórios. Argumentou que ali era uma residência e tudo
o que a abrange, mas que se fosse um CAPS, a ideia ainda seria “desencapsular” as
atividades. Ali senti que estava no lugar certo, falando com as pessoas certas, que
pensavam como eu.
Ele me perguntou se, agora sabendo disso, eu tinha alguma ideia da atividade,
e se envolveria algum nicho artístico em específico, como a arte plástica por exemplo.
Respondi que a ideia inicial do projeto era primeiramente conhecer a realidade do
lugar, dos moradores, para que a proposta tivesse uma efetividade prática dentro das
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níveis de complexidade. Desta forma, tal qual o SUS, que se divide em Unidades
Básicas, Unidades de Pronto Atendimento e grandes hospitais, a Assistência Social
também se organiza em hierarquias. A atenção básica atua com enfoque na
prevenção, como é o caso do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Já
a atenção de média complexidade, atende pessoas que tiveram algum direito violado
ou vivenciam situações de violências, como o Centro de Referência Especializado de
Assistência Social (CREAS). E, por fim, a atenção de alta complexidade, que intervém
quando os vínculos do indivíduo com o meio em que está inserido foram também
rompidos, como é o caso da Residência e de outras variações de Abrigos
Institucionais.
Portanto, os atuais moradores da Residência já passaram pelas etapas e
estágios anteriores dentro desta organização, tendo residido até mesmo em outros
Abrigos. Contudo, diferentemente do SUS, que pode ser utilizado por qualquer
cidadão, para usufruir das políticas de assistência social, é necessário se enquadrar
dentro de critérios de renda. Segundo Jéssica: “a política de assistência está
disponível para quem dela necessitar”.
A assistente social explica que a especificidade da Residência II é acolher
pessoas com deficiência que tiveram seus direitos violados ou que apresentem
alguma dificuldade que não pôde ser suprida pela família. O psicólogo pontua que a
Residência atua, então, dentro das políticas de assistência social, sendo
erroneamente relacionada apenas à saúde mental. O espaço recebe pessoas com
diversas necessidades especiais, fato que abrange tanto deficiências mentais quanto
físicas, já tendo sido ali moradia de uma pessoa cega, por exemplo. Todavia, por uma
casualidade, atualmente a Residência está apenas com pessoas que apresentam
deficiências mentais.
Os entrevistados contextualizaram que em algum momento historicamente
dentro das políticas do município de Pelotas houve uma divisão etária dentro do
sistema de acolhimento, fazendo com que atualmente existam, além dos Abrigos da
Infância, dois ambientes que acolhem pessoas dentro das características já citadas,
sendo a Residência um local para pessoas de 18 a 76 anos e havendo um outro local
para pessoas acima dos 76 anos. Contudo, por não atender a todos os critérios da
assistência, tampouco receber verbas públicas, a única que legalmente se enquadra
como Residência Inclusiva seria ali, o espaço em que a pesquisa estava sendo
realizada.
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nosso público, ela não tem uma deficiência, ela tem um transtorno mental. Então, ela
deveria estar sendo tratada no CAPS e indo pra casa. Tá, mas ela não tem uma
casa… no caso das pessoas que não tem casa, não tem família, não tem ninguém e
tem um transtorno mental grave e persistente. Ela teria que ir pra um Residencial
Terapêutico, que é um outro tipo de serviço e que é vinculado ao SUS, à saúde, mas
aqui na cidade só tem dois e tá lotado. Aí essa pessoa é de lugar nenhum. É o buraco
da reforma psiquiátrica”. Ele prossegue justificando que pessoas com deficiência,
abrigadas pelas instituições, acabam muitas vezes desenvolvendo transtornos
mentais, fazendo com que, independentemente do propósito com o qual as
Residências surgiram, seja impossível distanciar-se totalmente do enfoque na saúde
mental, um assunto sempre importante nesses espaços.
Em relação ao sentido de “residência” no Abrigo, e ainda seguindo a
racionalidade de que aquele espaço é de fato uma casa, Jessica ressalta que o ideal
seria que atividades e propostas de oficinas ocorram num espaço externo, para
manter a essência do lar. Sinaliza que, atualmente, os moradores se deslocam para
ir até a escola, até o CAPS e para realizar outras atividades. Embora exista a
constante presença dos técnicos e educadores, a Residência é um espaço dos
moradores, espaço de descanso, de atividades rotineiras. Helton complementa que
aumentando a frequência com que as atividades são realizadas externamente,
proporcionalmente será o uso da residência será apenas para fins domésticos.
Os entrevistados reforçam também a existência de uma rotina diária, “assim
como em qualquer casa”, com momentos para as refeições, tomar banho, dormir,
entre outros. Além disso, a partir de conquistas dentro das políticas públicas, foi
assegurado o direito de que cada morador tenha seu guarda roupas, sua cama, sua
individualidade.
Jessica relembra que, dentro desse formato, a política prevê também que as
Residências tenham no máximo dez moradores, para que se mantenha minimamente
uma rotina de “casa”. Ela argumenta sobre o incansável trabalho de manter,
minimamente, o contato dos moradores com suas famílias, dentro das possibilidades,
estreitando relações e afetos a partir de visitas.
Ela conta que, mesmo com todas essas iniciativas, os moradores ainda
cultivam o desejo de sair da Residência e voltar para suas famílias. Lembra também
da expectativa que se criou sobre a chegada de uma assistente social e uma possível
liberação dos moradores, fato que criou alguns rumores sobre sua contratação.
43
vem, ponto”. Informa que, quando questionado em seu cotidiano sobre o desejo de
escrever com maior frequência, responde que a arte não é algo que possa ser forçado.
Que a arte são “momentos”, com dias mais sensíveis que outros, onde a emoção pode
simplesmente surtir de coisas banais, assim como grandes momentos podem não
gerar nenhuma emoção. Comenta que vê desta mesma forma o funcionamento da
Residência, na qual alguns dias fluem com naturalidade e as situações vão
simplesmente acontecendo, mas em outros, não se desenvolvem, ficam travadas.
Já Jéssica relaciona a arte com um momento de expressividade, manifesta seu
grande apreço pela dança. Em seus momentos com a família, ela aproveita para
dançar com sua filha, encarando como oportunidades para se conectar, seja para
comemorar ou espairecer. A música e a dança como um refúgio. Ela relembra que se
surpreendeu com a marcante presença da música na Residência. Comenta que os
moradores gostam muito de ouvir música, conhecem até algumas coreografias e que
essa poderia ser uma ferramenta interessante para esta pesquisa.
Quando perguntado sobre a existência de alguma atividade que aconteça
atualmente na Residência e que possa ser vista como arte, eles respondem que a
música se apresenta como a atividade artística mais presente e com melhores
resultados dentro da Residência. Produções audiovisuais como clipes musicais, filmes
e novelas também fazem bastante sucesso entre os moradores.
Sobre as sugestões e desejos relacionados a como a arte poderia ser aplicada
no espaço, eles sugerem a música e a dança como possíveis caminhos para as
futuras atividades.
Em relação a qual abordagem inicial seria mais apropriada para o projeto, eles
recomendam a tentativa de me aproximar individualmente dos moradores, num
primeiro momento, podendo, assim, extrair mais informações de cada um. Reforçam
que a maioria das atividades na casa já acontecem coletivamente. Explicam que
alguns moradores são mais comunicativos que outros, geralmente ocasionando
tumulto e sobrecarga no ambiente, fato que poderia inibir os demais moradores e
dificultar a coleta dos dados. Por isso, sugerem que seria interessante que algumas
conversas acontecessem de forma individual, em um momento mais tranquilo e
controlado.
Sobre a existência de qualquer restrição ou dificuldade (mobilidade,
interatividade, contato com materiais, gatilhos) em relação a aplicação das atividades,
46
Jessica me informa que alguns moradores têm maior dificuldade motora que outros,
contudo, nada que impeça a realização de atividades.
Sobre a existência de algum morador que apresentasse um contato
perceptivelmente maior com arte ou que se reconhecesse artista, eles prontamente
levantam o nome de um dos moradores, aqui nomeado como “B”. Ele tem um contato
muito próximo com artesanato e bijuterias. Ele também tem paixão por colorir usando
lápis de cor desde a infância e atualmente tem uma numerosa quantidade de obras
em seus aposentos. Eles lembram também que uma das moradoras tem uma ligação
especial com o samba, tendo inclusive membros da família que atuam como passistas,
fazendo com que exista uma conexão muito forte com a música, motivando-a a cantar,
dançar, se empolgar e se emocionar.
Quando questionados sobre a possibilidade de entrevistar alguns moradores
abordando a temática da relação individual com a arte, eles respondem que sim, seria
possível e aconselham usar os horários da tarde para realizar essas entrevistas, por
ser um momento mais tranquilo.
Com o encerramento das perguntas, o Helton sugeriu que a melhor forma de
conhecer a realidade da residência seria “olhando com meus próprios olhos”, indo
diretamente ao encontro com o título e tema deste projeto “aos olhos dos que não
vemos”. É interessante observar a harmonia com a qual a iniciativa deste projeto tem
tido em congruência com a proposta da Residência.
Assim, após o diálogo, fiquei mais algumas horas conhecendo os moradores,
num primeiro contato tímido e despreocupado. Estavam, em grande maioria, na sala,
juntamente com os educadores. Alguns assistiam a novela, outros ouviam música em
um pequeno rádio. Fui apresentada em meio a olhares curiosos. Helton explica para
eles minha proposta e minha relação com a Universidade. Um dos moradores
questiona se sou aluna da psicologia e Helton responde que eu trabalho com artes,
sendo interrompido por “B”, que prontamente se impõe: “conta pra ela que eu faço
bijuteria!”. “B” afirma que é artesão e pediu para que eu aguardasse, pois ele gostaria
de mostrar seus trabalhos.
Retomei para a dinâmica coletiva. Me falaram seus nomes e aos poucos fui
explicando minha atuação. Fui me aproximando de cada um, perguntando como
estavam através da retórica saudação: “oi, tudo bem?”, sendo surpreendida com um
impactante “não” de uma moradora. Conversamos um pouco e ela comentou ter
47
saudades da família, o diálogo foi interrompido por um longo abraço. Dediquei alguns
momentos de atenção para ela e continuei com as apresentações.
Conheci brevemente seus gostos e idades. Alguns me perguntavam sobre
minha profissão, outros faziam perguntas pessoais, outros pareciam indiferentes à
minha presença. Mais tarde, “B” me leva para conhecer seu trabalho. Ele me leva até
uma mesa com seus trabalhos, há vários colares, brincos e anéis, feitos de diversos
materiais, em maioria miçangas (Imagens 1 e 2). Ele comenta que todas as suas
peças custam dois reais e que faz bastante sucesso com seus clientes.
Na outra mesa ele exibe uma pilha de desenhos impressos, coloridos com lápis
de cor através de uma técnica muito peculiar de hachura, uma técnica de desenho
que se baseia em traçar linhas paralelas e próximas (Imagens 3 e 4). Todos os
desenhos apresentam essa variação gráfica surpreendente de pintura, em que as
cores se alternam através de um padrão de linhas paralelas e verticais. Ele me conta
que gosta de colorir desde a infância e que seus desenhos também estão à venda.
48
Essa entrevista foi construída de forma muito mais objetiva, com linguagem
bastante simples, a partir dos conhecimentos obtidos nas visitações anteriores, nas
quais pude investigar e constatar que uma parte dos moradores apresenta
dificuldades para se comunicar, além de comportamentos aparentemente
infantilizados. A quantidade de perguntas também é reduzida para que o diálogo seja
breve, não desgastando o entrevistado.
Mesmo que construída com uma linguagem bem simples, esta etapa da
pesquisa tem o propósito de conhecer a intimidade, os gestos, os corpos, os
sentimentos dos moradores, bem como tentar aprofundar alguns temas para se
pensar na arte com outros olhos. As respostas obtidas e as gesticulações observadas
ajudaram a me aproximar desta realidade, como também adquirir dados sólidos
anteriores à aplicação das oficinas. Alguns ficaram bastante empolgados para serem
chamados e gostavam de “chamar o próximo”, mostrando bastante seriedade e
respeito para aquele momento.
Tendo em vista as características muito específicas de cada morador e
moradora, considerei apresentar as respostas dos moradores de forma
50
m) “A arte tem a ver com o corpo, a mente… uma pintura corporal é uma arte.
qualquer coisa que tu desenhar… uma obra de arte que tu pegou de um artista, é uma
arte… o jeito de tu dançar, o corpo faz uma coisa… uma arte corporal com o corpo,
isso é uma arte... trabalha o corpo, trabalha a mente, isso é uma arte. A arte que os
artistas se expressam, em forma de um quadro com sentimento, aquilo é um
sentimento que o artista tem que ele expressa de forma exagerada, de forma mais
clara, pra mostrar pros espectadores como aquela arte é expressada. Isso que eu
acho que é arte”.
m) Comentou que é uma pergunta difícil, mas depois argumenta que arte é
fazer quadros, pinturas, assim como o que ele faz. "Pega o papelão, pintei colorido,
cortei, peguei o papel, colei, é arte minha, minha arte é assim, eu faço quadros”.
● Perguntei se ele se vê como um artista e ele me respondeu que sim: “faço
bijus, faço pulseira, faço anel, tudo fui eu que fiz, é a minha arte”;
● Disse que começou a trabalhar com bijuterias com uns 22 anos, quando
uma amiga comentou que seria uma fonte de renda interessante para ele, e ele se
apaixonou;
● Perguntei como ele se sentia fazendo bijuterias e ele disse que se sente
bem “calminho”. Relatou que em anos anteriores ficava nervoso e passava muito mal,
quando presenciava alguma briga na casa, chegando a desmaiar, mas que agora está
feliz, está sempre calmo, está bem agora.
m) Para ela, a arte é uma coisa boa, que traz alegria, mas não a toca muito.
Argumenta que é uma pessoa quieta.
muito agitada. Ele disse que a moradora em questão passaria alguns dias internada
e posteriormente retornaria para a Residência.
Foi possível observar que, salvo uma moradora entrevistada, grande parte dos
moradores perderam a noção do tempo em que estão na Residência, principalmente
por estarem a muitos anos dentro de instituições. A perda da noção do tempo é um
sintoma observado nas “instituições de sequestro” por Foucault, como já apresentado
anteriormente. Talvez o adestramento através da supressão do tempo apresentado
por Foucault não seja a verdadeira intenção da Residência, já que ela apresenta uma
proposta diferente das instituições totais. Contudo, é inegável que a permanência
ininterrupta desses corpos num mesmo espaço dificulta qualquer marco ou
experiência temporal. Os moradores da Residência são conscientes sobre estarem há
muitos anos dentro do sistema de acolhimento, mas não conseguem mais quantificar
esse tempo, em que alguns inclusive mostraram certa angústia quando feita a
pergunta.
Ao final das oficinas, tendo consciência que, pela natureza das partidas, em
algum momento seria inviável dar continuidade nas atividades, buscou-se durante
toda a pesquisa uma alternativa criativa que pudesse, de alguma forma, prolongar a
minha colaboração com a Residência e retribuir a contribuição e disponibilidade dos
moradores. Essa intervenção artística aconteceu através da criação de um mural,
melhor detalhado no capítulo 4.7, para que, seguindo os ideais e objetivos desta
dissertação, os moradores pudessem ter um espaço para se expressarem.
63
O sentimento no qual escrevo essa carta, aflora um dia antes da primeira oficina.
São pensamentos em um momento de espera, de planejamento e confesso que me
sinto um pouco ansiosa. A experiência de mediar uma atividade artística, que espero
ser construída e celebrada coletivamente, traz consigo tamanha responsabilidade e
comprometimento. Com a correria cotidiana, acabei me esquecendo da sensação de
um “fazer” artístico que não depende de uma finalidade, que não me seja demandado,
tampouco tenha um propósito avaliativo. Além disso, por ser formada em cinema e
atualmente trabalhar mais ativamente com o audiovisual, minhas práticas acabaram
se distanciando um pouco das artes plásticas, linguagem que algumas das atividades
das oficinas propõem.
Diante dessas inseguranças e inquietudes, principalmente por causa da minha
singela experiência com a tinta, que será um dos materiais base para a oficina de
amanhã, senti que precisava me reconectar com o “fazer” artístico de alguma forma.
Assim, em plena madrugada, sem muitos recursos à disposição, decidi tonalizar meu
cabelo. Sei que não foi convencional, mas foi tão gostoso experienciar novamente a
adrenalina do descontrole e contemplar a nuance das cores impregnadas nas minhas
mãos como terra, pelo tom acobreado que tenho usado. Observar os respingos que
manchavam as paredes. Tomar um banho, sentir a água na pele, ouvir os barulhos
da noite, perceber a vida acontecendo ao meu redor. Um ato simples, tão pequeno,
que me auxiliou a entrar nesse estado potente dentro do meu processo criativo, e que
ganha ainda mais força ao escrever essa carta.
A ideia de escrever este capítulo em cartas surgiu a partir dos diálogos com a
minha orientadora sobre Jean-Georges Noverre e sua obra Cartas Sobre a Dança, na
qual são trazidas inquietações sobre ser professor e sua postura enquanto mestre de
balé, diante da necessidade de um olhar mediador mais sensível (MONTEIRO, 1998).
Escrever sobre esse estado de espera, as reflexões que se passam aqui, numa busca
de poder contribuir com a melhor experiência possível, me alivia e me torna mais
potente. Quase como um respiro calmo, mas forte em meio ao caos. Um dos
incontáveis desdobramentos da arte.
Quando comecei a pensar sobre a metodologia da escrita em cartas, fiquei me
questionando sobre quem seria o destinatário. Num primeiro momento, pensei em
escrevê-las apenas para mim, sem um destinatário ao certo, com o intuito de organizar
66
meus pensamentos que, assim como a minha arte, surge e flui em um ritmo frenético
e fugaz. Mas conforme essas palavras surgem, percebo que não são cartas para mim,
são cartas para nós, artistas e mediadores que se preocupam em propiciar momentos
potentes e sensíveis para que as trocas aconteçam. Independentemente do motivo
que te trouxe aqui, as nossas linhas acabam por se entrelaçar, formando mais um nó
nessa grande trama da vida. Não somos mais quem éramos, a arte acaba de
possibilitar que esse encontro de mundos aconteça e nós renascemos deste encontro.
Nesse sentido, Freire (2011) pontua que o educador precisa ter a consciência de
que sua atuação parte do inacabado, do constante aprendizado, da reflexão crítica
sobre a sua prática, com comprometimento e respeito pelo ato de educar sem nunca
deixar de aprender, em uma jornada recíproca e coparticipativa (FREIRE apud
BORBA, 2013). E por isso, a pessoa que sou hoje vê imensa importância em falar
sobre os processos e sentimentos que antecedem as atividades de um mediador.
Todo o planejamento, preparação e entrega para garantir que o ambiente seja propício
para que as trocas aconteçam. Sinto-me verdadeiramente uma mediadora quando
tenho a segurança de que usei minhas melhores ferramentas para construir as
atividades que me proponho, criando assim um espaço de trocas. E é diante do desejo
de me tornar uma mediadora consciente, que reflete sobre sua atuação, bem como
os desdobramentos que dela surgem, que escrevo essas cartas.
67
uma temática específica ou a não imposição de uma finalidade possa tê-los deixado
dispersos, quando me lembro que a atividade se propõe a plena experimentação dos
materiais com enfoque na experienciação artística, volto a acreditar que essa tenha
sido a melhor escolha para iniciar a oficina.
A moradora “M” me perguntou se poderia usar suas mãos para pintar com a tinta
guache e, enquanto todos os outros se aventuravam fazendo desenhos de casas,
corações e pessoas, foi esse breve momento foi que me fez sentir confiança
novamente. Não me entenda mal. Não é que eu não estivesse animada com tudo o
que todos os outros estavam fazendo. Pelo contrário, eu fiquei muito animada em ver
como eles estavam se empenhando em experimentar as novas tintas e materiais. Mas
foi tão empolgante acompanhar aquela moradora, que até então estava sempre tão
cabisbaixa e indiferente, mergulhando seus dedos nos pequenos potes de guache e
lambuzando aquelas folhas com cores e mais cores, num movimento bastante
sensorial da experimentação.
Segui acompanhando os demais participantes em suas atividades. O morador “B”
optou por trabalhar com lápis de cor, por ser o material que já tinha maior intimidade,
e se dedicou ao mosaico multicolorido em hachura, sua marca registrada (Imagem 2).
A moradora “AM” disse que gostava de trabalhar com tinta e pediu ajuda com as
aquarelas. A moradora “LI” não demonstrou muito interesse num primeiro momento,
relatou estar com dor de cabeça, mas depois de observar o trabalho dos colegas, se
aproximou e começou a perguntar sobre o uso da aquarela também. Depois de um
tempo de atividade, ela começou a ficar mais sorridente e passou a escrever palavras
como “paz” e “luz” nas cartolinas coloridas (Imagem 6). Conversamos um pouco e ela
me disse que se sentia melhor. Busquei sempre incentivá-los com doses de elogios
para cada pequeno resultado, sempre evitando que alguém se sentisse excluído.
70
Me senti um pouco mais empolgada e mais tranquila pra essa segunda oficina. O
Helton tinha me confirmado mais cedo que dessa vez estava tudo certo com o ônibus
da prefeitura, que tinha ficado encarregada pelo transporte do grupo até o Centro de
Artes. Somado a isso, nesse momento, eu também já conhecia melhor o espaço em
que a atividade aconteceria, estava mais confiante na minha atuação e tinha a
hipótese de que a argila se mostraria mais interessante para os moradores.
Novamente, fui com antecedência até o Centro de Artes e organizei a sala com
muito carinho e atenção aos detalhes. Disponibilizei alguns elementos que pudessem
ser usados para interagir com a argila, como garfos, espátulas, palitos de churrasco,
algumas colheres e garfos. Levei também copinhos descartáveis caso fosse
necessário umedecer a argila e panos para limpar as mãos e superfícies.
Quando estava finalizando a montagem do ambiente, recebi a ligação do Helton
para informar a chegada dos moradores no local. Desta vez, quem os acompanhou
foi outra educadora, Carmen, que se apresenta muito sorridente e pergunta: “É você
a responsável pela atividade com essa galerinha aqui?”. Rimos, nos apresentamos,
cumprimentei os moradores e conversamos um pouco enquanto nos deslocávamos
até a sala.
Chegando no local da oficina, os moradores pareciam curiosos para saber qual
seria a atividade, imagino que essa expectativa sobre qual vai ser a “oficina do dia”
pode se tornar interessante com o tempo. Entrando na sala, estavam na mesa apenas
os materiais de apoio e, com calma, comecei a tirar dos blocos de argila da sacola e
revelar o que faríamos nesta atividade. Eles se questionavam em voz alta e tentavam
identificar o que seria aquele material na minha mão. Perguntei se eles gostavam de
mexer com argila e alguns prontamente disseram que sim, enquanto outros
pareceram indiferentes. Pedi para que eles se sentassem e se organizassem
livremente e distribuí algumas folhas para proteger minimamente as mesas.
Iniciei a atividade entregando os blocos de argila e comecei a falar um pouco sobre
o material. A partir de uma perspectiva freiriana, no intuito de aproximar o material da
realidade dos moradores e proporcionar uma atmosfera de maior intimidade, comecei
a falar sobre as semelhanças da argila com o barro e sobre como ela pode ser
facilmente encontrada nas encostas e leitos de rios. Depois, expliquei sobre a
75
Pude observar que, em ambas as oficinas, os momentos que separei para que os
moradores ficassem mais à vontade para criar algo a partir da proposta, acabavam
deixando-os confusos, talvez diante de tantas possibilidades. Lembrei-me, assim, da
primeira entrevista que fiz com o Helton, em que ele comenta que grande parte dos
moradores tiveram suas vidas quase que integralmente tuteladas. Diante do contato
76
que tenho construído com essas pessoas, não é difícil de assimilar o porquê de haver
certa resistência em lidar com a autonomia e a liberdade de escolha. Vivendo em um
ambiente em que até as refeições lhes são determinadas, realmente é compreensível
o dilema.
Evidencia-se aí, a importância de o educador/mediador/pesquisador conhecer a
realidade em que está se inserindo. Assim como Freire (1996, 1983, 2011) afirma que
para se construir uma educação libertadora e emancipadora, é essencial que se
entenda primeiro a realidade e o entorno do educando, assim também se potencializa
o trabalho do artista/mediador em suas atividades. As ideias de Freire surgem aqui
em concordância com a definição de mediador cultural de Nascimento (2018)
apresentada no primeiro capítulo deste trabalho. Ora, se no campo da arte o mediador
trabalha como uma ponte entre a obra e seu público, ou, como no meu caso, um
criador de oportunidades para que a democratização da arte aconteça, conhecer o
contexto em que suas atividades estão sendo inseridas, não apenas potencializa,
como também auxilia na escolha das ferramentas e métodos das práticas artísticas.
Tendo observado também que na atividade anterior o momento de
experimentação livre do material acabou se estendendo um pouco, deixando os
moradores levemente dispersos, dessa vez decidi reduzir o tempo para essa etapa da
atividade. Assim, quando os moradores começaram a ficar agitados, passei para o
segundo momento da oficina, propondo que eles modelassem algum personagem
para usarmos na atividade da próxima semana.
Diante das observações que acabo de citar, com o propósito de auxiliá-los na ideia
um tanto quanto genérica de se criar um personagem, mas com o cuidado de não os
persuadir ou manipular a um resultado, argumentei que esse personagem não
precisava ser necessariamente uma pessoa, que poderia ser um animal, uma planta
ou até mesmo um alimento que gostassem. A tática foi efetiva. Começaram a surgir
alguns bonecos, um peixe, algumas cobras, o oceano e até mesmo um ovo frito
(Imagens 12 e 13).
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Imagem 14 - Bauruzão
A terceira oficina, a que eu mais esperava, a única que realmente trabalha com a
minha área de formação. Esta terceira oficina foi sobre o Cinema de Animação e, em
uma brincadeira gostosa do destino, aconteceu no dia do meu aniversário. Assim
como nas outras vezes, iniciei o mergulho na atividade através do preparo da sala.
Dessa vez de um modo um pouco diferente, com telão, projetor e caixa de som.
Comprei algumas pipocas doces e salgadas, além de um refrigerante. Foi dia de festa!
Recebo a notificação de que os moradores chegaram.
Para minha surpresa, desta vez, outra educadora acompanhou a atividade, a Rita.
Me apresentei para ela e cumprimentei os moradores que, mais uma vez, chegavam
com certa agitação. A moradora “M”, assim como em outra vez, se levanta e corre
para me abraçar. Então, ela me relata que uma das moradoras havia “fugido” da
Residência, mas a educadora logo pontua que, na realidade, agora ela estava
morando com os pais. Alguns dos moradores se mostraram um pouco abatidos com
o surgimento do assunto, principalmente os que, ao longo do tempo, observei terem
uma ligação mais próxima com a moradora que se mudou. É muito importante que o
mediador esteja constantemente atento com o que acontece ao seu redor, para
minimizar ou contornar possíveis situações de descontrole, principalmente quando se
está lidando com realidades tão sensíveis e mudanças tão bruscas de humor quanto
as que venho observado. Essa percepção surge da minha experiência de convívio
com uma pessoa autista e a partir das recomendações do Helton. Tentei, então, mudar
um pouco a atenção do assunto e perguntei para a educadora se ela já conhecia o
Centro de Artes. Ela me relembra que chegou a cursar Artes na UFPel e passamos a
conversar um pouco sobre o prédio enquanto nos deslocávamos até a sala.
Chegando na porta, faço um pequeno mistério e digo que tenho uma surpresa
para eles. Eles estavam meio abatidos, mas quando abri a porta e eles viram as
comidas sob a mesa, vibraram sem parar. A moradora “AL” me abraçou de forma
bastante espontânea, o que me deixou muito surpresa. Pedi para que eles se
organizassem nas cadeiras e avisei que a atividade do dia teria início com uma sessão
de filmes em animação. Mais uma vez eles vibraram. Por fim, os comuniquei que era
o meu aniversário e eles ficaram boquiabertos. Alguns se levantaram e vieram me
abraçar, e aproveitei o momento para começar a distribuir as pipocas e servir o
refrigerante.
81
Confesso que criei certa expectativa para a oficina de hoje, já que nas entrevistas
individuais com os moradores, a música foi uma linguagem artística bastante citada e
exaltada. Logo no começo do dia o Helton me manda uma mensagem avisando que
tiveram algum problema com o ônibus e que estavam buscando outros meios de
comparecer na oficina. Com isso, achei mais prático me deslocar até a Residência e,
desta vez, fazer a atividade lá. Como a atividade envolvia essencialmente o
movimento corporal, levei apenas uma caixinha de som.
Chegando lá, a casa estava bem silenciosa, avistei apenas três moradores
circulando pelo espaço, alguns estavam na escola e outros estavam dormindo. Uma
educadora disse que tinha acontecido uma briga bem agressiva entre duas moradoras
e, por isso, também dava para sentir um clima de tensão e irritabilidade. Inicialmente,
isso me preocupou um pouco com a dinâmica da oficina, mas depois de refletir, notei
que uma atividade que envolve dança, teatro e música poderia ser bastante potente
para aquele momento.
Uma das vantagens de a atividade de hoje ter acontecido na Residência, é que os
moradores que antes não participavam por apresentarem alguma dificuldade motora
ou relacionada ao seu sofrimento, desta vez puderam comparecer. Convidei os
moradores que ali estavam para participar da proposta e tive o auxílio da educadora
para levar a moradora “LS” até o refeitório, onde aconteceria a atividade. A moradora
“LS” apresenta um grau mais severo de autismo, de modo que a sua comunicação é
em grande parte não verbal. Contudo é muito perceptível o quanto ela gosta de
música. Então, ter a sua presença ali conosco foi muito especial para o projeto. Junto
a ela, outros dois moradores aceitaram participar e, quando começamos a organizar
o espaço, um quarto morador acordou e se juntou a nós.
Iniciei a atividade propondo alguns alongamentos. Começando pelo rosto, sugeri
que fizéssemos algumas caretas, mexendo com as bochechas, sobrancelhas, olhos,
boca. Depois, alongando o pescoço, mexendo os ombros, braços, mãos, quadril,
pernas e pés. Tentei fazer todo esse processo com bastante calma, estimulando-os a
sentir seus corpos e os movimentos. A moradora “LC”, que estava participando da
oficina, está atualmente cursando licenciatura em Educação Física, na UFPel, e vi
nisso uma oportunidade de torna-la protagonista da atividade. Então, perguntei para
ela se teria algum exercício de alongamento que ela achasse pertinente para aquele
85
O morador “B” aproveitou para me mostrar a nova caixa organizadora usada para
guardar as bijuterias (Imagem 26). É visível o quanto ele tem evoluído em sua técnica.
Agora ele tem disponível uma maior variedade de miçangas e passou a criar conjuntos
de bijuterias com combinação de cores. Além disso, ele as tem colocado em
saquinhos personalizados para vender (Imagem 27). Claro que eu comprei algumas.
Por fim, conversei com a Julcinara, estagiária da psicologia que também
participava da comemoração. Ela me contou da sua iniciativa de pintar um mural em
uma das paredes da Residência, ideia que se alinhou bastante com a minha proposta
e decidimos executar juntas.
93
É importante para mim relatar a pintura desse mural, porque desde o começo, tive
muito receio do modo como aconteceria o término das atividades. Simplesmente
encerrar e ir embora? Como dito na conversa com o Helton, constantemente
acontecem distanciamentos e cortes de laços afetivos com os moradores, não apenas
familiar, várias pessoas passam pela casa com alguma proposta e simplesmente vão
embora. A vida desses moradores é extremamente fragilizada pela dinâmica de
perder as coisas que amam, até mesmo a casa e a família.
Como a minha pesquisa propõe atividades práticas, é insustentável que elas
ocorressem para sempre. Então eu gostaria de deixar algum tipo de desdobramento
artístico para os moradores, de modo que não fosse necessária a minha presença. Eu
já tinha cogitado a pintura de um painel, cheguei a conversar com o Helton, mas como
a Residência estava passando por um momento de transição na gestão, o assunto
acabou sendo esquecido.
Contudo, esse trabalho fala de encontros. Fala de linhas que se cruzam, não é
mesmo? Então, não foi à toa que depois de já ter encerrado as oficinas, bem quando
eu me preocupava com a despedida, meu caminho é atravessado por uma pessoa
que precisava justamente de alguém com conhecimento artístico para criar um mural.
A ideia foi criar um espaço para que eles pudessem se expressar, anotar coisas,
deixar recados ou qualquer outro tipo de interação necessária. A parede foi pintada
também por um voluntário, amigo da Julcinara, com uma tinta com efeito de “lousa”,
permitindo assim, uma secagem mais rápida e a possibilidade de escrever e apagar
em sua superfície.
A minha contribuição foi criar um lettering para compor esse mural. Para isso,
busquei algumas referências visuais e textuais. A frase precisava ser curta, de simples
compreensão e, de alguma forma, inspiradora. Optei pela escrita da frase:
“O amor mora aqui”.
Acredito que ela une tudo o que foi dito e visto, tanto neste trabalho quanto na
Residência. Ela fala sobre o amor entre os moradores, que mesmo com as brigas e
dificuldades, seguem cuidando uns dos outros. O amor dos funcionários, que zelam
pelo lugar, prezando não apenas pela manutenção do prédio físico, como também das
pessoas. O amor que dá importância ao ato de “morar”, desde a atenção ao local físico
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Imagem 31 - Eu e a Julcinara
Uma moradora estava bastante chateada, chorou, disse que sentia falta da família
e perguntou se podia escrever algumas palavras no mural. Pediu ajuda para escrever
“família eu te amo do fundo do meu coração”, juntamente com as palavras “fé”, “luz”
e “paz”. Depois disso, olhava orgulhosa para o mural, era visível a mudança de humor
através do simples ato de conseguir se expressar.
Enquanto pintávamos “O amor mora aqui”, começou uma discussão bastante
violenta entre duas moradoras. Depois que os ânimos se acalmaram, algumas
pessoas começaram a se aproximar e escrever os seus recados e desenhos. Algumas
frases foram: “Estamos aqui por vocês e para vocês”; “gratidão, amor, paz, respeito,
fé, são palavras boas para a mente e o coração”; “Se todos plantassem girassóis, as
guerras seriam apenas pétalas de amor”; além de alguns desenhos de paisagens e
de corações.
Um morador perguntou se podia ajudar a pintar o lettering e depois de alguns
conselhos sobre como lidar com a tinta fresca que escorria, ele pintou um dos R’s
(Imagem 32). Uma moradora comentou que o espaço seria interessante deixar
algumas anotações da rotina, a fim de organizá-la.
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6. Referências
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De acordo.
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Assinatura do responsável Assinatura do aluno(a)
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