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ANTOLOGIA LITÚRGICA

TEXTOS LITÚRGICOS, PATRÍSTICOS


E CANÓNICOS
DO PRIMEIRO MILÉNIO
ANTOLOGIA LITÚRGICA
TEXTOS LITÚRGICOS, PATRÍSTICOS
E CANÓNICOS
DO PRIMEIRO MILÉNIO

SECRETARIADO NACIONAL DE LITURGIA


F Á T IM A
IMPRIMATUR
Porto, 3 de Dezembro de 2003
40º aniversário da Sacrosanctum Concilium
? ANTÓNIO MARIA BESSA TAIPA
Presidente da Comissão Episcopal de Liturgia

Recolha de textos, tradução


e organização da obra:
JOSÉ DE LEÃO CORDEIRO

Reservados todos os direitos


de acordo com a legislação em vigor.

© Secretariado Nacional de Liturgia


Santuário de Fátima
Apartado 31
2496-908 FÁTIMA

Impressão e acabamento:
G.C.– Gráfica de Coimbra, Lda.

Depósito Legal nº 206388/04

ISBN 972-8286-71-6
APRESENTAÇÃO
O ensino da Liturgia exige, a professores e alunos, a consulta de inúme-
ras obras antigas. Prova disso é a frequente citação de tais obras nas notas de
rodapé dos manuais de Liturgia mais conhecidos e utilizados entre nós, antes
e depois do Concílio Vaticano II1. Acontece, porém, que nem todas as bibliote-
cas das nossas Escolas de Estudos Teológicos as possuem. Que fazer em tal
situação? Este livro é uma pequena resposta a tal pergunta.
Aliás, a cultura litúrgica do terceiro milénio não pode dispensar o
conhecimento do muito que os Padres da Igreja, os Concílios e outros autores
do primeiro milénio ensinaram ou decidiram a propósito da Liturgia. Pensamos
que a consulta desta antologia poderá prestar algum serviço a quem desejar
beber das nascentes mais primitivas deste grande rio.
Que escolhas fazer ao elaborar uma ANTOLOGIA LITÚRGICA DO PRIMEIRO
M ILÉNIO? Acabámos por seguir a orientação sugerida pelas notas de rodapé
dos compêndios de Liturgia, donde resultou uma colectânea simultaneamente
rica e prática, mas que é uma simples colectânea. Não se lhe peça o que ela não é.
Foi preciso traduzir a maior parte dos textos que se apresentam. Para o
fazer servimo-nos das suas versões eventualmente já existentes nas línguas
modernas, mas consultando sempre o original, a fim de esclarecer o sentido de
palavras ou frases obscuras. Neste trabalho, bem como na leitura e revisão de
todo o texto, o senhor Cónego Manuel da Silva Gaspar deu-nos uma ajuda
preciosa. Deus lhe pague.
Em nota citam-se alguns textos em latim e eventualmente algumas palavras
em grego. Fizemo-lo sempre que isso nos pareceu de particular interesse. O
ideal teria sido publicar todos os documentos nas suas línguas originais.
Durante a fase da recolha de textos foram-nos facultados alguns dos
Esquemas celebrativos distribuídos aos Padres do Concílio Vaticano II.
Apesar de tais esquemas pertencerem ao final do segundo milénio, achámos
que os devíamos incluir nas últimas páginas da colectânea, pelo interesse que
têm para o estudo das Liturgias Orientais.
Bendito seja Deus Pai. Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo. Ilumine-
-nos o Espírito Santo, o Dom de Deus. Mãe da Igreja, rogai por nós.
José de Leão Cordeiro

1
Antes do Vaticano II: D OM A NTÓNIO COELHO , Curso de Liturgia Romana, 2 vol., Mosteiro de Singeverga
1941; M. R IGHETTI , Storia Liturgica [BAC, Historia de la Liturgia, 2 vol.], Madrid 1955-1956; L.
E ISENHOFER , Compêndio de Liturgia Católica, Herder, Barcelona 1956; I. H. D ALMAIS, Initiation à la
Liturgie, Desclée, Paris 1958; J. A. J UNGMANN , Missarum Sollemnia, 2 vol. [BAC, El Sacrificio de la
Misa], Madrid 1959; A. G. MARTIMORT , L’Église en Prière, Desclée, Paris 1961; J. A. J UNGMANN , A Liturgia
da Igreja, Livraria do Apostolado da Imprensa, Porto 1962.
Depois do Vaticano II: A. G. MARTIMORT , A Igreja em Oração, Mosteiro de Singeverga 1965; S. MARSILI ,
Anámnesis, 8 vol., Marietti, Torino 1974; A. G. M ARTIMORT , L’Église en Prière (édition nouvelle), 4 vol.,
Desclée, Paris 1984; J. A. A BAD I BÁÑEZ -M. G ARRIDO B ONAÑO , Iniciación a la Liturgia de la Iglesia,
Palabra, Madrid 1988; A. G. Martimort, A Igreja em Oração, 4 vol., Vozes, Petrópolis 1989; S. MARSILI ,
Anámnesis, 8 vol., Paulinas, São Paulo 1989; D. B OROBIO , La celebración en la Iglesia, 3 vol., Sigueme,
Salamanca 1991; J. L. M ARTÍN , La Liturgia de la Iglesia, BAC, Madrid 1994; M. AUGÉ , Liturgia, Centre de
Pastoral Litúrgica, Barcelona 1995; A. J. C HUPUNGCO, Scientia Liturgica, 5 vol., Pontificio Istituto Liturgico
Sant’Anselmo, Piemme, Roma 1999-2000.
LISTA DAS SIGLAS CITADAS EM NOTA

AAA Acta Apostolorum Apocrypha, R. LIPSIUS-M. BONNET M., 3 vol., Leipzig


1899-1959.
AAS Acta Sanctorum, Bruxelas 1894.
AI Livraria Apostolado da Imprensa, Porto 1955.
BA Bibliotheca Augustiniana.
BAC Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid 1940 s.
BB Breviarium Bracarense, 4 vol., Roma 1920-1922.
CA Constitutiones Apostolorum, F. X. FUNK, Paterbornae 1905, Turim 1962 2.
CCL Corpus Christianorum collectum a monachis O.S.B. abbatiae S. Petri in
Steenbrugge, Series Latina. Turnhout-Brepols 1954 s.
CECSL Consilium ad exsequendam Constitutionem de sacra Liturgia.
CH Canones Hippolyti, in J.M. HANSSENS, La Liturgie d’Hippolyte, Roma 1970.
CIG Corpus Inscriptionum Graecorum, A. KIRCHOFF -H. R OCHL, 4 vol. Berlim
1825-1877.
CLV Centro Liturgico Vincenziano, edizioni liturgiche, Roma 1996.
CNE Città Nuova Editrice.
COLIBRI Edições Colibri, Lisboa 1998.
Cp cod. Parisinus 12052.
CPL Clavis Patrum Latinorum [SE], E. DEKKERS, Brugge 1961.
CSEL Corpus scriptorum ecclesiasticorum Latinorum, edictum consilio et
impensis Academiae litterarum... Vindobonensis, Vienne, Tempsky 1866 s.
Cv Cod. Vat. Pal. F. 6, 7.
DA Didascalia Apostolorum, F. X. FUNK, Paterbornae 1905.
DACL Dictionnaire d’archéologie chrétienne et de liturgie, publicado sob a direcção
de F. CABROL , H. LECLERQ (et H. MARROU), Letouzey et Ané, 30 vol., Paris
1907-1953.
DAW Denkschriften der kaiserl. Akademie der Wissenschaften 19, Viena 1870.
DDC Dictionnaire de Droit Canonique, publicado sob a direcção de R. N AZ,
Paris 1935 s.
DENZ Enchiridion symbolorum, definitionum et declarationum de rebus fidei et
morum, quod primum edidit H. DENZINGER et quod funditus retractavit...
A. S CHÖNMETZER, 38ª ed., Barcelona, Herder 1999.
DTC Dictionnaire de Théologie Catholique, 15 vol., Paris, 1909-1950. 1971-
1972.
8 ÍNDICE GERAL

EM Eu) x olo/ g ion to\ me/ g a (=Roma 1873); cf. Pontificio Istituto Liturgico
Sant’Anselmo, Scientia Liturgica IV, direzione di A. J. CHUPUNGCO, Roma
2000.
ERP Epistulae Romanorum Pontificum... a S. Hilaro usque ad Pelagium II, A.
THIEL, Braunsberg 1868.
ES Euchologium Serapionis, F. X. FUNK, Paterbornae 1905, Turim 19622.
FCG Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1991.
FF Faculdade de Filosofia, Braga 1990.
GC Gráfica de Coimbra, Coimbra.
GCS Die Griechischen Christlichen Schriftsteller, der ersten Jahrhunderte,
Leipzig 1897.
HF Historia Francorum, W. ARNDT-B. KRUSCH-M. BONNET, MGH-Srm I, 1884-
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IN-CM Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa 2000.
LH Liturgia das Horas.
LMD La Maison-Dieu, Cerf, Paris 1945 s.
LO Liber Ordinum, en usage dans l’Église wisigothique et mozarabe d’Espagne
du V au XI siècle, M. FÉROTIN, Didot, Paris 1904, 19692.
LP Liber Pontificalis, L. DUCHESNE (2ª ed. por C. V OGEL, E. DE B OCCARD), 3
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LQF Liturgiewissenschaftliche Quellen und Forsctungen, Münster 1928 s.
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HBS 53, London 1920.
MB Missale Bracarense, Roma 1924.
MFLP Missal Festivo Latino-Português.
MG Missale Gothicum, [Rerum ecclesiasticarum documenta, series maior,
Fontes, 5], H. M. BANNISTER, Londres, 1917-1919; L. C. MOHLBERG , Roma,
Herder 1957, 19612.
MGH-Cak Monumenta Germaniae Historica, S. III – Concilia Aevi Karolini, II, 1906.
MGH-Ep Monumenta Germaniae Historica, I – Epistulae Merovingici et Karolini
Aevi, 1892. 19572.
MGH-Es Monumenta Germaniae Historica, I - Epistulae selectae, 1892.
MGH-Le Monumenta Germaniae Historica, II – Leges, S II - Capitularia Regum
Francorum, 1897.
MGH-Srm Monumenta Germaniae Historica, I - Scriptores Rerum Merovingiarum,
1885 s.
MGH-Ss Monumenta Germaniae Historica, IX – Scriptores, 1892.
MHM Missale Hispano-Mozarabicum, Ordinario de la Misa del Rito Hispano-
Mozárabe – Oferencio – CONFERENCIA EPISCOPAL ESPAÑOLA - Arzobispado
de Toledo 1991.
LISTA DAS SIGLAS 9

OCP Orientalia Christiana Periodica, Instituto Oriental, Roma 1935 s.


ODMA Ordo Divinae Missae Armenorum, Roma 1644.
OR Ordines Romani, M. ANDRIEU, 5 vol., Louvain 1931-1961. 1960-19652.
OS Orient Syrien, 12 vol., Paris 1956-1967.
PAULISTAS Colecção Patrística, Lisboa 1960 ss.
P AULUS Paulus, S. Paulo 1995.
PG J. P. MIGNE, Patrologiae cursus completus, Series graeca, 161 vol., Paris-
Montrouge 1857-1866.
PL J. P. MIGNE, Patrologiae cursus completus, Series latina, 221 vol., Paris-
Montrouge 1844-1864.
PLS Patrologiae Latinae Supplementum, edid. A. Hamman, Paris 1958-1974.
PO Patrologia Orientalis, editada primeiro por R. GRAFFIN -F. NAU, Firmin-
-Didot, Paris, e depois por Turnhout, Brepols 1903 s.
PRG Pontificale Romano-Germanicum, C. VOGEL-R. ELZE, Le Pontifical romano-
germanique du Xè siècle, 3 vol. (ST 226, 227, 269), Città del Vaticano
1963-1972.
PS Patrologia Syriaca, R. GRAFFIN , Paris 1894-1907.
RB Revue Biblique.
REDMF Rerum ecclesiasticarum documenta..., Series maior, Fontes, Herder, Roma
1955 s.
RM R IMSKI M ISAL , slovènskim Jezikom Presv. G. N. Urbana Papi VIII,
Povelenjem Izdan; Missale Romanum, slavonico idiomate, Romae, Typis
Polyglottis Vaticanis 1927.
SBR Sancti Benedicti Regula, LINDERBAUER (FP 17), Bonn, 1904.
SCH Sources Chrétiennes, Colecção dirigida por H. DE LUBAC-J. DANIELOU (depois
por C. M ONDÉSERT), Cerf, Paris 1942 s.
SE Sacris Erudiri, Steenbrugge-Brugge 1948 s..
SA Sacramentarium Ambianensi, Ephemerides Liturgicae, Roma 1927.
SGeA Sacramentarium Gelasianum Augiense, A. D OLD -A. B AUMSTARK, Das
Palimpsest Sakramentar im Codex Augiensi, Beuron 1925; E. L ODI ,
Enchiridion Euchologicum Fontium Liturgicorum, Roma 1979.
SGeE Sacramentarium Gelasianum Engolismense, P. CAGIN , Le Sacramentaire
Gélasien d’Angoulême, Angoulême 1918; E. L O D I , Enchiridion
Euchologicum Fontium Liturgicorum, Roma 1979.
SGeG Sacramentarium Gellonense, Paris, Bibl. Nat., ms. Lat. 12048, A. DUMAS,
Turnhout, Brepols 1981 (CCL 159); P. CAGIN , Bibl. EL. IV, Roma, 1938;
E. M ARTÈNE , De antiquis Ecclesiae ritibus; E. L ODI , Enchiridion
Euchologicum Fontium Liturgicorum, Roma 1979.
10 ÍNDICE GERAL

SGeP Sacramentarium Gelasianum Pragense, A. D O L D , Das Prager


Sakramentar, Beuron 1949; E. LODI , Enchiridion Euchologicum Fontium
Liturgicorum, Roma 1979.
SGeSg Sacramentarium Gelasianum Sangallense, L. C. M O H L B E R G , Das
Frankische Sakramentarium Gelasianum, in: Alemanischer Ueberlieferung,
Münster 1939; E. LODI, Enchiridion Euchologicum Fontium Liturgicorum,
Roma 1979.
SGeV Sacramentarium Gelasianum Vetus, Liber sacramentorum Romanae
Aeclesiae ordinis anni circuli Cod. Vat. Reg. Lat. 316/Paris. Bibl. Nat.
7193, L. C. MOHLBERG-L. EIZENHÖFER-P. SIFFRIN [Rerum ecclesias-ticarum
documenta..., Series maior, Fontes, 4], Herder, Roma 1960. 19682.
SGrH Sacramentarium Gregorianum Hadrianum, J. DESHUSSES, Le Sacramentaire
Grégorien, [Spicilegium Friburgense 12], Fribourg 1971.
SVe Sacramentarium Veronense, Manuscrito de Vérona, Bibl. Capitolare,
LXXXV [80], L. C. M O H L B E R G -L. E I Z E N H O F E R -P. S I F F R I N [Rerum
ecclesiasticarum documenta, Series maior, 1], Herder, Roma 1955-1956,
19782.
ST Studi e Testi, Roma e depois Città del Vaticano, Biblioteca Apostólica
Vaticana 1900 s.
TD Testamentum Domini, I. RAHMANI , Moguntia 1899.
VC Vigiliae Christianae, Amsterdam 1947 s.
VERBO Verbo, Lisboa, 1974 ss.
LISTA DOS AUTORES CITADOS EM NOTA

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ALMEIDA ................... F. A LMEIDA, História da Igreja em Portugal, 4 vol., Barcelos
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ANDRIEU-COLLOMP ... M. ANDRIEU-P. COLLOMP , Fragments sur papyrus de l’Anaphore
de saint Marc, em Revue de Sciences Religieuses 8, Estrasburgo
1928, 489-515).
AUBIER ..................... A UBIER , Oeuvres complètes du Pseudo-Denys L’Aréopagite,
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AUDET ...................... J. P. AUDET, La Didaché – Instruction des Apôtres, Paris 1958.
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BOON ........................ A. BOON, Pachomiana latina. Texte latin de S. Jerôme, Louvain
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BORETIUS .................. A. B ORETIUS, Capitularia regum Francorum I, 25, a partir de
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BOROBIO ................... D. BOROBIO , La celebracion en la Iglesia, 3 vol., Sigueme,
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BOTTE ....................... B. BOTTE, La Tradition Apostolique d’Hippolyte de Rome. Essai
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BOTTE ....................... B. BOTTE, Problèmes de l’anaphore syrienne des apôtres Addaï
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BOUYER .................... L. BOUYER, Eucharistie, Desclée, Paris 1968.
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BRUNS ....................... H. T. BRUNS, Canones Apostolorum et Conciliorum, Berlim 1839.
BRUZZA ..................... BRUZZA , Regesto della Chiesa di Tivoli, 15-17.
BUENO ...................... R. BUENO, Actas de los Mártires, BAC 75, Madrid 1968.
CABIÉ ........................ R. CABIÉ, La Pentecôte. L’évolution de la cinquentaine pascale
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12 ÍNDICE GERAL

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DORESSE .................... J. DORESSE, Noveaux textes gnostiques coptes...
DORESSE-LANNE ........ J. DORESSE-E. LANNE , Un témoin archaïque de la Liturgie copte
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HAMMAN ................... A. HAMMAN, Prières des premiers chrétiens, Paris 1952. 19812.
HÄNGGI -PAHL ........... A. HÄNGGI -I. PAHL, Prex Eucharistica, textus e variis liturgiis
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HANSSENS .................. J. H. HANSSENS, Amalarii ep. opera liturgica omnia I (Opera
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LISTA DOS AUTORES 13

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H EIMING ................... O. H EIMING, Anaphora syriaca sancti Iacobi fratris Domini, em
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H OHL ........................ E. HOHL, Historia Augusta, Scriptores, 2 vol., Leipzig 1927


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HUBNER .................... HUBNER , Inscriptiones Hispaniae Christianae, 3.


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JUNGMANN ................ J. A. JUNGMANN, A Liturgia da Igreja, Livraria do Apostolado
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KRUEGER ................... P. KRUEGER, Codex lustiniani.
LAMBOT .................... C. LAMBOT, Colligera fragmenta, Beuron 1952;
LAMBOT .................... C. LAMBOT, Novos Sermões de S. Agostinho, RB 49. 62. 1937 e
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LAMY ........................ TH. J. LAMY, Ephraem Hymni et Sermones, 4 vol., Malines 1882-
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LANDERSDORFER ........ S. LANDERSDORFER, Tiago de Sarug, Homilia sobre a memória
dos defuntos e o sacrifício eucarístico, Bibliotek der
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LE BRUN ................... P. L E BRUN, Explication littérale, historique et dogmatique des
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LEFORT ...................... LEFORT, 1941.
LIPSIUS-BONNET ........ R. L IPSIUS -M. B ONNET , Acta apostolorum Apocrypha: Acta
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LODI ......................... ENZO LODI , Enchiridion Euchologicum Fontium Liturgicorum,
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LOWE ........................ E. A. LOWE, The Bobbio Missal, A Gallican MassBook, HBS 53,
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14 SIGLAS E ABREVIATURAS

MABILLON ................. MABILLON, Iter Germanicum, ed. Veteres annales, 1685.


MALDONADO .............. L. MALDONADO , La Plegaria Eucaristica. Estudio de teologia
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450).
M ANSI ...................... J. D. MANSI, Sacrorum conciliorum nova et amplissima collectio,
Florença-Veneza, 31 vol., 1759-1827; reimpressão e
continuação, 53 vol. Paris-Leipzig 1901-1927, Graz 19602.
M ARSILI .................... S. MARSILI, Anàmnesis, 8 vol., Marietti, Torino 1974 [Paulistas,
8 vol., São Paulo 1989].
M ARTÈNE .................. E. MARTÈNE, De antiquis Ecclesiae ritibus, 4 vol., Lyon-Rouen
1690-1706, Hildesheim 1967-19692.
M ARTIMORT .............. A. G. M ARTIMORT, L’Église en Prière, Desclée, Paris 1961 [Ora
et Labora, Singeverga 1965].
M ARTIMORT .............. A. G. M ARTIMORT, L’Église en Prière (Nouvelle édition), 4 vol.,
Desclée, Paris 1984 [Vozes, 4 vol., Petrópolis 1989].
M ARTÍN .................... J. L. MARTÍN, La Liturgia de la Iglesia, BAC, Madrid 1994.
MERCIER ................... B. C. MERCIER , La sainte liturgie de saint Jacques. Édition
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orientalis, t. XXVI 2, Paris 1948.
MOHLBERG ................ L. C. MOHLBERG, Missale Gothicum, [Rerum ecclesiasticarum
documenta, series maior, Fontes, 5], Roma 1957, 19612.
MOHLBERG ................ L. C. MOHLBERG, Sacramentarium Veronense, Herder, Roma
1956, 19662.
MOH -EIZ-SIF ............ L. C. MOHLBERG-L. EIZENHÖFER-P. SIFFRIN, Liber sacramentorum
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[Rerum ecclesiasticarum documenta..., Series maior, Fontes, 4]),
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NIESE ........................ B. NIESE, Berlim 1887.
PAUTIGNY ................. L. PAUTIGNY, Apologia I, Picard 1904.
P ÉRIER-DIDOT ........... J. PÉRIER-A. DIDOT, 1912
PERTZ ........................ M. G. PERTZ, Legum, III, 57
PITRA ........................ J. B. P I T R A , Iuris Ecclesiastici Graecorum historia et
monumenta, 2 vol., Roma 1864-1868.
P OUPARDIN ................ P O U PA R D I N , Picard 1913, G R E G Ó R I O D E T O U R S , Historia
Francorum
PREUCHEN-GOLTZ ...... E. PREUCHEN-E. G OLTZ,
QUASTEN ................... J. QUASTEN , Patrologia I, BAC 206, Madrid 1961.
QUASTEN ................... J. QUASTEN, Patrologia II, BAC 217, Madrid 1973.
LISTA DOS AUTORES 15

TONNEAU ................... R. T ONNEAU , Les Homélies catéchétiques de Théodore de


Mopsueste (ST 145), Città del Vaticano 1949.
RAES ......................... A. RAES , Anaphorae Syriacae, 2 vol., Roma 1940.
RAHMANI .................. I. RAHMANI, Studia syriaca, Scharfé 1908
RAHMANI .................. I. RAHMANI, Testamentum Domini, Moguntia 1899.
RENAUDOT ................ E. RENAUDOT, Liturgiarum orientalium collectio, Paris 1716; 2ª
ed. mais corrigida, 2 vol., Frankfurt 1847.
RICHARD ................... M. R ICHARD, in Symbolae Osloenses, Oslo 1956.
RIGHETTI ................... M ÁRIO R IGHETTI, Storia Liturgica, 2 vol., BAC, Madrid 1955-
1956.
RITZER ...................... K. RITZER, Le mariage dans les Églises chrétiennes, Cerf, Paris
1970.
ROBERTS-CAPELLE .... C. H. ROBERTS-B. CAPELLE, An early euchologium,the Der-Baliseh
papyrus enlarged and reedited, Louvain 1949.
RUINART ................... TH. RUINART , Acta primorum Martyrum Sincera, Ratisbonne
1859.
SACHAU ..................... SACHAU III, Corpus juris do Metropolita Isso, Berlim 1914.
SAUGET ..................... J. M. SAUGET, em Anaphorae syriacae, t. 2, fasc. 3, 1973.
SCHMITZ .................... H. J. SCHMITZ, Die Bussbücher und die Bussdisciplin der Kirche:
Penitencial de Finião ou Vinião, 497-509; Penitencial de Beda,
556-562; Livro penitencial de São Columbano, 594-602;
Poenitentiale Vallicellanum III; I, Moguntia 1883; II, Düsseldorf
1898, Graz 1958 2.
SCHUSTER .................. M. SCHUSTER, Leipzig 1933.
SEEBASS ..................... SEEBASS, Columbano, Regula
SILVA-TAROUCA ........ S ILVA-TAROUCA, Fontes hist. eccle. M. Aevi, 1.
T HIEL ........................ A. THIEL, Epistulae Romanorum Pontificum... a S. Hilaro usque
ad Pelagium II, Braunsberg 1868.
TONDELLI .................. L. T ONDELLI, Le Ode di Salomone, Roma 1914.
TURNER ..................... C. H. T U R N E R , Ecclesiae Occidentalis monumenta iuris
antiquissima, 1/II/III, Oxford 1930.
VASCONCELOS ............ J. L. V ASCONCELOS, O Archeólogo Português, Lisboa 1897.
VEILLEUX .................. A. V EILLEUX , La liturgie dans le cénobisme pachômien au
quatrième siècle, Studia Anselmiana 57, Roma 1968.
VERHEIJEN ................. L. V E R H E I J E N , Ordo Monasterii, Paris 1967, Abbaye de
Bellefontaine 19802; BAC 551, 550-590).
VERHEIJEN ................. L. VERHEIJEN, Regula ad servos Dei, Paris, 1967, Abbaye de
Bellefontaine 1980 2.
VIVES ........................ J. VIVES, España cristiana, Concílios visigóticos e hispano-
romanos, Barcelona-Madrid 1963.
VOGEL ....................... C. VOGEL, Le pécheur et la pénitence dans l’Église ancienne,
Paris 1966.
16 SIGLAS E ABREVIATURAS

VOGEL ....................... C. VOGEL, Le pécheur et la pénitence dans l’Église au Moyen


Âge, Paris 1969.
VOGEL-ELZE ............. C. VOGEL-R. ELZE, Le Pontifical romano-germanique du Xè siècle,
3 vol., Città del Vaticano 1963-1972.
WASSERSCHLEBEN ...... F. W. WASSERSCHLEBEN, Die Bussordnungen der abendländischen
Kirche: Penitencial de Finião ou Vinião, 108-119; Tratado das
equivalências penitenciais, 139-140; Penitencial de Beda, 220-
230; Poenitentiale Haligtarii, 250-260; Livro penitencial de São
Columbano, 352-360; Penitencial de Cumméan, 462-463;
Penitencial do Pseudo-Teodoro, 622; Halle 1851, Graz 19582.
WASSERSCHLEBEN ...... F. W. WASSERSCHLEBEN, Liber penitentialis, Halle 1851, Graz
19582.
WASSERSCHLEBEN ...... F. W. WASSERSCHLEBEN, Penitencial de Beda, Halle 1851, Graz
19582.
WASSERSCHLEBEN ...... F. W. WASSERSCHLEBEN, Penitencial de Cumméan; Halle 1851,
Graz 19582.
WASSERSCHLEBEN ...... F. W. WASSERSCHLEBEN, Penitencial de Finião ou Vinião, Halle,
1851, Graz 19582.
WASSERSCHLEBEN ...... F. W. WASSERSCHLEBEN, Penitencial do Pseudo-Teodoro, Halle
1851, Graz 19582.
WASSERSCHLEBEN ...... F. W. WASSERSCHLEBEN, Poenitentiale Haligtarii, Halle 1851, Graz,
19582.
WASSERSCHLEBEN ...... F. W. WASSERSCHLEBEN, Tratado das equivalências penitenciais,
Halle 1851, Graz 19582.
WILMART .................. A. WILMART, Epistula Iohannis diaconi ad Senarium, Analecta
Reginensia [ST 59], Città del Vaticano 19331. Modena 1984 2.
ZEPOS ....................... J. ZEPOS, Jus graeco-romanum, 3 vol., Atenas 1931.
ZIWSA ....................... C. ZIWSA, De gesta apud Zenophilum, in CSEL, 26; M UNÁCIO
FELIX, Actas Oficiais, BAC 75, Madrid 1975.
AUTORES E OBRAS DA ANTOLOGIA
POR ORDEM ALFABÉTICA

A C
A doutrina dos Apóstolos (s. IV) .... 575 Cânones Apostólicos (s. IV) ......... 569
Abade Pambo (s. VII) .................... 1363 Cânones de Hipólito (s. IV) .......... 368
Actas dos mártires (s. II) ............. 161 Carlos Magno (s. IX) ..................... 1458
Actas dos mártires (s. III) ............. 317 Carta a Diogneto (s. II) ................. 156
Actas dos mártires (s. IV) ............. 580 Carta Cornutiana (s. V) ................. 1056
Actos apócrifos (s. II) ................... 164 Carta dos Apóstolos (s. II) ........... 145
Actos apócrifos de Tomé (s. III) .. 320
Cassiodoro (s. VI) .......................... 1218
Afraates, o Sábio Persa (s. IV) ..... 360
Catholicos Isaac Sahak (s. V) ........ 994
Agostinho de Hipona (s. V) .......... 691
Cesário de Arles (s. VI) ................. 1178
Alcuíno (s. IX) ............................... 1450
Cipriano (s. III) .............................. 273
Amalário de Metz (s. IX) ............. 1468
Ambrosiáster (s. IV) ...................... 466 Cirilo de Alexandria (s. V) ............. 998
Ambrósio de Milão (s. IV) ............ 516 Cirilo de Jerusalém (s. IV) ............ 470
Anáforas Orientais (s. V) .............. 1103 Clemente de Alexandria (s. III) ..... 176
Anastácio Sinaíta, abade (s. VIII) . 1367 Clemente Romano (s. I) ................. 84
André de Creta (s. VIII) ................ 1376 Códice de Justiniano (s. IV) .......... 578
Antigos documentos litúrgicos Códice de Teodósio (s. IV) ............ 578
(s. V) ......................................... 1158 Columbano (s. VI) .......................... 1227
Aristides de Atenas (s. II) ............. 124 Comentário à Carta
Arnóbio, o Jovem (s. V) ................ 1007 de Inocêncio I (s. VIII) ............ 1444
As Constituições Apostólicas Comodiano (s. IV) .......................... 326
(s. IV) ........................................ 409 Comunidades pacomianas (s. IV) . 365
Astério, o Sofista (s. IV) ............... 359 Concílios (14) (s. IV) ..................... 550
Atanásio de Alexandria (s. IV) ...... 385 Concílios (15) (s. V) ...................... 1046
Autor anónimo (s. X) .................... 1499
Concílios (30) (s. VI) ..................... 1236
Avito de Viena (s. V) ..................... 649
Concílios (16) (s. VII) ................... 1352
Concílios (9) (s. VIII) .................... 1439
B
Concílios (12) (s. IX) .................... 1479
Barónio (s. IX) ............................... 1457 Concílios (2) (s. X) ........................ 1498
Basílio de Cesareia (s. IV) ............. 399 Corpo de direito
Basílio de Selêucia (s. V) ............... 1054 do Metropolita Isso (s. VIII) . 1438
Beda Venerável (s. VIII) ................ 1374 Crodegango de Metz (s. VIII) ....... 1434
Bento de Núrcia (s. VI) ................. 1211 Cromácio de Aquileia (s. V) .......... 587
Bonifácio (s. VIII) .......................... 1370 Cumméan (s. VII) ........................... 1364
18 ÍNDICE GERAL

D Gregório de Nissa (s. IV) .............. 514


Gregório de Tours (s. VI) .............. 1229
De uma antiga homilia de
Sábado Santo (s. IV) ................ 576
H
Didaqué ou Doutrina dos Doze
Apóstolos (s. I) ....................... 93 Haligtário, bispo de Cambraia
Didascália dos Apóstolos (s. III) . 244 (s. IX) ....................................... 1464
Dídimo, o Cego (s. IV) .................. 549 Hermas (s. II) ................................. 125
Dionísio de Alexandria (s. III) ...... 313 Hilário de Poitiers (s. IV) .............. 380
Hincmar de Reims (s. IX) ............. 1485
E Hino lucernar (s. III) ...................... 315
Efrém, diácono (s. IV) ................... 393 Hipólito de Roma (s. III) .............. 228
Elbon, bispo de Reims (s. IX) ...... 1463
Epifânio de Salamina (s. V) ........... 585 I
Epístola de Barnabé (s. II) ............ 117 Igreja de Esmirna (s. II) ................. 132
Etéria (s. IV) ................................... 446 Ildefonso de Toledo (s. VII) .......... 1348
Eucológio Barberini (s. VIII) ......... 1448 Ilídio de Noyon (s. VII) ................ 1345
Eucológio bizantino (s. VIII) ........ 1447 Imperador Justiniano (s. VI) ......... 1170
Eusébio de Alexandria (s. VI) ........ 1161 Inácio de Antioquia (s. II) ............. 101
Eusébio de Cesareia (s. IV) ........... 329 Inscrições cristãs (8) (s. I) ............ 100
Eutíquio de Constantinopla Inscrições cristãs (2) (s. II) ........... 160
(s. VI) ........................................ 1224 Inscrições cristãs (7) (s. III) ......... 316
Evágrio Escolástico (s. VII) .......... 1288 Inscrições cristãs (10) (s. IV) ....... 579
Inscrições cristãs (5) (s. V) ........... 1159
F
Inscrições cristãs (5) (s. VI) ......... 1281
Fausto de Riez (s. V) ..................... 1060 Inscrições cristãs (9) (s. VII) ........ 1365
Ferrando de Cartago (s. VI) .......... 1210 Ireneu de Lião (s. III) ..................... 167
Filipe Bardesane (s. III) ................ 185 Isidoro de Pelúsia (s. V) ................ 974
Fílon de Alexandria (s. I) ............... 82 Isidoro de Sevilha (s. VII) ............. 1315
Flávio Josefo (s. I) ......................... 83
Floro de Lião (s. IX) ...................... 1474 J
Frutuoso de Braga (s. VII) ............ 1343 Jerónimo (s. V) ............................... 656
Fulgêncio de Ruspas (s. VI) .......... 1172 João Cassiano (s. V) ...................... 977
Fúrio Dionísio Filócalo (s. IV) ..... 366 João Crisóstomo (s. V) .................. 592
João Damasceno (s. VIII) .............. 1378
G
João Diácono (s. V) ....................... 1065
Gaudêncio de Bréscia (s. V) .......... 641 João Jejuador (s. VI) ...................... 1278
Genádio de Marselha (s. VI) ......... 1165 João, diácono romano (s. IX) ........ 1484
Gerôncio (s. V) ............................... 995 Jonas de Bóbio (s. VII) .................. 1344
Grande Eucológio da Igreja Jonas de Orleães (s. IX) ................ 1466
bizantina (s. VIII) .................... 1445 Júlio Fírmico Materno (s. IV) ....... 370
Gregório de Nazianzo (s. IV) ........ 498 Justino (s. II) .................................. 137
AUTORES E OBRAS 19

L O

Lactâncio (s. IV) ............................. 327 Odes de Salomão (7) (s. II) ........... 147
Lamprídio (s. III) ........................... 272 Optato de Milevo (s. IV) .............. 508
Lanfranco (s. X) ............................. 1503 Orações Eucarísticas Ocidentais
Leão VI, o Sábio (s. X) .................. 1487 (s. V) ........................................ 1097
Ordines Romani (s. VIII) .............. 1381
Leôncio de Constantinopla
Orígenes (s. III) .............................. 251
(s. VI) ........................................ 1220
Libellus Pseudo-Ambrosiano
P
(s. IV) ........................................ 466
Liber Ordinum (s. VI) .................... 1263 Paciano de Barcelona (s. IV) ......... 509
Liber Pontificalis (s. VII) .............. 1321 Pacómio (s. IV) .............................. 364
Liciniano de Cartago (s. VII) ......... 1289 Paládio (s. V) .................................. 971
Liturgias Ocidentais Antigas Papa Adriano I (s. VIII) ................ 1438
(s. X) ......................................... 1505 Papa Celestino I (s. V) .................. 972
Liturgias Ocidentais Actuais Papa Dâmaso (s. IV) ...................... 467
Papa Estêvão II (s. VIII) ............... 1434
(s. XX) ...................................... 1626
Papa Félix II (III) (s. V) ................ 1064
Liturgias Orientais Antigas
Papa Gelásio I (s. V) ..................... 1073
(s. X) ......................................... 1539
Papa Gregório II (s. VIII) .............. 1373
Liturgias Orientais Actuais
Papa Gregório III (s. VIII) ............ 1378
(s. XX) ...................................... 1543 Papa Gregório Magno (s. VII) ...... 1290
Livros Litúrgicos (s. IX) ............... 1453 Papa Inocêncio I (s. V) .................. 651
Papa João III (s. VI) ...................... 1224
M Papa Leão IV (s. IX) ...................... 1472
Papa Leão Magno (s. V) ................ 1019
Mário Vitorino (s. IV) ................... 379
Papa Nicolau I (s. IX) ................... 1476
Martinho de Braga (s. VI) ............. 1225
Papa Pelágio I (s. VI) ..................... 1223
Martinho I (s. VII) ......................... 1342 Papa Sirício (s. IV) ......................... 565
Martirológio Jeronimiano (s. VI) .. 1280 Papa Vigílio (s. VI) ......................... 1221
Máximo Confessor (s. VII) ........... 1346 Papa Zacarias (s. VIII) .................. 1433
Máximo de Turim (s. V) ................ 666 Papa Zózimo (s. V) ....................... 655
Melitão de Sardes (s. II) ................ 152 Papiro de Der Baliseh (s. IV) ........ 567
Minúcio Félix (s. II) ...................... 154 Paulino de Aquileia (s. IX) ............ 1449
Missal de Bóbio (s. VIII) .............. 1371 Paulino de Nola (s. V) ................... 969
Missal Gótico (s. VIII) .................. 1372 Pedro Crisólogo (s. V) ................... 1008
Pedro de Alexandria (s. IV) ........... 325
N Penitencial de Finião
ou Vinião (s. VI) ....................... 1258
Narsai de Nísibis (s. VI) ................ 1163 Penitencial Valicelano III (s. IX) .. 1457
Nicetas de Remesiana (s. V) ......... 642 Plínio, o Moço (s. II) ..................... 115
Nilo de Ancira (s. V) ...................... 968 Policarpo de Esmirna (s. II) .......... 129
20 ÍNDICE GERAL

Pontifical Romano-Germânico Serapião de Themuis (s. IV) ......... 371


(s. X) ......................................... 1492 Sinésio de Cirene (s. V) ................. 648
Porfírio (s. III) ................................ 315 Sisto III (s. V) ................................ 997
Possídio (s. V) ................................ 991 Sosímenes (s. V) ............................. 1012
Próspero de Aquitânia (s. V) ........ 1017 Statuta Ecclesiae Antiqua (s. V) ... 1057
Prudêncio (s. V) ............................. 587
Pseudo-Atanásio (s. IV) ................ 392 T
Pseudo-Crisóstomo (s. IV) ........... 496
Pseudo-Dionísio Areopagita (s. V) .. 1086 Targum sobre a Páscoa (s. IV) ...... 577
Pseudo-Epifânio (s. V) .................. 1015 Teodolfo de Orleães (s. IX) .......... 1460
Pseudo-Germano de Paris (s. VII) 1363 Teodoreto de Ciro (s. V) ............... 1052
Pseudo-Justino (s. II) .................... 145 Teodoro de Mopsuéstia (s. V) ...... 668
Pseudo-Máximo de Turim Teodoro, o Leitor (s. VI) ............... 1280
(s. VIII) ..................................... 1444 Tertuliano (s. III) ........................... 186
Pseudo-Teodoro (s. VIII) .............. 1377 Testamento do Senhor (s. V) ........ 1079
Textos bíblicos
do Antigo Testamento (s. I) ... 55
Q
Textos bíblicos
Quodvultdeus de Cartago (s. V) ... 1016 do Novo Testamento (s. I) ...... 58
Textos eucológicos hebraicos
R (s. I) .......................................... 37
Tiago de Sarug (s. VI) .................... 1166
Rábano Mauro (s. IX) ................... 1473
Tietmar, bispo de Merseburgo
Rábulas de Edessa (s. V) ............... 988
(s. X) ......................................... 1502
Reginão de Prum (s. X) ................. 1488
Regra do Mestre (s. VI) ................. 1171 Timóteo de Alexandria (s. IV) ....... 469
Reverentius (s. V) .......................... 1006 Tratado das equivalências
Rodolfo de Burges (s. IX) ............. 1475 penitenciais (s. VI) .................. 1279

S U

Sacramentário de Ratolde (s. X) ... 1491 Urânio (s. V) ................................... 973


Sacramentário Gelasiano
Antigo (s. VII) ......................... 1328 V
Sacramentário Gregoriano Vicente de Lerins (s. V) ................. 986
Hadriano (s. VII) ...................... 1362 Vida de Constantino Cirilo (s. IX) 1478
Sacramentário Veronense Vítor de Vito (s. V) ........................ 1063
ou Leonino (s. VII) .................. 1283 Vitrício de Rouen (s. V) ................. 640
Sacramentários Gelasianos
do século VIII (s. VIII) ........... 1435
Z
Salviano de Marselha (s. V) .......... 1055
Sedúlio (s. V) .................................. 1011 Zenão de Verona (s. IV) ................. 383
ÍNDICE

Lista das siglas citadas em nota .... 7 Índice de assuntos .......................... 21


Lista dos autores citados em nota 11 Antologia Litúrgica ........................ 35
Autores e obras da antologia
por ordem alfabética ................ 17

SÉCULO I

Textos eucológicos hebraicos Fracção do pão ............................... 70


A santificação em honra do Nome Hinos ............................................... 71
de Deus (Qaddiš) ..................... 37 Horas do dia ................................... 71
Bênçãos privadas durante o dia Igreja ................................................ 72
(Birkot ha-šahar) ..................... 37 Imposição das mãos ....................... 73
As Dezoito Bênçãos Liturgia ............................................ 74
(Šemonéh Essréh) .................... 39 Matrimónio ..................................... 74
Santificação (Quidduš) .................. 42 Ministério (Ordem) ....................... 75
Birkat Ha-Mazon ........................... 42 Oração ............................................. 76
Rito da narração da Páscoa (Sédèr Palavras e expressões hebraicas .... 77
Haggadah Šèl Pèšat) ............... 43 Perdoar ............................................ 77
Bênçãos (Šema, Israel) .................. 52 Primeiro dia da semana .................. 77
Escritos de Qumrãm ...................... 53 Saudações ........................................ 78
Súplicas ........................................... 79
Textos bíblicos do Antigo Testamento Unção .............................................. 80
Assembleia ...................................... 55 Viúvas .............................................. 80
Bênçãos ........................................... 55
Fílon de Alexandria
Cânticos .......................................... 56
Fórmulas rituais ............................. 56 Leis especiais .................................. 82
Orações ........................................... 57 O Decálogo ..................................... 82
A vida contemplativa ..................... 82
Textos bíblicos do Novo Testamento
Acção de graças .............................. 58 Flávio Josefo
Aclamações ..................................... 59 Antiguidades Judaicas ................... 83
Assembleia ...................................... 60 A guerra dos Judeus ....................... 83
Baptismo ......................................... 60
Bênçãos ........................................... 64 Clemente Romano
Cânticos .......................................... 64 Carta aos Coríntios ........................ 84
Confissões de fé ............................. 65
Dia do Senhor ................................. 65 Didaqué ou
Doxologias ...................................... 65 Doutrina dos Doze Apóstolos
Espírito Santo (Dom do) ............... 66 Instrução do Senhor aos gentios ... 93
Eucaristia ........................................ 67
Fórmulas (rituais e de oração) ...... 70 Inscrições cristãs (8) ................... 100
22 ÍNDICE DE ASSUNTOS

SÉCULO II

Inácio de Antioquia Pseudo-Justino


Carta aos Efésios ............................ 101 Perguntas e respostas
Carta aos Magnésios ...................... 103 aos Ortodoxos .......................... 145
Carta aos Tralianos ........................ 106
Carta aos Romanos ........................ 107 Carta dos Apóstolos ................... 145
Carta aos Filadelfos ....................... 110
Carta aos Esmirnenses ................... 111 Odes de Salomão (7) ................... 147
Carta a Policarpo ............................ 113
Melitão de Sardes
Plínio, o Moço Sobre a Páscoa ................................ 152
Carta de Plínio a Trajano ............... 115
Minúcio Félix
Carta de Trajano a Plínio ............... 116
Octávio ............................................ 154
Epístola de Barnabé .................. 117
Carta a Diogneto ......................... 156
Aristides de Atenas
Inscrições cristãs
Apologia .......................................... 124
Inscrição de Abércio ....................... 160
Hermas Inscrição de uma criança ................ 160
O Pastor .......................................... 125
Actas dos mártires
Policarpo de Esmirna Mártires de Pérgamo ...................... 161
Carta aos Filipenses ....................... 129 Mártires de Lião ............................. 161
Mártires da Sicília .......................... 161
Igreja de Esmirna Martírio de Apolónio ..................... 162
Carta sobre o martírio Martírio de Justino ........................ 162
de São Policarpo ...................... 132 Martírio de Pólio ............................ 163

Justino Actos apócrifos


Apologia I ....................................... 137 Actos de João ................................. 164
Apologia II ...................................... 141 Actos de Pedro ............................... 165
Diálogo com Trifão ........................ 142 Actos ou Evangelho de Filipe ....... 166

SÉCULO III

Ireneu de Lião Clemente de Alexandria


Contra as heresias .......................... 167 Stromata .......................................... 176
O Pedagogo ..................................... 180
Demonstração da pregação apostólica 174
Poderá um rico salvar-se? .............. 183
Tratado sobre a Páscoa .................. 175 Proréptico ....................................... 184
ÍNDICE DE ASSUNTOS 23

Filipe Bardesane Homilias sobre o Primeiro Livro


Diálogo sobre o destino ................. 185 dos Reis .................................... 261
Comentário ao Cântico dos
Tertuliano Cânticos .................................... 261
Aos pagãos ..................................... 186 Comentário aos Salmos ................. 262
Apologético .................................... 186 Homilias sobre Jeremias ................ 262
O testemunho da alma ................... 192 Comentários sobre São Mateus .... 262
Homilias sobre São Lucas ............. 263
Aos mártires ................................... 192
Comentários ao Evangelho
Os espectáculos ............................. 193
de São João ............................... 264
O Baptismo .................................... 194
Comentários à Carta aos Romanos 265
A oração .......................................... 201
Contra Celso ................................... 266
Sobre a prescrição dos hereges ..... 204
Sobre a Páscoa ................................ 270
A moda feminina ............................ 206
Sobre a oração ................................. 270
A Penitência .................................... 208
Disputa com Heraclides ................ 272
À sua esposa .................................. 211
O véu das virgens ........................... 215 Lamprídio
Contra Marcião .............................. 215
Vida de Alexandre Severo .............. 272
A coroa ............................................ 217
A idolatria ....................................... 218 Cipriano
Exortação à castidade ..................... 219
A Donato ......................................... 273
A ressurreição dos mortos ............. 220
Os apóstatas ................................... 273
A fuga na perseguição .................... 221
Sobre a unidade da Igreja católica . 277
A Escápula ...................................... 221
A Oração dominical ........................ 278
A alma ............................................. 221
As obras e as esmolas .................... 281
A castidade ...................................... 222
Cartas (50) ...................................... 282
O casamento único ......................... 225
Exortação ao Martírio .................... 312
Sobre o jejum .................................. 226
Dionísio de Alexandria
Hipólito de Roma
Cartas (3) ........................................ 313
Tradição Apostólica ....................... 228
Comentário ao Génesis .................. 241 Porfírio
Comentário ao Cântico dos Cânticos 241
Discurso contra os cristãos ........... 315
Comentário a Daniel ...................... 242
Refutação de todas as heresias ..... 243 Hino lucernar ............................... 315
Obra perdida ................................... 243
Inscrições cristãs
Didascália dos Apóstolos ............ 244 Inscrição de Pectório ..................... 316
Inscrição de crianças (6) ................ 316
Orígenes
Homilias sobre o Génesis .............. 251 Actas dos mártires
Homilias sobre o Êxodo ................. 252 Mártires de Cartago ....................... 317
Homilias sobre o Levítico ............. 253 Martírio de Cipriano ...................... 318
Homilias sobre os Números .......... 257 Martírio de Frutuoso ..................... 319
Homilias sobre Josué ..................... 259
Homilias sobre os Juízes ............... 261 Actos apócrifos de Tomé ........... 320
24 ÍNDICE DE ASSUNTOS

SÉCULO IV

Pedro de Alexandria Mário Vitorino


Epístola canónica ........................... 325 Contra Ario ..................................... 379
Carta sobre Melécio ....................... 325
Hilário de Poitiers
Comodiano Tratado sobre os Salmos (9) ......... 380
Instruções ....................................... 326 Contra Auxêncio ............................. 382
Lactâncio Zenão de Verona
Instituições divinas ........................ 327 Tratados (5) .................................... 383
Homilias (1) .................................... 384
Eusébio de Cesareia
História Eclesiástica ...................... 329 Atanásio de Alexandria
Comentários aos Salmos (6) .......... 351 Cartas pascais (8) .......................... 385
Vida de Constantino ....................... 352
Carta a Marcelino ........................... 387
Sobre a Páscoa ................................ 354
Carta a Serapião ............................. 387
Os mártires da Palestina ................ 356
Apologias (3) .................................. 388
A demonstração evangélica ............ 357
Sermão aos neófitos ....................... 390
Os louvores de Constantino .......... 358
Sobre a virgindade .......................... 390
Astério, o Sofista
Pseudo-Atanásio
Homilias sobre os Salmos (4) ....... 359
Contra os Novacianos .................... 392
Afraates, o Sábio Persa O sábado e a circuncisão ............... 392
Exposições (7) ................................ 360
Efrém, diácono
Pacómio Comentário sobre o Diatéssaron .. 393
Regra ................................................ 364 Sermões na Semana Santa (2) ........ 393
Sermão de nosso Senhor ................ 395
Comunidades pacomianas ......... 365 Sobre o fim e a exortação ............... 396
Sermão para o ofício nocturno da
Fúrio Dionísio Filócalo
Ressurreição do Senhor ........... 397
Cronógrafo de 354 .......................... 366 Hinos (3) ......................................... 397
Depositio Episcoporum ........... 366 Biografia de Efrém ......................... 398
Depositio Martyrum ................ 367
Basílio de Cesareia
Cânones de Hipólito ................... 368
O Espírito Santo ............................ 399
Júlio Fírmico Materno Homilias sobre os Salmos (2) ....... 403
Sobre o erro das religiões profanas .. 370 Sobre o Baptismo (2) ..................... 404
Homilia do mártir Julita ................ 404
Serapião de Themuis Cartas (8) ........................................ 405
Eucológio ........................................ 371 A Regra mais breve ........................ 407
ÍNDICE DE ASSUNTOS 25

As Constituições Apostólicas .... 409 Ambrósio de Milão


Sobre Abraão .................................. 516
Etéria
Sobre Elias e o jejum ...................... 517
Peregrinação ou Diário de Viagem .... 446 Apologia de David ......................... 517
Ambrosiáster Comentário ao Evangelho de Lucas . 517
Sobre o Espírito Santo ................... 519
Livro das questões do Antigo
Os Sacramentos .............................. 519
e do Novo Testamento ............ 466
Os Mistérios .................................. 528
Libellus Pseudo-Ambrosiano .... 466 Hexameron ...................................... 538
A história de Nabot ........................ 539
Papa Dâmaso Os ofícios dos ministros ............... 539
Inscrições (14) ................................ 467 Sobre a Penitência .......................... 539
Sobre as virgens .............................. 542
Timóteo de Alexandria Comentários aos Salmos (9) .......... 542
Respostas canónicas ...................... 469 Sobre a morte de seu irmão Sátiro .... 544
Cartas (7) ........................................ 545
Cirilo de Jerusalém
Catequeses pré-baptismais (19) ... 470 Dídimo, o Cego
Catequeses Mistagógicas (5) ........ 482 Sobre a Trindade ............................ 549

Pseudo-Crisóstomo Concílios (14) ............................... 550


Homilias Pascais ............................ 496
Papa Sirício
Gregório de Nazianzo Cartas (4) ........................................ 565
Sermões (14) ................................... 498
Cartas (2) ........................................ 507 Papiro de Der Baliseh ................ 567
Hino ................................................. 507
Cânones Apostólicos ................... 569
Optato de Milevo
A doutrina dos Apóstolos ............ 575
Contra Parmeniano, donatista ....... 508
De uma antiga homilia
Paciano de Barcelona
de Sábado Santo .................... 576
Exortação à penitência ................... 509
Sermão sobre o baptismo .............. 512 Targum sobre a Páscoa ............... 577
Cartas .............................................. 512 Códice de Justiniano .................. 578
Códice de Teodósio ...................... 578
Gregório de Nissa
Homilia sobre o Cântico dos Inscrições cristãs (10) ................. 579
Cânticos .................................... 514
Actas dos mártires
Homilia sobre os que adiam
o baptismo ................................ 514 Testemunhos relacionados
Homilia para o dia das luzes ......... 514 com os mártires ........................ 580
Sermão na santa Páscoa ................. 515 Actas de Saturnino
Sermão da Ascensão ....................... 515 e outros mártires africanos ..... 581
26 ÍNDICE DE ASSUNTOS

SÉCULO V

Epifânio de Salamina Homilias sobre a Carta


Heresias ........................................... 585 aos Colossenses (2) ................. 633
Homilia pascal ................................ 586 Homilia sobre a segunda Carta
Carta ................................................ 586 aos Tessalonicenses ................. 634
Homilias sobre a primeira Carta
Prudêncio a Timóteo (3) ........................... 634
As coroas ........................................ 587 Homilias sobre a segunda Carta
a Timóteo (2) ........................... 635
Cromácio de Aquileia
Homilias sobre a Carta
Sermões (11) ................................... 587 aos Hebreus (4) ........................ 636
João Crisóstomo Homilia sobre a esmola .................. 637
Homilia sobre o tempo actual ....... 638
Oito catequeses baptismais ........... 592
Homilia sobre o Diabo tentador ... 639
Três catequeses baptismais ........... 606
Diálogo sobre o sacerdócio ............ 611 Vitrício de Rouen
Homilias sobre Deus incompreensível,
Em louvor dos Santos .................... 640
contra os anomoeos (4) ........... 613
Demonstração contra os Judeus
Gaudêncio de Bréscia
e os Pagãos ............................... 616
Homilias contra os Judeus (2) ...... 616 Tratados pascais sobre o Êxodo ... 641
Homilia no dia de Natal do Senhor .. 617 Homilia pascal ................................ 641
Homilia para o primeiro dia do ano . 617
Homilia sobre o baptismo de Cristo 617 Nicetas de Remesiana
Homilia sobre o sepulcro e a cruz .... 618 Catequese aos competentes ................... 642
Homilia sobre o santo domingo
de Páscoa (2) ............................ 619 Sinésio de Cirene
Homilia sobre o santo Pentecostes .. 619 Carta ................................................ 648
Homilia sobre a obscuridade
das profecias ............................ 620 Avito de Viena
Homilias sobre o Génesis (4) ........ 620 Cartas (2) ........................................ 649
Homilias sobre Santa Ana (2) ....... 621
Homilias sobre os Salmos (4) ....... 622 Papa Inocêncio I
Homilias sobre Isaías (2) ............... 623 Cartas (7) ........................................ 651
Homilias sobre São Mateus (9) .... 625
Homilias sobre o início dos Actos Papa Zózimo
dos Apóstolos (1) .................... 628 Decreto ............................................ 655
Homilias sobre a primeira Carta Carta ................................................ 655
aos Coríntios (5) ...................... 628
Homilias sobre a segunda Carta Jerónimo
aos Coríntios (4) ...................... 630 Comentário aos Salmos (13) ......... 656
Homilia sobre a Carta aos Efésios 632 Comentário ao profeta Isaías ........ 656
Homilia sobre a Carta Comentário ao profeta Jeremias ... 657
aos Filipenses ........................... 633 Comentário ao profeta Ezequiel ... 657
ÍNDICE DE ASSUNTOS 27

Comentário ao Evangelho A graça de Cristo


de Mateus ................................. 658 e o pecado original ................... 782
Comentário à Carta aos Gálatas ... 658 Tratados sobre o Evangelho
Homilias (2) .................................... 659 de João (24) .............................. 784
Diálogo do Luciferiano A Trindade ...................................... 797
e do Ortodoxo .......................... 660 Contra Juliano ................................ 799
Contra Joviniano ............................ 660 Enquirídio a Lourenço ................... 799
Cartas (16) ...................................... 661 A piedade para com os defuntos .. 800
Contra Vigilâncio ............................ 664 A cidade de Deus ............................ 802
Livro contra João de Jerusalém .... 665 A doutrina cristã ............................. 808
As Revisões .................................... 811
Máximo de Turim Cartas (56) ...................................... 812
Homilias (7) .................................... 666 O dom da perseverança ................. 858
Sermões (201) ................................. 859
Teodoro de Mopsuéstia Novos sermões de S. Agostinho ... 967
Comentário ao Evangelho
de Mateus ................................. 668 Nilo de Ancira
Comentário ao Evangelho Cartas (4) ........................................ 968
de João ...................................... 668
Comentário à primeira Carta Paulino de Nola
aos Coríntios ............................ 668 Poemas (4) ...................................... 969
Homilias catequéticas (16) ............ 669 Cartas (4) ........................................ 970
Agostinho de Hipona Paládio
A dimensão da alma ....................... 691 História Lausíaca ............................ 971
Os costumes da Igreja Católica ..... 691
A fé e o Símbolo ............................. 693 Papa Celestino I
Salmo contra a seita de Donato .... 696
Cartas (3) ........................................ 972
O livre arbítrio ................................ 699
Contra Fausto, o maniqueu ........... 700
Urânio
O Baptismo .................................... 702
Confissões ...................................... 706 Cartas .............................................. 973
Regra de Santo Agostinho ............. 722
Isidoro de Pelúsia
O Ordo Monasterii ........................ 722
A Catequese a principiantes ......... 723 Cartas (7) ........................................ 974
Contra as cartas de Petiliano ......... 736
João Cassiano
Contra o gramático Crescónio ....... 738
A adivinhação diabólica ................. 738 Instituições Cenobitas ................... 977
O Espírito e a letra ......................... 738 Conferências (8) ............................. 982
O perdão dos pecadores
Vicente de Lerins
e o baptismo das crianças ....... 739
A fé e as obras ................................ 743 Primeira Exortação ......................... 986
Comentário literal ao Génesis ....... 748
Rábulas de Edessa
Comentários aos Salmos ................ 749
Comentário à primeira Epístola Cânones para sacerdotes e clérigos .. 988
de João ...................................... 782 Carta ao bispo Gemelino ............... 988
28 ÍNDICE DE ASSUNTOS

Hinos aos fiéis defuntos ................ 990 Sosímenes


Hinos eucarísticos .......................... 990 História Eclesiástica ...................... 1012
Possídio Pseudo-Epifânio
Vida de S. Agostinho ...................... 991 Anáfora atribuída a Santo Epifânio .. 1015

Catholicos Isaac Sahak Quodvultdeus de Cartago


Cânones ........................................... 994 Sermões (3) ..................................... 1016

Gerôncio Próspero de Aquitânia


Vida de Santa Melânia ................... 995 O chamamento de todos os povos 1017
Capítulos das autoridades
Sisto III ou Indículo ............................... 1017
Inscrições (2) .................................. 997 Contra Collatorem .......................... 1018
Cartas .............................................. 1018
Cirilo de Alexandria
Papa Leão Magno
A adoração em espírito e verdade . 998
Comentário ao Génesis .................. 999 Sermões para o Natal (10) ............. 1019
Comentário ao Êxodo ..................... 1000 Sermões para a Epifania (2) .......... 1024
Comentário ao Levítico ................. 1000 Sermão para a Anunciação ............. 1025
Comentário a Habacuc ................... 1000 Sermões da Quaresma (9) .............. 1025
Comentário a Sofonias ................... 1001 Sermões sobre a Paixão (6) ............ 1029
Comentário a Zacarias ................... 1001 Sermões para a Ascensão (2) ........ 1030
Comentário a Malaquias ................ 1001 Sermões sobre o jejum
Comentário a São Mateus ............. 1002 do Pentecostes (4) ................... 1031
Comentário ao Evangelho Sermões sobre o jejum
de Lucas .................................... 1002 do sétimo mês (4) .................... 1032
Comentário ao Evangelho de João ... 1003 Sermões sobre o jejum
Contra os Antropomorfitas ........... 1004 do décimo mês (4) .................... 1033
Homilia no Concílio de Éfeso ....... 1004 Sermões sobre os Santos (3) ......... 1035
Cartas pascais (4) .......................... 1005 Sermões sobre a ordenação (5) ...... 1036
Carta a Calosírio ............................. 1006 Cartas (13) ...................................... 1039

Reverentius Concílios (15) ............................... 1046


Vida de Hilário ................................ 1006 Teodoreto de Ciro
História Eclesiástica ...................... 1052
Arnóbio, o Jovem História Religiosa ........................... 1052
Comentários aos Salmos (5) .......... 1007 Heresias comparadas ..................... 1052
Terapêutica das doenças helénicas ... 1053
Pedro Crisólogo Carta ................................................ 1053
Sermões (9) ..................................... 1008
Basílio de Selêucia
Sedúlio Homilia Pascal ................................ 1054
Hino pascal ..................................... 1011 Salviano de Marselha
Obra pascal ..................................... 1011 O governo de Deus ......................... 1055
ÍNDICE DE ASSUNTOS 29

Carta Cornutiana ........................ 1056 Anáforas Orientais


Anáfora Caldaica
Statuta Ecclesiae Antiqua ............. 1057 dos Apóstolos Addai e Mari ... 1103
Anáfora Caldaica de Teodoro ........ 1108
Fausto de Riez Anáfora de Nestório ...................... 1111
Sermões (2) ..................................... 1060 Anáfora das Constituições
Homilia para o Pentecostes ........... 1062 Apostólicas .............................. 1115
Carta a Paulino de Bordéus ........... 1062 Anáfora Siríaca
dos Doze Apóstolos I ............. 1116
Vítor de Vito Anáfora Grega
História da perseguição vandálica .... 1063 de São João Crisóstomo .......... 1119
Anáfora Antioquena
Papa Félix II (III) de Teodoro de Mopsuéstia ..... 1122
Carta ................................................ 1064 Anáfora Grega
de São Basílio de Cesareia ....... 1124
João Diácono Anáfora Siríaca de Tiago ............... 1129
Carta a Senário de Ravena ............. 1065 Anáfora Siríaca
do Testamentum Domini ......... 1131
Papa Gelásio I Anáfora de São Pedro ou Sharar ... 1132
Súplica litânica do Papa Gelásio ... 1073 Anáfora Grega de Tiago,
Cartas (7) ........................................ 1075 irmão do Senhor ....................... 1134
Tratado sobre o perdão Anáfora Grega
dos pecados .............................. 1077 de São Cirilo de Jerusalém ...... 1139
Decreto Gelasiano .......................... 1077 Anáfora de Der Baliseh ................. 1140
Fragmentos dos Dicta Anáfora Copta
do Papa Gelásio ....................... 1078 de São Basílio de Cesareia ....... 1141
Anáfora Grega Alexandrina
Testamento do Senhor ................ 1079 do Evangelista São Marcos ..... 1143
Anáfora do Sacramentário
Pseudo-Dionísio Areopagita de Serapião ............................... 1147
A hierarquia eclesiástica ................ 1086 Anáfora Copta Alexandrina
de São Cirilo ............................. 1147
Orações Eucarísticas Ocidentais Anáfora Copta de São Gregório .... 1150
Oração eucarística Anáfora Etíope de Nosso Senhor . 1153
de Hipólito de Roma ............... 1097 Anáfora Etíope de Nossa Senhora 1154
Oração eucarística Anáfora do Pseudo-Epifânio ......... 1154
de Ambrósio de Milão ............. 1098 Anáfora Arménia ............................ 1155
Oração eucarística
do Rito Galicano ...................... 1099
Antigos documentos litúrgicos
Oração eucarística do
Rito Toledano ou Hispânico ... 1099 O Ordo e os cânones das
Oração eucarística Ordenações na santa Igreja ...... 1158
do Rito Celta ............................ 1099
Cânone Romano ............................. 1100 Inscrições cristãs (5) ................... 1159
30 ÍNDICE DE ASSUNTOS

SÉCULO VI

Eusébio de Alexandria Papa Vigílio


Sermão ............................................. 1161 Cartas (2) ........................................ 1221

Narsai de Nísibis Papa Pelágio I


Homilias litúrgicas (5) ................... 1163 Cartas (4) ........................................ 1223

Genádio de Marselha Eutíquio de Constantinopla


Páscoa e Eucaristia ......................... 1224
Os dogmas da Igreja ....................... 1165
Papa João III
Tiago de Sarug
Cartas (2) ........................................ 1224
Homilia sobre a memória dos defuntos
e o sacrifício eucarístico .......... 1166 Martinho de Braga
A instrução dos rústicos ................ 1225
Imperador Justiniano Capítulos ........................................ 1226
Novellas (4) .................................... 1170
Columbano
Regra do Mestre ........................... 1171 Regra ................................................ 1227
Livro penitencial ............................ 1227
Fulgêncio de Ruspas
A Mónimo ....................................... 1172 Gregório de Tours
Cartas (2) ........................................ 1174 História dos Francos ...................... 1229
Contra Fabião ................................. 1175 Oito livros de milagres ................... 1232
A fé de Pedro .................................. 1177 As virtudes de São Martinho ........ 1233
Em honra dos mártires ................... 1233
Cesário de Arles Em honra dos Confessores ............ 1234
Sermões (61) ................................... 1178 Concílios (30) ............................... 1236
Regra das virgens ............................ 1207
Regra dos monges ........................... 1209 Penitencial de Finião ou Vinião 1258
Vida do bispo Cesário de Arles ..... 1210
Liber Ordinum ............................. 1263
Ferrando de Cartago João Jejuador ............................... 1279
Carta a Fulgêncio de Ruspas ......... 1210 Penitencial
Bento de Núrcia Tratado das equivalências
Regra dos monges ........................... 1211 penitenciais ............................ 1279

Cassiodoro Martirológio Jeronimiano ......... 1280


Comentários aos Salmos (5) .......... 1218 Teodoro, o Leitor
Leôncio de Constantinopla História Eclesiástica ...................... 1280

Homilias Pascais (2) ...................... 1220 Inscrições cristãs (5) ................... 1281
ÍNDICE DE ASSUNTOS 31

SÉCULO VII

Sacramentário Veronense Jonas de Bóbio


ou Leonino .............................. 1283 Vida de Santa Fara,
abadessa de Faremoutiers ....... 1344
Evágrio Escolástico
História Eclesiástica ...................... 1288 Ilídio de Noyon

Liciniano de Cartago Homilia ............................................ 1345

Carta a Vicente de Ibiza ................. 1289 Máximo Confessor


Papa Gregório Magno Mistagogia ...................................... 1346
Homilias sobre o profeta Ezequiel 1290 Ildefonso de Toledo
Homilias sobre Job ........................ 1291
O conhecimento do baptismo ....... 1348
Homilias sobre os Evangelhos (5) 1291
Diálogos .......................................... 1293 Concílios (16) ............................... 1352
Registo de Cartas (50) ................... 1299
Sacramentário Gregoriano
Isidoro de Sevilha
Hadriano .................................. 1362
Etimologias ..................................... 1315
Ofícios eclesiásticos ...................... 1316
Abade Pambo
Carta a Leudefrede ......................... 1319
Regra de S. Isidoro ......................... 1320 Ditos ................................................ 1363

Liber Pontificalis ......................... 1321 Pseudo-Germano de Paris


Exposição da Missa Galicana ....... 1363
Sacramentário Gelasiano Antigo 1328

Martinho I Cumméan
Cartas (2) ........................................ 1342 Penitencial ....................................... 1364
Resgate penitencial ........................ 1364
Frutuoso de Braga
Regra dos monges ........................... 1343 Inscrições cristãs (9) ................... 1365

SÉCULO VIII

Anastácio Sinaíta, abade Missal de Bóbio .......................... 1371


Questões e respostas ..................... 1367
Sermão da santa sinaxe .................. 1368 Missal Gótico .............................. 1372
Bonifácio
Renunciações catecumenais ........... 1370 Papa Gregório II
Estatutos de São Bonifácio ........... 1370 Cartas (2) ........................................ 1373
32 ÍNDICE DE ASSUNTOS

Beda Venerável Papa Zacarias


Homilia ............................................ 1374 Cartas (4) ........................................ 1433
Comentário à Carta de S. Tiago .... 1374
Penitencial de Beda ........................ 1375 Papa Estêvão II
Carta a Egberto, bispo de York ..... 1376 Respostas de Quiercy .................... 1434

André de Creta Crodegango de Metz


Sermão ............................................. 1376 Regra dos Cónegos ......................... 1434

Pseudo-Teodoro Sacramentários Gelasianos


Penitencial ....................................... 1377 do século VIII
Resgate penitencial ........................ 1377 Sacramentário de Gelona ............... 1435
Capítulos de Teodoro .................... 1377 Sacramentário de Angoulême ......... 1435
Sacramentário de Saint-Gall .......... 1436
Papa Gregório III Sacramentário de Reichenau .......... 1436
Carta ................................................ 1378 Sacramentário de Praga .................. 1437

João Damasceno Corpo de direito


Discurso sobre as imagens ............ 1378 do Metropolita Isso ............... 1438
Exposição sobre a fé ortodoxa ...... 1379
Papa Adriano I
Ordines Romani Cartas (2) ........................................ 1438
OR I ................................................. 1381
OR II ............................................... 1392 Concílios (9) ................................. 1439
OR III .............................................. 1392 Comentário à Carta
OR IV .............................................. 1392 de Inocêncio I ......................... 1444
OR V ............................................... 1393
OR VII ............................................ 1394 Pseudo-Máximo de Turim
OR IX .............................................. 1395
Homilia ............................................ 1444
OR X ............................................... 1395
OR XI .............................................. 1396 Grande Eucológio
OR XV ............................................ 1407 da Igreja bizantina ................ 1445
OR XVII ......................................... 1417
OR XXX B ..................................... 1420 Eucológio bizantino .................... 1447
OR XXXIV ..................................... 1425
OR XXXVI ..................................... 1428 Eucológio Barberini .................... 1448

SÉCULO IX

Paulino de Aquileia Livros Litúrgicos


Carta a Haistulfe ............................ 1449 Ritual da Unção dos enfermos ...... 1453
Sacramentário de Amiens ............... 1453
Alcuíno
Cartas (4) ........................................ 1450 Penitencial Valicelano III .......... 1457
ÍNDICE DE ASSUNTOS 33

Barónio Papa Leão IV


Anais ............................................... 1457 Carta sinodal ................................... 1472
Carta ao abade Honorato ............... 1472
Carlos Magno Homilia sinodal .............................. 1473
Capitulares (9) ............................... 1458
Rábano Mauro
Teodolfo de Orleães
A instrução dos clérigos ................ 1473
Carta pastoral ................................. 1460
Capitulares ...................................... 1461 Floro de Lião
A ordem do baptismo .................... 1462
Ritual para acolher o penitente Explicação da Missa ...................... 1474
e fazer a confissão ................... 1462
Rodolfo de Burges
Elbon, bispo de Reims Capítulos ........................................ 1475
Carta a Haligtário,
arcebispo de Cambraia ............ 1463 Papa Nicolau I
Cartas (2) ........................................ 1476
Haligtário, bispo de Cambraia
Carta de Haligtário a Elbon ........... 1464 Vida de Constantino Cirilo ....... 1478
Penitencial de Haligtário ................ 1464
Concílios (12) ............................... 1479
Jonas de Orleães
A instrução dos leigos .................... 1466 João, diácono romano
Vida de S. Gregório Magno ........... 1484
Amalário de Metz
Liber officialis ................................ 1468 Hincmar de Reims
Selecção do Ordinário Romano ..... 1470 Capitulares ...................................... 1485
Exposição da Missa ....................... 1470 Cartas (2) ........................................ 1485
Primeira exposição de toda a Missa . 1470

SÉCULO X

Leão VI, o Sábio Concílios (2) ................................. 1498


Novella 74 ....................................... 1487 Autor anónimo
Novella 89 ....................................... 1487
Carta a uma religiosa sobre a verdadeira
Reginão de Prum e a falsa penitência ................... 1499
O Ritual da Penitência pública ..... 1488 Tietmar, bispo de Merseburgo
A disciplina eclesiástica ................. 1490
Crónica ............................................ 1502
Sacramentário de Ratolde ......... 1491
Lanfranco
Pontifical Romano-Germânico . 1492 Tratado do segredo da confissão .. 1503
34 ÍNDICE DE ASSUNTOS

Liturgias Ocidentais Antigas Liturgias Orientais Actuais


Rito Ambrosiano ............................ 1505 Rito Caldeu ou Rito Caldaico ....... 1543
Rito Galicano .................................. 1509 Rito da Igreja Malancar ................. 1547
Rito Celta ........................................ 1515 Rito da Igreja Siro-Antioquena ..... 1550
Rito Toledano ou Hispânico ......... 1519 Rito da Igreja Antioquena
Liturgias Ocidentais Actuais dosMaronitas ........................... 1553
Rito Bizantino-Grego .................... 1555
Rito Hispano-Moçárabe ................ 1526
Rito Bizantino-Romeno ................ 1559
Rito Bracarense .............................. 1533
Rito Bizantino-Russo .................... 1561
Rito Romano em língua paleoeslava
ou glagolítica ............................ 1536 Rito Bizantino-Ucraniano ............. 1565
Rito Arménio .................................. 1570
Liturgias Orientais Antigas Rito Copta Alexandrino ................. 1572
Estrutura da Divina Liturgia ......... 1539 Rito Etíope ..................................... 1575

TABELAS

I Liturgia Oriental IV Ofício Divino


Evolução até séc. VIII ............. 1580 Família Antioquena Ocidental 1604
Família Antioquena Oriental ... 1606
II A Iniciação Cristã
Família Antioquena Ocidental 1588 V A Divina Liturgia Oriental
Família Antioquena Oriental ... 1592 Família Antioquena Ocidental 1608
Família Antioquena Oriental ... 1618
III O Matrimónio
Família Antioquena Ocidental 1596
Família Antioquena Oriental ... 1600

MAPAS

Geografia do primeiro milénio ...... 1630

ÍNDICES

Índice analítico ............................... 1637 Índice geral ...................................... 1771


ANTOLOGIA LITÚRGICA
SÉCULO I

Textos eucológicos hebraicos 1

I. A santificação em honra do Nome de Deus (Qaddiš) 2


1. Seja glorificado e santificado o grande Nome, no mundo que Ele criou segundo a 1
sua vontade. Estabeleça o seu reino, faça germinar a redenção, introduza o seu Messias
nos vossos caminhos durante os vossos dias e durante a vida de toda a casa de Israel,
sem demora, no tempo que se aproxima.
E respondam: Amen. Bendito seja o seu grande Nome para sempre e pelos
séculos dos séculos.
Bendito seja: Amen. Seja louvado e glorificado, exaltado e engrandecido, honrado
e sublimado o Nome santo e bendito acima de toda a bênção, hino, louvor e consolação
que no mundo se profiram: Amen. Seja aceite a oração e escutada a vossa súplica,
juntamente com a prece de toda a casa de Israel, diante do nosso Pai nos Céus. Ele vos
dê, a vós e a nós e a cada grupo de toda a casa de Israel, o Céu, uma grande paz, auxílio,
redenção, abundância, vida, saciedade, saúde, consolação, libertação, cura, propaga-
ção, para a vida e para a paz.
E digam: Amen.

II. Bênçãos privadas durante o dia (Birkot ha-šahar) 3


BÊNÇÃOS DA MANHÃ

1. (Bênção ao lavar as mãos) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, 2
que nos santificaste pelos teus mandamentos e nos mandaste lavar as mãos.
2. (Bênção pelo milagre da vida) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do univer- 3
so, que formaste o homem com sabedoria e nele criaste muitas veias e vasos. Foi
revelado e conhecido diante do trono da tua glória, que se um deles se fechar ou outro
se abrir, não podemos subsistir nem uma hora.
3. (Bênção pela alma que Deus nos deu) Bendito sejas Tu que vivificas toda a carne 4
e actuas admiravelmente. Meu Deus, a alma que me deste é pura. Foste Tu que a
criaste e a insuflaste dentro de mim, és Tu que a conservas em mim, que ma tiras e ma
restituirás no tempo que há-de vir. Enquanto a alma estiver em mim, dar-Te-ei graças,
Senhor Deus, que tudo fizeste. Bendito sejas, Senhor, que restituis as almas aos
corpos mortais.

1
Textos eucológicos hebraicos (=E. L ODI, Roma 1979, 19-51).
2
A santificação (Qaddiš) do Nome de Deus chama-se assim por causa das palavras iniciais desta fórmula,
cuja primeira parte é antiquíssima e contém algumas das petições da Oração dominical: Santificado seja o
vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade.
3
É sobre um fundo geral de múltiplas bênçãos (beracoth), que as grandes bênçãos do serviço sinagogal e das
refeições adquirem todo o seu relevo.
38 SÉCULO I

5 4. (Bênção pela inteligência dos animais) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei
do universo, que deste inteligência ao galo para distinguir o dia da noite.
6 5. (Bênção por não ser pagão) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo,
por não me teres feito pagão.
7 6. (Bênção por não ser escravo) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do univer-
so, por não me teres feito escravo (escrava).
8 7. (Bênção por não ser mulher ou homem) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei
do universo, por não me teres feito mulher (se for mulher diz: porque me criaste
segundo a tua vontade).
9 8. (Bênção pelas coisas que vemos à nossa volta) Bendito sejas, Senhor nosso
Deus, Rei do universo, que abres os olhos dos cegos.
10 9. (Bênção ao pôr-se de pé) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo,
que levantas os humildes.
11 10. (Bênção ao vestir-se) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que
vestes os que andam nus.
12 11. (Bênção pela saúde) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que
curas os enfermos.
13 12. (Bênção ao pôr os pés no chão) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do
universo, que estendeste a terra sobre as águas.
14 13. (Bênção ao começar a caminhar) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do
universo, que firmas os passos do homem.

BÊNÇÃOS AO LONGO DO DIA

15 14. (Bênção por tudo o que temos) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do univer-
so, que não deixas que me falte nada do que preciso.
16 15. (Bênção pela fortaleza de Israel) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do
universo, que cinges Israel de fortaleza.
17 16. (Bênção pela glória de Israel) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do univer-
so, que coroas Israel de glória.
18 17. (Bênção pela capacidade de trabalhar) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei
do universo, que tiras o sono dos meus olhos e a sonolência das minhas pálpebras.
19 18. (Súplica para que se faça a vontade de Deus) Faça-se a tua vontade, Senhor meu
Deus e Deus de meus pais, para que me sirva da tua Lei com familiaridade e adira aos
teus mandamentos; não me deixes cair em pecado, nem em violação, nem em tentação,
nem em vergonha; afasta de mim as inclinações para o mal e grava em mim as boas
inclinações e faz com que alcance graça, favor e misericórdia diante dos teus olhos e
diante de todos os que me vêem, e concede-me a tua benevolente misericórdia.
20 19. (Bênção pela misericórdia) Bendito sejas, Senhor, que dás a benevolente miseri-
córdia.
21 20. (Bênção pelos mandamentos e pela palavra de Deus) Bendito sejas, Senhor, que
nos santificaste pelos teus mandamentos e ordenaste as palavras da Lei. Senhor nosso
Deus, torna as palavras da tua Lei agradáveis à nossa boca e aos lábios do teu povo,
casa de Israel, para que aprendamos todos a tua Lei, nós e os nossos filhos, e conta-nos
entre aqueles que conhecem o teu Nome.
22 21. (Bênção pela eleição de Israel) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do univer-
so, que nos escolheste entre todos os povos e nos deste a tua Lei.
23 22. (Bênção pela Lei) Bendito sejas, Senhor, que deste a Lei.
TEXTOS EUCOLÓGICOS HEBRAICOS 39

III. As Dezoito Bênçãos (Šemonéh ‘Essréh) 4


VERSÍCULO INTRODUTÓRIO

0. Abre, Senhor, os meus lábios, 24


e a minha boca anunciará o teu louvor...
BÊNÇÃOS INICIAIS

1. (Bênção dos pais – Abhoth) Bendito sejas, Senhor nosso Deus e Deus de nossos 25
pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob, Deus grande, poderoso e
temível, Deus altíssimo, dominador do céu e da terra, nosso escudo e escudo dos
nossos pais, que aumentas em nós a fé, [através de todas as gerações]. Bendito sejas,
Senhor, escudo de Abraão.
2. (Bênção da vida e da fecundidade – Ghebhuroth) Tu és poderoso, [derrubas os 26
soberbos,] forte, [julgas os tiranos,] vives pelos séculos, ressuscitas os mortos, domi-
nas o vento e fazes cair o orvalho, alimentas os vivos, dás vida aos mortos, num abrir
e fechar de olhos fazes surgir em nós a saúde. Bendito sejas, Senhor, que dás vida aos mortos.
3. (Bênção do Nome divino – Qedušah) Tu és santo, o teu Nome é temível, e fora de 27
Ti não há Deus. Bendito sejas, Senhor, Deus santo.
SÚPLICAS

4. (Oração da inteligência – Binah) Tu nos dás, nosso Pai, a sabedoria que vem de 28
Ti, a inteligência e a prudência da tua Lei. Bendito sejas, Senhor, que nos dás a sabedo-
ria.
5. (Oração do arrependimento – Tešubhah) Faz-nos voltar para Ti, Senhor, e nós 29
voltaremos: faz-nos viver os dias de outrora (Lam 5, 21). Bendito sejas, Senhor, que
Te alegras com o arrependimento.
6. (Oração do perdão – Selihah) Perdoa-nos, nosso Pai, porque pecámos contra 30
Ti. Afasta [e tira] dos teus olhos as nossas transgressões, [porque são infinitas as tuas
misericórdias]. Bendito sejas, Senhor, solícito em perdoar muitas vezes.
7. (Oração da redenção – Ghe’ullah) Olha a nossa aflição, toma a nossa causa em 31
tuas mãos e resgata-nos pelo teu Nome. Bendito sejas, Senhor, redentor de Israel.
8. (Oração a pedir a cura – Rephu’ah) Cura-nos, Senhor nosso Deus, das angústi- 32
as dos nossos corações [e afasta de nós a tristeza e o lamento] e dá remédio às nossas
feridas. Bendito sejas, Senhor, que curas os doentes do teu povo Israel.
9. (Oração pelos bons anos – Birkat Ha-Šanim) Abençoa este ano para nós, Senhor 33
nosso Deus, [na abundância de todos os seus frutos, e traz depressa o ano do fim da
redenção]. Faz cair o orvalho e a chuva sobre a face da terra, sacia o mundo com o
tesouro da tua bondade [e envia a bênção sobre o trabalho das nossas mãos]. Bendito
sejas, Senhor, que abençoas os anos.
10. (Oração da reunião dos dispersos – Qibbuts Galuyoth) Faz ressoar a grande 34
tuba da nossa libertação e levanta o teu estandarte para reunir os nossos cativos.
Bendito sejas, Senhor, que reúnes os dispersos de Israel teu povo.
11. (Oração pela justiça – Mišpat) Restabelece os nossos juízes como eram outrora, 35
e os nossos conselheiros como eram antigamente (Is 1, 26), e reina, Tu sozinho, sobre
nós. Bendito sejas, Senhor, que amas a justiça.
4
Estas orações, do século II d.C., rezam-se três vezes ao dia, de pé. São as orações por excelência. Começam
com três beracoth, seguidas de doze súplicas, cada uma delas concluída com uma breve berakah, e terminam
com outras três beracoth. Estas dezoito bênçãos preparam a estrutura da anáfora eucarística.
40 SÉCULO I

36 12. (Oração contra os apóstatas – La-mešumadim) Não haja esperança nenhuma


para os apóstatas. Destrói depressa o reino da soberba [nos nossos dias]. [Pereçam de
repente os malvados e hereges: sejam riscados do livro dos vivos e não constem na
lista dos justos]. Bendito sejas, Senhor, que humilhas os soberbos.
37 13. (Oração pelos prosélitos – La-tsadiqim) Comova-se a tua misericórdia para com
os prosélitos, e dá-nos uma [boa] recompensa a nós e àqueles que fazem a tua vontade.
Bendito sejas, Senhor, que aumentas a fé dos justos.
38 14. (Oração por Jerusalém – Ierušalayim) Tem piedade, Senhor nosso Deus, [na tua
abundante misericórdia, de Israel teu povo,] de Jerusalém, [de Sião, morada da tua
glória, do santuário, da tua casa], do reino da família de David, ungido com a tua
justiça. Bendito sejas, Senhor, Deus de David, [que edificas Jerusalém].
39 15. (Oração por excelência – Tephillah) Escuta, Senhor nosso Deus, a voz da nossa
oração [e tem piedade de nós], porque és um Deus cheio de graça e misericórdia.
Bendito sejas, Senhor, que escutas a oração.
ACÇÕES DE GRAÇAS FINAIS

40 16. (Bênção do serviço – ‘Abhodah) Aceita-nos com agrado, Senhor nosso Deus,
edifica a tua morada em Sião e sirvam-Te os teus servos em Jerusalém. Bendito sejas,
Senhor, a quem servimos com temor.
41 17. (Bênção de acção de graças – Hoda’ah) Nós Te damos graças, Senhor, [Tu
próprio és Senhor] nosso Deus [e Deus de nossos pais] por todos os benefícios,
[benevolência e misericórdias, com que nos enriqueceste e] que nos concedeste a nós e
aos nossos pais antes de nós. [E se dissermos: Os nossos pés vacilaram, logo a tua
bondade, Senhor, nos ajudará]. Bendito sejas, Senhor; é bom dar-Te graças.
42 18. (Bênção de acção de graças – Hoda’ah - séc. IX) Graças Te damos porque Tu
próprio és Senhor nosso Deus, rochedo da nossa vida, escudo da nossa salvação
através de todas as gerações. Nós Te daremos graças e proclamaremos o teu louvor
pelas nossas vidas entregues nas tuas mãos, pelas nossas almas guardadas por Ti, e
pelos teus sinais e misericórdias em todo o tempo, à tarde e de manhã. Tu és bom,
porque as tuas misericórdias não desapareceram; és misericordioso, porque a tua bon-
dade não acaba: sempre pusemos em Ti a nossa esperança. Não nos confundiste,
Senhor nosso Deus, nem abandonaste, nem escondeste de nós o teu rosto.

ACÇÕES DE GRAÇAS SEGUNDO O TALMUDE DE BABILÓNIA

QUANDO SE RECITA A ACÇÃO DE GRAÇAS HODA’AH

43 19. (Abba Ariqa - séc. III) Graças Te damos, Senhor nosso Deus (Criador das ori-
gens) por sermos capazes de Te dar graças.
44 20. (Shemuel - séc. III) Nós Te damos graças, Deus de toda a carne, por sermos
capazes de Te dar graças.
45 21. (R. Schimi - séc. III) Oferecemos bênçãos e louvores ao teu grande Nome, porque
nos fizeste viver, permanecer na vida e dar-Te graças.
46 22. (Um rabino - séc. IV) Conserva-nos na vida, enche-nos de graças, congrega-nos
a nós e aos nossos chefes nos teus edifícios santos, para que possamos cumprir, de
todo o coração, os teus mandamentos e a tua vontade. Nós Te damos graças por
sermos capazes de Te dar graças.
TEXTOS EUCOLÓGICOS HEBRAICOS 41

ACÇÕES DE GRAÇAS SEGUNDO O TALMUDE DE JERUSALÉM

QUANDO SE RECITA A ACÇÃO DE GRAÇAS HODA’AH

23. (R. Schimi – séc. III) Nós Te damos graças, Senhor do universo, Deus dos 47
cânticos de louvor, rochedo do mundo que vives eternamente, (Senhor) da obra da
criação, que dás vida aos mortos, que nos fizeste viver e nos conservas na vida, que nos
atribuis o mérito do que fizeste, que vieste em nosso auxílio e nos convidaste a servir-
Te para darmos graças ao teu Nome. Bendito sejas, Senhor, Deus da acção de graças.
24. (Abba Zabda - séc. III) Nós Te damos graças por nos fazeres dar graças a Ti e ao 48
teu Nome. Ao louvar-Te, alegrar-me-ei em meus lábios, e terei alegria na minha alma,
que remiste. Bendito sejas, Senhor, Deus da acção de graças.
25. (R. Schemuel - séc. IV) Sejam dadas acções de graças e louvores ao teu Nome. A 49
Ti a grandeza, o poder e a glória. Possa a tua vontade, Senhor nosso Deus e Deus de
nossos pais, sustentar-nos nas nossas falhas e levantar-nos nas nossas quedas, pois
sustentas todos os que caem, levantas os que estão prostrados, és cheio de misericór-
dia e não há outro (Deus) além de Ti. Bendito sejas, Senhor, Deus da acção de graças.
26. (Bar Qappara - séc. II-III) Devemos dobrar o joelho diante de Ti, curvar-nos 50
diante de Ti, prostrarmo-nos de joelhos diante de Ti. Diante de Ti se deve dobrar todo
o joelho, toda a língua Te deve invocar. A Ti (Senhor) a grandeza, a força, o esplendor,
a duração e a glória, porque tudo no Céu e na terra Te pertence. A Ti o império, pois
estás acima de todas as coisas. Precedem-Te as riquezas e a glória, Tu és o Senhor de
tudo, nas tuas mãos o poder e o vigor, nas tuas mãos a força para levantar e firmar
todas as coisas. E agora, Senhor nosso Deus, nós Te damos graças, e prostrando-nos de
todo o coração e de toda a alma diante de Ti, celebramos o teu Nome glorioso. Dizem
todos os meus ossos: Quem pode como Tu, Senhor, livrar o desvalido do prepotente,
o miserável e o pobre de quem os explora? Bendito sejas, Senhor, Deus da acção de
graças.

TEXTOS MODERNOS

COLIGIDOS DOS TALMUDES DE BABILÓNIA E DE JERUSALÉM

27. (Modim de-rabbanam) Nós Te damos graças, porque és nosso Deus e Senhor e 51
Deus de nossos pais, Deus de toda a carne, nosso Criador que fizeste surgir a obra da
criação. Nós oferecemos bênçãos, preces e acções de graças ao teu grande Nome,
porque nos fizeste viver e subsistir na vida. Do mesmo modo, para vivermos e perma-
necermos na vida, nos acabas de formar, nos mandas para o exílio e congregas nos teus
átrios, para que observemos os teus mandamentos, façamos a tua vontade e Te sirva-
mos de todo o coração. Nós Te damos graças por sermos capazes de Te dar graças.
Bendito sejas, Deus da acção de graças.
28. (Shalom) Dá a tua paz a Israel teu povo [à tua cidade e à tua herança]. E nós 52
todos bendigamos numa só voz: Bendito sejas, Senhor, que constróis a paz.
42 SÉCULO I

IV. Santificação (Qidduš) 5


53 1. (Em voz baixa) Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o sexto dia. (Em
voz alta) Assim foram terminados os céus e a terra e todo o seu conjunto. Concluída,
no sétimo dia, toda a obra que havia feito, Deus repousou, no sétimo dia, de todo o
trabalho que realizara. Deus abençoou o sétimo dia e santificou-o, visto ter sido nesse
dia que Ele repousou de toda a obra da criação (Gen 1, 31b – 2, 1-3).
54 2. (Bênção do vinho) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que crias
o fruto da videira.
55 3. (Bênção do dia do sábado ou de uma festividade) Bendito sejas, Senhor nosso
Deus, Rei do universo, porque nos santificaste pelos teus preceitos, nos mostraste a
tua misericórdia, nos entregaste em herança, por caridade e benevolência, o teu santo
sábado, memorial da obra da criação, dia do início das assembleias sagradas (Lv 23, 3),
memorial da saída do Egipto [ou: início das assembleia sagradas que são memorial da
saída do Egipto]. Tu nos escolheste e santificaste diante de todos os povos e nos deste
em herança, por caridade e benevolência, o teu santo sábado. Bendito sejas, Senhor,
que santificas o sábado.
56 4. (Bênção do pão) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que fazes
produzir o pão à terra.

V. Birkat Ha-Mazon 6
BÊNÇÃO DO CONVITE (Birkat ha-zimmun)

57 1. A. Bendigamos o meu Senhor.


R. Bendito seja o Nome do Senhor agora e para sempre.
A. Com licença dos nossos chefes, magistrados e doutores, bendigamos Aquele
de cujos bens comemos (Se estiverem dez à mesa, diz: [bendigamos o nosso Deus de
cujos bens comemos] e, se forem cem ou mil, etc., acrescenta outros nomes).
R. Bendito seja (se for oportuno: [o nosso Deus]) Aquele de cujos bens come-
mos e de cuja bondade vivemos.
A. Bendito seja (se for oportuno: [o nosso Deus]) Aquele de cujos bens come-
mos e de cuja bondade vivemos.
R. Bendito seja Ele e bendito o seu Nome.
BÊNÇÃO DO ALIMENTO (Birkat ha-mazon)

58 2. (Bênção d’Aquele que alimenta) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do uni-
verso, que alimentas todo o mundo com bondade, benevolência e misericórdia. Bendito
sejas, Senhor, que alimentas o universo.
59 3. (Bênção da terra) Nós Te damos graças, Senhor nosso Deus, porque nos deste
em herança uma terra aprazível [para que comamos dos seus frutos e nos saciemos da
sua bondade]. Bendito sejas, Senhor nosso Deus, pela terra e pelo alimento.

5
Esta santificação celebrava-se em casa. No início do séc. III foi introduzida na Sinagoga. Hoje tornou-se
o exórdio da ceia festiva.
6
A estrutura da acção de graças que precede a súplica, com os seus embolismos, explica a forma da primitiva
Eucaristia cristã: o diálogo (bênção do convite) é a primeira perícope, cujo significado é enunciado pelas
primeiras e últimas palavras.
TEXTOS EUCOLÓGICOS HEBRAICOS 43

4. (Bênção por Jerusalém) Tem piedade, Senhor nosso Deus, de Israel teu povo, de 60
Jerusalém tua cidade, e de Sião morada da tua glória, do teu altar e do teu santuário.
Bendito sejas, Senhor, que edificas Jerusalém.
5. (Bênção d’Aquele que é bom e benfeitor) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei 61
do universo, bom e benfeitor.
BÊNÇÃO DO ALIMENTO (Birkat ha-mazon) 7

6. (Bênção d’Aquele que alimenta) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do uni- 62
verso, que alimentas [todo] o mundo com bondade, benevolência e misericórdia, que
dás o pão a toda a carne, porque tudo alimentas e sustentas e forneces o alimento a
todas as tuas criaturas. Bendito sejas, Senhor, que dás o alimento a todo o mundo.
7. (Bênção da terra) Nós Te damos graças, Senhor nosso Deus, pela terra aprazí- 63
vel, boa e vasta, que amaste e deste em herança aos nossos pais, pela tua aliança que
imprimiste em nossa carne, pela Lei que nos deste, e pela vida, benevolência, graça e
alimento que nos dás em todo o tempo.
(Aqui introduz-se o embolismo das festividades Hanukah e Purim)
8. (Bênção das festividades) Por tudo isto, Senhor nosso Deus, Te damos graças e 64
bendizemos o teu Nome. Bendito seja o teu Nome sobre nós, por toda a eternidade e
para sempre. Bendito sejas, Senhor, pela terra e pelo alimento.
9. (Bênção por Jerusalém) Tem piedade, Senhor nosso Deus, de Israel teu povo, de 65
Jerusalém tua cidade, de Sião morada da tua glória, e da casa de David teu ungido, e da
grande e santa casa sobre a qual foi invocado o teu Nome. [Nosso Pai, nosso Rei],
nosso pastor, alimenta-nos, conserva-nos, sustenta-nos, liberta-nos bem depressa das
nossas angústias. Nunca permitas [Senhor nosso Deus], que tenhamos necessidade de
dons corporais, porque são pequenos os seus benefícios e grandes os trabalhos. Nós
confiamos no teu Nome santo, grande e temível. Venham Elias e o Messias, filho de
David, durante a nossa vida; restabelece depressa o reino da casa de David no seu
lugar, reina em nós, porque só Tu [és], e salva-nos pelo teu Nome. Eleva-nos até Ele,
alegra-nos e consola-nos em Sião, tua cidade. Bendito sejas, Senhor, que edificas Jeru-
salém. Amen.
(Aqui introduz-se outro embolismo)
10. (Bênção pelo bem que Deus nos faz) Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do 66
universo, nosso Pai, nosso Rei, nosso Redentor, nosso Protector, nosso Criador,
dominador das nossas almas, nosso Santo, Santo de Jacob, Rei bom e benfeitor, que
nos fazes bem dia após dia. Faz-nos crescer, e aumentarão perpetuamente em nós a
graça, a benevolência, a misericórdia e todos os bens.

VI. Rito da narração da Páscoa (Sédèr Haggadah Šèl Pèšat) 8

SANTIFICAÇÃO DO DIA OU PRIMEIRO RITO


(com o primeiro cálice)

1. Preparadas todas as coisas, sentam-se à mesa e cada um enche o seu cálice. 67


Pondo-se de pé, o pai de família diz as bênçãos que se seguem, em forma entoada:

7
Recensão litúrgica, do século IX.
8
A liturgia da ceia pascal compõe-se de quatro momentos rituais, e começa quando se enche o segundo
cálice: santificação da festa; narração da Páscoa; acção de graças depois da ceia; acção de graças duplicada,
juntamente com o grande Hallel.
44 SÉCULO I

Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, Criador do mundo e do fruto
da videira.
Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que nos escolheste entre
todos os povos, nos fizeste triunfar de todas as línguas e nos santificaste pelos seus
preceitos. Tu nos deste, Senhor nosso Deus, por caridade, a festa anual na alegria,
festividades e tempos no júbilo, e este dia de festa dos Ázimos, tempo da nossa
libertação, reunião santa, memorial da saída do Egipto, porque nos escolheste e santi-
ficaste entre todos os povos e nos fizeste herdeiros desta tua santa festa anual, com
júbilo e alegria. Bendito sejas, Senhor, que santificas Israel e os tempos.
Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que nos vivificaste e nos
fizeste sobreviver, e permitiste que chegássemos a este tempo presente.
68 2. Depois de lavadas as mãos, sem bênção, o pai de família toma o aipo, que mete
na água, com salsa e vinagre e distribui aos outros. Enquanto comem dizem:
Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que criaste os frutos da terra.
69 3. O pai de família toma um pastel folhado ou pão ázimo e parte-o em duas partes.
Então, elevando o prato, diz:
Este é o pão da aflição, que os nossos pais comeram na terra do Egipto. Todo
aquele que tiver fome aproxime-se e coma, se alguém precisa de celebrar a Páscoa,
aproxime-se e coma a Páscoa. Este ano aqui; no próximo ano na terra de Israel. Este
ano, escravos; no próximo ano, filhos da liberdade.
70 4. O filho mais novo pergunta:
Por que motivo é esta noite tão diferente das outras noites?
71 5. Então, o pai de família faz a explicação (haggadá):
No princípio, os nossos antepassados eram idólatras. Mas agora Deus iniciou-
nos no seu culto, como diz Josué: Então Josué disse a todo o povo: Eis o que diz o
Senhor, Deus de Israel: Vossos pais, Tera, pai de Abraão e de Naor, habitavam, no
princípio, do outro lado do rio e serviam outros deuses. Tomei o vosso pai Abraão do
outro lado do Jordão e conduzi-o à terra de Canaã. Multipliquei a sua posteridade,
dando-lhe Isaac.
A Isaac dei Jacob e Esaú, e dei a Esaú a montanha de Seir; Jacob, porém, e seus
filhos foram para o Egipto (Jos 24, 2-4). Bendito seja Aquele que manteve a sua
promessa feita a Israel. Ele fixou o termo da escravidão para cumprir o que tinha
prometido a Abraão, nosso pai, a quando da aliança, como está escrito: O Senhor disse
a Abraão: Fica desde já a saber que os teus descendentes habitarão como estrangeiros
numa terra que não é deles, que serão reduzidos à escravidão e hão-de oprimi-los
durante quatrocentos anos. Mas Eu próprio julgarei também a nação que os escravizar,
e sairão, depois, com grandes riquezas dessa terra (Gen 15, 13-14).
Esta promessa sustentou-nos a nós e aos nossos antepassados. Não foi apenas
um inimigo que se levantou contra nós para nos exterminar. Durante séculos e séculos
se levantaram contra nós, para nos aniquilar, e Ele livrou-nos das suas mãos.
Recordemos o que Labão, o arameu, pensava fazer a Jacob, nosso pai. O Faraó,
nas suas ordens, dirigia-se só contra os filhos varões, ao passo que Labão queria
destruir tudo. Como está dito: O arameu queria destruir o meu pai. Mas este desceu ao
Egipto com um pequeno número e ali viveu como estrangeiro, mas depois tornou-se
um povo forte e numeroso (Dt 26, 5).
72 6. Segue-se um midrash da frase anterior com textos tirados de Gen 47, 4; Dt 10,
22; Ex 1, 7; Ez 16, 7.
Desceu ao Egipto. Portanto, não para se estabelecer ali definitivamente. Então
os Egípcios maltrataram-nos, oprimindo-nos e impondo-nos uma dura escravidão (Dt 26, 6).
TEXTOS EUCOLÓGICOS HEBRAICOS 45

7. Segue-se outro midrash, onde se cita Ex 1, 10-11.13. 73


Clamámos a Javé, Deus de nossos pais, e o Senhor ouviu o nosso clamor, viu a
nossa humilhação, os nossos trabalhos e a nossa angústia (Dt 26, 7).
8. Alude-se a Ex 2, 23-25; Ex 2, 22; 3, 9. 74
Javé tirou-nos do Egipto, com sua mão forte e seu braço estendido, com grandes
milagres, sinais e prodígios.
9. Novo centão de textos: Ex 12, 12; 9, 3; 1 Cro 21, 16; Dt 4, 34; Ex 4, 17; Joel 3, 75
3. Entre outras sentenças, lê-se a seguinte:
Não foi um Anjo nem um Serafim que nos fez sair do Egipto, mas o Santo na sua
glória e pessoalmente.
10. Termina com uma explicação simbólica das pragas. 76

SEGUNDO RITO (com o segundo cálice)


ISSO NOS BASTARIA (Dayyénu)

11. Quantas coisas boas fez por nós o Senhor. 77


Se nos tirasse do Egipto e não os julgasse, isso nos bastaria.
Se os julgasse e não julgasse os seus deuses, isso nos bastaria.
Se julgasse os seus deuses e não matasse os seus primogénitos, isso nos bastaria.
Se matasse os seus primogénitos e não nos desse as suas riquezas, isso nos bastaria.
Se nos desse as suas riquezas e não dividisse o mar em nosso favor, isso nos
bastaria.
Se dividisse o mar em nosso favor e não nos fizesse atravessar pelo meio, em
terra enxuta, isso nos bastaria.
Se nos fizesse atravessar pelo meio, em terra enxuta e não submergisse no fundo
das águas os que nos perseguiam, isso nos bastaria.
Se submergisse no fundo das águas os que nos perseguiam e não nos desse o
necessário à nossa subsistência durante quarenta anos no deserto, isso nos bastaria.
Se nos desse o necessário à nossa subsistência durante quarenta anos no deserto
e não nos fizesse comer o maná, isso nos bastaria.
Se nos fizesse comer o maná e não nos desse o sábado, isso nos bastaria.
Se nos desse o sábado e não nos fizesse chegar ao monte Sinai, isso nos bastaria.
Se nos fizesse chegar ao monte Sinai e não nos desse a Lei, isso nos bastaria.
Se nos desse a Lei e não nos reunisse na terra de Israel, isso nos bastaria.
Se nos reunisse na terra de Israel e não fizesse de nós casa da eleição, isso nos
bastaria.

MONIÇÃO

12. Em todas as gerações, todos devem considerar-se a si próprios como tendo saído 78
do Egipto, como diz a Escritura: E explicarás naquele dia ao teu filho, dizendo: É por
causa daquilo que o Senhor fez por mim quando saí do Egipto (Ex 13, 8). Não foram só
os nossos pais que o Deus Santo – bendito seja Ele – libertou do Egipto, mas também
nos libertou a nós com eles, como diz a Escritura: Quanto a nós, tirou-nos de lá, para
nos introduzir aqui e nos dar a terra que prometera com juramento a nossos pais (Dt 6, 23).

INVITATÓRIO

13. Por isso, devemos louvar, celebrar, oferecer louvores, glorificar, elogiar, aclamar, 79
bendizer, exaltar e anunciar Aquele que é vencedor, Aquele que fez todos estes sinais
46 SÉCULO I

em favor dos nossos pais e de nós próprios. Arrancou-nos da servidão para a liberda-
de, da tristeza para a alegria, do luto para o dia de festa, da escuridão para a grande luz,
da escravidão para a redenção. Digamos, pois, diante d’Ele (o cântico novo): Hallelu-yah.

PRIMEIRA PARTE DOS SALMOS HALLEL

80 14. Louvai, servos do Senhor... (Sal 113).


Quando Israel saiu do Egipto... (Sal 114, 1-8).

BÊNÇÃO DA REDENÇÃO

81 15. O pai de família eleva o cálice e agita-o, dizendo:


Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que nos libertaste do Egip-
to, a nós e aos nossos pais, e nos fizeste chegar a esta noite para nela comermos o pão
ázimo e as ervas amargas. Faz-nos também chegar, Senhor nosso Deus e Deus de
nossos pais, às outras solenidades e às próximas festas anuais, em paz, alegres pela
edificação da tua cidade e cheios de júbilo por Te prestarmos culto. Permite que aí
comamos dos sacrifícios e vítimas pascais, com cujo sangue aspergimos os lados do
altar em tua honra. Nós Te damos graças com um cântico novo pela nossa redenção e
pela libertação das nossas almas. Bendito sejas, Senhor, que libertas Israel.
Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que nos dás o fruto da
videira.
82 16. Todos os que estão à mesa bebem. Depois, por ordem, cada um lava as mãos na
bacia, dizendo:
Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que nos santificaste pelos
teus preceitos e nos mandaste lavar as mãos.
83 17. A seguir, o pai de família toma o primeiro bolo ázimo folhado, que está debaixo
da toalha, e eleva-o, dizendo:
Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que fazes nascer o pão da
terra.
84 18. O pai de família parte o pão e diz a bênção antes de o comer:
Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que nos santificaste com os
teus preceitos e nos mandaste comer o pão ázimo.
Distribui (o pão) pelos que estão à mesa.
85 19. Toma então as ervas amargas, mete-as dentro do harosèt, isto é, do molho feito
com figos, tâmaras, uvas, etc., e depois diz a bênção:
Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que nos santificaste com os
teus preceitos e nos mandaste comer as ervas amargas.
Come e distribui aos outros.
86 20. Toma o terceiro bolo ázimo folhado, que está debaixo da toalha e, depois de o
partir, envolve com ele as ervas amargas e come, dizendo, sem proferir a bênção:
Memória do santuário à maneira de Hillel. Assim fez Hillel quando havia casa do
santuário: envolveu ervas amargas em pão ázimo e comeu-as assim ao mesmo tempo,
para confirmar o que foi dito: Com pães ázimos e ervas amargas comereis (a Páscoa)
(Num 9, 11).
Distribui aos outros que estão a comer, os quais dizem o mesmo.
TEXTOS EUCOLÓGICOS HEBRAICOS 47

TERCEIRO RITO (com o terceiro cálice)

BIRKAT HA-MAZON

21. Mistura-se o terceiro cálice e deita-se em cada um dos cálices da bênção. O pai 87
de família, antes de bendizer, pede autorização:
A. Senhor meu, nós Te bendizemos.
R. Bendito seja o Nome do Senhor, agora e pelos séculos.
A. Com licença... bendigamos (o nosso Deus), porque comemos dos seus bens.
R. Bendito seja (o nosso Deus), porque comemos dos seus bens e vivemos da
sua bondade.
A. Bendito seja (o nosso Deus), porque comemos dos seus bens e vivemos da
sua bondade.
R. Bendito seja Ele e bendito (seja) o seu Nome.
22. Depois disto, o pai de família dá graças: 88
1. Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que alimentas o mundo
inteiro com a tua bondade, a tua graça, a tua misericórdia e com a tua terna compaixão.
Dás pão a toda a carne, porque a tua misericórdia é eterna. Pela tua grande bondade
jamais nos faltou o sustento, nem nos faltará no futuro, pelos séculos dos séculos.
Pelo teu grande Nome alimentas e sustentas todos os seres vivos, fazendo bem a todos
e dispondo o sustento para tudo quanto criaste. Bendito sejas, Senhor, que dás a todos
o alimento.
2. Nós Te damos graças, Senhor nosso Deus, pois deixaste em herança aos
nossos pais uma terra aprazível, boa e vasta, e porque nos tiraste, Senhor nosso Deus,
da terra do Egipto e nos libertaste da casa da escravidão, assim como pela aliança que
imprimiste na nossa carne, pela tua Lei que nos ensinaste, pelos teus preceitos que nos
deste; pela vida, pela graça e pela misericórdia que derramaste sobre nós, e pelo
alimento com que nos sustentas constantemente, todos os dias, em todo o tempo e a
qualquer hora. Por tudo isto, Senhor nosso Deus, nós Te damos graças e Te bendize-
mos. Bendito seja o teu Nome na boca de todos os seres vivos, continuamente e para
sempre, segundo o que está escrito: Então comerás e ficarás saciado, agradecendo ao
Senhor, teu Deus, pela terra óptima que te deu (Deut 8, 10). Bendito sejas, Senhor,
pela terra e pelo alimento.
3. Tem piedade, Senhor nosso Deus, de Israel teu povo, de Jerusalém tua cidade,
de Sião morada da tua glória, do reino da casa de David teu ungido, da grande e santa
casa sobre a qual é invocado o teu Nome. Nosso Deus, nosso pai, apascenta-nos,
nutre-nos, alimenta-nos, sustenta-nos. Alivia-nos e livra-nos depressa, Senhor nosso
Deus, de todas as nossas angústias. Nós Te pedimos, Senhor nosso Deus, não permi-
tas que tenhamos necessidade de bens corporais, nem de coisas emprestadas por
outros, mas apenas da tua mão cheia, aberta, santa e grande, não aconteça que sejamos
confundidos e cheios de vergonha nos séculos sem fim.
Faz, nosso Deus e Deus de nossos pais, que o nosso memorial e lembrança, o
memorial dos nossos pais, o memorial do Messias filho de David teu servo, o memo-
rial de Jerusalém, tua cidade santa, o memorial de todo o teu povo, casa de Israel, suba,
venha, chegue, seja visto, aceite, ouvido, procurado e recordado diante de Ti, para a
libertação, a prosperidade, a graça, a compaixão e a misericórdia, a vida e a paz, neste
dia de festa dos Ázimos. Lembra-Te de nós neste dia, Senhor nosso Deus, para nos
fazeres prosperar por ele, visita-nos para nos fazeres bem por ele, e salva-nos para
nos dares a vida por ele. Por uma palavra de salvação e de misericórdia poupa-nos, dá-
nos a tua graça em abundância, tem piedade de nós e salva-nos. Os nossos olhos estão
voltados para Ti, porque és um Deus e um Rei cheio de graça e misericordioso.
48 SÉCULO I

Edifica Jerusalém, tua cidade santa, depressa, em nossos dias. Bendito seja o
Senhor, que [pelas suas misericórdias] edifica Jerusalém. Amen.
4. Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, nosso Deus e nosso Pai,
nosso Rei, nosso Protector, nosso Criador, nosso Redentor, nosso Construtor, nosso
Santo, Santo de Jacob, nosso Pastor, Pastor de Israel, Rei benigno e benfeitor de todos,
que todos os dias e em cada dia nos fizeste, fazes e farás benefícios. Tu mesmo nos
fizeste, fazes e farás aumentar perpetuamente em graça e compaixão, em misericórdia
e abundância, em libertação e prosperidade, em bênçãos e saúde, em consolação, em
sustentação e alimentos, em misericórdia e vida, em paz e em todos os dons, e não
permitirás que nos falte qualquer bem.
HA-RAHAMAN HU

89 23. Aquele que é misericordioso reinará em nós desde agora e pelos séculos.
Aquele que é misericordioso seja bendito nos Céus e na terra.
Aquele que é misericordioso seja louvado de geração em geração, glorificado
entre nós de eternidade em eternidade, e celebrado por nós, desde agora e pelos séculos
dos séculos.
Aquele que é misericordioso nos alimente com abundância.
Aquele que é misericordioso quebre o jugo do nosso pescoço e nos eleve até ao
alto na nossa terra.
Aquele que é misericordioso envie bênçãos abundantes a esta casa e a esta mesa
na qual comemos.
Aquele que é misericordioso nos envie Elias, profeta de gloriosa memória, e nos
anuncie boas notícias de salvação e consolação.
Aquele que é misericordioso abençoe (o meu pai, o meu mestre, o pai de família
desta casa, a minha mãe, a minha senhora, a mãe de família desta casa, os outros, suas
casas, seus filhos e todos os seus bens), nos abençoe a nós e a todos os nossos bens,
do mesmo modo que foram abençoados os nossos pais Abraão, Isaac e Jacob em todas
as coisas, através de todas as coisas e por todas as coisas. Assim nos abençoe a todos
nós ao mesmo tempo com uma bênção perfeita, e digamos: Amen. Sejam defendidos,
nas alturas, os direitos dos outros e os nossos, para conservarmos a paz, a continuida-
de da bênção do Senhor e a justiça de Deus nosso salvador, e para obtermos graça e
consideração diante de Deus e dos homens (Prov 3, 4).
Aquele que é misericordioso nos faça herdeiros do dia que é totalmente bom.
Aquele que é misericordioso nos julgue dignos dos dias do Messias e da vida do
mundo futuro. A torre da salvação do rei use de bondade com o seu Messias, com
David e seus descendentes para sempre (Sal 17, 51). Haja paz nas alturas, e Ele
próprio faça vir a paz sobre nós e sobre todo o Israel. E dizei: Amen.
90 24. Os que estão à mesa digam em voz baixa:
Temei o Senhor, todos os que Lhe estais consagrados, pois nada falta aos que O
temem.
Os ricos empobrecem e passam fome, mas aos que procuram o Senhor nenhum
bem há-de faltar (Sal 33, 10-11).
Louvai o Senhor, porque Ele é bom, porque é eterno o seu amor (Sal 135, 1).
Abres com largueza a tua mão e sacias os desejos de todos os viventes (Sal 144, 16).
Bendito o homem que confia no Senhor, que tem no Senhor a sua confiança (Jer 17, 7).
Fui jovem e já sou velho; mas nunca vi o justo abandonado nem os seus filhos a
mendigar pão (Sal 36, 25).
TEXTOS EUCOLÓGICOS HEBRAICOS 49

O Senhor dá força ao seu povo; o Senhor abençoa o seu povo na paz (Sal 28, 11).
25. E, depois de dizerem a bênção que se segue, todos os que estão à mesa bebem: 91
Bendito sejas, Senhor nosso Deus, que nos dás o fruto da videira.

VERSÍCULO DO CÁLICE DE ELIAS

26. Começam, então, a segunda parte do Hallel, dizendo estes versículos dos sal- 92
mos. Mas antes é costume abrir repentinamente a porta (estando presentes os que
misturam «o cálice de Elias», que exclamam: Bendito o que vem!).
Descarrega a tua ira sobre os pagãos, que não Te conhecem, e sobre os reinos que
não invocam o teu Nome, porque eles devoraram o povo de Jacob e destruíram a sua
morada (Sal 78, 6-7; Jer 10, 25).
Descarrega sobre eles a tua indignação e sejam atingidos pelo furor da tua ira (Sal
68, 25).
Persegue-os com a tua cólera e elimina-os, Senhor, de debaixo dos teus céus
(Lam 3, 66).

QUARTO RITO (com o quarto cálice)

SEGUNDA PARTE DOS SALMOS HALLEL

27. Misturam e enchem o quarto cálice e dizem sobre ele a última parte do Hallel: 93
Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu Nome dá glória... (Sal 113, 9 ss.).
Amo o Senhor, porque ouviu a voz do meu lamento... (Sal 114, 1-9 e 115, 10-11).
Como retribuirei ao Senhor todos os seus benefícios para comigo?... (Sal 115,
12-18).
Louvai o Senhor, todas as nações... (Sal 116).
Louvai o Senhor, porque Ele é bom, porque é eterno o seu amor... (Sal 117).
BÊNÇÃO DO CÂNTICO (Birkat ha-Šir)

28. Yehalleluyha 94
Louvem-Te, Senhor nosso Deus, todas as tuas obras. E os teus fiéis piedosos, os
justos que fazem a tua vontade e todo o teu povo, casa de Israel, celebrarão com
alegria, bendirão, glorificarão, engrandecerão, exaltarão, adorarão, santificarão e farão
reinar o teu Nome, nosso Rei, pois é bom celebrar-Te e cantar salmos ao teu Nome,
porque Tu és Deus pelos séculos dos séculos.
Louvai o Senhor, porque Ele é bom, porque é eterno o seu amor, etc... (Sal 135).
29. Niš-mat kol hay 95
A alma de todo o ser vivo bendiga o teu Nome, Senhor nosso Deus, e o espírito
de toda a carne glorifique e exalte sempre a tua memória, ó nosso Rei.
Desde sempre e para sempre Tu és Deus, e fora de Ti não há para nós Rei,
Redentor e Salvador, que liberte e salve, que alimente e em todo o tempo tenha com-
paixão das angústias e tribulações. Não tememos outro Rei senão Tu, Deus dos pri-
meiros e dos últimos, Deus de todas as criaturas, Senhor de todas as gerações, digno de
ser louvado por multidões de louvores, que governas o universo com bondade e as tuas
criaturas com misericórdia.
50 SÉCULO I

O eterno não dorme nem adormece. É Ele que faz acordar os que dormem e
desperta os sonolentos, que faz falar os mudos e liberta os cativos, que ampara os que
vão cair e endireita os encurvados. A Ti, só a Ti nós damos graças.
Mesmo que a nossa boca estivesse cheia de poemas como o mar e a nossa língua
de cânticos semelhantes às suas ondas, mesmo que os nossos lábios soltassem gritos
de júbilo como a imensidão do firmamento e os nossos olhos brilhassem como o sol e
como a lua, mesmo que as nossas mãos estivessem estendidas como a águia dos céus e
os nossos pés fossem ligeiros como os cervos, isso não bastaria para Te dar graças,
Senhor nosso Deus e Deus de nossos pais, e para bendizer o teu Nome por uma só
bondade tua, pelos inumeráveis milhares de milhares e pelos incontáveis milhões de
coisas boas que nos concedeste a nossos pais e a nós.
Tiraste-nos do Egipto, Senhor nosso Deus, e libertaste-nos da casa da escravi-
dão. Na fome nos alimentaste e copiosamente nos saciaste. Arrancaste-nos da espada
e livraste-nos da peste, arrebataste-nos a nós e aos fiéis, de muitos males e doenças.
Até aqui as tuas misericórdias serviram-nos de auxílio, e a tua clemência não nos
abandonou, Senhor nosso Deus, nem nunca Tu nos abandonarás para sempre.
Por isso, os membros que em nós distribuíste, o espírito e a alma que dentro de
nós insuflaste, a língua que puseste na nossa boca, dão graças, bendizem, glorificam,
aclamam, exaltam, adoram, manifestam o poder, a santidade e a realeza do teu Nome,
ó nosso Rei. Toda a boca Te há-de celebrar, toda a língua jurará por Ti, todo o joelho
se dobrará diante de Ti (Is 45, 23), toda a altura se inclinará diante de Ti. Todos os
corações hão-de temer-Te, todas as entranhas e rins hão-de cantar salmos ao teu Nome,
como está escrito: Com todo o meu ser, eu direi: Quem pode como Tu, Senhor, livrar
o desvalido do prepotente, o miserável e o pobre, de quem os explora? (Sal 34, 10).
Quem é semelhante a Ti? Quem se compara a Ti? Quem é igual a Ti, Deus
grande, forte e temível, Deus excelso, Criador do mundo do céu e da terra? Nós Te
louvaremos, glorificaremos, exaltaremos e bendiremos o teu Nome santo, como disse
David: Bendiz, ó minha alma, o Senhor, e todo o meu ser louve o seu Nome santo (Sal
102, 1). Tu és o Deus forte pelo teu poder sem limites. Tu és grande pela glória do teu
Nome. Tu és eternamente poderoso e temível pelas tuas maravilhas, ó rei sentado num
trono excelso e sublime.
Habita no Céu para sempre, e santo é o seu Nome. Está escrito: Exultai, ó justos,
no Senhor, louvai-O, rectos de coração (Sal 32, 1). Serás louvado pela boca dos rectos
de coração, bendito pelas palavras dos justos, exaltado pela língua dos piedosos e
santificado no meio dos santos.
Nas assembleias inumeráveis da casa de Israel, teu povo, o teu Nome será exal-
tado com cânticos, ó nosso Rei, de geração em geração. Porque é dever de todas as
criaturas, diante de Ti, Senhor nosso Deus e Deus de nossos pais, dar-Te graças,
louvar-Te, glorificar-Te, celebrar-Te, exaltar-Te, honrar-Te, bendizer-Te, festejar-Te,
para além de todas as palavras, cânticos e louvores de David, filho de Jessé, teu servo
e teu ungido.
Glorificado seja para sempre o teu Nome, ó nosso rei, Deus forte, rei grande e
santo, no Céu e na terra. A Ti são devidos, Senhor nosso Deus e Deus de nossos pais,
poemas e glorificação, louvor e salmos, força e poder, triunfo, grandeza e fortaleza,
elogio e honra, santidade e reino, bênçãos e acções de graças, desde agora e pelos
séculos. Deus das acções de graças. Senhor das maravilhas, que escolhes cânticos de
glorificação, ó Rei e Deus que vives pelos séculos.
96 30. Dizem a bênção sobre o quarto cálice:
Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que nos dás o fruto da
videira.
TEXTOS EUCOLÓGICOS HEBRAICOS 51

ÚLTIMA BÊNÇÃO

31. Os convivas, que participam na ceia, bebem e dizem esta última bênção: 97
Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, pela videira, pelo fruto da
videira, pelos frutos do campo e pela terra aprazível, boa e vasta, que amaste e deste
em herança aos nossos pais, para que comessem dos seus frutos e se saciassem das
suas coisas boas. Tem piedade, Senhor nosso Deus, de Israel teu povo, de Jerusalém
tua cidade, de Sião morada da tua glória, do teu altar e do teu santuário. Edifica
Jerusalém, tua cidade santa, depressa, em nossos dias; faz com que subamos até ela e
alegra-nos nela. Havemos de comer dos seus frutos, de nos saciar com a sua bondade,
de Te bendizer por ela em santidade e pureza. Enche-nos de alegria neste dia de festa
dos Ázimos, porque Tu, Senhor, és bom e fazes bem a todos. Nós Te damos graças
pela terra e pelo fruto da videira. Bendito sejas, Senhor, pela terra e pelo fruto da
videira.
HINO: «E CHEGOU A MEIA-NOITE»

32. Acrescenta-se este hino após a última bênção, porque ele mostra a plenitude do 98
memorial da Páscoa na concepção hebraica. O texto é tirado do poema das Quatro
noites que é um Targum de Ex 12, 42: Aquela foi uma noite de vigília para o Senhor,
quando Ele os fez sair da terra do Egipto. Aquela noite do Senhor será de vigília para
todos os filhos de Israel nas suas gerações.
Outrora fizeste muitas das tuas maravilhas de noite - início desta primeira vigília
nocturna (Sal 90, 4).
Deste a vitória ao estrangeiro justo, quando, de noite, dividiste os companhei-
ros. Isso aconteceu à meia-noite. Em sonhos, ameaçaste de noite o rei de Guerar (Gen
20). Na obscuridade da noite encheste de pavor a Labão, o arameu. E foi de noite que
Israel lutou contra o Anjo e saiu vencedor. Isso aconteceu à meia-noite.
33. Segue-se a memória de numerosos acontecimentos que sucederam de noite: 99
memória da morte dos primogénitos do Egipto e vitória contra Sísara ( Jz 4-5);
memória da vitória contra Senaquerib (2 Rs 19; Is 37): memória da destruição de Bel
(Dan 14), da revelação do sonho a Daniel (Dan 4), do banquete e do castigo (Dan 5),
da libertação da cova dos leões (Dan 14); memória de Amã e da morte que ele pensara
(Est 3). Cita-se ainda Is 63, 3 e Is 21, 11. E termina assim:
Apressa o nascer do dia que nem é dia nem é noite. Mostra, Senhor, que teu é o
dia e tua é a noite (Sal 73, 16). Põe sentinelas na cidade todo o dia e toda a noite (Is 62,
6). Ilumina as trevas da noite como o dia. Tudo isto aconteceu à meia-noite.
34. Último voto 100
No próximo ano em Jerusalém.
35. E, se a ceia é celebrada na própria cidade, acrescentam: 101
No próximo ano em Jerusalém edificada.
52 SÉCULO I

VII. Bênçãos (Šema, Israel) 9


O DOM DA LUZ (Yotser)

102 1. Bendito sejas, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que formas a luz e crias as
trevas, que fazes a paz e crias todas as coisas (Is 45, 7), que, em tua misericórdia, dás
a luz à terra e a todos os que nela habitam e, em tua bondade, todos os dias e sem cessar
renovas a criação.
Senhor, como são grandes as tuas obras. Todas elas são fruto da tua Sabedoria. A
terra está cheia das tuas criaturas. Rei sublime, só Tu foste exaltado antes dos tempos,
louvado, glorificado e exaltado desde os dias antigos.
Deus eterno, na abundância das tuas misericórdias tem piedade de nós, Senhor
da nossa força, rochedo da nossa protecção, escudo da nossa salvação, nosso protector!
O Deus bendito, grande em sabedoria, preparou e formou os raios do sol: foi um
dom que Ele produziu para glória do seu Nome. Os chefes dos seus exércitos são os
seus santos, que exaltam o Todo-poderoso, e sem cessar cantam a glória de Deus e a
sua santidade. Bendito sejas, Senhor, nosso Deus, no alto dos Céus, e aqui na terra.
Bendito sejas, nosso Rochedo, nosso Rei e nosso Redentor, Criador dos seres
santos. Louvado seja o teu Nome eternamente, ó nosso Rei, Criador dos Anjos. E
todos estes Anjos que O servem estão de pé nas alturas do universo, e com temor
proclamam numa só e alta voz as palavras do Deus vivo e do Rei eterno. Todos são
muito amados, todos são puros, todos são poderosos, todos realizam, com tremor, a
vontade do seu Senhor, todos abrem os seus lábios em santidade e pureza, e louvam,
glorificam e santificam o Nome do grande Rei, o Único poderoso e muito de temer: Ele
é santo. Uns dos outros tomam sobre si o jugo do Reino dos Céus, e encorajam-se
mutuamente a santificar o seu Criador: na alegria tranquila do espírito, numa linguagem
clara, envolvida numa melodia santa, respondem todos numa só voz com tremor e
dizem com reverência:
Santo, Santo, Santo é o Senhor dos exércitos: a terra inteira está cheia da sua
glória (Is 6, 3).
E os Ophanim e os santos Hayoth, com um ruído de muitas águas, elevando-se
uns diante dos outros, louvam e dizem:
Bendita seja a glória do Senhor, no lugar onde ela repousa (Ez 3, 12).
Ao Deus bendito eles oferecem agradáveis melodias, ao Rei, ao Deus que vive e
perdura eternamente eles fazem ouvir os seus cânticos e os seus louvores, porque só
Ele realiza obras poderosas e faz coisas novas, o Senhor dos exércitos: semeia a
justiça, faz brotar a salvação, cria a cura, é reverenciado nos louvores, o Senhor das
maravilhas, que renova, todos os dias, pela sua bondade, a obra da criação, que criou os
grandes luzeiros porque é eterna a sua misericórdia. Bendito sejas, Senhor, Criador dos
grandes luzeiros.
O DOM DA LEI (Ahabhah Rabbah)

103 2. Amaste-nos com um grande amor, Senhor nosso Deus. Com uma piedade grande
e superabundante tiveste compaixão de nós, nosso Pai, nosso Rei, por causa do teu
grande Nome e por causa dos nossos pais que puseram em Ti a sua confiança, e aos
quais ensinaste os mandamentos de vida: tem piedade de nós também e ensina-nos.

9
Nas duas primeiras preces matutinas desta profissão de fé e memorial da Páscoa, já utilizadas na liturgia do
templo, há dois motivos de bênção: o dom da luz (Yotser) e o dom da Lei (Ahabhah). A santificação (Qedušah),
que é o louvor de Deus três vezes Santo, pode explicar a primeira parte da anáfora (Sanctus).
TEXTOS EUCOLÓGICOS HEBRAICOS 53

Pai nosso, Pai misericordioso, tem piedade de nós, e dá aos nossos corações a
capacidade de compreender e de escutar, de aprender e de ensinar, de estar atentos ao
cumprimento de todas as palavras de instrução na Tora, com amor. Ilumina os nossos
olhos com os teus mandamentos, liga os nossos corações à tua Tora, e que eles se unam
para temer o teu Nome, de modo a não sermos cobertos de vergonha nem confundidos
para sempre, porque foi no teu Nome grande, santo e temível que pusemos a nossa
confiança. Possamos nós alegrar-nos e encontrar a felicidade na tua salvação, e que a
tua misericórdia e a tua graça nunca nos abandonem. Venha até nós a paz dos quatro
cantos da terra inteira, e faz-nos subir ao nosso país, porque Tu és um Deus salvador.
Escolheste-nos de entre todos os povos e todas as línguas e colocaste-nos perto do teu
grande Nome na fidelidade.
Bendito sejas, Senhor, Tu que escolheste Israel teu povo, no amor.
Segue-se então o:
ESCUTA, ISRAEL (Šema, Israel)

3. Escuta, Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu 104
Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças... (Deut
6, 4-9).
Se escutardes os mandamentos que hoje vos ordeno, amando o Senhor, vosso
Deus, e servindo-O com todo o vosso coração e com toda a vossa alma, darei chuva à
vossa terra no devido tempo... Acautelai-vos para que o vosso coração não se deixe
seduzir e vos afasteis para servir outros deuses e lhes prestardes culto. A ira do Senhor
inflamar-se-ia contra vós... Gravai, pois, estas minhas palavras no vosso coração e no
vosso espírito... Então se multiplicarão os vossos dias e os dias dos vossos filhos...
(Deut 11, 13-21).
O Senhor disse a Moisés: Fala aos filhos de Israel... Eu sou o Senhor vosso Deus
que vos tirei da terra do Egipto para ser o vosso Deus. Eu sou o Senhor, vosso Deus
(Num 15, 37-41).

VIII. Escritos de Qumrãm 10


REGRA DA COMUNIDADE

1. Os sacerdotes dizem: 105


O Senhor te abençoe com todos os bens e te defenda de todo o mal, ilumine o teu
coração com a prudência da vida, use de clemência contigo no conhecimento eterno, e
faça brilhar o rosto dos seus benefícios sobre Ti, na paz eterna.
PALAVRAS DE BÊNÇÃO DO MESTRE DA SABEDORIA

2. Na bênção dos que temem a Deus, que fazem a sua vontade, que observam os 106
seus mandamentos, que guardam a sua herança e andam com rectidão em todos os
seus caminhos, dos que Ele escolheu para sua herança eterna, e permanecem eterna-
mente:
O meu Senhor te abençoe, te abra a fonte perpétua que não seca. O Céu... e a tua
glória... Ele te enriqueça com todas as bênçãos e tu... na assembleia dos Santos... Ele te
defenda até à consumação, de todo o inimigo que odiaste.

10
Estes escritos datam de cerca de 110 a.C.
Textos bíblicos
do Antigo e do Novo Testamento

1
Antigo Testamento

ASSEMBLEIA 107
1. Ex 19-24 ................... a aliança no Sinai: Na terceira lua nova depois da saída dos
filhos de Israel da terra do Egipto...
2. 1 Re 8 ....................... dedicação do templo por Salomão: Então Salomão reuniu
junto de si em Jerusalém os anciãos de Israel...
3. 2 Re 23 ..................... descoberta do livro da Lei e renovação da aliança: O rei
mandou vir à sua presença todos os anciãos de Israel...
4. 2 Cro 29-30 ............. a grande Páscoa da restauração do culto: Ezequias tinha
vinte e cinco anos quando começou a reinar...
5. Ne 8-9 ...................... a leitura solene da Lei: Ao chegar o sétimo mês, os filhos de
Israel já estavam instalados nas suas cidades...

BÊNÇÃOS 108
1. Gen 9, 25-26 ........... bênção e maldição: Maldito seja Canaã... Bendito seja o
Senhor, Deus de Sem...
2. Gen 14, 19b-20 ....... de Melquisedec, depois da vitória: Abençoado seja Abrão
pelo Deus Altíssimo... Bendito seja o Deus Altíssimo...
3. Gen 48, 15b-16 ....... de Jacob: O Deus por cujos caminhos andaram meus pais,
Abraão e Isaac, o Deus que velou por mim...
4. Num 6, 24-26 ........... do povo no deserto: O Senhor te abençoe e te proteja...
5. Deut 26, 3-10.13-15 das primícias: Declaro hoje, perante o Senhor... Meu pai era
um arameu errante...
6. Deut 33, 2-6 ............ de Israel e de Rúben: O Senhor veio do Sinai...
7. Deut 33, 7 ................ de Judá: Escutai, Senhor, a voz de Judá...
8. Deut 33, 8-11 .......... de Levi: Os vossos dados sagrados são para o homem que
Vos foi fiel...
9. Deut 33, 12 .............. de Benjamim: O preferido do Senhor habitará em segurança
junto dele...
10. Deut 33, 13-17 ........ de José: A sua terra tem as bênçãos do Senhor...
11. 2 Sam 7, 18-29 ........ de David: Quem sou eu, Senhor Deus, e quem é a minha
casa...

1
Textos bíblicos do Antigo Testamento (= B ÍBLIA ). Indicam-se apenas as palavras iniciais dos textos citados,
dado que é fácil encontrá-los na Bíblia.
56 SÉCULO I

2
109 CÂNTICOS

1. Ex 15, 1-18 .............. na vitória depois do Êxodo: Cantarei ao Senhor...


2. Deut 32, 1-43 .......... de Moisés: Escutai, ó céus, que eu vou falar...
3. Juízes 5, 1-31 ......... de Débora e Barac: Louvai o Senhor...
4. 1 Sam 2, 1-10 .......... de Ana: Exulta o meu coração no Senhor...
5. 1 Cro 16, 8-36 ......... de David diante da arca: Louvai o Senhor...
6. 1 Cro 29, 10-20 ...... de David: Bendito sejais, Senhor...
7. Tob 3, 2-6 ................ de Tobias: Sois justo, Senhor...
8. Tob 3, 13-15 ............ de Sara: Bendito sois Vós...
9. Tob 13, 2-18 ............ de Tobite: Bendito seja Deus...
10. Judite 13, 17-20 ...... de Judite: Bendito sois Vós...
11. Judite 16, 1-17 ......... de Judite: Louvai o Senhor...
12. Prov 9, 1-12 ............ da sabedoria: A Sabedoria edificou a sua casa...
13. Sab 3, 1-9 ................ dos justos: As almas dos justos...
14. Sab 9, 1-11 .............. de Salomão: Deus de meus pais...
15. Sab 10, 17-21 .......... no Êxodo: O Senhor deu aos santos o prémio...
16. Sab 16, 20-29 .......... no deserto: Saciastes o vosso povo
17. Sir 14, 20-27 ........... da sabedoria: Bem-aventurado o homem...
18. Sir 31, 8-11 ............. do rico: Bem-aventurado o rico...
19. Sir 39, 13-21 ........... em louvor de Deus: Escutai-me, filhos piedosos...
20. Is 2, 2-5 ................... da paz perpétua: Sucederá nos dias...
21. Is 9, 2-7 ................... do Messias: O povo que andava nas trevas...
22. Is 12, 1-6 ................. dos resgatados: Dou-Vos graças, Senhor...
23. Is 26, 1-19 ............... na vitória dos resgatados: Nós temos em Sião...
24. Is 33, 13-16 ............. na intervenção de Deus: Vós que estais perto...
25. Is 38, 10-20 ............. de Ezequias: Eu disse: “Em meio da vida...
26. Is 40, 1-8 ................. da vocação do profeta: Consolai o meu povo...
27. Is 42, 10-16 ............. da vitória: Cantai ao Senhor um cântico novo...
28. Is 45, 15-26 ............. da conversão: Vós sois um Deus escondido...
29. Is 49, 7-13 ............... do regresso dos exilados: Assim fala o Senhor...
30. Is 66, 10-14 ............. apocalíptico: Alegrai-vos com Jerusalém...
31. Jer 7, 2-7 ................. do verdadeiro culto: Escutai a palavra do Senhor...
32. Ez 36, 24-28 ............ sobre os montes de Israel: Eu vos retirarei...
33. Dan 3, 26-45 ........... de Azarias: Bendito sejais, Senhor...
34. Dan 3, 52-57 ........... dos três jovens: Bendito sejais, Senhor...
35. Dan 3, 57-88 ........... dos três jovens: Obras do Senhor, bendizei...
36. Os 6, 1-6 .................. da conversão: Vinde, voltemos...
37. Jonas 2, 3-10 ........... de Jonas: Na minha aflição invoquei o Senhor...
38. Hab 3, 1-19 ............. de Habacuc: Senhor, eu ouvi a vossa mensagem...
39. Sof 3, 8-13 ............... da restauração: Diz o Senhor: contai comigo...

110 FÓRMULAS RITUAIS

1. Gen 27, 27-29 ......... bênção de Jacob: Sim, o odor do meu filho...
2. Gen 28, 16-22 ......... voto de Jacob em Betel: O Senhor está realmente neste lugar...
3. Num 10, 35-36 ........ rito da arca na travessia do deserto: Levantai-Vos, Senhor,
e dispersem-se os vossos inimigos...

3
Nestas orações aparece a grande riqueza da eucologia bíblica.
TEXTOS BÍBLICOS DO ANTIGO TESTAMENTO 57

4. Deut 26, 1-19 .......... profissão de fé pascal: Quando entrares na terra...


5. Jos 7, 6-9; 8, 34-35 ... oração na ocupação de Canaã: Oh Senhor Deus! Porque fi-
zestes este povo passar o Jordão?...
6. Is 6, 3-7 ................... rito e aclamação no templo: Santo, santo, santo é o Senhor
do universo. A sua glória enche toda a terra...

3
ORAÇÕES 111

1. Ex 32, 11-13 ............ de Moisés: Porquê, Senhor, a vossa cólera...


2. Ex 32, 31-32 ............ de Moisés: Cometestes um enorme pecado...
3. Deut 9, 26-29 .......... de Moisés no Sinai: Senhor Deus, não destruais...
4. 3 Reis 8, 23-61 ........ da dedicação do templo: Senhor, Deus de Israel...
5. 4 Reis 19, 15-19 ...... de Ezequias: Senhor, Deus de Israel...
6. 2 Cro 6, 14-22 ........ da dedicação do templo: Senhor, Deus de Israel...
7. 2 Cro 20, 6-12 ........ de Josafat: Senhor, Deus de nossos pais...
8. Esd 9, 6-15 .............. de penitência: Meu Deus, estou envergonhado...
9. Ne 1, 5-11 ................ de penitência: Peço-Vos, Senhor, Deus do Céu...
10. Judite 9, 2-14 ........... de Judite: Ó Senhor, Deus de meu pai...
11. Ester 4 C, 2-10 ........ de Mardoqueu: Senhor, Senhor...
12. Ester 4 C, 14-30 ...... de Ester: Meu Deus, meu único rei...
13. Sab 9, 1-19 .............. de Salomão: Deus de meus pais...
14. Sir 36, 1-19 ............. pela conversão de Israel: Tende compaixão de nós...
15. Sir 51, 1-17 ............. de Sirac: Eu Vos dou graças...
16. Is 33, 2-5 ................. penitencial: Senhor, tende piedade de nós.
17. Is 37, 16-20 ............. de Ezequias: Senhor do universo...
18. Is 63, 15-19 ............. de súplica: Lá do alto dos Céus...
19. Is 64, 1-11 ............... de súplica: Quem dera que rasgásseis os Céus...
20. Jer 14, 7-9 ............... pelos Judeus: Se as nossas iniquidades...
21. Jer 14, 17-22 ........... penitencial: Chorem meus olhos...
22. Jer 32, 17-25 ........... de Jeremias: Ah! Senhor Deus...
23. Dan 2, 20-23 ........... de louvor: Seja louvado o nome de Deus...

2
Estes cânticos são quase todos utilizados na Liturgia das Horas.
58 SÉCULO I

4
Novo Testamento

112 ACÇÃO DE GRAÇAS

1. Mt 15, 36 ................. multiplicação: Tomou os sete pães e os peixes, deu graças...


2. Mt 26, 27 ................. instituição da Eucaristia: Em seguida, tomou um cálice, deu
graças...
3. Mc 8, 6 ..................... multiplicação: Ordenou que a multidão se sentasse no chão
e, tomando os sete pães, deu graças...
4. Mc 14, 23 ................. instituição da Eucaristia: Depois, tomou o cálice, deu graças...
5. Lc 18, 11 .................. fariseu no templo: Meu Deus, dou-Te graças...
6. Lc 22, 17.19 ............ instituição da Eucaristia: Tomando uma taça, deu graças...
Tomou, então, o pão e, depois de dar graças...
7. Jo 6, 11 .................... multiplicação: Então, Jesus tomou os pães e, tendo dado
graças...
8. Jo 11, 41 .................. ressurreição de Lázaro: Pai, dou-Te graças...
9. Act 27, 35 ................. no barco naufragado: Dito isto, tomou um pão, deu graças...
10. Act 28, 15 ................ ao chegar a Roma: Paulo, ao vê-los, deu graças a Deus...
11. Rom 1, 8 .................. pelos cristãos de Roma: Antes de mais, dou graças ao meu
Deus por todos vós, por meio de Jesus Cristo...
12. Rom 1, 21 ................ pecado dos pagãos: Tendo conhecido a Deus, não O glorifi-
caram nem Lhe deram graças...
13. Rom 7, 25 ................ as duas leis sentidas por Paulo: Graças a Deus, por Jesus
Cristo, Senhor nosso.
14. Rom 14, 6 ................ os fortes e os fracos:... é em honra do Senhor... pois dá
graças a Deus... é em honra do Senhor... e também dá graças a
Deus.
15. 1 Cor 1, 4-9.14 ....... actividade de Paulo: Dou graças a Deus, em todo o tempo, a
vosso respeito, pela graça divina que vos foi dada em Cristo
Jesus... Dou graças a Deus por não ter baptizado nenhum de
vós...
16. 1 Cor 10, 30 ............ respeito pelos outros: Se eu tomo alimento, dando graças,
por que hei-de ser censurado por aquilo de que dou graças?
17. 1 Cor 11, 23.24 ....... instituição da Eucaristia: O Senhor Jesus tomou o pão e,
depois de dar graças...
18. 1 Cor 14, 18 ............ uso dos carismas: Graças a Deus, eu falo mais em línguas
que todos vós.
19. 1 Cor 15, 57 ............ modo da ressurreição: Dêmos graças a Deus que nos dá a
vitória por nosso Senhor Jesus Cristo.
20. 2 Cor 1, 11 .............. bênção:... a fim de que o dom que nos foi concedido, seja
motivo de acção de graças para muitos...
21. 2 Cor 2, 14 .............. ministério da nova aliança: Graças sejam dadas a Deus que,
em Cristo, nos conduz sempre em seu triunfo...
22. 2 Cor 4, 15 .............. esperanças de Paulo: E tudo o que eu faço por vós... faça
aumentar a acção de graças...

4
Textos bíblicos do Novo Testamento (=B ÍBLIA ).
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 59

23. 2 Cor 8, 16 .............. os enviados de Paulo: Graças sejam dadas a Deus que pôs
no coração de Tito o mesmo zelo por vós.
24. 2 Cor 9, 15 .............. exemplo das igrejas da Acaia: Graças sejam dadas a Deus
pelo seu dom inefável.
25. Ef 1, 15-16 ............... louvor dos Efésios: Tendo ouvido falar da vossa fé e do
vosso amor... não cesso de dar graças por vós.
26. Ef 5, 20 .................... o homem novo: Sem cessar, dai graças por tudo a Deus Pai...
27. Filip 1, 3 .................. louvor dos Filipenses: Dou graças ao meu Deus, todas as
vezes que me lembro de vós.
28. Col 1, 3.12 ............... louvor dos Colossenses: Damos graças a Deus, Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo, nas orações que continuamente faze-
mos por vós... Dai graças ao Pai, que vos tornou capazes de
tomar parte na herança dos santos na luz.
29. Col 2, 7 .................... louvor dos Colossenses:... firmes na fé, tal como fostes ins-
truídos, transbordando em acção de graças.
30. Col 3, 15.17 ............. novas criaturas: Reine nos vossos corações a paz de Cristo... E
sede agradecidos... E tudo o que fizerdes por palavras ou
por obras, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando graças
por Ele a Deus Pai.
31. 1 Tes 1, 2 ................. louvor dos Tessalonicenses: Damos continuamente graças a
Deus por todos vós, ao fazermos menção de vós nas nossas
orações...
32. 1 Tes 5, 18 ............... vida eclesial: Em tudo dai graças. Esta é, de facto, a vontade
de Deus a vosso respeito.
33. 2 Tes 1, 3-4 .............. louvor dos Tessalonicenses: Devemos dar contínuas graças
a Deus por vós, irmãos, como é justo, porque a vossa fé faz
grandes progressos...
34. 1 Tim 1, 12 .............. a Cristo: Dou graças Àquele que me confortou...
35. 2 Tim 1, 3 ................. a Deus: Dou graças a Deus, a quem sirvo...
36. Filem 4 ..................... a Deus: Dou graças ao meu Deus, lembrando-me sempre de
ti...
37. Ap 4, 9 ...................... o trono de Deus: E, sempre que os seres viventes dão glória,
honra e acção de graças...
38. Ap 7, 12 ................... adoração de Deus: O louvor, a glória, a sabedoria, a acção
de graças...
39. Ap 11, 17 ................. os vinte e quatro anciãos: Adoraram a Deus, aclamando:
Nós Te damos graças...

ACLAMAÇÕES 113

1. Mt 21, 9 ................... entrada messiânica em Jerusalém: Hossana ao Filho de


David! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hossana nas
alturas.
2. Lc 7, 16 .................... ressurreição do filho da viúva: Surgiu entre nós um grande
profeta e Deus visitou o seu povo.
3. Jo 1, 29 .................... de João Baptista: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado
do mundo.
4. Ap 11, 15 ................. aclamações no Céu: O reinado sobre o mundo foi entregue a
nosso Senhor e ao seu Cristo; Ele reinará pelos séculos dos
séculos.
60 SÉCULO I

114 ASSEMBLEIA
1. Mt 18, 20 ................. presença de Jesus: Onde estiverem dois ou três reunidos em
meu nome, Eu estou no meio deles.
2. Act 1, 6 ..................... Ascensão de Jesus: Estavam todos reunidos, quando lhe
perguntaram...
3. Act 6, 2.5 .................. escolha dos Sete: Os Doze convocaram, então, a assembleia dos
discípulos... A proposta agradou a toda a assembleia...
4. Act 15, 6.12 ............. concílio de Jerusalém: Os Apóstolos e os Anciãos reuni-
ram-se para examinar a questão... Toda a assembleia ficou
em silêncio...
5. Act 15, 30 ................. em Antioquia: Eles... desceram a Antioquia e, reunindo a
assembleia, entregaram a carta.
6. Act 16, 13 ................. em Filipos, conversão de Lídia: Depois de nos sentarmos,
começámos a falar às mulheres que lá se encontravam reuni-
das.
7. 1 Cor 11, 18.20.33 . em Corinto, para a fracção do pão: Ouço dizer que, quando
vos reunis em assembleia, há divisões entre vós... Quando
vos reunis, não é a ceia do Senhor que comeis... Por isso,
quando vos reunirdes para comer, esperai uns pelos outros.
8. 1 Cor 14, 4.12.19.23.28 normas para uso dos carismas:... para que a assembleia
possa tirar proveito... Procurai adquirir em abundância os
dons do Espírito, mas para edificação da assembleia... Numa
assembleia, prefiro dizer cinco palavras com a minha inteli-
gência... Se toda a assembleia estivesse reunida e todos co-
meçassem a falar em línguas, os simples ouvintes ou des-
crentes que entrassem, não diriam que estáveis loucos? Se
não houver intérprete, fiquem calados na assembleia e falem
consigo mesmos e com Deus.
9. 1 Cor 14, 34.35.36 .... as mulheres na assembleia: Como acontece em todas as
assembleias de santos, as mulheres estejam caladas nas as-
sembleias... porque não é conveniente para uma mulher falar
na assembleia.
10. 1 Cor 16, 19 ............ em casa de um casal cristão: Áquila e Priscila, juntamente
com a assembleia que se reúne em sua casa, enviam-vos
muitas saudações.
11. Hebr 10, 24-25 ....... alguns abandonam a assembleia: Estejamos atentos uns
aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras,
sem abandonarmos a nossa assembleia, como é costume de
alguns...
12. Tg 2, 2-4 .................. o rico e o pobre na assembleia: Suponhamos que entra na
vossa assembleia um homem com anéis de ouro e bem traja-
do, e entra também um pobre muito mal vestido...

BAPTISMO
115 BAPTISMO DE JOÃO BAPTISTA

1. Mt 3, 6.7.11 ............. apelo à conversão:... eram baptizados por ele no Jordão...


vendo que muitos fariseus e saduceus vinham ao seu baptis-
mo... Eu baptizo-vos com água... mas aquele que vem de-
pois de mim... há-de baptizar-vos no Espírito Santo e no
fogo...
2. Mt 21, 25 ................. autoridade de Jesus: De onde era o baptismo de João?
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 61

3. Mc 1, 4.5.8 ............... pregação de João: João Baptista apareceu no deserto, a


pregar um baptismo de arrependimento... e eram baptiza-
dos por ele no rio Jordão... Tenho-vos baptizado em água,
mas Ele há-de baptizar-vos no Espírito Santo...
4. Mc 11, 30 ................. autoridade de Jesus: O baptismo de João era do Céu, ou dos
homens?
5. Lc 3, 3.7.16 ............. pregação de João: João começou a percorrer toda a região
do Jordão, pregando um baptismo de penitência... Dizia às
multidões que acorriam para serem baptizadas... e a todos:
Eu baptizo-vos em água...
6. Lc 7, 29.30 .............. baptismo de João: E todo o povo... bem como os cobradores
de impostos reconheceram a justiça de Deus, recebendo o
baptismo de João... Mas, não se deixando baptizar por ele,
os fariseus e os doutores da Lei anularam os desígnios de
Deus a seu respeito.
7. Lc 20, 4 .................... autoridade de Jesus: O baptismo de João era do Céu, ou dos
homens?
8. Jo 1, 25.26.28 .......... testemunho de João: Então por que baptizas?... João res-
pondeu-lhes: Eu baptizo com água... Isto passou-se em Be-
tânia, na margem além do Jordão, onde João estava a
baptizar...
9. Jo 3, 23 .................... novo testemunho de João: Também João estava a baptizar
em Enon, perto de Salim, porque havia ali águas abundantes
e vinha gente para ser baptizada.
10. Act 1, 5 ..................... Ascensão de Jesus: João baptizava em água, mas, dentro de
pouco tempo, vós sereis baptizados no Espírito Santo.
11. Act 1, 22 ................... discurso de Pedro na eleição de Matias: A partir do baptismo de
João até ao dia em que nos foi arrebatado para o Alto.
12. Act 10, 37 ................. discurso de Pedro em casa de Cornélio: Sabeis o que ocor-
reu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do
baptismo que João pregou.
13. Act 11, 16 ................. Pedro justifica o seu procedimento: Jesus dizia: João bapti-
zou em água.
14. Act 13, 24 ................. discurso de Paulo em Antioquia: João preparou a vinda de
Jesus, anunciando um baptismo de penitência...
15. Act 19, 3.4 ................ Paulo em Éfeso: Paulo indagou: Então, que baptismo rece-
bestes? Responderam eles: O baptismo de João. Disse Paulo:
João ministrou apenas um baptismo de penitência.

BAPTISMO CONTINUADO PELOS DISCÍPULOS DE JOÃO 116


16. Act 18, 25 ................. pregação de Apolo: Apolo... ensinava com precisão o que
dizia respeito a Jesus, embora só conhecesse o baptismo de
João.
17. Act 19, 1.3.4 ............ Paulo em Éfeso: Paulo encontrou alguns discípulos... e in-
dagou: Então, que baptismo recebestes? Responderam eles:
O baptismo de João.

JESUS FOI BAPTIZADO POR JOÃO 117


18. Mt 3, 13-14.16 ........ baptismo de Jesus: Então, veio Jesus da Galileia ao Jordão
ter com João, para ser baptizado por ele. João opunha-se,
dizendo: Eu é que tenho necessidade de ser baptizado por
ti... Uma vez baptizado, Jesus saiu da água...
62 SÉCULO I

19. Mc 1, 9 ..................... baptismo de Jesus: Por aqueles dias, Jesus veio de Nazaré
da Galileia e foi baptizado por João no Jordão.
20. Lc 3, 21 .................... baptismo de Jesus: Todo o povo tinha sido baptizado; ten-
do Jesus sido baptizado também...
21. Jo 1, 31.33 ............... testemunho do João:... foi para Ele Se manifestar a Israel
que eu vim baptizar com água... Eu não O conhecia, mas
quem me enviou a baptizar com água é que me disse:... Ele é
O que baptiza com o Espírito Santo.
118 BAPTISMO CRISTÃO

22. Mt 3, 11 .................... anúncio do baptismo de Jesus: Aquele que vem depois de


mim... há-de baptizar-vos no Espírito Santo e no fogo.
23. Mt 28, 19-20 ............ mandato universal dado aos discípulos: Ide, fazei, discípu-
los de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quan-
to vos tenho mandando.
24. Mc 1, 8 ..................... anúncio do baptismo de Jesus:... Ele há-de baptizar-vos no
Espírito Santo.
25. Mc 16, 16 ................. palavras de Jesus: Quem acreditar e for baptizado será sal-
vo; mas, quem não acreditar será condenado.
26. Lc 3, 16 .................... anúncio do baptismo de Jesus: Vai chegar alguém mais forte
do que eu... Ele há-de baptizar-vos no Espírito Santo e no
fogo...
27. Jo 3, 3.5 ................... anúncio a Nicodemos: Jesus respondeu a Nicodemos:...
Quem não nascer do Alto não pode ver o Reino de Deus...
quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no
Reino de Deus.
28. Jo 3, 22.25.26 .......... Jesus baptizava: Jesus foi com os seus discípulos para a
região da Judeia e ali convivia com eles e baptizava... Foram
ter com João e disseram-lhe:... Aquele de quem deste teste-
munho, está a baptizar, e toda a gente vai ter com Ele.
29. Jo 4, 1.2 ................... baptismos realizados pelos discípulos em vida de Jesus:
Jesus baptizava mais do que João, embora não fosse o
próprio Jesus a baptizar, mas sim os seus discípulos.
30. Act 2, 37-38.41 ....... no dia de Pentecostes: Convertei-vos e peça cada um o bap-
tismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus
pecados... receberam o baptismo e, naquele dia, juntaram-se
a eles cerca de três mil pessoas.
31. Act 8, 12.13 ............. Filipe na Samaria:... homens e mulheres começaram a rece-
ber o baptismo... O próprio Simão também acreditou e, de-
pois de baptizado, andava sempre com Filipe...
32. Act 8, 16 .................. os Apóstolos na Samaria:... tinham apenas recebido o bap-
tismo em nome do Senhor Jesus.
33. Act 8, 35-38 ............. do eunuco etíope:... Está ali água! Que me impede de ser
baptizado?... Ambos desceram à água, Filipe e o eunuco, e
Filipe baptizou-o.
34. Act 9, 18 .................. de Paulo, contado por Lucas:... caíram-lhe dos olhos uma
espécie de escamas e recuperou a vista. Depois, levantou-se
e recebeu o baptismo.
35. Act 10, 1-2. 44.47-48 dos primeiros pagãos: Havia em Cesareia um homem de
nome Cornélio, centurião da coorte itálica. Piedoso e temen-
te a Deus, como aliás toda a sua casa... Pedro estava ainda a
falar quando o Espírito Santo desceu sobre quantos ouviam
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 63

a palavra. E todos os fiéis circuncisos que tinham vindo de


Jerusalém com Pedro ficaram estupefactos, ao verem que o
dom do Espírito Santo fora derramado também sobre os
pagãos... Pedro então declarou: Poderá alguém recusar a água
do baptismo aos que receberam o Espírito Santo, como nós?
E ordenou que fossem baptizados em nome de Jesus Cristo.
36. Act 11, 15-18 ........... dos primeiros pagãos, contado por Pedro:... Se Deus, por-
tanto, lhes concedeu o mesmo dom que a nós, por terem
acreditado no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para me
opor a Deus?...
37. Act 16, 14-15 ........... de Lídia:.. Uma das mulheres, chamada Lídia... pôs-se a escu-
tar... Depois de ter sido baptizada, bem como os de sua casa...
38. Act 16, 30-33 ........... do carcereiro:... Acredita no Senhor Jesus e serás salvo tu e
os teus. Anunciaram-lhe a palavra do Senhor... e imediata-
mente se baptizou, ele e todos os seus.
39. Act 18, 8 .................. de Crispo e dos primeiros Coríntios:... e muitos dos coríntios
que ouviram Paulo pregar abraçavam também a fé e rece-
biam o Baptismo.
40. Act 19, 5 .................. dos discípulos de João Baptista: Quando isto ouviram, bap-
tizaram-se em nome do Senhor Jesus.
41. Act 22, 16 ................ de Paulo, contado por ele próprio:... Levanta-te, recebe o
baptismo e purifica-te dos teus pecados, invocando o seu
nome.
42. Rom 6, 3-4 ............... reflexão de Paulo: Todos nós, que fomos baptizados em
Cristo, fomos baptizados na sua morte. Pelo baptismo fo-
mos, pois, sepultados com Ele na morte...
43. 1 Cor 1, 13-17 ........ Paulo e o baptismo: Será que fostes baptizados em nome de
Paulo?... Dou graças a Deus por não ter baptizado nenhum
de vós a não ser Crispo e Gaio... Baptizei também a família
de Estéfanes...
44. 1 Cor 10, 2 .............. reflexão de Paulo:... e todos foram baptizados em Moisés,
na nuvem e no mar.
45. 1 Cor 12, 13 ............ reflexão de Paulo: Num só Espírito, fomos todos baptiza-
dos para formar um só corpo...
46. 1 Cor 15, 29 ............ baptismo em vez dos que morreram:... que procurariam os
que se fazem baptizar pelos mortos? Se, de facto, os mortos não
ressuscitam, por que motivo se fazem baptizar por eles?
47. 2 Cor 1, 22 .............. baptismo ou selo: Ele que nos marcou com um selo.
48. 2 Cor 5, 17 .............. baptismo ou nova criação: Se alguém está em Cristo, é uma
nova criação. O que era antigo passou.
49. Gal 3, 27 ................. reflexão de Paulo: Todos os que fostes baptizados em Cris-
to, estais revestidos de Cristo mediante a fé.
50. Ef 1, 13 .................... baptismo ou selo: Foi em Cristo que acreditastes e fostes
marcados com o selo do Espírito Santo prometido.
51. Ef 4, 5 ....................... o baptismo é um só: Há... um só baptismo.
52. Ef 4, 30 .................... baptismo ou selo: Não ofendais o Espírito Santo de Deus,
selo com o qual fostes marcados para o dia da redenção.
53. Ef 5, 8 ....................... baptismo ou iluminação: Outrora éreis trevas, mas agora
sois luz, no Senhor. Procedei como filhos da luz.
54. Ef 5, 25.26 ............... reflexão de Paulo: Cristo amou a Igreja e entregou-Se por
ela, para a santificar, purificando-a, no banho da água, pela
palavra.
64 SÉCULO I

55. Col 2, 12 .................. reflexão de Paulo: Sepultados com Cristo no baptismo, foi
também com Ele que fostes ressuscitados, pela fé que ten-
des no poder de Deus...
56. Tit 3, 5 ...................... baptismo ou novo nascimento: Ele salvou-nos... mediante
um novo nascimento e renovação do Espírito Santo.
57. Hebr 6, 1.2 .............. doutrina do baptismo: Elevemo-nos a coisas mais comple-
tas, sem lançar de novo os fundamentos... da doutrina do
baptismo...
58. Hebr 6, 4.6 .............. baptismo ou iluminação: É impossível que aqueles que uma
vez foram iluminados... sejam de novo renovados.
59. Hebr 10, 31 ............. baptismo ou iluminação: Recordai os primeiros dias nos
quais, depois de terdes sido iluminados...
60. 1 Ped 3, 21 .............. a nuvem e o mar Vermelho:... Isto era uma figura do baptis-
mo, que agora nos salva.

119 BÊNÇÃOS
1. Mt 11, 25-26 ............. revelação aos humildes: Eu Te bendigo, ó Pai, Senhor do
Céu e da terra...
2. Mt 23, 39 ................. lamentação sobre Jerusalém: Bendito o que vem em nome
do Senhor.
3. Lc 19, 38 .................. entrada de Jesus em Jerusalém: Bendito seja o Rei que vem
em nome do Senhor.
4. Rom 9, 5 .................. incredulidade de Israel: Deus que está acima de todas as
coisas, bendito seja Ele pelos séculos. Amen.
5. 2 Cor 11, 31 ............ trabalhos de Paulo: O Deus e Pai do Senhor Jesus, que é
bendito para sempre.
6. Ef 1, 3 ....................... salvação por Cristo: Bendito seja Deus, Pai de nosso Se-
nhor Jesus Cristo, que do alto dos Céus nos abençoou com
todas as bênçãos espirituais em Cristo.
7. Filip 4, 9 .................. viver na alegria: O Deus da paz estará convosco.
8. 1 Tes 5, 23 ............... voto final: O Deus da paz vos santifique totalmente.

120 CÂNTICOS
1. Lc 1, 46-55 .............. Magnificat: A minha alma glorifica o Senhor...
2. Lc 1, 68-79 .............. Benedictus: Bendito o Senhor, Deus de Israel...
3. Lc 2, 29-32 .............. Nunc dimittis: Agora, Senhor, segundo a vossa palavra...
4. Ef 1, 3-10 ................. salvação por Cristo: Bendito seja Deus, Pai de nosso Se-
nhor Jesus Cristo...
5. Filip 2, 6-11 ............. mistério de Cristo: Cristo Jesus, que era de condição divina...
6. Col 1, 12-20 ............ Cristo, mediador: Dêmos graças a Deus Pai, que nos chama
a tomar parte na herança dos santos, na luz divina...
7. 1 Tim 3, 16 .............. mistério da piedade: Aquele que Se manifestou em carne
humana, foi justificado pelo Espírito. Foi contemplado pe-
los Anjos...
8. 1 Ped 2, 21-24 ......... obediência dos escravos: Cristo sofreu por nós, deixando-
nos o exemplo para que sigamos os seus passos...
9. Ap 4, 8 ...................... os quatro seres vivos: Santo, Santo, Santo é o Senhor todo-
-poderoso, O que era, O que é e O que há-de vir.
10. Ap 4, 11; 5, 9.10.12 ... o trono de Deus: Sois digno, Senhor nosso Deus, de receber
a honra, a glória e o poder...
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 65

11. Ap 11, 15 .................. aclamações no Céu: O reinado sobre o mundo foi entregue
a nosso Senhor e ao seu Cristo; Ele reinará pelos séculos dos
séculos.
12. Ap 11,17-18;12,10-12 os vinte e quatro anciãos: Nós Vos damos graças, Senhor
Deus omnipotente, a Vós que sois, que éreis e que haveis de
vir...
13. Ap 15, 3-4 ................ o mar de cristal: Grandes e admiráveis são as vossas obras,
Senhor Deus omnipotente...
14. Ap 19, 1-2.5-7 ......... cântico de triunfo no Céu: Aleluia. A salvação, a glória e o
poder ao nosso Deus, porque são verdadeiros e justos os
seus julgamentos...

CONFISSÕES DE FÉ 121
1. Mc 9, 23 ................... do pai de uma criança: Eu creio! Ajuda a minha pouca fé.
2. Jo 11, 27 .................. de Marta: Eu creio, Senhor, que Tu és o Cristo, o Filho de
Deus...
3. Act 4, 10 ................... de Pedro: É em nome de Jesus Nazareno, que vós crucificas-
tes e Deus ressuscitou dos mortos...
4. Act 8, 12 ................... baptismal: Quando acreditaram... na Boa Nova do Reino de
Deus e no nome de Jesus Cristo...
5. Act 16, 31 ................. do guarda da prisão: Acredita no Senhor Jesus e serás salvo
tu e os teus.
6. Rom 10, 9 ................ dos fiéis: Se confessares com a tua boca: Jesus é o Senhor e
acreditares no teu coração... serás salvo.
7. 1 Cor 12, 3 .............. pelo Espírito: Jesus é Senhor.
8. Ef 2, 4-7 ................... na gratuidade da fé: Deus, que é rico em misericórdia... deu-
nos a vida com Cristo...
9. 1 Ped 3, 18-22 ......... em Cristo Senhor: Cristo padeceu pelos pecados, de uma
vez para sempre...
10. 1 Jo 4, 15 ................. de João: Quem confessar que Jesus Cristo é o Filho de
Deus...

DIA DO SENHOR 122


1. Ap 1, 10 ................... visão do Ressuscitado: No dia do Senhor, o Espírito arreba-
tou-me e ouvi atrás de mim uma voz potente...

DOXOLOGIAS 123

1. Rom 16, 27 .............. glória a Deus: Ao único Deus sábio, por Jesus Cristo, a Ele
a glória pelos séculos dos séculos. Amen.
2. 2 Cor 1, 3-4 ............. bênção: Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo...
3. Gal 1, 3-5 ................ saudação: A Ele a glória pelos séculos dos séculos. Amen.
4. Ef 3, 21 .................... o amor de Deus: A Ele a glória, na Igreja e em Cristo Jesus,
em todas as gerações, pelos séculos dos séculos. Amen.
5. Filip 4, 20 ................ glória a Deus: A Deus nosso Pai a glória pelos séculos dos
séculos. Amen.
6. 2 Tim 4, 18 .............. glória a Deus: A Ele a glória pelos séculos dos séculos.
7. Hebr 13, 21 ............. bênção final: O Deus da paz... realize em nós o que Lhe é
agradável, por Jesus Cristo, ao qual seja dada honra e glória
pelos séculos dos séculos. Amen.
66 SÉCULO I

8. 1 Ped 4, 11 .............. glória a Cristo: A Ele a glória e o poder por todos os séculos
dos séculos. Amen.
9. 1 Ped 5, 11 .............. glória a Cristo: A Ele o poder pelos séculos dos séculos.
Amen.
10. 2 Ped 3, 18 .............. glória a Cristo: A Ele seja dada glória, agora e até ao dia
eterno. Amen.
11. Judas 1, 24.25 ......... glória a Deus: Àquele que é poderoso..., ao Deus único...,
seja dada a glória, a majestade, a soberania e o poder, antes
de todos os tempos, agora e por todos os séculos. Amen.
12. Ap 1, 6 ...................... glória a Cristo: A Ele seja dada a glória e o poder, pelos
séculos dos séculos. Amen.
13. Ap 7, 12 ................... adoração a Deus: O louvor, a glória, a sabedoria, a acção de
graças, a honra, o poder e a força ao nosso Deus pelos sécu-
los dos séculos. Amen.
14. Ap 12, 10 ................. uma voz no Céu: Agora chegou o tempo da salvação, da
força e da realeza do nosso Deus e do poder do seu Cristo.
15. Ap 17, 14 ................. glória ao Cordeiro: O Cordeiro é Senhor dos senhores e Rei
dos reis.

124 ESPÍRITO SANTO (DOM DO)

1. Mt 10, 20 ................. perseguição dos discípulos: Não sereis vós a falar, mas o
Espírito do vosso Pai é que falará por vós.
2. Lc 11, 13 .................. confiança na oração: O Pai do Céu dará o Espírito Santo
àqueles que lho pedem.
3. Jo 14, 16.17 ............. primeira promessa do Espírito: Eu pedirei ao Pai e Ele vos
dará outro Paráclito... o Espírito da Verdade... que permane-
ce junto de vós, e está em vós.
4. Jo 14, 26 .................. segunda promessa do Espírito: O Paráclito, o Espírito Santo
que o Pai enviará em meu nome, esse é que vos ensinará
tudo, e há-de recordar-vos tudo o que Eu vos disse.
5. Jo 15, 26 .................. terceira promessa do Espírito: Quando vier o Paráclito, o
Espírito da Verdade que procede do Pai...
6. Jo 16, 7 .................... quarta promessa do Espírito: Se eu não for, o Paráclito não
virá a vós; mas se Eu for, Eu vo-lo enviarei.
7. Jo 16, 13.14.15 ....... quinta promessa do Espírito: Quando vier o Espírito da
Verdade, há-de guiar-vos para a Verdade completa... Há-de
manifestar a minha glória... Receberá do que é meu e vo-lo
dará a conhecer.
8. Act 1, 5 ..................... Ascensão de Jesus: João baptizava em água, mas, dentro de
pouco tempo, vós sereis baptizados no Espírito Santo.
9. Act 2, 38 ................... discurso de Pedro no Pentecostes: Convertei-vos e peça
cada um o baptismo em nome de Jesus Cristo... e recebereis,
então, o dom do Espírito Santo.
10. Act 5, 32 ................... discurso de Pedro na prisão e libertação dos Apóstolos:
Nós somos testemunhas destas coisas, juntamente com o
Espírito Santo, que Deus tem concedido àqueles que lhe
obedecem.
11. Act 8, 15.17 ............. Pedro e João na Samaria:... rezaram pelos samaritanos para
eles receberem o Espírito Santo... Pedro e João iam impon-
do as mãos sobre eles e eles recebiam o Espírito Santo.
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 67

12. Act 8, 18 ................... tentativa de Simão Mago: Ao ver que o Espírito Santo era
dado pela imposição das mãos dos Apóstolos...
13. Act 10, 44.45 ........... em casa de Cornélio: Pedro estava ainda a falar quando o
Espírito Santo desceu sobre quantos ouviam a palavra. E
todos... ficaram estupefactos, ao verem que o dom do Espí-
rito Santo fora derramado também sobre os pagãos...
14. Act 11, 15-16 ........... Pedro conta a conversão de Cornélio: Ora, quando princi-
piei a falar, o Espírito Santo desceu sobre eles, como sobre
nós, ao princípio. Recordei-me, então, da palavra do Se-
nhor, quando Ele dizia: João baptizou em água; vós, porém,
sereis baptizados no Espírito Santo.
15. Act 15, 8 ................... discurso de Pedro no concílio de Jerusalém: Deus, que co-
nhece os corações... concedeu-lhes o Espírito Santo como a
nós.
16. Act 19, 2.6 ................ Paulo em Éfeso: Recebestes o Espírito Santo quando abra-
çastes a fé? Responderam: Mas nós nem sequer ouvimos
dizer que existe o Espírito Santo!... E, tendo-lhes Paulo
imposto as mãos, o Espírito desceu sobre eles...
17. Rom 5, 5 ................... o amor de Deus: O amor de Deus foi derramado nos nossos
corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.
18. Rom 8, 9 ................... livres no Espírito: Vós não estais sob o domínio da carne,
mas sob o domínio do Espírito, se é que o Espírito de Deus
habita em vós.
19. Rom 8, 26.27 ........... a glória que nos espera: O Espírito vem em auxílio da nossa
fraqueza... O próprio Espírito intercede por nós... É de acor-
do com Deus que o Espírito intercede pelos santos.
20. 1 Cor 3, 16 .............. somos templos de Deus: Não sabeis que sois templo de
Deus e que o Espírito Santo habita em vós?
21. 2 Cor 1, 21.22 ......... mudança de planos: Aquele que nos confirma convosco em
Cristo, e nos consagrou, é Deus. Ele que nos marcou com o
seu selo e colocou em nossos corações o penhor do Espírito.
22. 2 Cor 5, 5 ................ esperança da glória: Quem nos preparou para isso mesmo
foi Deus, que nos deu o penhor do Espírito.
23. Gal 4, 6 .................... em Cristo, somos filhos de Deus: Deus enviou aos nossos
corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba! Pai!
24. 1 Tes 4, 8 ................. santidade e caridade: Quem despreza estes preceitos... des-
preza o próprio Deus que vos dá o seu Espírito.
25. 1 Jo 3, 24 ................. amar com obras: Reconhecemos que Deus permanece em
nós, graças ao Espírito que nos deu.

EUCARISTIA

INSTITUIÇÃO 125
1. Mt 26, 26-29 .............. Enquanto comiam... no Reino de meu Pai.
2. Mc 14, 22-25 ............. Enquanto comiam... no Reino de Deus.
3. Lc 22, 14-20 .............. Quando chegou a hora... que vai ser derramado por vós.
4. 1 Cor 11, 23-26 ........ Eu recebi do Senhor... até que Ele venha.
68 SÉCULO I

126 SINOPSE DA INSTITUIÇÃO DA EUCARISTIA

Mt 26, 26-27 Mc 14, 22-23

26 22
Ora, enquanto comiam, Enquanto comiam,
Jesus,
tomou o pão tomou um pão
e, depois de e, depois de
pronunciar a bênção, pronunciar a bênção,
partiu-o partiu-o
e deu-o aos seus discípulos, e entregou-o aos discípulos
dizendo: dizendo:
«Tomai, comei: «Tomai:
Isto é o meu Corpo». Isto é o meu Corpo».

27 23
Em seguida, Depois,
tomou um cálice, tomou o cálice,
deu graças e entregou-lho, deu graças e entregou-lho.
Todos beberam dele.
dizendo: E ele disse-lhes:
«Bebei dele todos
Porque este é «Isto é
o meu sangue, o meu sangue
sangue da Aliança, da Aliança

que vai ser derramado que vai ser derramado


por muitos, por todos».
para o perdão dos pecados».
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 69

Lc 22, 15-20 1 Cor 11, 23-25

15
Disse-lhes: «Tenho ardentemente
desejado comer esta Páscoa convos-
co, antes de padecer, 16 pois digo-vos
que já não a voltarei a comer até ela
ter pleno cumprimento no Reino de
Deus». 17 Tomando uma taça, deu gra-
ças e disse: «Tomai e reparti entre
vós, 18 pois digo-vos que não torna-
rei a beber do fruto da videira, até
chegar o Reino de Deus».
23
Na noite em que foi entregue,

o Senhor Jesus
19
Tomou, então, o pão tomou o pão
24
e, depois de e, depois de
dar graças, dar graças
partiu-o partiu-o
e distribuiu-o por eles,
dizendo: e disse:

«Isto é o meu Corpo, «Isto é o meu Corpo,


que vai ser entregue por vós; que é entregue por vós;
fazei isto fazei isto
em minha memória». em memória de Mim».
25
Do mesmo modo,
20
Depois de ceia, depois da ceia,
fez o mesmo com o cálice, tomou o cálice

dizendo: e disse:

«Este cálice é «Este cálice é

a nova Aliança a nova Aliança


no meu sangue no meu sangue;
que vai ser derramado
por vós».

todas as vezes
que dele beberdes,
fazei-o em memória de Mim».
70 SÉCULO I

127 FÓRMULAS (RITUAIS E DE ORAÇÃO)


1. Mt 6, 9-13 ................ da Oração dominical: Pai nosso, que estais nos Céus...
2. Mt 26, 26 ................. eucarística: Tomai e comei. Isto é o meu Corpo...
3. Mt 28, 19 ................. baptismal: Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.
4. Mc 14, 22 ................. eucarística: Tomai: Isto é o meu Corpo...
5. Lc 15, 18 .................. na confissão dos pecados: Pai, pequei contra o Céu e contra Ti...
6. Lc 22, 19 .................. eucarística: Isto é o meu Corpo, que é entregue por vós...
7. Jo 17, 1-26 .............. da oração sacerdotal: Pai, chegou a hora...
8. Act 1, 24 ................... na eleição de Barsabas e Matias. Tu, Senhor, que conheces
o coração de todos...
9. Act 7, 59-60 ............. da oração de Estêvão: Senhor Jesus, recebe o meu espírito...
Senhor, não lhes atribuas este pecado.
10. Act 8, 37 ................... baptismal: Em nome do Senhor Jesus Cristo...
11. Act 10, 48 ................. baptismal: Em nome do Senhor Jesus Cristo...
12. 1 Cor 6, 11 .............. baptismal: Fostes justificados em nome do Senhor Jesus
Cristo e pelo Espírito do nosso Deus.
13. 1 Cor 8, 6 ................ do Pai e do Filho: Um só é Deus, o Pai, de quem tudo
procede e para quem nós somos, e um só é o Senhor Jesus
Cristo...
14. 1 Tim 2, 1 ................. da oração universal: Recomendo... que se façam preces,
orações, súplicas e acções de graças por todos os homens...
15. Hebr 10, 5-7 ............ de Cristo ao entrar no mundo: Tu não quiseste sacrifício
nem oferenda...

128 FRACÇÃO DO PÃO


1. Mt 14, 19 ................. multiplicação:... ergueu os olhos ao céu e pronunciou a bên-
ção; partiu, depois, os pães e deu-os aos discípulos...
2. Mt 15, 36 ................. multiplicação: Tomou os sete pães e os peixes, deu graças,
partiu-os e dava-os aos discípulos...
3. Mt 26, 26 ................. instituição da Eucaristia: Enquanto comiam, Jesus tomou o
pão e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e deu-o aos
seus discípulos...
4. Mc 6, 41 ................... multiplicação:... e erguendo os olhos ao céu, pronunciou a
bênção, partiu os pães e dava-os aos seus discípulos...
5. Mc 8, 6 ..................... multiplicação:... e tomando os sete pães, deu graças, par-
tiu-os e dava-os aos seus discípulos...
6. Mc 14, 22 ................. instituição da Eucaristia: Enquanto comiam, tomou um pão
e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e entregou-o aos
discípulos...
7. Lc 9, 16 .................... multiplicação:... ergueu os olhos ao céu, abençoou-os, par-
tiu-os e deu-os aos discípulos...
8. Lc 22, 19 .................. instituição da Eucaristia: Tomou, então, o pão e, depois de
dar graças, partiu-o e distribuiu-o por eles...
9. Lc 24, 30.35 ............ ceia com os discípulos de Emaús: E, quando se pôs à mesa,
tomou o pão, pronunciou a bênção e, depois de o partir,
entregou-lho... E eles contaram o que lhes tinha acontecido
pelo caminho e como Jesus se lhes dera a conhecer, ao partir
do pão.
10. Act 2, 42.46 ............. vida dos primeiros cristãos: Eram assíduos ao ensino dos
Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão, e às orações...
Partiam o pão em suas casas...
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 71

11. Act 20, 7.11 .............. celebração eucarística em Tróade: No primeiro dia da se-
mana, estando nós reunidos para partir o pão... Depois, voltou
para cima, partiu o pão, comeu e falou até de madrugada...
12. Act 27, 35 ................. no naufrágio de Paulo: Dito isto, tomou um pão, deu graças
a Deus diante de todos, partiu-o e começou a comer.
13. 1 Cor 10, 16 ............ fugir da idolatria: O pão que partimos não é comunhão com
o Corpo de Cristo?
14. 1 Cor 11, 23-24 ...... instituição da Eucaristia:... o Senhor Jesus tomou o pão e,
depois de dar graças, partiu-o e disse...

HINOS 129
1. Mt 21, 9 ................... entrada em Jerusalém: Hossana ao Filho de David. Bendito o
que vem em nome do Senhor. Hossana nas alturas.
2. Lc 2, 14 .................... canto dos Anjos: Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos
homens por Ele amados.
3. Jo 1, 1-18 ................. eternidade do Verbo: No princípio era o Verbo...
4. Rom 8, 29-30 ........... a glória que nos espera: Aqueles a quem Deus de antemão
conheceu, também os predestinou...
5. 1 Cor 13, 1-13 ........ hino à caridade: Ainda que eu fale as línguas dos homens e
dos Anjos, se não tiver caridade...
6. Ef 4, 5-6 ................... todos unidos em Cristo: Há um só Corpo e um só Espírito,
como existe uma só esperança na vida a que fostes chamados.
Há um só Senhor...

HORAS DO DIA 130


1. Mt 8, 16 ................... em casa de Pedro: Ao entardecer...
2. Mt 20, 1.3.5.6.8.9 ... parábola: O Reino do Céu é semelhante a um proprietário
que saiu ao romper da manhã (seis horas)... Saiu depois
pelas nove horas (tertia)... Saiu de novo por volta do meio-
dia (sexta)... e das três da tarde (noa)... Saindo pelas cinco
da tarde (undécima)... Ao entardecer... Vieram os das cinco
da tarde (undécima)...
3. Mt 27, 45.46 ............ Jesus na Cruz: Desde o meio-dia (sexta) até às três horas da
tarde (noa)... Cerca das três horas da tarde (noa)...
4. Mc 1, 32 ................... em casa de Pedro: À noitinha, depois do sol-pôr...
5. Mc 15, 25.33.34 ...... Jesus na Cruz: Eram nove horas da manhã (tertia), quando
O crucificaram... Ao chegar o meio-dia (sexta), fez-se trevas
sobre a terra... E às três horas da tarde (noa)...
6. Lc 23, 44 .................. Jesus na Cruz: Por volta do meio-dia (sexta), as trevas co-
briram toda região até às três horas da tarde (noa).
7. Lc 24, 1 .................... as mulheres vão ao sepulcro: No primeiro dia da semana, ao
romper da alva...
8. Jo 1, 39 .................... os discípulos de João: Foram, pois, e viram onde morava e
ficaram com Ele nesse dia. Era ao cair da tarde.
9. Jo 4, 6 ...................... junto do poço de Jacob: Jesus, cansado da caminhada, sen-
tou-se, sem mais, na borda do poço. Era por volta do meio-
-dia (sexta).
10. Jo 4, 52 .................... o filho do funcionário real: A febre deixou-o há pouco, de-
pois do meio-dia (sexta).
11. Jo 8, 2 ...................... perdão da mulher adúltera: De madrugada, voltou outra vez
para o templo...
72 SÉCULO I

12. Jo 11, 9 ..................... ressurreição de Lázaro: Jesus respondeu: Não tem doze
horas o dia?
13. Act 2, 15 ................... Pedro, no dia de Pentecostes: Estes homens não estão em-
briagados como imaginais, pois apenas vamos na terceira
hora do dia (nove horas).
14. Act 3, 1 ..................... cura de um aleijado: Pedro e João subiam ao templo, para a
oração das três horas da tarde (quinze horas).
15. Act 10, 9.30 ............. visão de Pedro em Jope: Pedro subiu ao terraço para a ora-
ção do meio-dia (sexta)... estava eu em minha casa a fazer a
oração das três horas da tarde (quinze horas).
16. Act 16, 25 ................. na prisão de Filipos: Cerca da meia-noite, Paulo e Silas, em
oração...

131 IGREJA
1. Mt 16, 18 ................. universal: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha
Igreja...
2. Mt 18, 17 ................. universal:... se ele se recusar a ouvi-las, comunica-o à Igreja.
3. Act 8, 1 ..................... de Jerusalém:... uma terrível perseguição caiu sobre a igreja de
Jerusalém.
4. Act 13, 1 ................... de Antioquia: Havia na igreja, estabelecida em Antioquia...
5. Act 15, 41 ................. da Síria e da Cilícia: Atravessou a Síria e a Cilícia, fortale-
cendo as igrejas.
6. Act 16, 5 ................... várias: Dessa forma, as igrejas eram confirmadas na fé...
7. Act 18, 22 ................. de Cesareia: Desembarcou em Cesareia, subiu para saudar a
igreja e desceu a Antioquia.
8. Act 20, 17.28 ........... de Éfeso: Paulo mandou chamar os anciãos da igreja de Éfeso...
Tomai cuidado... para apascentardes a igreja de Deus...
9. Rom 16, 1 ................ de Cêncreas:.. que também é diaconisa na igreja de Cêncreas.
10. Rom 16, 16 .............. várias: Saúdam-vos todas as igrejas de Cristo.
11. 1 Cor 1, 2 ................ de Corinto: à Igreja de Deus que está em Corinto...
12. 1 Cor 11, 16 ............ várias:... nós não temos esse costume, nem tão-pouco as
igrejas de Deus.
13. 1 Cor 16, 1 .............. várias da Galácia:... fazei vós também o que ordenei às
igrejas da Galácia.
14. 1 Cor 16, 19 ............ várias da Ásia: Saúdam-vos as igrejas da Ásia...
15. 2 Cor 1, 1 ................ de Corinto:... à igreja de Deus que está em Corinto.
16. Gal 1, 13 .................. universal:... com que excesso perseguia a Igreja de Deus...
17. Gal 1, 22 .................. várias da Judeia:... não era pessoalmente conhecido das
igrejas de Cristo que estão na Judeia.
18. Ef 1, 22 .................... universal: Ele tudo submeteu a seus pés e deu-o, como ca-
beça que tudo domina, à Igreja, que é o seu Corpo.
19. Ef 3, 10 .................... universal:... para que agora, por meio da Igreja, seja dada a
conhecer...
20. Ef 5, 23-32 ............... universal:... como também Cristo é a cabeça da Igreja... Ora,
como a Igreja se submete a Cristo... como Cristo amou a
Igreja... como Igreja sem mancha... como Cristo faz à Igre-
ja... em relação a Cristo e à Igreja.
21. Col 1, 18.24 ............. universal: Ele é a cabeça do seu Corpo, que é a Igreja...
completo na minha carne o que falta às tribulações de Cris-
to, pelo seu Corpo, que é a Igreja.
22. 1 Tes 2, 14 ............... várias da Judeia:... tornastes-vos imitadores das igrejas de
Deus, que estão na Judeia, em Cristo Jesus...
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 73

IMPOSIÇÃO DAS MÃOS 132


1. Mt 9, 18 ................... à filha de Jairo: Minha filha acaba de morrer, mas vem im-
por-lhe a tua mão e viverá.
2. Mt 19, 13.15 ............ às crianças: Apresentaram a Jesus umas crianças, para que
lhes impusesse as mãos... E depois de lhes ter imposto as
mãos, prosseguiu o seu caminho.
3. Mc 6, 5 ..................... a vários doentes:... apenas curou alguns enfermos, impon-
do-lhes as mãos.
4. Mc 7, 32 ................... a um surdo-mudo: Trouxeram-lhe um surdo-mudo e roga-
ram-lhe que impusesse as mãos sobre ele.
5. Mc 8, 23.25 ............. ao cego de Betsaida:... deitou-lhe saliva nos olhos, impon-
do-lhe as mãos... Em seguida, Jesus impôs-lhe outra vez as
mãos sobre os olhos e ele viu perfeitamente...
6. Mc 10, 16 ................. aos pequeninos: Depois, tomou-os nos braços e abençoou-os,
impondo-lhes as mãos.
7. Mc 16, 18 ................. os discípulos de Jesus:... hão-de impor as mãos aos doentes
e eles ficarão curados.
8. Lc 4, 40 .................... em casa de Simão:... todos quantos tinham doentes, com
diversas enfermidades, levaram-lhos; e Ele, impondo as mãos
a cada um deles, curava-os.
9. Lc 13, 13 .................. num dia de sábado: E impôs-lhe as mãos. No mesmo ins-
tante, ela endireitou-se e começou a dar glória a Deus.
10. Act 6, 6 ..................... aos Sete: Foram apresentados aos Apóstolos que, depois de
orarem, lhes impuseram as mãos.
11. Act 8, 17 ................... aos Samaritanos: Pedro e João iam, então, impondo as mãos
sobre eles, e recebiam o Espírito Santo.
12. Act 8, 18.19 .............. Simão Mago: Ao ver que o Espírito Santo era dado pela
imposição das mãos dos Apóstolos, Simão ofereceu-lhes
dinheiro... Dai-me também a mim esse poder, para que aquele
a quem eu impuser as mãos receba o Espírito Santo.
13. Act 9, 12.17 .............. a Saulo: Saulo viu numa visão um homem, de nome Ananias,
entrar e impor-lhe as mãos para recobrar a vista... Então, Anani-
as partiu, entrou na dita casa, e impôs as mãos sobre ele...
14. Act 13, 3 ................... a Barnabé e Saulo: Depois de terem jejuado e orado, impu-
seram-lhes as mãos e deixaram-nos partir.
15. Act 19, 6 ................... em Éfeso, aos discípulos de João: E, tendo-lhes Paulo im-
posto as mãos, o Espírito Santo desceu sobre eles...
16. Act 28, 8 ................... em Malta: O pai de Públio estava retido no leito com febre
e disenteria. Paulo foi vê-lo e, depois de rezar, impôs-lhe as
mãos e curou-o...
17. 1 Tim 4, 14 ............... cultivar a graça recebida: Não descures o carisma que está
em ti, e que te foi dado através de uma profecia, com a
imposição das mãos dos presbíteros.
18. 1 Tim 5, 22 ............... prudência pastoral: Não imponhas as mãos a ninguém pre-
cipitadamente...
19. 2 Tim 1, 6 ................. renovação da graça recebida: Recomendo-te que reacendas
o dom de Deus que se encontra em ti, pela imposição das
minhas mãos.
20. Hebr 6, 2 ................. normas de vida cristã: Por isso, deixando de parte... a dou-
trina da imposição das mãos...
21. Ap 1, 17 .................... o autor do Apocalipse: Mas ele colocou a mão direita sobre
mim, dizendo: Não tenhas medo.
74 SÉCULO I

5
133 LITURGIA
1. Lc 1, 23 .................... Zacarias termina o seu turno no templo: Terminados os dias
do seu serviço (leitourgi/aj), regressou a sua casa.
2. Act 13, 2 ................... na igreja de Antioquia: Estando eles a celebrar o culto
(leitourgou/ntwn) em honra do Senhor e a jejuar.
3. Rom 13, 6 ................ colaborar com as autoridades: É também por essa razão
que pagais impostos; aqueles que têm de se ocupar disso
são funcionários (leitourgoi\) de Deus.
4. Rom 15, 16 .............. ministério de Paulo: Ser para os gentios um ministro
( leitourgo\n) de Cristo Jesus, que administra o Evangelho.
5. Rom 15, 27 .............. colecta da Macedónia e da Acaia: Se os gentios participa-
rem dos seus bens espirituais, têm também obrigação de os
servir (leitourgh=sai) com os seus bens materiais.
6. 2 Cor 9, 12 .............. colecta das igrejas da Acaia: O serviço desta colecta
( leitourgi/aj) não deve apenas prover às necessidades dos
santos, mas tornar-se abundante fonte de muitas acções de
graças a Deus.
7. Filip 2, 17 ................ Paulo, prisioneiro por Cristo: Alegro-me até mesmo se o
meu sangue tiver de ser derramado em sacrifício e oferta
( leitourgi/#) pela vossa fé.
8. Filip 2, 25.30 ........... recomendação de Epafrodito:... Epafrodito, meu irmão, co-
laborador e companheiro de luta e vosso enviado para me
servir (leitourgo\n) nas minhas necessidades... arriscando a
vida para vos substituir nos serviços (leitourgi/aj) que vos
era impossível prestar-me.
9. Hebr 1, 7.14 ............ ministério dos Anjos: A respeito dos Anjos, diz: Ele faz dos
seus Anjos espíritos e dos seus ministros (leitourgou\j) cha-
mas de fogo... Não são todos eles espíritos encarregados de
um ministério (leitourgi/#)...?
10. Hebr 8, 2.6 .............. Cristo, liturgos do Pai: Como ministro ( leitourgo\j) do san-
tuário e da verdadeira tenda... De facto, Ele obteve um mi-
nistério (leitourgi/aj) tanto mais elevado, quanto maior é a
aliança de que é mediador...
11. Hebr 9, 21 ............... Moisés, liturgos da tenda: E, do mesmo modo, aspergiu
também com sangue a tenda e todos os vasos de culto
(leitourgi/aj).
12. Hebr 10, 11 ............. a liturgia dos sacerdotes do templo: Todo o sacerdote se
apresenta diariamente para oferecer o culto (leitourgw=n).

134 MAT R I M Ó N I O
1. Mt 5, 32 ................... Jesus discute com os fariseus: Eu, porém, digo-vos: Aquele que
se divorciar da sua mulher – excepto em caso de união ilegal
– expõe-na a adultério, e quem casar com a divorciada come-
te adultério.
2. Mt 19, 6.9 ................ Jesus discute com os fariseus: Já não são dois, mas um só.
Pois bem, o que Deus uniu não o separe o homem... Eu digo-

5
A palavra Liturgia é utilizada algumas vezes no Novo Testamento, ora como forma verbal (leitourgei=n
– celebrar a liturgia), ora como substantivo ( leitourgi/ # – liturgia), ora como adjectivo ( leitourgo/ j ,
leitourgiko/ j – litúrgico). Só num caso a palavra tem sentido de culto litúrgico cristão.
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 75

-vos: Se alguém se divorciar da sua mulher – excepto em caso


de união ilegal – e casar com outra, comete adultério.
3. Mc 10, 8.9.11.12 ...... Jesus discute com os fariseus: Portanto, já não são dois,
mas um só. Pois bem, o que Deus uniu não o separe o ho-
mem... Quem se divorciar da sua mulher e casar com outra,
comete adultério contra a primeira. E se a mulher se divorci-
ar do seu marido e casar com outro, comete adultério.
4. Lc 16, 18 .................. Jesus discute com os fariseus: Todo aquele que se divorcia
da sua mulher e casa com outra comete adultério; e quem
casa com uma mulher divorciada comete adultério.
5. 1 Cor 7, 10.11 ......... Paulo estima igualmente o matrimónio e o celibato: Aos que
estão casados, ordeno, não eu, mas o Senhor, que a mulher
não se separe do marido... e o marido não repudie a sua
mulher.
6. Ef 5, 31-32 ............... para Paulo, o modelo de amor conjugal é o amor de Cristo
pela Igreja: Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, unir-
-se-á à sua mulher e serão os dois uma só carne. Grande é
este mistério; mas eu interpreto-o em relação a Cristo e à Igreja.

MINISTÉRIO (ORDEM) 135


1. Act 6, 2.3.6 .............. instituição dos Sete: Os Doze convocaram a assembleia dos
discípulos... É melhor procurardes entre vós, irmãos, sete
homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de
sabedoria, e confiar-lhes-emos esse serviço... Foram apre-
sentados aos Apóstolos que, depois de orarem, lhes impu-
seram as mãos.
2. Act 13, 1.2-3 ............ instituição de Barnabé e Saulo: Havia na igreja, estabelecida
em Antioquia, profetas e doutores... Separai Barnabé e Sau-
lo para o trabalho a que Eu os chamei. Então, depois de
terem jejuado e orado, impuseram-lhes as mãos e deixaram-
nos partir.
3. Act 14, 23 ................. instituição de anciãos em Listra, Icónio e Antioquia: Depois
de lhes terem constituído anciãos em cada igreja, pela impo-
sição das mãos, e de terem feito orações acompanhadas de
jejum...
4. Act 20, 17.28 ........... anciãos da igreja de Éfeso: De Mileto, Paulo mandou cha-
mar os anciãos da igreja de Éfeso...
5. Filip 1, 1 .................. bispos e diáconos de Filipos: Paulo e Timóteo, servos de
Cristo Jesus, a todos os santos em Cristo Jesus que estão
em Filipos, com seus bispos e diáconos...
6. Col 1, 25 .................. Paulo, ministro da Igreja: Foi da Igreja que eu me tornei
servidor, segundo a missão que Deus me confiou para vosso
benefício...
7. Col 4, 7 .................... ministério de Tíquico: De tudo o que me diz respeito infor-
mar-vos-á Tíquico, o irmão querido, servidor fiel e meu com-
panheiro no serviço do Senhor.
8. Col 4, 17 .................. ministério de Arquipo: Dizei a Arquipo: Presta atenção ao
ministério que recebeste do Senhor, a fim de o realizares bem.
9. 1 Tes 3, 2 ................. ministério de Timóteo: Enviámos Timóteo, nosso irmão e
colaborador de Deus no Evangelho de Cristo, para vos con-
firmar e encorajar na vossa fé.
76 SÉCULO I

10. 1 Tes 5, 12-13 .......... vários ministros da igreja dos Tessalonicenses: Pedimo-
-vos, irmãos, que reconheçais aqueles que se afadigam entre
vós, que vos governam no Senhor e que vos instruem...
11. 1 Tim 1, 12 ............... ministério de Paulo: Dou graças Àquele que me confortou,
Cristo Jesus Nosso Senhor, por me ter considerado digno de
confiança, podo-me ao seu serviço...
12. 1 Tim 3, 1-7 ............. ministério do episcopado: Se alguém aspira ao episcopado,
deseja um excelente ofício. Mas é necessário que o bispo
seja irrepreensível...
13. 1 Tim 3, 8-9.12-13 .... ministério do diaconado: Do mesmo modo, os diáconos se-
jam pessoas dignas... Os diáconos sejam maridos de uma só
mulher...
14. 1 Tim 4, 6.14 ........... ministério de Timóteo: Expondo estas coisas aos irmãos,
serás um bom ministro de Cristo Jesus... Não descures o
carisma que está em ti, e que te foi dado através de uma
profecia, com a imposição das mãos dos presbíteros.
15. 1 Tim 5, 17.22 ......... ministério dos presbíteros: Os presbíteros que exercem bem
a presidência sejam julgados dignos de dupla honra, princi-
palmente os que trabalham na pregação e no ensino... Não
imponhas as mãos a ninguém precipitadamente, nem te tor-
nes cúmplice de pecados alheios.
16. 2 Tim 1, 6 ................. ministério de Timóteo: Recomendo-te que reacendas o dom
de Deus que se encontra em ti, pela imposição das minhas
mãos.
17. Tit 1, 5 ...................... ministério dos presbíteros: Deixei-te em Creta, para acaba-
res de organizar o que ainda falta e para colocares presbíte-
ros em cada cidade, de acordo com as minhas instruções.
18. Tit 1, 6-9 .................. ministério dos presbíteros ou bispos: Os presbíteros devem
ser irrepreensíveis... Porque é preciso que o bispo, como
administrador de Deus...
19. 1 Ped 5, 1-4 ............. ministério dos presbíteros: Aos presbíteros que há entre
vós, eu, presbítero como eles e que fui testemunha dos pa-
decimentos de Cristo...

136 ORAÇÃO
1. Rom 1, 9-10 ............. de Paulo pelos cristãos de Roma: Deus... me é testemunha
de como constantemente me lembro de vós, pedindo sempre
nas minhas orações que tenha, finalmente, ocasião de ir ter
convosco.
2. Ef 1, 16 ..................... de Paulo pelos cristãos de Éfeso: Lembro-me de vós nas
minhas orações.
3. Filip 1, 4.9.11 .......... de Paulo pelos cristãos de Filipos: Em todas as minhas ora-
ções peço sempre por todos com alegria... Rezo para que a
vossa caridade aumente ainda mais e mais em sabedoria e
toda a espécie de discernimento...
4. Col 1, 9-10 .............. de Paulo pelos cristãos de Colossos: Não cessamos de orar
por vós e de pedir que chegueis ao pleno conhecimento da
vontade de Deus...
5. 2 Tes 1, 11-12 ......... de Paulo pelos cristãos de Tessalónica: Oramos continua-
mente por vós, para que o nosso Deus vos considere dignos
do seu chamamento...
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 77

PALAVRAS E EXPRESSÕES HEBRAICAS 137


1. Aleluia ...................... Ap 19, 1.3.4.6
2. Amen ........................ Rom 1, 25; 9, 5; 11, 36; 15, 33; 16, 27; 1 Cor 14, 16; 2 Cor
1, 20; Gal 1, 5; 6, 18; Ef 3, 21; Filip 4, 20; 1 Tim 1, 17; 6, 16;
2 Tim 4, 18; Hebr 13, 21; 1 Ped 4, 11; 5, 11; Judas 25; Ap 1,
6.7; 3, 14; 5, 14; 7, 12; 19, 4.
3. Pelos séculos ........... Rom 1, 25; 9, 5; 11, 36; 16, 27; 2 Cor 11, 31.
4. Pelos séculos dos séculos Gal 1, 5; Filip 4, 20; 1 Tim 1, 17; 2 Tim 4, 18; Ef 3, 21;
1 Ped 4, 11; 5,11; Ap 1, 6; 5, 13; 7, 12; 11, 15.

PERDOAR 138

1. Mt 9, 2.6 .................. Jesus perdoa ao paralítico: Filho, tem confiança, os teus


pecados estão perdoados... Para que saibais que o Filho do
homem tem, na terra, poder para perdoar pecados...
2. Mt 16, 19 ................. Jesus confia a Pedro o poder de perdoar em seu nome:
Tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu, e tudo o que
desligares na terra será desligado no Céu.
3. Mt 18, 18 ................. Jesus confia a todos os discípulos o poder de perdoar em
seu nome: Tudo o que ligardes na terra será ligado no Céu, e
tudo o que desligardes na terra será desligado no Céu.
4. Mc 2, 5.10 ................ Jesus perdoa ao paralítico: Filho, os teus pecados estão
perdoados... Para que saibais que o Filho do homem tem, na
terra, poder para perdoar os pecados...
5. Lc 5, 20.24 .............. Jesus perdoa ao paralítico: Homem, os teus pecados estão
perdoados... Para que saibais que o Filho do homem tem, na
terra, o poder de perdoar pecados...
6. Lc 7, 48 .................... Jesus perdoa à mulher pecadora: Depois disse à mulher:
Os teus pecados estão perdoados.
7. Jo 20, 22-23 ............ Jesus confia a todos os discípulos o poder de perdoar em
seu nome: Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem per-
doardes os pecados ficarão perdoados; àqueles a quem os
retiverdes, ficarão retidos.

PRIMEIRO DIA DA SEMANA 139

1. Mt 28, 1 ................... dia da Ressurreição: Terminado o sábado, ao romper do


primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria
foram ao sepulcro.
2. Mc 16, 2.9 ................ dia da Ressurreição: De manhã, ao nascer do sol, muito
cedo, no primeiro dia da semana, foram ao sepulcro... Tendo
ressuscitado de manhã, no primeiro dia da semana, Jesus
apareceu primeiramente a Maria Madalena...
3. Lc 24, 1 .................... dia da Ressurreição: No primeiro dia da semana, ao romper
da alva, as mulheres foram ao sepulcro, levando os perfu-
mes que haviam preparado...
4. Jo 20, 1 .................... dia da Ressurreição: No primeiro dia da semana, Maria Ma-
dalena foi ao túmulo logo de manhã, ainda escuro...
5. Jo 20, 19 .................. dia da aparição aos discípulos: Ao anoitecer daquele dia, o
primeiro da semana, estando fechadas as portas do lugar
onde os discípulos se encontravam...
78 SÉCULO I

6. Act 20, 7 ................... dia da Eucaristia de Tróade: No primeiro dia da semana,


estando nós reunidos para partir o pão...
7. 1 Cor 16, 2 .............. dia da colecta para Jerusalém: No primeiro dia da semana,
cada um de vós ponha de parte, em sua casa, o que tiver
conseguido poupar...

140 SAUDAÇÕES
1. Mc 5,34 .................... de Jesus à mulher: Vai em paz.
2. Lc 1, 28 .................... do Anjo a Maria: Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo;
bendita és tu entre as mulheres.
3. Lc 1, 42 .................... de Isabel a Maria: Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o
fruto do teu ventre.
4. Lc 7, 50 .................... de Jesus à pecadora: Vai em paz.
5. Lc 8, 48 .................... de Jesus a uma mulher doente: Filha, vai em paz.
6. Lc 24, 36 .................. de Jesus aos Onze: A paz esteja convosco.
7. Jo 19, 26-27 ............ de Jesus a Maria e a João: Mulher, eis o teu filho... eis a tua
Mãe.
8. Rom 1, 7 ................... de Paulo no início da Carta: A graça e a paz de Deus nosso
Pai e do Senhor Jesus Cristo.
9. Rom 16, 20 .............. de Paulo no final da Carta: A graça de nosso Senhor Jesus
Cristo esteja convosco.
10. 1 Cor 1, 3 ................ de Paulo no início da Carta: A graça e a paz de Deus nosso
Pai e do Senhor Jesus Cristo estejam convosco.
11. 1 Cor 16, 23 ............ de Paulo no final da Carta: A graça do Senhor Jesus esteja
convosco.
12. 2 Cor 1, 2 ................ de Paulo no início da Carta: A graça e a paz vos sejam dadas
da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo.
13. 2 Cor 13, 13 ............ de Paulo no final da Carta: A graça de nosso Senhor Jesus
Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo
estejam convosco.
14. Gal 1, 3 .................... de Paulo no início da Carta: Graça e paz a vós, da parte de
Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo.
15. Gal 6, 18 .................. de Paulo no final da Carta: A graça de nosso Senhor Jesus
Cristo esteja com o vosso espírito, irmãos. Amen.
16. Ef 1, 2 ....................... de Paulo no início da Carta: Graça e paz da parte de Deus,
nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.
17. Ef 6, 23.24 ............... de Paulo no final da Carta: Paz aos irmãos, bem como amor
e fé da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo... A graça
esteja com todos os que amam nosso Senhor Jesus Cristo.
18. Filip 1, 2 .................. de Paulo no início da Carta: A graça e a paz de Deus, nosso Pai,
e do Senhor Jesus Cristo estejam convosco.
19. Filip 4, 23 ................ de Paulo no final da Carta: A graça do Senhor Jesus Cristo
esteja com o vosso espírito.
20. Col 1, 2 .................... de Paulo no início da Carta: A graça e a paz de Deus nosso
Pai estejam convosco.
21. Col 4, 18 .................. de Paulo no final da Carta: A graça esteja convosco.
22. 1 Tes 1, 1 ................. de Paulo no início da Carta: A graça e a paz estejam convos-
co.
23. 1 Tes 5, 28 ............... de Paulo no final da Carta: A graça de nosso Senhor Jesus
Cristo esteja convosco.
24. 2 Tes 1, 1 ................. de Paulo no início da Carta: A graça e a paz vos sejam dadas
da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo.
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 79

25. 2 Tes 3, 16 ............... de Paulo no final da Carta: A graça de nosso Senhor Jesus
Cristo esteja convosco.
26. 1 Tim 1, 2 ................. de Paulo no início da Carta: A graça, a misericórdia e a paz
da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor.
27. 1 Tim 6, 21 .............. de Paulo no final da Carta: A graça esteja convosco.
28. 2 Tim 1, 2 ................. de Paulo no início da Carta: A graça, a misericórdia e a paz
da parte de Deus Pai e de Cristo Jesus, nosso Senhor.
29. 2 Tim 4, 22 .............. de Paulo no final da Carta: O Senhor esteja contigo e a graça
vos acompanhe.
30. Tit 1, 4 ...................... de Paulo no início da Carta: A graça e a paz de Deus nosso
Pai e de Jesus Cristo, nosso Salvador.
31. Tit 3, 15 .................... de Paulo no final da Carta: A graça esteja convosco.
32. Filem 3 ..................... de Paulo no início da Carta: A graça e a paz da parte de
Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.
33. Filem 25 ................... de Paulo no final da Carta: A graça do Senhor Jesus Cristo
esteja convosco.
34. Hebr 13, 25 ............. no final da Carta: A graça esteja convosco.
35. 1 Ped 1, 2 ................. de Pedro no início da Carta: A graça e a paz vos sejam dadas
em abundância.
36. 1 Ped 5, 14 .............. de Pedro no final da Carta: Graça a todos vós, que estais em
Cristo.
37. 2 Ped 1, 2 ................. de Pedro no início da Carta: A graça e a paz vos sejam dadas
em abundância, pelo conhecimento de Deus e de Jesus, nos-
so Senhor.
38. 2 Ped 3, 18 .............. de Pedro no final da Carta: Crescei na graça e no conheci-
mento de Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador.
39. Judas 2 ..................... de Judas no início da Carta: Para vós, a misericórdia, a paz
e o amor em abundância.
40. Ap 1, 4 ...................... de João no início do Apocalipse: A graça e a paz vos sejam
dadas por Aquele que é, que era e que há-de vir, e pelos sete
Espíritos que estão diante do seu trono.

SÚPLICAS 141
1. Mt 8, 2-8 .................. do leproso: Senhor, se quiseres, podes purificar-me...
2. Mt 8, 25 ................... dos discípulos: Senhor, salva-nos, que perecemos!
3. Mt 9, 27 ................... dos dois cegos: Filho de David, tem piedade de nós.
4. Mt 14, 30 ................. de Pedro: Salva-me, Senhor!
5. Mt 15, 22-25 ............ da cananeia: Senhor, Filho de David, tem piedade de mim...
6. Mt 17, 14 ................. do pai do epiléptico: Senhor, tem piedade do meu filho...
7. Mt 20, 30-33 ............ dos dois cegos: Senhor, Filho de David, tem piedade de nós...
8. Mt 26, 39-42 ............ de Jesus em Getsémani: Meu Pai, se é possível, afaste-se de
Mim este cálice...
9. Mt 27, 46 ................. de Cristo na Cruz: Meu Deus, meu Deus, por que Me aban-
donaste?
10. Mc 14, 36 ................. de Jesus em Getsémani: Abba, Pai, tudo Te é possível; afas-
ta de Mim este cálice...
11. Lc 9, 38 .................... de um homem: Mestre, peço-Te que olhes para o meu filho...
12. Lc 18, 13 .................. do publicano: Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.
13. Lc 23, 42 .................. do ladrão na cruz: Jesus, lembra-Te de mim, quando estive-
res no teu Reino.
14. Jo 12, 27-28 ............ de Jesus: Pai, livra-me desta hora... Pai, manifesta a tua
glória...
80 SÉCULO I

15. Act 4, 24-30 .............. dos fiéis cristãos: Senhor, Tu é que fizeste o céu e a terra...
16. Rom 15, 5-6 ............. para a união de sentimentos: O Deus da paciência e da consola-
ção vos conceda toda a união nos mesmos sentimentos...
17. Rom 15, 13 .............. para a alegria e a paz: O Deus da esperança vos encha de
toda a alegria e paz...
18. Rom 15, 30-33 ......... com doxologia: Exorto-vos, irmãos, por nosso Senhor Jesus
Cristo e pelo amor do Espírito, a que luteis comigo...
19. Ef 3, 13-20 ............... com doxologia: Por isso, peço-vos que não desanimeis com
as tribulações que sofro por vós...
20. Ef 4, 1-3 ................... pela unidade: Exorto-vos a que procedais de um modo digno do
chamamento que recebestes...
21. Filip 1, 4-11 ............. com saudação: Em toda a minha oração por todos vós...
22. Col 1, 9-20 ............... pela fé: Não cessamos de orar por vós e de pedir a Deus...
23. Col 4, 3-4 ................. pelo apostolado de Paulo: Ao mesmo tempo, orai também
por nós...
24. 1 Tes 3, 11-13 ......... pelos Tessalonicenses: O próprio Deus, nosso Pai, e nosso
Senhor Jesus nos encaminhem até vós...
25. 2 Tes 2, 1-2 .............. pela fé: Pedimo-vos, irmãos, que não percais tão depressa a
presença de espírito...
26. 2 Tes 2, 15-16 ......... para a consolação: Pedimo-vos, irmãos, que vos mantenhais
firmes...
27. 2 Tes 3, 1 ................. pela evangelização: Quanto ao resto, irmãos, orai por nós
para que a palavra do Senhor progrida...
28. Hebr 13, 18-19 ....... pela liberdade: Rezai por nós... para que eu vos seja restitu-
ído mais depressa.
29. Hebr 13, 20-21 ....... pelo progresso espiritual: O Deus da paz... vos torne aptos
para todo o bem...
30. Ap 22, 20 ................. escatológica: Vem, Senhor Jesus.

142 UNÇÃO
1. Mc 6, 13 ................... os Doze, enviados em missão por Jesus:... expulsavam nu-
merosos Demónios, ungiam com óleo muitos doentes e cu-
ravam-nos.
2. Tg 5, 14 ................... texto de Tiago: Algum de vós está doente? Chame os presbí-
teros da Igreja e que estes orem sobre ele, ungindo-o com
óleo em nome do Senhor...

143 VIÚVAS
1. Mc 12, 42.43.44 ...... Jesus louva a viúva pobre:... Veio uma viúva pobre e deitou
duas moedinhas, uns tostões... Esta viúva pobre deitou no
tesouro mais do que todos os outros... Ela, da sua penúria,
deitou tudo quanto possuía, todo o seu sustento.
2. Lc 2, 37 .................... a profetisa Ana:... ficou viúva até aos oitenta e quatro anos.
Não se afastava do templo, participando no culto noite e
dia, com jejuns e orações.
3. Lc 20, 47 .................. Jesus critica os doutores da Lei:... devoram as casas das
viúvas, simulando longas orações...
4. Lc 21, 2.3.4 ............. Jesus louva a viúva pobre: Viu também uma viúva pobre
deitar lá duas moedas insignificantes... Esta viúva deitou
mais do que todos os outros... Ela, da sua indigência, deitou
tudo o que tinha para viver.
TEXTOS BÍBLICOS DO NOVO TESTAMENTO 81

5. Act 6, 1 ..................... viúvas dos helenistas e dos hebreus:... houve queixas dos
helenistas contra os hebreus, porque as suas viúvas eram
esquecidas no serviço diário.
6. 1 Cor 7, 8.9.39 ........ recomendações de Paulo:... às viúvas digo que é bom para
elas ficarem como eu. Mas, se não podem guardar conti-
nência, casem-se... Se o marido (de uma mulher) vier a
falecer, fica livre para se casar com quem quiser, contanto
que seja no Senhor.
7. 1 Tim 5, 3-16 ........... as viúvas constituíam uma espécie de ordem religiosa:
Honra as viúvas, as que são verdadeiramente viúvas... Se
alguma viúva tiver filhos ou netos, aprendam estes, antes
de mais, a cumprir os seus deveres de piedade... A que é
verdadeiramente viúva e ficou só põe a sua esperança em
Deus... Mas aquela que se entrega aos prazeres, embora
vivendo, já está morta... Se alguma não cuida dos seus, e
principalmente da sua casa, renegou a fé... Só pode ser
inscrita como viúva a que tiver pelo menos sessenta anos,
tiver sido esposa de um só marido... Não admitas as viúvas
mais jovens... Quero, pois, que as viúvas mais jovens se
casem... Algumas já se desviaram... Se alguma mulher cren-
te tem viúvas na família, dê-lhes assistência...
8. Tg 1, 27 .................... assistir às viúvas:... visitar as viúvas nas suas tribula-
ções...
Fílon de Alexandria

Leis especiais 1

LIVRO II

144 21. Se contarmos sete semanas a partir desta festa (da Páscoa), chegamos ao quin-
quagésimo dia, número sagrado, marcado com um sinal libertador como se fosse um só
dia, e que é a imagem de Deus invisível, ao qual ele se assemelha pela sua unicidade.
145 145. Depois da lua nova (da Primavera) vem a quarta festa, a Passagem, que os
Hebreus, na sua língua, chamam Páscoa. Nessa festa, todo o povo no seu conjunto,
velhos e novos, honrados naquele dia com a dignidade sacerdotal, imola, desde o meio-
-dia até à noite, muitos milhares de vítimas. Noutras circunstâncias são os sacerdotes
que, por disposição das leis, realizam os sacrifícios públicos e privados de cada um;
naquele dia, porém, todo o povo, de maneira lícita e com as mãos puras, leva a cabo os
ritos sagrados e faz de sacerdote.
146 146. O motivo da festa da Páscoa é este: ela é um memorial e uma acção de graças
daquela grande migração do Egipto, realizada, segundo os oráculos, por mais de dois
milhões de homens e mulheres...
147 147. Para aqueles que estão habituados a transformar as coisas narradas em símbolos, a
festa da Páscoa significa a purificação da alma...

O Decálogo 2
148 160. No quinquagésimo dia, após sete semanas contadas a partir do dia da Páscoa,
temos o costume de oferecer pães que são chamados, com toda a legitimidade, pães de
primícias, porque são os primeiros frutos da natureza e os primeiros produtos do
trabalho da terra, dados por Deus ao homem que é o mais civilizado dos seres vivos.

A vida contemplativa 3
149 65. Em primeiro lugar, eles4 reúnem-se todas as sete semanas, porque não é só o
número sete que para eles é motivo de admiração, mas também o seu quadrado: eles
sabem que é o número da pureza e da virgindade perpétua. É o prelúdio duma festa
muito grande, que tem lugar todos os cinquenta dias, porque é o mais santo de todos os
números e o mais importante na natureza. Ele obtém-se fazendo a soma dos quadrados dos
lados do triângulo rectângulo, soma que é o princípio da geração universal.

1
FÍLON DE A LEXANDRIA , De specialibus legibus II (=L. C OHN -P. W ENDLAND -J. R EITER , 8 vol., Berlim 1896-
1930). Fílon é um judeu, contemporâneo de Jesus, pois viveu de 20-10 a.C. a 45 d.C. Os seus testemunhos
referem-se aos costumes judaicos.
2
FÍLON DE A LEXANDRIA , De Decalogo (=L. C OHN -P. W ENDLAND -J. R EITER , 8 vol., Berlim 1896-1930).
3
FÍLON DE ALEXANDRIA , De Vita contemplativa (=SCh 29; L. C OHN -P. W ENDLAND -J. R EITER , 8 vol., Berlim
1896-1930).
4
Fílon refere-se aos Terapeutas, ascetas judeus que viviam no Egipto. Esta seita assemelhava-se à dos Essénios.
Flávio Josefo

Antiguidades Judaicas 1

LIVRO II

14. 16 Moisés fez com que os Hebreus estivessem preparados para o êxodo, dividin- 150
do-os em fratrias2 e mantendo-os todos juntos. Ao aproximar-se o dia catorze, estando
tudo pronto para a partida, fizeram o sacrifício e, servindo-se de ramos de hissope,
purificaram as casas com sangue. Terminada a refeição, como pessoas prestes a partir,
queimaram o que tinha sobrado das carnes. Aqui teve origem, até aos dias de hoje, o
nosso costume de celebrar, desse mesmo modo, a festa que designamos com a palavra
Páscoa, e que significa passar sobre. Com efeito, naquele dia, Deus, passando sobre
eles, fez cair as pragas sobre os Egípcios.

LIVRO III

10. 6 Depois de passar uma semana de semanas após este sacrifício (da Páscoa) – os dias 151
dessas semanas são em número de quarenta e nove – no quinquagésimo dia, que os
Hebreus chamam asartha, palavra que designa o Pentecostes, oferecem a Deus pão de
farinha de cevada.

LIVRO XIII

8. 4 A festa do Pentecostes ia cair depois do sábado, e não nos é permitido percorrer 152
caminho, nem no sábado nem no dia dessa festa.

A guerra dos Judeus 3

LIVRO I

13. 3 Por ocasião da festa chamada Pentecostes, todo o espaço à volta do templo e 153
toda a cidade estavam cheios de pessoas vindas do campo, a maioria das quais armada.

LIVRO II

3. 1 Por ocasião do Pentecostes (os Judeus chamam assim uma festa que surge sete 154
semanas após a Páscoa e recebe o seu nome do número desses dias)...

1
F LÁVIO J OSEFO , Antiguidades Judaicas (=B. N IESE, Berlim 1887). Flávio Josefo, historiador judeu, viveu
de 37 a.C. a cerca de 103 d.C. A sua obra Antiguidades Judaicas escreveu-a em 93-94 d.C.
2
Grupo de 10-20 pessoas.
3
F LÁVIO J OSEFO , A guerra dos Judeus (=B. NIESE , Berlim 1887).
Clemente Romano

Carta aos Coríntios 1


155 A Igreja de Deus peregrina em Roma, à Igreja de Deus peregrina em Corinto, aos
eleitos e santificados na vontade de Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo. A graça e a
paz de Deus todo-poderoso habitem em vós com abundância, por Jesus Cristo.
156 1. 1 Por causa das súbitas e sucessivas calamidades e adversidades que se abateram
sobre nós, reconhecemos, irmãos caríssimos, ter prestado muito tarde atenção a factos
preocupantes que tiveram lugar entre vós. Refiro-me a uma rebelião alheia e incompa-
tível com eleitos de Deus, indecorosa e sacrílega, iniciada por gente presunçosa e sem
escrúpulos, e levada a tal ponto de insensatez que o vosso nome venerável, glorioso e
por todos celebrado e estimado, ficou seriamente denegrido.
157 2. 1 Todos alimentáveis sentimentos de humildade, sem arrogância, mais dispostos a
obedecer do que a mandar, mais felizes em dar do que em receber. Satisfeitos com as
provisões que Cristo vos dava e atentos às suas palavras, vós as guardáveis cuidado-
samente no coração, trazendo os seus sofrimentos diante dos vossos olhos. 2 Deste
modo, a todos era concedida uma paz profunda e esplêndida e um desejo insaciável de
fazer o bem, pela abundante efusão do Espírito Santo. 3 Cheios de um santo desejo, e
com alegria, estendíeis as vossas mãos para Deus todo-poderoso, implorando a sua
misericórdia, quando involuntariamente cometíeis algum pecado. 4 Combatíeis, dia e
noite, pela comunidade dos irmãos, a fim de conseguir, graças a essa misericórdia e
sentir comuns, a salvação de todos os eleitos. 5 Éreis sinceros, simples e sem malícia
para com os outros. 6 Abomináveis toda a revolta e todo o cisma, choráveis os pecados
do próximo, consideráveis vossas as suas necessidades. 7 Éreis incansáveis em toda a
espécie de bem-fazer, sempre prontos para toda a boa obra2. 8 Adornados por uma
vida cheia de virtude e digna de veneração, tudo fazíeis no temor de Deus. Os manda-
mentos e preceitos do Senhor estavam inscritos no vosso coração...
158 5. 1 Mas, deixemos os exemplos antigos e falemos dos nossos atletas mais recen-
tes; tomemos os modelos mais nobres da nossa geração. 2 Vítimas da inveja e do ciúme,
as mais altas e santas colunas da Igreja sofreram perseguição e tiveram de lutar até à
morte 3.
3 Ponhamos diante dos nossos olhos os bons Apóstolos. 4 Por causa da inveja
iníqua, Pedro teve de suportar duros tormentos, não uma ou duas vezes mas muitas; e,
depois de sofrer o martírio, foi para o lugar da glória, que lhe estava destinado. 5 A
mesma inveja e rivalidade deu a Paulo ocasião para alcançar o prémio da paciência. 6
Sete vezes lançado na prisão, exilado e apedrejado, tornou-se o arauto da Palavra no
Oriente e no Ocidente, e recebeu a legítima glória da sua fé. 7 Depois de ter ensinado
a justiça a todo o mundo e de chegar até aos confins do Ocidente, sofreu o martírio que
lhe infligiram as autoridades e partiu deste mundo para o lugar santo, deixando-nos um
exemplo perfeito de paciência.
159 6. 1 A estes homens, mestres de vida santa, juntou-se a grande multidão dos eleitos
que, depois de sofrerem muitos suplícios e torturas, por causa da inveja, se converte-
ram para nós num magnífico exemplo de fidelidade. 2 Vítimas do mesmo ódio, sofre-
1
CLEMENTE ROMANO, Epistula ad Corinthios (=PG 1, 199-328; FUNK-DIEKAMP I; SCh 167; Alcalá, Philokalia,
Lisboa 2001; cf. LH, II, III, IV). Carta escrita por volta do ano 96, para restabelecer a paz e a concórdia na Igreja
de Corinto.
2
Tito 3, 1.
3
Os capítulos V e VI confirmam que na primeira perseguição contra a Igreja, desencadeada pelo imperador Nero,
depois do incêndio da cidade de Roma no ano 64, muitos cristãos foram martirizados com atrozes tormentos.
CLEMENTE ROMANO 85

ram perseguição muitas mulheres, como Danaides e Dirce, que, suportando graves e
sacrílegos ultrajes, permaneceram no firme caminho da fé, e, embora frágeis no corpo,
receberam o nobre prémio do triunfo. 3 Foi ainda a inveja dos perseguidores que
separou esposas dos maridos, alterando o que disse o nosso pai Adão: É osso dos
meus ossos e carne da minha carne4. 4 A inveja e a rivalidade causaram a ruína de
grandes cidades e fizeram desaparecer numerosas povoações.
7. 1 Escrevemo-vos estas coisas, caríssimos, não só para vos recordar os deveres 160
que tendes, mas também para nos incitarmos a nós próprios. Encontramo-nos na
mesma arena e combatemos o mesmo combate. 2 Deixemos, por isso, as preocupações
inúteis e vãs e voltemo-nos para a norma gloriosa e venerável da nossa tradição. 3
Vejamos o que é bom, o que é agradável, o que é aceitável aos olhos do nosso Criador.
4 Fixemos atentamente o nosso olhar no Sangue de Cristo e reconheçamos como é
precioso aos olhos de Deus, seu Pai, porque, tendo sido derramado para nossa salva-
ção, levou ao mundo inteiro a graça da conversão.
5 Percorramos todas as gerações, e veremos que, em todas elas, o Senhor conce-
deu o tempo favorável da penitência a todos os que a Ele se quiseram converter. 6 Noé
pregou a penitência e todos os que o escutaram foram salvos. 7 Jonas anunciou a
destruição iminente aos Ninivitas e eles, fazendo penitência pelos seus pecados, apla-
caram a ira de Deus com as suas orações e obtiveram a salvação, embora fossem
estranhos ao povo de Deus.
8. 1 Nunca faltaram ministros da graça divina que, inspirados pelo Espírito Santo, 161
pregaram a penitência. 2 O próprio Senhor de todas as coisas falou da penitência,
empenhando as suas palavras com juramento: Pela minha vida, diz o Senhor, não
quero a morte do pecador, mas o seu arrependimento; e acrescentou aquela admirável
sentença: 3 Deixa de praticar o mal, ó Casa de Israel. Diz aos filhos do meu povo:
Ainda que os vossos pecados cheguem da terra ao céu, ainda que sejam mais verme-
lhos que o escarlate e mais negros que o cilício, se vos converterdes a Mim de todo o
coração, e disserdes ‘Pai’, Eu vos tratarei como um povo santo e ouvirei as vossas
súplicas... 5 E, querendo levar à penitência todos aqueles a quem amava, confirmou
esta sentença com a sua vontade omnipotente...
19. 2 Deste modo, imitando as obras grandiosas dos nossos ilustres antepassados, 162
corramos de novo para a meta que nos foi proposta desde o princípio, que é a paz.
Fixemos atentamente o nosso olhar no Pai e Criador do universo e reconheçamos com
gratidão os seus magníficos dons de paz e todos os seus incomparáveis benefícios. 3
Contemplemo-l’O em espírito e fixemos os olhos da alma na sua vontade generosa.
Consideremos como é grande a sua benignidade para com todas as criaturas.
20. 1 Os céus obedecem-Lhe em seus movimentos, com ordem e paz; 2 o dia e a 163
noite completam o curso por Ele estabelecido sem qualquer conflito; 3 o Sol e a Lua
bem como as constelações das estrelas mantêm-se nas órbitas por Ele assinaladas, sem
qualquer erro e em perfeita harmonia. 4 A terra fecunda, dócil à sua vontade, produz
com abundância, nas estações favoráveis, o alimento para os homens, para as feras e
para todos os seres vivos que nela habitam, sem transgredir nem alterar a ordem por
Ele estabelecida5.
5 Obedecem também às suas leis os abismos profundos e impenetráveis do
mundo subterrâneo. 6 A imensa vastidão do mar, concentrada em seu leito pela sabedo-
ria criadora, não ultrapassa os limites que lhe foram assinalados, observando o que
Deus lhe ordenou. 7 Efectivamente Ele disse ao mar: Chegarás até aqui e não irás
mais além; aqui se quebrarão as tuas vagas. 8 O oceano ilimitado para os homens e

4
Gen 2, 23.
5
O capítulo XX é uma oração cósmica.
86 SÉCULO I

os outros mundos que existem para além dele regem-se pelas mesmas ordens do Se-
nhor.
9 As estações da Primavera, Verão, Outono e Inverno sucedem-se harmoniosa-
mente umas às outras. 10 Os ventos executam, livres de qualquer impedimento, a sua
própria função em tempos determinados. Igualmente as fontes inesgotáveis, destina-
das ao bem estar e à saúde, oferecem continuamente a abundância das suas águas para
sustentar a vida humana. Até os mais pequeninos animais se agrupam em concórdia e
paz.
11 Tudo isto é obra do Senhor, Criador do mundo, que dispôs todas as coisas em
paz e harmonia, comunicando os seus bens a todas as criaturas, mas com maior abun-
dância a nós que recorremos à sua misericórdia por nosso Senhor Jesus Cristo. 12 A
Ele a glória e o louvor pelos séculos dos séculos. Amen.
164 21. 1 Prestai atenção, irmãos caríssimos, para que os inumeráveis benefícios de
Deus não se transformem em condenação para todos nós, se não vivermos de maneira
digna d’Ele, isto é, se não realizarmos em mútua concórdia o que é bom e agradável a
seus olhos. 2 Ele diz, com efeito, em certo lugar: O Espírito do Senhor é como uma
lâmpada que perscruta os mais íntimos segredos do coração.
3 Consideremos como está perto de nós e recordemos que não Lhe são ocultos
os nossos pensamentos e juízos interiores. 4 Sendo assim, é justo que não abandone-
mos o nosso posto contra a sua vontade. 5 Mais vale desagradar aos homens insensa-
tos, levianos e soberbos na arrogância das suas palavras, do que ofender a Deus.
6 Veneremos o Senhor Jesus, que derramou por nós o seu Sangue, respeitemos
os nossos chefes, honremos os presbíteros, formemos os novos na ciência do temor de
Deus, orientemos as nossas esposas no caminho do bem. 7 Sejam dignas de todo o
louvor pelo encanto da castidade, dêem provas da sua bondade sincera, manifestem no
silêncio a discrição da sua língua; exercitem a caridade sem acepção de pessoas, mas
imparcial e santamente, para com todos os que temem a Deus.
8 Sejam os nossos filhos educados na doutrina de Cristo; aprendam o grande
valor que tem diante de Deus a humildade, como é apreciável a seus olhos o amor
casto, e como o seu temor é belo, grande e salvador para todos os que santamente se
convertem a Ele num coração puro. Deus perscruta os pensamentos e as intenções; o
seu Espírito está em nós e retira-se de nós quando quiser...
165 24. 1 Consideremos, caríssimos, como o Senhor nos revela claramente a nossa
venturosa ressurreição, cujas primícias inaugurou em nosso Senhor Jesus Cristo, res-
suscitando-O de entre os mortos. 2 Pensemos, caríssimos, na ressurreição que se
verifica no tempo. 3 O dia e a noite falam-nos da ressurreição: vai-se a noite e desponta
o dia; morre o dia e vem a noite. 4 Tomemos como exemplo os frutos da terra: como se
faz a sementeira e como germina a semente? 5 Sai o semeador e lança a semente à terra.
Os grãos da semente, secos e nus, caem na terra e desagregam-se; mas a maravilhosa
providência do Senhor fá-los ressuscitar desta decomposição, e de um só grão nascem
muitos, que crescem e dão fruto...
166 29. 1 Aproximemo-nos então de Deus com a alma santificada, erguendo para Ele as
mãos puras e sem mancha; amemos o nosso Pai benigno e misericordioso, que nos
escolheu para sermos a sua herança...
167 31. 1 Unamo-nos pois à sua bênção e vejamos quais são os caminhos que a ela
conduzem. Remontemos aos acontecimentos do princípio. 2 Porque é que o nosso pai
Abraão foi abençoado? Não foi por ter praticado a justiça e a verdade mediante a fé? 3
Isaac, ao saber do que lhe ia acontecer, deixou-se conduzir confiada e voluntariamente
ao sacrifício. 4 Jacob afastou-se, com humildade, da sua terra por causa do irmão, e
partiu para junto de Labão, colocando-se ao seu serviço; e foram-lhe dados os doze
ceptros de Israel.
CLEMENTE ROMANO 87

32. 1 Todo aquele que examinar um a um os dons que Ele concedeu, reconhecerá a 168
sua grandeza. 2. De Jacob recebemos os sacerdotes, os levitas e todos os que servem no
altar de Deus; dele procedeu, segundo a carne, o Senhor Jesus; dele vieram os reis, os
príncipes e os chefes da tribo de Judá. Quanto às outras suas tribos, também não foi
pequena a sua glória, conforme a promessa do Senhor: A tua descendência será como as
estrelas do céu. 3 Sendo assim, todos eles alcançaram glória e grandeza, não por si
mesmos nem por suas obras ou feitos que executassem, mas por vontade de Deus. 4
Também nós, tendo sido chamados pela sua vontade em Cristo Jesus, não nos justifi-
camos a nós próprios nem pela nossa sabedoria, inteligência ou piedade, nem pelas
obras que fizemos em santidade de coração, mas pela fé, pela qual Deus omnipotente
a todos justificou. A Ele a glória pelos séculos dos séculos. Amen.
33. 1 Sendo assim, que devemos fazer, irmãos? Havemos de negligenciar as boas 169
obras e abandonar a caridade? Nunca Deus permita que tal nos suceda; pelo contrário,
apressemo-nos com todo o ardor e coragem a levar a cabo toda a boa obra. 2 Imitemos
o Criador e Senhor de todas as coisas, que Se alegra com as suas obras. 3 Com o seu
poder supremo fez os céus e os adornou com infinita sabedoria. Separou a terra firme
da água que a cobria e estabeleceu-a sobre o forte alicerce da sua vontade. Com uma
ordem, chamou à existência os animais que se movem sobre a terra. E com o seu poder
criou o mar e os animais que nele vivem.
4 Depois de tudo isto, com suas mãos santas e puríssimas formou o homem, o
ser mais excelente e mais nobre pela dignidade da sua inteligência, imprimindo-lhe os
traços da sua própria imagem. 5 Assim disse Deus: Façamos o homem à nossa ima-
gem e semelhança; e Deus criou-o homem, homem e mulher os criou. 6 Tendo con-
cluído todas as suas obras, louvou-as e abençoou-as, e mandou aos seres vivos: Crescei
e multiplicai-vos. 7 Vemos que todos os justos foram adornados com boas obras, e o
próprio Senhor Se adornou e alegrou com boas obras. 8 Animados com este exemplo,
entreguemo-nos com diligência ao cumprimento da sua vontade e com todas as forças
pratiquemos as obras da justiça.
34. 2 É preciso que estejamos sempre dispostos a fazer o bem, pois tudo nos é dado 170
por Deus. 3 De facto, Ele adverte-nos, dizendo: Eis que vem o Senhor e traz consigo
a recompensa, para dar a cada um segundo as suas obras. 4 Com estas palavras nos
exorta a que acreditemos n’Ele de todo o coração, para que não sejamos indolentes nem
negligentes em fazer o bem. 5 N’Ele estejam a nossa alegria e confiança. Submetamo-
-nos à sua vontade e pensemos na multidão dos Anjos que estão na sua presença, sem-
pre prontos a cumprir a sua vontade. 6 Diz a Escritura: Miríades e miríades de Anjos
estavam na sua presença, milhares e milhares O serviam, e cantavam: Santo, San-
to, Santo é o Senhor do universo; toda a criação está cheia da sua glória.
7 Reunamo-nos também nós num mesmo lugar, em concórdia e em comunhão
de sentimentos e supliquemos fervorosa e insistentemente, que nos faça participantes
das suas grandes e gloriosas promessas. 8 Pois diz: Nem os olhos viram, nem os
ouvidos escutaram, nem jamais passou pelo pensamento do homem o que Deus pre-
parou para aqueles que O amam.
36. 1 É este o caminho, caríssimos, por onde encontraremos o nosso Salvador Jesus 171
Cristo, o pontífice das nossas oblações, o protector e socorro da nossa fraqueza. 2 Por
Ele, olhamos serenamente para as alturas dos céus; por Ele contemplamos, como num
espelho, o rosto puríssimo e sublime de Deus; por Ele se abrem os olhos do nosso
coração; por Ele a nossa inteligência, insensata e obscurecida, desabrocha para a luz;
por Ele quis o Senhor fazer-nos saborear a ciência imortal, Ele que, sendo o esplendor
da majestade de Deus, está tanto acima dos Anjos quanto mais eminente que o deles é
o nome que recebeu em herança...
88 SÉCULO I

172 37. 1 Militemos pois, corajosos irmãos, com todas as nossas forças, nas suas irre-
preensíveis fileiras. 2 Ponhamos os olhos nesses soldados que combatem às ordens dos
nossos comandantes. Quanta disciplina, quanta obediência, quanta submissão em exe-
cutar as suas ordens. 3 Nem todos são prefeitos, nem todos chefes de mil, de cem, de
cinquenta ou menos soldados ainda; mas cada um, na sua ordem e posto, cumpre as
ordens do rei e dos comandantes. 4 Os grandes não podem subsistir sem os pequenos
nem os pequenos sem os grandes. Em todas as coisas há uma certa combinação e nisso
reside a utilidade. 5 Sirva-nos de exemplo o nosso corpo. A cabeça nada vale sem os
pés, nem os pés sem a cabeça. Os membros do nosso corpo, ainda os mais insignifican-
tes, são necessários e úteis ao corpo inteiro. É contudo necessário que todos contri-
buam, em perfeita subordinação, para que todo o corpo se salve.
173 38. 1 Asseguremos, portanto, a salvação de todo o Corpo que formamos em Cristo
Jesus, e submeta-se cada um ao seu próximo, segundo o dom da graça que lhe foi
concedido. 2 O forte proteja o fraco, e o fraco respeite o forte; o rico seja generoso para
com o pobre, e o pobre louve a Deus por lhe ter proporcionado alguém que o auxilie na
pobreza. O sábio manifeste a sua ciência, não por palavras, mas por boas obras; o
humilde não dê testemunho de si mesmo, mas deixe isso ao cuidado dos outros. O que
é casto de corpo não se vanglorie, sabendo que é de Deus que lhe vem o dom da
continência. 3 Consideremos, pois, irmãos, de que matéria fomos feitos, quem éramos
e em que condições entrámos no mundo, de que túmulo e trevas nos fez sair Aquele que
nos plasmou e criou, para nos introduzir no mundo que Lhe pertence, onde nos tinha
preparado tantos benefícios ainda antes de termos nascido. 4 Portanto, já que recebe-
mos d’Ele todos estes dons, devemos dar-Lhe graças por todos eles. A Ele a glória
pelos séculos dos séculos. Amen...
174 40. 1 Sendo evidentes todas estas coisas e tendo nós sondado as profundezas do
conhecimento de Deus, devemos realizar, de maneira ordenada, tudo quanto o Senhor
nos mandou cumprir nos tempos determinados. 2 O Senhor mandou-nos oferecer
sacrifícios e realizar a liturgia6, não ao acaso ou sem ordem, mas em tempos e horas
determinadas. 3 Foi Ele que fixou, por sua decisão altíssima, onde e por quem deseja
que sejam realizados, para que todas as coisas sejam feitas santamente e, com a sua
aprovação, sejam agradáveis à sua vontade. 4 Portanto, todos os que apresentam as
suas oferendas nos tempos determinados, são-Lhe agradáveis e abençoados, pois se-
guem as determinações do Senhor e não pecam. 5 Aos sumos sacerdotes7 foram con-
fiadas funções próprias8, aos sacerdotes9 lugares especiais 10, aos levitas serviços de-
terminados; o homem leigo11 está sujeito aos preceitos próprios dos leigos.
175 41. 1 Cada um de nós, irmãos, pela ordem que lhe foi assinalada, procure agradar a
Deus em boa consciência, sem transgredir as regras fixadas para o seu ofício12, mas
agindo com dignidade...
176 42. 1 Os Apóstolos foram enviados pelo Senhor Jesus Cristo a evangelizar. Jesus
Cristo foi enviado por Deus. 2 Sendo assim, se Cristo foi enviado por Deus e os
Apóstolos por Cristo, este e aqueles procedem ordenadamente da vontade de Deus. 3 De

6
leitourgi/ # . Este modo de falar do culto cristão abriu certamente caminho ao uso da palavra leitourgi/ # ,
despojada do seu significado cultual levítico, e permitiu que ela adquirisse pleno direito de cidadania na
Igreja dos primeiros séculos e a seguir nas Igrejas do Oriente. Seria preciso esperar pelo século XX para
isso acontecer no Ocidente.
7
a)rxierei=.
8
i)/diai leitourgi/ai.
9
i(ereu=sin.
10
i)/dioj o( to/poj.
11
o( laiko\j a)/nqrwpoj.
12
leitourgi/aj.
CLEMENTE ROMANO 89

facto, depois de terem recebido o mandato, certificados pela ressurreição de nosso


Senhor Jesus Cristo, os Apóstolos, apoiados na palavra de Deus e confirmados pelo
Espírito Santo, partiram a anunciar a próxima vinda do reino de Deus. 4 Pregando a
Boa Nova por povos e cidades, estabeleciam as suas primícias como bispos e diáconos
dos futuros fiéis, depois de os provarem pelo Espírito Santo. 5 Mas isto não era
novidade, pois há muito tempo estava escrito dos bispos e dos diáconos. Diz assim a
Escritura algures: Estabelecerei os seus bispos na justiça e os seus diáconos na fé13.
43. 1 E porque estranhar, se aqueles a quem foi confiada por Deus, por meio de 177
Cristo, uma obra tão grande constituíram em autoridade os referidos ministros, uma
vez que também o bem-aventurado Moisés, servo fiel em toda a sua casa, fez gravar
nas Santas Escrituras todas as coisas que lhe foram ordenadas e os demais Profetas
obedeceram e juraram fidelidade às leis por ele estabelecidas!... 6 Moisés procedeu
deste modo, a fim de que o nome do verdadeiro e único Deus fosse glorificado. A Ele a
glória pelos séculos dos séculos. Amen.
44. 1 Os nossos Apóstolos também tiveram conhecimento, através de nosso Senhor 178
Jesus Cristo, que haveria discórdia a respeito da função do episcopado. 2 Por tal
motivo e em perfeita previsão do futuro, estabeleceram os já mencionados (bispos e
diáconos) e determinaram entretanto que, após a sua morte, outros homens provados
recebessem em sucessão o seu ministério. 3 Sendo assim, consideramos injusto que
sejam afastados do seu ofício aqueles que foram constituídos em autoridade por eles
ou por outros honrados varões, com o consentimento de toda a Igreja, e serviram
irrepreensivelmente o rebanho de Cristo, humilde, serena e dignamente, por longo
tempo reconhecidos por todos. 4 Não será, na verdade, pequena a nossa falta, se
depusermos do episcopado aqueles que ofereceram irrepreensível e santamente os
dons. 5 Felizes os presbíteros que nos precederam na caminhada e tiveram um fim
perfeito e cheio de fruto, pois não têm a temer que os deponham do lugar em que se
sentaram. 6 Verificamos pois, que vós depusestes do ministério alguns que exerciam
dignamente e governaram bem...
45. 7 O Altíssimo é o defensor e protector dos que adoram o seu nome santíssimo, 179
em consciência pura. A Ele pertence a glória pelos séculos dos séculos. Amen. 8 Mas
todos os que sofreram com fé e confiança, herdaram a honra e a glória; foram exaltados
e inscritos por Deus, no seu memorial, pelos séculos dos séculos. Amen...
47. 1 Tomai a Epístola do bem-aventurado apóstolo Paulo. 2 Que vos escreveu ele 180
no princípio do Evangelho? 3 Foi certamente por inspiração divina que vos escreveu
uma carta em que falava de si mesmo, de Cefas e de Apolo, porque já então fomentáveis
entre vós partidos. 4 Mas aquela parcialidade era menos culpável, porque a vossa
preferência tinha por objecto Apóstolos autorizados e um homem aprovado por eles.
5 Agora, porém, reparai quem são aqueles que vos perverteram e diminuíram a reputa-
ção do vosso conhecido amor fraterno. 6 É vergonhoso, caros irmãos, e indigno duma
conduta cristã ouvir dizer que a antiga e firmíssima Igreja dos Coríntios se levantou
contra os presbíteros por causa de uma ou duas pessoas. 7 E um tal rumor chegou não
apenas até nós, mas também àqueles que pensam de modo diferente de nós, a ponto de,
por causa da vossa insensatez, se proferirem blasfémias contra o nome do Senhor e de
vós mesmos correrdes perigo.
48. 1 Apressemo-nos, portanto, a suprimir este escândalo; prostremo-nos aos pés 181
do Senhor e, arrependidos, supliquemos-Lhe que nos seja propício, nos reconcilie e
reponha na nobre conduta do amor fraterno...
50. 1 Vede, amados irmãos, como é grande e admirável a caridade, e como é inefável 182
a sua perfeição. 2 Quem é capaz de a praticar perfeitamente, a não ser aqueles a quem

13
Is 60, 17.
90 SÉCULO I

Deus torna dignos? Oremos, portanto, e supliquemos à sua misericórdia, para que nos
faça viver no amor, livres de toda a parcialidade humana. 3 Todas as gerações, desde
Adão até aos nossos dias, passaram, mas aqueles que por graça de Deus foram perfei-
tos na caridade, alcançaram a terra dos santos e hão-de manifestar-se quando aparecer
o reino de Cristo. 4 Porque está escrito: Entrai nos vossos aposentos por um momen-
to, até que passe a minha ira e o meu furor; e Eu Me lembrarei do dia favorável e vos
ressuscitarei dos vossos túmulos.
5 Felizes de nós, irmãos caríssimos, se cumprirmos os preceitos de Deus na con-
córdia da caridade, porque pela caridade alcançamos o perdão dos pecados. 6 Está
escrito: Feliz daquele a quem foi perdoada a culpa e absolvido o pecado. Feliz o
homem a quem o Senhor não acusa de iniquidade e em cuja boca não há engano. 7
Esta bem-aventurança é para aqueles que Deus escolheu, por meio de Jesus Cristo,
nosso Senhor. A Ele a glória pelos séculos dos séculos. Amen.
183 51. 1 Sendo assim, peçamos perdão de todo o mal que praticámos, seduzidos pelas
insídias do Adversário; e aqueles que foram os chefes da revolta e do cisma devem
reflectir na natureza comum da nossa esperança. 2 Com efeito, os que vivem no temor
de Deus e na caridade, preferem sofrer eles mesmos para que não sofram os outros;
preferem sofrer o desprezo a comprometer a concórdia que justa e honrosamente nos
foi transmitida. 3 É melhor para o homem confessar os seus pecados do que endurecer
o seu coração...
184 52. 1 Irmãos, o Senhor do universo não precisa de nada. Não nos pede nada, a não
ser que O glorifiquemos14...
185 54. 1 Se há, portanto, alguém entre vós que seja generoso, misericordioso e cheio de
caridade, diga: 2 Se a revolta, a querela e os cismas são por minha causa, então afasto-
-me, vou para onde quiserdes e faço o que a comunidade me ordenar, contanto que o
rebanho de Cristo viva em paz com os presbíteros legitimamente constituídos em
autoridade. 3 Quem assim fizer receberá grande glória em Cristo e em qualquer lugar
será bem recebido, porque do Senhor é a terra e tudo o que nela existe. 4 Assim
procedem e procederão os que levam uma vida digna de Deus, da qual nunca terão de
se arrepender...
186 56. 1 E sendo assim rezemos também nós por aqueles que se encontram em algum
pecado, para que lhes seja concedida a moderação e a humildade e se submetam, não a
nós, mas à vontade de Deus. Deste modo, será para eles proveitosa e perfeita a
memória que, misericordiosamente, temos deles diante de Deus e dos santos...
187 57. 1 Vós pois que destes origem à revolta, submetei-vos aos presbíteros e educai-
-vos para a conversão15, dobrando os joelhos do vosso coração. 2 Aprendei a submeter-
-vos, repelindo a soberba e a arrogância orgulhosa da vossa língua, pois é melhor para
vós que sejais reconhecidos pequenos e insignificantes no rebanho de Cristo, do que
receber honras indevidas e serdes excluídos da sua esperança...
188 58. 1 Obedeçamos, pois, ao seu nome santíssimo e glorioso, fugindo às ameaças
proferidas pela sabedoria contra os desobedientes, para que confiando no santíssimo
nome da sua majestade, repousemos em paz. 2 Aceitai o nosso conselho e não vos
arrependereis, pois Deus vive, e vive o Senhor Jesus Cristo e o Espírito Santo, vive a
fé e a sabedoria dos eleitos, porque aquele que, em espírito de humildade e perseveran-
do na moderação, praticar os preceitos e mandamentos dados por Deus, esse será
contado no número dos que serão salvos por Jesus Cristo, pelo qual Lhe seja dada
glória pelos séculos dos séculos. Amen.

14
e) c omologh/ s omai : bendigamos, louvemos.
15
meta/ n oian .
CLEMENTE ROMANO 91

59. 1 Mas se alguns desobedecerem ao que Deus disse por nosso intermédio, saibam que 189
incorrerão em falta e em não pequeno perigo. 2 Quanto a nós, porém, seremos inocentes
desse pecado e rogaremos, com súplicas e orações constantes, que o Criador do universo
conserve intacto em todo o mundo o número dos seus eleitos, por meio de seu amado Filho
Jesus Cristo, pelo qual nos chamou das trevas à luz, da ignorância ao conhecimento da glória
do seu nome.
3 Senhor, para que esperemos no teu nome16, princípio de todas as criaturas, abriste os olhos
do nosso coração
para Te conhecermos como o único Altíssimo nos céus altíssimos,
como o Santo que repousa entre os santos:
que humilhas a arrogância dos insolentes e frustras os planos das nações,
que exaltas os humildes e humilhas os soberbos,
que dás a riqueza e a pobreza, a morte, a salvação e a vida,
único benfeitor dos espíritos e Deus de toda a carne;
que sondas os abismos e observas as acções dos homens,
que socorres os que estão em perigo e salvas os desesperados,
que criaste todo o ser vivo e velas por ele;
que multiplicas os povos na terra e de entre todos escolhes os que Te amam,
por Jesus Cristo, teu amado Filho, pelo qual nos ensinaste, santificaste e honraste.
4 Nós Te pedimos, Senhor, que sejas o nosso auxílio e protecção.
Salva os que entre nós estão atribulados e tem piedade dos humildes,
levanta os que caíram e ajuda os necessitados,
cura os enfermos e converte os transviados do teu povo,
sacia os famintos e liberta os nossos prisioneiros,
fortalece os fracos e anima os pusilânimes.
Conheçam todos os povos que Tu és o único Deus,
que Jesus Cristo é o teu Filho e nós o teu povo e ovelhas do teu rebanho.
60. 1 Tu, que manifestaste, com as tuas obras, a perene constituição do mundo; Tu, 190
Senhor, que criaste o mundo habitado e és fiel por todas as gerações, justo nos juízos,
admirável em força e magnificência, sábio na criação e providente na conservação das
coisas criadas, bom em todos os dons visíveis e fiel para com os que em Ti confiam, Deus
benigno e misericordioso, perdoa-nos as iniquidades, as injustiças, os pecados e negligências.
2 Não recordes os pecados dos teus servos e servas, mas purifica-nos na tua
verdade e dirige os nossos passos, para que andemos em santidade de coração, e faça-
mos o que é bom e agradável aos teus olhos e aos olhos daqueles que nos governam.
3 Senhor, faz brilhar sobre nós a luz do teu rosto, para gozarmos de bem-estar na tua
paz, para sermos protegidos pela tua mão poderosa e nos sentirmos livres de todo o pecado e,
pelo teu excelso braço, sermos salvos de todos os que nos odeiam injustamente.
4 Dá-nos concórdia e paz, a nós e a todos os habitantes da terra, como as deste
aos nossos pais, quando Te invocavam santamente na fé e sinceridade de coração.
Torna-nos submissos ao teu nome todo-poderoso e santo e aos que nos governam e
dirigem sobre a terra.
61. 1 Tu, Senhor, que lhes deste o poder e o reino, pela inefável e extraordinária 191
força, para que reconhecendo a glória e a honra que lhes deste, lhes obedeçamos, sem
nos opormos à tua vontade, dá-lhes saúde, paz, concórdia e firmeza, para que, sem
obstáculo, se ocupem no governo que lhes confiaste.

16
Começa aqui a primeira oração cristã extra-bíblica, que parece ser semelhante às Dezoito Bênçãos hebraicas,
e que virá a tornar-se na Oração dos fiéis.
92 SÉCULO I

2 Pois, Tu, Senhor, Rei celestial dos séculos, que aos filhos dos homens dás
glória, dignidade e poder sobre todas as coisas da terra, dirige-lhes a inteligência no
sentido do que é bom e agradável a teus olhos, para que, exercendo em paz, mansidão
e piedade, a autoridade que lhes deste, Te venham a encontrar propício.
3 Só Tu, Senhor, podes conceder-nos estes bens e outros ainda maiores. Nós Te
louvamos e bendizemos, por Jesus Cristo, Pontífice e Advogado das nossas almas,
pelo qual Te seja dada a honra e a glória, agora e de geração em geração, pelos séculos
dos séculos. Amen.
192 62. 1 Escrevemo-vos o suficiente, irmãos caríssimos, a respeito de tudo o que se
refere à nossa religião, e sobre aquilo que é mais útil para aqueles que querem levar uma
vida santa na piedade e na justiça. 2 Abordámos todos os aspectos que dizem respeito à
fé, à penitência, à verdadeira caridade, à continência, à moderação e à paciência, recor-
dando o que é necessário para vos tornardes agradáveis a Deus todo-poderoso, em
justiça, verdade e generosidade, vivendo em concórdia sem ressentimento algum, no
amor e na paz, com moderação constante, exactamente como os nossos pais que se
mostraram perfeitamente ajustados, com toda a humildade, às coisas do Pai, Deus e
Criador, e perante todos os homens. 3 E tivemos tanto mais gosto em recordá-lo, quanto
sabíamos estar a escrever a homens de fé e respeitáveis, que se tornaram profundos no
conhecimento das palavras e ensinamentos de Deus.
192a 63. 1 É justo, por consequência, que nos orientemos por tantos e tão grandes exem-
plos, tornando-nos obedientes, para que, desistindo de toda a vã rebelião, alcancemos
sem qualquer censura, a meta que nos foi proposta, com verdade. 2 E vós nos dareis
alegria e satisfação, se vos sumeterdes ao que vos escrevemos com a graça do Espírito
Santo e cortardes pela raiz a vossa paixão da inveja, conforme o pedido que vos fizemos
para que haja paz e copncórdia. 3 Mandámos até vós homens fiéis e prudentes que,
entre nós, desde a juventude até à idade avançada, têm vivido irrepreensivelmente. Eles
serão testemunhas entre vós e nós. 4 Agimos deste modo para vos fazer compreender
que toda a nossa preocupação ia e vai no sentido de restabelecer de imediato a paz
entre vós.
192b 64. 1 Por último, o Deus que conhece todas as coisas, mestre dos espíritos e senhor
de toda a carne, que escolheu o Senhor Jesus Cristo e, por sua mediação, todos nós,
como seu povo eleito, conceda a todos aqueles que invocarem o seu nome glorioso e
santo, a fé, temor, paz, paciência, generosidade, continência, pureza e prudência, para
sermos agradáveis ao seu nome, pelo Sumo Sacerdote e nosso Defensor, Jesus Cristo,
pelo qual Lhe seja dada glória e majestade, poder e honra, agora e pelos séculos dos
séculos. Amen.
193 65. 1 Mandai-nos, sem demora, na paz e na alegria, aqueles que vos enviámos, Cláu-
dio Efebo, Valério Bítono, assim como Fortunato, para que nos tragam notícias da dese-
jada e ansiada paz e concórdia, e ainda mais rapidamente rejubilemos com a vossa
tranquilidade.
2 A graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja convosco e com todos os eleitos
que Deus chamou por Jesus Cristo. Por Ele seja dada a Deus glória, honra, poder,
majestade e domínio eterno, desde sempre e por todos os séculos dos séculos. Amen.
Didaqué ou Doutrina dos Doze Apóstolos 1

Instrução do Senhor aos gentios 2

1. Os dois caminhos. 1 Há dois caminhos: um da vida e outro da morte. Mas a 194


diferença entre eles é grande.
2 O caminho da vida é este: primeiro, amarás a Deus que te criou; depois, ao teu
próximo como a ti mesmo 3; e tudo o que não queres que te seja feito, não o faças a
ninguém4.
A secção evangélica. 3 Eis a instrução relativa a estes mandamentos: Bendizei
aqueles que vos amaldiçoam, orai pelos vossos inimigos, jejuai pelos vossos persegui-
dores. Com efeito, que agradecimento mereceis, se amais aqueles que vos amam? Não
o fazem também os pagãos? Vós, porém, amai os que vos odeiam; não tenhais inimiza-
de. 4 Afasta-te das paixões da carne e do corpo. Se alguém te bater na face direita,
oferece-lhe também a outra e serás perfeito. Se alguém te obrigar a acompanhá-lo
durante uma milha, acompanha-o durante duas. Se alguém te levar o manto, dá-lhe
também a túnica. Se alguém levar o que é teu, não o reclames; de qualquer modo não
tens possibilidade. 5 Dá a todo aquele que te pede, sem exigir devolução, porque a
vontade do Pai é que dêmos de graça os seus próprios dons. Feliz daquele que dá,
segundo o mandamento, pois fica livre de toda a censura. Ai de quem recebe! Se alguém
recebe por ter necessidade, não merece censura, mas, se não estiver em necessidade,
dará contas do motivo e do fim pelos quais recebeu. Enviado para a cadeia, será julgado
pelos seus actos e não sairá de lá enquanto não tiver devolvido o último centavo. 6
Mas é verdade que a este propósito também foi dito: Transpire a tua esmola nas tuas
mãos, até que saibas a quem a vais dar5.
2. Os mandamentos. 1 Segundo mandamento da instrução6: 2 Não matarás7, não 195
cometerás adultério8. Não te entregarás à pederastia, nem às uniões ilegítimas, nem ao
roubo, nem à magia, nem à bruxaria. Não suprimirás a criança por aborto e não matarás
a criança já nascida. Não cobiçarás os bens do teu próximo9. 3 Não faltarás ao que

1
Didaqué ou Doutrina dos Doze Apóstolos (=SCh 248; J. P. A UDET , Paris 1958; Paulistas, Lisboa 1960; cf.
LH, III). A Didaqué foi escrita na Síria oriental, provavelmente entre os anos 90-100, e oferece--nos
textos litúrgicos antiquíssimos: o baptismo por infusão, a doxologia após a Oração dominical e a oração
para a fracção do pão, que provavelmente não se distinguia do ágape eucarístico.
2
A instrução sobre Os dois caminhos constitui uma informação preciosa sobre o primeiro programa do
catecumenado cristão. Há boas razões para pensar que se trata de um catecismo baptismal. Esta catequese
marca já uma evolução relativamente ao Novo Testamento. A preocupação com uma preparação mais cuidada
para o baptismo explica-se pelo número crescente de convertidos.
3
O duplo mandamento do amor. No AT os dois mandamentos nunca são citados juntos: Dt 6, 5; 10, 12 s; Mt
22, 37.
4
A regra de ouro: Mt 7, 12; Lc 6, 31. Os Estóicos também conheciam esta regra. Na tradição judaica ela
aparece sob forma negativa: Tob 4, 15. Diz-se que foi essa a resposta que Hillel deu a Schamai, quando este
lhe pediu: Mestre, diz-me uma fórmula que resuma toda a Lei e que eu possa dizer durante o tempo que
consigo estar de pé sobre uma só perna.
5
Sir 12, 1.
6
Espécie de catequese sobre o Decálogo, mas em relação com os costumes da época. A Didaqué cita sempre
a segunda tábua do Decálogo, que lembra o sermão da montanha: cf. Mc 6, 7-22; 7, 21.
7
Ex 20, 15; Deut 5, 18.
8
Ex 20, 13; Deut 5, 17.
9
Ex 20, 17; Deut 5, 21.
94 SÉCULO I

tiveres jurado nem darás falso testemunho10; não amaldiçoarás nem guardarás rancor a
ninguém. 4 Não usarás de duplicidade nem em pensamento nem em palavra: a hipocri-
sia é uma armadilha fatal. 5 O teu discurso será isento de mentira e de palavras vãs,
mas, ao contrário, terá a marca da sinceridade e da seriedade. 6 Não serás ambicioso,
nem rapace, nem hipócrita, nem malicioso, nem soberbo. Não alimentarás má intenção
contra o teu próximo11. 7 Não odiarás ninguém, mas repreenderás uns, rezarás por
outros, e ainda a outros amá-los-ás mais do que a ti mesmo.
196 3. A instrução do sábio. 1 Meu filho, evita tudo o que é mal e até o que tiver a sua
aparência. 2 Não te irrites facilmente: a cólera leva ao assassínio; também não sejas
ciumento, nem brigão, nem arrebatado: é de tudo isso que nascem os homicídios. 3 Meu
filho, não sejas frequentador de mulheres: o desejo ardente conduz à união ilegítima;
evita também a obscenidade e os maus olhares: é de tudo isso que nascem os adulté-
rios. 4 Meu filho, não sejas dado à adivinhação: ela conduz à idolatria; nem tão pouco
aos encantamentos, nem à astrologia, nem às purificações; não procures ver (nem
ouvir) essas coisas: é de tudo isso que nasce a idolatria. 5 Meu filho, não sejas menti-
roso: a mentira conduz ao roubo; também não sejas avarento nem vaidoso: é de tudo
isso que nasce a pilhagem. 6 Meu filho, não sejas áspero: a amargura conduz à difama-
ção; não sejas também arrogante nem malévolo: é de tudo isso que nascem as calúnias.
O ideal do pobre. 7 Ao contrário, torna-te manso, porque os mansos possuirão
a terra como herança. 8 Sê paciente, misericordioso, sem falsidade, pacífico e bom.
Guarda com todo o cuidado a instrução que ouviste. 9 Não procures elevar-te a ti
mesmo e não entregues o teu coração à insolência. Não unas a tua vida ao mundo dos
grandes, mas ao caminho dos justos e dos humildes. 10 Aceitarás os acontecimentos da
vida como outros tantos bens, sabendo que Deus não é estranho a nada do que acontece.
197 4. Modo de proceder para com os irmãos. 1 Meu filho, lembra-te dia e noite
daquele que te anuncia a palavra de Deus e honra-o como ao Senhor, pois onde a sua
soberania é proclamada aí está presente o mestre. 2 Procurarás cada dia a companhia
dos santos, para encontrares apoio nas suas palavras. 3 Não provocarás divisões:
restabelecerás antes a paz entre aqueles que discutem. Julgarás com justiça e não farás
acepção de pessoas na correcção das faltas. 4 Não ficarás a perguntar a ti próprio o que
daí resultará ou não para ti.
A esmola. 5 Não tenhas as mãos sempre estendidas para receber, e encolhidas
quando se trata de dar. 6 Se tens alguma coisa graças ao trabalho das tuas mãos, dá para
seres liberto dos teus pecados. 7 Não hesitarás em dar e, ao fazê-lo, guarda-te de
murmurar, pois um dia reconhecerás quem é o verdadeiro dispensador da recompensa. 8
Não repelirás o indigente com um mau acolhimento; porás todas as coisas em comum
com o teu irmão e não declararás que elas te pertencem, porque, se partilhais os bens
da imortalidade, com maior razão deveis fazê-lo quanto aos bens corruptíveis.
Os deveres domésticos. 9 Não terás a mão demasiado ligeira em relação ao teu
filho ou à tua filha, mas desde a sua juventude os instruirás no temor de Deus. 10 Não
darás ordens sob o efeito da cólera, nem ao teu servo nem à tua serva, que esperam no
mesmo Deus em quem tu esperas, não aconteça que eles percam o temor de Deus, que
está acima de todos. Com efeito, Ele não virá convidar segundo a qualidade da pessoa,
mas segundo a preparação do espírito. 11 Quanto a vós, servos, sede submissos aos
vossos senhores como se eles fossem uma imagem de Deus, com respeito e reverência.
Fim do caminho da vida. 12 Detestarás toda a impiedade e tudo o que é desagra-
dável ao Senhor. 13 Em caso algum abandonarás os mandamentos do Senhor, e guarda-

10
Ex 20, 16; Deut 5, 20.
DIDAQUÉ OU DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS 95

rás o que recebeste, sem nada lhe acrescentar nem tirar. 14 Na assembleia confessarás
as tuas faltas e não entrarás em oração com má consciência. – Este é o caminho da vida.
5. O caminho da morte. 1 Eis agora o caminho da morte. Antes de tudo ele é mau e 198
cheio de maldições: assassinatos, adultérios, maus desejos, relações sexuais ilegítimas,
roubos, idolatrias, práticas de magia, bruxarias, rapinas, falsos testemunhos, hipocrisias,
duplicidade, fraude, orgulho, malícia, arrogância, avareza, linguagem obscena, ciúme,
insolência, fausto, jactância (e temeridade); 2 perseguidores dos homens de bem, ini-
migos da verdade, amantes da mentira, ignorantes da recompensa da justiça, desligados
do bem e do julgamento justo, despertos não para o bem mas para o mal, afastados da
doçura e da paciência, amantes da vaidade, cobiçosos de recompensa, sem piedade com
o pobre, despreocupados com o aflito, cegos para com o seu próprio Criador, assassi-
nos de crianças, destruidores da obra de Deus 12, desprezadores do indigente, opresso-
res do aflito, defensores dos ricos, juízes iníquos dos pobres, pecadores sem fé nem
lei. – Meu filho, mantém-te afastado de tudo isso.
6. Fim dos dois caminhos e transição. 1 Tem cuidado para que ninguém te afaste 199
deste caminho da instrução, propondo-te um ensinamento estranho a Deus. 2 Se, na
realidade, puderes levar todo o jugo do Senhor, serás perfeito; se não puderes, faz o
que te for possível. 3 Quanto aos alimentos, toma para ti o que puderes suportar, mas
abstém-te completamente das carnes oferecidas aos ídolos: é um culto de deuses mortos.
7. Questões litúrgicas: o baptismo. 1 Quanto ao baptismo baptizai assim: depois 200
de ter ensinado tudo o que precede 13, baptizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo, em água corrente. 2 Porém, se não tiveres14 água corrente, baptiza noutra água
e, se não tiveres água fria, em água quente15. 3 Na falta de quantidade suficiente de uma
e de outra16, derrama água três vezes sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo17. 4 Antes do baptismo, observem um jejum18: aquele que baptiza19, o que é
baptizado e outros que puderem20. Deves impor ao baptizado um jejum prévio de um
ou dois dias 21.

11
Comparar todo este capítulo II com Ex 20, 13-17; Dt 5, 17-21.
12
Os destruidores da obra de Deus poderão ser os que provocam o aborto.
13
A expressão tudo o que precede refere-se ao ensinamento sobre Os dois caminhos, que é o primeiro
catecismo do catecumenado cristão.
14
A substituição do vós pelo tu talvez indique que estes últimos versículos foram interpolados poste-
riormente. Só o v. 1 seria primitivo; os outros (vv. 2-4) teriam sido acrescentados para maior precisão.
15
Há três possibilidades quanto à água a utilizar: água corrente fria, quer ao ar livre quer dentro de casa;
água corrente aquecida, naturalmente dentro de casa; aspersão com água (v. 3).
16
Há quem escreva apenas: Na falta de uma e de outra. Mas neste caso não teríamos água. Por isso traduzi-
mos, como o fazem algumas versões, Na falta de quantidade suficiente de uma e de outra; isto é, se não há
água em quantidade suficiente, pode fazer-se uma aspersão.
17
Note-se que neste texto da Didaqué não se fala de nenhuma unção, nem pré nem pós-baptismal. Mas a versão
copta traz uma oração sobre o myron.
18
Jejum pré-baptismal, cujo sentido não é fácil de determinar.
19
Não se fala do bispo nem do presbítero, mas apenas daquele que baptiza. Porém não devemos esquecer-
-nos de que as Cartas de Santo Inácio de Antioquia, que serão da mesma época, afirmam que o bispo tem
a responsabilidade do baptismo. Nesse caso, o tu do deves impor referir-se-ia àquele a quem o bispo teria
dado delegação para fazer o baptismo.
20
Quem seriam estas pessoas às quais o texto se refere? Os padrinhos e madrinhas? Não é certo.
21
Parece que a Didaqué se refere apenas ao domingo ordinário como dia de baptismo, e não ainda ao Domingo
de Páscoa, pois neste caso não teriam sentido as palavras e outros que puderem, dado que o sábado pascal
se tornou o dia de jejum universal para os cristãos.
96 SÉCULO I

201 8. O jejum e a oração. 1 Os vossos jejuns22 não devem ter lugar ao mesmo tempo
que os dos hipócritas23; com efeito, eles jejuam no segundo e no quinto dia da semana24;
vós, porém, jejuai na quarta-feira e no dia da preparação25. 2 Também não deveis rezar
como fazem os hipócritas26, mas como o Senhor o mandou no seu Evangelho27; orai
assim28: Pai nosso, que estás no Céu, santificado seja o teu nome, venha o teu reino,
seja feita a tua vontade assim na terra como no Céu. Dá-nos hoje o nosso pão de cada
dia, perdoa-nos a nossa ofensa assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido,
e não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal29. Porque a Ti pertencem o
poder e a glória pelos séculos30. 3 Orai assim três vezes ao dia31.
202 9. A ceia eucarística. 1 Quanto à eucaristia32, dai graças deste modo33: 2 Primeiro
sobre o cálice: «Nós Te damos graças, nosso Pai, pela santa vinha de David, teu servo,
que nos deste a conhecer pelo teu servo Jesus. Glória a Ti pelos séculos».
3 Depois sobre o pão partido: «Nós Te damos graças, nosso Pai, pela vida e pela
ciência que nos revelaste por Jesus, teu servo. Glória a Ti pelos séculos.

22
O jejum cristão aparece muitas vezes unido à oração: jejuai e orai. Trata-se de uma prática ascética em
que se luta contra as tentações presentes ou futuras. O jejum chama-se statio, termo da linguagem militar
que, utilizado pelos cristãos, significa fazer a guarda pelo Senhor jejuando, rezando e estando de vela.
Esta foi a sua significação primitiva. Posteriormente este sentido evoluiu. No século II, O Pastor de
Hermas diz: «Jejua para Deus da seguinte maneira: não faças nada de mal na tua vida e serve o Senhor em
pureza de coração, observa os mandamentos, tem confiança no Senhor, preocupa-te com o escravo. Se
fizeres bem para lá dos mandamentos, adquirirás uma grande glória. No dia em que jejuares não tomes
nada mais do que pão e água, calcula o valor dos alimentos que poderias ter comido e coloca-o de lado
para o dares a uma viúva, a um órfão ou a um pobre, que rezarão por ti» (HERMAS , O Pastor, Similitude
V). O jejum corresponderia à acção de arrancar as ervas más da vinha.
23
Os hipócritas são aqui, certamente, os fariseus.
24
Esta prática de jejum remonta muito longe no judaísmo.
25
A Didaqué é o primeiro documento que menciona a quarta e a sexta-feira (dia da preparação) como os
dois dias de jejum semanal dos cristãos. Porque terão eles escolhido esses dias? A escolha da sexta-feira
justifica-se por ser esse o dia da crucifixão e morte de Cristo; a escolha de quarta-feira talvez esteja
relacionada com um texto da Didascália Siríaca (séc. III), segundo o qual Jesus teria sido preso na quarta
e não na quinta-feira, como dizem os Evangelhos.
26
Fala-se de novo dos hipócritas, para dizer que os cristãos não devem rezar como eles. A oração das
dezoito bênçãos, feita três vezes ao dia, aparece aqui em oposição ao Pai-Nosso, que se torna a oração
cristã (cf. Lc 11, 1). A atitude dos cristãos ao separarem-se da oração judaica provocou uma reacção por
parte dos Judeus: estes, a partir do ano 70, incluíram na sua oração das dezoito bênçãos uma maldição
contra os cristãos, os hipócritas que se separaram da religião oficial.
27
A expressão seu Evangelho deve referir-se a Mateus.
28
O Pai-Nosso da Didaqué segue o texto de Mateus, com pequenas diferenças: no Céu em vez de nos Céus;
a nossa ofensa em vez de as nossas ofensas. O pão de cada dia é, para todos os Padres da Igreja excepto
São João Crisóstomo, em primeiro lugar o pão espiritual (=a Palavra de vida) e a Eucaristia, e só em segundo
lugar o pão comum das nossas mesas.
29
Mt 6, 9-13; Lc 11, 2-4.
30
A doxologia final aparece aqui pela primeira vez.
31
O v. 3 parece ser uma tradição judaica: cf. Dan 6, 10. 13. As dezoito bênçãos também eram rezadas três vezes
ao dia: a primeira vez entre o nascer do sol e o meio-dia; a segunda antes da noite, de preferência às quinze
horas; a terceira não se sabe exactamente. Vê-se que os cristãos retomaram esta tradição judaica: Act 2, 15;
10, 9; 3, 1.
32
Os capítulos IX e X da Didaqué conservaram-nos orações recitadas à mesa por ocasião de uma refeição
comunitária. O problema principal destes dois capítulos está em saber se se trata de orações utilizadas para
a Eucaristia propriamente dita, ou simplesmente de orações pronunciadas à mesa por ocasião de uma refei-
ção ordinária da comunidade. A verdade é que em parte nenhuma aparecem as palavras da instituição da
Eucaristia. Quererá isso dizer que o formulário da Didaqué não é completo? Significará que nos é revelado
aqui um tipo particular de Eucaristia? Indicar-se-nos-á antes que não se trata da Eucaristia propriamente
dita? Até hoje foram dadas a estas interrogações todas as respostas possíveis, sem se resolver o enigma de
maneira concludente. Será que algum dia se chegará a isso?
33
O termo cristão eucaristia tem certamente a sua origem nas tradições judaicas. Mais tarde os cristãos dar-
-lhe-ão um sentido preciso de acção de graças por excelência. Mas não parece que seja esse o caso aqui.
DIDAQUÉ OU DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS 97

4 Assim como este pão partido estava disperso pelos montes, e, depois de colhido
se tornou um só, assim se reúna a tua Igreja dos confins da terra no teu reino. Pois tua
é a glória e o poder por Jesus Cristo, pelos séculos». 5 Ninguém coma ou beba da vossa
eucaristia a não ser os baptizados em nome do Senhor, pois foi a propósito disso que o
Senhor disse: Não deis as coisas santas aos cães 34.
10. Acção de graças depois da ceia35. 1 Depois de saciados, dai graças deste modo: 203
2 «Nós Te damos graças, Pai santo, pelo teu santo nome, que fizeste habitar em nossos
corações, e pelo conhecimento, fé e imortalidade, que nos revelaste por Jesus, teu
servo. Glória a Ti pelos séculos36.
3 Foste Tu, Senhor omnipotente, que criaste o universo para glória do teu nome,
e que deste aos homens comida e bebida a fim de que, apreciando estes bens, Te dessem
graças; mas a nós concedeste-nos um alimento e uma bebida espirituais e a vida eterna por
meio do teu servo Jesus 37. 4 Acima de tudo, nós Te damos graças porque és poderoso.
Glória a Ti pelos séculos38.
5 Lembra-Te, Senhor, da tua Igreja, livra-a de todo o mal e torna-a perfeita no teu
amor. Reúne-a dos quatro ventos, santificando-a no teu reino, que para ela preparaste.
Porque teu é o poder e a glória pelos séculos39.
6 Venha a graça e passe este mundo. Hossana ao Deus de David. Se alguém é
santo, aproxime-se40; quem o não é, faça penitência. Maranatha41. Amen42.
7 Deixai os profetas dar graças quanto quiserem 43.
11. Questões disciplinares: instrução sobre a hospitalidade. 1 Se alguém vier até 204
vós para vos ensinar tudo o que foi dito anteriormente, recebei-o; 2 mas, se até o
doutor se puser a ensinar uma outra doutrina, com o fim de destruir, não o escuteis; se,
ao contrário, ensinar para fazer crescer a justiça e o conhecimento do Senhor, recebei-
-o como ao Senhor.

34
Mt 7, 6.
35
Há quem sustente que o capítulo X seria o núcleo primitivo do que mais tarde veio a ser o Prefácio da
Oração Eucarística.
36
A segunda bênção judaica depois da mesa dirigia-se ao Deus de Israel, que tinha feito sair o seu povo do
Egipto e lhe tinha dado um belo país, a Aliança e a Lei. No v. 2 encontramos a ideia que era desenvolvida
nessa segunda bênção judaica, mas agora com um conteúdo inteiramente cristão: Pai santo em vez de Deus
de Israel; a expressão pelo teu santo nome que fizeste habitar em nossos corações refere-se ao baptismo
cristão; o conhecimento, a fé e a imortalidade que nos revelaste por Jesus referem-se ao Evangelho anun-
ciado por Jesus.
37
A primeira bênção judaica depois da mesa louvava Deus Criador, que alimenta todas as criaturas, em par-
ticular os homens, seus filhos. Neste v. 3, a Didaqué inspira-se nitidamente dessa bênção, dando ao alimen-
to e à bebida um outro sentido simbólico escondido aos Judeus.
38
A quarta bênção judaica depois da mesa era a mais longa. Dirigia-se a Deus bom e amigo dos homens.
Didaqué 10, 4 é um reflexo dessa bênção, não obstante o acima de tudo ser muito geral.
39
Na terceira bênção judaica depois da mesa pedia-se a Deus que tivesse piedade de Jerusalém e que livrasse
o povo, dos seus inimigos. Temos aqui, no v. 5, um paralelo muito estreito dessa bênção judaica, mas agora
tornado oração pela Igreja, reunida dos quatro ventos. Didaqué 9, 4 seria um duplicado de 10, 5.
40
Há quem pense que o v. 6 é como que uma preparação que precederia a comunhão. A mesma fraseologia que
anuncia a chegada eminente do Senhor, assim como o acolhimento dos que são dignos e o afastamento dos
que o não são, encontramo-la já em 1 Cor 16, 20-23 e na maior parte das liturgias eucarísticas posteriores.
Segundo alguns, os capítulos IX e X descrevem um ágape, ao qual se seguiria a Eucaristia.
41
Vem, Senhor Jesus; cf. 1 Cor 16, 22; Ap 22, 20.
42
Parece evidente que os capítulos IX e X da Didaqué são influenciados pela tradição judaica das bênçãos
pronunciadas à mesa. Todos os elementos essenciais da bênção judaica se encontram nas orações cristãs,
ainda que sob outra forma, muitas vezes cristianizada e numa ordem um pouco diferente. Constatamos assim
até que ponto o judaísmo foi o berço da liturgia cristã.
43
Esta frase quererá dizer que as bênçãos precedentes não são mais do que simples esquemas, tal como acon-
tecia em toda a oração judaica.
98 SÉCULO I

Seguir a regra do Evangelho. 3 A respeito dos apóstolos e dos profetas, segun-


do o preceito do Evangelho, agi desta maneira: 4 Todo o apóstolo que venha até vós
seja recebido como o Senhor. 5 Mas não deverá ficar mais que um dia e, se for neces-
sário, o dia seguinte; se ficar três dias, é um falso profeta. 6 Ao partir, o apóstolo não
deve receber nada, a não ser o seu pão para o caminho; se pedir dinheiro, é um falso
profeta.
Critérios para distinguir os verdadeiros dos falsos profetas. 7 Por outro lado,
não devereis pôr à prova nem julgar nenhum profeta que fale sob inspiração do Espí-
rito, porque todo o pecado será perdoado, mas este pecado não o será. 8 Porém, nem
todo o que fala sob inspiração do Espírito é profeta, mas só aquele que tem o modo de
viver do Senhor. Portanto, é pelo modo de viver que se distinguem o falso do verdadei-
ro profeta. 9 Além disso, todo o profeta que, sob inspiração do Espírito, manda
preparar a mesa, deve abster-se de comer dela; de contrário, é um falso profeta. 10 Todo o
profeta que ensina a verdade sem pôr em prática o que ensina, é um falso profeta. 11 Ao
contrário, todo o profeta provado e reconhecido como verdadeiro, que age tendo em
vista o mistério da Igreja no mundo, sem pedir que façamos tudo como ele próprio faz,
não será julgado por vós, pois é diante de Deus que ele será julgado. Assim fizeram
também os próprios antigos Profetas. 12 Mas, se alguém vos disser, sob inspiração do
Espírito: dá-me dinheiro ou outra coisa qualquer, não o escuteis. Porém, se ele vos
pedir para os outros em necessidade, ninguém o julgue.
205 12. A hospitalidade cristã. 1 Todo aquele que vem até vós em nome do Senhor, seja
acolhido. Em seguida, depois o terdes sondado, sabereis discernir bem a direita da
esquerda: tendes o vosso julgamento. 2 Se o hóspede for um viajante que passa, ajudai-
-o o melhor que puderdes; mas não permaneça convosco mais do que dois ou três dias,
se for necessário. 3 Se for sua intenção estabelecer-se entre vós e tiver uma profissão,
trabalhe para comer. 4 Se não tiver profissão, estudai o seu caso segundo o vosso
julgamento, de modo que não deixeis um cristão viver entre vós na ociosidade. 5 Se ele
não quiser agir deste modo, é um traficante de Cristo: guardai-vos dessa gente.
206 13. O salário dos profetas e dos doutores. 1 Mas todo o verdadeiro profeta que
deseje estabelecer-se entre vós merece o seu sustento. 2 De igual modo, o verdadeiro
doutor, também ele, como o operário, é digno do seu sustento. 3 Tomarás, portanto, as
primícias de todos os produtos do lagar e da eira, dos bois e das ovelhas, para as dares
aos profetas: eles são os vossos sumos sacerdotes. 4 No caso de não terdes profeta,
dai-as aos pobres. 5 Se preparas uma fornada de pão, toma as primícias e dá-as segun-
do o mandamento. 6 Do mesmo modo, se abres uma bilha de vinho ou de azeite, toma as
primícias e dá-as aos profetas. 7 Do teu dinheiro, das tuas vestes, e de todos os teus
bens, toma as primícias, conforme a tua apreciação, e dá-as segundo o mandamento.
207 14. A vida da comunidade: a reunião dominical. 1 No dia do Senhor44 reuni-vos
para a fracção do pão e a acção de graças45, depois de terdes confessado os vossos
pecados, para que o vosso sacrifício seja puro46. 2 Quem tiver alguma desavença com o

44
A expressão original é: Dia senhorial do Senhor.
45
Na Igreja antiga, ao que parece, no domingo celebrava-se a refeição eucarística e durante a semana os
ágapes fraternos sem Eucaristia. Em Act 6, 5 s. já se fala de refeições quotidianas. Estes ágapes perdu-
raram muito tempo, não só por razões de ajuda fraterna, mas também para os cristãos terem a oportuni-
dade de falar livremente das coisas espirituais. Mas pouco a pouco desapareceram. A comida que primi-
tivamente acompanhava a Ceia eucarística foi igualmente suprimida ao que parece antes mesmo dos
ágapes. Por que razão? Parece que tais refeições tomavam por vezes um carácter de excesso muito pouco
cristão. A Eucaristia, tornando-se doravante a simples partilha do pão e do vinho eucarísticos, incorpo-
rou-se no culto de orações e de pregação e eventualmente de baptismo na manhã de domingo.
DIDAQUÉ OU DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS 99

seu irmão, não se reúna convosco antes de se reconciliar, para que não seja profanado o
vosso sacrifício. 3. Este é o sacrifício de que falou o Senhor ao dizer: Em todos os
lugares e em todo o tempo é oferecido ao meu nome um sacrifício de incenso e uma
oferenda pura. Na verdade, o meu nome é grande entre as nações, diz o Senhor do
universo. Eu sou um grande Rei47.
15. A escolha e eleição dos bispos e diáconos. 1 Escolhei para vós bispos e diáco- 208
nos dignos do Senhor, homens dóceis, desprendidos, verídicos e firmes, pois eles tam-
bém exercem, junto de vós, o ministério dos profetas e dos doutores. 2 Não os desprezeis:
eles contam-se entre os vossos notáveis, com os profetas e os doutores.
A correcção fraterna. 3 Repreendei-vos uns aos outros, não com sentimentos de
cólera, mas na paz, como está no Evangelho 48; deste modo, ninguém fale a quem tiver
cometido uma ofensa para com o seu próximo, nem escute uma única palavra da sua
parte até que tenha feito penitência. 4 Quanto às vossas orações, esmolas e todas as
vossas acções, procedei como está no Evangelho do vosso Senhor.
16. A expectativa escatológica: reunir-se com frequência. 1 Velai pela vossa vida; 209
não deixeis apagar as vossas lâmpadas nem desatar a cintura dos vossos rins, mas estai
preparados, pois não sabeis a que horas o Senhor vai chegar. 2 Reuni-vos com frequên-
cia, para buscar o que interessa às vossas almas, pois de nada vos servirá todo o tempo
da vossa fé, se no último momento não vos tiverdes tornado perfeitos. 3 Com efeito,
nos últimos dias multiplicar-se-ão os falsos profetas e os corruptores, as ovelhas hão-
-de transformar-se em lobos e o amor mudar-se-á em ódio.
As dificuldades dos últimos tempos e a vinda do Senhor sobre as nuvens do
céu. 4 Com os progressos da iniquidade, os homens odiar-se-ão, hão-de perseguir-se e
trair-se uns aos outros, e então aparecerá o sedutor do mundo, como se fosse filho de
Deus. Fará sinais e prodígios de tal modo que a terra se entregará nas suas mãos, e ele
cometerá tais crimes como nunca se viu desde o princípio do mundo. 5 Então toda a
criatura humana entrará no fogo da provação: muitos hão-de escandalizar-se e perecer,
mas aqueles que perseverarem na sua fé serão salvos do próprio túmulo. 6 Aparecerão
nesse momento os sinais da verdade: primeiro, o sinal da abertura no Céu; depois, o
sinal do som da trombeta; e, em terceiro lugar, o sinal da ressurreição dos mortos: 7
não, porém, de todos, mas segundo o que foi dito: O Senhor virá e todos os santos com
Ele 49. 8 Então o mundo verá o Senhor chegar sobre as nuvens do céu...

46
Na Didaqué, o dia do Senhor é o dia da Eucaristia. E também já o era nos tempos apostólicos cf. Act 20,
7. O inciso para a fracção do pão deixa entrever o costume já estabelecido de os cristãos se reunirem no
domingo, provavelmente à noite, para tomar a Eucaristia. Foi sem dúvida a ressurreição do Senhor no dia
de Páscoa, e sobretudo as aparições de que falam os Evangelhos, que levaram as comunidades cristãs a
adoptar a tradição dominical. Isso deduz-se também do nome novo pelo qual os cristãos designavam o
domingo e que aparece pela primeira vez em Ap 1, 10 e encontramos na Didaqué. Não se trata do dia de
Páscoa, mas sim do domingo semanal. O adjectivo Kuriako/ j já não se refere, no caso dos cristãos, a
César, mas a Jesus. Esse adjectivo só se encontra uma vez no Novo Testamento: 1 Cor 11, 20, onde é
questão da Ceia do Senhor. A Ceia é pois, no início da Igreja, o coração e a alma do domingo cristão. Ela
exprime a comunhão dos discípulos com o Senhor ressuscitado e renova esta comunhão, semana após
semana, na comunidade reunida num mesmo lugar. Por isso, nada a pode substituir. Os primeiros cristãos
sabiam muito bem que não podiam viver sem a Eucaristia semanal, fonte indispensável e inesgotável da
vida espiritual. Possuímos testemunhos comoventes das perseguições do século III, que mostram como
o pão da vida era mais precioso aos olhos dos cristãos do que os seus bens materiais e as suas próprias
vidas. Tertuliano diz-nos que certos cristãos procuravam mesmo, através de grandes somas de dinheiro,
corromper os representantes do Império para que o culto pudesse ser celebrado livremente (T ERTULIANO ,
De fuga, 14).
47
Mal 1, 11. 14.
48
Aqui a palavra Evangelho poderia referir-se a alguma compilação de palavras de Jesus e não ainda aos
nossos Evangelhos canónicos, o que faz pensar na fonte Q dos Evangelhos de que falam os exegetas.
49
Judas 14.
100 SÉCULO I

Inscrições cristãs 1

210 1. Na cripta dos Apóstolos, ad Catacumbas, foram descobertas duzentas e cin-


quenta inscrições, semelhantes a estas:
211 1.1 Paulo e Pedro, rogai por Vítor.
1.2 Paulo, Pedro, lembrai-vos de Sozómenos.
1.3 Por Pedro e Paulo, eu, Tomius Coelius, fiz este refrigerium.
1.4 Paulo e Pedro, rogai por Nativus, na eternidade.
1.5 Paulo e Pedro, rogai pelos meus pais.
1.6 Paulo e Pedro, rogai por Eratus.
1.7 Partenius em Deus, e todos nós em Deus2.

2. O fundo de uma taça, conservada no museu de Florença, representa dois esposos,


Fidélis e Festa, coroados por Cristo. O medalhão é rodeado por seis colunas, em cada
uma das quais se lê:
Paulus, Petrus, Epolytus, Ciprianus, Systus, Laurentius3.

1
Inscriptiones latinae christianae veteres (=DACL 10, 1924; DIEHL, Roma 1857-1888, Berlim 19612).
2
Parthenius in Deo et nos in Deo omnes.
3
Gravura reproduzida em DACL 10, col. 1924. Trata-se de seis mártires venerados na cidade de Roma.
SÉCULO II

Inácio de Antioquia

Cartas 1

INÁCIO AOS EFÉSIOS

Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja que é bendita em grandeza na plenitu- 212
de de Deus Pai, predestinada antes dos séculos para permanecer, em todo o tempo,
através duma glória que não passa, solidamente unida e eleita na verdadeira paixão (de
Cristo), por vontade do Pai e de Jesus Cristo, nosso Deus, Igreja digna de ser chamada
feliz, que está em Éfeso da Ásia, saudações em Jesus Cristo numa alegria irrepreen-
sível.
1. 2 Quando soubestes que eu vinha da Síria, preso em cadeias pelo Nome e pela 213
esperança que nos são comuns, na expectativa de chegar a Roma para combater contra
as feras, graças às vossas orações, e ter a felicidade de me tornar discípulo, fostes vós
que vos apressastes em vir ver-me. 3 De facto, foi a toda a vossa comunidade que eu
recebi em nome de Deus, na pessoa de Onésimo, homem duma indizível caridade e
vosso bispo segundo a carne. Desejo que o ameis em Jesus Cristo e que sejais todos
semelhantes a ele. Bendito seja Aquele que vos deu esta graça, já que vos mostrastes
dignos de possuir um tal bispo.
2. 2 É vosso dever glorificar em tudo a Jesus Cristo, que vos glorificou a vós, para 214
que, unidos em perfeita obediência, sujeitos ao bispo e ao presbitério, em tudo sejais
santificados.
3. 1 Não vos dou ordens, como se fosse alguém. Embora prisioneiro pelo nome de 215
Cristo, ainda não cheguei à perfeição em Jesus Cristo. Só agora começo a ser seu
discípulo e falo-vos como a meus condiscípulos. Eu é que devia ser fortalecido pela
vossa fé, exortação, paciência, serenidade de espírito. 2 Mas a caridade não permite
calar-me a vosso respeito, e, por isso, me adianto a exortar-vos para que vivais unâni-
mes segundo o pensamento de Deus. Jesus Cristo, nossa vida inseparável, é o pensa-
mento do Pai, e os bispos, constituídos em toda a terra, estão no pensamento de Jesus
Cristo.
4. 1 Por isso, deveis estar de acordo com o pensamento do vosso bispo, como já 216
fazeis. O vosso memorável presbitério, digno de Deus, está em harmonia com o bispo
como as cordas de uma cítara. Esta vossa concórdia e harmonia na caridade é como um
hino a Jesus Cristo. 2 Procurai todos vós formar parte deste coro, de modo que, na
harmonia da vossa concórdia, recebendo a melodia de Deus na unidade, possais cantar

1
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Epistulae (=PG 5, 643-728; FUNK-DIEKAMP II; SCh 10bis; cf. LH, III, IV). Inácio foi o sucessor
de Pedro no governo da Igreja de Antioquia. Condenado às feras, foi conduzido a Roma e aí, no tempo do imperador
Trajano, recebeu a gloriosa coroa do martírio, no ano 107. Durante a viagem escreveu sete cartas a várias Igrejas,
nas quais se refere, com profunda sabedoria e erudição, a Cristo, à organização da Igreja e aos princípios funda-
mentais da vida cristã. A sua memória era celebrada no dia 17 de Outubro, já no século IV, em Antioquia.
102 SÉCULO II

em uníssono por Jesus Cristo ao Pai, a fim de que vos escute e vos reconheça, pelas
vossas boas obras, como membros do seu Filho. Vale bem a pena viver em unidade
irrepreensível, para poder participar sempre da vida de Deus.
217 5. 1 Se em tão breve espaço de tempo contraí com o vosso bispo tão íntima familia-
ridade, não humana mas espiritual, quanto mais ditosos vos devo considerar a vós que
estais tão profundamente ligados a ele, como a Igreja a Jesus Cristo e Jesus Cristo ao
Pai, na harmonia da perfeita unidade! 2 Ninguém se engane: quem não está no recinto
do altar, fica privado do pão de Deus2. Se a oração de um ou dois tem tanta força,
quanto mais não terá a do bispo e de toda a Igreja? 3 Aquele que não vem à reunião
comum, mostra-se orgulhoso e julga-se a si próprio, como está escrito: Deus resiste aos
soberbos3. Por isso, esforcemo-nos por não resistir ao bispo, para estarmos submetidos
a Deus.
218 6. 1 Quanto mais virmos o bispo guardar silêncio, mais devemos respeitá-lo, pois
àquele que o dono da casa enviou para a administrar, devemos recebê-lo como recebe-
ríamos quem o enviou. Torna-se, pois, evidente que devemos olhar para o bispo, como
para o próprio Senhor.
219 7. 2 Há um só médico, do corpo e do espírito, gerado e não criado, que apareceu na
carne como Deus, na morte vida verdadeira, nascido de Maria e de Deus, primeiro
capaz de sofrer e agora impassível, Jesus Cristo, Senhor nosso4... Em Cristo realizou-se
o pleno cumprimento da nossa reconciliação, e foi-nos dada a plenitude do culto divi-
no...
220 10. 1 Orai sem cessar 5 por todos os outros homens, para que cheguem a Deus, pois
existe neles esperança de conversão. Permiti-lhes, ao menos pelas vossas obras, que se
tornem vossos discípulos. 2 Diante das suas explosões de cólera sede mansos; diante
da sua presunção sede humildes; diante das suas blasfémias fazei orações; diante dos
seus erros permanecei firmes na fé6; diante da sua selvajaria sede pacíficos, sem pro-
curar imitá-los. 3 Sejamos seus irmãos pela bondade e procuremos ser imitadores do
Senhor: quem mais do que Ele sofreu a injustiça, quem foi mais despojado, quem foi
mais rejeitado? Não seja encontrada entre vós planta alguma do Diabo, mas permane-
cei em Jesus Cristo, corporal e espiritualmente, em toda a pureza e temperança7.
221 13. 1 Procurai reunir-vos com mais frequência para celebrar a acção de graças8 e o
louvor9 de Deus. Quando vos reunis com frequência abatem-se as forças de Satanás, e
o seu poder destruidor é aniquilado pela concórdia da vossa fé. 2 Nada há mais
precioso do que a paz, que desarma todo o inimigo celeste ou terrestre.
222 14. 1 Nada disto vos ficará escondido, se mantiverdes de modo perfeito em Jesus
Cristo a fé e a caridade, que são o princípio e o fim da vida: a fé é o princípio e a
caridade é o fim. Ambas unidas são o próprio Deus; delas derivam todas as outras
virtudes que conduzem à perfeição. 2 Quem professa a fé não peca; e quem possui a
caridade, não odeia ninguém. Pelo fruto se conhece a árvore10: do mesmo modo, os que
professam ser de Cristo, reconhecem-se pelas suas obras. O que interessa agora, não é
apenas fazer profissão de fé, mas perseverar na prática da fé até ao fim.

2
Jo 6, 33.
3
Prov 3, 34; Tg 4, 6; 1 Ped 5, 5.
4
Hino cristológico.
5
1 Tes 5, 17.
6
Col 1, 23.
7
Parece ser um hino cristológico.
8
eu) x aristi/ a n .
9
do/can.
10
Mt 12, 33.
INÁCIO DE ANTIOQUIA 103

15. 1 Melhor é calar-se e ser, do que falar e não ser. É bom ensinar, desde que se 223
pratique o que se ensina. Um só é o Mestre que disse e foi feito11; mas também é digno
do Pai o que Ele fez em silêncio. 2 O que possui a palavra de Jesus é capaz de perceber
também o seu silêncio e chegar à perfeição, agindo segundo a sua palavra e fazendo-se
reconhecer pelo seu silêncio. Nada se pode ocultar ao Senhor, e até os mais íntimos
segredos estão na sua presença. 3 Façamos pois tudo com a consciência de que Ele
habita em nós, para que sejamos realmente seus templos e Ele seja o nosso Deus em
nós. Assim é, de facto, e assim há-de manifestar-Se aos nossos olhos, se O amarmos
perfeitamente.
16. 1 Não vos iludais, meus irmãos. Os que perturbam as famílias não herdarão o 224
reino de Deus12. 2 Se aqueles que o fazem segundo a carne são réus de morte, quanto
mais não deverão ser punidos aqueles que pelo seu ensino perverso corrompem a fé
que vem de Deus, pela qual Cristo foi crucificado? Tais homens, manchados por esse
delito, seguirão para o fogo inextinguível, juntamente com aqueles que lhes dão ouvidos.
17. 1 Se o Senhor recebeu a unção na cabeça, foi para infundir na Igreja a 225
incorruptibilidade. Não vos deixeis ungir com o repugnante odor do ensino do príncipe
deste mundo, para que ele não vos conduza à escravidão, para longe da vida que vos é
proposta. 2 Porque não nos tornamos todos prudentes, aceitando o conhecimento de
Deus, que é Jesus Cristo? Porque havemos de nos perder insensatamente, desconhe-
cendo o dom que o Senhor verdadeiramente nos enviou?
18. 1 O meu espírito é vítima destinada à cruz, que é escândalo para os incrédulos, 226
mas para nós é salvação e vida eterna. Onde está o sábio? Onde está o letrado13? Onde
está a vaidade daqueles a quem chamamos sábios? O nosso Deus, Jesus Cristo, foi
trazido no seio de Maria, segundo o plano de Deus, (nascido) da descendência de
David14 e do Espírito Santo. Nasceu e foi baptizado para purificar a água pela sua
Paixão.
20. 2 Reuni-vos todos, em particular e em comum, na graça e na única fé em Jesus 227
Cristo, descendente de David segundo a carne15, filho do homem e filho de Deus, para
obedecerdes em harmonia de sentimentos ao bispo e ao presbitério, partindo o mesmo
pão, que é remédio de imortalidade, antídoto para não morrermos, mas nos faz viver,
em Jesus Cristo, para sempre.
21. 1 Estou prestes a dar a minha vida por vós e pelos que, para honra de Deus, 228
enviastes a Esmirna, donde vos escrevo, em sinal de gratidão ao Senhor e como prova
de amor a Policarpo e a vós também. Lembrai-vos de mim, como Jesus Cristo Se lem-
bra de vós. 2 Orai pela Igreja que está na Síria, donde sou levado preso para Roma.
Sendo o último dos fiéis de lá, fui julgado digno de servir a honra de Deus. Saudações
em Deus Pai e em Jesus Cristo, nossa esperança comum.

INÁCIO AOS MAGNÉSIOS

Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja de Magnésia do Meandro, abençoada 229


pela graça de Deus Pai, em Jesus Cristo, nosso Salvador, no qual a saúdo com votos de
muita felicidade, em Deus Pai e em Jesus Cristo.
1. 1 Ao saber que a vossa caridade está muito bem orientada, segundo Deus, senti 230
uma grande alegria e resolvi dirigir-vos a palavra na fé de Jesus Cristo. 2 Honrado com

11
Sal 32, 9; 148, 5.
12
1 Cor 6, 9-10.
13
1 Cor 1, 20.
14
Jo 7, 42.
15
Rom 1, 3.
104 SÉCULO II

um nome de esplendor divino, por causa das cadeias que levo comigo por toda a parte,
canto um hino de louvor às Igrejas, a quem desejo a perfeita união com a Carne e o
Espírito de Jesus Cristo, nossa eterna vida, a união na fé e na caridade que se deve
procurar acima de tudo, e principalmente a união com Jesus e com o Pai, no qual
enfrentamos e vencemos todos os ataques do príncipe deste mundo e alcançaremos a
Deus.
231 2. 1 Tive a honra de vos ver na pessoa do vosso bispo Damas, homem verdadeira-
mente digno de Deus, dos santos presbíteros Basso e Apolónio, e do diácono Sozião,
meu companheiro no serviço do Senhor. Possa eu continuar a gozar da companhia de
Sozião, porque está sujeito ao seu bispo, como à graça de Deus, e ao colégio presbite-
ral, como à lei de Jesus Cristo.
232 3. 1 Entretanto, não deveis abusar da pouca idade do vosso bispo; tratai-o com
toda a reverência, considerando a autoridade que lhe vem de Deus Pai. Sei que os
vossos santos presbíteros não abusam da sua juventude, que é manifesta, mas, como
pessoas sensatas em Deus, se lhe submetem, não a ele, mas ao Pai de Jesus Cristo, que
é o bispo de todos. 2 Em atenção Àquele que nos ama, devemos obedecer, sem sombra
de hipocrisia; porque, desobedecendo, não era a este bispo visível que tentaríamos
enganar, mas ao bispo invisível; quer dizer, neste caso, não se trata já de ir contra um
homem mortal, mas contra Deus que conhece o segredo de todas as coisas.
233 4. 1 É necessário, portanto, não apenas ter o nome de cristão, mas sê-lo deveras.
Alguns, de facto, mencionam continuamente o nome do bispo, mas fazem tudo sem
ele. Não me parece que estes procedam em boa consciência, porque as suas assembleias
não são legítimas, segundo o preceito do Senhor.
234 5. 1 Todas as coisas têm um fim e os dois termos que se nos apresentam são a vida
e a morte. Cada um irá para o seu lugar. 2 É como se houvesse duas moedas, uma de
Deus e outra do mundo. Cada uma delas tem gravado o seu próprio cunho. Os infiéis
têm a imagem do mundo; os que permanecem fiéis na caridade têm a imagem de Deus
Pai, por intermédio de Jesus Cristo. Se não estivermos dispostos a morrer para imitar-
mos a sua Paixão, também não teremos em nós a sua vida.
235 6. 1 Depois de ter visto e abraçado na fé a toda a comunidade, na pessoa dos vossos
delegados, exorto-vos a que procureis fazer tudo na concórdia de Deus, sob a presi-
dência do bispo que ocupa o lugar de Deus, dos presbíteros que representam o colégio
apostólico e dos diáconos que me são muito queridos, encarregados da diaconia de
Jesus Cristo, que estava junto do Pai antes dos séculos e Se manifestou no fim dos
tempos. 2 Se quereis imitar os sentimentos da bondade divina, respeitai-vos mutua-
mente e ninguém olhe para o seu próximo segundo os olhos da carne, mas amai-vos
sempre uns aos outros em Jesus Cristo. Nada haja entre vós que possa dividir-vos,
mas uni-vos ao bispo e aos que presidem, para serdes a imagem e a prova da vida
imortal no Céu.
236 7. 1 Assim como o Senhor, que é um só com o Pai, nada fez nem por Si mesmo nem
por meio dos Apóstolos sem o Pai, do mesmo modo nada deveis fazer sem o bispo e
sem os presbíteros: nem procureis apresentar como louvável o que fazeis separada-
mente, mas fazei tudo em comum: uma só oração, uma só prece, uma só alma, uma só
esperança na caridade e na santa alegria, porque um só é Cristo Jesus, ao qual nada se
pode preferir. 2 Acorrei todos como a um só templo de Deus, a um só altar, a um só
Jesus Cristo, que veio do Pai e voltou para o Pai, que é um só.
237 8. 1 Não vos deixeis seduzir por doutrinas estranhas, nem por velhas fábulas, que
não têm valor. Porque se ainda vivemos segundo a lei judaica, confessamos que não
recebemos a graça. 2 Já os divinos profetas viveram segundo a lei de Jesus Cristo; e por
causa disso foram perseguidos. Eles eram inspirados pela sua graça, para convencerem
os incrédulos de que há um só Deus, que havia de manifestar-Se por meio de seu Filho
INÁCIO DE ANTIOQUIA 105

Jesus Cristo, que é o seu Verbo, saído do silêncio, e que em tudo agradou Àquele que
O tinha enviado.
9. 1 Se os que viviam no antigo estado de coisas passaram a uma nova esperança, 238
deixando de observar o sábado e vivendo segundo o dia do Senhor, dia em que a nossa
vida despontou por meio d’Ele e da sua morte (mistério que alguns negam, mas do qual
recebemos a fé e no qual perseveramos para sermos reconhecidos como verdadeiros
discípulos de Cristo, nosso único Mestre), 2 como poderemos viver sem Ele, se
inclusive os profetas, que são seus discípulos no Espírito, O aguardavam como Mestre?
E porque era por eles justamente esperado, quando veio ressuscitou-os dos mortos.
10. 1 Não sejamos insensíveis à bondade de Cristo. Se Ele imitasse o nosso modo de 239
proceder, já teríamos perecido. Tornemo-nos, portanto, seus verdadeiros discípulos, apren-
dendo a viver segundo o cristianismo. Aquele que é chamado por outro nome que não
seja este, não é de Deus. 2 Afastai o mau fermento, velho e corrompido, e transformai-
-vos em fermento novo, que é Cristo Jesus. Seja Ele o sal da vossa vida, para que
nenhum de vós se corrompa, porque o cheiro vos denunciaria. 3 É absurdo professar a
fé em Cristo Jesus e seguir as práticas judaicas. Não foi o cristianismo que acreditou no
judaísmo, mas o judaísmo no cristianismo, no qual se congregam todos os que crêem em
Deus.
11. 1 Tudo isto vos escrevo, irmãos caríssimos, não por ter conhecimento de que haja 240
entre vós quem se comporte mal; mas embora me considere inferior a vós, quero ape-
nas prevenir-vos, para que não vos deixeis cair nos laços de uma doutrina vã; ao contrá-
rio, é necessário que tenhais a plena certeza do nascimento, da paixão e da ressurreição
do Senhor, que ocorreu no tempo do governo de Pôncio Pilatos. Tudo isto foi realizado
verdadeira e indubitavelmente em Jesus Cristo, nossa esperança, da qual não permita
Deus que algum de vós se afaste.
12. 1 Assim possa eu contar convosco em todas as circunstâncias, se disso for digno. 241
Digo isto porque, se é certo que estou preso, nem por isso posso comparar-me com
qualquer de vós que não estais presos. Sei que não vos envaideceis com este louvor,
porque tendes Jesus Cristo em vós. Mais ainda, quando vos louvo, sei que vos
envergonhais, como está escrito: O justo acusa-se a si mesmo 16.
13. 1 Procurai fortalecer-vos solidamente na doutrina do Senhor e dos Apóstolos, a 242
fim de que tudo quanto fizerdes seja bem sucedido17, na vida da carne e do espírito,
na fé e na caridade, no Pai e no Filho e no Espírito, no princípio e no fim, com o vosso
digníssimo bispo, com a esplêndida coroa espiritual do vosso presbitério e com os
diáconos, tão gratos a Deus. 2 Sede submissos ao vosso bispo e uns aos outros, como
Jesus Cristo, enquanto homem, Se submeteu ao Pai, e os Apóstolos a Cristo, ao Pai e
ao Espírito, para que a vossa unidade seja perfeita na carne e no espírito.
14. 1 Porque sei que estais cheios de Deus, não vos faço longas exortações. Lembrai- 243
-vos de mim nas vossas orações, para que chegue até Deus; e lembrai-vos também da
Igreja da Síria (à qual não sou digno de pertencer, e, por isso, preciso da vossa oração
e caridade, unidas em Deus), para que Deus Se digne, por meio da vossa Igreja, derra-
mar o seu orvalho sobre a Igreja da Síria.
15. 1 De Esmirna, donde vos escrevo esta carta, saúdam-vos os fiéis de Éfeso, que 244
estão aqui presentes para glória de Deus; como vós, em tudo me reconfortaram junta-
mente com Policarpo, bispo de Esmirna. Também as outras Igrejas vos saúdam para
louvor de Jesus Cristo. Permanecei unidos em Deus, possuindo o espírito indissolúvel,
que é Jesus Cristo.

16
Prov 18, 17.
17
Sal 1, 3.
106 SÉCULO II

INÁCIO AOS TRALIANOS

245 Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja santa de Trales na Ásia, Igreja amada
de Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, eleita e digna de Deus, que goza de paz,
tanto no corpo como no espírito, pela paixão de Jesus Cristo, que nos dá a esperança
de ressuscitarmos um dia com Ele: a vós dirijo a minha saudação apostólica, na pleni-
tude do espírito, desejando-vos as maiores prosperidades.
246 1. 1 Conheço a vossa rectidão de espírito e inalterável paciência, virtudes de que
destes provas não só ocasionalmente, mas que possuís já como um hábito natural;
disto me informou o vosso bispo Políbio, que veio a Esmirna, por vontade de Deus e
de Jesus Cristo; assim ele pôde participar comigo da alegria que me proporcionam as
cadeias que suporto por Jesus Cristo, e eu pude contemplar nele toda a vossa comuni-
dade. 2 Tendo recebido por meio dele a prova da vossa benevolência segundo Deus, dei
glória ao Senhor, ao verificar que sois seus imitadores, como tinha sido informado.
247 2. 1 Submetendo-vos ao vosso bispo como a Jesus Cristo, já não viveis segundo os
homens, mas segundo Jesus Cristo, que morreu por nós, a fim de que, acreditando na
sua morte, fiqueis livres da morte. 2 É necessário, portanto, que continueis a não fazer
nada fora da comunhão com o bispo. Submetei-vos também ao presbitério como aos
Apóstolos de Jesus Cristo, nossa esperança. Deste modo viveremos sempre em comu-
nhão com Ele. 3 É preciso que também os diáconos, que são ministros dos mistérios de
Jesus Cristo, agradem a todos em tudo. Eles não são administradores de comidas e
bebidas, mas ministros da Igreja de Deus. Por isso, devem fugir dos crimes como quem
foge do fogo.
248 3. 1 E todos respeitem os diáconos como a Jesus Cristo, honrem particularmente o
bispo como imagem do Pai e os presbíteros como senado de Deus e colégio dos
Apóstolos. Sem eles não pode haver Igreja. 2 Estou convencido de que pensais assim.
Na pessoa do vosso bispo recebi a imagem da vossa caridade: a sua maneira de ser é
uma admirável lição, e a sua mansidão é um poderoso estímulo. Penso que os próprios
ateus o respeitam. 3 Por amor vos poupo, embora vos pudesse escrever com mais
veemência a este respeito. Não me atrevi a dar-vos ordens, como se fora um Apóstolo,
pois me encontro na condição de condenado.
249 4. 1 Deus inspira-me grandes coisas, mas procuro moderar-me, para não me perder
na vanglória. Agora tenho mais motivos para temer e hei-de esforçar-me por não escu-
tar os que me elogiam. 2 O elogio é para mim um tormento. Anelo pelo martírio, mas
não sei se sou digno. A minha impaciência passa desapercebida a muitos, mas eu sinto
os seus ataques violentos. Preciso de mansidão, para vencer o príncipe deste mundo.
250 5. 1 Não poderia escrever-vos coisas do Céu? Tenho, porém, receio de vos fazer
mal, já que sois ainda crianças. Perdoai-me, se o não faço; não sendo capazes de
assimilar, poderíeis sufocar-vos. 2 Eu próprio, apesar de prisioneiro e capaz de conhe-
cer coisas celestes, mesmo as hierarquias dos Anjos e os exércitos dos principados,
coisas visíveis e invisíveis, nem por isso sou discípulo por enquanto. Falta-nos muito,
para que Deus não nos chegue a faltar.
251 6. 1 Peço-vos encarecidamente, não eu mas a caridade de Jesus Cristo, que só useis
do alimento cristão e que vos abstenhais da erva profana, que é a heresia. 2 Há quem
misture Jesus Cristo com os seus próprios erros, fazendo-se passar por dignos de fé,
como quem mistura um veneno mortal com vinho e mel, que aquele que não sabe toma
com gosto, mas gosto mau, pois é para a morte.
252 7. 1 Guardai-vos dessas pessoas. Assim fareis, se vos não deixardes dominar pelo
orgulho nem separar de Jesus Cristo, nosso Deus, do bispo e dos preceitos dos Após-
tolos. 2 Quem está no interior do santuário é puro; quem está fora do santuário não é
INÁCIO DE ANTIOQUIA 107

puro. Quer dizer: quem procede fora da comunhão com o bispo, o presbitério e os
diáconos, não pode estar em boa consciência.
8. 1 Não vos digo isto por pensar que haja tais coisas entre vós, mas porque vos 253
quero prevenir como a meus filhos caríssimos, prevendo as ciladas do Diabo. Revesti-
dos de mansidão, renovai-vos pela fé que é a carne do Senhor e pela caridade que é o
sangue de Jesus Cristo. 2 Nenhum de vós guarde ressentimento contra o seu próximo.
Não deis ocasião aos gentios, para que a comunidade reunida em Deus não seja calu-
niada por causa de alguns insensatos. Ai daquele por cuja leviandade é ultrajado o
meu nome18!
9. 1 Fechai os ouvidos quando vos falam de outra coisa que não seja Cristo, da 254
linhagem de David, filho de Maria, que verdadeiramente nasceu, comeu e bebeu, verda-
deiramente sofreu perseguição sob Pôncio Pilatos, foi verdadeiramente crucificado e
morto na presença do céu, da terra e dos abismos, 2 e verdadeiramente ressuscitou de
entre os mortos pelo poder do Pai, que também nos há-de ressuscitar a nós que acredi-
tamos n’Ele. Seremos ressuscitados em Cristo Jesus, sem o qual não podemos ter a
verdadeira vida.
11. 1 Fugi dos maus rebentos que produzem frutos venenosos: se alguém os prova, 255
morre fatalmente. Estes rebentos não são da plantação do Pai. 2 Se o fossem, aparece-
riam como ramos da Cruz e o seu fruto seria incorruptível. Por esta Cruz, Cristo vos
convida como a seus membros que sois, a tomar parte na sua Paixão. Com efeito, a
Cabeça não pode existir separada dos membros. O mesmo Deus prometeu tal união,
Ele que é unidade.
12. 1 Saúdo-vos de Esmirna, juntamente com as Igrejas de Deus que estão comigo e 256
que me têm proporcionado toda a espécie de consolações temporais e espirituais. 2 Ao
mesmo tempo que rezo para alcançar a Deus, as cadeias que suporto por amor de
Cristo vos fazem esta exortação: Permanecei na concórdia e na oração em comum. É
necessário que cada um de vós, e sobretudo os presbíteros, confortem o bispo, para
glória do Pai, de Jesus Cristo e dos Apóstolos. 3 Peço-vos que me escuteis com toda a
caridade, para que esta carta não se converta em testemunho contra vós. Rezai tam-
bém por mim, que preciso muito da vossa caridade e da misericórdia de Deus, para ser
digno de alcançar a herança que estou prestes a conseguir, e não ser julgado indigno
dela.
13. 1 Saúda-vos a caridade dos irmãos de Esmirna e de Éfeso. Tende sempre presen- 257
te nas vossas orações a Igreja da Síria, da qual não sou digno de me chamar membro,
porque sou o último de todos os fiéis. 2 Saúdo-vos, em Cristo, a vós que estais sujeitos
ao bispo, como à Lei de Deus; e não só ao bispo, mas também ao presbitério. Amai-vos
uns aos outros, todos e cada um, de coração unânime.
3 Ofereço por vós a minha vida, não só agora, mas também quando chegar à
presença de Deus. Ainda me encontro exposto ao perigo, mas estou confiante na
fidelidade do Pai, em Jesus Cristo. Ele escutará a minha e a vossa oração. Espero que
n’Ele vos encontreis sem mancha.

INÁCIO AOS ROMANOS

Inácio, chamado também Teóforo, à Igreja que alcançou misericórdia pela magni- 258
ficência do Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu Filho unigénito; à Igreja escolhida e
iluminada pela vontade d’Aquele que quis tudo o que existe, segundo a caridade de
Jesus Cristo, nosso Deus; à Igreja que tem a presidência na região dos Romanos, digna

18
Is 52, 5.
108 SÉCULO II

de Deus, digna de honra, digna de ser proclamada bem-aventurada, digna de louvor,


digna de ser ouvida; à Igreja dignamente pura, que preside à assembleia universal da
caridade, que guarda a lei de Cristo e é adornada com o nome do Pai: para ela as minhas
saudações em nome de Jesus Cristo, Filho do Pai. Àqueles que aderem de corpo e alma
a todos os seus preceitos, indefectivelmente cheios da graça de Deus e isentos de toda
a contaminação estranha, lhes desejo a mais perfeita e santa felicidade em Jesus Cristo,
nosso Deus.
259 1. 1 Por fim, depois de tanto pedir ao Senhor nas minhas orações, alcancei a graça
de contemplar o vosso rosto, digno de Deus; agora, prisioneiro por amor de Cristo
Jesus, espero poder saudar-vos, se a vontade de Deus me julgar digno de chegar até ao
fim. 2 Os começos são bons; queira Deus que obtenha a graça de receber, sem qualquer
impedimento, a parte da herança que me está reservada. Mas temo que a vossa caridade
me venha a prejudicar, porque a vós é fácil obter o que quiserdes, mas a mim ser-me-ia
difícil alcançar a Deus, se não tendes piedade de mim.
260 2. 1 Não quero que agradeis aos homens, mas a Deus, como já o fazeis. O que é
certo é que não encontrarei melhor oportunidade de chegar até Deus, nem vós podereis
inscrever o vosso nome nesta obra tão bela, senão permanecendo em silêncio. Se não
falardes em meu favor, eu tornar-me-ei palavra de Deus; mas se amais esta minha vida
segundo a carne, voltarei a ser apenas uma simples voz. 2 O melhor favor que podeis
fazer-me é deixar que seja imolado para glória de Deus, enquanto o altar ainda está
preparado; assim, unidos pela caridade num só coro, podereis cantar ao Pai em Cristo
Jesus, porque Deus concedeu ao bispo da Síria a graça de O alcançar, fazendo-o vir do
Oriente ao Ocidente. É bom que se ponha o sol da minha vida neste mundo, para que
volte a nascer na aurora de Deus.
261 3. 1 Nunca tivestes inveja de ninguém; e ensinastes os outros. Ora aquilo que ensinais
e ordenais aos outros, quero que conserve todo o seu vigor para mim. 2 O que deveis
pedir para mim é apenas que eu tenha fortaleza interior e exterior, para que seja firme
não só no falar mas também no querer, para que seja cristão não só de nome, mas de
facto. Se proceder como cristão, terei direito a esse nome; e, quando já não estiver
visivelmente neste mundo, então serei verdadeiramente fiel. 3 Nada é bom apenas pela
aparência. O próprio Jesus Cristo, nosso Deus, agora que voltou para o Pai, é que
melhor Se manifesta. Perante as perseguições do mundo, o cristianismo não se afirma
com palavras persuasivas, mas com grandeza de ânimo e fortaleza.
262 4. 1 Eu escrevo a todas as Igrejas e asseguro a todas elas que estou disposto a
morrer de bom grado por Deus, se vós não o impedirdes. Peço-vos que não manifesteis
por mim uma benevolência inoportuna. Deixai-me ser pasto das feras, pelas quais pode-
rei chegar à posse de Deus. Sou trigo de Deus e devo ser moído pelos dentes das feras
para me transformar em pão imaculado de Cristo.
2 Acariciai antes as feras, para que sejam o meu sepulcro e não deixem nada do
meu corpo, a fim de que no meu último sono eu não seja incómodo para ninguém.
Quando o mundo já não puder ver o meu corpo, então serei verdadeiro discípulo de
Cristo. Rezai por mim a Cristo, para que, por meio desses instrumentos, eu seja uma
vítima oferecida a Deus. 3 Não vos dou ordens como Pedro e Paulo. Eles eram Após-
tolos, eu sou um condenado; eles eram livres, eu, por enquanto, sou um escravo. Mas,
se padecer o martírio, então serei um liberto de Jesus Cristo e n’Ele ressuscitarei livre.
Agora, que estou preso, aprendo a nada mais ambicionar.
263 5. 1 Desde a Síria até Roma vou lutando já com as feras, por terra e por mar, de
noite e de dia, atado a dez leopardos, isto é, a um grupo de soldados. Quanto melhor os
trato, piores se tornam. Com os seus maus tratos vou-me aperfeiçoando, mas nem por
isso me dou por justificado19.
19
1 Cor 4, 4.
INÁCIO DE ANTIOQUIA 109

2 Oh, como desejo ter a felicidade de me encontrar diante das feras preparadas
para mim, e que depressa se lancem sobre mim! Eu as incitarei, para que imediatamente
me devorem, não suceda como noutras ocasiões em que, atemorizadas, não se atreve-
ram a tocar nas suas vítimas. Mas se recusarem atacar-me, eu mesmo as obrigarei.
Perdoai-me o que digo; eu sei bem o que é bom para mim. 3 É agora que eu começo a
ser discípulo. Nenhuma coisa, visível ou invisível, me impeça de ir ter com Jesus Cristo.
Venham sobre mim o fogo, a cruz, as manadas de feras, a dilaceração da carne, a
desarticulação dos membros, o desconjuntamento dos ossos, a trituração de todo o
corpo e os cruéis tormentos do Demónio; venha tudo isso sobre mim, contanto que me
sirvam para alcançar a Jesus Cristo.
6. 1 Para nada me serviriam os prazeres do mundo ou os reinos deste século. 264
Prefiro morrer em Cristo Jesus a reinar sobre todos os confins da terra. Procuro Aquele
que morreu por nós; quero Aquele que ressuscitou por causa de nós. Estou prestes a
nascer. 2 Tende piedade de mim, irmãos. Não me impeçais de viver, não queirais que eu
morra. Não me entregueis ao mundo, a mim que desejo ser de Deus, nem penseis
seduzir-me com coisas terrenas. Deixai-me alcançar a luz pura; quando lá tiver chega-
do, serei verdadeiramente um homem. 3 Deixai-me ser imitador da paixão do meu
Deus. Se alguém O possuir em si mesmo, compreenderá o que quero e terá compaixão
de mim, por conhecer a ânsia que me atormenta.
7. 1 O príncipe deste mundo quer arrebatar-me e corromper a disposição da minha 265
vontade para com Deus. Nenhum de vós o ajude; tornai-vos antes partidários meus, isto
é, de Deus. Não queirais ter ao mesmo tempo o nome de Jesus Cristo na boca e desejos
mundanos no coração. Não me queirais mal. 2 Mesmo que eu vos pedisse outra coisa na
vossa presença, não me devíeis acreditar. Acreditai antes nisto que vos escrevo. Estou a
escrever-vos enquanto ainda vivo, mas desejando morrer. O meu amor está crucificado
e não há em mim qualquer fogo que se alimente da matéria. Mas há uma água viva, que
murmura dentro de mim e me diz interiormente: Vem para o Pai 20. Não me satisfazem
os alimentos corruptíveis nem os prazeres deste mundo. Quero o pão21 de Deus que é a
Carne 22 de Jesus Cristo, que nasceu da descendência de David; e por bebida quero o
seu Sangue que é a caridade incorruptível.
8. 1 Já não quero viver mais segundo os homens, e isto acontecerá, se vós quiser- 266
des. Peço-vos que o queirais, para que também vós alcanceis benevolência. Peço-vos
em poucas palavras: 2 acreditai-me. Jesus Cristo vos fará compreender que digo a
verdade. Ele é a boca da verdade, no qual o Pai falou verdadeiramente. 3 Rogai por
mim, para que o consiga. Não vos escrevi segundo a carne, mas segundo o Espírito de
Deus. Se padecer o martírio, ter-me-eis amado; se for rejeitado, ter-me-eis querido mal.
9. 1 Nas vossas orações lembrai-vos da Igreja da Síria, que na minha ausência só 267
tem a Deus por pastor. Só Jesus Cristo será o seu bispo, juntamente com a vossa cari-
dade. 2 Na verdade, envergonho-me de ser contado no número dos seus membros; não
sou digno, porque sou o último de todos e como um aborto. Mas alcancei misericórdia, e
serei alguém se alcançar a Deus. 3 Saúda-vos o meu espírito e a caridade das Igrejas que
me receberam em nome de Jesus Cristo e não como um simples peregrino. Saúdam-vos
também as Igrejas que, embora não estivessem ao longo do itinerário que tenho percor-
rido corporalmente, acorriam para me verem e saudarem, de cidade em cidade.
10. 1 Escrevo-vos estas coisas a partir de Esmirna, por intermédio dos Efésios, dignos de 268
serem chamados bem-aventurados. Entre muitos outros, também está comigo Crocos,
nome que me é muito caro. 2 Quanto aos que me precederam da Síria a Roma para
glória de Deus, creio que já os conheceis agora: dizei-lhes que estou perto.Todos eles
20
Jo 14, 1.
21
a) / r ton .
22
sa\rc.
110 SÉCULO II

são dignos de Deus e de vós, e convém que os conforteis em tudo. 3 Escrevo-vos isto
nove dias antes das Calendas de Setembro23. Tende saúde até ao fim, na expectativa de
Jesus Cristo.

INÁCIO AOS FILADELFOS

269 Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo
estabelecida em Filadélfia da Ásia, que alcançou misericórdia e está firmemente conso-
lidada na concórdia que vem de Deus, cheia de júbilo pela sua fé na paixão do Senhor
e inteiramente confiada na misericórdia que Deus manifestou na ressurreição de Jesus
Cristo: saúdo no sangue de Cristo essa Igreja que será sempre para mim fonte de ale-
gria eterna, principalmente se os fiéis permanecerem em perfeita união com o bispo,
com os presbíteros e com os diáconos, colaboradores do bispo, nomeados segundo o
desígnio de Cristo e estavelmente confirmados, pelo seu Espírito Santo, segundo a pró-
pria vontade do Senhor.
270 1. 1 Sei que o vosso bispo não obteve o ministério de governar a comunidade por si
mesmo ou por meio dos homens ou por vanglória, mas pela caridade do Pai e do Senhor
Jesus Cristo. Fiquei muito impressionado com a sua modéstia: é mais eloquente com o
seu silêncio do que muitos outros com seus vãos discursos. 2 Os mandamentos de Deus
encontram nele uma perfeita consonância, como as cordas na cítara. Por isso, a minha
alma o felicita pelos seus sentimentos para com Deus; conheço bem a sua virtude e
grande santidade; a sua constância e mansidão são como um reflexo da bondade de
Deus vivo.
271 2. 1 Como filhos da luz e da verdade, evitai a divisão e as doutrinas perversas; para
onde vai o pastor, devem segui-lo as ovelhas. 2 Pois muitos lobos, aparentemente dignos
de fé, apanham, pelos maus prazeres, os corredores de Deus. Mas se permanecerdes
unidos, não encontrarão lugar entre vós.
272 3. 1 Afastai-vos das ervas daninhas que Jesus Cristo não cultiva, pois não são plan-
tação do Pai. 2 Não é que tenha encontrado divisões entre vós, mas uma purificação. Todos
os que pertencem a Deus e a Jesus Cristo estão em comunhão com o bispo; e todos os
que se arrependem e voltam à unidade da Igreja pertencerão também a Deus, para
viverem segundo Jesus Cristo. 3 Não vos enganeis, meus irmãos. Quem segue um
promotor de cisma não herdará o Reino de Deus24; e quem professa doutrinas alheias
à fé não toma parte na paixão de Jesus Cristo.
273 4. 1 Procurai, portanto, ter uma só Eucaristia25: porque uma só é a Carne de nosso
Senhor Jesus Cristo, e um só é o cálice na unidade do seu Sangue, um o altar26 e um o
bispo com o presbitério e os diáconos, meus colaboradores no ministério. Desta forma,
tudo o que fizerdes será feito segundo a vontade de Deus.
274 5. 1 Meus irmãos, eu sinto um profundo amor por vós e é com grande alegria que
tento encorajar-vos; não sou eu, porém, quem vos fortifica, mas Jesus Cristo. Por Ele
me encontro preso, mas sinto muita pena por não ser ainda perfeito. Confio, no
entanto, que as vossas orações me alcançarão de Deus a perfeição, a fim de obter a
herança que a sua misericórdia me destinou. Confio no Evangelho como na Carne de
Jesus e nos Apóstolos como no presbitério da Igreja.

23
24 de Agosto. É a única data nas Cartas de Inácio de Antioquia, mas sem indicação do ano.
24
1 Cor 6, 9-10.
25
A celebração da Eucaristia à volta do bispo é sinal de unidade.
26
Nos primeiros cinco séculos, tanto no Oriente como no Ocidente, cada igreja tinha um só altar.
INÁCIO DE ANTIOQUIA 111

7. 1 Alguns quiseram enganar-me segundo a carne, mas o Espírito, que vem de 275
Deus, não se deixa enganar, pois sabe donde vem e para onde vai27, e revela os segre-
dos. Quando estive no meio de vós, gritei e disse alto e bom som, com voz de Deus:
«Apegai-vos ao bispo, ao presbitério e aos diáconos». Alguns desconfiaram de que eu
dissera aquilo porque já previa a divisão de alguns deles. Mas Aquele por quem estou
preso é minha testemunha de que eu o não sabia por intermédio de um homem. 2 Foi
o Espírito que mo anunciou, dizendo: «Não façais nada sem o bispo, guardai o vosso
corpo como templo de Deus, amai a união, fugi das divisões, sede imitadores de Jesus
Cristo, como Ele próprio o é do Pai».
8. 1 Fiz, portanto, tudo o que pude, como homem que deseja conservar a unidade. 276
Deus não mora onde houver divisão e cólera. Mas o Senhor perdoa a todos os que se
arrependem, se esse arrependimento os levar à unidade com Deus e ao senado do
bispo. Tenho fé que a graça de Jesus Cristo vos livrará de toda a prisão. 2 Exorto-vos
a não fazerdes nada por espírito de querela, mas segundo os ensinamentos de Cristo.
Ouvi alguns que diziam: «Se não o encontrar nos documentos antigos, não creio no
Evangelho». E quando eu lhes disse: «Está escrito», responderam-me: «Essa é a ques-
tão». Para mim, os meus documentos antigos são Jesus Cristo; os meus documentos
invioláveis são a sua cruz, a sua morte, a sua ressurreição e a fé que nos vem d’Ele.
Nisso é que eu desejo, pelas vossas orações, ser justificado.
10. 1 Recebi a notícia de que, graças à vossa oração e à misericórdia que tendes em 277
Cristo Jesus, a Igreja de Antioquia da Síria está em paz. Convém, portanto, que vós,
como Igreja de Deus, escolhais um diácono, para ir, como mensageiro de Deus, congra-
tular-se com os que se reuniram e glorificar o Nome. 2 Felicito em Jesus Cristo aquele
que for julgado digno desse ministério. E vós tereis também a vossa glória. Se quiser-
des, ser-vos-á possível fazê-lo para glória de Deus, como o fizeram as Igrejas mais
vizinhas, que enviaram umas os seus bispos, outras presbíteros e diáconos.
11. 1 Quanto a Fílon, diácono da Cilícia, homem de prestígio, que ainda agora me 278
ajuda no ministério da palavra de Deus, juntamente com Reos Agátopos, homem de
consideração, que renunciou ao que era a sua vida para me acompanhar desde a Síria,
dão testemunho de vós, assim como eu agradeço a Deus por vós, porque os recebestes
como o Senhor vos recebeu a vós mesmos. Possam aqueles que lhes faltaram ao respeito
ser perdoados pela graça de Jesus Cristo. Saúda-vos a caridade dos irmãos de Tróade,
donde vos escrevo.

INÁCIO AOS ESMIRNENSES

Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja de Deus Pai e de seu amado Filho 279
Jesus Cristo, estabelecida em Esmirna, na Ásia, Igreja cheia de fé e de caridade, que
pela misericórdia divina obteve toda a espécie de dons e de graças, gratíssima a Deus e
portadora de santidade, em pureza de espírito e na palavra de Deus: as minhas cordiais
saudações.
1. 1 Dou graças a Jesus Cristo Deus, que vos comunicou tão grande sabedoria; 280
pude verificar, de facto, que estais bem firmes e inabaláveis na fé, como se estivésseis
cravados em corpo e alma na cruz do Senhor Jesus Cristo, e que estais bem fundados
na caridade pelo Sangue de Cristo. Acreditais firmemente em nosso Senhor, acreditais
que Ele procede verdadeiramente de David segundo a carne e é Filho de Deus pela
vontade e poder de Deus; que nasceu verdadeiramente da Virgem; que foi baptizado
por João para que se cumprisse n’Ele toda a justiça; 2 que, sob Pôncio Pilatos e o

27
Jo 3, 8.
112 SÉCULO II

tetrarca Herodes, o seu corpo foi verdadeiramente crucificado por amor de nós (que
somos o fruto da sua cruz e da sua bem-aventurada paixão); e acreditais que mediante
a sua ressurreição, Ele levantou o seu estandarte28 para sempre em favor dos seus
santos e fiéis, para os reunir a todos, tanto Judeus como Gentios, no único Corpo da
sua Igreja.
281 2. 1 Tudo isto sofreu por nós, para que fôssemos salvos; e tão verdadeiramente
sofreu, como também verdadeiramente Se ressuscitou a Si mesmo, não padecendo só
aparentemente, como afirmam alguns infiéis.
282 3. 1 Eu, porém, sei e creio firmemente que depois da sua Ressurreição teve um
corpo verdadeiro e que ainda o tem. 2 Quando Se aproximou de Pedro e dos seus
companheiros, disse-lhes: «Tocai-Me, palpai-Me e vede que não sou um espírito sem
corpo»29. Eles logo tocaram e acreditaram na realidade da sua carne e do seu espírito.
E por esta fé desprezaram e venceram a própria morte. 3 Depois da sua ressurreição
comeu e bebeu com eles, como um homem de carne e osso, embora estivesse espiri-
tualmente unido ao Pai.
283 4. 1 Recordo-vos estas coisas, irmãos caríssimos, embora saiba que tendes os mes-
mos sentimentos.
284 6. 2 Vede bem como se opõem ao pensamento de Deus os que se prendem a doutri-
nas erradas sobre a graça de Jesus Cristo, vinda até nós. Não lhes importa a caridade
com as viúvas e os órfãos, os oprimidos, os prisioneiros ou os libertos, nem com os
que padecem fome ou sede.
285 7. 1 Abstêm-se da Eucaristia e da oração30, porque não acreditam que a Eucaristia é
a carne do nosso Salvador Jesus Cristo, carne que sofreu pelos nossos pecados e que
o Pai, em sua bondade, ressuscitou.
286 8. 1 Segui todos o bispo, como Jesus Cristo segue o Pai. Segui o presbitério como
aos Apóstolos. Respeitai os diáconos como a Lei de Deus. Ninguém faça, sem o bispo,
coisa alguma que diga respeito à Igreja. Tenha-se por legítima somente a Eucaristia
feita sob a presidência do bispo ou de um delegado seu. 2 A comunidade deve reunir-se
onde estiver o bispo, do mesmo modo que onde está Jesus Cristo está a Igreja católica.
Sem união ao bispo não é permitido baptizar nem fazer o ágape. Mas tudo o que ele
aprovar será do agrado de Deus, e assim tudo quanto se fizer será firme e legítimo.
287 9. 1 É razoável que regressemos ao nosso bom senso e que nos convertamos a Deus
enquanto é tempo. É bom reconhecer Deus e o bispo. Quem honra o bispo é honrado
por Deus; quem faz algo sem o bispo saber, serve o Diabo. 2 A graça vos faça abundar
em todas as coisas, pois bem o mereceis. Em tudo me reconfortastes. Faça Jesus outro
tanto por vós. Quer ausente quer presente, sempre me amastes. Deus vos pague. Se
tudo suportais por Ele, chegareis a possuí-l’O.
288 12. 2 Saúdo o vosso bispo digno de Deus, o vosso presbitério tão respeitável, os
diáconos, meus companheiros de serviço, a cada um em particular e a todos em geral,
em nome de Jesus Cristo, na sua carne e no seu sangue, na sua Paixão e na sua
Ressurreição, em corpo e alma, na unidade de Deus e na vossa. Para vós a graça, a
misericórdia, a paz e a paciência por todo o sempre.
289 13. 1 Saúdo as famílias dos meus irmãos com suas esposas e filhos, e as virgens,
chamadas viúvas31. Sede fortes pela virtude do Espírito. Saúda-vos Fílon, que está
comigo. 2 Saúdo a casa de Tavia e desejo que se robusteça na fé e na caridade corporal

28
Is 5, 26 s.
29
Este logion não concorda exactamente com os relatos de Lc 24, 39 e Jo 20, 20.27.
30
Os Docetas.
31
Esta passagem obscura temos de a compreender partindo da interpretação literal do texto, pensando em
INÁCIO DE ANTIOQUIA 113

e espiritual. Saúdo Alceu, nome tão querido, e Dafnos, o incomparável, e Eutecnos, e


todos segundo o seu nome. Tende saúde na graça de Deus.

INÁCIO A POLICARPO

Inácio, também chamado Teóforo, saúda cordialmente a Policarpo, bispo da 290


Igreja de Esmirna, que tem como seu bispo Deus Pai e o Senhor Jesus Cristo.
1. 1 Presto homenagem à tua piedade, solidamente fundada sobre uma rocha firme, 291
e dou graças ao Senhor, que me concedeu a graça de ver o teu rosto de bondade; oxalá
possa eu vê-lo para sempre em Deus. 2 Recomendo-te, pela graça de que estás reves-
tido, que aceleres a tua carreira e exortes a todos, para que se salvem. Desempenha o
cargo que ocupas, com toda a diligência de corpo e de espírito. Vela pela unidade,
porque nada há mais precioso. Suporta todos os irmãos, como o Senhor te suporta a ti;
tem paciência e caridade para com todos, como sempre fazes. 3 Entrega-te continua-
mente à oração; pede uma sabedoria maior do que a que tens; conserva o teu espírito
sempre vigilante. Fala a cada um em particular, segundo o modo de agir de Deus; toma
sobre ti, como perfeito atleta, as fraquezas de todos. Onde maior é o trabalho, maior é
o lucro.
2. 1 Se amas somente os bons discípulos, não terás nisso mérito algum; o mérito 292
está em ganhar pela bondade a confiança dos piores. Nem todas as feridas se curam
com o mesmo remédio. Acalma a violência das febres com compressas suaves. 2 Sê
prudente em tudo como a serpente, mas sempre simples como a pomba 32. Sendo tu
composto de alma e corpo, tens experiência das realidades, materiais e espirituais.
Exercita humildemente a tua sabedoria nas coisas visíveis e pede que te sejam revela-
das as coisas invisíveis, para que nada te falte e tenhas em abundância todos os bens
espirituais. 3 Como o navegante deseja ventos propícios e o que é surpreendido pela
tempestade procura o porto, assim o tempo presente exige de ti que procures alcançar
a Deus, juntamente com os que te foram confiados. Sê sóbrio, como um atleta de Deus;
o prémio prometido é a imortalidade e a vida eterna, como sabes perfeitamente. Por ti
ofereço o sacrifício da minha vida e as minhas cadeias, que tu veneraste.
3. 1 Não te atemorizes com aqueles, que parecem dignos de fé e ensinam doutrinas 293
falsas. Mantém-te firme, como a bigorna sob o martelo. Um grande atleta é maltratado,
mas vence. Com muito maior razão devemos nós suportar tudo por amor de Deus,
para que também Ele nos suporte a nós. 2 Sê cada vez mais diligente. Aprende a discernir
o sinal dos tempos. Espera Aquele que é superior a todas as vicissitudes dos tempos,
intemporal e invisível, e Se tornou visível por causa de nós; confia n’Aquele que é
impalpável e impassível e que por nós Se tomou passível e sofreu todo o género de
tormentos33.
4. 1 As viúvas não sejam desprezadas; depois do Senhor, sê tu o seu protector. Nada 294
se faça sem o teu consentimento, e tu não faças nada sem Deus (de facto, já assim
procedes); sê firme. 2 As reuniões dos fiéis sejam mais frequentes; convida-os a todos
pelo seu nome. Não trates altivamente os escravos e as escravas; procura que também
eles se não encham de orgulho, mas antes prestem com maior dedicação o seu serviço
para glória de Deus, a fim de alcançarem de Deus uma liberdade melhor; nem se deixem
mover pelo desejo de serem resgatados com os bens da comunidade, para que não se
tomem escravos da cobiça.

virgens assimiladas às viúvas, tomando aqui esta palavra no sentido técnico de ordem das viúvas.
32
Mt 10, 16.
33
Parece ser um hino cristológico.
114 SÉCULO II

295 5. 1 Evita as artes mágicas e fala aos fiéis para se precaverem contra elas. Recomenda
às minhas irmãs que amem o Senhor e que vivam contentes com os seus maridos nas
coisas materiais e espirituais. Igualmente exorta os meus irmãos, em nome de Jesus
Cristo, para que amem as suas esposas, como o Senhor ama a Igreja. 2 Se alguém puder
permanecer em castidade, para honrar a carne do Senhor, permaneça nela com humildade.
Se se gloriar, perde-se; e se se julgar superior ao bispo, está perdido. Os que se casam,
esposos e esposas, devem contrair o seu matrimónio com a aprovação do bispo, para
que o seu casamento seja segundo o Senhor e não segundo a concupiscência. Tudo se
faça para glória de Deus.
296 6. 1 Prestai atenção ao bispo, para que também Deus vos preste atenção. Eu ofereço
a minha vida por aqueles que se submetem ao bispo, aos presbíteros e aos diáconos; e
oxalá me seja dado ter parte com eles em Deus. Colaborai intimamente uns com os
outros: juntos lutai, correi, sofrei, descansai e levantai-vos, como administradores,
assistentes e ministros de Deus. 2 Procurai agradar Àquele sob cujas ordens militais e
de quem recebeis a remuneração; e não haja entre vós nenhum desertor. Seja o vosso
baptismo como um escudo, a fé como um capacete, a caridade como uma lança, a
paciência como um arsenal de todas as armas; os vossos depósitos sejam as boas
obras, para que possais receber a seu tempo a recompensa a que tendes direito. Sede
magnânimos uns para com os outros, praticando a mansidão, para que o mesmo faça
Deus convosco. Queira Deus que eu possa gozar para sempre da vossa presença.
297 7. 1 A Igreja que está em Antioquia da Síria, segundo me disseram, goza de paz,
graças às vossas orações; assim também eu me sinto agora mais tranquilo, com a
segurança que vem de Deus, e o meu único desejo é chegar até junto de Deus através do
martírio, para merecer ser vosso discípulo na ressurreição. 2 Seria bom, ó Policarpo
abençoado por Deus, convocar uma assembleia agradável a Deus e eleger alguém que
seja digno de confiança e diligente, o qual possa ser chamado o «correio divino», e que
ele tenha a honra de partir para a Síria, a fim de celebrar a vossa infatigável caridade
para glória de Deus. 3 O cristão não é senhor de si, mas está ao serviço de Deus. Esta
obra é de Deus e também é vossa, se a levardes a bom termo. Eu confio na graça e creio
que estais dispostos a realizar a boa obra, para honra de Deus. É breve esta minha carta
de exortação, porque conheço o vosso ardente zelo pela verdade.
298 8. 1 Como não pude escrever a todas as Igrejas, porque tive de partir inesperada-
mente de Tróade para Neápoles da Macedónia, tu, que tens o pensamento de Deus,
escreve a todas as Igrejas situadas a Oriente para que façam o mesmo. As que puderem
mandem mensageiros; as outras mandem cartas por meio de delegados que tu enviarás,
e assim alcançareis glória eterna com esta obra, como bem mereceis.
2 Saúdo-vos a todos pelo vosso nome, e à esposa de Epítropos com toda a sua
casa e seus filhos. Saúdo a Átalo, meu amigo. Saúdo aquele que for julgado digno de
partir para a Síria. A graça estará com ele sem cessar e com Policarpo, que o envia. 3
Desejo que vos encontreis sempre bem, em Jesus Cristo, nosso Deus, e por Ele perma-
neçais na unidade, sob a vigilância de Deus. Sede fortes no Senhor.
PLÍNIO O MOÇO 115

Plínio, o Moço

Cartas 1

LIVRO X

CARTA 96 2

1. É princípio assente para mim, senhor, submeter-te todos os assuntos sobre os 299
quais tenho dúvidas. Quem melhor do que tu poderia dirigir-me quando hesito ou
instruir-me sobre o que ignoro?
Nunca participei em devassas contra os cristãos. Por isso não sei a que factos e
em que medida se aplicam habitualmente a pena ou as perseguições.
2. Interrogo-me, não sem hesitação, se haverá diferenças a observar segundo as 300
idades ou se as crianças de poucos anos estarão no mesmo pé dos adultos, se deve
perdoar-se àquele que se arrepende ou se o que foi verdadeiramente cristão nada ganha
em desdizer-se, se deve punir-se o simples nome de cristão, mesmo na ausência de
crimes ou antes os crimes que este nome implica.
Entretanto, foi esta a regra que segui para com aqueles que me foram trazidos
como cristãos.
3. Perguntei-lhes a eles próprios se eram cristãos. Àqueles que o confessaram, 301
perguntei-lho uma segunda e uma terceira vez, ameaçando-os com o suplício: aos que
perseveraram mandei-os executar. Fosse qual fosse o significado da sua confissão, não
tive dúvidas de que, pelo menos, era preciso punir uma tal teimosia e obstinação
inflexíveis.
4. De outros, obcecados pela mesma loucura, tomei nota dos seus nomes, por 302
serem cidadãos romanos, a fim de serem enviados a Roma. Como sucede em casos
semelhantes, não tardou que, com o avançar do inquérito, a acusação se alargasse,
surgindo então vários casos diferentes.
5. Foi apresentado um libelo sem assinatura que continha um grande número de 303
nomes. Aqueles que negavam ser ou ter sido cristãos, que invocavam os deuses segundo a
fórmula que eu lhes ditava, que faziam sacrifícios de incenso e vinho diante da tua
imagem mandada trazer para este fim juntamente com as estátuas das divindades, e
que, além disso, blasfemavam de Cristo, tudo isto coisas, segundo se diz, impossíveis
de obter daqueles que verdadeiramente são cristãos, pensei que os devia mandar embora.
6. Outros, cujos nomes tinham sido indicados por um denunciador, primeiro disse- 304
ram que eram cristãos, e, pouco depois, negaram-no; na verdade, já o tinham sido, mas
tinham deixado de o ser, uns há três anos, outros há mais, e alguns até mesmo há vinte
anos. Todos esses adoraram a tua imagem assim como as estátuas dos deuses e amal-
diçoaram Cristo.

1
P LÍNIO , O M OÇO , Epistularum, Panegírico de Trajano (=M. S CHUSTER , Leipzig 1933; BAC 75, 244-247).
Esta carta escrita por Plínio, bem como a resposta de Trajano, são do ano 112.
2
Carta de Plínio a Trajano.
116 SÉCULO I

305 7. Aliás, eles afirmavam que toda a sua culpa ou erro se tinha limitado ao costume
de se reunirem, num dia determinado, antes do nascer do sol, para cantarem entre si,
alternadamente, um hino a Cristo como a um deus, e a comprometerem-se, por jura-
mento, não a cometer qualquer crime3, mas antes a não praticar roubos, nem banditismo,
nem adultério; a não faltar à palavra dada e a não negar um depósito reclamado em
justiça. Depois de realizarem esses ritos, tinham o costume de se separar, voltando a
reunir-se de novo para tomar a sua refeição, a qual, diga-se o que se disser, é comum e
inocente4. Aliás, tinham mesmo renunciado a esta prática após o meu edicto através do
qual, segundo as tuas instruções, proibira as sociedades secretas.
306 8. Acreditei, por isso, que seria muito necessário arrancar a verdade a duas escravas
a quem chamavam diaconisas5, submetendo-as à tortura, mas não encontrei mais do
que uma superstição despropositada e sem medida.
307 9. Suspendi, por isso, o interrogatório, para ouvir a tua opinião. Pareceu-me que o
assunto merecia que eu próprio soubesse o que pensas sobre ele, sobretudo por causa
do número dos acusados. Há uma multidão de pessoas de todas as idades, de todas as
condições, e também dos dois sexos que estão ou serão postas em perigo. O contágio
desta superstição não se espalhou só nas cidades, mas também nos campos. Creio, no
entanto, que é possível travá-la e curá-la.
308 10. Não há dúvida de que os templos que tinham sido quase abandonados começam
de novo a ser frequentados, que as cerimónias rituais há muito tempo interrompidas
são retomadas, que por toda a parte se vende a carne das vítimas, que até agora apenas
encontrava raros compradores. De tudo isto é fácil pensar na multidão de homens que
poderia ser curada se aceitássemos o seu arrependimento.
CARTA 97 6

309 1. Meu caro Plínio, seguiste o caminho que devias no exame das causas daqueles
que te foram denunciados como cristãos. Não se pode estabelecer uma regra geral que
tenha, por assim dizer, uma forma fixa. Não devem ser perseguidos quando não é
necessário. Se forem denunciados e se provar que são culpados, é preciso condená-los,
mas com a seguinte restrição: aquele que tiver negado ser cristão e tiver, pelos próprios
factos, dado provas manifestas disso, isto é, sacrificando aos nossos deuses, ainda que
tenha sido suspeito relativamente ao passado, obterá o perdão como preço do seu
arrependimento.
310 2. Quanto às denúncias anónimas, não devem desempenhar qualquer papel, seja em
que acusação for. Trata-se dum processo detestável e que já não é do nosso tempo.

3
Quod essent solito stato die ante lucem convenire carmenque Christo quasi deo dicere secum invicem
seque sacramento non in scelus aliquod obstringere.
4
Quibus peractis morem sibi discedendi fuisse rursusque coeundi ad capiendum cibum, promiscuum
tamen et innoxium.
5
Quo magis necessarium credidi ex duabus ancillis, quae ministrae dicebantur.
6
Carta de Trajano a Plínio.
EPÍSTOLA DE BARNABÉ

Epístola de Barnabé 1

1. 1 Eu vos saúdo na paz, filhos e filhas, em nome do Senhor que nos amou. 311
2 Grandes e abundantes são os dons de justiça que Deus vos concedeu; por isso
me alegro profundamente, ao saber que as vossas almas são bem-aventuradas e gloriosas,
porque acolhestes a graça do dom espiritual que se implantou entre vós. 3 Cresce mais
ainda a minha alegria e a esperança da minha própria salvação, ao contemplar como foi
derramada sobre vós a abundância do Espírito que procede da fonte do Senhor. Foi
deveras maravilhoso o espectáculo que oferecestes à minha vista.
4 Estou plenamente convencido e consciente de que, ao falar convosco, vos
ensinei muitas coisas, porque o Senhor me acompanhou no caminho da justiça; e sinto-me
fortemente estimulado a amar-vos mais ainda que a minha própria vida, porque é grande
a vossa fé e a vossa caridade, fundadas na esperança da vida divina. 5 Tudo isto me
leva a considerar que, se me empenho em comunicar-vos alguma coisa do que eu mes-
mo recebi, não me faltará a recompensa, por ter prestado este serviço às vossas almas;
por isso resolvi escrever-vos brevemente, a fim de que se enriqueça a vossa fé com um
conhecimento mais perfeito.
6 São três os ensinamentos do Senhor: a esperança da vida é o princípio e o fim
da nossa fé; a justiça é o princípio e o fim do julgamento; a caridade, que traz consigo
a felicidade e a alegria, é o testemunho de que as nossas obras são justas. 7 Efectiva-
mente, o Senhor deu-nos a conhecer, por meio dos Profetas, o passado e o presente e
fez-nos saborear as primícias do futuro. Ao contemplarmos como todas estas coisas se
vão realizando a seu tempo, conforme Ele anunciou, devemos progredir sempre no
santo temor de Deus, cada vez mais perfeito e profundo. 8 Quanto a mim, quero
mostrar-vos algumas coisas que vos sirvam de alegria na situação presente. Não vos
falo como mestre, mas como irmão.
2. 1 Os dias são maus, e o Adversário exerce o seu poder diabólico. Por isso, temos 312
de velar por nós mesmos e investigar cuidadosamente os desígnios do Senhor. 2 O
temor e a perseverança são o amparo da nossa fé; e os nossos companheiros de luta são
a paciência e o domínio próprio. 3 Se estas virtudes permanecem puras diante do
Senhor, possuiremos também a alegria da sabedoria, da inteligência, da ciência e do
conhecimento.
4 Deus revelou-nos, por meio de todos os Profetas, que não tem necessidade de
sacrifícios, holocaustos e oblações. 5 Eis o que Ele diz em certa passagem: De que Me
serve a multidão dos vossos sacrifícios? diz o Senhor. Estou farto dos holocaustos de
carneiros e da gordura dos vitelos; não quero o sangue de touros e cabritos. Porque
vindes à minha presença? Quem reclamou isso das vossas mãos? Não continueis a
pisar os meus átrios. Se Me ofereceis a flor da farinha, é em vão; o fumo de incenso
Me repugna; já não suporto as vossas luas novas e os vossos sábados2.
6 Deus revogou os antigos sacrifícios, para que a nova lei de nosso Senhor Jesus
Cristo, que não está submetida ao jugo da fatalidade, tivesse uma oblação que não é
feita pela mão dos homens. 7 Por isso lhes diz noutro lugar: Porventura ordenei Eu
aos vossos pais, quando saíram da terra do Egipto, que Me oferecessem holocaustos

1
Epistula Barnabae (=PG 2, 727-781; FUNK -D IEKAMP I; SCh 172; cf. LH, IV). Esta carta não deve atribuir-
se a Barnabé, companheiro do apóstolo Paulo, mas a um doutor da escola de Alexandria, um Pseudo-
Barnabé. O seu autor defende o culto espiritual e condena o legalismo judaico. Foi escrita depois da
destruição do templo de Jerusalém, talvez entre 115 e 138.
2
Is 1, 11-13.
118 SÉCULO II

e sacrifícios? 8 Esta foi a ordem que lhes dei: Nenhum de vós guarde rancor em seu
coração contra o seu próximo; e não ameis o falso juramento3.
9 Devemos, portanto, compreender, se não somos insensatos, os sentimentos de
bondade do nosso Pai. Ele fala-nos, ensinando-nos como havemos de nos aproximar
d’Ele, porque não quer que O busquemos por caminhos errados, como os antigos
Hebreus. 10 Eis o que Ele nos diz: O sacrifício para o Senhor é o coração arrependido;
o perfume agradável ao Senhor é o coração que dá glória ao seu Criador 4. Por
conseguinte, irmãos, devemos preocupar-nos cuidadosamente com a nossa salvação,
para que o Maligno sedutor não se introduza furtivamente entre nós e nos aparte da
vida verdadeira.
313 3. 1 A este respeito diz-lhes ainda noutra passagem: Não são os jejuns como os que
hoje fazeis que farão ouvir no alto a vossa voz. Não é este o jejum que Me agrada, no
dia em que o homem se mortifica... 3 A nós, porém, diz-nos: O jejum que Eu quero é
este: Quebra todas as cadeias injustas, desfaz os laços de todos os contratos obtidos
por violência, põe em liberdade os oprimidos e anula todas as obrigações injustas.
Reparte o teu pão com os famintos, leva roupa aos que não têm que vestir e dá
pousada aos pobres sem abrigo 5.
314 4. 1 É preciso examinar com grande atenção a situação actual, para procurarmos o
que nos pode salvar. Fujamos com todo o cuidado de todas as acções iníquas, para que
não tomem posse de nós. Odiemos o erro do tempo presente, a fim de sermos amados
no tempo futuro. 2 Não dêmos à nossa alma a liberdade e a licença de correr na
companhia dos malvados e dos pecadores, para que não se torne semelhante a eles...
6 Peço-vos encarecidamente, eu que sou apenas um entre vós e vos amo a todos
e a cada um em particular, mais do que a mim mesmo: tende cuidado convosco e não
sejais parecidos a outras pessoas, que acumulam pecados ao afirmar que a Aliança nos
está irrevogavelmente garantida. 7 Ela é nossa, certamente! Mas também os Judeus a
perderam, apesar de Moisés a ter recebido...
9 Tenhamos, portanto, cuidado com os últimos dias, porque de nada nos servirá
todo o tempo da nossa vida e da nossa fé, se, neste tempo ímpio e nos escândalos
futuros, não resistirmos como convém a filhos de Deus...
10 Fujamos, portanto, de toda a vaidade e odiemos de coração o caminho da
iniquidade. Não vos isoleis, fechando-vos sobre vós mesmos, como se já estivésseis
justificados, mas reuni-vos para procurar em comum o interesse de todos. Porque diz
a Escritura: Ai dos que se julgam sábios e prudentes a seus próprios olhos. 11
Tornemo-nos espirituais, façamos de nós um templo perfeito para Deus. Quanto nos
seja possível, meditemos no temor de Deus e esforcemo-nos por guardar os seus man-
damentos, para encontramos a nossa alegria na sua vontade. 12 O Senhor julgará o
mundo sem acepção de pessoas. Cada um receberá segundo o que fez: se foi bom, a
sua justiça irá à sua frente; se foi mau, encontrará diante dele o salário da iniquidade. 13
Não descansemos na confiança de que seremos dos chamados, para que não adorme-
çamos nos nossos pecados, e o príncipe do mal se apodere de nós para nos afastar do
reino do Senhor.
14 Considerai ainda isto, meus irmãos: ao verdes como os Israelitas, depois de
tantos milagres e prodígios que se realizaram em seu favor, foram abandonados, tenha-
mos cuidado para que não se venha a cumprir contra nós a sentença do Evangelho:
Muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos6.

3
Jer 7, 22-23 + Zac 8, 17.
4
Sal 50, 19 + Apocalipse de Adão.
5
Is 58, 4-5. 6.10.
6
Mt 22, 14.
EPÍSTOLA DE BARNABÉ 119

5. 1 O Senhor suportou que o seu corpo fosse entregue à morte para que nós 315
fôssemos santificados mediante o perdão dos pecados, isto é, pela aspersão do seu
sangue. 2 D’Ele estão escritas estas palavras, que se referem tanto a Israel como a nós:
Foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa dos nossos
pecados; pelas suas chagas fomos curados. Como cordeiro levado ao matadouro e
como ovelha muda ante aqueles que a tosquiam, Ele não abriu a boca 7. 3 Devemos,
por isso, dar muitas graças ao Senhor, que nos revelou as coisas passadas, nos instruiu
acerca do presente e não nos deixou na ignorância perante o futuro. 4 Diz a Escritura:
Não é injustamente que às aves se estendem as redes 8. Com estas palavras quer dizer
que é com justiça que perece o homem que, tendo conhecido o caminho da justiça,
escolhe o caminho das trevas.
5 E ainda há mais, meus irmãos: Se o Senhor quis sofrer pelas nossas almas, Ele
que é o Senhor do universo, Ele a quem disse Deus na criação do mundo: Façamos o
homem à nossa imagem e semelhança 9, como pôde sofrer às mãos dos homens? 6
Respondem os Profetas, que d’Ele receberam a graça para profetizar a seu respeito:
Ele devia aparecer na nossa condição humana, para destruir a morte e manifestar a
ressurreição dos mortos. 7 Para isso aceitou a Paixão, a fim de cumprir a promessa
feita aos antepassados, formando um povo novo e dando a conhecer, quando ainda
estava na terra, que, depois da ressurreição final, seria Ele próprio o Juiz de todos os
homens. 8 Além disso, ensinou Israel e fez grandes prodígios e milagres, para lhes
mostrar o seu grande amor...
6. 1 Que diz Ele sobre o tempo em que irá cumprir a promessa? Quem ousará 316
levantar-Me um processo? Compareçamos juntos diante do juiz! Apresente-se quem
tiver qualquer coisa contra Mim. Ai de vós! Todos cairão esfrangalhados, como
roupa velha, roída pela traça10. 2 E o Profeta acrescenta, uma vez que Ele foi colocado
como pedra sólida para esmagar: Vou colocar nas fundações de Sião uma pedra esplên-
dida, escolhida, uma pedra angular de grande preço. Que diz em seguida? Quem nela
acreditar viverá eternamente. 3 Quer então dizer que nós colocamos a nossa esperança
numa pedra? De modo nenhum. O que aconteceu é que o Senhor tornou forte a sua
carne. Com efeito, Ele diz: Tornou-me duro como uma pedra. 4 E o Profeta diz ainda:
A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular. E acrescenta: Eis o
dia grande e maravilhoso que o Senhor fez 11...
10 Bendito seja nosso Senhor, meus irmãos, que em nós colocou a sabedoria e a
compreensão dos seus segredos. Porque o Profeta diz: Quem poderá compreender
uma parábola do Senhor, a não ser o sábio que conhece e ama o seu Senhor? 11 E, ao
renovar-nos pelo perdão dos pecados, deu-nos um novo ser e uma alma inocente como
a das crianças, como se nos criasse de novo. 12 Com efeito, a Escritura fala de nós,
quando o Pai se dirige ao Filho: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança e
presida aos animais do campo, às aves do céu e aos peixes do mar. E disse o Senhor,
ao contemplar a formosura da nossa natureza: Crescei e multiplicai-vos e enchei a
terra. Tudo isto disse o Pai a seu Filho.
13 Mas vou mostrar-te o que Ele nos disse a nós. Ao chegar a plenitude das
tempos, referindo-Se à segunda criação por Ele operada, disse o Senhor: Eu faço as
últimas coisas como as primeiras. A esta nova criação se referia o Profeta, quando
dizia: Entrai na terra onde corre leite e mel e tomai posse dela 12. 14 Portanto, nós

7
Is 53, 5-7.
8
Prov 1, 17.
9
Gen 1, 26.
10
Is 50, 8-9.
11
Diversas citações, cujo denominador comum é a palavra pedra.
12
Gen 1, 26. Todo o capítulo VI se refere aos baptizados.
120 SÉCULO II

fomos formados de novo, como Ele diz também por outro Profeta: Diz o Senhor:
Arrancarei deles, (isto é, daqueles que o Espírito do Senhor previa) o seu coração de
pedra e dar-lhes-ei um coração de carne13. Foi por isso que Ele Se fez carne e habitou
entre nós. 15 Desde então, irmãos caríssimos, tornou-Se o templo santo e a morada do
Senhor. 16 Na verdade, diz também o Senhor: Onde me apresentarei ao Senhor para o
celebrar? E responde: Hei-de falar do vosso nome aos meus irmãos, hei-de louvar-
Vos no meio da assembleia dos santos14. Portanto, somos nós os que Ele introduziu na
bela terra (prometida), onde corre leite e mel. 17 Porquê leite e mel? Porque assim
como a criança primeiro é alimentada com mel e depois com leite, assim também nós,
pela fé, recebemos as promessas de Deus, e, pela palavra da pregação, somos vivificados
e possuímos a terra.
317 11. 1 Investiguemos agora se o Senhor teve o cuidado de nos dar antecipadamente
alguma revelação sobre a água e a cruz15.
2 A respeito da água, diz a Escritura, ao falar de Israel, que eles não receberiam o
baptismo que traz o perdão dos pecados, mas que inventariam um baptismo para si
próprios. 3 De facto, diz o Profeta: Pasmai, ó céus, acerca disto! Tremei de espanto e
de horror! Porque o meu povo cometeu um duplo crime: abandonou-Me, a Mim, fonte
de águas vivas, e construiu cisternas para si, cisternas rotas, que não podem reter as
águas16... 4 E o Profeta diz ainda: Irei diante de ti para te aplanar os caminhos
pedregosos, despedeçarei as portas de bronze, quebrarei as portas de ferro. Dar-te-ei
tesouros enterrados e riquezas escondidas; para que saibas que Eu sou o Senhor, o
Deus de Israel. 5 E tu habitarás nas alturas, terás o teu refúgio em rochas elevadas,
terás pão e água em abundância. Os teus olhos contemplarão um rei no seu esplendor
e contemplarão um país imenso17. 7 Notai que ele designa ao mesmo tempo a água e a
cruz, pois quer dizer o seguinte: Felizes aqueles que, tendo posto na cruz a sua
esperança, desceram à água... 10 Que diz ele em seguida? Havia um rio que corria,
vindo da direita, e dele tiravam o seu crescimento árvores esplêndidas. Quem delas
comer viverá eternamente18. 11 Isto quer dizer que nós descemos à água carregados
das nossas manchas e pecados, mas subimos dela para dar frutos no nosso coração,
tendo no espírito o temor e a esperança em Jesus. Quem delas comer viverá eterna-
mente. Isto significa: Quem escutar estas palavras e acreditar nelas viverá eterna-
mente19.
318 12. Quando algum de entre vós for mordido, volte-se para a serpente colocada sobre
o madeiro e espere, com fé, que mesmo sem vida esta pode vivificar, e ele será salvo.
319 15. 1 A respeito do sábado está escrito nas Dez Palavras que Deus dirigiu pessoal-
mente a Moisés no monte Sinai: Santificai o sábado do Senhor com mãos puras e
coração puro. 2 E noutro lugar diz: Se os meus filhos guardarem o sábado, derrama-
rei sobre eles a minha misericórdia20.
3 Ele menciona o sábado no princípio da criação: Deus fez em seis dias as obras
das suas mãos. Deus abençoou o sétimo dia e santificou-o, visto ter sido nesse dia que

13
Ez 11, 19 ou 36, 26.
14
Sal 42, 3 + Sal 22, 23.
15
O tema do capítulo XI é precisamente a água e a cruz. Tem grande importância a descrição do itinerário
catecumenal.
16
Jer 2, 12-13.
17
Is 45, 2-3 + 33, 16-18.
18
Citação compósita.
19
Jo 6, 35.40 e Jo 6, 51.58.
20
Estas citações não se podem identificar.
21
Gen 2, 2-3.
EPÍSTOLA DE BARNABÉ 121

Ele repousou de toda a obra da criação21. 4 Prestai atenção, meus filhos, ao sentido da
frase: Deus fez em seis dias. Isso quer dizer que o Senhor conduzirá o universo ao seu
termo em seis mil anos, porque um dia é, para Ele, como se fossem mil anos. É Ele
mesmo que o afirma ao dizer: Um dia do Senhor será como mil anos. Assim, meus
filhos, é em seis dias, em seis mil anos, que o universo chegará ao seu termo. 5 E Deus
repousou no sétimo dia. Isto quer dizer: Quando o seu Filho vier para pôr fim ao
tempo do Malvado, para julgar os ímpios e para mudar o sol, a lua e as estrelas, será
então que Ele repousará durante o sétimo dia.
6 Em seguida diz: Santificá-lo-ás com mãos puras e coração puro... 7 Podere-
mos santificá-lo quando nós próprios tivermos sido santificados.
8 Diz-lhes por fim: Não suporto mais as vossas luas novas e os vossos sábados22.
Vede como Ele se exprime: não são os sábados actuais que Me agradam, mas aquele que
Eu próprio fiz e pelo qual, depois de ter conduzido tudo ao repouso, inaugurarei o
oitavo dia, isto é, o começo de um mundo novo. 9 É por isso que nós celebramos como
uma festa jubilosa o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos e, depois de ter
aparecido aos seus discípulos, subiu aos Céus23.
16. 1 Além disso, a respeito do templo, dir-vos-ei que, no seu erro, esses infelizes 320
colocaram a sua esperança num edifício, como se ele fosse a casa de Deus, e não no seu
Deus que os tinha criado. 2 Quase como os pagãos, eles encerraram-n’O no recinto
sagrado do templo. Recordai os termos em que Deus recusa o templo: Quem mediu as
águas do mar com a sua mão, e quem mediu o céu a palmo? Não fui Eu, diz o Senhor?
O céu é o meu trono e a terra, o estrado dos meus pés. Que templo podereis construir-Me,
ou que lugar para Eu repousar24? Compreendestes como a esperança deles é vã.
3 E diz também: Os mesmos que destruíram este templo acabarão por recons-
truí-lo. 4 É isso que está a acontecer uma vez que, devido à sua guerra, o templo foi
destruído pelos inimigos. E agora são os servos dos inimigos que estão a reconstruí-lo.
5 Também fora igualmente revelado que a cidade, o templo e o povo de Israel
deviam ser entregues. A Escritura diz com efeito: Acontecerá no fim dos tempos que o
Senhor entregará à destruição as ovelhas da pastagem, o bardo e a sua torre. E o
acontecimento coincidiu com a palavra do Senhor.
6 Devemos procurar agora se há um templo de Deus. Sim, há um, lá onde Ele
próprio diz que o realiza e o prepara. Porque está escrito: Quando terminar a semana,
será construído um templo de Deus, no esplendor, em nome do Senhor25. Vejo, portanto,
que há um templo. 7 E como será ele construído em nome do Senhor? Aprendei-o:
Antes de nós acreditarmos em Deus, os nossos corações eram uma habitação corrup-
tível e frágil, tal como um templo construído pela mão do homem. De facto, eles
estavam cheios de idolatria e eram apenas moradas de Demónios, pois todas as nossas
acções se opunham a Deus. 8 Mas será construído em nome do Senhor. Tende cuidado,
para que o templo do Senhor seja construído no esplendor. Como? Aprendei-o: Ao
recebermos o perdão dos pecados, ao pormos a nossa esperança no Nome, tornámo-nos
novos, recriados desde o princípio. É por isso que Deus habita verdadeiramente em
nós e fez de nós a sua morada. 9 Como? Pela palavra da sua fé, a vocação da sua
promessa, a sabedoria dos seus preceitos, os mandamentos da sua doutrina. É Ele que
profetiza em nós, que habita em nós. Deste modo faz entrar no templo incorruptível
aqueles que estavam sujeitos à morte, abrindo-nos a porta do templo, isto é, a boca, e

22
Is 1, 13.
23
Referência ao domingo cristão. Idcirco et diem octavam in laetitia agimus, quo et Iesus resuurexit a
mortuis.
24
Is 40, 12 + 66, 1.
25
Profecia de Henoc.
122 SÉCULO II

dando-nos o arrependimento. 10 Com efeito, aquele que quiser ser salvo não deve
olhar para o homem, mas para Aquele que permanece nele e fala através dele... Eis o
templo espiritual construído pelo Senhor.
321 17. 1 Como vos dei estas explicações com toda a simplicidade possível, espero não
ter esquecido nada. 2 Com efeito, se vos escrevesse sobre os acontecimentos presentes
ou futuros, não o compreenderíeis, porque isso permanece em parábolas26.
322 18. 1 Basta sobre este assunto. Falemos agora de um outro género de conhecimento
e de ensinamento.
Há dois caminhos e cada um deles depende de um ensinamento e de uma auto-
ridade: o caminho da luz e o das trevas. É grande a diferença entre esses dois cami-
nhos. Com efeito, a um são destinados os Anjos de Deus que dão a luz, e ao outro os
anjos de Satanás. 2 Um é Senhor de eternidade em eternidade, o outro é príncipe da
presente época de iniquidade.
323 19. 1 O caminho da luz é este: Se alguém quiser chegar ao lugar determinado, esforce-
se por atingi-lo com as suas obras. E o conhecimento que nos foi dado para andar por
este caminho é o seguinte:
2 Ama Aquele que te criou; adora Aquele que te formou; dá glória Àquele que te
remiu da morte. Sê simples de coração e rico em espírito; não te juntes com os que
seguem o caminho da morte; odeia tudo o que não é agradável a Deus; despreza toda a
hipocrisia; não abandones os mandamentos do Senhor.
3 Não te exaltes a ti próprio, mas sê humilde em tudo; não atribuas a glória a ti
mesmo. Não maquines o mal contra o teu próximo; não admitas a arrogância no teu
espírito.
4 Não cometas prostituição, nem adultério, nem pederastia. Não divulgues ja-
mais a palavra de Deus entre gente impura. Não faças acepção de pessoas. Sê doce, sê
calmo e caminha com temor diante das palavras que ouviste. Não guardes rancor ao teu
irmão.
5 Não duvides de que as tuas orações serão escutadas. Não invoques em vão o
nome do Senhor. Ama o teu próximo mais que a tua própria vida. Não cometas o
aborto, nem mates o recém-nascido. Não descuides a educação do teu filho e da tua
filha, mas ensina-lhes desde a infância o temor de Deus.
6 Não cobices os bens do teu próximo, nem sejas avaro; não te juntes com os
soberbos, mas frequenta a companhia dos humildes e dos justos. Aceita como benefí-
cio tudo o que te acontece na vida, consciente de que nada sucede sem a permissão de
Deus.
7 Não sejas inconstante nem hipócrita, porque a hipocrisia é um laço mortal.
Obedece com respeito e temor aos teus patrões, olhando-os como a imagem de Deus.
Não sejas duro ao dar ordens ao teu servo ou à tua serva, que esperam no mesmo Deus
que tu, para que não percam o temor de Deus que é o vosso Senhor comum.
8 Põe à disposição do teu próximo todos os teus bens e não consideres coisa
alguma exclusivamente tua; parque, se todos sois comparticipantes dos bens incorrup-
tíveis, quanto mais deveis sê-lo dos bens corruptíveis? Não sejas precipitado no falar,
porque a boca é um laço mortal. Com toda a diligência procura ser casto, para bem da
tua alma.
9 Não sejas fácil em abrir as tuas mãos para receber e em fechá-las para dar. Ama
como à pupila dos teus olhos todo aquele que te anuncia a palavra do Senhor.

26
Afirmação estranha, pois o autor tratou precisamente do presente e do futuro.
EPÍSTOLA DE BARNABÉ 123

10 Recorda-te dia e noite do dia do Juízo e procura constantemente a companhia


dos santos, quer tenhas de conversar, exortar, ou reflectir como poderás salvar uma
alma com a tua palavra, quer tenhas de trabalhar com as tuas mãos para expiar os teus
pecados.
11 Não hesites em dar, nem dês de má vontade; mas recorda quem é Aquele que
dá a justa recompensa. Guarda os mandamentos que recebeste, sem acrescentar nem
tirar nada. Odeia sempre o mal. Julga com justiça.
12 Não provoques desavenças, mas antes restabelece a paz, conciliando os ad-
versários. Confessa os teus pecados. Não vás para a oração de má consciência. Este é
o caminho da luz.
20. 1 Mas o caminho das trevas é tortuoso e cheio de maldições, porque é, na sua 324
totalidade, o caminho da morte eterna nos tormentos. Nele se encontra o que leva as
almas dos homens à perdição: idolatria, arrogância, orgulho do poder, hipocrisia, du-
plicidade de coração, adultério, assassínio, rapina, auto-suficiência, transgressão, fraude,
maldade, insolência, bruxaria, magia, cupidez, ausência de temor de Deus.
2 Os que andam por esse caminho são: perseguidores dos justos, inimigos da
verdade, amantes da mentira e ignorantes da recompensa da justiça; vivem afastados
do bem, não têm juízo recto, nem se preocupam com a viúva e o órfão; fazem vigílias,
não por temor de Deus, mas para fazer o mal; não querem nada com a mansidão e a
paciência, amam as vaidades, correm atrás da recompensa, não têm piedade pelo po-
bre, recusam-se a ajudar o oprimido, são especialistas em difamar, ignoram o seu
Criador, são assassinos de crianças, e destroem pelo aborto aquilo que Deus cria;
afastam-se do miserável, sobrecarregam os infelizes; são defensores dos ricos, juízes
iníquos dos indigentes, pecadores perfeitos.
21. 1 É bom instruir-se sobre todos os mandamentos do Senhor que estão escritos e 325
conformar com eles a própria vida. Porque aquele que os pratica será glorificado no
reino de Deus, mas aquele que escolher o outro caminho perecerá com as suas obras. É
por isso que há uma ressurreição, é por isso que há uma retribuição.
2 Eis o que vos peço a vós, os notáveis, se quiserdes aceitar um conselho bem
intencionado: Tendes à vossa volta pessoas a quem fazer o bem; não vos esqueçais
disso. 3 Está próximo o dia em que todas as coisas perecerão com o Maligno. O Senhor
está perto com a sua retribuição.
4 Volto a pedir-vos: Sede bons legisladores para vós mesmos, permanecei bons
conselheiros para vós mesmos, afastai-vos de toda a hipocrisia. 5 E o Deus que reina
no mundo inteiro vos dê a sabedoria, a inteligência, a ciência, o conhecimento da sua
vontade e a perseverança.
6 Deixai-vos instruir por Deus, perguntando a vós mesmos o que o Senhor vos
pede, e fazei-o para encontrardes o que procurais no dia do julgamento. 7 Se em vós
existe alguma recordação do bem, lembrai-vos de mim, conservando tudo isto no cora-
ção. Desse modo o meu ardor e as minhas vigílias servirão para alguma coisa de bom.
8 Eu vo-lo peço com insistência, como uma graça: Enquanto estiverdes unidos ao
corpo, este belo vaso, não sejais negligentes, mas procurai constantemente estas coi-
sas e cumpri todos os mandamentos. Eles merecem-no. 9 Foi por isso que pus tanto
zelo em escrever-vos, segundo as minhas capacidades. Saúdo-vos, filhos do amor e da
paz. O Senhor da glória e de toda a graça esteja com o vosso espírito.
124 SÉCULO II

Aristides de Atenas

Apologia 1

326 15. 1 Os cristãos têm a sua origem no Senhor Jesus Cristo, confessado como Filho
do Deus Altíssimo no Espírito Santo... 2 Jesus teve doze discípulos que, depois da sua
Ascensão aos Céus, foram às províncias do Império e ensinaram a grandeza de Cristo.
Um deles percorreu os nossos próprios lugares pregando a doutrina da verdade. É por
essa razão que todos aqueles que ainda servem a justiça da sua pregação são chamados
cristãos... 2
3 Os cristãos são os que, mais do que todas as nações da terra, encontraram a
verdade, pois conhecem Deus, Criador e autor do universo em seu Filho unigénito e no
Espírito Santo, e não adoram nenhum outro Deus, nem fazem aos outros o que não
querem que lhes façam a eles...
4 As suas mulheres são puras, como virgens, as suas filhas modestas, e os
homens abstêm-se de toda a união ilegítima e de toda a impureza. Aos servos e servas
e a seus filhos, se algum os tem, persuadem-nos a fazer-se cristãos, e, quando isso
acontece, chamam-nos irmãos.
5 Amam-se uns aos outros, não desprezam as viúvas, defendem o órfão das mãos
de quem o trata com violência, e aquele que possui bens dá sem inveja ao que não tem...
6 Quando sabem que algum dos seus está na prisão ou é oprimido por causa do nome
de Cristo, socorrem com solicitude a sua necessidade, e, se é possível libertá-lo, liber-
tam-no... 7 Se entre eles alguém é pobre e passa necessidades, e os outros não têm
abundância de meios, jejuam dois ou três dias para satisfazer a falta de alimento
daquele que não tem...
8 Estão dispostos a dar a vida por Cristo, pois guardam com firmeza os seus
mandamentos, vivendo em santidade e justiça, conforme ordenou o Senhor Deus.
Todas as manhãs e a todas as horas, louvam e glorificam a Deus pelos benefícios que
lhes faz e dão graças pela comida e pela bebida.
9 Se entre eles um justo passa deste mundo, alegram-se e dão graças a Deus e
acompanham o corpo, como se emigrasse de um lugar para o outro. Se um dos fiéis vem
a morrer, procuram-lhe a salvação celebrando a Eucaristia e orando junto do seu corpo3.
10 Se lhes nasce um filho, dão graças a Deus, e se acaso (esta criança) morre em
tenra idade, dão muitíssimas graças a Deus, porque atravessou o mundo sem pecado...4
327 16. As outras nações erram e enganam-se a si mesmas; andam nas trevas... Não
duvido em afirmar que o mundo continua a existir unicamente graças às orações e
súplicas dos cristãos.

1
A RISTIDES DE A TENAS , Apologia (=PG 5, 1267-1268; C. B ONA , L’Apologia di Aristide, Roma 1950; BAC
116, 130-131). Aristides foi o primeiro apologista cristão: «Aristides, homem de fé e dedicado à nossa
religião, deixou-nos uma Apologia em defesa da fé, que dirigira a Adriano» (Eusébio de Cesareia,
História Eclesiástica IV, 3, 3). Compos a sua obra entre 140-143. Versão siríaca e fragmentos gregos.
2
Da versão grega.
3
Fragmento editado por H. J. M. Milne, em 1924.
4
Da versão siríaca.
HERMAS 125

Hermas

O Pastor 1

VISÃO 1

1. 1 O meu senhor tinha-me vendido em Roma, a uma certa Rodes. Muitos anos 328
depois voltei a vê-la e comecei a amá-la como a uma irmã2. 2 Certo dia, vi-a a tomar
banho no Tibre, estendi-lhe a mão e fi-la sair do rio. Ao ver a sua beleza, pus-me a reflectir
e a dizer no meu coração: Seria muito feliz se tivesse uma mulher desta beleza e com
este carácter. Era isto o que eu pensava, sem ir mais além.
3 Algum tempo depois caminhava eu para Cumes e pensava em como as obras de
Deus são grandes, maravilhosas e fortes. Enquanto caminhava, tive uma visão... 4 e vi
esta mulher que eu tinha desejado. Ela saudou-me do Céu e disse-me: «Bom dia,
Hermas». 5 Olhei para ela e disse-lhe: «Senhora, que fazeis aí»? Ela respondeu-me:
«Fui transportada (ao Céu) para denunciar os teus pecados ao Senhor»...

VISÃO 2

6. 1 Após quinze dias de jejum e de muitas perguntas feitas ao Senhor, foi-me 329
revelado o sentido do texto. Eis o que estava escrito: 2 Os teus filhos, Hermas, revol-
taram-se contra Deus, blasfemaram o nome do Senhor e traíram os seus pais com muita
maldade. Ouviram-nos chamar traidores a seus pais, e esta traição não lhes serviu de
nada. Acrescentaram aos seus pecados libertinagem e infâmias vergonhosas, levando
as suas iniquidades até ao cúmulo. 3 Dá a conhecer estas palavras aos teus filhos e à
tua mulher, que doravante será para ti uma irmã. Ela não domina a língua, sendo por aí
que ela peca; mas, depois de escutar estas palavras, dominá-la-á e alcançará misericórdia.
4 Depois de teres dado a conhecer estas palavras, que o Mestre me mandou
revelar-te, todos os pecados anteriores lhes serão perdoados, assim como a todos os
santos que pecaram até hoje, se se arrependerem do fundo dos seus corações e deles
arrancarem toda a hesitação. 5 Porque o Mestre jurou-o por sua glória a propósito dos
seus eleitos. Se, depois desse dia fixado como limite, voltarem a pecar, não receberão
a salvação. Porque, para os justos, a penitência chegou ao fim; passaram os dias de
penitência para todos os santos. Quanto aos gentios, a penitência pode ser feita até ao
último dia. 6 Dirás, portanto, aos chefes da Igreja que andem com rectidão nos cami-
nhos da justiça, para receberem plenamente, com grande glória, a recompensa que lhes
foi prometida.
7 Perseverai, pois, vós que praticais a justiça, expulsai toda a hesitação para
caminhardes com os santos Anjos. Felizes, vós que esperais a pé firme a prova que vai
chegar, a grande tribulação, e felizes todos os que não renegarem a sua vida. 8 Porque
o Senhor jurou-o pelo seu Filho: os que renegarem o seu Senhor serão rejeitados da sua

1
H ERMAS , O Pastor (=PG 2, 891-1012; F UNK-D IEKAMP I; GCS 48; SCh 53 bis; C. V OGEL , Paris 1966, 63-66).
Não se sabe ao certo quem seja Hermas. A opinião mais provável apresenta-o como irmão do Papa Pio I, cujo
pontificado decorre entre 140-150, data possível da composição de O Pastor.
2
Estes dados biográficos serão sinceros ou apenas uma ficção literária? Talvez nunca seja possível dirimir
a questão. O Pastor trata das revelações feitas a Hermas.
126 SÉCULO II

vida, pelo menos aqueles que se dispõem a renegá-l’O nos dias que estão para vir.
Quanto àqueles que O renegaram anteriormente, o Senhor, na sua grande misericórdia,
tornou-Se-lhes favorável.
330 8. 2 Depois tive uma visão em minha casa. A mulher idosa veio e perguntou-me se
eu tinha dado o livrinho aos presbíteros. Eu disse que não. «Fizeste bem, disse ela.
Tenho algumas palavras para acrescentar. Quando eu tiver completado tudo, fá-lo-ás
conhecer a todos os eleitos. 3 Farás então duas cópias do livrinho e enviarás uma a
Clemente e outra a Grapté. Clemente enviá-la-á às outras cidades: é a sua missão.
Grapté avisará as viúvas e os órfãos, e tu hás-de lê-lo a esta cidade, na presença dos
presbíteros que dirigem a Igreja».

VISÃO 4 3
331 22. 3 Como eu vou só, peço ao Senhor que complete as revelações e visões que me
mostrou por intermédio da sua Igreja santa, me conforte e dê a penitência aos seus
servos que pecaram, e desse modo será glorificado o seu nome grande e glorioso, pois
me julgou digno de me mostrar as suas maravilhas.

REVELAÇÃO 5 4

332 25. 1 Acabara de orar em minha casa e tinha-me sentado na cama quando vi entrar um
homem de aparência gloriosa, em traje de pastor, envolvido numa pele de cabra branca,
um alforge às costas e um cajado na mão. Saudou-me e eu respondi à sua saudação. 2
Ele sentou-se imediatamente perto de mim e disse-me: «Fui enviado pelo mais venerável
dos Anjos para morar contigo o resto dos teus dias... 5 Toma primeiro nota dos
Preceitos e das Semelhanças. O resto escrevê-lo-ás como eu te indicar; se te mando
escrever em primeiro lugar os Preceitos e as Semelhanças, é para que possas lê-los
imediatamente e observá-los».

PRECEITO 1

333 26. 1 Em primeiro lugar creio que há um só Deus, que criou e organizou o universo,
que fez com que tudo passasse do não-ser ao ser, que contém tudo e é o único que não
pode ser contido.

PRECEITO 4

334 29. 7 Senhor, disse eu, se a mulher (adúltera), depois de ter sido despedida, se
arrepender e desejar voltar para junto do seu marido, não deverá ele recebê-la?
8 Com certeza, respondeu ele. Se o marido a não receber, peca, torna-se respon-
sável dum pecado pesado, porque é preciso acolher o pecador que se arrepende, mas
não muitas vezes. Para os servos de Deus há uma só penitência. É por causa desta
penitência que o homem não deve casar-se. Esta maneira de agir é válida, aliás, tanto
para a mulher como para o homem. 9 O adultério, diz ele, não consiste apenas em sujar
a carne; também comete adultério aquele que vive como os pagãos. Se alguém persiste

3
Pedido de penitência.
4
Há uma diferença entre as quatro primeiras visões e esta, o que aparece até no título: revelação e não visão.
HERMAS 127

nesta maneira de viver e não se arrepende, afasta-te dele, não vivas mais com ele,
senão far-te-ás cúmplice do seu pecado. 10 Se vos foi mandado que permaneçais livres,
homens ou mulheres, é porque, em tais casos, a penitência é possível. 11 A minha
intenção, disse ele, não é facilitar a realização de tais pecados, mas impedir que o
pecador volte a cair. Quanto aos pecados anteriores, há Alguém que pode dar-lhes
remédio: Aquele que tem o poder de fazer tudo.
30. 1 Continuei a interrogá-lo: Já que o Senhor me julgou digno de vos ter sempre em 335
minha casa, suportai ainda algumas palavras minhas, porque não compreendo nada e o
meu coração se tornou duro5 por causa das minhas malfeitorias passadas. Instruí-me,
porque sou um grande ignorante e não compreendo absolutamente nada.
2 Ele respondeu-me: Sou encarregado da penitência e dou compreensão a todos
os que se arrependem. Não te parece que arrepender-se é um acto de inteligência? Sim,
arrepender-se é um acto de grande inteligência, porque o pecador compreende que fez
o mal diante do Senhor6. Então, o acto que ele cometeu sobe-lhe ao coração, ele arre-
pende-se e nunca mais comete o mal, mas, ao contrário, põe todo o cuidado em fazer o
bem, humilha a sua alma e põe-na à prova, uma vez que pecou. Vês, portanto, que
arrepender-se é um acto de grande inteligência.
3 É por isso, Senhor, disse eu, que vos pergunto tudo pormenorizadamente.
Primeiro porque sou pecador e quero saber o que devo fazer para viver, pois os meus
pecados são numerosos e variados.
4 Tu viverás, disse ele, se guardares os seus mandamentos e andares nos seus
caminhos. Quem aprende os mandamentos e os observa, viverá por Deus.
31. 1 Senhor, disse eu, continuarei a fazer-vos perguntas. _ Fala, disse ele. _ Ouvi 336
dizer a certos doutores que não há outra penitência senão aquela que fizemos no dia em
que descemos à água e em que recebemos o perdão dos nossos pecados anteriores.
2 Disse-me ele: E ouviste bem; é isso mesmo. Aquele que recebeu o perdão dos
seus pecados não deveria pecar mais, mas permanecer em santidade. 3 Mas uma vez
que pedes todos os pormenores, revelar-te-ei ainda uma coisa, sem que isso seja
pretexto de pecar para os crentes futuros ou recentes. Tanto aqueles que acabam agora
de abraçar a fé, como aqueles que hão-de abraçá-la nos tempos futuros, não serão
admitidos à penitência: receberam, no baptismo, o perdão dos seus pecados anteriores.
4 Mas, para aqueles que foram chamados antes destes últimos dias, o Senhor
instituiu uma penitência. Porque o Senhor, que conhece os corações e sabe tudo ante-
cipadamente, conheceu a fraqueza dos homens e a grande malícia do Demónio, e sabe
que ele fará mal aos servos de Deus e que exercerá contra eles a sua malícia. 5 Na sua
grande misericórdia, o Senhor teve piedade da sua criatura, instituiu esta penitência e
deu-me o poder de a dirigir. 6 Declaro-te, por isso, disse ele: _ Se, depois deste chama-
mento importante e solene, alguém, tentado pelo Demónio, cair em pecado, pode fazer
penitência uma vez7. Mas, se pecar de novo, mesmo que se arrependa, a penitência não
vale de nada a esse homem: terá muita dificuldade em viver.
7 Eu disse-lhe: Senhor, sinto-me reviver ao escutar essas explicações tão preci-
sas. Agora sei que, se não acrescentar nada mais aos meus pecados, serei salvo. Sê-lo-ás,
respondeu ele, assim como todos aqueles que fizerem assim.

5
Mc 6, 32.
6
Jz 2, 11.
7
mi/ a n meta/ n oian e) / x ei .
128 SÉCULO II

PRECEITO 11

337 43. 9 Quando um homem possuído pelo Espírito divino chega a uma reunião de ho-
mens justos que têm fé no Espírito divino e naquela reunião de homens justos se faz uma
súplica a Deus, então o Anjo do espírito profético, que está junto dele, enche aquele
homem, e assim, cheio do Espírito Santo, o homem fala à multidão segundo a vontade do
Senhor.

SEMELHANÇA 7
338 66. 1 É preciso que sejas atormentado; foi assim que decidiu a teu respeito o Anjo
glorioso. Ele quer que sejas provado. _ Que fiz eu, Senhor, de tão perverso para ser
entregue a este Anjo? 2 _ Escuta, disse ele, os teus pecados são numerosos, mas não
suficientemente graves para que sejas entregue a este Anjo. Ao contrário, a tua casa
cometeu grandes pecados, grandes iniquidades, e o Anjo ordenou que sofras durante
algum tempo, para que eles também se arrependam e se purifiquem de todas as paixões
deste mundo. Quando eles se arrependerem e purificarem, então o Anjo da penitência
afastar-se-á. 3 _ Eu disse-lhe: Senhor, se eles cometeram coisas que irritam o Anjo, que
fiz eu? _ Eles não podem ter tribulações (e, portanto, ser purificados) de outro modo,
se tu, como chefe da casa, as não tiveres.

SEMELHANÇA 9 8
339 91. 3 Por tudo dou graças ao Senhor: por ter tido piedade de todos os que têm o seu
nome e nos ter enviado o Anjo da penitência, a nós que pecámos contra Ele, e por ter
renovado o nosso espírito e dado novo alento à nossa vida, quando já estávamos
corrompidos e sem esperança.
340 93. 1 _ Explica-me, Senhor, disse eu. _ Que procuras tu ainda, respondeu ele? _
Senhor, porque razão é que as pedras subiram do fundo da água para serem colocadas
na construção da torre, trazendo esses espíritos? 2 _ Para obter a vida foi-lhes preciso
sair da água...; 4 o sinal (do Filho de Deus) é, portanto, a água; desce-se morto e sai-se
vivo.

SEMELHANÇA 10

341 114. 1 A seguir disse-me: «Mostra uma energia viril nas tuas funções, revela a toda a
gente as maravilhas do Senhor e terás grandes méritos através deste ministério. Todo o
que caminhar segundo estes preceitos viverá e será feliz na vida; quem os negligenciar
não viverá, e a sua vida (aqui em baixo) será infeliz...».
5 Quando acabou de me falar, o Anjo levantou-se da cama e tomando consigo o
Pastor e as virgens, retirou-se, mas disse-me que voltaria a enviar este Pastor e as
virgens a minha casa.9

8
Acção de graças.
9
Aqui termina O Pastor.
POLICARPO DE ESMIRNA 129

Policarpo de Esmirna

Carta aos Filipenses 1

Policarpo, e os presbíteros que estão com ele, à Igreja de Deus que vive como 342
peregrina em Filipos: A misericórdia e a paz de Deus omnipotente e de Jesus Cristo,
nosso Salvador, se multipliquem entre vós2.
1. 1 Muito me alegro convosco em nosso Senhor Jesus Cristo, porque recebestes 343
aqueles que são as imagens da verdadeira caridade e acompanhastes no seu caminho,
como era de esperar de vós, aqueles que iam presos com cadeias dignas dos santos,
cadeias que são os diademas de quem foi escolhido pelo nosso Deus e Senhor. 2 Alegro-
-me também porque a raiz vigorosa da vossa fé, tão celebrada desde tempos antigos,
ainda permanece até aos nossos dias e produz frutos em nome do Senhor Jesus Cristo,
que, por nossos pecados, foi voluntariamente ao encontro da morte, e que Deus res-
suscitou, libertando-O das cadeias da morte3. 3 Sem O verdes ainda, vós acreditais
n’Ele com uma alegria inefável e gloriosa 4, – alegria que muitos desejariam alcançar
– porque sabeis que fostes salvos pela graça e não pelas obras5, salvos pela vontade
de Deus em Cristo Jesus.
4. 2 Ensinai as vossas esposas a viver na caridade e na castidade segundo a fé que 344
receberam, a amar os seus maridos com toda a fidelidade, a estimar toda a gente com
sinceridade e a educar os filhos no temor de Deus.
3 Ensinem-se as viúvas a ser prudentes segundo a fé no Senhor, intercedendo
incessantemente por todos, afastando-se de toda a calúnia, maledicência, falso teste-
munho, avareza e toda a espécie de mal, reconhecendo que são altar de Deus e que o
Senhor conhece claramente todas as coisas e não ignora os pensamentos, os sentimentos
ou os mais íntimos segredos do coração.
5. 1 Sabendo, portanto, que de Deus não se escarnece 6, devemos viver de maneira 345
digna dos seus mandamentos e da sua glória.
2 Os diáconos sejam irrepreensíveis na santidade como ministros de Deus e de
Cristo, e não dos homens. Não devem ser homens sem palavra, caluniadores ou avaros,
mas sóbrios em tudo, misericordiosos, solícitos, procedendo sempre segundo a verdade
do Senhor, que Se fez servo de todos. Se Lhe agradarmos nesta vida presente, recebe-
remos, como prémio, a vida futura, como nos prometeu; se vivermos de maneira digna
d’Ele, perseverando firmemente na fé, Ele nos ressuscitará e com Ele reinaremos7.

1
P OLICARPO DE E SMIRNA , Epistulae (=PG 5, 1005-1016; F UNK -DIEKAMP I; SCh 10 bis). Policarpo, bispo de
Esmirna, viveu entre 70-156, foi discípulo do apóstolo São João. Escreveu uma carta (ou várias) aos
Filipenses, enviando-lhes as de Santo Inácio e confirmando todos os preceitos de vida cristã.
2
A Carta aos Filipenses é do ano 130.
3
Act 2, 24.
4
1 Ped 1, 8.
5
Ef 2, 5.8-9.
6
Gal 6, 7.
7
2 Tim 2, 12.
130 SÉCULO II

346 6. 1 Os presbíteros sejam compassivos e misericordiosos para com todos;


reconduzam ao bom caminho os errantes, visitem todos os enfermos, sem descuidar a
viúva, o órfão ou o pobre; procurem fazer sempre o bem diante de Deus e dos homens,
abstendo-se de toda a ira, da acepção de pessoas, do juízo injusto e de toda a espécie
de avareza; não acreditem facilmente no mal que se diz contra alguém, não julguem com
excessiva severidade, tendo sempre presente que todos somos pecadores.
2 Se pedimos ao Senhor que nos perdoe, também nós devemos perdoar: estamos
todos sob o olhar do nosso Deus e Senhor e havemos de comparecer todos diante do
tribunal de Cristo, onde cada um dará contas de si mesmo8. 3 Sirvamo-l’O, portanto,
com temor e reverência, como nos mandou Ele mesmo e os Apóstolos que nos anunci-
aram o Evangelho, e os Profetas que nos predisseram a vinda de nosso Senhor; sejamos
zelosos em praticar o bem, evitemos os escândalos, os falsos irmãos e os que anunciam
hipocritamente o nome do Senhor induzindo em erro os incautos.
347 7. 2 Abandonando os vãos discursos e as falsas doutrinas que muitos sustentam,
voltemo-nos para a doutrina que desde o princípio nos foi transmitida; sejamos sóbrios
para nos entregarmos à oração, perseveremos nos jejuns e supliquemos a Deus, que
tudo vê, para que não nos deixe cair em tentação9, porque, como disse o Senhor, o
espírito está pronto mas a carne é fraca10.
348 8. 1 Perseveremos inabalavelmente, firmes na nossa esperança e no penhor da nos-
sa justificação, Jesus Cristo; Ele que não cometeu pecado e em cuja boca não se
encontrou mentira 11 , suportou os nossos pecados no seu corpo sobre o madeiro
da cruz12 e tudo sofreu por nós, a fim de que vivamos n’Ele.
2 Sejamos imitadores da sua paciência; e, se padecemos por sua causa, dêmos
glória ao seu nome. Este foi o exemplo que Ele nos deu com a sua vida, e é nisso que nós
acreditámos.
349 9. 1 Peço-vos a todos que obedeçais à palavra da justiça e em tudo exerciteis a
paciência. Esta paciência pudestes vós contemplá-la com os vossos próprios olhos, não
só nos bem-aventurados Inácio, Zósimo e Rufo, mas também em muitos outros que
eram da vossa comunidade, e no próprio Paulo e nos outros Apóstolos. 2 Lembrai-vos
de que todos estes não correram em vão13, mas na fé e na justiça, e se encontram
agora no lugar que mereceram, junto do Senhor, com quem também padeceram. Porque
eles não amaram este mundo, mas Aquele que por nós morreu e por nós ressuscitou.
350 10. 1 Permanecei nestes sentimentos e segui o exemplo do Senhor, firmes e inabalá-
veis na fé, amando-vos uns aos outros com amor fraterno, conservando-vos unidos na
verdade, procedendo reciprocamente com a mansidão do Senhor, sem desprezar nin-
guém. 2 Quando puderdes fazer o bem, não adieis a oportunidade, porque a esmola livra
da morte14. Sede submissos uns para com os outros, tende no meio dos pagãos um
comportamento irrepreensível, de modo a merecerdes ser louvados pelas vossas boas
obras, e o Senhor não seja blasfemado por vossa culpa. Ai daquele por cuja culpa se
blasfema o nome de Deus15! Ensinai a todos a viver santamente, como vós mesmos
viveis.

8
Rom 14, 10-12.
9
Mt 6, 13.
10
Mt 26, 41.
11
1 Ped 2, 22.
12
1 Ped 2, 24.
13
Gal 2, 2; Filip 2, 16.
14
Tob 12, 9.
15
Is 52, 5.
POLICARPO DE ESMIRNA 131

11. 1 Estou profundamente contristado por causa de Valente, que foi durante algum 351
tempo presbítero na vossa comunidade e que vive agora esquecido do ministério que se
lhe tinha confiado. Por isso, vos exorto a que eviteis a avareza e sejais castos e leais.
Fugi de todo o mal. 2 Quem não se pode controlar nestas coisas, como irá anunciá-las
aos outros? Quem não se abstém da avareza, acaba por ser contagiado pela idolatria e
considerado como pagão que ignora o juízo de Deus. Ou não sabemos que os santos
julgarão o mundo, como ensina Paulo? 3 Por minha parte, nada disto conheci ou ouvi
dizer de vós, em cuja comunidade trabalhou o bem-aventurado Paulo, que vos louva no
início da sua Epístola. Com efeito, Paulo gloria-se de vós perante todas as Igrejas que
então conheciam a Deus, quando nós ainda O não conhecíamos. 4 É por isso, irmãos,
que estou muito contristado por causa de Valente e de sua esposa. O Senhor lhes con-
ceda o verdadeiro arrependimento. Tratai-os com discreção e não os considereis como
inimigos16, mas reconduzi-os como membros que sofrem e erram, para que todo o
corpo seja salvo. Fazendo assim, edificar-vos-eis a vós mesmos.
12. 1 Estou persuadido de que vos encontrais bem instruídos nas Sagradas Escrituras e 352
nada ignorais. De mim não posso dizer o mesmo. Pois bem, diz-se nestas Escrituras: Se
vos sentirdes irados, não pequeis, e não se ponha o sol sobre a vossa ira17. Feliz
de quem tiver isto em conta. Julgo que é o que sucede convosco.
2 Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e o mesmo Jesus Cristo, Pontífice
eterno, Filho de Deus, vos façam crescer na fé e na verdade, em toda a mansidão e sem
ira, na paciência e na longanimidade, na fortaleza e na castidade. O Senhor vos faça
tomar parte na herança dos seus santos e, juntamente convosco, também a nós e a
todos quantos vivem debaixo do céu e hão-de acreditar em nosso Senhor Jesus Cristo
e em seu Pai, que O ressuscitou dos mortos. 3 Rezai por todos os santos. Orai também
pelos reis, pelas autoridades e pelos príncipes, por aqueles que vos perseguem e
odeiam e pelos inimigos da cruz, a fim de que o vosso fruto se manifeste em todas as
circunstâncias e sejais perfeitos em Cristo18.
13. 1 Escrevestes-me, tanto vós como Inácio, a dizer que, se alguém fosse à Síria, 353
levasse a vossa carta. Levá-la-ei, logo que tiver ocasião favorável; irei eu pessoalmente
ou enviarei um legado em meu e vosso nome. 2 Como me pedistes, enviámo-vos as
cartas de Inácio, tanto as que ele nos escreveu como todas as outras que temos em
nossa mão; mandamo-las juntamente com esta carta. Elas vos serão de grande proveito,
porque estão cheias de fé, de fortaleza e de tudo o que pode promover a vossa edifica-
ção no Senhor. Não deixeis de nos comunicar tudo o que souberdes acerca de Inácio e
de seus companheiros.
14. 1 Remeto-vos esta carta por Crescente, que já vos recomendei pessoalmente e 354
agora novamente recomendo. Tem vivido entre nós de modo irrepreensível, e creio que
procederá do mesmo modo entre vós. Recomendo-vos também sua irmã, para quando
for ter convosco. Permanecei firmes no Senhor Jesus Cristo. A sua graça esteja com
todos vós. Amen.

16
2 Tes 3, 15.
17
Sal 4, 5; Ef 4, 26.
18
Fórmula litúrgica.
132 SÉCULO II

Igreja de Esmirna

Carta sobre o martírio de São Policarpo 19


355 A Igreja de Deus que vive em Esmirna à Igreja de Deus que vive em Filomélio e
a todas as comunidades da santa Igreja católica onde quer que vivam: A misericórdia, a
paz e o amor de Deus Pai e de nosso Senhor Jesus Cristo vos sejam dadas em plenitude.
356 1. 1 Escrevemo-vos, irmãos, acerca dos mártires e do bem-aventurado Policarpo,
que, pelo seu martírio, coroou, por assim dizer, a perseguição, fazendo-a cessar. Quase
todos os acontecimentos anteriores sucederam para que o Senhor nos mostre, ainda
uma vez, um mártir segundo o Evangelho. 2 Com efeito, tal como o Senhor, Policarpo
esperou ser entregue, para que nós também sejamos seus imitadores, sem termos só
em mira os nossos interesses, mas também os do próximo. Com efeito, a prova duma
caridade verdadeira e sólida é não procurar apenas salvar-se cada um a si mesmo, mas
também salvar todos os irmãos.
357 2. 1 Bem-aventurados e generosos são todos estes mártires que o foram segundo a
vontade de Deus. Temos de ser muito piedosos para atribuir a Deus o poder sobre
todas as coisas. 2 Quem não haveria de admirar a sua generosidade, paciência e amor
pelo Mestre? Dilacerados pelos chicotes, até ao ponto de podermos ver a constituição
da sua carne mesmo nas veias e artérias interiores, permaneceram firmes quando os
próprios espectadores soltavam gemidos de compaixão. Chegaram a um tal grau de
coragem que nem um sequer disse uma palavra nem soltou um suspiro. Mostraram-nos
a todos nós que, nas suas torturas, os generosos mártires de Cristo já não estavam nos
seus corpos, ou antes que o Senhor estava neles e com eles Se entretinha. 3 Atentos à
graça de Cristo, desprezavam os tormentos deste mundo, e numa hora compravam a vida
eterna. O próprio fogo dos carrascos desumanos era frio para eles, porque tinham dian-
te dos olhos o pensamento de escapar ao fogo eterno que não se extingue, e os olhos
dos seus corações olhavam para os bens reservados à paciência, bens que os ouvidos
não ouviram, que os olhos não viram e que o coração do homem não pressentiu, mas
que o Senhor lhes mostrou, a eles que já não eram apenas homens, mas Anjos. 4 Tam-
bém aqueles que tinham sido condenados às feras suportaram terríveis suplícios: esten-
deram-nos sobre espinhos afiados e fizeram-nos suportar toda a espécie de tormentos
variados, para os levar a renegar, se possível, através deste suplício prolongado.
358 3. 1 O Diabo maquinava contra eles toda a espécie de suplícios, mas, graças a Deus,
não conseguiu vencer contra nenhum deles. O generoso Germânico, pela sua constân-
cia, fortificava a timidez de todos. Foi admirável na luta contra as feras. O procônsul
queria dobrá-lo e dizia-lhe que tivesse pena da sua juventude; mas ele atraiu sobre si a
fera obrigando-a a lançar-se sobre ele, por querer libertar-se mais depressa desta vida
injusta e iníqua. 2 Então toda a multidão, admirada perante a coragem da santa e
piedosa raça dos cristão, gritou: «Abaixo os ateus; fazei vir Policarpo».
359 4. 1 Mas um de entre eles, chamado Quinto, um Frígio recentemente chegado da
Frígia, tomou-se de pânico ao ver as feras. Fora ele que arrastara alguns irmãos a
apresentarem-se espontaneamente com ele ao juiz. O procônsul conseguiu, pelos seus
pedidos insistentes, persuadi-lo a jurar e a sacrificar. É por isso, irmãos, que não louva-
mos aqueles que se apresentam por si mesmos, pois não é esse o ensinamento do Evan-
gelho.

19
IGREJA DE ESMIRNA, Epistula Ecclesiae Smyrnensis de martyrio S. Polycarpi (=PG 5, 1029-1046; SCh 10 bis; E.
LODI, Roma 1979, 99). Desta narrativa de paixão, composta por um certo Marcião sob a forma de carta enviada
pela comunidade de Esmirna à Igreja de Filomélio, faz parte a oração do martírio que utiliza locuções litúrgicas.
IGREJA DE ESMIRNA 133

5. 1 Quanto ao admirável Policarpo, primeiro não se perturbou com essas notícias. 360
Quis permanecer na cidade. Mas a maioria procurava persuadi-lo a afastar-se secreta-
mente. Então retirou-se para uma pequena propriedade, situada perto da cidade, com
um pequeno número de companheiros. Noite e dia não cessava de orar por todos os
homens e pelas Igrejas do mundo inteiro, como era seu hábito. 2 Quando estava a orar,
teve uma visão, três dias antes de ser preso. Viu o travesseiro totalmente queimado
pelo fogo, e voltando-se para os companheiros disse-lhes: «Devo ser queimado vivo».
6. 1 Como continuavam a procurá-lo, foi para outra propriedade, e chegaram ime- 361
diatamente aqueles que o procuravam. Não o tendo encontrado, prenderam dois escra-
vos pequenos, e um deles, posto em tormentos, confessou. 2 Tornou-se-lhe impossível
escapar, dado que os denunciadores eram da sua casa e que o chefe da polícia, que
recebera o mesmo nome que Herodes, tinha pressa de o conduzir ao estádio. Assim ia
cumprir o seu destino, entrando em comunhão com Cristo. Quanto aos que o tinham
entregue receberiam o castigo do próprio Judas.
7. 1 Levando com eles o escravo, – era uma sexta-feira, à hora de jantar, – os 362
polícias e os cavaleiros, armados como é costume, partiram como se corressem atrás de
um malfeitor. E, já de noite, aparecendo todos juntos em tropel, encontraram-no a
dormir num pequeno quarto no andar de cima. Ele podia ainda ter fugido para outra
propriedade, mas não quis e disse: «Faça-se a vontade de Deus». 2 Ao saber que os
agentes estavam ali, desceu e falou com eles, que se admiraram da sua idade e da sua
calma, e de todos os esforços desenvolvidos para prender um homem tão velho. Ime-
diatamente, naquela mesma hora, mandou que lhes dessem de comer e de beber tanto
quanto quisessem. Mas pediu-lhes que lhe dessem uma hora para orar à sua vontade.
Eles concederam-lha, e ele, de pé, começou a orar, de tal modo cheio da graça de Deus
que, durante duas horas, não cessou de falar. Aqueles que o ouviam estavam admirados
e muitos arrependeram-se de ter vindo prender um tão santo velho.
8. 1 Quando, por fim, acabou a sua oração, na qual recordou todos aqueles que 363
tinha encontrado, pequenos e grandes, ilustres ou obscuros, e toda a Igreja católica
dispersa pela terra inteira, eram horas de partir. Fizeram-no montar sobre um jumento
e levaram-no para a cidade. Era o dia do grande Sábado. 2 Herodes, o chefe da polícia,
e seu pai Nicetas vieram ao seu encontro, fizeram-no subir para a sua carruagem e,
sentados a seu lado, tentaram persuadi-lo, dizendo-lhe: «Que mal haverá em dizer:
César é Senhor, em sacrificar e tudo o mais, para salvar a sua vida»? Ao princípio nada
respondeu, mas como eles insistiam, disse: «Não farei aquilo que me aconselhais». 3
Então, não conseguindo persuadi-lo, dirigiram-lhe toda a espécie de injúrias e manda-
ram-no descer da viatura tão precipitadamente que ele partiu a canela da perna. Sem se
voltar, e, como se nada lhe tivesse acontecido, caminhava bem disposto. Dirigiu-se
para o estádio, onde o barulho era tal que ninguém conseguia fazer-se ouvir.
9. 1 Quando Policarpo entrou no estádio, ouviu-se uma voz vinda do céu: «Coragem, 364
Policarpo, e sê um homem». Ninguém viu quem falava, mas a voz foi ouvida pelos
nossos que estavam lá. Finalmente fizeram-no entrar. Quando o público soube que
Policarpo fora preso, foi um barulho imenso. 2 O procônsul fê-lo vir até junto de si e
perguntou-lhe se ele era Policarpo. Ele respondeu que sim, e o procônsul tentou fazê-lo
renegar, dizendo-lhe: «Tem pena da tua idade avançada», e tudo o mais que é costume
dizer em casos semelhantes: «Jura pela felicidade de César, muda de pensar, diz: Abai-
xo os ateus». Mas Policarpo olhou com rosto sério essa multidão de pagãos ímpios no
estádio, e fez um gesto com a mão contra ela. Depois, suspirando e levantando os olhos,
disse: «Abaixo os ateus». 3 O procônsul insistia dizendo: «Jura, e deixar-te-ei ir, amaldi-
çoa Cristo». Respondeu Policarpo: «Há oitenta e seis anos que O sirvo, e Ele nunca me
fez nenhum mal. Como poderia blasfemar contra o meu Rei, que me salvou»?
134 SÉCULO II

365 10. 1 E, como ele continuava a insistir e dizia: «Jura pela felicidade de César», Policarpo
respondeu: «Se pensas que eu vou jurar pela felicidade de César, como tu dizes, e se
fazes de conta que não sabes quem eu sou, escuta, digo-to francamente: Eu sou cristão.
E se tu queres aprender de mim a doutrina do cristianismo, concede-me um dia, e escu-
ta-me». O procônsul respondeu: «Convence disso o povo». 2 Policarpo replicou: «Con-
tigo quero discutir; nós aprendemos, com efeito, a respeitar de modo conveniente as
autoridades e os poderes estabelecidos por Deus, se isso não nos causar prejuízo. Mas
àqueles, não os considero dignos de me defender diante deles».
366 11. 1 O procônsul disse: «Tenho feras, e, se não mudares de parecer, lançar-te-ei a
elas». Ele disse: «Chama-as, pois é impossível para nós mudar de opinião para passar
do melhor para o pior, embora seja bom passar do mal à justiça». 2 O procônsul
respondeu-lhe: «Se não mudas de opinião, far-te-ei queimar pelo fogo, uma vez que
desprezas as feras». Policarpo disse-lhe: «Ameaças-me com um fogo que queima um
momento e pouco tempo depois se extingue, porque ignoras o fogo do julgamento
futuro e do suplício eterno, reservado para os ímpios. Mas porquê demorar? Vai e faz
o que quiseres».
367 12. 1 Eis o que ele dizia e muitas outras coisas ainda. Estava cheio de força e de
alegria e o seu rosto enchia-se de graça. Não só não ficara abatido nem perturbado com
tudo o que lhe tinham dito, mas ao contrário. O procônsul estava admirado, e enviou
o seu arauto ao meio do estádio proclamar por três vezes: «Policarpo declarou-se
cristão». 2 A estas palavras do arauto, toda a multidão dos pagãos e dos Judeus
estabelecidos em Esmirna, numa explosão de cólera, se pôs a gritar: «Esse é o doutor
da Ásia, o Pai dos cristãos, o destruidor dos nossos deuses. É ele que ensina tanta
gente a não sacrificar e a não adorar». Ao dizerem isto, soltavam gritos e pediam ao
asiarca Filipe que soltasse um leão sobre Policarpo. Este respondeu que não tinha
direito de fazer isso, uma vez que os combates de feras já tinham terminado. 3 Então
lembraram-se de gritar todos juntos: «Policarpo seja queimado vivo»! Era preciso que
se cumprisse a visão que lhe tinha sido mostrada: durante a sua oração, ao ver o seu
travesseiro em fogo, dissera profeticamente aos fiéis que estavam com ele: «Devo ser
queimado vivo».
368 13. 1 Então tudo se passou muito depressa, em menos tempo do que aquele que é
preciso para o dizer. Imediatamente a multidão foi aos compartimentos e aos banhos
juntar lenha e materiais. Sobretudo os Judeus fizeram-no com grande entusiasmo,
como é seu hábito. 2 Quando ficou pronta a fogueira, Policarpo desfez-se de todas as
vestes, desapertou o cinto e quis descalçar-se sozinho: antes nunca o fazia, porque
todos os fiéis se precipitavam a ajudá-lo, vendo qual o tocava primeiro; na verdade,
mesmo antes do martírio, ele era tratado com grande respeito por causa da santidade da
sua vida.
3 Logo o rodearam com todos os materiais preparados para a fogueira. Quando
o quiseram pregar ao poste, ele disse: «Deixem-me assim; Aquele que me concedeu a
graça de morrer no fogo, também me concederá que permaneça imóvel no meio dele,
mesmo sem a caução dos vossos cravos».
369 14. 1 Então não o pregaram, mas limitaram-se a amarrá-lo. Com as mãos atrás das
costas e amarrado, era como um carneiro escolhido de entre um grande rebanho para o
sacrifício, um holocausto agradável preparado para Deus. Levantou os olhos ao céu, e
disse:
«Senhor, Deus Omnipotente, Pai do vosso amado e bendito Filho Jesus Cristo,
por meio do qual Te conhecemos, Deus dos Anjos, das Potestades, de toda a criação e
de todos os justos que vivem na tua presença, eu Te bendigo porque Te dignaste, neste
dia e nesta hora, incluir-me no número dos teus mártires, fazer-me tomar parte no
cálice do teu Ungido e, pelo Espírito Santo, alcançar a ressurreição na vida eterna, na
IGREJA DE ESMIRNA 135

incorruptibilidade da alma e do corpo; no meio dos teus mártires Te peço que eu seja
hoje recebido na tua presença como sacrifício abundante e agradável, tal como Tu o
tinhas preparado, e mo deste a conhecer, e agora o realizas, ó Deus verdadeiro e sem
falsidade.
Por todas as coisas Te louvo, Te bendigo, Te glorifico por meio do eterno e celeste
Pontífice, Jesus Cristo, teu amado Filho. Por Ele Te seja dada toda a glória, em união
com Ele e com o Espírito Santo, agora e nos séculos que hão-de vir. Amen» 20.
15. 1 Depois de ter dito «Amen» e terminada a prece, os verdugos acenderam o fogo. 370
Levantou-se uma grande labareda; e então nós vimos o milagre (aqueles a quem foi
concedido contemplá-lo, porque fomos guardados para anunciar aos outros as coisas
que aconteceram): 2 o fogo tomou a forma de uma abóbada, como a vela de um navio
enfunada pelo vento, e rodeou o corpo do mártir; ele estava posto no meio, não como
carne que é queimada, mas como um pão que coze, ou como oiro e prata incandescente
na fornalha. E sentíamos um odor de tal suavidade, que parecia que estavam a queimar
incenso ou outro perfume precioso.
16. 1 Por fim, vendo que o fogo não podia consumir o seu corpo, os ímpios ordena- 371
ram ao confector que fosse trespassá-lo com o seu punhal. Quando ele o fez, jorrou
uma quantidade de sangue que extinguiu o fogo, e toda a multidão se admirou ao ver
uma tal diferença entre os descrentes e os eleitos. 2 Entre estes se contou, em nossos
dias, o admirável Policarpo, mestre apostólico e profético, bispo da Igreja católica de
Esmirna. Cada palavra que saiu da sua boca se cumpriu ou virá a cumprir-se.
17. 1 Mas o invejoso, o ciumento, o malvado, o Adversário da raça dos justos, ao ver 372
a grandeza do seu testemunho e a sua vida desde o princípio sem mancha, ao vê-lo
coroado com a coroa da imortalidade e a receber uma recompensa incontestada, tentou
impedir-nos de levar o seu corpo, apesar de muitos de entre nós o quererem fazer para
ficarmos na posse da sua santa carne. 2 Sugeriu por isso a Nicetas, pai de Herodes,
irmão de Alceia, que fosse encontrar-se com o magistrado para que ele não nos desse o
corpo: «Para que eles não vão abandonar o Crucificado, dizia ele, e começar a prestar
culto a este». Ele dizia isso perante as sugestões insistentes dos Judeus, que nos
tinham vigiado quando queríamos retirar o corpo do fogo. Ignoravam que nós não
podemos jamais abandonar Cristo, que sofreu pela salvação de todos aqueles que estão
salvos no mundo, Ele o inocente entregue pelos pecadores, nem prestar culto a qual-
quer outro. 3 Porque a Ele adoramo-l’O por ser o Filho de Deus; quanto aos mártires,
amamo-los como discípulos e imitadores do Senhor, o que é justo, por causa da devo-
ção incomparável que eles tiveram para com o seu Rei e Senhor; pudéssemos nós
também ser seus companheiros e condiscípulos.
18. 1 O centurião, ao ver a querela suscitada pelos Judeus, expôs o corpo no meio da 373
arena e fê-lo queimar, como era costume. 2 Deste modo nós pudemos recolher mais
tarde os seus ossos mais preciosos do que pedras de grande valor ou do que o ouro,
para os depormos num lugar conveniente. 3 É lá, na medida do possível, que o Senhor
nos permitirá reunirmo-nos na alegria e na felicidade, para celebrar o dia aniversário do
seu martírio, em memória daqueles que combateram antes de nós, e para exercitar e
preparar aqueles que devem combater no futuro.
19. 1 Esta é a história do bem-aventurado Policarpo, que foi, com os seus irmãos de 374
Filadélfia, o décimo segundo a sofrer o martírio em Esmirna. Mas guardamos a sua
memória mais que a dos outros, de modo que, por toda a parte, os próprios pagãos
falam dele. Ele não só foi um doutor célebre, mas também um mártir eminente, cujo
martírio, conforme o Evangelho de Cristo, todos desejam imitar. 2 Pela sua paciência
triunfou do magistrado iníquo, e, dessa forma, ganhou a coroa da imortalidade; com os

20
Oração anafórica.
136 SÉCULO II

Apóstolos e todos os justos, na alegria, glorifica a Deus, Pai todo-poderoso, e bendiz


nosso Senhor Jesus Cristo, o Salvador das nossas almas e o piloto dos nossos corpos,
o pastor da Igreja universal por toda a terra.
375 20. 1 Desejastes ser informados com mais pormenores sobre estes acontecimentos.
Por agora, demo-vos um relato sumário através do nosso irmão Marcião. Quando
tiverdes tomado conhecimento desta carta, transmiti-a aos irmãos que estão mais
longe, para que também eles glorifiquem o Senhor, que faz a sua escolha entre os seus
servos.
2 Àquele que, por sua graça e seu dom nos pode introduzir a todos no seu reino
eterno pelo seu único Filho Jesus Cristo, a Ele a glória, a honra, o poder, a grandeza
pelos séculos21. Saudai todos o santos. Aqueles que estão connosco saúdam-vos, e
também Evaristo, que escreveu esta carta, com toda a sua família.
376 21. 1 O bem-aventurado Policarpo deu testemunho no início do mês de Xântico, no
segundo dia, no sétimo dia antes das Calendas de Março, num dia de Sábado Maior, à
hora oitava (duas horas da tarde). Fora preso por Herodes, sob o pontificado de Filipe
de Trales, e no proconsulado de Estácio Quadrado, mas sob o reino eterno de nosso
Senhor Jesus Cristo. A Ele seja dada glória, honra, grandeza e poder eterno de geração
em geração. Amen.22
377 22. 1 Desejamo-vos, irmãos, muita saúde. Vivei segundo o Evangelho, na palavra de
Jesus Cristo. Com Ele, glória a Deus Pai e ao Espírito Santo, para a salvação dos
santos eleitos. Foi assim que o bem-aventurado Policarpo deu testemunho; possamos
nós seguir os seus passos e encontrarmo-nos com ele no reino de Deus. 2 Gaio trans-
creveu esta carta a partir do manuscrito de Ireneu, discípulo de Policarpo; Gaio viveu
com Ireneu. E eu, Sócrates, copiei-a, em Corinto, a partir da cópia de Gaio. A graça
esteja convosco. 3 E eu, Piónio, por minha vez, copiei-a a partir do exemplar citado,
que procurei, depois de o bem-aventurado Policarpo, numa revelação, mo ter mostra-
do, como o direi a seguir. Reuni os fragmentos quase destruídos pelo tempo. Assim me
reúna o Senhor Jesus Cristo com os seus eleitos no reino do Céu: a Ele a glória com o
Pai e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amen.
Apêndice do manuscrito de Moscovo. 1 Gaio copiou isto dos escritos de
Ireneu; vivera com Ireneu, que foi discípulo de Policarpo. 2 Este Ireneu, que estava em
Roma na época do martírio do bispo Policarpo, ensinou muitas pessoas. Possuímos
muitos dos seus escritos, belíssimos e muito ortodoxos. Neles faz menção de Policarpo,
dizendo que fora seu discípulo. Refutou com vigor todas as heresias e transmitiu-nos
a regra eclesiástica e católica, tal como a recebera do Santo. 3 Também diz isto: Marcião,
donde vêm aqueles que se chamam Marcionitas, encontrou-se um dia com Policarpo e
disse-lhe: «Reconhece-nos, Policarpo». Mas ele disse a Marcião: «Eu reconheço, eu
reconheço o primogénito de Satanás». 4 Também lemos isto nos escritos de Ireneu: No
dia e na hora em que Policarpo sofria o martírio em Esmirna, Ireneu, que se encontrava-
se em Roma, ouviu uma voz semelhante a uma trombeta que dizia: Policarpo foi
martirizado.
5 Como se disse, foi dos escritos de Ireneu que Gaio copiou isto, e Sócrates, em
Corinto, transcreveu-o a partir da cópia de Gaio. E eu, Piónio, por minha vez, copiei-
-o do exemplar de Isócrates, que eu próprio procurara segundo uma revelação de são
Policarpo. Reuni os fragmentos quase destruídos pelo tempo. Assim me reúna o Se-
nhor Jesus Cristo com os seus eleitos na glória do Céu: a Ele a glória com o Pai e o
Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amen.

21
Doxologia.
22
Doxologia.
JUSTINO 137

Justino

Apologia I 1
1. Ao imperador Tito Élio Adriano Antonino Pio César Augusto..., ao sacro Senado 378
e a todo o povo romano.
Eu, Justino, filho de Prisco e neto de Báquio, natural de Flávia Neápolis, na Síria
da Palestina, compus esta defesa e esta súplica em favor de certos homens de todas as
condições, injustamente odiados e perseguidos. Esses homens são os cristãos, e eu sou
um deles...
13. 1 Penso que não haverá ninguém, em seu juízo, capaz de dizer que nós somos 379
ateus. De facto, nós adoramos, em primeiro lugar, o Criador do universo, do qual
afirmamos, como nos foi ensinado, que Ele não tem necessidade de sangue, nem de
libações, nem de incenso, e ao qual louvamos segundo as nossas forças, com palavras
de oração e acção de graças, em todas as oferendas que fazemos. Como nos foi
ensinado, a única honra digna (de Deus) não consiste em queimar pelo fogo o que Ele
criou para nosso alimento, mas em oferecê-lo para nós e para os necessitados, mos-
trando-nos agradecidos e dirigindo-Lhe, pela nossa palavra, preces e hinos por nos ter
criado... 2 Em segundo lugar, adoramos Aquele que nos foi enviado, Jesus Cristo, no
qual vemos o verdadeiro Filho de Deus, que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, gover-
nador da Judeia no tempo de Tibério César... 3 E em terceiro lugar adoramos o Espírito
profético...
14. 2 A partir do momento em que acreditámos no Verbo, renunciámos ao culto dos 380
Demónios, para nos unirmos, pelo Filho, ao Deus não gerado... Outrora procurávamos
acima de tudo o dinheiro, os bens mais diversos; hoje pomos em comum o que temos,
repartimo-lo com os pobres. Dividiam-nos os ódios e os assassínios, a diferença de
costumes e de práticas não nos permitiam acolher um estrangeiro em nossa casa. Mas
hoje, depois da vinda de Cristo, vivemos uns com os outros e oramos pelos nossos
inimigos...
15. 6 Entre nós há muitos homens e mulheres, que têm agora sessenta ou setenta 381
anos de idade, que são discípulos de Cristo desde a sua infância e guardam virgindade.
Tenho muito prazer em citar-vos exemplos em todas as classes. 7 E não conto a
multidão inumerável dos que se converteram de uma vida dissoluta e aprenderam esta
doutrina, pois Cristo não veio chamar os justos à penitência, mas os ímpios, os peca-
dores e os injustos.
17. 3 Adoramos só a Deus, mas em tudo o mais vos servimos com gosto a vós, 382
confessando que sois imperadores e governantes dos homens e pedindo que, junta-
mente com o poder que exerceis, sejais também prudentes no vosso modo de pensar. 4
No entanto, se não atenderdes as nossas súplicas nem esta exposição pública que
fazemos acerca do nosso modo de viver, em nada ficaremos prejudicados, pois cremos
e estamos persuadidos de que cada um pagará a pena, conforme mereçam as suas obras...

1
J USTINO , Apologia I (=PG 6, 327-441; L. P AUTIGNY , Picard 1904; BAC 116; P AULUS , Patrística, S. Paulo
1995; cf. LH, II). A Apologia I foi escrita em Roma, por volta do ano 150. É dirigida ao imperador Antonino
Pio. Ignora-se o ano do nascimento de Justino, em Neápolis (Palestina), de pais pagãos. A busca sincera
da verdade e a oração humilde levaram-no a tornar-se cristão: «Confesso que as minhas orações e todos os
meus esforços têm por finalidade mostrar que sou cristão» (Apologia 2, 13). Depois de se converter
dedicou a vida à defesa da fé cristã. Chegou a Roma no tempo do imperador Antonino Pio (138-161). Foi
martirizado, com mais seis companheiros, provavelmente no ano 165.
138 SÉCULO II

383 19. 6 Nós aprendemos que é melhor crer naquilo que está acima da nossa própria
natureza e que é impossível aos homens, do que ser incrédulo. Sabemos que Jesus
Cristo, nosso Mestre, disse: O que é impossível aos homens, é possível a Deus. E
também disse: Não temais os que matam o corpo e, depois, nada mais podem fazer;
temei Aquele que, depois de matar, tem o poder de lançar na Geena.
384 22. 1 Quanto ao Filho de Deus, que se chama Jesus, embora parecesse um homem
comum..., 2 afirmamos que nasceu de Deus como Verbo de Deus, de modo especial e
fora do nascimento comum... 5 Anunciamos que Ele nasceu de uma virgem...
385 23. 1 A fim de que se torne evidente para vós, vamos apresentar-vos a prova de que
aquilo que dizemos, por o termos aprendido de Cristo e dos Profetas que O precederam,
é a única verdade... 2 Demonstraremos também que Jesus Cristo é o único Filho
nascido de Deus, como seu Verbo, seu Primogénito e seu Poder. Feito homem pelo seu
desígnio, ensinou-nos estas verdades para transformarmos e conduzirmos o género
humano...
386 24. 1 A primeira prova consiste nisto: Quando dizemos tais coisas aos Gregos,
somos os únicos a ser odiados pelo nome de Cristo e tiram-nos a vida, sem termos
cometido crime algum, como se fôssemos pecadores...
387 27. 1 A fim de não cometermos pecado ou impiedade, acreditamos que expor os
recém-nascidos é obra de perversos..., porque vemos que quase todos vão acabar na
dissolução, não só as meninas, mas também os meninos...
388 29. 1 Nós, ou nos casamos desde o princípio para a única finalidade de gerar filhos,
ou renunciamos ao matrimónio, permanecendo castos...
389 31. 2 Quando Ptolomeu, rei do Egipto, se preocupou em formar uma biblioteca para
nela reunir os escritos de todo o mundo, tendo tido notícia das profecias dos Judeus,
mandou uma embaixada a Herodes, que então era rei dos Judeus, pedindo-lhe que lhe
mandasse os livros deles. O rei Herodes mandou os livros escritos na sua língua
hebraica. Como o conteúdo desses livros não podia ser entendido pelos Egípcios,
Ptolomeu pediu, por meio de uma nova embaixada, que Herodes enviasse homens
capazes de os traduzir para a língua grega. Depois disso os livros permaneceram entre
os Egípcios até ao presente, e os Judeus usam-nos no mundo inteiro...
7 Nos livros dos Profetas já encontramos anunciado que Jesus, o nosso Cristo,
havia de nascer de uma virgem, que chegaria à idade adulta, e curaria toda a doença e
fraqueza e ressuscitaria dos mortos...
390 46. Alguns... poderiam objectar-nos que, se Cristo nasceu há apenas cento e cin-
quenta anos, sob Quirínio2, e ensinou a sua doutrina mais tarde, no tempo de Pôncio
Pilatos, os homens que O precederam não têm qualquer responsabilidade... 2 Nós
recebemos o ensinamento de que Cristo é o primogénito de Deus e indicámos antes que
Ele é o Verbo, do qual todo o género humano participa. Portanto, aqueles que viveram
de acordo com o Verbo são cristãos, mesmo que tenham sido considerados ateus, como
sucedeu com Sócrates...
391 61. O baptismo. 1 Vamos agora expor o modo como nós, renovados por Cristo, nos
consagrámos a Deus, não aconteça que, omitindo este ponto, dêmos a impressão de
proceder com malícia relativamente a algum ponto da exposição3.
2 A todos aqueles que se deixam persuadir pelo que nós ensinamos, que acreditam
naquilo que proclamamos e que prometem viver em conformidade com essas verdades,

2
Esta observação é importante para o cálculo da data de composição da Apologia I.
3
Os capítulos LXI e LXII descrevem a preparação para o baptismo e o próprio baptismo. Para a preparação
são importantes quatro pontos: crer no catequista; viver segundo os mandamentos; começar a orar e a pedir
perdão dos próprios pecados; começar a jejuar. Toda a comunidade ora e jejua.
JUSTINO 139

exortamo-los a pedir a Deus o perdão dos seus pecados, com orações e jejuns, e nós
também oramos e jejuamos em total solidariedade com eles.
3 Depois conduzimo-los ao lugar onde se encontra água, e aí são regenerados tal
como nós o fomos, isto é, recebem o baptismo da água em nome do Criador e Senhor
Deus de todas as coisas, do nosso Salvador Jesus Cristo e do Espírito Santo4. 4 Jesus
Cristo disse de facto: Se não nascerdes de novo, não entrareis no Reino dos Céus 5.
Não se trata, evidentemente, de voltar a entrar no seio materno. 6 O profeta Isaías já
tinha dito como podem fazer penitência pelos seus pecados aqueles que os cometeram
e agora se arrependem. 7 São estas as suas palavras: Lavai-vos, purificai-vos; tirai a
malícia das vossas almas e aprendei a praticar o bem, fazei justiça ao órfão e defendei
a causa da viúva. Vinde então para dialogarmos, diz o Senhor. Ainda que os vossos
pecados sejam como o escarlate, Eu os tornarei brancos como a lã; e, se forem
vermelhos como a púrpura, Eu os tornarei brancos como a neve. 8 Mas, se não Me
ouvirdes, sereis devorados pela espada. Assim falou a boca do Senhor6 .
9 Esta maneira de agir recebemo-la dos Apóstolos. 10 No nosso primeiro nasci-
mento fomos gerados, sem disso termos consciência, pelo instinto natural da mútua
união dos nossos pais. Para termos também um nascimento que não seja fruto da
simples natureza e da ignorância, mas de uma escolha consciente, e para obtermos pela
água o perdão dos pecados cometidos, pronunciamos, sobre aquele que deseja ser
regenerado e faz penitência dos pecados, o nome do Criador e Senhor Deus de todas as
coisas, nome que só é invocado sobre aquele que é conduzido à água do baptismo. 11
Ninguém é capaz de dizer o nome de Deus; e, se alguém se atrevesse a afirmar que esse
nome existe, estaria totalmente louco.
12 A esse baptismo dá-se o nome de iluminação7, porque os iniciados nesta
doutrina ficam iluminados na sua inteligência. 13 Mas a purificação daquele que é
iluminado, faz-se também em nome de Jesus Cristo, crucificado sob Pôncio Pilatos, e
em nome do Espírito Santo, que, pelos Profetas, predisse tudo o que dizia respeito a
Jesus.
62. 1 Os Demónios também ouviram que esse banho tinha sido anunciado pelo 392
Profeta e, por isso, também fizeram aspergir os que entram nos seus templos e se
aproximam deles para lhes oferecer libações, e chegam até a obrigá-los a um banho
completo, antes de entrarem nos templos, onde têm assento....
63. 16 (O Verbo) manifestou-Se primeiro sob a forma de fogo e sob uma figura 393
incorpórea a Moisés e aos outros Profetas; e agora..., como já o dissemos, fez-Se
homem, nasceu duma Virgem, segundo a vontade do Pai, para a salvação dos que n’Ele
crêem; quis ser contado por nada e sofrer, para vencer a morte pela sua morte e
ressurreição...
64. 1 De tudo o que até aqui dissemos podeis entender que também foram os Demó- 394
nios que introduziram o uso de instalar a imagem da chamada Coré sobre as fontes das
águas, dizendo que ela era filha de Zeus, querendo assim imitar o que disse Moisés. 2
Este, com efeito, disse: No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era
informe e vazia, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. À
imitação desse Espírito de Deus que se dizia pairar sobre as águas, disseram eles que
Coré era filha de Zeus...
65. Baptismo seguido da Eucaristia. 1 Pela nossa parte, depois de assim termos 395
mergulhado (na água) aquele que acreditou e se juntou a nós, conduzimo-lo até ao lugar

4
Justino é discreto na descrição dos ritos baptismais. Está a escrever para pagãos.
5
Jo 3, 3-4.
6
Is 1, 16-20.
7
Em grego fwtismo/ j .
140 SÉCULO II

onde se encontram reunidos os que se chamam irmãos, a fim de elevarmos fervorosas


orações em comum8 por nós mesmos, por aquele que foi iluminado e por todos os
outros dispersos pelo mundo, para que, tendo conhecido a verdade, sejamos dignos de
ser encontrados perfeitos na prática das boas obras e fiéis no cumprimento dos man-
damentos, para assim alcançarmos a vida eterna.
2 Terminadas as orações, saudamo-nos uns aos outros com o ósculo, 3 e em
seguida traz-se, àquele que preside aos irmãos, pão e um cálice de água e vinho mistu-
rado. Ele, tomando-os, eleva um hino de louvor e glória ao Pai do universo, em nome do
Filho e do Espírito Santo, e pronuncia uma longa acção de graças9 por todos os bene-
fícios que d’Ele recebemos. Quando o presidente termina as orações e a acção de
graças, todo o povo presente aclama, dizendo: Amen. 4 Amen, na língua hebraica, quer
dizer assim seja.
5 Depois de o presidente ter recitado as orações e de o povo inteiro ter aclamado,
aqueles que nós chamamos diáconos distribuem o pão, o vinho e a água, sobre os quais
foram dadas graças, a todos os que estão presentes, e levam aos ausentes.
396 66. 1 Entre nós este alimento chama-se Eucaristia. Só dele pode participar aquele
que, admitindo como verdadeiros os nossos ensinamentos, tenha sido purificado pelo
baptismo para a remissão dos pecados e a regeneração, e leve uma vida como Cristo
ensinou.
2 Na verdade, aquilo que recebemos não é pão nem vinho comum. Com efeito,
assim como Jesus Cristo, nosso Salvador, Se fez homem pelo Verbo de Deus e assumiu
a carne e o sangue para nossa salvação, assim também nos foi ensinado que o alimento
sobre o qual foi pronunciada a acção de graças com as mesmas palavras de Cristo, e do
qual, depois de transformado, se alimenta o nosso sangue e a nossa carne, é a própria
Carne e Sangue de Jesus encarnado.
3 Os Apóstolos, nos seus comentários, chamados Evangelhos, transmitiram-nos
que foi Jesus quem assim os mandou fazer, quando Ele, tomando o pão e, dando
graças, disse: Fazei isto em memória de Mim. Isto é o meu Corpo; e tomando igualmente
o cálice e dando graças, disse: Este é o meu Sangue; e somente a eles foi comunicado10.
4 É certo que, por arremedo, isso também foi ensinado pelos Demónios perversos para
ser feito nos mistérios de Mitra. Com efeito, como sabeis ou podeis informar-vos, nos
ritos de um novo iniciado apresenta-se pão e uma vasilha de água, acompanhados de
certas orações.
397 67. Liturgia dominical e cuidado dos pobres. 1 Desde então, nunca mais deixamos
de trazer isto à memória uns dos outros; e os que possuem bens socorrem os que têm
necessidades, e perseveramos sempre unidos uns com os outros. 2 Em todas as
oblações louvamos o Criador do universo por Jesus Cristo, seu Filho, e pelo Espírito
Santo.
3 E, no chamado dia do Sol, reúnem-se num mesmo lugar todos os que moram nas
cidades ou nos campos, e lêem-se, na medida em que o tempo o permite, as memórias
dos Apóstolos e os escritos dos Profetas.
4 Quando o leitor11 termina, o presidente12 toma a palavra para fazer uma exor-
tação, convidando os presentes a imitar tão belos ensinamentos.

8
eu) x ai koinai\.
9
eu) x aristi/ a n .
10
Justino é o primeiro autor a insistir muito na instituição da Eucaristia por Cristo.
11
a) n aginw/ s kwn .
12
proestw\j .
JUSTINO 141

5 A seguir pomo-nos todos de pé e elevamos as nossas preces e, como já disse-


mos, logo que as preces terminam, apresenta-se pão, vinho e água. Então, aquele que
preside eleva, com todo o fervor, preces e acções de graças, e o povo aclama: Amen.
Depois procede-se à distribuição dos dons sobre os quais foi pronunciada a acção de
graças; cada um dos presentes participa deles, e os diáconos levam-nos também aos
ausentes.
6 Os que vivem em abundância e querem repartir, dão, cada um o que lhe apraz e
parece bem. E o que se recolhe é deposto aos pés daquele que preside, e ele, por seu
turno, presta assistência aos órfãos, às viúvas, aos doentes, aos pobres, aos prisioneiros,
aos estrangeiros de passagem, numa palavra, a todos os que sofrem necessidade.
7 Reunimo-nos todos precisamente no dia do Sol, não só porque foi o primeiro
dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, criou o mundo, mas também
porque Jesus Cristo, nosso Salvador, nesse dia ressuscitou dos mortos. Crucificaram-n’O
na véspera do dia de Saturno13; e, no dia a seguir a este, ou seja, no dia do Sol, apare-
cendo aos seus Apóstolos e discípulos, ensinou-lhes tudo o que também nós vos propu-
semos como digno de consideração.
68. 1 Portanto, se vos parecer que tais doutrinas vêm da razão e da verdade, respei- 398
tai-as; se, ao contrário, as considerais como coisas de charlatães, desprezai-as, mas
não decreteis contra nós a pena de morte como se fôssemos inimigos, pois não come-
temos nenhum crime...
3 Poderíamos também exigir que mandeis fazer os julgamentos dos cristãos de
acordo com a nossa petição, apoiando-nos na carta do grande e gloriosíssimo César
Adriano, vosso pai. Todavia, não vos fizemos a nossa súplica nem dirigimos a nossa
exposição por Adriano o julgar assim, mas porque estamos persuadidos da justiça das
nossas petições. 4 Contudo, anexamos para vós uma cópia da carta de Adriano 14, para
que vejais, segundo o seu teor, que dizemos a verdade. 5 A cópia é esta: «A Minúcio
Fundano: 6 Recebi uma carta que me foi escrita pelo teu predecessor Serénio Graniano,
homem ilustríssimo. 7 Não me parece que o assunto deva ficar sem esclarecimento, a
fim de não perturbar os homens honrados nem incentivar os caluniadores a praticarem
os seus crimes.
8 Dessa forma, se os teus provincianos forem capazes de sustentar abertamente
a sua questão contra os cristãos, de modo a responderem por ela perante o tribunal,
deve seguir-se este procedimento. Mas não lhes permito que façam meras petições ou
recorram a gritarias. 9 Com efeito, é da máxima conveniência que se alguém intenta uma
acusação, tu possas conhecer o seu objecto.
10 Por isso, se alguém acusar os cristãos e provar que eles fizeram alguma coisa
contra a lei, determina a pena segundo a gravidade do delito. Mas, por Hércules, se
alguma pessoa fizer uma acusação caluniosa, castiga-a com a maior severidade e tem
muito cuidado para que não fique impune».

Apologia II 15
1. 1 Romanos, o que sucedeu ultimamente na vossa cidade, sob Urbico, e aquilo 399
que os governadores estão a fazer, sem razão, em todo o Império, obrigou-me a com-
por este discurso em vosso favor. Com efeito, sois da nossa própria natureza e irmãos
nossos, por mais que, por causa da vaidade das vossas supostas dignidades, não o

13
O dia de Saturno é o primeiro da semana astrológica e corresponde ao sábado.
14
Esta carta de Adriano a Minúcio Fundano foi escrita por volta do ano 125.
15
J USTINO , Apologia II (=PG 6, 442-470; BAC 116; Paulus, Patrística, S. Paulo 1995).
142 SÉCULO II

reconheçais nem desejeis. 2 O facto é que, em toda a parte, há gente disposta a dar-nos
a morte...
400 8. 1 Eu próprio espero ser vítima... das ciladas de Crescente..., 2 homem que, sem
saber uma palavra a nosso respeito, nos calunia publicamente, como se nós, cristãos,
fôssemos ateus e ímpios...
401 10. 1 A nossa religião é mais sublime do que o ensinamento humano, pela simples
razão de que possuímos o Verbo total, que é Cristo...
402 12. 1 Eu mesmo, quando seguia a doutrina de Platão, ouvia as calúnias contra os
cristãos. Contudo, ao ver como eles caminhavam intrepidamente para a morte...,
comecei a reflectir que era impossível que tais homens vivessem na maldade...
403 13. 2 Confesso que todas as minhas orações e esforços têm por finalidade mostrar
que sou cristão...
404 15. 4 Depois de fazermos o que de nós dependia, aqui pomos ponto final, dirigindo
a nossa súplica a Deus para que conceda aos homens do mundo inteiro a graça de
conhecerem a verdade...

Diálogo com Trifão 16


405 1. Andava eu de manhã sob os pórticos do ginásio, quando certo homem, acompa-
nhado de outros, se encontrou comigo e me disse: _ Saudações, filósofo... 3 Repliquei-
-lhe, gracejando um pouco: _ E quem és tu, melhor dos mortais? Com simplicidade, ele
falou-me do seu nome e da sua raça: _ Chamo-me Trifão e sou um Hebreu circuncidado,
que, fugindo da guerra há pouco terminada17, vivo na Grécia e passo a maior parte do
tempo em Corinto. Eu perguntei: Achas que poderás tirar mais proveito da filosofia do
que do teu legislador e dos Profetas? Ele respondeu-me: _ Que dizes tu? Os filósofos
não falam de Deus em todos os seus discursos...? 4 Eu disse-lhe: _ A maioria dos
filósofos nem sequer se põe o problema se existe um só Deus ou muitos deuses... 6
Então ele sorriu e perguntou gentilmente: _ E o que pensas tu sobre isso? Que ideia
tens de Deus, e qual é a tua filosofia?
406 2. 1 Eu respondi: _ Vou dizer-te o que é claro para mim... 3 Eu próprio, no início,
desejando também reunir-me com alguns filósofos, coloquei-me nas mãos de um Estóico
e passei bastante tempo com ele. Todavia, percebi que nada me adiantava para o
conhecimento de Deus, pois ele próprio não sabia nada, nem dizia que esse conheci-
mento fosse necessário. Então separei-me dele...
407 8. 1 Reflectindo comigo mesmo... cheguei à conclusão de que o cristianismo é a
única filosofia verdadeiramente segura e proveitosa...
408 10. 2 Trifão respondeu: 3 _ O que nos surpreende e nos causa mais dificuldades é o
facto de dizerdes que sois piedosos e pensardes que sois diferentes dos outros, sem,
no entanto, vos separardes deles. Não guardais as festas e sábados, nem praticais a
circuncisão. Além disso, pondes a vossa esperança num homem crucificado e acredi-
tais que haveis de receber bens de Deus sem guardar os seus mandamentos...

16
JUSTINO , Dialogus cum Tryphone Iudaeo (=PG 6, 471-800; BAC 116; Paulus, Patrística, S. Paulo 1995).
O Diálogo é uma teologia do baptismo. O primeiro efeito do baptismo é a remissão dos pecados. Para
isso exige-se a fé. É preciso converter-se. A palavra metanóia aparece com frequência. Mas o baptismo
tem outros efeitos: é regeneração, iluminação, entrada numa comunidade (expressa particularmente pela
participação na celebração eucarística), compromisso de dar testemunho da fé e de observar os manda-
mentos para alcançar a vida eterna.
17
Trata-se da guerra judaica dos anos 132-135 a.C., quando a Palestina foi totalmente arrasada e Jerusalém
destruída.
JUSTINO 143

11. 1 Eu respondi-lhe: _ Trifão, não houve nem haverá outro Deus desde a eternidade, 409
além d’Aquele que criou e ordenou este universo. Também não cremos que o nosso
Deus seja diferente do vosso, mas o mesmo que tirou os vossos antepassados da terra
do Egipto... 4 Mas Deus anunciou que estabeleceria uma nova aliança para iluminar as
nações. Vemos e estamos convencidos de que, por meio do nome de Jesus Cristo
crucificado, as pessoas se afastam da idolatria e de toda a iniquidade, para se aproxi-
marem de Deus...
12. 3 A nova lei quer que guardeis o sábado continuamente, e vós, que passais um dia 410
sem fazer nada, já vos considerais religiosos, sem saber o motivo por que vos foi
ordenado o sábado. O Senhor nosso Deus não sente prazer nisso. Se entre vós há um
ladrão deixe de o ser, se há um adúltero, faça penitência, e então observará os verdadeiros
sábados de Deus. Se alguém entre vós não tem as mãos limpas, purifique-as e ficará
puro.
19. 2 Nós não observamos a vossa circuncisão... nem tomamos banho nos vossos 411
poços rotos, porque isso não é nada em comparação com o nosso banho da vida. Por
isso é que Deus clama e vos diz que O abandonastes a Ele, fonte de água viva, e
cavastes para vós poços rotos que não podem conter água. Vós que sois circuncidados
na carne precisais da nossa circuncisão...
24. 1 Também vos poderia demonstrar que o oitavo dia, de preferência ao sétimo, 412
encerra um mistério realizado por Deus...
35. 8 Oramos por vós e por todos os que nos odeiam, a fim de que, convertendo-vos 413
juntamente connosco, não blasfemeis de Jesus Cristo..., mas para que, acreditando
n’Ele, possais salvar-vos por ocasião da sua vinda gloriosa e não sejais por Ele conde-
nados ao fogo.
40. 1 O mistério do cordeiro que Deus mandou imolar como Páscoa era figura de 414
Cristo, com cujo Sangue, segundo a doutrina da nossa fé, os que n’Ele crêem ungem as
próprias casas, isto é, se ungem a si mesmos 18. De facto, todos podem saber como o
barro que Deus modelou em Adão se tornou habitação do sopro que provinha de Deus.
E que esta prescrição era temporária, demonstro-o assim. 2 O Senhor não permitiu que
se imolasse o cordeiro pascal noutro sítio que não fosse o lugar em que é invocado o
seu nome, porque sabia que viriam dias, depois da paixão de Cristo, quando até o lugar
de Jerusalém havia de ser entregue aos vossos inimigos, em que cessariam todos os
sacrifícios, sem excepção...
41. 1 A oferenda da flor da farinha... era figura do pão da Eucaristia, que nosso 415
Senhor Jesus Cristo mandou oferecer em memória da paixão que Ele sofreu, por todos
os homens que purificam as suas almas de toda a maldade, a fim de que, todos juntos,
dêmos graças a Deus por ter criado, por amor do homem, o mundo e quanto nele
existe, por nos ter libertado da maldade em que nascemos e por ter destruído comple-
tamente os principados e potestades por meio d’Aquele que, segundo o seu desígnio,
nasceu sujeito ao sofrimento 19.
2 É por isso que, a propósito dos sacrifícios que vós então oferecíeis, Deus
disse, como já indiquei antes, pela boca de Malaquias, um dos doze Profetas: Não
tenho em vós nenhuma satisfação, diz o Senhor do universo, e nenhuma oferta das
vossas mãos Me é agradável. Porém, do Nascente ao Poente, o meu nome é grande
entre as nações, e em todos os lugares é oferecido ao meu nome um sacrifício de
incenso e uma oferenda pura. Na verdade, é grande entre as nações o meu nome, diz

18
Provável alusão ao rito da unção pós-baptismal.
19
Esta ideia é muito semelhante ao que Hipólito dirá nas palavras da instituição.
144 SÉCULO II

o Senhor do universo. Vós é que o profanais, dizendo que a mesa do Senhor está
manchada20.
3 Já então, antecipadamente, falava dos sacrifícios que nós, as nações, lhe ofe-
recemos em todo o lugar, quer dizer, do pão da Eucaristia e do próprio cálice da Eucaristia,
e, ao mesmo tempo, dizia que nós glorificamos o seu nome, que vós profanais.
4 O preceito da circuncisão, que exigia a circuncisão de todos os recém-nascidos,
sem excepção, no oitavo dia, era imagem da verdadeira circuncisão com que fomos
circuncidados do erro e da maldade graças a Jesus Cristo nosso Senhor, que ressuscitou
dos mortos no primeiro dia da semana. Com efeito, o primeiro dia da semana, que é o
primeiro de todos os dias, se o contarmos de novo, segundo a ordem do ciclo semanal,
torna-se o oitavo da série, sem deixar de ser o primeiro...
416 70. 4 Isaías, na sua profecia, também fala do pão que o nosso Cristo nos mandou
celebrar em memória de Se ter feito homem por amor dos que n’Ele crêem..., e do cálice
que, como lembrança do seu Sangue, nos mandou igualmente consagrar com acção de
graças...
417 86. 6 Nós estávamos cobertos de gravíssimos pecados que tínhamos cometido, mas
o nosso Cristo remiu-nos quando foi crucificado no madeiro e quando nos purificou
pela água, convertendo-nos em casa de oração e adoração...
418 117. 1 Deus dá testemunho de que lhe são agradáveis todos os sacrifícios que Lhe são
oferecidos em nome de Jesus Cristo, os sacrifícios que este nos mandou oferecer, isto
é, os da Eucaristia do pão e do vinho, que os cristãos celebram em todos os lugares da
terra... Concordo que as orações e acções de graças feitas por homens dignos são os
únicos sacrifícios perfeitos e agradáveis a Deus. 3 São justamente estes os únicos que
os cristãos aprenderam da tradição a celebrar, na comemoração do pão e do vinho, na
qual recordam a paixão que o Filho de Deus sofreu por eles... 4 Não existe nenhuma
raça de homens, chamem-se eles bárbaros, Gregos ou tenham outro nome qualquer,
habitem eles em casas, chamem-se nómadas sem residência, ou morem em tendas de
pastores, entre os quais não se ofereçam, em nome de Jesus crucificado, orações e
acções de graça ao Pai e Criador de todas as coisas...
419 133. 6 Nós rogamos por vós e por todos os homens em geral, como o nosso Senhor e
Cristo nos ensinou a fazer, Ele que nos mandou orar pelos nossos inimigos, amar os
que nos odeiam e abençoar os que nos amaldiçoam.
420 138. 1 Sabei, portanto, amigos, que no livro de Isaías Deus diz a Jerusalém: No tempo
do dilúvio de Noé Eu te salvei21. O que Deus quis dizer com isso é que no dilúvio se
realizou o mistério de salvação dos homens. De facto, o justo Noé, no tempo do
dilúvio, com as outras pessoas, isto é, a sua esposa e os seus três filhos e as esposas
dos seus filhos, que são ao todo oito, eram, quanto ao número, figura do oitavo dia, no
qual o nosso Cristo ressuscitou dos mortos e apareceu. Mas esse dia... permanece
sempre o primeiro de todos os dias. Contando-o de novo após todos os dias do ciclo
semanal, chama-se o oitavo, mas sem deixar de ser o primeiro...
421 141. 2 Todos os que quiserem fazer penitência poderão alcançar a misericórdia de
Deus. A Palavra chama-os antecipadamente bem-aventurados: Bem-aventurado o ho-
mem a quem o Senhor não acusa de iniquidade, isto é, aquele que, arrependido dos
seus pecados, recebe de Deus o perdão... Neste ponto, enganais-vos a vós mesmos,
dizendo que, por mais pecador que alguém seja, o Senhor não acusa ninguém de peca-
do, desde que conheça a Deus...
422 142. 3 Amigos, não vos posso desejar nada melhor do que isto: que tenhais absoluta-
mente a mesma fé que nós, isto é, que Jesus é o Cristo de Deus.
20
Mal 1, 10-12.
21
Esta citação não aparece sob esta forma nem em Isaías nem no resto da Bíblia.
PSEUDO-JUSTINO 145

Pseudo-Justino

Perguntas e respostas aos Ortodoxos 1

O costume de não dobrarmos os joelhos no dia do Senhor é símbolo da ressurreição, 423


pela qual, por graça de Cristo, fomos libertados dos pecados e da morte, que foi
destruída com eles. Este costume teve início nos tempos apostólicos, como diz o
mártir santo Ireneu, bispo de Lião, no livro Sobre a Páscoa, onde também menciona o
Pentecostes, durante o qual não rezamos de joelhos, porque esse tempo iguala em
solenidade o dia do Senhor, pela razão que já dissemos acerca deste.

Carta dos Apóstolos 2

2. Exposição que Jesus nosso Senhor fez aos seus onze discípulos, na Galileia, 424
depois de ter ressuscitado dos mortos, dizendo-lhes: Escutai, filhos da luz, prestai aten-
ção à palavra do vosso Pai...
4. Nosso Senhor disse-nos: Antes do fim do mundo haverá sinais e prodígios... 7. Eu 425
próprio guardarei os que confiaram em Mim. Tornar-Me-ei para eles o altar, e eles
tornar-se-ão para Mim o templo; hei-de expor-lhes a vontade de meu Pai... 9. Mas o
meu julgamento virá sobre os bispos e os presbíteros, porque fizeram errar o meu povo...
13. Nós, João e Tomé, Pedro e André, Tiago e Filipe, Bartolomeu e Mateus, 426
Natanael, Judas Zelote e Cefas, escrevemos às Igrejas do Oriente e do Ocidente, às
do Norte e do Sul... 14. Nós sabemos que nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo é o
Senhor, Filho do Senhor... Nós acreditamos que Ele, o Senhor Filho do Senhor, é o Verbo
que Se fez carne, concebido pelo Espírito Santo no seio da Santíssima Virgem Maria...
Foi envolvido em panos em Belém, manifestou-Se e cresceu em idade e sabedoria. 15.
Foi mandado à escola por José e Maria sua mãe, onde aprendeu o livro da leitura.
16. Depois tiveram lugar umas núpcias em Caná da Galileia3.... Ressuscitou mortos, fez 427
que os paralíticos andassem..., caminhou sobre o mar.... Em seguida, como nós não
tínhamos pão..., ordenou aos homens que se sentassem... e nós distribuímos-lhes peda-
ços de pão..., perguntando-nos e dizendo: O que são estes cinco pães? São o símbolo da
nossa fé no grande cristianismo, isto é, a fé no Pai todo-poderoso, em Jesus Cristo
nosso Salvador, no Espírito Santo, o Paráclito, na santa Igreja e na remissão dos peca-
dos... 17. Foi isto que nosso Senhor e Salvador nos revelou e mostrou; e nós também
vos fazemos o mesmo, a fim de... terdes parte no nosso ministério...

1
P SEUDO -J USTINO , Perguntas e Respostas aos Ortodoxos (=PG 6, 1246-1400; F. C ABROL -H. L ECLERQ ,
Monumenta Ecclesiae Liturgica, 2 vol., Paris 1914); cf. Ireneu de Lião, n. 534.
2
Carta dos Apóstolos (=PO 9, fasc. 3, 177-232; C. V OGEL , Paris 1966, 62). A Carta dos Apóstolos,
apresentada como um colóquio de Jesus com os seus Apóstolos depois da ressurreição, foi escrita na
Ásia Menor ou no Egipto, entre os anos 140 e 170. O baptismo é necessário para a salvação e a celebração
da Eucaristia é chamada Páscoa. A Carta vem publicada sob o nome de «O Testamento de Nosso Senhor
Jesus Cristo na Galileia».
3
Começa aqui a narração da vida pública de Jesus.
146 SÉCULO II

428 20. Nós sabemos que Ele sofreu a crucifixão nos dias de Pôncio Pilatos e do príncipe
Arquelau; foi crucificado entre dois ladrões e, juntamente com eles, foi descido da árvo-
re da cruz; foi sepultado no lugar chamado Krani/on , aonde foram as três mulheres,
Sara, Marta e Maria Madalena...
429 26. Quando Eu voltar para o meu Pai, celebrareis então a memória da minha morte,
isto é, a Páscoa. Nesse dia, um de entre os que estais agora comigo será lançado na
prisão por causa do meu nome e ficará cheio de tristeza porque, enquanto vós celebrais
a Páscoa, ele não a celebrará convosco por estar na prisão. Mas Eu enviarei o meu
poder sob a forma do meu Anjo, e as portas da cadeia abrir-se-ão. Ao sair da prisão virá
ter convosco, para velar e descansar durante a noite até ao cantar do galo. E quando
tiverdes realizado o meu ágape e a minha memória, será de novo encarcerado em teste-
munho, até que saia dali e proclame o que vos transmiti. Nós dissemos-Lhe: Senhor,
ainda não bebeste definitivamente a Páscoa? Deveremos nós fazê-la de novo? E Ele
disse-nos: Sim, deveis fazê-la até ao dia em que Eu voltar de junto do Pai, com as
minhas chagas...
430 28. Nós dissemos-Lhe: Senhor, dentro de quantos anos virás Tu? E Ele disse-nos:
Quando tiver terminado o ano 150, nos dias do Pentecostes e da Páscoa, então terá
lugar a vinda do meu Pai... Eu estou todo no meu Pai e o Pai está em Mim, porque fui
gerado da sua semelhança, do seu poder, da sua perfeição, da sua luz. Eu sou o seu
Verbo perfeito...
431 30. Pregai e ensinai estas coisas àqueles que acreditarem em Mim... E nós dissemos-
-Lhe: Senhor, que coisas nos expões Tu? E Ele disse-nos: Vede a Luz que vem da Luz
brilhante, o Perfeito que vem do Perfeito, porque o Filho é tornado perfeito pelo Pai que
é a Luz, porque Perfeito é o Pai que torna perfeito... 38. Desci e falei com Abraão,
Isaac e Jacob e com os Profetas vossos pais, e anunciei-lhes, nos Infernos, o repouso
que os espera nos céus para onde irão. Com a minha mão direita dei-lhes o baptismo da
vida, o perdão e a remissão de todo o mal, como vo-lo fizera a vós e o farei doravante
àqueles que acreditarem em Mim...
432 53. Nós dissemos-Lhe: Senhor, como é possível que estes três títulos (de Pai, de
Mestre e de Doutor) sejam um só em nós? Ele respondeu e disse-nos: Sereis chamados
Pais, porque revelareis aos homens... que é pela minha própria mão que eles receberão
o baptismo da vida e a remissão dos pecados; sereis chamados Mestres e Doutores,
porque direis a minha palavra sem dificuldade...
433 58. Se alguém cair transportando o seu fardo, isto é, o pecado cometido contra o seu
próximo, o seu vizinho, como paga do bem que ele lhe fez, deve repreendê-lo. E, se,
depois de repreendido, se converter, será salvo, e aquele que o repreendeu beneficiará
da vida eterna. Mas, se o vizinho vê que aquele que lhe fez bem peca e o defende,
receberá um julgamento grande e terrível, porque, se um cego guiar outro cego, ambos
cairão nalguma cova4. Assim, ambos serão punidos com o mesmo castigo, porque o
Profeta disse: Ai dos que por suborno favorecem e justificam o pecador e daqueles
cujo Deus é o ventre5. Sabeis como vai ser o julgamento? Na verdade, eu vo-lo digo,
nesse dia não terei em conta o rico, nem piedade do pobre. 59. Se vires com os teus
olhos que o teu vizinho pecou, repreende-o a sós. Se te der ouvidos, tê-lo-ás ganhado.
Se não te der ouvidos, vai ter com ele, acompanhado de uma ou no máximo de três
pessoas, e repreende o teu irmão. E, se mesmo assim ele não te escutar, seja para
ti como um pagão ou um cobrador de impostos6... 62. Em nome de nosso Senhor
Jesus Cristo, terminou o Livro do Testamento na paz do Senhor. Que Ele proteja o seu
servidor Abeselom, pelos séculos dos séculos. Amen.
4
Mt 15, 14.
5
Is 5, 23; Filip 3, 19.
6
Mt 18, 15.
ODES DE SALOMÃO 147

Odes de Salomão 1

Ode IV 2
4. Ninguém muda, meu Deus, o teu lugar santo, 434
nem ninguém o passa para outro sítio,
pois não há nenhum poder acima dele.
Antes de escolheres outras moradas,
marcaste para Ti um santuário,
e nunca o trocarás por outros novos.
Deste o teu coração, Senhor, aos teus fiéis,
e não cessas de trabalhar nem de dar fruto.
É por isso que uma só hora da tua fidelidade,
vale mais do que todos os dias e anos.
Depois de revestir a tua graça,
quem poderá jamais ser condenado?
O teu sinal distintivo é um símbolo:
com ele assinalas as tuas criaturas,
os teus exércitos levam-no consigo,
e os Arcanjos, teus eleitos, com ele se vestem.
Deste-nos a tua comunhão,
e por ela nos desejas mais a nós
do que Te desejamos nós a Ti.
Asperge-nos com o teu orvalho
e abre-nos as fontes das tuas riquezas,
donde manam leite e mel.
Tu nunca Te arrependes do que fazes
e não voltas atrás no que prometes.
Junto de Ti começa o que acabou:
tudo o que nos deste foi de graça,
e nunca mais no-lo tiras nem retomas.
Diante de Ti, porque és Deus,
todas as coisas estão patentes e descobertas,
desde o princípio e antes de existirem.
Senhor, Tu criaste todas as coisas.
Aleluia.

1
Odae Salomonis (=L. T ONDELLI , Le Ode di Salomone, Roma 1914; E. LODI , Roma 1979, 58-62). As Odes
de Salomão são 42 hinos ou salmos não bíblicos ( yalmoi\ i) d iotikoi/ ) , semelhantes a outros encontrados
em Qumrãm, provavelmente oriundos da Síria. São verdadeiras catequeses mistagógicas. A data da sua
composição é desconhecida (séc. I-III). Colocamo-las aqui, nos finais do séc. II.
2
Descrição dos ritos baptismais: nn. 1-17.
148 SÉCULO II

Ode VIII 3
435 8. Poeta - Abri, abri os vossos corações e exultai no Senhor,
e cresça a vossa caridade dos corações até aos lábios,
para trazerdes ao Senhor frutos vivos e santos
e falardes, vigilantes, na sua luz.
Levantai-vos e ponde-vos de pé, vós que já vos afligistes,
clamai vós, que estáveis em silêncio,
porque se abriu a vossa boca.
Os que éreis desprezados, erguei-vos agora,
porque foi tirada a vossa injustiça.
Na verdade, está convosco a direita de Deus,
e Ele próprio é o vosso auxílio:
para vós está preparada a paz,
antes da vossa luta, orai alguma vez.
Ouvi a palavra da verdade
e recebei a ciência do Altíssimo.

Cristo – Nasci na vossa carne, para que por vós Me fosse dito:
«Não desconheci o vosso manto»
É o que Eu deveria anunciar-vos.
Guardai o meu mistério, vós que por ele sois guardados;
guardai a minha fé, vós que por ela sois guardados;
aprendei a minha ciência, vós que conheceis a minha verdade.
Amai-Me com verdadeiro amor, vós que estais na caridade:
porque não desviarei a minha face daqueles que são meus,
pois conheci-os antes de existirem,
Eu conheci-os e marquei-os na sua face com o meu sinal.
Formei os meus membros, preparei para eles os meus peitos
para que pudessem beber o meu santo leite
e dele viverem.
Tive neles as minhas delícias e não Me envergonhei por causa deles
porque são obra minha e força dos meus conselhos.
Quem então se levantará contra a obra das minhas mãos,
ou que é que não se lhes sujeitará?
Segundo a minha vontade formei-lhes os corações e os rins,
e eles são meus,
e coloquei os meus eleitos à minha direita.
A minha justiça irá à sua frente,
nunca serão privados do meu nome,
porque este estará com eles.

Poeta – Pedi sem interrupção e permanecei na caridade do Senhor;


amados no Amado: preservados no Vivente,
nele sereis salvos e incorruptíveis...
por toda a geração do vosso Pai. Aleluia.

3
Hino dos neófitos.
ODES DE SALOMÃO 149

Ode XIII 4
13. O Senhor é o nosso espelho: 436
olhai-vos nele, abrindo os vossos olhos,
vede como é o vosso rosto!
Elevai um louvor ao seu Espírito,
e tirai, do vosso rosto, o que está sujo,
amai a sua santidade
e revesti-vos com ela,
e sereis imaculados diante d’Ele.
Aleluia.

Ode XV 5
15. Como o Sol é a alegria dos que buscam o seu dia, 437
assim a minha alegria é o Senhor,
porque Ele é o meu Sol.
Os seus raios ressuscitaram-me,
e a sua luz dissipou todas as trevas
diante do meu rosto.
Graças a Ele recebi olhos
para contemplar o seu dia santo,
ouvidos para escutar a sua verdade,
entendimento para captar a ciência,
e assim consegui a alegria.
Abandonei a vida errante,
caminhei para Ele, que é o meu Sol,
e recebi generosa redenção...
Revesti-me de incorruptibilidade,
graças ao seu nome,
e abandonei a corrupção:
é esta a obra da sua graça.
A mortalidade desapareceu
diante da minha face...

Ode XIX 6
19. O Espírito estendeu as suas asas sobre o seio da Virgem, 438
ela concebeu e deu à luz,
e, apesar de Virgem, tornou-se mãe, cheia de misericórdia.
Ela ficou grávida
e, sem dor, deu à luz um Filho.

4
Hino dos baptizados: nn. 1-4.
5
Hino dominical.
6
Hino a Maria.
150 SÉCULO II

E para que não acontecesse nada de inútil,


não chamou parteira para a assistir.
Voluntariamente deu à luz um homem;
deu-O à luz para exemplo;
possuiu-O em todo o seu poder;
amou-O como salvação.
Guardou-O com amor.
Mostrou-O na sua grandeza. Amen. Aleluia.

Ode XLI 7
439 41. Coro – Louvem o Senhor todos os seus filhos
e recebam a verdade da sua fidelidade;
os seus filhos eram conhecidos junto d’Ele,
e cantavam na sua caridade.
Vivemos no Senhor por sua graça,
e por Cristo recebemos a sua vida.
Porque começou a brilhar para nós um grande dia,
e é admirável Aquele que nos tornou participantes da sua glória.
Reunamo-nos, em assembleia, em nome do Senhor
e glorifiquemos a sua bondade.
Iluminemos com a sua luz o nosso rosto,
e meditemos, dia e noite, no seu amor, em nossos corações.

Assembleia – Exultemos de alegria no Senhor.

Cristo – Todos os que olham para mim ficarão admirados,


porque sou de outra raça:
porque o Pai da verdade lembrou-Se de Mim,
Ele que me possuía desde o princípio.
Com efeito, foi a sua plenitude que Me gerou,
e o pensamento do seu coração.

Coro – A sua palavra acompanha-nos


em todos os nossos caminhos,
o Salvador que dá vida às nossas almas
nunca as rejeita,
o homem que foi humilhado
e que por causa da sua justiça foi exaltado.
Apareceu o Filho do Altíssimo na plenitude do seu Pai;
brilhou a luz do Verbo que n’Ele estava desde o princípio.
Cristo, na verdade, é um só
e já existia antes da criação do mundo,
para salvar as almas para sempre
pela verdade do seu nome.

7
Cântico da assembleia dominical: nn. 1-18.
ODES DE SALOMÃO 151

Assembleia – Cantem ao Senhor um cântico novo


aqueles que O amam.

Ode XLII 8
42. Poeta – Estendi as minhas mãos e consagrei-me ao Senhor, 440
porque a extensão das minhas mãos é o seu sinal,
a extensão do madeiro do qual pendeu o Justo (canta-se).

Cristo – Fui sem trevas para aqueles que Me conhecem,


escondi-Me àqueles que Me rejeitam,
mas voltarei àqueles que Me amam.
Morreram todos os meus perseguidores,
mas procuram-Me todos aqueles
que em Mim puseram a sua esperança;
porque estou vivo:
ressuscitei e estou com eles,
e falarei pela sua boca.
Eles desprezaram os que os perseguiram,
e Eu pus sobre eles o jugo do meu amor.
Tal como o braço do amado sobre a sua amada,
assim o meu jugo estará sobre aqueles que Me conhecem,
e como o leito das esposas se levanta na casa dos esposos,
assim o meu amor guarda aqueles que em Mim crêem.
Eu nunca fui abandonado,
apesar de parecer abandonado,
e não pereci,
apesar de Me terem condenado.
O Sheol viu-Me e ficou vencido;
a morte rejeitou-Me e a muitos comigo,
e fui para ela como fel e vinagre;
baixei com ela até ao mais fundo das suas profundidades.
A morte deixou escapar os pés e a cabeça,
porque não podia suportar o meu rosto.
Reuni uma assembleia de vivos entre os seus mortos
e falei com eles com lábios vivos,
para não ser vã a minha palavra.
Correram para Mim os que tinham morrido
e gritando disseram:
«Filho de Deus, tende piedade de nós
e procedei connosco segundo a vossa misericórdia.
Tirai-nos das cadeias das trevas:
abri-nos a porta, a fim de irmos para Vós.
Sejamos também nós redimidos convosco,
porque Vós sois o nosso Redentor».
Ouvi a sua voz,
e selei o meu nome sobre as suas cabeças;
porque eles são homens livres e pertencem-Me.
Aleluia.
8
Hino pascal: nn. 1-28.
152 SÉCULO II

Melitão de Sardes

Sobre a Páscoa 1
441 Exórdio. 1 Foi lido o texto da Escritura sobre o êxodo hebreu e acabam de ser
explicadas as palavras do mistério: como foi morto o cordeiro e como foi salvo o povo.
2 Ficai sabendo, caríssimos: o mistério pascal é um mistério novo e antigo, eterno e
transitório, corruptível e incorruptível, mortal e imortal. 3 É mistério antigo em rela-
ção à Lei, novo em relação à Palavra encarnada; é transitório na sua figura, eterno pela
graça; é corruptível pela imolação do cordeiro, incorruptível pela vida do Senhor; é
mortal pela sua sepultura na terra, imortal pela sua ressurreição de entre os mortos.
4 A Lei é antiga, mas a Palavra é nova; a figura é transitória, mas a graça é eterna;
corruptível o cordeiro, incorruptível o Senhor, que foi imolado como cordeiro, mas
ressuscitou como Deus. Na verdade, era como ovelha conduzida ao matadouro, e,
contudo, não era ovelha; era como cordeiro sem voz, e, no entanto, não era cordeiro.
Com efeito, passou a figura e apareceu a realidade perfeita: 5 em vez de um cordeiro,
Deus; em vez de uma ovelha, o homem; no homem, porém, apareceu Cristo, que tudo
abrange.
6 Por consequência, a imolação da ovelha, a celebração da Páscoa e a escritura da
Lei tiveram a sua perfeita realização em Jesus Cristo; porque tudo o que acontecia na
antiga Lei se referia a Ele, e, mais ainda, na ordem nova, para Ele tudo converge. 7 Com
efeito, a Lei fez-se Palavra e, sendo antiga, tornou-se nova (tendo, porém, dimanado,
uma e outra, de Sião e Jerusalém); o preceito deu lugar à graça, a figura transformou-se
em realidade, o cordeiro em Filho, a ovelha em homem e o homem em Deus.
8 Gerado como Filho, conduzido como cordeiro, imolado como ovelha, sepultado
como homem, ressuscitou dos mortos como Deus, sendo por natureza Deus e homem.
9 Ele é tudo: enquanto julga, lei; enquanto ensina, Verbo; enquanto salva, graça; en-
quanto gera, Pai; enquanto é gerado, Filho; enquanto padece, cordeiro; enquanto é
sepultado, homem; enquanto ressuscita, Deus. 10 Assim é Jesus Cristo: a Ele a glória
pelos séculos. Amen. 11 Assim é o mistério da Páscoa tal como o descreve a Lei, tal
como foi lido antes.
442 Realização das figuras e profissão de fé. 46 Vós que escutastes a explicação da
figura e da sua correspondência, escutai igualmente a estrutura do mistério. O que é a
Páscoa? O nome deriva do que aconteceu: celebrar a Páscoa vem de padecer...
65 Muitas coisas foram preditas pelos Profetas acerca do mistério da Páscoa,
que é Cristo, ao qual seja dada glória pelos séculos dos séculos. Amen. 66 Ele desceu
dos Céus à terra para curar a enfermidade do homem; revestiu-Se da nossa natureza no
seio da Virgem e fez-Se homem; tomou sobre Si os sofrimentos do homem enfermo
num corpo sujeito ao sofrimento e destruiu as fraquezas da carne; e, com o seu espírito
que não podia morrer, matou a morte homicida. 67 Foi conduzido à morte como um
cordeiro; libertou-nos da sedução do mundo, como outrora tirou os Israelitas do Egipto;
salvou-nos da escravidão do Demónio, como outrora arrancou Israel das mãos do Faraó;
imprimiu em nossas almas o sinal do seu Espírito e assinalou os nossos corpos com o
seu sangue.

1
M ELITÃO DE S ARDES , De Pascha (=PG 5, 1208-1209; PL 54, 493-494; 56, 1134-1136; PLS 4, 1916-1918;
SCh 123; cf. LH, II). Melitão nasceu em Sardes e foi honrado como profeta e bispo de Éfeso. Morreu por
volta de 195. Esta homilia foi pregada em estilo de precónio e recorda os impropérios de Sexta-Feira Santa.
MELITÃO DE SARDES 153

68 Foi Ele que venceu a morte e confundiu o Demónio, como outrora Moisés ao
Faraó. Foi Ele que destruiu a iniquidade e condenou à esterilidade a injustiça, como
Moisés ao Egipto. Foi Ele que nos fez passar da escravidão à liberdade, das trevas à
luz, da morte à vida, da tirania ao reino perpétuo, e fez de nós um sacerdócio novo, um
povo eleito para sempre. 69 Ele é a Páscoa da nossa salvação. Foi Ele que tomou sobre
Si os sofrimentos de muitos: foi morto em Abel; atado de pés e mãos em Isaac;
peregrino em Jacob; vendido em José; exposto em Moisés; degolado no cordeiro;
perseguido em David e desonrado nos Profetas.
70 Foi Ele que encarnou no seio da Virgem, foi suspenso na cruz, sepultado na
terra e, ressuscitando de entre os mortos, subiu ao mais alto dos Céus. 71 Foi Ele o
cordeiro que não abriu a boca, o cordeiro imolado, nascido de Maria, cordeira sem
mancha; tirado do rebanho, foi conduzido ao matadouro, imolado à tarde e sepultado à
noite; ao ser crucificado, não Lhe partiram nenhum osso; não sofreu a corrupção do
túmulo; mas ressuscitou dos mortos e restituiu a vida aos homens...
Impropérios contra a ingratidão de Israel. 73 Por que razão, Israel, cometeste 443
este novo crime? Desonraste Aquele que te encheu de honra. Desprezaste Aquele que
te estimou; Renegaste Aquele que te confessou. Repudiaste Aquele que te chamou...
87 Ó Israel ingrato, vem, sê julgado diante de mim pela tua ingratidão! Quanto estimaste
a sua direcção? Quanto estimaste a eleição dos teus pais? Quanto estimaste a descida
ao Egipto e a tua subsistência lá em baixo pelo bom José? 88 Quanto estimaste as dez
pragas? Quanto estimaste a coluna de fogo de noite, e a nuvem durante o dia, e a
passagem do mar Vermelho? Quanto estimaste o dom do maná do céu, e a distribuição
da água do rochedo, e a promulgação da Lei no Horeb, e a herança que é a terra
(prometida) e os benefícios que aí te foram dados? 89 Quanto estimaste os homens
sofredores que Ele curou quando esteve presente? Pensa na mão ressequida que Ele
restituiu ao corpo!
90 Pensa nos cegos de nascença a quem Ele restituiu à luz com uma palavra!
Pensa nos mortos sepultados que Ele ressuscitou do túmulo, depois de três ou quatro
dias. Não têm preço os dons que Ele te deu. E tu, em vez de O adorares, não lhe
testemunhaste em troca senão ingratidão: pagaste-Lhe o mal pelo bem, a aflição pela
alegria, a morte pela vida. 91 A Ele, para quem teria sido preciso que tu morresses...
100 O Senhor, sendo Deus, fez-Se homem e, tendo sofrido em vez do enfermo,
tendo sido encarcerado em vez do prisioneiro, tendo sido condenado em vez do crimi-
noso e sepultado em vez do que jazia no sepulcro, 101 ressuscitou dos mortos e
exclamou com voz poderosa: Quem ousará condenar-Me? Aproxime-se de Mim. Eu
libertei o condenado, dei a vida ao morto, ressuscitei o que estava sepultado. 102
Quem ousará atacar-Me? Eu, diz Ele, sou Cristo, Aquele que destruiu a morte, que
venceu o Inimigo, que calcou aos pés o Inferno, que pôs em cadeias o violento, e que
arrebatou o homem para as alturas dos Céus: Eu, diz Ele, sou Cristo.
103 Vinde, portanto, vós, todas as nações da terra oprimidas pelo crime, e
recebei a remissão dos pecados. Eu sou o vosso perdão, a Páscoa da salvação, o
cordeiro por vós imolado, a água que vos purifica, a vossa vida, a vossa ressurreição,
a vossa luz, a vossa salvação, o vosso Rei. Eu vos elevarei até às alturas dos céus; Eu
vos ressuscitarei e vos mostrarei o Pai que está nos Céus; Eu vos exaltarei pela minha
mão direita.
Epílogo. 104 Tal é Aquele que fez o céu e a terra e que formou, no princípio, o 444
homem, que foi anunciado pela Lei e pelos Profetas, que encarnou numa virgem, que
foi suspenso num madeiro, que foi sepultado na terra, que ressuscitou dos mortos, e que
subiu para as alturas dos Céus, que tem o poder de julgar e de salvar tudo, Aquele por
quem o Pai fez o que existe desde o princípio e pelos séculos dos séculos.
154 SÉCULO II

105 É o Alfa e o Ómega, Ele é o princípio e o fim, começo inexplicável e fim


incompreensível, é Ele o Cristo; é Ele o Rei; Ele é Jesus; é o estratega, Ele é o Senhor,
Ele que ressuscita mortos, Ele que está sentado à direita do Pai. Ele leva o Pai e é
levado por Ele, a Ele a glória e o poder nos séculos dos séculos. Paz àquele que escre-
veu, àquele que leu e àqueles que amam o Senhor com simplicidade de coração.

Minúcio Félix

Octávio 1
445 8. Porque não havemos nós de lamentar que homens, seguidores de uma seita de-
plorável2, proibida, desesperada..., se reúnam em assembleias nocturnas, com jejuns
solenes, iguarias indignas de qualquer homem e ritos não sagrados, mas sacrílegos?
Raça que ama as trevas e teme a luz..., que despreza os templos como sepulcros,
que cospe nos deuses e ridiculariza os ritos..., que deplora e despreza a dignidade e a
púrpura dos sacerdotes..., que despreza os suplícios presentes... e teme os futuros...,
que teme morrer depois da morte e não tem medo da morte. Eis até que ponto a ilude
o temor e a enganadora esperança duma confortável ressurreição.
446 9. Os adeptos desta seita conhecem-se por sinais misteriosos que só eles com-
preendem... Diz-se ainda que adoram um homem, condenado, por delito, ao extremo
suplício, e, finalmente, o lenho mortífero da cruz, ao qual dedicam altares...
Depois, o que se conta da iniciação dos noviços, quanto ao que se sabe é detestá-
vel... São conhecidos os seus banquetes... Nos dias solenes, reúnem-se num banque-
te..., pessoas dos dois sexos e de todas as idades...
447 10. Por que razão se preocupam tanto em esconder aquilo que adoram e em mantê-lo
em segredo?... Porque não têm altares, templos e estátuas conhecidos? Porque não
falam nunca em público nem se reúnem livremente?...
448 11. E, não contentes com uma ideia tão tola, inventam e acrescentam tagarelices de
velhas: Que eles ressuscitarão depois da morte, mesmo que tenham sido reduzidos a
cinzas pelas chamas... Esperam para si uma vida eternamente feliz, e asseguram aos
outros, que consideram maus, uma pena eterna...
449 14. Que responderá Octávio a tudo isto?...
450 16. E Octávio começou a dizer: Falarei o melhor que me for possível...
451 28. Aqueles que andam por aí a tagarelar contra nós... querem atribuir-nos3 aquilo
que eles mesmos fazem... Eles cometem entre si tais crimes, que a época mais corrom-
pida não poderia suportar e que a escravidão mais dura não seria capaz de impor...

1
M INÚCIO F ÉLIX , Octávio (=PL 3, 232-366; CSEL 2; Paulistas, Lisboa 1961). Minúcio Félix é contempo-
râneo de Tertuliano. A sua obra é uma das primeiras Apologias cristãs. Tudo leva a crer que tenha sido
escrita por volta do ano 197.
2
A seita deplorável, na acusação do pagão Cecílio, são os cristãos.
3
Começa aqui a resposta de Octávio, que era cristão, a Cecílio, que era pagão, e que esteve a falar até este
momento.
MINÚCIO FÉLIX 155

29. As cruzes, nem as adoramos nem lhes rezamos. Vós, pelo contrário, adorando 452
deuses de madeira, é que talvez adoreis cruzes de madeira, como partes dos vossos
deuses. De facto, que outra coisa são as vossas insígnias, os vossos troféus, os vossos
estandartes de guerra, senão cruzes douradas e ornadas? E os troféus dos vencedores
não só imitam a figura da cruz, mas também a de um homem nela suspenso. O sinal da
cruz vemo-lo nós, natural, numa nave, quando esta avança a velas desfraldadas, quan-
do desliza a remos distendidos, quando se levanta um jugo, e quando um homem, com
espírito puro, ora a Deus com os braços abertos. É claro, portanto, que ou a própria
natureza leva à cruz, ou, pelo menos, sobre ela se apoia a vossa religião. 30. Quereria
agora ouvir aqueles que afirmam ou crêem que a iniciação à nossa fé é feita com a morte
e com o sangue de uma criança. Poderás acreditar que um corpo tão pequeno e tão frágil
seja submetido a tão grandes tormentos, e que haja alguém que mate um recém-nasci-
do?... Só pode acreditar nisto quem tem coragem de fazê-lo. E, na verdade, eu noto que
vós expondes às feras, às aves de rapina, os filhos aos quais destes a vida. Vejo também
que horrorosamente os estrangulais. Há, além disso, mulheres que, com bebidas malé-
ficas, extinguem, no seu próprio seio, a vida, cometendo um infanticídio, antes de dar
à luz... Não fazem coisa diversa aqueles que comem carnes das feras do circo, banhadas
ainda de sangue, e saciadas com carnes e vísceras humanas. Pois a nós, nem sequer nos
é lícito assistir a um homicídio, nem mesmo ouvir falar dele. Afastamo-nos tanto do
sangue humano, que excluímos, até, da nossa alimentação, o sangue dos animais que
nos é lícito comer.
31. Nós somos fiéis ao vínculo de um só matrimónio... Os nossos banquetes são 453
frugais... Somos castos nas palavras, ainda mais castos no corpo, e muitos de nós, sem
disto se vangloriarem, permanecem virgens e imaculados por toda a vida... Se o nosso
número cresce de dia para dia, isso não constitui delito de difusão de um erro, mas
prova do louvor que merecemos... Não nos conhecemos facilmente uns aos outros por
um sinal material, como vós julgais, mas pela inocência e modéstia. Amamo-nos mu-
tuamente, e isto desagrada-vos, porque não sabemos odiar. Chamamo-nos irmãos, e isto
suscita inveja, porque somos filhos de um só Deus Criador, estamos unidos pela
mesma fé e somos, em comum, herdeiros das esperanças futuras. Vós, pelo contrário,
não vos conheceis e odiais-vos cruelmente...
32. Vós pensais que nós queremos esconder aquilo que adoramos, por não termos 454
templos nem altares... Mas que templo poderei eu construir a Deus, se o mundo
inteiro, obra das suas mãos, não O pode conter?... Não será possível dedicar-Lhe um
templo no espírito e no fundo do coração?... São estes os nossos sacrifícios. É este o
culto que nós prestamos a Deus, e, para nós, é mais religioso aquele que é mais justo...
Em qualquer parte que nos encontremos, Deus não só está perto de nós, mas está em
nós mesmos... Não só agimos sob o seu olhar, mas vivemos n’Ele.
37. As nossas crianças e donzelas, com uma resistência à dor, sem dúvida dada por 455
Deus, riem-se das cruzes, dos tormentos, das feras e de todos os mais terrificantes
suplícios. Não compreendeis que ninguém afronta as penas sem uma razão suficiente
e que, sem o auxílio de Deus, ninguém as pode suportar?...
38. Se recusamos o que sobra dos vossos sacrifícios e as taças libadas aos deuses, 456
não o fazemos por medo, mas para afirmar a nossa liberdade... Nós celebramos os
funerais com a simplicidade com que vivemos, e não entretecemos coroas que mur-
cham, mas esperamos de Deus uma coroa viva de flores eternas. Conhecendo a genero-
sidade de Deus, permanecemos seguros na esperança da felicidade futura, animados
pela fé na sua majestosa presença, e, assim, de algum modo, já ressuscitámos felizes e
já vivemos na contemplação do futuro... Nós não trazemos a sabedoria no vestuário,
mas no espírito; não dizemos coisas grandes, mas fazemo-las...
156 SÉCULO II

Carta a Diogneto 1

457 1. 1 Uma vez que te vejo, ilustríssimo Diogneto, tão interessado em conhecer a
religião dos cristãos e em informar-te sábia e cuidadosamente acerca do Deus em que
acreditam..., 2 aprovo o teu vivo desejo e rogo a Deus, que nos concede o dizer e o
ouvir, que me seja dado falar de tal modo que tu, ouvindo, te tornes melhor e de tal
modo ouças que não contristes quem te fala.
458 5. O mistério da vida dos cristãos. 1 Os cristãos não se distinguem dos demais
homens, nem pela pátria, nem pela língua, nem pelos costumes2. 2 Efectivamente, eles
não têm cidades próprias, não usam uma linguagem peculiar, e a sua vida nada tem de
excêntrico. 3 A sua doutrina não procede da imaginação fantasiosa de espíritos exalta-
dos, nem se apoiam, como outros, em qualquer teoria simplesmente humana3. 4 Vivem
em cidades gregas ou bárbaras, segundo as circunstâncias de cada um, e seguem os
costumes da terra, quer no modo de vestir, quer nos alimentos que tomam, quer em
outros usos; mas a sua maneira de viver é sempre admirável e passa aos olhos de todos
por um prodígio4.
5 Cada qual habita a sua pátria, mas vivem todos como de passagem5; em tudo
participam como os outros cidadãos, mas tudo suportam como se não tivessem pátria.
Toda a terra estrangeira é sua pátria, e toda a pátria lhes é estrangeira6. 6 Casam-se
como toda a gente e geram filhos, mas não se desfazem dos recém-gerados. 7 Partici-
pam da mesma mesa, mas não do mesmo leito.
8 São de carne, mas não vivem segundo a carne7. 9 Habitam na terra, mas a sua
cidade é o Céu8. 10 Obedecem às leis estabelecidas 9, mas pelo seu modo de vida
superam as leis.
11 Amam toda a gente e toda a gente os persegue. 12 Condenam-nos sem os
conhecerem; conduzem-nos à morte, mas o número dos cristãos cresce continuamente.
13 São pobres e enriquecem os outros10; tudo lhes falta e tudo lhes sobra. 14 São
desprezados, mas no desprezo encontram a sua glória; são caluniados, mas transparece
o testemunho da sua justiça. 15 Amaldiçoam-nos e eles abençoam11. Sofrem afrontas e
pagam com honras. 16 Praticam o bem e são castigados como malfeitores; e, ao serem
executados, alegram-se como se lhes dessem a vida. 17 Os Judeus combatem-nos como
estrangeiros, e os Gregos movem-lhes perseguições; mas nenhum dos que os odeiam
sabe dizer a causa do seu ódio.
459 6. Os cristãos são a alma do mundo. 1 Numa palavra: os cristãos são no mundo o
que a alma é no corpo. 2 A alma encontra-se em todos os membros do corpo; os
cristãos estão em todas as cidades do mundo. 3 A alma habita no corpo, mas não

1
Carta a Diogneto (=PG 2, 1167-1186; F UNK -DIEKAMP I; SCh 33 bis; Alcalá, Philokalia, Lisboa 2001; cf.
LH, I, II). A Carta a Diogneto é uma apologia do cristianismo, escrita entre os anos 190-200. Não se sabe
nada nem do autor nem do destinatário.
2
Os cap. 5 e 6 são construídos com antíteses.
3
Gal 1, 12.
4
Filip 3, 20.
5
Ef 2, 19; Hebr 11, 13-16.
6
Hermas, O Pastor, Sim. 1, 1.
7
2 Cor 10, 3; Rom 8, 12-13.
8
Filip 3, 20; Hebr 13, 14.
9
Rom 13, 1; Tit 3, 1.
10
2 Cor 6, 9-10.
11
1 Cor 4, 10-12.
CARTA A DIOGNETO 157

provém do corpo; os cristãos habitam no mundo, mas não são do mundo12. 4 A alma
invisível é guardada num corpo visível; os cristãos vivem visivelmente no mundo, mas
a sua piedade permanece invisível. 5 A carne, sem ser ofendida, odeia e combate a
alma13, só porque lhe impede o gozo dos prazeres; o mundo, sem ter razão para isso,
odeia os cristãos14 precisamente porque se opõem aos seus prazeres. 6 A alma ama o
corpo e os seus membros, mas o corpo odeia a alma; e os cristãos amam aqueles que os
odeiam15.
7 A alma está encerrada no corpo, mas contém o corpo; os cristãos encontram-se
detidos no mundo como num cárcere, mas são eles que sustêm o mundo. 8 A alma
imortal habita numa tenda mortal; os cristãos vivem como peregrinos em tendas mor-
tais, esperando a incorruptibilidade nos Céus16. 9 A alma aperfeiçoa-se com a mortifi-
cação na comida e na bebida; os cristãos, constantemente mortificados, multiplicam-se
cada vez mais. 10 Tão nobre é o posto que Deus lhes assinalou, que não lhes é possível
desertar.
7. O cristianismo é uma revelação. 1 Como já o disse mais acima, o que lhes foi 460
transmitido não tem origem terrestre 17, e o que eles fazem questão de conservar com
tanto cuidado não é invenção dum mortal, nem lhes foi confiada a administração de
mistérios humanos. 2 Mas foi o próprio Deus invisível, verdadeiro Senhor e Criador
de tudo18, que do alto dos Céus colocou a Verdade no meio dos homens 19, o seu Verbo
santo e incompreensível, e O estabeleceu firmemente em seus corações. Não realizou
tudo isto, como alguém poderia imaginá-lo, enviando aos homens algum subordinado,
Anjo ou espírito de entre os que governam as coisas terrenas, ou têm a seu cargo o
cuidado das coisas celestes, mas o próprio Autor e Criador do universo. Por seu inter-
médio criou os céus e encerrou o mar nos seus limites 20.
Todos os elementos obedecem com fidelidade às suas leis misteriosas: o Sol, ao
seguir a medida do curso dos dias; a Lua, brilhando durante a noite; os astros, acompa-
nhando o percurso da lua. Por Ele todas as coisas foram feitas, definidas e hierarquizadas:
os céus e o que neles existe, a terra e o que ela contém, o mar e o que nele se encontra,
o fogo, o ar, o abismo, os seres que existem nas alturas, nas profundidades e no espaço
intermédio. Foi Ele que Deus enviou aos homens.
3 Não foi de modo nenhum para exercer tirania ou incutir terror e assombro,
como alguém poderia pensar, que Deus O enviou, mas com bondade e doçura. 4 Como
um Rei que enviasse o seu filho Rei, assim Deus O enviou como Deus. Enviou-O como
Homem ao meio dos homens. Enviou-O para os salvar pela persuasão e não pela força,
porque em Deus não há violência. 5 Enviou-O para chamar e não para acusar; enviou-O
como quem ama, e não como quem condena 21. 6 Mas um dia há-de mandá-l’O para
julgar. Quem suportará, então, a sua vinda22?...
7 Não vês como os cristãos lançados às feras para renegarem o seu Senhor nunca
são vencidos? 8 Não vês que quanto maior é o número dos mártires, mais aumentam os

12
Jo 15, 19; 17, 11-16.
13
Gal 5, 17.
14
Jo 15, 18-19; 1 Jo 3, 13.
15
Mt 5, 44; Lc 6, 27.
16
1 Cor 15, 50.
17
Gal 1, 12.
18
O original grego utiliza a palavra pantokra/tor , muito utilizado pela Sagrada Escritura e pelos Padres para
designar Deus.
19
Jo 14, 6.
20
Sal 103, 9; Prov 8, 27-29.
21
Jo 3, 17-19.
22
Lacuna no manuscrito.
158 SÉCULO II

cristãos? 9 Estas coisas não podem ser obra humana: são os efeitos da força de Deus e
a prova manifesta da sua vinda.
461 8. Incapacidade da filosofia. 1 Terá havido alguém capaz de saber quem é Deus,
antes de Ele próprio ter vindo? 2 Será que aceitas os discursos vazios e frívolos
daqueles filósofos tidos por dignos de fé? Alguns deles afirmaram que Deus era fogo
(chamam deus a este fogo para o qual caminham). Outros há que dizem ser a água,
outros ainda que é um dos elementos que foram criados por Deus.
3 Se qualquer destas opiniões fosse aceitável, cada uma das outras criaturas
poderia igualmente ser proclamada Deus. 4 A verdade, porém, é que tais coisas são
fábulas e erros dos charlatães. 5 A Deus, ninguém jamais O viu nem conheceu23, foi Ele
próprio que Se manifestou. 6 E manifestou-Se mediante a fé, único meio de ver a Deus.
7 Efectivamente, o Senhor e Criador, Deus do universo, que fez todas as coisas
e as dispõe ordenadamente, mostrou-Se não só amigo dos homens, mas também mag-
nânimo. 8 Aliás, Ele sempre foi e será assim: benigno e bom, clemente e verdadeiro; só
Ele é bom24. 9 Depois de ter concebido um grande e inefável projecto só o partilhou
com o seu próprio Filho.
10 Enquanto mantinha oculto e reservado para Si o desígnio da sua sabedoria,
parecia abandonar-nos e esquecer-Se de nós. 11 Mas, quando o revelou por meio do
seu amado Filho25 e manifestou o que tinha preparado desde o princípio26, ofereceu-nos
tudo de uma só vez: participar dos seus benefícios, ver (e compreender)27. Quem de nós
teria esperado semelhante generosidade?
462 9. Porquê tão tarde? 1 Tendo Deus assim disposto todas as coisas com seu Filho,
permitiu que, até aos últimos tempos, vivêssemos desviados do recto caminho, atraídos
pelos prazeres e paixões28, e nos deixássemos arrastar por impulsos desordenados,
segundo o nosso arbítrio. Não porque sentisse de algum modo prazer com os nossos
pecados, mas tolerava-os; nem porque concordasse com o tempo passado favorável à
iniquidade, mas porque preparava o tempo actual de justiça, a fim de que, durante esse
tempo, reconhecendo-nos indignos da vida, em virtude das obras de cada um, agora,
pela benignidade de Deus, fôssemos considerados dignos; e, reconhecendo claramente
a nossa impossibilidade de entrar pelas próprias forças no reino de Deus, pudéssemos
ter acesso a ele mediante o poder de Deus29.
2 Mas, quando a nossa injustiça atingiu o mais alto grau e se tornou evidente que
por ela apenas merecíamos o castigo e a morte, chegou o tempo que Deus havia
previamente estabelecido para revelar a sua benignidade e poder30. Oh suprema amiza-
de e amor de Deus aos homens! Não Se deixou dominar pelo ódio contra nós, nem nos
rejeitou, nem Se vingou, mas usou de magnanimidade e de paciência; na sua misericór-
dia, tomou sobre Si os nossos pecados e entregou o próprio Filho como preço da nossa
redenção31: o santo pelos iníquos, o inocente pelos culpados, o justo pelos injustos32, o
incorruptível pelos corruptíveis, o imortal pelos mortais.

23
Lc 10, 22; Jo 1, 18.
24
Mt 19, 17; Mc 10, 18; Lc 18, 19.
25
Mt 3, 17; 17, 5.
26
Ef 3, 9; Gal 4, 4-5.
27
Falta no original.
28
Tit 3, 3.
29
Jo 3, 5.
30
Gal 4, 4.
31
Rom 8, 32; 1 Tim 2, 6; Mt 20, 28; Mc 10, 45.
32
1 Ped 3, 18.
CARTA A DIOGNETO 159

3 Efectivamente, que outra coisa teria podido apagar os nossos pecados, senão
a sua justiça? 4 Por quem poderíamos nós ser justificados..., senão pelo Filho de
Deus? 5 Oh admirável intercâmbio, oh misteriosa iniciativa, oh surpreendente benefí-
cio: a iniquidade de muitos foi vencida por um só justo, a justiça de um só venceu a
iniquidade de muitos33!
6 Tendo-nos convencido, nos tempos já decorridos, da incapacidade da nossa
natureza para alcançar a vida e tendo mostrado agora que o Salvador podia salvar até o
que era impossível, quis, por ambos os modos que nós acreditássemos na sua bondade,
e O considerássemos Amo, Pai, Mestre, Conselheiro, Médico, Inteligência, Luz, Hon-
ra, Glória, Força, Vida, para que não nos inquietássemos mais com o vestir e o alimento34...
10. Os bens que Diogneto receberá com a fé. 1 Se desejas tu também alcançar 463
ardentemente esta fé, receberás primeiramente o conhecimento do Pai. 2 Deus amou os
homens...; deu-lhes a razão e a inteligência...; enviou-lhes o seu Filho unigénito; pro-
meteu o Reino no Céu àqueles que O amarem. 3 Que grande alegria te inundará quando
O tiveres conhecido! Como amarás Aquele que de tal modo te amou primeiro! 4 E não
te admires de um homem poder tornar-se imitador de Deus; se Ele quiser, pode. 5 De
facto, a felicidade não consiste em oprimir o próximo, em querer estar acima dos mais
fracos, em tornar-se rico e ser violento com os inferiores. Não é assim que alguém pode
ser imitador de Deus... 6 Na verdade, é imitador de Deus quem leva o fardo do próxi-
mo, quem procura, naquilo em que é superior, fazer bem ao que menos possui... 7
Então, embora te encontres ainda na terra, verás que Deus reina nos Céus; começarás
a falar dos seus mistérios; amarás e admirarás os que são torturados por não quererem
renegar a Deus. Quando tiveres compreendido que a verdadeira vida está no Céu...,
quando temeres a verdadeira morte..., então condenarás a mentira e o erro do mundo.
8 Então admirarás os que suportam, pela justiça, o fogo momentâneo, e chamá-los-ás
felizes, quando tiveres compreendido o que é aquele outro fogo.
11. Importância da doutrina do Verbo encarnado. 1 Não falo de coisas estranhas 464
nem procuro o absurdo, mas, tendo-me tornado discípulo dos Apóstolos, faço-me mes-
tre das nações, transmitindo dignamente a tradição àqueles que se tornaram discípulos
da verdade. 2 Qual é o homem que, depois de perfeitamente instruído e gerado pelo
Verbo amigo, não se esforçará por aprender com exactidão tudo o que o Verbo manifes-
tou aos discípulos? Foi a estes que o Verbo, quando apareceu e lhes falou com a maior
confiança, revelou tais coisas... Ele conversava com os discípulos, e os que Ele julgava
fiéis conheceram os mistérios do Pai. 3 Foi por causa deles que Deus enviou o Logos,
para Se manifestar ao mundo... Anunciado pelos Apóstolos, as nações pagãs acredita-
ram n’Ele. 4 Ele, que existe desde o princípio, apareceu como recém-nascido e renasce
sempre no coração dos santos... 5 Hoje é chamado Filho e enriquece a Igreja... 6 Ago-
ra, o temor da Lei é celebrado com cânticos, reconhece-se a graça dos Profetas, firma-
-se a fé dos Evangelhos, guarda-se a tradição dos Apóstolos, e exulta a graça da Igreja.
7 Se não contristares essa graça, reconhecerás que o Logos fala, quando Lhe apraz, por
meio de quem escolheu...
12. 1 Se com empenho vos aproximardes e escutardes estas realidades, sabereis o 465
que Deus oferece aos que O amam rectamente, aos que se tornam em jardim de delícias,
ao produzirem dentro de si mesmos uma árvore pujante e fecunda... 7 O conhecimento
seja o teu coração, e o Logos verdadeiro, acolhido em ti, a tua vida... 9 A Salvação
revela-se e os Apóstolos são instruídos; a Páscoa do Senhor aproxima-se e os tempos
conjugam-se; o Logos harmoniza-se com o cosmos e alegra-se ensinando os santos; por
Ele o Pai é glorificado. A Ele a glória pelos séculos. Amen.

33
Rom 5, 17-19.
34
Mt 6, 31; Lc 12, 29.
160 SÉCULO II

Inscrições cristãs 1

466 1. Inscrição tumular de Abércio2

CIDADÃO DE UMA CIDADE ILUSTRE ERIGI ESTE [túmulo] AINDA EM VIDA,


PARA O MEU CORPO TER AQUI SEPULTURA.
O MEU NOME É ABERKIOS3; DISCÍPULO DE UM PASTOR PURO,
QUE APASCENTA REBANHOS PELOS MONTES E PLANÍCIES,
E TEM GRANDES OLHOS QUE OLHAM POR TUDO.
ELE ENSINOU-ME... ESCRITURAS DIGNAS DE FÉ.
ENVIOU-ME A ROMA PARA VER O REINO
E A RAINHA QUE TEM VESTES E SANDÁLIAS DE OURO.
VI ALI UM POVO, QUE POSSUI UM SEGREDO RESPLANDECENTE.
VI A PLANÍCIE E TODAS AS CIDADES DA SÍRIA E NÍSIBIS,
ATRAVESSADO O EUFRATES; POR TODA A PARTE ENCONTREI IRMÃOS...
TENDO PAULO SEMPRE COMIGO,
E POR TODA A PARTE ME GUIOU A FÉ.
DEU-ME COMO ALIMENTO O PEIXE DE FONTE GRANDÍSSIMA E PURA
QUE UMA VIRGEM CASTA PESCOU
E O DEU A COMER TODOS OS DIAS AOS AMIGOS;
ELA TEM UM VINHO DELICIOSO E SERVE-O MISTURADO COM PÃO.
EU, ABÉRCIO, DITEI ESTAS COISAS AOS SETENTA E DOIS ANOS DE IDADE,
PARA QUE SE ESCREVESSEM NA MINHA PRESENÇA.
AQUELE QUE AS ENTENDER E CONCORDAR COMIGO ROGUE POR
ABÉRCIO.
NINGUÉM PONHA OUTRO TÚMULO POR CIMA DO MEU.
DE CONTRÁRIO PAGARÁ
DUAS MIL MOEDAS DE OURO AO ERÁRIO DOS ROMANOS,
E MIL A HIERÁPOLIS, MINHA ILUSTRE CIDADE.

467 2. De uma criança com dois anos de idade4

Repouso aqui, criança excluída da sua parte da vida, primogénito de um pai muito bom
e de uma mãe muito bonita, com dois anos de idade, amada por Deus, encantadora,
nascida no dia do Sol, e que afligi, com a morte, os meus queridos e bons pais. Filho de
Deus.

1
Inscriptiones latinae christianae veteres (=DACL 1, 66-87; DTC 1, 57-68; D IEHL , Roma 1857-1888,
Berlim 1961 2 ).
2
Inscrição de Abércio (=DACL I, 66-87; DTC I, 57-68; J. Q UASTEN , Patrologia I, BAC 206, 1961, 167-
168). Esta inscrição, que é dos finais do século II, conserva-se no museu do Vaticano. É a rainha das
inscrições tumulares cristãs.
3
Bispo de Hierápolis, na Frígia.
4
D IEHL , Berlim 1961.
ACTAS DOS MÁRTIRES 161

Actas dos Mártires 1

Mártires de Pérgamo 2
CARPO, BISPO 468

O procônsul, depois de se sentar, disse: «Como te chamas»? E o bem-aventurado


disse: «O meu primeiro e principal nome é o de cristão; mas, se perguntas aquele que
tenho no mundo, chamo-me Carpo».
O procônsul disse: «Suponho que tenhais notícia dos decretos dos Augustos
sobre a vossa obrigação de venerar os deuses, governadores do universo; por isso
aconselho-vos a que vos aproximeis e sacrifiqueis».
Carpo disse: «Eu sou cristão e venero a Cristo; portanto... é impossível que eu
sacrifique, pois jamais sacrificarei a ídolos...».
Quando o soldado pegou fogo à lenha amontoada, Carpo, suspenso no poste,
orou dizendo: «Bendito sejas, Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, pois Te dignaste
dar-me parte, também a mim, pecador, nesta tua sorte». E, dizendo isto, entregou o
espírito.
PANFÍLIO, DIÁCONO 469
Panfílio desceu os degraus e, olhando para o céu, disse: «Eu Te dou graças, Se-
nhor Jesus, porque, sendo eu um vaso de injúria, fizeste de mim, segundo a tua vontade,
um vaso de louvor».
Á G ATA 470
Levantada no madeiro e alcançada já pelo fogo, Ágata gritou por três vezes:
«Senhor, Senhor, Senhor, ajuda-me, pois em Ti busquei o meu refúgio». E desta maneira
entregou o seu espírito e consumou o martírio com os santos.
Recolhendo ocultamente as relíquias de todos, os cristãos guardaram-nas para
glória de Cristo e louvor dos seus mártires, pois a Ele pertence a glória e o poder, ao Pai
e ao Filho e ao Espírito Santo, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amen.

Mártires de Lião 3
Tal como Estêvão, assim orava o mártir perfeito: «Senhor, não os acuses deste 471
pecado».

Mártires da Sicília 4
E todos disseram: «Graças a Deus». Todos foram coroados ao mesmo tempo 472
com o martírio e reinam com o Pai e o Filho e o Espírito Santo por todos os séculos dos
séculos. Amen.

1
Actas ou feitos dos Mártires (=PG 6, 1565-1572; BAC 75; E. LODI , Roma 1979, 126-128).
2
Mártires sob Marco Aurélio, anos 161-180.
3
Mártires de Lião, sob Marco Aurélio, por volta do ano 177 (=E. L ODI , Roma 1979, 127).
4
Mártires da Sicília, sob Cómodo, por volta do ano 180 (=E. LODI , Roma 1979, 127).
162 SÉCULO II

Martírio de Apolónio 5
473 Apolónio disse: «Dou graças ao meu Deus, ó cônsul Perene, juntamente com os
que acreditam em Deus todo-poderoso, em seu Filho unigénito Jesus Cristo e no
Espírito Santo, por esta tua sentença, que para mim é salvadora».

Martírio de Justino
e dos seus companheiros 6
474 1. 1 No tempo dos iníquos defensores da idolatria, publicavam-se, por cidades e
aldeias, ímpios decretos contra os cristãos, a fim de os obrigar a fazer sacrifícios aos
ídolos. 2 Aqueles homens santos (Justino e seus companheiros) foram presos e leva-
dos ao prefeito de Roma, chamado Rústico.
475 2. 1 Estando eles diante do tribunal, o prefeito Rústico disse a Justino: «Primeira-
mente, manifesta a tua fé nos deuses e obedece aos imperadores». 2 Justino respon-
deu: «Não podemos ser acusados nem presos por obedecer aos mandamentos de Jesus
Cristo, nosso Salvador».
3 Rústico perguntou: «Que doutrinas professas?». Justino disse: «Procurei co-
nhecer todas as doutrinas, mas acabei por abraçar a doutrina verdadeira dos cristãos,
embora ela não agrade àqueles que vivem no erro». 4 Rústico retorquiu: «Tu gostas de
semelhantes doutrinas, miserável»? Justino respondeu: «Sim, pelo que as sigo de
acordo com a verdade». 5 O prefeito Rústico inquiriu: «Que verdade é essa?». Justino
explicou: «Adoramos o Deus dos cristãos, a quem consideramos como o único Cria-
dor, desde o princípio, e autor de toda a criação, das coisas visíveis e invisíveis, e o
Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, de quem foi anunciado pelos Profetas que viria ao
género humano como mensageiro da salvação e mestre da boa doutrina. E eu, porque
sou homem e nada mais, considero insignificante tudo o que digo para exprimir a sua
divindade infinita, mas reconheço o valor das profecias, que previamente anunciaram
Aquele que afirmei ser o Filho de Deus. Sei que eram inspirados por Deus os Profetas
que vaticinaram a sua vinda ao meio dos homens».
476 3. 1 Rústico perguntou: «Onde vos reunis?». Justino respondeu: «Onde cada um
prefere e pode. Tu imaginas, sem dúvida, que todos nós nos reunimos num mesmo lugar.
Mas não é assim, pois o Deus dos cristãos não está limitado a nenhum lugar. Como é
invisível, enche o céu e a terra, e é adorado e glorificado em toda a parte pelos seus
fiéis». 2 O prefeito retorquiu: «Diz-me onde vos reunis, ou seja, em que lugar juntas os
teus discípulos». 3 Justino respondeu: «Eu vivo em casa de um certo Martinho, no banho
de Timiotino, e foi essa a minha residência durante todo o tempo que estive esta segun-
da vez em Roma. Não conheço outro lugar de reuniões senão esse. Ali, se alguém
queria ir ver-me, eu comunicava as palavras da verdade». 4 Rústico perguntou: «Por-
tanto, tu és cristão?». Justino confirmou: «Sim, sou cristão».
477 4. 1 O prefeito Rústico perguntou a Caritão: «Diz-me tu agora, Caritão, também és
cristão?». Caritão respondeu: «Sou cristão por graça de Deus». 2 O prefeito perguntou
a Caridade: «Que dizes tu, Caridade?». Caridade respondeu: «Sou cristã por dom de
Deus». 3 Rústico perguntou a Evelpisto: «E tu quem és, Evelpisto?». Evelpisto,
escravo de César, respondeu: «Também sou cristão, libertado por Cristo, e, por graça

5
Martírio de Apolónio, sob Cómodo (=E. L ODI , Roma 1979, 127). Por volta do ano 186
6
Actas do martírio de Justino e dos seus companheiros (=PG 6, 1565-1572; BAC 75; cf. LH, III). Ano 165.
ACTAS DOS MÁRTIRES 163

de Cristo, participo da mesma esperança que estes». 4 O prefeito Rústico disse a


Híerax: «Tu também és cristão?». Híerax respondeu: «Sim, também eu sou cristão,
pois presto culto e adoração ao mesmo Deus que estes».
5 O prefeito Rústico perguntou: «Foi Justino que vos fez cristãos?». Hierax
respondeu: «Eu sou cristão há muito tempo e cristão continuarei a ser». 6 Mas Peão,
pondo-se de pé, disse: «Também eu sou cristão». O prefeito perguntou: «Quem te
ensinou?». Peão respondeu: «Nós recebemos de nossos pais esta bela confissão». 7
Evelpisto disse: «Eu gostava de ouvir os discursos de Justino; mas a ser cristão
aprendi-o de meus pais». Rústico perguntou: «Onde estão os teus pais?». Evelpisto
respondeu: «Na Capadócia». 8 O prefeito perguntou a Híerax: «E os teus pais, onde
estão?». Híerax respondeu dizendo: «O nosso verdadeiro pai é Cristo, e a nossa mãe a
fé que temos nele. Quanto aos meus pais terrenos, morreram, e eu vim para aqui
trazido à força de Icónio da Frígia». 9 O prefeito Rústico disse a Liberiano: «E tu que
dizes? Também és cristão? Também tu não tens religião?». Liberiano respondeu: «Tam-
bém eu sou cristão e, quanto à minha religião, só adoro o Deus verdadeiro»
5. 1 O prefeito disse a Justino: «Ouve, tu que és tido por sábio e julgas conhecer a 478
verdadeira doutrina: se fores flagelado e decapitado, estás convencido de que subirás
ao Céu?». 2 Justino respondeu: «Espero entrar naquela morada, se tiver de sofrer o
que dizes, pois sei que a todos os que viverem santamente lhes está reservada a
recompensa de Deus até ao fim dos séculos». 3 O prefeito Rústico perguntou: «Então
tu supões que hás de subir ao Céu para receber algum prémio em retribuição?». Justino
disse: «Não suponho, sei-o com toda a certeza».
4 O prefeito Rústico retorquiu: «Bem, deixemos isso e vamos à questão de que
se trata, à qual não podemos fugir e que é urgente. Aproximai-vos e todos juntos sacrificai
aos deuses». Justino respondeu-lhe: «Não há ninguém que, sem perder a razão, abando-
ne a piedade para cair na impiedade».
5 O prefeito Rústico continuou: «Se não fizerdes o que vos é mandado, sereis
torturados sem compaixão». 6 Justino disse: «Desejamos e esperamos chegar à salva-
ção através dos tormentos que sofremos por amor de nosso Senhor Jesus Cristo. O
sofrimento garante-nos a salvação e dá-nos confiança perante o tribunal de nosso
Senhor e Salvador, que é universal e mais terrível do que o teu». 7 E os outros mártires
disseram o mesmo: «Faz o que quiseres; porque nós somos cristãos e não sacrificamos
aos ídolos».
8 O prefeito Rústico pronunciou então a sentença, dizendo: «Os que não quise-
ram sacrificar aos deuses e obedecer à ordem do imperador, sejam flagelados e condu-
zidos ao suplício, segundo as leis, para sofrerem a pena capital».
6. 1 Glorificando a Deus, os santos mártires saíram para o lugar do costume; e ali 479
foram decapitados e consumaram o seu martírio, dando testemunho da fé no Salvador.
2 Alguns fiéis, às escondidas, levaram os seus corpos e puseram-nos em lugar conve-
niente, ajudados pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem seja dada glória pelos
séculos dos séculos. Amen.

Martírio de Pólio
1. O presidente Probos disse: «Que ofício desempenhas»? _ Pólio respondeu: «O 480
de primeiro leitor». _ O presidente Probos disse: «O que são os leitores»? _ Pólio
respondeu: «São os que costumam ler ao povo a palavra divina...».
164 SÉCULO II

Actos apócrifos 1

Actos de João 2
481 9. Oração do cálice. João recebeu (o veneno) e, depois de o lançar num grande
cálice com água, acabou de o encher e disse em voz alta: «Em teu nome, Jesus Cristo,
Filho de Deus, bebo o cálice que Tu tornas doce; pelo teu Espírito Santo faz dele um
remédio, tornando-o cálice de vida e de salvação para a alma e remédio para o corpo...
à semelhança do cálice da Eucaristia».
482 85. Oração eucarística. Dizendo isto..., João tomou o pão..., partiu-o e disse: «Lou-
vamos o teu nome que nos converteu do erro e das seduções enganadoras; nós Te
louvamos, pois nos mostras com clareza aquilo que vemos; confessamos de muitos modos
a tua bondade; louvamos a maravilha do teu nome, Senhor, que revelaste aos que tinhas
rejeitado; nós Te damos graças, Senhor Jesus Cristo, pois acreditamos que a tua graça
é imutável; nós Te damos graças, Criador do mundo da natureza que salvaste; nós Te
damos graças, porque nos deste a fé necessária, e porque és único agora e sempre; nós,
teus servos, reunidos segundo a tua ordem e ressuscitados, damos-Te graças santamen-
te.
483 106. A reunião no dia do Senhor. João continuou a alegrar-se no dia do Senhor com
os irmãos. O dia escolhido era um dia do Senhor; por isso os irmãos se reuniram todos
e João começou a dizer-lhes3...
484 107. A liturgia dominical doméstica. Não contristeis o nosso Deus, que é bom, mise-
ricordioso, clemente, santo, puro, imaculado, imaterial, uno, único, imutável, simples,
sincero, sem ira, mais excelso e mais elevado do que qualquer nome que se possa dizer
ou pensar, nosso Deus, Jesus Cristo. Regozija-Se com os nossos bons costumes;
alegra-Se quando vivemos bem; fica saciado quando nos amamos; não sofre quando
vivemos na continência; exulta por vivermos em comunhão; agrada-Lhe que sejamos
sábios; fica cheio de gozo quando O amamos.
485 108. Antes da Eucaristia. Depois de lhes ter falado assim, orou deste modo: «Senhor
Jesus, Tu que levas incrustada esta coroa sobre os teus cabelos; Tu que adornaste com
estas flores a flor imperecível do teu rosto; Tu que nos dirigiste estas palavras; Tu que
só cuidas dos teus servidores e és o único médico que nos salva; Tu o único benfeitor,
o único humilde, o único clemente, o único amigo dos homens, o único salvador e justo;
Tu que vês sempre tudo, que estás em tudo; Senhor, Tu que com os teus dons e com
a tua misericórdia proteges os que esperam em Ti; Tu que conheces tão bem as astúcias
do nosso eterno inimigo e todos os seus assaltos contra nós; Tu, único Senhor, socorre
os teus servidores com a tua providência. Amen».

1
Acta Apocrypha: Acta Joannis, Acta Petri e Acta Philipi (=L IPSIUS-B ONNE t, Acta Apostolorum Apocrypha:
Acta Joannis 85. 109-110; Acta Thomae 165-166. 268-269; 3 vol., Leipzig 1899, 1903 2, 1959 3; J. DORESSE ,
Noveaux textes gnostiques coptes, in VigChr 3, 1949; E. L ODI , Roma 1979, 134-145).
2
Acta Joannis (=L IPSIUS -B ONNET , Acta Apostolorum Apocrypha, Leipzig 1899, 1903 2 , 1959 3 ; E. L ODI ,
Roma 1979, 134-145). Estes Actos foram escritos provavelmente na Ásia Menor, nos primeiros anos da
segunda metade do século II (155), por um certo Lêucio, e descrevem a vida do Apóstolo predilecto de
Jesus. Traduzimos apenas as passagens que se referem directa ou indirectamente à Eucaristia. Trata-se
duma liturgia eucarística gnóstica.
3
Segue-se a pregação.
ACTOS APÓCRIFOS 165

109. Acção de graças. Depois pediu pão e deu graças assim: «A quem louvaremos, a 486
quem ofereceremos 4, a quem daremos graças 5 ao partir este pão, senão a Ti, Senhor
Jesus? Glorificamos o teu nome, dito pelo Pai; glorificamos o teu nome, dito pelo
Filho; glorificamos a tua entrada pela porta. Glorificamos a tua ressurreição que nos
mostraste. Glorificamos em Ti o caminho, a semente, a palavra, a graça, a fé, o sal, a
pedra preciosa, o tesouro, o arado, a fibra, a grandeza, o diadema. Por nós Te fizeste
filho do homem, trouxeste-nos a verdade, a paz, o conhecimento, a força, a norma, a
confiança, a esperança, o amor, a liberdade e o refúgio em Ti. Porque só Tu, Senhor, és
a raiz da imortalidade, a fonte da eternidade, a origem dos séculos. Fizeste tudo isto
por nós para que, chamando-Te com estes nomes, aprendamos a conhecer a tua gran-
deza, até agora desconhecida para nós, mas conhecida dos puros e representada no
único homem que és Tu».
110. Fracção do pão. E, partindo o pão, distribuiu-o a cada um de nós, pedindo a 487
cada um dos irmãos que fossem dignos da graça do Senhor e da santíssima Eucaristia.
Comeu por sua vez, dizendo: «Este pedaço seja para mim vínculo de união convosco.
A paz esteja convosco, meus amados irmãos»6.

Actos de Pedro 7
30. Num domingo, Pedro falava aos irmãos e exortava-os à fé em Cristo; estavam 488
presentes muitos senadores, muitos cavaleiros, senhoras ricas e matronas que vinham
aprofundar a sua fé. Estava também uma senhora muito rica de nome Crise, assim
chamada porque toda a sua louça era de ouro, e porque desde o nascimento nunca se
tinha servido de louça de prata e de vidro, mas só de ouro.
Ela disse a Pedro: «Pedro, servo de Deus: o Deus de quem falas apareceu-me em
sonhos e disse-me: “Crise, leva ao meu ministro Pedro dez mil peças de ouro; tu, de
facto, deves-lhas”! Com medo de que me acontecesse algum mal da parte d’Aquele que
eu vira e depois voltou para o céu, eu mesma as trouxe». Dito isto, poisou o dinheiro
e foi-se embora.
Ao ver isto, Pedro louvou o Senhor, porque as necessidades iam sendo assim
resolvidas. Alguns dos presentes disseram-lhe: «Não terás feito mal em receber este
dinheiro daquela mulher? Em toda a Roma ela é criticada por causa da sua prostituição
e por não ficar unida a um só homem: até se deita na cama com os seus escravos. Não
queiras ter parte na mesa de Crise, mas seja-lhe restituído quanto é seu».
Depois de ouvir estas palavras, Pedro sorriu e disse aos irmãos: «Eu não sei
aquilo que esta mulher é no resto da sua vida. Se aceitei este dinheiro não o fiz sem
motivo; com efeito, ela ofereceu-o como devedora de Cristo e deu-o aos servos de
Cristo, tendo Ele próprio provido aos seus8».

4
prosfora\n .
5
eu) x aristi/ a n.
6
Este rito eucarístico, fora do esquema geral – homilia, oração, apresentação dos dons, Oração eucarística
e comunhão – distingue-se completamente daquele que, na mesma época, nos descreve S. Justino. O pão é
o único elemento, não aparece o vinho nem a água, a Oração é dirigida ao Filho, não há narração da insti-
tuição nem alusão ao carácter sacrificial do rito.
7
Actos de Pedro (=L IPSIUS -B ONNET , Acta Apostolorum Apocrypha, I). Os Actos de Pedro foram compostos
por volta do ano 190.
8
Este texto só é importante porque confirma o testemunho de Justino, na sua Apologia, segundo o qual, no
culto dominical, havia uma pregação e se organizava uma colecta.
166 SÉCULO II

Evangelho apócrifo de Filipe 9


489 25. A água é dada na água, o fogo no crisma.
490 59. Quando alguém desce à água e dela sobe sem receber alguma coisa e diz: «Sou
cristão», recebeu esse nome de cristão apenas por uma espécie de empréstimo. Mas
aquele que recebe o Espírito Santo possui o dom do nome. Ora, um dom não é tirado
àquele que o recebeu. Mas àquele que recebeu algo por empréstimo ser-lhe-á reclamado.
491 68. O Senhor fez tudo num mistério: um baptismo, uma unção, uma Eucaristia, uma
redenção, um quarto nupcial.
492 74. De certo nós renascemos; renascemos uma segunda vez por Cristo e fomos
ungidos pelo Espírito; quando renascemos fomos reunidos.
493 75. Sem luz, ninguém pode reconhecer-se nem na água nem num espelho; tu também
não podes conhecer-te na luz sem água e sem espelho. É por isso que são precisos dois
baptismos: um com a luz, o outro com a água. A luz é a unção.
494 76. Em Jerusalém havia três casas para a prósfora... O baptismo é a casa santa, a
unção é o santo do santo, mas o quarto nupcial é o santo dos santos. O baptismo
contém a redenção para voar para o quarto nupcial, mas o quarto nupcial é superior ao
baptismo e à crismação.
495 90. Aqueles que dizem que é preciso morrer primeiro para depois ressuscitar estão
errados. É preciso ressuscitar agora nesta vida. Mas... eles falam também do baptismo,
dizendo: «O baptismo é grande. Quando o recebermos, viveremos». Estão enganados.
O baptismo não dá a vida. Deve ser completado pelo crisma.
496 92. Óleo branco que provém da árvore da vida. Mas a árvore da vida está no meio do
Paraíso e é desta árvore do óleo que se extrai o crisma que nos é dado para a ressurreição.
497 95. A crismação é superior ao baptismo. Porque é por causa da crismação que somos
chamados cristãos, não por causa do baptismo. Cristo também foi assim chamado, por
causa da unção. O Pai ungiu o Filho, o Filho ungiu os Apóstolos. Os Apóstolos
ungiram-nos a nós.
Aquele que foi ungido possui tudo: possui a ressurreição, a luz, a cruz e o
Espírito Santo. O Pai deu-Lhe isto no quarto nupcial e Ele aceitou-o.

9
Evangelho de Filipe (=J. D ORESSE , Noveaux textes gnostiques coptes, in VigChr 3, 1949). O Evangelho de
Filipe deve ter tido a mesma procedência e conteúdo idêntico ao do Evangelho de Matias. A sua data deve
fixar-se nos últimos anos do século II.
SÉCULO III

Ireneu de Lião

Contra as heresias 1

LIVRO I

10. 1 A Igreja, difundida pelo mundo inteiro até aos confins da terra, recebeu dos 498
Apóstolos e dos seus discípulos a fé num só Deus, Pai todo-poderoso, que fez o céu e
a terra, o mar e tudo quanto neles existe; e num só Jesus Cristo, Filho de Deus, que Se
fez homem para nossa salvação; e no Espírito Santo, que anunciou antecipadamente os
desígnios de Deus pela boca dos Profetas: a vinda de Jesus Cristo nosso Senhor, o seu
nascimento de uma Virgem, a sua Paixão e Ressurreição de entre os mortos, a sua
Ascensão corporal ao Céu, a sua futura vinda do Céu com a glória do Pai...
2 A Igreja recebeu, como dissemos, e guarda diligentemente essa pregação e essa
fé; apesar de difundida pelo mundo inteiro, guarda-a como se habitasse numa só casa;
acredita nela como quem possui uma só alma e um só coração; e proclama-a, ensina-a
e transmite-a, como se tivesse uma só boca. Porque, embora no mundo haja diversas
línguas, a força da tradição é uma só e a mesma para todos.
Não crêem nem transmitem coisas diferentes as Igrejas fundadas na Germânia, as
que se encontram na Ibéria e nas terras dos Celtas, nem as do Oriente, do Egipto e da
Líbia, ou as do centro do mundo...
11. 1 Vejamos agora as doutrinas inconstantes dos Gnósticos. Essas (seitas) são 499
duas ou três, mas como falam de forma diferente sobre as mesmas coisas e se servem
de nomes iguais, indicam objectos diferentes...
13. 1 Entre eles há um, chamado Marcos, que se gaba de corrigir o Mestre, espertís- 500
simo na arte mágica, com a qual seduz muitos homens e não poucas mulheres. Atrain-
do-os a si, apresenta-se como o gnóstico mais perfeito, como o detentor do Poder
supremo proveniente de lugares invisíveis e indescritíveis. É como se fosse o verdadei-
ro precursor de Jesus Cristo...
2 Fingindo consagrar 2 cálices de vinho misturado, e alongando-se muito nas
palavras da invocação3, ele faz com que (o vinho misturado) apareça de cor vermelha e
roxa, para que se creia que a graça4, que tem a sua origem n’Aquele que está acima de
tudo, é que introduz o seu próprio sangue naquele cálice por invocação dele, e deste
modo os presentes desejem provar daquela bebida, para que também sobre eles se
derrame a graça invocada por este mago.

1
I RENEU DE L IÃO , Adversus haereses (=PG 7, 437-1224; SCh 263. 264 (I); 293. 294 (II); 210. 211 (III); 100
(IV), 152. 153 (V); Paulus, Patrística, S. Paulo 1995; cf. LH, II, III, IV). O tratado Adversus haereses foi
escrito por volta do ano 180. Ireneu nasceu em Esmirna e foi discípulo de Policarpo, que ainda conheceu
o apóstolo João. Morreu em 202.
2
eu) x aristei= n .
3
e)piklh/sewj .
4
xa/ r in .
168 SÉCULO III

Outras vezes, dando cálices já misturados a mulheres, ordena-lhes que consa-


grem, estando ele presente. Feito isto, ele próprio apresenta outro cálice muito maior
do que aquele em que a mulher enganada fez a eucaristia, e transvazando do cálice mais
pequeno consagrado pela mulher para o cálice maior que ele preparou, diz imediata-
mente estas palavras: «Aquela graça que existe antes de todas as coisas, impensável e
inexprimível, encha o teu ser interior, multiplique em ti a sua gnose, semeando o grão
de mostarda em boa terra». Aquela infeliz, fora de si e admirada diante destas palavras, julga
prodigioso o facto de o cálice maior ficar cheio pelo menor até deitar fora...
7 Com este modo de agir seduziram muitas mulheres também na nossa região do
Ródano, e elas ficaram de tal modo marcadas na sua consciência, que algumas fizeram
penitência pública, outras, que não tiveram coragem para isso, retiraram-se para a
solidão, desesperando da vida de Deus. Enquanto algumas se afastaram completamente,
outras hesitaram e provaram o que diz o provérbio, não estando nem dentro nem fora,
e ficaram com o fruto da semente dos filhos da gnose...
501 21. 3 Alguns deles adaptam um quarto nupcial e realizam um rito mítico sobre os
iniciados, acompanhado de invocações, afirmando que se trata de núpcias espirituais...
Levam outros até junto da água e, ao baptizá-los, dizem: «Em nome do Pai
desconhecido por todos, (em nome) da Verdade mãe de todos, (em nome) daquele que
desceu sobre Jesus, para a união, redenção e comunicação dos poderes».
Alguns usam palavras hebraicas para causar admiração e medo aos iniciados:
«Basyma cacabasa eanaa irraumista diarbada caëota bafabor camelanthi» que signi-
ficam: «Invoco Aquele que está acima de todo o poder do Pai, que se chama Luz,
Espírito e Vida, porque reinaste no corpo». Outros dizem outras fórmulas... São estas
as fórmulas pronunciadas por aqueles que realizam o rito sagrado5. Aquele que o
recebe deve responder6: «Estou confirmado e redimido, e redimo a minha alma através
deste ião, e de todos os que saem dele em nome de Jão, que remiu a sua alma para a
redenção, em Cristo vivente». Então, os que estão presentes dizem: «Paz a todos
sobre os quais repousa este nome». Depois disto ungem o iniciado com bálsamo;
dizem que este óleo é figura do perfume derramado sobre todas as coisas.
4 Alguns deles dizem que é supérfluo levar (os iniciados) até junto da água;
misturam óleo e água e, pronunciando algumas palavras semelhantes àquelas que refe-
rimos acima, derramam a mistura sobre a cabeça dos iniciados. Nisto consistiria a
redenção. Ungem-nos também com bálsamo. Outros ainda, recusando tudo isto, dizem
que não se deve realizar com criaturas visíveis e corruptíveis o mistério do Poder
invisível e inefável, nem representar com coisas sensíveis e corpóreas as inconcebíveis
até pela mente, incorpóreas e insensíveis. A redenção perfeita é o conhecimento da
grandeza inefável...
5 Alguns, na hora da agonia, praticam o rito da «redenção» sobre os moribundos,
derramando-lhes na cabeça óleo e água, ou bálsamo misturado com água, com as invo-
cações de que falámos acima, a fim de que os mortos não sejam apanhados e retidos
pelos principados e poderes superiores, e para que o seu ser interior, invisivelmente,
suba mais alto, enquanto o corpo é deixado ao universo criado, e a alma entregue ao
Demiurgo. E ordenam-lhes que, depois de mortos, ao chegar junto dos poderes, digam
estas palavras: «Eu sou um filho saído do Pai, do Pai preexistente, filho no preexisten-
te. Vim para ver todas as coisas, que são minhas e alheias; não completamente alhei-
as, mas que são de Achamoth, que é Mulher, e que fez para si o seguinte: tirou o
género daquele que existiu antes, e ele veio de novo até mim». E ao dizer estas coisas,
dizem que os poderes saem e se põem em fuga. Depois vêm até eles os que estão perto

5
Et haec quidem profantur ipsi qui sacrant.
6
Qui autem sacratur respondet.
IRENEU DE LIÃO 169

do Demiurgo, e dizem-lhes: «Eu sou um vaso precioso, mais precioso do que a Mulher
que vos fez. Se a vossa Mãe ignora a sua raiz, eu, porém, conheço-me a mim mesmo,
sei donde vim, e invoco a Sabedoria incorruptível, que está no Pai, que é a Mãe da
vossa Mãe, que não tem Pai nem marido varão; é uma Mulher que nasceu da Mulher
que vos fez, sem saber quem é a sua Mãe, e julgando que ela própria está só: eu,
porém, invoco a sua Mãe».

LIVRO II

22. 4 Cristo recebeu o baptismo aos trinta anos, e, depois, ao atingir a idade perfeita 502
do mestre, foi a Jerusalém, pelo que podia dizer, com toda a razão, que era Mestre de
todos... Sendo Mestre, tinha também a idade de um mestre. Não rejeitou nem ultra-
passou a condição humana, nem aboliu, na sua pessoa, a lei do género humano, mas
santificou todas as idades pela semelhança que nós temos com Ele. Com efeito, Ele
veio salvar todos os homens por Si mesmo, todos, digo eu, os que renascem em Deus
por seu intermédio: bebés e crianças, adolescentes, jovens e adultos. Foi por isso que
Ele passou por todas as idades da vida: fazendo-Se bebé entre os bebés, santificou os
recém-nascidos; fazendo-Se criança entre as crianças, santificou os que têm essa idade,
tornando-Se para eles, ao mesmo tempo, modelo de piedade, de justiça e de submissão;
fazendo-Se jovem entre os jovens, tornou-Se um modelo para os jovens e santificou-os
para o Senhor...
32. 4 Em nome de Jesus, os seus verdadeiros discípulos, depois de terem recebido 503
d’Ele a graça, trabalham em benefício dos outros homens, segundo o dom que cada um
recebeu d’Ele. Uns expulsam realmente os Demónios, com toda a certeza e verdade, e
com frequência acontece que aqueles que ficaram livres dos espíritos maus se conver-
tem à fé e se tornam membros da Igreja.

LIVRO III

4. 1 Sendo as nossas provas tão fortes, não é necessário procurar noutras pessoas 504
aquela verdade que facilmente podemos encontrar na Igreja, porque os Apóstolos
trouxeram, como num rico celeiro, tudo o que pertence à verdade, a fim de que cada um
que o deseje, encontre aí a bebida da vida... Por outro lado, deve amar-se com zelo
extremo o que vem da Igreja e guardar a tradição da verdade... Se os Apóstolos não nos
tivessem deixado as Escrituras, não se deveria seguir a ordem da tradição que eles
transmitiram àqueles a quem confiavam as Igrejas?
2 Muitos povos bárbaros que crêem em Cristo adoptam esta mesma maneira de
proceder; sem papel nem tinta, levam a salvação escrita em seus corações pelo Espírito,
guardam escrupulosamente a antiga tradição, crêem num só Deus, Criador do céu e da
terra e de tudo o que neles existe, e em Jesus Cristo, Filho de Deus. Na imensidade do
seu amor pela obra que tinha modelado, quis nascer duma Virgem, unindo o homem a
Deus. 3 Padeceu sob Pôncio Pilatos, ressuscitou, foi glorificado, virá na sua glória,
Salvador dos que se salvarão e Juiz dos que serão julgados, e enviará ao fogo eterno os
deformadores da verdade e os que desprezam o seu Pai e a sua vinda.
17. 1 O Senhor disse aos discípulos: Ide, ensinai todos os povos, baptizando-os em 505
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Com este mandato, o Senhor deu-lhes o
poder de regenerar os homens em Deus. Pelos Profetas tinha Deus prometido que, nos
últimos tempos, derramaria o seu Espírito sobre os seus servos e servas, para que
recebessem o dom da profecia. Para isso desceu o Espírito Santo sobre o Filho de
Deus, que Se fez Filho do homem, habituando-Se, com Ele, a morar entre o género
humano, a repousar sobre os homens, e a habitar na criatura de Deus...
170 SÉCULO III

2 São Lucas diz que este Espírito, depois da Ascensão do Senhor, desceu sobre
os discípulos no dia de Pentecostes, com o poder de dar a vida nova a todos os povos
e de os fazer participar na nova Aliança; por isso se uniram naquele dia todas as línguas
no mesmo louvor de Deus, enquanto o Espírito congregava na unidade as tribos mais
distantes e oferecia ao Pai as primícias de todas as nações. O Senhor tinha prometido
enviar-nos o Paráclito, que nos havia de preparar para receber a Deus. Assim como a
farinha seca, sem a água, não se pode amassar para fazer um só pão, também nós, que
somos muitos, não podíamos transformar-nos num só corpo, em Cristo Jesus, sem a
água que vem do céu. E assim como a terra árida não dá fruto se não for regada, também
nós, que éramos antes como uma árvore ressequida, nunca daríamos frutos de vida sem
a chuva da graça que desce do alto. De facto, os nossos corpos receberam pela água do
baptismo aquela unidade que os leva à incorrupção, e as nossas almas receberam-na
pelo Espírito.
3 O Espírito de Deus desceu sobre o Senhor como Espírito de sabedoria e de
inteligência, Espírito de conselho e de fortaleza, Espírito de ciência e de piedade,
Espírito do temor de Deus. E é este mesmo Espírito que o Senhor por sua vez deu à
Igreja, enviando lá do Céu o Paráclito sobre toda a terra, do Céu, de onde também
Satanás fora precipitado como um relâmpago, segundo a palavra do Senhor. Por isso
temos necessidade deste orvalho de Deus, para darmos fruto e não sermos lançados ao
fogo, e para que tenhamos também um Advogado onde temos um acusador. Efectivamente,
o Senhor encomenda ao Espírito Santo o cuidado da sua criatura, daquele homem que
caíra nas mãos dos ladrões e a quem Ele, cheio de compaixão, vendou as feridas,
entregando dois denários reais, para que nós, recebendo pelo Espírito a imagem e
inscrição do Pai e do Filho, façamos frutificar esse denário que nos foi confiado e o
restituamos com bons rendimentos ao Senhor.
506 24. 1 Apresentámos todos aqueles que introduziram doutrinas ímpias sobre Deus
que nos criou e modelou, que criou este mundo e acima do qual não existe outro deus.
Refutámos com os seus próprios argumentos, aqueles que ensinam o que é falso sobre
a natureza de nosso Senhor e o desígnio que Ele levou a cabo em favor do homem, sua
criatura. Demonstrámos, ao mesmo tempo, a constante identidade da pregação da
Igreja, em todo o mundo... Nós guardamos fielmente e com cuidado, pela acção do
Espírito de Deus, esta fé que recebemos da Igreja, como depósito de grande valor em
vaso precioso, que se renova e renova o próprio vaso que a contém.
Este dom de Deus foi confiado à Igreja, como o sopro de vida inspirado na obra
modelada, para que sejam vivificados todos os membros que o recebem. Na Igreja foi
depositada também a comunhão com Cristo, isto é, o Espírito Santo, penhor de incor-
rupção, confirmação da nossa fé e escada para subir a Deus... Onde está a Igreja, aí está
também o Espírito de Deus, e onde está o Espírito de Deus, aí está a Igreja e toda a sua
graça. O Espírito é a Verdade. Por isso os que se afastam dele e não se alimentam nos
seios da Mãe para terem vida, não recebem nada da fonte puríssima que procede do
Corpo de Cristo, mas cavam para si poços como cisternas rotas e bebem a água
apodrecida do lamaçal; fogem da Igreja com medo de serem desmascarados, e rejeitam
o Espírito para não serem instruídos.
507 25. 7 Nós, porém, oramos para que eles não permaneçam na cova que cavaram para
si mesmos, mas para que se afastem de tal mãe, saiam do abismo, se afastem do vazio,
abandonem as trevas, sejam gerados como filhos legítimos, convertendo-se à Igreja de
Deus, para que Cristo Se forme neles e eles conheçam o Criador e o Autor deste
universo como único Deus verdadeiro, Senhor de todas as coisas. Esta é a nossa oração
por eles e com isso os amamos realmente muito mais do que eles julgam amar-se a si
mesmos. O nosso amor, sendo verdadeiro, ser-lhes-á proveitoso se o aceitarem... Por
isso não nos cansamos e continuaremos a estender-lhes as mãos.
IRENEU DE LIÃO 171

Continuaremos sobre este argumento no livro seguinte, onde aduziremos as


palavras do Senhor, na esperança de convencer alguns deles, por meio da própria
doutrina de Cristo, a deixar o erro e a renunciar a esta blasfémia proferida contra o
Criador, que é o único Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Amen.

LIVRO IV

10. 1 Moisés não ignorou o dia da Paixão (de Cristo); anunciou-o em figura e cha- 508
mou-o Páscoa. Foi nesse dia, anunciado tanto tempo antes por Moisés, que o Senhor
sofreu a sua Paixão e realizou a Páscoa. Ele não se limitou apenas a descrever o dia,
mas também o lugar, a hora tardia e o sinal que é o pôr-do-sol: Não poderás imolar o
cordeiro pascal em nenhuma das cidades que o Senhor, teu Deus, te há-de dar, mas
somente no santuário que o Senhor, teu Deus, tiver escolhido para ali estabelecer o
seu nome. Ali imolarás o sacrifício pascal, ao cair da tarde, depois do pôr-do-sol, à
hora em que saíste do Egipto7.
15. 1 Deus colocou no coração dos homens, desde as origens, os preceitos da lei 509
natural. Agora limita-Se a trazê-los de novo, pelo Decálogo, à mente do homem.
17. 5 Ao ensinar os seus discípulos a oferecer a Deus as primícias das suas criaturas 510
(não por ter necessidade do nosso sacrifício, mas para que eles não fossem infrutuosos
nem ingratos), nosso Senhor tomou o pão, que é fruto da criação, pronunciou a acção
de graças e disse: Isto é o meu Corpo. De igual modo, tomando o cálice, que é fruto da
criação à qual nós pertencemos, declarou que era o seu Sangue e ensinou que era a
oblação da nova Aliança. É esta a oblação que a Igreja recebeu dos Apóstolos e oferece
em todo o mundo a Deus, que nos dá o alimento, como primícias dos seus dons, na
nova Aliança, e que Malaquias, um dos doze Profetas menores, anunciou com estas
palavras: Não tenho nenhuma complacência em vós, diz o Senhor dos Exércitos, e não
Me agradam as oferendas das vossas mãos. Do Nascente ao Poente o meu nome é
glorificado entre as nações, e em todo o lugar é oferecido incenso ao meu nome e uma
oblação pura. Porque o meu nome é grande entre as nações, diz o Senhor dos exérci-
tos. Com estas palavras manifestava claramente que iam cessar os sacrifícios do povo
antigo e que em todo o lugar seria oferecido a Deus um novo sacrifício, um sacrifício
puro, e que assim o seu nome seria glorificado entre as nações...
18. 1 O sacrifício puro e agradável a Deus é a oblação da Igreja, que o Senhor mandou 511
que se oferecesse em todo o mundo, não porque Deus tenha necessidade do nosso
sacrifício, mas porque aquele que oferece é ele mesmo glorificado no que oferece, se a
oferenda é aceitável...
3 Devemos apresentar a nossa oblação a Deus e testemunhar em tudo a nossa
gratidão ao Criador, oferecendo-Lhe com espírito sincero, fé sem hipocrisia, esperança
e amor ardente, as primícias da sua criação. Só a Igreja pode oferecer ao Criador, com
sincera acção de graças, esta oferenda pura que provém da criação...
Como poderão ter a certeza de que o pão sobre o qual foram dadas graças é o
Corpo do Senhor e o cálice o seu Sangue se não acreditam que Ele é o Filho do autor do
mundo, isto é, o Verbo...?
4 E como podem afirmar também que a carne se corrompe e não participa da
vida, essa carne que é alimentada pelo Corpo e Sangue do Senhor? Então, ou devem
mudar de parecer ou devem deixar de oferecer essas coisas. Entre nós, ao contrário, a
fé concorda com a Eucaristia, e por sua vez a Eucaristia confirma a fé. De facto,
oferecemos-Lhe o que é seu, testemunhando a comunhão, a unidade e a ressurreição da
carne e do espírito. Porque assim como o pão, que é fruto da terra, depois da invocação
7
Deut 16, 5-6.
172 SÉCULO III

de Deus já não é pão ordinário e corrente, mas Eucaristia, composta de dois elementos,
o terrestre e o celeste, também os nossos corpos, recebendo a Eucaristia, já não são
corruptíveis, porque têm a esperança da ressurreição. Deus quer que nós ofereçamos
frequentemente, sem interrupção, o nosso presente no altar, porque há um altar no
Céu para onde são dirigidas as nossas orações e oblações.
5 A oferta que Lhe apresentamos... é agradecimento pelos seus dons e pela
santificação da criação. Deus não precisa das nossas ofertas; nós é que precisamos de
oferecer alguma coisa a Deus... Ele não precisa destas coisas, mas quer que as façamos
para nosso bem, a fim de não sermos infrutíferos. E o próprio Verbo mandou que os
homens façam oblações, embora não precise delas, para que aprendam a servir a Deus,
e também quer que nós ofereçamos continuamente e sem interrupção os nossos dons
no altar.
512 26. 2 Devemos escutar os presbíteros da Igreja, porque são os sucessores dos Apóstolos,
como o demonstrámos, e porque, com a sucessão no episcopado, receberam o carisma
seguro da verdade segundo o beneplácito do Pai. Quanto a todos os outros que se
separam da sucessão principal e em qualquer lugar que se reúnam, devem ser vistos
com desconfiança... Todos eles se afastaram da verdade e os hereges que oferecem no
altar de Deus um fogo estranho, isto é, doutrinas estranhas, serão queimados pelo fogo
celeste...
3 Os que são tidos por presbíteros aos olhos de muitos, mas são escravos das
suas paixões, que não põem antes de tudo o temor de Deus em seus corações, insultam
os outros...
4 É preciso, portanto, afastar-se de todos os homens (mentirosos) e aderir aos
que, como dissemos, guardam a doutrina dos Apóstolos e com a ordem sacerdotal
oferecem uma palavra sã e uma conduta irrepreensível para exemplo e emenda dos
outros...
5 São estes os presbíteros que a Igreja sustenta... Onde foram postos os carismas
do Senhor, ali se deve aprender a verdade, junto dos que na Igreja possuem a sucessão
dos Apóstolos, a integridade inatacável da conduta e a pureza incorruptível da palavra...
513 27. 1 Ouvi certo presbítero dizer, e ele próprio o tinha ouvido dos Apóstolos e dos
seus sucessores que, para os antigos, bastava a correcção das Escrituras, por aquilo
que faziam sem o conselho do Espírito, porque Deus, que não faz acepção de pessoas,
dava uma correcção conveniente àquilo que não era conforme com a sua vontade.
2 Nós próprios... devemos temer levar a cabo algo que desagrade a Deus, depois
de termos conhecido a Cristo, e não podermos mais obter o perdão dos nossos peca-
dos e sermos excluídos do seu reino.
514 33. 2 Como se pode admitir que haja dois deuses separados por uma distância
infinita? Ou como pode ser bom aquele que afasta os homens que não são seus do
verdadeiro Criador deles, e os convida para o seu próprio reino?... E como poderia o
Senhor, se fosse Filho de outro Pai, declarar justamente que o pão pertencente à nossa
criação é o seu Corpo e afirmar que a mistura de vinho e água no cálice é o seu Sangue?
Como poderia proclamar-Se filho do homem se não tivesse geração humana? Como
poderia perdoar-nos os pecados que nos tornavam devedores do nosso Criador e
Deus?... 8 A verdadeira “gnose”, é a doutrina dos Apóstolos, o antigo organismo da
Igreja difundido por todo o mundo, a marca distintiva do Corpo de Cristo que consiste
na sucessão dos bispos, aos quais os Apóstolos entregaram cada Igreja local, é a
manutenção fiel das Escrituras que chegou até nós, a sua explicação integral, sem
acrescentos nem diminuições, a leitura sem fraude e em plena conformidade com as
Escrituras, a explicação correcta, harmoniosa e isenta de perigos ou de blasfémias e,
mais importante ainda, é o dom da caridade, mais precioso do que a gnose, mais
glorioso do que a profecia, superior a todos os carismas.
IRENEU DE LIÃO 173

LIVRO V

1. 1 Nós não teríamos podido aprender os mistérios de Deus se o nosso Mestre, 515
sem deixar de ser o Verbo, não se tivesse feito homem. Com efeito, nenhum outro nos
podia revelar os segredos do Pai, a não ser o seu próprio Verbo... Se foi pelo seu
próprio sangue que o Senhor nos resgatou..., se em nós infundiu o Espírito do Pai para
realizar a união e a comunhão de Deus e dos homens, fazendo descer Deus até aos
homens pelo Espírito e elevando os homens até Deus pela sua encarnação..., perdem
todo o seu valor os ensinamentos dos hereges.
2. 2 Se a carne não se salva, também o Senhor não nos redimiu com o seu sangue, 516
nem o cálice da Eucaristia é a comunhão do seu Sangue, nem o pão que partimos é a
comunhão do seu Corpo. O sangue, efectivamente, não procede senão das veias, da
carne e da restante substância humana, dessa substância que o Verbo de Deus assumiu
em toda a sua realidade, e pela qual nos resgatou com o seu sangue, como diz o
Apóstolo: N’Ele temos a redenção pelo seu sangue, a remissão dos pecados.
E porque somos seus membros e nos alimentamos das criaturas que nos propor-
ciona, fazendo nascer o sol e cair a chuva segundo a sua vontade, afirmou que aquele
cálice, fruto da criação, é o seu Sangue que fortalece o nosso sangue, e confirmou que
aquele pão, fruto também da criação, é o seu Corpo que fortalece os nossos corpos.
3 Uma vez que o cálice de vinho misturado com água e o pão natural, ao receberem
a palavra de Deus, se transformam na Eucaristia do Sangue e Corpo de Cristo, com os
quais se alimenta e revigora a substância da nossa carne, como há quem negue que a
carne seja capaz de receber o dom de Deus, que é a vida eterna, essa carne que se
alimenta do Sangue e do Corpo de Cristo e se torna membro do seu Corpo?
Por isso diz o santo Apóstolo na carta aos Efésios: Somos membros do seu
Corpo, da sua carne e dos seus ossos; não é de um homem espiritual e invisível que o
diz - o espírito, com efeito, não tem ossos nem carne -, mas sim do organismo
verdadeiramente humano, que consta de carne, nervos e ossos, que se nutre com o
cálice do seu Sangue e se robustece com o pão que é o seu Corpo.
O ramo de videira, mergulhado na terra, frutifica no tempo devido, e o grão de
trigo, caindo na terra e dissolvendo-se, multiplica-se pelo Espírito de Deus que sus-
tenta todas as coisas. Em seguida, pela arte da fabricação, são transformados para uso
do homem e, recebendo a palavra de Deus, convertem-se na Eucaristia, que é o Corpo
e o Sangue de Cristo. Assim também os nossos corpos, nutridos pela Eucaristia,
depositados na terra e nela desintegrados, ressuscitarão a seu tempo, quando o Verbo
de Deus lhes conceder a ressurreição para glória de Deus Pai. É Ele que reveste o corpo
mortal com a sua imortalidade e dá gratuitamente a incorruptibilidade à carne corruptível,
porque é na fraqueza do homem que se manifesta o poder de Deus.
8. 1 Agora recebemos uma parte do Espírito de Deus para nos predispor e preparar 517
para a incorruptibilidade, acostumando-nos, pouco a pouco, a compreender e a trazer
Deus connosco. É a isto que o Apóstolo chama penhor, isto é, parte daquela glória
prometida por Deus... Se já agora, por termos recebido esse penhor, clamamos Abba,
Pai, o que acontecerá quando, ressuscitados, O virmos face a face?
20. 1 Todos (os hereges) vieram muito tempo depois dos bispos, aos quais os 518
Apóstolos confiaram as Igrejas... A pregação da Igreja é verdadeira e firme, e nela há
um único e idêntico caminho em todo o mundo... Com efeito, em toda a parte a Igreja
prega a verdade..., oferecendo a luz de Cristo... 2 A Igreja é como o paraíso plantado
neste mundo... Alimentai-vos de todas as Escrituras divinas...
36. 3 João previu, de forma precisa, a primeira ressurreição, que é a dos justos, e a 519
herança da terra que se deve realizar no reino... É isso também o que o Senhor ensinou,
quando prometeu beber o vinho novo com os discípulos, no reino, e também quando
174 SÉCULO III

disse: Dias virão em que os mortos que estão nos túmulos ouvirão a voz do filho do
homem. Os que tiverem praticado o bem ressuscitarão para a vida, e os que tiverem
feito o mal ressuscitarão para a condenação 8. Com estas palavras afirma que os que
tiverem feito o bem serão os primeiros a ressuscitar e a ir para o lugar do repouso... É
o que já estava escrito no Génesis, segundo o qual a consumação deste mundo se
realizará no sexto dia... Depois haverá o sétimo dia, o dia do repouso...

Demonstração da pregação apostólica 9


520 1. Vimos entreter-nos um pouco contigo por escrito e, através deste resumo, expor-te
a pregação da verdade, para fortalecer a tua fé. Deste modo, enviamos-te uma espécie
de resumo dos pontos capitais para que, através deste pequeno número de páginas...,
possas compreender resumidamente todos os membros do corpo da verdade, e assim
fiques na posse das provas das realidades divinas.
521 3. Eis o que nos assegura a fé, tal como os presbíteros, discípulos dos Apóstolos,
no-la transmitiram. Em primeiro lugar recorda-nos que recebemos o baptismo para a
remissão dos pecados, em nome de Deus Pai, em nome de Jesus Cristo, o Filho de
Deus, que encarnou, morreu e ressuscitou, e em nome do Espírito Santo de Deus...
522 6. Eis a regra da nossa fé. O primeiro artigo é este: Deus, Pai, incriado..., Criador do
universo. O segundo artigo é este: o Verbo de Deus..., Jesus Cristo nosso Senhor..., que
apareceu aos Profetas..., e que, no fim dos tempos, para recapitular todas as coisas, Se
fez homem entre os homens... O terceiro artigo é este: o Espírito Santo, pelo qual os
Profetas profetizaram..., e que no fim foi enviado de maneira nova à humanidade...
523 7. É por isso que, também nós, quando somos regenerados pelo baptismo que nos
é dado em nome dessas três Pessoas, somos enriquecidos neste segundo nascimento
com os bens que existem em Deus Pai, por meio do seu Filho e com o Espírito Santo.
De facto, os que são baptizados recebem o Espírito de Deus, que os entrega ao Verbo,
isto é, ao Filho. O Filho toma-os e oferece-os ao seu Pai, e o Pai comunica-lhes a
incorruptibilidade. Assim, pois, sem o Espírito, não se pode ver o Verbo de Deus, e,
sem o Filho, ninguém pode chegar ao Pai, dado que o conhecimento do Pai é o Filho, e
que o conhecimento do Filho de Deus se obtém por meio do Espírito Santo; mas é o
Filho que, por função, distribui o Espírito, segundo o beneplácito do Pai, àqueles que
o Pai quer e como o Pai quer.
524 12. Esse jardim era belo e bom: o Verbo de Deus passeava aí constantemente e
entretinha-se com o homem, prefigurando as coisas futuras, a saber que seria o seu
companheiro de habitação, falaria com ele, e estaria com os homens...
525 31. Uma vez que, na primeira criatura, todos nós tínhamos sido acorrentados à
morte pela desobediência, era preciso que (essas cadeias) da morte fossem quebradas
pela obediência d’Aquele que Se tinha feito homem por nós.
526 32. Foi da terra, enquanto ela permanecia virgem, que Deus tomou lodo e fez o
homem, princípio da nossa humanidade. Recapitulando em Si este homem, o Senhor
assumiu a mesma economia de «corporeidade» do homem..., a fim de mostrar a identi-
dade da sua «corporeidade» relativamente a Adão, e para Se tornar aquele que estava
descrito no princípio, o homem segundo a imagem e a semelhança de Deus.

8
Jo 5, 25. 28-29.
9
I RENEU DE L IÃO , Demonstratio praedicationis apostolicae (=PO, 12, 5; SCh 62). Trata-se de um Catecismo
para Adultos.
IRENEU DE LIÃO 175

33. O Senhor veio procurar a ovelha que se tinha perdido, e era o homem que se tinha 527
perdido... Do mesmo modo que por uma virgem que desobedecera o homem fora
ferido, tombara e morrera, também por uma Virgem que obedeceu à palavra de Deus, o
homem reanimado, pela vida recebeu a vida.
34. É Ele mesmo que, segundo a sua condição invisível, está difundido entre nós em 528
todo este universo... É Ele que ilumina a altura..., que contém a profundidade..., que
estende a distância do Oriente ao Ocidente..., e que convida os que andam dispersos
por todos os lados a conhecerem o Pai...
42. Foi o Espírito de Deus que fez conhecer, por meio dos Profetas, que tudo isso se 529
passou assim, para que aqueles que prestam culto verdadeiro a Deus, tivessem uma fé
firme em relação a todas essas coisas, pois tudo o que é impossível à nossa natureza e
que, por tal razão, devia provocar a incredulidade, Deus, por meio dos Profetas, o fez
conhecer antecipadamente.
45. Todas as visões semelhantes (à de Jacob) significam o Filho de Deus a conversar 530
com os homens e presente entre eles. Não era certamente o Pai de todas as coisas, que
não é visível ao mundo e que criou todas as coisas..., que conversava com Abraão. Era
antes o Verbo de Deus, que está sempre com a humanidade, que lhe fazia conhecer
antecipadamente as coisas que teriam lugar no futuro...
46. Era Ele que, na sarça ardente, falava com Moisés... 531
95. Agora que... nos foi dada a vida..., não devemos voltar atrás, isto é, à primeira 532
legislação, porque recebemos o Mestre da Lei, o Filho de Deus...
96. Também é por isso que a Lei não nos é necessária como pedagogo: falamos com 533
o Pai e, diante d’Ele, ficamos de pé, face a face...
Não está mandado que aquele que observa o sábado todos os dias, isto é, que
presta culto no templo de Deus, que é o corpo do homem, e que pratica sempre a
justiça, fique sem fazer nada durante um dia de repouso.

Tratado sobre a Páscoa 10


38. O costume de não dobrarmos os joelhos no dia do Senhor é símbolo da ressurrei- 534
ção, pela qual, por graça de Cristo, fomos libertados dos pecados e da morte que, por
Ele, foi levada à morte.
Este costume teve início nos tempos apostólicos, como diz o mártir santo Ire-
neu, bispo de Lião, no livro Sobre a Páscoa, onde também menciona o Pentecostes,
durante o qual não rezamos de joelhos, porque esse tempo iguala em solenidade o dia
do Senhor, pela razão que já dissemos acerca deste.

10
I RENEU DE L IÃO , Tratado sobre a Páscoa (=PG 7, 1233-VII); cf. Pseudo-Justino, n. 423.
176 SÉCULO III

Clemente de Alexandria

Stromata I 1
535 1. É necessário que ambos se provem a si mesmos: um para ver se é digno de dizer
e deixar comentários, e outro para ver se é capaz de os ler ou escutar; do mesmo modo,
aqueles que, segundo o costume, repartem a Eucaristia, devem permitir que cada fiel
tome a parte que lhe correspondente.
536 19. Ao dizer que as águas roubadas são mais doces e que o pão comido às escon-
didas é mais saboroso2, a Sabedoria refere-se claramente aos insensatos que andam
nas heresias... e que, contra a regra da Igreja3, utilizam pão e água na oblação. E também
há quem consagre4 só água.

Stromata II
537 1. Julgamos que a castidade é bem-aventurada, como bem-aventurados são aqueles
a quem o Senhor presenteou com ela; mas também admiramos a beleza do matrimónio
único.
538 13. Aquele que, no baptismo, recebeu a remissão dos pecados não deve pecar mais
no futuro. No entanto, além da primeira e única penitência das faltas recebida no
baptismo... propõe-se, para aqueles que foram chamados, uma outra, com o fim de
purificar a alma e para que a fé crie raízes. Como Deus sonda os corações5 e conhece o
futuro, previu, desde as origens, não só a inconstância e fragilidade do homem, mas
também a astúcia do Demónio. Este, com inveja da primeira remissão dos pecados
realizada no baptismo, não deixará de suscitar nos servos de Deus ocasiões de pecarem,
servindo-se de maquinações maliciosas, a fim de os fazer cair como ele caiu.
Mas Deus, na sua infinita misericórdia, concedeu uma segunda penitência aos
crentes que voltarem a cair no pecado, a fim de que, se algum for tentado após a sua
eleição e sofrer tentação e violência, possa ainda obter uma penitência sem arrependimento6,
porque se pecamos deliberadamente, depois de termos recebido o conhecimento da
verdade, já não há sacrifício pelos pecados. O que há é uma perspectiva temível: a do
julgamento e de um fogo que há-de devorar os rebeldes7...
Aquele que vem do paganismo e do seu primeiro género de vida, ao chegar à fé
recebe, duma só vez, no baptismo, a remissão dos pecados. Mas, se, depois disso,
pecar novamente e se aproximar da segunda penitência, mesmo que venha a receber o
perdão, deve temer, pois não pode ser lavado de novo (no baptismo) para a remissão
dos pecados. É preciso deixar não só os ídolos que honrávamos como deuses, mas
também a maneira como nos comportávamos durante a vida anterior ao baptismo, se é

1
C LEMENTE DE A LEXANDRIA , Stromata I (=PG 8, 685–9, 602; SCh 30, 38, 278, 279, 428, 463; C. V OGEL ,
Paris 1966, 67-72). Clemente de Alexandria viveu entre 150-215.
2
Prov 9, 16-17.
3
kano/ n a th= j e) k klhsi/ a j .
4
eu) x aristou= s in.
5
Act 15, 8.
6
2 Cor 7, 10.
7
Hebr 10, 26-27.
CLEMENTE DE ALEXANDRIA 177

que fomos regenerados não pelo sangue ou pela vontade da carne, mas pelo Espírito8,
coisa que acontece àquele que se arrepende e não volta a cair na mesma falta.
Arrepender-se sem cessar é predispor-se a pecar e a ser arrastado à inconstância
por falta de ascese. Pedir frequentemente perdão é uma aparência de penitência, e não
uma penitência verdadeira. A Escritura diz: A justiça protege o homem de vida íntegra9;
e também diz: A justiça do homem íntegro aplana-lhe o caminho, mas o ímpio cai no
abismo da sua impiedade10. David acrescenta: Como um pai se compadece dos seus
filhos, assim o Senhor Se compadece dos que O temem 11. E, referindo-se àqueles que
confessam as suas faltas com arrependimento, continua. Os que semeiam em lágrimas
recolhem com alegria12. Felizes os que temem o Senhor13.

Stromata IV
25. 161 Salém significa aquela cidade da paz, da qual o nosso Salvador é apresentado 539
como rei. Moisés diz a seu respeito: Melquisedec, rei de Salém, sacerdote do Deus
altíssimo, ofereceu no pão e no vinho o alimento consagrado como símbolo da Eucaris-
tia. E Melquisedec significa rei justo. O seu nome é, portanto, sinónimo de justiça e de paz.

Stromata VI
12. O cristão empenhado, o gnóstico, ora em todo o tempo, a todas as horas, pelo 540
menos no seu interior, porque está sempre unido a Deus pelo amor e tem, com Ele,
colóquios íntimos e confidenciais.
13. 106 Continua a ser permitido inscrever, ainda agora, no número dos apóstolos 541
aqueles que se exercitam em obedecer aos preceitos do Senhor e levam vida perfeita e
gnóstica conforme ao Evangelho. Verdadeiro presbítero da Igreja e verdadeiro diácono
da vontade de Deus é aquele que faz e ensina as coisas do Senhor. Não é pelo facto de
ter sido ordenado e ser presbítero que nós o consideramos como justo, mas é por ser
justo que está inscrito no presbitério. Se, na terra, ele goza da honra da presidência, no
Céu sentar-se-á sobre os vinte e quatro tronos, para julgar o povo, como diz João no
Apocalipse... Eu penso que, na Igreja da terra, as ordens do episcopado, do presbite-
rado e do diaconado são imitações da glória celeste e dessa economia que espera,
segundo a palavra das Escrituras, os que seguiram os passos dos Apóstolos, para
viverem na perfeição da justiça, em conformidade com o Evangelho...
138. 1 O sétimo dia é chamado dia de repouso. Abstendo-nos de todo o mal, prepa- 542
ramos o dia originário, o nosso verdadeiro repouso, que é também a verdadeira origem
da luz, na qual cada coisa será contemplada e possuída em herança. 2 Deste dia
irradiam a sabedoria primeira e o conhecimento. Uma vez que a luz da verdade é
verdadeira luz sem sombra, o Espírito do Senhor é participado indivisivelmente por aqueles
que são santificados pela fé. A função deles é serem luz que ilumina o conhecimento da
realidade.

8
Jo 1, 13.
9
Prov 13, 6.
10
Prov 11, 5.
11
Sal 102, 13.
12
Sal 125, 5.
13
Sal 127, 1.
178 SÉCULO III

Stromata VII

I
543 2. 1 O nosso propósito é mostrar que só o gnóstico é bom e piedoso, porque presta
a Deus um culto digno do Senhor. Ora, o que é digno de Deus implica a amizade de
Deus e o amor por Deus...
544 3. 1 Para o gnóstico, o serviço de Deus consiste em manter a alma constantemente
atenta e em ocupar-se do que nele é divino, graças a um amor contínuo... 3 O mesmo se
passa na Igreja: os presbíteros são os representantes do culto que nos torna melhores,
ao passo que os cuidados da assistência são deixados aos diáconos... 4 O gnóstico, ao
fazer com que os homens descubram as sublimes especulações que lhes permitem ser
melhores, é um verdadeiro assistente de Deus...

V
545 29. 4 Eu não chamo Igreja a um lugar, mas à assembleia dos eleitos. Este templo é o
mais indicado para acolher a grandeza da dignidade de Deus... 5 O gnóstico pode ser
este templo..., pois nele se encontra consagrado o conhecimento de Deus.

VI
546 31. 7 Nós não estamos errados ao honrar a Deus pela oração. Quando Lhe prestamos
homenagem pelo Logos, fazemos subir até Ele o melhor e o mais santo sacrifício... 8
Aqui na terra, o altar dos nossos sacrifícios é a reunião dos dons dedicados pelas
orações comuns a todos, numa só voz e num só pensamento.

VII
547 35. 1 Como estamos convencidos de que o Logos é o Salvador e o guia, sobre nós
pesa a obrigação de O venerarmos e adorarmos e, através d’Ele, o Pai, não em dias
particulares como fazem algumas pessoas14, mas ininterruptamente, em toda a vida e
de todos os modos. 2 Com razão diz o povo eleito: Louvar-te-ei sete vezes no dia... 3
Por isso, o gnóstico honra a Deus, isto é, dá-Lhe graças pelo conhecimento e pela
maneira de viver, não num lugar determinado ou num tempo particular, em certas
solenidades ou em dias estabelecidos, mas em toda a vida, em qualquer lugar, mesmo
que esteja só e não encontre outros que tenham a mesma fé que ele tem...
5 Assim procede aquele que está convencido da presença de Deus em toda a
parte, que não pensa que Deus esteja confinado a um lugar circunscrito, a fim de viver
na incontinência, na falsa persuasão de poder ser o que é sem Ele, de noite ou de dia.
6 Celebramos a vida como uma festa solene, convencidos de que Deus está em toda a
parte e por todos os lados nos envolve: lavramos a terra elevando louvores, navegamos
cantando hinos15 e conduzimo-nos, em toda a nossa vida, por determinadas regras.
548 39. 6 Para o dizer com audácia, a oração é um diálogo com Deus. Apesar de Lhe
falarmos com simples murmúrios, sem abrir os lábios, em silêncio, a oração é um grito
interior. Deus escuta sem fadiga o que Lhe dizemos em conversação íntima.

14
Os simples fiéis.
15
Os teólogos alexandrinos do século III tendem a privilegiar o culto total relativamente ao culto regulamen-
tado pela Igreja segundo os lugares e as circunstâncias.
CLEMENTE DE ALEXANDRIA 179

40. 1 Ao pronunciarmos a aclamação que conclui a oração, levantamos a cabeça, 549


estendemos as mãos para o céu e elevamo-nos no bico dos pés. Seguimos a inclinação
do espírito para a essência inteligível. Procurando arrancar, pela palavra, o corpo da
terra, depois de termos dado asas à alma pelo desejo das realidades superiores, forçamos
a passagem para o lugar santo, tomados de um nobre desdém pelos laços corporais...
3 Se é verdade que alguns consagram horas determinadas à oração, como por
exemplo Tércia, Sexta e Noa, o gnóstico, por seu lado, ora durante toda a vida, procu-
rando falar sempre com Deus nas suas orações. Aquele que age por amor e atingiu a
perfeição evita tudo o que não é ocasião de oração. 4 Apesar disso, os que têm o
conhecimento das santas moradas da Trindade não ignoram a repartição das horas por
três momentos, solenizados por orações iguais.
43. 1 Qualquer lugar onde nos ponhamos a pensar em Deus é sagrado. E o mesmo 550
acontece com o tempo... 5 Ao dirigirmos a Deus as nossas orações, é possível dispensar
a voz... Basta que orientemos para Deus todo o nosso ser espiritual...
6 Uma vez que o Oriente é a imagem do dia do nascimento..., e que foi de lá que
se levantou a luz que brilha nas trevas... sobre os que andavam na ignorância, fazemos
as nossas orações da manhã voltados para o Sol. 7 Aliás, os templos mais antigos
olhavam para o Poente, o que permitia às pessoas de pé, diante das estátuas, voltar-se
para o Oriente...
49. 3 O gnóstico rezará também em companhia das pessoas cuja fé é comum, mas 551
apenas nas acções em que a sua colaboração é um dever. Toda a sua vida é uma festa
sagrada. 4 As oferendas do gnóstico consistem em orações de louvor, em leituras das
Escrituras antes da refeição, e também em salmos e hinos enquanto come e antes de ir
para a cama, e novamente em orações durante a noite. Por meio delas, ele une-se, por
uma recordação contínua, ao coro divino. O seu pensamento contínuo coloca-o em
contemplação eterna....
6 O gnóstico não utiliza com abundância palradora as orações que passam pela
boca, porque aprendeu do Senhor o que se deve pedir. Por isso, reza em qualquer lugar,
mas sem ostentação e sem se dar em espectáculo à multidão. 7 Ele ora em todas as
circunstâncias: quando passeia e quando fala, durante o repouso ou quando lê...
X
57. 2 Nisto reside a perfeição da alma gnóstica: em ter superado todas as formas de 552
purificação e de culto prescritas e em estar com o Senhor, a quem está submetida numa
relação de proximidade imediata 16... 5 Isto acontece pelo facto de o gnóstico ter já
antecipado o modo de ser próprio dos Anjos. Depois de ter alcançado o grau supremo
da perfeição na vida temporal, na medida em que é possível atingi-la, elevando-se
sempre mais em direcção a formas de vida superiores, apressa-se em ir para a casa do
Pai, para a sua verdadeira morada, atravessando a Santa Semana, destinado a tornar-se,
por assim dizer, luz permanente, que permanece para sempre, imutável sob todos os
aspectos.
XII
75. 2 O gnóstico conhece os sentidos secretos do jejum nos dias previstos, da quarta 553
e da sexta-feira... 3 Mas o seu jejum consiste em abster-se, na sua vida, quer do amor
do dinheiro quer do amor da volúpia, pois é daí que nascem todos os vícios...
76. 1 Por isso, ele jejua, segundo a Lei, das acções vis, e, segundo a perfeição do 554
Evangelho, dos maus pensamentos.

16
Clemente começa a explicar a sua famosa doutrina da «dupla conversão»: a primeira do paganismo à fé, e
depois da fé ao conhecimento (gnose).
180 SÉCULO III

O Pedagogo 17

LIVRO I

555 1. 1 Construímos para vós, meus filhos, uma base de verdade: para o templo de
Deus, é o fundamento sólido do conhecimento, uma bela exortação, um desejo de vida
eterna que se obtém pela obediência ao Logos, e este desejo lançou raízes no campo da
inteligência.
556 6. 41 Que mistério admirável! Há um só Pai do universo, um só Logos do universo
e um só Espírito Santo, por toda a parte idêntico. Há uma só Virgem que se tornou
Mãe, e que eu gosto de chamar Igreja. Só esta Mãe não teve leite, porque foi a única a
não se tornar mulher: ela é ao mesmo tempo virgem e mãe, intacta enquanto virgem e
cheia de amor enquanto mãe. Ela atrai a si os seus filhos e dá-lhes um leite sagrado, o
Logos dos bebés...

II
18
557 4. 1 O nosso Pedagogo , meus filhos, parece-se com Deus seu Pai, de quem Ele é
Filho: não tem pecado, nem mancha, nem paixão na sua alma... 2 Esforcemo-nos, tanto
quanto pudermos, por pecar o menos possível. De facto, nada é mais urgente do que
afastarmo-nos, primeiro, das paixões e das doenças (da alma) e, depois, evitar cair no
hábito do pecado. 3 O ideal seria não cometer falta nenhuma, de qualquer maneira que
fosse, o que é próprio só de Deus, como sabemos. Em segundo lugar, não tomar parte,
deliberadamente, em nenhum pecado, seja ele qual for, o que é próprio do sábio; em
terceiro lugar, não cair num grande número de faltas involuntárias, o que é próprio
duma boa educação; em último lugar, não viver muito tempo em pecado. Para aqueles
que são chamados à penitência, é bom recomeçar a luta.

VI
558 25. 1 Podemos agora responder aos que gostam de disputas: se nos chamamos «crianças»
e «recém-nascidos», não é por ter uma ciência pueril e desprezível... Quando fomos
regenerados, recebemos imediatamente o que é perfeito... Fomos iluminados, o que
significa que conhecemos Deus. Ora é impossível que seja imperfeito quem conheceu
o perfeito...
559 26. 1 No baptismo somos iluminados; iluminados, fomos adoptados como filhos;
adoptados, tornámo-nos perfeitos; tornados perfeitos, recebemos a imortalidade. Está
escrito: Eu disse: Vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo19. 2 Esta opera-
ção recebe nomes diversos: graça, iluminação, perfeição, banho. Banho que nos purifi-
ca dos nossos pecados; graça que nos perdoa os castigos devidos às nossas transgres-
sões; iluminação que nos permite contemplar aquela santa luz de salvação, quer dizer,
que nos permite ver a Deus claramente; perfeição, porque não nos falta nada. 3 Com
efeito, o que é que falta a quem conhece a Deus? Na verdade, seria absurdo chamar dom
de Deus a um dom incompleto...
17
C LEMENTE DE A LEXANDRIA , O Pedagogo (=PG 8, 249-684; SCh 70, 108, 158; C. V OGEL , Paris 1966, 67-72).
18
O Pedagogo é Cristo.
19
Sal 81, 6.
20
C LEMENTE DE ALEXANDRIA , Quis dives salvetur? (=PG 9, 603-652; E. L ODI , Roma 1979, 125-126; C. V OGEL ,
CLEMENTE DE ALEXANDRIA 181

29. 4 Do mesmo modo que a inexperiência cede diante da experiência e a penúria 560
diante da abundância, assim também, inevitavelmente, a obscuridade é dissipada pela
iluminação (do baptismo). A obscuridade é a nossa ignorância, causa das nossas quedas
no pecado: a nossa vista é demasiado baixa para ver a verdade. O conhecimento é a
iluminação, que dissipa a ignorância e dá a faculdade de ver bem. 5 Também podemos
dizer que rejeitar um mal equivale à revelação do bem. Aquilo que a ignorância mantinha
ligado, para nosso mal, o conhecimento solta-o, para nosso bem. Essas cadeias são
bem depressa tiradas pela fé do homem, mas também pela graça de Deus. Os pecados
são-nos perdoados pelo único remédio salvador, ou seja, pelo baptismo do Logos.
30. 1 Somos inteiramente purificados de todos os nossos pecados e, num instante, 561
deixamos de ser maus. Tal é o efeito da graça única trazida por esta iluminação: a nossa
maneira de ser deixa de ser aquela que era antes do banho baptismal. E, como o
conhecimento nasce com a iluminação e esclarece o nosso espírito, nós, que éramos
ignorantes, somos imediatamente chamados discípulos. A instrução foi-nos dada antes,
sem que possamos dizer em que momento. 2 A catequese conduz progressivamente à
fé; a fé, no momento do santo baptismo, recebe a instrução do Espírito Santo...
32. 1 Quando nos arrependemos das nossas faltas, quando renunciámos aos seus 562
males, passámos pelo filtro do baptismo e corremos de novo para a luz eterna, como
crianças para o Pai.

LIVRO II

II
19. 2 A água é uma bebida natural e favorável à sobriedade, e que a sede torna 563
indispensável... 3 Mais tarde, a vinha santa produziu a uva profética; é o Sinal, para
aqueles que o Pedagogo conduziu do caminhar sem norte ao repouso, é a uva grande, o
Logos que foi esmagado por nós, o sangue do bago maduro, o sangue que o Logos quis
que fosse misturado com água... 3 Duplo é o sangue do Senhor: um é o da sua carne,
que nos resgatou da perdição; outro é o do seu espírito, e com ele fomos ungidos.
Beber o Sangue de Jesus é tornar-se participante da incorruptibilidade do Senhor. O
espírito é a força do Verbo, como o sangue é a do corpo...
20. 1 É, pois, de uma forma analógica que o vinho é misturado à água, e que ao 564
homem é misturado o espírito; um alimenta para a fé, é a mistura (da água e do vinho);
o outro conduz à incorruptibilidade, é o espírito; por sua vez, a mistura de ambos, isto
é, da bebida e do Verbo, chama-se Eucaristia, graça digna de louvor pela sua beleza:
tomar parte nela segundo a fé santifica o corpo e a alma, esta mistura divina que é o
homem, no qual a vontade do Pai faz com que se misturem, de forma misteriosa, o
espírito e o Verbo. Na verdade, o Espírito foi unido à alma que ele mantém, e a carne ao
Verbo, esta carne por causa da qual o Verbo Se fez carne...
120. 3 Foi Deus quem criou a nossa raça, para que ela participe dos seus bens. Tendo 565
feito tudo para todos, pôs o seu Verbo à disposição de todos os homens. Todas as
coisas estão, portanto, em comum, e os ricos não devem querer mais que os outros. 4
Se disserdes: «Isso está à minha disposição e tenho bens em abundância, porque é que
não hei-de gozar deles?», tais palavras nem são humanas nem sociais. O que está de
acordo com a caridade é dizer: «Isto está à minha disposição. Porque não hei-de eu
reparti-lo com aqueles que não têm?». 5 Perfeito é aquele que realiza o mandamento de
amar o seu próximo como a si mesmo. Esse é o verdadeiro gozo, o tesouro da verdadei-
ra riqueza; mas gastar para satisfazer vãos desejos, é como se fosse perder, e não
despender. 6 Deus, sei isso muito bem, deu-nos a liberdade de usar das coisas, mas
dentro dos limites do necessário, e quis que esse uso seja comum a todos. É inconve-
niente que um só tenha em abundância quando muitos têm falta.
182 SÉCULO III

IV
566 40. 1 Seja afastado do banquete do Logos o lado do prazer, e também as festas
nocturnas... 2 Pôr-se a tremer ao som das flautas e das harpas, nos coros e nas danças,
e ao som das castanholas dos Egípcios... é uma coisa deslocada...
567 41. 1 Reserve-se a flauta campestre para os pastores, e a flauta comum para os
homens supersticiosos que se entregam ao culto dos ídolos... 3 É absolutamente necessário
eliminar tudo o que é baixo à vista e ao ouvido... 4 É a este género de festa que o
Espírito opõe a liturgia digna de Deus, quando diz no salmo: Louvai o Senhor ao som
da trombeta..., porque é ao som da trombeta que Ele ressuscitará os mortos; louvai-O
com a harpa, porque a língua é a harpa do Senhor; louvai-O com a cítara, palavra que
significa a boca 5 Louvai-O com os instrumentos de corda e com o órgão..., que é o
homem todo...
568 42. 1 Na verdade, o homem é um instrumento pacífico... 3 Nós usamos apenas de um
instrumento, o do Logos pacífico, pelo qual glorificamos Deus. Não se trata já de um
antigo instrumento de cordas, de uma trombeta, de um tamboril ou de uma flauta...
569 44. 1 Assim como é conveniente que, antes de tomar uma refeição, bendigamos o
Criador por todas as coisas, também é conveniente, quando se bebe, cantar um salmo...
4 Mandemos passear para longe as canções eróticas, e que os nossos cânticos sejam os
hinos de Deus... 5 Devem escolher-se apenas as melodias sadias e expulsar para o mais
longe possível... as voluptuosas. Deixemos as harmonias cromáticas aos excessos sem
pudor dos ébrios e à música coroada de flores das prostitutas...

X
570 96. Toda a nossa vida se pode passar na observância das leis da natureza, se domi-
narmos os nossos desejos desde o princípio, se não matarmos por meio duma técnica
perversa a descendência humana nascida segundo o desígnio da divina providência.
Porque essas mulheres que, para esconder a sua má conduta, utilizam drogas abortivas
que expulsam uma matéria totalmente morta, ao mesmo tempo que abortam o foetus
fazem abortar também os seus sentimentos humanos.

LIVRO III

XI
571 63. 1 Deve excluir-se totalmente o uso da cabeleira postiça; é verdadeiramente ímpio
colocar sobre a própria cabeça uma cabeleira de outra pessoa, cobrindo-a com tranças
mortas; a quem, neste caso, imporia o presbítero as mãos? A quem abençoaria? Não a
mulher enfeitada deste modo, mas os cabelos de outra pessoa e, através deles, uma
outra cabeça.

XII
572 101. 1 Sê misericordioso para com os teus filhos, Pedagogo, Pai, guia de Israel, Filho
e Pai, dois num só, Senhor. Concede-nos, a nós que seguimos os teus preceitos, a graça
de completar a semelhança da imagem, de fazer a experiência, tanto quanto nos é
possível, da bondade de Deus e de ver que Ele não é um juiz sem piedade; concede-nos,
Tu mesmo, todas as coisas, para vivermos na tua paz e sermos transferidos para a tua
cidade, para fazermos a travessia sem ser submergidos pelas ondas tumultuosas do
pecado, para sermos levados sobre um mar calmo pelo Espírito Santo, pela Sabedoria
inexprimível. 2 De noite e de dia, até ao dia final, cantemos os nossos louvores,
CLEMENTE DE ALEXANDRIA 183

reconhecidos ao único Pai e Filho, ao Filho e Pai, ao Filho Pedagogo e Mestre e, ao


mesmo tempo, ao Espírito Santo. Este um é tudo: por Ele existem todas as coisas; por
Ele tudo é uma só coisa; por Ele existe a eternidade; d’Ele todos nós somos membros;
a Ele pertence a glória, pelos séculos. Tudo Àquele que é bom, tudo Àquele que é belo,
tudo Àquele que é sábio, tudo Àquele que é justo. A Ele a glória agora e pelos séculos
dos séculos. Amen.

Poderá um rico salvar-se? 20

HOMILIA

23. Jesus é o divino alimentador, que Se dá a nós em alimento e que proporciona em 573
cada dia a bebida da imortalidade.
38. Se alguém acolher (a caridade) no seu coração e a fizer crescer juntamente com 574
uma verdadeira penitência, mesmo que seja culpado de pecados e qualquer que seja o
número das suas faltas, pode corrigir os seus erros...
39. Se alguém escapa às riquezas assim como à pobreza e à miséria, pode ganhar 575
bens eternos, a não ser que, por ignorância ou por circunstâncias involuntárias da vida,
depois do baptismo e da libertação do pecado, venha a cair em faltas ou delitos, até ao
ponto de se deixar esmagar por eles. Esse é rejeitado e reprovado por Deus. Mas as
portas abrem-se àquele que, de todo o coração, se converte a Deus, e o Pai recebe com
alegria um filho que faz verdadeira penitência. A verdadeira conversão consiste em não
recair nas mesmas faltas e em extirpar do coração esses pecados que tornam merecedor
da morte. Uma vez tiradas essas faltas, Deus habitará de novo em ti. Está dito que há
uma grande alegria no Céu, junto do Pai e dos Anjos, quando um pecador se converte
e faz penitência 21. Também é por isso que foi dito: Quero misericórdia e não sacrifícios,
o conhecimento de Deus e não holocaustos22.
40. Só Deus pode perdoar os pecados e não imputar os delitos. Ele manda-nos 576
perdoar aos irmãos que pecaram23. Se nós, que somos maus, podemos fazer o bem,
quanto mais o Pai de toda a misericórdia, esse Pai de toda a consolação, cheio de
benevolência e de bondade, não usará duma longa paciência para esperar aqueles que se
convertem24. Converter-se verdadeiramente das suas faltas, significa acabar com o
pecado e não olhar mais para aquilo que alguém foi.
Deus concede o perdão das faltas passadas; quanto a não pecar mais para o
futuro, cada um terá cuidado. Fazer penitência significa sofrer por causa dos pecados
passados e pedir a Deus que os apague da sua memória. Ele é o único que pode, na sua
misericórdia, fazer com que as faltas cometidas não existam mais e, pela graça do

Paris 1966, 70-72).


21
Cf. Lc 15, 2.
22
Os 6, 6.
23
Cf. Mt 6, 14.
24
Cf. Lc 11, 13.
25
Evangelho apócrifo?
184 SÉCULO III

Espírito, abolir os pecados da vida passada. Julgá-los-ei segundo a situação em que os


encontrar25. Dia após dia Ele anuncia o fim de todas as coisas. Àquele que levou uma
vida honesta, mas no fim se desviou para o pecado e para os vícios, de nada servirão os
esforços da vida anterior, pois que ao cair do pano abandonou o seu papel. Pelo
contrário, aquele que levou uma vida má e dissoluta, se se arrepender e fizer penitên-
cia, poderá salvar-se. Mas são precisos cuidados atentos, do mesmo modo que, após
uma doença prolongada e penosa, é necessária uma convalescença apropriada. Queres,
ladrão, que o teu crime seja perdoado? Deixa de roubar. Deixe o adúltero de alimentar
por mais tempo o fogo da volúpia. Viva castamente o impuro. Restitua o ladrão o que
roubou e dê ainda mais. Faça esforços a testemunha falsa para se tornar verdadeira.
Aquele que jura falso abstenha-se de falsos juramentos.
577 42. O apóstolo João exorta o jovem ladrão à penitência, exclamando: «Eu hei-de
prestar contas a Cristo por ti. Se for preciso, de bom grado morrerei em teu lugar, como
o Senhor por nós suportou a morte. Darei a minha vida em lugar da tua»... Umas vezes
rezando a Deus com frequentes súplicas, outras lutando com o jovem com contínuos
jejuns, abrandando-lhe o ânimo com aliciadoras palavras, não desistiu, como dizem,
antes de conseguir levá-lo com firme constância para o grémio da Igreja...
A Ti, Pai bom, que estás nos Céus, pelo teu Filho Jesus Cristo, Senhor dos vivos
e dos mortos, e pelo Espírito Santo, seja (dada) glória, honra, poder, majestade eterna,
agora e sempre, de geração em geração e pelos séculos dos séculos. Amen.

Proréptico 26

578 5. 3 Este descendente de David, que existia antes de David, o Verbo de Deus,
deixando a lira e a cítara, instrumentos sem alma, adaptou, pelo Espírito Santo, o
nosso mundo e particularmente esse microcosmo que é o homem, alma e corpo. Ele
serve-Se deste instrumento de mil vozes para celebrar Deus, e Ele próprio canta em
consonância com esta cítara que é o homem, «porque tu és para mim uma cítara, uma
flauta e um templo»: uma cítara pela tua harmonia, uma flauta pelo teu sopro, um
templo pela tua razão, de modo que uma vibra, a outra respira e este abriga o Senhor...
4 O Senhor, ao enviar o seu sopro a este belo instrumento que é o homem, fê-lo
à sua imagem; ele também é um instrumento de Deus, cheio de harmonia, adaptado e
santo, sabedoria supra-terrestre, Logos celeste.
579 6. 1 Que quer este instrumento, o Logos de Deus, o Senhor, e o seu cântico novo?
Abrir os olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos... 2 Este instrumento de Deus ama os
homens...

580 94. 2 O Senhor convida-nos ao banho, à salvação, à iluminação...

26
C LEMENTE DE ALEXANDRIA , Proréptico (=PG 8, 49-246; SCh 2). «Proréptico» é «discurso para exortar».
FILIPE BARDESANE 185

99. 3 Recebei, pois, a água intelectual; vós que ainda estais sujos, tomai banho; 581
purificai-vos vós próprios dos vossos hábitos, aspergindo-vos com gotas da verdade:
é preciso que subais puros aos Céus...
119. 2 O coro são os justos, o cântico é o hino do Rei de todas as coisas, as virgens 582
tocam a lira, os Anjos cantam a glória divina, os Profetas falam, o ruído da música
espalha-se..., os eleitos apressam-se, no seu grande desejo de receber o Pai...
120. 1 Oh mistérios verdadeiramente santos, oh luz sem mistura! As tochas ilumi- 583
nam-me para contemplar os Céus e Deus, e eu torno-me santo pela iniciação; o Senhor
marca o iniciado com o seu selo iluminando-o, e apresenta aquele que acreditou no seu
Pai, para que Ele o guarde eternamente. 2 São estas as festas dos meus mistérios; se
queres, recebe tu também a iniciação, e tomarás parte no coro dos Anjos à volta de
Deus... 5 Ungir-vos-ei com o unguento da fé, que vos liberta da corrupção e hei-de
mostrar-vos, sem véu, a forma de justiça que vos permite que vos eleveis até Deus...
121. 1 Apressemo-nos, corramos, nós que somos retratos do Logos, retratos que 584
amam a Deus e se parecem com Ele; apressemo-nos, corramos, tomemos o seu jugo,
persigamos a incorruptibilidade; amemos a Cristo, esse belo condutor do carro huma-
no, que uniu sob o jugo o potro ao velho corredor; e, depois de ter atrelado este casal
humano, dirige o carro para a imortalidade, apressando-Se em ir para o seu Pai, a fim de
cumprir, à luz do dia, o que anunciou obscuramente... 2 Sejamos ambiciosos das coisas
belas, sejamos homens que amam a Deus, e adquiramos os bens que são os maiores de
todos, Deus e a vida. O Logos assiste-nos; tenhamos confiança n’Ele, e possamos não
desejar jamais prata, ouro ou glória acima do próprio Logos da verdade. 3 Não, o
próprio Deus não pode estar satisfeito, se nós estimamos menos o que tem mais valor,
se preferimos os excessos evidentes da loucura, da ignorância, da leviandade, da idola-
tria, bem como o cúmulo da impiedade.

Filipe Bardesane

Diálogo sobre o destino 1

46. Que dizer da nossa nova geração cristã 2, que em cada lugar e em cada tempo 585
Cristo fundou, com a sua vinda, uma vez que todos nós, qualquer que seja a região
onde nos encontremos, somos chamados cristãos por causa do nome de Cristo, e nos
reunimos no primeiro dia da semana...?

1
F ILIPE B ARDESANE , Diálogo sobre o destino (=PS 2, 490-611). Bardesane nasceu em 154 e morreu em 222.
2
Primeiro o autor exaltou a coesão do povo hebraico na observância da sua Lei.
186 SÉCULO III

Tertuliano

Aos Pagãos 1

LIVRO I
586 7. Vós sabeis os dias das nossas assembleias, e como somos cercados, oprimidos e
até presos nas nossas reuniões secretas.
587 13. 1 É certo que os pagãos têm (acerca de nós), uma opinião meramente humana:
pensam que o Sol é o deus cristão, porque se lhes tornou notório que nós rezamos
voltados para o Oriente, ou antes, que no dia do Sol procuramos viver na alegria. 2 Será
que vos comportais de modo diferente? Não é verdade que, por vezes, muitos de vós,
querendo adorar os corpos celestes, voltais o rosto para o Oriente? 3 Seja como for,
fostes vós que acolhestes o Sol na lista dos sete dias e que pusestes, no início desses
mesmos dias, aquele para o qual, à noite, transladastes ou diferistes o banho, e no qual
cultivais o ócio e a boa mesa.
4 Ora, nesses vossos hábitos, afastastes-vos das vossas instituições religiosas
para seguirdes as dos outros povos. De facto, o sábado, a refeição com pão ázimo, os
ritos judaicos do acender das lucernas e a oração ao deitar, costumes que são muito
estranhos à vossa religião, pertencem às festividades judaicas. 5 Por isso, retomando o
meu discurso interrompido pela digressão, reconhecei a vossa afinidade connosco; nós
não estamos longe de Saturno e dos vossos sábados2.

Apologético 3
588 1. 2 A verdade sabe que vive como peregrina na terra, sabe que, entre estranhos,
facilmente encontra inimigos, mas sabe também que a sua família, a sua casa, a sua
esperança, o seu crédito e a sua dignidade estão nos Céus. Entretanto só deseja uma
coisa: que não a condenem sem a conhecerem. 3 Que perderão as vossas leis, que
mandam no seu próprio império, se se deixar ouvir a verdade?
589 2. 3 Do cristão só se espera uma coisa, que é necessária ao ódio público: a confissão
do seu nome e, de modo nenhum, um inquérito acerca do seu crime... 13 Alguém grita:
«Sou cristão»4. Ele está a dizer o que é, mas vós quereis ouvir o que ele não é...

1
T ERTULIANO , Ad nationes (=PL 1, 559-608; CCL 1; CSEL 20). Tertuliano nasceu em Cartago, por volta do
ano 155, de pais pagãos. Foi advogado em Roma. Em 193 converteu-se, pondo toda a sua cultura ao serviço
da fé cristã. Desconhece-se o ano da sua morte, que deve ter ocorrido depois de 220. Se exceptuarmos S.
Agostinho, Tertuliano é o mais importante e original dos autores cristãos latinos. A sua linguagem é forte
e incisiva. Todos os seus escritos são apologéticos. O Ad nationes deve ter sido escrito em 197. Trata do
mesmo assunto do Apologético, mas é anterior.
2
Sabemos que a imitação dos costumes judaicos estava muito difundida entre os pagãos.
3
T ERTULIANO , Apologeticum (=PL 1, 257-536; CCL 1; CSEL 69; Alcalá, Philokalia 3, Lisboa 2002; J.
Q UASTEN , Patrologia I, BAC 206, Madrid 1961). O Apologético é a obra mais importante de Tertuliano. Foi
escrito no ano 197.
4
Christianus sum.
TERTULIANO 187

6 Achando-se Plínio Segundo5 no governo de uma província, tendo sido condenados


alguns cristãos e tendo ele demovido outros do seu nome de cristãos, perturbado ainda
assim pelo seu grande número, decidiu apresentar o caso ao Imperador Trajano alegando
que, além da obstinação em não sacrificar, nada mais achara nos ritos dos cristãos além
da reunião antes do nascer do sol para cantarem a Cristo como a Deus, e o pacto mútuo
pelo qual se comprometiam a não cometer o homicídio, o adultério, a fraude, o falso
testemunho e outros delitos.
3. E que direi de tanta gente que, de olhos fechados, a tal ponto se afunda no ódio 590
do nome «cristão» que, mesmo ao dizer bem de alguém, tem de lá misturar a condenação
do nome? «Fulano é boa pessoa, só é pena ser cristão». Ou então: «Espanta-me que
Sicrano, pessoa de tanta sabedoria, de repente, se tenha feito cristão». E não passa
pela cabeça de ninguém que Fulano e Sicrano são bons e prudentes precisamente
porque são cristãos ou que se fizeram cristãos porque eram bons e prudentes!
5 Ora, se se trata do ódio a um nome, qual é o crime de um nome? Que acusação
se pode fazer a um nome, senão que soa a estrangeirismo, ou que é de mau agoiro ou
obsceno? Mas o nome «cristão», pelo que respeita ao seu significado, vem de «unção».
Mesmo quando erradamente o pronunciais chrestiano (que nem do simples nome
tendes a exacta noção) é um nome que significa «suavidade de ânimo e bondade». O que
odiais é, pois, um nome inocente, em homens inocentes.
5. 4 Os nossos perseguidores foram sempre homens injustos, ímpios, infames. Vós 591
próprios vos habituastes a condená-los e a reabilitar os que eles condenaram.
6. 4 No que diz respeito a algumas mulheres, também caíram por terra os costumes 592
dos antepassados, que apoiavam a modéstia e a sobriedade; então, nenhuma usava
ouro a não ser num único dedo, quando o noivo lhe dava em penhor o anel de noivado...
6 Agora, ao contrário, nenhum membro anda sem ouro...
9. 6 Quantos homens vejo eu, à nossa volta, sedentos do nosso sangue! Quantos 593
dos vossos magistrados, íntegros quando vos julgam a vós, mas parciais no seu rigor
contra nós, a quem eu poderia lançar em rosto terem eles próprios tirado a vida aos
seus filhos, logo que nasceram! 7 Ides até mais longe, quando acrescentais à crueldade
do acto, o género de morte escolhida: afogais os vossos filhos, fazei-los morrer de fome
e de frio, lançai-los aos cães, porque seria morte muito doce matá-los à espada! 8
Quanto a nós, a quem é vedado todo o homicídio, também nos é proibido matar o feto
no ventre da sua mãe, mesmo antes de o homem estar totalmente formado. Impedir o
nascimento é um assassínio prematuro. Porque, no fundo, não será o mesmo crime
arrancar a alma do corpo ou impedi-la de o animar? Destrói-se um homem quando se
destrói o que ele viria a ser, aniquilando o fruto na flor.
17. 4 Quereis que provemos a existência de Deus pelas suas obras, por aquelas que 594
nos conservam, nos sustentam, nos alegram, e também por aquelas que nos aterram? 5
E também pelo próprio testemunho da alma que, apesar de estar presa no cárcere do
corpo, ou pervertida por uma má educação, ou debilitada pelas suas paixões e desejos,
ou escravizada a falsos deuses, quando se põe a reflectir, como se saísse da embriaguez,
ou do sono, ou de alguma enfermidade e recobra a saúde, então invoca a Deus com esse
único nome, porque o verdadeiro Deus é único, e diz: «Deus é grande, Deus é bom» e
«Seja o que Deus quiser». Esta é a voz universal. 6 E também O reconhece como juiz
ao dizer: «Deus está a ver», e «Entrego-me a Deus» e «Deus mo pagará». Oh nobre
testemunho da alma naturalmente cristã 6!...

5
Plínio, o Moço.
6
Testimonium animae naturaliter christianae.
188 SÉCULO III

595 22. 4 A actividade dos Demónios consiste em perder o homem... Por isso eles infligem
ao corpo doenças e acidentes graves, e à alma perturbações imprevistas e de
extraordinária violência. 5 Para atacarem uma e outra substância do homem, têm uma
subtileza e agilidade maravilhosas. Muitas são as coisas permitidas aos seres espirituais.
Por serem invisíveis e imperceptíveis, manifestam-se mais nos seus efeitos do que no
seu agir. Por exemplo: ninguém sabe se é um vento empestado que destrói os frutos e
as colheitas quando estão em flor, que as acomete mortalmente na sua formação e as
fere no seu desenvolvimento, ou se é o ar viciado de maneira inexplicável que espalha
os seus miasmas pestilenciais.
596 24. 1 Toda essa confissão por parte daqueles que reconhecem não ser deuses e que
não há outro Deus além d’Aquele a quem nós pertencemos, é suficiente para afastar de
nós o crime de lesa-pátria e mais ainda de lesa-religião romana. 2 Porque se é verdade
que os vossos deuses não existem, também é certo que não existe a vossa religião, e se
é certo que a vossa religião não existe, por não existirem certamente os vossos deuses,
certo é então que não somos réus de lesa-religião. Pelo contrário, é a vós que isso se
deve imputar, pois adorais a mentira e, não contentes por desprezar a religião verdadeira
do Deus verdadeiro, chegais até a combatê-la, cometendo verdadeiramente um crime de
verdadeira irreligiosidade...
6 Vede bem: não será já um crime de impiedade tirar aos homens a liberdade
de religião e proibi-los de escolher a divindade, ou seja, não me permitir honrar a
quem eu queira honrar, forçando-me a honrar a quem não quero honrar? Ninguém,
nem sequer um homem, quereria ser honrado por alguém que o fizesse contra
vontade. 7 Por isso se concede aos Egípcios liberdade de praticar a sua vã
superstição, que consiste em colocar pássaros e animais a par dos deuses, e em
condenar à morte aquele que matar algum desses seus deuses. 8 Cada província,
cada cidade tem os seus deuses peculiares... 9 E nós somos os únicos a quem não
é permitido ter religião própria. Ofendemos os Romanos e nem sequer somos
considerados Romanos, por não honrarmos um deus que não é dos Romanos. 10.
Ainda bem que Ele é o Deus de todos os homens e que todos, de bom grado ou à
força, Lhe pertencem. Entre vós é permitido adorar tudo menos o Deus verdadeiro,
como se não fosse o Deus de todos, e nós não fôssemos todos d’Ele.
597 27. 1 Quando nos forçam a sacrificar aos deuses, recusamo-nos sempre a fazê-
lo invocando a nossa consciência. Na verdade é ela que nos esclarece acerca daqueles
a quem se dirigem tais homenagens, isto é, a simulacros e a homens deificados. 2
Mas alguns de entre vós chamam-nos insensatos: porquê expor-se a perder a vida
por teimosia, em vez de a salvar realizando o sacrifício, sem contudo mudar de
opinião? 3 Que bom conselho nos dais para vos enganarmos! Vemos muito bem
quem vo-lo sugeriu, e como ele utiliza todos os meios possíveis, desde o artifício
até à crueldade, para vencer a nossa constância. 4 Não há dúvida de que foi esse
espírito, anjo e Demónio, que se tornou nosso inimigo, invejoso das graças divinas;
foi ele que se insinuou nas vossas almas; é ele que vos inspira esses juízos iníquos
e bárbaros que fazeis contra nós...
598 28. 1 Forçar homens livres a sacrificar é uma injustiça demasiado gritante, uma
violência insuportável! Que haverá mais fora de propósito do que querer obrigar um
homem a prestar à divindade um culto que ele, por si mesmo, já está interessado em
prestar-lhe? Seria justo responder: «Eu não quero recorrer a Júpiter. Porque vos meteis
na minha vida? Quer Jano fique zangado, quer me volte qualquer das suas faces,
pensais que isso me faz algum mal?» 2 É o Demónio que vos sugere que nos obrigueis
a sacrificar aos imperadores: vós acreditais que sois obrigados a forçar-nos, e nós
somos obrigados a arriscar a nossa vida, recusando-o.
TERTULIANO 189

29. 4 Na verdade, se nós somos culpados de lesa-majestade para com os imperadores, 599
é porque não os colocamos abaixo de tudo o que lhes está submetido; é porque não
brincamos com a salvação dos imperadores, confiando-os a mãos soldadas com chumbo7.
5 Vós acreditais que sois religiosos para com os imperadores ao procurardes essa
salvação onde ela não se encontra, ao pedi-la àqueles que a não podem conceder e ao
desprezardes o único de quem ela depende. Declarais guerra aos que sabem pedir essa
salvação e que, sabendo como pedi-la, são os únicos que a podem obter.
30. 1 Nós, os cristãos, pedimos pela salvação dos imperadores ao Deus eterno, ao 600
Deus verdadeiro, ao Deus vivo, cuja benevolência os próprios imperadores procuram
de preferência à dos outros deuses. Os imperadores sabem que é d’Ele que lhes vem o
poder e também sabem, enquanto homens, quem lhes deu também a vida. Eles sentem
que Ele é o único Deus, sob cuja autoridade ocupam o segundo lugar, logo a seguir a
Ele, muito antes e acima de todos os deuses. Na verdade eles estão acima de todos
esses deuses mortos. 2 Os imperadores conhecem os limites do seu poder, e sentem
que não podem nada contra Aquele por quem podem tudo... 3 O imperador só é grande
quando se reconhece inferior ao Céu, porque Aquele que criou o Céu e a terra é
igualmente o autor de todas as criaturas. O imperador só é imperador graças Àquele
que o fez homem antes de o fazer imperador. O seu poder tem a mesma origem do
sopro de vida que o anima.
4 É para este Deus que nós, os cristãos, levantamos os olhos: de mãos estendidas,
porque são puras, com a cabeça descoberta, não temos, para orar, necessidade dum
monitor para nos ditar as palavras, como vós, os pagãos 8, nem usamos incenso nas
nossas celebrações, porque oramos com o nosso coração, e pedimos sempre por todos
os imperadores, para que tenham vida longa, governo tranquilo, casa segura, exército
forte, senado fiel, povo leal, paz em toda a terra, numa palavra, tudo o que é bom para
qualquer homem e para César. 5 Tudo isso o cristão o pede apenas Àquele que ele sabe
que o escuta, e que também é o único que o pode conceder. Quanto a nós, somos
igualmente os únicos a poder obtê-lo por sermos seus servidores...
31. 1 Temos também outra razão, ainda mais importante, para orar pelos imperadores, 601
pela prosperidade do Império e pelo poder romano sobre todo o universo, pois o
Apóstolo diz: Orai pelos reis e pelos príncipes para levardes vida tranquila.
Efectivamente nós sabemos que a catástrofe iminente que ameaça a terra inteira, e o
encerrar do tempo que suspendeu sobre nós calamidades terríveis, só foram retardados
graças a um prazo concedido ao Império romano. Não estamos absolutamente nada
interessados em viver essa experiência. Quando pedimos que seja retardada,
contribuímos para a longa duração do Império romano.
32. 2 É certo que não juramos pelo Génio dos Césares, mas pela sua saúde, que é 602
mais importante do que o são esses Demónios. Nós respeitamos nos imperadores o
juízo de Deus que os estabeleceu para governar os povos. Nós sabemos que o que
neles existe foi Deus que o quis. Por isso, o que nós queremos e desejamos salvo e
preservado, foi Deus que o quis. Aos nossos olhos trata-se dum juramento solene.
Quanto a esses Demónios que são os génios, costumamos esconjurá-los para os expulsar
dos corpos dos homens. Não podemos jurar por eles, porque isso seria prestar-lhes
uma honra que só pertence a Deus.

7
As mãos das estátuas dos deuses.
8
A maneira como os pagãos rezavam é assim descrita por Plínio, o Velho: «Vemos os magistrados supremos
dirigirem-se aos deuses com orações bem determinadas. A fim de não passar nenhuma palavra e de as
pronunciar todas na ordem desejada, alguém deve ir adiante deles lendo a fórmula prescrita no livro;
também lá se encontra um segundo cerimoniário que presta atenção a tudo; e um terceiro manda que
todos se calem, enquanto um tocador de flauta toca música, de modo que não se possa ouvir nenhuma
voz discordante» (P LÍNIO , O V ELHO, Naturalis historia 28, 2, 11).
190 SÉCULO III

603 34. 1 Só tenho um Senhor, que é Deus todo-poderoso e eterno.


604 37. 4 Somos de ontem, mas já enchemos o mundo e todos os vossos territórios,
cidades, ilhas, fortalezas, municípios, aldeias, até acampamentos, tribos, decúrias, o
palácio real, o senado e o foro. Só vos deixamos os templos.
605 39. 1 Nós somos uma corporação pela comunidade de fé, pela unidade de disciplina
e pelo vínculo duma mesma esperança. 2 Reunimo-nos em assembleias e grupos para
assaltar Deus com as nossas orações, como um batalhão serrado. Esta violência é
agradável a Deus. Oramos também pelos imperadores, pelos seus ministros e pelas autoridades,
pelo estado presente do universo, pela paz do mundo e pelos tempos sem fim9.
3 Reunimo-nos para a leitura das Sagradas Escrituras, pois aquilo que se passa
neste tempo leva-nos a buscar nelas luz para entender o futuro e compreender o
passado. Além disso, com essas santas palavras, alimentamos a nossa fé, elevamos a
nossa esperança, fortalecemos a nossa confiança, estreitamos também a nossa disciplina
e inculcamos os mandamentos10.
4 Em tais assembleias realizam-se também exortações, avisos e repreensões em
nome de Deus. Entre nós julga-se com muito cuidado, pois temos a certeza de estar na
presença de Deus. E seria um mau precedente para o juízo futuro, se algum de nós
procedesse tão mal que viesse a ser afastado da comunhão na oração, das reuniões e de
toda esta santa amizade.
5 Presidem presbíteros muito provados, que alcançaram essa honra não por
dinheiro, mas pelo testemunho da sua vida santa, porque o dinheiro não tem
qualquer papel na nossa religião. Apesar de haver entre nós uma caixa comum, não
se trata dum «fundo de honorários» organizada pelos eleitos, porque nós não
vendemos a nossa fé. Com efeito, cada qual, em dia fixo do mês ou quando quiser
(se quiser e se puder), contribui com uma pequena quantia, mas ninguém é obrigado:
a contribuição é espontânea.
6 Estes são como que os fundos comuns da piedade. Nada se tira deles para
banquetes, libações e jantares estéreis, mas para alimentar e sepultar pobres, crianças,
donzelas órfãs, criados já velhos e também os náufragos... Aqueles que estiveram nas
minas, nas ilhas e nas prisões, desde que tenha sido só pela causa de Deus, passam a
ser sustentados pela fé que confessaram.
7 Mas há quem nos dirija críticas por causa desta caridade. Os pagãos dizem:
«Vede como eles se amam entre si», ao passo que eles se odeiam mutuamente; «Vede
como estão dispostos a morrer uns pelos outros», ao passo que eles estão mais
preparados a matarem-se uns aos outros... 10 Ora, nós não somos irmãos por vivermos
do mesmo património; nós que estamos unidos pelo espírito e pela alma, não hesitamos
em pôr em comum todos os bens, ao passo que, entre vós, o mesmo património acaba
o mais das vezes com toda e qualquer fraternidade.
11 É por sermos um só coração e uma só alma que nos achamos intimamente
unidos e não hesitamos em pôr em comum todos os bens. Entre nós tudo é comum,
excepto as nossas esposas.
12 Nesta matéria precisamente, em que os demais homens põem em prática uma
comunhão de bens, é que nós interrompemos a partilha. Os outros, com efeito, não só
roubam os matrimónios alheios como também põem os seus, de muito bom grado, à
disposição dos amigos...

9
Coimus in coetum et congregationem ut ad Deum quasi manu facta precationibus ambiamus. Haec vis
Deo grata est. Oramus etiam pro imperatoribus, pro ministeriis eorum ac potestatibus, pro statu saeculi,
pro rerum quiete, pro mora finis.
10
Coimus ad litterarum divinarum commemorationem.
TERTULIANO 191

14 Que haverá pois, de estranho, que uma tão grande caridade se exprima numa
refeição comum?... 16 A nossa ceia, até pelo nome mostra a sua razão de ser. Chamamo-la
pelo nome que entre os Gregos significa «amor». Qualquer que seja a despesa que ela
venha a custar, será sempre para nós um lucro, pois assim consideramos o facto de
gastarmos os nossos recursos num acto de piedade. Na verdade, com esta refeição
vamos em socorro de toda a sorte de necessitados..., dado que, junto de Deus, é muito
grande a estima em que são tidos os pequenos.
17 Se é nobre e digna a causa do ágape, julgai por ela o habitual modo de proceder.
Tratando-se de um dever de religião, nada admite de vil ou desregrado. Não nos sentamos
à mesa antes de fazer oração a Deus. Come-se quanto podem comer os famintos e
bebe-se quanto convém a gente honesta.
18 Todos se saciam, mas como quem se lembra também de que deve adorar a
Deus durante a noite. E do mesmo modo, conversam como quem sabe que Deus está a
ouvir. Depois de lavar as mãos com água e de se acenderem as luzes, cada um é
convidado a cantar a Deus no meio da assembleia, (salmos) das Sagradas Escrituras ou
composições pessoais. E a refeição termina também com uma oração 11...
40. 1 (Os pagãos) consideram que os cristãos são os culpados de todas as calamidades 606
públicas, de todos os males do povo. 2 Se o Tibre sobe até às muralhas, se o Nilo não
sobe até aos campos, se o céu está parado, se a terra se move, se há fome, se vem a
peste, gritam imediatamente: «Cristãos aos leões»...
42. 1 Somos homens que moram convosco lado a lado, iguais no comer, no vestir, no 607
modo de vida, nas mesmas necessidades de subsistência... 2 Temos sempre em mente
que devemos dar graças a Deus, Senhor e criador de tudo, pelo que não há fruto algum
das suas obras que nós repudiemos... Não é, pois, sem praça ou sem mercado, sem
termas, sem lojas nem oficinas, sem estalagens, sem feiras semanais e outras formas de
comércio, que moramos convosco neste mundo.
3 Também navegamos convosco, convosco estamos no exército, na agricultura,
no comércio. Do mesmo modo cruzamos com as vossas as nossas profissões e vendemos
publicamente, também para vosso uso, o produto do nosso trabalho...
4 Mesmo não frequentando as vossas cerimónias, no entanto não deixo nesse dia
de ser um homem. É verdade que não tomo banho em plena noite pelas Saturnais, para
não deitar a perder de uma assentada quer a noite quer o dia. Mas tomo-o noutra hora,
mais saudável e conveniente, que me permita conservar um pouco de calor e de boa cor...
6 Não compro coroas de flores para pôr na cabeça... 7 Não vamos aos
espectáculos... nem compramos incenso..., mas esbanjamos muitas e bem mais caras
mercadorias para sepultar os cristãos, do que vós para fazerdes aos deuses as suas fumigações.
8 Vós dizeis, e é verdade, que as contribuições dos templos baixam de dia para
dia... O problema é que não chegamos para levar socorro, ao mesmo tempo, aos homens
e aos vossos deuses necessitados...
50. 13 De nada servem as vossas mais refinadas crueldades contra nós. Elas são 608
antes um estímulo para o nosso grupo. Tornamo-nos mais numerosos, todas as vezes
que nos ceifais: o sangue dos cristãos é uma semente12. 14 Muitos são os que entre vós
escreveram exortações sobre o modo de suportar a dor e a morte... Mas as suas
palavras não encontram tantos discípulos como fazem os cristãos ao ensinarem com obras...
11
(17) Si honesta causa est convivii, reliquum ordinem disciplinae de causa aestimate... Non prius
discumbitur quam oratio ad Deum praegustetur... (18) Ita saturantur, ut qui meminerint etiam per
noctem adorandum Deum sibi esse; ita fabulantur, ut qui sciant Deum audire. Post aquam manualem
et lumina, ut quisque de scripturis sanctis vel de proprio ingenio potest, provocatur in medium Deo
canere... Aeque oratio convivium dirimit.
12
Plures efficimur, quotiens metimur a vobis: semen est sanguis Christianorum. É costume citar de outro
modo esta frase de Tertuliano : «O sangue dos mártires é semente de cristãos».
192 SÉCULO III

16 Àquele que se entrega ao martírio é concedido por Deus o perdão de todos os


pecados. É por isso que damos graças no próprio momento em que ouvimos as vossas
sentenças. É que achando-se contrapostos o divino e o humano, ao sermos por vós
condenados, por Deus somos absolvidos.

O testemunho da alma 13
609 1. Quero invocar um novo testemunho, um testemunho mais conhecido que todas
as literaturas, mais profundo que todas as ciências, mais extenso que todos os livros,
superior ao homem inteiro, quer dizer, a tudo o que é humano. Comparece, então, oh
alma humana!... Mas não me dirijo a ti, alma, que formada nas escolas, exercitada nas
bibliotecas e alimentada nas academias e pórticos da Grécia vomitas sabedoria. Convido-te
antes a comparecer a ti que és simples, rude, bárbara e ignorante; a ti, tal como te
possuem os que têm só a ti; a ti, que chegas directamente da rua, da praça e da oficina.
Preciso da tua ignorância, uma vez que ninguém pode crer em ti, a partir do momento
em que saibas a mais pequena coisa... Tu não és cristã, sei-o bem; porque o homem
torna-se cristão, não nasce cristão.

Aos mártires 14
610 1. Não pretendo ter nenhum título especial para vos exortar. No entanto, não são
apenas os treinadores e os presidentes dos espectáculos, mas também as pessoas
simples e o público em geral que animam, de longe, os gladiadores mais hábeis, e não é
raro que as sugestões da multidão lhes façam muito bem.
611 2. Se pensássemos que o próprio mundo mais não é que uma grande prisão, senti-
ríamos que, ao entrardes vós nessa prisão, deixastes a verdadeira. Muito maiores são
as trevas do mundo que cegam os corações humanos. No mundo há cadeias mais
pesadas com que se aprisionam as próprias almas dos homens. Mais repugnante é o
odor que exala o mundo com o cheiro das suas concupiscências. O número dos réus
encarcerados no mundo abarca todo o género humano. No tribunal divino, não é o
procônsul que há-de falar, mas Deus. Por isso, felizes de vós; dai-vos conta de que
fostes mudados da prisão para a custódia. Essa prisão é horrorosa pela escuridão, mas
vós sois luz. Embora estejais atados com cadeias, tendes liberdade para ir até Deus.
612 3. Haveis de travar um belo combate no qual o árbitro dos prémios será o Deus
vivo; o treinador e assistente na luta, o Espírito Santo; a recompensa, a coroa eterna de
essência angélica, a cidadania dos céus e a glória pelos séculos dos séculos. O vosso
Mestre é Cristo Jesus, que vos ungiu no Espírito e vos conduziu ao meio da arena. Ele
quer, antes do dia do combate, para vos treinar com exercícios vigorosos e difíceis,
apartar-vos de uma vida de maior comodidade e liberdade, a fim de que, treinados,
adquirais fortaleza de atletas. É sabido que estes são postos em estágio para se subme-
terem a uma disciplina rígida... Quanto mais exigentes forem os treinos, maior é a
esperança da vitória...

13
T ERTULIANO , De testimonio animae (=PL 1, 608-618; CCL 1; CSEL 20). Obra escrita no ano 197.
14
T ERTULIANO , Ad martyras (=PL 1, 619-628; CCL 1; CSEL 76). Tratado escrito no ano 197 (ou 202).
TERTULIANO 193

Os espectáculos 15
1. 1 Considerai, servos de Deus, o que as exigências da fé... podem fazer para nos 613
livrar dos engodos dos erros mundanos, nomeadamente das representações teatrais;
vós que já andais muito perto de Deus como tendes testemunhado e confessado,
examinai isto de novo para que ninguém resvale no pecado por ignorância ou fazendo
vista grossa 16...
2. 3 Também se hão-de encontrar muitos que se afastam da assembleia cristã mais 614
para experimentarem os prazeres do que a verdadeira vida...
4. 1 Quando na água do baptismo professamos a fé cristã nas palavras da Lei de 615
Deus, dizemos que renunciamos ao Diabo, às pompas do mundo e aos anjos maus.
Dizemo-lo formalmente pela nossa boca... 3 Na fonte do baptismo renunciámos ao que
se refere aos espectáculos teatrais, posto que os vemos ao serviço do Diabo, de suas
pompas e anjos pela porta da idolatria...
13. 1 Realizámos o nosso plano sem lacuna de maior, julgo eu, mostrando de quantas 616
maneiras se comete idolatria nos espectáculos públicos; falámos da origem, dos nomes
que lhes dão, do aparato único, do lugar, das encenações. Convencidos ficámos que de
modo nenhum nos fica bem ir lá, nós que por duas vezes renunciámos aos ídolos...
4 Abominamos por igual templos e monumentos; a ara duns e doutros, fora com
ela, a efígie de deus ou de morto não nos leva genuflexão, nem sacrifício, nem oferendas.
Não provamos mantimentos do sacrifício da refeição oferecida aos mortos, porque não
podemos comer a Ceia do Senhor e a ceia dos Demónios. Se limpamos das imundícies
a garganta e o ventre, quanto mais... os ouvidos e os olhos os devemos limpar dos
prazeres das carnes imoladas aos ídolos e aos mortos, prazeres que não descem ao
ventre, mas são digeridos pelo espírito e pela alma, e cuja pureza mais se refere a Deus
do que às entranhas.
24. Que novas provas aduziremos para afirmar que nada do que diz respeito aos 617
espectáculos públicos agrada a Deus? E o que não agrada a Deus como pode assentar
bem no servo de Deus? 2 Se mostrámos que tudo isso é invenção do Diabo e construí-
do com materiais dele (ao Diabo pertence o que não é de Deus e a Deus desagrada) será
pompa diabólica aquilo que abjurámos com o sinal da cruz.
3 E naquilo que abjurámos não devemos tomar parte nem por obras nem por
palavras; nem vê-lo nem contemplá-lo... Aliás, eles percebem que alguém se fez cristão
sobretudo pelo facto de evitar os espectáculos.
25. 5 O que é dirigir-se da igreja de Deus à igreja do Diabo?... Como vais tu bater palmas 618
ao actor até te doerem as mãos, essas mãos que há momentos levantaste para Deus? Com a
boca com que pronunciaste o Amen ao Senhor irás aplaudir o gladiador, irás dizer a outrem,
e não apenas a Deus e a Cristo, o por todos os séculos dos séculos?
26. 1 Como é que os que tal fazem não ficarão com todas as portas abertas aos 619
Demónios? Deu-se o caso, autenticado por Deus, daquela mulher que foi ao teatro e
veio de lá possessa. 2 Apertado o espírito imundo no exorcismo por que se atrevera a
investir com uma fiel cristã, retrucou com arreganho: «Fiz muito bem, porque a encon-
trei no que era meu»... 4 Que tem a luz a ver com as trevas? Que tem a vida a ver com
a morte?

15
T ERTULIANO, De spectaculis (=PL 1, 627-661; CCL 1; CSEL 20; SCh 332; Verbo, Origens do Cristianismo
3, Lisboa 1974). Este tratado, que deve ter sido escrito no ano 197, é uma condenação absoluta de todos
os jogos públicos no circo, no estádio e no anfiteatro, e dos combates de atletas e gladiadores. Os cristãos
não deviam assistir a tais divertimentos pagãos.
16
Esta frase mostra que o tratado se destinava aos catecúmenos.
194 SÉCULO III

620 27. 2 Que vais tu ali fazer àquele charco de ímpias decisões? Ninguém vê em ti um
cristão e por isso nada tens a recear da parte daqueles homens, mas repara no que se
pensa de ti no Céu. 3 Pões acaso em dúvida que naquele momento em que o Demónio
fica furioso na igreja, todos os Anjos se debruçam lá para baixo a reparar em cada um
de nós, a ver quem blasfema, quem ouve blasfémias, quem empresta ao Demónio
ouvidos e língua contra Deus? 4 Não fugirás das bancadas dos inimigos de Cristo, da
cátedra daqueles grandes trastes e do próprio ar que os cobre mais que viciado com
palavrões abomináveis?
621 29. 1 Que melhor alegria haverá do que aquela que nasce da reconciliação com Deus
Pai, nosso Senhor, do conhecimento da verdade, de reconhecer os erros, do perdão de
tantos pecados da vida passada?... 3 Pisar aos pés os deuses dos gentios, expelir os
Demónios, curar doentes, informar-te da verdade revelada, viver para Deus; aí estão as
alegrias, são esses os espectáculos santos dos cristãos, os espectáculos perpétuos
pelos quais não se paga nada; à luz deles é que podes avaliar dos jogos circenses, podes
olhar para o derivar do mundo, ir contando os anos, olhar para a meta final, defender as
reuniões nas igrejas, atender ao sinal de Deus, erguer-te à voz do Anjo e gloriar-te nas
palmas do martírio.
4 Se o palavreado cénico é divertido, não temos falta de boas letras, temos versos
a rodos, pensamentos bem cunhados, e nada se diga dos cânticos e vozes do melhor
timbre, em vez de fábulas temos verdades, em vez de embustes a lisura mais declarada.
5 E queres também algum sangue? Temos o de Cristo.
622 30. 1 E que dizer daquele espectáculo que não tarda aí, a vinda do Senhor que todos
hão-de reconhecer na sua vitória triunfante? Que alegria a dos Anjos, que glória a dos
santos ressuscitados!...
3 Que espectáculo grandioso! Que mais admirar? De que rir?... Os que presidiam
à perseguição do nome do Senhor vê-los-emos estorricados em brasas mais ardentes
que as que eles acenderam para queimar cristãos...
7 Para contemplares isto e exultares com tais visões, qual é o pretor ou o cônsul
ou questor ou sacerdote que seja tão liberal que te garanta bilhete? Mas, como será,
como será aquilo que nem os olhos viram nem os ouvidos ouviram nem o coração do
homem suspeitou? Creio que serão espectáculos bem mais arrebatadores que o circo,
que bancadas e arena no anfiteatro, e que todo e qualquer estádio.

O Baptismo 17
623 1. Motivo desta obra. 1 A presente obra vai tratar do nosso18 sacramento da água,
desta água que nos lava dos pecados contraídos no tempo da nossa cegueira original19,
e nos liberta para a vida eterna. Um tratado sobre esta matéria não será inútil para
instruir tanto aqueles que estão agora em estádio de formação20, como também aqueles

17
T ERTULIANO , De baptismo (=PL 1, 1197-1223; CCL 1; CSEL 20; SCh 35). O De baptismo tem grande
importância para a história da liturgia da iniciação cristã. É o primeiro e único tratado sobre um sacramento
antes do Concílio de Niceia. Deve ter sido escrito por volta de 198. É uma obra apologética contra uma
forma de maniqueísmo que considera má toda a matéria. Por isso, a água do baptismo deve ser proibida,
sendo suficiente a fé. Tertuliano também trata do baptismo noutras obras: Adversus Marcionem, De corona,
De carnis resurrectione. O tratado tem uma introdução e duas partes: Introdução (1-2); I Parte – simbolis-
mo da água (3-6), comentário do rito baptismal (7-8) e tipologia bíblica (9); II Parte - problemas teológicos
(10-16) e disciplinares (17-20).
18
«Nosso» designa, em Tertuliano, a Igreja católica, por oposição às seitas heréticas.
19
Esta expressão refere-se à concepção do baptismo como «iluminação».
20
Alusão aos catecúmenos.
TERTULIANO 195

que, contentando-se com a sua fé simples21, não investigam os fundamentos da tradição22...


2 Esteve aqui, há pouco tempo atrás, uma serpente inchada da seita dos “Caimitas” e
a sua doutrina seduziu a muitos, justamente por combater o baptismo... 3 Nós, os
peixinhos segundo o nosso «Peixe» 23, Jesus Cristo, no qual nascemos, só nos salvaremos
se permanecermos na água...
2. O escândalo da inteligência. 1 Nada impressiona tanto a inteligência humana 624
como o contraste entre a simplicidade aparente das obras divinas e a grandeza dos
efeitos prometidos. É o caso aqui: tudo se passa com a maior simplicidade, sem
aparato extraordinário, numa palavra, sem grande luxo. O homem desce à água, é
imerso nela enquanto se pronunciam algumas palavras24, e sai da água pouco ou mesmo
nada mais limpo do que antes. Por isso se considera inacreditável que ele possa, deste
modo, adquirir a eternidade... 2 Nós também nos admiramos, mas acreditamos. Aliás,
se a incredulidade se admira, é porque não crê. Admira-se, porque considera vão o que
é simples, e o que é grande julga-o impossível...
3. A água na Criação. 1 Perguntemo-nos, no entanto, se é assim tão insensato e 625
impossível que o homem seja recriado pela água. Como ela pelo menos mereceu ser a
dispensadora de tamanha graça, penso que devemos examinar a sua importância... 2 A
água é um desses elementos que, antes do mundo ter sido posto em ordem, no caos
original, repousava nas mãos de Deus. Está escrito: No princípio, quando Deus criou
os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo, e o espírito
de Deus movia-se sobre a superfície das águas25... As trevas ainda eram informes, sem
a beleza dos astros, o abismo era sombrio, a terra não estava preparada e o céu inacabado.
Só a água, matéria perfeita desde a origem, fecunda e simples, se estendia, transparente
como um trono, diante do seu Deus...
4. A água e o Espírito. 1 Vamos recordar rapidamente os acontecimentos das 626
origens que nos fazem conhecer o fundamento do baptismo: o Espírito, que desde
então prefigurava o baptismo e que desde o começo pairava sobre as águas, foi chamado
a pairar sobre elas para as vivificar. O Espírito de santidade pairava sobre a água santa,
ou antes, a água recebia por empréstimo a santidade do Espírito que pairava sobre
ela... É deste modo que, por este Espírito de santidade, a água é santificada na sua
natureza e se torna por si mesma santificante...
4 Todas as espécies de água, em virtude da antiga prerrogativa da sua origem,
participam, portanto, do mistério da nossa santificação, pela invocação de Deus sobre
elas. Feita a invocação26, o Espírito vem logo do Céu e paira sobre as águas, santifica-as
pela sua presença e, assim santificadas, elas impregnam-se, por sua vez, do poder de
santificar.
5 Em rigor poderia comparar-se o baptismo a um acto banal: os pecados man-
cham-nos, a água lava-nos... O espírito é lavado na água por intermédio do corpo, a
carne é purificada pelo espírito.
5. Os baptismos pagãos e o baptismo cristão. 1 Mesmo os pagãos... são iniciados 627
em certos mistérios, como os de Ísis ou de Mitra, por um banho. E também levam os
seus ídolos a banhos. Aspergem as suas quintas, as suas casas de campo, os templos e
até cidades inteiras com água para os purificar..., ou fazem-se baptizar em massa e
pensam obter assim a regeneração e o perdão das suas faltas...
21
Os «simples» ou «rudes», como dirá tantas vezes S. Agostinho.
22
A tradição, neste caso, designa todo o ensinamento sobre o baptismo, quer teórico quer prático, recebido
da tradição.
23
i) x du/ j . Acróstico que significa: « I) e sou) / j Xristo\ j Deou= Ui/ o\j Swth/ r », Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador.
24
Alusão ao diálogo concomitante à imersão baptismal.
25
Gen 1, 1-2.
26
Primeiro testemunho, no Ocidente, desta invocação, desta bênção da água.
196 SÉCULO III

5 A piscina de Betsaida foi movimentada por um Anjo... Este remédio corporal


anunciava em figura o remédio espiritual, seguindo a lei de que as realidades carnais
precedem sempre, em figura, as realidades espirituais.
6 Progredindo assim a graça de Deus em todas as coisas, as águas e o Anjo
receberam um poder maior. O que antes curava os vícios do corpo, agora cura o
espírito; o que operava a saúde temporal, agora restaura a vida eterna; o que durante
todo o ano só uma vez libertava um só homem, agora todos os dias salva povos
inteiros, destruindo a morte pela remissão dos pecados...
628 6. A Trindade e o baptismo. 1 Isto não significa que recebemos o Espírito Santo na
água. Mas, purificados na água, somos preparados, pelo ministério do Anjo, para
receber o Espírito... Do mesmo modo que João foi o precursor do Senhor, preparando
os seus caminhos, assim o Anjo, que preside ao baptismo, traça os caminhos para a
vinda do Espírito Santo, perdoando os pecados pela fé proclamada no Pai, no Filho e
no Espírito Santo... 2 Uma vez que o testemunho da fé e a garantia da salvação têm por
caução as Três Pessoas, necessariamente aí se encontra acrescentada a menção da
Igreja, pois, onde estão os Três, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, também está a Igreja,
que é o corpo dos Três27.
629 7. A unção pós-baptismal. 1 Ao sair do banho do baptismo, somos ungidos com
óleo benzido, de acordo com a disciplina antiga28. O nosso nome “cristão” provém de
crisma, que significa unção e dá também o seu nome ao Senhor, pois foi esta unção,
transposta para o plano espiritual, que, no Espírito, Ele recebeu de Deus Pai... 2 Do
mesmo modo, em nós, a unção realiza-se no corpo, mas aproveita-nos espiritualmen-
te, tal como o rito do baptismo é uma acção corporal, que consiste em sermos mergu-
lhados na água, mas o seu efeito é espiritual, porque nos liberta dos nossos pecados.
630 8. Imposição das mãos. 1 Depois impõem-nos as mãos29, invocando o Espírito
Santo por meio duma bênção30... 2 Também este rito remonta a esse antigo sacramento,
onde Jacob abençoou Efraim e Manassés... impondo as mãos sobre as suas cabeças...
3 Mas aquele Espírito santíssimo, saindo do Pai, desce com alegria sobre os corpos
purificados e abençoados, e repousa sobre as águas do baptismo, como se aí reconhecesse
o seu antigo trono...
631 9. Tipologia do baptismo. 1 Deste modo, quantos favores da natureza, quantos
privilégios da graça, quantas solenidades rituais, quantas figuras, quantas antecipações,
quantas profecias orientadas para o culto da água! Em primeiro lugar, é o povo liber-
tado do Egipto, que, atravessando a água, escapa ao poder do rei egípcio. A água
aniquilou o próprio rei e todo o seu exército. Haverá figura mais esclarecedora do
sacramento do baptismo? Os pagãos são libertados do domínio do mundo pela água e
deixam o Diabo, seu antigo tirano, afogado na água...
3 Era esta a água que brotava do rochedo, para o povo que acompanhava Moisés.
Se Cristo era esta pedra, não há dúvida de que, por esta água, que sai do lado de Cristo,
o baptismo recebe a sua consagração.
4 Para reforçar o sentido do baptismo... Cristo nunca aparece sem a água. Ele
mesmo é baptizado na água31; convidado para as núpcias, é pela água que inaugura o

27
Expressão curiosa de Tertuliano.
28
Confrontando os diversos textos onde Tertuliano trata do baptismo, consegue-se reconstituir o seguinte
ritual: após a invocação sobre a água, o catecúmeno renunciava aos Demónios; seguia-se o rito baptismal
propriamente dito: tríplice imersão com a tríplice profissão de fé; o bispo dava a unção ao novo baptizado,
«consignava-o» e impunha-lhe as mãos; este participava então pela primeira vez na celebração eucarística,
no decurso da qual comungava do Corpo e do Sangue de Cristo.
29
Tertuliano não diz quem impõe as mãos, mas era provavelmente o bispo, que presidia à celebração do baptismo.
30
Benedictio designa provavelmente a oração de acção de graças que acompanhava a imposição das mãos.
31
Mt 3,13.
TERTULIANO 197

começo do seu poder32; quando prega, convida os sedentos a beber a sua água eterna33;
quando fala da caridade, reconhece como obra de amor o copo de água dado ao próximo34;
descansa junto de um poço 35; caminha sobre as águas 36; gosta de navegar sobre a água;
lava os pés dos seus discípulos com água37... Os testemunhos em favor do baptismo
encontram-se até na paixão: quando é condenado à cruz, a água intervém ainda pelas mãos
de Pilatos38, e, quando é trespassado pela lança do soldado, irrompe água do seu lado39.
10. O baptismo de João e o baptismo de Cristo. 1 O baptismo anunciado por João já 632
então deu lugar a uma pergunta que o próprio Senhor propôs aos fariseus: o baptismo
de João era do Céu ou da terra40?...
2 Nós, apesar de termos uma inteligência à medida da nossa pouca fé, somos
capazes de responder que esse baptismo era verdadeiramente divino, mas só em virtude da
sua instituição, não pelos seus efeitos. Lemos que João foi enviado pelo Senhor para
este ofício 41, sendo, de resto, apenas de condição humana. Ele não conferia nada de
celeste, pois apenas estava ao serviço dos dons celestes, encarregado de exortar à
penitência, que depende da vontade do homem... 3 Se o baptismo de João fosse
celeste, teria dado o Espírito Santo e a remissão dos pecados. Mas só Deus concede a
remissão dos pecados e confere o Espírito42. Até o próprio Senhor afirmou que o
Espírito não desceria antes de Ele subir para o Pai43...
11. O baptismo e a paixão do Senhor. 1 Alguém me objectará, que o Senhor veio, mas não 633
baptizou. Na verdade, lemos: o próprio Jesus não baptizava, mas os seus discípulos44...
4 Os discípulos de Jesus baptizavam, como ministros..., com o mesmo baptismo
de João..., porque o único baptismo instituído por Cristo ainda não podia ser dado
naquele momento pelos discípulos, pois o Senhor ainda não havia consumado a sua
glória 45, nem fundado a eficácia do baptismo pela sua Paixão e Ressurreição. Ora, a
nossa morte não pode ser destruída sem a paixão do Senhor, nem a nossa vida restituída
sem a sua ressurreição.
12. O baptismo dos Apóstolos. 1 Como está estabelecido que ninguém pode chegar à 634
salvação sem o baptismo, sobretudo por causa desta palavra do Senhor: A não ser que
nasça da água, ninguém terá a vida46, alguns espíritos escrupulosos formularam certas
objecções: como se teriam salvado os Apóstolos, excepto Paulo47, uma vez que, quanto
sabemos, não receberam o baptismo do Senhor?
3 Vou responder, na medida em que puder, aos que negam que os Apóstolos
tenham sido baptizados... 8 Ou os Apóstolos receberam o baptismo... ou ficaram sem
baptismo... Em ambos os casos, contudo, seria muito temerário duvidar da salvação

32
Jo 2,7.
33
Jo 4,14.
34
Mt 10,42.
35
Jo 4,6.
36
Jo 6,19.
37
Jo 13,5.
38
Mt 27,24.
39
Jo 19,34.
40
Desde os tempos apostólicos, a distinção entre o baptismo de João e o baptismo de Jesus era objecto do
ensino catequético.
41
Lc 3,3.
42
Mc 2,7.
43
Jo 16,7.
44
Jo 4,2.
45
Jo 7,39.
46
Jo 3,5.
47
Act 9,18.
198 SÉCULO III

dos Apóstolos, por causa da prerrogativa de serem os primeiros chamados e, em


seguida, de viverem na familiaridade pessoal de Cristo, que podia substituir o baptismo.
Porque me parece, que Aquele que eles seguiam era o mesmo que prometeu a salvação
a cada um que acreditava n’Ele: a tua fé te salvou e os teus pecados te são perdoados48.
Eis o que Ele dizia a quem acreditava, mas que, no entanto, não tinha recebido o
baptismo. 9 Se faltou essa fé aos Apóstolos, pergunto-me quem a terá tido de maneira
certa: a uma só palavra do Senhor, um deixou a alfândega49; o outro, o pai e seu barco50;
um renunciou à profissão com que se sustentava51; outro não se inquietou por deixar as
exéquias do pai por fazer52...
635 13. Necessidade do baptismo. 1 Alguns... até dizem que «o baptismo não é necessário
àqueles a quem a fé basta: Abraão encontrou graça diante de Deus não pelo sacramento
da água, mas pelo da fé»... 2 Outrora, antes da Paixão e Ressurreição do Senhor, a
salvação era obtida pela simples fé. Contudo, depois que, para os crentes, o nascimento,
a paixão e a ressurreição se tornaram objecto da fé, também se ampliou o sacramento...
3 Com efeito, foi estabelecida a lei de baptizar e prescrita a forma: Ide, ensinai todos
os povos, baptizando-os em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo53. A essa lei
acrescenta-se a seguinte decisão: Se alguém não renascer da água e do Espírito Santo,
não entrará no Reino dos Céus54, a qual submete a fé à necessidade do baptismo. Por
isso, desde então, todos os crentes eram baptizados. Também Paulo, logo que acreditou,
foi baptizado55.
636 14. Pregação e baptismo. 1 Mas há quem objecte com as palavras do próprio Apóstolo...,
pois ele mesmo disse: Cristo não me enviou para baptizar56, como se esse argumento
suprimisse o baptismo! Então por que baptizou ele Gaio, Crispo e a casa de Estéfa-
nes57? Além disso, mesmo que Cristo o não tivesse enviado a baptizar, mandou a
outros que baptizassem...
637 15. O baptismo dos hereges. 1 Para nós existe um só baptismo, conforme ao Evange-
lho do Senhor e às cartas de Paulo, porque Deus é um só e uma só a Igreja nos Céus...
2 Os hereges não participam dos nossos ritos; são estranhos porque estão privados da
nossa comunhão... Uma vez que eles não têm o baptismo fixado pela regra, não há
qualquer dúvida de que aquilo que eles têm não é o baptismo. Como o não têm...,
também não o podem receber...
3 Nós entramos uma só vez na piscina baptismal e uma só vez são lavados os
nossos pecados... Ao contrário, Israel lava-se todos os dias, porque todos os dias se
torna impuro. Mas para que este costume não se implante também entre nós, foi
estabelecido o princípio de um único baptismo. Feliz esta água que, duma só vez, lava
para sempre e não engana os pecadores...
638 16. O baptismo de sangue58. 1 Para nós há ainda um segundo baptismo, também ele
único59, o baptismo de sangue, com o qual o Senhor disse que iria ser baptizado60,

48
Mt 9,22; 9,2.
49
Mt 9,9.
50
Mt 4,22.
51
Mt 8,22.
52
Mt 10,37.
53
Mt 28,19.
54
Jo 3,5.
55
Act 9,18.
56
l Cor 1,17.
57
l Cor 1,14.16.
58
O baptismo do martírio.
59
É evidente que o mártir só podia morrer uma vez.
60
Lc 12,50.
TERTULIANO 199

apesar de já o ter sido. Ele tinha vindo, como escreveu São João, com água e com
sangue61: com água, para ser baptizado, e com sangue, para ser glorificado. 2 Do
mesmo modo, pela água, fez de nós chamados, e, pelo sangue, eleitos 62. Esses dois
baptismos brotaram juntos da ferida do seu corpo trespassado63, porque aqueles que
crêem no seu sangue, ainda têm que ser lavados na água; e os lavados na água ainda
tomarão o seu sangue. Este segundo baptismo substitui o baptismo da água não rece-
bido, e dá-o quando o perdemos64.
17. O ministro do baptismo. 1 Para concluir este assunto, só nos resta recordar o rito 639
pelo qual se dá e se recebe o baptismo. Dá-lo pertence em primeiro lugar ao primeiro
sacerdote, isto é, ao bispo, se estiver presente; depois dele, pertence ao presbítero e ao
diácono, mas nunca sem autorização do bispo, por causa do respeito devido à Igreja e
que é preciso salvaguardar para conservar a paz. 2 Além disso, também os leigos têm
esse poder. O que todos recebem no mesmo grau, todos o podem dar no mesmo grau...
Tal como ninguém tem o direito de esconder a Palavra, o mesmo acontece com o
baptismo: ele também vem de Deus, e todos o podem conferir. Mas que reserva e que
discrição devem ter aqui os leigos, mais ainda que os clérigos, embora também eles
devam dar provas disso, para não invadirem o ministério do bispo. A inveja para com
o episcopado é a mãe de todas as divisões65. O santo apóstolo Paulo diz: Tudo me é
permitido, mas nem tudo é conveniente66. 3 Será suficiente usar desta facilidade quando
for necessário, quando as condições do lugar, do tempo ou da pessoa o exigirem. Neste
caso, a ousadia daquele que vai em socorro é justificada pela urgência do perigo. Aquele
que recusasse o socorro que livremente podia prestar, seria culpado da perda de um
homem.
4 Mas o atrevimento da mulher que já usurpou o direito de ensinar irá até ao
ponto de se atribuir o de baptizar? Não, a não ser que surjam algumas novas bestas
semelhantes à primeira. Esta pretendia suprimir o baptismo; uma outra quer administrá-lo
ela própria. E, se essas mulheres invocam os Actos, que erradamente levam o nome de
Paulo e reivindicam o exemplo de Tecla para defenderem o seu direito de ensinar e
baptizar, saibam que foi um presbítero da Ásia que forjou este escrito, como que
cobrindo a sua própria autoridade com a de Paulo. Depois de reconhecida a fraude e,
tendo confessado que agiu assim por amor a Paulo, foi deposto...
18. Os candidatos ao baptismo. 1 Saibam os que têm a função (de baptizar) que o 640
baptismo não se deve dar sem mais nem menos... 2 Se Filipe baptizou tão rapidamente
o eunuco, lembremo-nos de que o Senhor testemunhara em seu favor de maneira clara
e explícita, pois foi o Espírito que ordenou a Filipe que fosse por aquele caminho 67.
Por seu lado, o eunuco também não estivera inactivo: não foi um desejo repentino que
o levou a pedir o baptismo. Tinha ido ao templo rezar e entregava-se à leitura da
Sagrada Escritura 68. Assim o encontrou o Apóstolo enviado espontaneamente por
Deus. Mais uma vez o Espírito ordenou a Filipe que fosse até junto do carro do
eunuco69. Neste momento aparece um texto relativo à própria fé: a exortação é recebida, o

61
1 Jo 5,6
62
Alusão à crença segundo a qual só os mártires (electos) gozavam, imediatamente após a sua morte, da
felicidade do Céu. Os baptizados (vocatos) tinham de esperar o fim do mundo. É por isso que Tertuliano
apresenta o martírio como a chave do Céu.
63
Jo 19,34.
64
Toda a tradição acredita que o martírio supre o baptismo. O martírio é um outro banho, uma segunda rege-
neração. Também é segundo porque pode restituir a pureza perdida e apagar de novo os pecados.
65
A história da Igreja primitiva dá-nos muitos exemplos desta inveja para com o episcopado.
66
1 Cor 6, 12; 10, 23.
67
Act 8,26.
68
Act 8,28.
69
Act 8,29.
200 SÉCULO III

Senhor é anunciado, a fé segue sem demora e logo se encontra água, e o Apóstolo,


depois de terminada a sua missão, desaparece70...
3 Paulo também foi baptizado sem demora. Simão71, seu hospedeiro, reconheceu
imediatamente nele um vaso de eleição: a preferência de Deus antecipou-se a dar sinais
da escolha que fizera. Toda a candidatura pode ser enganadora e vir depois a ser
enganada na sua expectativa. 4 Por isso, é preferível protelar o baptismo conforme a
condição, a disposição e também conforme a idade de cada qual, sobretudo quando se
trata de crianças72. Será necessário, salvo em caso de necessidade absoluta, fazer correr
aos padrinhos73 o risco de faltarem eles próprios às suas promessas, no caso de mor-
rerem ou de serem enganados por uma natureza má que irá desenvolver-se? 5 Não há
dúvida de que o Senhor disse: Deixai vir a mim os pequeninos74! Pois bem, que se
aproximem, mas quando tiverem crescido, quando estiverem em idade de ser instruídos
e quando tiverem aprendido a conhecer Aquele para quem vêm. Tornem-se cristãos
quando forem capazes de conhecer Cristo. Porque haveria esta idade inocente de se
apressar tanto para receber a remissão dos pecados? Costuma-se agir com maior cir-
cunspecção nas coisas do mundo. Vamos confiar dons divinos a quem não confiamos
bens terrestres? Ao menos sejam capazes de pedir a salvação, para que se veja bem que
ela só é dada a quem a pede... 6 Se compreendêssemos a importância do baptismo,
temeríamos mais a recepção apressada do que o protelamento: uma fé íntegra está
segura da salvação75.
641 19. O dia do baptismo. 1 O dia mais solene para o baptismo é por excelência o dia da
Páscoa76, em que é consumada a paixão do Senhor, na qual somos baptizados... 2 Em
segundo lugar, o tempo antes do Pentecostes é o tempo mais favorável para conferir o
baptismo77. Este é o tempo em que o Senhor ressuscitado apareceu muitas vezes aos
discípulos, o tempo em que lhes foi comunicada a graça do Espírito Santo e se lhes
deixou entrever a esperança da segunda vinda do Senhor. Foi nesse momento, logo
após a sua Ascensão aos Céus, que os Anjos disseram aos Apóstolos que o Senhor
voltaria como subira aos Céus, precisamente no Pentecostes... Este tempo é propria-
mente um “dia da festa”. 3 De resto, todo e qualquer dia pertence ao Senhor. Qualquer
hora e qualquer tempo podem ser convenientes para o baptismo. O tempo tem a ver
com a celebração, mas não muda nada à graça78.
642 20. Preparação para o baptismo. 1 Aqueles que vão aproximar-se do baptismo79
devem invocar a Deus com orações fervorosas, com jejuns, genuflexões e vigílias.
Preparar-se-ão também pela confissão de todos os seus pecados passados, em recor-

70
Act 8, 36.39.
71
Tertuliano cita de memória e troca os nomes. Não foi Simão que recebeu Paulo, mas Judas, e quem o
baptizou foi Ananias; cf. Act 9, 11-18.
72
O baptismo das crianças.
73
É a primeira atestação da presença de padrinhos no baptismo das crianças. Para a Tradição Apostólica,
são os pais que respondem em nome dos seus filhos.
74
Mt 19,14.
75
É difícil avaliar o sentido desta fórmula.
76
Sempre foi assim ao longo de toda a tradição da Igreja e mesmo de toda a história. No caso presente,
porém, a palavra Páscoa não significa apenas o domingo de Páscoa, mas sim o que chamamos hoje o
Tríduo pascal, ou melhor dizendo, a paixão, a morte e a ressurreição do Senhor.
77
A palavra Pentecostes tem aqui o sentido de «dia do Pentecostes», ao passo que a expressão «o tempo
antes do Pentecostes» significa o que nós hoje chamamos «tempo pascal».
78
Alusão provável a certas tendências que iam aparecendo e que pretendiam reservar os ritos baptismais
apenas ao dia de Páscoa. S. Agostinho dirá mesmo que «se o maior número é baptizado na Páscoa, não é por
se receber então uma graça maior para a salvação, mas porque nos sentimos mais exaltados pela alegria mais
viva da festa» (Sermão 210).
79
Os que vão aproximar-se do baptismo são aqueles que, em seguida, se chamarão «competentes».
TERTULIANO 201

dação do baptismo de João, do qual se diz que o recebiam confessando os seus peca-
dos80. Podemos alegrar-nos por actualmente já não termos que confessar em público os
nossos pecados e misérias81... 3 O próprio Senhor, logo depois do baptismo, observou
um jejum de quarenta dias e foi assaltado por tentações. Dirá alguém: «Não devíamos
nós jejuar também após o nosso baptismo?» Nada o impede, a não ser a necessidade de
nos alegrarmos e a alegria da salvação... 5 Por isso vós, os bem-aventurados, vós a
quem a graça82 de Deus espera, vós que ides subir daquele banho santíssimo da regene-
ração83, vós que, pela primeira vez ireis estender as vossas mãos84 junto da Mãe85 e
com outros irmãos, pedi ao Pai, pedi ao Senhor, como dom especial da sua graça, a
abundância de seus carismas 86. Está dito: Pedi e recebereis87. De facto vós procurastes
e achastes, batestes e foi-vos aberta a porta.
Só me resta pedir-vos uma coisa88: lembrai-vos, nas vossas orações, do pobre
pecador Tertuliano89.

A oração 90
1. 6 A Oração dominical é verdadeiramente o resumo de todo o Evangelho... Quando é 643
que se deve fazer mais a paz com os irmãos, do que quando sobe juntamente com a
oração mais recomendável91?
2. Invocar o Pai, é invocar ao mesmo tempo e necessariamente o seu Filho... Nomear o 644
Pai e o Filho, é proclamar a Mãe92, sem o que não há Filho nem Pai. Assim, por uma só
palavra, nós O adoramos com os seus... Quando chamamos a Deus «nosso Pai»,
reconheça o Pai as palavras do seu Filho...
3. A expressão Deus Pai nunca tinha sido revelada a ninguém. Quando o próprio 645
Moisés perguntou a Deus quem era, ouviu um nome diferente. A nós, este nome foi
revelado no Filho, porque este nome (de Filho) implica o nome novo de Pai... Quando
dizemos: Santificado seja o vosso nome, pedimos que ele seja santificado em nós que
estamos nele, mas também nos outros, por quem a graça de Deus está à espera, para
nos conformarmos ao preceito que nos obriga a orar por todos, mesmo pelos nossos
inimigos. Se não dizemos expressamente: Santificado seja o teu nome em nós, é porque
pedimos que o seja em todos os homens... É bom bendizer a Deus em todo o tempo e
lugar..., pois as multidões dos Anjos não cessam de dizer Santo, Santo, Santo...

80
Mt 3,6.
81
Nada permite supor que se trata duma confissão pública imposta aos catecúmenos. Trata-se apenas do
reconhecimento genérico de que somos pecadores, realizado por meio de fórmulas semelhantes às dos sal-
mos ou ao nosso actual «Confesso a Deus todo-poderoso».
82
Graça é aqui sinónimo de baptismo, o dom por excelência.
83
Mt 3, 6.
84
Para receber a comunhão e para rezar de braços abertos, como faziam todos os cristãos.
85
A ideia da Mater Ecclesia aparece nos finais do século II.
86
1 Cor 12,14.
87
Mt 7, 7.
88
Este pedido é consequência da convicção de que a oração dos novos baptizados é particularmente eficaz
junto de Deus, como hoje, para nós, a oração dum novo presbítero.
89
Estas declarações são frequentes em Tertuliano.
90
T ERTULIANO , De oratione (=PL 1, 1149-1196; CCL 1; CSEL 20; cf. LH, II). O tratado De oratione foi
escrito por volta de 199. Destinava-se aos catecúmenos.
91
Quando autem magis conferenda cum fratribus pax est, nisi cum oratio operatione commendabilior
ascendit...?
92
A Igreja mãe, pela qual nos tornamos filhos de Deus.
202 SÉCULO III

646 5. Mesmo que esta Oração não constituísse para nós um dever de pedir a vinda
deste reino, teríamos espontaneamente soltado este grito, com pressa de irmos abraçar
o objecto das nossas esperanças. As almas dos mártires, sob o altar de Deus, invocam
o Senhor com grandes gritos: Até quando, Senhor, até quando tardarás em pedir
contas do nosso sangue aos habitantes da terra? Eles devem alcançar justiça, no fim
dos tempos. Apressa, portanto, Senhor, a vinda do teu reino.
647 6. 2 A razão pela qual nós temos necessidade deste alimento é dupla: para vivermos
eternamente em Cristo e para recebermos a nossa personalidade do seu próprio Corpo.
648 8. Não permitais que sejamos levados à tentação. Livre-nos o Céu de pensar que
Deus possa tentar-nos, como se ignorasse a fé de cada um, ou então o quisesse enganar...
O próprio Cristo Se deixou tentar por Satanás para nos fazer descobrir o chefe e
artífice da tentação.
646 9. (O Pai-Nosso) é reverência prestada a Deus pelo título de Pai, testemunho de fé
no seu nome, acto de submissão à sua vontade, memória de esperança na vinda do seu
reino, pedido de vida no pão, confissão dos nossos pecados, preocupação pelas tenta-
ções ao pedirmos protecção.
650 10. Depois de o Senhor nos ter legado esta fórmula de oração, acrescentou: Pedi e
recebereis. Cada um pode, portanto, dirigir ao Céu diversas orações segundo as suas
necessidades, mas começando sempre pela Oração do Senhor, que continua a ser a
oração fundamental.
651 13. São estas as verdadeiras purificações, não aquelas que muitos procuram supers-
ticiosamente, lavando-se todas as vezes que oram, espalhando água por todo o corpo.
652 14. (Ao dizermos o Pai-Nosso) não só elevamos, mas também estendemos as nossas
mãos para o Senhor. Tomando como modelo a Paixão de Cristo, confessamo-la também
pela oração93...
653 17. Ao adorarmos Deus com modéstia e humildade, confiar-Lhe-emos muito melhor
a nossa oração se não levantarmos exageradamente as mãos, mas as elevarmos a uma
altura moderada e conveniente, e se não erguermos também o nosso olhar com arrogância94...
654 18. 1 Terminada a oração, os que jejuam não trocam o beijo da paz com os irmãos,
que é o selo da oração95... 7 É com toda a razão que omitimos o beijo no dia de Páscoa96,
dia em que a prática do jejum é universal e pública, sem nos preocuparmos minimamente
em esconder aquilo que fazemos juntamente com todos.
655 19. Acerca dos dias de estação, a maior parte julga que não há que estar presente nas
orações dos sacrifícios, uma vez que a estação termina quando se recebe o Corpo do
Senhor. Então a Eucaristia faz cessar o culto oferecido a Deus ou confirma-o? Não será
mais solene a tua estação se estiveres de pé junto do altar de Deus? Recebido e
guardado o Corpo do Senhor97, ambas as coisas ficam salvas: a participação no sacri-
fício e o cumprimento do dever. A estação recebe o nome do exemplo militar, porque
também somos o exército de Deus98.
656 23. 2 No dia da Ressurreição do Senhor, segundo a nossa tradição, não só nos
devemos abster desta prática99, mas também de toda a atitude que implique ansiedade

93
Nos vero non attollimus tantum (manus), sed etiam expandimus, et dominica passione modulatum et
orantes confitemur Christo.
94
Cum modestia et humilitatae adorantes magis commendabimus Deo preces nostras, ne ipsis quidem
manibus sublimius elatis, sed temperate ac probe elatis, ne vultu quidem in audaciam erecto.
95
Ieiunantes habita oratione cum fratribus subtrahunt osculum pacis, quod est signaculum orationis.
96
Aqui Páscoa significa Sexta-Feira da Paixão.
97
Accepto corpore Domini et reservato.
98
Statio de militari exemplo nomen accepit, nam et militia dei sumus.
99
A prática de rezar de joelhos.
TERTULIANO 203

e ocupação em trabalhos, abandonando até os nossos negócios para não darmos ocasião
ao Diabo. O mesmo acontece no espaço de tempo do Pentecostes, cuja celebração é
vivida na mesma alegria festiva... 4 Mas, nos dias de jejuns e de estação, não se deve
fazer nenhuma oração sem estar de joelhos, e com os outros costumados sinais de
humildade100... Nos outros dias ninguém duvida de que se deve prostrar diante de
Deus, pelo menos na primeira oração, pela qual entramos na luz.
24. Quanto aos tempos de oração, nada está prescrito a não ser orar em todo o 657
tempo e em todo o lugar. Mas como podemos nós orar em todo o lugar uma vez que
é proibido orar em público? Há que subentender em todo o lugar que for oportuno ou
necessário. Não se considera como feito contra o mandamento o que fizeram os Após-
tolos que, no cárcere, oravam e cantavam a Deus, apesar de os presos os ouvirem, ou
o que lemos acerca de Paulo, que, no navio, fez a Eucaristia diante de todos.
25. Chamo horas comuns aquelas que dividem o espaço durante o dia, a Tércia, a 658
Sexta e a Noa, que são as mais solenes que se encontram na Escritura, pois na hora
tércia o Espírito Santo foi dado aos discípulos reunidos, na hora sexta subiu Pedro ao
terraço para orar, e na hora nona foram Pedro e João ao templo, onde Pedro curou o
paralítico... Devemos adorar pelo menos três vezes ao dia, pois tudo devemos ao Pai
e ao Filho e ao Espírito Santo... As orações legítimas101 devem fazer-se, sem qualquer
dúvida, ao nascer do sol e à noite... Fica bem ao crente não tomar alimento nem banho
antes de ter orado, porque os refrescos e alimentos do espírito devem preferir-se aos
do corpo, e as coisas do Céu às coisas da terra...
26. Nunca devemos receber ou despedir um hóspede sem elevar ao Céu os nossos 659
pensamentos juntamente com ele... Ao entrar numa casa deveríamos dizer sempre:
«Paz a esta casa».
27. Os que são mais diligentes na oração, costumam acrescentar Alleluia às orações. 660
Quando rezamos juntos retomamos os finais dos salmos...
28. A oração é o sacrifício espiritual que aboliu os sacrifícios antigos. De que me 661
serve, diz o Senhor, a multidão dos vossos sacrifícios? Estou farto dos holocaustos de
carneiros e da gordura dos vitelos; não quero o sangue de touros, cordeiros e cabritos.
Quem pediu semelhantes ofertas das vossas mãos?
O Evangelho ensina-nos o que o Senhor pede: Vai chegar a hora em que os
verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade. Deus é espírito e,
por isso, deseja um culto espiritual. Nós somos os verdadeiros adoradores e os verda-
deiros sacerdotes, nós que, orando em espírito, em espírito oferecemos o sacrifício da
nossa oração, como vítima digna de Deus e agradável a seus olhos, a vítima que Ele
pede e espera. Esta vítima, oferecida de coração sincero, nascida da fé, alimentada pela
verdade, coroada pelo amor, íntegra e sem mancha, inocente e casta, é a que devemos
levar ao altar de Deus, acompanhada pelo solene cortejo das boas obras, no meio de
salmos e hinos; ela nos alcançará de Deus toda a espécie de bens.
29. Que poderá Deus negar à oração que procede do espírito e da verdade, se foi Ele 662
próprio que assim a exigiu? Todos nós lemos, ouvimos e acreditamos como são grandes
os testemunhos da sua eficácia. Nos tempos passados, a oração livrava do fogo, das
feras e da fome; e no entanto não recebera ainda de Cristo toda a sua eficácia. Quanto
mais eficaz não será a oração cristã? Talvez não faça derramar sobre o fogo o orvalho
do Anjo, não feche a boca dos leões, não leve a refeição aos segadores famintos, não
impeça milagrosamente o sofrimento (como lemos no Antigo Testamento); mas vem
em auxílio dos que suportam a dor com paciência, aumenta a graça aos que sofrem com
fortaleza, para que vejam com os olhos da fé a recompensa reservada aos que sofrem
pelo nome de Deus.
100
Ieiuniis autem et stationibus nulla oratio sine genu et reliquo humiliatis more celebranda est.
101
Legitimae orationes.
204 SÉCULO III

No passado, a oração fazia vir as pragas, aniquilava os exércitos, impedia o


benefício das chuvas. Agora, porém, a oração afasta toda a ira de Deus, vela pelo bem
dos inimigos e roga pelos perseguidores. Será para admirar que faça cair do céu as águas
(do baptismo), se conseguiu também que descessem do céu as línguas de fogo? Só a
oração vence a Deus. Mas Cristo não quis que ela servisse para fazer mal algum; quis
antes que toda a eficácia que lhe deu fosse apenas para servir o bem.
Por isso ela não tem outra finalidade senão tirar do caminho da morte as almas
dos defuntos, robustecer os fracos, curar os enfermos, libertar os possessos, abrir as
portas dos cárceres, desatar as cadeias dos inocentes. Ela perdoa os pecados, afasta as
tentações, extingue as perseguições, conforta os pusilânimes, enche de alegria os gene-
rosos, encaminha os peregrinos, acalma as tempestades, detém os salteadores, alimenta
os pobres, ensina os ricos, levanta os que caíram, sustenta os que vacilam, confirma os
que estão de pé.
Oram todos os Anjos, ora toda a criatura; oram à sua maneira os animais domés-
ticos e as feras, que dobram os joelhos e, ao saírem dos estábulos e das tocas, levantam
os olhos para o céu e não em vão abrem a boca, fazendo vibrar o ar com suas vozes.
Também as aves, quando levantam voo, elevam-se para o céu e, em vez das mãos,
estendem as asas em forma de cruz, dizendo alguma coisa que se assemelha a uma
oração.
Que mais podemos acrescentar sobre o dever da oração? O próprio Senhor
também orou: A Ele a honra e o poder pelos séculos dos séculos.

Sobre a prescrição dos hereges 102


663 1. A actual situação leva-me a dirigir-vos uma palavra de advertência: Ninguém se
deve admirar por surgirem heresias...
664 3. Há certas pessoas, demasiadamente crédulas, que se deixam ir à deriva pelo
exemplo de outras que caíram na heresia...
Então, lá porque um bispo, um diácono, uma viúva, uma virgem, um doutor ou
até um mártir, se desviam da regra da fé, poderá parecer a alguns que a heresia adquire
qualquer nota de verdade?... Não pertenciam também ao grupo dos discípulos aqueles
que se escandalizaram e deixaram o Senhor? Mas isto não foi motivo para que os
outros também O abandonassem...
665 6. Heresia vem do grego e quer dizer «escolha», escolha que se faz ou para lhe dar
vida ou para a seguir... Aos cristãos nada é permitido inventar a seu gosto, nem abraçar
isto ou aquilo como melhor lhes parece e andam a pensar...
666 13. A regra da fé, pela qual acreditamos abertamente naquilo que defendemos, é esta:
Acreditamos num único Deus, Criador do mundo, que tirou do nada todas as coisas
pelo Verbo gerado antes do tempo; este Verbo, chamado Filho de Deus..., desceu por
obra do Espírito Santo e pelo poder de Deus Pai ao seio da Virgem Maria; tornando-se
carne, nasceu da Virgem e apareceu como Jesus Cristo...; tendo sido crucificado, res-
suscitou ao terceiro dia, subiu ao Céu e está sentado à direita de Deus Pai; mandou em
seu lugar o poder do Espírito Santo como guia para os crentes; virá na luz da glória...
667 14. Mas desde que a regra de fé se mantenha inalterada na sua forma, nada nos
impede de investigar, discutir, satisfazer toda a nossa curiosidade...
102
T ERTULIANO , De praescriptione haereticorum (=PL 2, 9-73; CCL 1; CSEL 70; SCh 46; Paulistas,
Colecção Patrística, Lisboa 1960; cf. LH, II). Este tratado foi escrito por volta do ano 200. É a obra
mais característica e preciosa de Tertuliano.
TERTULIANO 205

20. 1 Cristo Jesus, nosso Senhor, durante a sua vida terrena, foi ensinando quem era, 668
quem fora desde sempre, qual era a vontade do Pai que Ele vinha realizar e qual devia
ser o comportamento do homem. 2 Ensinava-o umas vezes diante de todo o povo,
outras vezes em particular aos seus discípulos, entre os quais escolheu Doze, que
destinou para serem os principais mestres das nações.
3 Tendo se um deles excluído a si próprio, Jesus mandou os outros Onze ensinar
as nações e baptizá-las em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, quando, depois
da sua Ressurreição, estava prestes a voltar ao Pai.
4 Imediatamente os Apóstolos – palavra que significa «enviados» – chamaram
por sorteio a Matias, como duodécimo em lugar de Judas, segundo a profecia contida
num salmo de David. 5 Depois de receberem a força do Espírito Santo com o dom de
falar línguas e de realizar milagres, começaram, na Judeia, onde instituíram Igrejas, a
dar testemunho da fé em Jesus Cristo e depois partiram por todo o mundo, a proclamar
a mesma doutrina e a mesma fé entre as nações.
6 Em cada cidade fundaram Igrejas, que foram o gérmen e a semente das outras
Igrejas que se instituíram e continuam a instituir. Por este motivo, também estas são
consideradas apostólicas, porque são descendentes das Igrejas apostólicas.
7 Todo o género deve estar necessariamente ligado à sua origem. Por isso, apesar
de serem tão numerosas e tão importantes, estas Igrejas não formam senão uma Igreja:
a primeira, que foi fundada pelos Apóstolos e que é a fonte de todas as outras.
8 Assim, todas elas são primeiras e todas apostólicas, porque todas formam uma
só. A sua unidade manifesta-se pelo vínculo da paz, da fraternidade e da hospitalidade.
Tais prerrogativas não se devem a nenhuma outra razão, mas apenas à unidade da
mesma tradição sacramental.
9 O único meio de saber qual foi a pregação dos Apóstolos e, portanto, qual foi
a revelação que Jesus Cristo lhes fez, é o recurso às Igrejas que os Apóstolos fundaram
e às quais eles pregaram, quer de viva voz, quer pelos seus escritos.
22. 8 O Senhor disse claramente em certa ocasião: Tenho ainda muitas coisas a 669
dizer-vos, mas por agora não as podeis compreender; e acrescentou: Quando vier o
Espírito da verdade, Ele vos orientará para a verdade total. 9 Com estas palavras
revelou aos Apóstolos que nada ficariam a ignorar, porque lhes prometia o Espírito da
verdade, que os havia de levar ao conhecimento de toda a verdade. 10 De facto, esta
promessa foi cumprida, como provam os Actos dos Apóstolos ao narrarem a descida do
Espírito Santo.
32. Nós temos o direito de dizer aos hereges: Provem a origem das vossas Igrejas, 670
mostrem-nos como os vossos bispos, sucedendo uns aos outros, chegaram até nós, de
modo que o seu primeiro bispo tenha tido como mestre e predecessor algum dos
Apóstolos ou alguém em relação com os Apóstolos, e que deles receberam o episcopado.
É desta maneira que as Igrejas apostólicas provam as suas origens; a Igreja de Esmirna
teve Policarpo, como primeiro bispo, lá colocado por São João; a Igreja de Roma
reconhece Clemente, lá colocado por Pedro...
36. A Igreja de Roma conhece um só Deus Criador do mundo; acredita em Jesus 671
Cristo, nascido da Virgem Maria e Filho de Deus Criador; acredita na ressurreição da
carne, une a Lei e os Profetas aos Evangelhos e às Cartas dos Apóstolos, onde vai
buscar o vigor da fé; sela esta fé com a água, veste-a com o Espírito Santo, alimenta-a
com a Eucaristia, exorta ao martírio, e não recebe ninguém que vá contra estas institui-
ções.
40. É Satanás que, nos mistérios idolátricos, macaqueia os ritos divinos e os próprios 672
sacramentos; ele também baptiza os seus crentes e promete, por esse banho, o perdão
dos pecados. Deste modo, Mitra inicia os seus fiéis, marca na fronte os seus sequazes,
206 SÉCULO III

celebra a oferta do pão, conserva uma semelhança de ressurreição, oferece uma coroa
aos seus mártires...
Se, pois, Satanás, com tanto escrúpulo, tentou macaquear nas cerimónias idolá-
tricas os mesmos ritos com que se celebram os sacramentos de Cristo, direi que, com
igual astúcia, pode também aplicar, a uma doutrina profana e contrária à fé, os mesmos
instrumentos das coisas divinas e dos sacramentos cristãos, tomando os pensamentos
do nosso pensamento, as palavras das nossas palavras, as parábolas das nossas pará-
bolas...
673 41. 2 Antes de mais nada, entre os hereges não se sabe quem são os catecúmenos
e quem são os fiéis: todos vão conjuntamente às celebrações, escutam da mesma
maneira, rezam da mesma maneira; e, se entrarem pagãos, durante as celebrações,
deitarão as coisas sagradas aos cães e as pérolas, embora falsas, aos porcos 103 ...
São perfeitos catecúmenos, mesmo antes de serem iniciados, e as mulheres heré-
ticas são muito descaradas. Ousam ensinar, discutir, fazer exorcismos, prometer
curas, talvez até baptizem. Como são temerárias, ridículas, instáveis as ordena-
ções dos hereges; algumas vezes ordenam neófitos, ainda ligados ao mundo, ou-
tras ordenam os nossos apóstatas, e, como os não podem ligar a si, em nome da
verdade, ligam-nos pela vaidade...
8 Deste modo, hoje têm um bispo, amanhã outro; hoje um diácono, que amanhã
será leitor; hoje é presbítero alguém que amanhã será leigo, porque até aos leigos os
hereges concedem funções sacerdotais.
674 42. Que diremos do ministério da Palavra? Ele serve, não para converter os pagãos,
mas para perverter os nossos... Muitos não têm igreja, e andam pelo mundo sem mãe,
sem sede, sem fé, sem lar...
675 44. Que dirão então aqueles hereges que vergonhosamente insultaram a Virgem Maria,
que Jesus nos confiou?...
A quantos, na fé da verdade, lerem estas páginas, desejo a paz e a graça de nosso
Senhor Jesus Cristo, para sempre.

A moda feminina 104

I
676 1. 1 Se tanto a fé na terra se conservasse quanto no Céu sua mercê nos espera, nem
uma só de entre vós, ó dilectíssimas irmãs, logo que houvesse conhecimento do Deus
vivo e tomasse consciência da sua condição de mulher, voltaria a apetecer as roupas de
mais formosura, para não dizer de mais vaidade..., a fim de melhor expiar no seu modo
de vestir o que de Eva recebeu: a vergonha do primeiro pecado e a desgraça da perdição
humana...
Ó mulher, nas dores e ansiedades dás à luz, vives girando em volta do teu
marido..., e não sabes que, afinal, Eva és tu mesma?... Por teu merecimento, a morte, o
próprio Filho de Deus teve de morrer. E o que trazes no pensamento é cobrires de jóias
os teus vestidos de peles?

103
Inprimis quis cathecumenus, quis fidelis incertus est, pariter adeunt, pariter audiunt, pariter orant;
etiam ethnici, si supervenerint, sanctum canibus et porcis margaritas, licet non veras, iactabunt.
104
T ERTULIANO, De cultu feminarum (=PL 1, 1303-1334; CCL 1; CSEL 70; SCh 173; Verbo, Origens do
Cristianismo 3, Lisboa 1974).
TERTULIANO 207

2. 1 Podemos afirmar (que foram os Anjos que do Céu tombaram) que trouxeram às 677
mulheres todo este aparato da vaidade feminina à maneira de um pecúlio: o fulgor das
pedras preciosas cujos matizes enfeitam os colares, as argolas de oiro que cingem os
braços, as essências da púrpura que tingem as lãs e aquele pó negro que serve para
alongar os cantos dos olhos...
3 Acaso as mulheres não conseguem agradar aos homens sem as matérias do luxo
e sem as artes do enfeite, quando elas, ainda sem adornos nem arranjos... seduziram os
Anjos? Ou será que eles pareceriam reles amantes..., se nada oferecessem às damas
escolhidas em casamento?...
4. 1 A moda feminina envolve dupla espécie: os adereços e o enfeite... 2 Os primeiros 678
consistem no oiro, na prata, nas jóias e nas peças de vestir; o segundo consiste no trato
do cabelo, da pele e daquelas partes do corpo que atraem os olhares...
5. 2 Os próprios anéis se fazem de ferro105, e a lembrança do tempo antigo conserva 679
ainda uns pequenos vasos de bronze para a comida e para a bebida...
6. 1 E mesmo essas pedras preciosas que vão juntar-se à arrogância do oiro, que outra 680
coisa reconhecerei eu nelas senão seixos e calhaus, fragmentos da mesma terra?...
8. 5 O cristão não há-de deixar-se arrastar pelos delírios do circo ou pelas atrocida- 681
des da arena ou pelas torpezas do teatro, só porque Deus deu ao homem o cavalo e a
pantera e a voz. Nem o cristão cometeria impunemente a idolatria só por serem obra de
Deus o incenso, o vinho puro, o fogo devorador e os animais que servem de vítimas, a
pretexto de que a própria matéria que se adora provém de Deus...

II

1. 1 Servas do Deus vivo... e minhas irmãs, é pelo direito que me faz ser contado 682
entre vós, embora no mais ínfimo lugar..., o direito da fraternidade, que eu ouso dirigir-
-vos estas palavras...
Sendo todos nós o templo de Deus, depois de em nós introduzido e consagrado
o Espírito Santo, a castidade é a guardiã e a superiora desse templo...
2 Não vamos, porém, falar da castidade... Falaremos, sim, de coisas que a ela
dizem respeito... A maior parte das mulheres... comporta-se... como se a castidade
apenas consistisse na integridade de corpo e na aversão ao pecado sexual, sem que
nada de exterior fosse preciso... Persistem nas antigas preocupações de beleza e de
elegância, ostentando as mesmas aparências que as damas gentílicas... 4 Necessário é
que vos distingais delas pelo vosso procedimento como pelo resto, porque haveis de
ser perfeitas como o é o vosso Pai que está nos Céus...
3. 3 Guarde uma santa mulher o seu encanto natural, mas que o não seja para 683
ocasião de queda. E, se acontece que o vem a ser, não o há-de ignorar, mas prevenir-se.
4. 1 Como se falasse a mulheres gentias, lembrar-vos-ei uma regra pagã, mas que a 684
todas vós se aplica: só aos vossos maridos deveis agradar. Ora, vós agradar-lhes-eis na
medida em que não cuidardes de agradar aos outros. Estai sossegadas, ó mulheres
benditas, que aos olhos do seu marido não há esposa sem beleza: ela agradou bastante
quando o marido foi levado a escolhê-la, fosse pelo carácter, fosse pela beleza. Nenhuma
de vós vá pensar que, moderando os arranjos da sua pessoa, o marido acabe por
detestá-la ou afastar-se dela...

105
Possível alusão ao anel de ferro, sem pedras preciosas, que no rito dos esponsais era dado pelo jovem
à jovem sua prometida.
208 SÉCULO III

685 5. 1 Estes pensamentos são-vos sugeridos, evidentemente, não para vos convencer
a adoptar um aspecto de total grosseria e de animal selvagem..., mas apenas da medida,
limite e justeza que há-de haver no cuidado do corpo...
686 7. 1 De que serve para a vossa salvação todo esse afã no ornamento da vossa
cabeça? Porque não deixais em paz os vossos cabelos, ora apanhados, ora soltos, ora
levantados, ora caídos? Umas desejam apaixonadamente prendê-los em caracóis; ou-
tras querem-nos soltar, livres e esvoaçantes, numa falsa simplicidade. Juntais, ao
depois, nem sei que enormidades de perucas, cosidas e entrelaçadas, seja para servir de
barrete à maneira de um estojo para a cabeça com uma tampa no cocuruto, seja usado
em carrapicho a cobrir a nuca...
3 Queira Deus que eu, assim tão mísero como sou, no dia do triunfo cristão
possa erguer a cabeça ao menos à altura dos vossos calcanhares! Hei-de ver se vós
ressuscitareis com o alvaiade, a púrpura e o açafrão e esse enfatuado envoltório na
cabeça...
687 11. 1 Aliás, que razões tendes vós para andardes assim ajaezadas, quando vos en-
contrais afastadas do que exige um tal aparato? Vós nem visitais os templos, nem
procurais os espectáculos, nem aceitais os dias de festa pagãos...
688 13. 3 À castidade cristã não basta apenas ser, mas também parecer. A sua plenitude
há-de ser tal que transborde da alma para o aspecto exterior e brote da consciência para
a superfície... 4 De resto, não sei se a mão que anda habitualmente envolvida num
bracelete conseguirá suportar o entorpecimento na dureza de uma algema; não sei se a
perna que se enfeita com a argola sofrerá o aperto dos ferros; temo que a nuca coberta
com entrelaçados de pérolas e de esmeraldas não dê lugar à espada...
6 Preparem-se as túnicas dos mártires... 7 É tempo de caminhardes com os
perfumes e as vestes dos Profetas e dos Apóstolos, recolhendo da simplicidade a
alvura e da castidade o rubor, pintando os olhos com o recato e os lábios com o
silêncio, enfeitando as orelhas com a palavra de Deus, prendendo ao pescoço o jugo de
Cristo... Vesti-vos com a seda da honestidade, com o linho da santidade, com a púrpu-
ra da castidade. Desse modo ataviadas, tereis Deus por amante.

A Penitência 106
689 4. 1 Aquele que decretou castigar pelo seu julgamento todos os pecados, cometidos
pela carne ou pelo espírito, por actos ou por desejos, também prometeu perdoá-los
pela penitência, quando disse ao seu povo: Faz penitência e Eu te salvarei 107; e ainda:
Eu sou o Deus vivo e desejo mais a penitência do que a morte108.
2 Portanto, a penitência é vida, pois é preferível à morte. Pois bem, pecador, tu
que te pareces comigo (mas és menos, porque eu reconheço que sou mais pecador do
que tu), lança-te sobre ela, abraça-a, como um náufrago (se agarra) a uma tábua de
salvação...
690 5. 1 Eis o que eu afirmo: a penitência, que nos foi proposta e mandada pela graça de
Deus e que nos restabelece na graça do Senhor, depois de conhecida e assumida não
deve voltar a ser quebrada pela repetição do pecado...

106
T ERTULIANO , De paenitentia (=PL 1, 1223-1248; CCL 1; CSEL 76; SCh 316; C. VOGEL , Paris 1966, 76-
79). O tratado sobre A Penitência foi escrito no ano 203.
107
Ez 18, 32.
108
Ez 33, 11.
TERTULIANO 209

6. 14 Ninguém, pois, se orgulhe, como se, pelo facto de ser contado entre os jovens 691
recrutas que são os ouvintes, ainda lhe fosse permitido pecar; a partir do momento em
que conheces o Senhor, deves temê-l’O; a partir do momento em que olhas para Ele,
deves reverenciá-l’O.
15 Aliás, para que serve conhecê-l’O se permaneces agarrado às mesmas coisas
de outrora, antes de O conheceres? Ora, que diferença há entre ti e um perfeito servidor
de Deus? Haverá um Cristo para os baptizados e um outro para os ouvintes?
16 Haverá uma outra esperança ou uma outra recompensa, um outro temor do
julgamento, uma outra obrigação de fazer penitência? O banho do baptismo é o selo da
fé, mas a fé do baptismo começa pela fé da penitência e prova assim o seu valor.
17 No baptismo nós não fomos lavados para pôr fim aos nossos pecados, mas
porque nós lhes tínhamos posto fim, por já termos sido lavados no fundo do coração.
Tal é, com efeito, o primeiro baptismo do ouvinte: o seu temor é perfeito, nascido do
facto de que ele sentiu o Senhor, a sua fé é saudável, a sua consciência abraça a
penitência, de uma vez para sempre.
7. 1 Seja concedida aos teus servos, ó Cristo Senhor, a graça de não falarem e de não 692
ouvirem falar da disciplina da penitência mais do que o suficiente para conhecerem o
dever de não pecar, que pertence também aos audientes; por outras palavras, que
depois do baptismo não tenham de conhecer a penitência nem de a pedir.
2 Tenho alguma repugnância em fazer agora menção da segunda, da última esperança.
Tenho medo que, ao tratar da possibilidade que ainda resta ao arrependimento, eu dê a
impressão de que existe ainda um tempo em que se pode pecar. Deus não permita que
alguém interprete mal o meu pensamento, fazendo-nos dizer que com esta porta aberta
para a penitência existe, por conseguinte, uma porta aberta para o pecado, como se a
superabundância da misericórdia do Céu implique um direito para a temeridade humana.
3 Ninguém tenha a ousadia de ser mais perverso pelo facto de Deus ser mais
clemente, voltando ao pecado todas as vezes que lhe for concedido o perdão. Aliás, a
imunidade terá um fim, se a ofensa o não tiver. Escapámos uma vez; não será expor-nos
muito ao perigo, mesmo acreditando poder escapar-lhe ainda?...
7 Na sua extrema obstinação, o nosso inimigo não dá tréguas à sua maldade.
Quando sente que o homem está inteiramente libertado, é então que ataca com mais
força. Quanto mais se vê asfixiado, mais cresce de violência.
8 Tem mesmo de se lamentar e afligir ao ver destruídas no homem, pelo perdão
dos pecados, tantas obras de morte, apagados tantos títulos da sua antiga dominação.
Aflige-se ao pensar que o pecador, tornado servo de Cristo, o julgará a ele e aos seus
anjos.
9 É por isso que ele espreita, ataca, aperta o cerco, para impressionar, se possível,
os olhos do pecador pela concupiscência carnal, para lhe seduzir a alma com as delícias
do mundo, para lhe deitar por terra a fé pelo medo do poder civil, ou para o afastar do
caminho recto através dum ensinamento mentiroso; nunca lhe faltam escândalos nem
tentações.
10 Prevendo estes malefícios envenenados do Demónio, Deus permitiu que fosse
aberta ainda um pouco a porta do perdão, apesar de ter sido fechada e trancada pela
fechadura do baptismo. Colocou no vestíbulo uma segunda penitência, a fim de abrir
aos que batessem. Mas apenas uma vez, que é já a segunda, e nunca mais no futuro,
porque a penitência anterior foi inútil.
11 Será que não basta uma só vez? Obtiveste o que já não merecias, depois de
teres perdido o que receberas. Se a misericórdia do Senhor te concede o meio de
restabeleceres o que tinhas perdido, mostra-te reconhecido por este benefício renovado
ou, melhor dizendo, aumentado.
210 SÉCULO III

12 Restituir é mais do que dar, porque é pior ter perdido o que se recebeu do que
não ter recebido absolutamente nada. No entanto, se alguém tiver de recorrer a esta
segunda penitência, não deve deixar-se abater ou esmagar pelo desespero.
13 Deveríamos ter vergonha de pecar novamente após o baptismo, mas não de
fazer de novo penitência; tenhamos vergonha de nos expormos ao perigo, mas não de
nos desembaraçarmos dele uma segunda vez; em caso de recaída, é preciso renovar o
remédio.
14 Mostrarás o teu reconhecimento ao Senhor, se não recusares o que Ele de
novo te oferece. Ofendeste-O, mas podes ser reconciliado ainda uma vez. Estás
perante alguém que aceita uma satisfação e até a deseja.
693 8. 7 Ninguém é pai como o Pai, ninguém é terno como Ele109.
694 9. 1 Esta segunda e única penitência é tanto mais limitada quanto ela constitui uma
prova laboriosa. Não consiste apenas em disposições interiores, mas deve traduzir-se
num acto exterior.
2 Este acto, que habitualmente é designado por um termo grego, é a exomologe-
se110; por ela confessamos o nosso pecado ao Senhor, não por Ele o ignorar, mas para
que a satisfação seja preparada pela confissão, da confissão nasça a penitência e, pela
penitência, Deus seja apaziguado.
3 A exomologese é, pois, a disciplina que ensina ao homem como deve prostrar-se
e humilhar-se, e lhe prescreve, até no modo de se vestir e alimentar, uma forma de viver
capaz de atrair sobre ele o perdão.
4 Ela exige que o pecador se deite sobre o saco e a cinza, se vista de andrajos
escuros, abandone a sua alma à tristeza e emende as suas faltas passadas com punições
severas. Além disso, deve usar apenas comidas e bebidas muito simples, para bem não
do corpo, como é evidente, mas por causa da alma. Deve, ao contrário, alimentar a sua
oração com jejuns frequentes, lamentar-se, chorar, clamar dia e noite pelo Senhor, seu
Deus, prostrar-se aos pés dos presbíteros, ajoelhar-se diante do altar de Deus, reco-
mendar a todos os irmãos que se juntem às suas súplicas.
5 Tudo isso o realiza a exomologese, para colocar a penitência em evidência, para
honrar o Senhor pelo medo do perigo, para pronunciar ela própria o julgamento contra
o pecador, em vez da cólera divina, e para apagar – não digo anular – o suplício eterno,
por um sofrimento temporal.
6 É por isso que, a exomologese, ao prostrar o homem levanta-o, ao carregá-lo de
imundícies torna-o mais puro, ao acusá-lo excusa-o, ao condená-lo absolve-o. Acredita
no que te digo: na medida em que não te poupares, Deus poupar-te-á.
695 10. 1 No entanto, são muitas as pessoas que fogem a este trabalho ou o diferem de
dia para dia, com medo de se apresentarem publicamente, mais preocupadas, segundo
creio, com a sua vergonha do que com a sua salvação. São como aqueles que, tendo
contraído uma doença nas partes íntimas do corpo, a escondem aos médicos e acabam
por morrer com a sua vergonha...
4 Entre irmãos e companheiros de trabalho põe-se em comum a esperança e o
temor, a alegria e a dor ou o sofrimento, porque temos um só Espírito do mesmo
Senhor e do mesmo Pai. Sendo assim, porquê olhá-los como estranhos? Porquê fugir
daqueles que, no fundo, caíram contigo, como se eles te fossem ralhar111?

109
Tam pater nemo, tam pius nemo.
110
e)comolo/ghsij.
111
Caeterum inter fratres atque conservos, ubi communis spes, metus, gaudium, dolor, passio (quia
communis Spiritus de communi Domino et Patre), quid tu hos aliud quam te opinaris?
TERTULIANO 211

5 O corpo não pode alegrar-se com o sofrimento de um só membro; importa que


todo ele se doa e colabore na cura112.
6 Onde estiverem um ou dois fiéis, aí está a Igreja, já que a Igreja é Cristo.
Portanto, quando te ajoelhas junto ao irmão abraças a Cristo, suplicas a Cristo. De
modo semelhante quando eles choram sobre ti é Cristo que sofre, é Cristo que suplica
ao Pai. O Filho sempre alcança facilmente o que pede 113...
12. 1 Se tens dúvidas sobre a exomologese, pensa em teu coração na Geena, que a 696
exomologese apagará para ti; pensa primeiro na grandeza do castigo, a fim de não
hesitares em adoptar o remédio...
5 Portanto, uma vez que tu sabes que depois de uma primeira defesa contra o
Inferno, constituída pelo baptismo do Senhor, ainda há um segundo refúgio na exomo-
logese, porque desesperas da tua salvação? Porque tardas em recorrer a um remédio, se
sabes que pode curar-te? Os próprios animais, mudos e sem inteligência, sabem encon-
trar a tempo os remédios que a Divindade lhes destinou...
7 E o pecador, sabendo que o Senhor instituiu a exomologese para o restabelecer,
irá desprezá-la, quando foi ela que repôs o rei de Babilónia no seu trono?

À sua Esposa 114

LIVRO I

1. Pensei que seria conveniente, caríssima companheira no serviço do Senhor, pre- 697
ver desde já as disposições que deverás seguir após a minha partida deste mundo, se eu
for chamado a deixá-lo antes de ti; espero que sejas fiel em observá-las.
2. 1 É verdade que nós não rejeitamos a união do homem e da mulher: ela foi 698
abençoada por Deus115 como o alfobre do género humano; ela foi inscrita no seu
desígnio para povoar o universo116 e encher os séculos, e, portanto, é permitida, mas
uma só vez. Porque Adão foi o único esposo de Eva, e Eva a sua esposa única: uma só
mulher, uma só costela 117...
3. Deus te conceda capacidade para acolher integralmente este meu testamento; a 699
Ele a honra, a glória, o esplendor, a majestade e o poder, agora e pelos séculos dos
séculos. Amen.
7. 4 A disciplina da Igreja e o preceito do Apóstolo mostram-nos como as segundas 700
núpcias empobrecem a fé e são um obstáculo à santidade, dado que proíbem que se
tornem chefes da Igreja homens que voltaram a casar118, e apenas permitem que se
recebam na ordem das viúvas as mulheres casadas uma só vez119...

112
Non potest corpus de unius membri vexatione laetum agere: condoleat universum, et ad remedium
conlaboret, necesse est.
113
In uno et altero Ecclesia est, Ecclesia vero Christus. Ergo cum te ad fratrum genua protendis, Christum
contrectas, Christum exoras. Aeque illi cum super te lacrymas agunt, Christus patitur, Christus Patrem
deprecatur. Facile impetratur semper, quod Filius postulat.
114
T ERTULIANO , Ad uxorem (=PL 1, 1273-1303; CCL 1; CSEL 70; SCh 273). Este tratado deve ter sido
escrito por volta do ano 205.
115
Cf. Gen 1, 23; 2, 24.
116
Cf. Gen 1, 28.
117
Cf. Gen 2, 21.
118
Cf. 1 Tim 3, 2.12; Tito 1, 6.
119
Cf. 1 Tim 5, 9.
212 SÉCULO III

LIVRO II

701 1. 1 Muito recentemente, caríssima companheira no serviço do Senhor, descrevi-te,


como pude, a regra de conduta que deveria seguir uma cristã, quando o seu casamento
acaba, seja por que motivo for. Voltemo-nos agora para uma segunda série de recomen-
dações, tendo em conta a fraqueza humana, postos de sobreaviso pelo exemplo de
certas mulheres, as quais, quando o divórcio ou a morte do seu marido lhes dava a
oportunidade de observarem a continência, não só rejeitaram a oportunidade de um tão
grande bem, mas também não quiseram, ao voltarem a casar, lembrar-se do preceito
que as obrigava a casarem-se de preferência no Senhor120...
702 2. 1 Portanto, como num dia destes uma cristã suprimiu o seu casamento na Igreja
para se unir a um pagão, lembrando-me eu que outras, anteriormente, tinham agido do
mesmo modo, estupefacto quer pela sua audácia, quer pela má fé dos seus conselheiros,
pois nenhum texto na Escritura autoriza um tal comportamento, disse para mim mesmo:
«Pode ser que eles se gabem de o justificar a partir da passagem da Primeira Carta aos
Coríntios, onde está escrito: Se algum irmão tem uma esposa não crente e esta consen-
te em habitar com ele, não a repudie. E, se alguma mulher tem um marido não crente
e este consente em habitar com ela, não o repudie. Pois o marido não crente é santifi-
cado pela mulher, e a mulher não crente é santificada pelo marido; de outro modo, os
vossos filhos seriam impuros, quando, na realidade, são santos121...
703 3. 1 Nestas condições, foi estabelecido que os cristãos que contraem casamento
com pagãos são culpados de relações imorais e devem ser afastados de qualquer parti-
cipação com a fraternidade cristã, como se deduz da carta do Apóstolo, segundo a qual
devemos abster-nos até de tomar as nossas refeições com pessoas desta espécie. Será
que iremos apresentar o nosso contrato de casamento122 diante do tribunal do Senhor
no dia de juízo, e alegar que o nosso casamento, proibido por Deus, foi concluído em
boa e devida forma? Aquilo que é proibido não será um adultério, não serão relações
imorais? Quando nos unimos a um estranho, será que não profanamos também o
templo de Deus?... 3 Enumeremos agora os outros perigos e atentados à fé previstos,
como eu disse, pelo Apóstolo e que causam um prejuízo considerável não só à carne,
mas também ao próprio espírito. Quem duvidará, com efeito, que a fé se estiola de dia
para dia nas relações com os pagãos? As más conversas corrompem os bons costumes123
Com maioria de razão uma vida em comum e uma familiaridade de todos os instantes.
Toda a cristã tem o dever de se orientar pela vontade de Deus.
4 Mas como poderá ela servir dois senhores, o Senhor e o seu marido... pagão?
Se ela se orienta pela vontade de um pagão, mostrará valores pagãos: beleza, enfeites,
elegância mundana, carícias sem medida...
704 4. 1 Mas pouco importa a maneira como ela cumprirá os seus deveres para com o
seu marido. Com toda a certeza não poderá satisfazer ao Senhor de acordo com a
disciplina... Se for preciso fazer uma statio, talvez o marido decida que, nesse dia, se
irá aos banhos; se for preciso observar um jejum, talvez o marido, nesse mesmo dia,
mande preparar um banquete; se for preciso sair124, é capaz de não haver dia em que se
imponham tantos trabalhos aos escravos.
2 Quem deixará a sua esposa percorrer os tugúrios distantes e mais pobres da
cidade para visitar os nossos irmãos? Quem aceitará de bom grado que a tirem de ao pé

120
Cf. 1 Cor 7, 39.
121
1 Cor 7, 12-14.
122
Tabulas nuptiales.
123
1 Cor 15, 33.
124
Si procedendum erit.
TERTULIANO 213

de si para ir às reuniões nocturnas125, se for esse o seu dever? Quem, finalmente,


suportará, tranquilo, que (a sua esposa) saia de noite para ir às solenidades da Páscoa?
Quem a deixará ir, sem suspeita da sua parte, ao convívio do Senhor, objecto de tantas
difamações? Quem aceitará que ela entre rastejando nas prisões, para beijar as cadeias
de um mártir?
3 Ou quem aceitará ainda que ela se aproxime de um dos nossos irmãos para lhe
dar o beijo da paz, ou transporte água para lavar os pés dos santos, tome alimento ou
bebida, os peça ou mesmo pense neles? Se um irmão, vindo de longe, se apresenta, que
acolhimento encontrará ele na casa de um «estranho»? Se um pobre tiver necessidade
de socorro, a despensa e o celeiro estarão fechados.
5. 1 Há quem nos responda que alguns permitem as nossas coisas e não lhes põem 705
obstáculo. Mas então a falta reside precisamente no facto de os pagãos terem conhe-
cimento dos nossos costumes, e isso coloca-nos sob o seu domínio, como se fosse por
favor deles que os praticamos. Não se pode manter na ignorância um marido que se
mostra tolerante, ou então, se te escondes dele porque ele não é tolerante, ficas reduzida
ao temor...
2 Não lanceis as vossas pérolas aos porcos 126, diz a Escritura, não aconteça que
eles vos calquem aos pés e, voltando-se contra vós, vos atirem por sua vez ao chão. As
vossas pérolas são também as marcas distintivas da vida quotidiana. Quanto mais
procurares ocultar-lhas, tanto mais suspeitosas as tornarás e mais excitarás a curiosidade
dos pagãos em querer vê-las.
3 Crês que és capaz de não chamar a atenção quando fazes o sinal da cruz sobre
a tua cama ou sobre o teu corpo, quando sopras para afastar alguma coisa impura,
quando te levantas em plena noite para rezar? Não pensará ele que praticas algum rito
mágico? Não quererá saber o teu marido o que é que comes em segredo, antes de tomar
qualquer outro alimento127? E, se ele vier a saber que se trata de pão, não pensará que
se trata daquele pão de que falam?
4 E, mesmo que alguém ignore esses boatos, aceitará de boamente as explicações
que lhe forem dadas sem desconfiar, sem perguntar a si mesmo se será pão e não
alguma droga? Alguns maridos mostram-se tolerantes, mas é para calcar aos pés, para
fazer pouco dessas imprudentes, cujos segredos guardam em reserva para o caso de um
perigo imaginário, por exemplo, se viessem a sofrer algum dano em razão da sua
tolerância... Eis o que muitas mulheres se esquecem de prever, acabando por
compreendê-lo depois de espoliadas da fortuna, ou depois de perdida a fé.
6. 1 A serva de Deus que permanece... no meio dos deuses pagãos, em todas as 706
festas... e solenidades dos imperadores, no princípio do ano e no primeiro dia do mês,
será perseguida pelo cheiro do incenso. Ultrapassará a porta da sua casa, ornada de
loureiro e guarnecida de lâmpadas, como as duma casa de libertinagem que acaba de
abrir; tomará parte com o seu marido ora nos banquetes de sociedade, ora nos cabarés;
por vezes será obrigada a servir os ímpios, ela que outrora gostava de ser a servidora
dos santos... De que mão deverá esperar o seu alimento? De que cálice deverá beber?
Que canções lhe cantará o seu marido, e que canções lhe cantará ela?
2 Ela escutará árias de teatro, de cabaré... Que menção se faz nelas de Deus? Que
invocação de Cristo? Onde se estimula a fé, citando as Escrituras a propósito de tudo?
Onde estão as consolações do Espírito? Onde estão as bênçãos de Deus? Tudo será
estranho e hostil...

125
Convocationes.
126
Mt 7, 6.
127
Ante omnem cibum gustes.
214 SÉCULO III

707 7. 1 Se estes perigos podem também apresentar-se àquelas que, tendo casado
com pagãos, permanecem nesta união depois de terem abraçado a fé, pelo menos
são desculpáveis: tendo sido alcançadas pela graça de Deus neste estado, são
obrigadas a perseverar nele, são santificadas e recebem a esperança de converter o
seu cônjuge. Portanto, se um casamento deste género é aprovado por Deus, por
que razão não poderia ele manter-se feliz, sem ser de tal modo abalado por prova-
ções, dificuldades, obstáculos e coisas indecorosas, uma vez que tem já em parte
o patrocínio da graça de Deus?
2 Com efeito, uma vez que a cônjuge foi chamada do meio dos pagãos, pelos
sinais duma graça misteriosa, a uma virtude celeste, ela inspira temor ao esposo que
permanece pagão, impedindo-o de se mostrar hostil a seu respeito, importuno e des-
confiado. Ele tocou maravilhas; viu as suas provas; constata que a sua cônjuge se
tornou melhor. Ei-lo a tornar-se também ele um candidato de Deus, sob o efeito do
temor. É mais fácil conquistar para a fé os que se encontram nesta situação, com os
quais a graça de Deus estabeleceu relações de intimidade.
3 Mas outra coisa é tomar, por si mesmo e voluntariamente, a decisão daquilo
que é interdito. O que desagrada ao Senhor ofende certamente o Senhor. É certamente
obra do Maligno. A prova está que o nome cristão apenas agrada aos pretendentes. Se
encontramos homens que não manifestam repugnância para com as cristãs, é porque se
propõem arruiná-las, despojá-las dos seus bens, afastá-las da sua fé. É por esse
motivo, podes crer, que nenhum casamento deste género chegará a ser feliz...
708 8. 6 Onde irei eu buscar forças para descrever, de modo satisfatório, a felicidade do
matrimónio que é unido pela Igreja, confirmado pela oblação eucarística, selado pela
bênção, anunciado pelos Anjos e ratificado pelo Pai? Sim, porque também aqui na terra
os filhos não podem casar, segundo os costumes e segundo o direito, sem o consentimento
paternal 128 .
7 Onde encontrar um casal como o de dois fiéis, unidos numa única esperança,
num mesmo desejo, numa única disciplina, num mesmo serviço? Ambos filhos do
mesmo Pai, servos do mesmo Senhor, são irmãos que vivem juntamente, sem qualquer
divisão quanto ao espírito ou quanto à carne. Mais, são verdadeiramente dois numa só
carne e, onde a carne é única, único é também o espírito. Rezam juntos, prostram-se
juntos, juntos observam os jejuns; instruem-se mutuamente, mutuamente se exortam e
mutuamente se encorajam.
8 Ambos são iguais na Igreja de Deus, iguais no banquete de Deus, iguais nas
provações, nas perseguições, nas consolações. Entre ambos não há qualquer segredo,
qualquer disfarce, qualquer motivo de tristeza. É com toda a liberdade que visitam os
doentes, que assistem aos indigentes. Para a esmola não há ralhos, para o sacrifício não
há contratempos, para a observância dos deveres quotidianos não há entraves; não há
sinal da cruz furtivo, nem saudação inquieta, nem bênção em silêncio. Entre eles os
dois ressoam salmos e hinos; estimulam-se mutuamente para saber quem canta o
melhor cântico ao seu Deus. Cristo alegra-Se ao ver isto e ao ouvir tal concerto. Ele
envia-lhes a sua paz. Onde dois estão reunidos, também Ele está presente...
9 São estes os pensamentos que a palavra do Apóstolo, na sua brevidade, con-
fiou à nossa inteligência. Recorda-os no teu espírito, se for preciso. Eles te ajudem a
evitar o exemplo que alguns dão. Os cristãos não têm o direito de concluir de outro
modo o seu casamento e, se tivessem esse direito, não teriam nisso qualquer interesse.

128
Unde sufficiamus ad enarrandum felicitatem eius matrimonii quod ecclesia conciliat, et confirmat
oblatio et obsignat benedictio, angeli renunciant, pater rato habet? Nam nec in terris filii, sine
consensus patrum rite et iure nubunt.
TERTULIANO 215

O véu das virgens 129


1. Ao passo que a lei da fé permanece intacta, tudo o mais, tanto o que se refere à 709
disciplina como aos costumes, admite mudanças e correcções sob a acção da graça de
Deus, que opera em nós e persevera até ao fim. Se é certo que o Demónio trabalha sem
descanso e cresce dia a dia o espírito de iniquidade, quem acreditará que a obra de Deus
possa ser interrompida ou deixe de progredir? Porque nos enviou o Senhor o seu
Paráclito senão para que o homem, incapaz, por sua fraqueza, de compreender tudo de
uma vez, fosse dirigido pouco a pouco, ajudado e conduzido à perfeição da disciplina
pelo Espírito Santo, Vigário do Senhor?... Qual é, pois, o ministério do Paráclito senão
o de regular a disciplina, de interpretar as Escrituras, de renovar a inteligência e de nos
fazer adiantar mais e mais na perfeição?
2. Nós e os orientais temos uma mesma fé, um só Deus, um só Cristo, a mesma 710
esperança, os mesmos sacramentos baptismais; permiti que eu diga de uma vez por
todas: formamos uma Igreja.
11. 9 Se é a união com o homem que faz a mulher, seja velada130 só depois da 711
consumação do casamento. Ora, mesmo entre os pagãos, as noivas são levadas ao seu
marido cobertas com o véu. Mas, se as velamos para os esponsais, porque é então que
elas se unem ao homem no corpo e no espírito pelo beijo e a junção das mãos, através
dos quais, pela primeira vez, elas perdem o seu pudor131 – ainda que só em espírito
pelo compromisso comum do consentimento que as faz estar de acordo com a união
total – quanto mais as velará o tempo: sem ele os esponsais são impossíveis e, sob a
sua pressão, mesmo sem esponsais, as jovens deixam de ser virgens...
12. 1 Reconhece que ela é mulher, reconhece que ela é esposa pelo testemunho do 712
seu corpo e do seu espírito, que ela sente tanto na sua consciência como na sua carne.
São essas as primeiras testemunhas (= tábuas), segundo a natureza, dos esponsais e do
casamento132. Impõe um véu exterior àquela cujo interior já está vestido. Cobre tam-
bém o que está por cima, pois o que está por baixo já não está nu 133...

Contra Marcião 134

LIVRO I

1. 1 Nada do que, em tempos passados, dissemos contra Marcião, deve ser tido em 713
conta. Dispusemo-nos a escrever uma obra nova em vez da antiga. Tendo escrito o
primeiro opúsculo com demasiada pressa, acabei por substituí-lo por um tratado mais
completo. Mas aconteceu que, antes de publicar esse segundo tratado, perdi-o por
fraude de um irmão que se tornou apóstata. Este copiou-o em parte, com muitos erros,
e tornou-o público. Por isso houve necessidade de corrigir essa obra. Aproveitei a
oportunidade que esta nova edição me oferecia para introduzir algumas adições...

129
TERTULIANO, De virginibus velandis (=PL 2, 887-913; CSEL 76; CCL 2; SCh 424). Esta obra é anterior a 207.
130
Cubra-se-lhe a cabeça com o véu.
131
Si autem ad desponsationem velantur, quia et corpore et spiritu masculo mixtae sunt per osculum et
desteras, per quae primum resignarunt pudorem.
132
Haec sunt tabellae priores naturalium sponsalium et nuptiarum.
133
Alguns autores, em vez do ano 207 propõem 211 como data desta obra.
134
T ERTULIANO , Adversus Marcionem (=PL 2, 239-524; CSEL 47; CCL 1; SCh 365, 368, 399). É o próprio
Tertuliano que diz ter escrito o tratado Contra Marcião no ano 207.
216 SÉCULO III

714 3. O Ser supremo tem necessariamente de ser único, isto é, sem igual... Se Deus não
é único, não é Deus... Aquele em cuja existência acreditamos disse-nos que não seria
Deus se não fosse uno... Tem de ser necessariamente único o Ser que representa a
grandeza suprema, porque deve ser sem igual; de contrário não seria soberana-
mente grande...
715 14. 3 Até hoje, o teu deus135 não reprovou a água do Criador com a qual baptiza os
seus, nem o óleo com o qual unge os seus, nem a mistura de mel e de leite com a qual
alimenta os seus, nem o pão, graças ao qual torna presente o seu próprio Corpo;
mesmo nos seus próprios sacramentos ele tem necessidade das esmolas do Criador...
716 23. 9 Penso que não há ninguém mais sem vergonha do que aquele que, em água
alheia, é baptizado para outro deus, que estende as mãos para o céu alheio a outro
deus, que se prostra em terra alheia diante de outro deus, que faz acções de graças a
outro deus sobre pão alheio, que faz beneficência com bens alheios, sob o nome de
esmolas e de amor a outro deus...
717 28. 2 Nada (no deus de Marcião) tem consistência..., nem sequer... o sacramento da
fé... Na verdade, com que fim se exige também aí o baptismo? Se o baptismo é remissão
dos pecados..., se é libertação da morte..., se é novo nascimento do homem...
3 Se esse deus dá o Espírito Santo..., marca com o seu selo um homem para o
qual, segundo ele, jamais tal selo foi quebrado, lava um homem que para ele nunca se
manchou; e é na totalidade deste sacramento de salvação que ele mergulha uma carne
que não tomará parte na salvação...

LIVRO II
718 4. Entre todos os seres criados, o homem é o único que pode gloriar-se de ter
recebido de Deus uma lei: animal dotado de razão, capaz de compreender e de discernir, ele
regulará o seu procedimento dispondo da sua liberdade e da sua razão, na submissão
àquele que tudo lhe pôs nas mãos...

LIVRO III
719 19. No Evangelho, que também é vosso, Deus chamou ao pão seu Corpo, para que,
por estas palavras, também entendas que deu figura de pão ao seu Corpo..., havendo o
próprio Senhor de interpretar mais tarde este mistério...
720 22. O sinal do Tau nas frontes dos homens. A letra que entre os Gregos se chama
Tau, entre nós chama-se T. É uma espécie de cruz feita nas nossas frontes.

LIVRO IV
721 2. Passo agora ao Evangelho... Afirmamos em primeiro lugar que o instrumento
evangélico tem os Apóstolos por autores. Foi a eles que o próprio Senhor entregou
este ministério de promulgar o Evangelho...
722 4. Eu digo que o meu Evangelho é verdadeiro, e Marcião diz que é o seu; eu afirmo
que o de Marcião foi adulterado, e Marcião diz que foi o meu. Quem, senão a antigui-
dade, determinará entre nós quem tem razão?...
723 9. Há sete pecados capitais... idolatria, blasfémia, homicídio, adultério, estupro,
falso testemunho, fraude... Cristo é o sacerdote universal do Pai136.
724 12. O sábado também foi mudado por Jesus.

135
O deus mau de Marcião.
136
Catholicus Patris sacerdos.
TERTULIANO 217

40. Tendo declarado que desejara ardentemente comer a páscoa, como sua, pois é 725
indigno que Deus desejasse algo alheio, tendo tomado o pão e distribuindo-o aos seus
discípulos, fê-lo seu Corpo dizendo: Este é o meu Corpo, quer dizer, “figura do meu
Corpo”. Mas não seria figura, se não fosse Corpo verdadeiro... Porque chama ao pão
o seu Corpo?

LIVRO V
8. Pelo sacramento do pão e do cálice, já provámos no Evangelho a verdade do 726
Corpo e do Sangue do Senhor contra o fantasma propugnado por Marcião...

A coroa 137
1. Começaram todos a apontá-lo com o dedo, rindo-se dele, porque ainda vinha 727
longe138. Quando se aproximou mostraram-lhe a sua indignação. O clamor chegou até à
tribuna. O soldado sai da fila. O tribuno pergunta-lhe imediatamente: «Porque te
distingues dos outros»? Ele responde: «Porque não me é permitido levar a coroa como
a levam os outros». E como o tribuno pede que lhe explique as suas razões, ele
responde: «Porque sou cristão...». Examina-se a sua causa e delibera-se; instrui-se o
processo; leva-se a causa ao prefeito e, coroado com a coroa branca do martírio, mais
gloriosa que a outra, aguarda agora, no calabouço, o donativum de Cristo.
Depois começaram a ouvir-se juízos desfavoráveis sobre o seu proceder. Vieram
dos cristãos ou dos pagãos? Não sei; em todo o caso, os pagãos não falariam de outro
modo. Fala-se dele como de um tolo, de um imprudente, de um homem impaciente por
morrer. Interrogado sobre o seu comportamento exterior, acabou por pôr em perigo os
que levam o nome de Cristo... Contentemo-nos, por hoje, em responder à sua objecção:
Quem nos proibiu de pôr uma coroa na cabeça? Vou começar por este ponto, que é, ao
fim e ao cabo, o miolo de toda a questão que nos ocupa...
Tal como rejeitaram as profecias do Espírito Santo, (os católicos) propõem-se
rejeitar agora também o martírio. Porquê, perguntam eles, comprometer esta paz tão
favorável e tão prolongada? Estou certo de que alguns começam já a voltar as costas às
Escrituras, a preparar as suas malas e a fugir de cidade em cidade...
3. 2 Por fim, entramos no baptistério, onde se encontra a água, mas, um pouco 728
antes, na assembleia, sob a mão do bispo, respondemos que renunciávamos ao Diabo,
às suas pompas e aos seus anjos139. Após a renúncia a Satanás, somos mergulhados
três vezes na água, respondendo algo mais do que aquilo que o Senhor determinou no
Evangelho: – Crês em Deus, Pai todo-poderoso (Criador do universo)? – Crês em
Jesus Cristo, seu único Filho (nosso Senhor, que nasceu, foi crucificado e ressuscitou)? –
Crês no Espírito Santo, na remissão dos pecados, na vida eterna pela santa Igreja?...

137
T ERTULIANO , De corona (=PL 2, 73-101; CSEL 70; CCL 2). Este escrito de circunstância é do ano 211.
Tertuliano escreve-o para defender um soldado cristão que se recusara a pôr uma coroa de louros na cabeça
em honra do imperador.
138
A ocasião deste tratado foi a seguinte: Quando morreu o imperador Septímio Severo (ano 211), os seus
filhos deram uma quantia em dinheiro ao exército, a que se chamava donativum. No momento da distribui-
ção no acampamento, os soldados aproximaram-se com uma coroa de louro na cabeça, excepto um, que não
levava nada na cabeça e transportava a coroa na mão. O tratado foi escrito em defesa deste soldado e
pretende demonstrar que colocar uma coroa na cabeça vai contra os princípios, além de que, tal costume,
é de origem pagã e está intimamente relacionado com a idolatria.
139
Denique, ut a baptismate ingrediar, aquam adituri ibidem, sed et aliquanto prius in ecclesia sub
antistis manu, contestamur nos renunciare diabolo et pompae et angelis eius.
218 SÉCULO III

Os neófitos recebem também leite e mel e abstêm-se do banho durante toda a


oitava do baptismo...; recebemos a comunhão pela tarde das mãos de todos os sacerdotes...
4 O sacramento da Eucaristia, confiado a todos pelo Senhor no momento da
Ceia, tomamo-lo nós também nas reuniões feitas antes do amanhecer. Recebemo-lo das
mãos dos que presidem e não das de outros. Fazemos oblações pelos defuntos, no dia
anual do seu nascimento140. Consideramos como pecado jejuar ou rezar de joelhos no
dia do Senhor. Gozamos deste mesmo privilégio desde o dia de Páscoa até ao Pentecos-
tes141. Sofremos ansiedade se algo do nosso cálice cai ao chão ou também do nosso
pão...; fazemos o sinal da cruz no início de qualquer acção: antes de qualquer marcha
ou caminhada, cada vez que entramos ou saímos, quando nos calçamos, lavamos e
pomos à mesa, ao acender a luz e ao deitarmo-nos, e quando conversamos sentados...
Se não encontrares nenhuma lei escrita, orienta-te por estas e outras normas; aquilo de
que a tradição é autora, confirma-o o costume e observa-o a fé142.

A idolatria 143
729 7. Sobre este ponto, o zelo da fé falará com lágrimas: será possível que um cristão
venha dos ídolos à igreja, da tenda do Adversário à casa de Deus, que levante as mãos,
mães dos ídolos, para Deus Pai, que ore com aquelas mãos com que lá fora reza contra
Deus, e aproxime do Corpo do Senhor aquelas mãos que conduzem os corpos aos
Demónios? E isto não basta. Será pouco receber de outras mãos o que contamina, e
ainda entregar a outros com as próprias mãos o que estas contaminaram? Os artífices
dos ídolos pertencem à ordem eclesiástica.
Grande crime! Os Judeus puseram as suas mãos em Cristo uma só vez; estes
ultrajam o seu Corpo cada dia. Oh mãos dignas de ser cortadas. Vejam se é metáfora o
que foi dito: Se a tua mão te escandaliza, corta-a. Haverá mãos que mereçam, com
mais razão, ser cortadas, do que aquelas em que o Corpo do Senhor sofre escândalo?
730 10. O estudo da literatura está permitido aos cristãos, mas não o seu ensino, porque
aprender e ensinar são duas coisas diferentes. Suponhamos o caso de um cristão que
ensina a literatura cheia de louvores aos ídolos; sem dúvida alguma, se ensina, reco-
menda; se a comunica, afirma-a; se narra, dá testemunho em seu favor... Mas quando
um fiel estuda, se é capaz de entender o que é a idolatria, não a aceita nem a aprova; se
não sabe do que se trata, ainda será menos capaz de a entender. Ou suponhamos que
começa a compreender; é justo que aplique a sua inteligência antes de mais àquilo que
aprendeu anteriormente, isto é, ao que se refere a Deus e à sua fé. Tudo o mais,
portanto, rejeitá-lo-á sem o aceitar...
731 11. Para o repouso na sepultura usamos incenso.
732 14. 7 Certamente os pagãos são mais fiéis à sua religião do que nós, pois não reivin-
dicam para si o direito de celebrar nenhuma festa cristã 144. Mesmo que tivessem
conhecimento disso, não quereriam participar connosco na celebração do domingo ou
do Pentecostes, porque teriam medo de parecer cristãos. Nós, ao contrário, não nos
preocupamos em ser definidos como pagãos. Se for preciso fazer qualquer concessão

140
Oblationes pro defunctis, pro natalitiis annua die facimus.
141
Die dominica jejunium nefas ducimus, vel de geniculis adorare. Eadem immunitate a die Paschae in
Pentecostem usque gaudemus.
142
Traditio tibi praetendetur autrix, consuetudo confirmatrix, et fides observatrix.
143
T ERTULIANO, De idololatria (=PL 1, 661-696; CSEL 20; CCL 2). Tertuliano escreveu o tratado A idola-
tria na mesma época do tratado sobre A Coroa, ou seja no ano 211.
144
Tertuliano lamenta que os cristãos participem nas festas pagãs.
TERTULIANO 219

ao corpo, temos à disposição não só dias suficientes, mas direi até demais. De facto,
para os pagãos, só uma vez no ano têm um dia reservado a cada festa, mas tu, ao
contrário, tens um em cada sete dias. Toma as festas pagãs uma por uma e junta-as;
nem sequer se aproximam do número de dias do Pentecostes 145.
16. Deus não proíbe que se participe nas celebrações nupciais ou que se imponha o 733
nome, mas proíbe que participemos nos sacrifícios...
18. Sirva isto para vos recordar que todos os poderes e dignidades deste mundo não 734
só são estranhos a Deus, mas inimigos de Deus. Se renunciaste à pompa do Diabo, fica
a saber que isso quer dizer à idolatria; os seus anjos são os seus ministros.
19. Não pode haver compatibilidade entre os juramentos feitos a Deus e os juramen- 735
tos feitos aos homens, entre a bandeira de Cristo e a bandeira do Demónio, entre o
campo da luz e o campo das trevas. Um mesmo homem não pode servir a dois
senhores, a Deus e a César.
24. Renuncio ao Diabo, às pompas, aos seus anjos e ao mundo. 736

Exortação à castidade 146


1. 1 Não duvido, irmão, que, a partir do dia em que a tua esposa te precedeu na paz, 737
tenhas procurado encontrar a tranquilidade do espírito e pensado em sair da tua con-
dição de homem só...
7. 2 Estava reservado a Cristo completar a Lei sobre este ponto (das núpcias) como 738
sobre outros. É daí que surgiu entre nós a prescrição mais completa e mais elaborada:
só são admitidos na ordem sacerdotal aqueles que não tiverem contraído mais do que
um casamento. Isto é tão verdade que alguns, de que me lembro, foram excluídos deste
estado por terem casado segunda vez...
3 Seríamos insensatos se pensássemos que aquilo que não é permitido aos sacer-
dotes, é permitido aos leigos. Por sermos leigos não somos nós igualmente sacerdotes?
Está escrito: Fez de nós um reino de sacerdotes para Deus seu Pai. A distinção entre
a «ordem» e o povo, resulta duma decisão da Igreja que a cria147, e do cargo que Deus
santifica por intermédio da «ordem» reunida. É por isso que, quando não há «ordem»
eclesiástica, tu ofereces, tu baptizas, tu és sacerdote, por ti próprio. Mas onde há três
fiéis, há uma Igreja, mesmo que sejam leigos.
4 Efectivamente cada um vive da sua fé, e Deus não faz acepção de pessoas,
porque não são os que escutam a lei que são justificados pelo Senhor, mas os que a
observam, segundo as próprias palavras do Apóstolo. Portanto, se tu possuis virtu-
almente o direito de fazer, em caso de necessidade, o que faz um sacerdote, é preciso
que observes igualmente as regras que são impostas aos sacerdotes, onde for necessário
exercer os teus direitos sacerdotais. Acaso baptizas, se és casado segunda vez? Ofereces,
se és casado segunda vez?
5 Ora é mais pecado mortal que um leigo casado duas vezes exerça as funções
sacerdotais, uma vez que a um sacerdote que se tornou bígamo lhe são proibidas as
suas funções sacerdotais!

145
Ou seja, os cinquenta dias do nosso tempo pascal, que eram, para os cristãos, um só período de festa, como
se fosse um único dia.
146
T ERTULIANO , De exhortatione castitatis (=PL 2, 913-929; CSEL 70; CCL 2; SCh 319). A data da com-
posição deste tratado é incerta. Pode variar entre 204-212.
147
Differentiam inter ordinem et plebem constituit ecclesiae auctoritas.
220 SÉCULO III

739 10. 1 Renunciemos às coisas da carne, para fazer frutificar um dia as do espírito...
2 Examinemos a nossa própria consciência: não é verdade que nos sentimos
outro homem, quando nos abstemos de relações sexuais com a nossa mulher? Então
acedemos mais facilmente à sabedoria espiritual. Se fazemos uma oração ao Senhor,
sentimo-nos perto do Céu; se nos debruçamos sobre as Escrituras, estamos inteira-
mente metidos nelas; se cantamos um salmo, alegramo-nos; se expulsamos um Demónio,
temos confiança em nós próprios...
6 Portanto, se é verdade que, mesmo nas relações do casamento único, há uma
certa vergonha que afasta o Espírito Santo, quanto mais assim não será nas relações
dentro de um segundo casamento!
740 11. 1 Dupla é então a vergonha, porque num segundo casamento há duas esposas
que rodeiam o mesmo marido, uma em espírito, outra na sua carne. De facto tu não
poderás sentir aversão para com a anterior, à qual reservas uma afeição marcada até
por uma maior amizade, na medida em que ela já se encontra junto do Senhor, por cuja
alma tu rezas, e pela qual ofereces todos os anos o sacrifício.
2 Irás apresentar-te diante do Senhor com tantas esposas quantas são aquelas
que recordas na tua oração? E oferecerás o sacrifício por duas esposas? Recomendarás
as duas através do sacerdote148, cuja monogamia permitiu a ordenação ou até que a sua
virgindade santificou, e que vive rodeado de viúvas casadas uma só vez? O teu sacrifício
elevar-se-á, sem que te sintas incomodado? E, entre outros favores que revelam bons
sentimentos, irás até pedir para ti a castidade da tua esposa?

A ressurreição dos mortos 149


741 8. 3 Vejamos também agora... como é grande diante de Deus a prerrogativa desta
substância insignificante e vil que é a carne, embora a ela lhe baste o facto de nenhuma
alma poder alcançar a salvação, salvo se acreditar enquanto está na carne: até tal
extremo a carne é o instrumento150 da salvação. Quando entre a alma e Deus se
estabelece um elo de salvação, é a carne que faz com que ele exista. Assim, a carne é
lavada, para que a alma seja purificada; a carne é ungida, para que a alma seja consagrada;
a carne é marcada com o sinal da cruz, para que a alma seja fortalecida; a carne é coberta
com a sombra da imposição das mãos, para que a alma seja iluminada pelo Espírito; a
carne é alimentada com o Corpo e o Sangue de Cristo, para que a própria alma seja
saciada de Deus. Não podem, pois, ser separadas na recompensa aquelas que estiveram
unidas na acção151.
742 48. De que lhes serve este baptismo, se depois afirmais que os mortos não ressuscitam?

148
Stabis ergo ad Dominum cum tot uxoribus quot in oratione commemores? Et offeres pro duabus, et
commendabis illas duas per sacerdotem?
149
T ERTULIANO , De resurrectione mortuorum (=PL 2, 792-886; CSEL 47; CCL 2). Este tratado foi escrito
por volta do ano 211.
150
Cardo.
151
Caro salutis est cardo. De qua cum anima a Dei alligatur, ipsa est quae efficit ut anima alligari possit.
Sed et caro abluitur, ut anima emaculetur; caro ungitur, ut anima consecretur; caro signatur, ut anima
muniatur; caro manus impositione adumbratur, ut anima spiritu illuminetur; caro corpore et sanguine
Christi vescitur, ut et anima de Deo saginetur. Non possunto ergo separari in mercede quas opera
conjungit.
TERTULIANO 221

A fuga na perseguição 152


14. 2 «Como poderemos nós reunir-nos, perguntas tu, e celebrar as festas consagradas 743
ao Senhor?». Do mesmo modo que se reuniram os Apóstolos, protegidos pela fé, não
pelo dinheiro153; se a fé pode mover montanhas, com muito mais razão pode mover um
funcionário da polícia. Seja a sabedoria a tua defesa, não a corrupção! Não estarás
sempre seguro do povo, se tiveres corrompido os funcionários da polícia... Enfim, se
não for possível realizar a assembleia de dia, podes fazê-la de noite154; a luz de Cristo
a iluminará. Se três pessoas já constituem a Igreja, não podes dividi-la em pequenos
grupos? Melhor é que não vejas então os teus reunidos do que vendê-los.

A Escápula 155
2. É um direito do homem e um privilégio da natureza que cada qual possa adorar de 744
acordo com as suas próprias convicções. A religião de um não prejudica nem facilita a
do outro... Certamente não é próprio da religião obrigar à religião... Prestamos, por
conseguinte, à pessoa de César, a homenagem e a reverência que nos são permitidas e
que lhe convêm a ele. Consideramo-lo como o ser humano que vem depois de Deus, e
que recebe de Deus todo o seu poder... Oferecemos sacrifícios pelo bem-estar do
imperador; mas oferecemo-los apenas ao nosso Deus, que também é o seu, e, segundo
o modo determinado por Deus, pela simples oração. Com efeito, o Criador do universo
não tem necessidade de que Lhe ofereçamos perfumes e sangue. Esses são os alimentos
dos Demónios.
4. Nós, que não conhecemos o medo, não queremos espantar-te, mas quereríamos 745
salvar todos os homens, conjurando-os a não lutar contra Deus...
5. Não temos outro Senhor senão Deus. Está diante de ti e não pode esconder-Se de 746
ti, mas a Ele não Lhe podes causar nenhum dano. Ao contrário, aqueles a quem
consideras como soberanos são homens, destinados a morrer um dia. Mas esta seita
(dos cristãos) não perecerá. Tu sabes bem que, precisamente quando parece aniquilada,
cresce com mais força. Perante tão grande constância todos se sentem inquietos.
Desejam ardentemente indagar a causa, e logo que reconhecem a verdade, eles próprios
a abraçam imediatamente.

A alma 156
9. 4 Hoje, entre nós, encontra-se uma irmã que recebeu o carisma das revelações, 747
experimentadas por ela através do êxtase no Espírito, no decurso da assembleia comu-
nitária, nas festas consagradas ao Senhor; umas vezes fala com os Anjos, outras vezes
com o Senhor, vê e ouve mistérios, lê nos corações de algumas pessoas e prepara

152
T ERTULIANO , De fuga in persecutione (=PL 2, 101-120; CSEL 76; CCL 2). Este tratado, escrito em 212,
já manifesta posições montanistas.
153
Tertuliano combate aqui, como montanista, o costume de comprar os funcionários para que fechassem os
olhos e deixassem os cristãos em paz, em particular não os perturbando nas reuniões litúrgicas.
154
Si colligere interdiu non potes, habes noctem.
155
T ERTULIANO , Ad Scapulam (=PL 1, 697-705; CSEL 76; CCL 2). O escrito A Escápula é uma carta aberta
escrita por Tertuliano, no ano 212, a Escápula, procônsul de África.
156
T ERTULIANO , De anima (=PL 2, 641-752; CCL 2; CSEL 20). Este tratado pertence ao período montanista
de Tertuliano. Deve ter sido escrito por volta de 213.
222 SÉCULO III

remédios para os que os não têm157. De facto, a leitura das Escrituras, o canto dos
salmos, as explicações da Palavra ou as orações que se fazem158, tudo são ocasiões
próprias para as visões159...
748 17. Não nos é lícito, não nos é lícito duvidar destes nossos sentidos, não aconteça
que também se ponha em dúvida a realidade de Cristo, não aconteça que talvez alguém
diga que Ele viu falsamente Satanás a ser precipitado do Céu, ou que falsamente ouviu
a voz do Pai que dava testemunho a seu respeito, ou que Se enganou quando tocou a
sogra de Pedro, ou que depois sentiu outro odor do perfume que aceitou para a sua
sepultura, ou outro gosto no vinho que consagrou em memória do seu Sangue...
749 51. O corpo do defunto é acompanhado pela oração do presbítero até ao cemitério160.
750 53. Assim que, sob o efeito da morte, a alma é arrancada ao seu invólucro de carne e
salta para fora da veste corporal e fica na luz simples e serena, exulta e rejubila ao ver
o rosto do seu próprio Anjo que se prepara para a conduzir à sua morada...
751 55. 4 Porque é que a região do Paraíso revelada a João durante a sua visão, situada
sob o altar, mostra apenas almas de mártires? E, de igual modo, porque é que Perpétua,
mártir corajosa, na visão do Paraíso, no dia do seu martírio, só ali viu mártires? Será
que a espada (de fogo) que guarda a porta do Céu dá passagem apenas aos que morre-
ram em Cristo e não em Adão?

A castidade 161
752 1. Sei que foi publicado um edicto e, vejam bem, um edicto peremptório. O
Soberano Pontífice, o bispo dos bispos 162, manda o que se segue: «Eu perdoo
também os pecados de adultério e de fornicação àqueles que fizeram penitência».
7 Mas que edicto! Não se poderá escrever nele: Para vosso bem! Onde afixar esta
prenda? Talvez, julgo eu, sobre as portas das casas de passe, por debaixo da
tabuleta das casas de prostituição! Uma penitência deste género deve ser promul-
gada onde se comete a falta! Deve publicar-se o decreto da indulgência no lugar
onde se entra com a esperança de usar dele! 8 Mas não! Este decreto é lido na
Igreja, é proclamado no interior da Igreja, na Igreja que é virgem! Longe, longe da
esposa de Cristo uma tal publicação! 9 A verdadeira, a casta, a santa, deve preservar
até o seu ouvido de qualquer mancha. Não tem ninguém entre os seus membros a quem
propor semelhante indulgência, e, se houvesse pecadores a quem propô-la, ela não o
faria, porque o templo terrestre de Deus poderá ser antes chamado caverna de ladrões
pelo Senhor, do que caverna de adúlteros e devassos...
753 2. 12 Nós conhecemos os pecados que são as causas da penitência. Dividimo-los
em dois grupos, segundo as suas consequências: uns são remissíveis, os outros irre-
missíveis. De uma coisa ninguém duvida: uns merecem o castigo, os outros a condena-

157
Devem estas curas entender-se em sentido puramente espiritual ou será que a jovem curava fisicamente os
doentes?
158
Iamvero prout Scripturae leguntur aut psalmi canuntur aut allocutiones proferuntur aut petitiones
delegantur...
159
Não só a designação «festas consagradas ao Senhor», mas toda a descrição revela que Tertuliano alude
aqui ao culto dominical.
160
koimhth/ r ion ( dormitório, cemitério).
161
T ERTULIANO , De pudicitia (=PL 2, 979-1029; CCL 2; CSEL 20; SCh 394. 395; C. V OGEL , Paris 1966, 79-
83). O tratado De pudicitia trata do poder da Igreja para perdoar pecados. Ao escrevê-lo, por volta de 217,
Tertuliano já era montanista.
162
Deve tratar-se de Agripino de Cartago.
TERTULIANO 223

ção. 13 Toda a falta é apagada, seja pelo perdão, seja pelo castigo; o perdão segue-
se a uma repreensão, o castigo segue-se à condenação. 14 A propósito desta distinção,
já indicámos algumas passagens das Escrituras, umas que retêm outras que perdoam os
pecados. João é que nos dará a solução: Se alguém vir que o seu irmão comete um
pecado que não leva à morte, peça, e dar-lhe-á vida, porque não pecou até à morte163.
15 É este o pecado remissível. Existe um pecado que leva à morte; por esse pecado não
digo que se reze164. É este o pecado irremissível. Deste modo onde há lugar para rezar,
há lugar para o perdão; onde, ao contrário, não há lugar para rezar, também não há lugar
para o perdão. 16 De acordo com esta distinção entre os pecados, há igualmente uma
distinção a introduzir na penitência. Haverá uma penitência que pode levar ao perdão
no caso dos pecados remissíveis, e uma outra que, de modo algum, poderá levar ao
perdão, no caso dos pecados irremissíveis...
4. Todo o homem se mancha pelo adultério e pelas relações sexuais ilegítimas, onde 754
quer que seja e seja com que mulher for, se tiver relações fora de um verdadeiro
matrimónio. É por isso que entre nós as uniões clandestinas (aquelas de que se não dá
conhecimento à Igreja) se expõem ao risco de ser julgadas exactamente como o adultério e
as relações sexuais ilegítimas, porque poderiam ter saído de tais pecados e querer
dissimular uma falta grave sob a capa do matrimónio.
7. Ninguém duvida de que há pecados que merecem castigo e outros que merecem 755
condenação.
9. Recuperará, pois, também o apóstata a primeira veste, o vestido do Espírito 756
Santo, o anel novo, o selo do baptismo, e de novo será imolado para ele Jesus Cristo?
Voltará a sentar-se àquela mesa da qual os que estão inconvenientemente vestidos
costumam ser lançados fora, às trevas exteriores, pelos algozes, e muito mais os que
vão sem veste?
O (príncipe deste mundo) pô-lo a guardar porcos, para que apascentasse esse
rebanho familiar aos Demónios, no meio do qual não podia sequer conseguir alimento
para viver, enquanto via outros que no serviço de Deus tinham pão celeste em abundância...
Recebe também então o primeiro anel, com o qual, depois de interrogado, sela o
compromisso da fé, e, a partir daí, é alimentado com as delícias do Corpo do Senhor,
isto é, a Eucaristia.
10. 8 Os espirituais afirmam que Deus, o juiz justo, prefere a penitência do pecador 757
à sua morte, ao passo que o pecador prefere a morte à penitência. 9 Se assim é,
ganhamos mais cada vez que pecamos...
10 Eis, portanto, o que tu me dizes, intérprete amável de Deus. Eu seguiria o teu
ponto de vista, se o livro O Pastor (de Hermas) – o único que tem amizade pelos
adúlteros! – merecesse ter um lugar entre os documentos sagrados, se ele não fosse
incluído por todas as Igrejas, mesmo pelas vossas165, entre os apócrifos e os falsos
documentos, um escrito adúltero, ele próprio, e protector dos seus cúmplices. 11 É
aliás deste Pastor que tu recebes a tua instrução, é este Pastor que fazes representar
nos teus copos, ele mesmo profanador do sacramento cristão, ídolo da embriaguez e
refúgio dos crimes de adultério que se seguem às libações, cálice no qual de preferência
matas a sede às ovelhas da segunda penitência! 12 Quanto a mim, bebo nos escritos
desse Pastor que ninguém pode corromper. 13 E aí encontro João, que diz a propósito
do banho baptismal e do dever da penitência: Produzi, pois, frutos dignos de penitência
e não digais: Temos por pai a Abraão, para que os ouvintes não cedam às delícias do

163
1 Jo 5, 16.
164
1 Jo 5, 16.
165
Ou seja as Igrejas católicas.
224 SÉCULO III

pecado, confiados na bondade paternal: Deus, com efeito, pode suscitar, destas pe-
dras, filhos de Abraão166...
758 11. Não é verdade que o Senhor, pelos seus próprios gestos, promulgou esta dispo-
sição em favor dos pecadores, por exemplo, quando permitiu que a mulher pecadora
lhe tocasse o corpo, ou a autorizou que lhe lavasse os pés com as suas lágrimas..., ou
quando se revelou à Samaritana..., coisa que não fez quase a mais ninguém? Nenhuma
vantagem se seguiria para os nossos adversários, mesmo que Jesus tivesse concedido
o seu perdão nestes casos a pecadores já cristãos, porque dizemos: Isto só foi permi-
tido ao Senhor.
759 18. Depois do baptismo há apenas uma espécie de penitência, pela qual se pode
conseguir o perdão dos pecados leves através do bispo, ou dos maiores e irremissíveis
mas só através de Deus.
760 19. Há certos delitos que todos nós cometemos no combate quotidiano. A quem não
aconteceu irar-se injustamente para além do pôr do sol, ou bater com violência, ou
amaldiçoar facilmente, ou jurar temerariamente, ou faltar à fé jurada, ou mentir por
vergonha ou necessidade? Nos negócios, na profissão, na comida, pelos olhos, pelos
ouvidos, quantas vezes somos tentados, de tal modo que, se hão houvesse perdão,
ninguém poderia salvar-se?... O Filho de Deus destruiu as obras do Diabo libertando o
homem pelo baptismo e revogando o contrato de morte...
761 20. Eis o que é o homem, ao mesmo tempo carne e alma. Se, depois de regenerado no
baptismo, isto é, após a entrada dos presbíteros167, voltar ainda às asperezas e imun-
dícies da carne, é lançado fora da cidade num lugar imundo, o que significa que é
abandonado a Satanás para a perdição da sua carne e, depois da sua ruína, nunca mais
será restabelecido na Igreja.
762 21. 5 Os Profetas perdoaram o assassínio e, com ele, o adultério, àqueles que fize-
ram penitência168, mas deram, ao mesmo tempo, exemplos de severidade. Mas tu, que
te dizes apóstolo, mostra-me as provas que te autentificam como apóstolo, e eu
reconhecerei a tua autoridade divina. Então poderás reivindicar para ti o poder de
perdoar delitos graves.
Mas, se tu tens como única função velar pela disciplina e presidir, não com um
poder absoluto, mas como encarregado de um serviço, quem és tu e qual é a tua
importância para que possas conceder o perdão? Se tu não podes legitimar-te nem
como apóstolo, nem como profeta, não possuis esta força donde procede o perdão.
Mas tu dizes: «A Igreja tem o poder de perdoar os pecados». Eu também o digo,
mais até do que tu o reconheço eu e estou de acordo, mas encontro entre os novos
profetas o próprio Paracleto: «A Igreja pode perdoar os pecados, mas eu não o faço,
com medo de que eles cometam outras faltas».
«E se foi o espírito dum falso profeta que falou assim»? Um destruidor da fé ter-
-se-ia recomendado antes pela sua indulgência e teria incitado os outros a pecar. Ao
contrário, se ele age com uma tal prudência, segundo o espírito da verdade, este mesmo
espírito da verdade pode certamente conceder o perdão aos devassos, mas não quer
fazê-lo com medo de causar mal a um maior número.
E eu pergunto-te a ti: A que título te arrogas este direito na Igreja? Foi talvez
porque o Senhor disse a Pedro: Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e: Dar-te-ei
as chaves do Reino dos Céus, ou ainda: Tudo o que ligares ou desligares na terra será
ligado ou desligado no Céu? Será por causa destas palavras que tu pensas que o poder
de ligar e de desligar veio até ti, isto é, a toda a Igreja unida a Pedro? Quem és tu, que
166
Mt 3, 8.
167
Indício de que o baptismo era uma acção colegial dos presbíteros.
168
Cf. 2 Sam 12, 13.
TERTULIANO 225

destróis e desvirtuas a intenção evidente do Senhor que conferiu este poder a Pedro, e
só a ele? Sobre ti, disse Ele, edificarei a minha Igreja e: Dar-te-ei as chaves, a ti e não
à Igreja; e tudo o que tu tiveres desligado ou ligado, e não tudo o que eles tiverem
desligado ou ligado... O poder de ligar e desligar concedido a Pedro, não tem nada a ver
com a remissão dos pecados capitais cometidos pelos fiéis... Com efeito, este poder,
de acordo com a pessoa de Pedro, devia pertencer apenas aos homens espirituais, quer
fossem Apóstolos, quer fossem Profetas...
17 A Igreja própria e principalmente é o próprio Espírito, em quem reside a
Trindade da única Divindade, Pai, Filho e Espírito Santo. O Espírito forma esta Igreja,
que o Senhor fez para ser «três». Por isso, desde então, todas as pessoas reunidas
nesta fé constituem «a Igreja una», aos olhos do Autor e Consagrador. É verdade,
certamente, que «a Igreja» perdoa os pecados, mas é a Igreja do Espírito, por meio de
um homem espiritual, e não a Igreja que é assembleia de bispos169.
22. Mas eis que tu estendes o poder de perdoar os pecados também aos mártires. 763
Mal alguém, após acordo prévio, começou a carregar cadeias bem leves nas prisões – prisões
modernas que o são apenas de nome! – e logo se vê rodeado de adúlteros, assaltado por
devassos. À sua volta ressoam súplicas e torrentes de lágrimas, por parte das pessoas
mais sujas. Ninguém paga mais caro a sua entrada nas prisões, do que aqueles que
perderam o direito de entrar na igreja. Durante a noite, que os devassos conhecem
muito bem, há mulheres e homens que sofrem violências – e pedem a paz àqueles que
correm o risco de perder a sua.
Outros afluem às minas (para se encontrarem com os mártires), e regressam de lá
readmitidos à comunhão – dessas minas, onde seria preciso um novo martírio, para
expiar os pecados cometidos após o primeiro...
Contente-se o mártir em expiar os seus próprios pecados. É dar prova de
ingratidão e de orgulho derramar sobre os outros um benefício que se obteve com
grande dificuldade. Quem é que resgatou a morte de outro com a sua, a não ser o Filho
de Deus, e só Ele?...
Agora sei a forma de reconhecer se Cristo está presente. Se Cristo vive no mártir
com o único fim de este absolver os adúlteros e os devassos, descubra ele os segredos
dos corações e em seguida perdoe os pecados – e então acreditarei que Cristo está
presente.

O casamento único 170


1. 1 Os hereges suprimem as núpcias, os espirituais acumulam-nas. Os primeiros 764
casam-se uma só vez, os segundos casam-se mais que uma...
10. 3 Como o marido não lhe manifestou o seu despedimento, ela não o deixa; não 765
tendo redigido o acto de repúdio, ela permanece com ele; não querendo perdê-lo,
guarda-o. Ela tem à sua mão a liberdade interior que, por um prazer imaginado, lhe
torna presente tudo o que não tem. Interrogo enfim esta mulher em pessoa: «Diz-me,
minha irmã, foi na paz que o teu marido partiu à tua frente»? Que responderá ela? Que
foi na discórdia? O vínculo é, portanto, muito mais forte: ambos têm um processo

169
Esta é a nova teoria que, para Tertuliano, substitui a sucessão apostólica. O pensamento montanista, que
opõe a Igreja espiritual à Igreja organizada, chega à sua última conclusão lógica. A Igreja do Espírito e
a Igreja dos bispos estão agora, para Tertuliano, em completa oposição.
170
T ERTULIANO , De monogamia (=PL 2, 929-953; CCL 2; CSEL 76; SCh 343). O tratado De monogamia é
um dos três tratados de Tertuliano sobre o matrimónio e as segundas núpcias. Pertence ao período
montanista. Deve-o ter escrito por volta de 217.
226 SÉCULO III

diante de Deus. A esposa assim ligada não se afastou. Mas foi na paz? Então tem de
persistir neste sentimento e respeitar uma união doravante impossível de quebrar;
aliás ela não tem que voltar a casar-se, embora tivesse podido quebrá-la. 4 Ao
contrário, ela reza pela alma do seu marido, implora para ele o repouso consolador que
precede a primeira ressurreição171 e que ele tenha parte nesta ressurreição, manda
oferecer o sacrifício nos dias aniversários da sua dormição...
766 11. 1 Quererias, portanto (no caso de ainda te preocupares com isso), «casar-te no
Senhor», de acordo com o que o Apóstolo também diz. Mas porque vais tu pedir este
matrimónio àqueles que não o podem contrair eles próprios, ao bispo que só pode
casar-se uma vez, aos presbíteros e aos diáconos sujeitos à mesma obrigação sagrada,
às viúvas, cujo estado desprezas pela tua atitude?
2 E eles irão dar maridos e esposas como se dão pedaços de pão. Porque tal é a
sua regra: Dá a todo aquele que te pede. E unir-vos-ão na Igreja virgem, a única esposa
do único Cristo. E tu orarás então pelos teus diferentes maridos, o novo e o antigo.
Escolhe aquele em relação ao qual serás adúltera. Em relação a ambos, creio eu...
767 12. 1 Escuta ainda um outro raciocínio que nos opõem com muita astúcia: «A prova
de que o Apóstolo permitiu reiterar o casamento está em que ele não obrigou a um só
casamento senão os membros do clero. Porque aquilo que ele prescreveu só a alguns,
não o prescreveu a todos». Será então também por acaso que o que ele ordena a todos,
não o ordena só aos bispos, uma vez que o que ele prescreve aos bispos também o não
ordena a todos? Ou antes não o ordena ele a todos pelo facto de o ordenar aos bispos,
e aos bispos porque o ordena a todos? Afinal donde são tomados os bispos e o clero?
Não é do meio de todos? Ora, se todos não são obrigados a um só casamento, donde
tomar os casados uma só vez para formar o clero? Será preciso instituir à parte uma
ordem de casados uma só vez, que sirva para o recrutamento do clero? 2 Mas, quando
nos elevamos..., não é verdade que todos não formamos mais que um só, todos somos
sacerdotes, porque Cristo nos fez sacerdotes para Deus e Pai? Quando somos chamados
a conformar-nos em tudo à disciplina sacerdotal... dividimo-nos em classes... 3 O
Espírito Santo previa que alguns diriam: «Tudo é permitido aos bispos»... Com efeito,
quantos casados segunda vez presidem também entre vós (os católicos), insultando
desse modo a autoridade do Apóstolo, e não sentindo vergonha quando se lêem estas
linhas diante deles!

Sobre o jejum 172


768 1. Observamos o uso de alimentos secos, tirando a água à comida, (e abstendo-nos)
de toda a espécie de carne e sucos de carne e de quaisquer frutos sumarentos; não
comemos nem bebemos nada que saiba a vinho; e de acordo com a alimentação seca,
também nos abstemos do banho173.
769 2. 1 No que se refere aos jejuns (os católicos de Roma) juntam-lhes certos dias
estabelecidos por Deus. 2 Segundo o Evangelho, os dias de jejum, como crêem os
espirituais174, são aqueles em que o esposo nos foi tirado175. Seriam esses os únicos
dias de jejum mandados aos cristãos, uma vez que as antigas prescrições da Lei e dos
171
Cf. Ap 20, 5.
172
T ERTULIANO , De ieiunio adversus Psychicos (=PL 2,0 953-978; CCL 2; CSEL 20). O próprio título do
tratado indica que Tertuliano, já montanista, o escreveu contra os católicos, os psychici. É esta a obra de
Tertuliano mais violenta, nas suas palavras, contra os católicos.
173
Quod etiam xerophagiam observemus, siccantes cibum ab omni carne et omni iurulentia et uvidioribus
quibuscumque pomis; nec quid vinositatis vel edamus vel potemus; lavacri quoque abstinentiam,
congruentem árido victui.
174
Os católicos.
175
Diebus quibus ablatus est sponsus.
TERTULIANO 227

Profetas foram anuladas... Quanto aos outros (dias de jejum), isso depende da vontade,
segundo os tempos e os motivos de cada um, e não de qualquer imposição da nova
disciplina. Assim fizeram os Apóstolos, não impondo mais nenhuma obrigação de
jejum certo e a observar em comum por todos. Por isso, até (o jejum) das estações, que
os seus (antepassados) observavam nos dias de quarta e sexta-feira, os fazem eles sem
ordem (isto é, aqui e ali conforme querem e segundo o arbítrio de cada qual), e não
como se fosse uma lei preceituada, além do dia mais importante, que é aquele em que,
por volta da hora nona, Pedro estava em oração, como referem os Actos176.
10. 1 Do mesmo modo consideras como indignas as nossas estações; de facto algumas 770
prolongam-se até à noite, e acusam-nos de novidade, dizendo que isso se faz também
arbitrariamente e que o seu uso 177 é o de não ultrapassar a hora nona.
2 É verdade que se diz 178 que Pedro foi ao templo à hora de Noa, mas isso não
prova que tenha havido estação, dado que, depois de ter orado à hora de Sexta, ainda
pediu a sua refeição. Por isso, se quiséssemos segui-lo, podíamos terminar o jejum à
hora de Sexta.
3 Porém, como no próprio comentário de Lucas 179 se afirma que a hora de Tércia
é a da oração em que foram tomados por ébrios os que tinham recebido o Espírito
Santo, a Sexta é aquela em que Pedro subiu ao terraço, e a Noa aquela em que (os dois
Apóstolos) entraram no templo, porque não tomamos nós, exceptuando claro está o
mandato de orar sempre e em toda a parte, essas três horas como as mais solenes para
as orações divinas, uma vez que elas são consideradas as mais importantes nas coisas
humanas, pois dividem o dia, distinguem as ocupações, e são publicamente anunciadas
e assinaladas por sons180?
12. Os católicos instalam cozinhas na prisão para desonrar os mártires... 771
13. 1 Ora, eu também vos vejo a jejuar fora da Páscoa, noutros dias além daqueles em 772
que o Esposo nos foi tirado, quando introduzis os meios jejuns das estações181 e
quando, de tempos a tempos, vos alimentais de pão e água, à vontade de cada um. Vós
respondeis finalmente que isso se deve fazer de livre vontade, e não devido a uma
ordem. Felizmente que os bispos costumam mandar guardar o jejum a toda a gente 182.
14. 2 Se em Jesus Cristo se realizou uma nova criação, também as festas devem ser 773
novas. Por outro lado, se o Apóstolo excluiu todo o culto ligado a tempos, a dias, a
meses e a anos, porque celebramos nós a Páscoa, cada ano, no primeiro mês? Por que
razão passamos nós na alegria os cinquenta dias que se lhe seguem? Porque consagramos
nós o quarto e o sexto dia da semana com estações, e a preparação com jejuns? E até
acontece, com toda a certeza, que estendeis o jejum ao próprio sábado, o qual, no
entanto, não pode ser passado no jejum senão na Páscoa, pela razão que já indicámos.
16. Os católicos são mais ímpios do que os próprios pagãos... 774

176
Act 3, 8.
177
O uso dos cristãos de Roma.
178
Entre o católicos.
179
Isto é, nos Actos dos Apóstolos.
180
Este sinal público, que devia ser dado através de algum som (de tuba ou de campainhas), nas cidades do
Império romano, bastaria para justificar a escolha, por parte de qualquer homem religioso e em particular
por parte dos cristãos, desses momentos precisos para pensar em Deus.
181
Stationum.
182
Bene autem, quod et episcopi universae plebi mandare ieiunia assolent.
228 SÉCULO III

Hipólito de Roma

Tradição Apostólica 1

775 1. Prólogo. Expusemos convenientemente aquilo que diz respeito aos carismas2,
todos esses dons que Deus, desde o princípio, concedeu aos homens segundo a sua
vontade, a fim de atrair a Si a imagem que se afastara3.
Agora, impelidos pelo amor para com todos os santos4, chegámos ao essencial da
tradição que convém às Igrejas, a fim de que todos, bem instruídos, conservem a
tradição que veio até hoje e, conhecendo-a pela nossa exposição, dela tomem consciência
e permaneçam firmes, por causa da queda ou do erro que ocorreu recentemente, moti-
vado pela ignorância e pelos ignorantes. Conceda o Espírito Santo a graça perfeita aos
que têm uma fé ortodoxa, para que os que se encontram à frente da Igreja saibam como
devem ensinar e conservar todas estas coisas5.

PARTE I
ELEIÇÃO E ORDENAÇÃO DO BISPO

776 2. Eleição do bispo. Seja ordenado bispo aquele que, sendo irrepreensível 6, tiver
sido escolhido por todo o povo. Uma vez chamado pelo seu nome e depois de aceite
por todos, o povo reunir-se-á juntamente com o presbyterium e os bispos presentes,
no domingo. Com o consentimento de todos, os bispos imponham-lhe as mãos, e o
presbyterium permaneça imóvel7.
Mantenham-se todos em silêncio, orando em seu coração para que desça o Espírito.
A seguir, um dos bispos presentes, a pedido de todos, impondo a mão sobre aquele que
é feito bispo, ore, dizendo:
777 3. Oração da ordenação do bispo. Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Pai
das misericórdias e Deus de toda a consolação8, que habitais no mais alto dos Céus e
olhais para os humildes9, que conheceis todas as coisas antes de existirem 10, Vós que

1
H IPÓLITO DE R OMA , Tradição Apostólica (=B. B OTTE , La Tradition Apostolique d’Hippolyte de Rome.
Essai de reconstitution, in Liturgiewissenschaftliche Quellen und Forsctungen 39, Münster 1963; SCh
11 bis). O original desta obra, em língua grega ( A) p ostolikh\ Para/ d osij ) deve ter sido escrito entre 215 e
225. A sua reconstituição deve-se aos trabalhos de D. Bernard Botte. Hipólito nasceu por volta de 170 e
morreu mártir em 235.
2
A palavra grega xa/risma designa uma série de manifestações do fervor e da fé. O carisma supõe um dom que
procede da xa/rij , a misericórdia de Deus.
3
Gen 1, 26-27. O texto refere-se ao homem, criado à imagem e semelhança de Deus.
4
A palavra “santos”, tanto pode referir-se a todos os fiéis, como apenas aos justos.
5
1 Tim 3, 14-15. Provável alusão aos chefes de quem Hipólito de Roma, que foi o primeiro antipapa, teria
discordado.
6
1 Tim 3, 2.
7
A imposição das mãos tem a sua origem no Antigo Testamento, como gesto de bênção (Lev 9, 22), e aparece
no Novo Testamento como forma de dar o Espírito (Act 8, 15-17).
8
2 Cor 1, 3. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, toda a verdadeira consolação procede exclusivamen-
te de Deus.
9
Sal 112, 5-6.
10
Dan 13, 42.
HIPÓLITO DE ROMA 229

destes as normas da vossa Igreja pela palavra da vossa graça, que predestinastes desde
o princípio a geração dos justos que haviam de nascer de Abraão11, que estabelecestes
chefes e sacerdotes e não deixastes sem ministério o vosso santuário; Vós a quem,
desde o princípio do mundo, apraz ser glorificado naqueles que escolhestes12, derramai
agora a força13 que de Vós procede, o Espírito soberano14, que destes ao vosso amado
Filho Jesus Cristo, e Ele transmitiu aos santos Apóstolos15, que fundaram a Igreja por
toda a parte, como templo vosso 16, para glória e perene louvor do vosso Nome.
Pai, que conheceis os corações, dai a este vosso servo, por Vós escolhido para o
episcopado, a graça de apascentar o vosso rebanho santo, de exercer de modo irrepreensível
diante de Vós o sumo sacerdócio, servindo-Vos noite e dia, de tornar continuamente
propício o vosso rosto e de oferecer os dons da vossa Igreja santa. Concedei-lhe, pela
força do Espírito do sumo sacerdócio, o poder de perdoar os pecados segundo o vosso
mandato 17, de distribuir os ministérios18 conforme o vosso desígnio e de absolver de
todo o vínculo segundo o poder que destes aos Apóstolos19. Ele Vos seja agradável pela
mansidão e pureza de coração, oferecendo-Vos um perfume agradável20 pelo vosso
Filho Jesus Cristo, por quem Vos é dada a honra, o poder e a glória (Pai e Filho)21 com
o Espírito Santo, na santa Igreja22, agora e pelos séculos dos séculos. Amen.

CELEBRAÇÃO DA EUCARISTIA

4. A oblação. Logo que tenha sido feito bispo, ofereçam-lhe todos o ósculo da 778
paz 23, saudando-o por se ter tornado digno.
Os diáconos apresentem-lhe a oblação24 e ele, impondo as mãos sobre ela com
todo o presbyterium, dando graças, diga:
O Senhor esteja convosco.
Respondem todos:
E com o teu espírito.

11
Gen 12, 1-3.
12
Deus quer ser glorificado nos seus eleitos.
13
Ao longo de todo o Antigo Testamento, o Espírito de Deus é considerado uma força, em latim virtus.
14
Sal 50, 14.
15
Jo 20, 22.
16
Para São Paulo, a Igreja é o Corpo de Cristo penetrado pela força do Espírito Santo.
17
Jo 20, 23.
18
O texto latino traz sortes, herança.
19
O texto latino, que não é claro, parece referir-se ao poder de perdoar os pecados. Dom Botte acha mais
provável que o autor se refira ao poder mencionado por Mateus, segundo o qual Jesus disse: Tudo o que
ligares na terra será ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu (Mt 18, 18).
20
Perfume do sacrifício, que aqui será a sua vida.
21
Dom Botte duvida da autenticidade destas palavras.
22
As palavras “na santa Igreja” não aparecem, como deveriam, na tradução latina, mas Dom Botte diz que
devem ser conservadas nas traduções em língua moderna.
23
No texto latino os pacis. O beijo, quer no Antigo quer no Novo Testamento, está associado à paz e ao amor
(cf. Gen 29, 13-14; Ex 4, 27; 1 Tes 5, 26; 1 Cor 16, 20, etc.).
24
Aqui começa a Anáfora ou Oração eucarística, com diálogo inicial, prefácio, narração da instituição da
Eucaristia, anamnese, epiclese e doxologia final. O diálogo inicial não está ainda completo. A Anáfora
ainda não tem Sanctus, nem Vere Sanctus, nem Intercessões. Esta anáfora de Hipólito, do início do século
III (ano 215), é a mais antiga que possuímos e aparece, mais ou menos modificada, em escritos posteriores.
Dirigida ao Pai, tem no centro o mistério de Cristo, e o Espírito Santo é invocado sobre as oblações, a Igreja
e os comungantes. A ausência de Sanctus é sinal da sua antiguidade e também de que esse elemento não é
primitivo na Oração eucarística cristã, facto aliás confirmado pela mais antiga Anáfora oriental, a de Addai
e Mari, contemporânea da Oração eucarística de Hipólito de Roma.
230 SÉCULO III

Corações ao alto.
Já os elevámos ao Senhor.
Dêmos graças ao Senhor.
É digno e justo.
E prossiga, assim:
Nós Vos damos graças, ó Deus, por Jesus Cristo, vosso muito amado Filho, que
nestes últimos tempos nos enviastes (como) Salvador, Redentor e Mensageiro da
vossa vontade25. Ele é a vossa Palavra inseparável, por quem tudo criastes26 e que,
porque assim foi do vosso agrado, enviastes do Céu ao seio de uma Virgem27. Tendo
sido concebido, fez-Se homem e manifestou-Se como vosso Filho, nascido do Espírito
Santo e da Virgem28.
Para cumprir a vossa vontade29 e adquirir para Vós um povo santo, estendeu as
mãos enquanto padecia, para livrar do sofrimento os que confiaram30 em Vós.
Na hora em que Ele Se entregava voluntariamente à Paixão31 para destruir a
morte, despedaçar as cadeias do Diabo, calcar aos pés o Inferno32, conduzir os justos
à luz33, estabelecer a lei 34 (da fé) e manifestar a (vitória da) ressurreição, tomou o pão
e deu-Vos graças, dizendo: Tomai, comei, isto é o meu Corpo, que será destruído35 por
vós.
De igual modo, tomou o cálice, dizendo: Este é o meu Sangue, que será derramado36
por vós. Quando fizerdes isto, fazei-o em memória de Mim37.
Por isso, lembrando-nos da sua morte e da sua ressurreição, nós Vos oferecemos
este pão e este cálice e Vos damos graças, porque nos julgastes dignos de estar de pé
diante de Vós e de Vos servir como sacerdotes.
Nós Vos pedimos que envieis o vosso Espírito sobre a oblação da santa Igreja.
Reunindo na unidade todos aqueles que participam nos vossos santos (mistérios)38,
dai-lhes a graça de serem repletos do Espírito Santo, para fortalecerem a sua fé na
verdade, a fim de que Vos louvemos e glorifiquemos pelo vosso Filho Jesus Cristo,
pelo qual a Vós a honra e a glória (Pai e Filho)39, com o Espírito Santo, na santa Igreja40,
agora e pelos séculos dos séculos. Amen.

25
Is 9, 5; 1 Tim 2, 5-6.
26
Deus criou o universo pela sua Palavra (Sal 33, 6; Sab 9, 1), por Jesus Cristo (Jo 1, 1-4. 10; Hebr 1, 2-10;
1 Cor 8, 6; Col 1, 15-17).
27
Is 7, 14.
28
Mt 1, 18-23.
29
Mt 26, 39-42.
30
O texto latino traz a palavra crediderunt, verbo com o sentido de confiança.
31
2 Cor 5, 21; Gal 3, 13-14.
32
Ap 6, 8.
33
Ef 1, 18.
34
O termo latino terminum pode entender-se no sentido de estatuto, lei ou limite.
35
Os Evangelistas dizem: Isto é o meu Corpo, que será entregue por vós.
36
Mt 26, 27-28; Mc 14, 24; Lc 22, 20.
37
1 Cor 11, 24-25.
38
De omnibus qui percipiunt sanctis ut te laudemus.
39
Ver nota 21.
40
As palavras “na santa Igreja” não aparecem, como deveriam, na tradução latina, mas Dom Botte diz que
devem ser conservadas nas traduções em língua moderna.
HIPÓLITO DE ROMA 231

OFERENDAS DENTRO DA EUCARISTIA

5. Oferenda do azeite. Se alguém oferecer azeite, (o bispo) dê graças41 como fez na 779
oblação do pão e do vinho 42, exprimindo-se não nos mesmos termos, mas no mesmo
sentido 43, dizendo:
Assim como, santificando este óleo, com o qual ungistes reis, sacerdotes44 e
Profetas, concedeis, ó Deus, a santidade aos que com ele são ungidos45 e aos que o
recebem, assim também ele dê alívio àqueles que vierem a prová-lo e saúde aos que dele
se servirem.
6. Oferenda do queijo e das azeitonas. De igual modo, se alguém oferecer queijo e 780
azeitonas, diga (o bispo) assim:
Santificai este leite coagulado, unindo-nos à vossa caridade46. Concedei também
que não se afaste da vossa doçura este fruto da oliveira, símbolo da abundância que
fizestes brotar da árvore, para (dar) a vida àqueles que em Vós esperam.
A cada bênção deve dizer-se: Glória a Vós, Pai e Filho com o Espírito Santo, na
santa Igreja47, agora e pelos séculos dos séculos. Amen.

ORDENAÇÃO DOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS

7. Os presbíteros. Quando se ordena um presbítero, imponha-lhe o bispo a mão 48 781


sobre a cabeça, e toquem-no igualmente os presbíteros presentes, e exprima-se do
modo como acima ficou dito 49, a propósito da ordenação do bispo, orando assim:
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, olhai para este vosso servo e concedei-lhe
o Espírito da graça e do conselho do presbyterium, para que ajude e governe o vosso
povo com pureza de coração, do mesmo modo que olhastes para o vosso povo escolhido
e ordenastes a Moisés que escolhesse anciãos aos quais enchestes do Espírito que
tínheis dado ao vosso servidor50.
Também agora, Senhor, concedei-nos o Espírito da vossa graça, conservando-O
imperecível em nós, e tornai-nos dignos de Vos servir na simplicidade do coração,
louvando-Vos por vosso Filho Jesus Cristo, por quem Vos é dada a glória e o
poder (Pai e Filho) 51 com o Espírito Santo na santa Igreja, agora e pelos séculos
dos séculos. Amen.
8. Os diáconos. Quando se institui um diácono, deve ser escolhido do modo como 782
acima ficou dito, e imponha-lhe as mãos somente o bispo, tal como prescrevemos. Na
ordenação do diácono, só o bispo impõe as mãos, porque o diácono não é ordenado
para o sacerdócio, mas para o serviço do bispo: para fazer o que este lhe indicar.

41
Dar graças é uma expressão que se utiliza no sentido de consagrar o pão e o vinho e também no sentido de
bendizer a Deus pelo que nos dá: Bendito sejais, Senhor, pelo alimento.
42
Secundum panis oblationem et vini.
43
Virtus.
44
Lev 8, 12.
45
Ex 30, 22ss.
46
Sanctifica lac hoc quod quoagulatum est, et nos conquaglans tuae caritatis. Conquaglo tem o sentido
de coagular junto, soldar, unir.
47
Ver nota 40.
48
Ver nota 7.
49
Ver n. 3 (777).
50
Num 11, 17-25.
51
Ver nota 21.
232 SÉCULO III

De facto, ele não faz parte do conselho do clero; administra e indica ao bispo o
que é preciso. Não recebe o Espírito comum do presbyterium do qual participam os
presbíteros, mas aquele que lhe é confiado sob o poder do bispo. É por essa razão que
só o bispo ordena o diácono; mas, sobre o presbítero, imponham também os presbíteros
as mãos, por causa do Espírito comum e semelhante do seu cargo. Os presbíteros têm
somente o poder de receber (o Espírito), mas não têm o poder de o dar. Por isso não
instituem os clérigos. No entanto, na ordenação do presbítero, eles fazem o gesto
enquanto o bispo ordena.
Sobre o diácono, diga assim:
Deus, que criastes todas as coisas e as ordenais pelo Verbo; Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo, a quem enviastes para servir segundo a vossa vontade e nos manifestar o
vosso desígnio: concedei o Espírito de graça e de solicitude a este vosso servo, que
escolhestes para servir a vossa Igreja e para apresentar no vosso santuário o que Vos é
oferecido por aquele que estabelecestes como sumo sacerdote52, para glória do vosso
nome, a fim de que, servindo o seu ministério com fidelidade e de coração puro, alcance
um grau superior53, Vos louve e Vos glorifique pelo vosso Filho Jesus Cristo nosso
Senhor, pelo qual a Vós glória, poder e louvor, com o Espírito Santo agora e sempre,
pelos séculos dos séculos. Amen.

INSTITUIÇÕES E NOMEAÇÕES

783 9. Os confessores. Se um confessor tiver sido preso por causa do nome do Senhor,
não se lhe imporá a mão para o diaconado ou para o presbiterado, porque, em virtude
da sua confissão, ele possui a dignidade de presbítero. Mas, se for instituído bispo,
ser-lhe-á imposta a mão.
Porém, se houver um confessor que não tenha sido levado à presença da autori-
dade, nem tenha sido preso, nem metido na cadeia, nem condenado a outra pena, mas
tenha sido ridicularizado por causa do nome de nosso Senhor e punido com um castigo
doméstico54, se tiver confessado, imponha-se-lhe a mão para qualquer ordem da qual
seja digno.
O bispo deve dar graças como dissemos acima. Não é necessário, de forma
nenhuma que, ao dar graças a Deus, ele pronuncie as mesmas palavras que mencionámos,
como se fizesse esforço por dizê-las de cor. Reze cada um segundo as suas possibili-
dades. Se alguém for capaz de rezar por bastante tempo e dizer uma oração solene, está
bem. Se alguém, quando reza, disser uma oração mais pequena, ninguém o impeça,
contanto que tal oração seja correcta e ortodoxa.
784 10. As viúvas. Quando se institui 55 uma viúva, (ela) não é ordenada 56, mas (apenas)
designada por este nome. Se o marido morreu há muito tempo, seja instituída. Mas se
o marido morreu há pouco, não se confie nela; mesmo que seja idosa, ponha-se à prova
por algum tempo, pois muitas vezes as paixões só envelhecem com quem as traz
dentro de si57. Institua-se a viúva apenas pela palavra, e junte-se às outras (viúvas).
Não se imponha a mão sobre ela, porque não oferece a oblação58 nem exerce um

52
Gen 14, 18.
53
1 Tim 3, 8-13.
54
O castigo doméstico seria um insulto ou um castigo leve.
55
O termo técnico grego é kaqi/ s tasqai , que significa instalar.
56
O termo técnico grego, para designar a ordenação do bispo, do presbítero e do diácono com a imposição das
mãos, é xeirotonei=n.
57
Cf. 1 Tim 5, 11-14. Se a viúva é idosa, deve ser posta à prova antes de ser instituída; se é nova, não deve ser
instituída.
58
O termo técnico grego é prosfora/.
HIPÓLITO DE ROMA 233

ministério litúrgico59. A ordenação60 faz-se sobre os clérigos por causa da liturgia, mas
a viúva só é instituída para a oração, que é (o serviço comum) de todos.
11. Os leitores. O leitor é instituído61 quando o bispo lhe entrega o livro, porque ele 785
não recebe a imposição das mãos62.
12. As virgens. Não se imporá a mão a uma virgem. Basta a sua decisão para fazer 786
dela uma virgem.
13. Os subdiáconos. Não se imporá a mão ao subdiácono, mas nomear-se-á para 787
seguir o diácono.
14. O dom de curar. Se alguém disser: “Recebi, por uma revelação, o dom de curar”,63 788
não se imporá a mão sobre ele. Os próprios factos mostrarão se diz a verdade.

PARTE II
ENTRADA EM CATECUMENADO

15. Os que se aproximam da fé 64. Os que são trazidos, pela primeira vez, para ouvir 789
a Palavra, sejam primeiramente levados à presença dos doutores65, antes de o povo
chegar, e pergunte-se-lhes o motivo pelo qual se aproximam da fé. Dêem testemunho
deles os que os trouxeram, para que se saiba se são capazes de ouvir a Palavra. Sejam
também interrogados sobre o seu estado de vida: se tem mulher, se é escravo. Se algum
deles for escravo de um fiel e o seu senhor lho permitir, ouça a Palavra; mas, se o
senhor não der testemunho dele dizendo que é bom, seja recusado. Se o seu senhor for
pagão, seja ensinado a agradar ao senhor, para evitar calúnias.
Se um homem tem mulher ou se uma mulher tem marido, sejam ensinados a
contentar-se, o marido com a esposa e a esposa com o marido. Se um homem não vive
com uma mulher, seja ensinado a não ter relações ilegítimas, mas a tomar mulher de
acordo com a lei66 ou a permanecer como está.
Se alguém estiver possesso do Demónio, não ouça a Palavra da doutrina enquanto
não for purificado.
16. Trabalhos e profissões. Inquirir-se-á também a respeito dos trabalhos e profissões 790
daqueles que se apresentam para ser instruídos.
Se alguém mantiver uma casa de prostituição, cesse ou seja recusado.
Se alguém é escultor ou pintor seja ensinado a não fazer ídolos; cessem ou sejam
recusados.
Se alguém é actor ou faz representações no teatro, cesse ou seja recusado 67.
Aquele que ensina crianças é bom que cesse; mas se não tiver outra profissão,
seja-lhe permitido ensinar68.

59
O termo técnico grego é leitourgi/# .
60
O termo técnico grego é xeirotoni/a . O seu significado preciso é imposição das mãos.
61
kaqi/ s tatai .
62
ou) d e/ ga/ r xeiroqetei= t ai .
63
Trata-se de um dom especial de Deus, de um carisma.
64
Esta passagem da Tradição Apostólica não trata da inscrição para o baptismo, mas do exame que precedia
a simples aceitação para o catecumenado.
65
Provavelmente trata-se dos catequistas.
66
Gen 2, 23-24; Lev 21, 7; Mt 19, 3-9; Ef 5, 22-33.
67
Estas exigências pretendem evitar actos e ideias comuns no teatro, contrários ao espírito cristão.
68
O professor de crianças ensinava-lhes as fábulas da mitologia pagã, o que contradizia a mensagem de Cristo.
234 SÉCULO III

Igualmente o cocheiro que entra em competições e todo aquele que toma parte
nos jogos públicos, ou cessem ou sejam recusados. O gladiador ou aquele que ensina os
gladiadores a combater, o besteiro que toma parte na caça na arena ou o funcionário
encarregado das lutas de gladiadores, cessem ou sejam recusados.
Aquele que é sacerdote ou guardião de ídolos, cesse ou seja recusado.
O soldado subalterno não matará ninguém. Se receber a ordem de o fazer, não a
executará nem prestará juramento. Se não concordar, seja recusado.
Aquele que tem o poder do gládio e o magistrado da cidade que anda vestido de
púrpura, cessem ou sejam recusados.
O catecúmeno ou o fiel que desejarem tornar-se soldados, sejam recusados,
porque desprezaram a Deus.
A prostituta, o homossexual e o devasso e qualquer outro que pratique actos que
se não devem mencionar, sejam recusados porque são impuros.
Também não se admitirá a exame o mago. O feiticeiro, o astrólogo, o adivinho, o
intérprete de sonhos, o charlatão, o falsário que apara o bordo das moedas ou o
fabricante de amuletos, renunciem ou sejam recusados.
A concubina de um homem, se for sua escrava, se tiver educado os filhos e se se
tiver unido somente a ele, escutará a Palavra; caso contrário seja recusada. O homem
que tiver uma concubina renunciará a ela e tomará uma mulher segundo a lei; se não
quiser, seja recusado.
Se tivermos omitido alguma outra coisa, as próprias profissões vo-lo dirão, pois
todos nós temos o Espírito de Deus.

O CATECUMENADO

791 17. A duração da instrução após o exame dos trabalhos e profissões. Os catecúmenos
ouvirão a Palavra durante três anos. Contudo, se algum deles for zeloso e se aplicar
com empenho, não se julgará o tempo, mas apenas a sua conduta.
792 18. A oração dos que recebem a instrução. Quando o doutor tiver acabado de dar a
catequese, os catecúmenos vão rezar à parte, separados dos fiéis. As mulheres, tanto
as fiéis como as catecúmenas, também rezarão à parte, num lugar da igreja. Ao acaba-
rem de rezar, os catecúmenos não se dão o ósculo da paz, porque o seu beijo ainda não
é santo. Os fiéis saudar-se-ão mutuamente69, os homens aos homens e as mulheres às
mulheres; mas os homens não saudarão as mulheres. Todas as mulheres cobrirão a
cabeça com um véu70; mas não usem apenas um tecido de linho, porque isso não é um
véu 71.
793 19. A imposição das mãos aos catecúmenos. Quando o doutor, após a oração, tiver
imposto a mão72 sobre os catecúmenos, rezará e despedi-los-á. Quer seja clérigo ou
leigo, aquele que ensina fará assim.
Se um catecúmeno for preso por causa do nome do Senhor, não se inquiete
pelo seu testemunho, dado que, se lhe for feita violência ou se for morto antes de
os seus pecados terem sido perdoados, será justificado, pois recebeu o baptismo
no seu sangue.

69
1 Tes 5, 26; 1 Cor 16, 20; 2 Cor 13, 12; Rom 16, 16.
70
O termo latino é pallium.
71
A importância dada ao véu é notória nas Cartas de São Paulo.
72
Trata-se de um exorcismo que pode ser feito pelos catequistas clérigos ou leigos.
HIPÓLITO DE ROMA 235

20. Os que vão receber o baptismo. Ao escolherem-se os que vão receber o baptismo73, 794
examine-se a sua vida: Viveram honestamente enquanto eram catecúmenos? Honraram
as viúvas? Visitaram os doentes? Fizeram toda a espécie de boas obras? Se aqueles que
os trouxeram derem bom testemunho a respeito de cada um, dizendo que foi assim que
ele agiu, ouvirão o Evangelho. A partir do momento em que forem separados, ser-lhes-á
imposta a mão, todos os dias, para os exorcizar. Ao aproximar-se o dia em que vão ser
baptizados, o bispo exorcizará cada um deles, para saber se é puro. Se algum deles não
for bom ou não for puro, será afastado, porque não ouviu a Palavra com fé, pois é
impossível que o Estranho74 se esconda sempre.
Recorde-se aos que vão ser baptizados 75, que devem tomar banho e lavar-se na
quinta-feira. Se uma mulher estiver menstruada, seja posta de lado e receba o baptismo
noutro dia. Os que vão receber o baptismo, jejuarão na sexta-feira. No sábado, o bispo
reunirá num mesmo lugar os que vão receber o baptismo. Ordene-se a todos que rezem
e se ajoelhem. Impondo a mão sobre eles, o bispo esconjurará todo o espírito estranho76,
para que saia e não volte jamais. Ao terminar o exorcismo, sopre-lhes no rosto 77 e,
depois de lhes ter marcado a fronte, os ouvidos e as narinas com o sinal da cruz78, faça-os
levantar. Eles permanecerão toda a noite em vigília: ser-lhes-ão feitas leituras e serão
instruídos. Os que vão ser baptizados não trarão com eles coisa alguma, a não ser o que
trazem para a Eucaristia. De facto, é conveniente que aquele que se tornou digno
ofereça a oblação à mesma hora.

OS SACRAMENTOS DA INICIAÇÃO CRISTÃ

21. A tradição do santo Baptismo. Ao cantar do galo79, reze-se primeiro sobre a água. 795
Quer se trate de água que corre na fonte, ou que corre do alto. Assim deve fazer-se,
excepto em caso de necessidade. Em caso de necessidade permanente e urgente, utili-
ze-se a água que se encontrar. Os que vão ser baptizados despirão as suas roupas,
baptizando-se primeiro as crianças 80. Todas as que puderem falar por si mesmas,
falem. Quanto às que o não podem fazer, os pais ou alguém da família falarão por elas.
Baptizem-se em seguida os homens e finalmente as mulheres, depois de soltarem os
cabelos e terem deposto os enfeites de ouro que trouxerem com elas. Ninguém terá
consigo qualquer objecto estranho ao descer para a água.
No momento fixado para o baptismo, o bispo dará graças sobre o óleo, que porá
num vaso: chama-se-lhe «óleo de acção de graças». Tomará também outro óleo que
exorcizará: chama-se-lhe «óleo de exorcismo». Um diácono toma o óleo de exorcismo
e coloca-se à esquerda do presbítero; outro diácono toma o óleo de acção de graças e
coloca-se à direita do presbítero. O presbítero, ao acolher cada um dos que recebem o
baptismo, ordene-lhe que renuncie, dizendo: Renuncio a ti, Satanás, a toda a tua
pompa e a todas as tuas obras. Depois de cada um ter renunciado, o presbítero unge-o
com o óleo de exorcismo, dizendo: Afaste-se de ti todo o espírito mau. E assim o
confiará nu ao bispo ou ao presbítero que se encontra junto da água para baptizar.

73
Os que vão receber o baptismo chamam-se baptizandi, electi ou competentes. Começa agora a segunda fase
do catecumenado pela escolha dos que vão receber o baptismo, que se prolonga até à vigília baptismal.
74
O “estranho” é Satanás.
75
Baptizandi.
76
Espírito diabólico.
77
É o rito da exsuflação.
78
É o rito da signação.
79
O galo canta várias vezes, de madrugada.
80
Sempre se baptizaram crianças, mesmo na época apostólica: Act 10, 11 s; 11, 14, etc.
236 SÉCULO III

Desça também com ele um diácono, desta maneira: assim que é baptizado aquele
que tiver descido para a água, o que baptiza dir-lhe-á, impondo-lhe a mão: Crês em
Deus Pai todo-poderoso? E o que é baptizado responda: Creio. E, imediatamente,
aquele que baptiza, com a mão pousada sobre a sua cabeça, baptize-o uma vez. E diga
a seguir: Crês em Jesus Cristo, Filho de Deus, que nasceu da Virgem Maria pelo
Espírito Santo, foi crucificado sob Pôncio Pilatos, morreu, ressuscitou ao terceiro dia,
vivo de entre os mortos, subiu aos Céus e está sentado à direita do Pai e há-de vir julgar
os vivos e os mortos? Quando tiver respondido: Creio, será baptizado uma segunda
vez. De novo aquele que baptiza dirá: Crês no Espírito Santo na santa Igreja? Aquele
que é baptizado dirá: Creio, e assim será baptizado uma terceira vez.
Depois de subir da água será ungido com o óleo de acção de graças, pelo pres-
bítero, com estas palavras: Eu te unjo com o óleo santo em nome de Jesus Cristo. Deste
modo, cada um, depois de se ter enxugado, vestir-se-á, e em seguida entrarão na igreja.
796 A Confirmação. O bispo, impondo-lhes a mão, dirá a invocação: Senhor Deus,
que os tornastes dignos de obter a remissão dos pecados pelo banho da regeneração,
tornai-os dignos de ser cumulados do Espírito Santo e enviai sobre eles a vossa graça
para que Vos sirvam segundo a vossa vontade81, pois a Vós pertence a glória, Pai e
Filho com o Espírito Santo, na santa Igreja, agora e pelos séculos dos séculos. Amen.
Em seguida, derramando óleo de acção de graças na sua mão e pousando-lha
sobre a cabeça, diga: Eu te unjo com o óleo santo em Deus Pai todo-poderoso e em
Jesus Cristo e no Espírito Santo.
Depois de lhe ter marcado a fronte, dar-lhe-á o ósculo, dizendo: O Senhor esteja
contigo. E aquele que foi marcado dirá: E com o teu espírito. O bispo fará assim com
cada um.
Em seguida, rezarão juntamente com todo o povo, não rezando com os fiéis
antes de terem obtido tudo isso. Depois de rezar, darão o ósculo da paz.
797 A primeira Eucaristia. A oblação será então apresentada pelos diáconos ao bispo,
e ele dará graças sobre o pão, para que seja o símbolo do Corpo de Cristo, sobre o
cálice de vinho misturado, para que seja a imagem do Sangue que foi derramado por
todos os que nele crêem; sobre o leite e o mel misturados, para indicar o cumprimento
da promessa feita aos nossos pais. Nessa promessa falou Deus da terra onde correm o
leite e o mel; por ela, deu Cristo a sua carne, da qual se alimentam, como crianças, os
que crêem, tornando doce a amargura do coração pela suavidade da Palavra. Dê o bispo
igualmente graças sobre a água apresentada em oblação, como representação do banho
baptismal, para que o homem interior, que é a alma, obtenha os mesmos efeitos que o
corpo.
Todas estas coisas explique-as o bispo aos que recebem a comunhão. Depois de
partir o pão, ao apresentar cada pedaço, diga: O pão do Céu em Jesus Cristo. Aquele
que o recebe responda: Amen. Se os presbíteros não forem suficientes, peguem nos
cálices os diáconos, e coloquem-se em boa ordem: em primeiro lugar o que segura a
água, em segundo o que segura o leite, em terceiro o que segura o vinho.
Os que recebem a comunhão provem de cada cálice, dizendo três vezes aquele
que dá: Em Deus Pai todo-poderoso. Responda o que recebe: Amen. – E no Senhor
Jesus Cristo. E ele dirá: Amen. – E no Espírito Santo e na santa Igreja. E ele dirá: Amen.
Assim se fará com cada um dos que comungam. Quando tudo tiver terminado, cada um
se apressará a fazer boas obras, a agradar a Deus e a viver de maneira digna, pondo-se
à disposição da Igreja, fazendo o que aprendeu e progredindo na piedade.

81
Domine Deus, sicut fecisti illos dignos accipere remissionem peccatorum in saeculum venturum, fac eos dignos
ut repleantur Spiritu Sancto, et mitte super eos gratiam tuam, ut tibi serviant secundum voluntatem tuam...
HIPÓLITO DE ROMA 237

Transmiti-vos isto de maneira breve sobre o santo Baptismo e a santa Oblação,


porque já fostes instruídos sobre a ressurreição da carne e outros ensinamentos de
acordo com o que está escrito. Se algo mais deve ser lembrado, diga-o o bispo, em
segredo, aos que tiverem recebido a Eucaristia. Os infiéis não devem ter conhecimento
de nada, a não ser depois de também a terem recebido. É a pedra branca da qual João
disse: «Nela está escrito um nome novo, que ninguém conhece, a não ser aquele que o
recebe».

PARTE III
A COMUNHÃO E O JEJUM

22. A comunhão dominical. No domingo o bispo, se for possível, distribuirá a comunhão 798
a todo o povo, com as próprias mãos. Os diáconos fazem a fracção, e os presbíteros
partirão igualmente o pão. Ao trazer a Eucaristia ao presbítero, o diácono apresentar-lhe-
-á o vaso e o próprio presbítero o tomará e distribuirá ao povo com a sua mão. Nos
outros dias, comungar-se-á segundo as instruções do bispo.
23. O jejum. As viúvas e as virgens devem jejuar frequentemente e rezar pela Igreja. 799
Os presbíteros jejuarão quando quiserem, assim como os leigos. O bispo não pode
jejuar a não ser nos dias em que todo o povo jejua, pois pode acontecer que alguém
queira fazer uma oferenda, e o bispo não pode recusar. Quando faz a fracção, prova
sempre alguma coisa.

O ÁGAPE

24. As dádivas aos doentes. O diácono, em caso de necessidade, dará com solicitude 800
o signum aos enfermos, se o presbítero não estiver presente. Depois de lhes dar
quanto é necessário e de receber o que for distribuído, dará graças, e eles consumirão aí
o que lhes foi dado.
Aqueles que recebem os dons devem servir com zelo. Se alguém receber dons para
levar a uma viúva, a um doente ou a alguém que se ocupa das coisas da Igreja, levá-los-á no
mesmo dia. Se o não fizer, leve-os no dia seguinte, acrescentando algo do que é seu ao
que havia, por ter permanecido em sua casa o pão dos pobres.
25. A introdução da lâmpada na ceia da comunidade. Quando o bispo está presente, 801
ao cair da noite, o diácono traz a lâmpada. O bispo, de pé, no meio de todos os fiéis
presentes, dará graças. Em primeiro lugar saudará, dizendo: O Senhor esteja convosco.
O povo dirá: E com o teu espírito. – Dêmos graças ao Senhor. E responderão: É digno
e justo. A Ele pertencem a grandeza e a exaltação com a glória. Não dirá: Corações ao
alto, porque se diz na Oblação. Rezará desta maneira, dizendo: Nós Vos damos graças,
Senhor, por vosso Filho Jesus Cristo, nosso Senhor, pelo qual nos iluminastes reve-
lando-nos a luz incorruptível. Passada a duração do dia e chegados ao princípio da
noite, tendo-nos saciado da luz do dia que criastes para nossa satisfação e não nos
faltando agora, por vossa graça, a luz da noite, nós Vos louvamos e Vos glorificamos
pelo vosso Filho Jesus Cristo nosso Senhor, pelo qual a Vós a glória, o poder e a honra,
com o Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.
Responderão todos: Amen.
Após a ceia, levantar-se-ão orando. Os meninos e as virgens dirão salmos.
A seguir, ao tomar o cálice misturado da oblação, o diácono dirá um dos salmos
em que está escrito aleluia. Se o presbítero o ordenar, dirá ainda outro dos mesmos
salmos. Depois de o bispo oferecer o cálice, dirá um dos salmos que a este se referem,
238 SÉCULO III

com aleluia, e todos repetirão: aleluia. Quando se recitarem os salmos, todos dirão:
aleluia, que significa: louvamos a Deus «que é»; glória e louvor Àquele que criou o
mundo inteiro somente pela sua Palavra. Terminado o salmo, o bispo abençoará o
cálice e dará pedaços de pão a todos os fiéis.
802 26. A refeição comum. Ao comerem, os fiéis presentes, antes de partirem o seu
próprio pão, receberão da mão do bispo um pedaço de pão: é uma eulogia e não uma
Eucaristia, símbolo do Corpo do Senhor.
Convém que todos, antes de beberem, peguem num cálice e dêem graças sobre
ele. Assim, depois, beberão e comerão com toda a pureza. Aos catecúmenos dar-se-á
um pão de exorcismo, e cada um oferecerá um cálice.
803 27. Os catecúmenos não devem comer com os fiéis. O catecúmeno não tomará parte
na ceia do Senhor. Durante qualquer refeição, aquele que se serve deve fazer memória
de quem o convidou, pois para isso foi convidado a entrar sob o seu tecto.
804 28. Deve comer-se com sabedoria e moderação. Quando comerdes e beberdes, fa-
zei-o com dignidade e não até ficardes ébrios, para que ninguém se ria, ou para não se
entristeça, pela vossa turbulência, aquele que vos convidou, mas deseje ser julgado
digno de que os santos entrem em sua casa. Vós sois, diz ele, o sal da terra.
Se alguém oferecer a todos, em comum, um apofo/rhton, aceitai a vossa parte.
Mas se é para que todos comam o suficiente, comei de tal maneira que ainda sobre, e
para que aquele que vos convidou possa enviar algo a quem ele quiser, como sobras dos
santos, e eles se alegrem com toda a confiança.
Durante a refeição, os que foram convidados comerão em silêncio, sem discussões,
dizendo apenas o que o bispo permita e respondendo-lhe se perguntar alguma coisa.
Quando o bispo toma a palavra, todos se devem calar com modéstia e consideração,
até que ele faça novamente uma pergunta. E se, na ausência do bispo, os fiéis tomam
lugar na refeição em presença de um presbítero ou de um diácono, deverão comer com
a mesma dignidade e apressar-se a receber, da mão do presbítero ou do diácono, a
eulogia. O catecúmeno receberá um pão de exorcismo. Se os leigos se reunirem sozi-
nhos, procedam com prudência, porque um leigo não pode fazer a eulogia.
805 29. Deve comer-se com acção de graças. Cada qual comerá em nome do Senhor,
pois o que agrada a Deus é que, sendo todos unidos e sóbrios, mostremos emulação no
nosso comportamento, mesmo no meio dos gentios.
806 30. A refeição das viúvas. As viúvas convidadas por alguém para uma refeição de-
vem ser de idade já madura. Quem as convidou deve despedi-las antes da noite. Aquele
que não puder convidá-las por causa do cargo que recebeu, despeça-as depois de lhes
ter dado alimento e vinho, que tomarão em casa, como lhes agradar.
807 31. Os frutos que devem oferecer-se ao bispo. Apressar-se-ão todos a trazer ao
bispo, como primícias, os primeiros frutos da estação. O bispo, ao oferecê-los, abençoá-
-los-á e dirá o nome de quem lhos ofereceu, dizendo:
Nós Vos damos graças, Deus, e Vos oferecemos as primícias dos frutos que nos
destes para que os tomemos, depois de os terdes feito crescer pela vossa Palavra, e de
terdes ordenado à terra que produzisse frutos de toda a espécie para a alegria e o
alimento do género humano e de todos os animais. Por tudo isso nós Vos louvamos,
Deus, e por todos os benefícios que nos concedestes, ornando toda a criação de frutos
variados, pelo vosso Filho Jesus Cristo, nosso Senhor, pelo qual a Vós a glória pelos
séculos dos séculos. Amen.
808 32. A bênção dos frutos. Abençoam-se estes frutos: a uva, os figos, a romã, as
azeitonas, a maçã, a pêra, a amora, o pêssego, a cereja, a amêndoa, a ameixa; não,
porém, a melancia, o melão, o pepino, o cogumelo, o alho, ou qualquer outro legume.
HIPÓLITO DE ROMA 239

Por vezes oferecem-se flores: podem oferecer-se a rosa e o lírio, mas não outras. Sobre
todas as coisas que tomamos, dar-se-ão graças ao Deus santo, utilizando-as para sua glória.

O JEJUM DA PÁSCOA

33. Ninguém deve provar coisa alguma, na Páscoa, antes da hora em que se pode 809
comer. Ninguém coma nada, na Páscoa, antes de se fazer a oblação, pois não será
considerado o jejum de quem assim proceder. Se uma mulher estiver grávida ou se
alguém estiver doente e não puder jejuar dois dias, jejuará apenas no sábado por
necessidade, contentando-se com pão e água.
Se alguém, por se encontrar no mar ou em alguma necessidade, se esquecer do dia
de Páscoa, quando o vier a saber fará jejum depois da cinquentena pascal. Porque a
Páscoa que nós celebramos não é a figura. A figura passou, cessou no segundo mês, mas
é preciso jejuar quando se sabe a verdade.

A VIDA QUOTIDIANA DA COMUNIDADE

34. Os diáconos devem ser assíduos junto do bispo. Cada diácono, com os subdiáconos, 810
deve ser assíduo junto do bispo. Ser-lhe-ão também indicados os doentes, para que os
visite, se for do agrado do bispo. Um doente sente grande conforto quando o sumo
sacerdote se lembra dele.
35. O momento em que se deve orar. Os fiéis, assim que acordarem e se levantarem, 811
antes de dar início ao trabalho, rezem a Deus. Só depois começarão a trabalhar. Porém,
se houver uma instrução da Palavra, prefiram ir escutar a palavra de Deus, para conforto
da sua alma. Apressem-se a ir à igreja, onde floresce o Espírito.
36. Deve receber-se a Eucaristia, sempre que se faz a oblação, antes de comer seja 812
o que for. Apresse-se todo o fiel a receber a Eucaristia, antes de comer seja o que for.
Efectivamente, se ele a receber com fé, mesmo que lhe dêem algum veneno mortal, isso
não poderá prejudicá-lo.
37. A Eucaristia deve guardar-se com cuidado. Cada um terá cuidado para que um 813
infiel não prove a Eucaristia, nem o faça um rato ou outro animal, e para que nenhuma
parcela caia no chão e se perca, porque o Corpo de Cristo é para se comer e não para
se desprezar.
38. Não deve cair nada do cálice. Ao consagrar o cálice em nome de Deus, recebeste-o 814
como o símbolo do Sangue de Cristo. Não derrames nada do que ele contém, para não
acontecer que um espírito estranho venha lambê-lo, como se o desprezasses. Serias
responsável do Sangue, como quem despreza o preço pelo qual foi comprado.
39. Os diáconos e os presbíteros. Os diáconos e os presbíteros reunir-se-ão todos 815
os dias no local que o bispo lhes tiver prescrito. Os diáconos não deixem de se reunir
sempre, a não ser que a doença os impeça de o fazer. Quando todos estiverem reunidos,
ensinem os que se encontram na igreja e, após a oração, dirija-se cada um ao trabalho
que lhe compete.
40. Os locais de sepultura. Não se deve impor uma taxa pesada para enterrar nos 816
cemitérios, porque é a coisa comum de todos os pobres. Pague-se, porém, o salário do
trabalhador àquele que fez a cova, e o preço dos tijolos. Quanto aos que se encontram
no lugar e cuidam dele, o bispo alimentá-los-á com o que é dado à Igreja, para que não
paguem uma taxa pesada os que vêm a estes lugares.
41. O momento em que se deve orar. Todos os fiéis, homens e mulheres, ao levanta- 817
rem-se do sono pela manhã, devem lavar as mãos e orar a Deus antes de dar início a
240 SÉCULO III

qualquer trabalho. Só depois começarão a trabalhar. Se houver alguma instrução da


Palavra, cada um deve preferir encaminhar-se para lá, considerando em si mesmo que é
a Deus que ouve naquele que ensina.
Todo aquele que reza na igreja poderá evitar a malícia do dia, e o que for piedoso
pensará que é um grande mal não ir ao lugar onde se dá a instrução, sobretudo se souber
ler ou se o doutor estiver presente. Ninguém de entre vós chegue tarde à igreja, lugar
onde se ensina a doutrina. Se assim for, aquele que fala terá ocasião de dizer o que é útil
a cada um, e tu ouvirás coisas que não conheces e tirarás proveito do que o Espírito
Santo te disser por intermédio daquele que faz a instrução. Deste modo, a tua fé
tornar-se-á mais firme com o que ouvires. Também lá te dirão o que deves fazer em tua
casa. Cada um deve, por isso, esforçar-se por ir à igreja, lugar onde floresce o Espírito.
Nos dias em que não houver instrução, quando cada um estiver em sua casa, tome um
livro santo e faça uma leitura suficiente que lhe pareça proveitosa.
Se estiveres em tua casa, reza à hora terceira e louva a Deus. Se estiveres noutro
lugar nesse momento, reza a Deus em teu coração, pois a essa hora viram Cristo
pregado no madeiro. É também por essa razão que, no Antigo Testamento, a Lei
prescreve que se ofereça o pão da proposição à hora terceira, como símbolo do Corpo
e do Sangue de Cristo; a imolação do cordeiro irracional é o símbolo do Cordeiro
perfeito. Cristo é o Pastor e é também o Pão que desceu do Céu.
Reza igualmente à hora sexta, porque quando Cristo foi pregado no madeiro da
cruz, o dia foi interrompido e fez-se uma grande obscuridade. Por isso far-se-á a esta
hora uma oração potente, imitando a voz daquele que, ao rezar, cobriu de trevas toda
a criação para os Judeus incrédulos.
Far-se-á também uma grande oração e um grande louvor à hora nona para imitar
a forma como a alma dos justos louva a Deus que não mente, que Se lembrou dos seus
santos e enviou o seu Verbo para os iluminar. A essa hora Cristo, ferido no lado,
derramou água e sangue e, iluminando o resto do dia, estendeu-o até à noite. Por isso,
quando Cristo começou a adormecer, fazendo começar o dia seguinte, deu uma imagem
da Ressurreição.
Reza ainda antes do teu corpo repousar no leito. Mas, por volta da meia-noite,
levanta-te, lava as mãos e ora. Se a tua mulher estiver presente, rezai os dois juntos;
mas, se ela não for ainda fiel, retira-te para outro quarto, reza e volta para a tua cama.
Não hesites em rezar: aquele que está unido pelos laços do matrimónio não é impuro.
Na verdade, os que tomaram banho não precisam de se lavar novamente, porque estão
limpos. Quando fazes o sinal da cruz com o sopro húmido, recolhendo a saliva com a
tua mão, o teu corpo é santificado até aos pés, pois o dom do Espírito e a água do
banho baptismal, oferecidos a jorrar de um coração crente como se viessem de uma
fonte, santificam aquele que tem fé. É, pois, necessário rezar a esta hora.
Os antigos, que nos legaram a tradição, ensinaram-nos que a essa hora toda a
criação repousa por um momento para louvar o Senhor: os astros, as árvores, as águas
param um instante e toda a multidão dos Anjos que O servem, louva a Deus nessa hora
com as almas dos justos. Por essa razão, os que crêem devem apressar-se a rezar nessa
hora.
Dando ainda testemunho disso, o Senhor diz: À meia-noite ouviu-se um grito
que dizia: Aí vem o esposo, levantai-vos para ir ao seu encontro. E continua, dizendo:
Vigiai, portanto, pois não sabeis a que horas ele vem.
Ao cantar do galo, levanta-te e reza do mesmo modo, pois nessa hora, ao cantar
do galo, os filhos de Israel negaram a Cristo, que nós conhecemos pela fé, na esperança
da luz eterna na ressurreição dos mortos, com os olhos postos nesse dia.
HIPÓLITO DE ROMA 241

Assim, todos vós, os fiéis, fazendo isso e guardando a lembrança, instruindo-vos


mutuamente e dando o exemplo aos catecúmenos, não podereis ser tentados nem
perder--vos, pois vos lembrais sempre de Cristo.
42. O sinal da cruz. Se fores tentado, faz piedosamente o sinal da cruz na fronte, 818
pois este é o sinal da paixão, conhecido e experimentado contra o Diabo, desde que o
faças com fé, não para ser visto pelos homens, mas usando-o com destreza como um
escudo. O Adversário, ao ver a força que vem do coração, quando o homem interior,
isto é, aquele que é animado pelo Verbo, mostra a imagem interior do Verbo formada no
exterior, é posto em fuga pelo Espírito que está em ti. Foi para simbolizar isso, através
do cordeiro pascal que era imolado, que Moisés aspergiu a padieira e tingiu os umbrais
das portas com sangue. Desse modo simbolizava ele a fé no Cordeiro perfeito, fé que
agora está em nós. Ao fazermos o sinal da cruz na fronte e nos olhos com a mão,
afugentamos aquele que procura exterminar-nos.
43. Conclusão. Se estas coisas forem recebidas com gratidão e fé ortodoxa, propor- 819
cionarão à Igreja a edificação e aos que crêem, a vida eterna. Aconselho que isto seja
guardado por todos aqueles que são prudentes. Se todos os que escutam a tradição
apostólica a seguirem e guardarem, nenhum herege nem homem absolutamente nenhum
vos poderá induzir em erro. Na verdade, se muitas heresias se desenvolveram, foi
porque os chefes não quiseram instruir-se com a advertência dos Apóstolos, mas,
seguindo a sua própria fantasia, fizeram o que quiseram, e não o que convém. Se
omitimos alguma coisa, bem-amados, Deus o revelará aos que forem dignos disso,
porque Ele governa a Igreja para que chegue a porto tranquilo.

Comentário ao Génesis 82
Gen 38, 19. Depois de Judá ter estado com ela83, deu-lhe, como um presente, três 820
coisas: o anel de selar, o cordão e o báculo que levava na mão. Eram os sinais de que ele
tinha estado com ela. Do mesmo modo Cristo deu de presente à sua Igreja três coisas:
o seu Corpo, o seu Sangue e o Baptismo. E se Tamar foi salva por três coisas, a saber,
o anel, o cordão e o báculo, assim a santa Igreja por três coisas, isto é, pela profissão
de fé, pelo Corpo e pelo Sangue foi igualmente salva da idolatria. Ela escolheu, para os
seus filhos, a salvação da humanidade por meio de Cristo, e nós recebemos o seu
Corpo e o seu Sangue, pois Ele é o dom da vida eterna para todo aquele que se
aproxima d’Ele com humildade.

Comentário ao Cântico dos Cânticos 84


Cânt 1, 4. Amei os teus peitos mais que o vinho85. Não mais do que o vinho misturado 821
por Cristo, mas mais do que aquele que, em tempos passados, embriagou Noé, ou
seduziu Lot. Mais do que este vinho amava eu as tuas fontes de leite86, pois os peitos
de Cristo são os dois mandamentos. Ele alegra, mas não tanto que entonteça. Por isso
diz o Apóstolo: Não vos embriagueis com vinho87.

82
H IPÓLITO DE R OMA , Commentarium in Genesim (=PG 10, 583-605; GCS 1).
83
Com Tamar; cf. Gen 38, 16 s.
84
H IPÓLITO DE R OMA , Comentário ao Cântico dos Cânticos (=PG 10, 628-629; GCS 1).
85
Cant 1, 4.
86
Os seios femininos.
87
Ef 5, 18.
242 SÉCULO III

Comentário a Daniel 88

LIVRO I
822 16. 1 Procurando eles ocasião propícia, eis que veio Susana, como no dia anterior e
dois dias antes, acompanhada apenas por duas criadas, e preparava-se para tomar
banho no jardim, porque fazia muito calor. 2 Que dia propício é esse senão o da
Páscoa89? Nesse dia é preparado um banho no jardim para os que estavam destinados
ao fogo, e a Igreja, tal como Susana, depois de passar pelo banho, é apresentada a Deus
como esposa pura. Tal como acompanhavam Susana duas criadas, assim a fé e a
caridade acompanham a Igreja e preparam, para aqueles que recebem o banho, o óleo e
o sabão. 3 O que é o sabão senão os preceitos do Verbo? O que é o óleo senão o poder
do Espírito Santo com que os crentes, depois do banho, são ungidos com unguento?...
Quando a Igreja deseja receber o banho espiritual, deve necessariamente ser acompa-
nhada por duas criadas: na verdade, é pela fé em Cristo e pelo amor de Deus que a
Igreja, em penitência, recebe o banho.
823 17. 6 Não se chama igreja a um lugar nem a uma casa feita com pedras e terra, e tão
pouco se pode chamar igreja ao homem isolado, porque uma casa está sujeita à destrui-
ção e os homens à morte. Então o que é a Igreja? É a santa assembleia daqueles que
vivem na justiça. A Igreja é a concórdia, o caminho dos santos para a comunidade, o
jardim espiritual de Deus, plantado em Cristo, como a Oriente, onde se vê toda a
espécie de árvores: a linhagem dos Patriarcas que morreram no começo, as obras dos
Profetas realizadas depois da Lei, o coro dos Apóstolos que recebiam a sua sabedoria
do Verbo, o coro dos mártires salvos pelo sangue de Cristo, a teoria das Virgens
santificadas pela água, o coro dos Doutores, a ordem dos Bispos, dos Presbíteros e
dos Diáconos. Num ordenamento perfeito, todos estes santos florescem no meio da
Igreja e não podem secar.
824 20. Como é fácil de ver, com toda a verdade, o que aconteceu a Susana encontra-lo tu
ainda hoje realizado na Igreja. Com efeito, quando os dois povos se põem de acordo
para seduzir os santos, esperam o dia propício e, penetrando como intrusos na casa do
Senhor90, quando toda a gente aí ora e canta hinos a Deus, apoderam-se de alguns,
trazem-nos para fora e fazem-lhes violência, dizendo-lhes: «Vamos, tende relações
connosco e honrai os deuses». Caso contrário testemunharemos contra vós. E como
estes não consentem, levam-nos a tribunal, acusam-nos de agir contra o decreto de
César e fazem-nos condenar à morte.

LIVRO IV
825 35. Depois, Gabriel disse: Após estas sessenta e duas semanas, um Ungido será
exterminado e ninguém lhe sucederá. A cidade e o santuário serão destruídos por um
chefe invasor; ela acabará devastada e até ao fim haverá guerra e devastação decre-
tada. Ele concluirá uma sólida aliança com um grande número, por uma semana; ao
meio da semana fará cessar o sacrifício e a oblação e, sobre o pináculo do templo,
estará a abominação devastadora, e isto até que a destruição decretada se estenda
sobre o devastador91. Assim, pois, uma vez cumpridas as sessenta e duas semanas e
depois de Cristo ter vindo e pregado o Evangelho em toda a parte, quando os tempos
estiverem cumpridos, será deixada uma semana, a última, na qual aparecerão Elias e

88
H IPÓLITO DE R OMA , Comentário a Daniel (=PG 10, 638-698; GCS 1; SCh 14).
89
Testemunho explícito da ligação entre Páscoa e baptismo.
90
o) i = k oj Deou= .
91
Dan 9, 26-27.
HIPÓLITO DE ROMA 243

Henoc. E no meio dela virá a abominação destruidora, o Anticristo, que anunciará ao mundo
a devastação. Depois de ele ter vindo, cessarão o sacrifício e a libação sacrificial, que agora
são oferecidos a Deus pelos povos de todo o mundo.

Refutação de todas as heresias 92

LIVRO VI
39. Marcos, um dos seus mestres, perito em artes mágicas, enganou a muitos, fazendo 826
coisas fraudulentas com a sua habilidade e com a ajuda dos Demónios. Dizia ele que
estava na suma virtude procedente das regiões invisíveis e desconhecidas. Tomando
muitas vezes um cálice, e como que consagrando-o93, prolongava muito o discurso de
invocação94, e fazia com que a bebida aparecesse vermelha e às vezes roxo-claro, de
modo que os presentes, vítimas do engano, acreditassem que descia alguma graça que
dava à bebida aquele aspecto de sangue. Este impostor enganou muitos por esse
tempo; mas agora, desmascarado, já cessou. Deitava no líquido, sem ninguém ver, uma
droga capaz de produzir essa cor e, falando sempre, esperava até que ela se dissolvesse
no líquido e mudasse a cor à bebida...
40. Então entregava outro cálice cheio daquele líquido a uma mulher para que o 827
consagrasse, enquanto ele permanecia junto dela com um cálice maior, mas vazio. E,
depois de a mulher o ter consagrado, lançava uma parte no seu próprio cálice e deste
outra vez naquele, dizendo estas palavras: «A graça incompreensível e inefável, que
existe antes de todas as coisas, encha o teu ser interior e acrescente em ti o conhecimento,
depositando em boa terra o grão de mostarda». Com estas e outras palavras deixava em
todos os presentes a impressão de ser um taumaturgo, porque fazia com que o cálice
grande se enchesse com o líquido do pequeno e transbordasse abundantemente...
41. 4 Eles (os Gnósticos) dizem qualquer coisa em segredo, ao impor a mão sobre 828
aquele que recebe a redenção.

Obra perdida 95
4. Dois períodos do ano nos remetem para o Salvador, como se Ele fosse o seu 829
próprio modelo, e para que realize o que fora predito a seu respeito: a Páscoa, para que
se mostre como aquele deve ser imolado à maneira de um cordeiro e seja olhado como
a verdadeira Páscoa, segundo as palavras do Apóstolo: A nossa Páscoa imolado é
Cristo Senhor; e o Pentecostes, para que anuncie o Reino dos Céus, uma vez que Ele
foi o primeiro a subir aos Céus e a oferecer o homem como presente a Deus.

92
H IPÓLITO DE ROMA , Philosophoumena ou Refutatio omnium haeresium (=PG 16, 3017-3454; GCS 26).
93
eu)xaristw= n.
94
lo/ g on th= j e) p iklh/ s ewj .
95
H IPÓLITO DE R OMA , Obra perdida (=GCS 1). Ei( = j to\ n Elka/ n an kai\ ei( = j th\ n A( n na/ n ... Este testemunho só
o conhecemos graças a Teodoreto de Ciro, que o transcreve na sua obra histórica.
244 SÉCULO III

Didascália dos Apóstolos 1

LIVRO II

830 2. 3 O bispo, antes de receber a imposição das mãos para tomar o cargo do episcopado,
deve ser provado, para se saber se é puro, se a sua esposa é fiel e pura, se os seus filhos
cresceram no temor de Deus, se ele os educou e instruiu, se os seus servos o temem e
respeitam e se todos lhe obedecem, 4 porque, se os seus próximos pela carne lhe
resistem e não obedecem, como é que os de fora da sua casa se ligarão a ele e lhe serão
submissos?
831 10. 1 Se o bispo não tem uma consciência pura, se mostra atenções (por algum
pecador escandaloso) por motivos de interesse ou por esperar receber presentes, se
poupa o pecador insolente e lhe permite ficar na igreja, esse bispo desonra a sua Igreja
diante de Deus e diante dos homens, e bem assim diante dos neófitos e dos catecúmenos.
Além disso, arrasta consigo rapazes e raparigas para a perdição. 2 De facto, por causa
da insolência triunfante do pecador – sempre que este continua a aparecer diante deles
– sentir-se-ão abalados, imitá-lo-ão e deixar-se-ão seduzir. Serão arrastados para males
idênticos e perder-se-ão com ele.
3 Mas, se o pecador vê que o bispo e os seus ministros são sem mancha e que
todo o rebanho é sem mácula, não ousará, normalmente, juntar-se à assembleia dos
fiéis, porque a sua consciência o acusa dentro de si mesmo. 4 Se, apesar de tudo, o
pecador for demasiado audaz e entrar na assembleia, deve ser chamado e repreendido
pelo bispo. 5 O pecador olhará para todos os membros da comunidade e não encontrará
mácula em nenhum deles: nem no bispo nem naqueles que o rodeiam. Então corará de
confusão e, envergonhado, retirar-se-á a chorar, com a alma cheia de remorsos, e o
rebanho ficará sem mancha. Além disso, depois de partir, o pecador arrepender-se-á
dos seus pecados: chorará e gemerá diante de Deus e recobrará a esperança. Por seu
lado, o rebanho dos fiéis, vendo as lágrimas e os lamentos deste homem, ficará cheio de
temor; todos pensarão e constarão que o pecador perecerá.
832 11. Por isso, ó bispo, procura ser puro nas tuas acções. Reconhece que, pela tua
posição, foste estabelecido como imagem de Deus omnipotente e que ocupas o lugar
de Deus todo-poderoso. Ocupa, pois, a tua sede na igreja, e ensina como alguém que
possui o poder de julgar os pecadores em vez de Deus todo-poderoso. Porque foi
a vós, ó bispos, que se disse no Evangelho: Tudo o que ligardes na terra será
ligado no Céu 2 .
833 12. 1 Tu, bispo, julga com severidade como Deus todo-poderoso, mas acolhe com
caridade os pecadores que sentem remorsos, como Deus todo-poderoso3. Repreende,
exorta e ensina, porque o Senhor Deus jurou solenemente que concederá o seu perdão
aos pecadores, como disse por Ezequiel: 2 Filho de homem, diz aos Israelitas: Vós
dizeis: “Os nossos pecados e as nossas faltas pesam sobre nós e é por causa deles que
morremos. Como poderemos nós viver”? Diz-lhes isto: “Por minha vida, oráculo do
Senhor Deus, não tenho prazer na morte do ímpio, mas sim na sua conversão, a fim
de que tenha a vida. Convertei-vos. Afastai-vos desse mau caminho que seguis; por
que persistis em querer morrer, casa de Israel4”? 3 O Senhor deu, portanto, aos
1
Didascalia Apostolorum (=F. X. Funk, Paterbonae, 1905, Turim 1962 2). A data de composição da Didas-
cália, proposta por alguns estudiosos, é 230.
2
Mt 18, 18.
3
Não há, em toda a obra, qualquer indício de rigorismo na questão da penitência.
4
Ez 33, 10-11.
DIDASCÁLIA DOS APÓSTOLOS 245

pecadores que se convertem, a esperança de que lhes será aplicada a redenção para seu
arrependimento, a fim de não caírem no desespero, não ficarem nos seus pecados nem
lhes juntarem outros, mas ao contrário, para que se arrependam, chorem e se lamentem
pelos seus pecados e se convertam de todo o coração...
18. 7 Quanto aos que pecarem, repreende-os, corrige-os e depois levanta-os, perdoando. 834
Se aquele que pecou se arrepende e chora a sua culpa, recebe-o. E toda a Igreja reze
enquanto impões as mãos sobre ele, e depois permite-lhe que fique na igreja.
20. 8 Tu portanto, como pastor compadecido, cheio de amor e de ternura, que se 835
preocupa com o seu rebanho, procura, conta as ovelhas, procura a que se perdeu, como
disse o Senhor Deus, Jesus Cristo, nosso mestre e nosso bom Salvador: Deixa as
noventa e nove nas montanhas e vai procurar a única que se perdeu, e, quando a
encontrares, põe-na aos ombros, alegrando-te por teres encontrado a ovelha perdida;
leva-a e junta-a ao rebanho. 9 Obedece, tu também, bispo, procura aquele que pere-
ceu, dirige aquele que erra, traz aquele que se afasta, porque tu tens o poder de perdoar
os pecados àquele que caiu, uma vez que está revestido da pessoa de Cristo. Também
o próprio Senhor diz àquele que pecou: Os teus pecados estão perdoados, a tua fé te
salvou, vai em paz. 10 Ora a paz é a Igreja da tranquilidade e do repouso na qual Ele
introduzia aqueles que libertava dos seus pecados, cheios de saúde e sem mancha, com
uma boa esperança, atentos aos trabalhos fatigantes e penosos. Como médico sábio e
compadecido, Ele curava toda a gente, e sobretudo os que erravam no pecado, porque
não são os que têm saúde que têm necessidade de médico, mas os doentes. 11 E tu,
bispo, foste feito médico da Igreja; não deixes de oferecer o remédio para curares, com
a sua ajuda, aqueles que estão doentes nos pecados; de todas as maneiras, porém,
cuida, cura, e condu-los à Igreja sãos e salvos, para não incorreres nesta palavra que o
Senhor disse: Vós submetei-las com violência e desprezo.
21. 1 Não sejas duro, não julgues depressa, não sejas sem misericórdia, não desprezes o 836
povo que te está submetido, não lhe escondas o lugar da penitência. Foi isso o que Ele
disse: Vós submetei-las com violência e desprezo.
28. 4 Se alguém quiser honrar os presbíteros, dê-lhes uma dupla porção, como aos 837
diáconos; com efeito, deveis venerá-los também a eles como apóstolos e conselheiros
do bispo, e coroa da Igreja; eles são o conselho e o senado da Igreja. 5 Se alguém é
leitor, receba também juntamente com os presbíteros.
33. 2 Venerai portanto os bispos, que vos libertaram dos pecados, vos regeneram 838
pela água, vos encheram do Espírito Santo, vos alimentam com a Palavra, como se
fosse leite, vos educam na doutrina, vos fortificam pelo ensino, vos fizeram participar
na Eucaristia santa de Deus, e, como co-herdeiros, na promessa de Deus; venerai-os e
prestai-lhes toda a espécie de atenções...
39. 4 Quando o pecador confessa que sente remorsos, proceder-se-á como segue... 6 839
Quando os pagãos se convertem e dizem: Cremos, nós recebemo-los na comunidade
cristã, para que escutem a Palavra, mas não os visitamos enquanto não receberem o
selo nem se tiverem tornado perfeitos. Do mesmo modo, não visitamos os pecadores
até que o seu arrependimento tenha dado frutos. Mas estes pecadores têm o direito de
entrar na assembleia para escutar a Palavra, a fim de não perecerem completamente.
Não participarão na Oração (eucarística), mas sairão da igreja; porque se eles se derem
conta de que lhes é interdito tomar parte na assembleia, irão corrigir-se, converter-se e
esforçar-se por ser readmitidos à oração da comunidade. Além disso, os fiéis que vêem
e ouvem dizer que estes pecadores saem como pagãos e publicanos, sentirão medo, e
procurarão cuidadosamente não pecar, com medo de que lhes aconteça a mesma coisa,
e que também eles tenham de abandonar a igreja, se estiverem convencidos de ter
pecado ou mentido.
246 SÉCULO III

840 40. 1 Mas não proíbas, ó bispo, a estes pecadores, que entrem na igreja para escutar
a Palavra, porque nosso Senhor, o Salvador, não rejeitou nem condenou completamen-
te os pecadores e os publicanos. Chegou mesmo a comer com eles. Por causa disso, os
fariseus murmuraram contra Ele e disseram: Ele come com os publicanos e os pecadores5.
Mas nosso Senhor respondeu-lhes: Não são os que têm saúde que precisam de médi-
co, mas sim os doentes6. 2 Por isso, ide ter com aqueles que estão convencidos de ter
pecado e que estão doentes, atraí-os a vós, preocupai-vos com eles, falai-lhes, conso-
lai-os, animai-os e convertei-os.
841 41. 1 Quando um deles se converter e o seu arrependimento der frutos, recebei-o na
oração, como recebeis o pagão. 2 Do mesmo modo que baptizas o pagão e o admites à
comunhão, impõe também a mão ao pecador, enquanto toda a assembleia reza por ele
e, em seguida, autoriza-o a entrar na igreja e acolhe-o na tua comunidade. A imposição
das mãos faz as vezes do baptismo para o pecador, porque nós recebemos a comuni-
cação do Espírito Santo, quer pela imposição das mãos, quer pelo baptismo. 3 Por
isso, ó bispo, como médico compadecido, cuida de todos os pecadores, usa de toda a
tua ciência e busca a cura, para que os pecadores vivam. Não tenhas pressa em separar
da comunidade certos pecadores, mas usa antes a tua palavra como se fosse um trata-
mento, usa as tuas repreensões como se fossem um bálsamo, usa a tua oração como se
fosse um emplastro. 4 Se o abcesso se desenvolve em detrimento da carne, alivia-o com
uma medicação salutar. Se o abcesso se enche de pus, esvazia-o, utilizando um medi-
camento forte, isto é, as tuas repreensões. 5 Se a carne incha, raspa-a e alisa-a com um
medicamento mais rude, isto é, ameaçando o pecador com o julgamento. 6 Se aparecer
um cancro, usa de cáusticos, ou seja, corta o cancro, impondo jejuns repetidos, e
purifica assim o abcesso apodrecido.
7 Mas, se o cancro continuar a crescer apesar das cauterizações, examina qual é
o membro que foi atingido. Então, com outros médicos, analisa o caso e, depois de
teres reflectido demoradamente, cortarás esse membro apodrecido para que ele não
corrompa todo o corpo. 8 Mas não te deixes levar facilmente a cortar, nem te apresses
a usar a serra de dentes afiados. Serve-te primeiro dum bisturi e abre o abcesso, a fim
de poderes examiná-lo e conhecer a causa do mal escondido e íntimo, para que o corpo
fique sem ferida. 9 Mas, se vires que um pecador não faz penitência e abandona toda
a esperança, então, com tristeza e com dor, corta-o e lança-o fora da igreja.
842 44. 2 Sede do mesmo parecer, ó bispos e diáconos e, com cuidado, apascentai o povo
na concórdia, porque vós os dois deveis formar um só corpo, o pai e o filho, porque
sois feitos à imagem da divindade. 3 O diácono deve contar tudo ao bispo, como Cristo
ao seu Pai; o que ele puder resolver, resolva-o, e que o bispo julgue o resto. 4 Entretan-
to o diácono deve ser o ouvido, a boca, o coração e a alma do bispo, porque se ambos
estiverdes de acordo, na vossa unanimidade a Igreja encontrará a paz.
843 47. 1 Sejam as vossas sentenças pronunciadas na segunda-feira7, para que, no caso
de ser feita objecção a alguma delas, possais chegar a acordo até ao sábado, e reconci-
liar, para o domingo8, as partes litigiosas entre si.
844 54. 1 Para que as vossas orações e os vossos sacrifícios sejam aceites, quando tu,
bispo, estiveres na igreja para orar, o diácono deve perguntar em voz alta: «Está aqui
alguém que tenha alguma coisa a dizer contra o seu próximo»? Deste modo, se houver
pessoas em litígio entre si ou em processo judiciário contra alguém, poderás convencê-
-las a fazer a paz entre elas...

5
Mt 9, 11.
6
Mt 9, 12.
7
No caso de ser o bispo a pronunciá-las.
8
Os que tomavam parte na Eucaristia dominical deviam estar reconciliados entre si.
DIDASCÁLIA DOS APÓSTOLOS 247

57. 1 Vós, porém, bispos, não sejais duros, nem tiranos, nem iracundos, nem ásperos 845
para com o povo de Deus entregue nas vossas mãos, não destruais a casa do Senhor,
nem disperseis o seu povo, mas convertei todos os homens, para cooperardes com
Deus, e reuni os crentes com grande mansidão, generosidade, paciência e sem ira, por
meio da doutrina e da oração, como ministros do reino eterno.
2 Nas vossas reuniões, nas vossas assembleias santas, fazei tudo de maneira
agradável, e preparai cuidadosamente os lugares para os irmãos, com respeito. 3 Re-
serve-se, para os presbíteros, um espaço na parte da casa voltada para o Oriente. 4 E,
no meio, entre eles, coloque-se a cadeira9 do bispo, e os presbíteros sentem-se com ele.
5 Do mesmo modo, numa outra parte voltada para o Oriente, sentem-se os homens
leigos. Convém, de facto, que na parte da casa voltada para o Oriente os presbíteros
estejam sentados com o bispo e, depois deles, os homens leigos e a seguir as mulheres,
a fim de que, quando vos levantais para orar, os responsáveis sejam os primeiros a
levantar-se, a seguir a eles os homens leigos e, depois, por sua vez, as mulheres.
Convém orar voltado para o Oriente, pois sabeis que está escrito: Dai glória a Deus
que Se eleva no Céu dos Céus, no lado do Oriente.
6 Quanto aos diáconos, um de entre eles não cesse de se ocupar das oferendas da
Eucaristia, e outro esteja à porta, do lado de fora, vigiando os que entram; em seguida,
quando oferecerdes10, eles farão o seu serviço da assembleia.
7 Se um homem não estiver sentado no seu lugar, o diácono que está no interior
adverti-lo-á, conduzi-lo-á e fá-lo-á sentar-se no lugar conveniente. 8 Com efeito, nosso
Senhor compara a Igreja a um redil11; ora nós vemos os animais sem inteligência12, quer
dizer os bois, as ovelhas e as cabras, dormir, permanecer, pastar e ruminar cada um à
parte; nenhum se separa da sua raça. Tal como cada animal do campo caminha nas
montanhas com os que se lhe assemelham, também é preciso que, na igreja, os jovens
estejam à parte, sentados se houver lugar, se não de pé; os que são de idade avançada
estarão sentados à parte. As crianças estarão num dos lados, ou então os seus pais e
mães guardá-las-ão perto de si, e elas estarão de pé. As jovens também estarão à parte
e, se não houver lugar, estarão de pé, depois das mulheres. As mulheres jovens casadas
que têm crianças estarão de pé, à parte, e as mulheres e as viúvas estarão sentadas à parte.
9 O diácono velará para que cada um que entra esteja no seu lugar e não se sente
noutro. 10 O diácono deverá também velar para que ninguém fale, nem durma, nem ria,
nem faça sinais, 11 pois é preciso que cada um, com uma boa postura e de modo
conveniente, esteja atento na igreja e os seus ouvidos bem abertos à palavra do Senhor.
58. 1 Se vier alguém, irmão ou irmã, de uma outra comunidade, o diácono interrogue-o e 846
informe-se se é uma mulher casada ou uma viúva fiel, uma filha da Igreja ou se não
pertence a uma heresia. Em seguida, conduza-a e coloque-a no lugar conveniente.
2 Se vier um presbítero de outra comunidade, recebei-o, presbíteros, convosco,
no vosso lugar e, se for um bispo, sentar-se-á com o bispo, que partilhará com ele o seu
próprio lugar. 3 E tu, bispo, pedir-lhe-ás que dirija a palavra ao teu povo, porque a
palavra dos estrangeiros é sempre agradável, como está escrito: Ninguém é considerado
como profeta na sua pátria. E quanto à acção de graças, seja ele a dizê-la. Mas, se ele,
como homem prudente e cuidadoso em reservar esta honra para ti, não quiser, diga-a ao
menos sobre o cálice.
4 Se, quando estás sentado, chegarem alguns outros, homens ou mulheres, que
no mundo recebem honras, quer sejam dessa comunidade ou de outra, enquanto tu, ó

9
Solium.
10
Cum vos offeretis.
11
Caulis.
12
Rationis expertia.
248 SÉCULO III

bispo, estás a pregar a palavra de Deus, a escutar ou a ler, não faças acepção de
pessoas. Não abandones o ministério da Palavra para lhes preparar um lugar, mas fica
em paz, tal como estavas, e não interrompas a tua palavra; os irmãos os receberão, 5 e,
se não houver lugar, aquele irmão que tiver mais amor e afecto pelos seus irmãos e
quiser honrá-los, levantar-se-á e ceder-lhes-á o seu lugar; quanto a ele, ficará de pé. Se
os jovens e as jovens permanecem sentados e um idoso ou uma mulher idosa cedem o
seu lugar, olha então, diácono, para aqueles que estão sentados, e vê qual deles ou delas
é mais jovem do que os seus companheiros: fá-los levantar e manda sentar aquele que
se levantou e que cedeu o seu lugar e depois leva aquele que mandaste levantar e
coloca-o de pé, diante dos seus companheiros, a fim de que os outros sejam instruídos
e aprendam a dar lugar aos mais dignos.
6 Se vier um pobre ou uma pobre, quer seja da comunidade ou estranho, e
sobretudo se forem de idade avançada, e não houver lugar para eles, dá-lhes tu um lugar
de todo o coração, ó bispo, mesmo que tenhas de te sentar no chão, para não fazeres
acepção de pessoas diante dos homens e para que o teu ministério seja agradável diante
de Deus.
847 59. 1 Ensina, manda e exorta o povo a vir à igreja e a nunca faltar, mas a reunir-se aí
sem cessar, a não mutilar a Igreja separando-se dela, e a não amputar um membro ao
Corpo de Cristo... 2 Uma vez que sois membros de Cristo, não vos separeis da Igreja,
deixando de vos reunir; de facto, como tendes em Cristo a vossa cabeça, segundo a sua
promessa, que está presente e em comunhão convosco, não vos descuideis e não
priveis o Salvador dos seus membros, não rasgueis nem disperseis o seu Corpo, nem
anteponhais os problemas da vossa vida temporal à palavra de Deus, mas, no dia do
domingo, deixai tudo e zelosamente correi à vossa assembleia, porque esse é o vosso
louvor a Deus. 3 Caso contrário, que desculpa terão junto de Deus aqueles que não se
reúnem, no dia do Senhor, para ouvir a Palavra de vida e se alimentar com o alimento
divino que permanece eternamente?...
848 63. 1 Os que são mais novos na igreja sirvam com diligência e sem descuido em todas
as coisas necessárias, com grande modéstia e respeito. Mas todos vós, os fiéis, sempre
e em todas as épocas, todas as vezes que não estiverdes na igreja, sede assíduos ao
vosso trabalho durante toda a vida. Prestai atenção àquilo que é a vossa obrigação,
fazei o vosso trabalho e não estejais inactivos...

LIVRO III
849 6. 5 Certas mulheres e certos homens não se reúnem no dia do Senhor para a
refeição em comum13 da assembleia e para estarem atentos, mas dormitam ou falam de
alguma coisa, de modo que até outros acabam por ficar presos, por culpa deles, nos
laços do Adversário maligno, que não lhes permite serem prudentes no Senhor; esses
tais entram vazios na igreja e ainda saem mais vazios, pois, não escutando a palavra
daqueles que ensinam ou lêem, não podem recebê-la nos ouvidos do seu coração...
850 12. 1 Por isso, bispo, constitui para ti trabalhadores da justiça, colaboradores do teu
povo e ajudantes da vida. Os que te agradarem de entre todo o povo, escolhe-os e
constitui-os diáconos, um homem, para cuidar de muitas coisas necessárias, e uma
mulher para o ministério das mulheres. Há casas onde não podes enviar diáconos às
mulheres, por causa dos gentios, e enviarás então diaconisas 2 Aliás, as mulheres
diaconisas também são necessárias em muitas outras coisas. Primeiro, quando as mu-
lheres descem à água, é preciso que as que descem à água sejam ungidas por uma
diaconisa com óleo da unção. Onde não houver mulher e principalmente diaconisa,
convém que seja ungida por quem a baptiza. Onde estiver presente mulher e particularmente

13
A Eucaristia.
DIDASCÁLIA DOS APÓSTOLOS 249

diaconisa, não é conveniente que as mulheres sejam vistas pelos homens; além de
impores a mão, também ungirás a cabeça, tal como se ungiam, nos tempos antigos, os
sacerdotes e os reis de Israel. 3 E tu também, da mesma maneira, ao impores as mãos,
ungirás a cabeça daqueles que recebem o baptismo, quer sejam homens ou mulheres;
depois, quando tu baptizas ou começas a baptizar com os diáconos e presbíteros, a
diaconisa, como já dissemos atrás, unge as mulheres, ao passo que o diácono pronuncia
sobre elas os nomes da invocação de Deus sobre as águas. E, quando a que foi baptiza-
da sobe da água, a diaconisa recebê-la-á e ensiná-la-á a conservar íntegro o selo do
baptismo, na castidade e na santidade.

LIVRO IV
1. Se houver entre os cristãos um órfão, rapaz ou rapariga, é bom que um dos 851
irmãos, sem filhos, adopte o rapaz por seu filho; se uma rapariga é órfã, seja adoptada
por alguém que tenha um filho, e, chegado o momento, poderá dar-lha por mulher:
assim será perfeita a sua obra no serviço de Deus. 2 Mas, se houver pessoas que não
queiram agir assim, por desejo de agradarem aos homens e, na sua riqueza, desprezem
os abandonados, encontrarão quem lhes devore os bens que juntaram por avareza... e
sob os seus olhares os estrangeiros devastarão os seus campos.
2. 1 Nesse caso, vós, bispos, encarregai-vos deles 14; ocupe-se alguém deles, de 852
modo que não lhes falte nada. 2 E, quando chegar a sua idade, dai a jovem a um homem
entre os irmãos; ao rapaz adolescente ensine-se-lhe um ofício.
11. 6 (Pais), preocupai-vos bastante cedo em escolher a tempo esposas para os 853
vossos filhos e em casá-los, a fim de que, sendo jovens e cheios de vigor, eles não
tenham relações sexuais ilegítimas, como os pagãos, e vós não tenhais de dar contas ao
Senhor no dia do Juízo.

LIVRO V
17. 1 É necessário, irmãos, que observeis diligentemente o dia de Páscoa e façais o 854
vosso jejum com toda a diligência. Começai quando os vossos irmãos do povo (hebrai-
co) fazem a Páscoa, porque nosso Senhor e Mestre, depois de ter comido connosco a
Páscoa, foi entregue por Judas após aquela hora, e de repente começámos a chorar
porque nos tinha sido tirado...
18. Por isso jejuai nos dias de Páscoa a partir do décimo dia da Lua, que é a segunda- 855
-feira, tomando apenas pão, sal e água à hora nona e do mesmo modo até à quinta-feira;
a sexta-feira e o sábado passai-os integralmente no jejum, sem tomar nada.
19. 1 Durante toda a noite, permanecei reunidos uns com os outros, despertos e em 856
vigília, suplicando e orando, lendo os Profetas, o Evangelho e os Salmos, com temor e
tremor e com aclamações solenes, até à terceira hora da noite depois do sábado e então
ponde fim ao vosso jejum... 7 Depois levai as vossas oferendas15, e a seguir comei e
alegrai-vos, enchei-vos de júbilo e exultai, pois Cristo, penhor da nossa ressurreição,
ressuscitou. Isto será para vós uma lei perpétua até ao fim do mundo. 8 Com efeito,
para aqueles que não crêem no nosso Salvador, Ele morreu, porque a esperança que têm
n’Ele também morreu; mas para vós, os crentes, o nosso Kyrios e Salvador ressuscitou,
porque a vossa esperança n’Ele é imortal e vive eternamente...
20. 11 Deveis passar o primeiro dia da semana em plena alegria; com efeito, todo 857
aquele que aflige a sua alma no primeiro dia da semana comete um pecado...

14
Dos órfãos e das órfãs.
15
Offerte sacrificia vestra.
250 SÉCULO III

LIVRO VI

858 18. 11 Por isso, irmãos caríssimos, vós que vos convertestes do povo (judaico)16,
deixai as prisões com que ainda quereis prender-vos. Vós dizeis que se deve preferir o
sábado ao domingo porque a Escritura afirma que em seis dias o Senhor fez todas as
coisas e no sétimo dia completou todas as suas obras e as santificou17. 12 Perguntamo--
vos qual é a letra que vem em primeiro lugar, se é o Alef ou o Tau. Com efeito, a
primeira letra é o início do mundo. Do mesmo modo o Senhor disse, por meio de
Moisés: No princípio criou Deus o céu e a terra; mas a terra era informe e ainda não
estava organizada 18. Depois destas palavras diz: E foi o primeiro dia, quando o
sétimo ainda não era conhecido. Qual é mais importante: aquele que já foi criado e
existe, ou aquele que ainda não está manifesto nem é objecto de esperança pelo facto de
ser futuro19? 13 Façamos ainda outra pergunta: Quais dos vossos filhos recebem a
bênção, os que nascem em último lugar ou os primogénitos? Bem sabeis que até a
Escritura diz que Jacob recebeu a bênção entre os primogénitos e que Israel é o meu
filho primogénito e: Todo o varão que abre o ventre da mãe será consagrado ao
Senhor. 14 Para vos confirmarmos na fé, escutai para saberdes como o primeiro e o
último dia são iguais. De que modo? Então escutai: Está escrito que um dia para o
Senhor é como mil anos; é como o dia de ontem que já passou e uma vigília nocturna.
Um único dia é, portanto, como mil anos no reino de Cristo, no qual terá lugar o
julgamento. A vigília nocturna significa o julgamento, que é a pena das trevas para
aqueles que são condenados. 15 O dia manifesta-se quando o sol começa a estar a meio
do seu curso, do mesmo modo que a lua, que o segue, pois está dito: Eu faço os
primeiros como os últimos e os últimos como os primeiros, e também: Os últimos
serão os primeiros e os primeiros serão os últimos, e ainda: Não vos lembreis dos
acontecimentos de outrora, não penseis mais no passado, pois vou realizar algo de
novo, que já está a aparecer, e por fim: Naqueles dias e naquele tempo não se falará
mais da arca da aliança do Senhor; não lhes virá ao pensamento, não se lembrarão
nem sentirão necessidade dela e não se fará outra. Mas, quando o próprio sábado é
calculado juntando sábado a sábado, resulta uma soma de oito dias; portanto, a oitava
que vem depois do sábado é o primeiro dia da semana20. 16 Por isso, irmãos, todos os
dias são dias do Senhor, pois a Escritura diz: Ao Senhor pertence a terra e o que nela
existe, o mundo inteiro e os que nele habitam...
859 22. 2 Mas vós, segundo o Evangelho e o poder do Espírito Santo, reuni-vos nos
cemitérios21 e lede as Sagradas Escrituras e, sem hesitação, desempenhai o vosso
ministério e as vossas súplicas para com Deus; e oferecei uma Eucaristia agradável,
semelhança do corpo real de Cristo, tanto nas vossas reuniões como nos vossos cemi-
térios e no momento em que partem aqueles que dormem – pão puro que foi feito com
fogo e santificado pelas invocações – e com toda a confiança orai e oferecei por
aqueles que adormeceram22. 3 De facto, os que, segundo o Evangelho, acreditaram em
Deus, mesmo que tenham morrido, não estão mortos...

16
Dirige-se aos judeo-cristãos.
17
Ex 20, 11.
18
Gen 1, 1.
19
O argumento é muito artificial.
20
Quer dizer: se se conta o dia do início e o dia conclusivo de uma semana resulta o oitavo dia, que é um modo
de indicar o domingo.
21
In memoriis congregantes vos e sacrarum scripturarum facite lectionem et ad Deum preces indesinenter
offerte.
22
Panem mundum praeponentes, qui per ignem factus est et per invocationem sanctificatur, sine discretione
orantes offerte pro dormientibus.
ORÍGENES 251

Orígenes

Homilias sobre o Génesis 1

HOMILIA 3

3. Foi neste sentido que o Senhor disse a Moisés: Escolhe anciãos, que tu próprio 860
conheças, para serem anciãos2. Consideremos com atenção esta palavra do Senhor.
Que pode significar esta adição: que tu próprio conheças, para serem anciãos? Não
era evidente para todos, que aquele que tinha muita idade era um ancião, isto é, um
velho? Porquê então deixar unicamente a Moisés, o grande profeta, o cuidado deste
exame especial? Porquê esta escolha, não daqueles que os outros designam, não daque-
les que a multidão aclama, mas daqueles que um profeta cheio de Deus tiver escolhido?
É que não se trata de fazer um juízo sobre o seu aspecto físico ou a sua idade, mas
sobre o seu espírito.
HOMILIA 8

6. Isaac, levando a lenha para o próprio sacrifício, é figura de Cristo que carregou a 861
sua cruz. Ora, levar a lenha para o holocausto é serviço do sacerdote. Quer dizer:
Cristo é ao mesmo tempo vítima e sacerdote...
8. Disse Isaac a seu pai Abraão: Pai! Esta palavra, pronunciada pelo filho, era 862
naquele momento a voz da tentação. Imaginai quanto a voz daquele jovem, prestes a
ser imolado, não terá comovido o coração paterno! Mas a fé inflexível de Abraão não
o impediu de responder com voz afectuosa: Que é, filho?... Quanto ao cordeiro para
o holocausto, Deus providenciará, meu filho. O filho pergunta-lhe acerca do presente,
e ele fala do futuro. Na verdade o Senhor havia de providenciar o cordeiro na pessoa de
Cristo.
9. Não levantes a tua mão sobre o menino e não lhe faças mal. Agora sei que temes 863
a Deus. Relacionemos estas palavras com as que disse o Apóstolo referindo-se a Deus:
Não poupou o seu próprio Filho, mas entregou-O à morte por todos nós. Vede como
Deus rivaliza com os homens em magnanimidade e generosidade: Abraão ofereceu a
Deus o filho mortal, que aliás não morreria, enquanto Deus entregou à morte por todos
nós o seu Filho imortal...
Cristo é ao mesmo tempo sacerdote e vítima: segundo o espírito, é Ele que
oferece a vítima ao Pai; segundo a carne, Ele próprio é oferecido no altar da cruz...
HOMILIA 13

1. Não cessamos de encontrar os trabalhos habituais dos Patriarcas em atitude de 864


cavar poços. De facto, segundo a Escritura, quando Deus abençoou Isaac e ele se
tornou grande, começou uma obra importante: Pôs-se a cavar poços, esses poços que
tinham cavado os seus servidores no tempo de seu pai Abraão, mas que os Filisteus
tinham tapado e enchido de terra3... Também cavou outros poços novos no vale de
Gerara... E encontrou lá um poço de água viva.

1
O RÍGENES , In Genesim homiliae (=PG 12, 145-262; GCS 29; SCh 7 bis). Orígenes nasceu provavelmente
no ano 185 e morreu em 253
2
Presbyteros.
3
Gen 26, 15.
252 SÉCULO III

Quem poderá explicar dignamente os segredos desses poços tão profundos ou


das coisas que são contadas a respeito deles? Invoquemos o Pai da Palavra Viva, para
que Ele Se digne pôr a sua Palavra na nossa boca, a fim de que possamos oferecer à
vossa sede um pouco de água viva, tirada desses poços tão abundantes e tão numerosos...
865 3. Descobre também que, em cada uma das nossas almas, há um poço de água viva
e, mergulhado nela, um certo sentido celeste e imagem de Deus. É este poço que os
Filisteus, isto é, os poderes adversos, encheram de terra. De que terra? De sentimentos
carnais e de pensamentos terrestres... Mas agora que chegou o nosso Isaac, acolhamos
a sua vinda e cavemos os nossos poços...
866 4. Se hoje me escutardes, recebereis com fé o que ouvis, pois Isaac trabalha também
em vós e purifica os vossos corações dos sentimentos terrestres. Vendo mistérios tão
profundos escondidos nas divinas Escrituras, progredireis em inteligência, avançareis
em sentimentos espirituais. De facto, o Verbo de Deus está ali, e a sua acção actual
consiste em retirar a terra da alma de cada um de vós, para fazer brotar a vossa fonte. Essa
fonte está em vós mesmos e não vem de fora, tal como o reino de Deus está dentro de vós.
HOMILIA 16

867 5. Quereis saber o que distingue os sacerdotes de Deus dos sacerdotes do Faraó? O
Faraó dá terras aos seus sacerdotes, ao passo que o Senhor não dá, aos seus, porção
nenhuma na terra, mas diz-lhes: Eu sou a parte da vossa herança. Vós que ledes este
texto observai todos os sacerdotes do Senhor e notai a diferença entre eles; dir-se-ia
que, aqueles cuja herança está na terra e se entregam às ocupações e aos cuidados
terrenos, são menos sacerdotes do Senhor do que do Faraó.

Homilias sobre o Êxodo 4

HOMILIA 7

868 5. Recolhereis o maná durante seis dias, mas no sexto dia recolhereis o dobro.
Está claro que o sexto dia em questão é aquele que precede o sábado e que entre nós é
chamado a preparação. E o sábado é o sétimo dia. Pergunto a mim mesmo em que dia
começou a cair do céu o maná, e vou comparar o nosso domingo ao sábado dos Hebreus.
Nas divinas Escrituras aparece claramente que o domingo foi o primeiro dia em que o
maná caiu na terra. Se, de facto, como diz a Escritura, o maná foi recolhido durante seis
dias contínuos e cessou no sétimo dia, que é o sábado, não restam dúvidas de que ele
começou a cair no primeiro dia, isto é, no domingo. Ora, se consta nas divinas Escritu-
ras que no dia do domingo Deus fez chover o maná e que no sábado ele cessou,
compreendam os Hebreus que já então se manifestava que no seu sábado não descia do
céu, para eles, nenhuma graça divina, não vinha até eles o pão celeste, que é a palavra
de Deus... No nosso dia do domingo, ao contrário, o Senhor sempre fez cair o maná do céu...5

4
O RÍGENES , In Exodum homiliae (=PG 12, 297-396; GCS 29; SCh 321).
5
A sequência deste texto mostra que, para Orígenes, o maná é a palavra de Deus lida e anunciada no culto
dominical. Contudo, o argumento tirado da Escritura para fundamentar a prioridade do domingo sobre o
sábado é, certamente, muito débil.
ORÍGENES 253

HOMILIA 13

3. Vede se «concebeis», se fixais as palavras divinas, não aconteça que as deixeis 869
escapar das mãos e elas se percam. Quero exortar-vos por meio de exemplos tomados
dos vossos hábitos religiosos. Vós que participais habitualmente nos divinos mistérios,
sabeis com que precaução respeitosa recebeis o Corpo do Senhor quando vos é entregue,
não seja que uma parcela do mesmo caia ao chão e se perca uma parte desse tesouro
consagrado. Com razão vos julgaríeis culpados, e tendes razão para isso, se, por vossa
negligência, se perdesse um pouco (desse pão). Se tendes tanto cuidado em guardar o
seu Corpo e, com razão, porque havíeis de pensar que é menor sacrilégio negligenciar
a palavra de Deus do que o seu Corpo? O que vos é mandado é que ofereçais os
primeiros frutos, isto é, as primícias. Oferecer o que vem em primeiro lugar é, logica-
mente, ficar com o que sobra... Antes de mais, a minha razão deve compreender Deus
e oferecer-Lhe as primícias da sua inteligência, para que, depois de ter compreendido
Deus muito bem, ela conheça em seguida tudo o resto. Faça o mesmo a palavra, façam
o mesmo todas as faculdades que em nós existem.

Homilias sobre o Levítico 6

HOMILIA 1

3. Jesus ofereceu-Se como vítima não só pela terra mas também pelo Céu; aqui em 870
baixo, pelos homens, derramou o seu sangue corporal e material, mas no Céu, pelo
ministério dos sacerdotes, se é que eles existem lá em cima, realizou a imolação da
força viva do seu corpo como sacrifício espiritual.
4. O sacerdote7 retira à palavra de Deus o véu da letra e revela os seus membros 871
interiores que são os da inteligência espiritual.
HOMILIA 2

2. Toda a alma tem necessidade do óleo da misericórdia divina, e ninguém pode 872
escapar à vida presente se for privado do óleo da misericórdia celeste.
Em segundo lugar está prescrito que se faça uma oblação de primícias, dos
primeiros frutos da terra. A Lei, se vos lembrais disso, manda fazê-lo no dia de Pente-
costes. Foi nesse dia que, aos Judeus, foi dada a sombra, ao passo que a nós a verdade
foi dada sem reservas. Com efeito, no dia do Pentecostes, depois de ter oferecido um
sacrifício de orações, a Igreja dos Apóstolos recebeu as primícias da vinda do Espírito
Santo. Foi uma verdadeira inovação, porque nunca ninguém vira uma coisa assim; era
por isso que se dizia que eles estavam cheios de vinho mosto. Grelhados no fogo,
porque as línguas de fogo se poisaram sobre cada um deles. Cortados ao meio. Com
efeito, eles estavam cortados ao meio, porque a letra separava-se do espírito. Bem
purificados. A presença do Espírito Santo purifica de toda a mancha e concede a
remissão dos pecados...
4. Ouve agora quantas remissões dos pecados oferecem os Evangelhos. Há a pri- 873
meira, quando somos baptizados para a remissão dos pecados. Há uma segunda
remissão no sofrimento do martírio. Uma terceira é concedida graças à esmola... Uma

6
O RÍGENES , In Leviticum homiliae (=PG 12, 405-574; GCS 29; SCh 286 e 287).
7
Da nova lei.
254 SÉCULO III

quarta remissão dos pecados vem-nos do facto de nós próprios perdoarmos os pecados
aos nossos irmãos... Uma quinta remissão dos pecados acontece quando alguém re-
conduz ao bom caminho o pecador extraviado... Uma sexta remissão tem lugar pela
abundância da caridade... E há ainda uma sétima, dura e laboriosa: é a remissão dos
pecados pela penitência, quando o pecador inunda de lágrimas o seu leito, quando as
suas lágrimas se tornam dia e noite o seu pão e quando ele não se envergonha de dar a
conhecer o seu pecado ao sacerdote do Senhor e de lhe pedir o remédio, como está dito:
Confessei-Vos o meu pecado e Vós me perdoastes a minha falta... Aqui se realizam as
palavras do apóstolo Tiago: Alguém entre vós está doente? Chame os presbíteros da
Igreja e que eles lhe imponham as mãos em nome do Senhor; a oração da fé salvará
o doente e, se tiver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados.
HOMILIA 5

874 3. Não há outra vítima santíssima oferecida pelo pecado que não seja o Filho único
de Deus. Só Ele é vítima pelos pecados, só Ele é vítima santíssima... Já mostrámos
muitas vezes, segundo as divinas Escrituras, que Cristo é ao mesmo tempo a vítima
oferecida pelo pecado do mundo e o sacerdote que a oferece... Por isso Ele é o sacerdo-
te que come e devora os pecados do povo... Como é que Ele come os pecados do povo?
Escuta a Escritura: O nosso Deus é um fogo devorador... É isso comer o pecado
daquele que oferece um sacrifício pelo pecado...
É perfeitamente lógico, à imagem daquele que deixou o sacerdócio à Igreja, que os
ministros e os sacerdotes da Igreja levem também os pecados do povo, e que eles
próprios, imitando o seu Mestre, dêem ao povo a remissão dos pecados...
875 8. Escutai isto, todos vós, sacerdotes do Senhor, e fixai a vossa atenção para com-
preender o que é dito. A carne dos sacrifícios atribuída aos sacerdotes é a palavra de Deus
que eles ensinam na Igreja. A esse respeito, por meio de figuras místicas, recorda-se-lhes
que, quando eles fazem a homilia ao povo não devem pronunciar palavras da véspera,
nem proclamar palavras antigas que são segundo a letra, mas, com a graça de Deus,
devem pronunciar sempre palavras novas e encontrar sempre palavras espirituais.
Exprimir hoje na Igreja o que se aprendeu ontem dos Judeus, é comer a carne do
sacrifício da véspera... Tu vês que, sempre que se trata dos louvores de Deus – e esse
é o sacrifício de louvor – devem ser novos e frescos, não aconteça que, pronunciando
palavras velhas na Igreja, os teus lábios falem, mas a tua inteligência permaneça estéril.
Ouve o que diz o Apóstolo: Se eu rezo em línguas, o meu espírito está em oração, mas
a minha inteligência não colhe frutos. Que fazer, então? Rezarei com o espírito, mas
rezarei também com a inteligência; cantarei com o espírito, mas cantarei também com
a inteligência8. O mesmo se passa a teu respeito: Se o ensino espiritual, se a doutrina
da graça de Deus não te ditam uma pregação nova e fresca nos teus louvores de Deus,
a tua boca oferece, sem dúvida, um sacrifício de louvor, mas a tua inteligência é censurada
pela esterilidade da carne da véspera. E o Senhor, quando dava pão aos discípulos e
quando lhes dizia: Tomai e comei, não mandou nem prescreveu que o guardassem até
ao dia seguinte. Este sentido misterioso talvez esteja também contido no facto de ter
proibido que levassem pão para o caminho. Talvez tenha sido para que tu apresentes
sempre frescos os pães da palavra de Deus que levas em ti.

8
1 Cor 14, 14-15.
ORÍGENES 255

HOMILIA 6

6. Se alguém quiser ser pontífice, não por título mas por mérito, imite Moisés, 876
imite Aarão. Que se diz de ambos? Não se afastavam da tenda do Senhor. Moisés
estava sempre na tenda do Senhor. Em que se ocupava ele? Em aprender alguma
verdade acerca de Deus ou em ensiná-la ele próprio ao povo. Essas são as duas
ocupações do pontífice: aprender de Deus lendo as Escrituras divinas, meditando-as
com frequência e ensinando-as ao povo. Mas deve ensinar o que aprendeu de Deus,
não o que aprendeu do seu coração ou do sentido humano. O que o Espírito ensina
é que ele deve ensinar.
Há uma outra ocupação de Moisés. Não vai à guerra, não combate contra os
inimigos. Que faz ele então? Reza, e enquanto reza o seu povo vence. Se ele se cansa
e baixa os braços, o seu povo é vencido e posto em fuga. Do mesmo modo, o sacerdote
da Igreja reze sem cessar, para que o povo que depende dele vença os seus inimigos, os
Amalecitas invisíveis...
HOMILIA 7

1. A Palavra divina quer que aqueles de quem o próprio Deus é a herança sejam 877
sóbrios, assíduos no jejum e sempre vigilantes, sobretudo quando estão de pé, junto
dos altares, para orar ao Senhor e oferecer sacrifícios na sua presença.
HOMILIA 8

3. Se tens prazer em ouvir o que outros santos disseram acerca do nascimento 878
físico, escuta David quando diz: Nasci na culpa e minha mãe concebeu-me em pecado.
Com estas palavras mostra que toda a alma nascida na carne leva a mancha da iniquidade e
do pecado. Esta é a razão daquela afirmação que já citámos: Ninguém está limpo do
pecado, nem sequer a criança de um só dia. A tudo isto se pode acrescentar uma
consideração sobre o motivo que a Igreja tem para o costume de baptizar até as
crianças, dado que este sacramento da Igreja é para remissão dos pecados. Se não
houvesse nas crianças nada que precisasse de remissão e de perdão, a graça do baptismo
pareceria desnecessária.
HOMILIA 9 9

5. O nosso verdadeiro Sumo Sacerdote é o Senhor Jesus Cristo. Tendo tomado a 879
natureza humana, Ele estava com o povo durante todo o ano, aquele ano do qual Ele
próprio disse: O Senhor Me enviou a anunciar a Boa Nova aos pobres, a proclamar
um ano de graça do Senhor e o dia do perdão, e, uma só vez durante esse ano, no dia
da Expiação, entrou no Santuário, quer dizer, penetrou nos Céus, depois de cumprir a
sua missão redentora e subiu à presença do Pai, para O tornar propício ao género
humano e interceder por todos os crentes.
6. Conhecendo esta propiciação que reconcilia os homens com o Pai, diz o apósto- 880
lo João: Se alguém pecar, nós temos junto do Pai um Defensor: Jesus Cristo, o Justo.
Ele é a vítima de propiciação pelos nossos pecados. Também Paulo se refere, de modo
semelhante, a esta propiciação, ao falar de Cristo, que Deus apresentou como vítima
de propiciação pelo seu sangue, mediante a fé. Por isso, o dia da propiciação continua
para nós até ao fim do mundo...

9
Cf. LH, II.
256 SÉCULO III

881 8. Tu que te aproximaste de Cristo, o verdadeiro Sumo Sacerdote que pelo seu
sangue tornou Deus propício para contigo e te reconciliou com o Pai, não fixes a tua
atenção no sangue das vítimas antigas, mas aprende a conhecer o sangue do Verbo e
ouve o que Ele mesmo te diz: Isto é o meu Sangue, derramado por vós para remissão
dos pecados.
882 10. Também a aspersão para o lado do Oriente tem o seu significado. Do Oriente nos
vem a propiciação; é de lá que vem Aquele cujo nome é Oriente e que foi constituído
mediador entre Deus e os homens. Isto te convida a olhar sempre para o Oriente, de
onde nasce para ti o sol de justiça, de onde a luz se levanta sempre sobre ti, para que
nunca andes nas trevas nem te surpreenda nas trevas o último dia, para que não caia
sobre ti a noite e a escuridão da ignorância, mas vivas sempre na luz da sabedoria, no
pleno dia da fé e no fulgor da caridade e da paz.
HOMILIA 10

883 2. Queres que te mostre ainda o jejum que deves praticar? Jejua de todo o pecado,
não tomes nenhum alimento de malícia, não aceites nenhum prato de volúpia, não te
esquentes com nenhum vinho de luxúria. Faz jejum de acções más, abstém-te de pala-
vras maldosas, guarda-te de pensamentos perversos... Um jejum deste género agrada a
Deus...
Eis o motivo do jejum para os cristãos. Mas há ainda outro motivo, igualmente
religioso, que alguns Apóstolos louvam nas suas Cartas. Encontramos, com efeito,
num livro que foi ditado pelos Apóstolos: Feliz aquele que jejua também para alimentar
o pobre. O jejum (desse homem) é mais agradável a Deus do que outro qualquer.
HOMILIA 12

884 4. Tu que segues a Cristo e que és seu imitador, se permaneceres na palavra de


Deus, se meditares na sua lei dia e noite, se cumprires os seus mandamentos, estarás
sempre no santuário e nunca te afastarás dele. Porque o santuário do Senhor não deve
ser procurado num lugar, mas nas tuas acções, na tua vida, nos teus costumes. Se eles
forem segundo Deus e segundo o mandamento de Deus, mesmo que estejas em casa,
ainda que estejas na praça – que digo eu na praça! – mesmo até que estejas no teatro,
se serves a palavra de Deus, estás no santuário, não tenhas qualquer dúvida.
HOMILIA 13

885 3. De acordo com o que está escrito..., parece que, na ordem de se colocarem
continuamente doze pães na presença do Senhor, se deve ver o mandamento de se
fazer sempre, diante do Senhor, a memória das doze tribos... Mas esta intercessão é
muito pequena e débil... Porém, se estas coisas se referem ao grande mistério, verás
que tal comemoração tem um grande valor propiciatório. Se voltares àquele pão que
desceu do Céu e que dá a vida a este mundo, àquele pão da proposição proposto por
Deus, ainda mais propício graças à fé no seu sangue, e se tiveres em conta aquela
comemoração da qual o Senhor diz: Fazei isto em memória de Mim, verás que este
memorial é o único que torna Deus propício aos homens. Assim, pois, se recordares
mais atentamente os mistérios da Igreja, encontrarás, naquilo que a Lei prescreve, a
imagem antecipada da verdade futura. Não há, porém, que falar mais nisto, porque
para o entendermos bastou que o tivéssemos recordado. Podemos, porém, dizê-lo de
outra maneira. Toda a palavra de Deus é pão, mas nem todo o pão é igual...
ORÍGENES 257

Homilias sobre os Números 10

HOMILIA 2

1. 4 Tu pensas que os que se chamam sacerdotes e se orgulham de pertencer à 886


ordem sacerdotal vivem sempre segundo a sua ordem e fazem tudo o que é próprio da
sua ordem? E também crês que os diáconos vivem segundo a ordem do seu ministério?
A que se deve o facto de se ouvirem muitas vezes pessoas a blasfemar, dizendo: «Vêem
este bispo, este presbítero, este diácono»? Não é isso o que dizem quando algum
sacerdote ou diácono de Deus falta aos deveres da sua ordem e actua contra a ordem
sacerdotal ou diaconal?
HOMILIA 4

3. 1 Se alguém é verdadeiramente um sacerdote a quem foram confiados os vasos 887


sagrados, isto é, os segredos da Sabedoria misteriosa, aprenda e observe a maneira de
os guardar sob o véu da consciência 11.
HOMILIA 7

2. 2 Antes, o baptismo esteve em enigma na nuvem e no mar; agora, a regeneração 888


está claramente na água e no Espírito Santo. Então, o maná era alimento em enigma;
agora, claramente, a carne do Verbo de Deus é verdadeiro alimento, como Ele próprio
disse: A minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida.
HOMILIA 10

1. 1 Os melhores levam sempre sobre si as faltas e os pecados dos seus inferiores. 889
Neste sentido diz o Apóstolo: Vós, os fortes, suportai as fraquezas dos fracos. Se um
israelita, quer dizer, se um leigo comete um pecado, não o pode apagar por si mesmo.
Procura um diácono 12, tem necessidade dum presbítero13, que digo eu, procura antes e
ainda mais alto do que isso: tem necessidade do bispo 14 para obter a remissão dos seus
pecados.
HOMILIA 12

4. Abandona esses poços, percorre toda a Escritura em busca dos poços e chega 890
aos Evangelhos. Lá encontrarás aquele poço junto do qual o nosso Salvador repousava,
cansado da viagem, quando apareceu uma samaritana em busca de água15...
HOMILIA 16

9. Digam-nos, pois, que povo é este que costuma beber sangue? Foram estas as 891
coisas que, escutadas no Evangelho por aqueles que, de entre os Judeus, seguiam o
Senhor, os deixaram escandalizados e levaram a dizer: Quem pode comer carne e beber

10
O RÍGENES , In Numeros homiliae (=PG 12, 583-806; GCS 30; SCh 29).
11
Este texto de Orígenes é um dos primeiros que se refere ao arcano.
12
Levita.
13
Sacerdote.
14
Pontífice.
15
Orígenes gosta muito deste tema. Por isso o retoma muitas vezes.
258 SÉCULO III

sangue? Mas o povo cristão, o povo fiel ouve isto, aceita-o e segue Aquele que disse:
Se não comerdes a minha carne nem beberdes o meu Sangue, não tereis a vida em
vós... Diz-se que bebemos o Sangue de Cristo não só no rito dos sacramentos, mas
também quando recebemos as suas palavras, nas quais está a vida, como Ele também
disse: As palavras que Eu digo são espírito e vida.
HOMILIA 22

892 4. Se um grande homem como Moisés não deixa ao seu próprio critério a designa-
ção do chefe do povo, a escolha do seu sucessor, quem ousará então, entre este povo
que tantas vezes dá o seu voto sob a pressão da gritaria ou talvez até do dinheiro, quem
ousará, repito, mesmo nas fileiras dos sacerdotes, julgar-se capaz de fazer uma escolha
acertada, a não ser com a ajuda duma revelação obtida com orações e súplicas dirigidas
ao Senhor?... Deus queira que os príncipes da Igreja, em vez de designarem por testa-
mento aqueles que lhes estão unidos por laços de sangue ou parentesco carnal, e de
instalarem na Igreja verdadeiras dinastias, aprendam a entregar-se ao juízo de Deus, e,
longe de fazerem escolhas sugeridas por sentimentos humanos, deixem por completo
a designação do seu sucessor à decisão de Deus.
HOMILIA 23

893 8. Depois da festa dos Ázimos, vem a sexta festa que se chama festa das Primícias,
onde se oferecem as primícias das novas colheitas. Quando... a seara fica madura e os
frutos da terra perfeitos, celebra-se uma festa do Senhor. Se tu também quiseres cele-
brar com Deus a festa das Primícias, vê como semeias e o lugar onde semeias, para
poderes recolher frutos que agradem a Deus e Lhe façam celebrar uma festa. Ora, tu só
poderás realizá-la escutando a palavra do Apóstolo: Aquele que semeia no Espírito
colherá no Espírito a vida eterna. Se semeares desta maneira, se colheres desta maneira,
celebrarás verdadeiramente a festa das Primícias...
894 9. Se quiseres contemplar como serão celebradas as festas no mundo que há-de vir,
eleva pouco a pouco, se fores capaz, os teus pensamentos acima da terra e esquece por
um momento aquilo que temos diante de nós. Representa-te como o céu e a terra
passam, como passa toda a forma deste mundo, imagina a fundação dum novo céu e
duma nova terra. Afasta dos teus olhos até mesmo a luz do Sol visível, e dá ao mundo
futuro uma luz sete vezes mais brilhante. Ou antes, com a autoridade da Escritura, dá-lhe
o próprio Senhor como Luz, coloca a seu lado os Anjos da glória, as Virtudes, os
Poderes, os Tronos, as Dominações e todo o nome dos gloriosos poderes celestes que
são nomeados neste mundo e também no mundo que há-de vir.
É no meio deles que deves considerar e imaginar como podem celebrar-se as
festas do Senhor, quais podem ser aí o entusiasmo, a alegria e o júbilo. Porque estas
festas espirituais de que falámos, por maiores e mais autênticas que sejam, sobretudo
quando são celebradas em espírito na alma, são parciais e não totais, como o prova a
palavra do Apóstolo: Só em parte conhecemos e só em parte profetizamos; por isso
também só em parte festejamos as solenidades... Mas, quando chegarem as realidades
perfeitas, as realidades parciais serão destruídas. Como a ciência imperfeita dá lugar à
ciência perfeita e a profecia imperfeita à profecia perfeita, assim a festa parcial dá
lugar à festa total. Este mundo, já o dissemos, não pode receber nada de perfeito,
quando as necessidades do corpo obrigam umas vezes a comer outras a beber, umas
vezes a dormir outras a qualquer preocupação indispensável a esta vida presente,
coisas que interrompem seguramente a continuidade da festa divina.
Mas, quando chegar o momento predito para aqueles que serão colocados no
santuário, pelo menos se nós merecermos ser daqueles que aí hão-de estar, daqueles
ORÍGENES 259

que não terão mais fome nem sede, que já não precisarão de dormir nem de trabalhar,
mas que estarão sempre despertos, como Anjos que são..., quando merecermos ser
colocados nesse grupo, então terá lugar a festa verdadeira e incorruptível cujo Rei,
Esposo e Mestre será Jesus Cristo, Ele próprio, nosso Salvador, a quem seja dada
glória e poder pelos séculos dos séculos. Amen.

Homilias sobre Josué 16

HOMILIA 2

1. Quando vires que os gentios entram na fé, que se constroem igrejas, que os 895
altares se tingem, não com o sangue de animais, mas são consagrados pelo Sangue
precioso de Cristo, quando vires os sacerdotes e levitas servir como ministros não do
sangue de touros e cabritos, mas da palavra de Deus pela graça do Espírito Santo,
então diz que, depois de Moisés, foi Jesus que recebeu e obteve o principado, não
aquele Jesus, filho de Nave 17, mas Jesus, o Filho de Deus.
HOMILIA 4

1. No Jordão, a arca da aliança guiava o povo de Deus. A ordem sacerdotal e levítica 896
sustém o passo; e as águas, como que prestando reverência aos ministros de Deus,
param o seu curso e juntam-se em alta muralha, oferecendo ao povo de Deus um caminho
seguro. Não te admires, cristão, de te serem anunciados estes factos realizados em
favor do antigo povo de Deus, porque a ti, que passaste o Jordão por meio do sacra-
mento do baptismo, a Palavra divina promete coisas muito maiores e mais admiráveis,
e oferece um caminho e uma passagem para o Céu através dos ares...
Não penses que isto foi realizado apenas em favor dos homens que te precederam, e
que a ti, que és agora ouvinte destes prodígios, nada de semelhante acontecerá: tudo
isso continua a realizar-se em ti, embora de maneira misteriosa.
Na verdade, tu, que já abandonaste as trevas da idolatria e desejas prestar ouvi-
dos à lei divina, começaste desse modo a sair do Egipto. Quando foste agregado ao
número dos catecúmenos e começaste a obedecer aos preceitos da Igreja, atravessaste
o mar Vermelho e, percorrendo as estações do deserto, todos os dias te entregas a ouvir
a Lei de Deus e a contemplar o rosto de Moisés, em que se revela a glória do Senhor. E,
quando te aproximares da mística fonte baptismal e fores iniciado pela ordem sacerdotal e
levítica naqueles venerandos e admiráveis sacramentos, que apenas conhecem aqueles
a quem é lícito conhecê-los, então também tu atravessarás o Jordão pelo ministério dos
presbíteros18, entrarás na terra prometida, na qual, depois de Moisés, te recebe Jesus,
que será o guia do teu caminho novo.
Então, recordando-te de tantas e tão grandes maravilhas de Deus, compreende-
rás que para ti se dividiu o mar e pararam as águas do rio, e dirás: Que tens, ó mar, para
assim fugires, e tu, Jordão, para voltares atrás? Montes, porque saltais como carnei-
ros, e vós, colinas, como cordeiros do rebanho? E responderá a palavra divina: A terra
treme diante do Senhor, diante do Deus de Jacob, que transformou o rochedo em lago
e a pedra em fonte de água.

16
O RÍGENES , In Iesu Nave homiliae (=PG 12, 825-948; GCS 30; SCh 71).
17
Josué.
18
Sacerdotum ministeriis.
260 SÉCULO III

HOMILIA 6

897 4. Jericó é cercada; é preciso conquistá-la. E como é que Jericó é conquistada?...


Apenas são utilizadas as trombetas dos sacerdotes, e são elas que derrubam as muralhas
de Jericó.
Frequentemente se verifica que Jericó é utilizada nas Escrituras como imagem do
mundo... O homem que descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos ladrões era
sem dúvida a imagem daquele Adão que foi posto fora do Paraíso... Os cegos que
estavam em Jericó... representavam a imagem daqueles que neste mundo eram oprimidos
pela cegueira da ignorância e que o Filho de Deus veio socorrer... Portanto, Jericó quer
dizer este mundo que há-de ruir...
Como será feita a sua destruição? Ao som das trombetas... Jesus, nosso Senhor,
vencerá Jericó ao som das trombetas e a sujeitará de tal modo que dela apenas se
salvará a mulher pecadora (Raab) e toda a sua casa... Salvará somente aquela que
recebeu os seus exploradores, aquela que recebeu os seus Apóstolos na fé e na obediência
e os colocou nos postos mais altos...
Para que ela pudesse salvar-se e não perecer com Jericó, recebeu dos exploradores
um sinal muito valioso, uma corda cor de escarlate: era o sinal do Sangue de Cristo,
pelo qual foi salva a Igreja universal no mesmo Jesus Cristo, nosso Senhor, a quem é
dada a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amen.
HOMILIA 9 19

898 1. Todos nós que acreditamos em Jesus Cristo somos chamados pedras vivas,
segundo as palavras da Escritura: Vós, como pedras vivas, entrais na construção do
templo espiritual, para constituirdes um sacerdócio santo, destinado a oferecer sacri-
fícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo.
Ora, quando se trata de pedras terrenas, sabemos que se colocam nos alicerces as
mais sólidas e fortes, para que se lhes possa confiar e sobrepor todo o peso do edifício;
da mesma maneira, deve entender-se que também de entre as pedras vivas algumas
estão colocadas nos alicerces deste edifício espiritual. Quais são essas pedras que
estão colocadas nos alicerces? Os Apóstolos e os Profetas. Para te adaptares mais
eficazmente, ó ouvinte, à construção deste edifício, para seres uma das pedras mais
próximas do alicerce, repara que o próprio Cristo é o alicerce deste edifício que esta-
mos a descrever.
899 2. Mas neste edifício, que é a Igreja, é necessário também um altar. E eu penso que
aqueles que, de entre vós, como pedras vivas, estão aptos e prontos para se dedicarem
à oração, para oferecerem dia e noite a Deus o sacrifício das suas preces e súplicas, são
esses as pedras com que Jesus edifica o altar.
E repara que espécie de louvor se atribui a essas pedras do altar: Edificou segun-
do a lei de Moisés, um altar de pedras inteiras, não talhadas pelo ferro. Quem são
estas pedras inteiras? Talvez estas pedras inteiras e incontaminadas sejam os santos
Apóstolos, formando em conjunto um só altar, graças à sua unanimidade e concórdia...
Estes, por conseguinte, que puderam orar unânimes, com uma só voz e um só espírito,
são realmente dignos de construir todos juntos um só altar, sobre o qual Jesus ofereça
um sacrifício ao Pai.
Mas também nós devemos esforçar-nos por ter a mesma linguagem e os mesmos
sentimentos, unanimemente, não fazendo nada por espírito de rivalidade nem por
vanglória, mas permanecendo unidos no mesmo modo de sentir e de pensar, para que
nos tornemos pedras aptas para o altar...
19
Cf. LH, III.
ORÍGENES 261

5. Verdadeiros sacerdotes e levitas do Senhor são todos os que vivem a sua religião 900
de maneira santa e sacerdotal..., aqueles para quem o Senhor é a única porção e que
nada mais possuem, e não apenas os que vemos estar sentados nas assembleias dos
sacerdotes...

Homilias sobre os Juízes 20


HOMILIA 3

2. Por vezes encontram-se entre nós, constituídos em exemplo de humildade e 901


colocados à volta do altar, como se fossem um espelho para aqueles que nos vêem,
alguns homens de cujo rosto se desprende o grande pecado da arrogância. Deste modo,
de junto do altar do Senhor, que devia estar envolto na suavidade do incenso, sai um
cheiro repugnante de orgulho e vaidade.

Homilias sobre o Primeiro Livro dos Reis 21


HOMILIA 1

Foram-vos lidas diversas passagens, que podem dividir-se em duas partes... 902
Ouvimos ler o que se refere a Nabal do Carmelo e ao seu modo de proceder para com
David (c. 25); logo a seguir a história de David, que se escondeu no deserto de Ziph (c.
26); em terceiro lugar, a narração da fuga de David para casa de Aquis, rei de Geth (c.
27); e por fim, o célebre episódio da mulher ventríloqua, que evocou a sombra de
Samuel (c. 28). Comentar os quatro factos seria demasiado vasto, mesmo para os que
estão acostumados a meditar as Escrituras, e precisaria de muito tempo. Peço, pois, ao
bispo, que se digne indicar-me a passagem sobre a qual deseja que chame a vossa
atenção.
_ Está bem, responde o bispo; explica o episódio da mulher ventríloqua 22.

Comentário ao Cântico dos Cânticos 23


3. Quem é chamado ao episcopado, não é para ser príncipe, mas para estar ao 903
serviço de toda a Igreja... Creio que os bispos que são bons servidores da Igreja podem
chamar-se «traves», porque, através deles, todo o edifício é simultaneamente sustentado
e protegido contra o assalto das tempestades e os ardores do sol. Em segundo lugar,
logo a seguir a eles, penso que os presbíteros se podem chamar «lambris». As traves
são de cipreste, madeira mais resistente do que as outras, e da qual sai um cheiro doce,
o que mostra que o bispo é um homem de firme conduta e cujo ensino respira graça. Do
mesmo modo se diz que os lambris são de cedro, a fim de mostrar que os presbíteros
devem estar repletos daquela virtude que torna incorruptível e do perfume da ciência
de Cristo.

20
O RÍGENES , In librum Iudicum homiliae (=PG 12, 951-990; GCS 30; SCh 389).
21
O RÍGENES , Homiliae in I Regnorum libros (I Reg.) (=PG 12, 995-1028). A designação actual é «Primeiro
Livro de Samuel».
22
Será isto prova concludente de que em Alexandria a liturgia da palavra tinha várias leituras?
23
O RÍGENES , In Canticum canticorum homiliae (=PG 13, 37-216; 17, 253-288; GCS 33; SCh 37 bis).
262 SÉCULO III

Comentário aos Salmos 24


SALMO 37

904 Presta atenção a quem deves confessar o teu pecado. Procura sobretudo que o
médico, a quem deves expor as causas do teu mal, seja compassivo com aquele que está
doente e chore com quem chora...; procura seguir os seus conselhos: se ele, depois,
julgar que o teu mal precisa de ser exposto e curado diante da assembleia da Igreja, a
fim de que também os outros possam ficar edificados e tu mesmo sejas mais facilmente
curado, deve aceitar-se a decisão ponderada e o sábio conselho desse médico.
SALMO 118

905 Antes de vir o oitavo dia do Senhor Jesus Cristo, todo o mundo estava manchado
e incircunciso. Quando veio esse oitavo dia, o da Ressurreição de Cristo, fomos todos
imediatamente purificados na sua circuncisão... Oito é o símbolo do mundo futuro, na
medida em que implica o dinamismo da Ressurreição.

Homilias sobre Jeremias 25


HOMILIA 19

906 13. Quem não celebra a Páscoa como Jesus quer, permanece no andar inferior da
casa; mas quem celebra a festa com Jesus, está lá em cima, numa sala de cima espaçosa,
numa sala de cima limpa, numa sala de cima adornada e preparada. Se sobes com Ele
para celebrar a Páscoa, Ele dá-te o cálice da nova Aliança e também o pão da bênção;
faz-te dom do seu Corpo e do seu Sangue. É por isso que vos exortamos: subi às
alturas, levantai os vossos olhos para o alto. E a mim também, quando ensino a Palavra
divina, a Palavra diz-me: Sobe para o monte...

Comentários sobre São Mateus 26


LIVRO XVI

907 8. Penso que se deve chamar príncipe aquele que nas igrejas tem o nome de bispo,
e que ele deve ser o servo de todos pela sua humildade, para a todos servir em ordem
à salvação. Tal é o mandamento que nos dá o Verbo de Deus. E nós, sem compreendermos
essa vontade manifesta do ensinamento de Jesus, ou por desprezo das ordens do
Salvador, comportamo-nos de tal modo que, por vezes, ultrapassamos em orgulho os
maus príncipes das nações e pouco falta para termos guarda-costas como os reis.
Somos terríveis, inabordáveis, sobretudo para os pobres. Quando alguém chega junto
de nós e nos faz um pedido, somos mais insolentes do que os tiranos e os príncipes
mais cruéis para os que lhes suplicam. Eis o que se pode ver em muitas igrejas famosas,
sobretudo nas grandes cidades.
908 22. Penso que a palavra sobre os vendedores de pombas se aplica àqueles que dão
igrejas a bispos, a presbíteros ou a diáconos avaros e tirânicos, sem ordem nem piedade.

24
O RÍGENES , Libri in Psalmos (=PG 12, 1053-1686).
25
O RÍGENES , Homiliae in Ieremiam (=PG 13, 255-544; PL 25, 585-615; GCS 6. 33; SCh 232 e 238).
26
O RÍGENES , Commentarii in Matthaeum (=PG 13, 829-1800; GCS 38-40; SCh 162).
ORÍGENES 263

É por isso que só em relação às bancas o Evangelista diz que elas foram derrubadas por
Jesus. Deus queira que aqueles que se gloriam das cadeiras de Moisés, nas quais estão
sentados, e que vendem todas as igrejas das pombas, entendam isto como pertinente
advertência da Escritura... Se escutassem estas advertências, nunca venderiam as pom-
bas de Cristo...
SÉRIE DE COMENTÁRIOS (Mt 26, 26s)

Esse pão que o Deus Verbo diz ser o seu Corpo é a Palavra que alimenta as 909
almas, o Verbo que procede do Verbo de Deus... E essa bebida que o Deus Verbo diz ser
o seu Sangue, é a Palavra que sacia e inebria os corações dos que o bebem. Acerca da
bebida deste cálice está escrito: O meu cálice transborda... O Deus Verbo não chamou
seu Corpo àquele pão visível que tinha em suas mãos, mas à Palavra, em cujo mistério
devia partir-se o pão. Nem chamou seu Sangue àquela bebida visível, mas à Palavra, em
cujo mistério se derramaria esta bebida. De facto, que outra coisa pode ser o Corpo e
o Sangue do Deus Verbo, senão a Palavra que alimenta e alegra os corações?
Se também nós desejamos receber de Jesus o pão da bênção que Ele costuma dar,
vamos à cidade, à casa onde Jesus celebra a Páscoa com os seus discípulos, preparada
pelos seus próprios conhecidos, e subamos ao andar de cima da casa grande, mobilada
e preparada, onde, recebendo do Pai um cálice e dando graças, o deu aos que subiram
com Ele, dizendo: Bebei, porque isto é o meu Sangue da nova Aliança, que será bebido
e derramado: bebido pelos discípulos e derramado pela remissão dos pecados come-
tidos por aqueles que o bebem e derramam.
Se também perguntas como será derramado, compara com esta palavra que também
está escrita: Porque a caridade de Deus foi derramada em nossos corações. Se o
Sangue da Aliança foi infundido em nossos corações para remissão dos nossos pecados,
uma vez derramado em nossos corações aquele Sangue que se bebe, são perdoados e
apagados todos os pecados que fizemos antes.
Aquele mesmo que, depois de tomar o cálice, diz: Bebei dele todos, não Se afasta
de nós quando bebemos, mas bebe-o connosco (porque Ele está em cada um), dado
que, sozinhos e sem Ele, não podemos comer daquele pão nem beber do fruto daquela
verdadeira videira. Não te admires de que Ele seja pão e coma connosco o pão, e que
seja bebida do fruto da videira e beba connosco; o Verbo de Deus, sendo omnipotente,
é designado por diversos nomes, e, sendo Ele só toda a força, é inumerável segundo a
multidão das virtudes.
Depois ensinou os discípulos que celebravam a festa com o Mestre e que tinham
recebido o pão da bênção, comido o Corpo do Verbo e bebido o cálice da acção de
graças, a dizer um hino ao Pai por todas estas coisas e a passar de um monte a outro
monte, porque, por vezes, o fiel não pode fazer nada no vale; por isso, subiram ao
monte das Oliveiras.

Homilias sobre São Lucas 27


HOMILIA 13

5. Se for permitida uma certa audácia de linguagem àquele que segue o sentido da 910
Escritura, diria que há dois bispos na Igreja, um visível e o outro invisível, um que se
manifesta aos olhos da carne e outro à inteligência...

27
O RÍGENES , In Lucam homiliae (=PG 13, 1801-1902; PL 26, 229-332; SCh 87).
264 SÉCULO III

911 6. Pelo que me diz respeito, penso que é possível encontrar, ao mesmo tempo, um
Anjo e um homem que sejam bons bispos da Igreja e que ambos participam, de algum
modo, numa obra única.
HOMILIA 14

912 5. Aproveito a ocasião que se apresenta para tratar, novamente, uma questão acerca da
qual os nossos irmãos se interrogam com frequência. As crianças são baptizadas para
a remissão dos pecados28.
De que pecados se trata? Quando tiveram elas oportunidade de pecar? Como
pode alguém apresentar um tal motivo para o baptismo das crianças, a não ser que
admita a interpretação que acabamos de dar: Ninguém está isento de mancha, mesmo
se a vida na terra durou apenas um dia29? Nós baptizamos as crianças porque as
manchas do nascimento são tiradas pelo mistério do baptismo, pois quem não nascer
da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus30.

Comentários ao Evangelho de São João 31

LIVRO VI
913 33. 166 A expressão «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo» designa Aquele
que concede os bens do baptismo: o novo nascimento, a renovação, a imortalidade, a
incorruptibilidade, a impassibilidade, a libertação da morte, da escravidão e de todos
os males, e também a experiência da liberdade e a participação nos bens futuros e
sublimes. Vê por que se baptiza. Invoca-se o Pai, o Filho e o Espírito Santo, para que
tu conheças a fonte dos bens do baptismo... Assim como os prodigiosos milagres
realizados... pelo Salvador são símbolos dos homens libertados em todos os tempos,
de todas as doenças e fraquezas pela palavra de Deus..., assim o baptismo de água se
torna, pela virtude da invocação trinitária, princípio e fonte dos dons divinos da graça
para aqueles que se oferecem à salvação da Trindade invocada sobre eles.

LIVRO X

914 35. 226 O Salvador, referindo-Se ao seu corpo como se estivesse a falar daquele
templo, respondeu à pergunta que Lhe fizeram: Destruí este templo e em três dias o
reedificarei... 228 Ambas as coisas, tanto o templo como o corpo de Jesus, segundo
uma interpretação possível, são a figura da Igreja, porque a Igreja construída de pedras
vivas e edificada como habitação do Espírito para um sacerdócio santo, estabelecida
sobre o fundamento dos Apóstolos e dos Profetas, tendo Cristo Jesus como pedra
angular, com toda a razão se chama «templo»... 229 Ainda que o ajustamento perfeito
e harmonioso das pedras pareça ser desfeito e destruído... pela fúria da perseguição e
a violência daqueles que querem destruir a unidade deste templo, o templo será novamente
edificado e o corpo ressuscitará ao terceiro dia, isto é, depois do dia da tribulação que

28
Act 2, 38.
29
Job 14, 4.
30
Jo 3, 5.
31
O RÍGENES , Commentarii in Iohannem (=PG 14, 21-830; GCS 10; SCh 120, 157, 222, 290, 385).
ORÍGENES 265

se avizinha e do dia da consumação que o seguirá... Podemos afirmar que a Ressurreição


de Cristo, que põe termo à sua cruz e à sua morte, encerra já em si o mistério da
ressurreição de todos os que formam o Corpo de Cristo.
230 Assim como o corpo visível de Jesus foi crucificado e sepultado e depois
ressuscitou, assim também o Corpo total de Cristo, formado por todos os seus santos,
é crucificado com Cristo na cruz e em certo sentido deixa de viver... 231 De cada
cristão se pode afirmar que não só foi crucificado em Cristo para o mundo, mas
também com Cristo foi sepultado. 232 Fomos sepultados com Cristo pelo baptismo na
sua morte, diz Paulo, que acrescenta imediatamente: E também com Ele ressuscitaremos,
para nos sugerir já o penhor da nossa futura ressurreição.

LIVRO XXXII

24. 309 Judas, tendo tomado o bocado de pão, saiu imediatamente. Era noite 32. 915
Poder-se-ia dizer a este respeito, com alguma razão: assim como aquele que come o
pão do Senhor ou bebe o seu cálice indignamente come e bebe a sua condenação –
porque aquela única e excelsa virtude que há no pão e no cálice realiza o melhor onde
há boa disposição, e causa a condenação onde há má disposição – assim o bocado dado
por Jesus a Judas era da mesma qualidade daquele que Ele deu aos outros Apóstolos,
quando lhes disse: Tomai e comei; mas a estes, serviu-lhes de salvação, ao passo que a
Judas lhe serviu de condenação, pelo que, depois de tomar o bocado, entrou nele
Satanás. 310 O pão e o cálice significam, para os mais simples, e de acordo com o
parecer mais comum, a Eucaristia; mas para aqueles que aprenderam a conhecer
mais profundamente, e segundo a promessa mais divina, significam a palavra que
alimenta a verdade.

Comentários à Carta aos Romanos 33


4. 2 Uma coisa era o que se via em Cristo e outra o que se compreendia. Via-se a 916
carne e acreditava-se em Deus 34.
5. 9 A Igreja recebeu dos Apóstolos o costume de dar o baptismo mesmo às crianças, 917
pois aqueles a quem foram confiados os segredos dos mistérios divinos sabiam muito
bem que todos trazem a mancha do pecado original, e que ela deve ser lavada pela água
e pelo Espírito.
19. A fé do Símbolo, que é comunicada aos crentes e na qual está contida a síntese de 918
todo o mistério, encerrada em fórmulas breves, pode chamar-se «palavra resumida».

32
Jo 13, 30.
33
O RÍGENES , Commentarii in Epistulam ad Romanos (=PG 14, 833-1292). Parece ser anterior a 244.
34
Alius in eo videbatur e aliud intelligebatur. Caro cernebatur et Deus credebatur.
266 SÉCULO III

Contra Celso 35

LIVRO III

919 30. A Igreja de Deus de Atenas é pacífica e ordenada no seu desejo de agradar ao
Deus supremo, ao passo que a assembleia dos atenienses é tumultuosa e sem qualquer
relação com a Igreja de Deus dessa cidade. O mesmo se passa com a Igreja de Deus de
Corinto e a assembleia do povo de Corinto, ou ainda com a Igreja de Deus de Alexandria
e a assembleia do povo de Alexandria...
Do mesmo modo, se compararmos o conselho da Igreja de Deus com o senado de
cada cidade, veremos que certos membros do conselho da Igreja... merecem exercer aí
o poder, ao passo que os senadores de qualquer lugar não apresentam nada, em seus
costumes, que os torne dignos da autoridade proeminente de que desfrutam e através
da qual parecem dominar os cidadãos.
Finalmente, se compararmos o chefe da Igreja de cada cidade com o governador
político, damo-nos conta de que, mesmo nos membros do conselho e nos chefes da
Igreja... menos dinâmicos, descobrimos, em geral, um conjunto de virtudes muito su-
perior aos costumes dos senadores e dos governadores das cidades.
920 51. Os cristãos, na medida em que isso é possível, começam por provar as almas
daqueles que querem ser seus ouvintes, e por formá-los em particular. Quando os
ouvintes, antes da entrada na comunidade, parecem ter progredido o suficiente na
vontade de viver virtuosamente, então introduzem-nos. Formam um grupo à parte, os
principiantes, que acabam de ser iniciados e que não receberam ainda o Símbolo da
purificação; depois um outro, daqueles que deram as melhores provas da sua decisão
de nada mais querer do que aquilo que é aprovado pelos cristãos. Entre eles, alguns têm
a função de inquirir sobre a vida e a conduta dos candidatos, para interditar o acesso da
sua assembleia comum às pessoas culpadas de faltas secretas, mas de acolher os outros
com toda a sua alma e de os tornar cada dia melhores.
E eis a sua conduta em relação aos pecadores, sobretudo os impudicos: expulsam-nos
da sua comunidade, eles que, segundo Celso, se pareceriam aos que divulgam os seus
segredos nas praças públicas... Quando os pecadores manifestam uma verdadeira con-
versão, após um tempo mais prolongado do que o da sua primeira iniciação, admitimo-
-los de novo, como ressuscitados de entre os mortos; mas não nomeamos para nenhum
cargo nem presidência da Igreja de Deus os que caíram depois da sua entrada no
cristianismo.
921 52. Nós fazemos tudo o que é possível para que a nossa assembleia se componha de
homens prudentes, e então temos a audácia, nas palavras dirigidas à comunidade, de
propor em público os nossos mais belos e divinos mistérios, quando temos diante de
nós ouvintes inteligentes. Mas mantemos escondidos e passamos em silêncio os mis-
térios mais profundos, quando vemos que as pessoas reunidas são mais simples e têm
necessidade de ensinamentos a que chamamos, por metáfora, «leite».
922 59. Primeiro exortamos, convidando os homens à conversão... E, quando, entre aqueles
que exortamos, há caminhantes que se mostram purificados pelo Logos e que procuram
levar, tanto quanto possível, uma vida superior, então chamamo-los à iniciação perfei-
ta, porque nós falamos de sabedoria entre os perfeitos.

35
O RÍGENES , Contra Celsum (=PG 11, 641-1632; GCS 3; SCh 132, 136, 147, 150, 227; BAC 271).
ORÍGENES 267

LIVRO VI

24. Celso declara: Se quiséssemos colocar em paralelo a iniciação dos Persas... e uma 923
certa iniciação dos cristãos, comparando-as uma à outra e pondo a nu os mistérios dos
cristãos, veríamos as suas diferenças... A julgar por estas palavras, creio poder conjecturar
que ele tirou em parte a sua descrição do diagrama das doutrinas mal compreendidas da
seita muito obscura dos Ofitas. Na minha avidez de saber, acabei por descobrir este
diagrama, onde encontramos as invenções desses homens que, segundo Paulo, se intro-
duzem nas casas e cativam mulheres mundanas, carregadas de pecados e subjugadas
por toda a espécie de paixões, que estão sempre a aprender, mas são incapazes de
chegar algum dia à verdade36. Mas esse diagrama comporta tantas contradições que
não obtém o assentimento nem das mulheres mundanas fáceis de enganar, nem dos
sacerdotes mais rudes... Tive o cuidado de percorrer muitas regiões da terra, e procurar
por toda a parte aqueles que fazem profissão de saber, e nunca encontrei ninguém que
tomasse a sério o ensinamento deste diagrama.
40. Celso afirma ter visto, nas mãos de alguns presbíteros da nossa religião, livros 924
nos quais estavam escritos os nomes bárbaros dos Demónios e fórmulas mágicas37. E
afirma que essas pessoas, quer dizer, os presbíteros da nossa religião, nada prometem
de útil mas apenas o que pode prejudicar os homens...
41. Os partidários da religião cristã, que em Jesus honram a Deus, o Senhor e Criador de 925
todas as coisas, orientam a sua vida segundo o Evangelho e, rezando dia e noite com
zelo, perseverança e respeito as orações prescritas, nada têm a temer nem das artes
mágicas nem dos Demónios...

LIVRO VIII

17. Em seguida, Celso declara que nós evitamos edificar altares, imagens e templos, 926
por pensar que é a palavra de ordem recebida da nossa associação secreta e misteriosa.
Isto é ignorar que, para nós, o coração de cada justo constitui o altar donde sobem em
espírito e verdade, perfumes de agradável odor, as orações duma consciência pura...
As imagens e as oferendas que agradam a Deus não são obras de artistas vulgares,
mas do Logos de Deus que as desenha e forma em nós... De todas as imagens que
existem na criação inteira, de longe a mais bela e a mais perfeita está no nosso Salvador,
que disse: O Pai está em Mim...
18. Em geral, todos os cristãos procuram edificar imagens e altares semelhantes aos 927
que acabo de descrever, não inanimados e insensíveis, mas capazes de receber... o
Espírito de Deus que mora nessas imagens da virtude de que falei, para nelas fazer a
sua morada...
Se quisermos, podemos comparar os altares que descrevi aos altares de que fala
Celso, e as imagens interiores à alma daqueles que têm piedade para com o Deus do
universo, às estátuas de Fídeas... Ver-se-á claramente que estas são inanimadas, sujei-
tas ao desgaste do tempo...
19. Será precisa uma comparação entre os templos para convencer os partidários de 928
Celso que nós não recusamos edificar templos que correspondam aos altares e às
imagens de que acabo de falar, mas que temos repugnância em construir para o altar de
toda a vida templos inanimados e mortos? Bastará dizer a quem o desejar a instrução
que nos dão: os nossos corpos são o templo de Deus... Mas de todos estes templos, o
melhor e mais excelente era o corpo santo e puro de Jesus, nosso Salvador...
36
2 Tim 3, 6-7.
37
Deveriam ser fórmulas de exorcismos.
268 SÉCULO III

929 20. Não é, portanto, para observar uma palavra de ordem recebida da nossa associação
secreta e misteriosa que nós evitamos edificar altares, imagens e templos, mas sim
porque encontrámos, graças ao ensinamento de Jesus, a forma de piedade para com a
divindade... Ele é o único caminho da piedade, pois disse com verdade: Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida.
930 21. As festas públicas só são festas no nome... Por isso, os que querem prestar culto
a Deus sabendo o que fazem, procedem com inteligência, não tomando parte em festas
públicas. Na verdade, como diz e muito bem um dos sábios da Grécia, «celebrar uma
festa pública mais não é do que fazer cada qual o seu próprio dever». Portanto, celebra
a festa de forma verdadeira aquele que faz o seu dever, que ora sem cessar, e que em
cada momento oferece a Deus, nas suas orações, vítimas inocentes (sem derramamento
de sangue). Por esta razão me parece que Paulo se expressou de modo sublime, ao
dizer: Observais os dias e os meses, as estações e os anos! Temo, a vosso respeito,
que afinal tenha sido em vão o trabalho que suportei por vós38.
931 22. Mas, se alguém quiser opor objecções a estas nossas palavras, apelando para
aquilo que nós fazemos nos dias do Senhor, na sexta-feira39, na Páscoa ou no Pentecos-
tes, tenho de lhe responder que o homem perfeito, sempre atento às palavras, às obras
e aos pensamentos do Verbo de Deus, que é por natureza o seu Senhor, vive sempre
nos dias do Senhor, celebra sempre o domingo... Além disso, quem compreende que
Cristo, nossa Páscoa, foi imolado e que nós devemos celebrar a festa comendo a carne
do Logos, esse está sempre a celebrar a Páscoa, que significa «sacrifício para a passa-
gem», pois está permanentemente a passar das coisas da vida para Deus, e a caminhar
depressa para a cidade de Deus. Finalmente, aquele que pode dizer com verdade:
Ressuscitámos juntamente com Cristo e ainda: Ressuscitou-nos e sentou-nos nos Céus
juntamente com Cristo, está sempre nos dias de Pentecostes. E particularmente, quan-
do, a exemplo dos discípulos de Jesus, sobe ao andar de cima e permanece em oração
e em súplicas, a fim de se tornar digno do vento impetuoso que vem do Céu, o vento
que obriga a maldade e tudo o que dela procede a desaparecer dos homens, esse é digno
de receber também alguma parte das línguas de fogo vindas do Céu.
932 23. Mas a multidão daqueles que parecem ter fé não consegue chegar a uma tal
perfeição: não quer ou não pode celebrar como festas todos os dias e tem necessidade
de modelos sensíveis, para voltar a recordar-se, para não esquecer completamente.
Creio que era isto o que Paulo tinha em mente quando chamava à festa, fixada em
determinado dia, festa parcial, subentendendo, com esta frase, que a vida vivida em
assíduo acordo com o Logos divino, não é uma festa parcial, mas a festa integral e
ininterrupta40. Depois deste desenvolvimento sobre as nossas festas e a comparação
com as festas públicas de Celso e dos pagãos, vê se as nossas festas não são muito
mais sagradas do que essas festas populares, em cuja celebração a sensibilidade da
carne fica à solta, convidando-nos à embriaguez e à perversão dos costumes.
933 33. Celso, como homem que desconhece a Deus, apresenta os seus agradecimentos
aos Demónios; nós, pelo contrário, damos graças ao Criador de todas as coisas e, com
acções de graças e orações pelos benefícios recebidos, comemos os pães que nos foram
apresentados. Pela oração, estes pães converteram-se num Corpo sagrado, que santifica
os que o recebem com santas disposições.

38
Gal 4, 10-11.
39
Na Preparação.
40
Encontramos aqui a conhecida distinção entre cristãos perfeitos e cristãos comuns. Dela irá derivar, no
ensino de Orígenes, uma desvalorização das celebrações dominicais. Por causa deste sentimento de supe-
rioridade gnóstica, Orígenes e Clemente de Alexandria foram sempre olhados como suspeitos pela tradição
cristã.
ORÍGENES 269

37. Celso esquece-se de que está a falar com cristãos, que só oram a Deus por 934
Jesus. Mistura doutrinas diferentes e atribui-as, sem razão, aos cristãos, dizendo:
«Se pronunciarmos os seus nomes numa língua bárbara, têm algum poder; mas, se
for em grego ou em latim, não têm nenhum». Mostre-nos a quem é que nós invo-
camos em língua bárbara ao gritar por socorro. Ver-se-á a estupidez desta crítica
de Celso constatando que os cristãos, na sua maioria, nunca utilizam, nas suas
orações, os nomes que se encontram literalmente nas divinas Escrituras para de-
signar Deus, mas que os Gregos se servem de palavras gregas, os Romanos de
palavras latinas, e que o mesmo faz cada povo, segundo a sua própria língua, para
orar a Deus e para O louvar como pode. Sendo Deus o Senhor de todas as línguas,
escuta aqueles que Lhe rezam em línguas tão diversas, como se rezassem numa só
língua. Na verdade, Ele não é como os homens, que sabem uma língua, bárbara ou
grega, mas ignoram as outras. Apesar disso, não ficam tristes por haver quem fale
línguas diferentes das suas.
57. Celso acredita que qualquer pessoa cumpre o culto nesta vida..., quando 935
oferece sacrifícios segundo os costumes dos povos a cada um dos deuses reconhe-
cidos em cada cidade. Isto é ignorar o verdadeiro dever exigido pela piedade autên-
tica. Nós dizemos que o culto se cumpre nesta vida de maneira conveniente quan-
do, lembrando-nos do Criador e das acções que Lhe são agradáveis, tudo fazemos
para agradar a Deus.
Celso quer ainda que não sejamos ingratos para com os Demónios deste
mundo, acreditando que lhes devemos sacrifícios de acção de graças. Mas nós, que
sabemos muito mais profundamente (do que Celso) o que significa acção de gra-
ças, dizemos que, ao recusar a oferta de sacrifícios a seres que não nos fazem
qualquer bem, mas antes se levantam contra nós, não cometemos qualquer ingra-
tidão. Só nos recusamos a ser ingratos para com Deus, que nos encheu de benefí-
cios, pois somos criaturas suas, objecto da sua providência, seja qual for o seu
juízo sobre a nossa condição, e, depois da nossa vida, esperamos o que Ele nos
prometeu. Nós até temos, como símbolo da gratidão para com Deus, o pão que se
chama «Eucaristia» 41.
73. Mesmo aqueles que, segundo vós, são sacerdotes de certas estátuas e guar- 936
das dos templos dos vossos pretendidos deuses, têm o cuidado de guardar a sua
mão direita sem mancha para os sacrifícios, a fim de oferecerem, àqueles que vós
dizeis vossos deuses, os sacrifícios tradicionais com as mãos puras de sangue e de
assassínio. E por isso, no tempo de guerra, não alistaríeis os vossos sacerdotes.
Ora, se esta vossa conduta é razoável, quanto mais o não é a dos cristãos! En-
quanto outros combatem como soldados, eles combatem como sacerdotes e servi-
dores de Deus; conservam pura a sua mão direita, mas lutam, através das orações
dirigidas a Deus, por aqueles que se batem justamente e por aquele que reina com
justiça, para que tudo aquilo que é oposto e hostil aos que actuam com justiça
possa ser vencido. Além disso, nós que, pelas nossas orações, vencemos todos os
Demónios que suscitam as guerras, fazem violar os juramentos e perturbam a paz,
prestamos mais ajuda ao imperador do que aqueles que vemos combater. E colabo-
ramos nos assuntos públicos fazendo subir, com justiça, as nossas orações junta-
mente com os nossos exercícios e meditações que ensinam a desprezar os praze-
res e a nunca mais os termos por guias. Nós combatemos pelo imperador mais do
que outros. Não servimos como seus soldados, mesmo que ele o exija, mas comba-
temos por ele, fazendo parte de um exército especial, o da piedade, pelas súplicas
que dirigimos a Deus. 74. E se acaso Celso nos quer ver a servir como estrategas
em defesa da pátria, saiba que também o fazemos, mas não para atrair o olhar dos

41
pro\ j Deo\ n eu) x aristi/ a j a) / r toj «eu) x aristi/ # » kalou/ m enoj.
270 SÉCULO III

homens a fim de obter deles, por este modo de proceder, uma glória fútil. As
nossas orações são feitas no segredo mais íntimo da alma e elevam-se, como as
dos sacerdotes, pela salvação dos nossos compatriotas. Os cristãos são até mais
úteis às pátrias do que o resto dos homens: eles educam os seus compatriotas,
ensinando-lhes a piedade para com Deus, guardião da cidade, fazendo subir para
uma cidade celeste e divina aqueles que levaram vida honesta mesmo nas mais
pequenas cidades. Poder-se-ia dizer: foste fiel numa cidade muito pequena, sobe
agora para esta maior, onde Deus se levanta na assembleia dos deuses. Ele aceita
contar-te entre eles desde que tu não queiras morrer à maneira de um homem, nem
tombar como um dos seus príncipes.

Sobre a Páscoa 42

HOMILIA 1

937 A maior parte dos irmãos, para não dizer a totalidade, pensa que a Páscoa se
chama assim por causa da paixão do Salvador. Na realidade, entre os Hebreus, aquela
festa não se chama pa/sxa, mas fa/ j: são estas três letras de fa/ j, mais o espírito áspero
que entre eles é mais acentuado, que constituem o nome da festa, cuja tradução signifi-
ca passagem. É com toda a justiça que se lhe chama fa/ j, isto é, passagem, porque foi
nessa festa que o povo saiu do Egipto. Não sendo possível, na língua grega, pronunciar
essa palavra à maneira hebraica, pois os Gregos não conseguem pronunciar fa/j, desprovidos
como são da aspiração áspera dos Hebreus, o termo foi helenizado. Desse modo, nos
Profetas aparece escrito fa/sek que, helenizado mais completamente, se torna pa/sxa.
Por isso, se algum dos nossos se encontrasse em companhia dos Hebreus e dissesse
que a Páscoa se chama assim por causa da paixão do Salvador, tornar-se-ia, para eles,
objecto de riso, como alguém que ignora de todo o significado do termo.

Sobre a Oração 43
938 12. Como os actos de virtude e os preceitos vêm juntamente com a oração, ora sem
interrupção aquele que junta a oração à acção que deve realizar e as obras à oração.
Quanto à recomendação «orai sem interrupção», só a podemos aceitar como preceito
possível se dissermos que a vida toda do homem santo é um acto de oração contínua;
aquilo a que nos habituámos a chamar oração, e que devemos recitar pelo menos três
vezes por dia, é apenas uma parte dela, o que é manifesto em Daniel... Mas nem o
tempo da noite deve ser passado sem este género de oração... De Paulo se diz, nos
Actos dos Apóstolos, que em Filipos, com Silas, a meio da noite, começou a orar e a
louvar a Deus, de tal modo que os outros presos o ouviam...
A oração é energicamente activa. Da mente do orante saem, por assim dizer,
flechas que ferem os espíritos malignos pondo-os em fuga...
939 16. 1 Peçamos, pois, a Deus, por mediação de Cristo, dizendo todos as mesmas
coisas, sem divisões, no mesmo modo de rezar. Não é verdade que, se uns oram ao Pai

42
O RÍGENES , De Pascha (=SCh 36).
43
O RÍGENES , De oratione (=PG 11, 415-562; GCS 3). Este tratado foi composto por volta de 233. É o estudo
científico mais antigo que possuímos sobre a oração cristã.
ORÍGENES 271

e outros ao Filho, estamos divididos? A gente simples, que sem sentido nem razão reza
ao Filho, seja com o Pai ou sem o Pai, comete um pecado de ignorância.
22. 1 Há razões para examinar com cuidado se no Antigo Testamento existe alguma 940
oração que trate Deus pelo nome de Pai. Até agora, apesar de todas as nossas investi-
gações, ainda não a encontrámos. Não queremos com isto dizer que Deus não seja aí
chamado Pai, ou que os verdadeiros crentes não sejam chamados filhos de Deus. Mas,
em parte nenhuma, seja em que oração for, Deus é invocado como Pai, segundo a
expressão cheia de confiança que o Salvador nos transmitiu...
Não imaginemos, contudo, que aprendemos apenas palavras a recitar numa de-
terminada hora de oração; se compreendemos o nosso comentário ao orai sem cessar,
toda a nossa vida deveria dizer: Pai nosso, que estais nos Céus...
25. Quando alguém implora a vinda do reino de Deus, o que pede realmente é que o 941
reino de Deus, que está dentro de si, se desenvolva, frutifique e chegue à sua plenitude...
O reino de Deus, que está em nós, chegará à sua plenitude através do nosso aperfeiçoa-
mento contínuo... O reino de Deus não pode associar-se com o reino do pecado.
Por isso, se queremos que Deus reine em nós..., tenha Cristo em nós o seu
trono... e connosco permaneça... até que desapareça de nós todo o principado, potestade
e virtude que não sejam os seus. Tudo isto pode realizar-se em cada um de nós...
27. 1 Dado que alguns pensam que no Pai-Nosso se nos manda pedir o pão do nosso 942
corpo, é conveniente refutar o seu erro e propor a verdade sobre o pão de cada dia.
Haveria que responder-lhes com esta pergunta: Como é possível que Aquele que nos
manda pedir coisas celestes e grandiosas, esquecendo-Se, segundo vós dizeis, dos seus
próprios ensinamentos, mande pedir ao Pai coisas terrenas e mesquinhas?
28. Aquele a quem Jesus tornou espiritual44, como aos Apóstolos, e ao qual é possível 943
reconhecer pelos frutos que recebeu do Espírito Santo, e que se tornou espiritual pelo
facto de actuar, sob a acção do Espírito, à maneira do Filho de Deus em toda a sua
actividade racional, perdoa os pecados que Deus perdoaria e retém os pecados incuráveis...
É o que significam no Evangelho de João as palavras relativas ao perdão dos pecados
pelos Apóstolos: Recebei o Espírito Santo...
29. 9 Nós pedimos a graça de ser libertados da tentação, não de lhe sermos subtraídos, 944
o que é impossível aos homens na terra, de não sucumbir, quando somos tentados.
31. Se o Anjo do Senhor está com aqueles que o temem, é natural que, quando estão 945
reunidos oficialmente para glorificar a Cristo, o Anjo de cada um esteja ao lado de cada um
daqueles que o temem, e esteja com aquele que é encarregado de velar e de dirigir. Deste
modo, quando os fiéis estão reunidos, há duas assembleias: a dos homens e a dos Anjos.
32. Falta falar ainda da direcção celeste para onde convém olhar durante a oração. Há 946
quatro pontos cardeais: Norte, Sul, Ocidente e Oriente; quem não reconhecerá que se
deve orar voltado para o Oriente, como símbolo, para que a alma esteja orientada para
a aparição da verdadeira luz? Se as portas da casa abrem para outra direcção do céu e
se alguém quiser rezar, voltado para essa abertura da casa e afirmando que o céu livre
é mais atraente para os olhos do que a parede – no caso de a habitação não ter porta
voltada para o nascer do sol – deve responder-se o seguinte: as casas recebem as suas
portas da vontade arbitrária do homem, ao passo que o Oriente ultrapassa, por natu-
reza, os outros pontos cardeais. Deve, pois, preferir-se o que a natureza criou àquilo
que foi construído arbitrariamente. Quando alguém ora debaixo do céu descoberto
volta-se para Leste, pela razão indicada mais acima. Qual a razão para não agir assim em
toda a parte?
33. Louvamos o Pai de todas as coisas por Jesus Cristo no Espírito Santo. 947
44
pneumatiko/ j .
272 SÉCULO III

Disputa com Heraclides 45


948 4. 22 Em primeiro lugar com a permissão de Deus, em segundo lugar com a dos
bispos, em terceiro lugar com a dos presbíteros e dos fiéis, direi novamente o meu
sentimento sobre a questão: a oferenda faz-se sempre a Deus todo-poderoso, por
intermédio de Jesus Cristo, na medida em que Ele está em comunhão com o Pai pela
sua divindade; a oferenda não se faz duas vezes, mas a Deus por intermédio de Deus.
Vou dar a impressão de me exprimir com mais ousadia: nas nossas orações é preciso
que respeitemos as regras litúrgicas46. Se não fizermos isso, se as regras litúrgicas não
forem observadas, acabar-se-á por pôr sempre tudo em questão...
949 5. 7 Se tal não acontecer..., de nada serve alguém ser bispo ou presbítero, pois nem
é bispo nem presbítero; de nada serve ser diácono, pois não é diácono...; de nada serve
ser leigo, pois nem é leigo nem participa na sinaxe. Por favor: observem-se as regras
litúrgicas.

Lamprídio

Vida de Alexandre Severo 47


950 22. 4 O imperador Alexandre Severo manteve os seus privilégios aos Judeus48 e
tolerou que houvesse cristãos49.
951 49. 6 Em Roma, onde os cristãos estavam em concorrência com um taberneiro para
a compra de uma casa até aí pertencente ao domínio público, o imperador Alexandre
Severo deu a preferência aos cristãos porque, dizia ele: «Mais vale que Deus seja
adorado duma maneira qualquer neste lugar, do que fazer presente dele aos donos das
tabernas 50».

45
O RÍGENES , Disputatio cum Heracleida (=SCh 67). Trata-se de um verdadeiro diálogo ao vivo, entre
Orígenes e o bispo Heraclides, sem carácter oficial nem judicial, e que teve lugar numa igreja da Arábia, na
presença dos bispos e do povo, por volta do ano 245. A disputa foi transcrita com exactidão pelos estenó-
grafos. Manuscrito descoberto em 1941, em Toura, perto do Cairo.
46
sunqh/ k ai (=convenções).
47
L AMPRÍDIO , Vita Alexandri Severi (=E. HOHL , Scriptores Historia Augusta, 2 vol., Leipzig 1927. 1965 2;
citado em C. K IRCH , Enchiridion Fontium Historiae ecclesiasticae antiquae, 8ª ed., Herder, Barcelona
1960, n. 488). Alexandre Severo foi imperador de 222 a 255.
48
Os Judeus tinham direitos, os cristãos eram tolerados.
49
Iudaeis privilegia reservavit. Christianos esse passus est.
50
Cum Christiani quendam locum, qui publicus fuerat, occupassent, contra propinarii dicerent, sibi eum
deberi, rescripsit melius esse, ut quemadmodumque illic deus colatur, quam propinariis dedatur.
CIPRIANO 273

Cipriano

A Donato 1
3. Quando eu andava nas trevas de uma noite cerrada2..., imaginava que seria difícil 952
e utópico aquilo que a misericórdia divina prometia para me salvar... Como é possível
uma conversão tão radical...?
4. Perguntava isto a mim mesmo, vezes sem conta... Mas quando a água da regene- 953
ração lavou as manchas da minha vida passada, e a luz serena e pura desceu sobre o
meu peito de convertido; quando me tornei um homem novo por um segundo nasci-
mento e fui embebido pela infusão do Espírito celestial, então, de modo admirável, as
dúvidas transformaram-se em certezas, revelaram-se os segredos, resplandeceram as
trevas, apareceu fácil o que antes era difícil... Tudo o que agora podemos é dom de
Deus. D’Ele nos vem a vida, d’Ele nos vem toda a capacidade. Por Ele, estando nós
ainda na terra, conhecemos antecipadamente os sinais da vida futura...
15. Tu, que já estás inscrito na milícia espiritual do Céu..., alterna a oração com a leitura, 954
fala com Deus e escuta-O. Seja Ele o teu único mestre, só Ele dite a regra da tua conduta...
16. E como agora são dias de descanso nesta quietude, passemos em alegre serão 955
todo o tempo que nos resta após o ocaso do sol, e nem sequer a hora da ceia fique sem
a graça celeste. Ressoem salmos durante o sóbrio convívio, e como tu tens memória fiel
e voz melodiosa, começa a cantar, como costumas fazê-lo. Tanto mais deleitarás os
teus amigos quanto mais recreares os nossos ouvidos com cânticos espirituais...

Os apóstatas 3
2. Hoje finalmente, cheios de alegria, voltamos a saudar os confessores ilustres 956
pela fama e gloriosos pela fé e pela coragem... As vossas mãos esplendentes, usadas
para os sacrifícios divinos, não quiseram sacrificar sacrilegamente. A vossa boca,
santificada pelo Corpo e pelo Sangue do Senhor, celeste manjar, recusou qualquer
contacto profano e as carnes sacrificadas aos ídolos...
6. Desaparecia a devoção nos sacerdotes, a pureza da fé nos ministros, a caridade 957
nas obras e a disciplina na moral... Celebravam-se matrimónios com os infiéis, e os
membros de Cristo juntavam-se aos gentios... Os superiores eram desprezados com
uma soberba altaneira... Muitíssimos bispos, que deveriam ser exemplo e incitamento
para os outros, abandonando os serviços divinos, fizeram-se administradores dos bens
temporais. Deixavam vazia a cátedra, abandonavam o rebanho... Que castigos não
merecíamos nós por estes pecados?...
7. Às primeiras ameaças do inimigo uma enorme multidão de fiéis renegou a sua fé... 958

1
CIPRIANO DE CARTAGO, Ad Donatum (=PL 4, 192-223; CCL 3 A; CSEL 3, 1.3; SCh 291; BAC 241). Cipriano deve
ter nascido entre 200-210, recebeu o baptismo talvez em 245, foi ordenado bispo em 249 e martirizado em 14 de
Setembro de 258. O tratado A Donato foi escrito a seguir à sua conversão ao cristianismo.
2
Antes da conversão.
3
CIPRIANO DE CARTAGO, De lapsis (=PL 4, 465-493; CCL 3; CSEL 3, 1; BAC 241; Paulistas, Lisboa 1950). Este
tratado foi escrito na Primavera de 251.
274 SÉCULO III

959 8. Que vergonha. Muitos..., para sacrificarem aos deuses, nem esperaram por ser
presos. Negaram sem ser interrogados... Esses mesmos correram aos tribunais... A
quantos não despachou o magistrado, ao cair da noite, com o solicitado documento de
apostasia... 4
960 9. E, para que nada faltasse à perfeição do delito, fez-se perder às crianças a graça
que tinham recebido no baptismo, levadas ao altar pela mão dos próprios pais. Mas,
quando vier o dia do Juízo, esses gritarão: «Nós somos inocentes, não abandonámos
voluntariamente o alimento e a bebida do Senhor, para irmos aos altares pagãos5; foi a
impiedade dos outros que nos perdeu...».
961 13. Alguém poderá dizer: «Eu quis, verdadeiramente, combater com coragem; foi
por me lembrar do meu sacramento que tomei as armas da devoção e da fé6. Mas tão
grandes e demorados suplícios acabaram por vencer-me, apesar de ter lutado no combate...».
Tal causa pode servir para conceder um rápido perdão, esta desculpa pode ser digna de
compaixão...
962 15. Na verdade, irmãos caríssimos, apareceu entre nós um novo género de calamidade.
Como se a tempestade da perseguição não fosse bastante, foi levada ao cúmulo, a
pretexto de misericórdia, por um mal enganador e um flagelo que se esconde sob
aparências de brandura.
Contra toda a prática evangélica, e em oposição à lei do nosso Deus e Senhor,
por audácia de alguns, eis que a comunhão é concedida imprudentemente: uma paz vã
e enganadora, perigosa para aqueles que a dão e sem efeitos para aqueles que a recebem.
Alguns não esperam a cura, com paciência, nem procuram o verdadeiro remédio, que
nasce da expiação: a penitência não mora nos seus corações, e até a lembrança do crime
mais grave e mais terrível7 é abolido. Encobrem-se as feridas dos moribundos, fecha-se
a chaga profunda e mortal. Os que voltam dos altares do Demónio entram no santuário
do Senhor com as mãos ainda sujas e impregnadas do odor dos sacrifícios. Ainda
cheiram aos alimentos envenenados dos ídolos, as suas bocas ainda exalam o seu crime,
e, contudo, com a respiração empestada pelos infames festins, precipitam-se sobre o
Corpo do Senhor, apesar de a Escritura não cessar de dizer: Todo aquele que estiver
puro poderá comer da carne do sacrifício. Mas, se alguém, em estado de impureza,
comer a carne do sacrifício, será exterminado do seu povo 8. E o Apóstolo diz o
mesmo: Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos Demónios; não podeis
participar da mesa do Senhor e da mesa dos Demónios9. O mesmo Apóstolo ameaça os
pecadores endurecidos e obstinados: Assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice
do Senhor indignamente será réu do Corpo e do Sangue do Senhor10.
963 16. Todos estes ensinamentos são desprezados e rejeitados. Antes da expiação do
delito, antes da exomologese do crime, antes de a consciência ter sido purificada pela
mão e pelo ministério do bispo, antes de ter sido aplacada a ofensa feita ao Senhor

4
Em papiros do Egipto conservaram-se 43 certificados (libelli) passados a pessoas que fizeram os sacrifícios pres-
critos por lei. Damos aqui o texto de um deles: «À comissão da aldeia de Alexandrou Nesos, que foi eleita para vigiar
os sacrifícios, declaração feita por Aurelius Diogene, filho de Satabous, de setenta e dois anos de idade, que tem uma
cicatriz no sobrolho direito: “Não só fui sempre devoto dos deuses, mas hoje, na vossa presença, segundo o edicto,
incensei o altar, fiz a libação e comi da carne sagrada. Peço-vos que me deis a vossa assinatura. Desejo-vos saúde!
Eu, Aurelius Diogene, fiz este pedido”. Eu, Aurelius Syrus, registei Diogene como tendo sacrificado com todos nós
na qualidade de participante, no ano I do imperador César Caius Messius Quintus Trajano Décio, piedoso, feliz,
augusto (25 de Junho de 250)».
5
Nec derelicto cibo et pabulo Domini ad profana contagia sponte properavimus.
6
Et sacramenti mei memor devotionis ac fidei arma sucepi.
7
A apostasia.
8
Lev 7, 19-20.
9
1 Cor 10, 21.
10
1 Cor 11, 27.
CIPRIANO 275

irritado e ameaçador, eles fazem violência ao Corpo e ao Sangue de Cristo, e pecam


contra Deus, com as suas mãos e as suas bocas, mais do que quando renegaram o
Senhor. Crêem que é a paz aquilo que alguns vendem de maneira enganadora. Não é a
paz, mas a guerra, porque aquele que está longe do Evangelho não pode estar unido à
Igreja. Como se pode chamar benefício àquilo que é uma injúria, e acto piedoso ao que
é uma impiedade? Como podem fingir que estão em comunhão com os que choram e
rezam sem cessar ao Senhor os que interromperam prematuramente a penitência? Esta
maneira de agir tem o mesmo efeito nos apóstatas que a geada nas culturas, que a
tempestade nas árvores, que um deserto pestilento para os rebanhos, e que a tempestade
desencadeada para os navegantes. Arrancam a consolação que nasce da esperança,
destroem-na completamente, rastejam para a doença mortal, encorajados por palavras
doentias e, lançando o navio contra os escolhos, impedem-no de chegar a bom porto.
A condescendência excessiva11 não dá a paz, mas tira-a e, longe de trazer a
comunhão, fecha o caminho para a salvação. Este é um outro género de perseguição,
um outro assalto, por onde avança um inimigo cheio de astúcia para combater os
apóstatas, dissimulando a sua miséria. Tudo isto, para que cessem as lamentações,
para que se pacifique a dor, para que desapareça a lembrança do crime. Interrompem-se
os gemidos12, secam-se as lágrimas, o Senhor, gravemente ofendido, já não é implorado
com uma penitência longa e adequada, apesar de estar escrito: Lembra-te, pois, donde
caíste, arrepende-te e torna a proceder como no princípio. Se não fizeres assim e não
te arrependeres, Eu virei ter contigo e retirarei o teu candelabro do seu lugar13.
17. Ninguém se engane nem se iluda a si mesmo. Só Deus pode perdoar. O perdão 964
dos pecados cometidos contra Ele, só Ele o pode conceder, Ele que levou em Si os
nossos pecados, que sofreu por nós, que Deus entregou pelos nossos pecados. O
homem não pode ser superior a Deus, nem o servo comutar ou perdoar, com a sua
indulgência, os crimes graves cometidos contra o Senhor. Receio que não lhe seja
imputado14 um crime suplementar, se ele ignora a palavra da Escritura: Maldito aquele
que confia no homem15. É ao Senhor que devemos rezar, é a Ele que devemos aplacar
pela nossa expiação, pois Ele disse que negaria aquele que O negasse, e só Ele recebeu
do Pai o poder de julgar. Cremos que os méritos dos mártires e as obras dos justos têm
muito valor diante deste juiz, mas só quando vier o dia do Juízo, quando após o
desaparecimento deste tempo e deste mundo, o povo se apresentar diante do
tribunal de Cristo.
18. De resto, se alguém, com uma pressa intempestiva, imagina poder dar temerariamente 965
a todos a remissão dos pecados, não só esse perdão é ineficaz, mas prejudica os
apóstatas. Desprezar o Senhor, não observar o mandamento de Deus, não acreditar
que a sua misericórdia deve primeiro ser invocada e esperar com presunção a sua
misericórdia infinita, é provocar a sua cólera.
As almas dos mártires gritam sob o altar de Deus: Tu, que és o Poderoso, o
Santo, o Verdadeiro, até quando esperarás para julgar e tirar vingança do nosso
sangue sobre os habitantes da terra 16? E foi-lhes dito que esperassem ainda e não
perdessem a paciência. Será que alguém julga poder, contra a vontade do juiz, justificar
um outro, indultando e perdoando aqui ou ali os pecados, ou poder defender outros
antes do juiz ter feito ele próprio justiça? Os mártires pedem que se faça alguma coisa?
Sim, mas com a condição de se tratar de coisas justas, permitidas, que o sacerdote do

11
Em conceder a reconciliação.
12
Dos penitentes.
13
Ap 2, 5.
14
Ao apóstata.
15
Jer 17, 5.
16
Ap 6, 10.
276 SÉCULO III

Senhor possa realizar sem ir contra o próprio Senhor. A condescendência será fácil e
rápida se aquele que pede der provas de santa moderação. Os mártires pedem-nos para
agirmos? Se o pedido deles não estiver inscrito na lei do Senhor, primeiro é preciso que
estejamos certos de que eles obtiveram do Senhor aquilo que reclamam, e em seguida
faremos o que eles pedem. De facto, não se pode constatar sem mais que a majestade
de Deus concede aquilo que apenas foi uma promessa feita por homens...
966 22. Que fé pode ter quem não pôde ser corrigido pelo temor dos castigos nem
modificado pela perseguição?... Está por terra no meio de gente em pé..., e revolta-se
sacrilegamente contra os sacerdotes, pelo facto de não poder, com as suas mãos sujas,
receber o Corpo do Senhor e beber, com os seus lábios imundos, o Sangue do Senhor.
967 25. Escutai agora o que aconteceu uma vez na minha presença, perante os meus
olhos. Certos pais fugiram apavorados e deixaram uma filhinha entregue aos cuidados
duma ama. Esta mulher, por sua vez, entregou-a aos magistrados. Estes levaram-na até
junto do ídolo que estava cercado de grande multidão e deram-lhe a chupar pão embe-
bido em vinho que sobejara da mesa dos condenados, pois a sua idade não permitia
mastigar a carne do sacrifício. Algum tempo depois a mãe recuperou a sua filha... Ora
aconteceu que a mãe, ignorando tudo o que se passara, levou consigo a filha ao sacrifício
que eu estava a celebrar... No meio dos fiéis17, não podendo suportar as nossas orações,
começou a agitar-se e a chorar...
Quando, realizado o sagrado rito18, o diácono deu aos presentes o cálice a beber
e chegou a vez de se abeirar da criança, esta, como se visse a majestade divina, voltou
a face, fechou obstinadamente os lábios e recusou-se a beber. O diácono, porém,
insistiu e, apesar da resistência da criança, conseguiu verter-lhe nos lábios uma gota do
sacramento19. Subitamente teve soluços e vómitos. A Eucaristia não pôde ficar naquele
corpo e naquela boca profanada. A bebida consagrada no Sangue do Senhor, foi vomitada...
968 26. Uma outra criança, de mais idade, introduziu-se ocultamente no meio de nós e
abeirou-se da comunhão. Já não tomou o alimento, mas a morte... Uma outra tentava
abrir20, com as mãos imundas, a arca21 onde estava o Santo do Senhor, e dali saíram
chamas de fogo que a encheram de medo e já não ousou tocar-lhe. Outro que, igualmente
manchado, ousou participar com os fiéis no sacrifício celebrado pelo sacerdote e
recebê-lo às ocultas, não pôde comer o Santo do Senhor22, pois, ao abrir as mãos, só aí
encontrou cinza...
969 27. E aqueles que mancharam a sua consciência com os libelos, mesmo sem se terem
contaminado com os abomináveis sacrifícios, não tenham a ilusão de estarem dispen-
sados de fazer penitência. A sua declaração é uma prova de que negaram ser cristãos, da
mesma maneira que os que fizeram sacrifícios...
970 28. Enfim, são bem melhores aqueles que não foram forçados a sacrificar ou a pedir
o referido certificado, mas que, só por terem pensado na traição, vieram com simplicidade
e com dor junto dos sacerdotes fazer a sua confissão, realizar a exomologese da sua
consciência e pedir uma penitência salutar para os seus graves pecados, sabendo que
Deus não pode ser enganado...
971 29. Cada um de vós, irmãos caríssimos, confesse o seu pecado, enquanto vive,
enquanto a sua confissão pode ser aceite, enquanto é agradável junto do Senhor a
satisfação e a remissão feita pelos sacerdotes...

17
Sanctis.
18
Sollemnibus.
19
Sacramento calicis infudit.
20
Em sua casa.
21
Arcam suam.
22
Sanctum Domini.
CIPRIANO 277

32. Peço-vos, irmãos caríssimos, que useis os meios eficazes, que escuteis os melhores 972
conselhos, que ajunteis as vossas lágrimas às nossas lágrimas, os vossos gemidos aos
nossos gemidos. Pedimo-vos isto, para que possamos rezar ao Senhor por vós. Dirigimos
primeiro a vós as nossas súplicas com que pedimos a Deus misericórdia para nós.
Fazei penitência a sério23. Fazei transparecer no rosto a tristeza de quem anda aflito e
chora o seu pecado.
35. Mas vós, irmãos caríssimos, que conservais ainda o temor de Deus e a lembrança 973
do pecado, apesar de oprimidos sob as ruínas da vossa queda, reconhecei os vossos
pecados pelo arrependimento e pela penitência, reconhecei o gravíssimo mal da vossa
consciência, abri os olhos do espírito à compreensão do vosso pecado, sem deixar de
esperar na misericórdia divina, mas sem pensar que já estais perdoados... Não seja a
penitência menor que o delito...
É preciso rezar com insistência, passar os dias em pranto e as noites em vigília,
ocupar cada hora do dia e da noite em lamentos e lágrimas. É preciso prostrar-se,
cobrir-se de cinzas e cilícios. É preciso não vestir roupa nova, desde que se perdeu a
veste de Cristo. É preciso desejar o jejum depois de se ter comido à mesa com Satanás,
ocupar-se em boas obras, dar esmolas, para assim libertar a alma da morte eterna...
36. Deus pode perdoar benignamente àquele que faz penitência, reza e faz boas 974
obras, pode aceitar benevolamente tudo o que por esse houverem pedido os mártires e
feito os sacerdotes...

Sobre a unidade da Igreja católica 24


5. Como pode alguém acreditar que tem fé se não guarda a unidade da Igreja?... Por 975
isso, sobretudo nós, os bispos, que na Igreja temos a função de presidir, devemos
guardar e manter firmemente esta unidade, para darmos testemunho de que o episcopado
também é uno e indivisível... O episcopado é único, e dele participa por inteiro cada
um. Do mesmo modo é única a Igreja... Nascemos do seu seio, alimentamo-nos com o
seu leite e somos vivificados pelo seu Espírito...
6. A esposa de Cristo não pode corromper-se, por ser incorruptível e pura... Ela 976
guarda-nos para Deus e orienta para o reino os filhos que gerou... Não pode ter a Deus
por Pai quem não tem a Igreja por Mãe... Se alguém se tivesse podido salvar fora da
arca de Noé, também o poderia quem estivesse fora da Igreja... Quem rompe a paz e a
concórdia de Cristo está contra Cristo... Quem não mantém esta unidade não guarda a
lei de Deus, não guarda a fé no Pai e no Filho, não guarda a vida e a salvação.
7. Este sacramento de unidade e este vínculo de inseparável concórdia torna-se 977
mais evidente quando, no Evangelho, não se rasga de modo nenhum a túnica do Senhor
Jesus Cristo, mas a recebem íntegra e a possuem intacta aqueles que, depois de deitarem
sortes sobre ela, a vestiram como dom de Cristo...
8. O Corpo de Cristo e o Sangue do Senhor não podem ser lançados fora, e os 978
crentes não têm nenhuma outra casa além da Igreja. Esta casa, este refúgio da unidade
designa-o e revela-o o Espírito Santo nos Salmos, ao dizer: Deus faz habitar numa
mesma casa os que têm o mesmo sentir. Na casa de Deus, na Igreja de Cristo vivem os
que têm um mesmo sentir, perseveram os que têm um mesmo parecer e os simples.

23
Agite paenitentiam plenam.
24
C IPRIANO DE CARTAGO , De catholicae Ecclesiae unitate (=PL 4, 495-519; CCL 3; CSEL 3, 1; PLS 1; BAC
241). Este tratado deve ter sido escrito no final do ano 251.
278 SÉCULO III

979 13. Cristo afasta do altar aquele que vem ao sacrifício com uma inimizade, e diz-lhe
que faça primeiro as pazes com o seu irmão e só depois, voltando com paz, ofereça a
Deus a sua oferenda... Que paz prometem os inimigos dos irmãos, que sacrifícios
acreditam celebrar os rivais dos sacerdotes? Crêem acaso que Jesus Cristo está com
eles quando se reúnem os que se reúnem fora da Igreja de Cristo?
980 17. Acaso crê (Novaciano) que está com Cristo, ele que se opõe aos sacerdotes de
Cristo, ele que se afasta da companhia do seu clero e do seu povo? Esse tal usa armas
contra a Igreja, vai contra o que Deus manda. É inimigo do altar, rebelde contra o
sacrifício de Cristo, pérfido na fé, sacrílego na religião, servo desobediente, filho ímpio
e irmão hostil. Depois de cobrir de desprezo os bispos e de ter abandonado os presbí-
teros25 de Deus, atreve-se a levantar outro altar, a proferir súplicas ilegítimas, a profa-
nar com falsos sacrifícios a verdadeira hóstia do Senhor...

A Oração dominical 26
981 1. Os preceitos evangélicos, irmãos caríssimos, outra coisa não são que ensinamentos
divinos... Outrora quis Deus falar e fazer-Se ouvir de muitas maneiras pelos Profetas,
seus servos. Mas muito mais sublime é o que nos diz o Filho, a Palavra de Deus, que
já estava presente nos Profetas e agora dá testemunho pela sua própria voz...
982 2. Entre outros ensinamentos e preceitos divinos, com que orienta o seu povo para
a salvação, ensinou-nos também o Senhor o modo de orar, e Ele mesmo nos instruiu e
aconselhou sobre o que havemos de pedir na oração27. Aquele que nos deu a vida,
também nos ensinou a orar com a mesma bondade com que Se dignou conceder-nos
tantos outros benefícios, a fim de que, dirigindo nós ao Pai a súplica e a oração que o
Filho nos ensinou, mais facilmente sejamos atendidos...
Poderá haver oração mais espiritual do que aquela que nos foi dada por Cristo, se
foi Ele que nos enviou também o Espírito Santo? E que oração poderá ser aos olhos do
Pai mais verdadeira do que aquela que saiu dos lábios do próprio Filho, que é a
Verdade? Rezar de maneira diferente daquela que o Senhor nos ensinou, seria não
somente ignorância, mas também culpa...
983 3. Rezemos, portanto, irmãos caríssimos, como Deus, nosso Mestre, nos ensinou.
A oração agradável e querida por Deus é a que rezamos com as suas próprias palavras,
fazendo subir aos seus ouvidos a oração de Cristo. Reconheça o Pai as palavras de seu
Filho quando fazemos oração. Aquele que habita interiormente no nosso coração,
esteja também na nossa voz; e, uma vez que O temos como advogado pelos nossos
pecados junto do Pai, usemos as palavras do nosso advogado, quando, como pecadores,
suplicamos pelas nossas iniquidades...
984 4. As palavras e petições dos que oram devem ser ordenadas, tranquilas e discretas.
Pensemos que estamos na presença de Deus e que devemos agradar aos seus olhos,
tanto pela atitude do corpo, como pelo tom da voz... De facto, o Senhor mandou-nos
e ensinou-nos a rezar em segredo, nos lugares escondidos e remotos e até nos próprios
aposentos. A fé ensina-nos que Deus está em toda a parte, escuta e vê a todos... E,
quando nos reunimos com os irmãos e celebramos o sacrifício divino com o sacerdote
de Deus, devemos proceder com respeito e ordem, e não lançar desordenadamente ao
25
Sacerdotibus.
26
C IPRIANO DE C ARTAGO , De dominica oratione (=PL 4, 520-543; 47, 1113; CCL 3 A; CSEL 3; BAC 241; cf.
LH, II e III). Este tratado deve ter sido composto no ano 252.
27
Qui inter cetera salutaria sua monita et praecepta divina, quibus populo suo consulit ad salutem, etiam
orandi ipse formam dedit, ipse quid precaremur monuit et instruxit.
CIPRIANO 279

vento as nossas orações com palavras rudes, nem pronunciar com loquacidade baru-
lhenta aquela petição que deve ser apresentada a Deus com modesta dignidade. Deus
ouve mais o coração do que as palavras. Não é preciso gritar para chamar a atenção de
Deus, porque Ele vê os nossos pensamentos...
6. Portanto, irmãos caríssimos, quem adora não deve ignorar o modo como o publicano 985
orou no templo, juntamente com o fariseu. Não tinha os olhos atrevidamente levantados
para o Céu, nem erguia as mãos com insolência, mas, batendo no peito e confessando
os pecados ocultos, implorava o auxílio da misericórdia divina. Entretanto, o fariseu
comprazia-se em si mesmo...
8. Em primeiro lugar, o Doutor da paz e Mestre da unidade não quis que a oração 986
fosse exclusivamente individual e privada, a fim de que, aquele que ora, não peça só
para si. Não dizemos: Meu Pai que estais nos Céus; nem: Dai-me hoje o meu pão; cada
um não pede que lhe seja perdoado apenas o seu pecado, ou que não o deixe cair em
tentação, ou que só a ele o livre do mal. A nossa oração é pública e comunitária e,
quando rezamos, não rezamos por um só mas por todo o povo, porque com todo o
povo nós formamos um só. O Deus da paz e o Mestre da concórdia, que nos ensinou
a unidade, quis que cada um orasse por todos, assim como Ele a todos nos assumiu em Si...
Diz a Escritura: Todos perseveravam unidos em oração, com as mulheres e com
Maria, Mãe de Jesus. Perseveravam unidos na oração, mostrando pela persistência e
pela unanimidade da sua oração que é Deus que reúne na mesma casa os que vivem em
concórdia, e não admite na morada divina e eterna senão aqueles cuja prece é unânime.
9. Como são belos e grandiosos, irmãos caríssimos, os mistérios que nos revela a 987
Oração do Senhor! São breves as palavras que os resumem, mas é grande o seu poder
espiritual. Não falta absolutamente nada nesta breve fórmula da doutrina celeste...
11. Devemos lembrar-nos, irmãos caríssimos, quando chamamos a Deus «nosso 988
Pai», que nos devemos comportar como filhos de Deus. Se nos alegramos em Deus,
nosso Pai, Ele também deve poder alegrar-Se em nós. Devemos ser como templos de
Deus, onde os homens possam encontrar a sua presença. Não sejam indignas do Espí-
rito as nossas acções...
12. Dizemos: Santificado seja o vosso nome, não para exprimir o desejo de que Deus 989
seja santificado com as nossas orações, mas para pedirmos ao Senhor que seja santificado
em nós o seu nome... Pedimos e rogamos para que, uma vez santificados no baptismo,
perseveremos no que principiámos a ser. E isto pedimo-lo todos os dias, porque
precisamos desta santificação quotidiana. Todos os dias pecamos, e por isso devemos
purificar-nos das nossas faltas em contínua santificação.
15. A vontade de Deus é aquela que Cristo fez e ensinou. Humildade no trato, 990
firmeza na fé, discrição nas palavras; justiça nas acções, misericórdia nas obras, rectidão
nos costumes; não ofender ninguém, suportar as ofensas recebidas e conservar a paz
com os irmãos; amar o Senhor com todo o coração..., nada recusar a Cristo..., permanecer
junto à cruz com fortaleza e confiança, quando está em jogo o seu nome e a sua honra;
mostrar nas palavras a constância que professamos...: isto é querer ser herdeiro com
Cristo..., isto é cumprir a vontade do Pai...
17. Com razão pedimos e suplicamos, como Cristo nos manda, pela salvação de 991
todos os homens...
18. Continuando a oração, suplicamos: O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Isto 992
pode entender-se no sentido espiritual ou literal, porque num e noutro sentido apro-
veita à nossa salvação. Mas o pão da vida é Cristo; e este pão não é o pão de todos, mas
o nosso. E, assim como chamamos Pai nosso, porque Ele é Pai dos que O conhecem e
crêem n’Ele, também dizemos o pão nosso, porque Cristo é o pão daqueles que rece-
bem o seu Corpo.
280 SÉCULO III

E pedimos que nos seja dado cada dia este pão, a nós que vivemos em Cristo e
todos os dias recebemos a sua Eucaristia como alimento de salvação, para não suceder
que, por algum pecado grave, sejamos privados da comunhão do pão celeste e nos
separemos do Corpo de Cristo. Ele mesmo proclamou: Eu sou o pão da vida, que desci
do Céu. Se alguém comer do meu pão viverá eternamente...
Portanto, se Ele afirma que viverão eternamente os que comerem do seu pão, é
evidente que possuem a vida aqueles que recebem o seu Corpo e participam rectamente
na Eucaristia; mas, ao mesmo tempo, ensina que, ao contrário, é de temer, e devemos
orar para que assim não suceda, que, abstendo-se da Eucaristia, alguns se separem do
Corpo de Cristo e fiquem privados da salvação, como Ele próprio adverte: Se não
comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu Sangue, não tereis a vida
em vós. Por isso, pedimos que nos seja dado cada dia o nosso pão, isto é, Cristo, para
que nós, que permanecemos e vivemos em Cristo, não nos afastemos do seu Corpo que
nos santifica...
993 22. Depois do alimento, pedimos também o perdão dos pecados. É verdadeiramente
providencial e salutar esta petição, que nos recorda que somos pecadores, porque, ao
exortar-nos a pedir o perdão dos pecados, o Senhor desperta-nos a consciência da
nossa indignidade e ao mesmo tempo a confiança na misericórdia divina...
994 23. Deus quer que sejamos homens de paz e concórdia, unânimes em sua casa, e que
perseveremos na condição de renascidos para uma vida nova... Por isso, Deus não
aceita o sacrifício do que vive em discórdia e manda-o retirar-se do altar para ir primeiro
reconciliar-se com seu irmão, porque só as orações de um coração pacífico poderão
obter a reconciliação com Deus. O sacrifício mais agradável a Deus é a nossa paz, a
concórdia fraterna e um povo cuja união seja um reflexo da unidade que existe entre o
Pai, o Filho e o Espírito Santo.
995 27. Depois de fazermos esta Oração, ficamos fortes contra todas as maquinações do
Demónio e do mundo. Quem pode temer o mundo, se Deus, neste mundo, é seu
protector?
996 28. Irmãos caríssimos, esta é a Oração que Deus nos ensinou, resumindo todas as
nossas petições em tão breves e salutares palavras...
997 29. Se Cristo, que não tinha pecado, orava, muito mais é preciso que os pecadores
orem. Se Ele passava a noite inteira em vigília, orando, quanto mais devemos nós vigiar
de noite em oração. No entanto, Deus ensinou-nos a orar não somente com palavras,
mas também com factos...
998 31. Quando estamos de pé, na Oração28, irmãos caríssimos, devemos estar atentos e
entregar-nos às preces com todo o coração29. Há que pôr de lado todo o pensamento
carnal e terreno, e só aquilo que se pede nos deve então ocupar o espírito. Por isso,
antes da Oração30, o sacerdote, com um breve prefácio, prepara os espíritos dos ir-
mãos, dizendo: Sursum corda 31, para que, quando o povo responde: Habemus ad
dominum, ele se lembre que só deve pensar no Senhor. Fechemos o coração ao Adver-
sário e fique só aberto a Deus e não aceitemos que o inimigo de Deus nele esteja
presente durante o tempo da Oração...
999 32. Aqueles que oram não devem apresentar-se diante de Deus com preces estéreis
e nuas. É vã a súplica quando se ora a Deus com orações sem obras...

28
Na Oração eucarística.
29
Quando autem stamus ad orationem..., incumbere ad praeces todo corde debemus.
30
A Oração eucarística.
31
Ideo et sacerdos, ante orationem praefatione praemissa, parat fratrum mentes dicendo: «Sursum
corda».
CIPRIANO 281

33. Depressa sobem para Deus as orações que apresentam a Deus os méritos das 1000
nossas obras...
34. No que toca à frequência das orações..., à terceira hora desceu o Espírito Santo 1001
sobre os discípulos, enchendo-os com a graça da promessa do Senhor. Do mesmo
modo Pedro, na sexta hora, subiu ao andar de cima, e ao mesmo tempo foi avisado e
instruído por um sinal e pela voz do Senhor, para que a todos admitisse à graça do
baptismo... E o Senhor, que foi crucificado na hora sexta, na hora nona lavou com o seu
sangue os nossos pecados...
35. Mas a nós, irmãos caríssimos, além das horas observadas pelos antigos, foram-nos 1002
aumentados os tempos de oração e os mistérios. Com efeito, devemos orar logo de
manhã para celebrar, na oração matinal, a Ressurreição do Senhor... Igualmente, ao
afastar-se o sol e ao terminar o dia, é necessário orar de novo. Porque, como Cristo é
o sol e o dia verdadeiro, quando se oculta o sol e o dia deste mundo oramos e pedimos
que a luz venha de novo sobre nós, e imploramos a vinda de Cristo que nos virá trazer
a graça da luz eterna. O Espírito Santo declara nos Salmos que Cristo é esse Dia... Por
isso, se nas Sagradas Escrituras o sol e o dia verdadeiro é Cristo, não fica nenhuma hora
em que os cristãos não devam adorar a Deus, de modo que, os que estamos em Cristo,
isto é, no sol e no dia verdadeiros, nos entreguemos às súplicas e orações intensas
durante todo o dia...
36. Nós que estamos sempre em Cristo, isto é, na luz, não devemos cessar de orar 1003
durante a noite... Nós, irmãos caríssimos, estamos sempre na luz do Senhor... Regene-
rados e renascidos espiritualmente pela misericórdia de Deus, devemos imitar o que
havemos de ser...

As obras e as esmolas 32
2. O Espírito Santo fala nas Escrituras e diz: Os pecados purificam-se pela bonda- 1004
de e pela fidelidade 33. Claro que não Se refere àqueles pecados cometidos antes do
baptismo, pois esses são purificados pelo sangue de Cristo e a regeneração 34... Como
os pecados se perdoam uma só vez no baptismo, a prática contínua e incessante da
esmola reconcilia-nos de novo com Deus à semelhança do baptismo... Dai esmola do
que possuís, e para vós tudo ficará limpo35... Como Deus é misericordioso, recomenda
que se use de misericórdia, e, como quer salvar os que adquiriu por grande preço,
ensina que os que se mancharam depois do baptismo podem purificar-se de novo.
14. Sejas tu quem fores, erras e enganas-te se crês que és rico no mundo... Por isso, 1005
se és rico, compra Cristo para ti, que é ouro provado... Compra para ti um vestido
branco... E tu, que és senhora opulenta e rica, unge os teus olhos não com pintura do
Diabo, mas com colírio de Cristo...
15. Aliás, sendo como és, não podes fazer boas obras na igreja, pois os teus olhos, 1006
demasiado enegrecidos e cobertos das trevas da noite, não vêem o necessitado e o
pobre. Sendo opulenta e rica, pensas que celebras a Ceia do Senhor, tu que nem sequer
olhas para a caixa, que vens à celebração sem oferenda e recebes parte da oferenda que
o pobre apresentou? 36 Contempla a viúva no Evangelho; apesar da pobreza em que se

32
C IPRIANO DE C ARTAGO , De opere et eleemosynis (=PL 4, 601-621; CCL 3 A; CSEL 3, 1; BAC 241). Este
tratado foi escrito durante a peste que se estendeu por toda a região de Cartago, no Outono de 252.
33
Prov 16, 6.
34
Sanctificatio.
35
Lc 11, 41.
36
Dominicum celebrare te credis quae corbam omnino non respicis, quae in dominicum sine sacrifício
venis, quae partem de sacrifício quod pauper obtulit sumis.
282 SÉCULO III

via apertada, não se esqueceu dos preceitos do Senhor e fez esmola, lançando na caixa
as duas únicas pequenas moedas que possuía...

Cartas 37
CARTA 1 38

1007 1. Ficámos muito impressionados, caríssimos irmãos, tanto eu como os meus cole-
gas e bem assim os presbíteros que estavam connosco, ao saber que Gemínio Vítor,
nosso irmão, antes de sair deste mundo, designou... o presbítero Gemínio Faustino
como tutor, quando há já algum tempo um concílio de bispos tinha decretado que não
se instituísse nenhum clérigo ou ministro de Deus como tutor ou procurador, dado
que, os que possuem a honra do sacerdócio divino e se acham comprometidos nos
deveres da clericatura, devem dedicar o seu ministério apenas ao sacrifício e ao altar e
entregar-se só à oração...
1008 2. Considerando isto, os bispos que nos precederam decretaram que nenhum fiel,
ao morrer, nomeasse um clérigo como tutor ou procurador... e que, se alguém o viesse
a fazer, não se oferecesse por ele nem se celebrasse o sacrifício pelo seu descanso, pois
não merece ser nomeado nas orações do sacerdote, diante do altar de Deus, quem
intentou afastar do altar os sacerdotes e ministros. Por isso, tendo Vítor tido a ousadia
de nomear o presbítero Gemínio Faustino como tutor, contra a disciplina estabelecida
pelo concílio, não deve fazer-se a oblação entre nós pelo seu descanso nem fazer
qualquer oração por ele na Igreja...
CARTA 3 39

1009 1. Sentimos profundo e vivo pesar, caríssimo irmão, eu e os colegas que se encon-
travam presentes, quando lemos a tua carta, na qual te queixas desse diácono, porque,
sem respeito pela tua dignidade episcopal e esquecido dos deveres do seu próprio
ministério, chegou a ultrajar-te com afrontas e injúrias...
1010 3. Os diáconos devem lembrar-se de que foi o Senhor que escolheu os Apóstolos,
quer dizer, os bispos e os chefes, mas que os diáconos foram designados pelos Após-
tolos depois da Ascensão do Senhor aos Céus, como ministros do seu episcopado e da
Igreja... Por isso, é preciso que o diácono acerca do qual nos escreveste, faça penitência
pela sua audácia, reconheça o respeito devido ao sacerdócio e dê plena satisfação ao
seu bispo e chefe... Se continuar a ultrajar-te e a provocar-te com ofensas, empregarás
contra ele os poderes da tua dignidade, até depô-lo ou afastá-lo...
CARTA 4 40

1011 1. Lemos a tua carta, caríssimo irmão, que nos enviaste por Pacómio..., na qual
solicitavas e desejavas que te escrevêssemos a nossa opinião a respeito dessas virgens
que, depois de terem decidido manter-se firmemente no seu estado de continência, se
veio a descobrir que tinham dormido com homens na mesma cama, entre os quais,
como tu dizes, um era diácono. Elas próprias, depois de confessarem que efectivamente
tinham dormido com homens, afirmam que conservam a virgindade...

37
C IPRIANO DE CARTAGO , Epistulae (=PL 4, 191 (224)-438; CCL 3 B-D; CSEL 3, 2; BAC 241; Paulistas,
Lisboa 1960). A sua primeira carta é de 249 e a última de 258.
38
Aos presbíteros, diáconos e povo de Furni. Ano 249.
39
A Rogaciano, bispo de Nova. Ano 249.
40
A Pompónio, bispo de Dionisiana. Ano 249.
CIPRIANO 283

2. Não devemos permitir que as virgens coabitem com homens. Não só não devem 1012
dormir juntos, como nem sequer viver juntos, tendo em conta a fraqueza do sexo e o
ardor da idade..., a fim de não darem ao Diabo oportunidade de os prejudicar...
3. Não pense nenhuma delas que pode justificar-se com a desculpa de que a podem 1013
examinar e comprovar se é ou não virgem, pois com frequência se enganam as mãos e
os olhos das parteiras... Que fará Cristo, nosso juiz e Senhor, se vir a sua virgem, que
se entregou e consagrou só a Ele, dormir com outro?... Se todos devem observar isto,
quanto mais os que estão à frente e os diáconos... Como poderão presidir com integri-
dade e continência, se foi neles que começou a corrupção...?
4. Por conseguinte, actuaste com prudência e energia ao excomungares o diácono 1014
que dormiu muitas vezes com uma virgem, e os outros que costumavam dormir com
elas. Se vierem a arrepender-se do seu modo de proceder, separando-se uns dos outros,
primeiro há que reconhecer efectivamente o estado das ditas virgens, com a ajuda das
parteiras. Se estiverem virgens, sejam admitidas à comunhão e à comunidade dos fiéis,
mas com a condição de que, se voltarem a juntar-se com os mesmos homens, ou a
morar com eles na mesma casa e debaixo do mesmo tecto, se lhes aplicará uma censura
mais severa e não serão, a partir desse momento, facilmente admitidas na Igreja. Se for
encontrada alguma que tenha perdido a virgindade, deverá fazer penitência plena, pois
aquela que cometeu um tal crime é adúltera, não em relação ao seu marido, mas em
relação a Cristo. Por isso, depois de lhe fixares um tempo justo e uma vez feita a
exomologese, voltará à Igreja. Mas se elas se obstinarem no seu pecado e não se
separarem, saibam que nunca as admitiremos na Igreja enquanto permanecerem em tal
obstinação desonesta...
CARTA 5 41

2. Peço-vos que ponhais todo o vosso zelo e solicitude em procurar que a tranqui- 1015
lidade não seja perturbada. Por isso, embora os irmãos desejem, pelo grande carinho
que lhes têm, visitar os bons confessores..., creio, no entanto, que o devem fazer com
discrição, e não em grupo e grande número de uma só vez, para não excitar com isso a
hostilidade, acabando por nos ser negada a possibilidade de entrar (nas prisões)...
Assim, actuai com prudência, para que isto se leve a cabo com a maior segurança, de
modo que até os presbíteros, que oferecem o sacrifício na cadeia diante dos confessores,
alternem por turnos, cada um com um diácono diferente42, porque a mudança de pessoas
e a variedade dos visitantes diminui a animosidade (dos guardas)...
CARTA 6 43

1. Saúdo-vos, irmãos caríssimos, e desejaria eu próprio gozar da vossa presença, se 1016


as condições de lugar me permitissem ir até junto de vós. Que me poderia acontecer de
mais agradável e feliz do que estar unido a vós neste momento, para me abraçardes com
as vossas mãos, que, mantendo-se puras, inocentes e constantes na fé, rejeitaram os
ritos sacrílegos? Que haveria para mim de mais agradável e encantador do que beijar
agora os vossos lábios, que confessaram a fé no Senhor com voz gloriosa, e também
estar presente aos vossos olhos que, desprezando o mundo, se tornaram dignos de
contemplar Deus?
Mas, dado que não é possível estar presente a essa alegria, mando-vos esta carta,
que me substitui aos vossos olhos e ouvidos. Por ela me congratulo convosco e vos
exorto a que persevereis com fortaleza e firmemente na confissão da glória celeste.

41
Aos presbíteros e diáconos de Cartago. Princípios de 250.
42
Presbyteri quoque, qui illic apud confessores offerunt, singuli cum singulis diaconis per vices alternent...
43
A Sérgio e Rogaciano, gloriosos confessores. Princípios de 250.
284 SÉCULO III

Uma vez que entrastes no caminho da misericórdia do Senhor, avançai, com energia
espiritual, até receberdes a coroa, tendo como protector e guia o Senhor, que disse:
Estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo. Oh feliz cárcere, glorificado com
a vossa presença! Oh feliz cárcere, que leva ao Céu os homens de Deus! Oh trevas, mais
luminosas que o próprio Sol e mais brilhantes que a luz deste mundo, onde agora estão
colocados os templos de Deus e as vossas bocas são santificadas pela confissão da fé!
1017 2. Nada mais ocupe agora o vosso coração e a vossa alma, do que os preceitos
divinos e os mandamentos celestes, por meio dos quais o Espírito Santo sempre vos
animou a suportar os tormentos. Ninguém pense na morte, mas na imortalidade; nem
no suplício transitório, mas na glória eterna, pois está escrito: É preciosa aos olhos do
Senhor a morte dos seus fiéis. E também: É um sacrifício agradável a Deus o espírito
atribulado; Deus não despreza o coração contrito e humilhado...
1018 3. Felizes também as mulheres que participam da glória da nossa confissão e se
mantêm fiéis ao Senhor. Ao mostrarem-se mais fortes do que o seu sexo, não só estão
perto de receber elas próprias a coroa, mas também dão às outras mulheres exemplo de
constância. E, para que não faltasse à glória do vosso grupo, que todas as idades e
sexos tivessem a mesma honra que vós tendes, a bondade divina quis que a vós se
associassem crianças na glória da confissão...
1019 4. Pela nossa parte mantenhamos a fé e, pensando em Deus dia e noite com todo o
coração..., ponhamos os olhos no futuro, na alegria do reino eterno, no abraço e no
beijo do Senhor, na contemplação de Deus. Deste modo seguireis em tudo o presbítero
Rogaciano, ancião glorioso, que por graça divina e pela sua coragem vos mostra o
caminho que honra o nosso tempo. Ele e Felicíssimo, nosso irmão, sempre tranquilo e
sóbrio, que suportou o ataque furioso do povo, prepararam-vos um lugar no cárcere, e
agora precedem-vos, de certo modo, como vossos hospedeiros. Pedimos ao Senhor,
com súplicas contínuas, que esta obra se realize em vós, para que, levando à perfeição
o que em vós começou, daqueles que fez confessores faça agora coroados. Desejo-vos,
irmãos amados e ditosos, muita saúde e que chegueis à glória da coroa celestial.
CARTA 7 44

1020 1. Peço-vos que tenhais extrema solicitude pelas viúvas, os enfermos e todos os
necessitados. Quanto aos peregrinos, se tiverem necessidades, tirai o que for preciso
do meu pecúlio pessoal, que deixei em poder de Rogaciano, nosso copresbítero. Para o
caso de este fundo já ter sido todo distribuído, enviei outra soma ao mesmo Rogaciano,
pelo acólito Narico, a fim de ser distribuída com toda a largueza e prontidão...
CARTA 8 45

1021 2. A Igreja (de Roma) permanece firme na fé, apesar de alguns, dominados pelo
medo..., terem caído. Mas nós não os abandonamos, apesar de se terem separado de
nós, antes os encorajamos e exortamos a fazer penitência, para que obtenham o perdão
d’Aquele que o pode conceder, não seja caso que, ao verem-se abandonados por nós,
a sua ruína se agrave ainda mais.
1022 3. Vede, portanto, irmãos, como deveis proceder vós também: se corrigirdes com a
vossa exortação aqueles que caírem, e eles forem de novo presos, confessarão a fé, para
reparar o erro anterior. Igualmente vos lembramos outros deveres que haveis de ter em
conta: se aqueles que sucumbiram nesta provação adoecerem e, arrependendo-se do
que fizeram, desejarem reentrar na comunhão, devem ser socorridos; também as viúvas

44
Aos presbíteros e diáconos de Cartago. Princípios de 250.
45
O clero de Roma ao de Cartago. Princípios de 250.
CIPRIANO 285

e os indigentes, que não podem valer-se a si mesmos, os que estão na prisão, os que
foram afastados para longe de suas casas, todos devem ter quem os ajude; do mesmo
modo devem ser socorridos os catecúmenos que adoecem, para que não se sintam
desiludidos na sua esperança.
Saúdam-vos os irmãos que estão prisioneiros, os presbíteros e toda a Igreja, que
com grande solicitude vela por todos os que invocam o nome do Senhor. E também vos
pedimos que, pela vossa parte, vos recordeis de nós...
CARTA 10 46

2. Como cantar os vossos louvores, valorosos irmãos? Como poderão as minhas 1023
palavras exaltar dignamente a vossa fortaleza de ânimo e a perseverança da vossa fé?
Suportastes um duríssimo combate até à consumação da glória e não cedestes perante
os suplícios, mas foram os suplícios que cederam diante de vós. Não foram os tormentos,
mas sim as coroas do triunfo que puseram fim ao vosso sofrimento. Longe de quebran-
tar a firmeza da vossa fé, o tempo que durou a cruel dilaceração dos vossos membros
permitiu-vos, pelo contrário, chegar mais depressa junto do Senhor.
A multidão dos presentes, admirando este combate celeste de Deus, esta batalha
espiritual de Cristo, viu como os seus servos se mantinham firmes, confessando clara-
mente a sua fé com inteira liberdade de espírito, sem o menor desfalecimento, anima-
dos por uma coragem sobre-humana, desprovidos das armas do mundo, mas, como
crentes, munidos com as armas da fé. Foram mais fortes os torturados do que os
torturadores; as unhas de ferro puderam ferir e dilacerar, mas foram vencidas por
aqueles membros feridos e dilacerados.
O furor dos golpes longamente repetidos, não conseguiu dominar a fé inexpugnável
dos servos de Deus, mesmo quando, no seu corpo dilacerado, as torturas já não recaíam
sobre os membros, mas sobre as próprias feridas cada vez mais profundas. Corria o
sangue que havia de extinguir o incêndio da perseguição e amortecer, com a sua gloriosa
corrente, as chamas e o fogo do Inferno. Oh maravilhosa festa do Senhor! Como foi
sublime, grandiosa e agradável aos olhos de Deus, que via a fidelidade generosa dos
seus soldados ao juramento prestado, como está escrito no livro dos Salmos, em que o
Espírito Santo nos fala e ao mesmo tempo nos exorta: É preciosa aos olhos de Deus a
morte dos seus fiéis. É, realmente preciosa esta morte, que compra a imortalidade com
o preço do seu sangue, que recebe a coroa da mão de Deus depois de ter dado a prova
máxima de fortaleza.
3. Com que alegria esteve Cristo ali presente! Como lhe foi agradável combater e 1024
vencer na pessoa de tais servos, Ele que é o protector da fé e dá, aos que n’Ele confiam,
tanto quanto cada um espera receber! Esteve presente ao seu combate, sustentou,
fortaleceu e animou os combatentes e defensores do seu nome. Aquele que por nós
venceu a morte de uma vez para sempre continua a vencê-la em cada um de nós...
4. Exorto-vos a que imiteis o bem-aventurado mártir Mapálico e os que com ele 1025
participaram no mesmo combate e foram seus companheiros na firmeza da fé, que
suportaram as dores e venceram as torturas. Aqueles a quem o vínculo da confissão
comum e a comunidade de prisão juntou, junte-os também o fim da provação e a coroa
no Céu. E as lágrimas da Igreja mãe, que chora as quedas e mortes de tantos, sejam
enxugadas pela alegria que vós lhe proporcionais. Confirmai a constância dos outros
que se mantêm de pé com o estímulo do vosso exemplo...
5. Ditosa a nossa Igreja, que assim é iluminada com o esplendor da bondade divina 1026
e ilustrada nos nossos tempos com o glorioso sangue dos mártires. Se a vida dos

46
Aos mártires e confessores. Princípios de 250.
286 SÉCULO III

irmãos, até aqui, era adornada com a brancura da inocência, agora reveste-a de púrpura
o sangue dos mártires. Entre as suas flores não faltam os lírios nem as rosas. Esforcemo-nos
então, todos e cada um de nós, por alcançar a honra de uma e outra altíssima dignidade, a fim
de recebermos ou as coroas brancas duma vida santa ou as coroas de púrpura do martírio.
CARTA 12 47

1027 2. Deveis tomar nota do dia em que (os confessores) morrem, para que possamos
celebrar a sua memória entre os mártires, embora Tertulo, nosso irmão, tão dedicado e
fiel, em meio das suas ocupações, com a solicitude e o zelo que põe em todo o tipo de
serviços que presta aos irmãos, me vá escrevendo e indicando os dias em que os nossos
bem-aventurados irmãos vão saindo deste mundo com morte gloriosa, do cárcere para
a imortalidade. Nós oferecemos aqui oblações e sacrifícios em sua memória48, mas bem
depressa, com a ajuda de Deus, havemos de celebrá-los convosco.
CARTA 13 49

1028 2. Pela nossa fé comum e pela verdadeira e sincera caridade do nosso coração para
convosco, exortamo-vos a vós, que neste primeiro combate vencestes o Inimigo, a
manterdes a vossa honra com perseverança e decisão. Ainda estamos no mundo, ainda
estamos de armas na mão, ainda combatemos cada dia pela nossa vida. Tendes de vos
empenhar para levardes a bom termo o que tão bem começastes, e para que se realize
plenamente em vós o que principiastes sob tão bons augúrios. Pouco é ter alcançado
alguma coisa; é muito mais saber conservar o que se adquiriu...
1029 7. Apesar de há pouco ter escrito pormenorizadamente ao nosso clero, quando
ainda estáveis no cárcere, e de novo recentemente, para vos proporcionar o necessário
para vos vestirdes e alimentardes, no entanto, eu próprio vos mandei do dinheiro que
trazia comigo, 250 sestércios, e ultimamente outros 250. Vítor, que passou de leitor a
diácono e está comigo, também vos enviou 175 sestércios...
CARTA 14 50

1030 1. Desejava, irmãos caríssimos, poder saudar com a minha carta todo o nosso clero
intacto e salvo... Apesar de haver razões que me convidavam a ir pessoalmente ter
convosco, quer pelo desejo de vos ver, que é para mim o mais importante, quer para
poder examinar convosco os assuntos do bem comum e do governo da Igreja, para que,
depois de os examinarmos uns com os outros, os pudéssemos avaliar, no entanto,
achei preferível manter-me ainda escondido por mais algum tempo, tendo em vista
outras vantagens que dizem respeito à paz e ao bem de todos nós. De tudo vos dará
conta Tertulo, nosso irmão caríssimo. Foi ele que, pelo grande interesse que põe nas
obras do serviço divino, me deu este conselho, dizendo-me que fosse cauteloso e
prudente, não me mostrando temerariamente em público e, sobretudo, no lugar onde
tantas vezes fui reclamado e procurado...
CARTA 15 51

1031 1. A solicitude do meu ministério e o temor de Deus obrigam-me, corajosos e


ditosos mártires, a recordar-vos, com esta minha carta, que aqueles que tão generosa e

47
Aos presbíteros e diáconos de Cartago. Primavera de 250.
48
Ob commemorationes eorum.
49
A Rogaciano e aos outros confessores. Primavera de 250.
50
Aos presbíteros e diáconos de Cartago. Primavera de 250.
51
Aos mártires e confessores. Primavera de 250.
CIPRIANO 287

denodadamente mantêm a fidelidade ao Senhor, também devem observar a sua lei e


disciplina. Com efeito, se todos os soldados de Cristo devem cumprir as ordens do seu
general, com maior razão se impõe a obediência aos seus mandamentos àqueles que
são, por si mesmos, modelos dos outros, no que diz respeito à virtude e ao temor de Deus.
Eu pensava, com franqueza, que os presbíteros e diáconos que estão aí convosco
vos deviam advertir e instruir perfeitamente acerca da lei evangélica, como sempre se
fez no passado, em tempos dos meus antecessores, quando os diáconos iam às prisões
e davam solução aos pedidos dos mártires, com os seus conselhos e os preceitos da
Escritura. Mas agora venho a saber, com a maior dor, que nos cárceres não somente se
não sugerem os preceitos divinos, mas até se impede o seu cumprimento, de modo que,
mesmo aquilo que vós próprios fazeis com cuidado por respeito a Deus e por deferência
para com o bispo de Deus, é anulado por certos presbíteros, que não têm em conta nem
o temor de Deus nem o respeito pelo bispo. Vós próprios me enviastes a vossa carta,
na qual me pedíeis que se examinassem as vossas súplicas e se concedesse a paz a
certos lapsi, logo que o fim da perseguição permitisse que nos juntássemos todos e nos
reuníssemos com o clero. Esses (presbíteros), pelo contrário, contra a lei do Evangelho
e em oposição até ao pedido deferente que de vós recebi, antes de se cumprir a disci-
plina penitencial, antes de se fazer a exomologese do maior e mais grave pecado, antes
da imposição das mãos por parte do bispo e do clero em ordem à reconciliação,
atrevem-se a oferecer o sacrifício pelos lapsi e a dar-lhes a Eucaristia, quer dizer, a
profanar o sagrado Corpo do Senhor, pois está escrito: Quem comer o pão e beber o
cálice do Senhor indignamente, será réu do Corpo e do Sangue do Senhor.
2. Os lapsi podem ser desculpados neste assunto. Quem, na verdade, não terá 1032
pressa de passar da morte à vida? Quem não se apressará a recuperar a saúde? Mas é
dever dos responsáveis aterem-se às regras e instruir os impacientes e os ignorantes,
não vão os pastores das ovelhas transformar-se em carniceiros. De facto, conceder a
alguém o que acaba por redundar em sua ruína, é enganá-lo, e com isso não levantamos
aquele que caiu, mas antes o precipitamos na sua ruína pela ofensa feita a Deus.
Possam ao menos aprender de vós, aquilo que deviam ensinar. Sirvam os vossos pedi-
dos e os vossos desejos manifestados ao bispo, esperando um tempo amadurecido e
propício para se conceder a paz que vós solicitastes. Primeiro a mãe deve obter a paz
do Senhor, e só depois se examinará a questão da paz a dar aos filhos, segundo os
desejos expressos por vós.
3. E, porque agora venho a saber, irmãos cheios de fortaleza e caríssimos, que 1033
alguns vos oprimem sem pudor e que a vossa modéstia sofre violência, peço-vos, com
a maior insistência de que sou capaz, que vos recordeis do Evangelho e considereis
atentamente aquilo que foi concedido aos vossos predecessores, e quão grande foi o
seu escrúpulo nestas coisas; peço-vos que pondereis também vós, com cuidado e com
prudência, os desejos daqueles que vos fazem pedidos e que examineis, como amigos
do Senhor, destinados a ser um dia juízes juntamente com Ele, o modo de viver, as
obras e os méritos de cada um, tendo em conta a natureza e o número dos pecados. A
nossa Igreja não tem necessidade de se envergonhar diante dos gentios, pelo facto de se
encontrar algo que foi precipitadamente prometido por vós ou mal resolvido por nós.
Com efeito, temos sido visitados e advertidos com frequência, no sentido de se observarem
sem alteração e de maneira correcta os mandamentos do Senhor. Bem sei que a censura
divina não tem cessado de vos advertir a muitos de vós, para que observeis a disciplina
da Igreja. Tudo isto, porém, pode levar-se a cabo, se souberdes regular com um exame
religiosamente atento os pedidos que fazeis, sabendo reconhecer e travar aqueles que
fazem acepção de pessoas na distribuição dos vossos benefícios, ou procuram nisso
gratificações por ocasião de um tráfico ilícito.
288 SÉCULO III

1034 4. Acerca disto escrevi duas cartas52 ao clero e ao povo e mandei que ambas vos
fossem lidas. Mas há uma coisa que deveis regularizar e corrigir com a diligência que
costumais ter: deveis designar, pelos seus nomes, aqueles a quem tendes interesse que
se lhes conceda a reconciliação. Ouço dizer que alguns recebem bilhetes nestes termos:
«Conceda-se a comunhão a ele e aos seus». Nunca os mártires fizeram semelhante
coisa, já que um pedido vago e obscuro pode trazer mais tarde, sobre nós, algo odioso.
A fórmula «a ele e aos seus» é vaga e poderão apresentar-se a nós vinte, trinta ou mais
que afirmam ser vizinhos, parentes, libertos ou escravos daquele que recebeu o bilhete.
Por isso vos peço que designeis com o seu nome no bilhete aqueles que vós próprios
vistes, conhecestes e sabeis que satisfizeram a maior parte da sua penitência; deste
modo, as cartas que nos enviardes estarão conformes à fé e à disciplina.
Desejo-vos, irmãos valorosos e muito amados, contínua saúde no Senhor e que
vos lembreis de nós. Adeus.
CARTA 16 53

1035 1. Por muito tempo me contive, irmãos caríssimos, pensando que o meu silêncio e
moderação seriam úteis à paz. Mas, em vista das pretensões temerárias de alguns...,
não me devo calar por mais tempo... Alguns presbíteros... arrogam-se todos os direitos...
1036 2. Procurando tornar-se populares, não atendem ao remédio da saúde espiritual e
acabam por causar dano aos lapsi... Todo o que esconde estas verdades aos nossos
irmãos, engana-os... De facto, quando se trata de pecados menores, os pecadores
arrependem-se no tempo devido, fazem a exomologese segundo a ordem da disciplina,
e depois de o bispo e de o clero lhes imporem as mãos, recuperam o direito à comu-
nhão; mas agora... são admitidos à comunhão e oferece-se por eles o sacrifício, e, sem
arrependimento prévio, sem cumprirem a exomologese, sem a imposição das mãos
pelo bispo e pelo clero, é-lhes dada a Eucaristia...
1037 4. Por agora e provisoriamente, proíba-se-lhes que ofereçam o sacrifício, sem prejuízo
de defenderem a sua causa diante de mim...
CARTA 17 54

1038 2. Ouço dizer que alguns presbíteros... começaram a comunicar com os lapsi, ofe-
receram o sacrifício por eles e lhes deram a Eucaristia... Se, relativamente aos pecados
menores... há que arrepender-se no tempo oportuno e cumprir a exomologese..., e
ninguém pode ser admitido à comunhão sem antes receber a imposição das mãos do
bispo e do clero, quanto mais no caso de pecados gravíssimos...
CARTA 18 55

1039 1. Como vejo que não há oportunidade de me reunir convosco, e já começou o


Verão..., penso que é preciso ir ao encontro dos nossos irmãos, para que, os que
receberam libelos dos mártires e puderem ser ajudados pela sua intercessão diante de
Deus, sejam autorizados, se surgir algum perigo ou doença, mesmo sem se esperar pela
nossa presença, a fazer a exomologese dos seus pecados a qualquer presbítero presente,
ou, no caso de não se encontrar um presbítero e o perigo de morte se aproximar,
também a um diácono, impondo-se-lhes as mãos em sinal de penitência, e deste modo
venham a obter a paz com o Senhor, que os mártires, por cartas que nos escreveram,
desejaram que se lhes concedesse.
52
São as cartas 16 e 17.
53
Aos presbíteros e diáconos de Cartago. Primavera de 250.
54
A todos os fiéis. Primavera de 250.
55
Aos presbíteros e diáconos de Cartago. Verão de 250.
CIPRIANO 289

2. Quanto à outra parte do povo que caiu, amparai-a com a vossa presença e 1040
confortai-a com as vossas consolações, de modo que não se afaste da fé e da misericórdia
do Senhor. Não devem ser, pois, privados da ajuda e socorro do Senhor aqueles que,
com mansidão e humildade, e fazendo verdadeira penitência, tenham perseverado nos
seus bons propósitos. Também a esses se atenderá com o remédio divino. Não deve
tão pouco faltar a vossa solicitude aos ouvintes56; no caso de algum se encontrar em
perigo ou no leito de morte e implorar a graça divina, não lhe seja negada a misericórdia
do Senhor...
CARTA 22 57

2. Deves saber o que nos aconteceu. Quando o bem-aventurado mártir Paulo ainda 1041
estava em vida chamou-me e disse-me: «Luciano, peço-te diante de Cristo, que se
alguém, depois do meu chamamento, te pedir a paz, lha concedas em meu nome». Mas
mais ainda, nós todos, a quem o Senhor Se dignou chamar numa perseguição tão
terrível, decidimos, de comum acordo, conceder a paz, por meio de carta, a todos os
lapsi em bloco... Portanto, meu irmão, peço-te que, como acontece aqui, quando o
Senhor conceder a paz à própria Igreja, segundo a recomendação de Paulo e a nossa
deliberação, depois de a causa dessas pessoas ser examinada perante o bispo e de se
cumprir a exomologese, lhes seja dada a reconciliação, não só a estas, mas também às
que sabeis que nos são caras.
CARTA 23 58

Fica a saber que todos juntos concordámos em conceder a paz àqueles que 1042
expuserem diante de ti a sua própria conduta depois do seu pecado, e queremos que
esta decisão seja dada a conhecer também aos outros bispos. Desejamos que estejas em
paz com os santos mártires. Luciano escreveu esta carta na presença de dois elementos
do clero, um exorcista e um leitor.
CARTA 27 59

2. Luciano escreveu em nome de todos (os confessores) que, de comum acordo, 1043
tinham concedido a paz e queriam que esta decisão fosse por mim dada a conhecer aos
outros bispos; envio-vos uma cópia da sua carta. Claramente se acrescenta (que se
conceda a paz) «àqueles que expuserem diante de ti a sua própria conduta depois do
seu pecado», mas isto mesmo atrai sobre nós maior animosidade, pois, se começamos
a escutar e a examinar os casos particulares, daremos a impressão de recusar aquilo que
agora todos se gabam de ter recebido dos mártires e confessores.
3. Aliás, esta desordem já começou a manifestar-se. De facto, num certo número de 1044
cidades da nossa província, os lapsi, em fúria, assaltaram as autoridades religiosas e
forçaram-nas a conceder-lhes imediatamente aquela paz que, gritavam, lhes fora conce-
dida a todos eles, de uma só vez, pelos mártires e confessores. Usando assim de
intimidações, levaram a melhor sobre aqueles chefes, que não tiveram força de alma e
vigor de fé suficientes para lhes resistir. Perante nós, alguns revoltosos, que em tem-
pos passados não conseguíamos governar e cujos casos eram remetidos para quando eu
estivesse presente, inflamados por aquela carta, como se fossem tições ardentes, exa-
cerbaram-se e tentaram extorquir a paz que lhes tinha sido concedida...

56
Audientes.
57
Luciano, confessor, a Celerino. Verão de 250.
58
Todos os confessores a Cipriano. Verão de 250.
59
Aos presbíteros e diáconos de Roma.
290 SÉCULO III

CARTA 29 60

1045 1. Por motivo urgente escrevi ao clero de Roma. E, como era preciso enviar a
carta por clérigos, sabendo que estão ausentes muitos dos nossos e que os poucos
que aí estão não chegam para as necessidades do ministério quotidiano, foi neces-
sário instituir alguns novos, para os enviar. Sabei, pois, que fiz leitor a Saturo, e
subdiácono ao confessor Optato, aos quais já antes, por conselho comum, tínha-
mos preparado para proximamente os fazermos clérigos, dado que por mais de
uma vez tínhamos encarregado Saturo de fazer a leitura no dia de Páscoa e, ultima-
mente, quando examinávamos com cuidado os leitores com os presbíteros seus
catequistas, instituímos Optato como leitor dos que instruem os catecúmenos
ouvintes 61 , para examinar se eles reúnem todas as qualidades que devem existir
naqueles que se preparam para o clero. Nada de novo, portanto, foi por mim feito
na vossa ausência, mas apenas se levou a efeito o que já antes fora decidido por
conselho comum de todos nós, dado o caso urgente que se apresentou...
CARTA 30 62

1046 5. Naquilo que a nós diz respeito, temos necessidade de guardar para mais tarde a
resolução do problema, na medida em que, depois da morte de Fabião, homem de
nobilíssima memória, as dificuldades das circunstâncias nos impediram até agora de ter
um bispo que resolva todas estas questões e que possa ocupar-se dos lapsi com
autoridade e sabedoria. Por outro lado, num assunto de tão grande importância, esta-
mos de acordo com o que tu disseste, isto é, que primeiro é preciso esperar que a paz
seja restituída à Igreja, e depois se regulará a questão dos lapsi, após deliberação
comum dos bispos, dos presbíteros, dos diáconos, dos confessores e dos leigos que
permaneceram fiéis. Parece-nos, de facto, coisa impopular e um pesado fardo ter de
examinar, sem um número suficiente, o pecado cometido por muitos, e pronunciar uma
sentença sozinho, quando muitas pessoas cometeram um tão grave crime; por outro
lado, um decreto que não parecesse reunir os sufrágios de um grande número de
deliberantes, não teria certamente grande força...
1047 6. Roguemos pelos que caíram para que se levantem, roguemos pelos que se mantêm
firmes para que não caiam na provação, roguemos pelos que nos dizem que caíram para
que, reconhecendo a gravidade do seu delito, compreendam que este exige mais do que
uma cura precipitada e momentânea. Roguemos para que, à penitência, se siga o efeito
da indulgência nos que caíram, a fim de que, vendo a sua maldade, tenham a boa
vontade de esperar com paciência as nossas determinações, e não perturbem a situação
da Igreja, ainda instável, não aconteça que acendam por si mesmos uma perseguição
interna, e acrescentem, à sua culpa, também o facto de se mostrarem inquietos...
1048 8. Desejando manter o justo equilíbrio nesta matéria..., unidos aos bispos das
regiões vizinhas e a outros vindos das outras províncias longínquas, expulsos pelo
furor da actual perseguição, tínhamos pensado que nada se deve inovar antes da eleição
do novo bispo; tínhamos também pensado que, em relação aos lapsi, se deve seguir
uma linha equilibrada: enquanto se espera que Deus nos dê um bispo, deve ficar em
suspenso a causa dos que podem esperar; quanto àqueles que estão prestes a terminar
a vida e cujo fim próximo não permite uma dilação, depois de cumprida a penitência,
feita a detestação pública e reiterada dos seus delitos, depois de darem sinais manifes-
tos do seu arrependimento e dor, com lágrimas, gemidos, soluços, e não havendo,
segundo o juízo humano, mais nenhuma esperança, deve ser-lhes prestado auxílio

60
Aos presbíteros e diáconos de Cartago. Outono de 250.
61
Audientes.
62
Os presbíteros e diáconos de Roma a Cipriano. Outono de 250.
CIPRIANO 291

desta forma, com prudência e discreção. Deus sabe o que há-de fazer com eles e como
os há-de pesar na balança da sua justiça; quanto a nós, ponhamos nisto um cuidado
escrupuloso, para que os homens perversos não elogiem uma complacência demasiado
branda da nossa parte, e para que os lapsi verdadeiramente arrependidos não tenham
de nos acusar duma dureza cruel...
CARTA 31 63

1. Em meio de múltiplos e variados motivos de dor para nós, devido às ruínas que 1049
agora se estendem por quase toda a parte, serviu-nos de principal motivo de consola-
ção o ter recebido a tua carta, que nos reanimou e aliviou a amargura da nossa pena. Por
isso podemos desde já compreender que a graça da providência divina, quem sabe,
talvez tenha querido que estivéssemos presos no cárcere por tanto tempo, para permitir
que fôssemos edificados e animados com grande coragem pela tua carta, para podermos
chegar com decidido ardor à coroa que nos está destinada...
2. Experimentámos, voltamos a repeti-lo, irmão Cipriano, muita alegria, profunda 1050
consolação, vigoroso conforto, sobretudo porque dedicaste elogios honrosos e dignos
não só à morte gloriosa dos mártires, mas também à sua imortalidade...
6. 1 Há ainda outro motivo de alegria para nós: apesar de, provisoriamente, devido 1051
às circunstâncias, teres estado separado dos irmãos, não faltaste, no entanto, a este
dever do teu episcopado; com as tuas frequentes cartas confirmaste os confessores,
proporcionaste os gastos necessários à custa do fruto legítimo dos teus suores, esti-
veste presente, de algum modo, em todos os transes; em nenhuma função do teu cargo
abandonaste a obrigação como um desertor. 2 Mas não podemos passar em silêncio o
que nos causou maior e mais profunda alegria, antes devemos proclamá-lo com todas
as forças da nossa voz. Demo-nos conta, com efeito, que repreendeste com a conveni-
ente censura e com justos avisos tanto os que, esquecendo os seus delitos, obtiveram
a paz, através dos presbíteros, com ânsia apressada e precipitada, valendo-se da tua
ausência, como aqueles que, sem consideração pelo Evangelho, entregaram com exces-
siva facilidade o Santo do Senhor e as pérolas, quando na verdade, um delito tão grande
e tão estendido por quase toda a parte, com incríveis consequências, deve ser curado,
como dizes, com cuidado e moderadamente, depois de consultados todos os bispos,
presbíteros, diáconos e confessores, e estando presentes os próprios leigos, como em
tuas cartas tu mesmo dás testemunho, a fim de que, ao querermos reparar ruínas
inoportunamente, não se produzam outras maiores...
CARTA 32 64

1. Se estiverem ou chegarem aí, como peregrinos, alguns bispos meus colegas, 1052
presbíteros ou diáconos, dai-lhes vós mesmos a conhecer (tudo isto). Se quiserem tirar
cópia das cartas para as levarem aos seus, dêem-lhes autorização de copiar. Contudo,
já encarreguei o leitor Saturo, nosso irmão, de autorizar a transcrição a todos os que o
desejem...
CARTA 33 65

1. Nosso Senhor, cujos preceitos devemos respeitar e observar, ao regulamentar as 1053


honras devidas ao bispo e ao ordenamento da Igreja, fala no Evangelho e diz a Pedro:
Eu digo-te que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do
Inferno não levarão a melhor contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus:

63
Os presbíteros Moisés e Máximo e outros confessores, a Cipriano. Outono de 250.
64
Aos presbíteros e diáconos de Cartago. Outono de 250.
65
A alguns lapsi. Outono de 250.
292 SÉCULO III

aquilo que ligares na terra, será ligado nos Céus, e aquilo que desligares na terra,
será desligado nos Céus. Daqui deriva, através da série dos tempos e das sucessões, a
eleição dos bispos e a organização da Igreja, de tal forma que a Igreja está fundada
sobre os bispos, e todos os seus actos são regulamentados e dirigidos por estes mes-
mos chefes. Tendo as coisas sido estabelecidas desta forma pela lei divina, surpreende-
me a audácia temerária de alguns que me escreveram como se falassem em nome da
Igreja, quando a Igreja é fundada sobre os bispos, sobre o clero e sobre todos aqueles
que permaneceram firmes na fé66. Não permita a misericórdia do Senhor e o seu poder
invencível que se chame Igreja a um grupo de lapsi, quando, ao contrário, está escrito:
Deus não é Deus de mortos, mas de vivos. Todos, sem dúvida, desejamos que voltem
à vida e oramos com súplicas e gemidos para que sejam restituídos ao seu primeiro
estado. Mas, se alguns lapsi pretendem ser eles a Igreja, e se a Igreja está entre eles e
neles, que resta fazer senão pedir-lhes que se dignem admitir-nos na Igreja? Convém,
portanto, que eles se lembrem da sua culpa e da satisfação que devem dar a Deus,
sendo humildes, calmos e reservados, e se abstenham de escrever cartas em nome da
Igreja, sabendo bem que é à Igreja que eles escrevem...
1054 2. Peço-vos, portanto, que manifesteis os vossos desejos, e seja quem for que me
tenha mandado agora esta carta, ponde o vosso nome no fundo de um libelli e mandai-
-mo, com o nome de cada um. Porque, primeiro, quero saber quem são aqueles a quem
devo responder. Então, a cada ponto abordado por vós, responderei nos modestos
limites da minha posição e das minhas actividades. Desejo, irmãos, que tenhais saúde
e que vivais pacífica e tranquilamente, segundo o ensinamento do Senhor. Adeus.
CARTA 34 67

1055 1. Procedestes com rectidão e segundo a disciplina, irmãos caríssimos, ao julgardes


que, de acordo com a opinião dos meus colegas que estavam presentes, não se devia
comunicar com o presbítero Gaio de Dida e o seu diácono, uma vez que eles comuni-
caram com os lapsi e ofereceram as suas oblações...
1056 3. Entretanto, se algum dos nossos presbíteros ou diáconos ou algum dos forasteiros
ousar, de maneira imoderada e precipitada, antes da nossa sentença, comunicar com os
lapsi, seja afastado da nossa comunhão, até que possa justificar a sua conduta temerária
diante de nós, quando a graça do Senhor permitir que nos reunamos...
1057 4. Expressastes-me o vosso desejo de conhecer a minha opinião sobre os subdiáconos
Filomeno e Fortunato e o acólito Favorino, que desapareceram por um tempo e agora
voltaram. Sobre este ponto creio que não devo emitir um juízo só por mim, uma vez
que ainda estão ausentes muitos do clero que pensaram não dever retomar o seu posto,
nem mesmo mais tarde, e há-de estudar-se e avaliar-se o caso de cada um com todo o
pormenor, não só com os meus colegas, mas com todo o povo. Há-de pesar-se e julgar-
-se o assunto com moderação muito pensada, pois no futuro pode constituir um
precedente para os ministros da Igreja. Enquanto eles esperam, abstenham-se da retri-
buição mensal, não como separados do ministério eclesiástico, mas como quem espera
pela nossa presença, ficando o assunto sem se resolver por agora...
CARTA 36 68

1058 1. Os presbíteros e diáconos de Roma saúdam o papa 69 Cipriano...

66
Ecclesia in episcopo et clero et in omnibus stantibus in fide constituta.
67
Aos presbíteros e diáconos de Cartago. Outono de 250.
68
Os presbíteros e diáconos de Roma a Cipriano. Outono de 250.
69
Vemos, por esta maneira de os próprios presbíteros e diáconos de Roma tratarem Cipriano, que o título de
papa não era reservado ao bispo de Roma.
CIPRIANO 293

3. Tu, irmão, não deixes nunca, segundo a tua caridade, de atender às almas dos 1059
lapsi e de aplicar o remédio da verdade aos que erram, embora o espírito doente
costume rejeitar os cuidados do médico. Apesar de ser recente a ferida dos lapsi, já está
a transformar-se em edema com pus. Por isso estamos certos de que, com o tempo,
esse ardor arrefecerá e ficarão contentes por terem aguardado uma cura eficaz, desde
que não haja quem os arme para seu próprio mal e eles, perversamente instruídos,
acabem por exigir, em vez dos remédios salutares da dilação, o veneno duma comunhão
precipitada. De facto, não acreditamos que se tivessem atrevido, todos à uma, a recla-
mar imprudentemente a paz, se não tivesse havido instigação de alguns. Conhecemos
a fé da Igreja de Cartago, conhecemos a sua organização, conhecemos a sua humildade.
Por isso nos surpreende que se tivessem escrito certas coisas contra ti por carta... Já
é tempo de fazerem penitência pelo seu pecado, de darem provas de dor pela sua
queda, de mostrarem vergonha, de darem provas da sua humildade, de exibirem a sua
modéstia e de atraírem a clemência de Deus com a sua submissão...
CARTA 37 70

1. Com a chegada de Celerino, companheiro da vossa fé e da vossa coragem, e 1060


soldado de Deus nas lutas gloriosas, todos e cada e um de vós, irmãos caríssimos,
fostes apresentados ao meu afecto. Naquele que chegou, e quando me falava com tanto
ardor da vossa amizade para comigo, julgava eu escutar-vos nas suas palavras. Fico
cheio de alegria quando tais notícias me são trazidas por tais mensageiros. Também eu,
de certo modo, estou aí convosco na cadeia, e parece-me sentir convosco os dons da
graça divina, de tal modo me sinto unido a vós. A vossa caridade tão íntima faz com que
a vossa glória seja nossa, e o espírito não permite que se separem os que se amam. Foi
a confissão que vos prendeu, e a mim foi o afecto. Pensando em vós dia e noite, quando
elevamos súplicas em comum durante o sacrifício, e quando, no nosso retiro, fazemos
preces em privado, pedimos ao Senhor que vos ajude a conseguir a vossa coroa de
glória. Mas a minha humilde pessoa não é capaz de vos devolver o vosso afecto. Vós
dais-nos muito mais quando vos lembrais de nós na oração... Tantos são os vossos
títulos de glória quantos os dias... Vence uma vez quem sofre de um golpe. Mas aquele
que continua todos os dias no tormento e luta contra a dor, sem ser vencido, todos os
dias é coroado...
CARTA 38 71

1. Nas ordenações de clérigos, irmãos caríssimos, costumamos consultar-vos ante- 1061


cipadamente e ponderar em deliberação comum a conduta e os méritos de cada um (dos
candidatos). Mas não há que esperar pelos testemunhos dos homens, quando os pre-
cedem os sufrágios divinos. Aurélio, nosso irmão, jovem ilustre, já provado pelo
Senhor e caro a Deus, ainda novo em anos, mas avançado em virtudes e fé valorosa, de
menor idade pela sua maneira de ser, mas grande pela glória adquirida, sustentou dois
combates. Duas vezes confessou (a Cristo) e duas vezes saiu glorioso pela vitória da
sua confissão, uma quando venceu a corrida do desterro, outra quando lutou em combate mais
rude e saiu vencedor e vitorioso na prova do martírio. Todas as vezes que o Inimigo
tentou provocar os servos de Deus, outras tantas, como soldado sempre disposto e
cheio de valor, combateu e venceu. Pouco era para ele ter lutado à vista de poucos,
quando era desterrado; mereceu lutar também no foro, onde o seu valor brilhou mais,
porque, depois de vencer o magistrado, venceu também o procônsul, superando as
torturas depois do desterro. Não sei o que deva elogiar mais nele, se a glória das suas

70
Aos presbíteros Moisés e Máximo e outros confessores.
71
Aos presbíteros, aos diáconos e a todo o povo. Outono de 250.
294 SÉCULO III

feridas ou a moderação dos seus costumes; ignoro o que nele merece mais louvor, se o
brilho da sua coragem ou a admiração a que nos move a sua virtude. Ele é tão grande
pelo seu mérito e tão submisso pela sua humildade, que parece ter sido guardado por
Deus para ser exemplo da disciplina eclesiástica, e para ensinar, aos que servem a
Deus, como podem vencer com o seu valor na confissão, e como, depois da confissão,
se podem distinguir pela santidade da sua conduta.
1062 2. Este jovem merecia chegar aos mais altos graus da clericatura. No entanto, pensámos
ser melhor fazê-lo começar pelo ofício de leitor, porque nada há que convenha mais a
uma voz que confessou a Deus, do que soar na proclamação das divinas Escrituras.
Depois das palavras sublimes que deram testemunho de Cristo, convém que o confessor
da fé leia o Evangelho de Cristo, que dá força aos mártires e venha ao ambão, depois de
ter estado no suplício. Aurélio foi exposto aos olhares dos pagãos; convém que o seja
agora aos olhos dos irmãos. Fez-se ouvir lá com admiração do povo que o rodeava;
deve fazer-se ouvir aqui para alegria dos irmãos reunidos. Sabei, pois, irmãos, que ele
foi instituído por mim e pelos meus colegas presentes. Não duvido que acolhais de
bom grado este facto e desejeis que, na vossa Igreja, sejam ordenados muitos com estes
dotes. E, como o júbilo tem sempre pressa e a alegria não suporta demoras, fez-nos
imediatamente a leitura, no dia do Senhor, inaugurando um ministério de paz, ao
começar a ler publicamente. Pela vossa parte, deveis pedir insistente e repetidamente
e ajudar as nossas súplicas com as vossas, para que a misericórdia do Senhor conceda
depressa ao vosso povo um bispo são e salvo e, com o seu bispo, um leitor mártir.
Desejo-vos, irmãos caríssimos, que gozeis sempre de saúde.
CARTA 39 72

1063 1. Temos de reconhecer e acolher, amados irmãos, os benefícios divinos com


que o Senhor Se dignou honrar e glorificar a sua Igreja em nossos dias, ao conceder
a liberdade aos nossos bravos confessores e aos seus gloriosos mártires, a fim de
que, os que confessaram nobremente a Cristo, possam depois ilustrar o clero de
Cristo nas funções eclesiásticas. Regozijai-vos, portanto, e uni-vos à nossa ale-
gria, depois de lerdes a nossa carta, na qual eu e os meus colegas aqui presentes
vos informamos que Celerino, nosso irmão, tão ilustre pela sua coragem como
pelas suas virtudes, foi incorporado ao nosso clero, mais pela graça de Deus do
que pelo voto dos homens. Tendo ele dúvidas, pela sua parte, em dar o seu
consentimento, a própria Igreja, numa visão nocturna, o admoestou e encorajou a
não dar uma resposta negativa às nossas instâncias. Foi isto o que mais o forçou
e convenceu, pois não era justo nem convinha que ficasse sem honras eclesiásticas
aquele a quem o Senhor distinguira com a honra de uma glória celestial.
1064 2. Foi este o primeiro no combate dos nossos dias, foi este que se inscreveu entre
os soldados de Cristo, foi este que lutou com o próprio chefe e autor do ataque,
quando começou a lavrar o incêndio da perseguição. Vencendo o Adversário com indo-
mável energia, mostrou aos outros o caminho da vitória. Não venceu por meio de
feridas dum breve momento, mas triunfou por sofrimentos duradouros na prolongada
luta que causou espanto. Durante dezanove dias esteve encerrado no cárcere, subme-
tido ao cepo e aos grilhões. Mas, se o seu corpo estava preso, o seu espírito continu-
ava livre e sem obstáculos. A sua carne ficou debilitada à força de uma longa fome e
sede, mas a sua alma, que vive da fé e da coragem, foi apascentada por Deus com o
alimento espiritual. Prostrado no solo pelos sofrimentos, foi mais forte do que eles;
preso, foi maior que os seus carcereiros; deitado por terra, foi mais alto que os que
estavam de pé; vencido, foi mais valente que os vencedores; julgado, foi mais nobre

72
Aos presbíteros, aos diáconos e a todo o povo.
CIPRIANO 295

que os seus juízes, e, embora com os seus pés atados ao cepo, a serpente foi pisada,
esmagada e vencida. Brilham no seu corpo glorioso as cicatrizes resplandecentes das
feridas; notam-se e aparecem bem claramente os sinais nos nervos e membros, enfra-
quecidos por longa miséria. São grandes, são admiráveis os louvores que os irmãos
podem ouvir acerca do seu valor e dos seus méritos. E, se houvesse algum Tomé que
não desse crédito aos seus ouvidos, não falta o testemunho dos olhos, para que pos-
sam ver aquilo que se ouve. No servo de Deus, a vitória proveio das feridas gloriosas,
mas é a recordação das cicatrizes que a guarda.
3. Não é novo nem vulgar este título de glória no nosso caríssimo Celerino. Segue as 1065
pegadas da sua parentela e é semelhante, por bondade de Deus, à honra dos seus pais
e parentes. A sua avó Celerina obteve, há já algum tempo, a coroa do martírio. Lourenço
e Inácio, seus tios paterno e materno, embora tenham sido, noutros tempos, soldados
da milícia secular, foram autênticos e espirituais soldados de Cristo: derrotaram o
Diabo ao confessarem Cristo, e mereceram a palma e a coroa das mãos do Senhor pelo
seu glorioso martírio. Oferecemos sempre sacrifícios em sua memória73, como vos
lembrais, todas as vezes que comemoramos os sofrimentos e os dias aniversários dos
mártires. Não podia, portanto, desdizer nem ser inferior aquele a quem arrastavam os
exemplos de valor e de fé dos seus familiares e a nobreza da sua estirpe. Se no mundo
é título de honra e de prestígio o orgulho patrício, muito maior honra e louvor é
pertencer à raça nobre no forum do Céu. Não sei a quem hei-de ter por mais ditoso: se
aos seus antepassados por esta sua descendência tão esclarecida, se a este pela sua tão
nobre ascendência...
4. Como este veio ter connosco com sinais evidentes de que o Senhor o aceitara, 1066
tendo-se tornado ilustre pelo testemunho e a admiração mesmo daquele que o perse-
guira, que faltava senão fazê-lo subir ao ambão, que é o tribunal da Igreja? Assim,
olhando para nós de cima desse púlpito elevado, visto de todo o povo, segundo a glória
dos seus méritos, passe a ler publicamente os preceitos e o Evangelho do Senhor, que
ele próprio vive com coragem e com fé. Faça-se ouvir todos os dias, na proclamação da
Palavra, a voz que confessou o Senhor. Pode haver graus mais elevados a que se possa
subir na Igreja, mas em nenhum outro ministério um confessor da fé é tão útil a seus
irmãos. Enquanto escutamos da sua boca o texto evangélico, cada um nada mais tem a
fazer do que imitar a fé do leitor. Devia juntar-se no cargo de leitor a Aurélio, que
também se lhe uniu em honra na confissão de Deus e nos méritos de virtude e de glória.
Ambos iguais e semelhantes, tão nobres na honra como humildes na modéstia...
5. Em tais servos Se alegra o Senhor, em tais confessores Se gloria; o seu ensino e 1067
vida servem tanto para proclamar a sua glória como constituem para os outros um
ensinamento magistral. Cristo quer que eles permaneçam longo tempo na sua Igreja
para isso; com essa finalidade os livrou do meio da morte por uma quase ressurreição
que diríamos especial..., a fim de que, vendo os irmãos que nada há mais elevado em
honra nem mais submisso em humildade os sigam, e com eles caminhem na sua vida.
Deveis saber, contudo, que instituímos por agora estes dois leitores, porque convinha
pôr a luz sobre o candelabro, a fim de a todos iluminar. Pusemos em lugar elevado os
rostos que resplandeceram de glória, a fim de que eles constituam, para todos os que os
admiram, um estímulo à glória. Além disso, deveis saber que os destinamos à honra do
presbiterado, para que recebam a gratificação como os presbíteros e participem das
distribuições mensais por igual; sentar-se-ão connosco mais tarde, quando forem mais
avançados em anos, ainda que em nada possa parecer inferior, em razão da idade, quem
cumpriu a idade por méritos de honra.
Desejo-vos, irmãos caríssimos e saudosos, contínua e completa saúde.

73
Pro eis.
296 SÉCULO III

CARTA 44 74

1068 1. Chegaram até nós, caríssimo irmão, da parte de Novaciano, o presbítero Máximo
e o diácono Augendo... Ao verificar pela carta que traziam consigo e pelas suas pala-
vras e confirmação oral que Novaciano fora feito bispo, indignado pela maldade desta
consagração ilegítima contra a Igreja católica, pensámos logo a seguir que eles não
deviam comunicar connosco...
1069 2. Na assembleia75 proferiram palavras malévolas e gritos tumultuosos e pediram
que as acusações que desejavam apresentar e provar fossem examinadas oficialmente
por nós e pelo povo... Seria longo descrever numa carta o modo como foram refutados
e como ficaram a descoberto as suas intenções injustas de promover o cisma...
1070 3. E para que a sua loucura e audácia não acabe, também aqui se esforçam por
ganhar os membros de Cristo para o partido do cisma e por rasgar o Corpo da Igreja
católica, que é o seu Corpo, indo de porta em porta por muitas casas, e de cidade em
cidade, tentando arranjar cúmplices... Nós já lhes demos uma vez a resposta e não
cessamos de insistir que deixem a funesta discórdia e as lutas, que compreendam que
é ímpio abandonar a mãe, e que reconheçam que não se pode nomear de modo nenhum
outro bispo, uma vez eleito e aprovado um pelo testemunho e juízo dos colegas e do
povo...
CARTA 55 76

1071 3. Por me parecer que ficaste impressionado com o meu comportamento, devo
justificar-me a mim próprio diante de ti e defender a minha causa. Com efeito, não
quero que se pense que abandonei com ligeireza a minha linha de conduta e que, depois
de ter, num primeiro momento, sustentado a tese do rigor evangélico, em seguida me
afastei do espírito de disciplina e de severidade que mostrava antes, ao defender que se
deve conceder com facilidade a paz àqueles que tinham manchado a sua consciência
com libelli ou sacrificado impiamente. Não adoptei nem uma nem outra linha de condu-
ta sem ter reflectido, durante muito tempo, sobre os prós e os contras e sem ponderar
as circunstâncias...
1072 8. Vou agora falar, irmão caríssimo, da pessoa do nosso colega Cornélio, para que, como
nós, também tu o conheças melhor, não pelas mentiras dos malvados e detractores, mas pelo
juízo de Deus, que o fez bispo, e pelo testemunho dos colegas, que em todo o mundo
unanimemente o admitiram... Cornélio não chegou de repente ao episcopado, mas passou
através de todos os ofícios eclesiásticos e serviu muitas vezes o Senhor em diversas funções
religiosas, chegando ao cume do sacerdócio, depois de passar por todos os graus da Igreja.
Além disso, não pediu nem quis o episcopado... mas ocupou-o com sossego..., como costu-
mam fazê-lo os que são eleitos para esta dignidade por disposição divina..., não fazendo
força, como outros, para ser bispo, mas, ao contrário, sofrendo violência para o aceitar à
força. Foi eleito bispo por muitos colegas nossos, que então se encontravam em Roma, que
nos escreveram, a propósito da sua ordenação, cartas de louvor à sua pessoa... Cornélio foi,
portanto, eleito bispo pelo juízo de Deus e do seu Cristo, pelo testemunho favorável de
quase todos os clérigos, pelo voto do povo que ali esteve presente, pela comunidade de
bispos veneráveis e de homens bons, não tendo sido eleito nenhum antes dele, durante a
vacância do lugar de Fabião, quer dizer, do lugar de Pedro, da sede episcopal...
1073 21. Para dizer a verdade, houve, entre os nossos predecessores, alguns bispos desta
província que pensaram que não se devia conceder a paz aos adúlteros e que era preciso

74
A Cornélio, bispo de Roma.
75
In statione.
76
A Antoniano, bispo de uma região da Numídia. Finais de 251.
CIPRIANO 297

excluir completamente da penitência aqueles que tinham cometido adultério. Contudo, não
se separaram do colégio dos seus irmãos no episcopado nem romperam a unidade da Igreja
católica por uma dureza ou uma severidade obstinada...
22. Admira-me, porém, que alguns sejam intransigentes até ao ponto de pensarem 1074
que não se deve conceder a penitência aos lapsi ou afirmem que se deve negar o perdão
aos penitentes, quando está escrito: Lembra-te donde caíste, faz penitência e volta a
proceder como ao princípio77... O Senhor não nos exortaria, decerto, à penitência, se
não quisesse oferecer o perdão aos penitentes...
23. Por isso, irmão caríssimo, julgamos que devem ser totalmente afastados da espe- 1075
rança da comunhão e da reconciliação aqueles que não fazem penitência, nem dão
mostras de dor sincera dos seus delitos, nem sinais claros de pesar, mas apenas come-
çam a dirigir-nos súplicas na doença e no perigo de morte. O que então os leva a fazê-lo
não é o arrependimento do seu pecado, mas o aviso da morte iminente, e não é digno de
receber ajuda na morte quem pensou que nunca morreria...
CARTA 56 78

1. Escrevestes-me, irmãos caríssimos, dizendo que, quando estáveis na cidade de 1076


Capsa, por causa da ordenação do bispo, vos tinham levado a notícia... de que Nino,
Clemenciano e Floro, nossos irmãos, detidos antes da perseguição, tinham confessado
o nome do Senhor e triunfado da violência do magistrado e do ímpeto violento do
povo, mas depois, torturados diante do procônsul com graves suplícios, tinham cedi-
do à violência dos tormentos e caído...; porém, depois desta grave queda, mais forçada
do que voluntária, não cessaram de se arrepender durante os três últimos anos. Pensastes
que devíeis consultar-me, a este respeito, para saber se já seria permitido admiti-los à
comunhão.
2. No que a mim se refere, penso que o perdão do Senhor não faltará àqueles que 1077
estiveram no combate, confessaram o nome do Senhor, venceram a violência dos ma-
gistrados e o ataque do povo furioso com a tenacidade de uma fé inamovível, sofreram
o cárcere e resistiram por muito tempo, apesar dos tormentos que os rasgavam, às
ameaças do procônsul e aos gritos do povo que os rodeava... Consideramos que o
triénio que passaram a chorar continuamente e com dor, como escrevestes, e a expressão
dum profundo arrependimento lhes é suficiente para obterem o perdão do Senhor...
3. Contudo, uma vez que me escrevestes para que eu trate do assunto com todo o 1078
cuidado juntamente com muitos colegas... e eles, neste momento, estão quase todos
nas suas Igrejas, com os fiéis, por causa do início das festas da Páscoa, quando tiverem
celebrado as solenidades com os seus e começarem a chegar junto de mim, estudarei o
assunto mais a fundo com cada um deles...
CARTA 57 79

1. Estabelecemos há tempos atrás 80, irmão caríssimo, após consulta comum entre 1079
nós, que aqueles que, vencidos pelo Adversário nos ataques da perseguição, tivessem
caído e manchado a consciência com sacrifícios ilícitos, fizessem penitência plena por
muito tempo e, no caso de adoecerem gravemente, recebessem a paz no momento da
morte. Com efeito, não era lícito, nem o consentia a bondade paternal e a clemência
divina, fechar a Igreja aos que por ela chamam, e negar o auxílio da esperança da

77
Ap 2, 5.
78
A Fortunato e a outros. Primavera de 252.
79
Cipriano e outros bispos africanos, a Cornélio. Finais da Primavera de 252.
80
No concílio da Primavera de 251.
298 SÉCULO III

salvação aos que o pedem e têm pena de ter pecado, deixando-os sair deste mundo e ir
para o Senhor sem a comunhão e a paz...
Mas como vemos aproximar-se de novo o dia de outras hostilidades e somos
advertidos com permanentes e numerosos sinais a estar armados e preparados para a
luta que o Inimigo nos declara, preparemos também, com as nossas exortações, o povo
que a bondade divina nos confiou e reunamos sem excepção, no acampamento do
Senhor, todos os soldados de Cristo que pedem armas e desejam combater. Perante a
necessidade, julgámos que se deve conceder a paz aos que não se afastaram da Igreja do
Senhor nem cessaram de fazer penitência, de chorar e suplicar ao Senhor, desde o
primeiro dia da queda, e que é preciso armá-los e equipá-los para a batalha que se aproxima...
1080 2. Neste momento, não são os enfermos que precisam de paz, mas os que gozam de
boa saúde, e a comunhão não deve ser dada por nós aos que estão às portas da morte,
mas aos vivos, para não deixarmos sem forças e sem defesa aqueles que animamos e
exortamos para o combate. Precisamos de os tornar fortes com a protecção do Sangue
e do Corpo de Cristo, uma vez que a Eucaristia tem este duplo objectivo e pode ser
uma defesa para os que a recebem. Por isso, devemos armar com a força do alimento do
Senhor aqueles que queremos ver defendidos contra o Inimigo... Mas como iremos
torná-los capazes de beber o cálice do martírio, se não os admitimos antes a beber, na
igreja, do cálice do Senhor, dando-lhes o direito de comungar?...
1081 3. Se, de acordo com o que temos ouvido, e desejamos e confiamos que assim seja,
eles se mantiverem fortes e de pé e connosco vencerem o inimigo na luta, não nos
arrependeremos de ter concedido a paz a esses bravos, antes sentiremos que é grande
honra e glória para o nosso episcopado ter concedido a paz aos mártires e que, como
bispos que todos os dias81 celebramos o sacrifício de Deus, tenhamos preparado ofe-
rendas e vítimas para Deus...
1082 4. Ninguém diga: aquele que sofre o martírio baptiza-se no seu próprio sangue, ou
aquele que há-de receber a paz da sua glória e obter maior recompensa da benignidade
do Senhor não precisa da paz por parte do bispo. Em primeiro lugar, não pode ser apto
para o martírio aquele a quem a Igreja não prepara para o combate e desfalece o espírito
quem não se torna forte e inflama recebendo a Eucaristia...
1083 5. Assim... determinámos, sob a inspiração do Espírito Santo... recolher no acam-
pamento os soldados de Cristo e, depois de examinadas as causas de cada um, conceder
a paz aos lapsi... Confiamos que aproveis também esta resolução, tendo em conta a
misericórdia do Pai celeste...
CARTA 58 82

1084 1. Tenho desejos, irmãos caríssimos, se os problemas e circunstâncias do tempo o


permitirem..., de ir até vós em pessoa e, com toda a pobreza das minhas exortações,
estando ali presente, fortalecer a comunidade de irmãos. Mas, porque no-lo impede a
urgência das circunstâncias..., mando entretanto esta carta que faz as minhas vezes.
Como recebemos com frequência inspirações e avisos do Senhor que Se digna
ensinar-nos, devemos fazer chegar ao vosso conhecimento a inquietação dos nossos
avisos. É preciso saber, acreditar e ter por certo que o dia da perseguição começa a
apertar-se sobre as nossas cabeças e que se aproxima o tempo do fim do mundo e do
Anticristo. Devemos permanecer firmes e preparados para o combate e pensar apenas
na glória da vida eterna e na coroa que merece a confissão do Senhor; não pensemos que
o que está para vir é o mesmo do passado. Lança-se sobre nós uma luta mais dura e

81
Testemunho de que, na África do norte, a Eucaristia se celebrava todos os dias.
82
Aos fiéis de Tibaris, actual Tunes. Finais da Primavera de 252.
CIPRIANO 299

feroz, para a qual devem dispor-se os soldados de Cristo mediante uma fé íntegra e
uma coragem robusta, pensando para isso que todos os dias bebem o cálice do Sangue
de Cristo83, com o fim de poderem derramar, por sua vez, o seu cálice por Cristo.
Querer encontrar-se com Cristo é imitar o que Ele ensinou e fez...
9. Tomemos estas armas e protejamo-nos com estas defesas espirituais e celestes, 1085
para que no dia mau possamos resistir às ameaças do Diabo e lutar denodadamente...
Ajustemos o capacete espiritual... à fronte, para que se conserve intacto o sinal de
Deus, e à boca, para que a língua vitoriosa confesse Cristo seu Senhor. Armemos a mão
direita, que recebe o Corpo de Cristo, com a espada do espírito para repelir com
energia os sacrifícios funestos, e que ela, lembrando-se da Eucaristia, se una a Ele...
CARTA 59 84

1. Li a tua carta, irmão caríssimo, que mandaste pelo acólito Saturo, nosso irmão... 1086
6. O que vou dizer, digo-o porque sou provocado, digo-o com dor, digo-o forçado: 1087
quando um bispo substitui outro que morreu, quando é eleito em paz pelo voto do
povo, quando é protegido na perseguição pelo auxílio de Deus, unido pela fé a todos os
colegas, aprovado há já quarenta anos no episcopado pelo seu povo, dedicado ao
serviço da disciplina em tempo de paz, quando o título do seu episcopado figura na
lista dos proscritos em tempo de tempestade, quando tantas vezes é reclamado para as
feras no circo, quando é honrado com o testemunho de Deus no anfiteatro, mesmo
nestes dias em que te dirijo esta carta por causa dos sacrifícios que um edicto mandava
celebrar publicamente, e de novo é reclamado pelos gritos do populacho para os leões
do circo, quando tal bispo, irmão caríssimo, é alvo dos ataques de alguns desesperados
e perdidos que estão fora da Igreja, claramente se vê quem ataca. Com toda a evidência
não é Cristo, Ele que escolhe e protege os seus pontífices, mas aquele que, sendo
adversário de Cristo e inimigo da sua Igreja, persegue com hostilidade o bispo dessa
Igreja, a fim de tirar ao povo o piloto da nave e procurar com mais ardor e violência o
naufrágio da Igreja...
9. Se não te escrevi imediatamente sobre esse pseudo-bispo Fortunato..., um dos 1088
cinco presbíteros que há tempos se separaram da Igreja, é porque não era assunto
muito importante para to comunicar logo de seguida... Mas, tendo agora ocasião de o
fazer através do acólito Feliciano..., escrevi-te também sobre esse tal Fortunato...
16. Se quiserem pedir o nosso juízo, que venham. Se tiverem alguma desculpa e 1089
defesa, temos de ver que... frutos de penitência trazem. Nem a Igreja daqui se fecha a
ninguém, nem o bispo recusa quem quer que seja. A nossa paciência, acolhimento e
benignidade estão à disposição dos que vierem. Desejo que todos voltem à Igreja,
desejo que todos os nossos companheiros de luta se recolham dentro do campo de
Cristo e da casa de Deus Pai. Tudo perdoo, e dissimulo muitas faltas pelo grande
desejo de reunir todos os irmãos...
17. Mas, se alguns pensam que podem voltar à Igreja não com súplicas, mas com 1090
ameaças..., tenham por certo que a Igreja do Senhor se manterá fechada para esses
tais... O bispo de Deus, que defende o Evangelho de Deus e guarda os mandamentos de
Cristo, pode ser morto, mas não vencido...
19. Pedimos a Deus... que os seus ânimos se acalmem, que os seus espíritos obscu- 1091
recidos pelas trevas dos delitos voltem à luz da penitência, e mais ainda, peçam que
elevemos súplicas e orações por eles, em vez de eles quererem derramar o sangue do bispo...

83
Mais um testemunho da celebração diária da Eucaristia.
84
A Cornélio, bispo de Roma. Finais da Primavera de 252.
300 SÉCULO III

CARTA 60 85

1092 1. Conhecemos, irmão caríssimo, os gloriosos testemunhos da vossa fé e virtude, e


recebemos a honra da vossa confissão com tanto regozijo que nos consideramos nós
também participantes nos vossos méritos e elogios. Com efeito, tendo nós uma só Igreja...,
qual é o bispo que não se alegrará com as glórias do seu colega como se fossem suas...?
1093 2. Os que se unem de coração tornam-se totalmente invencíveis, e tudo o que se
pede em comum concede-o o Deus da paz aos pacíficos... O inimigo, rechaçado pela fé
e pelo vigor dum exército bem unido, compreendeu que os soldados de Cristo montavam
a guarda, que estavam de pé e em armas, preparados para o combate, e que não podiam
ser vencidos, pois estavam dispostos a morrer...
1094 5. Os salutares avisos da misericórdia do Senhor dizem-nos que se aproxima o dia
do nosso combate, e admoestam-nos a perseverar juntamente com os fiéis, em jejuns,
vigílias e orações. Entreguemo-nos a contínuos gemidos e a súplicas frequentes...
Lembremo-nos uns dos outros em união de corações e de pensamentos...
CARTA 63 86

1095 1. Embora eu saiba, irmão caríssimo, que muitos bispos... que estão à frente das
Igrejas do Senhor em todo o mundo guardam a verdade do Evangelho e dos ensinamen-
tos divinos e não se afastam daquilo que Cristo, nosso mestre, ensinou e fez..., no
entanto, dado que alguns, por ignorância ou simplicidade, ao consagrar o cálice do
Senhor e ao administrá-lo ao povo, não observam o que Jesus Cristo nosso Deus e
Senhor, autor e doutor deste sacrifício, fez e ensinou, pensei que seria bom e necessário
escrever--te uma carta sobre este assunto...
1096 2. Sabes o que nos foi ensinado. Ao oferecermos o cálice, devemos observar a
tradição do Senhor, e não fazermos mais do que aquilo que Ele foi o primeiro a fazer
por nós: oferecer em sua memória o cálice com uma mistura de vinho e água. De facto,
uma vez que Cristo disse: Eu sou a videira verdadeira87, o Sangue de Cristo não é
certamente água, mas vinho, nem pode parecer que o seu Sangue, com o qual nos
redimiu e vivificou, esteja no cálice, quando no cálice não há vinho que mostre o Sangue
de Cristo, anunciado pelo mistério e testemunho de todas as Escrituras...
1097 8. Sempre que, nas Sagradas Escrituras, se nomeia só a água, anuncia-se o baptismo,
como vemos em Isaías...
1098 9. Ao tomar o cálice no dia da sua Paixão, (Jesus) abençoou-o e deu-o aos seus
discípulos, dizendo: Bebei dele todos. Porque este é o meu Sangue, o Sangue da
Aliança, que vai ser derramado por muitos para o perdão dos pecados. Eu vos digo:
Não beberei mais deste produto da videira, até ao dia em que beber o vinho novo
convosco, no Reino de meu Pai88.
Está claro, nesta passagem, que o cálice que o Senhor ofereceu estava misturado,
e que era vinho aquilo a que chamou Sangue. Assim se vê que não se oferece o Sangue
de Cristo se faltar vinho no cálice, nem se celebra o sacrifício do Senhor, com uma
santificação legítima, se a nossa oblação e sacrifício não corresponderem à paixão...
1099 11. Fico perplexo ao pensar donde poderá ter vindo este costume de, nalguns lugares, se
oferecer no cálice do Senhor, contra o ensinamento evangélico e apostólico, água que
por si só não pode exprimir o Sangue de Cristo...

85
A Cornélio, bispo de Roma. Outono de 253.
86
A Cecílio. Outono de 253.
87
Jo 15, 1.
88
Mt 26, 27-29.
CIPRIANO 301

13. Quando Cristo levava em Si os nossos pecados, a todos nos levava. Por isso 1100
vemos que na água está figurado o povo, e no vinho o Sangue de Cristo. Quando o
vinho se mistura à água no cálice, o povo é unido a Cristo, o povo dos crentes adere e
une-se Àquele em quem crê... Por isso, quando se santifica o cálice do Senhor, não se
pode oferecer apenas água, como também não se pode oferecer apenas vinho. Se
alguém oferece só vinho, o Sangue de Cristo está sem nós; mas, se apenas se oferece
água, o povo está sem Cristo... Por isso, o cálice do Senhor não é só água ou só vinho,
mas a mistura de ambos, como o Corpo do Senhor também não pode ser só farinha ou
só água, mas ambas as coisas misturadas na fusão de um só pão...
14. Não há, pois, motivo, irmão caríssimo, para que haja quem acredite que se deve 1101
seguir a prática de alguns que, em tempos passados, pensaram que se devia oferecer
apenas água no cálice do Senhor. Haveria que perguntar-lhes a quem é que eles seguiam.
Na verdade, se no sacrifício que Cristo ofereceu não se deve seguir senão a Cristo,
certamente nós devemos obedecer e fazer o que Cristo fez e mandou que se fizesse,
quando disse no Evangelho: Se fizerdes o que vos mando, já não vos chamo servos,
mas amigos... Por isso, se devemos escutar só a Cristo, não devemos atender ao que
um outro qualquer possa ter pensado que se devia fazer... E, se não se pode transgredir
o mais pequeno dos mandamentos do Senhor, muito mais ilícito será violar coisas tão
maravilhosas, tão grandes, tão relacionadas com o próprio mistério 89 da paixão do
Senhor e da nossa redenção, ou mudar, por causa duma tradição humana, aquilo que foi
estabelecido por Deus. Com efeito, se Cristo Jesus, nosso Deus e Senhor, é o sumo
sacerdote de Deus Pai e o primeiro que Se ofereceu a Si próprio em sacrifício ao Pai, e
mandou que se fizesse isto em sua memória 90, não há dúvida de que só realiza o
ministério de Cristo aquele sacerdote que reproduz o que Cristo fez, e então oferece na
Igreja, a Deus Pai, o sacrifício verdadeiro e pleno, quando oferece segundo o modo
como o próprio Cristo o ofereceu.
17. Uma vez que fazemos menção da sua Paixão em todos os sacrifícios, pois o 1102
sacrifício que oferecemos é a paixão do Senhor, não devemos fazer senão aquilo que
Ele fez. Com efeito, a Escritura diz que todas as vezes que oferecermos o cálice em
memória do Senhor e da sua Paixão, devemos fazer o que o Senhor fez. Como vês,
irmão caríssimo, se algum dos nossos predecessores não observou nem cumpriu, por
ignorância ou ingenuidade, o que o Senhor nos ensinou a fazer com o seu exemplo e as
suas palavras, pode conceder-se-lhe a desculpa e o perdão do Senhor, devido à sua
simplicidade; mas não poderá perdoar-se-nos a nós, que fomos agora avisados e
instruídos pelo Senhor a oferecer o cálice do Senhor misturado com vinho, como o
ofereceu o Senhor...
18. Desprezar por mais tempo estas prescrições e continuar no antigo erro é incorrer 1103
na reprovação do Senhor...
CARTA 64 91

1. Lemos, irmão caríssimo, a carta que nos escreveste a propósito de Vítor, pres- 1104
bítero por algum tempo92. Fazias-nos saber nessa carta que o nosso colega Terapio,
agindo com ligeireza e com uma pressa irreflectida, lhe concedeu a paz, sem que ele
tivesse feito penitência plena nem tivesse dado satisfação ao Senhor Deus, contra o
qual tinha pecado. Foi para nós motivo de grande dor que ele se tivesse afastado da

89
Sacramentum.
90
Sui commemoratione.
91
A Fido e aos outros bispos que estiveram no Concílio que deve ter tido lugar no Outono de 251.
92
Os membros do clero perdiam a sua função na sequência de algum pecado grave.
302 SÉCULO III

autoridade do nosso decreto, dando-lhe a paz, sem esperar o tempo prescrito para a
satisfação, sem que o povo o soubesse e pedisse, e sem que nenhuma doença ou
necessidade o impusesse. Mas, depois de termos reflectido nos prós e nos contras,
pareceu-nos suficiente advertir o nosso colega Terapio por ter agido com ligeireza e
dizer-lhe que não deve voltar a fazer coisa semelhante no futuro. No entanto, no que
diz respeito à paz, pensámos que, qualquer que tenha sido o modo como um sacerdote
de Deus a concedeu uma vez, não se lhe deve tirar, pelo que permitimos a Vítor gozar
da comunhão que lhe foi concedida.
1105 2. No que se refere às crianças, dizias que não devíamos baptizá-las no segundo ou
terceiro dia, mas sim tomar por modelo a Lei antiga da circuncisão e, por conseguinte,
não baptizar nem santificar o bebé antes do oitavo dia. A nossa assembleia pensa de
modo completamente diferente. A maneira de agir que tu preconizas não obteve ne-
nhum voto, e todos fomos de opinião, que não se deve recusar a misericórdia e a graça
de Deus a nenhum ser humano que venha a este mundo. O Senhor diz no Evangelho: O
Filho do homem não veio para perder as almas, mas para as salvar93. Tanto quanto
está nas nossas mãos, não devemos, se for possível, perder nenhuma alma...
1106 3. Em resumo, todos recebem igualmente o dom divino, quer sejam bebés ou pessoas
mais idosas... O Espírito Santo é dado igualmente a todos, e isso não acontece em
proporção (ao tamanho do corpo), mas à bondade e benevolência do Pai. Deus não faz
acepção de idades nem de pessoas...
1107 4. Mas tu acrescentas que o pé duma criança, nos primeiros dias após o nascimento,
não é puro, pelo que causa repugnância beijá-lo94. Também isso não pode ser obstáculo
a dar-lhe a graça divina. Com efeito, está escrito: Tudo é puro para quem é puro95.
Ninguém deve ter repugnância daquilo que Deus Se dignou fazer. Sem dúvida, a criança
nasceu há pouco. Contudo, não devemos ter repugnância em beijá-la, quando lhe é
dada a graça e a paz. Ao beijar essa criança, cada um de nós deve pensar, de acordo com
a nossa fé, nas mãos de Deus, das quais ela acaba de sair. São essas mãos que nós, de
algum modo, beijamos neste ser humano recentemente formado e dado à luz, pois o
que beijamos é obra de Deus. Quanto ao facto da circuncisão judaica ser observada no
oitavo dia, tratava-se de um mistério preanunciado em símbolo e em figura, que devia
ser plenamente cumprido com a vinda de Cristo. De facto, o oitavo dia, isto é, o
primeiro depois do sábado, era o dia em que o Senhor havia de ressuscitar e nos daria
a vida e a circuncisão espiritual. Este oitavo dia, ou seja, o primeiro depois do sábado
e o dia senhorial, veio primeiro em símbolo. Esta figura cessou, quando a seguir veio a
realidade e nos foi dada a circuncisão espiritual.
1108 5. Por isso, acreditamos que não se deve impedir ninguém de receber a graça segun-
do a lei que está estabelecida... Mais ainda: se o homem, quando se trata de receber a
graça, pudesse ser impedido disso por qualquer motivo, tal deveria acontecer sobretu-
do com os adultos e as pessoas de idade, por causa das faltas graves. Ora, os maiores
culpados, depois de terem pecado gravemente contra Deus, quando chegam à fé
recebem a remissão das suas faltas: ninguém é privado do baptismo e da graça. Com
muito mais razão uma criança não deve ser privada, pois, tendo nascido há pouco
tempo, não cometeu qualquer falta; apenas contraiu, ao nascer, como descendente de
Adão, o vírus mortal do antigo contágio...
1109 6. Eis porque, caríssimo irmão, o nosso Concílio foi de opinião que ninguém deve
ser afastado por nós do baptismo e da graça de Deus, que é misericordioso, benevolente

93
Lc 9, 56.
94
O beijo dos fiéis ao neófito fazia parte da liturgia baptismal. Mas os fiéis beijavam os bebés num dos seus
pés, e não no rosto ou nos lábios, certamente para evitar possíveis contágios.
95
Tito 1, 15.
CIPRIANO 303

e cheio de ternura. É isso que deve ser observado e posto em prática em relação a
todos, mas principalmente, assim o acreditamos, em relação às crianças...
CARTA 65 96

1. Senti uma dor muito profunda e viva, irmão caríssimo, ao saber que Fortunaciano, 1110
antes bispo entre nós, depois de ter caído gravemente para sua ruína, queria fazer agora
como se nada se tivesse passado e reclama para si as funções episcopais...
4. Se tal loucura e insensatez continuar e ele prosseguir nas trevas da sua cegueira, 1111
dado que o Espírito Santo se retirou, tomarei a determinação de afastar individualmente
dos seus enganos todos os irmãos, e, para que nenhum caia nos laços do seu erro,
separá-los-ei do seu contágio, uma vez que nem a oblação pode ser santificada onde
não está o Espírito Santo97, nem o Senhor atende as orações e súplicas de quem por si
mesmo ofendeu o Senhor...
CARTA 66 98

1. Eu pensava, irmão, que te tivesses arrependido, depois de teres escutado com 1112
ligeireza e de teres acreditado a meu respeito em crimes tão abomináveis, vergonhosos
e reprováveis mesmo entre os gentios. Mas agora vejo, pela tua carta, que continuas a
ser o que eras antes, que persistes em pensar de mim o que antes acreditavas...
3. Dizes que os bispos devem ser humildes... Os irmãos e inclusivamente todos os 1113
gentios conhecem e estimam a minha modéstia, e também tu a conhecias e estimavas,
quando ainda estavas na Igreja e em comunhão comigo. Qual de nós estará mais longe
da humildade: eu, que todos os dias sirvo os irmãos e acolho a cada um dos que vêm à
igreja com benignidade, prazer e alegria, ou tu, que te constituis bispo do teu bispo e
juiz do teu juiz...?
4. A não ser que, sendo bispo para ti antes da perseguição, quando estavas em 1114
comunhão comigo, tenha deixado de o ser depois dela. Nesse caso, a perseguição
chegou para te elevar à suma grandeza do martírio, e a mim, ao contrário, deprimiu-me
com a proscrição, quando foi lido oficialmente: «Se alguém detiver e possuir os bens de
Cecílio Cipriano, bispo dos cristãos»... Não é que me glorie disso, mas tenho de o dizer
com grande dor, já que te constituis em juiz de Deus e de Cristo, que disse aos
Apóstolos e, por meio deles, a todos os bispos que sucedem aos Apóstolos na série de
eleições: Quem vos ouve é a Mim que ouve, e quem Me ouve a Mim ouve Aquele que
Me enviou 99.
5. Daqui brotaram, na sua origem, os cismas e heresias, quando o bispo, que é único 1115
e está à frente da Igreja, é desprezado pela orgulhosa presunção de alguns, e o homem
a quem Deus se dignou honrar é julgado indigno pelos homens. Que espécie de tumor
e orgulho é esse, que arrogância, que soberba da razão é convocar para o seu tribunal os
superiores e bispos, e, se não fôssemos justificados diante de ti e absolvidos pela tua
sentença, durante seis anos a comunidade dos irmãos não teria bispo, nem o povo
chefe, nem o rebanho pastor, nem a Igreja piloto, nem Cristo o seu representante, nem
Deus o seu pontífice? Venha ajudar-nos Pupiano e dite uma sentença que leve em conta
o juízo de Deus e de Cristo, pois de outro modo um grande número de fiéis, que foram
chamados no nosso tempo, dará a impressão de ter saído deste mundo sem esperança

96
A Epicteto e a todo o povo de Assuras.
97
Oblatio sanctificari non potest ubi sanctus Spiritus non est.
98
«Cipriano, também chamado Táscio, a Florêncio, chamado Pupiano». Esta saudação não é usual nas cartas
de Cipriano. Deve ser do ano 254.
99
Lc 10, 16.
304 SÉCULO III

de salvação e de paz, e julgar-se-ia que o novo povo de crentes não tinha conseguido
nenhuma graça do baptismo e do Espírito Santo por meio de nós, e seria anulada pela
autoridade do teu julgamento a paz e comunhão connosco, concedidas a tantos lapsi e
penitentes... Dá a tua aprovação e digna-te pronunciar-te sobre o nosso caso e confirmar
o nosso episcopado com o vigor do teu conhecimento, para que Deus e o seu Cristo
possam agradecer-te, uma vez que, por teu intermédio, é que o prelado e chefe foi
restituído ao seu altar e ao seu povo...
1116 7. Disseste que precisas de tirar do espírito um escrúpulo em que caíste. Certamente
caíste, mas por tua incredulidade ímpia. Caíste, mas pela tua intenção sacrílega... Por
que não caíram nesse escrúpulo os mártires cheios do Espírito Santo..., que escreveram
cartas do cárcere ao bispo Cipriano, reconhecendo o pontífice de Deus...? Por que não
caíram nesse escrúpulo tantos colegas meus no episcopado que, tendo-se escondido,
foram proscritos, ou foram metidos na prisão e em cadeias ou desterrados, e partiram
para o Senhor por esse caminho glorioso...? Por que não caíram nesse escrúpulo os que
pertencem a este nosso povo que está connosco e nos foi confiado pela bondade de Deus...?
1117 8. Também escreveste que a Igreja, por minha causa, tem agora uma parte da sua
grei dispersa, quando todos os fiéis estão unidos e reunidos em indissolúvel concórdia;
só ficaram de fora os que, se estivessem dentro, teriam de ser expulsos... O Senhor, no
Evangelho, quando os discípulos que O escutavam O abandonaram, voltando-Se para
os Doze, disse-lhes: Também vos quereis ir embora? Mas Pedro respondeu-Lhe:
Senhor, para quem havemos de ir?... Nesta passagem fala Pedro, sobre quem a Igreja
fora edificada. Ele ensina e mostra em nome da Igreja, apesar da multidão rebelde e
orgulhosa dos que não querem ouvir se afastar, que a Igreja não se afasta de Cristo.
Para ele, Igreja é o povo unido ao pontífice e a grei ligada ao pastor. Por isso deves
saber que o bispo está na Igreja e que a Igreja está no bispo, e que, se alguém não está
com o bispo, não está na Igreja...
1118 9. Por tudo isto, irmão, se pensasses na majestade de Deus, que consagra os bispos
de Cristo, se voltasses os olhos para Cristo, que governa os bispos à sua vontade e
com a sua presença e a Igreja juntamente com os seus bispos, se confiasses, para julgar
a inocência dos bispos, não no ódio humano, mas no juízo divino, se te arrependesses,
ainda que tardiamente, da tua temeridade, soberba e arrogância, se desses completa
satisfação ao Senhor e a Cristo, a quem sirvo e aos quais ofereço sem cessar, com lábios
puros e irrepreensíveis, sacrifícios, tanto na perseguição como na paz, poderíamos ter
em conta a tua comunhão, reservando-nos, apesar disso, o direito e o temor da justiça
divina; consultarei antes o meu Senhor, para que me mostre e avise se consente em dar-te
a paz e em admitir-te à comunhão da sua Igreja...
1119 10. Daquilo que fizeste na perseguição ou na paz seria estultícia querer julgar-te,
pois tu constituíste-te, antes, nosso juiz. Mas eu respondi segundo a minha consciência
limpa e a minha confiança no meu Senhor e meu Deus. Tu tens a minha carta e eu tenho
a tua. No dia do Juízo ambas serão lidas diante do tribunal de Cristo.
CARTA 67 100

1120 1. Cipriano, Cecílio, Primo, Policarpo... saúdam no Senhor o presbítero Félix e os


fiéis de León e Astorga, o diácono Hélio e o povo de Mérida.
Quando nos reunimos, lemos a vossa carta, irmãos caríssimos, que nos mandastes
através de Félix e Sabino, nossos colegas... Nela nos dais a conhecer que Basilides e
Marcial não devem exercer o episcopado e as funções episcopais, por se terem man-
chado com os libelli da idolatria...

100
Carta colectiva.
CIPRIANO 305

4. Vemos que é de origem divina o eleger o bispo na presença do povo, à vista de 1121
todos, para que todos o aprovem como digno e idóneo, por decisão e testemunho
públicos... Deus manda que se eleja o bispo diante de toda a assembleia, isto é, Deus
ensina e mostra que não se devem fazer ordenações sacerdotais sem o conhecimento do
povo que assiste, de modo que, na presença do povo, se descubram os delitos dos
maus ou se proclamem os méritos dos bons, para que assim a eleição seja justa e
regular, depois de examinada pelo voto e o juízo de todos. É o que se vê, segundo o
ensinamento divino, nos Actos dos Apóstolos, quando, ao eleger-se um bispo para o
lugar de Judas, Pedro falou ao povo: Pedro levantou-se no meio dos irmãos, e a
assembleia concordou numa coisa101. Não só nos damos conta de que os Apóstolos
observaram isto na eleição de bispos e sacerdotes102, mas também de diáconos, sobre
os quais também está escrito nos Actos: Os Doze convocaram, então, a assembleia
dos discípulos e disseram103. Fazia-se tudo com grande diligência e cuidado, para
evitar que alguém, indigno, chegasse ao ministério do altar ou à dignidade104 episcopal...
5. Este modo de proceder deve observar-se e manter-se, com diligência, segundo o 1122
ensinamento divino e a prática dos Apóstolos. É isso o que se faz entre nós e em quase
todas as províncias, isto é, para celebrar devidamente as ordenações, onde quer que se
nomeie um bispo para o povo, devem reunir-se todos os bispos próximos, da província, e
o bispo deve ser eleito na presença do povo, pois é o povo que conhece perfeitamente
a vida de cada um e observa atentamente o seu modo de viver e de actuar. Vemos que
assim se fez na ordenação do nosso colega Sabino, dado que o episcopado lhe foi
entregue e lhe foram impostas as mãos em substituição de Basilides, por voto de toda
a comunidade e juízo dos bispos que se tinham reunido pessoalmente, ou que vos
tinham escrito sobre ele. Não se pode anular uma ordenação, feita com toda a legitimidade,
só pelo facto de Basilides, depois de descobertos os seus delitos e de ele próprio os
confessar, ter ido a Roma e enganado o nosso colega Estêvão. Este, por estar tão longe,
não está informado da verdade dos factos, e (Basilides) obteve dele o restabelecimento
ilegítimo na sua sede, da qual fora deposto com todo o direito.
6. Por isso, irmãos caríssimos..., não há dúvida de que Basilides e Marcial se 1123
contaminaram com o ímpio certificado de idolatria, e que Basilides, além da mancha do
certificado..., reconheceu que, estando doente na cama, blasfemou contra Deus e, pelo
remorso da sua consciência, depôs o episcopado espontaneamente e começou a fazer
penitência, rogando a Deus e dando-se por satisfeito, se pudesse comungar como
leigo... Por tudo isto, é em vão que eles procuram exercer as funções do episcopado,
sendo manifesto que tais homens nem podem estar à frente da Igreja de Cristo, nem
devem oferecer sacrifícios a Deus, sobretudo tendo nós e os bispos de todo o mundo
decretado, há já algum tempo, e bem assim o nosso colega Cornélio, bispo pacífico,
justo e honrado com o martírio, por bondade de Deus, que tais homens podem ser
admitidos à prática da penitência, mas depois de removidos do clero e da dignidade
episcopal.
7. Não vos deixeis impressionar, irmãos caríssimos, se, no fim dos tempos, a fé 1124
indecisa de alguns se torna vacilante...
8. Mesmo que estejamos no fim dos tempos, a Igreja de Deus não decaiu do seu 1125
vigor evangélico, nem se debilitou a força do valor cristão e da fé... Não importa o
número de prevaricadores ou traidores que agora se levantaram na Igreja e contra a
Igreja..., pois em muitos permanece um espírito sincero, uma religião íntegra e uma
alma entregue ao seu Senhor e ao seu Deus...

101
A citação de Act 1, 15 não é textual.
102
S. Cipriano diz sacerdotes e não presbíteros, como seria lógico.
103
Act 6, 2.
104
Cipriano chama muitas vezes dignidade ao episcopado.
306 SÉCULO III

CARTA 69 105

1126 5. Quando o Senhor ao seu Corpo chama pão, que resulta da união de muitos grãos
de trigo, indica o nosso povo, que Ele trazia reunido em Si mesmo, e, quando ao seu
Sangue chama vinho, espremido de muitos bagos de uva e reunido num só líquido,
significa também que o nosso rebanho é formado pela reunião duma multidão unida.
1127 6. Os livros dos Reis da Sagrada Escritura declaram como o sacramento da unidade
é indissolúvel, e como os fautores de cisma não têm esperança e recebem a maior
perdição da ira de Deus, por abandonarem o seu bispo e pensarem que podem arranjar
outro pseudo-bispo fora da Igreja...
1128 7. Se alguém objectar que Novaciano observa a mesma lei da Igreja católica que nós
observamos, que baptiza com o mesmo símbolo que nós utilizamos, que reconhece o
mesmo Deus Pai, o mesmo Cristo Filho, o mesmo Espírito Santo, e que por isso pode
exercer o mesmo poder de baptizar que nós exercemos, pois parece não divergir de nós
na interrogação que se faz no baptismo, saiba que não é o mesmo o nosso Símbolo e o
dos cismáticos, nem uma só a interrogação. Com efeito, quando perguntam «crês no perdão
dos pecados e na vida eterna pela santa Igreja», mentem na pergunta, pois não têm Igreja...
CARTA 70 106

1129 1. Reunidos em Concílio, irmãos caríssimos, lemos a vossa carta, acerca do baptismo
dos hereges e cismáticos, e se há obrigação de os rebaptizar quando voltam à Igreja
católica, que é só uma. Apesar de manterdes nas vossas Igrejas a verdade e firmeza da
norma católica..., queremos manifestar-vos a nossa opinião, sobre este assunto, que
não é nova... Acreditamos e temos como certo que ninguém pode ser baptizado fora da
Igreja pois não há senão um único baptismo na santa Igreja... Para que a água possa
lavar no seu banho os pecados do homem, é preciso que o sacerdote, antes, a purifique
e santifique... Como pode purificar e santificar a água aquele que por si mesmo está
impuro e no qual não está o Espírito Santo?... Ou como é que aquele que baptiza pode
dar a outro o perdão dos pecados, dos quais ele próprio não consegue livrar-se por si
mesmo, por estar fora da Igreja?
1130 2. A própria pergunta que se faz no baptismo é testemunho da verdade. De facto,
quando dizemos: «Crês na vida eterna e no perdão do pecados pela santa Igreja?»,
entendemos que o perdão dos pecados apenas se dá na Igreja e que entre os hereges,
onde não está a Igreja, não podem perdoar-se os pecados... Também é preciso que
aquele que é baptizado seja ungido, para que, recebido o crisma107, possa ser ungido
com a unção de Deus, e ter em si a graça de Cristo. Mas, na verdade, é na Eucaristia que
os baptizados são ungidos com um óleo santificado no altar. Aquele que não tem altar
nem Igreja não pode santificar o óleo. Por isso, entre os hereges, não pode haver unção
espiritual, dado ser certo que entre eles não pode de modo algum consagrar-se o óleo
ou realizar-se a Eucaristia... Além do mais, que súplica pode fazer o sacerdote sacrílego e
pecador pelo baptizado?... Quem pode dar o que não tem, ou como pode administrar
os bens espirituais aquele que perdeu o Espírito Santo?...
1131 3. Além disso, aprovar o baptismo dos hereges e cismáticos é admitir que eles
baptizam. Mas não é possível que, entre eles, uma parte dos seus ritos seja válida e
outra seja inválida. Se podem baptizar, também podem dar o Espírito Santo; se não
podem dar o Espírito Santo, dado que o Espírito Santo não habita nos que estão fora,
também não podem baptizar os que vêm, pois o baptismo é um só, o Espírito Santo é

105
A Magno, que era um leigo. Ano 255.
106
Carta de vários bispos, a começar por Cipriano, a Januário e a outros. É uma carta sinodal de 255.
107
Accepto chrismate.
CIPRIANO 307

um só, e uma só é a Igreja fundada por Cristo Senhor nosso sobre Pedro, como origem
e razão da unidade. Assim, e uma vez que entre eles tudo é vão e falso, nós não
devemos aprovar nada do que eles fizerem...
CARTA 72 108

1. Para regulamentar e precisar certos assuntos por deliberação comum, tivemos 1132
necessidade, irmão caríssimo, de convocar e celebrar um Concílio com a presença de
muitos bispos 109, no qual se apresentaram e examinaram totalmente muitas questões.
Mas, sobretudo, temos de te comunicar e tratar com a tua gravidade e sabedoria o que
mais interessa à autoridade episcopal à unidade e dignidade da Igreja católica, e que é
de instituição divina: aqueles que foram baptizados fora da Igreja e manchados com
água profana entre os hereges e cismáticos, quando voltarem para nós e para a nossa
Igreja, que é única, devem ser baptizados, porque não é suficiente impor-lhes as mãos
para receberem o Espírito Santo, se não receberem também o baptismo da Igreja...
Recentemente exprimimos com exactidão, na carta dirigida sobre este assunto ao nosso
colega Quinto, na Mauritânia..., que não é baptismo aquele que os hereges praticam e que
ninguém, entre os adversários de Cristo, pode alcançar seja o que for pela graça de Cristo...
2. Com o consentimento e autoridade de todos acrescentámos..., irmão caríssimo, 1133
que embora alguns presbíteros ou diáconos 110, ordenados na Igreja católica, se tenham
tornado depois infiéis e rebeldes..., tentando oferecer sacrifícios... sacrílegos fora da
Igreja, contra o único e divino altar, devem no entanto ser recebidos quando voltarem,
com a condição de comungarem como leigos e de se contentarem em ser admitidos à
paz, uma vez que se tornaram inimigos da paz. Mas ao voltar, não devem manter entre
nós as mesmas prerrogativas que lhes dava a honra da sua ordenação, e com as quais se
revoltaram contra nós. É preciso que os sacerdotes e ministros111 que servem o altar e
os sacrifícios, sejam íntegros e sem mancha...
3. Também sabemos que alguns não abandonam os costumes que alguma vez aceitaram 1134
nem mudam facilmente o seu modo de proceder..., e mantêm certos usos particulares
que se introduziram entre eles. Neste assunto não pretendemos fazer força nem damos
ordens a ninguém, uma vez que, no governo da sua Igreja, quem preside o faz com
inteira liberdade, embora deva dar contas dos seus actos ao Senhor...
CARTA 73 112

1. Escreveste-me, irmão caríssimo, expressando o teu desejo de que te comunique 1135


o que pensamos sobre o baptismo dos hereges que, estando fora da Igreja, reclamam
aquilo a que não têm direito... Tendo-nos reunido agora setenta e um bispos da província
da África e da Numídia, ratificámos de novo esta nossa decisão..., estabelecendo que
na Igreja católica há um só baptismo e, por isso, não são rebaptizados, mas sim
baptizados por nós aqueles que, vindos da água adúltera e profana, devem ser lavados
e santificados com a verdadeira água da salvação.
2. Não nos impressiona, irmão caríssimo, o que dizes na tua carta: que os Novaci- 1136
anos rebaptizam aqueles que seduzem de entre nós... Sabendo (Novaciano) que há um
só baptismo, reclama-o como seu, dizendo que a Igreja está nele e fazendo de nós
hereges... Mas nós... sabemos com certeza e acreditamos, que nada é possível fora da
Igreja e que o baptismo único está em nós... Será que, pelo facto de Novaciano usurpar

108
A Estêvão, bispo de Roma. Ano 256.
109
Refere-se ao concílio da Primavera de 256.
110
Presbyteri aut diaconi.
111
Sacerdotes et ministros.
112
A Yubayano. Ano 256.
308 SÉCULO III

a honra da cátedra sacerdotal, devemos nós renunciar à cátedra? E, pelo facto de


Novaciano intentar estabelecer um altar e oferecer sacrifícios, claramente contra o
direito, devemos nós cessar os sacrifícios do altar, para não parecer que celebramos
como ele?...
1137 3. Não é coisa nova e recente entre nós a opinião de baptizar os que vêm da heresia
à Igreja, pois há já muitos anos... que isso se estabeleceu... Não é difícil a um catequista113
ensinar o que é verdadeiro e justo àquele que, depois de condenar a maldade herética e
de achar a verdade da Igreja, vem para aprender e aprende para viver...
1138 6. Se alguém pode ser baptizado e receber o perdão dos pecados segundo a sua fé
desvirtuada, também pode receber, segundo a mesma fé, o Espírito Santo, e não é
necessário impor a mão àquele que vem à Igreja para receber o Espírito Santo e ser
assinalado114. Pois ou pode receber fora ambas as coisas, segundo a sua fé, ou não pode
receber nenhuma delas por estar fora...
1139 7. Sabemos que só aos chefes da Igreja, firmados na lei do Evangelho e nas prescri-
ções do Senhor, é permitido baptizar e conceder o perdão dos pecados, pois fora (da Igreja)
não se pode ligar nem desligar nada, dado que não há aí quem possa ligar ou desligar...
1140 9. Os que são baptizados na Igreja são apresentados aos chefes da Igreja e pela
nossa oração e a imposição da mão recebem o Espírito Santo, e o selo do Senhor leva-os
à consumação115.
1141 11. Se os hereges se entregam à Igreja e estão na Igreja, também podem usar o seu
baptismo e os outros bens da salvação. Mas, se não estão na Igreja, antes actuam
contra a Igreja, como vão poder baptizar com o baptismo da Igreja?
1142 12. Não é coisa pouca o que se concede aos hereges se aceitamos o seu baptismo,
dado que é nele que tem o seu começo a fé, que entra em nós a esperança salvadora da
vida eterna e a graça divina, que purifica e dá vida aos que servem a Deus...
1143 13. Por isso, é em vão que alguns... argumentam com o costume, como se o costume
pudesse prevalecer sobre a verdade, ou não houvesse que seguir, nas coisas espirituais,
o que foi revelado como melhor pelo Espírito Santo... Ninguém diga: «Seguimos o que
aprendemos dos Apóstolos», pois os Apóstolos transmitiram-nos uma só Igreja e um
só baptismo, que só existe na única Igreja, e não encontramos ninguém que, tendo sido
baptizado na heresia, fosse admitido pelos Apóstolos ao mesmo baptismo e à comu-
nhão, como se os Apóstolos tivessem aprovado o baptismo dos hereges...
1144 14. Uma coisa é que falem em nome de Cristo os que estão dentro da Igreja, e outra
que baptizem em nome de Cristo os que estão fora da Igreja e contra ela...
1145 18. Por fim, quando os Apóstolos, depois da ressurreição, foram enviados pelo
Senhor às nações, Ele mandou-os baptizar os pagãos em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo. Como é então possível dizer que, mesmo fora da Igreja e contra ela,
onde quer e como quer que um gentio seja baptizado, desde que o seja em nome de
Jesus Cristo, adquire a remissão dos pecados, quando o próprio Cristo manda baptizar os
pagãos em nome de toda a Trindade?...
1146 22. Sobre esta questão, alguns, como se pudessem anular com argumentos humanos
a verdade da pregação evangélica, opõem-nos o caso dos catecúmenos: se um destes,
antes de ser baptizado na Igreja, for detido e morto pela confissão do nome de Cristo,
acaso perde a esperança da salvação e a recompensa da confissão pelo facto de não ter
ainda renascido da água? Saibam esses homens... que tais catecúmenos, em primeiro

113
Doctori.
114
Signetur.
115
Et signaculo dominico consummentur.
CIPRIANO 309

lugar, guardam a fé íntegra e a verdade da Igreja e saem do acampamento divino para


combater o Diabo, com pleno e legítimo conhecimento de Deus Pai, de Cristo e do
Espírito Santo; além disso, não são privados do sacramento do baptismo, uma vez que
são baptizados no glorioso e excelso baptismo de sangue...
CARTA 74 116

1. Apesar de termos já tratado abundantemente daquilo que se pode dizer sobre o 1147
baptismo dos hereges..., como desejas, entretanto, que te faça saber a resposta dada
pelo nosso irmão Estêvão117 à nossa carta, envio-te uma cópia da mesma. Entre outras
coisas... acrescenta o seguinte: «Portanto, se alguém, proveniente de qualquer heresia,
vier até nós, não se inove nada fora do que é a tradição 118, isto é, imponham-se-lhe as
mãos para a penitência 119, uma vez que os próprios hereges não baptizam os que, de
outras seitas, vão até eles, mas apenas os admitem na sua comunhão»...
2. (Estêvão) proibiu que se baptize na Igreja «aquele que vem de qualquer heresia», 1148
isto é, considera que os baptismos de todos os hereges são justos e legítimos... E
mandou que «não se inove nada fora do que é a tradição», como se fosse inovação o
manter a unidade e defender um só baptismo na única Igreja, e não o fosse certamente
o esquecer a unidade e utilizar a mentira e o contágio do baptismo profano...
4. Bonita e legítima tradição aquela que nos é proposta no ensinamento do nosso 1149
irmão Estêvão!...
6. O que é isso de defender que possam ser filhos de Deus os que não nasceram na 1150
Igreja?...
7. Além do mais, não se nasce pela imposição das mãos quando se recebe o Espírito 1151
Santo, mas no baptismo, de modo que o Espírito Santo só se recebe depois de ter
nascido, como sucedeu ao primeiro homem, Adão. Primeiro Deus formou-o, depois
soprou-lhe no rosto um sopro de vida. Portanto, não pode receber-se o Espírito Santo,
se antes não existe aquele que o há-de receber...
10. Os bispos não devem só ensinar, mas também aprender... 1152
11. A nossa tradição é que há um só Deus e um só Cristo, uma só esperança e uma só 1153
fé, uma só Igreja e um só baptismo na Igreja...
12. Portanto, irmão caríssimo, depois de examinar e conhecer a verdade, observamos 1154
e mantemos que todos os que vêm à Igreja, seja de que heresia for, devem ser baptizados
com o seu único e autêntico baptismo, excepto os que antes tinham sido baptizados na
Igreja e depois passaram para a heresia. Quando estes voltam, devem ser recebidos
apenas com a imposição das mãos, depois de cumprirem a penitência e de serem
devolvidos pelo pastor ao redil do qual se extraviaram.
CARTA 75 120

1. Recebemos, irmão caríssimo, por Rogaciano, nosso caríssimo diácono, a carta 1155
que nos dirigiste...
2. A união, a paz e a concórdia não são apenas um grande prazer para os homens 1156
crentes e que conhecem a verdade, mas também para os próprios Anjos do Céu...

116
A Pompeu, bispo de Sabrata. Ano 256.
117
Trata-se do Papa Estêvão.
118
Nihil innovetur nisi quod traditum est.
119
Manus illis imponatur in paenitentiam.
120
Carta de Firmiliano a Cipriano. Finais de 256.
310 SÉCULO III

1157 3. Ao conhecer... o que determinaste conforme a regra da verdade e a sabedoria de


Cristo sobre a questão, experimentei uma grande alegria e dei graças a Deus, por
encontrar em irmãos tão distantes de nós tanta unanimidade na fé e na verdade...
1158 4. Pela nossa parte recebemos o que nos escreveste, como se o tivéssemos escrito
nós mesmos...
1159 5. No que se refere à afirmação de Estêvão de que os Apóstolos proibiram que se
baptizassem os que vinham da heresia e que transmitiram esta observância aos que
vieram depois, respondeste perfeitamente que não há ninguém tão louco que creia em
semelhante tradição dos Apóstolos, pois consta que as heresias detestáveis só existiram
mais tarde...
1160 10. Quero contar-te uma história que aconteceu entre nós... No meio desta tempestade,
quando os fiéis fugiam de cá para lá e abandonavam os seus povos e passavam para
outras zonas das regiões..., apareceu de súbito certa mulher que, com seus êxtases, se
apresentava como profeta e se comportava como se estivesse inundada do Espírito
Santo. Estava de tal forma arrebatada pelos Demónios poderosos, que durante largo
tempo arrastou e enganou os irmãos, realizando obras maravilhosas e surpreendentes
e anunciando que a terra iria tremer... Com estes enganos e seduções impunha-se aos
espíritos e fazia-se obedecer e seguir até onde ela mandava e guiava... Aqui enganou um
presbítero rural e um diácono para se juntarem a ela, mas isto descobriu-se pouco
depois. Em seguida foi-lhe apresentado um exorcista, homem sério e de vida honesta,
de observância religiosa, que, impulsionado pelas recomendações de muitos irmãos
que se tinham mantido fortes e com mérito na fé, se levantou contra o espírito mau
para o confundir. Este, com fina astúcia, tinha predito pouco antes que viria um
inimigo e provocador infiel. Contudo, aquele exorcista, inspirado pela graça de Deus,
resistiu com fortaleza e mostrou que era um espírito perverso aquele que era considerado
como santo. Ora bem, aquela mulher, que antes praticava muitas maravilhas com as
suas fantasmagorias e embustes para enganar os fiéis, entre outros recursos com que
tinha seduzido a muitos, atreveu-se, repetidas vezes, a fingir que, com a sua invocação
eficaz, santificava o pão e realizava a Eucaristia, e oferecia ao Senhor o sacrifício com
o rito das palavras habituais, e baptizava a muitos com a fórmula usual e autêntica da
interrogação, de modo que, segundo parece, não se afastava da norma da Igreja.
1161 11. Que dizer deste baptismo?... Acaso Estêvão o aprova?
1162 18. Diz Estêvão: «O nome de Cristo é muito importante para a fé e a santificação
baptismal, pois todo aquele que em qualquer parte for baptizado em nome de Cristo
adquire imediatamente a graça de Cristo»...
CARTA 76 121

1163 1. Cipriano deseja saúde eterna aos bispos122 Nemesiano, Félix, Lúcio..., aos pres-
bíteros123, aos diáconos e aos outros irmãos que estão nas minas...
1164 3. A vossa religião ou a vossa fé não pode, irmãos caríssimos, sofrer qualquer
diminuição pelo facto de os sacerdotes124 não terem possibilidade de celebrar e ofere-
cer aí o sacrifício divino. Mais ainda, vós celebrais e ofereceis um sacrifício a Deus,
simultaneamente precioso e glorioso, e que vos será muito útil... Este sacrifício que
vós ofereceis a Deus é aquele que celebrais sem interrupção, dia e noite; convertidos
em vítimas125 de Deus, ofereceis-vos a vós mesmos como vítimas santas e imaculadas...

121
Aos condenados às minas. Outono de 257.
122
Coepiscopis.
123
Compresbyteris.
124
Sacerdotes, ou seja, os presbíteros.
125
Hostiae.
CIPRIANO 311

CARTA 79 126

1. Félix... com os presbíteros e todos os que estão connosco nas minas de Sigus a 1165
Cipriano, muito amado e caríssimo, saúde eterna em Deus.
Pela nossa parte voltamos a saudar-te, irmão caríssimo, por intermédio do sub-
diácono Hereniano e dos nossos irmãos Lucano e Máximo127, e continuamos fortes e
invencíveis graças às tuas orações. Recebemos, através deles, a ajuda pecuniária junta-
mente com a carta que nos enviaste, e na qual quiseste conforta-nos com palavras
celestes como a filhos teus. Demos e continuamos a dar graças a Deus Pai todo-poderoso,
pelo seu Cristo, por termos sido assim confortados e fortalecidos pelas tuas palavras,
e pedimos ao teu coração puro que te dignes ter-nos presentes nas tuas contínuas
orações, para que o Senhor complete a tua confissão e a nossa...
CARTA 80 128

1. O motivo pelo qual não te escrevi imediatamente, irmão caríssimo, deve-se ao 1166
facto de que todos os clérigos, submetidos ao golpe do combate, não puderam de modo
nenhum sair daqui, dispondo-se todos, no fervor da sua alma, para a coroa divina e
celeste. Fica a saber que chegaram os que eu tinha enviado a Roma, a fim de nos
trazerem a verdade, fosse ela qual fosse, do que fora decretado a nosso respeito, pois
corriam muitos e variados rumores.
O que de verdade se passa é o seguinte: Valeriano, num rescrito ao Senado,
ordenou que os bispos, os presbíteros e os diáconos sejam executados imediatamente;
que os senadores, os homens de altas funções e os cavaleiros romanos sejam privados
da sua dignidade e dos seus bens, e se, apesar disso, continuarem a dizer-se cristãos,
sejam decapitados; que as matronas, depois de despojadas dos seus bens, sejam enviadas
para o exílio; que os Cesarianos, quer tenham confessado a Cristo anteriormente, quer
o confessem agora, vejam os seus bens confiscados, e sejam eles próprios postos a
ferros e enviados para os domínios do imperador, lavrando-se acta do facto.
Ao seu rescrito, o imperador Valeriano juntou uma cópia da carta dirigida aos
governadores das províncias a nosso respeito. Dia após dia contamos ver chegar esta
carta, permanecendo de pé e na firmeza da nossa fé, prontos para o martírio, e espe-
rando, da ajuda e da bondade do Senhor, a coroa da vida eterna.
Fica a saber que Sisto foi executado num cemitério, no dia 6 de Agosto, juntamente
com quatro diáconos. E os prefeitos de Roma prosseguem esta perseguição cada dia
mais activamente, executando aqueles que lhes são entregues e confiscando os seus bens.
2. Peço-te que dês a conhecer estes acontecimentos aos nossos outros colegas, para 1167
que eles, em toda a parte, exortem as comunidades de fiéis, as fortaleçam e preparem
para o combate espiritual, a fim de que todos e cada um dos nossos, pensando menos
na morte do que na imortalidade, se entreguem ao Senhor com plena confiança e total
decisão, e mais se alegrem do que temam esta oportunidade de O confessar, pois sabem
que os soldados de Deus e de Cristo não são exterminados mas coroados.
Desejo-te sempre, irmão caríssimo, perfeita saúde.

126
Dos condenados às minas a Cipriano, em resposta à carta 76. Outono de 257.
127
Dois acólitos.
128
A Sucesso. Agosto de 258. Na sua brevidade, esta carta é muito importante pelas notícias históricas que
nos fornece.
312 SÉCULO III

CARTA 81 129

1168 1. Cipriano aos presbíteros, aos diáconos e a todo o povo, saúde.


Tendo chegado ao meu conhecimento, irmãos caríssimos, que foram enviados
guardas130 para me conduzirem a Utica, os meus amigos mais queridos aconselharam-me a
afastar-me por momentos dos meus jardins. Parecendo-me que havia um motivo justo,
eu aceitei, pois convém que o bispo dê testemunho do Senhor na cidade onde preside
à Igreja do Senhor, e que todo o povo possa ser honrado131 pela confissão do chefe em
pessoa.
Aquilo que um bispo confessor diz no próprio momento da confissão por inspiração
de Deus, di-lo em nome de todos... Por isso esperamos aqui, neste retiro secreto, a
vinda do procônsul de Cartago, para saber dele o que os imperadores decidiram sobre
os cristãos leigos132 e sobre os bispos...
Quanto a vós, irmãos caríssimos, de acordo com a doutrina que sempre de mim
recebestes sobre as ordens do Senhor e com o que aprendestes tantas vezes do meu
ensino, permanecei em paz e tranquilidade, e nenhum de vós promova qualquer tumulto
entre os irmãos, nem se apresente de modo espontâneo aos gentios. Se for preso e
entregue aos magistrados, deve falar, uma vez que Deus falará por nós nesse momento.
Ele quer de nós a confissão de fé, não a profissão.
Quanto ao resto que convém fazer, decidi-lo-emos na altura própria, por inspiração
do Senhor, antes de o procônsul ditar a sentença a respeito da minha confissão do
nome do Senhor.
Caríssimos irmãos, o Senhor Jesus vos mantenha incólumes e Se digne conservar-vos
na sua Igreja.

Exortação ao Martírio 133


1169 4. Nós, que por permissão do Senhor administrámos aos crentes o primeiro baptis-
mo, devemos também prepará-los a todos para o outro baptismo, manifestando-lhes
que ele é superior em graça, mais alto em eficácia, mais ilustre em honra; um baptismo
em que os Anjos baptizam, um baptismo em que Deus e o seu Cristo se regozijam, um
baptismo depois do qual já ninguém peca, um baptismo que completa o cresci-
mento da nossa fé, um baptismo que nos une a Deus no momento de partirmos
deste mundo. No baptismo de água recebe-se o perdão dos pecados; no de sangue,
a coroa das virtudes...

129
Inteirado de que não tardaria a ser preso, Cipriano escreve, em Agosto de 258, aquela que parece ser a
sua última carta.
130
Frumentarios.
131
Clarificare.
132
Christianorum laicorum.
133
C IPRIANO DE C ARTAGO , Ad Fortunatum de exhortatione martyrii (=PL 4, 651-675; CCL 3; CSEL 3, 1;
BAC 241). Este tratado terá sido escrito em 257.
DIONÍSIO DE ALEXANDRIA 313

Dionísio de Alexandria

Cartas 1

A FÁBIO, BISPO DE ANTIOQUIA

4. 1 Havia entre nós um certo Serapião, homem idoso e fiel, que vivera muito 1170
tempo sem mancha, mas que sucumbira na perseguição. 2 Pedia muitas vezes (o per-
dão das suas faltas), mas ninguém o escutava, porque tinha sacrificado. Tendo caído
doente, durante três dias ficou privado da fala e do conhecimento.
3 Quando, no quarto dia, melhorou um pouco, chamou um neto e disse-lhe: «Até
quando, filho, me abandonareis? Peço-vos, escutai-me e reconciliai-me depressa; chama
um dos presbíteros». E, depois de dizer isto, ficou de novo sem fala.
4 O neto correu a casa do presbítero, mas era de noite, e o presbítero, que estava
doente, não podia sair; mas, como eu tinha mandado que os que iam partir desta vida,
se pedissem a penitência e sobretudo se a tivessem solicitado anteriormente, fossem
absolvidos, a fim de morrerem na esperança, o presbítero entregou um pedaço da
Eucaristia à criança, recomendando-lhe que a humedecesse e a fizesse escorregar na
boca do ancião.
5 A criança regressou, levando a Eucaristia consigo. Aproximou-se da casa e,
antes de entrar, Serapião recuperou de novo os sentidos: «Já chegaste, meu filho, disse
ele? O presbítero não pôde vir, mas tu, faz depressa o que ele te mandou e liberta-me».
A criança humedeceu a Eucaristia num líquido2, que deitou ao mesmo tempo na boca do
velho; este engoliu um pouco e imediatamente entregou o espírito.
6 Ora bem, não é claro que foi guardado e se manteve em vida até ser absolvido
e a sua falta lhe ser perdoada, em virtude das inúmeras boas acções que tinha feito, e
para poder ser reconhecido como um cristão autêntico3?
AO PAPA SISTO II 4

2. Entre os irmãos reunidos em assembleia, encontrava-se um homem que olháva- 1171


mos como um fiel muito antigo, anterior à minha ordenação... Aproximou-se de mim
chorando e lamentando-se e, caindo aos meus pés, declarava e jurava que o baptismo
com que tinha sido baptizado entre os hereges não era aquele... Não ousei (rebaptizá-lo),
dizendo-lhe que bastava a comunhão (com a Igreja) em que fora admitido desde há
tanto tempo. Ele tinha, com efeito, escutado a Eucaristia, tinha respondido o Amen,
estivera de pé diante da mesa e estendera as mãos para receber este alimento sagrado,
tinha-o recebido e participara durante bastante tempo no Corpo e no Sangue de nosso
Senhor; não podia atrever-me a renová-lo desde o ponto de partida. Exortei-o a ter
coragem e a aproximar-se das coisas santas com fé segura e boa esperança.

1
D IONÍSIO DE A LEXANDRIA , Epistulae (=PG 10, 1291-1344; PL 5, 89-100; Feltoe 19s, 58s, 91s). Dionísio
é o mais célebre dos discípulos de Orígenes. Foi bispo de Alexandria a partir de 248 até à morte em 265.
2
Certamente em água. Estamos aqui perante um caso de comunhão só do Corpo de Cristo, num tempo em que
a comunhão era sempre do Corpo e do Sangue do Senhor.
3
Este relato é muito comovente, mas refere-se a um facto excepcional. Normalmente, devia ter sido o pres-
bítero a reconciliar o moribundo. Mas como estava doente, entrega a Deus a decisão e Deus perdoa visivel-
mente, pois concede ao idoso o tempo de receber a Eucaristia. Dionísio conta esta história para tranquilizar
os escrúpulos de Fábio de Antioquia.
4
O texto desta carta vem por inteiro em Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, Livro VII, 9.
314 SÉCULO III

AO BISPO BASILIDES 5

1172 1. Escreveste-me, meu filho douto e fiel, perguntando-me a que horas se deve
terminar o jejum, ao concluir a Páscoa. Tu dizes que, segundo alguns irmãos, isso deve
fazer-se antes do cantar do galo e, segundo outros, a partir da noite. Os irmãos de
Roma, segundo dizem, esperam o cantar do galo, enquanto os daí6, segundo as tuas
palavras, antecipam muito. Pedes, por isso, que se fixe um termo preciso e uma hora
exactamente determinada. Mas isso é difícil e perigoso. Com efeito, é admitido tran-
quilamente por todos, que não se pode dar início à festa e à alegria senão depois de ter
passado o momento da ressurreição de nosso Senhor, mas que até àquele momento
devemos continuar a humilhar as nossas almas no jejum. Na tua carta lembraste muito
acertadamente, e em plena adesão com os divinos Evangelhos, que neles nada se diz de
exacto acerca da hora na qual Ele ressuscitou. Os Evangelistas, de facto, falaram de
diversas pessoas que foram ao sepulcro em diversos momentos, as quais afirmaram
que o Senhor já então tinha ressuscitado...
Assim sendo, àqueles que perguntam com subtileza em que hora, ou em que meia
hora, ou em que quarto de hora se deve iniciar o júbilo pela ressurreição de nosso
Senhor de entre os mortos, dizemos qual é o nosso parecer. Aqueles que são demasiado
apressados e quebram o jejum antes de estar perto a meia-noite, consideramo-los
negligentes e pouco continentes... Ao contrário, aprovamos como iluminados e fervorosos
aqueles que vão até ao fundo, resistindo até à quarta vigília7... Aqueles que, segundo o
seu sentir e a sua capacidade, observam uma via média... não se devem tratar com
demasiada severidade. Com efeito, nenhum dos seis dias de jejum é observado por
todos de maneira idêntica, mas uns prolongam o jejum pelos seis dias, outros por dois,
outros por três, outros por quatro e outros nem sequer por um. Aqueles que jejuaram
a fundo nos dias precedentes e que, apesar de cansados, não descuraram nada, merecem o
perdão, se acaso quebrarem o jejum antes do tempo. Mas há alguns que..., depois de
terem vivido na indolência durante os quatro dias anteriores, chegados aos dois últimos
dias, jejuam apenas neste, isto é, na sexta-feira e no sábado, e crêem fazer algo de
extraordinário e digno de ser louvado porque esperam até à aurora. Por mim não creio
que eles tenham suportado um peso igual àqueles que se exercitaram durante todos os
outros dias. Estas são as coisas que te escrevo, exprimindo-te o meu parecer sobre a questão.
1173 2. Acerca das mulheres que padecem os fenómenos naturais8, creio que é supérfluo
até o simples perguntar se convém que elas entrem nesse estado na casa de Deus. Não
creio, aliás, que elas, se são fiéis e piedosas, se atrevam a aproximar-se, nesse estado,
da sagrada mesa ou a tocar no Corpo e no Sangue de Cristo... Não é repreensível orar
segundo a disposição em que cada um se encontra e recordar-se do Senhor em qualquer
estado, nem pedir auxílio; mas é proibido, àquele que não está completamente puro na
alma e no corpo, aproximar-se das coisas santas e do Santo dos Santos...
1174 4. Os que sofreram fluxo nocturno involuntário9 sigam também eles a sua própria
consciência e examinem-se a si mesmos, se duvidam disso ou não... Nestas coisas deve
haver boa consciência, e todo o que se aproxima de Deus deve fazê-lo confiadamente,
segundo o seu próprio juízo...

5
Carta escrita por volta do ano 260.
6
Isto é, da Pentápole.
7
Entre as três e as seis horas da manhã.
8
Refere-se à menstruação.
9
Excreção nocturna dos jovens e dos homens.
PORFÍRIO 315

Porfírio

Discurso contra os cristãos 1


Os cristãos, rivalizando com os nossos templos, levantam a Deus casas muito 1175
grandes, onde se reúnem para orar.

Hino lucernar 2

Luz esplendente da santa glória 1176


Do Pai celeste, imortal,
Santo, glorioso Jesus Cristo!

Refrão: Glória, glória, glória a Ti.

Chegada a hora do sol poente,


Contemplando a luz do entardecer,
Cantamos ao Pai e ao Filho
E ao Santo Espírito de Deus.
Tu és digno de ser cantado em todos os momentos
Por vozes inocentes,
Ó Filho de Deus, Tu que dás a vida,
Eis que o mundo Te glorifica.

1
P ORFÍRIO , Discurso contra os cristãos (=E. PREUCHEN -E. G OLTZ ; H. D ÖRRIE , Fund. Hardt 1965). Esta obra
é do ano 268.
2
Fw=j i(laro\n a(gi/aj do/chj a)dana/tou patro\j ou)rani/ou a(gi/ou ma/karoj I)hsou= Xriste/ (=PG 32, 205). Hino de
Vésperas da Igreja grega, mais antigo do que o Glória a Deus nas alturas. S. Basílio fala dele, dizendo: «Não
podemos dizer quem tenha sido o autor das palavras que se dizem em acção de graças ad lucernas. Mas o povo
pronuncia a antiga fórmula, e ninguém jamais pensou que fosse impiedade dizer: «Cantamos ao Pai e ao Filho e
ao Santo Espírito de Deus». Atribui-se a Antenógenes.
316 SÉCULO III

Inscrições cristãs 1

1177 1. Inscrição de Pectório2

Raça divina do peixe celeste, conserva um coração santo,


Tu que recebeste a fonte imortal da água divina.
Dá vigor à tua alma, querido, com as águas perenes da rica sabedoria.
Recebe o alimento, doce como o mel, do Salvador dos santos;
Come com avidez, tendo o peixe em tuas mãos.
Eu me sacie com o peixe; desejo-o ardentemente, Senhor Salvador.
Suplico-te, Luz dos mortos, que a minha mãe repouse docemente.
Ascândio, pai caríssimo da minha alma.
Com minha doce mãe e meus irmãos,
Na paz do peixe, recorda-te do teu Pectório 3.

2. Outras inscrições de crianças baptizadas4

1178 2.1 Florentino fez este epitáfio a seu filho Apropriano, que bem o merece, que
viveu um ano, nove meses e dezoito dias, muito querido da sua avó. Esta, vendo-o a
pontos de morrer, pediu à Igreja que ele deixasse este mundo na qualidade de fiel.

1179 2.2 Aqui jaz Zózimo, fiel nascido de pais fiéis, com a idade de dois anos, um mês e
quinze dias.

1180 2.3 Tique, a meiga, viveu um ano, dez meses e quinze dias; recebeu o baptismo no
dia 8 das Calendas...; entregou a alma no dia acima indicado.

1181 2.4 Aqui jaz Ciríaco, servo de Deus, criancinha inocente. Os seus pais, Dionísio e
Zósima, mandaram fazer este memorial para o seu filho muito doce.

1182 2.5 A Eutiquiano, filho muito terno, o seu pai Eutíquio dedicou esta inscrição. Viveu
um ano, dois meses e quatro dias. Servo de Deus.

1183 2.6 Ariso, na paz. Nasceu na hora sexta, viveu nove horas5.

1
Inscriptiones latinae christianae veteres (=DACL 13, 2884-2298; D IEHL , Roma 1857-1888, Berlim 1961 2).
2
DACL 13, 2884-2298; E. L ODI , Roma 1979, 128.
3
Este acróstico (IXDYS), reconstituído a partir de sete fragmentos de mármore encontrados num antigo
cemitério da França (1830) é uma oração pelos defuntos, construída com palavras simbólicas sobre o bap-
tismo e a Eucaristia. A data da sua composição é colocada entre o início do século II e os finais do século
III.
4
D IEHL , Berlim 1961.
5
Hadrumeta, séc. III.
ACTAS DOS MÁRTIRES 317

Actas dos Mártires 1

Mártires de Cartago 2
3. Estávamos ainda com os nossos guardas, e meu pai usava as palavras mais 1184
hábeis para me fazer retroceder, as mais ternas e as mais fortes para me fazer sucumbir.
Um dia disse-lhe: «Pai, vês aquele vaso que está no chão, partido ou não sei quê»? Ele
disse: «Vejo». Respondi-lhe eu: «Poderá dar-se-lhe um nome diferente daquilo que ele
é»? Ele disse: «Não». «Eu também não; não posso dizer a mim mesma coisa diferente
daquilo que sou: cristã».
18. Despontou o dia da vitória dos mártires, e vieram do cárcere até ao anfiteatro, 1185
como se fossem para o Céu, de rosto radiante e sereno; e, se algum tinha o rosto
alterado, era de alegria e não de medo.
20. Perpétua foi a primeira a ser arremessada ao ar pela vaca brava e caiu de costas 1186
no chão. Levantou-se imediatamente e, vendo Felicidade caída por terra, aproximou-se,
estendeu-lhe a mão e ergueu-a. Ficaram ambas de pé. Saciada a crueldade do povo,
foram reconduzidas à porta chamada Sanavivária. Perpétua foi aí acolhida por um
certo catecúmeno, chamado Rústico, que permanecia sempre ao seu lado; e, como se
acordasse do sono (até esse momento estivera em êxtase do espírito), começou a olhar
à volta e, para espanto de todos, perguntou: «Quando é que seremos expostas à tal
vaca»? Quando lhe disseram que já tinha acontecido, não quis acreditar, e só se convenceu
quando viu no seu corpo e nas suas vestes a marca dos ferimentos recebidos. Chamou
então para junto de si o seu irmão e aquele catecúmeno e disse-lhes: «Permanecei
firmes na fé, amai-vos uns aos outros e não vos escandalizeis com os nossos sofrimentos».
21. Por sua vez, Saturo, noutra porta do anfiteatro, exortava o soldado Pudente com 1187
estas palavras: «Até agora, tal como te tinha afirmado e predito, não fui ainda ferido
por nenhuma fera. Acredita, portanto, agora de todo o coração: eis que vou avançar de
novo para ali, e serei abatido com uma única mordedura de leopardo». E, imediatamente,
já quase no fim do espectáculo, foi lançado a um leopardo, e com um só golpe ficou
coberto de tanto sangue que o povo, sem saber o que dizia, dava testemunho do seu
segundo baptismo, aclamando: «Foste lavado, estás salvo. Foste lavado, estás salvo»!
E na verdade estava salvo quem de tal modo fora lavado.
Saturo disse então ao soldado Pudente: «Adeus! Lembra-te da fé e de mim, e que
estas coisas não te perturbem, mas te confirmem». E pediu-lhe o anel que trazia no
dedo, mergulhou-o na ferida e devolveu-lho como uma herança, deixando-lho como
penhor e recordação do sangue. Depois, já exânime, prostrou-se com os outros no
lugar destinado ao golpe de misericórdia.
Mas o povo reclamava em alta voz que aqueles que iam receber o golpe final
fossem levados para o meio do anfiteatro, porque queriam ver com os seus próprios
olhos, cúmplices do homicídio, a espada penetrar nos corpos das vítimas; os mártires
levantaram-se espontaneamente e foram para o sítio onde o povo os queria, depois de
terem dado mutuamente o ósculo santo, para coroarem o martírio com este rito de paz.

1
Actas dos mártires (=PL 4, 881-910; CSEL 3; T H . RUINART , Acta primorum Martyrum Sincera, Ratisbonne
1859; BAC 75; Paulistas, Lisboa 1960; cf. LH, I e IV).
2
Da narração do martírio dos santos mártires de Cartago (=BAC 75; cf. LH, I). Estes mártires são do ano
203, sob Septímio Severo.
318 SÉCULO III

Todos receberam o golpe da espada, imóveis e em silêncio: especialmente Saturo,


que fora o primeiro a subir (na visão de Perpétua) e que foi o primeiro a entregar a
alma. Até ao último instante ia confortando Perpétua. E esta, que desejava ainda
experimentar maior dor, exultou ao sentir em seus ossos a cutilada, e ela própria guiou
até à garganta a mão incerta do inexperiente gladiador. Talvez esta mulher, de quem o
espírito do mal se temia, não tivesse podido ser morta de outra maneira do que querendo-o
ela própria.
Oh mártires, cheios de força e ventura! Verdadeiramente fostes chamados e eleitos
para glória de nosso Senhor Jesus Cristo.

Martírio de Cipriano 3
1188 3. Na manhã do dia catorze de Setembro, reuniu-se uma grande multidão em Sesti,
como tinha ordenado o procônsul Galério Máximo. E, assim, o mesmo procônsul
Galério Máximo, que nesse dia tinha marcado uma audiência no átrio Saucíolo, mandou
que trouxessem Cipriano à sua presença. Quando lhe foi apresentado, o procônsul
Galério Máximo disse ao bispo Cipriano: «Tu és Táscio Cipriano»? O bispo Cipriano
respondeu: «Sim, sou eu».
O procônsul Galério Máximo, disse: «És tu que te apresentas como chefe de
uma doutrina sacrílega»? O bispo Cipriano respondeu: «Eu mesmo».
O procônsul Galério Máximo continuou: «Os sacratíssimos imperadores orde-
naram-te que oferecesses sacrifícios aos deuses». O bispo Cipriano disse: «Não o faço».
Galério Máximo insistiu: «Reflecte bem». O bispo Cipriano respondeu: «Faz o
que te foi mandado; numa questão tão justa, não é preciso reflectir mais».
1189 4. Galério Máximo, depois de consultar os seus assessores, proferiu, com dificuldade
e pesar, esta sentença: «Viveste muito tempo segundo esta doutrina sacrílega e associaste
muitos outros à tua seita nefasta, constituindo-te inimigo dos deuses romanos e dos
seus cultos sagrados, sem que os piedosos e sacratíssimos príncipes Valeriano e Galieno
Augustos, e Valeriano, nobilíssimo César, tenham conseguido reconduzir-te à obser-
vância das suas cerimónias religiosas. Por isso, tendo sido reconhecido como autor e
instigador dos piores crimes, servirás de exemplo àqueles que associaste ao teu delito:
com o teu sangue será restabelecido o respeito pela lei». Dito isto, leu em voz alta o
decreto: «Foi decidido que Táscio Cipriano seja decapitado». O bispo Cipriano disse:
«Graças a Deus».
1190 5. Ao ouvir esta sentença, a multidão dos irmãos dizia: «Nós também queremos ser
decapitados com ele». Por isso, gerou-se uma grande agitação entre os irmãos; e se-
guiu-o numerosa multidão. Assim foi conduzido Cipriano ao campo de Sesti. Chegado
aí, tirou o manto e o capuz, dobrou os joelhos por terra e prostrou-se em oração ao
Senhor. Tirou depois a dalmática, entregou-a aos diáconos e ficou com a túnica de
linho; e assim esperou a vinda do verdugo.
Quando este chegou, o bispo mandou aos seus que dessem ao verdugo vinte e
cinco moedas de ouro. Entretanto, os irmãos estendiam diante dele lençóis e lenços.
Então, o bem-aventurado Cipriano vendou os olhos com as suas próprias mãos; mas,
como não conseguia atar as pontas do lenço, intervieram para o ajudar o presbítero
Juliano e o subdiácono Juliano.

3
Das Actas Proconsulares do martírio de S. Cipriano (=PL 3, 1497-1508; CSEL 3; BAC 75; cf. LH, IV).
Cipriano sofreu o martírio no dia 14 de Setembro de 258, sob Valeriano.
ACTAS DOS MÁRTIRES 319

Assim sofreu o martírio o bem-aventurado Cipriano. Para evitar a curiosidade


dos gentios, o seu corpo foi depositado num lugar próximo. Daí foi retirado durante a
noite e trasladado, com círios e archotes, com preces e em grande triunfo, para o
cemitério do procurador Macróbio Candidiano, situado na via Mapaliense, perto das
piscinas. Poucos dias depois, morreu o procônsul Galério Máximo.
6. O bem-aventurado Cipriano sofreu o martírio no dia catorze de Setembro, sendo 1191
imperadores Valeriano e Galieno, mas sob o reinado de nosso Senhor Jesus Cristo, ao
qual seja dada honra e glória pelos séculos dos séculos. Amen.

Martírio de Frutuoso 4
1. Sob o império de Valeriano e Galieno, sendo cônsules Emiliano e Basso, em 16 de 1192
Janeiro, a um domingo, foram presos o bispo Frutuoso e os diáconos Augúrio e Eulógio.
O bispo Frutuoso estava no seu quarto, quando chegaram a sua casa os soldados..., que
lhe disseram: «Vem. O governador quer-te juntamente com os teus diáconos». O bispo
Frutuoso respondeu: «Pois então vamos. Mas, se me permitis, calço-me primeiro».
Replicaram os soldados: «Calça-te tranquilamente». Assim que chegaram, meteram-
nos no cárcere. E Frutuoso, já seguro do martírio e alegre com a coroa para que era
chamado, orava sem cessar. À sua volta estavam os cristãos, para o confortarem e para
se recomendarem às suas orações.
2. Poucos dias depois, baptizou no cárcere um irmão nosso, Rogaciano. E passa- 1193
ram na prisão seis dias. A doze das Calendas de Fevereiro (21 de Janeiro) foram
conduzidos perante o tribunal e começou o julgamento. Disse o governador Emiliano:
«Apresentem-se o bispo Frutuoso, Augúrio e Eulógio». Responderam os oficiais da
justiça: «Estão aqui». O presidente Emiliano disse ao bispo Frutuoso: «Sabes quais
são as ordens dos imperadores»? Respondeu o bispo Frutuoso: «Não, não sei. Mas,
em todo o caso, eu sou cristão». Emiliano: «Ordenaram que se adorem os deuses».
Frutuoso: «Eu adoro um só Deus, que fez o Céu e a terra, o mar e quanto neles existe».
Emiliano: «Será que não sabes que há deuses»? Frutuoso: «Não o sei». Emiliano: «Pois
depressa o saberás». O bispo Frutuoso recolheu o seu olhar no Senhor e pôs-se a orar
dentro de si... O governador Emiliano voltou-se para o diácono Augúrio e disse-lhe:
«Não faças caso das palavras de Frutuoso». O diácono Augúrio replicou: «Eu presto
culto a Deus todo-poderoso». O governador Emiliano disse ao diácono Eulógio: «Tu
também adoras Frutuoso»? O diácono Eulógio disse: «Eu não adoro Frutuoso, mas
adoro o mesmo Deus que Frutuoso adora». Emiliano perguntou ao bispo Frutuoso:
«És bispo»? Frutuoso respondeu: «Sim, sou». Emiliano disse: «Foste». E deu a sen-
tença de que fossem queimados vivos.
3. Enquanto o bispo Frutuoso era conduzido ao anfiteatro juntamente com os seus 1194
diáconos, o povo começou a chorar por ele... Quando chegaram ao anfiteatro, aproximou-se
do bispo um dos seus leitores, que se chamava Augustal e, entre lágrimas, pediu-lhe
que o deixasse descalçá-lo. O santo mártir, com serenidade e calma, seguro da promessa
do Senhor, respondeu: «Deixa estar, filho; faço-o eu sozinho».
Depois de ele se ter descalçado, aproximou-se dele o nosso irmão de luta Félix e
pegou-lhe na mão, pedindo-lhe que se lembrasse dele. Então o venerando Frutuoso,
diante de todos, respondeu em voz alta: «É meu dever recordar-me da Igreja católica,
difundida desde o Oriente até ao Ocidente».

4
Actas do martírio de Frutuoso (=T H. R UINART, Acta primorum Martyrum Sincera, Ratisbona, 1859; BAC
75). Frutuoso foi bispo de Tarragona. O seu martírio bem como o dos seus dois diáconos ocorreu a 21 de
Janeiro do ano 259.
320 SÉCULO III

Actos apócrifos de Tomé 1

1195 10. Oração de Tomé sobre os esposos2. O rei chegou... e disse ao Apóstolo: «Levan-
ta-te, vem comigo e ora pela minha filha: porque ela é a minha única filha e eu caso-a hoje».
O Apóstolo não queria acompanhá-lo, porque o Senhor ainda não se lhe manifestara.
Mas o rei, apesar de ele não querer, arrastou-o até ao quarto nupcial para que
rezasse pelos jovens esposos. Então o Apóstolo entrou e pôs-se a rezar, dizendo:
«Meu Senhor e meu Deus, que acompanhas os teus servos, que mostras o caminho aos
que crêem em Ti e que os guias; refúgio e repouso dos oprimidos, esperança dos
pobres e libertador dos prisioneiros, médico das almas esmagadas pela doença e salva-
dor de cada criatura, que dás a vida ao mundo e fortaleces as almas; Tu conheces o
futuro e realiza-lo por nosso intermédio; és Tu, Senhor, que revelas os segredos escon-
didos e fazes conhecer as palavras secretas; és Tu, Senhor, que plantas a árvore boa, e
é pelas tuas mãos que as boas obras são feitas; és Tu, Senhor, que estás em todos os
seres, que os penetras a todos, que permaneces em cada uma das tuas obras e que és
revelado pela actividade de todas elas; Jesus Cristo, Filho da misericórdia e Salvador
perfeito, Cristo, Filho do Deus vivo, poder intrépido que esmagaste o Inimigo, voz
ouvida pelos príncipes, e que puseste em movimento todos os seus guerreiros; mensa-
geiro que foste enviado das alturas e desceste até aos infernos, também abriste as
portas e tiraste de lá aqueles que, desde há muito tempo, estavam encerrados no lugar
das trevas, mostrando-lhes o caminho que conduz às alturas. Peço-Te, Senhor Jesus,
ao apresentar-Te esta humilde oração por este jovem casal: dá-lhes o que os ajude, lhes
sirva e lhes seja útil».
Depois impôs-lhes as mãos e disse-lhes: «O Senhor esteja convosco»; então
deixou-os no lugar e afastou-se.
1196 25. Profissão de fé 3. «Confesso-Te, Senhor Jesus, porque revelaste a tua verdade
àqueles homens; Tu és o único Deus da verdade e não há outro, e conheces muitas
coisas desconhecidas; Tu és, Senhor, Aquele que usa de misericórdia e moderação para
com os homens; estes, na verdade, pelos seus enganos, desprezaram-Te, mas Tu não
os desprezaste a eles.
Agora peço-Te e suplico-Te que aceites o rei e o seu irmão: agrega-os ao teu
rebanho, lava-os de todos os pecados no teu banho e unge-os com o teu óleo; defende-os
dos lobos e leva-os aos teus prados; dá-lhes a beber ambrósia da fonte que não se
corrompe nem seca. Eles pedem-Te e suplicam-Te que querem ser teus servos e diáco-
nos, e, por isso, descansam dos inimigos esperados, embora sejam odiados, cobertos
de injúrias e mortos por causa de Ti, como Tu, por nossa causa, sofreste todas essas
coisas, para nos protegeres, porque és o Senhor e o verdadeiro bom Pastor.
Concede-lhes que só em Ti ponham a sua confiança, a certeza do teu auxílio e a
esperança da salvação que só de Ti recebem; sejam confirmados nos teus mistérios e
recebam os bens perfeitos dos teus benefícios e dons; floresçam no teu ministério e
atinjam a perfeição no teu Pai».

1
Acta Thomae (=L IPSIUS -B ONNET , Acta Apostolorum Apocrypha, 3 vol. Leipzig 1899, 1903 2, 1959 3 ; Orient
Syrien, Paris 3, 1958, 317-337; E. LODI , Roma 1979, 177-208). Escritos na Síria, no séc. III, e atribuídos
a Tomé, o Dídimo, os Actos de Tomé dão-nos uma imagem do cristianismo gnóstico popular. Certos elemen-
tos têm algo de comum com os escritos judaico-cristãos. Neles encontramos antiquíssimos vestígios
litúrgicos da epiclese sobre o óleo baptismal e a Eucaristia, uma bênção matrimonial, acções de graças e
orações.
2
Bênção matrimonial.
3
Nesta profissão ou confissão de fé, encontramos referências ao baptismo, à confirmação e à Eucaristia.
ACTOS APÓCRIFOS DE TOMÉ 321

27. Epiclese do óleo da unção. O Apóstolo, depois de se levantar, marcou-os com o 1197
sinal. Apareceu-lhes então o Senhor, dizendo-lhes estas palavras: «A paz esteja con-
vosco, irmãos». Foi deste modo que ouviram a voz, mas não viram a sua figura,
porque ainda não tinham recebido o selo da confirmação. Então o Apóstolo tomou o
óleo e derramou-o nas suas cabeças; depois ungiu-os, começando a dizer:
«Vem, santo nome de Cristo, que está acima de todo o nome; vem, poder altíssimo e
misericórdia perfeita; vem, dom supremo da graça; vem, mãe misericordiosa; vem,
comunidade masculina; vem, Tu que revelas o oculto e secreto; vem, mãe dos sete
dons, para que a tua restauração se faça na oitava; vem, ó mais velho dos cinco mem-
bros, espírito de conselho, de plano, de deliberação, de inteligência, e comunica-Te a
estes mais novos; vem, Espírito Santo, purifica-lhes os rins e o coração, assinala-os em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo».
Depois de serem assinalados, apareceu-lhes um adolescente segurando na mão
um facho aceso, para que, apesar de já brilharem, parecessem obscurecer ao aproximar-
se Aquele que é a luz. E, saindo, desapareceu aos seus olhos. Então o Apóstolo disse
ao Senhor: «A tua luz, Senhor, é para nós incompreensível, e não a podemos suportar,
pois é maior que a força dos nossos olhos». Quando rompeu a manhã, partiu o pão e
fê-los participar na Eucaristia de Cristo.
29. Fracção do pão. Levantando-se do sono, (Tomé) disse aos irmãos que estavam 1198
com ele: «Filhos e irmãos, hoje o Senhor quer fazer alguma coisa por meu intermédio:
oremos, pois, e peçamos-Lhe que não nos ponha qualquer impedimento em levá-lo a
cabo, mas, como sempre, e agora, por nosso intermédio, se realize o que deve ser feito
segundo a sua vontade».
Ao dizer isto, impôs-lhes as mãos e abençoou-os; e, partindo o pão da Eucaristia,
distribui-o por eles, dizendo: «A Eucaristia seja para nós misericórdia, compaixão e
recompensa, mas não julgamento». E todos responderam: «Amen».
30. Fórmula da unção. «Acaso, Senhor, me trouxeste aqui para que eu visse esta 1199
tentação? Faça-se, porém, segundo a tua vontade». Começou então a orar e a dizer:
«Senhor, juiz dos vivos e dos que jazem no sono da morte, Senhor e Pai de todos, Pai
não apenas das almas que estão presentes nos corpos, mas também das que já saíram
deles, que és também Senhor e juiz das almas manchadas, vem, nesta hora em que Te
invoco, e mostra a tua glória neste que está doente».
49. Eucaristia, selo da Trindade. Depois impôs-lhes as mãos e abençoou-os, dizendo: 1200
«Permaneça sobre vós a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, pelos séculos». Eles
responderam: «Amen».
Então a mulher suplicou-lhe, dizendo: «Apóstolo altíssimo, dá-me o selo4, para
que o Inimigo não volte para mim». Então mandou-a vir até junto dele e, impondo-lhe
as mãos, assinalou-a5 em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Muitos outros
foram assinalados juntamente com ela.
Então o Apóstolo ordenou ao seu diácono que pusesse a mesa junto dele; trouxeram
um banco pequeno que ali encontraram, e sobre um tapete tecido colocaram o pão da
bênção. E o Apóstolo, aproximando-se, disse: «Jesus, que Te dignaste tornar-nos par-
ticipantes da Eucaristia do teu Corpo e Sangue, eis que nos aproximamos da tua santa
Eucaristia e ousamos invocar o teu santo nome: vem e comunga connosco».

4
Sigillum.
5
Signavit eam.
322 SÉCULO III

1201 50. Oração epiclética. E começou a dizer: «Vem, caridade perfeita, vem, comunida-
de poderosa, vem, Tu que sabes as coisas escondidas ao eleito, vem, Tu que em todos
os combates és companheira nobre e atlética, vem, repouso que desvendas a magnificência
de toda a grandeza, vem, Tu que mostras as coisas secretas e indicas as que não se
podem dizer, pomba sagrada, que geras dois pombinhos, vem, mãe secreta, vem..., Tu
que proporcionas alegria e restauro àqueles que estão unidos a Ti; vem, comunga
connosco nesta Eucaristia que fazemos em teu nome, e no ágape a que viemos a teu
convite».
Dizendo isto, fez uma cruz sobre o pão. Depois partiu-o e começou a distribuí-lo.
Primeiro deu-o à mulher, dizendo: «Isto servir-te-á para a remissão dos pecados e dos
vícios antigos». Depois dela, deu também a todos os outros que tinham recebido o selo.
1202 52. Bênção da água. Então o Apóstolo mandou trazer um recipiente com água até
junto de si. Quando lhe entregaram a água, disse: «Vinde águas... que nos foram
enviadas da água viva, repouso da luz que nos foi enviada do repouso, força da salva-
ção que procede da força..., vem e habita nestas águas para que se realize plenamente
nelas o dom do Espírito Santo». E disse ao jovem: «Vai e lava as tuas mãos nestas
águas». Depois de ele lavar as mãos..., disse-lhe o Apóstolo: «Crês em nosso
Senhor Jesus Cristo, que fez todas as coisas»? Ele respondeu: «Embora seja o
último, creio».
1203 59. Oração a Cristo dos que foram curados. Então, todos os que o Apóstolo tinha
curado, exclamaram numa só voz: «Glória a Ti, Jesus, que pelo teu servo e apóstolo
Tomé, a todos nos deste a saúde. Curados e alegres, pedimos-Te... que nos contes
entre as tuas ovelhas. Aceita-nos, Senhor, e não nos atribuas os pecados e erros
primitivos que fizemos, sem o saber».
1204 121. Unção e baptismo de Migdónia. Ele recebeu o óleo e derramou-lho na cabeça,
exclamando: «Óleo santo que nos foste dado para a unção, mistério oculto no qual foi
revelada a cruz, Tu endireitas os membros que estão tortos, tornas brandos os que
estão rígidos, descobres os tesouros escondidos e és o gérmen da suavidade: venha a
tua força e permaneça na tua serva Migdónia, e cura-a através desta libertação».
Estava ali uma fonte de água. O Apóstolo subiu para ela e baptizou Migdónia
em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Depois de a baptizar, ela vestiu-se; e
ele partiu o pão, tomou o cálice da água, e fazendo-a participar do Corpo de Cristo e
do cálice do Filho de Deus, disse: «Recebeste o teu selo e foste enriquecida com a vida
eterna». E imediatamente se ouviu uma voz do alto, que dizia: «Assim é, Amen». Ao
ouvir esta voz, Narquia ficou cheia de temor e pediu ao Apóstolo que lhe desse o selo
também a ela. Ao dar-lho, o Apóstolo disse: «A graça do Senhor te envolva, tal como
aos outros».
1205 132. O louvor do baptismo. Começou então a falar do baptismo: «Este baptismo é a
remissão dos pecados, a origem da luz que se difunde; aqui é gerado o homem novo, o
Espírito é dado aos homens, a alma se renova, o homem novo é triplamente elevado e
torna-se participante da remissão dos pecados. Glória a Ti, mistério inefável, que Te
comunicas pelo baptismo; glória a Ti, força invisível, que Te aproximas de nós no
baptismo; glória a Ti, renovador, por quem são renovados os baptizandos que Te
desejam com ardor». Depois de dizer isto, derramou-lhes óleo na cabeça, dizendo:
«Glória a Ti, amor clemente; glória a Ti, nome de Cristo; glória a Ti, poder que
permanece em Cristo». E, mandando-os entrar na piscina, baptizou-os em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo.
1206 133. Oração anafórica de Judá. Depois de serem baptizados e de retomarem as suas
vestes, (o Apóstolo) pôs pão sobre a mesa e disse, cheio de confiança: «Os que comem
o pão da vida são imortais; este pão sacia as almas que têm fome de santidade; digna-Te,
Senhor, receber esta oblação. Ela se torne para nós remissão dos pecados e tornem-se
ACTOS APÓCRIFOS DE TOMÉ 323

imortais os que te comem; dizemos sobre ti o nome da mãe..., dizemos sobre ti o nome
de Jesus». E acrescentou: «Vem depressa, bênção poderosa e entra neste pão, para que
todas as almas que dele participam sejam purificadas dos pecados». Depois partiu o
pão e deu-o a Síforo, à sua mulher e à sua filha.
144. Embolismo da Oração dominical. «Meu Senhor e meu Deus, minha esperança, 1207
minha fé e meu mestre, foste Tu que puseste a tua consolação dentro de mim e me
ensinaste a orar assim. Quero dizer a tua oração e cumprir até ao fim a tua vontade.
Fica comigo para sempre. Foste Tu que, desde a mais tenra idade, me deste vida e
paciência nas tentações, me protegeste da corrupção, me retiraste da pobreza do mundo e
me chamaste para as tuas verdadeiras riquezas. Anunciaste-me que eu era teu e assim
me, e desse modo me mantive inteiramente livre de mulher, para me tornar, pela
pureza, num templo digno de Ti».
157. Oração sobre o óleo. Fórmula baptismal. Judas, recebendo o óleo num cálice de 1208
prata, orou assim: «Ó fruto mais belo do que os outros, que a nenhum outro pode ser
comparado, cheio de misericórdia, palavra forte e fervorosa, força da árvore com cuja
unção os homens vencem os seus adversários. Tu coroas os vencedores e és símbolo
dos que trabalham e se alegram. Tu anuncias a salvação aos homens e iluminas os que
andam nas trevas. As tuas folhas são amargas, mas exultas com um fruto dulcíssimo;
tens um aspecto pobre, mas um gosto agradável; pareces frágil, mas és forte». Ao
dizermos estas coisas, Jesus, venha o teu poder vencedor e permaneça neste óleo, tal
como permanece na árvore da qual ele provém... Venha também aquele dom com que,
soprando nos teus inimigos, os fizeste retroceder e cair por terra, e permaneça neste
óleo sobre o qual invocámos o teu nome santo». Depois de dizer estas palavras,
infundiu óleo primeiro na cabeça de Vizan, e a seguir na das mulheres, dizendo: «Em
teu nome, Jesus Cristo, sirva (este óleo) para perdoar os pecados destas almas, para
afastar os seus inimigos e para salvar as suas vidas». E mandou que Migdónia ungisse
as mulheres, enquanto ele próprio ungiu Vizan. Depois de terem sido ungido, condu-
ziu-os à água e baptizou-os «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo». 158.
Oração eucarística. Depois de subirem da água, tomou o pão e o cálice, e abençoou-
os, dizendo: «Comemos o teu Corpo santo, crucificado por nós, e bebemos o teu
Sangue derramado para nossa salvação. Seja, pois, o teu Corpo para nossa salvação e
o teu Sangue para remissão dos pecados. Pelo fel que bebeste por causa de nós,
desapareça de ao pé de nós o fel do Diabo; pelo vinagre que bebeste por causa de nós,
sejamos nós curados da nossa doença; pelos escarros com que foste coberto por causa
de nós, recebamos nós o orvalho da tua bondade. Nas varas com que foste açoitado por
causa de nós, recebamos a morada perfeita; e uma vez que recebeste uma coroa de
espinhos por causa de nós, nós, que Te amamos, sejamos coroados com uma coroa
eterna; pelo lençol em que foste envolvido, sejamos nós envolvidos pelo teu poder
invencível; pelo sepulcro novo e pela sepultura, recebamos a reunião da alma e do
corpo; porque ressuscitaste e voltaste à vida, vivamos nós ressuscitados e estejamos
de pé, diante de Ti, no teu justo juízo». Depois de fazer a fracção, deu a Eucaristia a
Vizan, a Tércia, a Menesara, a Síforo, à sua mulher e à sua filha, dizendo: «Sirva esta
Eucaristia para vossa salvação, alegria e integridade das vossas almas». E eles disse-
ram: «Amen». E ouviu-se uma voz que dizia: «Amen; não temais; acreditai só».
SÉCULO IV

Pedro de Alexandria

Epístola canónica 1
1. Como está para chegar a quarta Páscoa da perseguição 2 [Epei\ toi/nun te/tarton 1209
h) / d h Pa/ s xa e) p ikatei/ l hfe ], para aqueles que, por denúncia, foram metidos na
prisão e aí sofreram horríveis torturas, flagelos intoleráveis e grandes aflições, acabando
por sacrificar por fraqueza da carne, o tempo transcorrido já foi penitência suficiente...
Acrescentarão outros quarenta dias, que foram aqueles durante os quais Jesus... jejuou
depois de ser baptizado..., e serão admitidos à comunhão... 2. Os que caíram sem ser
torturados devem fazer penitência durante mais um ano... 3. Os que negaram a fé
espontaneamente, sem ter sido submetidos ao potro nem serem encarcerados, devem
continuar a fazer penitência durante mais três anos...
4. Aos que estão completamente desesperados e não fazem penitência... nada lhes 1210
podemos fazer... 5. Os que simularam..., os que entregaram bilhetes..., os que se mistu-
raram com os pagãos... farão penitência durante seis meses... 6. Os servos cristãos
que obedeceram às ordens dos seus senhores e sacrificaram por medo, devem fazer um
ano de penitência... 10. Não é justo que os clérigos que fugiram espontaneamente...
permaneçam no ministério sagrado..., porque nenhum Apóstolo fez isso...
15. Ninguém nos critique por jejuarmos na quarta e na sexta-feira, pois recebemos 1211
esse preceito da tradição. Na quarta-feita teve início o conselho dos Judeus para
entregarem o Senhor; na sexta-feira Ele próprio sofreu por nós. Nós celebramos o
domingo como um dia de alegria, por causa d’Aquele que ressuscitou nesse dia, e,
durante o qual, como o recebemos da tradição, não se deve ajoelhar.

Carta sobre Melécio 3


1. Pedro, aos caríssimos irmãos estabelecidos na fé em Deus, paz no Senhor. Des- 1212
cobri que Melécio não trabalha de modo nenhum para o bem comum. Não ficou satis-
feito com a carta dos santíssimos bispos e mártires, mas, ao contrário, invadiu a minha
Igreja (paroeciam), tentou separar da minha autoridade os presbíteros e os que têm o
cuidado de visitar os pobres4. E, dando provas da sua ambição, ordenou alguns, por
sua conta, na prisão. Prestai, pois, atenção a isto, e não tenhais comunhão com ele, até
que eu o encontre na companhia de alguns homens prudentes e sábios, e veja quais são
os planos que ele concebeu. Que tudo vos corra bem.
1
P EDRO DE A LEXANDRIA , Epistula canonica (Peri\ metanoi/ a j) (=PG 18, 467-508). Foi feito bispo de
Alexandria no ano 300 e morreu mártir em 311; cf. Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica 7, 32, 31.
2
Estas palavras, com que a epístola começa, permitem dizer que este escrito é do ano 306. Trata-se de uma
Carta pascal, que aborda sobretudo a penitência. As suas prescrições referem-se aos que fazem penitência
por terem negado a fé durante a perseguição que tivera lugar três anos antes, ou seja em 303.
3
P EDRO DE A LEXANDRIA , Epistula ad Ecclesiam Alexandrinam (=PG 18, 509-510).
4
Devem ser os diáconos.
326 SÉCULO IV

Comodiano

1213 Instruções 1

LIVRO II

46. 1 (5). Catecumenis. A todos os que acreditam em Cristo eu digo:


Abandonai os ídolos, para vossa salvação.
Se nos primeiros tempos seguias o erro,
Abandona tudo agora, pois encontraste Cristo...

49. 2 (9). Paenitentibus. Tu, que foste feito penitente, reza noite e dia,
E se não te afastares para longe da Igreja mãe,
O Altíssimo usará de misericórdia para contigo...

53. 8 (12). Militibus Christi. Uma vez que te inscreveste na milícia, foge do mal,
Começando, desde já, a abandonar as obras antigas...

67. 22 (26). Lectoribus. Aconselho os leitores2, embora só conheça alguns deles,


A ajudarem os outros com o exemplo de vida.
Fugi de disputas e de quaisquer outros litígios,
Espremei o tumor e nunca sejais soberbos.
Prestai as atenções devidas a cada um dos maiores.
Filhinhos, tornai-vos semelhantes a Cristo, mestre,
E sede, com as vossas boas obras, lírios entre espinhos.
Sereis felizes quando fizerdes o que vos mandam.
Vós sois flores no meio do povo, sois lâmpadas de Cristo.
Guardai o que sois e podereis recordar-vos (de tudo isto).

75. 30 (34). Clericis. Reuni-vos na Páscoa, dia da nossa alegria.


Rejubilem os que pedem o alimento divino,
E recebam a sua parte do vinho e do alimento...

76. 31 (35). De fabularis. Quando o sacerdote do Senhor diz: «Corações ao alto»,


Pede-vos que façais silêncio para entrar em oração,
E invocar o Altíssimo em favor do povo consagrado...

1
C OMODIANO , Instruções (=PL 5, 201-262; R IGAULT , Toul 1649; CCL 128; CSEL 15; DACL 8, 2243). Des-
conhece-se quase tudo acerca de Comodiano. Terá vivido entre 238 e 312. Indicam-se as várias numerações
dos editores.
2
Lectores moneo quosdam cognoscere tantum,
Et dare materiam ceteris exemplo vivendi,
Certamen fugire lites totidemque vitare,
Tumorem premere, nec unquam esse superbos.
Obsequia justa majorum cuique deferte;
Reddite vos Christo símiles, filioli, magistro,
Inter agrestiva benefactis lilia sitis.
Beati facti estis, cum feceritis edicta
Vos flores in plebe, vos estis Christi lucernae
Servate quid estis et memorare potestis.
LACTÂNCIO 327

Lactâncio

Instituições divinas 1

LIVRO IV

12. São de Isaías estas palavras: Por isso Deus vos dará um sinal: Eis que uma 1214
virgem conceberá e dará à luz um filho, que será chamado Emanuel. Que poderá
dizer-se de mais claro que isto? Os Judeus liam estas palavras, mas negavam-nas...,
porque nunca lhe chamam Emanuel, mas Jesus, que em latim significa Salvador, por-
que veio para salvar todos os povos. O que o Profeta declarou por meio desta palavra
é que Deus viria como homem ao meio dos homens. Com efeito, Emanuel significa
«Deus connosco», ou seja: Aquele que nasceria da virgem, deviam os homens afirmar
a seu respeito que era Deus com eles, isto é, na terra, num corpo mortal. Por isso
dissera David num salmo: A verdade germinou da terra, porque Deus, em quem habita
a verdade, recebeu um corpo humano, para abrir aos homens um caminho de salvação.
O mesmo Isaías diz: Eles, porém, não acreditaram e ofenderam o seu santo espírito;
então tornou-se seu inimigo e fez-lhes guerra. E o povo lembrou-se dos dias de
outrora, quando Deus fez surgir da terra o pastor das ovelhas.
Quem haveria de ser esse pastor, declarou-o, noutro lugar, dizendo: Derramai,
ó céus, lá das alturas, o orvalho, e que as nuvens façam chover a justiça. Abra-se a
terra e germine o Salvador. Eu sou o Senhor, que criou tudo isto. Jesus, como acima
dissemos, é o verdadeiro Salvador. Mas noutro lugar o mesmo Profeta falou assim: Um
menino nasceu para nós, um filho nos foi dado; tem a soberania sobre os seus om-
bros, e o seu nome é: Conselheiro Admirável. Na verdade foi enviado por Deus Pai,
para revelar a todos os povos que há sob o céu, o mistério do Deus único e verdadeiro,
tirado ao povo infiel, que muitas vezes se revoltou contra Deus. Daniel também disse
coisas semelhantes: Contemplando eu a visão nocturna, vi aproximar--se, sobre as
nuvens do céu, um ser semelhante a um filho de homem. Avançou até ao ancião, diante
do qual o conduziram. Foram-lhe dadas as soberanias, a glória e a realeza. Todos os
povos, todas as nações e as gentes de todas as línguas o serviram. O seu império é um
império eterno que não passará jamais, e o seu reino nunca será destruído. Como é
que os Judeus hão-de confessar e esperar o Messias de Deus, se rejeitaram este que
nasceu do homem?... 13. 26 A casa que (Salomão) edificou não conservou a fé, como a
Igreja, que é o verdadeiro templo de Deus, que não é feita de paredes, mas existe no
coração e pela fé dos homens que nela crêem e se chamam fiéis 2.
27. 1 Vamos agora dizer qual é a força do sinal da cruz. Que grande terror inspira este 1215
sinal aos Demónios! Sabem-no aqueles que os viram pôr-se em fuga dos corpos dos
possessos, quando se lhes ordenava isso em nome de Cristo. 2 Porque assim como,
quando Ele vivia entre os homens punha em fuga todos os Demónios pela sua Palavra

1
L ACTÂNCIO , Divinae institutiones [=PL 6, 111-822; CSEL 19-27; SCh 377 (IV)]. Lactâncio nasceu na
África. Foi professor, mas a perseguição de Dioclesiano obrigou-o a renunciar à sua cátedra. Em 317 o
imperador Constantino chamou-o para ser preceptor do seu filho Crispo. Desconhece-se a data da sua morte.
2
Et domus quam aedificavit (Salomon) non est fidem consecuta, sicut Ecclesia, quae est verum templum
Dei, quod non ex parietibus est, sed in corde ac fide hominum, que credunt in eum, ac vocantur fideles.
328 SÉCULO IV

e reconduzia ao seu estado anterior os espíritos dos homens agitados e tornados


loucos furiosos pelas incursões do mal, assim agora os seus discípulos fazem sair dos
homens esses mesmos espíritos perversos, pelo nome do seu Mestre e o sinal da sua
Paixão...

LIVRO VI

1216 20. Todo aquele que vê, com prazer, cortar a cabeça a um homem, mancha a sua
consciência, mesmo que esse homem mereça a morte e tenha sido condenado pela lei.
Aquele que se alegra disso é quase tão culpado como se tivesse tomado parte em
homicídios cometidos em segredo. Há quem chame jogos a esses exercícios onde se
derrama sangue! Queria que me dissessem se têm piedade e justiça esses que, não só
permitem que se matem homens que imploram a sua clemência, mas que, não contentes
com os golpes que os viram receber e com o sangue que viram derramar, ainda pedem
que lhes seja tirada a vida. Têm tanto medo de que algum lhes não escape, fingindo-se
morto, que exigem, aos gritos, que se acabe com os miseráveis, caídos por terra e
cravados de golpes. Ficam aborrecidos quando os gladiadores combatem durante muito
tempo sem se matar e, fora de si, pedem que sejam trazidos outros mais vigorosos...
Os que desejam caminhar nas sendas da justiça não podem tornar-se cúmplices
desses assassínios públicos. Quando Deus nos proíbe de matar, também nos proíbe,
não só de roubar, mas de fazer muitas outras coisas que, entretanto, são permitidas
pelas leis civis...
A proibição de matar imposta por Deus não tem excepção. Ninguém pode crer
que é permitido esmagar crianças que acabam de nascer; é uma impiedade horrível
tirar-lhes a vida que Deus lhes deu...
E que dizer daqueles que abandonam os filhos, expondo-os? Poderão passar por
inocentes quando abandonam o filho aos dentes dos cães? Não será isso dar-lhe morte
mais cruel do que se o tivessem estrangulado? Na verdade, ao exporem os recém-
-nascidos expõem-nos ao perigo de ser reduzidos à escravatura, ou de se prostituírem
nas casas de passe...

LIVRO VII
1217 19. 1 Então, numa noite de tempestade e densas trevas, os céus hão-de abrir-se, e
todo o mundo verá aparecer uma luz vinda de Deus como um relâmpago... Esta é a
noite em que nós celebramos a Vigília pascal, por causa da vinda do nosso Rei e Deus.
A razão de ser desta noite é dupla: Aquele que fora morto recebeu a vida nessa noite,
e nela há-de voltar para receber o reino do mundo, pois é Ele o libertador, o juiz, aquele
que exerce a justiça, o nosso Rei e Deus a quem chamamos Cristo. Antes de descer dará
este sinal: de repente cairá do céu uma espada, para que os justos saibam que já desceu
o condutor do exército dos santos. Virá à terra acompanhado dos Anjos e precedido
dum fogo inextinguível, e pela força dos Anjos entregará nas mãos dos jutos aquela
multidão que rodeia o monte... 20. Depois disto abrir-se-á a morada dos mortos, e os
mortos hão-de voltar à vida. E o mesmo Rei e Deus fará um grande julgamento...
EUSÉBIO DE CESAREIA 329

Eusébio de Cesareia

História Eclesiástica 1

LIVRO II

17. O que Fílon conta nas suas obras. 21 Será preciso ainda acrescentar a isso as 1218
suas reuniões num mesmo lugar, as ocupações particulares dos homens e das mulheres,
homens e mulheres que vivem separados, as asceses tradicionais realizadas ainda hoje
entre nós, que temos o costume, sobretudo no tempo da festa da paixão do Salvador,
de fazer jejuns, vigílias nocturnas e a meditação das palavras divinas?
22 Tudo isto o indica com exactidão o autor mencionado 2. A sua exposição está
de acordo com os costumes que nós somos os únicos a observar ainda hoje. Ele descreve,
na sua obra, as vigílias completas da grande festa, as asceses que aí realizamos, os
hinos que temos o costume de cantar, que um só salmodia harmoniosamente e de
maneira ritmada e os outros escutam em silêncio, cantando com ele apenas as últimas
palavras dos hinos...
23 Descreve, além disso, a ordem de precedência daqueles a quem estão con-
fiados os ofícios públicos da Igreja e as presidências do episcopado, que estão acima
de todas...
25. Testemunho de Caio3 sobre as memórias de Pedro e Paulo em Roma. 5 Nero, 1219
proclamado o primeiro inimigo de Deus entre os que mais o foram, levou a sua loucura
até ao ponto de mandar degolar os Apóstolos. Diz-se, com efeito, que sob o seu
império, Paulo foi decapitado na própria cidade de Roma, e Pedro crucificado. Desta
referência dá fé o título de Pedro e Paulo que se encontra nos cemitérios daquele lugar
até ao presente.
6 E não menos o confirma um varão eclesiástico chamado Caio, que viveu quando
Zeferino era bispo de Roma. Disputando por escrito com Próclo, dirigente da seita
catafriga, diz o seguinte acerca dos próprios lugares em que estão depositados os
despojos sagrados dos Apóstolos mencionados:
7 «Eu, ao contrário, posso mostrar-te os troféus dos Apóstolos, porque, se
quiseres ir ao Vaticano ou à estrada de Óstia, encontrarás os troféus dos que fundaram
esta Igreja».

LIVRO III

13. Lino, bispo da Igreja romana, tendo praticado a liturgia durante doze anos, 1220
transmitiu-a a Anacleto, e do mesmo modo Clemente morreu, depois de ter transmitido a
liturgia a Evaristo.
23. Relato sobre o apóstolo João. 1 Por este tempo vivia ainda na Ásia aquele a 1221
quem Jesus amou, o apóstolo e evangelista João, e ali continuava a orientar as Igrejas
depois de regressar do desterro na ilha, após a morte de Domiciano...

1
E USÉBIO DE C ESAREIA , História Eclesiástica (=PG 20, 45-906; GCS 9; SCh 31, 41, 55 e 73; BAC 349, 350).
Eusébio nasceu em 265 e morreu em 339.
2
Fílon de Alexandria.
3
Escritor dos finais do século II e começos do III.
330 SÉCULO IV

5 Clemente (de Alexandria)... acrescentou uma narração valiosíssima para aqueles


que gostam de ouvir coisas belas e proveitosas. Toma-a, pois, e lê o que ele escreveu:
6 «Escuta uma historieta, que não é uma historieta, mas uma tradição existente
acerca do apóstolo João, transmitida e guardada de memória. Depois do tirano morrer4,
João mudou-se da ilha de Patmos para Éfeso. Daqui costumava partir, quando o
chamavam, para as regiões pagãs vizinhas, a fim de nuns lugares estabelecer bispos,
noutros erigir Igrejas, e noutros ainda ordenar algum dos que o Espírito tinha designado.
7 Veio a uma cidade... e, depois de fortalecer os irmãos, tendo visto um jovem de
grande estatura, de aspecto elegante e de alma generosa, fixou o seu olhar no rosto do
bispo instituído na comunidade e disse: ‘Confio-te este (jovem) com muito interesse,
na presença da Igreja e com Cristo como testemunha’. O bispo aceitou o jovem, prome-
tendo-lhe tudo, mas João continuava a insistir no mesmo e a apelar para as mesmas
testemunhas.
8 Depois regressou a Éfeso, e o presbítero5 levou para casa o jovem que lhe fora
confiado e ali o manteve, o rodeou de afecto e, por fim, o baptizou 6. Depois disto
abrandou um pouco na sua solicitude e vigilância, pensando que lhe dera a salvaguarda
perfeita: o selo do Senhor7.
1222 33. O imperador Trajano proibiu que se perseguissem os cristãos8. 1 Na verdade,
foi tão grande a perseguição que por aquele tempo se estendeu contra nós em muitos
lugares, que Plínio Segundo9, notabilíssimo entre os governadores, inquieto pela multidão
de mártires, dá conta ao imperador do excessivo número dos que eram executados por
causa da fé; adverte-o, por sua vez, no mesmo documento, que os cristãos não foram
encontrados a fazer nada de ímpio nem contrário às leis, a não ser o facto de se
levantarem antes da aurora para entoar hinos a Cristo como a um Deus, mas que entre
eles é proibido cometer adultério, homicídios e crimes do mesmo género, e que em tudo
actuam segundo as leis.
2 A resposta de Trajano consistiu em promulgar um decreto do seguinte teor:
Não se busque a tribo dos cristãos, mas castigue-se o que for apanhado. Graças a isto,
se extinguiu de certo modo a perseguição, que ameaçava cair sobre nós, mas nem por
isso faltaram pretextos aos que queriam fazer-nos mal. Umas vezes eram as povoações,
outras as próprias autoridades locais que preparavam o ambiente contra nós, de modo
que, mesmo sem perseguições manifestas, se acenderam focos parciais, segundo as
províncias, e muitos crentes combateram em diversos géneros de martírio.
1223 34. Evaristo foi bispo de Roma. No terceiro ano do imperador citado anteriormente10,
Clemente, bispo de Roma, terminou a sua vida depois de transmitir o seu cargo a
Evaristo e de ter estado ao todo nove anos à frente do ensino da palavra divina.
1224 37. Muitos outros ainda, além destes, eram célebres nesta época e ocupavam o
primeiro lugar da sucessão apostólica. Discípulos notáveis desses homens, edificaram
Igrejas sobre os fundamentos que os Apóstolos tinham começado a estabelecer por
toda a parte. Desenvolviam cada vez mais a pregação. Lançavam a semente salvadora
do Reino dos Céus por toda a extensão da terra habitada.

4
Deve ser Domiciano.
5
O mesmo a quem vinha chamando bispo.
6
No original: o iluminou.
7
O baptismo.
8
Talvez no ano 112.
9
Mais conhecido por Plínio o Moço. Foi governador da Bitínia nos anos 111-112. A carta, cujo conteúdo
Eusébio resume, deve ter sido escrita no ano 112.
10
O imperador Trajano.
EUSÉBIO DE CESAREIA 331

Com efeito, muitos discípulos foram então marcados no seu espírito pelo Verbo
de Deus...
38. Como não nos é possível citar pelos seus nomes todos aqueles que, por ocasião 1225
da primeira sucessão dos Apóstolos, se tornaram pastores e evangelizadores das Igrejas
do mundo, reteremos apenas a lembrança daqueles cujas obras trouxeram até nós a
tradição do ensino dos Apóstolos. Tais são, em particular, Inácio de Antioquia e
Clemente, na carta, recebida por todos, que ele dirigiu em nome da Igreja dos Romanos
à Igreja dos Coríntios...

LIVRO IV

6. Jerusalém muda de nome11. 3 Por decisão e mandato duma lei de Adriano, proi- 1226
biu-se a todo o povo Judeu de pôr pé, desde então, até mesmo na região que rodeia
Jerusalém, de modo que nem de longe pudessem contemplar o solo pátrio...
4 E foi assim que a cidade chegou a ficar vazia da raça judaica e foi total a ruína
dos seus antigos moradores. Vieram habitá-la gentes de outras raças, e a cidade romana,
que logo se constituiu, mudou de nome e chamou-se Élia, em honra do imperador Adriano.
23. Cartas de Dionísio, bispo de Corinto12. 6 Escrevendo (a várias Igrejas) acerca do 1227
matrimónio e da continência, dirige-lhes muitas exortações e ordena-lhes que acolham
os que se convertem de qualquer queda, quer isso se deva a negligência ou inclusivamente
a erro herético.
7 Entre essas cartas encontra-se catalogada outra, aos de Cnossos, na qual exorta
Pínito, bispo daquela Igreja, a não impor obrigatoriamente aos irmãos o pesado fardo
da continência, mas antes a ter em consideração a fraqueza dos outros... 9 Existe ainda
outra carta de Dionísio aos Romanos, dirigida ao bispo de então, Sotero13... 11 Nessa
mesma carta menciona também a de Clemente aos Coríntios14, mostrando que se vinha
fazendo a sua leitura na Igreja desde tempos atrás, segundo um antigo costume. Diz
assim: «Celebrámos hoje o santo dia do Senhor e lemos a vossa carta. Continuaremos a
lê-la de vez em quando para nossa admoestação, do mesmo modo que a primeira, que
nos foi escrita por Clemente 15».

LIVRO V

1. Actas dos mártires de Lião16. 2 As ilustríssimas Igrejas daquela região (da Gália) 1228
transmitiram às Igrejas da Ásia e da Frígia a carta acerca dos mártires e narram o
sucedido da seguinte maneira. Citarei as suas próprias palavras.
3 «Os servos de Cristo que peregrinam em Viena e Lião, na Gália, aos seus
irmãos que na Ásia e na Frígia compartilham connosco a mesma fé e a mesma esperança
da redenção: paz, graça e glória da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, nosso Senhor.
4 A perseguição foi de uma violência tal neste país, a raiva dos pagãos tão grande
contra os santos e os sofrimentos que os bem-aventurados mártires suportaram foram

11
Por volta do ano 134-135.
12
Talvez tenha sido bispo entre 170 e 190.
13
Sotero foi bispo de Roma entre 166 e 174.
14
Alusão à primeira carta de Clemente, escrita no ano 96.
15
Era um costume antigo ler, durante a assembleia litúrgica da comunidade, as cartas enviadas pelos Após-
tolos.
16
Entre as mais antigas actas de mártires conta-se a carta das Igrejas de Lião e Viena (na Gália) às Igrejas da
Ásia e da Frígia, sobre a perseguição ocorrida em Lião em 177-178, transcrita por Eusébio. Ela constitui
admirável documento acerca do espírito dos antigos mártires.
332 SÉCULO IV

de tal ordem, que não saberíamos encontrar as palavras necessárias para vos fazer uma
descrição completa do que ocorreu.
5 O adversário atacou com todas as suas forças, preparando assim a sua vinda
iminente. Por toda parte esteve induzindo os seus ao combate contra os servidores de
Deus, de modo que não só nos expulsam das casas, dos banhos e das praças, mas nos
proíbem de aparecer seja em que lugar for.
6 Mas a graça de Deus lutou por nós, afastando do perigo os tímidos e opondo
ao adversário colunas sólidas da fé, capazes de atrair sobre si, com a sua paciência,
todo o ímpeto do malvado. Os defensores caminharam para o martírio e tiveram de
suportar ultrajes e suplícios, mas não se detiveram por tão pouco. Apressavam o
passo para Cristo e revelavam ao mundo que os sofrimentos do tempo presente não
têm comparação com a glória que nos espera lá no alto.
1229 7 Em primeiro lugar suportaram com valentia os assaltos da multidão: insultos,
golpes, zombarias, roubos, apedrejamento, prisões e tudo quanto costuma dar gosto a
uma multidão enfurecida contra pessoas que consideram odiosas e inimigas.
8 Depois de serem conduzidos à praça pública, e de serem julgados pelo tribuno
e pelos magistrados da cidade diante de todos, foram encerrados no cárcere até à
chegada do governador.
9 Mais tarde levaram-nos à presença do governador. Como este usara de toda a
crueldade contra nós, um dos irmãos, Vetius Epágato, que possuía em plenitude o
amor a Deus e ao próximo e cuja vida era tão perfeita que, apesar de sua juventude, se
tornou credor do testemunho do presbítero Zacarias, pois tinha caminhado sem mácula em
todos os mandamentos e preceitos do Senhor, diligente em todo o serviço ao próximo,
com muito zelo de Deus e fervor de espírito, não pôde suportar tantas ilegalidades no
processo dos cristãos. Num cúmulo de indignação, reclamou o direito de tomar a
palavra, para defender os seus irmãos e provar que entre nós não há nada de ateu nem
de ímpio.
10 Mas as pessoas que rodeavam o tribunal lançaram clamores contra ele, pois
era um homem muito conhecido, e o governador rejeitou o seu pedido, embora tão
legítimo. Perguntou-lhe somente se era cristão. Ele, então, com voz forte, proclamou
ser cristão. O governador juntou-o às fileiras dos mártires. Chamou-se-lhe consolador
dos cristãos, pois dentro de si tinha o consolador, o Espírito de Zacarias. Tinha-o
demonstrado muito bem nesse excesso de caridade com que arriscara a sua própria vida
para salvar os seus irmãos. Era e continua a ser um verdadeiro discípulo de Cristo, que
segue o Cordeiro para onde quer que ele vá.
1230 11 A partir deste momento estabeleceu-se uma cisão entre os cristãos. Uns
pareciam estar prontos para o martírio: cheios de ardor, confessaram a sua fé até ao
fim; mas também se manifestaram os que não estavam dispostos, faltos de exercício e
até débeis, incapazes de suportar o esforço de um grande combate. Uma dezena deles
falhou. Isso causou-nos profunda tristeza, grande dor, e quebrou o entusiasmo dos
outros que não tinham sido ainda presos e que, ao preço de mil perigos, assistiam os
mártires sem deles se afastar.
12 Então, todos fomos tomados de viva angústia, perante a incerteza da confissão,
não por medo dos castigos, mas porque víamos demorado o fim e temíamos que alguns
sucumbissem.
13 Entretanto, as prisões continuavam todos os dias, e os que eram dignos
vinham preencher as lacunas deixadas pelos apóstatas. Foi assim que se encontraram
reunidos na prisão todos os cristãos fervorosos das duas Igrejas, os principais susten-
táculos da religião em nossos países.
EUSÉBIO DE CESAREIA 333

14 Foram presos, também, alguns pagãos, servidores dos nossos, pois o governador
havia dado ordem oficial de nos procurarem a todos. Essas pessoas, por insídias de
Satanás, encheram-se de medo perante os tormentos infligidos aos santos. Impelidos a
isso pelos soldados, acusaram-nos falsamente de refeições como as de Tiestes17, de
promiscuidades como as de Édipo e de tantas outras coisas que nem sequer nos é lícito
dizê-las nem pensá-las, ou até mesmo imaginar ou crer que seres humanos as tenham
jamais cometido.
15 Quando este rumor se espalhou, todos se voltaram como feras contra nós. 1231
Pagãos que até então se haviam mostrado moderados a nosso respeito, por motivos de
parentesco, puseram-se a odiar-nos e a ranger os dentes contra nós. Era a realização da
palavra do Senhor: Tempos virão em que todo o que vos matar pensará que está a
prestar culto a Deus.
16 Os santos mártires não fizeram mais, desde então, do que sofrer suplícios
indescritíveis. Satanás esforçava-se por fazê-los proferir, também eles, alguma blasfémia.
17 Toda a fúria da multidão, do governador e dos soldados se abateu sobre o
diácono Sanctus, de Viena, sobre Maturus, recém-baptizado, mas valente atleta, sobre
Átalo, oriundo de Pérgamo, que havia sido sempre a coluna e o sustentáculo dos
cristãos daqui e, enfim, sobre Blandina. Por ela, Cristo nos ensinou que aquilo que é vil
aos olhos dos homens, sem aparência e de pouco preço, é julgado digno de grande
glória junto de Deus, quando se é animado de amor por Ele, amor que não se contenta
com fórmulas vãs, mas se prova por actos.
18 Com efeito, nós todos temíamos por Blandina; a sua senhora segundo a carne,
que combatia nas fileiras dos mártires, temia pela sua serva, em razão da sua frágil
compleição, supondo que lhe faltasse firmeza para confessar a fé. Mas ela mostrou-se
tão corajosa, a ponto de cansar e desencorajar os carrascos, que em turnos e de todas
as maneiras, a iam torturando desde a manhã até à noite; eles mesmos confessavam que
estavam vencidos, sem poder fazer já nada com ela, e admiravam-se de como podia
manter-se com alento, estando todo o seu corpo despedaçado e trespassado; e afirmavam
que um só destes suplícios seria suficiente para lhe causar a morte.
19 Mas a bem-aventurada mulher, como um valoroso atleta, renovava as forças
ao confessar a fé. Esta servia-lhe de conforto em seus sofrimentos, e para ela era um
alívio o dizer: «Sou cristã e entre nós não há nada de mal».
20 Também Sanctus, superior a tudo, suportou com valor sobre-humano todas 1232
as torturas dos carrascos. Os ímpios esperavam que os tormentos prolongados e cruéis
lhe arrancassem a confissão de algum crime. Ele enfrentou-os com inquebrantável coragem.
Não lhes disse o nome, nem de que país vinha, nem a sua cidade natal, nem se era
escravo ou livre; mas a todas as perguntas respondia em latim: «Sou cristão». Foi a
única resposta que ele repetiu sempre, em vez do nome, da cidade, da raça e do resto.
Os pagãos não conseguiram mais nada.
21 Por esta razão, o governador e os carrascos rivalizavam em crueldade contra
ele. E, quando as torturas habituais foram esgotadas, fizeram aquecer lâminas de bron-
ze e aplicaram-lhas, ardentes, nos pontos mais sensíveis do corpo.
22 Estas, certamente, queimavam-se, mas ele, sem vacilar, permanecia inabalável
e firme na afirmação da sua fé, refrescado pela fonte celeste de água viva que brota do
seio de Cristo.
23 O seu pobre corpo era a prova das torturas sofridas, não sendo mais que
chaga viva e contusão, tão desconjuntado que já não tinha forma humana. Mas Cristo,
que sofria nele, conquistava magníficos títulos de glória, esmagando Satanás, o Adversário,

17
Segundo a mitologia, Tiestes comeu os próprios filhos.
334 SÉCULO IV

e mostrando aos outros, com proveito, que nada há de temível quando reina o amor do
Pai, nada de doloroso quando o sofrimento é transformado na glória de Cristo.
24 Dias depois, os ímpios recomeçaram a torturar o mártir. As suas carnes
estavam inchadas e inflamadas, mas os carrascos esperavam que, recomeçando as
mesmas torturas, triunfariam sobre ele, dado que já nem podia suportar o contacto das
mãos, ou então que expiraria em meio dos tormentos, e isso causaria medo aos outros.
Não somente nada disso aconteceu a Sanctus, mas, contra toda a expectativa, o seu
corpo ferido restabeleceu-se e recobrou forças nestes novos suplícios; retomou o
aspecto de um homem e o uso dos seus membros. Para Sanctus também, esta segunda
tortura não foi tormento, mas cura.
1233 25 Biblida, uma daquelas que haviam renegado a fé, parecia já ser presa do
Diabo. Este, a fim de melhor a possuir para a condenação, fê-la conduzir à tortura, na
esperança de fazê-la repetir as impiedades que nos abatiam. Ela estava, com efeito, tão
débil e tão pouco corajosa!
26 Mas eis que, em meio dos tormentos, recobrou consciência e despertou de um
sono profundo. A pena temporal recordou-lhe o castigo eterno da Geena, e pôs-se a
desmentir tudo diante dos caluniadores: «Como é que essas pessoas comeriam crianças, se
nem sequer lhes é permitido comer sangue de animais irracionais». Desde então não
cessou de se confessar cristã e foi incorporada na fila dos mártires.
27 Estes cruéis tormentos tornavam-se, pois, sem efeito, graças a Cristo que
fortificava os seus amigos. O Diabo imaginou então novos ardis: amontoar os mártires
num calabouço infecto e na escuridão, os pés violentamente separados por uma trave,
até ao quinto buraco; acrescentar a isto as maldades dos carcereiros furiosos. Possuí-
dos pelo Diabo, eles estavam mais ferozes do que nunca. Assim, a maioria pereceu
asfixiada na prisão. O Senhor havia querido que estes desaparecessem assim, para
fazer brilhar melhor o seu poder.
28 Efectivamente, alguns que tinham sido cruelmente torturados até ao ponto de
parecer que não podiam já viver mesmo que se lhes prestasse toda a espécie de cuidados,
levaram a melhor na prisão. Sem nenhum socorro humano, mas reconfortados pelo
Senhor, recuperavam o vigor do corpo e da alma, fortaleciam os outros e encorajavam-nos.
Outros, ao contrário, jovens e recém-detidos, cujos corpos não tinham sido previamente
torturados, não podiam suportar o horror de ser assim amontoados e morriam na prisão.
1234 29 O bem-aventurado Potino, a quem se tinha confiado o ministério do episco-
pado de Lião, tinha mais de noventa anos. De saúde muito fraca, mal podia respirar,
tão gasto estava o seu corpo. Mas o ardor do Espírito deu-lhe forças, pois desejava o
martírio. Arrastaram-no ao tribunal, o corpo alquebrado de velhice e de enfermidade,
mas a alma intacta. Cristo havia de triunfar nela.
30 Foi levado ao tribunal pelos soldados. Os magistrados da cidade e toda a
plebe o acompanhavam, atirando-lhe insultos de todo o género, como se ele fosse
Cristo em pessoa. O seu testemunho de fé foi esplêndido.
31 O governador perguntou-lhe qual era o deus dos cristãos. «Se fores digno,
disse ele, conhecê-l’O-ás». Então arrastaram-no sem consideração e maltrataram-no
ainda mais. Os mais próximos davam-lhe pontapés ou socos, sem respeito, apesar da
sua idade avançada. Os que estavam mais longe lançavam-lhe tudo que lhes vinha às
mãos. Cada qual pensava fazer grave pecado se não o ultrajasse, pois julgavam que
assim vingavam os seus deuses. O mártir já mal respirava, quando o lançaram na
prisão. Aí morreu dois dias depois.
1235 32 Realizaram-se então os desígnios grandiosos de Deus, e os homens conheceram
a misericórdia infinita de Jesus. A nossa comunidade de fiéis raramente viu tal triunfo,
mas era bem segundo o espírito de Cristo.
EUSÉBIO DE CESAREIA 335

33 Efectivamente, aqueles que tinham renegado a fé desde a sua detenção, fica-


ram também presos com os mártires, partilhando os seus sofrimentos, pois nessas
circunstâncias a apostasia de nada lhes servia. Os verdadeiros confessores da fé eram
aprisionados como cristãos sem outro motivo de acusação; aos outros, prendiam-nos
como homicidas e impuros. O seu castigo era duas vezes mais duro que o dos seus
companheiros.
34 Estes, com efeito, encontravam um reconforto na alegria do martírio, na
esperança das promessas, no amor de Cristo e no Espírito do Pai. Os apóstatas, ao
contrário, eram torturados pelo remorso a ponto de serem reconhecíveis ao passarem
entre os outros.
35 De facto, os confessores caminhavam cheios de alegria, o rosto brilhante de
glória e de graça. As suas próprias correntes se tornavam um nobre enfeite, como no
vestido de uma noiva as franjas bordadas de ouro. Difundiam o suave odor de Cristo,
de modo que muitos deles se perguntavam se estavam perfumados. Mas os apóstatas
passavam, de olhos baixos, humilhados, disformes e feios. Assim, os próprios pagãos
os insultavam e os chamavam velhacos e cobardes. Acusavam-nos de homicídio a eles
que tinham perdido o seu nome honrado, glorioso e vivificador. Este espectáculo
revigorou os outros, e os que ainda estavam presos confessavam a fé sem hesitação,
sem mais pensar em cálculos diabólicos.
36 Após tantos sofrimentos, o seu martírio afinal apresentou uma variedade de
grande beleza. Com flores de toda espécie e de todas as cores, teceram uma coroa e
ofereceram-na ao Pai. Em troca, os valentes atletas, vencedores de incontáveis comba-
tes, bem mereciam a coroa magnífica da imortalidade.
37 Assim, pois, Maturus, Sanctus, Blandina e Átalo foram conduzidos às feras, 1236
no anfiteatro, para alegrar os olhos dos pagãos sem coração. Era um dia de combates
contra as feras, feito expressamente por causa dos nossos.
38 Maturus e Sanctus sofreram novamente no anfiteatro toda a espécie de tormentos
como se antes não tivessem sido torturados. Mas eles portavam-se como atletas já
vencedores do adversário noutros combates, e travavam então a batalha decisiva para
a coroa. Vieram ainda as chicotadas, segundo os usos do país, os ferimentos das feras
e tudo o que o povo delirante reclamava aos gritos vindos de todos os lados; enfim, a
cadeira de ferro onde os corpos, tostando, exalavam um odor de gordura.
39 Mas os pagãos não estavam saciados. A sua raiva redobrava contra os mártires,
querendo vencer a sua resistência. Apesar de tudo, nada puderam arrancar de Sanctus,
a não ser a confissão de fé que ele repetia desde o princípio.
40 Para terminar, pois a vida dos mártires resistia ainda após toda essa luta,
degolaram-nos. Nesse dia, os mártires oferecidos em espectáculo bastaram para subs-
tituir os duelos de gladiadores e suas peripécias.
41 Blandina, suspensa a um poste, devia servir de presa às feras, que se lançavam
contra ela. Vendo-a assim, suspensa em forma de cruz, e orando em voz alta, os
combatentes sentiam-se mais valentes. Em plena luta, eles olhavam a sua irmã e acre-
ditavam que viam nela, com os olhos do corpo, Cristo crucificado por eles, a fim de
assegurar aos crentes que aqueles que sofrem por sua glória viverão para sempre com
o Deus vivo.
42 Entretanto, nenhuma das feras tocou em Blandina naquele dia. Tiraram-na
então do poste e tornaram a levá-la para a prisão. Guardavam-na para outro combate.
As suas vitórias repetidas no decorrer de tantas provações constituíam, para a pérfida
Serpente, um revés sem remédio, e para os nossos irmãos um convite à bravura. Ela, a
pequena, a frágil, a desprezada, mas revestida de Cristo, o grande e invencível Atleta,
havia vencido várias vezes o Adversário. Ela devia merecer no último combate, cingir
a coroa da imortalidade.
336 SÉCULO IV

43 Átalo também foi imperiosamente reclamado pela plebe, pois era muito conhecido.
Entrou na arena, pronto para a luta, seguro da beleza da sua causa. Havia-se exercitado
sinceramente no exército cristão e tinha sido sempre para nós uma testemunha da
verdade.
44 Fizeram-no dar a volta ao anfiteatro. Levavam à sua frente um cartaz onde se
lia em latim: «Átalo, o cristão». O povo estava enraivecido contra ele. Mas o governador,
sabendo que era cidadão romano, fê-lo reconduzir à prisão onde se encontravam os
outros cristãos. Mandou notificar a César e esperou a resposta.
1237 45 Esta delonga não foi tempo perdido para os mártires. A sua paciência mani-
festava bem a misericórdia infinita de Cristo. Nos sobreviventes vivia a recordação dos
mortos, e os mártires perdoavam os que não haviam ousado ser mártires. Tudo isso
constituiu uma grande alegria para a Igreja, nossa mãe virginal: os filhos que ela havia
suposto mortos, recebia-os vivos.
46 Efectivamente, por meio dos mártires, a maioria dos apóstatas experimentou
novamente as suas forças. Eram concebidos pela segunda vez na vida da graça, a vida
reacendia-se neles. Aprendiam a confessar a sua fé. E foi vivos e fortalecidos que se
apresentaram ao tribunal. Deus, que em sua bondade não quer a morte do pecador mas
o seu arrependimento, sustentava-os com a sua graça, quando o governador os interro-
gou de novo.
47 César havia, entretanto, respondido que fossem degolados os obstinados e
libertos os apóstatas. A festa solene do país acabava de começar, e havia uma grande
afluência de estrangeiros. O governador fez trazer os bem-aventurados ao seu tribunal;
e o cortejo desfilou, com aparato teatral, para o prazer da multidão. Após novo inter-
rogatório, mandou decapitar os que eram conhecidos como cidadãos romanos e enviou
os demais às feras.
48 Mas Cristo foi grandemente glorificado naqueles que primeiramente tinham
renegado e que agora, contra o que os pagãos podiam supor, confessavam a sua fé. A
estes, com efeito, tinham-nos interrogado em privado, como pessoas a serem postas
em liberdade, mas, ao confessarem a sua fé, iam-nos acrescentando à fila dos mártires.
Ficaram de fora, no entanto, os que não tinham tido jamais qualquer traço de fé, que
não haviam compreendido o símbolo do traje nupcial, que não tinham o temor de Deus.
Eram os filhos da perdição que, por sua apostasia, blasfemaram contra os caminhos de Deus.
1238 49 Todos os outros permaneceram no Corpo da Igreja. Perto do tribunal, estava
de pé certo Alexandre. Vindo da Frígia, estabelecera-se como médico nas Gálias havia
longos anos. Era conhecido de toda a gente pelo seu amor a Deus e pela franqueza do
seu falar e tinha recebido do Céu o dom do apostolado. Ora, durante os interrogatórios,
ele fazia sinais com a cabeça aos acusados, encorajando-os a proclamar a sua fé. As
pessoas que rodeavam o tribunal perceberam que se entregava a este trabalho de gerar
para a Igreja novos filhos.
50 A plebe, furiosa por ver os antigos apóstatas confessarem de novo a Cristo,
pôs-se a gritar contra Alexandre, acusando-o de responsável por tudo isso. O governador
fê-lo comparecer e perguntou-lhe quem era. «Um cristão», respondeu Alexandre. Furioso,
o governador condenou-o às feras. No dia seguinte, Alexandre entrou na arena junta-
mente com Átalo, já que o governador, para agradar ao povo, entregou de novo Átalo
às feras.
51 Eles passaram então por todos os instrumentos de torturas imaginadas para
o anfiteatro e sustentaram um combate duríssimo. Enfim foram degolados. Alexandre,
sem um gemido, sem um murmúrio, entreteve-se todo o tempo com Deus no fundo do
coração.
52 Átalo, sentado sobre a cadeira de ferro e com o corpo queimado, havia dito em
latim à multidão, ao sentir o cheiro de gordura queimada que subia da sua carne tostada:
EUSÉBIO DE CESAREIA 337

«Vede: o que vós fazeis é comer homens. Nós não comemos homens e não fazemos
nenhum mal». Perguntaram-lhe que nome dava a Deus, e ele respondeu: «Deus não tem
nome como um homem».
53 Após todos estes martírios, no último dia dos combates dos gladiadores,
Blandina foi levada de novo com Ponticus, um jovem de uns quinze anos. Cada dia os
faziam vir ao anfiteatro para lhes mostrar os suplícios dos outros. Queriam forçá-los
a jurar pelos ídolos. A sua resistência calma e o desprezo que testemunhavam aos
deuses pagãos levantaram contra eles o furor do povo, a ponto de não terem pena da
juventude do rapaz, nem respeito pelo sexo de Blandina.
54 Sujeitaram-nos a horrores e fizeram-nos passar por todo o ciclo dos suplíci-
os. Entre golpes, esforçavam-se por fazê-los jurar contra Deus, mas não o consegui-
ram. Ponticus era encorajado por sua irmã, e os pagãos percebiam que era ela que o
exortava e estimulava. Ele suportou generosamente todas as torturas e entregou a alma.
55 A bem aventurada Blandina foi a última de todos. Qual nobre mãe que deu 1239
entusiasmo a seus filhos e os enviou vencedores perante o rei, ela sustentou por sua
vez os mesmos combates que seus filhos no martírio e apressou-se a reunir-se a eles.
Toda contente e na alegria da partida, parecia convidada para um festim de núpcias, e
não atirada às feras.
56 Depois das chicotadas, das feras, e da grelha, puseram-na numa rede, para ser
atirada a um touro. Lançada ao ar por várias vezes pelo animal, não sentia mais nada,
toda na esperança das recompensas prometidas, entregue à sua conversação com Cris-
to. Finalmente degolaram-na, e os próprios pagãos confessaram que jamais, entre eles,
mulher alguma padecera tantos e tão cruéis sofrimentos.
57 Entretanto, isto não foi suficiente para lhes saciar o furor e a crueldade contra
os santos. Excitados pelo Diabo, que é uma fera, essas tribos selvagens e bárbaras
dificilmente se apaziguavam. Em seu furor, voltaram-se contra os cadáveres.
58 O facto de terem sido vencidos não lhes causava a menor vergonha, pois eram
incapazes de raciocinar como homens. Ao contrário, o revés enraivecia-os como a
feras. E o governador também demonstrava contra nós o mesmo ódio injusto. Cum-
pria-se assim a palavra da Escritura: O ímpio mergulhará em sua impiedade, e o justo
será mais justo ainda.
59 Efectivamente, aos que tinham perecido asfixiados no cárcere lançavam-nos
aos cães, vigiando cuidadosamente noite e dia para evitar que algum de nós os sepul-
tasse. Também expuseram o que as feras e os carrascos haviam deixado dos corpos:
aqui carnes em farrapos, além despojos carbonizados, e ainda cabeças cortadas com
corpos mutilados. Tudo isso ficou por ali, muitos dias, sem sepultura, guardado por
soldados.
60 Entre os pagãos, uns ralhavam e rangiam os dentes contra os mártires: gosta- 1240
riam de poder fazê-los sofrer ainda. Outros escarneciam, caçoando dos mortos e glori-
ficando os seus ídolos por terem assim castigado os cristãos. Alguns, mais moderados
e aparentemente tocados por um pouco de compaixão, murmuravam: «Onde está o seu
Deus? De que lhes serviu a religião que eles amaram mais que a própria vida»?
61 Eram assim diversas as reacções. Entre nós reinava grande luto: não podíamos
sepultar os corpos. Impossível contar com a noite. O dinheiro não seduzia os guardas
e as nossas orações não os comoviam. A vigilância não abrandava, como se houvesse
grande proveito em privar os nossos mortos de sepultura.
62 Assim, pois, os corpos dos mártires, depois de serem expostos ao escárnio de
todos os modos possíveis e de estarem à intempérie durante seis dias, foram queima-
dos e reduzidos a cinzas, que os ímpios lançaram ao Ródano, que corre ali perto, para
que nem sequer as suas relíquias fossem já visíveis sobre a terra.
338 SÉCULO IV

63 Faziam isto pensando que podiam vencer a Deus e roubar-lhes o seu novo
nascimento, com o fim de que, segundo eles diziam, «nem sequer tenham esperança da
ressurreição. Foi graças a esta crença que eles introduziram entre nós uma religião
estranha e nova e que, desprezando as torturas, se prontificaram em caminhar para a
morte com alegria. Vejamos agora se vão ressuscitar e se Deus pode socorrê-los e
arrancá-los das nossas mãos».
1241 7. Testemunho de Ireneu sobre a vida dos cristãos. 6 Ouvimos na igreja muitos
irmãos que têm os carismas proféticos e falam muitas espécies de línguas mediante o
Espírito, e que revelam as consciências e expõem os mais altos mistérios de Deus.
1242 8. As Escrituras canónicas mencionadas por Ireneu e a chamada tradução dos
Setenta. 1 Ao começarmos esta obra fizemos a promessa de citar oportunamente as
palavras de alguns antigos presbíteros e escritores eclesiásticos, nas quais nos trans-
mitiram, por escrito, as tradições chegadas até eles acerca das Escrituras canónicas.
Como Ireneu é um deles, citemos também as suas palavras.
2 E, em primeiro lugar, as que se referem aos santos Evangelhos, que são as
seguintes: «Mateus publicou entre os Hebreus, na sua própria língua, um Evangelho
escrito, enquanto Pedro e Paulo anunciavam a Boa Nova em Roma e colocavam os
alicerces da Igreja.
3 Em seguida, depois da morte destes, Marcos, discípulo e intérprete de Pedro,
transmitiu-nos por escrito, também ele, o que tinha sido pregado por Pedro. Quanto a
Lucas, o companheiro de Paulo, pôs num livro o Evangelho pregado por este.
4 Finalmente, João, o discípulo do Senhor, aquele que se tinha reclinado sobre o
seu peito, também ele publicou o Evangelho, enquanto vivia em Éfeso, na Ásia»...
11 Pouco depois acrescenta isto: «Antes de os Romanos terem estabelecido o
seu Império, quando ainda os Macedónios mantinham a Ásia, Ptolomeu, filho de Lagos,
desejando muito adornar com as melhores obras de todos os homens a biblioteca que
ele organizara em Alexandria, pediu aos habitantes de Jerusalém as suas Escrituras
traduzidas em língua grega.
12 Estes, que nesses tempos obedeciam ainda aos Macedónios, enviaram a Ptolomeu
setenta homens da sua pátria dos mais hábeis nas Escrituras e na ciência das duas
línguas. Deus fazia o que queria.
13 Ptolomeu, querendo pôr à prova especialmente a habilidade deles, tomou as
suas precauções para que, estando reunidos, não dissimulassem nada, na sua tradução,
da verdade contida nas Escrituras; separou-os, por isso, uns dos outros, e ordenou-lhes
que escrevessem a mesma tradução; e fez assim para todos os Livros.
14 Mas, quando eles se reuniram junto de Ptolomeu e compararam as traduções
feitas por uns e por outros, Deus foi glorificado e as Escrituras foram reconhecidas
como sendo realmente divinas, porque todos tinham expresso as mesmas ideias, nas
mesmas palavras, com os mesmos nomes, desde o princípio até ao fim. Deste modo,
até os pagãos que lá estavam conheceram que as Escrituras tinham sido traduzidas sob
inspiração de Deus»...
1243 23. O papa Vítor e a data da Páscoa18. 1 Por aquele tempo surgiu uma controvérsia
bastante grave. As Igrejas de toda a Ásia, apoiando-se numa tradição muito antiga,
pensavam que era preciso guardar o décimo quarto dia da Lua para a festa da Páscoa do
Salvador, dia em que estava prescrito aos Judeus que imolassem o cordeiro, e em que,
segundo eles, era preciso a todo o custo, qualquer que fosse o dia da semana em que
caísse, pôr fim aos jejuns. Mas as Igrejas de todo o resto do mundo não tinham por
costume proceder deste modo e, apoiando-se numa tradição apostólica, mantinham a

18
Este problema agitou a Igreja entre 189-198.
EUSÉBIO DE CESAREIA 339

norma ainda agora vigente, que impõe a obrigação de não terminar os jejuns noutro dia
que não seja o da Ressurreição do nosso Salvador.
2 Para tratar deste ponto realizaram-se sínodos e reuniões de bispos, e todos,
unanimemente, por meio de cartas, indicaram aos fiéis de cada parte do mundo a regra
eclesiástica, segundo a qual o mistério da ressurreição do Senhor de entre os mortos
não se devia celebrar num dia diferente do domingo, e que só nesse dia se devia pôr fim
ao jejum pascal.
3 Conserva-se ainda hoje a carta de um sínodo reunido naquele tempo na Palestina e
presidido por Teófilo, bispo de Cesareia, e por Narciso de Jerusalém. Também, sobre
o mesmo assunto, se conserva outra carta dos que se reuniram em Roma, que traz o
nome de Vítor como bispo, e ainda outra dos bispos do Ponto, aos quais presidia Palmas,
que era o mais antigo, e outra das Igrejas da Gália, das quais era bispo Ireneu.
4 Há também a dos bispos de Osrõe e das cidades limítrofes, e em particular a de
Baquilo, bispo da Igreja de Corinto, e de muitíssimos outros. Todos eles exprimem a
mesma opinião e um parecer e juízo idêntico e estabelecem o mesmo decreto. A sua
única regra de conduta era aquela que foi indicada.
24. 1 Mas os bispos da Ásia, ao contrário, com Polícrates à cabeça, afirmavam com 1244
força que era necessário guardar o costume primitivo que lhes tinha sido transmitido
desde a antiguidade. O próprio Polícrates, numa carta que dirige a Vítor e à Igreja de
Roma, expõe a tradição chegada até ele, com estas palavras:
2 «Nós celebramos de modo irrepreensível esse dia, sem acrescentar nem tirar
nada. De resto, também na Ásia há grandes luminares, que ressuscitarão no dia da
vinda do Senhor, quando vier com glória dos Céus buscar todos os seus santos: Filipe,
um dos doze Apóstolos, que repousa em Hierápolis com duas filhas suas, que chegaram
virgens à velhice, e uma terceira filha que, depois de viver no Espírito Santo, repousa
em Éfeso.
3 Além disso, está João, aquele que se reclinou sobre o peito do Senhor e que foi
sacerdote portador da lâmina de ouro, mártir e mestre, e que repousa em Éfeso.
4 E em Esmirna, Policarpo, bispo e mártir. E Traseas de Eumenia, também bispo
e mártir, que repousa em Esmirna.
5 E não vale a pena falar de Sagáris, bispo e mártir, que descansa em Laodiceia,
bem como do bem-aventurado Papiro e Melitão, o eunuco, que em tudo viveu no
Espírito Santo e repousa em Sardes, esperando a visita que virá dos Céus, e na qual ele
ressuscitará dos mortos.
6 Todos celebraram como dia de Páscoa o da Lua décima quarta, de acordo com
o Evangelho, sem se desviarem em nada, mas seguindo a regra da fé. E eu mesmo,
Polícrates, o menor de todos vós, vivo segundo a tradição dos meus parentes, a alguns
dos quais segui de perto. Sete dos meus parentes foram bispos e eu sou o oitavo, e
sempre os meus parentes celebraram o dia quando o povo se abstinha do pão fermentado.
7 Portanto, irmãos, tenho sessenta e cinco anos no Senhor. Mantive relações
com os irmãos do mundo inteiro e percorri toda a Sagrada Escritura. Não me assusto
com os que procuram impressionar-me, pois os que foram maiores do que eu disseram:
Deve obedecer-se antes a Deus do que aos homens19...».
9 Perante isto, Vítor, que presidia à Igreja de Roma, ameaçou afastar em bloco da 1245
comunhão todas as comunidades da Ásia e as Igrejas limítrofes, alegando que eram
heterodoxas e escreveu cartas para notificar e anunciar que os irmãos daquela região,
sem excepção, ficavam excomungados.

19
Act 5, 29.
340 SÉCULO IV

10 Mas esta medida não agradou a todos os bispos. Houve alguns que o exortaram
a pensar no bem da paz, da comunhão com o próximo e da caridade. Conservam-se
inclusivamente as palavras destes, que responderam a Vítor com grande energia.
11 Entre eles está Ireneu, na carta escrita em nome dos irmãos da Gália, aos quais
presidia. Ireneu está de acordo que é preciso celebrar unicamente no domingo o mistério
da ressurreição do Senhor; mas a seguir exorta Vítor, com palavras convenientes, a não
excomungar em bloco Igrejas de Deus, que observam a tradição de um antigo costume.
E a estas palavras acrescentava textualmente o que segue:
12 «A controvérsia não diz respeito apenas ao dia, mas também à forma de
jejuar, porque uns pensam que devem jejuar durante um dia, outros dois dias e outros
mais; e outros ainda dão ao seu dia uma medida de quarenta e oito horas do dia e da noite.
13 Esta variedade de observâncias não se produziu agora, nos nossos tempos,
mas muito antes, nos tempos dos nossos predecessores, cujo forte, segundo parece,
não era a exactidão, e que forjaram para a posteridade este costume, na sua simplicidade
e particularismo. E nem por isso todos eles deixaram de viver em paz uns com os
outros, tal como nós; o desacordo no jejum confirma o acordo na fé».
14 A todos estes motivos, Ireneu acrescenta um relato que considero oportuno
referir e que diz assim: «Entre eles, os presbíteros antecessores de Sotero, que presi-
diram à Igreja que tu agora governas, quer dizer Aniceto, Pio e Higino, assim como
Telésforo e Sisto, também não observaram o dia (décimo quarto) nem impuseram (a
sua observância) aos que estavam com eles, e nem por isso eles próprios, que não
observavam o dia (décimo quarto), viviam menos em paz com os que procediam das
Igrejas nas quais se observava esse dia, apesar da observância criar um contraste ainda
maior no confronto com aqueles que não o observavam.
15 Nunca se rejeitou a ninguém por este motivo, mas antes, os mesmos presbíteros,
teus antecessores, que não observavam o dia (décimo quarto), enviavam a Eucaristia
aos das outras Igrejas que o observavam.
16 Quando o bem-aventurado Policarpo veio a Roma no tempo de Aniceto,
havendo sobre outras coisas pequenas divergências entre eles, rapidamente se puse-
ram em paz, sem discutirem mutuamente sobre este assunto, porque nem Aniceto
podia convencer Policarpo a não observar o dia, tendo-o ele sempre observado com
João, o discípulo de nosso Senhor, e com os demais Apóstolos com os quais conviveu,
nem tão pouco Policarpo convenceu Aniceto a observá-lo, pois este dizia que devia
manter o costume dos presbíteros seus antecessores.
17 Apesar das coisas estarem assim, permaneceram em comunhão um com o
outro, e na igreja Aniceto cedeu a Policarpo a celebração da Eucaristia, evidentemente
por deferência, e separaram-se um do outro em paz; e paz tinha a Igreja toda, tanto os
que observavam o dia como os que o não observavam».
18 E Ireneu honrava o seu nome, porque era pacificador pelo nome que usava e
pelo seu modo de proceder. Era assim que exortava e trabalhava pela paz das Igrejas.
Estava em contacto, através de cartas, não apenas com Vítor, mas também com muitos
outros chefes de diferentes Igrejas, acerca do problema em questão.
1246 25. Unanimidade acerca da Páscoa. Contudo, os bispos da Palestina que mencionámos
há pouco, Narciso e Teófilo, e com eles Cássio, bispo da Igreja de Tiro, e Claro, bispo
da de Ptolomaida, assim como os que se tinham reunido com estes, deram explicações
muito pormenorizadas sobre a tradição que chegara até eles, por sucessão dos Apóstolos,
a respeito da festa da Páscoa, e no fim da carta acrescentam textualmente:
«Procurai que seja enviada cópia da nossa carta a cada Igreja, para que não
sejamos responsáveis dos que, com grande facilidade, desencaminham as suas próprias
almas. Fazemo-vos saber que os de Alexandria celebram (a Páscoa) no mesmo dia que
EUSÉBIO DE CESAREIA 341

nós, pois entre eles e nós vem-se trocando correspondência epistolar, de modo que nos
é possível celebrar o dia santo em pleno acordo e todos juntos».
28. Como alguns ousaram corromper as Escrituras. 5 Quem desconhece os livros 1247
de Ireneu, de Melitão e de tantos outros, livros que proclamam a Cristo Deus e
homem? Tantos salmos e cânticos, escritos por irmãos na fé desde os primeiros tem-
pos, cantam o Verbo de Deus, o Cristo, tratando-O como Deus...
8 Natalio era um confessor, não de tempos antigos, mas do nosso tempo... 10
Dois hereges persuadiram-no, mediante um salário, a tomar o título de bispo desta
heresia, passando a receber deles cento e cinquenta denários por mês.
11 Apesar de já ter passado para eles, o Senhor ia-o avisando muitas vezes, em
sonhos, porque o nosso Deus misericordioso e Senhor, Jesus Cristo, não queria que
uma testemunha dos seus próprios sofrimentos perecesse depois de ter deixado a
Igreja. Mas ele mostrava-se pouco atento a essas visões, e deixava-se seduzir pelo
primeiro lugar que entre eles ocupava e pelo amor do lucro vergonhoso, que já fez
perecer um tão grande número de homens, acabando por ser açoitado e maltratado
pelos santos Anjos durante toda a noite. De manhã, ao levantar-se, vestiu-se de saco,
cobriu-se de cinzas e foi, com grande pressa, lavado em lágrimas, lançar-se aos pés do
bispo Zeferino; prostrava-se aos pés não só dos membros do clero, mas também dos
leigos; perturbava com as suas lágrimas a Igreja misericordiosa de Cristo piedoso; mas,
apesar de fazer muitas súplicas e mostrar os sinais dos golpes que recebera, foi com
dificuldade que o admitiram à comunhão.

LIVRO VI

3. Orígenes, catequista de Alexandria. 1 Não havia mais ninguém em Alexandria 1248


para catequizar... 3 Aos dezoito anos, Orígenes foi posto à frente da escola de catequese...
8 Quando viu que os discípulos vinham até ele em grande número, e que ele era o único
encarregado da escola catequética por Demétrio, chefe da Igreja..., julgou o ensino das
ciências gramaticais incompatível com o trabalho que tem por fim transmitir os conhe-
cimentos divinos e, sem demora, cortou com o primeiro...
4. O baptismo de fogo duma catecúmena. 3 O terceiro mártir da escola (de Orígenes) 1249
é Heraclides, e depois dele, o quarto é Héron: o primeiro era ainda catecúmeno e o
segundo neófito; cortaram-lhes a cabeça... Entre as mulheres, Herais, que, sendo ainda
catecúmena, consumou a sua vida, como o próprio (Orígenes) o diz algures, depois de
receber o baptismo de fogo.
5. O baptismo é chamado «selo do Senhor». 5 Ainda não passara muito tempo 1250
quando Basilides foi levado, por um motivo qualquer, a um juramento, pelos seus
companheiros de armas. Com toda a energia declarou que não lhe era permitido, de
modo algum, jurar, pois era cristão e que o confessava abertamente...
6 Tendo vindo os seus irmãos na fé até junto dele e perguntando-lhe o motivo
deste ardor súbito e extraordinário, respondeu, segundo se diz, que três dias depois do
seu martírio se lhe tinha apresentado Potâmia, durante a noite, lhe colocara uma coroa
na cabeça e lhe dissera... que o Senhor o receberia dentro de pouco tempo. Perante isto,
os irmãos deram-lhe o selo do Senhor 20 e, no dia seguinte, depois de ter brilhado no
martírio pelo Senhor, cortaram-lhe a cabeça.
8. A imposição das mãos na ordenação de um presbítero. 4 Algum tempo depois, 1251
Demétrio, vendo Orígenes vencer e tornar-se um homem conhecido, ilustre, celebrado
por toda a gente, sentiu inveja dele e tentou acusá-lo, junto de todos os bispos, duma

20
Isto é, o baptismo; cf. acima III 23, 8.
342 SÉCULO IV

acção que ele julgava totalmente insensata, enquanto os bispos mais estimados e mais
reputados da Palestina..., por considerarem Orígenes digno de recompensa e da mais
elevada honra, lhe tinham imposto as mãos para o presbiterado21. Ele chegara assim a
um alto grau de glória; o seu nome era conhecido por toda a parte e por todos os homens...
1252 11. Transferência de um bispo de uma Igreja para outra. 1 Como Narciso já não era
capaz de exercer o ministério por causa da sua muita idade, a providência de Deus
chamou Alexandre, que era bispo de outra Igreja, para exercer as funções episcopais ao
mesmo tempo que Narciso22...
2 Aconteceu que Alexandre... fez uma viagem desde a Capadócia, onde fora feito
bispo, até Jerusalém, para orar e para ver os lugares (santos)23. As pessoas dali recebe-
ram-no com os melhores sentimentos e já não o deixaram regressar ao seu país...
Receberam-no como o bispo que Deus lhes tinha predestinado. Depois de agirem deste
modo, com o parecer comum dos bispos que governavam as Igrejas vizinhas, obrigaram
à força Alexandre a permanecer entre eles.
3 O próprio Alexandre lembra aliás, numa carta particular aos Antinoítas, que se
conserva ainda entre nós, que Narciso ocupou com ele a sede episcopal, dizendo no
final da sua carta: «Saúda-vos Narciso, que antes de mim ocupou o lugar do episcopado
neste país e que agora foi colocado no mesmo nível que eu nas orações. Tem cento e
dezasseis anos e exorta-vos, do mesmo modo que eu, a terdes sentimentos de concórdia».
1253 19. Orígenes, intérprete da Sagrada Escritura. 16 Em Cesareia, os bispos do país
pediram a (Orígenes) que fizesse conferências e interpretasse publicamente as divinas
Escrituras na assembleia da igreja, apesar de ainda não ter recebido a ordenação de presbítero.
17 Que assim aconteceu mostram-no as palavras de Alexandre, bispo de Jerusalém,
e de Teoctisto de Cesareia, que, ao escreverem sobre Demétrio, se defendem assim:
«(Demétrio) acrescenta na sua carta que nunca se ouviu dizer, nem agora acontece, que
os leigos preguem quando os bispos estão presentes. Não sei como é capaz de dizer o
que evidentemente não é verdade.
18 Com efeito, por toda a parte, quando se encontram homens com capacidade
para ser úteis aos irmãos, os santos bispos os convidam a pregar ao povo. Assim o
fizeram os nossos bem-aventurados irmãos: Evelpisto a Néon, em Laranda; Paulino a
Celso, em Icónio; e Teodoro a Ático, em Sínade. É provável que também noutros
lugares se faça o mesmo, sem que nós o saibamos». Daqui se conclui que aquele varão,
apesar de ser ainda jovem, era honrado não só pelos compatriotas, mas também pelos
bispos de outras terras.
19 Quando Demétrio o chamou de novo por carta e lhe ordenou, por intermédio
de diáconos da sua Igreja, que regressasse a Alexandria, depois de chegar, continuou a
fazer o que sempre fizera.
1254 23. Orígenes é ordenado presbítero por vários bispos. 4 Nesses tempos24, Orígenes,
para satisfazer as exigências urgentes dos assuntos eclesiásticos, foi à Grécia pela
Palestina, e em Cesareia recebeu, dos bispos deste país, a ordenação de presbítero25...

21
Cf. VI 23, 4.
22
É o primeiro caso conhecido de transferência dum bispo de uma Igreja para outra e do exercício do episco-
pado como coadjutor de outro bispo. Trata-se de duas excepções. O concílio de Niceia, no cânone 15,
proibirá as trasladações, e a regra comum era que cada Igreja tivesse um só bispo.
23
Trata-se do primeiro caso conhecido de peregrinação a Jerusalém.
24
Por volta de 230.
25
A ordenação de Orígenes pode ter sido em 231.
EUSÉBIO DE CESAREIA 343

34. Penitência pública do imperador Filipe. Conta-se que (Filipe)26 era cristão e quis 1255
tomar parte com a multidão nas orações que se faziam na igreja, no dia da última vigília
da Páscoa. Mas aquele que presidia naquela ocasião27 não lhe permitiu que entrasse
sem antes ter feito a exomologese e sem se ter inscrito entre os que eram chamados
pecadores e ocupavam o lugar dos penitentes. Se não fizesse isso, nunca o presidente
receberia o imperador, por causa das muitas acusações que contra ele se faziam. E diz-se
que ele se submeteu de boa vontade e mostrou com obras a sinceridade e piedade das
suas disposições relativamente ao temor de Deus28.
43. Carta de Cornélio de Roma a Fábio de Antioquia 29. 1 Novaciano30, presbítero da 1256
Igreja de Roma, cheio de orgulho..., ensinava que não havia (para os lapsi) esperança de
salvação, ainda mesmo que fizessem uma conversão sincera e uma exomologese pura.
Estabeleceu-se assim chefe duma heresia particular, cujos partidários se chamam a si
mesmos os puros, segundo o orgulho da sua razão.
2 A seu respeito reuniu-se em Roma um grande concílio, onde estiveram presentes
sessenta bispos 31 e um número anda maior de presbíteros e diáconos... e foi tomada
por todos uma decisão: Novaciano, e ao mesmo tempo os que se tinham sublevado
com ele e decidido associar-se à opinião anti-fraterna e absolutamente desumana deste
homem, eram considerados como estranhos à Igreja; quanto aos irmãos que tinham
caído na infelicidade, era preciso tratá-los e curá-los pelos remédios da penitência.
3 Chegou, pois, até nós uma carta de Cornélio, bispo dos Romanos, a Fábio,
bispo da Igreja de Antioquia; ela conta o que diz respeito ao concílio dos Romanos e o
que foi decidido pelos da Itália, da África e dos países daquelas regiões...
5 Cornélio informa Fábio sobre quem era Novaciano na sua conduta e escreve
isto mesmo: «Para que saibas que este personagem estranho desde há muito tempo
desejava o episcopado e escondia em si este ardente desejo, sem que o soubéssemos,
porque tinha com ele, desde o início, para encobrir a sua loucura, alguns confessores
(da fé), vou explicar-te.
6 Máximo, um dos nossos presbíteros, e Urbano... conheceram (Novaciano) e,
depois de descobrirem a malícia que nele havia e a sua duplicidade, os seus preconcei-
tos e enganos... voltaram à santa Igreja e revelaram todas as suas maquinações e más
obras, que já realizava há muito tempo, mas que ia ocultando... Diante de bastantes
bispos e de grande número de presbíteros e leigos, arrependeram-se de ter abandonado
a Igreja por breve tempo, persuadidos por aquela besta pérfida e malvada.
7 É inconcebível, caríssimo irmão, a mudança e transformação que em pouco
tempo notámos nele. Porque, sendo um homem brilhantíssimo e que fazia crer... que de
modo nenhum desejava o episcopado, de repente aparece já bispo...
8 Escolheu dois partidários seus, desesperados da sua própria salvação, e en-
viou-os para certo lugar da Itália... onde enganou três bispos, homens rústicos e muito
simples, afirmando energicamente e garantindo com força que era preciso apresenta-
rem-se rapidamente em Roma para que, por sua mediação e com a ajuda de outros
bispos, se pusesse fim à dissenção que tinha surgido.

26
Trata-se de Marco Júlio Filipe, de origem árabe e prefeito dos pretorianos. Assassinou Gordiano em 244 e
sucedeu-lhe no Império.
27
O bispo de Antioquia.
28
Esta afirmação, como aliás as outras deste caso de Filipe, não são seguras para Eusébio, que não indica o
nome do bispo. Filipe estaria, quando muito, como aliás Alexandre Severo, interessado pelo cristianismo.
Contudo S. João Crisóstomo afirma que o caso se teria passado em Antioquia. Idêntico ao relato de Eusébio
é o de Teodoreto, sobre a penitência de Teodósia.
29
Esta carta foi escrita em 251.
30
Eusébio chama-lhe Novato, que foi um presbítero de África que se opôs a Cipriano.
31
Este número indica a difusão do cristianismo na Itália, em meados do século III.
344 SÉCULO IV

9 Assim que chegaram... foram encerrados por uns quantos homens semelhantes
a ele e por ele transtornados. À décima hora, quando já estavam embriagados,
(Novaciano) obrigou-os à força a darem-lhe o episcopado, mediante uma imposição
das mãos simulada e vã: este episcopado, que ele reivindicou por astúcia e engano, não
lhe pertence.
1257 10 Pouco tempo depois, um destes bispos voltou à Igreja, lamentando-se e
confessando o seu pecado; e nós admitimo-lo à comunhão laical; todo o povo presente
intercedia por ele; quanto aos outros bispos, ordenámos-lhes sucessores, que enviá-
mos para os lugares onde eles estavam.
11 Este vingador do Evangelho não sabia que deve haver um só bispo em cada
Igreja católica? Nesta, ele não o ignorava, há quarenta e seis presbíteros, sete diáconos,
sete subdiáconos, quarenta e dois acólitos, e cinquenta e dois exorcistas, leitores e
ostiários, todos alimentados por graça e bondade do Senhor.
14 O ponto de partida da crença (de Novaciano) é Satanás, que veio até ele e nele
habitou por bastante tempo. Quando caiu numa grave enfermidade foi socorrido pelos
exorcistas; pensando-se que ele ia morrer depressa, recebeu o baptismo por infusão no
próprio leito em que jazia, se é que se pode dizer que o recebeu.
15 Entretanto, depois de ter escapado com vida, não recebeu nenhuma das outras
coisas que se devem receber depois32, segundo a regra da Igreja, e também não recebeu
o selo do bispo33; não tendo recebido tudo isso, como poderá ter recebido o Espírito
Santo?...
16 Por cobardia e apego à vida, em tempo de perseguição negou que fosse
presbítero. Efectivamente, convidado e exortado pelos diáconos a sair do casulo em
que se tinha feito prisioneiro a si mesmo, para socorrer os irmãos segundo a possibi-
lidade de um presbítero..., esteve muito longe de ceder às exortações dos diáconos, e
partiu enfurecido, dizendo que não queria já ser presbítero por estar enamorado de
outra filosofia...
17 Este homem ilustre abandonou, portanto, a Igreja de Deus, na qual, depois de
ter acreditado, tinha sido honrado com o presbiterado, segundo a graça do bispo que
lhe tinha imposto as mãos, para lhe dar lugar entre os presbíteros, apesar de todo o
clero e até numerosos leigos tentarem impedi-lo de o fazer, por não ser permitido, a
quem como ele recebera o baptismo por infusão no leito, por causa de uma enfermidade,
ser promovido a qualquer ordem do clero, mas o bispo tinha pedido que lhe fosse
permitido ordenar somente este homem34...
18 Quando ele faz a oferenda (eucarística)35, ao distribuir a cada um a sua parte
e ao entregar-lha, obriga as pobres pessoas a jurar, em vez de darem graças. Com ambas
as mãos agarra as mãos daquele que recebe a Eucaristia, e não lhas solta até que tenha
jurado, proferindo estas palavras: «Jura-me pelo Sangue e pelo Corpo de nosso Senhor
Jesus Cristo que jamais me abandonarás para voltares para Cornélio».
19 E o pobre homem não comunga se antes não se amaldiçoa a si mesmo; em vez
de dizer Amen, ao receber o pão, diz: «Não voltarei para Cornélio».

32
Para completar os ritos baptismais.
33
Não recebeu a confirmação.
34
O bispo foi São Fabião.
35
Quando é celebrada a Eucaristia.
EUSÉBIO DE CESAREIA 345

LIVRO VII

2. Não devem rebaptizar-se os lapsi. Na cidade dos Romanos, após Cornélio 36 ter 1258
exercido o episcopado cerca de três anos, foi estabelecido Lúcio37 como seu sucessor;
depois de ter cumprido o seu ministério um pouco menos de oito meses, ao morrer
transmitiu a sua função a Estêvão. Foi a este que Dionísio escreveu a sua primeira carta
sobre o baptismo, dado que, nessa altura, se tinha levantado um problema importante,
ou seja, se deviam purificar-se de novo pelo baptismo os que se convertiam de qual-
quer heresia38. Segundo um antigo costume, que estava em vigor, apenas se usava, para
tais pessoas, a oração e a imposição das mãos.
3. Cipriano, pastor da Igreja de Cartago, foi o primeiro dos de então a pensar que só 1259
deviam admitir-se aqueles que previamente tinham sido purificados do erro pelo bap-
tismo. Mas Estêvão, julgando que não devia acrescentar-se qualquer inovação contrária
à tradição que tinha prevalecido desde o princípio, irritou-se muito contra ele.
5. 5 [A este respeito, Dionísio escreveu o seguinte:] «Tinham-se tomado decisões 1260
sobre (o baptismo) nas grandes assembleias de bispos39, segundo as minhas informações.
De acordo com essas decisões, aqueles que vinham das heresias, depois de terem
passado previamente por um catecumenado, em seguida eram lavados e novamente
purificados da sujidade do fermento antigo e impuro... 40
7. 4 Pela minha parte, eu recebi esta regra e este modelo do nosso bem-aventurado 1261
papa41 Héracles. Àqueles que provinham das heresias, e que sem dúvida se tinham
separado da Igreja, e sobretudo àqueles que, parecendo estar unidos a ela, se tinham
manchado, mantendo relações com alguns dos mestres heterodoxos, expulsava-os da
Igreja e não os recebia, mesmo que lho pedissem, até terem dito publicamente tudo
quanto tinham escutado dos adversários; então admitia-os na assembleia, sem exigir
para eles um novo baptismo, uma vez que já tinham recebido anteriormente o santo (dom)».
9. O baptismo ímpio dos hereges. 1 (Dionísio) escreveu a sua quinta carta a Sisto, 1262
bispo dos Romanos, na qual, depois de dizer muitas coisas contra os hereges, expõe
assim o que aconteceu no seu tempo: «Digo-te com toda a verdade, irmão, que preciso
de conselho e peço o teu parecer sobre um assunto importante que se me apresentou
e acerca do qual temo enganar-me.
2 Com efeito, entre os irmãos reunidos em assembleia, encontrava-se um homem
que olhávamos como um fiel muito antigo, anterior à minha ordenação, e até mesmo à
instalação do bem-aventurado Héracles42; participava na assembleia e, encontrando-se
junto dos que íamos baptizar imediatamente, escutava as perguntas e respostas 43.
Aproximou-se de mim chorando e lamentando-se e, caindo aos meus pés, declarava e
jurava que o baptismo com que tinha sido baptizado entre os hereges não era aquele,
nem tinha absolutamente nada em comum com ele, uma vez que aquele estava cheio de
impiedades e blasfémias.

36
Cornélio morreu em 252.
37
Lúcio morreu em 253.
38
Foi Estêvão que escreveu o célebre rescrito: «Se vier alguém até vós de qualquer heresia, nada se inove,
fora daquilo que foi transmitido, ao impor-lhes as mãos para a penitência.
39
Trata-se dos concílios de Icónio e de Sínade, por volta de 230.
40
Era esta a prática de Cipriano de Cartago.
41
Chama-se aqui papa ao bispo de Alexandria. Não é caso único, pois nessa mesma época os presbíteros de
Roma chamavam papa a Cipriano de Cartago.
42
Héracles foi ordenado bispo de Alexandria em 231-232. O baptismo recebido pelo velho é pois muito
antigo, pelo que a heresia em que fora baptizado não era o novacionismo.
43
Profissão de fé baptismal feita pelos catecúmenos imediatamente antes do baptismo.
346 SÉCULO IV

3 Ele dizia que a sua alma estava agora totalmente trespassada pela dor e que não
se atrevia sequer a levantar os olhos para Deus, depois de ter começado por aquelas
palavras e práticas sacrílegas; por isso pedia para receber esta purificação, este acolhi-
mento, esta graça puríssima.
4 Não ousei fazer isso, dizendo-lhe que bastava a comunhão (com a Igreja) em
que fora admitido desde há tanto tempo. Eu não podia atrever-me a rebaptizar alguém
que há tanto tempo escutava a Oração eucarística e respondia Amen juntamente com os
fiéis, que se aproximava da mesa e estendia as mãos para receber o alimento sagrado, que
aceitava o pão e provava o Corpo e o Sangue do Senhor. Exortei-o a ter coragem e a
aproximar-se das coisas santas com fé segura e boa esperança.
5 Mas ele, sem parar de chorar, tremeu ao aproximar-se da mesa e mal ousou
acompanhar-nos de pé nas orações, apesar de muito instado».
1263 13. O fim da perseguição contra os cristãos. Não muito depois, enquanto Valeriano
sofria a escravidão entre os bárbaros, começou a reinar o seu filho44 e governou com
maior sensatez. Por meio de edictos, pôs fim imediatamente à perseguição contra nós
e, por meio de um rescrito mandou, aos que presidiam à palavra, que exercessem
livremente as suas funções habituais. O rescrito dizia assim:
«O imperador César Públio Licínio Galieno Pio Félix Augusto, a Dionísio, Pina,
Demétrio e aos outros bispos: Mandei que o benefício do meu dom se estenda a todo
o mundo, a fim de se libertarem os lugares sagrados, e, por isso, também podeis
desfrutar da regra contida no meu rescrito, de modo que ninguém possa molestar-vos.
Há já algum tempo concedi que recuperásseis aquilo que fosse possível ser recuperado.
Por isso, Aurélio Cerínio, que está à frente dos assuntos supremos, manterá cuidado-
samente a regra dada por mim».
Fique inserido aqui, para maior clareza, este rescrito, traduzido do latim. Con-
serva-se também, do mesmo imperador, outra ordem que dirigiu a outros bispos e na
qual permite a recuperação dos lugares chamados cemitérios.
1264 20. As cartas festais de Dionísio. 1 Além das cartas já mencionadas, Dionísio com-
pôs ainda nesses tempos as cartas festais45, que chegaram até nós, nas quais eleva o
tom em fórmulas solenes sobre a festa da Páscoa... e propõe um cânone (de um ciclo)
de oito anos, alegando que não convém celebrar a festa da Páscoa senão depois do
equinócio da Primavera46...
1265 22. As celebrações cristãs durante a perseguição. 4 (Durante a perseguição), pri-
meiro expulsaram-nos (de Alexandria), mas apesar de perseguidos por todos e conde-
nados à morte fomos os únicos que, mesmo então, celebrámos a festa. Cada lugar de
tribulação se converteu para nós em lugar de assembleia festiva: campo, deserto,
barco, albergue, cárcere47. Mas a mais esplendorosa de todas as festas celebraram-na
os mártires perfeitos, jubilosos com o festim do céu...
1266 30. A Igreja de Antioquia deixou de cantar salmos. 10 (Paulo)48 fez com que cessasse
o uso dos salmos em honra de nosso Senhor Jesus Cristo, dizendo que eram demasiado
recentes e escritos por homens demasiado modernos. Em troca, preparou umas mulheres
para que cantassem, em honra dele, no meio da igreja, no grande dia da Páscoa, coisas
que fazem estremecer...

44
O imperador Galieno.
45
Eram cartas em que se anunciava a data da festa da Páscoa.
46
A determinação da data da festa da Páscoa levantava muitas dificuldades.
47
Ager, solitudo, navis, stabulum, carcer.
48
Trata-se de Paulo de Samósata, bispo herege de Antioquia. Estamos em 268.
EUSÉBIO DE CESAREIA 347

19 Como Paulo não queria de modo nenhum abandonar a casa da igreja49, o


imperador Aureliano, a quem se dirigiram, tomou uma decisão muito favorável sobre o
que devia fazer-se, pois ordenou que a casa se entregasse àqueles que estavam em
correspondência epistolar com os bispos da doutrina cristã em Itália e na cidade de Roma...
31. A situação da Igreja antes da perseguição de Dioclesiano. 22 O poder absoluto 1267
passou a Dioclesiano50 e aos que lhe foram associados. Foi durante o seu reinado que
teve lugar a perseguição do nosso tempo e nela a destruição das igrejas...
32. 31 Depois de Teonas ter exercido o ministério durante dezanove anos, sucedeu-lhe 1268
Pedro no episcopado de Alexandria. Também este se distinguiu de maneira especial
durante doze anos inteiros. Ainda não havia três anos que governava a Igreja, quando
começou a perseguição; durante o resto dos seus dias levou uma vida de ascese muito
rigorosa e ocupou-se, sem se ocultar, do bem geral das igrejas. Por esta razão, no nono
ano da perseguição foi decapitado, e assim se viu adornado com a coroa do martírio...

LIVRO VIII

1. 1 Estaria acima das nossas forças contar dignamente quais e quão grandes foram, 1269
antes da perseguição do nosso tempo, a consideração e a liberdade de que gozava, entre
todos os homens, Gregos e bárbaros, a pregação da religião do Deus do universo,
anunciada ao mundo por Cristo.
2 Provas disso poderiam ser o acolhimento dos príncipes para com os nossos,
aos quais eles confiavam inclusivamente o governo das províncias e dispensavam da
angústia de ter que sacrificar, em razão da grande simpatia que tinham pela nossa doutrina51.
3 Que necessidade haverá de falar dos que estavam nos palácios imperiais e dos
supremos magistrados? Eles permitiam aos seus familiares, na sua presença, agir com
toda a liberdade no que se refere à religião, pela palavra e pelos actos, e procediam do
mesmo modo em relação às suas esposas, filhos52 e criados, autorizando-os quase a
gloriar-se da liberdade da fé, e considerando-os mais dignos de favor do que os seus
companheiros de serviço...
5 Também era digno de ver o acolhimento com que os bispos de cada Igreja eram
honrados, por todos os procuradores e governadores. E quem poderá descrever essas
inumeráveis concentrações e a quantidade de reuniões em cada cidade, bem como a
grande afluência de pessoas às casas de oração? Por causa disso, doravante já não
bastavam as construções anteriores, pelo que, em cada cidade, se faziam construir
igrejas de grandes dimensões53...
2. A destruição das igrejas. 1 Tudo isso 54 se cumpriu, efectivamente, no nosso 1270
tempo, quando vimos, com os nossos olhos, as casas de oração destruídas, desde os
telhados até aos alicerces, as Escrituras divinas e sagradas lançadas ao fogo no meio
das praças públicas, os pastores das Igrejas dissimulando vergonhosamente aqui e ali,
ou presos ignominiosamente e insultados pelos nossos inimigos...

49
Casa da igreja ou casa da assembleia designa, em Eusébio, o edifício da igreja.
50
Isto só aconteceu em 285.
51
Eusébio exagera certamente quando fala da simpatia dos imperadores pela doutrina cristã. Dioclesiano, em
particular, era um pagão fervoroso e nunca testemunhou o menor pendor para o cristianismo.
52
Segundo Lactâncio, Prisca, esposa de Dioclesiano, e a sua filha Valéria, tinham aderido ao cristianismo. É
provável que fossem apenas catecúmenas.
53
As afirmações de Eusébio sobre as novas igrejas construídas no fim do século III não podem ser contesta-
das. Mas pouco se conhece delas, excepção feita à de Doura-Europos.
54
O início da perseguição é atribuído, por Eusébio, ao juízo de Deus, em virtude dos pecados do povo
cristão, que abandonara a santidade do tempo das perseguições anteriores.
348 SÉCULO IV

4 Estava-se então no décimo nono ano do reinado de Dioclesiano, no mês de


Março segundo os Romanos, próximo da festa da Paixão do Salvador, quando foram
afixados por toda a parte edictos imperiais que mandavam arrasar as igrejas até ao solo
e lançar ao fogo as Escrituras, que proclamavam demitidos das suas funções aqueles
que as ocupavam, e privavam da liberdade os que serviam nas casas dos particulares,
se permanecessem fiéis à sua profissão de cristianismo.
5 Este foi o primeiro edicto contra nós, mas, passado pouco tempo, vieram
outros edictos, nos quais se ordenava: primeiro lançar nas prisões todos os presidentes
das Igrejas em qualquer lugar, e logo forçá-los por todos os meios a sacrificar...
1271 6. Prisões e martírio. 9 O espectáculo do que aconteceu nestas circunstâncias
ultrapassa qualquer relato: por toda a parte se prendeu uma multidão inumerável de
pessoas e em todos os lugares as prisões, que tinham sido preparadas para os assassinos
e os violadores de túmulos, abarrotavam agora de bispos, presbíteros, diáconos, leitores
e exorcistas, até ao ponto de não haver lugar para os condenados pelos seus crimes...
1272 9. 5 Então pudemos contemplar o grande e admirável ardor, a força verdadeiramente
divina e a coragem daqueles que acreditaram no Cristo de Deus. Ao mesmo tempo que
se pronunciava a sentença contra os primeiros, acorriam outros de um lado e do outro
ao tribunal...; falavam com a maior liberdade... e recebiam a sentença final de morte
com alegria, rindo com bom humor, de tal modo que, até exalarem o último suspiro,
cantavam hinos e acções de graças ao Deus do universo...

LIVRO X

1273 1. A restauração e dedicação das igrejas. 1 A Deus todo-poderoso e rei do universo


seja dada glória por todas as coisas; dêmos graças ao Salvador e Redentor das nossas
almas, Jesus Cristo, por meio do qual pedimos que se conserve a nossa paz firme e estável,
livre de todos os perigos exteriores e de todas as perturbações e adversidades espirituais...
8 O dia sereno e claro, não obscurecido por nenhuma nuvem, iluminava com sua
luz celeste as Igrejas de Cristo, espalhadas pelo mundo inteiro. Até aqueles que não
faziam parte da nossa comunidade cristã podiam gozar, se bem que não tão plenamen-
te como nós, ao menos alguma parte ou um reflexo daqueles bens que Deus nos tinha
concedido.
1274 2. 1 Para nós, que colocamos toda a nossa esperança em Cristo, uma alegria indes-
critível e uma felicidade quase divina iluminava os nossos rostos, ao contemplar como
todos aqueles lugares que tinham sido arrasados pela impiedade dos tiranos reviviam
agora, como se ressuscitassem duma longa e mortal devastação. Víamos os templos
levantarem-se das suas ruínas até a uma altura infinita, e resplandecer com um culto e
um brilho muito maior que o daqueles que tinham sido destruídos.
2 Eram verdadeiramente perfeitas as adorações dos príncipes, os ritos sagrados
dos sacerdotes e, na igreja, as instituições dignas de Deus, manifestadas quer nas
salmodias e na audição de outras palavras que Deus nos transmitiu, quer na realização
de liturgias divinas e místicas...
1275 3. 1 Oferecia-se ao nosso olhar um espectáculo, por nós tão intensamente deseja-
do: festas de dedicação de novas igrejas em todas as cidades e de consagração de igrejas
recentemente construídas, assembleias de bispos reunidos para este fim, afluência de
inumeráveis peregrinos procedentes das mais longínquas regiões, sentimentos de mútua
caridade e benevolência dos povos, unidos entre si como membros do Corpo de Cristo.
2 Assim se cumpria o oráculo profético que antecipadamente e de modo miste-
rioso anunciava o que havia de suceder: o osso adaptava-se ao osso, e a juntura à
juntura, bem como muitas outras palavras proféticas, obscuras e enigmáticas.
EUSÉBIO DE CESAREIA 349

3 A mesma força do Espírito divino circulava por todos os membros; tinham


todos uma só alma; em todos o mesmo ardor da fé; em todos o mesmo cântico de
louvor a Deus. Eram perfeitíssimas as cerimónias dos bispos e os sacrifícios que os
sacerdotes ofereciam; os ritos da Igreja celebravam-se com uma majestade quase divina;
cantavam-se os salmos, escutavam-se as palavras divinamente inspiradas, realizavam-se
os divinos e arcanos mistérios e comunicavam-se os místicos símbolos da paixão salvadora.
4 Uma multidão em festa, de homens e mulheres, de gente de todas as idades,
glorificava a Deus, autor de todos os bens, com orações e acções de graças. E cada um
dos bispos presentes pronunciava panegíricos, segundo a medida do seu talento, para
celebrar a festa.
4. Panegírico sobre a edificação de igrejas. 1 Um homem55, daqueles que são 1276
convenientemente dotados, avançou até ao meio da assembleia; tinha composto um
discurso. Numa igreja cheia, na presença de um grande número de pastores que, em
silêncio e em ordem, prestavam atenção, diante de um bispo em tudo excelente e amado
por Deus pelo zelo e diligência com que tinha construído o templo de Tiro, o mais belo
dos da Fenícia, pronunciou as seguintes palavras:
2 «Amigos de Deus e sacerdotes revestidos da santa túnica... e tu... a quem o
próprio Deus... concedeu o privilégio especial de edificar a sua casa na terra e restaurá-la
para Cristo, seu Verbo unigénito e primogénito, e para a sua santa e divina esposa...
27 (O bispo de Tiro) pensava que esta igreja, que fora totalmente destruída
pelos inimigos, que sofrera antes de nós as mesmas perseguições que nós sofremos,
que como uma mãe fora privada dos seus filhos, devia participar também na alegria do
Deus que é bom...
37 O terreno que ele marcou é muito maior (do que o primeiro)56. Por fora
fortificou o recinto com um muro a toda a volta, para se tornar uma defesa seguríssima
de toda a obra.
38 Abriu um vestíbulo amplo e muito alto, do lado dos raios do sol nascente...
39 No interior, para impedir que aquele que entra pelas portas penetre imediata-
mente no santuário com os pés sujos, deixou um espaço tão grande quanto possível
entre o templo e as primeiras entradas, adornando-o com quatro pórticos fechados
sobre si mesmos, fazendo deste lugar uma espécie de claustro quadrado, com colunas
que se elevam por toda a parte. Os intervalos que separam as colunas são fechados por
tapumes de madeira, que se elevam até a uma altura conveniente, e deixou vazio o meio
para que se possa ver o céu...
40 Foi aí que ele colocou os símbolos das purificações sagradas: dispôs fontes,
diante do templo, para fornecerem água viva em abundância, onde podem lavar-se os
que entram no recinto do templo...
41 Por meio de vestíbulos interiores, ainda em maior número, abriu entradas
para o templo. Dispondo-as face aos raios do sol, abriu três portas dum só lado, e
agradou-lhe que a do meio fosse muito maior que as outras duas, em altura e largura;
decorou-a com apliques de bronze..., e com desenhos variados em relevo...
42 De igual modo dispôs também para os pórticos, de um lado e outro do
templo, o mesmo número de vestíbulos. Para iluminar de cima estes vestíbulos com
luz mais abundante, imaginou diversas aberturas feitas no edifício... Quanto à basílica em
si mesma construiu-a com os materiais mais ricos e preciosos, sem se poupar a despesas.

55
Este homem é Eusébio.
56
Aqui começa Eusébio a descrição dos planos e o processo de construção da igreja. É o relato mais antigo
que possuímos, mas não o único. Eusébio descreveu também a igreja do Santo Sepulcro, de Jerusalém, e
ainda outras.
350 SÉCULO IV

43 Creio que é supérfluo descrever o comprimento e a largura do edifício, a sua


beleza esplêndida, a sua grandeza acima de qualquer palavra, o aspecto brilhante das
obras que percorro pela palavra, a sua altura que atinge os céus, os cedros preciosos do
Líbano colocados por cima de tudo...
44 Depois de ter acabado o templo, adornou-o com tronos muito elevados para
honrar os que presidem, e com bancos dispostos em ordem para os do povo comum,
como convém. Em seguida, colocou no meio o altar dos santos mistérios e, para que
ficasse inacessível à multidão, rodeou-o de balaustradas de madeira, cuidadosamente
adornadas com finos trabalhos de arte até acima, oferecendo assim um admirável espec-
táculo a todos os que o vêem.
45 O pavimento também não foi descurado por ele: adornou-o até à perfeição
com mármores de grande beleza. Por último, passou ao exterior do templo e fez
construir com arte, de cada lado, êxedras57 e edifícios muito grandes, que comunicam
uns com os outros, encostados aos flancos da basílica, formando um todo e unidos com
passadiços, que dão para o edifício central...
72 Reavivemos a memória de todas estas bondades divinas, agora e nos tempos
a seguir. Quanto a Cristo, o autor e chefe desta assembleia, deste dia brilhante e
esplêndido, amemo-l’O e veneremo-l’O de noite e de dia, a toda a hora e, por assim
dizer, a cada respiração, com todas as forças da nossa alma. E, agora, levantemo-nos58
e supliquemos-Lhe, com boas disposições e em voz alta, que nos guarde até ao fim no
seu redil, nos salve, e nos conceda como prémio a paz inquebrantável, inamovível,
eterna, em Cristo Jesus, nosso Salvador, pelo qual seja dada a Deus a glória por todos
os séculos dos séculos. Amen».
1277 5. Cópia do edicto de Milão. 2 «Considerando que não se deve recusar a ninguém a
liberdade de religião, mas que é preciso conceder à inteligência e à vontade de cada um
a possibilidade de se ocupar das coisas divinas segundo a sua preferência, há já muito
tempo que tínhamos convidado os cristãos a conservar a fé da sua seita e da sua
religião...
4 Quando eu, Constantino Augusto, e eu, Licínio Augusto, viemos a Milão...
decidimos, em primeiro lugar e antes de tudo..., conceder aos cristãos e a todos os
outros a liberdade de escolherem e seguirem a religião que quiserem...
5 Assim, pois, num desígnio saudável e absolutamente justo, decidimos que a
nossa vontade consiste nisto: não se recuse de modo nenhum a ninguém a liberdade de
seguir e escolher a observância ou religião dos cristãos, e dê-se a cada um a liberdade de
dar a sua adesão reflectida à religião que julga ser-lhe útil...
6 Assim, era conveniente que déssemos em rescrito o que era do nosso agrado, a
fim de que, após a supressão completa das condições contidas nas nossas cartas
anteriores... a respeito dos cristãos, fosse abolido o que parecia completamente injusto
e alheio à nossa clemência, e que agora, livremente e simplesmente, cada um daqueles
que tomaram a livre decisão de guardar a religião dos cristãos, a guarde sem ser minimamente
incomodado...
9 Além disso, eis o que decidimos relativamente aos cristãos: os seus lugares,
onde costumavam reunir-se antes, e acerca dos quais, numa carta enviada anteriormente,
tinha sido fixada uma outra regra, se parecer que alguém os comprou..., restituam-nos
aos mesmos cristãos, sem reclamarem dinheiro nem compensação alguma, deixando de
lado toda a negligência e todo o equívoco. E, se alguém recebeu esses lugares como
presentes, restituam-nos o mais depressa possível aos mesmos cristãos.

57
Casas para recepções e reuniões.
58
Convite dirigido à assembleia para a oração dos fiéis, que é dita de pé.
EUSÉBIO DE CESAREIA 351

10 Se os que tinham comprado esses lugares ou os que os tinham recebido como


dom reclamarem alguma compensação da nossa benevolência, apresentem-se ao tribu-
nal do magistrado local, para que, por nossa generosidade, lhes seja concedida essa
compensação. Todos esses bens devem ser entregues à corporação dos cristãos, por
tua solicitude, integralmente e sem qualquer demora.
11 E, dado que os mesmos cristãos não possuíam apenas os lugares onde costu-
mavam reunir-se, mas se sabe que eram proprietários ainda de outros lugares que não
pertenciam a cada um deles, mas ao património da sua corporação59, isto é, ao conjunto
dos cristãos, darás ordens para que todos esses bens, de acordo com a lei que citámos
antes, sejam entregues na totalidade, sem qualquer contestação, aos mesmos cristãos,
isto é, à sua corporação e a cada uma das suas assembleias...
12 Em tudo isto deves manifestar a maior diligência para com a dita corporação
dos cristãos, a fim de que o nosso mandato se cumpra o mais rapidamente possível...
14 E, para que os termos desta lei e da nossa generosidade possam ser levados ao
conhecimento de todos, é conveniente que o que escrevemos tenha precedência e por
tua ordem se publique por toda a parte e chegue ao conhecimento de todos, de modo
que a lei devida à nossa generosidade não passe despercebida a ninguém».

Comentários aos Salmos 60

SALMO 34

Cristo fala através de nós; nós somos os seus lábios e a sua língua... 1278
SALMO 64

Nas Igrejas de Deus do mundo inteiro, foram estabelecidos hinos, louvores e 1279
verdadeiras acções de graças a Deus quando o sol se levanta de manhã e nas horas
vespertinas, o que certamente não é um pequeno sinal do poder de Deus. São uma
grande acção de graças a Deus os hinos que, na sua Igreja, se cantam em toda a terra,
nas horas da manhã e da tarde. Porque está dito: Elevem-se minhas mãos como obla-
ção da tarde.
SALMO 65

Aclamai a Deus, terra inteira, cantai a glória do seu nome. É o que todos nós 1280
temos o costume de fazer em toda a parte. Com efeito, em todas as Igrejas de Deus
estabelecidas entre os gentios foi transmitida a ordem de cantar e salmodiar estas
palavras (dos salmos), não apenas entre os Gregos, mas também entre os bárbaros...
Celebrai os seus louvores. O retumbar desta palavra é admirável, uma vez que,
em toda a terra habitada, no decurso das vigílias, tanto nas aldeias, como nos campos
e em todas as Igrejas de Deus, os povos de Cristo, recrutados de todas as nações,
fazem subir, num grande clamor, hinos e salmodias, não em direcção aos deuses ances-
trais ou aos Demónios adversários de Deus, mas em direcção ao Deus único anunciado
pelos Profetas. Deste modo, a voz daqueles que salmodiam é escutada também pelos
de fora.

59
Por aqui se vê que as igrejas possuíam outros bens para além dos edifícios religiosos, como imóveis,
jardins, campos, casas para uso do bispo e do clero, etc.
60
E USÉBIO DE C ESAREIA , Commentarii in psalmos (=PG 23, 72-1396; 24, 9-76; 26, 1299-1305; 55, 589-594).
352 SÉCULO IV

SALMO 91

1281 Dedicamos a Deus as primeiras horas do dia nas horas matutinas... Como se
fosse numa sinfonia dos povos, em todas as Igrejas de Deus, num só coração e num só
afecto..., cantamos as melodias da salmodia.
SALMO 101

1282 O Verbo... transmitiu-nos uma imagem do repouso verdadeiro, que é o domingo,


dia da salvação e o primeiro dia da luz, durante o qual o Salvador..., elevado acima da
obra dos seis dias, ultrapassou as portas celestes, tomando posse do sábado divino e
do repouso bem-aventurado, enquanto seu Pai lhe dizia: Senta-te à minha direita...
SALMO 142

1283 Permanecemos vigilantes nas orações, sobretudo nas horas matutinas, para po-
dermos dizer: Meu Deus, fazei-me sentir, desde a manhã, a vossa bondade.

Vida de Constantino 61

LIVRO III
1284 8. Carta de Constantino às Igrejas 62. 1 No presente Concílio estava uma multidão
de bispos... e unidos a eles presbíteros e diáconos, acólitos e muitos outros cujo
número não se pode calcular...
4 Acerca da discussão sobre o dia santíssimo da Páscoa, decidiu-se, de comum
acordo, que era bom que todos os cristãos, de cada região, celebrassem a Páscoa no
mesmo dia...63 Antes de mais pareceu inconveniente celebrar esta solenidade santíssima
segundo o uso dos Judeus...
5 Também nesta questão, eles não vêem a verdade; deste modo, preferindo errar
a aceitar uma revisão necessária, celebram a Páscoa duas vezes no mesmo ano.
6 Por que motivo deveremos nós segui-los, depois de terem reconhecido que
seguem um caminho sujeito a um erro tão grave? Nós não podemos mais suportar a
celebração da Páscoa uma segunda vez no mesmo ano...
7 Além disso, há que ter presente outra razão: não é aceitável que, numa questão
de tão grande importância como é a festa da nossa grande religião, reine a discórdia.
8 Um só é o dia da nossa libertação que o Salvador nos deixou: o da sua sacratíssima
paixão...
1285 26. Alguns ímpios sonharam apagar da memória dos homens o sepulcro da salvação
e, na sua presunção, gabavam-se de aniquilar a verdade. Então, com grandes esforços,
trouxeram terra de muito longe, de maneira a cobrir completamente o lugar onde se
encontrava o Santo Sepulcro; em seguida, quando esta massa de terra se elevou a uma
grande altura, sustentaram-na com um muro de pedra e esconderam o sepulcro sagrado
sob este amontoado. Depois, como já não restava mais nada, construíram sobre este
61
E USÉBIO DE C ESAREIA , Vita Constantini (=PG 20, 905-1230; GCS 7). Eusébio escreveu a Vida de Constan-
tino depois de 337.
62
Esta carta de Constantino é de 325.
63
Assim fora já estabelecido no concílio de Arles de 314.
EUSÉBIO DE CESAREIA 353

amontoado um funesto e odioso sepulcro das almas, templo do Demónio impudico


que eles chamam Vénus, e encheram-no de vãos simulacros. Neste lugar ofereciam
sacrifícios impuros sobre altares ignóbeis e orgulhavam-se de atingir o seu fim dissi-
mulando a gruta da salvação sob estas imundícies.

LIVRO IV

22. 2 (Constantino) convertera a santa vigília num esplendor divino, mandando acen- 1286
der círios muito grandes em toda a cidade, por meio de empregados encarregados disso...
45. O dia do domingo. 18 Constantino dispôs que fosse considerado dia próprio 1287
para as orações o dia que é, sem dúvida, o mais importante e o primeiro pelo seu valor
intrínseco, o dia do Senhor e da redenção. Entre os seus servidores, os que eram
homens consagrados a Deus e se distinguiam pela integridade de vida e pelo cultivo de
todas as virtudes, mandou-os colocar à frente da vigilância de todo o palácio; os
pretorianos, guardas fiéis do corpo, dotados de um carácter fiel e dedicado, consideravam o
rei como modelo de uma piedosa disposição de espírito, e honravam não menos do que
ele o dia da redenção e do Senhor, oferecendo nesse dia as orações de que o rei gostava.
O ditoso exortava também todos os homens a fazer o mesmo, como se tivesse
abraçado a esperança de tornar em breve todos os homens, sem excepção, adoradores
de Deus. Por isso impôs por lei a todos os cidadãos do Império de Roma que repousassem
nos dias que têm o nome do Salvador e também que honrassem o dia que precede o
sábado64, em memória, creio eu 65, daquilo que, segundo a tradição, foi feito nesse dia ao
Redentor de todos. Para ensinar a todos os seus exércitos a honrar com zelo o dia da
salvação, que acabou por receber o nome da luz e do sol, deu permissão aos soldados
que aderissem à fé em Deus, que fossem livremente à igreja para oferecer as suas
orações sem impedimento da parte de ninguém 66.
19 Aos soldados que não participassem ainda da fé no Verbo divino ordenou,
com uma segunda lei, que no dia do domingo saíssem da tenda e fossem para um campo
livre, e ali, todos juntos, a um sinal combinado, dirigissem a Deus uma oração feita de
cor. Não deviam, de facto, pôr a sua esperança nas lanças, nem no equipamento militar,
nem na força do corpo, mas reconhecer o Deus que está cima de tudo, que é a origem de
todos os bens e da própria vitória, ao qual se devem dirigir as orações prescritas,
elevando as mãos para o céu, voltando os olhos do espírito para o alto, em direcção ao
rei celeste e invocando-O nas orações como Aquele que dá a vitória 67, e que é salvador,
guardião e auxílio. Ele próprio ensinou uma oração a todos os soldados, ordenando que
todos dissessem em latim:
20 «Sabemos que só Tu és Deus, reconhecemos-Te como rei, pedimos o teu
auxílio, de Ti recebemos as vitórias, graças a Ti somos superiores aos inimigos, damos-Te
graças pelos benefícios já recebidos e em Ti pomos a nossa esperança dos bens futuros.
Todos Te suplicamos, implorando que conserves são e vitorioso, por um muito longo
período de vida, o nosso rei Constantino, juntamente com os seus filhos caros a
Deus 68». Eis o que ele, por lei, mandou fazer aos soldados no dia do Sol, e as palavras
que lhes ensinou a dirigir a Deus nas suas orações.
64
A sexta-feira, dia da Cruz.
65
Este creio eu não é muito convincente. Eusébio devia saber certamente se Constantino distinguia o domin-
go por motivos cristãos. Saberia que também estavam em jogo motivos pagãos?
66
O repouso dominical no serviço militar é por isso claramente fundado em motivações cultuais: só aqueles
soldados que queriam ir à igreja eram livres e conservavam a sua liberdade enquanto se encontravam reu-
nidos na igreja.
67
Depois da vitória decisiva de 312, Constantino, como se vê, atribui a sua vitória ao sinal de Cristo, isto
é, à cruz que lhe aparecera
68
A alusão aos filhos de Constantino é um acrescento ao texto original da oração, necessária após a sucessão de 337.
354 SÉCULO IV

1288 61. Quando em Helenópolis tomou a decisão de pedir o baptismo, a primeira coisa
que recebeu aí mesmo foi a imposição das mãos com uma oração solene...
1289 64. Todos estes acontecimentos 69 tiveram lugar durante a grande festa do venerável
e santíssimo Pentecostes, que tem sete semanas e é selada por uma unidade. Foi
durante esses dias de festa, como o afirmam as Escrituras divinas, que teve lugar a
ascensão aos Céus do Salvador de nós todos e a descida do Espírito Santo sobre a
humanidade. Foi também durante este tempo que, depois de ter sido julgado digno do
baptismo, o imperador, no último desses dias que, com toda a razão, podemos chamar
a festa das festas, foi levado para junto de Deus por volta do meio-dia.

Sobre a Páscoa 70
1290 1. Foi nesta época (da Primavera) que o Salvador de todo o mundo realizou o
mistério da sua própria festa (como outrora, nesta época, fora celebrada a sua ima-
gem). Tudo isso tem lugar na festa da salvação...
1291 2. Ele próprio era o cordeiro, pelo corpo que tinha tomado. Era igualmente o sol de
justiça, dado que uma Primavera divina e uma mudança salvadora faziam passar a vida
humana do mal para o bem. Uma colheita de frutos novos adorna a Igreja de Deus com
variados dons do Espírito Santo... Fomos enriquecidos, no dia de Deus, com a luz da
ciência. São estes os novos conhecimentos que outrora estiveram escondidos nos
símbolos, mas agora são trazidos à plena luz...
1292 3. Quanto a nós, celebramos de novo, em cada ano, o início do jejum segundo o seu
regresso cíclico, e empenhamo-nos, em ordem à preparação, num exercício de quarenta
dias que precedem a festa... Recomeçamos a celebração da própria festa, cada vez que
o tempo se renova... No entanto, o número do Pentecostes não se detém nessas sete
semanas, mas ultrapassando-as pela última unidade que as segue, põe o selo sobre o
dia solene da Ascensão de Cristo. É pois com toda a razão que nos dias santos do
Pentecostes, em recordação do repouso futuro, alegramos as nossas almas e descansamos
os nossos corpos, como se nos encontrássemos reunidos doravante ao esposo e não
pudéssemos jejuar.
1293 4. Pondo-nos a caminho em direcção a Deus, cingimos os rins com a cintura da
pureza, asseguramos a caminhada da nossa alma como que calçando-a e preparamo-nos,
desta forma, para responder ao apelo celeste. Utilizamos o cajado do Verbo de Deus na
força das orações, para vencer os inimigos, e dispomo-nos, com toda a prontidão, para
a passagem que leva ao Céu, passando rapidamente das coisas inferiores para as
superiores, e da vida mortal para a imortalidade. Se realizarmos esta passagem de
forma conveniente, uma outra festa, muito maior, nos espera. Os Hebreus chamam-lhe
o Pentecostes. Essa festa é uma imagem do Reino dos Céus...
1294 5. Foi da tradição que nós aprendemos a celebrar a festa com grande alegria, como
pessoas que ressuscitaram com Cristo e se alegram do seu Reino. Por isso não temos
o direito de nos mortificar durante essa festa, porque fomos ensinados a levar em nós
a imagem do repouso que esperamos no Céu. Também não dobramos os joelhos para
rezar, nem nos mortificamos pelo jejum, pois aqueles que mereceram a graça de ressuscitar
segundo Deus não podem continuar a lançar-se por terra, e os que foram libertados das
paixões já não podem submeter-se àquilo a que se submetem os que lhes estão sujeitos.

69
Eusébio acaba de falar de tudo o que se refere ao baptismo de Constantino.
70
EUSÉBIO DE CESAREIA, De sollemnitate paschali (=PG 24, 693-706). Eusébio escreveu esta obra antes de 335, e
dedicou-a a Constantino. Já não existe a obra completa. Só chegaram até nós alguns fragmentos.
EUSÉBIO DE CESAREIA 355

6. Por isso, depois da Páscoa, celebramos o Pentecostes em sete semanas completas, 1295
depois de termos atravessado, com coragem, o período dos quarenta dias de exercícios
em comum, que precede a Páscoa, ou seja seis semanas. O número seis corresponde à
vida activa em que trabalhamos, e foi assim que Deus criou o mundo em seis dias. Mas
a este esforço sucede, com toda a razão, a segunda festa de sete semanas, em que o
repouso, cujo símbolo é o número sete, se multiplica para nós. No entanto, o número
do Pentecostes não se atinge desse modo; ele ultrapassa as sete semanas e termina na
última unidade que se lhe acrescenta, a solenidade da Ascensão de Cristo. Deste modo,
é com toda a razão que, nos santos dias do Pentecostes, como imagem do tempo
futuro, alegramos as nossas almas e aliviamos os corpos, como se, doravante, nos
encontrássemos reunidos ao Esposo e não pudéssemos jejuar...
7. É por isso que, desde esse tempo, a verdadeira festa dos mistérios prevaleceu 1296
entre os gentios71, ao passo que entre os Judeus nem sequer se conservou a memória
dos símbolos. Enquanto (os Judeus), segundo a lei moisaica, sacrificavam o cordeiro
pascal só uma vez em cada ano, no décimo quarto dia do primeiro mês, ao cair da tarde,
nós, os fiéis da nova aliança, celebrando a nossa Páscoa em cada dia do Senhor, saciamo-nos
sempre com o Corpo do Salvador, tomamos sempre parte no Sangue do Cordeiro... 72,
sempre em viagem para Deus, celebrando sempre a festa da Passagem. A palavra
evangélica manda-nos, de facto, fazer essas coisas não só uma vez ao ano, mas todos
os dias. Por isso, todas as semanas, no dia salvador do domingo 73, celebramos a festa
da nossa Páscoa, cumprindo os mistérios do verdadeiro Cordeiro, pelo qual fomos
redimidos. Não circuncidamos o corpo com facas de ferro, mas arrancamos toda a
malícia da alma com a palavra penetrante do Evangelho. E também não usamos ázimos
corporais, mas apenas os da sinceridade e da verdade. Pois a graça que nos libertou dos
antigos costumes deu-nos o homem novo, criado à imagem de Deus, a lei nova, a nova
circuncisão, a nova Páscoa..., libertando-nos, assim, dos tempos antigos.
9. Mas o Salvador também não celebrou a Páscoa com os Judeus no tempo da sua 1297
Paixão, pois celebrou a sua própria Páscoa com os seus discípulos em tempo diferente
daquele em que os Judeus sacrificavam o cordeiro. Os Judeus celebravam-na no dia da
preparação, dia em que o Salvador sofreu a sua Paixão; por isso não entraram no
pretório, mas foi Pilatos que veio cá fora ter com eles. Mas Jesus, antes de terminar o
quinto dia da semana, sentou-Se à mesa com os seus discípulos e, comendo com eles,
disse-lhes: Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco. Vês como o Salvador
não comeu a Páscoa com os Judeus?...
10. Ele, antes da sua Paixão, comeu a Páscoa e celebrou a festa com os seus discípulos, 1298
não com os Judeus. Depois de ter celebrado a festa pela tarde, os sumos sacerdotes, de
acordo com o traidor, lançaram-Lhe as mãos, prova de que não comiam a páscoa naquela
tarde, pois se a comessem, ter-se-iam abstido de O perseguir...
11. Vês como desde então Jesus por um lado Se afastava dos Judeus... e por outro 1299
lado Se unia mais aos seus discípulos, celebrando juntamente com eles a festa desejada?
Por isso, também nós devemos comer a Páscoa de Cristo purificando as nossas almas
de todo o fermento de malícia e perversidade, saciando-nos com os ázimos da verdade
e da sinceridade..., ungindo os dintéis das nossas almas com o sangue do Cordeiro
imolado por nós, para pormos em fuga o nosso inimigo mortal. E isto não apenas num
período de cada ano, mas cada semana. Seja a nossa preparação o jejum, símbolo da
dor, pelos pecados cometidos e pela memória da paixão do Salvador.
12. Nós celebramos estes mesmos mistérios durante todo o ano, ao comemorarmos 1300
a paixão do Salvador todas as sextas-feiras com o jejum, que os Apóstolos observaram

71
Os cristãos.
72
A Eucaristia celebrada no domingo é uma festa pascal hebdomadária.
73
swth/ r ion kai\ Kuriakh\ n h( m e/ r an .
356 SÉCULO IV

então pela primeira vez quando lhes foi tirado o Esposo. Todos os domingos somos
vivificados pelo Corpo santo da mesma Páscoa salvadora, e marcamos as nossas almas
com o seu Sangue precioso.

Os mártires da Palestina 74
1301 1. 1 O primeiro dos mártires na Palestina foi Procópio75...
1302 2. 1 Dignos de memória são também os sucessos que aconteceram em Antioquia, no
mesmo dia, na pessoa de Romano. Este era palestiniano, diácono e exorcista da Igreja
de Cesareia...
5 Este homem, aliás, apesar de estar fora do seu país e ser palestiniano, é digno
de ser contado entre os mártires da Palestina. Estes acontecimentos tiveram lugar
desta maneira no primeiro ano, quando a perseguição só ameaçava os chefes da Igreja.
1303 3. 3 Um terceiro era subdiácono da Igreja de Dióspolis e chamava-se Rómulo...
1304 7. 3 Na mesma época..., nas Nonas de Novembro, na mesma cidade, os companheiros
de Silvano, que então era presbítero e tinha confessado a sua fé, mas que, pouco tempo
depois, foi honrado com o episcopado, e que terminou a sua vida pelo martírio...
1305 11. 1 É certamente o momento conveniente que nos convida a falar do grande e
célebre espectáculo que deram Panfílio e os seus companheiros...
2 O seu mestre de coro, o único ornado em Cesareia com a honra do presbiterado,
era Panfílio, homem que, durante toda a sua vida, se tinha distinguido em todas as
virtudes pela fuga e desprezo do mundo, pela partilha da sua fortuna entre os pobres,
pela pouca estima pelas esperanças deste mundo, e pela vida filosófica e ascese. Mas,
sobretudo, mais que todos os nossos contemporâneos, ele distinguia-se pelo seu zelo
autêntico pelas divinas Escrituras, pelo seu infatigável amor ao trabalho que empreendia,
pela assistência que concedia aos seus pais e a todos os que se aproximavam dele...
4 O segundo que, depois de Panfílio, se apresentou ao combate, tinha uma
cabeleira branca digna da sua santidade. Chamava-se Valente, era diácono de Élia76...
Não tinha necessidade de ter à mão o texto das Escrituras que quisesse utilizar, pois
citava de memória as suas passagens...
1306 13. 6 Havia também muitos Egípcios, entre os quais se deve citar João, que ultrapassava
todos os nossos contemporâneos pela sua memória prodigiosa... 7 Tinha escrito livros
inteiros das Escrituras divinas não em tábuas de pedra..., nem em peles de animais ou
papéis que o tempo e a traça destroem, mas em tábuas feitas com a carne do seu
coração, com uma alma cheia de luz e com o olhar puríssimo da sua inteligência. Desse
modo, fazia brotar da sua boca, quando queria, um verdadeiro tesouro de palavras,
umas vezes um texto da Lei ou dos Profetas, outras vezes um texto histórico, outras
ainda uma passagem dos Evangelhos ou do Apóstolo. 8 Confesso ter admirado a

74
E USÉBIO DE C ESAREIA , De martyribus Palaestinae (=PG 20, 1457-1520; GCS 9, 2; SCh 55). Eusébio fez
questão de não deixar no esquecimento os primeiros mártires da terra de Jesus.
75
Procópio nasceu em Élia e fixara o seu domicílio em Citópolis, onde desempenhava três funções eclesiásticas: era
leitor, intérprete na língua siríaca e estilos de d. 3347; expulsava os Demónios pela imposição das mãos.
76
Élia era o nome romano de Jerusalém.
EUSÉBIO DE CESAREIA 357

primeira vez que vi este homem: estava de pé, no meio duma multidão considerável
numa igreja, e recitava partes inteiras da Escritura divina. Enquanto apenas ouvia a sua
voz, pensava que alguém estava a ler, como é costume, nas assembleias; mas quando
me aproximei, tomei consciência do que se passava. Todos os outros, que tinham os
olhos sadios, estavam à volta dele, e ele, servindo-se apenas dos olhos da sua inteligência,
exprimia-se sem artifício, como um profeta, e fazia-o muito melhor do que aqueles que
tinham a força dos seus corpos. Eu não sabia como glorificar a Deus e admirar esta
maravilha...
11 Estes foram, pois, os martírios que tiveram lugar na Palestina ao longo de oito
anos completos, e esta foi a perseguição dirigida contra nós. Tinha começado pela
destruição das igrejas, e progrediu e cresceu através de medidas violentas das autoridades,
segundo os tempos...

A demonstração evangélica 77

LIVRO I

6. (Os cristãos) não oferecem os seus votos a muitos senhores, mas ao único 1307
Senhor, conforme a palavra divina. A Ele foi erigido, em toda a terra habitada pelos
homens, um altar de vítimas..., de acordo com os novos mistérios do Novo Testamento...
10. Fazendo todos os dias o memorial do Corpo e do Sangue de Cristo Cordeiro, 1308
tornámo-nos dignos de melhor sacrifício e liturgia78... Com efeito, tendo Cristo ofere-
cido ao Pai, pela nossa salvação, um sacrifício e uma vítima maravilhosos, quis que
nós, em vez dos sacrifícios79, oferecêssemos continuamente a Deus a memória do seu
sacrifício...
Nós recebemos o mandato de celebrar na mesa (eucarística) o memorial deste
sacrifício por meio dos símbolos do seu Corpo e do seu Sangue salvador, segundo a
instituição do Novo Testamento...
Estas coisas, preditas por inspiração divina desde os tempos antigos, celebram-se
actualmente em todas as nações graças aos ensinamentos evangélicos do nosso Salvador...
Oferecemos, portanto, ao Deus altíssimo, um sacrifício de louvor; oferecemos o
sacrifício inspirado por Deus, digno e sagrado; oferecemo-lo de um modo novo, segundo
o Novo Testamento... Além disso, também queimamos o incenso profético, oferecen-
do-Lhe em toda a parte o fruto aromático do conhecimento de Deus, raiz de todas as
virtudes, por meio de orações que Lhe dirigimos... Por conseguinte, não só oferecemos
o sacrifício, mas também queimamos incenso. Umas vezes, celebrando o memorial do
grande sacrifício segundo os mistérios que Ele nos confiou, e oferecendo a Deus, por
meio de hinos piedosos e orações, a acção de graças pela nossa salvação; outras vezes,
submetendo-nos a nós mesmos por completo a Ele e consagrando-nos em corpo e alma
ao seu Pontífice, o próprio Verbo...

77
E USÉBIO DE C ESAREIA , Demonstratio evangelica (=PG 22, 13-794; GCS 23).
78
dusi/ a j te kai\ i( e rourgi/ a j e) c iwme/ n oi .
79
dusi/aj .
358 SÉCULO IV

LIVRO V
1309 3. Disse o Senhor ao meu senhor: senta-te à minha direita... Este salmo também
chama Senhor ao nosso Salvador e Senhor, ao Primogénito de toda a criatura, ao Verbo
de Deus, à Sabedoria eterna, ao Princípio dos caminhos de Deus, ao Primogénito e
Unigénito do Pai, ao que é honrado com o nome de Cristo...
Do mesmo modo, primeiro o nosso Salvador e Senhor em pessoa, e depois todos
os sacerdotes que procedem d’Ele, realizam o ministério espiritual e sacerdotal segundo os
ritos litúrgicos da Igreja80 em todas as nações, tornando presentes, com o pão e o
vinho, os mistérios do seu Corpo e do seu Sangue salvador...

Os louvores de Constantino 81
1310 11. Nem todos conhecem os motivos que te levaram a levantar, ao redor do túmulo
do Salvador, de eterna memória, estes nobres, magníficos e belíssimos edifícios, monu-
mentos imperiais de um espírito imperial... Os que, por cegueira espiritual, ignoram as
coisas de Deus, zombam e riem-se destas obras, considerando impróprio e indigno de
um príncipe poderoso ocupar-se de túmulos e monumentos de mortos... Plenamente
convencido da tua aprovação e agrado, poderosíssimos imperador, quero proclamar
diante de todos, neste discurso, as razões e os motivos das tuas obras de piedade...
Quero considerar-me intérprete dos teus projectos e mensageiro do teu espírito religioso.
Proponho-me ensinar o que deveriam conhecer todos aqueles que se preocupam em
compreender os princípios que guiam o nosso Deus e Salvador a usar o seu poder, as
razões que teve Aquele que existia desde o princípio e governava o universo, para
descer do Céu até nós, assumir a nossa natureza e submeter-Se à morte, e o porquê da
vida imortal que se seguiu à sua ressurreição de entre os mortos. Além disso, aduzirei
provas e argumentos convincentes para oferecer àqueles que ainda precisam desse
género de testemunhos. Mas já são horas de dar início ao meu trabalho... 16. Quem, a
não ser o nosso Salvador, deixou aos seus adoradores o mandato de oferecer sacrifícios
incruentos e racionais, por meio de preces e da inefável invocação de Deus? Por isso,
em toda a parte onde habitam homens se construíram altares e há igrejas consagradas,
e todos os povos oferecem ao único Deus, Rei do universo, ritos litúrgicos82 de sacri-
fícios espirituais e racionais. Quem, com poder misterioso e invisível, preparou a
extinção absoluta daqueles sacrifícios cruentos de sangue corrompido e de fumo que
antes se ofere-ciam, e também daqueles cruéis e furiosos sacrifícios de seres humanos,
como o atesta a própria história dos Gregos? Na verdade, não foi antes, mas depois do
magistério divino do nosso Salvador, no tempo de Adriano, que cessaram completa-
mente e por toda a parte os sacrifícios de vítimas humanas.

80
tou\ j e) k klhsiastikou\ j qesmou\ j i( e rourgi/ a n.
81
E USÉBIO DE C ESAREIA , De laudibus Constantini (=PG 20, 1316-1440; GCS 7).
82
te kai\ logikw=n i(eroprepei=j leitourgi/ai mo/n%.
ASTÉRIO, O SOFISTA 359

Astério, o Sofista

Homilias sobre os Salmos 1


SALMO 5

6. 4 Ó noite mais esplendente que o dia. Ó noite mais luminosa que o Sol. Ó noite 1311
mais branca que a neve. Ó noite mais brilhante que a seta. Ó noite mais reluzente que
a candeia. Ó noite mais deliciosa que o Paraíso. Ó noite livre das trevas. Ó noite plena
de luz. Ó noite que expulsa o sono. Ó noite que ensina a estar de vela com os Anjos. Ó
noite terrível para os Demónios. Ó noite mais desejada do ano. Ó noite que conduz a
Igreja esposa ao seu Esposo. Ó noite, mãe dos que são iluminados. Ó noite em que o
Diabo adormecido foi espoliado. Ó noite em que o Herdeiro introduziu os herdeiros na
herança.
SALMO 6

Os cristãos aprendem a marcar os recém-nascidos, uma vez libertados dos panos 1312
do seio materno e antes de serem envolvidos em panos sensíveis, pelo baptismo, na
circuncisão de Cristo, da qual Paulo dizia: Foi n’Ele que fostes circuncidados com uma
circuncisão que não é feita por mão humana... Pela circuncisão de Cristo fostes
sepultados com Ele no baptismo 2. Portanto, se a circuncisão do Judeu era pronta e
rápida e se dava ao bebé imediatamente após os cueiros, quanto mais a circuncisão de
Cristo, que se opera no baptismo, se deve dar rapidamente ao bebé tendo em vista a
sua segurança: por um lado a fim de que, revestido de Cristo como duma couraça, não
tema a hostilidade dos Demónios; por outro lado, para que não seja entregue à heresia
e se torne seu prisioneiro (compreendei o que eu digo, vós sabeis o que se passa); em
terceiro lugar para que, se vier a morrer, não parta sem o selo...
Antes de qualquer roupa sensível, reveste o teu filho da veste real de Cristo...
Sob a Lei, aquele que não era circuncidado no oitavo dia era maldito; sob a graça, aquele
que não é baptizado é estrangeiro e proscrito do Reino dos Céus...
SALMO 11

2. 10 O primeiro dia é o do bebé, pelo que o deves trazer imediatamente à luz do 1313
baptismo, porque a luz foi criada no primeiro dia. O segundo dia é o da idade da
infância, pelo que o deves tornar firme pelas palavras celestes, pois foi no segundo dia
que o firmamento foi criado. O terceiro dia é o da adolescência...
SALMO 14

2. 2 Quando se apresenta um bebé ao baptismo, o presbítero exige, imediatamente, 1314


desta idade frágil, renúncias e promessas. Toma o padrinho como responsável desta
idade e pergunta-lhe: «Renuncias a Satanás»? Não diz: «Renunciará ele a Satanás no
fim da vida»? Ou então: «Comprometer-se-á ele com Cristo no fim da vida»? É ime-
diatamente no início da vida, que ele exige estas renúncias e estas promessas.

1
A STÉRIO, O S OFISTA , Commentarii in psalmos (=PG 40, 389-478; 55, 35-39. 539-544. 549-558 [entre os
de outros autores]; SO Supl. 16; M. R ICHARD , in Symbolae Osloenses, Oslo 1956). Morreu depois de 341.
2
Col 2, 11-12.
360 SÉCULO IV

Afraates, o Sábio Persa

Exposições 1

EXPOSIÇÃO 3 2

1315 2. Deixa-me falar-te, meu amigo, das manifestações de jejum puro. Abel foi o pri-
meiro que mostrou, na sua oferenda, um jejum puro..., depois Noé..., depois Abraão...
A pureza de todos estes substituiu o seu jejum perfeito diante de Deus. Mas, se não há
pureza de coração, o jejum não é aceite...
1316 16. Nosso Senhor Jesus Cristo... jejuou por nós e assim venceu o nosso Adversário.
Mandou-nos jejuar e vigiar em cada momento, para que, pela força do jejum puro,
cheguemos ao seu repouso.
EXPOSIÇÃO 4 3

1317 1. A pureza de coração é uma oração mais excelente do que todas as orações recitadas
em voz alta, e o silêncio, juntamente com uma consciência sincera, ultrapassa tudo
quanto o homem possa dizer a gritar.
1318 13. Como to expus mais acima, quando rezares eleva o teu coração e baixa os olhos,
entra no interior do teu homem interior e ora no segredo ao teu Pai que está no Céu...
Há entre nós pessoas que multiplicam as orações, que prolongam muito a súplica, que
se prostram e estendem as mãos, mas que estão bem longe das obras da oração... Tu,
que rezas, lembra-te que é diante de Deus que levas a tua oferenda...
1319 16. A oração é boa e as suas obras são belas. A oração é aceite quando alivia. A oração
é escutada quando é acompanhada do perdão... A oração é forte quando está cheia da
força de Deus... Acima de tudo, sê assíduo à oração, sem nunca te cansares... Sê
assíduo às vigílias, afasta de ti a sonolência e o cansaço, está de vigília dia e noite sem
perder a coragem.
1320 18. De todas as oferendas, a oração pura é a melhor. Por isso, meu amigo, sê assíduo
à oração, porque ela põe Deus em teu favor...
1321 19. Oh mistérios dignos de louvor!... Se se lavassem na água do baptismo e recebessem
o Corpo e o Sangue de Cristo, o sangue seria expiado com o Sangue e o corpo limpar-se-ia
com o Corpo; os pecados lavar-se-iam com as águas, e a oração dirigir-se-ia para Deus.
Vê, pois, meu amigo, como as vítimas e sacrifícios foram rejeitados e, em seu lugar, foi
escolhida a oração. Por isso, ama a oração pura e entrega-te à súplica, mas no princípio
de cada oração diz a oração do teu Senhor...
EXPOSIÇÃO 7 4

1322 21. Depois de terem pregado e anunciado, depois de terem posto de sobreaviso toda
a Ordem de Deus5, aproximem-se das águas do baptismo aqueles que se ofereceram
1
A FRAATES , Exposições (=SCh 349, 359; PS 1). Afraates foi bispo da Pérsia, no século IV. Terá morrido
depois de 345. Escreveu em siríaco, mas a sua obra foi traduzida em várias línguas. Não se pode dizer quase
mais nada sobre ele.
2
Sobre o jejum.
3
Sobre a oração.
4
Sobre os que devem converter-se.
5
O povo de Deus.
AFRAATES, O SÁBIO PERSA 361

para o combate, e ponham-nos à prova. Depois do baptismo, ver-se-á os que são


fortes e os que são fracos; levantarão os ânimos dos bons; mas aos débeis e aos tímidos
afastá-los-ão abertamente da luta, não aconteça que, ao chegar a batalha, escondam as
suas armas, fujam e sejam vencidos... Os homens esforçados que foram escolhidos
junto das águas portam-se com valor. Seguem o seu Senhor..., entregam-se à morte em
vez d’Ele e lutam animosamente na sua batalha, montam guarda dia e noite... e meditam
sempre na Lei; amam o Senhor, beijam as feridas do seu Corpo quando o recebem e
colocam-n’O sobre os olhos... Os que são solícitos em implorar a misericórdia recebem
o Pão dos filhos...
EXPOSIÇÃO 11 6

11. Nós sabemos perfeitamente, meu amigo, que, para cada geração, Deus estabeleceu 1323
leis que estiveram em vigor enquanto Lhe aprouve, e que mais tarde caíram em desuso,
como diz o Apóstolo: No passado, o reino de Deus assumiu formas diversas, segundo
os diversos tempos7... Mas o nosso Deus é verdadeiro e as suas alianças são fidelíssimas;
cada aliança é estável no seu tempo, e podemos fiar-nos nela. Os circuncisos de cora-
ção têm a vida por meio da nova circuncisão, que se opera no verdadeiro Jordão, isto
é, o baptismo da remissão dos pecados.
12. Josué, filho de Nun, circuncidou o povo pela segunda vez com facas de pedra, 1324
quando ele e o seu povo atravessaram o rio Jordão; Jesus, nosso Salvador, circuncida
pela segunda vez, com a circuncisão do coração, os povos que n’Ele acreditaram e que
foram lavados na água do baptismo e circuncidados com a espada que é a palavra de
Deus, mais penetrante que a espada de dois gumes...
Josué, filho de Nun, fez passar o povo para a Terra prometida; Jesus, nosso
Salvador, prometeu a terra da vida a todos aqueles que passam o verdadeiro Jordão,
crêem, e circuncidaram o prepúcio do seu coração...
Josué, filho de Nun, celebrou a Páscoa nos campos de Jericó, em país de maldi-
ção, e o povo comeu o pão do país; Jesus, nosso Salvador, celebrou a Páscoa com os
seus discípulos em Jerusalém, a cidade que Ele tinha amaldiçoado: Não ficará pedra
sobre pedra, e ali lhes deu o mistério no Pão da vida...
Josué, filho de Nun, exterminou os povos impuros; Jesus, nosso Salvador, ex-
pulsou Satanás e os seus exércitos...
Ditosos os que, vindo da incircuncisão, foram circuncidados em seu coração e
renasceram das águas da segunda circuncisão. Eles receberão a herança prometida,
juntamente com Abraão, guia dos crentes e pai de todos os povos, porque a sua fé lhes
foi atribuída como justiça.
EXPOSIÇÃO 12 8

6. O nosso Salvador comeu a Páscoa com os seus discípulos na noite prescrita do 1325
décimo quarto dia. Ele realizou verdadeiramente o sinal da Páscoa para os seus discípulos.
Depois de Judas ter saído de ao pé deles, tomou o pão, abençoou-o e deu-o aos
seus discípulos, dizendo-lhes: Isto é o meu Corpo, tomai e comei todos dele. A seguir
fez o mesmo sobre o vinho... Foi antes de ser preso que nosso Senhor disse isto.
Depois levantou-se do lugar onde tinha celebrado a Páscoa, e dado o seu Corpo
a comer e o seu Sangue a beber. E foi para o lugar onde havia de ser preso. Com efeito,
aquele cujo Corpo comemos e cujo Sangue bebemos é contado entre os mortos...

6
Sobre a circuncisão.
7
Hebr 1, 1.
8
Sobre a Páscoa.
362 SÉCULO IV

Foi preso na noite do dia catorze e julgado até à hora sexta. Quando chegou a
hora sexta, condenaram-n’O, levaram-n’O e crucificaram-n’O...
1326 7. Expõe-nos, ó sábio, quais são esses três dias e essas três noites em que o nosso
Salvador esteve entre os mortos...
Na verdade, a partir do momento em que Ele deu o seu Corpo a comer e o seu
Sangue a beber, contam-se três dias e três noites... e na noite do primeiro dia da semana
ressuscitou de entre os mortos.
1327 8. A Páscoa dos Judeus é no décimo quarto dia, calculando ao mesmo tempo a noite
e o dia; a nossa, ao contrário, é no dia da Sexta-feira, isto é, no décimo quinto, noite e
dia juntos.
Israel, depois da Páscoa, comeu pão ázimo durante sete dias, até ao vigésimo
primeiro dia do mês; nós também observamos os ázimos, mas como solenidade do
nosso Salvador.
Eles comem os ázimos com ervas amargas; o nosso Salvador recusou o cálice
amargo e destruiu todo o azedume dos gentios, quando, depois de o ter provado, não
o quis beber.
Os Judeus fazem, ano após ano, a memória dos seus pecados; nós comemoramos
a crucifixão e os opróbrios do nosso Salvador.
Eles, na Páscoa, fugiram da escravidão do Faraó; nós, no dia da crucifixão, fomos
remidos da escravidão de Satanás...
A eles, Moisés deu-lhes o maná a comer; a nós, o nosso Salvador deu-nos o seu
Corpo...
1328 10. Israel foi mergulhado no mar a meio da noite, nesta noite de Páscoa, o dia da
salvação; nosso Senhor, na noite de Páscoa, lavou os pés dos seus discípulos, em
mistério do baptismo.
Deves saber, meu amigo, que foi durante essa noite que o nosso Salvador nos deu
o verdadeiro baptismo. Enquanto Ele ia e vinha com os seus discípulos, tinha o baptismo
da Lei com que os sacerdotes baptizavam, o baptismo de que fala João: Convertei-vos
dos vossos pecados. Mas, nessa noite, mostrou-lhes o mistério do baptismo, que é a
paixão da sua morte, como diz o Apóstolo: Fomos sepultados com Ele pelo baptismo
para a morte, e ressuscitámos com Ele para a força de Deus...
1329 12. Persuade-te disto e, por tua vez, persuade os irmãos, membros da tua Igreja, que
andam preocupados a propósito do tempo da Páscoa. Pensa nisso com rectidão, pois
estas coisas não são difíceis de compreender.
Se acontece que o dia de Páscoa, a Paixão do nosso Salvador, cai no primeiro dia
da semana (o domingo), é justo que, segundo a Lei, o celebremos no segundo dia,
passando a semana inteira na (memória da) Paixão e nos ázimos, até ao vigésimo
primeiro dia.
Se, ao contrário (o dia da) Paixão cai em qualquer outro dia da semana, não há
motivo para nos preocuparmos que dia é, porque o nosso dia de solenidade é o dia da
preparação.
Se tivermos em conta os dias do mês, o dia da crucifixão, no qual o nosso
Salvador padeceu e esteve entre os mortos um dia e uma noite, é o décimo quinto,
desde a hora sexta da Sexta-feira até ao romper da aurora do primeiro dia da semana;
Ele ressuscitou, portanto, no primeiro dia da semana, no décimo sexto dia.
De facto, ao despontar do décimo quarto dia comeu a Páscoa com os seus discí-
pulos segundo a lei hebraica; no décimo quarto dia, que era a preparação, foi julgado
até à sexta hora e permaneceu na cruz durante três horas; desceu aos infernos de noite,
antes do despontar do décimo quinto dia; passou o sábado, que é o décimo quinto dia,
AFRAATES, O SÁBIO PERSA 363

entre os mortos; na noite que precede o primeiro dia da semana, isto é, no décimo sexto
dia, ressuscitou, apareceu a Maria Madalena e aos dois discípulos que iam de viagem.
Compreenda, portanto, todo aquele que levanta controvérsias a propósito dos
dias, que o Senhor celebrou a Páscoa na noite do décimo quarto dia, comendo e bebendo
com os seus discípulos. Depois, a partir do cantar do galo, não comeu nem bebeu mais,
porque O prenderam e começaram o processo e, como te disse acima, passou o décimo
quinto dia entre os mortos, toda a noite e todo o dia.
13. Quando a nós, aquilo que nos é pedido é que observemos em cada ano a festa no 1330
tempo estabelecido, jejuando com pureza, orando com fé, louvando com assiduidade,
cantando salmos como convém, fazendo a entrega do sinal9 e administrando o baptismo
segundo o rito10, as bênçãos do Santo a seu tempo, e tudo o que se faz, segundo o
costume...
Fica inteirado do que te escrevi resumidamente; não te percas em discussões de
palavras, porque não trazem nenhum proveito; pelo contrário, conservemos puro o
coração, com o qual temos de guardar o mandamento e a solenidade daquele dia no
tempo estabelecido.
EXPOSIÇÃO 14 11

1. Quando estávamos todos reunidos, veio-nos a ideia de escrever esta carta a 1331
todos os nossos irmãos, os membros da Igreja, daqui ou de qualquer a parte. Nós,
bispos, presbíteros, diáconos e toda a Igreja de Deus, com todos os seus filhos daqui
e de toda a parte que existem entre nós, aos nossos irmãos muito amados e caríssimos,
bispos, presbíteros e diáconos, com todos os filhos da Igreja que há entre nós, e todo
o povo de Deus que está em Slêucia e Ctesifon, e em toda a parte, por nosso Senhor,
nosso Deus e nosso Vivificador, que nos deu a vida pelo Messias, que nos apresentou
a Ele, muita saúde.
EXPOSIÇÃO 23 12

3. Quando a porta se abriu e ele disse: «Paz», a obscuridade intelectual da multidão 1332
desapareceu: nascera o sol da inteligência e amadurecera o fruto da oliveira que dá a
luz, com o qual se faz a marca do sacramento da vida, e pelo qual se tornam perfeitos
os sacerdotes, os reis e os profetas que com ele são ungidos.
Ele ilumina as trevas, é aplicado aos fracos e aproxima do seu mistério escondido
aqueles que se convertem. Aos que se apressam em aproximar-se dele, instila-lhes o
seu sentido dentro dos ouvidos. Vêem com os seus próprios olhos e ouvem com os
seus próprios ouvidos, reproduzindo os aspectos que perceberam na meditação.
Eles apressam-se continuamente em ir ao seu encontro. Correm para a meta,
esquecendo o que fica para trás, e acabam por chegar a essa visão misteriosa que
receberam e provaram, e que reproduziu neles aquela melodia que os levou a fugir para
longe do Maligno.

9
Alusão ao rito da unção que na Síria precedia, em vez de seguir, o baptismo.
10
Segundo Afraates, o baptismo foi instituído juntamente com a Eucaristia, na noite de Páscoa, no lava-pés.
11
Sobre os argumentos.
12
Sobre o bago de uva.
364 SÉCULO IV

Pacómio

Regra 1
1333 3. Prefácio. Numa casa devem morar mais ou menos quarenta irmãos, que obedecerão
ao que está à frente2. Aquele que chegar em primeiro ao mosteiro, é o primeiro a sentar-
se, o primeiro a caminhar, o primeiro a dizer o salmo...
1334 5. Todos jejuam duas vezes por semana, na quarta-feira e na sexta-feira, excepto no
tempo da Páscoa e do Pentecostes...
1335 7. No conjunto dos mosteiros haverá um que é principal... Nos dias de Páscoa
todos se reunirão aí, excepto aqueles que forem precisos no mosteiro, para que sejam
quase cinquenta mil homens a celebrar simultaneamente a festividade do Domingo da
Paixão...
1336 3. Regra e exórdio dos preceitos. Quando o monge ouvir a voz da tuba a chamar
para a reunião, deve sair imediatamente da sua célula e vir até à porta do lugar do
ajuntamento, meditando nalguma palavra das Escrituras...
1337 4. Se o sinal soar de noite, não fique ao lume, como por vezes sucede para aquecer
o corpo...
1338 5. Se, por acaso, algum monge falar ou rir durante o tempo da salmodia ou da oração
ou no meio da leitura, deve desapertar imediatamente o cíngulo e pôr-se diante do altar,
de cabeça inclinada e com as mãos abaixadas até ao chão...
1339 9. Quando, durante o dia, a trombeta tocar para a reunião dos monges, se algum
chegar depois de uma oração, receberá uma repreensão do superior e ficará de pé no
refeitório.
1340 10. Se for de noite, como deve ter-se em atenção a fraqueza do corpo, aquele que
chegar depois de três orações será repreendido.
1341 17. No domingo e na Colecta, em que se deve oferecer a oblação, ninguém pode
começar a salmodia na ausência do Praeposito da casa ou dos superiores do mosteiro.
1342 20. Pela manhã, em todas as casas, terminadas as orações, os irmãos não irão ime-
diatamente para as suas células, mas dialogarão entre si, acerca daquilo que ouviram ao
Praeposito. A conferência será feita, três vezes por semana, pelos superiores das
casas, e, durante esta conferência, os irmãos, quer estejam sentados ou de pé, não
mudarão de lugar e guardarão o lugar marcado a cada casa e a cada um deles.
1343 28. Uma vez acabada a reunião dos irmãos, ao dirigirem-se às suas células ou ao
refeitório, todos meditarão um texto das Escrituras; e, durante o tempo desta meditação,
ninguém terá a cabeça coberta.
1344 29. Quando chegarem para comer, sentar-se-ão por ordem, em lugares marcados, e
cobrirão a cabeça.
1345 33. Se, enquanto estão à mesa, for precisa alguma coisa, ninguém se permitirá falar,
mas chamará a atenção dos que servem por meio de um sinal dado sobre a mesa.

1
PACÓMIO , Regula (=PG 40, 947-952; PL 23, 65-90; A. B OON , Pachomiana latina, Texte latin de S. Jerôme,
Louvain 1932; Lefort 1941). Pacómio deu início ao primeiro grande cenóbio, ou mosteiro de vida comu-
nitária, na Tebaida, na margem direita do rio Nilo, no ano 320. Depois fundou mais oito cenóbios de homens
e dois de mulheres. Era ele o abade geral de todas as fundações. Foi ele, portanto, o fundador do
cenobitismo. Morreu em 346.
2
Praeposito.
PACÓMIO 365

46. O doente não comerá com os outros irmãos, mas à parte. Dar-se-lhe-á comida em 1346
abundância, a fim de que não se entristeça.
56. Ninguém poderá ser enviado sozinho para fora do convento, a fim de tratar de 1347
um assunto, sem se lhe dar um companheiro.
58. Quando for dado o sinal de partir para o trabalho, o superior caminhará à frente, 1348
e ninguém ficará no mosteiro, excepto aquele a quem o pai tiver mandado. Nenhum
daqueles que vão para o trabalho perguntará para onde se vai.
59. Durante o trabalho, os irmãos não falarão de nada profano; mas meditarão uma 1349
passagem das Escrituras ou estarão calados.
81. Ninguém deve ter nada na sua casa ou na sua célula, além daquilo que é posto em 1350
comum e determinado pelo regulamento do mosteiro.
84. Ninguém pode sair para os campos, ou circular no mosteiro, ou ir para fora dos 1351
muros do mosteiro, sem ter pedido permissão ao superior e a ter obtido.
86. Aquele que fez uma viagem por estrada ou por barco, ou que andou a trabalhar 1352
no exterior, não deve contar no mosteiro nada do que viu.
140. Não pode haver ninguém no mosteiro que não aprenda a ler e que não conheça de 1353
cor alguma parte das Escrituras, ao menos do Novo Testamento e do Saltério... Seja-
mos assíduos aos salmos e à oração

Comunidades pacomianas 1

Ofício divino
1. No início das nossas sinaxes marcamo-nos com o sinal do baptismo. Fazemos o 1354
sinal da cruz nas nossas frontes, como no dia do baptismo, como está escrito no
Profeta: Vai pela cidade, atravessa Jerusalém e marca uma cruz na fronte dos homens
que gemem e se lamentam por causa das abominações que nela se praticam2. Não
marcamos a boca ou a barba, mas levamos a mão à fronte dizendo com o coração:
«Fomos marcados com o sinal». Este não é como o selo do baptismo, mas é o sinal da
cruz que foi traçado na fronte de cada um de nós no dia do baptismo. Quando é dado
o sinal para a oração, levantamo-nos imediatamente; e quando nos é dado o sinal de
ajoelhar, prostramo-nos imediatamente para adorar o Senhor, marcando-nos com sinal
antes de ajoelhar. Uma vez prostrados, choramos em nosso coração pelos nossos
pecados, tal como está escrito: Vinde, prostremo-nos em terra, adoremos o Senhor
que nos criou 3. Nenhum de nós deve, seja por que motivo for, levantar a cabeça

1
Comunidades pacomianas (=A. V EILLEUX , La liturgie dans le cénobisme pachômien au quatrième siècle,
Studia Anselmiana 57, Roma 1968).
2
Ez 9, 4.
3
Sal 94, 4.
366 SÉCULO IV

enquanto está de joelhos, pois de outro modo manifestaria uma grande falta de temor
e consciência.
Quando nos levantamos, fazemos o sinal da cruz, e depois de ter pronunciado a
oração do Evangelho, suplicamos ao Senhor, dizendo: «Senhor, infunde o teu temor em
nosso coração, para que possamos trabalhar pela vida eterna e ter temor de Ti». Cada
um de nós diga em seu coração com um profundo suspiro: «Quem pode conhecer os
seus erros? Purificai-me dos que me são ocultos. Preservai também do orgulho o
vosso servo, que ele não tenha sobre mim poder algum: então serei irrepreensível e
imune de culpa grave4. E: Criai em mim, Senhor, um coração puro, e fazei nascer
dentro de mim um espírito firme5».
Quando nos é dado o sinal para nos sentarmos, marcamos de novo as nossas
frontes com o sinal da cruz. Depois sentamo-nos e ficamos de coração e ouvidos
atentos às santas palavras que se recitam, de acordo com o que nos é mandado nas
Sagradas Escrituras: Meu filho, não te esqueças dos meus ensinamentos, guarda os
meus preceitos no teu coração6. E ainda: Meu filho, presta atenção à sabedoria, dá
ouvidos à inteligência7.

Fúrio Dionísio Filócalo

Cronógrafo de 354 8
DEPOSITIO EPISCOPORUM

1355 VI kal. ianuarias Dionisii, in Calisti sc. coemeterio (+ 269) [= 27 de Dezembro]


III kal. ianuar Felicis, in Calisti (+ 274) [= 30 de Dezembro]
prid. kal. ianuar Silvestri, in Priscillae (+ 335) [= 31 de Dezembro]

1356 Mense Januario


IIII idus ianuarias Miltiadis, in Calisti (+ 314) [= 10 de Janeiro]
XVIII kal. feb Marcellini, in Priscillae (+ 304) [= 15 de Janeiro]

1357 Mense Martio


III non. mar Luci, in Calisti (+255) [= 5 de Março]

1358 Mense Aprile


X kal. mai. Gai, in Calisti (+ 296) [= 22 de Abril]

1359 Mense Augusto


IIII non. augustas Steffani, in Calisti (+ 255 ou 257) [= 2 de Agosto]
4
Sal 18B, 13-14.
5
Sal 50, 12.
6
Prov 3, 1.
7
Prov 5, 1.
8
FURII D IONYSII P HILOCALI , Cronógrafo de 354 (=PL 13, 464; 127, 121; T H. M OMMSEN , Collectio librorum
iuris anteiustiniani; L. D UCHESNE , in Liber Pontificalis (2ª ed. por C. VOGEL -E. DE B OCCARD, 3 vol., I, Paris
1955-1957). Este calendário deve ter começado a ser constituído em 336 e foi terminado em 354. Tem duas
listas: uma Depositio Episcoporum e uma Depositio Martyrum, que se publicam tal como aí se encontram:
Calendas = é o dia 1 do mês; Nonas = é o nono dia antes dos Idos (dia 5 nos meses de Janeiro, Fevereiro, Abril,
Junho, Agosto, Setembro, Novembro e Dezembro, ou dia 7 nos meses de Março, Maio, Julho e Outubro); Idos = é
o dia 13 do mês. Contém ainda uma lista dos cônsules, dos prefeitos e dos bispos de Roma, uma tabela da festa da
Páscoa, uma descrição da cidade e duas crónicas. As datas entre [=] foram acrescentadas por nós.
FÚRIO DIONÍSIO FILÓCALO 367

Mense Septembre 1360


VI kal. octob. Eusebii, in Calisti (+ 310) [= 26 de Setembro]

Mense Decembre 1361


VI id. decemb. Eutichiani, in Calisti (+ 283) [= 8 de Dezembro]

Mense Octobre 1362


non. octob. Marci, in Balbinae (+ 336) [= 7 de Outubro]

Mense Aprile 1363


prid. idus apr. Iuli, in via Aurelia, miliario III, in Calisti (+ 352) [= 12 de Abril]

DEPOSITIO MARTYRUM

VIII kal. ianu. natus Christus in Betleem Iudeae [= 25 de Dezembro] 1364

Mense Ianuario 1365


XIII kal. feb. Fabiani (+ 250) in Calisti et Sebastiani in Catacumbas [= 20 de
Janeiro]
XII kal. feb. Agnetis in Nomentana [= 21 de Janeiro]

Mense Februario 1366


VIII kal. mart. natale Petri de cathedra [= 22 de Fevereiro]

Mense Martio 1367


non. mart. Perpetuae et Felicitatis, Africae [= 7 de Março]

Mense Maio 1368


XIIII kal. iun. Partheni et Caloceri in Calisti, Diocletiano VIIII et Maximiniano
VIII cons. (304) [= 19 de Maio]

Mense Iunio 1369


III kal. iul. Petri in Catacumbas, et Pauli Ostense, Tusco et Basso cons.
(258, ano da transladação dos corpos santos) [= 29 de Junho]

Mense Iulio 1370


VI id. iul. Felicis et Filippi in Priscillae; et in Iordanorum, Martialis,Vitalis,
Alexandri; et in Maximi, Silani; hunc Silanum martirem Novati
furati sunt; et in Praetextati, Ianuarii [= 10 de Julho]
III kal. aug. Abdos et Semnes in Pontiani, quod est Ursum piliatum [= 30 de
Julho]

Mense Augusto 1371


VIII id. aug. Xysti in Calisti (+ 258); et in Praetextati, Agapiti et Felicissimi
[= 6 de Agosto]
VI id. aug. Secundi, Carpophori, Victorini et Severiani, Albano; et Ostense
VII ballistaria, Cyriaci, Largi, Crescentiani, Memmiae, Iulianae
et Smaragdi [= 8 de Agosto]
III id. aug. Laurenti in Tiburtina [= 10 de Agosto]
id. aug. Ypoliti in Tiburtina et Pontiani in Calisti (+ 235) [= 13 de Agosto]
XI kal. sept. Timotei, Ostense [= 22 de Agosto]
V kal. sept. Hermetis in Basillae, Salaria vetere [= 28 de Agosto]
368 SÉCULO IV

1372 Mense Septembre


non. sept. Aconti in Porto, et Nonni et Herculani et Taurini [= 5 de Setem-
bro]
V id. sept. Gorgoni in Labicana [= 9 de Setembro]
III id. sept. Proti et Iacincti in Basillae [= 11 de Setembro]
XVIII kal. octob. Cypriani Africae. Roma celebratur in Calisti [= 14 de Setembro]
X kal. octob. Bassillae, Salaria vetere, Diocletiano VIIII et Maximiano VIII
cons. (304) [= 22 de Setembro]
1373 Mense Octobre
prid. id. octob. Calisti in via Aurélia (+ 223), miliario III [= 14 de Outubro]

1374 Mense Novembre


V id. nov. Clementis (+ 101), Semproniani, Claudi, Nicostrati in comitatum
[= 9 de Novembro]
III kal. dec. Saturnini in Trasonis [= 29 de Novembro]
1375 Mense Decembre
id. dec. Ariston in Portum [= 13 de Dezembro]

Cânones de Hipólito 1
1376 1. Aquele que baptiza diz de cada vez: «Eu te baptizo em nome do Pai e do Filho
e do Espírito Santo, Trindade santa que é igual 2».
1377 3. Se houver azeite, o bispo ora sobre ele desta maneira, ainda que não seja com as
mesmas palavras, mas com a mesma significação.
1378 19. Então lê-se sobre o catecúmeno o Evangelho daquele tempo... Os que vão ser
baptizados devem tomar banho na quinta-feira e comer. Mas na sexta-feira jejuam. No
sábado, o bispo convoca aqueles que vão ser baptizados, e diz-lhes que ajoelhem com
o rosto voltado para o Oriente e, estendendo as mãos sobre eles, ora, para que o
espírito maligno seja expulso de todos os seus membros... Depois de terminar as suas
invocações, sopra-lhes no rosto e faz-lhes o sinal da cruz no peito e na fronte, nos
ouvidos e na boca. Eles passam toda a noite em vigílias, ocupados a ouvir sermões
sagrados e orações. Por volta do canto do galo, põem-se de pé junto da água pura do
mar, preparada, sagrada. Os que respondem em vez das crianças pequeninas, despem-nas
das suas roupas...
1379 21. Para os doentes cujo estado de saúde não é grave nem próximo da morte, será um
remédio para eles irem à igreja receber a água da oração e o óleo da oração.
1380 22. Se alguém estiver doente ou numa região onde não há cristãos e vier a cessar o
tempo da Páscoa sem que ele tenha conhecido a data fixada, ou por causa duma doença,
estes últimos devem jejuar depois da cinquentena e celebrar a Páscoa com honestidade.

1
Canones Hippolyti (=R. C OQUIN , Les Canons d’Hippolyte, Paris, Didot 1965; J. M. H ANSSENS , La Liturgie
d’Hippolyte, Roma 1970). Os Cânones de Hipólito devem ter sido redigidos por volta dos anos 341-360,
no Egipto.
2
Ego te baptizo in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti, sancta Trinitas, qui aequalis est.
CÂNONES DE HIPÓLITO 369

A sua intenção deve ser clara: não foi por falta de temor que retardaram; se jejuam a
fazem a sua própria Páscoa, não é para estabelecer um outro princípio diferente da-
quele que foi estabelecido.
24. O enfermo sente-se aliviado da sua doença quando o bispo vai visitá-lo, sobretudo 1381
quando ora sobre ele, porque a sombra de Pedro curou os doentes, – a não ser que ele
tenha chegado ao fim.
25. Todos os que pertencem à ordem dos cristãos, em primeiro lugar orem naquele 1382
momento da manhã em que se levantam do sono...
26. Se houver uma reunião na igreja por causa da palavra de Deus, cada qual se deve 1383
dirigir para lá sem demora, a fim de se reunir para isso...; devemos ir à igreja nos dias
em que aí se fazem orações.
27. Nos dias em que não se ora na igreja, toma a Escritura e lê-a. Que o sol da manhã 1384
te encontre com a Escritura sobre os joelhos. Rezem na hora tércia, porque nesse
momento o Salvador sofreu a crucifixão voluntariamente para nos salvar, para nos
restituir a liberdade. Depois rezai também na hora sexta, porque nessa hora todas as
criaturas ficaram perturbadas por causa do crime perpetrado pelos Judeus. Rezem
novamente na hora nona, porque nessa hora Cristo orou e entregou o seu espírito nas
mãos do Pai. Rezem ainda na hora em que o sol se põe, porque é a completio do dia.
Seja qual for o tempo em que o cristão ora, lava sempre as mãos... Preocupe-se também
cada qual em orar, com grande diligência, a meio da noite, pois os nossos pais disseram
que naquela hora toda a criação se prepara para o serviço da glória divina, que as
ordens dos Anjos e as almas dos justos bendizem a Deus, segundo aquela palavra do
Senhor, quando disse: A meio da noite ouviu-se um clamor: Eis que vem o Esposo; saí
ao seu encontro. Por fim, no momento em que o galo canta, devem estabelecer-se
orações nas igrejas, porque o Senhor disse: Vigiai, porque não sabeis a hora em que o
Filho do homem virá, se ao canto do galo, se de madrugada.
32. Se alguém preparar um ágape ou uma ceia para os pobres, no dia do Senhor, no 1385
momento de acender a candeia, se o bispo estiver presente, levante-se o diácono e
acenda-a. Então o bispo ora sobre eles e sobre aquele que os convidou...
33. Antes de saírem, recitem salmos... 1386
34. Quando o bispo fala sentado, os outros ganham com isso... 1387
35. Se, na ausência do bispo, estiver presente um presbítero, todos se voltam para 1388
ele... No ágape em que o presbítero está ausente, é o diácono que faz as vezes do
presbítero, no diz respeito à oração e à fracção do pão.
38. A noite da ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo deve ser celebrada com o 1389
maior cuidado. Nesta noite ninguém deve dormir antes da aurora. Lavai os vossos
corpos antes de descer para a Páscoa e que toda a gente esteja na luz.
203. Os leitores devem usar vestes festivas e estar no lugar da leitura e acolher uns e 1390
outros até que todo o povo se reúna.
217. Reúnam-se todos os dias na igreja o presbítero, os subdiáconos e os leitores 3 e 1391
todo o povo, ao canto do galo, e digam preces, salmos e leituras das Escrituras, com
orações, segundo a ordem dos Apóstolos...

VIII

48. Quem for constituído leitor deve ter as virtudes do diácono; não se lhe impõe a 1392
mão, mas o bispo entrega-lhe o livro.

3
upodiako/ n oi kai\ a) n agnw/ s tai .
370 SÉCULO IV

Júlio Fírmico Materno

Sobre o erro das religiões profanas 1


1393 19. 1 Comi do tímpano, bebi do címbalo e assim aprendi para sempre os segredos da
religião2... 2 Há outro alimento que dá salvação e vida; há outro alimento que entrega e
devolve o homem ao Deus supremo; há outro alimento que fortalece os fracos, coloca
os errantes no caminho, levanta os que caíram, dá aos que morrem as arras da imorta-
lidade eterna. Procura o pão de Cristo, procura o cálice de Cristo para que, esquecida
a fragilidade terrena, o ser profundo do homem se alimente com a comida imortal. Que
pão é este, que cálice é este, acerca dos quais a sabedoria exclama em alta voz nos livros
de Salomão, dizendo: Vinde e comei do meu pão, bebei o vinho que misturei3?...
Diz o Espírito Santo, por meio de Isaías4, que este pão divino é entregue por
Deus a homens consagrados... Dizem-no os versículos sagrados do salmo trinta e três,
onde o Espírito Santo afirma por David: Provai e vede como o Senhor é bom. É doce
o manjar celeste, doce o alimento de Deus, que não tem em si o triste tormento da fome
e afasta das entranhas dos homens o vírus do veneno anterior...
Tu, que entras no templo vestido de toga branca 5, que brilhas pela púrpura, que
levas a cabeça cingida de ouro ou de louro, estás despido... Aquele pobre a quem
desprezas é muito rico, e Abraão está a preparar-lhe um lugar no seu seio. Então tu,
por entre os restos das chamas, pedir-lhe-ás uma gota de água para mitigar as feridas da
tua consciência, mas Lázaro, mesmo que queira, não poderá dar-te nem pedir para ti
qualquer alívio, porque os méritos de cada um apreciam-se com medida igual...
Para que se manifeste mais claramente a qualidade daquele pão..., o próprio
Senhor o indicou com a sua santa e venerável boca, a fim de que a esperança dos
homens não seja enganada por tantas más interpretações de alguns escritos. Diz o
Evangelho segundo João: Eu sou o pão da vida; quem vem a Mim nunca mais terá
fome, e quem crê em Mim nunca mais terá sede. E a seguir diz coisas idênticas com
estas palavras: Se alguém tem sede, venha a Mim; e quem crê em Mim que sacie a sua
sede. E de novo, ao entregar aos crentes a majestade da sua substância, disse: Se não
comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida
em vós. Por isso, não queirais nada com o tímpano nem com o alimento do ódio, homens
mortais. Buscai a graça do alimento salvador e bebei o cálice imortal. Cristo leva--vos à
luz com o seu banquete e dá vida aos membros doentes e entorpecidos pelo veneno
mortal. Renovai com o alimento celeste o homem perdido, para que o que em vós está
morto torne a viver pelos divinos favores. Aprendestes o que vos convém fazer.
Escolhei o que quiserdes. Daquilo resultará a morte, disto, a vida eterna.

1
JÚLIO F ÍRMICO M ATERNO , De errore profanarum religionum (=PL 12, 981-1050; CSEL 2). O autor morreu
depois de 360.
2
Aos iniciados dava-se-lhes a comer e a beber, servindo-se dos instrumentos que se utilizavam para a música
da orgia. Que comidas seriam? Pão e vinho, segundo uns; ervas e leite, segundo outros.
3
Prov 9, 5.
4
Is 65, 13. 15.
5
A pretexta de que fala o texto, era uma toga branca, orlada de púrpura, usada em Roma por altos funcionários
e jovens patrícios.
SERAPIÃO DE THEMUIS 371

Serapião de Themuis

Eucológio 1

LITURGIA EUCARÍSTICA

1. Primeira oração do domingo. 1 Nós Te pedimos, Pai do Filho unigénito, Senhor 1394
de todas as coisas, Criador de todo o universo, Autor de tudo o que existe; elevamos
para Ti, Senhor, as nossas mãos puras e os nossos corações. 2 Nós Te pedimos: tem
piedade, perdoa, faz-nos bem, corrige, faz-nos crescer em força, em fé e em sabedoria.
3 Lança os olhos sobre nós, Senhor, que Te apresentamos as nossas fraquezas. Concede
o teu perdão e a tua misericórdia a todos nós aqui reunidos; tem piedade do teu povo,
concede-lhe que seja bom, sábio e puro; envia os poderes angélicos para que todo o teu
povo seja reconhecido santo e imaculado. 4 Peço-Te que envies o teu Espírito Santo às
nossas almas e nos faças compreender as Escrituras, inspiradas por Ele; dá-nos a graça
de as interpretar com pureza e dignidade, para que todos os fiéis aqui reunidos tirem
proveito delas. Pelo teu Filho unigénito, Jesus Cristo, no Espírito Santo. Por Ele Te
sejam dados glória e poder, agora e pelos séculos dos séculos. Amen.
2. Oração depois de se levantarem da homilia. 1 Deus Salvador, Deus do universo, 1395
Soberano e Criador de tudo quanto existe, Pai do Unigénito, que geraste a tua imagem
viva e verdadeira, a enviaste para socorrer o género humano e por ela chamaste e
conquistaste os homens; 2 nós Te pedimos por este povo: envia o Espírito Santo e
venha visitá-lo o Senhor Jesus; que Ele fale aos espíritos de todos, disponha os cora-
ções para a fé2; 3 Ele conduza para Ti as nossas almas, Deus das misericórdias; toma
também posse do teu povo nesta cidade, forma um rebanho escolhido, pelo teu Filho
unigénito, Jesus Cristo, no Espírito Santo. Por Ele Te sejam dados glória e poder, agora
e pelos séculos dos séculos. Amen.
3. Oração pelos catecúmenos. 1 Salvador e Mestre de todos os homens, Libertador 1396
dos libertos, Protector dos resgatados, Esperança dos que estiveram sob a tua mão
poderosa! Foste Tu que aniquilaste a iniquidade; pelo teu Filho unigénito destruíste as
obras de Satanás, desarmaste os seus artifícios, e libertaste aqueles que ele tinha
prendido. 2 Nós Te damos graças pelos catecúmenos, porque os chamaste pelo teu
Filho unigénito e lhes concedestes em abundância o teu conhecimento. 3 Por isso Te
pedimos: torna-os seguros no conhecimento, para que Te conheçam, a Ti, único verda-
deiro Deus, e Aquele que enviaste, Jesus Cristo, e se conservem puros, graças aos teus
ensinamentos, e progridam. Torna-os dignos do banho do novo nascimento e dos teus
mistérios sagrados, pelo teu Filho unigénito, Jesus Cristo, no Espírito Santo. Por Ele
Te sejam dados glória e poder, agora e em todos os séculos dos séculos. Amen.
4. Bênção dos catecúmenos3. 1 Para Ti, Senhor, estendemos as nossas mãos e Te 1397
pedimos que Te dignes estender as tuas mãos divinas e vivificantes para abençoar este
povo. Diante de Ti, Pai incriado, pelo teu Filho unigénito, eles inclinaram as suas

1
Euchologium Serapionis (=F. X. FUNK , Paterbornae 1905, Turim 1962 2; E. L ODI , Roma 1979, 329-354; A.
H AMMAN, Prières des premiers chrétiens, Paris 1952. 1981 2). Serapião foi bispo de Themuis, no Baixo
Egipto. Já era bispo em 342. Morreu depois de 362. Foi amigo e defensor de Atanásio.
2
Esta oração pressupõe a presença de pessoas ainda não baptizadas, catecúmenos ou simples simpatizantes.
3
Esta bênção, sem dúvida pronunciada no momento da despedida dos catecúmenos, termina a primeira parte
da missa, que corresponde à nossa Liturgia da Palavra.
372 SÉCULO IV

cabeças. 2 Seja a tua bênção, para este povo, graça de conhecimento4 e de piedade,
graça que deriva dos teus mistérios, pelo teu Filho unigénito, Jesus Cristo. Por Ele Te
sejam dados glória e poder no Espírito Santo, agora e por todos os séculos dos séculos.
Amen.
1398 5. Oração dos fiéis5. 1 Nós Te confessamos, Deus, que amas os homens, e Te
apresentamos a nossa fraqueza, pedindo que sejas a nossa força. 2 Perdoa-nos os
nossos pecados passados, esquece as nossas faltas de outrora, faz de nós homens
novos. 3 Torna-nos teus servos, puros e sem mancha, a nós que nos consagramos a Ti;
aceita-nos, Deus de verdade, recebe o teu povo, e torna-o todo sem pecado; faz que ele
viva na rectidão e na inocência, que sejam dignos de ser contados entre os Anjos, e que
todos sejam eleitos e santos.
4 Nós Te pedimos por aqueles que têm fé e que reconheceram o Senhor Jesus
Cristo; sejam fortalecidos na fé, no conhecimento e na doutrina.
5 Nós Te pedimos por todo este povo; sê clemente para com todos; manifesta-Te
e mostra a tua luz; todos Te reconheçam como Pai incriado, assim como o teu Filho
unigénito, Jesus Cristo.
6 Nós Te pedimos por todas as autoridades; o seu governo seja pacífico, para
tranquilidade da Igreja católica.
7 Nós Te pedimos, Deus das misericórdias, pelos homens livres e pelos escravos,
pelos homens e pelas mulheres, pelos velhos e crianças, pelos pobres e pelos ricos;
mostra a todos a tua benevolência e sobre todos estende a tua bondade; tem piedade de
todos e conduz para Ti os seus caminhos.
8 Nós Te pedimos por todos os viajantes; envia-lhes o Anjo da paz6 para que os
acompanhe, a fim de não lhes acontecer mal nenhum de parte nenhuma; possam levar
a bom termo, com grande segurança, a sua navegação e a sua viagem.
9 Nós Te pedimos por aqueles que sofrem, pelos cativos e pelos infelizes;
fortalece-os a todos, liberta-os das suas cadeias, da sua miséria; conforta-os a todos,
Tu que és o conforto e a consolação.
10 Nós Te pedimos pelos doentes; dá-lhes a saúde e a cura dos seus males;
concede-lhes uma saúde perfeita do corpo e da alma.
11 Tu és o Salvador e o Benfeitor, Tu és o Senhor e o Rei de todos. Dirigimos-Te
a nossa oração por todos, pelo teu Filho unigénito, Jesus Cristo. Por Ele Te sejam
dados a glória e o poder no Espírito Santo, agora e pelos séculos dos séculos. Amen.
1399 6. Bênção dos leigos. 1 Estenda-se sobre as cabeças inclinadas deste povo a mão da
vida e da pureza, a mão do Filho unigénito, a mão que elimina todos os nossos males,
e que dá saúde e protecção. 2 Sobre este povo se difunda a bênção do Espírito, a
bênção do Céu, a bênção dos Profetas e dos Apóstolos; por ela sejam guardados os
corpos na pureza e na castidade, as almas no estudo, no conhecimento e nos mistérios.
Todos juntos sejam abençoados pelo teu Filho unigénito7, Jesus Cristo. Por Ele Te
sejam dados glória e poder, no Espírito Santo, agora e por todos os séculos dos
séculos. Amen.
1400 7. Oração pelos doentes. 1 Nós Te pedimos, Intendente, Senhor, Autor do corpo e
Criador da alma; Tu fizeste o homem, administras, governas e salvas todo o género
humano, reconcilias e pacificas pela tua bondade; 2 sê propício, Senhor; socorre e cura

4
A palavra conhecimento é muito utilizada por Serapião, e designa a ciência mais elevada de Deus.
5
Oração litânica cuja utilização deve ser muito antiga. Ver a oração de Clemente de Roma e as Constituições
Apostólicas, VIII, 12.
6
Faz-se menção do Anjo da paz nas Constituições Apostólicas, VIII, 36 e 38.
7
A oração pede ao Pai que o seu Filho dê a bênção.
SERAPIÃO DE THEMUIS 373

todos os doentes; expulsa as doenças e levanta os que estão abatidos; glorifica o teu
nome santo, pelo teu Unigénito, Jesus Cristo. Por Ele Te sejam dados glória e poder no
Espírito Santo, agora e pelos séculos dos séculos. Amen.
8. Bênção (xeiroqesi/a) para os doentes. 1 Senhor, Deus das misericórdias, digna- 1401
-Te estender a tua mão para curar todos os doentes; torna-os dignos da saúde; livra-os
da doença presente. 2 Sejam curados em nome do teu Filho unigénito; este nome
sagrado seja o remédio que os torne sãos e salvos. Por Ele Te sejam dados glória e
poder, no Espírito Santo, agora e pelos séculos dos séculos. Amen.
9. Oração pelos bens da terra. 1 Criador do céu e da terra, que adornaste o céu com 1402
uma coroa de estrelas e o iluminaste com astros luminosos; que encheste a terra de
frutos para o serviço dos homens, quiseste que o género humano, criado por Ti, se
alegrasse com a luz e a claridade dos astros e se alimentasse com os produtos do solo;
2 nós Te pedimos que nos envies chuvas muito abundantes, e dês à terra uma rica
colheita e grande fertilidade, por causa da tua bondade e benignidade. 3 Lembra-Te
daqueles que Te invocam; seja honrada a tua Igreja católica, santa e única, escuta as
nossas orações e as nossas súplicas e abençoa a terra inteira pelo teu Filho unigénito,
Jesus Cristo. Por Ele Te sejam dados glória e poder, no Espírito Santo, em todos os
séculos dos séculos. Amen.
10. Oração pela Igreja. 1 Senhor, Deus dos séculos, Deus dos seres dotados de 1403
razão, Deus das almas puras e dos que Te invocam na sinceridade e na pureza, que Te
manifestas no céu e Te fazes conhecer aos espíritos puros, que és celebrado na terra
pelos nossos hinos e habitas na Igreja católica, que és louvado pelos santos Anjos e
pelas almas puras, e fizeste do próprio Céu um coro vivo para glorificar e louvar a
verdade: 2 concede à tua Igreja que seja viva e pura e tenha as Virtudes celestes e os
santos Anjos ao seu serviço, para que possa celebrar-Te com os seus cânticos em
pureza 8. 3 Nós Te pedimos por todos os homens desta Igreja: concede a todos a
reconciliação, o perdão e a remissão de todos os pecados; concede-lhes a graça de
nunca mais pecarem; sê a sua muralha e afasta toda a tentação. 4 Tem piedade dos
homens, das mulheres e das crianças; manifesta-Te a todos; nós Te pedimos que o teu
conhecimento esteja escrito nos seus corações pelo teu Filho unigénito. Por Ele Te
sejam dados glória e poder, agora e por todos os séculos dos séculos. Amen.
11. Oração pelo bispo e pela comunidade cristã. 1 Nós Te invocamos, Salvador e 1404
Senhor Deus de toda a carne e Soberano de todo o espírito, Dispensador bendito de
toda a bênção: santifica o nosso bispo, protege-o de toda a tentação, dá-lhe sabedoria
e conhecimento e condu-lo pelos teus caminhos. 2 Nós Te pedimos também pelos
presbíteros9 que o assistem: santifica-os, concedendo-lhes a sabedoria, o conhecimento
e uma doutrina segura; e faz que eles nos dispensem a tua verdade com rectidão e sem
mancha. 3 Nós Te pedimos também pelos diáconos, para que assegurem o seu serviço
com uma consciência recta e velem pelo teu Corpo sagrado e o teu Sangue precioso. 4
Pedimos também pelos subdiáconos 10, os leitores 11 e os intérpretes12: fortalece todos
os ministros da Igreja e a todos concede piedade, misericórdia e progresso. 5 Nós Te
pedimos pelos que levam vida eremítica e pelos que guardam a virgindade, para que
terminem a sua carreira sem falta e as suas vidas sejam sem incidente, a fim de que
possam viver todos os seus dias na pureza e na santidade. 6 Tem piedade de todos os
que vivem em matrimónio, homens e mulheres, bem como dos seus filhos: concede a

8
As palavras pura ou pureza aparecem seis vezes nesta oração.
9
sumpresbu/ t erwn .
10
u( p odiako/ n wn .
11
a) n agnwstw= n .
12
e( r mene/ w n . Trata-se daqueles que traduzem o texto para os que não entendem a língua na qual são lidos
pelos leitores.; cf. Etéria, Diário de viagem, 47.
374 SÉCULO IV

todos a graça de progredirem e se emendarem, para que todos se tornem homens vivos
e eleitos, pelo teu Filho unigénito, Jesus Cristo. Por Ele Te sejam dados glória e poder
no Espírito Santo, agora e pelos séculos dos séculos. Amen.
1405 12. Oração da genuflexão ou da bênção final. 1 Pai do Filho unigénito, cheio de
bondade e de misericórdia, Tu amas os homens e as almas e enches com os teus
benefícios todos aqueles que se voltam para Ti: aceita a nossa oração, dá-nos o teu
conhecimento, a fé, a piedade e a santidade. 2 Reprime todo o movimento desregrado
ou sensual, toda a falta do teu povo; faz com que todos sejam puros e perdoa a todos
os seus pecados. 3 Dobramos os joelhos diante de Ti, Pai incriado: pelo teu Filho
unigénito, torna rectos os nossos espíritos e prontos a servir; dá-nos a graça de Te
procurar e de Te amar, de perscrutar e de aprofundar as tuas palavras divinas; estende-nos
a mão e volta a pôr-nos de pé; 4 levanta-nos, Deus das misericórdias; ajuda-nos a
olhar, abre os nossos olhos, dá-nos confiança, não permitas que tenhamos de corar ou
sentir vergonha ou de nos acusarmos; 5 destrói o documento redigido contra nós,
escreve os nossos nomes no livro da vida, conta-nos no número dos teus Profetas e
Apóstolos, pelo teu Filho unigénito, Jesus Cristo. Por Ele Te sejam dados glória e
poder, agora e por todos os séculos dos séculos. Amen.
ORAÇÃO EUCARÍSTICA

1406 13. Oração da oblação. Louvor e acção de graças13. 1 É digno e justo louvar-Te,
cantar-Te, glorificar-Te a Ti, Pai incriado do Filho unigénito Jesus Cristo. 2 Nós Te
louvamos, Deus incriado, imperscrutável, inefável, incompreensível a toda a natureza
criada. 3 Nós Te louvamos a Ti, que és conhecido pelo Filho unigénito, a Ti que por ele
és anunciado, interpretado e dado a conhecer à natureza criada. 4 Nós Te louvamos a
Ti, que conheces o Filho e revelas aos santos as glórias que Lhe dizem respeito, a Ti
que és conhecido pelo Logos que geraste, a Ti que és revelado aos santos. 5 Nós Te
louvamos, Pai invisível, dador da imortalidade. Tu és a fonte da vida, a fonte da luz, a
fonte de toda a graça e de toda a verdade. Amigo dos homens, amigo dos pobres,
propício a todos, Tu os atrais a todos para Ti pela vinda do teu Filho muito amado.
6 Nós Te pedimos que faças de nós homens vivos. Dá-nos o Espírito de luz, a
fim de que Te conheçamos a Ti, o verdadeiro, e Àquele que enviaste, Jesus Cristo. Dá-nos
o Espírito Santo, a fim de que possamos dizer e contar os teus mistérios inefáveis. 7
Fale em nós o Senhor Jesus, com o Espírito Santo: celebre-Te Ele por nós.
Introdução ao Sanctus. 8 Porque Tu estás acima de todo o Principado, Autoridade,
Potestade e Dominação, acima de todo o nome, não só neste mundo, mas também no
mundo que há-de vir. 9 Mil milhares e dez mil miríades de Anjos, de Arcanjos, de
Tronos, de Dominações, de Principados, de Potestades Te assistem e, sobretudo, os
dois Serafins muito veneráveis de seis asas, com duas das quais cobrem o rosto, com
duas os pés e com as outras duas voam; eles cantam a tua santidade; 10 recebe a nossa
aclamação com a sua, quando dizemos: Santo, Santo, Santo, Senhor Sabaoth; o céu e a
terra estão cheios da tua glória maravilhosa.
Epiclese I. 11 O céu está cheio, a terra está cheia da tua glória maravilhosa;
Senhor das Potestades, enche também este sacrifício com a tua força e comunicação.
Porque a Ti oferecemos este sacrifício vivo, esta oblação incruenta.
Narração da instituição e anamnese. 12 A Ti oferecemos este pão, figura do
Corpo do teu Filho unigénito. Este pão é a figura do sagrado Corpo, porque o Senhor
Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão, partiu-o e deu-o aos seus discípulos,
dizendo: Tomai, comei dele todos: Isto é o meu Corpo, entregue por vós para remissão

13
Para tonar mais clara a apresentação da Oração da oblação, acrescentámos os subtítulos em itálico; cf. n. 4715.
SERAPIÃO DE THEMUIS 375

dos pecados. 13 Por isso nós, celebrando o memorial da sua morte, oferecemos este
pão e pedimos: por este sacrifício sê propício a todos nós, sê propício a nós, ó Deus
de verdade. E, como este pão, outrora disseminado pelas colinas, foi recolhido para se
tornar uno, reúne também a tua santa Igreja, de toda a raça, de todo o país, de toda a
cidade, de todo o povoado, de toda a casa, e faz dela a Igreja una, viva e católica.
14 E oferecemos-Te também este cálice, figura do Sangue, porque o Senhor Jesus
Cristo, tendo tomado um cálice depois da refeição, disse aos seus discípulos: Tomai,
bebei, esta é a nova Aliança, este é o meu Sangue, derramado por vós para remissão dos
pecados. Por isso nós oferecemos este cálice, figura do Sangue.
Epiclese II. 15 Deus de verdade, venha o teu santo Logos14 sobre este pão, para
que o pão se torne o Corpo do Logos, e sobre este cálice, para que o cálice se torne o
Sangue da verdade. E faz que todos os que dele participam recebam o remédio de vida,
para obter a cura de toda a enfermidade, para a confirmação de todo o progresso e de
toda a virtude, e não para sua condenação, Deus de verdade, nem para sua vergonha ou
confusão.
Intercessões. 16 Invocámos-Te a Ti, o Incriado, pelo Filho unigénito, no Espírito
Santo. Usa de piedade com este povo, torna-o digno de progresso, e que os Anjos que
assistem o povo triunfem sobre o Maligno e edifiquem a Igreja.
17 Pedimos-Te também por todos os defuntos, dos quais fazemos memória. 18
Depois de enunciar os nomes: Santifica estas almas, pois Tu conhece-las a todas.
Santifica todas aquelas que adormeceram no Senhor. Conta-as a todas entre o número
das tuas santas Potestades. Dá-lhes um lugar e uma morada no teu Reino.
19 Recebe também a acção de graças do povo. Abençoa os que trouxeram as
oblações e as Eucaristias e dá saúde, integridade, alegria e prosperidade de alma e de
corpo a todo este povo.
Doxologia. Pelo teu Filho unigénito, Jesus Cristo, no Espírito Santo, como era,
é e será, de geração em geração e em todos os séculos dos séculos.
Povo. Amen.
14. Oração para a fracção do pão. 1 Torna-nos dignos desta comunhão, Deus da 1407
verdade, e dá castidade aos nossos corpos, e às nossas alma inteligência e conhecimento;
2 faz-nos sábios, Deus de misericórdia, pela participação no Corpo e no Sangue,
porque a Ti pertencem a glória e o poder, pelo teu Filho unigénito, no Espírito Santo,
agora e pelos séculos dos séculos. Amen.
15. Bênção do povo depois da fracção. 1 Estendo a mão sobre o povo e peço-Te que 1408
estendas a mão da verdade sobre esta assembleia, para que ela seja abençoada pela tua
bondade, Deus das misericórdias, e pelos mistérios aqui presentes: 2 a mão da tua
prudência e do teu poder, a mão que corrige e purifica, a mão de toda a santidade
abençoe este povo e lhe dê a graça de progredir e de se emendar, pelo teu Filho
unigénito, Jesus Cristo, no Espírito Santo, agora e pelos séculos dos séculos. Amen.
16. Oração depois da comunhão do povo. 1 Nós Te damos graças, Soberano, porque 1409
fizeste ouvir o teu apelo àqueles que tinham caído, escolheste como discípulos aqueles
que tinham pecado, e não levaste em conta a condenação que pesava sobre nós. Em tua
bondade, perdoaste-a, para nossa conversão, aboliste-a, pelo conhecimento sobrenatural,
apagaste-a. 2 Nós Te damos graças, porque nos fizeste participar no Corpo e no
Sangue. 3 Abençoa-nos, abençoa este povo; faz-nos entrar em participação com o
Corpo e o Sangue, pelo teu Filho unigénito. Por Ele Te sejam dados glória e poder, no
Espírito Santo, agora e por todos os séculos dos séculos. Amen.

14
Excepcionalmente, esta epiclese não pede a vinda do Espírito Santo, mas do Logos.
376 SÉCULO IV

1410 17. Oração para o óleo e a água oferecidos15. 1 Em nome do teu Filho unigénito,
Jesus Cristo, abençoamos estas coisas criadas; invocamos sobre este óleo e sobre esta
água o nome d’Aquele que sofreu, foi crucificado, ressuscitou e está sentado à direita
do Deus incriado. 2 Concede-lhes a força de curar, a fim de que, aquele que as beber ou
com elas for ungido seja libertado de toda a febre, de todo o Demónio e de toda a
doença. Estas coisas criadas obtenham àqueles que as receberem, em nome do teu
Filho, Jesus Cristo, cura e saúde. Por Ele Te sejam dados glória e poder, no Espírito
Santo, pelos séculos dos séculos. Amen.
1411 18. Imposição das mãos, após a bênção da água e do óleo. 1 Deus da verdade, que
amas os homens, guarda o teu povo na comunhão do Corpo e do Sangue; torna vivos os
seus corpos e puras as suas almas. 2 Concede a tua bênção para os guardar na comunhão,
lhes assegurar a força da Eucaristia, os unir na alegria, para fazer deles eleitos, pelo teu
Filho unigénito, no Espírito Santo, agora e por todos os séculos dos séculos. Amen.

INICIAÇÃO CRISTÃ

1412 19. Consagração das águas. 1 Rei e Senhor de todas as coisas, Criador do universo,
que salvaste toda a natureza criada, enviando o teu Filho unigénito, Jesus Cristo, e
libertaste a tua criatura pela vinda do teu Verbo inefável, olha agora do alto do céu e
lança os olhos sobre estas águas: enche-as do Espírito Santo16. 2 O teu Verbo inefável
opere nelas e transforme a sua virtude; ele as purifique enchendo-as da tua graça, para
que o teu mistério, que vai realizar-se, não seja ineficaz naqueles que vão ser regenerados,
mas encha da tua graça divina todos os que vão descer às fontes e ser baptizados. 3 Tu,
que amas os homens, sê benevolente para com eles; poupa aqueles que fizeste, salva a
criação que é obra das tuas mãos; faz com que todos os que vão renascer sejam
formados à imagem da tua divina e inefável beleza, sejam salvos e possam ser julgados
dignos do teu reino. 4 E tal como o teu Filho unigénito desceu às águas do Jordão e as
santificou17, desça agora a estas águas, para as tornar santas e espirituais, a fim de que
os novos baptizados não sejam mais carne e sangue, mas espírito, e saibam adorar-Te,
a Ti, Pai incriado, por Jesus Cristo, no Espírito Santo. Por Ele Te sejam dados glória
e poder por todos os séculos dos séculos. Amen.
1413 20. Oração do exorcismo, para os candidatos ao baptismo. 1 Nós Te suplicamos,
Deus da verdade, por este teu servo, e Te pedimos que o tornes digno do teu divino
mistério e da regeneração inefável. Nós to apresentamos, nós to oferecemos, ó Amigo
dos homens. 2 Fá-lo participar no novo nascimento divino, para que nunca mais seja
tocado por nenhum espírito mau ou perverso, mas para que Te sirva em todas as
circunstâncias e guarde os teus mandamentos. Acompanhe-o o teu Verbo, o Filho
unigénito, porque a Ti pertencem a glória e o poder, por Jesus Cristo, no Espírito
Santo, por todos os séculos dos séculos. Amen.
1414 21. Oração depois da renunciação. Senhor omnipotente, marca com o teu selo o
assentimento do teu servo, pelo qual, agora, ele se liga a Ti; guarda irrevogavelmente a
fidelidade da sua conduta e faz com que ele evite o contágio do mal, sirva o Deus da
verdade, se submeta a Ti, o Criador do universo, e permaneça puro até ao fim. Nós to
pedimos pelo teu Filho unigénito, Jesus Cristo. Por Ele Te sejam dados a glória e o
poder, no Espírito Santo, agora e por todos os séculos dos séculos. Amen.
1415 22. Oração antes da unção dos candidatos. 1 Ó Soberano, que amas os homens, que
amas as almas, cheio de misericórdia e de benevolência, Deus da verdade, nós Te
pedimos e suplicamos, confiados nas promessas do teu Filho unigénito, que disse: Os
15
A Tradição Apostólica coloca igualmente, depois da Oração eucarística, uma bênção do óleo.
16
Tal como para a Eucaristia, é o Verbo que comunica o Espírito Santo às águas para as tornar espirituais.
17
Cf. Cirilo de Jerusalém, Catequeses mistagógicas, 3, 1.
SERAPIÃO DE THEMUIS 377

pecados serão perdoados àqueles a quem os perdoardes. Nós fazemos esta unção
àqueles e àquelas que se aproximam desta divina regeneração, 2 e pedimos que nosso
Senhor Jesus Cristo lhes dê a força que cura e torna forte 18, se manifeste nesta unção e
retire das suas almas, dos seus corpos e dos seus espíritos todo o sinal de pecado ou
de iniquidade, ou de todo o compromisso com o Diabo. Ele lhes conceda pela sua graça
a remissão, e que eles, libertados do pecado, vivam para a justiça; remodelados por
esta unção, purificados por este banho, renovados pelo Espírito, possam doravante
vencer a pé firme os assaltos inimigos, evitar os enganos desta vida, encontrar-se
reunidos e unidos no rebanho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e tomar parte,
com todos os santos, na herança prometida. Por Cristo Te sejam dados glória e poder,
no Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Amen.
23. Oração depois da unção. 1 Amigo dos homens, Benfeitor e Salvador de todos 1416
aqueles que se voltaram para Ti, sê benevolente para com este teu servo, e a tua mão
o conduza à regeneração. 2 O teu Verbo unigénito o leve à fonte baptismal; seja
respeitado o novo nascimento, para que a tua graça não seja vã; assistam-no o teu
santo Verbo juntamente com o Espírito Santo e afastem para longe dele toda a tenta-
ção. Pelo teu unigénito, Jesus Cristo, Te sejam dados glória e poder, agora e por todos
os séculos dos séculos. Amen.
[Fórmula baptismal 19]
24. Oração depois do baptismo. 1 Deus, Deus da verdade, Criador do universo, 1417
Senhor de toda a criatura, enche este teu servo da tua bênção, guarda-o puro no seu
novo nascimento e fá-lo participar nas virtudes angélicas, para que, doravante, nunca
mais seja carne mas espírito, ele que participou na tua graça divina e benéfica. 2
Conserva-o para Ti até ao fim, ó Criador universal, pelo teu Filho unigénito, Jesus
Cristo, pelo qual Te sejam dados glória e poder por todos os séculos dos séculos. Amen.
25. Oração sobre o óleo 20 das unções após o baptismo21. 1 Deus dos poderes, que 1418
vens em socorro de toda a alma que se volta para Ti, e que está na mão poderosa do teu
Filho unigénito, nós Te pedimos que realizes neste óleo, pela força divina e invisível de
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, a tua obra divina e celeste, 2 para que os
baptizados, que também foram ungidos, sejam marcados doravante com o sinal salva-
dor da cruz do teu Filho unigénito, pela qual expulsaste e venceste Satanás e todo o
poder inimigo. Regenerados e renovados pelo banho do novo nascimento, participem
também nos dons do Espírito Santo 22 e, confirmados com este selo23, permaneçam
firmes e inabaláveis, sem falta nem mancha, sãos e salvos, e vivam até ao fim na fé e no
conhecimento da verdade, na expectativa das esperanças da vida celeste e das promessas
eternas de nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo. Por Ele Te sejam dados glória e
poder, agora e por todos os séculos dos séculos. Amen.

ORDENAÇÕES

26. Imposição das mãos para a ordenação do diácono. 1 Pai do Filho unigénito, que 1419
enviaste o teu Filho e dispuseste com sabedoria as coisas da terra, que deste normas e
ordens à tua Igreja, para utilidade e salvação das comunidades, que escolheste os

18
A força, noutros casos implorada ao Espírito, é pedida a Cristo.
19
Era neste momento do rito que se realizava o banho baptismal, cuja fórmula não nos é dada.
20
xri/sma .
21
baptisde/ n tej . Os títulos das diversas orações são dados pelo autor do Eucológio, mas nem sempre corres-
pondem integralmente ao respectivo conteúdo, como, por exemplo, nos formulários 25 e 29.
22
th= j dwrea= j tou= a( g i/ o u pneu/ m atoj .
23
Selo (= sfragi/j ) é a palavra que designa o Espírito, que sela a união do baptizado com Deus e cujo carácter
é impresso na alma pela confirmação.
378 SÉCULO IV

bispos, os presbíteros e os diáconos para o serviço da Igreja católica, que elegeste pelo
teu Filho unigénito sete diáconos e lhes deste o Espírito Santo, 2 institui24 o teu servo
como diácono da tua Igreja católica e dá-lhe o Espírito do conhecimento e do discerni-
mento, para que, puro e sem mancha, ele possa exercer o seu ministério no meio do teu
povo santo, por teu Filho, Jesus Cristo. Por Ele Te sejam dados glória e poder, por
todos os séculos dos séculos. Amen.
1420 27. Imposição das mãos para a ordenação do presbítero. 1 Nós impomos a nossa
mão, ó Soberano, Deus dos Céus, Pai do teu Filho unigénito, sobre este homem, e Te
pedimos que o Espírito da verdade o inunde; dá-lhe inteligência e conhecimento e um
coração recto. Esteja com ele o Espírito Santo, para que possa governar o teu povo,
dispensar as tuas palavras divinas, reconciliar o povo contigo, Deus incriado. 2 Tu,
que pelo espírito de Moisés difundiste o Espírito Santo sobre os eleitos, concede
também a este o Espírito Santo, pelo Espírito do teu Unigénito, como penhor de
sabedoria, de conhecimento e de ortodoxia da fé, para que ele possa servir-Te com uma
consciência pura, pelo teu Unigénito, Jesus Cristo. Por Ele Te sejam dados glória e
poder, no Espírito Santo, agora e por todos os séculos dos séculos. Amen.
1421 28. Imposição das mãos para a ordenação do bispo25. 1 Tu enviaste o Senhor Jesus
para salvar o mundo inteiro; por ele escolheste os Apóstolos, e ordenas, de idade em
idade, bispos santos. Ó Deus da verdade, faz do teu servo um bispo vivo, um bispo
santo na sucessão dos santos Apóstolos; dá-lhe a graça do Espírito divino, que conce-
deste a todos os fiéis servidores, aos Profetas e aos Patriarcas. 2 Torna-o digno de
apascentar o teu rebanho e que ele permaneça puro e sem mancha no seu cargo de
bispo, pelo teu Filho unigénito, Jesus Cristo. Por Ele Te sejam dados glória e poder,
agora e por todos os séculos dos séculos. Amen.

ORAÇÕES DIVERSAS

1422 29. Oração sobre o óleo dos enfermos, o pão e a água. 1 Nós Te pedimos, a Ti, que
tens toda a força e poder, Salvador de todos os homens, Pai de nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo, e Te suplicamos que do Céu, do teu Filho unigénito, se derrame sobre
este óleo um poder de cura, para que os que receberem a unção ou tomarem destes
elementos sejam libertados de todo o mal e de toda a enfermidade, e possam vencer
todo o poder satânico, afastar todo o espírito impuro, eliminar toda a febre, tremor e
fraqueza, receber a graça e a remissão dos pecados, receber o remédio da vida e da
salvação, adquirir a saúde e a integridade da alma, do corpo e do espírito, e a plenitude
da força. 2 Faz, Senhor, que toda a tentativa diabólica, todo o poder satânico, todo o
engano do Adversário, toda a ferida, todo o suplício, toda a pena, golpe, choque ou má
sombra temam o teu nome que invocamos e o nome do teu Filho unigénito, 3 e se
afastem do interior e do exterior dos teus servos, a fim de que seja santificado o nome
d’Aquele que por nós foi crucificado, ressuscitou, e assumiu os nossos males e as
nossas enfermidades, Jesus Cristo, que virá julgar os vivos e os mortos. Por Ele Te
sejam dados glória e poder, agora e pelos séculos dos séculos. Amen.
1423 30. Oração por um defunto. 1 Deus, que tens o poder sobre a vida e sobre a morte,
Deus dos espíritos e Deus de toda a carne, Deus que dás a morte e a vida, Tu que
conduzes às portas do inferno e afastas delas, que crias o espírito no homem, que
acolhes as almas dos santos e lhes dás o repouso, que mudas, transformas e transfiguras
as tuas criaturas, como é justo e útil, Tu és o único incorruptível, imutável e eterno. 2
Nós Te pedimos pelo sono e repouso deste teu servo (ou desta tua serva): recria a sua

24
kata/ s teson .
25
xeiroqesi/ a katasta/ s ewj e) p isko/ p ou.
MÁRIO VITORINO 379

alma e o seu espírito nos lugares da tua pastagem, nas moradas do repouso, com
Abraão, Isaac e Jacob e todos os santos; quanto ao corpo, ressuscita-o no dia que
fixaste segundo as tuas promessas que não enganam, e concede-lhe, nas tuas santas
pastagens, a sorte que lhe convém. 3 Não recordes os seus delitos e os seus pecados e
faz que a sua partida seja pacífica e abençoada. Pelo teu Espírito consolador cura a
tristeza dos que ficaram e dá-nos a todos nós um fim feliz. Pelo teu Filho unigénito,
Jesus Cristo, pelo qual Te sejam dados glória e poder, no Espírito Santo, pelos séculos
dos séculos. Amen.

Mário Vitorino

Contra Ario 1
1. Oração de oblação. 30 Paulo diz assim na epístola a Tito: O povo periou/sion, 1424
o povo que se mantém à volta da substância, isto é, à volta da vida, como se diz na
oração de oblação: «Purifica para Ti este povo, que se mantém à volta da vida, zeloso
de boas obras, e que se reúne à volta da tua substância».
2. 8 É por isso que a oração de oblação se dirige, no mesmo sentido, a Deus: «Um 1425
povo que se reúne à volta da tua substância, zeloso de boas obras2».
1. Hino litânico a Cristo. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Senhor, mise- 1426
ricórdia, porque acreditei em Ti; Senhor, misericórdia, porque, pela tua misericórdia,
tive conhecimento de Ti.
2. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Tu és o logos do meu espírito! Tu és 1427
o logos da minha alma! Tu és o logos do meu corpo!
3. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Deus vive, e, porque nada existe 1428
antes d’Ele, Deus vive por Si mesmo.
4. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Cristo vive, e, porque Deus O deu ao 1429
gerá-l’O, Cristo vive por Si mesmo, e, porque vive por Si mesmo, Cristo vive para
sempre.
5. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Porque Deus vive, porque Deus vive 1430
eternamente, foi uma vida eterna que foi gerada, e esta vida eterna é Cristo, Filho de Deus.
6. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Ora, se o Pai vive por Si, se o Filho 1431
também vive por Si, graças à geração do Pai, Ele é consubstancial ao Pai, porque Ele
vive também eternamente.

1
M ÁRIO V ITORINO , Adversus Arium (=PL 8, 1039-1146; CSEL 83; SCh 68-69). Mário Vitorino foi um célebre
orador africano, que se converteu à fé cristã, causando grande admiração em Roma e não menor alegria na
Igreja. A ele se refere Santo Agostinho nas suas Confissões. Morreu depois de 362.
2
Teríamos aqui, segundo os comentadores da obra de Mário Vitorino, uma breve citação da primeira
anáfora romana em grego: Sw= s on periou/ s ion lao/ n , zhlwth\ n kalw= n e) / r xwn .
380 SÉCULO IV

1432 7. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Senhor Deus, deste-me uma alma; e é
por ser imagem da vida, que a alma vive sempre; viva também a minha eternamente.
1433 8. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Deus Pai, se eu fui feito à tua seme-
lhança, e se fui feito homem à imagem do Filho, faz com que eu viva, criado pelos
séculos, porque o Filho me conheceu.
1434 9. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Amei o mundo, porque Tu o tinhas
feito; estou detido no mundo, embora o mundo deseje os teus; agora odeio o mundo,
porque provei o espírito.
1435 10. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Socorre os que caíram, Senhor, socorre
os penitentes, porque no teu juízo divino, na tua decisão santa, até o meu pecado faz
parte do mistério da salvação.
1436 11. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Conheço, Senhor, o teu mandamento,
conheço a lei da retribuição gravada em minha alma. Apressar-me-ei, se me mandares
voltar para Ti, nosso Salvador, nosso Deus.
1437 12. Senhor, misericórdia! Cristo, misericórdia! Combato há muito, há muito resisto
ao meu inimigo; mas continuo a ser de carne! Contudo, foi nesta carne que venceste o
Diabo e que a tua vitória Te deu, para Ti, o triunfo maravilhoso, e para nós, a fortaleza da fé.

Hilário de Poitiers

Tratado sobre os Salmos 1


1438 Prólogo. Não restam dúvidas de que é preciso compreender o que os salmos
dizem, de acordo com a pregação evangélica. Qualquer que seja a pessoa de que o
Espírito de profecia se tenha servido para falar, tudo tem como finalidade levar ao
conhecimento da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, à sua Encarnação, à sua Paixão e
ao seu reino e se refere à glória e ao poder da nossa ressurreição... O livro dos salmos
não pode compreender-se de outro modo que não seja pela fé na sua vinda...
1439 12. O domingo ultrapassa o número do sábado, graças à plenitude da pregação evangélica.
Na verdade, embora o nome e a observância do sábado tenham sido estabelecidos para
o sétimo dia, foi, porém, no oitavo, que é também o primeiro, que nós encontrámos a
festa do sábado perfeito...
O Pentecostes é a semana das semanas, como o mostra o número «septenário»
obtido pela multiplicação de sete por si mesmo. Contudo, é o número oito que o
completa, pois é o mesmo dia que é simultaneamente o primeiro e o oitavo, acrescentado
à última semana, de acordo com a plenitude evangélica. Esta semana de semanas é
celebrada segundo uma prática que vem dos Apóstolos: nesses dias do Pentecostes,

1
H ILÁRIO DE P OITIERS , Tractatus super psalmos (=PL 9, 231-908; CCL 61; CSEL 22; cf. LMD 33, 25-26; 83,
132). Hilário de Poitiers nasceu pelo ano 300, era bispo por volta de 350 e morreu no ano 367.
HILÁRIO DE POITIERS 381

ninguém adora de corpo prostrado por terra, nem põe o obstáculo do jejum a esta
solenidade de alegria espiritual. Isso mesmo, aliás, foi estabelecido para os domingos.

SALMO 2

Pelo Espírito de profecia que apresenta como passados os acontecimentos futu- 1440
ros, todas estas coisas foram ditas na pessoa do Filho único de Deus, nosso Senhor
Jesus Cristo.

SALMO 14

Esta oração é feita por um homem que ora ao Senhor e deseja saber d’Ele que 1441
costumes, que zelo, que vontade deve ter aquele que quer habitar com Deus e repousar
nas suas alturas e nos Céus.
Nenhuma montanha da terra é a montanha do Senhor. Por isso, somos obrigados
a ver aqui, sob o nome de montanha, as maiores e mais sublimes realidades celestes.
Ora, o que há de mais sublime do que Cristo? O que há de mais elevado do que o nosso
Deus? Esta montanha é o corpo que Ele tomou por empréstimo do homem: é aí que Ele
habita agora, Ele que é sublime e está acima de todo o principado, de todo o poder e de
todo o nome. É sobre esta montanha que está construída a cidade que não se pode
esconder. Portanto, uma vez que aqueles que pertencem a Cristo são os que foram
eleitos no Corpo de Cristo, antes da criação do mundo, e que a Igreja é o Corpo de
Cristo, Cristo é o fundamento da nossa construção e a cidade construída sobre a montanha.

SALMO 53

De acordo com a ideia que o título nos manifesta, a paixão do profeta David 1442
ilustra a Paixão do nosso Deus e Senhor Jesus Cristo. É por isso que a sua oração
também é orientada para a compreensão da oração do Verbo que Se fez carne... Mas as
propriedades e a significação plena das palavras, apesar das nossas incertezas e hesi-
tações, exigem esta interpretação, a fim de não duvidarmos de que tudo o que está dito
nos salmos é dito da sua pessoa.
SALMO 64

12. O progresso da Igreja nos hinos da manhã e de Vésperas é um grande sinal da 1443
misericórdia de Deus. Começamos o dia com orações de Deus, terminamos o dia com
os hinos de Deus, como foi dito: Grato lhe seja o meu canto, e também: Elevem-se
minhas mãos como oblação da tarde. 14. O Espírito Santo inunda-nos com os seus
dons e, por Ele, o rio de Deus, que brota da nascente de vida, derrama abundantemente
sobre nós a água viva. 15. E temos também um alimento. Qual é esse alimento? É
certamente aquele que nos dá a comunhão com Deus pela comunhão do santo Corpo de
Cristo e que nos há-de levar à comunhão da glória, onde reina já esta santíssimo
Corpo... Como é grande a alegria que experimentamos, nós que renascemos pelo sacra-
mento do baptismo, quando começamos a sentir as primícias do Espírito Santo: a
inteligência dos mistérios, a ciência das profecias, a palavra da sabedoria, a firmeza da
esperança..! Como gotas de orvalho, todos estes dons se vão infiltrando em nós pouco
a pouco e a seu tempo produzem frutos abundantes.

SALMO 118

Durante as vigílias nocturnas, o monge não fica num ócio perigoso...; nem se 1444
insinua nele o esquecimento do seu ofício no descanso da meia-noite, mas passa-o em
orações, em súplicas e na confissão dos pecados.
382 SÉCULO IV

SALMO 127

1445 1. Todas as vezes que na Escritura se fala do temor do Senhor, devemos notar que
nunca se fala dele isoladamente, como se ele bastasse para a perfeição da nossa fé, mas
vem sempre acompanhado de muitas outras noções que nos ajudam a entender a sua
natureza e perfeição... 2. Vejamos quantos graus é preciso subir para chegar ao temor
do Senhor: devemos invocar a sabedoria, chamar a prudência, buscá-la como a prata e
procurá-la como um tesouro. Assim se chega à compreensão do temor do Senhor. Mas
o temor tem geralmente entre os homens outro sentido. É a perturbação que experi-
menta a fraqueza humana quando receia vir a sofrer o que não quer que lhe aconteça.
Este género de temor origina-se em nós pelo remorso da consciência, pela autoridade
do mais poderoso, pela violência do mais forte, pela doença..., pela ameaça de qualquer
mal. Este temor não precisa de nos ser ensinado... 3. Pelo contrário, sobre o temor do
Senhor assim está escrito: Vinde, filhos, escutai-me, e ensinar-vos-ei o temor do Se-
nhor. Portanto, se o temor de Deus é ensinado, deve-se aprender... Para nós, o temor
de Deus fundamenta-se no amor... 10. É da mesa do Senhor que nós recebemos o nosso
alimento: o pão da vida... Mas é à mesa das leituras dominicais que nós somos alimen-
tados com a doutrina do Senhor.
SALMO 131

1446 É preciso pensar que toda esta oração pertence ao Filho único de Deus, que fala
pela boca do Profeta.
SALMO 141

1447 Nós sabemos que há também este David, cuja tenda estava por terra e foi levan-
tada, que é justo, que se levanta (como o sol), que é rei, ou seja, nosso Senhor Jesus
Cristo, o Filho de Deus. Foi Ele que muitas vezes fugiu, que muitas vezes Se escondeu,
que muitas vezes orou, que no tempo da sua Paixão chorou e gritou por Deus na sua
tribulação... Devemos por isso entender esta oração como sendo a sua.

Contra Auxêncio 2
1448 4. Hoje, infelizmente, são meras considerações terrestres que fixam a lei divina.
Cristo parece despojado do seu poder, enquanto se intriga em seu nome. A própria
Igreja expulsa e mete na prisão3. Quer fazer-se acreditar à força, quando ela própria
sabe que foi ao ser perseguida e presa que ela atraiu a si as multidões. Ela expulsa
bispos, mas foram os bispos banidos que a alargaram às dimensões do mundo habitado...
É por isso que eu só posso desejar viver em paz com aqueles que permanecem fiéis à
fé dos nossos pais e do seu baptismo...
1449 12. Guardai-vos do Anticristo. É muito triste permanecer agarrado às paredes, é
muito triste pôr a vossa veneração pela Igreja de Deus nos telhados e nos edifícios4...

2
H ILÁRIO DE P OITIERS , Contra Auxentium (=PL 10, 609-618). Auxêncio, bispo de Milão, fora nomeado pelo
imperador.
3
Hilário foi condenado ao exílio, na Frígia, em 356, por um concílio de bispos gauleses, mas não foi deposto.
4
Cavete antichristum: male enim vos parietum amor cepit, male Ecclesiam Dei in tectis aedeficiisque
veneramini...
ZENÃO DE VERONA 383

Zenão de Verona

Tratados 1

LIVRO I
TRATADO 5

8. De que maneira buscará cada uma de vós2 o seu sacrifício 3? Com que despesas? 1450
Em que vasos? De que ministros? Porque é que o sacrifício dele 4 é público e o teu é
secreto? O dele pode ser conhecido seja por quem for, o teu não pode ser visto, sem
sacrilégio, nem mesmo pelos cristãos que não estão consagrados5... E, se não se faz (o
que o marido pagão quer), ou se lhe desagrada o que foi feito, então toda a casa
estremecerá até aos alicerces, Deus será blasfemado, talvez até o teu sacrifício6 seja
arrebatado, ferir-te-á no peito, deformar-te-á o rosto, fazendo-te algumas vezes tam-
bém um favor ao proibir-te de ires à igreja. Mas será muito pior se agradares ao marido,
porque não podes, sem sacrilégio, agradar a um sacrílego...
TRATADO 14

4. Direi ainda o salário que se dá diariamente, as provisões que se consomem 7. A 1451


todos se dá, por igual, um pão com o sinal 8, água com vinho, sal, fogo9 e azeite, uma
túnica áspera e um denário...
TRATADO 15

2. Oferece a Deus um sacrifício de louvor. Em primeiro lugar, fica sabendo, ó novo 1452
cristão 10, que há três géneros de sacrifícios. Não te deixes enganar. Um é abominável,
outro digno de reprovação e o terceiro é puro. É abominável o dos pagãos, digno de
reprovação o dos Judeus, puro o do povo cristão...
5. Agora é preciso que conheças o nosso sacrifício, aquele que se reconhece facilmente 1453
por contraposição. Se aos deuses corporais convém o sacrifício corporal, certamente o
sacrifício feito a Deus espiritual também deve ser espiritual. Este não nasce da bolsa11,
mas do coração; não se compra com rebanhos mal cheirosos, mas com vidas honestas;
não se oferece com as mãos ensanguentadas, mas com sentimentos puros; não se

1
Z ENÃO DE V ERONA , Tractatus (=PL 11, 253-528; CCL 22; CPL 208). Pouco ou nada se sabe de Zenão de
Verona. Foi bispo entre 362 e 371, data da sua morte.
2
Zenão dirige-se às esposas cristãs, alertando-as para os perigos que resultam do matrimónio de uma cristã
com um pagão.
3
O pão consagrado, levado para casa.
4
Do marido pagão.
5
Não iniciados, isto é, os catecúmenos.
6
O pão consagrado que os cristãos levavam para casa e guardavam cuidadosamente, para comungar durante
a semana.
7
Zenão fala simbolicamente da vida cristã.
8
O pão da Eucaristia, marcado com o sinal da cruz.
9
Um círio aceso.
10
Neófito.
11
Não se compra com dinheiro.
384 SÉCULO IV

degola para que pereça, mas, como Isaac, imola-se para que viva. Assim nos exorta o
apóstolo Paulo, com estas palavras: Oferecei os vossos corpos como vítima viva,
santa, agradável a Deus. O que agrada a Deus é que cada um se ofereça ao Senhor com
espírito puro. Tudo o mais de nada aproveita, se o coração de quem adora não for
puro.
1454 6. Eis o que deveis procurar, ó cristãos, para que o vosso sacrifício possa ser
aceite, vós que conheceis todos os campos que pertencem aos vizinhos, as suas pedras
preciosas e os seus renovos; nas vossas propriedades (de todo o lado, de todas as
partes) só os templos não conheceis, que (se é verdade o que dizem) dissimulando
guardais subtilmente. A prova não é difícil. Alguns de vós escapam-se (arrebatam) o
direito dos templos, andais sempre em litígios. Não são só os que assim procedem que
desagradam a Deus, mas também aqueles que vagueiam pelos sepulcros, que oferecem
refeições mal cheirosas aos cadáveres dos mortos, que por amor da luxúria e da bebida,
em lugares de crianças em bilhas e cálices de repente para si deram à luz, que observam
os dias..., que irritam o jugo conjugal e calcam o afecto subjugando as pessoas, que à
força submetem a si mulheres pecadoras, sendo eles mais vis do que elas, aproveitam...
Veja, cada um, de que modo toma ou oferece o sacrifício. Pois, assim como é sacrílego
oferecê-lo indignamente, também leva à morte o comê-lo indignamente...

LIVRO II
TRATADO 38

1455 Exorto-vos a que celebreis com um alegre banquete a festa de tão grande nasci-
mento12, não com um banquete de diversos manjares saborosíssimos..., mas com um
banquete celestial, simples, puro, salutar e perpétuo. Por isso, para que possais saciar-vos
sempre e ser felizes, recebei-o com fome. O pai de família dá-vos, dos seus manjares e
da sua mesa, o pão e o vinho precioso.
TRATADO 53

1456 Também hoje a Primavera13, sorrindo-lhes, os transformará em belas flores com


diversos carismas, quando, molhados com a água salvadora, alegrando-se com a messe
de um Verão puro, começarem a comer pão novo; para eles não tardará também o vinho
do Outono, com o qual, saciados e embriagados, sentirão, felizes, o calor do Espírito
Santo. Deus Pai omnipotente nos conceda a todos nós que eles nunca arrefeçam.

Homilias 14
HOMILIA 1

1457 13. 11 Nem o dia, nem a noite, nem a hora, nem o sexo, nem a idade, nem a condição,
nem o lugar, nem a raça impedem que se receba esta (circuncisão)15, que se revela
gloriosa sempre e em todos... A antiga não trazia socorro à criança que morria, nem
antes nem depois do oitavo dia; mas esta comunica a graça da salvação aos dois sexos,
desde a primeira infância até ao último momento de qualquer idade.

12
O nascimento baptismal.
13
O baptismo celebrava-se na Páscoa, na Primavera.
14
Z ENÃO DE V ERONA , Homiliae (=PL 11, 600-618; CPL 208). Estas homilias são posteriores a 360.
15
O baptismo.
ATANÁSIO DE ALEXANDRIA 385

Atanásio de Alexandria

Cartas pascais 1

CARTA 1 2

9. Nós já não estamos no tempo das sombras..., mas sim convertidos ao Senhor... 1458
De facto, agora já não imolamos um cordeiro material, mas aquele verdadeiro Cordeiro
que foi imolado, nosso Senhor Jesus Cristo, que foi conduzido ao matadouro como
uma ovelha...
10. Começaremos o santo jejum no dia 31 de Março de 3293, e continuá-lo-emos 1459
durante os seis dias grandes e santos, imagem da criação deste mundo; refrescar-nos-emos4
e celebraremos um repouso no dia 5 de Abril, Sábado Santo, quando começar a surgir e
a levantar-se para nós o santo Domingo, no dia 6 de Abril. Então, a partir daí, conta-
remos sete semanas completas e seguidas e festejaremos o santo dia de Pentecostes,
que, outrora, entre os Judeus, era considerado, em figura, como a festa das semanas,
durante a qual se fazia a entrega e o pagamento das dívidas. Esse dia era, para eles, de
todos os modos possíveis, um dia de liberdade. Mas nós festejaremos o grande Do-
mingo5 como um sinal precursor do mundo que há-de vir, no qual receberemos aqui o
penhor da futura vida eterna, porque, então, quando partirmos para longe deste mun-
do, celebraremos com o próprio Cristo a festa em plenitude...
CARTA 4 6

3. O início do jejum de quarenta dias 7 é o dia 1 de Março de 332, e, como disse, só 1460
depois de nos termos purificado e preparado bem com esses dias começaremos a
Semana Santa da grande Páscoa, no dia 1 de Abril. Durante esse tempo, meus queridos
irmãos, deveremos exercitar-nos em orações, jejuns e vigílias mais prolongados, a fim
de podermos ungir os nossos dintéis com o precioso Sangue e escapar ao exterminador.
Terminaremos os jejuns no dia 10 de Abril. Pela tarde daquele sábado escutaremos a
mensagem dos Anjos: Porque buscais entre os mortos Aquele que está vivo? Ressus-
citou. Logo a seguir nos iluminará aquele grande Domingo, refiro-me ao dia 11 de Abril,
em que nosso Senhor ressuscitou e nos deu a paz com os nossos próximos... Mas
agora que comemos a Palavra do Pai8 e assinalamos os lintéis dos nossos corações com
o Sangue do Novo Testamento, proclamemos a graça que nos foi dada pelo Redentor...
5. Quando nós, caríssimos, comemos a carne do Senhor uns com os outros e bebe- 1461
mos o seu Sangue, celebramos a Páscoa...

1
ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Epistulae festales (=PG 26, 1360-1444). Atanásio de Alexandria nasceu em 295. As
Cartas pascais são 45, e foram sendo escritas, ano após ano, desde 329 até 373. Escritas em grego, existem versões
coptas e siríacas. Algumas perderam-se por completo. Atanásio morreu em 373.
2
Esta carta é do ano 329.
3
Segunda-feira antes da Páscoa.
4
Cessaremos de jejuar ou tomaremos banho.
5
O grande Domingo é simultaneamente a Páscoa e o Pentecostes.
6
Esta carta é do ano 332.
7
O jejum deixa de ser só de seis dias, como na carta anterior, e passa a ser de quarenta dias.
8
lo/ g oj .
386 SÉCULO IV

CARTA 5 9

1462 1. É admirável, meus irmãos, passar de uma festa à outra, de uma oração à outra, de
um jejum ao outro e finalmente de uma solenidade à outra. Está de novo presente o
tempo que nos traz um novo começo, quer dizer, o anúncio da santa Páscoa... Nós
alimentamo-nos com o manjar da vida, e deleitamos sempre a nossa alma com o seu
precioso Sangue, como se fosse uma fonte; e, apesar disso, temos sempre sede...
Comemos a Páscoa do Senhor numa casa que é a Igreja católica...
1463 5. A Páscoa será manjar celestial para os que celebram a festividade com pureza...
Purifiquemos então as nossas mãos, limpemos o nosso corpo e tenhamos a consciência
livre de toda a fraude...
CARTA 6 10

1464 Deste modo estaremos em condições de subir à sala do andar de cima, com o
Senhor, para comer a Ceia com Ele.
CARTA 11 11

1465 8. Daremos início ao tempo quaresmal no dia 13 do mês de Pamenw=q . Depois,


prosseguiremos a abstinência do jejum segundo a sua ordem e começaremos a santa
semana da Páscoa no dia 18 do mês de Farmu/ti. Poremos fim aos jejuns no dia 23, e
celebraremos o domingo no dia 24. Acrescentar-lhes-emos as restantes sete semanas
do grande Pentecostes e alegrar-nos-emos todos, exultando em nosso Senhor Jesus
Cristo, pelo qual seja dada glória e poder ao Pai pelo Espírito Santo pelos séculos dos
séculos. Amen.
CARTA 13 12

1466 7. Celebremos festa também agora, caríssimos; caminhemos para ela não como
quem vai para um dia de tristeza, mas de alegria em Cristo, do qual nos alimentamos
diariamente13. Recordando aquele cordeiro que (os Judeus) imolavam nos dias pascais,
celebremos a Páscoa em que Cristo foi imolado. Aquele cordeiro tirou o povo do
Egipto; Cristo destruiu a morte e o Diabo que detinha o poder da morte, do qual agora
nos podemos rir. E também podemos ajudar os que estão angustiados e clamam a Deus
dia e noite.
CARTA 24 14

1467 Depois (das festas pascais), contaremos ainda as sete semanas do santo Pentecostes,
durante as quais continuaremos em festa, fazendo o que é agradável a Deus; porque é
verdadeiramente festa quando os pecadores passam da sua vida má para outra melhor.
Lembrar-nos-emos dos pobres sem esquecer a hospitalidade; mas vestiremos também
os que estão nus e receberemos em nossas casas os que não têm casa; antes de tudo o
mais, se temos amor para com Deus e para com o nosso próximo, cumpriremos assim
a Lei e os Profetas e seremos herdeiros da bênção pelo Filho único, nosso Senhor Jesus
Cristo...

9
Esta carta é do ano 333.
10
Esta carta é do ano 334.
11
Esta carta é do ano 339.
12
Esta carta é do ano 341.
13
Testemunho da celebração quotidiana da Eucaristia, ou pelo menos da comunhão diária.
14
Esta carta é do ano 352.
ATANÁSIO DE ALEXANDRIA 387

CARTA 42 15

Acrescentaremos ainda (à Páscoa) as sete semanas do santo Pentecostes, lem- 1468


brando-nos dos pobres e rezando uns pelos outros, a fim de nos alegrarmos e festejarmos
com os Santos nos Céus, em Cristo...

Carta a Marcelino 16
2. Todas as Escrituras, meu filho, tanto o Antigo como o Novo Testamento, são 1469
inspiradas por Deus e úteis para aprendermos, segundo está escrito. Mas o livro dos
Salmos..., como um jardim que tivesse nele uma sementeira de frutos dos outros livros,
canta-os a todos e, inclusivamente, deles oferece os seus próprios frutos, a salmodia...
10. Além do que tem em comum com os outros livros, este tem uma graça singular...,
pois descreve e expressa os sentimentos humanos... Nos demais livros escutamos a
Lei que manda umas coisas e proíbe outras...; no livro dos Salmos..., podem-se enten-
der e discernir os impulsos da própria alma... Há, nos outros livros, discursos que
proíbem o mal; neste ensina-se como evitá-lo... 11. Quem lê os salmos..., diz as
palavras como se fossem suas, e salmodia-as como se dele mesmo se tivesse escrito...
12. Para aquele que salmodia, os salmos são como um espelho no qual pode contem-
plar-se a si mesmo, ver os impulsos da sua alma, e recebê-los com esses mesmos
sentimentos... 14. Certamente toda a Sagrada Escritura é mestra da virtude e da fé
verdadeira, mas o livro dos salmos oferece, além disso, o ícone para a direcção das
almas... 27. Recitar musicalmente os salmos não é cultivar o prazer dos sons, mas
traduzir uma harmonia interior em música. A recitação ritmada e melódica é sinal dum
pensamento tranquilo, bem ritmado e sereno... Os cristãos deveriam fazer suas as
orações bíblicas, especialmente os Salmos.

Carta a Serapião 17
20. O que nos une a Deus é a fé na Trindade, como nos foi transmitida. Aquele que 1470
tira algo à Trindade e é baptizado só em nome do Pai, ou só no nome do Filho, ou no
nome do Pai e do Filho mas sem o Espírito Santo, não recebe nada..., porque o rito da
iniciação é na Trindade. Quem separa o Filho do Pai ou reduz o Espírito Santo a uma
simples criatura, não tem nem o Filho nem o Pai, mas está sem Deus, pior que um
infiel, e será seja o que for, menos cristão.
30. Onde está a luz, aí está também o esplendor da luz; e onde está o esplendor, aí 1471
está também a sua graça eficiente e esplendorosa. Isto mesmo nos ensina São Paulo na
Segunda Epístola aos Coríntios com estas palavras: A graça de nosso Senhor Jesus
Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco. Efectivamente,
toda a graça que nos é dada em nome da Santíssima Trindade, vem do Pai, pelo Filho,
no Espírito Santo. Assim como toda a graça nos vem do Pai por meio do Filho, assim
também não podemos receber nenhuma graça senão no Espírito Santo, por cuja parti-
cipação temos o amor do Pai, a graça do Filho e a comunhão do Espírito.

15
Esta carta é de 370.
16
A TANÁSIO DE A LEXANDRIA , Epistula ad Marcelinum (=PG 27, 11-45).
17
A TANÁSIO DE ALEXANDRIA , Epistula I ad Serapionem (=PG 26, 529-608; SCh 15; cf. LH, III).
388 SÉCULO IV

Apologias 18

APOLOGIA AO IMPERADOR CONSTÂNCIO 19

1472 14. Atacam-me ainda, a propósito da igreja maior, por aí ter sido celebrada a sinaxe
antes de terminados os trabalhos... Confirmo que é verdade... Mas permite que te diga
em primeiro lugar, piedoso Augusto, que isso não foi para nós a celebração da dedica-
ção, pois teria sido ilícito fazê-la antes de ter recebido o teu acordo. Aliás, não houve
da nossa parte qualquer intenção de o fazer: não foi convidado nenhum bispo nem
qualquer outro clérigo; ainda havia muito a fazer no edifício. Acrescento que não houve
qualquer proclamação para organizar essa reunião...
Estávamos na festa da Páscoa; a afluência era muito considerável..., as igrejas
pouco numerosas e pequenas, e a agitação não era das menores: as pessoas reclamavam
que nos reuníssemos na igreja maior e que toda a gente aí fosse rezar... Foi o que
aconteceu. Pela minha parte, em vão os exortei a esperar e a procurar maneira de nos
apertarmos nas outras igrejas para celebrar; não me deram ouvidos; estavam dispostos
a sair da cidade e a reunir-se no deserto sob o calor do sol. Preferiam suportar a fadiga
do caminho do que celebrar a festa mal acomodados.
1473 15. Acredita em mim, príncipe, e acolhe também, a este respeito, o testemunho da
verdade. No decurso das sinaxes da Quaresma, em razão da exiguidade dos lugares e do
grande concurso de povo, muitas crianças, bastantes mulheres, muitas pessoas de
idade e numerosos jovens ficaram sem ar e tiveram de ser levados para suas casas.
Graças a Deus ninguém morreu, mas toda a gente se pôs a murmurar e a exigir a igreja
maior. Ora, se nos dias da preparação20 já tinha havido um tal aperto, que poderia
acontecer no próprio dia da festa? Incidentes ainda mais penosos... O malogrado
Alexandre21, por causa da exiguidade de todas as igrejas, construiu uma que foi julgada
suficientemente grande... Era aí que ele celebrava em razão da afluência, e, enquanto
celebrava, não se interrompiam os trabalhos. Vi proceder do mesmo modo em Trèves
e em Aquileia; também lá, nos dias de festa, por causa da afluência, se celebrava no
edifício em construção, e ninguém achou que isso fosse motivo de acusação. Mais
ainda, o teu infeliz irmão participou, em Aquileia, numa sinaxe celebrada nessas condi-
ções. Foi por isso que eu próprio assim procedi; não se tratou duma dedicação, mas
duma sinaxe de oração.
1474 16. Pela minha parte, quero ainda dirigir-me acerca disto, ao meu acusador e perguntar-lhe
onde teria sido melhor fazer orar o povo: no deserto ou num lugar de oração em
construção? Onde teria sido conveniente e santo fazer que o povo respondesse Amen:
no deserto ou num lugar já chamado casa do Senhor22? E tu, príncipe tão dedicado a
Deus, onde terias tu preferido ver o povo estender as mãos e fazer preces por ti: no
lugar onde até os pagãos param ao passar, ou no lugar que possui o teu nome, que toda
a gente, não só agora, mas desde a sua fundação, chama o Kuriako/n?...
1475 18. Piedoso Augusto, possas tu viver muitos anos e vir celebrar a dedicação! Porque
as orações de todos, oferecidas pela tua saúde, não se opõem de modo nenhum à
celebração da dedicação... Não voltem os ignorantes com as suas mentiras! Matriculem-se
na escola dos Padres e leiam também as Escrituras... a fim de aprenderem que o

18
A TANÁSIO DE A LEXANDRIA , Apologias (=PG 25, 247-410. 595-642. 643-680; SCh 56 bis).
19
Entre os anos 335 e 366, o bispo de Alexandria conheceu várias vezes o exílio: em Trèvres, em Roma, e
por três vezes no deserto, com os monges (=PG 25, 595-642).
20
Durante a Quaresma.
21
O anterior bispo de Alexandria.
22
kuriako/n.
ATANÁSIO DE ALEXANDRIA 389

sacerdote Josué..., bem como Esdras, sacerdote e escriba, começaram a construir o


templo depois do cativeiro23. Ao chegar a festa dos Tabernáculos, festa solene..., de
comum acordo reuniram o povo, na grande praça em frente da porta principal voltada
para o Oriente, e aí levantaram o altar de Deus e apresentaram oferendas... Ora a
Escritura afirma claramente que tudo isso aconteceu quando o templo de Deus ainda
não estava acabado; ou antes, que foi por entre as orações feitas em tais condições que
a construção do templo foi progredindo...
É isso que convém que tu faças agora, príncipe esclarecido: o lugar está pronto,
purificado por orações prévias, e espera a presença da tua piedade... É o que todos pedem.
APOLOGIA DA SUA FUGA 24

11. Não se envergonham de representar estes mistérios diante dos catecúmenos, 1476
como se fossem uma comédia, e, o que ainda é pior, diante dos pagãos... Não convém
representar os mistérios diante dos não iniciados, para que os pagãos não se riam, por
desconhecerem o seu sentido, e os catecúmenos não se escandalizem, ao participarem
imprudentemente no que não lhes compete...
O lugar onde dizem que o cálice foi partido não era uma igreja, nem ali habitava
presbítero nenhum, nem o dia em que, segundo dizem, Macário fez isso era domingo.
Por conseguinte, não havendo ali igreja, nem quem celebrasse, nem dia que o exigisse,
que cálice poderá ter sido partido, quando e onde? É por demais evidente que há
muitos cálices nas casas e no meio da praça, e, se alguém parte algum, nem por isso
comete nenhum sacrilégio. Mas o cálice místico, que torna sacrílego aquele que o parte
voluntariamente, só se encontra em poder dos que legitimamente presidem na Igreja,
pois é esse o uso exclusivo deste cálice, e não outro. Este é o cálice que vós ofereceis
legitimamente ao povo e que recebestes...; este é o cálice único dos que pertencem à
Igreja católica... Mas, se é sacrílego aquele que parte o cálice místico, muito mais
sacrílego é aquele que ultraja o Sangue de Cristo...
Dizemos isto, não porque Macário tenha partido um cálice, apesar de pertencer
aos cismáticos, mas porque não havia ali cálice nenhum. Como havia de haver, se nem
o lugar era dos consagrados ao Senhor, nem ali estava nenhum eclesiástico, nem sequer
era tempo de celebrar os mistérios?..
12. Donde recebeu Isquiras o presbiterado? Quem o ordenou? Talvez Coluto?... Ora 1477
bem: a ninguém resta a menor dúvida de que Coluto morreu sendo presbítero, que as
suas duas mãos nunca tiveram o poder de ordenar, e que todos os ordenados por ele no
cisma foram reduzidos ao estado laical25 e assistem às reuniões como leigos... Como
pode então acreditar-se que um homem particular e vivendo em casa particular, tenha
em seu poder um cálice místico? É que então chamavam presbítero a um simples
particular, e davam-lhe honrosamente este nome para nos poder atacar injustamente, e
agora, como paga pela sua acusação, patrocinam a construção duma igreja. Assim, o
homem não tinha igreja, mas, como paga da sua maldade e da sua obediência em acusar,
recebe agora o que não tinha, e inclusivamente talvez lhe tenham dado o episcopado
como recompensa. Tudo isto o vai ele cacarejando por toda a parte, pavoneando-se
contra nós... É natural que, tendo-o tido por colaborador naquilo que desejavam, o
tenham julgado digno de participar nas suas obras, e também em semelhante episcopado...
17. Vão dizendo que o cálice foi partido por nós, a fim de parecer que também 1478
Atanásio procede com impiedade contra Cristo, juntamente com eles. Na verdade, que
memória existe entre eles do cálice místico? De que impiedade contra Cristo vem a tais

23
Cf. Esd 3, 2. 8-11.
24
Também chamada segunda apologia (=PG 25, 643-680; SCh 56 bis).
25
e) n t%= sxi/ s mati laikoi\ gego/ n asi .
390 SÉCULO IV

chefes esse respeito religioso para com o cálice? Donde lhes vem o conhecimento do
cálice de Cristo a eles que não conhecem Cristo? Como é que simulam hipocritamente
honrar o cálice de Cristo os que desonram o Deus do cálice? Ou como é que os que
lamentam o cálice partido procuram matar o bispo, que celebra nele os sagrados mistérios...?
1479 24. Estando na igreja, vi-me assaltado por gente armada por instigação dos Arianos.
Sentado na minha sede, disse ao diácono que lesse, isto é, que cantasse o salmo, e ao
povo que respondesse: É eterna a sua bondade... E só consegui escapar misturando-me
no meio da multidão dos fiéis que cantavam...
APOLOGIA CONTRA OS ARIANOS 26

1480 42. Os Arianos correm o perigo de perder também a plenitude do sacramento. Refiro-me
ao baptismo... Como não há-de ser um rito completamente vazio e sem frutos o que
eles administram, que, embora tenha a aparência de verdadeiro, na realidade nada
aproveita à salvação? Com efeito, os Arianos não baptizam no Pai e no Filho, mas sim
no Criador e na criatura... Como a criatura é diferente do Filho, o baptismo, que se
supõe administrado por eles, é diferente do baptismo verdadeiro, apesar de parecer
que dizem o nome do Pai e do Filho, por serem palavras da Escritura...
1481 43. Existem também muitas outras heresias que apenas pronunciam as palavras, mas
não pensam com rectidão, como dissemos, nem têm uma fé verdadeira, e, por conseguinte,
a água que eles administram não dá fruto por lhe faltar a piedade, de modo que aquele
a quem mergulham na água, em vez de ser redimido, fica contagiado pela impiedade..
Por exemplo, os Maniqueus, os Frígios e os discípulos de Paulo de Samósata, que,
apesar de pronunciarem os nomes, contudo são hereges. Seguem o mesmo caminho os
que pensam como Ario, mesmo que digam as palavras que estão escritas e pronunciem
os nomes; também eles brincam com os que recebem o rito das suas mãos.

Sermão aos neófitos 27


1482 Verás que os diáconos trazem pães e um cálice de vinho e os colocam sobre a
mesa. Enquanto não se fizerem as invocações e orações há apenas o pão e o cálice.
Mas, depois de se pronunciarem as orações solenes e admiráveis, então o pão converte-se
no Corpo de nosso Senhor Jesus Cristo, e o vinho converte-se no seu Sangue. Corra-
mos à celebração dos mistérios. Enquanto não se fazem as orações e invocações, este
pão e este vinho são simplesmente pão e vinho. Mas, depois de se pronunciarem as
grandes orações e as santas invocações, o Verbo desce ao pão e ao cálice e converte-os
no Corpo e no Sangue do Verbo.

Sobre a virgindade 28
1483 12. Recita, de pé, os salmos que puderes e, depois de cada salmo faz uma oração e
uma genuflexão. De três em três salmos diz Aleluia. Se estiverem contigo outras virgens,
também elas devem salmodiar, e cada uma de vós deve recitar, na sua vez, a oração.

26
Esta apologia foi escrita por volta de 357 (=PG 25, 247-410).
27
A TANÁSIO DE A LEXANDRIA , Sermão aos neófitos (=PG 26, 1325; J. Q UASTEN , Patrologia II, BAC 217,
Madrid 1973).
28
A TANÁSIO DE ALEXANDRIA , De virginitate, sive de ascesi (=PG 28, 251-281).
ATANÁSIO DE ALEXANDRIA 391

Aos primeiros alvores do dia, dizei o salmo 62, ao nascer do sol, o cântico dos três
jovens e depois a grande doxologia29. Dia e noite não se afaste de teus lábios a palavra
de Deus. Seja tua ocupação contínua a meditação das Sagradas Escrituras. Pega num
saltério e aprende os salmos de cor. O sol nascente encontre já nas tuas mãos o livro
sagrado. Deves fazer a reunião 30 para rezar à hora de Tércia, porque a essa hora foi
preparado o madeiro da cruz; à Sexta, porque o Filho de Deus foi levantado na cruz...
E, depois da sinaxe da hora de Noa, come o teu pão dando graças a Deus à tua
mesa, com estas palavras: «Bendito seja Deus, que tem piedade de nós, nos alimenta
desde a juventude e dá alimento a todo o ser vivo e que enche de gozo e alegria os
nossos corações, para que em tudo tenhamos o suficiente e abundemos em todas as
boas obras, em Cristo Jesus nosso Senhor. Com Ele a Ti a glória, o império, a honra e
a adoração, com o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amen».
13. Quando te sentares à mesa e começares a partir o pão, assinala-o três vezes com 1484
o sinal da cruz e dá graças deste modo: «Nós Te damos graças, nosso Pai, pela tua santa
ressurreição, que nos manifestaste pelo teu Filho Jesus; e tal como este pão que está na
mesa, outrora disperso, depois de colhido se tornou um só pão, reúne também a tua
Igreja dos confins da terra no teu reino, porque a Ti pertence o poder e a glória pelos
séculos dos séculos. Amen. Nós Te damos graças, nosso Pai, pela santa e gloriosa encar-
nação de Cristo, teu Filho e nosso Deus que, segundo a sua divina promessa, nós
comemos todos os dias, ao celebrá-l’O neste pão que Ele converte, por sua benevolên-
cia, para remédio da nossa enfermidade. Foi por Ele que Te conhecemos como nosso
Deus e Pai verdadeiro, e também ao teu Espírito santíssimo, que nos ilumina e leva a
conhecer o teu canto harmonioso. Por isso Te pedimos que tornes este pão próprio e
adequado à fraqueza do nosso corpo e de tudo aquilo que nos falta por causa da nossa
enfermidade; mas digne-Se também o próprio pão racional, vificante e santíssimo do
teu Filho unigénito, alimentar, por tua bondade, a nossa carne e converter-nos inteira-
mente».
16. Deves rezar novamente à nona hora (com hinos, salmos, doxologias e confissão 1485
dos pecados), porque a essa hora o Senhor entregou o espírito na cruz.
20. No meio da noite levantar-te-ás e cantarás hinos ao Senhor, teu Deus, porque 1486
naquela hora nosso Senhor ressuscitou de entre os mortos e cantou hinos ao Pai. Por
esse motivo é bom louvar a Deus nessa hora. Ao levantares-te, recita em primeiro lugar
este versículo: Levanto-me no meio da noite para Vos louvar por causa dos vossos
justos juízos31 e começa a rezar, dizendo todo o salmo 50, desde o princípio até ao fim.
Estas coisas foram estabelecidas para que tu as cumpras em cada dia.
Recita tantos salmos quantos to permitam as tuas forças e, depois de cada
salmo, diz uma oração e prostra-te, confessa a Deus os teus pecados com lágrimas e
pede-Lhe perdão por eles. Depois de cada três salmos, diz o aleluia. E se estiverem
contigo outras virgens, fá-las cantar salmos e uma depois da outra recitará a oração.
Ao romper da alva recita este salmo: Senhor, sois o meu Deus: desde a aurora
Vos procuro 32. E ao nascer do sol, diz: Obras do Senhor, bendizei o Senhor, louvai-O
e exaltai-O para sempre33 e Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por
Ele amados. Nós Vos louvamos, nós Vos bendizemos, nós Vos adoramos, e o resto.

29
Gloria in excelsis Deo.
30
suna/ c eij .
31
Sal 118, 62.
32
Sal 62, 1.
33
Dan 3, 57.
392 SÉCULO IV

Pseudo-Atanásio

Contra os Novacianos 1
1487 Assim como o homem baptizado pelo sacerdote é iluminado pela graça do Espírito
Santo, assim também aquele que se confessa (e)comologou/menoj) na penitência re-
cupera, através do sacerdote, a graça de Cristo.

O sábado e a circuncisão 2
1488 1. Foi dito à nova criatura que não observasse o sábado, porque deve lembrar-se,
sem cessar, de que a vida nova começou no dia senhorial; ela deve também aprender
que a graça do dia do domingo é uma graça que jamais acabará.
1489 4. O fim da primeira criação foi o sábado; o princípio da segunda criação é o
domingo, dia em que a primeira criação foi renovada. Tal como o sábado era observado
obrigatoriamente como memória do fim da criação, assim nós honramos o domingo
como memória do início da sua renovação. Deus não fez outra criação, mas renovou a
antiga, pondo fim àquela que já começara... 5. Ao renovar a criação que fizera em seis
dias, Deus assinalou o dia da renovação por estas palavras que o Espírito diz no salmo:
Eis o dia que o Senhor fez... O domingo não é, por isso, o dia de toda a gente, mas só
daqueles que morreram para o pecado e vivem para Deus. Por isso a lei manda fazer a
circuncisão no oitavo dia, mandato que nunca devia ser violado... A circuncisão era uma
imagem do despojamento baptismal... Quando Abraão acreditou, recebeu a circunci-
são, que era sinal da regeneração que acontece no baptismo. Ao chegar o que fora
significado, cessou o sinal; o sinal era a circuncisão, ao passo que o banho do novo
novo nascimento é a realidade significada...
Assim como o dia do Senhor foi o início da criação e pôs fim ao sábado, do
mesmo modo esse dia, tendo regenerado o homem, pôs fim à circuncisão. Ambos os
acontecimentos se realizaram no oitavo dia, quer o início da criação quer o novo
nascimento do homem. Por isso foi o oitavo dia que dissolveu o sábado, e não o sábado o
oitavo dia... 6. Tal como os sacrifícios eram imagem das coisas futuras, assim a circuncisão
de uma parte do corpo do homem era a sombra da circuncisão total... O que então era feito
como figura do baptismo, foi-nos dado por Cristo. Então como que se gerava em sombra
uma parte da realidade; agora, porém, como diz o Apóstolo, despimos toda a geração terrena,
regerados pelo banho, para não morrermos mais segundo a primeira geração, mas segundo
a circuncisão, pela qual o corpo foi despido, a fim de vivermos uma vida nova, a fim de ser
realidade em nós aquilo que disse o Senhor Jesus: «Hoje foi tirado de vós o opróbio do
Egipto». O mesmo e muito mais pode dizer-se de cada um daqueles que acaba de ser
baptizado: Neste dia te foi tirado o opróbrio da geração terrena, neste dia te foi tirado o
opróbrio da corrupção da morte.

1
PSEUDO -A TANÁSIO , Contra os Novacianos (=PG 26, 1315-1316).
2
PSEUDO -A TANÁSIO , O sábado e a circuncisão (=PG 28, 133-141).
EFRÉM, DIÁCONO 393

Efrém, diácono

Comentário sobre o Diatéssaron 1


1. 18 Quem poderá compreender, Senhor, toda a riqueza de uma só das vossas 1490
palavras? Como o sedento que bebe da fonte, muito mais é o que perdemos do que o
que tomamos. A palavra do Senhor apresenta aspectos muito diversos, segundo as
diversas perspectivas dos que a estudam. O Senhor pintou a sua palavra com muitas
cores, a fim de que cada um dos que a escutam possa descobrir nela o que mais lhe
agrada. Escondeu na sua palavra muitos tesouros, para que cada um de nós se enriqueça em
qualquer dos pontos que medita.
19 A palavra de Deus é a árvore da vida, que de todos os lados oferece um fruto
bendito, como a rocha que se abriu no deserto, jorrando de todos os lados uma bebida
espiritual... Aquele que chegou a alcançar uma parte desse tesouro, não pense que
nessa palavra está só o que encontrou, mas saiba que apenas viu alguma coisa dentre o
muito que lá está. E, porque apenas chegou a entender essa pequena parte, não considere
pobre e estéril esta palavra; incapaz de apreender toda a sua riqueza, dê graças pela sua
imensidade inesgotável. Alegra-te pelo que alcançaste, e não te entristeças pelo que
ficou por alcançar. O que tem sede alegra-se quando bebe, e não se entristece por não
poder esvaziar a fonte. Vença a fonte a tua sede, e não a tua sede a fonte, porque, se a
tua sede fica saciada sem que se esvazie a fonte, poderás ainda beber dela quando
voltares a ter sede; se, ao contrário, saciada a sede secasse a fonte, a tua vitória seria a
tua desgraça.
Dá graças pelo que recebeste, e não te entristeças pelo que sobrou e deixaste. O
que recebeste e alcançaste é a tua parte, e o que deixaste é ainda a tua herança. O que
não podes receber imediatamente por causa da tua fraqueza, poderás recebê-lo noutra
altura, se perseverares. E não tentes avaramente tomar dum só fôlego o que não podes
abarcar duma vez, nem desistas, por preguiça, do que podes ir conseguindo pouco a
pouco.

Sermões na Semana Santa 2

SERMÃO 2

8. Naquele dia, a mesa foi santificada pelo autor de toda a santidade. A mesa serviu- 1491
-lhe de altar, que foi todo consagrado. Na tarde desta Páscoa, o cenáculo foi igreja; a
mesa, o sagrado altar; os sacerdotes, os Apóstolos recostados; cabeça dos recostados,
oblação e oferente, o próprio Jesus; comensais, os seus discípulos. Estes, ao verem a
nova Páscoa, admiravam-se do sacrifício, pois nunca tinham comido nada semelhante...
10. De agora em diante comereis uma Páscoa nova e pura, isto é, o pão que é trigo 1492
puro amassado e cozido pelo Espírito Santo; dar-vos-ei a beber um vinho misturado
com fogo e espírito: são o Corpo e o Sangue de Deus, que Se fez vítima por todos.

1
E FRÉM , DIÁCONO , Comentário sobre o Diatéssaron (=SCh 121; cf. LH, III). Esta obra foi composta entre
360-370. S. Efrém nasceu por volta de 306 e morreu em 373.
2
E FRÉM , DIÁCONO, Sermões na Semana Santa (=LAMY , vol. I, Malines 1882-1902).
394 SÉCULO IV

SERMÃO 4

1493 4. No princípio (da ceia) Jesus tomou pão comum em suas mãos, abençoou-o,
assinalou-o e consagrou-o em nome do Pai e em nome do Espírito Santo, partiu-o e
distribuiu-o aos seus discípulos, um a um, na sua bondade acolhedora; ao pão chamou
seu Corpo vivo e encheu-o de Si mesmo e do Espírito; e estendendo a mão, deu-lhes o
pão que tinha santificado com a sua direita: Tomai todos, e comei do que a minha
palavra santificou. O que agora vos dei não o julgueis pão, tomai, comei, e não piseis
as suas migalhas; o que chamo meu Corpo, é de verdade (meu Corpo). Uma das suas
pequeníssimas parcelas pode santificar milhões e é suficiente para dar vida a todos os
que a comem. Tomai, comei com fé, sem a mínima dúvida de que isto é o meu Corpo;
aquele que o come com fé, come fogo e Espírito; mas, se alguém o come com dúvidas,
torna-se para ele simples pão; quem come com fé o pão santificado em meu nome, se
é puro, mantém-se puro; se é pecador, fica perdoado. Mas, quem o despreza, o depre-
cia ou o desonra, fique certo de que desonra o Filho, o qual ao pão chamou e fez
realmente seu Corpo. Tomai dele, comei todos, e nele comei o Espírito Santo, porque
é verdadeiramente o meu Corpo. Quem o come viverá eternamente: este é o pão celeste
que do Céu desceu à terra...
1494 6. Depois de os discípulos comerem o pão novo e santo e de entenderem, pela fé,
que por ele tinham comido o Corpo de Cristo, Cristo continuou a explicar e a dar o
sacramento completo. Tomou e misturou o cálice de vinho; depois abençoou-o, assi-
nalou-o e santificou-o, dizendo que era o seu Sangue que ia ser derramado. A seguir,
estendendo a mão direita para Simão, entregou-lhe o cálice a ele em primeiro lugar, para
que dele tomasse o sacramento, e depois ao discípulo que estava perto. Aproximaram-se
todos e beberam do cálice, isto é, onze de entre eles. Quando Jesus distribuía o pão aos
Onze sem qualquer distinção, aproximou-se Judas para receber, como tinham recebido
os companheiros que se tinham aproximado, mas Jesus molhou o pão em água, tirou-lhe
a consagração e assim distinguiu o bocado de Judas. Desse modo os Apóstolos souberam
que era Judas quem havia de entregar Jesus. Portanto, Jesus molhou o pão para tirar a
consagração e deu-o a Judas. Judas não comeu pão consagrado nem bebeu do cálice da
vida. Pelo pão molhado conheceu que não tinha sido achado digno da vida; por isso,
furioso, foi-se embora e não bebeu do cálice do Sangue de Jesus, mas juntou-se aos que
haviam de O crucificar, e assim não viu o cálice consagrado...
Tendo os discípulos recebido da mão direita de Jesus o cálice da salvação, apro-
ximaram-se e beberam dele todos em comum, um depois do outro. Cristo mandou-os
beber e explicou-lhes que era o seu Sangue que bebiam: Isto é o meu verdadeiro
Sangue, que vai ser derramado por todos vós: tomai, bebei todos dele, porque é a
nova Aliança no meu Sangue. Como me vistes fazer, assim fareis em minha memória.
Quando vos reunirdes na igreja em meu nome, em todos os lugares da terra, fazei em minha
memória o que eu fiz; comei o meu Corpo e bebei o meu Sangue, Aliança antiga e nova...
1495 7. Foi uma tarde perfeitíssima aquela em que Cristo levou a cabo a verdadeira
Páscoa; foi uma tarde, a última das tardes, na qual Cristo selou a sua doutrina; tarde,
cujas trevas foram iluminadas; tarde, que fez da décima quarta lua o dia do novo sol;
mandou o Senhor que a Sinagoga imolasse o cordeiro na lua décima quarta de Nissã e
preparasse ázimos em cada ano; por isso, na véspera desta Páscoa, impôs à sua Igreja
a lei de renovar a memória do Cordeiro, Filho do nosso Deus, o qual, antes de ser morto
por nós, entregou o seu Corpo e o seu Sangue. Na tarde em que os Judeus comiam os
ázimos, Jesus constituiu a Igreja herdeira do seu Sangue neste mundo. Oh tarde glo-
riosa, na qual se realizaram os mistérios, em que foi selado o pacto antigo, em que se
enriqueceu a Igreja dos gentios! Tarde bendita, tempo bendito, no qual a ceia foi
consagrada; mesa bendita que foi altar para os Apóstolos. Naquela ceia, o Senhor criou
o alimento espiritual e misturou a bebida celestial...
EFRÉM, DIÁCONO 395

Sermão de nosso Senhor 3

3. Nosso Senhor foi calcado pela morte, mas Ele, por sua vez, esmagou a morte 1496
como quem pisa aos pés o pó do caminho. Sujeitou-Se à morte e aceitou-a voluntariamente,
para destruir aquela morte que não queria morrer. O Senhor saiu para o Calvário
levando a Cruz, satisfazendo as exigências da morte; mas, ao soltar um brado do alto da
cruz, arrancou os mortos ao abismo das sombras, vencendo a oposição da morte. A
morte matou-O no corpo que assumira; mas Ele, com as mesmas armas, saiu vitorioso
da morte. A divindade ocultou-se sob os véus da humanidade e assim se aproximou da
morte, que matou, mas também foi morta. A morte matou a vida natural, mas foi
destruída pela vida sobrenatural.
E, porque a morte não O podia devorar se Ele não tivesse corpo, nem o Inferno
O podia tragar se não tivesse carne, desceu ao seio de uma Virgem para tomar um corpo
que O conduzisse à região dos mortos. Mas, com esse corpo que assumira, penetrou
na região dos mortos, para destruir todas as suas riquezas e arruinar os seus tesouros.
A morte foi ao encontro de Eva, a mãe de todos os seres vivos. Ela é como uma vinha
cuja sebe foi aberta pela morte, por meio das próprias mãos de Eva, para que esta
pudesse saborear os seus frutos; por isso Eva, mãe de todos os seres vivos, se tornou
fonte de morte para todos os seres vivos.
4. Floresceu, porém, Maria, a nossa videira que substituiu a antiga Eva, e nela 1497
habitou Cristo, a nova vida, a fim de que, ao aproximar-se confiadamente a morte para
alimentar a sua habitual fome de devorar, encontrasse ali escondida, no seu fruto
mortal, a vida, destruidora da morte. E assim a morte engoliu sem receio o fruto mortal,
e Ele libertou a vida, e, com ela, a multidão dos homens.
O mesmo admirável Filho do carpinteiro, que conduziu a sua cruz até aos abismos
da morte, que tudo devoravam, levou também o género humano para a morada da vida.
E uma vez que o género humano, por causa de uma árvore, se tinha precipitado no
reino das sombras, sobre outra árvore passou para o reino da vida. Portanto, na mesma
árvore, em que tinha sido enxertado um fruto amargo, foi enxertado depois um fruto
doce, para que reconheçamos o Senhor a quem nenhuma criatura pode resistir.
9. Glória a vós, que lançastes a cruz, como uma ponte, sobre a morte, para que 1498
através dela passem as almas da região da morte para a vida! Glória a vós, que assumistes
um corpo de homem mortal, para o transformardes num manancial de vida em favor de
todos os mortais!
Vós viveis para sempre! Aqueles que Vos mataram procederam para com a vossa
vida como os agricultores: lançaram-na à terra como a um grão de trigo; mas ela ressus-
citou e fez ressurgir consigo a multidão dos homens. Vinde, ofereçamos o sacrifício
grande universal do nosso amor e entoemos, com grande alegria, cânticos e orações
Àquele que Se ofereceu a Deus no sacrifício da cruz, para nos enriquecer por meio dela
com a abundância dos seus dons.

3
E FRÉM , DIÁCONO , Sermão de nosso Senhor (=L AMY , vol. I, Malines 1882-1902; cf. LH, II).
396 SÉCULO IV

Sobre o fim e a exortação 4

SERMÃO 3

1499 2. Fazei resplandecer, Senhor, o dia luminoso da vossa ciência e dissipai as trevas
nocturnas da nossa alma, para que seja iluminada e vos sirva renovada e pura. O nascer
do sol assinala aos mortais o começo das suas labutas; adornai, Senhor, a morada da
nossa alma, para que nela permaneça o esplendor daquele dia que não tem fim. Fazei,
Senhor, que cheguemos a contemplar em nós mesmos a vida da ressurreição e que nada
consiga apartar o nosso espírito das vossas alegrias. Imprimi, Senhor, em nossos
corações o sinal daquele dia que não se rege pelo movimento do Sol, infundindo-nos
uma constante orientação para vós.
1500 4. Todos os dias Vos abraçamos nos sacramentos e Vos recebemos no nosso corpo;
tornai-nos dignos de sentir em nós mesmos a ressurreição que esperamos. Com a graça
do baptismo conservamos escondido no nosso corpo o tesouro que nos destes, esse
tesouro que aumenta na mesa dos vossos sacramentos; fazei-nos viver sempre na
alegria da vossa graça. Possuímos, Senhor, em nós mesmos, o memorial que recebemos da
vossa mesa espiritual; concedei-nos a graça de possuirmos, na renovação futura, a
realidade plena que ele nos recorda. Nós Vos pedimos que, através daquela beleza
espiritual que a vossa vontade imortal faz resplandecer mesmo nas criaturas mortais,
nos leveis a compreender rectamente a beleza da nossa própria dignidade.
A vossa crucifixão, ó Salvador dos homens, foi o termo da vossa vida corporal;
concedei-nos que, pela crucifixão do nosso espírito, alcancemos o penhor da vida
espiritual. A vossa ressurreição, ó Jesus, faça crescer em nós o homem espiritual, e os
sinais dos vossos sacramentos no-lo revele como num espelho, para o conhecermos
cada vez melhor. Na economia da vossa salvação, ó Salvador dos homens, está configurada
a imagem do mundo espiritual; concedei que nele corramos como homens espirituais.
1501 5. Não priveis, Senhor, a nossa mente da vossa revelação espiritual, nem afasteis
dos nossos membros o calor da vossa suavidade. A natureza mortal, que se oculta no
nosso corpo, leva-nos à corrupção da morte; infundi em nossos corações o vosso amor
espiritual, para que afaste de nós os efeitos da nossa mortalidade. Concedei, Senhor,
que caminhemos velozmente para a nossa pátria celeste e, como Moisés no alto do
monte, a possamos desde já contemplar através da revelação.
1502 7. Nas águas do baptismo, irmãos, fostes revestidos com vestes brancas; não as
mancheis com obras desonestas. Sentais-vos a um banquete que é a santa Igreja, na
qual comeis o Corpo vivo e bebeis o Sangue redentor. Aquele que se senta neste
convívio e se deleita com estas delícias e ao mesmo tempo faz a iniquidade e o pecado,
ai dele no dia da ressurreição, naquele dia em que o Rei há-de vir com a sua pompa e
estabelecerá o seu trono para julgar...
1503 13. Naquele dia, ai daquele que no domingo deixa Cristo imolado e fica sentado na
praça! Naquele dia, ai daquele que no domingo provoca divisões e contendas! Será
lançado na geena...

4
E FRÉM , DIÁCONO , Sobre o fim e a exortação (=LAMY , vol. III, Malines 1882-1902; cf. LH, III).
EFRÉM, DIÁCONO 397

Sermão para o ofício nocturno


da Ressurreição do Senhor 5
4. Todos os auxílios que o Senhor misericordioso nos concedeu como fonte abundante, 1504
jorraram e vieram até nós no primeiro dia da semana, o dia da sua Ressurreição.
Convém por isso honrar o primeiro dia da semana, o primogénito dos dias, porque está
cheio de mistérios. Mostrai-lhe o vosso respeito, pois ele, tal como Jacob que se
tornou o primogénito, tirou ao sábado o direito da primogenitura, do mesmo modo que
Efraim se tornou chefe de Manassés, apesar de ser este o primogénito... Feliz aquele
que honra este dia observando-o santamente. Há prescrições, irmãos, que não é bom
cumpri-las. Mas abstermo-nos do mal, isso alegra os que celebram uma festa. A lei
prescreve que se conceda o repouso aos servos e aos animais, para que os servos, as
criadas e os assalariados suspendam o trabalho. Contudo, enquanto os nossos corpos
repousam e descansam da fadiga, nós pecamos mais nos dias de repouso do que nos
outros dias; enquanto nos abstemos do trabalho dos campos e interrompemos a fadiga,
ao frequentarmos tabernas e as casas (uns dos outros), preparamos a nossa própria
condenação. Aquele que celebra uma festa comete pecados, aos quais o retomar do
trabalho põe termo. Não celebreis o dia da salvação só com o corpo... 6

Hinos 7
12. Hino baptismal8. Responsório: Bendito O que desceu ao Jordão, que foi bapti- 1505
zado e converteu os povos que andavam no erro.
1 No baptismo, o homem encontrou a glória perdida entre as árvores do Paraíso;
tendo descido às águas, delas subiu e foi vestido... Bendito O que tem piedade de todos.
2 O homem caiu no Paraíso, mas a Misericórdia renovou-o no baptismo; perdeu
a sua beleza pela inveja do Diabo, mas recuperou-a pela graça de Cristo. Bendito O que
tem piedade de todos.
3 Os cônjuges foram ornados no Éden, mas a serpente furou as suas coroas.
Porém, a Misericórdia aniquilou o Demónio execrável e vestiu os esposos com vestes
esplêndidas. Bendito O que tem piedade de todos.
4 Vestiram-se com folhas de pobreza, mas o Senhor misericordioso teve compaixão
deles e em vez de folhas de árvores revestiu-os com a glória do baptismo. Bendito O
que tem piedade de todos.
5 O baptismo é a fonte da vida aberta pelo Filho de Deus, quando estava vivo.
Do seu lado brotaram as ondas purificadoras. Todos os que tendes sede, vinde, alegrai-vos.
Bendito O que tem piedade de todos.
6 O Pai assinalou as fontes altíssimas do baptismo; às suas ondas gloriosas,
como se fossem esposas, Se uniu o Filho e o Espírito assinalou-O com o tríplice sinal.
O baptismo resplandece de luz santa. Bendito O que tem piedade de todos.
7 A Trindade imperscrutável colocou os seus tesouros no baptismo. Descei,
pobres, à sua fonte; apoderai-vos, indigentes, das suas riquezas. Bendito O que tem
piedade de todos.
5
E FRÉM , DIÁCONO, Sermão para o ofício nocturno da Ressurreição do Senhor (=L AMY , vol. III, Malines
1882-1902).
6
Testemunho precioso de que o repouso dominical generalizado levantou o problema do lazer.
7
E FRÉM , DIÁCONO, Himnis (=L AMY , vol. I, II, IV, Malines 1882-1902).
8
Hino baptismal (=LAMY , vol. I, 108).
398 SÉCULO IV

1506 13. Hino dos baptizados9. Responsório: Irmãos, cantai louvores ao Filho do Senhor
de todas as coisas...
1 As vossas vestes, irmãos, são brancas como a neve, e a vossa brancura refulge
como a brancura dos Anjos.
2 Como os Anjos, caríssimos, subistes do rio Jordão com as armas do Espírito Santo.
5 As vossas vestes resplandecem, as vossas coroas brilham, e quem vo-las teceu
hoje foi o Primogénito, pelo sacerdote.
7 Revestistes as armas da vitória, caríssimos, na hora em que o sacerdote invocou
o Espírito Santo.
10 Apareceu hoje o Rei celeste, que vos abriu a porta do Paraíso e vos introdu-
ziu no Éden.
11 Ornam a vossa cabeça coroas que não murcham. Cantem os vossos lábios
cânticos sem fim.
20 Grande é a vitória que conseguistes hoje, irmãos; se a não esquecerdes, nunca
perecereis.
21 Glória àqueles que se revestiram com a veste baptismal, glória aos descendentes
de Adão, que se alegram e foram abençoados por terem renascido da água.
22 Louvor aos que os revestiram; glória às suas Igrejas; glória àqueles que a
posteridade de Adão exaltou.
1507 14. Hino do óleo. Pelo óleo o Espírito marcou os sacerdotes e os reis. O Espírito
Santo, pelo óleo, imprime o seu selo sobre as suas ovelhas... Quando se é ungido e
assinalado no baptismo, os corpos são ungidos com óleo santo para serem purificados...,
porque o baptismo se torna para eles como um segundo seio... Os sacerdotes ajudam
este seio a dar à luz. Precede-o a unção... O óleo, fonte de cura, une-se ao corpo, fonte
das doenças, porque o óleo destrói as faltas, como o dilúvio... O óleo acompanha com o
seu amor aquele que mergulha... O óleo, que por sua natureza não pode ir ao fundo,
une-se ao corpo que é mergulhado, e, ao emergir, traz do fundo um tesouro de riqueza.
Cristo, que por sua natureza não pode morrer, revestiu um corpo mortal, emergiu e
trouxe das águas o tesouro da vida dos nossos primeiros pais... O óleo dá a unção aos
altares, para que estes sustentem o sacrifício de reconciliação.

Biografia de Efrém 10
1508 Quando Efrém viu como os habitantes de Edessa gostavam de cantar, instituiu
uma contrapartida às músicas e às danças dos jovens. Formou coros de religiosas, às
quais ensinou hinos divididos em estrofes com refrães. Colocou nesses hinos pensamentos
delicados e instruções espirituais sobre o Natal, o baptismo, o jejum e os actos de
Cristo, sobre a Paixão, a Ressurreição e a Ascensão, bem como sobre os confessores,
a penitência e os defuntos. As virgens reuniam-se no domingo, nas festas solenes e nas
comemorações dos mártires; e ele, como um pai, colocava-se no meio delas, acompa-
nhando-as com a harpa. Para os cantos alternados dividiu-as em coros e ensinou-lhes
diferentes melodias musicais. Deste modo, toda a cidade se reuniu à sua volta e os
adversários ficaram cobertos de vergonha e desapareceram.

9
Hino dos baptizados (=L AMY , vol. I, 110-114).
10
Biografia de Efrém (=cf. LMD 92, 71).
BASÍLIO DE CESAREIA 399

Basílio de Cesareia

O Espírito Santo 1
1. 1 Considero muito louvável o teu empenho em aprender e a tua aplicação ao 1509
trabalho...
2 É próprio... daqueles que conhecem a finalidade da nossa vocação... tentar
descobrir o sentido oculto de cada palavra, de cada sílaba... O discurso, base de todo o
ensino, compõe-se de partes: palavras e sílabas. Por isso não é fora de propósito
examinar as sílabas... O «sim» e o «não» não passam de duas sílabas. Mas estas
pequeninas palavras muitas vezes afectam tanto a verdade como a mentira... Essas
partículas, das quais procuras obter de nós um exame atento, apesar de breves, são
realmente grandes... Por isso, explicarei agora, ajudado pelo Espírito, que é lícito dizer
«com» o Espírito Santo.
3 Estava há pouco a rezar com o povo. Glorificava a Deus Pai com ambas as
formas da doxologia: ora com o Filho, com o Espírito Santo; ora pelo Filho, no Espírito
Santo, e alguns dos presentes acusaram-me de empregar palavras estranhas e até
contraditórias entre si. Tu, porém..., pediste um ensinamento mais claro sobre o sen-
tido destas sílabas...
9. 22 Qual é o homem que, ao ouvir os nomes com que é designado o Espírito 1510
Santo, não sente levantado o seu ânimo e não eleva o seu pensamento para a natureza
divina? Chama-se Espírito de Deus, Espírito de verdade que procede do Pai, Espírito
de rectidão, Espírito principal e, como nome próprio e peculiar, Espírito Santo.
Para Ele voltam o seu olhar todos os que buscam a santificação, para Ele tende a
aspiração de todos os que vivem segundo a virtude; é o seu alento que os revigora e
reanima para atingirem o fim próprio e natural para que foram feitos.
Ele é a fonte da santificação e a luz da inteligência; é Ele que dá, de Si mesmo,
uma certa iluminação à nossa razão natural para que encontre a verdade.
Inacessível pela sua natureza, torna-Se acessível pela sua bondade; tudo abrange
com o seu poder, mas comunica-Se apenas àqueles que são dignos, não a todos na
mesma medida, mas distribuindo os seus dons em proporção com a fé.
Simples na essência, múltiplo nas manifestações do seu poder, está presente
todo em cada um, sem deixar de estar todo em toda a parte. Reparte-Se e não sofre
diminuição; todos d’Ele participam e permanece íntegro, à semelhança dos raios do sol
que fazem sentir a cada um a sua luz benéfica como se fosse para ele só, e, contudo,
iluminam a terra e o mar e difundem-se no espaço.
23 Assim também o Espírito Santo está presente em cada um dos que são capa-
zes de O receber, como se estivesse nele só, e, não obstante, dá a todos a totalidade da
graça que necessitam. Os que participam do Espírito recebem os seus dons na medida
em que o permite a disposição de cada um, mas não na medida do poder do mesmo
Espírito.
Por Ele os corações são elevados para o alto, os fracos são conduzidos pela mão,
os que progridem na virtude chegam à perfeição. Ele ilumina os que foram purificados
de toda a mancha e torna-os espirituais pela comunhão com Ele.

1
B ASÍLIO DE C ESAREIA , De Spiritu Sancto (=PG 32, 67-218; SCh 17 bis). Este tratado foi escrito por volta
de 375. Basílio de Cesareia nasceu por volta de 330 e morreu em 379.
400 SÉCULO IV

E, como os corpos límpidos e transparentes, sob a acção da luz, se tornam


também eles extraordinariamente brilhantes e irradiam um novo fulgor, assim as almas
que possuem o Espírito e por Ele são iluminadas se tornam também elas espirituais e
irradiam sobre os outros a sua graça.
D’Ele procede a previsão do futuro, a inteligência dos mistérios, a compreensão
das coisas ocultas, a distribuição dos carismas, a participação na vida do Céu, a com-
panhia dos coros dos Anjos. D’Ele nos vem a alegria que não tem fim, a união constante
e a semelhança com Deus; d’Ele procede, enfim, o bem mais sublime que se pode
desejar: tornar-se o homem Deus.
1511 10. 26 Como foi que nos tornámos cristãos? Pela fé, dirá toda a gente. Mas de que
maneira somos nós salvos? Pelo nascimento do alto, evidentemente, pela graça do
baptismo. Porque, como o poderíamos nós ser de outro modo?... Aquele que não
guarda em todos os momentos a profissão de fé2 que fizemos no momento da nossa
primeira entrada, quando viemos para o Deus vivo depois de termos abandonado os
ídolos, torna-se estranho às promessas de Deus, contradizendo o compromisso3 que
tomou na sua profissão de fé. Com efeito, se o baptismo é para mim o início da vida e
o primeiro dia é o da regeneração, a palavra mais preciosa é a que foi proferida quando
me foi conferida a graça da filiação adoptiva. Eu não posso trair, seduzido pelas suas
pretensas razões, esta tradição que me introduziu na luz e me concedeu a graça do
conhecimento de Deus, pelo qual, de pecador e inimigo fui transformado em filho de
Deus. Pelo contrário, suplico para mim o dom de partir com esta profissão para junto
do Senhor, e a eles, entretanto, exorto-os a manter uma fé íntegra até ao dia de Cristo,
a crer que o Espírito é inseparável do Pai e do Filho e a seguirem exactamente o
ensinamento do baptismo, na confissão da fé e na recitação das doxologias...
1512 11. 27 Que profissão fizeram e quando? Confessaram crer no Pai e no Filho e no
Espírito Santo, quando, depois de renunciarem ao Diabo e aos seus anjos, proferiram
aquela palavra de salvação... Como chamarei ao que renega a Deus?... Não crê no Filho
quem não acredita no Espírito, nem crê no Pai aquele que não crê no Filho...
1513 12. 28 Ninguém se iluda com a palavra do Apóstolo, quando, ao referir-se ao baptismo,
muitas vezes omite o nome do Pai e do Espírito Santo, nem creia que é dispensável
empregar a invocação desses nomes. Diz o Apóstolo: Todos vós, que fostes baptizados
em Cristo, estais revestidos de Cristo4. E ainda: Todos os que fostes baptizados em
Cristo, foi na sua morte que fostes baptizados5. Ora, nomear Cristo... é invocar Deus
que unge, o Filho que foi ungido e a unção que é o Espírito...
A fé e o baptismo são dois meios de salvação, intimamente unidos e inseparáveis.
A fé encontra o seu acabamento no baptismo, e o baptismo baseia-se na fé. Uma e
outro se realizam através dos mesmos nomes. Tal como acreditamos no Pai e no Filho
e no Espírito Santo, assim também somos baptizados em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo. Primeiro vem a profissão de fé, que conduz à salvação, depois vem o
baptismo, que põe o selo eficaz na nossa adesão.
1514 15. 35 Como poderemos assemelhar-nos a Cristo na sua morte? Sepultando-nos
com Ele pelo baptismo. Em que consiste esta sepultura e qual é o fruto desta imitação?
Antes de mais trata-se de cortar com a vida passada. Mas ninguém pode conseguir
isto, se não renascer de novo, segundo a palavra do Senhor, porque o renascimento,
como o nome indica, é o começo de uma vida nova. Por isso, antes de começar esta vida
nova, é necessário pôr fim à antiga...

2
o(mologi/an.
3
xeiro/grafon.
4
Gal 3, 27.
5
Rom 6, 3.
BASÍLIO DE CESAREIA 401

E como podemos imitar a Cristo na sua descida à região dos mortos? Imitando
pelo baptismo a sepultura de Cristo. Porque o corpo dos baptizados fica de certo
modo sepultado na água. Por isso, o baptismo simboliza a deposição das obras da
carne, segundo as palavras do Apóstolo: Fostes sepultados com Cristo no baptismo6.
Ora, o baptismo purifica a alma das manchas que nela se acumularam por causa
das tendências carnais... Por isso, reconhecemos um só baptismo salvador, já que é
uma só a morte que resgata o mundo e uma só a ressurreição dos mortos, das quais é
figura o baptismo.
O Senhor, que nos dá a vida, estabeleceu connosco a aliança do baptismo, símbolo da
morte e da vida, onde a água é a imagem da morte e o Espírito nos dá o penhor da vida.
Assim se torna para nós evidente o que antes se perguntava: Porque está a água unida
ao Espírito? É dupla, com efeito, a finalidade do baptismo: abolir o corpo do pecado,
para que nunca mais produza frutos de morte, e vivificá-lo pelo Espírito, para que dê
frutos de santidade. A água é a imagem da morte, ao receber o corpo como num sepulcro; e
o Espírito Santo, por sua vez, comunica a força vivificante que renova as nossas almas,
libertando-as da morte do pecado e restituindo-lhes a vida. Nisto consiste o renascer
da água e do Espírito: na água realiza-se a nossa morte, mas o Espírito opera em nós a vida.
O grande mistério do baptismo realiza-se em três imersões e três invocações,
para que não só fique bem expressa a imagem da morte, mas também seja iluminada a
alma dos baptizandos com o dom da ciência divina. Por isso, se a água tem o dom da
graça, não é por sua própria natureza, mas pela presença do Espírito. O baptismo, com
efeito, não é uma purificação da imundície corporal, mas o compromisso de uma
consciência pura perante Deus...
36 Pelo Espírito Santo se nos concede de novo a entrada no Paraíso, a ascensão
ao Reino dos Céus, o retorno à adopção de filhos. Por Ele se nos dá a confiança de
chamar a Deus nosso Pai, de participar na graça de Cristo, de sermos chamados filhos
da luz, de tomar parte na glória eterna, numa palavra, de receber a plenitude de todas
as bênçãos, tanto na vida presente como na vida futura, e de poder contemplar, como
num espelho, como se já estivessem presentes, os bens que em promessa nos estão
destinados e que pela fé esperamos vir a usufruir. Ora, se tais são as arras, qual não será
a realidade perfeita? E, se tão grandes são as primícias, qual não será a plenitude final?
27. 66 As verdades conservadas e anunciadas na Igreja chegaram até nós ou através 1515
do ensinamento escrito, ou foram-nos transmitidas nos mistérios 7, pela tradição apos-
tólica. Quer umas quer outras têm a mesma força para a piedade, e todo aquele que
sabe o que são as instituições eclesiásticas não contradirá nenhuma delas. De facto, se
tentássemos rejeitar os costumes que nos foram transmitidos sem ser por escrito,
como se não tivessem grande força, enfraqueceríamos, sem nos darmos conta, o Evan-
gelho, em coisas essenciais, e reduziríamos a pregação a palavras vazias.
Por exemplo, para recordarmos o que vem em primeiro lugar e é o mais comum,
quem ensinou por escrito a assinalar com o sinal da cruz na fronte, aqueles que põem
a sua esperança no nome de nosso Senhor Jesus Cristo? Que palavra da Escritura nos
ensinou a voltarmo-nos para o Oriente durante a oração? Qual foi o santo que nos
deixou por escrito as palavras da epiclese na consagração do pão da Eucaristia e do
cálice da bênção? De facto não nos limitamos às palavras referidas pelo Apóstolo e
pelo Evangelho, mas antes e depois dizemos outras, recebidas da tradição não escrita,
e que têm grande importância para o mistério. Em que escritos nos fundamos para
consagrar a água do baptismo e o óleo da unção, além do próprio baptismo que recebemos?
Não foi da tradição secreta e mística? Qual é o documento escrito que prescreve a

6
Col 2, 12.
7
Nas celebrações dos sacramentos.
402 SÉCULO IV

própria unção com o óleo? De qual escrito bebemos que o homem deve ser imergido
três vezes? Qual o texto da Escritura onde estão ditas as outras coisas que se fazem no
baptismo, como, por exemplo, a renúncia a Satanás e aos seus anjos? Não é curioso que
os nossos Pais tenham guardado esta doutrina no meio de um silêncio tranquilo, cons-
cientes de que assim salvaguardavam o carácter sagrado dos mistérios? Com efeito,
como seria razoável divulgar por escrito aquilo que de modo algum é permitido que os
não iniciados contemplem?
Que fim tinha em vista o grande Moisés quando determinou que nem todas as
partes do templo seriam acessíveis a todos, estabelecendo que os profanos ficassem
fora do recinto sagrado, e permitindo apenas aos mais puros o acesso aos primeiros
átrios, ao passo que só os levitas foram considerados dignos do serviço divino. Mas
para os sacrifícios, os holocaustos e as outras funções do culto foram designados os
sacerdotes. No santuário não admitiu mais que um, escolhido de entre eles, e mesmo
assim não em qualquer tempo, mas num só dia do ano, em hora determinada por ele, a
fim de contemplar o Santo dos Santos com assombro, por ser um acontecimento
insólito e extraordinário. Na sua sabedoria, Moisés tinha a certeza de que facilmente se
menospreza o que é habitual e de fácil acesso, ao passo que uma raridade, conservada
à parte, desperta naturalmente uma procura interessada.
Foi igualmente desta forma que os Apóstolos e os Padres, que desde os primór-
dios dispuseram tudo o que se refere às Igrejas, conservaram também sob silêncio e
segredo o carácter sagrado dos mistérios, pois já não é totalmente mistério o que chega
aos ouvidos do povo.
O motivo da tradição não escrita é este: impedir que, por descuido, o conheci-
mento da doutrina seja menosprezado por muitos, devido à rotina. De facto, uma coisa
é a doutrina, e outra o anúncio. Cala-se a primeira, enquanto se proclama o anúncio.
Constitui igualmente uma forma de silêncio a obscuridade empregada nas Escrituras,
que torna mais difícil à mente apreender a doutrina, para proveito dos leitores.
É por isso que, apesar de todos nós, ao rezar, olharmos para o Oriente, poucos
sabem que estamos à procura da nossa antiga pátria, o Paraíso que Deus plantou no
Éden, na direcção do Oriente8.
No primeiro dia da semana fazemos as nossas orações de pé, mas nem todos
sabem a razão disso. De facto, não é só por termos ressuscitado com Cristo nem por
devermos procurar as coisas do alto que, no dia da Ressurreição, recordamos a graça
que nos foi dada, mas também, penso eu, porque esse dia é, de certo modo, a imagem
do século futuro. Dado que foi esse o início dos dias, Moisés não lhe chamou o
primeiro dia mas o único: Veio a tarde, diz ele, veio a manhã, único dia, como se o
mesmo dia voltasse muitas vezes. Este mesmo dia, que é único e simultaneamente
oitavo, representa, por si mesmo, o oitavo verdadeiramente único e realmente oitavo,
que o salmista menciona nalguns títulos dos Salmos9..., o dia sem fim, que não conhe-
cerá tarde e ao qual não sucede outro dia, dia que nunca mais terá fim nem envelhecerá.
Por isso, a Igreja ensina a rezar de pé nesse dia para que, pela recordação perpétua da
vida eterna, não negligenciemos os meios que a ela conduzem.
Todo o Pentecostes nos recorda a ressurreição que esperamos no século futuro.
Com efeito, este dia um e primeiro, multiplicado sete vezes sete, completa as sete
semanas do santo Pentecostes. Este termina pelo mesmo dia em que começou, o
primeiro, desdobrando-se cinquenta vezes no intervalo em jornadas semelhantes. Deste

8
Cf. Gen 2, 8.
9
Sal 6 e 12.
BASÍLIO DE CESAREIA 403

modo, esta semelhança faz com que ele (o Pentecostes) imite a eternidade, uma vez
que, como num movimento circular, o seu ponto de partida é o mesmo que o seu ponto
de chegada. Nele (no Pentecostes), as leis da Igreja ensinaram-nos a preferir a estar de
pé, durante a oração. Esta «rememoração» em acto transporta, por assim dizer, o
nosso espírito, do presente para o futuro.
Por outro lado, cada vez que rezamos de joelhos e depois nos reerguemos,
mostramos, por atitudes, que o pecado nos lançou por terra e que o amor do nosso
Criador para com os homens10 de novo nos chamou para o Céu.
67 Um dia inteiro não nos bastaria, se quiséssemos expor os mistérios da Igreja
que não constam das Escrituras. Deixando de lado tudo o mais, pergunto: de que
passagens retirámos a profissão de fé no Pai e no Filho e no Espírito Santo? Se a
extraímos da tradição baptismal, de acordo com a piedade (pois devemos crer segundo
a maneira como fomos baptizados), para restituirmos 11 uma profissão baptismal, que
é essencial ao baptismo, deve-nos ser permitido também glorificar de acordo com a
nossa fé. Mas, se esta forma de dar glória nos é recusada, por não constar das Escrituras,
sejam-nos mostradas provas escritas da profissão de fé e de tudo o mais que enumerámos.
Uma vez que há tantas coisas que não foram escritas, e coisas tão importantes para o
mistério da piedade, ser-nos-á recusada uma só palavra, proveniente dos Pais, que nós
devemos persistir em utilizar nas Igrejas que não se desviaram, uma palavra bastante
razoável, e que muito contribui para a força do mistério?
29. 73 Pareceu aos nossos Pais que não se devia, de modo nenhum, ficar em silêncio 1516
perante a graça da luz vespertina, mas antes dar graças quando ela aparece. Não pode-
mos dizer quem tenha sido o autor das palavras que se dizem em acção de graças ad
lucernas. Mas o povo pronuncia a antiga fórmula, e ninguém jamais pensou que fosse
impiedade dizer: Cantamos ao Pai e ao Filho e ao Santo Espírito de Deus. Por isso
quem conhece o hino que Antenógenes deixou aos seus discípulos como uma espécie
de discurso de despedida, quando já se apressava em direcção à fogueira, sabe qual é a
opinião dos mártires sobre o Espírito. E isto é suficiente.

Homilias sobre os Salmos 12

SALMO 1

1. Os Profetas ensinaram uma coisa; os livros históricos, outra; também é coisa 1517
diferente o que se ensina na Lei e o que se ensina nos livros sapienciais. O livro dos
Salmos recolhe o que há de mais aproveitável em todos os outros: anuncia o futuro,
recorda o passado, dita as leis da vida, ensina-nos os nossos deveres: numa palavra, é
um tesouro universal de excelentes ensinamentos.
O canto dos salmos é a voz da Igreja. É o canto dos salmos que dá às festas o seu
brilho; é ainda ele que dá a tristeza segundo Deus. Nele está a síntese e o ponto
culminante da «teologia»: o anúncio da vinda de Cristo na carne, a ameaça do julgamento,
a esperança da ressurreição, o temor do castigo, as promessas da glória, a revelação dos
mistérios. Tudo isso está contido no livro dos Salmos, como num grande tesouro
aberto a todos...

10
A filantropia.
11
Redere.
12
B ASÍLIO DE C ESAREIA , Homilias sobre os Salmos (=PG 29, 209-494; 30, 71-118).
404 SÉCULO IV

SALMO 59

1518 Do mesmo modo tornamos nossos os oráculos divinos13. Por isso os lemos em
cada reunião, como se fossem dons enviados do Céu através da Igreja de Deus e
alimento das almas oferecido pelo Espírito.

Sobre o Baptismo 14

HOMILIA 1

1519 2. 16 Ao subir do baptismo, como que ressuscitados de entre os mortos, devemos


viver em Cristo Jesus e não morrer mais, quer dizer, não pecar mais. Assim como a
morte já não tem poder sobre Cristo, assim o pecado não deve reinar em nós. Porque
quem comete o pecado é escravo do pecado. Uma vez que morremos na água baptismal,
que é uma imagem da cruz e da morte, morremos para o pecado e devemos vigiar para
não cair de novo nele.
HOMILIA 13

1520 1. Há um tempo próprio para cada coisa: para dormir e para velar, para fazer guerra
e para fazer a paz. Mas, para o baptismo, toda a vida humana é tempo próprio...;
qualquer momento é indicado para obter a salvação pelo baptismo... Haverá, porém,
algum tempo mais oportuno para o baptismo do que o dia de Páscoa? Esse dia, de
facto, é o memorial da ressurreição, e o baptismo é um germe de ressurreição. Por isso
é que a Igreja chama de longe os seus filhos, com grande ruído... Tu, porém, demoras...,
hesitas, pedes mais tempo! Estás no catecumenado desde a infância e ainda não con-
sentiste na verdade?... Passas a vida inteira a experimentar! Irás pôr-te à prova até à
velhice? Quando te tornarás cristão? Quando poderemos nós reconhecer-te como um
dos nossos?...
1521 5. És jovem? Domina essa juventude pelo freio do baptismo...Vamos, dá o teu
nome, inscreve-te na Igreja...
HOMILIA DO MÁRTIR JULITA 15

1522 9. Convém chorar com os que choram. Quando vires o teu irmão chorar em penitência
dos pecados, chora com ele e tem compaixão dele. Assim poderás corrigir o teu mal
com os males alheios. Na verdade, aquele que derrama fervorosas lágrimas pelo pecado
do próximo, enquanto lamenta o irmão cura-se a si mesmo... Chora por causa do
pecado. O mal da alma é o pecado; é morte da alma imortal; o pecado é digno de
lamentação e de inconsoláveis prantos.

13
Trata-se das leituras que se faziam durante as reuniões de oração. Juntamente com a salmodia faziam-se
leituras da Sagrada Escritura.
14
BASÍLIO DE CESAREIA, De baptismo libri duo (=PG 31, 1513-1628; SCh 357). Esta obra não será toda de Basílio.
15
B ASÍLIO DE C ESAREIA , Homilia in martyrem Iulittam (=PG 31, 237-262).
BASÍLIO DE CESAREIA 405

Cartas 16

CARTA 93 17

Comungar todos os dias e participar do sagrado Corpo e Sangue de Cristo é bom 1523
e muito útil... Haverá alguém que ponha em dúvida que a participação contínua da vida
corresponde a viver com maior intensidade? Nós comungamos quatro vezes por semana:
no domingo, na quarta-feira, na sexta-feira e no sábado, e ainda noutros dias quando se
faz a comemoração de algum santo.
É supérfluo mostrar que o facto de alguém se ver forçado, em tempo de perseguição,
a receber a comunhão com a sua própria mão, por não estar presente o sacerdote ou o
ministro, não é de modo nenhum grave, pois o confirma a prática de um antigo costume.
Porque todos os monges que vivem nos desertos, onde não há sacerdotes, guardam a
Eucaristia em casa e recebem-na por si mesmos.
Em Alexandria e no Egipto, cada qual, mesmo entre os leigos, em geral tem a
Eucaristia em sua casa e comunga, quando quer, por suas próprias mãos. Depois de o
sacerdote ter realizado o sacrifício e o ter distribuído, aquele que o recebe todo de uma
só vez deve acreditar que, ao participar dele cada dia (em sua casa), o recebe daquele
que lho deu. Aliás, quando o sacerdote distribui na igreja uma parte a cada um, também
é com todo o direito que aquele que a recebe a retém e depois a leva à boca com a sua
própria mão. Tem a mesma força o facto de receber do sacerdote várias porções da
Eucaristia ao mesmo tempo ou uma só.
CARTA 94 18

Bem quereria eu que se perguntasse a todos aqueles que sussurram aos teus 1524
ouvidos o prejuízo que eu posso ter causado aos negócios públicos, se a minha admi-
nistração dos bens da Igreja pôde lesar algum interesse comum, grande ou pequeno!
Será prejudicar o Estado construir para o nosso Deus uma casa de oração muito
bem construída? E à sua volta casas, uma de aspecto nobre reservada ao chefe, outras
mais simples para os ministros do culto e que vós, os governadores, não hesitais em
utilizar com o vosso séquito? A quem terei eu prejudicado ao construir hospedarias
para os estrangeiros e para todos os que viajam, e hospitais para todos os que, por
estarem doentes, precisam de ser tratados? Para isso neles estabeleci tudo o que é
preciso para os aliviar: enfermeiros, médicos, mudas de animais de carga e gente para
a escolta...
CARTA 145 19

3. Se tivesse podido ir ver-te em pessoa, ter-te-ia feito um relato completo e teria 1525
podido tomar a defesa dos aflitos; mas porque a minha má saúde e as minhas ocupa-
ções mo impediram, envio em meu lugar este irmão, o corepíscopo. Recomendo-to:
presta-lhe uma atenção verdadeira e faz dele teu conselheiro, porque este homem sábio
e amigo da verdade pode dar conselhos sobre os assuntos pendentes. Quando te tive-
res dignado examinar o hospício dos pobres que ele dirige, fornecer-lhe-ás tudo o que
ele precisar. Conheces esta obra e, tal como mo disseram, tu subvencionas um dos
hospí-cios da Amaseia com as riquezas que o Senhor te deu. O teu colega já me tinha

16
B ASÍLIO DE CESAREIA , Epistulae (=PG 32, 220-1112).
17
A carta 93 é do ano 372. É escrita à patrícia Cesárea e trata da comunhão.
18
A carta 94 é escrita ao governador da província.
19
Carta de recomendação de um bispo.
406 SÉCULO IV

feito a promessa de algumas ofertas para os hospícios dos pobres. Digo-te isto não
para que imites seja quem for – é a ti que nós imitamos –, mas para que saibas que já
houve outros que nos concederam bastantes dons para esta obra.
CARTA 150 20

1526 Tendo chegado perto de Cesareia para conhecer o estado das coisas, e não tendo
querido começar a minha estadia pela própria cidade, refugiei-me num hospício dos
pobres que há ali perto, a fim de me informar sobre o que desejava saber. Logo que,
como é seu hábito, o bispo tão amado de Deus aí chegou, fiz-lhe o meu relato... Não
pude conservar na memória tudo o que ele me respondeu: isso ultrapassaria o tamanho
duma carta! Em resumo disse isto: a medida para a pobreza é que cada um reduza os
seus bens à última túnica. Prova-o o Evangelho, onde João diz: Aquele que tem duas
túnicas reparta com aquele que não tem nenhuma. E acrescentava que o Senhor proi-
bira que os seus discípulos tivessem duas túnicas, e ainda esta palavra: Se queres ser
perfeito, vai, vende os teus bens e dá o produto aos pobres. Dizia também que a
parábola da pérola tinha a mesma finalidade...
CARTA 199 21

1527 22. É preciso reconhecer como réu de relações ilegítimas aquele que tomar mulher à
força... A pena determinada para os adúlteros é de quatro anos. Convém que, no
primeiro ano, sejam afastados das orações e chorem à porta da igreja; no segundo,
sejam admitidos a ouvir; no terceiro, à penitência; no quarto, a estarem entre o povo,
mas abstendo-se da oblação; depois permita-se-lhes a comunhão do Bem.
1528 24. Segundo o Apóstolo, a viúva que faz parte do grupo das viúvas, isto é, aquela
que é alimentada pela Igreja, se vier a casar-se, deve ser desprezada. Relativamente ao
homem viúvo não se impôs nenhuma lei; para ele é suficiente a pena dos bígamos. A
viúva que já tenha sessenta anos e decidir viver de novo com um homem, não será digna
da comunhão do Bem até que ponha fim à paixão da impureza. Mas, se fizer parte do
grupo das viúvas antes dos sessenta anos, a culpa é nossa, e não da mulher.
CARTA 207

1529 No que diz respeito à acusação sobre a salmodia..., respondo que a maneira de a
executar, actualmente em uso, é comum a todas as Igrejas de Deus. Com efeito, entre
nós o povo levanta-se de noite, para se dirigir à casa de oração, e, depois de terem
invocado a Deus, na aflição e nas lágrimas, passam da oração à salmodia. Rapidamente
se dividem em dois coros que salmodiam alternadamente ou respondem um ao outro,
para poderem, desta maneira, meditar as palavras santas que pronunciam e por outro
lado para evitar a distracção do coração. Depois encarregam um dos participantes de
cantar o cântico. O povo espera que o solista comece e todos os outros lhe respondem.
Passam assim a noite numa salmodia variada, na qual intercalam orações. E, quando o
dia começa a clarear, recitam todos juntos, num só coração e numa só voz, o salmo da
confissão22, para que cada um possa aplicar a si próprio as suas palavras de penitência.
Portanto, se fugis de nós por causa destas coisas, deveis também fugir dos Egípcios,
dos habitantes das duas Líbias, dos da Tebaida e dos da Palestina, dos Árabes, dos
Fenícios, dos Sírios e dos habitantes das margens do Eufrates, numa palavra, de todos
aqueles entre os quais as Vigílias, as orações e a salmodia se fazem em comum.

20
Esta carta mostra bem a qualidade dos sentimentos de Basílio, e ao mesmo tempo a pobreza de sentimentos
de um outro.
21
A carta 199 é sobre os adúlteros e as viúvas que voltam a casar.
22
Sal 50.
BASÍLIO DE CESAREIA 407

CARTA 217 23

Ao homem que pecou com a sua própria irmã, quer seja por parte do pai ou da 1530
mãe, não se lhe deve permitir que entre na casa de oração enquanto não renunciar ao
seu modo de viver perverso e ilícito. Quando tiver caído na conta daquele terrível
pecado, chore24 durante três anos e fique de pé à porta da casa de oração, pedindo a
cada uma e a todas as pessoas que entram para orar que ofereçam a Deus, por miseri-
córdia e com fervor, orações em seu benefício. Depois disto, seja admitido por um
período de outros três anos, mas só a escutar 25, e, depois de ter escutado as Escrituras
e os ensinamentos, seja expulso e não se admita à oração. Depois, se a pedir com
lágrimas e se prostrar diante do Senhor, de coração contrito e muito humilhado, conce-
da-se-lhe a prostração26 por outros três anos. Deste modo, quando tiver mostrado
dignos frutos de penitência, seja admitido, no décimo ano, à oração dos fiéis, mas sem
oblação; e, depois de ter estado de pé27 com os fiéis, na oração, durante três anos,
considere-se finalmente digno da comunhão do Bem.
CARTA 243 28

2. Desapareceu o gozo e a alegria espiritual. As nossas festas transformaram-se em 1531


dor, fecharam-se as casas de oração, nos altares não se celebra o culto espiritual. Já não
há reuniões de cristãos, nem presidência de doutores, nem documentos de salvação,
nem solenidades, nem o canto de hinos nocturnos, nem aquele feliz entusiasmo das
almas que brota nas reuniões, nem a comunhão nos carismas espirituais por parte
daqueles que crêem no Senhor. Bem podemos dizer que não há nem príncipe, nem
profeta, nem chefe, nem holocausto, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso, nem
local para Vos oferecer as primícias e encontrar misericórdia29.

A Regra mais breve 30


37. 2 Tendo em conta que alguns se servem das orações e da salmodia como pretexto 1532
para não trabalhar, é preciso saber que há um tempo adequado para cada coisa... No
entanto, para a oração e a salmodia todo o tempo é bom... Assim, enquanto trabalhamos
manualmente, rezamos sempre a Deus com a boca, ou antes, quando isso contribui para a
edificação da nossa fé. Se tal não é possível, então rezamos a Deus no coração com
salmos, hinos e cânticos espirituais, cumprindo o dever, como está escrito, de orar
enquanto fazemos o nosso trabalho...
Se assim não fizéssemos, como poderíamos nós viver de acordo com o pensamento
dos Apóstolos: Orai sem cessar31 e trabalhamos dia e noite32? Até pela Lei foi mandado
dar graças em todo o momento... Por isso, não se devem omitir na comunidade os
tempos estabelecidos para a oração, momentos necessários, porque cada um sabe
quais as bênçãos recebidas de Deus.

23
A carta 217 é sobre a penitência.
24
Flentes = pro/sklausij .
25
Audientes = a(kro/asij .
26
Prostati = u) p o/ s tasij.
27
su/ s tasij .
28
A carta 243 descreve a situação de desolação das comunidades.
29
Dan 3, 38.
30
B ASÍLIO DE CESAREIA , Regulae fusius tractatae (=PG 31, 889-1052).
31
1 Tes 5, 17.
32
2 Tes 3, 8.
408 SÉCULO IV

3 As Laudes matutinas têm por fim consagrar a Deus os primeiros movimentos


da nossa alma e do nosso espírito, de modo a nada empreendermos antes de nos alegrarmos
com o pensamento de Deus, como está escrito: Lembrei-me de Deus e enchi-me de
alegria33; e ainda para que o corpo não se entregue ao trabalho antes de fazermos o que
está escrito: Eu Vos invoco, Senhor, pela manhã, e ouvis a minha voz: de manhã vou
à vossa presença e espero confiado34...
À hora de Tércia devemos entregar-nos de novo à oração, e, se vários irmãos
estiverem ocupados em diversos trabalhos, devem reunir-se para pedirem juntos a
graça de ser dignos de participar na santificação do Espírito Santo concedida aos
Apóstolos nesta mesma hora. Todos deveriam rezar em uníssono para chegarem a ser
dignos de receber a santificação, pedindo orientação e ensinamento naquilo que nos faz
progredir... Depois, voltamos ao trabalho...
À hora de Sexta devemos igualmente recitar a oração, segundo o exemplo dos
santos, e, para sermos libertados dos ataques do Demónio do meio-dia, recitarmos
nesse momento o salmo 90.
Foram os próprios Apóstolos que nos ensinaram que devíamos rezar à hora de Noa,
pois nos é dito nos Actos que Pedro e João iam para o templo, para a oração da nona hora.
4 As Vésperas celebram-se à tarde, a fim de agradecermos tudo quanto neste dia
nos foi dado e ainda o bem que nós próprios tenhamos feito; confessamos as nossas
negligências e reconciliamo-nos com Deus pela oração, por tudo aquilo que, voluntária
ou involuntariamente, fizemos de mal por palavras e obras, ou até por pensamentos,
pois é uma coisa boa voltar ao passado, a fim de não cair novamente nas faltas já
cometidas. Por isso está dito: No silêncio dos vossos leitos falai ao vosso coração35.
Devemos orar de novo ao começar a noite, para gozarmos dum repouso sem
mancha e livre de pesadelos; nesse momento é preciso recitar o salmo 90.
Paulo e Silas, como no-lo contam os Actos, ensinam-nos a obrigação da oração a
meio da noite, e o salmista diz também: Levanto-me no meio da noite para Vos louvar36.
Enfim, devemos ainda levantar-nos antes da aurora e entregar-nos à oração, para
que o dia nos não surpreenda no sono e na cama, mas nós possamos dizer: Meus olhos
antecipam-se às vigílias da noite a meditar na vossa promessa37.
5 Os que escolheram uma vida dedicada à glória de Deus e de Cristo não devem
omitir nenhum destes momentos. Mas eu entendo que a diversidade e a variedade nas
orações e na salmodia das horas estabelecidas é desejável por um motivo concreto,
pois a alma debilita-se e distrai-se com a habituação, ao passo que, alternando e
variando a salmodia e a Escritura, em cada hora, reforçam-se o desejo da oração e a sua
solenidade renovada.
1533 201. Como fazer para chegar a fixar o espírito na oração? Estando persuadidos de que
temos Deus diante dos olhos. Com efeito, quando temos à nossa frente um príncipe ou
qualquer outra pessoa de consideração e lhe falamos, mantemos os olhos fixos sobre
ele. Com maioria de razão aquele que ora a Deus deve fixar o seu espírito sobre Aquele
que perscruta os corações e os rins.

33
Sal 76, 4.
34
Sal 5, 4-5.
35
Sal 4, 5.
36
Sal 118, 62.
37
Sal 118, 148.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 409

As Constituições Apostólicas 1

Livro I
1. Saudação. 1 Os Apóstolos e os presbíteros a todos os fiéis de origem pagã que 1534
acreditaram no Senhor Jesus Cristo: A vós, da parte de Deus todo-poderoso e por
nosso Senhor Jesus Cristo, graça e paz em abundância no conhecimento divino...

Livro II

IGREJA, ASSEMBLEIA E CELEBRAÇÕES

57. A assembleia. 1 Tu, bispo, sê santo, sem mancha. Não sejas duro, nem irascível, 1535
nem cruel, mas edificante, zeloso, desejoso de ensinar, paciente, benévolo, manso,
magnânimo, capaz de exortar e consolar como homem de Deus. 2 Quando reunires a
Igreja de Deus, exige, como piloto de um grande navio, que as assembleias se realizem
com grande disciplina, e ordena aos diáconos, como se fossem marinheiros, que indiquem
com todo o cuidado e dignidade os lugares aos irmãos, como se fossem passageiros.
Lugares na igreja. 3 Em primeiro lugar, a casa deve ser comprida, voltada para 1536
o Oriente, com sacristias de ambos os lados, também voltadas para o Oriente. Deve
parecer-se com um navio. 4 O trono do bispo será colocado no meio; de um e outro
lado sentar-se-á o presbitério; os diáconos assisti-los-ão, disponíveis e com roupas
amplas, dado que são semelhantes aos marinheiros e contramestres. Sob a sua vigilância,
sentem-se os leigos na outra parte, com toda a ordem e compostura, e sentem-se,
também separadamente, as mulheres, guardando silêncio.
Liturgia da palavra. 5 O leitor, de pé e no meio, num lugar elevado, lerá os 1537
escritos de Moisés e de Josué, filho de Num, dos Juízes e dos Reis, das Crónicas e do
Regresso do cativeiro; em seguida, os escritos de Job e de Salomão e dos dezasseis
Profetas. 6 Acabadas as leituras, proclamadas duas a duas, um outro salmodiará os
hinos de David, e o povo responderá, salmodiando os refrães. 7 A seguir ler-se-ão os
nossos 2 Actos e as Epístolas que Paulo, nosso colaborador, enviou às Igrejas sob a
moção do Espírito Santo; e depois disto, um presbítero ou um diácono lerá os Evangelhos
que eu, Mateus e João vos transmitimos, e que os colaboradores de Paulo, Lucas e
Marcos, recolheram e vos legaram. 8 Durante a leitura do Evangelho, todos os presbí-
teros, os diáconos e todo o povo ficarão de pé, em profundo silêncio, pois está escrito:

1
Constitutiones Apostolorum (=PG 1, 556-1156; F. X. F UNK , Paterbornae 1905, Turim 1962 2 ; SCh 321,
329, 336; E. L ODI , Roma 1979, 384-397). As Constituições Apostólicas foram compostas na Síria, nos
finais do século IV (+ - 380), a partir de várias fontes. No Livro VII encontramos, nos cap. 25-27, muito
modificadas, as orações provenientes da Didaqué, e nos cap. 33-38 várias bênçãos, que fazem lembrar a
berakah judaica, antepassada da Oração eucarística cristã. O Livro VIII desta grande colecção litúrgica da
antiguidade oferece-nos, nos cap. 3-5, o ritual da ordenação do bispo, derivado da Tradição Apostólica,
mas consideravelmente aumentado, e nos cap. 5-15 a descrição mais completa dessa época sobre a liturgia
eucarística, na qual figura o mais antigo texto duma anáfora siríaca, de carácter nitidamente didáctico.
2
As Constituições Apostólicas são apresentadas como se tivessem sido ditadas pelos Apóstolos. Por isso
não se diz aqui Actos dos Apóstolos, mas sim os nossos Actos.
410 SÉCULO IV

Guarda silêncio e escuta, ó Israel3, e noutro lugar: Permanece de pé e ouvirás4. 9 A


seguir, os presbíteros exortarão o povo, um após outro, mas não todos, e em último
lugar o bispo, que se compara ao capitão de um navio.
1538 Silêncio e ordem na assembleia.10 Os porteiros estarão de pé, junto das entra-
das dos homens, para as vigiar, e as diaconisas junto das entradas das mulheres, como
os que pedem a passagem nos navios, porque era assim que se procedia na Tenda do
testemunho. 11 Se alguém for encontrado sentado fora do seu lugar, será repreendido
pelo diácono, que faz as vezes de piloto, e conduzido ao lugar que lhe corresponde. 12
Porque a Igreja assemelha-se não só a um navio, mas também a um aprisco. Ora, assim
como os pastores distribuem cada rês, refiro-me às cabras e ovelhas, segundo a classe
e a idade, e cada uma delas se junta às suas semelhantes, assim também na igreja os
jovens sentar-se-ão à parte, se houver lugar; caso contrário ficarão de pé; as pessoas de
mais idade sentar-se-ão no seu grupo; quanto às crianças, ficarão de pé, e os pais e
mães tomarão conta delas; as jovens também estarão separadas, se houver lugar, e, se
não houver, ficarão de pé por detrás das mulheres; as mulheres casadas e que têm
filhos colocar-se-ão separadas; as virgens, as viúvas e as mulheres de idade estarão de
pé ou sentar-se-ão diante de todas as outras. 13 O diácono cuidará dos lugares, para
que cada um, ao entrar, vá para o seu lugar próprio e não se sente perto da entrada. Da
mesma maneira o diácono observará o povo para que ninguém cochiche nem durma,
não ria nem faça sinais, porque na igreja é preciso estar atento, sóbrio e vigilante, com
os ouvidos atentos à Palavra do Senhor.
1539 A preparação da oblação eucarística e o beijo da paz. 14 Depois disto, levantar-se-ão
todos ao mesmo tempo, e, com o rosto voltado para Oriente, após a saída dos catecúmenos
e dos penitentes, rezarão a Deus, que subiu ao mais alto dos Céus, em direcção ao
Oriente5, em memória da antiga possessão do Paraíso, situado a Oriente, donde foi
expulso o primeiro homem, por ter desobedecido ao preceito, enganado pelo conselho
da serpente. 15 Os diáconos, depois da oração, encarregar-se-ão uns da oblação da
Eucaristia, administrando com temor o serviço do Corpo do Senhor, e outros vigiarão
o povo e manterão o silêncio. 16 O diácono que assiste o pontífice dirá ao povo:
«Ninguém deseje mal a ninguém. Ninguém seja hipócrita!» 17 Depois saúdem-se mu-
tuamente os homens aos homens, e do mesmo modo as mulheres também umas às
outras, com o beijo no Senhor, mas ninguém o faça com perfídia, como Judas, que
entregou o Senhor com um beijo.
1540 A oração universal. 18 Depois disto, o diácono pedirá por toda a Igreja, por
todo o mundo, pelas suas regiões, pelos produtos da terra, pelos sacerdotes e magis-
trados, pelo pontífice, pelo rei e pela paz em todo o mundo. 19 Logo a seguir o
pontífice pedirá a paz para o povo e abençoá-lo-á como Moisés ordenou aos sacerdotes
que abençoassem o povo, com estas palavras: O Senhor te bendiga e te guarde, o
Senhor te mostre a sua face e Se compadeça de ti, o Senhor volte para ti o seu rosto e
te dê a paz6. 20 O bispo suplicará, portanto, nestes termos: Senhor, salva o teu povo
e abençoa a tua herança, que adquiriste com o precioso Sangue do teu Cristo, e ao
qual chamaste sacerdócio real e povo santo 7.
1541 Oração eucarística e Comunhão. 21 Em seguida, terá lugar o sacrifício; todo o
povo estará de pé, orando em silêncio. Depois de se fazer a oblação, cada grupo,
separadamente, comungará do Corpo do Senhor e do Sangue precioso, com ordem,
respeito e reverência, porque se aproximam do Corpo de um rei. Ao aproximarem-se,

3
Deut 27, 9.
4
Deut 5, 31.
5
Sal 67, 34.
6
Num 6, 24-26.
7
Centão de textos.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 411

as mulheres terão um véu na cabeça, como convém ao grupo das mulheres. Guardem-se
as portas, para que não entre nenhum infiel ou não-iniciado.
58. O acolhimento dos estrangeiros na assembleia. 1 Se entrar um irmão ou uma 1542
irmã provenientes do distrito, com cartas de recomendação, o diácono examinará a sua
situação e verificará se são crentes, se fazem parte da Igreja, se não foram contaminados
por uma heresia, e ainda, no caso de se tratar de uma mulher, se é casada ou viúva.
Depois de se ter informado sobre eles e de ter a certeza de que são verdadeiramente
crentes e em comunhão de sentimentos em relação ao Senhor, o diácono conduzirá cada
um ao lugar que lhe pertence. 2 Se chegar um presbítero doutro distrito, os presbíteros
acolhê-lo-ão no seu colégio; se for um diácono, será acolhido pelos diáconos; e, se for
um bispo, sentar-se-á com o bispo, que o fará participar da mesma honra. 3 E tu,
bispo, pedir-lhe-ás que fale ao povo e o instrua, porque as exortações e admoestações
dos estrangeiros são muito úteis. Está dito, com efeito: Nenhum profeta é bem estimado
na sua própria pátria8. Também lhe proporás que ofereça a Eucaristia; mas, se, por
respeito e sabedoria ele reservar essa honra para ti e se recusar a oferecer, insistirás
com ele para que ao menos dê a bênção ao povo.
4 Se, enquanto se está sentado, entrar alguém honrado e ilustre aos olhos do
mundo, estrangeiro ou habitante no país, no momento em que tu, bispo, expões a
doutrina divina ou escutas o salmista ou o leitor, não tenhas em conta a pessoa e não
abandones o serviço da Palavra para atribuir a esse homem uma precedência, mas
permanece tranquilo, sem parares de falar ou de ouvir, e que os irmãos o acolham, por
intermédio dos diáconos. 5 Se não houver lugar, o diácono mandará levantar-se o mais
jovem, falando-lhe com educação, e fará sentar-se o que acaba de chegar. É normal, para
quem ama os seus irmãos, agir espontaneamente deste modo. Se o jovem recusar,
obriga-o a levantar-se e coloca-o atrás de todos os outros, para que aprenda a ceder o
lugar a outros dignos de maior honra. 6 Mas, se entrar um pobre, um homem de baixa
condição ou um estrangeiro, velho ou novo, e não houver lugar, também para esses o
diácono, de todo o coração, procurará um lugar, para que não haja nele parcialidade
humana e para que o seu ministério agrade a Deus. A diaconisa procederá do mesmo
modo para com as mulheres que se apresentem, ricas ou pobres.
59. Assiduidade à assembleia. 1 No teu ensino, ó bispo, recomenda e persuade o 1543
povo a frequentar a igreja com assiduidade, todos os dias, de manhã e à tarde, e a não
se dispensar de o fazer de modo nenhum, mas a reunir-se aí sem cessar, a não mutilar
a Igreja separando-se dela e a não amputar um membro ao Corpo de Cristo. As pala-
vras que se seguem não se dirigem só aos sacerdotes, mas aos leigos; cada um deles, se
pensar nisso, deve entender que foi a si mesmo que o Senhor disse: Quem não está
comigo, é contra mim; e quem não ajunta comigo, desperdiça9. 2 Uma vez que sois
membros de Cristo, não vos separeis faltando às assembleias; uma vez que, segundo a
sua promessa, tendes Cristo como cabeça, unido a vós e em comunhão convosco, não
vos desprezeis a vós mesmos, não despojeis o Salvador dos seus próprios membros,
não dividais o seu corpo, não dissipeis os seus membros e não deis a preferência aos
assuntos seculares em relação à palavra divina, mas reuni-vos, cada dia, de manhã e à
tarde, para cantar salmos e orar nas casas do Senhor, dizendo de manhã o salmo
sessenta e dois e à tarde o salmo cento e quarenta. 3 Sobretudo no dia de sábado e no
dia da Ressurreição do Senhor, o domingo, ponde ainda mais zelo em vos reunir, para
dirigir o vosso louvor a Deus que criou todas as coisas por Jesus, que Ele nos enviou,
que aceitou que Ele sofresse e que ressuscitou dos mortos. 4 Como se justificará diante
de Deus aquele que não se junta à assembleia nesse dia, para escutar a doutrina salva-
dora sobre a ressurreição? Nesse dia, de pé, fazemos três orações em memória d’Aquele

8
Jo 4, 44.
9
Mt 12, 30.
412 SÉCULO IV

que ressuscitou ao terceiro dia; nesse dia fazemos leituras dos Profetas, a proclamação
dos Evangelhos, a oferenda do sacrifício e o dom do alimento sagrado.

Livro III
1544 1. A ordem das viúvas. 1 Não instituais viúvas que tenham menos de sessenta
anos, para haver alguma certeza de que elas não correm o risco de voltar a casar, dada
a sua idade. 2 Se instituirdes uma mais jovem na ordem das viúvas e se, por causa da
sua pouca idade ela não suportar a viuvez e se voltar a casar, ridicularizará a honra da
ordem das viúvas e dará contas disso a Deus, não por se ter comprometido num segundo
casamento, mas por não haver guardado o seu compromisso e ter desprezado Cristo...
1545 2. As viúvas jovens. 1 Não serão admitidas viúvas jovens na ordem das viúvas, não
aconteça que, vindo novamente a casar-se a pretexto de não poderem dominar o ardor
do desejo, dêem origem a confusões. Sejam assistidas e amparadas, para evitar que se
voltem a casar, a pretexto de abandono, e se metam numa situação inconveniente...
1546 9. Ministérios proibidos às mulheres. 1 Quando ao facto de as mulheres baptizarem,
informamo-vos que é grande o perigo em que se metem aquelas que ousam agir desse
modo. Por isso não o aconselhamos...
1547 10. Funções proibidas aos leigos. 1 Também proibimos aos leigos a usurpação duma
função sacerdotal tal como o sacrifício, o baptismo, a imposição das mãos ou uma
bênção, pequena ou grande. 2 Ninguém tome esta honra para si mesmo, mas somente
quem é chamado por Deus10, porque é pela imposição das mãos do bispo que é conferida
esta dignidade...
1548 11. As funções dos diversos clérigos. 1 Também não permitimos que os outros
clérigos baptizem, quer sejam leitores, cantores, porteiros ou serventes, mas apenas
os bispos e os presbíteros, ajudados pelos diáconos... 3 Não permitimos que os pres-
bíteros ordenem diáconos, diaconisas, leitores, serventes, cantores ou porteiros. Isso
pertence apenas aos bispos...
1549 16. Funções da diaconisa. 1 Escolhe, ó bispo, para teus cooperadores no serviço da
vida e como artífices da justiça, diáconos agradáveis a Deus e acerca dos quais te
assegures junto do povo que eles são dignos e diligentes em todas as necessidades do
serviço. Escolhe também uma diaconisa fiel e santa para o serviço junto das mulheres.
Acontece, por vezes que, a certas casas, não poderás enviar às mulheres um homem
diácono, por causa dos descrentes; enviarás então uma mulher diaconisa, por causa das
línguas dos maldizentes. 2 Efectivamente, para bem dos serviços, recorremos em mui-
tas ocasiões à mulher como diácono. Em primeiro lugar, durante a iluminação das
mulheres; o diácono só lhes unge a fronte com óleo santo, e a diaconisa unge-as depois
dele. Não convém, com efeito, que as mulheres sejam observadas pelos homens.
1550 O ritual do baptismo. 3 O bispo ungir-lhes-á a cabeça quando lhes impõe as
mãos, como se fazia outrora aos reis e aos sacerdotes. Não é que os baptizados sejam
agora ordenados sacerdotes, mas, a partir de Cristo, são ordenados cristãos, sacerdócio
real e nação santa, Igreja de Deus, coluna e fundamento11 do quarto nupcial. Eles, que
antes não eram povo, são agora amados e eleitos12. 4 Portanto, tu, ó bispo, ungirás
deste modo com óleo santo a cabeça dos baptizados, quer sejam homens ou mulheres,
para significar o baptismo do Espírito. Em seguida, tu próprio, bispo – ou um presbítero

10
Hebr 5, 4.
11
1 Pe 2, 9; 1 Tim 3, 15.
12
1 Pe 2, 10.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 413

ao teu serviço – pronunciarás sobre eles a invocação sagrada, e, invocando o Pai, o


Filho e o Espírito Santo, baptizá-los-ás em água. Depois, se for um homem, recebê-lo-á
o diácono, e, se for uma mulher, a diaconisa encarregar-se-á dela, a fim de que o selo
indestrutível seja transmitido de maneira digna e sagrada. E depois disto, ungirá os
baptizados com o mu/ron.
17. Simbolismo baptismal. 1 O baptismo é, pois, conferido (para comungarmos) na 1551
morte do Filho, a água para a sepultura, o óleo para o Espírito Santo, o sinal para a
Cruz, e o mu/ron confirma a confissão. 2 Faz-se memória do Pai porque é autor e
mandante; invoca-se o Espírito, porque é testemunha. 3 A imersão é participação na
morte, a saída da água participação na ressurreição. 4 O Pai é Deus sobre todas as
coisas, Cristo é Deus único gerado, Filho muito amado, Senhor da glória, o Espírito
Santo é o Paráclito enviado e revelado por Cristo, o qual anuncia a Cristo.
18. Os novos baptizados. 1 O baptizado conservar-se-á afastado de toda a impiedade. 1552
Não deve ceder ao pecado, seja amigo de Deus, inimigo do Diabo, herdeiro do Pai, co-
-herdeiro do seu Filho, ele que renunciou a Satanás, aos seus Demónios e às suas
astúcias; seja puro, sem mancha e santo; ame a Deus, ele que é filho de Deus; ore como
um filho a seu Pai, com estas palavras recebidas da assembleia comum dos fiéis: 2 Pai
nosso, que estás nos Céus..., mas livra-nos do Maligno, porque a Ti pertencem o
poder e a glória pelos séculos. Amen 13.
19. Os diáconos e o serviço na Igreja. 1 De igual modo, os diáconos devem ser 1553
irrepreensíveis em tudo, como o bispo, mas mais diligentes e em número proporcionado
à importância da Igreja, para que possam cuidar dos doentes, como trabalhadores
dignos e irrepreensíveis; a diaconisa ocupar-se-á das mulheres; uns e outros ocupar-se-ão
da proclamação, dos que viajam, do serviço e da assistência...
20. Os poderes dos vários clérigos. 1 Prescrevemos o seguinte: o bispo será ordenado 1554
por três bispos, ou ao menos por dois; não vos é permitido instituir por um só, porque
o testemunho de dois ou três é mais seguro e inspira confiança. O presbítero e o
diácono serão ordenados por um só bispo, assim como o resto do clero. 2 Nem o
presbítero nem o diácono ordenarão clérigos menores, mas é permitido ao presbítero
ensinar, oferecer, baptizar e abençoar o povo; o diácono estará ao serviço do bispo e
dos presbíteros, ou seja, servirá, mas não realizará outras funções.

Livro V
13. A primeira parte do ano litúrgico. 1 Observai, irmãos, as datas das festas. 1555
Primeiro a Natividade, que deveis celebrar no dia vinte e cinco do nono mês. 2 Em
seguida, festejai solenemente a Epifania, na qual Cristo vos manifestou a sua divindade;
será no sexto (dia) do décimo mês. 3 Depois observai o jejum dos quarenta dias, no
qual se faz memória da atitude do Senhor e das suas instruções. Praticar-se-á este
jejum antes do jejum da Páscoa; começará na segunda-feira e acabará na sexta-feira. 4
Após estes dias, interrompei o jejum e começai a santa semana da Páscoa, na qual
jejuareis todos com temor e tremor e rezareis por aqueles que pereceram...
17. A data da Páscoa. 1 Irmãos, vós que fostes resgatados pelo Sangue precioso de 1556
Cristo, deveis celebrar com exactidão e grande cuidado os dias da Páscoa, após o
equinócio, para não comemorardes duas vezes no ano a única Paixão, mas uma só vez
cada ano, Aquele que morreu uma só vez, sem vos preocupardes em celebrar a festa
com os Judeus. 2 Doravante, já não há mais nada em comum entre vós e eles. De facto,

13
Mt 6, 9-15.
414 SÉCULO IV

eles também se enganaram no próprio cálculo que costumam fazer e andam perdidos e
separados longe da verdade. 3 Quanto a vós, mantende-vos fiéis, com exactidão, ao
equinócio da Primavera, que se situa no dia vinte e dois do décimo segundo mês, isto
é, (do mês de) Distros. Contai com precisão o vigésimo primeiro dia da Lua, para que
o décimo quarto dia da Lua não caia numa outra semana e para que, por causa dum erro,
não celebremos a Páscoa, por ignorância, duas vezes no mesmo ano, ou para que não
festejemos o dia da Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo num dia diferente do
domingo.
1557 18. O jejum da Semana Santa. 1 Jejuai durante os dias da Páscoa, começando na
segunda-feira, até sexta-feira e sábado, ou seja seis dias. Comei apenas pão, sal e
legumes, e, como bebida, água. Nesses dias, abstende-vos de vinho e de carne, pois são
dias de luto e não de festa. 2 Jejuai totalmente na sexta-feira e no sábado; os que
tiverem força, não provem nada até ao canto nocturno do galo; se alguém não puder
prolongar o seu jejum durante os dois dias, observe ao menos o jejum do sábado...
1558 19. A Vigília pascal. 3 Até ao romper do primeiro dia da semana, isto é o domingo,
permanecei acordados, desde a tarde até ao cantar do galo. Reunidos na igreja, velai,
orai e invocai a Deus durante a vossa vigília, lendo a Lei, os Profetas e os Salmos até ao
canto do galo. Em seguida, após terdes baptizado os vossos catecúmenos, depois de
lerdes o Evangelho com temor e tremor e de pregar ao povo a salvação, ponde fim à
vossa tristeza e orai a Deus para que Israel se converta e lhe seja dada ocasião de
conversão e de perdão da sua impiedade... 7 Por isso vós também, uma vez que o
Senhor ressuscitou, oferecei o vosso sacrifício, que Ele ofereceu por nós, dizendo:
Fazei isto em memória de Mim. Depois ponde fim ao jejum, e com alegria celebrai o dia
da festa...
1559 20. As festas do tempo pascal. 1 Oito dias mais tarde celebrai com grande solenidade
uma nova festa, isto é, a oitava. Nesse dia o Senhor convenceu-me plenamente da sua
Ressurreição, a mim, o incrédulo Tomé, mostrando-me a marca dos cravos e da lança
do lado. 2 Contai de novo quarenta dias após o primeiro domingo, e, no quinto dia a
partir do domingo, celebrai a festa da Ascensão do Senhor... 4 O décimo dia depois da
Ascensão, ou seja, o quinquagésimo dia após o primeiro domingo, seja para vós uma
grande festa, porque na terceira hora desse dia o Senhor Jesus nos enviou o dom do
Espírito Santo, e nós ficámos cheios da sua força, falámos novas línguas, conforme Ele
nos inspirava, e anunciámos aos Judeus e aos Pagãos que Jesus é o Cristo de Deus,
estabelecido como juiz dos vivos e dos mortos...
1560 Oitava do Pentecostes e dias de jejum. 14 Depois de terdes festejado os Cinquenta
dias, ficai em festa ainda uma semana e, em seguida, jejuai durante uma semana, porque
é justo que nos alegremos com o dom de Deus e jejuemos após um tempo de
descontracção... 18 Prescrevemo-vos, após esta semana de jejum, que jejueis na quarta-feira
e na sexta-feira de cada semana e que deis aos pobres o que tiverdes economizado nos
vossos jejuns. 19 Ao contrário, em cada sábado, excepto um, e em cada domingo,
realizai as vossas assembleias na alegria, pois cometerá pecado quem jejuar no domingo,
dia da Ressurreição, ou quem se afligir durante os Cinquenta dias ou em qualquer outra
festa do Senhor. Nesses dias devemos alegrar-nos e não chorar.

Livro VI
1561 15. A disciplina acerca do baptismo. 1 Devemos permanecer fiéis a um só e único
baptismo que é dado na morte do Senhor, não àquele que é praticado entre os hereges,
mas àquele que é conferido pelos sacerdotes irrepreensíveis em nome do Pai e do Filho
e do Espírito Santo. 2 Por um lado não admitais o baptismo recebido dos ímpios e por
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 415

outro lado não rejeiteis o baptismo recebido dos santos, voltando a baptizar, porque
assim como não há mais do que um só Deus, um Cristo e um Paráclito, uma só morte
do Senhor segundo o corpo, também não deve haver mais do que um só baptismo dado
nessa morte. Quem aceita a mácula conferida pelos ímpios, partilhará a sua condenação.
3 Porque eles não são sacerdotes. De facto, o Senhor disse-lhes: Porque rejeitaste
a instrução, excluir-te-ei do meu sacerdócio14. Além disso, os que eles baptizaram não
receberam a iniciação; permanecem manchados, pois não foram desligados dos seus
pecados, mas estão ligados pela impiedade. 4 Pior ainda, aqueles que ousam rebaptizar
os fiéis já iniciados, crucificam de novo o Senhor, fazem-n’O perecer uma segunda vez,
riem-se do que é divino, brincam com o que é santo, ultrajam o Espírito, tratam com
desprezo o Sangue santíssimo, como se fosse coisa sem valor; cometem uma impiedade
para com Aquele que veio, que sofreu, que deu testemunho.
5 Mais ainda, quem recusa o baptismo por desprezo será condenado como
incrédulo, e reprovado porque é ingrato e arrogante... 6 Aquele que diz: «Far-me-ei
baptizar na hora da morte, pois tenho medo de manchar o baptismo pelos meus
pecados», não conhece Deus e esquece a sua própria condição... 7 Baptizai também as
crianças de tenra idade e formai-as com a educação e correcção que vêm de Deus 15,
porque foi dito: Deixai vir a mim os pequeninos e não os impeçais 16...
17. Casamento e celibato dos clérigos. 1 Ordenamos que sejam instituídos como 1562
bispos, presbíteros e diáconos homens casados uma só vez, quer as suas esposas
vivam ainda ou já tenham morrido. Após a ordenação não lhes é mais permitido casarem-se,
se são celibatários, ou unirem-se a outras mulheres, se já foram casados, mas devem
contentar-se com aquela que tinham no momento da ordenação. 2 Quanto aos serventes,
salmistas, leitores e porteiros, ordenamos que se escolham apenas pessoas que só
tenham casado uma vez; se entrarem nas fileiras do clero antes de serem casados,
permitimos-lhes que se casem, ou pelo menos que tenham essa intenção, não aconteça
que venham a pecar e incorram em castigo. 3 Mas ordenamos que nenhum membro do
clero tome uma prostituta, uma serva, uma viúva ou uma mulher repudiada17, como
está prescrito na Lei. 4 Como diaconisa escolher-se-á uma virgem pura; na falta desta,
uma viúva casada uma só vez, fiel e honrada.
18. Não se deve conviver com os hereges. 1 Recebei os penitentes, porque é essa a 1563
vontade de Deus em Cristo18; instruí os catecúmenos e baptizai-os; mas os hereges
ímpios, que recusam converter-se, afastai-vos deles e mantende-os separados dos
fiéis, expulsai-os publicamente da Igreja de Deus, ordenai aos fiéis que se afastem
completamente deles e proibi-os de comungar e de orar com eles. 2 São adversários da
Igreja, conspiram contra ela, corrompem o rebanho e mancham a herança; pensam que
são sábios, mas estão totalmente pervertidos...
30. O culto funerário. 1 Não vos preocupeis com os fenómenos regulados pela lei da 1564
natureza, não imagineis que isso vos mancha, nem vos preocupeis também com as
práticas judaicas, tais como os interditos, as abluções contínuas ou as purificações
após contacto com um morto. 2 Sem chamar a atenção, reuni-vos nos cemitérios, lendo
aí os livros sagrados e salmodiando pelos mártires que repousam, por todos os santos
desde as origens e pelos vossos irmãos que repousam no Senhor. Nas vossas igrejas e
nos vossos cemitérios, oferecei a Eucaristia agradável, imagem do Corpo real de Cristo,
e nos funerais, acompanhai os vossos defuntos salmodiando, se se trata de fiéis no

14
Os 4, 6.
15
Ef 6, 4.
16
Lc 18, 16.
17
Lev 21, 14.
18
1 Tes 5, 18.
416 SÉCULO IV

Senhor. 3 Porque: É preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis19. E também:
Volta, minha alma, ao teu descanso, porque o Senhor foi bom para contigo20...
5 Os restos mortais daqueles que vivem junto de Deus não se devem desprezar...
7 Por isso, vós, os bispos e os outros, tende cuidado com os vossos defuntos sem
qualquer escrúpulo; não penseis que eles vos mancham; não vos afasteis dos seus
restos mortais e evitai essas observâncias, que são loucuras; revesti-vos de santidade
e de castidade, para ter parte na imortalidade, ser associados ao reino de Deus,
beneficiar da promessa de Deus e obter o repouso eterno, por Jesus Cristo, nosso
Salvador...

Livro VII 21
1565 22. O baptismo. 1 Acerca do baptismo, ó bispo ou presbítero, já legislámos antes;
mas agora pedimos-te que baptizes como o Senhor no-lo prescreveu, quando disse:
Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, e do
Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado22.
Em nome do Pai que enviou, de Cristo que veio, do Paráclito que deu testemunho. 2
Primeiro ungirás com o óleo santo, em seguida baptizarás com água e em último lugar
porás o selo com o mu/ron, para que a unção comunique o Espírito, a água seja símbolo
da morte e o mu/ron selo das alianças. 3 Se não houver óleo nem mu/ron, basta a água
para a unção, o selo e a confissão dum moribundo, ou antes de quem é associado à
morte (de Cristo).
1566 O jejum pré-baptismal. 4 Antes do baptismo, o candidato deve jejuar, porque o
Senhor, que primeiro foi baptizado por João e em seguida permaneceu no deserto,
também jejuou durante quarenta dias e quarenta noites23. 5 Ele foi baptizado e jejuou,
não por ter necessidade duma ablução, dum jejum ou duma purificação, pois era puro
e santo por natureza, mas para dar testemunho da verdade diante de João e para nos
dar um exemplo. 6 O Senhor não foi, portanto, baptizado na sua Paixão, morte ou
Ressurreição – nada disso acontecera ainda – mas em vista duma outra instituição. Na
sua soberania jejuou após o seu baptismo como Senhor de João. Mas aquele que é
iniciado na morte de Cristo24 deve primeiro jejuar e, em seguida, ser baptizado, pois
não convém que depois de ter sido sepultado e de ter ressuscitado com Cristo se esteja
triste na própria ressurreição. Com efeito, o homem não tem autoridade sobre as
instituições do Salvador, porque Ele é o mestre, e o homem, o subordinado.
1567 23. O jejum semanal. 1 Os vossos jejuns não devem ter lugar ao mesmo tempo que
os dos hipócritas; com efeito, eles jejuam no segundo e no quinto dia da semana; 2 vós,
porém, jejuai ou nos cinco dias ou na quarta-feira e no dia da preparação, porque foi na
quarta-feira que chegou ao fim o processo para condenar o Senhor e que Judas prometeu
traí-lo por dinheiro; no dia da preparação, porque foi nesse dia que o Senhor sofreu a
Paixão sobre a cruz, sob Pôncio Pilatos. 3 Mas o sábado e o domingo festejai-os,
porque o primeiro comemora a criação e o segundo a ressurreição. 4 Um único sábado
em todo o ano vos obriga a uma observância particular, o da sepultura de Cristo; con-

19
Sal 115, 6.
20
Sal 114, 7.
21
Os capítulos XXII a XXXI são uma compilação de A Didaqué, muito modificada.
22
Mt 28, 19-20.
23
Mt 4, 1-2.
24
Rom 6, 3.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 417

vém jejuar nesse dia, e não estar em festa; enquanto o Criador está debaixo da terra, o
luto por Ele está acima da alegria pela criação, porque, pela natureza e em dignidade, o
Criador tem mais valor do que as criaturas.
24. A oração. 1 Quando orardes, não façais como os hipócritas25; mas como o 1568
Senhor no-lo ordenou no Evangelho, orai assim: Pai nosso, que estás nos Céus... mas
livra-nos do Maligno, porque a Ti pertencem o poder e a glória pelos séculos. Amen26.
2 Orai assim três vezes ao dia e tornai-vos dignos da adopção do Pai, não aconteça que,
chamando-O indignamente vosso Pai, recebais a sua reprovação, como Israel, outrora
filho primogénito, O ouviu dizer: Se Eu sou Pai, onde está a honra que me é devida?
Se Eu sou Senhor, onde está o respeito por mim 27? 3 Porque a glória dos pais é a
santidade dos filhos, e a honra dos senhores é o respeito dos servos, ao passo que o
contrário é desonra e anarquia, pois está dito: Por vossa culpa o meu nome é ultrajado
entre os pagãos 28.
25. Acção de graças eucarística. 1 Dai graças em todo o tempo, como servos fiéis e 1569
reconhecidos. Quanto à Eucaristia, orai assim: 2 Graças Te damos, nosso Pai, pela vida
que nos deste a conhecer pelo teu servo Jesus, por quem tudo criaste e por quem
provês às necessidades de todos os seres, e que enviaste a fazer-Se homem para nossa
salvação. Permitiste que Ele sofresse e morresse, ressuscitaste-O e quiseste glorificá-l’O,
fazendo-O sentar-Se à tua direita, e também por meio d’Ele nos prometeste a ressurreição
dos mortos. 3 Senhor todo-poderoso, Deus eterno, assim como (estes grãos) estavam
dispersos e depois foram recolhidos para se tornarem um só pão, assim se reúna a tua
Igreja dos confins da terra, no teu Reino. 4 Nós Te damos ainda graças, nosso Pai, pelo
Sangue precioso29 de Jesus Cristo, derramado por nós, e pelo precioso Corpo, dos
quais nós Te oferecemos estes símbolos, pois Ele mesmo nos mandou anunciar a sua
morte 30. Por Ele, glória a Ti pelos séculos. Amen.
5 Nenhum não-iniciado coma (deste pão), mas apenas os que foram baptizados
na morte do Senhor31. 6 Se um não-iniciado se dissimular e comungar, comerá a
própria condenação32 eterna, porque, não tendo fé em Cristo, comungou no que lhe é
proibido, para seu castigo. 7 Se alguém comungar por ignorância, instruí-o sumariamente
o mais depressa possível para o iniciar, a fim de não se ir embora com desprezo.
26. Acção de graças depois da comunhão. 1 Depois da comunhão dai graças deste 1570
modo: 2 Graças Te damos, Deus e Pai de Jesus, nosso Salvador, pelo teu santo nome
que fizeste habitar em nós, e pela ciência, fé, amor e imortalidade que nos deste por
Jesus Cristo, teu servo. 3 Senhor todo-poderoso, Deus de todas as coisas, Tu que por
Cristo criaste o mundo e tudo o que ele contém, que semeaste nas nossas almas a Lei
e preparaste para os homens o necessário à sua subsistência, Deus de nossos pais
santos e irrepreensíveis, Abraão, Isaac e Jacob33, teus servos fiéis, Deus poderoso,
fiel, verdadeiro e verídico nas tuas promessas, Tu que enviaste à terra Jesus, o teu
Cristo, para viver entre os homens como um deles, Ele que era Deus Verbo e homem,
e para destruir o erro até à sua raiz, 4 Tu próprio agora, lembra-Te, por Ele da tua Igreja
santa aqui presente e que adquiriste pelo Sangue precioso do teu Cristo34, livra-a de todo

25
Mt 6, 5.
26
Mt 6, 9-13.
27
Mal 1, 6.
28
Is 52, 5.
29
1 Ped 1, 19.
30
1 Cor 11, 26.
31
Rom 6, 3.
32
Cf. 1 Cor 11, 29.
33
Ex 3, 16; Act 3, 13.
34
Act 20, 28; 1 Ped 1, 19.
418 SÉCULO IV

o mal, torna-a perfeita no teu amor e na tua verdade, e reúne-nos a todos no teu Reino,
que para ela preparaste. 5 Maranatha35, hossana ao Filho de David36, bendito o que
vem em nome do Senhor37, o Senhor Deus que Se nos manifestou na carne 38. 6 Quem
é santo, aproxime-se; quem o não é, torne-se (santo) pela penitência. Confiai também
aos vossos presbíteros o cuidado de dar graças.
1571 27. Acção de graças para o óleo místico ( mu/ron). 1 Para o mu/ron, dai graças deste
modo: 2 Deus, Criador de todas as coisas, nós Te damos graças pelo bom odor do mu/
ron e pelo futuro de imortalidade que nos revelaste por Jesus teu servo, porque a Ti
pertence a glória e o poder pelos séculos. Amen.
1572 28. O exame dos estrangeiros. 1 Se alguém chega e dá graças deste modo, recebei-o
como um discípulo de Cristo. 2 Mas, se ele professa uma doutrina diferente daquela
que Cristo vos transmitiu por nosso intermédio, não permitais que um tal homem dê
graças, porque ultraja mais a Deus do que O glorifica. 3 Se alguém chegar ao meio de
vós, será posto à prova antes de ser recebido, porque sois inteligentes e sabeis distin-
guir a direita da esquerda 39 e discernir os falsos dos verdadeiros doutores. 4 Ao
doutor que chega ao meio de vós, dai-lhe de boa vontade o que lhe faz falta; a um falso
doutor, dar-lhe-eis segundo a sua necessidade, mas não admitireis o seu erro nem
orareis com ele, para não serdes manchados com ele. 5 Todo o verdadeiro profeta ou
doutor que chegue ao meio de vós merece o sustento, como trabalhador40 ao serviço da
doutrina da justiça.
1573 29. As primícias e os dízimos. 1 Darás aos sacerdotes todas as primícias dos produtos
do lagar, da eira, dos bovinos e das ovelhas, para que sejam abençoadas as reservas41
dos teus celeiros e os produtos da terra42, e tu sejas provido de trigo, vinho43 e azeite
e para que aumentem as manadas de bovinos e os rebanhos de ovelhas44. 2 Darás
todos os dízimos ao órfão e à viúva, ao mendigo e ao estrangeiro. 3 Darás aos sacerdotes
as primícias de todo o pão saído do forno, de todo o recipiente de vinho, azeite, mel ou
frutos, de todo o cesto de uvas e de outros produtos. Mas dá ao órfão e à viúva do teu
dinheiro, das tuas vestes e de todos os teus bens.
1574 30. A assembleia dominical. 1 No dia da Ressurreição do Senhor, isto é, no domingo,
reuni-vos com assiduidade, dai graças a Deus e proclamai os benefícios que Ele vos
concedeu por Cristo, ao livrar-vos da ignorância, do erro e dos pecados. 2 Deste modo
o vosso sacrifício será irrepreensível e agradável a Deus, que disse da sua Igreja universal:
Em todos os lugares Me é oferecido um incenso e um sacrifício puros. Na verdade, Eu
sou um grande rei, diz o Senhor todo-poderoso, e o meu nome é admirável entre as
nações45.
1575 31. Eleição dos ministros. 1 Escolhei bispos dignos do Senhor e, como presbíteros
e diáconos, homens piedosos, justos, simples, desprendidos, sinceros, provados, santos,
imparciais, capazes de ensinar a doutrina da fé, e fiéis dispensadores46 dos ensinamentos
do Senhor. 2 Mas vós honrai-os como pais, mestres, benfeitores, autores da vossa

35
1 Cor 16, 22.
36
Mt 21, 9.
37
Sal 117, 26; Mt 21, 9.
38
Sal 117, 27; 1 Tim 3, 16.
39
Jonas 4, 11.
40
Mt 10, 10.
41
Deut 28, 4-5.
42
Deut 28, 33.
43
Gen 27, 27.
44
Deut 7, 13.
45
Mal 1, 11. 14.
46
Cf. 2 Tim 2, 15.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 419

felicidade. 3 Repreendei-vos uns aos outros, não com cólera, mas com paciência,
bondade e paz. 4 Guardai tudo o que vos foi prescrito pelo Senhor. 5 Velai pela vossa
vida: estejam apertados os vossos cintos e acesas as vossas lâmpadas. Sede seme-
lhantes aos homens que esperam o seu senhor, quando ele vier 47...
33. Súplica. Bênção pela providência de Deus48. 3 Bendito sejas (Senhor), que insti- 1576
tuíste o tempo presente como um estádio de justiça, que abriste a todos a porta da
misericórdia, que mostras a cada homem, pela ciência inata e o discernimento natural,
bem como pelo encorajamento da Lei, que a posse das riquezas não é eterna, que a
beleza da aparência não dura sempre, que a força do poder se desagrega facilmente e
que tudo não passa de fumo e vaidade, mas que a única coisa que permanece é a
consciência duma fé íntegra, que se eleva com verdade através dos céus...
34. Súplica. Bênção pela Criação49. 1 Bendito sejas, Senhor, rei dos séculos50, que 1577
por Cristo criaste todas as coisas e que por Ele, no princípio, puseste em ordem o
caos, separaste as águas umas das outras pelo firmamento e difundiste o espírito de
vida, que firmaste a terra, desdobraste o céu e organizaste com exactidão a ordem de
cada uma das criaturas...
35. Oração cósmica. Bênção pelo poder e bondade de Deus 51. 1 Tu és grande, 1578
Senhor todo-poderoso, grande é a tua força e sem limites a tua sabedoria52. Criador,
salvador, rico em graças, paciente e cheio de misericórdia, não privas da salvação as
tuas criaturas, és bom por natureza, poupas os pecadores e chama-los à conversão,
porque corriges com misericórdia...
36. Oração das festas e regra da fé. Bênção pelo sábado e pelo domingo. 1 Senhor 1579
omnipotente, foi por Cristo que criaste o mundo, e para fazermos memória d’Ele
instituíste o sábado, pois estabeleceste que nesse dia repousássemos do nosso traba-
lho para meditarmos nas tuas leis, e prescreveste festas para alegria das nossas almas,
a fim de comemorarmos a Sabedoria que Tu criaste. 2 Por nossa causa, Ele consentiu
em nascer de uma mulher, apareceu na vida e, no momento do seu baptismo, manifestou
que para lá das aparências é Deus e homem; sofreu por nossa causa, com o teu consen-
timento, morreu e ressuscitou pelo teu poder. É por isso que nós celebramos a festa da
Ressurreição no domingo, e encontramos a nossa alegria n’Aquele que destruiu a morte
e irradiou vida e imortalidade; foi por Ele que atraíste a Ti as nações, para fazer delas
um povo escolhido53, o verdadeiro Israel, o amigo de Deus, aquele que vê a Deus.
3 Porque Tu, Senhor, fizeste sair os nossos pais do país do Egipto, tiraste-os da
fornalha de ferro54, da argila e da fabricação dos tijolos, livraste-os da mão do Faraó e
das suas gentes, conduziste-os através do mar como se fosse uma terra seca e no
deserto sustentaste-os com toda a espécie de bens. 4 Deste-lhes a Lei do Decálogo,
pronunciada pela tua voz e gravada pela tua mão. Mandaste-os celebrar o sábado, não
para lhes dar um pretexto de nada fazerem, mas para os incitar à piedade, para lhes dar
a conhecer o teu poder, para os desviar do mal, cercando-os com uma barreira sagrada,
graças ao ensinamento, para alegria da semana. Foi por isso que foram instituídas a
semana e as sete semanas, o sétimo mês, o sétimo ano e, segundo o respectivo ciclo, o
quinquagésimo ano para o perdão. 5 A fim de que os homens não tenham qualquer
pretexto de desculpa com a sua ignorância, mandaste-os descansar todos os sábados,

47
Lc 12, 35-36.
48
Amplificação Abhoth: 1ª das Dezoito Bênçãos.
49
Amplificação da Ghebhuroth: 2ª das Dezoito Bênçãos.
50
1 Tim 1, 17.
51
Contaminação da 3ª Bênção: Quedušah.
52
Sal 146, 5.
53
Deut 7, 6,
54
Deut 4, 20.
420 SÉCULO IV

de modo que ninguém ouse proferir uma única palavra de cólera no dia de sábado;
porque o sábado é o repouso após a criação, o completar do mundo, a meditação das leis,
o louvor de reconhecimento dirigido a Deus pelos dons que Ele deu aos homens.
6 Mas o domingo ultrapassa tudo (o que fizeste), porque celebra o Mediador, o
Protector, o Legislador, o Príncipe da ressurreição, o Primogénito de toda a criatura55,
o Verbo Deus56 e homem, gerado unicamente de Maria, sem intervenção dum homem,
que levou uma vida santa, que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, que morreu e ressuscitou
dos mortos. Por isso, o domingo convida a oferecer-Te, ó Senhor, a acção de graças por
todas as coisas. 7 Tal é a graça que nos concedeste e cuja imensidão está acima de
qualquer outro benefício...
1580 38. Acção de graças. Bênção pelas obras de Deus57. 1 Nós Te damos graças por
todas as coisas, Senhor omnipotente, porque não nos retiraste a tua piedade e a tua
misericórdia, mas de geração em geração salvas, libertas, socorres, proteges... 3 Nos
nossos dias também vieste em nossa ajuda pelo teu grande sumo sacerdote, Jesus58
Cristo, teu servo...
4 Por todas as coisas nós Te damos graças por Cristo, porque nos deste voz
articulada para Te confessar e por instrumento nos enriqueceste com uma língua maleável
como um poema, nos dotaste do sabor tão útil, da sensibilidade tão apropriada, dos
olhos que nos permitem ver, do ouvido sensível à voz, do nariz para humedecer os
odores, das mãos para trabalhar e dos pés para caminhar. 5 Tudo isso o realizas Tu no
seio materno a partir duma pequena gota, lhe dás forma, depois lhe atribuis uma alma
imortal e trazes à luz do dia este animal consciente que é o homem. Tu o instruis pelas
tuas leis e esclareces pelos teus juízos; produzindo uma decomposição por um pouco
de tempo, Tu lhe prometes a ressurreição. 6 Assim, pois, que vida poderá bastar, que
duração de tempo será suficiente aos homens para Te dar graças? Mas, se é impossível
fazê-lo dignamente, agir santamente é fazê-lo com todas as forças. 7 Libertaste-nos da
impiedade dos politeístas, arrancaste-nos à seita dos assassinos de Cristo, livraste-nos
da ignorância e do erro; aos homens enviaste Cristo como um homem, sendo Ele Deus
unigénito; fizeste habitar em nós o Paráclito, deste-nos Anjos, e ao Diabo cobriste-o de
vergonha; não existíamos e Tu nos criaste, existimos e nos guardas, medes a vida, dás
o alimento, proclamaste a penitência. 8 Por todas as coisas, a Ti glória e poder, por
Jesus Cristo, agora e pelos séculos. Amen.
9 Meditai nisto, irmãos, e o Senhor esteja convosco na terra e no Reino de seu
Pai, que O enviou e que por Ele nos libertou da escravatura da corrupção para nos
introduzir na liberdade da glória59 e prometeu a vida àqueles que por Ele acreditaram
no Deus de todas as coisas.

INICIAÇÃO CRISTÃ

1581 39. A catequese pré-baptismal. 1 Acabámos de dizer como devem viver aqueles que
receberam a iniciação cristã, que acções de graças devem dirigir a Deus por Cristo. Mas
não seria justo abandonar os não-iciados sem os ajudar. 2 Quando se instrui alguém na
doutrina da fé, deve ensinar-se-lhe, antes do baptismo, o que se sabe acerca do Deus
não gerado, o que se sabe de maneira elaborada acerca do Filho unigénito, e a certeza
que se refere ao Espírito Santo. Ensine-se-lhe a ordem das diversas criações, a série das

55
Col 1, 15.
56
Jo 1, 1.
57
Amplificação da Hodaa’ah: 17ª das Dezoito Bênçãos.
58
Hebr 4, 14.
59
Rom 8, 21.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 421

intervenções da Providência, as prescrições das diversas legislações. Seja instruído


sobre as razões pelas quais o mundo foi criado e o homem estabelecido cidadão do
mundo, e informado sobre a sua própria natureza, o que ela é. 3 Ensine-se-lhe como
Deus puniu os malvados pela água e pelo fogo e glorificou os santos de cada geração...
Ensine-se-lhe como Deus, na sua providência, em vez de Se afastar do género humano,
o chamou do erro e da vaidade ao conhecimento da verdade60, em tempos diversos,
conduzindo-o da escravidão e da impiedade à liberdade e à piedade, da injustiça à
justiça, da morte eterna à vida eterna.
Imposição das mãos ao catecúmeno. 4 Todas estas coisas e o que com elas se 1582
relaciona, aprenda-as o candidato durante a catequese. Aquele que lhe impõe as mãos
adorará a Deus, Senhor de todas as coisas, e dará graças pela criação, porque Deus
enviou o seu Filho unigénito, o Cristo, para salvar o homem, apagar as iniquidades,
perdoar as impiedades e os pecados, purificar de toda a mancha da carne e do espírito61,
santificar o homem, na sua benevolência e bondade, ensinar a sua vontade, iluminar os
olhos do seu coração62, para que este contemple as suas maravilhas, revelar-lhe os
juízos da justiça, para que ele odeie todo o caminho de injustiça e avance pelo caminho
da verdade63, para ser julgado digno do banho do novo nascimento 64, em vista da
adopção em Cristo65, para que, por semelhança com a morte de Cristo, ele se torne um
único ser com Ele66 e que, na esperança da comunhão gloriosa, morra para o pecado,
viva para Deus 67, nos seus pensamentos, palavras e obras e seja contado no livro dos
vivos. 5 Depois desta acção de graças, seja instruído acerca da Encarnação do Senhor,
da sua Paixão, Ressurreição de entre os mortos e da sua Ascensão.
40. A preparação imediata para o baptismo. 1 Em seguida, quando o catecúmeno 1583
estiver perto de ser baptizado, ensine-se-lhe a renunciar ao Diabo e a aderir a Cristo,
porque precisa primeiro de se abster daquilo que se opõe (à fé), antes de ser introduzido
nos mistérios. Quando o seu coração tiver sido previamente purificado de toda a
malevolência, mancha ou ruga, então poderá participar nos santos mistérios. 2 Porque,
assim como um bom agricultor, antes de semear o trigo, limpa primeiro a terra e a
liberta das silvas que aí tinham crescido, também vós precisais primeiro de extirpar
nos candidatos toda a impiedade, antes de neles semeardes a piedade e de os julgardes
dignos do baptismo. 3 Com efeito, o Senhor mandou-nos isso quando disse: Primeiro
ensinai todas as nações. E só depois ajuntou: E baptizai-as em nome do Pai e do Filho
e do Espírito Santo 68.
41. Renunciação a Satanás. 1 No momento da renunciação, o candidato declarará: 2 1584
– Renuncio a Satanás, às suas obras, às suas pompas, aos seus cultos, aos seus anjos,
às suas invenções e a tudo o que lhe diz respeito.
Adesão a Cristo e profissão de fé baptismal. 3 Após a renunciação, diga o candi- 1585
dato a sua adesão: – E adiro a Cristo. 4 Creio e sou baptizado no único não gerado,
único Deus verdadeiro 69, todo-poderoso, Pai de Cristo, Criador do mundo e autor de
todas as coisas, de quem tudo procede70. 5 E (creio) em Jesus Cristo, o Senhor, seu

60
1 Tim 2, 4.
61
2 Cor 7, 1.
62
Ef 1, 18.
63
Sal 118, 7; 128, 29-30.
64
Tito 3, 5.
65
Ef 1, 5.
66
Rom 6, 5.
67
Gal 2, 19.
68
Mt 28, 19.
69
Jo 17, 3.
70
1 Cor 8, 6.
422 SÉCULO IV

Filho unigénito, primogénito de toda a criatura71, gerado antes dos séculos pela predilecção
do Pai, não criado, por quem todas as coisas foram feitas, no Céu e na terra, visíveis
e invisíveis, 6 que nos últimos tempos desceu dos Céus e encarnou, foi gerado da
Virgem Santa Maria e viveu santamente segundo as leis de Deus, seu Pai, foi crucificado
sob Pôncio Pilatos, morreu por nós, ressuscitou dos mortos ao terceiro dia depois da
sua Paixão, subiu aos Céus, está sentado à direita do Pai 72, de novo há-de vir cheio de
glória no fim do mundo73 para julgar os vivos e os mortos74, e o seu reino não terá
fim75. 7 Também sou baptizado no Espírito Santo, isto é, no Paráclito, que actuou em
todos os santos desde o princípio e que, em seguida, foi enviado igualmente aos
Apóstolos pelo Pai, segundo a promessa do nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo, e
depois dos Apóstolos, a todos os que crêem, na santa Igreja católica e apostólica. 8
(Creio) na ressurreição da carne, na remissão dos pecados, no Reino dos Céus e na vida
do mundo que há-de vir.
1586 42. Bênção do óleo. Unção pré-baptismal. 1 Depois desta profissão de fé, chega-se,
segundo o desenvolvimento, à unção do óleo. 2 O pontífice benze este (óleo) destinado
à remissão dos pecados e à preparação do baptismo. 3 Invoca o Deus não gerado, Pai
de Cristo, Rei de toda a natureza sensível e inteligível, para que santifique o óleo em
nome do Senhor Jesus76 e conceda a graça do Espírito e o poder da acção, o perdão dos
pecados e a predisposição para a confissão baptismal, de modo que o beneficiário da
unção, absolvido de toda a impiedade, se torne digno da iniciação, segundo o manda-
mento do Filho unigénito.
1587 43. Bênção da água baptismal. 1 Em seguida, vem-se até à água. 2 O sacerdote
bendiz e glorifica a Deus, Senhor todo-poderoso, Pai de Deus unigénito, dando-Lhe
graças por ter enviado o seu Filho a encarnar por causa de nós e a salvar-nos, e, porque
aceitou que este, na sua encarnação, se tornasse obediente77 em tudo e proclamasse o
Reino dos Céus78, a remissão dos pecados79, e a ressurreição dos mortos 80. 3 Por isso,
ele adora o próprio Deus unigénito, depois do Pai e por causa d’Ele, dando-Lhe graças
por ter sofrido a morte sobre a cruz para a salvação de todos e por nos ter dado um
símbolo (da morte) no baptismo do novo nascimento. 4 E dá glória a Deus, Senhor de
todas as coisas, porque em nome de Cristo, no Espírito Santo, não rejeitou o género
humano, mas levou a cabo, em épocas diferentes, diversas formas da sua providência:
para Adão, no próprio jardim, dando-lhe, para seu bem-estar, como primeiro lugar de
habitação, o jardim, em seguida estabelecendo o mandamento por precaução, depois
expulsando-o por justiça após o seu pecado e, em sua bondade, não o rejeitando
completamente, mas instruindo sucessivamente os seus descendentes de várias maneiras;
por causa dele, quando o tempo chegou ao seu termo, enviou o seu Filho a tornar-Se
homem, por causa dos homens, e a assumir todas as fraquezas humanas, excepto o pecado.
5 E agora invoque-O o sacerdote para o baptismo e diga: – Olha do alto do Céu
e santifica esta água, concede graça e poder para que aquele que baptizamos segundo o
mandamento do teu Cristo seja associado à sua crucifixão, à sua morte, à sua sepultura
e à sua ressurreição, para n’Ele ser adoptado, morrendo para o pecado e vivendo para
a justiça.

71
Col 1, 15.
72
Mc 16, 19.
73
Mt 24, 30; 28, 20.
74
2 Tim 4, 1; 1 Ped 4, 5.
75
Lc 1, 33.
76
Act 8, 16.
77
Filip 2, 8.
78
Lc 9, 2.
79
Lc 1, 77.
80
Mt 22, 31.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 423

44. Confirmação. Unção pós-baptismal. 1 A seguir, depois de o baptizar em nome 1588


do Pai e do Filho e do Espírito Santo 81, unja-o com o mu/ron e diga: 2 Senhor, Deus
não gerado e soberano, Senhor de todas as coisas, que fizeste chegar o suave odor do
conhecimento82 do Evangelho a todos os povos, concede-nos, agora, que este mu/ron
seja eficaz neste baptizado, para que nele permaneça firme e estável o bom odor do teu
Cristo, e para que, morrendo com Cristo, com Ele ressuscite e viva.
Condições de eficácia. 3 Diga estas (palavras) e outras semelhantes a estas, pois 1589
esta é a eficácia da imposição das mãos feita sobre cada um. Com efeito, se sobre cada
um deles não for proferida por um sacerdote piedoso uma epiclese deste género, o
baptizado nada mais faz do que descer à água, como os Judeus, libertando-se apenas da
imundície corporal, mas não da mancha da alma.
45. Oração dos novos baptizados. 1 Em seguida, reze o baptizado, de pé, a Oração 1590
que o Senhor nos ensinou. Aquele que ressuscitou deve forçosamente manter-se de pé
para orar, pois todo o que é levantado fica de pé. Ele também: por ter morrido e a
seguir ter ressuscitado com Cristo, está de pé. 2 Reze voltado para o Oriente...,
louvando, confessando e dizendo: Louvai o Senhor, porque Ele é bom; cantai ao seu
nome, porque a sua misericórdia permanece pelos séculos83. 3 Depois da primeira
oração, reze nestes termos: – Deus todo-poderoso, Pai do teu Cristo, teu Filho unigénito,
dá-me um corpo imaculado, um coração puro84, um espírito vigilante, um conhecimento
sem erro e a presença do Espírito Santo, para que eu adquira a verdade e por ela seja
plenamente envolvido, pelo teu Cristo, pelo qual a Ti a glória no Espírito Santo, pelos
séculos. Amen. 4 Considerámos que era conveniente prescrever estas coisas a propó-
sito dos catecúmenos...
47. Oração matutina. A grande doxologia. 1 Glória a Deus nas alturas e paz na 1591
terra aos homens do seu agrado85. 2 Nós Te louvamos, nós Te celebramos, nós Te
bendizemos, nós Te glorificamos, nós Te adoramos pelo teu grande Sumo Sacerdote86,
a Ti, Deus verdadeiro, único e não gerado, o único inacessível, pela tua imensa glória,
Senhor, Rei celeste, Deus Pai todo-poderoso. 3 Senhor, Deus e Pai do Senhor, o
Cordeiro imaculado que tira o pecado do mundo 87, acolhe a nossa oração, Tu que estás
sobre os Querubins 88; porque só Tu és santo, só Tu és Senhor, Deus e Pai de Jesus, o
Cristo, Deus de toda a natureza criada, nosso Rei, por quem a Ti glória, honra e poder.
48. Oração vespertina. 1 Louvai, meninos, o Senhor, louvai o nome do Senhor89. 1592
2 Nós Te louvamos, nós Te celebramos, nós Te bendizemos pela tua grande glória,
Senhor, Rei, Pai de Cristo, o Cordeiro imaculado, que tira o pecado do mundo90. 3 A Ti
é devido o louvor, a Ti é devido o hino91, a Ti é devida a glória, Deus e Pai, pelo Filho,
no Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amen. 4 Agora, Senhor, segundo a tua
palavra, podes deixar ir em paz o teu servo, porque meus olhos viram a tua salvação,
que preparaste diante de todos os povos, luz para iluminar as nações e glória de Israel,
teu povo 92.

81
Mt 28, 19.
82
2 Cor 2, 14.
83
Sal 134, 3.
84
Sal 50, 12.
85
Lc 2, 14.
86
Hebr 4, 14.
87
Jo 1, 29.
88
Sal 79, 2.
89
Sal 112, 1.
90
Jo 1, 29.
91
Sal 64, 2.
92
Lc 2, 29-32.
424 SÉCULO IV

1593 49. Oração da mesa. Bênção para a refeição. 1 És bendito, Senhor93, que me alimentas
desde a minha juventude94 e dás o alimento a toda a criatura95; enche os nossos cora-
ções de felicidade e de alegria96, para que, tendo sempre e em tudo quanto nos é
necessário, usemos do que sobre para todas as boas obras97, em Cristo Jesus, nosso
Senhor, por quem a Ti glória, honra e poder, pelos séculos. Amen.

Livro VIII

ORDENAÇÕES

1594 3. Introdução ao tratado das ordenações. 1 Na primeira parte deste discurso,


tratámos dos carismas que Deus deu aos homens, segundo a sua vontade, (dissemos)
como Ele denunciou a conduta daqueles que ousaram proferir mentiras ou que eram
movidos por um espírito estrangeiro, e como Deus Se serviu muitas vezes dos malvados
para profetizar e para realizar milagres. 2 Agora, o nosso propósito leva-nos à questão
primordial da organização eclesiástica, para que, recebendo de nós esta constituição,
vós, os bispos por nós estabelecidos segundo a vontade de Cristo, possais agir em
tudo segundo as prescrições que nos foram transmitidas, sabendo que quem nos escuta
ouve a Cristo, e que aquele que escuta a Cristo escuta o seu Deus e Pai, ao qual a glória
pelos séculos. Amen.
1595 4. Os preliminares da ordenação episcopal. 1 Estando todos reunidos, nós os doze
Apóstolos do Senhor, fazemo-vos saber estas divinas constituições sobre toda a orga-
nização eclesiástica, em presença de Paulo, o vaso de eleição98, nosso colega e Após-
tolo, do bispo Tiago, dos outros presbíteros e dos sete diáconos.
2 Em primeiro lugar, eu Pedro prescrevo que se ordene bispo, como todos juntos
o fixámos mais acima, alguém que seja irrepreensível em tudo, e tiver sido escolhido
por todo o povo. 3 Uma vez pronunciado o seu nome e aceite, reúna-se o povo, o
presbitério e os bispos presentes, no domingo. Aquele que tiver a precedência sobre
todos os outros perguntará ao presbitério e ao povo se é esse que eles desejam como
chefe. 4 Depois de darem o seu assentimento, perguntará ainda se todos testemunham
que ele é digno desta grande e ilustre presidência: se relativamente à fé em Deus ele se tem
comportado com rectidão, se foi justo para com os homens, se os assuntos da sua casa
foram bem administrados, se a sua conduta foi irrepreensível. 5 Quando todos unani-
memente tiverem testemunhado que se trata da pessoa em causa, dizendo a verdade e
não mentindo, como se estivessem no tribunal de Deus e de Cristo e na presença do
Espírito Santo e de todos os santos espíritos que servem, perguntar-se-á a todos, pela
terceira vez, se o eleito é verdadeiramente digno deste cargo, para que toda a questão
fique resolvida pela palavra de duas ou três testemunhas99. Quando pela terceira vez
manifestarem o seu acordo e o reconhecerem digno, peça-se a todos um sinal deste
acordo e que eles se apressem a fazê-lo ouvir.

93
Sal 118, 2.
94
Gen 48, 15; Job 31, 18.
95
Sal 135, 25.
96
Act 14, 17.
97
2 Cor 9, 8.
98
Act 9, 15.
99
Mt 18, 16.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 425

O rito da ordenação episcopal. 6 Tendo-se feito de novo silêncio, um dos pri- 1596
meiros bispos, com outros dois, fique de pé junto do altar, enquanto os outros bispos
e os presbíteros rezam em silêncio e os diáconos seguram os divinos Evangelhos
abertos sobre a cabeça do ordinando, e que (o primeiro dos bispos) se dirija a Deus,
dizendo:
5. A oração de ordenação do bispo. 1 Tu, Mestre e Senhor, Deus todo-poderoso, 1597
único não gerado e independente, que subsistes indefectivelmente e que existes antes
dos tempos, que não tens necessidade de nada e transcendes todas as causas e todo o
futuro, o único verdadeiro, o único sábio, Tu que és o altíssimo, o invisível por natureza,
Tu cujo ser é conhecimento sem princípio, Tu que és o único bom e incomparável, que
conheces todas as coisas antes se serem feitas e que conheces as coisas escondidas, Tu
o inacessível, o soberano, 2 Deus e Pai de teu Filho unigénito, nosso Deus e Salvador,
que por Ele criaste todas as coisas, Tu que és a providência, o protector, Pai das
misericórdias e Deus de toda a consolação, que habitas no mais alto dos Céus e olhas
para os humildes, 3 Tu que deste as normas à Igreja pela encarnação do teu Cristo, com
o testemunho do Paráclito, pelos teus Apóstolos e por nós os que ensinam, os bispos
estabelecidos por tua graça, Tu que previstes os sacerdotes para se ocuparem do teu
povo, primeiro Abel..., 4 Tu que suscitaste Abraão e os outros Patriarcas, bem como
os teus fiéis servidores Moisés, Aarão..., Tu que estabelecestes alguns como chefes e
sacerdotes na Tenda do testemunho, Tu que escolheste Samuel como sacerdote e
profeta, e não deixaste sem ministério o teu santuário; Tu a quem apraz ser glorificado
naqueles que escolheste, 5 Tu mesmo, pela mediação do teu Cristo, derrama agora, por
nosso intermédio, a força100 do teu Espírito soberano, que está ao serviço do teu amado
servo Jesus Cristo e que, segundo a tua vontade, foi dado aos teus santos Apóstolos,
ó Deus eterno. 6 Pelo teu nome, ó Deus, que conheces o fundo dos corações, dá a este
teu servo, por Ti escolhido para o episcopado, que apascente o teu rebanho santo,
exerça de modo irrepreensível diante de Ti o sumo sacerdócio, servindo-Te noite e dia,
torne continuamente propício o teu rosto, tenha a graça de reunir o número dos que
foram salvos e de oferecer os dons da tua Igreja santa. 7 Mestre todo-poderoso,
concede-lhe, pelo teu Cristo a comunicação do Espírito Santo, para que ele tenha o
poder de perdoar os pecados segundo o teu mandato, de distribuir os ministérios 101
conforme o teu desígnio, e de absolver de todo o vínculo segundo o poder que deste aos
Apóstolos 102. Ele Te seja agradável pela mansidão e pureza de coração, oferecendo-Te
sem erro nem motivo de censura o sacrifício puro e incruento que instituíste por
Cristo, o mistério da nova Aliança, em perfume de agradável odor, pelo teu santo servo
Jesus, o Cristo de Deus e nosso Salvador, por quem Te é dada glória, honra e poder no
Espírito Santo, agora e sempre e por todos os séculos dos séculos.
8 Depois desta oração, os outros sacerdotes respondem: Amen, e com eles todo
o povo.
9 Depois da oração, um dos bispos trará a oferenda e entregá-la-á nas mãos do
que acaba de ser ordenado. 10 E, de manhã, este último será entronizado pelos outros
bispos no lugar que lhe pertence, e todos lhe darão o ósculo no Senhor.

100
Ao longo de todo o Antigo Testamento, o Espírito de Deus é considerado uma força, em latim virtus.
101
O texto latino traz sortes, herança.
102
O texto latino, que não é claro, parece referir-se ao poder de perdoar os pecados. Dom Botte acha mais
provável que o autor se refira ao poder mencionado por Mateus, segundo o qual Jesus disse: ... tudo o que
ligares na terra será ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu (cf. Mt 18,
18).
426 SÉCULO IV

LITURGIA EUCARÍSTICA

1598 Liturgia da palavra. 11 Depois da leitura da Lei e dos Profetas, das nossas
Epístolas, dos Actos e dos Evangelhos103, o que acaba de ser ordenado saudará a
assembleia dizendo: A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a
comunhão do Espírito Santo estejam convosco, e todos responderão: E com o teu
espírito. 12 Depois da saudação, ele dirá ao povo palavras de exortação.
1599 6. Rito da despedida dos catecúmenos. 1 Eu, André, irmão de Pedro, prescrevo o
seguinte: No fim da pregação, 2 todos se levantarão, o diácono subirá ao estrado e
proclamará: – Nem um ouvinte, nem um infiel! 3 Restabelecido o silêncio, dirá: – Orai,
catecúmenos. 4 E todos os fiéis oram por eles com fervor, dizendo: Kyrie eleison
(Senhor, misericórdia!). O diácono intervirá pelos catecúmenos, dizendo:
5 – Pelos catecúmenos, supliquemos todos a Deus com fervor para que, na sua
bondade e no seu amor pelos homens, escute benignamente as suas orações 104 e invo-
cações, acolha as suas súplicas, os socorra e lhes conceda o que os seus corações
desejam, para seu bem, lhes revele o Evangelho do seu Cristo, os ilumine e os eduque,
os instrua no conhecimento de Deus, lhes ensine os seus mandamentos e os seus
decretos105, semeie neles o seu temor puro e santo, abra os ouvidos dos seus corações
para que meditem na sua lei dia e noite106; 6 os confirme na fé, os reúna e junte ao seu
santo rebanho, os julgue dignos do banho do novo nascimento 107, da veste da imorta-
lidade e da verdadeira vida108, os livre de toda a impiedade e não dê espaço algum ao
Adversário sobre eles109, os purifique de toda a mácula da carne e do espírito110,
habite e caminhe no meio deles111, pelo seu Cristo, abençoe as suas entradas e saídas
e dirija112 os seus projectos para o bem.
7 Oremos ainda com mais fervor por eles, para que obtenham o perdão das suas
faltas e que pela iniciação se tornem dignos dos santos mistérios e da comunidade dos
santos. 8 Levantai-vos, catecúmenos; pedi a paz de Deus por meio do seu Cristo, um
dia pacífico e sem pecado, e que assim seja todos os dias da vossa vida, um fim cristão,
a misericórdia e benevolência de Deus e a remissão das vossas faltas. Encomendai-vos
vós mesmos ao Deus único e não gerado, por meio do seu Cristo. Inclinai-vos para
receber a bênção.
9 Após cada uma das intervenções do diácono, o povo responderá: Kyrie, eleison
(Senhor, misericórdia!), como já dissemos, e em primeiro lugar as crianças.
10 Os catecúmenos inclinarão a cabeça e o bispo ordenado abençoá-los-á com
esta bênção:
11 Deus todo-poderoso, não gerado e inacessível, único Deus verdadeiro113,
Deus e Pai do teu Cristo, teu Filho unigénito, Deus do Paráclito e Senhor de todas as
coisas, que constituíste por meio de Cristo os teus discípulos como mestres, para lhes
ensinar a fé; 12 olha Tu mesmo agora para os teus servos, instruídos sobre o Evangelho do

103
Testemunho de que em Antioquia se faziam cinco leituras.
104
Sal 6, 10.
105
Sal 118, 12.
106
Sal 1, 2.
107
Tito 3, 5.
108
1 Tim 6, 19.
109
Ef 4, 27.
110
2 Cor 7, 1.
111
2 Cor 6, 16; Lev 26, 12.
112
Sal 120, 8.; 89, 17.
113
Jo 17, 3.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 427

teu Cristo pela catequese, dá-lhes um coração novo e renova em suas entranhas o
espírito firme114, para que conheçam e façam a tua vontade, com todo o coração e
prontidão de alma115. 13 Torna-os dignos da santa iniciação, reúne-os à tua santa Igreja
e torna-os convivas dos divinos mistérios por Jesus Cristo, nossa esperança116, que
morreu por eles. Por Ele a Ti glória e poder no Espírito Santo pelos séculos. Amen. 14
Depois disto o diácono dirá: – Catecúmenos, ide em paz.
7. Oração pelos possessos, bênção e despedida. 1 Depois de eles terem saído, ele 1600
dirá: 2 – Orai, vós que estais possuídos pelos espíritos impuros. Roguemos todos com
fervor por eles, para que Deus, no seu amor pelos homens, confunda, por Cristo, os
espíritos impuros e maus e livre da opressão do Adversário aqueles que lho suplicam.
Aquele que confundiu a legião dos Demónios e o Diabo, príncipe do mal, confunda
agora os renegados da fé, livre do seu poder as suas criaturas e as purifique, pois as
criou com tanta sabedoria. 3 Com fervor rezemos ainda por eles: Salva-os e levanta-os, ó
Deus, com o teu poder. Inclinai-vos, energúmenos, e recebei a bênção.
4 O bispo rezará então nestes termos: 5 Tu, que amarraste o forte e roubaste
todos os seus bens117, que nos deste o poder de calcar aos pés serpentes, escorpiões e
todo o poder do inimigo118, que nos entregaste amarrada a serpente homicida, como um
pardalito que se dá às crianças119; Tu, a quem todas as coisas temem e tremem diante
do teu poder, que precipitaste o (Maligno) como um relâmpago do alto do céu sobre a
terra, não através duma queda localizada, mas do alto da sua honra na ignomínia, por causa
da sua malícia voluntária; 6 Tu cujo olhar seca o abismo, cujas ameaças derretem as
montanhas e cuja verdade permanece para sempre 120; Tu a quem louvam as crianças e
bendizem os meninos de peito, a quem cantam e adoram os Anjos; 7 Tu que olhas a
terra e a fazes tremer, que tocas as montanhas e as abrasas 121, que ameaças o mar e o
secas e extingues todos os rios; Tu para quem as nuvens são a poeira dos teus pés 122,
Tu que andas sobre o mar como sobre o solo123, 8 Deus unigénito, Filho da grandeza do
Pai, confunde os espíritos maus e liberta a obra das tuas mãos 124 do domínio do
espírito inimigo, porque a Ti glória, honra e poder, e por Ti a teu Pai no Espírito Santo
pelos séculos. Amen. 9 E o diácono dirá: – Ide, possessos.
8. Oração pelos que vão ser iluminados, bênção e despedida. 1 Depois de estes 1601
terem saído, ele proclama: 2 – Orai, os que ides ser iluminados. Todos nós, os fiéis,
supliquemos ao Senhor por eles com fervor, para que os julgue dignos, uma vez
iniciados na morte de Cristo125, de ressuscitar com Ele, de se tornarem convivas no seu
Reino e participantes dos seus mistérios, os reúna e junte aos que foram salvos, na sua
santa Igreja. 3 Com fervor oremos ainda por eles: Salva-os e levanta-os na tua graça.
4 Vós, que fostes marcados para Deus pelo seu Cristo, inclinai-vos. E o bispo abençoa-os
então, nestes termos: 5 Tu, que pelos teus santos Profetas, disseste antecipadamente
aos candidatos à iniciação: Lavai-vos, purificai-vos126 e que, por Cristo, instituíste a

114
Sal 50, 12.
115
2 Mac 1, 3.
116
1 Tim 1, 1.
117
Mt 12, 29.
118
Lc 10, 19.
119
Job 40, 29 (hebraico 40, 24).
120
Sal 116, 2.
121
Sal 103, 32.
122
Naum 1, 4.3.
123
Job 9,8.
124
Sal 8, 7.
125
Rom 6, 3.
126
Is 1, 16.
428 SÉCULO IV

regeneração espiritual, volve Tu mesmo agora os olhos sobre estes candidatos ao


baptismo, abençoa-os e santifica-os, prepara-os para serem dignos do teu dom espiritual
e da tua verdadeira adopção, dos teus mistérios espirituais e da agregação à assembleia
dos que se salvam, por Cristo, nosso Salvador; por Ele a Ti glória, honra e poder no
Espírito Santo pelos séculos. Amen. 6 E o diácono dirá: – Ide, vós que sereis iluminados.
1602 9. Oração pelos penitentes, bênção e despedida. 1 Depois disto clame: 2 – Orai,
penitentes. Pelos nossos irmãos penitentes, supliquemos todos com fervor ao Deus
de misericórdia que lhes mostre o caminho da penitência, acolha o seu regresso e confis-
são, esmague depressa a Satanás debaixo dos pés deles127, os livre do laço do Diabo 128
e dos enganos dos Demónios, os preserve de toda a palavra proibida, de toda a acção
inconveniente e das más intenções. 3 Que Ele lhes perdoe todos os seus pecados
voluntários e involuntários, apague a cédula129 redigida contra eles e os inscreva no
livro da vida130, os purifique de toda a mancha do corpo e do espírito131 e os reúna,
após a sua reintegração, ao seu santo rebanho. 4 Porque Ele sabe de que somos fei-
tos132; quem poderá gloriar-se de ter um coração puro ou quem ousará dizer que está
limpo de pecado133? Todos estamos sujeitos ao castigo134. 5 Oremos por eles ainda
com mais fervor, porque haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se
arrependa135, a fim de que se afastem da acção proibida, se dediquem a toda a obra boa,
para que Deus, no seu amor pelos homens, acolha bem depressa e favoravelmente as
suas orações, os reintegre na sua dignidade anterior, lhes dê de novo a alegria da
salvação e os sustente com um espírito generoso 136, para que os seus passos nunca
mais vacilem137, mas sejam julgados dignos de comungar nos seus dons sagrados e de
ser convivas dos divinos mistérios, para que sejam tornados dignos da adopção e
alcancem a vida eterna. 6 Com fervor, digamos ainda todos por eles: Kyrie eleison
(Senhor, misericórdia!), salva-os, ó Deus, levanta-os por tua misericórdia. Levantai-vos;
inclinai-vos diante de Deus e, pelo seu Cristo, recebei a bênção.
7 Então o bispo rezará com estas palavras: 8 – Deus todo-poderoso e eterno,
Senhor de todas as coisas, que criaste e governas os seres e por Cristo fizeste do
homem o centro do mundo, dando-lhe uma lei inata e a lei escrita, para que ele viva
segundo as normas, como ser dotado de consciência, e que, depois do seu pecado, lhe
ofereceste a tua bondade para o sustentar na sua penitência, volve os teus olhos para
os que, diante de Ti, inclinaram a fronte da alma e do corpo, porque Tu não queres a
morte do pecador, mas a sua conversão, de modo que se afaste do caminho do mal e
viva138. 9 Tu que aceitaste a penitência dos Ninivitas, que queres que todos os homens
sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade139; Tu que, por causa da sua
penitência, acolhestes com entranhas de pai o filho que tinha devorado a sua fortuna
numa vida de pródigo, recebe Tu mesmo agora igualmente o arrependimento destes que
Te suplicam, porque não há homem nenhum que não tenha pecado diante de Ti140, e, se

127
Rom 16, 20.
128
2 Tim 2, 26.
129
Col 2, 14.
130
Dan 12, 1; Ap 20, 15.
131
2 Cor 7, 1.
132
Sal 102, 14.
133
Prov 20, 9.
134
Sir 8, 5.
135
Lc 15, 7.
136
Sal 50, 14.
137
Sal 16, 5.
138
Ez 33, 11; 18, 23.
139
1 Tim 2, 4.
140
3 Reis 8, 46.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 429

retiveres as faltas, Senhor, Senhor, quem poderá subsistir? Mas em Ti está o per-
dão141. 10 Reintegra-os na tua santa Igreja e na sua dignidade e honra anteriores, por
Cristo Deus, nosso Deus e Salvador, pelo qual a Ti glória e adoração no Espírito Santo,
pelos séculos. Amen. 11 E o diácono dirá: – Retirai-vos, penitentes!
10. A oração dos fiéis. Oração universal. 1 E que o diácono acrescente: 2 – Não se 1603
aproxime ninguém não autorizado: todos os que somos fiéis dobremos o joelho; ore-
mos a Deus, pelo seu Cristo. Com fervor, supliquemos todos a Deus, pelo seu Cristo.
3 – Oremos pela paz e tranquilidade do mundo e das santas Igrejas: o Deus do
universo nos conceda a sua paz, perpétua e estável, nos guarde e, desse modo, perse-
veremos na plena virtude segundo a fé.
4 – Oremos pela santa Igreja de Deus, católica e apostólica, difundida de uma
extremidade à outra da terra: o Senhor a livre dos remoinhos e das tempestades e a
guarde até ao fim do mundo142, fundada sobre a rocha143.
5 – Oremos ainda por esta santa paróquia: o Senhor do universo nos conceda a
graça de atingir sem desfalecimento a sua esperança celeste e de levar a cabo a oração
ininterrupta que lhe devemos.
6 – Oremos por todo o episcopado, sob os céus, que dispensa com rectidão a
doutrina da tua verdade 144:
7 – Oremos pelo nosso bispo Tiago e suas paróquias. Oremos pelo nosso bispo
Clemente e suas paróquias. Oremos pelo nosso bispo Evódio e suas paróquias. Ore-
mos pelo nosso bispo Amiano e suas paróquias. O Deus de misericórdia os guarde e às
suas santas Igrejas e lhes conceda saúde, honra, longa vida e uma velhice honrosa em
piedade e justiça.
8 – Oremos pelos nossos presbíteros. O Senhor os livre de toda a acção incon-
veniente ou má e lhes conceda um ministério íntegro e honrado.
9 – Oremos por todo o diaconado e serviço em Cristo. O Senhor lhes conceda um
ministério irrepreensível.
10 – Oremos pelos leitores, os cantores, as virgens, as viúvas e os órfãos;
oremos pelos esposos e pelos pais. O Senhor tenha piedade de todos eles.
11 – Oremos pelos eunucos que vivem santamente na continência. Oremos pelos
que vivem na castidade e na piedade.
12 – Oremos pelos que, na santa Igreja, trazem oferendas e pelos que dão esmolas
aos pobres. Oremos pelos que depõem oblações e primícias diante do Senhor, nosso
Deus. O Deus de toda a bondade lhes conceda em troca os seus dons celestes e lhes dê
o cêntuplo no tempo presente e no tempo que há-de vir a vida eterna145, e em troca dos
bens temporais Ele lhe conceda os bens eternos146, e, em troca dos bens terrestres, os
bens celestes147.
13 – Oremos pelos nossos irmãos neófitos: o Senhor os fortifique e os torne firmes.
14 – Oremos pelos (nossos irmãos) provados pela doença: o Senhor os liberte de
toda a doença e de toda a enfermidade e os devolva em boa saúde à sua santa Igreja.

141
Sal 129, 3-4.
142
Mt 28, 20.
143
Mt 7, 25.
144
2 Tim 2, 15.
145
Mc 10, 30.
146
2 Cor 4, 18.
147
Jo 3, 12.
430 SÉCULO IV

15 – Oremos pelos (nossos irmãos) que partiram de viagem por mar ou por terra.
Oremos pelos (nossos irmãos) que estão nas minas, no exílio, na prisão ou nas cadeias
por causa do nome do Senhor. Oremos pelos que sofrem em amarga escravidão.
16 – Oremos pelos nossos inimigos e por aqueles que nos odeiam. Oremos pelos
que nos perseguem por causa do nome148 do Senhor: o Senhor domine o seu furor e
acalme a sua cólera contra nós.
17 – Oremos pelos que estão fora e pelos que se perderam: o Senhor os converta.
18 – Lembremo-nos das crianças da Igreja: o Senhor as faça progredir no seu
temor até à perfeição e as conduza até à força da idade149.
19 – Oremos uns pelos outros: pela sua graça o Senhor nos preserve e nos guarde
até ao fim, nos livre do Maligno150 e de todas as armadilhas dos que praticam a
iniquidade151, Ele nos salve (e nos conduza) para o seu reino celeste152.
20 – Oremos por toda a alma cristã. 21 – Salva-nos e levanta-nos, Senhor, na tua
piedade.
22 – Levantemo-nos; numa oração fervorosa recomendemo-nos a nós mesmos e
uns aos outros ao Deus vivo, pelo seu Cristo.
1604 11. Oração do pontífice depois da oração dos fiéis. 1 O pontífice rezará então
nestes termos: 2 – Senhor omnipotente, o Altíssimo, que moras nas alturas, o Santo,
que repousas entre os santos153, sem princípio e único soberano, que por Cristo nos
comunicaste mensagem e revelação, para dar a conhecer a tua glória e o teu nome, que
Ele nos manifestou154 para nossa compreensão, 3 lança agora Tu próprio por meio
d’Ele o teu olhar para este teu rebanho; liberta-o de toda a ignorância e de toda a má
acção, dá-lhe a graça de Te temer com temor e de Te amar com amor e de tremer diante
da tua glória. 4 Sê benévolo com eles, propício e atento às suas orações, e guarda-os ao
abrigo dos erros, culpas e censuras, para que sejam santos no corpo e na alma, sem
mancha, nem ruga, nem coisa alguma semelhante155, mas sejam íntegros e nenhum
deles seja mutilado ou imperfeito.
5 Defensor poderoso, que não fazes acepção de pessoas, sê o protector deste teu
povo, que escolheste entre outros inumeráveis e que resgataste pelo precioso Sangue
do teu Cristo156, defensor, sustentáculo, protector, guardião, fortaleza seguríssima,
refúgio estável, porque ninguém pode ser arrancado da tua mão157, nem há outro
Deus como Tu, pois em Ti está a nossa esperança. 6 Santifica-os na tua verdade,
porque a tua palavra é a verdade158, e Tu o imparcial que ninguém pode enganar; livra-os
de toda a enfermidade e fraqueza, de todo o pecado, de toda a injúria e fraude, do temor
do inimigo159, da seta que voa de dia, do perigo que espreita nas trevas 160; julga-os
dignos da vida eterna no teu Cristo, teu Filho único, nosso Deus e Salvador, pelo qual
a Ti glória e honra no Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.

148
Mt 5, 44; 10, 22.
149
Ef 4, 13.
150
Mt 6, 13.
151
Sal 140, 9; 13, 41.
152
2 Tim 4, 18.
153
Is 57, 15.
154
Jo 17, 6.
155
Ef 5, 27.
156
1 Ped 1, 19.
157
Jo 10, 29.
158
Jo 17, 17.
159
Sal 63, 2.
160
Sal 90, 5-6.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 431

Beijo da paz. 7 Depois disto, o diácono dirá: – Estejamos atentos! 8 E o bispo 1605
saudará a assembleia com estas palavras: – A paz de Deus esteja com todos vós! E o
povo responderá: E com o teu espírito! 9 Depois o diácono dirá a todos: – Saudai-vos
uns aos outros com um ósculo santo161! Dar-se-á o beijo: os clérigos ao bispo, os
homens leigos aos leigos, as mulheres às mulheres.
A preparação de todos para a Eucaristia. 10 Os meninos estejam de pé junto do 1606
estrado; o outro diácono vigiá-los-á, para que não incomodem; os outros diáconos
circulem e vigiem os homens e as mulheres, para evitar que haja barulho e para que
ninguém faça sinais com a cabeça, fale em voz baixa ou dormite. 11 Os subdiáconos
estarão de pé junto das portas dos homens, e as diaconisas junto das portas das
mulheres, para que, durante o tempo da oblação, ninguém saia e a ninguém se abra a
porta, mesmo para deixar entrar um fiel. 12 Um subdiácono trará água para os sacerdotes
lavarem as mãos, o que simboliza a pureza das almas consagradas a Deus.
12. A preparação dos dons. 1 E eu, Tiago, irmão de João, filho de Zebedeu, prescrevo 1607
o que se segue. O diácono dirá a seguir: 2 – Não assista nenhum catecúmeno, nenhum
ouvinte, nenhum infiel, nenhum heterodoxo! Aproximem-se os que fizeram a primeira
oração; mães, pegai nos vossos filhos; ninguém guarde rancor a ninguém, ninguém seja
hipócrita. Voltados para o Senhor, estejamos de pé com temor e tremor, para a oblação.
3 Em seguida, os diáconos trarão ao bispo as oferendas, até ao altar; os presbíteros
estarão de pé à direita e à esquerda do bispo, como discípulos que assistem o seu
mestre; de um e outro lado do altar, dois diáconos terão cada um o leque de membranas
finas, ou uma pluma de pavão, ou ainda um pano leve; afastarão discretamente os
pequenos insectos voadores, para que não se aproximem dos cálices.
A ORAÇÃO DE OBLAÇÃO

Parte teológica. 4 Então o pontífice ora em silêncio juntamente com os sacerdotes; 1608
revestido com um trajo resplandecente, de pé, diante do altar, fará o sinal da cruz sobre
a fronte, dizendo:
Diálogo inicial. A graça de Deus todo-poderoso, o amor de nosso Senhor Jesus 1609
Cristo e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.
Todos responderão ao mesmo tempo: E com o teu espírito.
5 O pontífice: Elevemos o espírito.
Todos: Já o voltámos para o Senhor.
O pontífice: Dêmos graças ao Senhor.
Todos: É digno e justo.
E o pontífice dirá:
Louvor do mistério de Deus. 6 É verdadeiramente digno e justo, louvar-Te antes 1610
de tudo a Ti, Deus verdadeiro, que existes antes de todas as criaturas e de quem toda
a paternidade no Céu e na terra recebe o seu nome, o único não gerado, sem princípio,
independente, sem senhor, sem necessidade alguma, dador de todo o bem, superior a
toda a causa e a toda a origem, que permaneces sempre o mesmo e imutável. De Ti,
como de uma fonte, vieram à existência todas as coisas.
7 Tu és o conhecimento sem princípio, a visão eterna, o ouvido não gerado, a
sabedoria não ensinada, o primeiro por natureza e o único pelo ser. Estás acima de todo
o número e fizeste surgir todas as coisas do nada à existência, pelo teu Filho unigénito,
que geraste antes de todos os séculos pela tua vontade, o teu poder e a tua bondade,

161
1 Cor 16, 20.
432 SÉCULO IV

sem intermediário, Filho unigénito, Verbo divino, Sabedoria viva, Primogénito de toda
a criatura, Anjo do teu grande Conselho, teu Sumo Sacerdote e Adorador digno de Ti,
Rei e Senhor de toda a natureza inteligível e sensível, que existe antes de todas as
coisas e por quem todas as coisas existem.
8 Com efeito, Deus eterno, tudo fizeste por Ele e por Ele também estendes a
todas as coisas a tua atenta providência; por Ele concedeste o ser e também por Ele
deste a felicidade; Deus e Pai do teu Filho unigénito, por Ele criaste, antes de tudo, os
Querubins e os Serafins, os séculos e os exércitos, os Poderes e as Autoridades, os
Principados e os Tronos, os Arcanjos e os Anjos, e, depois de todos eles, foi ainda por
Ele que criaste o mundo visível e tudo o que nele se encontra.
1611 Criação do mundo. 9 Porque foste Tu que estabeleceste os céus como uma
abóbada e os estendeste como uma tenda, que suspendeste a terra sobre o nada só pela
tua vontade, que fixaste o firmamento, formaste o dia e a noite, tiraste a luz dos teus
reservatórios, e, ao eclipsá-la, fizeste surgir as trevas para que repousem os seres
vivos que se movem no mundo; colocaste no céu o Sol para presidir ao dia e a Lua para
presidir à noite, e dispuseste no céu o coro dos astros, para louvor da tua glória.
10 Criaste a água para beber e purificar, o ar vivificante para respirar, para emitir
a voz quando a língua se move e para ajudar o ouvido, a fim de que ele perceba os sons
que lhe chegam. 11 Criaste o fogo para que ele atenue as trevas, venha em ajuda das
nossas necessidades, nos aqueça e ilumine. 12 Separaste da terra o mar imenso; a este
tornaste-o navegável, àquela tornaste-a firme para os nossos pés; povoaste a primeira
terra com uma multidão de animais, pequenos e grande, e encheste a segunda com
animais domésticos e selvagens, adornando-a com vegetais variados, coroando-a com
plantas, enfeitando-a com flores e enriquecendo-a com sementes. 13 Formaste o abis-
mo e contiveste-o na grande bacia, o mar, que transborda de águas salgadas e que
encerraste, por detrás das portas, as praias de areia fina; umas vezes, pelos ventos,
eleva-lo à altura das montanhas, outras vezes estende-lo numa planície, ora o pões em
fúria pela tempestade, ora o acalmas parando os ventos e o tornas navegável para os
marinheiros, quando partem de barco. 14 Cingiste de rios o mundo que criaste por
Cristo, banhaste-o pelas torrentes, irrigaste-o pelas fontes inesgotáveis, e cercaste-o
de montanhas para assegurar à terra um alicerce inabalável, muito sólido. 15 Povoaste
o mundo e ornaste-o com ervas odoríferas e terapêuticas, com animais numerosos e
variados, robustos ou mais fracos, para o alimento e o trabalho, domésticos e selva-
gens, com o sibilar dos répteis, o canto de diferentes aves, o ciclo dos anos, a sucessão
dos meses e dos dias, a ordem das estações, a corrida das nuvens carregadas de chuva
para produzir frutos, alimentar os seres vivos, a massa dos ventos que secam, às tuas
ordens, a multidão das plantas e das ervas.
1612 Criação do homem. 16 Não só criaste o mundo, mas aí colocaste o homem,
cidadão do universo, fazendo dele a obra-prima da criação. Com efeito, disseste à tua
Sabedoria: Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine
sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu162. 17 Também o constituíste com uma
alma imortal e um corpo perecível, a primeira a partir do nada, o segundo a partir dos
quatro elementos; dotaste a sua alma de raciocínio e de inteligência, do discernimento
da piedade e da impiedade, da percepção do justo e do injusto; quanto ao corpo,
dotaste-o dos cinco sentidos, do movimento e da mobilidade.
1613 Primeira aliança. 18 Deus todo-poderoso, por Cristo plantaste um jardim no
Éden, ao Oriente, ornando-o com toda a espécie de plantas comestíveis, e, como se
fosse uma casa sumptuosa, aí introduziste o homem, ao qual tinhas dado, ao criá-lo, a
lei inata, de sorte que ele possuísse, em si mesmo e por si próprio, os germes do

162
Gen 1, 26.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 433

conhecimento divino. 19 Ao introduzi-lo no jardim da felicidade, deste-lhe em partilha


autoridade sobre todas as coisas, proibindo-o de comer um único alimento, na esperança
de bens superiores, a fim de que, pela obediência a este mandamento, recebesse como
recompensa a imortalidade. 20 Mas, enganado pela serpente e a conselho da mulher,
ele desprezou esse mandamento e provou do fruto proibido; então, expulsaste-o legi-
timamente para fora do jardim. Mas, na tua bondade, não rejeitaste definitivamente o
homem perdido, porque era obra tua; ao contrário, Tu que lhe sujeitaste a criação,
permitiste-lhe que procurasse o alimento com o seu suor e o seu trabalho, mas és Tu
que fazes germinar, crescer e amadurecer; adormeceste-o por um pouco de tempo,
depois chamaste-o por juramento ao novo nascimento; libertando-o da lei da morte,
prometeste-lhe a vida pela ressurreição.
História da salvação. 21 Não ficaste apenas por aí, mas multiplicaste os seus 1614
descendentes numa multidão incontável, glorificaste aqueles que Te permaneceram
fiéis e castigaste os que se afastaram de Ti; acolheste o sacrifício de Abel, como vindo
dum santo e rejeitaste a oferenda de Caim, o fratricida, como vindo dum amaldiçoado;
além disso, fizeste viver, junto de Ti, Set e Enós, e arrebataste Henoc. 22 Tu és o
Criador dos homens, o dador da vida; és Tu que cumulas a indigência, dás as leis,
recompensas os que as observam e castigas os que as transgridem; desencadeaste o
grande dilúvio sobre o mundo por causa da multiplicação dos ímpios e poupaste do
dilúvio Noé, o justo, na arca, com oito pessoas: foi o fim duma geração e o começo de
outra nova. Acendeste um fogo terrificante contra as cinco cidades de Sodoma, mudando
a terra fértil em salinas, por causa da maldade dos seus habitantes, e arrancaste o santo
Lot ao incêndio. 23 Foste Tu que livraste Abraão da impiedade dos seus antepassados,
o tornaste herdeiro do mundo e o fizeste ver o teu Cristo. Estabeleceste Melquisedec
como sumo sacerdote do teu culto; tornaste o teu servo Job, depois de muitos sofri-
mentos, vencedor da serpente, príncipe do mal; fizeste de Isaac o filho da promessa;
transformaste Jacob, pai de doze filhos, e os seus descendentes, em multidão, e fizeste-os
entrar no Egipto em número de setenta e cinco pessoas. 24 Tu, Senhor, não abandonaste
José, mas, para o recompensar da castidade guardada por causa de Ti, permitiste-lhe
que se tornasse o governador dos Egípcios. Não abandonaste, Senhor, por causa das
promessas feitas a seus pais, os Hebreus oprimidos pelos Egípcios, mas libertaste-os
e puniste os Egípcios.
25 Os homens tinham corrompido a lei natural: ou consideravam a criação como
tendo origem em si mesma, ou veneravam-na mais do que convém, considerando-a
igual a Ti, o Deus de todas as coisas. Não os deixaste no erro, mas suscitaste o teu
santo servo Moisés, e por seu intermédio deste a lei escrita, para ajuda da lei natural,
mostraste que a criação é obra tua e destruíste o erro politeísta. Glorificaste Aarão e os
seus descendentes pela dignidade sacerdotal. Castigavas os Hebreus quando pecavam, e
acolhia-los quando se convertiam. 26 Puniste os Egípcios com as dez pragas: abrindo
o mar, por ele fizeste passar os Israelitas e destruíste os Egípcios que os perseguiam,
submergindo-os na água. Com um madeiro tornaste doce uma água amarga, dum rochedo
duro fizeste brotar água; do céu fizeste chover o maná, e do ar, como alimento, codor-
nizes; uma coluna de fogo para os iluminar de noite e uma coluna de nuvens de dia, para
os abrigar do calor. Suscitaste Josué, chefe do exército, e por seu intermédio destruíste
sete nações cananeias. Fendeste o Jordão, secaste rios caudalosos, derrubaste mura-
lhas sem ter necessidade de máquinas nem da mão do homem.
Introdução ao Sanctus. 27 Por tudo isto, glória a Ti, Senhor todo-poderoso. 1615
Diante de Ti se prostra toda a coorte incorpórea e santa; diante de Ti se prostra o
Paráclito; mas, antes de todos, o teu santo servo Jesus Cristo, nosso Senhor e nosso
Deus, teu Anjo e príncipe dos exércitos, sumo sacerdote eterno e sem fim; diante de Ti
se prostram os inumeráveis exércitos dos Anjos, Arcanjos, Dominações, Tronos, Prin-
cipados, Autoridades, Poderes, Exércitos eternos; os Querubins e os Serafins de seis
434 SÉCULO IV

asas, que cobrem os pés com duas, a cabeça com duas e voam com outras duas, com
milhares e milhares de Arcanjos e de Anjos, gritam sem cessar numa voz que jamais se
cala, e à qual se junta todo o povo: Santo, Santo, Santo, o Senhor do universo; o céu e
a terra estão cheios da sua glória, bendito és Tu pelos séculos. Amen.
1616 Post Sanctus. 28 Depois o pontífice continuará: 29 Na verdade Tu és santo,
santíssimo, altíssimo, exaltado pelos séculos! 30 Santo é o teu Filho unigénito, nosso
Senhor e Deus, Jesus Cristo, que Te serve em todas as coisas, a Ti seu Deus e seu Pai,
na criação variada e na tua igual providência. Ele não abandonou o género humano à sua
perdição, mas, além da lei natural, além das exortações da Lei, além das advertências
dos Profetas e das intervenções dos Anjos – com efeito os homens tinham transgredido
quer a lei escrita quer a lei natural, tinham esquecido o dilúvio, o fogo celeste, as pragas
do Egipto, os massacres dos Palestinos, e estavam prestes a perecer todos quase
imediatamente – na sua benevolência e segundo a sua vontade, o Criador do homem fez-Se
homem, o Legislador submeteu-Se às leis, o Sumo Sacerdote tornou-Se vítima, o Pas-
tor tornou-Se ovelha. 31 E apaziguou-Te a Ti, seu Deus e Pai, reconciliou o mundo
contigo, a todos livrou da cólera iminente, nascendo duma Virgem, nascendo na carne,
Ele, o Deus Verbo, o Filho muito amado, o Primogénito de toda a criatura, conforme os
Profetas predisseram por Ele próprio a seu respeito, (nasceu) da descendência de David e
de Abraão, da tribo de Judá; encarnou no seio duma Virgem, Ele que modela todos os
que são gerados; tornou-Se carne, Ele que não é de carne; Ele que foi gerado fora do
tempo, foi gerado no tempo. 32 Viveu santamente e ensinou segundo as leis, libertou
os homens de todas as doenças e enfermidades, realizou sinais e prodígios entre o
povo, comeu, bebeu, dormiu, Ele que alimenta todos os que têm necessidade de ali-
mento e sacia generosamente todo o ser vivo; manifestou o teu nome àqueles que não
O conheciam, expulsou a ignorância, reavivou a piedade, realizou a tua vontade, levou
a cabo a obra que Lhe deste a realizar.
33 Quando acabou de realizar tudo isso, caiu nas mãos dos ímpios, erradamente
chamados sacerdotes e pontífices, e ficou à mercê dum povo iníquo, pela traição dum
homem cheio de maldade; teve de sofrer muito da parte deles e suportou toda esta
ignomínia com o teu consentimento; entregue ao governador Pilatos, o Juiz foi julgado, o
Salvador foi condenado, o Impassível foi cravado numa cruz e o Imortal por natureza
morreu. Ele que faz viver foi sepultado, para libertar do sofrimento e arrancar à morte
aqueles por quem viera, e para quebrar os laços do Diabo e libertar os homens dos seus
enganos. 34 Ao terceiro dia ressuscitou dos mortos, permaneceu quarenta dias com os
seus discípulos, elevou-Se aos Céus e está sentado à tua direita, seu Deus e Pai.
1617 Narração da instituição. 35 Lembrando-nos, pois, do que Ele sofreu por nós,
damos-Te graças, Deus todo-poderoso, não tanto quanto devemos, mas quanto somos
capazes, e, assim, cumprimos o que Ele nos mandou. 36 Porque na noite em que Ele foi
entregue, tomou o pão em suas mãos santas e imaculadas, e, levantando os olhos para
Ti, seu Deus e Pai, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: «Este é o mistério da
nova Aliança; tomai todos dele, comei; isto é o meu Corpo, entregue em favor de
muitos para remissão dos pecados». 37 De igual modo, encheu o cálice com vinho e
água, santificou-o e deu-lho dizendo: «Bebei todos dele; isto é o meu Sangue, derramado
por muitos para remissão dos pecados; fazei isto em memória de Mim, porque todas
as vezes que comerdes este pão e beberdes deste cálice, anunciareis a minha morte até
que Eu venha».
1618 Anamnese e oferenda. 38 Recordando-nos, pois, da sua Paixão e morte, da sua
Ressurreição dos mortos e Ascensão aos Céus e da sua futura segunda vinda, na qual
virá com glória e poder para julgar os vivos e os mortos e dar a cada um segundo as suas
obras, nós Te oferecemos, a Ti, Rei e Deus, segundo o seu mandato, este pão e este
cálice, dando-Te graças, por meio d’Ele, por nos teres julgado dignos de estar diante de
Ti e de Te servir pelo sacerdócio.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 435

Epiclese. 39 E nós Te pedimos que olhes benignamente para estes dons que 1619
apresentamos diante de Ti, Deus que de nada precisas. Que eles Te sejam agradáveis
para honra do teu Cristo. Envia o teu Espírito Santo sobre este sacrifício, Ele que é
testemunha dos padecimentos do Senhor Jesus, para que manifeste que este pão é o
Corpo do teu Cristo e este cálice o Sangue do teu Cristo; a fim de que, os que dele vão
participar, sejam confirmados na fé, obtenham a remissão dos pecados, sejam libertados
do Diabo e do seu erro e, cheios do Espírito Santo, se tornem dignos do teu Cristo,
obtenham a vida eterna na reconciliação contigo, Senhor omnipotente.
Intercessões. 40 Nós Te pedimos ainda, Senhor, pela tua santa Igreja, que se 1620
estende de um extremo ao outro da terra, que adquiriste com o precioso sangue do teu
Cristo: livra-a dos remoinhos e tempestades, até à consumação dos séculos; (Nós Te
pedimos) ainda por todo o episcopado, que dispensa com rectidão a doutrina da verdade.
41 Nós Te invocamos também por mim próprio, que, apesar da minha indignidade,
Te apresento a oblação, e por todo o presbitério, pelos diáconos e todo o clero: enche-os
a todos de sabedoria e do Espírito Santo.
42 Também Te invocamos, Senhor, pelo rei, pelos que exercem o poder e por
todo o exército, para que gozemos de paz e para que, vivendo todo o tempo da nossa
vida em tranquilidade e concórdia, Te glorifiquemos por Jesus Cristo, nossa esperança.
43 Nós Te apresentamos ainda a nossa oblação por todos os santos que desde as
origens Te foram agradáveis: Patriarcas, Profetas, Justos, Apóstolos, Mártires, Con-
fessores, bispos, presbíteros, diáconos, subdiáconos, leitores, cantores, virgens, viúvas,
leigos e por todos aqueles cujos nomes Tu mesmo conheces.
44 Apresentamos-Te a nossa oblação também por todo o povo aqui presente:
eleva-o à dignidade de sacerdócio real, de nação santa, para louvor do teu Cristo; pelos
que vivem em virgindade e castidade, pelas viúvas da Igreja, pelos esposos que vivem
santamente e transmitem a vida, pelos filhos do teu povo: não rejeites nenhum de entre nós.
45 Também Te pedimos por esta cidade e seus habitantes, pelos enfermos, pelos
escravos tratados com dureza, os desterrados, os proscritos, os navegantes e cami-
nhantes: vem em socorro de cada um, sê o defensor e protector de todos.
46 Pedimos-Te ainda pelos que nos odeiam e perseguem por causa do teu nome163,
pelos que estão fora e andam errantes: fá-los voltar ao bem e acalma o seu furor.
47 Ainda Te pedimos, Senhor, pelos catecúmenos da Igreja, pelos que são prova-
dos pelo inimigo e pelos nossos irmãos penitentes: conduz os primeiros à plenitude da
fé, purifica os segundos dos ataques do Maligno, acolhe a penitência dos outros e
perdoa as suas e as nossas faltas.
48 Ainda Te apresentamos a nossa oblação pelo bom tempo e a abundância dos
frutos, de modo que, recebendo continuamente os bens da tua mão, Te louvemos sem
cessar, a Ti que dás o alimento a todo o ser vivo.
49 Suplicamos-Te ainda pelos ausentes, impedidos por motivos justos: guarda-nos
a todos na piedade e, reunindo-nos no reino do teu Cristo, o Deus de toda a natureza
sensível e inteligível, nosso Rei, guarda-nos ao abrigo dos desvios, ofensas e censuras.
Doxologia final. 50 Porque a Ti toda a glória, poder, acção de graças, honra e 1621
adoração, Pai e Filho e Espírito Santo, agora e sempre e pelos infinitos e sempiternos
séculos dos séculos.
51 E todo o povo responderá: Amen.

163
Mt 10, 22; 5, 44.
436 SÉCULO IV

1622 13. Oração pelos fiéis depois da oblação. Segunda oração universal. 1 Depois o
bispo dirá: – A paz de Deus esteja com todos vós! E todo o povo responderá: – E com
o teu espírito! 2 E o diácono proclamará de novo:
3 – Oremos uma e outra vez a Deus por meio do seu Cristo. Pela oferenda
apresentada ao Senhor, nosso Deus, oremos ao Deus de bondade que a aceite pela
mediação do seu Cristo, no seu altar celeste, como perfume de agradável odor.
4 Oremos por esta assembleia e este povo; oremos por todo o episcopado e por
todos os presbíteros, pelo conjunto do diaconado e do serviço em Cristo, por todo o
conjunto da Igreja, para que o Senhor a todos proteja e guarde.
5 Oremos pelos reis e detentores do poder, para que gozemos de paz, e benefi-
ciando duma vida calma e tranquilo, vivamos com toda a piedade e dignidade.
6 Recordemo-nos dos santos mártires, para que sejamos julgados dignos de
tomar parte nas suas lutas; oremos pelos que descansaram na fé.
7 Oremos pelo bom tempo e a maturação dos frutos.
8 Oremos pelos neófitos, para que se tornem firmes na fé. Oremos todos uns
pelos outros.
9 Levanta-nos, ó Deus, na tua graça. De pé, encomendemo-nos a nós mesmos a
Deus pelo seu Cristo.
10 E o bispo dirá:
– Ó Deus único, grande pelo teu nome e pelos teus desígnios, poderoso pelas
tuas obras, Deus e Pai do teu santo servo Jesus, nosso Salvador, lança o teu olhar sobre
nós e sobre o teu rebanho que aqui está presente e que por Jesus escolheste para glória
do teu nome; santifica os nossos corpos e as nossas almas, purifica-nos de toda a
mancha da carne e do espírito, e torna-nos dignos de alcançar os bens prometidos; não
julgues indigno nenhum de entre nós, mas sê o nosso defensor, o nosso protector e o
nosso socorro, pelo teu Cristo, pelo qual a Ti glória, honra, louvor, glorificação e acção
de graças, no Espírito Santo, pelos séculos. Amen.
1623 As coisas santas aos santos. 11 E depois de todos responderem: – Amen, o
diácono dirá: Prestemos atenção! 12 Depois o bispo fará esta proclamação ao povo: –
As coisas santas aos santos! 13 O povo responderá: – Um só santo, um só Senhor,
Jesus Cristo, para glória de Deus Pai164, no Espírito Santo. Tu és bendito pelos sécu-
los. Amen. Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens: hossana ao Filho de
David, bendito O que vem em nome do Senhor, o Senhor Deus, e que Se manifestou
entre nós, hossana nas alturas!
1624 A comunhão. 14 E, depois disto, o bispo comungará, a seguir os presbíteros, os
diáconos, os subdiáconos, os leitores, os cantores, os ascetas; e entre as mulheres: as
diaconisas, as virgens e as viúvas; a seguir as crianças e depois todo o povo, ordenadamente,
com respeito e piedade165, e sem tumulto. 15 O bispo dará a oblação, dizendo: – O
Corpo de Cristo. Aquele que a recebe responderá: Amen! O diácono segurará o cálice
e, ao entregá-lo, dirá: – O Sangue de Cristo, cálice da vida! Aquele que o bebe dirá:
Amen! 16 Enquanto todos os outros comungam, dir-se-á o salmo trinta e três. 17 E,
quando todos e todas tiverem comungado, os diáconos, depois de recolherem o que
sobra, depô-lo-ão nas sacristias166.

164
ta\ a( / g ia toi= j a( g i/ o ij... Ei= j a( / g ioj, ei= j ku/ r ioj, I) h sou= j Xristo/ j ei= j do/ c an Deou= Patro\ j ....
165
Hebr 12, 28.
166
pastofo/ r ia .
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 437

14. Depois da comunhão. 1 Depois de o cantor ter terminado, o diácono dirá: 2 – 1625
Depois de termos comungado o precioso Corpo e o precioso Sangue de Cristo 167,
dêmos graças Àquele que nos julgou dignos de comungar nos seus santos mistérios e
peçamos-Lhe que não seja para nosso julgamento, mas para nossa salvação, para
remédio da alma e do corpo, salvaguarda da fé, remissão dos pecados e para a vida do
tempo que há-de vir. 3 Levantemo-nos; na graça de Cristo encomendemo-nos ao único
Deus não gerado, pelo seu Cristo.
15. Acção de graças depois da comunhão. 1 Depois o bispo dará graças: 2 – Senhor 1626
Deus omnipotente, Pai de Cristo, teu servo bendito, que escutas os que Te invocam
com rectidão e conheces as súplicas dos que estão em silêncio, nós Te damos graças
porque nos julgaste dignos de comungar nos teus santos mistérios, com que nos enri-
queceste para mantermos firmes os bons ensinamentos, para salvaguarda da fé e para
remissão dos pecados, pois foi invocado sobre nós o nome do teu Cristo e fomos
unidos à tua família. 3 Tu, que nos afastaste do convívio dos ímpios, une-nos àqueles
que Te são consagrados, confirma-nos na verdade pela vinda do Espírito Santo, revela-nos o
que ignoramos, supre o que nos falta e torna firme o que conhecemos. 4 Aos sacerdotes
guarda-os irrepreensíveis no teu serviço, mantém os reis em paz, os magistrados em
justiça, o tempo em bonança, os frutos em abundância, o mundo sob a tua providência
omnipotente; acalma as nações belicosas, converte as que se afastaram. 5 Santifica o
teu povo, vela sobre os que vivem em virgindade, guarda na fidelidade os casados, dá
força aos que vivem em castidade, faz com que as crianças cheguem à idade madura,
torna firmes os neófitos, instrui os catecúmenos e torna-os dignos da iniciação; reúne-nos
a todos no Reino dos Céus, em Cristo Jesus, nosso Senhor, pelo qual a Ti glória, honra
e poder, no Espírito Santo, pelos séculos. Amen.
Bênção final e despedida. 6 Depois o diácono dirá: – Inclinai-vos diante de Deus, 1627
pelo seu Cristo, e recebei a bênção. 7 E o bispo rezará, dizendo: – Deus omnipotente,
verdadeiro e incomparável, que estás em toda a parte e Te tornas presente a todos, que
não estás encerrado em parte nenhuma, nem contido nem circunscrito pelo espaço, que
não envelheces com o tempo nem és limitado pelos séculos, que não és enganado por
palavras nem estás sujeito ao nascimento, que não necessitas de guarda, que estás
acima de toda a corrupção, que não podes sofrer mudança, que por natureza és imutável,
que habitas numa luz inacessível 168, que por natureza és invisível, que Te fazes conhecer
a todas as naturezas conscientes que Te buscam com boa vontade, que Te deixas
encontrar pelos que Te procuram com intenção pura, ó Deus de Israel, do teu povo que
vê verdadeiramente, isto é, do teu povo que acreditou em Cristo; 8 na tua benevolência,
escuta-me, por causa do teu nome, abençoa os que inclinaram a cabeça diante de Ti, e
concede-lhes os pedidos dos seus corações169, os que são úteis, e a nenhum lances fora
do teu reino, mas santifica-os, guarda-os, protege-os, socorre-os, livra-os do Adversário
e de todo o inimigo, vela sobre as suas casas, defende as suas entradas e saídas 170. 9
Porque a Ti glória, louvor, majestade, poder e adoração, e, depois de Ti e por causa de
Ti, ao teu servo Jesus Cristo, nosso Senhor e rei, pelo qual a Ti digna acção de graças
que Te deve toda a natureza racional e santa, no Espírito Santo, agora e sempre e pelos
séculos dos séculos. Amen. 10 Depois o diácono dirá: – Ide em paz. 11 Nós os Após-
tolos prescrevemo-vos estas coisas sobre o culto místico a vós bispos, aos presbíteros
e diáconos.

167
1 Ped 1, 19.
168
1 Tim 6, 16.
169
Sal 36, 4.
170
Sal 120, 8.
438 SÉCULO IV

AS OUTRAS ORDENAÇÕES

1628 16. A ordenação do presbítero. 1 Para a ordenação do presbítero eu, o (discípulo)


muito amado do Senhor171, prescrevo-vos isto a vós, bispos. 2 Quando ordenares um
presbítero, ó bispo, tu próprio, assistido pelo presbitério e pelos diáconos, impõe-lhe
a mão sobre a cabeça e ora assim: 3 – Senhor omnipotente, nosso Rei, que por Cristo
criaste todas as coisas, tendo-O feito existir a Ele próprio antes de tudo, e que por Ele
provês, de maneira adaptada – porque quem pode criar seres tão variados, também
pode prover àquilo de que precisam – a todos os seres imortais, mantendo-os na sua
existência, e aos seres mortais, assegurando-lhes a substituição, às necessidades da
alma, pelo cuidado das leis, e às do corpo, pela satisfação das suas necessidades. Lança
Tu próprio, agora, o olhar sobre a tua santa Igreja e fá-la crescer; multiplica aqueles
que lhe presidem e dá-lhes poder para trabalharem pela palavra e pelas obras na
edificação do teu povo. 4 Considera Tu próprio, agora, este teu servo que aqui está e
que foi agregado ao presbitério pelo voto e o julgamento de todo o clero, enche-o do
Espírito de graça e de conselho, para que ele se responsabilize pelo teu povo e participe no
seu governo com um coração puro, tal como, na tua atenção pelo teu povo eleito,
tinhas ordenado a Moisés que escolhesse anciãos, que encheste de Espírito. 5 Agora,
Senhor, digna-Te guardar indefectível em nós o teu Espírito de graça, para que, repleto
de energias curativas e de palavras instrutivas, (o teu servo) ensine com humildade o
teu povo, Te sirva sem divisão, com pureza de intenção e de boa vontade, e realize de
maneira irrepreensível as liturgias para o teu povo, pelo teu Cristo, pelo qual a Ti
glória, honra e poder no Espírito Santo, pelos séculos. Amen.
1629 17. A ordenação do diácono. 1 Para a ordenação do diácono eu, Filipe, prescrevo
isto. 2 O diácono, estabelecê-lo-ás, ó bispo, impondo-lhe as mãos, assistido por todo
o presbitério e pelos diáconos, e orarás assim:
1630 18. 1 – Deus omnipotente, verdadeiro e verídico, rico para com todos os que Te
invocam172 em verdade, admirável nos teus desígnios173, sábio nos teus pensamentos,
poderoso e grande174, 2 ouve a nossa oração, Senhor, escuta a nossa súplica 175 e faz
brilhar a tua face sobre o teu servo176 que aqui está e que Te é proposto para o
diaconado: enche-o de Espírito e de fortaleza, como encheste Estêvão, o primeiro mártir e
imitador dos sofrimentos do teu Cristo177. 3 Concede-lhe que cumpra com satisfação o
serviço que lhe confiaste, de maneira agradável, sem desvios, nem críticas, nem censuras,
para ser julgado digno dum grau superior, pela mediação do teu Cristo, teu Filho
unigénito, pelo qual a Ti glória, honra e poder no Espírito Santo, pelos séculos. Amen.
1631 19. A ordenação da diaconisa. 1 A respeito da diaconisa eu, Bartolomeu, prescrevo
isto. 2 Impor-lhe-ás as mãos, ó bispo, na presença do presbitério, dos diáconos e das
diaconisas, e dirás:
1632 20. 1 – Deus eterno, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo178, Criador do mundo do
homem e da mulher, Tu que encheste de espírito Maria, Débora, Ana e Hulda, que não
julgaste indigno que o teu Filho, o unigénito, nascesse duma mulher, Tu que na tenda
do testemunho e no templo instituíste guardas para as tuas santas portas, 2 Tu pró-
prio olha agora para a tua serva que aqui está, proposta para o diaconado: dá-lhe o

171
Quem fala é João.
172
Rom 10, 12.
173
Sal 65, 5.
174
Job 9, 4.
175
Sal 142, 1.
176
Sal 30, 17.
177
1 Ped 5, 1.
178
2 Cor 1, 3.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 439

Espírito Santo e purifica-a de toda a mancha da carne e do espírito179, para que ela
cumpra dignamente o ofício que lhe foi confiado, para tua glória e louvor do teu Cristo,
pelo qual a Ti glória e adoração no Espírito Santo, pelos séculos. Amen.
21. O subdiácono. 1 A respeito dos subdiáconos, eu, Tomé, prescrevo-vos isto, ó 1633
bispos. 2 Quando ordenares um subdiácono, ó bispo, impor-lhe-ás as mãos e dirás: 3
– Senhor Deus, Criador do mundo do céu e da terra e de tudo o que neles existe, Tu que
na tenda do testemunho estabeleceste os servidores do templo como guardas dos teus
objectos sagrados, 4 lança agora Tu próprio o teu olhar sobre o teu servidor que aqui
está, proposto como subdiácono, e dá-lhe o Espírito Santo, para que se ocupe dignamente
dos teus objectos litúrgicos e para que realize a tua vontade em todo o tempo, pelo teu
Cristo, pelo qual a Ti glória, honra e poder, no Espírito Santo, pelos séculos. Amen.
22. O leitor. 1 A respeito dos leitores eu, Mateus, também chamado Levi, outrora 1634
publicano, prescrevo isto. 2 Para instituir o leitor, impõe-lhe a mão, orando assim a
Deus: 3 – Deus eterno, rico de graça e de misericórdia180, que pelas tuas obras tornaste
visível o ordenamento do mundo e que manténs no mundo inteiro o número dos teus
eleitos, olha agora, Tu próprio, para o teu servo, escolhido para ler as tuas santas
Escrituras ao teu povo e dá-lhe o Espírito Santo, o espírito de profecia. 4 Tu que
outrora tinhas instruído o teu servo Esdras para que lesse as tuas leis ao teu povo,
instrui agora, nós Te pedimos, o teu servo e concede-lhe que cumpra, de maneira
irrepreensível, o ofício que lhe é confiado e mereça um grau superior, por Cristo, por
quem a Ti glória e honra, no Espírito Santo, pelos séculos. Amen.
23. Os confessores. 1 E eu, Tiago, filho de Alfeu, prescrevo isto a respeito dos 1635
confessores. 2 O confessor não é ordenado, porque isso deriva da decisão pessoal e da
força de alma. Ele é digno duma grande honra, por ter confessado o Nome de Deus e do
seu Cristo diante das nações e dos reis181. 3 Se houver necessidade dele como bispo,
presbítero ou diácono, seja ordenado. 4 Mas, se um confessor não ordenado se atribuir
um destes altos cargos, tomando como pretexto o seu testemunho, seja deposto e
excluído, porque não é (aquilo que pretende ser), uma vez que contradiz as instituições
de Cristo, e é pior que um infiel182.
24. As virgens. 1 Ainda eu (Tiago) a respeito das virgens. 2 A virgem não é ordenada, 1636
porque não temos ordem do Senhor 183; a (sua) recompensa deriva da decisão pessoal,
tomada não por oposição ao matrimónio, mas para se consagrar à piedade.
25. As viúvas. 1 E eu, Lebeu, também chamado Tadeu, prescrevo isto a respeito das 1637
viúvas. 2 A viúva não é ordenada. Mas se ela perdeu o seu marido há muito tempo, se
viveu de maneira casta e irrepreensível e se ocupou da melhor maneira dos seus, como
as santíssimas Judite e Ana, seja admitida na ordem das viúvas. 3 Se perdeu recente-
mente o seu cônjuge, não se confiará nela, mas deixar-se-á que o tempo ponha a sua
pouca idade à prova, pois algumas vezes as paixões acompanham o ser humano na
velhice, por não terem sido contrariadas por um travão suficientemente forte.
26. Os exorcistas. 1 Ainda eu (Tadeu), a respeito dos exorcistas. 2 O exorcista não é 1638
ordenado, porque o sucesso do seu combate depende da boa vontade e da graça de
Deus por Cristo, assim como da vinda até ele do Espírito Santo: Deus manifesta e
revela aquele que recebeu o dom das curas, uma vez que nele essa graça é visível para
todos. 3 Mas, se houver necessidade dele como bispo, presbítero ou diácono, seja ordenado.

179
2 Cor 7, 1.
180
Sal 102, 4.
181
Act 9, 15.
182
1 Tim 5, 8.
183
1 Cor 7, 25.
440 SÉCULO IV

1639 27. Cânones sobre as ordenações e os cargos dos clérigos. 1 E eu, Simão de Caná,
prescrevo-vos (isto) sobre o número de intervenientes requeridos para uma ordenação
episcopal. 2 Um bispo deve ser ordenado por três ou dois bispos; se alguém foi
ordenado por um só bispo, seja deposto, ele e aquele que o ordenou. 3 Mas, se, por
necessidade, a ordenação não puder ser feita senão por um bispo, por não poderem vir
outros em virtude duma perseguição ou duma causa semelhante, faça-se um documento
que mostre o acordo de vários bispos.
1640 28. 1 Ainda eu, a respeito dos cânones. 2 O bispo abençoa, mas não é abençoado por
ninguém; ordena, impõe as mãos, oferece, recebe a eulógia de um bispo, mas nunca dos
presbíteros. O bispo depõe qualquer clérigo que incorra em deposição, excepto um
outro bispo, porque isso não o pode fazer ele sozinho. 3 O presbítero abençoa, mas
não é abençoado por ninguém, recebe as eulógias do bispo ou de um outro presbítero,
e também as dá a um outro presbítero; impõe as mãos, mas não ordena; não depõe, mas
exclui os seus inferiores, quando incorrem numa tal sanção. 4 O diácono não abençoa;
não dá a eulógia, mas recebe-a do bispo ou do presbítero; não baptiza, não oferece;
quando o bispo ou o presbítero oferecem, ele distribui ao povo, não como sacerdote,
mas enquanto servidor dos sacerdotes. 5 Não é permitido a nenhum outro clérigo
realizar o ofício dos diáconos. 6 A diaconisa não abençoa nem realiza nada daquilo que
fazem os presbíteros e os diáconos, mas guarda as portas e assiste aos presbíteros por
ocasião do baptismo das mulheres, por causa da decência. 7 O diácono exclui o sub-
diácono, o leitor, o cantor, a diaconisa, quando isso é necessário na ausência dos
presbíteros. 8 Não é permitido nem ao subdiácono, nem ao leitor, nem ao cantor, nem
à diaconisa excluir um clérigo ou um leigo, porque são servidores dos diáconos.
1641 29. Bênção da água e do azeite. 1 Para a água e o azeite, eu, Mateus, prescrevo isto.
2 É o bispo quem abençoa a água ou o azeite; no entanto, se ele está ausente, faça-o o
presbítero, assistido pelo diácono. Mas, se o bispo está presente, assistam-no o
presbítero e o diácono. 3 E ele exprima-se assim: – Senhor dos exércitos, Deus dos
poderes, Criador do mundo das águas e dador do óleo, misericordioso e amigo dos
homens, Tu que dás a água para beber e purificar e o azeite que faz brilhar o rosto184,
para (nossa) alegria e entusiasmo, Tu próprio, agora, por Cristo, santifica esta água e
este óleo, em nome daquele ou daquela que os trouxeram, e concede-lhes o poder de
produzir a saúde, de expulsar as doenças, de pôr em fuga os Demónios, de proteger a
casa, de afastar toda a cilada, por Cristo nossa esperança185, por quem a Ti glória,
honra e poder, no Espírito Santo, pelos séculos. Amen.
1642 30. As primícias e os dízimos. 1 Ainda eu, a propósito das primícias e dos dízimos.
2 Prescrevo também que se tragam todas as primícias ao bispo, aos presbíteros e aos
diáconos, para sua subsistência, mas que se ofereçam todos os dízimos para a subsistência
dos outros clérigos, das virgens, das viúvas e dos pobres esmagados pela miséria.
Porque as primícias pertencem aos sacerdotes e aos diáconos que os servem.
1643 31. As eulógias. 1 Ainda eu, a propósito dos restos. 2 As eulógias que sobrarem por
ocasião dos santos mistérios sejam distribuídas pelos diáconos ao clero, segundo a
vontade do bispo ou dos presbíteros: quatro partes ao bispo, três partes ao pres-
bítero, duas partes ao diácono, e aos outros, subdiáconos, leitores, cantores ou
diaconisas, uma parte. 3 Porque é bom e agradável a Deus186 honrar cada um segundo
a sua dignidade, pois a Igreja não é uma escola de desordem, mas de disciplina.

184
Sal 103, 15.
185
1 Tim 1, 1.
186
1 Tim 2, 3.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 441

O CATECUMENADO

32. O acesso ao catecumenado.1 E eu, Paulo, o menor dos Apóstolos187, prescrevo-vos 1644
isto a vós, bispos e presbíteros, a propósito dos cânones. 2 Os que vêm pela primeira
vez ao mistério da fé sejam conduzidos, por intermédio dos diáconos, ao bispo e aos
presbíteros, e examinem-se as razões pelas quais se apresentam para ouvir a Palavra
do Senhor. Os que os apresentarem testemunhem em favor deles, depois de se terem
informado cuidadosamente a seu respeito. Examine-se a sua conduta e a sua vida e se
são escravos ou livres. 3 Tratando-se de um escravo, pergunte-se-lhe quem é o seu
senhor, e, se é escravo dum crente, pergunte-se ao seu senhor se dá testemunho em
favor dele; se não for o caso, seja excluído até que mostre ao seu senhor que é digno; se
o senhor dá bom testemunho a seu respeito, seja acolhido. Se é escravo dum pagão,
seja ensinado a agradar ao seu senhor, para que a Palavra não seja blasfemada 188. 4 Se
tiver uma mulher, ou a mulher um marido, aprendam a contentar-se um com o outro;
mas, se são celibatários, aprendam a não ter relações ilegítimas, mas a casar-se legiti-
mamente. 5 Se o senhor for crente e souber que o seu escravo tem relações ilegítimas,
mas não lhe der uma mulher ou à mulher um marido, seja recusado.
6 Ao que está possesso do Demónio, ensine-se-lhe a piedade, mas não seja
recebido na comunidade antes de ser purificado; contudo, se a morte o ameaça, seja
recebido. 7 Aquele que mantém uma casa de prostituição, ou renuncie a mantê-la, ou
será recusado. Se uma prostituta se apresentar, ou cesse, ou será recusada. 8 Se um
fabricante de ídolos se apresentar, ou cesse, ou será recusado. 9 Se alguém do mundo
do espectáculo se apresentar, homem ou mulher, cocheiro, gladiador, corredor do
estádio, organizador de jogos, atleta, tocador de flauta, de cítara ou de lira, apresentador
de danças ou dono de taberna, ou cessem, ou serão recusados. 10 Ao soldado que se
apresenta ensinar-se-á a não fazer mal, a não acusar falsamente e a contentar-se com o
soldo 189 que lhe é dado; se obedecer, seja recebido, mas se resistir, seja recusado. 11 O
autor de acções infames, o devasso, o preguiçoso, o mágico, o charlatão, o feiticeiro, o
astrólogo, o adivinho, o encantador, o alcoviteiro, o fabricante de amuletos, o purificador,
o áugure, o intérprete de presságios ou de tremores, e aquele que nos encontros observa
(por superstição) os defeitos da vista, dos pés, as aves, os gatos, os sons, os ruídos
com carácter simbólico: sejam submetidos à prova do tempo, porque a sua malícia é
difícil de extirpar; se cessarem, sejam recebidos, mas, se não se submeterem, sejam
recusados.
12 A escrava concubina dum não crente, se apenas tem esse, seja recebida, mas,
se se entrega também a outros, seja recusada. 13 O crente que tem uma concubina, se
é uma escrava, cesse e case-se legitimamente; se é uma mulher livre, despose-a legiti-
mamente; caso contrário seja recusado. 14 Se alguém pratica os costumes pagãos ou
observa os mitos judaicos, mude de proceder, ou seja recusado. 15 Se alguém se
entrega à paixão do teatro, à caça, às corridas de cavalos ou às lutas, cesse, ou seja
recusado.
16 O candidato que deve ser catequizado sê-lo-á durante três anos. O que for
zeloso e mostrar ardor nesta circunstância seja recebido, pois não será julgado segundo
o tempo, mas segundo a conduta. 17 O catequista, mesmo que seja leigo, se tiver
experiência da palavra e for honesto na sua conduta, ensine, porque todos serão ensi-
nados por Deus 190.

187
1 Cor 15, 9.
188
Tit 2, 5.
189
Lc 3, 14.
190
Jo 6, 45; Is 54, 13.
442 SÉCULO IV

O DIA A DIA DO CRISTÃO

1645 A jornada do cristão. 18 Todos os crentes, homens ou mulheres, ao levantarem-se


do sono ao raiar do dia, devem lavar as mãos e orar antes de começar a trabalhar. Se
houver instrução sobre a doutrina, prefiram a doutrina religiosa ao seu trabalho...
1646 33. O repouso no sábado e no domingo. 1 Eu Paulo e eu Pedro determinamos: 2 Os
servos devem trabalhar durante cinco dias, mas no sábado e no domingo devem estar
livres na igreja, por causa do ensino da doutrina. A razão do jejum do sábado, como
dissemos, é a Criação, ao passo que a do domingo é a Ressurreição. 3 Em toda a Semana
Maior e naquela que a segue, os servos devem descansar, porque aquela é a semana da
Paixão e esta a da Ressurreição, e é preciso ensinar quem é Aquele que sofreu e
ressuscitou, que aceitou padecer e ressuscitou. 4 Descansa-se no dia da Ascensão por ter
chegado ao fim a economia de Cristo. 5 Descansa-se no Pentecostes por causa da vinda
do Espírito Santo, concedido àqueles que acreditaram em Cristo. Não se trabalha na
festa do Natal porque então foi concedido aos homens um benefício inesperado, quan-
do verdadeiramente Jesus Cristo, o Verbo de Deus, nasceu da Virgem Maria para
salvação do mundo. 7 Não se trabalha na festa da Epifania, porque foi então que se
manifestou a divindade de Cristo, quando o Pai deu testemunho acerca d’Ele no bap-
tismo, e o Paráclito, como uma pomba, mostrou Aquele de quem fora dado testemunho.
8 Descansa-se nos dias dos Apóstolos, porque foram os vossos doutores em Cristo e
vos deram o Espírito Santo. 9 Descansa-se no dia de Estêvão, o primeiro mártir, e nos
dias dos outros santos Mártires, que antepuseram Cristo às suas próprias vidas.
1647 34. A oração quotidiana. 1 Orai de manhã, à hora terceira, à sexta e à nona, à tarde e
ao cantar do galo. 2 De manhã, dai graças, porque o Senhor vos iluminou, ao expulsar
a noite e ao trazer o dia. 3 À hora terceira, porque o Senhor a essa hora incorreu na
sentença de Pôncio Pilatos. 4 À hora sexta, porque então foi crucificado. 5 À hora
nona, porque no momento em que o Senhor estava na cruz, toda (a criação) tremeu,
horrorizada perante a temeridade dos Judeus ímpios, e por não suportar o ultraje feito
ao Senhor. 6 À tarde dai graças, porque Ele vos deu a noite para repousardes das
fadigas do dia. 7 Ao cantar do galo, porque esta hora anuncia que o dia está aí, para a
realização das obras da luz. 8 Se for impossível ir à igreja por causa dos infiéis, faz a
reunião em casa, ó bispo, para que as pessoas piedosas não entrem nas assembleias
dos ímpios; pois não é o lugar que santifica o homem, mas ao contrário. 9 Se os ímpios
ocuparem um lugar, deves evitá-lo, porque eles o profanaram. Pois, assim como os
sacerdotes santos santificam, assim os amaldiçoados profanam. 10 Se não puderdes
reunir-vos nem numa casa nem na igreja, cada um cante, leia e ore em sua casa, ou então
dois ou três em conjunto: Pois, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome,
diz o Senhor, Eu estou no meio deles191. 11 Um crente não rezará com um catecúmeno,
mesmo em casa, pois não convém que o iniciado se manche pela companhia dum não
iniciado. 12 O homem piedoso não rezará com um herege, mesmo em casa, pois o que
pode haver de comum entre a luz e as trevas192? 13 Um crente ou uma crente que se
unem a escravos, separem-se ou então serão afastados.

OFÍCIO LUCERNAR
1648 35. Ofício vespertino ou lucernário. 1 E eu, Tiago, irmão de Cristo segundo a carne,
mas seu servo enquanto Ele é o Filho unigénito de Deus, bispo de Jerusalém, instituído
por Ele, Cristo, e pelos Apóstolos, prescrevo isto. 2 Tendo chegado a noite, ó bispo,

191
Mt 18, 20.
192
2 Cor 6, 14.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 443

reunirás a Igreja e, depois da recitação do salmo lucernar 193, o diácono fará as procla-
mações para os catecúmenos, os possessos, os iluminandos e os penitentes, como
dissemos mais acima.
36. Monição diaconal e oração lucernar. 1 Depois de terem sido despedidos, o 1646
diácono dirá: – Todos os (que somos) fiéis, oremos ao Senhor. Depois, após as procla-
mações da primeira oração, acrescentará: 2 – Salva-nos e levanta-nos, ó Deus, pelo teu
Cristo. 3 De pé, imploremos a piedade do Senhor e as suas misericórdias, (para que
envie) o Anjo da paz. Peçamos o que é bom e útil, um fim cristão, uma tarde e uma noite
tranquilas e sem pecado, e que todo o tempo da nossa vida seja irrepreensível. Encomendemo-
nos nós próprios e uns aos outros ao Deus vivo, pelo seu Cristo.
37. Acção de graças lucernar. 1 Depois o bispo rezará, dizendo: 2 – Tu, o Deus sem 1650
princípio e sem fim, Criador do mundo e protector de todas as coisas por Cristo, mas
antes de tudo seu Deus e Pai, Senhor do Espírito e Rei dos (seres) inteligíveis e
sensíveis, criaste o dia para as obras da luz e a noite para repousarmos, dada a nossa
fraqueza, pois teu é o dia, e tua é a noite, Tu criaste a Lua e o Sol194. Tu próprio, agora,
Senhor, amigo dos homens e bondoso, acolhe favoravelmente esta nossa acção de
graças. 3 Tu que nos conduziste ao longo de todo este dia e nos trouxeste até à orla da
noite, guarda-nos pelo teu Cristo; concede-nos um entardecer pacífico e uma noite sem
pecado e sem pesadelos e julga-nos dignos da vida eterna pelo teu Cristo, por quem a
Ti glória, honra e poder, no Espírito Santo, pelos séculos. Amen.
4 Depois o diácono dirá: – Inclinai-vos, para a imposição das mãos. Bênção episcopal.
5 E o bispo rezará, nestes termos: – Deus dos (nossos) Pais, Senhor de misericórdia,
pela tua sabedoria formaste o homem195, este pensador vivente, preferido por Deus
entre tudo o que vive na terra. Deste-lhe poder sobre tudo o que existe na superfície da
terra e instituíste, por tua vontade, magistrados e sacerdotes, uns para proteger a vida,
e outros para o culto legítimo. 6 Agora, Tu próprio, Senhor omnipotente, deixa-Te
comover, e faz brilhar a tua face sobre os teus servos 196, que inclinaram a cabeça e o
coração, e abençoa-os por Cristo, por quem fizeste brilhar sobre nós a luz do conheci-
mento e Te revelaste a nós. Por Ele, a Ti, a digna adoração que Te deve toda a natureza
racional e santa, no Espírito Santo, o Paráclito, pelos séculos. Amen. 7 E o diácono
dirá: – Ide em paz!

OFÍCIO MATUTINO

38. Ofício da manhã. Oração diaconal. 1 De igual modo de manhã, após a recitação 1651
do salmo matutino197 e depois de ter despedido os catecúmenos, os possessos, os
iluminandos e os penitentes e, depois de ter feito a proclamação prevista, para não nos
repetirmos, o diácono acrescenta a seguir a «Salva-nos e levanta-nos, ó Deus, na tua
graça»: 2 – Supliquemos ao Senhor, (em nome da) sua piedade e da sua misericórdia;
(peçamos-Lhe) uma manhã e uma jornada pacíficas e sem pecado, assim como para
todo o tempo da nossa curta viagem na terra, o Anjo da paz, um fim cristão e que Deus
nos seja propício e favorável. Encomendemo-nos nós próprios e uns aos outros ao
Deus vivo pelo seu unigénito.
3 Depois o bispo rezará, dizendo: 4 – Deus dos espíritos e de toda a carne198,
incomparável e sem necessidade, que (nos) deste o Sol para presidir ao dia, a Lua e as
193
Sal 140.
194
Sal 73, 16.
195
Sab 9, 2.
196
Sal 30, 17.
197
Cf. Sal 62.
198
Num 16, 22.
444 SÉCULO IV

estrelas para presidir à noite199, Tu próprio lança agora sobre nós um olhar favorável,
recebe as nossas acções de graças matutinas e tem piedade de nós, porque não esten-
demos as nossas mãos a um deus estranho, 5 pois não há entre nós um deus recente200,
mas só Tu, eterno e sem fim. Tu próprio, que por Cristo nos deste o ser e por Ele
também nos deste a felicidade, julga-nos igualmente dignos da vida eterna, por Ele, por
quem a Ti glória, honra e poder, no Espírito Santo, pelos séculos. Amen.
1652 39. Monição diaconal para a imposição das mãos. 1 Depois, o diácono dirá: –
Inclinai-vos, para a imposição das mãos. Bênção episcopal. 2 E o bispo rezará, dizen-
do: 3 – Deus fiel e verdadeiro, que tratas com bondade os milhares e as miríades
daqueles que Te amam201, amigo dos simples e defensor dos pobres, todas as coisas
têm necessidade de Ti, porque todas são tuas servas. 4 Olha para o teu povo aqui
presente; eles inclinaram as suas cabeças diante de Ti. Abençoa-os com uma bênção
espiritual, guarda-os como a menina dos olhos202, conserva-os na piedade e na justiça
e julga-os dignos da vida eterna, em Cristo Jesus, teu servo bem-amado, por quem a Ti
glória, honra e poder, no Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
Amen. 5 E o diácono dirá: – Ide em paz!...
1653 41. Oração pelos defuntos. 1 Por aqueles que repousam em Cristo, após as procla-
mações relativas à primeira oração, para não nos repetirmos, o diácono acrescentará
ainda isto: 2 – Oremos também pelos nossos irmãos que repousam em Cristo, oremos
pelo repouso de N. ou de N., para que Deus, o amigo dos homens, receba a sua alma,
lhe perdoe todo o pecado voluntário e involuntário, lhe seja propício e favorável e o
admita na morada dos piedosos (homens) defuntos que repousam no seio de Abraão,
de Isaac e de Jacob, com todos aqueles que desde o princípio Lhe foram agradáveis e
cumpriram a sua vontade, lá onde não há mais dor, nem tristeza, nem aflição203.
Levantemo-nos. Encomendemo-nos nós próprios e uns aos outros ao Deus eterno
pelo seu Verbo, que era no princípio.
3 Depois o bispo dirá: 4 – Tu, que por natureza és imortal e sem fim, de quem
surgiram todos os seres imortais e mortais, Tu, que criaste o vivente que pensa, o
homem, cidadão do mundo, e o constituíste mortal, mas prometendo-lhe a ressurreição,
Tu que não permitiste que Henoc e Elias sofressem a prova da morte, Deus de Abraão,
Deus de Isaac e Deus de Jacob, Tu não és o Deus dos mortos, mas dos vivos204,
porque as almas de todos vivem205 junto de Ti, os espíritos dos justos estão na tua
mão e nenhum tormento os atingirá206, porque todos os santos estão nas tuas mãos207.
5 Tu próprio olha agora para o teu servo que aqui está e que Tu escolheste e chamaste
a uma outra herança: perdoa-lhe, se ele cometeu algum pecado voluntário ou involuntário,
envia-lhe Anjos favoráveis, admite-o no seio dos Patriarcas, dos Profetas, dos Apóstolos
e de todos aqueles que desde o princípio Te foram agradáveis, lá onde não há nem
tristeza, nem dor, nem aflição208, na morada onde repousam os homens piedosos e na
terra dos homens rectos, terra a Ti dedicada e morada daqueles que vêem a glória do teu
Cristo, por quem a Ti glória, honra e poder, acção de graças e adoração, no Espírito
Santo, pelos séculos. Amen.

199
Sal 135, 8.9; Cf. Gen 1, 16.
200
Sal 80, 10.
201
Ex 20, 6.
202
Sal 16, 8.
203
Is 35, 10.
204
Mt 22, 32; Ex 3, 6.
205
Lc 20, 38.
206
Sab 3, 1.
207
Deut 33, 3.
208
Sal 35, 10.
CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 445

6 Depois o diácono dirá: – Inclinai-vos, para a bênção. 7 E o bispo dará graças


por eles, nestes termos: 8 – Senhor, salva o teu povo e abençoa a tua herança que
adquiriste pelo precioso Sangue do teu Cristo, fá-los apascentar 209 sob a tua direita,
protege-os debaixo das tuas asas210 e dá-lhes a graça de combater o bom combate, de
terminar a corrida, de guardar a fé 211 sem desvios nem censuras, por nosso Senhor
Jesus Cristo, teu servo bem-amado, por quem a Ti glória, honra e poder, no Espírito
Santo, pelos séculos. Amen.
42. Liturgia dos defuntos. 1 Celebrar-se-á o terceiro dia dos defuntos com cânticos 1654
e orações, por causa d’Aquele que ressuscitou ao terceiro dia. 2 Igualmente no nono
dia, em memória dos sobreviventes e dos defuntos. 3 No trigésimo dia, segundo o
exemplo antigo, porque foi assim que o povo chorou Moisés. 4 E no aniversário, em
memória do (defunto). 5 E cada um dará dos seus bens aos pobres, em memória dele.
43. 1 Dizemos isto relativamente aos homens piedosos, porque, em relação ao ímpio,
mesmo que desses aos pobres os bens do mundo inteiro, nada de útil farias em provei-
to do defunto. 2 Na verdade, se durante a vida ele considerou Deus como um inimigo,
após a morte continua a considerá-lo do mesmo modo, porque junto d’Ele não há
mentira. 3 Com efeito, o Senhor é justo e ama a justiça. E ainda: Eis o homem e a sua
recompensa. 44. 1 Quando vos convidarem para os banquetes dos defuntos, comei
com moderação e temor de Deus, para poderdes também interceder pelos próprios
defuntos. Os presbíteros e os diáconos devem estar sempre atentos, em relação a si
mesmos e aos outros, para poderem admoestar os que se portam mal. 2 Porque a
Escritura diz: Os soberanos são irascíveis, pelo que não devem beber vinho, não
suceda que eles bebam e se esqueçam da lei e atraiçoem a causa de todos os infelizes.
Ora, depois de Deus todo-poderoso e de seu Filho muito amado, os soberanos da
Igreja são os presbíteros e os diáconos. 3 Dizemos isto não para os impedir de beber,
pois seria ultrajar o que Deus criou para a alegria, mas a fim de não se embriaguem.
Com efeito, a Escritura não proíbe que se beba vinho, mas que diz ela? Diz que não se
deve beber vinho até à embriaguez. E também: Na mão do ébrio crescem espinhos. 4
Não dizemos isto apenas em relação aos clérigos, mas também a todo o cristão leigo,
sobre o qual foi invocado o nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Na verdade, também
lhes é dito: Para quem as contendas? Para quem as queixas? Para quem as feridas,
sem motivo? Para quem o vermelho dos olhos? Para aqueles que se enchem de vinho
e que frequentam os lugares onde se apanham bebedeiras. 45. 1 Os que são persegui-
dos por causa da sua fé e que fogem de cidade em cidade lembrando-se das palavras do
Senhor, acolhei-os. Sabendo, com efeito, que o espírito está pronto, mas a carne é
fraca, eles fogem e aceitam a confiscação dos seus bens, a fim de conservarem em si
mesmos o Nome de Cristo sem o renegar. 2 Dai-lhes pois tudo aquilo de que precisam, a
fim de cumprirdes o mandamento do Senhor. 46. 1 Todos nós juntamente vos prescreve-
mos isto. Cada um permaneça no lugar que lhe foi indicado, sem ultrapassar os limites,
porque estes não vêm de nós, mas de Deus: Quem vos ouve é a Mim que ouve, diz o
Senhor, e quem vos rejeita é a Mim que rejeita; mas quem Me rejeita, rejeita Aquele que Me
enviou. 2 Porque se as criaturas inanimadas observam a boa ordem, tal como a noite, o dia,
o sol, a lua, as estrelas, os elementos, as estações, os meses, as semanas, os dias, as horas,
e elas asseguram os seus serviços segundo as disposições previstas..., com mais razão não
deveis permitir que seja desorganizado o que vos fixámos segundo a vontade de Deus. 3
Mas como muitos pensaram que isto não tem importância e ousaram confundir as ordens
e desorganizar o ordenamento regulado para cada um, apropriando-se de altos cargos que
lhes não foram dados, e se permitiram, como senhores absolutos, conferir aquilo que não
têm poder de dar, irritaram a Deus, como os do partido de Coré...

209
Sal 27, 9; Act 20, 28; 1 Ped 1, 19.
210
Sal 16, 8.
211
2 Tim 4, 7.
446 SÉCULO I

Etéria

Peregrinação ou Diário de Viagem 1

SEGUNDA PARTE – A LITURGIA DE JERUSALÉM

OFÍCIOS DA SEMANA

1655 24. Vigílias. 1 Para que Vossa Caridade saiba que ofícios têm lugar cada dia nos
Lugares Santos, julguei dever dar-vos disso conhecimento, sabendo que teríeis gosto
em conhecê-los2. De facto, todos os dias, antes do cantar dos galos, são abertas todas
as portas da Anástasis 3 e todos descem, monges4 e virgens5, como dizem aqui, e não
somente estes, mas também leigos, homens e mulheres, aqueles pelo menos que querem
fazer a vigília matinal6. E desde esta hora até ser dia, dizem-se hinos, responde-se aos
salmos e alternam-se antífonas7; e a cada hino faz-se uma oração. De facto, dois ou três
presbíteros e igualmente diáconos, vêm cada dia, à vez, com os monges, e são eles que
a cada hino e a cada antífona dizem as orações.
2 Logo que começa a clarear, entoam-se os hinos matinais8. Assim que o bispo
chega com o clero, entra imediatamente para dentro da gruta9 e, detrás das cancelas, diz
primeiro uma oração por todos; recorda também os nomes daqueles por quem deseja
orar10; depois abençoa os catecúmenos. Em seguida, diz uma oração e abençoa os fiéis.
Depois, quando o bispo sai detrás das cancelas, todos se aproximam para lhe beijar a

1
ETÉRIA, Itinerarium ad loca sancta (=PLS 1, 1047; SCh 21, 296; CCL 175; CSEL 39; Colibri, Lisboa 1998). Para
uns, a autora chamar-se-ia Etéria, para outros Egéria, e para outros ainda Sílvia. O seu Diário parece ser do ano 383.
2
Ver art. Jerusalém e La liturgie à Jerusalém, in DACL, t. VII, col. 2304-2392.
3
É a igreja redonda construída sobre a própria gruta do Santo Sepulcro, e cujas portas davam para um grande
átrio. Foi Constantino que mandou construir, no local da morte, sepultura e ressurreição do Senhor um
vasto complexo de edifícios sagrados que consta de: Anástasis (basílica do Santo Sepulcro e da Ressur-
reição), Calvário (ao qual Etéria chama Cruz, e que é uma elevação onde esteve plantada a Cruz do Senhor).
O espaço entre a Anástasis e o Calvário constitui um átrio, ao qual a autora chama ante Crucem. Por detrás
da Cruz há uma pequena capela, o post Crucem. A igreja maior ou Martyrium é a grande basílica, dentro de
cujo espaço se encontra a cisterna onde foram achados os instrumentos da Paixão do Senhor. As duas
basílicas foram dedicadas em 335. O aniversário da dedicação celebra-se no mesmo dia: são as Encénias.
4
Monazontes.
5
Pathenae. Estes monges e virgens habitavam na parte alta da cidade, donde desciam diariamente para os
ofícios.
6
O ofício das Vigílias tinha muita importância para os cristãos dos primeiros séculos, pois não só o
ligavam ao conselho de Jesus: Vigiai e orai, mas também acreditavam que o Senhor voltaria de novo, e bem
depressa, durante um desses ofícios.
7
A palavra antiphona é difícil de traduzir, pois não corresponde exactamente ao sentido moderno da
palavra antífona.
8
Os hinos matinais correspondem às nossas Laudes. Este ofício não apresenta nenhum leitura bíblica e a
sua estrutura é a seguinte: hinos (apropriados ao momento), preces (pronunciadas pelo bispo), duas
bênçãos e a despedida.
9
A gruta é o próprio Santo Sepulcro, situado no centro do edifício.
10
É o que corresponde ao memento da nossa missa.
ETÉRIA

mão; ele abençoa-os um a um, ao mesmo tempo que vai saindo, e assim a despedida 11
tem lugar quando já é dia.
Hora de Sexta e de Noa. 3 Em seguida, à hora sexta (meio-dia), de novo todos 1656
descem igualmente à Anástasis: dizem-se salmos e antífonas, até alguém ir avisar o
bispo; ele desce, como é hábito, e não se senta, mas entra imediatamente para trás das
cancelas, na Anástasis, isto é, na gruta onde também entrou de manhã; depois faz
igualmente primeiro uma oração, a seguir abençoa os fiéis e quando sai detrás das
cancelas, igualmente se aproximam para lhe beijar a mão. É assim que também à nona
hora (quinze horas) se faz como à sexta.
Lucernário ou Vésperas. 4 À décima hora (dezasseis horas), que aqui chamam 1657
licinicon e nós denominamos lucernário12, toda a multidão se reúne igualmente na
Anástasis, onde se acendem todas as velas e círios, o que dá uma luz imensa. A luz não
é trazida de fora, mas vai-se buscar ao interior da gruta, onde noite e dia brilha sempre
uma lâmpada, por detrás das cancelas. Dizem-se os salmos lucernares13, e também
antífonas, durante muito tempo. Vai-se então avisar o bispo14, que desce e se senta
num lugar elevado. Sentam-se também os presbíteros nos seus lugares, e dizem-se
hinos e antífonas.
5 E depois de recitadas integralmente, como de costume, o bispo levanta-se e
fica de pé diante da cancela, ou seja, diante da gruta e um dos diáconos faz memória de
cada um, como é hábito. Cada vez que o diácono diz um nome, sempre um grande
número de crianças que estão de pé, respondem: Kyrie eleison, como nós dizemos:
miserere Domine: Senhor, misericórdia15, e as suas vozes são inúmeras.
6 Depois de o diácono ter dito tudo o que devia dizer, o bispo diz primeiro uma
oração: reza por todos, e assim todos rezam, tanto os fiéis como também os catecúmenos
em conjunto. Em seguida, o diácono eleva de novo a voz, para que todos os catecúmenos,
na posição em que estão, inclinem a cabeça; e depois o bispo, de pé, diz a bênção sobre
os catecúmenos. Faz-se ainda uma oração, e de novo o diácono eleva a voz e pede que
cada um dos féis que está de pé incline a cabeça; em seguida, o bispo abençoa também
os fiéis, e depois tem lugar a despedida na Anástasis. E cada um começa a aproximar-se
do bispo, para lhe beijar a mão.
7 A seguir, com hinos, o bispo é conduzido da Anástasis até à Cruz16, e vai todo
o povo com ele. Ao chegar ali, primeiro diz uma oração, em seguida abençoa os catecú-
menos, depois diz outra oração e a seguir abençoa os fiéis. E depois disto, de novo,
tanto o bispo como toda a multidão se dirigem para o post Crucem17, onde volta a
fazer-se o que se fizera no ante Crucem. Igualmente se aproximam do bispo, para lhe
beijar a mão, como na Anástasis, ora no ante Crucem, ora no post Crucem. Por outro

11
A palavra latina missa significa, a maior parte das vezes, despedida, conservada na fórmula: Ite, missa est.
12
É a oração que hoje se chama Vésperas. Começa à hora em que se acendem as lâmpadas e é celebrada duas
horas antes do pôr-do-sol (entre as 15 e as 17 horas, conforme as estações). A estrutura desta hora é a
seguinte: acender das velas, salmos lucernares, ladainha recitada pelo diácono (à qual respondem as crian-
ças), uma oração feita pelo bispo (à qual respondem todos os fiéis) e duas bênçãos (catecúmenos e fiéis)
intercaladas por uma oração e a despedida.
13
Entre outros, os salmos lucernares incluíam o Salmo 140.
14
Como se vê, nesta e noutras passagens, o bispo não participava no ofício desde o princípio. Aparecia, ou
melhor, iam-no chamar, em certo momento, para ele fazer o que devia fazer. O bispo morava por cima do
complexo de edifícios mandados construir por Constantino. Assim se compreende a expressão: Vai-se en-
tão avisar o bispo, que desce.
15
Cf. Constituições Apostólicas, L. VIII, cap. 6, 1 e 2.
16
A Cruz é o Calvário, que se situa no ângulo sudeste do átrio que separa a Anástasis da igreja maior. Este
átrio é designado muitas vezes pelas expressões ad Crucem, ante Crucem.
17
Pequena capela, a leste do Calvário, onde se fazia a adoração da Cruz, na Sexta-Feira Santa.
448 SÉCULO IV

lado, há enormes lanternas de vidro, em grande número, suspensas por toda a parte, e
numerosos porta-círios, quer diante da Anástasis, quer também no ante Crucem e bem
assim no post Crucem. Todos estes ofícios terminam, pois, com o escurecer, e reali-
zam-se diariamente, durante os seis dias da semana, junto à Cruz e na Anástasis.

A LITURGIA DO DOMINGO

1658 Antes do cantar dos galos. 8 No sétimo dia, isto é, no domingo, antes do cantar
dos galos, reúne-se toda a multidão, tanta quanta se pode juntar neste lugar, como se
fosse durante a Páscoa18, na basílica19 que está junto da Anástasis20, mas do lado de
fora, onde se suspendem luzes para a circunstância. Porque, temendo não chegar ao
cantar dos galos, vêm mais cedo e sentam-se ali. Dizem-se hinos e também antífonas, e
fazem-se orações a cada hino e antífona21. De facto, naquele lugar há sempre presbíteros
e diáconos, preparados para celebrar as vigílias, por causa da multidão que ali se reúne.
Com efeito é costume não abrir os Lugares Santos antes do cantar dos galos.
1659 A vigília. 9 Logo que o primeiro galo tiver cantado, o bispo desce imediatamente
e entra na gruta, na Anástasis. Abrem-se todas as portas e toda a multidão entra na
Anástasis, onde brilham já luzes incontáveis, e, mal o povo entra, um dos presbíteros
diz um salmo e todos respondem; e a seguir faz-se uma oração. Depois, um dos
diáconos diz outro salmo e faz-se igualmente outra oração; e um terceiro salmo é dito
por um clérigo, e faz-se pela terceira vez uma oração e a memória de todos.
10 Depois de se dizerem estes três salmos e de se fazerem as três orações,
levam-se turíbulos para dentro da gruta da Anástasis, e toda a basílica da Anástasis se
enche de perfumes. Então o bispo, de pé, atrás das cancelas, pega no Evangelho22, vem
para a entrada e lê ele próprio a Ressurreição do Senhor. Assim que a leitura começa,
são tais os gritos e gemidos de todos e são tantas as lágrimas, que até o mais insensível
dos homens se deixaria comover até às lágrimas pelo muito que o Senhor sofreu por nós.
11 Depois de ler o Evangelho, o bispo sai e, acompanhado por todo o povo, é
conduzido com hinos até à Cruz. Ali é dito de novo um salmo e faz-se uma oração. Em
seguida, abençoa os fiéis e faz a despedida. E quando o bispo sai, todos se aproximam,
para lhe beijar a mão.
12 Logo a seguir o bispo retira-se para sua casa, e a partir desse momento todos
os monges regressam à Anástasis23; dizem-se salmos e antífonas até clarear e, a cada
salmo e antífona, faz-se uma oração. De facto, à vez, cada dia os presbíteros e os
diáconos celebram as vigílias na Anástasis com o povo. Também no que respeita aos
leigos, tanto homens como mulheres, aqueles que o desejam permanecem no lugar até
clarear, e os que não querem, regressam às suas casas e voltam a dormir.

18
Etéria deve querer dizer que a participação das pessoas é tão numerosa no domingo em Jerusalém, como nos
dias de maior festa no seu país.
19
A basílica construída por Constantino tinha três partes: o Martyrium, a rotunda da Anástasis e, entre estes
dois monumentos, um átrio onde se encontrava o local do Calvário.
20
Trata-se do átrio.
21
Não se trata ainda da Vigília que irá ter lugar, mas de hinos e orações que se cantavam e diziam enquanto
a multidão esperava que as portas se abrissem.
22
Admiremos esta solenidade no anúncio da Ressurreição do Senhor, feita cada domingo, de manhãzinha,
pelo bispo, no próprio lugar onde ela acontecera, na manhã da Páscoa, fora das vistas de toda a gente.
23
Vê-se, por esta pequena passagem, que os monges asseguravam diariamente um ofício mais completo do que
aquele em que participavam, dia após dia, todos os fiéis. Os monges não só participavam, cada dia, com todo
o povo, em Laudes e Vésperas, na Anástasis, mas aí continuavam, em oração, noutros momentos do dia. É
esta a origem do que mais tarde será chamado o Ofício catedral e o Ofício monacal.
ETÉRIA 449

25. Ofício da manhã. 1 Quando se faz dia, como é domingo, vai-se também em 1660
procissão à igreja maior24, que Constantino mandou construir; esta igreja é no Gólgota,
atrás da Cruz; e aí se faz tudo o que é costume fazer por toda a parte no domingo.
Contudo, porque é costume aqui, de todos os presbíteros que estão presentes, os que
querem pregam, e, depois de todos estes, prega o bispo. Estas pregações têm lugar
sempre aos domingos, a fim de instruir permanentemente o povo nas Escrituras e no
amor de Deus 25. Por causa destas pregações, há grande demora na despedida da igreja, e
por isso não é antes da quarta hora ou talvez da quinta (dez ou onze horas) que a
despedida tem lugar.
2 Mas, quando por sua vez tem lugar a despedida da igreja, como é hábito fazer
por toda a parte, então os monges, com hinos, conduzem o bispo da igreja até à
Anástasis. Ora, quando o bispo começa a avançar ao canto de hinos, abrem-se todas as
portas da basílica da Anástasis, entra todo o povo, ou melhor, entram os fiéis, mas não
os catecúmenos.
3 Depois de o povo ter entrado, entra o bispo e passa imediatamente para trás
das cancelas da gruta do Martyrium. Primeiro dão-se graças a Deus, e depois faz-se
uma oração por todos; em seguida o diácono eleva a voz, para que todos inclinem a
cabeça, na posição em que estão, e assim o bispo, de pé, do interior das cancelas,
abençoa-os, e depois sai.
Lucernário ou Vésperas. 4 Quando o bispo sai, todos se aproximam, para lhe 1661
beijar a mão. E deste modo é quase até à quinta ou sexta hora (onze horas ou meio-dia)
que a despedida é retardada. Depois, ao lucernário, faz-se segundo o costume de todos
os dias. Este costume observa-se cada dia, durante todo o ano, excepto nos dias
solenes, para os quais indicaremos mais adiante o que se faz.
5 Ora, aquilo que é em tudo bastante singular é que fazem com que os salmos e
antífonas sejam sempre apropriados: quer aqueles que se dizem de noite, quer aqueles
que se dizem por sua vez de manhã, quer aqueles também que se dizem durante o dia,
à sexta, à nona ou ao lucernário, todos são apropriados e escolhidos com lógica, para
convirem ao objecto da celebração que se faz26.
6 E, embora durante todo o ano se vá sempre ao domingo à igreja maior, isto é,
àquela que está no Gólgota, ou seja, atrás da Cruz, e que Constantino construiu, há
apenas um domingo, isto é, o quinquagésimo dia (depois da Páscoa), no Pentecostes,
em que se vai a Sião 27, tal como o encontrareis indicado mais adiante; contudo, para se
estar em Sião antes da terceira hora (nove horas), faz-se primeiro a despedida na igreja
maior [...]28.

24
A igreja maior ou Martyrium, que vem logo a seguir ao átrio onde está o Calvário, serve de algum modo de
igreja paroquial. É por isso que aí se celebra o ofício do domingo.
25
Estas palavras de Etéria mostram que a celebração da missa, em Jerusalém, se fazia da mesma maneira que
no Ocidente. A única coisa que lhe merece atenção especial é a abundância das pregações e o seu assunto.
26
A repetida observação de Etéria sobre este assunto, mostra bem que se trata, para ela, de uma novidade
a que não estava habituada.
27
Sião é a colina onde a tradição coloca a sala no andar superior, em que foi celebrada a Ceia, e onde os
Apóstolos estavam reunidos quando veio sobre eles o Espírito Santo.
28
Lacuna. Falta um fólio, o que nos priva de saber como se celebrava o princípio do ano litúrgico e as primei-
ras celebrações da festa da Epifania.
450 SÉCULO IV

O ANO LITÚRGICO

A EPIFANIA

1662 A vigília. ... Bendito O que vem em nome do Senhor29 e o resto que se segue 30. E
como, por causa dos monges que vão a pé, é preciso ir devagarinho, chega-se a Jerusalém
à hora em que se começa a poder distinguir uma pessoa da outra, ou seja, quase ao
alvorecer, mas ainda antes do sol-nado.
7 Logo que se chega, o bispo entra imediatamente na Anástasis, seguido de toda
a gente, onde as luzes já brilham de modo extraordinário. Diz-se então ali um salmo,
faz-se uma oração, o bispo abençoa primeiro os catecúmenos e a seguir os fiéis. O
bispo retira-se, e cada qual vai para sua casa, a fim de repousar. Os monges, porém,
permanecem ali até ser dia e dizem hinos.
1663 Os ofícios do dia. 8 Depois de o povo ter repousado, ao início da segunda hora
(oito horas), todos se reúnem na igreja maior, situada no Gólgota. Seria acima das
minhas forças descrever a ornamentação da igreja, neste dia, seja na Anástasis, ou na
Cruz, ou em Belém. Não se vê aí senão ouro, pedras preciosas e seda; de facto, se até
se vêem tapeçarias, são de seda cravejada de ouro; se se vêem cortinas, são todas
igualmente de seda cravejada de ouro. Quanto aos objectos do culto, toda e qualquer
peça que vem a serviço naquele dia é de ouro incrustado de pedras preciosas. Quanto
ao número e peso dos círios, dos candelabros, das lâmpadas, dos diversos objectos do
culto, porventura seria possível avaliá-los ou descrevê-los?
9 E que direi da decoração daqueles edifícios que Constantino31, sob os olhares
de sua mãe, até onde lho permitiram os recursos do seu reino, decorou de ouro, de
mosaico e de mármore precioso, tanto a igreja maior, como a Anástasis, a Cruz e os
outros lugares santos de Jerusalém?
10 Mas, para voltarmos ao assunto, celebra-se, no primeiro dia, a missa32 na
igreja maior, situada no Gólgota. E quer se pregue e façam leituras, ou se digam hinos,
tudo é apropriado a este dia; em seguida, logo após a despedida da igreja, volta-se à
Anástasis, ao canto de hinos, como de costume; e assim a despedida tem lugar por
volta da sexta hora (meio-dia).
1664 A oitava. 11 Neste dia faz-se igualmente, no lucernário, o que é costume fazer
todos os dias. No dia seguinte, de manhã, vai-se como é hábito à igreja do Gólgota; e o
mesmo se faz também ao terceiro dia. Durante três dias, portanto, celebra-se com toda
esta alegria, na igreja que Constantino construiu, até à sexta hora. O quarto dia é em
Eleona33, isto é, na igreja do monte das Oliveiras, muito bela; está tudo decorado da
mesma maneira e fazem-se ali as mesmas celebrações; o quinto dia é no Lazarium34,
que é a cerca de mil e quinhentos passos de Jerusalém; o sexto dia é em Sião, o sétimo
dia é na Anástasis, e o oitavo na Cruz. Assim, pois, durante oito dias, celebra-se com
todo este júbilo e esplendor em todos os lugares santos que acima nomeei.
12 Em Belém, durante toda esta oitava, todos os dias há este esplendor e esta
festa, celebrada pelos presbíteros e por todo o clero do próprio lugar e pelos monges

29
Mt 21, 9.
30
Trata-se do refrão cantado durante a procissão, na qual seguiam o bispo e todo o povo, de Belém até Jeru-
salém, numa distância de cerca de quatro quilómetros.
31
É difícil determinar a parte que cabe respectivamente ao imperador e à sua mãe nestas construções.
32
Aqui, a palavra missa corresponde a «missa».
33
A Eleona é a principal igreja do monte das Oliveiras. Etéria utiliza a mesma palavra Eleona tanto para falar
do monte, como para falar da igreja.
34
Ver o que se diz, mais adiante, sobre esta igreja.
ETÉRIA 451

que estão ligados a este lugar 35. De facto, a partir da hora em que todos, de noite,
voltam a Jerusalém com o bispo, os monges deste lugar, quem quer que sejam, continuam
a fazer vigílias até de dia na igreja de Belém, dizendo hinos ou antífonas, porque,
quanto ao bispo, é necessário que durante estes dias fique em Jerusalém. É que, pela
solenidade e festa desse dia, multidões imensas se reúnem de todos os lados em Jeru-
salém, não só monges, mas também leigos, homens e mulheres.
Festa da Apresentação. 26 O quadragésimo dia depois da Epifania é aqui cele- 1665
brado com a maior solenidade36. De facto, neste dia há uma procissão na Anástasis;
todos se incorporam e tudo decorre segundo a ordem habitual com grandes festejos,
como na Páscoa. Todos os presbíteros pregam, assim como o bispo, comentando
sempre aquele passo do Evangelho onde se diz que, no quadragésimo dia, José e Maria
levaram o Senhor ao templo e em que Simeão e a profetisa Ana, filha de Fanuel, O
viram, e se mencionam as palavras que eles disseram ao verem o Senhor e a oferenda
que os pais apresentaram. E, depois de celebradas todas as coisas, como de costume,
segundo a ordem habitual, celebram-se os mistérios37 e faz-se a despedida.
A QUARESMA

27. 1 Em seguida, quando chegam os dias pascais, celebram-se assim: tal como entre 1666
nós se observam quarenta dias antes da Páscoa, assim aqui se observam oito semanas
antes da Páscoa38. Observam-se, na verdade, oito semanas, porque aos domingos e ao
sábado não se jejua, excepto num único sábado, o das vigílias pascais em que é obriga-
tório jejuar; à parte este dia, jamais se jejua aqui, de forma alguma, durante todo o ano
ao sábado. Assim, pois, deduzidos às oito semanas oito domingos e sete sábados,
porque é obrigatório jejuar um sábado como acima referi, restam quarenta e um dias em
que se jejua, que aqui se chamam eortae (as festas)39, isto é, a Quaresma.
Os ofícios ao longo da semana. 2 Em cada dia de cada uma destas semanas faz-se 1667
assim: ao domingo, desde o primeiro cantar do galo, o bispo lê, dentro da Anástasis, o
passo do Evangelho da Ressurreição do Senhor, como sempre se faz todo o ano aos
domingos; e, do mesmo modo, até clarear o dia, faz-se, na Anástasis e na Cruz, tudo o
que tem lugar também todo o ano, aos domingos.
3 Em seguida, de manhã, como também sempre ao domingo, vai-se em procissão à
igreja maior, chamada Martyrium, situada no Gólgota, atrás da Cruz, e faz-se o que é
costume fazer aos domingos. E, do mesmo modo, depois de ter lugar a despedida na
igreja, volta-se à Anástasis, com hinos, como sempre se faz aos domingos. Enquanto se
realizam estas coisas, chega a quinta hora (onze horas). O lucernário faz-se também à
hora habitual, como sempre, na Anástasis e na Cruz, como também se faz em cada um
dos lugares santos; ao domingo, porém, (não) se faz o ofício da nona hora (quinze horas).
4 Segunda-feira, igualmente desde o primeiro cantar do galo, vai-se à Anástasis,
como também todo o ano, e faz-se o mesmo de sempre, até de manhã. De novo, à
terceira hora (nove horas), vai-se à Anástasis e aí se faz o que é costume fazer todo o
ano à sexta hora (doze horas), porque nos dias da Quaresma junta-se também este
ofício à terceira hora (Tércia). Em seguida, à sexta hora, à nona e ao lucernário faz-se
como é costume fazer sempre durante todo o ano nestes Lugares Santos.
5 Igualmente à terça-feira tudo se faz como à segunda-feira. Por sua vez, à
quarta-feira, vai-se igualmente de noite à Anástasis e faz-se como é habitual até de

35
Em Belém havia muitos monges.
36
Este é um dos mais antigos testemunhos sobre a festa da Apresentação, que ainda não tem nome.
37
É este o único lugar onde Etéria utiliza a palavra mistérios, no sentido de missa.
38
A duração da Quaresma é uma questão muito complexa, que variou muito de região para região.
39
O nome utilizado por Etéria é surpreendente.
452 SÉCULO IV

manhã; à terça e à sexta o mesmo; à nona hora, porém, vai-se a Sião, porque durante
todo o ano, às quartas e sextas-feiras, à nona hora, é costume ir sempre a Sião, uma vez que,
nesses lugares, excepto se ocorrer um dia de mártires, sempre a quarta e a sexta-feira são
dias de jejum, mesmo para os catecúmenos. Mas, se, por acaso, durante a Quaresma, o dia
dos mártires coincidir com a quarta-feira ou a sexta-feira, então, à nona hora, não se vai a Sião.
6 Durante os dias da Quaresma, como disse acima, quarta-feira à nona hora, vai-se
a Sião, como de costume durante o ano inteiro e faz-se o que é costume fazer à nona
hora, excepto a oblação. De facto, para que o povo seja sempre instruído continuamente
na lei, o bispo e um presbítero pregam sem interrupção. Depois de se fazer a despedida,
o povo, ao canto de hinos, reconduz o bispo dali até à Anástasis; mal se chega dali e mal
se entra na Anástasis, já são horas do lucernário; dizem-se hinos e antífonas, fazem-se
orações, e tem lugar a despedida do lucernário na Anástasis e na Cruz.
7 A despedida do lucernário, nestes dias, isto é, na Quaresma, tem lugar sempre
mais tarde que durante todo o ano. À quinta-feira tudo se passa como à segunda e à
terça-feira. À sexta-feira, tudo se passa igualmente como à quarta-feira; e, igualmente, à
nona hora (quinze horas), vai-se a Sião e também, ao canto de hinos, se reconduz o
bispo dali até à Anástasis. Mas, na sexta-feira, as vigílias celebram-se na Anástasis, a
partir da hora em que se chega de Sião com hinos, até de manhã, ou seja, desde a hora
do lucernário até à manhã seguinte, que é o sábado. Faz-se bem cedo a oblação na
Anástasis, para que a despedida tenha lugar antes do nascer do sol.
8 Toda a noite se dizem salmos responsoriais em coros alternados, antífonas à
vez e leituras diversas à vez, e tudo isto se prolonga até de manhã. A missa40, isto é, a
oblação que se faz no sábado na Anástasis, faz-se antes do nascer do sol, de modo que,
à hora em que o sol começa a nascer, tenha lugar a despedida na Anástasis. Assim, pois,
se celebra cada uma das semanas da Quaresma.
1668 O jejum quaresmal. 9 Como acabo de dizer, a missa no sábado é celebrada bem
cedo, isto é, antes do nascer do sol, para libertar mais rapidamente do jejum aqueles
que são denominados aqui hebdomadários41. De facto, tal é aqui o costume dos jejuns
na Quaresma: que os chamados hebdomadários, isto é, os que fazem semanas de
jejum, comam no domingo depois da despedida, à quinta hora (onze horas). E, depois
de almoçarem no domingo, já não comem senão no sábado de manhã, mal tenham
comungado na Anástasis. É por causa deles, portanto, para os libertar mais rapidamente,
que a missa, no sábado, tem lugar na Anástasis antes do nascer do sol. Ora, como acabo
de dizer, é por causa deles que a missa tem lugar de manhã, não porque só eles
comunguem, mas todos os que querem comungam naquele dia na Anástasis42.
1669 28. 1 Com efeito, tal é aqui o costume dos jejuns durante a Quaresma: alguns, depois
de comerem no domingo, após a missa, isto é, à quinta ou à sexta hora, já não comem
durante toda a semana senão no sábado seguinte, após a missa, na Anástasis: são os
que jejuam semanas inteiras.
2 No sábado, porém, depois de terem comido de manhã, já não comem à tarde,
mas no dia seguinte, que é domingo, almoçam após a despedida na igreja, à quinta hora
ou mais tarde, e depois já não voltam a comer senão no sábado seguinte, como disse acima.
3 Com efeito, é este o costume aqui, de todos os que são aputactitae, como lhes
chamam, homens e mulheres: não só nos dias da Quaresma, mas também todo o ano,
quando comem, fazem-no uma só vez por dia. Se, porém, alguns desses aputactitae
não podem fazer semanas inteiras de jejum, como acabamos de dizer, durante toda a

40
Aqui, a palavra missa significa «missa» e não ofício ou despedida.
41
Estes hebdomadários fazem muitos jejuns.
42
Parece, segundo este texto, que a prática da comunhão dominical era comum, nesta época, em Jerusalém.
ETÉRIA 453

Quaresma, jantam a meio da semana, à quinta-feira; aquele, porém, que nem isto pode
fazer, faz jejuns de dois em dois dias, durante toda a Quaresma; enfim, aqueles que
nem mesmo isto conseguem fazer, comem todas as tardes.
4 Ninguém, todavia, determina o que deve ser feito, mas cada um faz como pode;
nem um é louvado por fazer bastante, nem outro é censurado por fazer menos 43. O
costume aqui é este. Quanto à alimentação daqueles nos dias da Quaresma é a seguinte:
não comem pão, nem sequer um pedaço pequeno, nem azeite, nem nada que venha das
árvores, mas apenas água e um pouco de caldo de farinha. É assim que se faz durante
a Quaresma, como dissemos.
29. 1 Terminadas estas semanas, têm lugar as vigílias na Anástasis a partir da hora do 1670
lucernário, na sexta-feira, quando se vem de Sião cantando salmos, até à manhã de
sábado, quando se faz a oblação na Anástasis. Na segunda, na terceira, na quarta, na
quinta e na sexta semana, procede-se do mesmo modo que na primeira semana da Quaresma.
A sétima semana: sábado de Lázaro. 2 Ao chegar a sétima semana, isto é, 1671
quando, contando com esta, faltam apenas duas para a Páscoa, tudo se passa, em cada
dia, como nas outras semanas precedentes; porém, as vigílias que durante aquelas seis
semanas tiveram lugar na Anástasis, realizam-se também na sexta-feira da sétima semana
em Sião, segundo o costume observado na Anástasis durante seis semanas. Dizem-se,
em todas as vigílias, salmos e antífonas sempre apropriados tanto ao lugar como ao dia.
3 Mas, quando a manhã do sábado começa a romper, o bispo oferece o sacrifício e
faz a oblação de sábado de manhã. Ao fazer a despedida, o arquidiácono eleva a voz e
diz: «Estejamos todos preparados, hoje, à sétima hora, no Lazarium»44. E assim,
quando começa a aproximar-se a sétima hora, todos vêm ao Lazarium. O Lazarium,
isto é, Betânia, está a cerca de duas milhas da cidade.
4 Quando se vai de Jerusalém ao Lazarium, talvez a quinhentos passos deste
lugar, há uma igreja junto da estrada, no lugar onde Maria, irmã de Lázaro, foi ao
encontro do Senhor. Ali, pois, quando chega o bispo, todos os monges vão ao encontro
dele; o povo entra, diz-se um hino e uma antífona, lê-se o passo do Evangelho em que
se diz que a irmã de Lázaro foi ao encontro do Senhor. E assim, feita uma oração e dada
a bênção a todos, vai-se dali até ao Lazarium, com hinos.
5 Quando se chega ao Lazarium, toda a multidão aí se reúne, de modo que, não
só este lugar, mas também todos os campos à volta ficam cheios de gente. Dizem-se
também hinos e antífonas apropriadas ao dia e ao lugar; de igual modo as leituras que
são lidas são apropriadas ao lugar. Por sua vez, antes de se fazer a despedida, anuncia-se
a Páscoa, isto é, um presbítero sobe a um lugar bastante alto, e lê aquele passo onde
está escrito no Evangelho: Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, etc. Lido
este passo e anunciada a Páscoa, faz-se a despedida.
6 Procede-se assim neste dia, porque está escrito no Evangelho que seis dias
antes da Páscoa isto aconteceu em Betânia; de facto, desde sábado até quinta-feira, em
que, após a Ceia, de noite, o Senhor foi preso, há seis dias. Então todos voltam à
cidade, direito à Anástasis, e faz-se o lucernário como de costume.
A SEMANA MAIOR OU SEMANA SANTA

30. Domingo de Ramos. 1 No dia seguinte, isto é, no domingo 45 que dá entrada na 1672
semana pascal, aqui chamada Semana Maior, celebra-se, desde o cantar dos galos até

43
Repare-se nesta liberdade total acerca do jejum.
44
O Lazarium ou igreja de Lázaro, em Betânia, recordava a ressurreição de Lázaro.
45
Este domingo não tem ainda, para Etéria, designação especial, como virá a ter mais tarde: «Domingo de
Ramos ou das Palmas».
454 SÉCULO IV

de manhã, o que é costume fazer-se na Anástasis e na Cruz. No domingo de manhã vai-


se, como de costume, à igreja maior, chamada Martyrium. A razão por que é chamada
Martyrium é porque está no Gólgota, isto é, atrás da Cruz, onde o Senhor padeceu: daí
o nome de Martyrium46.
2 Depois de celebradas todas as coisas, como de costume na igreja maior, e antes
de se fazer a despedida, o arquidiácono eleva a voz e diz primeiro: «Toda esta semana,
isto é, a partir de amanhã, à nona hora (quinze horas), reunamo-nos todos no Martyrium,
isto é, na igreja maior». Em seguida, eleva a voz outra vez e diz: «Hoje, estejamos
todos preparados, à sétima hora (treze horas), em Eleona».
3 Então, feita a despedida na igreja maior, isto é, no Martyrium, o bispo é
reconduzido à Anástasis, com hinos, e, quando ali estiver terminado tudo o que é
costume fazer-se nos domingos na Anástasis, após a despedida no Martyrium, cada
um, indo para a sua casa, se apressa a comer, para que, a partir da sétima hora, todos
estejam preparados na igreja do Eleona, isto é, no monte das Oliveiras, onde está a
gruta em que o Senhor ensinava47.
1673 31. A procissão de Ramos. 1 À sétima hora (treze horas), portanto, todo o povo
sobe ao monte das Oliveiras, isto é, ao Eleona, à igreja; o bispo está presente, dizem-se
hinos e antífonas apropriadas àquele dia e ao lugar, e igualmente leituras. Quando se
aproxima a nona hora (quinze horas), sobe-se, com hinos, ao Imbomón48, isto é, ao
lugar de onde o Senhor subiu aos Céus, e aí se sentam. De facto, todo o povo, sempre
que o bispo está presente, é convidado a sentar-se e só os diáconos ficam sempre de
pé. Dizem-se também ali hinos e antífonas apropriadas ao lugar e ao dia e, igualmente,
leituras intercaladas e orações.
2 Ao aproximar-se a décima primeira hora (dezassete horas), lê-se aquele passo
do Evangelho onde as crianças49 vieram ao encontro do Senhor com ramos e palmas,
dizendo: Bendito O que vem em nome do Senhor. Imediatamente se levanta o bispo e
todo o povo e, depois vai-se dali ao cimo do monte das Oliveiras, tudo a pé. De facto,
todo o povo vai à frente do bispo, cantando hinos e antífonas e repetindo sempre:
Bendito O que vem em nome do Senhor.
3 E todas as crianças destes lugares, mesmo aquelas que não podem caminhar,
porque são muito pequenas, e que os seus pais levam ao colo, todas trazem ramos, uns
de palmeira, outros de oliveira; e assim acompanham o bispo, do mesmo modo que,
então, o Senhor foi acompanhado50.
4 Do cimo do monte até à cidade e dali até à Anástasis, atravessando toda a
cidade, toda a gente faz todo o caminho a pé, mesmo as senhoras e os notáveis; assim
acompanham o bispo, cantando, e vai-se lentamente, lentamente, para que o povo não
se fatigue; e a verdade é que já é tarde quando se chega à Anástasis. Quando se chega,
embora seja tarde, faz-se, contudo, o lucernário; a seguir faz-se de novo uma oração
junto à Cruz, e despede-se o povo.
1674 32. Segunda-Feira Santa. 1 No dia seguinte, isto é, segunda-feira, faz-se tudo o que
é costume depois do cantar do primeiro galo até de manhã na Anástasis; e do mesmo
modo à terceira (nove horas) e à sexta hora (doze horas), se faz tudo, como durante

46
Esta igreja é dedicada à memória do martírio do Salvador.
47
Esta é uma das três grutas místicas, como diz Eusébio, que Constantino envolveu em grandes basílicas. As
outras duas são Belém e o Santo Sepulcro.
48
A igreja do Imbomón era a da Ascensão. Tinha forma octogonal e um tecto cujo centro era a céu aberto.
49
Nenhum dos Evangelistas fala da presença de crianças. Mas como mais adiante, na descrição de Mt 21, 15-
16, se diz que as crianças gritavam no templo: Hossana ao Filho de David, a tradição fez da procissão de
Ramos uma festa das crianças.
50
O bispo devia ir, como Jesus, montado num jumento.
ETÉRIA 455

toda a Quaresma. À nona hora (quinze horas), todos se reúnem na igreja maior, isto é,
no Martyrium e ali, até à primeira hora da noite (dezanove horas), dizem-se sempre hinos
e antífonas, fazem-se leituras apropriadas ao dia e ao lugar, sempre intercalando orações.
2 O lucernário também se faz ali51, quando começam a ser horas; por isso é já
noite quando se faz a despedida no Martyrium. Feita a despedida dali, com hinos, o
bispo é conduzido para a Anástasis. Logo, porém, que ele entra na Anástasis, diz-se
um hino, faz-se uma oração, abençoam-se os catecúmenos, bem como os fiéis, e tem
lugar a despedida.
33. Terça-Feira Santa. 1 Também na terça-feira, tudo se faz como na segunda-feira. A 1675
única coisa que se acrescenta na terça-feira, é que à noite, depois da despedida ter tido
lugar no Martyrium, vai-se à Anástasis e, de novo, feita a despedida na Anástasis,
todos vão, àquela hora da noite, à igreja situada no monte Eleona.
2 Quando se chega a esta igreja, o bispo entra na gruta onde o Senhor costumava
instruir os seus discípulos, toma o livro do Evangelho e, de pé, ele próprio lê as
palavras do Senhor, que estão escritas no Evangelho segundo52 Mateus, no lugar onde
se diz: Tende cuidado para que ninguém vos seduza. O bispo lê toda esta advertência.
Depois de a ter lido toda, faz-se uma oração, abençoam-se os catecúmenos, bem como
os fiéis, tem lugar a despedida, e cada um regressa do monte para a sua casa bastante
tarde, já de noite.
34. Quarta-Feira Santa. 1 De igual modo, na quarta-feira, tudo se faz durante o dia, 1676
a partir do primeiro cantar do galo, tal como na segunda-feira e na terça-feira, mas
depois de a despedida ter lugar, à noite, no Martyrium, e depois de o bispo ter sido
reconduzido com hinos para a Anástasis, ele entra imediatamente na gruta que existe
na Anástasis, e fica de pé, por detrás das cancelas, enquanto um presbítero, também de
pé, mas diante das cancelas, toma o Evangelho e lê aquele passo em que Judas Iscariotes
foi ao encontro dos Judeus e combinou o que eles lhe dariam, para entregar o Senhor.
Uma vez lido este passo, tão grandes são os gritos e gemidos de todo o povo, que não
há ninguém que não fique comovido até às lágrimas naquela hora. Depois faz-se uma
oração, abençoam-se os catecúmenos e a seguir os fiéis, e tem lugar a despedida.
35. Quinta-Feira Santa. 1 Também na quinta-feira, depois do primeiro cantar do 1677
galo, se faz o que é costume, até de manhã, na Anástasis, e do mesmo modo à terceira
e à sexta. E à oitava hora (catorze horas), como de costume, reúne-se todo o povo no
Martyrium, um pouco mais cedo que nos outros dias, porque é preciso que a despedida
tenha lugar mais cedo. Assim, reunido todo o povo, faz-se tudo o que é preciso. Nesse
dia, faz-se a oblação no Martyrium e a despedida tem lugar ali mesmo, por volta da
décima hora (dezasseis horas). Antes, porém, de despedir o povo, o arquidiácono eleva
a voz e diz: «À primeira hora da noite (dezanove horas), reunamo-nos todos na igreja
do Eleona, porque nos espera uma grande fadiga na noite de hoje».
2 Feita a despedida no Martyrium, vai-se ao post Crucem, e diz-se ali apenas um
hino, faz-se uma oração, o bispo oferece a oblação e todos comungam53. Trata-se de
uma excepção de dia único, pois durante todo o ano nunca se oferece no post Crucem,
senão neste único dia 54. Feita também ali a despedida, vai-se à Anástasis, faz-se uma
oração, abençoam-se como de costume os catecúmenos e bem assim os fiéis e faz-se a

51
O lucernário fazia-se sempre na Anástasis, local onde Cristo passou da morte à vida.
52
O texto original traz a palavra grega, escrita com caracteres latinos, «cata», que quer dizer «segundo»: In
cata Matheo: Mt 24, 4.
53
Nesse dia havia, portanto, duas missas, da parte da tarde, uma no Martyrium e outra na capela da Cruz, na
qual todos comungavam.
54
Chama a atenção esta missa, na Quinta-Feira Santa, no lugar da Cruz, e não na igreja de Sião, construída no
lugar do Cenáculo.
456 SÉCULO IV

despedida. E assim cada um se apressa a voltar a sua casa, para comer, porque mal
tenham comido, todos vão ao Eleona, àquela igreja em que está a gruta, na qual o
Senhor naquele dia esteve com os Apóstolos.
3 E ali, até cerca da quinta hora da noite (onze horas), dizem-se continuamente
hinos e antífonas apropriadas ao dia e ao lugar, e também se fazem leituras, intercalando
orações; lêem-se também os passos do Evangelho em que o Senhor falou aos discípulos
no dia em que ficou sentado naquela gruta, que está nesta igreja55.
4 E dali, aproximadamente à sexta hora da noite (à meia noite), vai-se para cima,
para o Imbomón, com hinos, ao lugar de onde o Senhor subiu aos Céus. E ali, de novo,
igualmente se dizem leituras, hinos e antífonas apropriadas ao dia; e também se fazem
todas aquelas orações, que o bispo diz, sempre apropriadas ao dia e ao lugar.
1678 36. Sexta-Feira Santa. 1 Assim, pois, quando começa o cantar dos galos, desce-se do
Imbomón com hinos e vai-se até ao lugar onde o Senhor orou, como está escrito no
Evangelho: E afastou-Se deles, à distância de um tiro de pedra, e começou a orar,
etc.56. Com efeito, há nesse lugar uma bela igreja57. O bispo entra ali e todo o povo; diz-
-se ali uma oração apropriada ao lugar e ao dia, diz-se também um hino apropriado e lê-
-se aquele passo do Evangelho onde o Senhor disse aos seus discípulos: Vigiai para
não cederdes à tentação58. E todo este passo é ali lido e faz-se de novo uma oração.
2 Logo a seguir, com hinos, todos, até à criança mais pequena, descem para
Getsémani59, a pé com o bispo. Por haver uma multidão tão grande, fatigada pelas
vigílias e enfraquecida pelos jejuns quotidianos, e porque há um monte muito alto que
é preciso descer, vem-se muito devagarinho, muito devagarinho, com hinos, até Getsémani.
Quanto aos círios da igreja, para cima de duzentos, estão preparados para alumiar todo
o povo.
3 Quando se chega a Getsémani, faz-se primeiro uma oração apropriada e diz-se
um hino; depois, lê-se o passo do Evangelho onde o Senhor foi preso60. Mal termina a
leitura, são tais os gritos e gemidos de todo o povo em lágrimas, que talvez até na
cidade se ouçam as lamentações de todo o povo. Depois disso, parte-se para a cidade
a pé com hinos, e chega-se à porta à hora em que se começa quase a distinguir uma
pessoa da outra. A partir desse momento, pelo meio da cidade, todos até ao último,
grandes e pequenos, ricos e pobres, todos ali ficam; de maneira muito especial neste
dia, ninguém abandona as vigílias até de manhã. Assim, o bispo é conduzido a Getsémani
até à porta, e dali, através de toda a cidade, até à Cruz.
4 Quando se chega ao ante Crucem, já o dia começa a clarear. Ali se lê novamente
o passo do Evangelho em que o Senhor foi levado a Pilatos61; tudo o que está nas
Escrituras que Pilatos disse ao Senhor e aos Judeus, tudo se lê62.
5 Depois, por sua vez, o bispo fala ao povo, encorajando os fiéis, porque aguentaram
toda a noite e vão ainda aguentar ao longo do dia, para que não se deixem abater, mas
tenham esperança em Deus, que os há-de recompensar por este esforço com uma

55
Este pormenor explica o porquê da celebração do Ofício neste dia, a esta hora e neste lugar. A tradição
litúrgica de Jerusalém situava aí as últimas palavras de Jesus depois da Ceia.
56
Lc 22, 41.
57
É muito discutida a identificação desta igreja. Há quem diga que se trata da Eleona, à qual se voltava no
regresso do Imbomón; outros afirmam que devia tratar-se duma outra igreja com três absides e um rico
mosaico com decoração floral em várias cores, assinalada por São Jerónimo no sopé do monte.
58
Mc 14, 38.
59
Getsémani é o lugar onde se encontrava o jardim das Oliveiras. Etéria não menciona a existência de qual-
quer igreja nesse local.
60
Esta celebração devia fazer-se ao ar livre, e não dentro de uma igreja, que o texto, aliás, não assinala.
61
Mt 27, 2.
62
Mt 27, 11 ss; Mc 15, 1-5; Lc 23, 1-5; Jo 18, 28-38.
ETÉRIA 457

recompensa ainda maior. E, confortando-os assim, como puder, dirige-lhes estas pala-
vras: «Entretanto, ide todos, agora, para vossas casinhas; descansai um pouco e, por
volta da segunda hora do dia (oito horas), estai todos preparados aqui, a fim de que,
desde essa hora até à sexta (meio-dia), possais ver o santo lenho da cruz, que cada um
de nós crê nos há-de servir para a salvação. Com efeito, a partir da sexta hora (meio-dia),
é preciso que de novo nos reunamos todos aqui, neste lugar, isto é, no ante Crucem,
para nos entregarmos às leituras e orações, até à noite63».
37. 1 Depois disto, feita a despedida junto à Cruz, isto é, antes de o sol nascer, vão 1679
todos imediatamente a Sião, cheios de entusiasmo, orar diante daquela coluna contra a
qual foi flagelado o Senhor64. Ao voltarem dali, descansam um pouco em suas casas, e
não tarda a ficarem todos preparados. Então, coloca-se uma cadeira para o bispo no
Gólgota, atrás da Cruz que agora ali se ergue 65; o bispo senta-se na cadeira, e põe-se
diante dele uma mesa coberta com uma toalha de linho. De pé, à volta da mesa, ficam
os diáconos, e traz-se um cofre de prata dourada, em que está o santo lenho da cruz 66;
abre-se, expõe-se e coloca-se sobre a mesa o lenho da cruz bem como o título 67.
2 Uma vez colocados sobre a mesa, o bispo, sentado, segura com as suas mãos as
extremidades do santo lenho e os diáconos, que se mantêm de pé à volta, vigiam. Há
uma razão para assim vigiarem: é costume que todo o povo se aproxime, tanto os fiéis
como os catecúmenos, um a um e que, inclinando-se para a mesa, beijem o santo lenho
e passem adiante. E como se conta que, não sei quando, alguém deu uma dentada no
santo lenho e lhe roubou um pedaço, por causa disso é assim guardado agora pelos
diáconos, que estão de pé, à volta, para que ninguém, ao aproximar-se, ouse proceder
assim de novo.
3 Assim, pois, todo o povo passa, um a um; todos se inclinam, um de cada vez,
tocando primeiro com a fronte e depois com os olhos a cruz e o título, e, beijando a
cruz, afastam-se; mas ninguém estende a mão para a tocar. Depois de terem beijado a
cruz e passado, um diácono, de pé, segura o anel de Salomão e a âmbula que servia para
a unção dos reis. Beijam a âmbula e veneram o anel [...]68. Mais ou menos da segunda
até à sexta hora (meio-dia) todo o povo desfila, entrando por uma porta e saindo pela
outra, dado que isto se faz no lugar em que, na véspera, ou seja na quinta-feira, se
realizou a oblação 69.
4 Entretanto, chegada a hora sexta (meio-dia), vai-se até diante da Cruz, quer
chova quer faça muito calor, porque aquele lugar é ao ar livre, isto é, há uma espécie de
átrio bem grande e bastante belo, situado entre a Cruz e a Anástasis. Ali, pois, é que se
reúne todo o povo, de tal forma que nem se pode abrir caminho.
5 Coloca-se então uma cadeira para o bispo diante da Cruz e, da sexta até à nona
hora (das doze às quinze), nada mais se faz senão ler as leituras, da seguinte maneira70:
lêem-se primeiro, dos salmos, todos os passos onde se fala da Paixão; lê-se, depois, do

63
A adoração da Cruz começa cerca das oito horas da manhã e termina às doze.
64
Esta coluna estava na casa de Caifás, na vertente oriental do monte Sião. Mais tarde será levada para a
própria igreja de Sião.
65
No local chamado post Crucem.
66
Foi em 326, durante os trabalhos mandados fazer por Constantino na zona do Calvário, que se encontrou,
na presença de santa Helena, o madeiro da cruz. Santo Ambrósio descreve esta descoberta na sua Oração
fúnebre de Teodósio, pronunciada em 395. Como já disso dá testemunho S. Cirilo de Jerusalém, em 347,
foram enviadas parcelas da cruz às Igrejas do mundo inteiro. Cf. Catequeses baptismais 4, 10; 10, 19; 13,
4.
67
O título é a inscrição mencionada pelos Evangelistas e encontrado por santa Helena ao mesmo tempo que
a cruz.
68
O manuscrito tem aqui uma lacuna.
69
Quer dizer na capela chamada post Crucem, que era pequena.
70
Um Leccionário arménio da segunda metade do século V conservou-nos a indicação exacta dos textos que
aqui eram lidos.
458 SÉCULO IV

Apóstolo e bem assim dos Apóstolos, quer das Epístolas, quer dos Actos, todos os
passos onde eles falaram da Paixão do Senhor; e lêem-se também dos Evangelhos os
passos em que sofreu a Paixão. Em seguida, lêem-se dos Profetas, os passos em que
eles predisseram a Paixão do Senhor; em seguida, lêem-se dos Evangelhos os passos
em que se fala da Paixão.
6 E assim, desde a hora sexta até à hora nona (das doze às quinze), fazem-se
continuamente leituras ou dizem-se hinos, para mostrar a todo o povo que tudo quanto
os Profetas predisseram da Paixão do Senhor se realizou, como se vê tanto pelos
Evangelhos como pelos escritos dos Apóstolos. E assim, durante estas três horas,
ensina-se a todo o povo que nada aconteceu que não tivesse sido anteriormente anun-
ciado, e que nada foi anunciado que não se tivesse inteiramente cumprido. E vão-se
intercalando sempre orações, e estas orações são apropriadas ao dia.
7 A cada uma das leituras e orações, é tal a emoção de todo o povo e são tais os
gemidos que causa admiração; de facto, não há ninguém, grande ou pequeno que naquele
dia, durante essas três horas, não chore tanto que ultrapassa o que se pode pensar que
o Senhor sofreu por nós. Depois disto, começada já a nona hora (quinze horas), lê-se
então o trecho do Evangelho segundo João71, onde o Senhor entregou o espírito72; após
esta leitura, faz-se logo uma oração e a despedida.
8 Ora, assim que se faz a despedia no ante Crucem, imediatamente todos se
dirigem à igreja maior, ao Martyrium, e faz-se tudo o que é costume fazer durante esta
semana, a partir da nona hora (quinze horas), em que se reúnem no Martyrium, até
tarde, durante esta semana. Após a despedida do Martyrium, vai-se à Anástasis. Ao
chegar ali, lê-se aquele passo do Evangelho em que José73 pede a Pilatos o corpo do
Senhor e o coloca num sepulcro novo. Depois da leitura, faz-se uma oração, abençoam-se
os catecúmenos, e assim tem lugar a despedida.
9 Neste dia não se proclama que é preciso continuar a vigília na Anástasis,
porque se sabe que o povo está fatigado, mas é costume continuar ali a vigília. E assim,
aqueles de entre o povo que o desejam, ou melhor que podem, fazem vigília; mas,
aqueles que não podem não fazem ali vigília até de manhã; porém os clérigos fazem
vigília, isto é, aqueles que são mais fortes e mais jovens; e toda a noite, dizem-se ali
hinos e antífonas até de manhã. Ora, é muito grande a multidão que faz vigília, uns
desde o cair da noite, outros desde o meio da noite, conforme podem.
1680 38. Sábado Santo. 1 No dia seguinte, que é sábado, faz-se como de costume, tanto à
terceira (nove horas) como à sexta hora (doze horas); porém, à nona (quinze horas), já
não se faz como ao sábado, mas preparam-se as vigílias pascais na igreja maior, isto é,
no Martyrium. As vigílias pascais fazem-se tal como entre nós 74, excepto numa única
coisa que se faz a mais aqui: os neófitos75, uma vez baptizados e vestidos76, à medida
que saem da fonte77, primeiro são conduzidos com o bispo à Anástasis.
2 O bispo entra para detrás das cancelas da Anástasis, diz-se um hino, a seguir o
bispo faz uma oração por eles78, e depois vem com eles à igreja maior, onde, como de
costume, todo o povo faz a vigília. Ali faz-se o que é de costume também entre nós, e

71
No texto original, em latim: ille locus de evangelio cata Iohannem.
72
Jo 19, 28-30.
73
Jo 19, 38. Trata-se de José de Arimateia.
74
Esta semelhança fez com que Etéria não descrevesse os pormenores da Vigília pascal, a grande Vigília que
S. Agostinho chama «a mãe de todas as santas Vigílias, durante a qual todos permanecem acordados»
(Sermão 219).
75
O texto original latino chama-lhe infantes.
76
O primeiro rito explicativo a seguir ao baptismo consistia em vestir os neófitos de branco.
77
A fonte baptismal encontrava-se num baptistério, do qual Etéria não nos fala.
78
Há quem pense que esta expressão vaga designa a confirmação que era dada imediatamente após o baptis-
mo; cf. S. Cirilo de Jerusalém, Terceira Catequese Mistagógica.
ETÉRIA 459

após a oblação tem lugar a despedida. E após a despedida das vigílias na igreja maior,
imediatamente se vem, com hinos, à Anástasis, e ali de novo se lê o passo do Evangelho
sobre a Ressurreição; faz-se uma oração e de novo o bispo oferece ali a oblação 79; mas
tudo se faz num instante, por causa do povo, para não o atrasar muito tempo, e assim
logo se despede o povo. Ora, a hora em que tem lugar a despedida das vigílias neste dia,
é a mesma hora que entre nós, pelo fim da tarde.
A SEMANA PASCAL

39. A Páscoa. 1 Quanto aos oito dias pascais, celebram-se tal como entre nós, e os 1681
ofícios têm lugar da maneira habitual durante os oito dias após a Páscoa, como também têm
lugar em todo o lado durante a Páscoa até à oitava. Quanto à decoração e também
quanto à ornamentação, durante os oito dias da Páscoa, são as mesmas que para a
Epifania, tanto na igreja maior, como na Anástasis, na Cruz ou no Eleona, e bem assim
em Belém, e igualmente no Lazarium e em todo o lado, porque são os dias pascais.
2 Naquele primeiro dia, o domingo, vai-se em procissão à igreja maior, isto é, ao
Martyrium, e também segunda-feira e terça-feira, mas é sempre após a despedida do
Martyrium que se vai para a Anástasis com hinos. Quarta-feira, porém, vai-se em
procissão ao Eleona, quinta-feira à Anástasis, sexta-feira a Sião, sábado ao ante Crucem
e no domingo, isto é, na oitava, vai-se de novo à igreja maior, isto é, ao Martyrium.
3 Nestes oito dias pascais, todos os dias, após a refeição, o bispo com todo o
clero e todos os neófitos, isto é, os que foram baptizados, todos os que são aputactitae,
homens e mulheres, e também todos aqueles de entre o povo que o queiram, sobem ao
Eleona. Dizem-se hinos, fazem-se orações tanto na igreja, que está no Eleona, onde
está a gruta em que Jesus instruía os discípulos, como também no Imbomón, isto é, no
lugar de onde o Senhor subiu aos Céus.
4 E depois de se dizerem os salmos e de se fazer a oração, desce-se dali até à
Anástasis, com hinos, à hora do lucernário. Faz-se isto durante os oito dias80. Mas, no
domingo de Páscoa81, após a despedida do lucernário, isto é, da Anástasis, todo o povo
conduz o bispo com hinos a Sião.
5 Ao chegar-se ali, dizem-se hinos apropriados ao dia e ao lugar, faz-se uma
oração e lê-se o passo do Evangelho82, em que naquele mesmo dia o Senhor, no mesmo
lugar, em que está agora aquela igreja do Sião, com as portas fechadas, entrou no meio
dos discípulos, isto é, quando um dos discípulos não estava ali, isto é, Tomé; e quando
este regressou e os outros Apóstolos lhe disseram que tinham visto o Senhor, ele disse:
Se não vir, não creio83. Depois desta leitura, faz-se de novo uma oração, abençoam-se
os catecúmenos e os fiéis, e cada qual regressa à sua casa, já tarde, cerca da segunda
hora da noite (vinte horas).
40. A oitava da Páscoa. 1 De igual modo, na oitava da Páscoa, isto é, no domingo, 1682
logo após a hora sexta (doze horas), todo o povo sobe com o bispo ao Eleona; primeiro,
na igreja que está ali, senta-se durante algum tempo; dizem-se hinos e antífonas apro-
priadas ao dia e ao lugar e fazem-se orações igualmente apropriadas ao dia e ao lugar.
Dali se vai de novo com hinos ao Imbomón, no alto, e faz-se igualmente ali o que se
tinha feito no outro lugar. E, ao aproximar-se a hora, todo o povo e todos os aputactitae

79
Nessa noite celebrava-se a missa duas vezes, uma no Martyrium, onde os neófitos participavam pela pri-
meira vez na comunhão, e outra na Anástasis. Esta última celebrava-se num instante.
80
Além desta celebração, no monte das Oliveiras, os neófitos tinham igualmente, todos os dias desta semana,
uma reunião na Anástasis, onde lhes eram explicados os mistérios, como se dirá mais adiante.
81
O texto denuncia aqui uma certa desordem, porque depois de falar da oitava da Páscoa, volta à celebração
da tarde da Páscoa.
82
Jo 20, 19-25.
83
Jo 20, 25.
460 SÉCULO IV

acompanham o bispo, com hinos, até à Anástasis. A hora em que se chega à Anástasis
é a hora em que se costuma fazer o lucernário.
2 Faz-se, pois, o lucernário, tanto na Anástasis como na Cruz, e dali todo o
povo, sem excepção, com hinos, conduz o bispo a Sião. Quando se chega, dizem-se
igualmente hinos apropriados ao lugar e ao dia, lê-se de novo também o passo do
Evangelho em que, na oitava da Páscoa, o Senhor entrou no lugar onde estavam os
discípulos e re-preendeu Tomé por ter sido incrédulo84. Lê-se então todo esse passo,
a seguir faz-se uma oração e, uma vez abençoados tanto os catecúmenos e bem assim
os fiéis, como de costume, regressa cada um a sua casa, tal como no domingo de
Páscoa, à segunda hora da noite (vinte horas).
DA PÁSCOA AO PENTECOSTES

1683 41. 1 Ora, da Páscoa até ao quinquagésimo dia, isto é, o Pentecostes, aqui absolutamente
ninguém jejua, nem mesmo aqueles que são aputactitae. De facto, naqueles dias como
todo o ano, na Anástasis, do primeiro cantar do galo até de manhã, fazem-se as celebra-
ções habituais, o mesmo valendo também para a sexta hora (doze horas) e para o
lucernário. Aos domingos, porém, a reunião é sempre no Martyrium, isto é, na igreja
maior, como de costume, e dali se vai à Anástasis, com hinos. Todavia, quarta-feira e
sexta-feira, dado que, naqueles dias absolutamente ninguém jejua, a assembleia é em
Sião, mas de manhã85; a despedida faz-se como é costume.
1684 42. O quadragésimo dia após a Páscoa: em Belém. 1 No quadragésimo dia após a
Páscoa, isto é, quinta-feira [...]86; de véspera após a sexta hora (doze horas), isto é,
quarta-feira, todos vão a Belém para celebrar as vigílias87. Fazem-se as vigílias na igreja
de Belém, igreja em que está a gruta onde nasceu o Senhor. Mas, no outro dia, isto é,
quinta-feira, quadragésimo dia, celebra-se a missa da maneira habitual; os presbíteros
e o bispo pregam, falando de maneira apropriada ao dia e ao lugar; e a seguir, já tarde,
cada qual regressa a Jerusalém.
1685 43. O quinquagésimo dia após a Páscoa: Pentecostes. 1 No quinquagésimo dia após
a Páscoa88, que é domingo, dia de muito grande fadiga para o povo, faz-se tudo desde
o primeiro cantar do galo, como de costume: fazem-se as vigílias na Anástasis, para que
o bispo leia o passo do Evangelho, que se lê sempre ao domingo, isto é, o da ressurreição
do Senhor; a seguir faz-se na Anástasis o que é de costume fazer, como todo o ano.
2 Ao nascer do dia, reúne-se todo o povo na igreja maior, isto é, no Martyrium,
e também aí se faz tudo o que é costume fazer; os presbíteros pregam, e depois o
bispo; faz-se tudo o que é de regra, isto é, oferece-se a oblação como de costume, como
é habitual ao domingo; mas, neste dia, apressa-se a despedida no Martyrium, para que
tenha lugar antes da terceira hora (nove horas). Assim que a despedida se realiza no
Martyrium, todo o povo, sem excepção, com hinos, conduz o bispo a Sião, para que se
esteja em Sião à terceira hora (nove horas) em ponto89.

84
Jo 20, 26-29.
85
Durante todo o ano ia-se a Sião nas quartas e sextas-feiras, dias de jejum. Mas durante este período de
cinquenta dias em que não se jejuava, só se ia lá de manhã.
86
Tem de se admitir aqui uma lacuna.
87
Qual a razão desta ida a Belém num dia consagrado à recordação da Ascensão? Não se sabe muito bem. Por
outro lado Etéria nada diz da festa da Ascensão, no quadragésimo dia depois da Páscoa. Será que o diria na
lacuna do manuscrito?
88
A expressão quinquagesimarum dies designa quer o período de cinquenta dias a seguir ao Domingo de
Páscoa, ao qual chamamos hoje Tempo Pascal, quer o quinquagésimo dia depois do Domingo de Páscoa,
ou seja, o Domingo de Pentecostes.
89
O primeiro objectivo da festa era a comemoração do acontecimento histórico da vinda do Espírito Santo
sobre os Apóstolos.
ETÉRIA 461

3 Ao chegar lá, lê-se o passo dos Actos dos Apóstolos em que o Espírito desceu,
para que se entendesse o que todas as línguas diziam 90; a seguir celebra-se a missa da
maneira habitual 91. Os presbíteros pregam sobre o passo que foi lido, pois é este o
lugar, em Sião (há agora lá outra igreja) em que, outrora, após a Paixão do Senhor,
estava reunida a multidão com os Apóstolos quando se passou o que dissemos acima:
lê-se, portanto, ali, o texto dos Actos dos Apóstolos. Depois tem lugar o ofício da
maneira habitual, faz-se ali a oblação e, no momento de despedir o povo, o arquidiácono
eleva a voz e diz: «Hoje, imediatamente após a sexta hora (doze horas), todos devemos
estar preparados no Eleona92, na igreja do Imbomón.
4 Todo o povo regressa, cada um a sua casa, para descansar, e, logo a seguir ao
almoço, sobe-se ao monte das Oliveiras, isto é, ao Eleona, cada um conforme pode, de
tal modo que nenhum cristão permaneça na cidade e ninguém deixe de ir.
5 Uma vez que se subiu ao monte das Oliveiras, isto é, ao Eleona, primeiro vai-se
ao Imbomón, que é o lugar de onde o Senhor subiu aos Céus93, e ali senta-se o bispo e
os presbíteros e também todo o povo; lêem-se ali as leituras, dizem-se hinos intercalando-os,
dizem-se também antífonas apropriadas àquele dia e lugar; também as orações, que se
intercalam, têm sempre um conteúdo que convenha ao dia e ao lugar. Lê-se também o
passo do Evangelho que fala da Ascensão do Senhor94; lê-se de novo outro, dos Actos
dos Apóstolos, que fala da Ascensão do Senhor aos Céus, após a Ressurreição95.
6 Feito isto, abençoam-se os catecúmenos bem como os fiéis, e à nona hora
(quinze horas) desce-se dali e com hinos vai-se àquela igreja, que está também no
Eleona, isto é, à gruta em que o Senhor Se sentava para ensinar os Apóstolos. Quando
se chega lá, já passa da décima hora (dezasseis horas); faz-se ali o lucernário, diz-se
uma oração, abençoam-se os catecúmenos e bem assim os féis. E logo se desce dali com
hinos, todo o povo sem excepção, todos com o bispo, dizendo hinos e antífonas
apropriadas àquele dia; assim se vem muito devagar, muito devagar, até ao Martyrium.
7 Quando se chega à porta da cidade já é de noite, e trazem-se círios de igreja,
pelo menos duzentos, para junto do povo. E dado que da porta é bastante longe até à
igreja maior, isto é, até ao Martyrium, só se chega lá por volta da segunda hora da noite
(vinte horas), porque se vai sempre lentamente, lentamente, por causa do povo, para
que não se canse andando a pé. Abrem-se as portas grandes, que dão para o mercado96,
e todo o povo entra no Martyrium com hinos, bem como o bispo. Uma vez dentro da
igreja, dizem-se hinos, faz-se oração, abençoam-se os catecúmenos e bem assim os
fiéis; e dali se parte de novo, com hinos, para ir à Anástasis.
8 Do mesmo modo, quando se chega à Anástasis, dizem-se hinos e antífonas,
faz-se uma oração, abençoam-se os catecúmenos, bem como os fiéis; o mesmo se faz
também junto à Cruz. E dali de novo todo o povo cristão, em peso, com hinos, conduz
o bispo até Sião.
9 Ao chegar ali, lêem-se leituras apropriadas, dizem-se salmos e antífonas, faz-se
uma oração, abençoam-se os catecúmenos e bem assim os fiéis, e tem lugar a despedida.
Feita a despedida, todos se aproximam para beijar a mão do bispo, e depois volta cada
um à sua casa, cerca da meia-noite. Assim, pois, suporta-se neste dia uma das maiores

90
Act 2, 1-12.
91
A palavra latina missa, utilizada tantas vezes por Etéria, não pode significar aqui despedida, que nunca se
realizava imediatamente depois da leitura do Evangelho. Este é, portanto, um dos casos, em que a palavra
missa significa celebração da Eucaristia.
92
A palavra Eleona, neste caso, designa o monte.
93
Esta parte da festa recorda o mistério da Ascensão, intimamente ligado ao do Pentecostes.
94
Mc 16, 19; Lc 24, 50-53.
95
Act 1, 4-13.
96
Havia três grandes portas, que permitiam entrar no átrio da igreja maior.
462 SÉCULO IV

fadigas, porque desde o primeiro cantar do galo se fazem as vigílias na Anástasis e


depois durante todo o dia nunca mais se interrompem; e, assim, todas as celebrações se
prolongam de tal modo que é só à meia-noite, após a despedida, que se realiza em Sião,
que todos regressam às suas casas.
APÓS O PENTECOSTES

1686 44. 1 Desde o dia a seguir ao Pentecostes97, todos jejuam, como é costume, todo o
ano, cada um segundo o que pode, excepto ao sábado e ao domingo, em que nunca se
jejua nestes lugares. Também depois, nos dias seguintes, tudo se faz assim, como no
resto do ano, isto é, sempre desde o primeiro cantar do galo, se fazem as vigílias na
Anástasis.
2 De facto, se é domingo, ao primeiro cantar do galo e antes de mais nada, o bispo
lê do Evangelho como de costume, no interior da Anástasis, o passo da Ressurreição do
Senhor, que se lê sempre ao domingo, e depois dizem-se hinos e antífonas, até ao raiar
do dia, na Anástasis. Porém, se não é domingo, apenas se dizem os mesmos hinos e
antífonas, desde o primeiro cantar do galo até ao raiar do dia, na Anástasis.
3 Os aputactitae vão todos; porém, do povo, apenas vão os que podem; quanto
aos clérigos, vão todos os dias à vez, desde o primeiro cantar do galo; o bispo, porém,
vai sempre ao alvorecer, para fazer a despedida matutina, com todos os clérigos,
excepto ao domingo, em que lhe é necessário ir ao primeiro cantar do galo, para ler o
Evangelho na Anástasis. De novo, à sexta hora (doze horas), faz-se o que é de costume,
na Anástasis; e o mesmo à nona hora (quinze horas), igualmente também se faz ao
lucernário, como de costume, o que é habitual ser feito todo o ano. Quarta-feira e
sexta-feira, o ofício da nona hora tem sempre lugar em Sião, como de costume.

A CATEQUESE BAPTISMAL
1687 45. A inscrição para o baptismo. 1 Pensei que devia também escrever-vos sobre o
modo como se ensinam aqui aqueles que são baptizados na Páscoa98. De facto, aquele
que dá o seu nome99, dá-o na vigília da Quaresma, e um presbítero anota os nomes de
todos; trata-se da vigília das oito semanas nas quais, como eu disse, aqui se observa a
Quaresma.
2 Depois de o presbítero anotar os nomes de todos, então, no outro dia da Quaresma,
isto é, naquele em que começam as oito semanas, coloca-se uma cadeira para o bispo no
meio da igreja maior, isto é, no Martyrium; os presbíteros sentam-se de um lado e do
outro, em cadeiras, e todos os clérigos ficam de pé. Depois são trazidos os competen-
tes, um a um; se são homens, vêm com os seus padrinhos; se são mulheres, com as suas
madrinhas100.
3 Então, o bispo, individualmente, interroga os vizinhos daquele que entrou,
dizendo: «Ele leva uma vida honesta, respeita os seus pais, não se entrega à embriaguez
e à mentira»? E procura saber todos os defeitos, pelo menos dos que, no homem, são
de alguma gravidade.

97
Este dia a seguir ao Pentecostes deve querer dizer dia a seguir à oitava do Pentecostes, porque, apesar
de Etéria não dizer nada sobre isso, o Pentecostes devia ter uma oitava solene, tal como acontecia na
Epifania e na Páscoa; cf. Constituições Apostólicas, Livro V, cap. 20, 14.
98
Sobre a preparação para o baptismo, ver DACL, t. II, col. 2530-2621, art. Catéchèse e Catécuménat.
99
A data da inscrição do nome variava, mas realizava-se, quase sempre, no início da Quaresma.
100
A apresentação dos candidatos pelo padrinho ou pela madrinha é um costume muito antigo, atestado já por
S. Justino e Tertuliano. Por vezes eram os próprios pais que desempenhavam este ministério (cf. Carta 98
de S. Agostinho), testemunhado pelas palavras latinas do texto: patribus e matribus.
ETÉRIA 463

4 Se se reconhece que é sem falha em tudo aquilo que foi inquirido, na presença
das testemunhas, o bispo com a sua própria mão anota o nome dele. Se, porém, é
acusado de alguma coisa, o bispo manda-o sair, dizendo: «Que se emende, e, quando se
tiver emendado, então acederá ao baptismo». É assim que ele procede a este interrogatório,
tanto para os homens como para as mulheres. Se algum deles é estrangeiro, e não tiver
testemunhas que o conheçam, não acederá facilmente ao baptismo.
46. A catequese antes do baptismo. 1 Isto, senhoras e irmãs, era meu dever escrevê-lo, 1688
para que não julgueis que se age sem ponderação. Efectivamente, há aqui o costume de
que os que acedem ao baptismo sejam, primeiro, durante esses quarenta dias em que se
jejua, exorcizados logo de início pelos clérigos, assim que tem lugar a despedida matu-
tina da Anástasis. Imediatamente depois coloca-se uma cadeira para o bispo no
Martyrium, na igreja maior, e todos os que devem ser baptizados se sentam em volta,
perto do bispo, tanto homens como mulheres; também aí se encontram os padrinhos e
as madrinhas, e ainda todos os que, de entre o povo, querem ouvir; todos entram e se
sentam, contanto que sejam fiéis.
2 É que os catecúmenos não entram ali enquanto o bispo lhes ensina a lei do
seguinte modo: começando pelo Génesis, durante estes quarenta dias, percorre todas
as Escrituras, explicando primeiro o sentido literal, e depois descobrindo o sentido
espiritual101. Também assim sobre a ressurreição e igualmente sobre a fé, tudo lhes é
ensinado naqueles dias; é isto que se chama catequese.
3 E uma vez terminadas as cinco semanas, recebem então o Símbolo102, da mes-
ma pessoa por quem são ensinados; a sua doutrina é explicada como a de todas as
Escrituras, frase por frase, primeiro no sentido literal, e depois no sentido espiritual;
é assim que se explica também o Símbolo. Daqui resulta que, nestes lugares, todos os
fiéis seguem as Escrituras quando são lidas na igreja, porque todos são ensinados
durante estes quarenta dias, isto é, desde a primeira hora até ao fim da terceira hora
(das sete horas às nove horas), porque a catequese dura três horas.
4 Ora, Deus sabe, senhoras e irmãs, como é maior o ruído das vozes dos fiéis,
que entram para ouvir a catequese, do que o que é feito pela pregação ou exposição do
bispo, quando ele se senta a pregar na igreja, sobre cada uma das coisas que de forma
semelhante aí são expostas. Após a despedida da catequese e chegada a terceira hora
(nove horas), imediatamente, com hinos, conduz-se dali o bispo à Anástasis e faz-se a
despedida à terceira hora; e assim são instruídos três horas por dia durante sete sema-
nas. Na oitava semana da Quaresma, isto é, aquela que é chamada Semana Maior, já não
há tempo de os ensinar, porque é preciso realizar tudo quanto acima foi dito.
A «redditio Symboli». 5 Decorridas sete semanas e quando falta apenas uma 1689
única para a semana pascal, que aqui designam por semana maior, então o bispo vem de
manhã à igreja maior, ao Martyrium. Ao fundo da abside, por detrás do altar, coloca-se
uma cadeira para o bispo, e ali vão, um a um, cada homem com o seu padrinho, e cada
mulher com a sua madrinha, e recita o Símbolo ao bispo 103.
6 Depois da recitação do Símbolo ao bispo, o bispo dirige-se a todos e diz:
«Durante estas sete semanas, fostes instruídos em toda a lei contida nas Escrituras e
também ouvistes falar da fé; ouvistes ainda falar da ressurreição da carne assim como
de toda a doutrina do Símbolo, ao menos naquilo que podeis escutar como catecúmenos;
mas aquilo que se refere a um mistério mais profundo, isto é, ao próprio baptismo, vós

101
Aqui temos uma indicação preciosa sobre a maneira como a Sagrada Escritura era explicada aos fiéis:
carnaliter, spiritualiter.
102
A data da traditio symboli variava segundo as Igrejas. É claro que os candidatos ao baptismo já conhe-
ciam o conteúdo do Símbolo, mas desconheciam a própria fórmula, que todos deviam aprender de cor, sendo
proibido escrevê-la.
103
A redditio Symboli não tinha data fixa.
464 SÉCULO IV

que sois ainda catecúmenos não o podeis escutar. E, para que não penseis que alguma
coisa se faz sem razão, quando em nome de Deus tiverdes sido baptizados, ouvireis
falar dela durante a oitava da Páscoa, após a despedida da igreja, na Anástasis; como
sois ainda catecúmenos, não vos podem ser explicados os mistérios mais secretos de
Deus 104».
1690 47. As catequeses mistagógicas. 1 Chegados, porém, os dias da Páscoa, durante
aqueles oito dias, isto é, da Páscoa até à oitava, após a despedida da igreja, vai-se
também com hinos, à Anástasis, faz-se imediatamente uma oração, abençoam-se os
fiéis e o bispo, de pé, apoiando-se no interior das cancelas que estão na gruta da
Anástasis, explica tudo o que se faz no baptismo 105.
2 Neste momento nenhum catecúmeno entra na Anástasis; só entram na Anástasis
os neófitos e os fiéis que querem ouvir os mistérios. Por isso fecham-se as portas para
que nenhum catecúmeno entre. Enquanto o bispo discute cada questão e a expõe, são
tantas as expressões de louvor, que mesmo fora da igreja se ouvem as suas vozes.
Realmente, desvendam-se tão bem todos os mistérios, que ninguém pode deixar de se
comover com aquilo que ouve na explicação.
1691 As línguas litúrgicas. 3 E, como nesta província parte do povo conhece o grego
e o siríaco, outra parte apenas o grego, e outra parte ainda apenas o siríaco, o bispo,
embora saiba o siríaco, contudo fala sempre em grego e nunca em siríaco; por essa
razão está sempre presente um presbítero, que, enquanto o bispo fala em grego, traduz
para siríaco, para que todos compreendam as explicações que são dadas.
4 Também as leituras, que são lidas na igreja, como devem ser lidas em grego, há
sempre alguém que traduz para siríaco por causa do povo, para que compreenda
sempre. Quanto aos que aqui há e que são latinos, isto é, que não conhecem nem o
siríaco nem o grego, para que não estejam tristes, também lhes são dadas explicações,
porque há outros irmãos e irmãs106 que sabem o grego e o latim, que as explicam em latim.
5 Mas, sobretudo, há aqui uma coisa que é verdadeiramente agradável e verdadei-
ramente digna de admiração: é que, tanto os hinos como as antífonas e as leituras, e
também as orações que o bispo diz, exprimem sempre pensamentos que, para o dia de
festa que é celebrado e para o lugar onde se celebra, são sempre apropriadas e adaptadas.

A FESTA DAS ENCÉNIAS OU DA DEDICAÇÃO

1692 48. 1 Os dias chamados da dedicação (Encénias) são (os aniversários) daqueles em
que a santa igreja, que está no Gólgota e a que chamam Martyrium, foi consagrada a
Deus; e também a santa igreja situada na Anástasis, isto é, naquele lugar onde o Senhor
ressuscitou após a Paixão, e que foi consagrada a Deus nesse mesmo dia. As Encé-
nias107 destas santas igrejas celebram-se, pois, com uma grande solenidade, porque a
cruz do Senhor foi encontrada nesse mesmo dia.
2 Por essa razão se determinou que o dia da consagração das sobreditas santas
igrejas, fosse o dia da invenção da Cruz do Senhor, a fim de se celebrarem no mesmo dia
com grande solenidade todas as festas. E isto encontra-se, também, nas Santas Escrituras,

104
O Sermão 215 de S. Agostinho, pronunciado no dia da redditio symboli, é um comentário completo ao
texto do Símbolo da fé.
105
As cinco Catequeses Mistagógicas de S. Cirilo de Jerusalém conservaram-nos a explicação dos misté-
rios, isto é, do baptismo, da confirmação e da Eucaristia. S. Agostinho dava as mesmas explicações aos seus
neófitos: cf. Sermão 228, 1: Estes sete ou oito dias em que nos encontramos são dedicados aos sacra-
mentos dos recém-nascidos (=neófitos).
106
Estes irmãos e irmãs devem ser monges e virgens consagradas.
107
A palavra grega « ta\ e) g kai/ n ia » designa a festa judaica da dedicação do templo; cf. Jo 10, 22.
ETÉRIA 465

que o dia das Encénias é aquele em que o santo Salomão, durante a consagração da
casa do Senhor, que tinha feito edificar, se deteve diante do altar de Deus e rezou, como
está escrito nos Livros dos Paralipómenos108.
49. 1 Chegada, pois, a festa das Encénias, celebra-se durante oito dias. De facto, 1693
muitos dias antes, começam a reunir-se, vindas de toda a parte, multidões de monges
e de aputactitae, não só de diversas províncias, isto é, da Mesopotâmia, da Síria, do
Egipto ou da Tebaida, onde há muitos monges, mas também de todos os outros lugares
e de todas as províncias diversas; na verdade, não há ninguém que naquele dia não vá
a Jerusalém para uma solenidade tão grande e festas tão solenes. Por sua vez, os leigos,
tanto homens como mulheres, reúnem-se igualmente em Jerusalém, de todas as províncias,
fiéis a este santo dia.
2 Quanto aos bispos, embora sejam poucos, nestes dias em Jerusalém são mais
de quarenta ou de cinquenta; e com eles vêm muitos dos seus clérigos. Enfim, julga
cometer um grande pecado quem, nestes dias, não participa numa tão grande solenidade,
excepto se houver alguma necessidade obrigatória, que impeça a pessoa deste bom
propósito.
3 Nestes dias das Encénias, a decoração de todas as igrejas é idêntica à da Páscoa
e da Epifania, e também em cada dia se vai em procissão aos diversos Lugares Santos,
como na Páscoa e na Epifania. De facto, no primeiro e no segundo dia, vai-se em
procissão à igreja maior, que se chama Martyrium; no terceiro dia, ao Eleona, isto é, à
igreja situada naquele monte, de onde o Senhor subiu aos Céus após a sua Paixão. É
dentro desta igreja que está a gruta em que o Senhor ensinava os Apóstolos no monte
das Oliveiras. No quarto dia [...]109.

108
2 Cro 6, 12 ss.
109
O manuscrito apresenta aqui uma lacuna.
466 SÉCULO IV

Ambrosiáster

Livro das questões do Antigo e do Novo Testamento 1


1694 95. 1 Donde nasceu ou qual foi a razão da observância do Pentecostes? Eis qual é a
significação do Pentecostes, que é o quinquagésimo dia a contar da Páscoa: assim como
depois duma semana o primeiro dia que vem é o domingo, no qual teve lugar o mistério
da Páscoa para a redenção e a salvação do género humano..., assim também, após sete
semanas, o primeiro dia é o Pentecostes.
2 Por isso, o Pentecostes não pode cair noutro dia que não seja o domingo, para
que se saiba que tudo o que se refere à salvação do homem teve início e cumprimento
no dia do Senhor. Do mesmo modo que o cordeiro é figura da Paixão do Senhor no
sacramento da Páscoa, assim também o dom da Lei e da pregação evangélica. Porque
foi no mesmo dia do Pentecostes que a lei foi dada e que o Espírito Santo desceu sobre
os discípulos, para que eles recebessem a autoridade e soubessem pregar a lei evangélica.
1695 121. Precónio pascal. Oh santo e salvador dia da Páscoa, digno de ser anunciado com
todo o louvor, em que a morte foi vencida e o reino tirado ao Demónio; em que foi
manifestado o sacramento de Deus e eliminado o decreto dirigido contra nós; em que
foram quebradas as portas do inferno, destruídas as cadeias, libertados os presos,
iluminados os cegos, dada a ciência aos simples, em que os ímpios se tornaram mise-
ricordiosos e os iníquos justos; em que foi dada a remissão aos pecadores, a reconciliação
aos inimigos, a emenda do erro e a declaração da verdade; em que Deus fez homens
felizes dos que estavam perdidos; em que o orgulho foi abatido e a humildade elevada;
em que os pobres se tornaram ricos e os ricos ficaram sem nada; em que os montes
foram aplanados, os vales preenchidos e as colinas abatidas; em que a insolência foi
calcada, a vergonha confortada; em que as almas deram entrada no céu, foi restituída a
liberdade e acabou o cativeiro; em que as trevas foram vencidas, a malícia confundida
e a imundície purificada; em que Satanás foi precipitado, o inferno esvaziado, e nosso
Senhor Jesus Cristo reconhecido como verdadeiro Filho de Deus; em que o seu corpo
subiu ao céu para confusão dos orgulhosos do mundo e Ele Se mostrou como Deus e
Senhor do céu, da terra e do inferno.
1696 400. 11 Como pode dizer-se que é mal feito ou não é lícito fazer a bênção de Deus,
que ajuda a fé e a faz crescer? 12 A tradição dessa bênção permanece na Sinagoga, 13 e
celebra-se na Igreja quando as criaturas de Deus são unidas pela bênção de Deus. 14
Nada disto se faz por presunção, pois foi o próprio Criador que nos deu essa forma2.

Libellus Pseudo-Ambrosiano 3
1697 Hino três vezes Santo. Estendeu-se por quase todas as igrejas orientais e algu-
mas ocidentais o costume de, nas oblações dos sacrifícios..., o povo dizer a uma só voz
com o sacerdote, isto é: Santo, Santo, Santo, Senhor dos Exércitos, toda a terra está
cheia da sua majestade.

1
A MBROSIÁSTER , Quaestiones Veteris et Novi Testamenti (=PL 35, 2207-2452; PLS 2; CSEL 50). Não se
conseguiu ainda identificar o autor que se esconde por detrás do pseudónimo Ambrosiáster. Terá vivido
na época do papa Dâmaso (366-384). É ele o primeiro autor que indica uma bênção matrimonial na igreja.
2
11 Quomodo ergo dici potest male fieri aut non licere, quod ex Dei benedictione et eo favente augmentum
fidei? 12 Cuius rei traditio et in synagoga mansit 13 et in ecclesia celebratur ut Dei creatura cum Dei
benedictione iungatur. 14 Non utique per praesumptionem quia ab ipso Creatore sic data est forma.
3
A MBROSIÁSTER , Libellus pseudo-ambrosiano (=Sacris Erudiri, Steenbrugge-Brugge 1960, 149).
PAPA DÂMASO 467

Papa Dâmaso

Inscrições cristãs 1

1. Basílica dos Apóstolos, ad Catacumbas. Tu, que procuras os nomes de Pedro e 1698
de Paulo,/ deves saber que os santos habitaram primeiro aqui2.
12. Cemitério de Calisto. Aqui repousa reunida uma multidão de santos; se os pro- 1699
curais, os seus corpos estão recolhidos nestes túmulos veneráveis; as suas almas
sublimes, o Reino dos Céus as roubou. Aqui os companheiros de Sisto que levam os
troféus do inimigo. Aqui o nome de homens eminentes, que guardam os altares de
Cristo. Aqui está depositado um bispo, cuja vida se gastou numa longa paz. Aqui os
santos confessores, que a Grécia enviou. Aqui os jovens, as crianças, os velhos, gera-
ções castas, que quiseram guardar o pudor virginal. Aqui, confesso-o, eu Dâmaso, teria
querido mandar sepultar os meus restos, mas tive medo de perturbar as piedosas
cinzas dos santos 3.
13. No tempo em que a espada destruía as entranhas sagradas da mãe, eu, o pastor 1700
aqui sepultado, ensinava os mandamentos do Céu. De repente chegam e prendem-me,
sentado na minha cadeira. Eram soldados que tinham sido enviados: o povo estendeu
o pescoço às suas espadas. Rapidamente o velho viu quem desejava receber a palma do
martírio em vez dele. Foi ele o primeiro a oferecer-se e a entregar a sua cabeça, para que
o furor impaciente dos inimigos não atingisse mais ninguém. Cristo, que dá a vida
eterna em recompensa, manifesta o mérito do pastor, e ele próprio toma conta do
rebanho4.
14. Tu, que isto lês, reconhece o mérito idêntico dos dois (mártires) 5, 1701
A quem o pastor Dâmaso, depois dos prémios, dedicou esta inscrição.
Estêvão, ao proferir palavras inspiradas,
Viu-se honrado com pedras pelo povo judeu,
E recebeu o melhor troféu das mãos do inimigo;
Foi ele o primeiro diácono fiel que arrebatou o martírio.
Quando a multidão enlouquecida queria obrigar São Tarcísio,
a expor aos olhares profanos os sacramentos de Cristo, que levava consigo,
ele, para não entregar os membros celestes a gente cheia de ódio,
preferiu perder a vida, morrendo apedrejado 6.

1
P APA D ÂMASO , Epigrammata (=PL 13, 375. 1217; 74, 575; DACL 4, 145-197). Dâmaso nasceu em Espanha
por volta de 305 e terá morrido em Roma depois de 384. Foi Papa entre 366-384.
2
Hic habitasse prius sanctos cognoscere debes / Nomina quisque Petri pariter Paulique requiris.
3
Original quase completamente reconstituído com os fragmentos e conservado na cripta dos Papas no cemi-
tério de Calisto.
4
Elogio de Sisto, no cemitério de Calisto.
5
Par meritum, quicumque legis, cognosce duorum.
Quis Damasus rector títulos post praemia reddit.
Iudaicus populus Stephanum meliora monentem
Perculerat saxis, tulerat qui ex hoste tropaeum,
Martyrium primus rapuit levita fidelis.
Tarsicium sanctum Christi sacramenta gerentem
Cum male sana manus premeret vulgare profanis,
Ipse animam potius voluit dimittere caesus
Prodere quam canibus rabidis caelestia membra.
6
Elogio de Estêvão, o primeiro mártir, e do acólito Tarcísio, no cemitério de Calisto.
468 SÉCULO IV

1702 18. Dâmaso, bispo, fez esta inscrição. Heraclito afastou os relapsos de porem luto
pelos seus pecados. Eusébio ensinou estes infelizes a chorar os seus crimes. O povo
divide-se em partes, com um furor crescente; daí sedições, assassínios, guerras, discórdias,
discussões; imediatamente ambos são expulsos pelo rigor do tirano, embora o reitor
tenha guardado intactos os bens da paz. Ele suportou o exílio com alegria, tomando o
Senhor por juiz, na margem do Trinacrie, deixou o mundo e a vida. A Eusébio, 7 bispo
e mártir.
Fúrio Dionísio Filócalo escreveu isto, tendo do papa Dâmaso o culto e o amor.
1703 23. Cemitério de Pretextato. Olhai: este túmulo guarda os membros celestes dos
santos que de repente foram roubados pela corte do Céu. Estes companheiros da sua
cruz invencível, ao mesmo tempo que estes diáconos, participando no mérito da fé do
seu chefe, ganharam as moradas do Céu e o reino dos eleitos. O povo de Roma está feliz
e orgulhoso por eles terem merecido triunfar com Cristo, sob as ordens de Sisto8.
1704 Túmulo de Lourenço9. Só a fé de Lourenço foi capaz de vencer os açoites, os
carrascos, as chamas, os tormentos, as cadeias.
1705 Túmulo do Papa Libério10. Ao nascer, foste recebido por esta Igreja, tua mãe,
que te alimentou com dedicação... Ainda criança, começaste a pronunciar palavras
doces. Bem depressa, em razão do teu tom natural e da tua piedade, tornaste-te leitor
das Escrituras, e a tua língua começou a fazer ouvir as palavras da Lei e a própria Lei.
O Senhor animou a tua infância e simplicidade, que o pecado não alterou; nenhuma
malícia enganadora alterava artificialmente o texto das páginas no teu ofício exacto e
puro de leitor. Na adolescência conservaste a mesma simplicidade de coração, maduro de
espírito, prudente, doce, grave, íntegro, cheio de justiça. Leitor sem mancha, esta foi a
tua vida de ouro.
Quando te tornaste jovem foste... feito diácono para servires a Deus, sem enganos
e de coração puro, na castidade, na integridade, no pudor, e para seres digno, após
alguns anos desta vida de diácono..., de seres eleito... para esta grande sede, onde brilha
com serenidade o esplendor de Cristo... Papa imaculado..., quem não chorava de novo
os seus pecados, quando expunhas os teus tratados?... Sendo da casa de Cristo, estendes a
mão aos que sofrem, expulsas os Demónios, limpas e purificas os que estão acabru-
nhados de doenças...
1706 27. O mártir Eutíquio resistiu às ordens dum tirano cruel e às mil torturas dos
carrascos aplicados a prejudicar; ele foi capaz, fazendo brilhar a glória de Cristo. Ao
horror duma prisão infecta acrescentaram-se novos tormentos: aí depõem cacos agu-
dos para expulsar o sono, durante doze dias recusam-lhe alimentos, e lançam-no numa
cova. O seu sangue sagrado banha todas as feridas de que o cobriu a terrível força da
morte. Durante o sono da noite, um sonho, agitando os espíritos, revela onde estão
sepultados os restos do inocente; procuram-no, descobre-se, honra-se. Ele espalha
favores de toda a espécie. Dâmaso afirma que veneramos o seu sepulcro com razão 11 .

7
Eusébio foi Papa entre 309-310.
8
Elogio de Felicíssimo e Agapito, no cemitério de Pretextato.
9
Elogio da fé de Lourenço.
10
O Papa Libério foi martirizado em 366.
11
Elogio do mártir Eutíquio.
TIMÓTEO DE ALEXANDRIA 469

29. Marcelino, Pedro, escutai o relato do vosso triunfo. Quando eu era menino, o 1707
carrasco contou-me, a mim Dâmaso, que o perseguidor furioso tinha ordenado que vos
cortassem a cabeça no meio dos silvados, para que ninguém pudesse encontrar o vosso
sepulcro. Alegres, vós preparastes este com a vossas próprias mãos. Depois de terdes
repousado algum tempo num túmulo branco, fizestes em seguida saber a Lucília que
vos agradava ter os vossos corpos santos sepultados aqui 12 .
37. O presbítero Hipólito, diz-se, quando as ordens do tirano oprimiam, persistiu 1708
no cisma de Novato. No tempo em que a espada destruiu as entranhas sagradas da
Mãe, quando, devotado a Cristo, ele caminhava para os reinos dos santos e que o povo
lhe perguntava para onde ia, ele disse que seguissem todos a fé católica. Assim, tendo
confessado, mereceu ser mártir. Dâmaso cita o que lhe foi contado: Cristo sente tudo 13.
39. A tradição conta que, afastando-se dos seus santos pais, logo que ouviu os sons 1709
lúgubres da trombeta, a virgem Inês deixou imediatamente o regaço da sua ama e,
espontaneamente, atiçou as ameaças e a raiva do cruel tirano, que queria fazer consu-
mar pelas chamas o seu nobre corpo. Apesar da sua fraqueza, ela triunfou do seu
grande terror: nua, envolveu os seus membros na cabeleira solta com medo que um
rosto mortal visse este templo do Senhor. Ó venerável a meus olhos e ilustre mártir,
santa heroína do pudor, sede favorável, eu to peço, às orações de Dâmaso 14.
42. Vós todos que ledes, venerai o sepulcro dos santos. A posteridade não pode 1710
reter nem o seu nome nem o seu número. Sabei que o papa Dâmaso adornou o seu
túmulo. Triunfando do regresso do seu clero, obtido pela ajuda de Cristo, o pontífice
presta as suas homenagens aos santos mártires 15 .
63. Cante alegremente o povo santo de Deus, porque os muros se elevam e a casa do 1711
mártir Hipólito foi renovada. Os ornamentos aparecem, sob o pontificado de Dâmaso,
destinados desde o seu nascimento a ocupar a sede apostólica. Esta sala nobre foi
construída em vista de triunfos pacíficos: ela guardará a honra e a fé eterna. Todos os
ornamentos que vês foram feitos pelo presbítero Leão 16.

Timóteo de Alexandria

Respostas canónicas 17
Fórmula para um baptismo sob condição: Eu te baptizo em nome do Pai e do 1712
Filho e do Espírito Santo...18

12
Elogio de Marcelino e Pedro.
13
Elogio do presbítero Hipólito.
14
Elogio da virgem Inês.
15
Elogio de vários mártires romanos.
16
Elogio do mártir Hipólito.
17
T IMÓTEO DE A LEXANDRIA , Responsa canonica (=PG 33, 1296-1308; J. B. P ITRA , Iuris Ecclesiastici
Graecorum historia et monumenta, 2 vol., Roma 1864-1868). Estas respostas podem datar de 380-385.
18
bapti/ z w se\ ei) j to\ o) / n oma tou= Patro/ j kai\ tou= Ui( o u= kai\ tou= a( g i/ o u Pneu/ m atoj .
470 SÉCULO IV

Cirilo de Jerusalém

Catequeses pré-baptismais 1

CATEQUESE PRELIMINAR

1713 1. Já vos impregna, ó iluminandos, o perfume da bem-aventurança; já colheis as


flores espirituais para tecer coroas celestes; já foi derramada a fragrância do Espírito
Santo. Já estais diante da porta do palácio real: Deus queira que sejais introduzidos
pelo próprio Rei. Já apareceram as flores das árvores: Deus queira que o fruto seja
perfeito. Já destes os vossos nomes: foi a inscrição no exército. Trazeis as lâmpadas
para ir ao encontro do esposo. Sentis o desejo de ser cidadãos do Céu e o bom propósito
e a esperança que se lhe segue... Deus é rico e gosta de fazer o bem, mas espera a
disposição sincera de cada um... O propósito sincero faz de ti um eleito. Mas embora
estejas presente com o corpo, se o espírito estiver ausente, não tirarás nenhum proveito.
1714 2. Também Simão Mago um dia se aproximou do baptismo. Foi baptizado, mas não
iluminado. O corpo foi banhado pela água, mas o coração não foi iluminado pelo
Espírito. Na verdade, o corpo desceu à piscina e depois subiu, mas a alma não foi
sepultada com Cristo, nem com Ele ressurgiu... Nenhum de vós seja surpreendido a
tentar a graça divina, nenhuma raiz amarga, ao germinar, vos perturbe...
1715 4. Nós, os ministros de Cristo, recebemo-vos um a um. Assumindo o ofício de
ostiários, deixámos a porta aberta. É possível que tenhas entrado com a alma manchada de
pecados e com más intenções. Entraste; foste admitido, o teu nome foi inscrito. Vês a
beleza admirável desta igreja? Observas a sua ordem e disciplina? Contemplas a leitura
das Escrituras, a presença dos ministros, a ordem da instrução? Deixa-te mover pela
santidade do lugar e ensinar pelo que vês. Sai por agora... Tens ainda muito tempo.
Tens um período de quarenta dias de penitência. Tens muito tempo para te despojares
da veste e limpá-la, para a vestires e entrares de novo. Mas, se perseverares nos maus
propósitos..., não esperes receber a graça. A água receber-te-á, mas o Espírito não te
admitirá...
1716 5. Talvez tenhas vindo por algum outro pretexto. Pode acontecer que um homem
queira agradar a uma mulher e venha por este motivo. O mesmo se pode dizer das
mulheres. O escravo muitas vezes quer agradar ao patrão... Assumo o risco e recebo-te,
ainda que venhas com más intenções... Caíste nas redes da Igreja. Foste capturado
vivo. Não fujas. Jesus cativou-te...
1717 6. És chamado catecúmeno. Quando estavas fora, foste envolvido por sons: ouvindo
a esperança e não a vendo; ouvindo mistérios e não os compreendendo; ouvindo as
Escrituras sem entender a sua profundidade. Agora, já não é fora de ti que ouves os
sons, mas no teu interior. Na verdade, o Espírito que habita em ti fará da tua alma uma
morada divina. Quando ouvires o que se escreveu sobre os mistérios, então entenderás
o que ignoravas... Entraste para a luta. Suporta a corrida. Não tens outra ocasião como esta...
1718 7. Não é possível receber o baptismo duas ou três vezes..., pois há um só Senhor,
uma só fé, um só baptismo. Só os hereges são rebaptizados, uma vez que o primeiro
baptismo não foi baptismo.

1
CIRILO DE JERUSALÉM, Procatechesis et Catecheses ad illuminandos (=PG 33, 331-1060). As Catequeses pré-
baptismais foram pronunciadas em Jerusalém, por volta do ano 350. Cirilo nasceu em 315 e morreu em 387.
CIRILO DE JERUSALÉM 471

8. Deus não exige de nós nada mais do que a boa disposição. Não digas: Como me 1719
serão perdoados os pecados? Eu digo-to: querendo e acreditando...
9. Os hábeis ourives servem-se de instrumentos delicados para soprar no fogo e 1720
fazer surgir as paletas de ouro escondidas no cadinho. É quando eles atiçam a chama
muito perto, que descobrem o objecto que procuram. Do mesmo modo, quando os
exorcistas, pelo «sopro» divino, lançam o medo, e como que... reacendem a alma num
cadinho, é então que o Demónio se põe em fuga e fica a salvação. Fica também a
esperança da vida eterna e, finalmente, a alma purificada das suas faltas possui a
salvação. Corram teus pés para as catequeses. Recebe prontamente os exorcismos: se
fores insuflado e exorcizado, isso redundará em salvação para ti... A alma não pode ser
purificada sem os exorcismos divinos, tirados das divinas Escrituras... Então, o Demónio
inimigo foge... Deus chamou. Tu foste chamado.
10. Vem com assiduidade às catequeses... Tens muitos inimigos. Toma muitas ar- 1721
mas. Lutas contra muitos. É preciso aprender o modo de vencer... É preciso exercitar
a mão direita... para travares o combate do Senhor...
11. Lembro-te ainda: aprende o que ouves e guarda-o para sempre... Os ensinamentos 1722
sobre o baptismo da regeneração são dados segundo uma ordem. Se hoje formos negligentes
a seu respeito, como os recuperaremos amanhã?... A catequese é como um edifício: se
não cavarmos fundo para colocar os alicerces, se não procedermos ordenadamente à
construção da casa para que ela não abra fendas, não tardará em ameaçar ruína, e todo
o trabalho anterior se perderá. É preciso pôr pedra sobre pedra, fiada sobre fiada...
12. Se, depois de ter sido dada uma catequese, um catecúmeno te perguntar o que 1723
disseram os mestres, não digas nada. Transmitimos-te um mistério e a esperança do
mundo futuro: guarda o segredo por Aquele que te há-de recompensar para não acon-
tecer que alguém te diga: Que mal te fará se eu aprender?... Se um catecúmeno ouvir os
mistérios da boca de um fiel, fica desorientado, pois não entende o que escutou,
confunde tudo e cobre de ridículo o que foi dito... Tu já estás à porta. Tem cuidado e
não digas nada levianamente. Não é que as coisas que se dizem não sejam dignas de ser
ditas, mas porque o ouvido é indigno de as receber. Também já foste catecúmeno, e eu
não te contava as coisas que eram ensinadas...
13. Quando chegardes antes da hora dos exorcismos, cada qual fale do que se refere 1724
à piedade. Se algum de vós faltar, os outros devem procurá-lo... Daqui por diante não
te ocupes com coisas inúteis... Levanta o teu olhar. O tempo que estás a viver exige
isso... Foi-te coberto o rosto com um véu, para que o pensamento ficasse atento e não
pensasse em nada mais, para que, vagueando os olhos, não fizessem o coração vaguear
com eles...
14. Quando se fizer um exorcismo, enquanto não chegarem todos os que vão ser 1725
exorcizados, estejam os homens com os homens e as mulheres com as mulheres...
Embora a igreja se feche e vós todos estejais dentro dela, todos devem estar separados:
homens com homens e mulheres com mulheres, para que o motivo da salvação não se
converta em pretexto de perdição. Embora seja coisa agradável estarem uns sentados
junto dos outros, longe devem estar as paixões. Os homens estejam sentados e tenham
algum livro nas mãos; enquanto um lê, o outro escute. O grupo das jovens, por seu
lado, disponha-se de maneira que aí se cante ou leia em voz baixa, de modo que os
lábios falem, mas não o escutem os ouvidos alheios... A mulher casada proceda de
modo semelhante: reze, mova os lábios, mas a sua voz não seja ouvida...
15. Vejo o esforço de cada um e a piedade de cada uma... Desfrutareis das águas porta- 1726
doras de Cristo2 e que exalam o seu odor. Desde já levantai o olhar do espírito para o alto...

2
Cristóforas.
472 SÉCULO IV

1727 16. Grande coisa é o baptismo que vos propomos: libertação para os cativos, perdão
das ofensas, morte do pecado, renascimento da alma, veste luminosa, selo3 santo e
indelével, veículo para o Céu, delícias do Paraíso, gosto antecipado do reino, graça da
adopção... prepara o teu coração para receber a doutrina e participar dos sagrados
mistérios. Reza com insistência, a fim de que Deus te faça digno dos mistérios celestes
e imortais. Não cesses de rezar nem de dia nem de noite. E, quando o sono fugir dos
teus olhos, entregue-se a tua alma à oração... Ocupa a tua alma em aprender... Se
alguém te disser: Acaso vais lá para descer às águas? Porventura, não dispõe a cidade
de balneários recém-construídos?... Não atendas à simpatia de quem fala, mas antes a
Deus que opera em ti...
1728 17. É como homens que vos ensinamos e anunciamos estas coisas... A minha missão
é falar-vos; o vosso dever é acolher; a Deus pertence o levar à perfeição. Consolidemos
a mente, confortemos a alma, preparemos o coração... Deus pode fazer do infiel um
fiel, desde que lhe abra o coração. Queira Ele perdoar o que tiver contra vós, conceder-vos
o perdão dos pecados passados, plantar-vos dentro da Igreja e escolher-vos para seus
soldados, revestindo-vos com as armas da justiça, enchendo-vos das obras celestes da
nova aliança e concedendo sempre o selo indelével do Espírito Santo, em Cristo Jesus
nosso Senhor, a quem seja dada glória pelos séculos dos séculos. Amen.
1729 Ao leitor: Podes dar a ler estas catequeses dos iluminandos aos que se preparam
para o baptismo e aos fiéis que já o receberam. Mas não as dês de modo algum aos
catecúmenos e a outras pessoas que não são cristãs... Se quiseres fazer uma cópia, fá-la
como se estivesses na presença do Senhor.

PRIMEIRA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS

1730 1. Discípulos do Novo Testamento, participantes dos mistérios de Cristo..., criai


em vós um coração novo e um espírito novo... Tendo iniciado um caminho bom e
suave, percorrei-o religiosamente. O Filho unigénito de Deus está pronto para vos
salvar... Vós que há pouco acendestes as lâmpadas da fé, trazei-as bem acesas nas
vossas mãos...
1731 2. Se aqui estiver algum escravo do pecado, prepare-se, pela fé, para receber a livre
regeneração da adopção filial... Despojai-vos do homem velho, pela confissão,... a fim
de vos revestirdes do homem novo... Recebei o penhor do Espírito Santo pela fé...
Aproximai-vos do selo místico para serdes reconhecidos pelo Senhor...
1732 3. Se algum dos presentes quiser tentar a graça, engana-se a si mesmo... Os que
recebem este selo espiritual e salvador devem acrescentar o próprio esforço...
1733 4. Vais ser transplantado para o paraíso espiritual e receberás um nome novo que
antes não tinhas. Anteriormente eras catecúmeno. Doravante serás chamado fiel... A
Deus pertence o plantar e o regar, a ti, porém, o fazer frutificar. A Deus pertence dar
a graça, a ti recebê-la e conservá-la...
1734 5. O tempo presente é de confissão. Confessa o que fizeste, quer por palavras quer
por obras, tanto de noite como de dia... Submete-te aos exorcismos, vem às catequeses, fixa
na memória o que é dito, pois as coisas são ditas, não só para serem ouvidas, mas
também para que seles pela fé o que foi dito... Abre mão das coisas presentes e confia
nas futuras... Sê pronto para a oração... Limpa o teu coração, para que nele caiba graça
mais abundante. O perdão dos pecados é concedido a todos por igual, mas a comunhão
do Espírito Santo é dada na proporção da fé de cada um...

3
sfraxi/ j .
CIRILO DE JERUSALÉM 473

6. Perdoa, se acaso tiveres alguma coisa contra alguém... Vem com frequência às 1735
reuniões, não só agora, quando os ministros exigem a frequência, mas também depois
de receberes a graça... Alimenta a alma com leituras divinas, pois o Senhor preparou
para ti uma mesa espiritual. Diz também tu com o salmista: O Senhor é meu pastor,
nada me faltará... A Ele a honra, o poder e a glória pelos séculos dos séculos. Amen.

SEGUNDA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS

1. Coisa horrível é o pecado, e doença muito perigosa da alma a iniquidade... É um 1736


mal por livre escolha, um germe da consciência. O Profeta diz que pecamos por culpa
própria... Deus criou o homem recto, mas ele buscou muitas confusões... Como já
dissemos, o pecado é uma coisa terrível, mas não sem remédio. Terrível para quem nele
se endurece; de fácil cura para quem, pela penitência, dele se afasta...
2. Dirá alguém: O que é, afinal, o pecado?... Não é um inimigo que te ataca de fora, 1737
mas um germe mau que brota de ti mesmo. Se olhares correctamente com os teus olhos
não haverá concupiscência. Satisfaz-te com o que é teu e não cobices o alheio, pois o
roubo está aí...
3. Não és tu sozinho o autor do pecado. Existe um outro conselheiro péssimo, o 1738
Diabo. A todos solicita, mas não domina os que não consentem... Fecha a tua porta.
Afugenta-o para longe de ti e não te prejudicará...
4. O primeiro autor do pecado e pai de todos os males é o Diabo... Antes dele 1739
ninguém pecou. Pecou, não por ter recebido por natureza uma inclinação irresistível
para pecar... Criado bom, tornou-se Diabo por vontade própria, recebendo tal nome
pelo que fez. Sendo arcanjo, veio a chamar-se caluniador por ter caluniado. Sendo bom
servidor de Deus, tornou-se Satanás e é chamado assim com toda a razão, pois Satanás
significa adversário... Por causa dele foi expulso Adão, nosso primeiro pai...
5. E agora dirá alguém: Caímos. Não haverá possibilidade de nos levantarmos?... 1740
Numa palavra: morremos. Não haverá ressurreição?... Quem derramou o seu precioso
sangue por nós não nos livrará do pecado?... É coisa terrível não crer na esperança da
conversão... A salvação é possível, mas para tanto é exigida a livre decisão.
6. Deus é benigno, muito benigno. Por isso não digas: cometi delitos graves, não 1741
uma vez, mas muitas vezes... Os teus pecados juntos não superam a multidão das
misericórdias do Senhor... Entrega-te a Deus com fé. Mostra ao médico a tua doença...
7. Tu que só agora vieste à catequese, queres conhecer a benignidade de Deus?... 1742
Escuta a história de Adão... Deus expulsou-o do Paraíso..., mas estabeleceu-o em
frente do Paraíso para que, vendo donde decaíra e a situação a que baixara, se salvasse
pela penitência...
19. Benigno é o Senhor, pronto para o perdão e tardo para o castigo. Por isso, 1743
ninguém desespere da própria salvação. Pedro... negou três vezes o Senhor... Arrependido,
chorou amargamente. O choro mostra a conversão do coração...
20. Tendo diante dos olhos tantos exemplos de pecadores e penitentes que conse- 1744
guiram a salvação, confessai também vós ao Senhor os vossos pecados, a fim de
receberdes o perdão...

TERCEIRA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS

2. Começai a lavar as vossas vestes pela penitência, para que o Esposo vos encon- 1745
tre sem mancha quando fordes à sua presença. O Esposo a todos chama sem discrimi-
nação, porque a sua graça é abundante e generosa; todos são convocados pela voz dos
seus arautos; mas depois Ele próprio há-de escolher os que entram naquelas núpcias,
474 SÉCULO IV

que são a figura do baptismo. Não aconteça agora que algum daqueles que deram o
nome chegue a ouvir estas palavras: Amigo, como entraste aqui sem a veste nupcial4?... Até
agora, com efeito, tendes estado de pé e à porta: assim todos possais dizer: O rei fez-
-me entrar no seu tesouro5.
1746 3. Aproximai-vos do baptismo com grande cuidado. Cada um de vós se apresentará
diante de Deus, na presença de multidões inumeráveis de Anjos. O Espírito Santo
marcará as vossas almas com o seu sinal; vós ides ser recrutados para o exército do
grande Rei. Preparai-vos, portanto, e estai em ordem, não apenas com a brancura
resplandecente das vossas vestes, mas com o fervor da vossa alma segura da sua
inocência... Não olhes para a acção do banho, como se fosse uma água comum e
simples, mas espera a graça que é dada juntamente com a água. Porque, assim como
tudo aquilo que se oferece nos altares aos ídolos, ainda que de si sejam coisas naturais
e comuns, mas com a invocação dos ídolos se tornam contaminadas, do mesmo modo,
mas noutro sentido, a água, ao receber a invocação do Pai e do Filho e do Espírito
Santo, recebe a força da santidade.
1747 4. Enquanto a água purifica o corpo, o Espírito Santo sela a alma, a fim de que,
aspergida a alma pelo Espírito e banhado o corpo pela água pura, nos aproximemos de
Deus. Ao preparares-te para descer à água, não repares só na água, mas recebe a
salvação pela eficácia do Espírito Santo. Sem os dois não podes alcançar a perfeição...
Quem foi baptizado com água, mas é indigno do Espírito, não possui a graça perfeita.
E, mesmo que alguém pratique obras de virtude, se não recebeu, por meio da água, o
selo (do Espírito Santo), não entrará no Reino dos Céus. Palavra forte, mas não minha.
Foi Jesus quem a disse...
1748 5. Se alguém quiser saber a razão pela qual a graça é dada pela água e não por outro
elemento qualquer, encontrará a resposta manejando as divinas Escrituras...
1749 10. Quem não recebe o baptismo não pode salvar-se, excepto os mártires, que alcan-
çam o Céu mesmo sem a água. O Salvador, que redimiu o mundo pela cruz, fez jorrar
do seu lado aberto sangue e água, para que uns, no tempo de paz, fossem baptizados
com a água, e outros, em tempo de perseguição, com o seu próprio sangue. O Salvador
costumava falar do martírio chamando-lhe baptismo, como quando disse: Podeis beber
o cálice que eu vou beber e ser baptizados no baptismo com que vou ser baptizado?
1750 11. Ao ser baptizado, Jesus santificou o baptismo... Foi baptizado, não para rece-
ber o perdão dos pecados..., mas para distribuir aos que seriam baptizados a graça e a
dignidade divinas..., a fim de que, doravante, pela comunhão na mesma realidade,
recebamos a dignidade da salvação.
1751 12. Descerás à água carregado de pecados... mas subirás vivificado pela justiça...
Jesus desceu às águas e acorrentou o forte, a fim de que nós recebêssemos o poder de
caminhar sobre serpentes e escorpiões... A vida foi adiante para que doravante a morte
fosse travada, para que todos nós, que nos salvámos, pudéssemos dizer: Onde está, ó
morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória? O baptismo aniquilou o
aguilhão da morte.
1752 15. Caso te prepares, receberás (a graça do baptismo)..., e todo o pecado que tiveres
cometido te será perdoado...
1753 16. Ao redor de vós dançarão os Anjos e perguntarão: Quem é esta que sobe vestida
de branco e apoiada no seu bem-amado6?... Oxalá todos vós, terminado o tempo do
jejum, bem lembrados do que vos foi dito, produzindo boas obras e de coração irrepreensível

4
Mt 22, 12.
5
Cant 1, 3.
6
Cant 7, 5.
CIRILO DE JERUSALÉM 475

ao lado do noivo espiritual, consigais de Deus o perdão dos pecados. A Ele seja dada a
glória com o Filho e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amen.

QUARTA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 7

1. O Diabo disfarça-se em anjo de luz, não para voltar para onde estivera..., mas 1754
para envolver na escuridão das trevas os que levam uma vida igual à dos Anjos...
Andam por aí muitos lobos vestidos com peles de ovelhas... Precisamos da graça
divina, de espírito vigilante e de olhos abertos... É por isso que se realizam as prega-
ções. É por isso que se fazem as leituras.
2. A doutrina sem as obras não é aceite por Deus, nem as boas obras separadas da 1755
doutrina... Por este motivo se ensina a doutrina da fé e se fazem exposições sobre ela.
3. Antes de ministrar as doutrinas sobre a fé, acho que procedo bem expondo agora, 1756
resumidamente, a série de dogmas essenciais... Fazemos isso a fim de que os que têm
necessidade de catequese tirem proveito e os que já têm ciência refresquem a memória
dos conhecimentos anteriormente adquiridos.
4. Em primeiro lugar, como fundamento, seja estabelecido em vossa alma o dogma 1757
sobre Deus. Deus único é um, não gerado, sem princípio, imutável. Não foi gerado por
outro e não tem um sucessor na vida. Não começou a viver no tempo, nem terá fim. Ele
é bom e justo...
5. Este Pai de nosso Senhor Jesus Cristo não está limitado a nenhum lugar, nem é 1758
menor do que o céu... Está em tudo e fora de tudo... Conhece com antecedência as
coisas futuras e é mais poderoso do que todas elas. Conhece tudo e procede conforme
quer. Em tudo perfeito..., é sempre o mesmo e sempre igual em tudo...
6. Muitos homens afastaram-se de Deus por diversos motivos: uns fizeram do sol 1759
seu deus..., outros a lua..., uns as artes, outros os alimentos e outros os prazeres... Uns
colocaram a imagem de uma mulher nua no alto..., adorando o próprio vício na aparência
visível. Outros, deslumbrados pelo brilho do ouro, elevaram-no a ele e outros metais
como deuses...
7. Crê também no Filho de Deus, uno e único, nosso Senhor Jesus Cristo... 1760
8. Não separes o Filho do Pai... 1761
9. Crê ainda que este unigénito Filho de Deus, por nossos pecados, desceu dos 1762
Céus à terra... Nasceu da Virgem Santa e do Espírito Santo...
10. Ele foi crucificado verdadeiramente por nossos pecados... 1763
11. Como homem foi colocado no sepulcro aberto na rocha... 1764
12. Jesus, que fora sepultado, ressurgiu verdadeiramente ao terceiro dia... 1765
13. Terminado o curso da sua vida mortal... Jesus subiu de novo aos Céus... Ao 1766
subir, estavam ao seu lado os Anjos e os Apóstolos que O contemplavam... Muitos, no
decorrer dos tempos, foram crucificados. Mas que outro crucificado houve cuja invo-
cação ponha em fuga os Demónios?
14. Não nos envergonhemos da cruz de Cristo. Mesmo que outros a escondam, leva 1767
tu a sua marca visivelmente sobre a fronte, a fim de que os Demónios, vendo o sinal do
rei, fujam a tremer, para longe. Faz este sinal ao comer e ao beber, ao sentar-te, quando
te deitas e quando te levantas, ao falar e ao passear, numa palavra, em todos os
momentos. Aquele que foi crucificado na cruz está no alto dos Céus. Se, depois de ter
sido crucificado e sepultado, tivesse ficado no sepulcro, teríamos razões para nos
envergonhar. Porém, depois de crucificado neste Gólgota, subiu ao Céu no monte das

7
Esta catequese é uma apresentação resumida de cada um dos artigos do Credo.
476 SÉCULO IV

Oliveiras, situado a Oriente. Daqui, desceu à mansão dos mortos; da lá, voltou nova-
mente para nós; de nós, voltou novamente para o Céu...
1768 15. Este Jesus Cristo, que subiu, virá de novo dos Céus e não da terra...
1769 16. Crê também no Espírito Santo e tem d’Ele a mesma opinião que tens do Pai e do
Filho...
1770 17. Mantém sempre firme em ti tudo o que agora te é exposto resumidamente...
1771 18. Depois do conhecimento desta... gloriosa e santíssima fé, conhece-te a ti mesmo,
para saberes quem és. Tu, ó homem, és constituído de alma e corpo... A alma é a mais
bela obra de Deus, a imagem do seu Criador...
1772 19. Aprende ainda isto: a alma não pecou antes de vir a este mundo. Se viemos sem
pecado, pecamos agora por livre e espontânea vontade...
1773 20. A alma é imortal e todas as almas, tanto dos homens como das mulheres, são
iguais...
1774 21. A alma é livre. O Diabo pode sugerir, mas não tem poder de forçar contra a
vontade...
1775 22. Não escutes os que afirmam que o corpo é estranho a Deus... Mas, afinal, o que
incriminam esses neste admirável corpo?... Na sua estrutura, o que é que não está feito
com arte?...
1776 23. Não me digas que o corpo é a causa do pecado... O corpo não peca por si
mesmo... Respeita, pois, o teu corpo como sendo o templo do Espírito Santo... Não
sujes a tua carne..., não manches a tua veste puríssima. Se a manchaste, lava-a pela
penitência. Purifica-a enquanto há tempo.
1777 24. O sermão sobre a castidade deve ser escutado, em primeiro lugar, pelo grupo dos
monges e das virgens... e a seguir por todo o povo da Igreja...
1778 25. Mas, se vives em estado de perfeita castidade, de modo nenhum podes elevar-te
com soberba contra os que vivem em matrimónio, pois o estado matrimonial e o leito
conjugal sem mancha é digno de muita honra...
1779 26. Os que casam uma só vez não censurem o que contraem segundas núpcias...
1780 27. Uma vez que muitos tropeçam por causa dos alimentos, guardai as seguintes
prescrições acerca deles: Há alguns que, sem distinção, comem do que foi oferecido aos
ídolos. Outros praticam a ascese, mas condenam os que comem...
1781 28. Cuida da tua alma, para nunca comeres daquilo que foi oferecido aos ídolos...
1782 29. A tua veste seja simples, não para te adornares, mas para a necessária protecção...
1783 30. Peço-te que uses o corpo com moderação, sabendo que ressurgirás dos mortos...
1784 31. Não atendas a quem afirma que este corpo não ressurgirá. Na verdade há-de
ressurgir...
1785 32. O Senhor concedeu-nos, por sua benignidade, a penitência do baptismo, para
que lancemos fora todo o pecado...
1786 33. Tudo isto nos ensinam as Escrituras, divinamente inspiradas, do Antigo e do
Novo Testamento. Um só é o Deus dos dois Testamentos...
1787 34. (A tradução dos Setenta) não foi produto e manejo de palavras e sofismas huma-
nos, mas resultado da inspiração do Espírito Santo, que realizou esta tradução das
divinas Escrituras.
1788 35. Destas, lê os vinte e dois livros. Não tenhas nada em comum com os apócrifos.
Medita só estes livros com persistência, pois são os que também na Igreja lemos com
toda a segurança...
CIRILO DE JERUSALÉM 477

36. No Novo Testamento há só quatro Evangelhos... Recebe ainda os Actos dos 1789
doze Apóstolos e, além disto, as sete Epístolas católicas: de Tiago e Pedro, de João e
Judas. A seguir, como se fosse o selo de todos e a derradeira obra dos discípulos,
recebe as catorze Epístolas de Paulo... Todos os livros que não são lidos nas igrejas,
não os leias também tu em particular, como já ouviste...
37. Foge, por fim, de todas as obras do Diabo... 1790

QUINTA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS

1. A dignidade que o Senhor vos confere, ao elevar-vos da ordem dos catecúmenos 1791
à dos fiéis, é muito grande. Paulo mostra-o, ao dizer: Fiel é Deus, por quem fostes
chamados à comunhão com seu Filho, Jesus Cristo nosso Senhor8. Deus é chamado
fiel, e tu também recebes o mesmo título e com ele grande dignidade... Tornas-te
participante do título de Deus...
2. Quanto ao mais, o que se procura é que cada um de vós seja fiel à sua consciência... 1792
5. Abraão não foi justificado só pelas obras, mas também pela fé. Fizera muitas 1793
obras boas, mas nunca fora chamado amigo de Deus. Só o foi quando acreditou...
6. À semelhança dele, pela fé, recebemos o selo espiritual, ao sermos circuncidados no 1794
coração pelo Espírito Santo através do baptismo...
10. Os justos agradaram a Deus com o esforço de muitos anos. Mas o que eles 1795
conseguiram em muitos anos de serviço agradável a Deus, é-te concedido por Jesus em
breves momentos...
12. Na instrução e profissão da tua fé, abraça e conserva só aquela que a Igreja agora 1796
te entrega e que é fundamentada em toda a Escritura. Nem todos podem ler a Escritura,
uns porque não sabem e outros porque estão demasiadamente ocupados. Por isso, a
fim de que ninguém pereça por causa da ignorância, resumimos todo o dogma da fé nos
poucos versículos do Símbolo. Aconselho-te a levar esta fé como viático ao longo de
toda a tua vida. Não admitas outra, mesmo que nós, mudando de ideias, viéssemos a
ensinar o contrário do que ensinamos agora...
Conserva em tua memória estas palavras tão simples que ouves agora, e a seu
tempo buscarás na Escritura o fundamento de cada um dos artigos. Este Símbolo da fé
não foi composto segundo o parecer dos homens; as verdades que ele contém foram
seleccionadas entre os pontos mais importantes de toda a Escritura e resumem toda a
doutrina da fé... Portanto, irmãos, conservai cuidadosamente a tradição que agora
recebeis e gravai-a profundamente em vossos corações. Tem igualmente cuidado para
que, ao meditares no que te foi transmitido, nenhum catecúmeno o escute...

SEXTA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 9

2. Não vamos explicar o que é Deus, pois não sabemos exactamente o que Deus é 1797
em Si. Confessamo-lo com candura. No que se refere às coisas de Deus é grande ciência
reconhecer a nossa ignorância...
3. Grande e venerável foi Abraão. Grande para os homens. Mas, quando se aproxi- 1798
mou de Deus, disse com generosidade e sinceridade: Eu sou terra e cinza.

8
1 Cor 1, 9.
9
Catequese sobre as palavras: Creio em um só Deus.
478 SÉCULO IV

SÉTIMA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 10

1799 4. A palavra Pai faz pensar ao mesmo tempo na palavra Filho. De modo semelhante,
se alguém nomeia o Filho, logo pensa também no Pai...
1800 5. Em sentido amplo, Deus é Pai de muitos seres, mas, por natureza e na realidade,
é o Pai do único Filho unigénito e único gerado, nosso Senhor Jesus Cristo.
1801 8. Não é por termos nascido segundo a natureza do Pai dos Céus que nós o chamamos
Pai, mas por termos sido transferidos pela graça do Pai e por acção do Filho e do
Espírito Santo da escravidão à adopção.

OITAVA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 11


1802 6. A riqueza, o ouro, a prata, ao contrário do que alguns pensam, não pertencem ao
Diabo. Todo o mundo das riquezas pertence ao fiel. É preciso que faças bom uso
delas... Queres até saber como as riquezas se podem tornar a porta do Reino dos Céus?
Vende, diz Jesus, o que possuis, dá aos pobres e terás um tesouro nos Céus.

NONA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 12

1803 1. É impossível ver a Deus com os olhos do corpo, pois o incorpóreo não pode ser
visto com os olhos do corpo...
1804 2. Contemplar a natureza divina com os olhos carnais, é impossível. Mas podemos
chegar, a partir das obras divinas, ao conceito do seu poder, segundo o que diz Salo-
mão: É a partir da grandeza e beleza das criaturas que, por analogia, se contempla o
seu autor.

DÉCIMA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 13


1805 5. O Salvador torna-Se para cada um aquilo que a cada um convém. Para os que
precisam de alegria, faz-se videira; para os que têm necessidade de entrar, torna-se
porta; e, para os que precisam de elevar as suas orações, foi constituído Mediador e
Sumo Sacerdote. Além disso, para os que estão em pecado, fez-Se cordeiro, sacrifican-
do-Se por eles. Fez-Se tudo para todos, ficando Ele, por natureza, o que era.

DÉCIMA PRIMEIRA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 14

1806 14. O Pai não fez passar o Filho do não-ser para o ser, nem adoptou como Filho o
que não existia. Antes, sendo o Pai eterno, eterna e inefavelmente gerou o Filho como
único, que não possui irmão.
1807 23. Cristo criou todas as coisas... Não que ao Pai faltasse poder para a formação
das criaturas, mas porque queria que o Filho dominasse sobre um mundo que Ele
próprio criara...

10
Catequese sobre a palavra: Pai.
11
Catequese sobre a palavra: Todo-poderoso.
12
Catequese sobre as palavras: Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis.
13
Catequese sobre as palavras: E num só Senhor Jesus Cristo.
14
Catequese sobre as palavras: Filho unigénito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos; por Ele
todas as coisas foram feitas.
CIRILO DE JERUSALÉM 479

DÉCIMA SEGUNDA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 15

1. Se Cristo é Deus, como de facto é, mas não assumiu a humanidade, estamos 1808
longe da salvação...
5. Em primeiro lugar, devemos indagar o motivo pelo qual Jesus desceu à terra... 1809
8. O Senhor escutou as preces dos Profetas: o Pai não permitiu que o género 1810
humano se perdesse. Ele enviou do Céu o seu Filho e Senhor como médico...
15. O Senhor assumiu de nós a nossa semelhança, para salvar a humanidade. Assumiu a 1811
nossa identidade, para dar àquele que O tinha abandonado uma graça mais abundante,
para tornar a humanidade pecadora participante de Deus.

DÉCIMA TERCEIRA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 16

1. Todas as acções de Cristo são motivo de glória para a Igreja universal; mas o 1812
supremo motivo de glória é a cruz...
3. Não nos envergonhemos da cruz do Salvador, mas gloriemo-nos com ela. É 1813
verdade que a mensagem da cruz é escândalo para os Judeus e loucura para os gentios; mas
para nós é a salvação. Para os que estão no caminho da perdição, é loucura; mas para
nós, que estamos no caminho da salvação, é poder de Deus... Se alguém não acreditar
no poder do Crucificado, interrogue os Demónios. Se alguém não der crédito às palavras,
creia nos factos manifestos. Muitos homens foram crucificados através do mundo.
Dian-te de nenhum os Demónios tiveram medo, mas apavoram-se à simples vista do
sinal da cruz de Cristo...
4. Verdadeiramente, Jesus padeceu por todos os homens. A cruz não é uma invenção: se 1814
o fosse, a redenção também o seria. Não foi aparente a morte: se o fosse, a salvação seria
um mito... A Paixão foi real. Ele foi verdadeiramente crucificado. Não nos envergonhamos
disto. Foi crucificado e não o negamos. Ao contrário, ao dizê-lo, glorio-me.
22. Fixa a fé na cruz como troféu contra aqueles que a contradizem. Sempre que 1815
quiseres começar uma discussão a favor da cruz de Cristo contra os infiéis, faz primeiro
com a mão o sinal da cruz de Cristo e o Adversário calar-se-á. Não te envergonhes de
confessar a cruz... A cruz é coroa, não é vergonha.
36. Não nos envergonhemos de confessar o Crucificado. Façamos o sinal da cruz na 1816
fronte, com os dedos, sem vergonha, e tracemos a cruz em tudo: sobre o pão que
comemos, sobre o cálice que bebemos, ao sairmos de casa e ao voltarmos, ao deitar e ao
levantar, ao caminhar e ao descansar. (O sinal da cruz) é uma grande protecção. É
gratuita, por causa dos pobres, e fácil, por causa dos fracos. De Deus vem a graça. A
cruz é o sinal dos crentes... Não desprezes este sinal por ser gratuito...
40. Tens como testemunhas da cruz os doze Apóstolos, o universo e o mundo dos 1817
homens que crêem no Crucificado. O próprio facto de estares agora aqui presente devia
dar-te a certeza do poder do Crucificado. Quem te trouxe para cá?... Na verdade, foi o
troféu salvífico de Jesus, a cruz, que a todos reuniu...
41. A cruz há-de aparecer um dia no céu com Jesus... Nós adoramos, ao lado do 1818
Espírito Santo, a Deus Pai, que enviou Cristo. A Ele a glória pelos séculos dos séculos.
Amen.

15
Catequese sobre as palavras: Encarnou e Se fez homem.
16
Catequese sobre as palavras: Crucificado e sepultado.
480 SÉCULO IV

DÉCIMA QUARTA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 17

1819 5. Queres saber o lugar (onde sepultaram Jesus)?... Perto do local onde O crucificaram
havia um jardim. Embora hoje, pela generosidade de um imperador ali tenham sido
construídos belos edifícios, anteriormente fora jardim e ainda agora temos disso vestí-
gios e restos. Um jardim fechado, uma fonte selada18.
1820 14. Os sumos sacerdotes e os fariseus, através de Pilatos, tinham selado o sepulcro,
mas as mulheres viram o Senhor ressuscitado... Os imperadores actuais construíram a
santa igreja onde estamos, a da Anástasis de nosso Deus Salvador, ornada de prata e
ouro, e enriqueceram-na com ofertas de ouro, prata e pedras preciosas...
1821 30. (O Senhor Jesus) está sentado no alto e está aqui no meio de nós, escutando o
que d’Ele dizemos e vendo os teus pensamentos... Está pronto para apresentar os
candidatos ao baptismo...

DÉCIMA QUINTA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 19

1822 1. Anunciamos o advento de Cristo. Não, porém, um só, mas também o segundo,
muito mais glorioso que o primeiro...
1823 3. Nosso Senhor Jesus Cristo virá do alto dos Céus. Virá no fim deste mundo, em sua
glória, no último dia. Será então o fim deste mundo criado, e o início de um mundo novo.

DÉCIMA SEXTA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 20

1824 2. O próprio Espírito Santo falou nas Escrituras. Ele próprio falou de Si mesmo o
que quis ou o que éramos capazes de compreender.
1825 4. Ninguém separe o Antigo e o Novo Testamento. Ninguém diga que um é o
Espírito lá e outro aqui, caso contrário ofende o Espírito Santo, que com o Pai e o Filho
é glorificado e adorado na Santíssima Trindade, no momento do santo baptismo...
Sabemos que o Espírito Santo falou pelos Profetas e desceu em línguas de fogo sobre
os Apóstolos no dia de Pentecostes, aqui em Jerusalém, no andar de cima da igreja dos
Apóstolos... Seria conveniente que assim como pregamos sobre Cristo e o Gólgota aqui no
Gólgota, falássemos sobre o Espírito Santo no andar superior daquela igreja...
1826 12. A água da chuva cai dos céus; e embora caia sempre do mesmo modo e na mesma
forma, produz efeitos muito variados... De maneira semelhante, o Espírito Santo,
sendo único, com uma única maneira de ser e indivisível, distribui por cada um a graça
como Lhe apraz... O Espírito tem um só e o mesmo modo de ser; mas, por vontade de
Deus e pelos méritos de Cristo, produz efeitos diversos.
1827 16. Branda e suave é a sua aproximação; benigna e agradável é a sua presença;
levíssimo é o seu jugo... Ele vem como protector fraterno: vem para salvar, curar,
ensinar, aconselhar, fortalecer, consolar, iluminar a alma de quem O recebe, e depois,
por meio desse, a alma de outros.
1828 18. Se, estando aqui sentado, te veio a ideia da castidade e virgindade, quem te
ensinou foi o Espírito Santo...
1829 19. O Espírito Santo é chamado Paráclito, porque consola, anima e ampara a nossa
fraqueza...
17
Catequese sobre as palavras: Ressuscitou dos mortos ao terceiro dia, e subiu aos Céus onde está sentado
à direita do Pai.
18
Estas Catequeses foram feitas na igreja construída ao lado do Santo Sepulcro.
19
Catequese sobre as palavras: Há-de vir julgar os vivos e os mortos, e o seu reino não terá fim.
20
Catequese sobre as palavras: E num só Espírito Santo Paráclito, que falou pelos Profetas.
CIRILO DE JERUSALÉM 481

21. Queres saber como é pela força do Espírito Santo que os mártires dão testemunho?... 1830
22. Grande, omnipotente em seus dons é o Espírito Santo... Em cada um de nós 1831
opera o que convém. Estando no meio de nós, vê a atitude de cada um, vê os pensamentos
e a consciência de cada um, o que falamos e o que pensamos... Imagina os bispos, os
presbíteros e diáconos, os monges e virgens e mais o exército dos leigos de cada povo.
Depois lembra-te como o grande guia e doador dos carismas em todo o universo inspira a
um o voto de castidade, a outro o da virgindade, a este a prontidão em dar esmolas, a
um o estímulo da pobreza e a outro o poder de expulsar espíritos inimigos. Como a luz
com a emissão de um só raio tudo ilumina, assim o Espírito Santo ilumina os que têm olhos...
26. No tempo de Moisés, o Espírito era comunicado pela imposição das mãos, e 1832
Pedro dava-o também da mesma maneira. Também a ti, quando fores baptizado, há-de
chegar esta graça. Mas de que modo se fará isso, não quero dizer-to agora, para não
antecipar os mistérios.

DÉCIMA SÉTIMA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 21


35. Tem cuidado para não te aproximares do ministro do baptismo simulando, a 1833
exemplo de Simão, sem procurares a verdade com o teu coração. O nosso dever é
chamar a atenção e o vosso é terdes cuidado. Se te mantiveres firme na fé, serás feliz...
No momento do baptismo, quando te aproximas do bispo, dos presbíteros ou dos
diáconos (pois em todos os lugares se distribui a graça, quer nas aldeias, quer nas
cidades..., uma vez que esta graça não vem dos homens, mas é um presente de Deus
através de homens), aproximas-te do ministro. Não atendas, porém, ao rosto que vês.
Lembra-te, antes, do Espírito Santo, do qual acabamos de falar. E Ele te dará o selo
celeste e divino...
36. Antes, porém, prova a tua alma... Se te aproximares de maneira fingida, os 1834
homens baptizar-te-ão, mas o Espírito não te baptizará. Se te deixares conduzir pelo
Espírito, os homens realizarão os ritos visíveis, mas o Espírito Santo dar-te-á a graça
invisível. Esse é o momento de um exame importante, de um recrutamento vital, que
dura uma hora. Se deixares passar esta hora e não a aproveitares, sofres um dano
irreparável. Mas, se fores achado digno da graça, a tua alma será iluminada e receberás uma
força que não tinhas...

DÉCIMA OITAVA CATEQUESE AOS ILUMINANDOS 22


23. A Igreja é chamada católica ou universal, porque está espalhada por todo o 1835
mundo, de uma à outra extremidade da terra, e porque universalmente e sem erro ensina
toda a doutrina que os homens devem conhecer, sobre as coisas visíveis ou invisíveis,
celestes ou terrestres. É chamada católica também porque conduz ao verdadeiro culto
toda a classe de homens, autoridades e súbditos, doutos e incultos. É católica final-
mente porque cura e sara todo o género de pecados, tanto os internos como os exter-
nos, e possui todo o género de virtudes, qualquer que seja o seu nome, em obras e
palavras e nos mais diversos dons espirituais... 24. Com toda a propriedade é chamada
Igreja 23, quer dizer, assembleia convocada, porque convoca e reúne a todos na unidade...
26. Igreja «Católica»: este é o nome próprio desta santa mãe de todos nós; ela é a
Esposa de nosso Senhor Jesus Cristo, Filho unigénito de Deus... 28. Nesta santa Igreja
católica, instruídos pelos seus ensinamentos e leis de salvação, alcançaremos o Reino
dos Céus e teremos como herança a vida eterna...

21
Catequese sobre o Espírito Santo (continuação).
22
Catequese sobre as palavras: Creio na Igreja una, santa, católica, e na ressurreição da carne e na vida
eterna.
23
e) k klhsi/ a .
482 SÉCULO IV

1836 32. Uma vez que, no dia santo de Páscoa, que está a chegar, sereis iluminados pelo
banho da regeneração, se Deus quiser, ainda sereis instruídos sobre tudo aquilo que é
necessário, para que, quando vos chamarem, entreis com ordem e piedade. Sereis
informados sobre a finalidade de todos os ritos do baptismo e sobre a devoção e ordem com
que deveis ir do baptistério ao altar de Deus e ali provar os mistérios espirituais e celestes...
1837 33. Depois da santa e salvadora festa da Páscoa, a partir de segunda-feira, ouvireis,
se Deus quiser, novas instruções, se vierdes todos os dias da semana da Páscoa, depois da
sinaxe, ao lugar santo da Ressurreição. Nelas vos serão novamente ensinadas as razões
para cada uma das coisas que foram feitas. Ser-vos-ão dadas provas tiradas do Antigo
e do Novo Testamento, em primeiro lugar, como é óbvio, das coisas que foram feitas
imediatamente antes do baptismo; a seguir, ser-te-á dito como foste purificado dos
teus pecados pelo Senhor com o banho da água e pela palavra; depois, como adquiriste
o direito de te chamarem Cristo, em virtude do teu sacerdócio; depois, como recebeste
o selo da amizade com o Espírito Santo; logo, sobre os mistérios do altar e da nova
Aliança que tiveram aqui a sua origem, e sobre o que a Escritura diz acerca deles e de
que virtude estão repletos; a seguir, como nos devemos aproximar destes mistérios e
quando e como os devemos receber, e, finalmente, como deves comportar-te durante o
resto da tua vida, dignamente, de acordo com a graça que recebeste, tanto por obras
como por palavras, de modo que todos alcanceis a vida eterna. Assim, pois, vos serão
dadas, se Deus quiser, estas instruções.

Catequeses Mistagógicas 24

PRIMEIRA CATEQUESE MISTAGÓGICA 25

1838 1. A finalidade destas Catequeses. Há muito tempo que eu desejava falar-vos26,


filhos legítimos e muito amados da Igreja27, sobre estes mistérios espirituais e celestes28.
Mas, como sabia que a vista é mais fiel que o ouvido29, esperava por esta ocasião, para
vos encontrar, depois dessa grande noite30, mais preparados para compreender o que
vos fora dito e levar-vos pela mão ao prado luminoso e fragrante desse Paraíso. Além
disso, já estais melhor preparados para compreender os mistérios divinos que se
referem ao divino e vivificante baptismo31. Dado que é preciso pôr a mesa com os

24
C IRILO DE J ERUSALÉM , Mystagogiae 1-5 (=PG 33, 1065-1128; SCh 126). As Catequeses Mistagógicas
foram pronunciadas em Jerusalém, por volta do ano 350.
25
Renunciação e profissão baptismal. Primeira catequese mistagógica aos novos baptizados, e leitura da
Primeira Epístola católica de Pedro desde: Sede sóbrios e vigiai, até ao final da Epístola, do mesmo Cirilo
e do bispo João.
26
O catecumenado dos adultos era prolongado. O Bispo podia dizer, com toda a verdade, aos seus neófitos,
que esperava há muito por esta ocasião.
27
Bela expressão para definir um fiel: filho legítimo e muito amado da Igreja.
28
Os mistérios espirituais e celestes são o conjunto da celebração litúrgica, e não apenas os sacramentos.
29
Os mistérios não eram revelados clara e totalmente antes da sua celebração, durante as catequeses pré-
baptismais, mas só depois. Antes, faziam-se-lhes apenas breves referências. As razões para este modo de
proceder eram, em primeiro lugar, pedagógicas.
30
Estas catequeses mistagógicas foram feitas pelo bispo de Jerusalém, na Basílica do Santo Sepulcro, nos dias
a seguir à grande noite pascal.
31
Havia também razões de fé para este modo de proceder. Os Padres da Igreja acreditavam e ensinavam que, só
depois de recebida a graça dos sacramentos da iniciação cristã, o fiel se tornava capaz de entender a expli-
cação espiritual, mistagógica, dos próprios sacramentos.
CIRILO DE JERUSALÉM 483

ensinamentos da iniciação perfeita, deixai que vos dê esta instrução precisa, para que
saibais o sentido do que se passou para vós nessa noite baptismal32.
2. Começastes por entrar no átrio do baptistério33. De pé, voltados para o Ocidente34, 1839
escutastes com atenção. Recebestes a ordem de estender a mão 35 e renunciastes a
Satanás como se estivesse presente. Ora, é preciso que saibais que na história antiga há
uma figura deste gesto 36. Quando o Faraó, o mais desumano e cruel tirano, oprimia o
povo livre e nobre dos Hebreus, Deus enviou Moisés, para os tirar dessa penosa
escravidão dos Egípcios. Com o sangue de um cordeiro eles ungiram as ombreiras das
portas, para que o exterminador passasse adiante das casas onde estivesse o sinal do
sangue. Assim foi admiravelmente libertado o povo hebreu. E, quando, depois da
libertação, o Faraó os perseguia, viu o mar a abrir-se estranhamente diante deles. Avançou
no seu encalço, mas, submerso instantaneamente, foi engolido pelo mar Vermelho.
3. Passa agora comigo das coisas antigas às novas, da figura à realidade37. Lá, Moisés 1840
foi enviado por Deus ao Egipto; aqui, Cristo, do seio do Pai, foi enviado ao mundo. Lá,
tratava-se de tirar do Egipto o povo oprimido; aqui, Cristo deve libertar os que no
mundo são esmagados pelo pecado. Lá, o sangue do cordeiro afastou o exterminador;
aqui, o sangue do Cordeiro imaculado, Jesus Cristo, constitui um refúgio contra os
Demónios. De um lado, o tirano perseguiu o povo antigo até ao mar, e, no teu caso, o
Demónio atrevido, sem vergonha e príncipe do mal, seguiu-te até às próprias fontes da
salvação. O primeiro afogou-se no mar; o segundo desapareceu na água da salvação38.
4. Renunciação a Satanás. Entretanto, recebeste a ordem de estender a mão e de 1841
dizer como a alguém presente: Renuncio a ti, Satanás. Também é preciso que vos diga
a razão de estardes voltados para o Ocidente. O Ocidente é o lugar das trevas visíveis,
e, como aquele de quem falamos é trevas e exerce o seu poder nas trevas, é por essa
razão que, simbolicamente, olhais para o Ocidente e que renunciais a esse príncipe
tenebroso e sombrio. O que disse então, cada um de vós, de pé? Renuncio a ti, Satanás,
a ti mau e crudelíssimo tirano: já não temo, dizias, a tua força, pois Cristo a destruiu,
tornando-me participante do seu Sangue e da sua carne, a fim de abolir a morte pela
morte através desses sofrimentos, e eu não estar eternamente sujeito à escravidão.
Renuncio a ti, serpente astuta e capaz de todo mal. Renuncio a ti, que armas insídias e
que, simulando amizade, praticaste toda a espécie de iniquidades e sugeriste a aposta-
sia aos nossos primeiros pais. Renuncio a ti, Satanás, artífice e cúmplice de todo o mal39.

32
Chama-se noite baptismal à noite da iniciação cristã, a Vigília pascal, ao longo da qual os eleitos recebiam
o Baptismo, a Confirmação e a Eucarsitia, após alguns anos de preparação.
33
ei) j to\ n proau/ l ion tou= bapti/ s matoj . Em frente do baptistério havia um espaço, um átrio, onde os
candidatos se preparavam imediatamente para o baptismo.
34
O Ocidente é o ponto cardeal do pôr do sol, da noite, da escuridão. Para ele se voltavam os candidatos,
a fim de renunciarem ao Demónio, príncipe das trevas. Ver, mais abaixo (n. 4), a explicação mistagógica
dada pelo Bispo
35
A renúnciação a Satanás era feita com a mão estendida. O candidato participava na acção litúrgica com
todo o seu corpo, e não apenas com a inteligência, ao pronunciar as fórmulas da renunciação. Estamos
diante de uma liturgia viva, emotiva, muito ligada aos sentidos.
36
As catequeses baptismais, como aliás toda a pregação dos Padres da Igreja, fazem referências constantes
ao Antigo Testamento, chamando a atenção para o cumprimento, em Cristo, na Igreja e na liturgia, de tudo
aquilo que ali era dito como profecia ou figura.
37
Esta é a leitura espiritual, mistagógica. Primeiro lembram-se as coisas passadas da História da Salvação e,
em seguida, à sua luz, descobrem-se as realidades trazidas por Cristo.
38
As celebrações litúrgicas tornam presentes os gestos salvadores de Cristo.
39
A explicação torna mais viva e colorida a fórmula litúrgica da renunciação, sóbria, curta e incisiva.
484 SÉCULO IV

1842 5. Em seguida, numa segunda fórmula, foste ensinado a dizer: E a todas as tuas
obras40. Obras de Satanás são todos os pecados, aos quais é necessário renunciar,
como alguém que fugiu de um tirano e, claro está, rejeitou as suas armas. Todo o género
de pecado está, pois, incluído entre as obras do Diabo. Aliás, fica a saber que tudo
quanto disseste naquela hora, está escrito com todas as letras nos livros invisíveis de
Deus. Por isso, se fores surpreendido a fazer algo contrário a esses livros, serás
julgado como alguém que jura falso. Renunciaste, portanto, às obras de Satanás, isto é,
a todas as acções e pensamentos contrários à promessa.
1843 6. Depois disseste: E a toda a sua pompa. Pompa do Diabo é a paixão do teatro,
das corridas de cavalo, da caça e de todas as vaidades deste género. Dela pede o santo
a graça de ser libertado, dizendo a Deus: Desvia os meus olhos dos deuses vãos41. Não
te entregues desenfreadamente à paixão do teatro, onde se encontram os espectáculos
obscenos dos actores, executados com insolências e com toda a espécie de indecências,
e com danças furiosas de homens efeminados. Nem também sejas daqueles que na caça
se expõem a si mesmos às feras, para contentar o infeliz ventre. Esses, querendo saciar
o estômago com petiscos, tornam-se alimento dos animais selvagens. Melhor dizendo,
por causa do ventre que é o seu deus, arriscam a sua vida em combate singular. Foge
também das corridas de cavalos, espectáculo de loucura que leva as almas à perdição42.
Porque tudo isto é pompa do Diabo.
1844 7. De igual modo, tudo o que é exposto nos templos dos ídolos e nas suas festas,
quer sejam carnes ou pães ou coisas semelhantes, manchados pela invocação dos
Demónios infames, é contado como pompa do Diabo43. Com efeito, assim como o pão
e o vinho da Eucaristia, antes da santa epiclese da adorável Trindade, eram simplesmente
pão e vinho, mas depois da epiclese o pão se torna Corpo de Cristo e o vinho Sangue
de Cristo, da mesma maneira estes alimentos que pertencem à pompa de Satanás,
comuns por sua própria natureza, pela invocação dos Demónios tornam-se impuros.
1845 8. Depois disto disseste: E ao teu culto. Culto do Diabo é a prece feita nos templos
dos ídolos, tudo o que se faz em honra dos ídolos inanimados: acender luzes ou
queimar incenso perto de fontes e rios, como fazem alguns que, enganados por sonhos
e Demónios, chegam a isso, acreditando que encontram a cura de doenças corporais.
Não vás atrás destas coisas. Augúrios, adivinhação, agouros, amuletos, inscrições em
lâminas, magias ou outras artes más deste género são culto do Diabo. Foge, portanto,
de tudo isto. Se sucumbes a estas coisas, depois de te teres desligado de Satanás e
ligado a Cristo, experimentarás um tirano mais cruel. Aquele que antes te tratava com
familiaridade e tornava menos amarga a tua dura escravidão, foi agora muito irritado
por ti. E então serás privado de Cristo e experimentarás o outro. Não compreendeste
o que a História antiga nos conta acerca de Lot e suas filhas? Não se salvou ele com as
filhas, por ter alcançado a montanha, enquanto sua mulher se transformou em estátua
de sal para sempre, constituindo uma recordação da sua má vontade e do seu olhar
curioso para trás44? Cuida, pois, de ti mesmo e não te voltes novamente para trás,
depois de teres posto a mão ao arado45 para a prática amarga desta vida. Foge antes
para o monte46, para junto de Jesus Cristo, a pedra que não foi talhada por mãos
humanas e que encheu toda a terra47.
40
Damo-nos conta, através destas Catequeses, da antiguidade das actuais fórmulas de renunciação. Os fiéis
do século XXI continuam a renunciar a Satanás com as mesmas palavras com que o faziam os seus irmãos de
há muitos séculos.
41
Sal 118, 37.
42
Na literatura cristã antiga é comum a condenação dos espectáculos, dada a sua violência e obscenidade.
43
Cf. 1 Cor 10, 18-22.
44
Cf. Gen 19, 15-26.
45
Cf. Lc 9, 62.
46
Cf. Gen 19, 17.
47
Cf. Dan 2, 34-35.45.
CIRILO DE JERUSALÉM 485

9. Profissão de fé. No momento em que renunciaste a Satanás, calcando aos pés 1846
todo o pacto com ele, quebraste as velhas alianças com o Inferno48. Abriu-se para ti o
Paraíso de Deus, que Ele plantou para o lado do Oriente 49, donde, por causa da sua
desobediência, foi expulso o nosso primeiro pai50. Em símbolo disso, voltaste-te do
Ocidente para o Oriente, lugar da luz51. Então foi-te ordenado que dissesses: Creio no
Pai e no Filho e no Espírito Santo e num só baptismo de penitência. Disto vos falámos
longamente, nas catequeses anteriores, como no-lo permitiu a graça de Deus.
10. Fortalecido por estas palavras, vigia, uma vez que o nosso adversário o Diabo, 1847
como acabámos de ler, anda a rondar-te, como um leão, buscando a quem devorar. Com
efeito, nos tempos anteriores a este, a morte devorava, vitoriosa. Mas, depois do
sagrado baptismo do novo nascimento, Deus enxugou as lágrimas de todas as faces 52.
Com efeito, já não choras por te teres despido do homem velho, mas estás em festa,
porque foste revestido com a veste da salvação53, Jesus Cristo.
11. Tudo isto se passou no edifício exterior54. Se Deus quiser, quando, nas cateque- 1848
ses mistagógicas seguintes, entrarmos no Santo dos Santos, conheceremos, então, os
símbolos das coisas que lá se realizam.
A Deus Pai glória, poder e triunfo, com o Filho e o Espírito Santo pelos séculos.
Amen.

55
SEGUNDA CATEQUESE MISTAGÓGICA

1. Estas mistagogias quotidianas sobre os mistérios e estes novos ensinamentos 1849


são-vos muito úteis, uma vez que fostes renovados e passastes do que era velho para
o que é novo. Por isso, é necessário que vos proponha o que vem a seguir à instrução
mistagógica de ontem 56, a fim de compreenderdes o significado simbólico do que foi
realizado em vós, no interior do edifício.
2. Despojamento das vestes. Logo que entrastes, despistes a túnica57, gesto que é 1850
uma imagem do despojamento do homem velho com as suas obras58. Tendo-vos despi-
do, ficastes nus, imitando também nisso a Cristo nu na cruz. Pela sua nudez Ele
despojou os principados e as potestades e, na cruz, triunfou corajosamente sobre
eles59. As forças inimigas habitavam nos vossos membros. Agora já não vos é permitido
trazer aquela túnica velha. Não me refiro de modo nenhum a uma túnica visível, mas ao
homem velho corrompido pelos desejos enganadores60. Oxalá que a alma, uma vez
despojada dele, jamais torne a vesti-lo, mas possa dizer com a esposa de Cristo, no
Cântico dos Cânticos: Já despi a minha túnica. Vou torná-la a vestir61? Oh maravilha!

48
Cf. Is 28, 15.
49
Cf. Gen 2, 8.
50
Cf. Gen 3, 23.
51
A profissão de fé era feita pelos candidatos voltados para o Oriente, ponto cardeal donde nasce o sol,
símbolo de Cristo, luz do mundo.
52
Cf. Is 25, 8; Ap 21, 4.
53
Cf. Is 61, 10.
54
tau= t a e) n t%= e) c wte/ r % e) g i/ n eto oi) / k % .
55
O mistério do Baptismo. Segunda catequese mistagógica, e leitura da Epístola aos Romanos, desde: Ou
ignorais que todos nós, que fomos baptizados em Cristo Jesus, fomos baptizados na sua morte?, até:
Uma vez que não estais sob a Lei, mas sob a graça.
56
As catequeses mistagógicas eram dadas em cada um dos dias da oitava da Páscoa.
57
O baptismo, que era por imersão, exigia a nudez total.
58
Cf. Col 3, 9.
59
Cf. Col 2, 15.
60
Cf. Ef 4, 22.
61
Cant 5, 3.
486 SÉCULO IV

Estáveis nus à vista de todos e não vos envergonhastes. Na verdade éreis imagem do
primeiro homem Adão, que no Paraíso andava nu e não sentia vergonha62.
1851 3. Unção. Depois de vos terdes despido, fostes ungidos com óleo do exorcismo63,
desde os cabelos do alto da cabeça até aos pés, e assim vos tornastes participantes da
oliveira boa, Jesus Cristo. Com efeito, cortados da oliveira brava, fostes enxertados na
oliveira boa e tornastes-vos participantes da abundância da verdadeira oliveira64. O
óleo do exorcismo é, portanto, símbolo da participação na riqueza de Cristo, sendo
refúgio contra todos os vestígios das forças inimigas. De facto, do mesmo modo que a
insuflação dos santos e a invocação do nome de Deus, como se fosse chama impetuosa,
queima e expulsa os Demónios, assim este óleo exorcizado recebe, pela invocação de
Deus e pela oração, uma tal força, que não só purifica os vestígios dos pecados,
queimando-os, mas também põe em fuga as forças invisíveis do Maligno.
1852 4. Imersão baptismal. Depois disto, fostes conduzidos pela mão até à piscina
sagrada do divino baptismo, como Cristo descido da cruz foi colocado no sepulcro que
está diante de vós65. E a cada um de vós foi perguntado se acreditava no nome do Pai
e do Filho e do Espírito Santo. Vós professastes a fé da salvação e por três vezes
fostes imergidos na água e outras tantas dela emergistes, significando desse modo, em
símbolo, os três dias da sepultura de Cristo. O nosso Salvador esteve no seio da terra
três dias e três noites66. E vós imitastes, na primeira emersão, o primeiro dia que
Cristo esteve na terra, e na imersão, a primeira noite. Com efeito, como o que vive nas
trevas da noite nada vê e, ao contrário, aquele que anda de dia está envolvido em plena
luz, assim também vós, na imersão, como que mergulhados na noite, nada vistes; mas,
na emersão, fostes como que restituídos ao dia. Num mesmo instante, morrestes e
nascestes, e aquela água de salvação tornou-se para vós, ao mesmo tempo, sepulcro e
mãe. Oxalá se ajuste perfeitamente a vós o que Salomão afirmava noutro contexto:
Há tempo para nascer e tempo para morrer67. Mas convosco foi ao contrário: tempo
para morrer e tempo para nascer. Um mesmo instante operou ambas as coisas e, com
a vossa morte, coincidiu o vosso nascimento.
1853 5. Efeitos místicos. Oh realidade nova e inaudita! Fisicamente, não fomos mortos,
nem sepultados, nem crucificados, nem ressuscitados. Mas a imitação destes actos foi
expressa através de uma imagem, e daí brotou realmente a nossa salvação. Cristo foi
verdadeiramente crucificado e verdadeiramente sepultado e ressuscitou verdadeiramente; e
tudo isto foi para nós um dom da graça, a fim de que, participando nos seus sofrimentos,
imitando-os, obtenhamos na realidade a salvação. Oh como é insondável o amor de
Deus para com os homens! Cristo recebeu em seus pés e mãos inocentes os cravos, e
suportou a dor; e a mim, sem qualquer sensação de angústia ou sofrimento, é-me
proporcionada gratuitamente a salvação pela comunicação das suas dores.
1854 6. Ninguém, portanto, julgue que o baptismo consiste apenas na remissão dos
pecados e na graça da adopção, como era o baptismo de João que somente conferia o
perdão das culpas. Pelo contrário, sabemos perfeitamente que o baptismo não somente
pode libertar-nos dos pecados e obter-nos o dom do Espírito Santo, mas é o símbolo
e a imagem dos sofrimentos de Cristo. É por isso mesmo que Paulo há pouco proclamava:
Ignorais que todos nós, que fomos baptizados em Cristo Jesus, fomos baptizados na

62
Cf. Gen 2, 25.
63
O óleo do exorcismo é diferente do óleo do Crisma. A unção era total. Nada se diz relativamente ao
baptismo e unção das mulheres, que deviam ser feitos pelas diaconisas, às quais estas Catequeses
Mistagógicas não aludem, ao contrário do que sucede nas Constituições Apostólicas.
64
Cf. Rom 11, 17-24.
65
As catequeses mistagógicas em Jerusalém eram pronunciadas na Rotunda da Ressurreição, a Anástasis, e
os neófitos tinham diante dos olhos o Santo Sepulcro.
66
Cf. Mt 12, 40.
67
Ecl 3, 2.
CIRILO DE JERUSALÉM 487

sua morte? Pelo baptismo fomos, portanto, sepultados com Cristo, na sua morte 68.
Dizia isto por causa daqueles que pensam que o baptismo só concede a adopção e a
remissão dos pecados, mas não a participação, por uma certa imitação, nos verdadeiros
sofrimentos de Cristo.
7. Foi para sabermos que Cristo padeceu todas estas coisas por nós e pela nossa 1855
salvação, não apenas em aparência, mas real e verdadeiramente, e que nós nos torná-
mos participantes das suas dores, que Paulo exclamava com muita insistência: Se
estamos integrados n’Ele por uma morte idêntica à sua, também o estaremos pela sua
ressurreição69. A expressão «integrados n’Ele» é muito feliz. Se a verdadeira vide foi
plantada, também nós, pela comunicação da morte do baptismo, «fomos integrados»
nela. Fixa-te com muita atenção nas palavras do Apóstolo. Ele não disse: Fomos
integrados n’Ele pela morte, mas por uma morte idêntica à sua. Na verdade, em Cristo
houve uma morte real, pois a alma se separou do corpo, houve uma verdadeira sepultura,
pois o seu corpo sagrado foi envolvido num lençol limpo70, e foi verdadeiro tudo
quanto n’Ele ocorreu. Mas em nós há apenas uma semelhança da morte e dos sofrimentos.
A salvação, porém, não é semelhança, mas realidade.
8. Tudo isto vos foi ensinado de modo suficiente. Peço-vos que guardeis tudo na 1856
memória, para que eu, ainda que indigno, possa dizer-vos: Felicito-vos porque em tudo
vos lembrais de mim e guardais as tradições, conforme eu vo-las transmiti 71. Quanto
ao mais, poderoso é Deus que da morte vos chamou à vida72 e vos concedeu que
caminheis numa vida nova73. A Ele a glória e o poder, agora e pelos séculos. Amen.

74
TERCEIRA CATEQUESE MISTAGÓGICA

1. Significação espiritual. Baptizados em Cristo e revestidos de Cristo, tornastes- 1857


-vos semelhantes ao Filho de Deus. Com efeito, Deus, que nos predestinou para a
adopção de filhos, fez-nos semelhantes ao corpo glorioso de Cristo75. Feitos, portanto,
participantes de Cristo 76, com toda a razão sois chamados «cristos»77, isto é, ungidos;
foi de vós que Deus disse: Não toqueis nos meus ungidos78. Tornastes-vos, porém,
cristos (ou ungidos) no momento em que recebestes o símbolo do Espírito Santo; e
tudo isto foi realizado sobre vós em imagem, uma vez que sois imagens de Cristo. Na
verdade, quando Ele foi baptizado no rio Jordão e comunicou às águas os fragrantes
eflúvios da sua divindade e delas emergiu, realizou-se então a descida do Espírito
Santo consubstancial, repousando sobre Ele como o Igual sobre o seu Igual. Também a
vós de modo semelhante, depois que emergistes da piscina das águas sagradas, foi
concedido o crisma, imagem real daquele com que Cristo foi ungido e que é, sem dúvida
o Espírito Santo. Deste Espírito também o bem-aventurado Isaías, falando na pessoa
do Senhor, profetizou a seu respeito: O Espírito do Senhor está sobre mim; por isso,
Ele me ungiu e me enviou a evangelizar os pobres79.
68
Rom 6, 3-4.
69
Rom 6, 5.
70
Cf. Mt 27, 59.
71
1 Cor 11, 2.
72
Cf. Rom 6, 13.
73
Cf. Rom 6, 4.
74
A unção com crisma. Terceira catequese mistagógica, e leitura da Primeira Epístola de São João, desde: Vós
tendes uma unção recebida do Santo e todos estais instruídos, até: não fiquemos cheios de vergonha,
longe d’Ele, por ocasião da sua vinda.
75
Cf. Gal 3, 27; Rom 8, 29; Ef 1, 5; Filip 3, 21.
76
Cf. Hebr 3, 14.
77
A palavra «cristo» tem o sentido genérico de pessoa ungida.
78
Sal 104, 15.
79
Is 61, 1; Lc 4, 18.
488 SÉCULO IV

1858 2. Cristo, na verdade, não foi ungido pelos homens com óleo ou algum unguento
corporal. Foi o Pai, ao predestiná-l’O como Salvador de todo o mundo, que O ungiu
com o Espírito Santo. Assim fala Pedro: Jesus de Nazaré, que Deus ungiu com o
Espírito Santo80. E o profeta David exclamava: O vosso trono, ó Deus, é eterno; de
justiça é o vosso trono real. Amais a justiça e odiais a iniquidade; por isso Deus Vos
ungiu com o óleo da alegria, preferindo-Vos aos vossos companheiros81.
E como Cristo foi verdadeiramente crucificado e sepultado e ressuscitou, e vós,
pelo baptismo, fostes, por semelhança, tidos por dignos de com Ele ser crucificados,
sepultados e ressuscitados, assim também na unção do crisma. Cristo foi ungido com
o óleo espiritual da alegria, isto é, com o Espírito Santo. É chamado óleo da alegria
precisamente porque é o autor da alegria espiritual. Vós, porém, fostes ungidos com o
crisma e tornastes-vos participantes da natureza de Cristo.
1859 3. Quanto ao mais, não se julgue que este crisma é um óleo simples e comum. Tal
como o pão da Eucaristia, depois da epiclese do Espírito Santo, já não é simples pão,
mas o Corpo de Cristo, assim também este perfume, depois da epiclese, já não é um
perfume simples ou comum, mas um dom de Cristo e do Espírito Santo, tornando-se
eficaz pela presença da divindade. Com ele se unge sacramentalmente a tua fronte e
restantes sentidos; e, enquanto se unge o corpo com óleo visível, a alma é santificada
pelo Espírito Santo, que dá a vida.
1860 4. O rito da unção. Primeiro fostes ungidos com crisma na fronte, a fim de serdes
libertados da vergonha que o primeiro homem transgressor levava por toda parte82 e
para que, de rosto descoberto, contempleis, como num espelho, a glória do Senhor83.
Depois nos ouvidos, para ouvirdes bem, como disse Isaías: O Senhor desperta os
meus ouvidos para que eu aprenda84, e como disse o Senhor no Evangelho: Quem tem
ouvidos, ouça85. Em seguida nas narinas, para que, ao receberdes este perfume divino,
pudésseis dizer: Somos para Deus o bom odor de Cristo, entre aqueles que se salvam86.
Depois no peito, a fim de que, tendo vestido a couraça da justiça, resistais às maqui-
nações do Diabo87. Com efeito, assim como o Salvador, após o seu baptismo e a vinda
do Espírito Santo, saiu a combater o Adversário 88, assim também vós, depois do santo
baptismo e da unção mística, revestidos da armadura89 do Espírito Santo, resisti à
força inimiga e combatei-a, dizendo: Tudo posso n’Aquele que me dá força90, Cristo.
1861 5. Uma vez julgados dignos desta santa unção, sois chamados cristãos. Assim, pelo
novo nascimento, até o vosso nome confirmais91. Com efeito, antes de serdes julgados
dignos do baptismo e da graça do Espírito Santo, não éreis dignos deste nome. Estáveis
a caminho e dáveis passos em frente para serdes cristãos.
1862 6. Prefigurações escriturísticas. É preciso que saibais que o símbolo desta unção
aparece na Escritura antiga. Na verdade, quando Moisés comunicou ao seu irmão a

80
Act 10, 38.
81
Sal 44, 7-8.
82
Cf. Gen 3, 7-10.
83
Cf. 2 Cor 3, 18.
84
Is 50, 4.
85
Mt 11, 15.
86
2 Cor 2, 15.
87
Ef 6, 14.11; Cf. Is 11, 5; 59, 17; 1 Tes 5, 8.
88
Cf. Mt 4, 1-11; Mc 1, 12-13; Lc 4, 1-13.
89
Ef 6, 11.
90
Filip 4, 13.
91
Em rigor, um catecúmeno já é cristão, se por esta palavra se entende amigo de Cristo. Mas não é ainda um
discípulo, no verdadeiro sentido da palavra cristão, e menos ainda um fiel. Cf. Concílio de Elvira, can. 45;
Concílio de Constantinopla (381), can 7.
CIRILO DE JERUSALÉM 489

ordem de Deus e o estabeleceu sumo sacerdote, depois de o lavar com água, ungiu-o92, e
este foi chamado cristo, em virtude dessa unção, que era apenas figurativa. Do mesmo
modo, o sumo sacerdote, ao elevar Salomão à dignidade de rei, ungiu-o, depois de o ter
mandado lavar-se em Guion93. Mas essas coisas aconteciam-lhes em figura. A vós,
porém, não acontecem em figura, mas em verdade, porque o princípio da vossa salvação
remonta Àquele que foi ungido pelo Espírito Santo. Cristo é realmente as primícias, e
vós sois a massa: mas, se as primícias são santas, é evidente que a santidade também
se comunicará à massa94.
7. Guardai este dom sem mancha, e ele vos ensinará todas as coisas, se permanecer 1863
em vós, como ouvistes há pouco dizer o bem-aventurado João95, ao explicar muitas coisas
sobre a unção. Este dom sagrado é a salvaguarda espiritual do corpo e a salvação da alma.
Foi isto que desde tempos antigos o bem-aventurado Isaías profetizou, dizendo:
O Senhor do universo preparará para todos os povos um banquete nesta montanha 96.
Por montanha ele designa a Igreja, como outras vezes, quando diz, por exemplo: No
fim dos tempos, o monte do templo do Senhor será o mais alto de todos97. Beberão
vinhos velhos e bem tratados, e serão ungidos com óleo perfumado 98. E, para te
convidar a compreender sem hesitação este perfume num sentido místico, diz: Transmite
tudo isto às nações, porque o desígnio do Senhor diz respeito a todos os povos99.
Assim, pois, ungidos com este santo perfume, guardai-o sem mancha e irrepreensível
em vós, progredindo em boas obras e procurando agradar ao autor da nossa salvação,
Cristo Jesus 100, a quem seja dada a glória pelos séculos dos séculos. Amen.

101
QUARTA CATEQUESE MISTAGÓGICA

1. Instituição da Eucaristia. Este ensinamento do bem-aventurado Paulo é suficiente 1864


para vos dar a plena certeza sobre os divinos mistérios, dos quais fostes julgados
dignos, e que vos tornaram um só corpo e um só sangue com Cristo. O próprio Paulo
acaba de proclamar que na noite em que nosso Senhor Jesus Cristo foi entregue,
tomando o pão e dando graças, partiu-o e deu o aos seus discípulos, dizendo: Tomai
e comei; isto é o meu Corpo. Depois, tomando o cálice e dando graças, disse: Tomai
e bebei; isto é o meu Sangue102. Tendo, portanto, pronunciado e dito sobre o pão: Isto
é o meu Corpo, quem se atreverá a duvidar ainda? E, tendo Ele afirmado e dito: Isto é
o meu Sangue, quem ousará ainda duvidar, afirmando que não é o seu Sangue?
2. Se outrora, em Caná da Galileia, por sua própria autoridade, mudou a água em 1865
vinho 103, não será digno de fé quando transforma o vinho em Sangue? Convidado para
as bodas corporais, realizou este milagre maravilhoso, e não havemos de confessar, com
muito mais razão, que tenha dado aos companheiros do esposo 104, a participação
jubilosa no seu Corpo e no seu Sangue?

92
Cf. Lv 8, 1-12.
93
Cf. 1 Re 1, 38-39.45.
94
Cf. Rom 11, 16; 1 Cor 5, 6-7; 15, 23.
95
Cf. 1 Jo 2, 27.
96
Is 25, 6.
97
Is 2, 2.
98
Is 25, 6.
99
Is 25, 7.
100
Cf. 2 Cor 5, 9; Hebr 2, 10.
101
O Corpo e o Sangue de Cristo. Quarta catequese mistagógica, e leitura da Primeira Epístola aos Corín-
tios: Com efeito, eu recebi do Senhor o que também vos transmiti, etc.
102
1 Cor 11, 23-25.
103
Cf. Jo 2, 1-11.
104
Cf. Mt 9, 15; Mc 2, 19; Lc 5, 34.
490 SÉCULO IV

1866 3. Presença real de Cristo. Recebamo-los, portanto, plenamente convencidos de


que se trata do Corpo e Sangue de Cristo. Com efeito, sob a forma de pão é o Corpo
que te é dado, e, sob a forma de vinho, o Sangue; de tal maneira que, ao receberes o
Corpo e Sangue de Cristo, te transformes, com Ele, num só corpo e num só sangue.
Deste modo, tendo assimilado em nossos membros o seu Corpo e o seu Sangue,
tornamo-nos portadores de Cristo; tornamo-nos, como diz S. Pedro, participantes da
natureza divina105.
1867 4. Outrora, discutindo Cristo com os Judeus, dizia: Se não comerdes a minha
carne e não beberdes o meu Sangue, não tereis a vida em vós106. Como eles não
tivessem compreendido o sentido espiritual do que lhes era dito, afastaram-se escan-
dalizados, julgando que Ele os exortava a comer carne humana107.
1868 5. Existiam, na antiga Aliança, os pães da proposição 108, mas esses, precisamente
porque diziam respeito à antiga Aliança, tiveram o seu fim. Na nova Aliança, porém,
trata-se de um pão do Céu e de uma bebida de salvação109 que santificam a alma e o
corpo. Como o pão é próprio para a vida do corpo, assim o Verbo o é para a vida da alma.
1869 6. Por isso, não deves olhar para o pão e vinho eucarísticos, como se fossem
elementos simples e vulgares. São realmente o Corpo e o Sangue de Cristo, segundo a
afirmação do Senhor. Muito embora os sentidos te sugiram outra coisa, tens a firme
certeza do que te ensina a fé. Não julgues estas coisas segundo o gosto, mas tem a firme
certeza, pela fé, de que foste julgado digno do Corpo e Sangue de Cristo.
1870 7. Prefigurações escriturísticas. O bem-aventurado David mostra-te a força (deste
mistério), dizendo: Preparaste a mesa para mim à vista dos meus inimigos110. Com
estas palavras ele quis dizer: Antes da tua vinda, os Demónios prepararam para os
homens uma mesa contaminada e manchada, cheia de poder diabólico111. Mas, depois
da tua vinda, Senhor, preparaste diante de mim uma mesa. Quando o homem diz a
Deus: Preparaste a mesa para mim112, que outra coisa quer ele insinuar, senão a mesa
mística e espiritual, que Deus nos preparou em oposição ao Adversário, isto é, aos
Demónios? Sim, é isso mesmo, porque a primeira mesa estava em comunhão com os
Demónios, mas a segunda está em comunhão com Deus. Ungiste com óleo a minha
cabeça113. Ungiu-te a cabeça com óleo, sobre a fronte, pela semelhança que tens com
Deus, para te tornares assinalado, santo de Deus. E o meu cálice transborda114. Men-
ciona-se aqui o cálice que Jesus tomou em suas mãos e sobre o qual deu graças, dizendo:
Este é o meu Sangue, que vai ser derramado por muitos, para remissão dos pecados115.
1871 8. Por isso, também Salomão, aludindo a essa graça, disse: Vem, come o teu pão com
alegria, o pão espiritual. Vem designa o apelo salvador e que torna bem-aventurado. E bebe
com prazer o teu vinho, o vinho espiritual. Haja sempre óleo perfumado na tua cabeça
(aqui tens mais uma alusão à unção mística), e veste-te sempre com vestidos brancos,
porque a Deus agradam as tuas obras116. Antes de te aproximares da graça, as tuas
obras eram vaidade das vaidades 117.

105
Cf. 2 Ped 1, 4.
106
Jo 6, 53.
107
Cf. Jo 6, 61.63.66.
108
Cf. Lv 24, 5-9; 1 Cor 9, 32; 23, 29; 1 Mac 1, 22; 2 Mac 10, 3, etc.
109
Cf. Sal 115, 4.
110
Sal 22, 5.
111
Cf. Mal 1, 7.12.
112
Sal 22, 5.
113
Sal 22, 5.
114
Sal 22, 5.
115
Mt 26, 28.
116
Ecl 9, 7-8.
117
Ecl 1, 2.
CIRILO DE JERUSALÉM 491

Depois de teres despido as vestes velhas e revestido espiritualmente a veste


branca, é preciso estar sempre vestido de branco. Não dizemos isso por ser necessário
andar sempre vestido de branco, mas porque deves, na realidade, revestir a veste
branca, brilhante e espiritual, a fim de dizeres com o bem-aventurado Isaías: Exulto de
alegria no Senhor, e o meu espírito rejubila no meu Deus, porque me revestiu com as
vestes da salvação e me envolveu num manto de triunfo118.
9. Se foste bem instruído pela doutrina da fé, acreditas firmemente que o que 1872
parece pão não é pão, muito embora seja sensível ao gosto, mas é o Corpo de Cristo;
e o que parece vinho não é vinho, ainda que tenha esse sabor, mas é o Sangue de Cristo.
Já antigamente, bem a propósito, dizia David nos salmos: O pão fortalece o coração
do homem, e o óleo faz brilhar no seu rosto a alegria 119. Fortifica, portanto, o teu
coração, tomando esse pão espiritual que fará brilhar a alegria no rosto da tua alma
Deus queira que, de rosto iluminado por uma consciência pura, e reflectindo, como
num espelho, a glória do Senhor 120, possas caminhar de glória em glória, em Cristo
Jesus nosso Senhor, a quem seja dada honra, poder e glória pelos séculos sem fim. Amen.

QUINTA CATEQUESE MISTAGÓGICA 121

1. Pelo amor que Deus nos tem, ouvistes falar, nas reuniões precedentes, de muitas 1873
coisas acerca do baptismo, da unção com o crisma e da participação no Corpo e Sangue
de Cristo. Agora precisamos de ir adiante, porque devemos coroar hoje o edifício da
vossa instrução espiritual.
2. Purificação das mãos. Vistes o diácono apresentar água ao pontífice e aos pres- 1874
bíteros que rodeiam o altar de Deus, para eles lavarem as mãos. Não era certamente por
causa de qualquer sujidade corporal que ele fazia isso, pois não estávamos sujos,
quando, ao começar, entrámos na igreja. Mas lavar as mãos é um símbolo de que nos
devemos purificar de todos os pecados e iniquidades. Uma vez que as mãos são
símbolo da acção, ao lavá-las, aludimos claramente à pureza e inocência das obras. Não
ouviste o bem-aventurado David iniciar-te neste mistério ao dizer: Lavarei as minhas
mãos em sinal de inocência e andarei à volta do teu altar, Senhor122? Por isso, lavar as
mãos é sinal de estar limpo do pecado.
3. O beijo da paz. Depois, o diácono proclama: Acolhei-vos uns aos outros e 1875
saudai-vos mutuamente. Não suponhas que este beijo é como os que os amigos ínti-
mos trocam entre si na praça pública. Este beijo não é assim. Ele une as almas e é para
elas penhor de que todos os ressentimentos são esquecidos. Este beijo é sinal de que as
almas se unem e afastam a lembrança de todo o ressentimento. Por isso Cristo disse: Se
fores apresentar uma oferta no altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma
coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu
irmão; depois volta para apresentar a tua oferta123. Assim, este beijo é reconciliação e,
por isso, é santo, como em certa passagem o proclama São Paulo: Saudai-vos uns aos
outros com um ósculo santo124, e Pedro: Saudai-vos uns aos outros com um ósculo de
irmãos que se amam125.

118
Is 61, 10.
119
Sal 103, 15.
120
Cf. 2 Cor 3, 18.
121
A celebração da Eucaristia (cf. nn. 4691-4694; 4716-4726). Quinta catequese mistagógica, e leitura da Epístola
Católica de Pedro: Portanto, ponde de parte toda a malícia, falsidades, hipocrisias, invejas, etc.
122
Sal 25, 6.
123
Mt 5, 23-24.
124
Rom 16, 16; 1 Cor 16, 20.
125
1 Ped 5, 14.
492 SÉCULO IV

1876 4. Introdução à anáfora – Diálogo inicial. Em seguida, o pontífice proclama: Corações


ao alto. Verdadeiramente, naquela hora tremenda, é preciso ter o coração voltado para
o alto, para Deus, e não para baixo, para a terra e para as coisas deste mundo. A todos
manda o pontífice, com autoridade, nesta hora, que ponham de lado as preocupações
da vida e os cuidados domésticos, e orientem os seus corações para o Céu, para Deus
misericordioso.
Vós então respondeis: Já os elevámos ao Senhor, manifestando, pelas palavras
da vossa confissão, que estais de acordo com o que vos foi mandado. Nenhum dos
presentes diga apenas com a boca: Já elevámos os corações ao Senhor, tendo o espí-
rito voltado para as preocupações da vida. Deveríamos lembrar-nos de Deus em todo
o tempo. Mas, se isso é impossível por causa da fraqueza humana, ao menos naquela
hora devemos procurar que assim seja.
1877 5. Depois o pontífice diz: Dêmos graças ao Senhor. Na verdade, devemos agradecer a
Deus o ter-nos chamado, apesar de indignos, a esta tão grande graça de nos reconciliar
consigo, quando éramos seus inimigos, e de nos ter julgado dignos do Espírito de
adopção filial126. E vós dizeis então: É digno e justo. Quando damos graças, fazemos
uma acção digna e justa; mas Ele, agindo, não apenas com justiça, mas para além de
toda a justiça, encheu-nos dos seus benefícios e tornou-nos dignos de tão grandes dons.
1878 6. Anáfora, louvor, acção de graças e introdução ao Sanctus. Depois, fazemos
menção do céu, da terra e do mar, do sol e da lua, dos astros e de toda a criatura racional
e irracional, visível e invisível, dos Anjos e Arcanjos, das Virtudes e Dominações, dos
Principados e Potestades, dos Tronos e Querubins de muitas faces127, dizendo como
David: Enaltecei comigo ao Senhor128. Lembramo-nos ainda dos Serafins, que Isaías
contemplou, no Espírito Santo, de pé, em volta do trono de Deus, e que escondiam o
rosto com duas asas, os pés com outras duas e com mais duas voavam e diziam: Santo,
Santo, Santo é o Senhor do universo129. Dizendo esta doxologia que nos foi transmitida
pelos Serafins, associamo-nos, neste cântico de louvor, aos exércitos celestes.
1879 7. Invocação do Espírito ou Epiclese. Depois de santificados 130 por estes hinos131
espirituais, suplicamos a Deus, amigo dos homens, que envie o Espírito Santo sobre os
dons colocados no altar, para que faça132 do pão Corpo de Cristo e do vinho Sangue de
Cristo. Pois tudo o que o Espírito Santo toca133 é santificado e transformado134.
1880 8. Intercessões. Em seguida, realizado o sacrifício espiritual135, o culto136 incruento,
pedimos a Deus, em presença desse sacrifício de propiciação137, pela paz comum das
Igrejas, pela estabilidade do mundo, pelos imperadores, pelos exércitos e seus aliados,
pelos doentes, pelos aflitos e por todos os que têm necessidade de ajuda. Todos
rezamos e todos oferecemos este sacrifício.
1881 9. Depois, fazemos menção dos que já adormeceram: primeiro dos Patriarcas, dos
Profetas, dos Apóstolos e dos Mártires, para que Deus, por suas preces e intercessões,
aceite a nossa súplica. Depois, rezamos pelos santos padres e bispos falecidos e, em

126
Cf. Rom 5, 10-11; 8, 15.
127
Ez 10, 21.
128
Sal 33, 4.
129
Is 6, 2-3.
130
ei) = t a a( g ia/ s antej e( a utou\ j .
131
u) / m nwn .
132
poih/ s $ .
133
e) f a/ y htai .
134
h( g i/ a stai kai\ metabe/ b lhtai .
135
pneumatikh\ n qusi/ a n .
136
latrei/ a n .
137
qusi/ a j e) k ei/ n hj tou= i( l asmou= .
CIRILO DE JERUSALÉM 493

geral, por todos aqueles que morreram antes de nós, certos de que isso será de grande
proveito para as almas em favor das quais tal súplica se faz, enquanto está presente a
vítima santa e temível.
10. Quero persuadir-vos com um exemplo. Sei que muitos dizem: «Que aproveita à 1882
alma que parte deste mundo com faltas ou sem elas, ser eventualmente mencionada na
oferenda eucarística»? Vejamos: se acaso um rei banir os que se revoltaram contra ele
e, em seguida, os seus companheiros, tecendo uma coroa, a oferecerem ao rei em favor
dos condenados, não é verdade que lhes concederá o perdão do castigo? Do mesmo
modo também nós, oferecendo orações a Deus pelos defuntos, mesmo pecadores, não
lhe tecemos uma coroa, mas oferecemos-lhe Cristo imolado pelos nossos pecados,
procurando conciliar a clemência de Deus em nosso favor e em favor deles.
11. O Pai-Nosso. Depois disso, recitamos aquela Oração que o Salvador transmitiu 1883
aos seus discípulos, chamando a Deus, com pura consciência, nosso Pai e dizendo: Pai
nosso, que estais nos Céus138. Oh incomensurável benignidade de Deus para com o
homem! Aos que O tinham abandonado e caíram nas piores maldades é concedido o
perdão dos males e a participação da sua graça, e manda-lhes que O invoquem como
Pai. Pai nosso, que estais nos Céus. Os Céus também poderiam muito bem ser aqueles
que trazem em si a imagem do mundo celeste e em quem Deus mora e passeia139.
12. Santificado seja o vosso nome. O nome de Deus é santo por natureza, quer o 1884
digamos ou não. Mas uma vez que ele é por vezes profanado naqueles que pecam,
como está dito: Todos os dias ultrajam o meu nome140, pedimos que em nós o nome de
Deus seja santificado. Não para que comece a ser santo o que antes o não era, mas
porque em nós ele se torna santo, quando nos santificamos e praticamos obras dignas
de santidade.
13. Venha o vosso reino. Só um coração puro pode dizer com segurança: Venha o 1885
vosso reino. É preciso ter passado pela escola de Paulo para dizer: Que o pecado não
reine mais no vosso corpo mortal 141. Quem se conserva puro em seus actos, pensa-
mentos e palavras é que pode dizer a Deus: Venha o vosso reino.
14. Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu. Os divinos e bem- 1886
-aventurados Anjos de Deus fazem a vontade de Deus, como David diz nos salmos:
Bendizei o Senhor, todos os seus Anjos, poderosos mensageiros, que cumpris as suas
ordens, sempre dóceis à sua palavra142. Rezando, pois, com vigor, queres dizer o
seguinte: como nos Anjos se faz a tua vontade, Senhor, assim na terra se faça em mim.
15. Dai-nos hoje o nosso pão substancial. O pão comum não é substancial. Mas este 1887
pão sagrado é substancial, pois se destina à substância da alma. Este pão não vai para
o ventre nem é lançado em lugar próprio143, mas distribui-se por todo o organismo, em
proveito da alma e do corpo 144. Quanto à palavra hoje equivale a dizer de cada dia145,
como também dizia Paulo: Enquanto dura a proclamação do hoje146.
16. Perdoai-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores. 1888
Temos muitos pecados, pois caímos por palavras e pensamentos e fazemos muitas

138
Mt 6, 9-13.
139
Cf. 1 Cor 15, 49; Lv 26, 11-12; Ez 37, 27; 2 Cor 6, 16.
140
Is 52, 5; cf. Rom 2, 24.
141
Rom 6, 12.
142
Sal 102, 20.
143
Cf. Mt 15, 17; Mc 7, 19.
144
O pão sintetiza tudo aquilo de que o homem se alimenta corporal e espiritualmente, tudo aquilo que ele
deseja, até repousar em Deus.
145
O Pai-Nosso, na versão de Lucas, fala do pão de cada dia.
146
Hebr 3, 13.
494 SÉCULO IV

coisas dignas de condenação. E, se dissermos que não temos pecado, mentimos147,


como diz João. Fazemos com Deus um pacto pedindo-Lhe que nos perdoe os nossos
pecados como também nós perdoamos ao próximo que nos ofende. Tendo presente,
portanto, o que recebemos em troca do que damos, não sejamos negligentes nem
deixemos de perdoar uns aos outros. As ofensas que nos fazem são pequenas, simples,
fáceis de perdoar, ao passo que as que nós fazemos a Deus são enormes e só é possível
serem perdoadas pelo seu grande amor pelos homens. Tem então cuidado, para que,
pelas faltas pequenas e simples cometidas contra ti, não te excluas do perdão, por
parte de Deus, dos teus pecados gravíssimos.
1889 17. E não nos deixeis cair em tentação, Senhor. Será que o Senhor nos ensina a pedir
que jamais sejamos tentados? Se assim fosse, como poderia dizer-se noutro lugar:
Aquele que não tem experiência pouca coisa sabe148 e ainda: Meus irmãos, considerai
como uma enorme alegria o estardes rodeados de provações de toda a ordem149?
Talvez o cair em tentação signifique ser submergido por ela. Parece, de facto, que a
tentação se assemelha a uma torrente difícil de atravessar. Os que passam pelas tenta-
ções sem se afundar, são bons nadadores, que não se deixam arrastar pela corrente. Os
que não são assim, mal entram, logo se afundam. Foi o caso de Judas, que, ao entrar na
tentação da avareza, não a atravessou a nado, mas, deixando-se submergir corporal e
espiritualmente, acabou por afogar-se. Pedro entrou na tentação da negação. Porém, ao
entrar, não se deixou ir ao fundo, mas, antes, nadando com vigor, foi libertado da
tentação.
Escuta também, noutra passagem, o coro de todos os santos, dando graças por
terem sido arrancados da tentação: Senhor, Vós nos pusestes à prova e nos purificastes
como se faz com a prata. Fizestes-nos cair na armadilha, pusestes um fardo pesado às
nossas costas. Deixastes que outros nos calcassem aos pés: passámos pela água e
pelo fogo, mas depois nos destes alívio150. Vês como falam com alegria, por atravessarem
a corrente sem terem sido submergidos até ao fundo151? Mas, depois, nos destes alívio.
Chegar ao alívio é ser libertado da tentação.
1890 18. Mas livrai-nos do mal. Se a expressão «não nos deixes cair em tentação» signi-
ficasse jamais sermos tentados, não se diria: Mas livrai-nos do mal. O mal é o Demónio,
nosso adversário, de quem pedimos para ser libertados.
Depois, acabada a oração, dizes: Amen, selando por esta palavra, que significa
assim seja, que isso se faça, tudo o que a oração que o Senhor nos ensinou contém.
1891 19. Comunhão. Depois disto, o pontífice diz: As coisas santas aos santos 152. As
coisas santas são as oferendas colocadas no altar e que receberam a vinda do Espírito
Santo. Santos sois também vós, julgados dignos do Espírito Santo. As coisas santas
convêm, portanto, aos santos. Em seguida, dizeis: Um só é o Santo, um só o Senhor,
Jesus Cristo. Na verdade, Ele é o único santo por natureza; nós, ao contrário, não o
somos por natureza, mas por participação153, pelas obras e pela oração154.

147
1 Jo 1, 8.
148
Cf. Eclo 34, 10; Rom 5, 3-4.
149
Tg 1, 2.
150
Sal 65, 10-12.
151
Cf. Sal 68, 15.
152
ta\ a( / g ia toi= j a( g i/ o ij .
153
metox$= .
154
kai\ a) s kh/ s ei kai\ eu) x $ = .
CIRILO DE JERUSALÉM 495

20. Ouvis, em seguida, a voz do cantor, convidando-vos, com uma melodia divina, à 1892
comunhão dos santos mistérios e dizendo: Provai e vede como o Senhor é bom155. Não
confieis o julgamento ao paladar corporal, mas à fé inabalável, pois não se trata de
saborear o pão e o vinho, mas o Corpo e o Sangue de Cristo, dos quais eles são o sinal.
21. Quando te aproximas (para comungar), não o faças com as palmas das mãos 1893
estendidas, nem com os dedos separados, mas faz da tua mão esquerda um trono para
a tua mão direita, uma vez que esta vai receber o Rei. Recebe o Corpo de Cristo na
concavidade da tua mão e responde: Amen. Com todo o cuidado, santifica então os teus
olhos pelo contacto do Corpo sagrado e toma-o, procurando não perder nada. O que
deixas cair, pensa que é como que uma parte dos teus membros que te vem a faltar. Diz-
-me, com efeito: se alguém te oferecesse lâminas de ouro, não as guardarias com todo o
cuidado, velando para que nada se perdesses e fosses prejudicado? E então não cuida-
rás com muito mais diligência para que não caia ao chão nem sequer uma migalha do que
é mais precioso que o ouro e as pedras preciosas?
22. Depois de teres comungado o Corpo de Cristo, aproxima-te também do cálice do 1894
seu Sangue. Não estendas as mãos, mas inclina-te e, num gesto de adoração e respeito,
diz: Amen. Santifica-te, tomando também o Sangue de Cristo. E, enquanto os teus
lábios estão ainda húmidos, toca-os de leve com as mãos e santifica os teus olhos, a tua
fronte e os teus outros sentidos. Depois, enquanto esperas pela oração, dá graças a
Deus, que te julgou digno de tão grandes mistérios.
23. Conservai invioláveis estas tradições e vós próprios guardai-vos sem ofensa. 1895
Não vos separeis da comunhão nem vos priveis, pelas manchas do pecado, destes
mistérios sagrados e espirituais.
O Deus da paz vos santifique totalmente, e todo o vosso ser, espírito, alma e
corpo, se conserve irrepreensível para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo 156, a
quem seja dada glória, honra e poder, com o Pai e o Espírito Santo, agora e sempre e
pelos séculos dos séculos. Amen.

155
Sal 33, 9.
156
1 Tes 5, 23.
496 SÉCULO IV

Pseudo-Crisóstomo

Homilias Pascais 1
1896 3. Muitas vezes ouvimos dizer às pessoas: «O Nascimento do Salvador celebra-se
em dia fixo (cai, de facto, como sabemos, no oitavo dia da Calendas de Janeiro, segundo
o calendário romano); o mesmo sucede com a Epifania, também celebrada em dia fixo
(no dia treze do quarto mês, segundo o calendário asiático); e fazemos o mesmo para
a celebração da memória dos mártires, cuja comemoração é feita sempre em dia fixo.
Qual a razão de não ser assim relativamente à Páscoa»? É porque o mistério não
depende simplesmente da coincidência de um só dia, mas de várias ocorrências simultâneas,
que nós reunimos com o fim de pôr em relevo o mistério na sua totalidade...
1897 4. Para o cálculo da Páscoa nós temos em conta o início do tempo e o equinócio, e
a partir dele o décimo quarto dia da Lua e com ele o Tríduo, isto é, a Sexta-Feira, o
Sábado e o Domingo. É impossível celebrar a Páscoa quando falta um só destes ele-
mentos cronológicos. É por isso que não podemos adoptar um único dia fixo para o
mistério da Páscoa, mas devemos reunir todas aquelas circunstâncias para realizar o
significado místico da Paixão do Salvador...
1898 6. Os Judeus também não observam, para a celebração da Páscoa, um único dia
fixo, mas tomam simultaneamente o primeiro mês solar – segundo os seus cálculos – e
o dia 14 da Lua. Mas, se acontece que o dia 14 da Lua cai, segundo eles, antes de chegar
o primeiro mês, saltam esse dia 14 e, inserindo um mês lunar intercalar de trinta dias,
adoptam um novo dia 14 por causa do primeiro mês solar, para que, graças ao encontro
assim obtido do primeiro mês com o dia 14 da Lua, fiquem com a sensação de cumprir
a vontade divina. Assim, irmão, tu mesmo constatas que os próprios Judeus se preo-
cupam, e nesse ponto de comum acordo connosco, em procurar para a festa não um dia
único, mas vários tempos.
1899 7. Existe, por outro lado, a heresia dos Quartodecimais; ao festejarem a Páscoa com
os Judeus, encontram-se também na mesma posição incómoda...
1900 11. Na Igreja, para fixarmos a data da Paixão, precisamos de ter em conta o equinócio da
Primavera, o dia 14 (segundo o mês lunar) e o Tríduo de Sexta-Feira, Sábado e Domingo...
1901 15. Por testemunhas temos sábios hebreus, como Fílon, Josefo e outros, que afirmam
nos seus próprios escritos que a Páscoa só pode celebrar-se com exactidão depois da
chegada do equinócio da Primavera. Eles demonstram que, desde sempre se observou
esta ligação com o dia 14 da Lua...
1902 18. Cristo sofreu após o equinócio, na Sexta-Feira, como sabemos e como o relatam
as Escrituras, e essa Sexta-Feira coincidiu com o dia 14 da Lua. Foi, pois, na Páscoa
dos Judeus que Ele sofreu. Ora, a Páscoa dos Judeus reunia então todos os tempos que
dizem respeito à Paixão: o equinócio tinha sido antes; estava-se no dia 14; enfim,
vinham juntar-se-lhe a Sexta-Feira, o Sábado e o Domingo...
1903 34. Na Paixão tem-se em conta o equinócio como origem do tempo..., porque o
primeiro homem não foi formado nas trevas mas depois da luz, depois do equinócio...,
quando os dias começam a crescer e as noites a diminuir... Era, por isso, necessário que
a Paixão, que aconteceu para levantar, se produzisse também numa situação semelhante,
na qual a luz da piedade começasse a crescer, ao mesmo tempo que diminuíam as trevas
da impiedade...

1
PSEUDO -C RISÓSTOMO , Homilias Pascais (=SCh 48). Esta homilia é do ano 387.
PSEUDO-CRISÓSTOMO 497

35. O mesmo acontece com a Sexta-Feira, dado que o primeiro homem foi formado 1904
nesse dia, e convinha que fosse levantado no mesmo dia em que fora formado e caíra.
Quanto ao Sábado, a Escritura utiliza-o para significar «repouso», ao dizer: E Deus
repousou de todas as suas obras no sétimo dia e santificou-o. Pois bem, de igual modo,
depois de realizar a recapitulação pelo sofrimento na Sexta-Feira e terminar as obras
da elevação em favor do homem que caíra, o Senhor repousou no sétimo dia e perma-
neceu no seio da terra...
36. A seguir, no primeiro dia depois do Sábado, fez aparecer, em virtude do enca- 1905
deamento do tempo, a luz da Ressurreição, porque era de novo o primeiro dia do
tempo total, dia que Ele colocara outrora como início da luz sensível, e agora, em conse-
quência, como origem da luz inteligível da Ressurreição...
39. Tendo-se o Unigénito oferecido a Si mesmo uma vez por todas em sacrifício, e 1906
sendo isso suficiente para a salvação2, já não é necessário o sacrifício do cordeiro; mas
o Salvador, ao chegar à sua Paixão, deu o pão e o cálice como imitação do mais glorioso
sacrifício, e com uma oração inefável3 fez do pão o seu Corpo e do vinho o seu Sangue,
e mandou que a Páscoa fosse feita com esses símbolos4.
49. Como já sabes o suficiente sobre estas coisas, é necessário explicar agora a causa 1907
da demora da Páscoa deste ano5, como prometi ao começar o meu discurso. Dissemos,
irmão, que é preciso, para a Paixão, tomar em conjunto o equinócio da Primavera, o dia
14 da Lua (não antes do equinócio), a Sexta-Feira, o Sábado e o Domingo. Por isso,
quando acontece que o dia 14 da Lua vem antes do equinócio, consideramos esse dia 14
sem valor e procuramos outro dia 14, que virá após o equinócio. Acontece neste caso,
que interpomos um mês intercalar para dar origem ao dia 14 posterior ao equinócio.
50. Ora bem, irmão, nesta Páscoa que está em causa, o dia 14 cai cerca de dois dias 1908
antes do equinócio e fica sem valor; é, por isso, que temos o cuidado de terminar o mês
lunar e de tomar o dia 14 seguinte, para aí celebrar a Paixão, imitando o Salvador:
precisamos, portanto, de um mês intercalar.
51. Já vimos que, se o dia 14 da Lua cai antes do equinócio, não escolhemos esse dia 1909
14, mas buscamos aquele que segue o equinócio. Do mesmo modo, quando o domingo
cai no dia 14 da Lua, não celebramos esse Domingo como o da Ressurreição, mas espera-
mos pelo domingo seguinte...
52. Este ano, como já o disse, o dia 14 da Lua cai dois dias antes do equinócio. É, 1910
pois, necessário pôr de lado este dia 14 e adoptar o seguinte, que será posterior ao
equinócio. Mas, por sua vez o dia 14 apropriado chega no dia 18 de Abril e cai num
domingo. Uma vez que o dia 14 cai no próprio domingo, adiamos a festa da Ressurreição
para o domingo seguinte...; e assim, ajuntando uma semana ao dia 18 de Abril, adiamos
o dia da Ressurreição até ao dia 25 de Abril...
57. Em resumo, trata-se de ter em conta que o dia 14 da Lua não preceda o equinócio 1911
da Primavera e que o domingo fixado para o dia da Ressurreição caia fora do dia 14. Ora
é este dia 14 que levanta problemas àqueles que calculam mal, pois é preciso que ele
caia na semana que precede o dia fixado para a Ressurreição; quando ele cai em plena
semana, a solução descobre-se facilmente; mas, quando, ao contrário, ele cai no domingo, é
precisa uma aplicação minuciosa, para não cometer erro...
58. Deus vos conceda a graça de guardar estes mistérios em vossos corações e a vós 1912
mesmos em Cristo. Com Ele damos glória a Deus Pai com o Espírito Santo, agora e
sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.

2
o) i konomi/ a .
3
Essa oração é a epiclese.
4
tu/ p oi .
5
A Páscoa do ano 387.
498 SÉCULO IV

Gregório de Nazianzo

Sermões 1

SERMÃO 2 2

1913 1. Dou-me por vencido e reconheço a minha derrota: submeto-me ao Senhor e vim
suplicar-lhe... Quanto ao motivo, quer da revolta que me afectou até agora..., quer da
minha doçura actual e da mudança de atitude que me levou a entregar-me de novo nas
vossas mãos, cada um daqueles que me detestam ou me estimam o imaginará e formulará à
sua maneira...
1914 3. O que me aconteceu, caríssimos ouvintes, não se deve nem à ignorância nem à
falta de juízo... No corpo, há um elemento que manda e que, por assim dizer, preside,
e outro elemento que é comandado e guiado. Do mesmo modo..., Deus dispôs que nas
Igrejas, uns sejam levados às pastagens e orientados... pela palavra e pelo gesto para o
dever a cumprir, e que outros sejam pastores e mestres para a coordenação da Igreja...
1915 4. Uma vez reconhecido que isso é justo e bom, a meu juízo é igualmente mau e
desordenado que todos queiram presidir e ninguém aceite encarregar-se. Pois, se todos
fugissem daquilo que tanto se pode chamar serviço como lugar autoritário, desmereceria em
grande parte e não permaneceria já na sua beleza aquela formosa plenitude da Igreja.
Com efeito, onde e de que mãos receberia ainda Deus em nosso nome o culto destes
mistérios sagrados que nos elevam, este culto que é o maior e mais digno que existe
entre nós, se não houvesse rei, nem prefeito, nem sacerdócio, nem sacrifício, nem
nenhuma das outras realidades sublimes, das quais os revoltados de outrora foram
privados, na sequência de faltas graves?
1916 5. Não, também não tive vergonha do banco dos sacerdotes pelo desejo de ocupar
o lugar superior, como alguém poderia pensar...
1917 6. Que me aconteceu então e qual a razão da minha desobediência?... O que mais me
impressionou foi ter sido apanhado desprevenido... Foi isso que me fez perder a
modéstia... Depois, manifestava-se em mim uma espécie de desejo amoroso pelas
vantagens da vida tranquila... E também não suportei ser tiranizado, ser arrastado no
meio do barulho e arrancado com violência a este género de vida que eu considerava um
santo refúgio...
1918 8. Além disso..., senti vergonha por causa dos outros, de todos aqueles que, não
sendo nada melhores que o comum dos mortais, e Deus queira que não sejam muito
piores, se aproximam das coisas mais santas com as mãos sujas, como costuma dizer-se, e
com a alma desprovida de qualquer iniciação e que, antes de se tornarem dignos de se
aproximar das coisas sagradas, desejam sentar-se na tribuna, empurrando-se e apertando-se
à volta da santa mesa. Ao que parece, eles não pensam que o lugar onde se sentam faz
deles exemplos de virtude, mas crêem antes encontrar aí um meio de vida; não um
ministério do qual temos de dar rigorosas contas, mas um poder acima de todo o
controle...

1
G REGÓRIO DE N AZIANZO , Orationes XLV (=PG 35, 393–36, 664; CSEL 46; SCh 247. 309. 358. 405). A vida
do autor decorreu entre 330-389. É talvez a personalidade antiga, no Oriente, mais semelhante à de
Agostinho, no Ocidente. Traduzimos Orationes por Sermões.
2
Gregório de Nazianzo justifica-se pelo facto de ter recusado a sua eleição para bispo.
GREGÓRIO DE NAZIANZO 499

9. A última razão e a mais importante..., é que eu não pensava e continuo a não 1919
pensar, que seja a mesma coisa dirigir um rebanho de ovelhas ou de bois e governar
almas humanas...
10. É difícil a um homem saber obedecer, mas corre-se o risco de ser mais difícil 1920
saber mandar homens, sobretudo, está claro, quando se trata deste poder que é o
nosso, deste poder que é fundado sobre a lei divina e que conduz a Deus...
95. Conhecendo eu tudo isto e sabendo também que ninguém é digno d’Aquele que 1921
é ao mesmo tempo vítima e sumo sacerdote do grande Deus, se antes não se ofereceu
a si mesmo a Deus como hóstia viva, santa, e não manifestou o culto espiritual agradá-
vel a Deus, se não apresentou a Deus este sacrifício de louvor e este coração contrito,
que é o único sacrifício que nos pede Aquele que nos deu tudo, como iria eu atrever-me
a oferecer-lhe o sacrifício exterior que é a réplica dos grandes mistérios, ou como iria eu
revestir-me com o hábito e o nome de sacerdote, antes de ter consagrado as minhas
mãos com obras santas...?
98. Quem o fará antes de ter passado, graças à contemplação, por todas as denomi- 1922
nações e poderes de Cristo..., por todos esses nomes de Deus, de Filho, de imagem, de
Verbo, de Sabedoria, de verdade, de luz, de vida, de poder, de sopro, de efusão, de
reflexo, de criador, de rei, de cabeça, de lei, de caminho, de porta, de fundamento, de
pedra, de pérola, de paz, de justiça, de santificação, de redenção, de homem, de escravo, de
pastor, de cordeiro, de sumo sacerdote, de vítima, de primogénito antes da criação, de
primogénito de entre os mortos, de ressurreição?
102. Eis a justificação da minha fuga. É possível que ela tenha ultrapassado as pro- 1923
porções...
116. Mas porquê prolongar este discurso? Estamos nas vossas mãos, pastores e 1924
irmãos; estamos nas vossas mãos, rebanho sagrado e digno de Cristo, príncipe dos
pastores; estamos nas tuas mãos, pai, vencido em tudo e mais submetido à tua autoridade
pelas leis de Cristo do que pelas leis profanas. A minha obediência está nas tuas mãos:
dá-me, em troca, a tua bênção...
SERMÃO 4 3

52. Apenas obteve o Império como herança4, começou a fazer profissão pública de 1925
ateísmo, como que envergonhando-se de ter sido cristão noutros tempos, ou vingando-se,
por isso, dos cristãos, com os quais tinha tido um nome comum. O primeiro dos seus
crimes, como dizem os que se gloriam de estar por dentro dos seus segredos..., foi
tentar limpar-se do seu baptismo com sangue impuro, opondo esta iniciação suja à
nossa iniciação...: ele limpa as suas mãos apagando nelas o traço do sacrifício incruento
pelo qual participamos em Cristo, da sua Paixão e da sua divindade...
SERMÃO 8 5

18. Que fazia então aquela grande alma...? Perdida a esperança de todos os outros 1926
remédios, acolhe-se junto do médico de todos nós e, aproveitando as horas nocturnas
mais silenciosas, um pouco recomposta da sua enfermidade, minha irmã prostrava-se
com fé diante do altar, para invocar com grande clamor e com toda a espécie de súplicas
Aquele que aí é honrado, e, como que recordando-Lhe todos os milagres que tinha feito
noutros tempos (pois conhecia muito bem o Antigo e o Novo Testamento), por fim
perdia a timidez com uma piedosa e formosa audácia; imita aquela que com a orla do

3
Contra Juliano, o imperador apóstata.
4
Trata-se de Juliano.
5
Oração fúnebre pela sua irmã Gorgónia.
500 SÉCULO IV

manto de Cristo secou o seu fluxo de sangue. E que fez? Apoiou a sua cabeça no altar,
imitando aquela mulher que outrora banhara os pés de Cristo com abundantes lágrimas, e
prometeu que não sairia dali antes de ter recuperado a saúde. A seguir, como a sua mão
guardara um pouco dos antítipos do precioso Corpo e do precioso Sangue, ungiu todo
o corpo com este remédio misturando-o com lágrimas, até ao ponto, coisa admirável,
de sentir que estava curada, e se retirar aliviada não só do corpo, mas também da alma
e do espírito, recebendo como recompensa da sua esperança o que tinha esperado, e
conseguindo pela sua fortaleza de alma a robustez do corpo.
Estas coisas são certamente grandes, mas podeis ter a certeza que não são men-
tiras. Acreditai-o, tanto os enfermos como os que têm saúde, para que uns continuem
a gozar de boa saúde, e os outros a recuperem. O que vos conto está longe de qualquer
exagero: os factos que ela guardou em segredo enquanto viveu, mas que eu acabo de
revelar, são a prova disso. E nem agora mesmo o deveria ter divulgado, pois podeis ter
a certeza, que só o fiz por ter um certo temor de ocultar tal prodígio aos crentes como
aos descrentes, aos actuais e aos futuros.
SERMÃO 17 6

1927 12. A dor faz-me atrevido. Apresento-te Cristo, o aniquilamento de Cristo por nós,
a Paixão do Impassível, a cruz e os cravos com que eu fui libertado do pecado; o
sangue, a sepultura, a ressurreição, a ascensão, e também esta mesa, da qual todos nos
aproximamos ao mesmo tempo, e estes ritos da minha salvação, que eu celebro, com a
mesma boca com que apresento estas súplicas, quer dizer, o mistério sagrado que nos
leva ao Céu.
SERMÃO 18 7

1928 10. Se antigamente se considerava como coisa digna para o altar aquilo que o macha-
do não tivesse tocado e o que nunca tivesse visto nem ouvido qualquer ferramenta8 (o
que significa necessariamente que o que se consagra a Deus deve ser natural e sem
artifício), como não considerar digno dela9 ter honrado em silêncio as coisas santas,
nunca ter voltado as costas à mesa venerável..., não ter jamais beijado qualquer mulher
pagã, mesmo que fosse honestíssima e muito familiar..., não ter contaminado os seus
ouvidos e a sua língua, que recebia as coisas divinas ou falava delas, com narrações
pagãs e canções dos teatros..., não se ter entregue jamais com tal intensidade ao choro
corporal, apesar de se comover extraordinariamente com as desgraças alheias, de modo
a deixar escapar qualquer lamento diante da Eucaristia, que as lágrimas caíssem das
suas pálpebras misticamente marcadas, ou que ao chegar um dia de festa continuasse
com vestido de tristeza...? Ela acreditava que é próprio de uma alma de Deus submeter
tudo o que é humano a estas coisas divinas.
1929 28. Entre as coisas maravilhosas que aconteceram (a meu pai), sucedeu esta: Estava
esgotado pela debilidade e doente... e era precisamente o tempo da santa e tão falada
Páscoa, o dia que é o rei dos dias e a noite esplêndida que dissipa as trevas do pecado,
na qual nós, com grande abundância de luz celebramos a festa do nosso Salvador, que
tendo morrido por nós com a luz que morre, ao ressuscitar também nos ressuscitou
juntamente com Ele.
Neste tempo, pois, caiu doente... Estávamos no templo, simultaneamente como
sacerdotes e como suplicantes (pois tínhamos desesperado de todas as outras coisas),

6
Aos concidadãos de Nazianzo.
7
Oração fúnebre pelo seu pai.
8
Cf. Deut 27, 5.
9
A viúva do defunto, isto é, a mãe de Gregório.
GREGÓRIO DE NAZIANZO 501

recorrendo ao grande Médico e à força daquela noite, não sei bem se para celebrar a
festa ou para nos lamentar, se para nos alegrar com a solenidade ou para prestar honras
fúnebres àquele que já não estava presente. Quantas lágrimas derramou então todo o
povo! Que vozes, clamores e hinos misturados com a salmodia! Achavam a falta do
sacerdote no templo, do pontífice no mistério e do ministro digno diante de Deus...
29. Que fez então Deus daquela noite e do enfermo?... Era o tempo da celebração do 1930
mistério e o solene momento de estar de pé e de fazer silêncio para os ritos sagrados,
quando ele foi reanimado por aquele que dá vida aos mortos e por aquela santa noite...
Chamou um criado..., que se aproximou estupefacto..., e ele, apoiando-se na sua mão...,
imitou Moisés no monte. Pondo as suas mãos debilitadas em atitude de orante, cele-
brou fervorosamente os mistérios com o povo e pelo povo, com poucas palavras, por
certo, com aquelas que podia, mas com a mente, segundo me parece, em pleno vigor.
Coisa admirável: sem altar e no altar; sem ara, sacrificador; sacerdote, longe da celebração
dos mistérios, e estas coisas estavam-lhe perfeitamente presentes pela acção do Espí-
rito Santo e eram conhecidas por ele, embora não fossem vistas pelos que estavam
presentes. Depois de pronunciar, como é costume, as palavras da acção de graças e de
abençoar o povo, deitou-se novamente... Melhorando pouco a pouco, chegou o dia
novo da festa (chamamos assim ao primeiro domingo depois da Ressurreição), e ele foi
para o templo, inaugurando assim, com toda a multidão da Igreja, o seu perfeito
restabelecimento e oferecendo o sacrifício de acção de graças...
SERMÃO 20

3. Ousar aproximar-se do Santo dos Santos, olhar ou tocar o véu, o altar ou a arca, 1931
não é deixado à iniciativa de toda a gente...
4. Quanto a mim, sabendo isso e sabendo também que ninguém é digno do Deus 1932
supremo, simultaneamente vítima e sumo sacerdote, se não começar por se oferecer a
si mesmo a Deus como oferenda viva, mais ainda, se não se tornou templo santo e vivo
do Deus vivo, como poderia eu encarregar-me temerariamente de me ocupar da palavra
de Deus ou aprovar aquele que se encarrega sem reflectir? Desejá-lo não é louvável;
encarregar-se mete medo.
SERMÃO 38

3. Agora é a solenidade da Teofania ou também da Natividade, porque ela é desig- 1933


nada de uma maneira e de outra, sendo os dois nomes atribuídos à mesma realidade.
Com efeito, ao nascer Deus apareceu aos homens... O nome de Teofania vem do facto
de Ele ter aparecido, e o nome de Natividade do facto de ter nascido.
4. Essa é para nós a solenidade, essa é a festa que celebramos hoje: a vinda de Deus 1934
aos homens... É por isso que nós celebramos a festa não como uma solenidade profana,
mas de maneira divina; não à maneira do mundo, mas de maneira acima do mundo; não
como festa nossa, mas como festa d’Aquele que é nosso, ou antes como a festa do
nosso Mestre...
SERMÃO 40 10

1. Fizemos ontem a solenidade do esplêndido dia das Luzes porque é mais impor- 1935
tante celebrar a alegria da nossa salvação, do que festejar os aniversários do casamento,
do nascimento ou da tomada do nome, como fazem os amigos da carne, ou também a
entrada na juventude, a inauguração duma casa, e todas as outras festas anuais de que
os homens fazem a solenidade. Hoje falaremos brevemente do baptismo e dos benefí-

10
In sanctum baptisma.
502 SÉCULO IV

cios que dele nos vêm... Vale a pena prestardes atenção ao que vai ser dito e que
recebais o discurso consagrado a um assunto tão importante não com indiferença, mas
com entusiasmo, pois compreender o poder do mistério é também uma iluminação.
1936 3. Esta iluminação é esplendor das almas, mudança de vida, compromisso da cons-
ciência para com Deus; esta iluminação é ajuda da nossa fraqueza; esta iluminação é
renúncia à carne, docilidade ao Espírito, comunhão com o Verbo, renovação da criatura,
dilúvio que engoliu o pecado, participação na luz, desaparecimento das trevas; esta
iluminação é o veículo que leva a Deus, morte com Cristo, alicerce da fé, perfeição do
espírito, chave do Reino dos Céus, mudança da vida, desaparecimento da escravidão,
quebrar das cadeias, transformação dos costumes; esta iluminação – será preciso fazer
uma enumeração mais longa? – é o mais belo e magnífico dos dons de Deus...
1937 4. Assim como Cristo, de quem o recebemos, é chamado com muitos e variados
nomes, o mesmo acontece com este dom. Talvez seja por sentirmos uma grande alegria que
estamos nesta disposição, porque aqueles que são muito enamorados costumam repe-
tir com prazer o nome da pessoa amada; ou, quem sabe, será porque os múltiplos
aspectos do dom nos sugeriram muitos nomes. Chamamos-lhe dom, graça, baptismo,
unção, iluminação, veste de incorruptibilidade11, banho do novo nascimento, selo 12 e
tudo o que há de mais precioso. Dom, porque é conferido àqueles que não trazem nada;
graça, porque é dado mesmo aos culpados; baptismo, porque o pecado é sepultado
nas águas; unção, porque é sagrado e régio, como aqueles que são ungidos; iluminação,
porque é luz brilhante; veste, porque cobre a nossa vergonha; banho, porque lava; selo,
porque nos guarda e é sinal de senhorio de Deus. Os Céus festejam-no; os Anjos
celebram-no porque ele se parece com o seu esplendor; ele é a imagem da felicidade do
além; nós desejaríamos cantá-lo, mas ficamos longe do que ele merece.
1938 5. Deus é a luz suprema, inacessível e inexprimível, luz que nem é compreendida pelo
espírito nem se exprime pela palavra, mas que ilumina toda a natureza dotada de razão...
1939 6. Mas também é uma verdadeira luz, em sentido próprio..., a iluminação do bap-
tismo, que vai ser agora o assunto do nosso discurso, e no qual encontramos um grande
e admirável mistério: o da nossa salvação...
1940 9. Quantas lágrimas teremos de chorar13, para igualar a fonte do baptismo? Quem
nos poderá garantir que a morte irá esperar que estejamos curados e que o tribunal não
nos receberá ainda com dívidas...? Talvez peças ao Senhor que, por enquanto, poupe a
figueira, que não a corte imediatamente, mas aceite que a trates com cuidado: lágrimas,
gemidos, invocações, dormir no chão, vigílias, macerações da alma e do corpo, acções
difíceis, como aquela que se obtém por meio duma confissão e dum modo de vida
humilhante14... Sepultemo-nos então com Cristo, graças ao baptismo, para também
ressuscitarmos com Ele; desçamos com Ele para subirmos com Ele; elevemo-nos com
Ele para sermos glorificados com Ele.
1941 10. Se, depois do baptismo, o perseguidor, o tentador da luz te atacar, e atacar-te-á
porque atacou o Verbo, não temas a luta, pois tens meios para vencer...
1942 11. Façamo-nos então baptizar para sermos vencedores... Façamo-nos baptizar hoje...,
não demoremos este benefício... Corre para o dom enquanto estás na posse das tuas
faculdades, enquanto não estás doente do corpo nem do espírito..., enquanto os teus
bens não dependem de outrem, enquanto a língua não te fica embaraçada, nem parada,
nem sequer impedida de pronunciar as palavras da tua iniciação15, enquanto podes

11
a) f qarsi/ a j e) / n duma.
12
sfraxi/ j .
13
Referência às lágrimas da penitência.
14
Alusão à penitência pública.
15
O candidato ao baptismo devia recitar a profissão de fé, o símbolo baptismal.
GREGÓRIO DE NAZIANZO 503

tornar-te crente não por suposição, mas pelo testemunho de todos, e provocar admi-
ração em vez de piedade...
15. Se te prevenires com o selo..., fazendo marcar a alma e o corpo pela unção e pelo 1943
Espírito..., que te acontecerá?...
16. Mas tu tens medo de perder a graça e, por isso, tardas em purificar-te, por não 1944
teres a possibilidade de o fazer uma segunda vez... Oh prudência imprudente, se assim
podemos dizer! Oh engano do Maligno! Ele é só trevas e finge ser luz!... Não tomes
por conselheiro o teu inimigo; não desdenhes ser «fiel» e de teres o nome. Enquanto
fores catecúmeno, estarás no vestíbulo da piedade; deves entrar, atravessar o pátio,
contemplar o Santo, debruçares-te para o Santo dos Santos16, estar com a Trindade.
17. És jovem? Mantém em boa ordem as paixões com esta Aliança... És idoso e perto 1945
do termo inevitável? Respeita os teus cabelos brancos... Tens um bebé? Não se apro-
veite o mal desta ocasião para agir: santifica-o desde o berço, consagra-o ao Espírito
desde tenra idade. Tens medo do selo porque a natureza é fraca? És mãe tímida e de
pouca fé. Ana, a mãe de Samuel, dedicou (o filho) ao Senhor, ainda antes de ele ter sido
concebido e, ao nascer, consagrou-o, revestiu-o da veste sacerdotal sem qualquer temor
humano, confiando totalmente no Senhor. Tu não tens necessidade nem de amuletos nem
de encantamentos: é com essas coisas que o Maligno entra na alma dos homens fra-
cos... Dá ao teu filho a Trindade, esse grande e belo talismã...
18. Que mais ainda? Praticas a virgindade? Marca-te com o selo da purificação e faz 1946
desta a companheira da tua vida, a tua associada; que ela marque para ti o ritmo da
vida, da palavra, de todos os teus membros, de todos os teus movimentos, de todos os
teus sentidos... Estás nos elos do casamento? Aceita também a ligação do Selo; estabe-
lece-o em ti como guarda da castidade: não crês que ele é mais seguro do que uma
multidão de eunucos e de porteiros? Ainda não tomaste o jugo da carne17? Não tenhas
medo da perfeição; também és puro depois do casamento, sou eu o responsável, sou eu
que selo a união e que te apresento a esposa. Não é por a virgindade ser mais honrosa,
que o casamento é sem honra...
20. Mas que terei eu a mais do que os outros, pergunta ele, se me prender muito cedo 1947
pelo baptismo, privando-me, com essa pressa, da alegria de viver...? Com efeito,
aqueles que trabalharam desde a manhã na vinha não receberam nada mais do que os
últimos, aos quais foi dado um salário igual...
Nota, em primeiro lugar, que não se trata do baptismo, mas daqueles que, em
momentos diferentes, crêem e entram na bela vinha, a Igreja... Se eles chegaram mais
tarde, é porque também foram chamados mais tarde ao trabalho da vinha...
22. Entre os que receberam o dom (do baptismo) uns eram totalmente estranhos a 1948
Deus e à salvação, tendo percorrido todos os caminhos do vício... Outros eram apenas
meio maus..., pois tinham feito o mal mas não o aprovavam... Outros, antes mesmo da
iniciação, eram dignos de elogios, quer por inclinação quer porque se purificavam com
ardor antes do baptismo, e após a iniciação mostram-se mais corajosos e mais seguros...
23. Entre os que não chegam ao baptismo, alguns são verdadeiras feras... Para eles, 1949
além dos seus outros defeitos, a graça, creio eu, não tem grande valor... Outros conhe-
cem e estimam o dom, mas adiam-no para mais tarde... Outros não estão em condições
de o receber, quer por causa da pouca idade, quer por circunstâncias totalmente imprevistas
que os impedem, apesar de o desejarem, de receber a graça...

16
As etapas da iniciação cristã são aqui descritas de acordo com a topografia do Templo de Jerusalém: pátio
(ou esplanada) dos Israelitas, Santo (onde os sacerdotes realizavam os ritos), Santo dos Santos (onde o
sumo sacerdote penetrava sozinho uma vez por ano).
17
Isto é, ainda não casaste?
504 SÉCULO IV

1950 24. Recebei a iluminação enquanto é tempo. Muitos dizem: Esperarei pela festa das
Luzes18; para mim a Páscoa tem mais importância; pela minha parte vou esperar pelo
Pentecostes; vale mais receber a iluminação com Cristo; é melhor ressuscitar com
Cristo no dia da Ressurreição; é preferível honrar a manifestação do Espírito...
1951 26. Não digas: «Eu quero ser baptizado por um bispo, e até por um metropolita, ou
pelo bispo de Jerusalém – a graça não depende dos lugares, mas do Espírito – ... ou
então, se for um presbítero, ao menos que seja um dos que não são casados, um dos que
sabem dominar-se a si mesmos e que levam uma vida semelhante à dos Anjos, porque
seria aborrecido manchar-me no momento da purificação». Não procures saber se
aquele que proclama a fé e aquele que baptiza são dignos de confiança. Quem julga isso
é um outro, e que aprecia o que há de mais escondido, porque o homem vê o rosto, mas
Deus vê o coração. Para ti, deve ser digno de confiança todo o que pertence ao número
dos que receberam aprovação, que não foram abertamente condenados e que não são
estranhos à Igreja. Não julgues os teus juízes...
1952 27. Tu que és rico, não tenhas vergonha de ser baptizado juntamente com um pobre,
nem o nobre com o plebeu, nem o mestre com o que até agora foi seu escravo... Não te
envergonhes de confessar os teus pecados... Não rejeites o remédio do exorcismo nem
te desencoraje a sua extensão. Essa é também a pedra de toque da tua sinceridade em
relação à graça... Não tenhas medo nem da extensão do caminho, nem das distâncias do mar...
1953 28. Admitamos isso, diz ele, relativamente àqueles que procuram o baptismo. Mas
que dizer (do baptismo) dos bebés que não têm ainda o sentido nem da graça nem do
castigo? Deveremos baptizá-los? Sem dúvida, no caso de os ameaçar algum perigo. É
melhor serem santificados sem o saberem, do que partirem (deste mundo) sem a iniciação
e o selo... Quanto às outras crianças, sou de opinião que se espere até atingirem cerca
de três anos19 – nessa altura já podem entender alguma coisa do mistério e responder-lhe;
talvez não compreendam muito bem, mas ficam impressionadas – e então consagrem-se as
suas almas e os seus corpos pelo grande sacramento da iniciação. As coisas são assim:
(as crianças) começam a assumir a responsabilidade das suas acções quando chegam à
idade da razão: é então que deve ter início a instrução sobre este sacramento...; além
disso, quem chegará a conhecer algum dia a vantagem de ser fortificado pelo banho,
antes de nos começarem a assaltar as graves tentações, que ultrapassam as nossas
forças?
1954 46. A atitude que tomarás, de pé, imediatamente após o baptismo, diante do grande
altar, é uma prefiguração da glória do Céu; o canto dos salmos com que serás acolhido é o
prelúdio do canto dos hinos do Céu; os círios que segurarás na mão evocam o cortejo
de luz do Céu, com o qual iremos ao encontro do Esposo... com as lâmpadas da fé
acesas20... Possamos nós também participar nele, nós que vos damos este ensino e vós que
o recebeis, no próprio Cristo nosso Senhor, a quem pertence a glória pelos séculos. Amen.
SERMÃO 41 21

1955 1. Tratemos com brevidade desta festa, para a celebrarmos segundo o Espírito.
Deixemos aos outros as solenidades de outro género; mas o servidor da Palavra precisa
da palavra, e entre as palavras, precisa daquelas que estão mais de acordo com a

18
A Epifania.
19
Gregório de Nazianzo é uma excepção relativamente aos outros Padres quanto à idade em que as crianças
devem ser baptizadas. A sua observação é interessante do ponto de vista psicológico e pedagógico.
20
Os neófitos, ao saírem do baptistério, entravam na igreja, em procissão, com velas acesas nas mãos, símbolo
da fé, enquanto a assembleia cantava salmos. Avançavam até ao presbitério, onde viam a cadeira do bispo,
o banco do clero em semi-círculo e, no centro, o altar.
21
Para o dia do Pentecostes.
GREGÓRIO DE NAZIANZO 505

circunstância. Não se fica mais feliz ao ver coisas belas, quando se ama a beleza, do que
se sente alegria ao celebrar as festas segundo o Espírito, quando se amam as festas.
Notemos o seguinte: O Judeu celebra festas, mas segundo a letra... O grego também
celebra festas, mas segundo o corpo... Nós também celebramos festas, mas da maneira
que agrada ao Espírito. Ora, o que Lhe agrada, é que falemos ou actuemos como
devemos. Celebrar uma festa entre nós, é juntar para a sua alma alguns desses bens que
são estáveis e soberanos...
2. Por isso, devemos celebrar as nossas festas segundo o Espírito... 1956
18. Temos de pôr fim a esta reunião..., mas à festa, não devemos nunca pôr-lhe fim. 1957
É preciso celebrá-la agora associando-lhe o corpo, e um pouco mais tarde fá-lo-emos
de maneira inteiramente espiritual..., no Verbo, Ele próprio nosso Deus e nosso Se-
nhor Jesus Cristo, na verdadeira festa e na alegria dos eleitos. Com Ele, glória e honra
ao Pai com o Espírito Santo agora e pelos séculos dos séculos. Amen.

SERMÃO 42

30. Ó Verbo! Possas Tu considerar esta homilia, não como primícias, mas como 1958
complemento das nossas oferendas, pois Ta dirijo ao mesmo tempo como acção de
graças e como oração, pedindo-Te que não acrescentes sofrimentos àqueles que, por
serem necessários e santos, são inerentes à nossa natureza. Possas Tu também sus-
pender a tirania que o nosso corpo exerce sobre nós (e Tu bem vês, Senhor, como ela
é grande e como vivo curvado debaixo dela), ou o teu julgamento, se formos purificados
por Ti. E se pudéssemos morrer da maneira que desejamos e ser recebidos nos
tabernáculos eternos do Céu, agora mesmo e aqui neste lugar realizaríamos os sacrifícios
que Vos são agradáveis, sobre o vosso altar sagrado, ó Pai, Filho e Espírito Santo,
porque a Vós pertence toda a glória, toda a honra e todo o poder pelos séculos dos
séculos. Amen.

SERMÃO 43

27. Este exegeta dos livros sagrados22 começara por lê-los ao povo23, e não desde- 1959
nhara desempenhar esta função na tribuna 24: é nestas condições que ele celebra o
Senhor tanto na cadeira 25 dos presbíteros como na dos bispos...
52. Valente26 dirigiu-se ao santuário levando consigo toda a sua guarda – era o dia da 1960
Epifania e havia afluência –, e tomou lugar entre o povo... Quando já estava no interior
e o trovão da salmodia lhe repercutia nos ouvidos, ao ver o oceano formado pelo povo
e todo o belo ordenamento que reinava quer na tribuna quer à volta..., e que o bispo não
fazia qualquer movimento do corpo, nem dos olhos, nem do pensamento, como se
nada de novo se tivesse passado27..., ficou por assim dizer paralisado diante de Deus
e petrificado na tribuna; os que o rodeavam permaneceram de pé, mergulhados numa
espécie de temor e veneração...: os olhos do imperador foram invadidos por trevas e
vertigens e a sua alma ficou estupefacta. O povo não se deu conta de nada. Mas no
momento de levar à mesa divina os dons que ele próprio preparara com as suas mãos,
ao ver que ninguém se aproximava para pegar neles, como era costume, porque não se

22
Trata-se de Basílio. Todo o sermão 43 é sobre o grande amigo de Gregório de Nazianzo.
23
Basílio tinha sido leitor antes de se tornar diácono.
24
bh/ m atoj .
25
kaqe/dra .
26
Trata-se do imperador Valente, inimigo de Basílio.
27
O imperador chegou atrasado à igreja, e o bispo não mudou fosse o que fosse à celebração da liturgia.
506 SÉCULO IV

sabia ainda se iriam ser aceites, então tornou-se visível o que lhe acontecera28. Perdeu
o equilíbrio e, se um dos seus que se encontrava na tribuna o não amparasse e lhe
oferecesse o apoio da sua mão, ele teria dado uma queda lamentável. Mas passemos
adiante29.
SERMÃO 45 30

1961 30. O Senhor deu o mistério da Páscoa aos discípulos no Cenáculo, durante a refei-
ção, no dia anterior à sua Paixão; e nós damo-lo nas nossas igrejas antes de comermos
e depois da sua Ressurreição.
Páscoa do Senhor, Páscoa, repito, em honra da Trindade. É para nós a festa das
festas, a solenidade das solenidades, que ultrapassa em glória não só as festas humanas
e ligadas à terra, mas também aquelas que celebramos em honra de Cristo, como o sol
ultrapassa as estrelas em esplendor.
SERMÃO PARA O DIA DE NATAL 31

1962 Jesus Cristo acaba de nascer; dai-Lhe glória! Ele desce dos Céus; correi para Ele!
Cristo está na terra; sendo celeste vem ao meio dos homens... De novo se dissipam as
trevas e se levanta a luz; de novo o Egipto é coberto de trevas, e de novo uma coluna
de fogo ilumina Israel. Povo que estavas sentado na noite da ignorância, contempla
esta grande luz do conhecimento...
Celebramos hoje a Teofania ou o Natal, uma vez que se dizem ambas as palavras e se
empregam os dois termos para designar o mesmo acontecimento. Deus manifesta-Se aos
homens pelo seu nascimento. Aquele que é, que existe eternamente, que desde toda a
eternidade Se eleva acima de tudo..., um dia nasceu para nós... Porque Deus Se mani-
festou, esta festa chama-se Teofania, e porque o fez ao nascer, chama-se Natal...
Celebremos então, este dia, cheios de alegria do céu e não do mundo, duma
verdadeira alegria divina. Não é a nós mesmos que festejamos hoje, mas Àquele que é
o nosso Senhor...
O NOVO DOMINGO 32

1963 5. Vós perguntais: Que contém o domingo? Escutai: o sábado, esse dia senhorial
pré-figurativo, era santificante. Mas o novo domingo é verdadeiramente o natale da
salvação eterna. Aquele resultava do repouso sepulcral, mas este, o nosso domingo, é
de verdade a chegada da nova criação, a irrupção da vida do alto...

28
Nenhum dos diáconos ousou aproximar-se do herege para, sem ordem do bispo, receber a sua oferenda.
A expressão como era costume parece indicar que o que se fazia em 371 deixara de se fazer cerca de doze
anos mais tarde. Podemos supor que os fiéis passaram a depor as suas oferendas sobre uma mesa
preparada para isso. A multiplicação do número dos fiéis explicaria a mudança.
29
Gregório abrevia o relato. O imperador Valente era baptizado e a sua oferenda foi aceite. Teria depois sido
admitido à comunhão por Basílio? Gregório prefere falar de outras coisas para não ter de dar explicações
sobre este ponto delicado.
30
Em louvor da santa Páscoa (=PG 36, 623-664).
31
Para o dia de Natal (=PG 36, 312-334). Este sermão é do ano 380.
32
O novo domingo (=PG 36, 607-622).
GREGÓRIO DE NAZIANZO 507

Cartas 33

CARTA 93 34

Seria com muito prazer que eu teria assistido a esta festa, para unir uma à outra 1964
a mão dos jovens esposos e as duas às mãos de Deus35.
CARTA 171 36

A língua do sacerdote, que piedosamente falou com o Senhor, levanta os que 1965
jazem enfermos. Quando desempenhas as funções sacerdotais, faz o que é melhor e, ao
tocares a vítima do dia da ressurreição, livra-nos do peso dos nossos pecados. Na
verdade, estão comigo os teus cuidados e solicitudes, quando estou acordado e quando
durmo, e meu é o ponteiro de tocar cítara (effectus es), fizeste habitar em nossos corações
a lira harmoniosa, da qual se escreveu seiscentas vezes excitaste para a sabedoria do nosso
coração. Mas não deixes de orar e de falar em nosso favor, ó santíssimo adorador de
Deus, quando atraíres o Verbo com a tua palavra, quando com golpe incruento cortares
o Corpo e o Sangue do Senhor, usando como espada a tua voz.

Hino 93 37
Primeiro, sou um dom concedido por Deus às orações da minha esclarecida mãe. 1966
Segundo, Deus recebeu da minha mãe um dom amado38.
Terceiro, quando estava moribundo salvou-me a mesa imaculada.
Quarto, o Verbo concedeu-me uma palavra de dois gumes.
Quinto, a virgindade abraçou-me com os seus amáveis sonhos.
Sexto, celebrei os ofícios sagrados em unanimidade com Basílio.
Sétimo, o dador de toda a vida livrou-me dos abismos profundos.
Oitavo, de novo purificou as minhas mãos das enfermidades.
Nono, levei, ó rei, a Trindade à nova Roma.
Décimo, fui apedrejado mesmo pelos meus amigos.

33
G REGÓRIO DE N AZIANZO , Epistulae (=PG 37, 21-388).
34
A Vitaliano ou a Procles. A filha de Vitaliano ou de Procles, chamada Olímpia, acabava de casar, e
Gregório de Nazianzo desculpa-se junto do pai por não lhe ter sido possível estar presente.
35
Alusão clara à dextraram iunctio do direito romano.
36
Carta a Anfilóquio (=PG 37, 279-281).
37
G REGÓRIO DE N AZIANZO , Carmina de se ipso (=PG 37, 1448).
38
A sua mãe, Nona, já com alguma idade, obteve de Deus este filho que Lhe consagrou.
508 SÉCULO IV

Optato de Milevo

Contra Parmeniano, donatista 1

LIVRO V
1967 10. 3 Cristo, o Filho de Deus, é o esposo, a veste e a túnica que, imergida na água do
baptismo, já reveste a muitos e espera revestir ainda mais... Ninguém critique a minha
audácia ao dizer temerariamente que o Filho de Deus é uma veste, pois o Apóstolo diz:
Todos vós que fostes baptizados em Cristo, estais revestidos de Cristo2. 4 Ó túnica
sempre única e imutável, que se adapta tão bem a todas as idades e tamanhos, nem
demasiado grande para os bebés nem pequena demais para os adultos, e que não
precisa de transformação para as mulheres! Vai chegar o dia em que começaremos a
celebrar as núpcias celestes. Nesse dia, os que tiverem conservado o único baptismo
pôr-se-ão tranquilamente à mesa...

LIVRO VI

1968 1. 1 Segundo creio, está claramente demonstrado o que fizestes de maneira indigna
nos divinos sacramentos... Que pode haver de mais sacrílego do que partir, arrasar e
remover os altares de Deus, nos quais também vós oferecestes algumas vezes, sobre os
quais estiveram os votos do povo e o Corpo de Cristo, junto dos quais foi invocado
Deus omnipotente, sobre os quais foi invocado e desceu o Espírito Santo, onde muitos
receberam o penhor da salvação eterna, a defesa da fé e a esperança da ressurreição?...
2 Que é o altar senão o lugar onde repousam o Corpo e o Sangue de Cristo...? 3
Em toda a parte houve crime, já que pusestes as vossas mãos sacrílegas e ímpias sobre
coisa tão santa... 4 Se nós, por julgamento da vossa inveja, vos parecíamos imundos,
que vos fizera Deus que ali costumava ser invocado? Em que vos ofendeu Cristo, cujo
Corpo e Sangue repousava em certos momentos no altar? Porque vos ofendestes a vós
mesmos destruindo os altares sobre os quais oferecestes santamente, durante um largo
espaço de tempo, e, segundo dizeis, até antes de nós? Quando perseguistes com
impiedade as nossas mãos onde habitava o Corpo de Cristo, também feristes as vos-
sas. 5 Deste modo imitastes os Judeus: eles puseram as mãos sobre Cristo na cruz, vós
feriste-O no altar. Se queríeis perseguir os católicos, ao menos deveríeis ter respeitado as
vossas antigas oblações... 9 Haverá algum fiel que ignore que a própria madeira do altar
é coberta com toalhas, ao celebrarem-se os mistérios? Ao celebrar os mistérios, podem
tocar-se as toalhas, mas não a madeira...
1969 2. Este crime monstruoso foi repetido por vós, quando também quebrastes os
cálices, onde se leva o Sangue de Cristo, e juntastes os pedaços num monte para os
vender... 2 Ordenastes a venda e a dispersão destes objectos, que talvez tenham sido
comprados por certas mulheres para seu uso próprio, ou pelos pagãos para fazerem
deles vasos nos quais poderão oferecer incenso aos seus ídolos...

1
O PTATO DE MILEVO , Adversus Parmenianum, donatistam (=PL 11, 883-1104; CPL 244-249; CSEL 26;
SCh 412 e 413). Nada mais se sabe de Optato, a não ser que foi bispo de Milevo. Deve ter escrito a sua obra,
contra os donatistas, entre 370 e 390.
2
Gal 3, 27.
PACIANO DE BARCELONA 509

Paciano de Barcelona

Exortação à Penitência 1
2. 2 Ninguém pense que as minhas palavras acerca da instituição penitencial se 1970
dirigem unicamente aos penitentes, para não ficar aborrecido, imaginando que isto não
lhe diz respeito, como se o meu discurso se dirigisse apenas ao vizinho, pois a penitência
é como que a força que mantém a disciplina de toda a Igreja. Trata-se de fazer com que
os catecúmenos nunca tenham de passar por ela, e que os fiéis não tenham mais
necessidade de a ela voltar. Quanto aos penitentes, os nossos esforços procurarão que eles
cheguem o mais depressa possível a resultados frutuosos.
3 Será este o plano do meu propósito. Primeiro tratarei da classificação dos
pecados, para que ninguém pense que o mesmo perigo grave ameaça todas as faltas,
sem distinção. Em seguida falarei dos fiéis que têm vergonha de utilizar o remédio da
penitência e se aproximam da comunhão manchados no corpo e no espírito. Estes
pecadores mostram uma grande timidez diante dos homens, mas, diante de Deus, não
têm vergonha nenhuma e profanam, com as mãos e as bocas manchadas, o altar sagrado,
que é temível mesmo para os santos e os Anjos. 4 Por fim, dissertarei sobre aqueles
que, carregados de faltas certas e conhecidas de todos, pretendem ignorar ou recusam
cumprir as obrigações da exomologese. Como conclusão, mostrarei, de maneira clara, por
um lado a punição que cairá sobre aqueles que não fazem penitência ou se mostram
negligentes em relação a ela, vindo a morrer com as suas feridas e os seus abcessos; por
outro lado, direi qual é a recompensa reservada aos pecadores que apagam as manchas
da sua consciência através duma penitência justa, levada a cabo como deve ser...
3. 1 Tal como dissemos trataremos, em primeiro lugar, da classificação dos pecadores, 1971
examinando, cuidadosamente, o que é pecado e o que é crime. Não se pense que, em
virtude das inumeráveis faltas, a cujas consequências ninguém pode fugir, eu submeto
indistintamente todo o género humano a uma mesma lei penitencial. 2 Para Moisés e
para os antigos, até os pecados mais pequenos e, por assim dizer, os assuntos de meio
centavo, eram submetidos a idênticas ondas de infelicidade: os que profanavam o
sábado, os que tocavam em objectos impuros, os que comiam alimentos proibidos, os
que murmuravam... 3 De tudo isso e de muitas outras misérias do corpo... nos libertou
o sangue do Senhor..., pelo que o apóstolo Paulo diz: Foi para a liberdade que vós
fostes chamados 2. 4 Esta liberdade consiste no seguinte: não estamos sujeitos a tudo
aquilo que estavam submetidos os antigos..., mas tão só a um pequeno número de
coisas, indispensáveis, mas muito fáceis de observar e de guardar pelos crentes...
5. 2 São muitos os que caíram em pecados graves. Muitos são culpados de ter 1972
derramado sangue, muitos estão dominados pelos ídolos, muitos são adúlteros. 3
Acrescento que há crime não apenas quando se comete um assassínio com as próprias
mãos, mas também quando alguém leva outro a matar, pelos seus conselhos. São
punidos com a pena de morte não apenas aqueles que queimaram incenso diante das
mesas dos ídolos, mas também todos aqueles cujos desejos andam à solta fora do leito
conjugal e dos abraços permitidos. Todo aquele que comete esses pecados, depois do
baptismo, não verá a face de Deus.

1
P ACIANO DE B ARCELONA , Paraenesis ad paenitentiam (=PL 13, 1081-1089; CPL 561-563; SCh 410; C.
V OGEL, Paris 1966, 89-101). Paciano morreu no ano de 392. Os editores dão vários nomes a esta obra de
Paciano: Sermo de paenitentibus, Liber de paenitentibus, Paraenesis sive exhortatorius libellus ad
paenitentiam, De paenitentia et confessione libellus, Paraeneticus ad paenitentiam, etc.
2
Gal 5, 13.
510 SÉCULO IV

4 Perderam então toda a esperança os culpados de tais crimes? Mas que posso
eu fazer? Não vos foi dito que estes crimes não se fazem? Ninguém vos advertiu?
Ninguém vos pôs de sobreaviso? Será que a Igreja ficou muda? Os Evangelhos não
falaram? Os Apóstolos não ameaçaram? O bispo não suplicou? 5 Porque procurais
então consolações tardias? Devíeis tê-lo feito quando ainda era permitido fazê-lo.
Estas palavras são duras, mas aqueles que vos proclamam felizes induzem-vos em erro
e desviam os vossos passos. Aquele que lisonjeia os culpados, depois dos seus crimes,
mostra o caminho do crime aos inocentes.
1973 6. 1 Então, dir-me-á alguém, temos de perecer? Onde está o Deus misericordioso,
que não quer a morte nem Se alegra com a perdição dos homens? Morreremos nos
nossos pecados? E tu, bispo, que vais fazer? Com que lucro compensarás tantos males
infligidos à Igreja? Eis a minha resposta: Se começais a desesperar, se vos sentis
miseráveis, se tendes medo, tomai o remédio. Aquele que mostra demasiada confiança é
indigno dele...
2 Dirijo-me, portanto, em primeiro lugar a vós, meus irmãos, que, depois de
terdes cometido crimes, recusais a penitência, a vós, repito, que mostrais timidez
depois da insolência, que tendes medo depois de ter pecado, a vós que não tendes
vergonha de pecar, mas tendes vergonha de vos reconhecer pecadores, a vós que, com
uma má consciência, tocais os santos mistérios de Deus e não temeis o altar do Senhor.
Aproximais-vos da mão do bispo, avançais para comungar com uma segurança hipócrita
de pureza, em presença dos Anjos! Vós insultais a paciência divina. Tomais parte na
refeição sagrada, mas com a alma e o corpo sujos – e Deus cala-Se, como se o ignorasse.
Escutai, pois, o que fará o Senhor e, em seguida, o que Ele dirá...
1974 8. 2 Que hás-de fazer, tu, que enganas o bispo? Tu que o enganas, quer por ele
ignorar o teu estado, quer porque o pões numa situação delicada, pelo facto de ele
desconfiar da tua indignidade, mas ter dificuldade em prová-la? Peço-vos, meus irmãos,
também pela minha própria salvação, que está em perigo, peço-vos por Deus, ao qual
não escapa nenhum segredo, cessai de esconder hipocritamente a vossa consciência doente.
3 Os doentes ajuizados não temem os médicos, mesmo quando eles lhes aplicam
o bisturi ou o fogo nas partes mais íntimas do corpo. Nós sabemos que alguns não
tiveram qualquer vergonha em descobrir os seus órgãos íntimos e suportaram o ferro e
os cautérios que lhes doíam imenso.
4 E o pecador terá medo? Terá medo de trocar a vida eterna por uma vergonha
passageira? Esconderá as suas chagas mal cicatrizadas diante da mão de Deus, que o
socorre? De que terá ainda vergonha aquele que ofendeu o Senhor? Será melhor pere-
cer, será melhor para ti morreres na ignomínia por causa do teu amor-próprio?... 5
Temeis os olhares dos vossos irmãos? Não vos importeis, porque eles estão na mesma
situação que vós estais. O corpo não se alegra quando um dos seus membros está
ferido: sofre com ele e colabora na cura. A Igreja está presente em todos os seus
membros, e Cristo está presente na sua Igreja. É por isso que aquele que não esconde
os seus pecados aos seus irmãos, será perdoado graças às lágrimas de toda a assembleia
e graças à força das orações de Cristo.
1975 9. 1 Dirijo-me agora àqueles que, com sabedoria e para seu bem, reconhecem os
seus pecados, fazendo profissão de penitentes, mas que nem sequer sabem o que é a
penitência, nem qual é o verdadeiro remédio para as suas feridas. Parecem-se com
aqueles que descobrem as suas feridas e os seus tumores, os mostram aos médicos que
estão à volta deles, mas, informados dos meios a empregar, se mostram negligentes e se
afastam dos remédios. O que equivale a dizer: Eu estou doente, estou ferido, mas
recuso-me a curar-me! Haverá algo mais louco?
2 Acrescenta-se até um novo mal à doença, uma ferida à outra, aplicam-se remé-
dios inadequados, poções perigosas. A comunidade dos irmãos sofre muito com tais
PACIANO DE BARCELONA 511

situações, porque são acrescentados novos pecados aos crimes antigos. Os vícios,
como erupções, rebentam, e a doença torna-se cada vez mais torturante. Que devo eu
fazer, eu que sou bispo e sou obrigado a curar?
3 É muito tarde para o fazer, num caso destes. Contudo, se o doente suportar
que se cortem e queimem as suas carnes, ainda posso curar: Convertei-vos ao Senhor
vosso Deus, no jejum, nas lágrimas, nos gemidos e rasgai os vossos corações3. Não
temais esta operação, caríssimos. David suportou uma semelhante...
10. 1 Também eu aplicarei os ferros que cauterizam, dos quais falam os Apóstolos. 1976
Vejamos se sois capazes de os suportar: Quanto a mim, ausente de corpo, mas presente
em espírito, já julguei, como se estivesse presente, aquele que assim procedeu: em
nome do Senhor Jesus e com o seu poder, por ocasião de uma assembleia onde eu
estarei presente em espírito, que tal homem seja entregue a Satanás para mortificação da
sua carne, a fim de que o seu espírito seja salvo no dia do Senhor 4. 2 Que dizeis vós,
penitentes? Onde está a morte da vossa carne? Bem ao contrário: durante a vossa
penitência, não passeais vós, muito elegantes, de estômago cheio graças às vossas
finas refeições, bem asseados ao sair dos banhos, refinados na vossa maneira de vestir?...
11. 1 Eu sei que alguns dos vossos irmãos e algumas das vossas irmãs rodeiam a 1977
cintura com um cilício, se ajoelham na cinza, se entregam a jejuns prolongados. E não
cometeram, certamente, crimes tão grandes! Que direi de vós, irmãos?... 2 No que vos
diz respeito, nenhum licor duma penitência de salvação, nenhuma erva medicinal da
exomologese vem eliminar os dardos inflamados do Diabo...
3 Considerai agora, meus irmãos, o que tínhamos prometido: o fruto da penitência
mede-se pelas boas obras... Os pecadoras gozam recusando-se a fazer penitência... 5
Temei por isso, irmãos caríssimos, o justo julgamento; deixai de lado a hipocrisia,
condenai as volúpias... 6 Se tendes medo dos tormentos da exomologese, lembrai-vos
do fogo da geena que a exomologese extingue...
12. 1 Lembrai-vos, irmãos, que nos Infernos já não haverá exomologese; nenhuma 1978
penitência poderá ser aí concedida, porque o tempo do arrependimento passou. Apressai-
-vos enquanto viveis, enquanto caminhais ainda com o vosso adversário...
2 A vós me dirijo, irmãos. Suplico-vos, em nome da Igreja, peço-vos e conjuro-vos em
meu nome e em nome de todos: não tenhais vergonha por causa das obras de penitência a
cumprir, não tardeis em recorrer o mais depressa possível aos remédios apropriados ao mal,
a mergulhar o vosso coração na aflição, a envolver o vosso corpo em saco à maneira de veste,
a espalhar cinza sobre a vossa cabeça, a mortificar-vos com jejuns, a consumir-vos de dor, a
deixar-vos, enfim, socorrer pelas intercessões de toda a comunidade.
3 Deus poupar-vos-á na medida em que não tiverdes poupado a vossa pena,
porque Ele é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia5. Prometo-vos e
asseguro-vos: se voltardes para o vosso Pai após uma expiação verdadeira, se não
recairdes nos vossos pecados nem acrescentardes nada às vossas faltas passadas, mas
disserdes, com humildade e tristeza: Pecámos diante de vós, Pai; já não somos dignos
do nome de filhos6, prometo-vos que, imediatamente, o rebanho imundo dos Demónios se
afastará de vós, e vós deixareis as bolotas, alimento infame (dos porcos)...

3
Joel 2, 12-13.
4
1 Cor 5, 3-5.
5
Joel 2, 13.
6
Lc 15, 22.
512 SÉCULO IV

Sermão sobre o Baptismo 7


1979 1. 1 Desejo mostrar o modo como nascemos no baptismo, e de que maneira aí
somos renovados... 2 Mostrarei, por isso, aquilo que antes foi o paganismo e, a seguir,
o que a fé trouxe e o que o baptismo perdoa...
1980 6. 1 Dir-me-á alguém: «Com razão o pecado de Adão passou aos seus descendentes,
porque dele foram gerados; mas acaso somos nós descendentes de Cristo, para poder-
mos ser salvos por seu intermédio»? Não penseis de modo carnal; já vereis de que
modo somos descendentes de Cristo... Estas são as núpcias pelas quais o Senhor Se
uniu à natureza humana. Assim se realiza aquele grande mistério, segundo o qual
Cristo e a Igreja são dois numa só carne.
3 Destas núpcias nasce o povo cristão pela virtude do Espírito do Senhor que
desce do alto. Com o gérmen celeste... vamo-nos formando no seio maternal da Igreja, que
nos dá à luz para a vida nova em Cristo... Deste modo nos gera Cristo na Igreja por
meio dos seus sacerdotes, como diz o Apóstolo: Eu vos gerei em Cristo. E assim o
gérmen de Cristo, isto é, o Espírito de Deus, dá origem, pelo ministério do sacerdote e
a virtude da fé, ao homem novo, formado no seio maternal da Igreja e dado à luz na
fonte baptismal... 4 Ora este novo nascimento não é possível senão pelo sacramento
do baptismo, do crisma e do sacerdote8. Pelo baptismo somos purificados dos nossos
pecados; pelo crisma é derramado sobre nós o Espírito Santo; e uma e outra coisa nos
são concedidas pela imposição das mãos e pela palavra do sacerdote9...
1981 7. 4 Fomos efectivamente libertados das nossas cadeias, quando, pelo sacramento
do baptismo, nos reunimos sob o estandarte do Senhor, libertos pelo sangue e pelo
nome de Cristo... 6 Portanto, irmãos caríssimos, de uma vez para sempre somos
purificados, de uma vez para sempre somos libertados, de uma vez para sempre somos
recebidos no reino imortal; de uma vez para sempre, felizes daqueles a quem foi
perdoada a culpa e absolvido o pecado. Guardai com firmeza o que recebestes, guar-
dai-o com alegria, não pequeis mais. Conservai-vos assim puros e imaculados para o
dia do Senhor.

Cartas 10

CARTA 1 11

1982 5. 1 Relativamente à penitência, Deus permita que ela não seja necessária a nenhum
dos fiéis. Deus queira que ninguém, depois de receber o socorro do rito sagrado das
fontes, se lance na fossa da morte, e que os bispos12 não sejam obrigados a administrar
ou a propor alívios tardios, a fim de não parecer que abrem o caminho do pecado ao
proporem remédios que tranquilizam o pecador. Pela nossa parte, é aos infelizes, não
aos felizes, que manifestamos esta clemência do nosso Deus, não antes, mas depois
dos pecados. Não é aos que têm saúde, mas aos doentes, que nós anunciamos o remédio.

7
PACIANO DE B ARCELONA , Sermo de baptismo (=PL 13, 1089-1094; SCh 410; cf. LH, IV).
8
Antistitis sacramento.
9
Manu et ore antistitis impetramus.
10
PACIANO DE B ARCELONA , Epistulae (=PL 13, 1051-1081; SCh 410).
11
Carta a Simproniano. Simproniano é um novaciano, que tem vergonha de o dizer. Paciano dirigirá ainda a
Simproniano outra carta, juntamente com a qual lhe enviou o Contra tractatus novatianorum (=PL 13,
1051-1058; SCh 410).
12
Sacerdotes.
PACIANO DE BARCELONA 513

2 Se os espíritos do mal nada podem contra os baptizados, se nada consegue esse


engano da serpente que provocou a ruína do primeiro homem e que imprimiu nos seus
descendentes tantos sinais de dominação; se a serpente se retirou do mundo e nós
começámos já a reinar, se nenhum crime pode surpreender os nossos olhos, nenhum as
nossas mãos, nenhum os nossos pensamentos, rejeitemos este dom de Deus, afaste-
mos o socorro, e não se ouça qualquer exomologese, qualquer gemido, e que uma
orgulhosa justiça despreze qualquer remédio! 3 Mas, se foi o próprio Senhor que
previu isso em favor do homem..., cessai de incriminar a bondade divina, de martelar,
a pretexto de rigor, tantos títulos da clemência celeste, e de afastar, por uma dureza
implacável, os bens gratuitos do Senhor. 4 Não é das nossas coisas que nós concede-
mos isso... 6 Recusemo-nos a pecar, mas não nos recusemos a fazer penitência! Tenha-
mos vergonha de correr para o perigo, mas não a tenhamos de sermos libertados dele!...
6. 1 Tu dizes: «Mas não é permitido fazer penitência». Ninguém ordena um esforço 1983
sem conceder um benefício... Deus nunca ameaçaria aquele que não faz penitência, se
não perdoasse àquele que a faz. Tu dirás: «Só Deus o pode fazer». É verdade, mas até
mesmo o que Ele faz por intermédio dos seus sacerdotes, é obra do seu próprio poder.
Que significa aquilo que Ele disse aos Apóstolos: Tudo o que ligardes na Terra será
ligado no Céu, e tudo o que desligardes na Terra será desligado no Céu 13? Porque
teria Ele dito isso, se não fosse permitido aos homens ligar e desligar? 2 Ou então, terá
isso sido permitido só aos Apóstolos? Mas, nesse caso, também só a eles é permitido
baptizar, e do mesmo modo só a eles é permitido dar o Espírito Santo, e igualmente só
eles podem lavar os pecados dos pagãos, uma vez que todas essas coisas a mais
ninguém foram ordenadas senão aos Apóstolos. E, se num só e mesmo texto é confe-
rido quer o direito de desligar as cadeias quer o poder sacramental, então, ou nos foi
transmitido o conjunto dos atributos e dos poderes dos Apóstolos, ou não nos foi conce-
dido nenhum deles... 4 Portanto, se o poder do banho e da unção – carismas bem mais
importantes – veio daí até aos bispos, igualmente o acompanhou o direito de ligar e
desligar. E embora nós próprios, por causa dos nossos pecados, o reivindiquemos com
temor, Deus, contudo, não no-lo negará enquanto santos e detentores da sede dos
Apóstolos, pois Ele próprio concedeu aos bispos o nome do seu Unigénito. 7. 1
Escreveria mais longamente, irmão, se não me sentisse pressionado pelo regresso
urgente do teu criado... Ninguém despreze um bispo por aquilo que ele é como homem.
Recordemos que o apóstolo Pedro chamou «bispo» a nosso Senhor: Agora voltastes
para o pastor e bispo das vossas almas. 2 Que iremos nós negar a um bispo no qual
actua o nome de Deus? É verdade que este terá de prestar contas, se levar a cabo más
acções ou se fizer juízos manchados de corrupção ou impiedade... Contudo, se o seu
ministério for piedoso, ele continua a colaborar nas obras de Deus. 3 Eis o que o
Apóstolo escreveu a simples fiéis: A quem vós perdoais, eu também perdoo..., para
que não sejamos enganados por Satanás, já que não ignoramos as suas maquinações.
Portanto, se o Apóstolo diz que perdoou aquilo que foi perdoado por simples fiéis,
como desprezamos nós aquilo que é feito pelo bispo? 4 Na verdade, nem o crisma, nem
o baptismo, nem a remissão dos crimes, nem a renovação do corpo foram concedidas
à santidade do seu poder, porque nada lhe foi entregue para sua utilidade própria, mas
tudo deriva dos direitos apostólicos. Fica pois a saber, irmão, que este perdão penitencial
não é concedido indistintamente a todos, nem dado antes de ter sido interpretada a
vontade divina ou de se efectuar eventualmente uma verificação, com grande rigor e
seriedade, após muitos gemidos e grande efusão de lágrimas, e depois das orações de
toda a Igreja. Deste modo o perdão não é recusado a uma verdadeira penitência, não
obstante ninguém poder prejudicar o futuro julgamento de Cristo. Se me disseres mais
claramente o que pensas, irmão, intruir-te-ei mais a fundo.

13
Mt 18, 18.
514 SÉCULO IV

Gregório de Nissa

Homilia sobre o Cântico dos Cânticos 1


1984 2. A alma que deu entrada ao Verbo tornou-se uma túnica, segundo a palavra do
Apóstolo, ao ordenar àquele que se despojou da veste carnal do homem velho que se
revista da túnica criada em conformidade com Deus, na justiça e na santidade. Ora ele
diz que esta túnica é Jesus. Esta túnica é revestida pela alma na renovação do novo
nascimento. Quem é aquele que, depois de ter vestido a túnica do Senhor, brilhante
como o sol, que o envolve de pureza e incorruptibilidade, tal como se mostrou sobre a
montanha da Transfiguração, consentirá em retomar a sua anterior veste de trapos?

Homilia sobre os que adiam o baptismo 2


1985 Estás fora do Paraíso, ó catecúmeno; partilhas o exílio de Adão, nosso primeiro
pai. Agora abre-se a porta. Entra de novo no lugar donde tinhas saído...
Despoja-te do homem velho como de um fato manchado. Recebe a veste da
imortalidade, que Cristo desdobra e te estende.

Homilia para o dia das luzes 3


1986 Não desprezes o divino baptismo nem o tenhas em pouca conta, como se fosse
uma coisa banal, por utilizarmos água para o fazer, pois ele realiza grandes coisas e os
efeitos que produz são admiráveis. Na verdade, também este altar santo, onde estamos,
é por natureza pedra comum, não se distinguindo das outras pedras com que fazemos
os nossos muros e adornamos os pavimentos. Mas, porque foi consagrado ao culto de
Deus e recebeu a bênção, é mesa santa, altar imaculado, que já não pode ser tocado por
todos, mas só pelos sacerdotes, e mesmo por eles com respeito...
Do mesmo modo, no princípio o pão é pão comum, mas uma vez que o mistério
o consagra diz-se e torna-se Corpo de Cristo. E o mesmo acontece também com o óleo
místico e com o vinho, que sendo coisas de pouco valor antes da bênção, depois da
santificação realizada pelo Espírito Santo, cada uma delas produz efeitos maravilhosos...
Basta isto para celebrar a festa que o ciclo do ano nos propõe. Convém que
terminemos o nosso discurso dirigindo-nos Àquele que nos concede este dom, a fim de
Lhe oferecermos em troca um modesto tributo por tantos benefícios.
Na verdade, Senhor, Tu és a fonte sempre transbordante de bondade... Tinhas-
-nos expulsado do Paraíso e chamaste-nos de lá; despojaste-nos das folhas de figueira,
essas roupas sórdidas, e revestiste-nos com um manto de melhor aparência... Doravante,
quando chamares por Adão, ele já não terá mais vergonha nem se esconderá sob o peso

1
G REGÓRIO DE NISSA , In Canticum canticorum homiliae (=PG 44, 755-1120). Gregório de Nissa nasceu por
volta de 335 e deve ter morrido por volta de 394.
2
G REGÓRIO DE N ISSA , De iis qui baptismum differunt (=PG 46, 415-432).
3
GREGÓRIO DE NISSA, In diem luminum sive in baptismum Christi (=PG 46, 577-600). É a Epifania.
GREGÓRIO DE NISSA 515

da sua consciência, entre as árvores do Paraíso... Tendo reencontrado a liberdade, ei-lo


que aparece em pleno dia...
Por todas estas razões, cantemos a Deus o canto da alegria que os lábios inspi-
rados do Profeta um dia proferiram: Exulto de alegria no Senhor, porque me revestiu
com as vestes da salvação, como um noivo que cinge a fronte com o diadema e como
uma noiva que se adorna com as suas jóias4...
Voltando-nos para o elemento aparentado com a terra que é a água, metemo-nos
nela, como o Salvador na terra, e, depois de fazermos isso três vezes, imitamos a graça
dos três dias da Ressurreição...

Sermão na santa Páscoa 5


Quando (é que o Senhor realizou) isto6? Quando deu como alimento o seu Corpo 1987
para ser comido; foi então que manifestou claramente que se cumprira o sacrifício do
cordeiro, pois o corpo da vítima não estaria pronto para ser comido se estivesse vivo.
Por conseguinte, quando apresentou o seu Corpo aos seus discípulos, para que o
comessem, e o seu Sangue, para que o bebessem, já o corpo tinha sido imolado de modo
inefável e invisível pelo poder d’Aquele que dispunha o mistério...
Não se afasta da verdade quem começa a contar o tempo a partir do momento em
que aquele grande Sumo Sacerdote Se ofereceu a Deus como cordeiro, de modo inefável
e invisível, para a salvação de todos os homens, pois já caía a tarde quando foi comido
aquele Corpo sagrado e santo...

Sermão da Ascensão 7
Esta nossa festa que, por si só, já é grande, fê-la ainda maior o Profeta ao juntar-lhe, 1988
e muito bem, a alegria que nasce dos salmos, pois num deles se diz que te faças ovelha,
que há-de ser apascentada por Deus e não será privada de nenhum bem. Foi para ela
que o bom Pastor Se fez verde prado e água fresca, alimento e tenda, caminho e guia e
todas as coisas, distribuindo-lhe a sua graça conforme a necessidade dela. Por tudo isso
a Igreja ensina que é preciso que te tornes, primeiro, ovelha do bom Pastor, através da
boa catequese e, pela iniciação na doutrina da páscoa divina, sejas conduzido às fontes,
a fim de seres sepultado com Ele na morte, pelo baptismo, e deixes de ter medo desta
morte. Esta não é a morte, mas a sua sombra e semelhança. Na verdade, se eu caminhar
no meio das sombras da morte, não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo.
O Espírito é consolador. Depois convida para a mesa mística, que é preparada em
oposição à mesa dos Demónios. Na verdade, foi pela idolatria que os Demónios afligi-
ram a vida dos homens, mas a eles se opõe a mesa do Espírito. Nesta mesa o Espírito
unge-nos a cabeça com óleo, junta-lhe o vinho que alegra o coração, faz-nos sentir
aquela sóbria embriaguez da alma, e conduz o nosso espírito das coisas perecíveis
àquelas que são eternas.

4
Is 61, 10.
5
G REGÓRIO DE N ISSA , In sanctum Pascha (vulgo In Christi resurrectionem) (=PG 46, 599-690). Este é o
primeiro dos sermões da Páscoa.
6
A Páscoa.
7
G REGÓRIO DE NISSA , In ascensionem Christi (=PG 46, 689-694). Este sermão é o primeiro testemunho
digno de crédito sobre uma festa da Ascensão distinta do Pentecostes.
516 SÉCULO IV

Ambrósio de Milão

Sobre Abraão 1

LIVRO I

1989 89. Porque nos proíbes, ó bispo, que no tempo da Quaresma usemos o que Rebeca
aceitou para agradar, isto é, colares no pescoço?

LIVRO II

1990 5. Todos os dias vamos à igreja ou nos dedicamos, em casa, às orações privadas,
começando e terminando o dia na presença de Deus.
1991 79. A Lei manda circuncidar as crianças no oitavo dia. Trata-se dum preceito verda-
deiramente místico, pois este dia é o da Ressurreição, uma vez que o Senhor Jesus
ressuscitou num domingo. Por isso, se o dia da Ressurreição te encontrar circuncidado e
liberto do peso dos pecados, lavado de toda a mancha e purificado dos vícios do corpo,
ressuscitarás puro, se saíres puro deste mundo. Circuncida-te, portanto, não no teu
corpo, mas no vício do corpo, e circuncida, não só o escravo que nasceu em tua casa,
mas também aquele que compraste a preço de ouro... Os que nasceram em casa são os
Judeus, os que foram comprados a preço de ouro são os Gentios que acreditaram, porque
a Igreja foi resgatada pelo sangue de Cristo. Por isso Judeu ou Grego, todo aquele que
tiver acreditado, deve saber circuncidar-se dos seus pecados, para poder ser salvo. Da
casa ou estrangeiro, justo ou pecador, receba a circuncisão que é a remissão dos peca-
dos, para nunca mais cometer o pecado, pois ninguém sobe ao Reino dos Céus a não
ser pelo sacramento do baptismo...
1992 81. A Lei manda circuncidar particularmente os meninos, mesmo os de casa, desde
os primeiros vagidos da infância, porque, como o pecado existe desde a infância,
também desde a infância há lugar para a circuncisão. Em nenhum momento nos deve
faltar esta protecção, porque não há ninguém que seja isento de falta. Mesmo o bebé
deve ser retirado do pecado, para não se manchar pelo contágio da idolatria e para não
se acostumar a adorar os ídolos, a beijar uma imagem pagã, a desonrar a casa dos pais,
a faltar-lhes ao respeito. Ao mesmo tempo, para que ninguém se orgulhe pensando que
é justo, a circuncisão foi imposta a Abraão, cuja velhice já ia suficientemente avançada...
Assim, pois, não há excepção nem para o velho prosélito nem para a criança escrava,
porque toda a idade está sujeita ao pecado e, por conseguinte, toda a idade é capaz do
sacramento...
1993 84. Ninguém pode entrar no reino de Deus, se não renascer da água e do Espírito
Santo2. Ninguém é exceptuado, nem a criança nem aquele que tiver sido surpreendido
por um acidente...

1
A MBRÓSIO DE MILÃO , De Abraham (=PL 14, 419-500; CSEL 32). Ambrósio de Milão deve ter nascido por
volta de 333 e morreu em 397. Esta obra foi escrita por volta de 382.
2
Jo 3, 5.
AMBRÓSIO DE MILÃO 517

Sobre Elias e o jejum 3


21. Deste o teu nome para o combate de Cristo, inscreveste-te na competição da 1994
coroa; é tempo de meditar, de exercitar, de ser ungido com óleo da alegria, de ser
revestido com unguento. Seja o teu alimento a sobriedade, sem nada de intemperança, nada
da luxúria; seja pouca a tua bebida, para que a embriaguez não te surpreenda; guarda a
castidade do corpo, para poderes ser coroado.
22. Recebei o jugo de Cristo. Não temais por ser jugo: apressai-vos, porque é leve. 1995
Não fere o pescoço, mas dignifica-o. Porque duvidais? Porque retardais?
34. Nem toda a fome constitui um jejum agradável, mas só aquela que se aceita por 1996
temor de Deus. Pensa: na Quaresma jejua-se todos os dias excepto no sábado e no
domingo. Este jejum termina na Páscoa do Senhor. Chega o dia da Ressurreição: bapti-
zam-se os eleitos, aproximam-se do altar, recebem o sacramento; os que têm sede
bebem com todo o ardor. Com razão dizem os que se saciam com o manjar espiritual e
com a bebida espiritual: Para mim preparais a mesa à vista dos meus adversários; e
o meu cálice transborda.
55. Dizem-se hinos, e tu pegas na guitarra! Cantam-se salmos, e tu tocas harpa ou 1997
tamboril!

Apologia de David 4
8. 42 O número cinquenta celebramo-lo nós na alegria após a Paixão do Senhor. Foi- 1998
nos perdoada a dívida de todas as nossas faltas, o documento da nossa acusação foi
rasgado; a partir de então, ficámos livres de todo o entrave e recebemos a graça do
Espírito Santo, que veio até nós. No dia de Pentecostes cessam os jejuns, diz-se:
«Louvor a Deus», canta-se o aleluia.
16. 83 Os muros de Jerusalém são as assembleias da Igreja, assembleias que se 1999
reúnem em toda a parte. Com efeito, a Igreja declara: Eu sou a muralha e os meus seios
são as torres. É justo dizer que os muros de Jerusalém são as assembleias das Igrejas,
porque quem entra na Igreja de boa fé e com boas obras, torna-se cidadão e habitante
desta cidade do alto, que desce dos Céus. Estes muros edificam-se ao colocar as pedras
vivas nos seus lugares.

Comentário ao Evangelho de Lucas 5

LIVRO I

28. Então, apareceu-lhe o Anjo do Senhor, de pé, à direita do altar do incenso6... 2000
Oxalá nos assista e nos apareça também a nós um Anjo, quando incensamos os altares
e oferecemos o sacrifício. Com efeito, não se pode duvidar que esteja presente um
Anjo quando Cristo está presente, quando Cristo é imolado.

3
A MBRÓSIO DE MILÃO , De Elia et ieiunio (=PL 14, 697-728; CSEL 32).
4
A MBRÓSIO DE MILÃO , De apologia prophetae David (=PL 14, 851-916; CSEL 32; SCh 239).
5
AMBRÓSIO DE MILÃO, Expositio Evangelii secundum Lucam (=PL 15, 1527-1850; PLS 1; CCL 14; CSEL 32; SCh 45. 52).
6
Lc 1, 11.
518 SÉCULO IV

LIVRO IV

2001 76. Senhor, trabalhámos toda a noite sem apanhar nada; mas, à vossa palavra, vou
lançar a rede... Também eu, Senhor, sei que para mim é noite quando não mandais. Até
agora ninguém deu o seu nome7, até agora é noite para mim. Atirei a nassa8 da palavra
na Epifania e até agora nada apanhei. Lancei-a de dia e espero as vossas ordens; à vossa
palavra, lançarei as redes.

LIVRO VII

2002 50. (Os hereges) espreitam a ausência do pastor: deste modo procuram condenar à
morte ou enviar para o exílio os pastores das igrejas, porque, estando os pastores
presentes, não podem atacar as ovelhas de Cristo... Cristo, o verdadeiro intérprete da
Escritura, denuncia-os...
2003 173. No número oito está a plenitude da Ressurreição9...

LIVRO VIII
2004 25. Se os Judeus celebram o sábado, a ponto de considerarem um mês e um ano como
sábado, quanto mais devemos nós celebrar a Ressurreição do Senhor. Por isso, os
nossos antepassados ensinaram-nos a celebrar os cinquenta dias do Pentecostes, como
pertencendo todos à Páscoa, porque o princípio da oitava semana faz o Pentecostes.
Foi por isso que o Apóstolo... passou o Inverno entre os Coríntios, cujos erros o
angustiavam, dada a frieza do zelo deles pelo culto de Deus. Mas celebrou o Pentecostes
com os Efésios, aos quais entregou os mistérios, e descansou o seu coração, porque os
via a arder nos ardores da fé. Portanto, durante estes cinquenta dias, a Igreja ignora o jejum,
como no domingo, dia da Ressurreição do Senhor, e esses dias são todos como o domingo.

LIVRO X
2005 90. Apaga tu também com lágrimas as tuas culpas, se quiseres merecer o perdão,
pois nesse momento Cristo está a ver-te. Se caíres nalguma culpa, Ele, que é testemunha
presente a toda a tua vida secreta, olha para ti, para te lembrar o erro e levar-te a
confessá-lo.
2006 121. Uma vez que a vida consiste em estar com Cristo, onde está Cristo, aí está a vida,
aí está o Reino.

7
Alusão à disciplina do catecumenado e à preparação para o baptismo, que os candidatos retardavam o mais
que podiam.
8
Espécie de cesto de verga, em forma de funil, para apanhar peixe.
9
In octavo numero resurrectionis est plenitudo.
AMBRÓSIO DE MILÃO 519

Sobre o Espírito Santo 10

LIVRO III

16. 112 Como é que o Espírito Santo não teria tudo o que pertence a Deus, se é 2007
nomeado no baptismo pelos sacerdotes e invocado sobre as oferendas11, louvado com
o Pai e o Filho pelos Serafins nos Céus, se habita nos santos com o Pai e o Filho, é
infundido aos justos e inspirado aos Profetas...?
18. 137 Portanto, é pelo Espírito Santo que os pecados são perdoados. Os homens 2008
são apenas instrumentos para a remissão dos pecados, não exercem um direito que lhes
pertença, pois não é em seu nome, mas em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo
que eles perdoam os pecados.

Os Sacramentos 12

LIVRO I

1. 1 Dou início à explicação dos sacramentos que recebestes. Não convinha antecipá-la, 2009
porque, para o cristão, a fé vem antes de tudo o mais. Por isso mesmo, em Roma, dá-se
o nome de fiéis aos que foram baptizados, e o nosso pai Abraão foi justificado pela fé,
não pelas obras13. Recebestes o baptismo, tendes fé. Não me é permitido julgar de
outro modo, pois não terias sido chamado à graça, se Cristo não te tivesse julgado
digno da sua graça.
2 Que fizemos nós, no sábado? Foi a abertura14. Estes mistérios da abertura
foram celebrados quando o bispo tocou os teus ouvidos e o teu nariz. O que é que isto
significa? No Evangelho, nosso Senhor Jesus Cristo, ao ser-Lhe apresentado um surdo-
mudo, tocou-lhe os ouvidos e a boca. Os ouvidos porque ele era surdo, a boca porque
era mudo. E disse: Effathá15. É uma palavra hebraica que significa abre-te. Foi por isso que
o bispo tocou os teus ouvidos, para que eles se abrissem à Palavra e ao discurso do bispo.
3 Tu, porém, perguntas-me: Porquê o nariz16? Na cena (evangélica), dado que o
homem era mudo, tocou-lhe a boca: como era incapaz de falar dos mistérios celestes,
recebeu de Cristo a palavra... Porquê, então, o nariz? Para que recebas o bom odor da
bondade eterna e digas: Somos para Deus o bom odor de Cristo 17, como o disse o santo
Apóstolo, e ainda para que haja em ti todos os perfumes da fé e da devoção.
2. 4 Chegámos à fonte, tu entraste, foste ungido. Pensa naqueles que viste, pensa 2010
no que disseste e recorda com exactidão o que aconteceu. Veio um levita acolher-te,

10
A MBRÓSIO DE M ILÃO , De Spiritu sancto (=PL 16, 703-816; CSEL 79).
11
In oblationibus invocatur.
12
A MBRÓSIO DE M ILÃO , De sacramentis (=PL 16, 417-462; 39, 1907; CSEL 73; SCh 25bis). Este tratado foi
escrito por volta de 390.
13
Cf. Rom 4, 1-22.
14
O rito da apertio tinha lugar na Vigília da Páscoa. Os catecúmenos estavam ainda fora do baptistério. Era
o próprio bispo que tocava os ouvidos e as narinas dos catecúmenos, dizendo: Effathá, quod est adaperire.
Não se fala ainda nem de saliva, nem de óleo.
15
Mc 7, 34.
16
O autor tem dificuldade em explicar o toque no nariz.
17
2 Cor 2, 15.
520 SÉCULO IV

veio acolher-te um presbítero. Foste ungido como um atleta de Cristo18, como se te


preparasses para uma luta neste mundo: fizeste profissão de te entregares à luta.
Aquele que luta sabe o que pode esperar: onde há combate, há uma coroa19. Tu lutas no
mundo, mas és coroado por Cristo. É para os combates a sustentar neste mundo que és
coroado. Embora a recompensa se dê no Céu, é na terra que se vê se mereces o prémio.
5 Quando te perguntaram: – Renuncias ao Diabo e às suas obras? que respondeste?
Renuncio. _ Renuncias ao mundo e aos seus prazeres? que respondeste? _ Renuncio.
Lembra-te da tua promessa, e não te esqueças jamais das consequências da palavra que
empenhaste...
6 Pensa no lugar onde fizeste a promessa e naqueles a quem a fizeste. Viste um
levita: é um ministro de Cristo. Viste-o desempenhar o seu ministério diante dos
altares. A tua garantia não é, pois, guardada na terra, mas no Céu. Pensa no lugar onde
recebeste os sacramentos celestes. Se o Corpo de Cristo se encontra ali, também lá
estão os Anjos...
7 Como é isso? Escuta. João Baptista nasceu de um homem e de uma mulher. E,
no entanto, também ele é um Anjo: Eis que vou enviar o meu Anjo à tua frente para te
preparar o caminho20... Dizemos isto para pormos em evidência o esplendor do sacer-
dote, e não para que se atribua o que quer que seja aos nossos méritos pessoais.
8 Portanto, renunciaste ao mundo, renunciaste ao século. Sê vigilante. Aquele
que deve dinheiro tem sempre em conta a sua garantia. Tu que deves a fé a Cristo,
guarda esta fé, muito mais preciosa que o dinheiro, porque a fé é uma riqueza eterna, e
o dinheiro (uma riqueza) temporal. Lembra-te continuamente daquilo que prometeste.
Guarda a tua promessa. Sê prudente. Se guardares a tua promessa, guardarás também
a sua garantia.
2011 3. 9 Em seguida, aproximaste-te mais. Viste a fonte e viste também o bispo junto da
fonte...
10 Entraste, viste a água, viste o bispo, viste o levita. Receio que alguém diga: E
é tudo? De facto é tudo, é verdadeiramente tudo. Aí está toda a inocência, toda a
piedade, toda a graça, toda a santidade. Viste o que pudeste ver com os olhos do corpo
e com os olhares humanos. Não viste o que isso produziu, mas o que se vê. As coisas
que não se vêem são muito maiores do que as que se vêem, porque o que se vê é
passageiro, mas o que ainda se não vê é eterno21.
2012 4. 11 Comecemos então por aí. Guarda a garantia da minha palavra e reclama de
mim a execução. Nós admiramos os mistérios dos Judeus que foram dados aos nossos
pais. Eles são extremamente valiosos, quer pela antiguidade, quer pela santidade. Eis a
minha promessa: os sacramentos dos cristãos são mais divinos e mais antigos que os
dos Judeus.
12 Existiria para o povo Judeu algo mais importante do que a travessia do mar,
para falar agora do baptismo? Ora os Judeus que o atravessaram morreram todos no
deserto, ao passo que aquele que passa por esta fonte, isto é, que passa das coisas
terrenas para as coisas celestes..., do pecado para a vida, da culpa para a graça, da
mancha para a santidade, aquele que passa por esta fonte, não morre, mas ressuscita.
2013 5. 13 Naamã era um leproso... 14 Naamã desceu ao Jordão, lavou-se e ficou limpo22.
15 Que significa isto? Viste a água. Contudo, nem toda a água cura. Só cura a água
que tem a graça de Cristo. Há uma diferença entre o elemento e a santificação, entre o

18
A unção era feita em todo o corpo.
19
1 Cor 9, 24-25.
20
Mt 11, 10.
21
2 Cor 4, 18.
22
2 Reis 5, 1-14.
AMBRÓSIO DE MILÃO 521

acto e a eficácia. O acto realiza-se com água, mas a eficácia vem do Espírito Santo. A
água não cura, se o Espírito Santo não descer e não consagrar esta água. Tu já leste isso:
quando nosso Senhor Jesus Cristo instituiu o rito do baptismo, veio ter com João, e
João disse-lhe: Eu é que tenho necessidade de ser baptizado por ti, e tu vens a mim?
Cristo respondeu-lhe: Deixa por agora. Convém que cumpramos assim toda a justi-
ça23. Repara como toda a justiça é colocada no baptismo.
16 Por que razão desceu Cristo, senão para que a carne fosse purificada, essa
carne que Ele tomara da nossa condição? Cristo não precisava de ser purificado dos
seus pecados, pois não cometera pecado24, mas nós precisávamos, nós que permanecemos
sujeitos ao pecado. Portanto, se o rito do baptismo foi instituído para nós, é à nossa
fé que ele é proposto.
17 Cristo desceu, e João, que baptizava, estava lá. E eis que o Espírito Santo
desceu como uma pomba25. Não foi uma pomba que desceu, mas como se fosse uma
pomba... Cristo tomou verdadeiramente carne, ao passo que o Espírito Santo desceu
do Céu sob a aparência duma pomba; não na realidade duma pomba, mas sob a aparência
duma pomba. João viu e acreditou.
18 Cristo desceu, e o Espírito Santo também desceu. Porque é que Cristo desceu
primeiro e em seguida desceu o Espírito Santo, e no rito habitual do baptismo se
começa por consagrar a fonte?... De facto, quando o bispo entra, faz imediatamente o
exorcismo sobre a água, depois faz a invocação e a oração para que a fonte seja santificada e
nela esteja a presença da Trindade eterna, ao passo que Cristo desceu primeiro, e a
seguir é que veio o Espírito Santo. Porquê? Para que não parecesse, por assim dizer,
que o Senhor Jesus precisava do mistério da santificação, mas para que Ele próprio
santificasse e o Espírito Santo santificasse também.
19 Cristo desceu à água, e o Espírito Santo desceu como uma pomba. Por sua
vez, Deus Pai falou do Céu26. Aqui tens a presença da Trindade.
6. 20 No mar Vermelho há uma figura do baptismo, como o diz o Apóstolo, nestes 2014
termos: Os nossos pais foram todos baptizados na nuvem e no mar 27...
24 Por agora, dada a fraqueza da nossa voz e o tempo que passou, basta-nos o
termos mergulhado um pouco nos mistérios da fonte sagrada. Amanhã, se o Senhor nos
der força para falar ou até para o fazer com abundância, completarei o meu ensinamento. É
preciso que tenhais os ouvidos atentos e o coração mais bem disposto, para poderdes
guardar o que eu puder recolher das Escrituras que se seguem e vo-lo ensinar, a fim de
que esteja convosco a graça do Pai e do Filho e do Espírito Santo, esta Trindade à qual
pertence um reino sem fim, desde sempre, agora e para sempre, por todos os séculos
dos séculos. Amen.

LIVRO II

4. 10 O Senhor Jesus disse também aos seus Apóstolos no Evangelho: Ide, baptizai 2015
as nações em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. É a palavra do Salvador...
12 Vê ainda outra coisa, apesar de não seguirmos a ordem dos factos... Moisés
tinha chegado ao deserto, e o povo tinha sede. O povo tinha chegado à fonte de Mara
e queria beber. Logo que provou, sentiu o amargo e não conseguiu beber. Foi por isso
que Moisés atirou a vara para a fonte, e a água que primeiro era amarga começou a ficar doce.

23
Mt 3, 14-15.
24
1 Ped 2, 22.
25
Jo 1, 32.
26
Cf. Mt 3, 16-17.
27
1 Cor 10, 2.
522 SÉCULO IV

13 Que significa isso senão que toda a criatura sujeita à corrupção é uma água
amarga?... Mas, a partir do momento em que recebe a cruz de Cristo, o sacramento
celeste começa a ser doce e agradável...
2016 5. 14 Reparemos agora: vem o bispo, diz uma oração junto da fonte, invoca o nome
do Pai, a presença do Filho e do Espírito Santo28, servindo-se de palavras celestes. São
palavras celestes, porque são aquelas com que Cristo nos mandou baptizar em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo29...
2017 6. 16 Examinemos agora o que se chama o baptismo. Vieste à fonte, desceste à
fonte, viste o sumo sacerdote, viste os levitas e o presbítero na fonte. O que é o baptismo?
17 No princípio, o Senhor nosso Deus fez o homem imortal, com a condição de
ele não cometer o pecado. O homem cometeu o pecado, tornou-se sujeito à morte, foi
expulso do Paraíso30. Mas o Senhor, que queria fazer durar os seus benefícios, destruir
todas as artimanhas da serpente e eliminar tudo o que ela estragara, lavrou em primeiro
lugar uma sentença contra o homem: Tu és pó e ao pó voltarás31, tornando o homem
sujeito à morte. Era uma sentença divina, que não podia ser anulada pela humanidade...
19 Escuta. Para destruir neste mundo o laço do Diabo, encontrou-se o meio de
fazer morrer o homem enquanto vive e de o fazer ressuscitar enquanto vive... Enquanto
vive a vida do seu corpo, virá à fonte e será mergulhado na fonte. Donde vem a água
senão da terra?... Deste modo a fonte é como se fosse uma sepultura.
2018 7. 20 Perguntaram-te: Crês em Deus Pai todo-poderoso? Tu respondeste: Creio, e
foste banhado, quer dizer sepultado. Perguntaram-te uma segunda vez: Crês em nosso
Senhor Jesus Cristo e na sua cruz32? Tu respondeste: Creio: foste banhado, e assim
foste sepultado com Cristo33. Aquele que é sepultado com Cristo ressuscita com Cristo.
Perguntaram-te uma terceira vez: Também crês no Espírito Santo? Tu respondeste: Creio,
e foste banhado uma terceira vez, a fim de que a tríplice confissão destruísse as quedas
repetidas do passado...
24 Foste banhado e aproximaste-te do bispo. Que te disse ele? Deus Pai todo-
-poderoso, que te fez renascer da água e do Espírito Santo e te perdoou os teus pecados,
Ele próprio te unge para a vida eterna. Repara para que foste ungido: para a vida
eterna, disse ele. Não prefiras a vida deste mundo à vida eterna... Não escolhas a vida
para a qual não foste ungido, mas escolhe aquela para a qual foste ungido, de modo que
prefiras a vida eterna à vida temporal.

LIVRO III

2019 1. 1 Ontem tratámos da fonte, que é aparentemente uma espécie de túmulo. Aí


fomos recebidos e mergulhados, porque acreditamos no Pai e no Filho e no Espírito
Santo. Depois levantámo-nos, quer dizer, ressuscitámos. Recebeste também o myron,
ou seja, o crisma, sobre a cabeça...
4 Subiste da fonte. Que aconteceu em seguida? Escutaste a leitura. O bispo tirou
as suas vestes – porque se é verdade que os presbíteros também fazem este serviço, é,
no entanto, o sumo sacerdote que o começa – e lavou-te os pés34...

28
Cf. I, 18.
29
Mt 28, 19.
30
Cf. Gen 3, 17-23.
31
Gen 3, 19.
32
Este é o único lugar das Catequeses Mistagógicas onde se menciona a cruz.
33
Cf. Rom 6, 4.
34
Trata-se dum rito próprio de Milão, mas desconhecido em Roma.
AMBRÓSIO DE MILÃO 523

5 Nós não ignoramos que a Igreja romana não tem este costume, apesar de
seguirmos em tudo o seu exemplo e o seu rito35. Contudo, ela não tem este costume de
lavar os pés. Toma pois cuidado. Talvez ela o tenha abandonado por causa do grande
número. Há alguns que tentam desculpar-se dizendo que não se deve fazer isso durante
o mistério do baptismo, durante a regeneração... Não digo isto para criticar os outros,
mas para justificar o ofício que desempenho. Desejo seguir em tudo a Igreja romana,
mas nós também somos dotados de inteligência. Por isso, o que se observa noutros
lados por boas razões, também nós o guardamos por boas razões.
6 É o próprio apóstolo Pedro que nós seguimos, é ao seu fervor que permanecemos
fiéis. Que responde a Igreja romana?...
2. 8 Depois disto vem o selo 36 espiritual37, de que hoje ouviste falar na leitura38. 2020
Depois da fonte, falta ainda aperfeiçoar39, quando, pela invocação do bispo, é infundido o
Espírito Santo, Espírito de sabedoria e de inteligência, Espírito de conselho e de
fortaleza, Espírito de conhecimento e de piedade, Espírito do santo temor 40, que são
as sete virtudes do Espírito...
10 Tais são as sete virtudes (que te foram dadas), quando recebeste a consignação41...
11 Que veio depois disto? Pudeste aproximar-te do altar. Quando aí chegaste,
pudeste ver o que nunca tinhas visto antes. Trata-se do mistério que leste no Evangelho,
supondo que o tenhas lido...
12 Repara com os olhos do teu coração. Com os olhos do teu corpo vias o que é
corporal; mas no que se refere aos sacramentos, não podias vê-lo ainda com os olhos
do teu coração. Quando te fizeste inscrever 42, Ele tomou lodo e estendeu-o sobre os
teus olhos. Que significa isso? Significa que devias reconhecer o teu pecado, examinar
a tua consciência, fazer penitência das tuas faltas, ou seja, reconhecer-te da raça humana...
13 Não penseis que isto é inútil. Há alguns – eu sei que pelo menos há um – que
quando lhe dissemos: Na tua idade tens maior obrigação de te fazeres baptizar, res-
pondeu: Porquê fazer-me baptizar? Não tenho pecado. Por acaso cometi algum peca-
do? Esse não tinha lodo, porque Cristo não lho tinha estendido sobre os olhos, isto é,
não lhe tinha aberto os olhos43. Não há homem nenhum que não tenha pecado.
14 Reconhece-se homem aquele que procura refúgio no baptismo de Cristo. Foi
ele que te pôs lodo nos olhos, ou seja, o temor respeitoso, a prudência, a consciência
da tua fraqueza, e te disse: Vai a Siloé. O que é Siloé? Essa palavra traduz-se por
enviado. Quer dizer: Vai à fonte onde se prega a cruz de Cristo Senhor, a essa fonte
onde Cristo resgatou os erros de todos.
15 Tu foste, lavaste-te, vieste ao altar, começaste a ver o que antes não vias.
Quer dizer que, pela fonte do Senhor e a pregação da Paixão do Senhor, os teus olhos
abriram-se. Tu, que parecias ter o coração cego, começaste a ver a luz dos sacramentos.

35
Non ignoramus quod Ecclesia Romana hanc consuetudinem non habeat, cuius typum in omnibus sequimur
et formam.
36
Signaculum.
37
O selo espiritual é o dom do Espírito.
38
2 Cor 1, 21-22.
39
Post fontem remanet ut perfectio fiat.
40
Is 11, 2-3.
41
Não se alude em parte nenhuma dos Sacramentos e Mistérios a uma unção que acompanhe o dom do Espí-
rito. Mas o termo consignatio implica uma consignação com o crisma, rito especificamente romano, que
encontramos em Hipólito, mas que parece ter desaparecido de todos os outros ritos ocidentais primitivos.
42
Talvez no princípio da Quaresma.
43
Deve tratar-se dalgum catecúmeno mal esclarecido.
524 SÉCULO IV

Eis-nos, pois, chegados, irmãos caríssimos, ao altar, a um assunto de conversação


mais demorada. Por esse motivo, vendo as horas que são, não podemos começar a
explicação completa, porque essa conversa é demasiado longa. Contentai-vos com o
que vos disse hoje, e amanhã, se Deus quiser, ocupar-nos-emos dos próprios sacramentos.

LIVRO IV

2021 2. 5 Depois aproximastes-vos do altar. Começastes a avançar. Os Anjos olharam,


viram-vos aproximar, e esta condição humana, que outrora estava manchada pelo
negrume dos pecados, viram-na de repente resplandecer. Por isso perguntaram: Quem
é esta que sobe do deserto vestida de branco? Os Anjos estão admirados. Queres saber
até que ponto eles se admiram? Escuta então o apóstolo Pedro dizer que nos foi dado
o que os Anjos desejam ver. Escuta então: O que os olhos não viram nem os ouvidos
escutaram, é isso o que Deus preparou para aqueles que o amam... 6 Dá-te conta do
que recebeste... A graça que recebeste, se a guardares como te foi dada, tem uma
duração eterna.
7 Vieste cheio de desejos por teres visto uma tal graça; vieste ao altar, cheio de
desejos, para receberes o sacramento. A tua alma disse: Eu irei ao altar de Deus, ao
Deus que alegra a minha juventude44. Depuseste a velhice dos pecados, revestiste a
juventude da graça. Foi o que te deram os sacramentos celestes...
2022 3. 8 Aproximaste-te do altar, fixaste os teus olhos nos sacramentos colocados no
altar e ficaste admirado diante desta realidade, que, no entanto, é apenas uma realidade
comum e familiar.
9 Talvez alguém tenha dito: Deus fez um favor tão grande aos Judeus, fazendo
chover para eles o maná do céu45. Que deu Ele de maior aos seus fiéis? Que deu Ele de
maior àqueles a quem prometeu muito mais?
10 Escuta o que te digo: os mistérios dos cristãos são mais antigos que os dos
Judeus, e os sacramentos dos cristãos são mais divinos que os dos Judeus...
2023 4. 13 Quem é o autor dos sacramentos46 senão o Senhor Jesus? Foi do Céu que
vieram estes sacramentos, porque o desígnio é todo do Céu. Contudo, é um grande
milagre divino que Deus tenha feito chover o maná do céu para o povo, e que o povo
tenha comido sem trabalhar.
14 Talvez tu digas: O meu pão é comum47. Mas este pão é pão antes das palavras
sacramentais. Porém, a partir da consagração, o pão muda-se no Corpo de Cristo.
Provemos isto. Como é que o pão pode ser o Corpo de Cristo? Quais são as palavras
com que se faz a consagração e de quem são essas palavras? São do Senhor Jesus48. De
facto, tudo o mais que se diz antes é dito pelo sacerdote: louva-se Deus, dirige-se-Lhe
a oração, reza-se pelo povo, pelos reis, por todos os outros. Mas, quando se chega ao
momento de fazer o venerável sacramento, o sacerdote já não se serve das suas próprias
palavras 49, mas serve-se das palavras de Cristo. É, pois, a palavra de Cristo que
produz este sacramento.
44
Sal 42, 4.
45
Ex 16, 13-15.
46
Auctor sacramentorum. Ambrósio é o primeiro autor a utilizar esta expressão. Agostinho também a utili-
zará.
47
O pão era levado por todos os fiéis e pelos catecúmenos que iam ser baptizados na noite pascal. É, por isso,
natural que os fiéis reconhecessem no pão consagrado que lhes era distribuído pelo bispo, aquele mesmo
pão que tinham trazido de suas casas.
48
Ambrósio de Milão atribui a consagração às palavras da instituição e não a uma epiclese.
49
Consecratio igitur quibus verbis est et cuius sermonibus? Domini Iesu. Nam et reliqua omnia quae
dicuntur in superioribus a sacerdote dicuntur: laus Deo, defertur oratio, petitur pro populo, pro regibus,
pro caeteris; ubi venitur ut conficiatur venerabile sacramentum, iam non suis sermonibus utitur sacerdos....
AMBRÓSIO DE MILÃO 525

15 Que palavra de Cristo é essa? Pois bem, é aquela pela qual tudo foi feito. O
Senhor mandou, o céu foi feito. O Senhor mandou, a terra foi feita. O Senhor mandou,
os mares foram feitos. O Senhor mandou, todas as criaturas foram feitas. Estás, por-
tanto, a ver como a palavra de Cristo é eficaz...
16 Antes da consagração não havia o Corpo de Cristo; mas depois da consagração
digo-te que doravante é o Corpo de Cristo. Ele disse, e isso foi feito, ele mandou, e isso
foi criado...
17 Escuta, portanto, como a palavra de Cristo costuma mudar todas as criaturas
e muda, quando Ele o quer, as leis da natureza. Perguntas como? Escuta, e, em primeiro
lugar, tomemos o exemplo do seu nascimento. Regra geral, um homem é gerado por um
homem e uma mulher, na sequência de relações conjugais. Mas, porque o Senhor o
quis, porque Ele escolheu este mistério, foi do Espírito Santo e da Virgem que nasceu
Cristo, o mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo 50. Vês, portanto,
que contrariamente às leis e à ordem da natureza de uma virgem nasceu um homem...
5. 21 Queres ficar convencido de que se consagra por meio de palavras celestes? 2024
Aqui tens essas palavras. Diz o sacerdote: «Concede-nos que esta oferenda seja apro-
vada, espiritual, agradável, porque ela é a figura do Corpo e do Sangue de nosso Senhor
Jesus Cristo. Na véspera da sua Paixão, Ele tomou o pão em suas santas mãos e,
levantando os olhos ao céu, para Ti, Pai santo, Deus todo-poderoso e eterno, dando
graças abençoou-o, partiu-o e deu-o aos seus Apóstolos e aos seus discípulos, dizendo:
Tomai, todos, e comei, porque isto é o meu Corpo, que será entregue por vós51».
22 Presta atenção: «De igual modo, no fim da ceia, na véspera da sua Paixão,
tomou o cálice e, levantando os olhos ao céu, para Ti, Pai santo, Deus todo-poderoso
e eterno, dando graças, abençoou-o e deu-o aos seus Apóstolos e aos seus discípulos,
dizendo: Tomai, todos, e bebei, porque isto é o meu Sangue52».
23 Nota cada pormenor. Na véspera da sua Paixão, Ele tomou o pão nas suas
santas mãos. Antes de o consagrar, é pão; mas depois de sobrevirem as palavras de
Cristo, é o Corpo de Cristo. Ouve o que Ele diz: Tomai, todos, e comei, porque isto é
o meu Corpo. Antes das palavras de Cristo, o cálice tinha vinho e água; mas, a partir do
momento em que as palavras de Cristo agiram, tornou-se o sangue que resgatou o
povo. Vede, pois, de quantas maneiras a palavra de Cristo é capaz de transformar
tudo, uma vez que o próprio Senhor Jesus nos afirmou que nós recebemos o seu Corpo
e o seu Sangue. Será que devemos duvidar da autoridade do seu testemunho?
24 Volta agora comigo ao assunto que tenho em vista. É uma grande coisa e digna
de respeito que o maná tenha caído como uma chuva para os Judeus. Mas reflecte: o
que é maior, o maná do céu ou o Corpo de Cristo? Com toda a certeza é o Corpo de
Cristo, que é o autor do céu. Além disso, aquele que comeu o maná morreu, mas aquele
que comer este Corpo receberá a remissão dos pecados e nunca mais morrerá53.
25 Não é pois sem razão que tu dizes: Amen, reconhecendo no teu espírito que
recebes o Corpo de Cristo. Quando te apresentas, o sacerdote diz-te: O Corpo de
50
1 Tim 2, 5.
51
Vis scire, quam verbis caelestibus consecretur? Accipe, quae sunt verba. Dicit sacerdos: Fac nobis hanc
oblationem scriptam, rationabilem, acceptabilem, quod est figura corporis et sanguinis Domini nostri
Iesu Christi. Qui pridie quam pateretur, in sanctis manibus suis accepit panem, respexit ad coelum, ad
te, sancte Pater omnipotens seterne Deus, gratias agens benedixit, fregit, fractumque apostolis et
discipulis suis tradidit dicens: Accipite et edite ex hoc omnes, hoc est enim corpus meum quod multis
confringetur.
52
Adverte. Similiter etiam calicem postquam cenatum est, pridie quam pateretur, accepit, respexit ad
caelum, ad te, sancte Pater omnipotens aeterne Deus, gratias agens benedixit, apostolis et discipulis
suis tradidit dicens: Accipite et bibite ex hoc omnes, hic est enim sanguis meus; cf. Mt 26, 26-28; Mc 14,
12-16; Lc 22, 19-20; 1 Cor 11, 23-25.
53
Cf. Jo 6, 49-59.
526 SÉCULO IV

Cristo. E tu respondes: Amen, quer dizer, é verdade. O que a língua confessa guarde-o a
convicção. No entanto, fica a saber: é o sacramento cuja figura veio antes.
2025 6. 26 Aprende, depois, qual é a grandeza deste sacramento. Presta atenção ao que
Ele diz: «Todas as vezes que fizerdes isto, fazei-o em memória de Mim, até que Eu venha54».
27 E o sacerdote diz: «Recordando, pois, a sua santíssima Paixão, a sua Ressurreição
dos infernos e a sua Ascensão ao Céu, nós Te oferecemos esta vítima sem mancha, esta
vítima espiritual, esta vítima incruenta, este pão sagrado e o cálice da vida eterna55, e
Te pedimos e suplicamos que aceites esta oblação pelas mãos dos teus Anjos sobre o
teu altar celeste, como Te dignaste aceitar os dons do justo Abel, teu servo, o sacrifício
do nosso pai Abraão e aquele que Te ofereceu o sumo sacerdote Melquisedec56».
28 Cada vez que o recebes, que te diz o Apóstolo? Todas as vezes que nós o
recebemos, anunciamos a morte do Senhor57. Se anunciamos a morte do Senhor, anun-
ciamos a remissão dos pecados. Se cada vez que o seu sangue é derramado, é derramado
para a remissão dos pecados, devo recebê-lo sempre, para que ele perdoe sempre os
meus pecados. Como eu peco sempre, devo ter sempre um remédio.
29 Até agora, e neste dia também, demo-vos os esclarecimentos que pudemos;
mas amanhã e sábado, falaremos da Oração dominical e da ordem da oração, como
pudermos. O Senhor nosso Deus vos guarde na graça que vos deu e Se digne esclarecer
mais completamente os olhos que Ele abriu, pelo seu único Filho, Rei e Salvador, o
Senhor nosso Deus, por quem e com quem Ele possui louvor, honra, glória, majestade,
poder, com o Espírito Santo, desde sempre, agora e para sempre por todos os séculos
dos séculos. Amen.

LIVRO V

2026 1. 1 A instrução que vos dei ontem prosseguiu até aos sacramentos do santo altar...
2 Dissemos que se colocam no altar o cálice e o pão. Que se põe no cálice? Vinho.
E mais quê? Água...
2027 3. 12 Aproximaste-te, portanto, do altar, recebeste o Corpo de Cristo. Aprende
agora que sacramentos recebeste. Ouve o que diz o santo David. Também ele, sob a
acção do Espírito, previu estes sacramentos. Alegrou-se com eles e disse que nada lhe
faltava. Porquê? Porque quem recebe o Corpo de Cristo nunca mais terá fome 58.
13 Quantas vezes ouviste o Salmo 22 sem compreenderes! Repara como ele se
aplica bem aos sacramentos celestes: O Senhor é meu pastor: nada me falta. Leva-me
a descansar em verdes prados, conduz-me às águas refrescantes e reconforta a minha
alma. Guia-me por caminhos rectos, por amor do seu nome. Ainda que tenha de andar
por vales tenebrosos, não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo: o vosso
cajado e o vosso báculo me enchem de confiança. Para mim preparaste a mesa à vista
dos meus adversários; com óleo me perfumas a cabeça, e o meu cálice transborda59.
14 Aproximastes-vos, portanto, do altar, recebestes a graça de Cristo, conseguistes
os sacramentos celestes. A Igreja alegra-se com a redenção dum grande número, e para
ela é uma alegria espiritual ver perto de si a sua família vestida de branco60...

54
1 Cor 11, 26. Deinde quantum sit sacramentum, cognosce. Vide, quid dicat: Quotienscumque hoc feceritis,
totiens commemorationem mei facietis, donec iterum adveniam.
55
Esta primeira parte é anamnese.
56
Esta oração corresponde ao Supra quae e ao Supplices da missa romana.
57
1 Cor 11, 26.
58
Cf. Jo 6, 35.
59
Sal 22, 1-5.
60
Os recém-baptizados eram vestidos de branco.
AMBRÓSIO DE MILÃO 527

LIVRO VI

1. 1 Do mesmo modo que nosso Senhor Jesus Cristo é o verdadeiro Filho de Deus, 2028
não por graça, como os homens, mas enquanto Filho de Deus nascido da substância do
Pai, assim a sua verdadeira carne que nós recebemos (é uma comida), como Ele disse,
e o seu verdadeiro sangue é uma bebida61...
2. 5 Uma vez que tomaste parte nos sacramentos, tens plena consciência de tudo. 2029
Foste baptizado em nome da Trindade. Em tudo o que fizemos, respeitámos o mistério
da Trindade. Por toda a parte estiveram o Pai e o Filho e o Espírito Santo...
6 Como foi isso? Foi Deus que te ungiu, e o Senhor que te marcou com um selo
e colocou o Espírito Santo no teu coração62. Recebeste, portanto, o Espírito Santo no
teu coração. Repara ainda noutra coisa: do mesmo modo que o Espírito Santo está no
teu coração, também Cristo aí está...
7 Deus ungiu-te, e Cristo marcou-te com um selo. Como é isso? Foste marcado
com o sinal da cruz de Cristo, com o sinal da sua Paixão. Recebeste o sinal para te
assemelhares a Ele, para ressuscitares à sua imagem, para viveres à maneira d’Aquele
que morreu para o pecado e vive para Deus...
8 Foi Deus que te chamou, ao passo que no baptismo foi com Cristo que foste
crucificado de maneira especial. Em seguida, ao receberes de modo particular o sinal do
Espírito, vês que há distinção de pessoas, mas que todo o mistério da Trindade está unido.
9 Que te disse depois o Apóstolo, como lemos antes de ontem? Há diversidade
de graças, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de serviços, mas é o mesmo
Senhor; há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos... O
Espírito de Deus é o Espírito de Cristo. Fixai isto: Ele é o Espírito Santo, é o Espírito
de Deus, é o Espírito de Cristo, é o Espírito Paráclito...
3. 11 Escutem agora como devemos rezar. A oração tem muitas qualidades. Não é 2030
sem importância saber onde deves rezar... O Senhor diz no Evangelho: Quando rezares,
entra no teu quarto, fecha a porta e reza ao teu Pai.
12 Em primeiro lugar, onde deves rezar?... Podes rezar em toda a parte e rezar
sempre no teu quarto. Por toda a parte dispões do teu quarto... O teu quarto é o teu
espírito, mesmo que estejas no meio do povo...
13 Quando rezares, entra no teu quarto... Põe nisso toda a tua atenção, entra no
recôndito do teu coração, penetra aí por inteiro...
15 Que quer dizer: Fecha a porta? Que porta temos nós? Aprende que tens uma
porta que deves fechar, quando rezas... Quando rezas, não eleves a voz, gritando...
Reza no teu íntimo, certo de que te escuta, no íntimo, Aquele que tudo vê e tudo escuta...
4. 16 Entretanto, procuremos saber as vantagens, os motivos, por que se reza 2031
melhor em segredo do que em altos brados... Se pedes a alguém que te presta logo
atenção, percebes que não é preciso gritar. Pedes brandamente e em tom moderado. Se,
porém, te diriges a alguém que é surdo, então começas a gritar... Quem grita, imagina
que Deus não ouve bem... Quem, ao contrário, reza em silêncio, dá provas e reconhece
de que Deus perscruta o coração e os rins e de que escuta a tua oração antes mesmo de
ela sair da tua boca...
18 Quero que os homens, isto é, aqueles que são capazes de guardar este preceito,
rezem em toda a parte, levantando as mãos puras. Que quer dizer: Levantando as
mãos puras? Deverás por acaso, durante a oração, mostrar aos pagãos a cruz do

61
Cf. Jo 6, 56.
62
1 Cor 12, 4-6.
528 SÉCULO IV

Senhor?... Tens possibilidade de rezar sem esse gesto, elevando os teus actos. Se fazes
o que deves, levantas as mãos puras pela inocência...
2032 5. 22 A oração deve começar pelo louvor de Deus... 24 É o que acontece na Oração
dominical, que começa pelos louvores de Deus...: Pai nosso, que estais nos Céus. É
louvar a Deus proclamá-l’O como Pai... É louvar a Deus dizer que habita nos Céus...
25 Que se segue depois? Ouve o que diz o bispo: Por nosso Senhor Jesus Cristo,
em quem e com quem possuis honra, glória, magnificência, poder, com o Espírito
Santo desde sempre, agora e sempre e por todos os séculos dos séculos. Amen63.
26 Ensinámo-vos aquilo que compreendemos e expusemo-vos como pudemos o
que nós próprios não aprendemos. Instruídos pelos ensinamentos sacerdotais, deveis
esforçar-vos por guardar o que recebestes, a fim de que a vossa oração seja aceite por
Deus, a vossa oferenda seja como uma vítima pura e Deus reconheça sempre em vós o
seu sinal, para que possais, também vós, chegar à graça e à recompensa das virtudes, por
nosso Senhor Jesus Cristo, que possui honra, glória, louvor, eternidade, desde sempre,
agora e para sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.

Os Mistérios 64
2033 1. 1 Todos os dias vos temos dado instruções morais, quando líamos a história dos
Patriarcas ou os ensinamentos dos Provérbios65, a fim de que, formados e instruídos
por eles, vos habituásseis a seguir o caminho dos antepassados e a obedecer aos
oráculos divinos, de modo que, renovados pelo baptismo, vos comporteis na vida
como convém à nova condição de baptizados.
2 Agora chegou o tempo de vos falar sobre os mistérios66 e explicar o sentido dos
sacramentos67. Se fizéssemos esta explicação antes do baptismo, quando não tínheis
sido ainda iniciados, seria certamente uma exposição prematura e não benéfica. Além
disso, a luz dos mistérios penetra mais profundamente os que a recebem de surpresa,
do que se a tivesse precedido uma sumária explicação68.
3 Abri, portanto, os ouvidos e aspirai o bom odor da vida eterna, derramado
sobre vós pelo dom dos sacramentos. Já vo-lo demos a entender, quando celebrámos o
mistério da abertura dos ouvidos, dizendo: Effathá, que quer dizer: abre-te 69, para que
cada um de vós, ao aproximar-se da graça do baptismo, entendesse o que se lhe pergun-
tava e recordasse o que devia responder.
4 Este mesmo mistério foi celebrado por Cristo, como lemos no Evangelho, ao
curar o surdo-mudo70. A um homem que era mudo, tocou-lhe os lábios, por um lado,
porque tinha a intenção de lhe abrir a boca, para que pudesse falar; por outro, porque
tal contacto ficava bem em relação a um homem, não a uma mulher.

63
In quo tibi est, cum quo tibi est, honor, laus, gloria, magnificentia, potestas, cum spiritu sancto a saeculis
et nunc et semper et in omnia saecula saeculorum. Amen.
64
A MBRÓSIO DE M ILÃO , De mysteriis (=PL 16, 389-410; CSEL 73, 7; SCh 25bis; cf. LH, III). Este tratado foi
escrito por volta de 390.
65
De moralibus quotidianum sermonem habuimus, cum vel Patriarcharum gesta, vel Proverbiorum
legerentur praecepta.
66
Ambrósio de Milão chama mistérios ao sentido profundo das Escrituras.
67
Sacramentos são as celebrações litúrgicas, os ritos, a liturgia.
68
Deinde quod inopinantibus melius si ipsa lux mysteriorum infunderit quam si ea sermo aliquid
praecuccurrisset. Esta ideia encontra-se noutros Padres da Igreja.
69
Mc 7, 34.
70
Mc 7, 34; cf. Sacr. I, 2.
AMBRÓSIO DE MILÃO 529

2. 5 Depois disto, abriram-se para ti as portas do Santo dos Santos e entraste no 2034
santuário da regeneração. Recorda o que te foi perguntado, reflecte sobre aquilo que
respondeste. Renunciaste ao Demónio e às suas obras, ao mundo e aos seus prazeres
pecaminosos71. A tua palavra está gravada, não no túmulo dos mortos, mas no livro
dos vivos.
6 Viste ali o levita, o sacerdote, o sumo sacerdote. Não penses no seu aspecto
exterior, mas na graça do seu ministério. Foi na presença dos Anjos que tu falaste,
como está escrito: Dos lábios do sacerdote se espera a instrução e a inteligência da lei,
porque é o mensageiro do Senhor omnipotente72. Não o podes enganar, não lhe podes
mentir; é o mensageiro que anuncia o reino de Cristo e a vida eterna. Não deves apreciá-lo
pela sua aparência, mas pelo seu ministério. Considera o que ele te deu, aprecia a sua
função e reconhece a sua dignidade.
7 Tendo entrado para ver o teu adversário, a quem decidiste renunciar com a tua
boca, voltaste-te para o Oriente 73, pois quem renuncia ao Demónio volta-se para
Cristo e fixa nele o seu olhar.
3. 8 Que viste no baptistério? A água, sim; mas não só a água; viste também os 2035
levitas que exerciam o seu ministério; e o sumo sacerdote que interrogava e consagrava74.
Antes de tudo, o Apóstolo ensinou-te que não devemos fixar-nos no que se vê, mas no
que não se vê, porque o que se vê é passageiro, mas o que não se vê é eterno 75. E
noutra passagem lê-se que desde a criação do mundo as perfeições invisíveis de Deus,
o seu poder eterno e a sua divindade são reconhecidas mediante as suas obras 76. Por
isso diz também o Senhor: Se não acreditais em mim, acreditai ao menos nas minhas
obras 77. Acredita, portanto, que a divindade está ali presente. Acreditas nas suas
obras, e não acreditas na sua presença? Como seria possível a acção, se não a precedesse
a presença?
9 Considera também como é antigo este mistério, prefigurado na própria origem
do mundo. Já no princípio, quando Deus fez o céu e a terra, o Espírito — diz a
Escritura — pairava sobre as águas 78. Porventura Aquele que pairava sobre as águas
não actuava sobre as águas? O Profeta dá-nos a conhecer esta actuação do Espírito na
criação do mundo, quando diz: A palavra do Senhor criou os céus, e o sopro da sua
boca os adornou79. O testemunho profético confirma uma e outra coisa: que pairava e
actuava. Que Ele pairava, di-lo Moisés; que actuava, testemunha-o David.
10 Temos ainda outro testemunho. Todo o homem estava corrompido pelas suas
iniquidades. Diz a Escritura: O meu Espírito não permanecerá no homem, porque é
carne 80. Por estas palavras, Deus declara que a graça espiritual é incompatível com a
impureza da carne e a mancha do pecado grave. Por isso, querendo restaurar o que
tinha feito, Deus enviou o dilúvio e mandou subir para a arca o justo Noé 81. Quando
desceram as águas do dilúvio, Noé soltou primeiro o corvo, que não voltou; e depois

71
Cf. Sacr. I, 5.
72
Mal 2, 7; cf. Sacr. I, 7.
73
A renunciação era feita com o rosto voltado para Ocidente; a profissão de fé, com o rosto voltado para o
Oriente.
74
Cf. 20; cf. Sacr. I, 15. 18.
75
2 Cor 4, 18.
76
Rom 1, 20.
77
Jo 10, 38.
78
Gen 1, 2.
79
Sal 32, 6.
80
Gen 6, 3.
81
Cf. Sacr. I, 23; II, 1. 9.
530 SÉCULO IV

soltou a pomba, que voltou com um ramo de oliveira, como se lê na Escritura82. Vês a
água, vês a árvore, vês a pomba, e ainda duvidas do mistério?
11 Na água é submergida a nossa carne, para que se apague todo o seu pecado.
Ali fica sepultada toda a nossa maldade. Na árvore foi crucificado o Senhor Jesus
quando padeceu por nós. A pomba é a figura sob a qual desceu o Espírito Santo, como
aprendeste no Novo Testamento; é Ele que te inspira a paz da alma e a tranquilidade de
espírito. O corvo é a figura do pecado, que se afasta e não volta, se em ti perseverarem a
observância da doutrina e a prática da santidade.
12 O Apóstolo ensina-te que os nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem,
todos atravessaram o mar e todos foram baptizados em Moisés, na nuvem e no mar83.
Além disso, lemos no cântico de Moisés: Enviastes o vosso Espírito, e o mar engoliu-os84.
Repara como já aquela passagem dos Hebreus pelo mar Vermelho, em que morreram os
Egípcios e se salvaram os Hebreus, era uma figura do santo baptismo. Que outra coisa
nos ensina todos os dias este sacramento, senão que a culpa é submergida e o erro
destruído, enquanto a piedade e a inocência passam incólumes?
13 Ouves como os nossos pais estiveram debaixo da nuvem, uma nuvem certamente
benéfica que refrescou o ardor das paixões e protegeu com a sua sombra aquele sobre
quem desceu o Espírito Santo. Ele desceu depois sobre a Virgem Maria, e o poder do
Altíssimo cobriu-a com a sua sombra85, quando ela gerou o Redentor do género humano.
Também este milagre realizado por Moisés era uma figura. Portanto, se o Espírito
estava presente na figura, não estará presente na realidade, quando a Escritura te diz
que a lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo86?
14 Mara era uma fonte amarga; Moisés lançou nela um madeiro e tornou-se
doce87. De modo semelhante, a água sem a pregação da cruz do Senhor não tem qual-
quer utilidade para a salvação futura; mas uma vez consagrada pelo mistério da cruz
salvadora, fica apta para o banho espiritual e para o cálice da salvação. Assim como
Moisés, isto é, o Profeta, lançou para aquela fonte o madeiro, também o sacerdote faz
sobre esta fonte a proclamação da cruz do Senhor, e a água torna-se doce para conferir
a graça.
15 Por conseguinte, não acredites só nos olhos do teu corpo. Mais segura é a
visão do invisível, porque o que se vê é passageiro e o que não se vê é eterno. Mais
segura que a visão dos olhos corporais é a visão da alma e do espírito.
16 Finalmente sirva-te de ensinamento a leitura que ouviste do Livro dos Reis 88.
Naamã era sírio e estava leproso, sem que ninguém o pudesse curar. Então uma jovem
prisioneira disse que havia em Israel um Profeta que podia curá-lo da lepra. Naamã,
tendo tomado consigo ouro e prata, dirigiu-se ao rei de Israel. Este, ao saber o motivo
da sua vinda, rasgou as vestes, dizendo que se tratava de uma provocação pedir-lhe
uma coisa que não estava no seu poder real. Mas Eliseu mandou dizer ao rei que lhe
enviasse o sírio, para que reconhecesse que havia um Deus em Israel. Tendo ele chega-
do, ordenou-lhe que se banhasse sete vezes no rio Jordão.
17 Então o sírio começou a pensar que havia rios na sua pátria com águas
melhores; nelas se banhara muitas vezes e nunca ficara limpo da lepra; e queria ir-se
embora sem fazer o que lhe dissera o Profeta. Mas acabou por aceder aos pedidos e

82
Cf. Gen 8, 6-11.
83
1 Cor 10, 1-2.
84
Ex 15, 10.
85
Cf. Lc 1, 35.
86
Jo 1, 17.
87
Cf. Ex 15, 23-25; Sacr. II, 12.
88
2 Reis 5, 1-14; cf. Sacr. I, 13-14; II, 8.
AMBRÓSIO DE MILÃO 531

conselhos dos seus servos e banhou-se. Subitamente curado, compreendeu, naquele


mesmo instante, que a purificação não era obra das águas, mas da graça.
18 Já é tempo de descobrires quem era aquela jovem prisioneira. Era a figura da
assembleia mais nova de entre as nações, isto é, da Igreja do Senhor. Antes, quando não
possuía ainda a liberdade da graça, fora humilhada pelo cativeiro do pecado. Mas, a seu
conselho, este povo que não era ainda um povo, escutou a palavra do Profeta, da qual
duvidara por muito tempo. Em seguida, quando acreditou que devia segui-la, o povo
foi purificado de todo o contágio do pecado. Ele duvidara antes de ser curado; mas tu
já foste curado e por isso não deves duvidar.
4. 19 Já antes te foi dito que não devias acreditar apenas no que vês, para que digas: 2036
É este o grande mistério que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem
jamais passou pelo pensamento do homem 89. Eu vejo as águas que via todos os dias.
Vão purificar-me estas águas a que tantas vezes desci sem nunca ter sido purificado?
Deves reconhecer que a água não purifica sem o Espírito.
20 Por isso, leste que no baptismo as três testemunhas são uma só: a água, o
sangue e o Espírito 90; porque, se prescindires de uma delas, já não há sacramento do
baptismo. Que é a água sem a cruz de Cristo? É um elemento comum, sem nenhuma
eficácia sacramental. Mas também é verdade que sem a água não há mistério da regeneração:
Quem não renascer da água e do Espírito não entrará no reino de Deus91. Também o
catecúmeno acredita na cruz do Senhor Jesus, com a qual é assinalado92; mas, se não for
baptizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, não pode receber o perdão
dos pecados nem obter o dom da graça espiritual.
21 Por isso o sírio Naamã mergulhou sete vezes, segundo a Lei; tu, porém, foste
baptizado em nome da Trindade. Recorda o que fizeste: proclamaste a tua fé no Pai e
no Filho e no Espírito Santo 93. Agora tira as consequências desta profissão de fé:
morreste para o mundo, ressuscitaste para Deus e, de certo modo sepultado naquele
elemento do mundo, morto para o pecado, ressuscitaste para a vida eterna 94. Acredita,
por conseguinte, na eficácia destas águas.
22 Ouviste o que te foi dito: O Anjo do Senhor descia de tempos a tempos à
piscina. A água agitava-se e o primeiro que descia à piscina, após o movimento da
água, ficava curado, qualquer que fosse a sua doença 95. A piscina era em Jerusalém, e
nela se curava uma só pessoa em cada ano. Mas ninguém ficava curado antes que o
Anjo descesse. Para indicar que o Anjo já tinha descido, agitava-se a água. A água
agitava-se por causa dos que não acreditavam. O que era para eles um sinal é para ti a
fé. Para eles descia um Anjo, para ti desce o Espírito Santo. Para eles agitava-se uma
criatura, para ti quem actua é Cristo, o Senhor de todas as criaturas.
23 Naquele tempo, só um era curado. Agora todos se curam, ou antes, um só, que
é o povo cristão...
24 Também o paralítico de que falámos esperava um homem96. Quem é esse
homem senão o Senhor Jesus, nascido da Virgem, em cuja vinda já não era a sombra que
havia de curar um por um, mas a verdade que havia de curar a todos? Era Ele que os

89
Cf. 1 Cor 2, 9.
90
1 Jo 5, 8.
91
Jo 3, 5.
92
Os candidatos, ao serem admitidos no catecumenado, eram marcados com a cruz de Cristo, com a qual pas-
savam a marcar-se eles próprios todos os dias.
93
Cf. Sacr. II, 20.
94
Cf. Sacr. II, 3. 6-7.
95
Jo 5, 4; cf. Sacr. II, 3. 6-7.
96
Cf. Jo 5, 7.
532 SÉCULO IV

homens esperavam que descesse; dele falou Deus Pai a João Baptista: Aquele sobre
quem vires o Espírito descer do céu e permanecer sobre Ele, esse é o que baptiza no
Espírito Santo97. D’Ele deu testemunho João, ao dizer: Eu vi o Espírito descer do céu
como uma pomba e permanecer sobre Ele98. E agora pergunto: Por que razão desceu o
Espírito sob forma de pomba, senão para que saibas ver naquela pomba que o justo
Noé lançou da arca99 a imagem desta pomba, e assim reconheças a figura do sacramento?
25 Poderias talvez dizer: Aquela foi uma verdadeira pomba enviada do céu, mas
este desceu em forma de pomba...
2037 5. 26 Terás ainda razão para duvidar? Recorda como no Evangelho o Pai proclama
tão claramente: Este é o meu Filho em quem pus as minhas complacências100; como
proclama o Filho sobre quem o Espírito Santo desceu em forma de pomba; como
proclama o Espírito Santo, que desceu em forma de pomba; como proclama David: A
voz do Senhor ressoa sobre as águas, a majestade de Deus faz ouvir o seu trovão, o
Senhor está sobre a vastidão das águas 101; como a Escritura dá testemunho de que, a
pedido de Jerubaal, desceu o fogo do céu, e, noutra ocasião, a pedido de Elias, o fogo
vindo do céu consagrou o sacrifício102.
27 Não consideres nos sacerdotes os méritos pessoais, mas as funções do seu
ministério. E, se olhas aos méritos, assim como tens consideração por Elias, atende
também aos méritos de Pedro e de Paulo, que nos transmitiram este mistério, que
receberam do Senhor Jesus. Para que eles acreditassem, foi-lhes enviado um fogo
visível; em nós que acreditamos actua um fogo invisível; para eles era uma figura, para
nós é uma exortação. Crê, portanto, que o Senhor Jesus está presente, quando é
invocado pelas preces dos sacerdotes, porque disse: Onde estiverem dois ou três, aí
estarei Eu também103. Com muito mais razão, onde está a Igreja, onde se realizam os
sagrados mistérios, aí Se digna manifestar a sua presença.
28 Desceste à fonte baptismal. Recorda o que respondeste: que acreditavas no
Pai, no Filho e no Espírito Santo. Não disseste: Acredito no maior, no menor e no
último, mas com a garantia da tua palavra te obrigaste a acreditar no Filho como
acreditas no Pai, a acreditar no Espírito Santo como acreditas no Filho, com uma só
excepção: a cruz em que acreditas é só do Senhor Jesus104.
2038 6. 29 Ao sair da fonte baptismal, aproximaste-te do bispo. Repara no que se se-
guiu. Porventura não foi aquilo que disse David: Como o óleo precioso derramado
sobre a cabeça, a escorrer pela barba de Aarão105? Este é o óleo precioso de que falou
também Salomão: O teu nome é um perfume de suave fragrância; por isso te amam as
donzelas106. Quantas almas hoje renovadas, Senhor Jesus, Vos dizem cheias de amor:
Levai-nos convosco; correremos seguindo o perfume dos vossos vestidos107, atraídas
pela fragrância da ressurreição.

97
Jo 1, 33.
98
Jo 1, 32.
99
Cf. Gen 8, 8.
100
Mt 3, 17.
101
Sal 28, 3.
102
Cf. Jz 6, 21; 1 Reis 18, 38.
103
Mt 18, 20.
104
Cf. Sacr. II, 20.
105
Sal 132, 2; cf. Sacr. II, 24; III, 1.
106
Cânt 1, 2.
107
Cânt 1, 3.
AMBRÓSIO DE MILÃO 533

30 Procura compreender o sentido deste rito: Os olhos do sábio estão na sua


cabeça108. O óleo precioso escorre pela barba, como sinal da juventude, escorre pela
barba de Aarão, a fim de te tornares um povo eleito, sacerdotal, precioso. Todos somos
ungidos com a graça do Espírito para o reino e o sacerdócio de Deus.
31 Subiste da fonte. Lembra-te da leitura do Evangelho. Com efeito, Jesus nosso
Senhor, no Evangelho, lavou os pés aos seus discípulos. Ao chegar a Simão Pedro, este
disse-lhe: Nunca me lavarás os pés109. Pedro não compreendia o mistério e, por causa
disso, recusou o serviço. Ele imaginava que a humilhação do servo seria maior se
aceitasse sem resistência a homenagem do mestre. O Senhor respondeu-lhe: Se não te
lavar os pés, não terás parte comigo. Ao ouvir isto, Pedro disse: Senhor, então não só
os pés, mas também as mãos e a cabeça. O Senhor respondeu-lhe: Quem tomou banho
não precisa de lavar senão os pés, pois está todo limpo 110.
32 Pedro estava limpo, mas devia lavar os pés, pois havia nele o pecado que vem
da sucessão do primeiro homem111, quando a serpente o fez tropeçar e o induziu em
erro. É por isso que se lhe lavam os pés, para se tirarem os pecados hereditários, pois
os nossos pecados pessoais são perdoados pelo baptismo.
33 Compreende, ao mesmo tempo, que tal mistério se realiza pelo ministério da
humildade, pois Jesus disse: Se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós
vos deveis lavar os pés uns aos outros112. Uma vez que o próprio autor da salvação
nos resgatou pela obediência, tanto mais devemos nós, seus servos, apresentar-Lhe a
homenagem da humildade e da obediência.
7. 34 A seguir, recebeste a veste branca, como sinal de que te havias despojado do 2039
pecado e que tinhas sido revestido com o puro manto da inocência, como dizia o
Profeta: Aspergi-me com o hissope e serei purificado; lavai-me e ficarei mais branco
do que a neve113. Na verdade, segundo a Lei e segundo o Evangelho, aquele que é
baptizado fica purificado: segundo a Lei, porque Moisés aspergia o sangue do cordeiro
com um ramo de hissope 114; segundo o Evangelho, porque as vestes de Cristo eram
brancas como a neve, quando manifestou a glória da sua Ressurreição115. Fica mais
branco do que a neve, aquele a quem é perdoada a culpa. Por isso, também o Senhor diz
por meio de Isaías: Ainda que os vossos pecados sejam como o escarlate, tornar-se-ão
brancos como a neve 116.
35 Depois de receber esta veste pelo baptismo da regeneração117, diz a Igreja no
Cântico dos Cânticos: Sou morena, mas formosa, filhas de Jerusalém118. Morena pela
fragilidade da condição humana, formosa pela graça; morena porque formada de pecadores,
formosa pelo sacramento da fé. Contemplando esta veste, as filhas de Jerusalém dizem
maravilhadas: Quem é esta que sobe vestida de branco119? Se era morena, donde lhe
veio esta inesperada brancura?
36 Duvidaram os Anjos na hora em que Cristo ressuscitou; duvidaram as potes-
tades dos Céus, ao verem que a carne subia ao Céu. Perguntavam então: Quem é esse

108
Ecl 2, 14.
109
Jo 13, 8.
110
Jo 13, 9-10.
111
Trata-se do apetite desregrado da vontade corrompida pelo pecado.
112
Jo 13, 14.
113
Sal 50, 9.
114
Cf. Ex 12, 22.
115
Cf. Mt 17, 2.
116
Is 1, 18.
117
Cf. Tit 3, 5.
118
Cânt 1, 4.
119
Cânt 8, 5.
534 SÉCULO IV

Rei da glória? Enquanto uns diziam: Levantai, ó portas, os vossos umbrais, alteai-vos,
pórticos antigos, e entrará o Rei da glória, outros duvidavam, dizendo: Quem é esse
Rei da glória120? Também, segundo Isaías, as virtudes dos Céus duvidavam dizendo:
Quem é este que vem de Edom, com as roupas tingidas de vermelho? Quem é este tão
ricamente vestido de branco121?
37 Cristo, ao contemplar a sua Igreja vestida de branco – Ele que por seu amor,
como se vê no livro do profeta Zacarias, tinha tomado vestes manchadas122 – e ao
contemplar a alma purificada e lavada pelo baptismo da regeneração123, diz: Como és
formosa, minha amada, como és formosa! Os teus olhos são como pombas124, em cuja
figura o Espírito Santo desceu do céu. Os teus olhos são belos, como dissemos acima,
porque Ele desceu como uma pomba.
38 E mais adiante: Os teus dentes lembram um rebanho de ovelhas saindo do
lavadouro, acabadas de tosquiar, todas com dois cordeirinhos gémeos, pois não há
estéreis entre elas. Os teus lábios são uma fita escarlate125. Não é pequeno este
louvor, por causa da graciosa comparação das ovelhas tosquiadas. As ovelhas que
pastam sem temor nas altas montanhas e buscam tranquilamente o alimento por entre
os rochedos escarpados, ao serem tosquiadas, libertam-se do supérfluo. A Igreja com-
para-se a um rebanho, porque possui as virtudes daqueles que, pelo baptismo, se
libertam dos pecados, oferecem a Cristo a fé no mistério e a vida em graça e falam da
cruz do Senhor Jesus...
42 Por isso, recorda que recebeste o sinal do Espírito 126, o Espírito de sabedoria
e de inteligência, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de ciência e de
piedade, o Espírito do santo temor127; e guarda bem o que recebeste. Deus Pai assinalou-te,
Cristo Senhor confirmou-te e, como aprendeste na leitura do Apóstolo, colocou em teu
coração o penhor do Espírito128.
2040 8. 43 Purificada e adornada com estas insígnias, a falange dos neófitos dirige-se
para o altar de Cristo, dizendo: Subirei ao altar de Deus, a Deus que alegra a minha
juventude129. De facto, deixando a veste do antigo erro e renovada a sua juventude
como a águia130, apressam-se para ir tomar parte no banquete celeste. E, ao aproximarem-se,
vendo preparado o sagrado altar, exclamam: Para mim preparaste a mesa. E cantam as
palavras de David: O Senhor é meu pastor: nada me falta. Leva-me a descansar em
verdes prados, conduz-me às águas refrescantes e reconforta a minha alma. E mais
adiante: Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos, não temerei nenhum mal,
porque Vós estais comigo: o vosso cajado e o vosso báculo me enchem de confiança.
Para mim preparaste a mesa à vista dos meus adversários; com óleo me perfumas a
cabeça e o meu cálice transborda131.
44 Consideremos agora o seguinte, não aconteça que alguém, ao ver as coisas
visíveis – as invisíveis não podem ver-se com olhos humanos – venha a dizer: Para os

120
Sal 23, 7-8.
121
Is 63, 1.
122
Cf. Zac 3, 3.
123
Cf. Tit 3, 5.
124
Cânt 4, 1.
125
Cânt 4, 2-3.
126
Cf. Sacr. III, 8.
127
Is 11, 2-3.
128
2 Cor 1, 21.
129
Sal 42, 4.
130
Cf. Sal 102, 5.
131
Sal 22, 5; 1-2; 4-5; cf. Sacr. V, 13.
AMBRÓSIO DE MILÃO 535

Judeus, o Senhor fez chover o maná132 e aparecer codornizes, mas para a sua Igreja
muito amada preparou o que nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem
jamais passou pelo pensamento do homem: foi isso o que Deus preparou para aqueles
que o amam 133? Portanto, para que ninguém fale deste modo, queremos provar que os
mistérios da Igreja são mais antigos que os da Sinagoga e mais excelentes que o maná.
45 A leitura do Génesis, que acaba de ser feita, ensina que eles são mais antigos,
pois a Sinagoga teve origem na lei de Moisés, mas Abraão é muito anterior à Sinagoga.
Depois de vencer os inimigos e de libertar o próprio sobrinho, quando se apoderava
dos frutos da vitória, saiu-lhe ao encontro Melquisedec e ofereceu-lhe dons que Abraão
recebeu com respeito 134. Não foi Abraão que ofereceu, mas Melquisedec, que é apre-
sentado sem pai nem mãe, sem princípio nem fim, mas semelhante ao Filho de Deus,
do qual Paulo diz aos Hebreus: Ele é sacerdote para sempre, e cujo nome, em tradução,
significa Rei da justiça e da paz135.
46 Não reconheces quem Ele é? Acaso pode um homem ser rei de justiça, quando
tão dificilmente é justo? Acaso pode ser rei da paz, quando mal consegue ser pacífico?
Sem mãe, segundo a divindade, porque foi gerado por Deus Pai, Ele é da mesma
substância do Pai. Sem pai segundo a encarnação, porque nasceu da Virgem. Sem
princípio nem fim, porque Ele mesmo é o princípio e o fim, o primeiro e o último 136.
O sacramento que recebeste não é, portanto, o dom de um homem, mas de Deus,
revelado por aquele que abençoou a Abraão, pai da fé, de quem admiras a graça e as acções.
47 Fica assim provado que são mais antigos os sacramentos da Igreja. Reconhece
agora que são também mais excelentes. É certamente admirável que Deus tenha feito
chover o maná para os nossos pais e os tenha sustentado todos os dias com o alimento
do céu, de que fala o salmo: O homem comeu o pão dos Anjos137. E, no entanto, os que
comeram aquele pão morreram todos no deserto; mas este alimento que tu recebes,
este pão vivo que desceu do céu, dá-nos o alimento da vida eterna, e quem dele come
não morrerá para sempre 138, porque é o Corpo de Cristo.
48 Considera agora qual é mais excelente, se aquele pão dos Anjos ou a carne de
Cristo, que é o Corpo da vida. Aquele maná vinha do céu; este Corpo está acima dos
Céus. Aquele era do céu; este é do Senhor dos Céus. Aquele estava sujeito à corrupção
se fosse guardado para o dia seguinte; este não somente está livre de toda a corrupção,
mas comunica a incorruptibilidade a todos aqueles que o saboreiam com reverência139.
Para os Judeus brotou a água do rochedo; para ti o sangue de Cristo. Aquela água
saciava-os por algum tempo; o sangue de Cristo purifica-te para sempre. Os Judeus
bebiam, e voltavam a ter sede; tu, se beberes, não voltarás a ter sede 140. Aquilo era uma
figura; isto é a realidade.
49 Se aquilo que tu admiras era apenas a sombra, quanto mais não vale a realidade
presente, cuja sombra tanto admiras! Escuta como se tratava de uma figura o que se
passou com os nossos pais. Diz o Apóstolo: Bebiam da rocha que os seguia, e essa
rocha era Cristo. Mas a maior parte deles não agradou a Deus, e, por isso, ficaram
prostrados no deserto. Ora estas coisas aconteceram para nos servirem de exemplo141. Já

132
Cf. Ex 16, 13-15.
133
1 Cor 2, 9.
134
Cf. Gen 14, 14-18.
135
Hebr 7, 2-3.
136
Ap 1, 17; 22, 13.
137
Sal 77, 25.
138
Jo 6, 49. 59.
139
Cf. Jo 6, 50.
140
Cf. Jo 4, 13.
141
1 Cor 10, 4-6.
536 SÉCULO IV

compreendeste quais são os dons mais importantes: vale mais a luz que a sombra, a
realidade que a figura, o Corpo do Criador que o maná do céu.
2041 9. 50 Talvez digas: Tenho outra dificuldade. Como podes garantir-me que o que
recebo é o Corpo de Cristo? Ainda nos falta provar isso. Muitos e grandes são os
exemplos de que podemos lançar mão. Persuadamo-nos de que já não temos o que a
natureza formou, mas o que a bênção consagrou; e que a força da bênção é maior que a
força da natureza, porque a bênção até a natureza muda.
51 Moisés segurava uma vara em suas mãos. Tendo-a atirado ao chão, ela trans-
formou-se em serpente. Em seguida, pegou na serpente pela cauda, e ela voltou a ser o
que era dantes142. Como vês, pelo poder do Profeta, duas vezes se transformou a
natureza da serpente e da vara. Os rios do Egipto eram correntes de água pura. De
repente, dos seus veios e fontes começou a brotar sangue, e deixou de haver água
potável nos rios. Mas, de novo, pela oração do Profeta, cessou o sangue e reapareceu
a limpidez das águas143. O povo hebreu estava cercado de todos os lados: de um, os
Egípcios assediavam-no; do outro, o mar impedia-lhe a passagem. Moisés ergueu a
vara, e a água dividiu-se, congelando como se fosse uma muralha, e, entre as ondas,
apareceu um caminho de passagem144. O rio Jordão, contrariando a natureza, passou a
correr em direcção à fonte de onde nascera145. Não foi evidente a mudança na natureza,
tanto das ondas do mar como do curso do rio? O povo dos nossos pais começou a ter
sede. Moisés bateu no rochedo, e jorrou água da pedra146. Acaso não actuou a graça de
maneira superior à natureza, fazendo jorrar água que o rochedo não possuía? Mara era
um lago tão amargo que o povo não podia dessedentar-se. Moisés lançou um pedaço de
madeira na água, e esta, pela graça nela infundida, ficou boa para beber, perdendo o seu
amargor147. No tempo do Profeta Eliseu, aconteceu a um dos filhos dos Profetas que,
tendo-se escapado o ferro do seu machado, imediatamente começou a afundar-se. O
rapaz que perdera o ferro suplicou a Eliseu, e este, mergulhando na água também o
cabo de madeira, o ferro começou a boiar148. Como é evidente, também isto se realizou
de maneira superior à natureza, pois o ferro é naturalmente mais pesado do que a água.
52 Vimos que a graça tem maior poder do que a natureza e, todavia, apenas
considerámos a graça da bênção profética. Ora, se a bênção de um homem teve tanto
valor que transformou a natureza, que diremos da consagração divina, em que actuam
as palavras do nosso Senhor e Salvador149? Porque este sacramento que recebes reali-
za-se pela palavra de Cristo. Ora, se a palavra de Elias teve tanto poder que fez descer
fogo do céu150, não terá poder a palavra de Cristo para mudar a natureza dos elemen-
tos? A propósito das criaturas de todo o universo, leste que Deus disse, e foram feitas;
Ele mandou, e foram criadas151. Por conseguinte, a palavra de Cristo, que pôde fazer
do nada aquilo que não existia, não poderá mudar as coisas que existem naquilo que não
eram? Maior poder supõe dar uma natureza ao que não existe do que mudá-la ao que já
existe.
53 Mas para que estamos a servir-nos de argumentos? Sirvamo-nos dos seus
exemplos e provemos a verdade deste mistério com o próprio mistério da Encarnação.

142
Cf. Ex 4, 3-4.
143
Cf. Ex 7, 19-21.
144
Cf. Ex 14, 21-22.
145
Cf. Jos 3, 16; Sal 113, 35.
146
Cf. Ex 17, 1-7.
147
Cf. Ex 15, 22-25.
148
Cf. 2 Reis 6, 5-6.
149
Cf. Sacr. IV, 14. 19. 21. 22.
150
Cf. 1 Reis 18, 38.
151
Sal 32, 9; 148, 5.
AMBRÓSIO DE MILÃO 537

Porventura foi segundo a ordem natural que o Senhor Jesus nasceu de Maria? Segundo
a ordem natural, a geração provém da união da mulher com o homem. É evidente,
portanto, que a concepção virginal de Cristo não foi segundo a ordem natural. Pois
bem. O que nós tornamos aqui presente é o mesmo Corpo do Senhor nascido da
Virgem. Porque hás-de procurar a ordem natural no Corpo de Cristo, se o Senhor Jesus
nasceu da Virgem, fora das leis da natureza? Era verdadeira a carne de Cristo que foi
crucificada, que foi sepultada; é, portanto, verdadeiro o sacramento da sua carne.
54 O próprio Senhor Jesus proclama: Isto é o meu Corpo. Antes da bênção das
palavras celestes, era outra realidade; depois da consagração, é o Corpo de Cristo. Ele
próprio diz também que é o seu Sangue. Antes da consagração, recebia outro nome;
depois da consagração, é o Sangue de Cristo. E tu respondes: Amen, quer dizer: É
verdade 152. O que a boca pronuncia professe-o o espírito; o que a palavra afirma
sinta-o o coração.
55 Cristo alimenta a sua Igreja com estes sacramentos, que fortalecem a alma. E,
ao vê-la crescer em graça, diz-lhe: Como são belos os teus seios, minha irmã, minha
esposa! As tuas carícias são mais deliciosas que o vinho! O aroma das tuas vestes é
mais agradável do que todos os perfumes! Os teus lábios, minha esposa, são como
favo a destilar; o mel e o leite estão debaixo da tua língua, e o perfume dos teus
vestidos é como o odor do Líbano. Tu és um jardim murado e fechado, minha irmã,
minha esposa, uma fonte selada 153. Por estas palavras quer Ele indicar-te que o misté-
rio deve permanecer selado, isto é, não deve ser violado pelas obras de uma vida má
nem pela perda da castidade, não deve ser divulgado a quem não compete nem difun-
dido entre gente perversa, por meio de uma conversação estulta. Deves guardar bem a
tua fé, para que permaneçam íntegros a tua vida e o teu silêncio.
56 Guardando a profundidade dos mistérios celestes, a Igreja afasta para longe
as mais violentas tempestades e atrai a suavidade da graça primaveril. Sabendo que o
seu jardim não pode desagradar a Cristo, chama pelo Esposo, dizendo: Levanta-te,
vento norte e vem, ó vento sul! Sopra no meu jardim e espalha o seu perfume. Vem, ó
meu irmão, ao teu jardim e come dos seus deliciosos frutos154. Ele possui árvores boas
e frutíferas, que mergulham as suas raízes na torrente da fonte sagrada, desabrocham
em flores exuberantes e produzem frutos saborosos, para não serem cortadas pelo
machado do Profeta, mas se desenvolverem em fecundidade evangélica.
57 Então o Senhor, encantado pela sua fertilidade, responde: Eu entrei no meu
jardim, minha irmã, minha esposa; colhi a minha mirra e os meus perfumes, comi o
alimento com o meu mel, bebi o meu vinho com o meu leite 155. Por que falou Ele de
comida e bebida? Compreende-o tu, que tens fé. Não há dúvida de que em nós Ele come
e bebe, da mesma forma que em nós, como leste, diz estar no cárcere156.
58 Por isso, a Igreja, ao ver tão grande graça, exorta os seus filhos, exorta os seus
amigos, a que se aproximem dos sacramentos, dizendo: Comei, meus amigos; bebei e
inebriai-vos, meus irmãos 157. O Espírito Santo indicou noutra passagem, por meio do
Profeta, o que vamos comer e beber: Saboreai e vede como Senhor é bom; feliz o
homem que nele se refugia158. Naquele sacramento está Cristo, porque é o Corpo de
Cristo. Não é, portanto, um alimento corporal, mas espiritual. Por isso diz o Apóstolo

152
Cf. Sacr. IV, 25.
153
Cânt 4, 10-12.
154
Cânt 4, 16-5, 1.
155
Cânt 5, 1.
156
Cf. Mt 25, 35-36.
157
Cânt 5, 1.
158
Sal 33, 9.
538 SÉCULO IV

a respeito da sua prefiguração: Os nossos pais comeram um alimento espiritual e


beberam uma bebida espiritual159, porque o Corpo de Deus é um corpo espiritual, o
Corpo de Cristo é o corpo do Espírito divino, porque Cristo é Espírito, como lemos:
Cristo Senhor é Espírito diante de nós160. E, na Epístola de Pedro, lemos também:
Cristo morreu por nós161. Finalmente, o Profeta recorda que este alimento fortalece o
nosso coração e esta bebida alegra o coração do homem162.
59 Na posse de todos estes dons, reconheçamos que fomos gerados de novo e
não digamos: – Como fomos regenerados? Acaso voltámos a entrar no ventre da nossa
mãe e nascemos de novo163? Não vejo que isso aconteça na natureza. – Não se trata da
ordem da natureza mas da excelência da graça. Aliás, mesmo no que diz respeito à
geração, nem sempre se observa a ordem da natureza. Confessamos que Cristo Senhor
foi gerado pela Virgem e, com isso, negamos a ordem natural, pois Maria não concebeu
de um homem, mas recebeu (o Verbo) em seu seio, por força do Espírito Santo, como
diz Mateus: Encontrou-se grávida por virtude do Espírito Santo164. Portanto, se o
Espírito Santo, descendo sobre a Virgem, realizou a concepção e a obra da geração, não
se pode duvidar de que, descendo sobre a fonte, ou seja, sobre os que recebem o
baptismo, realize na verdade a sua regeneração.

Hexameron 165

LIVRO I
2042 1. 1 O homem, por uma lei inviolável de concórdia e de amor, liga os diversos
elementos do universo num vínculo de união e de paz.

LIVRO V

2043 18. As cabeças de ambos são unidas pelo mesmo jugo da bênção...166

LIVRO VI

2044 10. 76 Dêmos graças ao Senhor nosso Deus, que fez uma obra onde Lhe foi possível
encontrar repouso. Fez o céu, e não leio que tenha repousado. Fez a terra, e também
não leio que tenha repousado. Fez o Sol, a Lua e as estrelas, e continuo a não ler que
tenha repousado. Por fim, leio que Ele fez o homem, e que então repousou, por ter
encontrado alguém a quem podia perdoar os seus pecados167.

159
1 Cor 10, 3.
160
Lam 4, 20.
161
1 Ped 2, 21.
162
Cf. Sal 103, 15.
163
Cf. Jo 3, 4.
164
Mt 1, 18.
165
A MBRÓSIO DE M ILÃO , Hexaemeron (=PL 14, 123-273; CSEL 32).
166
Eodem iugo benedictionis utriusque colla sociantur, etiamsi alter obeat separatarum regionum lon-
ga divortia, quia non corporis cervice, sed mentis iugum gratiae receperunt.
167
Habens cui peccata dimitteret.
AMBRÓSIO DE MILÃO 539

A história de Nabot 168


10. 45 Ouves, ó rico, o que diz o Senhor Deus? E tu vens à igreja, não para dar 2045
qualquer coisa a quem é pobre, mas para te aproveitares.

Os ofícios dos ministros 169

LIVRO I

20. 88 A leitura da Escritura sagrada deve ser acompanhada da oração, para que seja 2046
um diálogo entre Deus e o homem: a Ele falamos quando oramos, a Ele ouvimos quando
lemos os divinos oráculos.
29. 142 A Igreja é uma vida comum a todos: ora em comum, actua em comum, é 2047
tentada em comum.
41. 204 Não passemos por alto a São Lourenço, que, ao ver que o seu bispo Sisto era 2048
conduzido ao martírio, começou a chorar, não pela sua paixão, mas por ficar sem ele.
Começou a chamá-lo com estas palavras: «Onde vais, pai, sem o teu filho? Para onde
vais com tanta pressa, sacerdote santo, sem o teu diácono? Não costumavas oferecer o
sacrifício sem ministro. Que foi que te desagradou em mim, pai? Acaso me achaste
diferente? Ou estarás a experimentar se escolheste um ministro idóneo? Será que negas
a participação no teu sangue àquele a quem entregaste a consagração do Sangue do
Senhor170 e a quem encarregaste de participar na consumação dos sacramentos?...
48. 238 Desejemos aquelas realidades onde se encontra a perfeição, onde se encontra 2049
a verdade. Aqui temos a sombra, ali a imagem, lá possuiremos a verdade. Sombra na
Lei, imagem no Evangelho, verdade nos Céus. Antes oferecia-se o cordeiro..., agora
oferece-se Cristo, mas oferece-Se como homem, como aquele que sofreu. Ele oferece-Se a
Si mesmo como sacerdote para perdoar os nossos pecados: aqui em imagem, lá em
verdade, onde como advogado intercede por nós diante do Pai...

Sobre a Penitência 171

LIVRO I

1. 4 Haverá pessoas mais orgulhosas (que os Novacianos), que se chamam os 2050


puros, apesar de David proclamar: Purificai-me dos meus pecados172?... Que haverá
de mais intolerável do que a sua maneira de agir? Impõem a penitência, mas não lhe
põem fim, porque recusam o perdão e assim eliminam o estímulo que leva os pecadores
a pedi-la. De facto, ninguém cumpre bem a penitência, se não espera receber o perdão.

168
A MBRÓSIO DE M ILÃO , De Nabuthe historia (=PL 14, 731-756; CSEL 30).
169
A MBRÓSIO DE MILÃO , De officiis ministrorum (=PL 16, 23-184; CCL 15).
170
Cuí commisisti Dominici sanguinis consecrationem. É evidente que o diácono não era ministro da
consagração, mas sim do Sangue consagrado, pois era ele que apresentava o cálice aos fiéis.
171
AMBRÓSIO DE MILÃO, De paenitentia (=PL 16, 465-524; CSEL 73; SCh 179). Tratado escrito entre 384-394.
172
Sal 50, 4).
540 SÉCULO IV

2051 2. 5 Os Novacianos negam que se deva conceder a comunhão àqueles que aposta-
taram. Se eles exceptuassem do perdão apenas o crime de sacrilégio, isso seria uma
decisão grave, sem dúvida, mas conforme às suas afirmações, apesar de poder ser
refutada através dos textos da Escritura. Mas, de facto, o Senhor não exceptua nenhum
crime, pois perdoou todos os pecados...
9 Devemos crer ao mesmo tempo que devemos fazer penitência e que o perdão
nos será concedido. Mas é graças à nossa fé que obteremos este perdão e não por nos
ser devido. Merecer é uma coisa, esperar é outra. A fé obtém-nos o que nos propõe...
Deus não exige dinheiro, mas a fé...
2052 3. 10 Deus não faz qualquer distinção, pois prometeu a sua misericórdia a todos, e
concedeu o poder de perdoar os pecados aos seus bispos, sem qualquer restrição.
Aquele que pecou mais gravemente fará penitência mais dura: os crimes maiores exigem,
para ser perdoados, lágrimas mais abundantes...
2053 8. 36 Porque impondes as mãos e acreditais que, quando um doente recupera a
saúde, isso é efeito da bênção?... Porque baptizais, se os pecados não são perdoados
por intermédio do homem? É sobretudo no baptismo que se obtém a remissão de todos
os pecados. Mas, que importa que os sacerdotes exerçam, através da instituição peni-
tencial ou do banho (baptismal), o poder que lhes foi dado? Em ambos os casos eles
exercem o mesmo ministério...
2054 15. 80 Aquele que é redimido do pecado e purificado no homem interior pelas ora-
ções e gemidos do povo, é purificado e lavado pelas obras e pelas lágrimas de todo o
povo. Cristo concedeu à sua Igreja o poder de resgatar um só homem pela intervenção de
todos, tal como obtivera, quando veio o Senhor Jesus, que todos fossem remidos por um.

LIVRO II

2055 9. 80 Examinemos agora como se deve fazer penitência... É preciso acreditar, ao


mesmo tempo, que devemos fazer penitência e que nos será concedido o perdão, e que
o perdão que esperamos obter nos será dado graças à nossa fé, e não por nos ser
devido. Uma coisa é merecer, outra coisa é esperar...
83 Não nego que os pecados possam ser apagados pelas esmolas feitas aos
pobres, desde que a nossa liberalidade seja inspirada pela fé. Mas, de que servirá a
alguém dar todas as suas riquezas sem a graça da caridade?...
86 Há muitos pecadores, conscientes do suplício futuro que os ameaça por causa
dos seus pecados, que pedem a penitência, mas que, depois de a receberem, se afastam
dela por terem vergonha do seu processo público...
87 Outros pedem a penitência, para serem imediatamente readmitidos à comu-
nhão. Agindo desta maneira, esses pecadores pretendem menos ser reconciliados do
que amargurar o seu bispo. Com efeito, eles não libertam a sua consciência, mas
tornam pesada a do pontífice, ao qual foi ordenado: Não deis as coisas santas aos cães
e não lanceis as vossas pedras preciosas aos porcos173. Por outras palavras, não se
deve conceder a sagrada comunhão àqueles que não foram purificados.
88 Infelizmente vemos andar com vestes de penitentes certos pecadores, que
deveriam chorar e gemer, por terem manchado a sua veste baptismal. As mulheres
prendem pedras preciosas às orelhas e enchem o pescoço de colares, quando deviam
humilhar a cabeça diante de Cristo e não andar com ela inclinada sob o peso dos
adereços de ouro. O que elas deviam era chorar por si mesmas, porque perderam a
preciosa pedra celeste.

173
Mt 7, 6.
AMBRÓSIO DE MILÃO 541

89 Outros pensam que a penitência consiste apenas em abster-se dos sagrados


mistérios 174. Esses são juízes bem cruéis para si próprios. Impõem-se uma penitência,
mas recusam o remédio. O que convinha era que se afligissem por se verem obrigados
a afastar-se dos sagrados mistérios, por causa dos pecados cometidos. Assim, são eles
que se privam da graça celeste.
90 Outros, depois de tomarem a resolução de um dia fazerem penitência, imagi-
nam, por causa disso, que podem prorrogar os prazos para continuar a pecar. Ora, a
penitência é o remédio do pecado, e não um estímulo para continuar a pecar... Contar
com o tempo é um cálculo muito frágil; os prazos são incertos, e a esperança corre o
risco de ser cortada antes da hora...
10. 91 Poder-se-á admitir que tenhas vergonha, pecador, de pedir perdão a Deus, 2056
quando não tens nenhuma vergonha de fazer pedidos aos homens? Poderás tu ter
vergonha de dirigir as tuas súplicas a Deus, diante do qual não podes esconder-te,
quando mostras os teus pecados diante dos homens, aos quais seria fácil enganar?...
92 A Igreja nossa mãe orará por ti, lavará as tuas faltas pelas suas lágrimas...
Cristo deseja que muitos orem por um só... Ajoelhas-te diante dos teus semelhantes,
abraças os seus pés, mostras os teus filhos ainda inocentes, para que eles intercedam
em teu favor, tu que és seu pai, e tens vergonha de agir do mesmo modo com a Igreja,
para suplicares a Deus e procurares o patrocínio do povo santo, a fim de que ele
interceda em teu favor?...
93 Nada, pois, te afaste da penitência...
95 Há quem pense que se pode fazer penitência muitas vezes... Se esses tais
fizessem verdadeira penitência, nem sequer imaginariam que ela pudesse repetir-se.
Com efeito, tal como não há senão um baptismo, também não há senão uma penitência,
pelo menos aquela que se desenrola publicamente. Com certeza que é preciso arre-
pendermo-nos cada dia dos nossos pecados, mas esta penitência quotidiana só se aplica
aos pecados de menor monta; a outra, a penitência pública, é precisa para as faltas
graves.
96 Encontrei mais facilmente cristãos que tivessem guardado a sua inocência
baptismal, do que pecadores que tivessem feito penitência de modo conveniente...
Para fazer verdadeira penitência, é preciso renunciar ao mundo, dormir menos do que
a natureza exige, é preciso soltar gemidos, lamentar-se, procurar lugares isolados para
orar, numa palavra, é preciso viver apenas para morrer para esta vida. É preciso
renunciar completamente a si mesmo, e mudar radicalmente...
97 É por isso que o Senhor disse muito bem: Se alguém quiser seguir-Me,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me175...
11. 98 A instituição penitencial é um bem, pois, se ela não existisse, todos difeririam 2057
a graça da ablução (baptismal) até à velhice. A esses pode dar-se uma boa resposta: é
melhor possuir uma veste remendada do que não ter nenhuma. Mas, se a veste que foi
remendada uma só vez aguenta bem, os remendos sucessivos dão cabo dela...
104 Por outro lado, se alguém se encontra em pecado, não deve arrogar-se o
direito de dispor e usar dos sacramentos176...
107 Nós aprendemos que é preciso fazer penitência, mas que a devemos fazer no
momento em que a atracção do pecado esteja a acabar. Enquanto nos sentirmos cativos
do pecado, é melhor não ser audacioso, mas prudente...

174
Sacramentis caelestibus, isto é, a comunhão eucarística.
175
Mt 16, 24.
176
Da Eucaristia.
542 SÉCULO IV

Sobre as virgens 177

LIVRO III

2058 5. 22 Do lado de Cristo manou sangue e água, e, por fim, entregou o espírito. Água
para o baptismo, sangue para bebida, espírito para a ressurreição. Por isso, só em
Cristo está a nossa esperança, fé e caridade: esperança na ressurreição, fé no baptismo,
caridade no sacramento.
2059 6. É o pacto conjugal que faz o casamento178.

Comentários aos Salmos 179


2060 Prefácio. Aquilo que outros anunciaram em enigma parece ter sido prometido
clara e abertamente a David, a saber que o Senhor Jesus Cristo nasceria da sua descen-
dência... É por isso que nos salmos, não apenas vemos Jesus nascer, mas também
afrontar a sua Paixão corporal salvadora, repousar no túmulo e ressuscitar, subir aos
Céus e estar sentado à direita do Pai.
SALMO 1

2061 4. Ainda que toda a Escritura divina respire a graça de Deus, é-nos particularmente
agradável o Livro dos Salmos. Lembremos como procedeu o próprio Moisés: para
descrever as obras grandiosas dos antepassados recorreu à prosa; mas, para exprimir a
sua admiração pela memorável travessia do mar Vermelho com todo o povo de Israel...,
sentiu-se profundamente inspirado e cantou ao Senhor um hino triunfal. Também Maria, a
profetisa, tomando o tamboril, exortava as outras mulheres dizendo: Cantemos ao Se-
nhor, que Se revestiu de glória; Ele precipitou no mar o cavalo e o cavaleiro.
A história ensina, a lei instrui, a profecia anuncia, a advertência corrige, a
moralidade persuade; mas o Livro dos Salmos, como síntese de tudo isto, é medicina
geral da salvação humana. Quem os lê encontra sempre um remédio especial, para curar
as suas feridas...
2062 9. Que há de mais agradável que um salmo?... Na verdade, o salmo é a bênção do
povo, o louvor de Deus, o hino dos fiéis, o aplauso da assembleia, a palavra da
multidão, a voz da Igreja, a exultante confissão da fé, a expressão da autêntica piedade,
a alegria da liberdade, o clamor do júbilo, a exultação da alegria. Ele acalma a ira, afasta
a ansiedade, alivia a tristeza. É arma durante a noite, ensino durante o dia; é escudo no
temor, festa na santidade, imagem da tranquilidade, penhor da paz e da concórdia, que,
à semelhança da cítara, com vozes diversas e distintas, exprime uma única canção. Ao
nascer do dia, exulta o salmo; ressoa o salmo ao cair da noite.
2063 10. No salmo..., ao mesmo tempo canta-se com gosto e aprende-se com proveito.
Haverá alguma coisa que não encontres quando lês os salmos?... Neles encontro a graça
da revelação, o testemunho da ressurreição, os dons da promessa; neles aprendo a evitar o
pecado e a não me envergonhar da penitência pelas minhas faltas.

177
A MBRÓSIO DE M ILÃO , De virginibus (=PL 16, 187-232).
178
Facit coniugium pactio coniugalis.
179
A MBRÓSIO DE M ILÃO , Explanatio super psalmos (=PL 14, 921-1525; 15, 1261-1604; CSEL 62 e 64).
AMBRÓSIO DE MILÃO 543

11. Que é o salmo senão aquele órgão das virtudes com que o venerável Profeta, ao 2064
ritmo inspirado pelo Espírito Santo, fez ressoar na terra a beleza da harmonia celeste?...
12. Por isso, nos ensinou David que devemos cantar interiormente, entoar salmos 2065
interiormente..., e orientar a nossa vida e actividades para a contemplação das realida-
des celestes, a fim de que o prazer da beleza não excite as paixões do corpo, que
oprimem a alma em vez de a libertar...
SALMO 35

O fim da Lei é Cristo, para a justificação de todo o homem crente, a fim de que 2066
todos acreditemos n’Ele e a Ele adoremos com um amor profundo...
SALMO 36

65. Seja puro o teu coração, seja pura a tua alma, para que possas dar frutos de 2067
bondade, isto é, de graça espiritual. A bondade é, com efeito, o fruto do Espírito
Santo... Esteja sempre no teu coração e na tua boca a meditação da sabedoria, e na tua
língua a proclamação da justiça; leva sempre no teu coração a lei do teu Deus... Fale-
mos, pois, do Senhor Jesus, porque Ele é a sabedoria, Ele é a Palavra, a Palavra de
Deus... N’Ele vive e respira quem repete as suas palavras e medita nos seus pensamen-
tos. Falemos sempre d’Ele. Se falamos da sabedoria, Ele é a Sabedoria; se falamos da
virtude, Ele é a Virtude; se falamos da justiça, Ele é a Justiça; se falamos da paz, Ele é
a Paz; se falamos da verdade, da vida e da redenção, é d’Ele que falamos...
66. Medita e fala sempre das coisas de Deus... Quando estás em casa, fala interiormente 2068
contigo mesmo, como quem julga. Fala quando vais pelo caminho, para não estares
nunca ocioso. Falas pelo caminho, se falas em Cristo, porque Cristo é o Caminho. Pelo
caminho fala a ti mesmo e fala a Cristo... Fala, ó homem, quando te deitas, para que não
te surpreenda o sono da morte... Quando te levantas, fala também d’Ele, para cumprires o
que está mandado...

SALMO 38

25. As coisas que se celebram agora na Igreja estavam como sombra nas palavras dos 2069
Profetas: sombra era o dilúvio, sombra era o mar Vermelho, quando os nossos pais
foram baptizados na nuvem e no mar; sombra era o rochedo donde brotou a água, e que
seguia o povo. Porventura, não era aquilo a sombra do que está no sacramento deste
santíssimo mistério? Não era, porventura, sombra a água que saiu do rochedo, como
sangue de Cristo, que seguia atrás dos povos que fugiam dele, para que bebessem e não
tivessem sede, para que fossem remidos e não perecessem?
Mas já passou a sombra da noite e das trevas dos Judeus, e surgiu o dia da Igreja.
Agora vemos os bens como que em imagens e possuímos os bens da própria imagem.
Vemos que o Príncipe dos sacerdotes vem até nós, vemos e ouvimos como ofereceu o
seu sangue por nós; na medida que podemos, seguimos os sacerdotes, para oferecer-
mos o sacrifício pelo povo; embora débeis quanto aos nossos próprios méritos, so-
mos, no entanto, dignos de honra pelo sacrifício; porque, embora pareça que Cristo
agora não oferece, no entanto, Ele próprio é oferecido na terra, porque Se oferece o
Corpo de Cristo; mais ainda, vê-se que Ele mesmo oferece em nós, pois é a sua palavra
que santifica o sacrifício que se oferece...

SALMO 39

Quando eu esperava, Senhor Jesus, vieste um dia, dirigiste os meus passos 2070
segundo o Evangelho, puseste na minha boca um cântico novo que é o Novo Testamento...
544 SÉCULO IV

SALMO 43

2071 37. Nosso Senhor Jesus Cristo é bom, porque Se fez cordeiro do nosso banquete.
Perguntas como? Ouve o que foi dito: Cristo, nossa Páscoa, foi imolado, e considera
como os nossos pais, quando comiam o cordeiro, significavam a Paixão do Senhor, de
cujo sacramento comemos todos os dias...
SALMO 48

2072 1. Logo no início (do salmo) reconhecemos a voz do Senhor Salvador, que chama os
pagãos à Igreja...
2073 13. Só o homem Cristo Jesus pode salvar o homem, com um amor superior a toda a
piedade fraterna, porque resgatou com o seu sangue os estranhos, o que ninguém pode
fazer por um irmão...
2074 14. Mas, porque é que só Ele pode resgatar? Porque ninguém pode igualar a sua
misericórdia, que O leva a dar a vida pelos seus servos; porque ninguém pode igualar
a sua inocência, pois estamos todos sob o domínio do pecado... Só é escolhido como
redentor aquele que não pode estar sujeito ao pecado original. Assim compreendemos
que o homem de quem se fala é o Senhor Jesus... Cristo Jesus não nos perdoou os
pecados enquanto irmão nosso, mas enquanto Deus que Se fez homem... Deus estava
em Cristo Jesus... Não foi, portanto, um irmão, mas o Senhor que veio habitar entre
nós, fazendo-Se homem.
SALMO 61

2075 1. Os salmos que têm por título para o fim, ou dizem respeito a Cristo, ou são do
próprio Cristo. Dizem respeito a Cristo quando é Ele o anunciado. São do próprio
Cristo quando é Ele que Se anuncia, que promete a sua vinda à terra e Se digna revelar-nos
o que irá sofrer no seu próprio corpo...
SALMO 118

2076 2. Prólogo. Por fim, quando começar a saber mais, deve apresentar a sua oferta
no altar, para que a ignorância do oferente não contamine o mistério da oblação180.

Sobre a morte de seu irmão Sátiro 181

LIVRO I

2077 43. Para quê falar da sua fidelidade no culto de Deus? Antes de ser iniciado nos
mistérios mais perfeitos..., com medo não da morte, mas de sair desta vida privado do
mistério, pediu o divino sacramento dos fiéis àqueles que sabia estarem já iniciados,
não para pôr os seus olhos curiosos nos segredos, mas para obter o auxílio da fé.
Mandou que envolvessem (o divino sacramento) num orárion, que atou ao pescoço, e,
assim, se lançou ao mar, sem qualquer tábua solta do navio que o ajudasse a manter-se à
superfície, pois tinha buscado apenas as armas da fé...

180
Tunc demum suum munus sacris altaribus offerat, cum coeperit esse instructior, ne offerentis inscitia
contaminet oblationis mysterium.
181
A MBRÓSIO DE MILÃO , De excessu fratris Satyri (=PL 16, 1289-1354; CSEL 73).
AMBRÓSIO DE MILÃO 545

44. Tendo sido o primeiro a ser salvo das ondas, foi arrastado para um porto e 2078
reconheceu o seu guia, a quem se tinha confiado. Sem perder um momento, depois de
ter posto a salvo, pessoalmente, os outros seus servidores ou de se ter certificado de
que estavam fora de perigo..., buscou a igreja de Deus, para dar graças por se ver a
salvo e para conhecer os eternos mistérios, dizendo que não há dever mais urgente do
que a acção de graças.
46. Ele, que experimentou tanta protecção do mistério celestial envolvido no orárion, 2079
pensava que lhe aproveitaria muito mais se o tomasse com a boca e bebesse com o mais
íntimo do seu coração...
80. Agora, Deus omnipotente, encomendo-te a alma inocente e ofereço-te o meu 2080
sacrifício182; acolhe, propício e sereno a dádiva fraterna, o sacrifício do sacerdote.

LIVRO II

46. O mundo foi resgatado pela morte de um só. Cristo podia não ter morrido, se 2081
quisesse; mas julgou que não devia fugir à morte, como se fosse inútil; antes, considerou-a
como o melhor meio para nos salvar. A sua morte foi, portanto, a vida de todos.
Recebemos o sinal sacramental da sua morte, anunciamos a sua morte na oração,
proclamamos a sua morte na Eucaristia; a sua morte é vitória, é solenidade anual em
todo o mundo... Não devemos, pois, chorar a morte que é a causa da salvação universal...
132. A nossa alma aspira a sair do estreito círculo desta vida, a libertar-se do peso 2082
deste corpo terreno e a caminhar para aquela assembleia eterna onde só chegam os
santos, para aí cantar o louvor de Deus, como cantam, segundo a leitura profética, os
celestes tocadores da cítara: Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor Deus
omnipotente... A nossa alma deseja partir deste mundo, para contemplar as vossas
núpcias eternas, ó Jesus, nas quais, por entre o cântico jubiloso de todos os eleitos, a
Esposa é acompanhada da terra ao Céu, já não sujeita ao mundo, mas unida ao Espírito.
133. Era isto que o santo David desejava, acima de tudo, contemplar e admirar, quando 2083
dizia: Uma só coisa peço ao Senhor, por ela anseio: habitar na casa do Senhor todos
os dias da minha vida, para viver na alegria do Senhor.

Cartas 183
CARTA 2 184

1. Recebeste o ofício sacerdotal e, sentado à popa da Igreja, governas a barca contra 2084
a fúria das ondas. Segura bem o timão da fé, para que não te inquietem as violentas
tempestades deste mundo. O mar é, sem dúvida, grande e espaçoso, mas não temas:
Ele a fundou sobre os mares e a consolidou sobre as águas.
2. Por isso, a Igreja do Senhor, edificada sobre a pedra apostólica, mantém-se 2085
segura entre os escolhos do mundo e, apoiada em tão sólido fundamento, permanece
firme contra as investidas do mar em tempestade. Vê-se envolvida pelas ondas, mas
não abalada; e embora muitas vezes os elementos deste mundo a sacudam com grande
fragor, ela oferece aos navegantes cansados um porto seguro de salvação, flutua no
mar, mas navega também pelos rios; sobre aqueles rios de que se diz no salmo: Os rios

182
Tibi hostiam meam offero.
183
A MBRÓSIO DE MILÃO , Epistulae (=PL 16, 875-1286; CSEL 82).
184
O encanto da tua palavra inspire confiança ao povo.
546 SÉCULO IV

levantam a sua voz. São os rios que brotam do coração daqueles que bebem da água de
Cristo e receberam o Espírito de Deus. Quando transbordam de graça espiritual, estes
rios levantam a sua voz.
2086 4. Há também um rio que corre para os seus santos como uma torrente. Há um rio
que alegra com as suas águas a alma tranquila e pacífica. Quem receber da plenitude
deste rio, como João Evangelista, Pedro e Paulo, levanta a sua voz; e do mesmo modo
que os Apóstolos difundiram até aos confins da terra a voz da pregação evangélica,
também o que recebe deste rio começará a anunciar o Evangelho do Senhor Jesus.
Recebe também tu da plenitude de Cristo para que se faça ouvir também a tua voz.
Recebe a água de Cristo, essa água que louva o Senhor. Recolhe a água dos numerosos
lugares em que a deixam cair as nuvens dos Profetas.
Quem recolhe a água dos montes ou a tira e bebe das fontes, pode enviar o seu
orvalho como as nuvens. Enche, portanto, o teu coração com esta água, para que a terra
da tua alma seja regada e tenhas a fonte em tua própria casa... Ó Cristo, faz que os teus
ministros recolham a sua água..., que encham o seu espírito com esta água, para que a
sua terra seja regada e vivificada com as suas numerosas nascentes...
2087 5. Quem muito lê e entende, enche-se com aquilo que lê; e quem está cheio pode
irrigar os demais; por isso, diz a Escritura: Se as nuvens estão cheias, derramarão
chuva sobre a terra.
2088 7. As tuas pregações sejam fluentes, puras e claras, de modo que a tua exortação
moral se infunda suavemente no coração dos ouvintes e o encanto da tua palavra inspire
confiança do povo; deste modo ele te seguirá voluntariamente para onde o conduzires.
Os teus discursos estejam cheios de inteligência. Neste sentido diz Salomão: Os
lábios do sábio são as armas da sabedoria; e noutro lugar: O pensamento dirija os
teus lábios, isto é, os teus sermões brilhem pela sua clareza e inteligência, os teus
discursos e as tuas explicações não precisem de sentenças alheias mas sejam capazes
de se defender por si mesmas; enfim, não saia da tua boca nenhuma palavra inútil e sem
sentido.
CARTA 19 185

2089 7. Uma vez que o matrimónio deve ser santificado pelo véu sacerdotal e a bênção,
como pode chamar-se matrimónio onde não há concórdia186.
CARTA 20 187

2090 4. No dia seguinte, que era domingo, depois das leituras e do comentário, despedidos
os catecúmenos188, explicava eu o Símbolo no baptistério da basílica a alguns compe-
tentes. Ali me foi claramente anunciado que tinham sido enviados do palácio decanos
à basílica Porciana, onde suspendiam cortinas, e que parte do povo corria para lá. Mas
eu permaneci no meu ofício e comecei a celebrar a missa189.

185
A Vigílio, bispo de Trento, no ano 385 (PL 16, 984-985).
186
Nam cum ipsum coniugium velamine sacerdotali et benedictione sanctificanti oporteat, quomodo potest
coniugium dici, ubi non est concórdia?
187
Esta carta é dirigida a Marcelina, irmã de Ambrósio de Milão, e foi escrita em 386.
188
Post lectiones atque tractatum, dimissis catechumenis. Beroldo conservou-nos a fórmula de despedida:
Si quis cathecumenus procedat! Si quis Iudaeus procedat! Si quis paganus procedat! Si quis haereticus
procedat! Cuius cura non est procedat! Na diocese de Benevento o texto é o mesmo de Milão, mas com
um acrescento: Si quis cathecumenus procedat! Si quis arianus est, procedat! Si quis haereticus est
procedat! Si quis Iudaeus procedat! Si quis paganus procedat! Cui cura non est procedat.
189
Ego tamen mansi in munere, missam facere coepi. Dum offero... Parece ser esta a primeira vez que a
palavra latina missa é utilizada no seu significado actual de celebração da Eucaristia.
AMBRÓSIO DE MILÃO 547

5. Enquanto oferecia, soube que tinha sido raptado pelo povo um certo Cástulo, a 2091
quem os arianos chamavam presbítero. Tinham-se cruzado com ele, quando passavam
na praça. Comecei a chorar amargamente e a orar a Deus na própria oblação para que
viesse em nossa ajuda...
CARTA 22 190

1. Como é meu costume não deixar que ignores seja o que for do que aqui se passa 2092
na tua ausência, venho dizer-te que encontrámos os corpos dos santos mártires.
2. Depois de fazer a dedicação duma basílica, alguns habitantes vieram ter comigo 2093
todos juntos, para me dizer que fizesse essa celebração com a mesma solenidade com
que fizera a dos Apóstolos, na porta Romana. Respondi: Fá-lo-ei, se encontrar relíquias
de mártires...
3. Deus concedeu-me esta graça... Fiz escavar a terra no lugar que está diante da 2094
cancela dos santos Félix e Nabor. Encontrei sinais indicadores, e, tendo mandado trazer
aqueles a quem devia impor as mãos191, os santos mártires começaram a aparecer. E de tal
modo que, enquanto eu estava ainda em silêncio e antes de começar os exorcismos, se
descobriu uma urna, que virámos no lugar sagrado do seu túmulo. Encontrámos dois
homens de estatura surpreendente, semelhantes aos dos tempos antigos. Todos os
ossos estavam inteiros. Havia ali muito sangue. Veio muita gente nesses dois dias. Para
abreviar, arranjámos todos os ossos segundo a sua ordem e transferimo-los, quase ao
cair da noite, para a basílica de Fausto. Ali, celebrámos vigílias durante toda a noite.
Impus as mãos aos possessos. No dia seguinte transferimo-las para a basílica chamada
Ambrosiana. Durante essa transladação, um cego recuperou a vista. Eis o sermão que
eu fiz ao povo:
4. «... Não é sem razão que muitos deram a esta descoberta dos mártires o nome de 2095
ressurreição... Soubestes, ou melhor, vistes que diversos possessos foram libertados
do Demónio, que vários doentes foram curados dos males que os afligiam, antes de
tocarem nas vestes de que estes santos estavam revestidos... Vedes várias pessoas
curadas apenas pela sombra destes santos corpos. Quantos panos, quantas vestes são
lançadas sobre estas santas relíquias, e, só por lhes tocarem, se tornam grandes remédios?
Toda a gente deseja tocar a ponta do pano que os cobre, e quem lhe toca recebe a saúde.
Graças vos sejam dadas, Senhor Jesus, por nos terdes dado os santos e admiráveis
mártires, num tempo em que a Igreja precisa de maiores protectores...
13. Venham as vítimas triunfais tomar lugar onde Cristo é a vítima. Mas Ele, sobre 2096
o altar, Ele que padeceu por todos; os mártires, debaixo do altar, pois foram remidos
pela sua Paixão. Eu tinha destinado este lugar para minha sepultura, pois é justo que o
bispo repouse onde é seu costume oferecer o sacrifício. Mas decidi ceder a parte
direita do túmulo a estas vítimas sagradas. O martírio dá-lhes o direito de o ocupar.
Encerremos, pois, as suas santas relíquias e coloquemo-las numa capela bem ornada, e,
cheios de confiança, passemos todo este dia em exercícios de piedade».
14. O povo pediu por aclamação que se diferisse até domingo a sepultura dos már- 2097
tires. Por fim, consegui que se fizesse no dia seguinte...

190
Carta dirigida a Marcelina, e que começa assim: «À Senhora minha irmã, mais querida que os meus
olhos, o seu irmão»; cf. DACL 6, 1233-1238 e LMD 70, 141-145.
191
Isto é, os catecúmenos.
548 SÉCULO IV

CARTA 23

2098 1. Calcular o dia solene da Páscoa não é obra de pouca sabedoria. Ajudam-nos a
fazê-lo as Escrituras divinas e a tradição dos nossos antepassados, reunidos no Con-
cílio de Niceia. Entre as coisas verdadeiras da fé, são dignos de admiração os decretos
sobre a solenidade referida... 2. Não é conveniente, irmãos caríssimos, desviarmo-nos
da verdade nem discutir sobre o que sabemos vagamente... 7. O mais importante que
devemos saber é o tempo em que, por todo o mundo, ressoam as orações da noite
santa...
2099 12. Devemos observar não só o dia da Paixão, mas também o da Ressurreição, de
modo que tenhamos um dia de amargura e também um dia de alegria; jejuemos naquele,
saciemo-nos neste. Se acontecer, como será o caso proximamente, que a lua décima-
quarta do primeiro mês caia no Domingo, dado que não devemos jejuar no Domingo
nem antecipar o jejum para a lua décima-terceira, que é sábado, pois o devemos fazer
de modo especial no dia da Paixão, há que diferir a solenidade da Páscoa para outra
semana. 13. É esse o Tríduo sagrado 192... durante o qual Cristo sofreu, repousou e
ressuscitou, acerca do qual está escrito: Destruí este templo e em três dias o reedificarei.
CARTA 41

2100 12. Para a reconciliação, a Igreja tem a água e as lágrimas: a água do baptismo e as
lágrimas da penitência193. E a fé que deplora os pecados maiores, costuma fugir dos
novos. Por isso é que Simão, o fariseu, que não tinha água, também não tinha lágri-
mas... Na verdade, se as tivesse, teria lavado os olhos... E se chegasse a ver, não
duvidaria do seu poder.
2101 15. Beijamos a Cristo com o ósculo da comunhão... 16. Não se trata do ósculo dos
lábios, mas do coração e da alma.
CARTA 51 194

2102 4. Não posso negar, imperador augusto, que tenhas zelo da fé, nem tão pouco que
tenhas temor de Deus. Mas tens também uma natureza impulsiva... 11. Escrevi estas
coisas, não para te confundir, mas para que os exemplos impressionem o rei, e tu
elimines este pecado do teu reino, humilhando a tua alma diante de Deus. És homem e
tens tentações: vence-as. O pecado só se elimina com lágrimas e penitência. Não o
pode fazer um Anjo nem um Arcanjo, mas só o próprio Senhor... 12. Persuado-te,
rogo-te, exorto-te, aviso-te... Vence o Demónio, enquanto ainda tens com que vencê-
lo. Não acrescentes outro pecado ao teu pecado... 13. Se quisesses assistir ao sacrifí-
cio, eu não ousaria oferecê-lo... 14. Para terminar, escrevo com a minha mão aquilo que
só tu lerás... 15. Certamente desejas ser provado por Deus. A cada coisa o seu tempo...
Só oferecerás depois de receberes licença de oferecer, quando a tua oferta for aceite por
Deus. Não me agradaria absolutamente nada gozar da amizade do imperador, por ter
agido segundo a tua vontade, se com isso ofendesse a verdade. Aliás, a simples oração
é um sacrifício... A palavra de Deus diz que Ele antepõe a obediência ao sacrifício... O
justo é aquele que se acusa quando peca, não aquele que se louva a si mesmo... Levei a
carta da tua piedade até ao altar195, coloquei-a no altar, tocá-la-ei com a mão quando
oferecer o sacrifício, para que a tua fé fale na minha voz, como oblação unida à oblação
sacerdotal.
192
Triduum illud sacrum.
193
Ecclesia autem et aquam habet et lachrymas habet; aquam baptismatis, lachrymas paenitentiae.
194
Carta ao imperador Teodósio (=PL 16, 1160-1164). Esta carta é do ano 390.
195
Nessa carta, o imperador dizia a Santo Ambrósio que tinha feito penitência depois da destruição de
Tessalónica.
DÍDIMO, O CEGO 549

Dídimo, o Cego

Sobre a Trindade 1

LIVRO II

12. O Espírito Santo, que é Deus, juntamente com o Pai e o Filho, renova-nos no 2103
baptismo, e do nosso estado de imperfeição nos reintegra na primitiva beleza, enchen-
do-nos com a sua graça, de maneira que já não possamos admitir em nós alguma coisa
que não deva ser desejada. Além disso, livra-nos do pecado e da morte, e de terrenos
que somos, isto é, feitos do pó da terra, torna-nos espirituais, participantes da glória
divina, filhos e herdeiros de Deus Pai, conformes à imagem do Filho, seus irmãos e
herdeiros com Ele, destinados a ser um dia glorificados e a reinar com Ele. Em vez da
terra dá-nos de novo o Céu, abre-nos generosamente as portas do paraíso, honra-nos
mais que aos próprios Anjos; e com as águas divinas do baptismo apaga as alterosas e
inextinguíveis chamas do inferno. Os homens são concebidos duas vezes, uma corpo-
ralmente, outra pelo Espírito divino. Acerca de um e outro nascimento escreveram
muito bem os autores sagrados... A fonte baptismal dá à luz de maneira visível o nosso
corpo visível pelo ministério dos sacerdotes; mas, o Espírito de Deus, invisível a todas
as inteligências, é que baptiza de maneira espiritual em seu próprio nome e regenera
simultaneamente o corpo e a alma, pelo ministério dos Anjos... Quando somos
submersos na piscina (baptismal), por beneplácito de Deus Pai e pela graça do Espí-
rito Santo, somos despidos dos nossos pecados, ao despojarmo-nos do homem velho,
regenerados e selados pelo seu poder real. Quando saímos para fora (da piscina),
somos revestidos de Cristo Salvador, com uma veste incorruptível, igual ao Espírito
Santo, que nos regenerou e marcou com o seu selo... Ninguém, antes de ter sido
regenerado pelo Espírito de Deus, marcado com o selo da santificação e transformado
em templo seu, consegue os dons celestiais, mesmo que seja encontrado sem mancha
no resto da sua vida... Mas os que sofreram o martírio antes do baptismo, ao serem
lavados no seu próprio sangue, foram vivificados pelo Espírito Santo de Deus...
14. Todos vós que tendes sede, vinde beber desta água...2. Chamou água ao Espírito 2104
Santo e aos caudais da sua piscina; no vinho e no leite significou... a comunhão imortal
do Corpo e Sangue do Senhor, que certamente compramos em conjunto com a nossa
renovação, pagando-a com fé e não com dinheiro, mas recebendo-a também como dom
gratuito... Nós, os espirituais, não só vemos e ouvimos, mas somos iluminados gratui-
tamente pelo Espírito Santo e gozamos desses bens, participando do Corpo de Cristo
e provando da fonte imortal.

LIVRO III

21. Celebramos a Páscoa todos os anos e também todos os dias, ou antes, a qualquer 2105
hora3, todas as vezes que participamos do Corpo e do Sangue do Senhor. Sabem-no
todos aqueles que se tornaram dignos do mistério altíssimo e eterno.
1
D ÍDIMO, O C EGO , De Trinitate (=PG 39, 269-992; cf. LH, II). Dídimo pertenceu à escola de Alexandria.
Nasceu por volta do ano 313 e morreu em 398. O tratado Sobre a Trindade foi escrito entre 381 e 392.
2
Is 55, 1.
3
Podia participar-se da Eucaristia a qualquer hora, porque se podia comungar privadamente em casa todas
as vezes que se quisesse.
550 SÉCULO IV

Concílios do século IV 1

Concílio de Elvira (305) 2


2106 1. Decidiu-se3 que a comunhão não deve ser dada, nem mesmo no fim da vida,
àquele que, depois do baptismo salvador, atingida a idade adulta, entrar no templo de
um ídolo para o adorar, porque isso é um crime capital e a maior das maldades.
2107 2. Sacerdotes dos deuses pagãos. Relativamente aos flâmines 4 que depois da fé e
do banho da regeneração sacrificaram aos deuses, uma vez que duplicaram ou triplicaram
o seu crime participando em assassínios5 e em actos de adultério, decidiu-se que não
devem receber a comunhão, nem mesmo no fim da vida.
2108 3. De igual modo, aos flâmines que não sacrificaram aos deuses, mas apenas ofereceram
dádivas, uma vez que se abstiveram dos sacrifícios, decidimos dar-lhes a comunhão no
fim da vida, depois de fazerem a penitência legítima. Mas, se depois de receberem a
penitência, cometerem adultério, nunca mais se lhes deve dar a comunhão, para que
não pareça que escarnecem da comunhão do Senhor.
2109 4. Em relação aos flâmines, se forem catecúmenos e se abstiverem dos sacrifícios,
podem ser admitidos ao baptismo, depois de decorridos três anos.
2110 5. Violências e adultérios. Se uma mulher, dominada pelo ciúme, açoutar a sua
serva, a ponto de ela expirar dentro de três dias em consequência dos ferimentos, e se
houver dúvida se a morte foi voluntária ou casual, tomaram-se as seguintes deliberações:
sendo a morte voluntária, seja admitida à comunhão depois de fazer penitência legíti-
ma durante sete anos; sendo casual, depois de cinco anos. Mas se adoecer dentro
desses prazos, receba a comunhão.
2111 6. Se alguém, usando de sortilégios ou feitiçarias, causar a morte de outrem, dado
que não pode efectuar o seu crime sem idolatria, não seja admitido à comunhão, nem
mesmo no fim da vida.
2112 7. Decidimos não dar a comunhão, nem mesmo no fim da vida, ao fiel que, após
uma falta de adultério e, depois de ter feito penitência durante um tempo determinado,
recair na impureza.
2113 8. As mulheres que, sem motivo, abandonaram os maridos e se uniram a outros não
devem receber a comunhão, nem mesmo no fim da vida.
2114 9. A mulher cristã que tenha abandonado o marido adúltero cristão para desposar
outro, deve ser proibida de o fazer; mas se, apesar de avisada, se desposar, será
privada da comunhão enquanto for vivo o marido abandonado, salvo se a urgência da
doença obrigar a que lhe seja dada a comunhão.

1
Concílios do século IV (=PL 56, 359-898; CCL 149; M ANSI , II, 5-19. 569-570 e III; V IVES, Barcelona-
Madrid 1963; B RUNS, I e II; C. H. T URNER , Ecclesiae Occidentalis monumenta iuris antiquissima, 1/II/III,
Oxford 1930; SCh 241; F ORTUNATO DE A LMEIDA , vol. IV, 9-21; C. VOGEL , Paris 1966, 177-187. 189).
2
Concílio de Elvira (=PL 56, 359-898; M ANSI II, 5-19; B RUNS , I; V IVES , Barcelona-Madrid 1963; SCh 241;
CSEL 65; A LBERICO , Decisioni dei Concili Ecumenici, Torino 1978; FORTUNATO DE ALMEIDA , vol. IV, 9-21;
C. V OGEL , Paris 1966, 177-187. 189).
3
No ano 305 reuniu-se em Elvira ou Elíberi (Granada), no sul da Espanha, um Concílio, em que tomaram
parte 19 bispos e 24 presbíteros. Entre eles estiveram Vicente, bispo de Ossónoba, Quintiano, bispo
Elborense e Restituto, presbítero de Épora (sic). Os cânones aprovados permitem-nos imaginar as
dificuldades da vida cristã de então, alguns anos antes da paz ser concedida à Igreja, e informam-nos, de
maneira muito precisa, sobre a disciplina penitencial nesse país e nessa época.
4
Sacerdotes pagãos.
5
Por organizarem os jogos sangrentos do circo.
CONCÍLIOS 551

10. Se uma mulher, abandonada pelo catecúmeno, contrair matrimónio com outro 2115
homem, pode ser admitida ao baptismo; o mesmo se deve observar em relação às
mulheres que, no estado de catecúmenas, abandonaram os respectivos maridos. Se uma
cristã desposa aquele que abandonou a esposa inocente, sabendo que ele tem mulher
que abandonou sem motivo, só no fim da vida poderá ser admitida à comunhão.
11. Se dentro do prazo de cinco anos a mulher catecúmena adoecer gravemente, deve 2116
ser-lhe dado e não recusado o baptismo.
12. A mãe, parente ou qualquer fiel que exercer o lenocínio6, dado que vende o corpo 2117
alheio ou antes o próprio, nem mesmo no fim da vida receberá a comunhão.
13. As donzelas. As virgens que, tendo-se consagrado a Deus, perderem a virgindade 2118
e se entregarem à luxúria e não quiserem reconhecer a sua falta, decidimos não lhes dar
a comunhão nem mesmo no fim da vida. Mas, se tiverem prevaricado uma só vez, por
fragilidade ou sedução, e passarem toda a vida em penitência, abstendo-se doravante
de toda a relação sexual, deverão ser admitidas à comunhão no fim da vida, pois trata-se
mais de uma queda do que de uma corrupção total.
14. As donzelas que tiverem perdido a virgindade, se vierem a ter como maridos os 2119
indivíduos que as violaram, deverão ser reconciliadas ao fim de um ano, sem passar
pela penitência, pois apenas violaram a lei do matrimónio. Mas, se tiverem conhecido
outros homens, diferentes do violador, uma vez que cometeram adultério, decidimos
admiti-las à comunhão só no fim de cinco anos, depois de terem cumprido a penitência
legítima.
15. Por maior que seja o número das donzelas, nunca as virgens cristãs deverão ser 2120
dadas como esposas aos gentios, para não se correr o risco de essas jovens em flor
caírem no adultério da alma.
16. Se os hereges recusarem converter-se à Igreja católica, não lhes devem ser dadas 2121
como esposas donzelas católicas, como igualmente se devem recusar aos Judeus, visto
que não pode haver nenhuma convivência entre o fiel e o infiel. Aos pais que procederem
contra esta proibição deverá recusar-se a comunhão durante cinco anos.
17. Decidimos que aos cristãos que dão as suas filhas em casamento a sacerdotes dos 2122
ídolos, nem mesmo no fim da vida se lhes deve dar a comunhão.
18. Os membros do clero. Os bispos, presbíteros e diáconos não devem ausentar-se 2123
das respectivas residências para exercer o comércio, nem devem percorrer as províncias
atraídos pelo lucro dos feirantes. Se disso carecerem para sua subsistência, mandem
um filho, um liberto, um mercenário, um amigo ou qualquer outra pessoa. Se quiserem
dedicar-se ao comércio, façam-no dentro da própria província.
19. Se vier a descobrir-se que algum bispo, presbítero ou diácono, quando constituído 2124
no seu ministério, cometeu adultério, decidimos, por causa do escândalo e do enorme
crime, que nem sequer no fim da vida deve receber a comunhão.
20. Se vier a descobrir-se que algum clérigo exerce a usura, decidimos depô-lo das 2125
ordens e excluí-lo da comunhão. Se for um leigo nas mesmas condições, e prometer
emendar-se e abster-se completamente da usura, decidimos perdoar-lhe; mas, se per-
severar na sua iniquidade, deve ser rejeitado da Igreja.
21. Se algum morador da cidade não vier à igreja em três domingos 7, deverá ser 2126
privado da comunhão por algum tempo, para que tome emenda.
22. Se um católico passar à heresia e quiser de novo voltar à Igreja católica, decidi- 2127
mos que não se lhe deve negar a penitência, dado que reconhece o seu pecado. Fará

6
Acto criminoso de provocar ou facilitar a corrupção ou a devassidão.
7
Domingos consecutivos.
552 SÉCULO IV

penitência durante dez anos e depois receberá a comunhão. No caso de se tratar de


crianças, devem ser acolhidas imediatamente, uma vez que não pecaram por culpa própria.
2128 23. Decidimos estabelecer jejuns prolongados em cada mês, excepto nos dias dos
dois meses de Julho e Agosto, em atenção à debilidade de alguns.
2129 24. Todos os que receberam o baptismo fora da terra em que residem, e cuja vida por
isso não é conhecida, não deverão ser promovidos a clérigos, em províncias diversas da
sua própria.
2130 25. Todo aquele que entrega uma carta de confissão, deverá receber uma carta de
comunhão, da qual se apagará o nome de confessor, porque muitas pessoas simples
são enganadas pela dignidade deste título.
2131 26. Decidimos corrigir o erro contrário e observar um jejum rigoroso todos os sábados.
2132 27. O bispo ou qualquer outro clérigo apenas poderá conservar na sua companhia uma
irmã ou uma filha virgem consagrada a Deus, mas nunca uma mulher estranha (à família).
2133 28. Decidimos que o bispo não deve receber nenhuma oferenda daquele que não
comunga8.
2134 29. A respeito do energúmeno9 atormentado por um espírito vagabundo, decidimos
que não deve recitar-se o seu nome junto do altar ao apresentar as oferendas, nem se
deve permitir que, por sua mão, exerça qualquer ministério na Igreja.
2135 30. Os jovens. Não devem ser ordenados subdiáconos aqueles que, na adolescência,
cometeram adultério, pois há o perigo de, mais tarde, sub-repticiamente, serem pro-
movidos a um grau mais elevado. Se alguns tiverem sido ordenados em tais condições,
sejam depostos.
2136 31. A respeito dos adolescentes que, após o baptismo, tiverem tido relações ilegítimas,
decidimos admiti-los à comunhão depois de terem casado e de terem cumprido a
penitência legítima.
2137 32. Se alguém tiver cometido uma falta mortal, decidimos que não deverá ser admitido à
penitência por um presbítero, mas sim pelo bispo. Todavia, em caso de enfermidade,
o presbítero deve dar-lhe a comunhão, ou o diácono, por ordem do sacerdote10.
2138 33. Decidimos proibir absolutamente aos bispos, presbíteros, diáconos e a todos os
clérigos que exerçam um ministério, terem relações conjugais com as suas esposas e
gerarem filhos. O que proceder em contrário deverá ser deposto da dignidade clerical.
2139 34. Questões de culto e de disciplina. Durante o dia não devem estar acesas no
cemitério velas de cera, porque não devem inquietar-se os espíritos dos mortos. O que
não observar este preceito seja afastado da comunhão da Igreja.
2140 35. Decidimos proibir que as mulheres passem a noite no cemitério, para evitar que
muitas vezes, a pretexto da oração, cometam enormidades às escondidas.
2141 36. Decidimos que não deve haver pinturas na igreja. Aquele que nós honramos e
adoramos não deve ser pintado nas paredes.
2142 37. Decidimos que os perseguidos por espíritos impuros podem ser baptizados ao
chegarem à hora da morte. Se forem fiéis, deve dar-se-lhes a comunhão. Mas devem ser
proibidos de acender velas publicamente11. Se quiserem proceder contra esta proibição,
sejam privados da comunhão.
2143 38. Durante uma viagem de barco, ou se a igreja estiver longe, um fiel que tenha o seu
baptismo íntegro e que não seja bígamo, pode baptizar um catecúmeno gravemente

8
Episcopum placuit ab eo qui non communicat munus accipere non debere.
9
Pessoa dominada por uma obsessão.
10
Bispo.
11
Na igreja.
CONCÍLIOS 553

enfermo; mas, se ele sobreviver, deverá ser levado ao bispo, a fim de obter o que falta12
pela imposição das mãos.
39. Decidimos que os gentios gravemente enfermos que desejarem receber a imposição 2144
das mãos poderão ser admitidos e ser feitos cristãos13, se a sua vida passada puder
considerar-se honesta.
40. Quando os proprietários recolhem as rendas que lhes são devidas, nunca deverão 2145
aceitar qualquer objecto oferecido aos ídolos; se alguém o fizer, seja afastado da comu-
nhão pelo espaço de cinco anos.
41. Os fiéis devem ser admoestados para que, tanto quanto lhes seja possível, obstem a 2146
que nas suas casas se conservem ídolos; no caso de temerem violência por parte dos
servos, ao menos conservem-se a si próprios isentos de idolatria. Os que assim não
procederem deverão ser tidos como alheios à Igreja.
42. Aqueles que começam a crer, se a sua conversão for sincera, deverão ser admitidos 2147
ao baptismo dentro de dois anos, salvo se a enfermidade ou o perigo iminente obrigar
a que se antecipe o socorro aos que pedem a graça.
43. Decidimos reformar, pela autoridade das Escrituras, um mau hábito: celebraremos 2148
todos o Pentecostes não no quadragésimo, mas sim no quinquagésimo dia depois da
Páscoa. Quem assim não proceder, será suspeito de querer introduzir uma nova heresia.
44. A meretriz que o foi por algum tempo, mas depois começou a ter marido, se vier 2149
à fé, deverá ser recebida sem demora.
45. Catecumenado e baptismo. Àquele que no passado se tornou catecúmeno, mas 2150
que há muito tempo deixou de vir à igreja, se algum clérigo o reconhecer como cristão,
ou se algumas testemunhas fiéis abonarem a seu respeito, decidimos que não deve ser-
-lhe recusado o baptismo, porque depôs outrora o «homem velho».
46. Se algum fiel apostatar, deixando de frequentar a igreja por muito tempo, mas 2151
posteriormente regressar, sem que tenha cometido idolatria, decidimos que poderá
receber a comunhão ao fim de dez anos.
47. O fiel que, tendo mulher, tiver cometido adultério, não uma mas muitas vezes, 2152
deve ser interpelado seriamente ao chegar à hora da morte. Se prometer emenda, dê-se-lhe
a comunhão. Se recuperar a saúde e voltar a cometer adultério, decidimos que não mais
deverá ser admitido à comunhão da paz, para não se rir.
48. Decidimos emendar o uso estabelecido de os neófitos lançarem dinheiro dentro 2153
da concha do baptistério, a fim de não parecer que o sacerdote 14 recebe um preço pelo
sacramento que recebeu gratuitamente. Os pés dos neófitos não devem ser lavados
nem pelos sacerdotes nem pelos clérigos.
49. Os proprietários 15 devem ser admoestados, a fim de não tolerarem que os Judeus 2154
lhes benzam os frutos, recebidos da liberalidade de Deus, para que a nossa bênção não
se torne nula ou de pouco valor. Aquele que, depois desta proibição, continuar a fazer
o mesmo, seja totalmente afastado da Igreja.
50. Se algum clérigo ou fiel tomar refeição em companhia de Judeus, decidimos que 2155
deverá ser privado da comunhão, para que se emende.
51. Os fiéis que se tiverem convertido de qualquer heresia não devem ser promovidos a 2156
clérigos. Se tiverem sido ordenados anteriormente, serão depostos sem hesitação.
52. Aqueles que afixam nas igrejas escritos satíricos sejam excomungados. 2157

12
Perfici possit.
13
Pelo baptismo.
14
Bispo.
15
Cristãos.
554 SÉCULO IV

2158 53. Todos os Padres decidiram que o excomungado só pode ser readmitido à comu-
nhão pelo bispo que o condenou. Por isso, se um outro bispo ousar admiti-lo, sem que
o faça ou consinta aquele que o havia privado da comunhão, saiba que terá de prestar
contas do seu procedimento perante os irmãos no episcopado, e com risco da sua
própria situação.
2159 54. Problemas de família. Se os pais faltarem à fé dos esponsais, sejam privados da
comunhão pelo período de três anos. Contudo, se o próprio esposo ou esposa16 se
tornar réu de crime grave, os pais serão desculpados. Se os futuros17 tiverem pecado
juntos, observe-se a disposição acima18.
2160 55. A respeito dos sacerdotes gentios que apenas trazem coroa, mas não sacrificam
nem contribuem com os seus haveres para os sacrifícios idolátricos, decidimos que
poderão ser admitidos à comunhão no fim de dois anos.
2161 56. Ao magistrado, durante o ano em que exerce o duumvirato, deve ser proibida a
entrada na igreja.
2162 57. As matronas ou seus maridos não devem emprestar vestidos seus para servirem
em cortejos profanos; e, se o fizerem, sejam privados da comunhão durante três anos.
2163 58. Em toda a parte, e especialmente onde está constituída a primeira cátedra do
Episcopado, devem ser interrogados os que apresentam cartas de comunhão, para
averiguar da sua inteira ortodoxia.
2164 59. Deve proibir-se a todo o cristão ou gentio19 o subir até junto do ídolo do Capitólio
no intuito de sacrificar ou (simplesmente para) ver. Se algum deles o fizer, deve ser
considerado culpado do mesmo crime. Se for fiel, só será readmitido à comunhão,
depois de fazer penitência durante dez anos.
2165 60. Derrubar os ídolos. Não será recebido no número dos mártires aquele que for
morto na ocasião em que está a destruir os ídolos, visto que tal procedimento nem está
preceituado no Evangelho nem consta pela tradição que se adoptasse no tempo dos
Apóstolos.
2166 61. Se o viúvo casar com a irmã da sua primeira mulher e a segunda esposa for crente,
seja separado da comunhão durante cinco anos; a não ser que sobrevenha uma enfermidade
grave, que obrigue a dar-lhe a paz em mais breve prazo.
2167 62. Se um cocheiro de circo ou comediante quiser converter-se, deverá renunciar
prévia e definitivamente ao exercício da sua profissão, e só então será recebido. Se,
contra esta interdição, retomarem as actividades, sejam excluídos da Igreja.
2168 63. Se a mulher, na ausência do marido, conceber em virtude de adultério e depois
matar o filho, nem no fim da vida lhe poderá ser dada a comunhão, porque cometeu um
duplo crime.
2169 64. Se uma mulher viveu em adultério até ao fim da vida com o marido de outra, nem
então lhe será concedida a comunhão. Mas, se abandonar essas relações, será admitida
à comunhão no fim de dez anos, depois de efectuada a devida penitência.
2170 65. Se a mulher de um clérigo cometer adultério e o marido, conhecendo o facto, se
não divorciar dela imediatamente, não será admitido à comunhão nem sequer no fim da
vida, para que não pareça que o ensinamento do delito vem daqueles que devem dar o
exemplo de vida honesta.
2171 66. Se alguém casar com a sua enteada, o que é um incesto, nem no fim da vida lhe
deverá ser dada a comunhão.
16
Os noivos ligados pelo contrato dos esponsais.
17
Futuros esposos.
18
Isto é, os pais não poderão romper os esponsais.
19
Subentende-se já catecúmeno.
CONCÍLIOS 555

67. Deve proibir-se tanto às mulheres fiéis como às catecúmenas casarem-se com 2172
maridos de grande cabeleira ou fresadores de cabelo. As que fizerem isso sejam afastadas
da comunhão.
68. A catecúmena que, tendo concebido por adultério, estrangular o filho, só no fim 2173
da vida poderá ser admitida a receber o baptismo.
69. Se acontecer que alguém, tendo esposa, cair uma vez em adultério, deverá ser 2174
reconciliado depois de por tal motivo fazer penitência durante cinco anos, podendo
antecipar-se a reconciliação no caso de enfermidade grave. O mesmo se deve observar
em relação à mulher casada.
70. Se a mulher se entregar ao adultério com conhecimento e cumplicidade do marido, 2175
decidimos que este nem no fim da vida será admitido à comunhão; mas, se abandonar
a adúltera, poderá ser admitido à comunhão no fim de dez anos.
71. Os sedutores de meninos nem no fim da vida devem ser admitidos à comunhão. 2176
72. Se uma viúva tiver relações ilícitas com um homem e posteriormente o receber 2177
como marido, será admitida à comunhão depois de fazer a devida penitência por
espaço de cinco anos; mas, se, abandonando o cúmplice, casar com um outro, nem no
fim da vida lhe deverá ser dada a comunhão. Se aquele que ela recebeu for baptizado, só
no fim de dez anos e feita a devida penitência, poderá ser admitido à comunhão, salvo
se a enfermidade aconselhar a dar-lhe a comunhão mais depressa.
73. Delatores e testemunhas falsas. Se o delator for baptizado e, em virtude da sua 2178
denúncia alguém tiver sido proscrito ou morto, nem no fim da vida pode ser admitido
à comunhão. Se a delação tiver consequências menos graves, poderá receber a comu-
nhão no fim de cinco anos. Se o delator for catecúmeno, será admitido ao baptismo
somente no fim de cinco anos.
74. A testemunha falsa será privada da comunhão por mais ou menos tempo, segun- 2179
do a importância do crime. Se a acusação que fez não é punida com a pena capital, e o
demonstrou, seja privada da comunhão por dois anos, por não se ter calado. Mas, se
não fizer prova diante da assembleia dos clérigos, seja privado da comunhão por cinco anos.
75. O que fizer falsas acusações contra um bispo, um presbítero ou um diácono e 2180
não as puder provar, não será admitido à comunhão nem no fim da vida.
76. A propósito daquele que conseguir fazer-se ordenar diácono e em seguida se vier 2181
a descobrir que, antes da ordenação, cometera um crime de morte, decidimos o que se
segue: se ele o confessar espontaneamente, seja admitido à comunhão (de leigo), de-
pois de feita a devida penitência durante três anos. Mas, se o crime tiver sido desco-
berto por outrem, só será admitido à comunhão de leigo depois de efectuada a devida
penitência durante cinco anos.
77. Se o diácono que administra uma comunidade (rural) tiver baptizado algumas 2182
pessoas sem a intervenção do bispo ou do presbítero, o bispo deverá perfazer (o
baptismo) pela (sua) bênção. Se alguém sair do mundo antes (da bênção episcopal),
poderá ser (considerada) justa20, em virtude da fé em que acreditou.
78. Se algum fiel que tiver esposa cometer adultério com uma judia ou uma gentia, 2183
seja excluído da comunhão. Se for denunciado por outro, poderá ser admitido à comu-
nhão do Senhor, depois de efectuada a devida penitência durante cinco anos.
79. O jogo. Se algum fiel jogar a dinheiro jogos de azar, decidimos que seja privado 2184
da comunhão; se não recomeçar e se corrigir, poderá ser readmitido à comunhão,
decorrido um ano.
80. Deve proibir-se que os libertos sejam promovidos a clérigos, enquanto forem 2185
vivos os seus patronos (pagãos).
20
Salva, justificada.
556 SÉCULO IV

2186 81. As mulheres não ousem escrever aos leigos em seu nome exclusivo, sem mencionarem
os nomes dos maridos; e as que forem fiéis não devem receber cartas de ninguém, que
venham dirigidas apenas ao seu nome.

Concílio de Arles (314) 21


2187 Cânones enviados ao Papa Silvestre. Ao nosso senhor e santíssimo irmão Sil-
vestre, a assembleia dos bispos reunidos na cidade de Arles.
Levamos ao teu conhecimento o que decidimos de comum acordo, para que
todos os outros bispos saibam o que devem observar no futuro.
2188 1. Em primeiro lugar, quanto à observância da Páscoa do Senhor: seja observada
por nós no mundo inteiro, no mesmo dia e ao mesmo tempo, e que tu dirijas cartas a
todos como é costume.
2189 2. Os que foram ordenados ministros nalgum lugar permaneçam nesse lugar.
2190 3. Foi decidido que os que deitam fora as armas em tempo de paz sejam privados da
comunhão22.
2191 4. Quanto aos cocheiros que são fiéis, foi decidido que, enquanto exercerem esse
ofício, sejam excluídos da comunhão.
2192 5. Também foi decidido que as pessoas do teatro, enquanto representarem, sejam
excluídas da comunhão.
2193 6. Quanto àqueles que, durante a doença, quiserem converter-se, foi decidido que
se devia impor-lhes as mãos23.
2194 7. A respeito dos governadores que são eleitos para esse cargo depois de serem
baptizados, decidimos dar-lhes cartas de recomendação para o bispo da região confiada
a cada um deles, para que ele os vigie: se o governador cometer injustiças, o bispo
excluí-lo-á da comunhão.
2195 8. Proceder-se-á do mesmo modo a respeito das autoridades municipais.
2196 9. A propósito dos africanos que praticam a regra que lhes é própria de repetir o
baptismo, foi decidido que, se alguém passar da heresia para a Igreja, seja interrogado
sobre o Símbolo; se não houver dúvida de que ele foi baptizado no Pai e no Filho e no
Espírito Santo, sejam-lhe apenas impostas as mãos, para que receba o Espírito Santo;
mas, se, ao ser interrogado sobre o Símbolo, ele não responder com a proclamação
desta Trindade, seja baptizado.
2197 10. Quanto àqueles que trazem cartas de confessores, foi decidido que se lhes reti-
rem essas cartas e recebam outras, de comunhão.
2198 12. Foi decidido que as jovens fiéis que se casam com pagãos sejam afastadas da
comunhão durante um certo tempo.
2199 13. Foi decidido que, de acordo com a regra dada por Deus, os clérigos que emprestam
dinheiro com juros sejam excluídos da comunhão.
2200 15. Quanto aos que inventam acusações mentirosas contra os seus irmãos, foi decidido
que sejam privados da comunhão até ao fim da vida.

21
Concílio de Arles (=CCL 148; SCh 241, Concílios gauleses do século IV).
22
Arma proicere. O sentido deste cânone tem sido objecto de muitas discussões e de variadíssimas propostas
de correcção do texto. Se não fizermos caso dessas correcções arbitrárias, forçoso é concluir que o concílio
de Arles condena a recusa do serviço militar.
23
Para os fazer catecúmenos.
CONCÍLIOS 557

16. Quanto aos diáconos, dos quais ouvimos dizer que, em muitos lugares, oferecem 2201
(o sacrifício), foi decidido que isso não deve ser feito de modo algum.
17. Quanto aos que, em razão da sua falta, forem excluídos da comunhão, foi decidido 2202
que no lugar onde foram excluídos é que devem ser readmitidos, e que nenhum bispo
deve invadir os direitos de outro bispo.
18. Quanto aos diáconos da cidade, não devem ter tantas pretensões, mas observar 2203
o respeito devido aos presbíteros, de modo a não fazerem nada sem o seu conhecimento.
20. Quanto àqueles que pretendem ter o direito de ordenar sozinhos um bispo, foi 2204
decidido que ninguém se arrogue um tal direito, mas que o faça somente depois de ter
associado a si sete bispos; contudo, se não puder reunir sete, que ninguém tenha a
ousadia de ordenar sem pelo menos três.
21. Quanto aos presbíteros e aos diáconos que muitas vezes abandonam os lugares 2205
em que foram ordenados para fixar residência noutros lugares, foi decidido que eles
devem exercer o seu ministério nos lugares que lhes pertencem; se abandonarem o lugar
que é o seu e quiserem ir fixar-se noutro lugar, sejam depostos.
22. Quanto àqueles que negam a fé e nunca mais se apresentam à Igreja nem pedem 2206
para fazer penitência e que, em seguida, forçados pela doença, pedem a comunhão, foi
decidido não lha dar, a não ser que, depois de recuperarem a saúde, produzam dignos
frutos de penitência.

I Concílio de Niceia (325) 24


1. Se alguém tiver sido mutilado pelos médicos por causa duma enfermidade ou por 2207
ter sido maltratado pelos bárbaros, pode permanecer no clero. Mas, se alguém, sendo
são, se castrou, quando já pertencia ao clero, seja excluído, e daqui em diante ninguém
que tenha feito isso seja ordenado. É evidente que o que se disse se refere aos que
deliberadamente fazem isto ou se atrevem a mutilar-se; se alguém fosse castrado pelos
bárbaros ou pelos próprios amos, mas fosse digno sob os outros aspectos, os cânones
admitem-no no clero.
2. Dado que alguns homens, há pouco chegados do paganismo à fé, depois de 2208
instruídos com brevidade foram admitidos ao baptismo e ao mesmo tempo promovidos ao
episcopado e ao presbiterado, pareceu bem que, no futuro, não volte a fazer-se tal
coisa. É preciso que quem está a ser catequizado seja submetido a provas prolongadas
depois do baptismo...
3. Este grande Concílio proíbe absolutamente aos bispos, aos presbíteros e aos 2209
diáconos e em geral a qualquer membro do clero, que vivam em companhia de mulheres,
a não ser que se trate da própria mãe, de uma irmã, de uma tia ou de pessoas que
estejam acima de toda a suspeita25.
4. É muito conveniente que o bispo seja estabelecido por todos os bispos da pro- 2210
víncia. Mas, se isto for difícil, quer por premente necessidade ou pela distância do

24
I Concílio de Niceia (=PL 56, 359-898; 84, 93-104; M ANSI II; BRUNS , I; CSEL 65; A LBERICO , Decisioni dei
Concili Ecumenici, Torino 1978; C. V OGEL , Paris 1966, 189). O I Concílio de Niceia, também chamado o
Concílio dos 318 Padres, foi convocado pelo imperador Constantino e condenou principalmente os Arianos.
Foi inaugurado a 19 de Junho de 325 e terminou a 25 de Agosto de 325. Conservam-se apenas a sua
confissão de fé, vinte cânones e uma carta sinodal.
25
Nota: Sócrates, o historiador grego da Igreja, relata que o Concílio de Niceia quis introduzir o celibato dos
bispos, dos presbíteros e dos diáconos, mas desistiu disso, quando o bispo confessor Pafnúcio insistiu em
que não se lhes impusesse um jugo demasiadamente pesado.
558 SÉCULO IV

caminho, reúnam-se necessariamente três, e todos os ausentes dêem o seu consentimento


por meio de cartas, e então imponham-lhe as mãos, mas a validade de todo o acto há-
-de atribuir-se, em cada província, ao metropolita26.
2211 5. Quanto aos excomungados, eclesiásticos ou leigos, a sentença do bispo de cada
província tenha força de lei..., e seja respeitada a norma segundo a qual quem tiver sido
separado por algum bispo não seja acolhido por nenhum outro na comunhão da sua
Igreja... Mas, para que este ponto seja objecto da devida consideração, pareceu bem
que, duas vezes por ano, em cada província, se realizem sínodos para examinar as
excomunhões... Um destes sínodos terá lugar antes da Quaresma...
2212 6. Mantenham-se os antigos costumes pelos quais o bispo de Alexandria tinha
autoridade nas províncias do Egipto, da Líbia e da Pentápole. Semelhante autoridade
também é reconhecida ao bispo de Roma e ao de Antioquia... Fique também claro que,
se alguém foi feito bispo sem o consentimento do metropolita, essa ordenação é inválida.
2213 7. Segundo tradição antiga, o bispo de Jerusalém (Aeliae) deve receber honra parti-
cular, mas sem prejuízo da dignidade própria da metrópole...
2214 8. Acerca dos que antes se chamavam a si mesmos cátaros27, mas que se aproximam
da Igreja católica e apostólica, agradou ao santo e grande Concílio que, depois de
receberem a imposição das mãos, permaneçam no clero; mas, antes de tudo, convém
que confessem por escrito que aceitarão e seguirão os decretos da Igreja católica e
apostólica, isto é, que permanecerão em comunhão com os desposados em segundas
núpcias e com os que caíram na perseguição28...
2215 9. Se alguém foi feito presbítero sem exame prévio, ou se, examinado, confessou
faltas, mas, contra as disposições dos cânones, recebeu a imposição das mãos, a lei
eclesiástica não o reconhece; a Igreja católica quer homens irrepreensíveis.
2216 10. Se alguns daqueles que renegaram a fé cristã tiverem sido eleitos sacerdotes, quer
por ignorância, quer por simulação daqueles que os escolheram, isso não invalida a
disciplina eclesiástica: uma vez descobertos, serão imediatamente depostos.
2217 11. Este santo Concílio impõe doze anos de penitência aos que abandonem a fé sem
ser forçados: três anos como audientes, sete como substrati, e dois entre os orantes,
mas sem poderem participar na oblação.
2218 12. Este santo Concílio castiga com treze anos de penitência os que apostataram
para obter certos cargos: três anos como auditores, dez como prostati. Mas, se a sua
atitude de conversão for sincera, uma vez passados os três anos entre os audientes,
podem ser admitidos entre os orantes, com prévia autorização do bispo. O bispo pode
mesmo levar a sua indulgência até mais longe, admitindo-os à comunhão. Mas, aqueles
que se submetem com indiferença à disciplina penitencial, aceitando com indiferença
as formalidades requeridas, terão que cumprir todo o tempo fixado.
2219 13. No que se refere aos moribundos, deve continuar a observar-se a antiga regra
canónica, isto é, que em perigo de morte ninguém seja privado do último e indispensável
viático29. Mas, se o doente, depois de ter sido perdoado e admitido à comunhão
recuperar a saúde, tomará lugar entre aqueles que só participam na oração. Mas de
modo geral e acerca de qualquer pessoa que esteja para morrer, se pedir para participar
na Eucaristia, o bispo, após exame prévio e necessário, deve dar-lha30.

26
e) p i/ s kopon prosh/ k ei ma/ l ista me\ n u( p o\ pa/ n twn tw= n e) n t$= e) p arxi/ # kaqi/ s tasqai ei) de\ dusxere\ j ei) / h
to\ toiou= t o..., e) c a/ p antoj trei= j e) p i\ to\ au) t o\ sunaxome/ n ouj..., to/ t e th\ n xeirotoni/ a n poiei/ s qai.
27
Puros.
28
Os lapsi.
29
e) f o/ d ion.
30
Outra versão: «torne-o participante da oferenda».
CONCÍLIOS 559

14. Os catecúmenos lapsi devem permanecer três anos entre os audientes e, depois 2220
deste tempo, poderão tomar parte na oração com os outros catecúmenos...
15. Deve ser absolutamente proibido que os bispos, os presbíteros e os diáconos 2221
sejam transferidos de uma Igreja para outra, para corrigir o abuso de se passar das mais
pobres para as mais ricas...
16. Os que se retiram da Igreja na qual são sacerdotes ou diáconos ou exercem qualquer 2222
outro cargo clerical, não devem ser admitidos noutra Igreja, mas, se pretenderem isso,
impor-se-lhes-á a obrigação de voltar à sua diocese, sob pena de exclusão da comunhão...
17. Se algum clérigo se tornar usurário e avarento, seja de que modo for..., deve ser 2223
irradiado do clero e considerado estranho à regra.
18. Chegou ao conhecimento do santo e grande Concílio que nalguns lugares e cida- 2224
des os diáconos dão a Eucaristia aos presbíteros, o que não foi transmitido nem pela
regra canónica, nem pelo costume, ou seja, que os que não têm poder de oferecer dêem
o Corpo de Cristo aos que oferecem. E também tivemos conhecimento de que alguns
diáconos tocam na Eucaristia mesmo antes dos bispos. Estas coisas devem ser suprimidas.
Tudo isso deve ser eliminado. Os diáconos permaneçam nos seus próprios limites,
considerando que são ministros do bispo e inferiores aos presbíteros. Recebam a
Eucaristia, como o exige a ordem, depois dos sacerdotes e pelas mãos do bispo ou do
presbítero. Também não é lícito aos diáconos sentar-se no meio dos presbíteros, o que
é contra os cânones e contra a ordem. Se algum, mesmo depois destas prescrições, não
quiser obedecer, seja suspenso do diaconado.
19. Quanto aos paulianistas que querem passar para a Igreja católica, devem ser 2225
rebaptizados, sem qualquer dúvida; e, se alguns, no passado, pertenceram ao clero e
parecerem sem erro (de doutrina) e (de vida) irrepreensível, depois de rebaptizados
sejam-lhes impostas as mãos pelo bispo da Igreja católica... Quanto às diaconisas em
particular, recordamos que, por não terem recebido nenhuma imposição das mãos,
devem ser contadas sem mais entre as pessoas leigas.
20. Como há algumas pessoas que nos domingos e nos dias do Pentecostes se ajoe- 2226
lham, a fim de se chegar à uniformidade pareceu bem a este santo Concílio que as
orações a Deus se façam de pé.
DECRETO PASCAL DE NICEIA

Foi decidido o que pareceu bem a todos os que se reuniram no santo Sínodo, nos 2227
dias do piedoso e grande imperador Constantino. Este, não só reuniu na unidade os
bispos acima mencionados, procurando a paz para a nossa gente, mas também, parti-
cipando nas suas reuniões, discutiu com eles sobre aquilo que era útil para a Igreja
católica. Examinou-se o problema da necessidade de toda a Igreja que há debaixo do céu
celebrar a Páscoa com unanimidade e descobriu-se que três partes do mundo agiam de
acordo com os Romanos e os Alexandrinos e que uma só região, o Oriente, estava em
desacordo. Decidiu-se então que, posta de parte toda a contestação e contradição,
mesmo os irmãos do Oriente fizessem como os Romanos, os Alexandrinos e todos os
outros, de modo que todos, unanimemente, no mesmo dia, elevassem as suas orações
no santo dia da Páscoa. Todos os orientais, que estavam em desacordo com os outros,
subscreveram.
560 SÉCULO IV

Sínodo de Sérdica (343) 31


2228 3. O bispo Ósio disse: «Nenhum bispo deve passar da sua província para outra,
onde há bispos, a não ser que seja convidado pelos seus irmãos, para não parecer que
fechamos a porta à caridade. Também há-de prever-se isto: Se acaso nalguma província
um bispo tiver litígio contra outro bispo seu irmão, nenhum deles chame como árbitros
bispos de outra província... Isto agrada a todos»? O Sínodo respondeu afirmativamente.
2229 5. O bispo Gaudêncio disse: «Se vos agrada, a esta sentença que emitistes, cheia de
caridade, há que acrescentar: Quando algum bispo tiver sido deposto por decisão dos
bispos que moram nos lugares vizinhos e proclamar que o seu assunto deve ser tratado
na cidade de Roma, não se ordene de modo nenhum outro bispo na mesma cátedra
depois da apelação daquele cuja deposição está suspensa, enquanto a causa não tiver
sido determinada por juízo do bispo de Roma».
2230 7. O bispo Ósio disse: «Também é bom que, se um bispo tiver sido acusado e os
bispos da sua região reunidos o tiverem deposto da sua dignidade e ele apelar e recorrer
ao santíssimo bispo da Igreja romana, e este o quiser ouvir e julgar justo que se renove
o julgamento, digne-se escrever aos bispos que estão na província limítrofe e próxima,
para que eles mesmos investiguem tudo diligentemente e definam de acordo com a
verdade da fé...». Os bispos responderam: «Agrada o que foi exposto».

Concílio de Valência (374) 32


2231 1. Foi decidido que, a partir deste Concílio, que traz um remédio bem tardio às
práticas ilícitas deste género, ninguém que tenha sido casado duas vezes ou que tenha
desposado uma mulher que já fora casada, possa ser ordenado clérigo. E não há que
saber se eles se mancharam por esta vergonhosa situação quando já tinham sido iniciados
nos divinos mistérios ou quando ainda eram pagãos...
Mas, uma vez que não podemos condenar a ignorância, a simplicidade ou mesmo
a presunção dos nossos irmãos, nem corrigir os erros cometidos antigamente em todas
as Igrejas, foi decidido também não modificar seja o que for à situação daqueles que
foram ordenados anteriormente, desde que não se apresente nenhum motivo que os
denuncie como indignos do ministério.
2232 3. Quanto às pessoas que depois do único e santo baptismo se mancharam, quer
fazendo sacrifícios profanos aos Demónios, quer recebendo algum banho sacrílego,
considerámos que é preciso aplicar-lhes a seguinte censura: de acordo com o concílio
de Niceia, não se lhes recuse o acesso à satisfação33, e ao menos não seja fechada a
porta da consolação às lágrimas destes infelizes, para que não desesperem. Façam
penitência até ao dia da sua morte, mas com a esperança da remissão que deverão
esperar plenamente d’Aquele que... Se mostra tão rico em misericórdia, que ninguém
deve desesperar...
2233 4. Todos aqueles que, no momento em que vão ser ordenados diáconos, presbíteros
ou bispos, declararem que são culpados duma falta mortal, devem ser afastados de
semelhantes ordenações culpáveis, porque, ou é verdade o que eles confessam, ou

31
Sínodo de Sérdica (=PL 56, 359-898; T URNER , Ecclesiae Occidentalis monumenta iuris antiquissima, 1/II/
III, Oxford 1930). Foi convocado por volta de 343, perto de Sofia, na Bulgária.
32
Concílio de Valência (=CCL 148; SCh 241, Concílios gauleses do século IV).
33
Isto é, os meios que lhes permitam obter o perdão através da penitência.
CONCÍLIOS 561

então estão a afirmar mentirosamente o que é falso. Não podem ser absolvidos, pois
são eles próprios que lançam uma acusação contra si mesmos. Tal acusação, se fosse
feita contra outros, seria punida; ora quem causa a sua própria morte é mais que homicida.

Sínodo de Icónio (376) 34


Da Carta sinodal escrita por Anfilóquio de Icónio a pedido do Sínodo. Nós não 2234
recebemos apenas a ordem de baptizar, mas também de ensinar e de louvar a Deus ao
ensinarmos; é por isso que devemos glorificar o Pai, o Filho e o Espírito Santo com
cânticos de louvor.

Concílio de Laodiceia (380) 35


7. Para o baptismo, toda a gente deverá aprender o Símbolo. 2235
15. Na igreja só devem cantar salmos os cantores que os saibam cantar36. 2236
17. Na reunião dos fiéis não convém de modo nenhum rezar os salmos de maneira 2237
contínua, mas com intervalos, isto é, deve haver orações 37 depois de cada salmo.
18. Na hora de Noa e nas Vésperas devem recitar-se sempre as mesmas orações no 2238
ofício das preces38.
19. Deve dar-se a bênção de despedida aos catecúmenos e, a seguir, mais três. 2239
22. Os subdiáconos não podem usar o orárion no exercício das suas funções litúrgicas. 2240
23. Os leitores e os cantores não podem usar o orárion no exercício das suas funções 2241
litúrgicas.
29. Os cristãos não devem judaizar e ficar inactivos no dia de sábado, mas devem 2242
trabalhar nesse dia; honrem o dia do Senhor e abstenham-se, na medida do possível e
na sua qualidade de cristãos, de trabalhar nesse dia 39.
48. Depois do baptismo deve dar-se a unção celeste. 2243
51. Durante os quarenta dias da Quaresma não devem celebrar-se os natalicia dos 2244
mártires, mas convém fazer a sua santa comemoração nos sábados e domingos.
59. Na igreja não devem cantar-se os salmos populares 40, mas apenas ler os livros 2245
canónicos.

34
Sínodo de Icónio (=M ANSI , III). Este Sínodo é do ano 376.
35
Concílio de Laodiceia (=B RUNS , I, 76; M ANSI , II, 569-570). Este Concílio realizou-se por volta de 380.
36
kanonikoi\ ya/ l tai . Esta expressão não é clara. Tanto pode significar «que sabe cantar salmos» como
«cantor de salmos estabelecido».
37
Lectiones.
38
leitourgi/ a tw= n eu) x w= n .
39
O documento eclesiástico mais antigo sobre o tema do repouso dominical é justamente este cânone 29 do
Concílio de Laodiceia. Muitos Concílios, desde o século VI até ao IX, proibiram as opera ruralia. A
legislação sobre os trabalhos proibidos, apoiada também pelas leis civis, foi-se tornando sempre mais
pormenorizada.
40
yalmoi\ i) d iwtikoi/ .
562 SÉCULO IV

Concílio de Saragoça (380) 41


2246 4. Desde 17 de Dezembro até ao domingo da Epifania, que é a 6 de Janeiro, a
ninguém é permitido ausentar-se da igreja por dias contínuos.
2247 8. Também foi lido: Não se devem velar as virgens que se dedicam a Deus antes da
idade dos quarenta anos e depois de aprovadas pelo sacerdote. Todos os bispos disse-
ram: Placet.

Concílio de Constantinopla (381) 42


2248 3. O bispo de Constantinopla deve ter a precedência de honra depois do bispo de
Roma, uma vez que esta cidade é a nova Roma.
2249 7. Aqueles que passam da heresia à verdadeira fé devem ser admitidos como se
segue: os Arianos, os Macedonianos, os Novacianos, os Cátaros, os Quartodecimais...
devem ser assinalados, isto é, ungidos com o santo crisma, na fronte, nos olhos, nas
narinas, na boca, nos ouvidos e, enquanto são assinalados, deve dizer-se: «Sinal do
dom do Espírito Santo».
Os Eunomianos, baptizados com uma só imersão, os Montanistas..., que ensi-
nam a identidade do Pai e do Filho e fazem outras coisas graves, e todos os outros
hereges... que queiram passar da heresia à fé ortodoxa, devem ser recebidos como
pagãos. No primeiro dia serão feitos cristãos43; no segundo, catecúmenos; no terceiro,
exorcizamo-los44 com a tríplice exsuflação no rosto e nos ouvidos45. E, deste modo, os
instruiremos e faremos passar o seu tempo na Igreja, para que escutem a Escritura; por
fim baptizá-los-emos.

Concílio de Hipona (393) 46


2250 3. O sal habitual deve ser distribuído aos catecúmenos também durante os
soleníssimos dias pascais.
2251 20. Fora das Escrituras canónicas, não se leia nada na igreja sob o nome de divinas
Escrituras. Mas também é permitido ler as paixões daqueles mártires cujos dias ani-
versários celebramos47.

41
Concílio de Saragoça (=B RUNS , Berlim 1839). Este Concílio realizou-se em 380.
42
Concílio de Constantinopla (=BRUNS , Berlim 1839). Este Concílio realizou-se em 381.
43
À primeira vista, esta sequência pode parecer estranha. Mas, de facto, não é. Fazer alguém cristão é
marcá-lo com o sinal da cruz. Continua a ser este o primeiro gesto de acolhimento e de fé que o ministro
traça na fronte de um bebé trazido para ser baptizado, ou de um adulto que vai ser admitido no pré-
catecumenado. Cristão não significa fiel, mas simpatizante ou amigo de Cristo. Regra geral, um candidato
a cristão começa por simpatizar com Cristo. O segundo passo acontece quando ele manifesta a vontade
de ser membro da família dos cristãos. Nesse momento a Igreja fá-lo, durante algumas semanas, pré-
catecúmeno. Terminado o pré-catecumenado, o responsável da comunidade paroquial onde ele está inserido,
marca-o com o sinal da cruz e faz dele um catecúmeno. Após um período de dois ou três anos, de catequese
e experiência de vida cristã, poderá vir a ser eleito para os sacramentos da iniciação cristã. Será nesse dia e nesses
sacramentos que ele se tornará fiel. É a este movimento complexo e demorado que o texto se refere.
44
e(corkizo/men.
45
Este cânone não é autêntico e deve ser atribuído a um patriarca do século V.
46
Concílio de Hipona (=MANSI , III; CCL 149; C. M UNIER , Concilia Africana). Ver mais abaixo o texto do
Concílio de Cartago (397), idêntico a este.
47
Liceat etiam legi passiones martyrum, quorum anniversarii dies eorum celebrantur.
CONCÍLIOS 563

21. Nas preces, ninguém deve nomear o Pai em vez do Filho, nem o Filho em vez do 2252
Pai, e, quando se está ao altar, a oração deve ser sempre dirigida ao Pai; e, se alguém
copiar para si próprio um modelo de preces feito por outrem, não o utilize antes de o
ter submetido a irmãos mais instruídos48.
23. No sacramento do Corpo e Sangue do Senhor não se ofereça nada mais do que 2253
aquilo que recebemos do próprio Senhor, isto é, pão e vinho misturado com água.
Quanto às primícias, ao mel e ao leite que costumam oferecer-se num dia tão solene
como é o do mistério dos neófitos 49, embora se apresentem no altar, têm, contudo, a
sua bênção própria, a fim de se distinguirem do sacramento do Corpo e Sangue do
Senhor. De entre as primícias nada mais se ofereça do que vinho e pão...

Concílio de Cartago (395) 50


3. Os leitores não devem saudar o povo 51. 2254

Concílio de Nimes (396) 52


1. Em primeiro lugar, considerando que muitos indivíduos, vindos dos lugares mais 2255
distantes do Oriente, se fazem passar por presbíteros e por diáconos, apresentando a
pessoas ignorantes cartas de comunhão assinadas por desconhecidos; considerando
que recebem socorros e esmolas dos fiéis e ficam a cargo da comunhão dos santos,
dando uma imagem simulada de religião, decidimos que, se forem encontrados indivíduos
nessas condições e sempre que o interesse geral da Igreja não esteja em causa, não
sejam admitidos ao ministério do altar53.
2. Igualmente foi assinalado por alguns que, ao contrário da disciplina apostólica, 2256
coisa até agora nunca ouvida, havia, não sei onde, mulheres elevadas ao ministério dos
diáconos, coisa que a disciplina eclesiástica não admite, por não ser conveniente. Tal
ordenação, que é irregular, deve ser anulada, e deve velar-se para que, no futuro,
ninguém tenha a ousadia de agir do mesmo modo.
3. Também foi decidido reiterar a disposição canónica que proíbe a qualquer bispo 2257
admitir a uma comunhão ilícita um clérigo ou um leigo condenado pelo seu próprio bispo.
6. Se os ministros do altar intentarem viajar, seja porque motivo for, as suas cartas 2258
de recomendação devem ser assinadas unicamente pelo seu bispo.

48
Ut nemo in precibus vel Patrem pro Filio vel Filium pro Patre nominet, et cum altari adsistitur, semper
ad Patrem dirigatur oratio; et quicumque sib preces aliunde describit, non eis utatur nisi prius eas cum
instructioribus fratribus contulerit.
49
Infantium.
50
Concílio de Cartago (=M ANSI , III; CCL 149; C. M UNIER , Concilia Africana).
51
Ut lectores populum non salutent.
52
Concílio de Nimes (=SCh 241, Concílios gauleses do século IV).
53
Esta expressão designa o ofício dos clérigos a partir do diaconado.
564 SÉCULO IV

Concílio de Cartago (397) 54


2259 1. Os leitores não devem saudar o povo... 3. Durante os soleníssimos dias pascais
não se dêem os sacramentos aos catecúmenos, salvo o do sal, como é costume... 4. Não
deve dar-se a Eucaristia aos defuntos... 12. Os filhos dos bispos ou de qualquer clérigo
não devem casar com pagãos, hereges e cismáticos. 18. Os leitores devem ler até aos
anos da puberdade; a partir de então só devem ler os que guardarem castidade com as
esposas ou tiverem feito profissão de continência.
2260 22. (36) Fora das Escrituras canónicas, não se leia nada na igreja sob o nome de
divinas Escrituras... Mas também é permitido ler as paixões daqueles mártires cujos
dias aniversários celebramos55. 23. Nas preces, ninguém deve nomear o Pai em vez do
Filho, nem o Filho em vez do Pai, e quando se estiver ao altar, a oração deve ser sempre
dirigida ao Pai; e, se alguém copiar para si próprio um modelo de preces feito por
outrem, não o utilize antes de o ter submetido a irmãos mais instruídos56.
2261 24. (23) No sacramento do Corpo e Sangue do Senhor57 não se ofereça nada mais do
que aquilo que recebemos do próprio Senhor, isto é, pão e vinho misturado com água.
Quanto às primícias, ao mel e ao leite que costumam oferecer-se num dia tão solene
como é o do mistério dos neófitos, embora se apresentem no altar, têm, contudo, a sua
bênção própria, a fim de se distinguirem do sacramento do Corpo e Sangue do Senhor.
De entre as primícias nada mais se ofereça do que vinho e pão. 25. O bispo da primeira
sede não deve chamar-se príncipe dos sacerdotes, nem sumo sacerdote, nem coisa
alguma deste género, mas apenas bispo da primeira sede. 28. A Eucaristia só deve ser
celebrada por quem estiver em jejum, excepto no dia aniversário da Ceia do Senhor. Por
isso, se alguém, em horas tardias, tiver de fazer a encomendação de bispos, de clérigos
ou de quaisquer outros defuntos, se já tiver comido diga apenas as orações. 30. Os
bispos devem indicar aos penitentes os tempos de penitência de acordo com o género
dos pecados. Os presbíteros não devem reconciliar os penitentes sem consultar o
bispo, salvo se o bispo estiver ausente e a necessidade for premente. Mas se alguém
for penitente por crime público e conhecidíssimo, e que tenha impressionado toda a
Igreja, imponha-lhe as mãos em frente da abside58.

Concílio de Turim (398) 59


2262 8. Quanto àqueles que foram ordenados apesar de haver impedimentos ou que,
estando no ministério, geraram filhos, a autoridade conciliar decidiu que não seria
permitido promovê-los a graus superiores da ordem.

54
Concílio de Cartago (=M ANSI , III; CCL 149; C. M UNIER , Concilia Africana).
55
Liceat etiam legi passiones martyrum, quorum anniversarii dies eorum celebrantur.
56
Ut nemo in precibus vel Patrem pro Filio, vel Filium pro Patre nominet. Et cum altari adsistitur, semper
ad Patrem dirigatur oratio. Et quicumque sibi preces aliunde describit, non eis utatur, nisi prius eas
cum instructioribus fratribus contulerit.
57
In sacramentis corporis et sanguinis Domini.
58
Ante absidam.
59
Concílio de Turim (=MANSI , III; BRUNS , II).
PAPA SIRÍCIO 565

Papa Sirício

Cartas 1

CARTA 1 2

1. Chamaste a atenção para o facto de muitos dos baptizados pelos ímpios Arianos 2263
se apressarem a voltar à fé católica, e que alguns dos nossos irmãos querem baptizá-los
novamente, o que não é lícito. O Apóstolo proíbe que se faça, opõem-se a isso os
cânones e proíbem-no os decretos gerais enviados às províncias pelo meu predecessor
de venerável memória Libério, depois de anular o Concílio de Rimini. A estes, junta-
mente com os Novacianos e outros hereges, nós associamo-los à comunidade dos
católicos como está estabelecido no Concílio, só com a invocação do Espírito septiforme,
por meio da imposição da mão episcopal, como faz todo o Oriente e Ocidente. Con-
vém, para o futuro, que também vós não vos desvieis de modo algum deste caminho, se
não vos quereis separar da nossa união, em virtude da decisão conciliar.
2. Falemos agora dessa desordem, que não podemos aprovar, mas devemos corrigir, 2264
dos baptismos dados como agrada a cada um: os nossos colegas no episcopado, dizemo-lo
com indignação, permitem-se, não fundamentados numa autoridade qualquer, mas por
simples atrevimento, conferir o mistério do baptismo a multidões inumeráveis, como
tu o asseguras, indistintamente e à vontade de cada qual, seja no Natal, ou na Epifania,
ou nas festas dos Apóstolos e dos mártires, quando, entre nós e em todas as Igrejas,
este privilégio é especialmente reservado para a Páscoa de Cristo e para o seu Pentecostes.
É só nestes dias do ano que convém dar o conjunto dos sacramentos do baptismo
àqueles que vêm à fé, mas só aos eleitos que deram os seus nomes quarenta ou mais
dias antes e que fizeram penitência no jejum, nos exorcismos e nas orações quotidianas3,
de acordo com o preceito que nos dá o Apóstolo de nos tornarmos uma nova massa,
depois de termos eliminado o velho fermento 4. Sem querer, no entanto, diminuir o
respeito sagrado que é devido à Páscoa, prescrevemos que o baptismo se administre
sem demora às crianças que, em virtude da sua idade, ainda não podem falar, ou às
pessoas que se encontram em qualquer necessidade de receber o santo baptismo, não
aconteça que surja um prejuízo para as nossas almas, se, em consequência de recusarmos
a fonte da salvação àqueles que a desejavam, alguns vierem a morrer e a perder o reino
e a vida. Do mesmo modo, se alguém se encontrar ameaçado de naufrágio, de uma
invasão inimiga, de um cerco com resultado duvidoso, ou de qualquer doença mortal,
deve ser admitido à regeneração solicitada, logo depois de a pedir...
3. Informastes-nos de que certos cristãos que passaram para a apostasia, coisa 2265
horrível de dizer, se mancharam pelo culto dos ídolos e pelo contacto com os sacrifícios.
Ordenamos que esses criminosos sejam afastados do Corpo e do Sangue de Cristo,
pelos quais foram resgatados no baptismo. Se, lamentando o seu crime, vierem um dia
a arrepender-se, deverão fazer penitência durante toda a sua vida; a reconciliação só
lhes será dada no último momento, porque, segundo os ensinamentos do Senhor, nós
não queremos a morte do pecador, mas que ele se converta e viva...

1
P APA S IRÍCIO , Epistulae (=PL 13, 1131-1195; CPL 1637; PLS 3, 567; C. VOGEL , Paris 1966, 167-169). Foi
Papa entre 384 e 399.
2
Carta escrita a 10 de Fevereiro de 385 ao bispo Himério de Tarragona (=PL 13, 1137 s).
3
Quibus solis per annum diebus (i.e. Pascha et Pentecoste) ad fidem confluentibus generalia baptismatis
tradi convenit sacramenta, his dumtaxat electis, qui ante quadraginta vel eo amplius dies nomen dederint
et exorcismis quotidianis, orationibus atque ieiuniis fuerint expiati.
4
Cf. 1 Cor 5, 7.
566 SÉCULO IV

2266 5. Não foi sem razão, caríssimos irmãos, que julgastes bom consultar a santa Sé
apostólica a respeito daqueles que, tendo acabado a sua penitência (e depois de recon-
ciliados)... retomaram o cinturão militar, se entregaram aos prazeres da volúpia, chegaram
mesmo a contrair matrimónio e voltaram às intimidades conjugais, que, doravante, lhes
eram proibidas: a sua incontinência evidente foi demonstrada pelo nascimento de
filhos, após a sua reconciliação.
Uma vez que os penitentes reconciliados não têm possibilidade de fazer peni-
tência mais outra vez, decidimos o seguinte a respeito deles: tomarão parte, na igreja,
somente na oração dos fiéis; assistirão, apesar de não o merecerem, à celebração dos
santos mistérios, mas serão afastados do banquete do Senhor. Punidos desta maneira,
acabarão por se corrigir eles próprios dos seus erros e darão exemplo aos outros,
abstendo-se dos seus desejos obscenos. No entanto, uma vez que caíram por fraqueza
carnal, ordenamos que, no momento da sua morte, sejam socorridos pela graça da
comunhão por meio do viático. A mesma maneira de agir deverá ser aplicada em relação
às mulheres que, após a penitência e a reconciliação, se deixaram poluir por tais
manchas...
2267 7. 8 Soubemos que muitíssimos sacerdotes de Cristo e levitas geraram filhos depois de
terem sido consagrados há muito tempo, não só das suas próprias esposas, mas tam-
bém de união torpe, e quiseram defender o seu crime com a desculpa de que se lê no
Antigo Testamento ter-se concedido aos sacerdotes e ministros a faculdade de gerar.
9 Por que motivo, no ano do seu turno, se mandava que os sacerdotes habitassem
no templo longe de suas casas? Para que não tivessem relações carnais nem sequer com
as suas esposas, a fim de que, brilhando pela integridade da sua consciência, ofereces-
sem a Deus um dom aceitável.
10 Todos nós, levitas e sacerdotes, estamos obrigados pela lei indissolúvel des-
tas sanções. Isso quer dizer que, desde o dia da nossa ordenação, consagramos os
nossos corações e os nossos corpos à sobriedade e à castidade, para agradarmos em
tudo ao nosso Deus, nos sacrifícios que diariamente Lhe oferecemos.
2268 9. Aquele que se entrega livremente à Igreja desde a infância deve, antes de atingir
a puberdade, receber o baptismo e ser associado ao ministério dos leitores. Aquele que
entrou durante a adolescência deve ser acólito e subdiácono até cerca dos trinta anos,
se viver...
2269 10. O que for de idade mais respeitável... e tiver sido baptizado em tempo oportuno,
será associado imediatamente ao grupo dos leitores ou dos exorcistas e, terminado o
segundo ano de estágio, seja acólito e subdiácono durante cinco anos...
2270 14. Também nos pareceu útil decidir o seguinte: Do mesmo modo que é proibido, a
qualquer clérigo, submeter-se à penitência, também, após a penitência e a reconciliação
é interdito, a qualquer penitente leigo, seja em que momento for, chegar às honras da
clericatura. Com efeito, apesar de os penitentes reconciliados ficarem limpos de todo
o contágio do pecado, não devem, contudo, ser encarregados da administração dos
sacramentos, pois foram durante muito tempo receptáculos do vício.
CARTA 6 5

2271 Perguntaste se a jovem desposada pode receber o véu conjugal no matrimónio.


Proibimos absolutamente que isso se faça, porque essa bênção que o sacerdote impõe
aos nubentes é considerada por alguns fiéis como um sacrilégio, se for violada por
alguma transgressão.

5
Carta escrita a Vítor Rotomagense (=PL 13, 1131-1195).
PAPIRO DE DER BALISEH 567

CARTA AOS BISPOS DE ÁFRICA

2. Nenhum bispo ouse ordenar sozinho outro bispo, a fim de não parecer que lhe 2272
deu um benefício furtivo. Isto foi decidido e definido no Concílio de Niceia.
CARTA À IGREJA DE MILÃO E A OUTRAS IGREJAS

Não menosprezamos o desejo das núpcias, nas quais participamos ao impor o 2273
véu, mas consideramos dignas de maior honra as virgens devotas, que entregam a sua
virgindade a Deus.

Papiro de Der Baliseh 1

BAPTISMO

... Confessa a fé, dizendo: Creio em Deus Pai todo-poderoso, e no seu Filho 2274
unigénito, nosso Senhor Jesus Cristo, e no Espírito Santo, e na ressurreição da carne,
na santa Igreja católica.

ANÁFORA

Introdução ao Sanctus

... Os que Te odeiam. Esteja a tua bênção sobre o teu povo, que faz a tua vontade. 2275
Levanta os que caem, reconduz os extraviados ao caminho recto, fortifica os que estão
sem coragem.
Porque Tu estás acima de todo o Principado, Autoridade, Potestade e Dominação, e
de todo o nome, não só neste mundo, mas também no mundo futuro. Milhares de
santos Anjos e exércitos inumeráveis de Arcanjos Te assistem, assim como os Queru-
bins de múltiplos olhos e os Serafins de seis asas, que com duas cobrem o rosto, com
duas os pés e com as outras duas voam; todos proclamam em todo o lugar que Tu és
santo. Com todos os que Te santificam2, recebe hoje a nossa santificação3, na qual Te
dizemos: Santo, Santo, Santo, Senhor Sabaoth. O céu e a terra estão cheios da tua glória.

1
Papiro de Der Balizeh (=C. H. R OBERTS -B. CAPELLE , An early Euchologium: The Dêr-Naliseh Papyrus
enlarged ant reedicted, Louvain 1949). Der Balizeh fica situado no Alto Egipto. O conteúdo eucológico
deste papiro representa a prática litúrgica do Egipto, no século IV; cf. n. 4695.
2
a( g ia/ z ein .
3
a( g iasmo/ n .
568 SÉCULO IV

Post Sanctus

Enche-nos também a nós da tua glória e digna-Te enviar o teu Espírito Santo
sobre estas oferendas que Tu criaste, para fazer deste pão o Corpo de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo, e do cálice o Sangue da nova Aliança do nosso mesmo Senhor e
Salvador Jesus Cristo. E como este pão outrora disperso sobre os lugares elevados, as
colinas e os vales foi recolhido de modo a não fazer mais que um só corpo, como
também este vinho, que brotou da santa videira de David, e esta água, que jorrou do
Cordeiro imaculado, misturados, se tornaram um só mistério, reúne também a Igreja
católica de Jesus Cristo.

Narração da instituição

Porque nosso Senhor Jesus Cristo, na noite em que foi entregue, tomou o pão em
suas santas mãos, deu graças, abençoou-o, santificou-o, partiu-o e deu-o aos seus
discípulos e Apóstolos, dizendo: Tomai, comei dele todos: isto é o meu Corpo, entre-
gue por vós, em remissão dos pecados. De igual modo, depois da refeição, tomou o
cálice e deu graças, bebeu dele e deu-lho, dizendo: Tomai, bebei dele todos; isto é o meu
Sangue, derramado por vós, em remissão dos pecados. Todas as vezes que comeis
deste pão e bebeis deste cálice, anunciais a minha morte, proclamais a minha ressurrei-
ção, fazeis memória de Mim.
O povo. Anunciamos a tua morte, proclamamos a tua ressurreição e oramos
.................................................................................................................. 4

Doxologia final

... a nós, teus servos, dá-nos o poder do Espírito Santo, a firmeza e o aumento da
fé, a esperança da vida eterna que vem, por nosso Senhor Jesus Cristo, com o qual a Ti,
Pai, pertence a glória, com o Espírito Santo, pelos séculos.
Amen.

4
Falta o texto no papiro.
CÂNONES APOSTÓLICOS 569

Cânones Apostólicos 1

1. O bispo é ordenado por dois ou três bispos, o presbítero por um só bispo, assim 2276
como o diácono e os outros clérigos.
2. Se, contrariamente às prescrições do Senhor acerca do sacrifício, um bispo ou 2277
um presbítero oferece sobre o altar de Deus outra coisa, mel ou leite, ou ainda bebidas
fabricadas em vez de vinho, ou então aves, animais ou legumes, contrariamente às
prescrições, seja deposto.
3. Salvo as espigas novas ou as uvas e o azeite para a lâmpada sagrada e o incenso 2278
para o momento da oblação divina, na época própria, não se permita que sobre o altar
seja posto o que quer que seja.
4. Qualquer outro produto (das colheitas) será destinado à casa, como as primícias 2279
para o bispo e os presbíteros, e não ao altar; é evidente que os bispos e os presbíteros
devem dar as respectivas porções aos diáconos e aos outros clérigos.
5. Um bispo, um presbítero ou um diácono não repudiará a sua esposa a pretexto 2280
de piedade; se a repudiar, seja excluído; se persistir, seja deposto.
6. Um bispo, um presbítero ou um diácono não andará preocupado com problemas 2281
seculares; caso contrário, seja deposto.
7. Se um bispo, um presbítero ou um diácono celebrar o santo dia de Páscoa antes 2282
do equinócio da Primavera, como os Judeus, seja deposto.
8. Se um bispo, um presbítero ou um diácono ou alguém da lista sacerdotal não 2283
comungar depois da oblação ter sido feita, ou dirá a razão e, se ela for razoável, ser-lhe-á
concedido o perdão, ou então não a diz, e será excluído, porque fez mal ao povo e
tornou suspeito aquele que oferecia, como se não oferecesse correctamente.
9. Os fiéis que no domingo entram na igreja e escutam a Escritura, mas não ficam 2284
para a oração nem recebem a comunhão, devem ser privados da comunhão porque
perturbam a assembleia2.
10. Se alguém rezar com um excomungado, mesmo em casa, seja excluído. 2285
11. Se um clérigo rezar com um (clérigo) deposto, como se fosse ainda clérigo, seja 2286
também deposto.
12. Se um clérigo ou um leigo, excluído ou admitido, for para outra cidade e nela for 2287
recebido sem cartas de recomendação, aqueles que o receberam, e ele também, sejam
depostos.
13. Se ele já estava deposto, prolongue-se a sua exclusão, porque mentiu e enganou 2288
a Igreja de Deus.
14. Não é permitido a um bispo abandonar o seu distrito3 e tomar posse de outro, 2289
mesmo que muitos o forcem, a não ser que uma causa razoável o obrigue a fazê-lo, por
exemplo, a possibilidade de ser mais útil, relativamente à fé, às pessoas daí; contudo,
não deve agir por si próprio, mas aconselhar-se com vários bispos e após grande insistência.
15. Se um presbítero ou um diácono ou qualquer outro da lista dos clérigos deixar o 2290
seu distrito e for para outro, se o deixar completamente para morar noutro distrito,
1
Canones apostolorum (=PG 137, 35-218; G. H ORNER , The statutes of the apostles, London 1904; J.
P ÉRIER -A. D IDOT , 1912).
2
Conhece-se outra determinação anterior a esta, concebida nestes termos: «Todos os que entram na igreja
e escutam as Sagradas Escrituras, mas não comungam na oração com o povo e se afastam, por insolência,
da participação na santa Eucaristia, devem ser expulsos da igreja até depois de se confessarem e mostrarem
frutos de penitência» (Concílio in Encoeniis, cânone 2, na região de Antioquia, no ano 341, MANSI , II).
3
Paróquia.
570 SÉCULO IV

contra a vontade do seu bispo, proibimo-lo de exercer o seu ministério, sobretudo se


não obedecer quando o bispo o convidar a voltar e se persistir na sua indisciplina. No
entanto, lá em baixo, participará como leigo.
2291 16. Se o bispo junto do qual eles se encontram não tiver em conta a suspensão
declarada contra eles e os receber como clérigos, seja excluído, porque promove a
indisciplina.
2292 17. Quem tiver contraído segundas núpcias após o seu baptismo ou tiver tomado
uma concubina não pode ser bispo, presbítero ou diácono nem de forma alguma (ser
inscrito) na lista sacerdotal.
2293 18. Quem toma uma viúva, uma mulher repudiada4, uma prostituta, uma criada ou
uma mulher do teatro, não pode ser bispo, presbítero ou diácono nem de forma alguma
(ser inscrito) na lista sacerdotal.
2294 19. Quem desposou duas irmãs ou uma sobrinha não pode tornar-se clérigo.
2295 20. Se um clérigo der duas cauções seja deposto.
2296 21. Um eunuco que se tornou tal por crueldade humana ou que foi privado da sua
virilidade numa perseguição ou que nasceu assim, se for digno do episcopado, admita-se.
2297 22. Se alguém se castrou a si mesmo, não será clérigo; porque é assassino de si
mesmo e inimigo da criação de Deus.
2298 23. Se um clérigo se castrar a si mesmo, seja deposto, porque é assassino de si mesmo.
2299 24. Se um leigo se castrar a si mesmo, seja excluído durante três anos, porque é
inimigo da sua própria vida.
2300 25. O bispo, o presbítero ou o diácono surpreendidos a ter relações sexuais ilícitas,
a jurar falso ou a roubar seja deposto, mas sem ser excluído; porque a Escritura diz: O
Senhor não punirá duas vezes pela mesma coisa5. Do mesmo modo se fará com os
outros clérigos.
2301 26. De entre os celibatários que entraram no clero e desejam casar, só permitimos
que o façam os leitores e os cantores.
2302 27. Se um bispo, um presbítero ou um diácono bater nos crentes que pecaram ou nos
descrentes que agiram mal, querendo desse modo inspirar-lhes temor, mandamos que
sejam depostos, porque o Senhor nunca nos ensinou isso; ao contrário, quando Lhe
batiam, não retribuía com golpes, ao ser insultado, não respondia com insultos, ao ser
maltratado, não ameaçava6.
2303 28. Se um bispo, um presbítero ou um diácono, deposto com razão por agravos
evidentes, não permite que alguém exerça o ministério que lhe tinha sido anteriormente
confiado, seja completamente afastado da Igreja.
2304 29. Se um bispo, um presbítero ou um diácono obtiveram a sua dignidade por dinheiro,
sejam depostos, eles e os que os ordenaram, e sejam privados da comunhão, como
Simão Mago o foi por Pedro.
2305 30. Se algum bispo, valendo-se dos príncipes seculares, se apoderar da igreja por
meio deles, seja deposto e excluído, assim como todos os que estão em comunhão com ele
2306 31. Se um presbítero, por desprezo pelo seu bispo, reúne uma assembleia separadamente
e levanta um altar, sem ter nada a criticar no seu bispo, relativamente à fé e à justiça,
seja deposto porque ama o poder e porque é um tirano; assim também os outros
clérigos, na medida em que tomam partido por ele, bem como os leigos, serão excluídos.
Mas não se fará isso senão depois duma primeira, duma segunda ou mesmo duma
terceira admoestação do bispo.

4
Lev 21, 14.
5
Naum 1, 9.
6
1 Ped 2, 23.
CÂNONES APOSTÓLICOS 571

32. Se um presbítero ou um diácono é excluído pelo seu bispo, não pode ser recebido 2307
por um outro que não seja aquele que o excluiu, a não ser que o bispo que o excluiu
venha a morrer.
33. Não recebais nenhum bispo, presbítero ou diácono estrangeiro sem cartas de 2308
recomendação; se eles as apresentam, serão examinadas, e, tratando-se de pregadores
da fé, sejam acolhidos; caso contrário, dai-lhes o que lhes faz falta, mas não os recebais
em comunhão, porque sucedem muitos aborrecimentos também por imposturas.
34. É preciso que os bispos de cada nação saibam quem entre eles é o primeiro, o 2309
considerem como seu chefe e nada façam de importante sem o seu acordo; cada um
ocupar-se-á apenas do que diz respeito ao seu distrito 7 e aos territórios que dependem
dele; mas o chefe também não deve fazer nada sem o acordo de todos; desse modo
reinará a concórdia, e Deus será glorificado, por Cristo, no Espírito Santo.
35. Um bispo não se permita conferir ordenações fora do seu sector, em cidades ou 2310
territórios que não lhe pertencem; se está convencido que agiu desta maneira, contra a
vontade dos responsáveis dessas cidades ou territórios, seja deposto ele e aqueles que
ele tiver ordenado.
36. Quem for ordenado bispo, mas não assumir o ministério e o cuidado do povo, 2311
como lhe foi confiado, seja excluído até assumir o seu cargo; do mesmo modo se
procederá com o presbítero e o diácono. Mas, se ele não é recebido ao chegar e isso não
depende da sua vontade, mas da maldade do povo, permanecerá bispo, mas o clero da
cidade será excluído por não ter orientado esse povo insubmisso.
37. Os bispos reunir-se-ão em assembleia duas vezes por ano, para juntos aí estudarem 2312
a doutrina da fé e resolverem os litígios eclesiásticos que surgirem; a primeira vez na
quarta semana da Cinquentena pascal, e a segunda vez, no dia doze do mês de Outubro.
38. O bispo preocupar-se-á com todos os bens eclesiásticos e administrá-los-á, 2313
sabendo que Deus o observa; é-lhe proibido apropriar-se seja do que for desses bens
ou dar o que é de Deus às pessoas da sua família; se estas últimas forem pobres,
socorra-as como pobres, mas não tire daí pretexto para vender bens da Igreja.
39. Os presbíteros e os diáconos nada farão sem o acordo do bispo; porque foi a ele 2314
que o povo do Senhor foi confiado e a ele se pedirão contas das suas almas.
40. Seja fácil distinguir quais são os bens pessoais do bispo, pelo menos se os tiver, 2315
e quais os bens do Senhor, para que, ao morrer, o bispo possa dispor dos seus bens e
distribuí-los como quiser e a quem quiser; deste modo se evitará que sob a capa de
assuntos eclesiásticos os bens do bispo desapareçam, porque ele pode ter tido mulher
e filhos, família ou criados. Diante de Deus e dos homens8 é justo que a Igreja não seja
prejudicada pelo facto de não se conhecerem os bens do bispo; por outro lado, convém
que o bispo ou os seus parentes não sejam despojados, em favor da Igreja, nem estes
se metam em demandas, ou que a morte do bispo lhes traga má reputação.
41. Ordenamos que o bispo tenha poder sobre os bens da Igreja. Com efeito, se é 2316
conveniente confiar-lhe as preciosas almas dos homens, é muito mais necessário que
ele disponha de recursos para que, sob a sua autoridade, tudo seja administrado e
distribuído aos indigentes pelos presbíteros e diáconos, com temor de Deus e toda a
piedade. Ele próprio tome também o que precisa, quando for necessário, para as suas
necessidades e serviço dos irmãos a quem se dá hospitalidade, a fim de que, de maneira
alguma, nada lhes falte. Porque a Lei de Deus prescreve aos que servem ao altar que
vivam do altar, uma vez que nenhum soldado se equipa do seu próprio soldo, para
combater o inimigo.

7
Paróquia.
8
Lc 2, 52.
572 SÉCULO IV

2317 42. O bispo, o presbítero ou o diácono que se entrega ao jogo e à embriaguez, cesse,
ou seja deposto.
2318 43. O subdiácono, o leitor ou o cantor que procede do mesmo modo, cesse, ou seja
excluído; e do mesmo modo o leigo.
2319 44. O bispo, o presbítero ou o diácono que leva juros aos que lhe pedem empréstimos,
cesse, ou seja deposto.
2320 45. O bispo, o presbítero ou o diácono que se limitou a rezar com os heréticos, não
seja excluído; mas, se lhes permitiu agir como clérigos, seja deposto.
2321 46. Ordenamos que o bispo ou o presbítero que tiver admitido o baptismo ou o
sacrifício dos heréticos seja deposto. Porque: Que acordo pode existir entre Cristo e
Belial, ou que parte tem o fiel com o infiel9?
2322 47. Se um bispo ou um presbítero baptiza de novo alguém que recebeu o verdadeiro
baptismo, ou se não baptiza alguém que foi manchado entre os ímpios, seja deposto,
porque se ri da cruz e da morte do Senhor e não distingue a diferença entre os sacerdotes
e os falsos sacerdotes.
2323 48. Se um leigo repudia a sua mulher e toma outra ou toma aquela que um outro tinha
repudiado, seja excluído.
2324 49. Se um bispo ou um presbítero não baptiza em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo10, segundo as prescrições do Senhor, mas em três «sem princípio» ou
em três Filhos ou em três Paráclitos, seja deposto.
2325 50. Se um bispo ou um presbítero não procede às três imersões da única iniciação,
mas a uma só imersão conferida para a morte do Senhor11, seja deposto, porque o
Senhor não nos disse: «Baptizai para a minha morte», mas: Ide, ensinai todas as
nações e baptizai-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo12... Vós, portanto,
bispos, fazei três imersões num só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo 13, segundo a
vontade do Senhor e as nossas prescrições no Espírito.
2326 51. Se um bispo, um presbítero, um diácono ou um outro da lista sacerdotal se
abstém do casamento, das carnes e do vinho não por ascese, mas por ódio, esquecendo
que: Tudo é muito bom14, e que: Deus formou o homem e a mulher15, e se recusar a
criação blasfemando dela, corrija-se, ou seja deposto e excluído da Igreja; do mesmo
modo um leigo.
2327 52. Se um bispo ou um presbítero não acolhe aquele que se converte do seu pecado,
mas o afasta, seja deposto, porque contrista a Cristo, que disse: Haverá mais alegria
no Céu por um só pecador que se converte16.
2328 53. Se um bispo, um presbítero ou um diácono não come carne ou bebe vinho nos
dias de festa, seja deposto, porque está marcado a ferro em brasa na sua consciência17
e se tornou causa de escândalo para muitos.
2329 54. Se um clérigo for surpreendido a comer num cabaré, seja excluído, a não ser que,
por estar de viagem, tenha descido a uma hospedaria por necessidade.

9
2 Cor 6, 15.
10
Mt 28, 19.
11
Cf. Rom 6, 3.
12
Mt 28, 19.
13
Cf. Mt 28, 19.
14
Gen 1, 31.
15
Gen 1, 27.
16
Lc 15, 7.
17
1 Tim 4, 2.
CÂNONES APOSTÓLICOS 573

55. Se um clérigo ultrajar o seu bispo injustamente, seja deposto, porque está dito: 2330
Não dirás mal do chefe do teu povo 18.
56. Se um clérigo ultrajar um presbítero ou um diácono, seja excluído. 2331
57. Se um clérigo se rir dum surdo-mudo, dum coxo, dum cego ou dum estropiado, 2332
seja excluído; do mesmo modo um leigo.
58. O bispo ou o presbítero que negligencia o clero ou o povo e não lhes ensina a fé 2333
seja excluído; se persistir na sua negligência, seja deposto.
59. Se um bispo ou um presbítero não dá o necessário ao clérigo em necessidade, seja 2334
excluído; se persistir, seja deposto, porque é o assassino do seu irmão.
60. Se alguém difunde na Igreja os livros dos ímpios com títulos enganadores e os 2335
apresenta como santos, para a perdição do povo e do clero, seja deposto.
61. O crente acusado de relações sexuais imorais, de adultério ou de qualquer outra 2336
acção proibida, se for declarado culpado, não seja admitido no clero.
62. Se por respeito humano diante de um Judeu, dum pagão ou dum herético, um 2337
clérigo renega o nome de Cristo, seja excluído; se ele renega o título de clérigo, seja
deposto; se vier a arrepender-se, seja recebido como leigo.
63. Se um bispo, um presbítero, um diácono ou um outro da lista sacerdotal comer 2338
carne com a sua vida, o sangue19, ou carne de animal despedaçado por um animal
selvagem ou morto por doença, seja deposto, porque a Lei proíbe isso; se for um leigo,
seja excluído.
64. Se um clérigo for surpreendido a jejuar no dia do Senhor ou no sábado, com 2339
excepção de um único sábado, seja deposto; se for um leigo, seja excluído.
65. Se um clérigo ou um leigo for orar à assembleia dos Judeus ou dos heréticos, seja 2340
deposto e excluído.
66. Se numa discussão um clérigo bater numa pessoa e a matar com um só golpe, seja 2341
deposto por causa da sua violência; se for um leigo, seja excluído.
67. Se alguém se apoderar com violência duma jovem não casada, seja excluído; não 2342
lhe será permitido tomar outra, mas guardará aquela que escolhera, mesmo se ela for pobre.
68. Se um bispo, um presbítero ou um diácono receber de alguém uma segunda 2343
ordenação, seja deposto ele e aquele que o ordenou, a não ser que se prove que recebera
a sua ordenação dos heréticos; porque os que foram baptizados ou ordenados por tais
pessoas não podem ser nem fiéis nem clérigos.
69. Se um bispo, um presbítero, um diácono, um subdiácono, um leitor ou um cantor 2344
se recusa a jejuar durante a santa Quaresma ou na sexta-feira ou na quarta-feira, seja
deposto, a não ser que esteja impedido por fraqueza corporal; se for um leigo, seja excluído.
70. Se um bispo ou um outro clérigo jejua com os Judeus ou celebra as festas com 2345
eles ou aceita presentes provenientes das suas festas, como pães ázimos ou outra
coisa deste género, seja deposto; se for um leigo, seja excluído.
71. Se um cristão oferecer azeite a um santuário pagão ou à sinagoga dos Judeus ou 2346
também lâmpadas, seja excluído.
72. Se um clérigo ou um leigo roubar cera ou azeite na santa igreja, seja excluído e 2347
deverá juntar um quinto20 a mais do que aquilo que tirou.
73. Ninguém transferirá, depois de o ter usado, um objecto de prata, de ouro ou de 2348
tecido fino que tiver sido santificado: é ilegal; se alguém é apanhado a fazer isso, seja
punido pela exclusão.

18
Ex 22, 27; Act 23, 5.
19
Gen 9, 4.
20
Lev 5, 16.
574 SÉCULO IV

2349 74. Se um bispo for objecto duma acusação por parte de homens dignos de fé e
crentes, deve ser convocado pelos bispos; se ele se apresentar e confessar, depois de
ser interrogado, fixar-se-á uma punição; se ele não obedecer à convocatória, convocar-se-á
uma segunda vez, enviando-lhe dois bispos; se, mesmo assim, ele não obedecer, con-
vocar-se-á uma terceira vez, enviando novamente dois bispos; se ele desprezar tam-
bém esta convocatória e não se apresentar, a assembleia decretará contra ele aquilo que
lhe parecer bem, para que ele não imagine que obtém algum proveito fugindo à justiça.
2350 75. Não admitais qualquer pagão nem mesmo um crente sozinho como testemunha
contra um bispo, porque só com o depoimento de duas ou três testemunhas é que o
caso será tomado em conta21.
2351 76. Um bispo não deve conceder a alta função episcopal a um irmão ou a um filho ou
a um outro parente, ordenando quem lhe agrade; porque não convém que ele dê o seu
cargo episcopal em herança, concedendo bens de Deus segundo as afeições humanas;
porque não se deve incluir a Igreja de Deus entre as heranças; se alguém agir deste
modo, a ordenação será inválida e ele próprio será punido com a exclusão.
2352 77. Se um doente, com problemas de olhos ou um estropiado, for digno do episcopado,
admita-se; porque não são os defeitos do corpo que sujam, mas sim as manchas da alma.
2353 78. O surdo-mudo ou o cego não se tornará bispo; não é que esteja sujo, mas para
que os assuntos da Igreja não sofram dano.
2354 79. Se alguém tiver Demónios, não se tornará clérigo; além disso, não fará oração
com os fiéis; depois de purificado, será acolhido, e, se for digno disso, torne-se (clérigo).
2355 80. Não é conveniente que alguém acabado de sair do paganismo e de ser baptizado
ou uma pessoa que levou uma vida desregrada seja promovido rapidamente ao episcopado.
Porque não é justo que alguém que não foi ainda posto à prova ensine os outros, a não
ser que isso talvez aconteça por graça divina.
2356 81. Dissemos que um bispo não deve encarregar-se da administração pública, mas
ocupar-se das necessidades da Igreja; se assim não for, seja deposto. De facto, segundo
o aviso do Senhor, ninguém pode servir a dois senhores22.
2357 82. Não permitimos que os criados sejam escolhidos como clérigos sem o acordo dos
seus patrões; isso far-se-ia com prejuízo daqueles que os adquiriram; tal modo de
proceder dá origem a desordens nas casas. Se acontecer que um criado pareça digno
duma ordenação para um grau (hierárquico), como se viu no caso do nosso Onésimo, se os
patrões consentirem nisso, libertem-no e despeçam-no de suas casas; então será ordenado.
2358 83. O bispo, o presbítero ou o diácono que permanece sob as armas e quer fazer as
duas coisas, exercer simultaneamente o poder romano e a autoridade sacerdotal, deve
ser deposto; porque a César o que é de César e a Deus o que é de Deus 23.
2359 84. Quem ultrajar o rei ou um magistrado com desprezo do direito receberá o castigo
e, se for um clérigo, seja deposto; se for um leigo, seja excluído.
2360 85. Todos vós, clérigos e leigos, venerai e tende por santos os livros da antiga
Aliança: os cinco de Moisés, o de Josué filho de Nun... Procedei do mesmo modo
quanto aos nossos livros, isto é, os da nova Aliança: os quatro Evangelhos, como
dissemos acima, de Mateus, Marcos, Lucas e João, as catorze epístolas de Paulo, a de
Tiago, as três de João, a de Judas, as duas de Pedro, as duas de Clemente e as Consti-
tuições em oito livros, que vos foram transmitidas a vós os bispos por mim, Clemente,
e que não se devem divulgar a toda a gente, por causa dos mistérios que aí são apresen-
tados; e os nossos Actos, de nós os Apóstolos.

21
Deut 19, 15; Mt 18, 16; 2 Cor 13, 1.
22
Mt 6, 24.
23
Mt 22, 21.
A DOUTRINA DOS APÓSTOLOS 575

A doutrina dos Apóstolos 1

1. No ano 339 do Reino dos Gregos, no mês de heziran, no quarto dia deste mês, 2361
que é o primeiro dia da semana e o cumprimento do Pentecostes, nesse mesmo dia os
discípulos vieram de Nazaré da Galileia, do lugar onde foi anunciada a concepção de
nosso Senhor, à montanha chamada Baithe Zaithe. Nosso Senhor estava com eles, mas
eles não O viam.
De manhãzinha, nosso Senhor elevou as mãos e impô-las sobre a cabeça dos
onze discípulos, dando-lhes o dom do sacerdócio. De repente, envolveu-O uma nuvem
luminosa, e eles viram-n’O subir ao Céu, onde Se sentou à direita do seu Pai. Eles
glorificaram a Deus, porque tinham visto a sua ascensão, como Ele o predissera, e
alegraram-se, porque tinham recebido a dextra do sacerdócio da casa de Moisés e de Aarão.
Dali subiram e foram ao andar de cima, onde nosso Senhor tinha celebrado a
Páscoa com eles e onde se tinham feito estas perguntas: Quem entregaria nosso Senhor
aos algozes para O crucificar? E também: Como pregariam eles o seu Evangelho no mundo?
Do mesmo modo que foi nesta sala do andar de cima que teve início o mistério do
seu Corpo e do seu Sangue, que devia reinar no mundo, assim também foi de lá que o
ensinamento da sua pregação começou a ter autoridade no mundo.
Então os discípulos encontraram-se diante desta dificuldade: Como pregariam
eles o seu Evangelho em línguas estrangeiras que não conheciam? E diziam assim uns
aos outros: Ainda que nós estejamos seguros de que Cristo fará prodígios poderosos
pelas nossas mãos e milagres diante dos povos estrangeiros cuja língua nós não conhe-
cemos nem eles conhecem a nossa, quem os ensinará e os informará que é em nome de
Cristo crucificado que estas obras poderosas e estas milagres são feitos?
Enquanto os discípulos falavam deste modo, Simão Pedro levantou-se e disse:
Meus irmãos, não nos compete a nós saber como pregaremos o seu Evangelho. Isso
pertence a nosso Senhor, porque Ele conhece as possibilidades que nós temos para
pregar o seu Evangelho no mundo. Mas nós contamos com a sua assistência, porque
Ele no-la prometeu e nos disse: Quando Eu subir para o meu Pai, enviar-vos-ei o
Espírito, o Paráclito, para que vos ensine tudo o que deveis saber e vo-lo faça conhecer.
Quando Simão Pedro acabou de falar aos Apóstolos seus companheiros, para
lhes lembrar estas coisas, eles ouviram uma voz misteriosa, e um agradável odor, que
não é do mundo, espalhou-se sobre eles. Então, cada um deles, segundo a língua que
tinha recebido, se preparou para ir ao país onde essa língua era falada e compreendida.
E pelo mesmo dom do Espírito que lhes foi dado nesse dia, eles estabeleceram os
ordenamentos e as leis que estavam de acordo com o Evangelho que pregavam, e com
o ensinamento verdadeiro e fiel da sua doutrina.
2. Além disso, os Apóstolos estabeleceram que no primeiro dia da semana teria 2362
lugar um serviço de leitura da Sagrada Escritura e uma oblação. Na verdade, foi no
primeiro dia da semana que nosso Senhor Se elevou do lugar da morte; foi no primeiro
dia da semana que Se manifestou Ele mesmo no mundo; foi no primeiro dia da semana
que Ele subiu ao Céu; e será no primeiro dia da semana que Ele aparecerá, no fim dos
tempos, com os Anjos no céu.
9. Além disso, os Apóstolos estabeleceram que, quando se cumprissem cinquenta 2363
dias após a Ressurreição, se faria a comemoração da sua Ascensão ao Pai glorioso.

1
Doctrina Apostolorum (=W. C URETON , London 1864; R. C ABIÉ , La Pentecôte. L’évolution de la
cinquentaine pascale au cours des cinq premiers siècles, Paris, Desclée 1965).
576 SÉCULO IV

De uma antiga homilia de Sábado Santo 1

2364 Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma grande
solidão. Um grande silêncio, porque o Rei dorme; a terra estremeceu e ficou silenciosa,
porque Deus adormeceu segundo a carne e despertou os que dormiam há séculos. Deus
morreu segundo a carne e acordou a região dos mortos.
Vai à procura de Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Quer visitar os que
jazem nas trevas e nas sombras da morte. Vai libertar Adão do cativeiro da morte, Ele
que é ao mesmo tempo seu Deus e seu Filho.
Entrou o Salvador onde eles estavam, levando em suas mãos a arma vitoriosa da
cruz. Quando Adão, nosso primeiro pai, o viu, batendo no peito, cheio de admiração,
exclamou para todos os demais: «O meu Senhor esteja com todos». E Cristo respondeu
a Adão: «E com o teu espírito». E, tomando-o pela mão, levantou-o dizendo: «Desperta,
tu que dormes; levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará».
«Eu sou o teu Deus que por ti Me fiz teu filho, por ti e por estes que nasceram
de ti; agora digo e com todo o meu poder ordeno àqueles que estão na prisão: ‘Saí’; e
aos que jazem nas trevas: ‘Vinde para a luz’; e aos que dormem: ‘Despertai’. «Eu te
ordeno: Desperta, tu que dormes, porque Eu não te criei para que permaneças cativo
no reino dos mortos. Levanta-te de entre os mortos; Eu sou a vida dos mortos. Levanta-te,
obra das minhas mãos; levanta-te, minha imagem e semelhança. Levanta-te, saiamos
daqui; tu em Mim e Eu em ti, somos um só.
Por ti Eu, teu Deus, Me fiz teu filho; por ti Eu, o Senhor, tomei a tua condição
de servo; por ti Eu, que habito no mais alto dos Céus, desci à terra e fui sepultado
debaixo da terra; por ti, homem, Me fiz homem sem forças, abandonado entre os
mortos; por ti, que saíste do jardim do Paraíso, fui entregue aos Judeus no jardim e no
jardim fui crucificado.
Vê no meu rosto os escarros que por ti suportei, para te restituir o sopro da vida
original. Vê no meu rosto as bofetadas que suportei para restaurar à minha semelhança
a tua imagem corrompida.
Vê no meu dorso os açoites que suportei, para te livrar do peso dos teus peca-
dos. Vê as minhas mãos fortemente cravadas à árvore da cruz, por ti, que outrora
estendeste levianamente as tuas mãos para a árvore do Paraíso.
Adormeci na cruz, e a lança penetrou no meu lado, por ti, que adormeceste no
Paraíso e formaste Eva do teu lado. O meu lado curou a dor do teu lado. O meu sono
despertou-te do sono da morte. A minha lança susteve a lança que estava dirigida
contra ti.
Levanta-te, vamos daqui. O inimigo expulsou-te da terra do Paraíso; Eu, porém,
já não te coloco no Paraíso, mas no trono celeste. Foste afastado da árvore, símbolo da
vida; mas Eu, que sou a vida, estou agora junto de ti. Ordenei aos Querubins que te
guardassem como servo; agora ordeno aos Querubins que te adorem como a Deus,
embora não sejas Deus.
Está preparado o trono dos Querubins, prontos os mensageiros, construído o
tálamo, preparado o banquete, adornadas as moradas e os tabernáculos eternos, aber-
tos os tesouros, preparados para ti desde toda a eternidade o Reino dos Céus».

1
A UTOR DESCONHECIDO , In sancto et magno Sabbato (=PG 43, 439-464; cf. LH, II). Esta homilia é do século
IV mas o seu autor é desconhecido.
SOBRE A PÁSCOA 577

Sobre a Páscoa 1

42 «Quatro são as noites inscritas no Livro das Memórias diante do Senhor do 2365
mundo. A primeira noite, quando Ele Se manifestou para criar o mundo; a segunda,
quando apareceu a Abraão; a terceira, quando apareceu no Egipto: a sua mão matava os
primogénitos do Egipto e a sua direira salvava os primogénitos de Israel; a quarta, será
quando Ele Se manifestar para libertar o povo da casa de Israel do meio das nações. A
todas Ele chamou noites de vigília. Por isso Moisés diz explicitamente: É uma noite de
vigília para a libertação diante de Yahvé, para fazer sair o povo dos filhos de Israel do
país do Egipto. É essa a noite guardada pelo Anjo exterminador, para todos os filhos de
Israel que estavam no Egipto e reservada também para os libertar dos seus exílios, ao
longo de todas as suas gerações...» (cf. Targum do Pentateuco, SCh 256).
Aquela foi uma noite de vigília para o Senhor, quando Ele os fez sair da terra do
Egipto. Aquela noite do Senhor será de vigília para todos os filhos de Israel nas suas
gerações2 .
Esta é a noite predestinada e preparada para a libertação em nome de Javé, para
a saída dos filhos de Israel, libertados da terra do Egipto. Quatro são as noites inscritas
no livro das memórias: A primeira noite foi aquela em que Javé Se manifestou sobre o
mundo para o criar: O mundo estava deserto e vazio e as trevas cobriam a superfície
do abismo. A palavra de Deus era luz e iluminava. E chamou-a primeira noite.
A segunda noite foi quando Javé Se manifestou a Abraão na idade de cem anos e
a Sara, sua mulher, que tinha noventa anos, para que se cumprisse o que diz a Escritura:
Acaso Abraão com a idade de cem anos poderá gerar, e Sara, sua mulher, com a idade
de noventa anos conceber? Isaac tinha trinta e sete anos quando foi oferecido sobre o
altar: os céus desceram e abaixaram-se, Isaac viu a perfeição e os seus olhos ficaram
deslumbrados pelas suas perfeições. E chamou-a segunda noite.
A terceira noite foi quando Javé Se manifestou contra os Egípcios no meio da
noite: a sua mão (esquerda) matava os primogénitos dos Egípcios, e a sua direita
protegia os primogénitos de Israel, para se cumprir a palavra da Escritura: O meu filho
primogénito é Israel. E chamou-a terceira noite.
A quarta noite acontecerá quando o mundo, chegado ao seu fim, for dissolvido.
Os jugos de ferro serão despedaçados e as gerações da impiedade aniquiladas. E Moisés
sairá do deserto... Um caminhará à frente do rebanho e outro sobre a altura duma
nuvem, e a sua palavra caminhará entre os dois e avançarão juntos. É a noite da Páscoa
para o nome de Javé: noite fixada e reservada para a salvação de todas as gerações de
Israel3.

1
A UTOR DESCONHECIDO , Sobre a Páscoa. Este texto é atribuído ao século IV. É um targum de Ex 12, 42.
2
Ex 12, 42.
3
O texto apresenta uma concepção pascal fortemente dominada pela ideia de memorial e de salvação.
578 SÉCULO IV

Códice de Justiniano 1
LIVRO II, TÍTULO XII
LEI III 2

2366 Dias de repouso. 2. Todos os juízes e populações urbanas e todos os que exer-
cem artes e ofícios devem repousar no venerável dia do Sol3. Quanto às populações
rurais, podem tratar livremente e sem qualquer impedimento das culturas dos campos,
pois acontece, com frequência, que não há melhor dia para lançar a semente à terra ou
para cavar vinha. Desse modo não se perderá uma ocasião importante concedida pela
providência celeste4.
LEI VII 5

2367 Dias de repouso. 8 Também são de repouso os dias sagrados, em número de sete,
que precedem e seguem a Páscoa, e bem assim o dia de Natal e da Epifania de Cristo,
e ainda o tempo da comemoração da paixão dos Apóstolos e Mestres de toda a cristandade.
Com razão são celebrados por todos. Na mesma observância incluímos o dia do Sol, ao
qual os nossos antepassados chamaram, com toda a propriedade, dia senhorial6.

Códice de Teodósio 7
LIVRO II

2368 8. 1 O imperador Constantino a Elpídio8. Como nos parecia ser muito indigno que
o dia do Sol, solene pela sua veneração, fosse ocupado em processos judiciários e em
polémicas prejudiciais às partes em litígio, considerámos ser bom e agradável que se
cumpram, naquele dia, os deveres mais solenes contraídos por voto. Por isso, todos
temos o poder de dar a liberdade e de resgatar do estado de escravidão nesse dia
festivo, e não são proibidos os actos sobre esta matéria.
2369 20. A Próculo, prefeito da cidade9. Nos dias de festa em honra do Sol devem proibir-se
os jogos de circo, para que a assistência aos espectáculos não afaste (da celebração)
dos mistérios que as leis cristãs mandam venerar...

1
Codex Iustiniani (=P. K RUEGER , Codex Iustiniani).
2
O imperador Constantino a Elpídio. Elpídio era prefeito da cidade de Roma.
3
Venerabili die solis quiescant.
4
Esta legislação, que reconhece o domingo como dia de repouso oficial, causa surpresa. O que poderá ter
levado o imperador Constantino a promulgá-la no ano 321? (cf. LMD 83, 108-109).
5
Rescrito dos imperadores Valentiniano, Teodósio e Arcádios.
6
De feriis. Sacros quoque Pasquae dies, qui septeno numero vel praecedunt vel sequuntur. Dies etiam
Natalis atque Epiphaniarum Christi, et quo tempore commemoratio Apostolicae Passionis totius
Christianitatis Magistrae a cunctis iure celebratur. In eadem observatione numeramus et dies solis,
quos Dominicos rite dixere maiores. Este texto duma lei civil parece querer indicar que, durante o tempo
das festas, se deixava de trabalhar para possibilitar a celebração da liturgia.
7
Codex Theodosianus (=T H . M OMMSEN , Collectio librorum iuris anteiustiniani, Codex Theodosianus,
Berlim 1890).
8
Esta lei é de 3 de Julho de 321.
9
Esta lei é de 17 de Abril de 322.
INSCRIÇÕES CRISTÃS 579

Inscrições cristãs 1

1. Testemunhos de baptismos de crianças

1.1 A Júlia Florentina, criança muito meiga e inocente, tornada fiel, o seu pai fez este 2370
epitáfio. Nascida pagã na vigília das Nonas de Março antes do dia, quando Zoilo
era corrector da província; tornada fiel dezoito meses e vinte e dois dias mais
tarde, às oito horas da noite, no momento de morrer, ainda sobreviveu quatro
horas, de modo que recebeu de novo o que é costume2; morreu em Hibla no sé-
timo dia das Calendas de Outubro, à primeira hora do dia. Como os seus pais
choravam sem cessar a sua morte, a voz de Deus de majestade elevou-se na noite,
dizendo que proibia que se chorasse sobre a morte. O seu corpo foi enterrado
com o seu caixão, no quarto dia das Nonas de Outubro, pelo presbítero, junto
dos mártires3.
1.2 A Flávia, criança muito meiga, que recebeu a graça da fonte gloriosa de maneira 2371
normal no dia santo de Páscoa, e sobreviveu cinco meses após o santo baptismo.
Viveu três anos, dez meses e sete dias. Flaviano e Arquelaia, seus pais, à sua filha
muito terna. Sepultada a 15 das Calendas de Setembro4.
1.3 Aqui jaz Aurélio Melício, criança cristã, fiel, peregrina, que viveu quatro anos e 2372
dois dias. Morreu no sábado da noite de Páscoa, no decurso da Vigília, durante a
quinta oração. Entregou a alma e foi sepultada no dia do Sol, sexto das Calendas de
Abril5.
1.4 Cheio de inocência, de bondade generosa e de admirável talento, Flávio Aurélio 2373
Leão, neófito, viveu seis anos, oito meses, onze dias. Repousou na paz a 6 das
Nonas de Julho, sob o consulado de Filipe e Sália. Leão, seu pai e... sua mãe
mandaram fazer (este túmulo) para o seu terno filho e para eles 6.
1.5 Aqui repousa Fortúnia, que viveu cerca de quatro anos. Os seus pais mandaram 2374
colocar (este epitáfio) à sua terna filha. Recebeu (o baptismo) no sexto dia... e foi
sepultada a 8 das Calendas de Agosto, sob o consulado de Graciano, pela segunda
vez, e de Probo 7 .
1.6 Desapareceu um inocente. Teve a bondade dos inocentes. Quem não chorou e 2375
derramou lágrimas quentes sobre a tua idade? Em ti estava posta toda a esperança do
futuro para ti, a glória eterna, meu filho Celerino. Fiel, repousas na paz. Viveu
um ano e quatro meses e foi sepultado a 6 das Calendas de Outubro (sob o
consulado de) António e Síagro8.
1.7 Mago, criança inocente, acabas de entrar no meio dos inocentes. Como esta vida 2376
é duradoira para ti! Com que alegria a mãe Igreja te acolhe, ao partires deste
mundo! Seja reprimida a lamentação dos corações, cessem as lágrimas dos olhos9.

1
Inscriptiones latinae christianae veteres (=D IEHL , Roma 1857-1888, Berlim 1961 2 DACL 1/1, 1525).
2
O Viático.
3
Catânia, princípio do séc. IV (=D IEHL , n. 1549).
4
Salona, séc. IV (=D IEHL 1523).
5
Chiusi, 27 de Março de 354 ou 363 ou 376 (=D IEHL , n. 1334).
6
Roma, ano 348 (=D IEHL , n. 1477).
7
Cápua, ano 371 (=D IEHL , n. 1525).
8
Roma, ano 382 (=D IEHL , n. 4700).
9
Roma, séc. IV ou V (=DIEHL , n. 2500 B).
580 SÉCULO IV

2377 1.8 A Flávio Anastácio, filho santíssimo, que viveu sete anos e três meses, Flávio
Félix, ex-prefeito da Anona, da província de África10.

2. Inscrição cristã do Cairo11

2378 Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amen! Oh Deus dos espíritos e
de toda a carne, que destruíste a morte e calcaste aos pés o Inferno, que deste a
vida ao mundo, faz repousar a minha alma, a alma de Papá Pasiné, no seio de
Abraão, de Isaac e de Jacob, no lugar do refrigério, onde não há dores, nem
tristeza, nem gemidos.
Tu que és bom e misericordioso, perdoa-lhe todo o pecado que tenha cometido
por palavras, por acções ou por intenções; perdoa-lhe, porque não há homem
nenhum que possa viver sem pecar. Só Tu és Deus, o único sem pecado. A tua
justiça é eterna, e a tua palavra é a verdade. Tu, que és o repouso, a vida e a
ressurreição, faz repousar a minha alma, a alma de Papá Pasiné.
A Ti seja dada glória, Pai, Filho e Espírito Santo. Amen. Sexagésimo ano da era
dos mártires, dia dezanove de Koiak. Senhor, dá o repouso àquele que traçou estas
linhas.

3. Inscrição cristã de Siracusa

2379 Lembra-te, Senhor, da tua serva Crísides e dá-lhe um lugar de luz, um lugar de
refrigério no seio de Abraão, de Isaac e de Jacob. De feliz memória, descansou no
primeiro das Nonas de Maio12.

Actas dos Mártires 13

Testemunhos relacionados com os mártires 14


2380 1. Devassa levada a cabo por Munácio Félix. Chegados à casa em que os cristãos
costumavam reunir-se, o administrador Félix disse ao bispo Paulo: «Trazei os livros
da vossa lei e tudo o mais que aqui tendes, como está mandado, a fim de obedecer às
ordens dos imperadores». O bispo Paulo disse: «Os livros têm-nos os leitores; pela
nossa parte, entregamo-vos o que aqui temos». O administrador Félix disse ao bispo
Paulo: «Diz quem são os leitores ou manda chamá-los». O bispo Paulo disse: «Todos
os conheceis». Félix, administrador público, disse: «Não sabemos quem são». O bispo
Paulo disse: «Os escrivães da audiência pública, Edúsio e Júnio, conhecem-nos...».

10
Ravena, cerca de 350 (=D IEHL , n. 242 A).
11
Inscrição cristã do Cairo. Esta inscrição é do ano 344.
12
Inscrição cristã, do séc. IV, nas catacumbas de São João de Siracusa (=DACL 1/1, 1525).
13
Actas dos Mártires (=C. Z IWSA , De gesta apud Zenophilum, in CSEL, 26; BAC 75, 964-969. 972-994).
14
M UNÁCIO F ÉLIX , Actas Oficiais (=BAC 75, 964-969). Isto passou-se em Cirta, actual cidade de Constantina,
no norte de África, no dia 19 de Maio de 303.
ACTAS DOS MÁRTIRES 581

2. (Os subdiáconos) Catulino e Marcuclio (depois de entregarem um só códice de 2381


grande tamanho) disseram: «Não temos mais, pois nós somos subdiáconos; os códices
guardam-nos os leitores». Félix, administrador dos bens públicos, disse: «Dizei onde
estão os leitores». Marcuclio e Catulino disseram: «Não sabemos onde vivem». Félix,
administrador público, disse: «Se não sabeis onde vivem, dizei, ao menos, os seus
nomes». Catulino e Marcuclio disseram: «Nós não somos traidores. Estamos aqui:
manda que nos matem». Félix, administrador público, disse: «Prendei-os».
3. Chegados a casa de Eugénio, Félix, administrador público, disse: «Traz os livros 2382
que tens, a fim de obedecer ao mandato». E trouxe quatro códices. Félix, administrador
público, disse a Silvano e a Caroso (subdiáconos): «Descobri os outros leitores».
Silvano e Caroso disseram: «O bispo já disse que os escrivães Edúsio e Júnio os
conhecem a todos. Eles que os descubram em suas casas». Edúsio e Júnio, escrivães,
disseram: «Nós os descobriremos, senhor».
4. E, chegados que foram a casa de Félix, construtor de mosaicos, este apresentou 2383
cinco códices; e em casa de Vitorino, este apresentou oito códices; e em casa de
Projecto, este apresentou cinco códices grandes e dois pequenos; e em casa do gramático
Vítor, Félix, administrador, disse: «Vai buscar os livros que tens, para obedecer ao que
está mandado». O gramático Vítor apresentou dois códices e quatro cadernos. Félix,
administrador público, disse a Vítor: «Vai buscar os livros, pois tens mais». Vítor,
gramático, disse: «Se tivesse mais, mais teria apresentado».
5. Em casa de Eutíquio, natural de Cesareia, Félix, administrador público, disse a 2384
Eutíquio: «Vai buscar os livros que tens, a fim de obedecer ao que está mandado».
Eutíquio disse: «Não tenho nenhum». Félix, administrador público, disse: «A tua
declaração constará das actas».
6. Em casa de Codeano, a sua mulher apresentou seis códices. Félix, administrador 2385
público, disse: «Procura bem, não seja que tenhas mais, e trá-los». A mulher respondeu:
«Não tenho mais». Félix, administrador público, disse a Boi, escravo público: «Entra
e procura, para ver se tem mais». O escravo público disse: «Procurei e não encontrei».
Félix, administrador público, disse a Vitorino, Silvano e Caroso: «Se tiver ficado algum
livro, vós sois responsáveis».

Actas dos santos Saturnino, Dativo


e de muitos outros mártires africanos 15
5. (Os mártires) foram apresentados ao procônsul por oficiais do tribunal, e infor- 2386
maram-no que se tratava dum grupo de cristão enviados pelos magistrados de Abitinas16,
que os tinham surpreendido a celebrar, contra a proibição dos imperadores e Césares,
uma reunião e o dominicum.
O primeiro a quem o procônsul interrogou foi Dativo, perguntando-lhe qual era
a sua condição e se tinha tomado parte na reunião. Tendo confessado que era cristão e
que estivera na reunião... o procônsul perguntou-lhe: «Quem é, juntamente contigo, o
promotor da vossa reunião...»? O mártir respondeu com voz clara: «O presbítero
Saturnino e todos nós...». Disse-lhe o procônsul: «Vais começar a sentir o que vos
espera sofrer». O mártir respondeu-lhe: «Para glória. Dou graças ao Deus dos reinos...».

15
Actas dos mártires de Abitinas (=PL 8, 689; BAC 75, 972-994). Ano 304, sob Dioclesiano.
16
Abitinas ficava situada na África proconsular.
582 SÉCULO IV

O juiz disse-lhe: «O que devias ter feito era observar a ordem dos imperadores e
Césares...». O mártir proclamou: «Só me preocupo com a Lei de Deus que aprendi. É
essa que eu observo, por ela vou morrer, nela quero consumar a minha vida; além dela,
não existe mais nenhuma...». O procônsul disse-lhe: «O teu dever, nesta esplêndida
cidade, era chamar os outros à razão, e não agir contra as ordens dos imperadores e
Césares». Ao que o mártir, com mais fortaleza e constância, respondeu: «Sou cristão».
2387 9. O procônsul disse ao presbítero Saturnino: «Agiste contra a ordem dos impera-
dores e Césares, reunindo todos estes». O presbítero Saturnino, por inspiração do
Espírito Santo, respondeu: «Celebrámos o dominicum sem nos preocuparmos com
isso». Disse-lhe o procônsul: «Porquê»? Respondeu Saturnino: «Porque não se pode
interromper a celebração do dominicum...».
Interrogado sobre se tinha sido o promotor da reunião e os reunira a todos,
respondeu: «Sim, eu estive presente na reunião...». O procônsul perguntou-lhe: «Porque
agiste contra as ordens, Saturnino»? Saturnino respondeu-lhe: «Porque não se pode
interromper o dominicum. É a nossa lei». Replicou-lhe o procônsul: «No entanto, não
devias ter desprezado a proibição dos imperadores, mas observá-la e não agir contra as
suas ordens...».
Entretanto, o presbítero orava ao Senhor com estas palavras: «Peço-Te, Cristo,
escuta-me. Dou-Te graças, meu Deus; manda que eu seja degolado. Suplico-Te, Cristo,
tem compaixão de mim. Filho de Deus, socorre-me». O procônsul disse-lhe: «Porque
agiste contra as ordens»? E o presbítero: «A lei assim o manda, a lei assim o ensina...».
2388 11. O procônsul perguntou ao leitor Emérito: «Foi em tua casa que, contra as ordens
dos imperadores, se fizeram as reuniões»? Emérito, cheio do Espírito Santo, respondeu:
«Sim, foi em minha casa que fizemos o dominicum». O procônsul: «Porque lhes permi-
tiste que entrassem»? Resposta: «Porque são meus irmãos, e não podia proibi-los». O
procônsul: «Mas devias tê-los proibido». Emérito: «Não podia, porque não podemos
viver sem o dominicum...».
Imediatamente o procônsul o mandou estender no cavalete e atormentar... Mas
ele dizia: «Peço-Te, Cristo, vem em meu auxílio...». O procônsul interrompeu-o, di-
zendo: «Não devias tê-los recebido». Ele respondeu: «Não podia deixar de receber os
meus irmãos». O procônsul disse: «Mas antes estava o mandato dos imperadores e
Césares». Replicou o mártir: «Antes está Deus, não os imperadores. Suplico-Te, Cristo.
Dou-Te graças e louvores. Cristo Senhor, dá-me forças para sofrer...».
Enquanto assim orava, o procônsul interveio, perguntando-lhe: «Tens algumas
Escrituras em tua casa»? Respondeu: «Tenho, mas no meu coração». O procônsul:
«Tens algumas em tua casa ou não»? O mártir Emérito disse: «Tenho-as no meu
coração. Suplico-Te, Cristo. Louvo-Te. Livra-me, Cristo. Por teu nome padeço, por
breve tempo padeço, com gosto padeço. Cristo Senhor, não deixes que eu seja confundido».
2389 12. O tirano... dirigiu-se a todo o grupo, dizendo: «Espero que escolhais obedecer às
ordens imperiais, se quiserdes salvar a vossa vida». Os confessores do Senhor, márti-
res invencíveis de Cristo, responderam numa só voz: «Nós somos cristãos e não
podemos guardar senão a lei santa do Senhor, até ao derramamento do sangue».
O procônsul disse a Félix: «Não te pergunto se és cristão, mas se celebraste
reuniões ou tens Escrituras em teu poder...». «Como se o cristão pudesse viver sem
celebrar o dominicum ou o dominicum ser celebrado sem o cristão! Ignoras, Satanás,
que o cristão está ligado ao dominicum e o dominicum ao cristão, de modo que não é
possível que um aconteça sem o outro? Quando ouvires a palavra (dominicum), reco-
nhece a reunião do Senhor, e, quando ouvires a palavra (reunião), reconhece o
dominicum».
ACTAS DOS MÁRTIRES 583

O mártir Félix respondeu: «Sim, celebrámos a nossa reunião com toda a solenidade,
e sempre que nos reunimos para o dominicum é para ler as divinas Escrituras».
13. Depois destes entrou na luta Ampélio, guardador da lei e fidelíssimo conservador 2390
das divinas Escrituras. O procônsul perguntou-lhe se tinha estado na reunião, e ele,
risonho e tranquilo, com voz alegre, respondeu: «Sim, reuni-me com os meus irmãos,
celebrei o dominicum e tenho comigo as Escrituras, mas escritas no meu coração. Dou-Te
graças, Cristo. Escuta-me, Cristo».
14. O jovem Saturnino, filho do presbítero e mártir Saturnino, aproximou-se rapidamente 2391
do combate... O procônsul disse-lhe: «Tu também estiveste na reunião»? Saturnino
respondeu: «Sou cristão». Replicou-lhe o procônsul: «Não te pergunto isso, mas se
fizeste o dominicum»? Saturnino respondeu: «Sim, celebrei o dominicum, porque Cristo
é o nosso Salvador...». O procônsul mandou-o estender no cepo... e disse-lhe: «Tens
algumas Escrituras»? Saturnino respondeu: «Sou cristão». O procônsul disse: «Estou
a perguntar-te se estiveste na reunião e se tens Escrituras». Saturnino respondeu: «Eu
sou cristão, e não há mais nenhum nome, além do nome de Cristo, que devamos guardar
como santo».
Irritado, o procônsul disse: «Já que persistes na tua obstinação, é preciso
submeter-te também a ti aos tormentos. Diz se tens alguma Escritura...». Com voz
forte, Saturnino disse: «Sim, tenho as Escrituras do Senhor, mas no meu coração.
Suplico-Te, Cristo, dá-me força para sofrer. Em Ti está a minha esperança». Anulino
disse-lhe: «Porque agiste contra o mandato»? O mártir respondeu: «Porque sou cristão».
15. Como o dia ia mergulhando na noite... o procônsul disse aos outros confessores: 2392
«Já vistes o que sofreram os que perseveraram e o que terão de sofrer ainda os que
persistirem em confessar-se cristãos. Portanto, aquele de entre vós que quiser alcançar
o perdão e salvar a vida não tem mais do que dizê-lo». A estas palavras, os confessores
do Senhor, os gloriosos mártires de Cristo... responderam a uma só voz: «Somos
cristãos».
16. O procônsul perguntou a Vitória que fé professava, e ela, com voz clara, respondeu: 2393
«Sou cristã». O procônsul: «Queres ir-te embora com o teu irmão Fortunaciano»?
Vitória: «Não quero, porque sou cristã e meus irmãos são os que guardam os manda-
mentos de Deus...».
Anulino... tentou persuadir a menina: «Vê o que fazes...». Respondeu a mártir
de Cristo: «É decisão minha, tomada por mim e que nunca mudei. Eu também estive na
reunião e celebrei o dominicum com os meus irmãos17, porque sou cristã».
17. Faltava Hilariano, um dos filhos do presbítero e mártir Saturnino, ainda criança. 2394
O procônsul perguntou-lhe se tinha seguido o seu pai e os seus irmãos... e o menino
disse: «Sou cristão, e vim à reunião com o meu pai e os meus irmãos porque quis vir...».
Disse-lhe o procônsul: «Vou cortar-te o cabelo, o nariz e as orelhas e depois mando-te
embora». Hilariano... respondeu com voz clara: «Faz o que quiseres, mas eu sou cristão».
O procônsul mandou imediatamente que o metessem também no cárcere. E foi
com grande alegria que se ouviu a voz de Hilariano dizer: «Graças a Deus».

17
In collecta fui, et dominicum cum fratribus meis celebravi.
SÉCULO V

Epifânio de Salamina

Heresias 1
37. 5 (Os Ofitas) alimentam uma serpente numa cesta e, durante os mistérios, pondo 2395
pão na boca da cesta, fazem-na sair para cima da mesa. A serpente, uma vez cá fora,
como é perspicaz e se dá conta da necessidade dos presentes, desliza por cima da mesa
e enrosca-se à volta dos pães. Para eles, é este o sacrifício perfeito. Depois, segundo
me contaram, não só partem e distribuem os pães cheios de baba da serpente, mas cada
um se aproxima a beijá-la. E ela, por arte de encantamento ou por poder diabólico,
mantém-se inofensiva. Adoram-na estupidamente e chamam eucaristia àqueles pães
que a serpente rodeou e tocou com os seus anéis. Finalmente, por meio dela, glorificam
o supremo Criador, e, assim, põem termo aos seus mistérios.
55. Cristo é a vítima, o sacerdote e o altar do seu próprio sacrifício... 2396
75. 3 «Que superioridade, pergunta o herege Aécio, pode pretender o bispo sobre o 2397
presbítero? Em nada se distingue deste. Ambos têm a mesma ordem, a mesma honra, a
mesma dignidade. O bispo impõe as mãos, diz ele, e o presbítero faz o mesmo; o bispo
baptiza, e o presbítero também. Ambos celebram o culto divino: o bispo está sentado
na sede, e o presbítero também».
Ao falar desta maneira, Aécio seduziu muitos que o consideravam chefe... No
entanto, todos os que raciocinam compreendem claramente que seria grande ignorância
afirmar que bispo e presbítero são a mesma coisa. Como é possível? A ordem dos
bispos gera pais para a Igreja; a ordem dos presbíteros, não podendo gerar pais ou
mestres para a Igreja, gera filhos pelo renascimento do baptismo. Como haveria de
ordenar sacerdotes, se não possui a faculdade de administrar a ordem sacerdotal?...
8 Sobre o costume de ler os nomes dos defuntos (no sacrifício) pergunto: Que
poderá haver de mais útil, de mais conveniente, de mais proveitoso e de mais admirável
do que todos os presentes acreditarem que os defuntos estão vivos, junto do Senhor,
e não deixaram de existir? Procedendo deste modo, a todos se torna manifesto que
aqueles que oram pelos seus irmãos defuntos têm esperança de que eles estão vivos e
que só estão afastados por algum tempo. A sua oração ajuda os defuntos, ainda que por
ela não fiquem perdoadas todas as dívidas... A Igreja deve guardar esta tradição, uma
vez que a recebeu dos seus maiores... Nós fazemos, portanto, memória dos justos e
dos pecadores, pedindo a Deus que tenha piedade deles.

1
EPIFÂNIO DE SALAMINA, Pana/ria ou Hae/resej (=PG 41, 173–42, 832; GCS 25. 31. 37). Epifânio nasceu na Judeia
por volta de 315. Foi monge no Egipto e depois bispo de Salamina, na ilha de Chipre. Adversário das heresias, da
cultura grega e da teologia especulativa, e grande adversário do culto das imagens. Morreu em 403.
586 SÉCULO V

Homilia pascal 2
2398 7. Segundo o apóstolo Paulo, Cristo é o princípio, quer dizer, o autor da ressurreição
e da vida; vêm depois os que são de Cristo, isto é, os que, vivendo na imitação da sua
santidade, podem considerar-se seguros na esperança da ressurreição e receber com
Ele a glória da promessa celeste. O mesmo Senhor no-lo assegura no Evangelho: Quem
Me seguir não perecerá, mas passará de morte para a vida. Deste modo, a Paixão
do Salvador é a salvação da vida humana. Precisamente para isso quis Ele morrer por
nós, a fim de que nós, acreditando n’Ele, vivamos para sempre. Ele quis, por algum
tempo, reduzir-Se à nossa condição humana, para que nós, obtida a promessa da sua
eternidade, com Ele vivamos para sempre.
É esta a grande graça dos mistérios celestes, este o dom da Páscoa, esta a solenidade
anual sempre esperada, este o princípio da nova criação. Nesta solenidade os novos
filhos que são gerados nas águas vivificantes da santa Igreja, com a simplicidade de
crianças recém-nascidas, fazem ouvir as vozes da sua consciência inocente; nesta
solenidade, os pais e mães cristãos obtêm, por meio da fé, uma nova e inumerável
descendência.
2399 8. Nesta solenidade, brilha o esplendor dos círios, sob a árvore da fé, com o fulgor
que irradia da imaculada fonte baptismal; nesta solenidade, desce do Céu o dom da
graça que santifica os recém-nascidos e o sacramento espiritual do mistério admirável
que os alimenta.
Nesta solenidade, a assembleia dos fiéis, alimentada no regaço maternal da santa
Igreja, formando um só povo e uma só família, adorando a Unidade da natureza divina
e o nome da Trindade omnipotente, entoa com o Profeta o salmo da grande festa anual:
Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria.
2400 9. Mas, pergunto, que dia é este? É o dia que nos trouxe o princípio da vida, a
origem e o autor da luz, o próprio Senhor Jesus Cristo, que de Si mesmo afirma: Eu sou
o dia: quem caminha de dia não tropeça: isto é, aquele que em todas as coisas segue a
Cristo chegará, seguindo os seus passos, ao trono da eterna luz. Assim pedia Ele ao Pai,
em nosso favor, quando ainda vivia no seu corpo mortal, ao dizer: Pai, quero que onde
Eu estou, aí estejam também os que acreditaram em Mim, para que assim como Tu
estás em Mim e Eu em Ti, assim também eles permaneçam em Nós.

Cartas 3

CARTA A JOÃO DE JERUSALÉM

2401 9. Cheguei a uma vila chamada Anablata e, ao passar, vi que ardia ali uma lâmpada.
Perguntei que lugar era aquele, e, ao saber que era uma igreja, entrei para orar. Encontrei
lá uma cortina que pendia das portas da igreja, tecida e bordada, com uma imagem de
Cristo ou de um santo, não me lembro bem qual. Ao vê-la, irritado pelo facto de que
uma imagem ali estivesse pendente, contra a doutrina das Escrituras, arranquei-a e
disse aos que guardavam o lugar que a usassem como sudário, para alguma pessoa pobre.

2
EPIFÂNIO DE SALAMINA, Homilia pascal (=PL 17, 696-697; cf. LH, II). Homilia atribuída a Epifânio de Salamina.
3
E PIFÂNIO DE S ALAMINA , Epistulae (=PG 43, 379-392; CSEL 54-55). Esta carta deve ser do ano 393.
PRUDÊNCIO 587

Prudêncio

As coroas 1
11. Hino em honra de Hipólito. Assim é a cripta à qual confiaram o corpo de Hipó- 2402
lito, no lugar onde elevaram um altar consagrado a Deus. Este altar é simultaneamente
a mesa onde se distribui o Santíssimo Sacramento e o guarda fiel do mártir que aí
repousa. Ele conserva no seu sepulcro os restos mortais do Santo, na esperança do juiz
eterno, e, ao mesmo tempo, alimenta com o manjar sagrado os que habitam perto do Tibre.

Cromácio de Aquileia

Sermões 2

SERMÃO 3 3

8. O lençol que desceu três vezes do céu para lá subiu, a fim de aí permanecer. Com 2403
efeito, é só pelo mistério da Trindade que podemos ser lavados e purificados dos
nossos pecados. Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo é-nos dada a graça do
baptismo que nos purifica de toda a mancha do pecado. Reconhecendo a grande mise-
ricórdia que nos foi feita, de termos sido chamados a uma tão grande graça, apesar da
nossa indignidade, vivamos com piedade e justiça sob o olhar de Cristo...
SERMÃO 8 4

1. A solenidade deste dia traz em si uma grande graça festiva. Com efeito, foi no 2404
quadragésimo dia após a Ressurreição, como vossa Dilecção acaba de ouvir na primeira
leitura, que nosso Senhor e Salvador, na presença dos seus discípulos e sob o seu olhar,
subiu ao Céu com o seu corpo...
4. Tendo a carne da nossa natureza subido hoje ao Céu no corpo de Cristo, convém, 2405
na verdade, que celebremos a solenidade deste dia e que vivamos de tal modo na vida
presente que mereçamos, na vida futura, tornar-nos participantes da glória do corpo
de Cristo no Reino dos Céus.

1
P RUDÊNCIO , Peristephanon (=PL 60, 275-590; CCL 126; CSEL 61; BAC 58). Prudêncio nasceu em
Espanha, no ano 348, e morreu depois de 405. Foi poeta dos mártires cristãos.
2
CROMÁCIO DE AQUILEIA, Sermones (=PL 20, 323-574; CCL 9 A; SCh 154. 164). Cromácio viveu de 348 a 407.
3
Sermão sobre o centurião Cornélio e Simão Pedro. O final é sobre o baptismo.
4
Sermão para a Ascensão.
588 SÉCULO V

SERMÃO 14 5

2406 1. Quando nosso Senhor e Salvador veio a Jerusalém, como vossa Dilecção acaba
de ouvir na presente leitura, encontrou aí uma piscina com cinco pórticos... Pois bem,
esta piscina era a imagem perfeita do baptismo que havia de vir...
2407 4. Antes de te aproximares do baptismo, perguntaram-te se renunciavas ao mundo,
às suas pompas e às suas obras. Respondeste que renunciavas a tudo isso, e foi assim
que te aproximaste da graça do baptismo eterno. As tuas palavras conservam-se junto
de Deus, a tua resposta está inscrita nos Céus... Conservaremos sempre as vestes
brancas, se guardarmos intacta a graça do nosso baptismo. Teremos sempre óleo na
cabeça, se guardarmos o crisma da salvação que recebemos...
SERMÃO 15 6

2408 6. O Senhor lavou os pés dos seus discípulos, para que não fique em nós qualquer
traço do pecado que tinha manchado Adão. Agora, com efeito, o Senhor lava os pés dos
seus servos, daqueles que Ele convida para a graça do baptismo salvador. Mesmo que
este ofício pareça exercido por homens, no entanto, é uma obra d’Aquele que é o autor
deste dom, e é Ele que realiza o rito que Ele próprio instituiu. Nós realizamos o ofício,
mas é Ele que concede o benefício. O ofício pertence-nos a nós, a ordem vem d’Ele. A
graça vem d’Ele, apesar de sermos nós que realizamos o serviço. Nós lavamos os pés dos
corpos, Ele lava os pés da alma; nós mergulhamos o corpo na água, Ele perdoa os
pecados; nós baptizamos, Ele santifica. Nós, na terra, impomos as mãos, Ele, do Céu,
dá o Espírito Santo. É por isso, catecúmenos, meus filhos, que vos deveis apressar em
receber a graça do baptismo, para depordes as manchas do pecado e vos tornardes
perfeitamente puros aos olhos de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo...
SERMÃO 16 7

2409 1. Todas as vigílias que se celebram em honra do Senhor são agradáveis e aceites
por Deus; mas esta vigília está acima de todas as vigílias. Ela é chamada por excelência
a vigília do Senhor. Com efeito, está escrito: Esta é a vigília do Senhor que todos os
filhos de Israel devem guardar 8. É com toda a razão que ela é chamada vigília do
Senhor, pois de facto Ele esteve de vela durante a vida, para que nós não adormecêssemos
na morte. No mistério da Paixão Ele recebeu por nós o sono da morte, mas aquele sono
do Senhor tornou-se a vigília de todo o mundo, pois a morte de Cristo expulsou de nós
o sono da morte eterna. Ele próprio diz isso por meio do Profeta: Então, despertei e
reparei quão doce tinha sido o meu sono 9. Aquele sono de Cristo tornou-se doce,
porque Ele nos chamou da morte amarga à doce vida.
Enfim, esta noite é chamada vigília do Senhor, porque Ele esteve de vela mesmo no
seu próprio dormir da morte. Isso mesmo o mostra Ele pela boca de Salomão, quando
diz: Eu dormia, mas de coração desperto10, aludindo claramente ao mistério da sua
divindade e da sua carne. Ele dormia na carne, mas estava desperto na divindade, que
não podia dormir...

5
Sobre o baptismo. É a única homilia de Cromácio aos neófitos, chegada até nós.
6
Sermão do lava-pés.
7
É este o primeiro sermão sobre a Noite santa.
8
Ex 12, 42.
9
Jer 31, 26.
10
Cant 5, 2.
CROMÁCIO DE AQUILEIA 589

2. Os Anjos no Céu, os homens na terra e as almas dos fiéis na morada dos mortos11 2410
celebram esta vigília do Senhor... Os homens celebram-na na terra, porque foi pela
salvação do género humano que Cristo sofreu a morte, para vencer a morte pela sua
morte. As almas dos fiéis celebram-na também na morada dos mortos, porque Cristo desceu
aos infernos precisamente para fazer cessar o reino da morte e dos infernos sobre eles...
Mas devemos dizer ainda mais: esta vigília do Senhor, celebra-a também o Pai
com o Filho e o Espírito Santo, porque foi segundo a vontade do Pai que o Filho sofreu
a morte, para nos dar vida pela sua morte. Esta vigília não é, portanto, uma festa
apenas para os homens e para os Anjos, mas também para o Pai e o Filho e o Espírito
Santo, porque a salvação do mundo é a alegria da Trindade. Eis por que devemos
celebrar com toda a devoção as vigílias desta tão grande noite...
3. É, pois, com toda a razão que esta noite é chamada vigília do Senhor, porque se 2411
celebra no mundo inteiro em honra do seu nome. Tão numerosas são as orações de cada
um como os seus desejos; são tantas as luzes como os votos e os méritos. As trevas da
noite são vencidas pela luz da nossa devoção...
4. Dado que foi nesta noite que, outrora, os primogénitos dos Egípcios foram 2412
mortos e os filhos de Israel libertados, peçamos ao Senhor, com todo o nosso coração,
com toda a nossa fé, que Se digne livrar-nos de todos os ataques dos nossos inimigos
e de todo o temor dos nossos adversários. Que Ele não olhe para os nossos méritos,
mas para a sua própria misericórdia, pois Se dignou, outrora, libertar também os filhos
de Israel, não pelos seus méritos, mas em virtude da sua própria misericórdia... É Ele
que combate, é Ele que obtém a vitória, se perdoa os pecados, se não tem em conta os
nossos méritos, mas a sua própria clemência, pois costuma ter piedade, mesmo dos
indignos. Para que Ele Se digne fazê-lo, devemos nós orar quanto pudermos...
SERMÃO 17 12

1. O mundo inteiro, através do qual se celebra durante toda esta noite a Vigília pascal, 2413
dá testemunho da grandeza da solenidade da presente noite. E com razão, porque foi
nesta noite que a morte foi vencida, que a Vida ficou viva, porque Cristo ressuscitou dos
mortos...
3. Eis o tempo da Páscoa... Moisés chamou à solenidade deste tempo a primeira do 2414
princípio do ano. Por isso, é conveniente contar o princípio do ano a partir deste
tempo em que fomos salvos da morte. Por conseguinte, os pagãos, que consideram o
mês de Janeiro como o primeiro mês, enganam-se muito. Como é que o mês de Janeiro
poderia ser o primeiro mês do ano, se esse é o mês em que o mundo inteiro está, de
algum modo, sem beleza e árido? Porque então não há nem verdura sobre a terra, nem
flores nas árvores, nem rebentos nas videiras.
O primeiro mês do ano não é, pois, Janeiro, durante o qual tudo está morto, mas
sim o tempo da Páscoa, quando tudo volta à vida. Porque é agora que a erva dos
prados, de algum modo, ressuscita da morte; é agora que há flores nas árvores e que as
vinhas rebentam; é agora que o próprio ar está como que alegre por principiar um ano
novo; é agora que o timoneiro pode, com toda a segurança, andar sobre o caminho do mar.
Este tempo da Páscoa é, pois, o primeiro mês, o tempo novo, no qual os próprios
elementos do mundo se renovam. E não é nada de admirar que o mundo se renove neste
tempo, pois foi neste dia que o género humano foi renovado. Com efeito, através do
mundo, inumeráveis são os povos que a água do baptismo hoje ressuscita para uma
vida nova...

11
Ad infera.
12
Segundo sermão para a grande Noite.
590 SÉCULO V

2415 4. Nós, que acreditamos que o tempo da Páscoa é verdadeiramente o ano novo,
devemos celebrar este santo dia com todo o júbilo, exultação e alegria de alma, a fim de
dizermos, com toda a verdade, este refrão do salmo que acabamos de cantar: Eis o dia
que o Senhor fez; nele exultemos e nos alegremos. Podemos dizê-lo com toda a confiança,
se obedecermos em tudo aos seus mandamentos, de modo a chegarmos à vida eterna e
à alegria perpétua do Reino dos Céus.
SERMÃO 17 A 13

2416 1. A verdadeira Páscoa é a Paixão de Cristo, porque páscoa vem de paixão. Mostra-
-o claramente a palavra do Apóstolo, quando diz: A nossa Páscoa imolada é Cristo14...
2417 2. Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco15. Nós comemos, portan-
to, a Páscoa com Cristo, porque Ele próprio é o alimento daqueles que salva; é Ele o
autor da Páscoa, o autor deste mistério. Ele levou a cabo a festividade desta Páscoa, a
fim de nos restaurar com o alimento da sua Paixão, e de nos tornar novos com o cálice da
salvação.
SERMÃO 18 16

2418 3. Carnal é o nascimento que vem do homem, espiritual o nascimento que vem de
Deus; um vem do homem, o outro de Deus; um faz nascer um homem, o outro gera para
Deus. Um dá à luz para a terra, o outro envia para o Céu. Um abre o caminho do tempo,
o outro, o caminho da eternidade; um, enfim, gera filhos dos homens, o outro, filhos de
Deus. Com efeito, o nascimento espiritual realiza-se todo de forma invisível, como o outro
se realiza de maneira visível. Nós vemos bem aquele que é baptizado mergulhar na
fonte e vemo-lo subir da água; mas o que se passa neste banho não se vê; só a assem-
bleia dos fiéis compreende espiritualmente que é um pecador que desce à água e que
dela sobe puro de todo o pecado. Feliz e verdadeiramente celeste é este nascimento que,
de filhos dos homens, faz filhos de Deus...
2419 4. Como vós, candidatos ao baptismo, meus filhos17, deveis renascer na inocência
pela graça de Deus, depois de rejeitar toda a velhice do pecado, deveis também guardar
intacta e sem mancha a graça do vosso nascimento, para poderdes, com toda a verdade,
ser chamados e ser verdadeiramente filhos de Deus e ser encontrados dignos de entrar
no Reino dos Céus. Porque este nascimento torna dignos do Reino dos Céus, segundo
a palavra do Senhor que vossa Dilecção acaba de ouvir: Quem não renascer da água e
do Espírito Santo, não pode entrar no Reino dos Céus. E acrescenta: O que nasceu da
carne é carne, uma vez que nasceu da carne, mas quem nasceu do Espírito é espírito.
Como ousaram os hereges negar que o Espírito Santo é Deus, quando vêem o Filho de
Deus declarar manifestamente que o Espírito Santo é Deus? Assim, o nosso nascimento
espiritual não acontece sem o Espírito Santo, e com razão, porque, assim como a nossa
primeira criação foi obra da Trindade, assim a nossa segunda criação é obra da Trindade.
O Pai nada faz sem o Filho, nem sem o Espírito Santo, porque o que é obra do Pai
também o é do Filho e o que é obra do Filho também o é do Espírito Santo. Com efeito,
há apenas uma única e mesma graça da Trindade. Nós agora somos salvos pela Trindade,
porque não existiríamos se a Trindade não nos tivesse criado na origem...

13
Sermão na manhã da Páscoa, após a longa Vigília. Por isso é muito curto.
14
1 Cor 5, 6.
15
Lc 22, 15.
16
Sermão sobre Nicodemos e o baptismo.
17
Filii competentes.
CROMÁCIO DE AQUILEIA 591

SERMÃO 26 18

1. Devemos dar indizíveis graças a Deus, que assim acabou de ornar a sua igreja: a 2420
basílica em honra dos Santos 19 terminou, e muito depressa. Foi o exemplo das outras
igrejas que suscitou em vós semelhante devoção; mas nós felicitamo-nos pela vossa fé:
ultrapassastes aqueles que vos davam o exemplo: começastes mais tarde do que eles,
mas terminastes antes, porque fostes os primeiros a merecer possuir as relíquias dos
Santos.
Nós recebemos de vós as relíquias dos Santos, e vós recebestes de nós o zelo da
devoção e o estímulo da fé. Foi uma boa luta, um combate religioso, no qual não se
rivaliza em inveja deste mundo, mas em dons da graça. Nós tomámos com religiosa
avidez o que vos tinha sido trazido das relíquias dos Santos; mas, por este mesmo
facto, despertámos o vosso zelo, para que nos pedísseis ao menos uma parte. Não vo-lo
podíamos recusar, porque o vosso pedido era justo. Demo-vos uma parte, para que
tenhais a totalidade nesta parte, sem que nós percamos nada do que nos tinha sido dado...
Portanto, a igreja da Concórdia viu-se ornada com as relíquias dos Santos, com a
construção duma basílica e com o ministério dum bispo20. Porque este santo homem,
meu irmão no episcopado, mereceu a honra do sumo sacerdócio, ele que, por estas
santas relíquias, honrou a Igreja de Cristo, Sacerdote eterno.
SERMÃO 33 21

1. Há uma palavra hebraica que ressoa sem cessar na Igreja e nos convida a louvar 2421
a Deus e a confessar a verdadeira fé: é a palavra Aleluia. Com efeito, Aleluia, traduzido de
hebreu para latim significa: Cantai para Aquele que é, ou: Senhor, abençoai-nos a
todos, ou ainda: Louvai o Senhor, coisas que são todas indispensáveis à nossa salva-
ção e à nossa fé...
4. Vê a riqueza de graça desta interpretação! Cada um responde Aleluia e pede a 2422
bênção para todos, a fim de sermos abençoados todos em conjunto. É pelo facto de,
todos juntos, formarmos o único Corpo da Igreja, que todos devemos louvar a Deus
numa só voz, num só espírito, quer dizer, num só coração, numa só fé, numa única
esperança, numa só caridade...
SERMÃO 40 22

1. Entre outros ensinamentos salutares, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo deu 2423
aos seus discípulos, que lhe perguntavam como deviam orar, esta forma de oração, da
qual acabais de tomar mais amplo conhecimento pela presente leitura. Escute agora a
vossa Dilecção como é que Ele ensinou os seus discípulos a orar a Deus, o Pai todo-
-poderoso: Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta, e ora ao teu Pai. Ao
referir-se a um quarto, não está a falar de uma divisão retirada da casa, mas recorda que
os segredos do nosso coração só a Ele se descobrem. A obrigação de rezar a Deus com
as portas fechadas, significa que devemos misticamente fechar o coração a todo o mau
pensamento, como se o fizéssemos com uma chave e, de boca fechada, falar a Deus
com espírito puro. Deus escuta a voz da fé e não o som das palavras. Fechemos pois
o nosso coração, com a chave da fé, aos enganos do Adversário, e abramo-lo só a Deus.
Sabemos que este coração é um templo. Assista-nos, quando oramos, Aquele que aí
habita.
18
Dedicação da igreja da Concórdia.
19
Santos apóstolos André e Tomé.
20
Summi sacerdotis.
21
Homilia de Santo Agostinho sobre o Aleluia.
22
Explicação da Oração dominical.
592 SÉCULO V

João Crisóstomo

Oito catequeses baptismais 1

CATEQUESE I
Aos que vão ser iluminados

2424 1. Núpcias espirituais e milícia de Cristo. Tempo de alegria e de regozijo espiritu-


al é este em que estamos. Eis que chegaram... os dias das núpcias espirituais. Podemos,
na verdade e sem engano, chamar núpcias ao que hoje se cumpre; e não somente
núpcias, mas ainda admirável e insólito alistamento...
2425 2. Na verdade, hoje há alegria no Céu e na terra. Com efeito, se é tão grande o
regozijo por um só pecador que se converte, com mais forte razão, por uma multidão
tão grande que, num só impulso e rindo-se das ciladas do Diabo, veio ao rebanho de
Cristo, para nele se inscrever com ardor...
2426 8. Chegou agora para nós o momento de proclamarmos estas palavras, perante os
que desejam o jugo de Cristo e acorrem a este alistamento espiritual, e dizermos a cada
um dos presentes, mudando um tanto os termos do Profeta: Esquecei-vos completamente
do vosso passado, vós, os novos soldados de Cristo; lançai no esquecimento a
vossa libertinagem. Ouvi e prestai atenção, e aceitai esta admoestação salutar2.
2427 9. Ouve, filha, diz o salmista, vê e presta atenção; esquece o teu povo e a casa
de teu pai. Tu vês que é, na verdade, a mesma exortação que o Profeta dirigiu ao universo
inteiro e que nós dirigimos hoje à vossa caridade. Ao dizer esquece o teu povo, quis ele
significar a idolatria, a ilusão e o culto dos Demónios. E a casa de teu pai, isto é,
esquece o teu comportamento anterior, que te levou a este repugnante estado... Faz
isto somente, renuncia ao teu povo e à casa de teu pai, isto é, ao fermento velho e à
malícia com que gastaste a frescura da alma ao mesmo tempo que a do corpo, e o Rei
há-de enamorar-Se da tua beleza.
2428 18. Reflecti em tudo isso, vós, os novos soldados de Cristo, e não olheis para a
grandeza das vossas misérias, nem tenhais em conta o excesso dos vossos pecados.
Ou, antes, recapitulai rigorosamente tudo isso e, mesmo assim, não hesiteis de modo
algum. Conheceis a generosidade do Senhor e o excesso da sua graça, a grandeza do dom
que vos fez. Vós todos, pois, que aqui merecestes ser inscritos no número dos seus
cidadãos, aproximai-vos dele cheios de boa vontade. Renunciai a tudo o que até agora
fizestes, e que a adesão sem reservas do vosso pensamento mostre a mudança operada.
2429 20. Crer no Pai e no Filho e no Espírito Santo. Visto que o fundamento da piedade
é a fé, digamos perante vós algumas palavras sobre esta, a fim de que, depois de termos
assentado este fundamento inabalável, possamos em seguida erguer sem receio o edifício
inteiro. É necessário, pois, que aqueles que se fazem inscrever nesta milícia especial
creiam em Deus, Senhor do universo, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, causa de todas
as coisas, inexprimível, incompreensível, que não pode ser explicado, nem por palavras
nem por pensamentos, que tudo criou por benevolência e bondade.

1
J OÃO C RISÓSTOMO , Oito catequeses baptismais (=PG 49, 223-240; SCh 50 bis; Verbo [Origens do
Cristianismo 1], Lisboa 1974, com ligeiras modificações). João Crisóstomo nasceu talvez em 354 e
morreu em 407. As Catequeses baptismais devem ter sido pronunciadas entre 386 e 398.
2
Cf. Sal 45, 11.
JOÃO CRISÓSTOMO 593

21. E em nosso Senhor Jesus Cristo, seu único Filho, em tudo semelhante e igual ao 2430
Pai, possuindo perfeita semelhança com Ele, consubstancial ao Pai, mas conhecido na
sua própria hipóstase, que procede do Pai de maneira inefável, anterior ao tempo e
Criador do mundo e de todos os séculos, e que, nos últimos tempos, por causa da nossa
salvação, tomou a forma de escravo e Se fez homem, Se comprometeu na natureza
humana, foi crucificado, ressuscitou ao terceiro dia.
22. O Filho é semelhante ao Pai segundo a substância, pois foi Ele próprio que disse: 2431
Assim como o Pai ressuscita os mortos e lhes dá vida, assim também o Filho dá vida
àqueles que quer3. Em tudo mostra Ele que o seu poder é igual ao do Pai... A substância
do Pai e do Filho e do Espírito Santo é uma só, mas há três Pessoas. O Pai, com efeito,
não pode ser chamado Filho, nem o Filho ser chamado Pai, nem o Espírito Santo de outra
maneira que não seja com este mesmo nome...
23. É, com efeito, necessário que esta outra verdade fique gravada no nosso pensa- 2432
mento: que também o Espírito Santo compartilha da mesma dignidade, segundo a
palavra de Cristo aos discípulos: Ide, ensinai todas as nações, e baptizai-as em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo 4.
24. Tu viste uma confissão perfeitamente exacta, um ensinamento isento de qualquer 2433
equívoco? Que ninguém, doravante, venha perturbar-te, substituindo os dogmas da
Igreja pelas invenções do seu próprio raciocínio, querendo confundir a fé sã e justa.
Afasta-te da companhia de semelhantes pessoas como de drogas perigosas; tais pessoas
são mais perniciosas do que as drogas, pois o veneno faz mal apenas ao corpo, e essas
pessoas comprometem a própria salvação da alma. Aí está porque, já desde o começo
e bem desde o princípio, é conveniente que eviteis essas conversações, até que possais,
com o tempo, devidamente equipados com as armas espirituais, que são os testemunhos
tirados da divina Escritura, tapar a boca à sua desavergonhada linguagem.
25. Abraçar o jugo de Cristo. Assim, no que respeita aos dogmas da Igreja, é este 2434
o rigor que nós queremos ver em vós... Mas, como é necessário que os que professam
esta fé brilhem também pela orientação do seu comportamento, necessário é também
instruir a este respeito os que vão ser julgados dignos do real dom...
26. Apreciai, pois, o dom tão grande da divina bondade e preparai-vos antecipada- 2435
mente e, desde já, abstendo-vos do mal e exercitando-vos nas boas obras...
27. Reparastes na superabundância de bondade, na generosidade do chamamento? 2436
Vinde a Mim, diz Ele, todos os que andais cansados e abatidos...5 Não só os chefes,
mas também os subordinados; não só os ricos, mas também os pobres; não só os
homens livres, mas também os escravos; não só os homens, mas também as mulheres;
não só os jovens, mas também os velhos; não só os saudáveis, mas também os estro-
piados e coxos; vinde todos...; toda a desigualdade deste género é aqui destruída.
28. Repara a quem o chamamento se dirige. Aos que se dissiparam nas iniquidades, 2437
aos oprimidos pelo fardo dos seus pecados, aos que já não capazes de erguer a cabeça,
aos que estão acabrunhados de humilhações e aos que já não têm mais nada de que se
possam valer. E por que motivo os chama Ele? De modo algum para lhes pedir contas
ou enviá-los a tribunal. Então porquê? Para os aliviar das suas penas e tirar-lhes o
pesado fardo. Haverá, na verdade, algo mais penoso que o pecado?...
29. Depois ensina-nos Cristo o modo de conseguir tal alívio ao acrescentar: Tomai 2438
sobre vós o meu jugo. Aceitai o meu jugo, diz Ele. Não vos assuste esta palavra jugo.
Pois ele não vos esfola o pescoço, nem, de modo algum, vos faz cair a cabeça por terra.
Pelo contrário, esse jugo ensina-vos a pensar nas coisas do alto...

3
Jo 5, 21.
4
Mt 28, 19.
5
Mt 11, 28-29.
594 SÉCULO V

2439 30. O homem manso e humilde de coração. Aquele que mereceu pôr-se sob este jugo
e que foi capaz de aprender do Mestre a mansidão e a humildade de coração encontrará
o pleno repouso da alma. Nisso está, com efeito, o principal da nossa salvação...
2440 31. Quem se tornar humilde de coração não poderá jamais ter inveja dos bens do
próximo; não roubará, não será ambicioso; longe de desejar as riquezas, abandonará,
pelo contrário, o que possui, dando testemunho de grande compaixão pelo seu semelhante;
não irá quebrar o casamento de outrem... Esse caminhará pelos passos do Mestre.
2441 32. Aquele que tomar sobre si este jugo deve esquecer toda a vida passada... Devemos,
pois, montar guarda rigorosa no limiar da nossa vista... E tal rigor não deve ser apenas
para os olhos, mas também para a boca... É ainda necessário refrear as outras paixões...
2442 33. Seria necessário extirparmos estes vícios todos e esforçarmo-nos por adquirir o
fruto do Espírito, que é caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, mansidão,
temperança...
2443 34. Os verdadeiros adornos da mulher. As mulheres expulsem, doravante, quaisquer
cuidados exagerados com os adornos exteriores e com o fausto do vestuário, e que o
zelo seja posto por inteiro a modelar as feições da alma, de maneira a tornar a sua
beleza mais brilhante. Fora com os vestidos de seda, com os artigos de seda tecida, com
os colares de ouro... O que equivale a dizer: Mulher, tu queres que, pelos teus adornos,
te dirijam cumprimentos ou que olhem para ti; e eu quero que não recebas cumprimentos
apenas dos humanos teus semelhantes, mas que provoques os cumprimentos do Se-
nhor de todas as coisas.
2444 38. É conveniente e salutar a total abstenção das pinturas. Mas, se a essa abstenção
se recusam aquelas que são prisioneiras desse mau hábito, abstenham-se ao menos
quando se dirigem à casa de oração...
2445 39. Contra os agoiros, juramentos e espectáculos. Peço, enfim, aos homens e às
mulheres que evitem absolutamente os agoiros e as práticas supersticiosas. Isso não
passa de... desvarios dos que ainda permanecem sob o império do erro: inquietar-me
com o grito do corvo, com o ruído de um ratinho, ou com o estalido da madeira...
2446 40. Não penseis que isso sejam pequenas coisas sem importância... Vós, os novos
soldados de Cristo, homens e mulheres... afastai desde agora qualquer hábito deste
género, pensando que ides receber o Rei do universo...
2447 41. Se tivermos um inimigo, reconciliemo-nos com ele...; perdoemos ao próximo os
agravos que dele sofremos... Se alguém tem letras de crédito com os respectivos juros,
rasgue-as... Numa palavra, cada um tome a iniciativa e faça o que puder, a fim de
receber o perdão mais abundante do Senhor.
2448 42. Ensinai os vossos lábios a não se comprometerem em juramentos falsos...
2449 43. Nada mais sintas que desprezo... pelo sanguinário prazer dos combates de feras.
Que prazer pode existir em ver o teu semelhante, irmão teu na humana natureza,
despedaçado pelos cruéis animais?
2450 44. Honrar o nome de cristão. Se é grande a dignidade que vais receber, que ela te
acompanhe ao longo do tempo presente e, então, te seguirá na vida futura. Qual é,
pois, esta dignidade? Doravante serás chamado cristão, pela graça de Deus, e fiel... Em
breve, vais revestir-te de Cristo. Assim, é com o pensamento de que Cristo está em
todo o lado contigo que tu deves agir e decidir em tudo.
2451 46. Fugi de todos os funestos engodos do Diabo e, a tudo, preferi a frequência da
igreja... Passemos o dia inteiro, quer em orações e acções de graças, quer na leitura e no
arrependimento da alma. Ponhamos todo o zelo em ter apenas conversas espirituais...
2452 47. Se tiverdes esta preocupação..., inclinareis Deus para maior benevolência, vós
próprios gozareis de uma segurança mais livre, e nós vos daremos com grande ardor a
JOÃO CRISÓSTOMO 595

continuação deste ensinamento... Possais vós merecer abundantemente o dom de Deus,


e possamos nós obter a sua benevolência. Pela graça e misericórdias do seu Filho único,
com o qual seja para o Pai, assim como para o Espírito Santo, glória, poder, honra, agora
e sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.

CATEQUESE II
Aos que vão ser iluminados

1. Pois bem, dirijamos de novo algumas palavras aos que se fizeram inscrever entre 2453
os que são o património de Cristo...
9. Ver com os olhos da fé. Vós todos, que merecestes ser inscritos neste livro 2454
celeste6, tende uma fé generosa e uma decisão inabalável, pois a fé é necessária para o
que aqui se realiza. Na verdade, os olhos da fé vêem as coisas que escapam aos do
corpo, como se estivessem patentes diante de nós. É próprio da fé ligar-se ao que não
vemos como se o víssemos: A fé é garantia das coisas que se esperam e certeza
daquelas que não se vêem 7.
10. O que significa o que acabo de dizer e por que disse eu que não é necessário 2455
aplicar-se às coisas visíveis, mas adoptar um olhar espiritual? É para que, ao veres a
piscina das águas (baptismais) e a mão do sacerdote estendida sobre a tua cabeça, não
penses que é pura e simplesmente água, nem apenas a mão do pontífice estendida
sobre a tua cabeça, pois o que se realiza não é o homem quem o faz, mas é a graça do
Espírito. É ela que santifica as águas naturais, é ela que, com a mão do sacerdote, se
estende sobre a cabeça...
11. Sepultura e ressurreição, eis o que o baptismo é: O homem velho está sepultado 2456
com o pecado e ressuscita o homem novo, renovado à imagem do seu Criador 8.
Despojar-se e revestir-se: despojamo-nos do vestido velho, sujo pela multidão dos
nossos pecados, e vestimo-nos com o novo, limpo de toda a mancha. Que digo eu?
Vestimo-nos do próprio Cristo, pois todos vós que fostes baptizados em Cristo estais
revestidos de Cristo9.
12. Finalidade e simbolismo dos exorcismos. Visto estarmos no limiar do momento 2457
em que ides receber dons tão preciosos, aprendei de mim, tanto quanto possível, as
razões de ser dos diversos ritos, para que, conhecendo-os bem, partais daqui armados
de um acréscimo de certeza. É necessário que saibais por que motivo, após esta instrução
diária, vos mandamos àqueles cuja palavra vos exorciza. Este rito não deixa de ter a sua
importância e a sua razão. Dado que ides receber como hóspede o Rei celeste, após o
nosso sermão, os que foram designados para o ofício de que falamos recebem-vos e puri-
ficam completamente o vosso espírito, por essas temíveis palavras que expulsam dele
tudo o que o Maligno preparara e tornam o mesmo espírito digno da chegada do Rei.
Este rito imprime também na alma uma grande piedade e leva-a a grande contrição...
14. Eis, pois, o fruto que dão essas palavras e essas invocações. Mas a atitude 2458
exterior, os pés descalços e as mãos erguidas para o Céu mostram-nos outra coisa: os
cativos do Diabo, como estão prestes a ser libertados da tirania deste e a colocarem-se
sob o jugo da bondade, começam por se lembrar, pelas suas próprias atitudes, da sua
anterior condição, a fim de saberem bem de quem são libertados e para quem correm...
15. Mensagem aos padrinhos. Quereis que nos dirijamos agora aos que ficam res- 2459
ponsáveis por vós, para também eles saberem que recompensa merecem, se derem
6
Referência à inscrição do nome.
7
Hebr 11, 1.
8
Col 3, 10.
9
Gal 3, 27.
596 SÉCULO V

provas de cuidarem de vós, e que condenação lhes acarreta a sua negligência?... Se os


que prestam fiança de dinheiro a outrem ficam responsáveis em justiça pela integridade
da soma, com mais forte razão os fiadores do espiritual, quando é um balanço espiri-
tual que está em causa, devem mostrar grande vigilância, exortando, aconselhando,
animando com grande afecto paternal.
2460 16. Não devem pensar que se trata de um acto banal. Eles sabem que a boa fama se
reflectirá sobre eles se, por suas admoestações pessoais, levarem aqueles que lhes
estão confiados pelo caminho da virtude... Eis por que é costume chamar-lhes pais
espirituais... Pois, se é belo inspirar o nobre zelo da virtude aos que nada têm que ver
connosco, com bem mais forte razão o é cumprir este preceito para com aquele que
aceitamos a título de filho espiritual. Ficais desta maneira a saber, vós, os padrinhos,
que não é pequeno o perigo que vos ameaça pela vossa negligência.
2461 17. Renúncia a Satanás e adesão a Cristo. Mas falemos dos próprios sacramentos
e dos contratos que vão celebrar-se entre vós e o Senhor. Com efeito, da mesma manei-
ra que nas coisas desta vida... é necessário redigir actas entre o que confia o depósito
e o que o aceita, também assim aqui acontece, visto que da parte do soberano Senhor
vos vão ser confiados bens... espirituais e celestes. Se falamos de fé, é porque não se
trata de nada visível, mas de bens que apenas são visíveis aos olhos do espírito. É, pois,
necessário que a troca de convenções se faça, não com tinta e papel, mas em Deus pelo
Espírito. Com efeito, as palavras que proferis cá na terra são registadas no Céu, e os
compromissos proclamados pela vossa boca permanecem inapagáveis junto do Senhor...
2462 18. Os sacerdotes que vos introduzem ordenam-vos primeiramente que vos ponhais
de joelhos, que levanteis as mãos para o Céu e que, dessa maneira, rezeis, a fim de
recordardes a vós próprios, por esta atitude, de quem vos libertastes e a quem vos ides
ligar. Em seguida, o sacerdote passa diante de cada um de vós e recebe os compromissos e
as confissões, e manda-vos pronunciar estas palavras temíveis, carregadas de incríveis
consequências: «Renuncio a ti, Satanás».
2463 19. É a minha vez, neste momento, de chorar... Acabo de me lembrar do dia em que
eu próprio fui julgado digno de pronunciar esta palavra... Por isso, vos peço a todos
que me demonstreis alguma generosidade. E, já que ides aparecer diante do Rei..., por
quem sois, pedi também um favor para mim. Que Deus nos não peça contas das faltas
que cometemos, que nos perdoe e Se digne conceder-nos o seu apoio para o futuro.
Ides fazer esta oração como filhos ternos que sois para os vossos mestres...
2464 20. Mas voltemos à sequência do nosso propósito. Então, o sacerdote manda-vos
dizer: «Renuncio a ti, Satanás, às tuas pompas, ao teu serviço e às tuas obras». São
apenas algumas palavras, mas grande é o seu poder. Pois os Anjos que estão presentes
e os poderes invisíveis, que se regozijam com a vossa conversão, recolhem as palavras
pronunciadas pela vossa boca e elevam-nas até ao comum Senhor de todas as coisas e,
lá, elas são inscritas nos livros celestes.
2465 21. Reparastes quais são as palavras do contrato? Depois da renúncia ao Maligno e
a todas as obras ligadas aos seus interesses, de novo o sacerdote vos manda dizer: «E
ligo-me a ti, ó Cristo»! Viste bem a sua bondade insondável? De ti recebeu apenas as
tuas palavras, mas confia-te tão grande tesouro de realidades...
2466 22. Unção dos catecúmenos e baptismo. Seguidamente, após este contrato, esta
renúncia e esta adesão... (o sacerdote), como se fosse a um combatente alistado para a
arena espiritual, faz-te uma unção da fronte com o crisma espiritual e assinala-te,
dizendo: «F. é ungido em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo».
2467 23. Ele sabe que doravante o Inimigo fica furioso, range os dentes e vagueia como
leão rugidor, ao ver que aqueles que outrora estavam sob a sua tirania de repente o
abandonaram, a ele renunciaram, passaram para Cristo, unidos na submissão. Por isso
é que (o sacerdote) vos marca com uma unção e imprime sobre vós o sinal (da cruz),
JOÃO CRISÓSTOMO 597

para que o outro afaste a vista. E, na verdade, ele não ousa olhar de frente, se vir brilhar
o raio que jorra desta unção e que lhe cega a vista. Pois, a partir desse momento, há luta
e confrontação contra ele, e é por isso que, como atletas de Cristo, o sacerdote vos
introduz, por esta unção, na arena espiritual.
24. Em seguida, à hora em que a noite cai (o sacerdote) despoja-vos completamente 2468
do vestuário e, como se fosse introduzir-vos no próprio Céu por aquilo que vai fazer-se,
faz ungir o corpo inteiro com este óleo espiritual, a fim de, por tal unção, fortificar
todos os vossos membros e torná-los invulneráveis aos dardos lançados pelo Adversário.
25. Após esta unção, faz-vos descer às águas sagradas, sepultando o homem velho, 2469
ao mesmo tempo que ressuscita o homem novo, renovado à imagem d’Aquele que o
criou. É nesse momento que, pelas palavras do sacerdote e pela mão dele, se dá a
descida do Espírito Santo, e é um homem diferente o que volta a subir; lavado comple-
tamente de toda a mancha dos seus pecados, depôs as antigas vestes e revestiu-se do
vestido real.
26. E, para te ensinar, por este meio, que o Pai e o Filho e o Espírito Santo são uma 2470
substância única, eis como é dado o baptismo. Quando o sacerdote pronuncia sobre os
candidatos: N. é baptizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, por três
vezes lhe mergulha a cabeça na água e lha levanta, dispondo o baptizado, por meio
deste rito misterioso, para receber a visita do Espírito Santo. Pois, não é apenas o
sacerdote que lhe toca na cabeça, mas também a direita de Cristo. Isto mesmo ressalta
das próprias palavras do oficiante, pois este não diz: Eu baptizo N., mas: N. é baptizado,
mostrando ser apenas o ministro da graça e que mais não faz do que emprestar a mão,
pois para esta função foi ordenado pelo Espírito Santo. Quem realiza tudo é o Pai e o
Filho e o Espírito Santo, a indivisível Trindade. É, pois, esta fé na Trindade que nos
merece a graça da remissão dos pecados, e é esta confissão que nos confere a adopção filial.
27. Os actos seguintes são por si próprios capazes de nos ensinar de quem foram 2471
libertados e com que foram dotados aqueles que foram julgados dignos desta iniciação
nos mistérios. Logo que saem das piscinas sagradas, toda a assistência os abraça,
saúda, dá-lhes o beijo, felicita-os e com eles se regozija, pelo facto de que, outrora
escravos e cativos, num instante se tornaram homens livres, filhos convidados para a
mesa real. De facto, mal saem das piscinas, são conduzidos à mesa temível, fonte de
mil favores, saboreiam o Corpo e o Sangue do Senhor e tornam-se morada do Espírito:
revestiram-se do próprio Cristo e, como tais, por onde quer que vão surgem, quais
Anjos terrestres, tão radiosos como o brilho do sol.
28. Mensagem final: votos e orações. Todas estas coisas, não foi em vão nem sem 2472
uma razão que me antecipei a vo-las indicar à vossa Caridade. Foi para que, ainda antes
de gozardes delas, saboreásseis a imensa felicidade que delas vem, para que desde já a
esperança vos dê asas, para que ganheis disposição da alma digna do que se vai passar
e para que, fiéis à exortação do bem-aventurado Paulo, sonheis com as coisas do alto e
eleveis o pensamento da terra ao Céu e das coisas visíveis às invisíveis, as quais, com
os nossos olhos espirituais, nós vemos mais claramente do que as coisas que se ofere-
cem à vossa vista sensível.
29. Pois bem! Já que vos encontrais no limiar do vestíbulo real e que em breve ides 2473
aproximar-vos do próprio trono em que tem assento o Rei que distribui os dons, dai
provas de grande desprendimento nas vossas súplicas: nada que seja da terra, nada que
seja humano! Fazei um pedido que seja digno do dador. Quando, pois, sairdes das
águas divinas, exprimindo assim a imagem da ressurreição, pedi a Cristo a aliança com
Ele, para bem salvaguardardes os dons que vos fez e permanecerdes fora do alcance das
armadilhas do Maligno. Pedi pela paz das Igrejas. Suplicai pelos que ainda andam
perdidos. Caí de joelhos pelos pecadores, a fim de merecermos ser, de alguma maneira,
poupados...
598 SÉCULO V

2474 31. Penetrados de tudo isso, caríssimos, preparai-vos na alegria e no júbilo para
acolher a graça, a fim de saboreardes abundantemente o dom (do baptismo), e para que
todos em conjunto mostremos um comportamento digno da graça e sejamos dignos de
receber os bens eternos e inefáveis, pela graça e misericórdia de nosso Senhor Jesus
Cristo, por quem seja dada ao Pai com o Espírito Santo glória, poder, honra, agora e
sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.

CATEQUESE III
Homilia dirigida aos neófitos

2475 1. Os neófitos são como novas estrelas. Bendito seja Deus, pois eis que da terra
aparecem também estrelas, mais brilhantes que as dos Céus. Estrelas, na terra, por
causa d’Aquele que dos Céus apareceu na terra. E essas estrelas não só apareceram
na terra, mas em pleno dia: segunda maravilha! Estrelas do dia, mais brilhantes que as
da noite, pois estas apagam-se quando o sol aparece; aquelas, quando aparece o Sol da
justiça, brilham ainda mais. Vistes alguma vez estrelas a brilhar ao sol?
2476 5. As múltiplas graças do baptismo. Bendito o Senhor: só Ele faz maravilhas10,
Ele que faz todas as coisas e as renova. Os que ontem estavam cativos são hoje homens
livres e cidadãos da Igreja. Os que outrora permaneciam na vergonha do pecado estão
agora na certeza e na justiça. Eles são não apenas livres, mas ainda santos; não apenas
santos, mas justos; não apenas justos, mas filhos; não apenas filhos, mas herdeiros;
não apenas herdeiros, mas irmãos de Cristo; não apenas irmãos de Cristo, mas seus co-
-herdeiros; não apenas seus co-herdeiros, mas seus membros; não apenas seus mem-
bros, mas templos; não apenas templos, mas instrumentos do Espírito.
2477 6. Bendito o Senhor: só Ele faz maravilhas! Reparastes qual é o número dos bene-
fícios do baptismo? Quando julgam muitos que tem por benefício único a remissão dos
pecados, contámos nós até dez as honras por ele conferidas. É por esta razão que
baptizamos até as criancinhas, embora não tenham pecados, para lhes acrescentar a
justiça, a filiação, a herança, a graça de serem irmãos e membros de Cristo e se torna-
rem morada do Espírito Santo.
2478 7. Pois vós, meus irmãos bem-amados, se porventura me é permitido chamar-vos
irmãos! Na verdade, eu participei do mesmo nascimento que vós, mas em seguida
perdi, por minha negligência, esta fraternidade perfeita e autêntica. Deixai-me, porém,
chamar-vos irmãos, pelo grande amor que vos tenho, e convidar-vos a testemunhar um
zelo tanto maior quanto vós beneficiastes de maior honra.
2479 8. O combate contra Satanás. O tempo que precedeu o baptismo era campo de
treino e exercício11, em que as quedas tinham perdão. A partir de hoje, a arena está
aberta para vós, o combate começa; vós estais sob os olhares do público... Os Anjos
contemplam-vos, e o Senhor dos Anjos preside ao combate. Isso é para nós, não
apenas uma honra, mas também uma segurança...
2480 9. Nos combates olímpicos, o árbitro conserva-se no meio dos dois adversários,
sem favorecer nem um nem outro: espera pelo resultado. Se ele se conserva entre os
dois, é porque o seu juízo está repartido pelos dois. No combate que nos opõe ao
Diabo, Cristo não Se conserva «entre os dois», mas é completamente nosso...; ao
entrarmos na liça, já Ele nos ungiu, enquanto ao outro, o encadeou. Ungiu-nos com o
óleo do júbilo; encadeou-o com cadeias inquebráveis, para o paralisar nos assaltos. A
mim, se me acontece vacilar, estende-me ele a mão, ergue-me da queda e volta a pôr-
-me livre de perigo...
10
Sal 71, 18.
11
palai/ s tra kai\ gumna/ s ion.
JOÃO CRISÓSTOMO 599

11. Tenhamos, pois, confiança e dispamo-nos para estes assaltos. Cristo revestiu-nos 2481
com armas mais resplandecentes que nenhum ouro...
12. O valor do Sangue de Cristo. Deus deu-me ainda outra arma de protecção. 2482
Qual foi? Preparou-me uma mesa, mostrou-me um alimento com o qual me saciou, a
fim de que, depois de me ter alimentado, eu possa vencer o Inimigo com mais força.
Quando o Inimigo te vê sair do banquete do Senhor, foge de ti como se deitasses fogo
pela boca. Mais rápido que o vento, deixa-te e não ousa aproximar-se. Quando este
cruel Inimigo vê a tua língua vermelha de sangue, acredita-me, não resiste. Quando vê
a tua boca lançar chamas, volta-se com terror...
13. Queres conhecer o valor do Sangue de Cristo? Voltemos às figuras que o profetizaram 2483
e recordemos a narrativa do Antigo Testamento: 14. Imolai, diz Moisés, um cordeiro
de um ano e assinalai as portas com o seu sangue. Que dizes, Moisés? O sangue de um
cordeiro tem poder para libertar o homem racional? Certamente, responde ele, não
porque é sangue, mas porque prefigura o Sangue do Senhor. 15. Se hoje o Inimigo, em
vez do sangue simbólico aspergido nos umbrais, vir resplandecer nos lábios dos fiéis,
portas dos templos de Cristo, o Sangue da nova realidade, fugirá ainda para mais longe.
16. A Igreja nasceu do lado de Cristo. Queres compreender ainda mais profunda- 2484
mente o valor deste Sangue? Repara donde brotou e qual é a sua fonte. Começou a
brotar da cruz, e a sua fonte foi o lado do Senhor. Estando já morto Jesus, diz o
Evangelho, e ainda cravado na cruz, aproximou-se um soldado, trespassou-Lhe o lado
com uma lança, e logo saiu água e sangue: água como símbolo do baptismo, sangue
como símbolo da Eucaristia. O soldado trespassou o lado, abriu urna brecha na parede
do templo santo, e eu achei um grande tesouro e alegro-me por ter encontrado riquezas
admiráveis. Assim aconteceu com aquele Cordeiro. Os Judeus mataram um cordeiro, e
eu recebi o fruto do sacrifício.
17. Do lado saiu sangue e água. Não quero, estimado ouvinte, que passes inadver- 2485
tidamente por tão grande mistério. Falta-me ainda explicar-te outro significado místico.
Disse que esta água e este sangue simbolizavam o baptismo e a Eucaristia. Foi destes
sacramentos que nasceu a Igreja, pelo banho de regeneração e pela renovação do Espírito
Santo, isto é, pelo sacramento do baptismo e pela Eucaristia, que brotaram do lado de
Cristo. Foi do lado de Cristo, por conseguinte, que se formou a Igreja, como foi do lado
de Adão que Eva foi formada.
18. Por esta razão, a Escritura, falando do primeiro homem, usa a expressão carne 2486
da minha carne, osso dos meus ossos, que S. Paulo refere, aludindo ao lado de Cristo.
Pois, assim como Deus, do lado de Adão formou a mulher, assim Cristo, do seu lado,
nos deu a água e o sangue para formar a Igreja. E, assim como Deus abriu o lado de Adão
enquanto ele dormia, assim Cristo nos deu a água e o sangue durante o sono da sua morte.
19. Vede como Cristo se uniu à sua Esposa, vede com que alimento nos sacia. O 2487
mesmo alimento nos faz nascer e nos alimenta. Assim como a mulher se sente impulsionada
pelo amor natural a alimentar com o próprio leite e o próprio sangue o filho que deu à
luz, assim também Cristo alimenta sempre com o seu sangue aqueles a quem deu o
novo nascimento.
20. Dirijo-me a todos vós, aos que acabam de ser iniciados e aos que o foram outrora, 2488
há muitos anos já. As minhas palavras são para todos, pois que todos nós assinámos
com Cristo um acordo, não com tinta, mas com o espírito, não com a pena, mas com a
nossa palavra... Confessámos a soberania de Deus; renegámos a tirania do Diabo. Aí
estão a assinatura, as convenções, o contrato...
22. Não foi num canto e às ocultas, mas perante o universo, no alto de um estrado, 2489
que a dívida foi resgatada...; o contrato foi rasgado, para que de futuro, os perversos
Demónios e o próprio Diabo não nos ataquem mais.
600 SÉCULO V

2490 23. O baptismo comparado à saída do Egipto. Dado que o documento antigo foi rasgado,
vigiemos para que outra conta não seja aberta, pois não há segunda cruz, não há segunda
remissão pelas águas regeneradoras. Há ainda remissão, mas não remissão baptismal...
2491 24. Os Judeus viram milagres. Também tu os verás, e maiores e mais admiráveis que
os do tempo em que os Judeus saíram do Egipto. Não viste o Faraó afogado no mar
com o seu exército, mas viste o Diabo submerso nas ondas com as suas hostes. Os
Judeus passaram o mar, tu passaste para além da morte. Eles foram libertados dos
Egípcios, tu foste libertado do poder do Demónio. Eles escaparam à escravidão em
país estrangeiro, tu escapaste à escravidão muito mais triste do pecado.
2492 25. Queres ainda mais provas de que foste glorificado com favores maiores?... Então,
os Judeus tinham Cristo que os seguia; mas, de modo muito mais real, nos segue Cristo
agora. Então, o Senhor acompanhava-os por causa de Moisés; hoje acompanha-nos,
não somente por causa de Moisés, mas pela nossa obediência. Para os Judeus, ao
Egipto seguiu-se o deserto; para ti, ao êxodo deste mundo seguir-se-á o Céu. Em Moisés
tinham eles um guia e chefe eminente; nós temos como chefe o novo Moisés, que é o
próprio Deus...
2493 26. Moisés ergueu as mãos para o Céu e fez descer o pão dos Anjos, o maná; o nosso
Moisés ergue as mãos para o Céu e dá-nos o alimento eterno. Aquele feriu o rochedo e
fez brotar torrentes de água; este toca na mesa, na mesa espiritual, e faz jorrar as fontes
do Espírito. Por isso, a mesa está colocada no meio, como uma fonte, para que de
todos os lados acorram os rebanhos à fonte e bebam das águas da salvação.
2494 27. Uma vez que nos é dada uma tal fonte, um manancial de vida tão abundante, uma
vez que a nossa mesa está repleta de bens inumeráveis e nos inunda com os seus dons
espirituais, aproximemo-nos de coração sincero e consciência pura, para obtermos a
graça e a misericórdia no tempo oportuno. Pela graça e misericórdia do Filho unigénito,
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, pelo qual seja dada ao Pai e ao Espírito Santo,
fonte de vida, a glória, a honra e o poder, agora e para sempre e pelos séculos dos
séculos. Amen.

CATEQUESE IV
Aos neófitos

2495 1. Os neófitos são a alegria da Igreja. Reparo que a nossa assembleia é hoje
mais brilhante que de costume e que a Igreja de Deus está jubilosa por causa dos seus
filhos. Com efeito, como mãe amorosa que, ao ver-se rodeada dos filhos, rejubila, exulta
e não cabe em si de contente, assim a Igreja, na sua maternidade espiritual, quando olha
para os seus próprios filhos, está alegre e jubilosa, por se ver como campo fértil cheio
de espigas espirituais...
2496 3. Aqueles que ainda ontem e anteontem eram escravos do pecado e sem nenhuma
segurança, sob a tirania do Diabo, cativos arrastados daqui e dali, eis que já hoje foram
admitidos na fila dos filhos, depuseram o fardo dos seus pecados e vestiram-se com o
real vestido...
2497 4. Abracemos, pois, neste dia, estes (irmãos), que sabem brilhar mais que as estrelas e
que rivalizam em brilho com os raios do sol. Mas não nos limitemos a apertá-los
materialmente nos nossos braços; mostremos-lhes também, por esta instrução espiritual,
o afecto que lhes temos; exortemo-los a meditar no excesso da generosidade do Senhor
e no brilho das vestes que mereceram usar...
2498 6. Vós, pois, os novos soldados de Cristo, vós que hoje fostes inscritos na cidade
do Céu, vós que fostes chamados a este espiritual festim e que ides tomar lugar à mesa
real, mostrai um ardor que corresponda à grandeza dos benefícios, a fim de atrairdes
sobre vós um acréscimo da graça do alto...
JOÃO CRISÓSTOMO 601

7. Paulo, modelo perfeito do neófito. Vede o exemplo de Paulo, o doutor universal. 2499
A princípio, perseguia a Igreja, circulando por toda a parte, indo no encalço dos
homens e mulheres, lançando a confusão e a perturbação e dando mostras de grande
raiva. Mas, desde que o Senhor o cumulou de tanta bondade, desde que foi iluminado
pela luz inteligível, depôs as trevas do erro e foi conduzido à verdade; logo que, pelo
baptismo, foi lavado de todos os seus pecados passados, sem perda de um instante,
ele, que anteriormente tudo fazia pelos Judeus e devastava a Igreja, confundiu os
Judeus que habitavam em Damasco, proclamando que o Crucificado é o próprio Filho
de Deus...
10. Viste Paulo como leão furioso nas suas corridas por todos os lados? Vê-o agora 2500
com a mansidão do cordeiro: que súbita mudança! Vê aquele que antes prendia, lançava
na prisão, perseguia e acossava todos os que acreditavam em Cristo; vê-o de repente,
por Cristo, a descer as muralhas, metido num cesto, para poder escapar às ciladas dos
Judeus!.. Reparaste como ele está mudado! Reparaste como está transfigurado! Viste
como, depois de ter beneficiado da generosidade do alto, contribuiu abundantemente
com a sua parte, quero dizer, com o zelo, o fervor, a fé, a coragem, a paciência, a
grandeza de alma, a firmeza inflexível...
11. Este exemplo, suplico-vos, imitai-o, vós que agora merecestes abraçar o jugo de 2501
Cristo e receber a graça da filiação. Desde os vossos primeiros passos, mostrai grande
fervor e grande fé em Cristo. Pois, se a vós, que ainda não fizestes nenhuma boa obra,
Ele vos julgou dignos de tais dons, mesmo que pouco vos apliqueis a corresponder do
vosso lado, demonstrando grande exactidão em conservar os dons recebidos e em
conduzir a vossa vida, como não sereis julgados dignos de novas generosidades?...
17. O neófito deve brilhar, sobretudo pelo seu comportamento. É justo que aqueles 2502
que têm Cristo, não representado nas vestes, mas para sempre na alma e, com Cristo,
o Pai e a presença do Espírito Santo, dêem provas de firme segurança e mostrem a
todos, pela exactidão do comportamento e pela vigilância de vida, que trazem a imagem real...
18. Nós, que de uma vez para sempre nos revestimos de Cristo e merecemos tê-l’O 2503
para sempre, poderemos mostrar a todos, mesmo sem nada dizer, simplesmente pela
exactidão da nossa vida, o poder d’Aquele que em nós habita...
19. Foi por essa razão que Cristo disse: Brilhe a vossa luz diante dos homens, a fim 2504
de que eles vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está nos Céus.
Vês como Ele nos convida a fazer brilhar a luz que em nós está, não pelo que vestimos,
mas pelas nossas obras?...
20. Brilhe a vossa luz diante dos homens. Cristo disse precisamente diante dos 2505
homens. A vossa luz seja tão intensa que não vos ilumine apenas a vós próprios; brilhe
também diante dos homens, que têm necessidade de que ela os guie...
21. A fim de que eles vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está 2506
nos Céus. A vossa virtude, diz Cristo, e a exactidão do vosso comportamento, a
rectidão das boas obras excitem os que vos vêem a dar glória ao comum Senhor de
todos...
23. Logo, desde o começo, travai um combate generoso, dai provas de grande brilho, 2507
tornando, por todos os meios, mais brilhante e mais resplandecente a beleza da vossa veste...
24. Por conseguinte, não haja mesmo nenhuma conversação terrena fútil e inútil, 2508
pois escolhemos doravante uma vida nova inteiramente diferente; convém agir em
conformidade com esta vida, a fim de não nos tornarmos indignos dela...
25. Que quero eu dizer com isso? Que os nossos lábios estejam ocupados apenas 2509
nos louvores, na leitura das Escrituras divinas, nas conversas espirituais? Se falardes,
que seja uma palavra boa, própria para edificar e que traga graça aos que a
ouvem. E não entristeçais o Espírito de Deus, do qual recebestes o selo. Vistes?
Agir de outra maneira contribui para contristar o Espírito Santo...
602 SÉCULO V

2510 27. Os dons que recebemos são espirituais: espiritual é o nosso fato, espiritual o
alimento, espiritual a bebida. É, pois, lógico que doravante todas as nossas obras e
acções sejam espirituais – pois estas são o fruto do Espírito, como diz São Paulo: O
fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade,
mansidão, temperança. Contra tais coisas não há lei. Tem ele muita razão em assim
falar, pois os que praticam a virtude estão acima da lei e não lhe estão submetidos...
2511 28. Em seguida, explicando o fruto do Espírito, acrescentou o Apóstolo: Os que são
de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências... Os que se
consagraram a Cristo souberam atar-se tão apertadamente a Ele e rir-se a tal ponto das
exigências do corpo, que se crucificaram a si próprios com as suas paixões e as suas
concupiscências.
2512 29. Nós, que nos tornámos de Cristo e d’Ele nos revestimos, que merecemos receber o
seu alimento e a sua bebida espirituais, encaminhemos a nossa vida como pessoas que
nada têm de comum com as coisas deste mundo. Com efeito, tornámo-nos membros de
outra cidade, a Jerusalém celeste...
2513 30. Lembrança do contrato do baptismo. Fui longo, eu sei. Perdoai-me. Com efeito,
se conheço a vossa riqueza espiritual, também conheço bem o furor do Diabo perverso;
é agora, sobretudo, eu sei, que vos é necessária grande circunspecção e muita vigilância...
2514 32. Apliquemo-nos a vigiar todos os dias a nossa veste de luz, com medo que ela
apanhe alguma mancha. Montemos guarda até nas coisas que julgamos pequenas, para
estarmos capazes de escapar às coisas mais graves, que são pecados. Pois, se começarmos
por desprezar certas coisas dadas como sem importância, pouco a pouco, caminhando
por esta via, chegaremos às quedas graves...
2515 33. Pela perfeição da vossa conduta, atraí a vós a graça do Espírito, a ponto de vós
próprios vos tornardes inexpugnáveis e de fazerdes, pelo vosso progresso, o júbilo e
a alegria da Igreja, de maneira que o vosso Mestre em todos seja glorificado e que todos
sejamos considerados dignos do Reino dos Céus. Pela graça, pela misericórdia e bon-
dade de seu Filho único, nosso Senhor Jesus Cristo, com quem seja dada ao Pai e ao
Espírito Santo glória, poder, honra, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.

CATEQUESE V
Exortação aos fiéis e mensagem aos neófitos

2516 1. Festas pascais e entusiasmo renovado. Se o jejum passou, ó bem-amados, a


piedade deve ficar. Se o tempo da santa quarentena terminou, não percamos dela a
lembrança. Não digo isto para vos impor um novo jejum; pelo contrário, quereria que
tenhais algum descanso e, ao mesmo tempo, pratiqueis de maneira mais exacta o
verdadeiro jejum. Como? É o que vou dizer-vos: tomemos os alimentos, mas abstenhamo-
-nos dos pecados, pois é esse o jejum verdadeiramente salutar...
2517 2. Este género de jejum ser-nos-á até mais fácil, pois, a propósito do outro jejum,
que consiste na abstinência dos alimentos, tenho ouvido muita gente dizer que tinha
dificuldade em suportar a privação dos alimentos...
2518 15. Os perigos do relaxamento, provados pelo comportamento dos Judeus. Durante
o santo tempo da Quaresma, não tínheis vós tanta necessidade de exortações e conse-
lhos como agora tendes. Então, na verdade, a prática do jejum tornava-vos sóbrios, mau
grado vosso. Agora, pelo contrário, receio e temo o abuso da liberdade e o relaxamento
que daí provêm. Pois a natureza humana nunca se encontra tão desprevenida como quan-
do segue o deixar correr...
2519 17. Após tantos prodígios, depois de milagres inauditos, após a travessia do mar e o
desastre dos Egípcios, depois do alimento misterioso e novo do maná, quando ainda
JOÃO CRISÓSTOMO 603

tinham no ouvido a recordação desses benefícios, no grande repouso que lhes foi concedido,
tudo isso foi esquecido pelos Judeus, e, dando forma a um bezerro de ouro, adoraram-no,
dizendo: «Aqui estão, ó Israel, os deuses que te fizeram sair do país do Egipto»...
19. O exemplo de Paulo. Imediatamente após o baptismo e desde que foi instruído 2520
pela luz da verdade, logo Paulo foi grande. Mas, a seguir, é que ele se tornou ainda
muito maior...
20. Imitai-o vós também, eu vo-lo suplico, e poderão chamar-vos neófitos, não 2521
apenas por dois, três, dez ou vinte dias, mas podereis merecer este nome ainda passados
dez, vinte ou trinta anos e, para falar verdade, durante toda a vossa vida...
24. Os baptizados antigos podem recuperar a inocência por uma conversão sincera. 2522
Sabendo nós que, depois da graça de Deus, tudo de nós depende e da nossa aplicação,
sejamos reconhecidos pelos dons já recebidos, a fim de nos tornarmos dignos de dons
ainda maiores...
25. A alma, uma vez manchada e caída na fealdade e vergonha, em consequência dos 2523
numerosos pecados, pode muito depressa voltar à primitiva beleza, se demonstrarmos
conversão séria e sincera...
26. Digo isto para mim próprio e para os que outrora mereceram o baptismo. Mas 2524
vós, os novos soldados de Cristo, crede-me, aplicai-vos por todos os meios a conservar a
pureza da vossa veste...
28. Por conseguinte, pratiquemos todos a sobriedade espiritual. A todos vós eu 2525
peço, e a nós que outrora merecemos este dom, de maneira a recuperar a nossa beleza
primitiva e a purificar-nos da mancha recebida... Pela graça e misericórdia de nosso
Senhor Jesus Cristo, com quem seja dada ao Pai e ao Espírito Santo glória, poder,
honra, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.

CATEQUESE VI
Censura aos que abandonam a sinaxe
e exortação aos neófitos

1. Cristãos que trocam a Igreja pelos espectáculos. Há, de novo, corridas no 2526
hipódromo e espectáculos de Satanás, e a nossa assembleia, por esse facto, encontra-
se reduzida. Foi porque eu receava o desleixo, que nasce do descanso e do descuido,
que anteriormente vos exortei e supliquei da vossa Caridade para não malbaratardes a
riqueza adquirida pelo jejum e para não vos deixardes contaminar pelo flagelo dos
espectáculos de Satanás. Pelo que vejo, redundou em pura perda essa exortação...
2. Que coragem terei eu, dizei-me, para prosseguir doravante com esta instrução do 2527
costume, vendo que nenhum proveito tirais das nossas palavras, vendo que, quanto
mais a instrução se prolonga, mais cresce em proporção, a vossa apatia do coração,
facto que aumenta o nosso desgosto e acarreta aos culpados mais grave acusação? Ou,
antes, não é só o nosso desgosto que aumenta, mas, ainda, o nosso desalento...
14. A gravidade do escândalo e o dever da correcção fraterna. Não foi sem razão 2528
que hoje levantei este problema diante da vossa Caridade; mas fi-lo, para saberdes que
precaução se exige, se quiserdes cuidar um pouco da vossa salvação, e que condenação
merecem os que preferem a esta reunião e à nossa instrução espiritual, os recreios
profanos, as visitas vãs e prejudiciais, as corridas do hipódromo e os perniciosos e
satânicos espectáculos, e os que não ouvem a palavra do bem-aventurado Apóstolo:
Não vos torneis causa de escândalo, nem para os Judeus, nem para os Gregos,
nem para a Igreja de Deus...
604 SÉCULO V

2529 17. Mas, de que serve fazer tão graves advertências, quando aqueles a quem elas se
dirigem não estão aqui para ouvirem o que dizemos? E, todavia, mesmo assim, não será
inútil a nossa exortação. Pois é possível, graças a vós, se vós souberdes compreender,
que esses tais sejam informados com exactidão de quanto nós dissemos, que evitem os
engodos do Diabo e voltem ao alimento espiritual...
2530 18. Na verdade, quando, ao saíres daqui, tomares ao teu cuidado a salvação de teu
irmão, não apenas por meio da censura e da reprimenda, mas também pelos conselhos
e pela exortação, mostrando-lhe o mal que lhe fazem os divertimentos profanos, bem
como o proveito e utilidade da nossa instrução, tudo fizeste para a glória de Deus...
2531 21. O recém-baptizado deve permanecer neófito a vida inteira. Quero agora, numa
palavra derradeira, voltar-me para os neófitos. Chamo neófitos, não somente àqueles
que acabam de merecer o dom espiritual, mas também àqueles que já o receberam há um
ano ou até há já mais tempo. Pois, se eles bem quiserem, poderão gozar continuamente
deste nome...
2532 22. É possível a um ancião, que o seja pela idade do corpo, ser de facto jovem e
neófito segundo a frescura intacta da graça...
2533 23. É por isso que eu a todos suplico, tanto aos que muito recentemente mereceram
o baptismo, como aos que já outrora receberam este dom; peço a estes que, pela
confissão, pelas lágrimas e por rigorosa penitência apaguem a mancha contraída; peço
àqueles, que conservem em flor o brilho recente e não sejam atingidos pelo menor
salpico que possa embaciá-lo...
2534 24. Eis por que, por também eu recear as ciladas do Inimigo, prossigo a série das
nossas instruções, para que vós conserveis na sua integridade a vossa veste nupcial e
a guardeis sempre assim ao entrardes neste casamento espiritual. Pois é mesmo casa-
mento espiritual o que aqui se realiza...
2535 25. Possamos todos guardar em nós o dom recebido e merecer a benevolência do
alto. Pela graça e misericórdia do Filho único, nosso Senhor Jesus Cristo, com quem
seja dada ao Pai e ao Espírito Santo glória, poder, honra, agora e sempre e pelos
séculos dos séculos. Amen.

CATEQUESE VII
A oração e a esmola, e mensagem aos neófitos

2536 24. A oração e a partilha de bens. Agora, as vossas vestes brilhantes atraem sobre
vós os olhares de todos, e a pureza distinta da vossa alma é assinalada por esse brilho
das vossas vestes: do mesmo modo é justo que, doravante, vós que acabais de merecer
o dom do baptismo, e também vós a quem outrora foi concedida a mesma liberalidade,
vos façais notar por todos, através da vossa perfeita conduta, e ilumineis, como um
facho, os que em vós reparam...
2537 25. Reparaste na virtude desta veste? Viste esse brilho, que o tempo não rouba e a
velhice não apaga? Reparaste nessa inaudita beleza? Esforcemo-nos, pois – é um
convite que vos faço –, esforcemo-nos, pois, por conservar essa beleza no seu esplen-
dor e cuidadosamente saibamos o que pode conservar-lhe esse brilho. O que é, então?
Antes de mais, rezar com assiduidade, dar graças pelos bens recebidos, implorar a
conservação firme dos bens concedidos. Nisso está a nossa salvação... A oração, a
muralha dos fiéis; a oração, a nossa arma invencível; a oração, detergente da nossa
alma; a oração, resgate dos nossos pecados; a oração, princípio de bens infindos; pois a
oração outra coisa não é que a entrevista com Deus, uma conversa com o soberano Senhor...
2538 27. É, pois, a oração que, antes de tudo o mais, nos poderá conservar continuamente
o brilho desta veste espiritual e, juntamente com a oração, a partilha generosa, fonte
JOÃO CRISÓSTOMO 605

essencial dos nossos bens e salvação das nossas almas. É a união destas duas virtudes
que nos poderá encher dos mil bens do alto, extinguir nas nossas almas o foco dos
pecados e valer-nos uma firme segurança...
33. Possamos todos nós chegar a esses bens pela graça e bondade de nosso Senhor 2539
Jesus Cristo, com quem seja dada ao Pai e ao Espírito Santo glória, poder, honra, agora
e sempre, e pelos séculos dos séculos. Amen.

CATEQUESE VIII
Elogio aos que vieram do campo e exortação aos neófitos

1. Elogio dos ouvintes vindos do campo. Hoje a nossa assembleia tornou-se mais 2540
brilhante por esta vaga de pessoas que até nós vieram dos campos... Se eles não hesi-
taram em percorrer tão longo caminho, para nos proporcionarem a grande alegria da
sua presença, com mais forte razão é justo que lhes sirvamos nós, hoje, com mais abun-
dância estes alimentos espirituais, para que daqui regressem munidos deste poderoso
viático.
2. Eles são, na verdade, nossos irmãos e membros do Corpo da Igreja... Não preste- 2541
mos atenção à maneira de falar que eles usam em vez da nossa: cuidemos, sim, de
aprender a sabedoria das suas almas; nem reparemos na língua bárbara que é a sua;
compreendamos, sim, a profundidade dos seus pensamentos...
3. Onde houver ensino por meio de actos, que é o principal, já não haverá necessidade 2542
de dar instrução por meio de discursos. Podemos ver, na verdade, cada um destes ho-
mens, ora parar diante do santo altar, ler as divinas leis e instruir os que dele dependem;
ora consagrar à terra os seus cuidados e trabalhos; ora segurar o arado, rasgar a terra
e espalhar ao longo dos sulcos as sementes que à terra confia; ora manejar o arado do
ensino e depor no fundo das almas dos discípulos os germes das divinas lições.
4. Desta maneira, não reparemos apenas na sua aparência exterior ou na língua que 2543
falam, para com demasiada pressa esquecermos a virtude deles; mas deixemo-nos
atentamente penetrar do que constitui a sua vida angélica e o seu comportamento
iluminado pela sabedoria...
6. Olha para este homem simples e rústico, que de nada mais sabe senão das tarefas 2544
agrícolas e dos trabalhos dos campos: não dá nenhuma importância às coisas presentes,
mas aponta em pensamento para os bens que nos Céus nos estão guardados. É a
sabedoria que o ilumina sobre esses bens inefáveis...
7. Preferir os bens espirituais: o exemplo de Abraão. Fizeram assim todos os 2545
justos que se ilustraram e foram tidos por dignos destes bens inefáveis. Tal foi o patriar-
ca Abraão... Deixou a terra que era a sua, na qual tinha erguido a tenda, e partiu sem
saber aonde iria parar. Aos bens manifestos e seguros, preferiu ele o mandamento rece-
bido do Senhor; e, não só não discutiu essa ordem, como poderia fazê-lo, com toda a
serenidade de espírito, mas, olhando unicamente para a dignidade de quem lhe dava o
mandamento, venceu todos os obstáculos humanos: a sua primeira e única preocupação foi
de nada omitir do que lhe estava ordenado...
8. Através de Abraão, não foram só os habitantes da Palestina, mas também os do 2546
Egipto, que aprenderam a conhecer, com a providência de Deus que tinham consigo, a
virtude deste justo...
16. O programa da jornada do neófito. Visto que vamos agora interromper a se- 2547
quência destas nossas reuniões, parece-me necessário lembrar à vossa Caridade que
conserve viva a lembrança destes importantes ensinamentos e que tenha sempre os
bens espirituais acima de todos os outros desta vida.
606 SÉCULO V

2548 17. Ponde grande cuidado em vir aqui logo de manhã cedo trazer ao Deus do universo
as vossas orações e confissões, para Lhe dar graças pelos benefícios já recebidos e
implorar-Lhe que Se digne ajudar-vos com o seu poder a guardar este tesouro para o
futuro. Depois, ao sairdes da Igreja, que cada um de vós se dê com toda a calma aos
problemas que lhe dizem respeito. Irão uns para ocupações manuais, outros para o
exército, e ainda outros para a função pública. Mas que cada um vá para as suas
ocupações com receio e temor e passe o dia pensando que à tardinha deverá voltar à
igreja, para dar contas ao Senhor do dia inteiro e pedir-Lhe perdão das faltas. Pois é
impossível, embora tomemos mil precauções, que não nos tornemos culpados de muitos
passos em falso de toda a espécie; falámos fora de propósito, ouvimos vãos discursos,
ou revolvemos no espírito qualquer pensamento desonesto, ou deixámos fugir o olhar,
ou passámos o tempo em coisas vãs, inúteis, estranhas ao nosso dever.
2549 18. E é por isso que todas as tardinhas nós devemos de tudo isso pedir perdão ao
Senhor... E, quando nos chamar a hora da assembleia, a tudo devemos preferir os bens
espirituais e a reunião que se faz na igreja, para que os bens que nós temos ao alcance
da mão sejam postos em segurança...
2550 25. Cuidar primeiramente da alma. Sobretudo vós, os que muito recentemente vos
revestistes de Cristo e recebestes a visita do Espírito, em cada dia, eu vo-lo peço –
vigiai pelo brilho da vossa veste... a fim de que, conservando todo o nosso brilho e
tendo livrado de qualquer mancha ou nódoa a nossa veste incorruptível, sejamos julga-
dos dignos dos inefáveis dons do alto. Possamos nós todos obtê-los, pela graça e bonda-
de de nosso Senhor Jesus Cristo, com o qual seja dada ao Pai e ao Espírito Santo glória,
poder, honra, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.

Três catequeses baptismais 12

CATEQUESE I

2551 1. Como é desejado, como é amável o coro dos nossos jovens irmãos! Dou-vos já o
nome de irmãos antes de terdes sido gerados, e saúdo afectuosamente o parentesco que
nos une a vós antes de terdes nascido. Eu sei, efectivamente..., a honra a que ides ser
conduzidos e o cargo a que ides ser chamados. Ora, os que vão tomar posse dum cargo
têm o hábito, mesmo antes de o aceitar, de receber de toda a gente sinais de honra... É
precisamente o que eu próprio faço neste momento. De facto, não ides ser conduzidos
a um simples cargo, mas a uma realeza..., ao Reino dos Céus.
2552 2. Lembrai-vos de mim quando chegardes a esse reino, quando tiverdes recebido o
manto real, quando tiverdes vestido a túnica de púrpura tingida com o sangue do
Senhor, quando tiverdes cingido o diadema cujos esplendores são mais brilhantes que
os raios do sol...
2553 3. Considero-vos felizes e aprovo a vossa sabedoria, porque, contrariamente aos
homens despreocupados, avançastes para o baptismo sem esperar o vosso último
suspiro... Com efeito, apesar de ser idêntica a graça para vós e para aqueles que se
tornam iniciados só no momento da morte, no plano do compromisso pessoal não é a
mesma coisa, nem tão pouco quanto ao espectáculo que eles dão. Eles recebem esta
graça no leito, ao passo que vós a recebeis no seio da Igreja, mãe comum de todos nós;

12
JOÃO C RISÓSTOMO , Três catequeses baptismais (=SCh 366).
JOÃO CRISÓSTOMO 607

eles, com lamentações e lágrimas, vós com júbilo e alegria; eles gemendo, e vós dando
graças... É isso o que faz com que, no vosso caso, tudo esteja de acordo com este dom,
enquanto no caso deles tudo está em desacordo...
6. É preciso que aquele que se aproxima destes mistérios sagrados e temíveis esteja 2554
vigilante e não cesse de o estar..., que expulse do seu espírito qualquer reflexão incom-
patível com os mistérios... Tal é a disposição do vosso coração...
7. Queria, antes de qualquer outro assunto, explicar-vos por que é que os nossos 2555
pais, deixando de lado o resto do ano, determinaram que os filhos da Igreja fossem
iniciados neste momento, e qual a razão porque, depois de instruídos por nós, vos
descalçastes e despistes antes de serdes conduzidos em cortejo, nus e de pés descalços,
apenas com uma túnica, até aos clamores dos exorcistas, pois não foi de ânimo leve
nem por acaso que eles fixaram para nós este trajo e esta época: um e outra têm uma
razão mística e secreta... Mas dou-me conta de que o meu discurso de hoje me convida
a tratar outro assunto mais urgente.
8. De facto, é preciso explicar o que é o baptismo..., essa purificação mística, que 2556
não tem apenas um nome, mas vários e de géneros diferentes. Com efeito, este rito de
purificação é chamado banho de regeneração...; mas chama-se também iluminação..., e ainda
baptismo..., sepultura..., circuncisão..., cruz..., e poderíamos citar muitos outros nomes...
9. O banho comum a todos os homens é aquele que se toma nas casas de banho e 2557
que, segundo o costume, lava a sujidade do corpo...
10. Mas o banho da graça não actua como esse; lava a impureza verdadeira, aquela 2558
que, ao mesmo tempo que afecta o corpo, introduz também na alma uma mancha
profunda... Ainda que alguém seja efeminado, dissoluto ou idólatra; mesmo que tenha
cometido qualquer acção perversa ou que nele habite toda a iniquidade do mundo,
depois de ter descido à piscina das águas, ei-lo que sobe do manancial divino mais puro
que os raios do sol... 11. Tal como uma pequena faúlha que ao cair no imenso oceano
imediatamente se apaga e desaparece absorvida na massa das águas, assim também
toda e qualquer maldade humana, ao cair na piscina onde correm as águas consagradas,
é aniquilada e desaparece mais rápida e facilmente do que aquela faúlha.
12. Então, dirá alguém, se este banho perdoa todos os nossos pecados, porque não 2559
é ele chamado «banho da remissão dos pecados» ou também «banho de purificação»,
mas «banho de regeneração»? É que ele não nos perdoa simplesmente os nossos peca-
dos, nem nos purifica simplesmente das nossas faltas, mas faz isso com um poder tão
grande que é como se fôssemos gerados de novo...
16. Estes trinta dias assemelham-se, de algum modo, a uma palestra com o vosso 2560
treinador. Vamos aprender, desde agora, a triunfar do Maligno, desse Demónio, porque
é contra ele que devemos preparar-nos para lutar após o baptismo...
23. Possamos todos nós sentir esta segurança, pela graça e o amor de nosso Senhor 2561
Jesus Cristo, que partilha a glória dada ao Pai com o Espírito Santo pelos séculos dos
séculos. Amen.

CATEQUESE II

3. Quero recordar-vos a dívida que contraí para convosco na minha catequese anterior, 2562
e que não paguei... Que dívida é essa?
Perguntava eu a razão pela qual os nossos pais, deixando de lado todo o resto do
ano, decidiram que a iniciação das vossas almas se fizesse neste tempo (da Páscoa), e
dizia-vos que não é de ânimo leve nem por acaso que nós observamos o momento
escolhido. A graça é sempre a mesma, e não está dependente do tempo, porque é
divina; contudo, a observância do momento designado tem uma significação mística.
608 SÉCULO V

Porque é que os nossos pais fixaram essa data neste momento do ano? Porque foi
nesse momento que o nosso Rei ganhou a guerra contra os bárbaros, contra os Demónios...
Foi nesse momento que Ele destruiu o pecado, aniquilou a morte, submeteu o Diabo e
capturou os prisioneiros. É, pois, em memória desse triunfo que nós celebramos este
dia..., para que o momento escolhido te recorde a vitória do Senhor...
Mas não foi só por causa disso; foi também para que nesta ocasião tu faças um
só com o Senhor... e sejas crucificado pelo baptismo, pois o baptismo também é uma
cruz onde morre o pecado..., e a cruz um baptismo...
2563 6. Quero também pagar outra dívida para convosco, se é que não estais já cansados
de me escutar, e dizer-vos porque é que, neste momento, vos conduzimos, despidos e
descalços, em cortejo, até aos clamores dos exorcistas. Pois bem! Também aqui vai
aparecer novamente a mesma razão, ou seja, que o Rei, guerreiro vitorioso, capturou
prisioneiros. Ora é exactamente esse o aspecto dos prisioneiros. Escuta, por exemplo,
o que Deus disse aos Judeus: Do mesmo modo que o meu servo Isaías caminhou nu e
descalço, assim caminharão os filhos de Israel para o cativeiro, nus e descalços.
Querendo que tu guardes na memória a tirania anterior do Diabo pelo aspecto
exterior, Deus conduz-te assim para te lembrar a tua antiga e baixa condição. É por isso
que vos mantendes não só de pé, despidos e descalços, mas também com as mãos
levantadas e voltadas uma para a outra, porque deveis ainda, depois disso, reconhecer
a soberania de Deus, para a qual avançais agora. Despojos e presas de guerra, eis o que
vós sois todos...
2564 7. Como explicar os clamores dos exorcistas, esses famosos clamores terríveis e
temíveis, que evocam o poder absoluto dum soberano, o castigo, o suplício, a geena?
Isso faz-se por causa do descaramento dos Demónios.
Com efeito, o catecúmeno é ovelha do rebanho ainda não marcada com o selo,
vasilha vazia, asilo sem porta, aberto a todo o que chega, antro de ladrões, refúgio de
animais selvagens, morada de Demónios. Quando o Rei julga que é oportuno..., tem o
cuidado, para preparar o asilo com tempo, de nos enviar, a nós que ensinamos e
àqueles que exorcizam.
Nós, que ensinamos, consolidamos pelo ensino os muros em mau estado...,
expulsamos os maus odores e espalhamos o perfume espiritual; mas os exorcistas,
com os seus clamores terríveis, examinam-vos de todos os lados para ver se não ficou
por aqui algum animal selvagem, por ali uma serpente, acolá uma víbora, mais além um
escorpião..., e afugentam-nos com os seus clamores terríveis...
2565 8. Quereria ainda dizer-vos outra coisa, acerca da qual não vos fiz promessa nenhuma:
seria bom expor a razão pela qual nós somos chamados fiéis, ao passo que os não
iniciados são catecúmenos, pois me parece inconveniente e ridículo receber uma dignidade
sem lhe conhecer o nome... Mas deixemos tal assunto para amanhã...
2566 10. Desejamos que, graças às vossas orações, possamos participar, todos juntos, na
mesma tranquilidade perante o tribunal de Cristo, pelo qual e com o qual seja dada
glória ao Pai ao mesmo tempo que ao Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos
dos séculos. Amen.

CATEQUESE III

2567 1. Hoje é o último dia de catequese. Por isso, também eu, o último de todos, cheguei
à última catequese, e, em último lugar, cheguei ao anúncio de que a vinda do Esposo
JOÃO CRISÓSTOMO 609

será dentro de três dias13. Por isso, levantai-vos, acendei as vossas lâmpadas e acolhei
o Rei dos Céus no meio duma intensa claridade. Lavai-vos e permanecei acordados,
porque o Esposo não virá até vós em pleno dia, mas no meio da noite. É por isso que
também é costume, na cerimónia do casamento, esperar até tarde, na noite, para entregar
as noivas aos seus esposos...
No casamento é costume o esposo dirigir-se para casa da jovem, mesmo que ele
seja muito rico e ela sem fortuna nem consideração...
3. Ao ouvir o nome da esposa, lembrei-me duma antiga dívida, porque fiquei apenas na 2568
promessa de vos dizer a razão de sermos chamados fiéis.
Por que razão usamos este nome? Porque nós, os fiéis, recebemos em depósito
realidades que os olhos do nosso corpo não podem ver, por serem muito grandes e
temíveis, e por ultrapassarem em muito a nossa natureza. Nem o raciocínio do homem
poderia descobri-las, nem a sua palavra expô-las; só o ensino da fé as conhece bem. Foi
por isso que Deus nos deu duas espécies de olhos: os do corpo e os da fé. Quando
entras para seres iniciado nos santos mistérios, os olhos do corpo vêem água, ao passo
que os olhos da fé descobrem o Espírito. Os primeiros contemplam o corpo imergido,
os segundos, o homem velho sepultado; aqueles, a carne lavada, estes, a alma purificada;
aqueles vêem o corpo subir das águas, estes o homem novo subir resplandecente em
virtude desta santa purificação; aqueles vêem o sacerdote 14 elevar e depois impor a
mão direita e tocar a cabeça, estes contemplam o Sumo Sacerdote que estende invisi-
velmente a sua mão direita do alto dos Céus e toca a cabeça. Porque aquele que baptiza
então não é um homem, mas o Filho unigénito, o Filho de Deus em pessoa.
O que se passou com o corpo do Senhor passa-se igualmente com o nosso... E o
mesmo acontece quanto ao Espírito Santo, no momento da sua vinda: este Espírito
repousa também sobre o teu corpo, porque o baptismo faz-se em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo...
Também é por essa razão que o sacerdote que baptiza não diz: «Eu baptizo N.»,
mas sim: «N. é baptizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», o que
mostra que não é ele que baptiza, mas o Pai, o Filho e o Espírito Santo, cujo nome é
invocado. É também por isso que a nossa proclamação de hoje é chamada fé, e que nós
vos pedimos que não pronuncieis nenhuma outra palavra antes de terdes dito: «Creio».
Esta palavra é o fundamento seguríssimo sobre o qual se encontra o edifício que não
pode ser abalado.
4. Deixemos ao Mestre o cuidado de falar da fé; quanto a nós ser-nos-á possível 2569
falar-vos outra vez quando estiverem muitos não iniciados; mas hoje, temos de vos
dizer o que só vós deveis ouvir agora, e que não seria possível dizer se os outros
estivessem misturados convosco. O que é?
Depois de amanhã, no dia da Preparação, no decorrer da hora nona, pedir-vos-ão
que pronuncieis certas palavras e que assineis um contrato diante do Senhor. Não é
sem razão que vos recordo este dia e esta hora, mas é possível extrair daí um ensina-
mento místico. Com efeito, no dia da Preparação, por volta da hora nona, o ladrão
entrou no Paraíso, a obscuridade que tinha reinado da hora sexta até à hora nona
dissipou-se, e Aquele que é a luz sensível e espiritual foi oferecido nesse momento em
sacrifício pelo mundo inteiro, pois foi então que Cristo disse: Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito...

13
Esta indicação dá-nos a certeza de que esta catequese foi pronunciada na Quarta-Feira Santa. Com efeito,
«dentro de três dias», isto é, no Sábado Santo, durante a Vigília pascal, seria o momento da «vinda do
Esposo» à alma do baptizado.
14
Nos Padres da Igreja, a palavra i( e reu/ j aplica-se ao presbítero e ao bispo. Nós sabemos que, no caso do
baptismo, era o bispo que baptizava os primeiros candidatos, e a seguir entregava essa função aos presbíteros,
enquanto ele se dirigia para o lugar da confirmação, o consignatorium.
610 SÉCULO V

Sem dúvida nenhuma, é preciso que então sejais introduzidos em comum. Observa
bem este ponto: tudo vos é dado em comum, para que o rico não despreze o pobre e
para que o pobre não creia que recebeu menos que o rico...
Uma vez introduzidos, é preciso que dobreis todos em comum os joelhos, em
vez de ficardes de pé, que estendais as mãos para o Céu a fim de dar graças a Deus pelo
dom que vos é dado. As leis santas prescrevem que se esteja de joelhos, porque esta
atitude leva a reconhecer a autoridade do Senhor. Dobrar os joelhos é próprio daqueles
que reconhecem a sua submissão...
Quando estiverdes de joelhos, no momento de vossa iniciação, ser-vos-á pedido
que pronuncieis estas palavras: «Renuncio a ti, Satanás».
2570 6. «Renuncio a ti, Satanás». Que se passou? Que fórmula é esta, estranha e inesperada?
Tu que tinhas medo, tu que tremias, ergueste-te contra o tirano? Desprezas a sua
crueldade? Quem te levou a uma tão louca temeridade? Donde te veio esta coragem?
Resposta: «Tenho uma arma poderosa». Diz-me: qual é essa arma, qual é essa
aliança? – Resposta: «Adiro a Ti, Cristo. É por isso que tenho confiança, e que faço
frente. Tenho, na verdade, um meio poderoso para escapar ao Demónio; foi esse meio
que me tornou mais forte do que ele, a mim que antes tinha medo e tremia; por isso não
é só a ele que eu renuncio, mas também a toda a sua pompa».
A pompa do Diabo é toda a espécie de faltas: os espectáculos contrários à moral,
as corridas de cavalos, as assembleias cheias de risos e de palavras vergonhosas. As
pompas do Diabo são as interpretações do voo das aves, as práticas de adivinhação, os
presságios, a observância das estações, as aproximações supersticiosas, os amuletos e
as palavras mágicas.
A Cruz é que é um amuleto admirável e uma palavra mágica poderosa: feliz a
alma que pronuncia o nome de Jesus Cristo, o Crucificado! Invoca este nome, e toda a
doença fugirá, toda a maquinação satânica se afastará de ti...
2571 7. Depois destas palavras, depois da renunciação ao Diabo, depois da adesão a
Cristo, como sois doravante da sua família e já não tendes mais nada de comum com o
outro, o sacerdote pede imediatamente que recebas o sinal; e ele mesmo traça a cruz na
tua fronte...
A cruz é impressa com o unguento, e o unguento de que nos servimos é feito de
azeite e mirra: de mirra, porque se trata duma jovem esposa, e de azeite, porque se
trata de um atleta. E uma vez mais, não é um homem, mas o próprio Deus que te faz
esta unção pela mão do sacerdote... Depois de feita esta unção sobre todos os teus
membros, poderás, sem medo, conter o dragão e não sofrerás nada de funesto.
2572 8. Depois desta unção, nada mais resta do que ir até à piscina das águas santas.
Nesse momento, o sacerdote tira-te a veste e ele próprio te faz descer à água corrente.
Sem veste porquê? – Isso recorda-te a tua nudez anterior, quando estavas no Paraíso
e não tinhas vergonha... A piscina é preferível ao Paraíso: aqui não há serpente, mas
Cristo está ali e é Ele que te inicia em vista da regeneração pela água e pelo Espírito;
aqui não há árvores belas e agradáveis à vista, mas há graças espirituais; aqui não há a
célebre árvore do bem e do mal, e também não há a árvore da lei nem do mandamento,
mas a graça e os dons...
2573 9. Uma vez que ouvistes com tanto prazer as palavras que vos disse, pedir-vos-ei
em troca deste prazer um único favor, aquele que já vos pedi no início. Quando
descerdes à piscina destas águas maravilhosas, lembrai-vos da minha indignidade...
Gozareis todos de um grande crédito junto do Rei, que vos enviaremos todos, em
conjunto, até Ele, como embaixadores da natureza humana. Não Lhe leveis uma coroa
JOÃO CRISÓSTOMO 611

de ouro, mas uma coroa de fé... Pedi-Lhe pela mãe de nós todos15, para que seja firme
e inabalável, e pelo bispo por cujas mãos e por cuja voz ficastes na posse destes bens.
Falai-Lhe longamente dos sacerdotes que se sentam ao nosso lado e dos homens, para
que Ele nos perdoe o que falta das nossas dívidas... Ponde em comum as vossas boas
obras, porque gozais de um grande crédito junto do Senhor e Ele acolher-vos-á com um beijo.
10. Uma vez que fiz menção de um beijo, quero falar-vos agora a esse respeito. 2574
Todas as vezes que tivermos de nos aproximar da mesa santa, seremos convidados a
amar-nos uns aos outros e a darmo-nos mutuamente um beijo santo. Para quê? – Para
que, dado que os corpos nos separam, unamos as nossas almas, particularmente nesse
momento, pelo beijo, de tal modo que a nossa assembleia se torne semelhante à dos
Apóstolos, quando os crentes formavam um só coração e uma só alma. É assim que nos
devemos aproximar dos santos mistérios, intimamente unidos uns aos outros...
Mas há ainda uma segunda explicação mística deste beijo. O Espírito Santo fez
de nós templos de Cristo. Deste modo, ao darmo-nos mutuamente um beijo na boca, o
que nós beijamos com afecto é a porta do templo. Ninguém, pois, realize este acto com
uma consciência perversa, com um coração hipócrita, porque este beijo é santo...
Recordando-nos de todas estas coisas, permaneçamos-lhes fiéis durante toda a
vida; guardemos puros e intactos a nossa adesão a Cristo, a nossa renunciação a
Satanás, o crédito que o Senhor hoje nos concede, a fim de irmos, cheios de glória, ao
encontro do Rei dos Céus... Possamos todos nós obtê-los, pela graça e o amor de nosso
Senhor Jesus Cristo, a quem pertence a glória por todos os séculos. Amen.

Diálogo sobre o sacerdócio 16

LIVRO III

4. É certo que o sacerdócio se exerce na terra, mas podemos contá-lo entre as 2575
coisas celestes. E com muita razão. De facto, não foi um homem, nem um Anjo ou
Arcanjo, nem qualquer outro poder criado que ordenou este mistério e fez com que
homens ainda revestidos de carne pudessem exercer o ministério dos Anjos, mas o
próprio Paráclito. Por isso, aquele que foi revestido do sacerdócio deve ser tão puro
como se estivesse nos Céus, no meio dos poderes angélicos...
Queres ver, para passar a um outro assunto de admiração, a excelência deste rito
sagrado? Representa-te Elias, à frente duma imensa multidão e a vítima estendida no
altar, e o resto dos assistentes numa grande quietação e em silêncio absoluto, o Profeta
a rezar sozinho, depois o fogo que desce de repente sobre a vítima. Tudo isto é admirá-
vel e nos enche de respeito. Contempla a seguir o que se realiza agora e verás que essas
coisas, não são só admiráveis, mas que também ultrapassam toda a impressão de assom-
bro. De facto, aqui o sacerdote está de pé, não para fazer baixar fogo, mas o Espírito
Santo, e prolonga durante largo tempo a sua oração, não para que uma chama vinda do
alto consuma as oferendas, mas para que desça a graça sobre a vítima, inflame por seu
intermédio as almas de todos e as torne mais brilhantes do que a prata purificada...
5. Se pudéssemos imaginar a grandeza do homem ainda envolto em carne e sangue, 2576
ao qual é dado aproximar-se desta natureza bem-aventurada e imortal, veríamos clara-
mente a honra que a graça do Espírito concedeu aos sacerdotes. Na verdade, pelas

15
Pela Igreja.
16
JOÃO CRISÓSTOMO, De sacerdotio (=PG 48, 623-692; SCh 272; Paulistas, Lisboa 1960).
612 SÉCULO V

mãos do sacerdote, não só se realizam esses mistérios, mas também outros que em
nada lhes são inferiores, quer pela sua própria dignidade, quer em ordem à nossa
salvação. Com efeito, pessoas que ainda vivem na terra são encarregadas de administrar os
tesouros do Céu, e receberam um poder que Deus nunca concedeu aos Anjos e aos
Arcanjos: Tudo o que ligardes na terra será ligado nos Céus, e tudo o que desligardes na
terra será desligado nos Céus17. É certo que os que exercem autoridade no mundo
também têm o poder de ligar; mas só os corpos. O poder de ligar do sacerdote toca a
própria alma e penetra nos Céus. Aquilo que os sacerdotes fazem aqui em baixo, Deus
ratifica-o lá em cima, e o julgamento dos servos é confirmado pelo Senhor...
2577 6. São eles que nos geram espiritualmente, que nos dão à luz pelo baptismo. Por eles
nos revestimos de Cristo, somos sepultados com o Filho de Deus e nos tornamos mem-
bros daquela bem-aventurada cabeça. Por isso os sacerdotes deveriam merecer-nos mais
respeito que os magistrados e reis, e até seria justo tributar-lhes honra maior do que aos
nossos pais. Porque estes geraram-nos pelo sangue e pela vontade da carne, mas aque-
les são os autores do nosso nascimento de Deus, da bem-aventurada regeneração, da ver-
dadeira liberdade e da filiação divina pela graça...
Os sacerdotes não têm só o poder de nos perdoar os pecados quando nos regene-
ram pelo baptismo, mas também aqueles que cometemos depois do nosso novo nasci-
mento. Porque: Algum de vós está doente? Chame os presbíteros da Igreja, e que
estes orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará
o doente, e o Senhor o aliviará; e, se tiver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados18.

LIVRO IV

2578 3. Além das obras, que são um bom exemplo, o ministério sacerdotal não conhece
outro método para curar que não seja o ensino da palavra. Só a palavra lhe serve de
instrumento, de alimento, de ar sadio. A palavra é o remédio que ele administra, o fogo
de que ele se serve para queimar, a espada com que ele corta, e não dispõe de mais
nenhuma... Se este meio não surtir efeito, tudo o mais será vão... Por isso é tão impor-
tante prestar atenção a que a palavra de Cristo habite em nós com abundância...

LIVRO VI

2579 4. O que é um sacerdote? Um homem de quem Deus fez seu embaixador junto do
povo, junto do mundo inteiro, e que pede ao Todo-Poderoso que tenha piedade dos
pecadores, tanto vivos como mortos... Encarregado dos interesses de toda a gente, pai
de todos, o sacerdote aproxima-se de Deus para Lhe pedir o fim das guerras que
destroem a terra, o restabelecimento da ordem, a paz, a prosperidade, o desaparecimento
de todos os males... Dado que ele ora por todos os homens deve distinguir-se deles
pelos seus méritos... Se pensarmos que o sacerdote é aquele que invoca o Espírito
Santo, que celebra o tremendo sacrifício, que continuamente toca Deus com as suas
mãos e que tem as chaves do Céu, diz-me onde poderemos colocar este homem?...
Imagina como devem ser aquelas mãos que tocam as coisas santas, como deve ser
aquela língua que pronuncia tais palavras e que alma pode haver mais pura e mais santa
do que aquela que há-de receber tal Espírito? Os Anjos rodeiam o sacerdote; todo o
santuário, e o espaço que envolve o altar, estão cheios de exércitos celestes, em honra
d’Aquele que está sobre o altar...

17
Mt 18, 18.
18
Tg 5, 14-15.
JOÃO CRISÓSTOMO 613

Homilias sobre Deus incompreensível 19

HOMILIA 3

6. Esta multidão imensa agora reunida, que presta uma atenção tão profunda às 2580
palavras que escuta, muitas vezes, no momento mais sagrado20, procuro-a com os
olhos, mas em vão. Deploro-o vivamente: quando um homem que, como vós, não é
mais que um servo de Deus, fala, manifesta-se uma grande pressa: as pessoas empurram-se
umas às outras e ficam até ao fim; ao contrário, quando Cristo vai aparecer no decurso
dos mistérios sagrados, a igreja fica vazia e deserta21.
Como se pode desculpar isso? Esta negligência faz perder todos os elogios que
vos merece o vosso zelo em escutar a palavra... Porque se escutásseis como se deve o
que vos é dito, pelos vossos actos é que manifestaríeis o vosso zelo. Sair precipitadamente
quando o discurso acaba, é manifestar que o vosso espírito não entendeu nada, não
reteve nada do que se disse. Com efeito, se os nossos ensinamentos ficassem gravados
nas vossas almas, eles reter-vos-iam certamente no interior da igreja e far-vos-iam
assistir com mais piedade aos nossos tremendos mistérios...
Qual é a desculpa medíocre da maioria daqueles que se comportam assim? «Eu
também posso rezar em minha casa, dizem eles, ao passo que em minha casa não posso
escutar uma homilia ou um sermão». Enganas-te a ti mesmo, homem! Se efectivamente
tu podes orar em tua casa, não poderás aí rezar do mesmo modo que na igreja, onde se
encontra um número tão grande de pais espirituais22 e onde um clamor unânime sobe
para Deus. Quando invocas o Senhor em particular, não és tão bem escutado como
quando o fazes na companhia dos teus irmãos. Aqui há qualquer coisa a mais, a saber,
a unanimidade dos espíritos e das vozes, o elo da caridade e as orações dos sacerdotes;
os sacerdotes presidem para que as orações da multidão, que são mais frágeis, recebam
o reforço das suas, que são mais fortes, e se elevem com elas para o Céu.
Aliás, que utilidade teria uma homilia se não se lhe juntasse a oração? A oração
vem em primeiro lugar, e a palavra não faz senão segui-la... Se te acostumares a orar
com fervor, não terás necessidade de ser instruído pelos outros servos de Deus, pois
Ele próprio esclarecerá o teu espírito sem intermediário. Se a oração de um só tem um
tal poder, quanto mais eficaz é a oração que se faz com a multidão...
7. É também por isso que, nesse momento 23, o diácono faz vir os possessos e os 2581
manda inclinar somente a cabeça, a fim de que orem ao menos pela atitude dos seus corpos,
uma vez que não lhes é permitido tomar parte nas orações da assembleia dos irmãos...
Aprovastes as minhas palavras; acolhestes esta exortação com aplausos baru-
lhentos. Mas não é preciso esperar muito tempo para que nos manifesteis a vossa
aprovação por actos... Porque à exortação segue-se imediatamente a oração24. É essa
aprovação, são esses os aplausos que eu procuro: aqueles que se exprimem por acções.
Convidai-vos, pois, mutuamente, a ficar no lugar que ocupais e, se um de entre vós vos
fizer sinal de que se prepara para partir, tende cuidado em retê-lo...

19
J OÃO C RISÓSTOMO , De incompreensibile Dei natura, contra anomoeos (=PG 48, 701-748; SCh 28
bis).
20
O momento mais sagrado é certamente o da celebração dos mistérios, ou seja, a anáfora e os ritos da
comunhão. Mas em Antioquia, muitos fiés saíam da igreja logo após o sermão.
21
As homilias de João Crisóstomo fornecem numerosos pormenores concretos acerca do comportamento dos
cristãos de Antioquia na igreja: cf. Homilia sobre o baptismo de Cristo, 4.
22
O termo pais espirituais designa os bispos de passagem por Antioquia.
23
No momento da Oração dos fiéis.
24
A Oração dos fiéis seguia-se imediatamente à homilia.
614 SÉCULO V

HOMILIA 4

2582 5. A que vos exortamos nós habitualmente? A vos entregardes assiduamente à


oração com espírito sóbrio e alma vigilante. Muito recentemente falei-vos sobre este
ponto e constatei que vos conformastes aos meus desejos com rapidez. Ora seria ilógico,
depois de vos ter repreendido quando vos descuidáveis, que não vos louvasse quando
melhorastes o vosso modo de proceder. Hoje, portanto, pretendo louvar-vos e teste-
munhar-vos o meu reconhecimento pela vossa docilidade. Testemunhar-vos-ei este
reconhecimento, ensinando-vos a razão pela qual esta oração se faz antes das outras e
porque é que o diácono manda entrar nesse momento os possessos e as pessoas
vítimas de delírio perigoso, e as faz inclinar a cabeça. É que a afluência dos Demónios
é uma corrente perniciosa e insuportável, um cadeado mais sólido do que o ferro mais
duro... Por isso os nossos Pais estabeleceram que no momento em que Cristo vai vir
sentar-Se, por assim dizer, sobre um trono elevado e manifestar-Se nos seus próprios
mistérios, os possessos devem ser introduzidos como prisioneiros, não para dar conta
de suas faltas, como os cativos no tribunal, nem para sofrer as suas penas e os seus
castigos, mas para que todo o povo, toda a cidade reunida neste edifício eleve em favor
deles súplicas comuns, pedindo todos num só coração por eles ao Mestre comum e
implorando a sua piedade com grandes clamores.
Então criticávamos aqueles que abandonavam esta oração e que, nesse momento, se
encontravam lá fora; agora vou criticar aqueles que permanecem cá dentro, não certa-
mente por aí ficarem, mas porque, ficando, não se comportam melhor do que os que
saem, ao falarem uns com os outros num momento tão importante como esse...
Não seria bom que neste momento todos os assistentes em conjunto dessem
livre curso às lágrimas, que se vissem os olhos de todos banhados em lágrimas, que se
elevassem da assembleia lamentações e gritos? Após a participação nos mistérios,
após a acção benfeitora do banho baptismal, após a agregação a Cristo, estas ovelhas
puderam ser arrancadas ao rebanho pelo lobo, que as retém junto de si, e tu, ao veres
este desastre, não vertes uma lágrima?...
A exortação que o diácono dirige a todos ao dizer: «Levantemo-nos, estejamos
atentos» não foi instituída por acaso e sem razão, mas para que elevemos os nossos
pensamentos, que se arrastam ao nível do solo, e para que, expulsando o cuidado que
nasce dos negócios da vida quotidiana, possamos apresentar a nossa alma levantada
diante de Deus...
Pensa ao lado de quem estás de pé, em companhia de quem vais invocar a Deus:
em companhia dos Querubins... Ninguém, pois, tome parte nesses hinos sagrados e
místicos com um fervor relaxado...
É por isso que nos convidam a estar atentos nesse momento. Estar atento não é
mais do que o homem estar como convém na presença de Deus...
2583 6. Ao ver-vos assim unidos como num só corpo e prestando toda a atenção às nos-
sas palavras... o Demónio misturou à vossa multidão ladrões e cortadores de bolsas, que
mais de uma vez roubaram a diversas pessoas, quando aqui estavam reunidas, o ouro
que traziam com elas. Sim, isso aconteceu aqui mesmo a várias pessoas e mais de uma
vez. Para que isso não volte a suceder e para que o vosso zelo em escutar-nos não
diminua pouco a pouco por essas perdas de dinheiro, se um grande número de entre
vós viesse a ser vítima disso, peço-vos e exorto-vos a todos a não trazerdes ouro
convosco quando entrardes aqui...
HOMILIA 5

2584 9. Exorto-te, rogo-te e peço-te que confesses, sem cessar, as tuas faltas a Deus.
Para o fazer não te levo, como a um teatro, ao círculo dos teus companheiros de
JOÃO CRISÓSTOMO 615

miséria, nem te obrigo a revelar as tuas faltas aos homens. Descobre a tua consciência
na presença de Deus, mostra-Lhe a Ele as tuas feridas e pede-Lhe a Ele os remédios.
Dirige-te a Ele, não como a um censor, mas como a um médico. Aliás, não te servirá de
nada calares-te, pois Ele sabe tudo. Fala, portanto, e ficarás a ganhar. Fala, a fim de
que, depondo lá todos os teus pecados, te retires em seguida puro e libertado das tuas
faltas...
O poder da oração é muito grande... Por oração entendo, não aquela que está só
na boca, mas a que brota do fundo do coração...
Não falo assim apenas para que me aplaudais, mas para que mostreis a vossa
aprovação também por actos. Se o facto de contares a alguém os teus problemas
pessoais e de lhe dizeres sem receio as provações que te feriram traz alguma consolação
às tuas penas, como se através das palavras viesse uma brisa fresca, muito maior
consolação encontrarás e abundante reconforto, se contares ao Senhor os sofrimentos
da tua própria alma!...
HOMILIA 6

Como iremos desculpar-nos ou que perdão esperamos obter, ao vermos que o 2585
Senhor desceu do Céu por nossa causa, se nós não nos incomodamos, deixando as
nossas casas para ir onde Ele está? Vês que uns magos, pagãos e estrangeiros, vieram
prontamente da Pérsia, para ver Aquele que estava num presépio, e tu, que és cristão,
não podes suportar nem sequer uns momentos, para desfrutar deste feliz espectáculo?
De facto, se viéssemos com fé, vê-l’O-íamos verdadeiramente deitado no presépio,
uma vez que esta mesa faz as vezes de presépio.
Também aqui está o Corpo do Senhor, não certamente envolvido em panos como
então, mas totalmente revestido pelo Espírito Santo. Os que estão iniciados nos mistérios
entendem o que eu digo. Na verdade, os magos não fizeram mais do que adorá-l’O, ao
passo que a ti permitimos... que O recebas e, depois de O receberes, que vás para
casa...
Ninguém me venha dizer: «Estou cheio de vergonha, tenho a consciência cheia de
pecados, levo às costas um fardo pesadíssimo». Pois bem: bastam-te estes cinco dias
para diminuíres o número dos teus pecados, se fores sóbrio, se orares e permaneceres
em vigília. Não olhes à brevidade do tempo; presta antes atenção à benignidade do
Senhor, pois até os Ninivitas, em apenas três dias, afastaram de si a ira de Deus...
Comecemos a festa a partir de hoje; durante estes cinco dias cessem todos os
negócios; nada de ir ao foro, nada de ir aos tribunais... Infelizmente, muitos fiéis
chegaram a tal ponto de insensibilidade e apatia que, apesar de estarem cheios de
maldades..., se atrevem a aproximar-se desta mesa, nos dias festivos, com negligência
e despreocupação, sem se darem conta de que o tempo de comungar não depende da
festa ou solenidade do dia, mas da consciência pura e da vida sem pecado... E também
não é o facto de nos aproximarmos apenas uma vez ao ano que nos livra dos pecados,
se o fazemos indignamente...
Por isso, exorto-vos a todos a que não participeis dos divinos mistérios negli-
gentemente e como que obrigados pela festa. Sempre que pensardes em participar da
oblação sagrada, começai a purificar-vos muitos dias antes pela mudança de vida 25, a
oração e a esmola, e através de exercícios espirituais...

25
meta/ n oiaj .
616 SÉCULO V

Demonstração contra os Judeus e os Pagãos 26


2586 9. A coroa real dá menos beleza à cabeça do que a cruz, mais preciosa que o mundo
inteiro. Nos nossos dias, o símbolo d’Aquele que antes todos rejeitavam tornou-se de tal
modo habitual, que o encontramos por toda a parte, usada por príncipes e súbditos, por
mulheres e homens, por virgens e desposadas, por servos e homens livres. Todos fazem
com frequência aquele sinal na parte mais nobre dos seus membros, levando-o sempre
consigo, gravado na fronte, como numa coluna. Ele brilha na mesa sagrada, nas ordena-
ções sacerdotais27 e, de novo, junto do Corpo de Cristo na ceia mística.

Homilias contra os Judeus 28

HOMILIA 1

2587 6. Quem faz com que as coisas oferecidas se tornem o Corpo e o Sangue de Cristo
não é o homem, mas Cristo que foi crucificado por nós. O sacerdote, como representante,
pronuncia as palavras rituais; mas a eficácia e a graça vêm de Deus. O sacerdote diz:
Isto é o meu Corpo, e esta palavra transforma as coisas oferecidas.
HOMILIA 3

2588 4. Páscoa e Quaresma não são a mesma coisa. A Páscoa é uma coisa, e a Quaresma
é outra. A Quaresma celebra-se apenas uma vez no ano; a Páscoa, ao contrário, três
vezes na semana, mas também quatro vezes, ou antes, todas as vezes que se quiser.
Com efeito, a Páscoa não consiste no jejum, mas na oblação e na imolação que se faz
em cada sinaxe. Para saberes que é assim, escuta Paulo que diz: Cristo, nossa Páscoa,
foi imolado por nós; e também: Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes
deste cálice, anunciais a morte do Senhor. Por isso, sempre que te aproximas de
consciência pura, fazes a Páscoa: não quando jejuas, mas quando tomas parte no
sacrifício. De facto, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice,
anunciais a morte do Senhor. A Páscoa consiste em anunciar a morte do Senhor. Por
isso, o sacrifício que oferecemos hoje é aquele que foi cumprido ontem, e aquele que se
faz cada dia é o mesmo sacrifício que aconteceu naquele dia da semana: em nada aquele
era mais santo do que este; em nada este é menos digno do que aquele, mas único e
idêntico, igualmente tremendo e salutar.
Por que motivo, diz-me, jejuamos durante estes quarenta dias? Nos tempos
passados, muitos chegavam aos sagrados mistérios de maneira ousada e sem preparação,
principalmente nestes dias em que Cristo no-los entregou. Como os Padres entende-
ram o mal que resultava de alguém se aproximar dos mistérios de forma descuidada,
reuniram-se e designaram quarenta dias de jejum, orações, sermões e reuniões, para
que, purificando-nos com diligência pelas orações, as esmolas, o jejum, as vigílias, as
lágrimas, a exomologese e todas as outras coisas, nos aproximássemos de consciência
pura segundo a nossa capacidade. É evidente que fizeram algo muito importante com
esta sua decisão e conseguiram que nos habituássemos a jejuar. Porque certamente,
mesmo que não cessássemos, durante todo o ano, de clamar e pregar o jejum, ninguém
atenderia às nossas palavras, ao passo que, quando chega o tempo da Quaresma,
mesmo que ninguém pregue nem aconselhe, até os mais negligentes se entusiasmam...

26
JOÃO C RISÓSTOMO, Contra Iudaeos et Gentiles quod Christus sit Deus (=PG 48, 813-838).
27
i( e re/ w n xeirotoni/ a ij .
JOÃO CRISÓSTOMO 617

Por isso, se um Judeu ou um Pagão te perguntar por que jejuas, não lhe digas que é pela
Páscoa ou pela cruz... Não jejuamos pela Páscoa e pela cruz, mas pelos nossos peca-
dos e porque nos vamos aproximar dos mistérios. Aliás, vista de outro modo, a Páscoa
não é tempo de jejum e de luto, mas de gozo e de alegria...
5. Sabemos bem que o catecúmeno, apesar de jejuar todos os anos, nunca celebra a 2589
Páscoa, porque não comunga da oblação, ao passo que o fiel que não jejua, mas se
aproxima de consciência limpa, celebra a Páscoa tanto hoje, como amanhã, como em
qualquer outro dia em que receba a comunhão...

Dia de Natal do Senhor 29


7. Quando vos aproximais daquela tremenda e divina mesa dos sagrados mistérios, 2590
fazei-o com temor e tremor, com a consciência limpa, com oração e jejum; não vos
aproximeis em tumulto, nem aos pontapés, nem aos empurrões aos outros, porque
isso é sinal de grande orgulho e de muito desprezo... Pensa na vítima em que vais tocar,
na mesa de que te aproximas...
Aproximemo-nos, portanto, com temor, dêmos graças, ajoelhemo-nos confessando
os nossos pecados, choremos com lágrimas os nossos males, derramemos diante do
Senhor orações longas e silenciosas e, limpando-nos a nós mesmos desta forma, vamos,
em silêncio e com o recolhimento devido, ao encontro do Rei dos Céus. Ao receber esta
hóstia santa e imaculada, beijemo-la efusivamente e, abraçando-a com o olhar, aqueça-
mos a nossa mente e a nossa alma, a fim de não nos reunirmos para juízo e condenação,
mas para tranquilidade da alma, para crescermos no amor e na virtude, para recon-
ciliação com Deus, para termos paz firme e para nos santificarmos e edificarmos o
próximo.

Homilia para o primeiro dia do ano 30


2. O cristão não deve celebrar os meses, as luas novas ou as festas dominicais, mas 2591
deve celebrar, por toda a vida, a festa que é propriamente dele. Qual é a festa que é
propriamente dele? Escutemos as palavras do apóstolo Paulo: Celebremos, pois, a
festa, não com o fermento velho, nem com o fermento da malícia e da corrupção, mas
com os ázimos da pureza e da verdade. Não há dúvida de que, se conservares a tua
consciência pura, celebras a festa continuamente, alimentado com a boa esperança e
alegrando-te na expectativa dos bens futuros...
3. A observância dos dias não é própria da sabedoria cristã, mas da loucura grega... 2592

Homilia sobre o Baptismo de Cristo 31


1. Hoje, todos vós estais na alegria, e só eu na dor... A semana tem sete dias; o 2593
Senhor divide connosco estes sete dias e não reservou a maior parte para Si e a menor
para nós, nem a dividiu em duas partes iguais, não tomou três (dias) para Si oferecendo-nos
28
J OÃO C RISÓSTOMO , Homiliae adversus Judeos (=PG 48, 843-942).
29
J OÃO C RISÓSTOMO , Homilia in diem natalem D. N. Iesu Christi (=PG 49, 351-362).
30
J OÃO C RISÓSTOMO , Homilia in Kalendas (=PG 48, 953-962).
31
J OÃO C RISÓSTOMO , Homilia de baptismo Christi (=PG 49, 363-372).
618 SÉCULO V

a nós os outros três, mas concedeu-te seis a ti reservando apenas um para Si. No
entanto, tu, por todo o tempo deste dia procuras libertar-te dos afazeres quotidianos
e ousas fazer nele o que fazem aqueles que roubam os templos, roubando um dia
sagrado e dedicado à escuta da palavra espiritual e utilizando-o indignamente para os
teus afazeres materiais. Mas, para que falo eu do domingo todo?... Dedica duas horas
a Deus e receberás como recompensa, em tua casa, dias sem fim...
2594 4. Já sei que a maioria de vós se vai aproximar da mesa sagrada, porque é costume
fazê-lo na festa. Vem a propósito recordar aquilo que outras vezes tenho repetido: não
é o guardar a festa que faz com que seja tempo conveniente para comungar; purifica a
consciência e depois aproxima-te do sacrifício sagrado. Quem está manchado e sujo,
nem na festa deve participar daquela mesa sagrada. Ao contrário, aquele que está limpo
e lavou os seus delitos com uma diligente mudança de vida32, é digno de comungar dos
divinos mistérios e de gozar dos dons de Deus, tanto na festa como sempre... Há
muitos que, ao chegar a festa, como que atraídos por este dia, apesar de cheios de
pecados, se aproximam dos sagrados mistérios, que nem sequer deveriam olhar à distância.
A estes, quando os conhecemos, afastamo-los; mas aos desconhecidos, entregamo-los a
Deus, que conhece os segredos de cada consciência.
Hoje vou procurar corrigir algo em que todos pecam abertamente. De que pecado
se trata? O de não comungarmos com temor, mas avançando com ruído, aos empurrões,
cheios de ira, falando alto, ofendendo com palavras, aborrecendo o próximo e cheios de
perturbação. Tenho-o dito muitas vezes e não me cansarei de o dizer... Haverá alguém
a quem não pareça absurdo que haja... silêncio na praça e ruído na igreja, tranquilidade
no mar e tempestade no porto? Diz-me, ó homem, porque te alvoroças? Que te inquieta?...
Quereis que vos diga a razão desse ruído e alvoroço? Isso acontece, porque não
vos fechamos as portas durante todo o tempo sagrado e porque suportamos as vossas
saídas e idas para casa antes da última acção de graças, o que constitui um grave
desprezo. Que fazes, ó homem? Quando Cristo ainda está presente, quando estão
presentes os Anjos, preparada esta mesa tremenda, quando os teus irmãos ainda estão
a ser instruídos nos mistérios, deixa-los e vais-te embora?...
Assim, caríssimos, tenhamos presentes estas coisas, pensemos nelas... O Se-
nhor dá-te a sua carne, e tu não Lho pagas nem com palavras, nem sequer Lhe dás
graças pelas palavras que recebeste? Tu que rezas depois de te alimentares com a
comida corporal..., não te deténs a dar graças com palavras e com obras depois de
participares no manjar espiritual?
Digo-vos estas coisas para que não vos limiteis a louvar..., mas também para que,
quando chegar o momento, vos recordeis destas palavras e vos distingais pela vossa
digna compostura. Estas coisas chamam-se mistérios, e são-no; ora, onde estão os mis-
térios há muito silêncio. Aproximemo-nos então deste santo sacrifício com muito silên-
cio, com muita dignidade e respeito...

Homilia sobre o sepulcro e a cruz 33


2595 3. Uma vez que também nós iremos ver, esta tarde, como Cordeiro imolado e
sacrificado, Aquele que foi cravado na cruz, peço-vos que nos aproximemos com
temor, com muita veneração e respeito... Os Anjos estavam no sepulcro com muita

32
meta/ n oiaj .
33
JOÃO C RISÓSTOMO , Homilia de coemeterio et de cruce (=PG 49, 393-398).
JOÃO CRISÓSTOMO 619

reverência e cuidado; nós, que não iremos ao sepulcro vazio mas à própria mesa em que
está o Cordeiro, aproximamo-nos com barulho e desordem...
Que fazes tu? Quando o sacerdote está diante da sagrada mesa com as mãos
levantadas ao Céu, invocando o Espírito Santo para que venha, para que nos conceda
os dons que pedimos, há grande tranquilidade e silêncio. Mas, logo que o Espírito nos
entrega a sua graça, quando desce, quando toca as oferendas, quando vês o Cordeiro
imolado e consumado, então começa o barulho...

Homilias sobre o santo domingo de Páscoa 34

HOMILIA 2

3. Pensa, caríssimo, na grandeza da alegria pascal, dado que até os poderes celestes 2596
fazem festa juntamente connosco e connosco se alegram pelos nossos bens... Nem
mesmo o Senhor deles e nosso Se envergonha de a celebrar..., mas até o deseja, pois foi
Ele que disse: Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco. Se desejou comer a
Páscoa, é evidente que também desejou celebrar a festa...
Que te falta então para te encheres de alegria? Ninguém, neste dia, pode estar
triste, nem sequer por causa da pobreza, porque se trata de uma festa espiritual..., na
qual desaparece toda a desigualdade e onde há a mesma mesa para o rico e para o pobre,
para o escravo e para o livre. Se és rico, não tens, por essa razão, mais que o pobre, e,
se és pobre, também não tens menos que o rico..., porque a graça é divina e não leva em
conta a diversidade das pessoas... A mesma mesa está posta para aquele que cinge o
diadema, se veste de púrpura e tem poder sobre toda a terra, e para o mendigo que está
sentado a pedir esmola...
4. Esta festa e solenidade não precisam de riquezas nem de grandes gastos, mas 2597
apenas de bons desejos e pureza de coração. Não é possível comprar aqui nada de
corporal, pois tudo é espiritual: escuta da palavra divina, orações dos Padres, bênçãos
dos sacerdotes, comunhão dos mistérios divinos e inefáveis, paz, concórdia e dons
espirituais dignos da riqueza d’Aquele que os dá...
HOMILIA 3

4. Diz-me: foste com as mãos por lavar à Eucaristia? Penso que não. Preferiste 2598
antes não ir, do que fazê-lo com as mãos sujas... Tu, que prestas atenção a coisa assim
insignificante, como ousas aproximar-te e receber a Eucaristia com a alma impura?
Com as mãos seguras o Corpo do Senhor só por breves instantes, ao passo que na alma
Ele permanece para sempre.

Homilia sobre o santo Pentecostes 35


4. Se não houvesse Espírito Santo, não haveria na Igreja pastores e doutores; por- 2599
que estes são-no pelo Espírito Santo, como diz São Paulo: Foi o Espírito Santo que vos

34
J OÃO C RISÓSTOMO , Homiliae de sancta dominica Paschae (=PG 50, 433-442; 52, 765-772).
35
J OÃO C RISÓSTOMO , Homiliae de sancta Pentecoste (=PG 50, 453-470).
620 SÉCULO V

constituiu pastores e bispos sobre o rebanho36. Como vedes, também isso se faz pelo
Espírito Santo. Se não houvesse Espírito Santo no vosso doutor e pai comum, quando
há pouco subi a esta tribuna sagrada e vos dei a paz, não me teríeis respondido todos
com este clamor: «Kai\ t%= Pneu/mati/ sou=»; aliás, não lhe dais essa resposta só
quando sobe a este lugar, vos fala, ou pede por vós, mas também quando está de pé
nesse altar sagrado, quando se prepara para oferecer o sacrifício tremendo – os iniciados
sabem do que falo; ele não toca na oferenda enquanto não tiver pedido para vós a graça
do Senhor e até lhe terdes respondido: «Kai\ t%= Pneu/mati/ sou =».
Esta resposta recorda-vos que não é aquele que ali está presente que faz o que
quer que seja e que aquela oblação não é fruto duma actividade natural. A graça do
Espírito Santo, que tudo penetra com a sua presença, é que leva a cabo aquele sacrifício
místico. De facto, embora seja um homem que ali está, é Deus quem actua por seu
intermédio. Por isso, não prestes atenção àquilo que o homem é, mas à graça do
invisível. Nenhuma das coisas que se realizam neste lugar sagrado é natural. Se o
Espírito Santo não assistisse a Igreja com a sua presença, ela não permaneceria. De
facto, se a Igreja permanece é, com toda a evidência, porque a assiste o Espírito Santo...

Homilia sobre a obscuridade das profecias 37


2600 4. Não me digais: «Mas então não posso orar em minha casa»? Sem dúvida que
podeis orar: mas a vossa oração tem uma força maior quando estais unidos aos outros
membros, quando todo o Corpo da Igreja eleva ao Céu a sua oração num só coração,
quando os sacerdotes estão presentes, para oferecer os votos da multidão reunida...

Homilias sobre o Génesis 38

HOMILIA 17

2601 1. Disse Deus: «Faça-se a luz». E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa e
separou a luz das trevas. Deus chamou dia à luz e às trevas, noite... Viste como o
hagiógrafo sagrado, ou melhor, como através da linguagem do hagiógrafo Deus miseri-
cordioso Se fez condescendente com a pobreza da capacidade humana... Na verdade,
através da pobreza daqueles que o escutavam, o Espírito Santo inspirava a linguagem
do hagiógrafo, de modo a que se adaptasse ao descrever cada coisa.
Para conhecermos a inefável benignidade de Deus e com quanta acomodação Ele
falou, providenciando e cuidando da nossa natureza humana, vejamos como o filho do
trovão39, deixando de caminhar ao ritmo dos seus próprios passos, uma vez que o
género humano já tinha progredido na sua capacidade, conduz aqueles que o escutam a
um conhecimento mais sublime.
Diz ele: No princípio era o Verbo, o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus,
e acrescenta: O Verbo era a luz verdadeira que, ao vir ao mundo, a todo o homem
ilumina. Com efeito, assim como pela palavra de Deus foi criada a luz sensível e fugi-

36
Act 20, 28.
37
JOÃO C RISÓSTOMO , Homiliae de prophetiarum obscuritate (=PG 56, 164-192).
38
JOÃO C RISÓSTOMO , Homiliae in Genesim (=PG 53, 23–54, 630).
39
Trata-se do apóstolo e evangelista João.
JOÃO CRISÓSTOMO 621

ram as trevas visíveis, assim a luz inteligível põe em fuga as trevas do erro e guia os
errantes para a verdade. É, pois, com enorme gratidão que recebemos as divinas Escrituras...
HOMILIA 27

9. 8 Se fizermos isto sinceramente40, não descansemos até obtermos vitória à força 2602
de persistência. Reconciliemo-nos mutuamente e façamos desaparecer a inimizade que
existe entre nós. Será que com isso lhe fazemos algum benefício? É a nós que o faze-
mos, pois assim alcançamos a benevolência de Deus; conseguimos o perdão dos nossos
pecados e crescerá muito a confiança no Senhor. Se fizermos isto, poderemos aproxi-
mar-nos de coração limpo desta mesa santa e venerável e dizer com toda a confiança as
palavras da Oração41. Os já iniciados compreendem o que digo. Portanto, deixo à consciên-
cia de cada um avaliar se cumprimos aquele mandamento, a fim de podermos dizer com
toda a confiança estas palavras naqueles momentos sagrados...
HOMILIA 40

4. A nossa circuncisão – falo da graça do baptismo – traz-nos um remédio sem dor 2603
e uma multidão de bens: cumula-nos da graça do Espírito; não exige um tempo determinado,
mas pode receber-se quer na primeira idade, quer na idade madura, quer durante a
velhice; esta circuncisão não é a mão do homem que a faz, não tem nada de penoso, mas
nela encontramos a remissão de todos os pecados cometidos no passado...
HOMILIA 48

6. No matrimónio dos cristãos não encontramos nada dessas superficialidades e 2604


dessas vaidades (habituais entre os pagãos), nada dessa pompa diabólica, nem címbalos,
nem flautas, nem coros, nem banquetes satânicos, com as suas brincadeiras cheias de
obscenidades; tudo é santidade, tudo é sabedoria, tudo é modéstia... As núpcias deveriam
ser celebradas dessa forma. Agradeço que me digas a razão pela qual se há-de tolerar,
desde o início, desde os primeiros instantes, que os ouvidos da noiva sejam cheios de
imundície com esses cânticos indecentes, com essa pompa deslocada? Acaso ignoras a
facilidade com que a juventude se deixa arrastar? É preciso suprimir tudo isso. É preci-
so, desde o princípio, habituar a jovem casada à honestidade, chamar os presbíteros e
firmar, pelas orações e as bênçãos, a unidade de sentimentos que deve reinar no casa-
mento. O amor do jovem esposo será mais ardente, a delicadeza da esposa guardará toda a
sua frescura. Assim, de todas as maneiras, as acções virtuosas serão as únicas a pene-
trar no lar, dele serão afastadas todas as maquinações do Diabo, e esses jovens levarão
uma vida de felicidade, depois de se terem unido com a protecção de Deus.

Homilias sobre Santa Ana 42

HOMILIA 4

5. Deveis visitar a igreja três vezes por dia, para aí orar juntamente com os outros, 2605
nas horas de oração. Mas tu perguntas: Como pode um homem, que vive no mundo e
preocupado com os assuntos da justiça, ir à igreja, para aí orar nas três horas do dia?

40
Pedir desculpa ao inimigo.
41
O Pai-Nosso.
42
J OÃO C RISÓSTOMO , Homiliae de Anna (=PG 54, 631-676). Ana é a mãe de Samuel.
622 SÉCULO V

Não é assim tão difícil. Mas se, de facto, não podeis ir à igreja, deveis pelo menos orar
privadamente outras tantas vezes.
HOMILIA 5

2606 1. Se a cinquentena passou, a festa não passou: toda a assembleia é uma festa. O
que é que o prova? As próprias palavras de Cristo: Onde dois ou três estão reunidos
em meu nome, Eu estou no meio deles. Quando Cristo está no meio dos fiéis reunidos,
que prova mais forte quereis de que é uma festa?

Homilias sobre os Salmos 43

SALMO 41

2607 5. Não vás pensar que entraste aqui unicamente para dizer palavras, mas antes para
que, quando respondes ao salmo, compreendas que ficas ligado por este refrão. Quando
cantas: Como o veado anseia pelas águas vivas, assim minha alma anseia por Vós,
Senhor, fazes um pacto com Deus. Assinas um recibo, sem papel nem tinta; confessas
com a tua voz que O amas acima de tudo, que não pões nada antes d’Ele e que ardes de
amor por Ele...
Por isso, não entremos aqui de qualquer maneira nem cantemos refrães por
rotina, como coisa já sabida, mas sirvamo-nos deles como apoio de viagem. Um só
versículo é capaz de nos ensinar muita sabedoria...
Se fores pobre, se fores muito pobre para comprares livros, ou então se tiveres
livros, mas não tiveres tempo para te dedicar à leitura, fixa ao menos, com muito
cuidado, os refrães dos salmos que cantaste não apenas uma vez, nem duas, nem três,
mas muitas vezes, e neles encontrarás grande consolação. Vede, portanto, que imenso
tesouro os refrães nos abriram... Nem a idade, nem a juventude, nem a rudeza de voz,
nem a ignorância absoluta do solfejo podem obstar à sua execução...
2608 7. Exorto-vos, por isso, a não sair daqui de mãos vazias, mas a recolher os refrães
como se fossem pérolas, para os guardar sempre convosco, para os meditar, para os
cantar todos aos vossos amigos e às vossas esposas. E, se a agitação te invadir a alma,
se a cupidez, a cólera ou qualquer outra paixão perturbar o teu espírito, canta-os com
assiduidade. É desse modo que gozaremos duma grande paz nesta vida e que obtere-
mos, na outra, os bens eternos, pela graça e o amor de nosso Senhor Jesus Cristo.
SALMO 46

2609 2. Povos todos batei palmas, aclamai a Deus com júbilo... Outrora os Judeus
cantaram também um cântico de vitória, quando o exército dos Egípcios foi submergi-
do no mar, dizendo: Cantemos ao Senhor, que Se revestiu de glória. Mas o nosso
cântico de vitória é muito maior, pois não foram submergidos os Egípcios, mas os
Demónios; não foi vencido o Faraó, mas o Diabo; não foram capturadas armas sensí-
veis, mas tirada a maldade, não no mar Vermelho, mas na água da regeneração; não
vamos para a Terra prometida, mas dirigimo-nos para o Céu; não comemos o maná,
mas alimentamo-nos com o Corpo do Senhor; não bebemos a água do rochedo, mas o
sangue do lado...

43
JOÃO CRISÓSTOMO , E( r mhnei/ a i ou Explicationes Psalmorum (=PG 55, 35-528).
JOÃO CRISÓSTOMO 623

SALMO 140

1. Os fiéis podem saber de cor o salmo 140 e o salmo 62, porque os recitam ou os 2610
cantam todos os dias, um a Vésperas e o outro a Laudes, e os Padres fizeram muito
bem em prescrevê-los para o ofício quotidiano. Os Padres mandaram cantar um em
Vésperas, não só por causa das palavras: Elevem-se minhas mãos como oblação da
tarde, mas por várias outras razões... O mesmo acontece com o salmo da manhã, que
começa assim: Senhor, sois o meu Deus: desde a aurora Vos procuro...
4. Guardai, Senhor, a minha boca, defendei a porta dos meus lábios. Pensa que é 2611
com a língua que falamos com Deus e que celebramos os seus louvores; é com ela que
recebemos o sacrifício venerável. Os fiéis sabem o que estou a dizer...
SALMO 144

1. Quero exaltar-Vos, meu Deus e meu Rei, e bendizer o vosso nome para sempre. 2612
Este salmo é digno de ser considerado com toda a diligência, pois contém essas palavras
que os iniciados nos nossos mistérios cantam assiduamente: Todos têm os olhos postos
em Vós e a seu tempo lhes dais o alimento. É justo que aquele que se tornou filho e
participa da mesa espiritual glorifique o Pai... Foste feito filho e participas de uma
mesa espiritual, onde comes a carne e bebes o Sangue que te regeneraram. Dá, por isso,
graças a Deus, por tantos benefícios, glorifica e louva Aquele que tos deu...

Homilias sobre Isaías 44

HOMILIA 1

1. 1 Oh dons maravilhosos de Cristo! Nos Céus os coros dos Anjos cantam a glória 2613
de Deus; na terra os homens também formam coros nas igrejas e, à semelhança dos
Anjos, cantam os mesmos cânticos de celeste louvor. Nos Céus, os Querubins cantam
o hino do Trisa/gion; na terra, a multidão dos homens responde-lhe. Deste modo
encontram-se a sinaxe festiva do Céu e a da terra: uma só Eucaristia, uma só exultação,
um só coro onde todos são unânimes na alegria 45.
2 O que é que eu procuro, o que é que eu vos peço? Peço-vos que, ao cantarmos
os hinos de Deus, os ofereçamos com grande temor, com grande espírito de fé. De
facto, há alguns entre os presentes... que, desprezando a Deus e tomando as palavras
do Espírito como coisas comuns e profanas, pronunciam as palavras sem ritmo, como
se estivessem furiosos, fazem ruído com o corpo, vão de um lado para o outro e
manifestam costumes pouco conformes e convenientes numa reunião religiosa... Era
bem melhor que dissésseis esses hinos de glória e angelicais com temor e reverência...; mas
vós trazeis para aqui, quando agitais as mãos de maneira inconveniente, ou saltais com
os pés, ou fazeis contorções com o corpo, os costumes dos palhaços e bailarinos.
Será possível que não tenhais medo, nem vos horrorizeis de fazer todas estas
coisas diante das palavras de Deus? Não vos vem ao pensamento que Deus está aqui
presente de maneira invisível, que vê os movimentos de cada um e que leva em conta a
consciência de todos? Não pensais que os Anjos assistem a esta tremenda mesa e estão
à sua volta com temor? Vós não pensais nisso, porque as coisas que se ouvem nos

44
J OÃO C RISÓSTOMO , Homiliae in Isaiam (=PG 56, 11-94; SCh 304, Comentário sobre Isaías).
45
Cf. LMD 20, 113.
624 SÉCULO V

teatros e espectáculos, e que vós presenciais, obscurecem as vossas almas, e depois


trazeis para a igreja o que se faz nesses lugares de perdição. Por isso os vossos gritos
sem sentido manifestam o estado da vossa alma. Como podeis pedir perdão dos vossos
pecados?...
2614 4. Não há nada que contribua tanto para o desprezo da palavra de Deus... como os
espectáculos públicos. Por isso vos tenho dito muitas vezes que aqueles que vêm a
este lugar santo, que recebem o bem incomparável do ensinamento divino e que participam
do tremendo e místico sacrifício, não devem assistir a esses espectáculos, antes se
devem abster de misturar os mistérios divinos com as coisas do Demónio. Apesar
disso, há alguns homens tão loucos, que, apesar do seu aspecto grave e respeitoso e de
terem a cabeça cheia de cabelos brancos, correm a esses espectáculos, como se isso
nada lhes importasse...
HOMILIA 6

2615 3. Acaso conhecestes este cântico? É porventura só dos Serafins ou também é


nosso? É nosso e também dos Serafins. Cristo, pelo seu grande amor para connosco,
derrubou o muro que separava o homem de Deus, estabeleceu uma paz eterna entre o
céu e a terra... Antes, só se ouvia este hino nas moradas celestes; mas Cristo veio à
terra e trouxe-nos esta melodia divina. Se este grande Pontífice nos pôs a mesa sagrada,
para Lhe prestarmos um culto racional..., para nos apressarmos a entoar este cântico
tão ditoso, e para que, juntamente com os Querubins e os Serafins, elevemos a nossa
alma da terra e subamos com eles até ao Céu, unamos às suas as nossas vozes...
Não é maravilhoso que Deus nos tenha concedido a graça... de segurarmos em
nossas mãos o que os Serafins não se atrevem a tocar? Um dos Serafins voou na minha
direcção e trazia na mão uma brasa viva, que tinha tomado do altar com uma
tenaz46. Aquele altar é figura e imagem deste altar da igreja, e aquele fogo, do fogo
espiritual da mesma igreja; o Serafim não se atreveu a tocar a brasa viva com a mão,
mas com a tenaz; nós, ao contrário, tomamo-la em nossas mãos...
Considerai, pois, homens da minha alma, todas estas coisas, pensai dentro de vós
mesmos na grandeza deste dom do Senhor... Falo-vos dos mistérios que exigem o jejum,
como condição para recebermos a sua graça... Foi por esta razão que os nossos ante-
passados organizaram o estádio do jejum e nos fixaram o tempo da penitência; o seu
objectivo não foi outro senão o de passarmos, depois de termos purificado os nossos
pecados e lavado as nossas manchas, à sagrada mesa da comunhão. Pela mesma razão,
agora, neste tempo e deste lugar, vos faço saber em voz alta, vos suplico, vos rogo, vos
exijo, que não nos aproximemos nunca desta mesa sagrada com a consciência mancha-
da..., porque essa aproximação, mesmo que toqueis mil vezes no Corpo do Senhor, não
se poderá chamar união com Deus, mas condenação...
Não se aproxime, pois, nenhum pecador, ou antes, não digo nenhum pecador, pois
eu próprio seria o primeiro a afastar-me a mim mesmo desta mesa divina; não se apro-
xime dela ninguém que continue em pecado. Digo-vos publicamente a partir deste mo-
mento: não vos aproximeis desta mesa, em pecado...
Desde agora vos suplico e vos peço que façais penitência dos vossos pecados
antes de chegar esse dia tão solene da comunhão. Eu bem sei que todos somos dignos
de castigo e que ninguém se pode gloriar de ter um coração puro; mas o mal não está
nisso; o mal, e mal gravíssimo, está em que, sabendo nós que não temos o coração puro
e conhecendo o modo de o limpar, não nos aproximamos desse meio, e até fugimos do
médico que com tanta facilidade nos pode purificar...

46
Is 6, 6.
JOÃO CRISÓSTOMO 625

Homilias sobre São Mateus 47

HOMILIA 12

6. A igreja é a casa de todos. Depois de aí nos terdes precedido, entramos nós..., e, 2616
quando eu digo: Paz a todos, respondeis: E ao teu Espírito.
HOMILIA 19

5. Deus faz depender de nós a nossa eternidade e torna-nos responsáveis da sen- 2617
tença que um dia há-de pronunciar. Deus não quer, por mais faltos de senso que sejais,
que possais queixar-vos, no que quer que seja, do julgamento que Ele deve pronunciar;
mas quer que vós, que sois culpados, sejais no entanto juízes da vossa sentença.
«Como vos tiverdes julgado, assim Eu próprio vos julgarei, e, se perdoardes a um
homem como vós, prometo que vos perdoarei a vós». E, contudo, Deus põe na balança
duas coisas bem diferentes, dado que vós perdoais porque tendes necessidade de perdão e
quereis que vos perdoem a vós, ao passo que Deus perdoa sem ter necessidade de nada...
Há uma admirável sequência nas palavras do Pai-Nosso. Deus pede-nos que
desejemos os bens futuros e tendamos sempre para o Céu; mas quer, além disso, que,
enquanto esperamos este futuro, imitemos, mesmo na terra, a vida dos Anjos no Céu.
HOMILIA 23

3. A melhor conservação dum benefício é a lembrança desse benefício e a constante 2618


acção de graças48. É por isso que os tremendos mistérios, que são cheios de salvação e
se realizam sempre na reunião da comunidade, são chamados acção de graças49, por
serem a comemoração50 de numerosos benefícios, por apresentarem o conteúdo principal
da solicitude divina e por convidarem sem descanso a dar graças.
HOMILIA 25

3. Nós chamamos Eucaristia aos veneráveis mistérios que celebramos em cada 2619
sinaxe, porque nela fazemos a comemoração de muitos benefícios; eles tornam-nos
presentes as maravilhas da providência de Deus e preparam-nos para Lhe agradecer
todos os seus benefícios... É por isso que o sacerdote, na presença da sagrada oblação,
nos convida a dar graças por todas as pessoas, pelas que existiram, pelas que existem
e pelas que existirão. Isso eleva-nos da terra e transporta-nos ao Céu, e, de homens que
somos, torna-nos semelhantes aos Anjos.
HOMILIA 32

6. Esta mesa (do altar) e esta lâmpada são muito mais respeitáveis e agradáveis (do 2620
que a tua mesa) e do que (a tua) lâmpada: sabem-no todos aqueles que foram ungidos
com fé e atempadamente com o óleo e se libertaram das suas doenças...
7. Outrora, as casas eram igrejas; agora, a igreja converteu-se em casa. Então, 2621
nada de mundano se dizia em casa; agora, nada de espiritual se diz na igreja, mas até os
negócios da praça trazeis para aqui; quando falo de Deus, não só não ouvis em silêncio,
mas falais e tratais de outros negócios, e oxalá fosse só dos vossos, porque muitas

47
J OÃO C RISÓSTOMO , Homiliae in Mathaeum (=PG 57–58).
48
Eucaristia.
49
Eucaristia.
50
Anamnese.
626 SÉCULO V

vezes contais e ouvis aquilo que nada tem a ver convosco. Por isso choro e não deixarei
de chorar. Nem sequer sou senhor de mudar de casa, mas tenho de permanecer aqui,
enquanto não sair desta vida...
São muitas as coisas que nos unem: uma mesa posta para todos, gerou-nos um
mesmo Pai, nascemos todos do mesmo parto, a todos nos é dada a mesma bebida; mais
ainda, não só nos é dada a mesma bebida, mas bebemos do mesmo cálice. De facto,
querendo o nosso Pai convidar-nos a um amor mútuo, decidiu que todos bebêssemos do
mesmo cálice...
Não vos dizemos coisas nossas, porque não temos nenhum mestre sobre a terra;
o que recebemos, isso vos damos, e, pelo que vos damos, nada vos exigimos, a não ser
que nos pagueis amor com amor... Participámos da mesa espiritual; participemos
também da caridade espiritual... Nós, que temos a mesma Cidade, a mesma Casa, o
mesmo Caminho, a mesma Porta, a mesma Raiz, a mesma Cabeça, o mesmo Pastor, o
mesmo Rei, o mesmo Doutor, o mesmo Juiz, o mesmo Criador, o mesmo Pai e todas as
coisas em comum, de que perdão seremos dignos, se vivemos divididos?...
HOMILIA 50 51

2622 3. Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus
membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem o honres aqui no templo com
vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: Isto
é o meu Corpo, confirmando o facto com a sua palavra, também afirmou: Vistes-Me
com fome e não Me destes de comer; e ainda: Na medida em que o recusastes a um
destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes. No templo, o Corpo de
Cristo não precisa de mantos, mas de almas puras; mas na pessoa dos pobres, Ele
precisa de todo o nosso cuidado...
Ao dizer isto, não quero impedir que se façam ofertas ao templo; o que quero é
pedir que, além dessas, e antes dessas, se pense na esmola aos pobres... No primeiro caso,
a oferta pode ser motivo de ostentação; no segundo, é apenas sinal de compaixão e amor.
2623 4. De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele morre
de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome e depois
ornamenta a sua mesa com o que sobra. Queres oferecer-Lhe um cálice de ouro e não
és capaz de Lhe dar um copo de água? De que serviria cobrir o seu altar com toalhas
bordadas a ouro, se Lhe recusas a roupa de que precisa para Se vestir? Que vantagens
há nisso? Diz-me cá: Se visses alguém necessitado de alimento e, deixando-o cheio de
fome, fosses adornar de ouro a sua mesa, pensas que ele se mostraria agradecido para
contigo ou indignado contra ti? E, se o visses coberto de andrajos e morto de frio, o
deixasses sem roupa e lhe fosses levantar colunas de ouro, dizendo que o fazias em sua
honra, não pensaria ele que estavas a escarnecer da sua indigência com a mais sarcás-
tica das ironias?
Lembra-te de que é o mesmo que fazes a Cristo, quando O vês errante, peregrino
e sem tecto, e tu, sem O receberes, adornas o pavimento, as paredes e as colunas do
templo; suspendes cadeias de prata para os candelabros, mas não vais visitá-l’O quan-
do Ele está preso nas cadeias do cárcere. Também não digo isto para impedir os
ornamentos sagrados, mas para que se faça uma coisa sem omitir a outra; ou melhor,
exorto-vos a tratar do irmão necessitado, antes de ir adornar o templo. Ninguém foi
acusado por omitir este segundo cuidado; mas quem despreza os pobres está condenado
aos castigos do Inferno, ao fogo inextinguível e ao suplício na companhia dos Demónios.
Por conseguinte, enquanto adornas o templo, não esqueças o teu irmão que sofre,
porque este templo é mais precioso que o outro.

51
Cf. LH, IV.
JOÃO CRISÓSTOMO 627

HOMILIA 55

5. Hino dos monges depois da ceia. Depois da ceia dão graças a Deus... Se quiserdes 2624
ouvir o hino que eles cantam, e que vós recitais com frequência, refiro-vos todo o seu
canto sagrado, que diz assim: «Bendito sejas Senhor, que me alimentas desde a minha
juventude e que dás alimento a toda a carne; enche o nosso coração de gozo e de alegria,
para que, tendo sempre o suficiente, abundemos em toda a obra boa em Cristo Jesus,
nosso Senhor, ao qual contigo seja dada glória, honra e poder, com o Espírito, pelos
séculos. Amen. Glória a Ti, Senhor, glória a Ti, Santo, glória a Ti, Rei, que nos deste
alimentos com alegria. Enche-nos do Espírito Santo e sejamos encontrados aceitáveis
na tua presença e não tenhamos vergonha, quando deres a cada um segundo as suas obras».
HOMILIA 68

3. Mal nasce o sol, ou até um pouco antes da aurora..., levantam-se da cama... e, 2625
depois de formarem um coro..., cantam todos, de maneira harmoniosa, como se tivessem
uma só voz, hinos a Deus, dando-Lhe glória e acções de graças por todos os benefícios,
quer particulares quer universais.. Haverá alguma diferença entre os Anjos e esta
comunidade de monges que cantam na terra, dizendo: Glória a Deus nas alturas...?
Depois de executarem estes cânticos, ajoelham-se e conversam com Deus, o objecto
dos seus hinos, ao que nem todos chegam com facilidade. Nada esperam da terra, pois
não lhe dão valor, mas pedem a graça de poder comparecer sem tremer de medo diante
do terrível juízo, quando o Filho unigénito de Deus vier julgar os vivos e os mortos...
Também pedem a força para atravessar esta vida cansativa com uma consciência pura
e rica de boas obras e poder navegar com vento favorável sobre o mar traiçoeiro. E
aquele que para eles é pai e senhor, guia-os nas suas orações. Quando se levantam e dão
por terminadas aquelas santas e contínuas orações já o sol vai alto. Então saúdam-se e
vão para o trabalho, depois de fazerem provisão do necessário.
HOMILIA 82

4. Uma vez que o Verbo disse: Isto é o meu Corpo, acreditemos e olhemos este 2626
Corpo com os olhos do espírito. Porque Cristo não nos deu aqui nada de puramente
sensível, mas, sob um elemento sensível, algo de completamente espiritual. O mesmo
sucede no baptismo: é através de uma coisa sensível, a água, que o dom é conferido;
mas o que se realiza é algo espiritual, a regeneração e a renovação. Se não tivesses
corpo, Deus far-te-ia dons nus e incorporais; mas, como a alma está unida ao corpo, é
por meio de coisas sensíveis que Ele te dá coisas espirituais...
5. Aproximemo-nos desta mesa e deste cálice espiritual... A Eucaristia não é obra 2627
humana. Aquele que a realizou naquela Ceia é o mesmo que a realiza agora. Nós somos
seus ministros, mas quem santifica a oblação e a transforma é Ele...
Se alguém não é discípulo, retire-se... Esta mesa e aquela são iguais, pois não é
Cristo que prepara aquela e o homem esta, mas ambas são preparadas por Cristo. Este
é aquele cenáculo em que eles estavam e donde saíram para o monte das Oliveiras.
Vamos também nós em direcção às mãos dos pobres...
6. Digo-vos isto a vós, que comungais, e a vós, que distribuís a comunhão. Porque 2628
me devo dirigir também a vós que distribuís estes dons com muito cuidado. Não será
para vós pequeno castigo se, sabendo que um homem é pecador, o admitis a participar
desta mesa... Mesmo que seja chefe militar, mesmo que seja prefeito, mesmo que seja
aquele que cinge o diadema, se se aproxima indignamente, afasta-o; tens maior poder
do que ele... Deus ofereceu-vos honra tão grande, para saberdes distinguir os dignos e
os indignos. Esta é a vossa dignidade, esta é a vossa segurança, esta é a vossa coroa; não
vos limiteis a passear pela igreja vestidos com uma túnica branca e resplandecente. Mas
628 SÉCULO V

perguntar-me-á alguém: Como os distinguirei uns dos outros? Não falo dos pecadores
desconhecidos, mas dos públicos...
Esta multidão também é Corpo de Cristo. Olha, pois, tu, que és ministro do sacra-
mento... E, se alguém, por ignorância, se aproxima para comungar, impede-o, não te-
nhas medo. Teme a Deus e não ao homem. Se temes a um homem, irá rir-se de ti, mas
se temes a Deus, tornar-te-ás respeitado também pelos homens. Se não te atreves,
traz-mo a mim, e não permitirei tal atentado. Prefiro perder a vida, do que dar quando
não devo o Sangue do Senhor... Mas, se não conhecemos que uma pessoa é má, depois
de muito inquirir, não temos culpa nenhuma.
Tudo o que disse é em ordem aos que são reconhecidos como maus... E digo isto,
não para os afastar nem para os cortar do corpo..., mas para cuidarmos deles. Porque,
assim, Deus ser-nos-á propício, e serão muitos os que comungam dignamente, e rece-
beremos, pelo cuidado que temos connosco e com os outros, grande retribuição, que
oxalá todos nós alcancemos por graça e benignidade de nosso Senhor Jesus Cristo, ao
qual seja dada glória pelos séculos dos séculos. Amen.

Homilias sobre o início dos Actos dos Apóstolos 52

HOMILIA 1

2629 2. Eu não te peço... nem te ordeno que deixes de trabalhar durante sete ou dez dias,
mas apenas que me dediques duas horas por dia, ficando tu com as outras...
Diz-me uma coisa: Haverá algo mais agradável do que permanecer aqui? Mesmo
que fosse necessário passar aqui dias inteiros, que coisa poderá haver mais santa do
que essa? Que coisa poderá haver mais segura do que permanecer aqui, onde estão
tantos irmãos, onde está o Espírito Santo, onde Jesus e o seu Pai ocupam o centro?
Que outra reunião poderás encontrar semelhante a esta..., que outra assembleia? Tens
aqui tantos bens na mesa, na leitura, nas bênçãos, nas preces, na própria reunião, e vais
para outros passatempos?...
Não disse estas coisas para que as ouvísseis vós, pois não sois vós que tendes
necessidade de tais remédios...; disse-as diante de vós, para que dos vossos lábios as
ouçam os ausentes. Não lhes digais só que os repreendi por não terem vindo, mas
repeti-lhes o sermão por inteiro..., pois, se apenas lhes disserdes que os repreendi
porque não vieram, ficarão aborrecidos..., mas, se lhes mostrardes que os chorei como
amigo..., receberão com muito agrado a repreensão, uma vez que terão mais em conta a
minha intenção do que as minhas palavras...

Homilias sobre a primeira Carta aos Coríntios 53

HOMILIA 24

2630 1. O que está no cálice é aquilo que jorrou do lado de Cristo, e disso somos participantes...
2631 2. Aquilo que Jesus não tolerou na cruz (isto é, que lhe quebrassem as pernas),
tolera-o agora no sacrifício por teu amor; e permite que o fraccionem para a todos

52
JOÃO C RISÓSTOMO , Homiliae in principium Actorum (=PG 51, 65-112).
53
JOÃO C RISÓSTOMO , Homiliae in Ep. I ad Corinthios (=PG 61, 11-382).
JOÃO CRISÓSTOMO 629

saciar... O que é o pão? O Corpo de Cristo. Em que se tornam os que o recebem? Em


Corpo de Cristo...
10. Não só vedes o Corpo de Cristo, mas também o tocais, o comeis e o levais para 2632
vossas casas.
HOMILIA 27

3. Porventura não tendes casas para comer e beber? Ou desprezais a Igreja de 2633
Deus e quereis envergonhar aqueles que nada têm54? Vê como, para dar mais força
às suas palavras, converte a afronta feita aos pobres em injúria à Igreja... Não se trata
só de uma afronta aos pobres, mas também à Igreja. Pois, assim como te aproprias da
ceia do Senhor, também te aproprias do templo, utilizando a igreja como se fosse a tua
casa. A Igreja foi estabelecida, não para dividir aqueles que a ela se acolhem, mas para
unir a si os que estão divididos, e é isto o que significa a assembleia 55...
4. Ao dizer: Fazei isto em memória de Mim, revelou-nos a razão do mistério que 2634
nos dava e mostrou-nos que era a própria anamnese que constituía o ordenamento do
culto que nos devia bastar.
5. Purifica a tua mão direita, a tua língua, os teus lábios, que foram os vestíbulos da 2635
entrada de Cristo; e, quando tiveres preparado a mesa sensível, pensa naquela outra
mesa, na ceia do Senhor, na vigília dos discípulos naquela noite sagrada... Vigiemos,
pois, com o Senhor e entristeçamo-nos com os discípulos. É sempre tempo de ora-
ção..., mas sobretudo nos dias de festa, pois os dias de festa foram instituídos, não
para fazer coisas vergonhosas nem para amontoar pecados, mas para apagar todos
aqueles que tivermos cometido.
Sei que falo em vão, mas nem por isso deixarei de o fazer. Mesmo que não
obedeçais todos, também nem todos se irão opor... Alimentemos a Cristo, dêmos-Lhe
de beber, visitemo-l’O. Estas coisas são dignas daquela mesa.
Ouviste os hinos sagrados? Viste as bodas espirituais? Foste admitido à mesa
real? Ficaste cheio do Espírito Santo? Cantaste com os Serafins? Foste companheiro
dos poderes celestes? Então não percas tamanha alegria, não derrames o tesouro, não
caias na embriaguez...
HOMILIA 36

5. O leitor lê? Só ele o faz. Mesmo o bispo que está presente, o escuta em silêncio. 2636
O salmista canta? Salmodia sozinho. Mas, quando todos respondem ao seu canto,
então é como se uma só voz saísse duma única boca...
A igreja não é uma loja semelhante às da praça, mas lugar de Anjos, de Arcanjos,
reino de Deus e o próprio Céu... Se não acreditas nisso, olha para esta mesa; lembra-te
da causa por que está aqui; pensa n’Aquele que vem aqui... Levanta-te e eleva-te ao
próprio Céu, antes de veres estendidas as toalhas e o coro dos Anjos que vem à frente.
Tudo isto o ignora aquele que ainda não foi iniciado. Por isso, é preciso propor-lhe
estas coisas... O presidente implora a paz, como aquele que entra na casa paterna...
HOMILIA 40

1. Primeiro quero recordar-vos a vós, que já fostes iniciados, a resposta que vos 2637
mandaram dar aqueles que naquela vigília vos iniciaram; depois explicarei também a
frase de Paulo...; e, por fim, acrescentarei o que Paulo diz agora. Queria dizê-lo com

54
1 Cor 11, 22.
55
su/nodoj.
630 SÉCULO V

clareza, mas não me atrevo por causa dos não iniciados. Eles põem dificuldades à
nossa exposição, obrigando-nos ou a não falar claramente, ou a revelar-lhes os mistérios
inefáveis. Apesar disso, falarei, na medida do possível, como que através de um véu...
Depois de termos confessado com os outros, nessa noite: «Creio na ressurreição
dos mortos», e todos os outros artigos, desceram-nos à fonte das águas sagradas.
Fostes imergidos três vezes na água, e depois emergistes, significando desse modo
também simbolicamente a sepultura de três dias de Cristo. Foste baptizado porque
crês na ressurreição do corpo morto, que não fica morto. Com a tua palavra, afirmas a
ressurreição dos mortos, e o sacerdote, numa espécie de imagem, mostra-te com os
próprios factos o que acreditaste e confessaste com palavras. Apesar de creres sem
qualquer sinal, ele dá-te um sinal; quando puseste a tua parte, também Deus te deu a
garantia. De que maneira acontece isso? Pela água. Ser baptizado, ser submergido e
ressurgir logo de seguida, são símbolos da descida aos infernos e da subida dali. É por
isso que Paulo também chama ao baptismo uma sepultura: Fomos sepultados com Ele,
pelo baptismo, na sua morte.
HOMILIA 41

2638 4. Não é em vão que fazemos comemoração dos defuntos durante os divinos mistérios
e que nos aproximamos do altar em favor deles, suplicando ao Cordeiro imolado que
tira o pecado mundo, mas fazemos tudo isto para que eles recebam daí algum consolo.
E também não é em vão que aquele que está no altar clama, enquanto se celebram os
santos mistérios, por todos os que morreram em Cristo e por aqueles por quem se
celebram estas comemorações, pois, se não se fizessem por eles, nem sequer se diria
isto. Porque as nossas coisas não são representações teatrais, longe disso. Fazemo-las
por ordem do Espírito.
2639 5. Socorramos e façamos comemorações por eles. Se os filhos de Job foram purificados
pelo sacrifício de seu pai, porquê duvidar que as nossas oferendas pelos defuntos lhes
levam alguma consolação?... Não hesitemos em socorrer os que partiram e em oferecer
por eles as nossas orações... Por isso rogamos então com toda a confiança por todo o
mundo e, juntamente com os defuntos, nomeamos os mártires, os confessores e os
sacerdotes, dado que somos todos um só Corpo, embora haja uns membros mais
ilustres do que outros...

Homilias sobre a segunda Carta aos Coríntios 56

HOMILIA 2

2640 5. As leis da Igreja mandam que se façam orações desta maneira, não só pelos fiéis,
mas também pelos catecúmenos. Por um lado, a lei convida os fiéis a suplicar por aqueles
que ainda não são iniciados. Por isso, quando o diácono diz: «Oremos insistentemente
pelos catecúmenos», mais não faz do que convidar toda a multidão dos fiéis a orar por
eles. Mas os catecúmenos ainda estão afastados, ainda não são do Corpo de Cristo,
não comungaram dos mistérios, ainda estão separados da grei espiritual. Por conseguin-
te, se devemos orar por eles, com muito maior razão devemos fazê-lo pelos nossos
membros, pelo que o diácono também diz: «Oremos atentamente» por vós, os fiéis,
para que não os desprezeis nem rejeiteis como se fossem estranhos, nem os desconheçais
como se fossem estrangeiros.

56
JOÃO CRISÓSTOMO , Homiliae in Ep. II ad Corinthios (=PG 61, 383-610).
JOÃO CRISÓSTOMO 631

Os catecúmenos ainda não possuem a Oração aprovada pela lei e ensinada por
Cristo57; ainda não receberam capacidade para orar livremente. Necessitam da ajuda de
outros que já tenham sido iniciados nos mistérios. Estão de pé, fora dos vestíbulos
reais e longe das grades sagradas; por isso, são despedidos, quando têm início as
orações santíssimas 58, e também, por isso, tu és exortado a orar por eles, para que
cheguem a ser membros teus e deixem de ser estrangeiros e estranhos...
Para que ouçam o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, e o
coração do homem não pressentiu59. De facto, nem ouviram os mistérios inefáveis,
mas apenas estão de pé, colocados a grande distância, e, mesmo que os ouvissem, não
entenderiam a sua significação, uma vez que estes exigem muita penetração, e não
basta ouvi-los para os compreender, e para isso eles não têm ainda ouvidos interiores...
HOMILIA 11

2. Olha a alma nova (pois foi purificada), e o corpo novo, e o novo género de adora- 2641
ção, e as novas promessas, e o testamento, e a vida, e a mesa, e a veste: tudo é simples-
mente novo. Na verdade, obtivemos a cidade celestial em troca da Jerusalém terrestre;
em vez do templo sensível, contemplamos o templo espiritual; em vez das tábuas de
pedra, recebemos outras de carne. A circuncisão (foi substituída) pelo baptismo; o maná,
pelo Corpo do Senhor; a água do rochedo, pelo sangue que saiu do lado; a vara de
Moisés e de Aarão pela cruz; a Terra prometida aos Judeus, pelo Reino dos Céus; os
inumeráveis sacerdotes, por um só pontífice; e o cordeiro irracional, pelo Cordeiro espi-
ritual. Paulo, pensando intimamente nestas e noutras coisas, dizia: Fez novas todas as
coisas. Tudo procede de Deus, por Cristo e por dom seu.
HOMILIA 18

3. Dá-te conta da grande força da assembleia. A oração da Igreja livrou Pedro das 2642
cadeias, abriu a boca de Paulo, e o voto dos que se reúnem em assembleia confirma com
prudente eleição os que se aproximam para as dignidades espirituais. Por isso, aquele
que vai impor as mãos lhes pede orações, eles dão o seu voto, e os iniciados nos
mistérios dizem em voz alta as coisas que sabem. Porque não é lícito dizer tudo diante
dos de fora. Nalguns momentos não há diferença entre o sacerdote e aqueles a quem ele
preside, como quando se participa nos tremendos mistérios, pois todos somos admitidos
a eles por igual; não é como no Antigo Testamento, em que o sacerdote comia uma coisa
e quem o não era comia outra, e em que o povo não podia participar naquilo que os
sacerdotes comiam. Agora não é assim, pois a todos se oferece o mesmo Corpo e a
mesma bebida.
E também se pode ver como o povo toma parte muito activa nas súplicas.
Assim, há orações comuns dos sacerdotes e do povo a favor dos possessos e dos
penitentes, e todos formulam a mesma súplica, cheia de misericórdia. Por outro lado,
se é verdade que não permitimos aos que não podem participar da mesa sagrada que se
aproximem daquele que rodeia o altar, no entanto, fazemos outra oração, na qual todos
nos prostramos por terra e todos nos levantamos. Ao dar e ao receber a paz, todos nos
beijamos mutuamente. Ao entrar nos tremendos mistérios, o sacerdote ora pelo povo, e
este pelo sacerdote, pois as palavras: E com o teu espírito não significam outra coisa.
Além disso, a oração de acção de graças a Deus60 é a mesma para todos, pois não é o
sacerdote sozinho que dá graças, mas todo o povo. Com efeito, depois de o sacerdote

57
A Oração dominical.
58
A Oração dos fiéis.
59
1 Cor 2, 9.
60
A Oração eucarística.
632 SÉCULO V

ouvir a voz do povo e de (os fiéis) terem afirmado que fazer isso é coisa digna e justa,
começa a oração de acção de graças.
Porque te admiras de o povo falar com o sacerdote, se também eleva aqueles
hinos sagrados aos Céus com os Querubins e potestades celestes? Se vos disse tudo
isto, foi para que, mesmo entre os simples fiéis, cada um esteja vigilante, a fim de
aprendermos que somos todos um só Corpo, que não diferimos uns dos outros mais do
que certos membros diferem uns dos outros, e para que não lanceis todos os cuidados
sobre os sacerdotes, mas que, pela vossa parte também, vos preocupeis com toda a
Igreja, como vosso Corpo comum. Isto dá-nos maior segurança e aumenta-nos as
forças.
Vê como os Apóstolos, no seu tempo, tomavam frequentemente como conse-
lheiros aqueles a quem governavam. Ao imporem as mãos aos sete, primeiro foram
apresentados pelo povo; do mesmo modo, quando Pedro elegeu Matias, falou com
todos os presentes, tanto homens como mulheres. Aqui, os que governam não se
apresentam com arrogância nem os súbditos são considerados escravos. Trata-se antes
de uma forma de governo espiritual, na qual ser superior consiste, não em ter e buscar
mais honra, mas em sofrer por vós mais trabalhos.
HOMILIA 20

2643 3. É digno de admiração este altar, porque, sendo por natureza uma simples pedra,
se torna santo, depois de ter recebido em si o Corpo de Cristo.

Homilia sobre a Carta aos Efésios 61


2644 4. Vejo que muitos participam no Corpo do Senhor inconscientemente e de forma
rotineira, mais por costume e por estar mandado do que por verdadeira consciência e
desejo. Quando chegar o tempo da santa Quaresma, dizem as pessoas, seja quem for
participa nos santos mistérios, bem como no dia da Epifania. Mas não é esse o mo-
mento de se aproximarem, porque não é a Epifania nem a Quaresma que tornam alguém
digno de que se aproximar dos mistérios, mas sim a pureza e a sinceridade de alma...
Vejo uma grande anomalia neste modo de proceder: nos outros dias não vos
aproximais, mesmo que, muitas vezes, estejais limpos; mas na Páscoa aproximais-vos,
mesmo que tenhais cometido algum crime. Que costume! Que presunção! Em vão
celebramos o sacrifício cada dia, em vão assistimos ao altar; ninguém se aproxima para
comungar. Digo isto, não para que comungueis temerariamente, mas para que vos
prepareis e torneis dignos dos mistérios.
Não és digno do sacrifício nem da comunhão? Também o não és da oração. Ouves
aquele que, de pé, anuncia e diz: «Saiam todos os penitentes». Todos os que não
comungam são penitentes. Se és penitente, não deves comungar, porque aquele que não
comunga é penitente. Porque diz ele: «Saiam os que não podem orar» e tu permaneces
impassível? Não és destes, mas daqueles que podem participar, e não te preocupas
nada com isso? Ou será que tens (a comunhão) por coisa sem qualquer importância?...
2645 5. Peço-te que penses nisto... O Senhor vem todos os dias ver os convidados e a
todos fala. Agora mesmo vos está a dizer na consciência: «Amigo, como entraste aqui
sem o traje nupcial»? Não pergunta, porque te sentaste à mesa, mas sim, porque entras-
te. Tudo isto o diz também agora a todos nós que estamos de pé... Quando ouvires:
«Oremos todos em comum», quando vires correr as cortinas das portas, pensa então
que o Céu se abre... e que os Anjos descem.
61
JOÃO C RISÓSTOMO , Homiliae in Ep. ad Ephesios (=PG 62, 9-176).
JOÃO CRISÓSTOMO 633

Portanto, do mesmo modo que não convém que esteja aqui nenhum dos não ini-
ciados nos mistérios, também não é conveniente que esteja alguém que foi iniciado, mas
que está manchado... Porque permaneceste aqui e não participaste na mesa? É que sou
indigno, dizes tu. Então também és indigno de participar nas preces comuns, porque o
Espírito Santo não desce só pelas oblações, mas também por aqueles cânticos...
Nós dissemo-vos todas estas coisas; Deus queira que Aquele que move os corações...
semeie dentro deles a semente...

Homilia sobre a Carta aos Filipenses 62


3. Não choremos sem mais pelos que morrem, nem nos alegremos sem mais pelos 2646
que vivem. Que fazer, então? Choremos os pecadores, não só os moribundos, mas os que
ainda vivem; alegremo-nos pelos justos, não só enquanto vivem, mas também depois de
terem morrido...
4. Chora por causa dos infiéis, chora por causa daqueles que se parecem com eles, 2647
que se vão embora sem a iluminação 63, sem o selo64. Esses são dignos de lamentações
e de lágrimas, porque serão excluídos do Reino com os indignos, com os condenados.
Digo-vos, com efeito, se alguém não renascer da água e do Espírito Santo, não
entrará no Reino dos Céus 65.

Homilias sobre a Carta aos Colossenses 66

HOMILIA 2

6. O mais admirável é o facto de Cristo não ter confiado o acto que nos liberta, a um 2648
outro contrato. Foi estabelecido um outro documento67, diferente daquele que existia
antes. Ou melhor, não é um contrato68, mas um pacto69. Há contrato quando alguém é
obrigado a reembolsar. Mas o pacto consiste nisto: não contém pena, não diz: «Se
isto», ou: «De outro modo». Essas foram as palavras de Moisés, quando aspergiu o
sangue da aliança70 e Deus prometeu a vida eterna. Eis o pacto 71. No primeiro caso,
trata-se dum escravo e dum dono; no segundo, dum amigo com o seu amigo. Ali diz-se:
No dia em que comeres morrerás; ameaça imediatamente; aqui não há nada disso... Lá
existe a nudez e aqui também; mas lá ele está despojado por ter pecado, depois de
pecar; aqui está despojado para ser libertado. Então, foi despojado da glória que Adão
tinha; agora, é despojado do homem velho e, antes da sua ascensão, despoja-se facilmente
das suas vestes. É ungido como os atletas que vão para dentro do estádio. Mas esta
unção recebe-a desde o seu nascimento e não pouco a pouco, como a primeira. Não

62
J OÃO C RISÓSTOMO , Homiliae in Ep. ad Philippenses (=PG 62, 177-298).
63
O baptismo.
64
A confirmação.
65
Jo 3, 5.
66
J OÃO C RISÓSTOMO , Homiliae in Ep. ad. Colossenses (=PG 62, 299-392; cf. LMD 45, 112).
67
xeiro/grafon .
68
xeiro/grafon .
69
sunqh/kh .
70
diaqh/ k h .
71
sunqh/kh .
634 SÉCULO V

avança apenas para ser instruído, mas para lutar e se exercitar. E fá-lo, para se elevar a uma
outra criação. Porque assim que professou a fé na vida eterna, confessou uma outra criação.
HOMILIA 6

2646 2. Renunciação e profissão de fé. 4 Renuncio, Satanás, às tuas pompas, ao teu culto
e aos teus anjos, e uno-me a Ti, Cristo.
Viste o que Cristo fez para destruir o documento que nos condenava. Estávamos
todos sob o pecado e a condenação; e Ele, suportando o castigo, livrou-nos do pecado
e da condenação. Cravou o documento sobre a cruz e, em seguida, porque é poderoso,
destruiu-o. Qual documento? Aquele que continha a declaração que fizeram a Moisés:
Tudo o que Deus disse, nós o faremos? Ou aquele segundo o qual devemos obedecer a
Deus? Ou aquele que estava na posse do Diabo mas fora feito por Deus, quando
dissera: No dia em que comeres da árvore, morrerás? O Diabo tinha este documento
na sua posse. E Cristo não no-lo restituiu, mas rasgou-o, como é próprio daquele que
está feliz por perdoar...
Aquele que sobe (da piscina) diz imediatamente: Pai nosso, que estais nos Céus...

Homilia sobre a Segunda Carta aos Tessalonicenses 72


2650 4. Todas as coisas são iguais para mim e para vós, e as espécies de bens também
são as mesmas. Eu não tenho uma parte maior e vós uma parte mais pequena na mesa
do Senhor; vós e eu participamos de igual modo. Se eu sou o primeiro, que admiração!
Também entre os filhos, o mais velho é o primeiro a estender a mão para os pratos; a
sua parte, no entanto, nem por isso é maior. Entre nós, tudo é igual. A vida salvadora
e que sustenta as nossas almas é dada a cada um com a mesma honra... Eu não recebo
a minha parte de um cordeiro, e vós a vossa parte de um outro; é do mesmo que nós
participamos todos juntos.

Homilias sobre a Primeira Carta a Timóteo 73

HOMILIA 5

2651 3. O mistério que celebramos na Páscoa não tem nada a mais do que aquele que
celebramos agora. De facto, o mistério é um só, como uma só é a graça do Espírito: é
sempre Páscoa. Os já iniciados conhecem-no. É sempre o mesmo sacrifício que se
realiza na sexta-feira, no sábado, no domingo, e no dia da festa dos mártires: Todas as
vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciais a morte do Senhor,
até que Ele venha74. O Senhor não limitou o sacrifício a um tempo determinado.
Poderias perguntar-me então: Por que motivo se chama Páscoa àquela? Porque
foi nela que Cristo sofreu por nós. Mas ninguém participa de modo diferente naquela
e nesta Páscoa, uma vez que único é o seu valor de salvação, única a dignidade, única a
graça, único e mesmo o Corpo; nem aquele é mais santo do que este, nem este inferior
àquele. Todos vós o sabeis; não vedes nada de novo, excepto estes belos tapetes e a

72
JOÃO CRISÓSTOMO, Homiliae in Ep. II ad Thessalonicenses (=PG 62, 468-500).
73
JOÃO CRISÓSTOMO , Homiliae in Ep. I ad Timotheum (=PG 62, 501-600).
74
1 Cor 11, 26.
JOÃO CRISÓSTOMO 635

multidão extraordinária. Aquela tem, no entanto, alguma coisa a mais do que esta por
causa do tempo, pois foi então que começou o dia da nossa salvação, o dia no qual
Cristo Se ofereceu. Mas no que diz respeito ao mistério, não há nenhuma diferença
entre aquela e a que celebramos agora...
HOMILIA 6 75

1. Recomendo, pois, antes de tudo, que se façam preces, orações e súplicas e 2652
acções de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão constituí-
dos em autoridade76... Que quer dizer aquele antes de tudo? Quer dizer no culto de
cada dia. Isto sabem-no os iniciados, porque se faz todos os dias de tarde e de manhã;
sabem como fazemos súplicas por todos os homens, pelos reis e por todas as autoridades...
HOMILIA 14 77

4. Ao canto do galo chega imediatamente o superior e, com o pé, desperta delicadamente 2653
os que dormem e convida-os a levantar-se. Depois, uma vez despertos, todos cantam,
de pé, os hinos compostos com harmonia... Os cantos, bem compostos, estão cheios de
amor a Deus. Dizem: Levantai as mãos para o santuário e bendizei o Senhor 78; e
também: A minha alma vigia durante a noite diante de Ti, Senhor, porque os teus
mandamentos são luz sobre a terra79... Também os cânticos de David fazem correr
muitas lágrimas... E quando eles cantam, cantam com os Anjos, pois também estes
cantam ao mesmo tempo: Louvai o Senhor no alto dos Céus80... Naquele momento
concreto, nós, ao contrário, estamos a ressonar... Pensa no que significava para eles
passar toda a noite nesta ocupação. E quando chega o dia, descansam. Com efeito,
quando nós começamos o trabalho, eles descansam um pouco. Entre nós, durante o dia,
um visita o próximo..., outro vai ao teatro, outro cuida de negócios; mas estes, depois de
terem recitado as suas orações matutinas e os hinos, entregam-se ao estudo das Escri-
turas. Há alguns que aprendem a transcrever livros. Cada um tem a sua cela; trabalha
tranquilamente; ninguém fala e ninguém diz tolices. Depois rezam as orações de Tércia,
Sexta, Noa e Vésperas; dividindo o dia em quatro partes, em cada uma delas honram a
Deus com a salmodia e os hinos e, enquanto outros se entregam aos banquetes, aos
jogos e às comezainas, estes entregam-se aos hinos.

Homilias sobre a Segunda Carta a Timóteo 81

HOMILIA 2

2. Será por acaso a vida do sacerdote ou a sua virtude que realizam coisa tão gran- 2654
de? As coisas de Deus não são de molde a ser realizadas pela virtude do sacerdote.
Tudo é dom da graça. O sacerdote nada mais faz do que abrir a boca; Deus é que
realiza tudo; o sacerdote apenas leva a cabo um símbolo. Repara na distância que havia
entre João e Jesus. Escuta o que diz João: Eu é que tenho necessidade de ser baptizado

75
Esta homilia foi pronunciada em Antioquia, no ano 397.
76
1 Tim 2, 1.
77
Esta homilia descreve o Ofício monacal, em Antioquia, no tempo de S. João Crisóstomo.
78
Sal 133, 2.
79
Is 26, 9.
80
Sal 148, 1.
81
J OÃO C RISÓSTOMO , Homiliae in Ep. II ad Timotheum (=PG 62, 600-662).
636 SÉCULO V

por Ti, e ainda: Eu não sou digno de Lhe desatar a correia das sandálias. Contudo,
apesar de haver tanta distância, desce o Espírito que João não tinha: Todos nós parti-
cipamos da sua plenitude. Não desceu antes de Jesus ser baptizado, e, no entanto,
João nada fez para que descesse. Por que sucedeu assim? Para que aprendas que o
sacerdote realiza o símbolo. Homem nenhum dista tanto de outro homem como João
de Jesus, e, apesar disso, o Espírito desceu sobre Ele, para que compreendas que é
Deus que leva a cabo e realiza tudo...
2655 4. Quero acrescentar uma coisa verdadeiramente estupenda, mas não vos espanteis
nem vos perturbeis. Que coisa é? A oblação é a mesma, seja quem for o oferente,
chame-se ele Pedro ou Paulo; é a mesma que Jesus Cristo confiou aos discípulos e que
os sacerdotes realizam agora: esta última não é menor que a primeira, porque não são
os homens que a tornam santa, mas Aquele que a santificou. Como as palavras pronun-
ciadas por Deus são exactamente as mesmas que o sacerdote diz agora, assim também
a oblação é a mesma, e o baptismo é o que Ele deu. Deste modo, tudo é obra da fé...
HOMILIA 10

2656 3. Não se diz Contigo mas E com o teu Espírito. Duplo socorro, o da graça do
Espírito e de Deus que nos ajuda. Deus não pode estar connosco doutra maneira, se a graça
espiritual não estiver presente; se a graça estivesse ausente, como estaria Deus presente?

Homilias sobre a Carta aos Hebreus 82

HOMILIA 9

2657 5. Que perdão podemos alcançar, se nem sequer pensamos nas nossas faltas?...
Aquele que pensa nos seus próprios pecados está dentro de si. Se os examinar todos os
dias, acabará por alcançar, com toda a certeza, a sua cura. Mas se disser: «Sou peca-
dor» e não os examinar, um após outro, para dizer: «Cometi este pecado e mais
aquele», nunca deixará de pecar. Embora se reconheça sempre pecador, não procurará
seriamente emendar-se...
HOMILIA 14

2658 1. (Os sacerdotes da antiga lei) prestam um culto que é uma imagem e uma sombra
das realidades celestes83. A que se chama aqui realidades celestes? Às coisas espirituais,
porque, apesar de se celebrarem na terra, são, contudo, dignas das celestiais, pois,
quando nosso Senhor Jesus Cristo está presente, sacrificado e imolado, quando vem o
Espírito, quando está aqui Aquele que está sentado à direita do Pai, quando nascem
filhos pelo baptismo..., tudo isso é celestial.
2659 2. Então os hinos não são celestiais? Não cantamos nós aqui em baixo as mesmas
melodias harmoniosas que os coros divinos... cantam nos Céus? Acaso o nosso altar
não é também espiritual?... Tudo o que se oferece é espiritual...

82
JOÃO CRISÓSTOMO , Homiliae in Hebraeos (=PG 63, 9-236). Possuímos 34 homilias sobre a Carta aos Hebreus.
83
Hebr 8, 5.
JOÃO CRISÓSTOMO 637

HOMILIA 17

3. Não oferecemos também nós todos os dias o sacrifício? Certamente, mas fazendo 2660
o memorial 84 da sua morte, que é uma só e não muitas... A nossa oferta, que se faz em
memorial, é imagem 85 daquela que Cristo fez de uma vez para sempre. De facto, nós
oferecemos sempre o mesmo (Cristo), não uma ovelha hoje e amanhã outra, mas
sempre a mesma vítima. Por isso o sacrifício é único. Dever-se-á pensar em muitos
Cristos pelo facto de esta oferta ser feita em muitos lugares diferentes? De modo
nenhum. Em toda a parte Cristo é um só. Ele está todo aqui e todo ali, um só Corpo.
Assim como Cristo, que Se oferece em muitos lugares da terra, é um só Corpo e não
muitos corpos, assim também o sacrifício é um só... Oferecemos também agora a
mesma vítima que então foi oferecida e que jamais se consumirá... Não fazemos um
sacrifício diferente, como o fazia então o pontífice, mas oferecemos sempre o mesmo;
melhor dizendo, fazemos o memorial86 daquele sacrifício que foi feito uma só vez,
quando Ele disse: Fazei isto em memória de Mim. Não fazemos, portanto, um sacrifício
sempre diferente, como o fazia o pontífice, mas fazemos sempre o mesmo sacrifício,
isto é, fazemos o memorial do sacrifício.
4. Uma vez que fiz menção deste sacrifício, quero acrescentar algumas pequenas 2661
coisas, dado que já estais iniciados nos mistérios. Apesar de breves em extensão, têm,
no entanto, grande força e utilidade, pois não se trata de coisas minhas, mas de coisas
que foram ditas pelo Espírito de Deus. Que coisas são?
Muitos participam neste sacrifício apenas uma vez por ano, outros duas vezes,
e outros ainda com mais frequência. Dirijo-me a todos, não só aos que estão presentes,
mas também aos que habitam no deserto, já que eles só participam uma vez por ano e,
com frequência, de dois em dois anos. Quais serão mais dignos, quanto a nós: os que
participam apenas uma vez, os que participam com alguma frequência, ou os que o
fazem só raras vezes? Nem estes nem aqueles, mas só os que se aproximam de consciência
limpa, coração puro e vida sem mancha. Esses aproximem-se sempre, mas os que não
têm essa disposição não o façam nem sequer uma vez...
5. Quando dizemos: As coisas santas aos santos! é para afirmar que, se alguém 2662
não é santo, não se aproxime. Não se diz apenas: o que está limpo de pecados, mas
aquele que é santo. De facto, para ser santo, não só é preciso estar livre de pecados,
mas também ter a presença do Espírito e a abundância de boas obras...
HOMILIA 18

1. Estar de pé é a atitude do ministro que serve ao altar, do sacerdote que sacrifica... 2663

Homilia sobre a esmola 87


3. Neste dia estamos livres de qualquer trabalho, a alma está repleta de sossego e, 2664
o que é mais importante, num dia como este, nós próprios recebemos imensos benefícios.
De facto, neste dia foi vencida a morte, retirada a maldição, cancelado o pecado,
abertas as portas do Inferno, o Diabo foi preso em cadeias, chegou ao fim a guerra

84
a) n a/ m nesij .
85
tu/ p oj .
86
a) n a/ m nesij .
87
J OÃO C RISÓSTOMO , De eleemosyna sermo (=PG 51, 261-272). Trata-se da esmola dominical. Esta homilia
comenta 1 Cor 16, 1-4.
638 SÉCULO V

incessante, teve lugar a reconciliação de Deus com os homens, a humanidade voltou à


sua antiga nobreza, recebemos bens ainda maiores, e o sol contemplou aquele espectáculo
surpreendente e inacreditável, de o homem se tornar imortal. Querendo o Apóstolo
que nos lembrássemos de todas estas coisas e de outras tão excepcionais como estas,
deu a este dia um lugar central, tomando-o como se fosse um advogado, e dizendo a
cada um: «Pensa, ó homem, em quais e quantos benefícios recebeste neste dia, de que males
foste libertado, no que eras antes e naquilo em que te tornaste depois daqueles factos».
Se nós celebramos o aniversário do nascimento com tanta alegria, se muitos ser-
vos organizam banquetes no dia em que foram libertados, enquanto os homens livres
trocam muitos presentes, honrando a circunstância, com muito mais razão devemos nós
honrar este dia, que, sem exagero, poderemos chamar dia do nascimento de todo o
género humano. De facto, estávamos perdidos e fomos reencontrados, estávamos mor-
tos e recebemos uma vida nova, éramos inimigos e fomos reconciliados. Por isso é justo
que honremos este dia com uma dignidade espiritual, não preparando banquetes, nem
fazendo libações, nem abandonando-nos à embriaguez ou à dança88, mas socorrendo
com generosa abundância os irmãos mais pobres.
Digo estas coisas, não para vos empobrecerdes, mas para que também vós façais
assim. De facto, não penseis que estas coisas só foram ditas para os Coríntios, mas sim
para cada um de vós e para todos aqueles que virão depois. Façamos aquilo que Paulo
mandou, e cada um, no dia do Senhor, ponha de parte, em sua casa, o dinheiro reservado
para o Senhor, e torne-se esta maneira de agir lei e costume imutável, e não teremos
mais necessidade nem de exortar nem de aconselhar. Com efeito, nem a palavra nem a
exortação têm tanto poder para conseguir estas coisas, como o tem um costume conso-
lidado no tempo. Se tivéssemos decidido pôr de parte alguma coisa no dia do Senhor
para assistir aos pobres, nem mesmo que surgissem impedimentos de qualquer espécie
transgrediríamos esta lei...89

Homilias sobre o tempo actual 90

HOMILIA 5

2665 2. Assim que começa o canto do salmo, ele funde na unidade as vozes dispersas,
reúne-as todas num cântico harmonioso. Jovens e velhos, ricos e pobres, mulheres e
homens, escravos e homens livres, todos nós cantamos uma mesma melodia. O músico
toca as diversas cordas da cítara, mas a melodia que ele toca é uma só: não admira, por
isso, que o poder do salmo e do cântico inspirado produza o mesmo efeito!... O Profeta
fala, todos nós respondemos, juntos formamos um só coro. Já não há aqui escravo nem
homem livre, nem rico nem pobre, nem senhor nem servo. A desigualdade existente no
mundo foi afastada, todos formamos um só coro, todas as vozes são iguais, a terra imita
o Céu. Tal é a nobreza da Igreja... Todos oferecemos um sacrifício comum...

88
Alusões ao modo de celebrar as festas.
89
João Crisóstomo é o pregador social do seu tempo.
90
JOÃO C RISÓSTOMO, De studio praesentium (=PG 63, 485-492).
JOÃO CRISÓSTOMO 639

Homilia sobre o Diabo tentador 91


2. 6 Quereis que vos recorde os caminhos da penitência? São muitos, variados e 2666
diferentes, e todos levam ao Céu.
O primeiro caminho da penitência é a acusação dos pecados: Confessa primeiro
os teus pecados e serás justificado. Por isso dizia também o Profeta: Eu disse: Vou
confessar ao Senhor a minha culpa; e Vós me perdoastes a culpa do meu pecado.
Condena, portanto, também tu as tuas culpas, e esta confissão te alcançará o perdão do
Senhor. E se condenas as tuas culpas, serás mais cauteloso para não voltar a cair.
Habitua a tua consciência a ser a tua acusadora familiar, para que mais tarde ninguém
te acuse diante do tribunal do Senhor. Este é, portanto, o primeiro e o melhor caminho
da penitência.
Mas há outro, não inferior ao primeiro, que consiste em perdoar as ofensas que
recebemos dos inimigos, dominar a ira, esquecer as faltas dos nossos irmãos. Assim
nos serão perdoadas também as ofensas que praticamos contra Deus. Este é o segundo
caminho de expiar as nossas culpas, porque se perdoardes a quem vos ofendeu, tam-
bém o vosso Pai celeste vos perdoará.
Queres conhecer ainda um terceiro caminho da penitência? É a oração fervorosa
e assídua que brota do íntimo do coração.
E, se desejas que te indique um quarto caminho, dir-te-ei que é a esmola, porque
é grande e poderosa a sua eficácia.
Acrescentemos ainda: Se procedes com modéstia e humildade, será este um modo
não menos eficaz que os outros para destruir pela raiz os teus pecados. Disso é teste-
munha o publicano, que, não podendo recordar diante de Deus boas acções, ofereceu o
humilde reconhecimento das suas culpas e assim se libertou do grave peso que tinha na
consciência.
Acabámos de indicar cinco caminhos da penitência: primeiro, a acusação dos
pecados; segundo, o perdão das ofensas do nosso peóximo; terceiro, a oração; quarto, a
esmola; quinto, a humildade.
Não fiques, portanto, ocioso, mas procura seguir todos os dias estes caminhos tão
fáceis. Não podes desculpar-te com o impedimento da tua pobreza, pois ainda que leves
uma vida de extrema penúria, podes sempre depor a ira, ser humilde, orar assiduamen-
te, confessar os pecados; a pobreza não oferece obstáculo algum a estes caminhos de
penitência, nem sequer àquele que consiste na distribuição de bens, isto é, a esmola.
Para cumprir este mandamento, lembra-te do testemunho da viúva que deu as duas
pequenas moedas.
Tendo aprendido, por conseguinte, o modo de curar as nossas feridas, tratemos de
usar estes remédios. E, assim, recuperada a saúde, poderemos aproximar-nos confiada-
mente da sagrada mesa e caminhar alegremente ao encontro de Cristo, Rei da glória, e
alcançar para sempre os bens eternos pela graça, misericórdia e benignidade de nosso
Senhor Jesus Cristo.

91
J OÃO C RISÓSTOMO , Homilia de diabolo tentatore (=PG 49, 241-276; cf. LH, IV).
640 SÉCULO V

Vitrício de Rouen

Em louvor dos Santos 1


2667 9. Estamos persuadidos de que estas relíquias dos justos, que estes restos sagrados
dos Apóstolos contêm toda a verdade da sua paixão corporal. Gritemos, por isso, com
toda a nossa fé, que não há nada, nestas relíquias, que não esteja cheio deste sofrimento.
Onde está toda a virtude, aí estão os membros inteiros. É absolutamente certo que os
nossos Apóstolos e os nossos mártires estão aqui, connosco, com todas as suas virtudes.
Mas porque as chamamos nós relíquias? Porque as palavras são imagens e si-
nais das coisas. Tendes sob os vossos olhos um pouco de sangue e de terra; as relíquias
são isso. Mas, ao dizermos que o todo está na parte, não me dirijo aos vossos sentidos,
mas à vossa inteligência e ao vosso coração. Não devemos lamentar-nos da pequenez
destas relíquias, porque, quando dizemos que nada do que pertence ao género pereceu
no corpo dos Santos, afirmamos, com certeza, que o que é divino não pode ser diminu-
ído, pois está todo em tudo, e onde está uma parte, seja de que maneira for, está o todo.
Sirvo-me de um exemplo para compreenderdes melhor: nós dizemos «o brilho do lume,
a luz do fogo». Na realidade trata-se de uma única e mesma coisa. A única divisão é a
distinção do nome: a luz gera o esplendor e, no entanto, não há diferença real entre a luz
e o esplendor. Portanto, quando vemos relíquias minúsculas, um pouco de terra, um
pouco de sangue, esses restos ínfimos são mais brilhantes que o sol, porque o Senhor
disse: Então os justos resplandecerão como o sol no Reino do Pai...
2668 10. Pensai também no poder de cura que reside quer nas partes quer no todo. As
relíquias realizam o mesmo alívio tanto no Oriente como em Roma. O evangelista João
cura em Éfeso e em vários outros lugares, mas o seu mesmo poder também actua entre
nós. Próculo e Agrícola curam em Bolonha, mas nós veneramo-los também em Rouen.
Onde quer que se encontre alguma coisa destes Santos eles defendem, purificam,
protegem os que os honram. O que nós temos é de difundir o seu culto, e não de discutir
a sua grandeza. Quem cura está vivo; quem cura encontra-se nas relíquias. Ora os
Apóstolos, os Mártires e os Santos curam. Por isso estão ali, nas suas relíquias, unidos
pelos elos de toda a eternidade.
Já o disse e repito-o: os Santos não sofrem qualquer prejuízo pelo facto de se
repartirem os seus restos. Compreendamos, portanto, que se estes justos se entregam
assim aos crentes, isso acontece por um efeito da misericórdia de Deus. Isto não pode
ser assunto de discussão. Porque quem ama crê. Quem crê procura a fé naquilo que o
seu bispo ensina, e não simples palavras. Aquele que ama a verdade leva em si o
respeito por estas coisas; mas aquele que as põe em questão é um audacioso e impertinente.
2669 11. Irmãos caríssimos, como eu desejava fazer esta construção, foi com todo o
direito que me assegurei da posse do solo desta basílica. A vinda dos Santos justifica o
meu desejo. Porque foram eles que, em segredo, me inspiraram o projecto de lhes
construir uma morada. Isso é absolutamente inegável. Lançámos os fundamentos e
construímos as muralhas: sabemos agora por quem trabalhámos com tanto zelo. Por
isso, toda a demora na construção deve ser criticada: a lentidão e a preguiça não me
agradam nada. O que eu gosto é de pegar com as minhas mãos e de levar aos meus
ombros pedras pesadas. Gosto que a terra beba o meu suor, esta terra que vai receber
os altares. Porque, se os Apóstolos e os Mártires constatarem a nossa fidelidade em
executar e em acabar este trabalho, atrairão outros para aqui, com as suas bênçãos.

1
V ITRÍCIO DE R OUEN, De laude sanctorum (=PL 20, 443-458). Vitrício nasceu por volta de 340, tendo-se
mais tarde convertido das armas a Cristo. Foi bispo de Rouen a partir de 385. Morreu por volta de 410.
GAUDÊNCIO DE BRÉSCIA 641

Gaudêncio de Bréscia

Tratados pascais sobre o Êxodo 1


1. 3 O Filho de Deus, por quem todas as coisas foram feitas, levantou, com a sua 2670
Ressurreição, o mundo prostrado, no mesmo dia e na mesma estação em que Ele pró-
prio, no princípio, o criou do nada. Assim tudo foi restaurado em Cristo... 2. 6 Aprenda-
mos a comer a Páscoa, não como Judeus ignorantes, que seguem ainda a sombra depois
de ter vindo a realidade, matando e comendo, cada qual em sua casa, uma ovelha, no dia
catorze do primeiro mês. 7 É daí que vem aquele verdadeiro Cordeiro de Deus, o Se-
nhor Jesus Cristo, que tira o pecado do mundo, cuja sombra tinha sido uma ovelha... 8 É
preciso, com a ajuda de Deus, começar a expor, desde a manhã, as virtudes espirituais
prefiguradas naquela história do Êxodo, onde se narra a celebração da Páscoa... Agora,
porém, escolhemos desse tema as coisas que não se podem explanar na presença dos
catecúmenos, mas que devem explicar-se obrigatoriamente aos neófitos... 9 Na sombra
daquela Páscoa legal... matava-se um cordeiro por cada casa, pois um não era suficien-
te para todos, dado que era figura e não realidade da Paixão do Senhor... 11 Mas nesta
realidade em que estamos, um morreu por muitos, e é um só que em todas as igrejas, no
mistério do pão e do vinho, imolado, fortifica, acreditado, vivifica, consagrado, santifica
os consagrantes... 34 Todos vós que saístes do poder do Egipto e do Faraó que é o
Diabo, participai connosco, com todo o desejo do coração piedoso, deste sacrifício da
Páscoa salvadora, para que o mais íntimo do nosso ser seja santificado pelo mesmo
Cristo nosso Senhor, presente nos seus sacramentos, e cuja virtude inestimável perma-
nece por todos os séculos. Amen.

Homilia pascal 2
1. Ao descrever a celebração da Páscoa invertemos a ordem da exposição do Êxo- 2671
do, a fim de mantermos a ordem da exposição dos mistérios, pois convinha, naquela
esplêndida noite das vigílias, explanar no segundo tratado, não o que se seguia na
leitura, mas o que era conveniente para os neófitos, a fim de que estes, ainda novatos,
aprendessem o modo de comer o sacrifício pascal, e os fiéis já instruídos o recordassem...
3. O verdadeiro Cordeiro de Deus, mostrado por João Baptista, é Cristo: Eis o Cordeiro
de Deus, que tira o pecado do mundo. Por isso devemos comer desta carne de tal
modo, tanto os fiéis no sacramento, como todos os crentes em conjunto na fé, e confiá-
-la ao mais íntimo do nosso coração, que não só tenhamos cingidos os rins com a
castidade, mas também estejamos calçados com a prontidão para anunciar o Evan-
gelho da paz. 4. E tal como o calçado terreno é defesa para os pés do corpo, e resiste
à aspereza do frio, à mordeura das serpentes e ao aguilhão dos espinhos, assim também
os preceitos da lei divina... Por isso, todos nós que celebramos a Páscoa do Senhor,
devemos usar sempre este calçado, porque a lei é espiritual, e Cristo, nossa Páscoa,
foi imolado.

1
G AUDÊNCIO DE B RÉSCIA , Tractatus vel Sermones (=PL 20, 827-1002; CSEL 68). Pouco se sabe sobre
Gaudêncio, bispo de Bréscia, que deve ter morrido por volta de 412.
2
G AUDÊNCIO DE BRÉSCIA , Homilia pascalis, 5 (=PL 20, 827-1002; CSEL 68).
642 SÉCULO V

Nicetas de Remesiana

Catequese aos competentes 1

LIVRO I

2672 1. Como propor a fé aos competentes e aos eleitos. É preciso examinar os competen-
tes sobre as noções fundamentais da fé, sobre as coisas necessárias que até as almas
simples são capazes de compreender e fixar, adquiridas não com as elucubrações da
sua inteligência, mas através da palavra que a Sagrada Escritura anuncia.
Os que forem eleitos para o baptismo devem ser instruídos, a fim de conhecerem
bem aquilo que deixaram, compreenderem melhor o que desejam e saberem com mais
segurança o que devem observar...
2673 2. O catecúmeno. O catecúmeno é como que um hóspede estranho dos fiéis; está
perto deles, mas escuta como alguém que não é deles, sem entender os mistérios e sem
estar ainda consciente da graça que eles infundem. Mas a partir deste momento
chamamo-lo fiel.
2674 3. Exorcismo. Haverá outra razão para o exorcizar que não seja a necessidade de o
preparar para receber a graça? De facto, os exorcismos purificam-no como que através
do fogo, pois são de fogo as palavras do Senhor com que são feitos os exorcismos.
2675 4. Sobre o escrutínio. Creio que foi chamado escrutínio por ser o momento da
inquirição e do exame. De facto, é preciso submeter várias vezes à prova aquele que
prestou ouvidos aos nossos ensinamentos e instruções, para verificar como reteve de
memória ou compreendeu o que escutou, e também com que ardor ama a doutrina que
ouviu. Por isso, passar-se-á aos escrutínios, para indagar várias vezes com que firme
propósito, após a renúncia a Satanás, ele reteve no fundo do coração as palavras santas
com que prometeu fidelidade.
Assim instruído e formado na fé cristã, o catecúmeno deve ser então submetido
aos exorcismos, para fazer expressamente a renúncia ao Diabo e poder tornar-se digno
da graça divina. Na verdade, não pode de modo nenhum participar na graça espiritual,
se primeiro não expulsa as impurezas diabólicas e não rejeita as mentiras idolátricas...

LIVRO II

2676 1. Renúncia ao Demónio e profissão de fé. Certamente, em todos os pecados que se


cometem não falta a obra do Demónio... Por isso, no momento em que se liberta de tais
males e em que atira à cara do inimigo essas cadeias que lhe atavam as mãos às costas,
o homem pronuncia sinceramente estas palavras: «Creio em Deus Pai todo-poderoso»,
e o resto do Símbolo. Cada um daqueles que quer obter a plenitude da fé, ou seja o
baptismo, deve estar convenientemente preparado e instruído acerca da fé contida nos
artigos do Credo, se pretende guardar no coração o Símbolo breve confiado à memória,
para poder recitá-lo por conta própria em cada dia, antes de se deitar e ao levantar-se

1
N ICETAS DE R EMESIANA , Explanatio Symboli ad competentes (=PL 52, 865-876; Città Nuova Editrice 53).
São poucas as notícias seguras da vida e actividade de Nicetas de Remesiana (hoje Bela Palanka, na
Sérvia). Sabemos que esteve na Itália em 335, que Inocêncio I o menciona numa carta por volta de 409. A
última notícia que temos dele é do ano 414.
NICETAS REMESIANA 643

após o sono... O mesmo se diga acerca da Oração do Senhor e do sinal da cruz com que
poderá defender-se dos assaltos do inimigo.
2. O Símbolo. O Símbolo é o prontuário da fé e da santa profissão, que habitualmente 2677
todos sabem e guardam.
3. Ritos do catecumenado (exorcismo, sal e unção); os competentes. Passamos 2678
agora às várias etapas da iniciação, ou seja, ao caminho que seguem aqueles que vêm à
fé. O primeiro grau é o dos catecúmenos, o segundo o dos competentes, o terceiro o
dos baptizados.
Catecúmenos são aqueles que provêm do paganismo com a vontade de acreditar
em Cristo. Uma vez que o primeiro preceito que encontramos na Lei de Deus diz
assim: Escuta, Israel: o Senhor teu Deus é o único Senhor2, segue-se que aquele a
quem Deus fala pela primeira vez através do sacerdote, como o fez pela boca de Moisés,
é chamado catecúmeno, isto é, ouvinte, o que quer dizer que, reconhecendo-O como
único Senhor, renuncia aos vários erros dos idólatras. Creio que foram prefiguração
dos catecúmenos todos os que receberam o baptismo de penitência de João. Esses são
em primeiro lugar exorcizados, depois recebem o sal, depois a unção.
O exorcismo é uma invocação dirigida contra o espírito imundo naqueles que
estão possuídos por ele; faz-se sobre o catecúmeno, porque dessa forma é expulsa e
posta em fuga a maldita força do Diabo e a sua antiga malícia, ou seja, todo o seu ataque
violento. É sua figura o epiléptico que Jesus curou, e do qual saiu um Demónio; é por
isso que se exorciza o poder do Diabo e se fazem insuflações sobre eles, para que
renunciem a ele e, libertados do poder das trevas, sejam transferidos pelo sacramento
do baptismo para o reino do seu Senhor.
Aquilo que as crianças não podem fazer directamente, renunciar, realizam-no
com o coração e com a boca os que as trazem. O sal que a seguir se dá aos catecúmenos
é um sinal sagrado transmitido pelos Padres...
Depois do grau dos catecúmenos, vem o segundo, o dos competentes. Chamam-se
assim, porque se preparam para chegar à graça de Cristo, enquanto os catecúmenos
apenas escutam, mas ainda sem pedir. Estes, de facto, são como que hóspedes e
vizinhos dos fiéis, sentem exteriormente os mistérios da graça, mas ainda não se
chamam fiéis; os competentes, ao contrário, já estão perto de a receber e doravante são
catequizados, isto é, instruídos sobre a doutrina dos sacramentos. Não é sem razão
que lhes é entregue o Símbolo da salvação como farol da fé e prova da santa confissão...

LIVRO III

29. Explicação do Símbolo. Seja, pois, plena a tua fé na Trindade, segundo a fórmula 2679
professada no baptismo de salvação... «A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor
do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco. Amen».

LIVRO IV

1. As santas vigílias dos servos de Deus 3. Convém passar agora ao tema das 2680
santas vigílias e orientar o discurso para elas, o que é muito oportuno e justo, pois tal
meditação é muito solicitada por quem tem verdadeiro zelo...

2
Deut 6, 4.
3
Sob este título incluímos aqui o sermão De vigiliis servorum Dei (=PL 68, 365-372, sob o nome de
Nicécio de Tréveris). Embora circule como escrito autónomo, pode muito bem ter sido utilizado pelo
próprio Nicetas como primeira parte do Livro quarto deste seu tratado sobre a Catequese dos competentes.
644 SÉCULO V

Deus fez o dia para o trabalho e a noite para o repouso, e, por isso, devemos dar-Lhe
graças... Mas sabemos bem que muitas pessoas consagraram parte da noite a um
trabalho particular, ou para condescender com a tradição dos antigos ou para obter um
favor particular...
2681 3. Fazer vigília no sábado e no domingo para purificar o coração. Certamente
não deveria parecer pesado ou difícil, nem mesmo a um corpo frágil, reservar uma parte
da semana, as duas noites do sábado e do domingo, ao ofício divino...
2682 4. Grande antiguidade da prática das vigílias. O assunto exige, caríssimos, que
diga algumas palavras sobre a antiguidade do importante costume das vigílias, que é de
grande utilidade... A devoção das vigílias é antiga, e todos os santos a mantiveram
sempre como bem de família...
2683 9. Como praticar na santidade as vigílias. Isto, irmãos caríssimos, só acontecerá
se aquele que está de vela com os olhos também estiver vigilante com o coração, se
aquele que reza com o sopro da boca também rezar com o espírito, pois seria inútil
estar de vela com os olhos e a alma mergulhada no sono...
2684 10. A utilidade e beleza da salmodia4. Quem é fiel a uma promessa não faz nada de
especial quando a paga. Recordo que, ao tratar da beleza e da utilidade das vigílias,
prometi falar... do louvor e do ofício dos hinos... Este é o momento mais oportuno para
falar dessa obra, a esta assembleia reunida para o ofício dos hinos.
2685 11. A oração do coração deve exprimir-se com o som da voz. Sei que há alguns, não
só de entre os nossos, mas também das províncias orientais, que consideram o canto
dos salmos e dos hinos como algo supérfluo e menos adequado ao culto divino, pensando
que basta recitar o salmo com o coração e que seria um tanto amaneirado expressá-lo
em voz alta... Mas eu, deixando-me guiar pela verdade, tal como não repreendo os que
salmodiam com o coração, pois é sempre útil meditar com o coração as coisas de Deus,
também louvo os que glorificam a Deus com o som da sua voz...
2686 12. Início do canto profético: Moisés e Débora. Se nos perguntamos quem foi o
primeiro que descobriu este género de cânticos, não encontraremos outro senão Moisés
que... entoou a Deus um esplêndido cântico, dizendo em acção de graças: Cantemos ao
Senhor, que Se revestiu de glória5... Assim, Moisés, o guia das tribos de Israel, foi o
primeiro a criar os coros e, indo ele e sua irmã à frente dos diversos grupos de um e
outro sexo, ensinou a cantar um cântico triunfal em honra de Deus. Depois, no Livro
dos Juízes6, encontramos que uma mulher ilustre, Débora, desempenhou também este
ministério. E o próprio Moisés, antes de morrer7, compôs no Deuteronómio8 um cântico...
2687 13. A harpa de David, figura profética da cruz. A partir de então podes encontrar
não só muitos homens, mas também mulheres cheias do Espírito divino, que cantaram
os mistérios de Deus. Sobretudo David, que, desde a sua infância, foi especialmente
eleito pelo Senhor para este ministério e mereceu ser príncipe dos cantores e tesouro
de poemas. Sendo ainda jovem, cantou acompanhado da harpa tão suave e poderosamente
que pôs em fuga o espírito maligno que actuava em Saul9, não porque aquela cítara
possuísse uma tal virtude, mas porque era figura da cruz de Cristo, representada
misticamente na madeira e na extensão das suas cordas, e porque a própria paixão que
se cantava vencia já então o espírito do Demónio.
4
Incluímos aqui o sermão De utilitate hymnorum (=PL 68, 371-376, sob o nome de Nicécio de Tréveris).
Embora circule como escrito autónomo, pode muito bem ter sido utilizado pelo próprio Nicetas como
segunda parte do Livro quarto deste seu tratado sobre a Catequese dos competentes.
5
Ex 15, 1.
6
Cf. Jz 5, 1-31.
7
Cf. Deut 32, 48 s; 34, 1 s.
8
Dt 32, 1-43.
9
Cf. 1 Sam 16, 23.
NICETAS REMESIANA 645

14. O saltério é benéfico em todas as idades e condições. Que poderás encontrar 2688
nos seus salmos que não sirva para utilidade, edificação e consolação do género huma-
no, de qualquer raça, sexo e idade? A criança encontra nele o leite que a nutre, o menino
palavras para o louvor, o adolescente para corrigir o seu caminho, o jovem aquilo que
deve seguir, o ancião o que pode rezar. A mulher aprende o pudor, os órfãos encontram
um pai, as viúvas um juiz, os pobres um protector, os estrangeiros um defensor. Os
reis e os juízes escutam o que devem temer.
Um salmo consola o triste, modera o alegre, acalma o irado, alenta o pobre, repre-
ende o rico, para que se conheça a si mesmo. Um salmo proporciona saúde a todo o que
o aceita os remédios apropriados; e não despreza o pecador, antes lhe insinua suave-
mente o remédio, mediante as lágrimas da penitência. Evidentemente que o Espírito
Santo previu e prevê o modo como até os corações mais duros e reticentes receberiam
pouco a pouco e quase com deleite as palavras divinas...
O Senhor, por meio do seu servo David, preparou uma bebida que fosse, pelo
canto, doce ao paladar e capaz, pela sua virtude, de curar as feridas dos pecados. O
salmo escuta-se com agrado enquanto se canta. Aprende-se mais facilmente de memória
quanto mais frequentemente se canta. E o que a austeridade da Lei não consegue
arrancar do coração do homem, obtém-no esta bebida mediante a doçura do canto. Pois
todos os preceitos da Lei, dos Profetas e dos próprios Evangelhos se contêm nestes
cânticos como remédio de suave doçura.
15. O saltério, revelação de Deus e profecia de Cristo. Nos salmos revela-se Deus 2689
e desprezam-se os ídolos; reafirma-se a fé e rejeita-se a infidelidade; inculca-se a
justiça e proíbe-se a iniquidade; louva-se a misericórdia e abomina-se a crueldade;
busca-se a verdade e condena-se a mentira; denuncia-se o engano e recomenda-se a
inocência; rejeita-se a soberba e exalta-se a humildade; anuncia-se a paciência e promete-se
a paz, pede-se protecção contra os inimigos, promete-se a vingança, alimenta-se uma
esperança certa e, o que é muito mais importante do que tudo isto, cantam-se os
mistérios de Cristo, pois se anuncia o seu nascimento e se fala da rejeição do povo
ímpio e da herança dos gentios.
Cantam-se os milagres do Senhor, descreve-se a sua venerável Paixão, mostra-
-se a sua Ressurreição gloriosa e não se oculta que está sentado à direita. Finalmente
anuncia-se a fulgurante vinda do Senhor e abre-se o terrível juízo dos vivos e dos
mortos. Que mais? Também se revela o envio do Espírito Criador do mundo e a
renovação da terra: depois de tudo isto, será o reino eterno dos justos na glória do
Senhor e o perene suplício dos ímpios.
16. A salmodia, sacrifício agradável de louvor. Estes são os hinos que a Igreja canta 2690
a Deus. Estes são também os que esta nossa assembleia pratica com o som da voz... Tu
próprio verás se pode pôr-se em dúvida que os hinos agradam a Deus quando tudo o
que se leva a cabo está orientado para a glória do Criador...
17. A salmodia, arma de defesa contra o inimigo. Agrada ao Senhor o louvor que 2691
procede de uma consciência pura 10, como exorta também o próprio salmista: Louvai o
Senhor, porque é bom cantar, é agradável e justo celebrar o seu louvor11. Tendo este
conhecimento e não ignorando que tal ministério agrada a Deus, afirma: Sete vezes ao
dia proclamei os vossos louvores12. E ainda promete mais: A minha língua proclamará
a vossa justiça, toda a vida cantará os vossos louvores 13...

10
Cf. 1 Tim 3, 9.
11
Sal 146, 1.
12
Sal 118, 164.
13
Sal 34, 28.
646 SÉCULO V

2692 18. As prescrições antigas de cantar em Cristo. Demoraria muito, caríssimos, se


pretendesse expor com pormenor tudo o que contém a história dos salmos... O próprio
Senhor, que é doutor nas suas palavras e mestre nas suas obras, para mostrar que o
ministério dos hinos lhe é gratíssimo, uma vez dito o hino saiu com os seus discípulos
em direcção ao monte das Oliveiras. Quem poderá ainda com um tal testemunho
duvidar do valor religioso dos salmos e hinos, quando se nos diz que Aquele mesmo
que é adorado e cantado pelos seres celestes cantou o hino com os seus discípulos14?
2693 19. A Igreja salmodia juntamente com os Anjos. É sabido que depois os Apóstolos
também assim procederam, pois nem sequer no cárcere deixaram de recitar salmos15.
Também Paulo fala aos Profetas da Igreja: Quando vos reunis, diz ele, cada um de vós
tem um salmo, um ensinamento a proferir, ou uma revelação. E tudo se faz para
edificação16... E São Tiago escreve assim na sua Carta: Alguém, entre vós, está triste?
Recorra à oração. Está alguém alegre? Cante salmos17...
2694 20. Salmodia em comunhão com os Santos. Sendo assim, irmãos, cumpramos com
grande fé o ministério dos hinos, crendo que conseguiremos de Deus abundante graça,
por nos ter concedido, junto a tão grandes santos..., cantar as maravilhas do Deus eterno...
2695 21. O ofício divino, alimento espiritual. Que coisa haverá mais útil do que esta? Que
coisa haverá mais agradável que este deleite? Deleitamo-nos com os salmos, sentimo-nos
refrescados com as orações e alimentamo-nos com as leituras que se vão intercalando...
e, assim, as nossas almas se nutrem com a leitura variada e o canto dos hinos.
2696 22. Salmodia em uníssono. Mas, caríssimos, cantemos com o coração atento e a
mente desperta, como nos exorta o salmista dizendo: Deus é Rei do universo: cantai os
hinos mais belos18, de modo que o salmo se recite não só com o espírito, quer dizer,
com o som da voz, mas também com a mente, para que pensemos no que cantamos...
O tom e a melodia cantem em sintonia... manifestando na própria modulação da voz a
simplicidade cristã, sem fazer teatro, mas levando os ouvintes ao arrependimento dos
pecados.
A nossa voz deve ser sem dissonâncias, em plena harmonia, sem que um prolongue
as sílabas e outro as encurte, e sem que um baixe a voz e outro a eleve, mas que cada um
se esforce por incluir a sua voz na harmonia do coro que canta, sem se distinguir
vaidosamente, prolongando a voz como se fosse uma cítara. Devemos celebrar todo o
ofício na presença de Deus e não pelo desejo de agradar aos homens ou a nós próprios.
Temos um modelo ou exemplo desta harmonia na voz daqueles santíssimos três jovens
de que nos fala o Livro de Daniel: Então os três jovens numa só voz entoaram um hino
e na fornalha glorificavam a Deus dizendo: Bendito sejais, Senhor, Deus de nos-
sos pais 19...
Também todos nós devemos cantar como uma só voz a mesma melodia e com a
mesma harmonia de voz. Aquele que não conseguir sintonizar-se ou harmonizar-se
com todos é melhor que cante em voz baixa do que desafinar os outros com uma voz
estrondosa. Assim cumprirá o seu ofício ministerial, sem molestar a comunidade que
canta. Nem todos possuem uma voz flexível e melodiosa... A doçura religiosa nos deixe
arrebatados, pois os que cantam bem possuem a graça de estimular à piedade o espírito
dos ouvintes. Se a voz dos nossos lábios estiver harmonizada com os címbalos que

14
Cf. Mt 26, 30; Mc 14, 26.
15
Cf. Act 16, 26.
16
1 Cor 14, 26.
17
Tg 5, 13.
18
Sal 46, 8.
19
Dan 3, 51-52.
NICETAS REMESIANA 647

ressoam bem20, resultará para nós coisa agradável e nos edificará a nós ouvintes, e todo
o louvor resultará suave a Deus, que nos faz habitar em concórdia na sua casa21.
Quando se canta um salmo, que todos o cantem; quando se ora, que todos orem;
quando se faz a leitura, que todos ouçam em absoluto silêncio e escutem o leitor sem
que nenhum orante o interrompa com os seus gritos. E, se chegas enquanto se faz a
leitura, adora o Senhor e, feito o sinal da cruz na tua fronte, presta bem atenção.
23. Oração e escuta. Exemplo de Maria, irmã de Marta. Há um tempo de oração 2697
quando todos oramos, e também o há sempre que queiras. Quando desejares orar em
privado, não percas a leitura com pretexto da tua oração, porque nem sempre cada um
a pode ter preparada, enquanto que orar está sempre nas tuas possibilidades. Não
penses que se tira pouco proveito da escuta da leitura sagrada, pois a própria oração se
torna mais rica para aquele que escuta, enquanto a mente, nutrida com a recente leitura,
recorre às imagens das coisas divinas que antes ouviu.
De Maria, a irmã de Marta, que, sentada aos pés de Jesus e esquecida de sua
irmã, escutava com suma atenção a sua palavra, a voz do Senhor nos confirma que
tinha escolhido a melhor parte 22. Por isso, também o diácono como um arauto e com
voz clara anuncia a todos que todos observem a unidade nas orações, ao ajoelhar-se, ao
cantar, ao escutar as leituras, porque o Senhor ama aqueles que têm um só coração e,
como dissemos antes, fá-los habitar em sua casa23. Aos que nela habitam o salmo
chama-os bem-aventurados24, porque louvarão o Senhor pelos séculos dos séculos. Amen.

LIVRO V

1. Preliminares à entrega do Símbolo: as renúncias. Quem crê em Cristo segue 2698


as directivas que orientam para a verdadeira vida, tendo como modelo o povo de Israel,
que seguiu Moisés para entrar na Terra prometida. Por isso, quem se empenha em
seguir Cristo, renuncia ao Adversário e aos seus anjos e abandona, como é óbvio, as
loucuras das artes mágicas, que nos pervertem pelas obras dos anjos de Satanás..., o
culto dos seus ídolos, os sortilégios e agouros... Foram coisas deste género, irmãos, que
vos separaram do Senhor e vos uniram aos Demónios...
Por isso, quem pensa em libertar-se de tais laços, atire, por assim dizer, à cara do
inimigo, com as algemas que lhe prendiam as mãos atrás das costas, disposto a professar,
no futuro, com voz sincera, a sua fé...
12. Fidelidade ao Credo. Uma vez que assim é, permanecei com perseverança na fé 2699
da doutrina que vos foi ensinada e entregue. Sede fiéis à aliança que selastes duma vez
para sempre com o Senhor e que professastes neste Símbolo diante dos Anjos e dos
homens. São poucas palavras, mas cheias de todos os mistérios; são, na sua brevidade,
um resumo de todas as Escrituras, fórmulas preciosas como pérolas harmonicamente
encastoadas, para que possam retê-las na memória e utilizá-las como verdades funda-
mentais para a salvação, tantos que crêem, mas não sabem ler ou que, sabendo ler as
Escrituras, não podem fazê-lo, por causa das suas ocupações seculares.
13. O Símbolo como exorcismo. Assim, caríssimos, caminhando, estando sentados, 2700
dormindo ou vigilando, guardai no coração e meditai esta profissão salvadora.
Volta sempre o teu coração para o Céu, espera na ressurreição, deseja que se
cumpra a promessa. Com orgulho e cheio de fé na cruz de Cristo e na sua gloriosa

20
Cf. Sal 150, 5.
21
Sal 67, 7.
22
Lc 10, 39-42.
23
Cf. Sal 67, 7.
24
Cf. Sal 83, 5.
648 SÉCULO V

Paixão, responderás ao inimigo...: «Já renunciei e quero renunciar sempre a ti, às tuas
obras e aos teus emissários, porque acreditei no Deus vivo e no seu Filho, fui marcado
pelo seu Espírito e aprendi bem a não temer no futuro nem sequer a própria morte». É
assim que Deus estenderá a sua mão em vossa defesa, é assim que o Espírito Santo vos
defenderá agora e sempre no vosso caminho, para que, de coração unido a Cristo, vos
exorteis mutuamente, dizendo: Irmãos, quer durmamos, quer estejamos vigilantes,
vivamos unidos a Cristo25. A Ele a glória pelos séculos dos séculos. Amen.

LIVRO VI

2701 1. Páscoa judaica e Páscoa da Ressurreição: 25 de Março. Está escrito: Este


mês será para vós o início dos meses...26 Sei que muitos se habituaram há muito
tempo a criticar com muito empenho o motivo deste costume judaico de calcular a
Páscoa, a partir de diversas datas, regulando-se pela lua, dizendo que parece mais justo
observar um só aniversário, tendo em conta a comemoração da Paixão do Senhor e
celebrando a Páscoa a 25 de Março, dia em que Cristo ressuscitou. Assim vou expor
para tais críticos curiosos o costume que os nossos antepassados seguiram...

Sinésio de Cirene

Carta 3 27
2702 Era o terceiro dia depois da morte de Esquine. Nesse dia a sua sobrinha veio pela
primeira vez ao túmulo, pois é considerado mau presságio que os que estão prestes a
casar acompanhem o cortejo fúnebre. Ao dirigir-se ao túmulo ia vestida de púrpura e
com um véu flamejante; retirara (do lugar onde as guardava) as suas jóias de ouro e as
pedras preciosas, e adornara-se com elas, pois, de outro modo, poderia tornar-se um
mau augúrio para o noivo...
Mal chegou o sétimo dia em que fazemos a refeição fúnebre, subiu para o carro
acompanhada da sua faladora velha ama, em pleno mercado, enfeitada com todas as
suas jóias e partiu, sem demora, para Teuquéria, pois desejava, no dia sete do próximo
mês (dia das suas núpcias), pavonear-se, como uma Cibele, coberta de fitas e penteada
em forma de torre.

25
1 Tes 5, 10.
26
Ex 12, 2-9. 11.
27
SINÉSIO DE C IRENE , Epistulae (=PG 66, 1321-1560; citado por K. R ITZER , Le mariage dans les Églises
chrétiennes, Paris, Cerf 1970, 131). Sinésio de Cirene morreu antes de 415. Esta passagem é interessante
por nos dar a conhecer um costume da esposa, antes e depois do casamento.
AVITO DE VIENA 649

Avito de Viena

Cartas 1

CARTA A GONDEBAUD 2

O bispo Avito ao rei Gondebaud. Comoveu-vos um escrito, chegado às vossas 2703


mãos, oriundo de um dos partidários do rigorismo penitencial. Foi uma santa emoção,
uma solicitude digna de um rei. Aí se diz que a penitência, por vós chamada com muita
precisão penitência súbita, ou seja, aquela que se recebe no momento de morrer, não
serviria para nada nem a ninguém. Trata-se duma afirmação contrária à verdade e
duma indelicadeza evidente.
Diante da misericórdia de Deus, a humildade daquele que confessa a sua falta
não deixará certamente de dar os seus frutos. Com efeito, nós lemos que, depois do
baptismo, muitas vezes acontece que os justos pecam e os pecadores se convertem.
Cada um será julgado segundo a situação em que for encontrado no instante da morte.
Por isso, devemos acreditar, sem hesitação, que a simples vontade de se corrigir, se for
sincera, pode agradar a Deus. Tudo será pesado junto da misericórdia celeste, segundo
a qualidade da nossa fé. É por isso que, aos trabalhadores que foram contratados, como
nos conta o Evangelho, foi atribuído um salário igual, aos primeiros e aos últimos, pelo
seu zelo e prontidão. Do mesmo modo, a pequeníssima penitência dos habitantes de
Nínive mereceu, em três dias, um perdão total e suspendeu a espada suspensa sobre a
cidade pecadora, graças a uma satisfação proporcionada, numa altura em que, o dia em
que essa espada iria ferir, como advertira o profeta Jonas, já estava fixado. Convidamos
essas pessoas, a quem o orgulho incha muito mais do que as tranquiliza a consciência, a
contradizer exemplos deste género.
Aqui, no entanto, uma vez que tenho essa oportunidade, devo confessar-vos uma
preocupação que me sobrevém com frequência. Quantas vezes sofremos por causa da
nossa indulgência, ao verificarmos que se trata com grande ligeireza uma coisa tão
preciosa como a penitência. Com efeito, quando vemos os moribundos pedir a penitên-
cia com orações e lágrimas, dizemos a nós mesmos que seria ímpio recusar-lha. Mas
não é raro acontecer que o pecador gravemente doente, e que vem a restabelecer-se
depois de receber a penitência, se recusa a cumprir os compromissos que assumiu,
tornando-se, como diz o Apóstolo, citando Salomão, semelhante ao cão que volta so-
bre o seu vómito3... Por isso afirmo que a penitência só com muito cuidado deve ser
dada àqueles que estão em perigo de morte. Se há pecadores no estado de casados, que
chegam ao seu último dia sem faltas graves, e que fizeram uso do que lhes é permitido,
pensamos que não serão condenados, e, por isso, fazemos memória deles no sacrifício.
Pelo contrário, se abandonaram a penitência depois de a terem recebido, voltando a
deixar-se apanhar pelo mundo, somos obrigados a excluí-los da comunhão como após-
tatas, isto é, como pessoas que abandonaram a fé. É melhor, com efeito, conservar a
sua salvação numa posição medíocre do que destruí-la radicalmente violando o essenci-
al. Vive-se com mais segurança num casamento honesto, do que manchando, por uma

1
A VITO DE V IENA , Epistulae (=PL 59, 199-290; C. V OGEL , Paris 1966, 133-137). Foi bispo entre 394-415.
2
Gondebaud era rei dos Burgúndios (=PL 59, 219. 381).
3
2 Ped 2, 22; cf. Prov. 26, 11.
650 SÉCULO V

falsa afirmação de castidade, coisas lícitas com o que é proibido. Prevendo um tal esta-
do de coisas, o Apóstolo censura as viúvas que romperam o seu primeiro compromisso
e diz-lhes que hão-de receber condenação muito severa, e aos esposos, unidos em ma-
trimónio legítimo e irrepreensível, recomenda-lhes que se dediquem à oração e de-
pois, voltem de novo um para o outro, para que Satanás não vos tente devido à
vossa incapacidade de autodomínio4, e não leve a melhor sobre aqueles que renega-
ram a sua promessa, ao passo que não pudera vencer na carne as pessoas casadas.
CARTA A VITÓRIO 5

2704 Ao fazer-me uma pergunta, caro colega, usais simultaneamente de prudência e


de caridade e pretendeis, ao mesmo tempo, honrar-me e sobrecarregar-me. Posso afir-
mar-vos, com toda a simplicidade, que julgais bem, não digo da minha ciência, mas sim
da minha amizade. De facto, nunca vos aconselhei nada nas minhas respostas que eu
próprio não quisesse ver aplicado na Igreja de Viena.
Como me dissestes, Vincomal – a quem Deus queira dar a graça de vencer o mal
pelo bem – acompanhou o nosso diácono. Achei que Vincomal era um homem muito
ordinário, de cuja miséria se pode dificilmente ter pena. Jovem ainda pelos seus vícios,
este velho pelo número de anos ilude-se a si mesmo: a idade gela-o, o adultério aquece-o.
Que mais dizer? Faço votos de que, na sua idade, a sua desprezível lascívia o não faça
perecer. Acusado por nós do crime de incesto, mais com palavras de encorajamento
que de crítica, foi ele que incriminou a nossa severidade, a pretexto da lentidão, e alegou
ter rejeitado muito tarde uma união matrimonial ilícita, que durava há trinta anos. Nós
dissemos-lhe que, por bondade para com ele, diferimos a sentença, porque preferimos
esperar pelo futuro, corrigindo-o segundo o arrependimento e a boa vontade de que ele dá
provas. É justo, igualmente, que depois de um tão grande número de anos, Vincomal
pelo menos pare de viver no crime, ele que, em razão da sua muita idade, deveria ter
renunciado, há muito tempo, até mesmo a uma união legítima. A estas palavras, creio
ter-me apercebido de que Vincomal suspirou, menos por remorsos do que por vergonha,
e prometeu afastar-se desta mulher, com a qual tinha coabitado de maneira culpável.
Persuadi-o a repetir-vos esta promessa e, depois de ter lamentado os factos, a
pedir-vos que o liberteis dos laços que o trazem preso. No entanto, uma vez que me
pedistes para vos dizer francamente o que me parece deste caso, dir-vos-ei a minha
opinião. Talvez baste que ordeneis a separação das duas pessoas. Que este infeliz casa-
mento seja dissolvido pelo divórcio, que é muito menos grave, e que o fim do mal seja
considerado como um efeito suficiente do vosso rigor, sem dar crédito, no entanto, às
promessas de um homem cuja vida jamais inspirou qualquer confiança.
Quando ao resto, quer dizer, no que diz respeito à penitência, Vincomal será exor-
tado a fazê-la, mas de modo nenhum forçado a recebê-la. Deixemos o infeliz com os
seus pecados, e não imponhamos a uma pessoa que resmunga, uma penitência que não
poderíamos conceder, mesmo que a pedisse, a um homem tão abominável. Cesse de
andar de má fé e de ser instável, mas que a revolta não aumente o peso da sua sensua-
lidade. Em resumo, é esta a minha conclusão, se mo permitis: Vincomal, uma vez liber-
tado do seu crime, deve recuperar o perdão; sofra uma penitência pelo próprio facto de
perder a oportunidade de pecar, mas faça-se penitente só quando estiver disposto a não
pecar mais.

4
1 Cor 7, 5.
5
Vitório era bispo de Grenoble (=PL 59, 234-235).
PAPA INOCÊNCIO I 651

Papa Inocêncio I

Cartas 1

CARTA A VITRÍCIO DE ROUEN 2

8. 11 Convém manter a regra de receber só pela imposição das mãos os que vêm 2705
dos Novacianos ou dos Montanistas, dado que, apesar de terem sido baptizados pelos
hereges, receberam o baptismo em nome de Cristo.
CARTA 6 3

Foi-nos posta a seguinte questão: Como nos devemos comportar com aqueles 2706
que, após o baptismo, se entregaram sem parar à volúpia carnal e que, no fim da vida,
pedem ao mesmo tempo a penitência e a reconciliação?
A respeito deles há duas maneiras de agir: uma, antiga, muito severa; outra, re-
cente, mais benigna, por modo de indulgência. Seguindo o costume antigo, no caso aci-
ma indicado concedia-se a penitência, mas recusava-se a comunhão. Com efeito, nes-
ses tempos longínquos, eram frequentes as perseguições, e por isso se recusava, com
justiça, a comunhão, com receio de que, em virtude duma paz obtida demasiado facil-
mente, os fiéis, seguros de receber a sua reconciliação, se deixassem levar ainda mais
facilmente à apostasia. A penitência era-lhes concedida para não se lhes recusar tudo;
a dificuldade com que se dava o perdão era consequência desses tempos agitados.
Mas depois de nosso Senhor ter dado a paz às suas Igrejas e de ter passado o
terror, decidiu-se conceder a comunhão aos moribundos – que será como um viático,
graças à misericórdia divina, para aqueles que vão partir – a fim de não dar a impressão
de seguir a dureza e o rigor do herege Novaciano, que negava a possibilidade do perdão.
Conceder-se-á, pois, a comunhão com a penitência in extremis; deste modo os pecadores
de que falámos, ao menos nos seus últimos instantes e com o consentimento de nosso
Senhor, serão defendidos da condenação eterna.
CARTA 16 4

Como muito bem sabeis, fazemos mais orações em comum e alternadamente, do 2707
que singularmente e em privado.
CARTA 17 5

5. 10 Está clara a razão pela qual não se procede da mesma maneira em relação a 2708
estas duas heresias. Na verdade, os Paulianistas não baptizam de modo nenhum em
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ao passo que os Novacianos baptizam com
esses tremendos e veneráveis nomes...

1
P APA I NOCÊNCIO I, Epistulae et decreta (=PL 20, 463-612; 56, 455; 84, 647-658; C. V OGEL , Paris 1966,
169-170). Inocêncio I foi Papa desde 401 até 417.
2
Esta carta é do ano 404.
3
Esta carta, ao bispo Exupério de Tolosa, é do ano 405 (=PL 20, 498; 84, 647-658).
4
Carta a Aurélio e Agostinho.
5
Esta carta, a Rufo e outros bispos da Macedónia, é do ano 414.
652 SÉCULO V

CARTA 25 6

2709 1. Inocêncio, a Decêncio de Gúbio, saúde. Se os sacerdotes do Senhor quisessem


observar integralmente as instituições eclesiásticas, tal como os santos Apóstolos no-las
legaram, não se encontraria qualquer diversidade nem variedade nos próprios ritos nem
nas orações sacramentais. Mas como cada um pensa que deve observar-se, não o que
vem da tradição, mas o que lhe parece bem, entraram diferenças nas observâncias e
nas celebrações de diversos lugares e em muitas igrejas. Isto é um escândalo para o
povo, que, por desconhecer as antigas tradições deturpadas pela presunção humana, ou
crê que as Igrejas já não se entendem entre elas, ou então que foram os Apóstolos e os
seus sucessores imediatos que introduziram a contradição.
2710 2. Quem poderá ignorar ou não ter em conta que aquilo que foi confiado à Igreja
romana por Pedro, o príncipe dos Apóstolos, e que aí sempre foi observado até hoje,
deve ser observado por todos, sem introduzir nem acrescentar seja o que for que não
tenha autoridade, nem receber algo vindo de outro lugar? Porque é manifesto que em
toda a Itália, Gália, Hispânia, África, Cecília e ilhas adjacentes, nenhuma Igreja foi
fundada senão por aqueles que o venerável apóstolo Pedro ou os seus sucessores lhes
enviaram como sacerdotes. Vejam se encontram nessas províncias algum costume (di-
ferente dos de Roma) que os Apóstolos tenham ensinado ou se diga que ensinaram. E,
se o não lêem, porque não foi encontrado em parte nenhuma, importa que voltem a
seguir o que a Igreja romana guarda, e que ela recebeu, sem sombra de dúvida, do
príncipe dos Apóstolos, embora haja afirmações peregrinas, que parecem querer escon-
der que ela seja a cabeça das instituições.
2711 3. Não há dúvida de que tu vieste muitas vezes a Roma e te reuniste connosco na
igreja e sabes qual o costume que seguimos ao celebrar os mistérios e ao realizar as
outras acções sagradas. Isso basta para informares ou reformares a tua Igreja. Se
acaso os teus predecessores fizeram algo de menos ou de outro modo, consideramos
isso suficiente, a não ser que pensasses que devíamos ser consultados sobre outras
coisas. Respondemos-te acerca destas, não por pensarmos que ignoras seja o que for,
mas para que, com maior autoridade ensines os teus, ou lhes chames a atenção se
alguém erra acerca das instituições da Igreja romana, ou não demores a informar-nos,
para sabermos quem são, quais as novidades que introduzem ou qual o costume, de
outra Igreja diferente da romana, que consideram dever ser observado.
2712 I. 4 Quanto à paz, dizes tu que é antes da celebração dos mistérios que alguns a
anunciam ao povo e que os ministros sacerdotes a trocam entre eles. Ora, a paz deve
ser proclamada depois daquelas coisas que eu não devo revelar7. Com efeito, é claro
que, através dela, o povo dá o seu consentimento a tudo aquilo que é posto em evidência
pela paz que a conclusão vem selar.
2713 II. 5 Acerca dos nomes a recitar antes de o sacerdote fazer a Oração eucarística 8 e
das oblações daqueles cujos nomes devem ser recitados, para serem recomendadas
pela sua oração, tu próprio reconheces pela tua prudência como isso é supérfluo, pois
ofereces a sua vítima a Deus, e lembras o seu nome antes, embora a Ele nada Lhe seja
desconhecido. Primeiro é preciso apresentar as oferendas e só depois se pronunciam os
nomes daqueles de quem elas vieram, de modo que sejam nomeados durante os sagra-
dos mistérios9, não no momento que os precede, para abrirmos o caminho aos próprios
mistérios pelas preces que vêm a seguir.
6
Carta a Decêncio de Gúbio (=PL 20, 552-560; 84, 639-644; R. CABIÉ, La lettre du pape...; data: 19/03/416).
7
Post omnia quae aperire non debeo.
8
Antequam precem sacerdos faciat.
9
Prius oblationes sunt commendendae, ac tunc eorum nomina, quorum sunt oblationes edicenda, ut inter
sacra mysteria nominentur.
PAPA INOCÊNCIO I 653

III. 6 Quanto à consignação das crianças10, é evidente que ninguém, além do bispo, a 2714
pode dar. Com efeito, embora os presbíteros sejam sacerdotes do segundo grau, não
têm, contudo, o sumo sacerdócio. Que este poder pontifical de consignar ou dar o Espí-
rito Paráclito é próprio só dos bispos, mostra-o não só o costume eclesiástico, mas
também o passo dos Actos dos Apóstolos, onde se diz que Pedro e João foram envia-
dos para dar o Espírito Santo aos que já tinham sido baptizados. De facto, quando os
presbíteros baptizam, quer na ausência quer na presença do bispo, é lícito que eles
unjam com o crisma os baptizados, mas com crisma consagrado pelo bispo; porém, não
fazem a unção da fronte com o mesmo óleo, o que só compete aos bispos, quando
comunicam o Espírito Paráclito. Mas não posso dizer as palavras, para não dar a im-
pressão que provoco mais prejuízo do que respondo à consulta.
IV. 7 A razão mostra com evidência que se deve jejuar no sábado. De facto, nós 2715
celebramos o domingo por causa da venerável Ressurreição de nosso Senhor Jesus
Cristo, não só na Páscoa, mas também em cada ciclo semanal. Nós que recordamos a
imagem do próprio dia, jejuamos na sexta-feira por causa da Paixão do Senhor, mas não
devemos omitir o sábado, que parece incluído entre a tristeza e a alegria daquele tempo.
Consta, na verdade, que os Apóstolos estiveram estes dois dias num grande pesar e se
fecharam por medo dos Judeus. Quanto a isso, não há dúvida de que jejuaram só nesses
dois dias, como consta da tradição da Igreja, e se abstiveram totalmente de celebrar os
sacramentos nestes dois dias. Por isso é que esta forma deve ser conservada em todas
as semanas, e a comemoração daquele dia se deve celebrar sempre. Mas, se pensam
que se deve jejuar uma vez e um sábado, também se deve celebrar no dia do Senhor e
na sexta-feira uma vez na Páscoa. Se em cada semana, no dia do Senhor e na sexta-
-feira, se deve recordar a imagem, é loucura observar o costume do sábado omitido
duas vezes, dado que não há uma razão diferente, desde sexta-feira, na qual o Senhor
padeceu, quando desceu aos Infernos, para ressurgir ao terceiro dia e trazer de novo a
alegria, após os dois dias anteriores de tristeza. Nós não negamos que se deve jejuar na
sexta-feira, mas dizemos que se deve jejuar também no sábado, porque os dois foram
dias de tristeza para os Apóstolos, como indicaram aqueles que seguiram Cristo. Aqueles
que se alegraram no dia do Senhor, não só quiseram que ele fosse um grande dia de festa, mas
também mandaram que fosse festejado em todas as semanas.
V. 8 Quanto ao fermentum 11 que, no dia do Senhor, enviamos aos diversos títulos, 2716
foi sem razão que quiseste consultar-nos, pois todas as nossas igrejas estão dentro da
cidade. Como os seus presbíteros, naquele dia, não podem reunir-se connosco por cau-
sa do povo que lhes está confiado, recebem, através dos acólitos, o fermentum por nós
consagrado, para que, principalmente nesse dia, não se sintam separados da comunhão con-
nosco. Mas não penso que isso deva ser feito através das paróquias12, porque os sacramentos
não devem ser levados para longe. Nós destinámos presbíteros constituídos para os diversos
cemitérios, e esses presbíteros têm o direito e a autorização de os confeccionar13.
10
De consignandis vero infantibus.
11
No domingo, os presbíteros dos títulos, obrigados a celebrar nas suas próprias igrejas, em razão dos fiéis
que lhes estão confiados, não podem participar na missa solene do Papa. Mas este, para deixar claro que
a ausência deles não os afasta da comunhão com ele, faz-lhes chegar, através dos acólitos, fragmentos do
pão eucarístico que ele próprio acaba de consagrar. É o fermentum, que não é enviado para fora da cidade
de Roma, para as igrejas dos cemitérios, porque os presbíteros que as servem têm todo o direito de
realizar, por si mesmos, os santos mistérios. Ao contrário, os presbíteros das paróquias da cidade,
concelebrantes normais do chefe da comunidade, devem misturar às suas próprias oblações o fermento
proveniente da missa papal. O presbítero que recebia o fermentum, mergulhava-o no cálice no momento
em que pronunciava as palavras Pax domini sit semper vobiscum (cf. A NDRIEU , OR, vol. II, 61).
12
Igrejas rurais.
13
De fermento vero quod die dominica per titulos mittimus, superflue nos consulere voluisti, cum omnes
ecclesiae nostrae intra civitatem sint constitutae. Quarum presbyteri, quia die ipso propter plebem sibi
creditam nobiscum convenire non possunt, idcirco fermentum a nobis confectum per acolytos accipiunt,
ut se a nostra communione maxime illa die non iudicent separatos. Quod per parochias fieri debere non
puto, quia nec longe portanda sunt sacramenta, nec nos per coemeteria diversi constitutis presbyteris
destinamus et presbyteri eorum conficiendorum ius habeant et licentiam.
654 SÉCULO V

2717 VI. 9 Perguntas se aqueles que, depois de baptizados, são apanhados pelo Demónio e
caem nalgum vício ou pecado, podem ou devem ser designados pelo presbítero ou pelo
diácono. Isso não lhes é permitido, a não ser que o bispo mande. Não é lícito, de modo
nenhum, impor-lhes as mãos, a não ser que o bispo dê autorização para o fazer. Para
isso ser feito, deve o bispo mandar que as mãos lhes sejam impostas por um presbítero
ou por outros clérigos. Com efeito, como se poderia fazer isso sem grande trabalho, se
se trouxesse de longe até ao bispo aquele que é energúmeno? E, se lhe acontecesse
algo pelo caminho, como poderia chegar ao bispo e como poderia facilmente voltar a
sua casa?
2718 VII. 10 Quanto aos penitentes que fazem penitência por pecados graves ou por outros
mais leves, desde que não surja qualquer doença grave serão reconciliados na Quinta-
-Feira antes da Páscoa, segundo o costume da Igreja romana. No que diz respeito ao
cálculo da gravidade dos seus pecados, isso pertence ao bispo. Ele terá em conta a
confissão do penitente, mas também as suas lágrimas e lamentações. Conceder-lhe-á a
reconciliação, quando tiver constatado que a expiação é satisfatória. Mas, se alguém
cair doente e chegar ao último extremo, será reconciliado antes do tempo da Páscoa,
para que não parta deste mundo sem comunhão.
2719 VIII. 11 Uma vez que tu, sem dúvida, quiseste consultar-me acerca disto, como acerca
de outras coisas, o meu diácono Celestino acrescentou na sua carta, que a tua Caridade
também menciona, o que está escrito na Carta do apóstolo São Tiago: Alguém entre vós
está doente? Chame os presbíteros da Igreja, para que orem sobre ele, ungindo-o
com o óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o doente e o Senhor o
confortará, e, se tiver pecados, ser-lhe-ão perdoados. Não há dúvida de que este
texto deve entender-se no sentido dos fiéis enfermos, que podem ser ungidos com o
óleo santo da unção. Este óleo, confeccionado pelo bispo, pode ser utilizado não só por
aqueles que são sacerdotes, mas também por todos os cristãos, que têm o poder de usar dele
para fazer a unção, quando a doença os oprime, nas suas necessidades ou nas dos seus14.
Mas achamos supérfluo o que se acrescenta para tirar ao bispo o que é indubita-
velmente permitido aos presbíteros. Com efeito, se ali se fala de presbíteros, é porque
os bispos, retidos por outras ocupações, não podem visitar todos os enfermos. Todavia,
se o bispo tiver essa possibilidade ou julgar bem que alguém receba a sua visita, pode,
sem a mínima hesitação, benzer e aplicar o óleo da unção, pois é a ele que pertence
confeccionar este óleo. Contudo, não se pode dar a unção aos penitentes, pois esta faz
parte dos sacramentos. De facto, como é possível pensar que se possa conceder um
(sacramento) desta espécie àqueles a quem se negam os outros sacramentos?
12 Tentámos responder, como pudemos, a todas estas coisas que a tua Caridade,
irmão caríssimo, quis expor-nos, para que a tua Igreja possa observar e guardar o cos-
tume romano, no qual teve origem. As restantes coisas, que não convém escrever, po-
demos dizê-las quando estiveres presente, se nos interrogares. Para glória do Senhor
procura instruir bem a tua Igreja e os nossos clérigos, que realizam os ofícios sob o teu
divino pontificado, e mostra-lhes as coisas que eles devem imitar.
CARTA 30 15

2720 5. Quem afirma que as crianças podem receber o prémio da vida eterna sem a
regeneração, parece-me que quer anular o próprio baptismo, afirmando que as crianças
recebem o que, segundo a fé, lhes é dado só através do baptismo. Portanto, se para eles
não é prejudicial o não renascer, é necessário que digam abertamente que os sagrados
mananciais da regeneração não são úteis...

14
In sua aut in suorum necessitate.
15
Esta carta, a Silvano e aos outros Padres do Sínodo de Milevi (Numídia), é do ano 417.
PAPA Z Ó Z I M O 655

CARTA 37 16

5. Convém (ao admitir os leigos nas ordens) observar os tempos determinados pelos 2721
nossos antepassados. Ninguém se torne depressa leitor, nem acólito, nem diácono, nem
sacerdote, porque se permanecerem por muito tempo nos ofícios menores e forem com-
provados de igual modo nas suas vidas e nos seus gostos, quando vierem depois ao
sacerdócio... não arrebatarão o que deve receber-se por merecimento duma vida provada.
Está demonstrado, por uma certa prática, quem deve ser admitido e quem deve ser rejeita-
do. De todos aqueles que tu vires que não são de rejeitar, deves escolher alguns para os
fazer clérigos. Se não pretendermos fazer favores aos homens nem conceder-lhes benefí-
cios, poderemos encontrar pessoas de cuja escolha não virá escândalo, nem teremos de nos
envergonhar.

Papa Zózimo

Decreto 17
Na Igreja do Senhor é costume dar os primeiros passos do serviço divino no grau 2722
dos leitores. Para que alguém não venha a ser incompetente, seja feito, sucessivamente,
exorcista, acólito, subdiácono e diácono, não aos saltos, mas pela ordem dos tempos
estabelecidos pelos nossos antepassados. Só deve chegar ao ponto mais elevado do
presbitério aquele que satisfaça a idade que o nome pressupõe, e depois de ter dado
provas de probidade. Deste modo deverá esperar o posto de sumo pontífice 18.

Carta 9 19
3. Devem observar-se os tempos de cada um destes graus. Se alguém der o nome 2723
para os ministérios eclesiásticos desde a infância, deve permanecer, em contínua obser-
vação, entre os leitores, até à idade de vinte anos. Se alguém entrar já em idade mais
madura, e do mesmo modo quiser inscrever-se entre a milícia divina imediatamente
depois do baptismo, permaneça cinco anos quer entre os leitores quer entre os exorcistas.
Depois disso, será acólito ou subdiácono; permanecerá quatro anos nesta ordem e, se
for digno, acederá à bênção do diaconado...

16
Carta a Félix de Nucéria (=PL 20, 603-605).
17
PAPA ZÓZIMO, Epistulae (=PL 20, 642-702; 84, 674-678). Zózimo foi Papa entre 417 e 418.
18
Assuescat in Domini castris, in lectorum primitus gradu divini rudimenta servitii; nec illi vile sit
exorcistam, acolytum, subdiaconum, diaconum per ordinem fieri; nec hoc saltu, sed statutis maiorum
ordinatione temporibus. Iam vero ad presbyterii fastigium talis accedat, ut et nomen aetas impleat, et
meritum probitatis stipendia anteacta testentur. Iure inde summi pontificis locum sperare debebit.
19
PAPA ZÓZIMO, Carta a Hesíquio de Salónica (=PL 56, 571-573).
656 SÉCULO V

Jerónimo

Comentário aos Salmos 1


2724 3. 1 Este salmo pode aplicar-se a David e a Cristo, e, por Cristo, a todos os santos...
2725 4. 1 Este salmo refere-se todo a Cristo e por Cristo aos justos...
2726 5. 1 A composição deste salmo diz respeito à Igreja, que no fim e na consumação do
mundo receberá em herança todas as nações que acreditaram em Cristo. Enfim, é da
Igreja personificada que esta oração sobe para Deus: Meu Rei e meu Deus. O Rei e
Senhor da Igreja é Cristo...
2727 9. 1 Por tropologia todo este salmo se refere ao mistério de Cristo...
2728 19. 1 Pensam alguns que este salmo sai da voz do povo que se dirige a Cristo, ao
mesmo tempo Rei e Sacerdote...
2729 37. 1 Este salmo é, na sua totalidade, a palavra pessoal dum penitente, mas também
podemos aplicá-lo a Cristo...
2730 66. 1 É a voz dos Apóstolos, que se dirige ao povo reunido de entre as nações pagãs...
2731 67. 1 Este salmo pode ser compreendido de maneira particular ou de maneira geral.
De maneira particular fala do próprio Cristo, pedindo-Lhe que ressuscite de entre os
mortos e ponha em fuga os inimigos, isto é, o Diabo e o seu exército... De maneira geral
refere-se a nós, quando estamos na tribulação e na angústia...
2732 68. 1 Este salmo refere-se todo à pessoa de Cristo. No entanto, alguns pensam que
estas palavras se Lhe adaptam mal: Senhor, Vós conheceis a minha loucura...
2733 86. 1 Só a alma do homem é a verdadeira Igreja, o verdadeiro templo de Cristo.
2734 123. 1 Não são as paredes que fazem os cristãos.
2735 133. 1 A Igreja não são as paredes, mas a verdade da doutrina. Onde houver fé verda-
deira, aí está a Igreja.
2736 Aleluia. Nós costumamos utilizar indiferentemente o Aleluia: nos salmos ale-
luiáticos, nos históricos, nos penitenciais, naqueles em que pedimos a vitória sobre os
inimigos e naqueles em que rezamos para ser libertados da angústia.

Comentário ao profeta Isaías 2


2737 1. Prólogo. Cumpro o meu dever, obedecendo aos preceitos de Cristo, que diz: Exa-
minai as Escrituras... Na verdade, segundo o apóstolo Paulo, Cristo é força de Deus e
sabedoria de Deus, e quem desconhece as Escrituras desconhece a força de Deus e a
sua sabedoria, pois ignorar as Escrituras é ignorar Cristo3...

1
JERÓNIMO , Tractatus in Psalmos [(=PLS 2, 94. 193; CCL 78; Commentarioli in psalmos (=CCL 72)].
Jerónimo é chamado o príncipe dos tradutores. Nasceu por volta de 347 e morreu em 419.
2
JERÓNIMO , Commentariorum in Esaiam prophetam (=PL 24, 17-678; CCL 73).
3
Diz um autor dos nossos dias que esta expressão célebre de Jerónimo se pode completar com outra:
Ignorar a liturgia é ignorar Cristo.
JERÓNIMO 657

LIVRO XV

55. 1 Foi este o vinho que a sabedoria misturou no seu cálice, ao convidar todos os 2738
simples e todos os insensatos do mundo a beber dele, e a não comprarem só vinho, mas
também leite, que significa a inocência das crianças. Ainda hoje se mantém nas igrejas
do Ocidente o costume de dar aos renascidos em Cristo vinho e leite...

LIVRO XVI

58. 10 Muitos dos nossos receberam a xeirotoni/an, isto é, a ordenação de clérigos. 2739
Tal ordenação não é apenas fruto da oração, mas exige, para se entender como tal, a
imposição das mãos, a fim de não acontecer o que já sucedeu em certas ordenações
ridículas, nas quais foram ordenados clérigos, sem o saberem, por meio de orações
clandestinas, e para se agir de acordo com o que Paulo diz, ao escrever a Timóteo: Não
te apresses a impor a mão a ninguém...

Comentário ao profeta Jeremias 4

HOMILIA 11

15. Proclama-se publicamente, neste momento5, o nome dos oferentes, e aquilo que é 2740
resgate dos pecadores transforma-se em seu louvor; já não se lembram daquela viúva
do Evangelho que, ao pôr duas moedas no tesouro, ultrapassou todas as oferendas dos ricos.
O diácono proclama publicamente, nas igrejas, os nomes dos oferentes..., e eles
aceitam, com prazer, os aplausos do povo, ao mesmo tempo que as suas consciências os
torturam.

Comentário ao profeta Ezequiel 6


Prefácio. De repente anunciaram-me a morte de Pamáquio, de Marcela, a toma- 2741
da de Roma, a morte dum grande número dos nossos irmãos e irmãs. Fiquei consterna-
do, impressionado, estupefacto. Dia e noite não pensava em mais nada... Sentia pressa
de saber algo mais sobre os acontecimentos... Ao dar-me conta de que se extinguira a
gloriosa luz do mundo, de que fora tomada a capital do nosso Império, de que tinham
perecido, nesta única cidade, o universo inteiro e a própria civilização, então calei-me,
humilhei-me, incapaz de pronunciar uma só palavra: e a minha dor tornou-se mais viva...
Na verdade, nada é tão longo que não tenha um termo... Mas Roma! Quem pode-
ria pensar que, edificada pelas vitórias conseguidas sobre o mundo inteiro, ela viria a
desabar e a tornar-se o túmulo dos povos de que fora a mãe!... À santa Belém chegam,
cada dia, como mendigos, homens e mulheres outrora nobres e ricos. Não há uma hora
sequer, nem mesmo um instante em que eu não tenha de acolher grupos imensos de
irmãos. O mosteiro, habitualmente tão deserto, tornou-se um hotel, a rebentar pelas

4
J ERÓNIMO , Commentariorum in Hieremiam prophetam (=PL 24, 679-900; CCL 74; CSEL 59).
5
Ao pôr as oferendas no altar.
6
J ERÓNIMO , Commentariorum in Ezequielem prophetam (=PL 25, 15-490; CCL 75).
658 SÉCULO V

costuras... Não podemos socorrê-los a todos, mas ao menos choramos com eles, mis-
turando as nossas lágrimas...

LIVRO XII

2742 41. 7 O Salvador dos homens celebrou a Páscoa no cenáculo... quando deu aos seus
discípulos o mistério do seu Corpo e do seu Sangue, deixando-nos assim a nós a festa
eterna do Cordeiro imaculado.

Comentário ao Evangelho de Mateus 7

LIVRO IV

2743 25. 6 Uma tradição judaica diz que Cristo virá à meia-noite, à semelhança do que
aconteceu no tempo do Egipto, quando se celebrou a Páscoa e veio o Anjo exterminador.
O Senhor passou sobre as casas cujas portas tinham os lintéis consagrados com o san-
gue do cordeiro. Daqui, creio eu, vem aquela tradição apostólica, conservada até hoje,
segundo a qual não é lícito, na Vigília pascal, despedir a multidão antes da meia-noite, quan-
do se espera ainda a vinda de Cristo, ao passo que, depois daquele momento, todos
celebram o dia da festa com uma renovada segurança.
2744 26. 2 Páscoa, que em hebraico de diz phase, não deriva de paixão, como muitas
vezes se julga, mas de passagem, no sentido em que o Anjo exterminador, ao ver o
sangue sobre as portas dos Israelitas, passou além e não os atingiu; ou então no sentido
em que o próprio Senhor passou sobre o seu povo, ao vir em seu socorro. Lê-se isso no
livro do Êxodo, que comentaremos mais longamente, se a vida no-lo permitir8. A nossa
passagem, isto é, a nossa phase, celebra-se quando, deixando de lado as coisas da terra
do Egipto, caminhamos apressadamente em direcção às coisas celestes.

Comentário à Carta aos Gálatas 9

LIVRO I
2745 1. 2 O Amen ressoa como um trovão vindo do céu10.

LIVRO II

2746 4. Nós não nos reunimos nesse dia por se tratar de um dia especial, mas porque, o
vermo-nos uns aos outros, é fonte duma alegria muito grande, seja qual for o dia em que
nos reunamos11.
7
JERÓNIMO, Commentarii in Evangelium Mathaei (=PL 26, 15-228; CCL 77; SCh 242 e 259). Escrito em 398.
8
Jerónimo nunca escreveu este comentário.
9
JERÓNIMO , Commentariorum in epistulam ad Galatas (=PL 26, 331-468).
10
Ad similitudinem caelestis tonitrui Amen reboat.
11
Non quo celebrior sit dies illa qua convenimus, sed quo, quacumque die conveniendum sit, ex conspectu
mutuo laetitia maior oriatur.
JERÓNIMO 659

Homilias 12

NO DOMINGO DE PÁSCOA 13

52. Este é o dia que o Senhor fez: exultemos de alegria e cantemos. Como Maria, 2747
a virgem Mãe do Senhor, é a primeira entre todas as mulheres, assim o dia de hoje é a
mãe de todos os dias. O que acabo de dizer pode parecer uma novidade, mas funda-se
na Escritura. Este dia é um dos sete e está para além dos sete. É o chamado oitavo dia.
É por isso que, nalguns títulos dos Salmos está escrito: para a oitava, dia em que cessa
a Sinagoga e nasce a Igreja...
O domingo é o dia da Ressurreição, é o dia dos cristãos, é o nosso dia. Chama-se
domingo porque nesse dia o Senhor subiu vitorioso para o Pai. Se os pagãos lhe chamam
dia do Sol, também nós estamos perfeitamente dispostos a reconhecê-lo como tal; de
facto, hoje nasceu a luz do mundo, hoje nasceu o Sol da justiça em cujos raios está a
salvação...
AOS NEÓFITOS 14

Como suspira o veado pelas correntes das águas, assim minha alma suspira 2748
por Vós, Senhor. Assim como aqueles veados suspiram pelas correntes das águas,
também os nossos veados, ao fugirem do Egipto e do mundo, aniquilaram nas águas do
baptismo o Faraó com todo o seu exército. E, depois de destruírem o poder do Demónio,
buscam as fontes da Igreja, que são o Pai e o Filho e o Espírito Santo...
Busca estas fontes a alma do crente, por elas suspira a alma do baptizado, dizen-
do: A minha alma tem sede de Deus, fonte da vida. Não se trata de um simples desejo
de ver a Deus, mas de um desejo ardente, de uma sede abrasadora. Antes de recebe-
rem o baptismo, falavam uns com os outros e diziam: Quando irei contemplar a face e
Deus? Agora conseguiram o que desejavam: vieram à presença de Deus, aproxima-
ram-se do altar e do mistério do Salvador.
Admitidos a formar parte do Corpo de Cristo e regenerados na fonte da vida,
podem dizer, cheios de confiança: Irei ao tabernáculo admirável, à casa de Deus. A
casa de Deus é a Igreja, seu tabernáculo admirável, porque nele ressoam as vozes de
louvor e de alegria, da multidão em festa. Vós que acabais de revestir-vos de Cristo,
e que, seguindo a nossa orientação, pela palavra de Deus fostes tirados do mar deste
mundo como peixes com o anzol, dizei: «Em nós mudou-se a ordem natural das coisas.
Porque os peixes tirados do mar, morrem; a nós, porém, os Apóstolos tiraram-nos do
mar deste mundo e pescaram-nos para que passássemos da morte à vida. Enquanto
vivíamos no mundo, os nossos olhos olhavam para o fundo do abismo, e a nossa vida
arrastava-se no pântano; mas, depois que fomos tirados das ondas, começámos a ver o
sol, começámos a contemplar a verdadeira luz e, inebriados de alegria, dissemos à nos-
sa alma: Espera em Deus: ainda O hei-de louvar, meu Salvador e meu Deus».

12
J ERÓNIMO , Homiliae (=PL 29; 30; 39; 40; 57; 67; PLS 2; CCL 78).
13
Homilia do Domingo de Páscoa (= PL 30, 211; 39, 2058). Do ano 392.
14
Homilia aos neófitos sobre o salmo 41 (=CCL 78; cf. LH, III).
660 SÉCULO V

Diálogo do Luciferiano e do Ortodoxo 15


2749 3. Ortodoxo: Não sabes que os leigos e os clérigos têm um mesmo Cristo e que não
há um Deus para os neófitos e outro para os bispos? Por que não há-de aquele que
recebe os leigos penitentes, receber também os clérigos?
Luciferiano: Não é a mesma coisa derramar lágrimas pelos pecados e tocar o
Corpo do Senhor. Não é a mesma coisa lançar-se aos pés dos irmãos e ministrar a
Eucaristia ao povo de um lugar elevado. Uma coisa é chorar o que foste e outra, sem te
preocupares dos pecados, viver dignamente na Igreja... Se te dói por teres pecado,
deixa o ofício sacerdotal, e, se estás contente por teres pecado, permanece o que foste.
2750 5. Luciferiano: Vós recebeis hoje a Eucaristia da mão daquele a quem ontem cus-
píeis, como se fosse um ídolo16.
Ortodoxo: O bispo oferece a sua oblação pelo leigo (penitente), impõe as mãos
àquele que está numa atitude de humildade, invoca sobre ele a vinda do Espírito Santo e,
deste modo, depois de ter feito orar todo o povo, reconcilia com o altar aquele que tinha
sido entregue a Satanás para a morte da carne, a fim de se salvar o espírito. Não
entrega um membro à salvação antes de todos os membros terem chorado juntamente
por ele. O pai perdoa facilmente ao filho, quando a mãe lho pede cheia de compaixão.
2751 8. Sem ordem do bispo, nem o presbítero nem o diácono têm o direito de baptizar.
2752 21. Ortodoxo: Quando o diácono Hilário17 abandonou a Igreja..., não pôde fazer a
Eucaristia, por não ter bispos nem presbíteros, nem tão pouco dar o baptismo sem a
Eucaristia...

Contra Joviniano 18

LIVRO II

2753 25. Uma só é a santificação nos mistérios: a do senhor e do servo, a do nobre e do


plebeu, a do rei e do soldado, embora o que é uma só coisa se torne diversa segundo os
méritos dos que a recebem, pois todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do
Senhor indignamente será réu do Corpo e do Sangue do Senhor 19. Acaso Judas,
por ter bebido do mesmo cálice, terá os mesmos méritos dos outros Apóstolos...?

15
JERÓNIMO , Altercatio Luciferiani et ortodoxi (=PL 23, 163-192; CCL 79 B). Esta obra é do ano 382 ou um
pouco anterior.
16
Alusão ao facto de os católicos manterem, na sua dignidade, o bispo herege que voltava à fé católica.
17
Diácono de Roma, Luciferiano, que nem sequer admitia a validade do baptismo administrado pelos Arianos.
18
JERÓNIMO , Adversus Jovinianum (=PL 23, 221-352).
19
1 Cor 11, 27.
JERÓNIMO 661

Cartas 20

CARTA 22 21

7. Quantas vezes, enquanto vivi no deserto, nessa imensa solidão... não me julguei 2754
ainda no meio das delícias de Roma! Este que vos escreve, quer dizer, eu mesmo...,
quantas vezs me sentia transportado ao meio de coros de raparigas! O meu rosto, em-
palidecido pelos jejuns, não impedia que a minha imaginação ardesse em desejos num
corpo quase inanimado. Só o incêndio dos prazeres refervia numa carne já morta...
Privado de qualquer socorro espiritual, lançava-me aos pés de Jesus, regava-os com as
minhas lágrimas... e esforçava-me por dominar, com longas semanas de jejum, as rebeldias
da minha carne. Lembro-me que passava os meus dias e as minhas noites a gritar, e batendo
no peito, até que o Senhor Se dignasse restituir-me a paz...
28. Há homens do meu próprio estado que ambicionam o presbiterado ou o diaconado 2755
apenas para terem mais liberdade de ver mulheres. Todas as suas preocupações consis-
tem em vestir com elegância, andar bem perfumados e verificar que o calçado se ajusta
perfeitamente aos pés. Usam cabelo frisado ao ferro e os dedos carregados de anéis.
Com medo da humidade, andam nas pontas dos pés. Quem os vê passar, facilmente
confunde esses clérigos com noivos...
CARTA 29 22

3. Os Judeus, no dia de sábado, não faziam qualquer obra servil. Nós procedemos 2756
do mesmo modo no domingo, que é o dia da Ressurreição, uma vez que, nesse dia, nos
não tornamos escravos de nenhum vício ou pecado... Os Judeus não saíam de suas
casas; nós não deixamos a casa de Cristo, porque participamos nos ofícios da Igreja.
Eles não acendiam o fogo; nós acendemos o fogo do Espírito.
CARTA 46 23

11. Aqui, à excepção dos salmos, tudo é silêncio. Seja qual for o lado para onde te 2757
voltes, vês o agricultor a segurar a rabiça do arado, e a cantar aleluia; alagado em suor,
o ceifeiro descansa, salmodiando; o vinhateiro que poda a vinha do seu patrão canta
algum poema de David. Neste país, são essas as cantilenas, são esses, como se diz, os
cânticos de amor, é esse o assobio dos pastores.
CARTA 49 24

15. Sei que em Roma os fiéis têm o costume de receber sempre o Corpo de Cristo, 2758
coisa que nem condeno nem aprovo...; mas volto à consciência daqueles que comun-
gam no mesmo dia em que tiveram relações matrimoniais... Por que não se atrevem a ir
aos mártires? Por que não entram nas igrejas? Será Cristo um em público e outro em
casa? O que não é lícito na igreja também o não é em casa. Para Deus nada é oculto, e
as trevas são claras como a luz. Examine-se cada qual a si mesmo, e aproxime-se do Corpo
de Cristo; não é a dilação da comunhão por um ou dois dias que torna o cristão menos santo...

20
J ERÓNIMO , Epistulae (=PL 22, 325-1224; PLS 2; CSEL 54; 55; 56).
21
Carta a Eustáquia.
22
Esta carta não é de Jerónimo, mas do Pseudo-Jerónimo (=PL 30, 225).
23
A Marcela.
24
Carta a Pamáquio.
662 SÉCULO V

CARTA 52 25

2759 5. Quando escolheres leitores, acólitos ou salmistas para irem contigo, deves olhar
não à maneira como usam as suas vestes, mas aos seus bons costumes26.
2760 7. É um péssimo costume que nalgumas igrejas os presbíteros estejam calados na
presença dos bispos, como se não fossem dignos de ser ouvidos ou estes tivessem
inveja deles27. 10. Edificam-se igrejas com sólidos muros e artísticas colunas, com
mármores reluzentes, apainelados de ouro resplendente e altares cobertos de pedra-
rias, e ninguém se preocupa de seleccionar rigorosamente os ministros de Cristo...
CARTA 58 28

2761 7. O verdadeiro templo de Cristo é a alma do crente... Que utilidade têm as paredes
que refulgem de pérolas, se Cristo morre de fome no pobre?
CARTA 64 29

2762 11. A segunda túnica de linho é podh/rhj, isto é talar... Ela adere ao corpo e é tão
apertada e chegada às mãos, que não há nela ruga nenhuma; e desce até aos pés. Quero,
para facilidade do leitor, usar a linguagem vulgar. Os militares costumam ter túnicas de
linho, às quais chamam camisas, tão adaptadas aos membros e chegadas ao corpo que
são boas para correr ou batalhar, para atirar o dardo ou segurar o escudo..., servindo
bem em qualquer necessidade. É por isso que os sacerdotes, preparados para o minis-
tério de Deus, usam esta túnica, aliando assim a beleza das vestes à agilidade discursiva
dos sábios.
2763 12. Calculemos o número e veremos que foi no quinquagésimo dia depois da saída do
Egipto que a Lei foi dada no cimo do monte Sinai. Foi por isso que se celebrou a soleni-
dade do Pentecostes e que, mais tarde, o mistério do Evangelho se completou pela
descida do Espírito Santo. Tal como entre o povo antigo, foi no quinquagésimo dia, no
verdadeiro jubileu, no verdadeiro ano da remissão... que a Lei foi promulgada; do mes-
mo modo (foi nesse dia) que o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos e seus compa-
nheiros, reunidos em número de 120 (que são os anos de Moisés) e, tendo-se as línguas
dividido entre os crentes, o mundo inteiro ficou repleto da pregação apostólica.
CARTA 71 30

2764 6. Perguntas-me se devemos jejuar no sábado e receber a Eucaristia todos os dias, como
costumam fazer a Igreja romana e as Espanhas. O sábio Hipólito tratou desta questão, assim
como outros autores, inspirando-se em vários escritores. Penso que devo dizer-te, muito resu-
midamente, que as tradições eclesiásticas, sobretudo as que não se opõem à fé, devem guar-
dar-se tal como no-las transmitiram os nossos antepassados, sem pensar que as tradições de
uns são destruídas pelas dos outros. Seria bom que pudéssemos jejuar em todo o tempo, como
lemos, nos Actos dos Apóstolos, que fizeram o apóstolo Paulo e os fiéis juntamente com ele31,
nos dias de Pentecostes e no dia do Senhor..., e também receber sempre a Eucaristia... e ouvir
o salmista dizer: Provai e vede como o Senhor é bom... Não digo isto por pensar que deve

25
Carta a Nepociano.
26
Si lector, si acolytus, si psaltes te sequitur, non ornentur veste sed moribus.
27
Pessimae consuetudinis est in quibusdam ecclesiis tacere presbyteros, et praesentibus episcopis non
loqui, quasi aut invideant aut non dignentur audire.
28
Carta a Paulino de Nola.
29
Carta a Fabíola, sobre as vestes do sumo sacerdote.
30
Carta a Lucino.
31
Cf. Act 13, 2.
JERÓNIMO 663

jejuar-se nos dias de festa, exceptuando os cinquenta dias contínuos (do Pentecostes), mas
para que cada província cresça em sensibilidade e considere como leis apostólicas os precei-
tos dos seus antepassados.
CARTA 77 32

10. Entre nós o que não é permitido às mulheres, também não é permitido aos ho- 2765
mens; idêntica é a servidão, igual é também o estatuto...
11. Em Roma, nos funerais de Fabíola, intercalava-se aleluia no canto dos salmos, 2766
que ressoava admiravelmente nos tectos dourados das igrejas 33.
CARTA 81 34

2. Se não podemos oferecer os nossos dons quando não estamos em paz, quanto 2767
mais receber o Corpo de Cristo! Com que consciência responderei Amen à Eucaristia,
se duvido da caridade daquele que ma dá?
3. Peço-te que me escutes com paciência, e não creias que a verdade é adulação. 2768
Acaso será alguém obrigado a comungar contigo? Haverá alguém que volte a cara
depois de estender a mão (para receber a comunhão), ou que dê o beijo de Judas no
momento da refeição sagrada?...
CARTA 107 35

6. Os pais duma criança, que até ao uso da razão pensa como criança, são responsáveis 2769
pelo bem e pelo mal que ela faz até atingir o uso da razão. Certamente não irás pensar
que os filhos dos cristãos, que não receberam o baptismo, são pessoalmente e sozinhos
culpados do pecado. A falta deve atribuir-se àqueles que não quiseram baptizá-los, so-
bretudo se isso aconteceu durante o período da vida em que essas crianças, que deviam
receber o baptismo, não tinham possibilidade de se lhe opor...
9. Ela não deve ir às basílicas dos mártires e às igrejas sem a mãe. A nossa virgem 2770
deve celebrar as vigílias nocturnas, mas sem se afastar da mãe, nem sequer a distância
de uma unha. A jovem deve cantar os hinos da manhã, e de Tércia, Sexta e Noa, como
um soldado de Cristo nas filas de combate, e também deve participar no sacrifício de
Vésperas, ao acender das lâmpadas. A leitura sucederá à oração e vice-versa.
CARTA 108 36

20. 3 As virgens só se reuniam37 na igreja, ao lado da qual habitavam, no dia do 2771


Senhor, e cada grupo seguia a própria mãe 38; e de lá voltavam juntas, recomeçavam o
trabalho que tinham deixado de lado e preparavam vestes para si e para os outros... 39
29. As leituras são lidas em várias línguas, e os cânticos vão-se alternando ora numa 2772
língua, ora noutra...

32
Carta a Oceano, sobre a morte de Fabíola (=PL 22, 693 s). É do ano 399.
33
Sonabant psalmi, et aurata templorum tecta roborans in sublime quatiebat Alleluia.
34
Carta a Rufino, sobre o seu prefácio.
35
A carta 107 é do ano 400. É dirigida a Leta, sobre a educação da jovem Paula.
36
A carta 108 é do ano 404. Foi escrita a Eustóquia sobre a morte de Paula.
37
Collecta.
38
Jerónimo descreve a vida do convento de virgens em Belém, fundado e dirigido por santa Paula, subdividido
em três partes.
39
Nos conventos o trabalho dominical não era proibido com rigor.
664 SÉCULO V

CARTA 114 40

2773 2. Admirei a utilidade que a tua obra pode ter para todas as Igrejas. Ajudados pelos
testemunhos das Escrituras, aqueles que o ignoram podem aprender com que veneração
devem servir-se das coisas santas e exercer o ministério do altar de Cristo, e não pen-
sar que os cálices sagrados, os véus santos e as outras coisas que se utilizam no culto da
Paixão do Senhor carecem de santidade, como se fossem coisas vazias e sem sentido,
mas que, pela sua íntima relação com o Corpo e o Sangue do Senhor, devem ser vene-
radas com o mesmo respeito que se tributa ao seu Corpo e Sangue.
CARTA 128 41

2774 Horror! O universo desaba, mas em nós não desabam os pecados. Foi destruída
uma cidade ilustre, capital do Império romano; os seus filhos partiram para o exílio, as
suas igrejas consagradas foram reduzidas a cinzas e a pó...
CARTA 130 42

2775 15. Além da ordem dos salmos e da oração devemos observar sempre a ordem das
horas de Tércia, Sexta, Noa, Vésperas, Meia-noite e Matinas.
CARTA 146 43

2776 1. Ouvi dizer que alguém chegou à grande insensatez de antepor os diáconos aos
presbíteros, ou, o que é o mesmo, aos bispos. Dado que o Apóstolo ensina claramente
que os bispos e os presbíteros são a mesma coisa, que se passa para que o ministro das
mesas e das viúvas se erga, insolente, acima daqueles por cujas preces são consagra-
dos o Corpo e o Sangue de Cristo?... A escassez torna os diáconos honrados, ao passo
que o seu número elevado os torna desprezíveis. Aliás, na igreja, mesmo em Roma, os
presbíteros estão sentados e os diáconos de pé, embora, devido à multiplicação dos
abusos, eu tenha visto, na ausência do bispo, um diácono sentado entre os presbíteros; e
também vi, nas refeições domésticas, alguns presbíteros a dar a bênção. Os que assim
procedem aprendam que o não fazem correctamente.
Em Alexandria, desde o evangelista Marcos até aos bispos Héraclas e Dionísio,
os presbíteros instituíam sempre como bispo um dos seus, depois de o terem eleito e
entronizado, como o fazem os soldados ao designarem o seu imperador, ou os diáconos ao
elegerem como arquidiácono um dos seus, conhecido pelo seu zelo44.

Contra Vigilâncio 45
2777 3. Em todas as Igrejas do Oriente acendem-se luzes ao Evangelho, em sinal de ale-
gria. O Evangelho é cantado no meio de luzes, não para afugentar as trevas, mas como
sinal de alegria.

40
Carta ao bispo Teófilo. Quaresma de 406.
41
Sobre a tomada de Roma.
42
Carta a Demitríades. No n. 14 desta carta, Jerónimo trata também do tema da Carta 58, n. 2761.
43
Carta ao presbítero Evangelo, sobre a Ordem sacerdotal. É do ano 398.
44
Este texto de Jerónimo parece não merecer crédito. Jerónimo teria acreditado numa calúnia ariana contra
Atanásio.
45
JERÓNIMO , Contra Vigilantium (=PL 23, 353-368).
JERÓNIMO 665

4. Os fiéis prestam deste modo uma grande honra aos santíssimos mártires, que 2778
julgam honrar com círios muito vis.
6. Dizes no teu livro que, enquanto vivemos, podemos rezar uns pelos outros: sobre- 2779
tudo porque os mártires, pedindo a vingança do seu sangue, não a puderam obter. Se os
Apóstolos e os mártires, quando viviam ainda no seu corpo e tinham de ser solícitos por
si mesmos, podiam rezar pelos demais, quanto mais após as coroas, vitórias e triunfos?
13. Para significar que os santos ilustres morreram iluminados pela luz da fé, é que 2780
agora resplandecem na luz da glória, pátria celeste...
Os Eunomianos adulteraram a fórmula do baptismo desta maneira: «Eu te baptizo em
nome do Pai incriado, em nome do Filho criado, em nome do Espírito santificador, criado
pelo Filho que foi criado»...
Na igreja de Roma os presbíteros sentam-se e os diáconos estão de pé, embora
eu tenha visto, na ausência do bispo, os diáconos sentados entre os presbíteros.

Livro contra João de Jerusalém 46


41. Por se tratar de uma exposição confusa, não se pense que o defeito é da tradu- 2781
ção. Está escrita em grego. Entretanto, tenho motivos para me alegrar, pois apesar de
alguns me verem já degolado, de repente vejo que me é restituída a cabeça de presbíte-
ro. Ele (=João de Jerusalém) diz: «Nem conseguiu convencer-nos, nem quer voltar à
luta». Se a causa da discórdia não é a discrepância na fé, mas os Paulinianos, como tu
dizes, desce à ordenação. Grande estupidez é ter oportunidade e não querer responder.
Confessa a fé, mas responde ao que perguntas, para que todos percebam que a discus-
são é acerca da ordenação e não da fé. Com efeito, quando te interrogam sobre a fé e
tu te calas, o adversário pode dizer-te: «Não é a ordenação que está em causa, mas a
fé». Se o problema é a ordenação, fazes mal em ficar em silêncio quando és interrogado
sobre a fé, se o problema é a fé, é estuto pretenderes tratar da ordenação. Além disso,
não chego a entender muito bem o que queres dizer quando afirmas que eu te pedi para
se submeterem à Igreja de Deus e não rasgarem a sua túnica nem pretenderem a supre-
macia para si próprios. Se falas de mim e do presbítero Vicente, estiveste muito tempo
a dormir. Só acordaste ao fim de treze anos para dizeres isso? Foi do mesmo modo que
nós servimos, eu em Antioquia e ele em Constantinopla, cidades bem conhecidas, não
para te louvarmos quando pregamos ao povo, mas para chorarmos nos descampados e
na solidão os pecados da adolescência, a fim de atrairmos sobre nós a misericórdia de
Cristo. Se, ao contrário, a tua conversa é acerca de Pauliniano, vê como ele está sujeito
ao seu bispo, como vive em Chipre e nos vem visitar de vez em quando, não enquanto
teu (presbítero), mas de outro, quer dizer, daquele por quem foi ordenado. Por isso se
também este quisesse estar aqui e viver no exílio solitário da nossa quietude, que te
deve ele além do respeito que todos devemos aos bispos? Se o tivesses ordenado terias
ouvido47 dele o que o bispo Paulino de Antioquia ouviu da minha própria boca: «Acaso
te pedi que me ordenasses? Se crês que podes conferir-me o presbiterado sem me
tirares a minha qualidade de monge, o problema é teu. Mas, se a pretexto de me confe-
rires o presbiterado me queres tirar aquilo por que eu deixei o mundo, respondo-te que
guardo o que sempre tive (a minha qualidade de monge); e tu não sofres nenhum preju-
ízo pelo facto da minha ordenação».

46
J ERÓNIMO , Contra Ioannem Hierosolymitanum (=PL 23, 371-412; CCL 79 A).
47
Jerónimo dirige-se a João de Jerusalém, e lembra-lhe o que ele próprio disse ao bispo que o ordenou.
666 SÉCULO V

Máximo de Turim

Homilias 1

HOMILIA 27 2

2782 11. Nós, irmãos, que começámos a entrar pelas portas da Jerusalém celeste, ilumina-
dos pelos sacramentos da salvação, devemos exultar de alegria com novo júbilo...
HOMILIA 44 3

2783 2. Nós não jejuamos durante o Pentecostes, porque nesses dias o Senhor permanece
connosco. Digo que nós não jejuamos quando o Senhor está presente, porque foi Ele
mesmo que disse: Poderão os amigos do esposo jejuar enquanto o esposo está com
eles? Com efeito, porque se absteria o corpo de alimentos quando a alma está cheia de
gozo pela presença do Senhor? Aquele que está alimentado com a graça do Salvador
não pode estar em jejum, porque a companhia de Cristo é, de certo modo, o alimento do
cristão. Durante o Pentecostes nós refazemo-nos, porque o Senhor vive connosco.
Quando, passados esses dias, Ele sobe ao Céu, voltamos a jejuar como o disse o próprio
Salvador... Na verdade, quando Cristo sobe ao Céu e Se esconde aos nossos olhos, não
sofremos por causa da fome corporal, mas pela fome de amor.
HOMILIA 45 4

2784 É preferível chamar a Maria, o maná. Porque ela é delicada, esplêndida, suave e
Virgem. Como se viesse do Céu, deu a todos os povos da Igreja um alimento mais doce
que o mel. Deu-lhes este alimento que cada um deve comer, se quiser ter a vida em si,
segundo as palavras do próprio Senhor...
HOMILIA 61 5

2785 Celebramos estes cinquenta dias uns a seguir aos outros, à semelhança do que
fazemos no domingo, e guardamo-los a todos como ao domingo.
HOMILIA 62 6

2786 Creio que vós sabeis, irmãos, a razão pela qual não celebramos com menor ale-
gria este venerável dia de Pentecostes, do que celebrámos a santa Páscoa... Então,
como há pouco fizemos, jejuámos no sábado, celebrámos a vigília, dissemos orações
durante a noite; ora é necessário que a uma observância semelhante se siga uma igual
alegria.

1
M ÁXIMO DE T URIM , Sermones (=PL 57, 221-760; CCL 23). Máximo de Turim morreu entre 408 e 423.
2
Homilia 11 na Epifania (=PL 57, 283-286).
3
Homilia na solenidade do Pentecostes (=CCL 23, 178-179).
4
Homilia no Domingo de Ramos (=PL 57, 330).
5
Homilia na solenidade do Pentecostes (=PL 57, 371).
6
Homilia na solenidade do Pentecostes (=PL 57, 375). Nosse vos credo fratres, quae sit ratio quod
venerabilem hanc Pentecostem diem non minore laetitia celebremus, quam sanctum Pascha curavimus...
Tunc enim, sicut modo fecimus, jejunavimus sabbata, vigílias celebravimus, orationibus pernoctantes
institimus; unde necesse est similis observantia similem laetitiam subsequatur. Dotar o Pentecostes não
MÁXIMO DE TURIM 667

HOMILIA 78 7

Sob o altar vi as almas daqueles que foram mortos. Que se pode dizer de mais 2787
respeitoso, de mais ilustre do que afirmar que elas repousam debaixo do altar, sobre o
qual é celebrado o sacrifício em honra de Deus e oferecidas as vítimas, onde, como está
escrito, Deus é sacerdote: Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melqui-
sedec! É com toda a razão que os mártires são colocados sob o altar, porque sobre o
altar se oferece o Corpo do Senhor. Com razão se pede, junto do altar, que o sangue dos
justos não seja derramado em vão, junto do altar, onde o sangue de Cristo é derramado
também pelos pecadores. Está muito bem que, em virtude duma sorte comum, se reser-
ve para os mártires um túmulo onde a morte de Cristo é celebrada todos os dias, como
está escrito: Todas as vezes que o fizerdes, anunciareis a minha morte até que Eu
venha, isto é, aqueles que morreram por causa da morte (de Cristo), encontram o re-
pouso graças ao mistério sacramental. Com razão, digo eu, em virtude duma identidade
de destino, o túmulo do mártir foi construído onde são depostos os membros do Senhor
imolado, a fim de que, aqueles a quem tinha unido a mesma causa de sofrimentos,
fossem reunidos no mesmo lugar sagrado.
HOMILIA 83 8

Creio em Deus, Pai todo-poderoso. Devemos acreditar, sem qualquer dúvida, em 2788
Deus, Pai todo-poderoso... Quem no-lo ensina é a autoridade do nosso Redentor... É
mais importante, irmãos, o que vemos com os olhos da fé, do que aquilo que vemos com
os olhos do corpo... E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor... Ser Cristo... tem
a ver com a redenção humana; ser Senhor é propriedade da sua natureza... Nasceu do
Espírito Santo e da Virgem Maria... O Filho unigénito de Deus fez-Se filho do homem,
para que o Criador do mundo Se fizesse também o Redentor... Sob Pôncio Pilatos foi
crucificado e sepultado... Não nos meta confusão a cruz de Cristo, porque temos a
vitória da sua paixão... Foi sepultado para acreditarmos que ressuscitara verdadeira-
mente dos mortos, Aquele que verdadeiramente fora visto morrer... Ao terceiro dia
ressuscitou dos mortos... Subiu aos Céus... Convinha, irmãos, que tivesse essa glória o
homem que nascera da Virgem... Está sentado à direita do Pai... Estar sentado é pré-
mio da vitória; estar sentado à direita do Pai é privilégio da divindade e inseparável
comunhão da caridade... De onde há-de vir a julgar os vivos e os mortos... Creio no
Espírito Santo... É esta, caríssimos, a indefectível regra da verdade... Segundo a verda-
de do Evangelho, tal como o Filho saiu do Pai, assim o Espírito Santo procede do Pai; tal
como o Unigénito é Filho de Deus, assim também o Espírito Santo é Deus... Na santa
Igreja... Devemos confessar que é verdadeiramente santa a Igreja, pela qual a santifi-
cação é dada aos mortais... É santa a Igreja que no sacramento do baptismo apaga o
contágio dos pecados e faz dos habitantes da terra cidadãos do Céu... Na remissão dos
pecados... Vede, irmãos, a profundidade do mistério, vede a sublimidade do sacramento,
onde a morte dá a vida e as manchas dos pecados são lavadas pelo sangue inocente...
Na ressurreição da carne. Este é o ponto culminante da nossa religião, este é o auge da
nossa fé... É este, caríssimos, o Símbolo, cuja verdade faz de cada crente um cristão;
este é o Símbolo que santifica os que ainda vivem e conduz à vida os que morreram.

só com uma vigília litúrgica, mas também com um jejum preparatório no sábado, está em contradição com
a concepção festiva do Pentecostes primitivo. A noção da Cinquentena pascal sofreria ainda mais dois
golpes decisivos com a instituição dos três dias de jejum das Rogações fixadas por S. Mamerte de Viena
(+ 475), na segunda, terça e quarta-feira antes da Ascensão, e a criação duma oitava da Cinquentena nos
finais do século VI, o que denuncia um desconhecimento ainda mais profundo sobre a natureza do
Pentecostes.
7
Cf. LMD 52, 32-33.
8
Tradição do Símbolo (=PL 57, 433-440).
668 SÉCULO V

Teodoro de Mopsuéstia

Comentário ao Evangelho de Mateus 1


2789 26. 26 Enquanto comiam, Jesus tomou o pão e, depois de pronunciar a bênção,
partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: «Tomai, comei: Isto é o meu Cor-
po». O Senhor não disse: Isto é o símbolo do meu Corpo e isto o símbolo do meu
Sangue, mas: Isto é o meu Corpo e o meu Sangue, ensinando-nos a não considerar a
natureza visível que os sentidos atingem, mas (a crer) que ela, pela acção da graça, se
mudou em carne e Sangue.

Comentário ao Evangelho de João 2

LIVRO III
2790 6. 29 A obra de Deus é esta: crer n’Aquele que Ele enviou. Sabendo que o dis-
curso acerca do seu próprio mistério ultrapassava a capacidade dos ouvintes, não Se
apressou a falar-lhes dele, mas serviu-Se de uma via adequada a este discurso, dizendo:
«A obra de Deus é esta, que acrediteis em Mim; este é o caminho pelo qual podereis
compreender o ensinamento das outras realidades. De facto, se acreditais em Mim, é
impossível duvidar das coisas que vos disse; e essas, só podereis chegar a admiti-las
sendo crentes, pois excedem em muito a vossa capacidade».

Comentário à Primeira Carta aos Coríntios 3


2791 11. 20 Quando vos reunis, não é a ceia do Senhor que comeis4. Chama-lhe ceia
do Senhor quer pelo tempo quer pelo lugar, pois tinham por costume, naquele dia, co-
mer no lugar da reunião, de acordo com as próprias normas...
34 Por isso, meus irmãos, quando vos reunirdes para comer, esperai uns
pelos outros. Se alguém tem fome, coma em casa, a fim de não vos reunirdes para
vossa condenação5. Alguns, que não aprofundam o sentido das coisas, crêem que
cumprem o conselho do Apóstolo participando muito raramente nos mistérios. Se ele
quisesse dizer que apenas devem comungar os que estão completamente purificados do
pecado, em primeiro lugar é impossível que qualquer homem se purifique completamen-
te do pecado, e, em segundo lugar não seria justo que comungássemos pensando que
temos direito a isso. Além disso, que faríamos nós da frase: Todas as vezes que comer-

1
T EODORO DE M OPSUÉSTIA , Commentarii in Matthaeum (=PG 66, 703-714). Teodoro de Mopsuéstia nasceu
por volta de 350 e morreu provavelmente em 428. Foi, portanto, contemporâneo de S. Agostinho.
2
T EODORO DE M OPSUÉSTIA , Commentarii in Iohannem (=PG 66, 728-785 ; ST 141).
3
TEODORO DE MOPSUÉSTIA, Commentarii in epistulam I ad Corinthios (=PG 66, 877-894).
4
1 Cor 11, 20.
5
1 Cor 11, 33-34.
TEODORO DE MOPSUÉSTIA 669

des deste pão6? Sim, porque esta palavra manifesta a frequência da comunhão, à qual
se junta a norma da reunião da comunidade, segundo a qual, em todo o tempo, se devem
realizar os mistérios.
É bom que se afaste dos mistérios aquele que se sente réu de muitos e grandes
pecados. O Apóstolo afirma claramente que quem comete tais pecados não obterá o
Reino. Quem estiver nessas condições, só deve participar nos mistérios quando não
tiver pecados e tiver aceite os preceitos.
Quanto ao mais, convém fazer o possível por estar longe daquelas coisas em que
os homens costumam cair, muitas delas devido às fraquezas de todos os dias, e a maior
parte por debilidade da natureza. Efectivamente, o desejo da virtude e a diligência quo-
tidiana da vida podem diminuir tais pecados, pelo que os que neles caem não se devem
privar dos mistérios, mas aproximar-se com maior temor, caindo na conta da grandeza
dos mesmos e recebendo-os com muita esperança. Na verdade, por meio destes misté-
rios podemos obter o perdão dos pecados, se deles nos afastarmos segundo as nossas for-
ças e não nos mostrarmos negligentes quanto aos outros bens. Inclusivamente, conseguire-
mos ajuda espiritual para ordenarmos melhor a nossa vida. Porque é justo que esses
mesmos bens que nos vieram pela morte de Cristo tenham cumprimento pelos símbolos
da sua morte.
Deste modo, sem titubear, eu diria que, se alguém que tivesse cometido os maio-
res pecados, mas a partir de certo momento se propusesse afastar-se de toda a má
acção e procurasse ser bom, vivendo segundo os preceitos de Cristo, poderia participar dos
mistérios. Se, ao proceder deste modo, estiver intimamente persuadido de que receberá
a remissão de todos os seus pecados, as suas esperanças não serão de modo nenhum
iludidas.

Homilias catequéticas 7
Com a ajuda de nosso Senhor Jesus Cristo, começamos a escrever a explicação 2792
do Símbolo da fé dos 318 (Padres do Concílio de Niceia), feita por Mar Teodoro, o
intérprete8.
HOMILIA 1

1. Que palavra bastaria ou que pensamento seria proporcionado à grandeza dos as- 2793
suntos que nos são propostos? Que língua chegaria para ensinar estes mistérios?.. 8. O
princípio da vossa profissão e do vosso compromisso, que neste mistério devereis guar-
dar cuidadosamente, é este: «Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador de
todas as coisas, visíveis e invisíveis»...
HOMILIA 2

5. No início do seu discurso (os nossos pais bem-aventurados) puseram o Pai, de 2794
quem procedem o Filho e o Espírito Santo... 10. O Pai é Pai do Filho, e é autor das

6
1 Cor 11, 26.
7
T EODORO DE MOPSUÉSTIA , Homiliae catecheticae (=R. T ONNEAU , Les Homélies catéchétiques de Théodore
de Mopsueste [ST 145], Città del Vaticano 1949). As dezasseis Homilias catequéticas foram pronunciadas
em Antioquia entre 388-392. São da maior importância para o conhecimento da liturgia siríaca.
8
Das dez primeiras homilias, todas sobre o Credo, faremos apenas breves citações. A partir da Homilia 11,
que explica o Pai-Nosso, e sobretudo da Homilia 12, a primeira sobre a celebração do baptismo, daremos
quase todo o texto.
670 SÉCULO V

criaturas..., 12. porque do nada as trouxe ao ser... 13. Mas não é por ter feito os homens
que nós O chamamos Pai...
HOMILIA 3

2795 1. Passemos agora a examinar também o que os nossos pais bem-aventurados disse-
ram, no mesmo Símbolo, acerca do Filho: «E num só Senhor Jesus Cristo, Filho unigénito
de Deus e primogénito de toda a criatura»...
HOMILIA 4

2796 1. Abordámos e explicámos ontem... o que os nossos pais bem-aventurados disse-


ram sobre a divindade do Filho unigénito, reservando o resto para hoje... 2. Os nossos
pais acrescentaram isto: «Nascido do Pai, antes de todos os séculos»...
HOMILIA 5

2797 2. Foi isto o que os nossos pais nos ensinaram acerca da divindade do Filho unigénito...
E depois... começaram também a falar-nos da encarnação de nosso Senhor..., dizendo:
«E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu do Céu, encarnou e Se fez homem»...
HOMILIA 6

2798 1. Depois de terem dito (o que explicámos ontem)... os nossos pais acrescentaram:
«Nasceu da Virgem Maria e foi crucificado sob Pôncio Pilatos»...
HOMILIA 7

2799 2. Depois de dizerem «que foi crucificado sob Pôncio Pilatos», acrescentaram: «Que
foi sepultado»... 3. «e que ao terceiro dia ressuscitou dos mortos, segundo as Escritu-
ras»... 6. «e subiu aos Céus»... 10. «onde está sentado à direita de Deus»... 11. «e
donde há-de vir para julgar os vivos e os mortos»...
HOMILIA 8

2800 1. Seguindo o sentido das Escrituras, (os nossos pais) transmitiram-nos uma dupla
palavra a respeito de Cristo, nosso Senhor: Ele não foi apenas Deus, nem também ape-
nas homem, mas verdadeiramente é «nos dois» que Ele é, por natureza, Deus e ho-
mem...
HOMILIA 9

2801 1. Continuemos agora a sequência do que já foi dito, com o artigo sobre o Espírito
Santo... no qual os nossos pais bem-aventurados disseram simplesmente, sem aprofun-
dar: «E no Espírito Santo»...
HOMILIA 10

2802 3. «E num só Espírito Santo»..., o Espírito da verdade...


HOMILIA 11 9

2803 1. Dado que, com a graça de Deus, acabámos ontem de vos dizer o que se refere ao
Credo..., será bom dizer-vos hoje o necessário sobre a Oração transmitida por nosso

9
Catequese mistagógica 1.
TEODORO DE MOPSUÉSTIA 671

Senhor. Os nossos pais juntaram-na às palavras do Credo, porque, a seguir a este, é ela
que deve ser aprendida, sabida e retida por aqueles que abraçam a fé do baptismo...
7. Pai nosso, que estais nos Céus... 10. Santificado seja o vosso nome... 2804
11. Venha o vosso reino... Devemos ter pensamentos dignos deste reino, fazer acções 2805
que convenham à vida do Céu, fazer pouco caso das coisas da terra, estimá-las tão
pouco que nos envergonhemos de nos preocupar delas.
12. Seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu... 14. Dai-nos hoje o 2806
pão de que temos necessidade... Perdoai-nos as nossas dívidas... 16. Assim como
nós perdoamos aos nossos devedores... 17. E não nos deixeis cair em tentação...
Mas livrai-nos do Maligno...
19. Nestas palavras da Oração, nosso Senhor ensinou claramente a perfeição moral, 2807
a nossa vocação, o nosso dever, os nossos obstáculos e as nossas verdadeiras necessi-
dades. Foi por isso que os nossos bem-aventurados pais transmitiram esta Oração aos
catecúmenos, para que eles unissem a ortodoxia doutrinal e a sinceridade da fé à recti-
dão da vida. A exposição da fé ensina-nos a verdadeira doutrina, e a Oração do Senhor
orienta a vida dos baptizados que, desde aqui debaixo, são filhos duma cidade com
costumes celestes.
HOMILIA 12 10

1. Texto do Livro (a comentar)11. Como chegou o tempo do sacramento e vós ides, 2808
com a graça de Deus, participar no santo baptismo, é preciso, e a ordem exige-o, que
vos fale da força do sacramento e das coisas que nele se realizam...
2. Qualquer sacramento é a indicação, em sinais e símbolos, de coisas invisíveis e 2809
inefáveis... Se se tratasse apenas de realidades materiais, seria supérfluo explicá-las,
pois os olhos bastariam para nos mostrar o que cada uma delas é. Mas, uma vez que no
sacramento nós temos os sinais daquilo que ainda terá lugar ou já o teve antecipadamente, é
preciso explicar o sentido dos sinais e dos mistérios...
6. Para nós é evidente, segundo a palavra do Apóstolo, que o baptismo e o serviço 2810
das mesas... são realizados em memória da morte e Ressurreição de Cristo, nosso Se-
nhor, para que, através deles, se reforce em nós a esperança...
10. É por isso que nos aproximamos do sacramento, no qual se realizam sinais que 2811
dissipam os males de que fomos libertados..., sinais que nos fazem participar nos bens
novos e grandiosos e que tiveram o seu início em Cristo, nosso Senhor. Nós também
esperamos gozar deles um dia, desses bens mais elevados do que a nossa natureza, e
que nunca julgámos que pudessem tornar-se nossos. Tendo isto sido exposto por nós,
chegou o momento de vos dizer a razão de cada uma das coisas que se fazem, para que
sejais mais elucidados sobre aquilo que foi dito.
11. «Aquele que, a partir de agora, deseja aproximar-se do dom do santo baptismo, 2812
apresenta-se à Igreja de Deus»... Uma vez que o governo da Igreja foi certamente
confiado aos que estão à frente da Igreja, foi a eles que (Cristo) disse, na palavra
dirigida a Pedro, que eles têm (em suas mãos) as chaves do Reino do Céu, e que tudo o
que ligarem na terra será ligado no Céu, e o que desligarem na terra será desligado no
Céu. Não é pelo facto de os homens serem senhores (das chaves), mas porque a Igreja
recebeu de Deus este poder, que os seus simpatizantes estão confiados à solicitude dos
que presidem e têm familiaridade com o Céu...

10
Catequese mistagógica 2.
11
Cada uma das cinco homilias que se seguem (12, 13, 14, 15, 16) é precedida do texto do ritual que ela
explica. Como as indicações desse ritual se encontram citadas ao longo da homilia, entre aspas, não as
reproduzimos neste momento, ao contrário do que acontece no texto original.
672 SÉCULO V

2813 14. Portanto, «aquele que deseja avançar para o baptismo, apresenta-se à Igreja de
Deus», e através dela espera chegar à vida da morada celeste. Mas, como tem acesso
a uma cidade nova e grandiosa e deseja tornar-se seu filho, precisa de pôr muito inte-
resse em fazer tudo para aí ser inscrito. «Ei-lo que chega à Igreja de Deus. Recebe-o
aquele que está encarregado disso, pois é costume que os que se aproximam do baptis-
mo sejam inscritos. Ele informa-se dos seus costumes»... Acompanha-o algum dos que
já pertencem à cidade em que vai ser inscrito..., e leva-o até àquele que faz as inscri-
ções, para dar testemunho de que ele pode pertencer a esta cidade e permanecer nela,
e, a fim de ser para ele um guia na sua situação de estrangeiro12, uma vez que não tem
a experiência desta cidade e do seu género de vida, nem sabe como se há-de comportar
dentro dela.
2814 15. «Este ofício é desempenhado, em favor dos que baptizamos, por aquele que se
chama “garante”». Não é, certamente, dos pecados futuros que ele é garante, pois cada
um de nós responderá por si mesmo a Deus; ele testemunha acerca daquele que se
apresenta, do que fez e como se preparou, no tempo anterior, para se tornar digno desta
cidade e da vida que aí se leva. É com toda a justiça que ele é chamado «garante», pois
é em virtude da sua própria palavra que o candidato aparecerá digno de receber o
baptismo...
2815 16. «Aquele que exerce este ofício, inscreve-vos no livro da Igreja e junta, no livro,
ao teu nome, quer o da testemunha quer o do “guia” desta cidade ou desta “disciplina”», isto
é, do teu «garante», de modo que fiques a saber, desde agora, que estás inscrito no Céu,
onde o teu «garante» vai ter a grande preocupação de te ensinar a ti, estrangeiro nesta
cidade e que acabas de aí chegar, tudo o que diz respeito a esta cidade e à vida deste
lugar, a fim de que, sem perturbação nem confusão, te habitues às ocupações desta
cidade grandiosa.
2816 17. Mas aprende também a razão das outras coisas. Não é simplesmente e de qual-
quer maneira que se faz para ti esta inscrição, mas haverá um grande julgamento a teu
respeito. Precisas, por isso, de te apresentar à administração divina, para seres liberta-
do do Forte que te oprimiu...
2817 18. Neste momento é preciso que a causa seja defendida em nosso favor contra o
Usurpador13 que nos faz guerra como inimigo, quer dizer, Satanás, sempre invejoso da
nossa vida e da nossa salvação. Ele esforça-se por falar contra nós, a pretexto de não
termos o direito de sair do seu domínio. Ele diz que nós lhe pertencemos por direito de
sucessão desde o chefe da nossa raça...
2818 19. Precisamos de ir depressa diante do juiz defender os nossos títulos e mostrar que,
por direito, não é a Satanás que nós pertencemos desde o princípio, mas a Deus que nos
fez à sua imagem...
2819 22. Como vós não sois capazes por vós próprios de manter um processo e um comba-
te com Satanás, «é absolutamente necessário utilizar os serviços daqueles que se cha-
mam exorcistas»: eles são para vós garantes do socorro divino. Através dum grande
clamor, que dura muito tempo, pedem que aquele que vos odeia seja punido e que, por
sua sentença, o juiz decida o seu afastamento...
2820 23. Mas vós também sabeis, certamente, que, quando um processo é apresentado
diante do juiz por um queixoso..., «é preciso que, enquanto se discute o processo, aquele
que apresentou queixa fique em silêncio e se mantenha de pé», a fim de que, pela sua
atitude e forma de estar, faça com que o juiz, tanto quanto possível, se encha de piedade
para com ele. É um outro que, fazendo ofício de advogado14, irá mostrar ao juiz o

12
ce/noj.
13
tu/ r annoj.
14
sune/ g oroj .
TEODORO DE MOPSUÉSTIA 673

direito daqueles que foram tratados com iniquidade, e invocará as leis do reino, a fim de
ganhar, recorrendo a elas, a solução da iniquidade. Da mesma maneira agora, nesses
exorcismos que se pronunciam enquanto tu estás imóvel, permaneces sem dizer uma
palavra...
24. «Tens as mãos estendidas, na atitude daquele que reza, e manténs os olhos bai- 2821
xos», comportando-te de maneira a atrair sobre ti a piedade do juiz. «Por essa razão,
tendo-te despojado da roupa exterior, ficas de pé e descalço», a fim de manifestares
essa escravidão em que, durante muito tempo, serviste o Diabo como cativo e realizas-
te, como ele o exigiu, todo o seu serviço...
25. «Estás de pé sobre tecidos de pêlo áspero». Não se reduza tudo isso a picadas 2822
nos teus pés e a um incómodo provocado pelos tapetes, mas tudo te recorde os teus
males antigos; mostra-te desolado e penitente pelos pecados dos teus pais..., para que,
de tudo isto, possas tu recolher a misericórdia do juiz e dizer, por tua vez: Tiraste-me o
luto e revestiste-me de alegria. Tal é a significação dos exorcismos.
Mas, para não acontecer que, enquanto te é proposto um assunto tão importante,
fiques desocupado e sem serviço, «nestes dias recebes a ordem de ocupar o espírito
com as palavras do Credo», a fim de o aprenderes. Ele foi posto sobre os teus lábios
para que, numa ocupação contínua do espírito, te apliques a fixar o seu significado.
Seria vergonhoso que os Judeus tragam a Lei em escritos suspensos das suas mãos,
para se recordarem continuamente dos mandamentos, e que nós não gravemos no nos-
so coração a lembrança duma confissão tão sublime, para que jamais se apague.
26. Quando chega o instante do sacramento e acaba o processo ou o combate contra 2823
o Diabo..., então aqueles que têm essa função apresentam-te ao pontífice, diante do
qual deves fazer as tuas profissões e declarar os teus compromissos para com Deus...
de persistires até ao fim na confissão do Pai e do Filho e do Espírito Santo...
27. Vós que vos apresentais na casa de Deus, que é a Igreja do Deus vivo..., 2824
apresentais-vos ao mordomo desta grande casa, isto é, da Igreja, porque o mordomo é o
pontífice que obteve a honra de estar à frente da Igreja. E, tendo recitado diante dele o
Credo, é com Deus que, por seu intermédio, nós fazemos o acordo e os pactos, é a Deus
que, nessas profissões de fé, nós prometemos ser submissos, servir e perseverar para
sempre e guardar o seu amor continuamente e sem mudança. É assim que, por intermé-
dio do pontífice, fazendo com Deus, nosso Senhor, compromissos e acordos na recita-
ção do Credo, nós obtemos, a partir de então, a graça de entrar na casa, de ver, de
conhecer, de habitar nesse lugar...
28. É tudo isso o que nós obtemos ao chegar ao sacramento, ao qual nos apresentamos 2825
após a recitação do Credo... Agora é preciso dizer o que ele é e como se faz, pois seria
certamente uma vergonha dizer as razões daquilo que precede o sacramento e desprezar a
doutrina do próprio sacramento. Mas, porque ultrapassámos a medida habitual e tam-
bém por que o que acabámos de dizer sobrecarrega a vossa memória, deixemos para
outro dia o resto que falta dizer, com a graça de Deus. Terminemos hoje por aqui o
nosso discurso e façamos subir glória a Deus Pai e a seu Filho único e ao Espírito Santo,
agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.
HOMILIA 13 15

1. Texto do Livro (a comentar). Pelo que dissemos, já vos foi suficientemente ensi- 2826
nado aquilo que, antes do sacramento, segundo uma tradição antiga, devem fazer os que
são baptizados... Mas agora é bom que recebais a catequese acerca do que se faz no
próprio sacramento... Quando, pelos exorcismos, escapais à escravidão do Usurpador

15
Catequese mistagógica 3.
674 SÉCULO V

e contraís compromissos tremendos para com Deus, pela recitação do Credo, é então
que vos apresentais ao próprio sacramento. Mas de que maneira? É isso o que tendes
de aprender.
2827 2. «De novo estais de pé sobre cilícios, com os pés nus, depois de tirardes as vestes
exteriores, com as mãos estendidas para Deus como na atitude da oração». Em tudo
isto vos conformais à atitude dos exorcismos, pela qual significais o vosso antigo cati-
veiro e a escravidão ao Tirano... Desse modo fazeis menção dos males antigos, para
indicar aquilo de que quereis afastar-vos e aquilo para que quereis voltar-vos.
2828 3. «Primeiro de joelhos. Pondes-vos de joelhos, mas de modo que o resto do corpo
fique direito». Na atitude daquele que ora, estendeis as mãos para Deus. Com efeito,
todos caímos em pecado, e a sentença de morte deitou-nos por terra; mas, ao nome de
Jesus Cristo, devem dobrar-se todos os joelhos e proclamar que Jesus Cristo é o
Senhor para glória de Deus Pai16... Vós que, pelo sacramento, ides participar em
bens inefáveis, aos quais vos chama a fé em Cristo, nosso Senhor, deveis dobrar os
joelhos, manifestar a vossa antiga queda e apresentar a adoração a Deus, causa de
todos os bens.
2829 4. «Mas de modo que o resto do corpo fique direito» e olhe para o céu. É uma
espécie de pedido aquilo que, por esta atitude, apresentais a Deus... E, enquanto perma-
neceis nesta atitude, aproximam-se os que foram nomeados para este ministério e di-
zem-vos mais ou menos isto...: as vossas orações foram ouvidas e os vossos pedidos
escutados... Quais são, pois, os compromissos e o pacto que contraís nesse momento,
pelos quais sois libertados dos males antigos e tendes parte nos bens que esperais?
2830 5. «Renuncio a Satanás, a todos os seus anjos, a todo o seu serviço, a toda a sua
vaidade e a todo o seu engano secular; e comprometo-me por voto, creio e sou baptiza-
do em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo». Aqui tendes o que os diáconos, que
nesse momento se aproximam de vós, vos preparam para dizerdes. É este o momento
de dizer agora diante de vós, qual é o valor dessas palavras, de modo que saibais a força
do pacto, dos votos e compromissos pelos quais entrais na posse de um tal dom...
2831 6. Eis o que significa «renuncio»: doravante não terei qualquer associação com ele...
Compreendi agora quem me faz bem, reconheço o meu Senhor... Para o futuro renuncio
a Satanás, fujo da sua companhia e comprometo-me, por voto, a nunca mais correr para
ele. Não terei mesmo mais nenhum contacto com ele..., pois não sabe fazer o bem, mas
só se emprega com todo o seu poder a fazer a guerra... Não escolherei mais nem
aceitarei qualquer associação com Satanás...
2832 7. Como Satanás é invisível, sabe fazer-nos guerra através das coisas visíveis, atra-
vés desses homens que alguma vez subjugou, dos quais faz instrumentos da sua malda-
de e de quem se serve para fazer cair os outros. É por isso que acrescentas: «E a todos
os seus anjos».
2833 8. Aqueles que chamamos «os seus anjos» são todos os homens que receberam dele
uma malícia qualquer, pela qual fazem mal aos outros... Anjos de Satanás são aqueles
que, em todas as heresias, são chefes e doutores de erros, mesmo que sejam honrados
com o nome do episcopado e do presbiterado...
2834 10. Depois... prossegues: «E a todo o seu serviço»... Serviço de Satanás é todo o
paganismo, não apenas os sacrifícios e a adoração dos ídolos... mas também tudo o que
aí teve a sua origem e leva à corrupção da alma dos homens...
2835 11. E dizes ainda: «E a toda a sua vaidade». Vaidade de Satanás é um termo claro,
com o qual se designa tudo o que se faz entre os pagãos sob o nome de doutrina...
2836 12. Depois disso dizes: «E a todo o seu engano secular». O que chamamos «o seu
engano» é o teatro, o circo, o estádio, os combates de atletas...
16
Filip 2, 10-11.
TEODORO DE MOPSUÉSTIA 675

13. Depois de dizeres (tudo isto)... dizes: «E comprometo-me por voto; creio e sou 2837
baptizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo». Do mesmo modo que, quando
dizes «renuncio» e te absténs absolutamente, mostras que doravante não voltarás mais, que
doravante não apreciarás mais a sociedade com ele, assim quando dizes: «E comprome-
to-me por voto», mostras que permanecerás firmemente junto de Deus e que, com Ele,
serás inquebrantável...
14. Mas também é preciso dizer: «Creio», porque quem se aproxima de Deus deve 2838
crer que Ele existe. Com efeito, invisível é a natureza divina, e é precisa a fé daquele
que se apresenta e promete permanecer para o futuro firme e em familiaridade com ela.
Invisíveis e inefáveis são também esses bens que ela nos prepara no Céu..., na esperança
dos quais nos apresentamos para receber o sacramento17 do baptismo... É por isso que
o «creio» é seguido do «e sou baptizado», porque é com fé naquilo que há-de vir que tu
te aproximas do dom do santo baptismo, a fim de renasceres, de morreres com Cristo e
de ressuscitares com Ele...
15. Ora, a tudo isto acrescentas «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», 2839
porque tal é a natureza divina...
16. É na atitude acima mencionada que tu fazes esses votos e esse pacto, «com o 2840
joelho poisado em terra», quer como dívida de adoração que pagas a Deus, quer como
memória que fazes da tua queda de outrora, por terra; «mas o resto do teu corpo fica
direito e olhas para o alto, para o céu, com as mãos estendidas em atitude de oração».
Deste modo mostras que és adorador de Deus que está no Céu e de lá esperas ser
levantado da antiga queda...
17. Quando fazes estes votos e este pacto, então aproxima-se o pontífice, que não 2841
usa a veste habitual, nem sequer está revestido com as vestes que ordinariamente traz
sobre si, «mas é envolvido por uma veste de linho delicada e esplendorosa». A novidade do
seu aspecto manifesta a novidade desse mundo para o qual vais passar. Pelo seu res-
plendor, mostra que tu vais resplandecer nessa outra vida... É isso o que ele te mostra
pelo manto que o envolve: pelo mistério das suas vestes, ao mesmo tempo desperta em
ti o temor, e com o temor também põe em ti o amor...
«Então, faz-te o sinal da cruz na fronte com o óleo da unção e diz: Fulano de tal
é assinalado, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo». Eis as primícias do
sacramento que ele te dá; fá-lo «em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», porque
é donde tu esperas a causa de todos os bens, que o pontífice começa o sacramento...
Esta consignação, com a qual és assinalado agora, é o sinal de que doravante ficas
marcado como ovelha de Cristo, como soldado do Rei do Céu...
18. Primeiro receberás uma marca sobre a fronte, que é uma parte da cabeça, a 2842
parte mais nobre de todo o corpo... É, pois, sobre a fronte que recebes esta marca, para
que o seu próprio lugar mostre a grande confiança que tu tens...
19. E, quando o pontífice tiver realizado para ti todos estes ritos e te tiver marcado 2843
com a consignação na fronte, então coloca-te à parte, pelas palavras acima referidas, e
decide que tu és soldado do verdadeiro Rei e cidadão do Céu. A consignação mostra
que tu tens parte e afinidade em tudo isso. Logo a seguir, «o teu garante que está de pé,
por detrás de ti, estende sobre ti um orárion de linho sobre a tua cabeça e segura-te,
fazendo-te estar direito». Pelo facto de te levantares, depois de estares ajoelhado, mos-
tras que deixaste a tua antiga queda e que não tens parte nenhuma com a terra e os
assuntos terrenos.
A tua adoração e a tua súplica a Deus foram aceites. Recebeste a consignação,
sinal de que foste eleito para o serviço inefável; foste chamado para o Céu... Primeiro,

17
’rãzã.
676 SÉCULO V

é verdade, estavas nu, porque tal é o aspecto dos cativos e dos escravos; mas, quando
foste marcado, estenderam sobre a tua cabeça um orárion de linho, que é o sinal do
estado livre, ao qual foste chamado, porque os homens deste estado têm o costume de
estender um véu de linho sobre a cabeça, e usam-no tanto em casa como no mercado.
2844 20. Depois de assim seres reconhecido e marcado como soldado de Cristo, nosso
Senhor, receberás o resto dos sacramentos e tomarás a armadura completa do Espírito;
e, pelos sacramentos, receberás a participação nos bens celestes. Como se fará isso?
Convém dizê-lo pouco a pouco. Por hoje, contentemo-nos com o que foi dito e, pela
conclusão habitual, ponhamos fim ao nosso discurso fazendo subir louvor a Deus Pai, ao
seu Filho único e ao Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.
HOMILIA 14 18

2845 1. Texto do Livro (a comentar). Deixámos ontem o discurso da nossa catequese


(no momento) em que fostes assinalados com o óleo do baptismo...
2846 2. Hoje é preciso dizer quais são as coisas que vêm a seguir, porque deveis avançar
para o próprio baptismo, no qual se realizam as figuras deste novo nascimento...
2847 3. Avanças para o santo baptismo, que é a figura19 deste nascimento esperado. Por
causa disso, Cristo, nosso Senhor, lhe chama um segundo nascimento..., mostrando que
aqueles que vão entrar no Reino de Deus devem nascer de um outro nascimento. Ele
diz: Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus20...
2848 5. Outrora e antes da vinda de Cristo, a morte, por uma sentença divina, dominou
como soberana sobre nós e de modo nenhum se podiam quebrar as suas cadeias... Mas,
porque Cristo, nosso Senhor, morreu e ressuscitou, mudou este decreto e aboliu o domí-
nio da morte. Por conseguinte, doravante, a morte daqueles que crêem em Cristo pare-
ce-se com um sono prolongado, como o diz o bem-aventurado Paulo: Agora Cristo ressus-
citou de entre os mortos e tornou-Se as primícias dos que adormeceram 21...
2849 6. O baptismo é figura destas coisas: tal é a obra do Espírito Santo. É na esperança
destes bens futuros que tu recebes a graça do baptismo; por causa deles apresentas-te
ao dom do baptismo, de modo que morres e ressuscitas com Cristo, e assim, doravante,
nasces para uma vida nova, realizando a figura deste verdadeiro segundo nascimento e,
atraído por estes sinais, acabas por participar na sua realidade...
2850 8. «Avanças, portanto, para o santo baptismo e, em primeiro lugar, despojas-te de
todas as tuas vestes». Uma vez que, no princípio, Adão estava nu e não tinha qualquer
vergonha de si mesmo..., é preciso que tu, que vais apresentar-te ao dom do santo
baptismo..., sejas despojado das tuas vestes... Depois de te despojares das tuas vestes,
«és totalmente ungido, como deve ser, com o óleo da unção», indício e sinal de que
receberás a veste da imortalidade, com que te vais revestir pelo baptismo... Recebes
esta unção, enquanto aquele a quem calhou em sorte a dignidade pontifical, «começa a
dizer: Fulano de tal é ungido em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», e aqueles
que foram nomeados para este serviço te ungem todo o corpo.
2851 9. Quando isso tiver sido feito sobre ti, no momento já citado antes, «desces então à
água consagrada pela bênção do pontífice». De facto, não és baptizado em água sim-
plesmente comum. A água do novo nascimento só pode tornar-se tal pela vinda do Espí-
rito Santo. É preciso que antecipadamente o pontífice, segundo a lei do serviço ponti-
fical, use de palavras determinadas e peça a Deus que a graça do Espírito Santo venha

18
Catequese mistagógica 4.
19
tu/ p oj.
20
Jo 3, 5.
21
1 Cor 15, 20.
TEODORO DE MOPSUÉSTIA 677

sobre a água, a torne capaz de gerar para este nascimento temível e faça dela o seio dum
nascimento sacramental...
Do mesmo modo que no nascimento carnal o seio da mãe recebe um germe...,
assim, no baptismo, a água também se torna um seio para aquele que nasce, mas é a
graça do Espírito que nela forma aquele que é baptizado para um novo nascimento e o
torna completamente outro... De natureza mortal, corruptível e mutável, torna-se imor-
tal, incorruptível e imutável. É completamente outro pelo poder daquele que o faz...
14. Aqui tens o que te acontecerá pelo dom do santo baptismo... «O pontífice, de pé, 2852
aproxima a mão, coloca-a sobre a tua cabeça e diz: Fulano de tal é baptizado em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Ele usa a mesma veste22 de antes», aquela que
usava quando tu estavas ajoelhado e ele te fazia o sinal da cruz na fronte... Ele diz:
«Fulano de tal é baptizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», de modo que,
por esta palavra, te indica qual é a causa desta graça... Ele indica por esta palavra que
a causa total destes bens é o Pai e o Filho e o Espírito Santo...
15. É esta a razão pela qual o pontífice, poisando a sua mão sobre a tua cabeça, diz: 2853
«Fulano de tal é baptizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo». Não diz: «Eu
baptizo», mas «é baptizado»..., uma vez que não há entre os homens nenhum que seja
capaz de um tal dom, e só a graça divina pode fazer-nos o que somos... O pontífice
mostra-se obediente e ao serviço do que se realiza...
16. Ao dizer: «Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo»... é como se dissesse: 2854
Nós somos baptizados invocando o Pai e o Filho e o Espírito Santo; é esta natureza que
nós invocamos para os bens esperados, é ela que é a causa do universo, e só ela pode
fazer tudo como quer. Também não diz: «Em nome do Pai, e em nome do Filho, e em
nome do Espírito Santo»...
18. Então «o pontífice põe-te a mão sobre a cabeça e diz: Em nome do Pai, e ao 2855
mesmo tempo que fala, faz-te mergulhar na água». E tu obedeces-lhe: seguindo a indi-
cação... da sua voz e do gesto da sua mão, mergulhas ao mesmo tempo na água e
inclinas a cabeça, como para significares, através disso, o teu assentimento e confessares
que é do Pai que recebes os bens do baptismo... «Se então pudesses falar, dirias: Amen»,
palavra... que indica o nosso assentimento àquilo que é dito pelo pontífice... Uma vez
que, no momento do baptismo, tu não podes falar, mas que é no silêncio e no temor que
deves receber a renovação pelos mistérios, ao imergires e ao inclinares ao mesmo tem-
po a cabeça para baixo, mostras verdadeiramente o teu assentimento àquilo que o pon-
tífice diz.
19. A seguir, «emerges e levantas a cabeça, mas ele diz de novo: E do Filho. E, do 2856
mesmo modo, te dispõe com a mão para te imergir»: e, tendo tu mergulhado de novo,
voltas a mostrar o teu assentimento à palavra do pontífice e manifestas que é do Filho
que esperas receber os bens que provêm do baptismo. «Tu levantas a cabeça. Mas de
novo o pontífice diz: E do Espírito Santo. E, do mesmo modo, com a mão, ele te empur-
ra e te imerge», e tu, de novo, te mergulhas, manifestando, com humildade, que fazes a
mesma confissão também agora, e que é do Espírito Santo que esperas os bens que
provêm do baptismo... Então sais completamente da água do baptismo para receberes o
complemento.
20. Desces uma só vez à água, mas por três vezes mergulhas nela, segundo a palavra 2857
do pontífice; e sais uma única vez depois disso, para saberes que o baptismo é único e
única a graça que aí realizam o Pai e o Filho e o Espírito Santo...

22
sxe= m a (=ornamento).
678 SÉCULO V

2858 21. Somos baptizados e tornamo-nos todos um só Corpo, segundo a operação que,
no baptismo, se faz em nós pelo Espírito Santo. Por esta operação tornamo-nos filhos
de Deus e formamos o único corpo de Cristo, nosso Senhor, que designamos como
nossa cabeça, dado que Ele partilha a nossa natureza e foi o primeiro a ressuscitar dos
mortos, para nos fazer participar nesses bens...
2859 26. «A partir do momento em que sobes da água, revestes-te com uma veste esplêndida»:
ela é o sinal do mundo radioso e esplêndido e dos seus costumes, onde te introduzem já
as figuras. Quando ressuscitares, serás revestido de imortalidade e de incorruptibilida-
de, e já não serão precisas tais vestes...
2860 27. Depois de receberes a graça por meio do baptismo e de teres vestido uma veste
branca resplandecente, «o pontífice avança, faz-te o sinal da cruz na fronte, dizendo:
Fulano de tal é marcado com o sinal da cruz em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo». Jesus, ao sair da água, recebeu a graça do Espírito Santo... Tal como os que são
ungidos pelos homens com uma unção de azeite..., também tu deves receber «a consignação»
sobre a fronte...
2861 28. É este o segundo nascimento que recebemos pelo baptismo, e do qual vos ides
agora aproximar. É por ele que esperamos passar efectivamente a esse outro nascimento
da ressurreição. O de agora assegura-nos o outro, que possuímos sacramentalmente
pela fé, em figuras e sinais, e garante-nos que passaremos deste para aquele... Nascemos
primeiro em germe pelo baptismo, pois ainda não nascemos para a natureza imortal,
para a qual esperamos passar pela ressurreição...
2862 29. Certamente, quando tiverdes recebido deste modo o nascimento sacramental pelo
baptismo, então apresentar-vos-eis ao alimento imortal de que vos ireis alimentar como
convém ao vosso nascimento. Em tempo oportuno tereis de aprender que alimento é
esse e de que maneira vos é apresentado. Por agora, uma vez que, a seguir à nossa
instrução, ireis receber o nascimento baptismal, – pois foi para participardes nessa luz
inefável por meio deste segundo nascimento que vos apresentastes, – é como se vos
tivéssemos envolvido em panos, pelo que foi dito, a fim de que, com firmeza e sem
hesitar, retenhais e conserveis a lembrança deste nascimento que terá lugar. Lá, no
silêncio, deixar-vos-emos repousar. Oportunamente, quando Deus no-lo conceder, far-
vos-emos aproximar do alimento divino e das explicações que lhe dizem respeito. Mas
agora, pela conclusão habitual, ponhamos fim ao nosso discurso, fazendo subir o louvor
a Deus Pai, a seu Filho unigénito e ao Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos
dos séculos. Amen.
HOMILIA 15 23

2863 1. Texto do Livro (a comentar). Hoje, com a graça de Deus, dedicar-me-ei a apre-
sentar-vos o alimento que vos é apropriado, pois convém que saibais o que ele é e que
aprendais a sua verdadeira grandeza...
2864 2. Depois de receberdes o verdadeiro nascimento pela ressurreição, tomareis outro
alimento, grande demais para este discurso, e alimentar-vos-eis então com a graça do
Espírito, pela qual permaneceis imortais nos vossos corpos e imutáveis em vossas al-
mas. Tal é, com efeito, o alimento apropriado a este nascimento: a graça do Espírito...
2865 6. Tal como recebemos o nascimento do baptismo pela morte de Cristo, nosso Se-
nhor, assim recebemos também o alimento em figura por meio da sua morte. Disso é
testemunha o bem-aventurado Paulo, que diz: Todas as vezes que comerdes deste pão
e beberdes deste cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha 24...

23
Catequese mistagógica 5.
24
1 Cor 11, 26.
TEODORO DE MOPSUÉSTIA 679

7. Mas nosso Senhor também é testemunha desta razão, pois falou assim ao entre- 2866
gar os mistérios: Tomai, comei: isto é o meu Corpo, entregue por vós, para remissão
dos pecados; e tomai e bebei: isto é o meu Sangue, derramado por vós para remis-
são dos pecados 25...
10. Foi com razão que, ao dar o pão, (Jesus) não disse: Isto é a figura do meu Corpo, 2867
mas sim: «Isto é o meu Corpo»; e do mesmo modo (ao entregar) o cálice não disse: Isto
é a figura do meu Sangue, mas sim: «Isto é o meu Sangue», porque quis que, tendo o pão
e o cálice recebido a graça da vinda do Espírito Santo, não olhemos mais para a sua
natureza, mas os tomemos como aquilo que são, o Corpo e o Sangue de nosso Senhor...
11. Por isso, é preciso que também nós... não consideremos doravante como um sim- 2868
ples pão e um cálice o que se apresenta, mas como o Corpo e o Sangue de Cristo, em
que os converte a vinda da graça do Espírito Santo...
12. Uma vez que, para perdurar nesta vida, tomamos o pão como alimento..., (Jesus) 2869
convida-nos, pelas suas palavras, a não duvidar que também receberemos a imortalidade
comendo o pão sacramental, dado que, embora o pão não tenha uma tal capacidade por
natureza, no entanto, depois de receber o Espírito Santo e a graça que dele vem, é
capaz de conduzir aqueles que o comem à alegria da imortalidade...
15. «Em primeiro lugar é preciso saber isto: nós realizamos uma espécie de sacrifício 2870
com aquilo de que fazemos o nosso alimento». De facto, embora no alimento e na bebi-
da façamos memória da morte de nosso Senhor e embora pensemos que estas coisas
são o memorial da sua Paixão, dado que Ele disse: Isto é o meu Corpo entregue por
vós; e isto é o meu Sangue, que será derramado por vós, é claro que o que nós
realizamos na liturgia26 é como que um sacrifício. «Eis a obra do pontífice da nova
Aliança: oferecer esse sacrifício por meio do qual apareceu aquilo em que consiste a
nova Aliança». É, pois, evidentemente um sacrifício, sem ser, no entanto, uma coisa
nova, nem propriamente o seu próprio sacrifício, aquele que o pontífice faz; mas é um
memorial dessa verdadeira imolação...
16. O que Ele realiza, efectivamente, é uma espécie de grande pontifical, em que o 2871
sacrifício que oferece a Deus e no qual Se entrega à morte por todos... é Ele próprio.
Mas Ele, primogénito de entre os mortos, ressuscitou, subiu ao Céu e sentou-Se à direi-
ta de Deus..., como diz Paulo: Cristo, depois de oferecer pelos pecados um único
sacrifício, sentou-Se para sempre à direita de Deus, esperando, por último, que os
seus inimigos sejam postos como estrado dos seus pés27... É deste sacrifício que Ele
é ministro, porque subiu ao Céu, onde realiza para nós a liturgia, a fim de nos atrair a
todos para Si...
17. Segundo a palavra do bem-aventurado Paulo, se Cristo, nosso Senhor, estivesse 2872
na terra, nem sequer seria sacerdote, a não ser que exercesse o sacerdócio segundo
o rito da Lei... Mas é sacerdote com toda a propriedade, porque exerce a função do
sacerdócio no Céu, onde as realidades não têm comparação com as coisas da terra...
18. Como, por enquanto, não estamos ainda nesses bens celestes, é pela fé que vive- 2873
mos agora, até subirmos ao Céu e irmos para nosso Senhor... E, como esperamos rece-
ber efectivamente essas coisas pela ressurreição, no tempo fixado por Deus..., foi--nos
dada a ordem de realizar, neste mundo, as figuras e os símbolos desses bens futuros,
para que, como pessoas que entram nas alegrias celestes pela liturgia dos sacramentos,
em figura, possuamos a esperança inabalável desses bens esperados...
19. Era então necessário realizar uma certa imagem do sumo sacerdote. Por causa 2874
disso é que existem aqueles que foram escolhidos para a liturgia destas figuras. Nós

25
Mt 26, 26-28.
26
Tesmesta.
27
Hebr 10, 12-13.
680 SÉCULO V

acreditamos, efectivamente, que aquilo que Cristo, nosso Senhor, realizou e realizará,
é o que realizam, nos sacramentos, os que foram eleitos pela graça divina como sacer-
dotes da nova Aliança, pela vinda, sobre eles, do Espírito Santo, para confirmação e
segurança dos filhos do sacramento...
2875 20. Ora, o que nós fazemos em qualquer lugar e em qualquer tempo, e até continuamente,
é o memorial deste mesmo sacrifício, porque todas as vezes que comemos deste pão e
bebemos deste cálice, é da morte de nosso Senhor que fazemos memória, até que Ele
venha. Todas as vezes que se realiza a liturgia deste sacrifício tremendo..., devemos
imaginar que estamos como que no Céu; pela fé, esboçamos, na nossa inteligência, a visão
das realidades celestes e consideramos que esse Cristo que morreu por nós, que ressuscitou
e que subiu ao Céu continua a ser o mesmo que é imolado por meio dessas figuras...
2876 21. Uma vez que Cristo, nosso Senhor, Se ofereceu a Si mesmo em sacrifício por nós,
tornando-Se, de facto, para nós um sumo sacerdote, «devemos pensar que aquele que
está agora perto do altar é uma imagem desse pontífice». Ele não oferece ali o seu
próprio sacrifício, e também não é verdadeiramente ele o sumo sacerdote; realiza a
«liturgia» deste sacrifício inefável como numa espécie de imagem, por meio da qual
esboça, para ti, uma representação dessas realidades celestes inefáveis, e dos poderes
inteligentes e sem corpo... Por isso é que, também agora, ao realizar-se esta «liturgia»,
«devemos considerar que os diáconos representam uma certa imagem da liturgia desses
poderes invisíveis», ao serem eleitos para o serviço desta liturgia tremenda pela graça
do Espírito Santo, que lhes foi concedida.
2877 22. Por causa disso, também nós somos chamados diáconos28 de Cristo, todos nós
que fomos eleitos para uma espécie de ministério29... Mas esse nome é próprio só da-
queles que realizam este ministério; entre todos, só os que foram nomeados para este
serviço são chamados «diáconos»...
2878 23. «Ora, eles usam também uma veste que convém à realidade, porque mais sublime
do que eles é a sua veste exterior. Sobre o ombro esquerdo lançam o orárion, que cai
à mesma altura de ambos os lados», diante e detrás... Usam-no apenas sobre o ombro,
porque foram eleitos para um serviço; mas o orárion que trazem é sinal dessa liberdade
à qual todos nós, que acreditámos em Cristo, fomos chamados...
2879 24. Por meio dos diáconos, que fazem o serviço daquilo que se realiza, esboçamos na
nossa inteligência os poderes invisíveis encarregados de um ministério30, que ser-
vem nesta liturgia inefável. São eles que trazem e dispõem no altar temível este sacrifí-
cio ou as figuras do sacrifício...
2880 25. Nestas figuras «devemos ver Cristo, que ora é levado e vai para a Paixão, ora é
novamente colocado por nós no altar, para ser imolado». Com efeito, quando a oblação
que vai ser apresentada sai nos vasos sagrados, nas patenas e nos cálices, deves pensar
que é Cristo, nosso Senhor, que sai, levado para a Paixão... Tens, pois, de considerar
que os diáconos, quando trazem de fora (da igreja) a «parcela» para a oblação, são a
imagem dos poderes invisíveis encarregados de um ministério...
2881 26. Depois de a trazerem, colocam-na no santo altar...; «alguns dos diáconos que
estendem toalhas no altar, representam, desse modo, a semelhança dos panos da sepul-
tura, enquanto outros se colocam dos dois lados e agitam o ar que está por cima do
corpo sagrado»..., prestando-lhe a homenagem que lhe convém e, através desta pompa,
mostram a todos os que estão presentes a grandeza do Corpo sagrado que ali está
deposto 31.

28
Msamsana.
29
Tesmesta.
30
Hebr 1, 14.
31
Este texto mostra como a liturgia nem sempre foi vista como um mistério, mas como uma representação
da vida, da Paixão e da morte de Jesus.
TEODORO DE MOPSUÉSTIA 681

27. Dado que, também para nós, instruídos pela divina Escritura, é evidente que havia 2882
Anjos ao lado do sepulcro..., convinha igualmente esboçar agora, como que numa ima-
gem, a semelhança dessa liturgia angélica. Em recordação daqueles Anjos que, durante
a Paixão e a morte de nosso Senhor, a cada instante vinham e ficavam de pé, eis que
também os diáconos estão à volta e agitam os leques...
28. «Isto realiza-se quando, por toda a parte, se guarda silêncio», porque, enquanto a 2883
liturgia não começa, convém que toda a gente, no recolhimento, com temor e em oração
silenciosa, contemple, sem dizer nada, a saída e a deposição (da oblação)...
29. É por causa disto que, também agora, estas mesmas coisas nos trazem à memória 2884
a Paixão de nosso Senhor; e, quando vemos a oblação no altar..., então o recolhimento
estende-se a todos os que estão presentes..., que olham com recolhimento e temor para
o que se faz...
30. «Primeiro faz-se a oração, não já em silêncio, mas proclamada pela voz do diáco- 2885
no», que deve saber indicar o sinal e a finalidade de tudo o que se realiza na igreja. Com
efeito, o diácono manifesta, pela proclamação, aquilo que deve ser feito por todos os
que se reuniram. Ele recomenda e recorda a toda a gente o que é mais importante e o
que mais convém aos que se reuniram na igreja de Deus.
31. Quando ele tiver terminado o ministério próprio e dinamizado toda a gente com a 2886
voz, depois de sugerir as orações adaptadas às assembleias da igreja, «estando todos de
pé e em silêncio, o pontífice começa o ofício da prótese32». Em primeiro lugar, faz subir
uma oração até Deus, porque, em tudo o que se refere à religião, é pela oração que se
deve começar, mas sobretudo nesta liturgia tremenda, em que temos necessidade do
socorro divino, o único que é capaz de realizar tais coisas. «O pontífice, portanto, termi-
na a oração, dando graças em primeiro lugar» a nosso Senhor por estas coisas tão
grandes que Ele fez para a salvação e vida dos homens, e por nos ter dado a conhecer
esses mistérios admiráveis, que são o memorial deste dom inefável que nos entregou
pela sua própria Paixão, ou seja, por nos ter prometido a todos que havíamos de ressus-
citar de entre os mortos e subir ao Céu.
32. «Depois disto, é por si próprio que ele dá graças», por Cristo o ter feito ministro 2887
de um sacramento tão temível, e pede-Lhe também que lhe conceda agora a graça do
Espírito Santo, pela qual chegou ao sacerdócio..., e o faça de tal modo que, livre de toda
a má intenção, ele realize, pela graça divina, este ministério, sem temer qualquer castigo...,
pois se aproximou de realidades demasiado sublimes para ele33.
33. Quando, depois destas coisas e doutras semelhantes, o pontífice termina a oração, 2888
«todos os assistentes dizem: Amen», palavra de assentimento e de confirmação da ora-
ção sacerdotal..., de que se servem os assistentes para mostrar, pela sua palavra, que
estão de acordo com as orações e acções de graças do pontífice.
34. Depois de os assistentes terem dito essa palavra, «o pontífice pede que a paz 2889
esteja com eles». Numa assembleia eclesial, é bom começar deste modo seja que acção
for, mas sobretudo quando se vai realizar esta liturgia tremenda...
35. Ora, desde o princípio, para todos os que receberam a honra de realizar a obra do 2890
sacerdócio, foi estabelecida a regra de começar assim aquilo que se faz na assembleia
eclesial, mas de modo particular, e mais do que noutra qualquer, nesta liturgia divina,
memorial da morte de nosso Senhor, por meio da qual nos foram prometidos estes gran-
des bens e outros do mesmo género. «A isto os assistentes respondem: E com o teu
espírito».
36. Eles devolvem-lhe, portanto, a mesma oração, e, deste modo, se torna manifesto 2891
ao próprio pontífice, bem como a todos, que não são apenas os outros que têm necessidade da

32
Syama.
33
Esta oração é uma apologia.
682 SÉCULO V

bênção e da oração do pontífice, mas que também ele tem necessidade da oração de
todos...
O pontífice realiza o serviço de um membro mais honrado que os outros membros
do corpo. Vou mostrar como. Ele faz de olhos e de língua. À semelhança dos olhos, vê
as obras de todos e, com a solicitude do sacerdócio, corrige e põe em ordem cada um,
de acordo com o que pertence à função do sacerdócio; no papel de língua, apresenta (a
Deus) as orações de todos. Mas, tal como os olhos e a língua têm necessidade de mem-
bros corporais que sejam saudáveis..., do mesmo modo também é preciso que o pontífice,
estando bem adaptado ao Corpo da Igreja, seja saudável na sua ordem...
2892 37. Ora, ao dizerem «e com o teu espírito», não é à sua alma que eles se referem,
mas à graça do Espírito Santo, pela qual ele teve acesso ao sacerdócio, como crêem os
que lhe estão confiados. Assim o diz o bem-aventurado Paulo: Deus, a quem presto
culto no meu espírito, anunciando o Evangelho do seu Filho34, como se dissesse:
pelo dom da graça do Espírito Santo, que me foi dada para que eu realize o serviço do
Evangelho, e para que todos vos unais com o meu espírito, recebi de Deus a graça de
me encontrar em condições de fazer esta e outras coisas semelhantes...
2893 38. É assim que respondem ao pontífice os que estão reunidos na igreja... É sobretudo
assim que o pontífice terá abundância de paz pela graça do Espírito Santo. Desse modo,
e porque ele mostra ter a consciência que deve ter, recebe ajuda para os actos que se
esperam dele, quer nas outras coisas quer na liturgia.
2894 39. Depois da bênção ter sido assim desejada, pelo pontífice aos assistentes e por
estes àquele, «o pontífice começa a dar a paz, e o arauto da igreja», que é o diácono,
«clama em voz alta e a todos manda que dêem a paz uns aos outros», fazendo o que o
pontífice faz. Todos se dão reciprocamente a paz e, através desse beijo, fazem uma
espécie de profissão da unidade e caridade que têm entre si. Cada um de nós dá a paz
ao seu vizinho, seja ele quem for..., entristecendo-nos com as tristezas uns dos outros e
alegrando-nos com os bens uns dos outros...
2895 40. Antes de nos aproximarmos dos mistérios da liturgia, é preciso cumprir a lei de
dar a paz... Portanto, o que se faz não é apenas uma profissão de caridade, mas tam-
bém uma espécie de convite a desembaraçarmo-nos de toda a imundície da inimizade,
todas as vezes que nos parecer que é sem razão que temos alguma coisa contra algum
dos nossos irmãos na fé..., pois somos todos nós que, pelo pontífice, oferecemos a oblação.
2896 41. De facto, embora seja ele que está de pé para oferecer, é, no entanto, à maneira
de língua, que ele oferece a oblação por todo o corpo. Do mesmo modo que o que é
oferecido é a oblação comum de todos nós, comum é também o benefício que daí advém
e cuja recepção nos é igualmente oferecida a todos...
É preciso que o ofensor leve remédio, com todas as suas forças, àquele que ofen-
deu e se reconcilie com ele. Se aquele contra quem ele cometeu a ofensa estiver pre-
sente, faça efectivamente a reconciliação; se não estiver presente, decida na sua cons-
ciência que, de todas as maneiras, fará a reconciliação em tempo oportuno. E, deste
modo, em seguida, aproximar-se-á para participar na oblação. O ofendido deve, por seu
lado e sem delongas, aceitar a satisfação do ofensor...
2897 42. «Então o pontífice é o primeiro a lavar as mãos (e depois dele) todos os que
estiverem na assembleia sacerdotal, por mais numerosos que sejam». Não o faz para
purificar as mãos, – se a consciência não for negligente, todos o devem fazer, uns por
causa do seu ministério, outros por causa da oblação que vão apresentar, – mas porque
os sacerdotes que presidem oferecem a oblação por toda a comunidade; ao fazerem
isso, lembram-nos a todos que, ao oferecer-se a oblação, nos devemos apresentar de
consciência pura...
34
Rom 1, 9.
TEODORO DE MOPSUÉSTIA 683

43. Todos estão de pé, de acordo com o sinal do diácono, e vêem o que se passa. 2898
«Lêem-se nas tabuinhas35 da igreja os nomes dos vivos e dos mortos» que partiram na
fé de Cristo, sendo evidente que a oração, através do pequeno número dos que são
citados, abarca toda a multidão dos vivos e dos mortos...; os vivos olham para a esperan-
ça futura, e os mortos já não estão na morte. Mergulhados no sono, permanecem nesta espe-
rança, pela qual Cristo, nosso Senhor, aceitou a morte, que nós comemoramos neste sacra-
mento.
44. Quando esta leitura chega ao fim, «o pontífice avança logo para a liturgia, enquanto o 2899
arauto da Igreja clama primeiro: Olhai para a oblação». Deste modo ele incita toda a
gente a olhar com cuidado para a oblação, porque o que vai ter lugar pertence à comu-
nidade. Vai ser imolado um sacrifício da comunidade, vai ser oferecida uma oblação da
comunidade: por todos, não apenas pelos presentes, mas também pelos ausentes, na
medida em que eles participaram na fé, em que foram contados na Igreja de Deus e em
que terminaram a vida. Também é bem evidente que o que nós designamos por «ofere-
cer a oblação» e «imolar a oblação» é a mesma coisa, pois é uma espécie de vítima
tremenda que é imolada e, portanto, que é oferecida a Deus, como diz o bem-aventura-
do Paulo... Uma vez que nós fazemos uma semelhança desta imolação, chamamo-la
«oblação» 36 ou «anáfora» da oblação37...
45. Deste modo, quando todos estão preparados e a olhar para o que foi colocado 2900
(sobre a prótese), e uma vez realizado o que já dissemos que deve realizar-se antes da
liturgia sagrada e que é necessário para vossa instrução..., o pontífice começa, a partir
de agora, a própria oferenda da oblação. De que maneira? Tenho de vo-lo ensinar.
Entretanto, como se atingiu a medida do que foi dito, guardo para um outro dia o que
tenho para vos dizer, quando Deus mo conceder. Por todas estas coisas façamos subir o
louvor a Deus Pai, ao seu Filho único e ao Espírito Santo, agora e sempre e pelos
séculos dos séculos. Amen.
HOMILIA 16 38

1. Texto do Livro (a comentar). Eis o momento dado por Deus de me desobrigar 2901
para convosco daquilo que falta..., depois de ter chegado ao «Olhai para a oblação»
que, segundo a regra imposta pela Igreja, o diácono diz em voz alta...
2. Anáfora em forma indirecta. Diálogo inicial. A partir do momento em que o 2902
diácono diz: «Olhai para a oblação»..., «o pontífice começa logo a oferecer a oblação e,
antes de mais, abençoa o povo nestes termos: A graça de nosso Senhor Jesus Cristo,
o amor de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós». Ele
considera que é principalmente antes desta liturgia39, mais do que antes de qualquer
outra coisa, que convém abençoar o povo com esta palavra apostólica, que tem em si
algo de excelente. Em virtude do seu carácter venerável, di-la em primeiro lugar...
Nas suas Epístolas, o bem-aventurado Paulo também pediu isso para os fiéis, a
fim de se mostrarem dignos deste amor que Deus, por sua graça, mostrou a toda a
nossa humanidade, concedendo-nos a todos o favor da graça do Espírito Santo, a fim de
nos dar, por meio deste dom, a comunhão com Ele.
É também por isso que o pontífice, quando está prestes a realizar esta liturgia tão
grandiosa, pela qual somos orientados para tais esperanças, com toda a razão abençoa
primeiro o povo com esta palavra, embora alguns pontífices digam apenas: A graça de

35
pi/ n ac .
36
Qurbana.
37
Masqa dqurbana.
38
Catequese mistagógica 6.
39
Tesmesta.
684 SÉCULO V

nosso Senhor Jesus Cristo esteja com todos vós, resumindo, deste modo, tudo o que o
Apóstolo disse.
«Ao que o povo responde: E com o teu espírito»; segundo a regra imposta para
todos os casos em que o pontífice abençoa o povo, quer com a «graça» quer com a
«paz», todos os assistentes40 lhe respondem com esta palavra, cuja razão de ser já
expliquei mais acima.
2903 3. Depois desta bênção, «o pontífice prepara o povo, dizendo: Corações41 ao alto»,
para mostrar que, apesar de pensarmos que é na terra que estamos a realizar esta
liturgia tremenda e inefável, no entanto, é lá para cima, para o Céu, que devemos olhar,
dirigindo para Deus a intenção da nossa alma, pois estamos a fazer um memorial do
sacrifício e da morte de Cristo, nosso Senhor, que por nós sofreu e ressuscitou, Se uniu
à natureza divina, Se sentou à direita de Deus e está no Céu. Também nós temos neces-
sidade de dirigir para lá o olhar da nossa alma e, (a partir) deste memorial, transportar
para lá o nosso coração42.
2904 4. «Então o povo responde: Para ti, Senhor». Eles professam, pelas suas palavras,
que estão em acto de cumprir isso. E, depois de o pontífice ter preparado e predisposto
deste modo a alma e o coração dos assistentes, «diz: Dêmos graças ao Senhor». Com
efeito, é por estas coisas que por nós foram feitas e das quais vamos realizar o memo-
rial nesta liturgia, que devemos fazer, em primeiro lugar, uma acção de graças a Deus,
causa de todos estes bens, pelos quais «o povo responde: É digno e justo». Ele confessa
que é muito justo fazermos isto, quer por causa da grandeza de Deus, que nos concedeu
tais dons, quer por ser justo que não sejam ingratos, para com o seu benfeitor aqueles
que receberam benefícios.
2905 5. Louvor e acção de graças. Então, estando todos nós de pé e guardando silêncio
com grande temor, «o pontífice começa a oferecer a oblação e imola o sacrifício da
comunidade». Cai então sobre ele um grande temor comum, por si próprio e por todos
nós, por causa do que aconteceu, isto é, pelo facto de nosso Senhor ter aceitado a morte
por todos nós, cujo memorial vai ser realizado neste sacrifício. Como o pontífice, neste
momento, é a língua comum da Igreja, utiliza as palavras que convêm a esta grandiosa
liturgia, – que são os louvores de Deus, – confessando que a Deus pertence todo o
louvor e toda a glória: a Ele pertence a adoração e a liturgia da parte de todos nós, e,
antes de qualquer outra, esta que, neste momento, é o memorial dessa grande graça que
nos foi feita, e cujo relato é incompreensível para toda a criação.
2906 6. Introdução ao Santo. E, como nós fomos instruídos e baptizados em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo, e por isso devemos esperar o cumprimento das coisas
que são feitas, «o pontífice diz: Grandeza do Pai»; e também acrescenta: «e do Filho»,
com o que Ele é e também aqui deve ser, ou seja, verdadeira e certamente Filho, da
mesma essência do Pai e de modo nenhum menor do que Ele. E logo a seguir faz
obrigatoriamente menção do Espírito Santo, confessando que também o Espírito é de
essência divina. Em seguida diz que, a esta natureza divina, que existe desde sempre,
são oferecidos hinos e louvores, em todo o tempo, por todas as criaturas e antes de
qualquer outra pelas virtudes invisíveis. Recorda, em primeiro lugar, que os Serafins
oferecem este louvor ensinado por revelação divina a Santo Isaías... e nós dizemos, em
voz alta: «Santo, Santo, Santo, Senhor dos exércitos, de cujos louvores estão chei-
os o céu e a terra»... Com efeito é necessário que o pontífice, nesta liturgia, depois de
fazer menção do Pai e do Filho e do Espírito Santo, diga que o louvor e a adoração são
oferecidos por todas as criaturas à natureza divina.

40
Qariba.
41
Mad’a.
42
Tar’ita.
TEODORO DE MOPSUÉSTIA 685

9. Quanto a nós, dado que nos apareceu a grandeza do dom que já tinha sido 2907
antecipadamente mostrado ao Profeta, e que também para nós já foi realizado o sacrifício,
do qual recebemos a ordem de fazer o memorial nesta liturgia que acaba de ser feita
diante de nós, – «baixando o nosso olhar até à terra, ficamos todos numa reverência tão
profunda», que nem sequer podemos olhar para a grandeza de tal liturgia...
10. Depois de todos os que estão presentes terem aclamado: Santo, Santo, Santo, 2908
Senhor dos exércitos, e de terem novamente e pouco a pouco «voltado ao silêncio», o
pontífice prossegue então a liturgia sagrada, dizendo em primeiro lugar: «Santo é o Pai,
Santo é o Filho e Santo é o Espírito Santo», para o professarmos... A seguir profere
também a compaixão inefável enviada sobre nós, pela qual Deus manifestou a econo-
mia divina, realizada por Cristo. Ele, apesar de ter forma de Deus, quis aceitar a forma
de servo, assumiu o homem perfeito e completo para a redenção de todo o género
humano e destruiu as coisas antigas e difíceis que nos eram impostas, desde outrora,
pelo peso da lei e o domínio da morte que sobre nós pesava há muito tempo. Também
nos deu bens inefáveis e mais elevados do que todo o conhecimento humano e, para os
adquirir, Cristo nosso Senhor recebeu a Paixão a fim de realizar a destruição completa
da morte pela sua Ressurreição, e prometeu-nos a comunhão com Ele na alegria dos
bens futuros. Foi absolutamente necessário que (Cristo) nos desse este mistério, capaz
de nos levar até esses bens. É por seu intermédio que nós nascemos de novo no rito43 do
baptismo. Nesta liturgia tremenda fazemos memória da morte de nosso Senhor, e rece-
bemos o alimento imortal e espiritual do Corpo e do Sangue de nosso Senhor. Foi por
nós que nosso Senhor, ao chegar a hora da Paixão, entregou aqueles alimentos aos seus
discípulos, para que, todos nós que acreditamos em Cristo, os recebêssemos deles e por
nossa vez os fizéssemos. É por isso que, a partir de então, nós celebramos o memorial
da morte de Cristo nosso Senhor e, desse modo, recebemos um alimento inefável em
que nos é dada uma esperança capaz de nos conduzir à comunhão dos bens futuros.
11. São estas e outras coisas semelhantes que o pontífice diz nesta liturgia sagrada; 2909
e, ao comemorar o que se realizou, prepara-nos a todos para ver, por meio destas obla-
tas, o próprio dom que Cristo, nosso Senhor, nos preparou. «Mas então é preciso que
Cristo, nosso Senhor, ressuscite de entre os mortos, pela força destas acções, e que
derrame a sua graça sobre todos nós», o que só pode acontecer pela vinda da graça do
Espírito Santo. Também foi por ela que Ele outrora ressuscitou, como o ensinou o bem-
aventurado Paulo...
12. É, pois, necessário que o pontífice, segundo a lei do sacerdócio, peça e suplique a 2910
Deus a vinda do Espírito Santo, e para que a graça venha do alto sobre o pão e o vinho
apresentados, a fim de se poder ver que o Corpo e o Sangue de nosso Senhor, memorial
de imortalidade, são verdadeiros... Quando o pontífice diz que (este pão e este vinho)
são o Corpo e o Sangue de Cristo, revela claramente que eles se tornaram tais pela
vinda do Espírito Santo e que por Ele se tornaram imortais... A partir deste momento,
acreditamos que eles são o Corpo e o Sangue de Cristo imortais, incorruptíveis, impas-
síveis e imutáveis por natureza, como sucedeu ao Corpo de nosso Senhor por meio da
Ressurreição.
13. «Mas o pontífice pede também que a graça do Espírito Santo venha sobre todos 2911
os que estão reunidos», a fim de que, tal como pelo novo nascimento eles formaram um
só corpo, sejam agora também unidos como num só corpo pela comunhão do Corpo de
nosso Senhor e que, na concórdia, na paz e na entrega ao bem, eles venham a tornar-se
um só, para que, todos nós, olhando para Deus de coração puro, não seja para nossa
condenação que tenhamos parte no Espírito Santo, por estarmos divididos em nossas
maneiras de ver, e nos sentirmos inclinados para as rixas, as disputas, a emulação e a
inveja e negligentes nos bons costumes, mas para nos tornarmos dignos, nós que O

43
tu/ p oj .
686 SÉCULO V

recebemos, e para que os olhos da nossa alma, em unanimidade, em paz, na entrega ao


bem e de coração perfeito se convertam a Deus.
2912 14. Deste modo, «o pontífice completa a liturgia divina, apresentando uma súplica por
todos aqueles de quem devemos fazer memória, por lei da Igreja, em todos os tempos.
E, em seguida, passa à memória dos que morreram», porque este sacrifício nos concede
a graça de sermos guardados neste mundo e também dá esta esperança inefável, depois da
morte, àqueles que morreram na fé...
2913 15. «Ao dizer estas orações, o pontífice pára e imediatamente toma o pão sagrado
nas suas mãos e olha para o céu». Com os olhos fixos no alto, faz uma espécie de acção
de graças por dons tão grandiosos, «e parte o pão». Ao mesmo tempo que o parte, «ora
pelo povo, para que a graça de Deus venha sobre eles». Diz assim: A graça de nosso
Senhor Jesus Cristo esteja sobre todos vós. «O povo», também ele, aceita e «responde
com a palavra habitual. Com o pão, faz o sinal da cruz sobre o Sangue e com o Sangue
sobre o pão». E junta-os, une-os um ao outro, para assim manifestar a todos que, apesar
de serem dois, eles são um só memorial da morte e da Paixão padecidas pelo Corpo de
nosso Senhor, quando o seu Sangue foi derramado na cruz por todos nós... O corpo
humano faz um todo com o seu sangue, e o sangue está distribuído por todo o corpo...
Assim era o Corpo de nosso Senhor antes da Paixão...
2914 17. «Por causa disto, existe a regra de lançar no cálice, pouco a pouco, o pão vivificante»,
a fim de mostrar que o Corpo e o Sangue são inseparáveis, que eles são um só e que é
uma só e mesma graça que eles dão àqueles que os recebem...
O pontífice parte o pão, não de qualquer maneira, mas (para indicar que) Cristo,
nosso Senhor, depois da sua Ressurreição de entre os mortos, Se mostrou a todos os
seus. Em primeiro lugar apareceu às mulheres, em seguida aos onze discípulos, pouco a
pouco a alguns, e a todos os restantes fiéis reunidos uns com os outros...
2915 19. Cada um de nós toma um pequeno pedaço, mas acreditamos que neste pedaço
recebemos Cristo inteiro. De facto, seria muito estranho acreditar que a mulher do
fluxo de sangue recebeu um dom divino só por tocar a extremidade das suas vestes, que
nem sequer eram uma parte do seu corpo, mas do vestuário, e não acreditar que num
pedaço do seu Corpo O recebemos a Ele por inteiro, quando afinal, ao beijar alguém, é
habitualmente na boca que nós beijamos, apesar de ela ser apenas uma pequena parte
do corpo, e pensarmos que, deste modo, beijamos o corpo inteiro. E o mesmo acontece
com as mãos: quantas vezes damos as mãos e caminhamos juntos, e, através desta
parte do corpo, mostramos a união de uns com os outros.
2916 20. Por causa do que deve ser feito no fim, o pontífice que oferece este sacrifício
sagrado e inefável, deve também começar por aqui; quando tiver acabado toda a liturgia
da consagração, começa a partir o pão como convém, de modo que, doravante, é Cristo,
nosso Senhor, que, por este pão, devemos representar em nosso coração, pois em cada
uma das parcelas é Ele que Se aproxima daquele que a recebe...
2917 21. Deste modo, ao chegar ao fim de tudo, o arauto da Igreja clama de novo e recor-
da brevemente aqueles por quem todos devem orar, «e, antes de mais nada, diz isto:
devemos orar por aquele que trouxe esta oblação santa», como se dissesse: por nós que
recebemos o favor desta oblação, oremos ainda para nos tornarmos dignos de a ver e
estar de pé junto dela, e de nela participar. Então o pontífice termina a oração, pedindo
que este sacrifício seja aceite por Deus e que venha sobre todo o mundo a graça do
Espírito Santo, para podermos obter o favor de nele participar sem ser para nossa con-
denação, porque é infinitamente e demasiado sublime e elevado para nós.
2918 22. Quando o pontífice termina a oração com estas palavras, «abençoa o povo com a
“paz” e este responde com a oração habitual que todos os assistentes dizem, como
devem, com a cabeça inclinada». E, quando a oração já tiver terminado, quando tudo
tiver chegado ao fim e cada um estiver atento para tomar o «Santo», então «o arauto da
TEODORO DE MOPSUÉSTIA 687

Igreja clama: Estai atentos», e com a voz ele prepara toda a gente a prestar atenção ao
que vai ser dito. «E o pontífice clama: O Santo aos santos», porque, efectivamente,
aquele alimento que é o Corpo e o Sangue de nosso Senhor é santo, imortal e pleno de
santidade, uma vez que o Espírito Santo desceu sobre ele. Ora, nem toda a gente toma
este alimento, mas só aqueles que já foram santificados, os que têm as primícias do
Espírito Santo, por um novo nascimento recebido no baptismo...
23. Quando, com este sentido, o pontífice diz: “O Santo aos santos”, «todos respon- 2919
dem, dizendo: Um só Pai é santo, um só Filho é santo, um só Espírito é santo. E acres-
centam: Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amen»...
24. Feito isto, e depois de toda a liturgia ter terminado, «todos nos apressamos a 2920
tomar a oblação». E do altar tremendo, demasiado sublime para ser descrito com pala-
vras, recebemos um alimento imortal e santo. Os que permanecem perto do altar e
foram eleitos para a liturgia divina aproximam-se dele para receber o divino alimento;
os outros, porém, recebem-no longe dele; mas isso não significa que haja qualquer dife-
rença no alimento, pois único é o pão e único o Corpo de Cristo, nosso Senhor, no qual
se transformou o pão que foi apresentado; essa transformação recebe-a apenas pela
vinda do Espírito Santo...
Do mesmo modo que, por meio do novo nascimento e pelo Espírito Santo nos
tornámos todos o único Corpo de Cristo, assim também pelo único alimento dos mistéri-
os sagrados, com que nos alimenta a graça do Espírito Santo, entramos todos na única
comunhão de Cristo, nosso Senhor... Depois de nos alimentarmos do mesmo Corpo de
nosso Senhor e de entrarmos em comunhão com Ele por meio deste alimento, tornamo-
nos todos o único Corpo de Cristo e recebemos todos a comunhão e a união com Ele,
que é a nossa cabeça...
O Apóstolo ensina que, ao tomá-los, ficamos unidos ao Corpo e ao Sangue de
nosso Senhor. Deste modo, quando os tomamos, permanecemos em comunhão com Ele,
sendo nós mesmos o corpo de Cristo, e por esta comunhão tornamos mais íntima aquela
que recebemos pelo novo nascimento no baptismo. Tornámo-nos o seu corpo, segundo a
palavra do Apóstolo, que diz: Vós sois o corpo de Cristo44, e noutro lugar: Cristo é a
cabeça, e é a partir d’Ele que todo o corpo, abastecido e mantido pelas junturas
e articulações, recebe o seu crescimento de Deus45.
25. É a todos nós, de maneira geral, que é concedido este dom da comunhão nos 2921
mistérios, porque todos temos igualmente necessidade deles... «Por causa disso, o pon-
tífice que preside é o primeiro a avançar para o tomar». Deste modo torna-se evidente
que a oblação apresentada segundo a ordem da liturgia, a oferece ele, segundo a regra
do sacerdócio, por toda a gente, e também ele tem necessidade de a tomar como todos
os outros... A própria oblação é oferecida para que, pela vinda do Espírito Santo, o que
é apresentado seja convertido no Corpo e no Sangue de Cristo...
Tomar este (alimento e esta bebida) pertence a todos, em geral. Mas recebe mais
aquele que, pelo amor, pela fé e pelos costumes se mostra digno de os receber, tanto
quanto é possível ao homem, sendo evidente que não há ninguém, entre os homens, que
seja digno de os receber. Na verdade, como é que um homem mortal e corruptível,
sujeito ao pecado, se poderia mostrar digno de tomar e receber esse Corpo que se
tornou imortal e incorruptível, que está no Céu e à direita de Deus, e que, a título de
Senhor e de Rei, recebe a honra de todo o mundo? Numa palavra: nós temos confiança,
por causa da misericórdia de nosso Senhor, que nos deu esses dons. Quanto a nós,
aproximamo-nos deles com o ardor e cuidado de que somos capazes, a fim de o fazermos
dignamente segundo a capacidade da natureza humana.

44
1 Cor 12, 27.
45
Col 2, 19.
688 SÉCULO V

É com esta esperança que nos aproximamos todos de Cristo, nosso Senhor. Ele
deu-nos, no santo baptismo, um novo nascimento, e através dele fez de nós o seu pró-
prio corpo, a sua própria carne, a sua descendência... Ele coloca diante de nós o pão e
o cálice, que são o seu Corpo e o seu Sangue; por eles recebemos o alimento da imor-
talidade, e também por eles a graça do Espírito Santo entra em nós e nos alimenta, para
nos tornar imortais e incorruptíveis em esperança; pelo pão e pelo cálice, duma maneira
que ninguém pode dizer, Ele leva-nos a participar nos bens futuros. E um dia, pela graça
do Espírito Santo, sem sacramentos nem sinais, seremos alimentados e tornar-nos-emos
perfeitamente imortais, incorruptíveis e imutáveis por natureza.
2922 26. Todos nós, portanto, que nos aproximamos agora, por meio destas recordações,
por estes símbolos e sinais que foram realizados, fazemo-lo como quem se abeira, com
suavidade e grande alegria, de Cristo, nosso Senhor, ressuscitado de entre os mortos...
Apesar de Ele vir até nós partindo-Se a Si mesmo, no entanto, em cada pedaço, dá-Se
todo inteiro e está perto de todos nós. Dá-Se a cada um de nós, para que O tomemos e
O abracemos com todas as nossas forças e Lhe manifestemos o nosso amor, cada qual
a seu modo...
2923 27. «Cada um de nós se aproxima, de olhos baixos e com as duas mãos estendidas».
Ao olhar para baixo, cada um paga uma espécie de dívida pela adoração; assim faz uma
espécie de profissão de fé de que recebe o Corpo do Rei... E, ao trazer as duas mãos
igualmente estendidas, reconhece verdadeiramente a grandeza deste dom que vai rece-
ber. «Estende-se a mão direita para receber a oblação que é dada; mas debaixo dela
coloca-se a esquerda», e, deste modo, se mostra uma grande reverência...
2924 28. «O pontífice, ao dar a oblação, diz: O Corpo de Cristo». Por esta palavra ele
ensina-te a não ficares preso ao que se vê, mas a representares no teu coração aquilo
em que, pela vinda do Espírito Santo, se converteu o que fora apresentado, isto é, o
Corpo de Cristo... «É por isso que tu também dizes, depois dele: Amen». Pela tua res-
posta confirmas a palavra do pontífice... «E faz-se o mesmo para tomar o cálice».
Mas tu, depois de receberes o Corpo nas tuas próprias mãos, adora-l’O... Com
um amor grande e sincero, fixa-l’O com os teus olhos, beija-l’O, e é como se fosse a
nosso Senhor Jesus Cristo, agora perto de ti, que apresentas as tuas orações... Rezas,
reconhecendo a tua fraqueza e a multidão dos teus pecados..., e glorifica-l’O como deves...
2925 29. É com estas disposições e outras semelhantes que «tu recebes e comes a comu-
nhão dos sacramentos». Não é só o corpo, mas também, antes do corpo, a própria alma
que a graça do Espírito Santo alimenta... por esta comunhão... «Depois de tomares a
oblação, farás subir até Deus a acção de graças e a bênção»..., para não seres ingrato
por este dom divino; «e permanecerás ali para pagares, com toda a gente, a tua dívida
de acção de graças e de bênção, segundo a norma da Igreja», pois é justo que todos os
que tomaram este alimento espiritual dêem graças a Deus por este grande dom, uns
com os outros e em comum.
2926 30. Durante vários dias dissemo-vos o que se refere a tais sacramentos... Pertence-vos
agora a vós servir-vos, de maneira conveniente, destes bens tão sublimes com que fos-
tes enriquecidos... Nós esforçamo-nos por participar nos mistérios, porque, por meio
destas figuras46, em sinais demasiado altos para qualquer discurso, acreditamos que
possuímos já as próprias realidades...
2927 31. Eis as disposições e outras coisas semelhantes que devemos ter, cada dia e em
toda a nossa vida, procurando tornar-nos, tanto quanto possível, dignos destes mistérios.
Seremos dignos deles, se obedecermos aos mandamentos de Cristo, nosso Senhor...
Seremos dignos deste sacramento tremendo, se tivermos as disposições de que já falá-

46
tu/ p oj.
TEODORO DE MOPSUÉSTIA 689

mos: colocando, segundo a nossa capacidade, o coração acima das coisas da terra,
procurando os bens celestes e pensando, sempre, que recebemos este sacramento na
esperança de os obter...
33. As faltas que por fraqueza humana nos sucedem, não devem levar-nos a inter- 2928
romper a nossa comunhão nos mistérios sagrados... Do mesmo modo que aqueles que
estão habituados a pecar não devem aproximar-se sem temor desta comunhão, também
aqueles que se preocupam com a sua salvação devem aproximar-se para receber os
santos mistérios, considerando que, assim como precisamos obrigatoriamente do alimento
terrestre para alimentar esta vida, também, para a vida futura, a salvação realizada por
Cristo, nosso Senhor, nos obterá, por dom divino, um alimento espiritual.
34. Convém, por isso, que nem nos afastemos deles completamente, nem nos aproxi- 2929
memos com negligência, mas nos entreguemos ao bem com todas as nossas forças.
Depois de assim procedermos, aproximemo-nos da comunhão, sabendo que, se entre-
garmos a nossa vida à incúria completa, pecando sem receio, fazendo tudo o que nos
apetece e de qualquer maneira, sem qualquer preocupação pelo bem, é para nossa con-
denação que comemos e bebemos deste alimento e desta bebida... Mas, se tivermos
cuidado com a nossa vida e nos empenharmos em fazer o bem..., as faltas que nos
acontecem por fraqueza, sem nelas pensarmos, não nos prejudicam. Pelo contrário,
receberemos uma ajuda não pequena da recepção dos mistérios. O Corpo e o Sangue
de nosso Senhor, e a graça do Espírito Santo que nos é dada (pela comunhão), dar-nos-
ão força para as boas obras e fortalecer-nos-ão nas nossas disposições, se afastarmos
os cálculos vãos e também extinguirmos completamente as faltas, desde que não tenhamos
agido voluntariamente, mas que elas nos tenham acometido sem nos darmos conta, le-
vando-nos a cair por fragilidade da nossa natureza, sem o desejar e, sentindo uma gran-
de tristeza, orarmos a Deus com viva contrição, por causa das faltas que tivermos
cometido.
35. A comunhão nos santos mistérios dar-nos-á, sem dúvida, a remissão de tais fal- 2930
tas, pois foi nosso Senhor em pessoa que disse claramente: Isto é o meu Corpo, que
será entregue por vós, para a remissão dos pecados, e: Isto é o meu Sangue, que
será derramado por vós, para a remissão dos pecados, e: Eu não vim chamar os
justos, mas os pecadores... Se fizermos o bem com diligência, nos aborrecermos do
mal e nos arrependermos sinceramente das faltas que nos acontecem..., receberemos
certamente o dom da remissão dos pecados pela recepção dos santos mistérios...
38. O pontífice dar-te-á os santos mistérios com a sua mão, dizendo: «O Corpo de 2931
Cristo». Por si próprio, ele não se julga digno de tocar e fazer esses dons; mas possui
uma graça espiritual, que recebeu para ser pontífice e que lhe dá a certeza de fazer tais
dons. Toma-os na mão, e nós recebemo-los com tranquilidade nas nossas mãos. Não só
não receamos, em virtude da sua grandeza, mas até temos confiança, por causa da
graça... Por causa da grandeza daquilo que te é dado, tens temor, e, ao pegar-lhe, tens
confiança na misericórdia d’Aquele que deu esses dons aos homens, e que também deu
ao pontífice uma tal segurança, não por causa de si próprio, mas por causa de todos
aqueles que têm necessidade da misericórdia de Deus...
39. Devemos ter estas disposições e uma caridade assim, para comungarmos nos 2932
santos mistérios. Se tivermos cometido um grande pecado, que rejeite a lei para sempre,
– isto não é dito de qualquer maneira, – é preciso abstermo-nos da comunhão e não
concedermos a nós próprios licença para não nos afastarmos destes mistérios. Que
vantagem teríamos em comungar, quando nos mostramos perseverantes nos mesmos
pecados? Mas é preciso que aflijamos a nossa consciência com todas as nossas forças
e que nos apressemos a fazer, como devemos, a penitência das faltas. Não nos receitemos
a nós mesmos o tratamento dessas faltas, mas saibamos antes que, assim como para o
nosso corpo, que é passível, Deus deu plantas medicinais, das quais se servem os espe-
690 SÉCULO V

cialistas para nosso tratamento, assim também para a nossa alma, criada mutável, nos
deu a penitência como remédio das faltas, e, desde o princípio, se deram normas sobre
ela. Os pontífices e os especialistas que tratam e curam os culpados apresentam, à
consciência dos penitentes, o tratamento de que necessitam, de acordo com a disciplina
e a sabedoria da Igreja, e segundo a medida das suas faltas.
2933 40. Foi por isso que nosso Senhor disse: Se o teu irmão pecar, vai ter com ele e
repreende-o a sós. Se te der ouvidos, terás ganhado o teu irmão. Se não te der
ouvidos, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão fique
resolvida pela palavra de duas ou três testemunhas. Se ele se recusar a ouvi-las,
comunica-o à Igreja; e, se ele se recusar a ouvir a Igreja, seja para ti como um
pagão ou um cobrador de impostos 47.
Tal é, com efeito, o tratamento dos pecados que Deus estabeleceu e confiou aos
pontífices da Igreja, a fim de que, servindo-se dele com toda a diligência, curem os
males dos homens.
2934 42. Depois de se arrepender, o pecador deve colocar-se de novo na mesma confiança
que teve antes, porque foi censurado e corrigiu os seus caminhos, e, por meio de uma
penitência estrita, recebeu o perdão dos seus pecados...
2935 44. Uma vez que sabeis isto, ou seja, que na sua grande solicitude para connosco
Deus nos ofereceu a penitência e nos mostrou o remédio da contrição e estabeleceu os
pontífices como médicos das faltas, para que, por meio deles, recebendo aqui em baixo
o tratamento e a remissão dos pecados, nos vejamos livres da ira futura, devemos apro-
ximar-nos dos pontífices com uma grande confiança e revelar-lhes os nossos pecados, a
eles que, com grande solicitude, compaixão e caridade, de acordo com as normas ex-
postas mais acima, oferecem o tratamento aos culpados, sem divulgar o que não se
deve revelar, mas guardando para si mesmos o que ocorreu, como convém a pais verda-
deiros e benevolentes, obrigados a ter em conta a vergonha dos seus filhos e a aplicar
ao seu corpo o que há-de curá-lo.
Tendo orientado assim a nossa vida, reconhecendo a grandeza dos mistérios e do
dom infinito ao qual fomos chamados, e que nos obriga para sempre, tendo o cuidado de
emendar as nossas faltas, como convém, mostrar-nos-emos dignos da esperança futu-
ra. É por causa dela que recebemos da graça divina o favor de celebrar agora este
mistério, de gozar do Reino do Céu e de todos esses bens inefáveis que durarão para
sempre, bens que todos nós vamos receber pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo,
com o qual seja dada glória ao Pai com o Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos
dos séculos. Amen.

47
Mt 18, 15-18.
AGOSTINHO DE HIPONA 691

Agostinho de Hipona

A dimensão da alma 1
36. Saber em que medida é que as consagrações 2 dos bebés lhes são úteis é uma 2936
questão particularmente obscura. Contudo devemos acreditar que lhes não são inúteis.
Quando for necessário que nos ocupemos deste ponto, a inteligência elucidá-lo-á.

Os costumes da Igreja Católica 3

LIVRO I

32. 69 Quantos bispos, presbíteros, diáconos e ministros dos mistérios 4 divinos 2937
conheci, que foram homens excelentíssimos e santíssimos, coisa que é tão difícil ver na
convivência humana e no torvelinho da vida!..
33. 70 Há uma outra ordem de cristãos que merecem igualmente os meus louvores. 2938
Refiro-me àqueles que vivem nas cidades e levam uma vida muito diferente da habitual.
Eu mesmo conheci em Milão uma comunidade de santos, com bastantes homens, aos
quais presidia um presbítero, homem bom e douto. Em Roma também conheci várias
comunidades... O jejum de muitos era incrível. Não se reduzia só a uma refeição diária
ao anoitecer, costume de uso universal 5, mas, além disso, com muita frequência, pas-
savam três ou mais dias sem comer nem beber. E não eram apenas homens os que
praticavam estas austeridades das cidades, mas havia também mulheres. Havia comu-

1
A GOSTINHO DE H IPONA , De quantitate animae liber I (=PL 32, 1035-1080; CSEL 89; BAC 21). Com este
livro damos início à selecção das obras de Agostinho. O critério que adoptámos foi o de privilegiar aquilo
que tem relação mais directa com a Liturgia, sem pretendermos ser exaustivos. Incluímos nesta síntese, que
ocupa 277 páginas desta Antologia, 29 obras de Agostinho. Para o leitor se situar mais facilmente nas
grandes etapas da vida deste grande génio cristão, indicamos as principais datas que lhe dizem respeito.
Agostinho nasceu no dia 13 de Novembro de 354, em Tagaste; recebeu educação cristã da sua mãe; estudou
em Tagaste, em Madauros e em Cartago; em 373, com 19 anos, começou a sua longa e tormentosa evolução
interior, ensinou gramática em Tagaste (374) e retórica em Cartago (375-383), Roma (384) e Milão
(Outono de 384 - Verão de 386); Deus converteu-o ao seu amor nos primeiros dias de Agosto de 386.
Toma então a decisão de renunciar ao ensino e ao matrimónio e começa a preparar-se para o baptismo:
inscreve-se entre os catecúmenos de Milão, segue as catequeses de Santo Ambrósio e foi por ele baptizado
na noite de 24 para 25 de Abril (Vigília pascal) de 386; em 391 faz uma viagem até Hipona onde o bispo
local o ordena presbítero (contra a vontade de Agostinho) e o autoriza a fundar um mosteiro, para aí viver
com outros irmãos; em 396 foi ordenado bispo; a sua actividade episcopal foi um verdadeiro prodígio:
pregação, governo da diocese, cuidado dos pobres, formação do clero, organização de mosteiros, visita
aos enfermos, defesa dos fiéis perante a autoridade civil, administração dos bens da sua Igreja; fazia
viagens incessantes para pregar noutras Igrejas, ditava cartas sem descanso, foi um defensor incansável
da fé católica contra todos os que a impugnavam. Morreu no dia 28 de Agosto do ano 430, durante o
terceiro mês do assédio de Hipona pelos Vândalos.
2
Agostinho utiliza aqui a palavra consecrationes no sentido de baptismos.
3
A GOSTINHO DE H IPONA , De moribus Ecclesiae catholicae et de moribus manichaeorum libri II (=PL 32,
1309-1378; CSEL 90; BAC 30). Obra composta em Roma em 388 e publicada em África em 389. É a primeira
apologia da fé escrita por Agostinho, recém-convertido, fundada na doutrina e na vida da Igreja católica.
4
Sacramentorum.
5
Non quotidie semel sub noctem, reficiendo corpus, quod est usquequaque usitatissimum.
692 SÉCULO V

nidades de viúvas e de virgens, que viviam do produto das suas malhas e tecidos de lã,
à frente das quais estavam as mais respeitáveis e experientes, não só na formação e
ordenamento dos costumes, mas também na instrução e cultura intelectual.
71 Nestas comunidades não se obrigava ninguém a austeridades superiores às
suas forças; e àqueles que recusavam fazê-las, os outros não os desprezavam em
virtude da sua debilidade para suportar uma vida de penitências e jejuns. Tinham
presente a insistência com que nas sagradas Escrituras se recomenda a caridade, e
também sabiam que tudo é puro para os puros e que não é aquilo que entra pela boca
que torna o homem impuro, mas o que sai. Põem todo o cuidado em abster-se de
alguns manjares, não pela sua impureza, que a não têm, mas para dominarem o desejo
excessivo e conservarem imaculada e pura a caridade de uns para com os outros.
Lembravam-se daquelas palavras: Os alimentos são para o ventre, e o ventre para os
alimentos, mas Deus destruirá tanto aquele como estes e também das outras: Nem
perdemos nada, se não comermos, nem lucramos, se comermos. Mas sobretudo lem-
bravam-se destas: O que é bom é não comer carne nem beber vinho, nem fazer coisa
alguma em que o teu irmão possa tropeçar... Não nos podia o Apóstolo ensinar mais
claramente que o que mancha a alma não são os manjares, mas a intenção com que se
comem. Por isso aqueles que são capazes de desprezar tudo isto e de saber com certeza
que a mancha não vem dos alimentos, mas do mau desejo com que são comidos,
recomenda-lhes que tenham sempre diante dos olhos a caridade: Se, por tomares um
alimento, entristeces o teu irmão, então não estás a proceder de acordo com o amor.
2939 34. 75 Não vale a pena trazer à minha presença os que fazem profissão do nome
cristão e ignoram ou não mostram com as suas obras a sua força e eficácia. Não
continueis, por isso, as vossas invectivas contra essa multidão de irresponsáveis que, apesar
de estarem dentro da verdadeira religião, são supersticiosos ou de tal maneira dados aos
prazeres do sexo, que esquecem as suas promessas para com Deus. Eu sei de muitos que
são idólatras dos sepulcros e das pinturas, de muitos que fazem libações exageradas sobre
os túmulos dos mortos e lhes oferecem banquetes de escandaloso luxo, que se sepultam eles
próprios sobre os corpos dos mortos e que até crêem que as suas orgias e embriaguez são
actos religiosos. Sei também de um grande número deles que renunciaram ao mundo, só de
palavra, e preferem viver oprimidos pelas numerosas e graves preocupações da vida mun-
dana, chegando mesmo a alegrar-se no meio delas. Mas, porque vos causa estranheza
encontrar entre tão grande multidão de pessoas algumas que, por sua vida má, vos servem
de ocasião para seduzir os simples e para os separar da salvação católica, quando dentro da
vossa reduzidíssima seita sofreis angústias de morte se vos exigimos a apresentação de um
só dos vossos eleitos, que cumpra fielmente esses mesmos preceitos de que tanto se vanglo-
ria a vossa superstição sem sentido? Noutro volume mostrarei como os vossos preceitos são
vãos, prejudiciais e sacrílegos, e como ninguém ou quase ninguém da vossa seita os põe em
prática. 76 Aconselho-vos a desistir de difamar a Igreja católica e de censurar os costumes
daqueles que ela própria condena e corrige com amor de mãe, como a maus filhos. Todos
aqueles que, por sua boa vontade e graça divina se corrigem, recuperam, através da penitên-
cia, o que perderam por seus pecados. Mas, aqueles que, por sua má vontade, acrescentam
aos seus pecados antigos outros ainda mais graves, é verdade que os toleramos no campo
do Senhor e os deixamos crescer com as boas sementes até que chegue o tempo de separar
o joio do bom grão de trigo. Se é verdade que, pelo nome de cristãos que usam, podem
comparar-se mais a palha do que a espinhos, não tardará a chegar Aquele que limpa a eira.
Ele é que separará a palha do grão e dará a cada um, com toda a justiça, aquilo que merece.
AGOSTINHO DE HIPONA 693

A fé e o Símbolo 1
1. 1 A fé católica é dada a conhecer aos fiéis por meio do Símbolo, para que a 2940
aprendam de memória, na medida em que ela pode ser resumida em poucas palavras.
Deste modo, os principiantes e os meninos de peito, que depois de terem renascido em
Cristo ainda não foram fortalecidos pelo conhecimento e a explicação muito pormenorizada
e espiritual das divinas Escrituras, podem resumir a sua fé em poucas palavras...
A exposição pormenorizada da fé serve para justificar o Símbolo, não para ocu-
par o lugar do Símbolo na mente daqueles que o hão-de aprender e recitar de memória.
Tal exposição serve para assegurar ao conteúdo do Símbolo uma defesa mais sólida,
apoiada pela autoridade católica contra as insídias dos hereges.
2. 2 Alguns pretendem demonstrar que Deus Pai não é todo-poderoso... Apoiam-se, 2941
para dizer isto, na consideração habitual e vulgar de que os artesãos, os construtores e
demais operários, se não puderem contar com a ajuda de materiais previamente dispo-
níveis, não conseguem chegar à realização do objecto da sua arte... Se estão de acordo
que Deus omnipotente é o autor do mundo, necessariamente devem reconhecer que
aquilo que Ele fez o fez do nada...
3 Por isso, nós que acreditamos em Deus Pai todo-poderoso, devemos afirmar
que não há criatura nenhuma que não tenha sido criada pelo Omnipotente. E, como
Deus criou todas as coisas pela Palavra, e a Palavra se chama verdade, e também poder
e sabedoria de Deus..., o Senhor Jesus Cristo, em quem cremos, é o nosso libertador,
guia e Filho de Deus; mas a Palavra, pela qual foram criadas todas as coisas, só pode
ter sido gerada por Aquele que as criou por ela.
Por tudo isto, cremos também em Jesus Cristo, Filho unigénito de Deus Pai, isto
é, nosso único Senhor.
Não devemos conceber esta Palavra à imagem das nossas palavras que, pronunciadas
pela nossa boca e nossa voz, vibram no ar e duram apenas o tempo em que soam.
Aquela Palavra, pelo contrário, permanece imutável... Chama-se Palavra do Pai, por-
que o Pai Se dá a conhecer por meio dela...
3. 4 Entre o nosso interior 2 e as nossas palavras, pelas quais tentamos revelar o que 2942
somos, há uma grande distância, dado que não geramos as palavras que ressoam, mas
as produzimos. E para tal utilizamos como matéria o corpo já existente... Pelo contrário,
Deus, ao gerar a sua Palavra, gera o que Ele mesmo é; e não a gera do nada nem de
qualquer matéria já criada ou formada, mas foi de Si mesmo que gerou o que Ele mesmo é.
Nós tentamos fazer o mesmo quando falamos... Está claro que procuramos mos-
trar a nossa intimidade, na medida em que isso é possível, à pessoa que nos escuta,
para que penetre nela e a conheça intimamente. Quer dizer, queremos ficar em nós
mesmos e, ao mesmo tempo, sem sair de nós mesmos, queremos produzir um sinal
capaz de nos fazer conhecer pelo outro...
Para o conseguir utilizamos as palavras, o tom de voz, as expressões do rosto, os
gestos, meios que servem para deixar transparecer o que acontece no nosso interior.
Apesar disso, não somos capazes de o conseguir, pelo que a intimidade daquele que
fala não se revela completamente...
4. 5 O Filho unigénito de Deus não foi feito pelo Pai, porque, como diz o Evange- 2943
lista, por Ele todas as coisas foram feitas. E também não foi gerado no tempo, porque

1
A GOSTINHO DE H IPONA , De fide et symbolo liber I (=PL 40, 181-196; CSEL 41; BAC 499). Explicação do
Símbolo proposta por S. Agostinho em Outubro de 393, diante dos bispos africanos reunidos no concílio
de Hipona, in secretario Basilicae Pacis.
2
Animum.
694 SÉCULO V

Deus, sendo eternamente sábio, tem sempre consigo a sua Sabedoria eterna; e também
não é inferior ao Pai, isto é, menor nalguma coisa...
Esta fé católica exclui também aqueles que afirmam que o Filho é a mesma pessoa
do Pai...
6 Mas, como a Palavra se fez carne e habitou entre nós, a própria Sabedoria que
foi gerada por Deus dignou-se ser criada como homem...
Por isso, o Filho natural é o único que nasceu da mesma substância do Pai, sendo
o que o Pai é: Deus de Deus, Luz da Luz...
8 Uma vez que, como já disse, esta Sabedoria imutável de Deus assumiu a nossa
natureza mutável..., acrescentamos à nossa fé os acontecimentos da salvação que se
realizaram no tempo por causa de nós. Cremos no Filho de Deus, que nasceu da Virgem
Maria por obra do Espírito Santo; cremos que Ele existe entre nós pelo dom de Deus,
isto é, pelo Espírito Santo, por quem nos foi concedido tão grande humildade de tão
grande Deus, que Se dignou assumir um homem completo no seio de uma Virgem,
habitar num corpo materno intacto e deixá-lo intacto ao nascer.
A este plano de salvação temporal se opuseram de muitas maneiras os hereges.
Mas, quem mantiver a fé católica e crer que um homem completo foi assumido pelo
Verbo de Deus (isto é, corpo, alma e espírito), está suficientemente protegido contra
eles... Como poderá levar à salvação uma fé que creia que a Sabedoria de Deus assumiu
o que nós temos de comum com o animal, mas não aquilo que é iluminado pela luz da
Sabedoria e que é próprio do homem?
9 Também há que detestar os que negam que Cristo nosso Senhor tenha tido
Maria por mãe na terra... Não nos obriga a desprezar a Mãe de Cristo aquilo que Ele
disse: Que há entre ti e Mim, mulher? Ainda não chegou a minha hora. Pelo contrário,
este texto quer levar-nos a compreender que Jesus, enquanto Deus, não tem mãe...
Quando for crucificado como homem, então reconhecerá a sua mãe segundo a carne e
entregá-la-á com todo o carinho ao seu discípulo muito amado.
Nem deve preocupar-nos o facto de Ele ter respondido, quando Lhe anunciaram
que sua Mãe e seus irmãos estavam à porta: Quem é minha mãe e quem são os meus
irmãos. O que estas palavras nos ensinam é a obrigação que nós temos de levar a
palavra de Deus aos nossos irmãos, sem fazermos caso dos nossos pais, quando no-lo
impeçam...
2944 5. 11 Era pequena humilhação para nosso Senhor o nascer por nós: aconteceu
também que Se dignou morrer pelos mortais, humilhando-Se até à morte e morte de
cruz... Assim, cremos que Ele foi crucificado e sepultado sob Pôncio Pilatos. Era
preciso acrescentar o nome do juiz para dar a conhecer a data.
Quando cremos na sua sepultura, isso traz-nos à memória o sepulcro novo, que
daria testemunho de que tinha ressuscitado para uma vida nova, do mesmo modo que
tinha nascido de um seio virginal. Tal como nenhum morto foi sepultado naquele
túmulo nem antes nem depois, tão pouco nenhum mortal foi concebido naquele seio
nem antes nem depois.
12 Também cremos que ressuscitou de entre os mortos ao terceiro dia, como
primogénito entre os irmãos que O haviam de seguir, aos quais chamou à adopção de
filhos de Deus e Se dignou tornar comparticipantes e herdeiros consigo.
2945 6. 13 Cremos que subiu aos Céus, lugar de felicidade, que também nos prometeu a
nós, quando disse: Serão como Anjos no Céu naquela cidade, que é a mãe de todos
nós, a Jerusalém eterna do Céu... Alguns não conhecem as nossas Escrituras, nem
sabem em que sentido foi dito: Semeia-se um corpo animal, e ressurge um corpo
espiritual... Por corpo espiritual entende-se que está de tal maneira submetido ao
espírito, que é apto para a morada celestial, depois de ter sido transformado e de toda
AGOSTINHO DE HIPONA 695

a fragilidade e impureza terrestre se ter convertido em pureza e estabilidade celestes...


Investigar como e de que maneira o corpo do Senhor está no Céu é uma curiosidade
supérflua e inútil; basta crer que está no Céu. Não é próprio da nossa fragilidade
discutir os segredos do Céu. Mas, pelo contrário, é próprio da nossa fé reconhecer a
dignidade sublime e cheia de honra do corpo do Senhor.
7. 14 Cremos também que está sentado à direita do Pai. Não é que tenhamos de 2946
imaginar o Pai como que limitado por uma forma humana, de tal modo que apareça a
nossos olhos uma direita e uma esquerda. Aquele que imagina esta direita de Deus em
sentido físico cai no sacrilégio, criticado por Paulo, àqueles que trocaram a glória de
Deus incorruptível por uma imagem representando um homem sujeito à corrupção.
Uma tal representação de Deus é proibida num templo cristão, e muito mais ainda no
nosso coração, onde se encontra o verdadeiro templo de Deus... Quando se diz à
direita, devemos entender o seguinte: na perfeita felicidade, onde estão a justiça, a paz
e a alegria... Quando se diz de Deus que está sentado, não significa a posição dos
membros, mas sim o poder de julgar...
8. 14 Cremos também que está sentado à direita do Pai. Não é que imaginemos o Pai 2947
como que limitado por uma figura humana, de tal modo que apareçam diante de nós
uma direita e uma esquerda... Ao dizermos à direita entendemos o seguinte: na suma
felicidade, onde estão a justiça, a paz e a alegria... 15 Cremos, por fim, que dali virá no
tempo oportuno, para julgar os vivos e os mortos. Com estes nomes tanto se querem
indicar os justos e os pecadores, como também... os que se encontrarem ainda vivos na
terra e os que já tiverem morrido... e que ressuscitarão quando Ele chegar.
9. 16 Depois de anunciada e confiada à nossa fé a geração divina de nosso Senhor e 2948
o seu plano de salvação dos homens, acrescenta-se à nossa confissão, para completar
a fé que temos em Deus, o Espírito Santo, de natureza não inferior ao Pai e ao Filho,
mas, por assim dizer, consubstancial e co-eterno, porque a Trindade é um só Deus.
Não de modo que o Pai seja a mesma pessoa que o Filho e o Espírito Santo, mas que o
Pai é o Pai, e o Filho é o Filho, e o Espírito Santo é o Espírito Santo, e esta Trindade
é um só Deus, como está escrito: Escuta, Israel, o Senhor teu Deus é um só Deus.
Contudo, se nos interrogarem sobre cada pessoa e nos perguntarem se o Pai é Deus,
responderemos: é Deus. Se nos perguntarem se o Filho é Deus, responderemos o
mesmo. Se tal pergunta for acerca do Espírito Santo, devemos responder que não é
senão Deus...
10. 21 Cremos também na santa Igreja católica. Também os hereges e cismáticos 2949
chamam igrejas às suas congregações. Mas os hereges, crendo em coisas falsas acerca
de Deus, violam a própria fé, e os cismáticos, pelas suas separações iníquas, rompem
a caridade fraterna, embora creiam naquilo que nós também cremos. Deste modo, os
herejes não pertencem à Igreja católica, porque esta ama a Deus, nem tão pouco os
cismáticos, porque também ama o próximo. A Igreja perdoa com facilidade os pecados
do próximo, porque pede que lhe perdoe os seus pecados Aquele que nos reconciliou
consigo apagando todos os pecados passados e chamando-nos a uma vida nova. Mas
até alcançarmos esta vida perfeita não podemos estar sem pecados. Por isso é bom
sabermos quais são.
22 Cremos também na remissão dos pecados..., 23 assim como na ressurreição
da carne... 24 Realizada esta ressurreição do corpo e libertados da condição temporal,
gozaremos da vida eterna num amor inefável e numa estabilidade sem fim... 25 Esta é
a fé que deve resumir-se em poucas palavras e que se entrega aos novos cristãos no
Símbolo. Estas poucas palavras são conhecidas pelos fiéis para que, crendo, obedeçam
a Deus; obedecendo, vivam com rectidão; vivendo com rectidão, purifiquem o seu
coração; e, purificando o seu coração, compreendam o que crêem.
696 SÉCULO V

Salmo contra a seita de Donato 1

2950 Refrão: Todos vós, que amais a paz, julgai agora a verdade.

É vergonhoso julgar favorecendo uma parte.


Quem for injusto não pode ganhar o Reino de Deus.
Achas que é de louvar quem rasga a túnica alheia?
E será crime menor romper a paz que é de Cristo?
Procuremos, sem errar, o autor de tudo isto. R.

Afligem-se os irmãos com o número dos malvados,


Esquecendo que o Senhor nos quis deixar avisados,
Ao comparar a uma rede o seu celeste reinado,
Que, pelos mares, vai colhendo toda a espécie de pescado.
Os que a puxam para terra começam a separá-lo:
O bom deitam-no nas cestas, ao mar atiram o mau.
Quem conhece o Evangelho achará, com temor santo,
Naquela rede a Igreja, e neste mundo aquele mar.
Diz-nos a mescla de peixes que os bons vivem com os maus.
O fim do mundo é a margem, onde os hão-de separar.
Os que romperam as redes muito amaram aquele mar;
As cestas são aqueles tronos que os santos hão-de alcançar. R.

Bom cristão, talvez perguntes: Quem foi que rompeu a rede?


Foram homens orgulhosos, que a si próprios chamam justos.
Ao criarem divisões e ao separarem altares
Entregaram-se ao Diabo com discussões muito antigas,
E o crime que cometeram querem pô-lo sobre os outros.
Entregaram a Escritura, mas com grande atrevimento
Disseram que fomos nós, ficando bem manifesto
Que é maior hoje o pecado do que o fora noutro tempo.
Poderá atribuir-se a entrega do Livro ao medo,
Pois por medo de morrer renegou a Cristo, Pedro.
Mas como há-de desculpar-se quem pôs em confrontação
Um altar contra outro altar? E o culpável rompimento
Da paz que nos trouxe Cristo? Temos todos de dizer
Que a perseguição não fez, nem por sombras, nada disto. R.

2951 Custódio nosso, Deus grande, só Tu podes libertar-nos


Destes pseudoprofetas que nos querem devorar.
Negros corações de lobo sob pele de ovelha escondem
E usam nome de justos para os simples enganar... R.

Disseram os nossos Pais e puseram por escrito,


Que então se passaram coisas de que eles foram testemunhas:
Alguns daqueles que entregaram os nossos Livros Sagrados
Bispos eram da Numídia e não homens da plebe... R.

1
A GOSTINHO DE H IPONA , Psalmus contra partem Donati (=PL 43, 23-32; CSEL 51; RB 47; BAC 498). Foi
escrito por volta de 394. É um salmo alfabético, com ritmo, para ser cantado pelo povo, que respondia
repetindo o refrão. Conta a história do cisma e convida os Donatistas à união. Traduzem-se por inteiro
as duas primeiras estâncias e as duas últimas. Das outras 17 traduzem-se apenas os quatro primeiros versos.
AGOSTINHO DE HIPONA 697

É tão bom e agradável o conviver como irmãos!


Ouvi a voz do profeta que nos quer ver reunidos.
Quem conseguirá provar este tão velho pecado?
Quais foram as testemunhas que ousaram confirmá-lo?... R.

Fizeram o que quiseram na sua grande cegueira.


Para uma causa tão séria e um juízo tão solene,
Não trouxeram sacerdotes em número, segundo a regra;
O acusador e o réu não apresentaram provas... R.

Gozo imenso nos daria, saber que jamais errastes,


Mas se então não foi assim, vejam-no agora os letrados!
Muitos malvados vós tendes de suportar de mau grado,
Mas da vossa comunhão não os quereis separar... R.

Honras vãs, quem as procura, com Cristo não vai reinar.


Assim há-de suceder ao chefe deste «partido»,
Que se chamava Donato e sonhava conquistar
Toda a África, com mentiras dos juízes de além-mar... R.

Investigai todo o caso, e não sereis imparciais.


O que fez então Donato, por que não o pensou antes?
Se os bispos africanos não se puseram de acordo,
Bom será que agora o julguem outros juízes diferentes... R.

Luz tendes no coração para ver o que é verdade,


Pois de Donato nos vêm os seus Actos e Palavras.
Quem os não quer aceitar, prove com outra razão,
Mas se nós a rejeitarmos é eterna a discussão... R.

Macário pode ter ido um pouco longe demais 2952


Do que a medida cristã; mas lutava pela unidade,
Ao fazer cumprir as leis do edicto imperial.
Não digo que não pecasse, mas vós pecastes bem mais... R.

Não nos imputeis, irmãos, esses tempos de Macário,


Pois nós sentimos vergonha de tão grande crueldade.
Se deles se dizem calúnias só Deus o pode julgar.
Amemos a paz de Cristo na alegria da unidade... R.

O que lê a Escritura, sabe o que quero explicar.


João Baptista pregou mui claramente, aos Judeus,
Que Cristo vinha limpá-los como à palha de uma eira
Enviando os seus discípulos a pregar, como operários... R.

Põe dentro do coração as duas eiras, para ver,


Como a Escritura nos mostra que a primeira tinha santos.
Disse Deus que sete mil guardaria para Ele;
Sacerdotes, reis e santos, muitos há naquela Lei... R.

Que pensais de tudo isto? Nasceu outra messe nova:


Por todo o orbe da terra a Igreja há-de sofrer.
Em Jesus tem um exemplo com o de Judas traidor.
Admitiu-o entre os bons e a pregar o enviou... R.
698 SÉCULO V

Rogo-vos que nos digais: Vós quereis rebaptizar-nos?


Expulsais da comunhão os vossos bispos caídos,
Mas nenhum outro após eles voltou a rebaptizar,
E aceitastes entre vós aqueles que eles baptizaram... R.

Sabeis qual é «a Católica» e quem «da cepa é cortado».


Os que entre vós são sensatos venham ligar-se à raiz,
E livrar-se-ão do fogo antes de ser ramos secos.
Há só um sinal da fé e a ninguém rebaptizamos... R.

Talvez um dia um católico se decida a ir ter contigo,


Como aqueles homens de bem que costumamos ouvir,
E te diga: «Ó meu irmão, porque queres rebaptizar-me»?
«Do passado eu não sei nada, mas estou na fé de Cristo»... R.

Vossas sedes quereis ter, apesar de ser injusto,


E embora não o penseis, dizeis que só vós sois santos,
Quando vedes abundar, entre vós, também os maus.
Talvez fosse bom dizerdes: «Dentro da rede há mistura»... R.

2953 Atendei, sem vos zangardes, ao que vos digo, irmãos:


Nada há falso no que ouvis e podeis bem comprová-lo.
Que diríeis se a Igreja como mãe vos admoestasse:
«Filhos meus, por que razão vos queixais da vossa mãe?
Dizei antes por que foi que outrora me abandonastes?
Culpais os vossos irmãos e é a mim a quem feris.
Outrora, com os gentios, quando sofri tantos males,
Abandonaram-me muitos, mas por medo é que fugiram.
Vós, porém, quem vos obriga a voltar-vos contra mim?
Dizeis, sim, que estais comigo, mas bem vedes que isso é falso.
Eu sou chamada a Católica, quanto a vós sois de Donato.
Mandou-me o apóstolo Paulo rezar por todos os reis
E a vós causa-vos tristeza ver que os reis já são cristãos.
Sois meus filhos e chorais por Deus me ter escutado!?
Quando trouxeram seus dons, não quisestes aceitá-los,
Esquecendo que os Profetas já tinham profetizado
Que muitos reis dos gentios viriam com seus presentes.
Ao rejeitar esses dons deixastes bem demonstrado
Não serdes parte da Igreja, e obrigastes Macário,
Doído de tal desprezo, a mostrar seu desagrado.
Mas que mal é que vos fiz, se sou mãe de todos vós?
Expulso os maus quando posso, e quando não posso sofro.
Padeço até se curarem ou até serem separados.
Vossa morte me atormenta; porque é que vos afastastes?
Se tanto odiais os maus, fixai-vos bem nos vossos.
Mas se tolerais os maus, porque não em unidade,
Onde ninguém rebaptiza nem há altar contra altar?
A quantos maus suportais, sem qualquer merecimento,
Pois o sofrer o deveis não a Cristo, mas a Donato».

Estes são cantos de paz, se os quiserdes escutar.


O nosso Juiz virá, ninguém O pode evitar.
Ele é quem exige contas, e nós temos de lhas dar.
AGOSTINHO DE HIPONA 699

O livre arbítrio 1

LIVRO III

23. 66 À nossa argumentação costumam os ignorantes opor certa acusação relativa à 2954
morte de crianças recém-nascidas, e a certas dores corporais com que frequentemente
vemos que elas são afligidas. Dizem pois: que necessidade tinha de nascer aquele que
morreu, antes de dar princípio a qualquer mérito da vida? E em que categoria será tido, no
Juízo final, aquele que não tem lugar entre os justos, pois nada fez de bem, nem entre os
maus, pois não cometeu nenhum pecado? A esses responde-se: relativamente ao conjunto
do Universo, e à lei absoluta da ordem de conexão de todos os seres criados, segundo os
lugares e os tempos, é impossível que um homem qualquer seja criado como supérfluo,
quando nenhuma folha de árvore podia ser criada superfluamente; mas o que na realidade
se pode é indagar superfluamente sobre os méritos de quem nada mereceu. Não é de temer
que possa ter existido certa vida intermédia entre a rectidão e o pecado, e não possa existir
uma sentença média do juiz entre o prémio e o castigo.
67 A este respeito, costumam também certas pessoas esquadrinhar que aproveita às
crianças recém-nascidas o sacramento do baptismo de Cristo, já que elas muito fre-
quentemente morrem depois de o receber, antes de sobre ele poderem conhecer qual-
quer coisa. Acerca disso, com muita piedade e razão se acredita que ao recém-nascido
aproveita a fé daqueles que o oferecem para ser consagrado2. E isto recomenda-o a
autoridade eminentemente salutar da Igreja, para que, desse modo, cada um compreenda
quanto lhe aproveita a sua própria fé, uma vez que até a fé alheia pode ser atribuída
como benefício a outros, que ainda a não têm própria. Neste sentido, não foi a fé do
filho da viúva (de Naim) que lhe aproveitou para o ressuscitar, pois estando morto é
certo que a não tinha, mas sim a fé da sua mãe. Logo, quanto mais não pode a fé de
outrem ser útil a um recém-nascido, a quem a sua própria incredulidade não pode ser
imputada?
68 Por sua vez, relativamente às dores corporais com que são afligidas as crian-
ças recém-nascidas, que pela idade não cometeram pecado algum, costuma ser aduzida
maior queixa, e para assim dizer, misericordiosa, na suposição de as almas que as vivi-
ficam não terem começado a existir antes dos próprios homens. Diz-se então: que mal
fizeram elas para sofrer estas dores? Falam como se a inocência pudesse ter mérito,
antes de alguém poder fazer qualquer mal. O facto é que Deus realiza certo bem na
correcção dos mais velhos, quando estes são atribulados com as dores e a morte dos
seus recém-nascidos, que lhes são queridos. Porque não hão-de dar-se essas tribula-
ções, quando uma vez passadas, serão para aqueles em quem se deram como se não
tivessem existido?... Quem é que sabe o que estas crianças _ com cujos sofrimentos se
quebranta a dureza, ou se exercita a fé, ou se mostra a compaixão dos mais velhos _
quem é que sabe que ditosa compensação não reserva Deus, no segredo dos seus juízos,
para essas crianças? A razão é que, embora elas nada tenham praticado de bem, entre-
tanto não foi também por haverem cometido nenhum pecado que suportaram essas
males. Não é realmente sem motivo que às crianças assassinadas, quando nosso Senhor
Jesus Cristo era buscado por Herodes para Lhe dar a morte, a Igreja as propõe como
recebidas no número glorioso dos mártires.

1
A GOSTINHO DE H IPONA , De libero arbítrio libri III (=PL 32, 1221-1310; CCL 29; CSEL 74; BAC 21;
Faculdade de Filosofia, Braga 1990). Esta obra foi escrita entre 391 e 395.
2
Para ser baptizado.
700 SÉCULO V

Contra Fausto, o maniqueu 1

LIVRO XII

2955 10. Cristo tem na terra uma voz muito grande, quando, ao aceitá-l’O, todos os povos
respondem: Amen.

LIVRO XVI

2956 29. Que significa a circuncisão da carne? Que significa ela senão a eliminação da
mortalidade, que é inerente à geração carnal?... Ora bem, para alguém se revestir de
imortalidade primeiro tem de deixar a mortalidade. É essa deposição da mortalidade
que constitui o mistério da circuncisão, mandada fazer no oitavo dia. E, de facto, ela foi
realizada no oitavo dia. Foi o Senhor que a cumpriu no seu oitavo dia senhorial que se
segue ao sábado.
É por isso que está escrito: E ao despojar-Se da carne, despojou os principados
e as potestades2. Com efeito, pela mortalidade estávamos sob o poder do ódio diabó-
lico. Cristo destruiu esse poder, pois mostrou primeiro em Si mesmo, n’Ele que é a
nossa cabeça mística, o que no momento da última ressurreição iria realizar-se em todo
o corpo, quer dizer, na sua Igreja... E, porque esta ressurreição nos justifica pela fé que
nela temos e foi tipicamente representada pela circuncisão do oitavo dia, o Apóstolo
escreveu também: E recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé, obtida
antes da circuncisão3.

LIVRO XIX
2957 11. Os homens não podem ser reunidos numa comunidade real sob qualquer denomi-
nação religiosa, seja ela qual for, verdadeira ou falsa, se não estiverem unidos entre si
por alguma participação comum em determinados sinais ou ritos4 visíveis. A força
destes ritos é de uma importância inexprimível; quando alguém a despreza, torna-se
culpado de sacrilégio. Porque não se pode, sem se cair na impiedade, desprezar aquilo
que é indispensável para a união (perfeita) com Deus.
2958 13. Os primeiros ritos 5 praticados e celebrados em virtude da Lei tinham por função
anunciar Cristo que havia de vir: quando Cristo os realizou pela sua vinda, foram
abolidos; foram suprimidos, porque tinham recebido o seu cumprimento. Porque Ele
não veio abolir, mas dar cumprimento.
Mas foram instituídos outros de muito maior eficácia, de maior utilidade, mais
fáceis de celebrar, mais reduzidos em número, como convinha, uma vez que fora
revelada a justificação pela fé e que os filhos de Deus, chamados à liberdade, tinham visto
tirar de cima dos seus ombros o jugo da servidão, feito para um povo endurecido e carnal.
2959 14. Ora, se os justos antigos, que viam naqueles ritos o anúncio da futura revelação
da fé..., estavam dispostos a suportar, e a maioria deles assim o fez, todas as perseguições
e horrores por aqueles ritos anunciadores de realidades ainda não cumpridas..., quanto
mais preparado não deve estar agora o cristão para sofrer seja o que for pelo baptismo

1
A GOSTINHO DE HIPONA , Contra Faustum manichaeum libri XXXIII (=PL 42, 207-518; CSEL 25; BAC
529). Obra escrita de 397 a 398.
2
Col 2, 15.
3
Rom 4, 11.
4
Sacramenta.
5
Sacramenta.
AGOSTINHO DE HIPONA 701

de Cristo, pela Eucaristia de Cristo, pelo sinal de Cristo, se aqueles eram promessas de
realidades que teriam lugar, ao passo que estes são provas de que já se cumpriram?

LIVRO XX

13. O nosso pão e o nosso cálice não são uns quaisquer; não nascem..., mas tornam-se 2960
para nós realidade mística por uma consagração determinada. E o que não é feito assim,
de nada vale, mesmo que seja pão e um cálice, pois permanece simples alimento de
refeição e não um sacramento da religião. Limitamo-nos a abençoá-los e a dizer sobre
eles acções de graças a Deus, por todos os seus dons, espirituais e corporais...
18. Pela sacrossanta oferenda do Corpo e do Sangue de Cristo e pela sua participação 2961
neste Corpo e neste Sangue, os cristãos celebram a memória do sacrifício outrora
realizado por Cristo...
21. O povo cristão celebra a memória dos seus mártires com religiosa solenidade, 2962
para se animar a imitá-los, para participar dos seus méritos e para ser ajudado com a
sua intercessão; não erguemos altares a nenhum mártir, mas só ao próprio Deus dos
mártires, ainda que em memória dos mártires.
Com efeito, qual foi o bispo que, estando ao altar construído sobre as «memórias»
dos santos, disse alguma vez: «Nós te oferecemos a ti, Pedro ou a ti, Paulo ou a ti,
Cipriano»? O que se oferece oferece-se a Deus, que coroou os mártires, junto das
«memórias» daqueles que Deus coroou, para que a evocação desses lugares santos
desperte em nós um sentimento mais vivo de amor àqueles a quem podemos imitar e
Àquele cujo auxílio nos torna possível a imitação.
Veneramos, portanto, os mártires com um culto de amor e de comunhão, semelhante
ao que dedicamos, nesta vida, aos santos homens de Deus, cujo coração sabemos estar
já disposto ao martírio em testemunho da verdade do Evangelho. Mas àqueles que já
superaram o combate e vivem triunfantes numa vida mais feliz, prestamos este culto
de louvor com maior devoção e confiança do que àqueles que ainda lutam nesta vida.
Mas o culto que em grego é chamado latrei/a, e que em latim não se pode dizer
apenas com uma palavra, e que consiste na adoração devida à divindade, reservamo-lo
só a Deus e não o prestamos aos mártires nem ensinamos que se lhes deva prestar.
Como a oblação do sacrifício faz parte deste culto de latria – e por isso se chama
idolatria a oblação feita aos ídolos – nós não o oferecemos nem mandamos oferecer aos
Anjos, aos santos, aos mártires; e, se alguém cai em tão grande tentação, é advertido
com a verdadeira doutrina, para que se corrija e tenha cuidado.
Os santos, os homens e os Anjos recusam-se a apropriar-se destas honras devidas
exclusivamente a Deus. Assim fizeram Paulo e Barnabé quando os habitantes da
Licaónia, impressionados com os milagres feitos por eles, quiseram oferecer-lhes sa-
crifícios como se fossem deuses; mas eles, rasgando as suas vestes, proclamaram que
não eram deuses e, deste modo, impediram que lhes fossem oferecidos sacrifícios...
Uma coisa, porém, é o que nós ensinamos, e outra o que suportamos; uma coisa
é o que mandamos fazer, e outra o que queremos corrigir e nos vemos forçados a
tolerar, enquanto não conseguirmos corrigi-la...
Muitas são as vezes em que oferecemos o sacrifício a Deus, e seguimos então o
rito segundo o qual Ele nos manda oferecer o sacrifício, de acordo com a revelação do
Novo Testamento. Este rito pertence ao culto chamado latria, que só a Deus é devido... A
carne e o sangue deste sacrifício foram prometidos em figura, nas vítimas, antes da
vinda de Cristo; na Paixão de Cristo atingiram a plena realidade; e, depois da Ascensão
de Cristo, são celebrados no sacramento memorial. Assim, entre os sacrifícios dos pagãos
e os dos Judeus, há a mesma diferença que existe entre uma contrafacção e uma figura
profética.
702 SÉCULO V

O Baptismo 1

LIVRO I

2963 1. 2 Assim como o baptizado, ao separar-se da unidade, não perde o sacramento do


baptismo, assim também o que foi ordenado, ao separar-se da unidade, não perde o
sacramento de administrar o baptismo... Os que já estavam baptizados antes de se
separarem não são rebaptizados quando regressam; do mesmo modo os que se convertem,
se tinham sido ordenados antes da sua separação, não são ordenados de novo: ao
contrário, se a unidade da Igreja o exige, continuam a administrar o que antes administravam,
ou, se não o administram, conservam sempre o sacramento da sua ordenação; e, por
isso, não se lhes impõem as mãos como se fossem leigos...
2964 12. 18 Deve reconhecer-se que um homem pode receber o baptismo de Cristo, mas,
se mantiver o seu coração na malícia e no sacrilégio, impede que se realize a remissão
dos seus pecados... Aquele que se aproximou do baptismo com hipocrisia não volta a
receber depois o baptismo, mas fica purificado pela sua conversão sincera e confissão
verdadeira...
2965 13. 21 Sucede, com muita frequência, que um homem tem um inimigo, ao qual dedica
um ódio violento... Assaltado, de repente, por um perigo de morte, perturba-se e pede
o baptismo, que recebe, com tanta rapidez, que nem sequer há tempo para fazer a
necessária interrogação de poucas palavras, e, menos ainda, para nos determos em
exposição demorada para que deite para fora do coração aquele ódio... E isto sucede
continuamente...
Que havemos de dizer? Perdoam-se ou não se perdoam os pecados a este homem?...
Quer se perdoem quer não se perdoem, é necessária a cura posterior. E, contudo, se
continuar a viver e reconhecer que deve converter-se e de facto se converte, não se
baptiza de novo...
2966 14. Há apenas uma Igreja que pode ser chamada católica. Ela possui, noutras comu-
nidades dissidentes, bens que lhe pertencem a ela, e, pelo que ela possui de seu nessas
comunidades, é ela, em todas as circunstâncias, que gera, e não estas.

LIVRO II

2967 7. 12 Não venhais argumentar com a autoridade de Cipriano na questão da reiteração


do baptismo, mas sede antes fiéis, connosco, ao exemplo de Cipriano na questão da
manutenção da unidade. É verdade que a questão do baptismo não tinha ainda sido
tratada expressamente. Apesar disso, a Igreja mantinha com fidelidade o costume
muito saudável de corrigir o que estava mal entre os cismáticos e os hereges, mas sem
repetir o que tinha sido dado de uma vez para sempre: ela continuava a curar a ferida
e a não aplicar remédios ao que estava são. Admito firmemente que este costume
remonta aos Apóstolos. Há muitas práticas que não são confirmadas nem nos seus
escritos nem nos concílios reunidos pelos seus sucessores e que, no entanto, porque
são observados em toda a Igreja, são considerados como estabelecidos por directivas
suas e sob a sua influência...

1
A GOSTINHO DE H IPONA , De baptismo libri VII (=PL 43, 107-244; CSEL 51; BAC 498). Esta obra foi escrita
por volta do ano 400.
AGOSTINHO DE HIPONA 703

LIVRO IV

1. A Igreja, comparada ao Paraíso mostra-nos que há homens que podem receber o 2968
baptismo fora da Igreja, mas que ninguém poderá obter e conservar a salvação bem-
-aventurada fora dela. Na verdade, os rios que correm da fonte do Paraíso, segundo a
afirmação da Igreja, difundem-se largamente fora da fonte do Paraíso. Mencionam-se
os seus nomes e os países que eles banham e o facto de correrem fora do Paraíso: todos
conhecem isso. É claríssimo que não é no Egipto, nem na Mesopotâmia, onde esses
rios desaguam, que se encontram as delícias atribuídas ao Paraíso. Acontece, então,
que a água do Paraíso se encontra fora do Paraíso, mas a felicidade só se encontra no
Paraíso. Por isso, o baptismo da Igreja pode existir fora da Igreja, mas o dom da vida
bem-aventurada só se encontra na Igreja.
23. 30 É difícil dizer qual é o valor e qual é o fruto da santificação do sacramento 2, 2969
quando ele é aplicado corporalmente ao homem... Se o sacramento não tivesse um
grande valor, o Senhor não o teria recebido do seu servo 3. Mas é preciso considerá-lo
em si mesmo, independentemente da salvação que ele tem por finalidade dar ao ho-
mem... No caso do ladrão, a quem ele faltou corporalmente4, a salvação realizou-se
porque a piedade a tornou espiritualmente presente. Do mesmo modo, quando está
presente a santificação 5, mesmo que falte, por necessidade, o que o ladrão teve 6,
recebe-se a salvação.
Esta é a tradição guardada por toda a Igreja no que diz respeito ao baptismo das
crianças: sem dúvida que elas não podem ainda acreditar de coração para a justiça e
confessar com os lábios para a salvação 7, como o bom ladrão o pôde fazer; muito ao
contrário, os seus choros e gritos, enquanto se celebra o mistério, opõem-se às pala-
vras místicas; contudo, nenhum cristão irá dizer que as baptizamos inutilmente...
24. 31 As crianças baptizadas recebem, primeiro, o sacramento da regeneração e, se 2970
guardarem a piedade cristã, juntar-se-á também nos seus corações a conversão, cujo
mistério se realizou primeiro no corpo. Do mesmo modo que no ladrão, o que faltava
do lado do sacramento do baptismo foi suprido pela bondade do Todo-poderoso, dado
que não fora por orgulho ou desprezo que dele fora privado, mas por força das circuns-
tâncias, assim também devemos acreditar, relativamente às crianças que morrem após
o baptismo, que a própria graça do Todo-poderoso supre a incapacidade de chegarem,
pela fé do coração, à justiça e, pela confissão de boca, à salvação, na qual as coloca a
fraqueza da sua idade e não uma vontade ímpia.
Deste modo, quando outros respondem por elas para que se realize em seu favor
a celebração do baptismo, isso é certamente válido para a sua consagração, uma vez
que não podem responder por si mesmas. Mas não é a mesma coisa quando um outro
responde por aquele que pode8. Esta regra inspira-se na palavra do Evangelho, cuja
leitura comove naturalmente toda a gente: Ele já tem idade para falar por si9...
25. 32 Tudo isto mostra que uma coisa é o sacramento do baptismo e outra coisa a 2971
conversão do coração, mas que a salvação do homem precisa de ambos os elementos
para se realizar. Se faltar um deles, não devemos pensar que o outro também falta,
porque o primeiro pode existir sem o segundo na criança, e o segundo pôde existir sem

2
Do baptismo.
3
João Baptista.
4
Não recebeu o baptismo de água.
5
O baptismo de água.
6
Um acto de fé pessoal.
7
Rom 10, 10.
8
Agostinho considera que uma criança pode responder pessoalmente quando chega à idade de sete anos.
9
Jo 9, 21.
704 SÉCULO V

o primeiro no ladrão; Deus supriu, tanto num caso como no outro, uma falta
involuntária...
2972 31. Aquilo que a Igreja universal defende, e que sempre se manteve, apesar de não
ter sido instituído por um concílio, só pode vir da tradição apostólica.

LIVRO VI

2973 25. 47 Se a água não ficasse santificada pelo facto de, por incompetência, o orante
pronunciar algumas palavras erradas, então há muitos irmãos na Igreja, uns maus,
outros bons, que não santificam a água. Com efeito, se as orações que muitos com-
põem fossem recitadas por pessoas mais doutas, todos os dias seriam corrigidas e
nelas se encontrariam muitas coisas opostas à fé católica10. No caso de se provar que
alguns foram baptizados com essas orações ditas sobre a água, mandar-se-iam baptizar
de novo? Porquê? Porque muitas vezes a intenção do orante supera o defeito da oração
e porque as palavras evangélicas, sem as quais não pode celebrar-se o baptismo, têm
tal poder, que por elas ficam anulados todos os defeitos da oração contra a regra da fé...
O herege que utiliza uma oração defeituosa e não tem o bom afecto da caridade,
através do qual possa superar essa incompetência, é semelhante a qualquer outro que,
na Igreja católica, seja invejoso e mau, como os que reprovam Cipriano, e eventualmente
possa utilizar alguma oração na qual se diga algo contra a regra da fé; também há muitos
que deparam com orações compostas por charlatães incapazes, ou por hereges11 e que,
devido à simplicidade da ignorância, não conseguindo descobrir os erros que elas
contêm, as utilizam como se fossem boas. Ora bem, o que nelas está errado não elimina
o que está certo, mas ao contrário...
Aliás, se alguém mau e perverso recita uma oração correcta e em nada oposta à fé
católica, não se torna justo pelo facto de a oração ser correcta. E, se utiliza uma oração
errada nalguns pormenores, Deus está presente nas suas palavras evangélicas, sem as
quais não se pode celebrar o baptismo de Cristo. Ele próprio santifica o seu sacramento, de
modo que o homem, antes de ser baptizado, ao baptizar-se, ou depois de se baptizar,
conseguirá a salvação quando se converter de verdade...
Quem ignora, aliás, que não há baptismo de Cristo se lhe faltarem as palavras
evangélicas que constituem o Símbolo? Mas, é mais fácil encontrar hereges que de
modo nenhum baptizem, do que alguns que baptizem sem aquelas palavras. Por tudo
isso dizemos que nem todo o baptismo é o mesmo em toda a parte. Só é sempre o
mesmo o baptismo de Cristo, isto é, aquele que se celebra com as palavras evangélicas.
Esse não pode ser profanado pela maldade de ninguém...
2974 26. 50 Como o admite o próprio Cipriano, os que dizem mal e os invejosos bapti-
zam, pois também eles se encontram dentro (da Igreja). Do mesmo modo, também os
hereges podem baptizar, já que o baptismo é sacramento de Cristo, ao passo que a
inveja e a heresia são obras do Diabo; mas nem por isso o invejoso e o herege podem
fazer com que o sacramento de Cristo seja contado entre as obras do Diabo12...
2975 27. 52 O que nós aprovamos nos hereges não é o seu baptismo, como não é o
baptismo dos avarentos, dos traidores, dos enganadores, dos ladrões, dos invejosos, o
que aprovamos neles. Todos estes são injustos, mas Cristo é justo, e eles não podem
profanar, com a sua iniquidade, aquilo que diz respeito ao baptismo de Cristo em si
mesmo...13
10
Multorum enim preces emendantur quotidie, si doctoribus fuerint recitatae, et multa in eis reperiuntur
contra catholicam fidem.
11
Multi quippe irruunt in preces non solum ab imperitis loquacibus sed etiam ab haereticis compositas.
12
Deus é o autor da graça, mas não é o autor da maldade do ministro.
13
Ou seja: a Cristo, autor do baptismo, não O profana a maldade do ministro.
AGOSTINHO DE HIPONA 705

36. 69 Se o baptismo não for realizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito 2976
Santo, deve considerar-se como próprio dos hereges e ser refutado como mau, com
toda a espécie de argumentos. Mas, se nele reconhecemos esse nome 14, temos de fazer
uma distinção clara entre as palavras evangélicas e o erro dos hereges, aprovando o que
neles encontramos de correcto e corrigindo o errado...
42. 82 É bem claro que (a Igreja) não rebaptiza ninguém, pois só baptiza os que não 2977
estão baptizados...

LIVRO VII

1. 1 Pedimos desculpa aos nossos leitores por tratarmos várias vezes dos mesmos 2978
temas, sob formas diversas. Não há dúvida de que a santa Igreja católica, em todos os
povos, perante uma certa obscuridade que alguns pontos desta questão do baptismo têm
originado, isto é, se o baptismo dos hereges e cismáticos pode ser o mesmo da Igreja
católica, se sente protegida pela autoridade do costume primitivo e de um concílio ple-
nário. Houve, contudo, pessoas respeitáveis, e principalmente Cipriano que, embora
permanecendo na unidade, viram as coisas de outro modo, pelo que pretendem alguns,
que estão longe da caridade dele, servir-se agora dessa autoridade contra nós. É por
isso que, tendo-se apresentado a oportunidade de examinar todos os pontos que encon-
tramos no concílio e nas cartas acerca deste problema, nos vemo forçados a voltar uma
e outra vez ao mesmo tema e a mostrar que a Igreja católica e universal tem toda a
razão ao determinar que os hereges e cismáticos, que já receberam o baptismo de Cris-
to na seita de onde vieram, devem ser admitidos com ele na comunhão católica, depois
de emendados do seu erro, e de serem radicados e fundados na caridade, de modo que,
no que se refere ao sacramento do baptismo, não recebam o que não lhes faltava, mas
lhes aproveite o que já tinham.
O próprio bem-aventurado Cipriano, agora que o seu corpo corruptível já não lhe
aperta a alma, nem a sua morada terrestre lhe oprime a mente pensadora, consegue
penetrar mais serenamente a verdade que mereceu alcançar pela caridade. Venha ele,
com as suas orações, em ajuda daqueles que se debatem na mortalidade deste corpo
como em núvem escura, a fim de que, na medida do possível e com a graça de Deus,
imitemos as suas boas obras.
Se ele pensou de modo diverso em alguma coisa e persuadiu alguns irmãos e
colegas a segui-lo em algo que, graças à luz d’Aquele a quem amou, já vê agora com
claridade, nós, muito longe dos seus méritos, queremos seguir, apesar da nossa fraque-
za, a autoridade da Igreja católica, da qual ele foi membro muito distinto e querido, e
explicar essas questões perante os hereges e cismáticos. Estes, separados da unidade
que ele manteve, vazios da caridade que nele era pujante, tombados da humildade em
que ele persistiu, foram o alvo da sua reprovação e condenação, na medida em que
descobriu, com mais caridade, que eles procuravam penetrar nos seus escritos para
semear discórdias, e não para tornar mais sólida a paz e imitar o que ele fez. São assim
os que se chamam cristãos Nazarenos e praticam a circuncisão da sua carne como os
Judeus, herejes nascidos do erro em que caiu Pedro, recriminado por Paulo, e no qual
persistem...

14
Essa fórmula.
706 SÉCULO V

Confissões 1

LIVRO I

2979 1. 1 Sois grande, Senhor e infinitamente digno de ser louvado. É grande o vosso
poder, e sem limites a vossa sabedoria. O homem, pequena parcela da vossa criação,
quer louvar-Vos... Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque nos
criastes para Vós e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Vós.
Fazei, Senhor, que eu saiba e compreenda, se primeiro Vos devo invocar ou louvar, se
primeiro Vos devo conhecer ou invocar...
2980 4. 4 Então, que sois Vós, meu Deus? Que sois, pergunto, senão o Senhor Deus?
Quem é Senhor além do Senhor? Ou quem é Deus além do nosso Deus? Ó Deus tão
alto, tão poderoso, tão omnipotente, tão misericordioso e tão justo, tão oculto e tão
presente, tão formoso e tão forte, estável e incompreensível, imutável e tudo mudando,
nunca novo e nunca antigo, renovando todas as coisas e cavando a ruína dos orgulhosos,
sem que dêem por isso; sempre em acção e sempre em repouso, arrecadando sem
precisão, conduzindo, enchendo e protegendo, criando nutrindo e completando, bus-
cando, embora nada Vos falte. Amais sem Vos inflamardes, ardeis em ciúme sem desas-
sossego, arrependeis-Vos e não sofreis, irais-Vos e estais calmo, mudais as obras, mas
não mudais de resolução; recolheis o que encontrais, sem nunca o ter perdido; nunca
estais pobre e alegrais-Vos com os lucros; jamais avaro e exigis juros. Damo-Vos mais
do que pedis, para que fiqueis devedor, mas quem é que possui coisa alguma que não
seja vossa? Pagais as dívidas a ninguém devendo, perdoais as dívidas sem nada perder.
E que dizemos nós, meu Deus, minha vida, minha santa doçura, ou que diz alguém,
quando fala de Vós? Mas ai dos que se calam acerca de Vós, porque são mudos mesmo
que falem muito.
2981 11. 17 Ainda criança, ouvira eu falar da vida eterna que nos foi prometida pela
humildade do Senhor nosso Deus, descido até à nossa soberba. Fui então marcado com
o sinal da cruz e recebi o condimento do vosso sal, logo que saí do seio de minha mãe,
que punha em Vós todas as esperanças.
Vós vistes, Senhor, que sendo eu ainda criança e estando um dia a arder em febre
repentina, quase a morrer, por causa de uma paragem de digestão, Vós vistes, meu
Deus, porque já então éreis o meu guarda, com que ardor do meu espírito e com que fé
pedi à piedade da vossa Igreja, minha Mãe e Mãe de todos nós, o baptismo do vosso
Cristo, meu Deus e Senhor. E a minha mãe carnal, que mais custosamente dava à luz
também a minha salvação eterna, de coração puro na vossa fé, diligenciava a toda a
pressa que eu fosse iniciado e purificado nos vossos sacramentos salvadores, confes-
sando-Vos eu, Senhor Jesus, para a remissão dos pecados. De repente, porém, senti-me
melhor, e a minha purificação foi diferida como se fosse necessário continuar a sujar-me,
se vivesse, porque, depois do banho baptismal, as recaídas na imundície do pecado
seriam mais graves e perigosas.
Já acreditava eu, ela e todos os de casa, excepto o meu pai2, que, no entanto, não
conseguiu vencer o direito da piedade materna sobre mim e fazer com que eu não
acreditasse em Cristo, tal como ele ainda não acreditava. Ela fazia tudo para que Vós
fôsseis meu Pai, meu Deus, mais do que ele, e Vós a ajudáveis nisto a vencer o marido,
a quem melhor servia, porque também nisto Vos servia a Vós e assim lho ordenáveis.

1
A GOSTINHO DE H IPONA , Confessiones (=PL 32, 659-868; CCL 27; CSEL 33; Livraria Apostolado da
Imprensa, Porto 1955; Imprensa Nacional – Casa da Moeda [Texto latino e tradução], Lisboa 2000). As
Confissões foram escritas entre 397 e 400.
2
Patrício só no fim da vida recebeu o baptismo.
AGOSTINHO DE HIPONA 707

18 Peço-Vos, meu Deus, pois eu queria saber, se também Vós o quiserdes, por
que desígnio se prolongou a minha vida, para eu não ser baptizado: terá sido ou não
para meu bem que me foram como que soltas as rédeas do pecado? Porque é que ainda
hoje, de toda a parte, me chega aos ouvidos, a propósito disto ou daquilo: «Deixai-o
fazer, ainda não é baptizado»? Mas da saúde do corpo ninguém diz: «Deixai-o ferir-se
ainda mais: ainda não está curado»! Quanto melhor não seria que eu fosse logo curado,
obtendo por meu empenho e dos meus familiares que a salvação da minha alma3, uma
vez recebida, fosse colocada sob a vossa protecção, de Vós que ma tínheis dado.
Teria sido melhor. Minha mãe, porém, já previa quantas e quão grandes ondas de
tentações pareciam ameaçar-me depois da infância e preferiu expor-me a elas, como
terra grosseira em que eu depois receberia forma4, do que expor-me a esse perigo como
imagem já formada pela divina graça5.

LIVRO III

5. 9 Decidi aplicar o meu espírito às Sagradas Escrituras e ver que tais eram. E eis 2982
que vejo uma coisa não manifesta para os orgulhosos, nem clara para as crianças..., e eu
não era pessoa que pudesse entrar nela ou inclinar a minha altivez para os seus passos.
Quando me apliquei à Escritura, não o senti assim como agora ao escrever, mas ela
pareceu-me indigna de ser comparada à nobreza de Cícero. O meu orgulho rejeitava o
seu estilo, e a minha vista não penetrava no seu interior...

LIVRO IV

4. 7 Naqueles anos em que pela primeira vez começava a ensinar no município em 2983
que nasci, arranjei um amigo extremamente querido, companheiro de estudos, da minha
idade e, como eu, em plena flor da adolescência. Crescera comigo desde menino, juntos
fôramos à escola, juntos tínhamos brincado... Tinha-o desviado da verdadeira fé, que
na adolescência ele já não conservava nem sincera nem profundamente, para fábulas
supersticiosas e perniciosas, por causa das quais minha mãe chorava por mim. Agora,
já homem, andava comigo espiritualmente no erro, e a minha alma não podia prescindir dele...
8 Estando ele cheio de febre, ficou de cama durante muito tempo sem dar acordo
de si, num suor mortal, e, perdida a esperança de recuperação, foi baptizado estando
inconsciente, sem que eu me preocupasse, e, presumindo que a sua alma conservaria
mais o que tinha recebido de mim, do que aquilo que se fazia no seu corpo, estando ele
inconsciente. Mas foi muito diferente. Com efeito, recuperou e ficou de saúde, e,
imediatamente, logo que pude falar com ele – e pude assim que ele pôde, uma vez que
eu não saía de ao pé dele e dependíamos muitíssimo um do outro – tentei junto dele pôr
a ridículo o baptismo, como se também ele estivesse disposto a fazê-lo, baptismo que
recebera completamente ausente de mente e sentidos. Mas ele já tinha sido informado
de o ter recebido. Logo me repeliu como a um inimigo e admoestou, com admirável e
repentina liberdade, a que, se quisesse ser seu amigo, deixasse de lhe dizer tais coisas...

LIVRO V

9. 16 E eis que sou apanhado pelo flagelo da dor corporal e ia-me já desta vida, 2984
levando comigo todos os males que cometera contra Vós, contra mim e contra os

3
A expressão «salvação da alma» designava correntemente, em África, o baptismo.
4
Isto é, antes do baptismo.
5
Ou seja, depois do baptismo.
708 SÉCULO V

outros, muitos e graves males por cima da algema do pecado original, com que todos
morremos em Adão... No meio de tão grande perigo não desejava o vosso baptismo, e
era melhor em criança quando o implorei à piedade de minha mãe, como já recordei e
confessei. Mas tinha crescido na minha vergonha e, demente, zombava dos conselhos
da vossa medicina, Vós que não me deixastes morrer duas vezes nesse estado. Se o
coração de minha mãe fosse atingido por tal golpe, jamais havia de se curar. Não sou
bastante eloquente para exprimir o que se passava a meu respeito no seu coração e de
como me dava à luz espiritualmente, com muito maior solicitude do que me tinha dado
fisicamente.
17 Por isso, não vejo como se curaria, se a minha morte em tal estado trespassasse
as entranhas do seu amor. E onde estariam tantas e tão frequentes preces ininterruptas?
Em parte nenhuma senão junto de Vós. Acaso Vós, Deus de misericórdia, desprezaríeis
o coração contrito e humilhado6 de uma viúva casta e sóbria, assídua nas esmolas, tão
prestável e pronta a servir os vossos fiéis7, que não deixava passar dia algum sem levar
a sua oferenda ao vosso altar, que duas vezes ao dia, de manhã e à tarde, ia à vossa
igreja sem nunca faltar, não para conversas inúteis e chocarrices de velhas, mas para
Vos ouvir nos vossos sermões, e Vós a ela nas suas orações?
E poderíeis Vós, cujo dom a fazia como era, desprezar e excluir do vosso auxílio
as suas lágrimas com que Vos pedia, não ouro e prata, nem bem algum variável e
instável, mas sim a salvação da alma de seu filho? De modo nenhum, Senhor, muito
pelo contrário, Vós estáveis presente e ouvíeis e agíeis pela ordem em que predestináreis
que devíeis agir. Longe de mim pensar que Vós a enganáveis naquelas vossas visões e
respostas, as que eu já referi e as que não referi, que ela conservava no seu peito fiel e,
rezando sempre, Vos apresentava como títulos dos vossos compromissos. E, porque a
vossa misericórdia é para sempre8, condescendeis em tornar-Vos, por vossas promessas,
devedor daqueles a quem perdoastes todas as dívidas...
2985 10. 18 Restabelecestes-me, pois, daquela doença e salvastes o filho da vossa serva,
por enquanto no corpo, para que houvesse a quem dar uma saúde melhor e mais segura.
Já em Roma juntava-me àqueles santos enganados e enganadores: não apenas aos seus
ouvintes..., mas ainda àqueles a quem chamam eleitos9. Ainda me parecia que não
somos nós que pecamos, mas sim que peca em nós não sei que outra natureza, e
comprazia-me que o meu orgulho ficasse de fora da culpa e, quando eu fizesse algum
mal, não confessar que eu o tinha feito, para poderdes curar a minha alma, porque
pecava contra Vós; pelo contrário, gostava de me desculpar e acusar não sei o quê que
estava comigo e não era eu. E, contudo, eu era um todo e contra mim me dividira a
minha impiedade, e esse pecado era tanto mais incurável, quanto eu julgava não ser
pecador...
2986 13. 23 E fui para Milão, para junto do bispo Ambrósio, famoso entre os melhores
em toda a terra, vosso devoto adorador, cujos discursos naquele tempo distribuíam ao
vosso povo zelosamente a flor do trigo, a alegria do azeite e a sóbria ebriedade do
vinho. Para junto dele era conduzido por Vós e sem saber, a fim de que por ele,
cientemente, fosse conduzido a Vós. Aquele homem de Deus recebeu-me paternalmente
e acolheu a minha vinda com todo o amor de bispo. E eu comecei a gostar dele, a
princípio não como mestre da verdade, que eu não tinha nenhuma esperança de encon-
trar na vossa Igreja, mas como homem afável para comigo. E ouvia-o com interesse a
pregar ao povo, não com a intenção com que devia ouvi-lo, mas como que examinando
a sua eloquência, para ver se correspondia à sua fama, ou se a sua fluência era maior ou

6
Sal 50, 19.
7
Sanctis tuis.
8
Sal 117, 1.
9
Os maniqueus utilizavam, para os catecúmenos, os mesmos nomes da Igreja católica.
AGOSTINHO DE HIPONA 709

menor do que se dizia, e ficava suspenso das suas palavras, com toda a atenção, mas
sem interesse pelo conteúdo que eu desprezava, e deleitava-me com a suavidade da
linguagem, embora mais erudita, menos radiosa e agradável do que a de Fausto, no que
diz respeito ao modo de falar. De resto, não havia nenhuma comparação quanto ao
conteúdo: pois um vagueava por entre as falácias dos maniqueus, o outro ensinava
sãmente a salvação. Mas a salvação está longe dos pecadores10, como eu era nesse
tempo. Todavia, pouco a pouco, ia-me aproximando, sem saber.
14. 24 Embora me esforçasse, não por aprender o que ele dizia, mas apenas por 2987
ouvir como dizia – ficara-me esta inane preocupação, visto que perdera a esperança de
que fosse acessível ao homem o caminho para Vós – no entanto, chegava-me ao espí-
rito, juntamente com as palavras de que eu gostava, também o conteúdo que eu punha
de lado; na verdade, não podia separar uma coisa da outra. E, enquanto abria o coração
para aprender com quanta eloquência se exprimia, da mesma maneira entrava, embora
gradualmente, com quanta verdade o fazia.
Em primeiro lugar, começara já a parecer-me que essas mesmas coisas eram
defensáveis, e considerava que a fé católica, em favor da qual tinha julgado que nada se
podia dizer contra os ataques dos maniqueus, se podia afirmar sem acanhamento,
sobretudo depois de ter ouvido explicar um ou outro passo obscuro do Antigo Testa-
mento, cuja interpretação literal me matava. Explicados, assim, espiritualmente vários
passos daqueles Livros, começava a censurar o meu desespero, pelo menos aquele que
me levava a crer que não era possível de forma alguma resistir àqueles que detestavam
e escarneciam da Lei e dos Profetas.
Mas não sentia ainda que devia seguir a via católica, pelo facto de que esta podia
ter os seus doutos defensores que refutavam sem absurdo as suas objecções, nem que
devia ser condenado aquilo que eu seguia, pelo facto de que eram equivalentes as
partes da defesa. Assim, a via católica não me parecia vencida, mas sem que aparecesse
ainda como vencedora.
25 Apliquei então, com todas as forças, o meu espírito a ver se era de algum
modo possível, com alguns argumentos seguros, convencer os maniqueus de falsidade...
Assim, à maneira dos filósofos da Academia, como vulgarmente se crê, duvidando de
tudo e flutuando no meio de tudo, decidi abandonar os maniqueus, julgando que durante
o tempo da minha dúvida não devia permanecer naquela seita, a que já antepunha
alguns filósofos: todavia, recusava-me absolutamente a confiar a cura da doença da
minha alma a esses filósofos, porque não existia neles o nome salvador de Cristo.
Decidi, por isso, finalmente, ser catecúmeno na Igreja católica, segundo a tradição de
meus pais, até que alguma certeza brilhasse, para onde eu dirigisse os meus passos.

LIVRO VI

1. 1 Entretanto, para junto de mim viera minha mãe, forte em piedade, seguindo-me 2988
por terra e por mar, e em todos os perigos confiante em Vós... E encontrou-me quando
eu corria grave perigo, desesperando da procura da verdade. Contudo, ao dar-lhe conta
de que já não era maniqueu, mas também não era cristão católico, ela não exultou de
alegria, como quem ouve algo de inesperado, porque estava certa dessa parte da minha
miséria, na qual me chorava como morto, mas devendo ressuscitar para Vós...
O seu coração não vibrou, portanto, de efusiva alegria ao ouvir que em grande
parte já estava feito aquilo por que todos os dias chorava diante de Vós para que
acontecesse: que eu ainda não tinha alcançado a verdade, mas que já me tinha libertado
da falsidade; mais ainda, porque estava certa de que lhe daríeis também o que restava,

10
Cf. Sal 44, 8.
710 SÉCULO V

pois tudo tínheis prometido, respondeu-me, com toda a tranquilidade e com o peito
cheio de esperança, que acreditava em Cristo que, antes de emigrar desta vida, havia de
me ver fiel católico. Isto me disse a mim. A Vós, fonte de misericórdia, dirigia orações
e lágrimas mais frequentes, para que apressásseis a vossa ajuda e iluminásseis as
minhas trevas; acorria com mais zelo à igreja e ficava suspensa dos lábios de Ambrósio,
fonte de água que jorra para a vida eterna11...
2989 2. 2 Um dia, como trouxesse para junto dos túmulos dos santos12, como costumava
fazer em África, papas, pão e vinho puro, e fosse impedida pelo ostiário13, quando
soube que fora o bispo que o tinha proibido, acatou a proibição com tanta devoção e
obediência, que eu próprio me admirava de como tão facilmente se tornou antes acusa-
dora do seu costume, do que contestadora daquela proibição... Mas, quando trazia o
cesto com as oferendas habituais para serem provadas e distribuídas, não tinha para si
mais do que um copinho, misturado à medida do seu paladar, bastante sóbrio, que
tomava por cortesia; e, se eram muitos os túmulos dos defuntos que pareciam dever
ser honrados daquele modo, levava consigo o mesmo copinho, de que se servia em
todos os sítios, para o partilhar com os presentes, já não apenas aguadíssimo, mas
também morníssimo, em pequenos sorvos, porque procurava a devoção e não o prazer.
Por isso, quando descobriu que o ilustre pregador e bispo insigne em piedade
ordenara que tais coisas não fossem postas em prática, nem mesmo por aqueles que
sobriamente o faziam, para não se dar ocasião aos bêbedos de se embriagarem e porque
aquela espécie de banquetes fúnebres14 eram muito semelhantes à superstição dos
gentios, absteve-se deles de muito bom grado, e, em vez do cesto cheio de frutos
terrenos, aprendera a levar aos túmulos dos mártires o coração cheio de votos mais
puros, e de tal modo que dava aos necessitados o que podia, embora aí se celebrasse a
comunhão do Corpo do Senhor, pois foi por imitarem a sua Paixão que os mártires
foram imolados e coroados com o martírio.
E, contudo, Senhor meu Deus – e quanto a isso é assim que está o meu coração
na vossa presença – parece-me que minha mãe talvez não tivesse cedido facilmente à
supressão deste costume, se tivesse sido proibida por outro a quem ela não amasse
como a Ambrósio. Amava-o muitíssimo por causa da minha salvação, e ele a ela por
causa da sua religiosíssima maneira de viver, na forma como frequentava a igreja, tão
fervorosa espiritualmente em boas obras, de tal maneira que muitas vezes, ao ver-me,
rompia em louvores a respeito dela, felicitando-me por ter tal mãe, não sabendo ele que
filho tinha ela em mim, que duvidava de tudo e pensava ser de todo impossível encontrar
uma via para a vida.
2990 13. 23 Instavam comigo diligentemente para que eu me casasse. Já eu fazia o pedido,
já me era feita a promessa, graças sobretudo à intervenção de minha mãe, para que, já
casado, me lavasse a água salutar do baptismo, alegrando-se ela por eu me dispor a isso
cada vez mais, e advertindo que na minha fé se realizavam os seus desejos e as vossas
promessas... Apesar disso, instavam comigo e pedia-se a mão de uma menina, com
dois anos a menos que a idade núbil, e, como ela agradava, ficou-se à espera.
2991 15. 25 Entretanto, multiplicavam-se os meus pecados e, arrancada do meu lado,
como obstáculo para o casamento, aquela com quem me deitava, o meu coração, no
sítio onde estava agarrado a ela, ficava feito em pedaços e em ferida e sangrava. Ela
voltara para África, fazendo-Vos promessa de que não havia de conhecer outro homem,

11
Jo 4, 14.
12
Memorias sanctorum.
13
Cum ab ostiario prohiberetur.
14
Parentalia, festa fúnebre que, entre os Romanos, se celebrava cada ano em honra dos mortos da mesma
família, sobretudo dos pais.
AGOSTINHO DE HIPONA 711

deixando comigo um filho natural que eu tinha dela15. Mas eu, desgraçado e incapaz de
imitar uma mulher, incapaz de suportar o adiamento de dois anos para receber aquela
de quem era pretendente, porque não amava o casamento, mas era escravo da luxúria,
arranjei outra, não uma esposa...
16. 26 Louvor a Vós, glória a Vós, fonte de misericórdia! Eu tornava-me mais des- 2992
graçado, e Vós mais próximo. Estava cada vez mais presente a vossa mão direita para
me arrebatar e tirar da imundície, e eu não sabia... Só Vós sois o repouso. Eis que estais
presente e nos livrais dos nossos miseráveis erros e nos colocais no vosso caminho...

LIVRO VIII

2. 4 (Vitorino) lia, segundo diz Simpliciano, a Sagrada Escritura e investigava a 2993


fundo e indagava todos os textos cristãos e dizia a Simpliciano, não em público, mas
em segredo e na intimidade: «Fica a saber que já sou cristão». E aquele respondia: «Não
o acreditarei, nem te contarei no número dos cristãos, se não te vir na Igreja de Cristo».
Mas ele gracejava, dizendo: «São então as paredes que fazem os cristãos 16»? E dizia
isto muitas vezes – que já era cristão – e Simpliciano respondia-lhe o mesmo muitas
vezes, e muitas vezes ele repetia o gracejo das paredes. É que ele receava ofender os
seus amigos, arrogantes adoradores de Demónios...
Súbita e inesperadamente, Vitorino 17 disse a Simpliciano, segundo ele mesmo
contava: «Vamos à igreja; quero fazer-me cristão». E ele, não cabendo em si de alegria,
foi com ele. Quando foi instruído nos primeiros mistérios da doutrina, não muito
depois, deu também o seu nome para que fosse regenerado pelo baptismo, perante a
admiração de Roma e a alegria da Igreja. Os soberbos viam e iravam-se, rangiam os
dentes e consumiam-se: mas, para o vosso servo, o Senhor Deus era a sua esperança,
e não olhava às vaidades e às loucuras mentirosas18.
5 Por fim, quando chegou a hora de professar a fé – que, em Roma, aqueles que
se preparam para entrar na vossa graça costumam pronunciar de um lugar mais elevado, na
presença dos fiéis, usando uma fórmula consagrada, que aprendem e decoram –, os
presbíteros, dizia Simpliciano, concederam a Vitorino que o fizesse em privado, como
era costume conceder-se a alguns que parecia que iriam hesitar, por vergonha; ele,
todavia, preferiu professar a sua salvação na presença da santa multidão. Se tinha
professado publicamente a retórica, apesar de nela não ter ensinado a salvação, que
motivo havia para, ao pronunciar as vossas palavras, ter medo da vossa mansa grei, ele
que, ao proferir os seus discursos, não temeu as turbas dos insensatos? E, assim,
quando subiu para dar testemunho da fé, todos uns para os outros, uma vez que todos
o conheciam, soltaram com alarido o seu nome, em gritos de regozijo. Quem havia ali
que o não conhecesse? E soou, num tom contido, pela boca de todos os que se congra-
tulavam: «Vitorino, Vitorino».
12. 28 Eis em que estado me encontrava... Eu deitei-me debaixo de uma figueira, não 2994
sei de que modo, e soltei as rédeas ao choro, e dos meus olhos brotaram rios, sacrifício
digno de ser aceite por Vós, e, não propriamente nestas palavras, mas com este sentido,
disse-Vos muitas coisas: E Vós, Senhor, até quando... Porque não há-de ser agora?
Porque não neste momento o fim da minha torpeza»?

15
Esta criança recebeu o nome de Adeodato. Morreria na adolescência.
16
Ergo parietes faciunt christianos?
17
Retórico famoso de Roma, que acabou por se converter e ser baptizado, causando profunda impressão entre
aqueles que o conheciam.
18
Sal 39, 5.
712 SÉCULO V

29 Dizia isto e chorava com a contrição amaríssima do meu coração. Eis que, de
súbito, oiço uma voz vinda da casa ao lado. Não sei se era de menino ou menina.
Cantava e repetia muitas vezes: «Toma, lê; toma, lê». E, de imediato, mudando de
semblante, atentíssimo, comecei a considerar se as crianças costumavam cantar tais
palavras em algum tipo de brincadeira, e não me ocorria de maneira alguma que o
tivesse ouvido em algum lugar, e, abafado o ímpeto das lágrimas, levantei-me, interpretando
que o que me era ordenado por uma ordem divina não era senão que abrisse o códice19
e lesse o primeiro capítulo que encontrasse...
E, assim, abalado, voltei àquele lugar onde Alípio estava sentado, pois eu tinha
aí deixado o códice do Apóstolo, quando de lá me levantara. Peguei nele, abri-o e li em
silêncio o primeiro capítulo em que pus os olhos: Não caminheis em glutonarias e
embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e emulações;
mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne em suas
concupiscências20. Não quis ler mais, nem era preciso. Apenas acabei de ler esta frase,
penetrou-me no coração como que uma luz de serenidade, e todas as trevas da dúvida
se dissiparam.
30 Então, assinalando com o dedo ou não sei com que outra marca, fechei o
códice e, com o semblante já tranquilo, contei a Alípio... Depois vamos junto de minha
mãe, damos-lhe a saber, e ela rejubila. Contamos como tinha acontecido: exulta e fica
radiante, bendizendo-Vos, Senhor, que sois poderoso para fazer imensamente mais do
que pedimos ou imaginamos21. Bendizia-Vos, porque via que, em mim, lhe tínheis
concedido muito mais do que ela costumava pedir com lamentações, lágrimas e gemidos.
De tal forma me convertestes a Vós que eu já não procurava esposa, nem nenhuma
esperança deste mundo, mas permanecia firme naquela regra da fé, na qual tantos anos
antes me tínheis mostrado a minha mãe, e transformastes a sua tristeza em alegria
muito mais fecunda do que ela desejara, e muito mais querida e casta do que a que
procurara nos netos nascidos da minha carne.

LIVRO IX
2995 4. 8 Que clamores Vos dirigi, meu Deus, quando lia os salmos de David, cânticos de
fé, sons de piedade que afastam o espírito orgulhoso, eu, que era principiante no vosso
amor autêntico, catecúmeno, na quinta, em sossego com Alípio, também catecúmeno,
juntando-se-nos minha mãe, com vestes femininas, fé varonil, com segurança de anciã,
caridade de mãe e piedade cristã! Que clamores Vos dirigia naqueles salmos e como,
por eles, me inflamava por Vós e ardia em desejo de, se pudesse, os recitar em todo o
orbe terrestre, contra o orgulho do género humano! E, todavia, em todo o orbe são
cantados, pois nada escapa ao vosso calor 22... Teria querido, naquele momento, que
(os maniqueus) estivessem em algum lugar próximo, e, não sabendo eu que estavam ali,
olhassem o meu rosto e ouvissem os meus clamores, quando li o quarto Salmo, naquele
repouso de então, e o que aquele Salmo fez de mim: Quando Vos invocar, ouvi-me, ó
Deus de justiça. Vós, que na tribulação me tendes protegido, compadecei-Vos de mim
e ouvi a minha súplica23...
10 Os meus bens já não estavam fora de mim, nem eu os procurava, neste sol,
com os olhos da carne. Pois os que querem alegrar-se por fora, facilmente esvanecem
e se dissipam nas coisas que se vêem e são temporais...

19
Refere-se ao livro das Epístolas de S. Paulo, como explica a seguir.
20
Rom 13, 13.
21
Ef 3, 20.
22
Sal 18, 7.
23
Sal 4, 2.
AGOSTINHO DE HIPONA 713

Oiçam a nossa resposta: Está gravada dentro de nós a luz do vosso rosto,
Senhor24. Pois nós não somos a luz que ilumina todo o homem, mas somos iluminados
por Vós, para que sejamos luz em Vós, os que outrora fomos trevas... Pois aí, onde me
irara contra mim mesmo, dentro, no meu leito25, onde me tinha compungido, onde
oferecera um sacrifício, imolando o que em mim era velho e começando a meditação da
minha renovação na vossa esperança, aí começáveis a ser doce para mim, dando alegria ao
meu coração26. E eu exclamava, lendo estas coisas fora de mim e reconhecendo-as
dentro de mim, e não queria ser acrescentado em bens terrenos, devorando os tempos
e devorado pelos tempos, já que tinha, na eterna simplicidade, um outro trigo, e vinho,
e azeite27.
11 E clamava, no versículo seguinte, com o profundo clamor do meu coração: Oh
em paz! Oh Ser em si mesmo 28! Oh aquilo que eu disse: adormecerei e dormirei29!
Porque quem nos resistirá quando se cumprir a palavra que está escrita: A morte foi
engolida na vitória 30?... Lia, e inflamava-me, e não descobria que havia de fazer aos
surdos mortos, a cujo número eu tinha pertencido, eu, flagelo, ladrador ressabiado e
cego contra as Escrituras, melíferas do mel do Céu e luminosas da vossa luz, e definhava
por causa dos inimigos da Escritura.
12 Quando recordarei todas as coisas daqueles dias de férias? Mas nem me
esqueci, nem calarei a severidade do vosso açoite e a admirável prontidão da vossa
misericórdia. Torturáveis-me nessa altura com uma dor de dentes, e, como se agravasse
a ponto de eu não conseguir falar, veio-me ao coração recomendar a todos os meus, que
me rodeavam, que Vos pedissem por mim, a Vós, Deus de todo o género de salvação.
E escrevi-o numa tabuinha de cera e dei-a para que lhes fosse lida. Logo que, com
sentimento de súplica, ajoelhámos, desapareceu aquela dor. Mas que dor? Ou como
desapareceu? Senti pavor, confesso-o, meu Senhor e meu Deus31, pois nada de seme-
lhante tinha experimentado desde a mais tenra idade. E no mais fundo de mim mesmo
se entranharam os sinais da vossa vontade, e, alegrando-me na fé, louvei o vosso nome,
e essa fé não me deixava estar tranquilo quanto aos meus pecados passados, que ainda
não tinham sido perdoados pelo baptismo.
5. 13 Terminadas as férias das vindimas, fiz saber que os habitantes de Milão 2996
deviam arranjar outro vendedor de palavras para os seus estudantes, dado que, não só
eu tinha escolhido pôr-me ao vosso serviço, mas também não estava capaz de aguentar
aquela profissão, por causa da dificuldade em respirar e da dor no peito. Também
confidenciei, por carta, ao vosso bispo, Ambrósio, um santo homem, os meus erros
passados e o meu presente propósito, para que ele me recomendasse o que de mais
importante eu devia ler de entre os vossos Livros, a fim de que me tornasse mais
preparado e apto para receber uma tão grande graça. E ele mandou-me ler o profeta
Isaías, segundo julgo, por ele ser, em comparação com os restantes, o mais claro
prenunciador do Evangelho e da vocação dos gentios...
6. 14 Depois, quando chegou o momento em que devia dar o nome, deixada a 2997
quinta, regressámos a Milão. Também a Alípio foi grato renascer em Vós, juntamente
comigo, ele que já estava revestido da humildade conforme com os vossos mistérios e
que era um fortíssimo domador do corpo, a ponto de, com arrojo invulgar, caminhar

24
Sal 4, 6.
25
Recôndito da alma.
26
Sal 4, 7.
27
Sal 4, 8.
28
Sal 4, 9.
29
Sal 4, 9.
30
1 Cor 15, 54.
31
Jo 20, 28.
714 SÉCULO V

sobre o chão gelado de Itália com os pés descalços. Juntámos também a nós o jovem
Adeodato, nascido de mim carnalmente do meu pecado, ao qual tínheis dotado de
grandes qualidades. Com quinze anos incompletos ultrapassava já em talento a muitos
homens austeros e doutos. Confesso estes vossos dons, Senhor meu Deus, Criador de
todas as coisas e poderosíssimo em dar forma ao que em nós é disforme: pois eu,
naquele rapaz, não tinha nada além do pecado. Porque, na verdade, nós também o
alimentávamos na vossa disciplina, Vós no-lo tínheis inspirado, ninguém mais: confes-
so-Vos as vossas dádivas... Cedo arrancastes da terra a sua vida, e eu recordo-o, mais
tranquilo, sem recear o que quer que seja, nem quanto à sua infância, nem quanto à
adolescência, nem absolutamente nada quanto ao homem que ele seria. Associámo-lo a
nós, sendo ele da nossa idade na vossa graça, para que fosse educado na vossa disciplina:
e fomos baptizados, e abandonou-nos a preocupação pela vida passada. E eu não me
saciava, naqueles dias, daquela admirável doçura de considerar a profundidade dos
vossos desígnios sobre a salvação do género humano. Quanto eu não chorei nos hinos
e nos vossos cânticos, vivamente comovido pelas vozes da vossa Igreja, que suavemente
cantava! Aquelas vozes insinuavam-se nos meus ouvidos, e a verdade infiltrava-se no
meu coração, e daí transbordava o sentimento da piedade, e corriam as lágrimas, e eu
sentia-me bem com elas.
2998 7. 15 A Igreja de Milão começara pouco tempo antes a celebrar este género de
consolação e de exortação, com grande entusiasmo dos irmãos, que cantavam em coro
com as vozes e os corações. Havia seguramente um ano, ou não muito mais, que
Justina, mãe do jovem imperador Valentiniano, perseguia o vosso servo Ambrósio, por
causa da heresia para a qual fora seduzida pelos arianos.
O povo de Deus velava na igreja, disposto a morrer com o seu bispo, o vosso
servo. Aí minha mãe, vossa serva, tomando o primeiro lugar na preocupação e nas
vigílias, vivia das orações. Nós, então ainda gelados, longe do calor do vosso espírito,
éramos todavia contagiados pela cidade, consternada e perturbada. Nessa altura esta-
beleceu-se que se cantassem hinos e salmos, segundo o costume das regiões do Oriente,
para que o povo não se consumisse de cansaço e tristeza: costume que se conservou
desde então até hoje, sendo já muitos e quase todos os que, nos vossos rebanhos e pelo
resto do mundo, o imitam.
16 Nessa altura, por meio de uma visão, revelastes ao vosso referido bispo o
lugar onde jaziam ocultos os corpos dos mártires Protásio e Gervásio 32, que Vós
tínheis conservado incorruptos durante tantos anos no tesouro do vosso segredo, de
onde os havíeis de pôr a descoberto no momento oportuno, para refrear a raiva femi-
nina, mas imperial...
Logo se espalhou a notícia, logo ferveram e brilharam os vossos louvores, logo o
espírito daquela inimiga, ainda que não tenha chegado à fé da salvação, se reteve
todavia do furor da perseguição. Graças Vos sejam dadas, meu Deus! De onde e para
onde conduzistes a minha recordação, de modo a que também Vos confessasse estas
coisas que, embora grandes, eu, esquecido delas, tinha omitido? E, todavia, nessa
altura, ainda que se espalhasse o aroma das vossas fragrâncias 33, não corríamos atrás
de Vós; por isso chorava eu mais durante os cânticos dos vossos hinos, há muito tempo
suspirando por Vós e por fim respirando, tanto quanto o ar se expande na casa de feno.
2999 8. 17 Vós, que fazeis habitar numa só casa os que têm uma só alma, juntastes
também a nós Evódio, um jovem do nosso município. Este, servindo como agente de
negócios, converteu-se a Vós antes de nós e foi baptizado, e, abandonando a milícia do
século, tomou armas na vossa. Estávamos juntos, juntos tínhamos a intenção de habitar na

32
Os factos relatados referem-se ao ano 386.
33
Cânt 1, 3.
AGOSTINHO DE HIPONA 715

vossa santa Lei. Procurávamos que lugar nos seria de maior utilidade para Vos servir-
mos: juntamente regressámos a África. E, estando nós em Óstia, na foz do Tibre,
minha mãe morreu. Passo muitas coisas em silêncio, porque tenho muita pressa. Rece-
bei as minhas confissões e acções de graças, meu Deus, também pelas inumeráveis
coisas deixadas em silêncio. Mas não omitirei tudo aquilo que a minha alma em mim
traz acerca daquela vossa serva, que me trouxe à luz, não só da carne, para que nascesse
para esta luz temporal, mas também no coração, para que nascesse para a luz eterna.
Não direi os seus dons, mas os vossos para com ela. Pois, não fora ela própria quem se
fizera ou educara a si mesma: fostes Vós que a criastes, e nem seu pai nem sua mãe
sabiam como ela, nascida deles, viria a ser.
A disciplina do vosso Cristo, o governo do vosso Unigénito educou-a no vosso
temor, no seio de uma família fiel, bom membro da vossa Igreja. E ela não elogiava
tanto a diligência de sua mãe, relativamente à sua disciplina, quanto a de uma certa
criada decrépita, que tinha andado com o pai dela às costas, quando este era criança, do
mesmo modo que as meninas mais crescidas costumam transportar os pequeninos. Por
esta razão, e por causa da idade avançada, e dos seus excelentes costumes, era bastante
respeitada pelos seus senhores, nessa casa cristã. Daí resultava também ter ela diligen-
temente o encargo, a si confiado, das filhas dos senhores, e, no corrigi-las, quando era
necessário, era rigorosa, com santa severidade, e, no ensiná-las, era de uma sóbria
prudência. Na verdade, fora daquelas horas em que comiam, com muita moderação, à
mesa dos pais, não as deixava beber nem sequer água, mesmo que ardessem em sede,
prevenindo um mau costume e acrescentando umas sãs palavras: «Agora bebeis água,
porque não tendes vinho à vossa disposição; quando, porém, fordes para casa dos
vossos maridos, tornando-vos donas das adegas e despensas, a água parecer-vos-á
desprezível, mas o hábito de beber persistirá». E, com este modo de ensinar e a
autoridade de mandar, refreava a avidez de uma idade mais tenra e formava a própria
sede das meninas segundo uma medida honesta, a ponto de já não lhes agradar o que
não lhes era conveniente...
9. 19 Educada, pois, modesta e sobriamente, e por Vós submetida aos pais mais do 3000
que pelos pais a Vós, quando atingiu plenamente a idade núbil, dada em casamento a
um homem, serviu-o como a um amo e empenhou-se em ganhá-lo para Vós, falando-lhe
de Vós com os seus costumes, com os quais Vós a fazíeis bela, e respeitosamente
amável, e digna de admiração para seu marido. Tolerou as injúrias do leito conjugal 34,
de tal modo que nunca teve qualquer altercação com o marido por esse motivo. Pois
esperava a vossa misericórdia para com ele, de modo que, crendo ele em Vós, se
tornasse casto. Além disso, ele era tão inultrapassável na bondade como violento na
ira. Mas ela sabia não opor resistência ao marido encolerizado, não só em actos, mas
nem mesmo em palavras. Depois de o ver favorável, já verdadeiramente quebrado e
calmo, mostrava-lhe a razão do que fizera, se por acaso ele se tinha exaltado mais
irreflectidamente. Por fim, como muitas matronas, cujos maridos eram mais brandos,
tivessem marcas de pancadas até no rosto desfigurado, durante as conversas entre
amigas, elas recriminavam o comportamento dos maridos, ela recriminava a língua
delas, advertindo-as seriamente, mas em tom de brincadeira, de que, a partir do mo-
mento em que tinham ouvido ler aquelas tabuinhas que são chamadas matrimoniais,
deveriam considerá-las como se fossem os documentos por meio dos quais se torna-
vam escravas; portanto, lembradas dessa condição, não era bom que fossem arrogantes
contra seus amos...
20 Venceu com atenções até a sua sogra, a princípio irritada contra ela por causa
dos mexericos das más servas, perseverando ela na paciência e na brandura, de tal

34
As infidelidades do marido.
35
Sal 68, 18.
716 SÉCULO V

modo que a sogra espontaneamente denunciou ao filho as más línguas das criadas, por
causa das quais a paz doméstica, entre ela e a nora, era perturbada, e pediu castigo...
21 Também tínheis concedido àquela vossa serva, em cujo ventre me criastes,
meu Deus e minha misericórdia35, este grande dom: entre quaisquer pessoas dissidentes e
desavindas, quando podia, mostrava-se tão pacificadora que, embora ouvisse, de uma
e outra parte, duríssimas acusações mútuas – como as que costuma vomitar uma
discórdia inchada e mal digerida, quando a crueza dos ódios é expelida sobre uma amiga
presente acerca de uma inimiga ausente, por meio de conversas azedas – ela todavia
nada revelava a uma acerca da outra, a não ser aquilo que pudesse reconciliá-las...
22 Por fim, também ganhou para Vós o seu marido, já no fim da vida temporal
dele36, e não lamentou nele, quando já era crente, o que suportara quando ele ainda não
era crente. Ela era também serva dos seus servos. Todos os que, de entre eles, a
conheciam muito Vos louvavam e Vos honravam e Vos amavam nela, porque sentiam a
vossa presença no coração dela, sendo disso testemunho os frutos da sua santa vida.
Fora, com efeito, esposa de um único marido, retribuíra a seus pais o que deles
recebera, governara piedosamente a sua casa37, dava testemunho nas boas obras.
Tinha criado os filhos, dando-os à luz tantas vezes quantas os via afastarem-se de Vós.
Por fim, Senhor, já que, por dom da vossa graça, permitis que fale de todos nós aos
vossos servos, recordo que, antes do seu último sono, quando já vivíamos unidos em
Vós, recebida a graça do baptismo, como se nos tivesse gerado a todos, nos serviu
como se por todos tivesse sido gerada.
3001 10. 23 Ora, estando iminente o dia em que iria sair desta vida – dia que Vós conhe-
cíeis, e nós ignorávamos – acontecera, dispondo-o Vós pelos vossos modos ocultos,
segundo creio, que eu e ela estávamos sós, debruçados a uma janela, de onde se con-
templava o jardim que havia na casa em que vivíamos, perto de Óstia, na foz do Tibre,
num sítio onde, afastados da multidão, depois da fadiga de uma longa viagem, nos
recompúnhamos para a viagem por mar. Sozinhos, pois, falávamos um com o outro
com muita doçura, e, esquecendo as coisas passadas, voltados para as que estão para
vir, perguntávamos entre nós, diante da verdade presente, que sois Vós, qual haveria
de ser a vida eterna dos santos, que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem
subiu ao coração do homem38. Mas desejávamos avidamente, com a boca do coração,
as águas celestiais da vossa fonte, fonte de vida, que está em Vós39, para que, daí
aspergidos, segundo a nossa capacidade, pensássemos, fosse de que modo fosse, numa
realidade tão grandiosa.
24 E como a conversa chegasse à conclusão de que as delícias dos sentidos do
corpo, por maiores que sejam, e por mais brilhante que seja o resplendor sensível que
as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem mesmo que
delas se faça menção, erguendo-nos nós com mais ardente sentimento até àquilo que é
sempre o mesmo, percorremos gradualmente todas as coisas corpóreas, e o próprio
Céu, donde o sol, e a lua, e as estrelas brilham sobre a terra. Subíamos ainda mais em
espírito, meditando, falando e admirando as vossas obras, e chegámos às nossas almas
e transcendemo-las, a fim de atingirmos a região da abundância inesgotável, onde para
sempre Vós apascentais Israel com o pasto da verdade. Ali a vida é a sabedoria, por
meio da qual todas essas coisas foram feitas, tanto as que foram como as que hão-de
ser, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe como sempre foi e como sempre
será. Ou melhor, não há nela «ter sido» e «haver de ser», mas somente «ser», porque
é eterna: pois «ter sido» e «haver de ser» não é eterno. E, enquanto falávamos e por ela

36
Patrício morreu no ano seguinte ao da sua conversão, tinha Agostinho dezassete anos.
37
1 Tim 5, 9, 4, 10.
38
1 Cor 11, 9.
39
Sal 30, 10.
AGOSTINHO DE HIPONA 717

aspirávamos, atingimo-la por um instante, com todo o bater do coração; e suspirámos,


e deixámos aí presas as primícias do espírito, e voltámos ao ruído da nossa boca, onde
o verbo começa e acaba. E que há de semelhante ao vosso Verbo, nosso Senhor, que em
Si mesmo permanece sem envelhecer e renovando todas as coisas?...
26 Dizia coisas como estas, se bem que não deste modo nem com estas palavras,
todavia, Senhor, Vós sabeis que naquele dia, como disséssemos tais coisas, e este
mundo, enquanto falávamos, se tornasse mais desprezível para nós, com todos os seus
prazeres, disse-me então ela: «Filho, no que me diz respeito, já nada me deleita nesta
vida. O que aqui faço ainda, e porque estou aqui, não o sei, esgotada já a esperança
deste mundo. Havia um só motivo pelo qual desejava demorar-me um pouco mais
nesta vida: ver-te cristão católico antes de eu morrer. Deus concedeu-mo tão abundan-
temente que, desprezada até a felicidade terrena, eu te vejo seu servo. Que faço eu aqui»?
11. 27 Não me lembro bem do que respondi a estas palavras, ao passo que, entretan- 3002
to, apenas uns cinco dias depois, ou não muito mais, ela caiu de cama com febres. E,
estando doente, certo dia sofreu uma perda de consciência e, durante uns instantes,
ficou ausente do que a rodeava. Nós acorremos, mas ela logo voltou à posse dos senti-
dos e olhou para mim e para meu irmão40, que estávamos de pé junto dela, e disse-nos,
como quem pergunta: «Onde estava eu»? Depois, fixando os olhos em nós, que estáva-
mos consternados de tristeza, disse-nos: «Enterrais aqui a vossa mãe». Eu ficava em
silêncio e reprimia o choro. Meu irmão, porém, disse qualquer coisa com a intenção de
desejar, como se fosse coisa menos infeliz, que ela não morresse em terra estrangeira,
mas na pátria. Quando ela o ouviu, com o rosto entristecido, repreendendo-o com os
olhos por ele sentir tais coisas, e, fitando-me em seguida a mim, disse: «Vê o que ele
diz». E, logo depois, disse a ambos: «Sepultai este corpo em qualquer lugar: que em
nada vos perturbe a preocupação com isso; somente vos peço isto: que vos lembreis de
mim diante do altar do Senhor, onde quer que estiverdes». E, tendo-nos explicado este
desejo com as palavras que podia, calou-se e, agravando-se a doença, entrava em ago-
nia...
28 Mais tarde, também ouvi que, certo dia, estando já nós em Óstia, conversava
com alguns amigos meus, com confiança maternal, acerca do desprezo desta vida e do
bem da morte, quando eu próprio não estava presente, e, espantando-se eles com a
coragem de uma mulher – porque Vós lha tínheis dado – e perguntando-lhe se não
temia deixar o seu corpo tão longe da sua cidade, disse: «Nada há longe para Deus, nem
há que temer que Ele não reconheça, no fim do mundo, o lugar de onde me há-de
ressuscitar». Assim, no nono dia da sua doença, no quinquagésimo sexto ano da sua
idade, no trigésimo terceiro da minha vida, aquela alma religiosa e piedosa separou-se
do corpo.
12. 29 Fechei-lhe os olhos e invadiu-me a alma uma tristeza imensa, que se desfazia 3003
em torrentes de lágrimas... Quando ela exalou o último suspiro, Adeodato, ainda uma
criança, rompeu em gritos e pranto e, reprimido por todos nós, calou-se...
31 Assim, impedido Adeodato de chorar, Evódio tomou o saltério e começou a
cantar um salmo, ao qual todos respondíamos: Cantarei, Senhor, a vossa misericórdia
e a vossa justiça 41...
32 E eis que, quando o corpo foi levado a enterrar, fui e voltei sem lágrimas. Nem
mesmo chorei durante as orações que Vos dirigimos, quando por ela se oferecia o
sacrifício da nossa redenção, posto já o cadáver junto ao sepulcro, antes de ser depo-
sitado, conforme o que aí é costume fazer-se, nem nestas preces, repito, eu chorei,

40
Chamava-se Navígio. Agostinho tinha também uma irmã que, depois de viúva, ingressou num mosteiro
perto de Hipona, fundado por seu irmão. Chamava-se Felicidade (cf. Carta 210).
41
Sal 100, 13.
718 SÉCULO V

mas, durante todo o dia, no meu íntimo, estava triste e, com o espírito angustiado, pedia,
como podia, que curásseis a minha dor... Em seguida dormi, e acordei, e em não peque-
na medida achei a minha dor apaziguada, e, estando só no meu leito, lembrei-me dos
versos cheios de verdade do vosso Ambrósio. Vós sois, de facto
Deus, Criador de todas as coisas,
Que governais o firmamento,
Vestis o dia com a formosa luz,
E a noite com a graça do sono,
Para que, aos membros em repouso,
O descanso os devolva ao trabalho,
Alivie as almas cansadas
E liberte da mágoa as que estão tristes42.
3004 13. 34 Ainda que ela, vivificada em Cristo mesmo ainda antes de ser libertada da
carne, tenha vivido de tal modo que o vosso nome é louvado na sua fé e nos seus bons
costumes, não ouso todavia dizer que, desde o momento em que a regenerastes pelo
baptismo, nenhuma palavra tenha saído da sua boca contrária à vossa Lei... Mas,
porque não apurais com severidade as nossas faltas, esperamos, com confiança, algum
lugar ter junto de Vós...
35 Assim, eu, meu louvor e minha vida, Deus do meu coração, deixadas de lado,
por um instante, as suas boas obras, pelas quais, alegrando-me, Vos dou graças, imploro-Vos
agora pelos pecados de minha mãe; atendei-me, pela medicina das nossas feridas, que
esteve suspensa no madeiro e, sentando-Se à vossa direita, intercede por nós. Sei que
ela praticou a misericórdia e, do coração, perdoou as dívidas aos seus devedores:
perdoai-lhe também Vós as suas dívidas, se alguma contraiu também ela durante tantos
anos após a água da salvação. Perdoai-lhe, Senhor, perdoai-lhe, suplico-Vos, e não
entreis com ela em juízo. Que a misericórdia triunfe sobre a justiça, porque as vossas
palavras são verdadeiras e prometestes misericórdia aos misericordiosos. Para que o
sejam, Vós lho concedestes, e fareis misericórdia àquele para quem fordes misericordioso.
36 E, creio-o, já tereis feito o que Vos peço, mas aprovai os votos espontâneos
da minha boca, Senhor. Pois ela, aproximando-se o dia da sua libertação, não pensou
em que o seu corpo fosse enterrado sumptuosamente ou ungido com perfumes, nem
ambicionou um túmulo magnífico, nem se preocupou com um sepulcro na pátria: não
foi isso que nos recomendou, mas apenas desejou que se fizesse memória dela junto do
vosso altar, ao qual servira sem omissão de um único dia, altar de onde sabia que se
distribui a vítima santa, pela qual foi destruída a acusação que nos era contrária e com
a qual foi vencido o inimigo que faz o cômputo das nossas faltas, e que procura o que
acusar, e nada encontra naquele em quem triunfamos... Ao mistério desse nosso preço
uniu a vossa serva a sua alma com o vínculo da fé...
37 Esteja, pois, na paz, juntamente com seu marido, antes de quem e depois de
quem ninguém a teve como esposa, a quem serviu, oferecendo-Vos o fruto com paciência,
para que também o ganhasse para Vós. E inspirai, meu Senhor, meu Deus, inspirai aos
vossos servos, meus irmãos, aos vossos filhos, meus senhores, aos quais sirvo não
apenas com o coração, mas também com a voz e com a escrita, que todos quantos lerem
estas páginas se lembrem, diante do vosso altar, de Mónica, vossa serva, juntamente
com Patrício, que foi seu esposo; pela sua carne me fizestes entrar nesta vida, não sei
eu como. Lembrem-se, com devoção, daqueles que foram meus pais nesta luz passageira,
e meus irmãos em Vós, nosso Pai, na Igreja católica nossa Mãe, e meus concidadãos na
Jerusalém eterna, pela qual suspira a peregrinação do vosso povo, desde a partida até
ao regresso, a fim de que aquele último pedido que ela me fez seja concedido mais abundan-
temente pelas minhas confissões, nas orações de muitos, do que pelas minhas orações.

42
Cf. LH, I Vésperas dos domingos do Tempo Comum.
AGOSTINHO DE HIPONA 719

LIVRO X

6. 8 Amo-Vos, Senhor, com uma consciência não vacilante, mas firme. Feristes o 3005
meu coração com a vossa palavra, e eu amei-Vos. Mas eis que o céu, e a terra, e todas
as coisas que neles existem me dizem a mim, por toda a parte, que Vos ame, e não
cessam de o dizer a todos os homens, de tal modo que eles não têm desculpa. Vós,
porém, compadecer-Vos-eis mais profundamente de quem Vos compadecerdes, e
concedereis a vossa misericórdia àquele para quem fordes misericordioso: de outra
forma, é para surdos que o céu e a terra entoam os vossos louvores. Mas que amo eu,
quando Vos amo? Não amo a beleza do corpo, nem a glória do tempo, nem a claridade
da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções, nem o suave
cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná e o mel, nem os membros
que acolhem os abraços da carne. Não é isto o que eu amo quando amo o meu Deus. E,
contudo, amo uma certa luz, e uma certa voz, e um certo perfume, e um certo alimento,
e um certo abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume, alimento, abraço do
homem interior que há em mim, onde brilha para a minha alma o que não ocupa lugar,
onde ressoa o que o tempo não rouba, onde se aspira um perfume que o vento não
dispersa, onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente
um abraço que a satisfação não desfaz. Eis o que eu amo, quando amo o meu Deus.
9 Quem é Deus? Interroguei todo o universo acerca do meu Deus e ele respon-
deu-me: «Não sou eu, mas foi Ele mesmo que me fez». Interroguei a terra e ela disse-
-me: «Não sou eu». E tudo o que nela existe, respondeu-me o mesmo. Interroguei o
mar, e os abismos, e os seres vivos que rastejam, e eles responderam-me: «Não somos
o teu Deus; busca-O acima de nós». Perguntei aos ventos que sopram; e todos os espaços
aéreos, com os seus habitantes me responderam: «Nós não somos o teu Deus». Interro-
guei o céu, o sol, a lua, as estrelas e disseram-me: «Nós também não somos o Deus que
procuras». E disse a todas as coisas que rodeiam as portas da minha carne: «Já que não
sois o meu Deus, falai-me do meu Deus, dizei-me, ao menos, alguma coisa d’Ele. E eles
exclamaram com voz forte: «Foi Ele que nos criou». A minha pergunta consistia em
contemplá-las; a sua resposta era a sua beleza.
33. 49 Os prazeres do ouvido enredaram-me e subjugaram-me mais tenazmente, mas 3006
Vós soltastes-me e libertastes-me. Agora, confesso-o, encontro um pouco de repouso
nas melodias a que as vossas palavras dão vida, quando são cantadas com uma voz
suave e bem trabalhada, não a ponto de ficar preso a elas, mas de forma a poder ir-me
embora, quando quiser. No entanto, juntamente com as próprias frases que lhes dão
vida, para que possam entrar em mim, procuram no meu coração um lugar de alguma
dignidade, mas apenas lhes concedo o lugar apropriado.
Às vezes, parece-me que lhes atribuo mais honra do que convém, quando sinto
que o meu espírito se move mais religiosa e ardentemente para a chama da piedade com
aquelas letras sacras, quando assim são cantadas, do que se não fossem cantadas
assim, e que todos os afectos do meu espírito, cada um segundo a sua diversidade, têm
na voz e no canto as suas próprias melodias que os desperta. Mas o deleite da minha
carne, ao qual não convém entregar a mente, que por ele seria necessariamente
enfraquecida, engana-me muitas vezes, quando o sentimento não acompanha a razão,
de modo a ir resignadamente após ela, mas, além disso, uma vez que mereceu ser
admitido por causa dela, tenta até ir adiante e guiá-la. Assim, sem me dar conta, peco
nestas coisas e depois dou-me conta disso.
50 Às vezes, porém, evitando com algum exagero este mesmo embuste, erro por
excessiva severidade, mas, muitíssimas vezes, gostaria de afastar dos meus ouvidos e
dos da própria Igreja toda a melodia das músicas suaves que acompanham o saltério de
David; e parece-me mais seguro o que recordo ter ouvido dizer a respeito de Atanásio,
720 SÉCULO V

bispo de Alexandria, o qual levava o leitor do salmo a entoá-lo com uma inflexão de voz
tão pequena, que parecia mais própria de quem recita do que de quem canta. Contudo,
quando me lembro das minhas lágrimas, que derramei ao ouvir os cânticos da Igreja,
nos primórdios da recuperação da minha fé, e quando mesmo agora me comovo, não
com o canto, mas com as coisas que se cantam, quando são cantadas com uma voz clara e uma
modulação perfeitamente adequada, reconheço de novo a grande utilidade desta prática.
Assim, flutuo entre o perigo do prazer e a experiência do efeito salutar e inclino-me
mais, apesar de não pronunciar uma opinião irrevogável, a aprovar o costume de cantar
na igreja, a fim de que, por meio do prazer dos ouvidos, um espírito mais fraco se eleve
ao afecto da piedade. Todavia, quando me acontece que a música me comova mais do
que as palavras, confesso que peco de forma a merecer castigo e, então, preferiria não
ouvir cantar. Eis em que estado me encontro!
Chorai comigo, chorai por mim, vós que algum bem praticais no vosso íntimo,
donde procedem as acções. Na verdade, estas coisas não vos comovem, a vós que as
não praticais. Vós, porém, Senhor meu Deus, escutai-me, voltai para mim o vosso
olhar, e vede-me, e compadecei-Vos de mim, e curai-me, Vós, a cujos olhos me tornei
para mim mesmo numa interrogação, e é essa a minha doença.

LIVRO XI

3007 1. 1 Porventura, Senhor, sendo vossa a eternidade, ignorais o que Vos digo ou vedes
a cada instante o que se passa no tempo? Por que motivo é que, então, eu faço para Vós
a narração de todas estas coisas? Não é, decerto, para que as conheçais por mim, mas
apenas desperto o meu afecto para convosco, bem como o daqueles que lêem estas
páginas, a fim de que todos possamos dizer: Grande é o Senhor e digno de todo o
louvor. Já o disse e voltarei a dizê-lo: é por amor do vosso amor que o faço. Com efeito,
também nós oramos e contudo a Verdade diz-nos: O vosso Pai conhece aquilo de que
precisais, antes mesmo de lho pedirdes. Por isso, manifestámos o nosso afecto para
convosco, confessando-Vos as nossas misérias e proclamando as vossas misericórdias
para connosco, para que concluais a obra da nossa libertação, já que a começastes,
para que deixemos de ser infelizes em nós e sejamos felizes em Vós, porque nos
chamastes para sermos pobres de espírito, e mansos, e pessoas que choram, e têm
fome e sede de justiça, e misericordiosos, e puros de coração, e obreiros da paz. Já Vos
narrei muitas coisas, conforme pude e quis, uma vez que fostes Vós o primeiro a querer
que as confessasse a Vós, que sois o Senhor meu Deus, porque sois bom e a vossa
misericórdia é eterna. 2. 2 Quando serei eu capaz de enumerar, com a voz da minha
escrita, todas as vossas exortações, e todos os vossos terrores, e as consolações, e as
orientações com que me levastes a pregar a palavra e a dispensar o vosso mistério ao
vosso povo? Mesmo que fosse capaz de enumerar tudo isso por ordem, preciosas me
são as gotas do tempo. E há muito que desejo ardentemente meditar na vossa Lei e nela
confessar-Vos a minha ciência e a minha ignorância, os primeiros vislumbres da vossa
iluminação e os vestígios das minhas trevas, até que a fraqueza seja devorada pela
fortaleza. E não quero que se percam em outra coisa as horas que me ficam livres das
necessidades do alimento do corpo, e da aplicação do espírito, e do serviço que deve-
mos aos homens, e que não devemos, e, todavia, lhes prestamos.
3 Senhor meu Deus, escutai a minha oração e que a vossa misericórdia atenda o
meu desejo, porque não é em meu benefício somente que ele se inflama, mas pretende
ser útil ao amor fraterno: e Vós vedes no meu coração que assim é. Ofereça-Vos eu em
sacrifício o serviço do meu pensamento e da minha língua, e dai-me Vós aquilo que hei-de
oferecer-Vos. Pois eu sou pobre e necessitado, Vós rico para com todos os que Vos
AGOSTINHO DE HIPONA 721

invocam e, embora isento de cuidados, tomais-nos a vosso cuidado. Suprimi dos meus
lábios, dentro e fora de mim, toda a temeridade e toda a mentira. Que as vossas Escri-
turas sejam para mim castas delícias, que eu não me engane nelas, nem com elas enga-
ne os outros. Senhor, escutai-me, e tende compaixão de mim, Senhor meu Deus, luz dos
cegos e força dos fracos e, ao mesmo tempo, luz dos que vêem e força dos fortes,
escutai a minha alma, e ouvi-a clamando do fundo do abismo. Pois se os vossos ouvidos
não estiverem também presentes no abismo, para onde iremos? Para onde dirigiremos o
nosso clamor? Vosso é o dia e vossa é a noite: a um aceno vosso, os instantes voam.
Concedei-nos, então, tempo para meditarmos nos segredos da vossa Lei e não a fecheis
aos que batem à sua porta. Nem em vão quisestes que se escrevessem os mistérios obscu-
ros de tantas páginas, ou esses bosques não têm os seus veados que neles se abrigam e
recompõem, passeiam e se apascentam, se deitam e ruminam. Ó Senhor, aperfeiçoai-
-me e revelai-me esses bosques. A vossa voz é a minha alegria, a vossa voz suplanta a
afluência de prazeres. Dai-me o que amo: pois eu amo, e isso fostes Vós que mo destes.
Não abandoneis os vossos dons, nem desprezeis esta vossa erva sequiosa. Que eu Vos
confesse tudo o que encontrar nos vossos Livros, e ouça a voz do vosso louvor, e possa
inebriar-me de Vós e sondar as maravilhas da vossa Lei, desde o princípio, em que
fizestes o céu e a terra, até ao reino, convosco perpétuo, da vossa Cidade Santa.

LIVRO XIII

35. 50 Senhor Deus, dai-nos a paz, Vós que nos destes todas as coisas, a paz do 3008
repouso, a paz do sábado, a paz sem entardecer. Toda esta ordem belíssima das coisas
muito boas, chegando elas ao seu termo, há-de passar: pois nelas se fez um amanhecer
e um entardecer.
36. 51 O sétimo dia é sem entardecer e não tem ocaso, já que o santificastes para 3009
permanecer eternamente. Aquele descanso com que repousastes no sétimo dia, após
tantas obras excelentes e sumamente boas, ainda que as realizastes sem fadiga, anun-
cia-nos, pela palavra da vossa Escritura, que também nós, depois das nossas obras
muito boas, porque Vós no-las destes, repousaremos em Vós num sábado de vida
eterna.
37. 52 Pois também então repousareis em nós, assim como agora operais em nós; e 3010
aquele vosso repouso por meio de nós será como estas vossas obras por meio de nós.
Vós, porém, Senhor, sempre operais e sempre repousais. Nem vedes por algum tem-
po, nem Vos moveis por algum tempo, nem repousais por algum tempo, e, no entanto,
fazeis não só as coisas que se vêem no tempo, mas também os próprios tempos e o
repouso depois do tempo. 38. 53 Por conseguinte, nós vemos essas coisas que Vós
fizestes porque existem, enquanto, porque Vós as vedes, elas existem. E nós vemos
exteriormente que existem e interiormente que são boas: mas Vós viste-las feitas, no
momento em que vistes que deviam ser feitas. Nós, porém, fomos levados a praticar o
bem num tempo posterior, depois de o nosso coração o ter concebido do vosso Espí-
rito; num tempo anterior, porém, abandonando-Vos, éramos levados a fazer o mal: mas
Vós, ó único Deus bom, nunca cessastes de fazer o bem. E algumas das nossas acções,
por dádiva vossa, são boas, mas não sempiternas: depois delas esperamos repousar na
vossa magnífica santificação. Vós, porém, que sois bom, e não necessitais de nenhum
bem, permaneceis sempre em repouso, porque Vós mesmo sois o vosso repouso. E
qual será o homem que fará compreender isto a outro homem? Que Anjo a outro Anjo?
Que Anjo ao homem? A Vós se deve pedir, em Vós se deve procurar, à vossa porta se
deve bater: assim, assim se receberá, assim se encontrará, assim se nos abrirá. Amen.
722 SÉCULO V

Regra de Santo Agostinho 1

II PARTE

3011 2. 1 Sede constantes na oração, nas horas e tempos determinados por comum
acordo. 2 No oratório ninguém faça nada mais do que aquilo para que ele foi feito,
donde lhe vem o nome; mas, se alguém, eventualmente, mesmo fora das horas determinadas
por comum acordo, aí quiser orar nos seus momentos livres, não lho impeça aquele que
tiver pensado fazer ali outra coisa. 3 Quando orais a Deus, com salmos e hinos, senti
no coração o que dizeis com a boca. 4 E não canteis senão o que está escrito que deve
ser cantado; mas o que não está escrito para ser cantado, não o canteis.
3012 3. 2 Desde que vos senteis à mesa até que vos levanteis dela, escutai, sem ruído
nem discussões, o que vos é lido segundo o costume. Não seja apenas a boca a receber
o alimento, ficando o ouvido com fome da palavra de Deus.
3013 4. 6 Quando estiverdes juntos na igreja ou em qualquer outro lugar onde estejam
também mulheres, guardai mutuamente a vossa castidade...
3014 6. 2 Quem ofende a outro com injúria, insulto ou até delito grave, lembre-se de
remediar quanto antes o que fez, e o ofendido de perdoar sem demora. Mas se se
ofenderam mutuamente, mutuamente se devem perdoar, por causa das vossas ora-
ções... Quem não quer perdoar ao irmão, não espere receber o efeito da oração. Quem
nunca pede perdão ou o não pede do fundo do coração, está a mais no mosteiro, mesmo
que não seja mandado embora. 7. 1 Obedecei ao superior com ao pai, com o devido
respeito, para não ofender a Deus nele; e com maior razão obedecei ao presbítero, que
tem o cuidado de todos vós... 8. 1 O Senhor vos conceda a graça de observar tudo isto
com amor, como enamorados da beleza espiritual e cheios do suave odor de Cristo... 2
Para que vos possais ver neste livrito como num espelho... lede-o em comum, uma vez
por semana... Quando algum vir que lhe falta algo, arrependa-se do passado e tenha
cuidado para o futuro, pedindo que lhe perdoem a falta e não o deixem cair em tenta-
ção. Amen.

Ordo Monasterii 2
3015 2. Descrevemos agora o modo como devemos rezar e salmodiar: isto é, em Laudes
digam-se três salmos, que são: o 62, o 5 e o 89. Na hora de Tércia diga-se um salmo com
responsório; depois, dois salmos com antífona, leitura e colecta final; faça-se de modo
semelhante nas horas de Sexta e Noa. No Lucernário dir-se-á um salmo com responsório,
quatro salmos com antífona, outro salmo com responsório, a leitura e a oração final. E
num tempo oportuno, depois do Lucernário, estando todos sentados, proclamem-se
as leituras; a seguir, digam-se os salmos habituais antes do sono. Nas orações nocturnas,
nos meses de Novembro, Dezembro, Janeiro e Fevereiro, digam-se doze salmos com
antífona, seis salmos, três leituras; e nos meses de Março, Abril, Setembro e Outubro,
dez salmos com antífona, cinco salmos, e três leituras; e nos meses de Maio, Junho,
Julho e Agosto, oito salmos com antífona, quatro salmos e duas leituras.
1
A GOSTINHO DE H IPONA , Regula ad servos Dei (=PL 32, 1377-1384; L. V ERHEIJEN , Regula ad servos Dei,
Paris 1967, Abbaye de Bellefontaine 1980 2; BAC 551, 560-591). Obra composta por volta do ano 400.
2
A GOSTINHO DE H IPONA , Ordo Monasterii (=L. V ERHEIJEN , Ordo Monasterii, Paris 1967, Abbaye de
Bellefontaine 1980 2 ; BAC 551, 550-559). O Ordo Monasterii parece ser o ordenamento do Ofício Divino
proposto por S. Agostinho.
AGOSTINHO DE HIPONA 723

A Catequese a principiantes 1

PRIMEIRA PARTE
1. Motivo para compor o livro. 1 As três dificuldades de Deogratias. Pedes-me, 3016
irmão Deogratias, que te escreva algo que te ajude na catequese dos principiantes.
Dizes-me que, em Cartago, onde és diácono, muitas vezes te apresentam alguns que
devem receber a sua primeira formação na fé cristã, por acreditarem que tens muitos
dotes de catequista, fé sólida, e palavras persuasivas, mas que tu, ao contrário, quase
sempre te angustias ao procurares expor adequadamente as verdades em que devemos
crer para ser cristãos. Não sabes como começar e até onde levar a exposição...
Confessas e lamentas o que te sucede, com frequência, quando em exposição
longa e monótona, não apenas aquele que instruis pela palavra e os demais ouvintes,
mas tu próprio te sentes insatisfeito e cheio de desgosto de ti. Obriga-te assim a
necessidade a exigir de mim, em nome da caridade que te devo, que, apesar das minhas
ocupações, eu não me recuse a escrever-te algo sobre o assunto.
2 Pela minha parte, já que Nosso Senhor me manda ajudar todos aqueles que me
deu como irmãos..., vejo-me obrigado a aceitar, com muito gosto, o teu convite e
inclusive a dedicar-me a esse trabalho com uma vontade pronta e dedicada, em virtude
da caridade e do serviço que te devo, não só a ti pessoalmente, mas também, de modo
geral, à nossa mãe Igreja.
Com efeito, na medida em que me dou conta de que alguns dos meus irmãos se
encontram em dificuldades para esse serviço, e desejo que os tesouros divinos sejam
distribuídos com largueza, devo procurar, na medida das minhas forças, que eles pos-
sam levar a cabo com facilidade e sem obstáculos aquilo que procuram realizar com
diligência e interesse.
2. Experiência pessoal de Agostinho. 3 As ideias e a sua expressão verbal. 3017
Quanto ao que particularmente respeita ao teu caso, não queria que te preocupasses
pelo facto de o teu discurso te parecer pobre e aborrecido, pois pode muito bem
suceder que, embora o que vais dizendo te pareça indigno dos teus ouvintes, por
desejares que escutem coisa melhor, talvez a opinião daqueles que vais instruindo seja
muito diferente.
Também a mim quase nunca me agrada o meu discurso. De facto, antes de come-
çar a expressá-lo com palavras sonoras, desejo um melhor, do qual com frequência me
alegro no meu interior; e, quando me parece inferior àquele que eu tinha imaginado,
entristeço-me, porque as minhas palavras não puderam reflectir fielmente os meus
sentimentos.
Quero, na verdade, que aquele que me escuta entenda tudo como eu o entendo,
mas dou-me conta de que não me exprimo do modo mais apto para o conseguir. Isto
deve-se, sobretudo, a que o que eu compreendo inunda a minha alma com a rapidez de
um relâmpago, ao passo que a locução é lenta, longa e muito diferente...
4 O trabalho do catequista. Plano geral do livro. Mas a atenção dos que desejam
escutar-me convence-me, com frequência, de que as minhas palavras não são frias
como a mim me parece, e, através da sua satisfação, descubro que estão a tirar algum
proveito do meu discurso; por isso, ponho muito interesse em desempenhar com
atenção este serviço, no qual vejo que os meus ouvintes recebem com agrado aquilo que
lhes exponho.

1
A GOSTINHO DE H IPONA , De catechizandis rudibus liber I (=PL 40, 309-348; CCL 46; BAC 499). Agostinho
compôs este tratado por volta do ano 400, a pedido de Deogratias, diácono de Cartago. Este, apesar das
suas qualidades, desejava algumas normas precisas para realizar o melhor possível o seu ministério de catequista.
724 SÉCULO V

Também tu, a quem frequentemente entregam os que devem ser instruídos na fé,
procura entender que o teu discurso não desagrada aos outros como te desagrada a ti.
E não te consideres inútil por não explicares como desejas tudo o que pensas... Talvez
nem tu próprio sequer compreendas as coisas como desejarias...: agrada-nos a originalidade
na nossa exposição e desgosta-nos falar de coisas já conhecidas.
O facto é que somos escutados com maior prazer quando a nós mesmos nos
agrada o nosso próprio trabalho, porque o fio do nosso discurso é tocado pela nossa
própria alegria e desenrola-se com mais facilidade e persuasão. Por isso, não é difícil
estabelecer os limites da narração das coisas que se devem ensinar como objecto da fé:
a narração deve ser variada, umas vezes mais breve, outras mais longa, sempre, porém,
completa e perfeita... A grande preocupação reside na maneira de narrar, para que o
catequista, quem quer que ele seja, o faça sempre com alegria, pois quanto mais alegre
estiver mais agradável será a narração.
O motivo desta recomendação é claro: se Deus ama o que reparte com alegria as
coisas materiais, com muito mais razão amará o que distribui as espirituais. Mas o
aparecimento desta alegria no momento oportuno pertence à misericórdia d’Aquele
que nos ordena a generosidade.
Assim, diremos o que nos for inspirado por Deus, primeiro sobre o modo de
narrar, pois sei que o desejas, depois sobre a arte de ensinar e exortar e, por fim, sobre
o modo de conseguir esta alegria.
3018 3. Normas para a exposição da fé. 5 A base são os factos mais importantes da
história da salvação. A narração é completa quando a catequese começa pela frase: No
princípio criou Deus o céu e a terra, e termina no momento actual da história da Igreja.
Mas nem por isso devemos recitar de memória, mesmo que o tenhamos aprendido
palavra por palavra, todo o Pentateuco e todos os livros dos Juízes, dos Reis e de
Esdras, e todo o Evangelho e os Actos dos Apóstolos... Tomemos tudo de forma
resumida e geral, escolhendo os factos mais admiráveis, que se ouvem com maior
prazer, e, apresentando-os como quem desdobra um pergaminho, desenvolvendo-os e
explicando-os lentamente, a partir das próprias passagens do relato. Não convém
subtraí-los imediatamente à vista, antes, pelo contrário, devemos deter-nos neles algum
tempo, explicá-los e oferecê-los à admiração dos ouvintes, para que os examinem e
contemplem com atenção. Quanto ao resto, deve ser percorrido rapidamente e inserido
no contexto. Desta forma, o que desejamos pôr mais em relevo ressaltará diante do
papel secundário do resto; e aquele a quem desejamos estimular com a nossa exposição
não chegará cansado a esses aspectos, nem se lhe confundirá a memória...
3019 4. O amor de Deus e a sua vinda. 8 A vinda de Cristo, prova do amor de Deus.
Se Cristo veio a este mundo para que o homem saiba quanto Deus o ama..., e, se toda
a Escritura divina, que foi escrita antes da sua vinda, foi escrita para anunciar com
antecedência a chegada do Senhor, e se tudo quanto mais tarde foi recolhido nas Escri-
turas e confirmado pela autoridade divina nos fala de Cristo e nos convida ao amor, é
evidente que não só toda a Lei e os Profetas..., mas também todos os livros divinos que
mais tarde foram recolhidos para nossa salvação e se conservam para nossa memória se
apoiam nestes dois preceitos do amor a Deus e do amor ao próximo.
É por isso que no Antigo Testamento está escondido o Novo, e no Novo está
revelado o Antigo...
Por conseguinte, tendo presente que a caridade deve ser o fim de tudo quanto
disseres, explica tudo o que explicares de tal maneira que o ouvinte ao escutar creia, ao
acreditar espere, e ao esperar ame.
3020 5. As disposições do ouvinte. 9 Disposições para a eficácia da catequese. Raras
vezes, ou quase nunca, acontece que alguém se apresente para se fazer cristão sem ser
AGOSTINHO DE HIPONA 725

movido por um certo temor de Deus. Mas, se aquele que se aproxima quer tornar-se
cristão porque espera alcançar algum benefício humano da parte de alguém..., não
deseja realmente tornar-se cristão, mas simular que o deseja. A fé não é um corpo que
se inclina, mas uma alma que crê.
Entretanto, muitas vezes a misericórdia de Deus fará do catequista o seu instru-
mento; na sequência duma conversa que o tenha emocionado, o principiante descobrirá
que deseja tornar-se aquilo que antes decidira simular. Quando começar a querê-lo,
podemos considerar que ele deu verdadeiramente o seu primeiro passo.
De facto, nós desconhecemos o momento em que um homem, que está presente
diante de nós, vem com o espírito; por isso, devemos agir de maneira que se desenvolva
nele, se ainda o não tem, o desejo do cristianismo...
É útil que nos informemos com antecedência, se possível, junto dos que o conhe-
cem, acerca do seu estado de espírito e dos motivos que o moveram a abraçar a nossa
religião. E, se não houver ninguém que nos possa informar sobre isso, devemos per-
guntar-lho directamente a ele, e começar a nossa instrução de acordo com o que ele
tiver respondido.
Se se aproximou de coração fingido, buscando vantagens humanas ou fugindo de
transtornos, em ambos os casos está a mentir. Apesar disso, podemos começar a nossa
explicação partindo da sua própria mentira, não para a desmentir, como se nos tivés-
semos dado conta dela, mas para fazer com que se alegre em ser tal qual deseja parecer...
E fá-lo-emos, quer diga a verdade quer minta...
Mas, se, pelo contrário, disser algo diferente daquilo que se deve encontrar no
espírito de quem vai ser instruído na fé cristã, repreende-o com delicadeza e bondade,
porque é rude e ignorante, e mostra-lhe o verdadeiro fim da doutrina cristã, louvando-o
com seriedade e brevidade, para não roubar tempo à futura exposição e evitar impor-lhe
coisas para as quais ainda não está preparado...
6. Motivos da busca de Deus e primeira instrução. 10 Primeiros passos da 3021
instrução. A atenção do principiante deve passar do mundo dos milagres e das fanta-
sias para o caminho mais sólido das Escrituras e das profecias, para se dar conta da
grande misericórdia de Deus para com ele...
A narração deve começar em Deus criou todas as coisas muito boas e, como
dissemos, deve chegar aos tempos actuais da Igreja, apresentando as causas e as razões
de cada um dos factos e acontecimentos que narramos...
7. O caminho a prosseguir. 11 Exposição da fé e da moral. Terminada a narração, 3022
deve insistir-se na esperança da ressurreição...
Quando se tratar de instruir o principiante contra aqueles que, em multidões
perversas, enchem materialmente as igrejas, lembrem-se-lhe de maneira sucinta e ade-
quada os preceitos da convivência cristã e social...
Deve dizer-se-lhe também que há-de encontrar na Igreja muitos cristãos bons,
cidadãos autênticos da Jerusalém celeste, se ele mesmo começar a sê-lo.
Finalmente, é preciso aconselhá-lo com cuidado a não pôr no homem a sua
esperança; um homem não pode julgar facilmente a rectidão de outro homem, e, mesmo
que o pudesse com toda a facilidade, não é para isso que se nos apresentam os exemplos
dos justos: não é para que sejamos justificados por eles, mas para que, imitando-os,
tenhamos a certeza de que também nós seremos justificados pelo seu justificador.
Disto decorre algo da maior importância: quando aquele que nos ouve, ou antes,
que ouve a Deus por nosso intermédio, começar a progredir nos costumes e na ciência
e a avançar com ardor no caminho de Cristo, não deverá atribuí-lo a nós, nem a si
próprio, mas deve amar-se a si mesmo, a nós e a todos os seus amigos n’Aquele e por
Aquele que o amou quando era inimigo e que, justificando-o, quis torná-lo seu amigo.
726 SÉCULO V

Neste ponto, já não creio que precises de mestre. Serás breve, quando o tempo,
o teu ou o dos ouvintes, for escasso; falarás mais longamente, quando for mais longo:
esta é uma regra que se aprende sem necessidade de conselhos.
3023 8. Condições do catequizando. 12 A catequese dos homens cultos. Não deves pôr
de lado a hipótese de que venha ter contigo algum catequizando versado nas artes
liberais. Se decidiu tornar-se cristão e se aproximou para isso, certamente conhecerá muito
das nossas Escrituras e letras. Instruído nelas, desejará apenas participar nos sacramentos.
Esses costumam investigar tudo cuidadosamente, não apenas no momento em
que se tornam cristãos, mas já antes...
Deve-se trabalhar depressa com eles, sem insistir desagradavelmente nos pontos
que conhecem...
Também não será inútil interrogá-lo sobre as razões que o trouxeram ao cristianismo...
Insistir-se-á, principalmente, na simplicidade e elevação das Escrituras...
Todos estes assuntos devem ser tratados em discussão afável com o que se
aproxima da comunidade do povo de Deus...
3024 9. Disposição interior e expressão verbal. 13 A catequese dos gramáticos e
oradores. Alguns principiantes vêm das numerosíssimas escolas de gramáticos e ora-
dores: não os contes nem entre os ignorantes, nem entre os mais doutos... Parecem
exceder os outros na arte de falar; ao pretenderem tornar-se cristãos devemos dizer-
-lhes, mais insistentemente que aos iletrados, que os aconselhamos com empenho a
assumir a humildade cristã. Aprenderão assim a não desprezar aqueles que, eles bem o
sabem, evitam mais os vícios dos costumes que os vícios da linguagem, e não se
atreverão a comparar com um coração puro a língua cultivada que costumam preferir...
Eles precisam de saber que as ideias devem ser postas acima das palavras... É
preferível ouvir palavras mais verdadeiras do que elegantes...
Também deverão saber que não há outra voz para os ouvidos de Deus senão o
afecto do coração. Deste modo não zombarão quando se derem conta de que alguns
bispos e ministros da Igreja invocam a Deus com barbarismos e solecismos, ou sepa-
rando confusamente, por não as entenderem, as próprias palavras que pronunciam.
Claro que esses erros devem ser corrigidos, para que o povo diga Amen ao que
entende perfeitamente; mas também devem saber tolerá-los os que aprenderam que na
Igreja o que conta é a oração do coração, como no foro conta o som das palavras. A
oratória forense pode, algumas vezes, ser chamada uma boa dicção2, nunca, porém,
uma bênção3.
A respeito do sacramento que vão receber, é suficiente que os mais perspicazes
ouçam o que significa...
3025 10. Seis causas de enfado para o catequista. 14 Remédio contra as causas de
enfado. O que mais te ouvi lamentar é que a tua exposição te parece vulgar e desprezí-
vel, quando inicias alguém no cristianismo. Sei que isto te sucede não tanto pelo que
deves dizer..., nem pela pobreza da tua própria locução, mas pelo fastio interior que sentes...
Aborrecemo-nos, como já disse, porque nos agrada e interessa mais o que con-
templamos em silêncio com o nosso espírito... Ou porque, mesmo quando o discurso
é agradável, gostamos mais de escutar ou ler outras exposições mais bem feitas... Ou
talvez nos desgoste voltar sempre às mesmas verdades que se ensinam aos catecúmenos...
Além disso, um ouvinte imóvel pode aborrecer aquele que fala (ou por ser insensível,
ou simplesmente por não indicar, com qualquer movimento do corpo, que entende ou
aprecia o que se lhe diz)...

2
Bona dictio.
3
Benedictio.
AGOSTINHO DE HIPONA 727

Outras vezes, somos interrompidos nalgum trabalho que desejávamos terminar,


ou numa actividade que nos agradava ou parecia muito necessária...
Às vezes sucede que trazemos o peito oprimido por causa de algum escândalo,
e, em tal situação, alguém nos diz: «Vem falar com este, pois quer tornar-se cristão»...
Aceitamos com pouco gosto o que nos pedem, e, por isso, a nossa conversa é frouxa e
desagradável...
Para todas estas causas ou para qualquer delas que obscureça a serenidade do
nosso espírito, devem procurar-se os remédios junto de Deus, com os quais se alivie a
tensão, a fim de exultarmos com o fervor do espírito e nos alegrarmos na tranquilidade
do bom trabalho, pois Deus ama aquele que dá com alegria.
13. Perigo de fastio pela atitude do ouvinte. 19 A postura do corpo para aprender 3026
melhor. Às vezes acontece que o catequizando, que a princípio ouvia com prazer,
cansado de ouvir ou de estar tanto tempo de pé, abre os lábios não já para louvar as
nossas palavras, mas para bocejar, e mostra vontade de querer ir-se embora.
Ao darmo-nos conta disso, devemos despertar-lhe a atenção, dizendo-lhe alguma
coisa alegre e adequada ao assunto de que tratamos...
Podemos também ajudá-lo, oferecendo-lhe uma cadeira, embora seja melhor que,
sendo possível, ouçam sentados desde o princípio. Nalgumas igrejas de além-mar, não
só os bispos 4 falam sentados ao povo, mas há também assentos colocados à disposição
do povo; assim se evita que algum dos presentes, mais fraco e cansado de estar de pé,
se distraia ou seja mesmo obrigado a ir-se embora.
No entanto, é muito importante saber se aquele que sai de uma grande multidão
para reparar as forças, já está preso pela participação nos sacramentos..., ou se é
alguém que deve ainda receber os primeiros sacramentos: este, por vergonha, não diz
por que se vai embora, e, em geral, é forçado a ir-se, a fim de não cair ao chão vencido
por um mal-estar físico.
Digo-to por experiência, pois assim me sucedeu com um homem do campo
quando eu o instruía, e aprendi que se devem tomar precauções maiores...
Claro, se a exposição for breve ou se o local não comportar uma multidão sentada,
ouvirão de pé; mas apenas, se os ouvintes forem numerosos e não estiverem a ser
iniciados. Se houver apenas um ouvinte, ou dois, ou poucos, e tiverem vindo para se
tornar cristãos, nunca se lhes deve falar permanecendo eles de pé...

SEGUNDA PARTE

15. Observações preliminares. 23 Adaptação da narrativa aos ouvintes. Já agora 3027


me estarás a pedir, com insistência, aquilo que não te devia antes de to prometer. Não
me desagrada desenvolver e propor à tua consideração um modelo de discurso, como
se eu mesmo catequizasse alguém.
Antes, porém, quero que tenhas presente que uma coisa é a intenção daquele que
dita algo a pensar num futuro leitor, e outra a daquele que fala dirigindo-se a um
ouvinte presente.
Mesmo aqui, uma coisa é aconselharmos em segredo sem a presença de quem
quer que possa julgar-nos, e outra quando ensinarmos em público, rodeados de pessoas
com opiniões diversas. E, neste caso, uma coisa é quando um só é instruído e outros
estão a ouvir, como que para julgar ou confirmar factos conhecidos por eles, outra,
quando todos juntos esperam o que lhes diremos. Ainda aqui, uma coisa é quando nos

4
Antistites.
728 SÉCULO V

reunimos em privado para conversar, e outra quando o povo, em silêncio, olha atenta-
mente para alguém que lhe fala de um lugar elevado.
Também é muito diferente se são muitos ou poucos os que estão presentes, se
são cultos ou incultos, ou duns e doutros; se são da cidade ou do campo, ou duns e
doutros ao mesmo tempo; ou se no povo há uma mistura de todo o género de pessoas.
Estas circunstâncias influirão inevitavelmente sobre aquele que vai falar ou ensinar,
e a exposição será um reflexo do sentimento interior daquele que a faz...
Mas, porque agora tratamos da instrução dos principiantes, posso eu mesmo
testemunhar que me impressiono, de maneira diferente, ao ver diante de mim um
catequizando erudito ou tímido, um cidadão ou um estrangeiro, um rico ou um pobre,
uma pessoa simples ou uma outra digna de respeito pelo cargo que ocupa, um desta ou
daquela família, desta ou daquela idade, sexo ou condição, desta ou daquela seita,
proveniente deste ou daquele erro vulgar. É de acordo com a diversidade dos meus
sentimentos que o meu comentário brota, se desenvolve e termina.
E, apesar de ser devida a mesma caridade a todos, não se aplica a todos o mesmo
remédio...
Se algo te agradou em nós até ao ponto de me pedires que te dê alguns conselhos
sobre a tua pregação, mais aprenderias vendo-nos e ouvindo-nos quando desempenhamos
a nossa função, do que lendo o que escrevemos.
3028 16. Exemplos práticos de catequese. 24 Aquele a quem vamos falar. Primeiras
palavras. Imaginemos que vem até nós, com vontade de ser cristão, um ignorante, não
do campo, mas da cidade, desses muitos que tu necessariamente já encontraste em Cartago.
Interrogado sobre se deseja ser cristão por causa de alguma vantagem na vida
presente, ou por causa do repouso esperado após esta vida, responde que é por causa
do repouso futuro. Eis como deveremos provavelmente instruí-lo.
Graças a Deus, irmão. Felicito-te efusivamente e alegro-me por ti, porque, no
meio das numerosas e perigosas tempestades deste mundo, pensaste nalguma verda-
deira e segura tranquilidade...
Assim, aquele que desejar o verdadeiro repouso e a verdadeira felicidade deve
elevar a sua esperança acima dos bens mortais e passageiros e colocá-la na palavra do
Senhor, para que, aderindo ao que permanece eternamente, também ele mesmo perma-
neça para sempre.
25 Busca dos bens imperecíveis. Há homens que não ambicionam ser ricos nem
chegar às pompas vãs das honras, mas preferem alegrar-se e descansar nas tabernas e
casas de prostituição, nos teatros e espectáculos frívolos, que, nas grandes cidades,
encontram de graça... A seguir precipitam-se nos roubos e assaltos à mão armada...
Por sua paixão pelos espectáculos, tornam-se semelhantes aos Demónios e inci-
tam, com seus clamores, a ferirem-se mutuamente..., homens que jamais se haviam
ofendido... Conforme o alimento que ingerimos, assim é a saúde de que desfrutamos.
Finalmente, ainda que as alegrias loucas não sejam alegrias..., uma pequena febre
leva tudo isso e, embora nos deixe vivos, tira-nos toda essa falsa felicidade: o que fica
é uma consciência vazia e ferida...
Tu, ao contrário, porque procuras o verdadeiro descanso prometido aos cristãos
depois desta vida, poderás prová-lo inclusivamente aqui..., se amares os preceitos
d’Aquele que o prometeu. Muito depressa te darás conta de que são mais doces os
frutos da justiça que os da iniquidade, e que o homem se alegra mais verdadeira e
intensamente com uma consciência recta, entre pesares, do que uma consciência má,
entre delícias: porque tu não vieste unir-te à Igreja de Deus para reclamar dela qualquer
benefício temporal.
AGOSTINHO DE HIPONA 729

17. Recta e falsa intenção de conversão. 26 Razões para entrar na Igreja. Há 3029
alguns que têm vontade de ser cristãos ou para conquistar a confiança daqueles de
quem esperam vantagens temporais, ou porque não querem ofender os que temem.
Merecem reprovação: a Igreja tolera-os por um tempo como a eira tolera a palha, até ao
momento de a limpar. Se não se corrigirem e começarem a ser cristãos por causa do
futuro repouso eterno, no fim serão postos de lado. E não se iludam por estarem na
eira com o trigo do Senhor: não estarão com Ele no celeiro, mas serão destinados ao
fogo merecido.
Outros, de melhor esperança, ainda que de não menor perigo, temem a Deus, não
zombam do nome cristão e não entram na Igreja de Deus com coração fingido. Mas
esperam a felicidade nesta vida e querem ser mais felizes nos assuntos terrenos do que
aqueles que não honram a Deus. E por isso, ao ver que alguns malvados e ímpios
sobressaem quanto à prosperidade deste mundo, ao passo que eles a não possuem ou
a perderam, ficam perturbados com isso, como se adorassem a Deus em vão, e facil-
mente abandonam a fé.
27 O verdadeiro repouso do cristão. Mas aquele que, por causa da felicidade
eterna e do repouso perpétuo que se promete aos justos para depois desta vida, deseja
tornar-se cristão... e quer entrar no reino eterno com Cristo, esse é verdadeiramente
cristão. É prudente na tentação, para não ser corrompido pelas situações favoráveis,
nem abatido pelas adversas; é modesto e sóbrio na abundância dos bens terrenos e, nas
tribulações, é forte e paciente.
O seu espírito progredirá a tal ponto que mais amará a Deus, do que temerá a
Geena. Se Deus lhe dissesse: «Desfruta das delícias da carne para sempre e peca
quanto puderes, porque não morrerás, nem serás enviado para a Geena, apenas não
ficarás comigo», ficaria horrorizado e não pecaria, não para não cair naquilo que temia,
mas para não ofender Aquele a quem tanto ama, o único no qual se encontra o descanso
que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, o coração do homem não pressentiu,
mas que Deus preparou para aqueles que O amam 5.
28 Deus, descanso eterno para os que O amam. Desse descanso fala a Escritura,
não passando em silêncio que, desde o início do mundo, desde o momento em que fez
o céu e a terra e tudo o que neles existe, Deus trabalhou seis dias e no sétimo descansou...
Na verdade, não trabalhou para descansar..., mas para significar que..., no sétimo dia,
há-de descansar nos seus santos. E eles mesmos descansarão n’Ele depois de todas as
suas obras, nas quais O serviram e que Ele próprio realizou neles... Deus faz todas as
coisas por meio do seu Verbo, e o seu Verbo é o próprio Cristo, em quem repousam, em
sagrado silêncio, os Anjos e os espíritos celestes mais puros.
O homem, no entanto, caído pelo pecado, perdeu o repouso que tinha na divin-
dade do Verbo, e recebeu-o na sua humanidade. Por isso, no tempo oportuno..., o
Verbo fez--Se homem e nasceu de uma mulher...
18. Começo da história da salvação. 29 Relato da criação. Deus omnipotente, 3030
bom, justo e misericordioso fez todas as coisas boas, as grandes e as pequenas, as
altíssimas e as humildes, as visíveis, como são o céu, a terra e o mar; no céu o sol, a lua
e outros astros; na terra e no mar, as árvores, os arbustos e os animais de cada espécie;
e todos os corpos celestes e terrestres; e as invisíveis, como são as almas que animam
e mantêm vivos os corpos.
Fez o homem à sua imagem, para que assim como Ele mesmo, pela sua omnipotência
governa todas as criaturas, assim o homem, pela sua inteligência, pela qual também
conhece e adora o seu Criador, dominasse todos os animais da terra.
Criou também para ele, como auxiliar, a mulher...
5
1 Cor 2, 9.
730 SÉCULO V

30 Narração do Paraíso e da sua perda. Deus colocou-os num lugar de perpétua


felicidade, que a Escritura chama Paraíso, e deu-lhes um mandamento: se o não trans-
gredissem, permaneceriam para sempre naquela imortalidade feliz; se o transgredissem,
ficariam sujeitos ao castigo da mortalidade.
Deus, no entanto, sabia de antemão que haveriam de transgredi-lo... O manda-
mento que não haviam de cumprir, deu-lho sobretudo para que não tivessem desculpa
quando começasse a puni-los. Faça o homem o que fizer, encontrará Deus digno de
louvor pelos seus actos: se proceder com rectidão, encontra-O digno de louvor pela
justiça dos prémios; se pecar, encontra-O digno de louvor pela justiça dos castigos; se
confessar os seus pecados e voltar a viver com rectidão, encontra-O digno de louvor
pela misericórdia das indulgências...
3031 19. Continuação da história da salvação. 31 As duas cidades. Não devemos per-
turbar-nos por serem muitos os que conjuram com o Diabo e poucos os que seguem a
Deus..., pois Ele sabe o que há-de fazer da multidão dos pecadores... E também não
devemos julgar que o Diabo já venceu, por ter atraído muitos para si...
De facto, desde o início do género humano há e haverá até ao fim dos tempos
duas cidades, uma dos iníquos e outra dos santos. Misturados agora quanto aos cor-
pos, mas separados quanto à vontade, serão no dia do Juízo separados também quanto
ao corpo.
Todos os homens que amam a tirania e o poder temporal... e todos os espíritos
que escolheram tais caminhos... estão fortemente unidos numa única sociedade...
Da mesma forma, todos os homens e todos os espíritos que procuram humildemente
a glória de Deus, não a sua, e O seguem piedosamente pertencem a uma mesma sociedade...
32 Narração do dilúvio. Quanto ao facto de o dilúvio a todos ter destruído,
excepto a um justo com os seus, que Deus quis salvar na arca, é preciso dizer que Ele
sabia realmente que não haveriam de emendar-se...
Mesmo após estes factos, não cessou de multiplicar-se a maldade..., porque os
homens, abandonando o seu Criador, não só se inclinaram para a criatura que Deus
criou, para adorar em vez de Deus a obra de Deus, mas também inclinaram as suas
almas diante das obras das mãos dos homens e dos trabalhos dos artistas...
33 Relato de Abraão e dos Profetas. Mas nem então faltaram justos que buscaram
piedosamente a Deus e venceram a soberba do Diabo: eram os cidadãos daquela cidade
santa, curados pela humildade que viria do seu Rei, Cristo, revelada pelo Espírito Santo.
De entre eles Abraão, piedoso e fiel servidor de Deus, foi escolhido para conhe-
cer o mistério do Filho de Deus, para que, pela imitação da sua fé, todos os fiéis de
todos os povos viessem a ser chamados seus filhos.
Dele nasceu um povo, pelo qual seria adorado o único Deus verdadeiro... Nesse
povo, realmente, foi representada com a maior evidência a futura Igreja.
Havia aí uma multidão carnal, que adorava a Deus por causa dos benefícios
visíveis, mas havia também alguns poucos que pensavam no futuro descanso e procu-
ravam a pátria celeste. A estes era revelada por meio de profecias a futura humildade de
Deus, Rei e nosso Senhor Jesus Cristo, para que, pela fé, fossem curados de toda a
soberba e orgulho...
Por intermédio dos santos Patriarcas e Profetas eram ministrados ao povo carnal
de Israel, que mais tarde se chamou também Judeu, os benefícios visíveis que deseja-
vam do Senhor... Em todos estes factos se representavam os mistérios espirituais que
pertenceriam a Cristo e à Igreja...
3032 20. A maioridade do povo escolhido. 34 A deportação no Egipto. Aquele povo,
levado para o Egipto, serviu um rei duríssimo. Acabrunhado por trabalhos muito
AGOSTINHO DE HIPONA 731

pesados, procurou em Deus um libertador. E foi-lhe enviado do seu próprio povo um


libertador, Moisés, servo santo de Deus..., que do Egipto retirou o povo de Deus
através do mar Vermelho...
Assim como pelo dilúvio das águas a terra foi limpa da maldade dos pecadores...,
assim também, ao sair do Egipto, o povo de Deus encontrou um caminho por entre as
águas, pelas quais foram destruídos os seus inimigos.
E nem aí faltou o símbolo do madeiro, pois Moisés bateu com uma vara para
conseguir o milagre. Estes dois factos (o dilúvio e a passagem do mar Vermelho) são
símbolo do santo baptismo, pelo qual os fiéis passam para uma vida nova, enquanto os
seus pecados são destruídos e morrem como inimigos.
Ainda mais claramente foi a Paixão de Cristo representada naquele povo, quando
lhes foi mandado que matassem e comessem um cordeiro, e com o seu sangue marcassem
os umbrais das portas, e celebrassem isto em cada ano e o chamassem Páscoa do
Senhor.
De facto, a profecia diz, de maneira claríssima, a respeito do Senhor Jesus
Cristo: Como um cordeiro foi levado ao matadouro6. É com o sinal da sua Paixão e da
sua cruz que hoje és marcado como um umbral, e que são marcados todos os cristãos.
35 A promulgação da Lei. Dali foi aquele povo guiado pelo deserto durante
quarenta anos. E recebeu a Lei, escrita pelo dedo de Deus, nome pelo qual se designa
o Espírito Santo, como se lê muito claramente no Evangelho7... Pelo facto de o Espírito
Santo ser chamado dedo de Deus, não devemos pensar numa forma de corpo humano.
Aquele povo recebeu, pois, a Lei escrita pelo dedo de Deus em tábuas de pedra,
sem dúvida para significar a dureza dos seus corações, pois não iriam cumprir a Lei...,
dado que a Lei, só a caridade a cumpre. Deste modo, pressionados por um jugo servil,
foram sobrecarregados por muitos sinais 8 visíveis..., que eram símbolo das coisas
espirituais que se referiam ao Senhor Jesus Cristo e à sua Igreja...
36 Chegada à Terra Prometida. Através de muitos e variados sinais das coisas
futuras, que seria longo enumerar na sua totalidade, aquele povo foi conduzido à Terra
Prometida..., onde foi fundada Jerusalém, a mais conhecida cidade de Deus, que, sendo
escrava, é o sinal da cidade livre chamada Jerusalém celeste..., cujos cidadãos são todos
os homens santificados que existiram, existem e existirão...
O Rei dessa cidade é o Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus... que assumiu a
humanidade para assim governar também os homens que, juntamente com Ele, reinarão
na eterna paz.
Como prefiguração desse Rei, no reino do povo de Israel, sobressaiu principalmente
o rei David, de cuja descendência viria, segundo a carne, o mais verdadeiro Rei, nosso
Senhor Jesus Cristo, Deus que está acima de todas as coisas e é bendito pelos séculos9.
Muitos factos aconteceram na Terra Prometida, como figura da vinda de Cristo
e da Igreja, que poderás aprender, pouco a pouco, nos Livros Santos.
21. História do exílio e da expectativa. 37 Significado do cativeiro de Babilónia. 3033
Depois de algumas gerações, Deus apresentou o mais pertinente dos símbolos: aquela
cidade foi capturada e grande parte dela foi levada para Babilónia... O cativeiro da
cidade de Jerusalém, a migração do povo conduzido a Babilónia para ser escravo, tudo
foi ordenado pelo Senhor por intermédio de Jeremias, o profeta daquele tempo... Após
setenta anos, foi-lhes prometida a liberdade daquele cativeiro.

6
Is 53, 7.
7
Lc 11, 20.
8
Sacramentis.
9
Rom 1, 3; 9, 5.
732 SÉCULO V

Tudo isto, em sentido figurado, significava que a Igreja de Cristo haveria de ser,
em todos os seus santos, que são os cidadãos da Jerusalém celeste, escrava de reis
deste mundo..., até que seja libertada da confusão deste mundo, tal como Jerusalém o
foi do cativeiro de Babilónia...
38 Esperando a Cristo. Desde o tempo em que receberam a Terra Prometida, os
Judeus começaram a ter reis. Mas, para que não pensassem que em algum dos seus reis
se cumpriria a promessa que lhes fora feita de um Cristo libertador, Cristo foi profe-
tizado muito claramente por meio de muitas profecias... Não o foi só pelo próprio
David, no livro dos Salmos, mas também por outros grandes e santos Profetas...
3034 22. As idades do mundo e a plenitude dos tempos. 39 As seis idades da história
da salvação. Decorreram já cinco idades do mundo... A partir da vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo começou a sexta idade: para que a graça espiritual... se manifestasse a
todos os povos; para que ninguém adorasse a Deus, a não ser por amor; e para que não
desejasse d’Ele... nem prémios visíveis nem a felicidade da vida presente, mas só a vida
eterna...
40 Promulgação do Evangelho e nascimento de Cristo. Manifestando o Novo
Testamento da herança eterna..., Cristo Senhor feito homem desprezou todos os bens
terrenos... e suportou todos os males..., para que nem naqueles se procurasse a felici-
dade, nem nestes se temesse a infelicidade...
Ao nascer de Mãe... que concebeu e permaneceu intacta – Virgem ao conceber,
Virgem ao dar à luz e Virgem ao morrer –, mas que estava casada com um carpinteiro,
fez desaparecer todo o orgulho da nobreza carnal.
Não querendo que ninguém se envaidecesse da importância de qualquer cidade
da terra, nasceu na cidade de Belém..., que ainda é chamada vila...
Fez-Se pobre..., para que ninguém... ousasse enaltecer-se pelas riquezas terrenas.
Não quis ser aclamado rei pelos homens, para mostrar o caminho da humildade...
Sentiu fome, Aquele que a todos alimentou, sentiu sede, Aquele por quem toda a
bebida foi criada: Aquele que, espiritualmente, é o Pão dos que têm fome e a Fonte dos
que têm sede. Cansou-Se do caminho terreno, Aquele que Se fez, a Si mesmo, o nosso
caminho para o Céu; ficou como mudo e como surdo diante dos que O insultavam, Ele
por meio de quem o mudo falou e o surdo ouviu; foi preso, Aquele que desatou os laços
das doenças; foi flagelado, Ele que expulsou dos corpos dos homens os flagelos de
todas as dores; foi crucificado, Ele que quis pôr fim aos nossos tormentos; morreu, Ele
que ressuscitou os mortos.
Mas também ressuscitou para nunca mais morrer, a fim de que assim ninguém
aprendesse com Ele a desprezar a morte, como se não houvesse de triunfar dela.
3035 23. Vida de Jesus Cristo e caminho da Igreja. 41 A Ascensão, o Pentecostes e a
Nova Lei. Depois, confirmados os seus discípulos, viveu com eles durante quarenta
dias e diante deles subiu ao Céu.
Cinquenta dias após a Ressurreição enviou-lhes, como prometera, o Espírito
Santo, para que pudessem... cumprir a Lei.
Essa Lei, a que se chama Decálogo, foi dada aos Judeus em dez mandamentos,
que se reduzem a dois: amar a Deus com todo o nosso coração, com toda a nossa
alma, com todo o nosso espírito; e amar o próximo como a nós mesmos...
Também quando o povo de Israel recebeu a Lei escrita pelo dedo de Deus...,
haviam decorrido cinquenta dias completos, desde o dia em que haviam prefigurado a
Páscoa, matando e comendo o cordeiro...
Assim, após a Paixão e Ressurreição do Senhor, que é a verdadeira Páscoa, o
próprio Espírito Santo foi enviado aos discípulos... Encontravam-se todos no mesmo
AGOSTINHO DE HIPONA 733

local, na própria Jerusalém. De repente produziu-se um ruído vindo do céu, como de


um vento impetuoso, viram aparecer uma espécie de línguas de fogo e começaram a
falar outras línguas...
A partir de então, pregando Cristo com toda a confiança, os Apóstolos faziam
em seu nome muitos prodígios, até que um dia, passando Pedro, a sua sombra cobriu
um morto e este ressuscitou10.
42 Pregação e conversão dos Judeus. Quando os Judeus viram que se faziam
tantos prodígios em nome d’Aquele que, uns por inveja, outros por erro, tinham
crucificado, alguns enfureceram-se e perseguiram os Apóstolos que pregavam acerca
d’Ele; outros, ao contrário, admirando-se muito de que se fizessem tantos milagres em
nome de Alguém que haviam oprimido, vencido e escarnecido, arrependidos converteram-se.
Milhares de Judeus acreditaram n’Ele... Compreenderam-n’O e amaram-n’O, a
Ele que por eles suportara tanto..., que lhes perdoara os pecados..., que lhes mostrara,
pelo exemplo da sua Ressurreição, a imortalidade que devem esperar e desejar...
Vendiam tudo o que tinham... e depunham o preço dos seus bens aos pés dos
Apóstolos, para que eles mesmos o distribuíssem a todos, segundo a necessidade de
cada um. Vivendo num só coração, unidos pelo amor cristão, nada consideravam como seu...
Sofreram depois perseguição..., foram dispersados, e, pela sua dispersão, Cristo
seria mais amplamente pregado...
43 Conversão dos gentios. Um desses perseguidores dos santos fora o apóstolo
Paulo... Depois de acreditar e de se tornar Apóstolo, foi enviado a pregar o Evangelho
entre os gentios, e sofreu pelo nome de Cristo males piores que os que praticara contra
o nome de Cristo.
Estabelecendo Igrejas em todas as nações por onde semeava o Evangelho, reco-
mendava energicamente aos fiéis que fizessem ofertas aos pobres das Igrejas da Judeia
que tinham acreditado em Cristo...
Mais tarde, levantaram-se contra a Igreja de Cristo, por parte dos gentios incré-
dulos, piores e mais frequentes perseguições...
24. A Igreja até ao fim dos tempos. 44 Expansão da Igreja. A videira que por toda 3036
a terra, tal como foi profetizado e anunciado pelo próprio Senhor, espalhava ramos
cheios de frutos, quanto mais era regada pelo fecundo sangue dos mártires, mais germi-
nava. A estes, que morriam em todas as terras em número incontável pela verdade da
fé, excederam os próprios poderes que os perseguiam...
45 O dia do Juízo final. Sabemos que todos estes factos se cumpriram exacta-
mente como os lemos nos Livros, porque esses Livros foram escritos muito tempo
antes de os factos acontecerem, e porque todos os factos ali proclamados como futu-
ros, já os podemos ver como presentes.
Confiando e perseverando no Senhor, acreditemos sem qualquer dúvida que hão-de
vir também os acontecimentos que devem cumprir-se, pois se lêem ainda nas mesmas
Escrituras futuras tribulações e esse dia último do juízo, no qual... hão-de ressuscitar
todos os cidadãos das duas cidades e hão-de dar conta da sua vida perante o tribunal de
Cristo juiz.
Virá na claridade do seu poder Aquele que Se dignou vir primeiro na humildade
da humanidade. E todos os bons serão separados dos maus, não só daqueles que não
quiseram acreditar n’Ele, mas também dos que acreditaram n’Ele ociosa e esterilmente:
uns receberão o reino eterno com Ele, outros, as penas sem fim com o Diabo...

10
Act 5, 15.
734 SÉCULO V

3037 25. A glória da ressurreição e do Céu. 46 A ressurreição da carne. Por isso,


irmão, confirma-te a ti mesmo no seu nome e no auxílio d’Aquele em quem crês, contra
a língua daqueles que zombam da nossa fé. Por meio destes diz o Diabo sedutoras
palavras, querendo mais que tudo ridicularizar a fé na ressurreição...
Crê, ardorosa e inabalavelmente, que todas as coisas, que parecem ser subtraídas
aos olhos dos homens como por total destruição, permanecem salvas e inteiras pela
omnipotência de Deus...
47 A felicidade eterna. Foge, portanto, irmão, por uma fé firme e costumes bons,
foge dos tormentos nos quais nem as torturas se extinguem, nem os torturados morrem...
E inflama-te no amor e desejo da vida eterna dos santos..., onde o louvor de Deus
será sem fastio e sem defeitos, e onde não haverá nenhum tédio na alma, nem nenhum
cansaço no corpo... Deus será toda a delícia e saciedade da cidade santa, que viverá
n’Ele e d’Ele, com sabedoria e felicidade...
Seremos iguais aos Anjos, e, lado a lado com eles, veremos a Trindade com os
nossos olhos, nós que agora andamos no seu caminho pela fé... E não mais com pala-
vras de fé e com sílabas ruidosas gritaremos a igualdade do Pai, do Filho e do Espírito
Santo, a unidade da própria Trindade e o modo como as três Pessoas são um só Deus:
compreendê-lo-emos na mais pura e ardente contemplação, no maior silêncio.
48 Últimas recomendações. Conserva tudo isto gravado no teu coração e invoca
a Deus, em quem crês, para que te guarde das tentações do Diabo..., que ousa tentar os
cristãos, não só por meio dos que odeiam o nome cristão..., mas também, algumas
vezes, através dos que há pouco lembrámos, esses que, cortados da unidade da Igreja
como de uma videira podada, são chamados hereges ou cismáticos...
Mas o que cada um deve é tomar o maior cuidado para não ser tentado e iludido
por homens que se encontram na própria Igreja católica, esses que, como palha, a
Igreja tolera até ao tempo da limpeza...
Hás-de notar que enchem as igrejas nos dias de festa as mesmas turbas que
enchem os teatros nos dias solenes dos pagãos: e, vendo-os, serás tentado a imitá-los...
Não ignoras certamente que muitos, que se dizem cristãos, praticam todos esses actos
que em poucas palavras lembrei. E talvez não ignores que algumas vezes praticam
faltas mais graves, esses mesmos que se chamam cristãos.
Se vens com a intenção de praticar os mesmos actos, muito te enganas: de nada
te servirá o nome de Cristo, quando começar a julgar severamente Aquele que antes Se
dignara socorrer misericordiosamente...
A condenação é o fim de todos os que perseveram em tais acções. Quando vires,
portanto, muitos, não só a praticarem-nas, mas também a defendê-las e a aconselhá-las,
conserva-te na Lei de Deus... Na verdade, não serás julgado segundo o sentimento
deles, mas segundo a verdade d’Ele.
49 Deus, fundamento da salvação. Une-te aos bons... Encontrá-los-ás, e muitos,
se tu mesmo começares a ser bom... Entretanto, também não é nesses bons que te
precedem ou te seguem no caminho de Deus que deves colocar a tua esperança. Nem
em ti mesmo deves colocá-la, por maior que seja o teu progresso, mas n’Aquele que a
ti e a eles torna bons pela justificação.
Na verdade, estás seguro de Deus porque Ele não muda. Contudo, a respeito do
homem, ninguém, prudentemente, pode estar seguro... Uma coisa é amar o homem,
outra coisa é pôr a sua esperança no homem: e tão grande é a diferença, que Deus
manda aquela e proíbe esta... Sê humilde diante de Deus, para que Ele não permita que
sejas tentado acima das tuas forças.
3038 26. Recomendações e conselhos finais. 50 A iniciação dos catecúmenos na fé.
Depois de dizer tudo isto, deve perguntar-se-lhe se crê e deseja observar essas coisas.
AGOSTINHO DE HIPONA 735

Quando tiver respondido, deverá ser assinalado solenemente e tratado segundo o cos-
tume da Igreja.
Quanto ao sacramento do sal que recebe, é preciso ressaltar bem que, se os sinais
das coisas divinas são visíveis, neles se honram as próprias coisas invisíveis. Por isso,
aquela substância santificada pela bênção não deve ser usada para qualquer fim. Tam-
bém se lhe deve dizer o que significam as palavras que ouviu e o que nelas há que tenha
relação com essa substância...
51 Uma exposição mais breve. Se te parecer longa esta exposição com a qual
instruí um principiante como se estivesse presente, poderás fazê-la de forma mais
breve; mas não me parece que devas fazê-la mais extensa. Entretanto, interessa muito
o que o próprio assunto sugere, à medida que se desenvolve, e o que os ouvintes, não
só suportam, mas desejam.
Se houver necessidade de ser mais rápido, vê como é fácil explicar tudo. Supõe
que se apresente alguém que deseje ser cristão e que, ao ser interrogado, responda tal
como o primeiro, porque se não o fizer, deve-se dizer-lhe o que deveria ter respondido.
Depois podes resumir assim as outras coisas.
52 Resumo da doutrina cristã. Realmente, irmão, grande é a felicidade prometida
aos santos no mundo futuro. Na verdade, tudo o que é visível passa... Deus misericordioso
quis libertar dessa destruição... os homens que não resistem à misericórdia do Criador.
Enviou o seu Filho unigénito... Este, permanecendo na sua divindade... assumiu
a natureza humana. Veio aos homens... para que todos os que acreditassem n’Ele
entrassem na vida eterna.
27. Explicações finais. 53 Cumprimento das profecias. Todos os factos que agora 3039
vês na Igreja de Deus... foram preditos há séculos... Ocorreu outrora um dilúvio... Os
que escaparam na arca mostravam o simbolismo da futura Igreja... Foi predito a um só
homem, Abraão, fiel servo de Deus, que dele haveria de nascer um povo...
Foi profetizado que Cristo... viria desse povo... Assim foi feito: Cristo nasceu
de Maria Virgem, que pertenceu àquela raça. Foi predito... o que na cruz haveria de
suportar... Foi predito que haveria de ressuscitar e ressuscitou..., subiu aos Céus e
enviou o Espírito Santo aos seus discípulos.
Foi predito... que a sua Igreja haveria de ser espalhada por toda a terra... Pelo
poder dos milagres... vemos que se cumpre o que foi predito...
54 A vida futura. E os acontecimentos que faltam?... É evidente que, assim como
foram preditos e aconteceram aqueles, assim também estes hão-de vir. Virão as tribu-
lações dos justos..., virá o dia do Juízo..., os que zombam da ressurreição... ressuscitarão
para o castigo... Do mesmo modo hão-de ressuscitar... todos os fiéis que hão-de reinar
com Cristo...
55 Últimas exortações. Por isso, tu que crês nestas verdades, tem cuidado com
as tentações, porque o Diabo anda em busca de pessoas que se percam com ele. Não te
seduza o Inimigo por meio dos que estão fora da Igreja, sejam pagãos, Judeus ou
hereges. Guarda-te de imitar os que vês que continuam a viver mal dentro da própria
Igreja... Pelo contrário, busca a companhia dos bons, que facilmente hás-de encontrar,
se tu também fores bom...
E não julgues que os perversos, ainda que transponham as portas da Igreja,
entrarão no Reino dos Céus... Imita os bons, tolera os maus e, porque não sabes o que
será amanhã o que hoje é mau, a todos ama...
Só cumpre a Lei aquele que recebeu o dom do Espírito Santo, sob todos os
aspectos igual ao Pai e ao Filho, porque a própria Trindade é Deus, e em Deus deve ser
posta toda a esperança. No homem, seja ele quem for, não deve ser posta...
736 SÉCULO V

Contra as cartas de Petiliano 1

LIVRO II
3040 30. 68 Petiliano: «Outro caso: Se alguém retém na memória as fórmulas do sacerdote,
acaso é sacerdote pelo facto de recitar com boca sacrílega as fórmulas do sacerdote2»?
69 Agostinho: Falas agora como se buscássemos quem é o verdadeiro sacerdote
e não qual é o verdadeiro baptismo. Pois bem: para ser um verdadeiro sacerdote é
preciso que se revista não só do sacramento, mas também de justiça, como está escrito:
Revistam-se de justiça os vossos sacerdotes. Pelo contrário, aquele que é sacerdote só
com o rito sacramental, como o foi o pontífice Caifás, perseguidor do único e verdadeiro
Sacerdote, pode muito bem não ser verdadeiro; pelo contrário, é verdadeiro aquele que
dá, não do que é seu, mas do que é de Deus...
Apesar disso, para me servir da comparação que tu próprio utilizaste, se ouvires
a um profano uma oração sacerdotal conforme às palavras e ensinamentos evangélicos3,
poderás acaso dizer-lhe: «Não é verdadeira», ainda que ele não seja nem verdadeiro
nem sacerdote, quando o apóstolo Paulo disse que era verdadeiro certo testemunho de
não sei que Profeta cretense que não se contava entre os Profetas de Deus?... Por
conseguinte, se o Apóstolo confirmou o testemunho de não sei que profeta estranho
porque o encontrou verdadeiro, porque é que nós, quando encontramos em alguém o
que é de Cristo e é verdadeiro, apesar daquele em quem o encontramos ser perverso e
mentiroso, não separamos o vício próprio do homem e a verdade que não tem de si,
mas de Deus, e dizemos: «Este sacramento é verdadeiro», do mesmo modo que Paulo
disse: Este testemunho é verdadeiro?
Acaso ao dizermos «este sacramento é verdadeiro», afirmamos com essas pala-
vras: «este homem também é verdadeiro»? Acaso o Apóstolo contou entre os Profetas
de Deus aquele profeta ao afirmar que era verdade o que nele descobriu?
Igualmente o mesmo Apóstolo, achando-se em Atenas, entre os altares dos De-
mónios encontrou um altar em que estava escrito: É esse deus que adorais sem o
conhecer que eu venho anunciar-vos. Acaso por ter encontrado entre os altares dos
ídolos um altar levantado pelos mesmos sacrílegos condenou ou rejeitou por isso o que
ali havia de verdadeiro, ou, ao contrário, pelo verdadeiro que no altar tinha lido reco-
mendou o seguimento dos sacrifícios dos pagãos?
Vós, ao contrário, errais necessariamente sempre, quer quando profanais o sa-
cramento de Deus por causa dos pecados dos homens, quer quando pensais que nós,
em atenção aos sacramentos de Deus, que não queremos profanar em vós, aceitamos
também o sacrilégio do vosso cisma.

1
A GOSTINHO DE H IPONA , Contra litteras Petiliani libri III (=PL 43, 245-388; CSEL 52; BAC 507). Resposta
ao bispo donatista de Cirta, entre 398-401.
2
Si quisquam carmina sacerdotis memoriter teneat, nunquid inde sacerdos est, quos ore sacrílego carmen
publicat sacerdotis?
3
Et tamen, ut eo quoque simili utar quod ipse posuisti, si audias ab aliquo vel profano precem sacerdotis
verbis et mysteriis evangelicis conformatam... O carmen de que aqui se fala é, na resposta de Agostinho,
a prex sacerdotis, verbis et mysteriis evangelicis conformata, ou seja o cânone, o que é prova evidente de
que este se dizia em voz alta. A pregação realiza-se só em nome de Cristo e pretende levar a que haja «um
só rebanho, cuja segurança virá de um só o pastor».
AGOSTINHO DE HIPONA 737

LIVRO III

10. 11 Bastem-nos, cristãos católicos e irmãos caríssimos, estas instruções sobre 3041
esta questão. Se as guardais com caridade católica e como um só rebanho estais seguros
do vosso único Pastor, não me preocupo demasiado de que qualquer inimigo diga
contra mim que sou do vosso rebanho ou mesmo que sou vosso cão, desde que me
obrigue a ladrar mais por vossa defesa do que pela minha.
Apesar disso, se tivesse necessidade desta minha defesa para a causa de que
tratamos, servir-me-ia de uma brevíssima e muito fácil: com efeito, quanto ao tempo
da minha vida antes de receber o baptismo de Cristo, pelo que se refere aos meus
pecados e erros, com todos eu os reprovo e os detesto, a fim de não parecer que na
defesa de agora busco a minha glória, não a de quem mediante a sua graça me libertou
até de mim mesmo. De modo que, quando ouço vituperar aquela minha vida, qualquer
que seja a intenção daquele que o faz, não sou tão ingrato que me entristeça: quanto
mais ele acusa os meus defeitos, tanto mais louvo eu o médico que me curou. Porque
hei-de eu esforçar-me na defesa daqueles meus males passados e extintos, sobre os
quais Petiliano disse tantas coisas falsas, mas calando muitas outras que eram verdadeiras?
Ao contrário, sobre o tempo posterior ao meu baptismo, dir-vos-ia em abundância a
quantos me conheceis o que podem conhecer os homens: os que não me conhecem, não
devem ser tão injustos para comigo que dêem mais crédito a Petiliano sobre mim do
que a vós. Na verdade, se não temos obrigação de crer o amigo que louva, tão pouco o
inimigo que calunia.
Fica o que no homem é oculto, cuja única testemunha é a consciência, a qual o
pode testemunhar diante dos homens. Nessa matéria Petiliano afirma que eu sou
maniqueu, falando duma consciência alheia; eu digo que o não sou, falando da minha
consciência: escolhei a quem deveis dar fé.
Contudo, como não há necessidade nem mesmo desta breve e fácil defesa minha,
pois não se trata precisamente do mérito de um homem qualquer, mas da verdade da
santa Igreja, tenho de dizer-vos muitas coisas a quantos, dentro do partido de Donato,
lestes as acusações que lançou contra mim, que eu não teria ouvido se tivesse em
pouco a vossa perdição, se não tivesse entranhas de caridade cristã. 11. 12 Que é de
admirar, se depois de malhar o trigo na eira do Senhor, o levo para dentro juntamente
com terra e palha, e tenho de suportar o incómodo do pó que salta, ou se ao buscar com
solicitude as ovelhas perdidas do meu Senhor me ferem os aguilhões das línguas mal-
dizentes? Suplico-vos: deixai por m pouco a parcialidade e julgai com um pouco mais
de equidade entre mim e Petiliano.
Eu desejo que conheçais a causa da Igreja, ele a minha. Qual será a razão de ele
proceder assim? Não será por não se atrever a dizer que não acrediteis nos testemu-
nhos que apresento constantemente em favor da causa da Igreja, e que são os Profetas
e os Apóstolos e o próprio Senhor dos Profetas e dos Apóstolos, que é Cristo, e, ao
contrário, quando tem oportunidade de dizer mal de mim, o acrediteis facilmente,
como de um homem contra outro homem, do vosso contra o estranho? E se eu aduzisse
alguns testemunhos da minha vida, que terá de particular que eu diga que não há que
acreditar neles e que os convença rapidamente de ele a vós, sobretudo quando quenquer
que diga uma palavra em meu favor será considerado como inimigo de Donato e, por
tanto, também vosso? E assim triunfa Petiliano...
Seja como for, mesmo que ele lance mil vezes contra mim semelhantes e ainda
mais malvadas acusações, basta-me saber, acerca do que agora trato, que seja qual for
a minha situação nela, é invencível a Igreja pela qual falo.
738 SÉCULO V

Contra o gramático Crescónio 1

II

3042 11. 13 Não sou bispo para mim mesmo, mas para aqueles para quem sou ministro da
Palavra e do Sacramento do Senhor.

A adivinhação diabólica 2
3043 1. 1 Um dia da Oitava da Páscoa estavam comigo, pela manhã, muitos irmãos
leigos. Estando nós sentados no lugar costumado, surgiu a conversa acerca da religião
cristã como réplica à presunção, e de algum modo à grande e maravilhosa ciência dos
pagãos...

O Espírito e a letra 3
3044 11. 18 A piedade é a verdadeira sabedoria. Chamo piedade àquilo que os Gregos
chamam qeose/beian. Foi essa a piedade recomendada ao homem quando lhe foi dito
o que se lê no livro de Job: Vê, a piedade é a sabedoria4. Se entendermos a palavra
qeose/beia de acordo com a etimologia latina, podemos traduzi-la por «culto de Deus»,
que consiste principalmente em que a alma não Lhe seja desagradecida. É também por
isso que, naquele que é o mais verdadeiro e singular sacrifício5, somos convidados a dar
graças ao Senhor nosso Deus6.
Por isso, se a alma atribuísse a si própria aquilo que provém de Deus, e particular-
mente a justiça, seria ingrata..., uma vez que, como diz o Apóstolo, o justo vive da fé.
Esta justiça de Deus, escondida no Antigo Testamento, foi revelada no Novo...
Esta é a fé... que Jesus Cristo nos concedeu. Por ela acreditamos que é de Deus que
vem até nós a graça de vivermos com justiça, e que tal graça continuará a ser-nos
concedida no futuro ainda com mais plenitude. Por isso Lhe dirigimos acções de graças
com aquela piedade com que só Deus deve ser adorado7.

1
A GOSTINHO DE H IPONA , Contra Cresconium grammaticum partis Donati libri IV (=PL 43, 445-594; CSEL
52). Obra escrita por volta de 405.
2
A GOSTINHO DE H IPONA , De divinatione daemonum liber I (=PL 40, 581-592; CSEL 41; BAC 551). Um dia,
na Oitava da Páscoa, um grupo de cristãos leigos, talvez na sacristia, conversavam com Agostinho de
Hipona sobre a religião cristã e a presumida e surpreendente ciência do paganismo, no qual parece haver
verdadeiras profetizas que adivinham o futuro e que acertam, às vezes, com alguns acontecimentos que
estão para suceder. Este pequeno tratado parece ter sido escrito entre os anos 406 e 408.
3
A GOSTINHO DE H IPONA , De spiritu et littera ad Marcellinum liber I (=PL 44, 201-246; CSEL 60; BAC 50).
Obra é do ano 412. Interessa-nos como testemunho da unidade do prefácio e do resto da Oração Eucarística.
4
Job 28, 28.
5
O do altar.
6
Unde et in ipso veríssimo et singulari sacrifício, Domino Deo nostro agere gratias admonemur.
7
Unde illi ea pietate, qua solus colendus est, gratias agimus.
AGOSTINHO DE HIPONA 739

O perdão dos pecadores


e o baptismo das crianças 1

LIVRO I

19. 25 Se podemos dizer que as crianças são realmente fiéis e penitentes, em virtude 3045
dos actos e das palavras daqueles que as trazem, «tudo isso se faz em esperança, pelo
poder do sacramento e da graça divina que o Senhor deu à Igreja».
20. 26 Os Pelagianos ficam aterrados com a palavra do Senhor que diz: Quem não 3046
nascer de novo não pode ver o Reino de Deus, logo a seguir explicada assim: Quem não
nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino dos Céus. Por essa razão
empenham-se em conceder a salvação e a vida eterna às crianças não baptizadas, por
mérito da inocência. Mas como não estão baptizadas, colocam-nas, com nova e admirável
presunção, fora do Reino dos Céus, como se a salvação eterna e a vida eterna pudessem
acontecer fora da herança de Cristo, fora do Reino dos Céus. Têm, certamente, maneira
de refugiar-se e abrigar-se, porque o Senhor não disse: “Quem não nascer da água e do
Espírito não terá vida”, mas disse: Não pode ver o Reino de Deus. Se tivesse dito
aquelas palavras, não poderia nascer delas qualquer dúvida. Por isso, lancemos fora a
dúvida. Ouçamos o Senhor, não as suspeitas e conjecturas dos mortais; ouçamos o
Senhor, repito, quando fala, não certamente do sacramento do baptismo, mas do sacra-
mento da sua santa mesa, do qual só o baptizado se aproxima devidamente 2: Se não
comerdes a minha carne e não beberdes o meu sangue, não tereis a vida em vós. Que
procuramos mais? Que se pode responder a isto...?
23. Alguns colocam uma objecção que merece reflexão e discussão, quando dizem 3047
que os recém-nascidos recebem o baptismo, não para a remissão dos pecados, mas
para serem o que não eram antes, criaturas espirituais em Cristo, e terem parte no
próprio Reino dos Céus, tornando-se, ao mesmo tempo, filhos e herdeiros de Deus
com Cristo. No entanto, quando se pergunta a essas pessoas se os recém-nascidos irão
beneficiar da salvação eterna na ressurreição dos mortos, sem serem baptizados..., têm
muita dificuldade e não encontram resposta. Se alguém dissesse que a salvação eterna,
que só pode acontecer pelo baptismo, é possível a quem não renasce em Cristo,
encontraria algum cristão que concordasse com ele?... Quem ousaria afirmar que, sem
esta regeneração, os recém-nascidos podem ter a salvação eterna, como se Cristo não
tivesse morrido por eles?
24. 34 Com toda a razão os cristãos púnicos chamam ao baptismo “salvação”, e ao 3048
sacramento do Corpo de Cristo “vida”. Donde vem este costume senão da antiga
tradição apostólica, que as Igrejas de Cristo guardaram com firmeza, de que, sem o
baptismo e a participação na mesa do Senhor, nenhum homem pode alcançar, não
apenas o reino de Deus, mas a salvação e a vida eterna?...
Com efeito, que outra coisa afirmam os que dão ao baptismo o nome de salvação
senão o que foi dito: Salvou-nos pelo banho da regeneração?... E que outra coisa
afirmam os que dão ao sacramento da mesa do Senhor o nome de vida senão o que foi
dito: Eu sou o pão vivo que desci do Céu e O pão que Eu hei-de dar é a minha carne
para a vida do mundo...?

1
A GOSTINHO DE H IPONA , De peccatorum meritis et remissione et de baptismo parvulorum ad Marcellinum
libri III (=PL 44, 109-200; CSEL 60; BAC 79). Obra fundamental que contém a primeira teologia bíblica
da redenção e do pecado original e da necessidade do baptismo. É do ano 412.
2
Rite.
740 SÉCULO V

Por isso, se de acordo com tantos e tão grandes testemunhos divinos, ninguém
há-de esperar a salvação e a vida eterna sem o baptismo e sem o Corpo e o Sangue do
Senhor, é em vão que, sem eles, se prometem tais bens às crianças... Não duvidamos,
portanto, que o sangue também foi derramado pelas crianças a baptizar...
3049 25. 38 Quem crê em Mim, diz Cristo, não permanece nas trevas. A Igreja mãe não
duvida de que isto se realizará nas crianças pelo sacramento do baptismo. Com efeito,
ela empresta-lhes a sua boca e o seu coração maternais, para que elas sejam penetradas
pelos mistérios sagrados, porque não podem crer pelos seus próprios corações para
chegarem à justiça, nem confessar com a própria boca para chegar à salvação.
3050 27. 40 Quem ignora que, para as crianças, crer é ser baptizado, e não crer é não ser
baptizado?
3051 28. Quem crê no Filho tem a vida eterna; quem se nega a crer no Filho não verá a
vida, mas sobre ele pesa a ira de Deus3. Em que categoria colocaremos nós as crianças:
entre os que crêem no Filho ou entre os que não crêem? Nem dum lado nem do outro,
segundo alguns, porque não sendo ainda capazes de crer, não podem ser também
contadas como incrédulas. Não é isso o que deixa perceber a disciplina da Igreja, que
coloca no número dos fiéis as crianças baptizadas. Ora, se estes baptizados são conta-
dos entre os crentes em consequência da celebração e da força de um sacramento tão
grande, apesar de não poderem ainda fazer um acto de fé interior e exterior com o
coração e com os lábios, certamente aqueles a quem falta o sacramento devem ser
contados entre os que não crêem no Filho e, por conseguinte, se vierem a morrer
privados desta graça, seguir-se-á para eles aquilo que está escrito: Não terão a vida
eterna, mas sobre eles pesará a ira de Deus. Donde vem isto, se eles não estão sujeitos
ao pecado original e se também não cometeram, evidentemente, nenhum pecado pessoal?
3052 33. Os recém-nascidos, que não têm qualquer pecado pessoal devido à sua idade,
têm contudo o pecado original, e desse, dessa doença, dessa ira divina dos quais são
filhos por natureza, só os liberta o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo4...
De facto, quem ousaria dizer que Jesus Cristo não é o Salvador e o Redentor das
crianças? Mas como pode Ele tê-las salvo se não há nelas qualquer traço do pecado
original? Como pode Ele tê-las resgatado, se elas não se encontram sob a escravidão do
pecado, apesar de terem recebido a sua origem do primeiro homem? Não ousemos
prometer às crianças, fora do baptismo de Cristo, uma salvação eterna que a Sagrada
Escritura não promete, e que devemos preferir a todas as concepções humanas.
3053 34. Entre os cristãos de África, ao baptismo só se dá o nome de “salvação”, e ao
sacramento do Corpo de Cristo só se dá o nome de “vida”, e está muito certo...
Portanto, se sem o baptismo e a Eucaristia ninguém pode esperar a salvação e a vida
eterna, é em vão que se promete isso às crianças fora destes sacramentos...
3054 38. Eu vim ao mundo para ser luz, a fim de que todo o que crê em Mim não fique nas
trevas5. A nossa mãe Igreja não duvida de que esta iluminação se realiza nas crianças
pelo sacramento do baptismo. Ela empresta-lhes o seu coração e a sua boca maternais,
para que sejam iniciadas nos mistérios sagrados, quando os seus corações são ainda
incapazes de crer para a justiça e as suas bocas incapazes de professar a fé para a
salvação. Apesar disso, nenhum fiel hesita em chamar-lhes fiéis, o que deriva segura-
mente do facto de elas crerem, não obstante não serem elas próprias que respondem no
decurso da celebração sacramental, mas outros por elas.
3055 39. Dado que eles aceitam a necessidade do baptismo para as crianças, uma vez que
não podem ir contra a prática da Igreja universal transmitida incontestavelmente pelo

3
Jo 3, 36.
4
Jo 1, 29.
5
Jo 12, 46.
AGOSTINHO DE HIPONA 741

Senhor e pelos Apóstolos, vêem-se obrigados a conceder que estas crianças têm necessidade
dos benefícios do mediador, para que, purificadas pelo sacramento e pela caridade dos
fiéis e inseridas no Corpo de Cristo que é a Igreja, sejam reconciliadas com Deus e,
vivendo n’Ele, sejam salvas, libertadas, resgatadas, iluminadas. De quê, senão... do
pecado original?
40. No fim do seu Evangelho, Marcos declara que o Senhor disse: Ide por todo o 3056
mundo, proclamai o Evangelho a toda a criatura. Quem acreditar e for baptizado
será salvo; quem não acreditar será condenado6. Mas quem não sabe que, para as
crianças, crer é ser baptizado, e não crer é não ser baptizado?
58. Aprofundemos agora, com mais cuidado, na certeza de que o Senhor nos vai 3057
ajudar, o capítulo do Evangelho onde Ele diz que ninguém entrará no reino de Deus se
não renascer da água e do Espírito 7. Se esta palavra os não impressionasse, os
pelagianos seriam de opinião de que não temos de baptizar as crianças. «Mas, dizem
eles, o Evangelho não diz: “Se não renascer da água e do Espírito, ninguém terá a
salvação nem a vida eterna”; ele diz apenas que não entrará no reino de Deus. As
crianças devem ser baptizadas, a fim de estarem com Cristo no reino de Deus, onde não
estarão se não forem baptizadas; mas, se as crianças morrerem sem baptismo, terão a
salvação e a vida eterna, porque não estão presas pelo laço de nenhum pecado». É isto
o que eles dizem, mas nunca explicam em nome de qual justiça é que a imagem de
Deus 8, se não fosse culpada de qualquer pecado, seria privada do reino de Deus.
Vejamos se o Senhor Jesus, o único bom Mestre, não significou e mostrou nessa
mesma página do Evangelho que é preciso obter a remissão dos pecados pelo baptis-
mo, a fim de chegar ao reino de Deus... Por que se deve renascer, senão por necessidade
de ser renovado? Por que se deve ser renovado, senão pelo facto de ser velho?... Por
que é que a imagem de Deus não entra no reino de Deus, senão porque o pecado a
impede?...
63. E porque não falar da própria liturgia do sacramento? Gostaria que um desses 3058
adversários me trouxesse uma criança para baptizar. Que opera nela o meu exorcismo,
se acaso ela não está retida na família do Diabo? Certamente é ele que irá responder em
nome da criança que trouxe, uma vez que esta última não pode responder por si
mesma. Como irá então ele dizer que esta renuncia ao Diabo, se a ele nunca esteve
ligada? Que se converte a Deus, se nunca se afastou d’Ele? Que ela crê, entre outras
coisas, na remissão dos pecados, se tal remissão não precisa de ser concedida? Quanto
a mim, se eu soubesse que este homem tem convicções opostas, não lhe permitiria
sequer que se aproximasse dos sacramentos com a criança... Nada se pode conceber
nem dizer de mais baixo e sem vergonha do que celebrar para as crianças uma liturgia
baptismal falsa e enganadora, na qual se desse a impressão de dizer e fazer algo, mas
onde, de facto, não se realizasse nenhuma remissão dos pecados. E alguns (hereges)
deram-se conta disso. É por isso que, no que se refere ao baptismo das crianças, para
justificar a necessidade do seu baptismo, eles concedem que estas têm necessidade
duma redenção. Assim o diz um deles, num pequeno libelo, sem querer, no entanto,
falar muito claramente da remissão de um qualquer pecado. Como tu mo expões na tua
carta, é verdade que eles confessam, doravante, dizes tu, que, pelo baptismo, se realiza
nas crianças uma remissão dos pecados. Isso não admira nada, porque a redenção não
se pode compreender de outro modo. Mas, dizem eles, não foi por terem nascido, mas
porque, na sua vida pessoal após o nascimento, começaram a pecar.
64. Vês, portanto, a diferença que existe entre aqueles que sustentam que as crianças 3059
são totalmente isentas e puras de todo o pecado, original e pessoal, e aqueles que

6
Mc 16, 16.
7
Jo 3, 5.
8
Deus criou o homem à sua imagem.
742 SÉCULO V

pensam que elas contraíram, após o seu nascimento, pecados dos quais, assim o crêem,
precisam de ser purificadas pelo baptismo. Assim, estes últimos, considerando as
Escrituras, a prática de toda a Igreja e a própria liturgia do sacramento, viram, com
razão, que a remissão dos pecados se realiza, nas crianças, pelo baptismo; mas não
querem ou não podem dizer que este pecado que nelas existe seja o pecado original.
Quanto aos primeiros... viram muito bem, e era fácil, que esta idade não podia cometer
o mais pequeno pecado na sua vida pessoal; mas para não admitirem o pecado original,
dizem que, nas crianças, não há nenhum pecado. Entendam-se primeiro entre si, naquilo
que de verdadeiro dizem, de um lado e do outro, e a consequência será que nenhum
desacordo passará a existir entre eles e nós. Porque, se os primeiros concederem aos
segundos que nas crianças baptizadas se realiza uma remissão dos pecados, e se os
segundos concederem aos primeiros, como aliás a natureza grita nessas crianças silen-
ciosas, que as suas vidas pessoais não estão manchadas por nenhum pecado, uns e
outros nos concederão que nas crianças só resta um pecado original a perdoar pelo
baptismo.

LIVRO II
3060 26. 42 Penso que os catecúmenos são, de algum modo, santificados pelo sinal de
Cristo9, a oração e a imposição da mão. O que eles recebem10, embora não seja o Corpo
de Cristo, no entanto, é santo e mais santo do que a comida com que nos alimentamos,
porque é um sacramento 11. Mais ainda: os próprios alimentos que comemos para
sustentar a vida corporal, são santificados, segundo o Apóstolo, pela palavra de Deus
e a oração... Mas a santificação do catecúmeno, se ele não vier a ser baptizado, não lhe
serve para entrar no reino dos Céus ou obter a remissão dos pecados...

LIVRO III

3061 4. 7 Uma vez que o efeito do baptismo das crianças é a sua incorporação na Igreja,
isto é, uni-las ao Corpo de Cristo e aos seus membros, é evidente que, se não recebe-
rem este sacramento, pesa sobre elas a sentença da condenação... Mas como, pela
idade que têm, não podem ser responsáveis de pecados pessoais, forçoso é deduzir ou
pelo menos acreditar, que as crianças contraem o pecado original.
3062 13. 22 Esta controvérsia, a cuja novidade se opõe a verdade tradicional, pretende
levar-nos a crer que o baptismo das crianças parece completamente inútil. Não se diz
isso abertamente, com receio de que um costume da Igreja tão assegurado... não possa
tolerar aqueles que o violam. Mas, se nós temos o dever de ajudar os órfãos, devemos
esforçar-nos muito mais por aqueles que, apesar de terem os seus pais, ficarão mais
abandonados e serão mais dignos de dó do que os órfãos, se lhes for recusada a graça de
Cristo, que não podem pedir por si próprios... 23 A minha intenção era escrever-te
uma carta breve, e afinal nasceu um livro extenso. Deus queira que ele seja tão bom
como nos sabe chegar ao fim da sua escrita.

9
O sinal da cruz.
10
A que se referirá Agostinho? Ao sal ou a uma eulógia?
11
Cathecumenos secundum quemdam modum suum per signum Christi et orationem manus impositionis
puto sanctificari. Quod accipiunt, quamvis non sit corpus Christi, sanctum est tamen et sanctius quam
cibis quibus alimur, quoniam sacramentum est.
AGOSTINHO DE HIPONA 743

A fé e as obras 1
1. 1 Alguns ensinam levianamente que todos devem ser admitidos ao baptismo da 3063
regeneração de nosso Senhor Jesus Cristo, mesmo que não queiram mudar a sua vida
má e libertina..., ou cheguem até a declarar que desejam perseverar abertamente nessa
situação. Por exemplo, dizem esses, se alguém estiver unido a uma meretriz, não deve,
primeiro, ser obrigado a deixá-la, como condição para ser admitido ao baptismo, mas,
ao contrário..., deve ser admitido e baptizado..., de modo a não o impedir de se tornar
membro de Cristo...; só depois... de baptizado é que deve ser instruído sobre os
costumes que tem de mudar para melhor. Esses tais julgam desumano e fora de tempo
ensinar primeiro como é que um cristão deve viver, e baptizá-lo depois. Consideram
que o sacramento do baptismo deve preceder o ensinamento sobre os hábitos de vida...
2 Parece levá-los a esta atitude o facto de saberem que os maridos que abandonaram
as suas esposas e se casaram outra vez não são admitidos ao baptismo, nem tão pouco
as mulheres que abandonaram os seus maridos e se casaram com outros, porque Cristo
Senhor afirma, sem qualquer sombra de dúvida, que tais uniões não são matrimónios,
mas adultérios. Uma vez que não podem negar que seja adultério aquilo que a Verdade
afirma sem reticências que é adultério, aprovam para o baptismo os que são apanhados
neste laço, dizendo que se não os admitirem eles optam por viver e mesmo por morrer
sem sacramento algum, de preferência a romper o laço do adultério e a viver em
liberdade. Levados a defender a sua causa em nome da piedade humana, crêem que
todos devem ser admitidos ao baptismo como eles, os facínoras e criminosos, os
cínicos e ambiciosos, os incorrigíveis e escandalosos, porque, se o não fizerem, conde-
nar-se-ão para sempre e, ao contrário, se assim se proceder, mesmo que perseverem
em suas maldades, salvar-se-ão por meio do fogo 2.
2. 3 Respondo-lhes dizendo, em primeiro lugar, que, se alguém entende o testemunho 3064
das Escrituras sobre a mistura dos bons e dos maus na Igreja, quer presente quer
futura, no sentido de relaxar e mesmo de omitir totalmente a severidade e a vigilância
da disciplina, é não só um ignorante dos Livros sagrados, mas também um iludido pela
sua própria opinião. De facto, nem Moisés, o servo mais paciente de Deus, tolerou
semelhante mistura no primeiro povo... Do mesmo modo, o santo Apóstolo... crê que
não se deve perdoar àquele que vive com a mulher do seu pai, e ordena à Igreja reunida
que o entregue a Satanás..., a fim de que o seu espírito seja salvo no dia do Senhor3...
Com que atenção e amor se deve exercer a severidade misericordiosa está muito
claro não só nas palavras: a fim de que o seu espírito seja salvo no dia do Senhor, mas
também na advertência que faz noutro lugar: Se alguém não obedecer à nossa palavra
comunicada nesta Carta, a esse assinalai-o, e não tenhais contacto com ele para que
se envergonhe. Não o considereis, todavia, como um inimigo, mas repreendei-o como
um irmão 4.
3. 4 É certo que o próprio Senhor, exemplo singular de paciência, e que entre os 3065
doze Apóstolos suportou um Diabo até à Paixão, disse: Deixai um e outro crescer
juntos até à ceifa, não suceda que, ao apanhardes o joio, arranqueis o trigo ao mesmo
tempo5. E também contou a parábola da rede, aplicada à Igreja até à margem, isto é, até
ao fim do mundo, e que há-de recolher peixes bons e maus, e as outras parábolas sobre
a mistura clara ou velada de bons e maus... Mas não considerou que a disciplina da

1
A GOSTINHO DE H IPONA , De fide et operibus liber I (=PL 40, 197-230; CSEL 41; BAC 499). Escrito em 413.
2
1 Cor 3, 15.
3
1 Cor 5, 5.
4
2 Tes 3, 14-15.
5
Mt 13, 29-30.
744 SÉCULO V

Igreja deveria ser eliminada, antes a mandou utilizar, quando disse: Se o teu irmão
pecar, vai ter com ele e repreende-o a sós. Se te der ouvidos, terás ganhado o teu
irmão. Se não te der ouvidos, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda
a questão fique resolvida pela palavra de duas ou três testemunhas. Se ele se recusar
a ouvi-las, comunica-o à Igreja; e, se ele se recusar a atender à própria Igreja, seja
para ti como um pagão ou um cobrador de impostos. E acrescentou, afirmando com
intensa gravidade, que tudo o que ligardes na terra será ligado no Céu, e tudo o que
desligardes na terra será desligado no Céu6... Além disso, proibiu deitar o que é santo
aos cães... Esta é a razão de se aceitarem e tolerarem os maus na Igreja, mas também de
os castigar e corrigir, ou de não os admitir e até de os afastar da comunhão.
3066 4. 5 Enganam-se os homens sem moderação, que, ao começarem a inclinar-se para
um lado, não olham para outros testemunhos da autoridade divina, que podem
contradizê-los ou confirmá-los nas verdades adquiridas com sensatez. E não só nesta
questão, mas também em muitas outras...
6 No assunto de que estamos a tratar, há também alguns que, agarrando-se aos
preceitos mais severos que nos recordam a necessidade de repreender os inquietos,
dizem que não se deve lançar o que é santo aos cães. Ao afirmarem que se deve
considerar como gentio aquele que despreza a Igreja e arrancar do corpo o membro que
escandaliza, perturbam muito a paz da Igreja, na ânsia de separar o joio antes do
tempo, e não é raro que, obcecados pelo erro, acabem eles próprios por separar-se da
unidade de Cristo... Outros, ao contrário, ficam vacilantes. Ao observar que está pre-
dita a mistura de bons e maus na Igreja e ao lembrarem-se dos preceitos da paciência...,
pensam que se deve abandonar a disciplina da Igreja e censuram os responsáveis por
certa passividade... e por não se preocuparem com aquilo que cada um faz.
3067 5. 7 Nós acreditamos sinceramente, pelos testemunhos de uns e de outros, que
pertence à sã doutrina moderar a vida e as ideias..., e que, dentro da unidade e participação
nos sacramentos, nada sucederá aos bons, se não consentirem nas obras dos maus...
3068 6. 8 Procurando ser moderados segundo a sã doutrina, examinemos então se devem
ser admitidos ao baptismo todos os homens..., de modo que nem os adúlteros mais
descarados e recalcitrantes devam ser afastados de tão santo sacramento. Ninguém
duvida de que eles não seriam admitidos se, durante os dias em que, depois de inscreverem
os seus nomes e se purificarem com a abstinência, os jejuns e os exorcismos para
receberem a própria graça, dissessem que iriam viver maritalmente com suas mulheres
legítimas e verdadeiras, e que nem nesses poucos dias solenes pensavam guardar con-
tinência alguma nesse ponto, aliás lícito em qualquer outro tempo. Como é que se pode
admitir às coisas santas um adúltero que rejeita a correcção, quando não se admite o
casado que recusa a sua observância?
9 Dizem alguns: baptize-se primeiro e instrua-se depois acerca da doutrina da
vida honesta e dos bons costumes. É o que se faz quando alguém, que se julga ter
chegado ao fim dos seus dias, confessa a sua fé com poucas palavras que são o resumo
de tudo, e recebe o Sacramento. Se morrer, sairá (deste mundo) livre das consequências
de todos os seus pecados passados.
Contudo, se alguém em perfeita saúde e que tenha tempo de aprender pede o
baptismo..., não se irá preparar para tão grande sacramento da fé...? Acaso iremos
dissimular os nossos sentimentos, esquecidos, nós próprios, de que estávamos aten-
tos e interessados por aquilo que nos mandavam os catequistas quando pedíamos os
sacramentos daquela fonte, razão pela qual nos chamavam competentes? Ou será que
não admiramos aqueles que todos os anos correm ao banho da regeneração, e que nestes
dias recebem a catequese, os exorcismos, os escrutínios? Será que não admiramos a soli-
citude com que todos acodem, o interesse com que trabalham e a atenção que prestam?

6
Mt 18, 15-18.
AGOSTINHO DE HIPONA 745

Se neste momento não têm tempo para aprender o modo de vida que convém a
tão grande sacramento que desejam receber, quando o terão? Talvez quando, depois de
baptizados, permanecerem impenitentes nos seus grandes pecados, não como homens
novos, mas como réus velhos!... E que outra coisa se faz durante todo o tempo que se
está entre os catecúmenos senão ouvir com que fé e costumes devem viver os cristãos,
para que, quando se examinarem a si mesmos, não comam da mesa do Senhor nem
bebam do seu cálice indignamente? Porque quem deles come e bebe indignamente,
come e bebe a sua própria condenação. Isto faz-se durante todo o tempo estabelecido
na Igreja, para que o catecumenado prepare os que se aproximam do nome de Cristo.
Isto faz-se com muita diligência e constância durante os dias em que se lhes chama
competentes, depois de terem dado os seus nomes para receberem o baptismo.
7. 11 Afirmam arbitrariamente que é nas Sagradas Escrituras que eles encontram a 3069
ordem e o modo de tratar estes assuntos, e dizem que os Apóstolos procederam desse
modo... Como se lessem algumas cartas dos Apóstolos escritas para os que vão ser
baptizados e outras para os já baptizados, nas quais pudéssemos encontrar a maneira
de evitar os maus costumes e aprender os bons...
Não há documento algum que apoie tal opinião tirada das cartas dos Apóstolos...
Apesar de uma coisa vir primeiro e a outra depois, contudo, numa pastoral ortodoxa e
saudável, muitas vezes há que pregá-las ambas ao mesmo tempo; e, até por exigência
do conteúdo, haverá que fazê-lo tanto aos catecúmenos como aos fiéis, aos que se vão
baptizar e aos já baptizados, para instruir, para recordar, para professar a fé ou para
a confirmar...
8. 12 Eles insistem, dizendo que, nos Actos dos Apóstolos, Pedro, aos três mil que 3070
foram baptizados naquele dia, depois de ouvirem a palavra, lhes falou desse modo, só
da fé, pela qual acreditaram em Cristo... Mas esquecem-se de que ele lhes disse: fazei
penitência?...
9. 14 O eunuco, a quem Filipe baptizou, disse apenas: Creio que Jesus Cristo é o 3071
Filho de Deus. E com esta profissão de fé foi baptizado logo a seguir. Parece-vos, por
esse motivo, que os homens devem responder só isto, e a seguir ser baptizados? Sem
saberem nada do Espírito Santo, nem da Igreja, nem do perdão dos pecados, nem da
ressurreição dos mortos, nem, finalmente, do próprio Senhor Jesus Cristo, excepto
que é o Filho de Deus? Nada da sua encarnação da Virgem, nem da sua Paixão, morte de
cruz, sepultura, Ressurreição ao terceiro dia, Ascensão e de estar sentado à direita do
Pai, não haverá que dizer nada disto ao que é catecúmeno, que tem de o professar como
crente?
Se ao eunuco, que respondeu: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus, isso lhe
pareceu suficiente para logo a seguir ser baptizado, porque não o imitamos e deixamos
tudo o que temos como necessário, em relação até aos que baptizamos quando o tempo
é pouco 7, como são os exorcismos, as perguntas e as respostas do baptizando, mesmo
que o não tenha aprendido de memória?... De igual modo está escrito que Filipe lhe
anunciou o Senhor Jesus, e de modo nenhum se pode duvidar de que lhe ensinou
também no catecismo8 tudo quanto se refere à vida e costumes daquele que crê no
Senhor Jesus.
Com efeito, evangelizar em Cristo não é apenas ensinar o que se há-de crer acerca
de Cristo, mas também como há-de viver aquele que adere à estrutura do Corpo de Cristo...

7
Baptismo de urgência.
8
Nullo modo dubitandum est et illa in catechismo dicta esse. É esta a primeira vez que a palavra catecismo
é utilizada como sinónimo de catequese, no sentido de instrução nos princípios religiosos e morais.
746 SÉCULO V

3072 10. 15 Parece que eles, quando recordam as palavras do apóstolo Paulo: Julguei não
dever saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e este crucificado9, as
entendem como se lhes dissessem apenas que primeiro se deve crer, e só depois de
baptizados aprender tudo o que pertence ao modo de viver e aos costumes... Se o
querem entender assim..., saibam então que, em Cristo crucificado, os homens apren-
dem muito mais coisas...
Prestem, portanto, atenção e vejam como é ensinado e aprendido Cristo crucificado,
sem esquecer que pertence também à sua cruz o estarmos crucificados no seu corpo
para o mundo... Por isso não se podem permitir os adultérios àqueles que estão forma-
dos na cruz de Cristo...
3073 11. 17 Mas eles dizem: O povo de Israel foi conduzido, primeiro, através do mar
Vermelho, que é sinal do baptismo, e só depois é que recebeu a Lei, para aprender
como tinha de viver. Porque entregamos então nós o Símbolo aos que se vão baptizar
e o voltamos a receber quando é devolvido? Nada disto fizeram aqueles a quem Deus
livrou dos Egípcios através do mar Vermelho...
Não insistam em que se deve exigir apenas a fé em Deus aos que se preparam
para o baptismo, e que só depois do sacramento se deve instruí-los sobre a vida moral
e sobre o segundo mandamento, que se refere ao amor do próximo. Porque a Lei que o
povo recebeu, depois da passagem do mar Vermelho, símbolo do baptismo, contém
uma e outra coisa...
3074 12. 18 Se alguém pede o baptismo, afirmando que não vai abandonar a idolatria até
que lhe apeteça... e insiste em que quer ser templo do Deus vivo..., pergunto se, neste
caso, o farão sequer catecúmeno!... Certamente terão que lhe dizer: serás templo de
Deus, quando receberes o baptismo...
3075 13. 19 Se tivéssemos de instruir nos costumes da vida cristã os que já se baptizaram
e apenas sobre a fé os que se vão baptizar..., João Baptista não chamaria aos que iam
ao seu baptismo: Raça de víboras... Recordando isto brevemente, o Evangelista...
mostrou, com clareza, que ensinar e admoestar sobre os costumes pertence ao cate-
quista que instrui aquele que vai ser baptizado...
3076 18. 33 De facto, admira-me muito que sejam irmãos bem instruídos, e que deviam
afastar-se de semelhante opinião..., os primeiros a dizer que a doutrina que não admite
ao baptismo homens de tal modo perversos e que proclamam sem vergonha a decisão
de continuar nos seus pecados, é novidade. Também não compreendo como se fingem
ignorantes, quando às mulheres de má vida, aos farsantes e a quaisquer outros profissionais
de torpezas públicas, e lhes não permitem aproximar-se dos sacramentos cristãos
antes de quebrarem ou romperem tais laços. Segundo a doutrina que defendem, deve-
riam admitir também todos esses...
3077 19. 34 Os que argumentam dizendo que tudo fica compensado facilmente com as
esmolas, não duvidam, no entanto, que há três pecados mortais, passíveis de excomunhão,
até serem perdoados pela mais humilde penitência: o adultério, a idolatria e o homicídio...
35 Mas, talvez porque os costumes dos maus cristãos10, que antes foram muitíssimo
piores, não consideram mal que os maridos tomem para suas esposas as que são de
outros e que as mulheres se casem com os maridos de outras, introduziu-se, nalgumas
Igrejas, a tolerância negligente, de nem sequer se perguntar por esses vícios para os
combater nas catequeses dos competentes11, e, o que é ainda mais grave, alguns come-
çam até a defendê-los. Até agora, tais casos são ainda muito raros entre baptizados,
mas há o perigo de se tornarem mais habituais por nossa negligência. Deve ter sido essa

9
1 Cor 2, 2.
10
A palavra cristãos tem aqui o sentido de catecúmenos, como se verá pela sequência do texto.
11
In catechismis competentium.
AGOSTINHO DE HIPONA 747

negligência de alguns, a falta de jeito de outros e a ignorância de muitos, o que o Senhor


quis designar com a palavra sono, ao dizer: Enquanto os homens dormiam, veio o
inimigo e semeou joio12.
20. 36 No que se refere à doutrina salvadora da verdade..., afirmem os baptizandos, 3078
no próprio rito em que se lhes entrega o Símbolo, que crêem em Deus Pai, em Deus
Filho e em Deus Espírito Santo; façam penitência das obras mortas e não duvidem que
receberão, no baptismo, a remissão completa de todos os pecados passados, não para
poderem continuar a pecar no futuro, mas para que não os prejudique o pecado passado...
26. 48 Evitemos cuidadosamente, com a ajuda do Senhor nosso Deus, dar aos ho- 3079
mens uma falsa segurança, dizendo-lhes que, se foram baptizados em Cristo, hão-de
chegar à vida eterna, qualquer que seja o seu modo de viver a fé. Não façamos cristãos
deste modo... Conservemos, antes, a sã doutrina de Deus..., para que a vida cristã
esteja de acordo com o santo baptismo, e não se prometa a ninguém a vida eterna se lhe
faltar uma destas coisas. Na verdade, Aquele que disse: Se alguém não renascer da
água e do Espírito não entrará no Reino dos Céus, também disse: Se a vossa justiça
não ultrapassar a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus...
Por um lado, se não houvesse pecados que devem ser perdoados com outros
remédios penitenciais, diferentes da penitência humilhante que se impõe na Igreja aos
que são chamados penitentes, o próprio Senhor não teria dito: Repreende-o a sós. Se
te der ouvidos, terás ganhado o teu irmão. Por outro lado, se nesta vida não houvesse
outros pecados inevitáveis, não teria colocado o seu remédio quotidiano 13 à nossa
disposição, quando nos ensinou a dizer: Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como
nós perdoamos a quem nos tem ofendido.
27. 49 Creio ter dito o suficiente sobre as três questões que me foram postas. 3080
Relativamente à primeira, que se refere à mistura dos bons e dos maus na Igreja, como
acontece com o trigo e o joio na seara, há que evitar... que as comparações... sirvam
para adormecer a disciplina...
Quanto à segunda, que afirma que os catecúmenos deveriam, primeiro, ser ins-
truídos apenas sobre a fé e só depois de baptizados sobre os costumes, parece-me ter
ficado bem claro que, durante o tempo da preparação imediata, em que os competentes
que desejam o sacramento dos fiéis escutam com maior atenção e solicitude todas as
instruções, compete àquele que tem a responsabilidade de os admitir não silenciar os
castigos com que o Senhor ameaça os que vivem mal...
A terceira é a mais perigosa..., pois nela se promete aos que vivem de maneira
indigna que, mesmo perseverando nesse modo de viver, chegarão à salvação e à vida
eterna, desde que creiam em Cristo e recebam os sacramentos, o que se opõe à claríssima
sentença do Senhor: Se quiseres entrar na vida, guarda os mandamentos...
Tratei destas três questões, segundo creio, de maneira suficiente. Demonstrei
que há que tolerar os maus na Igreja de modo que não se descuide a disciplina eclesiás-
tica; que se devem catequizar de tal modo os que pedem o baptismo, que não só ouçam
e acolham o que devem crer, mas também como devem viver; que se há-de prometer aos
fiéis a vida eterna, mas de modo que ninguém pense poder entrar na vida com fé sem
obras. A fé sem obras não pode salvar, porque é morta. Só se entra na vida eterna
através da fé que opera por amor.
Por isso, ninguém acuse os responsáveis fiéis de negligência e preguiça; censure-se
antes a teimosia de alguns, que recusam receber o talento do Senhor e fazem força para
que os servos de Deus condescendam com a mercadoria adulterada por eles.

12
Mt 13, 25.
13
Cottidiana medela.
748 SÉCULO V

Comentário literal ao Génesis 1

LIVRO X

3081 14. 23 A idade da infância suscita o problema dificultoso da origem das almas; não
tendo a alma das crianças cometido pecado algum por livre vontade, de que modo pode
ser justificada pela obediência de um só Homem, se não é culpável pela desobediência
de um outro homem? É este o argumento daqueles que afirmam que as almas dos filhos
são criadas por transmissão dos pais, embora com intervenção do Criador, tal como
acontece com os corpos. Pois bem: nós não julgamos que são os pais que criam as
almas, mas sim Aquele que disse: Antes de te haver formado no ventre materno, Eu
já te conhecia... 25 Antes de uma criança chegar à idade que lhe permita viver segun-
do o espírito, deve receber o sacramento do Mediador para que se realize nela, pela fé
daqueles que a amam, o que ainda não é possível que se realize pela sua própria fé.
Graças a este sacramento, também na idade infantil é eliminada a pena do pecado
original, ao passo que, sem a sua ajuda, mesmo quando a criança se tiver tornado um
adulto, não poderá dominar a concupiscência da carne. Mais ainda: mesmo depois de a
ter dominado, só obterá a recompensa da vida eterna mediante a graça d’Aquele cuja
benevolência procura merecer. Por conseguinte, mesmo um bebé, desde que esteja vivo,
deve ser baptizado, a fim de que não seja prejudicial à alma a sua união com a carne de
pecado, uma vez que, por causa desta união, a alma da criança está impedida de sabo-
rear o que quer que seja de espiritual. Na verdade, esta condição pesa ainda sobre a
alma depois de despojada do corpo, a não ser que tenha sido purificada, enquanto este-
ve unida ao corpo, pelo único sacrifício do verdadeiro Sacerdote.
3082 23. 39 Depois de ter analizado a fundo estes textos, na medida em que o tempo mo
permitiu, posso afirmar que o peso das razões e dos textos aduzidos por cada uma das
partes tem o mesmo ou quase o mesmo valor, a não ser que a afirmação daqueles que
dizem que as almas procedem dos pais, tem um peso maior em relação à prática do
baptismo das crianças. Por agora ainda não é clara para mim a resposta que poderei dar
aos seus argumentos. Se posteriormente Deus me der uma solução e me conceder
também a possibilidade de a expor por escrito em benefício daqueles que se interessam
por este problema, fá-lo-ei de muito boa vontade. Mas por agora declaro, em primeiro
lugar, que não se deve desprezar o argumento tirado do baptismo das crianças, para não
nos esquecermos de o refutar de algum modo se for contrário à verdade. Encontramo-
nos, de facto, diante da seguinte alternativa: ou não se deve fazer qualquer pergunta
sobre o problema de que estamos a tratar, de modo que baste à nossa fé saber qual a
meta a que devemos chegar, vivendo no temor de Deus, embora desconhecendo donde
viemos; ou então, se é arrogante para a alma racional ter o desejo ardente de conhecer
a própria origem, deixe-se de disputar com obstinação e utilise a diligência no indagar, a
humildade no pedir, a perseverança no bater à porta. Deste modo, Deus, que sabe me-
lhor do que nós o que é para nosso bem, no-lo dará, se vir que isso nos é útil, pois Ele dá
coisas boas aos seus filhos. Não deve, contudo, desprezar-se, o costume de baptizar os
bebés, que é o da nossa mãe Igreja, nem considerá-lo de modo algum como inútil, nem
julgá-lo como se não fosse uma tradição apostólica. Porque esta tenra idade das crian-
ças tem a seu favor um testemunho de grande peso, dado que foi ela a primeira a ter o
mérito de derramar o seu sangue por Cristo.

1
A GOSTINHO DE HIPONA , De Genesi ad litteram libri XII (=PL 34, 245-486; PLS 2; CSEL 28; BAC 168). A
composição desta obra estende-se de 401 a 415
AGOSTINHO DE HIPONA 749

Comentários aos Salmos 1

SALMO 7

1. A alma perfeita canta este salmo ao Senhor, pois já é digna de conhecer o segredo 3083
de Deus...
SALMO 17

2. Neste salmo fala Cristo e a Igreja, quer dizer, Cristo total, a Cabeça e o Corpo. 3084
SALMO 18, S. 2

1. Tendo pedido a Deus que nos purifique dos nossos pecados ocultos e nos pre- 3085
serve do orgulho, devemos entender o que dissemos para não cantarmos como fazem
os pássaros, mas sim de forma inteligente e humana. De facto, os homens conseguem
ensinar os melros, os papagaios, os corvos, as pegas e outras aves da mesma espécie a
pronunciar o que ignoram. Mas cantar conscientemente só foi concedido, por vontade
divina, à natureza humana... Nós, que aprendemos a cantar na igreja as palavras divi-
nas, devemos pedir ao mesmo tempo que se cumpra o que está escrito: Feliz do povo
que sabe aclamar-Vos e caminha, Senhor, à luz do vosso rosto2. Portanto, caríssimos,
o que cantámos em uníssono devemos conhecê-lo e contemplá-lo com o coração tran-
quilo. Neste cântico, cada um de nós pediu ao Senhor e disse a Deus: Purificai-me,
Senhor, dos meus pecados ocultos. Preservai também do orgulho o vosso servo, que
ele não tenha sobre mim poder algum: então serei irrepreensível e imune de culpa
grave 3. Portanto, para sabermos bem o que isto é e o que significa, percorramos com
brevidade o texto do próprio salmo, na medida em que o Senhor no-lo quiser conceder.
2. Neste salmo canta-se a respeito de Cristo. É evidente o que afirmo, porque nele 3086
está escrito: Como esposo que sai de seu tálamo. Quem é o esposo senão Aquele que,
segundo o Apóstolo, desposou a virgem?
13. Quem pode reconhecer os seus erros? Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o 3087
que fazem... Purificai-me dos pecados que me são ocultos. Foi isto o que cantámos. Foi até
aqui que chegámos ao falar disto. Falemos, cantemos com inteligência, cantando ore-
mos, e orando peçamos com estas palavras: Purificai-me dos pecados que me são ocultos.
SALMO 21, S. 1

1. Para o fim 4. É o próprio Senhor Jesus que fala neste salmo, pensando na sua 3088
Ressurreição, que aconteceu no primeiro dia da semana, muito cedo, e através da qual
foi recebido na vida eterna Aquele sobre quem a morte nunca mais exercerá o seu poder.
Estas coisas referem-se à pessoa do crucificado..., e as palavras deste salmo foram
pronunciadas por Jesus, quando pendia da cruz...
SALMO 21, S. 2

1. O que o Senhor não quis que as suas Escrituras calassem, também não deve ser 3089
silenciado por nós...

1
A GOSTINHO DE H IPONA , Enarrationes in Psalmos (=PL 36-37; CCL 38-40; BAC 235, 246, 255, 264). É a
obra mais extensa de S. Agostinho e também o único comentário completo do Saltério que chegou até nós.
A sua composição estende-se desde o ano 392 até ao ano 416.
2
Sal 88, 16.
3
Sal 18 B, 13-14.
4
Título do salmo.
750 SÉCULO V

3090 2. Que querem dizer as palavras que acabais de ouvir? Se as pudéssemos escrever
com a nossas lágrimas! Este salmo descreve a Paixão de Cristo de maneira tão evidente
que parece o Evangelho, e no entanto foi composto não sei quantos anos antes de o
Senhor ter nascido da Virgem Maria.
3091 28. Os fiéis conhecem o sacrifício da paz, o sacrifício da caridade, o sacrifício do
Corpo de Cristo. Agora não é ocasião de dissertar sobre isso... Eis o salmo; hoje lê-se
entre nós e também se lê entre eles5. Gravemo-lo nas nossas frontes, caminhemos com
ele, não descanse a nossa língua ao dizer estas coisas. Vede Cristo que padeceu, vede o
mercador que mostra a mercadoria, vede o preço que Ele pagou, o seu sangue derramado.
Trazia na bolsa o nosso preço; foi cravado pela lança, a bolsa rompeu-se, e correu o
preço de toda a terra...
3092 29. Pensas que, quando o leitor recita: Hão-de lembrar-se do Senhor e converter-se-ão
a Ele todos os confins da terra, os hereges o escutam?... Irmãos, guardai estes três
versículos. Também se cantam hoje entre eles, se é que os não apagaram... Hoje, toda
a gente corre à igreja. Hoje, todos ouvem o salmo com atenção, de coração suspenso...
SALMO 22

3093 1. A Igreja fala a Cristo: O Senhor é meu pastor, nada me faltará. O Senhor Jesus
Cristo é o meu pastor, e nada me faltará.
3094 2. Conduziu-me à fé, colocando-me em prado verdejante para me alimentar. Recon-
fortou-me com a água do baptismo, pela qual refazem as forças os que tinham perdido
a inocência e o vigor.
3095 3. Levou-me, por amor do seu nome, não por meus méritos, pelos caminhos estrei-
tos da sua justiça, percorridos por poucos.
3096 4. Mesmo que eu caminhe, nesta vida, que é sombra de morte, não temerei nenhum
mal, porque Vós habitais no meu coração pela fé, e agora estais comigo, para que,
depois da sombra da morte, também eu esteja convosco. A vossa doutrina, como vara
que conduz o rebanho das ovelhas e como cajado que guia os filhos mais velhos ao
elevarem-se da vida terrena à espiritual, deu-me mais consolações do que tristezas,
porque Vos recordastes de mim.
3097 5. Depois da vara, pela qual, como criança, fui conduzido aos prados com o reba-
nho, quando comecei a estar sob o cajado preparastes a mesa na minha presença, para
que eu deixasse de ser alimentado com leite, como se ainda fosse menino, e em vez
disso, como adulto, comesse manjares para me tornar forte contra aqueles que me
atribulam. Alegrastes o meu coração com o gozo espiritual e a vossa bebida, que faz
esquecer os deleites das primeiras vaidades, é excelente.
3098 6. A bondade e a graça hão-de acompanhar-me todos os dias da minha vida, isto
é, enquanto viver nesta vida mortal, não vossa mas minha, e habitarei na casa do
Senhor para todo o sempre, porque Ele me acompanhará não só aqui, mas também
quando habitar eternamente na casa do Senhor.
SALMO 24

3099 1. É Cristo que fala, mas na pessoa da Igreja. De facto, estas palavras pertencem
sobretudo ao povo cristão, que se volta para Deus.

5
Entre os donatistas, reunidos numa igreja próxima daquela em que se encontrava Agostinho com a
comunidade católica.
AGOSTINHO DE HIPONA 751

SALMO 25, S. 2

5. Examinemos o salmo um pouco mais detidamente, dado que, para alguém pro- 3100
gredir na Igreja, é preciso que suporte os maus na Igreja. Aquele que for igual a eles não
os tolera, pois são muitos os maus que murmuram contra os maus. Um homem com
saúde suporta mais facilmente dois doentes, do que dois doentes se suportam um ao
outro. Por isso vos advertimos, irmãos, que a Igreja deste tempo é uma eira. Muitas
vezes o dissemos e tornamos a repeti-lo. Nela há palha e trigo. Ninguém pretenda tirar
toda a palha enquanto não vier o tempo de a ventilar. Ninguém abandone a eira antes da
ventilação, por não querer suportar os pecadores, não seja que, por estar fora da eira,
seja comido pelas aves antes de entrar no celeiro. Porque dizemos nós isto? Escutai,
irmãos. Quando os grãos começam a ser trilhados, já não se tocam na espiga, de modo
que deixam de conhecer-se porque se interpõem as palhas. Qualquer pessoa que de
longe observe a eira julga que é só palha. Se não olhar com mais atenção, se não
estender a mão, se não soprar, quer dizer, se não separar a palha do grão soprando,
dificilmente chegará a ver os grãos. Por vezes os grãos estão de tal modo separados uns
dos outros, sem se tocarem, que alguns deles pensam que é por serem bons que estão sós...
Por isso vos exorto, em poucas palavras, como disse no princípio. Preste-me
atenção a vossa fraterna santidade, e habite em vossos corações a misericórdia de
Deus, para que o que eu digo seja entendido por vós de tal modo, que frutifique e opere
em vós. Ouvi um momento: quem ainda é mau não julgue que não há ninguém bom, e
aquele que é bom não pense que só ele é bom. Entendestes? Vou repetir; prestai
atenção ao que eu digo: todo aquele que é mau, ao interrogar a sua consciência e ao
mostrar-lhe ela o que ele é, não pense que ninguém é bom, e aquele que é bom não
julgue que só ele é bom, e não tenha medo de estar misturado com os maus, porque virá
o tempo em que será separado. Por isso cantámos hoje: Não permitais que a minha
alma se junte aos pecadores, nem a minha vida aos homens sanguinários... Não nos
condeneis uns juntamente com os outros. Porque teme ele que Deus o condene junta-
mente com os pecadores?... Esta é a ideia presente em todo o salmo, que desejo
comentar rapidamente com vossa santidade, porque é breve.
SALMO 26, S. 1

1. Ao chegar à fé, o novo soldado de Cristo 6 diz: O Senhor é minha luz e salvação: 3101
a quem hei-de temer? O Senhor me fará conhecê-l’O e me dará a sua salvação. Quem
mo arrancará das mãos? O Senhor é protector da minha vida: de quem hei-de ter
medo? O Senhor faz recuar as insídias e embates do meu inimigo, não terei medo de
ninguém...
SALMO 26, S. 2

1. Se dissermos que as palavras do salmo que ouvimos e em parte cantámos são 3102
nossas, é verdade até certo ponto, apesar de serem mais palavras do Espírito de Deus
do que nossas. Mas, por outro lado, se dissermos que não são nossas, mentimos...
Assim, pois, ambas as coisas são verdadeiras: as palavras do salmo são nossas e não
são nossas. São palavras do Espírito de Deus, porque se Ele as não tivesse inspirado
não as pronunciaríamos nós; não são d’Ele, porque Ele não é infeliz nem pode sofrer.
Estas palavras são dos que precisam de misericórdia e andam cheios de trabalho.
Certamente são nossas, porque são palavras que mostram a nossa pobreza; mas não
são nossas, porque mesmo o suplicar é um dom do Espírito.

6
Tiro Christi. Pormenor muito importante relativo ao baptismo.
752 SÉCULO V

3103 2. David foi ungido como rei. Naquele tempo só se ungia o rei e o sacerdote.
Naquele tempo só eram ungidas estas duas pessoas. Em ambas estava prefigurado o
único e futuro rei e sacerdote, Cristo, dotado de ambas as dignidades e, por isso, a
palavra «Cristo» deriva de crisma, unção. Não só foi ungida a nossa Cabeça, mas
também o seu Corpo, isto é, nós próprios... Agora somos ungidos no sacramento, e
pelo mesmo sacramento se prefigura algo do que devemos ser. Ignoro o que é esse algo
futuro e inefável que devemos desejar, e pelo qual devemos suspirar no sacramento, a
fim de gozarmos daquela realidade que se antevê no sacramento.
3104 18. Ainda que meu pai e minha mãe me abandonem, o Senhor me acolherá. Fez-
Se menino diante de Deus; fez d’Ele seu Pai; fez d’Ele sua Mãe7. É Pai porque cria,
chama, manda e governa; é Mãe porque abriga, alimenta, amamenta e conserva... Quem
me criou não morrerá; não me afaste eu d’Ele... Conhecemos outro Pai que é Deus e
deixámos o Diabo. Como se atreverá este a aproximar-se daqueles a quem Deus, que
está acima de todas as coisas, o tomou a seu cuidado? Conhecemos outra Mãe, a
Jerusalém do Céu, que é a santa Igreja, e deixámos Babilónia.
SALMO 29, S. 2

3105 1. Sem dúvida cantámos: Eu Vos glorifico, Senhor, porque me salvastes e não
deixastes que de mim se regozijassem os inimigos. Se conhecemos, pelas santas Escri-
turas, quem são os nossos inimigos, entendemos o sentido deste cântico... De quem
pensamos que é a voz daquele que louva a Deus, Lhe dá graças e se alegra ao dizer-
-Lhe: Eu Vos glorifico...? Primeiro pensemos no Senhor enquanto homem, dado que,
por Se ter dignado fazer-Se homem, pôde, com verdade, aplicar a Si mesmo estas
palavras..., pois, por ser homem foi débil, e por ser débil orou... Quem ora, a quem ora
e porque ora? Deus ora? Ora ao que é Igual? Que motivo tem para orar, Ele que é
sempre bem-aventurado, sempre todo-poderoso, sempre imutável, eterno e co-eterno
com o Pai?.. Porque intercede? Porque Se dignou ser mediador? Que coisa é ser me-
diador entre Deus e os homens? Não é mediador entre o Pai e os homens, mas entre
Deus e os homens. Quem é Deus? O Pai, o Filho e o Espírito Santo. Quem são os
homens? Pecadores, ímpios, mortais. Entre aquela Trindade e a debilidade e iniquidade
dos homens, fez-Se mediador um homem que não é pecador, mas que é débil, a fim de
que, por não ser pecador, te unisse a Deus, e, por ser débil, Se aproximasse de ti, e deste
modo existisse entre o homem e Deus um Mediador, o Verbo feito carne, quer dizer, o
Verbo feito homem...
SALMO 30, II S. 1

3106 4. Cristo e a Igreja, sendo dois tornam-se uma só pessoa, Cabeça e Corpo, Esposo
e Esposa... Se são dois numa só carne, porque não seriam dois numa só voz? Fala
Cristo, porque fala a Igreja em Cristo e Cristo na Igreja; o Corpo na Cabeça e a Cabeça
no Corpo.
SALMO 30, II S. 3

3107 1. Muitas coisas que este salmo diz compreendem-nas os fiéis espontaneamente,
outras precisam de uma breve explicação, e algumas devem ser expostas com suor,
para serem entendidas. Por isso, para que não falte tempo e coragem às minhas forças
e às vossas, vede como são claras estas coisas, e por elas louvai comigo ao Senhor.
Deste modo, se o salmo ora, orai; se chora, chorai; se exulta, exultai; se espera, esperai;
se teme, temei. Todas as coisas que aqui estão escritas são nosso espelho.

7
Alusão nítida ao baptismo, em que Deus se torna nosso Pai e a Igreja nossa Mãe.
AGOSTINHO DE HIPONA 753

SALMO 32, II S. 1

4. É aos rectos de coração que o salmo diz a seguir: Louvai o Senhor com a cítara, 3108
cantai-Lhe salmos ao som da harpa. Cantámos isto ainda agora; ensinámo-lo aos
vossos corações, ao cantá-lo em uníssono...
5. A cítara é um instrumento côncavo, de madeira, parecido com o tímpano, pen- 3109
dente de um braço curvo, no qual se apoiam as cordas que ressoam quando se pulsam...
A cítara tem a concavidade de madeira na parte inferior; o saltério na parte superior.
Esta é a diferença entre ambos...
8. Conheceis já o cântico novo. Homem novo, testamento novo, cântico novo. O 3110
cântico novo não é para homens velhos. Só o aprendem os homens novos, que foram
renovados pela graça despojando-se do pecado e que pertencem já ao Novo Testamento,
que é o Reino dos Céus. Por ele suspira todo o nosso amor e lhe canta um cântico novo.
Cante-lhe um cântico novo, não a nossa língua, mas a nossa vida. Cantai-Lhe um
cântico novo, cantai-Lhe com arte e com alma. Cada qual pergunta como há-de cantar
ao Senhor. Canta para Ele, mas não cantes mal. Deus não quer ouvir um cântico que
ofenda os seus ouvidos. Cantai bem, irmãos. Se te pedem que cantes para um bom
apreciador de música de modo que lhe agrade, não te atreves a cantar se não tens
preparação musical, pelo receio de lhe desagradar; porque um bom artista notará os
defeitos que a qualquer outro passam despercebidos. Então, dirás tu, quem se atreverá
a cantar para Deus, tão excelente conhecedor de cantores, juiz tão completo e tão bom
apreciador de música? Tranquiliza-te. Ele mesmo te sugere a maneira como Lhe hás-de
cantar. Canta com júbilo. Cantar bem para Deus é cantar com júbilo. Que é cantar com
júbilo? É compreender que as palavras não podem exprimir aquilo que canta no vosso
coração. Reparai naqueles que cantam na colheita, na vindima ou em qualquer trabalho
intenso: começam por fazer exultar a sua alegria nas palavras do cântico; mas depois,
quando cresce a emoção, sentem que já não podem explicá-la por palavras; então,
desprendem-se da letra e entregam-se totalmente à melodia jubilosa. O júbilo é música
sem palavras, porque o coração exprime o que não se pode dizer. E a quem convirá
melhor esse cântico de júbilo do que ao Deus inefável? É realmente inefável Aquele que
não podes dar a conhecer por palavras. Se não tens palavras para O dar a conhecer e
não deves ficar calado, nada mais te resta senão cantar com júbilo, para que o teu
coração possa expandir a imensidade da sua alegria, sem se ver limitado pela barreira
das sílabas das palavras. Cantai ao Senhor com arte e com júbilo.
SALMO 33, S. 2

8. Onde te escuta o Senhor? Interiormente. Onde Se dá o Senhor? Interiormente. 3111


Ali oras, ali és ouvido, ali te tornas feliz. Rezaste, foste ouvido, ficaste feliz. E quem
está perto de ti não se apercebe de nada. Tudo se passa ocultamente, como o Senhor
diz no Evangelho: Entra no teu quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em
segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te. Entrar no quarto é
entrar no seu coração. Felizes aqueles que entram com alegria no seu coração e nada de
mal ali encontram.
10. Aproximai-vos d’Ele e sereis iluminados. Um cristão espiritual convida-nos a 3112
aproximar-nos de nosso Senhor Jesus Cristo. Aproximemo-nos d’Ele e seremos ilumi-
nados... Aproximemo-nos d’Ele para receber o seu Corpo e o seu Sangue... Comendo
e bebendo o Crucificado, somos iluminados...
11. Mas dirá alguém: Como hei-de aproximar-me d’Ele? Como me atreverei a apro- 3113
ximar-me de Deus com tantos vícios, carregado de tantos pecados e com tantos crimes
a clamar na minha consciência? Como? Humilhando-te pela penitência. Aproxima-te
d’Ele e serás iluminado, e o teu rosto não se cobrirá de vergonha. Se o medo de teres
vergonha te afasta da penitência, a penitência aproxima-te de Deus...
754 SÉCULO V

SALMO 36, S. 3

3114 4. Todos os justos que existiram desde o princípio do mundo têm Cristo como Cabe-
ça. Eles acreditaram como futuro o que nós acreditamos como já acontecido. Salva-
ram-se pela mesma fé que nós temos n’Ele. Na verdade, Ele é a Cabeça de toda a
cidade de Jerusalém, ou seja, de todos os crentes que existiram desde o princípio até ao
fim do mundo, e também das legiões e dos exércitos dos Anjos, a fim de constituir uma
só cidade sob um único rei, uma só província sob um único imperador, feliz por gozar
de paz e salvação eternas, e por louvar a Deus ininterruptamente, numa felicidade sem fim.
3115 6. Que nos importa a nós o que os gramáticos pretendem? É preferível que nos
entendais quando utilizamos um barbarismo, do que vos deixemos ir para casa vazios,
à força de querermos ser peritos na nossa língua.
SALMO 37

3116 6. Quando Cristo fala, umas vezes fala somente na pessoa da Cabeça, que é o
próprio Salvador, nascido da Virgem Maria; outras vezes fala na pessoa do seu Corpo,
que é a santa Igreja, difundida por toda a terra. Nós somos o seu Corpo, se é que a
nossa fé sincera, a nossa esperança segura e a nossa caridade ardente estão fixas n’Ele.
3117 13. O teu desejo é a tua oração. Se o teu desejo for contínuo, contínua será também
a tua oração. Não foi em vão que o Apóstolo disse: Orai sem cessar. Será preciso,
então, estar continuamente de joelhos, prostrados, de mãos erguidas, para obedecer a
este preceito: Orai sem cessar? Se é isto que entendemos por orar, julgo que não
podemos orar sem cessar...
3118 14. Existe, porém, outra oração interior e contínua, que é o desejo. Ainda que faças
qualquer outra coisa, se desejas aquele sábado eterno, não cessas de orar. Se não queres
interromper a oração, não interrompas o desejo. Se o teu desejo é contínuo, é contínua
a tua voz. Calar-te-ás se deixares de amar... O arrefecimento da caridade é o silêncio do
coração; o fervor da caridade é o clamor do coração...
SALMO 39

3119 12. O salmo diz a Deus: Não quisestes sacrifícios nem oblações8. Os antigos cele-
bravam as alegorias da realidade futura, anunciando em figura o sacrifício verdadeiro
que os fiéis conhecem: muitos compreendiam-no, mas a maior parte ignorava-o...
Porque não quer agora Deus sacrifícios e oblações e os quis então? Porque todas
aquelas coisas eram palavras de promessa, e as palavras de promessa, quando chega
aquilo que é prometido, já não anunciam coisa nenhuma. Alguém que promete uma
coisa, só a promete até que a dê. Quando a dá, muda as palavras: deixa de dizer darei
e começa a dizer dei; mudou o tempo do verbo, mudou as palavras. Qual a razão de Lhe
ter agradado antes esta palavra e mais tarde acabar por mudá-la? Porque então era uma
palavra acomodada ao tempo, que Lhe agradou durante o seu tempo próprio. Quando
se prometia anunciava-se; mas, quando se deu o que se tinha prometido, anularam-se
as palavras de promessa e permaneceram as da perfeição. Por isso os sacrifícios anti-
gos foram abolidos enquanto palavras de promessa. Que foi dado como realidade
perfeita? O Corpo que conheceis, ainda que nem todos o conheçam9; e oxalá que todos
os que o conhecem não o tenham conhecido para julgamento!... Estamos neste Corpo,
participamos dele; conhecemos o que recebemos, e os que não conhecem conhecê-lo-ão.
Deus queira que, quando chegarem a conhecê-lo, o não recebam para julgamento. Quem
come e bebe indignamente come e bebe a sua condenação. Para nós, este Corpo é a
perfeição, e nós aperfeiçoamo-nos nele.

8
Sal 39, 7,
9
Os catecúmenos não conheciam o Corpo de Cristo.
AGOSTINHO DE HIPONA 755

SALMO 40

1. Começaremos o sermão a partir do que cantámos ao responder ao leitor10, embora 3120


esse refrão tenha sido tirado do meio do salmo: Os meus inimigos dizem mal de mim:
quando morrerá e se extinguirá o seu nome11?
SALMO 41

1. Habitualmente a nossa alma deseja alegrar-se convosco na palavra de Deus e 3121


saudar-vos com ela, porque é nosso auxílio e salvação. Por isso, ouvi, por meu inter-
médio, o que Deus dá e alegrai-vos comigo n’Ele, na sua palavra e na sua caridade e
verdade. Tomámos um salmo do qual vos devemos falar, que corresponde ao vosso
desejo. Na verdade, este salmo começa por um santo desejo. Disse o cantor: Como
suspira o veado pelas correntes das águas, assim minha alma suspira por Vós,
Senhor. Quem disse isto? Se quiserdes, fomos nós... Contudo, não foi um homem, mas
um Corpo, o Corpo de Cristo, que é a Igreja. É certo que este desejo não se encontra em
todos os que entram na igreja. No entanto, aqueles que provaram a suavidade do
Senhor e perceberam o conteúdo do cântico, não pensem que estão sozinhos, mas
creiam que tais arbustos se encontram plantados no campo do Senhor, que enche toda
a terra... Não há dúvida de que se pode entender muito bem que esta é a voz daqueles
que, sendo ainda catecúmenos, se apressam para a graça do santo baptismo. Por isso se
canta este salmo cada ano 12, para que eles tenham o desejo da fonte da remissão dos
pecados... No entanto, irmãos, parece-me que no baptismo dos fiéis ainda não fica
saciado tal desejo, pois quanto mais sabem para onde vão peregrinando... mais entu-
siasmo sentem.
2. É aos filhos do esposo, aos filhos da sua Paixão, aos filhos redimidos pelo seu 3122
sangue, aos filhos que levam traçada na fronte a cruz que os inimigos cravaram no
calvário, que se canta este salmo, para que o entendam. Despertemos a nossa mente e,
se no-lo cantarem, entendamos. Que havemos de entender? Em que sentido se canta
este salmo? Atrevo-me a dizer que o que é invisível em Deus, se tornou visível à
inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras. Irmãos, compreendei o meu
anseio, fazei causa comum comigo neste desejo: amemos juntos, juntos desejemos esta
sede, corramos juntos à fonte deste entendimento. Desejemos a fonte como o veado,
não a fonte que desejam os catecúmenos para a remissão dos pecados. Nós, que já
fomos baptizados, desejemos aquela fonte, da qual se diz noutro salmo: Em Vós está
a fonte da vida. Esta fonte é luz, porque na vossa luz veremos a luz. E se é fonte e é
luz, com razão é também entendimento, porque sacia a alma sedenta de saber, e todo
aquele que entende é iluminado por uma luz não corporal, nem material, nem exterior,
mas interior. De facto, irmãos, existe uma luz interior que não possuem os que não
entendem, por terem a inteligência obscurecida. Mas os que entendem estão iluminados.
Corre à fonte, deseja a fonte de água. Em Deus está a fonte da vida, fonte perene; na
sua luz veremos a luz que não escurece. Deseja esta luz, esta fonte, esta luz que os teus
olhos não conhecem. O olhar interior prepara-se para ver esta luz, a sede interior
deseja ardentemente esta fonte. Corre à fonte, deseja a fonte. Mas não corras de
qualquer maneira. Corre como o veado. Que quer dizer: corre como o veado? Não sejas
lento no correr: corre velozmente, deseja depressa a fonte. O veado corre com uma
velocidade vertiginosa.

10
Legenti (isto é ao leitor) respondentes cantavimus. O salmo era lido por um leitor, e a assembleia respondia
com um refrão cantado.
11
Sal 40, 5.
12
O sentido próprio de sollemniter é cada ano, ou anualmente.
756 SÉCULO V

3123 9. Nesta casa de festa eterna... ressoa não sei que harmonia agradável e doce aos
ouvidos do coração..., e aquele que caminha na tenda aqui debaixo... deixa-se prender
por uma certa doçura, por uma alegria escondida e inexprimível..., como se um artista
tocasse suavemente na casa de Deus.
3124 10. Meus irmãos, durante o tempo que vivemos neste corpo, estamos longe do
Senhor. A natureza corruptível pesa sobre a alma e oprime o espírito, que pensa em
muitas coisas. À medida que vamos caminhando, animados pelo desejo, conseguimos
dissipar um pouco as nuvens, captar alguns sons e entrever, com grande esforço, a
beleza da casa de Deus. Porém, devido à nossa fraqueza, recaímos nos nossos hábitos
e voltamos aos nossos costumes. Em consequência de tudo isto, o veado come noite e
dia as suas próprias lágrimas e, impelido pelos seus desejos às torrentes das águas,
isto é, à doçura interior que vem de Deus, levanta o coração para o alto, procurando
atingir o que está acima de si, e caminha em direcção ao tabernáculo admirável, até à
casa de Deus. Levado pela alegria que nasce do som interior e inteligível, põe de parte
as riquezas exteriores e deixa-se arrebatar pelas interiores. Mas não deixa de ser ho-
mem e ainda suspira. A carne que o reveste é frágil e ele está exposto aos escândalos do
mundo. Então, olha para si, como se viesse dum sonho. E ao descobrir que está envolto
em tristezas, comparando-as com as graças de que se aproximara para ver e das quais
saiu depois de as ter visto, diz: Porque estás triste, minha alma, e desfaleces? Nós já
nos alegrámos por causa de determinada doçura interior, e por termos contemplado, com
os olhos do espírito, embora muito rapidamente, algo de imutável. Porque me pertur-
bas ainda? Porque estás ainda triste? Já não duvidas do teu Deus, já tens algo que dizer
àqueles que gritam: Onde está o teu Deus. Uma vez que chegaste a contemplar algo de
imutável, porque me perturbas ainda? Espera em Deus. E a alma como que lhe respon-
de em silêncio: porque te perturbo? Não será porque ainda não estou onde se encontra
aquela suavidade que por momentos me arrebatou? Poderei já beber sem receio daquela
fonte? Já não terei escândalos a temer? Já me sinto segura, como se já tivesse dominado
e vencido todas as minhas paixões? Já não me espreita o Demónio, meu inimigo? Já não
me arma cada dia os seus laços? Não queres que te perturbe, achando-me no mundo e
peregrinando longe da casa do meu Deus? Espera em Deus, responde o Senhor à alma
que se perturba, e cuja tristeza é provocada por todos os males deste mundo.
3125 13. Talvez possa terminar o salmo, ajudado por tanto desejo, pois me dou conta do
vosso interesse. Não me preocupa muito o cansaço que possais sentir ao escutar, pois
me vedes a mim, que vos falo, esforçar-me também neste trabalho. Vendo-me traba-
lhar, decerto me dareis a vossa colaboração, dado que não é para mim que trabalho, mas
para vós. Escutai, portanto, porque vejo que o desejais.

SALMO 42

3126 5. O saltério e a cítara são dois instrumentos musicais, com diferenças entre si, que
merecem ser consideradas e recordadas. Ambos se seguram e tocam com as mãos. Mas,
enquanto o saltério é um instrumento que tem a concavidade na parte superior, quer
dizer, é um instrumento triangular de madeira e côncavo, no qual se sustentam as
cordas que soam, a cítara é um instrumento parecido, também de madeira, mas côncavo
e sonoro na parte inferior.

SALMO 43

3127 13. Quando os cristãos fugiam, perseguidos pelos inimigos idólatras, porventura se
reuniam e cantavam a Deus com vozes de alegria? Acaso se cantavam então os hinos
que costumam cantar-se na igreja de Deus quando se está em paz?
AGOSTINHO DE HIPONA 757

SALMO 44

1. Assim como cantei este salmo convosco, cheio de alegria, assim vos peço que o 3128
considereis atentamente comigo. É um canto nupcial13, do esposo e da esposa, do rei e
do povo, do Salvador e dos que hão-de ser salvos.
3. Para nós que temos fé, o Esposo apresenta-Se sempre belo. Belo enquanto 3129
Deus, por ser o Verbo de Deus; belo no seio da Virgem, onde, sem perder a divindade,
tomou a nossa humanidade. Belo, o Verbo, ao nascer como criança, ao mamar o leite
materno, ao ser levado nos braços, pois falaram os Céus, cantaram os Anjos, e foi
adorado num presépio, manjedoira de animais mansos. Belo no Céu, belo na terra, belo
no seio de sua mãe, belo nos braços de seus pais, belo nos seus milagres, belo sob os
açoites. Belo quando convidava a amar a vida, belo ao desprezar a morte, belo ao
entregar a alma, belo ao recuperá-la, belo na cruz, belo no túmulo, belo nos Céus.
Escutai o cântico e compreendei-o. A debilidade da carne não afaste os vossos olhos do
esplendor da sua beleza. A beleza suprema e autêntica é a justiça. Não podes descobrir
a sua beleza, se te entregas à injustiça. Se Ele é totalmente justo, é sempre belo.
SALMO 46

1. O Senhor nosso Deus espalhou, de muitos modos e formas, pelos Livros santos, 3130
pelas Sagradas Escrituras, a fé na qual e da qual vivemos, diversificando as significações14
ocultas das palavras, mas propondo sempre a mesma fé. Aí se exprime uma e a mesma
coisa de muitas e variadas maneiras, mudando a forma de dizer para não gerar fastio,
mas mantendo, por causa da concórdia, a mesma fé. Por essa razão, depois de ouvir-
mos cantar este salmo e de lhe respondermos cantando, exponhamos as coisas que já
conheceis. Ao explicá-lo, devemos também oferecer-vos, com a ajuda e o dom de Deus,
algum alimento agradável, para que rumineis ou mediteis as coisas que já conheceis de
outros lugares diferentes. Na verdade, através da imagem da ruminação15, com que se
representam os animais puros, Deus quis insinuar que todo o homem deve entregar de
tal modo aquilo que ouve ao seu coração, que depois não seja negligente em meditar
sobre isso. Ao ouvir, deve ser semelhante àquele que come e, ao trazer de novo à
memória as coisas ouvidas e ao reflectir nelas com agrado, deve ser semelhante ao
animal que rumina. As mesmas coisas podem dizer-se de maneira diferente. Ditas
desse modo, elas levam-nos a pensar com agrado noutras que já conhecemos e a ouvi-
-las novamente com gosto, uma vez que, ao mudar-se a forma de expressão, o assunto
antigo se torna novo pela maneira de falar...
3. Que significa batei palmas? Alegrai-vos. Não vos alegreis só com palavras. Se 3131
vos alegrais, aplaudi com as mãos. Veja as obras dos povos Aquele que Se dignou
conceder alegrias. Alegremo-nos com a voz e com as mãos. Se aclamamos só com a voz,
não aclamamos bem, porque as mãos ficam ociosas. Se aclamamos só com as mãos,
também não aclamamos bem, porque fica a língua muda. Concordem entre si a língua e
as mãos. Trabalhem estas, aclame aquela. Aclamai a Deus com brados de alegria.
7. Foi nosso Senhor Jesus Cristo que subiu entre aclamações. Para onde subiu, 3132
senão para onde sabemos? Deus subiu entre aclamações. Aclamação ou júbilo é uma
admiração de alegria, que não pode explicar-se por palavras. Qual não terá sido a
alegria dos Apóstolos ao verem subir ao Céu Aquele que tinham chorado morto! Como
nenhuma palavra pode exprimir tamanha alegria, nada mais lhes restava do que
exteriorizá-la com júbilo.

13
Canto colectivo.
14
Sacramenta.
15
Ipsa ruminatione.
758 SÉCULO V

SALMO 47

3133 7. Como ouvimos, assim o vimos. Ó ditosa Igreja! Durante um certo tempo ouviste,
noutro tempo viste. Ouviste no tempo das promessas, viste no tempo da sua realização;
ouviste no tempo das profecias, viste no tempo do Evangelho. Na verdade, tudo quanto
agora se cumpre, tinha sido antes profetizado. Levanta os teus olhos, estende o teu
olhar por todo o mundo; contempla a herança do Senhor que se difunde já até aos
confins da terra; vê como já se realiza o que estava anunciado: Prostrar-se-ão diante
d’Ele os reis da terra, todos os povos O hão-de servir. Com razão se aplicam à
Igreja, convocada de entre as nações, estas palavras doutro salmo: Ouve, filha, e vê;
esquece o teu povo e a casa de teu pai. Ouve e vê: primeiro ouves o que não vês, depois
verás o que ouviste. Aqueles a quem não tinham sido enviados os Profetas, os que
anteriormente não puderam ouvi-los, foram depois os primeiros a ouvir e compreender,
e encheram-se de admiração. E aqueles a quem os Profetas foram enviados ficaram com
os códices nas mãos, mas não compreenderam a verdade; possuíam as tábuas da Alian-
ça, mas não obtiveram a herança. Nós, porém, como ouvimos, assim o vimos. Na
cidade do Senhor dos Exércitos, na cidade do nosso Deus. Aí ouvimos e vimos. Mas
talvez penses que esta cidade, centro de união do mundo, será um dia destruída! De
modo algum: Deus a consolidou para sempre. Portanto, se Deus a consolidou para
sempre, porque temes que cedam os seus fundamentos?
SALMO 48

3134 3. Os pobres hão-de comer e serão saciados16. Que comerão? O que os fiéis conhe-
cem. Como serão saciados? Imitando a Paixão do Senhor e recebendo em recompensa
o seu preço... E os ricos, que farão? Também comerão. Como vão comer? Comerão e
adorarão todos os grandes da terra17... Os grandes da terra adoram certamente a
Deus, mas não querem manifestar a delicadeza fraterna. Estes comem e adoram, aqueles
comem e saciam-se. Como vedes, todos comem. Àquele que come exige-se-lhe que
retribua. Aquele que reparte não o proíba de comer, mas avise-o que tema o cobrador.
Ouçam estas palavras os justos e os pecadores..., sem se dividirem nem separarem.
Isso far-se-á no tempo da ceifa; fá-lo-á Aquele que joeira. Agora, reunidos ricos e
pobres (numa só assembleia), ouçam juntamente; alimentem-se juntamente o cabrito e
o cordeiro, até que venha Aquele que os separará uns para a direita e outros para a
esquerda. Congregados como um só, ouçam aquele que ensina, para não acontecer que
ouçam o juiz, separados uns dos outros.
SALMO 49

3135 1. Pondere cada um em si mesmo quanto vale a palavra de Deus para emendar a
nossa vida, para esperar o prémio e temer o castigo. De igual modo apresente cada um
a sua consciência sem disfarce diante dos seus olhos..., pois, como se diz neste salmo,
não foi um homem ou um Anjo qualquer que falou, mas o Senhor, Deus soberano que,
ao falar, convocou a terra do Oriente ao Ocidente. Quem chamou a terra desde o nascer
do sol até ao seu ocaso foi nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo, Verbo que Se fez
carne para habitar no meio de nós...
3136 21. Dizei, Senhor, nosso Deus: Que mandais ao vosso povo, ao vosso Israel? Oferece
a Deus sacrifícios de louvor. Digamos também nós: Oferecer-Vos-ei sacrifícios de
acção de graças. Voltar-me-ei para mim próprio para encontrar o sacrifício de louvor.
Seja a minha consciência o meu altar. Oferece a Deus sacrifícios de louvor. Estamos,
portanto, tranquilos. Não é preciso ir à Arábia buscar incenso, nem recorrer a um
negociante usurário. O que Deus nos pede é um sacrifício de louvor. Zaqueu tinha este
16
Sal 21, 27.
17
Sal 21, 27. 30.
AGOSTINHO DE HIPONA 759

sacrifício de louvor nos seus bens, a viúva na sua bolsa, e o hospedeiro pobre na sua
almotolia. Um outro que não possuía nada nos seus bens, nem na sua bolsa, nem na
almotolia, tinha tudo no seu coração. A salvação entrou na casa de Zaqueu, a viúva foi
louvada por ter dado mais que os ricos, e aquele que oferecer nem que seja um copo de
água fresca não ficará sem recompensa, pois também se dá a paz na terra aos homens
de boa vontade. Oferece a Deus sacrifícios de louvor. Oh sacrifício gratuito, dado
gratuitamente! De facto, não comprei o que ofereço, fostes Vós que mo destes. Senão,
nem isso teria. Oferece a Deus sacrifícios de louvor. A oferenda deste louvor consiste
em dar graças Àquele de quem recebeste tudo o que tens de bom, e cuja misericórdia te
perdoa tudo o que possas ter feito de mal. Oferece a Deus sacrifícios de louvor e
cumpre os votos feitos ao Altíssimo. O Senhor gosta deste perfume. Louva e ser-te-á útil.
23. Levantar-me-ei cada dia; irei à igreja; cantarei um hino pela manhã e outro pela 3137
tarde; o terceiro e o quarto cantá-los-ei em minha casa; assim, cada dia, oferecerei a
Deus um sacrifício de louvor.
SALMO 50

1. Peço-vos silêncio e tranquilidade para que a minha voz, após o esforço de ontem, 3138
possa ouvir-se com algum vigor. Creio que vossa caridade veio hoje em maior número
do que ontem, apenas para orar por aqueles que estão ausentes em virtude dos seus
afectos perversos. Não me refiro a pagãos nem a Judeus, mas a cristãos; não falo dos
que são ainda catecúmenos, mas de muitos já baptizados, dos quais em nada vos
distinguis pela regeneração, mas de quem sois bem diferentes pelo coração. Temos de
o confessar, com grande dor da nossa parte, que há muitos entre os nossos irmãos que
voltam a correr atrás das vaidades, das loucuras enganadoras (dos espectáculos), e se
esquecem daquilo a que foram chamados. Quando, no circo, ficam horrorizados por
alguma coisa, fazem imediatamente o sinal da cruz. Se eles trouxessem verdadeiramente no
coração o sinal que fazem na fronte, apressar-se-iam a ir-se embora de semelhante lugar...
SALMO 51

1. O salmo de que vamos ocupar-nos é curto, mas o seu título exige algumas expli- 3139
cações. Escutai-nos com paciência enquanto vo-lo explicamos o melhor que pudermos,
e na medida em que a graça de Deus nos ajudar. Não devemos passar a correr por cima
destas questões, uma vez que desejais guardar as nossas palavras não apenas nos
ouvidos e no coração, mas também escrever o que dizemos. Por isso, devemos pensar
não só nos nossos ouvintes mas também nos futuros leitores. Este salmo teve origem
numa passagem do livro dos Reis. Saúl não tinha sido escolhido por Deus para ser rei
para sempre, mas para corrigir a dureza do mau coração do povo, como diz a Sagrada
Escritura: Deus fez reinar o hipócrita, por causa da perversidade do povo. Saúl
perseguia David, em quem Deus prefigurava o reino da salvação eterna, e a quem Deus
escolhera para permanecer na sua descendência. Deus escolheu, elegeu e predestinou
David para ser rei, mas não o deixou subir ao trono antes de o libertar dos seus
perseguidores. Em tudo isso David é figura de nós próprios, isto é, figura do Corpo do
qual Cristo é a Cabeça. Se a nossa Cabeça não quis reinar no Céu antes de realizar na
terra o seu trabalho, nem elevar ao Céu o corpo que recebeu na terra sem o submeter ao
caminho da tribulação, como podem os membros esperar melhor tratamento do que a
sua Cabeça? Não esperemos um caminho mais fácil. Vamos por onde Ele nos precedeu,
sigamos por onde nos conduziu.
SALMO 52

8. Deus quer uma adoração gratuita, um amor desinteressado, isto é um amor puro. 3140
Não quer ser amado por dar alguma coisa além de Si mesmo. Por isso, quem invoca a
760 SÉCULO V

Deus para se tornar rico, não invoca a Deus. Invoca-O quem deseja que Ele se aproxi-
me. Que significa invocar senão chamar a si? Chamar a si é invocar. Quando dizes:
Senhor, dai-me riquezas, não desejas que Deus venha a ti, mas queres que venham a ti
as riquezas. Invocas aquilo que queres que venha a ti. Se verdadeiramente invocasses
a Deus, Ele viria a ti e seria a tua riqueza. Na realidade, tu queres ter a arca cheia e a
consciência vazia. Deus não enche a arca mas o coração. De que te servem todos esses
bens, se o teu coração não tiver nada?
SALMO 56

3141 1. Em todos os salmos, ao ouvirmos a voz de Cristo, ouçamos também a do seu


corpo. Se Ele está connosco, fala connosco, fala de nós e por nós, como nós também
falamos n’Ele e por isso falamos verdade, porque falamos n’Ele. Se quiséssemos falar
em nós e de nós, seríamos mentirosos.
3142 16. O órgão é um instrumento de grandes proporções que se enche com foles... O
saltério e a cítara são diferentes um do outro... O saltério é um instrumento musical
que tem cordas tensas e é suportado pelas mãos daquele que toca; mas a parte onde as
cordas adquirem som, quer dizer, a concavidade ou caixa de ressonância de madeira de
que o saltério é dotado e que ressoa quando nele batemos com os dedos, está situada na
parte superior. A cítara, pelo contrário, tem a caixa de ressonância de madeira na parte
inferior. Assim, pois, no saltério as cordas adquirem o som devido à parte superior, e,
na cítara, devido à parte inferior. Nisto se diferenciam o saltério e a cítara.
SALMO 59

3143 1. O título deste salmo é um pouco longo, mas não nos assustemos, porque o salmo
é breve... Uma vez que, na Igreja de Deus, falamos em nome de Cristo aos que já se
alimentam das Escrituras e aos que hão-de vir a alimentar-se, que o seu gosto, do qual
o mundo vive afastado, não vos pareça estranho, nem o considereis sempre como coisa
difícil. Se ruminásseis com gosto, no paladar do pensamento, as coisas que ouvis
frequentemente e não as deixásseis cair no esquecimento como em saco roto, a vossa
própria recordação e memória nos ajudariam muito a não falarmos demasiado, como a
incultos, quando expomos as coisas que sabemos vos serem conhecidas. Recordo que
já ouvistes muitas vezes o que agora vos repito: não encontrareis um salmo no qual não
fale Cristo e a Igreja, ou só Cristo, ou só a Igreja, que em parte somos nós todos. Por
isso, quando reconhecemos a nossa voz, não podemos reconhecê-la sem nos emocionarmos;
e tanto mais nos deleitamos, quanto mais nos damos conta de que lhe pertencemos...
SALMO 63

3144 1. Este salmo aplica-se de modo especial à Paixão do Senhor. Os mártires nunca se
teriam mostrado tão fortes, se não tivessem contemplado Aquele que foi o primeiro a
sofrer. Eles não teriam suportado tantos sofrimentos, à semelhança d’Ele, se não
tivessem sido sustentados pela esperança da ressurreição.
SALMO 64

3145 2. Vede os nomes destas duas cidades, Babilónia e Jerusalém. Babilónia significa
confusão; Jerusalém, quer dizer visão de paz. Reparai atentamente na cidade da confu-
são, para compreender a cidade da paz. Suportai uma, suspirai pela outra. Como
havemos de distinguir estas duas cidades? Poderemos separá-las uma da outra? Elas
estão misturadas e, desde as origens do género humano, percorrem juntas o tempo até
ao fim dos séculos. Jerusalém teve o seu início em Abel; Babilónia em Caim. Depois,
construíram-se os muros das duas cidades. Estas duas cidades foram construídas em
AGOSTINHO DE HIPONA 761

épocas diferentes, para significarem duas outras cidades, começadas outrora, e que
devem permanecer para um dia serem separadas. Como distingui-las hoje, se estão
misturadas? Com a luz de Deus podemos mostrar, aos fiéis que acreditam, como
distinguir desde agora os cidadãos de Jerusalém e os cidadãos de Babilónia. Dois
amores constróem estas duas cidades: o amor de Deus constrói Jerusalém, o amor do
mundo Babilónia. Interrogue-se, portanto, cada um a si mesmo, para saber o que ama,
e descobrirá de onde é cidadão. Se achar que é cidadão de Babilónia, arranque a cobiça
e plante a caridade. Se, porém, achar que é cidadão de Jerusalém, tolere o cativeiro e
espere a liberdade. Por isso, irmãos, ouçamos e cantemos, desejemos aquilo que nos
faz cidadãos. Que alegrias cantamos? Como se renovará em nós o amor da nossa
cidade, da qual nos tínhamos esquecido por causa da longa peregrinação? O nosso Pai
mandou-nos de lá algumas cartas, deu-nos as Sagradas Escrituras, e com estas cartas
fez com que sentíssemos em nós o desejo de voltar, uma vez que, por amarmos a nossa
peregrinação, tínhamos voltado o rosto para os inimigos e as costas à pátria. Que
cantaremos então aqui?
3. A Vós, ó Deus, é devido louvor em Sião. Sião é a nossa pátria, porque Sião é o 3146
mesmo que Jerusalém. Jerusalém significa visão de paz, e Sião quer dizer visão e
contemplação. É-nos prometido um espectáculo maravilhoso, que não sabemos dizer
muito bem como é. Esse espectáculo é o próprio Deus, fundador desta cidade. Bela e
formosa é a cidade que tem um fundador mais belo ainda. A Vós, ó Deus, é devido
louvor em Sião.
SALMO 66

1. Bendiga a nossa alma o Senhor, e Deus nos abençoe. Quando Deus nos abençoa, 3147
crescemos, e, quando nós bendizemos o Senhor, também crescemos; ambas as coisas nos
aproveitam. Ele não cresce quando O bendizemos, nem diminui quando O amaldiçoamos.
Quem amaldiçoa o Senhor diminui, e quem O bendiz cresce. Primeiro recebemos nós a
bênção do Senhor, e, por isso, é natural que O bendigamos. A sua bênção é a chuva; a
nossa, o fruto. Pela nossa bênção, como que devolvemos o fruto a Deus, agricultor,
que faz cair a chuva e recolhe o fruto. Cantemos estas coisas com devoção, não de
maneira infecunda nem com voz sem força, mas de coração sincero. Deus Pai foi
claramente chamado agricultor, pois o Apóstolo diz: Sois agricultura de Deus, sois
edificação de Deus. Nas coisas visíveis deste mundo, a videira não é edifício, e o
edifício não é videira. Mas nós somos vinha do Senhor, porque Ele nos cultiva para que
dêmos fruto, e somos edifício de Deus, porque Aquele que nos cultiva habita em nós...
3. Observa a formiga de Deus 18: levanta-se todos os dias, corre à igreja de Deus, 3148
ora, escuta a leitura, canta o hino, medita no que ouviu, pensa consigo mesma, e
esconde dentro de si os grãos que recolheu na eira. Estas coisas que agora se dizem
põem-nas em prática os que as ouvem com inteligência. Todos os vêem ir para a igreja,
voltar dela, ouvir o sermão, escutar a leitura, colher o livro, abri-lo e ler. Tudo isto se
vê quando é feito. Esta é a formiga que aplana o caminho, levando e guardando o
alimento à vista dos que a olham.
6. Os povos Vos louvem, ó Deus, todos os povos Vos louvem. Andai pelo caminho 3149
com todos os povos, ó filhos da paz, ó filhos da única Igreja católica. Andai pelo
caminho e cantai caminhando19. Assim fazem os caminhantes para alívio do cansaço.
Cantai neste caminho. Exorto-vos em nome deste caminho: cantai neste caminho.
Cantai um cântico novo. Ninguém cante cânticos velhos. Cantai os cânticos de amor da

18
A “formiga de Deus” é uma imagem literária utilizada por Agostinho para falar do fiel que escuta a palavra
de Deus.
19
Ambulate in via, cantate ambulantes.
762 SÉCULO V

vossa pátria. Ninguém cante velhas canções. Caminho novo, viajante novo, cântico novo.
Escuta o Apóstolo que te exorta a este cântico novo: Se alguém está em Cristo, é uma
nova criação. O que era antigo passou; eis que surgiram coisas novas. Cantai este
cântico novo no caminho que conheceis na terra. Em que terra? Em todos os povos.
Por isso o cântico novo não pertence apenas a uma parte da terra. Quem canta só numa
parte, canta um cântico velho. Qualquer dos seus cânticos é velho, porque é o homem
velho que os canta. Canta no espírito um cântico novo, no caminho seguro, tal como
cantam os caminhantes, que muitas vezes cantam de noite. Canta como cantam os que
temem os ladrões. A tua segurança é maior que a deles, pois cantas em Cristo. Neste
caminho não há ladrões. Se não deixares o caminho, não cairás nas mãos deles. Canta,
repito, com segurança, o cântico novo no caminho que conheceste na terra, ou seja, em
todos os povos. Todos os povos Vos louvam, ó Deus. Encontraram o vosso caminho,
por isso Vos louvam. O próprio cântico é uma confissão. Confissão dos teus pecados,
confissão do poder de Deus. Confessa a tua falta, confessa a graça de Deus. Acusa-te
e glorifica o Senhor. Repreende-te a ti, louva-O a Ele. Lamenta o teu pecado e, quando
Ele vier, será o teu Salvador. Porque temeis confessá-l’O, cantar o cântico novo com
toda a terra, por toda a terra, na paz universal? Contrista-te antes pela confissão, mas,
uma vez feita, canta a tua alegria, pois a tua cura está assegurada. Doravante podes
entregar-te ao júbilo e à alegria, pois bem depressa ficarás totalmente curado. Os po-
vos Vos louvem, ó Deus, todos os povos Vos louvem.
SALMO 69

3150 1. Dêmos graças ao grão de trigo que quis morrer e multiplicar-se; dêmos graças ao
Filho único de Deus, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que não desdenhou tomar
a nossa mortalidade, para nos fazer passar para a sua vida... Este grão era de tal modo
singular, que tinha em si o grande vigor da multiplicação. Em quantos grãos que imitaram a
sua Paixão não nos alegramos, ao celebrar os natalicia dos mártires! Esses membros
numerosos, unidos pelo vínculo da caridade e da paz, sob uma única cabeça que é o
nosso próprio Salvador, como o sabeis e vo-lo temos dito muitas vezes, constituem
um só homem. Nos salmos, ouve-se com frequência a voz de todos eles como se fosse
a de um só homem. É um só homem que suplica por todos, porque todos não fazem
mais que um só naquele que é o único.
SALMO 70, II

3151 11. O instrumento do salmo é o saltério. O que é o saltério? É um instrumento de


madeira com cordas. Segundo os entendidos, há uma diferença entre ele e a cítara: o
saltério tem a concavidade de madeira onde se esticam as cordas para que ressoem na
parte superior, e a cítara, na parte inferior.
SALMO 72

3152 1. Este salmo tem por inscrição, quer dizer, por título, as seguintes palavras: Ter-
minaram os hinos de David, filho de Jessé... Os hinos são louvores cantados a Deus;
os hinos são cânticos que contêm louvores de Deus. Se há louvor e não é de Deus, não
há hino; se há louvor e é de Deus mas não se canta, não há hino. Para que seja hino é
preciso, portanto, que possua estas três coisas: louvor, Deus e canto. Que quer dizer:
Terminaram os hinos? Terminaram os louvores que se cantam a Deus... Quem canta
louvores, não só louva, mas louva com alegria. Quem canta louvores, não só canta, mas
também ama aquele a quem canta. No louvor há exaltação por parte daquele que louva,
e no cântico, afecto daquele que ama. Quem canta bem, reza duas vezes...
3153 5. Depois de ter atravessado o mar Vermelho, não se entra directamente na pátria,
e a vitória sobre os inimigos não dá ainda o triunfo final. Falta o deserto, a solidão; há
AGOSTINHO DE HIPONA 763

ainda inimigos que atacam no caminho solitário. Assim, depois de ter recebido o baptis-
mo, fica-nos por começar o combate cristão das tentações. No deserto os Israelitas
suspiravam pela Terra Prometida. Não suspiram também os cristãos no combate do
deserto?
34. Perdi a noção do tempo ao falar. Terminou o salmo. Tenho a sensação de que falei 3154
tempo demais. Mas não respondi aos vossos desejos, pois sois demasiado exigentes.
Deus queira que arrebateis o Reino dos Céus com essa mesma exigência.
SALMO 76

8. Pensei nos dias de outrora, queria recordar os anos eternos. Quais são estes 3155
anos eternos?... Porventura são eternos os anos que vivemos, os que viveram os
nossos antepassados, os que viverão os nossos descendentes? De modo nenhum os
consideramos eternos. Com efeito, que resta desses anos? Quando falamos deles,
dizemos: este ano. Que guardamos nós deste ano, além do dia em que estamos? De
facto, os outros dias deste ano já passaram e não nos pertencem, e os que hão-de vir
ainda não chegaram. Estamos neste único dia e dizemos: este ano! Diz antes: hoje, se
queres falar no presente. Presta de novo atenção a isto: as horas da manhã já passaram,
mas as outras ainda não existem. Corrige então a tua maneira de falar e diz: esta hora.
Mas, que reténs tu desta hora? Dos minutos de que ela se compõe, alguns já passaram,
mas os futuros ainda não vieram. Diz, portanto: este momento. Que momento? Aquele
em que pronuncias as sílabas. Se pronuncias duas sílabas, uma não soa antes da outra
ter sido pronunciada e, da própria sílaba, se tiver duas letras, a segunda não é dita antes
da primeira ter passado. Que retemos nós então destes anos? Estes anos passam.
Devemos pensar nos anos eternos, anos que permanecem, não divididos em dias que
chegam e que passam. Desses anos diz a Escritura a Deus: Vós, porém, sois sempre o
mesmo, e os vossos anos não têm fim. O nosso salmista pensou nestes anos, não com
o ruído exterior de muitas palavras, mas ficando em silêncio. E sonhou: Recordei-me
dos anos eternos.
SALMO 77

1. Este salmo contém a narrativa dos factos maravilhosos do antigo povo de Israel. 3156
O povo mais novo, que veio depois do primeiro, é convidado a não ser ingrato para
com os benefícios de Deus, e a receber a graça, na obediência e fidelidade. Os seus
membros não devem ser como seus pais, geração rebelde e obstinada, que não teve
coração recto nem espírito fiel a Deus. Esta é a intenção do salmo, a sua utilidade, os
seus abundantes frutos. Apesar dos factos enumerados e narrados parecerem claros e
evidentes, o seu conteúdo interno desafia o leitor inteligente. Por isso diz o salmista:
Vou falar em forma de provérbio, vou revelar os mistérios dos tempos antigos. Quem,
portanto, há-de ler superficialmente as parábolas e provérbios? Quem, ao ouvi-los,
não há-de empregar toda a atenção do espírito para entender e chegar aos seus frutos?
2. Escuta, meu povo, a minha instrução. Quem acreditamos nós que está a falar, a 3157
não ser o próprio Deus? Foi Ele que deu a lei ao seu povo, e que o reuniu depois de o
ter libertado do Egipto. Aqueles que ouviam fielmente os Profetas, entendiam o que
ouviam com o auxílio da graça. Mas o sacramento do Reino dos Céus, que se revelaria
na plenitude dos tempos no Novo Testamento, estava velado no Antigo Testamento.
Os sacramentos eram comuns a todos, mas a graça, que é a virtude dos sacramentos,
nem a todos era comum. Também agora, depois de revelada a fé outrora escondida, o
baptismo da regeneração é comum a todos os que são baptizados em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo, mas a graça própria deste sacramento nem a todos é comum,
pois os hereges e os falsos irmãos na comunhão católica têm o mesmo baptismo, mas
nem todos agradam a Deus. Estas palavras, portanto, foram cantadas mais para nós do
764 SÉCULO V

para o primeiro povo. Escutemos, pois, a instrução do Senhor, nós que somos o seu
povo, e prestemos ouvidos às palavras da sua boca.
SALMO 80

3158 1. Tomei a meu cargo falar-vos deste salmo. Assim ajude o vosso silêncio a minha
voz, que às vezes se torna fraca. A atenção dos ouvintes e a ordem dos que me mandam
me hão-de dar forças para falar. O título do salmo diz: Para o fim, em favor dos
lagares, na quinta-feira. Salmo para Asaf. Num só título se reúnem muitos mistérios.
Entendei os lagares como um sacramento da Igreja.
3159 2. Porque diz o título: Na quinta-feira? Que significa isto? O sábado, em que Deus
descansou de todas as suas obras, é o sétimo dia, e anuncia-nos o grande mistério do
nosso futuro descanso de todas as nossas obras. O primeiro dia depois do sábado
chama-se primeiro dia da semana, e nós também lhe chamamos dia do Senhor ou
domingo. À segunda-feira do sábado chamamos segundo dia (do Senhor); à terça-feira
do sábado, terceiro dia; à quarta-feira do sábado, quarto dia; à quinta-feira do sábado,
quinto dia do Senhor. A seguir, à sexta-feira do sábado, sexto dia; e ao próprio sábado,
sétimo dia. Vede, pois, a quem fala este salmo. A mim parece-me que fala aos baptizados...
Há muitos que não vivem de maneira digna do baptismo que receberam. Quantos
baptizados preferem encher hoje o circo em vez da basílica! Quantos baptizados
foram construir hoje casas no campo ou se lamentam de as não ter construído!
3160 3. Vós que aqui vos reunistes hoje, aclamai a Deus, nossa força. Alguns aclamam
no circo, aclamai vós a Deus. Aplaudi ao Deus de Jacob, porque também vós pertenceis
a Jacob, ou antes, vós sois Jacob, o povo mais novo. Aquilo que não podeis explicar
com palavras, não vos impeça de aclamar e de aplaudir. Entoai cânticos ao som do
tamboril. Acolhei as nossas palavras, estendei as vossas mãos. Fazei ressoar a trom-
beta na lua nova. Havia um preceito de que no começo do mês se tocasse a trombeta.
O início do mês é a lua nova e a lua nova é a vida nova. Que é a lua nova? Se alguém está
em Cristo é uma nova criação. Anunciai a vida nova com toda a confiança e não tenhais
medo do ruído que a vida velha faz. Eu, o Senhor, sou o teu Deus, que te fiz sair da terra
do Egipto. Todos nós fomos retirados da terra do Egipto, todos nós atravessámos o mar
Vermelho, e os inimigos, que nos perseguiam, pereceram nas águas. Não sejamos
ingratos para com o nosso Deus; não nos esqueçamos do Deus que é eterno. Ninguém
se iluda pelo facto de já pertencer ao lagar. Bom seria que pertencesse ao azeite que sai
do lagar. Ninguém se iluda dizendo: uma vez que fui assinalado por Cristo e recebi os seus
sacramentos, não me perderei eternamente. Quantos inimigos do Senhor, mentindo-Lhe,
se alimentam não só com a flor da farinha, mas também com o mel dos rochedos da
sabedoria de Cristo! Quantos se deleitam na sua palavra, no conhecimento dos seus
sacramentos, na explicação das suas parábolas! Quantos se alegram, quantos aclamam!
Quantos se saciam deste mel e dizem: é suave, não há nada de melhor, nada de mais
doce se pode entender ou dizer! Não quero deter-me por mais tempo em coisas tão
tristes. Peço-vos, irmãos, voltemos ao princípio do salmo: Aclamai a Deus, nossa
força, aplaudi ao Deus de Jacob.
3161 5. Recordo-me de vos ter dito algumas vezes qual é a diferença que existe entre o
saltério e a cítara. Os que estavam atentos e ainda se lembram, recordem a explicação;
os que não ouviram ou não se lembram, aprendam-na. A diferença que existe entre
esses dois instrumentos musicais, isto é, entre o saltério e a cítara, consiste no seguinte:
o saltério é feito de madeira com uma concavidade colocada na parte superior, na qual
vibram e soam as cordas, que se pulsam na parte de baixo e soam na parte de cima. A
cítara também é feita de madeira, mas tem a concavidade na parte inferior. Portanto, o
primeiro parece pertencer ao Céu, e a segunda à terra. A pregação da palavra de Deus
é celestial. Mas, se desejamos as coisas do Céu, não sejamos preguiçosos em executar
as da terra, porque devemos tocar a cítara harmoniosa e o saltério...
AGOSTINHO DE HIPONA 765

8. Não tenhais medo, irmãos. O louvor de Deus nunca nos cansará, e nós nunca nos 3162
cansaremos do amor de Deus. Deixarias de O louvar se deixasses de O amar. O amor em
nós será eterno, porque a sua beleza não acabará de nos saciar. Não tenhas medo de não
poderes bendizer Aquele que poderás amar eternamente: Felizes os que moram na
vossa casa: podem louvar-Vos continuamente. Suspiremos por essa vida.
21. Há homens que não desejam a mulher do próximo, mas de tal modo se unem às 3163
suas e com elas convivem, que não guardam a norma prescrita no que se refere à
geração dos filhos...
SALMO 85

1. Deus não poderia conceder aos homens nenhum dom maior do que dar-lhes 3164
como cabeça o seu Verbo por quem criou todas as coisas, e uni-los a Ele como seus
membros, a fim de que o Filho de Deus fosse também Filho do homem, um só Deus
com o Pai, um só homem com os homens. Por conseguinte, quando apresentamos as
nossas súplicas a Deus, não devemos separar d’Ele o Filho; e, quando reza o corpo do
Filho, não deve considerar-se separado da cabeça; e deste modo, o salvador do seu
corpo, nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, é o mesmo que ora por nós, ora em
nós, e recebe a nossa oração. Ora por nós como nosso sacerdote, ora em nós como
nossa cabeça, recebe a nossa oração como nosso Deus. Reconheçamos n’Ele a nossa
voz, e em nós a sua voz. Ele ora na sua condição de servo, e recebe a nossa oração na
sua condição divina: ali, é criatura, aqui, o Criador; sem sofrer mudança, assumiu a
natureza criada para a mudar e transformar, fazendo de nós, juntamente com Ele, um
só homem, cabeça e corpo. Assim, portanto, oramos a Ele, por Ele e n’Ele; falamos
com Ele e Ele fala connosco; recitamos n’Ele e Ele recita em nós a oração deste salmo.
Ninguém, portanto, ao ouvir estas palavras, diga: Não é Cristo que fala, nem diga
também: Não sou eu que falo. Pelo contrário, se reconhece que está no corpo de Cristo,
diga ambas as coisas: Cristo fala, e, eu falo. Não queiras dizer algo sem Ele, e Ele nada
dirá sem ti. Não é isto que lemos no Evangelho? No princípio era o Verbo; o Verbo
estava em Deus; e o Verbo era Deus. No princípio Ele estava em Deus. Por Ele é que
tudo começou a existir.
7. A tua oração é uma conversa com Deus. Quando lês, é Deus que fala contigo, 3165
quando oras, és tu que falas a Deus.
11. Aquele que ama a peregrinação não ama a sua pátria. Se a pátria é doce, a 3166
peregrinação é amarga; e se é amarga, há tribulação todos os dias. Quando cessará a
tribulação? Quando provarmos as alegrias da nossa pátria: Alegria plena em vossa
presença, delícias eternas à vossa direita. Ali terão desaparecido o trabalho e as dores;
ali não haverá mais súplicas mas louvores! Ali haverá Aleluia, ali haverá Amen, numa
só voz com os Anjos. Ali será a visão indefectível e o amor sem enfado. Enquanto lá
não estiveres, bem vês que não és feliz... Elevemos mais alto o nosso coração, con-
fessemos com lágrimas, suspiremos nas nossas misérias. Fora do nosso Deus, nada é doce.
Que nos importam todos esses dons, se Ele mesmo, que nos deu tudo, não Se der a nós?.
24. Se agora lutamos contra nós, enquanto moramos nesta casa, nesta carne de sono, 3167
se estamos de vigília no meio destas luminárias, se a solenidade nos dá coragem para
não dormirmos, que vigílias nos não dará aquele dia?
SALMO 86

1. O salmo que acabámos de cantar é breve em palavras, mas denso de substância. 3168
Foi lido por inteiro, e bem vedes como terminou depressa. Por isso vos peço, irmãos,
que estejais atentos. Este salmo canta e descreve uma cidade da qual somos cidadãos,
pois somos cristãos. Dela estamos ausentes em peregrinação, enquanto formos mortais,
mas a caminho dela. O caminho que a ela conduz achava-se quase totalmente irreconhecível,
766 SÉCULO V

devido aos tojos e silvas. Mas um dia, o Rei desta cidade fez-se ele próprio o nosso
caminho para que pudéssemos lá chegar. Doravante caminhamos em Cristo, sempre
como peregrinos, enquanto não chegarmos. Com todo o desejo, suspiramos pelo ine-
fável repouso de que gozam os habitantes desta cidade, repouso em que possuiremos
o que nos foi prometido, o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, o
coração do homem não pressentiu. Enquanto caminhamos, cantemos de tal modo que
cresça o nosso desejo de chegar. Aquele que deseja, mesmo sem dizer palavras, canta
sempre no seu coração. Aquele que não deseja, mesmo que fira os ouvidos dos homens
com os seus clamores, está mudo diante de Deus. Vede como amavam com ardor esta
cidade os que disseram as palavras deste salmo, e os que no-las transmitiram. Vede com
que amor as cantaram. Este fervor nascia do seu amor à cidade, e este amor era o fruto
do Espírito: O amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo
que nos foi dado.
3169 3. Se pensas no sacramento, Cristo é o Santo dos santos; se pensas no rebanho que
Lhe obedece, Cristo é o Pastor dos pastores; se pensas no edifício, Cristo é o Alicerce
dos alicerces...
3170 8. Todos nós cantámos este salmo, e um só homem o cantou em todos: Cristo,
homem para nós, Deus antes de nós.
SALMO 87

3171 1. Na arte musical, solista20 é aquele que entoa o cântico, e membro do coro21 é
aquele que, a seguir, responde cantando. Assim também, neste cântico da Paixão, o
solista é Cristo e responde-Lhe o coro dos mártires, que um dia será coroado no Céu.
SALMO 89

3172 15. No meio dos trabalhos e dores, por assim dizer nocturnos, em que vivemos, este
salmo é para nós como que uma lâmpada que brilha num lugar escuro, até que o dia
desponte e a estrela da manhã nasça em nossos corações.
SALMO 90, II

3173 1. Nosso Senhor Jesus Cristo, como todo o homem perfeito, é cabeça e Corpo:
reconhecemos uma cabeça naquele homem, nascido da Virgem Maria... Esta é a cabeça
da Igreja. O Corpo dessa cabeça é a Igreja, não só a que está aqui, mas também a que se
acha aqui e em toda a terra; não só a de agora, mas a que existe desde Abel e dos que vão
nascer até ao fim e hão-de crer em Cristo; todo o povo pertence a uma única cidade; e
esta cidade é o Corpo de Cristo, cuja cabeça é Cristo.
SALMO 91

3174 1. Prestai atenção ao salmo. O Senhor nos conceda a graça de descobrir os mistérios
que ele contém. Para evitar a monotonia, explicamos as mesmas coisas de formas
diversas e variadas. Mas o Senhor não nos ensina outro cântico senão o da fé, da
esperança e da caridade.
SALMO 94

3175 3. Jubilemus Deo, salutari nostro. Aclamemos a Deus, nosso Salvador. Que quer
dizer jubilare? É a alegria que as palavras não podem exprimir, que se escapa do nosso
20
Praecentor.
21
Succentor.
AGOSTINHO DE HIPONA 767

coração para além das nossas palavras. O júbilo é isso. Examinai bem o que se passa
nas nossas canções quotidianas, nos despiques da alegria humana. Vede como a alegria,
por assim dizer, transborda, de algum modo, das palavras e se exprime em vocalizos,
porque as palavras são incapazes de exprimir o que o coração sente! Se até as alegrias
da terra podem fazer cantar com júbilo, como não havemos de o fazer quando nos
enche a alegria de Deus que as palavras não podem exprimir?
SALMO 95

2. Cantai ao Senhor um cântico novo, cantai ao Senhor, terra inteira. Se toda a 3176
terra canta um cântico novo, edifica-se a casa enquanto se canta. O próprio cantar é um
modo de edificar, se não se cantarem cânticos velhos. O cântico velho canta o desejo da
carne, o cântico novo canta a ternura de Deus. Seja qual for o cântico nascido do desejo
da carne, é velho; embora ressoe na boca o cântico novo, o louvor não é belo na boca do
pecador. Mais vale calar o cântico novo a cantar o cântico velho. Se fores um homem
novo e estiveres calado, o teu cântico não ressoará aos ouvidos dos homens, mas o teu
coração não deixará de cantar o cântico novo que chega aos ouvidos de Deus, que te fez
homem novo. Amas o silêncio. O amor é a voz que chega até Deus, e o próprio amor é
o cântico novo. Escuta qual é o cântico novo, segundo o Senhor: Dou-vos um mandamen-
to novo: que vos ameis uns aos outros. A terra inteira canta este cântico novo e assim
se constrói a casa. Com efeito, toda a terra é casa de Deus. Na construção nova que está
a levantar-se, as pedras sobrepõem-se de tal modo, a caridade une-as de tal maneira,
que não fica apenas pedra sobre pedra, mas todas as pedras se tornem uma só. Não nos
admiremos. Foi obra do cântico novo, isto é, da caridade que tudo renova. Onde há
unidade do Espírito, a pedra é uma só, mas uma pedra feita de muitas.
Assim se constrói a casa do Senhor nosso Deus. Assim se edifica, assim se
constrói, assim se faz. Edificam-na estas palavras, estas leituras, este Evangelho pre-
gado no mundo inteiro. Ela está em plena construção. Cresceu muito esta casa para
acolher muitas nações, mas ainda as não contém todas, e no entanto quer reuni-las a
todas. Muitas nações bárbaras acreditaram em Cristo. Lugares onde não chegara o
Império romano, já pertencem a Cristo. Regiões ainda fechadas àqueles que empunham
a espada, abriram-se Àquele que reinou pelo madeiro. Quem é que combate com o
madeiro? Cristo. Todos aqueles que Ele venceu se gloriam hoje nesta cruz, que traz a
salvação ao mundo. Esta é a construção de Deus. Assim cresce a casa, assim se edifica.
Escutai, pois, o canto do salmo, olhai e contemplai os operários que trabalham. Cantai
ao Senhor um cântico novo, cantai ao Senhor, terra inteira.
SALMO 97

1. Cantai ao Senhor um cântico novo. O homem novo sabe esse cântico, o homem 3177
velho não o sabe. O homem velho é a vida velha, e o homem novo é a vida nova. A vida
antiga vem de Adão, a vida nova forma-se em Cristo. Este salmo convida a terra inteira
a cantar o cântico novo. Mais claramente o diz outra passagem: Cantai ao Senhor um
cântico novo, cantai ao Senhor, terra inteira, para que os que se afastam da comunhão
com a terra inteira entendam que não podem cantar o cântico novo, uma vez que o
cântico novo se canta em toda a terra e não apenas numa parte dela.
4. Já sabeis o que é rejubilar. É alegrar-se e falar. Se não puderdes falar quando vos 3178
alegrais, rejubilai: se não podeis mostrar a vossa alegria com palavras, mostrai-a com o
júbilo; não fique muda a vossa alegria; não cale o coração o seu Deus, não cale os seus dons.
5. Cantai ao Senhor ao som da cítara, ao som da cítara e da lira. Cantai salmos 3179
não apenas com a voz. Fazei obras, para que não vos limiteis a cantar, mas trabalheis
também. Quem canta e trabalha salmodia com a cítara e a lira.
768 SÉCULO V

SALMO 98

3180 1. Vós sabeis, irmãos, como filhos da Igreja, instruídos na escola de Cristo, que os
nossos antepassados escreveram nas Escrituras as palavras e as maravilhas de Deus.
Eles queriam instruir-nos, a nós que devíamos nascer neste tempo, para que acreditássemos
em Cristo, que veio a primeira vez na humildade, mas virá de novo em toda a sua glória.
Para anunciar Cristo, as Escrituras utilizam figuras. O véu que encobria a verdade dos
livros antigos, foi tirado quando a verdade em pessoa apareceu na terra. Por isso, a
nossa única preocupação, quando lemos os Salmos, os Profetas, a Lei, escritos antes
do nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo, deve ser a de aí ver Cristo, de aí escutar
Cristo. Examinai cuidadosamente comigo este salmo, para nele procurarmos Cristo.
Ele aparecerá, sem dúvida, aos que O buscam, pois quis mostrar-Se, primeiro, aos que
não O procuravam. Ele não abandonará aqueles que O desejam, pois salvou tantos
homens indiferentes.
3181 9. É o Espírito quem dá a vida; a carne não serve de nada: as palavras que vos
disse são espírito e vida. Entendei espiritualmente o que vos disse; não tendes de
comer este corpo que vedes, nem tendes de beber este sangue que derramarão os que
Me crucificarem. O que vos confiei é um sacramento; entendido espiritualmente, far-vos-
á viver. Embora seja preciso celebrá-lo de maneira visível, deveis entendê-lo de maneira
invisível... A mesma carne, com que andou (o Senhor) na terra, essa mesma nos deu a
comer para nossa salvação; ninguém come aquela carne sem primeiro a adorar...; não só
não pecamos adorando-a, mas pecaríamos se não a adorássemos.
3182 15. Dissemos o que o Senhor nos inspirou. Quando falamos em nome de Deus, todas
as palavras da nossa boca são palavras do Senhor, são para vós como a chuva de Deus.
Vede vós que terra sois. Quando a chuva desce sobre uma terra, se ela é boa, dá bons
frutos, se é má, dá espinhos. Mas a chuva é sempre suave, tanto para os frutos como
para os espinhos. Se algum de vós, depois de ouvir estas palavras, se torna pior do que
era, e com a chuva que recebeu produz espinhos, aguarde o fogo, mas não acuse a
chuva. Aquele que se tornar melhor e produzir frutos como a terra boa, espere um lugar
no celeiro de Deus e louve a chuva.
SALMO 99

3183 1. Irmãos, ao cantar ouvistes o salmo. É breve e não é obscuro. Com isto vos
tranquilizo, para não temerdes o trabalho. Mas, vejamos com atenção, porque, quanto
mais livres estivermos, com tanto mais cuidado devemos investigar o que significam as
coisas que se dizem com clareza, para que, na medida em que o Senhor no-lo conceda,
as entendamos de maneira espiritual. A voz de Deus, seja qual for o instrumento em
que ressoe, é voz de Deus, mas só agrada ao seu ouvido se for a sua voz. Ao falarmos,
só Lhe agradamos quando Ele fala por nós.
3184 2. Este salmo é de confissão ou de louvor, pois o seu título diz: Salmo de louvor ou
de confissão. Os versículos são poucos mas cheios de grandes mistérios. Germinem as
sementes nos vossos corações e delas nasça o trigo da seara de Deus. Este salmo de
louvor exorta-nos a alegrarmo-nos no Senhor. Mas não exorta apenas uma parte da
terra a cantar, ou só determinada casa ou assembleia de homens. Como sabe que a
bênção foi semeada em todo o mundo, a todo ele pede que se alegre.
3185 3. Toda a terra ouviu esta voz, pois toda ela já canta ao Senhor. E aquela que ainda
não canta, há-de cantar-Lhe, pois estendendo-se a bênção a todas as nações, desde o
início da Igreja, a começar por Jerusalém, em toda a parte foi abatida a impiedade e por
toda a parte se edificou a piedade. Cantar cânticos de júbilo quer dizer alegrar-se. Feliz
o povo que sabe aclamar-Vos. O Senhor nosso Deus me conceda a mim a graça de
entender o que hei-de dizer-vos, e a vós o que haveis de ouvir. Corramos para esta
AGOSTINHO DE HIPONA 769

felicidade, entendamos esta alegria, não a expressemos sem a entender. Não cantemos
só com a voz mas com o coração. A voz do coração é o entendimento.
4. Vou dizer-vos o que já sabeis. Quem jubila, não diz palavras, mas exprime a sua 3186
alegria por um determinado som, sem palavras22.
12. Na vida comum dos irmãos, que acontece nos mosteiros, há varões excelentes, 3187
homens santos; por isso vivem diariamente entregues aos cânticos, à oração, aos louvores
de Deus e à leitura. Trabalham com suas mãos, bastam-se a si mesmos, não pedem com
avidez, utilizam com equilíbrio e caridade tudo o que lhes é dado pelos irmãos piedosos,
ninguém se apropria daquilo que outro irmão não tenha, todos se amam e apoiam
mutuamente. Louvaste, louvaste 23.
13. Ninguém vos engane, irmãos. Se não quereis enganar-vos e desejais amar os 3188
irmãos, ficai a saber que em todas as profissões na Igreja há pessoas fingidas. Eu não
disse que todo o homem é falso, mas que em toda a profissão há gente falsa. Há
cristãos maus, mas também os há bons. Tu vês que muitos são maus, porque são palha
e não deixam que te aproximes dos grãos. Mas também ali há grãos. Aproxima-te,
palpa, tira a palha, investiga, utiliza o crivo do juízo. Encontrarás monjas indisciplinadas.
Mas há-de censurar-se, por causa disso, o estado religioso? Muitas há que não perma-
necem nas suas casas, mas andam pelas alheias, que são curiosas e dizem o que não
devem, que são soberbas, linguareiras e dadas ao vinho. Embora sejam virgens, de que
lhes serve a integridade e pureza do corpo se têm a alma corrompida? É melhor o
matrimónio humilde do que a virgindade orgulhosa. Se tivessem casado não teriam
título com que orgulhar-se, mas antes um freio que as governasse 24. Mas lá porque há
virgens más, havemos de condenar as que são santas de corpo e de espírito?
SALMO 100

1. O primeiro versículo do centésimo salmo contém tudo o que devemos procurar 3189
em todos os outros: Quero cantar a misericórdia e a justiça do Senhor. Ninguém
espere a sua impunidade, apoiado na misericórdia de Deus, porque existe também a
justiça. E ninguém que se tiver convertido para melhor tenha medo da justiça de Deus,
porque existe a misericórdia.
SALMO 102

1. A Igreja inteira com a sua cabeça, que é Cristo, é um só homem; o seu ofício 3190
próprio é o de bendizer o Senhor em todo o tempo.
2. Bendiz, ó minha alma, o Senhor, e todo o meu ser bendiga o seu nome santo. 3191
Cantámos durante o tempo suficiente e depois calámo-nos. Mas acaso o nosso íntimo
deverá deixar de bendizer o Senhor? Alterne no seu devido tempo o som da voz, mas
seja eterno o do nosso íntimo. Quando vens à igreja para cantar os hinos, a tua voz
pronuncia os louvores de Deus. Cantaste quanto pudeste e foste-te embora; cante
sempre a tua alma os louvores de Deus. Estás ocupado em negócios? Bendiga a tua
alma o Senhor. Quando comes..., quando dormes, bendiga a tua alma o Senhor... Seja a
tua inocência a voz da tua alma durante o sono.
8. Recordemos a recente exposição do salmo, na qual não pudemos explicar a 3192
palavra rejubilemos. Deus é um bem. Quem poderá dizer que bem é Deus? Não pode-
mos dizê-lo, mas também não nos é permitido calá-lo. Nesse caso, se o não podemos
dizer, mas, por causa da alegria que sentimos, não nos é permitido ficar calados, não

22
Qui iubilat non verba dicit sed sonus quidam est laetitia sine verbis.
23
Laudasti, laudasti.
24
Si enim nuberet, non haberet nomen unde extolleretur, et haberet frenum quo regeretur.
770 SÉCULO V

falemos nem nos calemos. Que devemos então fazer, se não devemos falar nem ficar
calados? Rejubilemos. Que quer dizer rejubilar? Elevai a voz inefável do vosso júbilo,
de tal modo que só Ele ouça as vossas alegrias.
3193 16. O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade. Quem é mais
paciente que o Senhor, quem é mais rico em misericórdia? O pecador peca e Ele deixa-o
viver; multiplica os pecados e Ele prolonga-lhe a vida; blasfema cada dia e Ele faz
nascer o sol sobre os bons e sobre os maus. Chama por toda a parte à conversão, chama
por toda a parte à penitência; chama pelos benefícios da sua criação, chama pelo
prolongamento da vida; chama pela leitura bíblica, chama pelos seus pregadores; cha-
ma no segredo do coração, chama pelo castigo que corrige, chama pela doçura da sua
misericórdia. Tem cuidado, para não abusares desta longa paciência, para não abusares
da sua misericórdia, pois de outro modo, como diz o Apóstolo, estás a acumular ira
sobre ti. O mesmo Apóstolo acrescenta: Não estarás tu a desprezar as riquezas da sua
bondade, paciência e generosidade, ao ignorares que a bondade de Deus te convida à
conversão? Pensas que esta delonga de Deus é prova de que lhe agradas pelo teu
comportamento? O salmo diz: Fizeste isto e Eu calei-Me. Pensaste que Eu era como tu.
Não Me agradam os teus pecados, mas com paciência procuro boas acções. Se Eu
punisse os pecadores, não encontraria penitentes25. Deus, ao ser paciente contigo,
quer levar-te à penitência. Tu, porém, dizes diariamente: “Acabou-se o dia de hoje,
amanhã farei igual, pois este não é o último, ainda falta o terceiro”. E de repente vem
a sua ira. Irmão, não tardes em converter-te ao Senhor. A sua paciência é um convite à
penitência.
SALMO 103, S. 1

3194 7. Outrora fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor. Não é em vós que sois luz,
porque em vós há trevas, mas em Deus há luz. Cobre-se de luz como de um manto,
estende o céu como um toldo. Pretende dizer agora, sob certos sacramentos figurados,
como fez para se revestir da Igreja como se fosse um manto de luz. Ouçamos como esta
Igreja se fez luz, como foi feita sem mancha nem ruga, como foi pura e branca, como foi
feita resplandecente com o vestido do seu esposo, ao unir-se a Ele. Estende o céu como
um toldo. Sem dúvida, é o que eu vejo. Mas quem estendeu o céu que contemplamos
com os nossos olhos carnais? Deus. Se tomas à letra o estende como um toldo, isto
significa a facilidade com que trabalha...
3195 19. Ninguém diga: não tenho nada. A caridade não depende do estado do cofre; aquilo
que dizemos, tudo o que temos dito, e quanto pudermos vir a dizer, quer eu, quer os
que vieram antes de mim, quer os que hão-de vir depois, tudo será avaliado pelo peso
da caridade. A caridade é o cumprimento da lei, quando esta procede de um coração
puro, duma consciência recta e duma fé sincera. Interrogai o vosso coração quando vos
dirigis a Deus. Vede como viveis este versículo: Perdoai-nos as nossas ofensas, assim
como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Se não disseres esta oração, não rezas;
se disseres outra, Deus não te ouvirá, por não vir do Mestre que Ele nos enviou. Por
isso é preciso que, quando oramos, oremos de acordo com esta oração. Quando a
pronunciamos, devemos entender bem o que dizemos, porque Deus quis que isso fosse
claro. Se não rezardes, não tereis esperança. Se rezardes de maneira diferente daquela que
o Mestre ensinou, não sereis ouvidos. Se mentis na oração, não suplicais. Por isso
devemos orar e devemos dizer a verdade. E havemos de orar como Deus ensinou. Quer
queiras quer não queiras, todos os dias hás-de dizer: Perdoai-nos as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Queres dizê-lo com toda a
segurança? Faz o que dizes.

25
Confessores.
AGOSTINHO DE HIPONA 771

SALMO 106

1. Não quero demorar-me no título, que leva Aleluia, e até duas vezes Aleluia. Nós 3196
temos o costume de cantar solenemente o Aleluia em determinado tempo26, segundo a
antiga tradição da Igreja, e não o cantamos em certos dias sem sacramento27. Se é certo
que só cantamos o Aleluia em certos dias, não é menos certo que pensamos nele todos
os dias. Na verdade, se esta palavra significa louvor a Deus, isso quer dizer que,
embora ela não esteja todos os dias nos nossos lábios, não deve, contudo, deixar jamais
o nosso coração: O seu louvor está sempre na minha boca...
SALMO 110

1. Chegaram os dias de cantar Aleluia. Estai atentos, irmãos, para acolher as sugestões 3197
do Senhor. Ele quer encorajar-nos e alimentar a nossa caridade, pela qual nos unimos a
Deus. Prestai atenção, vós que cantais tão bem, filhos do louvor e da glória eterna do
Deus verdadeiro e incorruptível. Estai atentos, vós que sabeis cantar e salmodiar em
vossos corações ao Senhor, dando graças sempre e por todas as coisas. Louvar a Deus
é cantar Aleluia. Passam os dias que vão chegando, passam e voltam, e anunciam o dia
que não veio ainda nem passará, que não é anunciado pelo dia de ontem nem expulso
pelo de amanhã. Quando chegarmos a esse dia, unir-nos-emos a ele e também nós não
passaremos mais. Como se canta a Deus noutro salmo: Felizes os que moram em vossa
casa; podem louvar-Vos continuamente. Será esta a nossa ocupação no repouso, o
nosso trabalho no lazer, a nossa ocupação na quietude, o nosso cuidado na segurança.
Quando chegar o dia da ressurreição de todo o corpo de Cristo, isto é, a santa Igreja, às
preocupações da vida sucederá o dia único. Escutemos, pois, o povo de Deus que
canta, porque o seu coração transborda. Neste salmo ressoa a voz de um homem cujo
coração exulta de alegria. Ele prefigura e significa o povo de Deus, isto é, o corpo de
Cristo, com o coração transbordante de amor, e libertado de todo o mal. Louvarei ao
Senhor de todo o coração.
SALMO 113, S. 2

6. Na celebração dos mistérios servimo-nos de muitos objectos e vasos (de ouro e 3198
prata). Depois de os utilizarmos neste serviço, consideramo-los sagrados, para glória
d’Aquele a quem servimos, por nos ter salvado...
SALMO 116

Louvai ao Senhor todas as nações, aclamai-O, todos os povos. Estes são os 3199
átrios da casa do Senhor, este é todo o seu povo, esta a verdadeira Jerusalém. Escutem
principalmente aqueles que não quiseram ser filhos desta cidade, pois se afastaram da
comunhão de todos os povos. É firme a sua misericórdia para connosco, a fidelidade
do Senhor permanece para sempre. Misericórdia e fidelidade são duas coisas que
aparecem muitas vezes juntas nas Santas Escrituras.
SALMO 118, 73-80, S. 18

3. O Apóstolo diz a todos aqueles que renasceram da água: Deixai-vos renovar 3200
pela transformação do Espírito que anima a vossa mente. De facto, o entendimento
está na mente. Por isso diz de novo: Deixai-vos transformar, adquirindo uma nova

26
O Tempo pascal.
27
Quod nobis cantare certo tempore solemniter mors est, secundum Ecclesiae antiquam traditionem:
neque enim et hoc sine sacramento certis diebus cantamus.
772 SÉCULO V

mentalidade. E diz àqueles que não participaram ainda da regeneração: Eis o que vos
digo e recomendo no Senhor: não volteis a proceder como procedem os gentios, no
vazio da sua mente. Vivem obscurecidos no pensamento, afastados da vida de Deus,
devido à ignorância que neles existe e à cegueira do seu coração. É para que se abram
e iluminem cada vez mais estes olhos interiores, cuja cegueira consiste em não entender,
que se purificam os corações pela fé. Aliás, quem não entender alguma coisa não pode
crer em Deus. Contudo, a própria fé o cura, para entender coisas mais excelsas. Há
coisas que, se não as entendermos não acreditamos, e outras que, se não acreditarmos não
as entendemos, pois a fé vem da pregação e a pregação vem pela palavra de Cristo.
Como pode então alguém aderir ao pregador da fé cuja língua não entende?
Mas, por outro lado, se não houvesse alguma coisa que podemos entender sem
primeiro acreditarmos, o Profeta não diria: Se não acreditardes, não entendereis.
Progrida, pois, o nosso entendimento para compreender o que crê, e progrida a fé para
crer o que deve entender. E para entender cada vez mais tudo isto, progrida a mente no
entendimento. Isto, porém, não se realiza pelas próprias forças naturais, mas sim com
o auxílio e o dom de Deus. Quem, portanto, diz a Deus: dai-me inteligência para
aprender os vossos mandamentos, não está inteiramente privado de entendimento,
nem tão pouco deve ser contado no número daqueles que andam no vazio da sua
mente, obscurecidos no pensamento, afastados da vida de Deus, pois, se fosse desse
número, não diria estas palavras. Não é pequena inteligência saber a quem se deve
pedir entendimento, sobretudo para entender os mandamentos divinos, que são muito
mais difíceis. Ora, é quem já entendeu isto e disse que guardou as palavras de Deus,
que pede ainda que lhe seja dado entendimento para os aprender.
SALMO 118, 105-112, S. 23

3201 1. Qual é a palavra de que fala o salmo?... Que palavra será essa, que ao mesmo
tempo é luz e farol, pois o salmista diz: A vossa palavra é farol para os meus passos
e luz para os meus caminhos? Só pode ser a palavra inspirada aos Profetas e pregada
pelos Apóstolos. Não é a palavra Cristo, mas a palavra de Cristo, a palavra que se
encontra em todas as Sagradas Escrituras.
SALMO 118, 113-120, S. 24

3202 3. Foi por causa do cansaço que lhe causava a multidão turbulenta, e pelo seu
grande desejo da palavra divina, que o salmista disse: Detesto os que não sabem o que
querem, eu estou afeiçoado à vossa Lei. Perdoem-nos os fiéis obedientes, que rara-
mente nos procuram por causa das suas questões mundanas, e aceitam facilmente as
nossas decisões. Esses não nos cansam com os seus litígios, mas antes nos consolam
com a sua obediência. Não é para eles que eu digo isto, mas para os que discutem entre
si com teimosia, que oprimem os bons, que desprezam as decisões que vamos tomando
e nos fazem perder um tempo precioso que devíamos dedicar às coisas de Deus. É em
relação a estes que certamente nos será lícito exclamar, juntando a nossa voz à do
corpo de Cristo: Detesto os que não sabem o que querem, eu estou afeiçoado à vossa Lei.
SALMO 118, 145-152, S. 29

3203 4. Meus olhos antecipam-se às vigílias da noite a meditar na vossa promessa.


Sucede com frequência que, durante o tempo da noite, o amor de Deus desperta com
intensidade no coração de alguns fiéis. Então, levados pelo grande afecto à oração, não
esperam, mas antecipam o tempo de orar, que costuma ser o canto do galo...
AGOSTINHO DE HIPONA 773

SALMO 119

1. O salmo que há pouco ouvimos cantar e ao qual respondemos cantando é breve 3204
mas muito útil...
9. Não podereis experimentar a verdade do que acabais de cantar, se não começardes 3205
a vivê-la. Por mais que eu o diga, por mais que o exponha, sejam quais forem as
palavras que empregue, nada disso entra no coração daquele que não o vive. Começai
por agir, e compreendereis do que falamos. Então, a cada palavra correrão as vossas
lágrimas; então, cantareis verdadeiramente este salmo. Há muitos que cantam com a
boca e ficam mudos no coração. Muitos outros não mexem os lábios, mas clamam com
o afecto. Os ouvidos de Deus estão atentos ao coração do homem. Tal como o ouvido
do corpo é feito para a boca do homem, assim o coração do homem é feito para a boca
de Deus. Muitos, de boca fechada, são atendidos, e muitos, com grandes clamores, não
o são. Devemos rezar com o nosso coração e dizer: Há quanto tempo a minha alma é
peregrina. Com os que odeiam a paz fui pacífico. É esta a voz do trigo que geme no
meio da palha.
SALMO 120

6. Pessoas mais atentas e mais doutas descobriram que Páscoa é uma palavra 3206
hebraica, que não significa paixão, mas passagem. O Senhor passou, pela paixão, da
morte à vida, e fez-Se caminho dos que crêem na sua Ressurreição, para que também
nós passemos da morte à vida. Não é coisa de grande vulto crer que Cristo morreu. Isso
também o crêem os pagãos, os Judeus e os ímpios. Todos crêem que Cristo morreu. A
fé dos cristãos consiste em crer na Ressurreição de Cristo. Consideramos coisa muito
importante acreditar que Cristo ressuscitou. Foi então, quando passou, isto é, quando
ressuscitou, que Ele quis deixar-Se ver. Quis que acreditássemos n’Ele quando passou,
porque foi entregue por causa dos nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação.
SALMO 121

2. Este salmo que vamos comentar, ou antes, aquele que aí descreve a sua peregrinação, 3207
canta o desejo de Jerusalém. Trata-se de um cântico gradual, e como já o disse várias
vezes, estes degraus não são para descer, mas para subir. O peregrino quer subir. Para
onde há-de subir senão para o Céu? E que pretende ele ao subir para lá? Será que deseja
subir para chegar ao sol, à lua, às estrelas? Não. O Céu é a Jerusalém eterna onde
moram os Anjos, com os quais viveremos. Na terra, peregrinamos longe deles; durante
a peregrinação, suspiramos; ao chegar à pátria, sentiremos grande alegria. No decorrer
da viagem encontramos companheiros que já viram a cidade e nos convidam a correr
para ela. Com isso rejubila o salmista e diz: Alegrei-me quando me disseram: vamos
para a casa do Senhor. Corramos, corramos, porque vamos para a casa do Senhor.
Corramos sem nos cansarmos, porque havemos de chegar onde nunca mais nos cansa-
remos. Corramos para a casa do Senhor, e alegre-se a nossa alma com o que nos
disseram. Os que nos disseram essas coisas, viram a pátria antes de nós, e, de longe,
gritam para os que os seguem: Vamos para a casa do Senhor. Caminhai, correi. Os
Apóstolos viram esta casa e disseram-nos: correi, caminhai, segui-nos: Vamos para a
casa do Senhor. E que responde cada um de nós? Alegrei-me quando me disseram:
vamos para a casa do Senhor. Alegrei-me com os Profetas, alegrei-me com os Apóstolos,
pois todos eles nos disseram: Vamos para a casa do Senhor.
4. Foram homens de carne e osso que construíram a nossa basílica que, como vedes, 3208
se levantou bem ampla. Para a construir, cavaram os seus alicerces na terra. Como,
porém, o edifício que nós construímos é espiritual, os nossos alicerces estão no Céu.
Corramos para o alto, onde se eleva o nosso edifício, porque é desta cidade que foi
dito: Detiveram-se os nossos passos às tuas portas, Jerusalém.
774 SÉCULO V

SALMO 122

3209 2. Suba este cantor único. Cante este homem no coração de cada um de vós, e cada
um de vós seja este homem. Quando cada um canta este versículo, como todos sois um
só em Cristo, é aquele homem único que canta.
SALMO 123

3210 1. Já sabeis, irmãos caríssimos, que um cântico gradual é o cântico da nossa ascensão,
não à montanha, mas no fervor do nosso coração. Quer seja um só que o cante, quer
seja cantado por vários, não formam mais que um só homem, reunido em Cristo, de
quem todos os cristãos são membros.
3211 8. Os latinos exprimiram como puderam o que os Gregos chamam ara. Os códices
gregos trazem ara; mas como é palavra duvidosa, exprimiu-se em latim por uma pala-
vra de dúvida, por fortasse, talvez; mas não significa exactamente isso... Eu posso
exprimir-me assim quando falo convosco, porque muitas vezes emprego palavras não
genuinamente latinas, para que compreendais. Mas, na Escritura, não se pode escrever
desse modo, porque isso não é latim. Quando falta a palavra propriamente latina,
substitui-se por outra, embora o significado não seja exactamente o mesmo.
SALMO 124

3212 10. Cristo, Filho de Deus, é a paz. Por isso veio reunir os seus e afastá-los dos que
praticam a iniquidade. Quem são os que praticam a iniquidade? São os que odiaram
Jerusalém, que odiaram a paz, que querem destruir a unidade, que não crêem na Paz,
que anunciam uma falsa paz ao povo e não têm paz. Quando eles disserem: A paz
esteja convosco, e lhes responderem: E com o teu espírito, dir-lhes-emos que dizem
uma falsidade e ouvem outra falsidade. A quem dizem: A paz esteja convosco? Àqueles
que afastam da paz que existe no orbe da terra. E a quem se responde: E com o teu
espírito? Àqueles que provocam dissenções e odeiam a paz. Se houvesse paz nos seus
espíritos, acaso não amariam a unidade e abandonariam a discórdia? Por isso, ao dize-
rem o que é falso, também ouvem o que é falso. Nós anunciamos o que é verdade e
ouvimos o que é verdade. Sejamos Israel e abracemos a paz, porque Jerusalém é visão
de paz e nós somos Israel. Paz a Israel.
SALMO 125

3213 1. Como sabeis, de acordo com a ordem da exposição, este salmo é o 125, e pertence
aos salmos chamados cânticos das subidas, que nos fazem ouvir, como também sabeis,
a voz daqueles que sobem. Para onde sobem senão para a Jerusalém do alto, mãe de
todos nós, que está nos Céus? Esta cidade do Céu é eterna; aquela que existiu na terra,
era a sua sombra.
SALMO 126

3214 3. A casa de Deus é também a cidade de Deus. A casa de Deus é o povo de Deus,
porque a casa de Deus é o templo de Deus. Que diz o Apóstolo? O templo de Deus é
santo, e esse templo sois vós. Todos os fiéis são casa de Deus. Não apenas os que
existem agora, mas também os que viveram antes de nós e já adormeceram no Senhor,
e os que existirão depois de nós, que ainda hão-de nascer até ao fim dos tempos. Esses
fiéis formam uma multidão inumerável, que só o Senhor pode contar: Ele conhece os
que lhe pertencem. Todos esses grãos, que agora gemem entre a palha, formarão um só
monte de trigo, quando, no fim dos tempos, a eira for joeirada. Na sua totalidade, os
santos fiéis serão transformados, para se tornarem iguais aos Anjos de Deus, serão
AGOSTINHO DE HIPONA 775

reunidos aos próprios Anjos, que já não peregrinam, mas aguardam que regressemos da
nossa peregrinação. Todos juntos fazem uma só casa de Deus, uma só cidade. Esta é
Jerusalém.
Ela tem guardas. Do mesmo modo que tem construtores que trabalham na sua
edificação, ela tem os seus guardas. É essa também a função dos bispos. Trabalhamos
para vos guardar, mas o nosso trabalho será vão, se não vos guardar Aquele que vê os
vossos pensamentos. Ele guarda-vos quando estais acordados e guarda-vos quando
estais a dormir. Ele adormeceu uma só vez na cruz, mas para ressuscitar. Doravante já
não dorme mais. Vamos, irmãos. Se queremos ser guardados à sombra das asas de
Deus, sejamos Israel. Nós temos o encargo de vos guardar, mas queremos ser guardados
convosco. Para vós somos como que pastores, mas sob aquele Pastor somos ovelhas
convosco. Deste lugar, somos para vós como que doutores, mas sob aquele único
Mestre; nesta escola, somos alunos convosco.
SALMO 129

1. Esta noite estamos de vigília. Mantenhamos acordados não apenas os nossos 3215
olhos, mas também o nosso coração. Procuremos cantar este salmo com inteligência:
Do profundo abismo chamo por Vós, Senhor, Senhor, escutai a minha voz. É um
cântico das subidas e a oração de um homem que sobe para Jerusalém.
7. Para receber algo de ti, o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Recebeu de ti o 3216
que oferecia por ti, assim como o sacerdote recebe de ti o que oferece por ti quando
queres aplacar o Senhor pelos teus pecados. Já aconteceu, já aconteceu. O nosso
sacerdote recebeu de nós o que havia de oferecer por nós. Recebeu de nós a carne, nesta
carne Se fez vítima, Se fez holocausto, Se fez sacrifício. Na Paixão fez-Se sacrifício, na
Ressurreição tornou novo o que foi morto, e deu-o a Deus como primícias tuas...
SALMO 130

3. Orar no templo de Deus, é orar na comunhão da Igreja, na unidade do corpo de 3217


Cristo. O corpo de Cristo é constituído por todos os crentes do universo, e é atendido
porque reza neste templo. Reza em espírito e em verdade aquele que ora na comunhão
da Igreja, onde se realiza a figura do antigo templo. É pois a voz do templo que
ouvimos neste salmo. Este templo de Deus, este corpo de Cristo, esta assembleia de
fiéis tem uma só voz e neste salmo canta como um só homem. Já temos ouvido a sua
voz noutros salmos. Ouçamo-la também neste. Se quisermos, ela será também a nossa
voz. Depende de nós escutar com os ouvidos e cantar com o coração. Se nos recusarmos a
isso, comportamo-nos neste templo como traficantes, que vendem e compram, isto é,
buscamos o nosso interesse. Estamos na igreja, mas não fazemos o que agrada a Deus.
SALMO 131

2. Nos salmos, do mesmo modo que em toda a profecia, não costumamos atender 3218
apenas à letra, mas por meio da letra esquadrinhamos os mistérios. A vossa caridade
também se recorda que sabemos ouvir nos salmos a voz de certo homem que, sendo
único, tem Cabeça e Corpo. A Cabeça está no Céu e o Corpo na terra, e para onde foi
a Cabeça irá também o Corpo. Não preciso de dizer quem é a Cabeça nem quem é o
Corpo, porque falo a pessoas instruídas.
SALMO 132

1. Este salmo é breve, mas muito conhecido e citado: Oh! Como é bom e agradável 3219
viverem os irmãos em harmonia. É tão doce este primeiro versículo, que mesmo os
que ignoram o saltério conhecem o seu texto. Ele é suave como a caridade que leva
776 SÉCULO V

alguns irmãos a habitar uns com os outros. Que seja bom e agradável viverem os irmãos
em harmonia não precisa de explicação nem comentário. Mas para entender os versícu-
los que se seguem, há que bater à porta para que no-la abram. Como o primeiro
versículo nos permite compreender todo o salmo, perguntemo-nos se ele não se aplica
a todos os cristãos: Como é bom e agradável viverem os irmãos em harmonia. Viver
em harmonia será privilégio apenas de alguns perfeitos? Se assim fosse, eles seriam os
beneficiários da bênção divina que depois acabaria por se espalhar sobre todos os outros.
3220 2. Estas palavras do saltério, esta doce melopeia, este cântico melodioso, música e
espírito, deu origem aos mosteiros. À sua voz se animaram alguns irmãos a viver
juntos. Este versículo convocou-os como um toque de clarim que se ouviu por toda a
terra, e os que estavam divididos reuniram-se. Clamor de Deus, clamor do Espírito
Santo, clamor profético que não se limitou à Judeia mas se difundiu por toda a terra.
Lemos nos Actos dos Apóstolos: A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só
coração e uma só alma. Foram os primeiros a compreender como é bom e agradável
viverem os irmãos em harmonia. Foram os primeiros, mas não os únicos. Este amor,
esta união não se limitou a eles. O fervor desta fraternidade estendeu-se àqueles que os
seguiram. Nós sabemo-lo, irmãos, e por isso bendizemos o Senhor.
3221 3. Foi da linguagem deste salmo que nasceu o nome de monge.
3222 4. Contudo, irmãos caríssimos, há monges falsos, como há clérigos falsos como há
fiéis falsos. Já vo-lo recordei noutra ocasião, meus irmãos, e creio que não só uma vez.
No interior de cada um destes grupos há bons e maus.
SALMO 134

3223 1. Este convite é bom e útil. Louvai o nome do Senhor. Exorta-nos o salmo, exorta-nos
o Profeta, exorta-nos o Espírito de Deus, exorta-nos, enfim, o próprio Senhor, a que O
louvemos. Ele não cresce com os nossos louvores; nós é que crescemos. Deus não Se
torna melhor se O louvares, nem pior se O injuriares. Ele permanecerá bom, como é.
Ele, que é soberanamente imutável, ensina-nos aqui que não será engrandecido se O
louvares, nem diminuído se O criticares. Como somos nós que tiramos proveito do
nosso louvor, em sua misericórdia ordena-nos que O louvemos, mas não no-lo exige.
Escutemos, pois, o que diz o salmo: Louvai o nome do Senhor, louvai-O servos do
Senhor. Se nada há de mais normal para os servos do que louvar o seu Senhor, mais
razão tendes vós de O louvar, para merecerdes ser seus filhos.
3224 2. Pelo facto de estarmos aqui, nesta peregrinação, nesta casa, à qual chamamos
também tenda da peregrinação, deveremos ser pouco agradecidos? Por ventura não
havemos de pensar no motivo de estarmos aqui? Não havemos de pensar no que nos
tornámos? Não havemos de pensar onde tínhamos caído e donde fomos reunidos?
SALMO 135

3225 3. Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom... Dai graças ao Deus dos deuses...
Dai graças ao Senhor dos senhores... Se nunca se encontra na palavra divina uma
passagem em que os Anjos sejam chamados deuses, estou em crer que o motivo prin-
cipal foi para evitar que os homens, por causa deste nome, não fossem levados a
prestar aos santos Anjos o ministério ou culto, que em grego se chama liturgia ou
latria; eles próprios não querem que os homens lhes prestem tal culto, mas o prestem
somente a Deus, que é Deus deles e dos homens.
SALMO 136

3226 21. Quem são esses filhos pequeninos de Babilónia? São os maus desejos no mo-
mento em que nascem... Quando surgem os maus desejos, antes de adquirirem contra
AGOSTINHO DE HIPONA 777

ti a força do hábito..., quando estão ainda no princípio, despedaça-os. Mas tem cuidado, não
aconteça que, apesar de despedaçados, não estejam mortos: esmaga-os contra o roche-
do. O rochedo era Cristo.
SALMO 137

2. Quero confessar-Vos, Senhor, de todo o meu coração. O título costuma indicar- 3227
-nos o conteúdo do salmo. Aqui, porém, como o título o não indica, mas apenas diz a
quem se vai cantar, o primeiro versículo anuncia o que se fará em todo o salmo: Quero
confessar-Vos, Senhor, de todo o meu coração. Escutemos, pois, esta confissão. Mas
primeiro lembro-vos que a palavra confissão, nas Escrituras, quando se confessa a
Deus, costuma ter dois sentidos: confissão dos pecados e confissão de louvor. Todos
se dão conta quando se trata da confissão dos pecados, mas poucos se apercebem
quando o tema é a confissão de louvor. Tão conhecida é a confissão dos pecados que,
quando se ouve em qualquer lugar da Escritura: Confitebor tibi Domine ou Confitebimur
tibi, imediatamente, porque é costume entendê-lo assim, apressam-se as mãos a bater
no peito. Isto acontece com tanta frequência, que os homens costumam entender por
confissão apenas a dos pecados. Mas acaso foi pecador nosso Senhor Jesus Cristo,
que diz no Evangelho: Confesso-Te, ó Pai, Senhor do céu e da terra?
10. Cantem nos caminhos do Senhor, porque é grande a glória do Senhor. Cantem 3228
nos caminhos do Senhor os reis da terra. Em que caminhos hão-de cantar?... Se são
humildes, cantem nos caminhos do Senhor; amem e cantarão. Sabemos que os viajantes
cantam; cantam e têm pressa de chegar. Há cânticos maus, que são os do homem velho,
pois o cântico novo pertence ao homem novo. Caminhem, portanto, os reis da terra,
nos vossos caminhos, Senhor, caminhem e cantem nos vossos caminhos. Que hão-de
cantar? Cantem que é grande a glória do Senhor, não a dos reis.
SALMO 138

1. Eu tinha-me preparado para vos comentar um salmo curto e tinha mandado ao 3229
leitor que o cantasse 28; provavelmente ele estava distraído, e cantou outro. Preferi
seguir a vontade de Deus, manifestada por este engano do nosso leitor, do que seguir
a minha, dizendo-vos o que tinha preparado. Por isso, se vos demorar um pouco mais,
devido à abundância do assunto, não me atribuais a culpa, mas acreditai que foi Deus
que assim o quis...
2. Tal como a mulher foi formada do lado de Adão que dormia, assim do lado do 3230
Senhor adormecido, isto é, que morria na Paixão, ao ser ferido com a lança, quando
estava na cruz, brotaram os sacramentos com os quais formou a Igreja.
20. O salmista chama os suum ao que o povo chama ossum; mas em latim diz-se os, 3231
osso, pois o códice grego traz o)stou=n... Falo assim, porque é melhor que me repreendam
os puristas da língua, do que não me compreenda o povo.
SALMO 139

2. Creio que, enquanto se cantava este salmo, adivinhastes o seu conteúdo. É uma 3232
lamentação, um gemido, uma oração que o corpo de Cristo, cercado de malfeitores,
dirige a Deus. É sempre ele que fala neste género de salmos, é ele o pobre, o infeliz,
nunca saciado, que tem fome e sede de justiça, dessa justiça que o Senhor prometeu
saciar no último dia.
15. Como se reconhece o servo de Deus? Ele gosta mais de ouvir do que falar, como 3233
está escrito: Seja cada um de vós pronto para ouvir, lento para falar. Se for possível,

28
O salmo era todo cantado, antes de ser explicado.
778 SÉCULO V

deseje não ter de falar, nem discursar, nem ensinar. Neste momento em que vos falo
para vos ensinar, creio que seria melhor que todos soubéssemos tudo e nenhum ensi-
nasse os outros, de sorte que não houvesse nem pregadores nem ouvintes, mas que
todos nós escutássemos Aquele a quem se diz: Fazei-me ouvir uma palavra de gozo e
de alegria. Põe a tua alegria em escutar a Deus e que só a necessidade te faça falar, e
não serás semelhante a esse homem que o desejo de falar impede de trilhar o bom
caminho. Porque queres falar e não queres ouvir? Estás sempre a sair de ti e tens medo
de entrar em ti. O teu mestre está dentro de ti. Quando ensinas, sais de ti para ir ao
encontro dos que estão fora. É dentro do nosso coração que ouvimos a verdade, é aos
que estão fora do nosso coração que nós falamos. Que as alegrias interiores façam as
nossas delícias, e não nos entreguemos ao exterior senão por necessidade.
SALMO 140

3234 5. Aquele sacrifício vespertino (da cruz) converteu-se em dom matutino na Res-
surreição. Por isso a oração que sobe pura de um coração piedoso eleva-se como
incenso do santo altar. Não há nada mais deleitável do que o odor do Senhor; exalem
este odor todos os crentes.
3235 18. Que fazes dos teus pensamentos e da multidão tumultuosa dos desejos que se
rebelam contra ti? Não lhes dás guarida, não fazes caso deles! Assim o creio e assim o
vejo; apesar disso, algumas vezes entram em ti e distraem-te, até quando estás a orar de
joelhos. Prostras o corpo, inclinas a cabeça, confessas os teus pecados, adoras a Deus;
vejo onde está o teu corpo, mas pergunto por onde volteja o teu espírito. Vejo os teus
membros prostrados, mas vejamos se a tua consciência se mantém recta, se está fixa
n’Aquele a quem adora, se muitas vezes não é arrebatada por outros pensamentos, tal
como o mar pela agitação, ou é arrastada pela tempestade, de umas coisas para as outras.
SALMO 143

3236 1. O título deste salmo é breve em palavras, mas importante pela profundidade dos
mistérios. Para David... Eis o que fez o grande David; sondemos estes mistérios... Em
David temos de ver Cristo. Mas, instruídos na sua escola como vós sois, sabeis que
Cristo é ao mesmo tempo Cabeça e Corpo, e, por isso, não entendais o que é dito da
pessoa de Cristo como se não vos dissesse respeito a vós, que sois membros de Cristo...
3237 3. A voz de Cristo é a nossa voz, se pertencemos ao Corpo de Cristo. Bendigamos
o Senhor, nosso Deus, que adestra as nossas mãos para a luta e os nossos dedos para
o combate...
SALMO 144

3238 1. Deus louvou-Se a Si mesmo para que o homem fosse capaz de O louvar, e porque
Se dignou louvar-Se, o homem encontrou o modo de O louvar29. A Deus não se aplica
a proibição feita ao homem: Não saia de teus lábios o louvor de ti mesmo. Se o homem
se louva a si mesmo, é arrogância; mas se Deus Se louva, é misericórdia. Proveitoso é,
para nós, amar o que louvamos, pois amando o bem fazemos ainda melhor. Assim,
pois, conhecendo Deus que reverte em nosso proveito que O louvemos, louva-Se para
fazer-Se mais amável, procurando o nosso bem... Estimula os nossos corações para
que se incendeiem em louvor; enche do seu Espírito os seus servos para que O louvem
com cânticos inspirados, e como é o seu Espírito que nos seus servos O louva, resulta
que é Ele quem Se louva a Si mesmo, a fim de que nós possamos louvá-l’O dignamente.

29
Ut bene ab homine laudetur Deus, laudavit se ipsum, et quia dignatus est laudare se, ideo invenit homo
quemadmodum laudet eum.
AGOSTINHO DE HIPONA 779

SALMO 145

1. Os cânticos de Deus são as delícias do nosso espírito, e não há dor que neles não 3239
encontre alívio.
SALMO 146

1. Ouvimos com atenção cantar o nosso salmo. Mas ouvi-lo não é forçosamente 3240
compreendê-lo. Como começa? Louvai o Senhor. Isto não se diz apenas a nós, mas a
toda a gente. Esta palavra ressoa, graças aos leitores, em cada lugar determinado e
ouvem-na todas as Igrejas. Uma só palavra de Deus escutada por todos nos incita a
louvá-l’O. Como se tivéssemos perguntado por que devemos louvá-l’O, reparai no
motivo que aduz: Louvai o Senhor, porque é bom cantar. É esse o prémio dos que
louvam. Louvemos o Senhor. Porquê? Porque é bom cantar. Louvemos, esperemos e
desejemos, não isto ou aquilo, mas sim o que entende por conveniente dar-nos Aquele
a quem louvamos. Ele sabe o que é conveniente que nos seja dado.
2. O salmo é um cântico, não de qualquer espécie, mas para ser acompanhado ao 3241
saltério. O saltério é um instrumento de música como a lira, a cítara, e ainda outros.
Por isso, quem canta o salmo, não canta apenas com a voz, mas acompanha-se com o
instrumento chamado saltério. É preciso que as mãos sejam tão hábeis como a voz.
Queres cantar um salmo? Não basta que a voz cante os louvores de Deus, mas é
preciso que as obras façam coro com ela. Se cantares só com a voz, de vez em quando
calar-te-ás. Canta com a vida, de tal forma que nunca te cales. Canta com a voz para
exortares os teus ouvidos, mas não cales o coração, não cales a vida. Assim, para
louvares a Deus, não te contentes em cantar com os lábios, mas toma também o saltério
das boas obras, porque é bom cantar. Louvas a Deus quando te ocupas dos teus
negócios, louvas a Deus à mesa, louvas a Deus quando descansas, louvas a Deus
quando dormes. Deixaremos alguma vez de louvar a Deus? Mas o nosso louvor a Deus
será perfeito quando tivermos chegado à cidade onde, semelhantes aos Anjos, não
teremos mais nenhuma necessidade física, nem fome nem sede, nem calor nem frio.
Nenhuma febre nos abaterá, nenhuma morte porá termo à nossa vida. Preparemo-nos,
pelo louvor que constituem as nossas acções boas, para chegar ao louvor perfeito.
SALMO 147

5. Vejamos qual é a cidade que este salmo canta. Escutemos e cantemos. A alegria 3242
que sentimos ao ouvir o salmo é já um cântico em honra do nosso Deus. Cantar não é
apenas dizer um salmo com a voz e com os lábios. Existe também um cântico interior,
que um outro escuta em nós. Cantamos com a voz para nos estimular, e com o coração
para Lhe agradar... Jerusalém foi reconstruída depois de setenta anos de cativeiro. Por
esses setenta anos, número múltiplo de sete, Jeremias designou a duração do tempo
presente, dividido, como sabeis, em períodos de sete dias, que vão e voltam, sempre os
mesmos. Tendo Jeremias predito que Jerusalém seria reedificada ao fim de setenta
anos, cumpriu-se a profecia para se converter no protótipo das coisas futuras. Desse
modo, somos advertidos de que, depois do tempo que transcorre em semanas, nos será
dada por toda a eternidade essa cidade celestial. A eternidade não constituirá então
mais do que um só e mesmo dia. Assim, nessa nova morada, já não haverá tempo fugaz,
porque aquele que nela vier a habitar será imutável.
Quando os Profetas contemplavam em espírito a cidade de Jerusalém, viam a
cidade do Céu e falavam da cidade dos Judeus. Mas o que diziam da Jerusalém terrestre
aplicava-se verdadeiramente à Jerusalém celeste, e os acontecimentos que se celebravam
no tempo, segundo o curso material das coisas e sob a acção dos homens, eram, na
realidade, os símbolos das coisas do tempo futuro. Ouçamos o que cantámos da cidade
de Jerusalém e elevemo-nos até ela. O Espírito de Deus faz-nos estimá-la muito,
780 SÉCULO V

derramando em nossos corações o amor desta cidade, para a desejarmos e suspirarmos


por ela durante a peregrinação e termos pressa de alcançá-la. Amemo-la; amá-la é
caminhar para ela.
SALMO 148

3243 1. Toda a nossa vida presente deve transcorrer no louvor de Deus, porque o louvor
de Deus será também a alegria eterna da nossa vida futura. Ora, ninguém se pode tornar
apto para a vida futura se, desde agora, não se preparar para ela. Agora louvamos a
Deus, mas também suplicamos a Deus. O nosso louvor é feito com alegria, e a nossa
súplica com gemidos. Foi-nos prometido algo que ainda não possuímos; e, porque é
veraz quem o prometeu, alegramo-nos na esperança; mas, porque ainda não o possuímos,
gememos em desejo. É coisa boa perseverar neste desejo, até que chegue o prometido;
então cessará o gemido e subsistirá unicamente o louvor.
3244 2. Agora, irmãos, nós vos exortamos a que louveis a Deus: é isso o que todos nós
mutuamente exprimimos, quando cantamos: Aleluia. Louvai o Senhor, diz um, louvai o
Senhor, responde o outro. Mas louvai-O com todas as vossas forças, isto é, louvai a
Deus não só com a língua e a voz, mas também com a vossa consciência, a vossa vida,
as vossas acções. Na verdade, louvamos a Deus agora que nos encontramos reunidos
na igreja; mas logo que voltamos para casa, parece que deixamos de louvar a Deus. Não
deixes de viver santamente e louvarás sempre a Deus. Deixas de O louvar quando te
afastas da justiça e do que Lhe agrada. Se nunca te desviares do bom caminho, ainda
que se cale a tua língua, clamará a tua vida; e o ouvido de Deus estará perto do teu
coração. Porque assim como os nossos ouvidos escutam as nossas palavras, assim os
ouvidos de Deus escutam os nossos pensamentos. Em cada um dos nossos corações
está sentado um mestre: se é bom, ordena coisas boas e são feitas; se é mau, manda
fazer o mal e o mal é feito. Se é Cristo que ali está sentado, que pode ordenar senão o
bem? Por isso, irmãos, não vos prendais apenas às palavras. Quando louvais a Deus,
louvai-O em plenitude: cante a voz, cante a vida, cantem as acções. Ainda há gemidos,
tribulações e tentações. Tende esperança que todos esses males passarão, e virá o dia
em que louvaremos sem desfalecer.
3245 5. Corações ao alto! Elevemos os nossos corações, para que não se corrompam na
terra; a nossa alegria consiste em antecipar o que os Anjos ali fazem. Hoje em esperança,
um dia em realidade, quando lá chegarmos. Portanto, louvai o Senhor do alto dos Céus.
3246 17. Sabeis o que é um hino. É um cântico de louvor a Deus. Se louvas a Deus e não
cantas, não há hino; se cantas e não louvas a Deus, também não há hino; se louvas algo
que não pertence ao louvor de Deus, mesmo que louves cantando, não há hino. Com
efeito o hino implica três coisas: cântico, louvor e Deus. Por isso o louvor de Deus no
cântico chama-se hino.
SALMO 149

3247 1. Louvemos o Senhor com a palavra, com o pensamento e com as boas obras, e
cantemos-Lhe, como nos exorta este salmo, um cântico novo, pois assim começa:
Cantai ao Senhor um cântico novo. O homem velho canta um cântico velho; o novo,
um cântico novo. O Antigo Testamento canta um cântico velho; o Novo Testamento,
um cântico novo. Todo o que ama as coisas terrenas canta o cântico velho. Quem quiser
cantar o cântico novo, ame os bens eternos. O próprio amor é novo e eterno; é sempre
novo, porque não envelhece. Cristo é a vida eterna. Ele é eterno com o Pai... Todos os
que se renovam em Cristo para começarem a pertencer à vida eterna, cantam o cântico
novo...
AGOSTINHO DE HIPONA 781

SALMO 150

1. Apesar de ainda me não ter sido revelado o porquê da disposição dos salmos, 3248
parece-me que ela contém o segredo de um grande sacramento... 2. Os que defendem
que os salmos no seu conjunto formam cinco livros, afirmam que as palavras Fiat, fiat,
pelas quais terminam os salmos 40, 71, 88 e 105, indicam o fim de cada um desses
livros... Pela minha parte, seguindo a autoridade das Escrituras canónicas, nas quais se
lê: Como está escrito no livro dos Salmos, reconheço um só livro dos Salmos, pois
vejo que isto é certo. E se aquilo que outros dizem também é certo, verifico que em
nada se opõe àquilo que eu afirmo...
3. Seja porém qual for a maneira de entender a estrutura do livro dos Salmos, a
sua divisão em três grupos de cinquenta responde a algo sublime e digno de muita con-
sideração. Com efeito não me parece vão dizer que o salmo cinquenta se refere à
penitência, o salmo cem à misericórdia e ao julgamento, e o salmo cento e cinquenta ao
louvor de Deus nos seus santos, uma vez que nos encaminhamos deste modo para a
vida eterna: em primeiro lugar, condenando os nossos pecados; a seguir, vivendo bem...;
e por fim recebendo a vida eterna...
8. Louvai o Senhor com címbalos sonoros, louvai-O com címbalos retumban-
tes. Os címbalos ressoam quando batem um no outro. Por isso alguns comparam-nos
aos nossos lábios. Mas creio que podem interpretar-se melhor: de certo modo louva-se
a Deus com os címbalos quando um irmão é louvado pelos outros e não por si mesmo.
Este louvor mútuo é um louvor de Deus. Para que ninguém pensasse que os címbalos
não têm espírito, o salmista acrescentou com címbalos retumbantes, com címbalos de
júbilo. O júbilo, ou seja o louvor sem palavras, só pode brotar da alma. Dizem os músi-
cos, e a experiência também o mostra, que existem três espécies de sons: os que são
produzidos pela voz, pelo sopro e pela pulsação. A voz produz sons quando alguém
canta sem acompanhamento; o sopro produz os sons da flauta; os da harpa e outros
instrumentos semelhantes são produzidos por pulsação.
Portanto, o salmista não esqueceu nada: fala da voz dos coros, do sopro a propó-
sito da flauta, da impulsão para a harpa. Nós podemos compará-los ao corpo, ao espírito
e à alma. É uma analogia e não uma identidade. Quando o salmista nos diz: Louvai a
Deus no seu santuário, ou nos seus santos, a quem se dirige ele senão a nós próprios?
Em quem devem eles louvar a Deus, senão em si mesmos? Ele disse: Vós sois os seus
santos, vós sois a sua força, mas uma força que Ele realizou em vós. Vós sois o seu
poder, como a sua grandeza multiforme que Ele realizou e manifestou em vós à luz do
dia. Vós sois a sua trombeta, a lira, a cítara, o tambor, o coro, as cordas, o órgão, os
címbalos sonoros, que ressoam com harmonia. Vós sois tudo isso. Ninguém pense em
nada de vil, de passageiro, de fútil. Mortal é a sabedoria da carne. Tudo quanto respira
louve ao Senhor.
Oração no fim de cada sermão. Voltados para o Senhor, Deus Pai todo-podero-
so, dêmos-Lhe, de todo o coração e na medida em que a nossa pequenez o permita, as
maiores e mais sinceras graças, pedindo com toda a alma a sua particular mansidão,
para que, em sua bondade, Se digne escutar as nossas súplicas, afastar com o seu poder
o inimigo das nossas acções e pensamentos, aumentar a nossa fé, dirigir a nossa mente,
conceder-nos pensamentos espirituais e conduzir-nos à sua bem-aventurança, por Je-
sus Cristo, seu Filho, nosso Senhor, que vive e reina com Ele, Deus, na unidade do
Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Amen.
782 SÉCULO V

Comentário à primeira Epístola de João 1


3249 Prólogo. Vossa santidade lembra-me que nós comentamos habitualmente o Evan-
gelho de São João, à medida que a leitura prossegue. Mas eis que chegam, entretanto,
as solenidades daqueles dias santos2, durante as quais é costume ler na Igreja certos
textos do Evangelho, todos os anos os mesmos, sem que seja possível substituí-los
por outros. Por essa razão, a sequência do comentário que estamos a fazer encontra-se
necessariamente interrompida por algum tempo, mas não abandonada.
Ao perguntar a mim mesmo qual o texto das Escrituras, em consonância com o
júbilo destes dias, que poderia, na medida em que Deus Se dignar dar-me a graça de o
fazer, explicar esta semana diante de vós, de modo a terminar o comentário em sete ou
oito dias, veio-me a ideia de escolher a Epístola de São João... A razão principal da
minha escolha é que esta Epístola... é, antes de mais, o elogio da caridade. João fala aí
longamente e quase sempre da caridade...

TRATADO II

3250 2. Toda a celebração é celebração nupcial: aí se celebram as núpcias da Igreja. O


Filho do Rei deve tomar esposa, o Filho do Rei é Ele próprio Rei; e os que estão
presentes às núpcias eles próprios são a esposa. Não é como nas núpcias carnais: aí,
os participantes são outros, a esposa é outra; na Igreja, os participantes, se estiverem
nas disposições queridas, tornam-se a Esposa. Com efeito, toda a Igreja é a Esposa de
Cristo.

A graça de Cristo e o pecado original 3

LIVRO II

3251 1. 1 Na questão do baptismo das crianças, lembrai-vos da prudência com que deveis
acolher as afirmações daqueles que não ousam recusar abertamente aos pequeninos o
banho da regeneração e da remissão dos pecados, apenas com receio de que os ouvidos
cristãos os não possam tolerar... Segundo aquilo que vós mesmos me escrevestes,
ouvistes o próprio Pelágio declarar... que se deviam, segundo eles, baptizar as crianças
com as mesmas palavras sacramentais que (se utilizam) para os adultos...
3252 4. 4 Como vedes, Celeste a0dmitia o baptismo das crianças, mas, de tal forma, que
se negava a reconhecer que o pecado do primeiro homem, lavado pelo banho da regene-
ração, passa para elas, embora também não se tenha atrevido a negá-lo...

1
A GOSTINHO DE H IPONA , In Ioannis epistulam ad Parthos (=PL 35, 1977-2062; SCh 75). Dez sermões sobre
a caridade, pronunciados durante as festas pascais de um ano entre 413-418.
2
As solenidades pascais.
3
A GOSTINHO DE H IPONA , De gratia Christi et de peccato originali libri II (=PL 44, 359-412; CSEL 42; BAC
50). Este tratado foi escrito em meados do ano 418.
AGOSTINHO DE HIPONA 783

5. 5 Mas, no escrito que ele publicou em Roma 4, e que ali foi alegado nas actas 3253
eclesiásticas, fala de tal modo sobre este assunto, que manifesta uma tomada de posi-
ção totalmente diferente. São estas as suas palavras: «Nós professamos que as crian-
ças devem ser baptizadas para a remissão dos pecados, segundo a lei da Igreja univer-
sal e o pensamento evangélico, porque o Senhor estabeleceu que o Reino dos Céus só
pode ser herança dos baptizados. Uma vez que não pode ser alcançado pelas forças
naturais, elas precisam de o obter da liberalidade da graça». Se ele não tivesse acres-
centado mais nada a este assunto, quem não haveria de acreditar que, ao dizer que é
preciso baptizar as crianças para a remissão dos pecados, ele admitia que também a
elas lhes são perdoados os pecados originais?
Daqui provém o facto de preferirmos reflectir com mais demora sobre as pala-
vras que, como escrevestes, vos respondeu Pelágio, isto é, «que as crianças também
são baptizadas com as mesmas palavras do sacramento com que o são os adultos», e
que vos encheram de alegria por terdes ouvido o que desejáveis.
40. 45 Por fim, os próprios sacramentos da Igreja, que ela enaltece com a autoridade 3254
duma tradição tão primitiva 5 , e que estes hereges, mesmo quando julgam que eles
são dados às crianças mais por simulação do que na realidade, não se atrevem, no
entanto, a rejeitá-los com desaprovação explícita. Digo, portanto, que os próprios
sacramentos da Igreja mostram suficientemente que também os próprios recém-
-nascidos são libertados do poder do Diabo pela graça de Cristo. Além da remissão dos
pecados, cujo mistério o baptismo realiza de maneira real e não enganadora, o exorcismo
e a exsuflação que o precedem, lutam neles contra o poder do inimigo; e é também a
este poder que eles pretendem renunciar pelas respostas que os seus padrinhos pronun-
ciam.
Todos estes sinais sagrados e claros das realidades escondidas mostram que eles
passam do inimigo perverso, à posse do melhor Redentor, que, tendo assumido a nossa
fraqueza, prendeu o forte para lhe arrebatar a sua presa, porque a fraqueza de Deus
não só é mais forte do que os homens, mas até do que os própios Anjos. Deste modo,
resgatando os pequenos juntamente com os grandes, nuns e noutros Deus declara o que
a Verdade disse através do Apóstolo, pois arranca do poder das trevas não só os de
idade já avançada, mas também os pequeninos, para os transferir para o reino do seu
Filho muito amado.
46 E ninguém se admire nem diga: «Por que é que a bondade de Deus cria o que
vai estar sujeito à perveraidade do Diabo»? Deus dá esta força às sementes da sua
criatura por aquela mesma bondade com que faz nascer o seu sol sobre bons e maus e
chover sobre justos e injustos. Por essa bondade abençoou também as sementes, ou
melhor, instituiu-as com a sua bênção. E esta bênção não foi tirada à natureza digna de
louvor pela culpa que merece castigo. Ainda que esta, pela justiça de Deus que a puniu,
tenha tido a capacidade para fazer com que os homens nascessem com a inclinação do
pecado original, não a teve, contudo, para fazer com que os homens não nascessem. Do
mesmo modo, os hábitos viciosos dos adultos, sejam eles quais forem, não lhes tiram a
condição de homens, mas neles permanece a obra boa de Deus, por maiores que sejam
as obras más dos ímpios... Deus condena o homem pelo vício, pelo qual a natureza foi
degradada, não pela natureza, que não foi destruída pelo vício.

4
In libello autem quem Romae edidit.
5
Denique ipsa Ecclesiae sacramenta, quae tam priscae traditionis auctoritate concelebrat.
784 SÉCULO V

Tratados sobre o Evangelho de João 1

TRATADO III

3255 2. Somos cristãos, e não é necessário insistir muito convosco nisto. Como tais
pertencemos a Cristo, segundo o indica a própria palavra. Devemos trazer na fronte o
sinal de Cristo. Nunca nos envergonharemos dele, se o trouxermos também no coração...
Os magos conheceram-no pela estrela. Foi-lhes dado este sinal celeste e brilhante, para
encontrar o Senhor. Ele, porém, não quis que o seu sinal, gravado na fronte dos fiéis,
fosse a estrela, mas a cruz...
3256 19. No Antigo Testamento... mandava-se guardar o sábado, e a nós também se manda
guardar o dia do Senhor dum modo mais perfeito, porque nos é pedido que o observemos
em espírito. Com efeito, os Judeus observavam o sábado servilmente... Não se diga
que eles observavam o sábado. Quem observa espiritualmente o dia do Senhor é o
cristão, pela abstenção do trabalho servil. Qual é o trabalho servil? É o pecado...
Portanto, também a nós se preceitua a observância do dia do Senhor, mas dum modo
espiritual...
3257 21. Quando vedes que abundam em bens temporais os que ofendem a Deus, os
vossos passos vacilam, e dizeis a vós mesmos: Eu amo a Deus, corro todos os dias
para a igreja, trago os joelhos cheios de calos à força de orar e estou sempre doente. E
muitos homens matam e roubam, e vivem na maior alegria e abundância e tudo lhes
corre bem...

TRATADO IV

3258 13. Há catecúmenos mais instruídos na doutrina da salvação do que muitos fiéis. É
para recear que eles digam consigo mesmos, a respeito do baptismo com que se perdoam
os pecados: «Que mais tenho eu que receber? Eu sou melhor do que este ou aquele
fiel». E assim vão recordando fiéis casados, ou indivíduos de condição simples, ou fiéis
que guardam as suas fortunas, afeiçoando-se a elas, ao passo que eles já distribuíram as
suas pelos pobres e, julgando-se melhores do que o baptizado, recusar-se-iam a vir ao
baptismo...
Todavia estão sobrecarregados com todos os pecados e se não vierem ao baptismo
da salvação onde se perdoam os pecados, apesar de todas as suas boas qualidades e
virtudes, não podem entrar no Reino dos Céus.

TRATADO V

3259 6. O Senhor era quem baptizava por meio dos seus ministros. Por outras palavras:
aqueles que os ministros do Senhor viessem a baptizar seriam baptizados pelo mesmo
Senhor, e não pelos ministros. Uma coisa é baptizar por ministério, e outra é baptizar
por poder. O baptismo tira a sua dignidade do poder de quem o dá, e não do poder de
quem o ministra... O baptismo do Senhor é tal qual é o Senhor. É divino, porque o
Senhor é Deus.

1
A GOSTINHO DE H IPONA , Tractatus in evangelium Ioannis (=PL 35, 1379-1976; CCL 36; BAC 139. 165;
Gráfica de Coimbra [trad. do P. Amado], 5 vol., Coimbra 1950-1954). A data de composição desta obra
é muito discutida. Pode ter acontecido entre 406 e 420.
AGOSTINHO DE HIPONA 785

7. Se o Senhor Jesus Cristo quisesse, podia conceder a qualquer dos seus servos o 3260
poder de baptizar em sua substituição, e transferir de Si para esse servo o poder de
baptizar, e dar ao baptismo transferido para o servo a eficácia que teria o baptismo
dado por Si. Mas não quis, para que a esperança dos baptizados estivesse n’Aquele
por quem se reconheciam baptizados. Não quis que o servo pusesse a esperança no servo.
Já o Apóstolo clamava, quando via que os homens queriam colocar nele a espe-
rança: Porventura Paulo foi crucificado por vós? Ou fostes baptizados em nome de
Paulo? O Senhor baptizou, como possuidor exclusivo do poder de baptizar, ao passo
que Paulo baptizou como ministro, e não como possuidor do mesmo poder...
O Senhor reservou para si o poder de baptizar, e deu aos servos apenas o
ministério, para que se não dissesse que havia tantos baptismos quantos os servos que
baptizam com o poder recebido do Senhor...
Até aquele que é mau pode exercer o ministério de baptizar; e, se os homens não
o conhecem, conhece-o Deus. Deus, que reservou a Si o poder, permite que se ministre
o baptismo pelo ministério do mau.
15. Se o ministro for justo, comparo-o com Paulo, comparo-o com Pedro. É com 3261
estes que eu comparo os ministros justos. São ministros verdadeiramente justos, não
buscam a sua glória... Porém, comparo com o Demónio o ministro soberbo. O dom de
Deus não é contaminado por ele; através dele corre límpido como uma torrente peque-
nina e vem à terra fértil...
A eficácia espiritual do sacramento é como a luz. Os que ela ilumina, recebem-na
pura, e não contaminada, embora passe pelos imundos.
Sejam perfeitamente justos os ministros; não procurem a sua glória, mas a
d’Aquele de quem são ministros...
18. O baptismo que era dado por Paulo e o que era dado por Pedro é de Cristo. Se foi 3262
dado por Judas, também era de Cristo... Os que Judas baptizou, baptizou-os Cristo...
19. Que sacramento tão santo! Não fica profanado, ainda que o administre um homicida!... 3263
20. Suponho que vos expus o que devia ser aprendido... Se pudesse dizer-se em 3264
poucas palavras o motivo por que isto foi ensinado por meio da pomba, expor-vo-lo-ia.
Mas isto exige muito tempo, e eu não quero fatigar-vos.
Assim como fui ajudado pelas vossas orações, para cumprir o que prometi,
também com a ajuda da vossa piedosa atenção, e das vossas piedosas súplicas, ser-
-vos-á declarado o motivo por que João só devia aprender, por meio da pomba, o que
aprendeu acerca do Senhor: que Esse é o que baptiza no Espírito Santo, e a nenhum
servo seu transmitiu o poder de baptizar.

TRATADO VI

1. Tive receio, assim vo-lo confesso, de que o frio vos tornasse frios para compa- 3265
recer. Porém, mostrastes, com a vossa frequência e assistência, que tendes espírito
fervoroso, e não duvido de que também orastes por mim, para que eu cumpra a missão
que devo realizar entre vós.
Tinha prometido dissertar hoje, em nome de Cristo, sobre este ponto: porque é
que Deus Se dignou mostrar o Espírito Santo sob a forma duma pomba. Não vo-lo
disse no último dia, porque a escassez do tempo impediu que eu abordasse esta
questão com certo desenvolvimento.
Nasceu para vós este dia para eu vo-lo explicar, e noto que vos juntastes em
maior multidão, levados pelo desejo de ouvir e por uma devoção piedosa. Deus satis-
faça completamente por meio da minha palavra a vossa expectativa. O vosso amor
786 SÉCULO V

trouxe-vos aqui. Que amastes vós? Se é a mim que amais, fazeis bem. Eu quero ser
amado por vós, mas não em mim. Amai-me em Cristo, pois é em Cristo que também eu
vos amo...
3266 4. Nem todo o que diz: «A paz esteja convosco» deve ser ouvido2...
3267 7. Antes da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo ao baptismo, João conhecia já que
Ele baptizava no Espírito Santo. Depois do baptismo, desceu a pomba, pela qual João
conheceu uma propriedade exclusiva do Senhor... O que João conheceu foi a particularidade
de não fazer passar a outro o poder de santificar, ainda que outro ministrasse o
baptismo... Embora muitos, tanto justos como injustos, houvessem de baptizar, a
santidade do baptismo só seria atribuída Àquele sobre quem desceu a pomba, e de
quem se disse: Esse é o que baptiza no Espírito Santo. Se Pedro baptiza, é Cristo que
baptiza; se Paulo baptiza, é Cristo que baptiza; se Judas baptiza, é Cristo que baptiza.

TRATADO VII

3268 6. Os espíritos maus inventam por si mesmos certas aparências de honra, para
enganar os que seguem a Cristo. Irmãos, esses mesmos que tentam seduzir por meio de
laços, encantamentos e expedientes do Inimigo, misturam o nome de Cristo com tais
invenções. Como já não podem seduzir os cristãos, juntam uma certa porção de mel,
quando querem envenená-los, para esconder o que é venenoso sob o que é doce; e essa
bebida mata quando ingerida. Chegou ao meu conhecimento que, em certa ocasião, o
sacerdote de Pileato costumava dizer: «Pileato é cristão». Porque se realizam tais
tentativas? Porque não podem seduzir doutra forma os cristãos.

TRATADO X

3269 1. Não deixeis de orar, pois tendes quem vos atenda. Quem vos atende está dentro
de vós. Não levanteis os olhos para qualquer monte, nem a face para as estrelas, para
o sol ou para a lua. Não julgueis que sois atendidos só pelo facto de orar sobre o mar.
Até deveis detestar essas orações.
Simplesmente deveis purificar o santuário do coração. Onde quer que estejais e
onde quer que oreis, quem atende está entro de vós, no mais escondido recanto, a que
se deu o nome de «seio»... Quem vos atende, não está fora de vós. Não O procureis
longe, nem vos eleveis, como se quisésseis tocá-l’O com as mãos. Se vos elevardes
demasiadamente, vireis a cair, e, se vos humilhardes, Ele virá ao vosso encontro.
Quem vos atende é o Senhor nosso Deus, Verbo de Deus, Verbo feito carne,
Filho do Pai, Filho de Deus, Filho do homem...

TRATADO XI

3270 3. Jesus respondeu: Em verdade, em verdade te digo, que não pode ver o reino de
Deus, senão aquele que nascer de novo. Portanto, Jesus confia-Se aos que nasceram
de novo. Todos os catecúmenos acreditaram em Jesus, mas Jesus não Se con-fiava a
eles. Aquelas palavras de Jesus aplicavam-se aos catecúmenos.
Ora prestai atenção. Se perguntarmos a um catecúmeno: «Acreditas em Cristo»?
Ele responde: «Acredito», e faz o sinal da cruz. Já traz na fronte a cruz de Cristo, e não
se envergonha da cruz do seu Senhor. Já acreditou no seu nome.

2
Será isto alusão ao beijo da paz, em que cada um desejava, em voz baixa, àquele que beijava: «A paz esteja
contigo ou convosco»?
AGOSTINHO DE HIPONA 787

Perguntemos ainda: «Comes a Carne e bebes o Sangue do Filho do homem»? Ele


não sabe o que lhe perguntamos, porque Jesus ainda Se lhe não confiou.
4. Como Nicodemos era deste número, foi ter com Jesus, mas de noite. A circunstância 3271
de tempo tem muito valor. Foi ao Senhor, de noite. Foi ter com a luz e foi por entre as
trevas... Os que renasceram pertenceram à noite, mas agora pertencem ao dia; foram
trevas e são luz. Jesus já Se lhes confia, e eles não vão ter com Jesus, de noite, como
Nicodemos; não buscam o dia nas trevas
Os catecúmenos trazem na fronte o sinal da cruz e já fazem parte da grande
família. Resta que, de servos, se tornem filhos. Como pertencem à grande família, já
são alguma coisa.
Quando é que o povo de Israel comeu o maná? Depois de ter passado o mar
Vermelho. Nota a significação que o Apóstolo apresenta do mar Vermelho: Não quero,
irmãos, que ignoreis que os nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem, todos
passaram através do mar e todos foram baptizados em Moisés, na nuvem e no mar 3.
Se a figura que é o mar tem tanto valor, qual não será o valor do baptismo? Se o
que se realizou em figura conduziu ao maná o povo que atravessou o mar, que não fará
Cristo com a verdade do seu baptismo, ao seu povo que o recebeu? Transporta os
crentes através do seu baptismo, depois de destruir todos os pecados...
Aonde os conduz, meus irmãos? Aonde os conduz por meio do seu baptismo
esse Jesus de quem Moisés era uma figura, quando realizava a travessia do mar?
Condu-los ao maná.
Que maná é esse? Ele mesmo o disse: Eu sou o pão vivo que desci do Céu 4.
Recebem o maná os fiéis que já atravessaram o mar Vermelho.
Que significa mar Vermelho? Que importância tem a circunstância de ser vermelho
e mar? O mar Vermelho figurava o baptismo de Cristo. É vermelho, porque foi consa-
grado pelo sangue de Cristo.
Aonde conduz, pois, os fiéis que já estão baptizados? Volto a dizê-lo: ao maná.
Sabe-se o que receberam os Judeus, o que recebeu o povo de Israel. Sabe-se o que Deus
fez chover do Céu para eles, e os catecúmenos não sabem o que os cristãos recebem.
Deveriam envergonhar-se de o não saber; atravessem o mar Vermelho e provarão o maná,
para que assim como acreditaram no nome de Jesus, assim também Jesus Se lhes confie.
5. Atendei, meus irmãos, à resposta daquele que de noite foi ter com Jesus. Foi ter 3272
com Jesus; e porque foi de noite, fala lá do meio das trevas da sua carne. Não compreende
o que ouve da boca do Senhor, não compreende o que ouve da parte da luz que ilumina
todo o homem que vem a este mundo. O Senhor disse-lhe: Não pode ver o reino de
Deus, senão aquele que nascer de novo. Disse-Lhe Nicodemos: Como pode o homem
nascer, sendo velho5.
É o Espírito que lhe fala, e ele aprecia dum modo carnal o que ouve. Saboreia a
sua maneira carnal de pensar, porque ainda não saboreia a carne de Cristo. Quando o
Senhor disse: Se alguém não comer a minha carne e não beber o meu Sangue, não terá
a vida em si, escandalizaram-se alguns dos que O seguiam e disseram lá consigo: Dura
é esta linguagem, e quem a pode ouvir6?
Julgavam que Jesus dizia que O podiam cozer, cortado como um cordeiro, e
comê-l’O, e aborrecendo-se com estas palavras, afastaram-se, para não mais O seguir.
O Evangelista observa que o Senhor ficou só com os Doze, que Lhe disseram: Senhor,

3
1 Cor 10, 1-2.
4
Jo 6, 51.
5
Jo 3, 3-4.
6
Jo 6, 61.
788 SÉCULO V

abandonaram-Te. E o Senhor disse-lhes: Também vos quereis ir embora? Com esta


pergunta, mostrou que lhes era necessário, embora não necessitasse deles.
Ninguém julgue que atemoriza Cristo quando se diz cristão; Cristo parece tor-
nar-Se mais feliz, se fordes cristãos. Se o não fordes, não advirá mal algum para
Cristo... Se estiverdes afastados de Deus, sereis inferiores, e, se estiverdes unidos a
Deus, Deus não é maior por isso. Não Se torna mais feliz por vossa causa, mas vós sem
Ele tornais-vos infelizes. Crescei, portanto n’Ele, e não fujais como se Ele Se extin-
guisse se Lhe faltardes.
Se vos aproximardes d’Ele, sereis fortalecidos, se vos afastardes, morrereis. Ele,
no entanto, permanece imutável em perfeição, se vos aproximais, e permanece do
mesmo modo, se vos afastais.
Quando o Senhor disse aos discípulos: Também vos quereis ir embora? Pedro,
que viria a ser a pedra, respondeu em nome de todos: Senhor, para quem havemos de
ir? Vós tendes palavras de vida eterna. Pedro saboreou bem a carne do Senhor. Todavia,
o Senhor deu a necessária explicação. Quando disse: O que não come a minha carne e
não bebe o meu Sangue, não terá a vida em si, para que eles não entendessem isto dum
modo carnal, acrescentou: É o Espírito quem dá a vida; a carne não serve de nada; as
palavras que vos disse são espírito e são vida7.

TRATADO XV

3273 1. É consolador para vós dizer-se que o evangelista João voa alto à semelhança da
águia. Por meio do meu ministério e com o auxílio do Senhor, já foram explicadas
muitas coisas do seu Evangelho. O que vou dizer sob a protecção de Deus, muitos vão
ouvi-lo mais para recordar do que para aprender. Mas não deve haver indiferença da
vossa parte. Leu-se que o Senhor Jesus falava com a mulher samaritana, junto do poço
de Jacob, e é precisamente esta lição que eu trago nas mãos para vos explicar. Estão
encerrados nela grandes mistérios e símbolos.
3274 3. Talvez causem impressão as palavras: Jesus baptizava mais do que João, acres-
centando-se depois: Todavia não era propriamente Jesus que baptizava, mas os seus
discípulos. Que quer isto dizer? Baptizava porque purificava, e não baptizava porque
não derramava a água. Os discípulos exerciam o ministério visível, e Jesus prestava o
auxílio da força divina. Portanto Jesus ainda baptiza. E enquanto se ministrar o baptismo,
é Jesus quem baptiza. O homem pode aproximar-se com segurança do ministro inferior,
pois tem um Mestre superior.
3275 4. Que é o baptismo de Cristo? É a ablução da água com a palavra. Se não se usa
água, não há baptismo, se não se pronuncia a palavra, não há baptismo.
3276 8. Foi do lado de Cristo que dormia, que jorraram os sacramentos da Igreja. A
fraqueza de Cristo é a razão de ser da nossa força.
3277 10. Veio uma mulher: Esta mulher é figura da Igreja, ainda não justificada, mas já a
caminho da justificação. É disto que iremos tratar. A mulher veio sem saber o que ali
a esperava; encontrou Jesus, e Jesus dirigiu-lhe a palavra. Vejamos a razão por que
veio uma mulher da Samaria para tirar água. Os samaritanos não pertenciam ao povo
judeu, não eram do povo escolhido. Faz parte do simbolismo da narração que esta
mulher, figura da Igreja, tenha vindo dum povo estrangeiro; porque a Igreja havia de vir
dos gentios, dos que não eram da raça judaica.
Escutemo-nos a nós mesmos nas palavras desta mulher, reconheçamo-nos nela,
e nela dêmos graças a Deus por nós. Era uma figura, não a realidade; começou por ser

7
Jo 6, 63.
AGOSTINHO DE HIPONA 789

figura e veio a tornar-se realidade. De facto, ela acreditou n’Aquele que desejava fazer
dela figura de nós mesmos. Veio para tirar água. Vinha simplesmente tirar água, como
costumam fazer os homens e as mulheres.
11. Disse-lhe Jesus: Dá-Me de beber. Os seus discípulos tinham ido à cidade com- 3278
prar mantimentos. Respondeu-Lhe então a samaritana: Como é que tu, sendo judeu,
me pedes de beber, a mim que sou samaritana? Os Judeus, na verdade, não se dão
com os samaritanos. Bem vedes que se trata de estrangeiros. Os Judeus, de modo
nenhum usavam os cântaros dos samaritanos. Como esta mulher trazia consigo um
cântaro para tirar água, ficou admirada por um judeu lhe pedir de beber, coisa que não
costumavam fazer os Judeus. Mas Aquele que pedia de beber à mulher tinha sede da sua fé.
12. Repara agora n’Aquele que pede de beber. Jesus respondeu-lhe: Se conhecesses 3279
o dom de Deus e quem é Aquele que te diz: Dá-Me de beber, tu é que Lhe pedirias, e Ele
te daria água viva. Pede de beber, e promete dar de beber. Apresenta-Se como neces-
sitado que espera receber, mas é rico para dar em abundância. Se conhecesses o dom de
Deus... O dom de Deus é o Espírito Santo. Jesus fala ainda veladamente à mulher, mas
pouco a pouco entra em seu coração, e a vai ensinando. Que pode haver de mais suave
e bondoso do que esta exortação?
16. Qual é a água que Ele há-de dar, senão aquela de que está escrito: Em Vós está a 3280
fonte da vida? E não podem ter sede os que se inebriam com a abundância da vossa casa.
17. O Senhor prometia o alimento e a abundância do Espírito Santo. Mas ela não 3281
compreendia.

TRATADO XVIII

10. Regressai ao coração. Vede o que aí sentis acerca de Deus, porque está aí a 3282
imagem de Deus. No homem interior habita Cristo, no homem interior sois renovados
à imagem de Deus. Reconhecei na sua imagem o autor dela.

TRATADO XXI

8. Congratulemo-nos e dêmos graças a Deus, porque somos, não somente cristãos, 3283
mas... Cristo. Compreendeis, irmãos, estais convencidos de que a graça de Deus reside
em nós? Admirai, regozijai-vos; tornámo-nos Cristo. Ele é a cabeça, nós somos os
membros. O Cristo total é Ele e nós... Quem é a cabeça e quem são os membros? É
Cristo e a Igreja. Seríamos presumidos e soberbos tomando para nós esta dignidade, se
ela não fosse prometida por Cristo...

TRATADO XXVI

4. Ninguém vem a Mim, senão aquele que é atraído por meu Pai. Não julgues que 3284
és atraído contra a tua vontade; a alma também é atraída pelo amor... Parece-me pouco
dizer que somos atraídos livremente: é com prazer que sentimos a força dessa atracção.
Que significa ser atraído com prazer?... Trata-se de um certo apetite da alma, que
nos torna saboroso o pão do Céu. Se o poeta pôde dizer: «Cada um é atraído pelo
próprio apetite», não pela necessidade, mas pelo prazer, não pela obrigação, mas pelo
gosto, não poderemos dizer nós, com maior razão, que o homem é atraído para Cristo,
porque põe as suas delícias na verdade, na bem-aventurança, na justiça, na vida eterna,
e sabe que Cristo é tudo isso?
Apresenta-me alguém que ame e compreenderá o que afirmo. Apresenta-me
alguém que deseje, que tenha fome, que se sinta peregrino e exilado neste deserto, que
790 SÉCULO V

tenha sede e suspire pela força da pátria eterna; apresenta-me um destes homens e
compreenderá o que digo. Mas, se falo a um coração frio, esse não pode compreender
nada do que estou a dizer.
3285 5. Oferece nozes a uma criança, e verás como vem ao teu encontro, correndo para
onde é atraída; é atraída pelo amor, é atraída sem coacção física, é atraída pelos vínculos
do coração. Ora, se estas delícias e estes gestos terrenos, quando se oferecem a quem
os ama, exercem tão forte atracção, «porque cada um é atraído pelo próprio apetite»,
como não há-de atrair-nos o amor de Cristo, que é a revelação do Pai? Que pode a alma
desejar mais ardentemente que a verdade? De que outra coisa pode sentir-se o homem
mais faminto? Para que deseja ele ter são o paladar interior, senão para discernir a
verdade, para comer e beber a sabedoria, a justiça, a verdade, a eternidade?
3286 11. Eu sou o pão da vida... Meus irmãos, pelo que diz respeito à morte visível e
corporal, será verdade que havemos de morrer, embora comamos o pão que desce do
Céu? Sob este aspecto, eles morreram, e nós também havemos de morrer; terá lugar a
morte visível e carnal do nosso corpo.
Quanto à morte que o Senhor quer que temamos, e da qual morreram os pais
destes, há a notar que Moisés comeu o maná, comeu o maná Aarão, comeu o maná
Fineias, comeram o maná muitos que agradaram ao Senhor, e esses não morreram da tal
morte. Porquê? Porque compreenderam a natureza do alimento espiritual, sentiram fome
espiritualmente, alimentaram-se espiritualmente, para serem saciados espiritualmente.
Nós actualmente também recebemos um alimento visível, mas uma coisa é o
sacramento, e outra a virtude do sacramento. Quantos são os que participam do altar
e morrem! E morrem precisamente porque recebem o sacramento! Por isso o Apóstolo
diz: Come e bebe para si a condenação. O bocado que o Senhor deu a Judas não era
veneno para ele. Contudo recebeu-o, e, logo que o recebeu, entrou nele o Inimigo.
Judas não recebeu nada mau, mas sendo mau, recebeu mal o bem.
Vede, portanto, irmãos, comei espiritualmente o pão celeste, trazei a inocência
para junto do altar. Embora todos os dias se cometam pecados, não venhais com
pecados mortais. Antes de vos aproximardes do altar, reparai no que dizeis: Perdoai-nos
as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Se perdoais,
perdoar-se-vos-á. Podeis aproximar-vos com segurança. O que tomais é pão, não é
veneno. Mas vede se perdoais, porque se não perdoardes, mentis, e mentis Àquele que
não podeis enganar. Podeis mentir a Deus, mas não podeis enganar a Deus. Ele sabe
tudo o que fazeis. Vê o vosso interior, examina o vosso interior, perscruta o vosso
interior, julga o vosso interior, e condena-vos ou recompensa-vos pelo que se passa no
vosso interior...
3287 12. Este é o pão que desceu do Céu. O maná representou este pão, e o mesmo
sucedeu com o altar de Deus. O maná e o altar foram mistérios, diversos no seu
aspecto exterior, iguais no objecto que representavam... Todos comeram do mesmo
alimento espiritual8. O alimento espiritual era o mesmo, mas o corporal era diferente,
porque eles comeram o maná, e nós comemos outro maná. O deles era espiritual, assim
como o nosso. Isto diz respeito aos nossos pais, e não aos pais deles. Diz respeito
àqueles a quem nós nos assemelhamos, e não àqueles a quem eles se assemelharam.
O Apóstolo acrescenta: E todos beberam da mesma bebida espiritual. Eles
usaram duma bebida, e nós usamos doutra, diferente na aparência, mas, pelo que diz
respeito à virtude espiritual, tinham a mesma significação. Como usavam eles da mes-
ma bebida? Bebiam do rochedo espiritual que os seguia, e esse rochedo era Cristo.
Donde provinha o pão, provinha também a bebida. Cristo em símbolo era o rochedo...

8
1 Cor 10, 1.
AGOSTINHO DE HIPONA 791

Este é o pão que desceu do Céu, para que, o que dele comer não morra. Mas isto
refere-se à virtude do sacramento, e não ao elemento sensível do sacramento. Refere-se
ao que o come interiormente, e não ao que o come exteriormente. Refere-se ao que o
recebe no coração, e não ao que o tritura com os dentes.
13. Quereis viver do espírito de Cristo? Permanecei no Corpo de Cristo. O meu 3288
corpo viverá do vosso espírito? O meu corpo vive do meu espírito, e o vosso corpo
vive do vosso espírito. O Corpo de Cristo não pode viver senão do espírito de Cristo.
Tal é o motivo por que o apóstolo Paulo, falando deste pão, diz: Visto que há um só
pão, nós, embora muitos, formamos um só Corpo, porque participamos todos de um
só pão 9. Ó sacramento da piedade, ó sinal da unidade, ó vínculo da caridade!
Quem quer viver tem onde viva e donde viva: aproxime-se, creia, incorpore-se na
Igreja, para ser vivificado. Não renuncie à união com os outros membros, não seja
membro podre a merecer corte, não passe pela vergonha de ser membro aleijado; seja
membro belo, perfeito e são; conserve-se ligado ao corpo, viva para Deus e de Deus;
trabalhe agora na terra, para depois reinar no Céu.
15. O sacramento da unidade do Corpo e do Sangue de Cristo confecciona-se na 3289
mesa do Senhor diariamente em certos lugares, e noutros com determinados intervalos,
e recebe-se da mesa do Senhor. Uns encontram nele a vida, outros a ruína. Mas, o que
se oculta sob o sinal sensível do sacramento, seja qual for o que participa do sacramento,
é fonte de vida para todo o homem, e para nenhum é fonte de ruína.
18. O Senhor explica os efeitos do seu sacramento; diz o que é comer o seu Corpo e 3290
beber o seu Sangue. Quem come a minha carne e bebe o meu Sangue, permanece em
Mim e Eu nele. Tomar aquela comida e aquela bebida é permanecer em Cristo, é possuir
Cristo, que permanece no que recebe aquele alimento.
Quem não permanece em Cristo, e aquele em quem Cristo não permanece, é
indubitável que não come espiritualmente a sua carne, nem bebe o seu Sangue, embora
triture com os dentes, dum modo carnal e visível, o sacramento do Corpo e do Sangue
de Cristo. Mais; come e bebe, para a sua condenação, este grande e excelso sacramento,
porque presume aproximar-se do sacramento de Cristo, estando imundo...

TRATADO XXVII

1. Quem come a minha carne e bebe o meu Sangue, permanece em Mim e Eu nele. 3291
O sinal que dá a conhecer se alguém comeu e bebeu é este: se permanece em Cristo e
Cristo permanece nele; se habita em Cristo e Cristo habita nele; se adere a Cristo e não
é abandonado. Em palavras repassadas de mistério ensinou-nos e aconselhou-nos a
que façamos parte do seu Corpo, sendo Ele a nossa cabeça, e nós os seus membros.
Consegui-lo-emos, comendo a sua carne e não deixando jamais a sua unidade.
Estavam presentes muitos que não compreendiam, e esses ficaram escandalizados.
Ouvindo as palavras do Senhor, não pensavam senão na carne que eles mesmos eram.
Ora o Apóstolo diz, e diz com verdade: Saborear segundo a carne é morte 10... Não
devemos, pois, saborear a carne de Cristo segundo a carne...
2. Esta linguagem é dura: quem a pode ouvir? Se os discípulos acharam dura esta 3292
linguagem, que sucederia com os inimigos? Todavia era necessário dizer-se o que não
era compreendido por todos. O segredo de Deus deve excitar em nós atenção, e não
deve excitar oposição. Estes deram às coisas um sentido de harmonia com o seu desejo.
Convenceram-se de que Jesus podia dispor as coisas de modo a proceder como os

9
1 Cor 10, 17.
10
Cf. Rom 3, 6.
792 SÉCULO V

homens e que viria a distribuir, pelos seus crentes, a carne de que o Verbo estava
revestido, depois de a ter cortado aos pedaços...
3293 6. As palavras que Eu vos disse são espírito e vida. Irmãos, nós dissemos que o
Senhor, ao declarar que devíamos tomar o seu Corpo em comida e o seu Sangue em
bebida, ensinou que permaneceríamos n’Ele e Ele em nós. Permanecemos n’Ele en-
quanto somos seus membros; e Ele permanece em nós enquanto somos seu templo. A
unidade é o que nos reúne, de modo a sermos seus membros; ela tira a sua força da caridade...
O espírito é que dá vida; o espírito é o que torna vivos os membros. Mas o
espírito só pode tornar vivos os membros que se encontram no corpo animado por Ele.
Ó homens, porventura o espírito que está em vós, e do qual recebeis a natureza de
homem, vivifica algum membro que se encontre separado da vossa carne?
Eu digo que o vosso espírito é a vossa alma. Esta só vivifica os membros que
estão na vossa carne. Se cortais um só que seja, já este não é vivificado pela vossa alma,
porque já não faz parte da unidade do vosso corpo. Disse-vos isto, para que amemos
a unidade e receemos a separação. O cristão nada deve recear tanto como ser separado
do Corpo de Cristo. Se chega a separar-se do Corpo de Cristo, não é seu membro; se
não é seu membro, não é animado pelo seu Espírito...
3294 11. O Senhor fez uma exposição completa acerca da sua carne e do seu Sangue. Falou
da promessa da vida eterna, reservada aos que receberem este mesmo Corpo e Sangue,
e quis que permaneçam em Si os que comerem e beberem a sua carne, e também quis
permanecer neles.
Os que não tinham fé não compreenderam o sentido das suas palavras e escanda-
lizaram-se, porque saboreavam dum modo carnal o que só podia tomar-se no sentido
espiritual... E tudo isto sucedeu para nosso proveito, a fim de não recebermos a carne
de Cristo e o Sangue de Cristo no sacramento, do mesmo modo que o recebem muitos
que são maus. Era necessário que nós comêssemos e bebêssemos de modo que entrássemos
na participação do Espírito do Senhor, e permanecêssemos no Corpo do Senhor como
membros e animados do seu Espírito, e não nos escandalizássemos pelo facto de
muitos se alimentarem materialmente dos sacramentos, vindo, por fim, a cair em tor-
mentos eternos.
Agora o Corpo místico de Cristo contém uma mistura como sucede na eira...

TRATADO XXX

3295 1. A lição que vos acabei de ler é uma sequência da lição do santo Evangelho que
ontem vos expliquei. Falava o Senhor, e ouviam-n’O discípulos e Judeus. O Senhor
falava a verdade, e ouviam-n’O os verdadeiros e os mentirosos. O Senhor ensinava a
caridade, e ouviam-n’O os amigos e os inimigos. O Senhor ensinava o bem, e ouviam-
-n’O os bons e os maus. Ouviam, mas o Senhor notava a distinção... Ouçamos o
Evangelho como se o próprio Senhor estivesse diante de nós para nos falar... O Senhor,
que é a verdade, está no alto, mas também está junto de nós. O corpo do Senhor, no
qual foi operada a Ressurreição, só pode permanecer num lugar, mas a sua verdade está
difundida por toda a parte. Ouçamos, pois, o Senhor e digamos das suas palavras o que
Ele Se dignar conceder-nos.

TRATADO XXXV

3296 8. Nós, cristãos, em comparação com os infiéis, já somos luz, como diz o Apóstolo:
Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; procedei como filhos da luz. No
entanto, em comparação com aquela luz que esperamos alcançar, ainda é noite o dia em
que nos encontramos.
AGOSTINHO DE HIPONA 793

9. Quando vier nosso Senhor Jesus Cristo, então já não serão necessárias as lâmpadas 3297
nesse dia: não ouviremos ler o Profeta, não se abrirá o livro do Apóstolo, não buscaremos
o testemunho de João, não teremos necessidade do próprio Evangelho, que para nós se
tinham acendido como lâmpadas na noite deste mundo, a fim de que não andássemos às
escuras.
Suprimidas todas estas coisas, porque já não precisamos da sua luz, e prescindindo
dos próprios homens de Deus por quem nos foram comunicadas, porque também eles
verão juntamente connosco aquela luz verdadeira e esplendorosa, que veremos nós
então? Com que se alimentará o nosso espírito? Com que se alegrará a nossa vista?
Peço-vos encarecidamente: amemos juntos, corramos juntos o caminho da fé;
desejemos aquela pátria celeste, suspiremos pela pátria celeste; sintamo-nos peregrinos
neste mundo. Que veremos então? Fale agora o Evangelho: No princípio era o Verbo, e
o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus. Então chegarás àquela fonte, da qual
recebeste apenas umas gotas de orvalho; então verás directamente aquela luz cujos
raios, por caminhos oblíquos e sinuosos, foram enviados às trevas do teu coração;
então serás purificado, para ver essa luz e suportar o seu fulgor. Caríssimos, diz São
João, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser.
Mas sabemos que, na altura em que se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque
O veremos como Ele é.
Eu sinto que os vossos afectos se elevam comigo para as coisas do alto. Chegou
a hora de eu fechar este livro e de vós voltardes cada um para sua casa. Passámos uns
bons momentos gozando desta luz comum, deste júbilo comum, desta alegria comum; e
agora, ao separarmo-nos uns dos outros, tenhamos cuidado em não nos separarmos d’Ele.

TRATADO XL

1. Já ouvistes muitas coisas do Evangelho segundo João, que vedes nas minhas 3298
mãos. Por graça de Deus temo-las explicado, consoante as nossas forças, salientando-se
perante vós principalmente o facto de ter este Evangelista preferido falar da divindade
do Senhor, segundo a qual é igual ao Pai e é o Filho único de Deus. Por isso, João foi
comparado à águia. Nenhuma ave se apresenta a voar mais alto. Escutai agora atentamente
o que vem a seguir, e que explicaremos conforme o Senhor no-lo permitir.

TRATADO XLI

3. Amen significa verdade, e, todavia, não se lhe dá este sentido, podendo aliás ser 3299
dado: Falo-vos verdade. Nem o texto grego lhe deu este sentido, nem o texto latino,
pois a palavra Amen nem é grega nem é latina, mas é hebraica.
A palavra Amen ficou sem tradução, para ser respeitada em virtude do véu de
mistério que a envolve. Não foi para ser negada que se deixou sem tradução, mas para
não se tornar banal...

TRATADO XLVII

2. Quando te sentares à mesa com uma autoridade, considera com atenção quem 3300
está diante de ti, e põe a mão na garganta se sentires muito apetite11. A mesa do
príncipe sabeis vós qual é. Serve-se aí o Corpo e o Sangue de Cristo. Quem se aproxima
de tal mesa, deve preparar os mesmos manjares. Que quer dizer: Deve preparar esses

11
Prov 23, 1. A expressão significa: «Sabendo que deverás retribuir, preparando um jantar semelhante».
794 SÉCULO V

manjares? Assim como Ele deu a vida por nós, também nós devemos dar a vida pelos
nossos irmãos, a fim de edificar o povo e afirmar a fé...

TRATADO XLVIII

3301 2. As Encénias eram a festa da dedicação do templo. A palavra grega kaino/n sig-
nifica novo. Quando é consagrada alguma coisa nova, chama-se a isso Encénias. Este
termo já se tornou vulgar. Se alguém se apresenta revestido de uma túnica nova, diz que
se pratica o acto de enceniar...

TRATADO LV

3302 1. Irmãos, a palavra Páscoa não é, como alguns julgam, uma palavra grega, mas é
hebraica. Todavia deu-se no emprego desta palavra uma coincidência providencial nas
duas línguas. Em grego, sofrer diz-se pasxhei=n, pelo que pascha foi interpretado no
sentido de «paixão», como se Páscoa viesse de passio. Mas, na língua original, isto é
em hebraico, Páscoa significa passagem. Com efeito, o povo de Deus celebrou pela
primeira vez a Páscoa quando, ao fugir do Egipto, «passou» através do mar Vermelho.
Aquela figura profética já teve a sua realização, quando Cristo foi conduzido como
cordeiro ao matadouro e quando os nossos dintéis foram ungidos com o seu sangue,
ou seja, quando o sinal da cruz foi colocado como selo na nossa fronte, e, assim, fomos
libertados da escravidão e da ruína do Egipto e realizámos a mais libertadora das
passagens, quando passámos do Demónio para Cristo, do tempo passado para o seu
reino futuro. Passemos, pois, para Deus que é imutável, para não passarmos (ao nada)
com o mundo que passa.
Louvando a Deus por esta graça que nos foi concedida, o Apóstolo diz: Foi Ele
que nos libertou do poder das trevas e nos transferiu para o Reino do seu amado
Filho12. O santo Evangelista, explicando-nos, por assim dizer, a nós, aquela palavra
Páscoa, que em latim, como já disse, significa passagem, diz: Antes da festa da Páscoa,
Jesus, sabendo bem que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai13,
etc. Eis a Páscoa, eis a passagem. Donde e para onde? Deste mundo para o Pai. Na
cabeça foi dada aos membros uma esperança: a de seguirem com certeza Aquele que
passou 14 .

TRATADO LXXX

3303 3. Vós já estais limpos, graças à palavra que vos disse. Porque não afirmou:
“Estais limpos graças ao baptismo em que fostes lavados”, e afirmou: graças à pala-
vra que vos disse? Porque mesmo na água é a palavra que purifica.
Suprime a palavra, e a água é simplesmente água. Mas, se juntamos a palavra ao
elemento, há sacramento15, que é também ele como que uma palavra visível... 16 Donde
recebe a água esta grande força, que, ao mesmo tempo que toca o corpo, lava o coração?

12
Col 1, 13.
13
Jo 13, 1.
14
Spes membris in capite data est, quod essent illo transeunte sine dúbio secuturi.
15
Accedit verbum ad elementum, et fit sacramentum.
16
São Tomás de Aquino escreverá: «É comum a todos os sacramentos o consistir em palavras e em elementos
corporais, do mesmo modo que em Cristo, autor dos sacramentos, há o Verbo feito carne. E como a carne de
Cristo é santificada e tem o poder de santificar pelo Verbo que lhe está unido, assim os elementos corporais
dos sacramentos são santificados e têm o poder de santificar pelas palavras que os acompanham» (S. Tomás
de Aquino, De articulis fidei et Ecclesiae sacramentis, n. 614).
AGOSTINHO DE HIPONA 795

Vem da palavra, não enquanto pronunciada, mas enquanto acreditada. Na palavra, uma
coisa é o som transitório, e outra, o efeito que permanece.
É esta a palavra da fé que pregamos. Para que ela tenha a força de purificar, é
necessário, sem dúvida, a consagração produzida pelo baptismo...
Não se pode atribuir, pois, a purificação ao simples elemento que corre e cai, se
o não acompanhar a palavra. A palavra da fé tem um valor tal na Igreja de Deus, que
purifica o crente, o oferente, o suplicante, o que é baptizado, ainda que se trate de uma
criança recém-nascida, embora esta não possa acreditar com o coração em ordem à
justiça, nem possa confessar com a boca em ordem à salvação.
E tudo isto sucede por virtude da palavra a que se referiu o Senhor quando
declarou: Vós já estais limpos, graças à palavra que vos disse.

TRATADO LXXXIV
1. A mesa do grande senhor é a mesa em que se recebe o Corpo e o Sangue d’Aquele 3304
que deu a sua vida por nós. Sentar-se a ela significa aproximar-se com humildade.
Olhar com atenção o que está diante é tomar consciência da grandeza deste dom. E
considerar que temos de preparar coisas semelhantes significa o que já disse antes:
assim como Cristo deu a sua vida por nós, também nós devemos dar a nossa vida pelos
irmãos. É o que diz o apóstolo Pedro: Cristo sofreu por nós, deixando-nos o exemplo,
para que sigamos os seus passos. Isto significa preparar coisas semelhantes. Assim
fizeram os santos mártires, movidos por um amor ardente; e, se não quisermos celebrar
inutilmente as suas memórias e sentar-nos sem proveito à mesa do Senhor onde eles se
saciaram, é necessário que, como eles, preparemos coisas semelhantes.
Ao altar, não fazemos memória dos mártires do mesmo modo que dos outros
defuntos que descansam em paz, isto é, não oramos por eles, mas antes pedimos para
que eles orem por nós, a fim de seguirmos o seu exemplo; e o seu exemplo foi dar a
maior prova de caridade, segundo a palavra do Senhor. Eles apresentaram aos seus
irmãos o mesmo que tinham recebido da mesa do Senhor.
2. Não queremos dizer com isto que possamos igualar Cristo Senhor, ainda que, 3305
por seu amor, sofrêssemos até ao testemunho do nosso sangue. Ele podia dar a sua
vida e tomá-la de novo; nós não podemos viver quando queremos e morremos mesmo
contra a nossa vontade. Ele, ao morrer, matou em Si a morte; nós somos libertados da
morte pela sua morte. A sua carne não conheceu a corrupção; a nossa, só depois de
passar pela corrupção, há-de ser por Ele revestida da incorruptibilidade, no fim dos
tempos. Ele não precisou de nós para nos salvar; nós, sem Ele, nada podemos fazer.
Ele é para nós como a videira para os ramos; nós, separados d’Ele, não podemos ter a vida.
Finalmente, ainda que os irmãos morram pelos irmãos, nenhum mártir derramou
o seu sangue para remissão dos pecados de seus irmãos, como Ele fez por nós; isto não
foi um exemplo para imitarmos, mas um motivo para agradecermos. Os mártires, ao
derramarem o sangue pelos irmãos, não apresentaram senão o que tinham recebido da
mesa do Senhor. Puderam imitá-l’O na morte, mas não puderam imitá-l’O na redenção.
Nas outras coisas que eu mencionei, e ainda não pude dizer tudo, fica a notar-se que o
mártir de Cristo está a grande distância de Cristo... Não queiras igualar-te a Ele, sendo,
como és, pobre. Na tua oração deves ser um mendigo quotidiano do perdão dos pecados...

TRATADO CXVIII

5. Que diremos nós da cruz, que certamente foi feita e colocada sobre Cristo pelos 3306
inimigos e pelos ímpios?... Qual é o sinal de Cristo que todos conheceram, senão a cruz
de Cristo? É preciso que este sinal seja traçado sobre a fronte dos crentes, sobre a água
796 SÉCULO V

pela qual eles são regenerados, sobre o óleo do crisma com que são ungidos, sobre o
sacrifício com que se alimentam; de outro modo, nada disto será devidamente realiza-
do... É por meio da cruz de Cristo, que os malvados fabricaram, que todo o bem nos é
aplicado na celebração dos seus sacramentos.

TRATADO CXXIV

3307 5. Mesmo depois de se perdoarem os pecados, o homem vê-se obrigado a sofrer,


pois, antes de suportar o sofrimento, apareceu o pecado. É mais longa a pena do que
a culpa, para que se não julgasse que a culpa tinha sido leve pelo facto de ter terminado
a pena com a terminação da culpa.
Ainda pesa sobre o homem a pena temporal, apesar de não se encontrar já
manchado com a culpa que o tornou réu de condenação eterna. E isto com o fim, ou de
se lhe mostrar o castigo que lhe era devido, ou de o corrigir durante esta vida precária,
ou de o exercitar na paciência de que tem necessidade. É esta a condição dos dias da
nossa vida...
A Igreja conhece duas vidas que lhe foram anunciadas e confiadas por Deus: uma
é a vida vivida na fé, a outra na visão; uma no tempo da peregrinação na terra, a outra
nas moradas eternas; uma no trabalho, outra no descanso; uma no exílio, outra na
pátria; uma no esforço da actividade, outra no prémio da contemplação...
A primeira está representada pelo apóstolo Pedro, a segunda pelo apóstolo
João. A primeira desenvolve-se completamente na terra, até que o mundo termine, e
então encontrará o seu fim; a outra prolonga-se para além do fim do mundo, e não tem
fim no mundo que há-de vir... Agora, suportamos os males deste mundo, na terra dos
mortais; depois, contemplaremos os bens do Senhor, na terra dos vivos...
3308 7. Mas ninguém ouse separar os dois Apóstolos insignes... O que sucedeu com
eles, sucede com toda a santa Igreja, esposa de Cristo: também ela lutará no meio das
tentações do mundo, para alcançar a felicidade futura. Pedro e João representavam as
duas vidas, simbolizando cada um deles um só género de vida; mas ambos viveram esta
vida temporal, animados pela fé, e ambos hão-de gozar eternamente da outra vida, pela
contemplação.
Pedro, o primeiro dos Apóstolos, recebeu as chaves do Reino dos Céus, com o
poder de ligar e desligar os pecados, para que fosse o timoneiro de todos os santos...
E João, o Evangelista, reclinou a cabeça no peito de Cristo, para exemplo dos mesmos
santos, a fim de lhes indicar o porto seguro daquela vida, divinamente tranquila e bem-
-aventurada.
Todavia não é só Pedro, mas a Igreja universal, que liga e desliga os pecados. E
não é só João que bebe da fonte do peito do Senhor... Não é só ele que descobriu os
tesouros do coração de Cristo, mas a todos foi aberta pelo mesmo Senhor a fonte do
Evangelho, para que, por toda a face da terra, todos bebessem dele, cada um segundo
a sua capacidade.
AGOSTINHO DE HIPONA 797

A Trindade 1

LIVRO III

4. 10 Chamamos Corpo e Sangue do Senhor apenas aquelas coisas, de entre os 3309


frutos da terra que, consagradas pela oração mística, tomamos, em memória da Paixão
do Senhor, para nossa salvação espiritual. Embora se chegue àquela forma visível pela
intervenção da mão dos homens, é santificada para se tornar num tão grande sacramento
pela acção invisível do Espírito de Deus. Deus actua por meio de todas aquelas con-
tribuições temporais que têm lugar no dito mistério, a começar pelos próprios ministros...

LIVRO IV

14. 19 Não há nenhum sacerdote tão justo e tão santo como o Filho único de Deus, 3310
que não precisa de oferecer primeiro sacrifícios pelo seu pecado... E que vítima mais
agradável a Deus poderia o homem escolher que a sua própria carne humana? E que
pureza seria capaz de purificar o homem das suas imundícies, senão a carne imune de
todo o contágio de concupiscência carnal, nascida no seio e do seio de uma Virgem? E
que carne mais agradável ao que oferece e ao que recebe a oferenda do que a carne do
nosso sacrifício tornada Corpo do nosso Sacerdote? Em todo o sacrifício há quatro
elementos: aquele que oferece, a quem se oferece, o que se oferece e por quem se
oferece. O único e verdadeiro Mediador, que nos reconcilia com Deus por meio deste
sacrifício pacífico, permanece em unidade com Aquele a quem oferece, torna-se uma
mesma coisa com aquele por quem se oferece, e aquilo que se oferece é aquele que oferece.

LIVRO VIII

4. 7 Qualquer que tenha sido o rosto humano do Senhor Jesus, Ele é único, e, no 3311
entanto, cada um o imagina segundo a sua fantasia e todos de maneiras muito diferentes...
5. 7 De facto, nós não o conhecemos, como também não conhecemos o rosto da 3312
Virgem Maria. E aquilo que, na nossa fé em Jesus Cristo nosso Senhor, tem algum valor
para a salvação, não é a imagem que nós fazemos d’Ele, imagem provavelmente muito
distante da verdade, mas sim o facto de sabermos que Ele era um verdadeiro homem.
Nós não sabemos qual era o seu aspecto corporal, como também não sabemos como
era Maria, mas sabemos que Ele Se fez homem e nasceu da Virgem.

LIVRO XIII

2. 5 A fé torna crentes os que a possuem e infiéis os que a não têm... Apesar de 3313
chegar até nós por intermédio do ouvido, não pertence ao sentido da audição, porque
não é som, nem tão pouco aos olhos desta carne, porque não é cor nem forma corpórea...,
nem a qualquer dos sentidos, porque é fruto do coração e não do corpo. A fé não está
fora de nós, mas no íntimo do nosso ser, e ninguém a vê no próximo, mas em si mesmo.
A sua existência pode ser fingida e podemos imaginá-la onde não existe. Cada um vê a
fé em si próprio, ao passo que apenas crê que ela existe nos outros, mas não a vê. E crê
com tanto mais firmeza que ela existe, quanto melhor conhece os frutos que a fé
costuma produzir pela caridade... Dizemos com toda a verdade que a fé impressa nos

1
A GOSTINHO DE H IPONA , De Trinitate libri XV (=PL 42, 819-1098; CCL 50-50A; BAC 39). Entre 399-420.
798 SÉCULO V

corações dos crentes provém de uma determinada doutrina. Mas uma coisa é o que se
crê, e outra coisa a fé pela qual se crê. O que se crê são verdades com existência no
passado, no presente ou no futuro...

LIVRO XV

3314 28. 51 Senhor nosso Deus, cremos em Vós Pai e Filho e Espírito Santo. A Verdade
não teria dito: Ide, baptizai todos os povos em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo, se não fôsseis Trindade... Com o olhar da minha intenção fixado nesta regra da
fé, busquei-Vos segundo as minhas forças e na medida em que Vós me fizestes poder,
e desejei ver, com a minha inteligência, o que a minha fé acreditava... Senhor meu Deus,
minha única esperança, escutai-me para que não ceda ao desalento e deixe de buscar-Vos,
mas deseje sempre com ardor o vosso rosto. Dai-me forças para Vos procurar, Vós que
me fizestes encontrar-Vos e me destes a esperança de um conhecimento mais perfeito.
Diante de Vós está a minha firmeza e a minha fraqueza: curai esta, conservai aquela.
Diante de Vós está a minha ciência e a minha ignorância: onde me abristes a porta,
acolhei aquele que entra; onde a fechastes, abria-a àquele que chama. Fazei que me
lembre de Vós, Vos compreenda e Vos ame. Aumentai em mim estes dons, até que me
transformeis completamente.
Sei que está escrito: No muito falar não faltará o pecado2. Permiti, Senhor, que
eu não fale senão para pregar a vossa palavra e cantar os vossos louvores. Então
evitarei o pecado e a minha vida terá mérito, apesar do número dos meus discursos...
Livrai-me, Senhor, desta torrente de palavras que suporto interiormente na minha
pobre alma, que está na vossa presença e confia na vossa misericórdia. Porque as
minhas palavras não se calam, mesmo quando a minha voz guarda silêncio. Mesmo
assim, se eu apenas pensasse no que Vos agrada, não Vos pediria para me libertardes
deste mar de palavras. Mas muitos dos meus pensamentos são, Vós bem o sabeis,
pensamentos de homem, pensamentos vãos. Dai-me a graça de não consentir neles, ou
ao menos de os reprovar, quando me agradam, e de não cair neles como se dormisse.
Não tenham poder algum sobre mim, para influenciar a minha conduta. Esteja em
segurança o meu juízo e a minha consciência bem abrigada, graças ao vosso socorro.
Um homem sábio, ao falar de Vós no seu livro, conhecido hoje pelo nome de
Eclesiástico, disse: Nós multiplicamos os discursos, e não chegamos a nada; o resu-
mo de todas as palavras é Ele3. Quando tivermos chegado até Vós, acabarão todos
estes discursos, com os quais não chegamos a nada. Vós permanecereis único para
serdes tudo em todos, e nós entoaremos então um cântico eterno, louvando-Vos numa
só voz e em plena unidade convosco.
Senhor, Deus uno e Deus Trindade, conheçam os que são vossos tudo aquilo
que, acerca de Vós e com o vosso auxílio, eu disse nestes livros. E se alguma coisa neles
há da minha lavra, perdoai-me, Senhor, e perdoem-me os que são vossos. Amen.

2
Prov 10, 19.
3
Eccli 43, 29.
AGOSTINHO DE HIPONA 799

Contra Juliano 1

LIVRO VI

5. 11 Embora não esteja ao alcance da razão nem se explique com palavras, conti- 3315
nua sempre a ser verdade aquilo que há muito se proclama como fé católica genuína, e
que é objecto de fé em toda a Igreja.

Enquirídio a Lourenço 2
66. 17 Há muitas coisas nesta vida que parece serem esquecidas e não vingadas com 3316
qualquer tormento; mas o seu castigo é reservado para depois. Não é por acaso que
aquele dia é com propriedade chamado o dia do Juízo, dia em que virá o juiz dos vivos
e dos mortos. Assim como, pelo contrário, algumas coisas são aqui vingadas, se, no
entanto, forem perdoadas, de facto não hão-de prejudicar na vida futura. Por isso, diz
o Apóstolo a respeito de certas penas temporais, infligidas nesta vida aos que pecam,
cujos pecados são apagados a fim de não serem reservados para o fim: Se nos exami-
narmos a nós mesmos, não seremos julgados. Quando o Senhor nos julga, castiga-
nos, para não sermos condenados com este mundo 3.
110. Não se pode negar que as almas dos defuntos são aliviadas pela piedade dos seus 3317
parentes vivos, quando se oferece por eles o sacrifício do Mediador ou quando se
fazem esmolas na Igreja. Mas estas coisas aproveitam àqueles que, quando viviam,
mereceram que isto lhes aproveitasse depois. Com efeito, há pessoas cujo modo de
viver nem é tão bom que não precise destas coisas depois da morte, nem tão mau que
não lhe aproveitem; mas também há pessoas cujo modo de viver é tão bom que não
precisam destas coisas, ou tão mau que de nada lhe aproveitam quando vierem a partir
desta vida. Portanto, é aqui que o homem adquire todo o mérito pelo qual poderá ser
aliviado ou oprimido depois da morte. Ninguém espere merecer para si, diante de
Deus, depois da morte, o que aqui negligenciou.
Estas coisas que a Igreja pratica com tanta frequência para socorrer os defuntos,
não se opõem à afirmação apostólica em que se diz: Todos havemos de comparecer
perante o tribunal de Cristo, a fim de cada um receber conforme aquilo que fez de bem
ou de mal, enquanto estava no corpo 4. Cada um, enquanto vive no seu corpo, pode
também adquirir o mérito de que estas coisas lhe possam aproveitar. Mas elas não são
úteis a todos... por causa da diversidade de vida que cada um teve enquanto viveu. Por
isso, os sacrifícios quer do altar quer de qualquer espécie de esmolas que se oferecem
por todos os baptizados defuntos, não têm todos a mesma finalidade: pelos muito
bons, são acções de graças; pelos não muito maus, têm por fim aplacar a justiça divina;
pelos muito maus, mesmo que não sejam de nenhum proveito para os defuntos, são de
alguma consolação para os vivos. Àqueles a quem aproveitam, ou lhes aproveitam para
a remissão plena, ou, pelo menos, para que a condenação se lhes torne mais tolerável.

1
A GOSTINHO DE H IPONA , Contra Iulianum libri VI (=PL 44, 641-874). É a obra mais extensa e importante
da controvérsia pelagiana, escrita por volta de 421.
2
AGOSTINHO DE HIPONA, Enchiridion ad Laurentium ou De fide, spe et caritate liber I (=PL 40, 231-290; CCL 46;
BAC 30). É uma síntese breve e clara do pensamento teológico de Agostinho, escrita por volta de 421.
3
1 Cor 11, 31 32.
4
Rom 14, 10; 2 Cor 5, 10.
800 SÉCULO V

A piedade para com os defuntos 1

3318 1. 1 Há já algum tempo que sou devedor de carta a tua santidade, venerável Paulino,
irmão no episcopado, desde que me escreveste por meio dos emissários da nossa
religiosíssima filha Flora, perguntando-me se é proveitoso a um defunto sepultar o seu
corpo junto da memória de algum santo... Acrescentas, além disso, que não se pode
esquecer que a Igreja universal tem o costume santo de pedir pelos defuntos...
2 O Apóstolo diz: Todos havemos de comparecer diante do tribunal de Cristo,
para que cada um receba o prémio ou o castigo segundo o que tenha feito no seu
corpo, quer o bem, quer o mal2. Esta afirmação do Apóstolo lembra que é preciso fazer
antes da morte aquilo que possa ser proveitoso depois... Enquanto se vive neste
mundo, há que procurar levar um modo de vida que permita adquirir méritos, que
tornem os defuntos capazes de ser socorridos depois, em proporção com o que fize-
ram pelos outros... Nem a Igreja nem a piedade dos fiéis pedem em vão pelos defuntos,
tudo quanto lhes pode inspirar o zelo da religião. E, no entanto, cada um receberá
segundo a medida do que fez por meio do seu corpo..., porque o Senhor dará a cada um
segundo as suas obras. Para que possa ser proveitoso a alguém depois da morte o que por
ele se aplica, é preciso que tenha adquirido méritos durante a vida que levou no seu corpo.
3 Lemos nos Livros dos Macabeus que foi oferecido um sacrifício pelos defuntos.
Apesar de em nenhum outro lugar do Antigo Testamento se ler coisa semelhante, não
é pequena a autoridade da Igreja universal, que se revê neste costume quando, nas
orações que o sacerdote oferece ao Senhor, nosso Deus, sobre o altar, também tem o
seu momento especial a comemoração dos defuntos.
3319 2. 4 Tudo o que diz respeito às honras fúnebres, à qualidade da sepultura ou à
solenidade do funeral, constitui mais uma consolação dos vivos do que um alívio dos
defuntos. Se a um homem sem religião lhe servisse de proveito uma sepultura
dispendiosa, ao homem piedoso seria um prejuízo uma sepultura comum, ou o não ter
nenhuma. Brilhantes funerais aos olhos humanos deu a multidão dos seus servidores
ao famoso rico purpurado. Mas muito mais deslumbrantes aos olhos do Senhor foram
aqueles que os Anjos ofereceram ao pobre coberto de úlceras, ao qual não colocaram
num alto túmulo de mármore, mas depositaram no seio de Abraão.
3320 3. 5 Não se devem, contudo, desprezar e abandonar os corpos dos defuntos, sobre-
tudo os dos santos e dos crentes, dos quais o espírito se serviu como de instrumentos
e vasos para toda a espécie de boas obras... O próprio Senhor, que devia ressuscitar ao
terceiro dia, elogiou como boa a acção daquela mulher piedosa e recomendou que fosse
divulgado o facto de ela ter derramado perfume precioso sobre os seus membros, em
vista da sua sepultura. E com elogio se citam no Evangelho aqueles que O desceram da
cruz com delicadeza, O envolveram respeitosamente e O colocaram no sepulcro...
Estes textos... indicam-nos que a providência de Deus se interessa também pelos
corpos dos mortos e que lhe agradam todos estes deveres de piedade para com eles,
porque se prestam para reafirmar a nossa fé na ressurreição... Mas, quando faltam
essas atenções aos corpos dos cristãos, e isso não acontece por culpa dos vivos, por
não poderem fazer-lho, tal facto não constitui uma desgraça para os mortos...
3321 4. 6 Apesar disto ser uma grande verdade, também é próprio dos bons sentimentos
humanos, a respeito dos funerais dos seus, escolher junto das memórias dos santos um
lugar destinado à sepultura dos corpos... No entanto, ainda que os vivos encontrem

1
A GOSTINHO DE HIPONA , De cura pro mortuis gerenda liber I (=PL 40, 591-610; CSEL 41; BAC 551). Esta
obra deve ter sido escrita em Hipona nos anos 424-425.
2
2 Cor 5, 10.
AGOSTINHO DE HIPONA 801

consolação ao manifestar a sua piedade para com os seus defuntos, não vejo que isto
sirva de sufrágio aos mortos, a não ser que, ao recordarem onde foram sepultados os
corpos dos seus entes queridos, os encomendem com orações aos próprios santos,
para que os ajudem como intercessores diante do Senhor. Mas isso podem-no fazer
certamente, mesmo que não estejam sepultados em lugares santos. Chamam-se memó-
rias ou monumentos os sepulcros que se tornaram insignes, apenas porque trazem à
memória aqueles que foram subtraídos aos olhos dos vivos, para que não se esqueçam
deles... Quando, por qualquer motivo, não for possível sepultar os corpos, ou sepultá-los
em lugares santos, nunca se devem omitir os sufrágios pelos espíritos dos mortos. A
Igreja fá-lo por todos os defuntos na assembleia cristã e católica, mesmo que não diga
os seus nomes, como uma comemoração geral, de modo que, quando os pais, os filhos,
os parentes ou os amigos descuram este dever, a única e piedosa mãe comum a todos
tem presentes e por todos suplica. Mas, se faltam estes sufrágios, que se fazem com
rectidão de fé e verdadeira piedade pelos mortos, creio que não será de nenhum proveito
para os seus espíritos que os corpos sem vida tenham sido postos em lugares santos.
5. 7 Portanto, quando a mãe cristã, de que me falaste, desejou que o corpo do seu 3322
filho cristão defunto fosse deposto na basílica de um mártir, se ela acreditou que a sua
alma seria ajudada pelos méritos do mártir, esta fé foi já uma súplica, e foi-lhe útil, se
algo lhe pode aproveitar. E, quando ela vai com o pensamento até ao sepulcro e pede
pelo seu filho com insistência, aquilo que ajuda o espírito do defunto não é o lugar do
corpo morto, mas o afecto materno revivido pela recordação do lugar... Efectivamente,
os que rezam fazem com o seu corpo o que deve ser feito na oração: ajoelham-se,
estendem as mãos ou prostram-se no solo; e, se fazem outro qualquer gesto visivelmente,
embora Deus conheça a sua vontade invisível e a intenção do seu coração e não tenha
necessidade destes sinais exteriores para que a consciência humana esteja presente
diante d’Ele, no entanto, o homem estimula-se deste modo a orar e a suplicar com mais
humildade e fervor. E não sei porquê, quando estes gestos do corpo não se podem fazer
senão com um movimento interior da alma, o movimento interior que os realiza aumenta
com os mesmos gestos de novo exteriorizados visivelmente... Mas, mesmo que não se
possa depor o ser querido onde a alma religiosa preferiria, não devem por esse motivo
omitir-se os sufrágios necessários na oração pelos mortos. Porque, onde quer que
esteja ou não esteja colocado o corpo de um morto, há-de procurar-se o repouso para
o seu espírito...
12. 15 Um homem chamado Curma, pobre curial do município de Túlio, próximo de 3323
Hipona, que era magistrado daquele lugar e simples lavrador, caiu doente e, sem senti-
dos, esteve na cama como morto durante alguns dias...
Depois de se curar, veio a Hipona. Estava perto a Páscoa. Ele inscreveu-se entre
os outros competentes, desconhecido de mim como dos demais, pois não se preocupou em
contar aquela visão nem a mim nem a nenhum dos meus presbíteros. Foi baptizado e,
terminados os dias santos, voltou a sua casa.
Durante dois anos ou talvez mais não tive conhecimento de nada disto. A primeira
pessoa que me falou destas coisas foi um amigo meu e também seu, que, sentado à
minha mesa, conduziu a conversa para esse assunto. Depois, eu insisti e consegui que
ele próprio, estando presente, mo contasse diante de homens honrados, seus
concidadãos, que confirmaram tudo: a sua curiosa doença, o seu estado de morte
durante muitos dias...
Assim concluo que, tal como ele viu o seu baptismo e me viu a mim próprio e, em
Hipona, a basílica, o baptistério, não na sua própria realidade, mas em imagens algo
semelhantes às coisas, do mesmo modo também viu os outros, alguns ainda vivos, sem
que os mesmos vivos o soubessem... Porque não haveria de ter visto os mortos sem
que eles o soubessem?
802 SÉCULO V

3324 18. 22 Estamos convencidos de que as súplicas solenes feitas pelos defuntos nos
sacrifícios oferecidos no altar, as orações e as esmolas, chegam aos mortos pelos quais
manifestamos preocupação, embora não aproveitem a todos aqueles por quem se
fazem, mas só aos que em vida fizeram méritos para os aproveitar. Mas, como nós não
podemos saber quais eles são, é conveniente fazê-las por todos os baptizados, para
que não seja esquecido nenhum daqueles aos quais podem e devem chegar esses benefícios.
Com efeito, é melhor que tais bens sobrem àqueles que não podem ser prejudicados ou
favorecidos, do que faltem aos que podem precisar deles... Os cuidados postos na
deposição do corpo não são um salvo-conduto de salvação, mas um dever humano,
segundo o sentimento natural...

A cidade de Deus 1

LIVRO II
3325 28. Ao verem que, pelo nome de Cristo, os homens... passam da perniciosíssima noite
da impiedade para a luz salutar da piedade, os iníquos e ingratos... lastimam-se e mur-
muram. E isto porque as multidões afluem às igrejas: formam uma casta assembleia com
uma separação honesta de sexos2; ali aprendem como se deve viver virtuosamente no
tempo para, depois da morte, se merecer a felicidade na eternidade; ali, na presença de
todos e de um lugar elevado3, se proclama a Sagrada Escritura; os que a não cumprem
ouvem-na para castigo. Se, por acaso, ali acorrem alguns zombadores de tais preceitos,
toda a sua petulância em repentina mudança se desvanece ou é reprimida pelo temor e
pelo respeito. Efectivamente, ali nada de vergonhoso, nada de vicioso é proposto para
ser visto ou para ser imitado; ali se inculcam os preceitos e se contam os milagres do
verdadeiro Deus; ali se louvam os seus dons ou se solicitam as suas graças.

LIVRO V

3326 15. A verdadeira piedade é que conduz a essa sociedade, que só se manifesta quando
se tributa ao único Deus verdadeiro o serviço religioso a que os Gregos chamam latreia.

LIVRO VII

3327 32. Não só as profecias propriamente ditas e que estão escritas, não só os preceitos
da vida, que regem os costumes e a religião, e estão contidos nessas Escrituras, mas
também os ritos sagrados, os sacerdócios, o tabernáculo ou o templo, os altares, os
sacrifícios, as cerimónias, os dias de festa e as outras instituições pertinentes ao
serviço que a Deus é devido, e que os Gregos chamam latrei/a , tudo era figura e
anúncio de acontecimentos que já se realizaram, como acreditamos, se realizam ainda, como
estamos a ver, e continuarão a realizar-se, como esperamos, na vida eterna dos fiéis em
Cristo.

1
A GOSTINHO DE H IPONA , De Civitate Dei libri XXII (=PL 41, 13-804; CCL 47-48; CSEL 40; Garnier, Paris
1960; Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1991-2000). Esta obra foi escrita entre 413 e 426.
2
Nas igrejas, os homens estavam dum lado e as mulheres do outro, sobretudo por causa dos inconvenientes
que resultavam do facto de o beijo da paz ser dado na boca.
3
O ambão.
AGOSTINHO DE HIPONA 803

LIVRO VIII

27. Nós não instituímos para os mártires nem templos, nem sacerdócio, nem ritos 3328
sagrados, nem sacrifícios, porque, para nós, eles não são deuses: o Deus deles é o
nosso Deus. É certo que veneramos as suas memórias como santos homens de Deus,
que, até à morte combateram pela verdade, para fazerem conhecer a verdadeira religião,
provando a falsidade, a mentira do paganismo. Se antes deles homens houve que
partilharam de tais sentimentos, por medo esses homens tais sentimentos reprimiam.
Quem dentre os fiéis já alguma vez ouviu um sacerdote, de pé, diante do altar,
mesmo diante de um altar construído para a glória e o culto de Deus sobre o corpo de
um santo mártir, dizer nas suas orações: «Ofereço-te este sacrifício a ti Pedro, a ti
Paulo, a ti Cipriano», pois é diante das suas memórias que o sacrifício é oferecido ao
Deus, que fez os homens e os mártires, associando-os aos seus santos Anjos na glória
celeste? É também nessa solenidade que nós damos graças ao verdadeiro Deus pela sua
vitória e nos exortamos pela renovação da sua memória a partilharmos das suas coroas
e das suas palmas, invocando a protecção de Deus.
Todas as homenagens trazidas pelos fiéis aos túmulos dos mártires são, portanto,
testemunhos prestados à sua memória, não são ritos nem sacrifícios oferecidos aos
mortos, como se deuses fossem.
Alguns transportam para lá mesmo alimentos, o que não fazem os melhores
cristãos e, na maior parte das terras, não há esse costume. Aliás, os que o fazem,
depois de colocarem os alimentos sobre o túmulo e de recitarem as suas orações,
levam-nos para os comerem ou mesmo para os distribuírem pelos indigentes, desejando
apenas santificá-los pelos méritos dos mártires, em nome do Senhor dos mártires. Mas
quem conhece o único sacrifício dos cristãos, que também lá é oferecido, sabe que não
se trata de sacrifícios oferecidos aos mártires.
Nós não veneramos os nossos mártires nem com honras divinas nem com crimes
humanos, como fazem os pagãos com os seus deuses. Nós não lhes oferecemos sacri-
fícios nem transformamos as torpezas em cerimónias sagradas...
Não ousem comparar, seja no que for, tais deuses, mesmo que os tomem por
deuses, aos nossos santos mártires que, mesmo assim, não tomamos por deuses. Nós
não instituímos sacerdotes em sua honra, nós não lhes oferecemos sacrifícios, o que
seria inconveniente, abusivo, ilícito, pois só a Deus estão reservados...

LIVRO X

3. Nós devemos a este Deus (único e verdadeiro), o serviço que, em grego, se cha- 3329
ma latrei/a; devemos-lh’O, quer nos mistérios do culto4 quer em nós próprios. Porque
todos, em conjunto e cada um, somos o seu templo. Com efeito, Ele digna-Se habitar
quer na concórdia de todos nós quer em cada um em particular; não está mais em todos
do que em cada um; não Se alarga pela massa nem Se diminui pela participação.
Quando se eleva para Ele, o nosso coração torna-se altar seu: o seu Unigénito é o
sacerdote pelo qual O aplacamos; oferecemos-Lhe vítimas cruentas quando, pela sua
verdade, lutamos até ao sangue; oferecemos-Lhe suavíssimo incenso quando, na sua
presença, estamos abrasados em religioso e santo amor; dedicamos-Lhe e devolvemos-Lhe
os dons que nos concede e a nós próprios; publicamos e consagramos a memória dos
seus benefícios em festas solenes, celebradas em dias certos, com receio de que, no
decorrer do tempo, se infiltre em nós um ingrato esquecimento; oferecemos-Lhe no

4
Sacramenta.
804 SÉCULO V

altar do nosso coração um sacrifício de humildade e de louvor, ao fogo duma fervente


caridade. Para O vermos como pode ser visto e para nos unirmos a Ele, purificamo-nos
de toda a mancha do pecado e dos maus desejos e consagramo-nos ao seu nome.
Realmente Ele é a fonte da nossa felicidade e a meta de todas as nossas aspirações.
Elegendo-O, ou melhor reelegendo-O – pois tínhamo-l’O perdido por negligência –,
reelegendo-O a Ele (religentes – donde vem, diz-se, a palavra religião), nós caminha-
mos para Ele por amor para descansarmos quando a Ele chegarmos: e assim seremos
felizes porque em tal meta alcançaremos a perfeição.
3330 5. Quem será tão falho de senso que julgue que Deus tem necessidade das coisas
que nos sacrifícios se Lhe oferecem?... Nós acreditamos que Deus não precisa de
animais do rebanho nem de qualquer outro bem corruptível e terrestre, mas sim da
justiça do homem. Todo o culto legítimo que se Lhe presta, aproveita ao homem e não
a Deus. Ninguém irá dizer que prestou serviço à fonte quando bebe, ou à luz quando vê.
Nos sacrifícios em que os Patriarcas imolavam animais..., convém que se veja
apenas a figura das obras que hoje se realizam entre nós... O sacrifício visível é o
sacramentum, isto é, o sinal sagrado do sacrifício invisível5.
3331 6. O verdadeiro sacrifício é, pois, toda a obra que contribui para nos unir a Deus
numa união santa6... É por isso que a própria misericórdia que nos leva a socorrer o
nosso semelhante, se não é praticada por amor de Deus, não é um sacrifício. Porque,
embora celebrado ou oferecido pelo homem, o sacrifício nem por isso deixa de ser uma
coisa divina, pelo que os antigos latinos lhe davam também esse nome. Consequentemente,
o homem consagrado em nome de Deus e a Deus oferecido, é ele mesmo um sacrifício,
na medida em que morre para o mundo a fim de viver para Deus...
Também o nosso próprio corpo, quando o mortificamos pela temperança, é um
sacrifício se, como deve ser, o fazemos por Deus, sem fazermos dos nossos membros
armas de iniquidade para o pecado, mas sim armas de justiça para Deus...
Verdadeiros sacrifícios são também as obras de misericórdia, quer para connosco
quer para com o próximo, quando as referimos a Deus. As obras de misericórdia não se
praticam com outro fim que não seja: libertarmo-nos da infelicidade e seguidamente
conseguirmos a felicidade... Daqui se conclui, com segurança, que toda esta cidade
resgatada, isto é, a assembleia e a sociedade dos santos, é oferecida a Deus como um
sacrifício universal, pelas mãos do Sumo Sacerdote que, para de nós fazer o corpo de
uma tal cabeça, a Si mesmo Se ofereceu por nós na sua Paixão sob a forma de escravo.
Foi, efectivamente, esta a forma que Ele ofereceu, foi nela que Ele Se ofereceu, porque
é graças a ela que Ele é Mediador, é nela que é sacerdote, é nela que é sacrifício.
Por isso nos exortou o Apóstolo a que ofereçamos os nossos corpos como hóstia
viva, santa, agradável a Deus, como homenagem racional que Lhe devemos, e a não nos
acomodarmos ao mundo presente, mas a transformarmo-nos, adquirindo uma nova
mentalidade, para podermos discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom e Lhe é
agradável e perfeito, porque o sacrifício na sua totalidade somos nós próprios. E o
Apóstolo continua: Assim, em virtude da graça que me foi dada, digo a todos e a cada
um de vós que não se sinta acima do que deve sentir-se; mas sinta-se preocupado em
ser sensato, de acordo com a medida da fé que Deus distribuiu a cada um. É que, como
num só corpo, temos muitos membros, mas os membros não têm todos a mesma
função, assim acontece connosco: os muitos que somos formamos um só corpo em
Cristo, mas, individualmente, somos membros que pertencem uns aos outros7.

5
Sacrificium ergo visibile invisibilis sacrificii sacramentum, id est sacrum signum est.
6
Ut sancta societate.
7
Rom 12, 3-5.
AGOSTINHO DE HIPONA 805

Tal é o sacrifício dos cristãos, muitos somos um só corpo em Cristo. E este


sacrifício a Igreja não cessa de o celebrar assiduamente no sacramento do altar bem
conhecido dos fiéis; nele se mostra que ela própria é oferecida no que oferece 8.
20. Por isso o verdadeiro Mediador, que, ao tomar a forma de escravo, Se tornou 3332
Mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, sob a forma de Deus aceita
o sacrifício com o Pai, com o qual é um só Deus; mas sob a forma de escravo, preferiu
ser sacrifício a aceitá-lo, para que ninguém aproveitasse essa oportunidade para sacri-
ficar a qualquer criatura. É por isso que Ele é sacerdote: é Ele quem oferece, é Ele a
oblação. Desta realidade quis que seja sacramento o sacrifício quotidiano da Igreja que,
sendo corpo da mesma cabeça, aprendeu a oferecer-se a si própria por intermédio
d’Ele. Sinais variados e múltiplos deste verdadeiro sacrifício eram os antigos sacrifícios
dos santos, sendo eles figura deste único sacrifício, como se fossem precisas muitas
palavras para dizer uma só realidade para ser bem ponderada sem causar enfado. Com
este supremo e verdadeiro sacrifício cessaram todos os falsos sacrifícios9.
23. Os filósofos escolhem livremente os seus termos e nas questões mais difíceis de 3333
compreender não receiam ofender os ouvidos religiosos. Mas a nós convém que se fale
conforme uma regra precisa, não aconteça que a liberdade nas palavras gere uma opi-
nião ímpia acerca das coisas que elas designam.

LIVRO XIII

7. Para aqueles que, mesmo sem terem recebido o banho da regeneração, morrem 3334
por confessarem a Cristo, a sua morte tem tanto poder para lhes remir os pecados
como se fossem lavados pela fonte sagrada do baptismo. Realmente, Aquele que disse:
Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus 10, abre uma
excepção por este preceito não menos genérico: Todo aquele que se declarar por Mim,
diante dos homens, também Me declararei por ele diante do meu Pai que está no Céu11;
e noutra passagem: Quem perder a sua vida por minha causa, há-de encontrá-la12.

LIVRO XIV

18. A própria união conjugal que se realiza em conformidade com os preceitos das 3335
leis matrimoniais 13 para gerar filhos, não procura, embora seja lícita e honesta, um
quarto afastado e sem testemunhas? Um cônjuge, antes de começar as carícias ao outro
cônjuge, não despede todos os seus familiares e até os próprios paraninfos e todos os
que qualquer parentesco autorizava a estarem presentes? É certo que, como diz o
maior orador romano, como alguém lhe chamou, todos os actos legítimos pretendem
realizar--se em plena luz, isto é, pretendem ser conhecidos; mas este acto tão legitimamen-
te realizado, embora aspire a ser conhecido, envergonha-se, todavia, se for contempla-
do. Quem é que, de facto, ignora o que entre si fazem os cônjuges para gerarem filhos?
Para isso é que, com tanta solicitude, se realiza o casamento. Contudo, quando de trata
de gerar os filhos, aos próprios filhos, se algum existe já, não se lhes permite que a isto
assistam. Desta forma este acto legítimo pretende chegar à luz dos espíritos mas
recusa-se a chegar à luz dos olhos...

8
Hoc est sacrificium Christianorum: multi unum corpus in Christo. Quod etiam sacramento altaris
fidelibus noto frequentat ecclesia, ubi ei demostratur, quod in ea re, quam offert, ipsa offeratur».
9
Huic summo veroque sacrifício cuncta sacrificia falsa cesserunt.
10
Jo 3, 5.
11
Mt 10, 32.
12
Mt 16, 25.
13
Matrimonialium praescripta tabularum.
806 SÉCULO V

LIVRO XVIII

3336 51. A Igreja é uma estrangeira em terra estrangeira, que prossegue a sua peregrina-
ção no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus.

LIVRO XIX

3337 23. O melhor e mais importante sacrifício que este Senhor tem somos nós próprios.
Este sacrifício é a sua cidade, cujo mistério celebramos nas nossas oblações, que os
fiéis conhecem... Os oráculos do Céu declararam, pela boca dos Profetas hebraicos,
que cessariam as vítimas oferecidas pelos Judeus como sombras do futuro, e que as
nações, desde o Nascente ao Poente, ofereceriam um único sacrifício, como já vemos
que o fazem...

LIVRO XXI

3338 25. Só aquele que está na unidade do corpo de Cristo, isto é, na união dos membros
cristãos, cujo sacramento os fiéis, quando comungam, costumam receber no altar,
come verdadeiramente o Corpo de Cristo e bebe o Sangue de Cristo. Por conseguinte,
os hereges e cismáticos, que estão separados da unidade deste corpo, podem receber o
mesmo sacramento, mas não de maneira que lhes sirva de proveito, antes de muito
dano..., porque não estão no vínculo da paz, que se exprime naquele sacramento...
Quando Cristo diz: Aquele que come a minha carne e bebe o meu Sangue,
permanece em Mim e Eu nele, mostra-nos que comungar não é comer o sacramento14,
mas comer a verdadeira realidade15 do Corpo de Cristo e beber o seu Sangue, que é ficar
em Cristo, para que Cristo fique em quem O come. De facto, Ele disse estas coisas
como se dissesse: “Aquele que não permanece em Mim, e em quem Eu não permaneço,
não diga ou imagine que come o meu Corpo ou bebe o meu Sangue”. Não permanecem
em Cristo os que não são seus membros, e não são membros de Cristo os que se tornam
membros duma meretriz, a não ser que deixem de ser esse mal pela penitência e voltem
a este bem pela reconciliação.

LIVRO XXII
3339 8. Há entre nós um homem de família tribunícia chamado Hespério. Ele possui, na
região de Fusala, uma propriedade chamada Zubedi. Ao descobrir que a sua casa sofria
investidas perigosas dos espíritos malignos, que atormentavam os animais e os escravos,
pediu aos nossos presbíteros, na minha ausência, que algum deles fosse lá para os
expulsar com as suas orações. Um deles foi lá e ofereceu ali o sacrifício do Corpo de
Cristo, rezando com todo o ardor para que cessasse aquele flagelo, o que aconteceu por
misericórdia de Deus...
Chegou a Páscoa, e no próprio domingo, de manhã, na presença de muito povo,
o mesmo rapaz orava junto das grades do lugar santo, onde estavam as relíquias do
mártir. De repente caiu prostrado e ficou como se estivesse a dormir, mas sem tremer,
como lhe acontecia durante o sono. Os presentes ficaram atónitos, uns cheios de medo,
outros lamentando-se. Alguns queriam levantá-lo, mas outros impediram-nos, dizendo
que era melhor esperar o resultado. Sem ninguém esperar, levantou-se, já sem tremer.
Tinha sido curado e permanecia de pé, olhando para os que o olhavam.

14
O sinal exterior.
15
Sed res vera.
AGOSTINHO DE HIPONA 807

Quem seria capaz de não louvar a Deus naquele momento? A igreja ressoava por
todos os lados com as vozes dos que gritavam e se congratulavam. Vêm a correr até ao
lugar onde eu estava sentado e preparado para ir ao encontro deles16. Atropelam-se uns
aos outros, anunciando cada um como novidade o que o anterior tinha contado. No
meio do meu regozijo e da minha acção de graças a Deus, aproxima-se de mim o próprio
(rapaz) com muitos outros, prostra-se a meus pés e levanta-se para o meu ósculo.
Avancei em direcção ao povo. A igreja estava cheia e ressoava com cânticos de
alegria: Graças a Deus! Louvores a Deus! Ninguém se calava. Os clamores elevavam-se
de todos os lados. Saudei o povo e as aclamações redobraram de entusiasmo.
Quando, por fim, se restabeleceu o silêncio, proclamaram-se solenemente as
leituras das Sagradas Escrituras. Ao chegar o momento do meu sermão, falei pouco,
adaptando-me ao tempo e às circunstâncias de tal alegria; mais do que ouvirem o que
lhes dizia, pareceu-me melhor que pensassem na eloquência de Deus nessa obra divina.
O homem comeu comigo e contou-me pormenorizadamente toda a história da sua
calamidade, de sua mãe e dos irmãos.
No dia seguinte, depois de pronunciar o sermão, prometi que no outro dia des-
creveria ao povo o relato dos factos. No terceiro dia depois do domingo de Páscoa,
enquanto se lia essa descrição, fiz com que os dois irmãos estivessem de pé nas grades
do presbitério, em cuja parte superior eu costumava falar...
10. Nós não construímos templos aos nossos mártires, como se fossem deuses, mas 3340
túmulos, como a homens mortais, cujo espírito vive com Deus. Não lhes erigimos
altares, sobre os quais lhes ofereceríamos sacrifícios, mas imolamos (o sacrifício) ao
único Deus dos mártires e nosso; eles são nomeados, no decorrer deste sacrifício, no
seu lugar e na sua ordem enquanto homens de Deus, que venceram o mundo confessan-
do a Deus, mas não são invocados pelo sacerdote que realiza o sacrifício. É a Deus e
não a eles que o sacrifício é oferecido, embora o celebremos na memória deles, porque
o sacerdote é sacerdote de Deus e não dos mártires. Ora, este sacrifício é o Corpo de
Cristo, que não lhes é oferecido, porque eles próprios são também este corpo17...
30. Como será grande aquela felicidade, onde não haverá mal nenhum, onde não 3341
faltará nenhum bem, onde toda a ocupação será louvar a Deus, que será tudo em todos...
Esta sétima idade será o nosso sábado, cujo termo não será a tarde, mas o dia do
Senhor, como oitavo dia eterno, que foi consagrado pela Ressurreição de Cristo e que
prefigura o repouso eterno, não só do espírito, mas também do corpo. Ali (no repouso
do oitavo dia), descansaremos e contemplaremos, contemplaremos e amaremos, ama-
remos e louvaremos. Vede o que faremos no fim sem fim; na verdade, qual é o nosso
fim, senão chegar ao reino que não tem fim?

16
Processurus.
17
Nos autem martyribus nostris non templa sicut diis, sed memorias sicut hominibus mortuis, quorum
apud Deum vivunt spiritus, fabricamus; nec ibi erigimus altaria, in quibus sacrificemus martyribus,
sed uni Deo et martyrum et nostro, ad quod sacrificium, sicut homines Dei, qui mundum in eius confessione
vicerunt, suo loco et ordine nominantur, non tamen a sacerdote, qui sacrificat, invocantur. Deo quippe,
non ipsis sacrificat, quamvis in memoria sacrificet eorum; quia Dei sacerdos est, non illorum. Ipsum
vero sacrificium corpus est Christi, quod offertur ipsis, quia hoc sunt et ipsi.
808 SÉCULO V

A doutrina cristã 1

LIVRO I

3342 1. 1 São dois os fundamentos em que repousa todo o estudo das Escrituras: o modo
de encontrar o que nelas há para entender, e o modo de exprimir o que se entendeu.
Tratarei primeiro da descoberta, e a seguir da expressão2... 2. 2 Toda a instrução se
reduz ao ensino de coisas e sinais, mas as coisas aprendem-se por meio dos sinais. Dei
propriamente o nome de coisas àquilo que não é utilizado para significar seja o que
for..., embora as coisas sejam também sinais de outras coisas. Mas existem outros
sinais cuja única função é significar, como acontece com as palavras. Com efeito,
ninguém se serve das palavras que não seja para significar outra coisa. Por conseguinte,
todo o sinal é também uma coisa..., mas nem todas as coisas são, ao mesmo tempo,
sinais... 34. 39 De tudo o que eu disse desde que comecei a tratar das coisas, o essencial é
compreender que a plenitude e o fim da lei e de todas as divinas Escrituras, é o amor...
3343 36. 40 Por isso, se alguém está persuadido de que entendeu as divinas Escrituras ou
alguma das suas partes, mas esse entendimento o não leva a edificar o duplo amor de
Deus e do próximo, ainda as não entendeu3. Se alguém, ao contrário, tira do seu estudo
uma ideia capaz de edificar o amor do qual estou a falar, mesmo que não exprima o
pensamento exacto do autor do texto que acabou de ler, não se engana de modo perigoso,
nem diz a mais pequena mentira... 41 Mas se alguém compreende nas Escrituras uma
coisa diferente daquela que o autor escreveu, engana-se, porque elas não mentem.
Contudo, como já comecei a dizê-lo, se essa pessoa se engana acerca de uma interpretação
com a qual edifica a caridade, que é o fim do preceito, engana-se como qualquer pessoa
que abandona o caminho por descuido, mas prossegue através do campo para a meta à
qual este caminho conduz. Por isso, é preciso reconduzi-lo ao bom caminho e mostrar-lhe
como é mais útil não abandonar o caminho, não aconteça que o hábito de se desviar o
leve a seguir por caminhos desencontrados e por carreiros tortuosos... 37. É que a fé
vacila se a autoridade das Escrituras vacila. E se a fé vacila, também a caridade enfra-
quece. Todo aquele que se afasta da fé afasta-se também necessariamente da caridade...
3344 39. 43 O homem que se apoia na fé, na esperança e na caridade e as guarda sem
desfalecimento, já não precisa das Escrituras, a não ser para instruir os outros. É por
isso que muitos, graças a estas três virtudes, vivem sem livros, mesmo na solidão; e eu
penso que neles já se cumpriu esta palavra: As profecias acabarão, as línguas desapa-
recerão, a ciência passará..., mas a caridade permanece para sempre...

LIVRO II
3345 1. 1 Um sinal é algo que, além da impressão que produz nos sentidos, faz com que,
a partir dele, se pense noutra coisa qualquer... 2 Entre os sinais, uns são naturais, outros
convencionais4... 2. 3 Sinais convencionais são aqueles que todos os seres vivos diri-

1
A GOSTINHO DE H IPONA , De doctrina christiana libri IV (=PL 34, 15-122; 47, 1221; CCL 32; CSEL 89;
BAC 168). O De doctrina christiana é um pequeno manual de pregação. Quem o lê descobre que a pregação
de Agostinho era bíblica. Ele pregava a partir das leituras bíblicas fixadas pela liturgia ou escolhidas por
ele. Pregava a Bíblia, pela Bíblia, com a Bíblia. Este tratado foi escrito entre 397 e 427.
2
Duae sunt res, quibus nititur omnis tractatio Scripturarum, modus inveniendi quae intellegenda sunt,
et modus proferendi quae intellecta sunt. De inveniendo prius, de proferendo postea disseremus.
3
Quisquis igitur Scripturas divinas vel quamlibet earum partem intellexisse sibi videtur, ita ut eo intellectu
non aedificet istam geminam caritatem Dei et proximi, nondum intellexit.
4
Signorum igitur alia sunt naturalia, alia data.
AGOSTINHO DE HIPONA 809

gem uns aos outros para manifestarem, na medida das suas possibilidades, os movimen-
tos do seu espírito, tudo o que sentem e tudo o que pensam... 3. 4 Entre os sinais que
permitem aos homens comunicar entre si o que sentem, alguns referem-se à vista, a
maior parte ao ouvido e um pequeno número aos outros sentidos... Os sinais que se
referem à vista são como que palavras visíveis5... Comparados com as palavras, todos
os outros sinais são muito pouco numerosos. De facto, entre os homens, as palavras
ocupam o primeiro lugar para significar tudo o que o espírito concebe, sempre que deseja-
mos exprimir exteriormente esse pensamento... Foi-me possível exprimir por palavras
todos os sinais cujos géneros aflorei com brevidade, mas não poderia, de modo algum,
enunciar as palavras por meio desses sinais. 4. 1 Mas, como as palavras, a partir do
momento em que vibram no ar passam imediatamente e não duram mais do que o tempo
em que ressoam, criaram-se, por meio das letras, sinais dessas palavras. Deste modo as
palavras são mostradas aos olhos, não em si mesmas, mas através dos sinais que lhes
correspondem...

LIVRO III

9. 13 Nestes tempos em que brilhou o sinal claríssimo da nossa liberdade com a 3346
Ressurreição do Senhor, não nos sentimos sobrecarregados com o grande peso que é a
prática daqueles sinais que já conhecemos 6. De facto, o próprio Senhor e o ensino dos
Apóstolos transmitiram-nos, em vez de uma multidão de sinais, um muito pequeno
número, fáceis de celebrar, duma sublimidade excepcional para os que os compreendem, e
santíssimos na sua realização, tais como o sacramento do baptismo e a celebração do
Corpo e do Sangue do Senhor. Cada qual, ao recebê-los, sabe, quando foi informado a
seu respeito, aquilo a que se referem, de modo que os realiza não em atitude de
servidão carnal, mas, ao contrário, com liberdade espiritual7...

LIVRO IV

9. 23 Aquele que ensina não deve preocupar-se com o seu grau de eloquência, mas 3347
com o seu grau de transparência. 10. 24 A procura cuidadosa desta transparência
negligencia, por vezes, as palavras mais cultas, não se preocupando tanto de que soem
bem, mas de que exprimam claramente e façam entender o que nos propomos mostrar.
Isso levou alguém a dizer, ao falar deste tipo de discurso, que há nele uma certa
diligência negligente... De que serve, efectivamente, a pureza de linguagem se a inteli-
gência do ouvinte a não entende...? Aquele que ensina deve evitar todas as palavras que
não ensinam, e se em vez dessas palavras puder valer-se de outras correctas que se
entendam, são essas precisamente que ele deve usar... 11. 26 Em suma, quando se trata
de instruir, a eloquência não consiste em falar para agradar..., mas em trazer à luz o que
estava escondido... Para que serve uma chave de ouro, se não consegue abrir-nos o que nós
queremos? E qual é o inconveniente duma chave de madeira, se ela o consegue?
12. 27 Certo orador disse, e disse a verdade, que o orador deve falar «de modo a 3348
instruir, a agradar e a persuadir». E depois acrescentou: «Instruir é uma necessidade, agra-
5
Et sunt haec omnia quasi quaedam verba visibilia.
6
Ao contrário do que sucedia no Antigo Testamento.
7
Hoc vero tempore posteaquam ressurrectione Domini nostri manifestissimum indicium nostrae libertatis
inluxit, nec eorum quidem signorum quae iam intellegimus, operatione gravi onerati sumus, sed quaedam
pauca pro multis eademque factu facilima et intellectu augustissima et observatione castissima ipse
Dominus et apostolica tradidit disciplina, sicuti est baptismi sacramentum et celebratio corporis et
sanguinis Domini. Quae unusquisque cum percipit, quo referantur imbutus agnoscit, ut ea non carnali
servitute, sed spiritali potius libertate veneretur.
8
C ÍCERO , Orator 21, 69: «Erit igitur eloquentem... is qui in foro causisque civilibus ita dicet ut probet,
ut delectet, ut flectat; probare necessitatis est, delectare vuavitatis, flectere victoriae».
810 SÉCULO V

dar é um prazer, persuadir é uma vitória» 8. O primeiro destes objectivos, ou seja a


necessidade de instruir, diz respeito às ideias que enunciamos; os outros dois, à maneira
de as exprimir... Ora, assim como é preciso agradar ao ouvinte para o manter à escuta,
assim é preciso persuadi-lo para o levar a agir. E do mesmo modo que se lhe agrada se
lhe falamos com prazer, assim também o persuadimos se gostar do que lhe prometemos,
se tiver medo daquilo com que o ameaçamos, se rejeitar o que condenamos, se acolher o
que recomendamos, se se afligir por aquilo que lhe apresentamos como digno de lásti-
ma, se encontrar alegria naquilo em que o convidamos a alegrar-se, se tiver piedade
daqueles que a nossa palavra lhe põe sob os olhos como dignos de piedade... 28 Por isso se
vê que instruir é uma necessidade. Os homens podem fazer ou não fazer o que sabem.
Mas quem ousará dizer que devem fazer o que ignoram? Por isso, persuadir não é da
ordem da necessidade, porque nem sempre é preciso... Persuadir é da ordem da vitória,
pois pode acontecer que o ouvinte, apesar de instruído e encantado, não dê o seu assen-
timento. Ora, para que servem esses dois bons resultados se faltar o terceiro?...
17. 34 Aquele que se esforça, no seu discurso, em persuadir para o bem..., reze
e fale de maneira... a ser escutado com inteligência, com prazer e com docilidade. E se
o fizer adequadamente e como convém, com toda a razão se pode chamar-lhe eloquen-
te, mesmo que não obtenha o assentimento do ouvinte. Com efeito, parece que esse
mesmo mestre da eloquência romana quis que, aos três objectivos de ensinar, agradar
e persuadir correspondessem três géneros de estilo, na passagem onde diz também:
«Será eloquente o homem que puder tratar de assuntos pequenos em estilo simples, de
assuntos médios em estilo temperado, e de assuntos grandes em estilo sublime»9... 18.
35 Este orador poderá ter feito aparecer estes três estilos, tal como os definiu, nas
causas do forum; mas não se passa o mesmo nos nossos, isto é, nas questões da Igreja,
sobre os quais versa o discurso do orador que nós queremos formar... Nos nossos
discursos, particularmente quando, do alto do púlpito, falamos ao povo, devemos
referir tudo à salvação dos homens, não temporal, mas eterna..., pelo que, tudo o que
lhes dizemos é grande... 37 Está claro que se tivéssemos de ensinar aos homens a
maneira como devem defender esses assuntos do mundo, quer em favor de si mesmos
quer por conta de outros, perante os juízes eclesiásticos, teríamos razão em aconselhá-los
a defender em estilo simples, como assuntos pequenos. Mas como falamos do estilo
de um homem que destinamos a ensinar verdades que nos livram dos males eternos e
nos fazem chegar aos bens eternos, seja qual for o lugar onde ele os trate, diante do
povo ou em privado, diante duma só pessoa ou de muitas, diante dos amigos ou dos
inimigos, quer num discurso seguido ou numa simples conversa, em opúsculos ou em
livros, em cartas longas ou curtas, trata-se sempre de grandes assuntos... 19. 38 No
entanto, quando o nosso doutor trata de grandes assuntos, não deve fazê-lo sempre em
estilo sublime, mas em estilo simples quando se trata de ensinar, e em estilo temperado
quando faz uma censura ou um elogio. Quando se trata, ao contrário, de algum dever a
cumprir, e se nos dirigimos àqueles que o devem realizar mas se recusam a fazê-lo,
então, como esses problemas são grandes, devem tratar-se em estilo sublime e com
palavras capazes de persuadir os corações... 42 O estilo sublime difere do estilo
temperado pelo facto de não ser envolvido pelo ornamento das palavras, mas se tornar
impetuoso pelos sentimentos da alma10...
22. 51 Não se pense, aliás, que seja contrário à boa regra misturar os três
estilos. Pelo contrário, na medida em que é possível fazê-lo a propósito, deve dar-se
variedade ao discurso, utilizando os três estilos. Com efeito, o emprego prolongado de
um só retém menos a atenção do ouvinte... Contudo, o estilo simples pode ser mais facil-

9
C ÍCERO , Orator 29, 101.
10
Os ornamenta verborum, elemento da delectatio, que devem por assim dizer condimentar a elocutio
christiana, serão tanto mais eficazes para conseguir o seu objectivo de docere, movere, flectere, quanto
menos se der pela sua presença.
AGOSTINHO DE HIPONA 811

mente suportado durante um certo tempo do que o estilo sublime... 24. 54 Os discursos
em estilo simples já transformaram muitas pessoas, levando-as a conhecer o que ignoravam
ou a crer no que lhes parecia inacreditável... 26. 57 Também no género de discurso em
que o prazer tem o primeiro lugar se devem procurar estes três objectivos: fazer-se
compreender dos ouvintes, agradar-lhes, torná-los dóceis... 27. 59 Mas para sermos
escutados com docilidade..., tem muita importância a vida do orador... 60 Se, pregando
o que não fazem, os oradores são úteis a um grande número, sê-lo-iam a muitos mais se
fizessem o que dizem... 30. 63 Quer um orador se disponha a falar ao povo ou a um
grupo mais reduzido de pessoas, quer se prepare para ditar o que deverá ser dito diante
do povo ou a ser lido por quem quiser ou puder, deve pedir a Deus que ponha nos seus
lábios palavras boas... 31. 64 Esta obra tornou-se mais longa do que eu queria e tinha
pensado. Mas para quem tem o prazer de ler ou de entender, não é longa... No que a
mim diz respeito, dou graças a Deus por ter exposto, ao longo dos seus quatro livros,
não o que sou, pois me faltam muitas qualidades, mas o que deve ser aquele que se
entrega ao trabalho de estudar a sã doutrina, isto é, a doutrina cristã, não só para si próprio,
mas também para os outros, tanto quanto mo permitiram os limites da minha capacidade.

As Revisões 1 1

LIVRO I

2. Lamento ter dito no De beata vita que, durante o tempo presente, a vida bem- 3349
-aventurada só habita na alma do sábio, qualquer que seja o estado do seu corpo. Na
verdade, o conhecimento perfeito de Deus, isto é, aquele a que o homem pode chegar,
é esperado pelo Apóstolo na vida futura, pois é aí que se deve colocar a única vida
bem--aventurada. É aí que o corpo incorruptível e imortal será submetido ao seu
espírito sem qualquer constrangimento ou combate.
17. Por esse mesmo tempo, sendo presbítero, dissertei sobre A fé e o Símbolo na 3350
presença e a pedido dos bispos que celebravam um Concílio plenário de toda a África,
em Hipona. Este sermão pu-lo por escrito num livro, a pedido de alguns bispos, que
me estimavam com muito afecto. Nele trato do mesmo assunto, embora não tenha a
mesma estrutura das palavras que se entregam aos competentes, para as fixarem de memória.

LIVRO II

11. Entretanto, um certo Hílaro, varão tribunício, católico leigo, irritado, não sei 3351
porquê, como é hábito, contra os ministros de Deus, reprovava com malévola violên-
cia, por onde podia, o costume que então começava a existir em Cartago, de cantar
diante do altar hinos tomados dos Salmos, quer antes das oferendas, quer ao distribuir-se
ao povo o que fora oferecido, afirmando que não era conveniente fazê-lo.

11
A GOSTINHO DE H IPONA , Retractationes (=PL 32, 583-656; CCL 57; CSEL 36; BAC 551). Obra escrita em
426-427, na qual Agostinho submete a um minucioso exame grande parte da sua produção literária.
812 SÉCULO V

Cartas 1

CARTA 21 2

3352 1. Nesta vida e particularmente nestes tempos difíceis não há nada mais pesado,
laborioso e perigoso do que a função de bispo, presbítero ou diácono. Mas também
não há nada mais santo diante de Deus, quando trabalhamos do modo como o nosso
Imperador manda... Um dia forçaram-me a ser lugar-tenente de bordo, a mim que nem
sequer sou capaz de empunhar um remo.
3353 2. Creio que o meu Senhor procedeu assim comigo, para me corrigir, por ter ousado
repreender os pecados de outros nautas, antes de eu próprio experimentar a realidade
do ofício, como se fosse melhor e mais inteligente do que eles. Depois de me colocarem
no centro, então comecei a sentir a temeridade das minhas anteriores repreensões,
embora seja verdade que já antes considerava esse ministério como muito perigoso. Tal
foi o motivo daquelas lágrimas que alguns irmãos me viram derramar na cidade, no
tempo da minha ordenação... Mas agora experimentei outras dificuldades maiores e
mais profundas...
3354 3. Agora sei, com certeza, que devo estudar todos os remédios contidos nas suas
Escrituras e dedicar-me à oração e à leitura. Devo adquirir, para tão perigoso posto, a
necessária saúde da minha alma. Não a adquiri antes, porque não tive tempo para isso.
Fui ordenado justamente quando buscava uma oportunidade para meditar na Sagrada
Escritura... Mas, já que os acontecimentos me fizeram experimentar o que um homem
precisa para distribuir ao povo o sacramento e a palavra de Deus, não me é possível
adquirir neste momento o que reconheço fazer-me falta...
3355 6. Escuta estas preces, ancião Valério..., e a minha ausência de Tagaste não será
infrutífera para a Igreja nem prejudicial aos meus irmãos e companheiros de serviço...
CARTA 22 3

3356 3. A devassidão e a libertinagem são consideradas crimes tão grandes, que se alguém se
mancha com elas é tido por indigno, não só do ministério eclesiástico, mas também da
comunhão nos sacramentos... Mas porquê só esses? As comezainas e bebedeiras con-
sideram-se autorizadas e lícitas, até ao ponto de serem celebradas em honra dos santos
mártires, não só nos dias solenes..., mas até diariamente...
3357 5. Atrevo-me a falar contigo como se fosse comigo mesmo: penso que estes abusos
não se eliminam com palavras ásperas, duras e modos imperiosos. Mais do que mandar
é preciso ensinar, mais do que ameaçar há que admoestar. Com o povo há que proceder
assim, reservando a severidade para o pecado de poucos...
3358 6. O povo considera estas bebedeiras e convívios luxuriosos nos cemitérios não só
uma honra para os mártires, mas também uma consolação para os mortos... Se alguém
quiser oferecer algum dinheiro por motivos religiosos, distribua-se ali mesmo aos
pobres. Com esta solução, a memória dos seus não ficará no esquecimento, o que
poderia causar-lhes profundo pesar, e a Igreja fará que tal memória se celebre com
piedade e pureza...

1
A GOSTINHO DE H IPONA , Epistulae (=PL 33, 61-1094; PLS 2; CSEL 34-1, 34-2, 44, 57, 58; BAC 69, 99 a,
99 b). As Cartas cujas datas de composição se conhecem estendem-se do ano 391 a 428.
2
A carta 21, dirigida a Valério, bispo de Hipona, é dos princípios do ano 391. Agostinho era presbítero.
3
A carta 22 é dirigida pelo presbítero Agostinho ao bispo Aurélio, de Cartago, no ano 392.
AGOSTINHO DE HIPONA 813

CARTA 23 4

1. Ao acrescentar “digno de honra”, não o faço para enaltecer o teu episcopado, já 3359
que para mim não és bispo. Não tomes isto como ofensa, mas como palavra de since-
ridade, que deve estar sempre em nossos lábios... Não ignoras que todos os que nos
conhecem sabem que tu não és meu bispo nem eu sou teu presbítero.
2. Quando comecei a denunciar, neste país, com todas as expressões que achei à 3360
mão, esse lamentável e triste costume de certos indivíduos que se gloriam do nome de
cristãos e não duvidam rebaptizar os cristãos, houve quem saísse a enaltecer-te, ale-
gando que tu não fazias isso. Confesso que, ao princípio, não acreditei... Depois,
porém..., até busquei uma ocasião de falar contigo, para suprimir, se fosse possível, a
pequena distância que ainda havia entre nós.
Mas acabam de me dizer que há poucos dias rebaptizaste o nosso diácono de
Mutugena. Senti muito a sua infeliz queda e o teu crime inesperado, irmão. Sei qual é
a Igreja católica... É pecado rebaptizar um herege, se já recebeu esse sinal de santidade,
que a disciplina cristã nos transmitiu. Rebaptizar um católico será, pois, um crime enorme.
Negando-me a dar crédito à notícia, uma vez que tinha bom conceito de ti, parti
para Mutugena. Não pude ver o infeliz diácono, mas os seus pais disseram-me que o
tinhas feito teu diácono. Contudo, as minhas disposições para com a tua intenção são
tão boas, que não creio que o tenhas rebaptizado.
3. Portanto, irmão, suplico-te... que te dignes comunicar-me o sucedido... Se 3361
rebaptizas, não deves temer os teus partidários, ao confessares que fazes o que eles
próprios te obrigam a fazer, mesmo que o não queiras. Se defendes, com todos os
documentos que tenhas, que se deve rebaptizar, não só não entrarão em cólera contra
ti, mas até te louvarão por isso. Se não rebaptizas, faz uso da liberdade cristã... e
mantém-na...
4. Se... não repetes o baptismo da Igreja católica..., porque não levantas a tua voz 3362
exultante e livre... e não te adiantas a dizer: «Eu conheço um só baptismo, consagrado
e administrado em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo»?... Se os perseguidores
não rasgaram as vestes d’Aquele que pendia da cruz, porque destroem os cristãos o
sacramento d’Aquele que está sentado nos Céus?... Se um samaritano quisesse fazer-se
Judeu, depois de ter sido circuncidado pelos Samaritanos, seria excessiva a audácia da
repetição. Todos nos veríamos obrigados a aprovar e a não repetir o que o Senhor
mandou fazer, mesmo que tivesse sido feito na heresia, pois na carne do homem
circuncidado não haveria já lugar para repetir a circuncisão. Pois muito menos lugar
existe para repetir o baptismo de Cristo nos que têm um só coração. Os que quiserem
repetir o baptismo terão de buscar um duplo coração...
5. Devemos temer que seja por nossa culpa... que o infeliz povo que crê em Cristo 3363
tenha em suas casas alimentos comuns e não possa ter em comum a mesa de Cristo.
Não será de lamentar que a mulher e o marido, que juram fidelidade ao amor conjugal,
façam o juramento em nome de Cristo e logo a seguir destruam o mesmo corpo de
Cristo com uma comunhão diferente?...
6. Eu não posso calar o facto de o nosso diácono ter sido rebaptizado, porque sei 3364
quão nocivo seria para mim tal silêncio... De facto, tenho muito medo de que, se me
calar e dissimular, outros se deixem também rebaptizar por vós... Para o caso de não
me enviares a tua resposta, tomei a decisão de ler em público a minha carta, a fim de
que, ao menos os meus, se envergonhem de se deixar rebaptizar...
8. O meu bispo talvez te tivesse enviado uma carta... Eu, porém, na sua ausência, 3365
não pude permitir que se difira e deixe arrefecer esta acção...
4
A carta 23, dirigida a Máximo, bispo donatista, é do ano 392. Agostinho era presbítero.
814 SÉCULO V

CARTA 29 5

3366 2. Vou narrar à tua caridade o que aconteceu, para que connosco dês graças a Deus
pelo benefício concedido, já que oraste por nós para o recebermos. Depois da tua
partida, anunciaram-me que certos indivíduos se tinham alvoroçado, protestando que
não podiam tolerar a supressão daquela solenidade que eles chamam Laetitiam. Em vão
tentam encobrir o nome de bebedeira...
3367 3. Receberam estas advertências com agrado, mas como a assistência foi escassa,
não se resolvia com elas um assunto tão importante...
3368 4. Dizendo isto, abri o códice e li todo o capítulo... 5. Depois devolvi o códice do
Êxodo6...
3369 9. Para não parecer que lançava uma injúria sobre aqueles que, antes de nós, permi-
tiram ou não ousaram proibir à multidão pouco instruída pecados tão manifestos,
expus-lhes as circunstâncias em que estes abusos se introduziram na Igreja. Fiz-lhes
ver que, depois de tantas e tão cruéis perseguições, ao voltar a paz, uma multidão de
gentios queria receber o nome de cristãos, mas via-se impedida pelo seu costume de
celebrar as festas dos ídolos com comezainas abundantes e bebedeiras. Não podia
abster-se com facilidade das suas diversões torpes e inveteradas.
Então pareceu bem aos nossos maiores que se transigisse com esta debilidade,
permitindo aos neófitos a celebração de festas em honra dos santos mártires, em
substituição daquelas que abandonavam; o excesso seria igual, mas menor o sacrilégio.
Mais tarde, quando já estivessem reunidos sob o nome de Cristo e submetidos a tão
alta autoridade, ir-se-iam instruindo nos preceitos salutares da sobriedade e, em honra
do Senhor que lhos mandava observar, já não se atreveriam a resistir-lhes. Chegara
assim a hora de começarem a viver segundo a vontade de Cristo, aqueles que não
ousavam renegar o seu nome de cristãos, e de rejeitarem, como cristãos que eram, o que
lhes fora permitido para se tornarem cristãos...
3370 10. Feito isto, ao ver que todos, com um só sentir, manifestavam boa vontade e
repudiavam o mau costume, convidei-os a estar presentes, da parte da tarde, às leitu-
ras divinas e à salmodia, pois seria muito agradável celebrar esse dia com maior pureza
e sinceridade do que os outros...
3371 11. À tarde, a assistência foi muito maior do que pela manhã, pelo que, até à hora em
que devíamos sair com o bispo, se foram alternando leituras e salmos. Quando saímos
leram-se salmos. Eu estava ansioso por dar por terminado um dia tão arriscado, mas o
ancião obrigou-me, contra minha vontade, a dirigir-lhes ainda a palavra. Fui breve no
meu sermão, no qual dei graças a Deus. E, como estávamos a ouvir, na basílica dos
hereges, o rumor dos habituais convívios celebrados por eles, pois ali continuaram
entregues à bebida durante o tempo em que fazíamos o que devíamos, disse-lhes que a
beleza do dia ressaltava mais quando contrastada com a noite, que a cor branca ficava
mais realçada com a proximidade da cor negra e que, em todo o caso, a nossa reunião
festiva e espiritual poderia parecer talvez menos alegre, se não a comparássemos com
a avidez carnal da outra parte. Exortei-os, em consequência, a apreciarem as coisas
espirituais e a provarem a suavidade do Senhor...
Depois..., dei por terminada a celebração vespertina, que se faz todos os dias, e
retirei-me com o bispo. Entretanto, os religiosos entoaram alguns hinos, e um grande núme-
ro de pessoas de ambos os sexos ficou a cantar, com eles, até começar a escurecer o dia...

5
A carta 29, dirigida a Alípio, é do ano 395. Agostinho era presbítero.
6
Quae, cum dicerem, codicem etiam accepi, et recitavi totum illum locum...; tunc reddito Exodi codice...
AGOSTINHO DE HIPONA 815

CARTA 31 7

9. O pão que vos enviámos converter-se-á em bênção copiosa, em virtude da vossa 3372
caridade benigna, que há-de recebê-lo...
CARTA 33 8

1. Andamos a tentar convencer-nos mutuamente que estamos errados, e para mui- 3373
tos continuará a ser incerto qual de nós o está, enquanto não chegar a plena discussão
da causa. Entretanto, cada um de nós prestará serviço ao outro, se agir com recta
intenção em ordem a eliminar esta calamidade da discórdia... Deus, para quem o cora-
ção não tem portas, vê a sinceridade e o temor da humildade cristã que actua em mim.
Facilmente entenderás que é isso também o que eu quero honrar em ti. Não considero
que seja digno de qualquer honra o erro do cisma, do qual desejo curar todos os
homens, na medida em que isso dependa de mim... Por isso espero que venhas a
abraçar facilmente a verdade, logo que a vejas demonstrada...
2. Não te cause estranheza o facto de que, durante tanto tempo, não me tenha 3374
dirigido a ti: não pensava que tivesses adoptado a postura que, cheio de alegria, me
descreveu o meu irmão Evódio, a quem não posso deixar de acreditar. Disse-me ele que
teve lugar, em determinada casa, uma reunião casual dos vossos, e que entre vós se
conversou acerca da nossa esperança, isto é, sobre a herança de Cristo, e que tu
anunciaste querer discutir comigo na presença de alguns homens bons. Alegro-me
muito que te tenhas dignado oferecer esta ocasião à minha humildade, e de modo
nenhum a posso desprezar. Com todas as forças que o Senhor Se dignou conceder-me,
estudarei e discutirei contigo a causa, a origem e a razão de tão lamentável e triste cisma
na Igreja de Cristo, à qual Ele disse: Dou-vos a minha paz, deixo-vos a minha paz...
5. Por favor, que temos nós a ver com as antigas dissensões? Admitamos que 3375
duraram até hoje as feridas que a animosidade de certos homens orgulhosos infligiu nos
nossos membros... Bem vês quão grande e miserável frieza arruína as casas e famílias
cristãs. Mulher e marido estão de acordo acerca do leito e em desacordo acerca do altar
de Cristo. Juram por Cristo que terão paz entre si, e não podem tê-la n’Ele. Filhos e
pais têm uma casa comum, mas não têm uma casa de Deus comum. Os filhos desejam
suceder aos pais na posse da herança, enquanto disputam com eles acerca da herança
de Cristo. Servos e senhores dividem-se quando se trata do Senhor comum... Aceita-
mos as fórmulas de todos e a ninguém queremos ofender. Em que nos ofende Cristo,
cujos membros dilaceramos?...
CARTA 34 9

1. Deus, diante de quem estão patentes os segredos do coração humano, sabe que, 3376
quanto mais amo a paz cristã, tanto mais me comovem as proezas sacrílegas daqueles
que perseveram indignamente e com maldade no cisma. Mas essa comoção do meu
espírito é pacífica: procuro que ninguém seja obrigado a entrar na comunhão católica
pela força...
2. Que haverá de mais abominável do que aquilo que aconteceu aqui há pouco 3377
tempo...? Um jovem, que bate repetidamente na mãe, é censurado pelo seu bispo...
Depois de a ameaçar, passa para o partido de Donato, é rebaptizado no seu furor, e,
enquanto se revolta contra o sangue materno, é revestido com a veste branca de candidato.

7
A carta 31, dos princípios de 396, é dirigida a Paulino de Nola e a sua mulher Terásia.
8
A carta 33, dos primórdios do episcopado de Agostinho, é dirigida a Proculeiano, bispo donatista. Talvez
seja de 396.
9
A carta 34, escrita a Eusébio, bispo donatista, é do ano 396.
816 SÉCULO V

Um homem destes, que pensa em matar a mãe, é colocado num lugar eminente e visível
dentro do átrio, e aos olhos de todos os fiéis, que se lamentam, apresentam-no como
renovado.
3378 3. Será que tudo isto te agrada...? Nunca pensaria isso de ti, pois conheço a tua
prudência. A mãe carnal é ferida nos membros que geraram e alimentaram um ingrato;
a Igreja, mãe espiritual, proíbe-o, pois ela própria é ferida nos Sacramentos, em que
gerou e alimentou esse ingrato...
CARTA 35 10

3379 2. Acrescento também outra coisa: um antigo diácono da Igreja hispânica, chamado
Primo, foi proibido de se aproximar do convento das monjas. Por ter desprezado os
santos preceitos que estão mandados, foi removido da clericatura. Irritado contra a
disciplina de Deus, passou para os Donatistas e foi rebaptizado. Outras duas monjas
que pertenciam, como ele, ao campo dos cristãos católicos, foram arrastadas, ou elas
próprias foram atrás dele. Também foram rebaptizadas...
3380 3. Eu, enquanto isso agrade a Deus, observo esta norma: se alguém de entre eles,
degradado pela disciplina, quiser passar para a Católica, recebo-o e submeto-o à penitência
que lhe imporiam os próprios Donatistas, se ele quisesse permanecer na sua seita...
3381 4. Há aqui um certo colono da Igreja que tinha uma filha catecúmena na nossa
comunhão. Eles enganaram-na, contra a vontade de seus pais, baptizaram-na e adoptou a
profissão de monja. O pai quis fazê-la voltar com sinceridade à comunhão católica.
Mas eu neguei-me a receber uma mulher de mente corrompida, se não voltasse espon-
taneamente, depois de escolher o melhor por sua livre vontade...
CARTA 36 11

3382 1. Não sei como me aconteceu não responder à tua primeira carta, mas sei que não
deixei de o fazer por desdém... Ao receber agora esta missiva..., pensei que não podia
demorar mais o cumprimento desse desejo..., pelo que vou responder-te devidamente,
a fim de me justificar diante de ti.
3383 2. Perguntas-me se é lícito jejuar no sábado. Respondo-te que, se não fosse lícito...,
nem mesmo o Senhor teria jejuado durante quarenta dias. É claro que por essa razão se
conclui que também é lícito jejuar no domingo. No entanto, se alguém julga que deve
jejuar no domingo como outros guardam o jejum do sábado, causará com razão um
grande escândalo na Igreja. Nestes assuntos, a respeito dos quais nada de certo se
encontra consignado nas divinas Escrituras, há que manter como lei o costume do povo
de Deus ou o modo de fazer dos nossos maiores. Se me pusesse a discutir sobre tais
assuntos e a querer convencer a uns com os costumes dos outros, ocasionaria um
litígio interminável, mas não encontraria nenhum documento que mostrasse a verdade,
por mais que eu falasse. Há que evitar isso para não obscurecer, com uma contenda
tempestuosa, a paz da caridade...
3384 3. Quando faltam argumentos a Urbico12 para provar que se deve jejuar no sábado,
começa insolentemente a dizer mal da embriaguez..., como se jejuar fosse a mesma
coisa que embriagar-se. Se assim fosse, de que serviria aos Romanos jejuar no sábado,
se nos outros dias não jejuam?... Ele não deve perguntar se é lícito embriagar-se no
sábado, pois isso também não é lícito no domingo. O que ele deve perguntar é se deve
suspender-se o jejum no sábado, como costuma fazer-se no domingo.

10
A carta 35, escrita a Eusébio, bispo donatista, é do ano 396.
11
A carta 36, dirigida a Casulano, é dos anos 396 ou 397. Agostinho era presbítero.
12
Habitante da cidade de Roma, cujo nome Agostinho quer ocultar.
AGOSTINHO DE HIPONA 817

8. Segundo me parece..., se alguém jejua quatro ou cinco vezes por semana, excepto 3385
no sábado e no domingo (muitos fazem-no durante toda a vida, especialmente nos
mosteiros), ultrapassa... o cristão que costuma jejuar na quarta, na sexta e no sábado,
como o faz com frequência o povo romano...
11. O Urbico quer passar por homem espiritual, e denuncia como carnais os que 3386
comem no sábado. Vê como ele, no domingo, não se contenta com uma refeição mode-
rada, mas se deleita na a)logi/a. O que é a a)logi/a, palavra oriunda da língua grega,
senão entregar-se à comida, ultrapassando as normas da razão?
13. Foi Cristo que instituiu o domingo, no qual não é conveniente jejuar... 3387
18. O Urbico quer que o jejum seja entendido como sacrifício caro ao Senhor, como 3388
se estivéssemos a tratar do jejum, e não do jejum do sábado. Pelo facto de não se jejuar
no domingo, não se deixa de oferecer (nesse dia) um sacrifício que é caro a Deus...
Então, por não se jejuar no domingo já não se oferece a Deus o sacrifício de louvor...?
Há dias em que não se pratica o jejum, especialmente nas festas; mas o sacrifício de
louvor celebra-se todos os dias em toda a Igreja universal. Se assim não fosse, os
cinquenta dias que vão da Páscoa ao Pentecostes, e nos quais não se jejua, ficariam
privados, segundo o Urbico, do sacrifício de louvor. Já não digo nenhum cristão, mas
nem sequer um louco se atreverá a dizer tal coisa. Nesses dias canta-se exclusivamente
o aleluia, e todos o cantam com abundância, e nenhum cristão, por mais ignorante que
seja, ignora que tal palavra é de louvor.
19. Uma vez que podemos jejuar antes do sábado, como é que ele diz que se deve 3389
jejuar no sábado antes do domingo? Pensará ele que é pecado comer em dois dias
seguidos? Repare na grande injúria que faz à Igreja romana, na qual, durante essas
semanas, se jejua na quarta, na sexta e no sábado, mas logo a seguir se come durante
três dias, isto é, no domingo, na segunda e na terça.
25. Se me perguntas a minha opinião, dir-te-ei o que entendo depois de ter meditado 3390
sobre isso. Vejo que o jejum está prescrito nas palavras evangélicas e apostólicas, mas
não encontro definido, em nenhuma palavra do Senhor ou dos Apóstolos, em que dias
convém jejuar e em quais não convém. Por isso, entendo que mais vale simplificar do
que complicar o jejum do sábado; não para alcançar por meio dele o descanso eterno,
no qual consiste o verdadeiro sábado, mas para o simbolizar...
26. Contudo, quer se coma quer se jejue no sábado, nada me parece tão seguro e 3391
pacífico como observar a norma do Apóstolo: Quem come não despreze aquele que
não come; e quem não come não julgue aquele que come, porque nem teremos em
abundância se comermos, nem teremos pouco se não comermos 13. Quer dizer, há que
manter a concórdia, que em tais assuntos é inofensiva, com aqueles no meio dos quais
vivemos e convivemos em Deus.
27. Acerca do sábado, a discussão é mais fácil, porque nesse dia jejuam a Igreja 3392
romana e algumas outras, mais próximas ou mais afastadas de Roma. Pelo contrário, é
um grande escândalo jejuar no domingo, sobretudo depois da heresia dos maniqueus,
tão contrária à fé católica e às divinas Escrituras, ter imposto aos seus ouvintes 14 o
domingo como dia legítimo para jejuar...
30. Porque razão jejua a Igreja principalmente na quarta e na sexta-feira? Talvez seja 3393
por parecer, segundo o Evangelho, que foi no quarto dia da semana, ao qual vulgarmente
chamamos quarta-feira, que os Judeus tiveram conselho para matar o Senhor. Intercalamos
um dia, no qual o Senhor comeu a Páscoa com os seus discípulos. Ao entardecer desse

13
Rom 14, 3.
14
Os catecúmenos audientes.
818 SÉCULO V

dia, que chamamos o quinto da semana, foi entregue na noite que já pertencia ao sexto,
que é claramente o da Paixão... Por isso, a sexta-feira se considera também dia de jejum...
3394 31. Segue-se o sábado, dia em que a carne de Cristo repousou no sepulcro, do mesmo
modo que nos primeiros dias do mundo Deus repousou de todas as suas obras. Daqui
nasceu essa variedade no vestido da Rainha: uns, principalmente os povos do Oriente,
preferem deixar o jejum, para simbolizar o repouso; outros, como a Igreja romana e
algumas outras no Ocidente, jejuam para simbolizar a humildade da morte do Senhor.
Mas, quando o sábado é véspera da Páscoa, para renovar a memória do acontecimento
em que os discípulos lamentaram humanamente a morte do Senhor, todos jejuam,
todos celebram com grande devoção o jejum desse sábado, embora comam em todos os
outros sábados do ano. Deste modo, simbolizam ambas as coisas: no aniversário
celebram o culto dos discípulos e nos outros sábados o benefício do repouso...
3395 32. Já disse antes que não encontro nos escritos evangélicos e apostólicos, que
pertencem propriamente à revelação do Novo Testamento, nenhum preceito claro que
mande guardar o jejum em dias determinados. Por isso, este e muitos outros assuntos
que seria longo enumerar, fazem parte da variedade no vestido da filha do Rei, isto é,
a Igreja. Vou indicar-te o que me respondeu a mim, quando o consultei sobre este
assunto, o venerando Ambrósio, bispo de Milão, que foi quem me baptizou. A minha
mãe estava comigo na cidade; eu, como catecúmeno, não me preocupava com tais
assuntos, motivo pelo qual ela se perguntava com ansiedade se devia jejuar no sábado,
segundo o costume da nossa cidade, ou se devia comer, segundo o costume dos
Milaneses. Para a tirar de apuros, perguntei a Ambrósio, e ele disse-me: «Não posso
ensinar sobre este assunto mais do que aquilo que eu próprio faço». Destas palavras
eu conjecturei que ele me mandava comer no sábado, pois sabia que era essa a sua
prática; mas ele acrescentou: «Quando estou aqui, não jejuo no sábado; quando vou a
Roma, jejuo; quando fores a qualquer Igreja, observa os seus costumes, se não quiseres
servir de escândalo a outros ou escandalizar-te com outros».
Levei esta resposta a minha mãe; bastou-lhe, e não vacilou em obedecer. Isso
mesmo tenho eu mantido. Mas acontece, principalmente em África, que numa Igreja
ou nas Igrejas duma região, há quem jejue e quem coma ao sábado. Por essa razão me
pareceu sempre bem seguir o costume daqueles a quem foi confiado o governo do
povo. Por isso, segue com docilidade o meu conselho, sobretudo tendo em conta que,
a teu pedido e insistência, me alonguei neste ponto talvez mais do que seria justo. Não
resistas ao teu bispo sobre este assunto; aquilo que ele fizer, fá-lo também tu, sem
escrúpulo nem discussão.
CARTA 41 15

3396 1. A nossa boca encheu-se de alegria e a nossa língua de exultação, ao anunciares na


tua carta o santo pensamento que puseste em execução, com a ajuda do Senhor, que to
inspirou..., (de permitires) que os presbíteros falem ao povo na tua presença... Graças
a Deus, que te dotou de tão fiel coração para com os teus filhos, e fez surgir, em plena
luz, o que trazias no interior da alma... Alegra-te com eles no Senhor, e Deus Se digne
escutar-te quando rezas por eles, pois não te sentes diminuído ao escutar o que Deus
diz por intermédio deles...
3397 2. Pedimos-te... que mandes enviar-nos, escritos e emendados..., todos os seus
sermões... de que gostaste.

15
A carta 41 é dirigida a Aurélio, bispo de Cartago.
AGOSTINHO DE HIPONA 819

CARTA 53 16

2. Se considerarmos a ordem dos bispos que se foram sucedendo (na Igreja de Roma), 3398
começaremos a contar a partir de Pedro, figura de toda a Igreja, ao qual o Senhor disse:
Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Inferno não a vence-
rão 17. A Pedro sucederam Lino e Clemente; Anacleto, Evaristo e Alexandre; Sisto,
Telésforo e Higino; Aniceto, Pio e Sotero; Eleutério, Vítor e Zeferino; Calisto, Urbano e
Ponciano; Antero, Fabião e Cornélio; Lúcio, Estêvão e Sisto; Dionísio, Félix e Eutiquia-
no; Caio, Marcelino e Marcelo; Eusébio, Milcíades e Silvestre; Marco, Júlio e Libério;
Dâmaso, Sirício e Anastácio.
3. Haverá algo mais perverso e louco do que dizer aos leitores que vão ler as Epís- 3399
tolas escritas às Igrejas: A paz esteja contigo18, e estar separado19 dessas mesmas
Igrejas, às quais essas Epístolas foram escritas?
4. Para que (esse presbítero donatista) não se faça ilusões sobre a ordem dos 3400
bispos da vossa cidade de Constantina, lê-lhe as actas lavradas, a onze das Calendas de
Junho, na presença de Munácio Félix Flamen, quando, durante a perseguição, ele era
procurador perpétuo da vossa cidade, sendo cônsules Dioclesiano pela oitava vez e
Maximiano pela sétima. Nessas actas se consignou, sem ambiguidade, que o bispo
Paulo foi traidor e entregou os livros; que o seu subdiácono Silvano foi traidor com ele,
entregando os instrumentos dominicais, mesmo aqueles que tinham sido escondidos
com todo o cuidado: um vaso de prata e uma lâmpada de prata, até ao ponto de um
certo Vítor lhe dizer: «Se as não tivesses encontrado, terias sido morto». O donatista,
na carta que te escreve, faz uma digna comemoração desse tal Silvano, que começou
por ser um traidor notório e, logo a seguir, foi ordenado bispo de Constantina...
CARTA 54 20

1. Para começar, quereria fazer-te compreender muito bem o ponto capital desta 3401
questão. Nosso Senhor Jesus Cristo, como Ele próprio disse no Evangelho, impôs-nos
um jugo suave e uma carga leve. Foi por isso que, à sociedade nova que Ele fundou, deu
apenas um pequeno número de sacramentos, fáceis de cumprir e ricos de significação,
como, por exemplo, o baptismo consagrado pelo nome da Trindade, a comunhão do
seu Corpo e Sangue e tudo o que mencionam as Escrituras canónicas... Quanto às
coisas que não estão escritas, mas que guardamos por tradição, e que a Igreja observa
em todo o universo, foram recomendadas e estabelecidas pelos próprios Apóstolos ou
pelos concílios gerais... Assim acontece com a Paixão do Senhor, a sua Ressurreição e
Ascensão ao céu, e a vinda do Espírito Santo, que celebramos nos aniversários, e com
qualquer outro costume deste género que seja observado em toda a Igreja universal.
2. Há outras coisas que variam segundo os lugares e as regiões. Assim, uns jejuam 3402
no sábado, outros não; uns comungam diariamente o Corpo e o Sangue do Senhor,
outros apenas em certos dias; nuns lugares não se passa dia nenhum sem oferecer o
sacrifício, noutros só se celebra no sábado e no domingo, e noutros só no domingo.
Todas as observâncias deste género que possamos encontrar nos deixam total liberdade,
e a melhor regra que um cristão sério e prudente deverá seguir é conformar-se com a
prática da Igreja onde estiver. Aquilo que, visivelmente, não vai contra a fé nem contra
os costumes, deve ter-se por indiferente e observá-lo por respeito para com a comunidade
no meio da qual vivemos.

16
A carta 53, dirigida a Generoso, é do ano 400.
17
Mt 16, 18.
18
O presidente da liturgia eucarística dizia aos leitores das Epístolas: A paz esteja contigo.
19
Quem estava separado eram os Donatistas.
20
A carta 54 constitui a resposta de Agostinho às perguntas de um fiel chamado Januário. É do ano 400.
820 SÉCULO V

3403 3. Creio que já alguma vez mo ouviste, mas vou recordar-to de novo. Quando minha
mãe veio, depois de mim, para Milão, descobriu que a Igreja de lá não jejuava no sába-
do. Começou então a perturbar-se e a vacilar na sua prática. Apesar de eu não me
preocupar com essas coisas, por causa dela fui consultar Ambrósio, de feliz memória,
sobre este assunto. Ele respondeu-me que não me podia ensinar mais nada do que
aquilo que ele próprio fazia e que, se tivesse conhecido outra prática melhor, a teria
adoptado. Eu pensei que, pelo facto de não me dar nenhuma razão, queria recomendar-me,
só com a sua autoridade, que não jejuássemos no sábado. Mas ele prosseguiu, dizendo:
«Quando vou a Roma, jejuo no sábado; quando estou aqui, não jejuo. Faz tu também
assim, e, quando fores a uma Igreja, observa os seus costumes, se não quiseres servir
de escândalo a outros ou escandalizar-te com outros». Quando eu disse isto a minha
mãe, aceitou-o de bom grado. Quanto a mim, depois de ter pensado detidamente sobre
esta opinião, considerei-a sempre como um oráculo recebido do Céu. De facto, tenho
sentido com frequência, cheio de dor e pesar, que a obstinação litigiosa e a superstição
assustadiça de certos irmãos causa muitas perturbações aos débeis... Há pessoas que
só sabem promover litígios e só consideram bem feito aquilo que elas próprias fazem.
3404 4. Alguém dirá que a Eucaristia não se deve receber todos os dias. Se lhe perguntas
porquê, responde, dizendo: «Devem escolher-se os dias em que se vive com maior
pureza e continência, para nos aproximarmos com maior dignidade de tão grande
Sacramento, porque quem o comer indignamente, come e bebe a sua própria condena-
ção21». Outro replicar-te-á em sentido contrário, dizendo: «Se a chaga do pecado e a
força da doença são tão grandes, ninguém deve diferir este remédio, a não ser que a
autoridade do bispo o tenha separado do altar para fazer penitência, até ser reconciliado
pela mesma autoridade. De facto, aquele que recebe este Sacramento no tempo em que
está a fazer penitência, recebe-o indignamente. Não depende do seu arbítrio ou capri-
cho deixar a comunhão ou voltar a ela. Se os pecados não são tão grandes que alguém
se possa considerar excomungado, não deve afastar-se do remédio quotidiano do Cor-
po do Senhor». Talvez um terceiro, mais ponderado, pudesse dirimir a contenda entre
ambos, aconselhando-os a permanecerem na paz de Cristo, que é o principal, e a
observar cada um o que julga dever fazer, segundo a sua fé, uma vez que nenhum dos
dois despreza o Corpo e o Sangue do Senhor, mas ambos procuram honrar, na sua
contenda, o Sacramento salutar... Um dos contendores, para o honrar, não se atreve a
comungar diariamente; o outro, para o honrar também, não se atreve a passar dia
nenhum sem ele. A única coisa que esta comida não quer é ser desprezada...
3405 5. Suponhamos que um peregrino se encontra num lugar onde todos perseveram na
observância da Quaresma, sem interromperem o jejum nem tomarem banho na Quinta-
-Feira Santa. Poderá ele dizer: «Hoje não vou jejuar». E, quando lhe perguntarem por-
quê, responderá, dizendo que, nesse dia, não se jejua na sua pátria. Que pretende ele
senão antepor o seu costume ao costume alheio? Não me provará a obrigatoriedade da
sua atitude pelo Livro de Deus, nem me certificará pela voz plena da Igreja universal,
nem me mostrará que o meu costume vai contra a fé e que o seu está de acordo com ela,
nem me convencerá de que o meu modo de agir viola os bons costumes e que o seu os
mantém.
Os que discutem sobre esta questão violam, com as suas disputas supérfluas, a
tranquilidade e a paz. Eu preferiria que, em tais assuntos, nenhum dos dois se afastas-
se da prática que os outros observam, nem aquele na pátria deste, nem este na pátria
daquele. Poderá então acontecer que um venha a peregrinar até outro país, onde o povo
de Deus seja mais numeroso, mais assíduo e mais fervoroso, e veja, por exemplo, que
ali se celebra duas vezes na Quinta-Feira da última semana da Quaresma, isto é, de
manhã e à tarde. Então, ao voltar à sua pátria, onde é costume celebrar só no fim do dia,

21
1 Cor 11, 29.
AGOSTINHO DE HIPONA 821

pretenderá afirmar que tal prática é má e ilícita, dado que viu fazer de outro modo
noutro lugar. Este modo de sentir é pueril. Devemos fugir dele, tolerá-lo nos outros e
emendá-lo em nós.
6. Vê, portanto, a qual destes três grupos pertence a primeira questão que me 3406
puseste na tua carta. Perguntas-me com estas palavras: «Que se deve fazer na Quinta-
-Feira da última semana da Quaresma? Deve oferecer-se (a Eucaristia) uma vez pela
manhã e outra depois da ceia, por causa daquele texto que diz: De igual modo, depois
da ceia22, ou deve jejuar-se e comer-se a ceia depois da oblação, como costumamos
fazer»? A isto respondo que, para saber o que devemos fazer, é preciso realizar o que
está escrito, se a autoridade das divinas Escrituras prescrever alguma coisa. Neste
caso, já não se deve discutir como temos de fazer, mas como devemos adquirir a
inteligência do mistério. Do mesmo modo, seria rematada loucura discutir o que se há-de
fazer, quando toda a Igreja tem uma prática já estabelecida.
Mas, na questão que me pões, não acontece uma coisa nem outra. Donde se
segue que a pergunta pertence à terceira categoria, a das práticas variáveis segundo os
lugares e as regiões. Faça, pois, cada um o que vir fazer na Igreja que visita. Com efeito,
nenhuma dessas práticas vai contra a fé nem contra os costumes, nem estes são melhores
ou piores do que outros. Só por causa da fé ou dos costumes se deve reformar o que se
fazia defeituosamente ou estabelecer o que não se praticava. A mudança duma tradição,
mesmo quando os seus efeitos benéficos possam prestar serviço, provoca alguma
perturbação pela sua novidade. Por isso, toda a mudança que não tenha efeitos benéficos
deve ser considerada prejudicial, pela perturbação estéril que provoca.
7. Quando os discípulos receberam pela primeira vez o Corpo e o Sangue do Se- 3407
nhor, não o receberam em jejum 23.
8. Deveremos então criticar a Igreja por causa disso, uma vez que agora se recebe (a 3408
comunhão) em jejum? Pareceu bem ao Espírito Santo que, para honrar um tão grande
Sacramento, o Corpo de Cristo entrasse na boca do cristão antes de qualquer outro
alimento. Essa é a razão pela qual se observa este costume em todo o mundo. Pelo
facto de o Senhor o ter dado depois de uma refeição, não se segue que os irmãos se
devam reunir para receber o Sacramento depois do almoço ou da ceia, ou devam ligá-lo
imediatamente à sua refeição, como o faziam esses cristãos (de Corinto) que o Após-
tolo repreende e corrige.
De facto, foi para inculcar mais veementemente a grandeza daquele mistério e
para o gravar mais profundamente no coração e na memória dos seus discípulos, que o
Salvador o instituiu em último lugar, no momento de Se despedir deles e de caminhar
para a sua Paixão. Mas não lhes mandou que, daí por diante, se observasse uma ordem
fixa; Ele queria deixar aos Apóstolos o cuidado de regularem essa questão, pois era
através deles que desejava governar as comunidades no futuro.
Se Cristo os tivesse exortado a receber a comunhão sempre depois de outras
refeições, creio que ninguém teria mudado tal costume. O Apóstolo, ao falar deste
Sacramento, disse: Por isso, meus irmãos, quando vos reunirdes para comer, esperai
uns pelos outros. Se algum tem fome, coma em casa, a fim de não vos reunirdes para
vossa condenação. E depois acrescenta: Quanto a outros assuntos, hei-de resolvê-los
quando chegar 24. Por estas palavras devemos entender que ele apenas indicou o que
não varia através da diversidade de costumes, pois seria demasiado querer estabelecer
numa carta todos os pormenores de ordem prática que a Igreja universal observa.

22
Lc 22, 20.
23
Cf. Mt 26, 20-21. 26.
24
1 Cor 11, 33-34.
822 SÉCULO V

3409 9. Esta razão provável agrada a alguns, e permite-lhes oferecer e receber o Corpo e
o Sangue do Senhor depois da ceia, num determinado dia do ano, aquele mesmo em que
o Senhor instituiu essa mesma ceia, e, deste modo, dão relevo à sua significação. Mas
eu creio que é melhor fazer as coisas de tal maneira, que aqueles que jejuam possam
também aproximar-se do Sacramento depois da refeição que tem lugar à hora nona. Por
essa razão, não obrigamos ninguém a comer antes daquela ceia do Senhor, mas também
não ousamos opor-nos a ninguém. Considero, aliás, que isso não está estabelecido,
pois muitos ou quase todos costumam tomar banho nesse dia. Como, porém, alguns
ainda guardam o jejum, de manhã celebra-se por causa dos que hão-de comer, pois não
suportam o jejum e o banho no mesmo dia, e à tarde celebra-se para os que jejuam.
3410 10. Se me perguntas por que nasceu o costume dos banhos, não me ocorre outra
razão, depois de ter pensado nisso, senão esta que considero muito provável: a repug-
nância em tocar, na fonte baptismal, o corpo dos que iam ser baptizados, devido à falta
de higiene provocada pela observância da Quaresma, sem que primeiro se lavassem
nalgum dia. Escolheu-se, como dia mais apropriado para isso, aquele em que é celebrado
o aniversário da Ceia do Senhor. Em virtude de se ter permitido isto aos que iam
receber o baptismo, muitos quiseram tomar banho com eles e interromper o jejum...
CARTA 55 25

3411 2. Perguntas-me a razão pela qual «o aniversário do dia em que se celebra a Paixão
do Senhor não cai sempre no mesmo dia do ano, como sucede com aquele em que,
segundo a tradição, Ele nasceu». Depois acrescentas: «Se isto acontece por causa do
sábado e da lua, que tem a ver com este assunto a observância do sábado e da lua»?
Em primeiro lugar, convém que saibas que o dia de Natal do Senhor não se
celebra como sacramento, mas apenas o recordamos como o dia em que Ele nasceu.
Ora, para isso, bastava assinalar, como festividade, o correspondente dia do ano em
que o facto teve lugar.
Há sacramento numa celebração, quando o modo como se faz a sua comemoração
também leva a perceber que existe algo mais que deve ser recebido santamente26. É
assim que celebramos a Páscoa. Não só recordamos o facto que aconteceu, isto é, que
Cristo morreu e ressuscitou, mas também não omitimos, para significar o sacramento,
as outras coisas que sobre isso nos são garantidas. Diz o Apóstolo: Foi entregue por
causa das nossas faltas e ressuscitou para nossa justificação27. Esta passagem da
morte à vida na Paixão e Ressurreição do Senhor é sagrada.
A própria palavra páscoa não é grega, como costuma pensar-se, mas hebraica,
como o dizem aqueles que conhecem as duas línguas. Nem vem de paixão, que em grego
se diz pa/sxein, mas vem de passagem da morte à vida, como já disse. Na língua
hebraica, passagem diz-se pascha, como dizem os que o sabem. A isso aludiu o próprio
Senhor ao dizer: Quem acredita em Mim, passou da morte para a vida28. O mesmo
quis exprimir principalmente o Evangelista, quando disse, referindo-se à Páscoa que o
Senhor ia celebrar com os seus discípulos e na qual lhes deu a ceia mística: Sabendo
Jesus que tinha chegado a sua hora de passar deste mundo para o Pai29. Portanto, o
que se celebra na Paixão e Ressurreição do Senhor é a passagem desta vida mortal para
outra vida imortal, isto é, da morte para a vida.

25
A carta 55 é escrita a Januário, algum tempo depois da anterior (=Ad inquisitionem Ianuarii libri II).
26
Sacramentum est autem in aliqua celebratione, cum rei gestae commemoratio ita fit ut aliquid etiam
significari intelligitur, quod sancte accipiendum est.
27
Rom 4, 25.
28
Jo 5, 24.
29
Jo 13, 1.
AGOSTINHO DE HIPONA 823

3. Esta passagem realizamo-la nós actualmente pela fé e mantemo-la para a remissão 3412
dos pecados, na esperança da vida eterna, enquanto amarmos a Deus e ao próximo...
Em virtude desta fé, esperança e caridade, pelas quais começamos a estar sob a graça,
já morremos com Cristo e fomos sepultados com Ele pelo baptismo, na morte, como
diz o Apóstolo: O homem velho que havia em nós foi crucificado com Ele e ressuscitou
com Ele30... Daqui procede aquela exortação: Portanto, já que ressuscitastes com
Cristo, procurai as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus. Aspirai
às coisas do alto, e não às da terra31. Logo continua e diz: Vós morrestes e a vossa
vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, a vossa vida, Se manifestar,
então também vós vos manifestareis com Ele na glória32... Isto é o que a Igreja universal,
que se encontra na peregrinação da mortalidade, espera para o fim dos tempos, e que
foi mostrado antecipadamente no corpo de nosso Senhor Jesus Cristo, o primogénito
dos mortos, já que o corpo do qual Ele é a cabeça não é outro senão a Igreja.
4. Alguns, reparando nas palavras: morremos com Cristo e com Ele ressuscitámos, 3413
que o Apóstolo repete com frequência, mas sem entenderem a razão por que são ditas,
pensaram que a ressurreição já aconteceu e que não se deve esperar outra para o fim
dos tempos... Mas o próprio Apóstolo mostra que os rejeita, quando afirma que já
ressuscitámos com Cristo. Porquê? Porque já se realizou em nós a ressurreição pela fé,
esperança e caridade, segundo as primícias do Espírito... Só nos falta a redenção do
nosso corpo, que aguardamos, gemendo dentro de nós mesmos. Por isso se diz: Sede
alegres na esperança, pacientes na tribulação33.
5. Esta renovação da nossa vida é uma passagem da morte à vida, que se realiza em 3414
primeiro lugar pela fé, para nos alegrarmos na esperança e sermos pacientes na tribu-
lação, enquanto o nosso homem exterior vai caminhando para a ruína, e o interior se
renova dia após dia 34. Este é o princípio da vida nova, do homem novo que se nos
manda revestir, enquanto nos despimos do velho 35; assim nos purificamos do velho
fermento, para sermos uma nova aspersão, porque Cristo, nossa Páscoa, foi imolado36.
Por causa desta novidade escolheu-se o primeiro mês do ano para realizar esta celebração.
De facto, chama-se-lhe mês das primícias... A Páscoa celebra-se na terceira semana da
lua, e o seu dia ocorre entre o décimo quarto e o vigésimo primeiro.
6. Aqui está outro Sacramento. Se te parece obscuro, por não estares prático em 3415
tais investigações, não te entristeças. Não penses que eu sou melhor por ter aprendido
estas coisas nos meus estudos de criança...
9. O Espírito Santo... quis que a passagem da vida velha para a vida nova se 3416
celebrasse na lua décima quarta, que se chama Páscoa...
12. Os matemáticos perguntam-nos: Porque celebrais vós a Páscoa a partir do cálcu- 3417
lo do sol e da lua?...
13. Nós não fazemos conjecturas sobre as nossas acções futuras a partir do sol e da 3418
lua, ou da marcha dos meses e dos anos... O que fazemos é outra coisa: para significar
realidades profundas, utilizamos... semelhanças apropriadas, a partir das outras cria-
turas: do vento, do mar, da terra, das aves, dos peixes, dos animais, das árvores, dos
homens, e utilizamo-las com abundância na pregação, mas muito pouco quando se
trata de celebrar os Sacramentos da liberdade cristã: então bastam a água, o trigo, o
vinho e o azeite... Mas não nos dedicamos à observação dos anos, dos meses e dos

30
Rom 6, 6.
31
Col 3, 1-2.
32
Col 3, 3-4.
33
Rom 12, 12.
34
2 Cor 4, 16.
35
Col 3, 9-10.
36
1 Cor 5, 7.
824 SÉCULO V

tempos, para não ouvirmos o Apóstolo dizer-nos: Temo, a vosso respeito, que afinal
tenha sido em vão o trabalho que suportei por vós37... Se utilizamos alguns símbolos
e comparações tomados não apenas do Céu e dos astros, mas também das criaturas
inferiores, é para servir a comunicação dos mistérios..., pois há neles uma certa capa-
cidade para tocar os sentimentos dos discípulos, e para os levar das realidades visíveis
às invisíveis, das corporais às espirituais, das temporais às eternas.
3419 14. Quando celebramos a Páscoa, nenhum de nós quer saber se o sol está em Áries...
A celebração da Páscoa encontrará o sol onde quer que ele se encontre no mês das
primícias, em razão da semelhança sacramental com a vida renovada de que acima falei...
3420 16. Vejamos, então, o motivo pelo qual se procura que a celebração da Páscoa venha
a seguir ao sábado. Isto é próprio da religião cristã, uma vez que os Judeus atendem
apenas ao mês das primícias. A sua única preocupação consiste em que a lua surja entre
os dias décimo quarto e vigésimo primeiro. Aquela Páscoa judaica em que o Senhor
padeceu, exige que entre a sua morte e a sua Ressurreição se interponha um sábado.
Por isso os nossos pais consideraram que devia juntar-se esse dia, para que a nossa
festa se distinguisse da dos Judeus...
3421 17. O que fazemos agora na fé e na esperança, como acima disse, e procuramos
alcançar com amor, é um repouso santo e perpétuo, livre de toda a fadiga e doença. É
desta vida que se faz a passagem para esse descanso, que nosso Senhor Jesus Cristo Se
dignou anunciar e consagrar na sua Paixão. Nesse descanso não há uma preguiça ociosa,
mas uma tranquilidade inefável na acção. Descansa-se das obras no fim desta vida,
para gozar da actividade na outra. Tal actividade emprega-se no louvor de Deus, sem
fadiga do corpo, sem aflição de preocupações...
Como por este repouso se volta à vida primitiva, na qual a alma caiu em pecado,
tal repouso está simbolizado no sábado. A vida primitiva, que se devolve aos que
regressam da peregrinação, juntamente com a primeira veste, é simbolizada pelo pri-
meiro dia da semana, ao qual chamamos domingo. Se leres a descrição dos sete dias do
Génesis, verás que o sétimo não tem tarde, porque simboliza o repouso sem fim. A
vida primitiva não foi eterna para o pecador, mas o repouso último é sempiterno. Por
isso, o oitavo dia é a bem-aventurança eterna. Esse repouso, que é eterno, nasce do
oitavo dia, sem se extinguir; de outro modo, não seria eterno. Assim o oitavo dia será
como o primeiro, porque não nos tira a vida primitiva, mas no-la devolve eterna.
3422 18. Foi recomendado ao primeiro povo que celebrasse o sábado com o descanso
corporal, para que fosse figura da santificação no repouso do Espírito Santo. Nunca
lemos no Génesis qualquer mandato de santificação relativamente aos outros dias
anteriores; só a respeito do sábado se diz: Deus abençoou o sétimo dia e santificou-o 38.
Tanto as pessoas boas como as más gostam do descanso, mas muitas ignoram o
caminho por onde se chega àquilo que amam... Há muitas coisas que dão prazer ao
corpo, mas nas quais não há repouso eterno, nem tão-pouco duradouro... Ao contrário,
quando a alma se deleita em Deus, encontra n’Ele o verdadeiro repouso, certo e eterno,
que buscava noutras coisas e não encontrava. Por isso, se lhe recomenda no Salmo: Põe
no Senhor as tuas delícias, e Ele satisfará os anseios do teu coração39.
3423 19. Manda-se santificar o sétimo dia, em que se recomenda o descanso, porque o
amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi
dado40. Mas não podemos agir bem, se não formos ajudados pelo dom de Deus, como
diz o Apóstolo: É Deus quem, segundo o seu desígnio, opera em vós o querer e o

37
Gal 4, 11.
38
Gen 2, 3.
39
Sal 36, 4.
40
Rom 5, 5.
AGOSTINHO DE HIPONA 825

agir 41. Nem poderemos descansar, depois de todas as boas obras que fizermos nesta
vida, se não formos santificados e tornados perfeitos para a eternidade pelo seu dom.
Por isso, se diz que Deus, vendo toda a obra que tinha feito, a considerou muito boa,
e repousou, no sétimo dia, de todo o trabalho por Ele realizado42. Com isso queria
significar o repouso que nos há-de dar a nós homens, depois das boas obras. Do
mesmo modo que, quando agimos bem, se diz que Ele opera em nós, assim também,
quando descansamos, se diz que Ele descansa, pois descansamos por um dom seu.
20. O primeiro mandamento (da Lei de Deus) refere-se ao Pai. Aí se nos proíbe 3424
adorar toda e qualquer semelhança de Deus entre as ficções dos homens. Isso não quer
dizer que Deus não tenha imagem, mas que nenhuma imagem de Deus deve ser adorada,
a não ser aquela que é igual a Ele (o Filho), e mesmo essa, não devemos adorá-la em vez
do Pai, mas com o Pai...
No terceiro mandamento da Lei, que se refere à observância do sábado, há uma
alusão ao Espírito Santo, porque Deus santificou o sétimo dia, no qual descansou. Isso
não significa que nesta vida nos consideremos já descansados, mas que todas as boas obras
que realizamos hão-de ser feitas com a intenção de chegar àquele descanso sempiterno...
21. O único fim de todo o simbolismo é alimentar e em certo sentido atiçar esse fogo 3425
do amor para que, sob o seu impulso poderoso, elevando-nos bem alto e entrando em
nós mesmos, sejamos admitidos ao repouso. Porque o que nos é sugerido pelos símbolos
toca e acende o coração bem mais fortemente do que se a mesma verdade nos fosse
apresentada sem a misteriosa veste dessas imagens.
Donde vem isso? É difícil dizê-lo. Mas é um facto que tudo o que nos é proposto
por meio de uma alegoria actua mais fortemente, toca mais profundamente e desperta
mais respeito do que se no-lo dissessem em termos próprios e tão abertamente quanto
possível. Creio que a sensibilidade tem preguiça em inflamar-se, enquanto permanece
enredada nas realidades puramente concretas. Mas, se a orientamos para os símbolos
tirados do mundo corporal e, a partir deles, a transportamos para o plano das realidades
espirituais significadas por esses símbolos, ela ganha em vivacidade, pelo simples
facto dessa passagem, e inflama-se mais, como tocha que se agita, de tal modo que uma
paixão mais ardente a arrebata até ao repouso (da visão beatífica e definitiva das
realidades imperecíveis).
22. É por esta razão que, entre os dez mandamentos, só se manda observar simboli- 3426
camente aquele que se refere ao sábado. Propõe-se-nos este símbolo, não para o enten-
dermos, mas para o celebrarmos com o descanso corporal. Com o sábado, porém,
simboliza-se o descanso espiritual, do qual se diz no Salmo: Repousai e vede que Eu
sou Deus43, e para o qual Deus convida os homens, dizendo: Vinde a Mim todos os que
estais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei
de Mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para o
vosso espírito44.
Quanto aos outros mandamentos, devemos observá-los como foram mandados,
sem qualquer outra significação figurada... No Decálogo, só o preceito do repouso é
proposto simbolicamente...
23. O domingo foi proclamado como dia da Ressurreição do Senhor, não para os 3427
Judeus, mas para os Cristãos, e desde então começou a ter a sua festa... Os santos
Patriarcas, cheios de espírito profético ainda antes da Ressurreição do Senhor, conheceram
já esse sacramento do oitavo dia... Contudo, foi um conhecimento reservado e oculto,

41
Filip 2, 13.
42
Gen 1, 31 e 2, 2.
43
Sal 45, 11.
44
Mt 11, 28-29.
826 SÉCULO V

e só foi mandado que se celebrasse o sábado... Mas, quando teve lugar a Ressurreição
no corpo do Senhor..., então já pôde começar a celebrar-se o oitavo dia, que é igual ao
primeiro, isto é, o domingo.
Pelo mesmo motivo se compreende que não lhes tenha sido mandado celebrar a
Páscoa a seguir ao sábado, embora se lhes tenha mandado matar e comer o cordeiro, o
que significa claramente a Paixão do Senhor... O próprio Senhor devia assinalar com a
sua Paixão esse dia, pois viera para declarar festivo o domingo, isto é, o oitavo dia, que
se confunde com o primeiro.
3428 24. Presta agora atenção ao Tríduo sacratíssimo do crucificado, do sepultado e do
ressuscitado 45...
3429 27. Tudo isto se celebra no aniversário da Páscoa, quer pela autoridade das santas
Escrituras, quer pelo acordo da Igreja universal.
Como vês, trata-se de um grande sacramento. Nas antigas Escrituras não se
preceituou um tempo determinado para celebrar a Páscoa, pelo que ela vai desde a lua
décima quarta até à vigésima primeira do mês das primícias. Mas, no Evangelho, são
claros não só o dia em que o Senhor foi crucificado, como também aquele em que esteve
no sepulcro e aquele em que ressuscitou. Além disso, a celebração desses dias foi
preceituada pelos concílios dos Padres, e todo o mundo cristão se persuadiu de que
convinha celebrar a Páscoa desse modo.
3430 28. A Quaresma tem a autoridade dos jejuns: nos livros antigos, pelo jejum de Moisés e
de Elias; no Evangelho, porque o Senhor jejuou durante quarenta dias... Em que parte
do ano poderíamos pôr mais convenientemente a Quaresma do que aproximando-a até
tocar no domingo da Paixão?...
Não foi sem motivo que o Senhor conviveu com os discípulos nesta terra e nesta
vida durante quarenta dias depois da Ressurreição, e depois subiu ao Céu, e enviou,
dez dias depois, o Espírito Santo prometido, no próprio dia de Pentecostes. Este quinqua-
gésimo dia tem também o seu sacramento, uma vez que sete vezes sete são quarenta e
nove, e, se voltarmos ao princípio, que é o oitavo dia e o primeiro, completam-se os
cinquenta.
Estes cinquenta dias celebram-se depois da Ressurreição do Senhor, não como
símbolo de trabalho, mas de repouso e de alegria. Por isso se interrompem os jejuns e
rezamos de pé, o que é sinal da ressurreição. Isso mesmo se observa no altar em todos
os domingos, e canta-se o Aleluia para indicar que a nossa actividade futura será louvar
a Deus, como está escrito: Felizes os que moram em vossa casa, Senhor: podem
louvar-Vos continuamente46.
3431 29. Este quinquagésimo dia é recomendado nas Escrituras, não só no Evangelho, por
ter vindo nesse dia o Espírito Santo, mas também nos livros antigos, segundo os quais,
depois de se ter celebrado a Páscoa com o sacrifício do cordeiro, se contam cinquenta
dias até àquele em que, no monte Sinai, a Lei, escrita pelo dedo de Deus, foi dada a
Moisés, o servo de Deus. Ora bem, nos livros do Evangelho afirma-se claramente que
o dedo de Deus é o Espírito Santo. Um dos Evangelistas diz: Eu expulso os Demónios
pelo dedo de Deus47; outro Evangelista diz o mesmo, deste modo: Eu expulso os
Demónios pelo Espírito de Deus48.
Quem não preferirá esta alegria dos sacramentos, iluminados pela luz sadia da
doutrina, a todos os impérios deste mundo...? Os dois Serafins respondem um ao
outro, cantando os louvores do Altíssimo: Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do universo49.
45
Attende igitur sacratissimum triduum crucifixi, sepulti, suscitati.
46
Sal 83, 5.
47
Lc 11, 20.
48
Mt 12, 28.
49
Is 6, 3.
AGOSTINHO DE HIPONA 827

Do mesmo modo, concordam fielmente um com o outro os dois Testamentos para


cantar a verdade sagrada. Sacrifica-se o cordeiro, celebra-se a Páscoa, e, passados
cinquenta dias, é dada a Lei do temor, escrita pelo dedo de Deus. Do mesmo modo é
sacrificado Cristo, que foi levado como ovelha ao matadouro, segundo o testemunho
de Isaías50; celebra-se a verdadeira Páscoa, e cinquenta dias depois é dado, para a
caridade, o Espírito Santo, que é o dedo de Deus...
30. Onde está o repouso aí está a santificação. Recebemos agora o penhor para 3432
amarmos e desejarmos. Todos são chamados, em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo, a passar da vida presente ao repouso da outra vida, passagem que é simbolizada
pela Páscoa...
32. Estes dois dias, a Páscoa e o Pentecostes, aparecem inalteráveis nas Escrituras. 3433
Para se observarem os quarenta dias antes da Páscoa, foi preciso que a Igreja fortalecesse
o seu costume. Também os oito dias dos neófitos se distinguem de todos os outros,
mas de modo que o oitavo recaia no primeiro. Quanto ao Aleluia não se observa, na
Igreja, o costume de o cantar exclusivamente durante os cinquenta dias; aqui e ali
canta-se também noutros dias. No que respeita ao orar de pé nesses dias e em todos os
domingos, ignoro se tal se observa por toda a parte. Já disse, conforme pude, qual é a
prática da Igreja, e creio que ficou claro.
33. Sobre o lava-pés digo que o Senhor o recomendou por causa do seu aspecto de 3434
humildade... Mas, para não se pensar que ele faz parte do sacramento do baptismo,
muitos recusaram-se a admitir esse costume, outros não tiveram dúvidas em aboli-lo,
e outros ainda, para recomendar o lava-pés num dos momentos mais sagrados, e ao
mesmo tempo o distinguirem do sacramento do baptismo, escolheram, para o cele-
brar..., ou o terceiro dia da oitava ou o próprio oitavo dia.
34. Causa-me surpresa que me peças para te escrever algo sobre aquelas coisas que 3435
se observam de maneira variada em diversos lugares. Não é preciso, e, além disso, tudo
está contido na regra sadia que já citei e a cuja recomendação nos devemos sentir
presos: tudo aquilo que não é contra a fé nem contra os bons costumes e que leva a
melhorar a vida, não devemos combatê-lo onde quer que o vejamos estabelecido ou
saibamos que se estabeleceu; mais ainda, devemos louvá-lo e imitá-lo, se é que o não
impede a debilidade de alguns, ou seja causa de maior prejuízo.
Se, ao implantar esse costume, se puderem esperar dos entendidos, maiores
aplausos do que as prováveis críticas a recear dos caluniadores, sem dúvida há que
promovê-lo, sobretudo se puderem alegar-se em seu favor as Escrituras. Está neste
caso, por exemplo, o canto de hinos e salmos, acerca dos quais temos documentos,
exemplos e preceitos do Senhor e dos Apóstolos.
Sobre esta prática, tão útil para sensibilizar o coração e para acender o afecto do
amor divino, há costumes diversos: a maior parte dos membros da Igreja de África
permanecem indiferentes perante o canto. Por isso os Donatistas nos acusam de que,
na igreja, salmodiamos com moderação os cânticos divinamente inspirados pelos Pro-
fetas, ao passo que eles excitam a sua embriaguez, cantando salmos, harmonizados
com arte musical, como se fossem incitamentos de trombetas.
Se exceptuarmos os momentos em que se fazem as leituras, em que se prega, em
que o bispo reza em voz alta, em que o diácono começa a ladainha da oração comum,
haverá algum momento em que os fiéis reunidos na igreja não devam cantar?
35. Nos outros momentos, não vejo que os cristãos possam fazer coisa melhor, mais 3436
útil ou mais santa. Mas, quanto àquelas coisas que se estabelecem ao lado do costume
e cuja observância se urge como se fossem sacramentos, não posso aprová-las, embora,
por outro lado, não me atreva a reprová-las mais abertamente, para evitar o escândalo

50
Is 53, 7.
828 SÉCULO V

de certas pessoas piedosas ou turbulentas. Mas dói-me vivamente que se descuidem


muitas coisas que estão mandadas para nossa salvação nos livros divinos, e se observem,
ao contrário, numerosíssimos preconceitos; deste modo, repreende-se mais severamente
aquele que toca no chão com o pé não calçado no dia da oitava do seu baptismo, do que
aquele que sepulta a sua mente na embriaguez.
A minha opinião é esta: deveriam eliminar-se, sempre que possível, sem a mínima
hesitação, todas aquelas coisas que não estão contidas na autoridade das santas Escri-
turas, que não foram estabelecidas nos concílios dos bispos ou não estão confirmadas
pelo costume da Igreja universal, e que variam muitíssimo segundo os diversos lugares
e costumes, porque quase nunca ou mesmo nunca se podem averiguar as razões que
levaram os homens a estabelecer tais práticas. Embora não seja possível descobrir
aquilo em que elas vão contra a fé, não deixam de oprimir, através de obrigações servis,
esta religião que Deus, na sua misericórdia, quis livre e que comporta um pequeno
número de sacramentos, de modo nenhum complicados.
A condição dos Judeus era mais tolerável do que uma tal servidão, porque,
apesar de não terem conhecido o tempo da liberdade, pelo menos só se submetiam às
obrigações legais, e não às presunções humanas. Claro está que a Igreja de Deus,
estabelecida entre tanta palha e tanto joio, tem de tolerar muitas coisas; mas ela recusa-se
a aprovar, a aceitar em silêncio e a fazer o que é contra a fé e os bons costumes.
3437 36. As outras coisas que escreveste acerca de certos irmãos que se abstêm de comer
carnes, por as julgarem imundas, vão claramente contra a fé e contra a sã doutrina51...
3438 37. Quanto àqueles que (abrem e) lêem as páginas evangélicas à sorte, é melhor fazer
isso do que ir consultar os Demónios; no entanto, também me desagrada esse costume;
isso é querer aplicar os oráculos divinos aos problemas mundanos e à vaidade desta vida.
3439 38. Se pensas que isto não é suficiente para as perguntas que me fizeste, ignoras
muito as minhas forças e as minhas ocupações. Estou tão longe desse conhecimento
enciclopédico que me atribuis, que não li nenhuma frase da tua carta com maior tristeza
do que essa, porque é totalmente falsa. Admiro-me que não saibas que ignoro muitas
coisas, não só noutras ciências, mas nas próprias santas Escrituras, nas quais é muito
mais o que ignoro do que aquilo que sei. Mas creio que não é vã a esperança que ponho
no nome de Cristo, porque não só acreditei no meu Deus, ao ensinar-me que daqueles
dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas52, mas o experimentei e experi-
mento cada dia, pois nunca descubro nenhum sacramento ou nenhuma palavra mais
obscura nas sagradas Letras, que não encontre também os mesmos preceitos: O objec-
tivo deste preceito é o amor que procede de um coração puro, de uma boa consciência
e de uma fé sincera53; a plenitude da lei é a caridade54.
3440 39. Assim, pois, caríssimo, lê e aprende estas e outras coisas, de modo a recordares
aquele ditado verdadeiro: A ciência incha, mas a caridade edifica55. Além do mais, a
caridade não é arrogante nem orgulhosa56. Por isso, serve-te da ciência como se fosse
um andaime, pelo qual vai subindo a estrutura da caridade, que permanece para sem-
pre, mesmo depois de destruída a ciência57. Se a utilizamos com um fim de caridade, é
muitíssimo útil; utilizada por si mesma, sem essa finalidade, não só é supérflua, mas
também provavelmente prejudicial.

51
Cf. 1 Tim 4, 1-5 e 1 Tito 1, 15.
52
Mt 22, 40.
53
Tim 1, 5.
54
Rom 13, 10.
55
1 Cor 8, 1.
56
1 Cor 13, 4.
57
1 Cor 13, 8.
AGOSTINHO DE HIPONA 829

Sei, porém, que o teu santo pensamento te guarda sob a protecção das asas do
Senhor nosso Deus. Mas indiquei-te isto, embora com brevidade, por estar certo de
que essa tua caridade, que não é invejosa, emprestará e lerá a muitos esta carta.
CARTA 61 58

2. Quando (alguns) vêm até nós do partido de Donato, não recebemos os seus 3441
males, ou seja, a dissenção e o erro, mas tiramos do meio esses males, como impedimentos
que são da concórdia... Reconheço neles os bens de Deus, o santo baptismo, a bênção
da ordenação, a profissão de castidade, o selo da virgindade, a fé da Trindade ou
quaisquer outros. Tinham estes bens, mas nada valiam quando não tinham caridade...
Quando tais Donatistas vêm à Católica, não recebem aqui o que tinham; recebem
o que não tinham, para que comece a aproveitar-lhes o que tinham, pois recebem aqui
a raiz da caridade no vínculo da paz e na companhia da unidade, para que todos os
sacramentos da verdade que possuíam lhes sirvam, não para sua condenação, mas para
sua libertação...
CARTA 63 59

1. Timóteo foi ordenado subdiácono em Subsana contra minha opinião e vontade... 3442
Ainda agora o lamento, embora o tenhas de novo contigo. Não me arrependo de ter
obedecido à tua vontade, enviando-to...
2. Repreendi-o para o emendar a ele próprio, por não te haver obedecido... A seguir 3443
repreendi o presbítero e Verino, quando descobri que eles foram os culpados da orde-
nação. Sob a influência da minha reprimenda, todos confessaram que aquilo fora mal
feito e pediram-me que lhes perdoasse... Depois repreendi primeiro a todos, para que
de futuro não ousem fazer tais coisas..., e, por fim, repreendi particularmente Timóteo...
Já tinha começado a actuar aqui como leitor...
CARTA 64 60

3. Tu próprio não te adiantes a gerar escândalo na igreja, lendo ao povo Escrituras 3444
que o cânone eclesiástico não admite 61... Admira-me muito que possa ser chamado
leitor quem leu as Escrituras uma só vez, e, ainda por cima, as não canónicas. Se, por
ter lido uma vez, já é leitor litúrgico 62, então também aquela leitura deverá chamar-se
eclesiástica. Mas, se aquela Escritura não é eclesiástica, seja quem for que a tenha lido,
mesmo na igreja, não é leitor eclesiástico. Contudo, tenho de ter em conta o que o
citado bispo determinará acerca desse adolescente.
CARTA 98 63

1. Perguntas-me «se os pais prejudicam os seus filhos baptizados, quando procuram 3445
curá-los, oferecendo sacrifícios aos Demónios. E, se não os prejudicam, como pode a
fé dos pais ser útil aos filhos baptizados em criança, uma vez que a infidelidade dos
pais não faz qualquer mal aos filhos»? Acerca disso eu respondo que é tão grande a
virtude deste sacramento, isto é, do baptismo salutar, para incorporar no Corpo de

58
A carta 61, a Teodoro, é dos finais do ano 401.
59
A carta 63, a Severo, é dos finais do ano 401.
60
A carta 64, a Quintiano, foi escrita no ano 401.
61
Vos ipsi prius nolite in scandalum mittere ecclesiam, legendo in populis scripturas quas canon
ecclesiasticus non recepit.
62
Ecclesiasticus.
63
A carta 98, dirigida ao bispo Bonifácio, foi escrita entre os anos 408 e 412.
830 SÉCULO V

Cristo, que a criança, depois de gerada pela volúpia carnal, uma vez regenerada pela
vontade espiritual de outrem, já não pode, em seguida, ser ligada pelos elos da iniquidade
cometida por outro, na qual a sua própria vontade não consente: Todas as vidas Me
pertencem, tanto a vida do pai como a do filho, todos Me pertencem. O que pecou é que
morrerá64. Ora, a alma duma criança não peca quando os seus pais ou outra pessoa
qualquer fazem por sua intenção, sem que ela de modo nenhum o saiba, sacrifícios
demoníacos...
3446 2. Aquele que é apresentado à consagração (do baptismo) pode renascer com a
ajuda65 da vontade de outrem, porque essa é a obra do único Espírito pelo qual é
regenerado aquele que é apresentado. De facto, a Escritura não fala de renascimento da
vontade dos pais, ou da fé daqueles que apresentam ao baptismo, ou que o administram,
mas diz: Quem não nascer da água e do Espírito66. É, pois, a água que manifesta
exteriormente o mistério da graça, e o Espírito que confere interiormente o benefício da
graça..., que regeneram, num só Cristo, o homem nascido de um só Adão. Por conse-
guinte, o Espírito que regenera é comum aos adultos que apresentam a criança e à
criança que é apresentada e que renasce. A vontade daqueles que a apresentam é útil à
criança, apresentada por esta comunidade do mesmo e único Espírito.
Mas, quando os pais pecam contra a criança, oferecendo-a ao Demónio e procu-
rando ligá-la a ele por laços sacrílegos, não há comunidade de alma entre os primeiros
e a segunda, para que possa haver comunidade de falta... Assim, a criança, uma vez que
recebeu a graça de Cristo, não a perde mais, a não ser por sua própria impiedade...
Começa então a levar a responsabilidade dos pecados pessoais, que já não serão apa-
gados pela regeneração, mas serão curados por outro remédio...
3447 5. Não te aflijas se alguns, quando trazem crianças a baptizar, não o fazem com a fé
de que estas vão renascer pela graça do Espírito para conseguirem a vida eterna, mas
pensando que este remédio lhes conservará a vida ou lhes voltará a dar saúde. Não é
por eles as apresentarem com esta intenção que elas serão menos regeneradas. Porque
os ritos necessários e as palavras sacramentais, sem os quais a criança não pode ser
baptizada, são realizados pelo concurso dessas pessoas, mas é o Espírito Santo... que
realiza a sua obra, não apenas através da simples ignorância, mas até da indignidade
culpada de certos ministros. As crianças são apresentadas para receberem a graça
espiritual, não tanto por aqueles que as levam nos braços (embora também por eles, se
são bons fiéis), mas sobretudo pela sociedade universal dos santos e dos fiéis...
Os que apresentam as crianças são todos aqueles para quem é agradável que elas
sejam apresentadas e cuja caridade una e santa concorre para lhes dar a comunhão do
Espírito Santo. É a mãe Igreja toda, que está presente nos seus santos, a agir, pois que
é ela inteira que os gera a todos e a cada um.
Com efeito, se o sacramento do baptismo cristão, por ser único e o mesmo, é
válido entre os próprios hereges e suficiente para os consagrar, apesar de não ser
suficiente para os fazer participar na vida eterna..., com muito mais razão o trigo pode
ser apresentado à purificação na Igreja católica pelo ministério da palha, para ser
introduzido na massa, no meio da eira.
3448 6. Não quero, porém, que te enganes, pensando que o elo da falta herdada de Adão
só pode ser quebrado quando as crianças são apresentadas pelos seus pais, tendo em
vista a graça a receber de Cristo. Dizes tu, com efeito, na tua carta, que «as crianças
devem receber a sua justificação da fé dos seus pais, do mesmo modo que é deles que
recebem os seus males». Ora, se é certo que vês muitas crianças serem apresentadas
pelos pais, algumas são apresentadas também por estrangeiros, como é o caso dos

64
Ez 18, 4.
65
Officium.
66
Jo 3, 5.
AGOSTINHO DE HIPONA 831

senhores... quando apresentam escravos pequenos. Não é raro baptizarmos órfãos apre-
sentados por quem os recolheu por piedade, e por vezes também crianças que certos pais
cruéis abandonam... e que as virgens sagradas recolhem e apresentam ao baptismo...
7. Parece que te puseste a ti próprio uma questão verdadeiramente difícil... Dizes 3449
tu: «Se eu te apresentar uma criança e te perguntar se ela será casta quando for grande,
ou se não se tornará num ladrão, responder-me-ás, sem dúvida: “Não sei”... Se não
ousas dizer nada de seguro a respeito da sua conduta futura..., como é que, quando os
pais apresentam os filhos ao baptismo, enquanto seus garantes, respondem por eles,
dizendo que farão aquilo de que na idade presente não têm qualquer ideia...?
Quando perguntamos àqueles que os apresentam... se “Ele crê em Deus?”, eles
respondem: “Crê”; e a resposta é igual em cada uma das outras perguntas que são
feitas. Admiro-me muito que nestas coisas os pais respondam pelos seus filhos com
tanta segurança, a ponto de dizerem que eles realizarão todos os actos bons, objecto
das perguntas que o ministro faz no momento em que os baptiza; entretanto, se eu
acrescentasse na mesma ocasião: “Aquele que é baptizado será casto e não se tornará
num ladrão?”, não sei quem ousaria dizer que ele será ou não isto ou aquilo, com tanta
segurança como responde acerca da sua fé em Deus e da sua conversão a Deus».
Depois disto, terminas a tua carta acrescentando estas palavras: «Agradeço que
respondas brevemente a estas perguntas, sem te defenderes por detrás do costume,
mas dando-me a razão das coisas».
8. Vou fazê-lo na medida do possível. O Senhor me ajude a responder ao teu pedido. 3450
9. Nós dizemos muitas vezes, ao aproximar-se a festa da Páscoa, que amanhã ou 3451
depois de amanhã é a Paixão do Senhor, quando, na verdade, o Senhor já sofreu há
muitos anos e a Paixão só teve lugar uma vez! Do mesmo modo, no domingo, dizemos: «O
Senhor ressuscitou hoje»; no entanto, quantos anos já passaram desde que Ele ressuscitou!
Porque é que não há ninguém tão louco que nos lance em rosto que tais expres-
sões são mentira? Não será porque designamos estes dias segundo a semelhança que
eles têm com aqueles em que tiveram lugar os acontecimentos em questão?
Nós chamamos «este dia» a um dia que não é o mesmo, mas que lhe é semelhante,
em virtude do ciclo do tempo; o mistério67 que é celebrado leva-nos a dizer que esse é
o dia de um acontecimento que não teve lugar nesse dia, mas sim há já muito tempo.
Não foi Cristo imolado uma só vez? E, no entanto, não é Ele imolado no sacra-
mento, não apenas em todas as festas da Páscoa, mas todos os dias? Estará a mentir
aquele que, interrogado sobre este ponto, responde que Cristo é imolado nesse momento?
Se os sacramenta não tivessem uma certa semelhança com as realidades das
quais eles são os sacramentos, de modo algum seriam sacramenta. É em razão desta
semelhança que eles habitualmente recebem também o seu nome. Do mesmo modo que
o sacramento do Corpo de Cristo é, em certo sentido68, o próprio Corpo de Cristo, e
que o sacramento do Sangue de Cristo é o próprio Sangue de Cristo, assim também o
sacramento da fé (ou seja o baptismo) é a própria fé. Ora, crer não é outra coisa senão ter fé.
Portanto, quando, em vez da criança que não tem ainda sentimento da fé69, se
responde 70 que esta criança crê, queremos dizer que ela tem fé em virtude do sacramento
da fé 71 e que se converte a Deus por causa do sacramento da conversão72, uma vez que

67
Sacramentum.
68
Secundum quemdam modum.
69
Qui fidei nondum habent affectum.
70
Às interrogações prévias ao baptismo.
71
Sacramentum fidei.
72
Sacramentum conversionis.
832 SÉCULO V

esta mesma resposta73 também faz parte da celebração sacramental. É desse mesmo
modo que o Apóstolo diz, ao falar do baptismo: Fomos sepultados com Cristo, pelo
baptismo, na sua morte74. Ele não diz que, pelo baptismo, «representámos a sua
sepultura», mas afirma claramente: Fomos sepultados com Cristo, dando assim ao
sacramento de uma tão grande realidade o nome dessa mesma realidade.
3452 10. É por isso que esta criança se torna um fiel, não por uma fé semelhante àquela
que existe nos homens que acreditam pessoalmente, mas em virtude do sacramento da
fé75. Assim como respondemos que ela crê, assim também lhe chamamos «fiel», não
pelo facto de ela dar o seu assentimento à realidade por um acto pessoal, mas porque
recebeu o sacramento dessa mesma realidade.
Quando a idade da sua razão despertar, não terá de pedir uma segunda vez o
baptismo, mas deverá compreender-lhe o sentido e conformar-se à sua verdade, pondo
a sua vontade em harmonia com ele. Enquanto não for capaz desta actividade pessoal,
o sacramento é eficaz para a proteger contra os poderes inimigos.
E a força do sacramento é tão grande que, se esta criança baptizada vier a deixar
esta vida antes do uso da razão, será, graças ao sacramento, recomendada pela caridade
da Igreja e ajudada por Cristo e, deste modo, salva da condenação que entrou no mundo
pela falta de um só homem.
Quem não crê nisto e julga que tal não pode acontecer é um infiel, mesmo que
possua o sacramento da fé, ao passo que a criança que, sem ter ainda uma fé consciente,
não lhe opõe o obstáculo dum pensamento contrário e recebe, por esse facto, o sacra-
mento com os seus frutos de salvação, é de longe melhor do que ele...
CARTA 106 76

3453 Ouvi dizer que te dispões a rebaptizar um subdiácono nosso. Não o faças...;
desse modo não serão inúteis para ti os sacramentos de Cristo... Com que direito crês
tu que podes rebaptizar, depois de nós termos baptizado?...
CARTA 108 77

3454 1. Os meus caríssimos filhos, homens honrados, que te levaram a minha carta, na
qual te pedia que não rebaptizasses um subdiácono nosso, comunicaram-me que tu
respondeste: «Não posso deixar de acolher e dar a fé que me pedem àqueles que vêm
até mim».
Mas suponhamos que vem ter contigo um que fora baptizado na vossa comunhão,
da qual depois viveu separado durante algum tempo; suponhamos que, por ignorância,
pede para ser rebaptizado e tu lhe perguntas onde foi baptizado: acolhes aquele que
vem a ti; no entanto, não lhe dás a fé que pede, mas informa-lo de que já tem o que pede...
Com que coragem dizes que quem te pede o baptismo não o tem, quando já o
recebera de mim próprio? Será porque se trata de água alheia e de fonte alheia...?
CARTA 111 78

3455 1. Há muito pouco tempo, naquelas solidões do Egipto em que os mosteiros, afas-
tados de todo o tumulto, pareciam estar a coberto de qualquer contingência, os monges

73
Dada provavelmente no momento do consentimento ou da conversão.
74
Rom 6, 4.
75
Sacramentum fidei.
76
A carta 106 foi escrita a Macróbio, no ano 409.
77
A carta 108 foi escrita a Macróbio, no ano 409.
78
A Vitoriano, nos finais de 409.
AGOSTINHO DE HIPONA 833

foram degolados pelos bárbaros. Penso que não ignoras as atrocidades que se cometem
nas Gálias e na Itália, e também começaram a chegar notícias semelhantes das regiões
de Espanha, que, durante tanto tempo, pareciam a coberto de tais males...
7. Gravíssimo e muito de lamentar é o cativeiro das mulheres castas e santas, mas 3456
não está preso o seu Deus nem abandonará as suas cativas, se as reconhecer como suas...
8. Elas nem sequer podem apresentar a oblação diante do altar de Deus nem encon- 3457
trar aí um sacerdote, por meio do qual ofereçam a Deus. O Senhor lhes conceda que
saibam dizer-Lhe o que disse Azarias nas suas preces...
9. Se elas disserem essas orações e se lamentarem diante de Deus, Ele as assistirá. 3458
CARTA 126 79

1. Nenhum hiponense infundiu medo de morte ao nosso santo irmão e teu filho 3459
Piniano, embora ele talvez tenha chegado a temer pela sua vida... Unicamente lançaram
muitas injúrias e indignidades contra o meu irmão Alípio. Oxalá mereçam, pelas suas
orações, ser absolvidos dessa grave responsabilidade. Terminados os primeiros clamores
do povo, eu disse a todos que estava ligado pela promessa de não ordenar Piniano
contra a sua vontade. Acrescentei que, se queriam ter a Piniano por presbítero, violando
a minha lealdade, não me teriam a mim por bispo. Voltei logo para a minha cadeira,
afastando-me do povo. Este, com medo, perturbou-se um pouco pela minha inesperada
repulsa... Mas, depois, começou a excitar-se com maior violência, pensando que era
possível obrigar-me a mim a não cumprir a minha promessa ou a fazer com que outro
bispo ordenasse Piniano... Repeti a quantos pude, aos mais sérios e honrados que
souberam estar comigo na abside, que não podiam mover-me a quebrar a fidelidade que
prometi, nem Piniano poderia ser ordenado por um bispo estranho, numa igreja a mim
confiada, sem o meu consentimento e permissão; e, se o permitisse, do mesmo modo
violaria a minha fidelidade. Acrescentei que ordená-lo contra a sua vontade equivalia a
obrigá-lo a ausentar-se depois de ordenado 80...
2. Eu estava excitado com tamanho alvoroço popular e perturbação da igreja. Mas 3460
nada disse à comissão, a não ser que não podia ordenar Piniano à força. Também não
me obrigaram a induzir Piniano a deixar-se ordenar presbítero, pois também prometera
não o fazer; se eu o pudesse ter persuadido, já não teria sido ordenado contra a sua
vontade. Mantive a fidelidade a ambas as promessas, não só àquela que manifestei ao
povo, mas também à outra que me ligava perante uma só testemunha, no que respeita
aos homens. Guardei, portanto, no meio de tão claro perigo, a fidelidade a uma pro-
messa, não a um juramento... Preocupado pela igreja em que nos encontrávamos,
pensava em retirar-me. Mas tive medo que se me ausentasse, poderia cometer-se o
atropelo que eu temia, por ser menor a reverência do povo e a dor mais viva. Além
disso, se me retirasse com o irmão Alípio pelo meio do povo apinhado, era de temer
que alguém ousasse fazer-lhe violência...
3. Em meio destas angústias e tristezas..., de repente e de modo inesperado o nosso 3461
santo filho Piniano enviou um servo de Deus a dizer-me que estava disposto a jurar
diante do povo que, se o ordenassem contra sua vontade, se retiraria definitivamente
de África... Como Piniano me pedia que fosse vê-lo, não o diferi. Repetiu-me o que
tinha dito, e ainda acrescentou ao juramento o que me tinha mandado dizer por outro
servo de Deus, quando eu já ia a vê-lo, isto é: que, se ninguém lhe impusesse o cargo do

79
A Albina, ano 411.
80
No tempo de Agostinho era proibido ordenar alguém de maneira absoluta, isto é, sem ligar o ordenado a uma
igreja determinada. Essa foi sempre a regra até aos tempos carolíngios. A partir de então, e cada vez mais,
tal regra foi sendo cada vez mais abandonada. Hoje caiu completamente em desuso. Ainda resta, no entanto,
um sinal do antigo costume no chamado título da ordenação, mas num sentido que nada tem a ver com o
original.
834 SÉCULO V

presbiterado contra sua vontade, ficaria aqui. Isto foi como uma brisa suave que me
refrescou em meio de tantas angústias... Dirigi-me ao povo alvoroçado e, mandando
guardar silêncio, manifestei o que Piniano tinha anunciado com promessa jurada. Mas
o povo, que só pensava no presbiterado de Piniano e o desejava, não recebeu a promessa
como eu supusera. Começaram todos a sussurrar entre si e pediram que à promessa e
ao juramento se acrescentasse esta cláusula: que se alguma vez agradasse a Piniano
aceitar livremente a clericatura, não o fizesse senão na Igreja de Hipona. Disse-lho a
ele, e consentiu sem hesitar. Comuniquei-o a todos e alegraram-se, exigindo imediatamente
o juramento prometido.
3462 5. O povo respondeu com um Graças a Deus. Pediram-lhe que assinasse. Despe-
dimos os catecúmenos, e Piniano assinou. Imediatamente o povo pediu aos bispos,
não com gritos, mas por intermédio de alguns fiéis honestos, que assinássemos nós
também. Mas, quando eu começava a pôr a minha assinatura, a santa Melania opôs-se.
Causou-me estranheza que se pensasse que pudessem ficar sem valor a promessa e o
juramento sem a nossa assinatura. Contudo obedeci. Assim ficou sem terminar a minha
assinatura, e ninguém pensou que devia insistir em que subscrevêssemos o escrito...
3463 7. Como dizes tu que eles agiram por torpe apetite de dinheiro?... O povo teve em
conta a sua Igreja, desejando com ardor a aquisição de uma pessoa tão excelente, mas
não pretendeu de vós nenhum interesse pecuniário...
3464 8. Resta, porém, que este apetite torpe do dinheiro recai indirectamente nos cléri-
gos e principalmente no bispo. Há quem pense que nós somos os senhores dos bens da
Igreja, que somos nós que desfrutamos das riquezas. Quero que saibas uma coisa:
todos os bens que nos foram entregues, ou ainda os possuímos ou já os repartimos
como nos pareceu. Não demos nada ao povo que está fora da clericatura e do mosteiro,
mas a um número reduzido de pobres...
CARTA 130 81

3465 15. Porque havemos de nos perder em tantas considerações, procurando saber como
devemos orar e temendo que as nossas orações não sejam como devem ser? Digamos
antes com o salmo: Uma só coisa peço ao Senhor, por ela anseio: habitar na casa do
Senhor todos os dias da minha vida... Para conseguir esta vida bem-aventurada, a
própria Vida verdadeira nos ensinou a orar; mas não ensinou que devíamos pronunciar
muitas palavras...
3466 17. Pode parecer estranho que nos exorte a orar Aquele que sabe perfeitamente o que
nos é necessário, ainda antes de Lho pedirmos. Devemos compreender, porém, que
Deus nosso Senhor não pretende que Lhe dêmos a conhecer os nossos desejos, que
aliás não Lhe podem ser ocultos, mas que exercitemos a nossa vontade... Quanto mais
fielmente acreditarmos, mais firmemente esperarmos e mais ardentemente desejarmos
este dom, mais capazes seremos de o receber...
3467 18. Assim, portanto, havemos de orar, na fé, esperança e caridade, exercitando con-
tinuamente a nossa vontade. Mas devemos orar também com palavras em certas horas
e circunstâncias, para nos estimularmos a nós mesmos por meio destes sinais exteriores...
Desejemos sempre a vida bem-aventurada que o Senhor nos quer dar, e assim
estaremos sempre a orar. Mas, para que se mantenha sempre vivo este desejo, é
necessário pôr de parte, em determinados momentos, todas as outras ocupações e
preocupações...
3468 19. Sendo assim, não devemos considerar inútil ou censurável dedicar longo tempo à
oração, sempre que não estejamos impedidos pelo dever de outras actividades boas e

81
A carta 130, a Proba, é do ano 411 (cf. LH, IV).
AGOSTINHO DE HIPONA 835

necessárias, embora, como foi dito, também nestas se deva orar sempre com o desejo.
Mas orar longamente não é o mesmo que orar com muitas palavras, como pensam
alguns. Uma coisa é a abundância de palavras e outra um amor grande e perseverante.
Está escrito que também o Senhor passava noites em oração e que orava longamente.
Que fazia Ele senão dar-nos o exemplo, quando orava na terra, de ritmar o tempo com
a oração, Ele que, com o Pai, ouve as nossas orações na eternidade?
20. Diz-se que os monges do Egipto fazem orações frequentes, mas muito simples e 3469
breves, rápidas como a flecha que parte 82, a fim de que a atenção do espírito, tão
necessária a quem ora, se mantenha sempre vigilante e desperta e não se debilite ou
chegue mesmo a desaparecer, com os intervalos demasiado longos sem oração. Assim
manifestam claramente que nem se deve forçar a atenção quando ela não se pode
manter, nem se deve interromper quando se pode continuar.
Longe da oração as muitas palavras, mas não falte a súplica insistente, enquanto
perdura o fervor e a atenção. Falar muito na oração é como tratar um assunto necessário e
urgente com palavras supérfluas. Ao contrário, rezar muito significa bater à porta
d’Aquele a quem invocamos, com insistente piedade e ardor de coração. Na verdade,
muitas vezes o fruto da oração alcança-se melhor com gemidos que com palavras, mais
com lágrimas que com discursos. Como diz o salmo, Deus recolhe as nossas lágrimas
e não Lhe são ocultos os nossos lamentos. Ele, que tudo criou por meio da sua Palavra,
não precisa das palavras dos homens.
21. Na oração, as palavras servem para nos estimular e para compreendermos me- 3470
lhor o que pedimos; não pensemos que são necessárias para informar o Senhor ou
forçar a sua vontade.
Quando dizemos: Santificado seja o vosso nome, estimulamo-nos a desejar que
o nome de Deus, que é sempre bendito, seja também honrado como santo entre os
homens... Quando dizemos: Venha a nós o vosso reino, excitamos a nossa aspiração
por aquele reino... Quando dizemos: Seja feita a vossa vontade assim na terra como
no Céu, pedimos ao Senhor que nos dê a virtude para que se cumpra em nós a sua vontade...
Quando dizemos: O pão nosso de cada dia nos dai hoje, a palavra hoje quer
significar o tempo presente, e com a palavra pão pedimos tudo o que é necessário à
nossa subsistência, ou também o sacramento dos fiéis que nos é necessário durante a
vida presente... Quando dizemos: Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós
perdoamos a quem nos tem ofendido, tomamos consciência do que pedimos e do que
devemos fazer para merecermos receber o perdão. Quando dizemos: E não nos deixeis
cair em tentação, animamo-nos a pedir o auxílio indispensável de Deus para não
consentirmos nas insídias da tentação... Quando dizemos: Livrai-nos do mal, recordamos
que ainda não estamos naquele sumo bem, onde já não é possível sofrer qualquer mal...
Tínhamos necessidade destas palavras para gravar na memória todas estas realidades.
22. Quaisquer outras palavras que possamos usar na oração..., nada mais dizem 3471
além do que se encontra já na Oração do Senhor, se de facto oramos como convém... Se
evocas todas as invocações contidas na Sagrada Escritura, creio que nada encontrarás
que não esteja incluído e compendiado na Oração do Senhor...
23. São estes, sem dúvida alguma, os pedidos que havemos de fazer a Deus nas 3472
nossas orações... Nada obsta, porém, que no coração de quem ora brotem intenções
particulares...
24. Aqui tens uma explicação suficiente, quanto me parece, não só sobre o modo 3473
como deves orar, mas também sobre o que deves pedir na oração. Não sou eu que to
ensina, mas Aquele que Se dignou ensinar-nos a todos.

82
À maneira de jaculatórias.
836 SÉCULO V

Temos de buscar a vida bem-aventurada, temos de a pedir a Deus nosso Senhor.


Em que consiste tal vida bem-aventurada?... Encontramos na Sagrada Escritura a res-
posta breve e verdadeira: Feliz o povo cujo Deus é o Senhor... Portanto, a fé, a esperança
e a caridade levam a Deus aquele que orar...
3474 25. Talvez perguntes ainda por que razão diz o Apóstolo: Não sabemos o que
devemos pedir nas nossas orações, uma vez que é impossível pensar que ele ou
aqueles a quem se dirigia desconhecessem a Oração do Senhor. Na verdade, também o
Apóstolo experimentou a sua incapacidade de pedir o que convém...
3475 26. Certamente, nas tribulações... não sabemos o que devemos pedir... Mas confiemos
em Deus nosso Senhor. Se Ele não afasta de nós tais provações, nunca pensemos que
Ele nos abandona... Portanto, se alguma coisa acontece contra o que pedimos na ora-
ção, nunca duvidemos de que o mais vantajoso é o que acontece segundo a vontade de
Deus e não segundo a nossa, e suportemos com paciência tal contrariedade, dando
graças a Deus por tudo. Temos nisto o exemplo do nosso divino Mediador...
3476 27. Quem só pede ao Senhor a bem-aventurança e só por ela anseia, pede com
segurança e certeza e não teme receber com ela qualquer dano, porque pede aquilo sem
o qual de nada lhe serviria qualquer outra coisa que recebesse, orando como convém.
Esta é a única verdadeira vida, a única vida bem-aventurada: contemplar eternamente a
bondade do Senhor... Só por causa desta felicidade se buscam outros bens, só com esta
finalidade se pede como convém... Ali está a fonte da vida, da qual agora sentimos sede
na oração... Mas, como essa vida é a paz que supera todo o entendimento, também
quando a pedimos na oração, não sabemos o que pedimos...
3477 28. Há em nós, por assim dizer, uma douta ignorância; douta, sem dúvida, porque
instruída pelo Espírito Santo, que vem em auxílio da nossa fraqueza... Isto não há-de
entender-se como se o Espírito Santo de Deus, que na Trindade santíssima é Deus
imutável, um só Deus com o Pai e o Filho, intercedesse pelos santos como alguém que
não fosse Deus... Efectivamente, o Espírito de Deus move os santos a interceder com
gemidos inefáveis, inspirando-lhes o desejo daquela sublime realidade ainda desconhecida,
mas que esperamos com perseverança...
CARTA 137 83

3478 18. Quanto à maneira de ensinar com que a Sagrada Escritura se reveste, a todos é
acessível ainda que seja compreendida por poucos. Como se fosse um amigo familiar,
exprime, sem rodeios, perante o coração dos doutos e menos doutos, as verdades
manifestas que contém. Mas, mesmo esses mistérios que esconde, não os envolve com
linguagem orgulhosa, para que o entendimento, torpe ou falho de preparação, não se
atreva a acercar-se, como um pobre que se aproxima de um rico. Pelo contrário, a todos
convida com palavras humildes, não só para os alimentar com verdades manifestas,
mas também para os exercitar nas ocultas. Ela apresenta, nas passagens claras, a
mesma doutrina que nas fórmulas obscuras.
Mas, para que as verdades claramente ensinadas não nos causem aborrecimento,
pouco depois são veladas de novo e assim se fazem desejar; suscitando assim o nosso
desejo, elas revestem um carácter de novidade e, assim renovadas, apresentam-se a nós
de maneira agradável. Este processo salutar oferece uma correcção aos que andam
perdidos, um alimento aos pouco inteligentes e um deslumbramento aos espíritos
elevados. Só é inimiga desta doutrina aquela alma que, por erro, ignora que esta é a
doutrina salvadora, ou que, por enfermidade, aborrece o remédio.

83
A carta 137 foi escrita a Volusiano, no ano 412.
AGOSTINHO DE HIPONA 837

84
CARTA 138

7. Seria demasiado longo estudar convenientemente a variedade dos símbolos que, 3479
por pertencerem à Divindade, se chamam sacramentos. O homem não é mutável por
oferecer um dom pela manhã e outro pela tarde, um neste mês e outro no mês seguinte,
um neste ano e outro num ano diferente. Do mesmo modo, Deus não é mutável porque
no primeiro século da história universal mandou que se oferecesse uma coisa e no
segundo outra coisa diferente. Por esta forma de agir, essas realidades tornaram-se
muito apropriadas à doutrina da salvação, dispostas segundo a mutabilidade dos tem-
pos, sem mudança alguma por parte de Deus. Os que acham isso estranho, devem
saber que já assim estava determinado na mente divina: quando aparecem novos suces-
sos, ninguém pense que Deus Se desgostou depressa do anterior, como se tivesse
mudado a sua divina vontade, mas que já estava determinado e estabelecido na própria
sabedoria de Deus que assim fosse... Esta mudança dos sacramentos do Antigo Testa-
mento e do Novo também estava anunciada nas predições proféticas...
8. Parece ficar assim provado que o que se estabelece com rectidão em determinado 3480
tempo pode mudar-se noutro tempo, por decisão de quem o manda... Era preciso
anunciar Cristo nos sacramentos antes de Ele vir, e anunciá-l’O com outros depois de
ter vindo, do mesmo modo que, ao dizer agora a mesma coisa, me vi obrigado, por
necessidade, a mudar de palavras. Porque uma coisa é predizer e outra anunciar. A
primeira faz-se a respeito do futuro, e a segunda a respeito do presente...
10. O que é a república senão o interesse do povo? O interesse comum é interesse da 3481
cidade. E que é a cidade senão uma multidão reunida pelo vínculo da concórdia?...
14. Não há coisa tão infeliz como a felicidade dos pecadores. Só que os corações 3482
perversos e desviados consideram feliz a ordem humana, prestando atenção à beleza
dos edifícios e não à ruína das almas, construindo teatros sumptuosos e minando os
alicerces das virtudes, glorificando a loucura dos combates e rindo-se das obras de
misericórdia, saciando os histriões com o que sobra aos ricos, ao passo que os pobres
não têm sequer o necessário...
15. Os que dizem que a doutrina de Cristo é inimiga da república, dêem-nos um 3483
exército de soldados como o exige a doutrina de Cristo. Dêem-nos tais provedores, tais
maridos, tais cônjuges, tais pais, tais filhos, tais senhores, tais servos, tais reis, tais
juízes, tais cobradores de impostos e das dívidas do fisco, como os quer a doutrina
cristã, e atrevam-se a dizer que ela é inimiga da república...
16. Qual a razão por que hei-de responder aos que dizem, que ocorreram muitos 3484
males ao Império romano por obra de alguns imperadores cristãos? Um lamento tão
geral há-de ser calunioso. Se citassem com clareza alguns factos dos imperadores
romanos recentes, também eu poderia citar coisas semelhantes e mesmo maiores dos
imperadores não cristãos. Todos entenderiam que não se trata de doutrinas, mas de
vícios de homens, ou que não se trata dos imperadores, mas dos subordinados, sem os
quais os imperadores nada podem fazer. Está bem claro o tempo em que começou a
decadência do Império romano. Disso nos falam os seus próprios livros. Muito antes
de o nome de Cristo se difundir pelo mundo, já se dizia: «Oh cidade venal, depressa
perecerias se achasses comprador»!...
17. Dêmos graças ao Senhor nosso Deus, que enviou um socorro singular contra 3485
essas desventuras. Para onde nos teria arrastado, a quem não teria envolvido, em que
abismo não nos teria submergido essa torrente de imoralidade do género humano, se no
mais visível e firme não se tivesse firmado a cruz de Cristo com todo o peso da sua
autoridade?... Deus mostrou no opulento e célebre Império romano quanto valem as

84
A carta 138, escrita a Marcelino, é do ano 412.
838 SÉCULO V

virtudes cívicas, mesmo sem religião verdadeira, para que se entenda que, se a religião
verdadeira se une a elas, faz dos homens cidadãos de outra cidade, cujo rei é a verdade,
cuja lei é a caridade, cuja norma é a eternidade.
3486 18. Quem não julgará digno de riso comparar Apolónio... e outros especialistas em
artes mágicas a Cristo?...
CARTA 139 85

3487 1. Espero, impaciente, as actas que tua excelência me prometeu e que eu desejo que
se leiam na igreja de Hipona e, se for possível, em todas as igrejas erigidas nesta
diocese. Todos ouvirão e reconhecerão os confessores da iniquidade, aos quais não
move a penitência e o temor de Deus, mas cuja dureza e crueldade de coração foram
postas a claro pelas diligências judiciais... Publiquem-se as actas e cheguem ao conhe-
cimento de todos. A tua eminência escreveu que duvidava se deveria mandar afixar as
actas na igreja de Teoprepia. Faça-o, se ali se reunir uma multidão numerosa; caso
contrário, há que pensar em lugar mais concorrido. Mas em caso algum deve deixar de
fazer-se.
3488 2. Peço-te que a sua pena, apesar de terem confessado tantos crimes, não seja de
morte, tanto por causa da nossa consciência como para recomendar a mansidão católica.
Já nos bastam os frutos da confissão dessa gente, e a Igreja católica pode, entretanto,
manter e exercitar a caridade para com os seus inimigos sanguinários...
CARTA 140 86

3489 48. Os filhos da promessa são os filhos do benefício. Esta graça é dada gratuitamente,
não pelos méritos de quem trabalha, mas por misericórdia de quem dá. Por isso, damos
graças a Deus nosso Senhor, no sacrifício do Novo Testamento, que é um grande
mistério. Quando fores baptizado, aprenderás onde, quando e como se oferece esse
sacrifício.
CARTA 142 87

3490 4. Cumpri fiel e alegremente os ofícios eclesiásticos88 que vos pertencem, segundo
os vossos graus, e exercei dignamente o vosso ministério, em nome de Deus, sob o
qual, convosco, somos servos... O Senhor vos conserve em paz.
CARTA 149 89

3491 1. O Senhor alegrou-nos com a feliz chegada do nosso irmão e co-presbítero Quinto...
Respondo com esta carta..., aproveitando a oportunidade da próxima viagem do nosso
filho e co-diácono Rufino...
3492 12. Mais difíceis de compreender são as palavras que o Apóstolo utiliza ao escrever
a Timóteo: Recomendo, pois, antes de tudo, que se façam preces, orações, súplicas e
acções de graças por todos os homens...
3493 16. Prefiro entender essas palavras como toda ou quase toda a Igreja as utiliza.
Assim, chamamos preces90, as que fazemos na celebração dos Sacramentos, antes de

85
A carta 139, escrita a Marcelino, é de Maio de 412.
86
A carta 140, escrita a Honorato, é do ano 412.
87
A carta 142, escrita a Saturnino e a outros clérigos, é do ano 412.
88
Trata-se de dois presbíteros e vários clérigos que se converteram à unidade e paz de Cristo na Igreja católica.
89
A carta 149, escrita a Paulino de Nola, é do ano 414.
90
Precationes (=Oração dos fiéis).
AGOSTINHO DE HIPONA 839

começar a ser abençoado aquilo que está na mesa do Senhor; orações91 quando se
bendiz, se santifica e se parte para distribuir, petição que quase toda a Igreja conclui
com a Oração dominical 92...
Dedicam-se todas as coisas que se oferecem a Deus, em especial a oblação do
altar; com este sacramento do altar anuncia-se esta nossa máxima dedicação, pela qual
nos comprometemos a permanecer em Cristo, quer dizer, na união do Corpo de Cristo.
Dessa realidade é sacramento simbólico o altar...
As interpelações93 ou, como escrevem os vossos códices, as súplicas94, fazem-se
quando se abençoa o povo: nesse momento, os bispos, como se fossem advogados,
oferecem os seus protegidos ao poder misericordioso, pela imposição das mãos.
Feito isso, e depois de participar em tão grande sacramento, conclui-se tudo com
a acção de graças95, que é também a última palavra recomendada pelo Apóstolo...
22. Que haveríamos de dizer das criancinhas, que na sua maior parte recebem nessa 3494
idade o sacramento da graça cristã, e, sem dúvida, pertenceriam à vida eterna e ao Reino
dos Céus, se deixassem imediatamente esta vida, e que, no entanto, deixamos crescer,
vindo algumas a tornar-se apóstatas?..
CARTA 150 96

A vossa santidade virginal rapidamente se tornou conhecida em toda a parte... 3495


Quem explicará com palavras... que é incomparavelmente mais glorioso o facto de
haver mulheres virgens... que se dedicam a Cristo, do que haver cônsules no mundo? Se
é grande e nobre assinalar com o próprio nome os ciclos do tempo, quanto mais nobre
e glorioso não será transcender os tempos com a integridade do coração e do corpo?
Alegre-se, por isso, a jovem, nobre pela sua linhagem, mas mais nobre ainda pela
sua santidade, porque há-de receber, nos Céus, uma grande riqueza pela sua união com
Deus, muito mais do que se propagasse uma descendência sublime pela sua união com
um homem... Com a maior gratidão recebemos o apoforeto 97 da tomada de véu.
CARTA 151 98

9. Certo dia, quando já estavam detidos na prisão, disse-lhe o irmão: «Se eu padeço 3496
isto por culpa dos meus pecados, por que razão te alcançaram a ti estes males, pois
conhecemos a tua vida, tão atenta e fervorosamente cristã»? O outro respondeu-lhe:
«Pensas que Deus me concede pequeno benefício, se o testemunho que dás da minha

91
Orationes (=Oração eucarística).
92
Sed eligo in his verbis hoc intelligere, quod omnis vel pene omnis frequentat Ecclesia, ut precationes
accipiamus dictas, quas facimus in celebratione Sacramentorum, antequam illud quod est in Domini
mensa incipiat benedici: orationes, cum benedicitur et sanctificatur, et ad distribuendum comminuitur,
quam totam petitionem fere omnis Ecclesia dominica oratione concludit.
93
Interpellationes (=Súplicas).
94
Postulationes (=Bênçãos).
95
Oração depois da Comunhão.
96
A carta 150, escrita a Proba e Juliana, é dos finais de 413.
97
Os Romanos chamavam apophoretum aos presentes que os convidados das festas levavam consigo depois
do banquete. Os cristãos conservaram esse costume. Podemos ainda hoje reconhecê-lo no pedaço de bolo
de noiva que os amigos mais íntimos levam para casa depois do jantar do casamento, ou na flor tirada do
andor de um santo, depois da procissão, e levada para casa.
98
A carta 151, escrita a Ceciliano, é dos finais de 413. Ceciliano era um catecúmeno, amigo do conde Marino,
que mandara matar, sem provas de culpabilidade, dois irmãos que tinham sido falsamente denunciados
pelos Donatistas. Um deles, Marcelino, virá a ser honrado como mártir. A sentença provocou tão mal-estar,
que levou o Imperador Honório a demitir o conde Marino do seu posto. Agostinho desconfia das
responsabilidades de Ceciliano no crime. Mas não o diz de maneira clara, por não ter provas.
840 SÉCULO V

vida for verdadeiro e se, através daquilo que sofro, mesmo que chegue ao derramamento
do meu sangue, forem castigados aqui os meus pecados e não fiquem reservados para
o juízo futuro»?
Talvez alguém pense que ele tinha consciência de alguns pecados ocultos de
impureza. Direi, por isso, o que o Senhor Deus quis que eu ouvisse da sua boca e
soubesse com evidência para minha grande consolação. Estando eu preocupado com
essa resposta, pois são coisas humanas, falei a sós com ele quando já estava na prisão,
não fosse acaso necessário que ele aplacasse a Deus com uma penitência maior e mais
rigorosa. Ao escutar a minha falsa suspeita, corou, pois era de uma modéstia singular.
Recebeu com grande complacência a minha admoestação, sorriu com doçura e gravidade
e, tomando a minha direita entre as suas duas mãos, disse-me: «Juro, pelos sacramentos
que estas mãos tocam, que nunca dormi na cama com outra mulher além da minha
esposa, nem antes nem depois (do casamento)».
3497 12. Não quero que a vossa amizade seja de tal modo, que ele99 se glorie do seu crime
para sua perdição e se confirme a suspeita humana (a vosso respeito), mas desejo que
seja uma amizade que o leve a ele a fazer penitência, tão grande e tão rigorosa, como o
exigem feridas tão horrorosas. Serás tanto mais seu amigo, quanto mais inimigo fores
dos seus delitos. Seria por isso curioso saber, por carta tua, onde estavas no dia do
crime, como recebeste a notícia, que fizeste depois, ou que disseste ao juiz quando o
viste, e que te disse ele a ti. Porque eu, desde o dia seguinte em que parti a toda a
pressa, nada mais pude ouvir sobre o assunto...
3498 14. Se queres que te diga a verdade, há uma coisa que me desagrada muito em ti, e é
esta: apesar da tua idade e da honradez da tua vida, continuas a querer ser catecúmeno,
como se os fiéis, por serem mais fiéis e melhores, não pudessem administrar melhor e
com mais fidelidade as coisas públicas. Que procurais vós com tantos trabalhos e
preocupações da vossa parte, senão o bem-estar dos homens? Com efeito, se não
fazeis isso, o que fazeis é dormir para vossa maior satisfação, de dia e de noite, mais do
que velar pelas coisas públicas, sem servir em nada os interesses dos homens...
CARTA 153 100

3499 2. Na medida em que isso nos é permitido, intercedemos por todos os pecados,
porque todos os pecados parecem veniais, quando o réu nos promete corrigir-se. Esta
é a tua opinião, e também a minha.
3500 3. Não aprovamos as culpas que desejamos corrigir, nem queremos que fique sem
castigo quem faz o mal, pelo facto de isso nos agradar, mas porque temos compaixão
do homem e detestamos o seu crime, a sua maldade; quanto mais nos desagrada o vício,
tanto menos queremos que o vicioso apareça sem emenda. É coisa fácil e natural odiar
os maus, porque são maus; raro e piedoso é amá-los, porque são homens... Por isso,
por caridade para com o género humano, vemo-nos compelidos a intervir em favor dos
réus, para que... não acabem a sua vida no suplício sem fim...
3501 6. A alguns, cujos crimes são manifestos, e que livramos da vossa severidade,
separamo-los da comunhão do altar, para que, com a sua penitência, possam aplacar
Aquele a quem ofenderam com os seus pecados e se castiguem a si mesmos. Quem está
verdadeiramente arrependido não faz outra coisa senão negar-se a que fique na impu-
nidade a obra má que realizou. Deste modo, àquele que se castiga a si próprio perdoa-o
Aquele cujo grande e justo juízo ninguém pode enganar...
Perdoa a alguns iníquos e facínoras e concede-lhes a salvação e a vida, mesmo à
maior parte daqueles que sabe que não irão fazer penitência. E, se Ele mostra tanta

99
O conde Marino, que condenou os dois prisioneiros à morte.
100
A carta 153, escrita a Macedónio, é do ano 414.
AGOSTINHO DE HIPONA 841

paciência, quanto mais devemos nós ser misericordiosos com aqueles que prometem
emendar-se, ainda que ignoremos se farão o que prometem, para deter o vosso rigor?
Intercedemos por aqueles por quem oramos com simplicidade ao Senhor, que conhece
perfeitamente as suas obras, mesmo as futuras, pois Ele no-lo ordenou.
7. Mas a iniquidade dos homens por vezes é tão grande que, depois de feita a 3502
penitência e depois de reconciliados com o altar, voltam a cometer crimes semelhantes
ou maiores. E, apesar disso, Deus faz nascer também sobre eles o seu sol e continua a
conceder-lhes, como antes, os dons abundantes da vida e da saúde. E, ainda que, na
Igreja, não haja para eles lugar de humilhação e penitência, Deus não Se esquece de ser
paciente com eles...
Foi prudente e saudável a determinação de se conceder uma só vez, na Igreja,
aquele lugar de humilhação e penitência, para que o remédio não viesse a tornar-se
desprezível e pouco útil para os doentes...
10. Sei que tu próprio, com outros amigos, intercedeste na Igreja de Cartago por um 3503
clérigo com o qual o bispo estava justamente irritado... E bem sabeis que, quando
desejáveis deixar impune uma culpa que também vos desagradava a vós, não vos
considerávamos aprovadores do delito, mas vos escutávamos como intercessores cheios
de humanidade. Se, portanto, vos é lícito a vós mitigar com a vossa intercessão um
castigo eclesiástico, não deverá um bispo deter a vossa espada... que se desembainha
para que alguém deixe de viver?
15. Depois da abolição dos pecados, que se realiza no baptismo, tudo o que peca- 3504
mos por continuarmos nesta vida, mesmo que não seja tão grave que nos afaste à força
do altar divino, expia-se não com uma dor estéril, mas com sacrifícios de misericórdia...
21. Quando sabemos que alguém adquiriu mal alguma coisa e não a quer restituir 3505
podendo fazê-lo, acusamos, repreendemos, ordenamos; a uns em segredo, a outros
publicamente, pois a diversidade de pessoas exige remédios diversos, a fim de não
incitar a maiores desacatos em prejuízo de outros. Por vezes, se o não impede alguma
coisa de que há que ter cuidado, privamo-los da comunhão do santo altar.
CARTA 158 101

1. Tive aqui como secretário um rapaz, filho de Armeno, presbítero de Molona... 3506
Tinha muita habilidade para tomar notas e redigia-as muito bem...
2. Caiu doente em casa de seus pais... e, durante a sua doença, que durou dezasseis 3507
dias, só falava das Escrituras... Quando começou a aproximar-se do fim da vida, reci-
tava salmos que todos escutávamos... Ao entrar em agonia, fez o sinal da cruz na
fronte... Morreu e fizemos-lhe exéquias muito solenes, dignas de alma tão grande:
durante três dias cantámos hinos ao Senhor sobre o seu sepulcro e, ao terceiro dia,
oferecemos os sacramentos da redenção...
CARTA 166 102

10. Ensina-me o que hei-de ensinar, ensina-me o que hei-de manter. Diz-me se as 3508
almas são criadas uma a uma para cada um dos que nascem, e diz-me onde pecam as
crianças para precisarem do sacramento de Cristo em remissão do seu pecado... E, se
não pecam, diz-me com que justiça as liga o Criador ao pecado alheio... Colhe-as a
condenação, se a Igreja não lhes dá remédio, embora não esteja em poder delas que a
graça do baptismo lhes dê remédio.

101
A carta 158, dirigida pelo bispo Evódio a Agostinho, é do ano 414. Tem muito interesse por mostrar a
importância do sinal da cruz, da celebração das exéquias cristãs e da missa pelos defuntos.
102
A carta 166 foi escrita a S. Jerónimo, na Primavera de 417.
842 SÉCULO V

Diz-me com que justiça são condenados tantos milhares de almas de crianças,
que saem dos seus corpos sem a indulgência do sacramento cristão... O Criador criou-as
e infundiu-as nos corpos, para lhes dar vida. E Deus bem sabia que cada uma delas
haveria de sair do corpo sem pecado pessoal, mas também sem o baptismo de Cristo.
Não podemos afirmar que Deus obriga as almas a tornarem-se pecadoras, nem tão
pouco que as castiga sendo inocentes. Mas também não podemos negar que se saem do
corpo sem o sacramento de Cristo, mesmo que se trate de crianças, são arrastadas para
a condenação...
3509 13. A arte do canto é um dom da liberalidade divina e o sinal de algo muito grande...
O artista que compõe um poema sabe que tempos deve dar a cada voz, para que os
sons daquilo que se canta se vão sucedendo uns após outros... Mas a sabedoria divina,
pela qual foram criadas todas as coisas, é muito superior a todas as artes...
3510 16. Essas e outras razões que posso compreender à minha maneira, repito-as eu
contra aqueles que pretendem destruir a opinião dos que crêem que todas as almas
foram criadas à semelhança da primeira. Mas, quando chego ao castigo das crianças,
acredita que me oprime a angústia, e não sei de modo nenhum o que hei-de responder.
E não me refiro somente ao castigo que a condenação traz consigo depois desta vida, ao
qual vão parar necessariamente as crianças que morrem sem o sacramento da graça
cristã. Refiro-me também aos castigos que nesta vida passam as crianças diante dos
nossos olhos cheios de dor, e que são tão custosos de enumerar...
Deus é bom, é justo, é omnipotente, e duvidar disso seria loucura. Diz-me, pois,
a causa justa de todos estes males que se verificam no mundo. Quando se trata dos
adultos, costumamos dizer ou que Deus examina os seus méritos..., ou que castiga os
seus pecados... Mas isso vale só para os adultos. Ensina-me o que hei-de responder em
relação às crianças, se nelas não há pecado que mereça ser castigado com tantas penas.
Porque, nessa idade, não há nenhuma justiça que possa ser examinada...
CARTA 170 103

3511 2. Ao saudar a tua Caridade na paz do Senhor, ordenamos-te e rogamos-te que não
demores em ensinar-lhes o que aprendeste, isto é, que há um só Deus, ao qual se deve
aquele serviço que, em grego, se chama latrei/a. Esta palavra está na Lei, onde vem
escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás104, a Ele só servirás105. Se chamarmos Deus
apenas ao Pai, replicar-se-á que não se deve o culto de latria ao Filho, e não é lícito
dizê-lo... Deus é um só..., mas de tal modo que o Pai, o Filho e ainda o Espírito Santo
são um só Deus. Acerca do Espírito Santo, diz o Apóstolo: Não sabeis que o vosso
corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós, porque o recebestes de Deus, e
que já não vos pertenceis? Fostes comprados por um alto preço! Glorificai, pois, a
Deus no vosso corpo106... Deve-se, pois, o culto de latria ao Espírito Santo...
3512 3. O culto de latria é devido ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo..., e nós prestamos-lh’O.
Com efeito, o Senhor nosso Deus, a quem exclusivamente devemos o culto de latria,
não é só o Pai, nem só o Filho, nem só o Espírito Santo, mas a própria Trindade, um
só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. O Pai não é a mesma Pessoa do Filho, nem o
Espírito Santo é o Pai ou o Filho, pois naquela Trindade, o Pai só o é do Filho, o Filho
só o é do Pai, e o Espírito Santo é o Espírito do Pai e do Filho.
3513 10. Alegrámo-nos pelo facto de te teres incorporado, na nossa presença e com grande
júbilo do povo de Deus, nesta fé católica e verdadeira. Mas porque havemos de nos

103
A carta 170 foi escrita a Máximo, no ano 415.
104
latreu/ s eij.
105
Deut 6, 13.
106
1 Cor 6, 19-20.
AGOSTINHO DE HIPONA 843

entristecer pela indolência dos teus? Pedimos-te, pela misericórdia de Deus..., que tires
essa tristeza do nosso coração... Reza por eles e insiste com eles. Mais ainda, leva-os à
casa de Deus contigo, pois estão contigo em tua casa; não sejas preguiçoso em vir à
casa de Deus com eles, pois costumavam reunir-se contigo em tua casa.
Tem em conta que a Igreja-mãe te pede que lhe tragas uns e lhe devolvas outros.
Pede-te os que estão contigo e reclama de ti aqueles que abandonaste. Não a atormentes
com perdas, alegra-a antes com ganhos. Que ela adquira filhos que não teve, e não
tenha de chorar os que teve. Pedimos a Deus que faças o que te pedimos. E esperamos
da sua misericórdia que, com a carta do nosso santo irmão e bispo connosco Peregrino
e com a tua resposta, depressa se encherá de gozo o nosso coração e a nossa língua de
louvores, por este êxito.
CARTA 175 107

1. Segundo o costume, reunimo-nos solenemente na igreja cartaginesa para celebrar 3514


um Sínodo, para o qual nos convocaram por diversas causas. O nosso co-presbítero
Orósio entregou-nos cartas dos nossos santos irmãos e co-sacerdotes... Depois de
lidas, denunciámos Pelágio e Celéstio como autores dum crime notório e dum erro que
todos devemos anatematizar...
2. Feito isto, senhor e irmão, decidimos dar conhecimento à tua santa Caridade, 3515
para que ao estabelecido pela nossa mediocridade se junte a autoridade da Sé Apostólica...
5. Estes hereges, com a sua disputa, colocam-se em contradição com as nossas 3516
bênçãos 108, como se disséssemos invocações vãs sobre o povo, ao pedirmos a Deus
que os fiéis Lhe agradem, vivendo com rectidão e piedade... Suponhamos que queremos,
ao abençoar, fazer uma invocação sobre o povo dizendo: «Concedei-lhes, Senhor, que
sejam fortalecidos pelo vosso Espírito». Estes, com a sua disputa, irão contradizer-nos,
afirmando que se nega a liberdade, quando se pede a Deus o que depende das nossas
forças...
6. Negam também que devamos baptizar as crianças para obterem a salvação que 3517
nos vem por Cristo Salvador; desse modo, matam-nas para sempre com tão mortal
doutrina, prometendo-lhes a vida eterna mesmo que não se baptizem... Segundo estes
hereges, as crianças não perecem, nem têm nada a salvar ou a redimir por tão alto
preço; nada há viciado nelas, nada há cativo sob o poder do Diabo, e não foi derramado
por elas aquele sangue que, como lemos, foi derramado em remissão dos pecados...
CARTA 179 109

4. Com estas disputas perversas e ímpias contradizem-se as orações em que pedi- 3518
mos a Deus tudo o que lemos e cremos que os santos pediram. Contradizem-se tam-
bém as nossas bênçãos, pois às vezes invocamos a Deus sobre o povo110, pedindo para
os fiéis e desejando que Deus os faça abundar em caridade uns para com os outros e
para com todos, e lhes conceda, segundo as riquezas da sua glória, a graça de serem
confirmados pela força do Espírito divino. Pedimos a Deus que os encha de alegria e
paz na fé e que transbordem de esperança pela força do Espírito Santo. Sabemos que
o Apóstolo pediu a Deus estas coisas...

107
A carta 175, de Agostinho a Inocêncio, é do ano 416.
108
Seriam as bênçãos dadas pelos bispos aos fiéis antes da comunhão ou então as bênçãos no fim das
celebrações, sobretudo da Eucaristia, segundo uma tradição que virá a ser a das Gálias e Espanha, e hoje
é também do Missal romano.
109
A carta 179, de Agostinho a João de Jerusalém, é do ano 416.
110
Trata-se das bênçãos sobre o povo no fim das celebrações.
844 SÉCULO V

CARTA 184 111

3519 O regresso do meu caríssimo co-presbítero Germano convida-me a cumprir a


minha obrigação... Pedimos que ofereçais por nós a Deus votos semelhantes, pois bem
sabeis que, com as orações comuns e recíprocas, conseguimos mais do que com as
singulares e privadas.
CARTA 185 112

3520 27. O bispo de Bagai tinha recorrido ao juiz ordinário; por sentença entre as partes
tinha recuperado a basílica, que os Donatistas tinham invadido quando era católica.
Mas, quando estava ao altar, os Donatistas irromperam nela com ímpeto... Ao arrasta-
rem-no por terra, gravemente ferido..., abandonaram-no, e os católicos procuraram
levantá-lo, rezando salmos. Mas então os Donatistas, mais furiosos ainda, tiraram-lhe
o bispo das mãos, levaram-no..., subiram-no a uma torre e dali o deitaram abaixo.
Depois foram-se embora, pensando que lhe tinham dado a morte... Alguns, que passa-
vam de noite reconheceram-no, recolheram-no e levaram-no a uma religiosa, onde, com
solícitos cuidados e depois de muitos dias, foi salvo duma situação desesperada...
3521 28. Pediu então auxílio ao imperador cristão... Em consequência disso o imperador...
colheu informações... e preferiu corrigir, duma vez para sempre, com leis piedosas, o
erro daquela impiedade. Decidiu reconduzir à unidade católica, pelo terror e pela
repressão, os que, contra Cristo, levavam os sinais de Cristo...
3522 29. As leis chegaram a África. Principalmente aqueles que buscavam ocasião, e que
temiam a crueldade dos furiosos ou receavam ofender os seus, entraram de imediato na
Igreja... Muitos outros, quando começaram a dar-se conta e viram que nada havia na
seita por que valesse a pena padecer tantos incómodos, fizeram-se católicos, sem
qualquer dificuldade...
3523 30. A verdadeira Mãe recebeu com alegria, no seu regaço, essas grandes multidões
do povo, enquanto alguns grupos permaneciam obstinados... Muitos destes uniram-se
a nós com dissimulação..., mas foram-se habituando a pouco e pouco, à medida que
ouviam pregar a verdade... Houve lugares em que a multidão se manteve mais obstinada
e rebelde... Nesses lugares, o trabalho foi mais demorado. Ainda se trabalha entre eles
e, neste trabalho, sobretudo os bispos e clérigos padeceram horrores e crueldades que
seria longo enumerar. A alguns arrancaram-lhes os olhos, a um bispo cortaram-lhe as
mãos e a língua, e alguns foram degolados.
Passo em silêncio as torturas cruéis, os assaltos às casas, as agressões nocturnas
e o incêndio não só de casas particulares, mas também de igrejas. Nem faltaram os que
lançaram os códices do Senhor às chamas.
3524 31. Mas, enquanto estes males nos afligiam, consolou-nos o fruto conseguido. Onde
quer que os perdidos cometeram os seus desmandos, aí progrediu com maior fervor e
perfeição a unidade cristã e é mais glorificado o Senhor. Ele dignou-Se conceder que os
seus servos redimam os seus irmãos pelo sofrimento e congreguem, com o seu sangue,
na paz da salvação eterna, as ovelhas de Cristo dispersas pelo erro mortal. Poderoso e
misericordioso é o Senhor, a quem suplicamos todos os dias que conceda a penitência
também a outros...
3525 40. Agora, Cristo limpa a sua Igreja com o banho de água e a palavra113, de modo a
poder mostrá-la um dia, sem mancha nem ruga nem coisa semelhante...

111
A carta 184, de Inocêncio a Agostinho, é do ano 417.
112
A carta 185, ao conde Bonifácio, é do ano 417.
113
Lavacro aquae in verbo.
AGOSTINHO DE HIPONA 845

43. «Mas admira-nos uma coisa, dizem eles. Se somos injustos, porque nos bus- 3526
cais»? Respondemos-lhes: «Sois injustos e buscamo-vos para que não continueis a ser
injustos. Estais perdidos, e buscamo-vos para nos alegrarmos de vos ter encontrado...».
«Então porque não me baptizas, insiste ele, para me lavares dos pecados?... Porque
não faço ao menos penitência no teu campo?... Que recebo eu afinal de vós quando
passo para vós»? «Não recebes o baptismo, respondo eu, porque ele pode existir fora
da sociedade do Corpo de Cristo, embora não te aproveite. Recebes a unidade de
espírito no vínculo da paz, sem a qual ninguém pode ver a Deus, e a caridade que, como
está escrito, cobre a multidão dos pecados»...
44. «Suponhamos, dizem eles, que para nos salvarmos é necessário arrependermo-nos 3527
de ter estado fora da Igreja e contra a Igreja. Como é que, depois deste arrependimento,
continuamos a ser entre vós clérigos e até mesmo bispos»? Não deveria, de facto ser
assim; na verdade, há que confessar que não deveria ser assim, se não encontrássemos
na vossa salvação a recompensa da paz. Digam-no a si mesmos e chorem-no com a
maior humildade aqueles que jazem na morte causada por esta amputação, para que
voltem à vida enquanto a Mãe católica é ferida... Assim, quando estes voltam à raiz
católica, e, depois de se arrependerem do seu erro, nós mantemo-los na sua honra de
clérigos ou bispos, fazendo uma pequena incisão na casca da árvore materna contra a
rectidão da severidade. Mas como nada é aquele que planta nem aquele que rega,
quando oferecemos as nossas orações à misericórdia de Deus e os ramos inseridos
reencontram a paz, a caridade cobre a multidão dos pecados.
45. Estabeleceu-se na Igreja que ninguém, depois da penitência por algum crime, 3528
receba a clericatura, a ela volte ou nela continue. Isso faz-se, não por se duvidar do
perdão, mas em virtude do rigor da disciplina... Poderia acontecer que, movida pela
esperança da honra eclesiástica, a alma soberba fizesse uma penitência orgulhosa. Para
que tal não suceda, preferiu-se a severidade, e assim, depois de cumprida a penitência
pelo crime cometido, ninguém será clérigo... O bem-aventurado Pedro, quando derramou
lágrimas amargas, arrependeu-se de ter negado o Senhor e continuou a ser Apóstolo.
Mas não devemos supor que não teve razão de ser a diligência dos que mais tarde, sem
nada diminuir à esperança da salvação, acrescentaram à salvação alguma coisa que a
protegesse melhor. Sem dúvida, devem ter visto que alguns faziam penitência para
manter o poder da sua dignidade. A experiência de muitas doenças leva a buscar muitos
remédios. No entanto, em casos como estes, em que uma grave divisão ameaça não a
esta ou àquela pessoa, mas a povos inteiros, há que suavizar um pouco a severidade,
para que a caridade sincera ajude a curar males maiores.
46. Sintam um pesar sincero pelo seu detestável erro passado, como Pedro o sentiu 3529
pelo seu temor mentiroso, venham à autêntica Igreja de Cristo, isto é, à Mãe católica,
e sejam clérigos e bispos úteis dentro dela os que antes foram seus inimigos. Não
temos inveja deles, mas abraçamo-los, desejamo-los, exortamo-los... Quando o após-
tolo Pedro negou o Senhor e chorou e continuou a ser Apóstolo, ainda não tinha
recebido o Espírito Santo prometido. Menos ainda o tinham recebido estes; cortados
do único corpo que o Espírito Santo vivifica, retinham os sacramentos da Igreja fora
dela e contra ela... Venham; faça-se a paz dentro dos muros de Jerusalém, que é a caridade...
50. Não há que desesperar daqueles com quem convivemos ou de quem falamos; 3530
ainda estão no corpo da Igreja. Mas não busquem o Espírito Santo senão no corpo de
Cristo. Fora d’Ele têm o sacramento, mas não a realidade desse sacramento, e, por
isso, comem e bebem a sua condenação. O pão é sacramento de unidade... Só a Igreja
católica é o corpo de Cristo, e Cristo é a Cabeça e o Salvador do seu corpo. Fora deste
corpo o Espírito Santo não vivifica ninguém... Não participará da caridade divina
quem for inimigo da unidade. E, desse modo, os que estão fora da Igreja não têm o
Espírito Santo... Também não recebe o Espírito Santo quem entra na Igreja com inten-
ção fingida... Logo, quem quiser ter o Espírito Santo entre na Igreja, mas tenha cuidado
846 SÉCULO V

em não entrar por dissimulação. Se já entrou com má intenção, não persista nela, para
que possa incorporar-se, de verdade, na árvore da vida.
CARTA 188 114

3531 1. Se o alegre anúncio e o testemunho verdadeiro da vossa carta, após a nossa


partida, não no-lo tivesse feito saber, continuaríamos a desconhecer a atitude com que
a nossa exortação foi recebida pela virgem nobre e fiel, que professou a santidade do
estado virginal...
3532 3. Consideramos que a vossa casa é uma grande igreja de Cristo. E não é pequeno o
erro daqueles que pensam que a justiça, a continência, a piedade e a castidade que
possamos ter, as temos por nós próprios, porque Deus nos fez assim... Dizem esses
que a graça e ajuda de Deus para viver justa e rectamente mais não é do que a
natureza e o ensino. Mas não querem que Deus nos ajude a ter a boa vontade, na
qual consiste esse mesmo viver... Dizem que, para isso, nos bastamos a nós mes-
mos com a nossa liberdade...
3533 6. Ouça também que a própria continência sagrada e virginal não vem de si própria,
mas é dom de Deus, embora Deus a dê àqueles que Ele quer...
CARTA 190 115

3534 5. 19 À basílica chamamos igreja, porque contém o povo, e o povo é a verdadeira


Igreja; com esse nome de igreja, isto é, do povo contido, se designa o lugar ou continente.
CARTA 193 116

3535 3. Esses transviados, aos quais queremos trazer ao bom caminho, já se aproximaram
alguma coisa da verdade, na questão do baptismo das crianças. Já confessam que uma
criança, dada há pouco tempo à luz pela sua mãe, crê por meio daqueles que a apresentam
ao baptismo...
Se as crianças se tornam crentes por meio daqueles que as apresentam ao baptismo,
não serão crentes se caírem nas mãos daqueles que crêem não dever apresentá-las, por
crerem que de nada lhes há-de servir. Logo, se por meio dos crentes crêem e têm a vida
eterna, por meio dos incrédulos são incrédulas e não verão a vida...
CARTA 195 117

3536 No ardor da tua fé permaneceste firme contra a fúria dos ventos... Segue em
frente! Todo o mundo te celebra. Os católicos veneram-te e contemplam-te como um
novo fundador da fé e, o que é o maior sinal de glória, todos os hereges te detestam...
A clemência de Cristo nosso Senhor te conserve ileso, senhor venerável e beatíssimo
papa 118 .

114
A carta 188, a Juliana, é dos finais de 417.
115
A Optato de Milevo, do ano 418. Toda a carta trata do problema difícil da criação das almas, que Agostinho
confessa não saber solucionar. Dela retirámos apenas esta distinção entre Igreja povo, e igreja edifício.
116
A carta 193, a Mercator, é do ano 418.
117
A carta 195, de Jerónimo a Agostinho, é um bilhete-postal cheio de confiança nas capacidades de
Agostinho. É do ano 418.
118
Já o dissemos noutros momentos, que a designação de papa não era exclusiva do bispo de Roma.
AGOSTINHO DE HIPONA 847

CARTA 197 119

1. Eu creio que nenhum profeta fixou o número de anos no sentido de saber o dia da 3537
vinda do Senhor, mas que prevalece antes aquilo que o Senhor disse: Não vos compete
saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou com a sua autoridade 120.
4. A oportunidade desse tempo não acontecerá antes de ser pregado o Evangelho 3538
em todo o mundo... Não sabemos quando o Senhor virá, mas devemos acreditar que
não virá antes...
CARTA 208 121

2. Peço-te que não te deixes perturbar profundamente por esses escândalos. Foi 3539
profetizado que eles viriam, para que, quando chegassem, nos recordássemos de que
estavam anunciados e não nos admirássemos demasiado... Há alguns que ocupam a
cátedra pastoral para velar pelas ovelhas de Cristo, mas há outros que a ocupam para
gozar das suas honras temporais e comodidades seculares. Eles vão perdurar na pró-
pria Católica até ao fim dos tempos e até ao juízo do Senhor...
3. Há pastores bons e maus, como há bons e maus nos próprios rebanhos. Aos 3540
bons chama-se ovelhas; aos maus, cabritos. Mas pastam juntos e misturados, até que
chegue o Príncipe dos pastores, que se chama o único Pastor... A nós impôs-nos a
união, reservando para Si a separação...
4. Para permanecermos nesta unidade, sem abandonarmos a eira dominical, ofendidos 3541
pelo escândalo da palha, mas permanecendo antes como o trigo até ao fim da limpeza...,
o nosso próprio Pastor nos admoesta no Evangelho acerca dos bons pastores, para que
nem mesmo por causa das suas boas obras ponhamos neles a nossa confiança, mas
glorifiquemos o Pai que está nos Céus, pois foi Ele que os fez assim, e O glorifiquemos
também pelos pastores maus, aos quais chamou escribas e fariseus, porque ensinam o
bem e fazem o mal.
5. Dos bons pastores fala assim: Vós sois a luz do mundo122... Acerca dos maus 3542
pastores admoesta as ovelhas, dizendo: Sobre a cátedra de Moisés 123... Ao ouvirem
isto, as ovelhas de Cristo ouvem a voz de Cristo, mesmo através dos maus pastores, e
não abandonam a unidade. Porque o bem que lhes ouvem dizer, não é deles, mas de
Cristo. E permanecem tranquilas, porque se alimentam das pastagens do Senhor, mes-
mo sob os maus pastores. Mas não imitam as obras más dos pastores, porque essas
obras não são de Cristo, mas deles...
6. Entendemos assim que os bons pastores não buscam os seus interesses, mas os 3543
de Jesus Cristo, e que as boas ovelhas, mesmo que imitem as obras dos bons pastores,
não põem a sua esperança naqueles por cujo ministério foram reunidas124, mas antes
no Senhor, por cujo sangue foram redimidas 125. E, se às vezes se encontram com os
maus pastores, que pregam a doutrina de Cristo e realizam más acções, façam o que
eles dizem, mas não façam o que eles fazem, nem troquem as pastagens da unidade
pelos filhos da iniquidade. Há bons e maus na Igreja de Cristo... Mas ninguém pode ser
bom separando-se dela e falando contra ela...

119
A carta 197, a Hesíquio, é dos finais de 418.
120
Act 1, 7.
121
A carta 208, a Felícia, é do ano 423.
122
Mt 5, 14-16.
123
Mt 23, 2-3.
124
Congregatae.
125
Redemptae.
848 SÉCULO V

3544 7. Por isso te exorto, senhora justamente aceite e honrada entre os membros de
Cristo, a manteres com fidelidade o que o Senhor te deu e a amá-l’O com todo o teu
coração, do mesmo modo que à Igreja... Se saísses deste mundo separada da unidade do
Corpo de Cristo, de nada te serviria ter conservado a integridade do teu corpo. Mas
Deus, que é rico em misericórdia, fez contigo o que está escrito no Evangelho...
É verdade que deves amar com sinceridade os servos bons, pois foi pelo seu
ministério que entraste (na vida religiosa). Mas hás-de pôr a tua esperança n’Aquele
que preparou o convite... Entrega-Lhe a Ele o teu coração, o teu compromisso, a tua
virgindade, a tua fé, esperança e caridade, e não te assustarão os escândalos, que serão
muitos até ao fim... Diz-me, na tua resposta, como recebeste esta solicitude que sinto
por ti... A misericórdia e a graça de Deus te protejam sempre.
CARTA 209 126

3545 2. Junto ao território hiponense há uma povoação chamada Fusala. Nunca ali houve
bispo, pois pertencia, com toda a região contígua, à paróquia127 da igreja de Hipona.
Havia lá poucos católicos, uma vez que a maioria da população estava mergulhada no
erro dos Donatistas; aliás, na dita povoação não havia um único católico. Por misericórdia
de Deus conseguiu-se, no entanto, que todos esses lugares aderissem à unidade da
Igreja. Seria longo contar quantos trabalhos e perigos afrontei.
Os primeiros presbíteros que lá coloquei para reunir as pessoas foram espoliados,
feridos, maltratados e mortos. Mas os seus sofrimentos não foram estéreis e inúteis,
dado que a unidade ficou perfeitamente assegurada.
A citada povoação dista quarenta milhas de Hipona, e eu estava demasiado longe
para a governar... Considerando que não podia empregar a diligência conveniente, que
eu pensava ser necessária, decidi ordenar e estabelecer ali um bispo.
3546 3. Com esse fim, busquei alguém que fosse adaptado ao que o lugar precisava e que
conhecesse bem a língua púnica. Tinha um presbítero nestas condições e pensei nele,
e, para o ordenar pedi, por carta, que viesse de longe um santo ancião que era, na altura,
o primaz da Numídia. Quando ele já estava presente e todos esperavam o acontecimento,
o presbítero que me parecera indicado opôs-se com todas as forças e resistiu.
Eu devia então, como depois os acontecimentos me fizeram ver, diferir o assunto,
em vez de me precipitar perigosamente. Mas, não querendo que o santo e venerável
ancião, que viera de tão longe até nós, tivesse viajado em vão, apresentei, sem ninguém
mo pedir, um adolescente chamado António que nesse momento estava comigo. Tinha-o
educado no mosteiro desde tenra idade, mas não tinha dado provas em nenhum grau ou
trabalho clerical, fora do ofício de leitor. Os outros, sem saberem o que ia acontecer,
acreditaram-me com a maior benevolência a mim, que o apresentava. Para que hei-de
dizer mais coisas? Tudo se fez, e ele começou a ser bispo.
3547 4. Que hei-de fazer?... O assunto chegou a tal escândalo, que mesmo aqueles que
tinham aceitado o meu gosto e recebido o seu episcopado, pensando fazer bem, se
queixaram agora diante de mim. Foi acusado de crimes capitais de estupro. Os que o
denunciavam, não os bispos, mas os outros, não puderam provar nada, e já parecia
livre desses crimes de que o acusavam por inveja. Mas agora tornou-se desgraçado
para mim e para os outros. Os aldeões e habitantes da região falavam-me do seu
intolerável despotismo, dos seus roubos, opressões e malfeitorias, mas eu não lhes
dava crédito. Por fim, as coisas chegaram a tal ponto, que julguei dever privá-lo do
episcopado, obrigando-o a restituir os bens roubados...

126
A carta 209, dirigida a Celestino, é do ano 423. O Papa Celestino sucedeu ao Papa Bonifácio I (422-432).
127
Paroeciam.
AGOSTINHO DE HIPONA 849

5. Temperei a minha sentença, de modo que, mantendo-o a ele no episcopado, não 3548
deixasse sem castigo as coisas que não deve continuar a fazer... Conservei o jovem na
sua honra para que se corrija, mas como castigo diminuí-lhe o poder, para que, de
futuro, não presida àqueles com quem se portou tão mal, os quais não podem tolerar,
e com razão, que ele lhes presida... Foi essa a vontade que mostraram também, quando
os bispos trataram com eles acerca disto...
6. Para quê pormenorizar mais? Colabora comigo..., e manda que te leiam tudo o 3549
que te foi dirigido. Vê como (António) cumpriu o episcopado e como aceitou a minha
sentença. Privei-o da comunhão, até que restituísse tudo aos de Fusala. Uma vez feito
o cálculo, pus o dinheiro à parte para que ele fosse reintegrado na comunhão. Vê como
induziu, com astuta persuasão, o nosso primaz..., para que acreditasse em tudo e o
recomendasse, como livre de toda a culpa, ao santo Papa Bonifácio. E para que hei-de
recordar o resto, se o citado venerável ancião contou tudo à tua santidade?
7. Quanto às outras muitas actas nas quais se encontra o meu juízo sobre ele, receio 3550
que venhas a pensar que julguei com menos severidade do que devia. Sei, contudo, que
sendo tu tão propenso à misericórdia, não só considerarás que eu devo ser perdoado
por lhe ter perdoado a ele, mas que também se deve perdoar a ele próprio.
Mas ele pretende que já prescreveu o que eu dispus com excessiva brandura ou
ligeireza, dizendo: «Ou devia estar sentado na minha cátedra, ou não devia ser bispo».
Como se agora ocupasse uma sede diferente da sua! Foi para que não se dissesse que
o tínhamos trasladado ilicitamente para outra cátedra, contra o estabelecido pelos
Padres, que se lhe deixaram e cederam os lugares em que antes fora bispo.
Será... que não devemos castigar de modo nenhum aquele que julgamos não dever
privar do episcopado? Ou será que, quando se castiga alguém, seja de que modo for, se
deve privá-lo da honra do episcopado?
8. Há exemplos de que a própria Sé Apostólica julgou ou confirmou sentenças 3551
alheias, de alguns bispos culpados, que nem foram despojados da dignidade episcopal,
nem deixados totalmente impunes. Vou citar alguns recentes, sem recorrer aos tempos
antigos.
Prisco, bispo da província Cesariense, podia clamar: «Ou deviam permitir-me o
acesso à sede primacial, como aos outros lugares, ou então deviam despojar-me do
episcopado». Vítor, outro bispo da mesma província, ao qual se atribuiu a mesma pena
que a Prisco, foi privado de receber a comunhão de outro, fora da sua própria diocese,
e podia clamar, dizendo: «Ou deve ser-me permitida a comunhão nas dioceses alheias,
ou também não me deve ser permitida na minha». Um terceiro exemplo: Lourenço,
bispo da mesma província, podia clamar como António: «Ou me devo sentar na cátedra
para a qual fui ordenado, ou não continuar no episcopado»...
9. O beatíssimo Papa Bonifácio, com cautela vigilante e pastoral, escreveu na sua 3552
carta, referindo-se ao bispo António: «Se acaso nos indicou fielmente a ordem dos
acontecimentos». Aí tens agora a ordem dos acontecimentos que ele desfigurou no seu
libelo, e também os que ocorreram depois de lida em África a carta daquele homem de
santa memória.
Vem em socorro de uns homens que pedem a tua ajuda... e querem libertar-se das
inquietações de António...; esses desventurados cristãos e católicos temem, de um
bispo, maiores calamidades do que os perigos que temiam, sendo hereges, das leis e
dos imperadores católicos. Não permitas que isso aconteça... Recomendo à benigna
caridade da tua santidade, tanto os católicos de Fusala, meus filhos em Cristo, como o
bispo António, meu filho em Cristo, já que os amo a todos.
Não me queixo dos Fusalenses por terem feito chegar aos teus ouvidos a sua
justa queixa contra mim, por lhes ter imposto um homem não provado, nem sequer
850 SÉCULO V

garantido pela idade, e que os afligiu. Mas também não quero que se faça mal a António,
pois quanto mais sincera é a caridade que tenho para com ele, tanto mais me oponho ao
seu mau desejo.
As duas partes merecem a tua misericórdia: os de Fusala, para não sofrerem, e
António, para não fazer o mal; os de Fusala, para não odiarem a Católica, se os bispos
católicos, sobretudo se vierem da Sé Apostólica, os não ajudarem contra um bispo
católico, e António, para que não se obstine no seu delito e afaste de Cristo os que ele
se empenha em atrair contra a vontade deles.
3553 10. Devo confessar à tua beatitude que, neste perigo de ambos os partidos, me
atormenta tal temor e tristeza, que penso retirar-me de exercer o ofício do episcopado
e entregar-me aos lamentos dignos do meu erro, se continuar a ver que aquele que foi
apresentado por minha imprudência ao episcopado devasta a Igreja de Deus e se, o que
Deus não permita, essa Igreja vier a perecer com o devastador...
CARTA 211 128

3554 2. Preferi não vos mostrar o meu rosto, mas derramar o meu coração na presença de
Deus por vós, negociando a causa do vosso perigo, não com palavras diante de vós,
mas com lágrimas diante de Deus. Não converta Ele em luto a alegria que costumava
sentir por vós, entre tantos escândalos em que o mundo abunda. Eu costumava consolar-me,
pensando na vossa comunidade numerosa...
3555 3. Ao pensar nesses bens que há em vós, nesses dons de Deus, o meu coração
costuma ficar sossegado entre as muitas tempestades que por outros motivos, o açoi-
tam. Corríeis tão bem. Quem vos fascinou...129? Não quero dizer o que se segue. O que
mais quero, e suplico, e exorto, é que todo o fermento se melhore, para que não piore
toda a massa, como já quase tinha sucedido. Se voltastes a pensar com sensatez, orai
para não cairdes em tentação, para que não haja novas disputas, emulações, animosidades,
calúnias e rebeldias. Porque não plantámos e regámos em vós esse jardim do Senhor
para recolher de vós esses espinhos. E, se por vossa debilidade ainda não sossegastes,
orai para que Deus vos livre da tentação...
3556 4. Pensai nesta calamidade: quando começávamos a alegrar-nos na unidade com os
Donatistas, lamentamos cismas internos no mosteiro. Perseverai no bom propósito e
não desejareis mudar de superiora, pois, enquanto a actual perseverou no mosteiro,
vistes crescer o vosso número e idade. Ela é a mãe que vos recebeu, não no seu regaço,
mas no seu espírito. Todas vós, que entrastes no mosteiro, a encontrastes a ela, ou
servindo e alegrando-se na santa superiora, minha irmã, ou sendo ela a superiora que
vos recebeu. Sob a sua direcção fostes instruídas, recebestes o véu130, vos multiplicastes.
E agora alvoroçais-vos para que vo-la mudemos, quando devíeis chorar se pensássemos
em tirá-la. Foi a ela que conhecestes, foi a ela que viestes e foi sob a sua direcção que
crescestes durante tantos anos. O único que recebestes de novo foi o que está à
frente131. Se é por causa dele que procurais novidades ou se vos revoltastes contra a
vossa madre porque não o quereis, porque não pedistes antes que o mudássemos a ele?...
CARTA 213 132

3557 1. «Sendo cônsul Teodósio pela décima segunda vez e Valentiniano Augusto pela
segunda, no dia 16 das Calendas de Outubro, depois de o bispo Agostinho se sentar

128
A carta 211, dirigida às monjas (Ad Virgines), é do ano 423.
129
Gal 5, 7.
130
Sub illa velatae.
131
Praepositum.Trata-se do presbítero Rústico.
132
A carta 213 é a Acta de nomeação do sucessor de Agostinho, escrita no dia 26 de Setembro de 426.
AGOSTINHO DE HIPONA 851

com os seus co-epíscopos Religiano e Martiniano, na igreja da Paz de Hipona, estando


presentes os presbíteros Saturnino, Lepório, Barnabé, Fortunaciano, Rústico, Lázaro
e Heráclio, na presença do clero e de muito povo, Agostinho disse: “Vou realizar sem
demora aquilo que ontem prometi à vossa Caridade. Desejei que viésseis em grande
número, e vejo que assim o fizestes... Por vontade de Deus, cheguei a esta cidade no
vigor dos anos. Já fui jovem, mas envelheci. Sei que, quando morrem os bispos, os
homens ambiciosos e dados a contendas costumam perturbar as Igrejas. Devo procu-
rar, pelo que a mim diz respeito, que não ocorra na minha diocese aquilo que tantas
vezes experimentei e lamentei.
Como a vossa Caridade sabe, estive há pouco tempo na Igreja de Milevos. Os
irmãos, e principalmente os servos de Deus que ali há, tinham-me pedido que fosse,
porque se temia alguma perturbação, a quando da morte de meu irmão e corepíscopo
Severo, de feliz memória. Cheguei, e o Senhor, como quis e segundo a sua misericórdia,
ajudou-me para que aceitassem, em paz, o bispo que Severo tinha designado em vida.
Quando o souberam, aceitaram com o maior gosto a vontade do seu bispo anterior, que
já morrera. Mas não se tinham feito as coisas com toda a perfeição, e, por isso, alguns
ficaram tristes. Severo acreditara que bastava designar o seu sucessor na presença dos
clérigos, e não falou deste assunto ao povo. Por isso havia uma certa tristeza em
alguns. Para que dizer mais? Aprouve a Deus que a tristeza se viesse a dissipar e
sobreveio a alegria. Foi ordenado bispo, aquele que o bispo anterior designara.
Para que ninguém tenha queixas a fazer de mim, faço-vos saber a minha vontade,
e creio que será essa também a vontade de Deus: Quero que o meu sucessor seja o
presbítero Heráclio”. O povo aclamou: “Graças a Deus, louvores a Cristo” (foi dito
vinte e três vezes). “Cristo ouve-nos, vida a Agostinho” (foi dito dezasseis vezes). “A
ti, pai, a ti, bispo” (foi dito oito vezes).
2. Quando se calaram, o bispo Agostinho disse: “Não é preciso dizer nada em seu 3558
louvor. Louvo a sua sabedoria e admiro a sua modéstia. Basta, porque o conheceis.
Quero dizer isto, porque sei o que quereis. E, se o não soubesse antes, hoje ficou
provado. Portanto, é isto o que quero. Isto peço ao Senhor Deus com ardentes votos,
quando já estou em idade fria. Exorto-vos, admoesto-vos e rogo-vos que o peçais
comigo, para que, unidas e concordes as mentes de todos na paz de Cristo, Deus
confirme o que em nós realizou. Guarde-o Deus, que mo enviou. Guarde-o incólume e
imaculado, para que aquele que foi o meu gozo durante a vida ocupe o meu lugar na
morte. Os taquígrafos da igreja, como vedes, estão a tomar nota daquilo que eu digo e
do que vós dizeis. Não caiam por terra nem as minhas palavras nem as vossas aclamações.
Para falar com mais clareza, digo-vos que estamos a fazer a acta eclesiástica. Assim
quero que tudo fique assegurado, pelo que toca aos homens”. O povo aclamou trinta e
seis vezes: “Graças a Deus, louvores a Cristo”. “Cristo, ouve-nos, vida a Agostinho”
(foi dito treze vezes). “A ti, pai, a ti, bispo” (foi dito oito vezes). “É digno e justo” (foi
dito vinte vezes). “Benemérito, bem digno” (foi dito cinco vezes). “É digno e justo”
(foi dito seis vezes).
3. Quando se calaram, o bispo Agostinho disse: “Como ia dizendo, quero que 3559
fiquem confirmadas a minha vontade e a vossa, nas actas eclesiásticas, no que respeita
aos homens. E no que toca à vontade oculta do Omnipotente, oremos todos, como
disse, para que Deus confirme o que em nós realizou”. O povo aclamou: “Damos
graças ao teu julgamento” (foi dito dezasseis vezes). “Fiat, fiat” (foi dito doze vezes).
“Tu, pai, Heráclio, bispo” (foi dito dezasseis vezes).
4. Quando se calaram, o bispo Agostinho disse: “Sei o que vós também sabeis, mas 3560
não quero que lhe aconteça a ele o que me aconteceu a mim. Todos sabeis o que me
aconteceu. Só o ignoram os que então ainda não tinham nascido ou idade para o saber.
Estando ainda vivo o meu pai e bispo, o ancião Valério, fui ordenado bispo e ocupei a
sede com ele. Eu não sabia, e ele também não, que isso fora proibido pelo concílio
852 SÉCULO V

Niceno. Não quero que se censure no meu filho o que se censurou em mim”. O povo
aclamou: “Graças a Deus. Louvores a Deus” (foi dito treze vezes).
3561 5. Quando se calaram, o bispo Agostinho disse: “Continuará a ser presbítero, como
é, e será bispo quando Deus quiser. Mas agora, com a ajuda e a misericórdia de Cristo,
vou fazer o que até agora não fiz. Bem sabeis o que quis fazer há já alguns anos e não
me deixastes. Por acordo entre mim e vós, por causa da responsabilidade das Escrituras,
que os meus pais e irmãos co-epíscopos se dignaram impor-me nos dois concílios da
Numídia e Cartago, combinámos vós e eu que ninguém me incomodaria durante cinco
dias da semana. Fez-se uma acta, e vós a aclamastes. Foi-vos lido o vosso consentimento,
e as vossas aclamações confirmaram-no. Mas por muito pouco tempo o observastes,
pois logo a seguir voltastes a irromper com violência, e não permitistes que eu me
dedicasse àquilo que eu queria. Antes e depois do meio-dia ocupam-me os assuntos
dos homens. Rogo-vos e conjuro-vos por Cristo que me permitais declinar a responsa-
bilidade destes assuntos neste jovem, quer dizer, no presbítero Heráclio, a quem hoje,
em nome de Cristo, designo como bispo meu sucessor”. O povo aclamou: “Damos
graças ao teu julgamento” (foi dito vinte e seis vezes).
3562 6. Quando se calaram, o bispo Agostinho disse: “Dou graças, na presença de Deus,
à vossa Caridade e benevolência, ou melhor, dou graças a Deus por ela. Portanto,
irmãos, os assuntos que trazíeis até mim, levai-os a Heráclio. Onde for preciso o meu
conselho, não me nego a ajudar. Deus me livre disso. Mas todos os assuntos que
trazíeis até mim levai-os a ele. Ele me consultará, se não souber o que fazer, ou
reclamará como ajuda aquele a quem reconhece como pai. Deste modo, nada vos faltará
a vós, e eu, pela minha parte, se Deus me conceder algum tempo de vida, empregarei
essa vida, não na preguiça nem na inércia, mas nas santas Escrituras, na medida em que
o Senhor mo permitir e conceder. Isto será bom para Heráclio, e por ele será também
bom para vós. Ninguém, pois, olhe com receio o meu ócio, já que esse ócio resolve um
bom negócio. Vejo que já cumpri para convosco, sobre este assunto, tudo aquilo para
que vos convidei a vir. O meu último pedido é que, todos os que puderdes vos digneis
assinar as actas. Tenho necessidade da vossa resposta neste ponto. Preciso de ficar
com ela. Aclamai também essa resposta”. O povo aclamou-a: “Fiat, fiat” (foi dito vinte
e cinco vezes). “É digno, é justo” (foi dito vinte e oito vezes). “Fiat, fiat” (foi dito
catorze vezes). “Sempre digno, sempre benemérito” (foi dito vinte e cinco vezes).
“Damos graças ao teu julgamento” (foi dito treze vezes). “Cristo, ouve-nos, conserva
Heráclio” (foi dito dezoito vezes).
3563 7. Quando se calaram, o bispo Agostinho disse: “As coisas que dizem respeito a
Deus, convém que as possamos cumprir oferecendo o seu sacrifício. Nestes momentos
da minha oração, recomendo encarecidamente à vossa Caridade que não esqueçais
todos os vossos problemas e negócios, e ofereçais as vossas orações ao Senhor por
esta Igreja, por mim e pelo presbítero Heráclio”».
CARTA 217 133

3564 2. Quando ouvires o sacerdote de Deus que no altar exorta o povo de Deus a orar
pelos incrédulos, para que Deus os converta à fé; pelos catecúmenos, para que lhes
inspire o desejo da regeneração; pelos fiéis, para que, pelo seu divino dom, perseverem
no que começaram a ser, corrige essas luzes piedosas...
3565 7. Não enganemos os homens, pois não podemos enganar a Deus. Não oramos a
Deus, mas fingimos orar, se cremos que é o homem, e não Ele, que faz o que oramos.
Não damos graças a Deus, mas fingimos dá-las, se não cremos que é Ele que faz aquilo
por que damos graças. Longe de nós negar com o coração que Deus faz aquilo que
confessamos com os nossos lábios e palavras...

133
Carta escrita a Vital, pelagiano, em 427.
AGOSTINHO DE HIPONA 853

8. Haverá só que pregar a doutrina divina ou haverá também que orar por eles, para 3566
que Deus os tire do poder das trevas? Se disseres que só se deve pregar-lhes, contra-
dizes o mandato de Deus e as orações da Igreja. E, se confessares que devemos orar por
eles, confessas que há que orar para que aceitem essa doutrina, uma vez libertada já a
sua liberdade do poder das trevas...
12. Pela grandeza do primeiro pecado perdemos a liberdade de amar a Deus, e essa 3567
lei e doutrina de Deus, apesar de santa, justa e boa, mata, se a não vivificar o Espírito.
Este faz que a aceitemos, não por a ouvirmos, mas por lhe obedecermos, não por a
lermos, mas por a amarmos. Portanto, crer em Deus e viver rectamente não é obra
daquele que quer nem do que corre, mas de Deus, que tem misericórdia. Isto não
significa que não devemos querer correr, mas que Deus opera em nós o querer e o
correr...
16. Sabemos que também as crianças receberão, segundo aquela palavra, o bem e o 3568
mal que fizeram enquanto viveram. Mas fizeram-no, não por si mesmas, mas pelos que
responderam por elas ao dizerem que renunciavam ao Diabo e acreditavam em Deus.
Por isso as contamos no número dos fiéis... Se, como disse, morrerem cedo, serão
julgadas por aquilo que fizeram enquanto viviam, quando creram ou não creram mediante
o coração dos que as apresentavam, quando foram ou não foram baptizadas, quando
comeram ou não comeram o Corpo de Cristo, quando beberam ou não beberam o seu
Sangue...
26. Acaso proibirás a Igreja de orar pelos infiéis, para que sejam fiéis; por aqueles 3569
que não querem crer, para que queiram crer; por aqueles que discordam da sua lei e
doutrina, para que concordem com a sua lei e doutrina, a fim de que Deus lhes dê o que
prometeu pelo profeta, um coração para O conhecer e ouvidos para O escutar? Acaso
ao ouvires que o sacerdote de Deus no altar exorta o povo a orar a Deus, ou ao ouvi-lo orar
com voz clara a Deus, para que faça com que as pessoas incrédulas venham à sua fé,
não responderás Amen?... Acaso dirás que o bem-aventurado Cipriano errou nisto, ao ensi-
nar-nos a orar pelos inimigos da fé cristã, a fim de que também eles se convertam a ela?..
28. A acção de graças indica o mesmo que a oração. A oração é pelos infiéis, e a acção 3570
de graças pelos fiéis. Àquele a quem devemos orar para que o faça, devemos dar-Lhe
acção de graças quando o tiver feito134...
29. Sobre as orações que os fiéis elevam tanto por si mesmos como pelos outros 3571
fiéis, para perseverarem no que começaram a ser e sobre as acções de graças por esse
progresso, não há que discutir contigo, creio eu 135.
CARTA 228 136

1. O nosso ministério é de tal modo necessário ao grande ou ao pequeno povo de 3572


Deus que permanece onde estamos, que esse povo não pode, de modo nenhum, ficar
sem assistência. Por isso só nos resta dizer ao Senhor: Sede a rocha do nosso refúgio
e a fortaleza da nossa salvação.
2. Mas, segundo me escreves, este conselho não te basta. Talvez estejamos a pro- 3573
ceder contra o preceito e exemplo do Senhor, que nos manda fugir de cidade em
cidade... Mas quem acreditará que o Senhor quis que isso se fizesse, privando o
rebanho remido com o seu sangue do ministério necessário, sem o qual não pode viver?

134
Qui enim est orandus ut faciat, illi est actio gratiarum reddenda cum fecerit.
135
De orationibus autem iam fidelium, quas et pro se et pro aliis fidelibus faciunt, ut proficiant in eo quod
esse coeperunt, et de gratiarum actionibus, quia proficiunt, confligendum esse tecum non puto.
136
A carta 228, ao bispo Honorato, é do ano 428. É provável que tenha sido a última ditada por Agostinho.
Estamos em plena perseguição vandálica. A tentação dos ministros é fugir. Agostinho diz-lhes que,
enquanto houver cristãos a servir em cada terra, os ministros devem permanecer com eles.
854 SÉCULO V

Talvez digamos que Ele fez assim quando, menino ainda, fugiu, quando os seus
pais O levaram para o Egipto? Se ainda não tinha congregado as Igrejas, como diremos
que as abandonou? Acaso, quando o apóstolo Paulo foi descido numa cesta por uma
janela para que não o prendessem os inimigos e fugiu deles, ficou abandonada aquela
Igreja do ministério necessário e não cumpriram os outros irmãos que ali ficaram o que
era preciso? Foi por vontade deles que o Apóstolo fez isso, para que ele próprio
servisse a Igreja, pois o perseguidor só a ele buscava.
Façam, pois, os servos de Cristo, ministros da sua palavra e dos seus sacramentos,
o que Ele mandou ou permitiu. Fujam de cidade em cidade quando forem buscados
pessoalmente pelos perseguidores, enquanto a Igreja é assistida por outros que não
são perseguidos, e que dão o alimento aos seus concidadãos, sabendo que sem ele não
podem viver. Mas, quando o perigo é comum para bispos, clérigos e leigos, os que
necessitam de outros não podem ser abandonados por eles. Ou vão todos refugiar-se
nas praças fortificadas, ou os que têm necessidade de ficar não devem ser abandonados
por aqueles que prestam os serviços eclesiásticos necessários. Ou vivem todos juntos,
ou sofrem juntos o que o Pai de família dispuser...
3574 4. Ouvi dizer que certo bispo tinha dito: «Se o Senhor nos mandou fugir naquelas
perseguições em que podíamos conseguir o fruto do martírio, quanto mais deveremos
fugir dos sofrimentos estéreis, quando apenas se trata duma invasão dos bárbaros»!
Isso está certo e admite-se naqueles a quem não obrigam os laços do dever eclesiástico...
3575 5. Que queres tu dizer na tua primeira carta? Dizes assim: «Se temos de ficar nas
Igrejas, não vejo em que podemos ser úteis a nós mesmos e ao povo, excepto que passa
a ser diante dos nossos olhos que se cometem assassínios de homens e estupros de
mulheres, que se incendeiam igrejas e que perecemos nos tormentos, quando nos
exigem o que não temos».
Deus é poderoso para ouvir as preces da sua família e afastar esses males que se
temem. Mas não é por essas coisas incertas que deve acontecer a deserção certa do
nosso dever, sem o qual é inevitável a catástrofe do povo, não nas coisas desta vida,
mas nas da outra, das quais devemos cuidar com muito maior diligência e solicitude.
Se fossem certos esses males cuja realização se teme nos nossos lugares, primeiro
hão-de fugir aqueles que exigem a nossa presença, e assim nos deixarão livres da
necessidade de ficarmos. Ninguém diz que devem ficar os ministros quando já não têm
a quem servir. Assim fugiram na Espanha os santos bispos, quando o seu povo ficou
em parte morto na fuga, em parte assassinado, em parte disperso e no cativeiro. Mas,
quando ficaram muitos que exigiam a sua presença, também os bispos ficaram debaixo
do mesmo perigo. E, se alguns abandonaram o seu povo, isso é o que eu digo que não
deve fazer-se. Esses não foram ensinados pela autoridade divina, mas vencidos pelo
erro humano ou pelo medo...
3576 8. Pensemos que, quando se chega a esses perigos extremos e já não há lugar para
fugir, costuma reunir-se na igreja um grande número de ambos os sexos e de todas as
idades. Uns pedem o baptismo, outros a reconciliação, outros pedem obras de peni-
tência, e todos consolação, confecção e administração de sacramentos. Se faltam os
ministros, que ruína para todos aqueles que saem deste mundo não regenerados ou com
impedimentos! Que imenso luto o dos seus familiares fiéis, que já não poderão tê-los
consigo no descanso da vida eterna! Que lamentação de todos e que blasfémias de
alguns pela ausência de ministérios e ministros!...
Pelo contrário, quando há ministros, a todos se atende segundo as forças que o
Senhor nos dá. Uns são baptizados, outros reconciliados; a ninguém falta a comunhão
do Corpo do Senhor; todos são consolados, exortados a orar a Deus, que é poderoso
para afastar todos esses males que se temem...
3577 10. Talvez alguém diga que os ministros de Deus devem fugir ao aproximarem-se
essas desgraças, a fim de se conservarem para utilidade da Igreja em tempos mais
AGOSTINHO DE HIPONA 855

tranquilos. Isso podem fazê-lo com rectidão alguns, quando não faltam outros para aten-
derem ao ministério eclesiástico, que assim não é abandonado por todos. Já dissemos
que foi isso que fez Atanásio; a fé católica sabe quão necessária e útil era para a Igreja
a vida daquele homem, que a defendeu dos hereges arianos com a sua palavra e o seu
amor.
Mas, quando o perigo é comum, é de temer que muitos façam isso não por desejo
de ser úteis, mas por medo da morte, e causem maior mal com o escândalo da sua fuga,
do que proveito com o dever de ficarem vivos. Nesse caso não deve fazer-se...
11. Há outro problema que não devemos passar por alto. Temos de atender também 3578
a essa utilidade: alguns ministros têm de fugir ao aproximar-se a devastação, para
prestarem os seus serviços aos sobreviventes da catástrofe. Que há-de fazer-se então,
pois se teme que todos vão perecer? Que acontecerá quando a perseguição é dirigida só
contra os ministros da Igreja? Que diremos? Terão os ministros de fugir e abandonar a
Igreja, para a não abandonarem mais miseravelmente com a sua morte?
Se os leigos não são perseguidos de morte, podem ocultar de algum modo os seus
bispos e clérigos, segundo a ajuda d’Aquele em cujo poder estão todas as coisas, e que
pode conservar, com o seu admirável poder, aquele que não foge.
12. Oxalá que os ministros de Deus discutissem quais haviam de ficar e quais haviam 3579
de fugir, para não abandonarem a Igreja com a fuga de todos ou com a morte de todos...
E, se não pudessem chegar a acordo quanto aos que devem ficar e aos que devem fugir,
a meu ver deviam deitar sortes...
13. Alguns crêem que os bispos e clérigos que em tais perigos ficam e não fogem, o 3580
fazem para enganar o povo, que não foge ao ver que os seus chefes ficam. Mas é fácil
refutar essa falsidade e responder falando à própria população, dizendo: «Não vos
engane o ver que não fugimos deste lugar; ficamos aqui por vós e não por nós, porque
queremos prestar-vos os serviços que sejam necessários para vossa salvação, que
tendes em Cristo. Se todos quiserdes fugir, libertais-nos destes laços pelos quais estamos
presos». E creio que se deve dizer quando é útil emigrar para outra região mais segura...
14. Portanto, quem foge, de modo que, ao fugir, não priva a Igreja do ministério 3581
necessário, faz o que o Senhor mandou ou permitiu. Mas o que foge, de modo a privar
o rebanho de Cristo dos alimentos espirituais de que vive, é um mercenário...
É isto o que te respondo, irmão caríssimo... Nestes perigos não podemos fazer
nada de melhor do que orar a Deus nosso Senhor, para que Se compadeça de nós...
CARTA 252 137

Bem sabe a tua religião com que cuidado a Igreja e os bispos devem proteger 3582
todos os homens, especialmente os pupilos. Recebi a tua carta e cópia das de um irmão
nosso, homem nobre, mas não pude nem devia entregar essa jovem ao primeiro que se
apresentasse. Sobretudo tendo em conta que aquele irmão a pôs sob a protecção da Igreja...
CARTA 254 138

A jovem, acerca da qual me escreve a tua santidade, não tem actualmente intenção de 3583
se casar com ninguém... Mas é tão jovem que, mesmo que tivesse intenção de casar, eu
não a poderia dar nem prometer a ninguém... Não está recolhida aqui para que eu a
entregue a quem quiser, mas para que não possa levá-la quem não convém... Não sei se
virá a casar-se, ainda que deseje mais o que agora me diz. Diz ela que quer ser monja.
Mas isso, nesta idade, é brincadeira...

137
Não se conhece a data da carta 252 a Félix.
138
Não se conhece a data da carta 254 a Benenato.
856 SÉCULO V

Além disso tem uma tia materna. Tive de falar com o marido desta..., pois não
podia nem devia proceder de outro modo. Ele não só não cede à força, mas congratulou-se
com isto, lamentando-se, com razão, por direito de amizade, por não lhe terem escrito
sobre o assunto. Talvez apareça também a mãe, apesar de não ter aparecido até agora...
Pense também a tua sinceridade que, mesmo que eu tivesse poderes absolutos e
totais para a casar, e ainda que ela, depois de crescer e decidir casar-se, me encarregasse
de a casar com quem eu quisesse..., digo com verdade que a tua condição me agradou,
mas que não poderia rejeitar um partido melhor...
CARTA 255 139

3584 Escrevi ao santo irmão e meu colega Benenato o que me pareceu suficiente sobre
os pontos que me impedem de prometer seja o que for acerca da jovem que solicitas...
Bem sabes que, mesmo que dependesse exclusivamente de mim poder dar uma jovem
em matrimónio, não poderia entregar uma cristã senão a um cristão. Tu não quiseste
prometer-me nada acerca do teu filho, que me dizem ser ainda pagão. Quanto menos
deverei eu prometer acerca do matrimónio dessa jovem, por essas razões que podes ler
na carta enviada ao citado irmão...
CARTA 263 140

3585 1. Recebi o belo e laborioso trabalho das tuas mãos. Quiseste que eu o recebesse, e
aceitei-o para não te entristecer mais, quando vi que precisavas de consolação. Sobretudo
quando pensas que é uma consolação não pequena para ti o facto de eu usar a túnica
que tinhas feito para o teu irmão, ministro santo do Senhor... Fiz, pois, o que desejavas
e não neguei ao teu coração benévolo para com o teu irmão essa pequena consolação...
Aceitei a túnica que me enviaste; ao escrever-te esta carta, já comecei a usá-la.
Tem coragem. Mas serve-te de consolações muito melhores e muito maiores,
para que a autoridade divina serene as nuvens do teu coração, apertado pela debilidade
humana. E persevera em viver de maneira que mereças viver com o teu irmão. Porque
o teu irmão morreu, mas de um modo que continua a viver.
3586 2. É motivo de lágrimas que não vejas, como costumavas, esse teu irmão, que te
amava tanto pela tua vida e profissão de sagrada virgindade, entrar e sair como diácono
da igreja de Cartago, empenhado no afã do seu dever eclesiástico. E que já não escutes
aquelas palavras cheias de ternura que dedicava à sua santa irmã, com afecto moderado,
piedoso e delicado.
Quando se pensa nisto e se recorda a força do costume, a alma fica ferida e as
lágrimas brotam do coração como sangue. Mas, se tivermos o coração no alto, secarão
os nossos olhos. Estes infortúnios passam no seu curso temporal.
Tu lamentas que te tenha sido tirado o teu irmão, mas não morre aquela caridade
com que Timóteo amou e continua a amar Sápida. Essa caridade fica depositada no seu
sítio e escondida com Cristo em Deus...
Sápida, repara no teu nome e saboreia as coisas do alto, onde sentado à direita de
Deus está Cristo, que Se dignou morrer por nós, para que continuemos a viver mesmo
depois de mortos, para que o homem não tenha medo da morte como se ela aniquilasse
o homem, para que não se chorem os mortos para os quais a vida é morte, como se
tivessem perdido a vida. Sejam estas e outras semelhantes as tuas consolações, às
quais deve ceder, com vergonha, a tristeza humana.
3587 3. Não temos de nos enfadar pela dor dos mortais que lamentam os seus mortos
queridos; mas a dor dos fiéis deve ser breve. Se sentiste tristeza, já basta; não te

139
Não se conhece a data da carta 255 a Rústico.
140
Não se conhece a data da carta 263 a Sápida.
AGOSTINHO DE HIPONA 857

entristeças como os gentios que não têm esperança. O Apóstolo proíbe-nos que nos
entristeçamos como os gentios que não têm esperança.
Marta e Maria, aquelas irmãs fiéis e piedosas, choravam o seu irmão que devia
ressuscitar, embora ainda não soubessem que havia de voltar à vida; e o próprio Senhor
chorou por Lázaro, ao qual ia ressuscitar; fez isso para que também nós choremos,
apesar de acreditarmos que os nossos irmãos hão-de ressuscitar para a vida verdadeira...
4. O teu irmão, filha, vive no espírito, dorme na carne... Deus, que recebeu o seu 3588
espírito, restituir-lhe-á o seu corpo... Não há por isso motivo para uma longa tristeza,
pois é maior o motivo para uma alegria eterna... A tua fé dir-te-á estas coisas... Medita
nisto e consola-te com abundância...
Tinhas tecido uma veste para o teu irmão. Ele não pôde vesti-la, e consola-te o
facto de eu a usar. Não deverás consolar-te com maior segurança e riqueza? Aquele
para quem estava preparada já não necessita de nenhuma veste corruptível, por se ter
revestido de imortalidade...
CARTA 265 141

1. Depois de ler a tua carta, alegrei-me pela tua saúde e pus-me a responder ao que 3589
escreves...
2. Quando (esse novaciano) diz que Pedro fez penitência, não cremos que a tenha 3590
feito como a fazem os que nas Igrejas se chamam penitentes propriamente ditos.
Quem aceitará que pensemos que se há-de contar o primeiro dos Apóstolos entre tais
penitentes? Arrependeu-se de ter negado a Cristo, e isso mostram-no as suas lágrimas,
pois está escrito que chorou amargamente...
7. Antes do baptismo os homens fazem penitência pelos seus pecados. Mas logo 3591
depois são baptizados, como está escrito nos Actos dos Apóstolos, quando Pedro fala
e diz aos Judeus: Fazei penitência e seja baptizado cada um de vós em nome do Senhor
Jesus Cristo...
Também fazem penitência os homens que, depois do baptismo, pecam de maneira
a serem excomungados, e que depois merecem ser reconciliados, como acontece em
todas as Igrejas com aqueles que propriamente se chamam penitentes...
8. Há ainda uma penitência quase diária dos fiéis bons e humildes, quando batemos 3592
no nosso peito, dizendo: Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos
a quem nos tem ofendido. Não estamos a pedir que nos seja perdoado aquilo que,
estamos certos, alcançámos no baptismo, mas sim aquelas faltas que nos acontecem
por fragilidade humana e que, apesar de serem leves, são frequentes... Sobre esses
pecados vigiam os jejuns, as esmolas e as orações. Quando dizemos: Perdoai-nos as
nossas ofensas, assim como nós perdoamos, fica claro que cometemos ofensas. Com
essas palavras humilhamos a nossa alma e não cessamos de fazer uma penitência de
certo modo quotidiana.
Creio que respondi breve e suficientemente aos pontos sobre os quais me consultas...
CARTA 268 142

1. A bem conhecida e provada devoção de vossa santidade a nosso Senhor Jesus 3593
Cristo dá-me confiança para supor que... estais tão alegres como quando estou presente.
Estou sempre em espírito convosco...

141
Não se conhece a data da carta 265 a Seleuciana.
142
Não se conhece a data da carta 268, a propósito de Fáscio, escrita ao povo santo e aos responsáveis das
Igrejas.
858 SÉCULO V

O nosso irmão Fáscio foi obrigado, pelos credores, a pagar a dívida de dezassete
soldos, e neste momento não tinha com que pagar. Para que não lhe aplicassem o
tormento corporal, veio a correr buscar protecção na santa Igreja... Ofereci a Fáscio
falar-vos das suas necessidades, mas ele, cheio de vergonha, suplicou-me que o não
fizesse. Vendo-me assim em maior aperto, pedi dezassete soldos ao nosso irmão
Macedónio e paguei por Fáscio, prometendo-me ele que podia devolvê-los num espaço
de tempo determinado, e consentindo que recorresse a essa vossa misericórdia fraterna,
que costumais ter com os irmãos...
3594 2. Agora que ele está ausente, resta que respondais, não a ele..., mas ao meu com-
promisso... Já passou o dia em que Fáscio prometeu pagar, e eu não tenho a soma que
Macedónio entregou por mim. Vejo-me obrigado a fazer o que prometi. Mas, como não
me preveni para que vos falasse deste assunto no dia santo de Pentecostes, quando a
vossa presença era em maior número, peço-vos que, em vez da minha língua presente,
vos digneis aceitar esta carta...
3595 3. Também escrevi aos presbíteros para que, se faltar algo depois da colecta de
vossa santidade, o supram eles com o que é da Igreja, desde que vós façais as vossas
ofertas com alegria. Quer seja do que é vosso, quer seja do que é da Igreja, tudo é de
Deus... Alegrai o meu coração. Desejo regozijar-me nos vossos frutos; sois árvores de
Deus, que Ele se digna regar com chuvas frequentes pelo meu ministério. Proteja-nos
de todo o mal o Senhor, agora e no mundo que há-de vir...

O dom da perseverança 1
3596 23. 63 Faço apelo a essas orações que a Igreja, desde que existe, sempre dirigiu a
Deus e lhe dirigirá até ao fim deste mundo. De facto, a verdade da qual eu falo..., nunca
a Igreja a calou nas suas orações, embora, por vezes, na ausência de qualquer ataque
contra si, não tenha julgado necessário afirmá-lo por palavras.
Com efeito, quando é que a Igreja deixou de orar pelos infiéis, e mesmo pelos
seus inimigos, para que também eles creiam? Quando é que um fiel deixou de orar por
algum dos seus inimigos, ou dos seus parentes que vivessem na infidelidade, ou pela
sua própria esposa, a fim de obter do Senhor a graça de eles aderirem docilmente à fé
cristã? E qual é aquele que nunca orou por si mesmo, a fim de perseverar no Senhor? E
logo que o sacerdote, na invocação ao Senhor pronunciada sobre os fiéis, diz: «Conce-
dei-lhes, Senhor, a graça de perseverarem em Vós até ao fim», quem é aquele que ousa
corrigi-lo, já não digo por palavras, mas mesmo só em pensamento? Não responde, ao
contrário, cada um: «Amen» a esta bênção, confessando com a boca o que crê no seu
coração?
Foi orando deste modo e, portanto, professando a fé, que a Igreja nasceu, acre-
ditou e cresceu... Supor que a Igreja pede a Deus a fé e a perseverança com a ideia de
que as pode dar a si mesma, seria supor (e quem o pode admitir?) que as suas orações
não são verdadeiras orações, mas orações feitas para passar tempo2.

1
A GOSTINHO DE H IPONA , De dono perseverantiae (=PL 45, 993-1034; Bibliotheca Augustiniana 24). Obra
dirigida a Hilário de Arles, na qual Agostinho afirma que tanto o início da fé como a perseverança no bem
são dons de Deus. Deve ter sido escrita por volta de 428.
2
Perfunctoriae.
AGOSTINHO DE HIPONA 859

Sermões 1

SERMÃO 8

1. A vós me dirijo, crianças recém-nascidas, pequeninos em Cristo, nova prole da 3597


Igreja, beleza do Pai, fecundidade da Mãe, rebento santo, multidão renovada, flor da
nossa honra e fruto do nosso trabalho, minha alegria e coroa, a todos vós que perma-
neceis firmes no Senhor. É com palavras do Apóstolo que vos falo: Revesti-vos do
Senhor Jesus Cristo e não satisfaçais os desejos da carne, nas suas concupiscências,
para que vos revistais da vida que vos foi comunicada no sacramento. Todos vós, que
recebestes o baptismo de Cristo, fostes revestidos de Cristo. Não há Judeu nem Gre-
go, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher: todos vós sois um só em
Cristo Jesus.
Nisto está a eficácia do sacramento: é o sacramento da vida nova, que começa no
tempo presente pela remissão de todos os pecados passados e atingirá a sua plenitude
na ressurreição dos mortos. Fostes sepultados com Cristo pelo baptismo na sua morte,
para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos, também vós caminheis numa
vida nova. Agora caminhais pela fé, vivendo neste corpo mortal como peregrinos,
longe do Senhor. Mas o vosso caminho seguro é Aquele mesmo para quem vos dirigis,
Jesus Cristo, que Se dignou fazer-Se homem por amor de nós. Para os seus fiéis Ele
tem preparado um grande tesouro de felicidade, que há-de revelar e comunicar em
plenitude a todos os que n’Ele esperam, quando recebermos em realidade aquilo que
recebemos agora só em esperança.
4. Hoje é o oitavo dia do vosso nascimento. Hoje completa-se em vós o sinal da fé 3598
que, entre os antigos Patriarcas, se realizava pela circuncisão da carne, no oitavo dia do
nascimento segundo a carne. Por isso, o Senhor, ao ressuscitar, despojando-Se da
mortalidade da sua carne e revestindo-Se de um corpo não diferente mas imortal,
imprimiu o seu selo no seu dia, que é o terceiro após a Paixão. Porém, no ciclo semanal,
é aquele que vem depois do sétimo, isto é, depois do sábado, sendo o primeiro da
semana2.
Por isso também vós participais do mesmo mistério, não ainda na realidade
perfeita, mas na certeza da esperança, porque recebestes a garantia do Espírito: Se
ressuscitastes com Cristo, saboreai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à
direita de Deus; procurai as coisas do alto e não as da terra. Porque vós morrestes,
e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, vossa vida, Se
manifestar, então também vós vos haveis de manifestar com Ele na glória.
SERMÃO 9

22. A esposa é tomada para isto, como o indicam também as tábuas onde se escreve: 3599
por causa da procriação dos filhos...

1
A GOSTINHO DE HIPONA , Sermones (=PL 38-39; PLS 3; CCL 41; SCh 116; BAC 53. 95. 447. 448. 461). Os
Sermões são o fruto do exercício ininterrupto da pregação de Agostinho ao longo de quase quarenta anos.
A biblioteca de Hipona devia conservar muitíssimos, talvez três ou quatro mil, a maioria dos quais se
perdeu. Os seus temas são riquíssimos. A nossa selecção privilegia de modo particular a liturgia. São um
modelo de eloquência popular, simultaneamente clara e profunda, animada, incisiva, imediata e eficaz.
Agostinho não costumava escrever os Sermões antes de os pronunciar. Na sua maioria eles tiveram origem
no trabalho diligente dos taquígrafos, que acompanhavam Agostinho por toda a parte. Dada a incerteza das
datas atribuídas a cada Sermão, indicamos apenas uma (Sermão 214). Indicamos como datas limites dos
Sermões os anos de 391 e 430.
2
Este carácter de primeiro dia próprio do domingo é evidente no calendário litúrgico latino, onde a segunda-
feira se diz feria secunda, a terça, feria tertia, etc. Tal denominação dos dias da semana só persiste na língua
portuguesa.
860 SÉCULO V

SERMÃO 17

3600 1. O leitor sobe (para o ambão) e não fica calado...


3601 2. Eu falo sentado, e vós trabalhais de pé3.
3602 3. Somos tardos em excomungar, em expulsar da igreja...
3603 5. 5 Ainda não percorremos todo o caminho, ainda não acabámos o dia; ninguém
perca a esperança de obter o perdão de que precisa. Para apagar os pecados quotidianos,
tanto mais frequentes quanto mais pequenos, Deus deixou na Igreja os meios adequados.
Recomendou-nos que disséssemos: Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós
perdoamos a quem nos tem ofendido. Por estas palavras, é de rosto lavado que nos
aproximamos do altar, é de rosto lavado que comungamos o Corpo e o Sangue de
Cristo... O pão nosso de cada dia é o remédio quotidiano 4.
3604 6. Diz: Fiz mal, pequei. Se o disseres, (não a mim, acredita, mas a Deus), não
morrerás. Quem sou eu? Um homem como tu.
SERMÃO 20 5

3605 Exortamos a vossa caridade a ouvir com diligência e atentamente, e não de maneira
despreocupada, a palavra de Deus que vos é explicada pelos presbíteros6.
SERMÃO 22 A

3606 4. Meu Deus, salvai-me do pecador, do homem iníquo e violento. Seja quem for que
cante este versículo não pode deixar de pensar nas suas próprias experiências. Quer
ouça estas palavras da boca do leitor, quer as pronuncie ele próprio como refrão, pensa
nos pequenos acontecimentos da sua vida pessoal, em tal inimigo, em tal detractor, em
tal outro que queria fazê-lo prender, ou ainda noutro que redigiu contra si um docu-
mento difamatório. Por isso podemos vê-lo cantar com emoção. A fisionomia de quem
canta adapta-se ao salmo, e por vezes até vemos lágrimas a correr-lhe pela cara abaixo.
Suspira a cada palavra, e para quem se deixa levar por aparências, este homem parece
entregar-se verdadeiramente e por inteiro ao salmo: vede como suspira, como suspira
profundamente! Põe-se a cantar com toda a força, com toda a alma, a cantar com a voz,
com o rosto, do fundo do seu coração: Meu Deus, salvai-me do pecador, do homem
iníquo e violento, e, ao dizer isto, vai pensando no seu próprio inimigo.
SERMÃO 23 A

3607 1. Somos verdadeiramente felizes, se pomos em prática o que ouvimos e cantamos.


De facto, o que ouvimos é a semente, e o que pomos em prática é o fruto da semente.
Com esta introdução quero advertir a vossa caridade, para que não frequenteis a igreja
de maneira infrutuosa, ouvindo tantas coisas boas e não praticando o bem...
SERMÃO 25

3608 7. Peço-vos, meus irmãos, que repareis no que diz o Senhor ao estender a mão para
os seus discípulos: Aí estão minha mãe e meus irmãos; pois, todo aquele que fizer a
vontade de meu Pai que está no Céu, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha

3
Ego sedens loquor, vos stando laboratis.
4
Cottidiana medicina.
5
Revista Beneditina (1931), 191.
6
Exortamur caritatem vestram ut impigre et vigilanter verba Dei ministrantibus presbyteris, vos audire
non pigeat.
AGOSTINHO DE HIPONA 861

mãe 7. Porventura não fez a vontade do Pai a Virgem Maria, que acreditou pela fé e
concebeu pela fé, que foi escolhida para que, por meio dela, nascesse a salvação entre
os homens e que foi criada por Cristo antes de Cristo ter sido criado nela? Maria
cumpriu, e cumpriu perfeitamente, a vontade do Pai, e, por isso, Maria é maior por ter
sido discípula de Cristo do que por ter sido mãe de Cristo; mais ditosa é Maria por ter
sido discípula de Cristo do que por ter sido mãe de Cristo. Portanto, Maria era bem-
-aventurada, porque, antes de dar à luz o Mestre, trouxe-O em seu seio...
Maria era feliz, porque ouviu a palavra de Deus e a pôs em prática; guardou mais
a verdade na sua mente do que o corpo de Cristo no seu seio. Cristo é verdade, Cristo
é carne. Cristo é verdade no espírito de Maria, Cristo é carne no seio de Maria; é mais
o que está no espírito do que o que se traz no seio.
Maria é santa, Maria é bem-aventurada. Mas é mais importante a Igreja do que
a Virgem Maria. Porquê? Porque Maria é uma parte da Igreja, membro santo, membro
excelente, membro supereminente, mas, apesar disso membro do corpo total. Se é
membro do corpo, é certamente mais o corpo do que o membro. A cabeça é o Senhor,
e Cristo total é a cabeça e o corpo. Que mais direi? Temos no corpo da Igreja uma
cabeça divina, temos a Deus por cabeça.
8. Reparai, portanto, em vós mesmos, irmãos caríssimos. Também vós sois mem- 3609
bros de Cristo, também vós sois corpo de Cristo... Também vós, a quem estou a falar,
sois membros de Cristo. Quem vos deu à luz? Escuto a voz dos vossos corações que
dizem: a mãe Igreja. Esta vossa mãe é santa e honrada; e, como Maria, dá à luz e é
virgem. A prova da sua maternidade está em todos vós: nascestes dela. Gerando-vos,
ela gera Cristo, porque vós sois membros de Cristo...
Dêem os membros de Cristo à luz, no seu coração, Aquele que a Virgem Maria
trouxe no seu seio, isto é, o próprio Cristo! E assim também vós sereis mães de Cristo.
Não vos é impossível, não é uma coisa distante de vós, nem para além das vossas
forças. Já fostes feitos filhos; agora tornai-vos mães. Fostes feitos filhos da vossa
mãe, quando fostes baptizados. Então nascestes como membros de Cristo. Levai ao
banho do baptismo os que puderdes, para que, assim como fostes filhos, quando
nascestes deste modo, assim, levando outros a nascer, possais ser também mães de Cristo.
SERMÃO 27

2. Se vós sois o corpo de Cristo e seus membros, é o sacramento8 do que vós sois 3610
que está colocado na mesa do Senhor; é o sacramento do que vós sois que vós recebeis.
É ao que vós sois que respondeis Amen, e esta resposta é a vossa assinatura. Torna-te
num membro do corpo de Cristo, para que este Amen seja verdadeiro.
SERMÃO 32

13. Deus não precisa de pessoas que fazem sinais, mas de quem realiza o que esses 3611
sinais significam.
SERMÃO 34

1. Cantai ao Senhor um cântico novo, cantai os seus louvores na assembleia dos 3612
santos. Somos exortados a cantar ao Senhor um cântico novo. O homem novo conhece
o cântico novo. O cântico é uma manifestação de alegria e, se consideramos melhor, um
sinal de amor. Quem, efectivamente, aprendeu a amar uma vida nova, aprendeu tam-

7
Mt 12, 49-50.
8
Mysterium.
862 SÉCULO V

bém a cantar um cântico novo. É, pois, pelo cântico novo que devemos reconhecer o
que é a vida nova. Tudo isto pertence ao mesmo reino: o homem novo, o cântico novo,
o testamento novo. O homem novo, portanto, canta o cântico novo e pertence ao
testamento novo.
3613 2. Não há ninguém que não ame; a questão está em saber o que se deve amar. Por
conseguinte, nós não somos exortados a não amar, mas sim a escolher o que havemos
de amar. Mas que podemos nós escolher, se antes não somos escolhidos? Porque nós
não amamos, se antes não somos amados. Ouvi o apóstolo João: Nós amamos, porque
Ele nos amou primeiro. Procura saber como é que ocorreu ao homem amar a Deus, e
nada mais encontrarás senão que Deus o amou primeiro. Deu-Se a Si mesmo Aquele
que amamos, e deu-nos a capacidade de amar. Como é que Ele nos deu a capacidade de
amar, ouvi-o mais claramente através do apóstolo Paulo: O amor de Deus foi derra-
mado em nossos corações. Por quem? Por nós, talvez? Não. Então por quem? Pelo
Espírito Santo, que nos foi dado.
3614 3. Tendo, portanto, uma tão grande confiança, amemos a Deus com o amor que vem
de Deus. Ouvi mais claramente o mesmo São João: Deus é amor, e quem permanece no
amor permanece em Deus, e Deus permanece n’Ele. É bem pouco afirmar: O amor
vem de Deus. Quem de nós se atreveria a dizer o que foi dito: Deus é amor? Disse-o
quem conhecia o que tinha. Deus oferece-Se em nosso favor. Clama para cada um de
nós: Amai-Me e possuir-Me-eis, porque não Me podeis amar, se não Me possuirdes.
3615 5. Ó irmãos, ó filhos, ó novos rebentos da Igreja católica, ó geração santa e celestial,
que renascestes em Cristo para uma vida nova! Ouvi-me, ou antes, ouvi através do
meu convite: Cantai ao Senhor um cântico novo. Já canto, dir-me-ás. Sim, oiço que
cantas. Mas, oxalá a tua vida não dê testemunho contra a tua língua.
3616 6. Cantai com a voz, cantai com o coração, cantai com a boca, cantai com a vida:
Cantai ao Senhor um cântico novo. Perguntais-me que deveis cantar a respeito d’Aquele
a quem amais? Sem dúvida é acerca d’Aquele a quem amas que tu desejas cantar.
Queres saber então que louvores hás-de cantar? Já o ouviste: Cantai ao Senhor um
cântico novo. E que louvores? Cantai os seus louvores na assembleia dos santos. O
maior louvar do cântico é o próprio cantor. Quereis tributar louvores a Deus? Sede vós
mesmos o cântico que ides cantar. Vós sois o seu maior louvor, se viverdes santamente.
SERMÃO 47

3617 3. Quem é o pastor de Israel, senão Aquele que nunca dorme, nem adormece, o
guardião de Israel? Ele vela por nós quando velamos, e vela por nós quando dormimos.
Por isso, se os rebanhos de ovelhas se sentem seguros, graças aos seus pastores,
quanto maior não há-de ser a nossa segurança, sob o cajado d’Aquele que é ao mesmo
tempo nosso Pastor e nosso Pai? O nosso único cuidado consiste em escutar a voz do
nosso Pastor. Ainda é tempo de O escutar, pois ainda não chegou o tempo de julgar.
Hoje Ele fala e cala-Se. Fala para exprimir a sua vontade, e cala-Se como juiz. Escuto-Vos,
pois, Senhor, que falais por tantos mandamentos e sacramentos, em todas estas pági-
nas e neste grande número de livros. Também Vos escuto quando dizeis: Eu guardo
silêncio, mas guardá-lo-ei sempre? Deus mostra uma grande bondade, uma grande
compaixão, uma grande doçura. Mas não abusemos da sua paciência para fazermos o
que nos apetece. No campo que Ele semeou, suporta a mistura, ao passo que tu queres
arrancar o trigo, antes de chegar o tempo da escolha. Um é o campo, outro o celeiro. Sê
tolerante. É essa a condição do homem. Suporta, como sem dúvida o Senhor te suportou.
3618 6. Foste sempre bom? Dá provas de misericórdia. Se nem sempre o foste, procura
não o esquecer. Quem pode dizer que foi sempre bom? Se Deus quisesse submeter-te
a um exame apertado, ser-Lhe-ia mais fácil, ainda hoje, encontrar falhas em ti, do que
achar-te sempre bom. É preciso saber suportar o joio no meio do trigo, os carneiros
AGOSTINHO DE HIPONA 863

entre os cordeiros, os cabritos entre as ovelhas. A mistura actual no campo chegará ao


fim, quando vier a hora da separação e da ceifa. No momento presente, o Senhor pede-
-nos que dêmos provas daquela paciência que Ele impõe a Si mesmo. Se Ele julgasse
hoje, não o faria com justiça? Como ousas tu julgar antes do tempo, tu que ignoras a
sentença que te espera?
SERMÃO 49

8. Depois do sermão faz-se a despedida dos catecúmenos, e permanecerão só os fiéis9. 3619


SERMÃO 51

22. Quem se une à mulher com outros fins que não seja a geração de filhos, vai contra 3620
as próprias tábuas 10, por meio das quais a tomou por esposa. Lêem-se as tábuas, e
lêem-se na presença de todas as testemunhas, e aí se diz: Por causa da geração dos
filhos. Chamam-se tábuas matrimoniais. As mulheres não são dadas nem são tomadas
senão para isto. Quem, se tiver juízo, dará a sua filha para o prazer de outro? É para
que os pais não se envergonhem, ao dá-las, que se lêem as tábuas; para que sejam
sogros e não proxenetas. Que dizem as tábuas? Por causa da geração dos filhos.
Depois de ouvir a recitação das tábuas, a fronte do pai desenruga-se e fica serena.
Olhemos para a fronte do homem que aceita a esposa. Envergonhe-se o marido, se a
recebe para outra coisa, pois o pai também se envergonha de a dar para outro fim. Se
não puderem abster-se, como já o dissemos algumas vezes, peçam o débito, mas vão
apenas aos seus devedores. Em sua fraqueza, consolem-se mutuamente o homem e a
mulher. Não vá ele a outra nem ela a outro. O adultério recebe daí o seu nome: ad
alterum, a outro; se ultrapassam a meta do pacto matrimonial, não ultrapassem os
limites do leito conjugal. Acaso não é pecado exigir da esposa mais do que pede a
necessidade de gerar filhos? Sim, é pecado, mas venial11...
SERMÃO 56 12

1. Não recebestes primeiro a Oração e depois o Símbolo, mas primeiro o Símbolo, 3621
para saberdes em quem acreditar, e depois a Oração, para conhecerdes Aquele a quem
haveis de invocar. O Símbolo diz respeito à fé, a Oração, à súplica, porque aquele que
crê é ouvido quando invoca...
4. Nosso Senhor começou por suprimir o palavreado; não gosta que multipliquemos 3622
as palavras diante d’Ele, como se quiséssemos dar-Lhe lições com tanto falar. Quando
pedes, precisas de piedade, não de verbosidade, porque o vosso Pai que está nos Céus
sabe do que precisais antes de Lho pedirdes. Por isso, não faleis muito, porque Ele
sabe do que precisais. Talvez alguém diga: «Então, se já sabe do que precisamos,
porque dizemos mesmo poucas palavras? Para que oramos? Uma vez que Ele sabe, dê-
nos o que precisamos». Sim, mas Ele dispôs que rezes para dar aos que têm desejo e
evitar o desprezo pelos seus dons...
5. Dizei, pois: Pai nosso, que estais nos Céus. Como vedes13, começais a ter em 3623
Deus um Pai, que o será plenamente quando tiverdes nascido. Agora ainda não nascestes,
embora já tenhais sido concebidos da sua semente no seio da Igreja, que vos dará à luz
na fonte baptismal... Aquilo que dizeis, dizei-o de todo o coração; a oração tem efeito,
quando se ora com afecto...

9
Ecce post sermonem fit missa cathecumenorum, manebunt fideles.
10
Tabulas.
11
Est quidem peccatum, sed veniale.
12
Entrega da Oração dominical aos competentes.
13
Agostinho dirige-se aos competentes.
864 SÉCULO V

3624 6. Venha a nós o vosso reino... O reino de que aqui se fala é o reino que há-de
seguir-se depois do fim dos tempos... Pedimos ao mesmo tempo que esse reino se
estabeleça em nós, e que nós tenhamos um lugar nesse reino... O que desejas, o que
pedes na oração, mais não é do que viver de tal modo que venhas a pertencer ao número
dos santos, aos quais se há-de dar o reino de Deus...
3625 9. Quando dizes o pão nosso de cada dia nos dai hoje, confessas que és mendigo de
Deus; não tenhas vergonha. Por muito rico que alguém seja na terra, é mendigo de
Deus. O mendigo está diante da porta do rico, e o rico diante da porta do grande rico.
Pedimos ao rico, e ele também pede. Se não fosse mendigo, não bateria com a oração à
porta dos ouvidos de Deus. E de que precisa o rico? Atrevo-me a dizê-lo: também
precisa do pão de cada dia. Por que razão abunda ele em todas as coisas? Donde, senão
porque Deus lho deu? Que teria ele, se Deus retirasse a sua mão? Não há muitos que
adormeceram ricos e acordaram pobres?...
3626 10. Mas este pão, caríssimos, com que encheis o estômago e refazeis diariamente o
corpo, Deus oferece-o não só aos que O bendizem, mas também aos que blasfemam o
seu santo nome, pois faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre justos e
injustos14. Alimenta-te se O bendizes e alimenta-te se O amaldiçoas. Espera para que
faças penitência, e, se não te convertes, condena-te. Ao veres que os bons e os maus
recebem de Deus este pão, pensas que não há outro pão que os filhos devem pedir, e
do qual o Senhor dizia no Evangelho: Não é bom tomar o pão dos filhos e deitá-lo aos
cães? Há, com certeza. Que pão é esse? E porque se lhe chama quotidiano? Porque é
um pão necessário e sem o qual não podemos viver. Sem pão nada podemos. Seria
descaramento pedir riquezas a Deus, mas não o é pedir-Lhe o pão de cada dia. Uma
coisa é pedir bens para alimentar o orgulho, outra pedir o necessário para viver.
Como este pão visível e palpável é dado aos bons e aos maus, então tem de haver
outro pão quotidiano que os filhos pedem. Esse pão é a palavra de Deus, que nos é
dada cada dia. Pão nosso quotidiano, do qual se nutrem as mentes, não os ventres15.
Agora que trabalhamos na vinha, temos necessidade dele; mas é alimento, não salário...
O nosso alimento quotidiano nesta terra é a palavra de Deus, que está sempre a ser
dada às Igrejas; o nosso salário, depois do trabalho, chama-se vida eterna. E, se além
desse, vires, neste pão nosso quotidiano, aquele que os fiéis recebem16, e que vós17
haveis de receber depois de baptizados, compreendes que rezamos muito bem quando
dizemos: O pão nosso de cada dia nos dai hoje, a fim de vivermos de tal modo que não
nos separemos daquele altar.
3627 11. Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores.
Também nesta petição é preciso expor que pedimos por nós, uma vez que pedimos que se
nos perdoem as dívidas, pois somos devedores, não de dinheiro, mas de pecados.
Mas talvez me perguntes agora: «Vós também»? «Nós também». «Vós, bispos
santos, também sois devedores»? «Nós também somos devedores». «Mas isso é
verdade? Não faleis assim, meu senhor, não vos façais esta injúria». «Não me faço
nenhuma injúria, digo a verdade. Nós somos devedores»: Se dissermos que não temos
pecado, enganamo-nos a nós mesmos. Fomos baptizados e, apesar disso, somos
devedores, não por ter ficado algo sem perdão no baptismo, mas por contrairmos
diariamente algo que precisa de perdão diário.
Os que morrem imediatamente depois do baptismo, sobem sem dívidas, saem
sem dívidas; mas, quando os baptizados continuam nesta vida, contraem, em conse-

14
Mt 5, 45.
15
Inde vivunt non ventres, sed mentes.
16
A Eucaristia.
17
Os catecúmenos.
AGOSTINHO DE HIPONA 865

quência da fragilidade mortal, algo que os obriga, para evitar o naufrágio, a tirar água do
próprio barco. Se não se tirar a água do barco, pouco a pouco entrará água suficiente
para o afundar. Orar é tirar água. E não só devemos orar, mas também dar esmolas,
porque o fundo do barco esvazia-se trabalhando com a voz e com as mãos. Trabalhamos
com a voz, quando dizemos: Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos
aos nossos devedores; trabalhas com as mãos, se repartires o teu pão com os famintos
e deres abrigo aos infelizes sem casa 18...
12. Que angústia não sentiríamos se, depois de termos recebido o perdão de todos os 3628
pecados no banho da regeneração, não nos fosse dada a purificação diária da santa
oração! As esmolas e as orações purificam-nos dos pecados, se eles não são tais que
nos levem a ser separados do pão quotidiano...
Meus irmãos, a maior parte do tempo, mesmo em plena oração, há pensamentos
estranhos que de repente nos fazem esquecer Aquele diante de quem estamos, Aquele
diante de quem nos prostramos. Esta multidão de pequenas faltas, à força de se amontoarem
contra nós, não acabarão por nos deitar por terra?... As minhas faltas são pequenas,
dizes tu. Não vês que a infinidade das pequenas gotas enchem os rios e fazem desmo-
ronar as terras? As faltas são pequenas; mas pouco importa, se são numerosas.
14. Deus é nosso Pai, a Igreja é nossa mãe; por isso somos irmãos 19... 3629
16. Quando atiravam pedras a Estêvão, ele ajoelhava e orava pelos inimigos, dizendo: 3630
Senhor, não leves em conta este pecado. Atiravam-lhe pedras e não lhe pediam perdão,
mas ele orava por eles. Aqui tens a atitude que eu quero ver em ti. Eleva-te até lá. Não
deixes a tua alma andar sempre colada à terra. Corações ao alto! Sim, eleva-te até lá.
Ama os teus inimigos. Se não podes amar aquele que te insulta, ama aquele que te pede.
Ama o homem que te diz: «Irmão, pequei, perdoa-me»! Porque, se tu não perdoares,
então digo-te que não só apagas do teu coração a Oração do Senhor, mas tu próprio
serás apagado do livro da vida.
SERMÃO 57 20

1. A ordem da vossa formação21 consiste em aprender primeiro o que deveis acreditar, 3631
e depois o que haveis de pedir. Assim, de facto, diz o Apóstolo: Ora, como hão-de
invocar Aquele em quem não acreditaram? E como hão-de acreditar n’Aquele de
quem não ouviram falar? E como hão-de ouvir falar, sem alguém que O anuncie? E
como hão-de anunciar, se não forem enviados 22?... Por isso aprendestes primeiro o
que haveríeis de crer; hoje aprendestes a invocar Aquele em quem acreditastes.
2. Esta Oração 23 foi-nos ensinada pelo Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo; 3632
e, sendo este Senhor, como aprendestes e professastes24, o Filho de Deus, contudo não
quis ser um só. É único, mas não quis ser sozinho: dignou-Se ter irmãos, aos quais
disse: Dizei, Pai nosso, que estais nos Céus..., palavras que repetiram os que viveram
antes de nós, e dirão os que vierem depois... Tínhamos na terra um pai e uma mãe..., e
encontrámos outros Pais: Deus Pai e a Igreja mãe, caminho para a vida eterna... Vede:
o Criador dignou-Se ser nosso Pai.

18
Is 58, 7.
19
Deus pater, Ecclesia mater: ergo nos fratres.
20
Tradição do Pai-Nosso, oito dias antes da Páscoa.
21
Aedificationis. Trata-se da formação espiritual para os sacramentos da iniciação cristã. Este sermão é o da
entrega do Pai-Nosso.
22
Rom 10, 13-15.
23
Trata-se da Oração dominical.
24
Accepistis et reddidistis.
866 SÉCULO V

3633 3. Ouvimos a quem devemos invocar...; aprendamos agora o que devemos pedir.
Que devemos pedir a esse Pai? Não lhe pedimos nós hoje e ontem e há três dias o
benefício da chuva?... Quanto mais não Lhe havemos de pedir, clamando, que nos faça
chegar (ao Céu), onde nunca morreremos?
3634 4. E também dissemos: Santificado seja o vosso nome... Como será santificado em
nós o seu nome, se Ele não nos tornar santos? Porque nós não éramos santos; fomos
tornados santos pelo seu nome. Ele foi sempre Santo, e Santo foi sempre o seu nome.
Pedimos para nós, não para Deus... Para nós desejamos a santificação do seu nome.
Aquele que sempre foi santo seja-o também em nós.
3635 5. Venha a nós o vosso reino... Vinde, benditos de meu Pai, recebei o reino... Quer
lho peçamos, quer não, o seu reino há-de vir...
3636 7. O pão nosso de cada dia nos dai hoje... Além do pão quotidiano, os fiéis
conhecem também um alimento espiritual, que vós25 também haveis de conhecer e
receber do altar de Deus. Será também um pão quotidiano necessário à vossa vida. Por
ventura haveremos de receber a Eucaristia quando nos aproximarmos de Cristo e
começarmos a reinar eternamente com Ele? Logo a Eucaristia é o nosso pão quotidiano.
Havemos de recebê-lo não só como alimento que sustenta o corpo, mas também a alma.
Nesse pão reside a força da unidade, para que, quando nos tornarmos parte do corpo
de Cristo e seus membros, sejamos aquilo que recebemos. Só então ele será verdadeiramente
o nosso pão quotidiano. O que estou a tratar convosco é pão quotidiano; as leituras
que diariamente ouvis na igreja são pão quotidiano, os hinos que ouvis e dizeis são pão
quotidiano. Na verdade, estas coisas são necessárias para a nossa peregrinação. Por-
que iríamos nós, quando chegarmos (ao Céu), ouvir a leitura do livro? Então veremos
o próprio Verbo, ouviremos o próprio Verbo, comê-l’O-emos, bebê-l’O-emos, como
os Anjos agora. Têm acaso os Anjos necessidade de livros, de pregadores, ou de
leitores? De modo nenhum. Vendo lêem, porque vêem a própria Verdade e saciam-se
naquela Fonte, donde brotam para nós algumas gotas...
3637 8. Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores...
O que são estas dívidas, senão os pecados? Ides ser baptizados, e todos os vossos
pecados serão perdoados, sem deixar um. Se alguma vez produzistes, fizestes, dissestes,
desejastes, pensastes algo de mal, tudo será apagado. Contudo, se, na vida que ireis
viver depois, não houvesse nada a temer, não seríamos ensinados a dizer nesta oração:
Perdoai-nos as nossas dívidas. Tenhamos, no entanto, muito cuidado em fazer o que
se segue: Assim como nós perdoamos aos nossos devedores. Vós, sobretudo, que ides
entrar26 para receber a plena remissão das vossas dívidas, vede se não guardais alguma
coisa nos vossos corações contra alguém, para sairdes dali tranquilos, libertados e
absolvidos de todas as dívidas, sem intenção de voltar ao desejo de vos vingardes dos
inimigos que antes vos fizeram alguma injúria. Perdoai como vos é perdoado a vós...
3638 9. E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal... A tentação pode ser
tomada num mau sentido pelas decepções e as quedas que o Demónio nos causa. Mas
há uma outra espécie de tentação, à qual damos o nome de provação. Dela está escrito:
O Senhor nosso Deus tenta-vos para saber se O amais. Que quer dizer «para saber»?
Para vos fazer saber, porque Ele já o sabe. Deus não envia a ninguém a tentação, que
consiste em enganar e seduzir...
No santo baptismo deixareis os pecados, mas não deixareis as paixões, com as
quais, depois de regenerados, haveis de lutar. A batalha continuará dentro de vós
mesmos. Não há que temer nenhum inimigo de fora; vence-te a ti mesmo, e o mundo
estará vencido. Que pode fazer-te um tentador externo, quer seja o Diabo, quer seja um

25
Os competentes.
26
Subentende-se: na fonte baptismal,
AGOSTINHO DE HIPONA 867

ministro do Diabo?... Para te seduzir, propõe-te um lucro exagerado. Se tal proposta


não encontrar em ti a cumplicidade da cupidez, que influência poderá ter sobre ti? Mas
a avareza reina em teu coração. A possibilidade do lucro inflama os teus desejos. E
ficas preso na rede duma cedência culpada; ao contrário, se estiveres livre da avareza,
é em vão que te estendem o laço. Se o Tentador te puser diante uma mulher lindíssima,
mas houver castidade dentro de ti..., vencida será a iniquidade de fora... Não sentes o
teu inimigo; sentes o teu mau desejo. Não vês o Diabo; vês, sim, o que te deleita.
Triunfa dessas solicitações interiores. Luta, luta sempre, pois Aquele que te regenerou
também é teu juiz; propõe-te uma luta; prepara-te uma coroa. Mas, como serias
vencido se Ele não te ajudasse ou te abandonasse, propõe-te na Oração: Não nos
deixeis cair em tentação...
11. Mas a grande tentação, caríssimos, a grande tentação desta vida... é o desejo de 3639
vingança. Acende-se a ira, e o homem só pensa em vingar-se. Horrível tentação. E
então perdes o que havia de servir-te para a remissão de outros delitos. Se tivesses
pecado através de outros sentidos e por efeito de outras paixões, aí tinhas o remédio,
pois havias de dizer: Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos
nossos devedores. Quem te instiga a vingares-te faz-te perder o que havias de dizer:
Assim como nós perdoamos aos nossos devedores. E, uma vez perdido isto, ficarás
com todos os pecados; sem isso, com efeito, não se perdoa absolutamente nada.
12. Sabendo nosso Senhor, Mestre e Salvador, como esta tentação é perigosíssima 3640
nesta vida e tendo-nos ensinado nesta Oração seis ou sete petições, não escolheu
nenhuma outra para... nos recomendar com maior veemência do que esta... Omitindo
as outras petições que nos tinha ensinado, quis fazer sobressair especialmente esta.
Não eram precisos grandes esclarecimentos sobre as outras..., mas havia que pôr em
evidência aquela cuja violação impede o resto de ter remédio. Deves, por isso, dizer:
Perdoai-nos as nossas dívidas. Que dívidas? Nunca falta que perdoar; somos homens.
Falei mais do que devia, disse algo que não devia, ri-me mais do que devia, bebi mais do
que devia, comi mais do que devia, ouvi de bom grado o que não devia, vi com gosto o
que não devia, pensei com deleite o que não devia, perdoai-nos as nossas dívidas,
assim como nós perdoamos aos nossos devedores. Considera-te perdido, se perdeste isto.
13. Vede, meus irmãos, vede, meus filhos, vede, filhos de Deus, prestai atenção ao 3641
que vos digo. Combatei quanto puderdes contra o vosso coração...
SERMÃO 58 27

1. Devolvestes 28 o Símbolo, onde a fé está resumida com brevidade... Agora que 3642
recebestes, guardastes e devolvestes (o Símbolo), onde se diz como se deve crer em
Deus, recebei hoje como se deve invocar a Deus. Como acabastes de ouvir quando se
leu o Evangelho, foi o seu próprio Filho que ensinou esta Oração aos seus discípulos
e fiéis... Guardai, pois, também esta Oração, que devolvereis daqui a oito dias. Aqueles
que não devolveram bem o Símbolo, aprendam-no, porque têm tempo; no sábado
tereis de dizê-lo de cor na presença de todos os ouvintes. É o último sábado, dia em que
recebereis o baptismo. Dentro de oito dias, a partir de hoje, tereis de devolver esta
Oração, que recebeis agora...
2. Um general, um mendigo, um escravo e o seu senhor, que dizem cada um: Pai 3643
nosso, que estais nos Céus, compreendem que são irmãos...
5. Que quer dizer: O pão nosso de cada dia nos dai hoje? Que vivamos de tal modo, 3644
que nada nos aparte do vosso altar. E a palavra de Deus que cada dia se abre para vós
e que, de algum modo, se reparte por vós, é pão de cada dia: pão que as mentes desejam
comer, como o outro o deseja o estômago...

27
Tradição do Pai-Nosso, oito dias antes da Páscoa.
28
Reddidistis.
868 SÉCULO V

3645 6. Perdoai-nos as nossas dívidas... Isto já o sabeis; disseste-lo ao devolver o Símbolo,


no qual mencionastes, além de outras coisas, o perdão dos pecados. Há uma remissão
dos pecados que se dá uma só vez, e outra que se dá todos os dias. É única, a remissão
dos pecados que se dá uma só vez no baptismo; a outra, a de todos os dias enquanto
vivermos, dá-se na Oração dominical. Por isso dizemos: Perdoai-nos as nossas dívidas...
3646 9. E não nos deixeis cair em tentação. Perdoai-nos os pecados cometidos e concedei-nos
a graça de não cometer outros. Pois quem é vencido pela tentação, comete pecado. Não
te deixes, pois, arrastar pela sensualidade, não consintas nos teus desejos. Ela não
pode conceber senão de ti. Consentir é como que estares deitado com a sensualidade no
teu coração. Quando a sensualidade se levanta (para ir para a cama), nega-te a ela, não
a sigas. Ela é má, é brincalhona, é desonesta e afasta-te de Deus. Não lhe dês o abraço
do consentimento, para não teres de chorar o parto: porque, se consentires, quer dizer,
se lhe deres esse abraço, ela concebe, e o fruto da concepção é o pecado. Ainda não tens
medo? O pecado traz consigo a morte... O pecado é doce, a morte amarga29...
3647 11. Mas livrai-nos do mal. Quem pede para ser libertado do mal, confessa que já
está metido nele...
3648 12. Depois de baptizados, deveis dizer a Oração todos os dias. Na igreja, no altar de
Deus, diz-se diariamente esta Oração dominical, e os fiéis escutam-na. Por isso não
tenho medo que a fixeis defeituosamente, pois se algum de vós a não puder fixar bem,
aprendê-la-á à força de a ouvir todos os dias.
3646 13. Assim, pois, no próximo sábado, em que celebraremos a Vigília..., haveis de
devolver não a Oração, mas o Símbolo. Se agora não aprendeis o Símbolo, depois, na
igreja, não o ouvireis todos os dias ao povo. Se o aprenderdes bem, dizei-o todos os
dias, para não o esquecerdes: ao levantar-vos e antes de adormecerdes, dizei o vosso
Símbolo, dai-o ao Senhor, procurai fazer memória dele e repeti-o sem preguiça. É bom
repetir, para não esquecer. Não digais: «Disse-o ontem, disse-o hoje, digo-o todos os
dias; tenho-o bem gravado na memória».
Comemora a tua fé, olha para dentro de ti. Seja para ti o teu Símbolo como um
espelho. Olha-te nele, para ver se crês tudo o que declaras crer. E alegra-te cada dia na
tua fé. Seja ela a tua riqueza, seja como que a roupa quotidiana da tua alma. Não te
vestes quando te levantas? Pois do mesmo modo hás-de vestir a alma com a memória
do Símbolo, não aconteça que a dispa o esquecimento... A nossa veste será a nossa fé;
a fé deve ser túnica e couraça... Quando chegarmos ao lugar onde reinaremos, já não
teremos necessidade de dizer o Símbolo. Veremos a Deus; o próprio Deus será a nossa
visão e a visão de Deus será então o prémio da fé actual.
SERMÃO 59 30

3650 1. Recitastes31 o que deveis crer, ouvistes o que deveis orar, pois não poderíeis
invocar Aquele em quem não tivésseis acreditado, como diz o Apóstolo: Como é que
hão-de invocar Aquele em quem não acreditaram32? Por isso aprendestes primeiro o
Símbolo, onde está a regra da vossa fé, breve e grave, breve pelo número das palavras,
grave pelo peso do sentido. Quanto à Oração que recebestes para a aprender de cor e
daqui a oito dias a recitar, foi ensinada, como ouvistes na leitura do Evangelho, pelo
próprio Senhor aos seus discípulos, e através deles chegou até nós...
3651 2. Ora, já que encontrastes um Pai nos Céus, não vos apegueis às coisas da terra.
Por que haveis de dizer: Pai nosso, que estais nos Céus. Começastes a pertencer a uma

29
Dulce est peccatum sed amara est mors.
30
Tradição do Pai-Nosso, oito dias antes da Páscoa.
31
Reddidistis.
32
Rom 10, 14.
AGOSTINHO DE HIPONA 869

grande família. Junto deste Pai são irmãos: o rico e o pobre..., o senhor e o escravo...,
o general e o soldado. Os fiéis cristãos têm todos na terra pais de condição diversa...,
mas todos invocam um só Pai que está nos Céus. Se nos Céus é que está o nosso Pai,
lá é que se prepara a nossa herança. Tal é, porém, o nosso Pai, que havemos de possuir
com Ele o dom que Ele nos faz... Portanto, depois de aprendermos a quem pedir,
saibamos que coisas havemos de pedir...
3. Que nos ensinou o Senhor Jesus a pedir ao Pai que está nos Céus? Santificado 3652
seja o vosso nome... O nome de Deus é sempre santo... Por isso, o que pedimos é que
aquilo que é sempre santo em Si seja santificado em nós. O nome de Deus será santi-
ficado em vós, quando fordes baptizados. E porque é que, depois de baptizados, ainda
haveis de fazer a mesma Oração, senão para pedirdes que o que recebestes persevere
em vós?
4. Segue-se outra petição: Venha a nós o vosso reino. Quer peçamos quer não, há- 3653
-de vir o reino de Deus. Porque o pedimos então? Para que venha também para nós o
que há-de vir para todos os santos, e para que Deus nos tenha no número dos seus
santos, para os quais há-de vir o seu reino.
5. Dizemos na terceira petição: Seja feita a vossa vontade assim na terra como no 3654
Céu. Que quer isto dizer? Que assim como os Anjos Vos servem no Céu, assim nós Vos
sirvamos na terra. Ora os seus santos Anjos obedecem-Lhe, não O ofendem, e cum-
prem as suas ordens amando-O. Portanto, o que pedimos é que cumpramos também os
mandamentos de Deus por amor.
Podem estas palavras entender-se ainda de outra maneira: Seja feita a vossa
vontade assim na terra como no Céu. O Céu em nós é a nossa alma, a terra em nós é o
nosso corpo. Que significa então seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu?
Assim como nós ouvimos os vossos preceitos, assim a nossa carne consinta connosco...
Entendem-se também assim estas palavras: Seja feita a vossa vontade assim na
terra como no Céu. O Céu são os fiéis que vestiram a imagem do homem celeste, isto
é, de Cristo. Porém os infiéis, como levam a imagem do homem terreno, chamam-se
terra. Quando, pois, dizemos seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu,
o que dizemos ao nosso bom Pai é isto: Como creram em Vós os fiéis, assim creiam
também os infiéis. E, deste modo, aprendemos a orar pelos nossos inimigos.
6. Vem a seguir, na Oração: O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Quer entendamos 3655
pelo pão nosso de cada dia o alimento necessário ao nosso corpo... quer aquele pão
que haveis de receber do altar, bem pedimos que no-lo dê hoje, isto é, no tempo
presente; pois temos necessidade dele neste tempo quando temos fome...
A palavra de Deus que se prega cada dia também é pão. Não é por não ser pão do
ventre que deixa de ser pão da mente. Mas, quando tiver passado esta vida e não
buscarmos o pão exigido pela fome, também já não teremos de receber o sacramento do
altar, porque lá estaremos com Cristo, cujo Corpo recebemos, nem teremos que dizer-
-vos estas palavras que agora vos dizemos, nem que ler o livro, pois veremos em
pessoa o Verbo de Deus por quem tudo foi feito, por quem são alimentados, ilumina-
dos e se tornam sábios os Anjos... porque bebem o único Verbo... e cantam louvores
sem desfalecer...
7. Nesta vida pedimos também o que segue: Perdoai-nos as nossas dívidas. No 3656
baptismo, todas as vossas dívidas, isto é, todos os vossos pecados vos serão perdoados.
Mas, como aqui ninguém pode viver sem pecado (não digo pecado grande que o separe
daquele pão), como ninguém pode viver sem pecados nesta terra, e não podemos
receber o baptismo mais que uma vez, é na Oração que recebemos a água para nos
lavarmos todos os dias, para nos serem todos os dias perdoados os nossos pecados.
Mas só se fizermos o que se segue: Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...
870 SÉCULO V

De modo que, meus irmãos, deixai que vos advirta... Ides ser filhos de Deus, não
de qualquer grande homem... A graça divina faz-vos a todos vós seus filhos. Portanto,
já que haveis de dizer todos os dias, mesmo depois do baptismo e sobretudo depois do
baptismo: Pai nosso... (esta oração não a rezareis senão depois do baptismo; daqui a
oito dias recitá-la-eis, não a rezareis; depois do baptismo é que a haveis de rezar, pois
na verdade quem ainda está por nascer não pode dizer: Pai nosso), repito, já que haveis
de dizer esta Oração cada dia, lembro-vos a vós que na graça de Deus sois meus filhos
e sob tal Pai sois meus irmãos, que se alguém vos ofender e pecar contra vós e a seguir
se acusar e vos pedir que lhe perdoeis, logo lhe perdoeis de coração, para não vos
excluirdes do perdão de Deus. Pois, se vós não perdoardes, também Ele vos não per-
doará a vós...
3657 8. A seguir pedimos dizendo: Ne nos inferas. Não nos metais na tentação, mas
livrai-nos do mal. Aquele que dá assentimento ao Tentador é que é metido na tentação.
Realmente, nesta vida, ser tentado é útil; meter-se na tentação não convém. Quando,
pois, alguém te tenta e te quer subornar com dinheiro, para, em troca do que receberes,
fazeres uma acção má, és tentado, mas também és provado. Se não consentires, serás
achado puro. Dou-te um conselho: despreza a cobiça e não te venderás pelo dinheiro.
Contra a tentação fecha a porta, põe-lhe a aldrava, o temor de Deus. E quem terá força
para isso, sem o auxílio d’Aquele que imploramos?
São diversos os modos com que se tentam os homens: tentam-se com dádivas,
tentam-se com ameaças, e quem não pode seduzir pela corrupção procura seduzir pelo
terror. Mas o homem que está fixo em Deus, e a quem Deus ouve ao pedir-Lhe: Não
nos metas na tentação, vence os depravados amores, triunfa dos vãos terrores. Portan-
to, nesta vida precisamos de pedir a graça de não cair na tentação, porque há tentações
nesta vida, e de ser livres do mal, porque há mal aqui...
Esta Oração ensina-vos a pedir a Deus, vosso Pai que está nos Céus o que
desejais, mas também a aprender o que deveis desejar. Amen.
SERMÃO 81

3658 1. As leituras divinas que acabamos de ouvir dizem-nos que... devemos vestir a
armadura contra os escândalos que a misericórdia do Senhor anunciou para o futuro...
3. Ama a Lei de Deus, e para ti não haverá escândalo. 4. Ocasião de escândalo para ti
será quem tentar persuadir-te a fazeres algum mal... 5. Manso é aquele que faz o bem
para agradar a Deus e que suporta todo o mal por ser essa a atitude que agrada a Deus...
3659 7. As calamidades, hoje tão abundantes, não são escândalos. Quais são então os
escândalos? São esses modos de falar, essas palavras com que nos dizem: «Estás a ver
o que trouxeram os tempos cristãos»? Aí está o escândalo, porque o dizem para que, se
amas o mundo, blasfemes de Cristo. E isto di-lo o teu amigo, o teu confidente: o teu
olho. Di-lo o teu criado, o teu companheiro de trabalho: a tua mão. Di-lo, talvez, quem
te sustenta, quem te levanta da baixeza da terra: o teu pé. Lança-os fora, arranca-os,
afasta-os de ti. Não consintas...
3660 8. Porque te perturbas? Esse teu coração, que balança entre as agruras do mundo, é
aquela barca onde Cristo ia a dormir. Repara, homem prudente, porque soçobra o teu
coração: repara. A barca onde Cristo dorme é o coração de fé adormecida. Que novida-
des te dizem, ó cristão, que novidades te dizem? Que o mundo é uma desolação, que o
mundo vai acabar por estarmos em tempos cristãos. Então o teu Senhor não te tinha
dito que o mundo seria devastado? Não te disse que teria fim? Se acreditavas quando
era anunciado, porque soçobras quando a profecia se realiza? A tempestade ameaça o
teu coração: foge do naufrágio, desperta Cristo. O Apóstolo diz: Cristo habita em
vossos corações pela fé. Cristo mora em ti pela fé. Uma fé em acto é Cristo presente;
uma fé vigilante é Cristo desperto; uma fé esquecida é Cristo adormecido. Desperta-O,
AGOSTINHO DE HIPONA 871

fá-l’O levantar-Se, diz-Lhe: Senhor, vamos perecer. Repara no que dizem os pagãos, e,
o que ainda é pior, os maus cristãos: Levanta-Te, Senhor, que perecemos. Desperta
essa tua fé: é Cristo quem te fala. Porque te perturbas...? O mundo é como um homem
que nasce, cresce e envelhece... Será que Deus fez pouco por ti, mandando-te Cristo na
decrepitude do mundo, para te rejuvenescer quando tudo envelhece?...
9. Como vês, dizem, Roma perece nos tempos cristãos. Talvez não seja Roma a 3661
perecer; talvez esteja a ser flagelada, mas não arruinada; talvez esteja a ser castigada,
mas não destruída. Talvez Roma não pereça, se os Romanos não perecerem. Não
perecerão, se louvarem a Deus; perecerão, se blasfemarem de Deus. Porque agora não
se trata dos seus monumentos e arvoredos, dos seus magníficos palácios e grandes
muralhas. Essas construções não eram para ser eternas. Foram homens que as edificaram
pedra a pedra, e são homens que as destroem pedra após pedra. Foram homens que as
construíram e são homens que as deitam por terra. É injúria dizer que Roma cairá? Não
é injúria para Roma, mas talvez para o seu fundador. E será injúria para o seu fundador
dizermos que Roma vai arruinar-se, que vai cair por terra a Roma que Rómulo fundou?...
Porque hás-de admirar-te se um dia a cidade chegar ao fim? Talvez não seja ainda
agora o fim da cidade, mas algum dia será o último para ela. Mas, porque perece Roma
entre os sacrifícios dos cristãos? E porque ardeu Tróia, sua mãe, entre os sacrifícios
dos pagãos?...
Amai a Lei de Deus e que ela não seja escândalo para vós... É isso que vos
rogamos, é isso que vos pedimos; exortamo-vos a ser mansos, a compadecer-vos dos
que sofrem, a amparar os débeis. E, agora que são tantos os forasteiros em necessidade
e aflição, seja maior a vossa hospitalidade e mais abundantes as boas obras. Façam os
cristãos o que Cristo lhes manda, e deixem os pagãos blasfemar a sua desdita.
SERMÃO 83

4. Todos os dias pedimos, todos os dias batemos aos ouvidos divinos, todos os 3662
dias nos prostramos e dizemos: Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós
perdoamos a quem nos tem ofendido...
SERMÃO 85

1. A leitura evangélica que acaba de ressoar aos nossos ouvidos, precisa mais de 3663
quem a realize do que de quem a explique... O Evangelho é a boca de Cristo. Ele está
sentado no Céu, mas não cessa de falar aqui na terra. Não sejamos surdos, porque Ele
clama bem alto...
7. Ouvistes o que deveis fazer, ouvistes o que deveis temer, ouvistes como se 3664
compra o Reino dos Céus, ouvistes o que nos impede de chegar ao Reino dos Céus.
Aceitai todos a palavra de Deus... Ouvimos, dissemos, temamos, acautelemo-nos,
oremos, cheguemos.
SERMÃO 90

5. Que significa o traje nupcial?... É a veste que usam apenas os bons admitidos ao 3665
festim do reino, onde não há-de sentar-se nenhum mau. Esses, que hão-de ser levados
pela graça de Deus ao segundo banquete, são os que possuem a veste nupcial. Vejamos,
portanto, meus irmãos, quais são, entre os fiéis, os que têm algo que não têm os maus,
e isso será o traje nupcial. Se dissermos que são os sacramentos, bem vedes que são
comuns a bons e maus. Será o baptismo? Sem o baptismo, é verdade, ninguém chega a
Deus; mas também não chegam todos os baptizados. Por isso não pode entender-se
por veste nupcial o baptismo, isto é, o sacramento em si, traje que vejo tanto nos bons
como nos maus. Será acaso o altar, ou antes o que ali se recebe? Mas, segundo vejo,
872 SÉCULO V

muitos dos que comem, comem e bebem a sua própria condenação. Que será? O jejum?
Também os maus jejuam. Vir à igreja? Também vêm os maus...
3666 6. Qual será, portanto, aquela veste nupcial? É esta: O fim do mandamento é a
caridade que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé
sincera33. Eis a veste nupcial. Não é uma caridade qualquer...
3667 9. Aprendei a usar a veste nupcial. A exemplo de (Estêvão), dobra também tu os
joelhos, apoia a fronte no solo, e, antes de te aproximares da mesa do Senhor, do
convívio das Sagradas Escrituras, não digas de modo nenhum: «Oxalá que o meu inimigo
morra; mata, Senhor, o meu inimigo...».
SERMÃO 91

3668 5. É conveniente que nas assembleias dos cristãos aqueles que estão à frente do
povo se sentem num lugar mais elevado, para que se distingam pelo lugar que ocupam,
e o seu ofício apareça claramente, não para estarem ali cheios de orgulho, mas para
pensarem no encargo, do qual hão-de dar contas. Quem sabe se amam isto ou não
amam? Estas coisas pertencem ao coração e não podem ter outro juiz senão Deus. O
próprio Senhor admoestava os seus, para não utilizarem um tal fermento...
SERMÃO 94

3669 Estes senhores, meus irmãos, colegas no episcopado, tiveram a bondade de nos
honrar e alegrar com a sua presença, mas eu não sei por que recusam aliviar o meu
cansaço. Digo isto à vossa Caridade para eles ouvirem, a fim de que o vosso silêncio e
gosto em escutar me sirva de recomendação, como quem diz, para com eles, e assim,
quando eu lho pedir, preguem também. Dêem o que receberam e, em vez de apresentar
desculpas, prefiram antes trabalhar. Eu estou esgotado de cansaço e quase não posso
falar; sede benevolentes para as quatro palavras que vos direi... Ouçamos com agrado
a leitura do santo mártir Estêvão...
Ouvimos o Evangelho da recompensa dos servos bons e do castigo dos servos
maus. Toda a culpa do servo desaprovado e tão duramente castigado se reduz a isto:
não quis dar. Guardou integralmente o que recebera, mas o Senhor queria lucros, por-
que Deus é exigente quando se trata da nossa salvação... Nós, os pregadores, somos os
despenseiros; nós damos, e vós recebeis. Queremos o lucro: vivei bem; não é outro o
lucro devido à nossa dispensação. Não penseis que não vos pertence dar. Não o podeis
fazer deste lugar elevado, mas, onde quer que vos encontreis, podeis fazê-lo. Defendei
Cristo onde quer que Ele seja atacado, calai a boca dos murmuradores, repreendei os
blasfemos e afastai-vos da companhia deles. Se ganhardes alguns, eles serão o vosso
lucro. Fazei as nossas vezes em vossas casas. Ao bispo chama-se-lhe assim pela sua
condição de superintendente, porque procura estar vigilante. Cada qual, em sua casa,
se for chefe de família, ali deve levar a cabo o ofício episcopal, vendo que doutrinas
professam os seus e procurando que nenhum familiar caia em heresia, nem a mulher,
nem o filho, nem a filha, nem servo nenhum, pois foram remidos por tão grande
preço... Não abandoneis os vossos filhos; contribuí, com todo o esmero, para a salva-
ção do vosso lar...
SERMÃO 97 A (= CASIN. II, 114) 34

3670 1. Cristo ama os pecadores, como o médico ama o doente, para lhe matar a febre e
o salvar. Não quer que o doente esteja sempre enfermo, para ter de o visitar sempre,
mas quer curá-lo...

33
1 Tim 1, 5.
34
Aos catecúmenos, pouco antes da Quaresma.
AGOSTINHO DE HIPONA 873

2. Portanto, o melhor dos médicos, para quem nenhuma doença é incurável, começou 3671
a tratar-te. Não tenhas medo dos crimes passados que porventura tenhas cometido,
por monstruosos, por incríveis que sejam; são grandes as tuas doenças, mas é maior o
teu médico... Não digais: Tenho medo de me tornar fiel, pelo receio de ainda pecar...
3. Em poucas palavras dizemos a vossa santidade: procure todo o cristão, se ainda 3672
é catecúmeno, que lhe sejam perdoados os pecados. Já leva o sinal de Cristo na fronte,
já entra na igreja, já invoca tão excelso nome, mas ainda leva sobre si o peso dos seus
pecados, ainda não lhe foram perdoados, porque só são perdoados no baptismo. E não
diga: «Tenho medo de ser fiel por receio de pecar depois». O não pecar depois está na
sua mão... Tem meios para evitar a culpa... Por que se deixa enganar pelo perverso
conselho do Diabo? Teme os pecados futuros, que ainda não cometeu, e não teme os
passados já cometidos; ainda não fizeste aqueles, ao passo que estes já te oprimem;
talvez não cometas os futuros, mas os já cometidos, mesmo que quisesses não os ter
feito, já não podes... Aproxima-te, pois, d’Aquele que os apaga.
4. Vem à graça, isto é, ao baptismo. Recebeste o poder de o fazer... Começa a ser 3673
filho, tu que eras um servo mau... Porque temes o que ainda não existe e não temes o
que já existe?... Vive deste modo: avança, despreza o presente, espera o futuro, tem em
pouca conta as coisas temporais e ama as eternas...
SERMÃO 100

4. Voltados para o Senhor35, oremos por nós e por todo o seu povo que está de pé 3674
connosco na sua casa. Digne-Se Ele guardá-lo e protegê-lo por Jesus Cristo...
SERMÃO 106

1. Levantai-vos prontamente nas Vigílias. 3675

SERMÃO 112 A (= CAILLAU II, 11)

6. O braço que o Pai colocou à volta do pescoço do homem caído é o seu Filho. Este 3676
braço pesa sobre este pescoço como um jugo fácil e um fardo leve, tão leve que não o
oprime, mas, ao contrário, o levanta; quem quiser rejeitar este braço não se sente
aliviado, mas esmagado. Os exemplos da natureza mostram que isso não é impossível,
por estranho e incrível que possa parecer. Olhai as aves: se fecham as asas, caem. O
peso dos braços de Cristo é tão leve como as asas da ave: elas levam-na mais a ela do
que são levadas por ela... O braço do pai pródigo sustinha o filho, não pesava sobre
ele; foi para o jovem uma honra e não um fardo. E como pode um homem ser capaz de
levar Deus, se Deus o não leva primeiro?
SERMÃO 116

5. O Senhor mostrou-Se aos seus discípulos. Quem se mostrou? A cabeça da Igreja. 3677
Cristo não é uma realidade separável da Igreja e reciprocamente.
6. Os Apóstolos, é certo, não viam ainda a Igreja futura; viam-na, mas não a viam; 3678
viam o Esposo, mas a Esposa ainda estava escondida... Viam a cabeça e ao vê-la,
acreditavam no seu corpo; através do que viam, acreditavam no que não viam. E nós
somos como eles: vemos algo que eles não viam e não vemos algo que eles viam. Que
vemos nós que eles não viam? A Igreja espalhada em todas as nações. Que não vemos
nós que eles viam? Cristo presente no seu corpo. Do mesmo modo que eles vendo-O
acreditavam no seu corpo, assim nós que vemos o corpo devemos acreditar na cabeça...

35
Conversi ad Dominum....
874 SÉCULO V

Para eles, o facto de terem visto Cristo ajudava-os a crer na Igreja; para nós, o
facto de ver a Igreja ajuda-nos a crer em Cristo... Cristo total manifestou-Se a eles e
manifesta-Se a nós, embora não tenha sido totalmente visto por eles, nem seja total-
mente visto por nós. Eles viram apenas a cabeça e acreditaram no corpo; nós vemos
apenas o corpo e acreditamos na cabeça. A ninguém falta a presença de Cristo.
SERMÃO 121

3679 1. Cristo estava no mundo e o mundo foi feito por Ele, mas o mundo não O reco-
nheceu36... Qual é o mundo que foi feito por Ele? O céu e a terra... Qual é o mundo que
não O reconheceu? O mundo que não O reconheceu é o que tem por príncipe Aquele de
quem foi dito: Eis, aí vem o príncipe deste mundo, mas não encontra nada em mim37.
Os homens maus é que se chamam mundo, os infiéis é que se chamam mundo. Toma-
ram o nome do que amam... Amando a Deus, fazemo-nos deuses; amando o mundo,
fazemo-nos mundo...
3680 3. Mas a todos os que O receberam... É evidente que neste número estavam os
Apóstolos, os quais O receberam; neste número estavam aqueles que à frente do
jumento em que ia montado levavam ramos, os que iam diante e os que iam de trás e
atapetavam com seus mantos o caminho e bradavam com voz forte: Hossana, ao Filho
de David, bendito O que vem em nome do Senhor38... Tinha os olhos em nós quando
dizia: Se estes se calarem, gritarão as pedras39...
Acabastes de ouvir e clamastes40. Cumpriu-se a profecia: Clamarão as pedras.
Efectivamente nós vimos dos gentios. Em nossos pais adorámos pedras, por isso nos
chamaram cães41... Nunca reparastes como os cães lambem as pedras untadas de liba-
ções42? Tais são todos os adoradores de ídolos. Mas veio para vós a graça. A todos
aqueles que O receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus 43. Tendes
diante de vós homens recém-nascidos44. Deu-lhes o poder de se tornarem filhos de
Deus. A quem é que o deu? Aos que acreditaram no seu nome.
3681 4. E como se tornam filhos de Deus? Nascendo não do sangue, nem da vontade do
homem, nem da vontade da carne, mas de Deus45. Reparai bem: Estes homens nasceram de

36
Jo 1, 10.
37
Jo 14, 30.
38
Mt 21, 9
39
Lc 19, 40.
40
Interrupção do auditório que deve ter lançado uma exclamação: «Graças a Deus! Louvores a Deus»! Os
fiéis de Hipona estavam longe de ser passivos. O pregador menciona muitas vezes as suas reacções: «...E
qual é esta recompensa? A vida eterna. Mal ouvistes esta palavra, gritastes de alegria...» (In Jo. Ep. 3, 11).
Quando a manifestação mira só a eloquência, o pregador agradece por urbanidade, mas repreende os ouvintes:
«Ouvistes e louvastes, Deo gratias. Recebestes a semente e produzistes palavras. Os vossos louvores
antes me são gravosos e constituem para mim um perigo. Tolero-os, mas inquietam-me. Aliás, irmãos, os
vossos louvores são as folhas da árvore; espero os frutos» (Sermão 61, 13; cf. ainda Sermão 311, 4). Mas
a interrupção manifesta muita vez real consonância entre o coração do pastor e os fiéis: «Durante a leitura
do Evangelho, quando Jesus disse: Zaqueu, desce depressa que tenho de ficar hoje em tua casa, ouvi um
murmúrio de alegria, como se todos vós estivésseis em casa de Zaqueu e vós recebêsseis a Cristo» (Sermão
25, 8). Outras vezes a intervenção dos fiéis revela que eles sabem as Escrituras, como nota o taquígrafo: «...
Enfim, são do Senhor as saídas da morte. Neste salmo é que está escrito (aqui aclamações dos que sabem o
salmo): Pertencem ao Senhor as saídas da morte» (Sermão 19, 4).
41
Era o que os Judeus chamavam aos pagãos e aos cristãos.
42
«Eu venerava outrora, que cegueira, estátuas mal saídas da oficina, deuses fabricados sobre a bigorna a
golpes de martelo e, quando as encontrava, ínfulas bordadas penduradas das árvores centenárias; inclinava-
-me, como se nela residisse alguma força, ante a pedra luzidia, repugnante do azeite da unção, falava-lhe e
pedia graças a esse calhau perfeitamente insensível» (Arnóbio, Adversus gentes I, 39).
43
Jo 1, 12.
44
Os baptizados da noite precedente. Efectivamente acabam de nascer de Deus e da Igreja; durante oito dias
serão chamados recém-nascidos, infantes.
45
Jo 1, 13.
AGOSTINHO DE HIPONA 875

Deus, depois de recebido o poder de se fazerem filhos de Deus. Nasceram de Deus,


não nasceram do sangue.
Qual é o primeiro nascimento?... Do sangue de um homem e do sangue de uma
mulher, da união corporal do homem e da mulher; daqui tinham nascido.
E agora donde é que nasceram de Deus? O primeiro nascimento origina-se de um
homem e de uma mulher, o segundo nascimento origina-se de Deus e da Igreja.
5. Nasceram de Deus. Como é que nasceram de Deus os que primeiro tinham 3682
nascido de homens? Como se fez que habitasse entre nós46?
Grande mudança! Ele feito carne, estes feitos espírito. Que quer isto dizer? Que
honra tão grande, meus irmãos! Levantai os vossos corações para a esperança, para a
posse de coisas melhores. Não vos entregueis aos desejos do mundo. Fostes comprados
por grande preço47. Por causa de vós é que o Verbo Se fez carne, por causa de vós é que
O que era Filho de Deus Se fez filho do homem, para que vós que éreis filhos de
homens fôsseis feitos filhos de Deus.
Que era Ele? Que Se fez Ele? E vós que éreis? Que é que vos tornastes? Ele era
Filho de Deus e fez-Se filho do homem. Vós éreis filhos de homens e fostes feitos
filhos de Deus. Veio participar connosco dos nossos males, para nos dar a nós os seus
bens.
Mas Ele no próprio acto com que Se fez filho do homem é distinto de nós. Nós
somos filhos do homem pelo desejo da carne; Ele é filho do homem pela fidelidade da
Virgem. A mãe de qualquer ser humano, para conceber, precisa de um homem. Cada
homem necessita de dois seres humanos para nascer: de um homem que seja seu pai, de
uma mulher que seja sua mãe. Cristo nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria.
Aproximou-Se de nós, mas não Se afastou muito de Si. Antes, enquanto é Deus,
nunca Se afastou de Si, mas à nossa natureza acrescentou o que não era. Realmente,
acrescentou a Si o que não era e não perdeu o que era; fez-Se filho do homem sem deixar
de ser filho de Deus. Para isto é medianeiro no meio. Que quer dizer: no meio? Nem em
cima nem em baixo. Como nem em cima nem em baixo? Não em cima, porque é carne,
nem em baixo porque não é pecador. Contudo, enquanto Deus, sempre em cima;
porque não veio a nós de tal maneira que deixasse o Pai. Partiu do meio de nós e não
nos deixou, há-de vir a nós sem O deixar.
SALMO 129

1. Recorde vossa Caridade a leitura evangélica que há pouco chegou aos nossos 3683
ouvidos, enquanto nós dizemos umas breves palavras, dádiva do Senhor... É o próprio
Deus que acaba de pôr essas palavras diante de nós pela boca do leitor, mas pelo
ministério do Salvador; ouvi um pequeno número de reflexões, embora importantes.
7. Eu vim a Cristo, não com os pés, mas com o coração. Onde ouvi o Evangelho, aí 3684
acreditei e aí me baptizei; porque acreditei em Cristo, acreditei em Deus...
SERMÃO 130

1. Os livros sagrados encerram profundos mistérios que dizem respeito a Cristo. 3685
Foi Ele mesmo que disse: Se acreditásseis em Moisés, talvez acreditásseis em Mim,
porque ele escreveu a meu respeito. Tal como no trigo o grão se esconde debaixo da
palha, assim Cristo esconde os seus mistérios sob o véu dos escritos bíblicos. Ao
procurar o pão da vida nas Escrituras, parece que ele se multiplica, como os cinco pães
quando Cristo os partiu. Ao expor-vos estas verdades, é a minha vez de vos partir o

46
Jo 1, 14.
47
1 Cor 6, 20.
876 SÉCULO V

pão. Explicar estes mistérios é partir o pão; compreendê-los é comê-los. Contemplemos


agora o autor de todas estas maravilhas. Ele é o pão que desceu do Céu, um pão que
alimenta sem diminuir, que podemos comer sem o consumir. O maná profetizava este
pão. É por isso que está escrito: Deu-lhes o pão do Céu, o homem comeu o pão dos
Anjos. Que pão é este, senão Cristo?
3686 2. Para permitir ao homem comer deste pão, o Senhor dos Anjos fez-Se homem. Se
o não tivesse feito, não poderíamos comer a sua carne, comeríamos apenas os pães do
altar. Apressemo-nos a tomar posse da nossa herança, uma vez que Ele nos deu uma
garantia tão preciosa. Sim, meus irmãos, aspiremos a viver com Cristo, pois a morte de
Cristo é o nosso penhor. Como poderíamos nós não ter parte nos seus bens se Ele
sofreu os nossos males? A condição humana, aqui em baixo, consiste em nascer, sofrer
e morrer. Tais são os produtos da vida terrena. Para os adquirir, o Comerciante divino
veio até nós. Deu e recebeu. Que recebeu Ele? Os produtos da nossa terra: nascer,
morrer, sofrer. E que nos deu Ele? O renascer, o ressuscitar e o reinar eternamente. Ó
bem-aventurado Comerciante, compra-nos. Que digo eu, compra-nos? Devemos é dar-
-Te graças por nos teres resgatado!
SERMÃO 132

3687 1. Tal como ouvimos quando nos era lido o santo Evangelho, o Senhor Jesus Cristo
exortou-nos a comer o seu Corpo e a beber o seu Sangue, prometendo-nos a vida
eterna. Nem todos os que ouviram estas palavras as entenderam. Vós, os baptizados e
fiéis, sabeis o que eu digo; ao contrário, os que entre vós se chamam ainda catecúmenos
ou ouvintes48, podem ter escutado o que foi lido, mas acaso entenderam? A uns e
outros se dirige hoje este sermão. Os que já comem o Corpo do Senhor e bebem o seu
Sangue, meditem no que comem e no que bebem, não aconteça, como diz o Apóstolo,
que comam e bebam a sua própria condenação. Os que ainda não comem apressem-se
a tomar parte neste banquete, para o qual são convidados. Nestes dias os magistrados
repartem víveres; Cristo alimenta todos os dias...
Por que razão, ouvintes, não vos aproximais dos alimentos apesar de verdes a
mesa? Talvez agora mesmo, quando se lia o Evangelho, tenhais dito dentro dos vossos
corações: Que significam as palavras: A minha carne é verdadeira comida e o meu
Sangue verdadeira bebida?... Quem te fechou a porta, para que o ignores? Está vela-
do, mas, se quiseres, ser-te-á revelado. Aproxima-te da profissão e resolverás a ques-
tão. Os fiéis já entenderam o que o Senhor disse; tu, ao contrário, és chamado catecú-
meno, és chamado ouvinte, e és surdo. Tens abertos os ouvidos do corpo, pois ouves
as palavras que te dizem, mas ainda tens fechados os ouvidos do coração, pois não
entendes o que foi dito... Chega a Páscoa, dá o teu nome para o baptismo. Se a
festividade não te excita, mova-te ao menos a curiosidade de saber o que foi dito...
3688 2. Mas, se os catecúmenos, meus irmãos, devem ser exortados a que não se demo-
rem em aproximar-se da graça da regeneração, quanto maior cuidado não devemos nós
ter em dispor os fiéis para que lhes seja proveitoso aquilo de que se aproximam, e,
desse modo, não comam nem bebam esses manjares para sua própria condenação? Para
não comerem nem beberem em seu prejuízo, vivam bem. Exortai-os a isso, não com
palavras, mas com os vossos costumes, e, assim, os que ainda não são baptizados
apressar-se-ão a seguir-vos, mas de modo a não perecerem por vos imitarem...
3689 4. Reflectindo, pois, sobre o vosso estado e observando também o que prometestes,
aproximai-vos do Corpo do Senhor, aproximai-vos do Sangue do Senhor. Mas quem
tiver consciência de estar noutra situação não se aproxime. Compungi-vos mais com as
minhas palavras. Congratulem-se os que sabem guardar para o seu cônjuge o que do
seu cônjuge exigem, e os que sabem guardar uma total continência, se assim o prometeram

48
Catechumeni vel audientes.
AGOSTINHO DE HIPONA 877

a Deus. Ficais tristes quando me ouvis dizer: «Se não guardais castidade, não vos
aproximeis deste pão». Quem me dera não ter que dizê-lo. Mas... para não penalizar os
homens, hei-de calar a verdade?... Senhor, já dei o que devia. Convertei Vós, perdoai
Vós! Tornai puros os que foram impuros, para que juntos possamos alegrar-nos diante
de Vós... Agrada-vos isto? Agrade-vos de verdade. Os que são impuros emendem-se
enquanto vivem. Eu posso pregar-vos a palavra de Deus, mas os impuros que perse-
veram na sua maldade não poderão livrar-se do juízo e da condenação de Deus.
SERMÃO 136

1. Ouvimos a leitura do santo Evangelho que costumamos ouvir, mas é bom recordá-la, 3690
é bom renovar a memória para não vir a esquecê-la. Aliás, esta antiquíssima leitura
deleita-nos como se fosse nova. Cristo iluminou um cego de nascença. Porque nos
havemos de admirar? Cristo é o Salvador...
SERMÃO 136 A (= MAI 130)

1. Um homem é enviado à piscina de Siloé. Então Cristo não podia abrir-lhe os 3691
olhos apenas com saliva? Ele podia até fazê-lo mesmo sem saliva e sem lama. Podia. Mas
essas figuras (materiais) dos milagres são, de certa maneira, as palavras dos sacramentos...
SERMÃO 137

14. Gememos pelos pecados dos nossos irmãos e sofremos violência e passamos 3692
tormentos em nosso coração. Às vezes repreendemo-los, ou antes, não cessamos de
repreendê-los. Podem dar o seu testemunho todos aqueles que se lembram das minhas
palavras. Os irmãos que pecam repreendemo-los constantemente e repreendemo-los
com severidade...
15. Vós sabeis, Senhor, o que eu disse, Vós sabeis o que eu não disse, Vós sabeis o 3693
que eu disse de todo o meu coração, Vós sabeis que chorei diante de Vós, quando falava
e não era ouvido...
SERMÃO 139 A (= MAI 125)

2. Sofram, pois, violência, os que andam oprimidos com o hábito do pecado. Cristo 3694
anela ressuscitá-los. Interpela-os vigorosamente a palavra de Deus, grita para eles a
Escritura, gritamos para eles também nós, para sermos ouvidos e nos regozijarmos
como de Lázaro redivivo. Tirai a pedra. Sem descarregar o peso do hábito pecaminoso,
quem poderá ressuscitar? Gritai, pois, cercai-o, rogai-lhe, acusai-o, sacudi a pedra.
Não poupeis nada, quando encontrardes destes tais. Tereis de ter um pouco de traba-
lho, mas abalareis a pedra. Clame então Ele, isto é, Aquele cuja voz vai até ao coração:
«Lázaro, vem para fora»! Sai, isto é, vive. Sai do sepulcro, muda de vida, deixa a morte.
E o morto avançou, ligado pelas faixas. Porque, embora tenha deixado de pecar, ainda
é culpado do que cometeu. Tem de orar, tem de fazer penitência do mal que fez..., ainda
está atado. Por isso disse Cristo aos servidores da sua Igreja que impõem as mãos aos
penitentes: «Desatai-o e deixai-o ir». Desligai, desligai. «Tudo o que desligardes na
terra será desligado no Céu».
SERMÃO 146

2. Vivei de modo coerente, principalmente vós, que estais vestidos com a brancura 3695
de Cristo49, que há pouco fostes baptizados, que há pouco fostes regenerados. Disse-vos
há pouco e volto a dizê-lo, e sublinho esta minha solicitude agora, porque o Evangelho
lido há pouco redobrou os meus temores. Velai por vós mesmos, não imiteis os maus
cristãos...
49
Candidati Christi. Trata-se dos neófitos, que continuavam a trazer as suas túnicas brancas durante toda a
semana da Oitava da Páscoa.
878 SÉCULO V

Crescei nesta eira do Senhor, onde encontrareis gente boa e simpática, se vós
também fordes bons. Sois pecúlio nosso? Os hereges e os cismáticos arranjam um
pecúlio com os roubos que fazem no rebanho do Senhor. Não quiseram apascentar as
ovelhas de Cristo, mas as suas, como adversários de Cristo. Sobre os furtos estamparam
a sua marca, para colocarem o roubado sob a marca de um poderoso... Não terão eles
ouvido o que o Senhor disse a Pedro: Apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas
ovelhas? Acaso lhe disse: «Apascenta os teus cordeiros ou apascenta as tuas ovelhas»?...
SERMÃO 159

3696 1. A disciplina eclesiástica, que os fiéis conhecem50, prescreve que, ao mencionarem-se


os mártires neste lugar, no decurso da acção litúrgica51, não se reze por eles52, mas
pelos outros defuntos dos quais fazemos memória53. Não é conveniente orar por um
mártir, a cujas orações nos devemos recomendar. Ele lutou contra o pecado até derra-
mar o seu sangue...
3697 2. O sagrado salmo cantado suavemente dá prazer ao ouvido... Causam deleite ao olfacto
as flores e os aromas, criaturas de Deus, mas também o incenso nos altares dos Demónios...
SERMÃO 163 B (=FRANGIPANE 5)
3698 1. Recordai a leitura da carta do Apóstolo54...
3699 2. O que foi lido até aqui pertence à carta do Apóstolo; até aqui não fui outra coisa
para vós senão leitor. Mas, meus irmãos, se o leitor foi entendido, para que é necessário
o comentador? Até aqui escutámos e compreendemos; pratiquemo-lo e vivamo-lo.
Que necessidade haverá de sobrecarregar as vossas memórias? Ficai-vos com o que
ouvistes e reflecti sobre isso... Batei à porta e ela abrir-se-á; chamai com atenção, com
o desejo; chamai também por mim com a oração para que possa dizer-vos algo digno;
desta maneira, chamando, ajudais-me, e o problema solucionar-se-á imediatamente...
SERMÃO 165

3700 1. Ouvimos o Apóstolo, o Salmo e o Evangelho: as três leituras divinas estão de


acordo em que devemos colocar a nossa esperança em Deus e não em nós 55...
SERMÃO 168

3701 1. O Senhor edifique o vosso coração com leituras, cânticos e palavras divinas e,
sem dúvida, com o que é mais importante, a sua graça, para que o que ouvis de
verdadeiro, não o ouçais para serdes julgados, mas para serdes premiados56...
SERMÃO 169

3702 1. Preste vossa santidade ouvidos e atenção à leitura do Apóstolo. Ajudai-me com
o vosso afecto diante do Senhor nosso Deus, para que possa comunicar-vos, de forma
adequada e salutar, o que Ele Se dignar revelar-me...

50
Quod fideles noverunt.
51
Ad altare Dei.
52
Non pro ipsis oretur.
53
Commemoratis defunctis.
54
Gal 6, 1-10.
55
Apostolu audivimus, Psalmum audivimus, Evangelium audivimus; consonant omnes divinae lectiones,
ut spem non in nobis, sed in Domino collocemus.
56
Leccionibus, canticis, sermonibusque divinis, et quod est praecipuum, gratia sua aedificet Dominus cor
vestrum, ut quod verum auditis, non audiatis ad iudicium, sed ad praemium...
AGOSTINHO DE HIPONA 879

8. Dir-vo-lo-ei na medida das minhas possibilidades. Aquele que vos possui vo-lo 3703
descubra mais claramente e vos dê a graça de o compreender e de o amar, pois se vos
concede que o ameis, conceder-vos-á que o realizeis. O que eu quero dizer é isto:
Proclamada a Lei de Deus, nela se diz: Não terás desejos perversos...
SERMÃO 170

1. As leituras divinas estão de tal maneira relacionadas entre si como se fossem um 3704
único texto, porque procedem na sua totalidade de uma mesma boca. Múltiplas são as
bocas dos que desempenham o serviço da Palavra, mas única é a boca d’Aquele que
enche esses servidores. Acabamos de escutar a leitura do Apóstolo e talvez tenha
parecido estranho a alguém o que ali está escrito: Vivi de modo irrepreensível, segundo
a justiça que procede da Lei...
3. Escuta o salmo que proclama as nossas intimidades e diz em voz alta os nossos 3705
pecados mais secretos. Falando em representação do género humano, diz a Cristo:
Pequei contra Vós, só contra Vós, fiz o mal diante de Vós. O salmo não diz isto suplantando
apenas a pessoa de David, mas a de Adão, do qual procede todo o género humano...
10. Também ouvistes como o Evangelho concorda com estas palavras: A vontade de 3706
meu Pai é que não se perca nenhum daqueles que Ele Me deu. Ressuscitou-Se a Si
mesmo no primeiro dia, e a nós nos ressuscitará no último... O nosso dia, Cristo
Senhor, não tem ocaso...
SERMÃO 171

1. O Apóstolo manda que nos alegremos, mas no Senhor, não no mundo... Assim 3707
como um homem não pode servir a dois senhores, assim ninguém pode alegrar-se ao
mesmo tempo no mundo e no Senhor. Triunfe, portanto, a alegria no Senhor, até que
termine a alegria no mundo. Cresça sempre a alegria no Senhor e diminua sempre a
alegria no mundo, até se extinguir totalmente. Não quer isto dizer que não devemos
alegrar-nos, enquanto estamos neste mundo; mas que, mesmo vivendo neste mundo, já
nos alegremos no Senhor.
5. Portanto, irmãos, alegrai-vos no Senhor e não no mundo: quer dizer, alegrai-vos 3708
na verdade e não na iniquidade; alegrai-vos na esperança da eternidade e não nas flores
da vaidade. Alegrai-vos assim em toda a parte e em todo o tempo que viverdes neste
mundo: O Senhor está perto, não vos inquieteis com coisa alguma.
SERMÃO 172

2. As pompas fúnebres, o numeroso cortejo que assiste às exéquias, a sumptuosidade 3709


com que se prepara a sepultura e a opulenta construção de monumentos podem ser
uma consolação para os vivos, mas não são de nenhuma utilidade para os mortos. As
orações da Igreja, o sacrifício de salvação e as esmolas que se oferecem pelas almas
ajudam, sem dúvida, os mortos e fazem com que Deus use de maior misericórdia para
com os que morrem... Recebemos da tradição, e toda a Igreja continua a observar o
costume de orar pelos que morreram na comunhão do Corpo e do Sangue de Cristo, e
também de oferecer por eles o sacrifício, quando fazemos a comemoração sobre os
seus túmulos57.
Mas poderá alguém duvidar de que só celebramos as boas obras e recomendamos
a causa daqueles acerca dos quais não duvidamos apresentar inutilmente orações a

57
Hoc enim a patribus traditum, universa observat Ecclesia, ut pro eis qui in corporis et sanguinis Christi
communione defuncti sunt, cum ad ipsum sacrificium loco suo commemorantur, oretur, ac pro illis
quoque id oferri commemoretur.
880 SÉCULO V

Deus? Os que saíram deste mundo sem ter recebido a fé que opera pelo amor e sem ter
participado nos sacramentos, não podem receber os bens destes ofícios de misericórdia,
pois não tiveram o dom que os dê a conhecer diante de Deus, quer por não terem
recebido a graça, quer porque a receberam em vão... Os mortos não adquirem nenhum
mérito novo pelas orações e sacrifícios que os seus parentes façam em sufrágio deles;
é preciso, para que estes bens lhes sejam aplicados, que eles tenham recebido algum
mérito enquanto viveram neste mundo. Ninguém poderá contar na vida futura com
outros méritos que não sejam os que tenha feito nesta.
3710 3. Os corações piedosos podem contristar-se com a perda das pessoas queridas; na
sua condição mortal podem derramar lágrimas de dor, mas não como pessoas inconsoláveis.
Essas lágrimas devem ser rapidamente substituídas pela serenidade da fé, em virtude
da qual acreditamos que os que morrem se separam de nós por muito pouco tempo e
passam para uma vida melhor. Sirvam também de consolação as manifestações de dor
que nos dão os nossos irmãos na fé, quer pela participação nos funerais, quer por nos
acompanharem quando sofremos...
Sepultemos os mortos e construamos-lhes sepulturas segundo as nossas forças.
Nas Sagradas Escrituras estas obras chamam-se boas e louvam-se os que com elas
honraram os corpos dos Patriarcas e dos outros santos, e o Corpo de nosso Senhor.
Cumpram os homens estes ofícios e sirvam assim de consolação aos que sofrem. E, se
a sua amizade para com os que morreram é mais espiritual do que sensível, entreguem-se
com grande cuidado, com o maior fervor e com generosidade de verdadeiros cristãos, a
fazer por eles o que, sem dúvida, pode ser-lhes útil, isto é, a oferecer, como sufrágio,
oblações, orações e esmolas.

SERMÃO 173

3711 1. Ao celebrar o dia dos irmãos defuntos devemos ter em mente o próprio objecto
da nossa esperança e do nosso temor. A esperança está relacionada com estas palavras:
É preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis; e o temor com estas: É péssima
a morte dos pecadores...
3712 2. A nossa fé dista muito da dos gentios no que respeita à ressurreição dos mortos.
Eles não a aceitam de maneira nenhuma, porque não têm onde acolhê-la. A vontade do
homem é preparada pelo Senhor para que seja capaz de receber a fé. O Senhor disse aos
Judeus: A minha palavra não tem cabimento em vós. Logo tem cabimento naqueles que
encontra com capacidade para ela; e encontra com capacidade aqueles a quem Deus não
engana nas suas promessas. Aquele que busca a ovelha perdida, não só sabe que busca,
mas também onde há-de buscá-la e como há-de reunir os seus membros dispersos...

SERMÃO 174

3713 7. São crianças, mas tornam-se membros do seu Salvador. São crianças, mas rece-
bem os seus sacramentos. São crianças, mas participam da sua mesa, para que tenham
vida n’Ele. Dizes-me que uma criança está sã porque não tem nenhuma doença! Porque
corres então com ela ao médico, se não tem nenhuma doença? Não tens medo que ele te
diga: Leva daqui aquele que consideras são? Não sabes que o Filho do homem veio
somente procurar o que estava perdido, salvar o que tinha perecido? Se essa criança
não pereceu, porque ma trazes aqui?
AGOSTINHO DE HIPONA 881

SERMÃO 176

1. Escutai atentamente, irmãos, o que o Senhor Se digna ensinar-nos por estas 3714
divinas leituras; é d’Ele que vem a verdade, através do meu ministério. Na primeira
leitura escutámos o Apóstolo 58... Depois cantámos um salmo, para nos exortarmos uns
aos outros, dizendo numa só voz e num só coração: Vinde, adoremos; prostremo-nos
em terra, adoremos o Senhor que nos criou; vamos à sua presença com louvores e
aclamemo-l’O com cânticos59. Depois disto, a leitura evangélica pôs diante de nós os
dez leprosos curados60, dos quais um, que era estrangeiro, deu graças Àquele que o
limpou. Vamos percorrer estas três leituras61, conforme o tempo no-lo permitir, falando
um pouco de cada uma; e, na medida em que pudermos, procuraremos, com a ajuda do
Senhor, não nos demorar em nenhuma delas, para não prejudicarmos as outras duas.
2. Não há homem nenhum entre os descendentes de Adão, nem um sequer, que não 3715
seja doente, e nenhum pode ser curado sem a graça de Cristo. Que dizer das crianças?
Também elas vêm doentes de Adão? Também. Também elas são levadas à Igreja. Se não
podem correr até lá com os próprios pés, correm pelos pés de outros, para serem
curadas. A mãe Igreja empresta-lhes pés de outros para virem, coração de outros para
crerem, língua de outros para confessarem, a fim de que, se estão doentes por causa do
pecado de outrem que se lhes antecipou, se adiante a curá-las a confissão de outro em
nome delas.
Ninguém, por isso, sussurre aos vossos ouvidos doutrinas estranhas. Isto é o
que a Igreja sempre observou e confessou, isto é o que ela recebeu da fé dos seus
antepassados, isto é o que ela guarda invariável até ao fim. Porque não são os que têm
saúde que precisam de médico, mas os doentes. Se não está doente, que necessidade de
Cristo tem a criança? Se tem saúde, porque corre ao médico nos braços daqueles que a
amam? Se, quando levam as crianças, dissessem que elas não têm nenhum pecado de
origem e, apesar disso, vêm a Cristo, porque não dizem na Igreja aos que as trazem:
«Levai daqui estes inocentes...»? Isso nunca se disse nem nunca se dirá.
Por isso, irmãos, fale quem pode, em defesa de quem não pode falar por si
mesmo. Se há tanto interesse em confiar aos bispos o património dos seus pupilos,
quanto mais a graça das crianças? Ao pupilo ampara-o o bispo, para que, tendo morrido
os seus pais, não seja oprimido pelos estranhos...
Quem recorre a Cristo alguma doença tem, pois quem não tem nenhuma não se
leva ao médico. Escolham os pais uma destas duas coisas: ou confessem que Cristo
cura os seus filhos da enfermidade do pecado, ou não os levem ao médico... Quem
trazeis aí? Um baptizando. Quem? Uma criança. A quem a apresentais? A Cristo.
Àquele que veio certamente ao mundo? Sim. Porque veio Ele ao mundo? Para curar os
pecadores. Então esse que apresentas tem algo para ser curado? Se disseres que tem,
com a tua confissão apaga-lo; se disseres que não tem, com a tua negação conserva-lo.
5. Para que existisses, para que ouvisses, para que consentisses, antecipou-se a ti 3716
a misericórdia de Deus. Antecipou-se a ti em todas as coisas... Confessa que tudo o
que tens de bom te veio de Deus, e de ti todo o mal... Eis a verdadeira confissão...
Alegra-te no Salmo: para te antecipares à sua face, na confissão, acusa-te a ti; alegrando-te
no Salmo, louva-O. Acusando-te a ti e louvando-O a Ele que te criou, virá O que
morreu por ti e vivificar-te-á.

58
1 Tim 1, 15-16.
59
Texto composto a partir do salmo 94, 6.1.2.
60
Lc 17, 11-19.
61
Santo Agostinho considera o salmo como uma leitura.
62
Jo 7, 24.
882 SÉCULO V

SERMÃO 178

3717 1. A leitura da Epístola do bem-aventurado Apóstolo sobre a instituição dos bis-


pos recordou-me a necessidade de olhar para mim próprio, e a vós lembrou-vos que
não deveis julgar-nos, tal como vos convida antes de mais a leitura da passagem do
Evangelho acabada de fazer: Não julgueis pelas aparências; julgai com um juízo
recto62... Em determinado lugar diz o santo Apóstolo: Eu dou golpes, mas não no ar.
Castigo o meu corpo e mantenho-o submisso, para não acontecer que, tendo pregado
aos outros, venha eu próprio a ser eliminado63.
Esta angústia de Paulo causou-me medo a mim próprio. Que há-de fazer o cor-
deiro, se o carneiro treme deste modo?... Que me proponho eu dizer-vos, se me ajudar
aquele que me causou medo? Entre outras coisas ele disse que o bispo deve ser pode-
roso na sã doutrina, para poder refutar os contraditores. Grande trabalho, pesado
fardo, íngreme subida... Nada atemoriza tanto o intendente de Deus, quando tem de
refutar os contraditores, como o temor duma resposta picante.
3718 2. Mas devo primeiro, e com a ajuda do Senhor, explicar-vos o que é refutar os
contraditores. Nem todos os contraditores são da mesma espécie, pois são raríssimos
os que nos contradizem com palavras, mas em grande número os que nos contradizem
vivendo mal. Haverá algum cristão que ouse dizer-me na cara que é permitido roubar os
bens alheios? Nem sequer ousaria afirmar que é bem ser muito agarrado ao que se possui...
Lembrai-vos daquele homem que queria construir grandes celeiros; acaso procu-
rava ele apoderar-se de bens alheios? Não, ele queria simplesmente dispor dos seus
próprios bens, que adquirira de maneira honesta e sem lesar ninguém; escutai agora o
que Deus lhe disse: Insensato, esta mesma noite vão pedir-te a tua alma. E estes bens
que preparaste, para quem serão64...
A este homem, que se ocupava com tanta sabedoria dos seus negócios, Deus
chamou-lhe insensato... Mas, se é uma loucura armazenar os seus próprios bens por
avareza, que nome daríeis vós àquele que rouba os bens de um outro? Se o avarento tem
um aspecto sórdido, o ladrão dos bens de outra pessoa não estará coberto de chagas?
Mas não se parece com aquele homem a quem os cães lambiam as chagas: esse pobre só
tinha chagas no corpo, o ladrão tem-nas no coração.
3719 3. Talvez alguém me diga: Não era grande castigo para esse homem ouvir Deus
chamar-lhe insensato. Mas Deus não fala à maneira dos homens: uma tal palavra na
boca de Deus tem o valor dum julgamento. Acaso Deus dará aos insensatos a vida
eterna? Ora, que resta àqueles que não obtiverem a vida eterna, senão o suplício do
Inferno?
Talvez julgueis que estamos a fazer conjecturas; ponhamos, pois, as coisas a
claro. O rico diante de cuja porta estava sentado o pobre coberto de chagas não era um
ladrão. Está dito que ele era rico, mas não está escrito que fosse um difamador, nem um
opressor dos pobres, nem um ladrão, nem um delator, nem um publicano; não está
escrito que tenha despojado os órfãos nem feito mal às viúvas: nada disso! Muito
simplesmente, era um homem rico. Haverá nisso algo de extraordinário? Era rico, mas
rico com o que lhe pertencia. Tinha roubado alguma coisa? Iremos dizer que talvez ele
tenha roubado e que o Senhor terá passado em silêncio sobre isso, dando assim provas
de fazer acepção de pessoas?
Não procureis crime neste homem, contentai-vos com o que diz a Verdade. Era
rico, andava vestido de púrpura e linho fino, fazia todos os dias esplêndidas festas.
Qual era o seu crime? Era este pobre coberto de chagas, deitado diante da sua porta,
sem que ele se dignasse socorrê-lo. O seu crime era ser desumano, não ter coração, não

63
1 Cor 9, 26-27.
64
Lc 12, 16-20.
AGOSTINHO DE HIPONA 883

encontrar sequer uma migalha de pão para dar ao pobre diabo, que deixava morrer
diante da sua porta. E por isso é que ele foi sepultado no Inferno, donde podia ver, ao
levantar os olhos, o pobre no seio de Abraão. Para que hei-de demorar-me mais? Ei-lo
reduzido a desejar uma gota de água, ele que recusara uma migalha de pão. Se tal é o
castigo dos avarentos, qual não será o dos ladrões?
4. Mas dir-me-á um ladrão qualquer: Eu não sou tão criminoso como esse rico! 3720
Faço ágapes para os pobres, mando alimentos aos prisioneiros, dou vestes aos que as
não têm, ofereço hospitalidade aos estrangeiros. É a isso que chamas dar? Deixa de
roubar, e então poderás dar. Dás prazer àquele a quem dás, mas aquele a quem roubas
não faz senão chorar. A qual dos dois vai escutar o Senhor? Tu guardas quase tudo para
ti e dás apenas esmolas insignificantes.
Insensato, dir-te-á Deus, mandei-te dar esmolas, mas acaso te mandei que o
fizesses com os bens alheios? No último dia, Cristo dirá: O que fizestes ao mais pequeno
dos meus irmãos foi a Mim que o fizestes. Compreende, pois, insensato, que queres
fazer bem com o dinheiro roubado: se dar pão a um cristão é dá-lo a Jesus Cristo,
despojar um cristão é despojar Jesus Cristo. E, se o fogo eterno deve ser o castigo
daqueles a quem Cristo disse: Estava nu, e não Me vestistes, que lugar ocuparão nessas
chamas eternas aqueles a quem Cristo poderá dizer: Estava vestido, e vós Me
despojastes?
5. Talvez agora, por medo de um tal julgamento, penses dar vestes aos cristãos e 3721
despojar apenas os pagãos. Mas também então te dirá Cristo, e diz-to desde agora pela
boca de qualquer dos seus ministros: Cessa, pois, de fazer o mal dessa maneira, por-
que, se tu, cristão, despojares um pagão, impede-lo de se tornar cristão. Talvez tu
insistas e me digas: Não faço isso por ódio, mas por amor; inflijo-lhe um castigo
salutar, a fim de o levar a ter melhores sentimentos! Se falas assim, acreditarei em ti
quando tiveres dado a esse homem, tornado cristão, o que lhe tiraste quando era pagão.
SERMÃO 182

7. Dou-me conta, caríssimos, de que me demorei demasiado num só ponto desta 3722
leitura de São João e vejo que não devo cansar-vos, nem ultrapassar a vossa capacidade.
E também devo pensar na minha debilidade...
SERMÃO 184

1. Brilhou hoje para nós mais um aniversário do Natal de nosso Senhor Jesus 3723
Cristo... A Virgem Mãe deixou-nos uma prova da majestade do Filho: tão virgem foi
depois do parto como antes de O conceber...
2. Celebremos, portanto, o nascimento do Senhor, com a afluência e a solenidade 3724
que merece. Cristo nasceu homem, mas nasceu de mulher, pelo que ambos os sexos
ficaram honrados... Exultai, jovens santos que não buscais o matrimónio... Exultai,
virgens santas: a Virgem vos deu Aquele com quem podeis casar-vos sem qualquer
corrupção... Exultai, justos: nasceu o Justificador. Exultai, fracos e enfermos: nasceu o
Salvador. Exultai, cativos: nasceu o Redentor. Exultai, servos: nasceu o Senhor. Exultai,
homens livres: nasceu o Libertador. Exultai, todos os cristãos: nasceu Cristo...
3. Nasceu Cristo de pai e de mãe, e, ao mesmo tempo, sem pai e sem mãe. Enquanto 3725
Deus, de Pai; enquanto homem, de Mãe; enquanto Deus, sem mãe e enquanto homem,
sem pai... Aquele que abarca o mundo estava deitado num presépio; não falava, e era a
Palavra. Aquele que os Céus não podem conter, era levado no seio de uma mulher: ela
governava o nosso Rei; ela levava Aquele em quem existimos; ela amamentava o nosso
pão... Complete em nós os seus dons Aquele que não desdenhou assumir também os
nossos primeiros momentos; faça-nos também filhos de Deus Aquele que por nós quis
ser filho do homem.
884 SÉCULO V

SERMÃO 185

3726 1. Chama-se dia de Natal do Senhor a data em que a Sabedoria de Deus Se manifestou
como criança e a Palavra de Deus, sem palavras, fez ouvir a voz da carne... Com o
aniversário desta festividade celebramos o dia em que se cumpriu a profecia: A verdade
germinou da terra e a justiça desceu do Céu... Ora bem, de quem veio com tanta
humildade, grandeza tão excelsa? Certamente não veio para seu bem, mas para nosso
bem, desde que acreditemos.
Desperta, ó homem; por ti Deus Se fez homem... Terias morrido para sempre, se
Ele não nascesse no tempo. Nunca terias sido liberto da carne do pecado, se Ele não
assumisse a semelhança da carne do pecado. Estarias condenado à miséria eterna, se
não fosse a sua grande misericórdia. Não terias voltado à vida, se Ele não descesse ao
encontro da tua morte. Terias sucumbido, se Ele não viesse em teu auxílio. Estarias
perdido sem remédio, se Ele não viesse salvar-te.
3727 2. Celebremos com alegria a vinda da nossa salvação e redenção. Celebremos o dia
feliz, em que o grande e eterno Dia, procedente do grande e eterno Dia, veio inserir-se
neste nosso dia temporal e tão breve... O homem que acredita n’Aquele que por nós
nasceu não é justificado por si mesmo, mas por Deus...
3728 3. Dá-me prazer associar a estas palavras do Apóstolo, que vós, irmãos,
reconhecestes juntamente comigo, outras poucas do salmo que foi lido, e darmo-nos
conta de que estão de acordo... Alegremo-nos, portanto, com esta graça, para que o
testemunho da nossa consciência seja a nossa glória, e não nos gloriemos em nós, mas
no Senhor. Que maior graça de Deus podia brilhar para nós?...
Procura o mérito, procura a justiça, procura a causa de tudo isto, e vê se encontras
outra coisa que não seja a graça de Deus.
SERMÃO 186

3729 1. Alegremo-nos, irmãos; alegrem-se e exultem os povos. Não foi o sol visível65 que
tornou para nós sagrado este dia, mas o seu Criador do mundo invisível, quando uma
Virgem Mãe, do seu seio fecundo e na integridade de todo o seu corpo, trouxe ao mundo
o seu Criador invisível, que Se tornou visível aos nossos olhos. Foi virgem ao conceber,
virgem ao dar à luz, virgem antes do parto, virgem depois do parto, sempre virgem...
Porque te admiras disto, ó homem?... Estando junto do Pai, preparou uma mãe
para Si e, depois de nascer da mãe, permaneceu junto do Pai. Como iria deixar de ser
Deus, ao começar a ser homem, Aquele que deu à sua mãe a graça de continuar a ser
virgem depois do parto?...
3730 2. Não se infiltre em vós a opinião de alguns que prestam pouca atenção à regra da
fé66 e aos oráculos das divinas Escrituras... O Evangelho não diz: «A carne fez-se
Palavra», mas: A Palavra fez-Se carne67... Aquele que era Filho de Deus passou a ser
filho do homem... Recebeu o que não era sem perder o que era. De outro modo, como
poderíamos proclamar, na regra da fé, que cremos no Filho de Deus, nascido da Virgem
Maria, se Aquele que dela nasceu não fosse Filho de Deus, mas um filho de homem?
Haverá algum cristão que negue que daquela mulher nasceu um filho de homem? Mas
esse homem era Deus feito homem, modo pelo qual o homem se fez Deus. Por isso
temos de confessar o seguinte: Aquele que era Filho de Deus, para nascer da Virgem
Maria fez-Se filho do homem, assumindo a forma de servo. Continuou a ser o que era
e assumiu o que não era...

65
No dia 25 de Dezembro os pagãos celebravam a festa do Sol invencível, que tinha sido introduzida pelo
imperador Aureliano no ano 274.
66
Isto é, ao Símbolo da fé.
67
Jo 1, 14.
AGOSTINHO DE HIPONA 885

3. Nasceu do Pai sem dia temporal, nasceu da mãe no dia de hoje. Escolheu para 3731
nascer este dia que Ele tinha criado, do mesmo modo que nasceu da mãe que Ele criou.
O dia que marca o início do crescimento dos dias é símbolo da obra de Cristo, pelo qual
o nosso homem interior se renova dia após dia...
SERMÃO 187

1. A minha boca proclamará os louvores do Senhor; do Senhor por quem todas as 3732
coisas foram feitas, entre as quais se conta este dia; do Senhor, que veio revelar-nos o
Pai e que é Criador do mundo da mãe; que enquanto Filho de Deus tem Pai e não tem
mãe, e que enquanto filho do homem tem mãe e não tem pai... Palavra-Deus antes de
todos os tempos, Palavra-carne no tempo oportuno...; santificador do dia de hoje,
desde o seio da mãe...; inefavelmente sábio e sabiamente mudo; enche o mundo e jaz
num presépio; governa os astros e toma o peito materno; tão grande na forma de Deus
como pequeno na forma de servo...
2. Porque nos admiramos de que suceda isto com a palavra de Deus, se este sermão 3733
que prego actua com tanta liberdade nos sentidos, que quem o escuta o acolhe, mas não
fica único dono dele?... De certo, este sermão compõe-se de palavras e sílabas; mas
cada um não toma um pedaço, como sucede com o alimento do corpo, mas todos o
ouvis na íntegra e cada um o recebe na sua totalidade... Quanto mais pôde esta Palavra
tão grande e sem igual... fecundar o seio da mãe, sem se afastar do seio do Pai...
4. Alegre-se, pois, o mundo nas pessoas dos crentes, para cuja salvação veio o 3734
Salvador do mundo. O Criador do mundo de Maria nasceu de Maria; é filho de David
o Senhor de David... Ele é o dia que o Senhor fez, e o próprio Senhor é o dia do nosso
coração. Caminhemos na luz, exultemos e alegremo-nos n’Ele.
SERMÃO 188

1. Nada tem de estranho que nenhum pensamento nem nenhuma palavra humana 3735
sejam suficientes para louvar o Filho de Deus tal como Ele é junto do Pai...: Palavra de
Deus, e Deus, vida e luz dos homens. Como poderia a nossa língua louvar dignamente
Aquele que os nossos corações, únicos olhos capazes de O ver, O não podem ver?...
Nada tem de estranho, repito, que os que têm de dizer algo da única Palavra que disse
que existíssemos, não encontrem palavras para o dizer. Estas palavras pensadas e expres-
sas forma-as a nossa mente, que, por sua vez, é formada pela Palavra.
O homem não cria as palavras do mesmo modo que é criado pela Palavra, uma
vez que também o Pai não gerou a sua única Palavra do mesmo modo que fez todas as
coisas mediante a Palavra. Deus gerou a Deus, mas Aquele que gera e Aquele que é
gerado são, ao mesmo tempo, um só Deus. Ao contrário, Deus também fez o mundo,
mas o mundo passa e Deus permanece. E, tal como as coisas feitas não se fizeram a si
mesmas, do mesmo modo ninguém fez Aquele por quem todas as coisas puderam ser
feitas. Portanto, nada tem de estranho que o homem... não possa exprimir, com pala-
vras, a Palavra pela qual tudo foi criado...
2. Quem narrará a sua geração, quer dizer, aquela que teve lugar na eternidade, da 3736
qual nasceu Deus de Deus? Eternidade em que não existe qualquer dia que possa ser
celebrado solenemente, que passe para voltar cada ano, pois tudo ali é sem ocaso,
porque também nada teve aurora! Assim, pois, a Palavra única de Deus, a vida e luz
dos homens é o dia eterno...
No entanto, o dia de hoje leva-nos ao dia eterno, porque o dia eterno, ao nascer
da Virgem, tornou sagrado o dia de hoje. Que louvores daremos, pois, ao amor de
Deus? Quantas graças temos de Lhe dar. Aquele por quem os tempos foram feitos
amou-nos tanto, que por nós foi feito no tempo...; tanto nos amou que Se fez homem,
Aquele que fez o homem...
886 SÉCULO V

3737 3. Vê, ó homem, o que Deus veio a ser por ti; aprende a doutrina de tão grande
humildade, da boca do doutor que ainda não fala...
3738 4. Celebremos, pois, com júbilo, o dia em que Maria deu à luz o Salvador; a casada,
ao criador do matrimónio; a virgem, ao príncipe das virgens; ela que foi virgem antes do
matrimónio, virgem no matrimónio, virgem durante a gravidez, virgem quando ama-
mentava...
É boa a fecundidade no matrimónio, mas melhor é a virgindade consagrada...
Assim, pois, a Igreja, virgem santa, celebra hoje o parto da Virgem... Onde está essa
virgindade casta em tanta gente de um e outro sexo, não só jovens e virgens, mas
também mães e pais casados? Onde está, repito, essa virgindade casta, senão na inte-
gridade da fé, da esperança e da caridade? A virgindade que Cristo pensava abrigar no
coração da sua Igreja antecipou-a no corpo de Maria...
SERMÃO 189

3739 1. O Dia que fez todos os dias santificou para nós este dia. A Ele se refere o canto
do salmo: Cantai ao Senhor um cântico novo, cantai ao Senhor, terra inteira; cantai
ao Senhor, bendizei o seu nome, anunciai dia a dia a sua salvação 68. Quem é este Dia
do Dia senão o Filho nascido do Pai, luz da luz? Mas também é Dia Aquele que gerou
o Dia que ia nascer de uma Virgem neste dia; é Dia que não tem nem nascimento nem
ocaso. Chamo Dia a Deus Pai, pois Jesus não seria Dia do Dia se o Pai também não
fosse Dia. Que é o dia senão a luz? Não a luz dos olhos da carne..., mas a luz que
ilumina os Anjos e que torna puros os corações que a vêem...
3740 2. Aquele Dia, a Palavra de Deus... revestiu-Se de carne e nasceu da Virgem Maria.
Foi maravilhoso o seu nascimento. Que há de mais maravilhoso do que o parto de uma
virgem? Concebe, e é virgem; dá à luz, e continua sendo virgem... Donde procede
Maria? De Adão. E Adão donde procede? Da terra. Se Adão procede da terra e Maria
de Adão, também Maria procede da terra. Se Maria é terra, reconheçamos o que cantá-
mos: A verdade germinou da terra69...
Estavas a dormir, e veio até junto de ti; ressonavas, e despertou-te; fez para ti
um caminho através d’Ele para não te perder a ti. Uma vez que a Verdade germinou da
terra, nosso Senhor Jesus Cristo nasceu de uma Virgem. A justiça desceu do Céu, para
que os homens não tivessem a justiça deles, mas a de Deus.
3741 3. Criou todas as coisas, e entre todas as coisas foi criado; fez o dia, e veio ao dia;
existia antes do tempo, e assinalou o tempo. Cristo Senhor existe sem começo e desde
sempre junto do Pai. Pergunta, no entanto, que dia é hoje? É o dia de Natal. De quem?
Do Senhor. Tem dia de natal? Tem... Nasceu para que renascêssemos. Ninguém duvide
que pode renascer, porque Cristo nasceu... A mãe trouxe-O no seio; levemo-l’O nós no
coração; a Virgem ficou grávida pela encarnação de Cristo; viva o nosso peito cheio de
fé em Cristo; ela deu à luz o Salvador; dêmos nós à luz os nossos louvores. Não
sejamos estéreis...
3742 4. Ficas muito admirado quando dizemos que nasceu de uma Virgem. Não te admires,
é Deus: a admiração dê lugar ao louvor. Torne-se presente a fé: acredita, porque acon-
teceu. Se não acreditares naquilo que aconteceu, permaneces infiel. Dignou-Se fazer-
-Se homem: que mais queres?... Estreito era o estábulo: envolvido em panos, foi colo-
cado numa manjedoura. Escutaste-O quando se leu o Evangelho. Quem haverá que não
se admire? Aquele que enche o mundo só encontrou lugar num estábulo; colocado na
manjedoura, tornou-Se alimento para nós...

68
Sal 95, 1-2.
69
Sal 84, 10.
AGOSTINHO DE HIPONA 887

Olha para o presépio e não te envergonhes de ser o jumento do Senhor. Levarás


Cristo, e não te enganarás no caminho que percorres, porque sobre ti vai o caminho.
Recordais-vos daquele jumento que levaram ao Senhor? Ninguém tenha vergonha;
aquele jumento somos nós. Vá sentado sobre nós o Senhor e chame-nos para que O
levemos aonde Ele quiser. Somos o seu jumento e vamos a Jerusalém. Sendo Ele que vai
sentado, não nos sentimos oprimidos, mas honrados; tendo-O a Ele por guia, não
erramos: vamos até Ele, vamos através d’Ele, e não perecemos.
SERMÃO 190

1. Nosso Senhor Jesus Cristo que estava junto do Pai antes de nascer da mãe, não 3743
só escolheu a Virgem da qual queria nascer, mas também o dia em que havia de nascer...
Ninguém pode escolher o dia do seu nascimento. Mas Ele, ao contrário, pôde escolher
ambas as coisas, porque as pôde criar a ambas.
Não Se tornou feliz a Si próprio ao nascer em tal dia, mas fez feliz o dia em que
Se dignou nascer, pois o dia do seu nascimento encerra também o mistério da sua luz...
Reconheçamos o dia e sejamos dia. Éramos noite, quando vivíamos na infidelidade. E,
como a infidelidade tinha coberto de trevas o mundo inteiro como se fosse noite, tinha
de diminuir ao aumentar a fé; por isso, começa a diminuir a duração da noite e a
aumentar a do dia na própria festa do Natal de nosso Senhor Jesus Cristo. Celebremos,
pois, irmãos, solenemente este dia, não por causa do sol, como os pagãos, mas por
causa d’Aquele que criou este sol. Ele que era a Palavra fez-Se carne, para poder estar
sob o sol por nossa causa...
2. Celebremos, pois, ó cristãos, neste dia, não o nascimento divino, mas o humano... 3744
Segundo a fé católica, devemos aceitar os dois nascimentos do Senhor: um divino e
outro humano; aquele fora do tempo, este no tempo. Ambos igualmente maravilhosos:
o primeiro, sem mãe; o segundo, sem pai... O que a razão humana não compreende
percebe-o a fé... Quem será capaz de dizer que a Palavra de Deus, por quem foram
feitas todas as coisas, não podia fazer para si uma carne mesmo sem mãe, do mesmo
modo que fez o primeiro homem sem pai e sem mãe?...
3. Renasçam ambos os sexos no dia que nasceu hoje e celebrem este dia, não por 3745
Cristo Senhor ter começado a existir hoje, mas porque O que existia desde sempre
junto do Pai apareceu neste mundo com a carne que recebeu de sua mãe, à qual ofereceu
a fecundidade sem a privar da integridade. É concebido, nasce, é um infante70. Quem é
este infante? Chama-se infante Àquele que não pode dizer nada, ou seja, Àquele que
não pode falar. É menino que não pode falar e é a Palavra...
4. Reconheçamos e anunciemos o Dia do Dia que neste dia nasceu na carne. Dia 3746
Filho nascido do Dia Pai, Deus de Deus, Luz da Luz... Deus tenha compaixão de nós
e nos dê a sua bênção...
SERMÃO 191

1. A Palavra do Pai, por quem foram feitos os tempos, ao tornar-se carne, deu-nos 3747
o seu Natal no tempo; na sua origem humana quis ter também um dia Aquele sem cuja
vontade não transcorre nem um dia. Estando junto do Pai, precede todos os séculos;
nascendo da mãe, introduziu-Se neste dia no curso dos anos.
Fez-Se homem Aquele que fez o homem, de modo que toma o peito quem governa
os astros; o pão sente fome, a fonte tem sede, a luz dorme, o caminho cansa-se na
caminhada, a verdade é acusada por testemunhas falsas, o juiz dos vivos e dos mortos
é julgado por um juiz mortal, a justiça é condenada por gente injusta..., o rebento é

70
Infans significa aquele que não sabe ou não pode falar.
888 SÉCULO V

coroado de espinhos, a raiz é suspensa de um madeiro, a força torna-se fraca, a saúde


fica doente, a vida morre...
3748 2. Assim se cumpriu o que o Salmo predissera: A fidelidade germinou da terra.
Maria foi virgem antes de conceber e depois de dar à luz...
3749 4. Para terminar, dirijo-me a todos, falo-vos a todos: com a minha palavra interpelo
a virgem casta,71 na sua totalidade, aquela que o Apóstolo desposou com Cristo.
Aquilo que admirais na carne de Maria, realizai-o no íntimo da vossa alma. Quem, no
seu coração, crê em ordem à justiça, concebe a Cristo; quem O confessa com a sua
boca, e com o olhar posto na salvação, dá Cristo à luz...
SERMÃO 192

3750 1. Cristo nasceu na carne. Alegrai-vos solenemente e, ensinados pelo dia de hoje,
pensai no dia sempiterno; desejai com esperança firmíssima os dons eternos... Sempre
eterno junto do Pai, tornou-Se de hoje72 nascendo da mãe... O Pai nunca existiu sem
Ele, e sem Ele nunca teria existido a mãe...
3751 2. Exultai de alegria, virgens de Cristo; a Mãe de Cristo é vossa companheira. Não
pudestes dar à luz a Cristo, mas por Cristo renunciastes a dar à luz. Aquele que não
nasceu de vós nasceu para vós. Apesar disso, se vos recordais, como deveis, da sua
palavra, também vós sois suas mães, porque fazeis a vontade do seu Pai... Exultai,
viúvas de Cristo, que oferecestes a santidade da continência a quem fez fecunda a
virgindade. Exulta também, castidade matrimonial; exultai todos os que viveis em
fidelidade aos vossos cônjuges: o que perdestes no corpo, conservai-o no coração...
3752 3. Para germinar da terra, a verdade desceu do Céu. Para sair do seu leito nupcial, o
esposo partiu, antes, de um extremo do Céu. Essa é a razão pela qual nasceu no dia de
hoje, o dia mais curto de quantos há na terra, mas a partir do qual começam a aumentar
os outros dias. Assim, Aquele que Se abaixou a Si mesmo e nos elevou a nós, escolheu
o dia mais curto, mas a partir do qual cresce a luz...
SERMÃO 193

3753 1. Quando nos foi lido o Evangelho, ouvimos a voz dos Anjos, pela qual foi anun-
ciado aos pastores que o Senhor Jesus Cristo nasceu de uma Virgem... Digamo-lo
também nós, que não anunciamos o seu nascimento a pastores de ovelhas, mas que o
celebramos na companhia das suas ovelhas, digamo-lo também nós, volto a repeti-lo,
com o coração cheio de fé e a voz cheia de amor: Glória a Deus no Céu, e paz na terra
aos homens de boa vontade...
3754 2. Se tu dizes, ó homem, que existe em ti o desejo do bem, mas que não consegues
realizá-lo; que te deleitas na Lei de Deus segundo o homem interior, mas vês outra lei
nos teus membros que se opõe à lei da tua razão e que te mantém cativo na lei do
pecado que mora nos teus membros, persiste na boa vontade..., porque a paz na terra
é para os homens de boa vontade...
Persista, portanto, em vós a boa vontade contra os maus desejos, e na sua
perseverança implore o auxílio da graça de Deus por Jesus Cristo nosso Senhor... De
facto, quem será capaz de querer e poder, se não nos ajuda com a sua inspiração, para
que possamos, Aquele que, com a sua vontade, nos deu o querer?...
Digamos estas coisas e outras que a piedade, instruída pelas santas leituras, nos
possa sugerir, para que a celebração do Natal d’Aquele que nasceu da Virgem não seja

71
Trata-se da Igreja.
72
Hodiernus.
AGOSTINHO DE HIPONA 889

infrutífera para nós, e, desse modo, iniciados na boa vontade, mereçamos a perfeição
da plena caridade, difundida também em nossos corações não por nós mesmos, mas
pelo Espírito Santo, que nos foi dado.
SERMÃO 194

1. Escutai, filhos da luz, adoptados para o reino de Deus; escutai, irmãos caríssimos; 3755
escutai e exultai, justos no Senhor, para que, sendo rectos, possais merecer o louvor.
Escutai o que sabeis, recordai o que ouvistes, amai o que acreditais, anunciai o que
amais. Tal como celebramos este dia aniversário, esperai também o sermão devido a
este dia. Cristo nasceu como Deus, do Pai; como homem, da mãe; da imortalidade do
Pai e da virgindade da mãe. Do Pai, sem mãe, e da mãe, sem pai...
4. Diga-Lhe o nosso coração: A vossa face, Senhor, eu procuro: não escondais de 3756
mim o vosso rosto 73... Enquanto isto não acontece, enquanto não nos mostrar o que
nos basta, enquanto não pudermos beber e saciar-nos daquela fonte da vida que é Ele
mesmo, enquanto caminhamos na fé, como peregrinos, longe d’Ele, enquanto temos
fome e sede de justiça e anelamos, com ardor inefável, contemplar a beleza de Cristo na
forma de Deus, celebremos com devoção o nascimento de Cristo na forma de servo.
Se não podemos ainda contemplar Aquele que foi gerado pelo Pai antes da
aurora, festejemos o seu nascimento da Virgem em plena noite. Se não podemos ainda
compreender Aquele cujo nome é eterno e permanece acima do sol, reconheçamos
como levantou a sua tenda no sol.
Se não podemos ainda contemplar o Unigénito que permanece no Pai, recordemos
o Esposo saindo do seu tálamo. Se não estamos ainda preparados para o banquete do
nosso Pai, reconheçamos o presépio de nosso Senhor Jesus Cristo.
SERMÃO 195

2. A Igreja, como Maria, goza de perene integridade virginal e de fecundidade incor- 3757
ruptível. Aquele que Maria mereceu trazer no seio, conservou-O a Igreja no espírito,
mas com uma diferença: Maria deu à luz um só; a Igreja dá muitos à luz, que hão-de ser
congregados na unidade por Aquele único...
3. Celebremos com alegria e solenidade este dia e, cheios de fé, desejemos o Dia 3758
eterno, que, sendo eterno, nasceu para nós no tempo.
SERMÃO 196

1. Hoje brilhou para nós o dia festivo do nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo. 3759
dia de nascimento d’Aquele que é o Dia. Foi precisamente hoje 74, porque a partir de
hoje crescem os dias...
4. Baste isto para vossa Caridade. Como vejo aqui muitos que vieram por causa da 3760
solenidade, é conveniente dizer-vos que está quase a chegar o dia de ano novo. Todos
sois cristãos; graças a Deus, a cidade é cristã. Há aqui dois grupos de homens: cristãos
e Judeus. Não façais o que desagrada a Deus... Escutai-me: sois cristãos, sois membros
de Cristo. Pensai no que sois, pensai no preço por que fostes comprados. No fim, se
quiserdes saber o que fazeis, di-lo-ei aos que o fazem. Aqueles a quem desagradam
essas coisas, não considerem as minhas palavras como injuriosas; dirijo-as a quem as
faz com prazer.

73
Sal 26, 8-9.
74
Et ideo hodie
890 SÉCULO V

Quereis saber o que fazeis e quanta tristeza nos causais? Fazem-no, acaso, os
Judeus? Tende vergonha ao menos assim, para que não volte a acontecer. No dia do
nascimento de João, há seis meses (pois há seis meses de diferença entre o nascimento
do precursor e o do juiz), os cristãos, devido aos restos de uma superstição pagã,
vieram até ao mar e aqui se baptizaram.
Eu estava ausente; mas, pelo que averiguei, os presbíteros, preocupados em
salvaguardar a disciplina cristã, impuseram a alguns uma penitência adequada e de
acordo com as normas da Igreja. Foi motivo de murmuração para os homens, e alguns
disseram: «Era muito difícil terem-nos indicado isso? Se nos tivessem avisado antes,
não o teríamos feito; se os presbíteros nos tivessem posto de sobreaviso, não o tería-
mos feito».
Eis que o bispo vos avisa com antecedência; advirto-vos, digo-o com tempo,
mando-vos. Escutai o bispo que vos manda, vos admoesta, vos suplica e vos conjura.
Conjuro-vos por Aquele que hoje nasceu; conjuro-vos e obrigo-vos; ninguém o faça.
Lavo as minhas mãos. É melhor ouvir-me quando vos admoesto do que experimentar o
meu enfado.
SERMÃO 198

3761 1. Ao ver que acudistes hoje como se fosse dia de festa, e ao encontrar-vos reunidos
em maior número do que é costume, exorto-vos, irmãos, a recordardes o que cantastes
há pouco, para não acontecer que a língua fale, mas o coração permaneça mudo. Gritai
com afecto aos ouvidos de Deus aquilo que cada um disse por palavras aos ouvidos
dos outros... E, se a festa que os gentios celebram hoje75 por entre alegrias mundanas
e carnais, no meio do ruído de canções vãs e demasiado torpes, em não menos torpes
banquetes e bailes, durante a celebração de uma festa que não é festa, se aquilo que os
gentios fazem não vos deleita, reuni-vos de entre os pagãos.
3762 2. Vós mesmos cantastes, e ainda ressoa aos vossos ouvidos o som do cântico
divino: Salvai-nos, Senhor nosso Deus, e voltai a reunir-nos de entre os pagãos76.
Quem poderá reunir-se do meio dos pagãos, se não estiver salvo? Por isso, os que se
misturam com os pagãos não estão salvos, mas estão salvos os que se reuniram do
meio dos pagãos. Salvos pela salvação da fé, da esperança e da puríssima caridade, pela
salvação espiritual, pela salvação das promessas de Deus.
Por conseguinte, não se deve declarar automaticamente salvo aquele que crê,
espera e ama. É muito importante saber no que crê, no que espera e o que ama... Eles
crêem que os Demónios são deuses, tu crês no Deus único e verdadeiro; eles põem a
sua esperança em vaidades humanas, tu em viver eternamente com Cristo; eles amam
o mundo, tu amas Aquele que fez o mundo...
Mas aquele que crê, espera e ama coisas diferentes das deles deve prová-lo com
a vida, deve mostrá-lo com factos. Se, como os pagãos, tomas parte na troca dos ramos
da sorte77, se participas nos jogos de azar e te embriagas, como é que crês, esperas e
amas outra coisa? Com que cara cantas: Salvai-nos, Senhor nosso Deus, e voltai a
reunir-nos de entre os pagãos?...
3763 3. Os seus costumes agradam aos seus deuses. Mas Aquele que disse: Não quero
que vos associeis aos Demónios, quis que vos separásseis com a vida e os costumes
daqueles que servem os Demónios. Vede como esses tais se deleitam com cânticos
cheios de vaidade, em espectáculos frívolos, nas infâmias variadas dos teatros, na
loucura do circo, na crueldade do anfiteatro, nos combates furiosos...

75
O dia de ano novo.
76
Sal 105, 47.
77
No dia de ano novo, os pagãos trocavam entre si os chamados ramos da sorte.
AGOSTINHO DE HIPONA 891

SERMÃO 198 A

Nos ritos antigos..., só o sacerdote entrava no santo dos santos, e todo o povo 3764
ficava cá fora. Agora, porém, quando os bispos estão ao altar, vós estais fora ou dentro?
Ele próprio, o Sumo Sacerdote que Se entregou em holocausto por nós, oferece
as nossas súplicas. É Ele que nos conduz, colocando-Se no meio, não para impedir a
passagem, mas para nos guiar, não para separar, mas para reconciliar, não para impedir,
mas para tirar os impedimentos...
SERMÃO 198 B

Em atenção à solenidade e brevidade do dia, basta o que vos disse. Estes dias em 3765
que nasceu Cristo são os mais curtos do ano, mas já começam a crescer. Cresça, pois,
Cristo em vossos corações. Progredi e acreditai para chegardes à vida eterna.
SERMÃO 199

1. Há poucos dias celebrámos a festa em que o Senhor nasceu dos Judeus 78; hoje 3766
celebramos aquela em que foi adorado pelos pagãos79... Naquele dia adoraram-n’O os
pastores, hoje os Magos; àqueles anunciaram-n’O os Anjos, a estes uma estrela. Mas
uns e outros o aprenderam do Céu, quando viram na terra o Rei dos Céus, para que
fosse realidade o que se canta: Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens
de boa vontade...
SERMÃO 200

1. Os Magos vieram do Oriente para adorar o parto da Virgem. Celebramos este dia 3767
hoje, com a solenidade devida e fazendo o sermão. Este dia brilhou para eles pela
primeira vez, ao passo que, para nós, volta anualmente nesta solenidade...
SERMÃO 202

1. O dia de hoje convida-nos a falar-vos, como todos os anos, da sua solenidade, 3768
conhecida em todo o mundo, daquilo que tem de festivo para nós e do que comemoramos
nesta celebração anual. Epifania é um termo grego que podemos traduzir por manifestação...
Toda a Igreja da gentilidade aceitou celebrar este dia com grande devoção...
2. Com toda a razão, os hereges Donatistas nunca quiseram celebrar connosco este 3769
dia, pois nem amam a unidade nem estão em comunhão com as Igrejas do Oriente, onde
apareceu aquela estrela. Nós, porém, unidos a todos os povos, celebremos a manifestação
de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo... Cristo, sendo ainda uma criança..., e sem
poder sequer falar na terra com a língua, falou desde o Céu por meio da estrela, e
mostrou, não com a voz da carne, mas com o poder da Palavra, quem era, donde viera
e porque tinha vindo...
SERMÃO 204

1. Já celebrámos o nascimento do Senhor; hoje celebramos a sua Epifania... No dia 3770


que se chama Natal viram-n’O os pastores judeus; no dia de hoje, que se chama
propriamente Epifania, quer dizer, manifestação, adoraram-n’O os Magos pagãos.
Aqueles receberam o anúncio dos Anjos; estes, de uma estrela. Os Anjos moram nos
Céus que os astros adoram; a uns e a outros os Céus proclamaram a glória de Deus...

78
O Natal do Senhor, no dia 25 de Dezembro.
79
A Epifania, no dia 6 de Janeiro.
892 SÉCULO V

SERMÃO 205

3771 1. Entramos hoje na observância da Quarentena, cujo regresso solene está connosco
e em cuja chegada vos devemos também, cada ano, uma exortação, para que a palavra
de Deus, servida pelo nosso ministério, alimente o coração daqueles que vão jejuar
corporalmente. Desta forma, fortalecido o homem interior com o seu alimento apro-
priado, poderá levar a cabo e manter com fortaleza de ânimo a mortificação exterior.
Quando chega o momento de celebrar a Paixão do Senhor, devemos construir para nós
uma cruz, dizendo não aos prazeres da carne... O cristão deve permanecer sempre
pendente desta cruz durante toda a vida, que decorre no meio de tentações. Não é este
o tempo de arrancar os cravos... Os cravos são os preceitos da santidade; com eles
crava na carne o temor de Deus, que nos crucifica qual hóstia que Lhe é agradável...
Esta é uma cruz na qual o servo de Deus, não só não se sente confundido, mas até se
gloria... Esta cruz, repito, não dura só quarenta dias, mas toda esta vida, simbolizada
no número místico destes quarenta dias... Vive sempre assim, cristão, neste mundo. Se
não queres afundar os teus passos na lama da terra, não desças desta cruz. Mas, se isto
há-de fazer-se durante toda a vida, quanto mais nestes dias da Quarentena, nos quais
não só se vive, mas também se simboliza essa vida!
3772 2. Ninguém, sob a capa da abstinência, deve pretender mudar em vez de reduzir os
prazeres, buscando, por exemplo, manjares preciosos porque não come carne, ou
licores raros porque não bebe vinho, não aconteça que a desculpa de dominar a carne
sirva para aumentar o prazer...
3773 3. Antes de mais, irmãos, jejuai de litígios e discórdias...

SERMÃO 206

3774 1. Voltou o tempo aniversário da Quaresma, no qual tenho a obrigação de vos dirigir
uma exortação, porque tendes o dever de oferecer a Deus obras que estejam de acordo
com estes dias do calendário. Tais obras, porém, não são úteis para o Senhor, mas para
vós. Também nas outras épocas do ano o cristão se deve entregar com ardor à oração,
ao jejum e à esmola; mas esta solenidade deve estimular inclusive aqueles que habitualmente
são preguiçosos; e aqueles que já se entregam com esmero a tais ocupações devem
realizá-las ainda com maior intensidade... A repetição anual da solenidade equivale a
uma repetição do que Cristo Senhor sofreu por nós na sua única morte. O que teve
lugar uma só vez na história para a renovação da nossa vida, celebra-se todos os anos
para perpetuar a sua memória... Depois dos dias do nosso abatimento, chegará o
tempo da nossa exaltação, não ainda no repouso da visão, mas na satisfação de o
contemplar nas celebrações que o simbolizam...
3775 2. Às nossas orações juntamos a esmola e o jejum, como asas da piedade com as
quais podem chegar mais facilmente até Deus...
3776 3. Não sejam os vossos jejuns como aqueles que o profeta condena: Não é esse o
jejum que Me agrada, diz o Senhor. Expulsa o jejum da gente litigiosa, busca o dos
piedosos. Condena os que oprimem, busca os que libertam. Condena os que semeiam
discórdias, busca os que fazem a paz. Este é o motivo pelo qual nestes dias deveis
refrear os vossos desejos de coisas lícitas, para não sucumbirdes às ilícitas. Nunca se
embriague nem cometa adultério quem nestes dias se abstém do matrimónio. Desta
forma, a nossa oração, feita com humildade e caridade, com jejum e esmolas, modera-
ção e perdão, leva-nos a praticar o bem e a não devolver o mal, afasta-nos do mal e
entrega-nos à virtude, busca a paz e consegue-a. Na verdade, a oração, ajudada pelas asas
de tais virtudes, voa e chega mais facilmente ao Céu, onde nos precedeu Cristo, nossa paz.
AGOSTINHO DE HIPONA 893

SERMÃO 207

1. As tentações do mundo... hão-de ser superadas com a ajuda misericordiosa de 3777


Deus nosso Senhor, mediante a esmola, o jejum e a oração. Estas três coisas devem
tornar mais fervorosa toda a vida do cristão, mas sobretudo quando se aproxima a
solenidade da Páscoa, que, ao repetir-se todos os anos, estimula as nossas mentes,
renovando nelas a saudável recordação de nosso Senhor, o Filho único de Deus, que
nos deu a sua misericórdia, jejuou e orou por nós. Com efeito, em grego esmola signi-
fica misericórdia. Que maior misericórdia podia descer sobre os infelizes do que aquela
que o Criador do Céu fez descer do Céu, ao revestir de um corpo terreno o Criador da
terra?... Dêmos as nossas esmolas com tanta mais generosidade e frequência, quanto
mais se aproxima o dia em que celebramos a esmola que Deus nos fez a nós. A quem
jejua, de nada lhe serve o jejum sem misericórdia...
2. Jejuemos também com a humildade das nossas almas, ao aproximar-se o dia em 3778
que o Mestre da humildade Se humilhou a Si mesmo tornando-Se obediente até a morte
de cruz. Imitemos a sua crucifixão, trespassando as paixões indomáveis com os cravos
da continência. Castiguemos o nosso corpo e reduzamo-lo à escravidão; e, para que a
carne indomável não nos leve ao que é ilícito, tiremos-lhe algo do que é lícito para a
educar. Sempre se há-de evitar o desregramento e a embriaguez; mas nestes dias há que
prescindir até dos banquetes lícitos.
Em todo o tempo se há-de detestar e fugir do adultério e da sensualidade, mas
nestes dias até do matrimónio se deve usar com moderação. A carne obedecer-te-á
docilmente e não irá atrás do alheio, se estiver acostumada a dominar-se no que é seu.
Está atento para não mudares, em vez de diminuíres, os teus prazeres.
Há pessoas que, em vez do vinho do costume, buscam licores raros, e que,
privando-se do vinho de uva, procuram compensação nos sucos mais deliciosos de
outras frutas; desde que não sejam carnes, procuram com diligência os mais variados e
suculentos manjares. Neste tempo, como se fosse o mais adequado, entregam-se a
excentricidades que até noutras ocasiões seria vergonhoso buscar. Desta forma, a ob-
servância quaresmal, em vez de ser travão para as antigas paixões, serve de ocasião
para novos prazeres. Vigiai, irmãos, quanto puderdes, para que estas coisas não se
introduzam, sem vos dardes conta, na vossa vida.
O jejum deve ir unido à frugalidade. Tal como há que evitar a fartura do ventre,
assim há que estar alerta diante dos incentivos da avidez. Não se trata de detestar
nenhuma espécie de alimentos, mas de refrear o prazer do corpo... Por conseguinte,
nos dias de jejum o nosso corpo há-de recompor-se, ou antes sustentar-se, não com
alimentos dispendiosos e difíceis de encontrar, mas com os habituais e mais baratos.
3. Nestes dias, a nossa oração deve subir ao Céu com a ajuda de piedosas esmolas 3779
e de jejuns frugais, pois não é descabido que um homem peça a Deus misericórdia se a
não negou a outro homem, e se o sereno olhar do coração de quem pede não está
turvado pelas imagens confusas dos deleites conjugais. Seja, pois, casta a nossa ora-
ção, não aconteça que busquemos o que a paixão ambiciona, em vez de procurarmos o
que a caridade deseja; evitemos pedir qualquer mal para os inimigos, não aconteça que,
pedindo para eles danos ou vinganças, mostremos a nossa crueldade até na oração. Do
mesmo modo que nós próprios alcançamos boas disposições para orar mediante a
esmola e o jejum, assim também a nossa própria oração se converte em esmola quando
se eleva, não só pelos amigos, mas até pelos inimigos, e se abstém da ira, do ódio e de
outros vícios maus. Se nós nos abstemos dos alimentos, quanto mais se deve abster a
oração dos venenos!... Seja o seu jejum um jejum perpétuo, porque a oração tem um
alimento próprio que lhe é mandado sem cessar. Abstenha-se, pois, sempre do ódio e
alimente-se sempre do amor.
894 SÉCULO V

SERMÃO 208

3780 1. Chegou o momento solene de admoestar e exortar a vossa Caridade, no Senhor,


para que vos entregueis, com fervor mais intenso e alegre do que é costume, ao jejum,
à oração e à esmola. Na verdade, mesmo que eu me calasse, a própria época vos faria
essa admoestação e exortação. Mas acrescenta-se o serviço da nossa palavra, para que,
com o som de trombeta desta voz, o vosso espírito faça apelo às suas forças para a luta
contra a carne. Os vossos jejuns devem ser sem querelas, gritos e mortes, de modo que
até os que vos obedecem experimentem um alívio prudente e benigno, o que não significa
deitar por terra a disciplina sempre saudável, mas moderar a sua severidade e aspereza.
Quando vos abstiverdes de alguma espécie de alimentos, inclusivamente dos
permitidos e lícitos, para mortificar o corpo, recordai-vos de que todos são puros para
os puros, e a ninguém considereis impuro, se não o manchou a infidelidade... Quando
os corpos dos fiéis são submetidos à servidão, toda a diminuição do prazer corporal
redunda em proveito da saúde do espírito. Por isso, deveis guardar-vos de buscar
manjares custosos, ou simplesmente substituí-los por outros, às vezes mais raros, sob
pretexto de não comer carne. A mortificação do corpo e a sua redução à servidão
pretende reduzir os prazeres, não trocá-los por outros. Que importância tem um
alimento ou outro, se a culpa está no desejo imoderado do mesmo? A voz divina
condenou os Israelitas, não por terem só desejo de carne, mas também de alguns frutos
e alimentos do campo... Por isso, caríssimos, sejam quais forem os alimentos de que
penseis abster-vos, recordai as palavras mencionadas antes, para vos manterdes nos
vossos propósitos por temperança religiosa, sem condenar, por erro sacrílego, nenhuma
criatura de Deus80.
Também vós os casados, não deiteis em saco roto, sobretudo neste tempo, os
conselhos do Apóstolo de vos absterdes temporariamente para vos entregardes à
oração. Seria demasiada desfaçatez não fazer agora o que é útil fazer em todo o tempo.
Penso que não deve ser demasiado difícil para os casados fazer, nestes dias solenes de
observância anual, o que as viúvas professaram para uma parte da sua vida e as santas
virgens aceitaram para a vida inteira.
3781 2. De qualquer modo, é quase um dever, nestas festas, aumentar as esmolas. Haverá
forma mais justa de gastar o que poupais com a vossa abstinência do que fazendo
misericórdia? E haverá algo mais perverso do que entregar à guarda da avareza sempre
presente, ou ao consumo da luxúria escondida, o que se gastou de menos por causa da
abstinência? Pensai, pois, a quem deveis aquilo de que vos privais, para que a miseri-
córdia acrescente à caridade o que a moderação subtraiu ao prazer.
E que dizer agora daquela obra de misericórdia, que não consiste em tirar nada da
despensa nem da carteira, mas apenas em extrair do coração o que é mais daninho, se
fica lá dentro do que se sai cá para fora? Refiro-me à ira contra alguém, escondida no
coração. Haverá coisa mais louca do que evitar o inimigo exterior e guardar outro muito
pior no íntimo das entranhas?...
SERMÃO 209

3782 1. Chegou o tempo solene de exortar a vossa Caridade... Estes quarenta dias são
sagrados para todo o orbe da terra81. Ao aproximar-se a Páscoa, eles celebram, com
devoção digna de ser anunciada no mundo inteiro, que Deus nos reconcilia consigo em
Cristo. Se existe alguma inimizade que nunca devia ter nascido, ou que, pelo menos,
devia ter morrido logo, mas que foi capaz de perdurar na vida dos irmãos até estes dias...,
deixe de existir ao menos agora. Tais inimizades nunca deveriam durar até ao pôr-do-sol...

80
Agostinho está a pensar nos Maniqueus, para os quais a carne é má.
81
Hi sunt enim quadraginta dies sacratissimi toto orbe terrarum.
AGOSTINHO DE HIPONA 895

2. Nestes dias, as nossas orações hão-de ser mais fervorosas, e, para que sejam 3783
ajudadas com os apoios necessários, dêmos também esmolas com maior fervor. Acres-
cente-se ao que já dávamos o que poupámos com o jejum e a abstinência dos alimentos
habituais. Se alguém, por alguma necessidade corporal ou regime alimentar, não puder
abster-se de nada para dar ao pobre aquilo de que se priva, mesmo assim dê piedosamente
ao pobre aquilo de que não se priva; se não pode ajudar as suas orações com a morti-
ficação corporal, introduza no coração do pobre uma esmola mais generosa que possa
rogar por ele...
SERMÃO 210

1. Chegou o tempo solene que nos convida a humilhar as nossas almas e a mortificar 3784
os nossos corpos através da oração e do jejum, com maior intensidade que em qualquer
outra época. Porque é que este tempo surge quando se aproxima a solenidade da Paixão
do Senhor? Qual é o mistério que se celebra no número quarenta?...
2. Porque é que o próprio Senhor Jesus Cristo... jejuou, não antes, mas depois de 3785
ter sido baptizado... e nós, ao contrário, jejuamos com os que vão ser baptizados nos
dias que precedem o seu baptismo, que tem lugar no início do dia de Páscoa, a seguir ao
qual suspendemos os jejuns durante cinquenta dias?
Isto poderia ser causa de perturbação, se apenas fosse permitido baptizar ou ser
baptizado na solenidade da Páscoa. Mas, como o baptismo não é proibido durante
todo o ano, segundo a necessidade ou a vontade de cada um82, e a celebração do
aniversário da Paixão do Senhor só é permitida num determinado dia do ano que se
chama Páscoa, sem dúvida alguma há que distinguir sacramento do baptismo e Páscoa.
O baptismo pode receber-se em qualquer dia; a Páscoa só é lícito celebrá-la num
determinado dia do ano. Aquele concede-se para dar uma vida nova; esta recomenda-se
para perpetuar a memória dos mistérios 83. O facto de neste dia acorrer um número
muito maior de baptizandos, não se deve a que a graça salvadora seja mais abundante,
mas a que a maior alegria da festa convida a isso...
3. Também temos de distinguir o baptismo de João, recebido por Cristo, e o baptismo 3786
de Cristo, que recebem os que n’Ele crêem. Apesar de Cristo ser melhor do que o
cristão, o baptismo com que Ele foi baptizado não é melhor do que aquele com que é
baptizado o cristão. Pelo contrário e pela mesma razão, antepõe-se este, que é de
Cristo, àquele. Do mesmo modo, a circuncisão da carne, apesar de Cristo Se ter subme-
tido a ela..., é inferior ao sacramento da Ressurreição do Senhor, com o qual se circun-
cida o cristão para se despojar da vida antiga segundo a carne...
Pelo facto de Cristo ter jejuado imediatamente depois de receber o baptismo de
João, não temos de acreditar que estabeleceu uma regra a observar, como se tivéssemos
necessariamente de jejuar depois de receber o baptismo de Cristo. Com o seu exemplo
indicou-nos que devemos jejuar, sobretudo se temos de entrar em luta encarniçada com
o Tentador... Deve, portanto, jejuar-se, quer imediatamente depois do baptismo, quer
depois de um indeterminado espaço de tempo, quando o homem se encontrar neste
tipo de luta contra a tentação... No caso do Senhor, o motivo do jejum não foi o
baptismo no Jordão, mas a tentação do Diabo.
4. Esta é a razão pela qual nós jejuamos antes da solenidade da Paixão do Senhor e 3787
abandonamos os jejuns durante os cinquenta dias seguintes...

82
At cum per totum annum, sicut unicuique vel necessitas fuerit vel voluntas, non prohibeatur a baptismo....
Agostinho refere-se, nesta passagem, à prática da Igreja antiga, a respeito do baptismo. Apesar de não haver
problema em baptizar em qualquer dia, quando a necessidade ou razões particulares o exigiam, o habitual,
no entanto, era baptizar na Vigília pascal, como símbolo da integração do baptismo no mistério pascal de
Cristo.
83
Ad religionis memoriam commendatur.
896 SÉCULO V

3788 6. Na celebração anual (da Páscoa) volta a gravar-se, de certo modo, em nós, a
memória daquela noite, para que o esquecimento a não apague, e o Inimigo, que ruge e
devora, não nos encontre adormecidos, não corporalmente, mas no espírito...
3789 7. Sejamos como homens que esperam o Senhor que regressa das bodas..., pois é
chegada a hora da qual Ele disse: Vós estareis tristes...
3790 8. É isso o que faz todo o corpo de Cristo, disperso por todo o mundo, isto é, a
Igreja universal... O número cinquenta simboliza aquela alegria que ninguém poderá
tirar-nos; na vida presente ainda não a gozamos, mas depois da solenidade da Paixão
do Senhor, desde o dia da sua Ressurreição em que deixamos os jejuns, celebramo-la,
fazendo ressoar o Aleluia em louvor e glória do Senhor.
3791 9. Exceptuados os dias em que a Igreja, por motivos justos, proíbe o jejum, procu-
remos agradar ao Senhor nosso Deus ou pelo jejum diário ou por um jejum mais
frequente (que o habitual). É impossível a abstinência ininterrupta de comida e bebida
durante tantos dias; mas sê-lo-á também o abster-se do matrimónio?... Penso que não
é pesado84, para a castidade conjugal, realizar durante toda a solenidade pascal85 o que
a virgindade faz durante toda a vida.
3792 10. Há alguns que, durante a Quaresma, se mostram mais amantes dos prazeres que
da piedade; mais que mortificar as antigas paixões, buscam novas esquisitices. Com
provisões abundantes e dispendiosas de diversos frutos procuram superar os sabores
e variedades de quaisquer outras comidas. Têm medo, como se fossem imundas, das
panelas em que se coze carne, e não têm medo da luxúria e da gula na sua carne. Jejuam,
não para moderar com a temperança a habitual voracidade, mas para aumentar o seu
apetite imoderado, demorando a saciá-lo. Depois, quando chega o momento da comida,
avançam sobre as mesas opíparas como os animais sobre a manjedoura. Com refeições
abundantes sepultam os corações e enchem o ventre, e com estranhas e artificiosas
variedades de condimentos estimulam a gula, caso a abundância a tenha afogado. Para
terminar, é tal a quantidade de alimentos que tomam, que nem mesmo jejuando lhes dá
tempo de fazer a digestão.
3793 11. Há outros que não bebem vinho para irem atrás de outros licores extraídos do
suco de outras frutas, não por razões de saúde, mas por deleite, como se a Quaresma,
em vez de tempo de piedosa humilhação, fosse oportunidade de um novo prazer. No
caso de uma doença de estômago impedir alguém de beber água, não seria mais honesto
usar moderadamente o vinho habitual, do que buscar outros vinhos que não conhecem
vindima nem lagar, não por desejo de escolher uma bebida mais pura, mas para desprezar
a mais frugal? Haverá coisa mais absurda do que oferecer tantas excentricidades à
carne, precisamente no tempo em que ela deve ser mortificada com mais intensidade,
até ao ponto de ser a própria gula a desejar que a Quaresma não passe? Haverá atitude
mais contraditória do que passar estes dias de humilhação, em que todos deviam
procurar viver pobremente, de tal forma que, se isso feito todos os dias, nem sequer os
ricos o poderiam suportar? Estai atentos, caríssimos; pensai no que está escrito: Não
te deixes levar pelas tuas más inclinações86. Se este preceito salutar se deve observar
em todo o tempo, quanto mais nestes dias, em que é tão indecoroso conceder à nossa
paixão prazeres tão desabituais, que até se repreende, com razão, a quem não modera
os habituais.
3794 12. Lembrai-vos principalmente dos pobres, e, dessa forma, depositareis no tesouro
celeste aquilo de que vos privais vivendo mais sobriamente. Receba Cristo faminto,
aquilo que o cristão, ao jejuar, recebe de menos. A mortificação voluntária sirva de

84
Puto non esse magnum.
85
Tota paschali sollemnitate.
86
Sir 18, 30.
AGOSTINHO DE HIPONA 897

sustento a quem nada tem. A escassez voluntária do rico seja a abundância necessária
para o pobre. E habite também, no homem manso e humilde, a misericordiosa disponi-
bilidade para o perdão. Peça perdão quem fez a ofensa e conceda-o quem a recebeu,
para não cair nas mãos de Satanás, cujo triunfo é a discórdia entre os cristãos...
SERMÃO 211

1. Estes santos dias que passamos na observância da Quaresma convidam-nos a 3795


falar-vos da concórdia fraterna, para que todo aquele que tiver alguma queixa contra
outro acabe com ela, para que nela se não acabe. Não menosprezeis isto, meus irmãos...
Não nos enganemos a nós, não se engane o homem a si, que Deus não engana
ninguém. É humano irritar-se, e oxalá nem pudéssemos fazê-lo, é humano o irar-se,
mas a tua ira, que nasce como rebento pequeno, não deve ser regada com suspeitas e
levada a grossura de trave, tornando-se em ódio. Uma coisa é a ira, outra coisa é o
ódio...
2. Quem odeia o seu irmão, anda, sai, entra, caminha, não está carregado de ferros, 3796
não está fechado na prisão, mas está preso à cadeia do crime. Não cuides que esteja
sem cárcere; o seu cárcere é o seu coração... Poupa-te Deus a ti, poupa-te tu a ti, faz as
pazes com o teu irmão. Ou talvez tu queiras, e ele não? Isso te baste...
3. Suponhamos que o ofendeste, queres fazer as pazes com ele, queres dizer-lhe: 3797
Irmão, perdoa-me a ofensa que te fiz. Ele não te quer desculpar, não te quer perdoar a
dívida, não te quer livrar do que lhe deves. Ele que repare, quando tiver de orar...
4. Está feita a advertência. Quero agora consolar-te a ti, quem quer que sejas, se na 3798
verdade existes, a ti que disseste a teu irmão: «Perdoa-me o que cometi contra ti». Se
o disseste de todo o coração, com verdadeira humildade, com sincera caridade, como
Deus vê no teu coração donde tu o disseste, mas ele não te quer perdoar, não fiques em
cuidados...
Ainda tenho outra coisa para avisar. Cometeu o teu irmão ofensa contra ti e não
te quis dizer: Perdoa-me o que cometi contra ti. É abundante esta má erva. Oxalá o
Senhor a arranque do seu campo, isto é, dos vossos corações...
Digo igualmente a todos, homens e mulheres, pequenos e grandes, leigos e cléri-
gos, digo-o também a mim próprio, oiçamos todos, temamos todos, se ofendemos os
nossos irmãos...
5. Resta-me dirigir-me àqueles que foram ofendidos por outros e a quem estes, 3799
depois de os terem ofendido, não quiseram pedir perdão. Com efeito, já me dirigi
àqueles que negaram o perdão aos irmãos que o pediram. Agora, pois, falo com todos
vós, para que as vossas discórdias, já que são sagrados estes dias, não continuem.
Creio que lá com os vossos corações estais a pensar alguns de vós, que sabeis andar
desavindos dos vossos irmãos e reconhecestes que não fostes vós que os ofendestes a
eles, mas eles é que vos ofenderam a vós. E, embora não estejais a falar comigo, porque
neste lugar me pertence a mim falar e a vós estar em silêncio e ouvir, contudo, talvez
em vosso pensamento estejais a falar e a dizer convosco: Quero fazer as pazes, mas ele
é que me afrontou, ele é que me insultou e não quer pedir-me perdão.
Então quê? Hei-de dizer-te: Vai ter com ele e pede-lhe tu desculpa? Nada disso.
Não quero que mintas, não quero que digas: Faz-me o favor de me perdoar, quando
estás certo que não ofendeste o teu irmão. Pois, que proveito seria o teu, se te fizesses
teu acusador?... Estás certo, examinaste bem, não tens dúvida em que ele é que te
ofendeu a ti e não tu a ele? «Não tenho dúvida», responde ele. Pois então, a tua
consciência te dite a sentença. Não vás ter com o teu irmão que te ofendeu e muito
menos para lhe pedir desculpa. Não faltarão entre vós homens amigos da paz que o
repreendam e o persuadam a tomar ele a dianteira para te pedir perdão.
898 SÉCULO V

Tu, pela tua parte, está disposto a desculpá-lo, totalmente disposto para de todo o
coração lhe perdoar. Se estás disposto a perdoar, já perdoaste. Mas tens ainda que orar:
ora por ele para que te peça perdão, pois sabes que é mau para ele não to pedir; ora por
ele para que to peça. Diz ao Senhor na tua oração: Senhor, sabeis que eu não ofendi
aquele meu irmão, mas que antes ele é que me ofendeu a mim, e que o ter-me
ofendido lhe faz dano a ele, se não me pedir perdão; eu de boa mente peço que lhe
perdoeis...
3800 6. Celebremos tranquilamente a Páscoa, celebremos sossegadamente a Paixão
d’Aquele que, não devendo nada a ninguém, pagou em vez dos devedores; falo de
nosso Senhor Jesus Cristo... Não ignoro que há homens que vêm todos os dias, fincam
os joelhos, batem com a testa no chão, às vezes têm o rosto em pranto e banhado em
lágrimas e, no meio de tanta humildade e aflição, o que dizem é: «Senhor, vingai-me,
matai o meu inimigo». Reza, sim, para que mate o teu inimigo, mas salve o teu irmão,
para que mate a inimizade, mas salve a pessoa. Reza assim para que Deus te vingue:
morra o inimigo que te perseguia, mas viva o irmão que te pode ser restituído.
SERMÃO 212 87

3801 1. É tempo de receberdes o Símbolo, onde brevemente se contém tudo o que se


deve crer para chegar à salvação eterna. Chamamos-lhe Símbolo, vocábulo de sentido
figurado, fundado numa semelhança, porque os mercadores fazem entre si um docu-
mento – o symbolum – com que mantêm as suas sociedades pelo vínculo de um pacto
de fidelidade88.
Também a vossa sociedade trata de bens espirituais, para serdes semelhantes aos
negociantes que procuram uma boa pedra preciosa. Esta há-de ser a caridade, que será
derramada em vossos corações pelo Espírito Santo, que vos há-de ser dado 89. A esta
chega-se pela fé que se contém no Símbolo, segundo o qual tendes de crer em Deus Pai
todo-poderoso, invisível, imortal, rei dos séculos, Criador do mundo das coisas visí-
veis e invisíveis, e além disso tudo o que a razão sincera ou a autoridade da Sagrada
Escritura afirma como digno d’Ele.
Mas não separeis desta excelência o Filho de Deus. Pois, não se dizem do Pai
estes atributos, por os considerarmos estranhos Àquele que disse: Eu e o Pai somos
um90 e do qual diz o Apóstolo: Ele, que é de condição divina, não considerou como um
roubo ser igual a Deus91. Roubar consiste em tomar o alheio; esta igualdade, porém, é
d’Ele por sua natureza. Portanto, como é que não será todo-poderoso o Filho, se por
Ele foram feitas todas as coisas e se Ele é a força e a sabedoria de Deus92, sabedoria da
qual está escrito que, embora única, tudo pode93? É também invisível por natureza,
naquela sua forma em que é igual ao Pai. Efectivamente, o Verbo de Deus que estava ao
princípio junto do Pai e que era Deus94 é invisível por natureza.
E nesta natureza permanece absolutamente imortal, isto é, absolutamente imutável.
Não há dúvida de que a alma humana também de algum modo se diz imortal, mas
imortalidade onde há tanta mutabilidade, com possibilidade de deficiências e de au-

87
Tradição do Símbolo, quinze dias antes da Páscoa.
88
«Por conseguinte, chama-se Símbolo o texto que contém a fé ratificada pela nossa sociedade, e o fiel cristão
reconhece-se pela sua profissão, como por um sinal combinado» (Sermão 214, 2)..
89
Cf. Rom 5, 5.
90
Jo 10, 30.
91
Filip 2, 6.
92
1 Cor 1, 24.
93
Sab 7, 27.
94
Jo 1, 1.
AGOSTINHO DE HIPONA 899

mentos, não é verdadeira imortalidade; por isso a sua morte está em se afastar da vida
de Deus pela ignorância que nela há 95, e a sua vida, em correr à fonte da vida para na
luz de Deus ver a luz 96; segundo essa vida também vós pela graça de Cristo voltais à
vida, saindo dessa morte a que renunciais.
Ora o Verbo de Deus, que é o Filho unigénito, vive com o Pai uma vida que não
muda; não decai, porque a imutabilidade não se altera nem progride e porque a perfeição
não se aumenta. É também Ele rei dos séculos, Criador do mundo das coisas visíveis e
invisíveis, como diz o Apóstolo: N’Ele todas as coisas foram criadas, nos Céus e na
terra, as visíveis e as invisíveis, os Tronos e as Dominações, os Poderes e as Autori-
dades, todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele, e todas elas subsistem
n’Ele97. Mas como Se aniquilou a Si mesmo, tomando a condição de servo sem perder
a natureza de Deus98, por esta natureza de escravo, o invisível fez-se visível, porque
nasceu do Espírito Santo e de Maria Virgem; por esta natureza de escravo, o omnipotente
tornou-se fraco, porque padeceu sob Pôncio Pilatos; por esta natureza de escravo, o
imortal morreu, porque foi crucificado e sepultado; por esta natureza de escravo, o rei
dos séculos ressuscitou ao terceiro dia; por esta natureza de escravo, o Criador do
mundo das coisas visíveis e invisíveis subiu ao Céu, que nunca deixou; por esta natu-
reza de escravo, está sentado à direita do Pai, e é o braço do Pai, do qual diz o profeta:
A quem foi revelado o braço do Senhor99? Nesta natureza de escravo há-de vir julgar
os vivos e os mortos, porque nela quis participar da sorte dos mortos, não obstante ser
a vida dos vivos.
Por Ele é que o Espírito Santo nos foi enviado do Pai e do Filho, Espírito do Pai
e do Filho, enviado por um e outro, não gerado por nenhum deles, unidade de ambos,
igual a ambos. Esta Trindade é um só Deus, todo poderoso, invisível, imortal, rei dos
séculos, Criador do mundo das coisas visíveis e invisíveis. Na verdade não dizemos
três deuses, ou três omnipotentes, ou três criadores ou qualquer outra coisa semelhante
que se possa dizer da excelência de Deus, porque não são três deuses, mas um só Deus.
Nesta Trindade, o Pai não é o Filho, o Filho não é o Pai, e o Espírito Santo não é o Filho
nem o Pai; mas um é o Pai do Filho, outro é o Filho do Pai, outro o Espírito do Pai e do
Filho. Crede para entenderdes, porque se não acreditardes, não entendereis100.
Desta fé esperai a graça, na qual vos serão perdoados todos os pecados, porque
por ela e não pelas obras é que sereis salvos; a graça é um dom de Deus e não dom de
vós, para que ninguém se glorie 101. Ides ser obra dela, criados em Cristo Jesus, nas
boas obras que Deus preparou para andardes por elas e para que, despidos da vetustez
e revestidos do homem novo, sejais criaturas novas, cantando um cântico novo, a fim
de receberdes a herança eterna, segundo o Testamento novo.
Por isso, mesmo depois da morte, que se transmitiu a todos os homens, que é
devida à vetustez do primeiro homem e à qual se paga, esperai ainda, no fim, a ressur-
reição dos vossos corpos, não para sofrer dores como os ímpios ressuscitados, nem
para gozo de desejos carnais, como imaginam os estultos, mas como diz o Apóstolo:
Semeia-se um corpo carnal, ressurgirá um corpo espiritual102. Na ressurreição, o
corpo estará tão submetido ao espírito beatificado e sujeito com tão admirável felici-
dade a tudo o que deve fazer, que já nem será pesado à alma (nem precisará de se

95
Ef 4, 18.
96
Sal 35, 10.
97
Col 1, 16 17.
98
Filip 2, 7.
99
Is 53, 1.
100
Is 7, 9
101
Ef 2, 8-9.
102
1 Cor 15, 44
900 SÉCULO V

revigorar, porque não pode sofrer atenuação), mas permanecerá na vida eterna, onde,
para o nosso espírito unido ao corpo, a própria eternidade será vida.
3802 2. Com esta breve prática sobre todo o Símbolo, desempenhei-me do que vos devia.
Quando ouvirdes o Símbolo todo, reconhecereis nele brevemente resumida toda esta
nossa alocução.
Para fixar as suas palavras, de modo algum o haveis de escrever, mas aprendei-
-o de ouvido; nem haveis de o escrever depois de aprendido, mas guardai-o sempre na
memória e repeti-o.
Aliás tudo o que haveis de ouvir no Símbolo já se contém nas páginas da Sagrada
Escritura e costumais ir ouvindo tudo pouco a pouco, quando vem a propósito. Mas
o que assim está reunido e resumido sob esta forma não se permite escrevê-lo, em
memória da promessa de Deus quando, ao anunciar o Novo Testamento, disse pela voz
do profeta: Este é o Testamento que para eles hei-de fazer depois destes dias, diz o
Senhor, pondo as minhas leis na sua mente e escrevendo-as no seu coração103. Para
comemoração deste acontecimento é que, ao ouvir o Símbolo, ele se não escreve em
tábuas nem em qualquer outra matéria, mas nos corações. Aquele que vos chamou ao
seu reino e à sua glória há-de conceder-vos que, depois de vos regenerar pela sua graça,
seja também escrito em vossos corações pelo Espírito Santo o Símbolo, para amardes
o que credes, para que a fé opere em vós pelo amor e assim agradeis ao Senhor Deus,
dispensador de todos os bens, não por temor servil do castigo, mas por livre amor da justiça.
Este é, pois, o Símbolo, que já pelas Escrituras e pelas práticas da Igreja vos foi
ensinado, quando éreis catecúmenos, mas que, sob esta forma resumida, vos há-de
servir, depois de tornados fiéis, para professardes a fé e progredirdes nela.
SERMÃO 213 (= GUELF. 1) 104

3803 1. O Apóstolo diz: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo 105.
Todos os que destes o vosso nome para o baptismo correis para esta salvação...
Primeiro acredita-se em Deus e depois invoca-Se; hoje recebeis o Símbolo da fé em que
acreditais; e, dentro de oito dias, a Oração com que O invocareis.
3804 2. O Símbolo é a regra da fé, resumida em poucas palavras, para instruir a mente,
sem sobrecarregar a memória; embora se exprima em poucas palavras, é muito o que se
recebe com ela. Chama-se Símbolo àquilo em que se reconhecem os cristãos; é o que
vou proclamar primeiro em breves palavras. Depois, na medida em que o Senhor mo
conceder, explicar-vo-lo-ei, pois o que quero que aprendais de cor, também quero que
o possais compreender. O Símbolo é este: Creio em Deus Pai todo-poderoso...
Depois de recitar o Símbolo. Não é muito, e é muito; não é preciso que conteis
as palavras, mas que saibais quanto valem. Creio em Deus Pai todo-poderoso. Vede
como se dizem depressa e qual é o seu valor. É Deus e é Pai: Deus pelo poder, e Pai
pela bondade. Como somos felizes nós que encontrámos Deus como nosso Pai. Acre-
ditemos n’Ele e esperemos tudo da sua misericórdia, pois Ele é todo-poderoso...
3805 3. Que vem a seguir? E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor. Se é Filho
único, é igual ao Pai; se é Filho único tem a mesma substância do seu Pai; se é Filho
único, tem o mesmo poder do Pai; se é Filho único, é eterno com o Pai. Tudo isto em
Si, junto a Si e junto ao Pai. Que fez por nós? Que tem a ver connosco? Nasceu do
Espírito Santo e da Virgem Maria... Veio pela Virgem Maria, sobre a qual actuou... o
Espírito Santo, que fecundou aquela que era pura e a deixou intacta. Foi assim que

103
Jer 31, 33
104
Tradição do Símbolo, quinze dias antes da Páscoa.
105
Rom 10,13.
AGOSTINHO DE HIPONA 901

Cristo Senhor Se revestiu de carne, assim que Se fez homem Aquele que fez o homem,
assumindo o que não era sem perder o que era...
4. Vejamos os contratos por que fomos comprados: Foi crucificado sob Pôncio 3806
Pilatos e foi sepultado... Foi crucificado o homem: Deus não mudou nem morreu, e,
contudo, enquanto homem, sofreu a morte... Foi crucificado na carne e foi sepultado,
mas só na carne, pois aquilo em que foi sepultado, no momento de o ser, carecia
inclusivamente da alma; no sepulcro só jazia o corpo...
5. Não desprezemos a carne quando fica sozinha: quando esteve no sepulcro então 3807
nos comprou. Porque nos comprou? Porque nem sempre esteve no sepulcro, pois
ressuscitou de entre os mortos ao terceiro dia. Assim continua o Símbolo. Depois de
confessarmos a sua Paixão, proclamamos a sua Ressurreição... Mas pelo facto de ter
ressuscitado, não se segue que tenha permanecido aqui. Como continua? Subiu ao Céu.
E onde está? Sentado à direita do Pai... Chama-se direita à felicidade eterna... Ali habita.
6. E que mais? Donde há-de vir para julgar os vivos e os mortos. Confessemo-l’O 3808
como Salvador para não O temer como juiz. Quem agora crê n’Ele, cumpre os seus
mandamentos e O ama, não temerá quando vier..., mas até desejará que venha. Haverá
alguma coisa que nos faça tão felizes como a chegada d’Aquele que desejamos e a quem
amamos?...
7. Já percorremos tudo o que o Símbolo contém e que se refere a Jesus Cristo... 3809
Para completar a Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo continua assim: E no
Espírito Santo. Disseram-se muitas coisas do Filho, porque o Filho assumiu o homem.
O Filho, que é a Palavra, fez-Se carne... O Pai, e o Filho, e o Espírito Santo, toda a
Trindade, são um só Deus; nada há que os separe, nada que os distinga, nada que lhes
falte, nada que seja contrário ao outro... A Trindade nos livre da multidão dos pecados!
8. O que se segue já nos pertence a nós. Na santa Igreja. Nós somos a santa 3810
Igreja 106; mas não disse «nós», como se me referisse só aos que estamos aqui, aqueles
que agora me ouvis, mas a quantos, pela graça de Deus, somos fiéis cristãos nesta
Igreja, quer dizer, nesta cidade; quantos há nesta região, nesta província, quantos há do
outro lado do mar e em toda a terra, pois o nome do Senhor é louvado desde o nascer
ao pôr do sol. Esta é a Igreja católica, a nossa verdadeira mãe e a verdadeira esposa
daquele Esposo...
9. E na remissão dos pecados. Se a remissão dos pecados não existisse na Igreja..., 3811
não haveria nenhuma esperança de vida e libertação eterna. Dêmos graças a Deus,
porque concedeu este dom à sua Igreja. Ides aproximar-vos da fonte santa: lavar-vos-eis no
baptismo salvador e renovar-vos-eis no banho da regeneração; ao sair deste banho,
ficareis sem nenhum pecado. Tudo o que no passado vos perseguia ali ficará destruído.
Os vossos pecados serão semelhantes aos Egípcios que perseguiam os Israelitas; per-
seguiram-nos, mas só até ao mar Vermelho. Que quer dizer «até ao mar Vermelho»? Até
à fonte consagrada com a cruz e o sangue de Cristo...
Pergunta aos olhos da fé; se olhas para a cruz, presta atenção ao sangue; se olhas
para Aquele que nela pende, pensa também naquilo que derramou. O lado de Cristo foi
perfurado com uma lança, e brotou o nosso preço. É por essa razão que o baptismo,
isto é, a água em que vos submergis e pela qual passais, como se fosse o mar Vermelho,
é assinalada com o sinal de Cristo. Os vossos pecados são os vossos inimigos; vão
atrás de vós, mas só até ao mar. Quando nele tiverdes entrado, vós sereis libertados,
mas eles serão aniquilados, do mesmo modo que a água cobriu os Egípcios, enquanto
os Israelitas passavam a pé enxuto. E que diz a Escritura? Não escapou nem um só de
entre eles. Quer os teus pecados sejam muitos ou poucos, sejam grandes ou pequenos,
que importa, se não escapou nem um só de entre eles?

106
Sancta Ecclesia nos sumus.
902 SÉCULO V

Mas como vivemos neste mundo, no qual ninguém vive sem pecado, a remissão
dos pecados não se obtém apenas no banho do santo baptismo, mas também mediante
a Oração dominical e quotidiana, que ides receber dentro de oito dias. Nela encontrareis
como que um baptismo quotidiano107, de modo que haveis de dar graças a Deus, que
concedeu à sua Igreja este dom que proclamamos no Símbolo...: e na remissão dos pecados.
3812 10. E, depois disto: Na ressurreição da carne. Estamos a chegar ao fim, mas o fim
sem fim será a ressurreição da carne... Não te cause horror a ressurreição da carne:
pensa no que a carne tem de bom e esquece os seus males... Seremos eternos, iguais aos
Anjos de Deus; teremos uma única cidadania com os santos Anjos. Seremos possuídos
pelo Senhor, seremos a sua herança, e Ele mesmo será a nossa... Possuí-l’O-emos, e
seremos possuídos por Ele...
Que estou eu a dizer? Cultivamo-l’O e somos cultivados; prestamos-Lhe culto
como Deus, e Ele cultiva-nos como um campo... Se Lhe chamamos agricultor, é porque
cultiva um campo. Qual campo? Cultiva-nos a nós. O agricultor desta terra visível
pode lavrar, cavar, plantar e, se encontrar água, regar. Também pode fazer chover?
Pode o agricultor fazer crescer, fazer que o germe saia para fora, que afunde as suas
raízes na terra, que cresça, pode dar vigor aos ramos, carregá-los de frutos e torná-los
belos com as folhas? O nosso agricultor, Deus Pai, pode fazer tudo isso em nós.
Porquê? Porque cremos em Deus Pai todo-poderoso. Guardai o que vos propus e
expus, na medida em que Deus mo concedeu.
3813 11. Dentro de oito dias restituireis o que recebestes hoje. Os vossos pais, que vos
acolhem108, hão-de ensinar-vos também, para que estejais preparados, e o modo como
haveis de permanecer em vigília até ao canto do galo, para as orações que aqui celebrais.
Começámos a apresentar-vos aqui o Símbolo, para que o aprendais com cuidado; mas
ninguém tenha medo; o medo não deve impedir ninguém de o recitar. Tende confiança:
nós somos vossos pais, não temos a palmatória nem as varas do mestre da escola. Se
alguém se enganar numa palavra, não erre na fé.
SERMÃO 214 109

3814 1. Na medida em que mo permite a minha idade... e também na medida em que


aprendi o ministério que me foi confiado e do amor que vos tenho, tendo subido como
ministro ao altar, do qual vos ides aproximar, não posso privar-vos do favor da minha
palavra... O Símbolo edifica em vós o que deveis crer e confessar para poderdes
alcançar a salvação: o que dentro em breve ides receber, confiar à memória e proferir
com a boca, não é novidade nenhuma para vós ou coisa nunca ouvida. De facto,
costumais ouvi-lo em várias formas, tanto na Sagrada Escritura, como nos sermões da
Igreja. Apesar disso, há-de entregar-se a vós tudo junto, resumido com brevidade e
explicado com lógica, para edificar a vossa fé, facilitar a recitação e não sobrecarregar
demasiado a memória... Sabeis que o Símbolo não costuma escrever-se...
SERMÃO DE SYMBOLO (= PL 40, 627) 110

3815 1. Recebei, filhos, a regra da fé que se chama Símbolo e, ao recebê-la, escrevei-a no


coração para a repetirdes todos os dias: antes de adormecer, ao sair de casa e ao

107
O Pai-Nosso é cottidianus baptismus.
108
Há quem pense que estes pais são os que recebiam os competentes nas suas casas, que na sua maioria
vinham do campo para passar a Quaresma na cidade, onde ouviam a catequese do bispo e recebiam o
baptismo na Vigília pascal.
109
Tradição do Símbolo, quinze dias antes da Páscoa. Parece ter sido este o primeiro Sermão pregado por
Agostinho, a 19 de Março de 391, uma quarta-feira.
110
Tradição do Símbolo, quinze dias antes da Páscoa.
AGOSTINHO DE HIPONA 903

começar os vossos trabalhos; cobri-vos com a protecção do vosso Símbolo. Ninguém


escreva o Símbolo apenas para o ler, mas também para o recordar, a fim de ser para vós
o código da vossa memória e, desse modo, não venha o esquecimento a apagar o que a
vossa diligência repetiu. O que ides ouvir é o que deveis crer, e o que acreditais haveis
de o redizer também com a voz...
Este é, pois, o Símbolo que tereis de aprender e redizer. Estas palavras que ouvis
estão dispersas nas divinas Escrituras; dali foram recolhidas e redigidas conjuntamente,
para não se sobrecarregar a memória dos mais rudes111 e para que todo o homem possa
recitar e reter aquilo que crê. Acaso só agora ouvistes que Deus é todo-poderoso? Mas
ides começar a tê-l’O como Pai, quando nascerdes pela Igreja mãe.
2. Por conseguinte, recebestes, meditastes e, depois de meditar, retivestes, para 3816
dizerdes: Creio em Deus Pai todo-poderoso. Deus é todo-poderoso, e, apesar de
poder tudo, não pode morrer, nem pode ser enganado, nem pode mentir, o que o
Apóstolo diz assim: Não pode negar-Se a Si mesmo 112. Não pode fazer muitas coisas,
e, contudo, é todo-poderoso, precisamente porque não pode fazer essas coisas que
não podem ser feitas. Com efeito, se pudesse morrer, ser enganado, enganar-Se, fazer
injustiças, não seria todo-poderoso, porque se n’Ele houvesse algumas destas coisas,
não seria digno de ser todo-poderoso. O nosso Pai todo-poderoso não pode pecar. Faz
tudo o que quer; é a própria omnipotência... Mas tudo o que se faz mal não o quer...
Fez o céu e a terra, o mar e os seres que neles habitam; os seres invisíveis e os visíveis.
Os invisíveis, isto é, os que estão nos Céus, os Tronos, as Dominações, os Principados, as
Potestades, os Arcanjos e os Anjos... Fez também as coisas visíveis do Céu: o sol, a lua
e as estrelas. Adornou a terra com os seus animais terrestres; encheu o ar de aves, a
terra de seres que andam e de répteis, o mar de seres que nadam... Criou também o
homem à sua imagem e semelhança no espírito: aí está a imagem de Deus, que o próprio
espírito não pode compreender, e nem sequer a si mesmo, onde está a imagem de Deus.
Fomos feitos homens para dominar sobre todas as criaturas, mas caímos pelo
pecado do primeiro homem, e todos nos tornámos herdeiros da morte. Tornámo-nos
débeis mortais, cheios de medos e de enganos. Foi este o mérito do pecado, e com este
mérito e sua maldade nascem todos os homens.
Por esta razão, como o vistes hoje e o sabeis bem, são exsuflados e exorcizados
os meninos, para expulsar deles o domínio do Inimigo, do Diabo, que é quem engana o
homem, para se apoderar dos homens. Portanto, não é a criatura de Deus que é exorcizada
e exsuflada nas crianças, mas aquele sob cujo domínio estão todos os que nascem com
o pecado, quer dizer, o príncipe dos pecadores. Por isso, como a queda de um só a
todos enviou para a morte, Deus enviou também um só, sem pecado, para livrar do
pecado todos os que n’Ele creiam e a todos levar para a vida.
3. Também cremos no seu Filho, isto é, no Unigénito de Deus Pai todo-poderoso, 3817
nosso Senhor. Quando ouves Filho único de Deus, reconhece também a Deus, porque
o Filho único de Deus não pode não ser Deus. Ele gerou o mesmo que Ele é, embora não
seja o mesmo que foi gerado. Se é verdadeiro Filho, tem de ser o mesmo que é o Pai, e,
se não é o mesmo que é o Pai, não é Filho verdadeiro. Reparai nas criaturas mortais e
terrenas: cada uma gera o que é. O homem não gera o boi, a ovelha não gera o cão nem
o cão a ovelha. Aquilo que é aquele que gera, gera isso mesmo que é. Defendei, susten-
tai e acreditai que Deus Pai gerou o mesmo que é todo-poderoso...
Sabeis que, quando vos proclamei o Símbolo, vo-lo disse assim, e assim deveis
crer: Cremos em Deus Pai todo-poderoso e em Jesus Cristo, seu único Filho. Quando
crês que é único, crês que é todo-poderoso. De modo nenhum Deus Pai faz o que quer

111
Ne tardorum hominum memoria laboraret.
112
2 Tim 2, 13.
904 SÉCULO V

e Deus Filho não. Uma é a vontade do Pai e do Filho, porque uma é a sua natureza. E
a vontade do Filho não pode diferir no mínimo da vontade do Pai. Todo-poderoso e
todo--poderoso, os dois são um só todo-poderoso.
3818 4. Nós não introduzimos dois deuses, como alguns introduzem, quando dizem: um
Deus Pai e um Deus Filho, dos quais o maior é o Deus Pai e o menor o Deus Filho. Que
são os dois? São dois deuses? Se te envergonhas de o dizer, envergonha-te de o crer.
Chamas Senhor a Deus Pai e chamas Senhor a Deus Filho. Mas o próprio Filho disse:
Ninguém pode servir a dois senhores113. Então, quando vivermos na sua família, onde,
como numa casa grande, há um pai de família e um filho, iremos dizer também nós:
Senhor maior e Senhor menor? Deitai fora tal pensamento. Se fizésseis tal coisa no
vosso coração, poríeis vários ídolos numa só alma. Rejeitai-o completamente. Primeiro
acreditai, depois entendei. Se Deus concede que algum entenda logo depois de crer, é
um dom de Deus, não debilidade humana. No entanto, mesmo que não entendais,
acreditai: Um só Deus Pai e um Cristo Deus Filho de Deus. Que são os dois? Um só
Deus. E como se explica que os dois são um só Deus? Como, admiras-te? Diz-se nos
Actos dos Apóstolos: A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e
uma só alma114... Se pode haver tanta caridade na terra e entre os homens, que de
tantas almas faça uma só alma, onde o Pai foi sempre inteiramente do Filho e o Filho
inteiramente do Pai poderiam os dois ser outra coisa senão um só Deus?...
3819 5. O Pai faz o que quer, e também o Filho faz o que quer. Não penseis nunca que o
Pai é todo-poderoso e que o Filho não é todo-poderoso. É um erro que deveis apagar
de vós, sem que fique qualquer sinal na vossa memória... O Pai é todo-poderoso, o
Filho é todo-poderoso. Se o todo-poderoso não gerou o todo-poderoso, não gerou um
Filho verdadeiro... Para saberdes que um todo-poderoso nasceu do que é todo-poderoso,
ouvi-O a Ele próprio, que é a Verdade. E o que a Verdade diz de si mesma é verdadeiro.
Que diz a Verdade? Que diz o Filho, que é a Verdade? Aquilo que o Pai faz, também o
faz igualmente o Filho115. O Filho é todo-poderoso, porque faz tudo o que quer... São
muitos e inumeráveis os testemunhos que provam que o Filho verdadeiro é Filho de
Deus Pai, e que o Pai Deus gerou um Filho verdadeiro Deus, e o Pai e o Filho são um
só Deus.
3820 6. Mas vejamos o que é que fez e padeceu por nós este Filho único de Deus Pai
todo-poderoso. Nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria. Aquele que é um Deus e
igual ao Pai, nasceu humilde do Espírito Santo e da Virgem Maria para curar os soberbos.
O homem encheu-se de orgulho e caiu. Deus humilhou-Se e levantou-o. Que é a humil-
dade de Cristo? Deus, que chegou a sua mão ao homem caído. Nós caímos, mas Ele
abaixou-Se para nós; nós estávamos prostrados, e Ele inclinou-Se. Agarremo-nos a Ele
e levantemo-nos, para não incorrermos no castigo. A sua humilhação consiste, portan-
to, em que nasceu do Espírito Santo e da Virgem Maria. O seu próprio nascimento
humano é simultaneamente humilde e excelso. Porque é humilde? Porque nasceu ho-
mem dos homens. Porque é excelso? Porque nasceu de uma Virgem. Uma Virgem O
concebeu, uma Virgem O deu à luz e também permaneceu Virgem depois do parto.
3821 7. Que sucedeu depois? Padeceu sob Pôncio Pilatos, que era o presidente e o juiz
quando Cristo padeceu. Com a palavra juiz designa-se o tempo em que padeceu sob
Pôncio Pilatos. Quem, que e por quem padeceu, foi crucificado, morto e sepultado?
Quem? O Filho único de Deus, nosso Senhor. Que padeceu? Foi crucificado, morto e
sepultado. Por quem? Pelos ímpios e os pecadores. Que grande misericórdia e graça
sublime! Como retribuirei ao Senhor pelos bens que me deu?

113
Mt 6, 24.
114
Act 4, 32.
115
Jo 5, 19.
AGOSTINHO DE HIPONA 905

8. Nasceu antes de todos os tempos, nasceu antes de todos os séculos... Não vos 3822
ponhais a pensar tempo algum antes do nascimento de Cristo, quando nasceu do Pai...
Não penseis de modo nenhum que há algum espaço de eternidade quando existia o Pai
e não existia o Filho... O Pai existe sempre sem princípio, e o Filho existe sempre sem
princípio... Porque nunca existiu o Pai sem que existisse o Filho, e, contudo, o Filho é
gerado pelo Pai...
Nasceu do Pai fora do tempo e nasceu de uma Virgem na plenitude dos tempos.
Os tempos precederam este segundo nascimento. Mas nasceu precisamente quando
quis e quando sabia que era oportuno, porque não nasceu sem querer. Nenhum de nós
nasce porque quer e nenhum de nós morre quando quer. Ele nasceu quando quis e
morreu quando quis. Como quis nasceu de uma Virgem, como quis morreu numa cruz.
Fez tudo o que quis: porque de tal modo era homem, que n’Ele se ocultava Deus...
9. Que direi da sua cruz? Que vou dizer? Escolheu o pior suplício de morte, para 3823
que os seus mártires não temessem nenhum suplício de morte. Ensinou a doutrina na
sua humanidade e deu o exemplo da sua paciência na cruz. Ali está a sua obra, porque
foi crucificado. O exemplo da obra é a cruz. O prémio da obra é a Ressurreição. Na cruz
ensina-nos tudo o que devemos sofrer; na ressurreição, o que devemos esperar. Como
vencedor supremo diz: Faz o mesmo e recebe. Vive bem e recebe o prémio. Combate na
luta e serás coroado. Qual é a obra? A obediência. Qual é o prémio? A ressurreição, para
nunca mais morrer...
10. Conhecemos o final do Senhor. Que final do Senhor conhecemos? Meu Deus, 3824
meu Deus, porque Me abandonaste? São as palavras do Senhor suspenso na cruz.
Como se O tivesse abandonado para alcançar a felicidade presente, e, ao contrário, não
O tivesse abandonado para a imortalidade eterna. Ali está o final do Senhor. Os Judeus
prendem-n’O, insultam-n’O, atam-n’O, coroam-n’O de espinhos, escarnecem-n’O,
flagelam-n’O, cobrem-n’O de opróbrios, suspendem-n’O do lenho, atravessam-n’O
com a lança e, por fim, sepultam-n’O: como um abandonado. Mas para quem? Para os
próprios que O insultavam. Portanto, tens de ter paciência, para que ressuscites e não
morras...
11. Crede que subiu ao Céu. Crede também que está sentado à direita do Pai. Estar 3825
sentado significa habitar... Acreditai assim que Cristo habita à direita de Deus Pai. Está
ali... e é feliz...
12. Donde virá a julgar os vivos e os mortos... Julgará uns e outros, dando a cada um 3826
o que lhe pertence... Preparai-vos para isso, esperai-o, vivei por causa disso, e vivei de
acordo, acreditai, baptizai-vos, para que possa dizer-vos: Vinde, benditos de meu Pai...
13. Vem a seguir no Símbolo: e no Espírito Santo. Esta Trindade é um só Deus, uma 3827
natureza, uma substância, um poder, a igualdade suprema, sem qualquer divisão nem
oposição, é o amor perpétuo. Quereis saber que o Espírito Santo é Deus? Baptizai-vos
e sereis seu templo. Di-lo o Apóstolo: Não sabeis que os vossos corpos são templo do
Espírito Santo, que recebestes de Deus? Deus tem em nós o seu templo... Se Deus
edifica os nossos corpos... e os nossos corpos são templo do Espírito Santo, não
duvidemos nem que o Espírito Santo é Deus, nem tão pouco O acrescentemos como se
fosse um terceiro Deus, porque o Pai e o Filho e o Espírito Santo são um só Deus.
Acreditai assim.
14. Depois de confessarmos a Trindade, segue-se: na santa Igreja. Demonstrei-vos 3828
Deus e o seu templo. O templo de Deus é santo, e esse templo sois vós, diz o Apóstolo.
Esta é a Igreja santa, a Igreja una, a Igreja verdadeira, a Igreja católica, que luta contra
todas as heresias. Pode lutar, mas não pode ser vencida. Todas as heresias saíram dela,
como vides inúteis cortadas da videira. Mas ela permanece na sua raiz, na sua cepa, na
sua caridade. As portas do Inferno não a vencerão.
906 SÉCULO V

3829 15. Na remissão dos pecados. Quando fordes baptizados tereis o Símbolo perfeita-
mente em vós. Ninguém diga: Fiz isto, talvez não tenha perdão. Que fizeste? Quantas
coisas más fizeste?... Não importa o que tenhas feito. Chegaste talvez a matar Cristo?
Não há nada pior, porque também não há nada melhor do que Cristo. Que grande
sacrilégio é matar Cristo! Contudo os Judeus mataram-n’O, depois muitos acreditaram
n’Ele, beberam o seu Sangue e foi-lhes perdoado aquele pecado que cometeram. Quando
fordes baptizados, levai uma vida santa nos preceitos de Deus, para guardardes o
baptismo até ao fim. Não vos digo que ireis viver nesta vida sem pecado, pois há
pecados veniais, sem os quais não é possível viver nesta vida. Mas o baptismo foi
instituído para perdoar todos os pecados: e para perdoar os pecados leves, sem os
quais não podemos viver, foi-nos dada a oração. Que eficácia tem a oração? Perdoai-nos
as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Pelo baptismo
fomos lavados uma só vez; pela oração lavamo-nos todos os dias. Mas não queirais
cometer aqueles pecados, pelos quais inevitavelmente sereis separados do Corpo de
Cristo: longe de vós tal coisa. De facto, aqueles que vedes fazer penitência cometeram
crimes graves, como adultérios e outras coisas horríveis. Por isso é que fazem penitência.
Porque, se os seus pecados fossem leves, bastaria a oração de cada dia para os perdoar.
3830 16. Portanto, na Igreja, os pecados são perdoados de três modos: pelo baptismo,
pela oração e pela grande humilhação da penitência. No entanto, Deus perdoa os
pecados só aos baptizados. Até mesmo os pecados que perdoa pela primeira vez, só
os perdoa aos baptizados. Quando? Quando são baptizados. Os pecados perdoados
posteriormente aos orantes e aos penitentes, são-lhes perdoados porque são baptizados...
Os catecúmenos, enquanto o são, mantêm todos os seus pecados sobre eles. E, se os
catecúmenos os mantêm, quanto mais os pagãos? Quanto mais os hereges? Mas nós
não mudamos o baptismo aos hereges. Porquê? Porque têm o baptismo impresso do
mesmo modo que o soldado desertor tem o carácter116. Assim têm eles o baptismo.
Possuem-no como causa de condenação, não como causa de coroação. Ora, quando
esse soldado desertor, depois de se arrepender, começar de novo a servir no exército,
quem se atreverá a mudar-lhe o carácter?
3831 17. Também cremos na ressurreição da carne, que nos precedeu em Cristo, para
que este corpo espere também o que aconteceu previamente na cabeça. Cristo é a
cabeça da Igreja, e a Igreja é o Corpo de Cristo. A nossa cabeça ressuscitou e subiu ao
Céu. Onde está a cabeça, aí estarão também os membros.
Como acreditamos nós na ressurreição da carne? Ninguém pense que será como
foi a ressurreição de Lázaro. E, para que saibas que não será assim, acrescenta-se:
Cremos na vida eterna. Deus vos regenere; Deus vos conserve e vos defenda; Deus
vos leve para Ele, que é a própria Vida Eterna. Amen.
SERMÃO 215 117

3832 1. O Símbolo do sacrossanto mistério, que recebestes todos juntos, e que hoje
recitastes um a um, é constituído pelas palavras em que se apoia solidamente a fé da
Igreja católica, nossa mãe, sobre o fundamento estável que é Cristo Senhor. Recebestes
e recitastes algo que deveis reter sempre na vossa mente e no vosso coração e repetir
na vossa cama; algo em que deveis pensar quando estais na rua e que não deveis
esquecer quando comeis, de modo que, mesmo quando dormis corporalmente, vigieis
em vosso coração. Renunciando ao Diabo, desviando a mente e a alma das pompas do

116
A tatuagem.
117
Redição do Símbolo, oito dias antes da Páscoa. O Sermão foi proferido depois da primeira recitação do
Símbolo.
AGOSTINHO DE HIPONA 907

mesmo e dos seus Anjos, é preciso esquecer o passado e, desprezada a velhice da vida
anterior, começar com o homem novo uma vida nova de costumes santos...
2. Esta fé é a regra da nossa salvação: Cremos em Deus Pai todo-poderoso, Criador 3833
do universo, rei dos séculos, imortal e invisível..., que no princípio do mundo criou tudo
do nada..., que permanece em Si mesmo como eternidade plena e perfeita, que nem a
mente humana pode compreender nem a língua descrever...
3. Cremos também no seu Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor; Deus verdadeiro de 3834
Deus verdadeiro, Deus Filho de Deus Pai, mas sem serem dois deuses, pois Ele e o Pai
são um só... Não podes compreender nem explicar o nascimento de Deus a partir de
Deus; só te é possível acreditar n’Ele para poderes alcançar a salvação... Se, porém,
desejas conhecer o seu nascimento segundo a carne..., escuta e crê que nasceu do
Espírito Santo e da Virgem Maria. Mas quem narrará também este nascimento? Quem
poderá avaliar verdadeiramente que Deus tenha querido nascer como homem pelos
homens, que uma Virgem O tenha concebido sem colaboração de um homem, que O
tenha dado à luz sem perder a integridade e que, depois do parto, tenha permanecido
íntegra...
Quem terá inteligência capaz de compreender ou língua capaz de explicar não só
que no princípio era o Verbo, sem princípio de nascimento, mas também que o Verbo
Se fez carne, escolhendo uma Virgem para a tornar sua mãe, e a tornou mãe, mas
conservando-a Virgem?... Quem pode dizê-lo? Quem pode calá-lo?
Coisa admirável: não nos é permitido calar o que somos incapazes de dizer.
Pregamos com palavras o que nem com a mente compreendemos. Somos incapazes de
falar de tão grande dom de Deus por sermos pequenos para expressar a sua grandeza,
e, apesar disso, sentimo-nos obrigados a louvá-l’O, para que o nosso silêncio não seja
ingratidão. Mas dêmos graças a Deus, pois aquilo que não pode exprimir-se dignamente
pode crer-se fielmente.
4. Acreditemos, então, em Jesus Cristo, nosso Senhor, que nasceu do Espírito 3835
Santo e da Virgem Maria, pois também a mesma bem-aventurada Maria acreditando
concebeu Aquele, a quem, acreditando, deu à luz...
5. Foi para não duvidares nem te envergonhares que, quando começaste a acreditar, 3836
recebeste o sinal da cruz na fronte... Não te envergonhes da ignomínia da cruz... Olha
para a tua fronte para que não te assuste a língua alheia...
6. Aquele que foi crucificado sob Pôncio Pilatos e foi sepultado ressuscitou ao 3837
terceiro dia... Talvez aqui comeces a duvidar e a tremer... Pensa em Deus, pensa que é
todo-poderoso, e não duvides. Se te pôde fazer a ti do nada quando ainda não existias,
porque não há-de poder ressuscitar de entre os mortos o homem que Ele já tinha feito?
Acreditai, irmãos: onde existe a fé, não são precisas muitas palavras. Esta é a única fé
que separa e distingue os cristãos dos outros homens...
7. Depois de ressuscitar de entre os mortos, subiu ao Céu e está sentado à direita 3838
do Pai..., donde há-de vir para julgar os vivos e os mortos.
8. Cremos também no Espírito Santo... Por Ele recebemos o perdão dos pecados; 3839
por Ele cremos na ressurreição da carne e por Ele esperamos a vida eterna pela santa
Igreja católica.
9. Vedes, certamente, caríssimos, que até nas próprias palavras do santo Símbolo, 3840
como conclusão de toda a regra que se refere ao mistério da fé, se acrescenta uma
espécie de suplemento, isto é, pela santa Igreja... Afastai o vosso espírito e os vossos
ouvidos, com todas as vossas forças, de tudo o que não é católico, para que possais
alcançar a remissão dos pecados, a ressurreição da carne e a vida eterna pela Igreja una,
verdadeira, santa e católica, que é aquela na qual se conhece o Pai e o Filho e o Espírito
Santo, um único Deus, a quem pertence a honra e a glória pelos séculos dos séculos.
908 SÉCULO V

SERMÃO 216 118

3841 1. Os primeiros passos do meu ministério119 e da vossa concepção, mediante a


qual, graças à fé, começais a ser gerados pela graça celeste, hão-de ser ajudados pela
palavra, para que o meu sermão vos seja útil a vós, e o vosso nascimento seja conso-
lação agradável para mim. Eu instruo-vos com sermões, vós progredis com os costumes.
Eu espalho a palavra; devolvei vós o fruto da fé. Corramos todos pelos caminhos e
veredas do Senhor, segundo a vocação com que fomos chamados por Ele. Ninguém
olhe para trás... O próprio nome de competentes, com que sois chamados, mostra que
é isso o que desejais... com todo o ardor do vosso coração... Aquilo que pedis e desejais
conjuntamente120 é a graça de habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida...
para contemplar as delícias do Senhor e habitar no seu santuário...
3842 2. Já vedes, companheiros, quais são as delícias do Senhor de que vos aproximais
quando desprezais as do mundo... O Senhor começa convosco um contrato...
3843 3. O Reino dos Céus está à venda em hasta pública e no mercado da fé. Examinai e
reuni os haveres da vossa consciência; juntai, de comum acordo, os tesouros do vosso
coração. E ainda por cima comprais de graça; só é preciso que reconheçais a gratuidade
da graça que vos é oferecida. Não pagais nada, apesar de ser muito o que adquiris. Não
vos considereis sem valor, vós a quem o Criador de tudo e também vosso vos valoriza
em tão alto preço...
3844 4. Aproximai-vos d’Ele com o coração contrito, pois Ele está perto dos contritos
de coração... Aproximai-vos à porfia, para serdes iluminados. Ainda viveis nas trevas
e as trevas vivem em vós; mas sereis luz no Senhor, que ilumina todo o homem que vem
a este mundo. Vivíeis segundo o mundo, transformai-vos segundo Deus...
3845 6. Completai com o exame e contrição do vosso coração o que começámos em vós,
invocando o nome do vosso Redentor. Nós resistimos aos enganos do antigo inimigo
com preces e súplicas a Deus; persisti vós nos desejos e na contrição de coração, para
escapardes ao poder das trevas e serdes transferidos para o reino da sua luz. É esse,
agora, o vosso trabalho, a vossa ocupação. Nós amontoámos contra ele as maldições121
merecidas pelas suas maldades; uni-vos a essa luta gloriosíssima, com a vossa aversão
e renúncia piedosa122. Este inimigo de Deus e vosso e também de si próprio há-de ser
quebrantado, vencido e deitado fora, pois o seu furor é insolente para com Deus,
prejudicial para vós e pernicioso contra si... Lançai fora dos vossos corações todos os
seus venenos, invocando o nome do Salvador.
3846 7. As suas sugestões criminosas, os seus atractivos encantadores, serão agora pos-
tos à luz do dia e tornados públicos... Ser-vos-á tirado o jugo com que cruelmente vos
oprimia e colocar-se-á sobre a sua cerviz. Para vossa libertação, só vos pedimos que
deis o vosso consentimento ao vosso Redentor. Esperai n’Ele, assembleia do povo
novo, povo prestes a nascer, povo que o Senhor fez... Põe os teus olhos no seio da mãe
Igreja... Povo que estás a ser criado, louva o teu Deus; louva, louva o teu Deus, povo
que te abres à vida. Louva-O, porque te amamenta, louva-O, porque te alimenta; uma
vez que Ele te alimenta, cresce tu em sabedoria e idade... Como competentes, tornai-vos
adolescentes em Cristo competentemente, para crescerdes como jovens, até serdes
homens adultos 123...

118
Escrutínio, oito dias antes da Páscoa.
119
Devido a esta expressão, há quem pense que este sermão foi composto por Agostinho para servir de modelo
à pregação a fazer aos competentes pelos bispos ordenados há pouco tempo
120
A palavra latina competentes significa pedir juntamente ou conjuntamente (=Com+petentes).
121
Alusão aos exorcismos.
122
Aversione ac pia renuntiatione. Alusão a um rito de renúncia.
123
Ut competentes competenter adolescite em Christo, ut in virum perfectum iuveniliter accrescatis.
AGOSTINHO DE HIPONA 909

8. Amai o que ides ser. Ides ser filhos de Deus e filhos de adopção. Tudo vos será 3847
dado e conferido gratuitamente. A vossa participação será tanto mais abundante e
generosa quanto maior for a vossa gratidão para com Aquele de quem o recebestes.
Suspirai por Ele, que conhece quem são os seus... Tendes, ou tivestes, neste mundo,
pais carnais... Reconhece, ó cristão, este outro Pai que... te recebeu desde o seio da tua
mãe... O Pai é Deus, a mãe é a Igreja. Estes geraram-vos de maneira muito diferente
daquela como vos geraram os outros...
10. Mas estai atentos, para não entrar em vós o pé da soberba; vigiai, para que não 3848
vos arrastem as mãos dos pecadores. A fim de não entrar em vós a soberba, orai (a
Deus) para que purifique tudo o que de oculto existe em vós; para que não vos
arrastem as mãos dos pecadores, e sejais lançados por terra, pedi-Lhe que vos livre dos
males alheios. Se estais no túmulo, levantai-vos; uma vez levantados, ponde-vos de
pé; postos de pé, permanecei firmes nessa postura. Não volteis a carregar o jugo, mas
quebrai antes as suas correias, e lançai para longe de vós o jugo deles, para não voltardes
a sujeitar-vos ao jugo da escravidão. O Senhor está próximo; não vos deixeis inquietar
por nada 124.
Comei agora o pão da dor, e chegará o tempo em que, depois do pão da tristeza,
vos será dado o pão da alegria. Este merece-se suportando aquele. A deserção e a fuga
mereceram-te o pão das lágrimas; converte-te, arrepende-te e volta ao teu Senhor 125.
Ele está disposto a dar o pão da alegria a quem volta arrependido, desde que sejas
sincero e não demores a pedir perdão com lágrimas de aflição pela tua fuga. No meio de
tantos males, vesti-vos de cilício e humilhai a vossa alma com o jejum. Paga-se com a
humildade o que se negou com o orgulho. No momento dos escrutínios, quando aquele
que vos persuadia à fuga e à deserção foi repreendido com a força da tremenda Trindade,
não estáveis revestidos de cilício, mas, apesar disso, os vossos pés estavam misticamente
assentes sobre ele.
11. Há que calcar aos pés os vícios e as peles de cabra; há que rasgar os trapos 3849
tirados de sinistros cabritos. O Pai misericordioso virá ao vosso encontro com a
primeira túnica... Correi para Ele, e far-vos-á voltar, pois é Ele que faz regressar os que
se afastaram, que persegue os fugitivos, que encontra os que se tinham perdido, que
humilha os soberbos, que alimenta os famintos, que liberta os prisioneiros, que ilumi-
na os cegos, que limpa os imundos, que reconforta os cansados, que ressuscita os
mortos e liberta os que estão possuídos e cativos dos espíritos do mal. Temos agora a
prova de que estais livres deles; ao mesmo tempo que vos dou os parabéns, exorto-vos
a guardar em vossos corações a saúde que se manifestou em vossos corpos.
SERMÃO 218

1. Com toda a solenidade lemos e celebramos a Paixão d’Aquele que, com o seu 3850
sangue, apagou as nossas culpas. Fazemo-lo para reavivar com muita alegria a nossa
memória, através destas práticas anuais, e para fazer com que, mediante esta tão
numerosa reunião de pessoas, a nossa fé irradie com maior claridade. A solenidade
pede-me, na medida em que o Senhor quiser conceder-mo, que vos fale da sua Paixão...
SERMÃO 218 B (= GUELF. 2) 126

1. Celebramos hoje, com toda a solenidade, o mistério grande e inefável da Paixão 3851
do Senhor. Mistério que, a falar verdade, nunca esteve longe do altar a que assistimos,
nem da nossa boca e pensamento, a fim de guardarmos sempre no coração aquilo que

124
Filip 4, 5-6.
125
Converte, compumgere, et redi ad dominum tuum.
126
Sexta-Feira Santa.
910 SÉCULO V

os sentidos do corpo nos recordam continuamente. Apesar disso, esta solenidade anual
está muito mais presente na nossa memória, quando nos recordamos de tão grande
acontecimento...
Cristo crucificado é, para os infiéis, escândalo e loucura; mas para nós é poder e
sabedoria de Deus. Eis a fraqueza de Deus, que é mais forte que os homens...
3852 2. A multidão dos hereges pode dividir os sacramentos de Cristo, mas nenhum fiel
rasga ou divide a caridade de Cristo... Celebremos então, caríssimos, com devoção,
este aniversário; gloriemo-nos na Cruz de Cristo, não uma só vez ao ano, mas com uma
vida contínua de santidade.
SERMÃO 218 C (= GUELF. 3) 127

3853 1. A Paixão de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo é para nós penhor seguro de
glória e exemplo admirável de paciência. Haverá alguma coisa que não possam esperar
da graça divina os corações dos fiéis, se por eles o Filho unigénito de Deus, eterno
como o Pai, não só quis nascer como homem entre os homens, mas também morrer às
mãos dos homens que Ele tinha criado? É verdadeiramente grande a realidade futura
que o Senhor nos promete; mas é muito maior o que Ele já fez por nós e que hoje
celebramos. Onde estávamos ou quem éramos, quando Cristo morreu por nós, pecadores?
Quem pode duvidar que Cristo dará a vida aos seus fiéis, se por eles Se entregou à
morte? Porque hesita ainda a humana fragilidade em acreditar que um dia os homens
viverão com Deus? Muito mais incrível é o que já se realizou: Deus morreu pelos homens.
Quem é Cristo senão Aquele que no princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto
de Deus, e o Verbo era Deus? Este Verbo de Deus fez-Se carne e habitou entre nós. Se
não tomasse da nossa natureza a carne mortal, Ele não tinha possibilidade de morrer
por nós. Mas, deste modo, o imortal pôde morrer e dar a vida aos mortais: fez-Se
participante da nossa morte para nos tornar participantes da sua vida. De facto, assim
como os homens, pela sua natureza, não tinham possibilidade alguma de alcançar a
vida, também Ele, pela sua natureza, não tinha possibilidade alguma de sofrer a morte.
Fez, pois, connosco, um extraordinário comércio: nós tínhamos aquilo por que Ele
morreu, Ele tinha aquilo por que nós vivemos...
3854 2. Por conseguinte, de modo algum podemos envergonhar-nos da morte do nosso
Deus e Senhor; pelo contrário, ela é a razão de toda a nossa confiança e de toda a nossa
glória: tomando sobre Si a morte que em nós encontrou, assegurou-nos a vida que por
nós não podíamos alcançar. Se Ele tanto nos amou, que sendo inocente tomou sobre Si
o castigo que merecíamos pelos nossos pecados, como deixará de nos dar o que mere-
cemos pela nossa justiça, que é fruto da sua justificação? Se Ele, o Justo, suportou o
castigo dos pecadores, como deixará de dar a recompensa aos seus fiéis, Ele que é
fidelíssimo às suas promessas?
Portanto, irmãos, reconheçamos corajosamente, mais ainda, proclamemos bem
alto que Cristo foi crucificado por amor de nós; digamo-lo, não com temor, mas com
alegria, não com vergonha, mas com santo orgulho. Compreendeu bem este mistério o
apóstolo Paulo e proclamou-o como o seu título de glória. Ele podia recordar as
grandiosas manifestações da divindade de Cristo, mas não disse que se gloriava nessas
grandezas admiráveis – por exemplo, que, sendo Deus como o Pai, criou o mundo; que,
sendo homem como nós, manifestou o seu domínio sobre o mundo – mas disse: Longe
de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo128.
3855 3. Ora os que nos atiram à cara como insulto que adoramos um Senhor crucificado...
não entendem absolutamente nada do que cremos nem do que dizemos. Pois não

127
Sexta-Feira Santa.
128
Gal 6, 14.
AGOSTINHO DE HIPONA 911

dizemos que em Cristo morreu o que era Deus, mas o que era homem... Do mesmo
modo que, quando morre um homem, não morre a alma que ele leva em sua carne, assim
também Cristo ao morrer, não foi a sua divindade que morreu no homem.
Mas Deus, dizem, não pôde unir-se ao homem e com ele fazer um só Cristo...
Quando um espírito e um corpo constituem uma associação mais difícil e estupenda
que a de um espírito com outro espírito..., não poderá Deus, que é espírito, unir-Se em
comunhão espiritual, não a um corpo sem alma, mas a uma natureza humana que já
tinha alma?
4. Gloriemo-nos nós também na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o 3856
mundo está crucificado para nós e nós para o mundo. Por não corarmos desta cruz é
que a recebemos na fronte, isto é, no próprio lugar da vergonha129...
SERMÃO 219 130

O apóstolo São Paulo, para nos exortar a imitá-lo, menciona também, entre 3857
muitas outras provas da sua virtude, as suas frequentes vigílias. Como deve ser grande
a nossa alegria por estarmos de vela nesta vigília, que é, de certo modo, a mãe de todas
as santas vigílias, e na qual vigia todo o mundo131...
A fama desta vigília resplandece tanto em toda a terra, que até obriga a estar
despertos na sua carne aqueles que, não direi que dormem em seus corações, mas estão
sepultados na impiedade do Inferno. Também eles passam esta noite acordados, noite
em que foi visivelmente cumprido aquilo que muito tempo antes fora prometido: A
noite resplandecerá como o dia 132... Nesta noite, pois, todo o mundo está de vela,
tanto o mundo inimigo133 como o mundo reconciliado134. Está de vela este, já libertado,
para louvar o médico, está desperto aquele, já condenado, para blasfemar contra o
juiz... A este impede-o de dormir nesta festa a caridade, àquele a maldade; a este o vigor
cristão, àquele a inveja diabólica...
Com efeito, mesmo entre aqueles que de modo algum foram assinalados com o
nome de Cristo, há muitos que, nesta noite não dormem, uns por dor e outros por
pudor, e alguns vão-se aproximando da fé, também por temor a Deus. Por motivos
diversos os mantém acordados esta festa solene.
Como deve ser alegre a vigília do amigo de Cristo, se até o inimigo vela com dor.
Se o pagão se envergonha de ir dormir, com quanto ardor há-de permanecer de vela o
cristão, envolvido em tanta glória! Aos que já entraram nesta grande casa, é muito
conveniente que se mantenham de vela nesta grande festa, pois já assim estão os que se
preparam para nela entrar.
Permaneçamos, pois, de vela, e oremos para celebrar esta vigília, exterior e inte-
riormente. Deus fala-nos a nós pelas suas leituras, falemos-Lhe nós a Ele pelas nossas
orações135. Se escutarmos com obediência as suas palavras, Aquele que nós invocamos
com a nossa oração morará em nós.

129
«Muito longe de corar da cruz, não ponho a cruz de Cristo em lugar oculto, trago-a na testa» (En. in Ps.
141, 3). A signação é o primeiro rito do catecumenado: «quando pela primeira vez acreditastes, recebestes
o sinal de Cristo na testa, no lugar de maior honra» (Sal 215, 5).
130
Vigília pascal.
131
Matrem omnium sanctarum vigiliarum in qua totus vigilat mundus.
132
Sal 138, 12.
133
O mundo inimigo são os que estão fora da Igreja.
134
O mundo reconciliado é a Igreja.
135
O esquema da Vigília seria leitura/oração? Deus nobis loquitur in lectionibus suis; Deo loquamur in
precibus nostris.
912 SÉCULO V

SERMÃO 220 136

3858 Nós sabemos, irmãos e acreditamos com fé certíssima que Cristo morreu por nós
uma só vez, o justo pelos injustos, o Senhor pelos servos... como diz o Apóstolo: Ele
foi entregue pelos nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação137. Sabeis
perfeitamente que tudo isto aconteceu uma só vez e, no entanto, a solenidade renova-o
periodicamente, como se se repetisse mais vezes aquilo que a história proclama, com
tantos testemunhos da Escritura, ter acontecido uma só vez.
Não estão em contraste entre si a verdade (histórica) e a solenidade, como se a
segunda fosse falsa e só a primeira correspondesse à verdade. De facto, é daquilo
mesmo que a história afirma ter acontecido na realidade uma só vez, que a solenidade
renova muitas vezes a celebração nos corações dos fiéis. A história revela o que acon-
teceu e como aconteceu; a solenidade faz com que o passado não seja esquecido, não no
sentido de o realizar, mas no sentido de o celebrar.
Enfim, Cristo, nossa Páscoa, foi imolado138. Ele foi certamente morto uma só
vez e já não pode morrer, nem a morte tem qualquer poder sobre Ele139. Por isso,
segundo a história, dizemos que a Páscoa aconteceu uma só vez, e nunca mais se
repetirá; mas, ao contrário, segundo a solenidade, dizemos que a Páscoa vem cada
ano... A esta última pertence a luminosa solenidade desta noite, na qual, vigiando,
através das recordações da nossa memória, realizamos, por assim dizer, a Ressurreição
do Senhor. Esta, apesar de ter acontecido uma só vez, é por nós confessada com mais
verdade quando voltamos a trazê-la à mente.
Não se permita que o abandono da solenidade torne irreligiosos aqueles a quem
o anúncio da verdade (histórica) instruiu. Foi ela que tornou célebre em toda a terra
esta noite; é ela que põe em marcha as multidões do povo cristão, que confunde as
trevas do judaísmo e derruba os ídolos dos pagãos140.
SERMÃO 221 (= GUELF. 5) 141

3859 1. Com a sua Ressurreição, nosso Senhor Jesus Cristo converteu em glorioso o dia
que a sua morte tornara triste. Por isso, trazendo solenemente à memória aqueles dois
momentos, permaneçamos de vela recordando a sua morte e alegremo-nos acolhendo a
sua Ressurreição. Esta é a nossa festa anual, a nossa Páscoa, não figurada pela morte
de um cordeiro, como o foi entre o povo antigo, mas realizada, para o povo novo, pelo
sacrifício do Salvador, pois Cristo, nossa Páscoa, foi imolado, e o que era antigo
passou; tudo foi renovado142.
Choramos, porque nos oprime o peso dos nossos pecados, e alegramo-nos,
porque a sua graça nos justificou, pois foi entregue por nossos pecados e ressuscitou
para nossa justificação143. Quer chorando aquilo, quer exultando com isto, estamos
cheios de alegria. Aquilo que por causa de nós e para nosso bem se cometeu de horro-
roso, como aquilo que de venturoso foi inaugurado para nós, não o passamos em
silêncio, como ingratos, mas celebramo-lo, lembrando-o com gratidão. Velemos, pois,
caríssimos, porque a sepultura de Cristo se prolongou até esta noite, para que nesta

136
Vigília pascal.
137
Rom 4, 25.
138
1 Cor 5, 7.
139
Rom 6, 9.
140
Este sermão contém a formulação mais clara da relação entre o acontecimento histórico (uma só vez) e a sua
celebração litúrgica e sacramental (quotidiano), isto é, entre a Páscoa de Cristo e a Páscoa da Igreja.
141
Vigília pascal; cf. LMD 49, 5-9.
142
2 Cor 5, 17.
143
Rom 4, 25.
AGOSTINHO DE HIPONA 913

mesma noite se cumprisse a ressurreição da carne, que foi escarnecida no madeiro e


agora é adorada no Céu e na terra.
Esta noite, com efeito, pertence, como é sabido, ao dia seguinte, que nós consi-
deramos o dia do Senhor. E não há dúvida de que devia ressuscitar de noite, já que pela
sua Ressurreição iluminou as nossas trevas e não podia ser frustrado o canto que com
tanta antecedência Lhe foi consagrado: Vós, Senhor, sois a luz da minha lâmpada, Vós,
meu Deus, dissipais as minhas trevas144... A vigília desta noite é de tal grandeza, que
só ela pode reivindicar para si o nome comum dado às outras vigílias.
Para tantos e tantos povos, que esta célebre solenidade reúne por toda a parte
em nome de Cristo, pôs-se o sol, mas sem deixar de ser dia, pois à luz que brilhava no
Céu sucedeu a luz da terra.
2. Contudo, se alguém busca o porquê da importância desta nossa tão esplêndida 3860
vigília, poderá encontrar as verdadeiras razões e responder com toda a certeza: Aquele
que nos deu a glória do seu nome, que iluminou esta noite e a quem dizemos: Vós
iluminareis as minhas trevas, também concede a luz aos nossos corações, para que,
assim como vemos o esplendor destas lâmpadas para deleite dos olhos, assim vejamos
também, iluminada a nossa mente, o sentido do resplendor desta noite.
Qual é, pois, a razão por que os cristãos se mantêm de vela nesta festa anual?
Esta é a nossa maior vigília, e ninguém pensa noutra celebração de aniversário quando,
com impaciência, perguntamos ou dizemos:_ Quando é a Vigília?_ É daqui a tantos
dias, responde-se, como se, em comparação com esta, as outras não merecessem tal
nome...
3. É preciso que eu vos diga a razão por que celebramos com tanta solenidade esta 3861
vigília nocturna...
4. Agora, irmãos, enquanto recordamos outras poucas coisas, ponde a vossa aten- 3862
ção na vigília especial desta noite. Disse-vos a razão por que devemos, com certa
frequência, tirar tempo ao sono, para o consagrar às vigílias; agora vou dizer-vos
porque é que, nesta noite, permanecemos de vigília com tanta solenidade.
Nenhum cristão duvida de que nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitou de entre os
mortos ao terceiro dia. O santo Evangelho confirma que o acontecimento teve lugar
nesta noite...
Depois que o homem, criado para a luz da justiça, caiu nas trevas do pecado, das
quais o libertou a graça de Cristo, começámos a contar os dias a partir das noites,
porque o nosso esforço não se dirige a passar da luz às trevas, mas das trevas à luz, o
que esperamos conseguir com a ajuda do Senhor...
Portanto, o dia da Paixão do Senhor, no qual Ele foi crucificado, seguia-se à noite
própria já passada; e, deste modo, encerrou-se e terminou na preparação da Páscoa,
que os Judeus também chamam ceia pura, e a observância do sábado começou no início
da noite. Por isso, o dia de sábado, que começou com a sua noite, terminou na tarde da
noite seguinte, que já pertence ao começo do dia do Senhor, porque o Senhor o tornou
sagrado com a glória da sua Ressurreição.
Assim, pois, nesta solenidade celebramos agora a memória daquela noite que
dava início ao dia do Senhor e passamos em vigília a noite em que o Senhor ressuscitou
e em que inaugurou para nós, na sua carne, aquela vida em que não há morte nem sono...
As que O amavam chegaram ao sepulcro para buscar o seu corpo já de manhã, e
não o encontraram, mas receberam um aviso, da parte dos Anjos, de que tinha ressuscitado.
E, assim, Aquele que, numa vigília um pouco mais prolongada, cantamos ressuscitado,
nos concederá a graça de reinarmos com Ele numa vida sem fim. Mas, se porventura

144
Sal 17, 29.
914 SÉCULO V

sucedesse que o seu corpo ainda estivesse no sepulcro e ainda não tivesse ressuscitado
nestas horas que passamos em vigília, nem por isso seríamos incongruentes ao fazê-lo
assim, pois quem morreu para que tivéssemos vida, dormiu para que estivéssemos de
vela. Amen.
SERMÃO 222 145

3863 Apesar da própria solenidade desta noite santa vos exortar, caríssimos, a vigiar e
a orar, cada ano vos devemos uma exortação. A voz do pastor tem que despertar o
rebanho do Senhor, para fazer frente às potestades inimigas e invejosas, aos ditadores
das trevas, às feras bravas da noite...
Dêmos graças a Deus, que nos libertou do poder das trevas e nos transferiu para
o reino do seu amado Filho..., mas vigiai e orai, para não cairdes em tentação. O
príncipe deste mundo foi lançado fora dos corações dos que têm fé..., mas, como leão
que ruge, ronda o exterior buscando a quem devorar. Não deis, portanto, lugar ao
Diabo, que deseja entrar seja por onde for, mas, ao contrário, habite dentro de vós
Aquele que, ao sofrer por vós, o lançou fora...
Estes meninos que vedes revestidos com esta veste branca estão purificados
interiormente, porque o resplendor da sua veste não é mais do que a imagem do
resplendor da sua alma...
SERMÃO 223 146

3864 1. Estes infantes que vedes exteriormente vestidos de branco e purificados no seu
íntimo, e que simbolizam, com a brancura das suas vestes, o resplendor das suas
mentes, foram trevas quando se encontravam na noite, oprimidos pelo peso dos seus
pecados. Agora, ao contrário, porque foram purificados pelo banho do perdão, irrigados
pela água da fonte da sabedoria e inundados pela luz da justiça: Este é o dia que o
Senhor fez; nele exultemos e nos alegremos147. Escute-nos o dia do Senhor, escute-nos
o dia feito pelo Senhor. Escute-nos e obedeça-nos, para exultarmos e nos alegrarmos
nele... Escutai-nos, pois, filhos pequenos de uma mãe casta; escutai-nos, filhos de uma
mãe virgem...
SERMÃO 223 A (= DENIS 2) 148

3865 1. Ouvimos muitas leituras divinas, e eu não me sinto capaz de um sermão que se
ajuste à extensão das mesmas, nem vós poderíeis suportá-lo, no caso de eu ser capaz.
Na medida em que o Senhor mo conceder, quero falar-vos do primeiro capítulo das
Escrituras, onde está escrito, como escutámos, que no princípio Deus criou o céu e a
terra149... Vemos com os olhos e amamos com o coração. Anteponhamos, pois, o
coração aos olhos, porque também é melhor Aquele a quem amamos, sem O ver, do que
a sua obra, que temos à vista. Investiguemos, pois, se vos agrada, quando é que Deus
fez este mundo e de que meios Se serviu.
O instrumento do artífice foi a sua Palavra. De que te admiras? É obra do Todo-
-Poderoso150...

145
Vigília pascal.
146
Domingo da Oitava da Páscoa.
147
Sal 117, 24.
148
Vigília pascal.
149
Gen 1, 1.
150
Seguem-se, neste Sermão, páginas belas sobre a Palavra.
AGOSTINHO DE HIPONA 915

SERMÃO 223 B (= GUELF. 4) 151

2. Irmãos caríssimos, uma vez que celebramos a vigília nesta noite em que veneramos o 3866
Senhor no sepulcro, velemos no tempo em que, por nós, Ele dormiu... Estamos de vela
na noite em que Ele dormiu, para vivermos graças à morte que Ele sofreu. Celebremos
vigílias durante o seu sono temporal, para que, velando Ele por nós, possamos, na
ressurreição, perseverar sem cansaço numa vigília eterna. Mas Ele também ressuscitou
nesta noite, e o nosso velar é um estar à espera dessa ressurreição. Foi entregue pelos
nossos pecados e adormeceu; ressuscitou para nossa justificação. É por este motivo
que nós assistimos em massa à vigília desta noite única na qual Ele adormeceu, para
nos sentirmos livres algum dia deste mesmo sono, já seguros na sua vigília.
SERMÃO 223 C (= GUELF. 6) 152

Nosso Senhor Jesus Cristo, quando Se aproximava a Paixão..., disse aos seus 3867
discípulos: Vigiai e orai, para não entrardes em tentação 153. Desta sua recomendação
nasceu a presente solenidade, para que no retorno anual daquele dia se esteja de vela,
à espera da sua Ressurreição...
SERMÃO 223 D (= WILMART 4) 154

3. Nesta nossa vigília não estamos à espera do Senhor, como se tivesse de ressuscitar, 3868
mas renovamos solenemente, uma vez no ano, a recordação da sua Ressurreição. No
entanto, nesta celebração, tornamos o passado de tal modo presente que a nossa
própria vigília é figura da realidade que vivemos na fé. Com efeito, durante todo este
tempo, no qual o século presente transcorre sob forma de noite, a Igreja está de vela,
com os olhos da fé postos nas Sagradas Escrituras, como se fossem lâmpadas que
brilham na obscuridade, até ao dia em que o Senhor virá...
SERMÃO 223 E (= WILMART 5) 155

1. O extraordinário resplendor e a solenidade desta Vigília que ilumina a recordação, 3869


anualmente renovada, da Ressurreição do Senhor, convida-nos, irmãos, a recordar e a
cumprir o que Ele mesmo disse aos seus discípulos quando já estava iminente a sua
Paixão: Vigiai e orai, para não cairdes em tentação156. Mantenhamo-nos de vela e
oremos para não cair em tentação, não só nesta noite, mas em todo o tempo desta vida...
2. Que isto não suceda será dom do Senhor, a quem cantámos: Ele revestiu-Se de 3870
glória. Ele já no-lo concedeu no banho da regeneração, como também acabámos de
cantar: Precipitou no mar o cavalo e o cavaleiro157...
SERMÃO 223 F (= WILMART 6) 158

1. Celebramos nesta Vigília, caríssimos irmãos, a solenidade anual daquela noite em 3871
que o Senhor Jesus Cristo ressuscitou de entre os mortos. Não vo-lo ensino agora,
mas, como já o sabeis, exorto-vos a não o esquecer. E, como a própria festividade com

151
Vigília pascal.
152
Vigília pascal.
153
Mt 26, 41.
154
Vigília pascal.
155
Vigília pascal.
156
Mt 26, 41.
157
Ex 15, 1.
158
Vigília pascal.
916 SÉCULO V

o seu retorno solene, na data oportuna, não nos ensina nada de novo, mas evita que o
esquecimento apague o que já sabemos..., do mesmo modo, as minhas palavras, apesar
de não se dirigirem a pessoas ignorantes, reclamam, no entanto, a vossa atenção, pois
não pretendo que ouçais algo que vos seja desconhecido, mas sim que recordeis com
alegria o que sabeis...
SERMÃO 223 G (= WILMART 7) 159

3872 1. Esta santa festividade, irmãos, que arrebatou a noite à noite, afugentando as
trevas com estas tochas e alegrando a nossa fé, como se fosse dia para o coração,
celebra-se, como sabeis, em memória da Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo.
Para celebrar em nossa vigília o seu despertar de entre os mortos, poderão os membros
que ainda hão-de dormir fazer coisa mais apropriada do que imitar, enquanto não chega
o momento, a sua cabeça, já desperta para sempre, velando eles também, uma vez que
hão-de fazê-lo como Ele e hão-de reinar com Ele numa vigília eterna, na qual não haverá
nenhum sono?
3873 2. Tal é o fruto das nossas vigílias, tal o objectivo para onde se voltam os olhos, não
os da carne, mas os do espírito: o propósito justo e santo de dominar o sono; tal é a
recompensa incorruptível da fadiga suportada e do amor abrasado: Aquele em honra de
quem, lutando contra o torpor terrestre, velámos um tudo-nada, há-de dar-nos uma
vida onde a vigília será sem pena, o dia sem noite, o descanso sem sono...
SERMÃO 223 H (= WILMART 14)

3874 Estamos a celebrar a soleníssima festa da humildade do Senhor... e é por essa


razão que, nesta noite, humilhamos as nossas almas mediante o jejum, a vigília e a
oração... Os Apóstolos tornaram sagrada, para nós, esta noite em que o Senhor ressus-
citou do sepulcro...
SERMÃO 223 I (= WILMART 15)

3875 Esta solenidade tão grande e tão santa exorta-nos, caríssimos, a velar e a orar...
Velemos com humildade e com humildade oremos, com fé devotíssima, esperança
firmíssima e caridade ardentíssima. Deus... faça brilhar a luz em nossos corações, para
fazermos interiormente algo parecido com o que fizemos ao acender as tochas nesta
casa de oração... Voltados para o Senhor...
SERMÃO 223 J (= WILMART 16)

3876 Celebremos esta solenidade velando na carne; mas, no coração, com Cristo que
nos ilumina, mantenhamo-nos em vigília perpétua. Na medida do possível, velemos na
carne, para orar, e oremos para poder chegar onde faremos uma vigília sem fim, mesmo
na carne. Com efeito, os Anjos não dormem, e nós temos prometida a igualdade com
eles para o dia da ressurreição se, agora, se mantiver desperta em nós a caridade.
SERMÃO 223 K (= WILMART 17)

3877 Que noite é essa, irmãos, em que a Verdade não quer que nos encontremos e na
qual diz que se encontram os que dormem? E que sono é esse, de que nos aparta a nós,
os filhos da luz e do dia, e no qual nos exorta a não dormirmos? Não há dúvida de que
não se trata da noite que começa com o pôr do sol e termina com o resplendor da
aurora, mas de outra, que começa com a queda do homem e acaba com a renovação da

159
Vigília pascal.
AGOSTINHO DE HIPONA 917

alma. Também dormem nessa noite os que estão despertos, mas são maus, e nela não
estão, ao contrário, os que, apesar de dormirem, são bons.
SERMÃO 224 160

No dia de hoje, uma vez celebrada a solenidade dos mistérios, misturam-se os 3878
baptizados e regenerados em Cristo com todo o povo de Deus. Vamos dirigir-lhes a
palavra a eles: a vós neles e a eles em vós...
Dado que sois membros de Cristo, eis a minha exortação. Escutem-me aqueles
com quem vos ides misturar. Hoje temo por vós, não tanto por causa dos pagãos, nem
dos Judeus, nem dos hereges, mas por causa dos maus católicos. Escolhei vós a quem
imitar de entre todo o povo de Deus, pois, se quiserdes imitar a turba, excluir-vos-eis
dos poucos que caminham pela senda estreita...
Sei que o Diabo fará a sua parte, e não deixará de falar aos corações daqueles que
arrasta para o seu partido, mediante a sedução...
Por isso, meus irmãos, meus filhos, vos falo assim... Ao mesmo tempo que
encho de terror os fiéis, edifico-vos a vós. Sois membros de Cristo; não me presteis
atenção a mim, mas ao Apóstolo...
Ouvi-me, vós, os baptizados, ouvi-me, vós, os recém-nascidos, escutai-me vós
os regenerados por Cristo: suplico-vos, pelo altar de que vos aproximastes, pelos
sacramentos que recebestes, pelo nome que foi invocado sobre vós, pelo julgamento
dos vivos e dos mortos, suplico-vos, conjuro-vos e obrigo-vos: não imiteis a ninguém,
a não ser que saibais que são fiéis como devem ser.
SERMÃO 225

4. O Espírito de Deus é luz e bebida. Se descobres que há uma fonte num lugar 3879
escuro, acendes uma lâmpada para chegar até ela. Não acendas uma lâmpada junto à
fonte da luz; seja ela a luz que te guie até ela. Quando chegar o momento de beber,
aproxima-te e recebe a iluminação. Aproximai-vos d’Ele e sereis iluminados; não vos
afasteis, para não cair nas trevas. Senhor Deus, chama-nos, e aproximar-nos-emos de
Ti; confirma-nos, para que não nos afastemos. Renova os teus filhos, convertendo-os...
SERMÃO 226

Reconheçamos a Palavra que é Deus junto de Deus, isto é, reconheçamos o Filho 3880
unigénito igual ao Pai, reconheçamos a luz da luz, o dia do dia. Ele é o dia que fez o dia;
não foi feito mas gerado pelo dia. Se o dia do dia não foi criado, mas gerado, qual é o dia
que o Senhor fez? Porque é ele dia? Porque é luz. E Deus chamou dia à luz. Investiguemos
qual é o dia que o Senhor fez, para exultarmos e nos alegarmos nele. Além do dia da
primeira criação do mundo..., existe outro dia feito pelo Senhor. É sobretudo este que
nós devemos conhecer, para nele exultarmos e nos alegrarmos. Dissemos aos fiéis que
crêem em Cristo: Vós sois a luz do mundo; se sois luz, também sois dia, porque Deus
chamou dia à luz. Ontem, quando estes recém-nascidos 161 carregavam ainda os seus
pecados, o Espírito de Deus pairava aqui sobre a água e as trevas cobriam o abismo.
Mas, quando lhes foram perdoados os pecados pelo Espírito Santo, então disse Deus:
Faça-se a luz, e a luz foi feita. Eis aqui o dia que o Senhor fez; exultemos e alegremo-nos
nele. Dirijamo-nos a este dia com as palavras do Apóstolo: Oh dia que o Senhor fez!
Noutro tempo fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor. Noutro tempo fostes
trevas. Fostes ou não? Recordai as vossas acções, e vede se o não fostes. Examinai as

160
Domingo da Oitava da Páscoa.
161
Infantes.
918 SÉCULO V

vossas consciências e vede a que obras renunciastes. Uma vez que noutro tempo fostes
trevas e agora sois luz, não em vós, mas no Senhor, caminhai como filhos da luz.
Bastem-vos estas poucas coisas, porque tenho ainda de trabalhar e de falar aos recém-
-nascidos do sacramento do altar.
SERMÃO 227 162

3881 Não me esqueci da minha promessa. Tinha-vos prometido, a vós que fostes
baptizados, explicar-vos na homilia o sacramento da mesa do Senhor163, que agora já
vedes e do qual participastes na noite passada. Deveis conhecer o que recebestes, o
que recebereis e o que conviria que recebêsseis cada dia164.
Este pão que vedes sobre o altar, santificado165 pela palavra de Deus, é o Corpo
de Cristo166. Este cálice, ou antes, o que o cálice contém, santificado pela palavra de
Deus, é o Sangue de Cristo. Cristo Senhor quis, por meio destas coisas, deixar-nos o
seu Corpo e Sangue, que por nós derramou em remissão dos pecados. Se o recebestes
bem, sois o que recebestes. Diz, com efeito, o Apóstolo: Somos muitos, mas somos
um só pão e um só corpo 167. Assim expus o sacramento da mesa do Senhor: Somos
muitos, mas somos um só pão e um só corpo. Com este pão se vos mostra quanto
deveis prezar e amar a unidade. Porventura aquele pão foi feito de um só grão? Não
eram muitos os grãos de trigo? Mas antes de chegarem a pão, estavam separados.
Foram unidos pela água, mas só depois de esmagados. Se o trigo não for moído e
amassado com água, é impossível que chegue a ser o que se chama pão.
O mesmo vos aconteceu a vós: fostes como que moídos pela humilhação do
jejum e pelo sacramento do exorcismo168. Depois, chegou o baptismo, e fostes molhados
com água para vos tornardes pão. Mas ainda não é pão, porque falta o fogo. Que quer
dizer o fogo, senão a unção do óleo? Não há dúvida de que o azeite, como alimenta o
fogo, é o sacramento do Espírito Santo169. Prestai atenção ao que se lê nos Actos dos
Apóstolos; começa agora a ler-se este livro; começamos a ler hoje o livro chamado Actos
dos Apóstolos 170. Quem quiser progredir, sabe como há-de fazer. Quando vos reunis na
igreja, evitai as conversas vãs e prestai atenção às Escrituras. Nós somos os vossos
livros. Por isso, estai atentos e pensai que no Pentecostes há-de vir o Espírito Santo.
O modo como há-de vir é este: manifesta-Se em línguas de fogo. Mete-nos
dentro o espírito de caridade, para nos inflamarmos no amor de Deus, para desprezar-
mos as seduções do mundo, para queimarmos as ervas das nossas paixões, para puri-
ficarmos como oiro o nosso coração. Vem, pois, o Espírito Santo. Depois da água o
fogo. E tornais-vos naquele pão que é Corpo de Cristo171. Por este modo se significa de
alguma forma a unidade.

162
Manhã de Páscoa.
163
É a catequese tradicional sobre a Eucaristia (cf. Sermão 228, 3, enumeração das catequeses de iniciação)
que se fazia, em Hipona, no própria dia de Páscoa, durante a oblação, na qual os neófitos participavam pela
segunda vez. Na pregação que não fosse destinava só aos fiéis, fugia-se a fazer alusões muito precisas à
Eucaristia (cf. Sermão 232, 7; 234, 2; 235, 3; Sermão Mai. 86, 3; 132, 1; In Jo. Ev. 11, 3).
164
Era quotidiana, em Hipona, a celebração eucarística (cf. Sermão 57, 7; 334, 3; etc). O mesmo em Milão, (cf.
Ambrósio, De Sacramentas V, 25: Accipe quotidie quod quotidie tibi prosit [Recebe cada dia o que cada
dia te aproveite]). O costume não era o mesmo em todas as igrejas (cf. A GOSTINHO , Epist. 54, 2).
165
Quer dizer, consagrado.
166
Panis ille, quem videtis in altari, sanctificatus per verbum Dei, corpus est Christi.
167
1 Cor 10, 17.
168
Exorcismi sacramentum.
169
Accessit baptismum et aqua, quasi conspersi estis ut ad formam panis venietis. Sed nondum est panis
sine igne: Quod ergo sinificat ignis? Hoc est chrisma. Oleum etenim ignis nostri, Spiritus Sancti est
sacramentum.
170
Como se vê, já então, no Tempo pascal, se liam os Actos dos Apóstolos.
171
Accedit ergo Spiritus Sanctus, post aquam ignis, et efficiemini panis quod est corpus Christi.
AGOSTINHO DE HIPONA 919

Sabeis os mistérios pela ordem em que se seguem 172. Primeiro, depois da ora-
ção 173, sois convidados a ter o coração no alto; é coisa que fica bem a membros de
Cristo. Pois, se vos tornastes membros de Cristo, onde está Aquele que é vossa
cabeça? Os membros têm a sua cabeça. Se Aquele que é cabeça não tivesse ido adian-
te, os membros não podiam segui-l’O. Para onde foi Aquele que é vossa cabeça? Que
recitastes no Símbolo? Ao terceiro dia ressuscitou dos mortos, subiu ao Céu, onde
está sentado à direita do Pai. Está, pois, no Céu Aquele que é nossa cabeça. Por isso,
quando digo: Coração ao alto, respondeis: O nosso coração está no Senhor. E, para
que isso de ter o coração no Senhor o não atribuais às vossas forças, aos vossos mere-
cimentos, aos vossos esforços, porque ter o coração no Céu é um dom de Deus, o bispo
ou o presbítero que celebra 174, depois de o povo responder: O nosso coração está
elevado para o Senhor, continua: Dêmos graças ao Senhor nosso Deus, por termos
o coração posto n’Ele. Dêmos-Lhe graças, porque, se Ele não nos fizesse este dom,
teríamos o coração na terra. E vós assim o atestais, dizendo: É digno e justo que Lhe
dêmos graças por nos fazer levantar o nosso coração para Aquele que é nossa cabe-
ça 175 .
Em seguida, depois da santificação 176 do sacrifício de Deus, porque Deus quis
que nós sejamos sacrifício seu – e isto fica manifesto logo que se põe no altar o
sacrifício de Deus – porque, como esse sacrifício nos representa também a nós, lá
estamos177 com Ele em cima do altar; logo, pois, que se terminou a santificação, rezamos
a Oração do Senhor, que já aprendestes e recitastes. Depois dela diz-se A paz esteja
convosco, e os cristãos beijam-se com ósculo santo. É o sinal da paz. O que os lábios
mostram, deve-se fazer na consciência, isto é, assim como os teus lábios se aproximam
dos lábios do teu irmão, assim se não afaste do coração dele o teu coração 178.
Grandes são estes mistérios, muito grandes. Quereis saber em que condições nos
são dados? Diz o Apóstolo: Todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor
indignamente será réu do Corpo e do Sangue do Senhor179. O que é receber indignamente?
É receber com desdém, receber com irrisão. Não te pareça desprezível por ser visível.
O que vês passa, mas o invisível, que é significado, não passa, permanece. Vedes bem
que se recebe, se come, se consome. Consome-se porventura o Corpo de Cristo?

172
Tenetis sacramenta ordine suo. Primo post orationem admonemini sursum habere cor.
173
Oração que se fazia a seguir à Liturgia da Palavra antes da despedida dos catecúmenos. Muitos sermões
terminam por uma oração; com bastante frequência o taquígrafo contenta-se com notar: Conversi ad
Dominum...» (Voltados para o Senhor, etc.). Na Carta 29, 7, conta Agostinho: «Dito isto, entreguei o
livro e convidei para a oração (imperata oratione...). Temos uma ressonância deste convite à oração no
Sermão 232, 8: Orai, penitentes (Orate, paenitentes...), convite feito desta vez aos penitentes e em
circunstância indeterminada.
174
Episcopus vel presbyter qui offert.
175
Et vos adtestamini, dignum et justum est dicentes, ut ei gratias agamus que nos fecit sursum ad nostrum
caput habere cor.
176
As palavras da consagração.
177
Este texto difícil é ilustrado pelo De Civitate Dei 10, 6: «Este sacrifício somos nós todos... Este é o
sacrifício dos cristãos: não obstante sermos muitos, somos em Cristo um só corpo. É isto o que a Igreja
celebra no sacramento do altar conhecido dos fiéis, onde se lhe patenteia que naquilo que oferece, ela se
oferece».
178
A Oração do Senhor era acompanhada de dois gestos do celebrante e dos fiéis: batem no peito ao Dimitte
nobis debita nostra (Perdoai-nos as nossas dívidas; cf. Sermão 351, 6); e selam o Sicut et nos dimittimus
(Assim como nós perdoamos...) com o ósculo da paz (cf. TERTULIANO , De Oratione 18: Osculum pacis quod
est signaculum orationis (O ósculo da paz que é o selo da oração). Na língua dos cristãos petere aliquem
ad pacem (buscar alguém para a paz) torna-se sinónimo de abraçar (cf. Epist. 158, 10). Contudo o ósculo
da paz toma sentido mais amplo, porque pax, na época de Agostinho, designa sobretudo a unidade da
Igreja. No séc. IV o epitáfio fidelis in pace significa expressamente que o cristão baptizado morreu na
comunhão da Igreja católica. Por isso os Donatistas o substituíram por fidelis in fide Evangelii.
179
1 Cor 11, 27.
920 SÉCULO V

Destrói-se porventura a Igreja de Cristo? Destroem-se porventura os membros de


Cristo? De modo nenhum. Aqui purificam-se, lá coroam-se. Permanecerá, pois, o que
é significado, embora o que significa pareça passar.
Recebei-o, então, de modo que penseis nele, mantendo a unidade de espírito e o
coração sempre fixo no alto. Não coloqueis na terra a vossa esperança, mas no Céu.
Esteja firme em Deus a vossa fé e Lhe seja agradável, porque aquilo em que acreditais
agora, sem o verdes, vê-lo-eis ali, onde a alegria não terá fim.
SERMÃO 228 180

3882 1. Embora o espírito esteja pronto, como a carne é fraca, não devo entreter-vos
muito tempo no sermão depois do cansaço da noite passada181; apesar disso devo-vos
um sermão.
Estes dias que se seguem à Paixão de Nosso Senhor, nos quais cantamos o
Aleluia a Deus, são para nós dias de festa e de alegria, e prolongam-se até ao Pentecostes,
quando foi enviado do Céu o Espírito Santo prometido.
Destes dias, os sete ou oito em que nos encontramos, dedicam-se aos sacramentos
que os recém-nascidos receberam. Os que até há pouco eram chamados competentes,
chamam-se agora infantes. Chamava-se-lhes competentes porque, com os seus pedidos,
sacudiam as entranhas maternas para nascer; chama-se-lhes infantes, porque acabam
de nascer para Cristo, os que antes tinham nascido para o mundo. Começou neles o que
em vós já deve estar firme. Os que já sois fiéis, não lhes deis exemplos que os levem à
morte, mas que lhes sejam de proveito. Os que acabam de nascer olham para vós, para
verem como viveis, vós que nascestes ontem...
3883 2. Dirijo-me agora a estes para que sejam grão na eira e não continuem a ser palha,
que é levada pelo vento de um lado para o outro, e acabem por perecer com ela... A vós,
portanto, irmãos; a vós, filhos; a vós, rebentos novos da mãe Igreja, vos peço, em
nome do que recebestes, que olheis para quem vos chamou, e vos amou, e vos procurou
quando estáveis perdidos, e vos iluminou quando fostes encontrados, para não seguirdes
o caminho dos que se perdem...
3884 3. Temos de falar ainda hoje aos recém-nascidos, do altar de Deus, acerca do sacra-
mento do altar182. Falámos diante deles do sacramento do Símbolo183, isto é, o que
devem crer; falámos do sacramento da Oração do Senhor184, ou seja, como devem
pedir, e também do sacramento da fonte e do baptismo185. Tudo isto ouviram comentar
e de tudo receberam a tradição. Mas do sacramento do altar sagrado, que hoje viram
pela primeira vez, ainda não ouviram nada; deve-se-lhes hoje uma prática a este pro-
pósito. Por isso, este sermão tem de ser breve, não só por causa da minha fadiga, mas
também para edificação deles...
SERMÃO 228 B (= DENIS 3) 186

3885 1. O dever de vos pregar um sermão e o cuidado com que vos damos à luz, para que
Cristo se forme em vós, obriga-me a falar à vossa infância, a vós que, renascidos agora
da água e do Espírito, contemplais a uma nova luz o alimento e a bebida postos sobre

180
Manhã de Páscoa.
181
Vigília pascal: Post laborem noctis prateritae.
182
Sacramentum altaris.
183
Sacramentum Symboli.
184
Sacramentum Orationis dominicae.
185
Sacramentum fontis et baptismi.
186
Manhã de Páscoa.
AGOSTINHO DE HIPONA 921

esta mesa do Senhor e os recebeis com novo fervor, sobre o que significa este sacramento tão
grande e divino, este remédio tão célebre e tão nobre, este sacrifício tão puro e tão simples...
2. Nosso Senhor Jesus Cristo, que na sua Paixão ofereceu por nós o que no seu 3886
nascimento tinha tomado de nós..., mandou que se oferecesse o sacrifício que estais a
ver, o do seu Corpo e Sangue... Reconhecei no pão o corpo que esteve pendente do
madeiro, e no cálice o sangue que brotou do seu lado...
3. Recebei, pois, e comei o Corpo de Cristo, uma vez que vos tornastes vós próprios 3887
em membros de Cristo, em corpo de Cristo; recebei e bebei o Sangue de Cristo. Para
não vos separardes, comei o vínculo da vossa união; para não vos avaliardes em pouco,
bebei o vosso preço. Do mesmo modo que se transforma em vós tudo o que comeis ou
bebeis, transformai-vos vós também em corpo de Cristo...
SERMÃO 229 (= DENIS 6) 187

1. O que estais a ver, caríssimos, sobre a mesa do Senhor, é pão e vinho; mas, 3888
quando se lhes junta a palavra, este pão e este vinho tornam-se o Corpo e o Sangue do
Verbo... O Senhor, que sofreu por nós, confiou-nos, neste sacramento, o seu Corpo e
Sangue, em que nos transformou também a nós mesmos. De facto, nós também nos
convertemos no seu corpo e, por sua misericórdia, somos o que recebemos.
Lembrai-vos do que era antes, no campo, este ser criado: a terra produziu-o, a
chuva alimentou-o e levou-o a converter-se em espiga; a seguir o trabalho humano
levou-o à eira, triturou-o, ventilou-o, recolheu-o, tirou-o, moeu-o, amassou-o, cozeu-o
e, por fim, converteu-o em pão.
Recordai-vos também de vós: não existíeis e fostes criados, isto é, postos na eira
do Senhor, onde o trigo foi batido pelo trabalho dos bois, isto é, dos mensageiros do
Evangelho; enquanto permanecíeis no catecumenado, estáveis como que guardados no
celeiro; quando destes os vossos nomes 188, começastes a ser moídos pelos jejuns e os
exorcismos. A seguir aproximastes-vos da água, fostes amassados e feitos unidade;
cozeu-vos o fogo do Espírito Santo e convertestes-vos em pão do Senhor.
2. Eis o que recebestes. Tal como vistes que o que se realizou é uma só coisa, sede 3889
vós também um só, amando-vos, guardando uma única fé, uma única esperança, um
indivisível amor... O mesmo sucede com o vinho: antes estava em muitos bagos de uva,
mas agora é um só: um só na suavidade do cálice, mas só depois de ter sido espremido
na prensa do lagar.
Também vós, depois dos jejuns e dos trabalhos, depois da humilhação e do
arrependimento, como que viestes parar, em nome de Cristo, ao cálice do Senhor;
também vós estais sobre a mesa, também vós estais dentro do cálice. Sois vinho
connosco. Somo-lo juntos, bebemo-lo juntos, porque vivemos juntos.
3. Ouvireis de novo hoje o que escutastes ontem; mas hoje ser-vos-á explicado o 3890
que ouvistes, o que respondestes, ou, quem sabe, o que calastes na hora de responder,
mas já ontem aprendestes o que hoje deveis responder. Depois da saudação que conhe-
ceis, isto é: O Senhor esteja convosco, escutastes: Coração ao alto. Toda a vida dos
verdadeiros cristãos consiste em levantar o coração; ter durante toda a vida o coração
no alto, é a preocupação dos que são cristãos não só de nome, mas também na realidade
e na verdade.
Que quer dizer Coração ao alto? É pôr a esperança em Deus, não em ti, porque
tu está abaixo, mas Deus está acima. Se pões a esperança em ti mesmo, o teu coração

187
Manhã de Páscoa.
188
Este rito tinha lugar no início da Quaresma do ano em que os catecúmenos iriam receber o baptismo na
Vigília pascal. Depois de darem o nome passavam a chamar-se competentes.
922 SÉCULO V

está em baixo, não está no alto. Por isso, quando ouvis o sacerdote dizer: Coração ao
alto, respondeis: O nosso coração está levantado para o Senhor. Esforçai-vos por
responder com verdade, porque a vossa resposta ficará nas actas de Deus. Sejam as
coisas como as dizeis; o que a língua diz não o negue a vida.
E dado que este ter o coração no alto é dom de Deus e não conquista das vossas
forças, depois de dizerdes que tendes o coração levantado para o Senhor, o sacerdote
prossegue, dizendo: Dêmos graças ao Senhor, nosso Deus. Porque damos graças?
Porque temos o coração no alto, e porque, se Deus não no-lo tivesse levantado, esta-
ríamos prostrados por terra.
A partir deste momento entramos na acção que tem lugar durante as orações
sagradas que ireis ouvir. Ao juntar-se a palavra, realiza-se o Corpo e o Sangue de
Cristo189. Retira a palavra, é pão e vinho; acrescenta a palavra, e já é outra coisa. Essa
outra coisa o que é? Corpo de Cristo e Sangue de Cristo. Tira, pois, a palavra, e é pão
e vinho; acrescenta a palavra, e torna-se sacramento. A isto respondeis Amen. Dizer
Amen é subscrever. Em latim, Amen quer dizer «é verdade».
A seguir, diz-se a Oração dominical, que já recebestes e entregastes. Por que
motivo a dizemos antes de receber o Corpo e o Sangue de Cristo? Porque assim o pede
a fragilidade humana: a nossa mente pode ter concebido o que não devia, a língua pode
ter dito o que não convinha, os olhos podem ter-se fixado onde não queriam...; se por
acaso contraímos outras manchas, fruto da tentação deste mundo e da fragilidade da
vida humana, limpamo-las com a Oração dominical, ao dizermos: Perdoai-nos as nos-
sas ofensas. Deste modo aproximamo-nos com a esperança de que não comemos nem
bebemos para nossa condenação aquilo que recebemos.
Depois disto, dizemos: A paz esteja convosco. Grande mistério é o beijo da paz.
Seja o teu beijo sinal de amor. Não sejas Judas... Não devolvas a ninguém mal por mal
no teu coração...
As coisas que ouvistes são poucas, mas sublimes; não vos pareçam sem importância
por serem poucas, mas dignas de apreço pelo seu valor. Não deveis ser sobrecarregados
com muito ao mesmo tempo, para que possais guardar o que vos foi dito.
SERMÃO 229 A (= GUELF. 7) 190

3891 1. Tinha prometido explicar-vos o significado de todos estes mistérios; escutai-me


especialmente vós, que renascestes para uma vida nova, razão pela qual vos chamam
crianças, e sobretudo vós, que vedes estes mistérios pela primeira vez. Escutem tam-
bém os fiéis que já estão acostumados a vê-los. É bom recordá-los, para não caírem no
esquecimento. Aquilo que vedes na mesa do Senhor, quanto ao seu aspecto exterior é
o mesmo que costumais ver nas vossas mesas: a aparência exterior é a mesma, mas a
sua força interior é bem diferente.
Também vós sois os mesmos homens que éreis antes, pois o rosto que tendes
hoje não é diferente do de ontem; contudo, sois homens novos: homens velhos pela
aparência corporal191, mas novos pela graça da santidade.
Também o que estais a ver é novo. Até este momento, o que estais a ver é pão e
vinho; mas quando se lhe juntar a santificação, aquele pão tornar-se-á Corpo de Cristo,
e aquele vinho será Sangue de Cristo. Eis o que o nome de Cristo realiza, eis o que a
graça de Cristo faz: embora se continue a ver o que se via antes, não tem o mesmo valor

189
Quae aguntur in precibus sanctis quas audituri estis, ut, accedente verbo, fiat corpus et sanguis Christi.
190
Manhã de Páscoa.
191
Não se esqueça que o baptismo era, regra geral, celebrado em idade adulta, embora também se baptizassem
crianças.
AGOSTINHO DE HIPONA 923

que tinha antes. Quando se comia antes, enchia o estômago; quando se come agora,
sacia o coração.
Quando fostes baptizados, ou, melhor, antes de serdes baptizados, na noite de
sábado, falei-vos do sacramento da fonte onde estáveis para vos mergulhar e disse-vos
uma coisa que espero não tenhais esquecido, isto é, que o que constituía e constitui o
valor do baptismo é que ele é uma sepultura com Cristo, como diz o Apóstolo: Pelo
baptismo fomos sepultados com Cristo na morte, para que, tal como Cristo ressuscitou
de entre os mortos para glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova 192.
Do mesmo modo, também agora é preciso que vos recorde e vos demonstre com a
autoridade do Apóstolo, não com sentimentos do meu coração nem com conjecturas ou
argumentos humanos, aquilo que recebestes ou ides receber.
Escutai, pois, resumidamente, o que diz o Apóstolo, ou antes, Cristo pela boca
do Apóstolo, sobre o sacramento da mesa do Senhor: Embora muitos, somos um só
corpo, um único pão193. É tudo, e eu disse-o rapidamente. Não vos fixeis no número
das palavras, mas no seu peso. O número é pequeno, mas o peso é grande. O pão é um
só, disse. Quer sejam muitos, quer sejam poucos os pães ali colocados, são um único pão.
Quantos pães não haverá hoje, através do mundo inteiro, sobre os altares de
Cristo? E, contudo, todos são um só e mesmo pão. Mas que é este único pão? Já o
disse com toda a brevidade: Embora muitos, somos um só corpo. Este pão é o Corpo
de Cristo, de que fala o Apóstolo, quando se dirige à Igreja: Vós sois o corpo de Cristo
e cada um, pela sua parte, é um membro194. Pela graça que vos remiu, sois aquilo que
recebeis; quando respondeis Amen, assinais o vosso nome. O pão que estais a ver é o
sacramento da unidade.
2. Uma vez que o Apóstolo já nos disse resumidamente o que é este pão, reparai 3892
agora com mais cuidado e vede como se faz. Como se faz o pão? É triturado, moído,
amassado com água e cozido... Quando e como fostes vós triturados? Pelos jejuns e
práticas quaresmais, pelas vigílias e exorcismos. Fostes moídos quando recebestes os
exorcismos, e, como a aspersão só é possível com água, fostes baptizados. A cozedura
custa, mas é útil...
3. A saudação que vos dirigi quando estava à mesa do Senhor: O Senhor esteja 3893
convosco, também costumo dizê-la quando estou no presbitério e todas as vezes que
pronuncio alguma oração, pois precisamos de ter o Senhor sempre ao nosso lado, uma
vez que, sem Ele, não somos nada.
Pensai, portanto, no que ressoou aos vossos ouvidos e no que respondestes
diante do altar de Deus. De certo modo fiz-vos uma pergunta e uma exortação, ao
dizer: Coração ao alto. Não o tenhais na terra, pois em contacto com ela o coração
apodrece; levantai-o para o Céu. Elevemos o coração, mas para onde? Que respondestes?
Para onde elevais o coração? O nosso coração está em Deus. Elevar o coração para o
alto, umas vezes é bom, outras vezes é mau. Como é mau? É coisa má naqueles de
quem se diz: Vós os precipitais na ruína 195. Elevar o coração sem ser para o Senhor,
não é justiça, mas orgulho. Por isso, quando dizemos: Coração ao alto... respondeis:
O nosso coração está em Deus...
Foi Deus que o fez, foi Ele que teve essa bondade, foi Ele que abriu as suas mãos,
foi Ele que antecipou a sua graça, foi Ele que levantou o que estava caído. Por isso,
depois de eu ter dito: Coração ao alto e de terdes respondido: O nosso coração está
em Deus, para não atribuirdes isso a vós, acrescentei: Dêmos graças ao Senhor, nosso

192
Rom 6, 4.
193
1 Cor 10, 17.
194
1 Cor 12, 27.
195
Sal 72, 18.
924 SÉCULO V

Deus. Estes mistérios são breves, mas grandiosos; são de curta duração, mas grandes
para a nossa sensibilidade. São palavras que pronunciais sem necessidade de livro,
nem de leitura, nem de grandes comentários. Recordai o que sois, pois deveis perseverar
nestas coisas, para poderdes alcançar as promessas de Deus.
SERMÃO 229 B (= GUELF. 8) 196

3894 1. Foi o Senhor que fez todos os dias. Não só fez, mas continua a fazer... Por isso,
quando ouvimos aquele texto: Eis o dia que o Senhor fez, não devemos pensar que ele
se refere a este dia comum. Ao dizer: Eis o dia que o Senhor fez, fala-nos de um dia mais
importante e faz-nos concentrar a atenção sobre ele.
Que dia é este do qual se diz: Nele exultemos e nos alegremos? Que dia, senão
um dia bom? Que dia, senão o apetecível, amável, desejável e delicioso, do qual fala
Jeremias?... Qual é, pois, este dia, que o Senhor fez? Vivei bem e sê-lo-eis vós mesmos...
Quando dizemos todos, numa só voz, com espírito alegre e coração unânime: Eis
o dia que o Senhor fez, procuremos andar de acordo com o som que produzimos, para
que a nossa língua não dê testemunho contra nós...
3895 2. Que alegria a nossa, meus irmãos, que alegria pela vossa reunião, que alegria nos
salmos e hinos, que alegria na memória da Paixão e Ressurreição de Cristo, que alegria
na esperança da vida que há-de vir. Se o que esperamos nos dá tão grande alegria, que
será quando o tivermos?
São tais estes dias que, quando ouvimos o Aleluia, sentimos transfigurado o
nosso espírito197! Não é verdade que saboreamos já um não sei quê daquela cidade do
alto? Se estes dias produzem em nós uma tão grande alegria, que será naquele em que
se nos disser: Vinde, benditos de meu Pai, recebei o reino 198, quando todos os santos
estiverem reunidos, quando se olharem mutuamente os que antes se ignoravam, quando
se reconhecerem os que já se conheciam, ali onde a convivência mútua não permitirá
perder um amigo nem recear um inimigo?
Proclamámos, portanto, o Aleluia: é um cântico belo, cheio de alegria, de prazer, de
felicidade, de suavidade. Apesar disso, se o cantássemos todos os dias, cansar-nos-íamos;
mas, como ele anda associado a uma certa época do ano, com que prazer o vemos
chegar e com que saudades lhe dizemos adeus!...
SERMÃO 229 C (= WILMART 8) 199

3896 1. Cristo, nossa Páscoa, foi imolado, e, enquanto nós celebramos estas festas
pascais, os Judeus... realizam certos ritos simbólicos nocturnos, e, ao cair do dia, ainda
estão a sonhar. Com efeito, também eles dizem que celebram a Páscoa... Seguindo o
rito da antiga festa, matam cada ano um cordeiro, mas não sabem o que tal cordeiro
simboliza...
3897 2. Uma vez que Cristo, nossa Páscoa, foi imolado, celebremos este dia de festa,
como diz o Apóstolo, não com fermento velho, nem com o fermento de malícia e de
corrupção, mas com os ázimos da pureza e da verdade200, de modo que a celebração
cristã manifeste como já realizado o que a Lei antiga anunciava como futuro..., e nós
nos alegremos por termos aderido à luz.

196
Vigília pascal.
197
Em Hipona só se cantava o Aleluia no Tempo pascal.
198
Mt 25, 34.
199
Vigília pascal ou dia de Páscoa.
200
1 Cor 5, 8.
AGOSTINHO DE HIPONA 925

SERMÃO 229 D (= WILMART 9) 201

1. Sempre vos deveis lembrar, irmãos, que Cristo foi entregue pelos nossos pecados 3898
e ressuscitou para nossa justificação. Mas deveis recordá-lo particularmente nestes
dias, que nos trazem à memória tão grande graça, dias em que a celebração anual não
nos deixa esquecer o grande acontecimento que teve lugar de uma vez para sempre.
Iluminados pela fé, fortalecidos pela esperança e inflamados pela caridade, participemos
nas solenidades temporais e suspiremos incessantemente pelas eternas...
Cristo sofreu a Paixão: morramos para o pecado; Cristo ressuscitou: vivamos
para Deus; Cristo passou deste mundo ao Pai: não se prenda aqui o nosso coração, mas
sigamo-l’O até ao Céu; a sua cabeça pendeu do madeiro: crucifiquemos os desejos da
carne; esteve no sepulcro: sepultados com Ele, esqueçamos o passado; está sentado no
Céu: pensemos nas coisas do alto e suspiremos por elas; há-de vir como juiz: não
levemos a mesma vida dos pagãos; Cristo há-de ressuscitar os mortos: mereçamos a
transformação do corpo, mudando o nosso modo de pensar; colocará os maus à sua
esquerda e os bons à sua direita: escolhamos o nosso lugar com as obras que realizamos;
o seu reino não terá fim: não tenhamos medo do fim desta vida. Tudo o que precisamos
de saber para conseguir a nossa paz está n’Aquele por cujas chagas fomos curados.
2. Por isso, irmãos caríssimos, celebremos diariamente a Páscoa, meditando com 3899
assiduidade em todas estas coisas. A importância que damos a estes dias do Tempo
pascal, não deve levar-nos a descuidar a lembrança da Paixão e Ressurreição do Senhor
quando nos alimentamos, dia após dia, com o seu Corpo e Sangue 202. Todavia, a
presente solenidade tem o poder de nos fazer recordar com mais clareza, de nos excitar
com maior fervor e de nos alegrar mais intensamente, porque, voltando um ano depois,
torna presente, por assim dizer de forma visível, a recordação do acontecimento.
Celebrai a festa que passa e pensai no reino futuro que há-de permanecer para
sempre. Se já nos dão tanta alegria estes dias passageiros, nos quais recordamos com
grande solenidade a Paixão e Ressurreição de Cristo, como nos fará felizes o dia eterno
em que O veremos e com Ele permaneceremos, dia cujo simples desejo e expectativa
presente já nos faz sentir tanto júbilo?
SERMÃO 229 E (= GUELF. 9) 203

1. A Paixão e Ressurreição do Senhor mostram-nos duas vidas: uma que suportamos 3900
e outra que desejamos. Quem Se dignou suportar a primeira em nosso favor, tem poder
para nos dar a segunda. Deste modo nos mostrou o muito que nos ama, e quis que
confiássemos em que nos concederia os seus próprios bens, uma vez que quis tomar
parte, ao nosso lado, nos nossos males. Nós nascemos, e Ele também; como nós
havemos de morrer, morreu Ele também. Estas são as duas coisas que o homem conhe-
cia bem na sua vida: o começo e o fim, o nascer e o morrer; conhecia também que o
nascimento é o começo das fadigas, e a morte uma viagem ao desconhecido. Conhe-
cíamos estas duas coisas: nascer e morrer, que é o que abunda na nossa região. A nossa
região é esta terra; a região dos Anjos é o Céu. Nosso Senhor veio de outro país para
esta terra...; veio da região da vida para a região da morte; veio do país da felicidade
para a região do sofrimento. Veio, trazendo-nos consigo os seus bens e suportou
pacientemente os nossos males...

201
Vigília pascal ou dia de Páscoa.
202
Para Agostinho, a Páscoa da Igreja realiza-se essencialmente na Eucaristia, que ela seja dominical ou
diária.
203
Segunda-feira da Oitava da Páscoa.
926 SÉCULO V

SERMÃO 229 H (= GUELF. 12) 204

3901 1. A Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é o que caracteriza a fé cristã... Que
tenha nascido em carne mortal..., que tenha aceitado ser pequeno em tudo, que tenha
passado a idade da infância, que tenha chegado à de homem, que tenha levado a idade
de homem até à morte, tudo isso se encaminhava para a Ressurreição, pois não teria
ressuscitado se não tivesse morrido, e não teria morrido se não tivesse nascido. Por
isso, o facto de nascer e morrer aconteceu por causa da Ressurreição... Porque ressuscitar
e viver para sempre, quem é que tal conhecia? Tal é a novidade que trouxe à nossa terra
Aquele que veio da região de Deus...
3902 3. Negar a Cristo, que é senão negar a vida? Que loucura, quem ama a vida negar a
Vida... A Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo delimita a nossa fé. Vivereis se
viveis, quero dizer, vivereis para a eternidade se viverdes bem. Não temais morrer mal;
temei, sim, viver mal...
SERMÃO 229 K (= GUELF. 13) 205

3903 1. Bom é lembrar à vossa memória o que por costume ouvis cada ano. Não basta ler
uma vez o que foi escrito, não basta explicar uma vez o que não foi compreendido. Por
isso, os que fixam na memória e se recordam bem do que escutaram e compreenderam,
tenham paciência enquanto são instruídos os que talvez se tenham esquecido, ou
enquanto escutam aqueles que nunca o ouviram... Toca-se melhor em Cristo pela fé do
que pelos sentidos; tocar em Cristo neste mundo, significa tocar-Lhe pela fé...
3904 2. Agora, meus irmãos, Jesus está no Céu. Quando estava com os seus discípulos
na sua carne visível, na sua substância corpórea palpável, foi visto e foi tocado; mas
agora que está sentado à direita do Pai, qual de nós pode tocá-l’O? E, contudo, mal de
nós se não O tocamos pela fé. Todos O tocamos quando cremos. Não há dúvida de que
está no Céu, não há dúvida de que está longe, não há dúvida de que não se pode
imaginar a distância que nos separa d’Ele. Crê, e logo O tocas. Que digo eu: logo O
tocas? Dado que crês, tens junto de ti Aquele em quem crês. Portanto, crer é tocá-l’O,
ou antes, tocá-l’O é crer...
SERMÃO 229 M (= GUELF. 15) 206

3905 1. A vossa Caridade sabe que todos os anos se celebram solenemente 207 estas
leituras do santo Evangelho, testemunhas da Ressurreição do Senhor. Como a leitura
renova a memória, também a renova o comentário da leitura. Vamos explicar, com a
ajuda do Senhor, o que ouvis tradicionalmente cada ano. Mas, se a leitura vos deve
refrescar a memória, embora o Evangelho se possa ler noutras ocasiões, quanto mais
verdade isto não é do sermão que só se escuta uma vez no ano?
O Senhor apareceu aos seus discípulos, depois da Ressurreição, junto ao mar de
Tiberíades, e encontrou-os a pescar, mas sem terem apanhado nada. Nada conseguiram
em toda a noite de pesca; mas brilhou o dia, e então fizeram capturas, porque viram o
dia, viram a Cristo, e encheram as redes em nome do Senhor...
3906 2. E todos, quantos serão? Serão 153? Não, não! Longe de mim o pensamento de
que, mesmo neste povo que aqui está diante de mim, houvesse tão poucos de entre eles
no Reino dos Céus, onde haverá milhares...

204
Terça-feira da Oitava da Páscoa.
205
Quinta-feira da Oitava da Páscoa.
206
Sexta-feira da Oitava da Páscoa.
207
Anniversaria sollemnitate celebrari é um pleonasmo. Celebratio significa propriamente a afluência.
Podemos dizer que celebratio é uma celebração que reúne muita gente.
AGOSTINHO DE HIPONA 927

SERMÃO 229 N (= GUELF. 16) 208

2. Tudo o que ligardes na terra será ligado no Céu, e tudo o que desligardes na terra 3907
será desligado no Céu. Se isto foi dito só a Pedro, só Pedro pôde ligar e desligar, morreu e
acabou. Quem é que pode agora ligar e desligar? Não tenho dúvida de afirmar que também nós
temos as chaves. Vou então dizer, que nós é que ligamos e desligamos? Também vós ligais e
também vós desligais. Na verdade, quem está ligado está separado da vossa comunidade209,
e, como está separado da vossa comunidade, está ligado por vós. Quando é reconciliado, é
desligado por vós, porque vós também rogais a Deus por ele.
SERMÃO 230 210

Façamos, com a ajuda de nosso Senhor, o que acabamos de Lhe cantar. De facto, 3908
todos os dias foram feitos pelo Senhor. Mas não é sem alguma razão que acerca de um
está particularmente escrito: Este é o dia que o Senhor fez... O dia comum e quotidiano
dura desde o nascer ao pôr do sol. Mas há outro dia em que resplandece a palavra de
Deus nos corações dos fiéis e que expulsa as trevas, não dos olhos, mas dos maus
costumes. Reconheçamo-lo e alegremo-nos nele... Se viverdes bem, sois o que cantais...
Se quereis ser o dia que o Senhor fez, vivei bem, e possuireis a luz da verdade que
nunca se porá nos vossos corações.
SERMÃO 231 211

1. A Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo lê-se nestes dias, segundo é costume, 3909
de todos os livros do santo Evangelho. Nesta leitura de hoje reparámos, certamente,
como o próprio Senhor Jesus repreendeu os seus discípulos, apesar de serem os seus
primeiros membros que andavam ao seu lado, por não acreditarem que estivesse vivo
Aquele a quem choravam como morto. Os nossos pais na fé ainda não tinham fé, os
mestres por quem todo o mundo havia de acreditar no que eles viriam a pregar, e
naquilo por que iriam morrer, ainda não acreditavam. Eles não acreditavam que tivesse
ressuscitado Aquele a quem tinham visto ressuscitar mortos.
Eram bem merecidas as repreensões que levavam. Com esta revelação tomavam
conhecimento do que eram por si mesmos e do que viriam a ser por Ele. Como também
Pedro aprendeu a conhecer-se, quando na véspera da Paixão foi pretensioso, mas
vacilou quando ela estava a chegar. Viu-se então reduzido a si mesmo, teve pena do que
era, chorou por ser o que era, e voltou-se212 para Aquele que o fizera. Ora, naquele
momento, eles ainda não acreditavam nesta leitura; embora já vissem, ainda não acre-
ditavam. Que grande prova de bondade a d’Ele, pois a nós nos deu a graça de acreditar
no que ainda não vemos. Nós acreditamos nas palavras deles, eles nem nos seus olhos
acreditavam.
2. A Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é uma vida nova para aqueles que 3910
crêem em Jesus. E este é o sacramento da sua Paixão e Ressurreição que deveis conhe-
cer e viver muito bem213. Pois não foi sem causa que a vida veio a morrer, não foi sem
causa que a fonte da vida, onde para viver matamos a sede, bebeu o cálice da morte que
não lhe era devida. A Cristo não era devida a morte. Se procurarmos donde veio a

208
Sábado da Oitava da Páscoa.
209
Vestra consortio.
210
Dia (ou noite) de Páscoa.
211
Segunda-feira da Oitava da Páscoa.
212
Palavra cheia de sentido para os neófitos da noite de Páscoa. Converti ad Dominum (voltar-se para o
Senhor) é o rito baptismal que designa a aceitação da fé.
213
A Eucaristia é o sacramento por excelência da Paixão e Ressurreição do Senhor.
928 SÉCULO V

morte, se lhe buscamos a origem, (descobriremos que) o pai da morte é o pecado. Se


nunca houvesse pecado, não morreria ninguém.
A Lei de Deus... recebeu-a o primeiro homem, sob a condição de que, se a guar-
dasse, viveria, se a descurasse, morreria. Cuidando que não havia de morrer, ele foi a
causa da sua própria morte. Então se deu conta de que falara verdade Aquele que lhe
dera a Lei...
Aquele que, sem concupiscência foi concebido pela Virgem, Aquele que a Virgem
deu à luz – e permaneceu virgem –, Aquele que viveu sem pecado, Aquele que morreu
por causa do pecado, associou-Se a nós no castigo sem Se associar na falta...; o Senhor
Jesus Cristo veio morrer, não veio pecar. Compartilhando connosco sem culpa o
castigo, livrou-nos da culpa e do castigo. Qual é o castigo de que Ele nos livrou? Do
que devíamos sofrer depois desta vida. Logo, foi crucificado para mostrar na cruz a
morte do homem velho em nós, e ressuscitou para mostrar na sua vida a novidade da
nossa vida... A Ressurreição de Cristo foi ao oitavo dia. O sétimo dia da semana
coincide com o sábado. Ora o Senhor esteve deitado no sepulcro no sábado, sétimo dia
da semana, e ressuscitou no oitavo. A sua Ressurreição dá-nos uma vida nova... Vive-
mos nesta esperança.
3911 3. Ouçamos o que diz o Apóstolo: Se ressuscitastes com Cristo, saboreai as coisas
do Céu, onde Cristo está sentado à direita de Deus; buscai as coisas do Céu e não as
da terra214... O Apóstolo falava a gente viva, a gente que não estava ainda morta. Como
é que então era gente já ressuscitada?... Ele é que o diz, não sou eu; mas como o que ele
diz é verdade, por isso também o digo eu. E porque é que o digo também eu? Porque
acreditei e, por isso, falei215.
Se vivemos bem, estamos mortos e ressuscitados. Quem ainda não morreu nem
ressuscitou, continua a viver mal. Ora quem vive mal não vive; morra para não morrer.
Que quer dizer: morra para não morrer? Que se mude para não se condenar... Àquele
que ainda não está morto, eu digo-lhe que morra; àquele que ainda vive mal, digo-lhe
que se emende. Pois, se vivia mal e já não vive mal, morreu; e se vive bem, ressuscitou.
3912 4. Mas que é que se entende por viver bem? Saboreai as coisas do Céu, não as da
terra216... Vós que éreis? Filhos de homens. E que sois? Filhos de Deus. Filhos dos
homens, até quando andareis de coração pesado? Por que amais a vaidade e buscais
a mentira217. Qual é a mentira que buscais? Já vo-la digo. Quereis ser felizes, bem sei.
Mostrai-me aqui... alguém, carregado de todos os crimes vergonhosos e infames..., que
não queira viver vida feliz? Sei que todos vós quereis vida feliz. Mas que é que faz o
homem feliz?... Buscas o ouro, porque imaginas que o ouro te há-de fazer feliz. Mas o
ouro não te dá a felicidade. Porque buscas a mentira?...
3913 5. Queres ser feliz? Se queres, eu vou-te mostrar como o podes ser... Veio Cristo às
nossas misérias: passou fome, sede, cansaço... foi cravado na cruz, ferido pela lança,
posto no sepulcro, mas ao terceiro dia ressuscitou, uma vez acabado o sofrimento e
vencida a morte. Aí tens onde deves pôr os olhos: na sua Ressurreição...
O que Cristo teve na terra, isso terás tu...; vindo de outra região, que encontrou
Ele nesta senão o que nela abunda? Trabalhos, dores... Comeu contigo o que abunda na
pobre casa da tua miséria. Bebeu cá vinho azedo, bebeu cá fel. Foi o que encontrou na
tua pobre casa. Mas, em compensação, convidou-te para a sua lauta mesa, mesa do
Céu, mesa dos Anjos, onde o pão é Ele... Prometeu-nos a sua vida, mas o que fez é
muito mais incrível, pois como fiança nos deu a nós a sua morte. Como se dissesse:

214
Col 3, 1-3.
215
Sal 115, 1.
216
Gen 3, 19.
217
Sal 4, 3.
AGOSTINHO DE HIPONA 929

Convido-vos para a minha vida... Aí tendes para onde vos convido: para a região dos
Anjos, para a amizade do Pai e do Espírito Santo, para o banquete eterno, para a minha
amizade de irmão, em suma, para Mim em pessoa. Convido-vos para a minha vida.
Não quereis acreditar que vos darei a minha vida? Tomai por fiança a minha morte.
Enquanto agora vivemos nesta carne corruptível, morramos com Cristo mudando
de vida, vivamos com Cristo no amor da justiça. Não havemos de encontrar a vida feliz
enquanto não formos ter com Aquele que veio ter connosco e enquanto não começarmos a
viver com Aquele que por nós morreu.
SERMÃO 232 218

1. A Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo também hoje se leu, mas de outro 3914
livro do Evangelho, que é segundo São Lucas. No primeiro dia leu-se o Evangelho
segundo São Mateus, ontem segundo São Marcos, hoje segundo São Lucas, conforme
a ordem dos Evangelistas 219. A Paixão do Senhor também foi escrita por todos os
Evangelistas. Estes sete ou oito dias dão tempo para se ler a Ressurreição do Senhor
segundo todos os Evangelistas; mas, como a Paixão se lê num só dia, costuma ler-se
apenas segundo São Mateus.
Quis uma vez que se lesse ano após ano a Paixão segundo todos os Evangelistas.
Assim se fez; mas os assistentes, ouvindo textos a que não estavam habituados,
ficaram desorientados. Ora, quem gosta das divinas Escrituras e não quer ficar sempre
ignorante, sabe tirar partido de tudo o que se lhe ensina e põe diligência em informar-se de
tudo. Mas conforme a medida da fé que o Senhor repartiu a cada um 220, assim é o que
cada um aproveita.
2. Prestemos agora atenção ao que ouvimos ler hoje. Dá-se o caso de que o que 3915
ontem expus à vossa Caridade o ouvimos hoje mais claramente; refiro-me à falta de fé
dos discípulos: ela permite-nos entender a grandeza do benefício que o Senhor nos fez,
ao dar-nos a graça de acreditar no que não vimos. Chamou-os, ensinou-os, viveu com
eles na terra, fez à vista deles tão grandes e tão contínuos milagres, ressuscitou mortos,
e não acabavam de crer que podia ressuscitar o seu próprio corpo.
Foram as mulheres ao sepulcro, não encontraram lá o corpo, ouviram dos Anjos
que Cristo tinha ressuscitado; as mulheres trouxeram a notícia aos homens. E que está
no texto? Que ouvistes? As suas palavras pareceram-lhes um desvario221. Grande
infelicidade da condição humana. Quando Eva contou o que ouvira à serpente, foi logo
acreditada. A uma mulher que mentia, deu-se-lhe crédito para morrermos; às mulheres
que diziam a verdade, não se deu fé para vivermos...; porque é que os discípulos não
acreditaram naquelas mulheres santas?...
O que moveu nosso Senhor Jesus Cristo a querer que a sua Ressurreição fosse
primeiro anunciada pelo sexo feminino foi o seguinte: se o homem caiu por causa do
sexo feminino e pelo sexo feminino foi reparado, convinha que, assim como a Virgem
deu Cristo à luz, uma mulher anunciasse que Ele tinha ressuscitado. Pela mulher a
morte, pela mulher a vida. Mas os discípulos não creram no que as mulheres tinham
dito, julgaram-nas tontas, e, contudo, o que elas diziam era verdade.
3. Eis que outros dois iam seu caminho e falavam um com o outro do que acontecera 3916
em Jerusalém, da malvadez dos Judeus, da morte de Cristo. Caminhavam falando, com
pena d’Ele morto, por não O saberem ressuscitado. Apareceu-lhes, juntou-Se a eles
como terceiro caminhante e entrou com eles em amiga conversa. Estavam os olhos

218
Os discípulos de Emaús. Sermão de terça-feira da Oitava da Páscoa.
219
Havia uma ordem de sucessão das leituras evangélicas durante a Oitava da Páscoa.
220
Rom 12, 3.
221
Lc 24, 11.
930 SÉCULO V

deles tapados, de modo que não O podiam reconhecer. Como importava que a lição
lhes penetrasse mais a alma, o reconhecimento retarda-se. Pergunta-lhes de que iam a
falar para Lhe declararem o que Ele não podia ignorar. Que ouvistes vós? Começaram
por se admirar da pergunta, como se coisa tão manifesta e famosa pudesse alguém
ignorá-la. Serás tu o único forasteiro em Jerusalém a ignorar o que lá aconteceu nestes
dias? Mas Ele disse: Que foi? – Responderam-lhe: O que se refere a Jesus de Nazaré,
profeta poderoso em obras e palavras222...
3917 5. Donde vem para nós a vida? Donde vem para Ele a morte?... A Ele, o Verbo,
donde viria a morte? A nós, pelo contrário, homens que pisamos a terra, mortais,
corruptíveis, pecadores, donde nos viria a vida? Para Ele não havia donde Lhe viesse a
morte; nós não tínhamos donde tivéssemos a vida. Como é que Ele, do nosso, recebeu
a morte? O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Assim recebeu de nós o que havia
de oferecer por nós. Porém a vida, donde viria para nós? E a vida era a luz dos homens.
Ele para nós é vida; nós para Ele morte.
Já lá vão três dias depois destes acontecimentos... e nós esperávamos...
Esperáveis e agora já desesperais? Caístes então das alturas da vossa esperança?...
3918 6. Mas talvez alguns de vós não saibam o que disse do ladrão, porque não ouvis a
Paixão segundo todos os Evangelistas. Pois, o Evangelista de hoje, Lucas, é que narra
o que digo... Recordemos a fé deste ladrão, fé que Cristo, depois da sua Ressurreição,
não encontrou nos seus discípulos.
Pendia Cristo da cruz, e estava também pendurado nela o ladrão. Ele no meio,
eles dos lados. Um insulta-O, outro crê, o do meio julga-os. Ora, aquele que O insultava
disse isto: Se és Filho de Deus, livra-Te a Ti. E o outro, para o ofensor: Tu não temes
a Deus? Se nós padecemos justamente por causa dos crimes que fizemos, este que mal
fez? E, voltando-se para Jesus: Senhor, lembra-Te de mim quando vieres com a tua
realeza. Que fé tão grande! A esta fé, que é que se possa ajuntar, não sei. Vacilaram os
que viram Cristo a ressuscitar dos mortos; acreditou n’Ele aquele que O via a seu lado
pendente do lenho. Quando eles vacilaram, então é que ele acreditou. Que belo fruto
colheu Cristo do lenho seco... Recordemos o fim do ladrão. Acreditava não só que
Cristo ia ressuscitar, mas também que ia reinar.
3919 7. A seguir, irmãos caríssimos, reconhecemos um grande sacramento. Ora ouvi.
Caminhava com eles, é recebido como hóspede, parte o pão, é reconhecido. E nós não
digamos que não conhecemos a Cristo: conhecemo-l’O, se cremos. É pouco: conhecemo-l’O
se cremos; se cremos, temo-l’O. Tinham eles Cristo à sua mesa, nós temo-l’O dentro
da alma. É mais ter Cristo no coração do que em casa. Pois o nosso coração é mais
interior para nós do que a nossa casa. Ora, onde é que o fiel O há-de reconhecer? O fiel já o
sabe; o que é catecúmeno ainda o não sabe223. Mas ninguém lhe fecha a porta, pode entrar224.
3920 8. Ontem disse e repeti à vossa Caridade que se dá a ressurreição de Cristo em nós,
contanto que vivamos bem; se a nossa antiga má vida morrer e a nova adiantar cada dia.
Abundam aqui os penitentes; quando se lhes impõem as mãos, faz-se uma fila
longuíssima. «Orai, penitentes»! E vão orar os penitentes. Examino os penitentes e
acho que muitos vivem mal. Como é que um homem se arrepende do que faz? Se se
arrepende, não torna a fazê-lo. Se, porém, torna, engana o nome, o crime fica. Alguns
houve que pediram para si o lugar da penitência; outros foram postos pela nossa
excomunhão no lugar dos penitentes. Os que pediram o lugar da penitência, querem
continuar a fazer o que faziam; e os que foram pela nossa excomunhão reduzidos ao

222
Lc 24, 18.
223
«Não convém fazer menção disto, por causa dos catecúmenos, mas os fiéis sabem-no» (cf. Sermão 307, 3).
224
Esta imagem tem especial importância na pregação dirigida aos catecúmenos para despertar neles o desejo
da iniciação cristã (cf. Sermão 132, 1; De catechizandis rudibus 5, 8).
AGOSTINHO DE HIPONA 931

lugar de penitentes, não querem sair de lá, como se eles tivessem por si mesmos
escolhido o lugar dos penitentes. O que devia ser lugar de humildade torna-se lugar de
iniquidade.
Falo-vos a vós, que vos chamais penitentes e não o sois, a vós é que me dirijo
agora. Que hei-de dizer-vos? Hei-de louvar-vos? Nisto não vos louvo225; choro e fico
triste226. E que lucro eu com isto, se me tomam por velha impertinente? Mudai de vida,
por favor; mudai de vida. O fim da vida é incerto. Todo o homem faz caminho com a
morte. Adiais a emenda da vida, porque imaginais que haveis de ter longa vida. Espe-
rais longa vida, e não temeis a morte súbita? Mas supondo que será longa, cuidai que
seja boa. Porque busco um só penitente que de verdade o seja, e não o encontro.
Quanto mais não vale que a vida seja longa e boa do que longa e má! Longa
refeição má, ninguém a quer ter nem a sofre; longa vida má, quase todos a querem. Não
há dúvida de que, se a extensão da nossa vida for longa, é necessário também que seja
boa. Ora diz-me. Em todas as tuas acções, pensamentos e desejos, que desejas tu de
mau? Na terra não queres uma seara má; não a queres má, senão boa; queres uma árvore
boa, um cavalo bom, um escravo bom, um amigo bom, um filho bom, uma esposa boa.
E, para que enumero eu estas coisas mais importantes, se até o próprio vestido
não queres tê-lo mau, mas bom? Finalmente até uma sandália não a queres, senão boa.
Ou diz-me lá alguma coisa que tu queiras má e que não queiras boa! Julgo que uma
quinta não a queres má, senão antes boa. Só a tua alma é que queres que seja má...
Porque é que tu te ofendes a ti? Porque é que te prejudicas a ti? Entre todos os teus
bens nenhum queres que seja mau, senão tu?
Cuido que estou a falar segundo o meu costume e alguns de vós talvez continuem
fazendo o que costumam fazer. Eu não disse «com certeza» disse «talvez». Ninguém
me calunie de eu falar mais por temor do que por exortação. Sacudo diante de Deus os
meus vestidos. Temo ser censurado de ter medo. Que quereis? Estou cumprindo o meu
dever, procuro tirar fruto de vós. Das vossas boas obras quero tirar gozo, não dinheiro.
Pois, quem vive bem não me faz rico. Viva, contudo, bem, e eu serei rico; porque as
minhas riquezas não são outra coisa que a vossa esperança em Cristo. O meu gozo, a
minha consolação, a minha respiração no meio dos meus perigos e provações não são
senão uma coisa: a bondade da vossa vida. Muito vos suplico que, se vos esquecerdes
de vós, vos compadeçais de mim.
SERMÃO 233 227

1. Acabais de ouvir a leitura do santo Evangelho da Ressurreição de Cristo, sobre a 3921


qual se apoia a nossa fé. Na Paixão de Cristo acreditaram também os pagãos e os
Judeus; na sua Ressurreição, só os cristãos...
4. Quem acreditar e for baptizado será salvo... Esta salvação têm-na os Anjos; não 3922
a busqueis na terra. É grande, mas não é daqui. Não é produto desta região, essa
salvação não é daqui. Levantai o coração. Porque buscas na terra esta saúde? Veio até
aqui a Saúde em pessoa, e aqui encontrou a nossa morte. Acaso nosso Senhor Jesus
Cristo, quando veio até nós como homem, encontrou esta saúde aqui, na nossa região?
O nosso mercador, ao vir da sua pátria, trouxe para cá um valor de importância. Este
mercador encontrou no nosso país aquilo que nele existe em abundância. O que é que

225
1 Cor 11, 22.
226
Agostinho diz noutro lugar: «... Mais aconselhando do que ameaçando. Assim se deve proceder com a
multidão, reservando a severidade para os pecados individuais. E, se empregarmos a ameaça, seja com dor,
apoiando-nos nas Escrituras, para ameaçar com a vingança que há-de vir, para que a nossa palavra inspire
temor, não da nossa própria autoridade, mas da do próprio Deus» (Epist. 22, 5).
227
Semana da Oitava da Páscoa.
932 SÉCULO V

nele existe em abundância? Nascimento e morte. A terra está cheia destas mercado-rias:
nascimento e morte. Nasceu e morreu. Mas de que modo nasceu? Veio a esta região,
mas não pelo caminho que nos trouxe à vida. Veio do Céu do seu Pai e, contudo, nasceu
como um mortal. Nasceu da Virgem Maria por obra do Espírito Santo. Nós não nasce-
mos assim...
3923 5. Onde está a morte? Se a buscas em Cristo, já não existe; existiu, mas morreu ali.
Oh vida, que és morte da morte! Tende coragem, que também morrerá em nós. O que
aconteceu antes na cabeça, repetir-se-á nos membros; também em nós morrerá a morte.
Mas quando? No fim do mundo, na ressurreição dos mortos, na qual cremos e sobre a
qual não temos qualquer dúvida.
SERMÃO 234 228

3924 1. Durante estes dias lê-se a Ressurreição do Senhor segundo os quatro Evangelistas. É
necessário que se leiam todos, porque cada um não disse tudo, mas o que um narrou o
outro passou-lhe por cima e, de certo modo, uns deixaram espaço aos outros, para
todos serem necessários...
3925 2. Porque nos detemos nisto, irmãos? Aqui se constrói o edifício da nossa fé na
Ressurreição de Jesus Cristo. Já, sem dúvida, o acreditávamos quando ouvimos ler o
Evangelho, já, sem dúvida, o acreditávamos quando entrámos nesta reunião; e, não
obstante, não sei como é, ouvimo-lo com alegria, porque assim o sentimos mais vivo na
memória...
Recordai, caríssimos, como o Senhor Jesus quis que O reconhecessem na fracção
do pão aqueles que tinham os olhos enevoados, o que os impedia de O reconhecer. Os
fiéis sabem o que estou a dizer; conhecem Cristo na fracção do pão. Não é um pão
qualquer que se converte no Corpo de Cristo, mas aquele que recebe a bênção de
Cristo. Foi ali que eles O reconheceram, se encheram de alegria e foram ao encontro dos
outros...
3926 3. Acreditemos em Cristo crucificado, acreditemos sobretudo n’Aquele que res-
suscitou ao terceiro dia. Tal é a fé que nos distingue dos incrédulos, que nos distingue
dos pagãos, e dos Judeus, a fé com que cremos que Cristo ressuscitou dos mortos...
Distinga-se a nossa fé pelos nossos costumes, distinga-se pelas nossas obras, pois
temos em nós o fogo da caridade, que os Demónios não podem ter...
SERMÃO 235 229

3927 1. Ontem, de noite, leu-se a Ressurreição do Salvador segundo o Evangelho de


Mateus. Hoje, como acabais de ouvir da boca do leitor, de novo nos foi lida, mas
segundo o evangelista Lucas... Uma vez que nos quatro Evangelistas fala um único
Espírito, a autoridade do santo Evangelho é tão grande que é verdadeiro mesmo o que
só um diz. O que acabais de ouvir, que o Senhor, depois de ressuscitado, encontrou de
viagem a dois dos seus discípulos, falando sobre o que tinha acontecido, e lhes pergun-
tou: Que palavras são essas que trocais entre vós, enquanto caminhais 230, só o narra
o evangelista Lucas. Marcos menciona-o brevemente ao dizer que apareceu a dois que
iam de viagem, mas passou por alto, tanto o que eles disseram ao Senhor, como o que
o Senhor lhes respondeu.
3928 2. Que nos oferece esta leitura a nós? Algo verdadeiramente grande, se a compreen-
demos. Apareceu-lhes Jesus. Viam-n’O com os olhos, mas não O reconheciam. O Mestre

228
Terça-feira da Oitava da Páscoa.
229
Segunda-feira da Oitava da Páscoa.
230
Lc 24, 17.
AGOSTINHO DE HIPONA 933

caminhava com eles durante o caminho, e Ele mesmo era o caminho. Aqueles discípu-
los ainda não iam pelo caminho, pois os achou fora dele. Quando estava com eles antes
da Paixão, tinha-lhes predito tudo: que tinha de sofrer a Paixão, que tinha de ser morto
e que havia de ressuscitar ao terceiro dia. Tinha predito tudo, mas a sua morte apagou-
-lhes tudo da memória. Quando O viram cravado no madeiro, ficaram tão transtornados
que se esqueceram do que lhes tinha ensinado; não lhes passou pela mente a Ressurrei-
ção nem se lembraram das suas promessas...
3. Atenção, irmãos: onde quis o Senhor que O reconhecessem? Na fracção do pão. 3929
Não há dúvida: partimos o pão e reconhecemos o Senhor. Pensando em nós, que não O
veríamos na carne, mas que viríamos a comer a sua carne, não quis que O reconhecessem
senão ali. A fracção do pão é causa de consolação para todo o fiel, quem quer que ele
seja: para todo o que leva o nome de cristão, mas de verdade; para todo o que entra na
igreja, mas por um motivo; para todo o que escuta a palavra de Deus, mas com temor
e esperança.
A ausência do Senhor não é ausência. Tem fé, e estará contigo Aquele que não
vês. Quando o Senhor falava com eles, nem sequer tinham fé, pois não acreditavam que
tivesse ressuscitado, nem tinham esperança de que pudesse ressuscitar. Tinham perdido
a fé e a esperança. Eles, que estavam mortos, caminhavam com o Vivo; os mortos
caminhavam com a própria Vida. A Vida caminhava com eles, mas nos seus corações
ainda não residia a Vida...
O Senhor tornou-Se presente a Si mesmo na fracção do pão. Aprendei onde
deveis buscar o Senhor, onde podeis encontrá-l’O e reconhecê-l’O: quando O comeis.
Os fiéis sabem alguma coisa mais, e é graças a isso que compreendem esta leitura
melhor do que os que o não sabem 231...
SERMÃO 237 232

1. Acabámos de ler hoje o que se seguia da Ressurreição do Senhor no Evangelho 3930


segundo Lucas, onde ouvimos que o Senhor apareceu no meio dos discípulos que
estavam a discutir a respeito da sua Ressurreição e não acreditavam. Tão inesperada
foi e tão incrível a aparição, que com os olhos n’Ele não O viam. Viam vivo aquele
corpo que tinham chorado morto, viam de pé no meio deles O que tinham chorado
quando estava crucificado, viam-n’O, pois, mas como não acreditavam que seus olhos
vissem a verdade, cuidavam que se enganavam...
2. Eis o que o Evangelho conta. Estava o Senhor de pé no meio dos seus discípulos, que 3931
ainda não criam que Ele tivesse ressuscitado. Viam-n’O e cuidavam que viam um espírito...
Tu dizes que Cristo era só espírito... Eu digo: Verbo, Espírito, Corpo: Deus e
homem... Tão de verdade Deus, como de verdade homem. Nada de falso na humanidade,
nada de falso na divindade. Deus e homem.
Mas se me perguntas da humanidade d’Ele, outra vez afirmo duas coisas: alma
humana e carne humana. Tu és homem, porque tens alma e corpo; Ele é Cristo, porque
é Deus e homem. Aí tens o que eu digo.
3. Porque é que nos dizem: Coração ao alto, senão para que os pensamentos 3932
terrenos não encontrem diante de si o nosso coração por o termos posto no alto?
4. Ninguém acredite de Cristo senão o que Cristo quis se acreditasse d’Ele... Acre- 3933
ditemos nisto. O que é Cristo? Filho de Deus, Verbo de Deus. Que é o Verbo de Deus?
O que o verbo do homem não pode exprimir, isso é que é o Verbo de Deus. Queres
saber de mim que é o Verbo de Deus? Se te quisesse dizer o que é o verbo ou a palavra

231
Alusão aos catecúmenos.
232
Quarta-feira da Oitava da Páscoa.
934 SÉCULO V

do homem, não conseguia explicar-to, canso-me, hesito, sucumbo; não posso explicar o
poder da palavra ou verbo humano, quanto mais impossível me é explicar o Verbo de Deus!
Reparai que, antes de vos dizer o que quero dizer, já o meu verbo está no meu
coração; ainda não foi proferido por mim e está em mim; é pronunciado por mim e
chega a ti e não se afasta de mim. Estais atentos para receberdes o meu verbo (palavra);
alimento as vossas mentes, quando falo. Repartiríeis entre vós o alimento, se o que
trouxesse fosse para os vossos estômagos, e não chegaria inteiro a cada um; mas,
quantos mais fôsseis, em tanto maior número de pedaços dividiríeis o que vos desse;
e tanto menos caberia a cada um, quanto maior fosse a multidão dos que recebessem.
Acabo de apresentar agora mesmo alimento aos vossos espíritos. Digo: Aceitai,
tomai, comei. Recebestes, comestes e não repartistes. Aquilo que digo é inteiro para
todos e inteiro para cada um. Eis aí como se não pode suficientemente explicar qual é
a força do verbo ou palavra do homem e perguntais-me: Que é o Verbo de Deus? O
Verbo de Deus sustenta tantos milhares de Anjos, que em sua mente se nutrem, em seu
espírito se enchem. Enche os Anjos, enche o mundo, enche de sua filial presença o seio
da Virgem. Além não está à larga, aqui não está apertado. Que é o Verbo de Deus? Ele
próprio o diga, o próprio Unigénito, o próprio único Filho, diga Ele o que é o Verbo de
Deus. Fala de Si com brevidade, mas é grande o que diz: Eu e o Pai somos um233. Não
contes as palavras ditas na única Palavra ou Verbo.
Tudo quanto possa haver de palavras de homens, não basta para explicar com
suficiente explicação a única Palavra. Pois, o Verbo, que não pode ser explicado, fez-
-Se carne e habitou entre nós, tomou natureza humana, como que na sua plenitude,
alma e corpo de homem... Em Cristo há espírito e inteligência de homem, há alma que
vivifica a carne, há carne verdadeira e sem defeito; n’Ele só não há pecado.
SERMÃO 239 234

3934 1. Neste dia escutámos o terceiro relato evangélico da Ressurreição de Nosso Senhor.
Recordais que vos tenho dito que é costume ler a Ressurreição do Senhor segundo
todos os Evangelistas. Hoje escutámos o relato de Marcos, que acaba de nos ser lido.
Marcos mereceu esta benevolência, apesar de não pertencer ao número dos Doze, tal
como Lucas. Com efeito, os Evangelistas são quatro: Mateus, João, Marcos e Lucas;
dois deles, isto é, Mateus e João, contavam-se entre os Doze. Mas o facto de terem
vindo antes, não foi obstáculo a que fossem seguidos por outros companheiros.
Marcos e Lucas, sem terem sido Apóstolos, eram quase iguais a eles. E, se o
Espírito Santo quis escolher dois que não pertenciam ao grupo dos Doze para que
escrevessem o Evangelho, foi para que ninguém pensasse que a graça de evangelizar
chegara só até aos Apóstolos e que neles se tinha esgotado a fonte da graça...
Efectivamente, a fonte caracteriza-se por jorrar, não por reter as águas. Através
dos Apóstolos, a graça chegou a outros, que, por sua vez, foram enviados a evangelizar.
Porque quem chamou os primeiros também chamou os segundos, e continua a chamar, até
ao fim dos tempos, o corpo do seu Unigénito, isto é, a Igreja difundida por todo o mundo...
3935 2. Que ouvimos dizer a Marcos? Que o Senhor apareceu a dois que iam de viagem...
Abriram-se-lhes os olhos para O poderem reconhecer, não para poderem ver. Assim,
pois, antes da fracção do pão, nosso Senhor Jesus Cristo fala com os homens sem que
O reconheçam, mas reconhecem-n’O na fracção do pão, porque é reconhecido onde se
recebe a vida eterna. É recebido como hóspede Aquele que prepara a casa no Céu... O
Senhor do Céu quis ser hóspede na terra, quis ser peregrino no mundo, Aquele por

233
Jo 10, 30.
234
Terça-feira da Oitava da Páscoa.
AGOSTINHO DE HIPONA 935

quem o mundo foi feito. Dignou-Se ser hóspede, para que recebesses a bênção ao
acolhê-l’O, não porque sentisse necessidade, quando recebia hospitalidade...
SERMÃO 240 235

1. Como vossa Caridade se lembra, durante estes dias lêem-se, de forma solene, os 3936
relatos evangélicos que se referem à Ressurreição do Senhor. Com efeito, nenhum dos
quatro Evangelistas pode silenciar a Paixão e a Ressurreição. Mas, dado que as obras
do Senhor Jesus foram muitas, nem todos as escreveram todas... O evangelista João
indica que foram muitas as obras realizadas pelo Senhor Jesus Cristo que nenhum
deles deixou escritas. Eles fizeram tudo o que convinha que fosse feito então, e escre-
veram tudo o que convinha que fosse lido agora.
É trabalho muito difícil mostrar que nenhum dos quatro Evangelistas contradiz
algum dos outros nas coisas que todos relatam e que nenhum silencia, isto é, no que se
refere à Paixão e à Ressurreição de Cristo. Alguns pensaram que eles se contradizem
entre si, quando na realidade foram eles que contradisseram as suas almas. Por isso,
com a ajuda do Senhor, alguns sentiram-se com forças e entregaram-se ao trabalho de
mostrar que não havia contradição nenhuma. Mas, como já disse, se quisesse mostrar-vos
isso a vós e expô-lo em público, a maior parte dos ouvintes sentir-se-ia abatida pelo
aborrecimento antes de se lhe manifestar a ciência da verdade.
Porém eu conheço a vossa fé, quer dizer, a fé de toda a multidão aqui presente,
e também a daqueles que hoje não estão aqui, mas que são igualmente fiéis; sei que a
sua fé tem plena segurança na verdade dos Evangelistas, pelo que não precisam que lho
exponha agora...
SERMÃO 241 236

1. É próprio da fé cristã crer na ressurreição dos mortos... Essa ressurreição mostrou-a 3937
Cristo, nossa cabeça, primeiro em Si, para dar à nossa fé um exemplo, a fim de que os
membros esperem para si o que primeiro se realizou n’Aquele que é a sua cabeça.
SERMÃO 243 237

1. Começámos a ler hoje o relato da Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo 3938
segundo o Evangelho de João. Certamente sabeis, porque vo-lo dissemos, que durante
estes dias se lê a Ressurreição do Senhor segundo todos os Evangelistas...
8. Estes dias santos que se seguem à Ressurreição do Senhor simbolizam a vida 3939
futura, depois da nossa ressurreição. Tal como os dias da Quaresma anteriores à Páscoa
foram símbolo da vida cheia de trabalhos neste tempo mortal, assim estes dias são
símbolo da vida futura, em que reinaremos com Deus. A vida simbolizada nos quarenta
dias anteriores à Páscoa, vivemo-la agora; a vida simbolizada nos quarenta dias poste-
riores à Ressurreição do Senhor não a possuímos, mas esperamo-la, e, esperando-a,
amamo-la, e esse amor é louvor para Deus, que no-la prometeu, e o louvor não é senão
o Aleluia.
Que significa o Aleluia? Aleluia é uma palavra hebraica que significa Louvai a
Deus. Alelu: louvai; Ia: a Deus. Com o Aleluia entoamos um louvor a Deus e incitamo-nos
mutuamente a louvá-l’O. Proclamamos os louvores de Deus, cantamos o Aleluia com
os corações mais concordantes do que as cordas da cítara. E, depois de o termos
cantado, devido à nossa fragilidade, vamo-nos embora para refazer as forças do corpo.

235
Segunda-feira da Oitava da Páscoa.
236
Terça-feira da Oitava da Páscoa.
237
Quinta-feira da Oitava da Páscoa.
936 SÉCULO V

Refazemos as forças porque se esgotam. Aliás, é tão grande a debilidade do corpo, é


tão grande a debilidade desta vida, que qualquer coisa, por melhor que seja, acaba por
nos cansar. Quanto desejámos estes dias que acabam de passar, e que hão-de voltar
dentro de um ano! Com que gosto voltaremos a vivê-los passado que for o tempo
estabelecido! Se nos dissessem: «Não cesseis de cantar o Aleluia», arranjaríamos uma
desculpa. Porquê? Porque o cansaço não no-lo permitiria, pois até o próprio bem nos
cansa. Mas ali (no Céu) não haverá nenhuma falta nem fastio... Porque perguntas o que
hás-de fazer ali? Felizes os que habitam na vossa casa, Senhor; eles Vos louvarão
eternamente.
SERMÃO 246 238

3940 1. De variados modos, depois da Ressurreição, apareceu o Senhor Jesus aos seus
discípulos. Tiveram todos os Evangelistas matéria para escrever, conforme o Espírito
lhes ministrava as recordações dos acontecimentos que houvessem de referir. Um
contou uma coisa, outro disse outra. Pôde algum omitir alguma coisa verdadeira; o que
não pôde foi dizer nada falso. Tende o conjunto de tudo por obra de um só autor;
realmente o autor é um só, porque o Espírito, que estava em todos, era o mesmo.
Hoje que é que ouvimos? Isto: que os discípulos não criam que Jesus tivesse
ressuscitado. E também não o acreditaram quando de antemão lhes anunciou o dito
acontecimento. Os factos são muito claros; e foram escritos para nós darmos muitas
graças a Deus, porque cremos n’Ele, apesar de O não vermos. Eles, apesar de O verem
com os seus olhos e de O tocarem com as suas mãos, mal se persuadiram daquilo que
nós cremos.
3941 2. Ouvistes que entrou no sepulcro um discípulo d’Ele e viu o lençol no chão e
acreditou, pois ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia
ressuscitar dos mortos239. Eis o que ouvistes e vos foi lido: Viu e acreditou, pois ainda
não tinham entendido a Escritura. Ora, o que se devia ter dito é que viu e não acreditou,
porque ainda não tinha entendido a Escritura. Que quer dizer então: viu o lençol no
chão e acreditou? Acreditou em quê? No que a mulher tinha dito: Levaram o meu
Senhor do sepulcro240...
3942 3. Que quer dizer isto? Costumamos todos os anos falar-vos desta matéria. Mas,
como a leitura se faz cada ano, é necessário que cada ano vos explique porque é que
Cristo Senhor disse à mulher que acabava de reconhecê-l’O... Primeiro tinha-lhe per-
guntado: Quem procuras? Porque choras241? Ela, porém, julgava que Ele era o jardineiro.
E, se bem pensarmos, se nós somos cultura d’Ele, o jardineiro é Cristo. Não é Ele o
jardineiro que semeou o grão de mostarda, semente pequeníssima, mas ardente?..
Parece insignificante o grão de mostarda; nada mais desprezível à vista, mas nada mais
vigoroso. E que significa isto senão o intensíssimo ardor e a energia secreta da fé na Igreja?
Ora, pois, julgou que Ele era o jardineiro e disse-lhe: Senhor, se O levaste tu,
mostra-me onde O puseste e eu O levarei242. Como se dissesse: Para mim é necessário,
para ti não. Oh! mulher que tens por necessário para ti a Cristo morto, reconhece-O
vivo... Procuravam-n’O morto, mostra-Se vivo. Como vivo? Chamava-a pelo seu pró-
prio nome: Maria! E logo ela, ao ouvir o seu nome: Rabboni. O jardineiro podia dizer:
Quem procuras? Porque choras? Maria, não o podia dizer senão Cristo. Chamava-a pelo seu
próprio nome Aquele que a escolhera para o Reino dos Céus. Pronunciou este nome que

238
Quinta-feira da Oitava da Páscoa.
239
Jo 20, 8-9.
240
Jo 20, 2.
241
Jo 20, 15.
242
Jo 20, 15.
AGOSTINHO DE HIPONA 937

Ele já tinha escrito no seu livro: Maria. E ela: Rabboni, que significa mestre. Já reco-
nhecera Aquele de quem recebia a luz para O reconhecer, já via Cristo no que primeiro
julgara jardineiro... E o Senhor: Não Me toques, porque ainda não subi para meu
Pai 243 .
4. Que quer dizer isto: Não me toques, porque ainda não subi para meu Pai? Se não 3943
O podia tocar quando estava de pé na terra, poderia tocá-l’O sentado no Céu... Que
significa este procedimento? Que os homens não O puderam tocar senão na terra e que
as mulheres O haviam de tocar no Céu...
Ora que significa tocar senão crer? Com a fé é que tocamos a Cristo, e é melhor
não O tocar com a mão e tocá-l’O com a fé, do que apalpá-l’O com a mão e com a fé não
O tocar. Não foi grande coisa tocar a Cristo. Tocaram-Lhe os Judeus quando O pren-
deram, tocaram-Lhe quando O ataram, tocaram-Lhe quando O suspenderam, tocaram-
-Lhe e, tocando-Lhe mal, perderam O que tocaram... Portanto, para nós sobe quando O
tivermos entendido. Naquele tempo de então subiu uma só vez, mas agora cada dia
sobe...
5. Oiçamos agora as palavras d’Ele: Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e 3944
vosso Deus 244. Porque não disse: para o nosso Pai e o nosso Deus, mas distinguiu: meu
Pai e vosso Pai e meu Deus e vosso Deus? Meu Pai, porque sou único; vosso Pai, por
graça, não por natureza...
Deus meu e vosso Deus. Por que é que o Pai de Cristo é o seu Deus? É Pai d’Ele
porque O gerou. Mas porque é seu Deus? Porque também O criou. Gerou-O como seu
Verbo unigénito; criou-O da linhagem de David segundo a carne. Portanto, é Pai de
Cristo e Deus de Cristo: Pai de Cristo segundo a divindade; Deus de Cristo segundo a
humanidade...
Qual é, pois, a razão da distinção entre meu Pai e vosso Pai? É verdadeira a
distinção, porque um é o modo como é Pai do Unigénito Filho, outro o modo como é
nosso Pai. D’Ele é Pai por natureza, nosso é Pai por graça...
É claro que há distinção. Pois a todos nós o nosso Deus nos formou através de
uma geração de pecado. Cristo, mesmo enquanto homem, foi feito de outro modo.
Cristo nasceu da Virgem, concebeu-O a mulher, não por impulso do desejo, mas por
acto de fé; Ele não contraiu de Adão o contágio do pecado. Nós nascemos todos através
do pecado; Ele nasceu sem pecado e lavou os pecados. Logo, também aqui há distinção:
meu Deus e vosso Deus. Vós fostes criados de semente humana, de homem e mulher,
viestes do desejo da carne pela propagação do pecado... Por isso é que se levam as
crianças a correr ao baptismo, para se lhes perdoar a dívida que não contraíram na vida,
mas que consigo arrastaram no nascimento...
6. Até aqui a leitura do Evangelho relativa à Ressurreição do Senhor, escrita por 3945
São João evangelista, e basta já de falar, porque se hão-de fazer outras leituras do
mesmo Evangelho de São João a propósito da Ressurreição do Senhor. Na verdade,
ninguém contou com mais abundância de pormenores a Ressurreição do Senhor do que
São João, de maneira que não basta para a ler um só dia, mas tem que se ler em segundo
e em terceiro dia, até se acabar tudo o que São João deixou escrito da Ressurreição do
Senhor.
SERMÃO 247 245

1. Parece que completámos ontem a leitura dos relatos da Ressurreição de nosso 3946
Senhor Jesus Cristo segundo a verdade dos quatro Evangelistas. No primeiro dia leu-se

243
Jo 20, 17.
244
Jo 20, 17.
245
Quinta-feira da Oitava da Páscoa.
938 SÉCULO V

a Ressurreição segundo Mateus; no segundo, segundo Lucas; no terceiro, segundo


Marcos; e no quarto, ou seja ontem, segundo João. Mas como João e Lucas escreveram
muito sobre a Ressurreição e os acontecimentos que a seguiram, isto não se pode ler de
uma só vez. Por isso escutámos ontem uma narração de João, hoje outra, e outras
leituras ficam ainda por fazer...
Que escutámos hoje? Que no próprio dia da Ressurreição, quer dizer, no domingo,
quando já se fizera tarde e os discípulos estavam reunidos num lugar com as portas
fechadas por medo dos Judeus, o Senhor apareceu no meio deles. Segundo o testemunho
do evangelista João, apareceu-lhes duas vezes no mesmo dia, pela manhã e pela tarde.
O relato sobre a aparição da manhã já foi lido; acabamos agora de escutar o que se
refere à aparição da tarde.
Não era preciso que eu vos recordasse estas coisas; vós próprios podíeis dar-vos
conta delas. No entanto, pensando nos menos inteligentes e nos mais negligentes,
pareceu-me oportuno mencioná-lo, para que saibais não só o que ouvistes, mas tam-
bém de que Evangelho se tomou o que foi lido.
3947 2. Vejamos, pois, o que nos propõe a leitura de hoje como tema para o sermão. A
própria leitura nos convida e de certo modo nos orienta a que digamos algo sobre o
modo como o Senhor ressuscitou na solidez do seu corpo, de modo a não ser apenas
visto, mas também tocado pelos seus discípulos, apesar de lhes aparecer com as
portas fechadas...
SERMÃO 249 246

3948 1. Acabamos de ouvir no Evangelho como o Senhor Jesus apareceu, depois da


Ressurreição, aos discípulos que andavam à pesca no mar de Tiberíades... Quando os
chamou pela primeira vez, e eles, à sua palavra, lançaram as redes, apanharam grande
quantidade de peixes, mas não se diz qual o seu número... Que simboliza esta última
pesca de que fala o Evangelho de hoje? O Senhor, de pé, na margem, apareceu aos
discípulos e perguntou-lhes se tinham alguma coisa para comer. Responderam-lhe que
não, pois não tinham pescado nada em toda a noite. Ele disse-lhes: Lançai as redes
para a direita... Assim fizeram, e já não podiam arrastar as redes por causa da
quantidade de peixes...
3949 2. Falemos desta última pesca, posterior à Ressurreição. Não haverá ali nenhum
mau; a segurança será máxima, mas só se fores bom. Sede bons no meio dos maus, e
sereis bons sem companhia de maus. Nesta pesca há algo que pode perturbar-vos: o
estar no meio dos maus. Vós, que me escutais fielmente; vós, que não deitais em saco
roto o que vos digo; vós, para quem as palavras não entram por um ouvido e saem por
outro, mas descem ao coração; vós, que temeis mais viver mal do que morrer mal, dado
que, se viveis bem, não podeis morrer mal; vós, que me escutais não só para crer, mas
também para viver bem, vivei bem; vivei bem mesmo entre os maus; não rompais a rede.
Os que sentiram demasiado prazer em si mesmos e não quiseram suportar os
outros como se fossem maus, romperam as redes e pereceram no mar. Vivei bem no
meio dos maus; não vos arrastem os maus cristãos a viver mal. Não penses no teu
coração: «Só eu sou bom». Se começaste a ser bom, crê que também há outros, uma vez
que tu o pudeste ser...
3950 3. Invoca-se o Espírito sobre os baptizados247, para que Deus lhes dê, segundo o
Profeta, o espírito de sabedoria e de inteligência: já são duas manifestações. O espírito
de conselho e de fortaleza: são já quatro. O espírito de ciência e de piedade: vede que
são seis. O espírito do temor do Senhor: eis aqui a sétima...

246
Sexta-feira da Oitava da Páscoa.
247
Quando se lhes impunham as mãos.
AGOSTINHO DE HIPONA 939

SERMÃO 250 248

1. O Senhor Jesus, escolhendo os débeis do mundo para confundir os fortes e reu- 3951
nindo a sua Igreja de todo o orbe da terra, não começou por generais ou por senadores,
mas por pescadores, porque, se logo ao princípio tivesse escolhido homens de impor-
tância, eles haviam de atribuir a escolha a merecimentos seus, e não à graça de Deus...
Também hoje se aproximam da graça do Senhor249 nobres e não nobres, o sábio e
o ignorante, o rico e o pobre... Se aqueles pescadores não nos tivessem precedido,
quem nos teria apanhado a nós? Hoje em dia não é pequeno orador o que for capaz de
explicar o que escreveu o pescador.
2. Quando, pois, o Senhor Jesus Cristo escolheu pescadores de peixes para os 3952
fazer pescadores de homens, até das pescas deles Se quis servir para nos dar algum
ensino sobre a vocação dos povos. Reparai que as pescas são duas, muito diversas e
com grande diferença uma da outra. A primeira foi quando o Senhor os escolheu de
pescadores para discípulos seus; a segunda, que acabamos de ouvir na leitura do
Sagrado Evangelho, depois da Ressurreição do Senhor Jesus Cristo...
Agora, depois da Ressurreição, mostrou-nos o Senhor Jesus outra pesca, que
não se deve confundir com a primeira. Então disse: Lançai as redes; não disse nem
«para a esquerda» nem «para a direita»; só disse: Lançai as redes. Se dissesse «para a
esquerda» só queria significar os maus; «para a direita» só designaria os bons. Mas,
como não disse nem «para a direita» nem «para a esquerda», significava os bons e os
maus...
Tal é agora a Igreja, cheia de bons e de maus. É grande a multidão que a enche, e
esta multidão faz não raro muito peso e leva-a quase à beira do naufrágio. A multidão
dos que vivem mal perturba os que vivem bem, e de tal modo os desorienta que o que
vive bem pensa que é tolo quando repara nos outros que vivem mal, sobretudo porque,
em relação aos bens deste mundo, há muitos desonestos que são felizes, e há muitos
que são infelizes, apesar de serem honestos...
3. Ponhamos agora a atenção na última pesca, e nela nos animemos e nos consolemos. 3953
Esta pesca fez-se depois da Ressurreição do Senhor, porque significava qual havia de ser a
Igreja depois da Ressurreição. Fala-se aos discípulos quando estão a pescar, fala-lhes o
Senhor, fala-lhes da segunda vez como lhes falou da primeira; mas da primeira disse-lhes
que lançassem a rede, agora diz-lhes para onde devem lançá-la, isto é, para a parte direita
da barca... Lançam e tomam.
Lá, na primeira pesca, não se disse o número, só se disse a multidão; o número
não foi determinado. Realmente agora são incalculáveis, chegam, entram, enchem as
igrejas; os que enchem os teatros enchem também as igrejas; enchem-nas para além do
número; não pertencem ao número que há-de ficar para a vida eterna, se não se mudarem
durante a vida. Porventura todos se mudam? Como? Nem mesmo os bons perseveram
todos...
Donde é que te há-de vir o auxílio? Do Espírito. A letra mata, o Espírito é que
vivifica... Como já vos expliquei outras vezes, já muitos me tomam a dianteira. Mas
não posso deixar de vos expor cada ano este ponto. Muitos já o esqueceram, alguns
nunca o ouviram. Os que já o ouviram e não o esqueceram tenham paciência, para que
os outros ou reavivem a memória ou recebam o ensino. Quando dois são companheiros
no mesmo caminho, e um anda mais lesto e o outro mais lento, um mais depressa e
outro mais devagar, está no poder do mais rápido não deixar o companheiro para trás.
Quem ouve o que já sabia não perde nada, e, sobre não perder nada, deve ainda alegrar-se
da instrução que recebe o que não sabia...

248
Sexta-feira da Oitava da Páscoa.
249
A expressão ad gratiam Domini accedere é equivalente a receber o baptismo.
940 SÉCULO V

SERMÃO 251 250

3954 1. A pesca do nosso Libertador é a nossa libertação. Há duas pescas do Senhor no


santo Evangelho... A primeira pesca é símbolo da Igreja tal qual ela existe agora; pelo
contrário, a pesca feita depois da Ressurreição do Senhor simboliza a Igreja como ela
há-de ser no fim dos tempos... Três coisas se significam na primeira pesca: a mistura
dos bons e dos maus, a compressão das multidões, a separação dos hereges...
SERMÃO 252 251

3955 9. Não é sem motivo, meus irmãos, que a Igreja mantém a tradição antiga de cantar
Aleluia durante estes cinquenta dias. Aleluia e louvor a Deus são a mesma coisa. Com
ele nos é simbolicamente antecipado, em meio de nossas fadigas, o que faremos no
repouso eterno. Com efeito, quando depois deste trabalho chegarmos àquele repouso,
a nossa única ocupação será o louvor de Deus, toda a nossa acção será o Aleluia. Que
quer dizer Aleluia? Louvai a Deus. Quem, senão os Anjos, louva continuamente a
Deus? Não têm fome nem sede, não adoecem nem morrem.
Também nós cantámos Aleluia; já o cantámos esta manhã, e, há pouco, quando eu
cheguei, voltámos a cantá-lo. Com ele chega até nós um certo perfume daquele louvor
divino e daquele repouso, mas o peso da mortalidade ainda é mais forte. O simples
repeti-lo nos cansa, e temos necessidade de refazer as forças; quando dizemos Aleluia
durante muito tempo, o louvor de Deus torna-se pesado para nós, pelo estorvo do
nosso corpo. Se a plenitude há-de consistir no canto ininterrupto do Aleluia, então só
terá lugar depois deste mundo e destas fadigas.
Que fazer, irmãos? Repitamo-lo quantas vezes pudermos, para merecermos cantá-lo
sempre. A nossa comida, a nossa bebida, o nosso repouso e todo o nosso júbilo ali será
o Aleluia, isto é, o louvor de Deus. Quem louva alguma coisa sem cansaço senão aquele
que desfruta sem fastio? Qual não será, pois, o vigor do espírito, a imortalidade e a
solidez do corpo, para que nem o espírito deixe a contemplação do Senhor nem os
membros sucumbam nesse interminável louvor de Deus!
SERMÃO 253 252

3956 1. O Evangelho do apóstolo São João, que se chama Evangelho segundo João253,
terminou hoje com a narração das aparições que o Senhor, depois da Ressurreição, fez
aos discípulos. O Senhor interpelou o apóstolo Pedro, aquele presunçoso renegado,
quando, tornando à vida depois de vencer a morte, Se pôs a falar com ele e lhe dizia:
Simão, filho de João, tu amas-Me254?...
SERMÃO 254 255

3957 5. O tempo da alegria, do descanso, da felicidade, da vida eterna e do reino sem fim
que ainda não chegou, simbolizamo-lo pelo Aleluia. Mas ainda não possuímos esses
louvores, ainda suspiramos pelo Aleluia. Que significa Aleluia? Louvai o Senhor. É por
isso que, nestes dias a seguir à Ressurreição, o louvor a Deus é mais abundante na
Igreja, porque, depois da nossa ressurreição, também será perpétuo o nosso louvor...

250
Sexta-feira da Oitava da Páscoa.
251
Sexta-feira da Oitava da Páscoa.
252
Sábado da Oitava da Páscoa.
253
Testemunho sobre a forma de anunciar o título da leitura evangélica: Evangelho segundo João.
254
Jo 21, 15.
255
Tempo pascal.
AGOSTINHO DE HIPONA 941

8. Louvemos, irmãos caríssimos, louvemos o Senhor que está nos Céus. Louvemos 3958
a Deus. Digamos Aleluia. Façamos destes dias um símbolo do dia sem fim. Façamos do
lugar da mortalidade um símbolo do tempo da imortalidade. Caminhemos depressa para a
morada eterna: Felizes os que moram na vossa casa: podem louvar-Vos continuamente.
Assim o diz a lei, o diz a Escritura, o diz a Verdade. Um dia chegaremos à casa de Deus,
que está nos Céus. Aí louvaremos o Senhor, não cinquenta dias, mas, como está
escrito, pelos séculos dos séculos. Havemos de O ver, de O amar, de O louvar.
Não acabará o que havemos de ver, não morrerá o que havemos de amar, não se calará
o que havemos de louvar. Tudo será eterno, tudo será sem fim. Louvemos, louvemos, não
apenas com a voz; louvemos também com o modo de viver. Louvem os lábios, louve a
vida. Não andem zangadas a língua e a vida, mas animadas por uma caridade infinita.
Voltemo-nos256 para o Senhor Deus, Pai todo-poderoso, com um coração tão
puro quanto o permita a nossa fraqueza, e dêmos-Lhe grandes e sinceras acções de
graças. Com toda a nossa alma, supliquemos à bondade infinita que Se digne escutar
favoravelmente as nossas preces e afastar, pelo seu poder, o nosso Inimigo, tanto das
nossas acções como dos nossos pensamentos.
O Senhor aumente a nossa fé, dirija o nosso espírito, nos dê a graça de pensar
espiritualmente e nos conduza até à felicidade que é Ele mesmo, por Jesus Cristo,
nosso Senhor, que vive e reina como Deus, na unidade do Espírito Santo, por todos os
séculos dos séculos. Amen.
SERMÃO 255 257

1. Como o Senhor quis que os meus olhos vissem vossa Caridade no momento em 3959
que se cantava o Aleluia258, devo dizer-vos umas palavras sobre o próprio Aleluia.
Espero não vos cansar, recordando-vos o que já sabeis, da mesma maneira que diariamente
repetimos o Aleluia e diariamente ele nos deleita. Sabeis que Aleluia se traduz por
Louvai a Deus. Deste modo, cantando o mesmo cântico e com idênticos sentimentos,
animamo-nos uns aos outros a louvar o Senhor. Só O pode louvar de verdade o homem
que nada tem que Lhe desagrade. Enquanto estamos nesta peregrinação, cantamos o
Aleluia como viático que nos alivia; o Aleluia é agora para nós um cântico de viajantes.
Avançamos por um caminho cansativo, em direcção à pátria tranquila, onde, terminadas
todas as nossas ocupações, nada mais nos restará do que o Aleluia...
7. Possuiremos a Deus e só com Ele estaremos contentes; mais ainda, encontraremos 3960
n’Ele tanto deleite que não buscaremos outra coisa, pois gozaremos d’Ele em Si mes-
mo e em nós mesmos reciprocamente. Que somos nós, se não tememos a Deus? Ou que
outra coisa podemos amar em nós senão a Deus, ou porque O possuímos ou para O
possuirmos?...
SERMÃO 255 A (= WILMART 18 + MAI 92) 259

Devemos cantar os louvores que pudermos ao nosso Criador. Quando louvamos 3961
o Senhor, amados irmãos, nós próprios, enquanto estamos voltados para o seu amor,
recebemos algum benefício.
Cantemos Aleluia. Aleluia é o cântico novo. O homem novo canta o cântico
novo. Cantei-o eu e também o cantastes vós, os recém-baptizados, que há pouco
fostes por ele renovados; cantámo-lo convosco nós que fomos redimidos pelo mesmo

256
Este final faz parte de muitos sermões: Conversi ad dominum, etc..
257
Tempo pascal.
258
Este sermão foi pregado fora de Hipona, num lugar onde Agostinho chegara durante a celebração.
259
Domingo da Oitava da Páscoa.
942 SÉCULO V

preço. Vou exortar-vos segundo as exigências da caridade fraterna, não só a vós, mas
também àqueles que me escutam, como irmãos e filhos: irmãos, porque nos gerou a
Igreja mãe; filhos, porque vos gerei pelo Evangelho. Vivei bem, filhos caríssimos, para
que possais receber os benefícios de tão grande sacramento. Emendai a vida, ponde
ordem nos costumes, enchei-vos de virtudes. Habite em cada um de vós a piedade, a
santidade, a castidade, a humildade e a sobriedade, para que, oferecendo tais frutos a
Deus, Ele Se alegre em vós e vós vos alegreis n’Ele.
Alegremo-nos também nós pelo progresso da vossa esperança, vendo em vós os
frutos que esperávamos receber. Amai o Senhor, porque Ele vos ama a vós; visitai esta
mãe que vos gerou. Vede o que ela vos deu: uniu a criatura ao Criador, dos servos fez
filhos de Deus, dos escravos do Demónio irmãos de Cristo. Não sereis ingratos a tão
grandes benefícios se lhe oferecerdes a alegria da vossa presença. Ninguém pode sentir
que Deus o ama se despreza a Igreja mãe.
Esta mãe santa e espiritual prepara-vos cada dia alimentos espirituais, não para
robustecer os vossos corpos, mas as vossas almas. Dá-vos a comer o pão do Céu e a
beber o cálice da salvação. Ela não quer que os seus filhos tenham fome destes alimen-
tos. Não abandoneis esta mãe, para que ela vos sacie da abundância da sua casa, vos
faça beber da torrente das suas delícias, vos recomende a Deus Pai como filhos dignos
e vos conduza, livres e com saúde, à pátria eterna, depois de vos ter alimentado com
amor.
SERMÃO 256 (= MAUR. 256 + WILMART 19) 260

3962 1. Quis o Senhor nosso Deus que me encontrasse aqui presente, a cantar, junta-
mente convosco, o Aleluia, que, traduzido na nossa língua, significa Louvai o Senhor.
Louvemos o Senhor, irmãos, com a vida e com a língua, com o coração e a boca, com a
voz e o modo de viver. Deus quer que Lhe cantemos o Aleluia, de modo que não haja
discórdia em quem O louva. Comecem, pois, por estar de acordo a nossa língua e a
nossa vida, a nossa boca e a nossa consciência. Vão a par, repito, as palavras e os
costumes, para não acontecer que as boas palavras sejam testemunho contra os maus
costumes. Oh feliz Aleluia do Céu, onde o templo de Deus são os Anjos!...
Cantemos, pois, o Aleluia, apesar de ainda inseguros na terra, para podermos
cantá-lo um dia no Céu em plena segurança. Mas porque estamos ainda inseguros? Não
queres que me sinta inseguro quando leio: Porventura não é uma tentação a vida do
homem sobre a terra? Não queres que me sinta inseguro quando me dizem: Vigiai e
orai para não cairdes em tentação? Não queres que me sinta inseguro onde as tentações
são tão frequentes que a própria oração nos obriga a repetir: Perdoai-nos as nossas
ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido? Todos os dias pedimos
perdão e todos os dias cometemos ofensas. Queres que me sinta seguro na terra, onde
todos os dias peço perdão dos pecados e protecção dos perigos?... E, contudo, irmãos,
mesmo no meio destes males, cantemos Aleluia ao bom Deus que nos livra do mal.
3963 3. Também aqui, rodeados de perigos e tentações, cantemos todos Aleluia. Deus é
fiel, diz o Apóstolo, e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Por
isso, cantemos Aleluia cá na terra. O homem é ainda pecador, mas Deus é fiel. Não
permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Mas, no tempo da tentação,
dar-vos-á também o meio de sair dela, ajudando-vos a suportá-la. Entraste em tentação?
Deus fará com que saias dela são e salvo; como o vaso do oleiro, vais sendo modelado
pela pregação e cozido no fogo da tribulação. Mas, quando entras na tentação, confia
que hás-de sair dela, porque Deus é fiel: O Senhor guardará as tuas entradas e as tuas
saídas...

260
Domingo, 5 de Maio de 418.
AGOSTINHO DE HIPONA 943

Oh ditoso Aleluia do Céu, plenamente seguro, livre de toda a adversidade! Ali


não haverá nenhum inimigo nem se perderá nenhum amigo. Ressoam no Céu os louvo-
res de Deus; ressoarão na terra os louvores de Deus. Mas aqui são cantados por
homens inseguros; lá, em plena segurança; aqui, pelos que hão-de morrer; lá, pelos que
já são imortais; aqui, pelos que vivem na esperança; lá, pelos que já possuem a realidade;
aqui, pelos que são ainda peregrinos; lá, pelos que já chegaram à pátria.
Cantemos agora, meus irmãos, não para gozar o repouso, mas para aliviar a fadi-
ga. Como costumam cantar os caminhantes: canta e caminha; cantando, alivia a fadiga,
mas não te dês à preguiça; canta e caminha. Que quer dizer: «Caminha»? Avança, progri-
de no bem. Há alguns, como diz o Apóstolo, que progridem no mal. Tu, se progrides,
caminhas. Mas progride no bem, progride na verdadeira fé, progride na vida santa.
Canta e caminha.
SERMÃO 257 261

1. O que na língua hebraica se diz Alleluia, traduz-se em latim por Laudate Dominum 3964
(Louvai o Senhor). Louvemos, pois, o Senhor nosso Deus, não só com a voz, mas
também de coração, pois quem O louva de coração louva-O com a voz do homem
interior. A voz que fala aos homens é som, a voz que fala a Deus é o afecto...
SERMÃO 258 262

1. O que cantámos a Deus: Este é o dia que o Senhor fez 263 nos dê fundamento para 3965
dizer o que o Senhor tiver por bem inspirar-nos... Que dia fora do vulgar, invisível aos
olhos da carne. Não o dia que tem oriente e ocidente, o dia que nasce e morre, mas
aquele que teve a sorte de nascer para nunca morrer...
Quem é a pedra angular rejeitada pelos construtores senão o Senhor Jesus Cristo,
que os doutores dos Judeus reprovaram? Os doutores Judeus, peritos e sábios da lei,
rejeitaram n’O dizendo: Não é de Deus tal homem, pois não guarda o sábado, quebranta
e destrói o sábado 264. Já dissestes: Não é de Deus um homem que não guarda o
sábado. A pedra rejeitada pelos construtores, essa veio a ser a pedra angular.
Como pedra angular? Porque é que Cristo Se chama pedra angular? Porque todo
o ângulo une duas paredes que vêm de sítios diversos. Os Apóstolos vieram da circun-
cisão, vieram da raça dos Judeus, vieram dela também aquelas multidões que, adiante
e atrás do animal em que Ele ia montado, iam clamando o que se diz neste mesmo
salmo: Bendito O que vem em nome do Senhor265.
De lá vieram tantas Igrejas, das quais diz o apóstolo Paulo: Era desconhecido de
vista às Igrejas da Judeia que estão em Cristo, só ouviam que aquele que antes nos
perseguia, agora evangeliza a fé que em tempos atacava, e, com a ocasião que eu lhes
dava, engrandeciam a Deus266; eram Judeus, mas aderiam a Cristo como os Apóstolos,
que vinham e criam em Cristo e faziam o primeiro muro.
Faltava a outra parede, a Igreja vinda dos Gentios. Encontraram-se ambas; paz
em Cristo, unidade em Cristo, que fez de ambas um só edifício267. Ele é o dia que o
Senhor fez. Mas o dia inteiro, percebeis? Cabeça e corpo: cabeça Cristo, corpo a Igreja.
Este é o dia que o Senhor fez.

261
Domingo da Oitava da Páscoa.
262
Domingo da Oitava da Páscoa.
263
Sal 117, 24.
264
Mt 21, 9.
265
Sal 117, 26.
266
Gal 1, 22-24.
267
Ef 2, 14.
944 SÉCULO V

3966 2. Recordai a primeira criação do mundo. Estavam as trevas sobre o abismo, e o


Espírito de Deus pairava sobre a água. E disse Deus: Faça-se a luz, e foi feita a luz. E
separou Deus a luz das trevas e à luz chamou-lhe dia, e às trevas chamou-lhes
noite268. Ora pensai nas trevas destes269 antes de virem à remissão dos pecados. Havia,
pois, trevas sobre o abismo, antes de terem sido perdoados estes pecados. Mas o
Espírito de Deus pairava sobre as águas. Desceram estes à água, e sobre as águas
pairava o Espírito de Deus, e foram expulsas as trevas dos pecados: estes são o dia que
o Senhor fez. A este dia é que o Apóstolo diz: Fostes algum tempo trevas, agora sois
luz no Senhor270.
Porventura disse: Fostes trevas no Senhor? Fostes trevas em vós, no Senhor sois
luz. E chamou Deus à luz dia, porque pela sua graça é que se faz o que se faz271. Eles,
por si mesmos, puderam ser trevas; fazerem-se luz, se o Senhor o não tivesse feito,
não podiam. Este é que é o dia que o Senhor fez. Não se fez o dia a si; quem o fez foi
o Senhor.
3967 3. Porventura não era Tomé um homem, um dos discípulos, um homem, digamos,
da turba? Diziam-lhe os outros discípulos: Vimos o Senhor. E ele replicava: Antes de
ter tocado, antes de ter metido a mão no seu lado, não acreditarei272. Dão-te a notícia
os Evangelistas, e tu não acreditas neles? Acreditou o mundo, e não acreditou o discípulo.
Deles se disse: O eco da sua voz ressoou por toda a terra, e chegaram até aos confins
da terra as suas palavras273. Saem as palavras deles, chegam aos confins da terra, crê
o mundo todo, todos os discípulos à uma dão a notícia a um só, e ele não crê. É que ele
ainda não era o dia que o Senhor fez. Ainda havia trevas sobre o abismo; nas profundezas
do coração humano é que estavam as trevas. Venha Ele, alvorada deste dia, venha e diga
com paciência, com mansidão, sem ira, pois é médico: Chega-te, disse, chega-te, toca
nisto e crê. Disseste: Se não tocar, se não meter o dedo, não hei-de crer... Anda, chega-te,
toca, mete o dedo. E não sejas incrédulo, mas fiel274. Vem, mete o dedo. Sabia das tuas
feridas, guardei as cicatrizes das minhas.
Mas, ao aproximar a mão, completou a fé. Qual é realmente a plenitude da fé? A
plenitude da fé é não crer que Cristo é só homem, é não crer que Cristo é só Deus, é crer
que Ele é homem e Deus. Esta é que é a plenitude da fé, porque o Verbo Se fez carne e
habitou entre nós275. Ora este discípulo, a quem o seu Salvador apresentou, para lhes
tocar, as cicatrizes dos seus membros, mal nelas tocou, deu um brado: Meu Senhor e
meu Deus. Tocou o homem e reconheceu a Deus, tocou na carne e olhou para o Verbo,
porque o Verbo Se fez carne e habitou entre nós.
O Verbo sofreu que a sua carne fosse suspensa do madeiro, o Verbo sofreu que a
sua carne fosse cravada de pregos, o Verbo sofreu que a sua carne fosse trespassada
por uma lança, o Verbo sofreu que a sua carne fosse posta num sepulcro, o Verbo
ressuscitou a sua carne, ofereceu-a aos olhos dos discípulos para a verem, apresentou-lha
às mãos deles para a tocarem. Tocam-lhe e exclamam: Meu Senhor e meu Deus!
Este é o dia que o Senhor fez.

268
Gen 1, 2-5.
269
Os recém-baptizados, os infantes, que estão ainda para trás das grades, vestidos com suas túnicas brancas.
270
Ef 5, 8.
271
1 Cor 15, 10.
272
Jo 20, 25.
273
Sal 18, 5.
274
A palavra do texto evangélico havia de impressionar os recém-baptizados, que se tinham tornado fideles,
isto é, fiéis.
275
Jo 1, 14.
AGOSTINHO DE HIPONA 945

SERMÃO 259 276

1. O dia de hoje é para nós um símbolo da felicidade eterna277. Este dia passará, mas 3968
não há-de passar da mesma maneira a vida nele simbolizada. Portanto, irmãos, exorto-vos
e suplico-vos em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que perdoou os nossos pecados,
que quis que o seu sangue fosse o preço dos nossos pecados, que Se dignou tornar-nos
irmãos (e por isso sois cristãos e levais o seu nome na fronte e no coração)..., que o
vosso coração esteja orientado para aquela vida que havemos de ter em comum com os
Anjos, onde o descanso será eterno, eterna a alegria, inesgotável a felicidade...
Tal vida só podem conhecê-la os que a experimentam; mas só podem experimentá-la
os que crêem. Se me exigis que vos mostre o que vos prometi, não me é possível.
Contudo, ouvistes como termina o Evangelho de João: Ditosos os que crêem sem
terem visto. Quereis ver, também eu. Acreditemos juntos, e vê-l’O-emos ao mesmo
tempo. Não sejamos duros diante da palavra de Deus...
2. Este oitavo dia simboliza, pois, a vida nova que se seguirá ao fim do mundo, e o 3969
sétimo, o descanso futuro dos santos nesta terra...
3. Mas, entretanto, até chegar àquele descanso, neste tempo de fadigas, enquanto 3970
estamos na noite, enquanto não vemos o que esperamos e caminhamos pelo deserto,
até que cheguemos à Jerusalém celeste, qual terra da promissão, onde corre o leite e o
mel; agora, enquanto continuam sem cessar as tentações, façamos o bem...
4. Todos vós, meus irmãos, que ides regressar a vossas casas sem que, a partir 3971
deste momento, nos tornemos a ver, a não ser talvez nalguma outra solenidade, prati-
cai a misericórdia, uma vez que os pecados são abundantes278. Não há outro descanso
nem outro caminho para chegar a Deus... Havemos de chegar à sua presença; sejam as
nossas obras as que falem ali em nosso favor, e falem de tal modo que vençam as
nossas ofensas...
5. Quero advertir a vossa Caridade sobre outra coisa: Sabei que quem dá pessoalmente 3972
alguma coisa aos pobres realiza uma dupla obra de misericórdia. Não se deve pensar só
na bondade daquele que dá, mas também na humildade daquele que serve...
Quando celebrais os ágapes, reconfortais o coração. Vemos que sois servidores,
que se serve o que é nosso e por meio de nós; e, no entanto, tudo o que servimos nos
é dado por Deus. É coisa importante, irmãos, que deis com as vossas próprias mãos,
pois isso agrada muito a Deus...
6. Passaram já os dias de festa; virão agora os dias dos contratos, dos pagamentos 3973
e dos litígios. Estai atentos quanto à maneira de os viver, meus irmãos. As férias destes
dias devem levar-vos a meditar na mansidão, e não a planear querelas...
Por falta de tempo, não expliquei as dificuldades que ontem propus acerca das
Escrituras. Reconheço que estou em dívida convosco. Mas, como nos próximos dias
são permitidos os pagamentos em dinheiro, segundo o direito forense e público, exigi de
mim isso, segundo o direito cristão. A solenidade da festa fez com que todos viessem
aqui; o amor e a lei vos faça vir, passados estes dias, para me exigirdes o que vos
prometi...

276
Domingo da Oitava da Páscoa.
277
Hodiernus dies magno sacramento perpetuae felicitatis est nobis.
278
Misericordiam, fratres mei, omnes qui ituri estis ad domos vestras, et ex hoc vix nos videbimus, nisi per
aliquam solemnitatem, misericordiam operamini.
946 SÉCULO V

SERMÃO 260 279

3974 Para não me demorar, pois temos ainda muito que fazer, o meu sermão aos
regenerados no baptismo que hoje se vão misturar com o povo280 será breve, mas rico
de conteúdo. Vós que fostes baptizados, e completais hoje o sacramento da vossa
oitava, acolhei estas breves palavras e compreendei que a circuncisão da carne, que era
uma figura, se mudou na circuncisão do coração... Cristo Senhor ressuscitou no oitavo
dia do Senhor, depois do sétimo dia ou sábado.
Chamais-vos infantes, porque voltastes a nascer, entrastes na vida nova e renas-
cestes para a vida eterna, se não sufocardes com o vosso mau viver aquilo que em vós
renasceu. Ides ser restituídos ao povo e ides ser misturados à multidão dos fiéis. Estai
atentos, para não imitardes os maus, ou melhor, os falsos fiéis. São fiéis porque assim
o dizem, mas infiéis por viverem mal. Vede que vos falo na presença de Deus e dos
seus Anjos...
Os que não têm esposa é lícito adquiri-la, mas só de entre aquelas cujos maridos
já não vivem. As mulheres que não têm marido é-lhes permitido casar, mas com ho-
mens cujas mulheres já não vivam. Os que têm mulher não façam o mal, buscando
outras... O marido deve ser fiel à mulher, e a mulher ao marido, e ambos a Deus. Os que
prometeram continência cumpram o prometido, pois não se vos exigiria, se não a
tivésseis prometido. O que antes era lícito para vós, agora já o não é; não se condena
o matrimónio, mas apenas a quem volta a olhar para trás...
SERMÃO 260 A (= DENIS 8) 281

3975 1. O meu sermão dirige-se a vós, crianças recém-nascidas, pequenos em Cristo,


rebentos novos da Igreja, graça do Pai, fecundidade da mãe, gérmen piedoso, enxame
novo, flor da nossa honra e fruto da nossa fadiga, minha alegria e minha coroa; o meu
sermão dirige-se a todos os que estais firmes no Senhor...
3976 2. Há alguns que estão revestidos de Cristo só por terem recebido o sacramento,
mas que estão nus de Cristo no que se refere à fé e aos costumes. Também são muitos
os hereges que têm o mesmo sacramento do baptismo, mas não o seu fruto salvador
nem o vínculo da paz... No que se refere só ao sacramento, não importa que um receba
o sacramento de Cristo se não tem a unidade de Cristo, pois também quem foi bapti-
zado na Igreja, e depois se afastou dela, não tem a santidade de vida, embora tenha o
selo do sacramento...
3977 3. Por isso não nos digam: «Se já temos o baptismo, que vais dar-nos»? Não sabem
o que dizem e nem sequer querem ler o que afirma a Sagrada Escritura, isto é, que
dentro da própria Igreja, na comunidade dos membros de Cristo, muitos foram os
baptizados na Samaria que não receberam o Espírito Santo e que permaneceram só
com o baptismo, até chegarem os Apóstolos idos de Jerusalém, e que, pelo contrário,
Cornélio e os que estavam com ele mereceram receber o Espírito Santo antes de rece-
berem o sacramento do baptismo. Desta maneira Deus torna claro que uma coisa é o
selo da salvação e outra a própria salvação, que uma coisa é a forma exterior da pieda-
de e outra a força da piedade...

279
Domingo da Oitava da Páscoa.
280
Passados os oito dias da Páscoa, os infantes, que se tinham mantido separados dos outros fiéis na igreja,
ocupando um lugar à parte, e destinguindo-se deles pelas suas vestes brancas, misturavam-se com todos.
É este o momento que Agostinho aproveita para lhes falar sobre o modo de viver e de lhes dizer a quem hão-
de imitar.
281
Os sacramentos.
AGOSTINHO DE HIPONA 947

SERMÃO 260 B (= MAI 89) 282

1. Um sermão, no qual se manda e recomenda a vida santa, para alcançar e receber 3978
a vida eterna, dirige-se certamente a todos; contudo, é principalmente a vós que nos
dirigimos, novos rebentos de santidade, regenerados na água e no Espírito, plantados
e regados pelo nosso ministério, no campo de Deus, que dá o crescimento... Pensai que
atravessastes o mar Vermelho, isto é, o baptismo, assinalado com a cruz ensanguentada
de Cristo.
Considerai os pecados passados como os inimigos que vos perseguiam pelas
costas, pois assim como os Egípcios pereceram enquanto o povo de Deus o atravessava,
do mesmo modo os vossos pecados foram destruídos, ao serdes baptizados. Por isso,
procurai agora o Reino dos Céus, ao qual fostes chamados, como se fosse a Terra
prometida, e, enquanto caminhais nesta vida, como se fosse o deserto, resisti vigilantes
às tentações. Ao participar do altar, recebeis o vosso maná, e do rochedo brota o que
bebeis...
SERMÃO 260 C (= MAI 94) 283

1. Com a ajuda de Deus, queremos dizer àqueles de cujo baptismo passa hoje o 3979
oitavo dia, que o acolham com tanto maior júbilo, quanto maior é a alegria por se
unirem a vós em nova fraternidade; e, ao mesmo tempo, para que também os catecúmenos,
a quem a Igreja mãe já concebeu mediante algum rito, pressionem as suas entranhas
com vontade de ver a luz e se apressem a desenvolver-se e a nascer.
2. Esta é a razão principal de todos os regenerados pelo baptismo de Cristo cele- 3980
brarem, com grande devoção, a solenidade desta Oitava...
3. Na verdade, no número oito prefigura-se o que pertence ao século futuro, onde 3981
o volver dos tempos nada acrescenta nem tira, pois lá perdura, sem mudança, a felici-
dade sem fim...
5. Nesta Oitava, que encerra um certo simbolismo, identificam-se o oitavo dia e o 3982
primeiro. De facto, ao domingo também se lhe chama primeiro do sábado284. Mas o
primeiro desaparece quando chega o segundo. Pelo contrário, aquele dia, simbolizado,
ao mesmo tempo, neste oitavo e primeiro, é a primeira eternidade, cujo abandono, por
causa do pecado original dos primeiros pais, nos conduziu a esta mortalidade, e tam-
bém é a última eternidade, a oitava, que recuperaremos, quando a morte, o último
inimigo, tiver sido vencida, depois da ressurreição...
6. A eternidade, prefigurada pela nossa celebração da Oitava, não pode aumentar 3983
nem diminuir, lá é sempre hoje. É um dia que não começa com o fim de ontem e que não
acaba com o princípio de amanhã, é sempre hoje...
7. As vestes brancas, através das quais se grava na vossa memória, como se fosse 3984
uma palavra visível, o gérmen de luz presente na vossa vida nova, mudai-as, sim, mas
sem mudar o que elas simbolizam: o resplendor da luz da fé e da verdade. Não se
manchem com a sujidade dos maus costumes, para que naquele dia não vos encontreis
nus e possais passar sem dificuldades do resplendor da fé ao resplendor da realidade.
Quando, ao sair destas grades 285, que punham à parte a vossa infância espiritual, vos

282
Domingo da Oitava da Páscoa.
283
Domingo da Oitava da Páscoa.
284
Nam ipse dicitur prima sabbati dominicus dies.
285
Agostinho alude ao lugar reservado na igreja, durante a semana da oitava pascal, para os infantes, ou
recém-baptizados. Esse lugar dos neófitos era separado do lugar dos outros fiéis por umas grades. A partir
do Domingo da Oitava da Páscoa, os neófitos deixavam de estar nesse lugar próprio e passavam a estar
misturados no meio dos outros fiéis.
948 SÉCULO V

misturardes com o povo, o que vai acontecer solenemente neste dia, uni-vos aos bons
e lembrai-vos de que as más companhias corrompem os bons costumes; sede sóbrios,
sede justos, e não continueis a pecar286...
SERMÃO 260 D (= GUELF. 18) 287

3985 1. A vossa Caridade sabe que, no domingo passado, isto é, no domingo de há oito
dias, cantámos pela primeira vez ao Senhor o que hoje repetimos: Este é o dia que o
Senhor fez. Haverá algum dia que o Senhor não tenha feito? Pela palavra «dia» o
Espírito de Deus desejava recomendar-nos uma obra particularíssima do Senhor. Entre
todas as obras do Senhor haverá alguma mais perfeita do que um homem fiel288?
Como estais lembrados, também naquele dia, ao começar a criação, disse Deus:
Faça-se a luz. E a luz foi feita. E Deus separou a luz das trevas. À luz chamou dia, e às
trevas noite. Se, pois, à luz chamou dia, não há dúvida de que aqueles a quem fala o
Apóstolo: Outrora fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor, são o Dia; todos os
santos, todos os fiéis e, por conseguinte, todos os justos, pois o justo vive da fé, todos
juntos na mais concorde união são o Dia, e a união de todos eles é o único Dia...
3986 2. Dirijo-me, pois, a vós, Dia único, crianças que nascestes de Adão no pecado e
renascestes em Cristo para a santidade. Vede que sois Dia, vede que foi o Senhor quem
vos fez. Ele afugentou dos vossos corações as trevas do pecado e renovou a vossa
vida. Hoje ides misturar-vos com o resto do povo: escolhei a quem imitar...
3. Agora, caríssimos, dirijo-me a vós, os fiéis baptizados há mais tempo, os bapti-
zados no ano passado, os baptizados anos atrás. Também a vós dirijo a minha palavra:
Ide pelo caminho que não vos conduza à perdição a uns e a outros, se eles quiserem
seguir-vos...
SERMÃO 260 E (= GUELF. 19) 289

3987 1. Quando os bem-aventurados Apóstolos começaram a fazer prodígios e curas em


nome de Cristo, os Judeus, cheios de inveja, proibiram-nos de falar em nome de quem
os escolhera e os tornara capazes de fazer tais coisas. Mas eles responderam: Impos-
sível não falar...
3988 2. Declarai também vós: Impossível que não falemos do que ouvimos e que não
preguemos o Senhor Jesus Cristo. Quem o prega onde pode também é mártir. Ora
sucede às vezes que não tem um homem que sofrer perseguição, mas teme a confusão.
Acontece-lhe, por exemplo, ser convidado por pagãos e envergonha-se de se dizer
cristão. Se tem medo diante de um conviva, como é que resistirá a um perseguidor?
Sim, pregai a Cristo onde puderdes, a quem puderdes, como puderdes. O que se
espera de vós não é eloquência, é fé. Fale em vós a fé, e Cristo falará, pois, se tendes
fé, Cristo habita em vós. Ouvistes o Salmo: Acreditei e por isso falei. Ora, é impossível
crer e ficar calado. Quem recebeu e não propaga é ingrato... porque nele se abre um
manancial que corre e não seca, nascerá nele uma fonte que jorra para a vida
eterna. Pregai, pois, com toda a confiança. Não é possível que mintais, porque a vossa
boca exprime o que bebestes na fonte da verdade... Baste à vossa Caridade o que
dissemos, porque ainda há muito que fazer.

286
1 Cor 15, 33-34.
287
Domingo da Oitava da Páscoa.
288
Fiéis são os baptizados.
289
Domingo da Oitava da Páscoa.
AGOSTINHO DE HIPONA 949

SERMÃO 261 290

1. A Ressurreição do Senhor é a nossa esperança; a Ascensão do Senhor, a nossa 3989


glorificação. Celebramos hoje a solenidade da Ascensão. Por isso, se celebramos a
Ascensão do Senhor como é devido, fielmente, devotamente, santa e piedosamente,
subamos com Ele, tenhamos o nosso coração ao alto... Devemos ter o coração ao alto,
mas no Senhor...
SERMÃO 262 291

2. Celebramos hoje o dia da Ascensão do Senhor. Acontece que esta igreja celebra 3990
também outra festividade local. Hoje é a deposição de São Leôncio, o fundador desta
basílica. Mas permita a estrela ser eclipsada pelo sol. Assim, pois, falemos do Senhor,
como tínhamos começado. O bom servo alegra-se, quando o Senhor é louvado.
3. No dia de hoje, isto é, quarenta dias depois da sua Ressurreição, o Senhor subiu 3991
ao Céu. Não O vimos, mas acreditamo-l’O. Os que O viram anunciaram-n’O e enche-
ram toda a terra. Sabeis quem O viu e quem no-l’O indicou... Chegaram até nós e desperta-
ram-nos do sono. Por isso o dia de hoje é celebrado em toda a terra...
SERMÃO 263 (= GUELF. 21) 292

1. A glorificação do Senhor chegou ao seu termo com a sua Ressurreição e Ascen- 3992
são. A sua Ressurreição celebrámo-la no domingo de Páscoa; a sua Ascensão celebramo-
-la hoje. Os dois dias são de festa para nós, pois ressuscitou, para nos deixar uma prova
da sua Ressurreição, e subiu, para nos proteger lá do alto. Temos, pois, Jesus Cristo
como nosso Senhor e Salvador, que primeiro pendeu do madeiro, entregando o preço
por nós; sentado no Céu, reúne o que comprou. Quando nos tiver reunido a todos, o
que acontece no tempo, virá no fim dos tempos...
SERMÃO 263 A (= MAI 98) 293

1. Nosso Senhor Jesus Cristo subiu hoje ao Céu; suba com Ele o nosso coração... 3993
Tal como Ele subiu sem se afastar de nós, assim também nós estamos já ali com Ele,
apesar de não se ter realizado ainda no nosso corpo o que nos foi prometido. Já foi
exaltado acima dos Céus, e, apesar disso, sofre na terra quantas fadigas padecemos em
nós enquanto membros seus...
SERMÃO 264 294

1. Sei que, sobretudo nestes dias, a igreja costuma encher-se de pessoas que pen- 3994
sam mais em sair do que em vir, e que me acusam de pesado quando demoro um pouco
mais. Esses mesmos, se os banquetes a que se apressam a chegar cedo duram até à
noite, nem se cansam nem se recusam a ficar e, quando saem não se envergonham. No
entanto, para não prejudicar aqueles que têm fome, ainda que o faça com brevidade,
não passarei por alto o mistério encerrado no facto de que Jesus Cristo nosso Senhor
subiu ao Céu com o mesmo corpo em que ressuscitou...

290
Ascensão do Senhor.
291
Ascensão do Senhor.
292
Ascensão do Senhor.
293
Ascensão do Senhor.
294
Ascensão do Senhor.
950 SÉCULO V

SERMÃO 265 295

3995 1. Na solenidade deste dia vamos recordar (o seu significado) aos que sabem e
instruir os que não sabem. Hoje celebramos solenemente a Ascensão do Senhor ao Céu.
O Senhor, nosso Salvador, depois de Se despojar do corpo e de o ter retomado ao
ressuscitar de entre os mortos, manifestou-Se vivo aos seus discípulos... Como era
pouco para a fragilidade humana... que tão grande milagre se lhes mostrasse num só
dia..., viveu com eles na terra durante quarenta dias, entrando e saindo, comendo e
bebendo, não por sentir necessidade, mas para mostrar a verdade do seu corpo. Exac-
tamente no quadragésimo dia, que celebramos hoje, à vista deles subiu ao Céu e eles
seguiram-n’O com os olhos.
3996 2. Cheios de admiração, viram-n’O subir, alegraram-se de Ele ter ido para o alto –
que a cabeça vá à frente é esperança para os membros – e depois ouviram também a voz
dos Anjos... Virá aos homens, virá como homem, mas como Deus homem. Virá como
verdadeiro homem e como verdadeiro Deus, para fazer dos homens deuses... Não há
dúvida de que subiu, pois viram-n’O os que O anunciaram. Alguns que não viram
acreditaram; outros que não acreditaram riram-se... Para que havemos de discutir sobre
a Ascensão de Deus ao Céu? Admiremo-nos antes de Deus ter descido aos infernos.
Admiremo-nos da morte de Cristo, mas a sua Ressurreição, ao contrário, seja objecto
de louvor mais do que de admiração. O nosso pecado é a nossa perdição, e o sangue de
Cristo é o nosso preço. A Ressurreição de Cristo é a nossa esperança, a sua segunda
vinda, a realidade que esperamos... Desejas que Ele venha? Oxalá te encontre preparado...
3997 12. Vede, irmãos, o que deveis amar acima de tudo e aquilo a que deveis aderir
firmemente. O Senhor, glorificado na sua Ressurreição, recomenda-nos a Igreja; glorifica-
do na sua Ascensão, recomenda-nos outra vez a Igreja; ao enviar do Céu o Espírito
Santo, recomenda-nos de novo a Igreja... Porquê esta recomendação da Igreja?... Agar-
rados a isto, apoiados, fortalecidos, cravados nesta fé mediante um amor inquebrantá-
vel, louvemos o Senhor como crianças e cantemos o Aleluia... desde o nascer ao pôr-do-sol...
SERMÃO 265 A (= LIVERANI 8) 296

3998 1. Brilhou hoje o dia santo e solene da Ascensão de nosso Senhor Jesus Cristo:
exultemos e alegremo-nos n’Ele. Cristo desceu, os infernos abriram-se; Cristo subiu,
iluminaram-se os Céus; Cristo está no madeiro, insultem-n’O os inimigos furiosos;
Cristo está no sepulcro, mintam os guardas; Cristo está no inferno, sejam visitados os
que dormem; Cristo está no Céu, creiam todos os povos. Ele vai ser o tema do nosso
sermão, pois é Ele que nos dá a salvação. Não vos falaremos de nenhum outro sinal,
senão daquele de que Ele mesmo nos falava a todos no Evangelho...
SERMÃO 265 B (BIBL. CASIN. II 76-77) 297

3999 1. Depois de ressuscitar de entre os mortos, nosso Senhor Jesus Cristo, querendo
mostrar com um testemunho seguro e digno de toda a fé que tinha ressuscitado no
mesmo corpo em que pendera da cruz, viveu quarenta dias com os seus discípulos,
entrando e saindo, comendo e bebendo...
SERMÃO 265 C (= GUELF. 20) 298

4000 1. Celebramos hoje a Ascensão do Senhor ao Céu, na carne em que ressuscitou. A


solenidade anual não repete o acontecimento, mas renova a sua memória. Por agora,
295
Ascensão do Senhor.
296
Ascensão do Senhor.
297
Ascensão do Senhor.
298
Ascensão do Senhor.
AGOSTINHO DE HIPONA 951

subamos na sua companhia com o coração, seguros de que um dia O seguiremos com o
corpo. Não é em vão que acabamos de ouvir agora mesmo: Coração ao alto; não é
sem motivo que o Apóstolo nos exorta dizendo: Se ressuscitastes com Cristo, buscai
as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita do Pai. Afeiçoai-vos às coisas
do alto, não às da terra. Deixai a terra; não é possível ao corpo, mas fazei voar a
alma... Trabalhemos santamente aqui, a fim de permanecer lá para sempre. A terra não
é lugar onde o coração possa conservar a sua integridade...
SERMÃO 265 F (= LAMBOT 25) 299

1. Como sabeis, caríssimos, celebramos hoje a solenidade da Ascensão do Senhor. 4001


Como ouvistes, subiu para o seu Pai e nosso Pai, para o seu Deus e nosso Deus. Como
merecemos nós a fraternidade com Cristo? De modo nenhum teríamos esperado ser
seus irmãos, se Ele não tivesse tomado a nossa debilidade. Portanto, somos seus
irmãos, porque Ele Se fez homem. Quem era Senhor dignou-Se ser irmão; Senhor desde
sempre, irmão a partir de certo momento; Senhor enquanto Deus, irmão enquanto homem...
4. Celebremos, pois, este santo quadragésimo dia; o mundo inteiro o celebra connosco. 4002
Também a Igreja, difundida por todo o mundo, celebra connosco o quinquagésimo dia,
pois a celebração do vigésimo e do trigésimo é um costume africano, não um mistério eclesial.
SERMÃO 266 300

2. Certamente celebramos agora a solenidade da vinda do Espírito Santo. No dia de 4003


Pentecostes, que já começou, estavam reunidos num mesmo lugar cento e vinte pesso-
as, entre as quais os Apóstolos, a Mãe do Senhor e outros, de ambos os sexos, em
oração, à espera da promessa de Cristo, ou seja, da vinda do Espírito Santo. Não era vã
a sua esperança e expectativa, uma vez que não era enganadora a promessa de quem se
tinha comprometido. Chegou Aquele que era esperado, e encontrou limpos os vasos
que o iam acolher. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam
dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo
e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se expri-
missem 301...
3. Logo começou a transmitir-se o Espírito Santo pelo ministério dos Apóstolos. 4004
Eles impunham as mãos, e o Espírito descia. Mas isto não era dos homens; não atribua
o ministro a si, mais do que lhe corresponde enquanto ministro. Um é o que dá e outro
o que serve302...
SERMÃO 267 303

1. A solenidade304 deste dia traz-nos à memória a grandeza do Senhor Deus e da sua 4005
graça, que foi derramada sobre nós. A solenidade celebra-se precisamente para que não
se esqueça a recordação do que aconteceu uma só vez. Solemnitas vem de solet in
anno... Tal como perenne significa per annum305, assim solemne significa solet in
annum 306. Hoje celebramos a vinda do Espírito Santo. Com efeito, o Senhor enviou do
Céu o Espírito Santo que prometera na terra... Era o que o que esperavam os discípulos,

299
Ascensão do Senhor.
300
Vigília de Pentecostes.
301
Act 2, 3.
302
Alius est donator, alius ministrator.
303
Domingo de Pentecostes.
304
A sollemnitas é uma festa aniversária. O sentido litúrgico actual é festa solene.
305
Ao longo do ano.
306
O que costuma celebrar-se uma vez no ano.
952 SÉCULO V

cento e vinte pessoas... quer dizer dez vezes os Apóstolos. Escolheu doze e enviou o
Espírito sobre cento e vinte. À espera desta promessa, estavam reunidos numa casa, a
orar, pois desejavam já pela fé o mesmo que pediam com a oração e o desejo espiritual.
Eram odres novos à espera do vinho novo do Céu. E chegou.
4006 2. Os que estavam presentes assustaram-se: uns admiraram-se, outros riram-se...
Eram odres velhos cheios de vinho novo... O homem carnal não compreende as coisas
do espírito. A carne é velhice, a graça é novidade. Quanto mais o homem se renova para
melhor, mais compreende, porque prova o verdadeiro...
4007 3. Acaso, irmãos, não se dá agora o Espírito Santo? Quem assim pensa não é digno
de O receber. Também agora se dá. Porque não fala então ninguém nas línguas de todos
os povos, como falavam os que então estavam cheios do Espírito Santo? Porquê?
Porque se cumpriu aquilo que aquele facto significava... A Igreja, reunida então numa
casa, recebeu o Espírito Santo. Era pequena em homens, mas estava presente nas
línguas do mundo inteiro... Agora realiza-se o que então era uma promessa...
4008 4. Portanto, se quereis receber a vida do Espírito Santo, conservai a caridade, amai
a verdade e desejai a unidade, para chegardes à eternidade. Amen.
SERMÃO 268 307

4009 1. Foi por causa da vinda do Espírito Santo que este dia, o quinquagésimo depois
da Ressurreição do Senhor, que se estende por sete semanas, se tornou solene para
nós. Se contardes as sete semanas, achareis só quarenta e nove, mas junta-se um, para
completar a unidade. Em que consistiu a vinda do Espírito Santo? Que fez? Como
mostrou a sua presença? Como a manifestou? Cada um daqueles sobre os quais veio o
Espírito Santo falava uma das línguas, uns uma e outros outras, como que repartindo
entre eles as línguas de todos os povos? A realidade foi outra: cada homem, um só
homem, falava as línguas de todos os povos. Um só homem falava as línguas de todos
os povos; a unidade da Igreja nas línguas de todos os povos. Também aqui nos é
confiada a unidade da Igreja católica.
4010 2. Por isso, quem tem o Espírito Santo está dentro da Igreja, que fala as línguas de
todos os povos. Mas todo aquele que se encontre fora dela, não tem o Espírito Santo...
Separado do corpo, cada membro conserva a sua forma, mas não tem vida. O mesmo
sucede com o homem separado da Igreja. Nele buscas o sacramento e encontra-lo;
buscas o baptismo e encontra-lo; buscas o Símbolo e encontra-lo. É o exterior; mas, se
o Espírito não te fortalece interiormente, em vão te glorias exteriormente do rito. 3.
Caríssimos, Deus recomenda-nos muito a unidade...
SERMÃO 269 308

4011 1. Celebramos hoje a festa aniversária da vinda do Espírito Santo. A esta reunião
solene309 é devida uma leitura solene e um sermão solene. As duas primeiras coisas já
são realidade, pois vos reunistes em grande número e ouvistes as leituras que se leram.
Venhamos à terceira; não falte o serviço da nossa língua Àquele que concedeu a uns
homens ignorantes o falar em todas as línguas...
SERMÃO 270 310

4012 1. Celebramos hoje a solenidade santíssima do dia sagrado em que veio o próprio
Espírito Santo, e tão festiva e grata solenidade convida-nos a dizer-vos algo sobre o

307
Domingo de Pentecostes.
308
Domingo de Pentecostes.
309
Huic solemnis congregatio.
310
Domingo de Pentecostes.
AGOSTINHO DE HIPONA 953

próprio dom de Deus, sobre a graça de Deus e a abundância da sua misericórdia para
connosco, isto é, sobre o próprio Espírito Santo. Falo a condiscípulos na escola do Se-
nhor. Temos um único mestre, no qual todos somos um só... Dado que temos de ser
instruídos nos Escritos deste mestre, que tem no Céu a sua cátedra, e sob a sua
autoridade, prestai atenção ao pouco que vou dizer, se mo conceder Aquele que me
manda falar. Os que já o sabem, recordem-no; os que o ignoram, aprendam-no... Na
Sagrada Escritura, as coisas não estão ocultas para se negar o acesso a elas, mas antes
para o abrir a quem bata à porta... Com frequência, o espírito dos interessados nestas
coisas pergunta porque é que o Espírito Santo prometido foi enviado cinquenta dias
depois da Paixão e Ressurreição do Senhor...
7. Como o interesse de vossa Caridade é um estímulo para a minha debilidade 4013
diante do Senhor Nosso Deus, escutai algo mais...
SERMÃO 271 311

Brilha para nós, irmãos, o dia grato em que a Igreja santa aparece, cheia de 4014
esplendor, diante dos olhos dos fiéis, e de fervor nos corações. Celebramos, efectiva-
mente, o dia em que o Senhor Jesus Cristo, depois de ressuscitado e glorificado pela
sua Ascensão, enviou o Espírito Santo...
Deste dom do Espírito Santo estão totalmente afastados os que odeiam a graça
da paz e os que não perseveram na sociedade da unidade312. Apesar de também eles se
reunirem hoje com toda a solenidade, apesar de escutarem as mesmas leituras que
narram a promessa e o envio do Espírito Santo, escutam-nas para sua própria conde-
nação, não para receber o prémio. De que lhes serve acolher com os ouvidos o que
rejeitam com o coração, e celebrar este dia cuja luz odeiam?
Vós, porém, meus irmãos, membros do Corpo de Cristo, rebentos da unidade,
filhos da paz, celebrai este dia com alegria e tranquilidade. Em vós se realiza o que se
anunciava naqueles dias, quando veio o Espírito Santo. Como os que então recebiam o
Espírito Santo... falavam todas as línguas, assim agora a mesma unidade fala as línguas
de todos os povos; vós estais enraizados nela, pois tendes o Espírito Santo e não
estais separados, por nenhum cisma, da Igreja de Cristo que fala todas as línguas.
SERMÃO 272 313

O que estais a ver sobre o altar de Deus também o vistes na noite passada; mas 4015
ainda não ouvistes o que é, o que significa e o grande mistério que encerra. Vedes pão
e um cálice. Isto é o que vos dizem os olhos, mas a vossa fé tem que ser ensinada: o pão
é o Corpo de Cristo, o cálice tem o Sangue de Cristo. Talvez este breve enunciado seja
suficiente para a fé; mas a fé precisa de instrução. Com efeito, o profeta diz: Se não
acreditardes, não compreendereis314.
Podeis dizer-me agora a mim: «Mandaste-nos crer; explica-nos para que enten-
damos». De facto, pode surgir na mente de alguém este pensamento: «Sabemos de
quem recebeu nosso Senhor Jesus Cristo um corpo: da Virgem Maria. Em criança pro-
curou o peito, foi alimentado, cresceu, chegou à idade adulta, foi perseguido pelos Ju-
deus, cravado num madeiro, morto no madeiro e descido do madeiro; foi sepultado,
ressuscitou ao terceiro dia e, quando quis, subiu ao Céu, levando para lá o seu corpo;
dali há-de vir, para julgar os vivos e os mortos, e ali está agora sentado à direita do Pai:

311
Domingo de Pentecostes.
312
Agostinho refere-se aos Donatistas.
313
Domingo de Páscoa.
314
Is 7, 9.
954 SÉCULO V

como é que este pão é o seu Corpo e como é que este cálice, ou o que ele contém, é o
seu Sangue»?
A estas realidades, meus irmãos, chamamos-lhes sacramentos, porque uma coisa
é o que se vê e outra o que se reconhece. O que se vê tem forma corporal; o que se
reconhece tem fruto espiritual315. Portanto, se quereis compreender o que é o corpo de
Cristo, ouvi o Apóstolo quando diz aos fiéis: Vós sois o corpo de Cristo e seus
membros316. Por conseguinte, se sois o corpo de Cristo e seus membros, a misteriosa
realidade do que sois está posta sobre a mesa do Senhor, e o que recebeis é o vosso
mistério. Ao que sois respondeis Amen e, respondendo Amen, subscreveis, firmais o
que sois. Com efeito ouves: «O Corpo de Cristo», e respondes: «Amen». Sê membro
do corpo de Cristo, para que seja verdadeiro o teu Amen.
Porquê em pão? Não inventemos nada por nós próprios, mas escutemos outra
vez o Apóstolo que, ao falar deste sacramento, disse: Sendo muitos, somos um só pão,
um único corpo317. Compreendei e alegrai-vos: unidade, verdade, piedade, caridade.
Um só pão: quem é este único pão? Somos muitos num único corpo. Recordai que o
pão não se faz de um só grão, mas de muitos. Quando recebestes os exorcismos, como
que fostes moídos. Quando fostes baptizados, como que fostes aspergidos. Quando
recebestes o fogo do Espírito Santo, como que fostes cozidos. Sede o que vedes e
recebei o que sois. Foi isto o que o Apóstolo disse a respeito do pão.
Quanto ao que temos de reconhecer acerca do cálice, embora o não tenha dito,
mostrou-o suficientemente. Tal como para que existisse esta espécie visível de pão foi
preciso reunir muitos grãos numa única massa..., o mesmo há-de dizer-se do vinho.
Recordai, irmãos, como se faz o vinho. São muitas as uvas que pendem do ramo, mas
o suco dos bagos funde-se numa só unidade. Assim nos simbolizou Cristo Senhor;
querendo que Lhe pertencêssemos, consagrou na sua mesa o mistério da nossa paz e
unidade. Aquele que recebe o mistério da unidade e não possui o vínculo da paz, não
recebe um mistério para seu proveito, mas um testemunho contra si.
Voltados para o Senhor, Deus Pai todo-poderoso, dêmos-Lhe, de todo o coração
e na medida em que a nossa pequenez o permita, as maiores e mais sinceras graças,
pedindo com toda a alma a sua particular mansidão, para que, em sua bondade, Se digne
escutar as nossas súplicas, afastar com o seu poder o inimigo das nossas acções e
pensamentos, aumentar a nossa fé, dirigir a nossa mente, conceder-nos pensamentos
espirituais e conduzir-nos à sua bem-aventurança, por Jesus Cristo, seu Filho. Amen.
SERMÃO 272 B (= MAI 158) 318

4016 1. Creio que vossa Caridade sabe que a Igreja celebra hoje a vinda do Espírito Santo
do Senhor. Com efeito, o Senhor prometeu enviar o Espírito Santo aos seus Apóstolos e,
de acordo com a promessa, digna de toda a credibilidade, cumpriu certamente o que
prometera. Assim como a Ressurreição do Senhor confirmou a fé dos homens na divindade
de quem Se dignou fazer-se homem por nós, assim também, e em maior grau, a sua Ascen-
são ao céu, e de forma mais plena e perfeita, o dom do Espírito Santo enviado por Ele
encheu os seus discípulos, convertidos já em odres novos, para poderem receber o vinho
novo...
315
Ista, fratres, ideo dicuntur sacramenta, quia in eis aliud videtur, aliud intelligitur. Quod videtur, speciem
habet corporalem, quod intelligitur fructum habet spiritualem. Esta definição de sacramento viria a
tornar-se clássica. Mas para Agostinho tem uma amplitude maior do que aquela que lhe damos habitualmente,
dado que, para ele, os sacramentos não são apenas os sete sinais sagrados da teologia posterior. Para ele,
toda a Escritura está cheia desses sacramentos ou mistérios, e a própria Liturgia é um deles.
316
1 Cor 12, 27.
317
1 Cor 10, 17.
318
Domingo de Pentecostes.
AGOSTINHO DE HIPONA 955

2. Com frequência nos perguntam: «Nós celebramos o dia de Pentecostes por causa 4017
da vinda do Espírito Santo; mas porque o celebram os Judeus»? De facto, também eles
têm o seu Pentecostes...
4. Porque é que os Judeus também celebram o Pentecostes? Trata-se de um mistério 4018
grande e deveras admirável, irmãos. Se analisardes bem, no dia de Pentecostes eles
receberam a Lei escrita pelo dedo de Deus, e no dia de Pentecostes veio o Espírito
Santo... 6. A Lei foi dada no dia de Pentecostes, e o Espírito Santo veio no dia de
Pentecostes... 7. Donde procede o amor? Do dedo de Deus, do Espírito Santo, de quem
veio o dia de Pentecostes.
SERMÃO 273

2. Bem-aventurados os santos em cujas memórias319 celebramos o dia do seu martírio... 4019


Quando se lia a paixão dos santos, ouvistes as perguntas dos perseguidores e as
respostas dos confessores...
3. Que dizer da resposta do santo diácono que sofreu e foi coroado com o seu 4020
bispo?...: «Eu não adoro Frutuoso, mas o Deus que Frutuoso também adora». Deste
modo exortou-nos a honrar os mártires e a adorar Deus com os mártires...
4. Só o Deus verdadeiro deve ter templos e só ao Deus verdadeiro devem oferecer-se 4021
sacrifícios...
7. E, contudo, caríssimos, nós não temos por deuses nem prestamos culto divino 4022
aos nossos mártires... Não lhes levantamos templos, nem altares, nem sacrifícios. Os
sacerdotes não lhes oferecem (sacrifícios); de modo nenhum. Oferecemos a Deus. Só
os oferecemos a Deus, de quem tudo recebemos. Mesmo quando oferecemos junto das
memórias dos santos mártires, não é a Deus que oferecemos?
Os santos têm um lugar de honra. Prestai atenção: na recitação, diante do altar de
Cristo, recitam-se (os seus nomes) em primeiro lugar; mas não são adorados como
Cristo. Quando é que, junto da memória de São Teógono, me ouvistes dizer a mim, ou
a algum dos meus irmãos e colegas, ou a algum presbítero: «Ofereço-te, São Teógono,
ou ofereço-te Pedro, ou ofereço-te Paulo»? Nunca o ouvistes. Isso não se faz; não é
permitido. E, se alguém te perguntar se adoras Pedro, responde como Eulógio a propósito
de Frutuoso: «Eu não adoro Pedro, mas adoro o Deus a quem Pedro adora». Assim
merecerás o amor de Pedro. Se quisesses ter a Pedro por Deus, tropeçarias na pedra;
tem cuidado para não partires os pés ao tropeçar com ela.
SERMÃO 276

1. A vós foi concedida a graça, não só de acreditardes em Cristo, mas também de 4023
sofrerdes por Ele320. Um e outro dom recebera o levita Vicente; recebera-os e guardava-os.
Se os não tivesse recebido, como os guardaria? Tinha confiança na palavra, tinha
coragem no sofrimento.
Ninguém se envaideça da sua força interior, quando fala; ninguém confie nas suas
forças, quando sofre a tentação; porque, se falamos bem e com prudência, é d’Ele que
vem a nossa sabedoria, e, se suportamos os males com coragem, é d’Ele que vem a
nossa força...

319
O termo memória pode significar ou uma simples inscrição comemorativa, ou o túmulo, ou a basílica, ou
as próprias relíquias do mártir.
320
Filip 1, 29.
956 SÉCULO V

SERMÃO 277

4024 3. Os mártires agiram com prudência e não desprezaram o corpo, como faz a filosofia
iludida e enfatuada daqueles que não crêem na ressurreição dos corpos... Foi Deus que
fez o nosso corpo e a nossa alma, que os criou e resgatou, que os formou e renovou.
Por isso, os mártires não desprezaram nem perseguiram o seu corpo como se fosse um
inimigo, pois ninguém jamais odiou o próprio corpo. Pelo contrário, ao parecerem
esquecê-lo agiram no interesse do próprio corpo. Ao suportarem com fé, na carne
presente, os sofrimentos temporais, asseguraram aos seus corpos uma glória eterna.
SERMÃO 278

4025 Nesta vida há certos pecados graves e mortais que são perdoados apenas por
uma atitude de grande humilhação do coração, contrição do espírito e tribulação da
penitência. São aqueles que se perdoam pelas chaves da Igreja321.
SERMÃO 280

4026 Os Apóstolos e os homens apostólicos decidiram que o domingo seria consagrado


aos actos religiosos e que nos dedicaríamos apenas ao culto divino. Foi para este dia
que eles quiseram transferir as honras do sábado judaico. Observemos então o domingo,
meus irmãos, e santifiquemo-lo como o divino legislador o tinha prescrito aos antigos
quanto ao sábado. Desde sábado à tarde até domingo à tarde entreguemo-nos inteira-
mente ao culto divino... Todos os que tiverem possibilidade venham ao ofício da tarde
e da noite, orar conjuntamente a Deus; os que não puderem, reze cada um em sua casa;
mas, no domingo, ninguém se separe da celebração da missa nem fique ninguém pregui-
çosamente em sua casa...
SERMÃO 281

4027 Se não passarmos todo o dia de domingo a ouvir leituras e negligenciarmos


suplicar a Deus, pecamos contra Deus não levemente...
Peço-vos, irmãos caríssimos, e suplico à piedade paterna, que ninguém abandone a
igreja quando se celebra missa no domingo ou nas outras grandes festividade, antes de
se concluírem os divinos mistérios.
SERMÃO 284

4028 5. Sabeis em que momento se faz menção dos mártires? A Igreja não ora por eles.
Com razão ora pelos outros defuntos, mas não por eles, antes se recomenda a eles nas
suas orações. Lutaram contra o pecado até derramar o seu sangue...
SERMÃO 288

4029 5. Quanto mais te aproximas da contemplação da sabedoria, tanto menos necessitas


da voz322...
SERMÃO 293

4030 1. A Igreja celebra o nascimento de João como acontecimento sagrado: não há ne-
nhum, entre os nossos antepassados, cujo nascimento seja celebrado solenemente. Ce-

321
Huius vitae sunt quaedam gravia et mortifera, quae nisi per vehementissimam molestiam humiliationis
cordis et constritionis spiritus et tribulationis poenitentiae non relaxantur. Haec dimittuntur per
claves Ecclesiae.
322
Quantum proficis ad videndum sapientiam, tanto minus est vox necessaria.
AGOSTINHO DE HIPONA 957

lebramos o de João, celebramos também o de Cristo: isto tem, sem dúvida, uma expli-
cação. E, se não a damos tão perfeita como exige a importância desta solenidade,
meditemos ao menos nela, mais frutuosa e profundamente...
3. João é a voz passageira; Cristo é, no princípio, a Palavra eterna... 4031

SERMÃO 294

2. A questão não é saber se é preciso baptizar as crianças, mas saber qual a razão 4032
por que as baptizamos...
12. A criança é curada sobre a palavra de outro, porque ela foi ferida pela acção de 4033
outro. Pergunta-se: «Ela crê em Jesus Cristo»? A resposta é: «Crê». A pergunta é feita
em nome desta criança que não fala, que se cala, que chora e que, pelas suas lágrimas,
pede de algum modo que venham em seu socorro, o que é compreensível... O Espírito
realiza uma espécie de comunhão compensadora: a criança crê na pessoa de um outro,
porque pecou na pessoa de um outro...
14. Onde colocas as crianças baptizadas? Certamente no número dos crentes. Com 4034
efeito, segundo o costume antigo, canónico e muito assegurado, chamamos fiéis às
crianças baptizadas. Eis o que perguntamos a respeito dos bebés: Este bebé é cristão?
_ Respondem: É cristão. _ É catecúmeno ou fiel? _ Fiel, isto é, ele tem fé, quer dizer,
crê. Contarás, portanto, as crianças baptizadas entre os crentes...
SERMÃO 295

1. O dia de hoje é para nós dia sagrado, porque nele celebramos o martírio dos 4035
apóstolos Pedro e Paulo. Não falamos de mártires desconhecidos. A sua voz ressoou
por toda a terra, e a sua palavra até aos confins do mundo. Estes mártires deram
testemunho do que tinham visto: seguiram a justiça, proclamaram a verdade, morreram
pela verdade.
Pedro é o primeiro dos Apóstolos, ardentemente apaixonado por Cristo... Pedro
vem de pedra; não é pedra que vem de Pedro. Pedro vem de pedra, como cristão vem
de Cristo...
7. Num só dia celebramos o martírio dos dois Apóstolos. Na realidade, os dois 4036
eram como um só; embora tenham sido martirizados em dias diferentes, deram o
mesmo testemunho. Pedro foi à frente; seguiu-o Paulo...
8. Celebramos a festa deste dia consagrado com o sangue dos dois Apóstolos. 4037
Amemos e imitemos a sua fé e a sua vida, os seus trabalhos e sofrimentos, o testemunho
que deram e a doutrina que pregaram...
SERMÃO 302

1. Hoje é a festa solene do bem-aventurado mártir Lourenço. As santas leituras que 4038
escutámos ajustam-se perfeitamente a esta solenidade. Ouvimos, cantámos e acolhe-
mos com muita atenção, a leitura evangélica. Sigamos então os passos dos mártires,
imitando-os, para que não seja inútil a celebração das suas festas...
3. Acaso, irmãos, consagrámos o nosso nome a Cristo e submetemos a nossa fronte 4039
a tão grande sinal? És cristão e levas na tua fronte a cruz de Cristo, e o teu selo 323
mostra o que professas. Quando Ele pendia na cruz, cruz que levas na fronte, e que não
te deleita por ser recordação do patíbulo, mas por ser sinal de quem dela esteve
suspenso, quando Ele, repito, pendia na cruz, olhava para os que se lançavam contra
Ele, suportava os que O insultavam, orava pelos seus inimigos. Ao morrer, o médico
curava os enfermos com o seu sangue...
323
Character.
958 SÉCULO V

4040 8. São Lourenço foi arquidiácono. Segundo se conta, o perseguidor pediu-lhe as


riquezas da Igreja, motivo pelo qual sofreu aquilo que nos causa horror ouvir... No
entanto, superou todos os sofrimentos corporais com a grande fortaleza da caridade...
4041 9. Pensando em tudo isto, não sejamos preguiçosos em imitar os mártires, se quisermos
que nos sejam proveitosas as festas que celebramos. Sempre vos tenho exortado ao
mesmo, irmãos; nunca deixei de falar assim, nunca me calei a esse respeito...
SERMÃO 304

4042 1. A Igreja romana convida-nos hoje a celebrar o triunfo de Lourenço, que, desprezando
as ameaças e as seduções do mundo, venceu a perseguição do Demónio. Exercia nessa
Igreja de Roma, como sabeis, as funções de diácono. Aí ministrou o sagrado Sangue de
Cristo324; aí derramou o seu sangue pelo nome de Cristo... O que tinha recebido naquela
mesa, isso mesmo ofereceu. Amou a Cristo na sua vida, imitou-O na sua morte...
A Paixão de Cristo só aproveita àqueles que O seguem. Seguiram-n’O os santos
mártires até ao derramamento do sangue, à semelhança da sua Paixão. Seguiram-n’O os
mártires, mas não só eles. Não foi cortada a ponte depois deles terem passado; não
secou a fonte depois deles terem bebido.
Aquele jardim do Senhor, meus irmãos, não tem só as rosas dos mártires, mas
também os lírios das virgens, as heras dos esposos e as violetas das viúvas. Nenhuma
classe de pessoas, irmãos caríssimos, deve menosprezar a sua vocação. Cristo sofreu
por todos...
Entendamos, portanto, como deve o cristão seguir a Cristo, mesmo sem ter de
derramar o seu sangue, sem ter de suportar o martírio... Cristo humilhou-Se: aqui tens,
cristão, o que deves imitar. Cristo obedeceu: como podes orgulhar-te? Depois de ter
passado semelhante humilhação e de ter vencido a morte, Cristo subiu ao Céu: sigamo-l’O.
Ouçamos o que diz o Apóstolo: Se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do
alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus.
SERMÃO 310

4043 2. Cipriano governou a Igreja de Cartago em vida e glorificou-a na sua morte. Ali
desempenhou o episcopado e consumou o seu martírio. No lugar onde deixou os
despojos do seu corpo via-se então uma multidão cruel, reunida para derramar o
sangue de Cipriano por ódio a Cristo, e, no mesmo lugar, se congrega hoje outra
multidão piedosa para beber o Sangue de Cristo, por ser o nascimento de Cipriano...
Os que conhecem Cartago sabem que, no próprio local do seu martírio, se levantou
uma mesa a Deus. Chama-se-lhe, no entanto, mesa de Cipriano, não por ele ter comido
ali alguma vez, mas por ali ter sido imolado e porque a sua própria imolação preparou
esta mesa, na qual não dá nem se dá em comida, mas onde se oferece o sacrifício a Deus,
a quem ele próprio se ofereceu.
SERMÃO 315

4044 1. O livro dos Actos dos Apóstolos faz parte do cânone das Escrituras e começa no
domingo de Páscoa, como é costume da Igreja. Neste livro, intitulado Actos dos Após-
tolos, aprendestes, ao escutá-lo, como foram eleitos e ordenados pelos Apóstolos os
sete diáconos, entre os quais estava Santo Estêvão...

324
Sacrum Christi sanguinem ministravit.
AGOSTINHO DE HIPONA 959

SERMÃO 320 325

Costumamos ouvir os relatos que contêm os milagres realizados por Deus, graças 4045
às orações do bem-aventurado mártir Estêvão. O relato que este homem apresenta é
ele próprio: basta olhar... Desculpai-me se não prolongo mais este sermão, pois conheceis
o meu cansaço. As orações de santo Estêvão concederam-me que ontem tivesse podido
fazer tantas coisas em jejum e sem desfalecer, e que também possa falar-vos hoje.
Voltados para o Senhor...
SERMÃO 324

Certa mulher perdeu no seu regaço o filho doente, ainda catecúmeno, ainda de 4046
peito. Quando se deu conta de que tinha morrido... começou a chorar por ele, mais
como cristã do que como mãe... Cheia de confiança, tomou nas suas mãos o filho
morto, correu à memória do bem-aventurado mártir Estêvão e começou a pedir-lhe a
vida do filho..., e o filho voltou à vida... Logo a seguir levou-o aos presbíteros: foi
baptizado, foi santificado, foi ungido, foi-lhe imposta a mão e, depois de completados
todos os ritos, foi levado desta vida326...
SERMÃO 329

1. Diante de tão gloriosas heroicidades dos santos mártires 327 com que floresce a 4047
Igreja por toda a parte, verificamos com os nossos próprios olhos quanto é verdadeiro
o que cantámos: É preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus fiéis; porque é
preciosa aos nossos olhos e aos olhos d’Aquele por cujo nome se ofereceu.
Mas o preço destas mortes é a morte de um só. Quantas mortes terá resgatado a
morte de um só, que, se não morresse, seria como grão de trigo que não frutifica?... Ele
fez realmente na cruz um grande negócio. Aí foi aberta a bolsa que tinha o preço do
nosso resgate: quando o seu lado foi aberto pela lança do soldado, d’Ele saiu o preço do
mundo inteiro. Foram resgatados os fiéis e os mártires; mas a fé dos mártires foi
comprovada; o testemunho é o sangue derramado. Retribuíram o que tinha sido pago
em seu favor...
Grande mesa é aquela em que os manjares são o próprio Senhor da mesa! Ninguém
se dá a si mesmo aos convivas em alimento; isto fá-lo nosso Senhor Jesus Cristo. Ele
é quem convida, Ele é o alimento e a bebida. Compreenderam bem os mártires o que
comeram e beberam, para retribuírem de igual modo.
2. O Senhor dos mártires dirigia o espírito e a palavra deles; por eles vencia o 4048
Demónio na terra e coroava os mártires no Céu! Terminaram as dores e receberam as honras.
SERMÃO 332

4. A Escritura falou-vos dos homicidas e vós não ficastes aterrados; mas, quando 4049
vos falou dos que só pensam em sexo, ouvi-vos bater no peito. Ouvi-o, ouvi-o muito
bem, e vi-o! O que eu não vira nos vossos quartos, vi-o no ruído que fizestes ao bater
no peito. Lançai o pecado para longe de vós: bater no peito e continuar a pecar é pura
e simplesmente fazer uma calçada de pecados! Meus irmãos, meus filhos, sede cas-
tos... Bastem-vos as vossas esposas, uma vez que vós quereis que elas se contentem
convosco. Não queres que ela faça nada fora de ti; não o faças tu fora dela. Tu és o

325
Domingo de Páscoa.
326
Continuo tulit illum ad presbyteros, baptizatus est, sanctificatus est, unctus est, imposita est ei manus:
completis omnibus sacramentis, assumptus est.
327
São Cosme e São Damião.
960 SÉCULO V

senhor; ela é a serva; mas Deus fez-vos a ambos. Diz a Escritura: Sara obedecia a
Abraão, chamando-o seu senhor. Assim é; o bispo assinou essas actas328; as vossas
mulheres são vossas servas; sois senhores das vossas mulheres...
SERMÃO 336

4050 1. A festa que nos reúne é a dedicação desta casa de oração. Esta é, com efeito, a
casa das nossas orações, pois a casa de Deus somos nós próprios. Se nós somos a casa
de Deus, somos edificados neste mundo para ser dedicados no fim do mundo. Todo o
edifício, melhor dizendo, toda a edificação requer trabalho; a dedicação pede alegria. O
que acontecia aqui quando se levantava este edifício, sucede agora quando se congregam
os fiéis em Cristo. Crer equivale, de certo modo, ao arrancar as vigas e as pedras dos
bosques e dos montes; ser catequizados, baptizados e formados equipara-se ao trabalho
de cortar, polir e ajustar pelas mãos dos carpinteiros e artesãos. Mas os fiéis só se
edificam em casa de Deus quando se juntam uns aos outros pela caridade. Se estas
vigas e estas pedras não se unissem entre si dentro de uma certa ordem, se não se
ajustassem pacificamente, se, em certo modo, não se amassem ligando-se umas às
outras, ninguém ousaria entrar aqui... Quando, depois do cativeiro, se edificava o
templo, dizia-se, como indica um salmo: Cantai ao Senhor um cântico novo, cantai ao
Senhor terra inteira. As palavras um cântico novo, equivalem às outras do Senhor: Um
mandamento novo. Que tem de peculiar o cântico novo senão um novo amor? Cantar
é próprio de quem ama329. A voz deste cantor é o fervor do amor santo.
SERMÃO 339 (= FRANGIPANE 2) 330

4051 1. O dia de hoje, irmãos, convida-me a reflectir mais detidamente na responsabilidade


que levo sobre mim. Embora deva pensar nesse peso dia e noite..., o dia do meu
aniversário torna-o mais presente aos meus sentidos, de modo que não posso deixar de
pensar nele...
SERMÃO 340

4052 1. A partir do momento em que foi colocado sobre os meus ombros este cargo de
tanta responsabilidade, atormenta-me a preocupação da dignidade que a acompanha.
De facto, o que há de mais temível neste ministério é o perigo de nos satisfazer mais o
seu aspecto honorífico do que a sua utilidade para a vossa salvação.
Mas, se por um lado me atemoriza o que sou para vós, por outro lado consola-me
o que sou convosco. Sou bispo para vós, sou cristão convosco. Aquele nome significa
um encargo recebido, este exprime o dom da graça; aquele é ocasião de perigo, este é
caminho de salvação... Ajudai-me com a vossa oração e com a vossa obediência, de
modo que encontre maior alegria em ser vosso servo do que em ser vosso chefe.
SERMÃO 340 A (= GUELF. 32) 331

4053 1. O sermão deste dia é o terceiro que dirijo a vossa Caridade... Como hoje, por
graça e misericórdia de Deus, vai ser ordenado o vosso bispo, devo falar dele de tal
modo que sirva de exortação a mim próprio, de informação para ele e de instrução para
vós. Aquele que preside ao povo deve ter presente, antes de mais, que é servo de muitos...

328
Testemunho da intervenção do bispo na celebração do casamento de alguns cristãos.
329
Cantare amantis est.
330
Aniversário da ordenação episcopal de Agostinho.
331
Este Sermão foi pregado numa ordenação episcopal no ano 411.
AGOSTINHO DE HIPONA 961

3. Para vos dizer tudo em poucas palavras, somos vossos servos; vossos servos mas 4054
servos convosco; somos vossos servos, mas temos todos um único Senhor; somos vos-
sos servos, mas em Jesus... Por Ele somos servos, e, ao mesmo tempo, somos livres...
Somos chefes e somos servos: só presidimos se formos úteis...
4. Assim deve ser o bom bispo 332. Se não for assim, não é bispo... É semelhante a 4055
um infeliz, aquele a quem chamam bispo e o não é... Que é um bispo que tem esse
nome, mas o não é?... Ser chamado bispo e não ser bispo, é usar um nome falso. Para
ser o que lhe chamam, não me ouça a mim, mas ouça comigo; escutemos juntos;
aprendamos juntos como condiscípulos, na mesma escola do único mestre, que é
Cristo, cuja cátedra está no Céu, cátedra que antes foi uma cruz na terra...
6. Quando o Apóstolo descreve como o bispo deve ser, começa por afirmar: Quem 4056
deseja o episcopado deseja uma coisa boa333. Que significa isto?... Não se trata de ter
a ambição de chegar ao episcopado. Procurai entender o que ele diz, que eu procurarei
explicar o que penso... Desejar o episcopado não é desejar ser bispo. Desejar é uma
coisa boa. Contudo, desejar ser bispo e não realizar obras boas, mas a sua própria obra,
não é desejar o episcopado. Isto é o que dizíamos há pouco: buscar o nome, mas não a
realidade. _ Quero ser bispo. Se eu fosse bispo! Oxalá fosses bispo! Buscas o nome ou
a realidade? Se buscas a realidade, desejas uma coisa boa... Que devo então dizer? Que
há bispos maus? De modo nenhum; não há. Atrevo-me a dizer, sem hesitar, que não há
bispos maus, porque se são maus, não são bispos. Mas tu fazes-me voltar de novo ao nome,
e dizes: _ É bispo, pois senta-se na cátedra. _Também os espantalhos guardam as vinhas.
8. Falei de bispos bons e de bispos maus; disse o que devemos ser e o que devemos 4057
evitar. Mas que tem isto a ver convosco, ó povo de Deus? Alguma coisa tem. Quero
que estejais edificados sobre rocha... Sejamos nós quem formos, vós deveis estar a
salvo. Certamente é bom para nós sermos bons bispos, que presidam como devem e o
não sejam só de nome; isso é bom para nós. Aos que assim forem é-lhes prometida uma
grande recompensa... Longe de nós sermos maus bispos; orai por nós.
Quanto mais elevado é o lugar, tanto maior é o perigo em que nos encontramos...
Muitos louvam-nos, muitos dizem mal de nós e muitos amaldiçoam-nos. Em maior
perigo nos põe quem nos louva que quem nos amaldiçoa... Mas que vos direi, irmãos?
Hei-de desejar que faleis mal de mim, para que aumente a minha recompensa? Não
quero que a minha recompensa seja fruto do vosso mal.
Falai bem, obedecei; ainda que eu fique em perigo, vós não sereis prejudicados.
E que acontece se ao povo lhe cai em sorte um mau bispo? O Senhor e bispo dos bispos
deu-vos segurança, para que a vossa esperança não se apoie num homem. Estou a falar-
vos como bispo, em nome do Senhor; eu próprio ignoro como sou, quanto mais vós...
9. Assim, o Senhor me conceda, com a ajuda das vossas orações, ser e perseverar 4058
até ao fim segundo o desejo de todos os que me querem bem, e a vontade d’Aquele que
me chamou e mandou. Ele me ajude a cumprir o que me mandou. Mas, seja eu como for,
não deveis pôr em mim a vossa esperança. Ponho de lado o que sou, para vos falar
como bispo; quero alegrar-me convosco, não orgulhar-me. Não posso felicitar quem
quer que seja que eu encontre a pôr em mim a sua esperança; o que esse precisa é de ser
corrigido, não de ser confirmado; deve mudar, e não ficar como está. Se o não puder
advertir, fico com pena; mas se puder, já não fico.
Falo agora ao povo de Deus em nome de Cristo; falo-vos na Igreja de Deus, falo-
-vos como um qualquer servo de Deus: não ponhais em nós a vossa esperança, não
ponhais nos homens a vossa esperança. Se somos bons, somos servos; se somos maus,
também somos servos. Mas, se somos bons, somos servidores fiéis, servidores verda-

332
Como Jesus, de cuja vida realçou alguns traços principais.
333
1 Tim 3, 1.
962 SÉCULO V

deiros... Servimo-vos Cristo em nome d’Ele, servimo-l’O sob as suas ordens. Para que
Ele chegue até vós, seja Ele mesmo o juiz do nosso ministério...
SERMÃO 341

4059 1. Tanto quanto me foi possível vislumbrar nas páginas sagradas, irmãos, há três
maneiras de entender e nomear nosso Senhor Jesus Cristo, quando se prega: pela Lei e
pelos Profetas, pelas Epístolas apostólicas, e pela fé nos factos que conhecemos
graças ao Evangelho334.
4060 11. Todos juntos, nós somos os membros e o corpo de Cristo; não só nós que
estamos aqui, mas todos os cristãos dispersos por toda a terra; e não só os da nossa
época, mas, para dizer a verdade, todos os que, desde o justo Abel, existiram e existirão
até ao fim do mundo, enquanto os homens gerarem e forem gerados; todos os justos
que existem agora, não neste lugar, mas nesta vida, e todos aqueles que devem nascer
a seguir, todos formam o corpo único de Cristo, e cada um deles é membro de Cristo.
Portanto, se todos formam o seu corpo e são seus membros, Ele é seguramente
a cabeça deste corpo que é seu. Ele é a cabeça do corpo da Igreja, diz a Escritura, o
Primogénito de entre os mortos, que em tudo tem o primeiro lugar. E, como está dito
ainda acerca d’Ele que Ele é o chefe de todo o principado e de todo o poder, a Igreja que
está em peregrinação une-se à Igreja do Céu, onde temos os Anjos por concidadãos...
Assim existe uma só Igreja, que é a cidade do grande rei.
SERMÃO 342

4061 1. Quando vemos um homem em oração, os seus braços estendidos fazem-nos


pensar na cruz. Trata-se do sinal que nos é impresso na fronte335, do sinal pelo qual
fomos salvos, sinal que foi objecto de irrisão, antes de agora ser honrado, que foi
objecto de desprezo, mas agora é glorificado.
SERMÃO 345 (= FRANGIPANE 3)

4062 1. Tanto a solenidade dos mártires como o facto de hoje ser o dia do Senhor me
convidam a falar à vossa Caridade acerca do desprezo do mundo presente e da esperança do
futuro...
SERMÃO 351

4063 2. São três os actos de penitência que a vossa Erudição reconhece comigo. São
habituais na Igreja de Deus e conhecidos dos que olham com atenção. O primeiro é
aquele que gera o homem novo, até que o baptismo salvador produza a purificação de
todos os pecados passados... Com efeito, todo aquele que já se constituiu em árbitro
da sua vontade não pode iniciar uma vida nova, ao aproximar-se do sacramento dos
fiéis, se não se arrepende da sua vida passada. Desta penitência contemporânea do
baptismo só ficam livres as crianças pequenas, pois ainda não podem fazer uso da sua
livre vontade. A essas, no entanto, aproveita-lhes a fé daqueles que as apresentam,
para serem consagradas e perdoadas do pecado original. Desta forma, qualquer mancha
de delitos que tenham contraído por meio de seus pais é lavada pelas perguntas e
respostas dos outros...
4064 3. A outra penitência, cujo exercício dura toda a vida que passamos nesta carne
mortal, há-de realizar-se na humildade permanente da súplica...Com efeito, ninguém

334
É um bom testemunho sobre as várias leituras da Liturgia da Palavra.
335
A signação da fronte com a cruz era o rito com que se começava o catecumenado. Fiéis e catecúmenos são
discípulos do crucificado.
AGOSTINHO DE HIPONA 963

nasce para a vida nova pela santificação do baptismo, e depõe nele todos os pecados
passados, de tal modo que deponha também, ao mesmo tempo, a mortalidade e a cor-
rupção da carne...
4. Tudo o que disse até aqui, disse-o para que ninguém, mesmo que tenha sido justi- 4065
ficado de todos os seus pecados anteriores por meio do baptismo, se atreva a orgulhar-
-se, nem cometa qualquer outro que o afaste da comunhão do altar, nem se exalte como
se tivesse alcançado já a plena segurança, mas para que conserve a humildade, que é quase
a única disciplina cristã...
6. Se isto é falso, porque batemos no peito todos os dias? Também nós bispos o 4066
fazemos com todos os outros, ao aproximarmo-nos do altar... Não pedimos que nos
sejam perdoados os pecados que acreditamos nos terem já sido perdoados no baptismo,
pois, de contrário, duvidaríamos da fé; a nossa súplica refere-se aos pecados quotidianos,
pelos quais cada um não cessa de oferecer também, segundo as suas forças, o sacrifício
da esmola, do jejum e das próprias orações e súplicas...
7. O terceiro acto de penitência é o que há-de aceitar-se pelos pecados contrários 4067
ao Decálogo da lei e por aqueles a que se refere o Apóstolo, quando diz: Os que
praticam tais coisas não herdarão o reino de Deus336. Nesta penitência, cada qual há-
-de mostrar uma grande severidade consigo mesmo, para que, tornando-se ele próprio o
seu juiz, não seja julgado pelo Senhor, como diz o mesmo Apóstolo: Se nos examinássemos
a nós próprios, não seríamos julgados pelo Senhor337.
Suba, pois, o homem ao tribunal da sua mente contra si mesmo... Compareça
diante de si próprio... Assim, constituído o coração em tribunal, apresente-se o pensa-
mento, como acusador, a consciência, como testemunha, e o temor, como algoz. Corra
dali, pelas lágrimas, como que o sangue da alma que se confessa. Por fim, profira a
própria mente uma sentença tal que o homem se considere indigno de participar no
Corpo e Sangue do Senhor. Deste modo, aquele que teme que a sentença definitiva do
supremo juiz o afaste do Reino dos Céus, seja separado por algum tempo do sacra-
mento do pão celeste pela disciplina eclesiástica..., e, quando outros se aproximam do
altar de Deus do qual ele não se aproxima, pense quanto deve temer-se tal pena, pela
qual, enquanto uns recebem a vida eterna, outros são precipitados na morte eterna.
Deste altar que se vê agora colocado na Igreja da terra, exposto aos olhos terrenos,
para celebrar os divinos mistérios, podem aproximar-se inclusivamente muitos crimi-
nosos, uma vez que, neste tempo, Deus usa de paciência... Aproximam-se também os
ignorantes, porque a paciência de Deus os leva à penitência... Mas àquele altar ao qual
por nós subiu Jesus como precursor, onde nos precedeu como cabeça da Igreja e ao
qual hão-de seguir os seus membros, não poderá ter acesso nenhum acerca dos quais,
como já recordei, o Apóstolo disse: Os que praticam tais coisas não herdarão o Reino
de Deus. Ali só estará o sacerdote, mas o sacerdote na sua plenitude, isto é, com o
corpo do qual a cabeça, que é Ele, já subiu ao Céu...
10. Quanto a nós, não podemos afastar ninguém da comunhão (ainda que tal afasta- 4068
mento não seja mortal, mas medicinal), se a pessoa não confessa espontaneamente o
pecado, ou se não foi condenada por um tribunal civil ou eclesiástico. Pois, quem se
atreveria a ser ao mesmo tempo acusador e juiz?...
SERMÃO 352 338

1. É fácil reconhecer a voz do penitente nas palavras com que respondemos ao 4069
salmista: Desviai o vosso rosto das minhas faltas e purificai-me de todos os meus

336
Gal 5, 21.
337
1 Cor 11, 31.
338
C. VOGEL , Paris 1966, 116-118.
964 SÉCULO V

pecados339. Não tendo eu preparado sermão nenhum para dirigir à vossa Caridade,
percebi que tenho de vos falar deste tema por mandato do Senhor. Hoje queria dar-vos
tempo para meditardes na abundância do banquete em que participastes ontem. Mas,
como recebeis com proveito aquilo que vos servem, não há dia nenhum que não tenhais
bom apetite. O Senhor nosso Deus me conceda a mim forças abundantes e a vós
capacidade para ouvir utilmente... Ajudai-me com o vosso desejo e atenção: desejo de
Deus e atenção à Palavra, para que Aquele que vos alimenta por meu intermédio vos
possa dizer o que julga ser útil... Chega até mim a ordem divina de vos falar acerca da
penitência. Com efeito, não fui eu que mandei o leitor cantar este salmo, mas foi Deus
que sugeriu ao coração desta criança que vos lesse aquilo que Ele queria fazer-vos ouvir...
4070 2. Na Sagrada Escritura encontra-se um tríplice modo de fazer penitência. Com
efeito, ninguém se aproxima como é devido do baptismo de Cristo, no qual se nos
perdoam todos os pecados, sem ter feito penitência da sua vida anterior. Ninguém
escolhe uma vida nova, sem se ter arrependido da antiga...
4071 3. A passagem através do mar é o baptismo. Mas, porque o baptismo, ou, antes,
porque a água do baptismo não é água de salvação se não for consagrada pelo nome de
Cristo, que por nós derramou o seu sangue, a água é marcada com o sinal da cruz.
4072 7. Eu disse que há na Escritura três maneiras de considerar a penitência. A primeira
é a dos competentes340, que desejam receber o baptismo... Acabo de falar dela segundo
os textos da Sagrada Escritura.
Há uma outra penitência, que é quotidiana. Onde encontramos nós esta penitência
de todos os dias? Não há melhor passagem da Escritura do que a oração diária, onde o
Senhor nos ensinou a orar e a dizer ao Pai o que convém: Perdoai-nos as nossas
ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido341...
4073 8. Falta o terceiro género de penitência do qual falarei com brevidade, para levar a
cabo, com a ajuda de Deus, o propósito que me fixei a mim mesmo. É uma penitência
severa e rica em lágrimas, pela qual se designa o estado dos penitentes na Igreja, aos
quais é proibido participar no sacramento do altar, não seja que, recebendo-o indignamente,
eles comam e bebam a sua própria condenação. Esta penitência é dolorosa. A ferida
feita é grave: talvez seja um adultério, um assassínio, algum sacrilégio; em todo o caso
é uma matéria grave e uma ferida perigosa, mortal, que põe a salvação em perigo. Mas
o médico é todo-poderoso... Irmãos caríssimos, ninguém se disponha nem se prepare
para este género de penitência, mas, se for o caso de vir até ela, ninguém desespere tão
pouco...
4074 9. Os pagãos costumam insultar os cristãos por causa da penitência organizada
pela Igreja. A Igreja católica teve de afirmar a legitimidade da penitência contra de-
terminadas heresias. Certas pessoas afirmaram que alguns pecados deviam ser excluídos
da penitência. Esses contraditores foram eles próprios excluídos da Igreja e tornaram-se
hereges. Não há pecados nenhuns que façam perder à santa Igreja as suas entranhas de
mãe. Daí os insultos de alguns pagãos, que não sabem o que dizem: «Vós fazeis com
que os homens pequem, pois lhes prometeis o perdão se fizerem penitência: isso é
laxismo e não educação»... Afirmam que nós damos licença para pecar, porque prome-
temos o porto da penitência. Se a porta da penitência fosse fechada, não amontoaria o
pecador pecados sobre pecados, e tantos mais quanto maior fosse o desespero de
alcançar o perdão?.. Se eliminas o porto da penitência, com o desespero aumentarão os
pecados...

339
Sal 50, 11.
340
Os competentes eram os catecúmenos que no princípio da Quaresma davam o nome para serem baptizados
na noite da Vigília pascal.
341
Mt 6, 12.
AGOSTINHO DE HIPONA 965

SERMÃO 355

2. Para não me alongar demasiado, tendo em conta, acima de tudo, que eu vos falo 4075
sentado, ao passo que vós vos cansais de estar de pé, dir-vos-ei: Todos ou quase todos
sabem que nesta casa, chamada casa do bispo, vivemos de tal modo que, na medida das
nossas forças, imitamos aqueles santos dos quais diz o livro dos Actos dos Apóstolos:
Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum342. Como
talvez alguns de vós não se tenham preocupado em examinar a nossa vida, para a conhe-
cerem como eu quero que a conheçais, vou explicar-vos o que antes disse resumidamente.
Eu, em quem por misericórdia de Deus vedes o vosso bispo, era jovem quando
vim a esta cidade. Muitos de vós o sabem. Procurava um lugar para construir um
mosteiro, para aí viver com os meus irmãos. Tinha abandonado toda a esperança
mundana e não queria ser o que podia ter sido; mas também não buscava o que sou.
Antes queria ficar no vestíbulo da casa do meu Deus do que habitar nas tendas dos
pecadores343. Separei-me dos que amam o mundo, não me equiparei aos que governam
os povos. Não escolhi o primeiro lugar no banquete do meu Senhor, mas o último e
mais desprezível, mas Ele quis dizer-me: Sobe mais para cima 344. A tal ponto temia o
episcopado, que, quando a minha fama começou a crescer entre os servos de Deus,
evitava aproximar-me dos lugares onde sabia que não tinham bispo. Precavia-me con-
tra isso e suplicava quanto podia para me salvar num posto humilde, em vez de me pôr
em perigo num outro mais elevado. Mas, como disse, o servo não deve contradizer o
seu Senhor.
Vim a esta cidade para ver um amigo, ao qual pensava que podia ganhar para
Deus, a fim de viver connosco no mosteiro. Vim tranquilo, porque a cidade tinha
bispo, mas prenderam-me, fui feito presbítero e por este degrau cheguei ao episcopado.
Não trouxe nada comigo; vim a esta Igreja apenas com a roupa que trazia no corpo. E,
como formara o projecto de viver num mosteiro com os irmãos, ao ter conhecimento
do meu propósito e desejo, o ancião Valério, de feliz memória, deu-me a propriedade
onde se encontra agora o mosteiro. Comecei a reunir irmãos com o mesmo bom propó-
sito, pobres e sem nada, como eu, e que quisessem imitar-me. Como tinha vendido o
meu pequeno património e dado aos pobres o seu valor, assim deviam fazer os que
quisessem estar comigo, vivendo todos do comum. Deus seria para nós o nosso gran-
de, rico e comum património.
Cheguei ao episcopado, e vi a necessidade que o bispo tinha de oferecer hospi-
talidade aos que, sem cessar, iam e vinham, pois parecia desumano que o bispo o não
fizesse. Delegar essa função no mosteiro parecia inconveniente. Por essa razão quis
ter, nesta casa do bispo, o mosteiro dos clérigos. É assim que vivemos. A ninguém é
permitido, na comunidade, ter alguma coisa própria. Mas talvez alguns tenham. Ne-
nhum está autorizado; se alguns o têm, fazem o que não lhes é permitido. Penso bem
dos meus irmãos, e, por pensar sempre bem, abstive-me de investigar sobre isso, uma
vez que, proceder assim me parecia ser desconfiar deles. Sabia e sei que todos os que
vivem comigo conhecem o nosso propósito, conhecem a norma da nossa vida...
SERMÃO 356

1. Quero que estejais com muita atenção enquanto se faz a leitura, para que, depois 4076
de proclamada e com a ajuda do Senhor, vos fale daquilo que prometi falar. E o diácono
Lázaro leu: Quando estavam a orar, o lugar onde se encontravam estremeceu... E
distribuía-se a cada um segundo a sua necessidade.

342
Act 4, 32.
343
Sal 83, 11.
344
Lc 14, 10.
966 SÉCULO V

Ao terminar a leitura, o diácono Lázaro entregou o códice ao bispo, e o bispo


Agostinho disse: Também eu quero ler, pois me agrada mais ser leitor desta palavra do
que explicador da minha palavra. Quando estavam a orar... Depois de ter feito a
leitura, o bispo disse:
4077 2. Escutastes o que queremos explicar; orai para o podermos levar a cabo. As
circunstâncias convidam-me a fazê-lo sem pressa. Como sabeis, um presbítero da
nossa sociedade, da qual dá testemunho a leitura escutada, ao aproximar-se a morte,
fez testamento porque tinha razões para o fazer. Com efeito, estava na posse de algo
a que chamava seu, apesar de viver nessa sociedade onde a ninguém é lícito chamar seu
seja ao que for, pois todas as coisas devem ser comuns...
SERMÃO 359 345

4078 6. Admitamos que (Ceciliano) seja achado culpado: condeno o homem, mas não
abandono a Igreja de Cristo. Foi o que fizemos e o que dissemos: doravante, no altar,
já não leremos o seu nome juntamente com os dos outros bispos que consideramos
fiéis e inocentes. Só fizemos isto... Com esta firme segurança se começou a examinar a
sua causa. Foi achado inocente... Tudo isto foi lido e provado. Perguntou-se-lhes346 se
tinham algo a alegar contra. Esgotados todos os subterfúgios das suas calúnias, quando
já não puderam apresentar mais nada contra documentos tão evidentes nem contra a
inocência do próprio Ceciliano, pronunciou-se a sentença contra eles. Apesar disso,
eles continuam a proclamar que venceram. Vençam-se a si mesmos, para que os possua
Cristo; vença-os quem os redimiu.
4079 7. Apesar disso, muitos são os que nos deram motivos de alegria. Muitos deles
foram vencidos com fruto, porque na realidade não foram vencidos. Foi vencido o erro
humano e salvo o homem...
4080 9. Falo-vos agora em favor do meu irmão, o vosso bispo, cuja alegria sereis vós, se
obedecerdes ao Senhor nosso Deus. Certamente, foi em nome de Deus que esta igreja
foi construída para vós, obra sua, graças às ofertas generosas, misericordiosas e cheias
de devoção dos irmãos fiéis. Esta igreja foi construída para vós, mas vós sois a Igreja
em sentido mais pleno. Foi construída para vós a igreja na qual entram os vossos
corpos, mas os vossos corações devem ser o lugar onde entra Deus. Honrastes o vosso
bispo ao quererdes designar esta basílica com o nome de Florência, mas vós é que sois
a sua Florência...
SERMÃO 362

4081 1. Foi por me lembrar da minha promessa que mandei ler os textos apropriados do
Evangelho e do Apóstolo. Aqueles de entre vós que estiveram presentes no sermão
anterior recordam-se que propus o tema da ressurreição, dividido em duas questões
distintas: primeiro, em atenção aos que dela duvidam ou inclusivamente a negam,
dissertar-se-ia sobre a existência ou não da futura ressurreição dos mortos; depois, na
medida do possível, examinar-se-ia, de acordo com as Escrituras, como será a vida dos
justos na ressurreição futura. Demorei-me tanto na primeira parte... que faltou tempo
para considerar a segunda questão, e vi-me obrigado a diferi-la para este dia. A vossa
atenção está a pedir-me que pague a minha dívida, e reconheço que é o momento
oportuno. Juntos e com o piedoso olhar do coração, supliquemos ao Senhor que eu
pague a minha dívida da forma mais conveniente, e vós a recebais com proveito...

345
Sermão feito na dedicação de uma basílica, entre os anos 411 e 412.
346
Aos Donatistas.
AGOSTINHO DE HIPONA 967

2. Nosso Senhor quis significar que se lança agora a palavra de Deus sobre os 4082
povos e nações do mesmo modo que se lança uma rede ao mar. Mediante os sacramentos
cristãos recolhe bons e maus, mas não guarda no cesto todos os que tira da rede...
31. Voltados para o Senhor, supliquemos-Lhe por nós e por todo o seu povo santo 4083
que nos acompanha nos átrios da sua casa, para que Se digne guardá-lo e protegê-lo por
Jesus Cristo, seu Filho e nosso Senhor, que vive e reina com Ele pelos séculos dos
séculos. Amen.

Novos sermões de S. Agostinho

SERMÃO 3 347

Sois pobres e estais a construir uma igreja. Donde vem isto, se sois pobres, senão 4084
porque sois ricos de coração? Trabalhai com a ajuda de Deus, para levardes a obra ao
fim... Ao construirdes uma igreja, com a ajuda de Deus, para vós a edificais. É a casa
das vossas orações, onde vos reunis, onde fazeis as coisas que são divinas, onde recitais
hinos e louvores a Deus, onde dizeis as vossas orações, onde recebeis os sacramentos.
Como vedes é a casa das vossas orações. Quereis fazê-la? Sede vós a casa de Deus, e
está feita essa casa. Amen.
S E R M Ã O 348

Exortámos ontem a vossa Caridade, a todos vós que sois catecúmenos, a que 4085
viésseis depressa, sem demoras, à fonte da vida; e a vós todos que, para vossa perdição
viveis em pecados, em torpezas e na devassidão, a mudar de vida, a fazer penitência
(pois o que amais não é a penitência, mas a libertinagem), a mudar de vida, a preparar-vos
todos para a reconciliação, segundo a vontade de Deus.

347
A GOSTINHO DE H IPONA , Novos sermões de Santo Agostinho (=C. L AMBOT , Colligera fragmenta, Beuron
1952; C. L AMBOT , Novos Sermões de S. Agostinho, RB 49. 62. 1937 e 1952).
348
A GOSTINHO DE H IPONA , Novos sermões de Santo Agostinho (=C. L AMBOT , Colligera fragmenta, Beuron,
1952; C. L AMBOT , Novos Sermões de S. Agostinho, RB 49. 62. 1937 e 1952).
968 SÉCULO V

Nilo de Ancira

Cartas 1

LIVRO I

CARTA 44

4086 A folha de escrever feita de papiro e de cola é uma simples folha antes de receber
em si a assinatura do rei; mas, quando a recebe, todos sabem que é chamada coisa
sagrada. Deves pensar que o mesmo sucede nos divinos mistérios: antes das palavras
do sacerdote e da vinda do Espírito Santo, as oblações são apenas pão simples e vinho
comum; mas, depois daquelas tremendas epicleses e da vinda do Espírito adorável,
vivificador e bom, o que está sobre o altar já não é simples pão e vinho comum, mas o
Corpo e o Sangue preciosos e imaculados de Cristo, Deus de todas as coisas, que
purificam de toda a imundície aqueles que, com temor e grande desejo, neles partici-
pam.
CARTA 117

4086a Ao chamares mistérios a certas historietas, fazes com que muitas pessoas ho-
nestas se riam de ti. Na verdade, não há seita que, ao desviar-se da Igreja de Deus, não
chame mistérios aos seus erros. É aliás essa a razão pela qual chamam livros aos
mistérios dos Maniqueus e ao belo tesouro das suas blasfémias e perversidades. E têm
razão, porque já puseram por obra o mistério da desgraça. .

LIVRO III

CARTA 32

4087 Diz-se que o monge é um altar de Deus, no qual e a partir do qual se oferecem ao
Deus altíssimo preces puras, altar espiritual de certo modo construído e fundado no
local, como diz David, onde estão assentes os pés do Senhor, que nunca resvalam: Os
nossos pés estão às tuas portas, Jerusalém.
CARTA 39

4087a Não nos aproximemos do pão místico como se fosse simples pão, uma vez que
é a carne de Deus, carne preciosa, venerada e vivificadora, pois dá vida aos homens,
mortos pelos pecados, ao passo que a carne comum não poderia dar vida à alma. É isto
o que Cristo nosso Senhor diz no Evangelho: que a carne simples e comum é comple-
tamente inútil. Por isso, ao participarmos na carne e no Sangue do Verbo de Deus com
louvores e grande desejo, herdamos a vida eterna. Quem come e bebe com coração recto
consegue a bem-aventurança.

1
N ILO DE A NCIRA , Epistulae (=PG 79, 81-581). Nilo de Ancira foi monge e discípulo de João Crisóstomo.
Morreu por volta de 430.
PAULINO DE NOLA 969

Paulino de Nola

Poemas 1

POEMA 10

57-64. Quando Cristo, lá do Céu, faz vibrar a sua luz em nossos corações, então 4088
purifica o espírito preguiçoso do pesado torpor e renova o hábito da mente, extingue
tudo o que antes era prazer em vez de gozo casto e exige tudo de nós, como legítimo
Senhor, coração, boca e tempo.
POEMA 18

Aqui se encontra o túmulo que contém os restos sagrados do mártir, cujo corpo 4089
está protegido pelo mármore: os despojos de um homem sepultado, que repousa na
paz, esperando confiadamente a ressurreição... Qual será o segredo que aqui atrai as
multidões?... Cinco basílicas formam agora as dependências do túmulo sagrado, cujos
tectos dão a impressão duma verdadeira cidade. Mas, por maiores que sejam estas
igrejas, são insuficientes para conter a multidão!... As graças de Deus dão ao povo a
certeza de que Félix está vivo, uma vez que o seu poder miraculoso continua a manifestar-se.
O santo sobreviveu à morte do seu corpo...
Este é um espectáculo cheio de alegria. Aqui vêm muitos peregrinos pedir graças
pessoais. Camponeses pobres vindos do campo: os pais trazem os filhos nos braços e,
muitas vezes, os animais doentes entram com eles na igreja. Cheios de confiança
encomendam-nos ao santo, como se o vissem junto deles. Estão certos de obter a cura
que pedem. Não tarda que fiquem todos contentes pela intervenção divina...
Uns trazem magníficas cortinas para fechar as entradas da igreja, véus de linho
branco, tecidos bordados com desenhos coloridos; outros escrevem com letras de
prata inscrições bem compostas ou cobrem com placas douradas a entrada da igreja.
Outros ainda acendem círios de cera colorida, e suspendem do tecto lustres, cujas
chamas tremem com a brisa do ar...
São todos mais ricos do que eu, que não tenho ouro. Ofereço o meu canto. Sem
fortuna, só me tenho a mim para oferecer... Pago com a minha pessoa, apesar de a oferenda
não valer nada. Mas não devo ter medo de ser rejeitado, porque o Senhor não despreza
as oferendas do pobre, pois recebeu com alegria as duas moedinhas da viúva pobre.
POEMA 25 2

25. O bispo, vosso pai, vos abençoe, entoe cânticos sagrados em coros melodiosos; 4090
conduz, ó querido Memório, os teus filhos até ao altar do Senhor, recomenda-os com
a tua oração e santifica-os com a tua mão... Depois, Memório, sem te esqueceres do

1
P AULINO DE N OLA , Carmina (=PL 61, 437-710; CSEL 30). Paulino de Nola nasceu por volta de 353. Foi procônsul na
Campânia, recebeu o baptismo em 389, viveu casado na Hispânia, onde foi ordenado presbítero, e em Nola, cidade da qual
renunciou ser bispo. Compôs uma obra poética de valor. Morreu em 431.
2
Este poema foi escrito por volta do ano 403. Trata-se dum cântico nupcial composto para o matrimónio do leitor Juliano,
futuro bispo de Eclano e filho do bispo de Benevento, Memório, com a filha do bispo de Cápua, Emílio. O pai de Juliano
conduz os prometidos ao altar, enquanto o pai da jovem, o bispo Emílio, confere a bênção nupcial aos dois esposos, que têm
as cabeças cobertas com um véu.
970 SÉCULO V

ofício, entrega, segundo o ritual, os queridos jovens às mãos de Emílio. E ele une as cabeças
dos dois sob a paz conjugal, cobre-os com a mão direita e santifica-os com a oração3 ...
POEMA 27

4091 53-63 Que significa o banquete pascal? É verdade que a Igreja, cada dia e sem
cessar, proclama a Páscoa pela boca de todos, anunciando a morte de cruz do Senhor e
a vida de todos que jorrou da cruz. E, contudo, este grande sacramento da imensa miseri-
córdia de Deus para com todos venera-o o mundo inteiro por toda a parte, em cada ano,
no mês estabelecido, com idêntica liturgia, celebrando o Rei eterno por causa do seu
corpo que voltou à vida. Passadas sete semanas, a luz da festa volta novamente para o
povo, pois aquela solenidade é seguida pelo dia em que o Espírito Santo, enviado dos
altos Céus, espargiu línguas luminosas como se fossem fogo.

Cartas 4

CARTA 1 5

4092 10. Sob a pressão da multidão... fui ordenado presbítero..., mas com a condição de
não ficar ligado à Igreja de Barcelona e de ser ordenado apenas para o sacerdócio do
Senhor, sem ligação a uma Igreja.
CARTA 3 6

4093 6. Enviamos à tua Santidade um pão em sinal de unidade, e que é também símbolo
da indivisível Trindade. Farás deste pão uma bênção [eulógia], se te dignares recebê-lo.
CARTA 4 7

4094 Enviamos à tua Caridade um pão que é símbolo da unanimidade, e pedimos-te


que, ao aceitá-lo, o abençoes.

3
Carmen XXV: 199 Ipse pater vobis benedicat episcopus, ipse/ praecinat hymnisonis cantica sancta choris./
duc, Memor alme, tuos domino ante altaria natos/ commendaque precans sanctificante manu./ sed quis
odor nares adlabitur aethere manans?/ unde meos stringit lux inopina oculos?/ quis procul ille hominum
placidis se passibus adfert,/ plurima quem Christi gratia prosequitur?/ quem benedicta cohors superis
circumdat alumnis/ angelici referens agminis effigiem?/ nosco virum, quem divini comitantur odores/
et cui sidereum splendet in ore decus./ hic vir hic est, domini numeroso munere Christi/ dives, vir superi
luminis, Aemilius./ surge, Memor, venerare patrem, complectere fratrem,/ uno utrumque tibi nomen in
Aemilio est./ iunior et senior Memor est. mirabile magni/ munus opusque dei! qui minor, hic pater est;/
posterius natus senior, quia sede sacerdos/ gestat apostolicam pectore canitiem./ filius est fraterque
Memor; laetatur adesse/ communem sibimet pignoribusque patrem./ iustitia et pax se gemina vice
complectuntur,/ cum Memor Aemilio iungitur unanimo./ infula pontifices divino iungit honore;/ huma-
no pietas iungit amore pares./ hinc Memor, officii non immemor, ordine recto/ tradit ad Aemilii pignora
cara manus./ ille iugans capita amborum sub pace iugali/ velat eos dextra, quos prece sanctificat./
Christe, sacerdotes, exaudi, Christe, precantes/ et pia vota sacris annue supplicibus./ imbue, Christe,
novos de sancto antistite nuptos/ 232 perque manus castas corda pudica iuva...
4
PAULINO DE NOLA , Epistulae (=PL 61, 153-420; CSEL 29).
5
Esta ordenação aconteceu no dia de Natal de 394.
6
Esta carta foi escrita a Alípio; cf. LH, III.
7
Esta carta foi escrita a Agostinho.
PALÁDIO 971

CARTA 32 8

5. Depois o sacerdote, como pai, tira as crianças da sagrada fonte, brancas como a 4095
neve no corpo, no coração e nas vestes, e, pondo à volta do altar de pedra os cordeiros
recém-nascidos, introduz nas suas tenras bocas os alimentos salutares. E a multidão
mais antiga mistura a sua alegria à do grupo mais novo, que se lhe associa; o rebanho
bale com novos coros o Aleluia 9.
6. Claro pela fé, ilustre pelas obras, claríssimo pelo fruto, tu igualas, pelos méritos, o 4096
título do teu Nome, os castos altares ocultam dignamente o teu corpo, para que o altar
de Deus guarde o templo de Cristo. Tu não estás retido por este lugar, onde está o teu
corpo..., embora estejas sepultado sob o altar do Senhor... 10
7. Os digníssimos altares cobrem a divina aliança, depositados os mártires juntamente 4097
com a cruz sagrada. Reúnem-se todos os testemunhos de Cristo Salvador: a cruz, o
corpo, o sangue do mártir, o próprio Deus. Porque Deus reserva sempre para vós os
seus dons, e onde está Cristo, aí estão o Espírito e o Pai. Onde está a cruz, aí está
também o mártir, porque o mártir também é a cruz, que foi a piedosa causa do martírio
para os santos. Ela deu à luz o manjar de vida para os mortais, e as coroas que tornam
os servos participantes do Senhor. Na cruz está cravada a carne de que me alimento; da
cruz brota aquele sangue, graças ao qual bebo vida e lavo os corações. Oh Cristo,
andem sempre juntos estes teus dons com Severo, seja ele portador e testemunha da
tua cruz. Viva da tua carne, o teu sangue seja a sua bebida, na tua palavra viva e
trabalhe. E pelo caminho por onde viu subir Martinho, acompanhado de Claro, vá
também ele levado pela tua graça.
13. A fachada da basílica não está voltada para Oriente, como é habitual, mas, como 4098
lhe pertence, para a basílica do meu senhor São Félix, olhando para a sua memória.

Paládio

História Lausíaca 11
70. Uma virgem consagrada, filha de um presbítero de Cesareia na Palestina, caiu. 4099
Tendo ficado grávida, deixou-se persuadir e inculpou um leitor da mesma cidade; este,
denunciado pelo pai da rapariga, apesar dos seus protestos de inocência, foi deposto
pelo bispo. Em consequência disso, o leitor pediu ao bispo a sua acusadora em
matrimónio, alegando que ele já não era clérigo, nem ela virgem.

8
Esta carta foi escrita a Sulpício Severo.
9
Estes versos destinavam-se a um baptistério construído por Sulpício Severo.
10
Estes versos destinavam-se ao sepulcro do presbítero Claro, discípulo de S. Martinho de Tours. Aludindo
ao nome Claro, diz o autor no primeiro versículo: Clare fide, praeclare actu, clarissime fructu...
11
P ALÁDIO , Historia Lausiaca (=PG 34, 995-1260; PL 74, 243-342. 343-382). Paládio nasceu em 363, foi
bispo de Helenópolis, e morreu em 431.
972 SÉCULO V

Papa Celestino I

Cartas 1

CARTA 4 2

4100 2. Soubemos que a penitência era recusada aos moribundos e que não se respondia
aos desejos daqueles que, no momento da morte, desejavam ir em ajuda das suas almas
com esse remédio. Confessamos que ficámos horrorizados diante da impiedade daqueles
que ousam pôr em dúvida a bondade de Deus. Como se Deus não pudesse socorrer
todos os pecadores que se voltam para Ele, seja em que momento for, e como se Ele
não pudesse libertar o homem, que treme sob o peso dos seus pecados, de cujo fardo
ele deseja ser libertado. Pergunto-vos: Que significa isto, senão acrescentar uma nova
morte àquele que vai morrer, e matar a sua alma, agindo de tal modo que ela não possa
mais ser purificada? Ora, Deus está sempre disposto a perdoar; Ele convida à penitência
e declara: A malícia do pecador não o fará sucumbir, se um dia renunciar à sua
perversidade; e ainda: Eu não quero a morte do pecador, mas que ele se converta e
viva. Aquele que, no momento da morte, recusa a penitência a alguém que a deseja,
tira-lhe a salvação. Desespera da misericórdia de Deus aquele que crê que ela não é
suficientemente grande para vir, de repente, em ajuda dum moribundo. O malfeitor
atado à cruz, à direita de Cristo, teria perdido a recompensa eterna, se o arrependimento
da última hora o não tivesse socorrido. Ele só se arrependeu quando sofria, e por uma
única palavra mereceu que Cristo lhe prometesse a estada no Paraíso. A sinceridade
duma conversão nos moribundos deve apreciar-se mais segundo as disposições interiores
do que segundo o tempo... Uma vez que é Deus que sonda os corações, não se deve
recusar, em momento nenhum, a penitência, a quem a pede, porque o pecador entrega-se
a um juiz que conhece todos os segredos.
4101 5. Nenhum bispo pode ser imposto àqueles a quem não agrada: é preciso o consenso
do clero, do povo e da autoridade.

CARTA 21 3

4102 2. Agostinho, homem de santa memória pela sua vida e seus merecimentos, esteve
sempre em comunhão connosco e nunca o salpicou nem sequer o rumor de suspeita
sinistra; e recordamos que foi homem de tão grande ciência, que já antes sempre foi
contado pelos meus predecessores entre os melhores mestres.
Prestemos atenção ao sentido das orações sacerdotais. As orações dos fiéis
transmitidas pelos Apóstolos são celebradas uniformemente no mundo inteiro e em
toda a Igreja católica, para que a lei da oração estabeleça a lei da fé4.
Os que presidem às assembleias santas dos povos e desempenham o serviço que
lhes foi entregue tornam presente à clemência divina a causa do género humano. Ao
mesmo tempo que toda a Igreja suplica com eles, pedem que se conceda a fé aos infiéis,
que os idólatras sejam libertados dos erros da sua impiedade, que aos Judeus seja

1
PAPA C ELESTINO I, Epistulae (=PL 50, 417-566; 56, 576 S ; 84, 679 S; 130, 749 S ; C. V OGEL , Paris 1966,
170-171). Celestino I foi eleito Papa em 422 e morreu em 432.
2
Carta aos bispos das províncias de Viena e de Narbona (=PL 56, 577). Esta carta foi escrita em 428.
3
Carta aos bispos da Gália (=PL 56, 577). Esta carta é do ano 431.
4
Ut legem credendi lex statuat supplicandi. O texto, a partir daqui, encontra-se também em Próspero de
Aquitânia.
UCRÂNIO 973

tirado o véu que lhes cobre o coração e lhes apareça a luz da verdade, que os hereges
voltem à verdade da fé católica, que os cismáticos recebam, renovado, o espírito da
caridade, que se dê aos que caíram5 o remédio da penitência, e, por fim, que aos
catecúmenos, conduzidos aos sacramentos da regeneração, lhes seja aberta a porta da
misericórdia celeste.
E que tudo isto se deve pedir ao Senhor não de modo superficial e inutilmente,
mostra-o a própria experiência, pois efectivamente Deus digna-Se atrair muitíssimos
de todo o género de erros e, arrancando-os ao poder das trevas, transfere-os para o
reino do Filho do seu amor e de vasos da ira torna-os vasos da misericórdia. Tudo isto
é sentido de tal modo como obra divina, que sempre se atribuiu a Deus, a quem
dirigimos esta acção de graças e esta confissão de louvor pela iluminação ou pela
emenda dos que referimos.
9. Também não consideramos sem utilidade o que a santa Igreja faz, de maneira 4103
idêntica, no mundo inteiro, sobre os candidatos ao baptismo. Quando eles se aproxi-
mam, crianças ou adultos, do sacramento da regeneração, não chegam à fonte de vida
sem que antes, pelos exorcismos e as exsuflações dos clérigos, o espírito impuro tenha
sido expulso deles; deste modo aparece como é verdadeiramente lançado fora o prínci-
pe deste mundo, como primeiro é atado o forte e depois lhe são arrebatados os seus
instrumentos, que passam para a posse do vencedor, Aquele que leva cativo o cativei-
ro e oferece dons aos homens.
CARTA AO IMPERADOR TEODÓSIO II 6

Quando se celebra a missa, em todas as igrejas se reza pelo vosso Império 7, 4104
dentro dos próprios mistérios8.

Urânio

Cartas 1

CARTA A PACATUM 2

11. (João, bispo de Nápoles, dirigindo-se à igreja na manhã de Sábado Santo), subiu 4105
para o trono, saudou como de costume o povo e, depois deste responder à saudação,
começou a oração. Ao terminá-la, expirou3.

5
Lapsi.
6
Esta carta é de 432.
7
Já desde o século II se fazia a petitio pelo imperador e pelo seu exército, incluída na oração dos fiéis, tal
como hoje a Igreja continua a orar por todos aqueles que detêm o poder político, para que o exerçam sempre
em favor sobretudo dos mais pobres.
8
Intra ipsa mysteria.
1
U RÂNIO , Epistulae (=PL 53, 859-866). Urânio foi discípulo de Paulino de Nola. O facto por ele relatado
refere-se ao bispo de Nápoles João I, que morreu em 2 de Abril de 432.
2
Epistula ad Pacatum.
3
Ascenso tribunali ex more populum salutavit resalutatusque a populo orationem dedit et collecta oratione
spiritum exhalavit.
974 SÉCULO V

Isidoro de Pelúsia

Cartas 1

LIVRO I

CARTA 38 2

4106 Toda a gente diz que és uma fera estranha e monstruosa, e que nem à mesa ficas
manso; não te refreiam os vínculos do amor, nem te doma a força do costume, e, desse
modo, atrais sobre o altar uma tão grande desgraça. Por conseguinte, abjura dessa
ferocidade indomável e mostra-te homem em vez de fera, ou, então, afastando-te do
tremendo sacrifício, põe termo a essa injúria que infliges à Igreja.
CARTA 123 3

4107 Aquela toalha limpa, estendida por baixo dos dons para o serviço divino, recorda
o ministério de José de Arimateia. Assim como ele confiou à sepultura, envolto num
lençol, o Corpo do Senhor, pelo qual toda a nossa família obteve a ressurreição, do
mesmo modo nós, ao consagrarmos o pão da proposição sobre uma toalha, nela
encontramos sem dúvida o Corpo de Cristo, do qual brota para nós, como de uma
fonte, aquela imortalidade que Jesus Salvador, sepultado por José, mas ressuscitado
de entre os mortos, nos deu gratuitamente.
CARTA 170 4

4108 Dizem alguns que tu não só fazes o que está proibido, mas também cometes
actos criminosos e que, apesar disso, estendes continuamente as mãos, com ousadia,
para os divinos mistérios e recebes o que não te é lícito tocar. Admira-me muito a tua
desvergonha, dado que, participando até à saciedade da mesa dos Demónios, não
temes tornar-te também participante da mesa do Senhor. Tem cuidado, não aconteça
que um laço acabe contigo como aconteceu a Judas, que caiu em desespero por ter tido
a audácia de pedir a comunhão quando estava a realizar a traição.

LIVRO II

CARTA 52 5

4109 Calem-se aqueles que desprezam o sacerdócio por causa de Eusébio, de Zózimo,
de Paládio e de Maron, e não afiem contra si a espada vingadora. Dirijam censuras
àqueles que não são capazes de viver honestamente, por serem homens maus e inimigos

1
ISIDORO DE P ELÚSIA , Epistulae (=PG 78, 177-1645; SCh 422 e 454). Isidoro parece ter nascido em Alexandria
talvez pelo ano 360, e morreu por volta do ano 435.
2
Esta carta foi escrita a Maron, que era presbítero.
3
Esta carta foi escrita ao conde Doroteu.
4
Esta carta foi escrita a Queremon.
5
Esta carta foi escrita ao bispo Teodósio.
ISIDORO DE PELÚSIA 975

da piedade e da virtude; mas ao sacerdócio enalteçam-no e encham-no de louvores,


pois a todos oferece com abundância o que é preciso. Por ele somos regenerados e
participamos dos divinos mistérios, sem os quais é impossível conseguir o prémio
celeste, como consta das palavras divinas, nas quais não há mentira: Quem não nascer
da água e do Espírito não pode entrar no Reino dos Céus 6. E noutro lugar: Se não
comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu Sangue, não tereis a vida
em vós 7.
Pois bem: se é impossível conseguir a herança divina sem estes mistérios e se
estes mistérios, por outro lado, de modo nenhum se podem realizar sem a mediação do
sacerdócio, aquele que os despreza acaba por lançar um insulto sobre as coisas divinas
e por desprezar também a sua própria alma. Por conseguinte, para que isso não suceda,
consideremos o sacerdócio como algo divino, choremos os que se aproximam dele
indignamente, mas não atribuamos os seus pecados ao sacerdócio, ao qual se deve toda
a veneração.
CARTA 246 8

Eusébio, bispo dos Pelusitas, deve aprender o que é a Igreja. É completamente 4110
absurdo e muito prejudicial que, não sabendo sequer isto, se tenha por bispo. Aqueles
que provaram a sabedoria sabem muito bem que a Igreja é a reunião dos santos,
formada pelos que têm verdadeira fé e vivem de maneira irrepreensível. Também não é
desconhecido para ninguém que ele, por não saber isto, destrói a verdadeira Igreja,
tornando-se ocasião de escândalo para muitos, e que, ao mesmo tempo, anda a construir
um templo. Por um lado, despoja aquela de toda a sua beleza, expulsando dela os que
são bons, e, por outro, adorna este com luxuosos mármores. Se ele soubesse bem que
a Igreja é uma coisa e o templo outra, uma vez que aquela é constituída por pessoas
santas e este é edificado com pedras e madeira, creio que poria fim à obra de demolir
aquela e adornar este mais do que é preciso. O Rei celestial não veio à terra por causa
das paredes, mas pelas almas.
Se continua a fingir que não entende o que digo, embora isto seja mais que
evidente até para os menos inteligentes, tentarei explicá-lo com alguns exemplos. Uma
coisa é o altar, outra é o sacrifício; uma coisa é o lugar da incensação, outra é o próprio
incenso; uma coisa é a sala do senado, outra é o senado em si mesmo, pois aquela é o
lugar da reunião, ao passo que este são os homens que deliberam, e dos quais depende
a ruína e a salvação. O mesmo deve dizer-se acerca da diferença entre o templo e a
Igreja.
E, se alguém continuar a dizer que nem mesmo assim ele entendeu, saiba que no
tempo dos Apóstolos, quando a Igreja abundava em dons espirituais e fazia brilhar o
esplendor da sua vida, não havia templos. Mas, no nosso tempo, enquanto os templos
estão mais adornados do que é preciso, a Igreja, sem querer dizer nada demasiado duro,
é motivo de riso para todos. Eu, certamente, se me dessem a escolher, preferiria ter
vivido naqueles tempos, em que os templos não estavam tão adornados, mas em que a
Igreja era coroada com graças divinas e celestiais, e não nestes tempos, em que os
templos estão muito adornados com mármores de todas as classes, mas em que a Igreja
se encontra privada e desprovida daquelas graças espirituais.

6
Jo 3, 5.
7
Jo 6, 53.
8
Esta carta foi escrita ao bispo Teodósio.
9
Esta carta é escrita ao bispo Teodósio.
976 SÉCULO V

LIVRO III

CARTA 75 9

4111 O bem-aventurado Paulo chama sacerdotes àqueles que, apenas com a sua pessoa
e não com sacrifícios, desempenham os ofícios da piedade e espontaneamente oferecem
os seus corpos em libação. Na verdade, ter a alma pura e o corpo casto é um sacrifício
preciosíssimo. Por isso é que ele diz também aquilo que me pediste para te explicar:
Exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos
como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Seja este o vosso verdadeiro culto,
o espiritual10. Não foi só ao escrever aos sacerdotes, como tu crês, que ele prescreveu
estas coisas, mas a toda a Igreja. Nesta passagem mandou que todos fossem sacerdotes.
E se a castidade consagra e faz dos súbditos sacerdotes, a ausência de castidade priva
os sacerdotes da sua consagração11. É verdade que isto o prescrevem as leis, mas não se
cumpre muito bem, embora não me pertença a mim apontar as causas. Todos os que
receberam a coroa do sacerdócio e conseguiram ser colocados à frente dos fiéis de
maneira digna, serão santos em alto grau, se guardarem, além disso, a castidade do
corpo...

LIVRO V

CARTA 12 12

4112 Muitos, certamente (talvez seja muito duro dizer todos), escarnecem muitíssimo
de ti. Oxalá não o fizessem fundados na verdade. Mas acontece que o teu irmão carnal,
com lágrimas e dor, nos disse essas mesmas coisas, para não fazer menção de outras
mais intoleráveis. Ele próprio tentou arrancar-te, se fosse possível, desse abismo de
impureza, no qual envelheceste para dano da tua cabeça...
Escrevi-te para que, dominando-te e reflectindo sobre a desonra da tua falta de
castidade, considerasses maduramente a velhice que já te alcança, o sagrado sacerdócio
do qual não sei como tiveste a audácia de te aproximar, a actual desonra e os escândalos
e, por fim, o suplício futuro, uma vez que, sepultado em toda a espécie de vícios,
apesar de teres chegado à velhice, continuas as loucuras da juventude. Como podes
aconselhar os jovens a viver com temperança, se nem sequer te aconselhas sobre isso
a ti mesmo na velhice? Como não tremes por fazer tais coisas, ao mesmo tempo que te
aproximas dos altares? Como te atreves a tocar os mistérios imaculados? Por isso te
exorto (pois ainda que doa, a verdade deve dizer-se sem medo) a que deixes de fazer
essas maldades, ou então a que te afastes do santo altar, não aconteça que chames fogo
do céu sobre a tua cabeça...

10
Rom 12, 1.
11
Esta forma de pensar é, como facilmente se percebe, incorrecta.
12
Esta carta foi escrita ao presbítero Zózimo.
JOÃO CASSIANO 977

João Cassiano

Instituições Cenobitas 1

LIVRO II

O OFÍCIO DIVINO

2. Vemos noutras regiões que muitos, confiando nas suas próprias luzes e tendo, 4113
como diz o Apóstolo, o zelo de Deus mas mal esclarecido2, constituíram para si, sobre
este ponto, regras e usos variados. Alguns entenderam que deviam dizer em cada noite
vinte ou trinta salmos, prolongados pelas melodias das antífonas e cantados com
alguma modulação... Deste modo acabaram por introduzir-se quase tantos costumes
quantos são os mosteiros...
É por isso que me parece necessário testemunhar aqui o uso mais antigo dos
Padres, uso ainda hoje observado em todo o Egipto pelos servos de Deus, a fim de que
o novo mosteiro que acaba de nascer em Cristo siga as mais antigas instituições dos
primeiros Padres.
3. Na verdade, se acabamos por ver nas outras regiões uma tal diversidade de regras 4114
e de práticas, é por ousarmos governar os nossos mosteiros, a maior parte do tempo,
sem conhecer as instituições dos antigos, e porque, feitos abades antes de ter sido
discípulos, ordenamos o que nos agrada e pomos mais zelo em fazer observar o que
vem da nossa invenção pessoal do que em guardar a pura doutrina dos antigos.
4. O Ofício da noite. Todo o Egipto e toda a Tebaida mantêm, quer para o ofício da 4115
tarde quer para o da noite, o número de doze salmos; seguem-se duas leituras, uma do
Antigo e outra do Novo Testamento. Esta medida (de salmos), de instituição muito
antiga, foi guardada escrupulosamente durante tantos séculos em todos os mosteiros
do Egipto, porque os antigos asseguram que ela não deve a sua origem a uma iniciativa
humana, mas veio do Céu e foi transmitida aos Padres pelo ministério de um Anjo.
5. Ao chegar o momento da celebração vespertina, e dispostos a iniciar os ritos 4116
quotidianos do momento, rapidamente apareceu um que, colocando-se no meio, cantou
os salmos ao Senhor. Estavam todos sentados, como ainda hoje é costume no Egipto,
com toda a atenção do seu coração posta nas palavras daquele que cantou onze salmos
separados pelas suas orações, recitando os versículos dos salmos num tom sempre
igual e distinto. No fim, terminou o salmo doze seguido do aleluia e desapareceu
repentinamente aos olhos de todos. Deste modo pôs fim à discussão e, ao mesmo
tempo, à sinaxe litúrgica.
6. Na raiz deste acontecimento, a venerável assembleia dos Padres compreendeu 4117
que não fora sem uma especial providência de Deus que se tinha estabelecido uma
norma geral pelo ministério de um Anjo para todas as comunidades dos irmãos, e, por
conseguinte, dispôs que se guardasse este número de salmos quer nas reuniões litúrgicas

1
J OÃO C ASSIANO , De institutis coenobiorum (=PL 49, 53-476; CSEL 17; SCh 109). Terá nascido por volta
de 365. Foi monge em Belém e depois no Egipto. Veio a ser ordenado diácono por S. João Crisóstomo e
presbítero em Roma. Por fim, chegou a Marselha, onde fundou mosteiros de homens e de mulheres. Deve ter
morrido por volta de 435.
2
Rom 10, 2.
978 SÉCULO V

da tarde quer nas da noite. Eles acrescentam duas leituras, uma do Antigo Testamento
e outra do Novo, graças à tradição recebida, e a título suplementar só para aqueles que
o desejam e se aplicam a manter mediante uma meditação assídua a memória das
divinas Escrituras. Mas nos dias de sábado e domingo, as duas leituras são do Novo
Testamento, a primeira do Apóstolo ou dos Actos, a segunda dos Evangelhos. Durante o
tempo pascal, aqueles que fazem memória das Escrituras procedem do mesmo modo.
4118 7. Eles começam e acabam estas orações do seguinte modo: quando termina um
salmo, não se põem precipitadamente de joelhos, como muitos o fazem nesta província,
onde antes mesmo de o salmo ter acabado, nos apressamos em prostrar-nos para orar,
a fim de que o Ofício termine o mais depressa possível... Eles não fazem assim. Antes
de ajoelhar, rezam algum tempo e ficam assim de pé, suplicantes, durante a maior parte
desta oração silenciosa. Depois prostram-se por um instante, para adorar como convém
a bondade divina, e levantam-se muito rapidamente. Novamente de pé, de mãos
estendidas, retomam a oração. Dizem que quem permanece muito tempo prostrado é
mais perigosamente atacado não só por pensamentos, mas também pelo sono. Quando
aquele que deve dizer a colecta se levanta, todos fazem o mesmo; nenhum ousa pôr-se
de joelhos antes dele, nem permanecer prostrado depois dele se ter levantado, para não
dar a impressão de fazer a sua oração em particular, em vez de seguir aquele que reúne
a oração de todos.
4119 8. Quanto àquilo que vemos nesta província3, a saber, que um canta sozinho, e no
final do salmo todos se levantam e cantam em coro, em voz alta: Glória ao Pai, ao
Filho e ao Espírito Santo, isso nunca o tínhamos ouvido em todo o Oriente. Mas é no
meio de total silêncio que, depois de o cantor terminar o salmo, se segue a oração; só
costumamos terminar as antífonas por esta glorificação da Trindade.
4120 10. Quando se reúnem para celebrar as solenidades mencionadas, às quais chamam
sinaxes, observam um silêncio absoluto. Apesar de serem tantos os monges, pensar-se-ia
que naquele lugar não há mais ninguém além daquele que canta o salmo, de pé, no meio
de todos. Esta impressão é ainda mais forte quando se reza a colecta final. No momento
em que ela é dita nunca ninguém escarra, nem tosse, nem cospe; ninguém boceja, não se
ouve um suspiro que possa distrair os outros; não se ouve nenhuma voz, excepto a do
sacerdote que conclui a oração... Por tal motivo determinaram que esta oração seja
breve, para não acontecer que, prolongando demasiado a permanência naquele lugar,
algum excesso de humor ou de fleuma prejudique a elevação da oração. Pensam que,
enquanto se mantém o fervor, é preciso arrebatar, por assim dizer, a oração das fauces
do inimigo... Por esse motivo crêem que é mais útil fazer só orações curtas, mas
repetidas muitas vezes. Deste modo, graças às orações frequentes, podemos estar
continuamente unidos a Deus, e, por outro lado, evitamos mais facilmente, graças a
esta brevidade, os dardos com que o Diabo, sempre à espreita, quer atingir-nos
principalmente quando oramos.
4121 11. É pela mesma razão que eles não querem recitar duma só vez certos salmos mais
longos, mas os dividem em duas ou três partes, conforme o número dos versículos,
ajuntando uma oração no fim de cada uma destas partes. Porque não é na quantidade
dos versículos que eles encontram as suas delícias, mas na compreensão daquilo que
dizem; e põem em prática, com toda a sua energia, a palavra do Apóstolo: Cantarei
salmos com o espírito, mas cantarei igualmente com a inteligência 4. Consideram
mais útil cantar apenas dez versículos com toda a atenção, do que dizer um salmo inteiro
e deixá-lo perder por entre a variedade dos nossos pensamentos... O monge ancião está

3
Na Gália.
4
1 Cor 14, 15.
JOÃO CASSIANO 979

atento para que a prolixidade dos salmos não cause aborrecimento aos que estão sentados,
de modo que, nem o solista perca o fruto da inteligência, nem o excesso seja em prejuízo
dos que estão reunidos, e que por esta razão poderiam cansar-se na sinaxe. Entre eles
põe-se muito cuidado em não dizer nenhum outro salmo como resposta ao aleluia, além
daquele que traz no seu título a menção do aleluia. E no que diz respeito aos doze
salmos, recordados anteriormente, dividem-nos assim: quando há dois irmãos, cada um
canta seis; quando há três, cada um canta quatro; quando há quatro, cada um canta
três. Nas assembleias não se canta nunca um número inferior de salmos, e mesmo que
os irmãos reunidos sejam muitos, nunca são mais de quatro os que cantam na sinaxe.
12. Ao recitarem este número canónico de doze salmos, têm o corpo em repouso de 4122
tal modo que, quando se reúnem para celebrar o ofício, todos, excepto aquele que se
levanta para cantar os salmos, se mantêm sentados em assentos muito baixos e, de
coração vigilante, ficam suspensos da voz do solista. São obrigados a sentar-se, por
estarem de tal modo fatigados pelos jejuns e pelo trabalho do dia e da noite, que não
poderiam manter-se de pé durante doze salmos...
Consideram que foi por uma sábia disposição do próprio Deus que as orações da
regra foram reduzidas a um pequeno número: deste modo os mais fervorosos podem
levar mais longe o ardor do seu zelo, ao passo que aqueles que estão fatigados ou fracos
de saúde escapam ao cansaço que uma extensão excessiva geraria. Por isso, quando o
ofício regular termina, cada um volta à sua cela, onde pode permanecer sozinho ou
acompanhado de outro, ao qual esteja unido por motivos de trabalho, de magistério ou
de discipulado, ou por estarem irmanados na virtude. Ali celebram de novo, com mais
atenção, a mesma ordem de orações, como sacrifício privado; e a partir desse momento
nenhum deles se abandona ao repouso até ao momento em que, ao romper da alva, a
actividade do dia sucede ao trabalho e à meditação da noite.
13. Por isso, às vigílias canónicas seguem-se as privadas, mostrando-se eles ainda 4123
mais exactos nestas, para que a pureza adquirida antes nos salmos e orações não venha
a perder-se, e com a meditação da noite se disponham para exercitar durante o dia uma
solicitude mais intensa. Assim, às vigílias acrescenta-se o trabalho para que não os
surpreenda o sono por estarem desocupados, de tal modo que sem darem ocasião ao
ócio, também não põem limite à meditação espiritual. Exercitando ora uma ora outra
das virtudes do corpo e da alma, unem o aproveitamento do homem exterior com o
homem interior. Deste modo, com o peso do trabalho, como com uma âncora tenaz e
inamovível, dominam os movimentos sensuais do coração e a inconstante flutuação
dos pensamentos, e sujeitam a inconstância e veleidade da mente aos muros da cela
como um porto seguríssimo. Esta âncora faz com que a atenção do espírito se dirija
apenas à meditação espiritual...
14. Concluídos os salmos e a sinaxe, como já dissemos antes, nenhum monge fica a 4124
conversar com outro nem sequer um instante. Ninguém, igualmente, abandona durante
todo o dia a sua cela ou deixa o trabalho que aí costuma fazer, a não ser quando é
chamado para realizar algum trabalho indispensável.
15. Uma vez fora da cela realiza-se o trabalho sem dar qualquer oportunidade a 4125
alguma conversa com os outros, mas cada um faz o trabalho que lhe foi entregue
recitando de cor um salmo ou uma passagem da Escritura, para não alimentar nem as
conspirações perigosas e conselhos perversos, nem tão pouco as conversas ociosas; os
lábios e o coração estão gostosamente ocupados por ofício na meditação espiritual...
18. Também devemos saber que os Egípcios, desde a tarde de sábado, vigília do 4126
domingo, até à tarde seguinte não se ajoelham, como sucede no Tempo pascal, e também
não se jejua.
980 SÉCULO V

LIVRO III

4127 1. As Horas canónicas do dia. Ao passo que nós só oferecemos ao Senhor as


nossas orações em horas determinadas, durante um tempo restrito e quando é dado o
sinal para isso, os monges do Egipto fazem-no ao longo da jornada, sem interrupção,
e de maneira absolutamente espontânea, enquanto trabalham com as mãos. Com efeito,
embora trabalhem sem parar, sozinhos nas suas celas, não cessam de murmurar
interiormente salmos ou outras passagens das Escrituras. Misturam assim trabalho e
oração, e todo o seu tempo é ocupado por aquilo a que nós consagramos apenas os
momentos fixados pela regra.
É por isso que, fora do Ofício da tarde e do Ofício da noite, eles nunca se reúnem
para orar durante o dia, excepto no sábado e no domingo, em que se reúnem à hora de
Tércia para a santa comunhão. Efectivamente, a oração que é oferecida sem interrupção
vale mais que aquela que só apresentamos com intervalos, e uma oferenda espontânea é mais
agradável ao Senhor que os deveres de piedade que Lhe prestamos obrigados pela regra...
4128 2. O Ofício nos mosteiros da Palestina. Mas nos mosteiros da Palestina, da
Mesopotâmia e nos de todo o Oriente, celebram-se as Horas diurnas recitando apenas
três salmos, para que a assiduidade da oração seja garantida pela precisão de um
horário, e que, entretanto, estes momentos consagrados à oração, graças à sua relativa
brevidade, não prejudiquem os trabalhos do dia.
A Escritura ensina-nos que, nesses três momentos da jornada, o profeta Daniel
abria as janelas do seu quarto (para Jerusalém) e oferecia as suas orações ao Senhor.
Aliás, não foi sem razão que se escolheram essas três horas para cumprir o Ofício
divino, porque foi nelas que todas as promessas de Deus se cumpriram e que toda a
obra da nossa salvação foi consumada.
Tércia. Com efeito, foi à hora de Tércia que o Espírito Santo, outrora prometido
pelos Profetas, desceu pela primeira vez sobre os Apóstolos reunidos para orar...
Sexta. À hora de Sexta, nosso Senhor e Salvador foi oferecido ao Pai como vítima
sem mancha, e, subindo à cruz para a salvação de todo o mundo, apagou os pecados do
género humano... Também foi nesta hora que Pedro caiu em êxtase e soube, por uma
revelação angélica, a vocação dos gentios, figurada no lençol evangélico que descia do céu...
Noa. À hora de Noa, o Salvador desceu aos Infernos, dissipou as trevas pelo
esplendor da sua glória, quebrou as portas de bronze, rompeu as cadeias de ferro,
libertou os santos que as trevas retinham cativos e levou-lhes a salvação, fazendo-os
subir com Ele aos Céus, desviou a espada de fogo que fechava a entrada do Paraíso e
nele reintroduziu o homem, que outrora aí habitara e agora confessava piedosamente o
seu Senhor. Nesta mesma hora, o centurião Cornélio, entregue à oração segundo o seu
costume, soube por um Anjo que o Senhor Se tinha lembrado das suas orações e das
suas esmolas. Tudo isto prova que estas Horas, com razão consagradas ao culto
religioso pelos homens santos e apostólicos, as devemos observar nós também da
mesma maneira, pois, se não fôssemos obrigados como que por uma lei a cumprir estes
deveres de piedade, pelo menos em momentos determinados, passaríamos todo o dia
no esquecimento e no tédio ou ocupados por nossos afazeres, sem recorrermos à oração.
As Vésperas. Quantas coisas poderíamos nós dizer dos sacrifícios da tarde? Não
são eles a oferenda constantemente prescrita inclusive no Antigo Testamento pela lei
de Moisés? David ensina-nos com que fidelidade se ofereciam diariamente no templo,
de manhã holocaustos e à tarde sacrifícios, cujas vítimas eram apenas figuras do sacrifício
verdadeiro: Suba até Vós, Senhor, a minha oração como incenso, e as minhas mãos se
elevem como sacrifício vespertino5. A oração da tarde, num sentido mais sagrado,

5
Sal 140, 2.
JOÃO CASSIANO 981

pode ainda evocar aquele verdadeiro sacrifício vespertino que o nosso Salvador confiou
aos Apóstolos na última Ceia, ao inaugurar os sacrossantos mistérios da Igreja, quer
aquele sacrifício vespertino que, no dia seguinte, no fim dos tempos, Ele ofereceu ao
Pai, ao erguer as mãos para a salvação do mundo inteiro.
3. Laudes. Quanto ao Ofício da manhã, estes versículos, que nele cantamos todos 4129
os dias, dão-nos a sua justificação: Senhor, sois o meu Deus: desde a aurora Vos
procuro... Quando no leito Vos recordo, passo a noite a pensar em Vós... Imploro o
vosso auxílio antes da aurora6...
4. Prima, Tércia, Sexta, Noa e Lucernário. Nas Horas seguintes, o dono da casa 4130
do Evangelho convidou os trabalhadores para a sua vinha7. Com efeito, diz-se que os
convidou na primeira hora da manhã, tempo que designa a nossa celebração matutina;
depois vêem Tércia, Sexta, Noa e, por fim, a undécima Hora, tempo que significa o
Lucernário. Contudo é preciso saber que, a Hora matutina, observada agora em grande
parte do Ocidente, foi instituída pela primeira vez no nosso tempo e no nosso mosteiro,
no lugar onde nosso Senhor Jesus Cristo, nascido da Virgem Maria, Se dignou aceitar
os inícios da infância humana e confirmou, pela sua graça, toda a nossa terna e lactante
infância na religião. Até agora constatamos que esta celebração matinal – que nas
Gálias se celebra habitualmente depois de um breve intervalo, uma vez terminados os
salmos e as orações da noite – se celebra em Belém no momento que corresponde às
Vigílias diárias, ao passo que as outras horas restantes se deixavam, entre os antigos,
para o descanso do corpo...
Os antigos monges, depois de madura deliberação e de terem pedido os pareceres
oportunos, resolveram conceder aos monges, para eles repararem as suas forças, um
repouso suficiente até ao nascer do sol, ou seja, até ao momento em que cada um pode,
sem cansaço, dedicar-se à leitura ou aplicar-se ao trabalho manual. Depois, todos eram
chamados ao culto, devendo levantar-se imediatamente de seus leitos e, rezando três
salmos e três orações, segundo o costume já antigamente estabelecido para Tércia e
Sexta, semelhança de um tríplice louvor, poriam fim ao descanso e começariam
uniformemente o trabalho manual.
Embora este ofício (de Prima), seja de instituição recente e puramente ocasional,
ele realiza admiravelmente e mesmo à letra este nome, e completa com evidência e
literalmente o número de que fala o profeta David, apesar de este ter também um
sentido espiritual: Eu Vos louvo sete vezes ao dia, por causa dos vossos justos juízos 8.
Com efeito, juntando esta Hora canónica, ao mesmo tempo que nos reunimos sete
vezes para a oração, outras tantas cantamos os louvores do Senhor.
8. A Vigília na noite de sexta-feira para sábado. Depois de terem cantado em 4131
conjunto, de pé, três antífonas, sentam-se por terra em bancos baixinhos e respondem
àquele que salmodia durante três salmos; os irmãos sucedem-se uns aos outros, cada
um por sua vez, na função de solista; a isto, sempre nesta atitude de repouso, acrescentam
três leituras.
11. O domingo monástico. No domingo, os irmãos reúnem-se uma só vez, de manhã, 4132
para celebrar o Ofício. Recitam salmos, orações e leituras, de maneira mais solene e
mais prolongada do que é costume, por causa do respeito que eles têm a esta assembleia
e à comunhão do Corpo do Senhor. Esta celebração única substitui os ofícios de Tércia
e de Sexta.
Apesar de não diminuírem nada às orações habituais, pois lhes acrescentam
leituras, esta celebração da Ressurreição do Senhor traz-lhes um pouco de descanso e

6
Sal 62, 2.7.
7
Mt 20, 1-6.
8
Sal 118, 164.
982 SÉCULO V

diversão, uma vez que, por respeito por ela, eles amenizam nesse dia o jejum. Esta
diferença que eles fazem entre o domingo e os outros dias de semana, leva-os a esperá-lo
como um dia de alegria e de festa, e tal expectativa torna menos pesado o jejum da
semana. Com efeito, suporta-se melhor o que é penoso e sofre-se a fadiga com menos
cansaço se, de tempos a tempos, alguma coisa é diferente e traz um pouco de variedade.

LIVRO IV

4133 5. Tomada de hábito. Quando um candidato é admitido no mosteiro, tudo o que ele
possui lhe é tirado. Nem sequer lhe é permitido guardar a roupa que traz vestida.
Conduzem-no ao meio da assembleia dos irmãos, onde lhe são tiradas as vestes, e o
Abade, com as suas mãos, veste-o com o hábito do mosteiro...
4134 16. Penitências habituais. Quando sucede que um monge quebra, por mero acidente,
um vaso de barro cosido, só pode reparar esta negligência por uma penitência pública:
quando os irmãos se reúnem na igreja, ele permanece prostrado até ao fim do Ofício
para lhes pedir perdão daquilo que fez, e obtém este perdão quando o Abade lhe diz
para se levantar.
Esta mesma satisfação é prescrita àqueles que chegam atrasados ao trabalho ou
ao ofício, aos que cometem qualquer falta ao recitarem um salmo, aos que dão uma
resposta inútil, dura ou insolente, aos que obedecem com negligência, aos que fazem
alguma pequena murmuração, etc... Se as faltas forem mais graves, serão castigados
com alguma punição corporal, ou pela expulsão do mosteiro.

Conferências 9

CONFERÊNCIA 2

4135 4. A conferência durou da hora de Vésperas até ao romper do dia, e a maior parte da
noite foi consagrada ao assunto que nos ocupa (a discrição)... Cada um dava o seu
parecer, segundo a sua ideia pessoal. Uns propunham vigílias e jejuns...
Por fim, o bem-aventurado António tomou a palavra e disse: «Tudo o que acabais
de dizer é necessário e útil..., mas a discrição é a mãe, a guardiã e a moderadora de todas
as virtudes...».
CONFERÊNCIA 7

4136 30. A respeito da santíssima comunhão, não nos lembramos de jamais ter sido proibida
aos possessos; ao contrário, pensávamos que lha devíamos dar todos os dias, se fosse
possível. A palavra do Evangelho: Não deis o que é santo aos cães, não tem a aplicação
que indevidamente fizestes neste caso: a santíssima comunhão não vai servir de alimento
aos Demónios, mas purificar e guardar o corpo e a alma do possesso. Recebida por ele,
torna-se, para o espírito que habita nos seus membros ou que aí procura esconder-se,
um fogo que o queima e o obriga a fugir. Foi deste modo que vimos ficar curado
recentemente o abade Andrónico, depois de muitos outros. Ao contrário, o Inimigo
enfurecer-se-á cada vez mais contra o possesso, se vir que ele é afastado do médico
celeste; os seus ataques tornar-se-ão mais terríveis e frequentes, quando ele o vir
excluído do remédio espiritual durante mais tempo...
9
JOÃO C ASSIANO , Conlationes (=PL 49, 477-1328; CSEL 13; SCh 42, 54 e 64). Estas conferências ou
colóquios tiveram lugar depois do ano 420.
JOÃO CASSIANO 983

CONFERÊNCIA 9

2. Toda a finalidade do monge e da perfeição do coração consistem numa 4137


perseverança ininterrupta na oração e num esforço para conseguir... uma tranquilidade
serena e uma perpétua pureza do espírito... Vivificado com este alimento, de que não
cessa de nutrir-se, penetra no sentido íntimo dos salmos. E assim não é de admirar que
os recite, não como compostos pelo Profeta, mas como se fosse ele mesmo o seu autor.
Isto é, como se se tratasse de uma luta pessoal, sentindo-se movido pela mais profunda
compunção. Ou também os considera escritos de propósito para ele, e compreende
que os sentimentos que contêm não se realizaram só anteriormente na pessoa do
salmista, mas que se cumprem todos os dias... Penetrados dos mesmos sentimentos
nos quais foi composto ou cantado o salmo, vimos a ser, por assim dizer, os autores.
Antecipamo-nos mais ao pensamento do que o seguimos; captamos o sentido melhor
do que compreendemos a letra. As palavras santas evocam as nossas recordações de
coisas vividas... Instruídos pelo que nós mesmos sentimos, não os percebemos como
coisa meramente ouvida, mas experimentada e tocada pelas nossas mãos, não como
coisa alheia e nunca ouvida, mas como algo que damos à luz no fundo do nosso coração,
como se fossem sentimentos que fazem parte do nosso próprio ser...
3. Tudo o que ocupou a nossa alma antes do tempo da oração, se irá apresentar 4138
necessariamente ao nosso espírito quando oramos... Apressemo-nos, por isso, em
expulsar do santuário do nosso coração, antes de irmos orar, tudo o que não queremos
encontrar aí quando oramos...
9. O Apóstolo distinguiu quatro espécies de orações: Recomendo, antes de tudo, 4139
que se façam preces, orações, súplicas e acções de graças 10.
18. Estes diversos modos de oração que acabamos de enumerar serão seguidos dum 4140
estado ainda mais sublime e elevado, constituído apenas pela contemplação de Deus...
O texto da Oração do Senhor ensina-nos, com as primeiras palavras, que nós devemos
tender com zelo para este estado: «Pai nosso». Ao confessarmos que o Deus e Senhor
do universo é nosso Pai, reconhecemos ter sido chamados da condição de escravos à de filhos...
25. Esta oração do Pater, que parece conter toda a perfeição, não só por ter o 4141
próprio Senhor por autor, mas porque foi Ele mesmo que no-la prescreveu, eleva
aqueles que a tornam familiar a um grau ainda mais elevado, a esse estado superior de
que falámos, a essa oração de fogo que poucos conhecem por experiência, por assim
dizer, inefável. Ela ultrapassa todos os sentimentos do homem...
Há muitos que tremem quando pensam (que têm de dizer Perdoai-nos as nossas
ofensas, assim como nós perdoamos) e, quando o povo na igreja, numa só voz, recita
o Pai-Nosso, deixam passar estas palavras sem as dizerem eles próprios, com medo de
se condenarem pela própria boca em vez de se desculparem... Vãs subtilezas...
26. Quem poderá expor, por maior que seja a sua experiência, a diversidade, as 4142
causas, a origem dessas «compunções» que inflamam e abrasam o espírito e o levam a
fazer orações puras e cheias de fervor?... Por vezes é um versículo de salmo que é para
nós a ocasião desta oração de fogo, enquanto cantamos. Outras vezes é o canto ornado
e harmonioso de um irmão que desperta os ouvintes do seu torpor espiritual. Também
sei que uma salmodia grave e austera já tem provocado, algumas vezes, grande fervor
àqueles que a ouvem...
CONFERÊNCIA 10

11. Para guardar continuamente a lembrança de Deus, deveis ter presente ao vosso 4143
espírito, sem cessar, esta fórmula santa: Deus, vinde em meu auxílio; Senhor, socorrei-me

10
1 Tim 2, 1.
984 SÉCULO V

sem demora11. Não é sem razão que este versículo foi escolhido, de entre toda a Sagrada
Escritura...
Nele encontramos a invocação de Deus contra todos os perigos, a humildade
duma confissão simples e piedosa, a vigilância que nasce duma atenção e dum temor
contínuos, a consideração da nossa fragilidade, a confiança de ser escutado, a certeza
dum auxílio sempre presente e pronto a intervir. Com efeito, aquele que sem cessar
invoca o seu protector está seguro de o ter sempre presente...
Fortificado pelo alimento que bebe continuamente nos mistérios mais sublimes
dos Apóstolos e dos Profetas, o monge também é impregnado por todos os sentimentos
que se exprimem nos salmos, a tal ponto que eles brotam dos seus lábios..., não já
como textos compostos pelo Profeta, mas como se ele próprio fosse o seu autor e
como uma oração pessoal...
CONFERÊNCIA 14

4144 10. Se quiserdes chegar ao verdadeiro conhecimento das Escrituras..., esforçai-vos


por vos entregar com assiduidade, ou melhor, constantemente, à leitura sagrada, até
que esta ruminação contínua impregne o vosso espírito e o forme de algum modo à sua
imagem...
CONFERÊNCIA 21

4145 20. Estes dez dias12 são celebrados com a mesma solenidade e a mesma alegria dos
quarenta precedentes. A tradição desta festa13 veio até nós através dos cristãos do
tempo dos Apóstolos. O nosso dever é de lhe permanecer fiéis, sem nada lhe mudar.
Assim, nesses dias, não dobremos os joelhos na oração, porque esta atitude é sinal de
penitência e tristeza. Deste modo vemos que lhe damos a mesma solenidade do domingo,
acerca do qual os nossos Pais nos ensinaram que não se devia jejuar nem dobrar os
joelhos, em honra da Ressurreição do Senhor.
CONFERÊNCIA 22

4146 5. Devemos procurar por todos os meios ao nosso alcance conservar a pureza da
nossa castidade, principalmente nas ocasiões em que pensamos aproximar-nos do
santo altar, e devemos prevenir-nos com grande cuidado para que a integridade corporal
guardada até então não seja defraudada precisamente naquela noite em que nos
preparamos para a comunhão do banquete da salvação. Mas, se o inimigo perverso,
com o fim de nos privar da eficácia desse remédio celestial, enganar a vigilância da
nossa mente adormecida, desde que ela... não se contamine com algum consentimento
no prazer..., podemos e devemos aproximar-nos com toda a confiança da graça do
alimento salutar...
4147 6. Para que fique ainda mais claro que algumas vezes esta impureza nocturna
acontece por arte do Demónio, (vamos contar este caso): conhecemos um irmão que,
conservando perene castidade do corpo e do coração... se via, não obstante, manchado
durante o sono, sempre que se preparava para receber a comunhão do Senhor. Como,
por temor, há já muito tempo que ele se abstinha dos sagrados mistérios, apresentou
esta questão aos mais velhos, esperando encontrar no seu conselho o remédio da sua
tentação e angústia...

11
Sal 69, 2.
12
A seguir à Ascensão.
13
Pentecostes.
JOÃO CASSIANO 985

Eles... julgaram, sem qualquer temor, que ele devia aproximar-se do Corpo sagrado,
para não acontecer que, permanecendo nesta privação..., não pudesse participar da
santificação e do Corpo de Cristo... Daí por diante, com a protecção da virtude do
Corpo do Senhor, tudo o que acontecia até ali cessou...
7. Devemos pensar sempre que somos indignos da comunhão do Corpo sagrado. 4148
Em primeiro lugar porque a excelência daquele manjar é tão grande que ninguém... o
recebe por seus méritos, mas por generosidade gratuita do Senhor; em segundo lugar
porque ninguém pode ser tão cuidadoso entre os perigos deste mundo que o não
atinjam, de vez em quando, os dardos do pecado, mesmo que sejam poucos e leves,
pois é impossível viver sem pecar...
9. Uma coisa é ser santo, outra coisa é ser sem pecado. Ser santo é ser consagrado 4149
ao culto divino, e esta designação, segundo a Escritura, é comum aos homens e também
aos lugares, aos vasos e às alfaias do templo; ser sem pecado só se pode dizer de
maneira única de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual diz o Apóstolo: Ele não cometeu
pecado.
CONFERÊNCIA 23

19. Se alguém, ao olhar para a sua consciência, tiver a certeza de ter celebrado uma 4150
única sinaxe, para não dizer algo de maior, sem distrações por pensamentos, por
palavras ou por obras, pode afirmar-se sem pecado. Mas o que temos de confessar é
que o nosso espírito inconstante não consegue deixar de se dissipar com coisas frívolas
e superficiais. Por isso confessamos, com toda a verdade, que não estamos de modo
nenhum sem pecado. Por maior atenção que alguém ponha em guardar o coração, nunca
o guardará de acordo com o desejo do seu ser espiritual, em virtude da contradição que
descobre na sua condição carnal... 21. Mas não é pelo facto de nos reconhecermos
pecadores que devemos abster-nos da comunhão dominical. Devemos antes, isso sim,
preparar-nos cada vez com maior desejo para ela, a fim de aí encontrarmos a saúde da
alma e a pureza do coração. Mas que seja com sentimentos de humildade e grande
espírito de fé, julgando-nos indignos duma tal graça, e procurando antes o remédio das
nossas feridas. Se esperássemos a ocasião de ser digno, nem sequer faríamos a comunhão
uma vez ao ano. Esta prática da comunhão anual é própria de muitos dos que vivem
nos mosteiros. Eles fazem-se uma tal ideia da dignidade, da santidade e da grandeza
dos divinos mistérios, que acabam por pensar que só os santos e puros os devem
receber, em vez de pensarem que, recebendo-os, são eles que nos tornam santos e
puros. Os que assim pensam caem em maior presunção do que aquela que pretendem
evitar, pois se julgam dignos de os receber uma vez por ano. É muito mais santo
acreditar e confessar com humildade de coração que nunca nos podemos aproximar,
por nossos méritos, daqueles santíssimos mistérios, recebendo-os cada domingo como
remédio das nossas enfermidades, do que, cheios de vã presunção do coração, nos
julgarmos dignos de participar neles uma vez por ano.
Por isso, para podermos entender e guardar frutuosamente estas coisas,
imploremos com mais intensidade a misericórdia do Senhor para que nos ajude. Com
efeito, elas não se aprendem como as outras ciências humanas, nas quais se começa
pelo ensino verbal. O que aqui deve vir em primeiro lugar é a prática, a experiência. No
entanto é igualmente necessário fazer o seu estudo em conferências com homens
espirituais, e aprofundá-lo por meio de exemplos e da experiência de cada dia, pois de
outro modo elas esquecem-se por negligência ou perdem-se por esquecimento.
986 SÉCULO V

Vicente de Lerins

Primeira Exortação 1
4151 2. Deve haver um grande cuidado na própria Igreja católica, para mantermos aquilo
que foi acreditado em toda a parte, sempre e por todos. É isto o que verdadeira e
propriamente é católico.
4152 3. Os três critérios que garantem a ortodoxia são a universalidade, a antiguidade e a
aceitação unânime...
4153 22. Diz o Apóstolo: Ó Timóteo, guarda o depósito da fé, evita as vãs conversas
profanas. Quem é hoje Timóteo senão a Igreja na sua totalidade, e de modo particular
o conjunto dos seus responsáveis, os quais devem possuir em si mesmos ou fazer com
que outros adquiram toda a ciência do culto divino? ... Guarda o depósito. O que é o
depósito? É o que te foi confiado, não o que tu encontraste, é o que recebeste, não o que
imaginaste; não é um problema de engenho, mas de ensinamento, não de propriedade
privada, mas de tradição pública. Veio até ti, mas não nasceu de ti, pelo que não deves
ser autor, mas guardião; não deves ser mestre, mas discípulo; não deves ser condutor,
mas seguidor. Guarda o depósito, conserva inviolável e puro o talento da fé católica. O
que te foi confiado deve permanecer junto de ti e ser transmitido por ti. Tu recebeste
ouro, entrega ouro; não quero que me entregues outra coisa em sua substituição. Não dês
desavergonhada e fraudulentamente chumbo por ouro. Não quero ouro fingido, mas autêntico.
Ó Timóteo, ó presbítero, ó comentador, ó pregador: se o ministério divino te
tornou idóneo, pela capacidade, pelo trabalho, pela doutrina, constrói o tabernáculo
espiritual, esculpe as pérolas preciosas do dogma divino, une fielmente, adorna com
sabedoria, acrescenta esplendor, graça e encanto. Compreenda-se claramente, graças às
tuas exposições, o que se compreendia obscuramente antes de ti. Graças a ti a posteridade
felicitar-se-á por compreender o que antes de ti a antiguidade venerava sem o
compreender. Contudo, ensina o mesmo que aprendeste. E, quando falares de maneira
nova, não digas coisas novas2.
4154 23. Talvez alguém pergunte: Não haverá progresso algum dos conhecimentos religiosos
na Igreja de Cristo? Há, sem dúvida, e muito grande. Com efeito, quem será tão malévolo
para com a humanidade e tão inimigo de Deus que pretenda impedir este progresso?
Mas é preciso que seja um verdadeiro progresso da fé, e não uma alteração da fé.
Verifica-se um verdadeiro progresso quando uma coisa se desenvolve sem deixar de ser
ela mesma; dá-se uma alteração quando deixa de ser o que é e se transforma noutra.
É necessário, portanto, que, através das idades e dos séculos, cresça e se
desenvolva continuamente a inteligência, a ciência e a sabedoria de todos e cada um, de
cada homem e de toda a Igreja. Mas este desenvolvimento na fé deve dar-se segundo a
sua natureza, isto é, conservando a identidade do dogma, da doutrina e do seu significado.

1
V ICENTE DE L ERINS , Commonitorium (=PL 50, 637-686; CCL 64; cf. LH, IV). Aquilo que Vicente de Lerins
diz acerca da natureza da tradição pode aplicar-se à Liturgia. Vicente de Lerins nasceu na Gália, viveu uma
vida agitada, e por fim fixou residência em Lerins, onde viveu como presbítero. Era amigo e admirador de
Santo Agostinho. Deve ter morrido antes de 435.
2
Cum dicas nove, non dicas novum.
VICENTE DE LERINS 987

O conhecimento religioso das almas imita no seu desenvolvimento a estrutura


dos corpos. Estes crescem e desenvolvem-se através dos anos, mas conservam sempre
a sua natureza. Há uma grande diferença entre a flor da infância e a maturidade da
velhice; mas os que atingem a velhice são os mesmos que outrora eram adolescentes.
Mudam a condição física e a aparência do homem; no entanto continua igual a sua
natureza, permanece idêntica a sua pessoa.
São pequenos os membros dos recém-nascidos e grandes os dos jovens; e contudo,
os membros são os mesmos. Os adultos têm o mesmo número de órgãos que as crianças;
e se é verdade que alguns órgãos vão aparecendo com o processo de desenvolvimento,
eles encontravam-se já incluídos no embrião, de tal modo que nada de novo se revela
nos mais velhos que não estivesse já latente nas crianças.
Sobre isto não há dúvida alguma. É esta a norma legítima de todo o progresso,
são estas as leis maravilhosas de todo o crescimento: com o decorrer dos anos, vão-se
manifestando nos adultos aquelas perfeições que a sabedoria do Criador tinha formado
previamente no corpo do recém-nascido.
Se um ser humano mudasse de tal modo que viesse a apresentar uma estrutura
não correspondente à sua espécie, quer aumentando quer subtraindo algum dos seus
membros, necessariamente pereceria todo o organismo ou converter-se-ia num ser
monstruoso ou pelo menos ter-se-ia gravemente deformado. Também o dogma da
religião cristã deve seguir estas leis de desenvolvimento: fortalece-se com o decorrer
dos anos, desenvolve-se através das idades, cresce com o andar dos tempos.
Os nossos antepassados semearam outrora neste campo da Igreja a semente da
fé. Seria gravemente iníquo e incongruente que nós, seus descendentes, substituíssemos
a autêntica verdade daquele trigo pelo erro da cizânia.
A rectidão e a coerência exigem que não haja contradição entre a raiz e os seus
frutos: se eles semearam o trigo da verdadeira doutrina, o fruto que se há-de colher é o
trigo do verdadeiro dogma; e, se há sempre alguma porção daquelas primitivas sementes que
se pode ainda desenvolver com o andar dos tempos, isso deve continuar a ser objecto de uma
feliz e frutuosa cultura, mas sem mudar seja o que for das propriedades originais. É lícito
acrescentar espécies, formas e distinções, desde que permaneça a mesma natureza.
Longe de nós, portanto, que o jardim de rosas do espírito católico se transforme
em campo de cardos e espinhos. Longe de nós, volto a dizer, que neste paraíso espiritual
de cinamomo e bálsamo apareçam, de repente, rebentos de ervas venenosas e daninhas.
Aquilo que foi semeado no campo da Igreja de Deus pela fé dos pais, isso mesmo deve
ser bem cultivado e mantido pelo trabalho dos filhos, isso mesmo deve florescer e
amadurecer, isso mesmo deve desenvolver-se e aperfeiçoar-se.
Por isso é perfeitamente legítimo, ao longo dos tempos, cuidar com diligência,
limar e polir as antigas verdades da sabedoria celeste; mas é ilegítimo mudá-las, destruí-
-las ou mutilá-las... A Igreja de Cristo guarda, com diligência e cuidado, o conjunto dos
dogmas, mas nunca lhes muda seja o que for, não os diminui nem os aumenta, não lhes
corta o que lhes é necessário nem lhes acrescenta o que lhes é supérfluo, não deita fora
o que é seu nem vai buscar o que é alheio. É com muito trabalho que ela verifica tudo
a fim de que, tratando com fidelidade e sabedoria o que é antigo, aperfeiçoe e torne
mais brilhante o que antes apenas foi esboçado, torne firme o que já fora expresso e
desenvolvido, e guarde o que foi confirmado e definido...
27. É preciso interpretar as palavras bíblicas em conformidade com as tradições da 4155
Igreja universal e com as regras do dogma católico. Na Igreja católica e apostólica é
absolutamente necessário agarrar-se à universalidade, à antiguidade e à aceitação geral.
29. Santos Padres são aqueles que, nos seus tempos e lugares, permaneceram na 4156
unidade da comunhão e da fé e foram considerados mestres aprovados.
988 SÉCULO V

Rábulas de Edessa

Cânones para sacerdotes e clérigos 1


4157 As partículas do Corpo santo que caírem por terra, devem procurar-se
cuidadosamente. Se forem encontradas, raspe-se o sítio em que caíram: se for terra,
misture-se com água e dê-se aos fiéis como meio de alcançar graça. Se não se acharem,
raspe-se igualmente o solo, como dissemos. No caso de se derramar uma parte do
Sangue, proceda-se da mesma maneira. Se o chão for de pedra ponham-se brasas acesas
sobre ele2.

Carta ao bispo Gemelino 3


4158 Ouvi dizer que há entre vós, na região de Perra4, alguns irmãos que não conhecem
o seu mosteiro e outros do grupo dos arquimandritas, como também alguns diáconos
daí, que ardilosamente reivindicam para si mesmos o não comer pão, e com falsidades
reclamam a glória vã de não beber água, e também dizem que não bebem vinho.
Tremo só de mencionar o que ouvi dizer acerca do seu crime em relação ao Corpo
e Sangue de Jesus, o Filho de Deus; mas uma vez que a necessidade me obriga, atrevo-me
a proferir uma coisa, perante cuja execução eles não retrocedem, quando, de maneira
estulta e sem fazer distinção, oferecem o Corpo e o Sangue de Cristo nosso Senhor.
Esses, cuja enorme impiedade se torna incompreensível para mim, para permanente
satisfação da sua fome e sede naturais, saciam-se criminosamente com este Corpo
santo que santifica os que o recebem, e com este Sangue vivo que dá vida aos que o bebem.
Em consequência desta sua decisão, não podem encontrar o seu alimento senão
celebrando cada dia o sacrifício, e, sem cessar, tomam da Eucaristia, todos os dias,
muita quantidade. Por isso, preparam também as suas oferendas com muito fermento,
tornam-nas muito alimentícias, e confeccionam-nas cuidadosamente para lhes servir
de comida, mas não para sacramento do Corpo de Cristo, que se faz com pão ázimo.
Além disso, onde quer que fixem a sua habitação, põem nas mãos uns dos outros, sem
qualquer distinção, pão comum, para fazer com ele a oblação e o comerem depois.
Sucede também que, quando vão de um lugar para outro ou quando empreendem
uma longa viagem, saciam a sua fome e sede naturais duas ou três vezes por dia com o
Corpo de nosso Senhor. E, quando chegam ao fim da viagem, oferecem de novo, pela
tarde, o sacrifício e participam dele como se estivessem em jejum. Mesmo nos dias
sagrados do tempo de jejum da Quaresma se atrevem a proceder desse modo, dado que
nem temem a Deus nem sentem vergonha diante dos homens. Daqui resulta que estes
homens, que, segundo a sua própria afirmação, nunca provam pão nem água, consomem
o pão sagrado e bebem o vinho santo, mesmo nos dias especiais em que até os mais
insensíveis se privam de alimento.

1
R ÁBULAS DE E DESSA , Praecepta ad sacerdotes et regulares (=PG 77, 1475-1476; F. N AU , Ancienne litérature
syriaque, fasc. 2). Rábulas, bispo de Edessa, morreu por volta de 436.
2
Como se vê por este texto, os exageros começaram bem cedo, e não são exclusivos do Ocidente romano.
3
RÁBULAS DE EDESSA, Epistula ad Gemelinum ep. (=OVERBECK, Rabulae episcopi..., Oxford 1865; BAC 118).
4
Perra é uma cidade a cerca de 30 quilómetros de Samosata, na Síria.
RÁBULAS DE EDESSA 989

Digo-te, santo irmão, pelo testemunho do espírito que habita em mim, que me
atemoriza escrever à tua senhoria tudo o que ouvi acerca deles, porque a minha
consciência não consegue acreditar nessas coisas. Oxalá que, sem to ter comunicado
por escrito nem por palavras, pudesses tu inteirar-te daquilo que quero perguntar-te,
e que eles então recebessem o seu castigo por meio da tua correcção! Bem desejaria eu
que, mesmo aquilo que ouvi sobre eles, nem tu, Senhor, nem eles o tivessem de saber.
Não penses, portanto, e não o creiam eles, que te escrevi isto acerca deles por estar
convencido da verdade dessas murmurações. Se persisto em perguntar isso a outros é
porque continuo a ter dúvidas de que seja verdade. Realmente, parece impossível que
alguma vez possa ser cometido um tão grande pecado, por homens que foram
baptizados em Cristo.
Diz-se, com efeito, que depois de prepararem o pão sobre a patena, comem sem
respeito quanto querem; mas que o cálice do Sangue, cada um o mistura, se é possível,
com água quente, e o bebe como vinho misturado; torna depois a enchê-lo e entrega-o
ao seu companheiro, de modo que, com frequência, pela quantidade de vinho que
bebem a pretexto de comungar, se vêm obrigados a lançá-lo outra vez da boca.
Que grande crime se, com efeito, as coisas são como se diz, e se eles são tão
indiferentes a respeito da sua felicidade eterna, que dos vasos sagrados do santuário,
dos quais temem aproximar-se respeitosamente os espírito celestes, por causa do
sacramento que neles se contém, fazem utensílios de mesa para acalmar a sua sede, sem
se lembrarem do castigo com que foi visitado o rei pagão Baltasar por ter ousado, com
rebeldia desavergonhada, rir-se de Deus e utilizar os vasos destinados ao serviço
divino para fins desprezíveis!...
Quem poderá comparar o pão da proposição (dos Judeus)..., com este pão da
vida que, pela sua união com o Verbo de Deus, desceu do Céu e dá vida ao mundo? Ora,
mais claros e manifestos são os sentimentos ímpios dos que planeiam ou fazem estas
coisas, porque, de facto, consideram a Eucaristia pão comum, como no-lo manifesta o
parecer dos olhos, já que a recebem tão loucamente e não crêem nas palavras do
Senhor: O pão que Eu vos hei-de dar é o meu Corpo, que será entregue pela vida do
mundo. Não há pão simples no Corpo de Cristo, como lhes parece a eles, mas no pão
está o Corpo invisível de Deus, como acreditamos ao recebê-lo simplesmente como
Corpo... Nós podemos comer abundantemente pão comum, mas devemos receber com
discreção o tesouro da nossa verdadeira vida...
Os que comem com fé o pão santo comem nele e com ele o Corpo vivo de Deus
que justifica. Mas os que o comem sem fé, recebem alimento como qualquer outro
alimento corporal. Se, como inimigos, roubassem violentamente este pão e o comessem,
comeriam pão comum, porque lhes falta a fé, que sente a sua doçura. O paladar sente
o gosto do pão, mas a fé sente a força que ali está escondida. O que se come não é só
o Corpo do nosso Redentor, como dissemos há pouco, mas aquilo que com ele está
unido, segundo cremos. A força, que não se come, une-se com o pão que se come, e
torna-se uma única coisa para aquele que o recebe, do mesmo modo que os nomes da
Trindade se juntam com água visível, e acontece a regeneração, enquanto o Espírito, de
modo oculto, se mantém sobre as águas visíveis, para com elas restaurar de maneira
nova a semelhança do Adão celestial.
990 SÉCULO V

Hinos aos fiéis defuntos 5


4159 1. Vós, que descansais no pó, não vos entristeçais pela destruição dos vossos
membros, porque o Corpo vivo que recebestes e o Sangue que apaga os pecados, que
bebestes, têm força para vos ressuscitar e para revestir de glória os vossos corpos.
Servir-vos-ão de caminho e ponte, de modo a que passeis com segurança para além da
cidade do temor. Cristo, Senhor nosso, que viestes a nós e pelo vosso Sangue
estabelecestes a paz nas alturas, nas profundezas e em todos os confins da terra, dai o
descanso às almas dos vossos servos, na vida eterna que lhes prometestes.
4160 4. Autor da vida e Senhor dos defuntos, recordai-vos dos vossos servos, que
comeram o vosso Corpo e beberam o vosso Sangue e agora morreram e foram descansar
com esperança em Vós. Quando vierdes em majestade com os vossos gloriosos
exércitos de Anjos, ressuscitai-os dos seus túmulos, separai-os do pó, vesti-os com o
traje de glória e colocai-os à vossa direita, para que convosco entrem na glória do Céu
e cantem hinos de louvor à vossa graça.

Hinos eucarísticos 6
4161 1. Este sacramento celestial, que se manifestou e expôs a todos os povos, raças e
gerações; este sacrifício de expiação, que a si mesmo se ofereceu na cruz e pelo qual os
filhos do Adão terreno são perdoados; este santuário que tudo santifica, pelo qual são
santificados os que são dignos da santificação espiritual, é servido lá em cima, nos
Céus, pelos Anjos, mas aqui em baixo, na terra, é levado pelos que nasceram do pó.
Canta jubilosa, ó esposa, filha dos povos pagãos, pelo teu Esposo, pois como vês, Ele
fez-Se alimento e bebida para ti e teus filhos. Diz-lhe: Cristo, que nos remistes pelo
vosso sangue, louvado sejais, Senhor, sobre todas as coisas.
4162 2. Do alto dos Céus desprendeu-se aquela brasa que hoje é consagrada e levada com
todo o respeito nas mãos dos sacerdotes, destes irmãos e companheiros no ministério
dos Anjos celestes, que, em perfeita harmonia, elevam as suas vozes tremendo diante
de Vós. Também nós, apesar de envolvidos em pecados, queremos, como eles, cantar
e clamar: Vós sois Santo, ó meu Deus, que dais o Santo aos santos. Vós sois Santo, ó
Deus Forte, que com a vossa força poderosa descobristes a fraude do Maligno e nos
fizestes encontrar as armas para o vencermos e nos vermos livres das suas intrigas.
Vós sois Santo, ó Imortal; nós Vos louvamos, porque fostes crucificado por nós. Pela
porta do vosso lado, aberta na cruz, foi santificada a terra, que antes era maldita pela
desobediência de Adão ao mandamento. Louvado sejais, Senhor, sobre todas as coisas.

5
R ÁBULAS DE E DESSA , Hinos aos fiéis defuntos (=O VERBECK , Rabulae episcopi..., Oxford 1865; BAC 118).
6
R ÁBULAS DE E DESSA , Hinos eucarísticos (=O VERBECK , Rabulae episcopi..., Oxford 1865; BAC 118).
POSSÍDIO

Possídio

Vida de S. Agostinho 1
1. Agostinho nasceu na cidade de Tagaste, da província da África, de pais cristãos 4163
e honestos, pertencentes à cúria municipal... Primeiro ensinou gramática na sua cidade
natal, e depois retórica em Cartago, e posteriormente em Roma e Milão... Em Cartago,
quando era adolescente, os Maniqueus contagiaram-no por algum tempo com os seus
erros... Mas, com a ajuda divina e a luz da doutrina de Ambrósio, aquela heresia
desvaneceu-se pouco a pouco no seu espírito. Confirmado depois na fé católica,
inflamou-se no desejo ardente de se instruir e progredir no conhecimento da religião, a
fim de receber a água da salvação ao chegar a Páscoa...
2. Pouco depois, com todas as veras do coração, abandonou toda a esperança que 4164
depositara no mundo dos homens; não mais buscou mulher, nem filhos, nem riquezas,
nem honras do mundo, mas apenas servia a Deus com os seus...
3. Depois de receber o baptismo juntamente com outros companheiros e amigos, 4165
também inclinados para o serviço do Senhor, pensou em voltar à África, à sua casa e
aos seus bens...
4. Governava então a Igreja de Hipona o santo bispo Valério. Movido pela 4166
necessidade da sua grei, falou aos fiéis na necessidade de ordenar um presbítero idóneo
para a cidade; e os católicos, que já conheciam o propósito e a doutrina de Santo
Agostinho, lançaram-lhe as mãos, quando ele se encontrava tranquilo no meio da
multidão, sem prever o que podia acontecer, pois como ele próprio nos dizia, afastava-se
das Igrejas que não tinham bispo. Seguraram-no e, como acontece em tais casos,
apresentaram-no a Valério, para que o ordenasse, como o exigiam o clamor unânime e
o grande desejo de todos, excepto ele, que chorava copiosamente...
5. Depois de ordenado presbítero, fundou logo um mosteiro na igreja, e começou a 4167
viver com os servos de Deus de acordo com o modo e a regra estabelecida pelos
Apóstolos. Sobretudo tinha a preocupação de que ninguém possuísse bens, que tudo
fosse comum e se desse a cada um segundo o que precisasse... Valério, que o ordenara,
não cabia em si de contente, dando graças a Deus por lhe ter dado um homem capaz de
edificar a Igreja com a sua palavra e sã doutrina... E deu ao seu presbítero poder para
pregar o Evangelho na sua presença e dirigir frequentemente a palavra ao povo, contra
o uso e costume das Igrejas de África, o que provocou a desaprovação de outros
bispos. Mas aquele venerável e zeloso varão, sabedor do costume contrário vigente
nas Igrejas orientais, e olhando ao bem da Igreja, não deu ouvidos às murmurações...
Depois, espalhando-se a fama deste facto..., alguns presbíteros, autorizados pelos
seus bispos, começaram também a pregar ao povo na presença dos seus bispos.
7. Ensinava e pregava a palavra da salvação eterna, em privado e em público, em 4168
casa e na igreja, contra todas as heresias de África..., combatendo-as ora com livros,
ora com frequentes conferências, o que era causa de alegria e admiração para os católicos,
que iam divulgando aos quatro ventos os factos de que eram testemunhas... Quem
queria e conforme podia, valendo-se do serviço dos taquígrafos, tomava por escrito o
que ele dizia...

1
P OSSÍDIO , Vita Sancti Augustini (=PL 32, 33-66; 46, 5-22; CSEL 138; BAC 10). Possídio escreveu esta
obra entre 431 e 439, com base nas recordações pessoais - «quae in eodem vidi et audivi» - e nas fontes
escritas existentes na biblioteca de Hipona.
992 SÉCULO I

4169 8. O bem-aventurado ancião Valério, mais que ninguém, respirava alegria..., mas
começou a recear, o que é coisa muito humana, que lho tirassem para alguma outra
Igreja sem sacerdote, e que procurasse bispo... Depois escreveu cartas secretas ao
primaz dos bispos da Cartaginense, alegando a sua idade avançada e a gravidade dos
seus achaques e pedindo-lhe que ordenasse Agostinho como bispo para a Igreja de
Hipona, não tanto para lhe suceder na cátedra, mas antes para colaborar com ele no
ofício pastoral. E conseguiu, por um rescrito, o que pedira com tanto empenho. Mais
tarde, o primaz da Numídia..., chamado para a visita e estando presente na basílica de
Hipona, Valério manifestou a sua resolução a todos os bispos que então ali estavam, a
todos os clérigos hiponenses e a todo o povo. A proposta foi acolhida com alegria,
congratulações e aplausos de aprovação e desejo. Só o presbítero (Agostinho) recusava
receber o episcopado, alegando o costume contrário da Igreja enquanto vivesse o seu bispo.
Convenceram-no todos do contrário, quer com exemplos das Igrejas africanas,
quer com factos das Igrejas de além-mar, e, por fim, coagido e obrigado acabou por
ceder e recebeu a ordenação para um campo mais vasto. Mas depois lamentava-se de
que o tivessem ordenado em vida do seu bispo...
4170 11. À medida que a verdadeira doutrina se ia dilatando sob o impulso e a direcção de
Santo Agostinho, os Religiosos que viviam no mosteiro começaram a ser ordenados
clérigos para o serviço da Igreja de Hipona. Quando o facto começou a divulgar-se..., as
Igrejas recorriam ao mosteiro, que florescia sob a orientação do bem-aventurado
Agostinho, para receberem bispos e clérigos, como depois se veio a fazer...
4171 12. Mais de uma vez, inimigos armados2 prepararam emboscadas ao servo de Deus
Agostinho, quando, a pedido dos seus diocesanos, ia visitá-los, o que era muito
frequente, a fim de instruir e fortalecer na fé os católicos...
4172 13. Pelos esforços realizados em favor da paz, Deus concedeu-lhe aqui o prémio e
junto d’Ele a coroa de justiça... Isto conseguiu-se particularmente depois da conferência
celebrada, mais tarde, em Cartago, pelos bispos católicos e donatistas, com a anuência
e favor do imperador Honório, que, para esse fim, enviou o seu tribuno e secretário
Marcelino como árbitro...
4173 14. Depois da conferência com os Donatistas, alguns deles começaram a propalar
que faltou poder aos seus bispos para se defenderem perante o tribunal, porque o juiz
favorecia a Comunhão Católica... Mas a graça e o auxílio do Todo-Poderoso favoreceram
Santo Agostinho, porque, encontrando-se por ordem pontifícia com outros seus colegas
em Cesareia da Mauritânia, para resolver certas questões eclesiásticas, teve
oportunidade de se avistar com Emérito, bispo donatista daquela cidade, um dos
acérrimos defensores da sua causa na conferência de Cartago, e desafiou-o para uma
discussão pública na igreja com a presença de católicos e dissidentes, porque andavam
a dizer que a conferência fora suspensa antes do tempo, sem que lhes tivessem permitido
expor o que queriam; agora, sem proibição de qualquer género, podiam suprir aquelas
deficiências; na sua própria cidade, em presença de todos os seus, podia defender a
causa da sua seita. Mas ele não aceitou a proposta...
4174 22. As suas vestes, calçado e objectos de casa eram modestos e adaptados; nem
demasiado preciosos nem muito fracos... A mesa era parca e frugal, e nela abundavam
verduras e legumes e algumas vezes carne, em atenção aos hóspedes e às pessoas
doentes. Não faltava o vinho... Só usava colheres de prata, mas todos os outros vasos
eram de barro, de madeira ou de mármore, não por indigência forçada, mas por pobreza
voluntária. Mostrava-se também sempre muito acolhedor. À mesa atraía-o mais a
leitura e a conversação do que o apetite de comer e beber...

2
Eram os circunceliones, isto é, bandos armados pelos Donatistas, distribuídos em grande número de grupos
por todas as regiões de África, que nunca perdoavam a ninguém, e que usavam de extrema violência com toda
a gente.
POSSÍDIO 993

23. Nunca esquecia os pobres, socorrendo-os com aquilo de que vivia ele e os seus 4175
comensais, isto é, das rendas e propriedades da Igreja ou das ofertas dos fiéis...
24. Confiava alternadamente a administração da casa da Igreja e das suas propriedades 4176
aos clérigos mais capazes, e nunca trazia chaves nem anel 3 nas mãos... Não quis nunca
comprar casas, campos ou propriedades; mas, se alguém os doava ou legava à Igreja,
não os recusava, mas mandava aceitá-los... Costumava repetir que era mais seguro e
conveniente para a Igreja receber legados de defuntos do que heranças molestas e
prejudiciais, e que tais legados nunca deviam exigir-se, mas ser recebidos como
oferendas...
Também não se interessava pelas novas construções, para evitar a dissipação do
espírito, que queria conservar sempre livre de toda a preocupação terrena e temporal,
mas não cortava as asas aos empreendedores de obras novas, salvo aos imoderados.
Quando as arcas da Igreja ficavam vazias e lhe faltava com que socorrer os
pobres, logo o fazia chegar ao conhecimento do povo fiel. Mandou fundir vasos sagrados
para socorrer pessoas cativas e outros indigentes...
27. 4 Se, por acaso, era solicitado pelos doentes, a fim de orar ao Senhor e lhes impor 4177
as mãos, ia até junto deles sem tardar...
5 Repetia muitas vezes que um servidor de Deus devia, na conduta da sua vida,
observar também os princípios seguintes, que ele próprio recebera do ensino de
Ambrósio, de feliz memória: não fazer pedido de matrimónio, não recomendar ninguém
que disputasse uma função pública e não aceitar qualquer convite para um banquete na
cidade onde exercesse o seu ministério. E justificava a sua atitude em tais casos: Se,
com efeito, acontecesse que os esposos discutissem, poderiam ir até maldizer aquele
que os unira. O bispo4 só deveria apresentar-se quando as duas partes estivessem
inteiramente de acordo no seu projecto, para lhes pedir expressamente que assinassem
e para abençoar as convenções estabelecidas por eles. Do mesmo modo o bispo não
devia aceitar a responsabilidade de recomendar para o serviço do Estado alguém que
corresse o risco de se mostrar incapaz. E também não devia abandonar a sua disciplina
de vida virtuosa, participando frequentemente em banquetes, com tudo aquilo que eles
comportam.
28. Antes de morrer quis rever todos os seus livros... Algum tempo depois, os 4178
Vândalos e Alanos, juntamente com o Godos e outros povos vindos de Espanha...,
desembarcaram e irromperam em África...
Aquele homem de Deus não julgava nem olhava estas coisas como os demais...,
mas subia mais alto e considerava mais profundamente aqueles espectáculos violentos...
O santo varão via as cidades destruídas e saqueadas, as granjas com todos os seus
moradores mortos ou dispersos, as igrejas, sem sacerdotes nem ministros... Via mudas
as igrejas onde antes ressoavam cânticos divinos e louvores, e em muitos lugares os
seus edifícios reduzidos a escombros. Tinha cessado, em cada lugar, o sacrifício solene
devido a Deus, e os sacramentos, ou ninguém os pedia ou não podiam ser dados aos
que os pediam, por falta de ministros...
Das muitas igrejas só três ficaram de pé: a de Cartago, a de Hipona e a de Cirta,
que, graças a Deus, não foram destruídas e se conservaram incólumes...
31. Santo Agostinho viveu setenta e seis anos..., e durante cerca de quarenta foi 4179
clérigo e bispo. Em conversa familiar costumava dizer-me que, depois do baptismo,
mesmo os cristãos e sacerdotes dignos de louvor, devem fazer penitência conveniente

3
Anel com chave.
4
Sacerdos.
994 SÉCULO V

antes de partir deste mundo. Assim o fez ele na sua última enfermidade, porque
mandou copiar para si os salmos de David chamados penitenciais, e colocou as folhas
na parede, diante dos olhos, e dia e noite os olhava e lia, chorando copiosamente5; e
para que ninguém o distraísse da sua ocupação, uns dez dias antes de morrer pediu-me
a mim que ninguém entrasse a vê-lo fora das horas em que o visitavam os médicos ou
se lhe levava a comida. O seu desejo foi cumprido, e todo aquele tempo o dedicava ele
à oração.
Até à sua última enfermidade pregou ininterruptamente a palavra de Deus na
igreja, com fortaleza e alegria, com inteligência lúcida e juízo saudável. Por fim...,
assistido por nós, que o víamos e orávamos com ele, adormeceu com seus pais... Nós
oferecemos a Deus o sacrifício pela deposição do seu corpo e foi sepultado.
Não fez nenhum testamento, porque, como pobre de Deus, nada tinha que deixar.
Mandava sempre guardar com cuidado, para os vindouros, a biblioteca da Igreja e
todos os códices antigos. Tudo aquilo que a Igreja possuía em propriedades e ornamentos
o entregou à fidelidade do presbítero que se encarregava da sua casa.
Na sua vida e na sua morte tratou com atenção os seus parentes, próximos ou
afastados. Quando era necessário ajudava-os, a eles e a outros, com aquilo que lhe
sobrava, não para os enriquecer, mas para que não passassem necessidades ou para os
aliviar. Deixou à Igreja clero mais que suficiente e mosteiros cheios de religiosos e
religiosas, com a sua organização e bibliotecas próprias, providas dos seus livros e
tratados, como também de outros Santos. Neles se reflecte a grandeza singular deste
homem dado por Deus à Igreja; neles o encontram os fiéis, sempre vivo. Pode aplicar-
-se-lhe o pensamento que um poeta do mundo sintetizou numa frase, para que os seus
parentes a gravassem no túmulo, em lugar público: «Se queres conhecer, ó viajante, a
minha vida depois da morte, fica a saber que ainda falo no que estás a ler: a tua voz é
a minha voz».

Catholicos Isaac Sahak

Cânones 6
4180 26. Preceituai ao povo que tanto os jovens como os adultos não casem com as jovens,
antes de se verem um ao outro e consentirem. E vós, presbíteros, não abençoeis nunca
as núpcias de crianças que não atingiram ainda a idade conveniente. Quanto aos adultos
que não se viram antes um ao outro e consentiram, não ouseis abençoar-lhes o casa-
mento antes de os examinar e interrogar, não aconteça que tenham consentido contra
vontade, por imposição dos pais; não ouseis admitir tais núpcias, pois foi por perversida-
des deste género que todo o mal entrou no mundo e que os espíritos e os corpos se
afundaram.

5
Dicere autem nobis inter familiaria colloquia consueverat, post perceptum baptismum etiam laudatos
christianos et sacerdotes absque digna et competenti paenitentia exire de corpore non debere. Quod et
ipse fecit, ultima qua defunctus est aegritudine: nam sibi iusserat psalmos davidicos qui sunt paucissimi
de paenitentia scribi, ipsosque quaterniones iacens in lecto contra parietem positos diebus suae
infirmitatis intuebatur et iugiter ac ubertim flebat.
6
C ATHOLICOS I SAAC S AHAK , Cânones (=DDC I, 1043). As datas limites conhecidas para Isaac Sahak são os
anos de 387 e 439.
GERÔNCIO 995

Gerôncio

Vida de Santa Melânia 1


1. A sua vida em Roma. Os seus pais, membros distintos do senado, esperando 4181
assegurar por meio dela a continuação da sua família, uniram-na em casamento ao
consular Piniano, quando ela tinha catorze anos e o seu cônjuge à volta de dezassete...
24. A sua vida em África. Jejuava a semana inteira, desde o santo Pentecostes até à 4182
Páscoa, sem provar azeite..., e aos sábados não comia antes de terminar todo o seu
Ofício...
25. Depois começou a jejuar mesmo durante a santa festa da Ressurreição de Cristo... 4183
Eis como sua mãe lhe falava: «Não está certo que um cristão jejue no dia da Ressurreição
de nosso Senhor Jesus Cristo...». Mesmo falando-lhe desta maneira, foi com dificuldade
que conseguiu convencer sua filha a comer azeite, ao menos nos três dias da festa...
26. A bem-aventurada lia o Antigo e o Novo Testamento três ou quatro vezes por 4184
ano... Terminava o Ofício com as virgens, suas companheiras, e recitava de cor,
particularmente, os restantes salmos...
28. Uma mulher da alta sociedade tinha terminado o curso da sua vida longe de sua 4185
casa, nos Lugares Santos, e eu fiz a oferta do seu nome durante a santa anáfora
juntamente com os dos santos que já tinham morrido – é este o nosso costume, para
que eles intercedam por nós na hora temível – e como esta senhora, que estava em
comunhão connosco, os ortodoxos, passava, segundo alguns, por herege, a bem-
-aventurada indignou-se tanto que, imediatamente, e toda zangada, me disse com
franqueza: «Viva o Senhor. Uma vez que a nomeaste, não comungo mais na tua oferenda».
Como eu lhe desse a minha palavra sobre o santo altar que nunca mais a nomearia, ela
retorquiu-me: «Uma vez já foi demais. Dado que a nomeaste, não comungo contigo».
Até este ponto considerava ela que era transgredir a fé ortodoxa nomear hereges na
santa anáfora...
34. A sua partida para os Lugares Santos. Permaneceram sete anos em África... e 4186
finalmente puseram-se a caminho de Jerusalém. Com efeito, sentiram o desejo de ir
adorar os Lugares Santos...
35. Muito encorajados e louvando cada vez mais a Deus, fizeram-se à vela para 4187
Jerusalém, meta da sua viagem, e escolheram domicílio na santa Anástasis...
36. À tarde, depois do encerramento da Anástasis, ficava perto da Cruz, até à chegada 4188
daqueles que vinham salmodiar...
37. Viagem ao Egipto. Ao chegarem ao Egipto deram a volta às celas dos santos 4189
monges e das virgens fidelíssimas...
46. Liturgia. Nas horas da noite, acordava (as religiosas do convento que fundara) 4190
para a oração de louvor... Depois de terminarem o Ofício habitual, fazia-as dormir um
pouco, de modo a repousarem da fadiga da vigília e renovarem os corpos para a
salmodia diurna.

1
G ERÔNCIO , Vida de Santa Melânia (=SCh 90). Melânia nasceu em Roma no ano de 383. Casou jovem, contra
sua vontade, e teve dois filhos que morreram cedo. Passou a viver em continência com seu marido, como
irmão e irmã. Depois de vender a sua imensa fortuna, espalhada pelos quatro cantos da Europa, vai para
África e a seguir para a Palestina, onde funda vários mosteiros. Morre em Belém, no último dia do ano de 439,
um domingo.
996 SÉCULO V

4191 47. O seu ofício nocturno tinha três responsórios, três leituras e quinze antífonas, sem
contar as da manhã. Salmodiavam à terceira hora do dia..., à sexta..., à nona... «Quanto
às Vésperas, dizia ela, devemos celebrá-las com muita diligência, não só porque passámos
em paz o espaço duma jornada, mas porque foi a esta hora em que Cléofas e o seu
companheiro foram julgados dignos de caminhar com o Senhor após a Ressurreição».
Mas convidava-as acima de tudo a terem solicitude no domingo e nos outros dias de
grandes festas, e a entregarem-se sem perda de tempo à salmodia, dizendo-lhes: «Se,
na liturgia diária, é belo não mostrar negligência, com maior razão, no domingo e nas
outras festas, devemos salmodiar um pouco mais do que o nosso Oficio habitual».
4192 48. Apressou-se em construir um oratório no mosteiro e em levantar aí um altar para
que elas tivessem a honra de participar continuamente nos santos mistérios. Estabeleceu
que aí se celebrariam para elas, todas as semanas, duas anáforas além dos dias de festa,
uma na sexta-feira e outra no domingo...
4193 49. Veio-lhe depois o desejo de construir um mosteiro para homens santos, para que
celebrassem sem interrupção a salmodia nocturna e diurna no lugar da Ascensão do
Senhor e na gruta onde o Salvador conversava com os seus santos discípulos sobre o
fim dos tempos...
4194 55. Sentada toda a noite perto do leito do seu tio, dava-lhe coragem nestes termos:
«És de verdade feliz, senhor, porque neste mundo foste largamente glorificado, e, no
mundo que há-de vir, vais para o Senhor justificado por teres recebido o banho da
incorruptibilidade». Tendo-o feito comungar três vezes nos santos mistérios, ao nascer
do dia – era a festa da santa Teofania – alegre, enviou-o em paz para o Senhor...
4195 57. Chegámos aos Lugares Santos no terceiro dia da semana antes da Paixão salvadora.
Tendo celebrado espiritualmente, com grande felicidade, a Páscoa e a santa Ressurreição,
em companhia das irmãs, submeteu-se de novo à regra habitual...
4196 63. A morte. Como estava a chegar o santo Natal do Salvador, disse a sua prima, a
senhora Paula: «Vamos à santa Belém, porque não sei se verei ainda esta festa na minha
carne». Chegaram aí e, tendo celebrado toda a vigília, ao nascer do dia participaram nos
temíveis mistérios...
4197 64. No dia seguinte fomos ao martyrium do primeiro mártir santo Estêvão, pois
chegara a memória da sua dormição, e depois de fazer a reunião regressámos ao
mosteiro... E, como ela estava quase a passar do mundo para o Senhor, deixou às suas
irmãs um testamento espiritual nestes termos: «Peço-vos que, depois da minha partida,
tenhais a peito celebrar o Ofício com grande temor e vigilância...».
4198 66. O domingo começava a brilhar; antes de o sol nascer, disse-me: «Faz-me o favor
de celebrar para nós a santa anáfora». Enquanto eu oferecia, não podia, em virtude da
minha tristeza, falar alto. Não ouvindo a epiclese, mandou-me dizer, cheia de ansiedade,
a mim que estava de pé junto do altar: «Eleva a voz para que eu ouça a epiclese».
4199 67. Depois de participar nos santos mistérios, o bispo2 caríssimo a Deus chegou
com o clero... A santa, depois de lhe pedir igualmente a comunhão, despediu-o em paz...

2
Era o bispo Juvenal, de Jerusalém.
SISTO III 997

Papa Sisto III

INSCRIÇÃO NA ABSIDE DE SANTA MARIA MAIOR 1 4200


Virgem Maria, eu, Sisto, Vos consagrei este belo templo,
prenda digna do vosso salutífero ventre.
Vós concebestes sem conhecer homem e, depois de grávida,
de vossas entranhas nasceu a nossa salvação.
Eis que as testemunhas do vosso Filho Vos trazem os troféus,
e a seus pés jaz o símbolo do martírio de cada um:
a espada, o fogo, as feras, o rio e o cruel veneno,
mas, a tão variadas mortes está reservada uma única coroa.

INSCRIÇÃO NO BAPTISTÉRIO DE SÃO JOÃO DE LATRÃO 2 4200a


Aqui nasce para o Céu, de uma semente pura, um povo sagrado,
que o Espírito gera fecundando as águas.
A Mãe Igreja concebe por inspiração de Deus e dá à luz pela água
os que nascem de semente virginal.
Esperai o Reino dos Céus, vós que renascestes nesta fonte,
a vida feliz não é para quem nasce uma só vez.
Esta é a fonte da vida, que purifica o mundo inteiro,
brotando da chaga de Cristo.
Mergulha na água santa, ó pecador, e serás purificado:
a água recebe-te velho e devolve-te renovado.
Se desejas ser puro, purifica-te neste banho,
quer te aflija o pecado dos primeiros Pais, quer o teu próprio pecado.
Para os que renasceram não existe discriminação nenhuma:
são uma só coisa, graças a uma só fonte, um só Espírito, uma só fé.
A ninguém atemorize o número ou a natureza dos seus pecados:
quem nasce desta água será santo.

1
PAPA SISTO III, Inscrição na abside de Santa Maria Maior (=Abside da basílica. Texto latino: Virgo Maria, tibi
Xystus nava tecta dicavi / digna salutifero munera ventre tuo./ Tu genetrix ignara viri, te denique feta / visceribus
salvis edita nostra salus./ Ecce tui testes uteri tibi praemia portant / sub pedibusque iacet passio cuique sua:/
ferrum, flamma, ferae, fluvius, saevumque venenum / tot tamen has mortes una corona manet). Os dois últimos
dísticos aludem às figuras dos mártires, hoje desaparecidas, que caminhavam para o trono da Virgem Maria, tendo
cada um a seus pés os instrumentos do seu suplício. A dedicação desta basílica vem referida, no Martirológio
Jeronimiano, a 5 de Agosto: «Romae, dedicatio basilicae sanctae Mariae».
2
PAPA SISTO III, Inscrição no baptistério de São João de Latrão (=PL 13, 413; CPL 1657b. Texto latino: Gens
sacranda polis hic semine nascitur almo,/ quam fecunditatis Spiritus edit aquis./ Virgineo fetu genitrix ecclesia
natos / quos spirante Deo concipit amne parit./ Coelorum regnum sperate hoc fonte renati / non recipit felix vita
semel genitos./ Fons hic est vitae qui totum diluit orbem / sumens de Christi vulnere principium./ Mergere
peccator sacro purgande fluento / quem veterem accipiet proferet unda novum./ Insons esse volens isto mundare
lavacro / seu patrio premeris crimine seu proprio./ Nulla renascentum est distantia quos facit unum / unus fons
unus Spiritus una fides./ Nec numerus quemquam scelerum nec forma suorum / terreat hoc natus flumine
sanctus erit). O Liber Pontificalis diz: «Hic (=Sisto III) constituit columnas in baptisterium basilicae
Constantinianae, quas a tempore Constantini Augusti fuerant congregatas, ex metallo purphyretico numero
VIII, quas erexit cum epistolis suis et versibus exornavit». A dedicação deste baptistério vem referida, no
Martirológio Jeronimiano, a 29 de Junho: «Dedicatio baptisterii antiqui Romae». Sisto III sucedeu a Celestino,
entre os anos 432 e 440. Há quem atribua esta inscrição a Leão Magno, o Papa que sucedeu a Sisto III (cf. QUASTEN,
Patrologia III, p. 730).
998 SÉCULO V

Cirilo de Alexandria

A adoração em espírito e verdade 1

LIVRO III
EX 18, 12

4201 Jetro, sogro de Moisés, ofereceu um holocausto e sacrifícios a Deus. Aarão


e todos os anciãos de Israel vieram para comer com o sogro de Moisés diante de
Deus. Cristo, o mais verdadeiro Aarão, consuma-nos na perfeição pelo pão vivo; não
consumou só os pagãos, mas também, sem qualquer distinção, os eleitos do povo de
Israel, que eram figura dos anciãos.
Não é pequeno o significado de santificação resultante do facto de se comer o
pão diante de Deus. Na verdade, não há nada mais presente aos olhos de Deus do que
a mesa mística, a hóstia e os que dela participam...
Por conseguinte, aquela perfeição que obtivemos por Cristo e a força dos seus
mistérios tornam-nos verdadeiramente sábios e fazem com que nos sintamos mais
fortes do que a morte, vencedores do oculto e espiritual Amalec, isto é, de Satanás...
2 SAM 24, 25

4202 E David comprou a eira com os bois por cinquenta ciclos de prata. Levantou ali
um altar ao Senhor e ofereceu holocaustos e sacrifícios de comunhão. Dissemos antes
que o altar, no princípio, era pequeno; mas depois foi aumentado, o que significa o
futuro progresso do Evangelho ao chegar o seu tempo, e a pequenez das santas igrejas
nos seus começos, e também a grande amplitude que haviam de ter com o correr dos
tempos. De certa maneira os altares vão aumentando constantemente, ao juntarem-se,
sem cessar, novas igrejas às primeiras e ao acrescentarem-se, em imensa multidão, os
povos redimidos pelo sacrifício de Cristo, tendo-O a Ele por sacerdote, vítima santa,
odor de vítima purificante, altar santificador e Senhor da Igreja, da qual foi figura a eira
comprada por David.

LIVRO IX
EX 25, 23-24.30

4203 Construirás em seguida uma mesa de madeira de acácia..., revesti-la-ás de


ouro puro... e colocarás nesta mesa os pães da oferenda, que estarão permanentemente
diante de Mim. E mandou fazer de ouro os vasos, os pratos, as escudelas, as colheres
e as taças. Acaso não representava isto com toda a clareza aquele nosso pão celestial
que havia de colocar-se nas mesas santas das igrejas e que dá a vida ao mundo? Sem
dúvida alguma. Não é verdade que os pratos e travessas, os copos e as taças, as coisas
por meio das quais se realiza o mistério espiritual e sacratíssimo da mesa santa são
figuras dos tesouros divinos?

1
CIRILO DE A LEXANDRIA, De adoratione et cultu in spiritu et veritate (=PG 68, 133-1125). Cirilo de Alexandria
deve ter nascido por volta de 370. Foi um dos escritores mais eminentes da literatura cristã antiga. As suas
obras formam 10 volumes da edição de Migne (PG 68-77). Morreu em 444.
CIRILO DE ALEXANDRIA 999

LIVRO XI

É conveniente participar daquele alimento santo, isto é, do Corpo de Cristo, com 4204
santidade de alma, e não se permite aos estranhos que se aproximem da bênção2. Pode
considerar-se estranho não só o infiel e o não baptizado, mas também os que se deixaram
perverter por opiniões contrárias, os que se afastam do parecer dos santos e os separados
da verdadeira doutrina, por maldade.

LIVRO XII

Quando se lavou com água e se pôs ao sol, fica limpo e recebe o seu pão, o pão do 4205
Céu. Na verdade, aos santificados pela água, isto é, no santo baptismo, é-lhes concedida
a bênção 3 por Cristo. Ele mesmo é o pão vivo e também o pão que desceu do Céu e dá
a vida ao mundo...
Nas igrejas oferecem-se os mistérios e, nelas, a linhagem escolhida torna-se digna
da sagrada mesa de Cristo. O lugar onde o sacerdote legítimo realiza o seu ministério é
santo. Porque a vítima e a aspersão do sangue santificam quem os toca.
Não nos aproximamos das coisas santas senão para participar de Cristo, por
meio da hóstia inefável e espiritual. Além disso, lavam-se os vasos que se usaram nos
sacrifícios, pois pode acontecer que venham a cair nas mãos de outras pessoas: os
objectos que se utilizam para o culto sagrado não se empregam em usos profanos. Por
isso, se observa e mantém aquela lei nas igrejas...
Mas, quer ofereçamos o sacrifício espiritual de louvor reunidos em grande número
nas igrejas, quer se realize este sacrifício noutros sítios, e talvez por um, por dois, ou
por três, ou mesmo mais, todos os que costumam recitar hinos, e que para isso se
reuniram, se põem igualmente de pé; juntamente com eles, que já estão purificados
pelo santo baptismo, oferece este sacrifício também o que ainda é catecúmeno; e tendo
oferecido o seu louvor em união com os perfeitos, retira-se antes dos mistérios mais
sagrados e é afastado do sacrifício de Cristo...

Comentário ao Génesis 4

LIVRO I

5. Seria absurdo pensar que Adão, feito de terra e homem, comunicou a todo o 4206
género humano naturalmente, como herança, a força da maldição em que caiu, e que o
celestial Emanuel, pelo contrário, vindo do alto, Deus por natureza, que Se fez
semelhante a nós e que é o nosso segundo Adão, não tornasse participantes também da
sua vida com abundância os que quiseram participar da sua familiaridade na fé. Pela
mística bênção 5 fomos tornados um só corpo com Ele...

2
A Eucaristia,
3
A Eucaristia.
4
CIRILO DE ALEXANDRIA, Glaphyra in Pentateuchum [=PG 69, 9-678; Commentarius in Genesim (=PG 13-386)].
5
A Eucaristia.
1000 SÉCULO V

Comentário ao Êxodo 6

LIVRO II
4207 2. O cordeiro entende-se, segundo a lei, como um sacrifício imaculado e puro, mas
os cabritos são oferecidos sempre no altar pelos pecados. Também encontrarás isto em
Cristo. Ele era também como um sacrifício imaculado, que Se ofereceu a Si mesmo a
Deus Pai em odor de suavidade, e que foi degolado como um cabrito pelos nossos
pecados. Depois de imolado, manda ungir com o sangue as portas e a padieira das
casas, querendo significar com isso, segundo penso, que fortifiquemos a nossa casa
terrena, isto é, o nosso corpo, com o Sangue adorável e precioso de Cristo, afastando-nos
da morte causada pela transgressão e participando na vida, pois vida e santificação são
a participação de Cristo. E, logo que expulsemos o Exterminador, o Demónio que nos
tenta, e o atiremos para muito longe de nós, por meio da unção, então também teremos
mortificado os afectos que nascem das inclinações da carne. As portas da casa de que
falámos mais acima são os nossos sentidos...
Enquanto vivemos neste mundo, participaremos abundantemente de Cristo pela
sua sagrada carne e o seu Sangue precioso. Mas, quando chegarmos ao dia do seu poder
e tivermos alcançado a claridade dos santos, então seremos santificados de novo e de
maneira nova...
Por outro lado, a participação na sua carne e ao mesmo tempo a bebida do seu
Sangue salvador trazem até nós o testemunho da paixão e da morte de Cristo... Por
isso, na vida presente, ao participarmos das coisas que acabamos de nomear, com
razão anunciamos a sua morte...

Comentário ao Levítico 7
4208 Os discípulos admiráveis foram feitos administradores dos sagrados mistérios
do nosso Salvador. Não foram eles que se apropriaram desta honra, nem se apoderaram
do ofício sem serem chamados. Foram escolhidos para o apostolado, e foi-lhes mandado
que administrassem as coisas sagradas, em todo o mundo, pela pregação salvadora,
isto é, o Evangelho de Cristo. Ele fê-los guias esclarecidos, ao dizer-lhes: Ide e ensinai
todos os povos. E eles, obedecendo ao mandato do Senhor, partiram imediatamente e
iluminaram toda a terra, e, tendo por mestre supremo a seu Pai e Deus que está nos
Céus, tornaram outros participantes da graça...

Comentário a Habacuc 8
4209 17. O ministério litúrgico de Deus não cessa, uma vez que Deus é honrado em todo
o tempo e lugar. Se acontece que cessou a eficácia do culto (antigo), que era uma
espécie de sombra, a sua realidade mais profunda tornou-se noutra melhor. De facto,

6
C IRILO DE A LEXANDRIA , Commentarius in Exodum (=PG 69, 385-538).
7
C IRILO DE A LEXANDRIA , Commentarius in Leviticum (=PG 69, 539-590).
8
CIRILO DE ALEXANDRIA, Commentarius in XII prophetas minores (=PG 71, 9-1061. 844-943; 72, 9-364).
CIRILO DE ALEXANDRIA 1001

não servem menos a Deus nos ministérios litúrgicos os chefes das santas Igrejas, ao
celebrarem em sua honra o sacrifício incruento..., num culto litúrgico contínuo e
incessante.

Comentário a Sofonias 9
2. 39 Então darei aos povos lábios puros, para que todos possam invocar o 4210
nome do Senhor 10. Quando viram os Apóstolos falar outras línguas, admirados com o
que acontecia inesperadamente, acreditaram em Cristo, e muitos invocaram então o
nome d’Aquele que é Deus, por natureza e de verdade... Do outro lado dos rios da
Etiópia, os meus adoradores dispersos virão trazer-Me ofertas 11... O Evangelho
não foi só pregado através da terra dos Romanos, mas rodeou também as regiões bárbaras
dos pagãos. Por toda a parte há igrejas, pastores e mestres, preceptores, guias e altares
divinos..., e o Cordeiro é sacrificado pelos sacerdotes santos, mesmo entre os Indianos
e os Etíopes...

Comentário a Zacarias 12
6. 116 Ninguém toma, de modo nenhum, os vasos do santo altar para usos profanos. 4211
Estes, como já disse, são considerados santos. Guardam-se, para honra de Deus, e
servem exclusivamente para o uso da mesa santa. Por meio deles e neles celebram-se os
sacrifícios dos que oferecem, pois não leva cada um o seu próprio vaso, mas todos,
pelo contrário, utilizam apenas os vasos sagrados.

Comentário a Malaquias 13
1. 12 Do Nascente ao Poente o meu nome é grande entre as nações, e em todos os 4212
lugares é oferecido ao meu nome um sacrifício de incenso e uma oferta pura, porque
é grande o meu nome entre as nações, diz o Senhor do universo14... Os ministros
litúrgicos não diminuirão jamais a glória de Deus, nem oferecerão descuidadamente o
culto espiritual, mas porão toda a diligência em oferecer, com bondade e santidade, o
suave odor do incenso espiritual, isto é, a fé, a esperança, a caridade e a glória das boas
obras, depois, evidentemente, de ter sido ordenado o sacrifício celestial e vivificante
de Cristo, sacrifício pelo qual se destrói a morte e se revestem de incorruptibilidade a
própria corrupção e a carne terrena.

9
C IRILO DE ALEXANDRIA , Commentarius in Sophoniam (=PG 71, 944-1021).
10
Sof 3, 9.
11
Sof 3, 10.
12
C IRILO DE A LEXANDRIA , Commentarius in Zachariam (=PG 72, 9-276).
13
C IRILO DE A LEXANDRIA , Commentarius in Malachiam (=PG 72, 276-364).
14
Mal 1, 11.
1002 SÉCULO V

Comentário a São Mateus 15

MT 26, 27

4213 Em seguida, tomou um cálice, deu graças e entregou-lho, dizendo: Bebei


dele todos... O Senhor, tomando o cálice, dá graças, isto é, fala a Deus Pai em forma
de oração, declarando, desse modo, que o Pai tinha parte e aprovava plenamente a
bênção vivificante que nos ia ser dada; mas, ao mesmo tempo, deu-nos o primeiro tipo
de acção de graças, e com ela a ordem de partir e distribuir o pão. Por isso, colocando
os elementos de que já falámos sob o olhar de Deus, pedimos com insistência que sejam
transformados para nós em bênção espiritual, a fim de que, participando deles, sejamos
santificados corporal e espiritualmente.
Ele afirmou de maneira categórica: Isto é o meu Corpo e isto é o meu Sangue. Não
vás tu julgar que as realidades visíveis são figura16, mas fica sabendo que Deus
omnipotente transforma, de modo misterioso, algumas das coisas oferecidas, no Corpo
e no Sangue de Cristo; quando participamos deles, recebemos a força vivificante e
santificadora de Cristo. Porque era conveniente que Ele, pelo Espírito Santo, entrasse
em nós de um modo digno de Deus... Pela bênção vivificante temos diante de nós a
carne e o Sangue de Cristo como pão e vinho, para não sentirmos repugnância vendo a
sua carne e o seu Sangue expostos nas sagradas mesas das igrejas. Deus, acomodando-Se
à nossa debilidade, dá força de vida às oblações e muda-as na eficácia da sua própria
vida. Não duvides de que isto é verdade, pois é Ele que o diz claramente: Isto é o meu
Corpo e isto é o meu Sangue. Aceita, pois, pela fé, estas palavras do Salvador, porque,
sendo Ele a verdade, não mente.

Comentário ao Evangelho de Lucas 17

LC 2, 7 s

4214 Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador... Uma vez que Belém
significa casa do pão, onde iriam reunir-se os pastores, depois do anúncio da paz, senão
na casa espiritual do pão do Céu, isto é, na Igreja, na qual todos os dias é sacrificado
misticamente o pão que desceu do Céu para dar a vida ao mundo?
LC 4, 38-41

4215 Vê novamente como é útil tocar a carne santa. Ela põe em fuga doenças sem
número e uma multidão de Demónios, derruba o poder do Diabo e, num instante, cura
uma grande multidão... Toque-nos, pois, Jesus, também a nós, ou antes toquemo-l’O
nós a Ele na eu)logi/a mística, a fim de nos libertar a nós também das doenças da alma
e das ciladas e tirania dos Demónios...

15
C IRILO DE A LEXANDRIA , Commentarii in Matthaeum (=PG 72, 365-474).
16
tu/ p on.
17
C IRILO DE A LEXANDRIA , Commentarii in Lucam - Scholia in catenis (=PG 72, 475-950).
CIRILO DE ALEXANDRIA 1003

LC 22, 19 s

Tomou, então, o pão e, depois de dar graças, partiu-o e distribuiu-o por 4216
eles, dizendo: Isto é o meu Corpo, que vai ser entregue por vós... Dá graças, isto é,
fala a Deus Pai em forma de oração, declarando, com isso, que o Pai participava e
aprovava plenamente a bênção vivificante que nos ia ser dada. Porque toda a graça e
todo o dom perfeito vêm até nós do Pai, pelo Filho, no Espírito Santo.
Mas esta oração era o tipo da oração que devemos elevar fervorosamente sempre
que nos preparamos para oferecer a graça do dom místico e vivificante, como, na
realidade, costumamos fazer. Feita a acção de graças e louvando o Filho ao mesmo tempo
que Deus Pai com o Espírito Santo, aproximamo-nos, deste modo, das mesas sagradas,
acreditando que somos vivificados e abençoados, tanto corporal como espiritualmente,
pois recebemos o Verbo de Deus Pai feito homem por nós, que é vida e vivifica...

Comentário ao Evangelho de João 18

LIVRO III

6. Quem vem a Mim nunca mais terá fome, e quem crê em Mim nunca mais terá 4217
sede19. Que promete Cristo? Certamente, nada corruptível, mas antes aquela bênção
que consiste na participação da carne santa e do Sangue que eleva o homem íntegro à
incorruptibilidade... Parece, pois, que aqui a água significa a santificação pelo Espírito,
o mesmo divino e santo Espírito, a quem muitas vezes, nas Sagradas Escrituras, se
chama deste modo... Sendo isto assim, entendam todos os que estão baptizados e que
provaram a divina graça que, se vierem às igrejas raras vezes e com preguiça e deixarem
de frequentar por muito tempo a bênção de Cristo, por não quererem recebê-l’O
misticamente a pretexto dum respeito que é prejudicial, eles mesmos se afastam da
vida eterna, ao recusarem ser vivificados. Este afastamento, mesmo que pareça provir
do respeito e da reverência, é um laço e um escândalo. Seria mais conveniente que se
esforçassem, com todo o afinco e de todas as suas forças, em purificar-se depressa dos
seus pecados e em abraçar um estado de vida honesto e digno...

LIVRO XII

1. Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez dentro de casa e Tomé com 4218
eles20. Com toda a razão celebramos as santas reuniões nas igrejas no oitavo dia. E,
quando é preciso dizer algo mais místico, pela inevitável necessidade de impedir más
interpretações, fechamos as portas, e Cristo apresenta-Se e aparece a todos nós invisível
e visivelmente: invisivelmente como Deus, mas também visivelmente no corpo,
permitindo-nos e concedendo-nos que toquemos a sua carne santa. De facto,
aproximamo-nos, pela graça de Deus, a fim de participarmos na bênção mística 21, e
recebemos a Cristo nas nossas mãos, a fim de que também nós acreditemos que
efectivamente ressuscitou o seu próprio templo.
E que a comunhão da mística bênção é uma confissão da Ressurreição de Cristo,
é claro e bem patente, em razão do que Ele disse quando por Si mesmo celebrou a

18
C IRILO DE A LEXANDRIA , Commentarii in Iohannem (=PG 73, 9–74, 756).
19
Jo 6, 35.
20
Jo 20, 26.
21
A Eucaristia.
1004 SÉCULO V

forma do mistério. Tendo partido o pão, como está escrito, distribuiu-o, dizendo: Isto é o
meu Corpo, que vai ser entregue por vós, para remissão dos pecados: Fazei isto
em memória de Mim. Assim, a participação nos santos mistérios é uma verdadeira
confissão e memória de que o Senhor morreu e voltou à vida por nós e para nós, e
confirmação, além disso, de termos recebido a bênção divina na sua plenitude...

Contra os Antropomorfitas 22
4219 O dom ou a oblação que misticamente celebramos deve oferecer-se apenas nas
santas igrejas dos ortodoxos e não noutros lugares. Os que procedem de outro modo
violam claramente a lei. E isso pode ver-se facilmente pelas Sagradas Escrituras, porque
a lei mandava sacrificar o cordeiro no próprio dia da festa da Páscoa, o que era o tipo
de Cristo; mas, além disso, diz: Será comido numa só casa e não se levará para fora
nada da sua carne23. Assim, pois, os que não celebram o dom na única e católica casa
de Cristo, isto é, na igreja, levam-no para fora... Nós acreditamos que as oblações que
se fazem nas igrejas são santificadas, abençoadas e consagradas por Cristo.

Homilia no Concílio de Éfeso 24


4220 Contemplo esta assembleia de homens santos, alegres e exultantes, que,
convidados pela santa e sempre Virgem Maria, Mãe de Deus, aqui acorreram
prontamente. Por isso, embora eu estivesse oprimido por uma grande tristeza, este
espectáculo de santos padres enche-me de alegria. Vemos realizadas nesta reunião aquelas
formosas palavras do salmista David: Oh como é bom e agradável o convívio dos irmãos!
Nós Vos saudamos, ó mística e santa Trindade, que nos reunistes a todos nós
nesta igreja de Santa Maria, Mãe de Deus.
Nós Vos saudamos, ó Maria, Mãe de Deus, venerando tesouro de toda a terra,
lâmpada inextinguível, coroa da virgindade, ceptro da doutrina verdadeira, templo
indestrutível, morada d’Aquele que nenhum lugar pode conter, Mãe e Virgem, por
meio da qual nos santos Evangelhos é chamado bendito O que vem em nome do Senhor.
Nós Vos saudamos, ó Maria, que trouxestes no vosso seio virginal Aquele que é
imenso e infinito; por Vós, a santa Trindade é glorificada e adorada; por Vós, a cruz
preciosa é adorada no mundo inteiro; por Vós, o Céu exulta; por Vós, se alegram os
Anjos e os Arcanjos; por Vós, são postos em fuga os Demónios; por Vós, o Diabo
tentador foi precipitado do céu; por Vós, a criatura decaída é elevada ao Céu; por Vós,
todo o género humano, sujeito à insensatez da idolatria, chega ao conhecimento da
verdade; por Vós, o santo baptismo purifica os crentes; por Vós, nos vem o óleo da
alegria; por Vós, são fundadas as Igrejas em toda a terra; por Vós, os povos são
conduzidos à penitência.
E que mais hei-de dizer? Por Vós, o Filho unigénito de Deus iluminou aqueles
que jaziam nas trevas e na sombra da morte; por Vós, os Profetas anunciaram as
coisas futuras; por Vós, os Apóstolos pregaram aos povos a salvação; por Vós, os
mortos são ressuscitados; por Vós, reinam os reis em nome da santa Trindade.

22
C IRILO DE A LEXANDRIA , Adversus anthropomorphitas (=PG 76, 1065-1130).
23
Ex 12, 46.
24
C IRILO DE A LEXANDRIA , Homilia 4, Ephesi habita (=PG 77, 981-1116; cf. LH, IV).
CIRILO DE ALEXANDRIA 1005

Quem de entre os homens á capaz de celebrar dignamente os louvores de Maria?


Ela é mãe e virgem; oh realidade admirável, oh surpreendente maravilha! Quem alguma
vez ouviu dizer que o construtor fosse impedido de habitar no templo que ele próprio
construiu? Quem poderá considerar ignomínia o facto de tomar a própria serva como
sua mãe?
Vede como tudo exulta de alegria; queira Deus que todos nós reverenciemos e
adoremos a Unidade, que em santo temor veneremos a indivisível Trindade, ao
celebrarmos os louvores da sempre Virgem Maria, templo santo de Deus, que é seu
Filho e Esposo imaculado. A Ele a glória pelos séculos dos séculos. Amen.

Cartas Festais 25

CARTA 1

1. A nossa jubilosa e divina festa já faz resplandecer o seu brilho em toda a terra e 4221
mostra as suas claridades: nenhumas trevas, nenhuma nuvem deve opor-se aos que
desejam celebrar dignamente esta festa...
6. Comecemos a santa Quaresma a partir do dia quinze do mês de Mexe\ r, a 4222
semana da Páscoa salvadora a vinte do mês de Famenw\q, terminando o jejum a vinte
e cinco do mesmo mês, como é costume, e celebrando a festa na madrugada do domingo
da iluminação, a vinte e seis do mesmo mês de Famenw\q, acrescentando a seguir
também as sete semanas do santo Penthkosth=j.
CARTA 2

1. Alegrai-vos sempre no Senhor, de novo vos digo, alegrai-vos... Eis que a nossa 4223
bendita festa, tendo percorrido o ciclo do ano, está à nossa porta; já quase ultrapassou
a entrada e se instalou em todas as almas. Seria completamente absurdo... mostrarmos
nesta ocasião um zelo inferior aos Judeus... que proclamam as suas festas com toques
de trombeta...
9. Façamos festa, caríssimos, em razão de tão grandes coisas... Levemos a cabo o 4224
verdadeiro jejum, começando a santa Quaresma no dia cinco do mês de Famenw\q, a
semana da Páscoa salvadora no dia 10 do mês de Farmouqi\, quebrando o jejum no dia
quinze do mesmo mês, na tarde de sábado, como é costume, e celebrando a festa na
madrugada do domingo seguinte, a dezasseis do mesmo mês de Farmouqi\, segundo a
prescrição legal, acrescentando a seguir as sete semanas do santo Penthkosth=j, pois
é deste modo que seremos herdeiros com os santos do Reino dos Céus, em Jesus
Cristo, nosso Senhor, por quem e com quem sejam dadas ao Pai glória e poder, assim
como ao Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amen.
CARTA 4

1. Resplandece de novo para nós o tempo da santa festa; pouco antes começa o 4225
combate da penitência...
6. Celebraremos, pois, a festa com um coração puro e faremos, como convém, o 4226
jejum, fonte de todos os bens, começando a santa Quaresma a partir do dia vinte e seis

25
C IRILO DE A LEXANDRIA , Epistulae (homiliae) paschales (=PG 77, 401-981; SCh 372, 392 e 434).
1006 SÉCULO V

do mês de Mexe\r , a semana da Páscoa salvadora no dia um do mês de Farmouqi\ ,


terminando o jejum, segundo as prescrições dos Evangelhos, na noite de sábado, dia
seis do mesmo mês de Farmouqi\ , e celebrando a festa da Páscoa na madrugada do
domingo seguinte, dia sete do mesmo mês de Farmouqi\, acrescentando a seguir as
sete semanas do Santo Penthkosth=j...
CARTA 6

4227 8. O oitavo dia foi chamado entre nós «dia do Senhor», porque doravante ele
termina e encerra o tempo da Lei e introduz para nós o início da era do Senhor, durante
a qual todas as coisas se tornaram novas...

Carta a Calosírio 26
4228 Ouço dizer que alguns monges afirmam que a bênção mística27 não serve de nada
para a santificação, se algo do que sobra se deixa para outro dia. Estão sem norte os
que dizem isso, porque nem se altera Cristo, nem se muda o seu santo Corpo; perseveram
sempre nele a força e o poder de bênção e a graça constante que vivifica...

Reverentius

Vida de Hilário 28
4229 13. 16 Sempre que Hilário dava a penitência, a maior parte das vezes em dia de
domingo, acorria numerosa multidão. Ele admoestava todos os que se queriam
apresentar, e os pecadores purificavam-se em torrentes de lágrimas, aterrorizados
pelo juízo divino, mas encorajados pelas promessas de Deus. Corriam tantas lágrimas,
eram tantos os gemidos que se elevavam entre os assistentes, que a vida presente
aparecia como morada cheia de perigos. Quem pintou alguma vez com tanta força o
Juízo final?... Quando terminava a exortação, Hilário começava, lavado em lágrimas, as
orações de súplica, para confirmar, pela oração, os frutos da penitência que tinha feito
nascer ao pregar.

26
C IRILO DE A LEXANDRIA , Epistulae ad Calosyrium (=PG 76, 1065-1077; 77, 9-390).
27
A Eucaristia.
28
R EVERENTIUS , Vita Hilarii (=PL 50, 1219-1249; C. VOGEL , Paris 1966, 132). Hilário de Arles, pregador de
talento comparado a S. Agostinho, foi bispo entre 430 e 449.
ARNÓBIO, O JOVEM 1007

Arnóbio, o Jovem

Comentários aos Salmos 1

SALMO 4

1. O título do quarto salmo, in carminibus, quer dizer nos mistérios. Neles o 4230
Senhor de justiça ouviu o seu Filho cravado na cruz, contra o qual os Judeus pecam até
ao dia de hoje. Não pecariam... se não negassem que Ele é verdadeiramente o Filho de
Deus..., que reina pelos séculos dos séculos. Amen.
SALMO 15

1. Este salmo é precedido apenas das palavras tituli inscriptio, o que mostra que ele 4231
se canta mais em razão do sentido místico do que do sentido histórico. Nele nos damos
conta de que foi Jesus de Nazaré, homem perfeito, ao ir para a sua Paixão, que disse a
oração deste salmo... A Ele a glória pelos séculos dos séculos. Amen.
SALMO 19

1. A Igreja diz a Cristo que caminha para a cruz: O Senhor te ouça no dia da 4232
tribulação e o nome do Deus de Jacob te proteja. Sim, ela fala ao homem que se
ofereceu em redenção por todos. Torne-se agradável o holocausto que ofereces no altar
da cruz e confirmem-se todos os teus desejos... Uns confiam nos carros, outros nos
cavalos, mas nós confiamos no nome do Senhor nosso Deus... A Ele a glória pelos
séculos dos séculos. Amen.
SALMO 35

1. Junto de Cristo está a fonte da vida, e porque Ele é a Luz da Luz, na sua luz 4233
veremos a Luz. Ele dá a sua misericórdia aos que O conhecem, e a sua justiça aos rectos
de coração; estende a indulgência aos que pretendem corrigir-se, e conserva a justiça
aos que nela permanecem. Por isso devemos pedir-Lhe para que não nos calquem os
pés dos soberbos nem nos demovam as mãos dos pecadores... Devemos suplicar ao
Senhor Jesus Cristo que nos confirme, para podermos perseverar no seu temor pelos
mesmo Jesus Cristo nosso Senhor, que reina na unidade do Pai e do Espírito Santo, nos
séculos dos séculos 2. Amen.
SALMO 55

1. Quando o Senhor arrancar a tua alma da morte..., então serás colocado na luz dos 4234
vivos por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem e com quem a Ti Deus Pai com o
Espírito Santo pertence uma só divindade e a indivisa trindade, antes de todas as
coisas, agora e por todos os séculos dos séculos 3. Amen.

1
A RNÓBIO, O J OVEM , Commentarii in psalmos (=PLS 53, 327-570; CCL 25). A única data que se pode
atribuir a este autor é aquela em que escreveu uma das suas obras, isto é, o ano 450.
2
Per ipsum Dominum nostrum Iesum Christum, qui regnat in unitate Patris et Spiritus Sancti in saecula
saeculorum. Amen.
3
Per quem et cum quo tibi Deo Patri cum Spiritu Sancto est divinitas, indivisa trinitatis... saeculorum.
1008 SÉCULO V

Pedro Crisólogo

Sermões 1

SERMÃO 34

4235 Então, uma mulher, que padecia de uma hemorragia há doze anos, aproximou-
-se d’Ele por trás e tocou-Lhe na orla do manto2... Que terá visto esta mulher habitar
no interior de Cristo, ela que viu habitar toda a força da divindade na orla do manto de
Cristo?... Ouçam os cristãos, que tocam o Corpo de Cristo diariamente, o remédio que
podem tirar do mesmo Corpo, uma vez que a mulher, apenas da orla do manto, tirou
toda a saúde.
SERMÃO 43 3

4236 É preciso falar ao povo de maneira popular...


Há três coisas, irmãos, pelas quais se confirma a fé, se fortalece a devoção e se
mantém a virtude: a oração, o jejum e a misericórdia. O que pede a oração, alcança-o o
jejum e recebe-o a misericórdia. Oração, jejum e misericórdia: três coisas que são uma
só e se vivificam mutuamente.
O jejum é a alma da oração, e a misericórdia é a vida do jejum. Ninguém tente
dividi-las, porque são inseparáveis. Quem pratica apenas uma das três, ou não as
pratica todas simultaneamente, na realidade não pratica nenhuma delas. Portanto,
quem ora, jejue; e quem jejua, pratique a misericórdia. Quem deseja ser atendido nas
suas orações atenda as súplicas de quem lhe pede, pois aquele que não fecha os seus
ouvidos às súplicas alheias abre os ouvidos de Deus às suas próprias súplicas.
Quem jejua entenda bem o que é o jejum; seja sensível à fome dos outros, se quer
que Deus seja sensível à sua; seja misericordioso, se espera alcançar misericórdia;
compadeça-se, se pede compaixão; dê generosamente, se pretende receber. Muito mal
suplica quem nega aos outros o que pede para si...
Façamos, portanto, destas três virtudes – oração, jejum, misericórdia – uma
única força mediadora junto de Deus em nosso favor... Oferece a Deus a tua alma,
oferece a oblação do jejum, para que seja uma oferenda pura, um sacrifício santo, uma
vítima viva que ao mesmo tempo fica em ti e é oferecida a Deus...
Mas, para que esta oferta seja aceite a Deus, deve acompanhá-la a misericórdia;
o jejum não dá fruto, se não for regado pela misericórdia; seca o jejum se secar a
misericórdia; o que a chuva é para a terra é a misericórdia para o jejum. Por muito que
cultive o coração, purifique a carne, extermine vícios e semeie virtudes, nenhum fruto
recolherá quem jejua, se não abrir os caudais da misericórdia.

1
PEDRO C RISÓLOGO , Sermones (=PL 52, 183-680; CCL 24; 24 A; 24 B). Nasceu em 380 e morreu em 450.
2
Mt 9, 20.
3
Cf. LH, III.
PEDRO CRISÓLOGO 1009

SERMÃO 68

Apesar de ainda não ter nascido pelo baptismo, o catecúmeno já chama a Deus 4237
seu Pai, já pede a santidade e aspira ao Reino4...
SERMÃO 70

O pão nosso de cada dia nos dai hoje... Depois de pedir o Reino celeste, não nos 4238
é mandado que peçamos o da terra, mas até se proíbe... Mas como Cristo é o pão que
desceu do Céu, pedimos e suplicamos que este mesmo pão com que, todos os dias, isto
é, perenemente, havemos de ser alimentados na eternidade o tomemos hoje, isto é, na
vida presente, da mesa do santo altar, para nos fortalecer o corpo e a alma...
SERMÃO 71

Cristo é o pão que desceu do Céu. Com a pedra de moer da lei e da graça 4239
converteu-se em farinha, foi amassado com a paixão da cruz, fermentado com o
sacramento da grande piedade, trouxe do sepulcro a ajuda duma leve aspersão. Para ser
cozido com o calor da sua divindade Ele mesmo destruiu o fogo do Inferno, cada dia é
levado como manjar celeste à mesa da Igreja, é partido para a remissão dos pecados e
aos que o comem alimenta-os para a vida eterna. Este é o pão que pedimos que nos seja
dado cada dia até o possuirmos no dia perpétuo...
SERMÃO 95

Tudo aquilo que Cristo fez enquanto viveu no seu corpo foi historicamente 4240
verdadeiro e, ao mesmo tempo, está repleto de mistérios celestes. Como já explicámos
esta leitura mais de uma vez, orai para sermos capazes de esclarecer, como prometemos,
o seu segredo, ajudados pela inspiração do Espírito Santo. Na verdade, a explicação
que apresenta os factos de Deus com uma simples exposição humana não dignifica a
explicação.
Um fariseu convidou o Senhor para comer consigo 5. O fariseu, irmãos, é o
católico dos Judeus, pois crê na ressurreição, afastando-se assim do saduceu, que a nega...
Entrou em casa do fariseu. Em que casa entrou? Na sinagoga, e pôs-Se à mesa...
O modo como deve ser comida a carne de Cristo e como deve ser bebido o seu Sangue,
conhecem-no aqueles que foram instruídos nos mistérios celestes.
Ora certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora 6 . Que mulher
era esta? A Igreja, sem dúvida. Em que cidade era ela conhecida?... Na cidade rodeada
com muralhas de maldade..., esta mulher, quer dizer, a Igreja, arrastava um peso enorme
de pecados. Mas, quando ouviu dizer que Cristo viera a casa do fariseu, isto é, à sinagoga,
e que ali, isto é, na Páscoa dos Judeus, realizara os mistérios da sua Paixão e abrira o
sacramento do seu Corpo e Sangue, manifestando o segredo da nossa redenção, sem
atender aos escribas..., forçou as portas... e, cheia de entusiasmo, penetrou até ao mais
íntimo da sala do convívio, onde encontrou Cristo, que, entregue entre um banquete de
amor e bebidas suaves, tinha sucumbido por fraude dos Judeus, como diz o Profeta...

4
Aquilo que por volta de 390 já era permitido em Ravena, ainda era inconcebível em Jerusalém e em Milão.
5
Lc 7, 36.
6
Lc 7, 37.
1010 SÉCULO V

SERMÃO 108 7

4241 Ouçamos agora o que pede o Apóstolo: Rogo-vos que ofereçais os vossos
corpos. Pedindo assim, o Apóstolo elevou todos os homens à dignidade do sacerdócio:
Que ofereçais os vossos corpos como vítima viva.
Oh inaudito mistério do sacerdócio cristão, em que o homem é para si mesmo
vítima e sacerdote! O homem não tem de procurar fora de si a vítima que deve oferecer
a Deus; traz consigo e em si o que por si há-de sacrificar a Deus...
Admirável sacrifício, em que o corpo é oferecido sem imolação do corpo, o
sangue sem derramamento de sangue: Rogo-vos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais
os vossos corpos como vítima viva.
Irmãos, este sacrifício é imagem do sacrifício de Cristo, que, para dar a vida ao
mundo, imolou o seu corpo, permanecendo vivo; na verdade, Ele fez do seu corpo uma
vítima viva, porque, tendo sido morto, continua vivo... Por isso, os mártires nascem
com a morte, no fim da vida começam a vivê-la; com a sua imolação revivem, e brilham
agora nos Céus os que na terra eram tidos como mortos...
Procura, ó homem, ser o sacrifício e o sacerdote de Deus; não percas aquilo que
te foi dado pelo poder do Senhor. Reveste-te com a estola da santidade, cinge-te com
o cíngulo da castidade; seja Cristo o capacete de protecção da tua cabeça; permaneça na
tua fronte a cruz como defesa. Grava no teu peito o sinal da ciência divina; eleva
continuamente a tua oração como perfume de incenso; empunha a espada do Espírito;
faz do teu coração um altar. E, assim, com toda a confiança, oferece o teu corpo como
vítima a Deus.
Deus não quer a morte, mas a fé; não tem sede do teu sangue, mas do teu
sacrifício; não Se aplaca com a morte, mas com a vontade generosa.
SERMÃO 117 8

4242 Ensina-nos o santo Apóstolo que dois homens deram princípio ao género humano:
Adão e Cristo. Dois homens, semelhantes no corpo, mas diferentes no mérito... Temos,
portanto, o primeiro e o último Adão. O primeiro teve princípio; o último não tem fim.
Por isso, este último é verdadeiramente o primeiro, como Ele mesmo diz: Eu sou o
Primeiro e o Último...
Tal como foi o homem terreno, assim são também os homens terrenos; e tal
como é o homem celeste, assim serão também os homens celestes... Isto deve-se,
irmãos, à acção do Espírito, que fecunda com a sua luz divina o seio materno da fonte
virginal, para que aqueles que a origem terrestre trouxe ao mundo na pobre condição
terrena renasçam na condição celeste e sejam elevados à semelhança do seu divino
Criador...
SERMÃO 170

4243 2. A voz dos fiéis dá testemunho, todos os dias, da majestade de Deus, clamando:
«Os céus e a terra estão cheios da tua glória».

7
Cf. LH, III.
8
Cf. LH, IV.
SEDÚLIO 1011

Sedúlio

Hino pascal 1

LIVRO II

1-12. Desde o nascer do sol / Até ao fim do dia, / Cantemos o Senhor / Da Virgem Mãe 4244
nascido.
Hoje o Autor do mundo / Veio em carne mortal / Para salvar o homem, / Obra das
suas mãos.
Vamos com os pastores / Com os Anjos cantando: / Glória a Deus nas alturas /
Paz aos homens na terra2.

LIVRO V

400-404. Não carecem de sentido o peixe, as brasas e o pão encontrados pelos 4245
discípulos num mesmo lugar. Quem duvida de que em todas estas coisas se significa a
fé? A água é o peixe; Cristo é o pão; o Espírito Santo é o fogo. Com a água somos
purificados, com o pão somos alimentados, com o Espírito Santo somos consagrados3.

Obra pascal 4

LIVRO V

35. O peixe posto sobre as brasas e o pão que acharam simultaneamente no mesmo 4246
sítio, vê-se bem que não carecem de sentido religioso católico. De facto, pelo peixe
parece entender-se a água, com a qual é certo que somos purificados e renascemos; o
pão significa Cristo Salvador, com cujo Corpo somos alimentados para a salvação. O
fogo leva em si a imagem do Espírito Santo, pelo qual somos dedicados e consagrados
para a fé.

1
S EDÚLIO , Paschale Carmen (=PL 19, 549-752; CSEL 10). Sedúlio terá nascido na Gália ou na Itália, em
data que se desconhece. Começou por escrever em verso e mais tarde escreveu em prosa o que antes escrevera
em poesia. O Hino pascal é a composição em verso, ao passo que a Obra pascal é a sua versão em prosa. A
actividade literária de Sedúlio decorreu entre os anos 425 e 450.
2
A solis ortus cardine / ad usque terrae limitem / Christum canamus principem / natum Maria Virgine.
/ Beatus auctor saeculi / servile corpus induit, / ut carne carnem liberans / non perderet quod condidit.
/ Gaudet chorus caelestium / et angeli canunt Deum, / palamque fit pastoribus / pastor, creator omnium.
A versão portuguesa foi tirada da LH, I, mas a última quadra está traduzida com muita liberdade em relação
ao original.
3
Nec piscis prunaeque vacant et panis in uno / Discipulis inventa loco. Quisnam ambigat unam / His
rebus constare fidem, quippe est aqua piscis, / Christus adest panis, sanctusque Spiritus ignis. / Hinc
etenim abluimur, hoc pascimur, inde sacramur.
4
S EDÚLIO , Opus Paschale (=PL 19, 546-752; CSEL 10).
1012 SÉCULO V

Sosímenes

História Eclesiástica 1

LIVRO I

4247 8. Construção e reparação de igrejas. 7 Entre os lugares de oração, os que eram


suficientemente grandes foram restaurados, outros foram magnificamente aumentados
em altura e largura, e naqueles lugares onde, desde o princípio, não existia nenhum,
foram construídos desde os alicerces. O imperador 2 fornecia dinheiro do tesouro
imperial, depois de ter escrito aos bispos de cada cidade e aos governadores de província,
àqueles para que gastassem à vontade, a estes para que obedecessem aos bispos e se
pusessem com zelo ao seu serviço...
O dia do Senhor, a sexta-feira e a veneração da Cruz. 11 Quanto ao dia chamado
dia do Senhor, que os Judeus chamam o primeiro da semana e que os pagãos consagram
ao sol, e ao sétimo dia3, fixou por lei que passaria a haver, por toda a parte, férias nos
tribunais e noutros assuntos, e que nesse dia se prestaria culto à Divindade por meio
de orações e súplicas. 12 Ele honrava o dia do Senhor como sendo o dia em que Cristo
tinha ressuscitado dos mortos, e o sétimo dia como o dia em que tinha sido crucificado;
de facto, ele tinha uma singular veneração pela santa Cruz, em razão do que lhe
acontecera por ajuda da Cruz, nos seus combates contra os adversários e da visão
divina que tivera da Cruz. 13 Foi por isso que ele suprimiu por uma lei, em uso nos
tribunais, o suplício da cruz, até então habitual entre os Romanos; à sua efígie, que era
representada nas moedas e gravada nas medalhas, mandou que fossem sempre
acrescentadas a gravura e o sinal deste símbolo divino. São disso testemunho, ainda
hoje, as medalhas de Constantino, que mostram esta figura.
4248 16. A data da Páscoa. 4 (O imperador) estava aborrecido por saber que alguns
celebravam a festa da Páscoa de maneira contrária ao uso geral. Alguns estavam, com
efeito, em desacordo a este respeito nas cidades do Oriente: sem dúvida, não deixavam
de estar em comunhão uns com os outros, mas celebravam a Páscoa duma forma mais
próxima dos Judeus e, como é natural, por causa deste desentendimento, prejudicavam
a beleza da festa. 5 Quanto a estes dois pontos, o imperador fez o possível para que a
Igreja vivesse em paz.
4249 23. O celibato dos clérigos. 2 A opinião geral do Concílio (de Niceia) era a de introduzir
como lei que os bispos, presbíteros, diáconos e subdiáconos não tivessem o leito em
comum com as esposas que tinham tomado em casamento antes de ser ordenados. 3
Mas levantou-se no meio deles Pafúncio, o Confessor, que se opôs, declarando o
casamento coisa honrada, e temperança o facto de se unir à sua própria esposa.
Aconselhou o Concílio a não aprovar uma tal lei: tal deliberação seria difícil de suportar,
e poderia mesmo ser para os maridos e para as suas esposas uma causa de intemperança.
4 Era preciso, segundo a antiga tradição da Igreja, que os celibatários, depois de entrarem
na hierarquia, já não se casassem, mas que aqueles que nela tinham entrado depois de
casados não se separassem das suas esposas. Foi esta a proposta de Pafúncio, apesar

1
SOSÍMENES , Historia ecclesiastica (=PG 67, 844-1630; SCh 306 e 418). Obra escrita entre 439 e 450.
2
Constantino.
3
Sexta-feira.
SOSÍMENES 1013

de ele próprio não ser casado. 5 O Concílio aprovou esta opinião e não fez lei a este
respeito, deixando o assunto ao juízo de cada qual, sem que houvesse obrigatoriedade.
24. O caso de Melécio. 1 Quando foi examinado o caso de Melécio no Egipto, o 4250
Concílio (de Niceia) condenou-o a permanecer em Licópolis apenas com o título de
bispo, mas sem poder, doravante, ordenar ninguém, quer nas cidades quer no campo;
os que já tinham sido ordenados por ele ficariam em comunhão e continuariam as suas
funções, mas subordinados, quanto às honras, aos membros do clero em cada Igreja e
em cada sede episcopal. 2 Em caso de morte dos bispos católicos, os bispos melecianos
poderiam tomar o seu lugar, se o voto popular os julgasse dignos, mas com a condição
de o bispo de Alexandria os ordenar de novo: não lhes era permitido escolher quem eles
quisessem, segundo a sua própria vontade. 3 Esta decisão pareceu justa ao Concílio,
que levou em consideração a pressa de Melécio e dos seus partidários nas ordenações,
até ao ponto de ter usurpado aquelas que, por direito, pertenciam a Pedro, quando
este, que era o chefe da Igreja de Alexandria e que foi mártir, estava em fuga por causa
da perseguição.

LIVRO II

1. Descoberta da santa Cruz. 1 Tendo o concílio de Niceia terminado desta maneira..., 4251
o imperador..., como forma de homenagem e reconhecimento a Deus pelo bom acordo
dos bispos..., pensou construir uma igreja... em Jerusalém, no lugar chamado Calvário.
2 Por esse mesmo tempo, também Helena, sua mãe, veio a Jerusalém para orar e visitar
os Lugares Santos. Como ela tinha em grande reverência a religião cristã, desejava
muito descobrir o madeiro da santa Cruz. 3 Não era fácil descobrir nem esse madeiro
nem o santo túmulo, porque os pagãos, que outrora tinham perseguido a Igreja, também
se tinham esforçado, por todos os meios, em cortar pela raiz a religião, quando ela
começava a nascer. Tinham coberto o lugar do túmulo com uma grande quantidade de
terra, tornando elevado o que então era baixo: é assim que o vemos ainda hoje. Além
disso, tinham cercado com um muro todo o lugar da Ressurreição e do Calvário, e
tinham arranjado e pavimentado toda a superfície; tinham ali construído um templo a
Afrodite e erguido uma estátua desta deusa, de modo que aqueles que ali fossem adorar
Cristo dessem a impressão de honrar Afrodite; esperavam eles que, com o tempo, a
verdadeira causa da veneração do lugar caísse no esquecimento, dado que os cristãos
não ousariam frequentá-lo sem temor, nem revelá-lo a outros, e que, ao contrário, o que
se acreditaria como verdadeiro, seria o templo pagão e a estátua. 4 O lugar acabou por
ser conhecido e foi desmascarada a fraude que alguém se esforçara por criar a seu
respeito... 5 Por ordem do imperador, todo aquele espaço foi completamente limpo até
ao fundo; e nesse lugar apareceu a gruta da Ressurreição; noutro sítio, perto do mesmo
lugar, descobriram-se três cruzes e, à parte, uma outra peça de madeira parecida com
um título redigido em hebraico, em grego e em latim com estas palavras: «Jesus de
Nazaré, o rei dos Judeus»... 8 Uma vez descoberta a santa Cruz, a maior parte, que
permanece num cofre de prata, é ainda guardada em Jerusalém... 11 Contámos tudo
isto do mesmo modo que o recebemos da tradição...

LIVRO III

16. 4 Diz-se que Efrém escreveu ao todo cerca de trezentos mil versos e que teve 4252
muitos discípulos que procuraram com avidez o seu ensino...
5 Não ignoro que, outrora, também foram igualmente doutos... Bardesane... e
Harmónio, filho de Bardesane, que era muito versado na cultura grega e foi o primeiro
a compor versos na língua dos seus pais e a fazê-los cantar por coros, e é por isso que,
1014 SÉCULO V

ainda hoje, os Sírios cantam muitas vezes, não as próprias palavras de Harmónio, mas
as suas melodias. 6 De facto, Harmónio não era totalmente isento dos erros de seu pai
nem de certas opiniões dos filósofos gregos sobre a alma, a geração e a destruição dos
corpos e a metempsicose. Por isso introduziu, nos cânticos líricos da sua autoria, no
meio dos seus pensamentos pessoais, algumas destas ideias.
7 Efrém apercebeu-se que os Sírios gostavam muito do estilo elegante e do ritmo
musical, e que ao mesmo tempo simpatizavam com essas mesmas opiniões. Então,
apesar de alheio à cultura grega, deu-se ao estudo da métrica de Harmónio e, sobre as
melodias dos seus poemas, compôs outros de acordo com a doutrina da Igreja; foram
esses os que ele elaborou em forma de hinos sagrados e de cânticos de louvor para os
santos. Desde então, os Sírios cantam as odes de Efrém com as melodias de Harmónio.
4253 17. 1 De maneira geral, os chefes das Igrejas, nesta época, levavam uma vida austera.
Como é natural, sob a orientação de tais chefes, as populações tendiam com todas as
suas forças para a adoração de Cristo, a religião desenvolvia-se cada dia mais e, pelo
zelo, a virtude e os milagres dos sacerdotes e dos ascetas da Igreja, ela atraia e trazia a
si os pagãos afastando-os da mentira pagã. 2 Os imperadores também contribuíam
para este progresso, porque, não menos que o pai, cuidavam das Igrejas, favoreciam os
clérigos, seus filhos e familiares, com honras insignes e isenções de impostos,
confirmavam as leis dadas por seu pai e publicavam outras contra aqueles que tentavam
fazer sacrifícios ou venerar ídolos de madeira ou, de qualquer outra forma, celebrar o
culto pagão4. 3 Dos templos, ordenaram que fossem fechados os que se encontravam
um pouco por toda a parte nas cidades e no campo, e atribuíram os outros às Igrejas
que tinham necessidade ou de lugares de culto ou de rendimentos e, particularmente,
tinham grande cuidado em restaurar as casas de culto deterioradas pelo tempo, e em
construir outras, desde os alicerces, com magnificência. Ao número destas pertence a
igreja de Emésia, que vale a pena recordar pela sua beleza.
4254 20. 8 Nos coros em que se agrupavam, segundo o seu costume de cantar a Deus, no
fim dos cânticos manifestavam a sua escolha pessoal: uns louvavam o Pai e o Filho
com a mesma honra, outros louvavam o Pai no Filho, marcando, pela inserção da
preposição, que o Filho era inferior5.

LIVRO VII

4255 16. Na Igreja romana, na missa, antes do ofertório, os penitentes prostram-se por
terra com gemidos e lamentos. Então o bispo, em lágrimas, ao chegar do lado oposto,
também se prostra por terra; e toda a multidão da assembleia, ao mesmo tempo que
confessa, se banha em lágrimas. Depois, levanta-se o bispo em primeiro lugar e manda
levantar os prostrados; e feita, como é devido, a oração pelos pecadores que fazem
penitência, despede-os.

4
A partir de 341, Constâncio prescreveu a interdição de todos os sacrifícios e o encerramento dos templos;
talvez a partir de 346, uma lei ameaçou de morte os que celebrassem sacrifícios pagãos.
5
Em si mesma, a doxologia do Pai no Filho não é herética. A interpretação que dela se dava em Antioquia é
que o era.
PSEUDO-EPIFÂNIO 1015

Pseudo-Epifânio

Anáfora atribuída a Santo Epifânio 1

LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

É digno e justo, nosso Deus, dar-Te graças sem cessar por todos os benefícios 4256
que nos concedeste, e em primeiro lugar por nos teres enviado do Céu o teu Filho
santo, que contigo está sentado no trono do teu Reino, o Filho que é co-eterno contigo,
Deus Verbo, que veio nos últimos dias, assumindo a nossa humanidade, Verbo feito
carne sem sofrer qualquer mudança. Ele tomou, pelo Espírito Santo, corpo e alma
racional de homem e todas as coisas que há no homem excepto o pecado. Não o fez
como se, de algum modo, habitasse no homem, mas como Deus Verbo perfeito,
perfeitamente encarnado, sem mudar a humanidade. Não sendo dois, mas um só Rei,
um só Cristo, um só Senhor na divindade e na humanidade, sem confusão nem divisão,
Ele confirmou a sua natureza divina e humana por meio de sinais divinos e sofrimentos
humanos.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

Ao chegar à morte voluntária, gloriosa e vivificante por nós, depois de tomar o 4257
pão nas suas santas e imaculadas mãos, mostrou-o a Ti, Deus e Pai, deu graças,
abençoou-o, santificou-o e deu-o aos seus discípulos, os santos Apóstolos, dizendo:
Tomai e comei: Isto é o meu Corpo, que será entregue por vós, para remissão dos pecados.
De igual modo, no fim da Ceia, depois de tomar o cálice e de o misturar com os
dois elementos, tirados do fruto da videira e da água, assinalou o cálice da imortalidade
e deu-o aos seus discípulos, dizendo: Bebei todos dele. Isto é o meu Sangue, da nova
Aliança, que será derramado por vós e por muitos, para remissão dos pecados...2
EPICLESE

... para que este pão, mudado, se torne Corpo de Cristo, Corpo divino, Corpo 4258
salvador das almas e dos corpos, e o que está misturado neste cálice, se torne o Sangue
do próprio Cristo, Sangue da nova Aliança, Sangue da nossa salvação, a fim de
participarmos todos dos teus santos mistérios com um espírito novo e não segundo a
velhice da letra...3

1
P SEUDO -E PIFÂNIO , Anáfora atribuída a Santo Epifânio (=B. BOTTE , Fragments d’une anaphore inconnue
attribuée a st. Ephiphane, Le Muséon 73, 1960, 311-315; A. H ÄNGGI -I. P AHL , Prex Eucharistica, textus
e variis liturgiis antiquioribus selecti, Fribourg 1968 [Spicilegium Friburgense 12]; E. L ODI , Roma
1979, 488-490); cf. n. 4738. Este fragmento, que se conserva entre as liturgias etíopes, mas escrito
originariamente em língua arménia, tem todos os sinais de grande antiguidade: descrição da mistura do
vinho e da água, ausência do louvor teológico e do «Sanctus», e narração da instituição semelhante à das
anáforas de Basílio e de Tiago, seguida da epiclese. Esta Oração eucarística não se dirige ao Pai, mas ao
Filho. Supõe-se que seja dos meados do séc. V (450). Esta anáfora era usada, entre os Etíopes, no Baptismo
do Senhor (11 ou 6 de Janeiro), no Mês da Chuva (Junho), na festa de Santo Epifânio (17 de Maio) e na
Oração do Quinto Dia (provavelmente a Quinta-Feira Santa).
2
Texto incompleto.
3
Texto incompleto no princípio e no fim.
1016 SÉCULO V

Quodvultdeus de Cartago

Sermões 1

SERMÃO 1 2

4259 O que é que foi celebrado em vós, caríssimos? O que é que nesta noite foi feito
em vós, que não fora ainda feito nas noites anteriores? Cada um de vós apareceu diante
de toda a Igreja, vindo de lugares desconhecidos. A cabeça, que pouco antes tínheis
levantada, vinha agora inclinada, os pés poisaram na humildade do cilício, foi-vos feito
um exame e deixastes-vos examinar, e de vós foi extirpado o Diabo soberbo quando
sobre vós foi invocado Cristo, humilde e altíssimo. Todos vos mostráveis humildes e
humildemente pedíeis, orando, salmodiando e dizendo: Sondai-me, ó Deus, e vede o
meu coração. O Senhor sondou, examinou, tocou com o seu temor os corações dos
servos, e, pelo seu poder, pôr em fuga o Diabo, de cujo domínio libertou a sua família.

4260 SERMÃO 2 3

2. 1 Vós professastes que renunciais ao Diabo, às suas pompas e aos seus


anjos..., e proclamastes a vossa fé: «Creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador de
todas as coisas, Rei dos séculos, imortal e invisível; Creio no seu Filho Jesus Cristo,
que nasceu do Espírito Santo e da virgem Maria; sob Pôncio Pilatos foi crucificado e
sepultado, ao terceiro dia ressuscitou dos mortos, subiu aos Céus, e está sentado à
direita do Pai, donde há-de vir para julgar os vivos e os mortos; Creio no Espírito
Santo, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, e na vida eterna pela santa
Igreja».
4261
SERMÃO 3 4
Todos os ritos que se fazem e foram feitos sobre vós pelo ministério dos servos de
Deus, exorcismos, orações, cânticos espirituais, insuflações, cilício, inclinação das vossas
cabeças, humilhação dos vossos pés, o próprio pavor que deseja toda a segurança, tudo
isto, como disse, são alimentos5.

1
QUODVULTDEUS, Sermones de Symbolo (=PL 40, 637-668; CCL 60). Quodvultdeus é contemporâneo de Agostinho
de Hipona. Em 428 pede a Agostinho um catálogo das heresias. Foi bispo de Cartago entre os anos 437 e 453.
2
Sermo 1 de symbolo ad cathecumenos (=PL 40, 637; CCL 60, 305-334).
3
Sermo 2 de symbolo ad cathecumenos (=PL 40, 651; CCL 60, 335-348).
4
Sermo 3 de symbolo ad cathecumenos (=PL 40, 659; CCL 60, 349-363).
5
Omnia sacramenta quae acta sunt et aguntur in vobis per ministerium servorum Dei, exorcismis,
orationibus, canticis spiritualibus, insufflationibus, cilicio, inclinatione cervicum, humilitate pedum,
pavor ipse omni securitate appetendus; haec omnia, ut dixi, escae sunt.
PRÓSPERO DE AQUITÂNIA 1017

Próspero de Aquitânia

O chamamento de todos os povos 1

1. 12 Os mistérios das orações sacerdotais ensinados pelos Apóstolos são 4262


celebrados uniformemente no mundo inteiro e em toda a Igreja católica, para que a lei
da oração estabeleça a lei da fé2.

Capítulos das autoridades ou Indículo 3

8. Além destas definições invioláveis da santa Sé Apostólica, pelas quais os Papas 4263
piedosíssimos, rejeitada a orgulhosa e má novidade, nos ensinaram a atribuir à graça de
Cristo, quer a boa vontade inicial, quer a continuação dos esforços louváveis, quer a
perverança neles até ao fim, consideremos também os mistérios das orações sacerdotais
que, ensinados pelos Apóstolos, são celebrados uniformemente no mundo inteiro e em
toda a Igreja católica, para que a lei da oração estabeleça a lei da fé 4.
De facto, quando os que presidem às assembleias santas dos povos desempenham
o serviço que lhes foi confiado, tornam presente à clemência divina a causa do género
humano. Ao mesmo tempo que toda a Igreja suplica com eles, pedem que se conceda a
fé aos infiéis, que os idólatras sejam libertados dos erros da sua impiedade, que aos
Judeus seja tirado o véu que lhes cobre o coração e lhes apareça a luz da verdade, que
os hereges voltem à verdade da fé católica, que os cismáticos recebam, renovado, o
espírito da caridade, que se dê aos que caíram5 o remédio da penitência, e, por fim, que
aos catecúmenos, conduzidos aos sacramentos da regeneração, lhes seja aberta a porta
da misericórdia celeste.
E que tudo isto se deve pedir ao Senhor não de modo superficial e inutilmente,
mostra-o a própria experiência, pois, efectivamente, Deus digna-Se atrair muitíssimos
de todo o género de erros e, arrancando-os ao poder das trevas, transfere-os para o
Reino do Filho do seu amor, e de vasos da ira torna-os vasos da misericórdia. Tudo isto
é sentido de tal modo como obra divina, que sempre se atribuiu a Deus, a quem
dirigimos esta acção de graças e esta confissão de louvor pela iluminação ou pela
emenda dos que referimos.
9. Também não consideramos sem utilidade o que a santa Igreja faz, de maneira 4264
idêntica, no mundo inteiro, sobre os candidatos ao baptismo. Quando eles se aproxi-
mam, crianças ou adultos, do sacramento da regeneração, não chegam à fonte de vida
sem que antes, pelos exorcismos e as exsuflações dos clérigos, o espírito impuro tenha

1
P RÓSPERO DE A QUITÂNIA , De vocatione omnium gentium (=PL 17, 1073-1131; 51, 647; 55, 339). Próspero
nasceu em Aquitânia, nos finais do século IV. Era leigo, defensor decidido de S. Agostinho. Depois foi monge em
Marselha. Por fim serviu o Papa Leão Magno, como cancellarius. Deve ter morrido pouco depois de 455.
2
Ut legem credendi lex statuat supplicandi.
3
P RÓSPERO DE A QUITÂNIA , Capitula Sedis Apostolicae episcoporum auctoritates (=PL 45, 1755-1760; 50,
531-537; 51, 205-212; 84, 682; 130, 750; Denz., 38ª ed., 1999, 246-247). Os Capitula, redigidos entre
435 e 442 por Próspero de Aquitânia, foram atribuídos durante muito tempo ao Papa Celestino I (423-432).
4
Ut legem credendi lex statuat supplicandi.
5
Lapsi.
1018 SÉCULO V

sido expulso deles; deste modo aparece como é verdadeiramente lançado fora o Prínci-
pe deste mundo, como primeiro é atado o forte e depois lhe são arrebatados os seus
instrumentos, que passam para a posse do vencedor, aquele que leva cativo o cativeiro
e oferece dons aos homens.
Em conclusão, por estas regras da Igreja, e pelos documentos tomados da autori-
dade divina fomos de tal modo confirmados com a ajuda do Senhor, que confessamos a
Deus como autor de todos os bons efeitos e obras e de todos os esforços e virtudes
pelos quais, desde o início da fé tendemos para Deus, e não duvidamos de que todos os
merecimentos do homem são prevenidos pela graça d’Aquele por quem acontece o que
começamos tanto a querer como a fazer algum bem.
Ora bem, por este auxílio e dom de Deus, não se anula o livre arbítrio, mas torna-
-se mais livre, para que de obscuro se torne lúcido, de sinuoso venha a ser recto, de
enfermo se torne saudável, e de imprudente se mude em prudente. Porque é tanta a
bondade de Deus para com todos os homens, que a sua vontade é que sejam méritos
nossos o que são dons seus e, por aquilo que nos deu, venha a enriquecer-nos com
prémios eternos. Na verdade, Ele realiza em nós que o que Ele próprio deseja que nós
queiramos e façamos, e não consente que em nós fique sem fruto aquilo que nos deu
para produzir e não para ficar infrutífero, de modo que sejamos também nós cooperadores
da graça de Deus, e se virmos que, por nossa incúria, algo em nós se torna débil, corra-
mos com solicitude para Aquele que cura todas as nossas fraquezas e tira da ruína a
nossa vida, e a quem dizemos todos os dias: «Não nos deixeis cair em tentação, mas
livrai-nos do mal».

Contra Collatorem 6
4265 12. 35 A Igreja reza todos os dias pelos seus inimigos, isto é, por aqueles que ainda
não acreditaram em Deus7, e fá-lo pelo Espírito de Deus. Só diz o contrário quem o não
faz, ou quem julga que a fé não é dom de Deus. E contudo, apesar de pedir por todos,
nem por todos é obtido. Deus não é injusto por não dar sempre o que se Lhe pede...

Cartas 8
4266 A norma da oração é a norma da fé (ou: A maneira de orar determina a maneira de
crer)9.

6
PRÓSPERO DE AQUITÂNIA, De gratia Dei et libero arbitrio contra Collatorem (=PL 45, 1801-1834; 51, 213).
7
Ecclesia quotidie pro inimicis suis orat, id est pro his qui nondum Deo crediderunt.
8
PRÓSPERO DE A QUITÂNIA , Epistulae (=PL 51, 63-276).
9
Lex orandi, lex credendi (ou: Lex credendi lex statuat supplicandi).
PAPA LEÃO MAGNO 1019

Papa Leão Magno

Sermões para o Natal 1

SERMÃO 1 (21) 2

1. Hoje3, caríssimos irmãos, nasceu o nosso Salvador. Alegremo-nos. Não pode haver 4267
tristeza no dia em que nasce a vida, uma vida que destrói o temor da morte e nos
infunde a alegria da eternidade prometida.
Ninguém é excluído desta felicidade, porque é comum a todos os homens a causa
desta alegria: nosso Senhor, vencedor do pecado e da morte, não tendo encontrado
ninguém isento de culpa, veio para nos libertar a todos.
3. Dêmos, pois, caríssimos irmãos, graças a Deus Pai, pelo seu Filho, no Espírito 4268
Santo. Deponhamos, o homem velho com suas más acções, e já que fomos admitidos a
participar do nascimento de Cristo4, renunciemos às obras da carne.
Reconhece, ó cristão, a tua dignidade... Pelo sacramento do baptismo, foste
transformado em templo do Espírito Santo. O preço do teu resgate é o Sangue de
Cristo. Há-de julgar-te com verdade Aquele que por sua misericórdia te remiu e com o
Pai e o Espírito Santo reina pelos séculos dos séculos. Amen.
SERMÃO 2 (22)

1. Exultemos no Senhor, irmãos caríssimos..., e alegremo-nos com júbilo do espírito, 4269


porque nasceu para nós o dia de redenção nova, dia preparado desde os tempos antigos,
dia de felicidade eterna.
Com efeito, o círculo do ano faz-nos outra vez presente5 o mistério 6 da nossa
salvação, prometido desde o princípio dos tempos e dado no fim deles para durar para
sempre. Neste dia é justo que levantemos os nossos corações ao alto e adoremos o
mistério divino, para que aquilo que Deus nos dá, pela grandeza da sua liberalidade, a
Igreja o celebre com todo o prazer...
2. Pedi humildemente a clemência cheia de misericórdia do nosso Deus para que, 4270
nos nossos dias, vença os que nos combatem, fortaleça a nossa fé, aumente a caridade
e a paz, Se digne fazer-me seu servo útil e estenda até ao tempo do nosso serviço aquilo
que concedeu nos tempos passados, para benefício da devoção: por Cristo...

1
P APA L EÃO M AGNO , Sermões para o Natal [10] (=PL 54, 190-234; 84, 692-786; PLS 4, 1938; CCL 138;
SCh 22. 49. 74. 200; Verbo [Origens do Cristianismo 4], Lisboa 1974; BAC 291; cf. LH, I). O Papa Leão
Magno exerceu influência na liturgia da missa, principalmente através dos libbeli do Sacramentário
Veronense, e também, segundo o Liber Pontificalis, no próprio Cânone romano. Foi Papa entre 440 e 461.
2
A numeração entre parêntesis corresponde à da PL 54-56, escrita ali em números romanos (XXI).
3
A palavra hodie é frequentíssima na boca de S. Leão Magno, ao comentar os acontecimentos salvíficos da
vida do Redentor, por ocasião das celebrações litúrgicas. Estas, na verdade, ao mesmo tempo que os recordam,
fazem-nos realmente reviver a sua eficácia salutar; são sinais, sacramenta, que tornam presentes os actos
que o Salvador, Deus e homem, realizou de uma vez para sempre. Neste sentido é que S. Leão pode dizer: «O
nosso Salvador nasceu hoje».
4
Aqui temos de novo o realismo do sentido do hodie.
5
A tradução outra vez presente não diz bem todo o sentido da palavra latina reparatur, que, no contexto de
S. Leão, implica a ideia de voltar a apresentar (re+apresentação), de actualização eficaz do mistério.
6
Sacramentum é um mistério da nossa salvação, uma acção divina operada em Cristo, renovada periodicamente
nas celebrações litúrgicas.
1020 SÉCULO V

4271 6. Permanecei firmes na fé em que fostes fundados, não seja que o mesmo tentador,
de cuja dominação já Cristo vos livrou, vos seduza com novos ardis, e estes próprios
gozos do dia presente, ele os corrompa com a habilidade dos seus enganos, iludindo
certas almas mais simples com a crendice empestada de alguns que acham digna de
honra e de festa a solenidade deste dia, não tanto pelo nascimento de Cristo, mas,
como eles dizem, pelo natal do sol novo7.
SERMÃO 3 (23)

4272 1. Já sabeis, irmãos caríssimos, e muitas vezes o ouvistes, em que consiste o


mistério da solenidade que celebramos hoje; mas assim como esta luz visível dá gosto
aos olhos sãos, assim também aos corações puros dá alegria eterna o Natal do Salvador,
que não devemos jamais passar em silêncio, embora não possamos explicá-la
convenientemente.
O Filho de Deus, igual ao Pai..., escolheu este dia para nascer da bem-aventurada
Virgem Maria, a fim de salvar o mundo...
4273 4. A graça de Deus, com que sempre foram justificados todos os santos, foi, com o
nascimento de Cristo, aumentada, mas não começada; e este mistério de tão grande
amor, de que já todo o mundo está cheio, era tão poderoso até nos sinais que o
anunciavam, que não lucraram menos com ele os que nele acreditaram quando era
anunciado, do que aqueles que o receberam quando foi dado.
4274 5. A própria verdade nos apareceu em forma visível e corporal, pelo que não havemos
de ser tíbios nem carnais na nossa alegria, ao celebrar o dia de Natal do Senhor. Para o
festejar com dignidade e fervor, pense cada qual no corpo de que é membro e na cabeça
a que se uniu...
Dóceis à luz do Espírito Santo, irmãos caríssimos, considerai e vede com cuidado
quem nos levantou e uniu a Si...
SERMÃO 4 (24)

4275 1. É certo, irmãos caríssimos, que a divina bondade sempre olhou de vários modos
e de muitas maneiras pelo bem do género humano...; mas nos últimos tempos ultrapassou
toda a costumada abundância da sua benignidade, quando, em Cristo, a própria
misericórdia desceu aos pecadores...
(O Verbo) tinha sido prometido desde a criação do mundo, e nunca deixara de ser
profetizado por sinais, acções e palavras; mas que porção da humanidade salvariam
essas figuras e esses ocultos mistérios, se Cristo, com a sua vinda, não realizasse essas
longínquas e veladas promessas...?
4276 3. Para o homem que renasce, a água do baptismo é como um seio virginal, porque
a fonte baptismal fica repleta do mesmo Espírito Santo de que a Virgem foi cumulada,
para que o pecado, que lá foi destruído pela santa concepção, aqui seja lavado pela
ablução mística.
4277 4. Muito longe deste mistério, caríssimos irmãos, anda o erro dos Maniqueus...,
pois negam que o Salvador tenha nascido corporalmente da Virgem Maria; realmente,
não acreditando que o nascimento d’Ele seja verdadeiro, também não aceitam que seja
verdadeira a sua Paixão, e Aquele que não reconhecem ter sido verdadeiramente
sepultado, negam que tenha verdadeiramente ressuscitado...

7
Na época de S. Leão, as sobrevivências do culto solar não tinham ainda desaparecido completamente. O Sol
novus começava a vida nova de um ano. A pastoral da Igreja consistiu em substituir o culto do Sol invictus
pelo culto de Cristo sol da Justiça. A escolha do dia 25 de Dezembro, festa do solstício do Inverno, para
celebrar o Natal do Salvador, inscreve-se nessa orientação.
PAPA LEÃO MAGNO 1021

6. Mas vós, irmãos muito amados..., permanecei firmes na fé que professastes 4278
diante de muitas testemunhas, na qual, renascidos pela água e pelo Espírito Santo,
recebestes a unção da salvação e o selo da vida eterna... Não troqueis por ímpias
fábulas e invenções a esplêndida luz da verdade, e tudo o que lerdes ou ouvirdes
contrário à regra do Símbolo católico e apostólico, tende-o na conta de mortal e nascido
do Demónio... Apegai-vos, caríssimos irmãos, a esta unidade com alma e coração, sem
vos deixardes abalar...
SERMÃO 5 (25)

1. Embora, irmãos caríssimos, o nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual 4279
Ele Se vestiu da carne da nossa natureza, seja inefável ou indizível, contudo atrevo-me
não a confiar nas minhas possibilidades, mas a presumir que Ele queira inspirar-me,
para que, no dia escolhido para o mistério da restauração dos homens, os meus lábios
profiram alguma coisa que possa edificar a quem ouve. O facto de a maior parte da
Igreja saber e entender aquilo que crê, não torna desnecessário dizer outra vez o que já
foi dito, pois devemos hoje a tantos, que mal acabam de chegar à fé, o ministério da
nossa palavra; e mais vale ser um pouco pesado para os instruídos repetindo-lhes coisas
sabidas, do que privar os ignorantes daquilo que têm de aprender...
É grande trabalho e de grande perigo, através de duvidosas opiniões e de habilidosas
mentiras de ignorantes, avançar, sem dar tropeções, pelo único caminho da sã doutrina...
2. Ensinados não com palavras de sabedoria humana, mas pela doutrina do Espírito 4280
Santo, o que aprendemos é o que cremos e o que cremos é o que pregamos, a saber, que
o Filho de Deus, gerado do Pai antes dos séculos..., veio a este mundo pelo seio de uma
Virgem escolhida para este mistério de piedade...
Sendo igual ao Pai e ao Espírito Santo, diminuiu-Se por causa da nossa fraqueza,
por amor dos que eram incapazes de chegar até Ele... Por isso se diz que Se aniquilou
a Si próprio...
4. Nesta missão8, em que Deus Se uniu a uma humanidade, o Filho é desigual do Pai, 4281
não enquanto procede do Pai, mas naquilo que é feito de homem...
5. Reconheça, portanto, a fé católica na humildade do Senhor a sua nobreza e a sua 4282
glória... Fez-Se homem do nosso género, para nos podermos tornar consortes da natureza
divina. A fonte de vida que tomou no seio da Virgem, pô-la na fonte do baptismo; deu
à água o que tinha dado a sua Mãe: porque o poder do Altíssimo e a sombra do Espírito
Santo, que fez com que Maria desse ao mundo o Salvador, essa mesma faz que a água
regenere a quem crê9...
6. Estas acções de nosso Senhor, irmãos muito amados, não só nos são úteis na 4283
santidade do seu mistério, mas também nos exemplos que nos dão para imitar, desde
que estes remédios nós os passemos a normas de vida, e que aquilo que se realizou nos
mistérios, o apliquemos aos nossos costumes...
SERMÃO 6 (26)

1. Não há dúvida, caríssimos irmãos, de que em todos os dias e em todos os tempos 4284
se apresenta às almas fiéis... a vinda de nosso Senhor e Salvador, nascido da Virgem Mãe...

8
Papa Leão Magno utiliza a palavra missão no sentido de operação divina ad extra.
9
Factus est homo nostri generis, ut nos divinae naturae possimus esse consortes. Originem quam sumpsit
in utero Virginis, posuit in fonte baptismatis; dedit aquae, quod dedit matri; virtus enim Altissimi et
obumbratio Spiritus sancti, quae fecit ut Maria pareret Salvatorem, eadem facit ut regeneret unda
credentem.
1022 SÉCULO V

Mas não há dia que mais lembre este nascimento, adorado no Céu e na terra, que
o de hoje, pois até nos acende nos olhos a claridade do seu mistério, nos raios da luz nova
e fulgente que os próprios elementos difundem10. É que este dia não só nos traz à
memória, mas de algum modo nos põe quase à vista a conversa do Anjo Gabriel com Maria...
Na verdade, hoje o autor do mundo nasceu de um seio virginal... Hoje, o Verbo de
Deus apareceu vestido de carne... Hoje, os pastores souberam pelas palavras dos
Anjos que o Salvador tinha nascido... Hoje, aos que estão à frente dos rebanhos do
Senhor foi entregue nova forma de mensagem, para que também nós, com a milícia
celeste ou com o exército dos Anjos digamos: «Glória a Deus nas alturas do Céu e na
terra paz aos homens de boa vontade11».
4285 2. A festa de hoje renova para nós o sagrado início da vida de Jesus, nascido da
Virgem Maria. E enquanto adoramos o nascimento do nosso Salvador, celebramos
realmente também o nosso nascimento. Efectivamente, a geração de Cristo é a origem
do povo cristão; o Natal da cabeça é também o natal do Corpo.
4286 3. Embora cada um tenha sido chamado num momento determinado para fazer
parte do povo do Senhor, e todos os filhos da Igreja sejam diversos na sucessão dos
tempos, contudo, a totalidade dos fiéis, nascida na fonte do baptismo, assim foram
crucificados com Cristo na sua Paixão, ressuscitados na sua Ressurreição, colocados à
direita do Pai na sua Ascensão, assim também nasceram com Ele neste Natal.
Todo o homem que em qualquer parte do mundo acredita e é regenerado em Cristo,
liberta-se do vínculo da culpa original e, ao renascer, transforma-se num homem novo...
4287 5. Ora, entre os dons da divina generosidade, que poderemos nós encontrar tão
digno para honrar a presente festa, como a paz, aquela paz que os Anjos anunciaram no
nascimento do Senhor?... O nascimento do Senhor é o nascimento da paz. Assim o
proclama o Apóstolo: Ele é a nossa paz.
SERMÃO 7 (27)

4288 1. Verdadeiro venerador e devoto piedoso da festa de hoje, caríssimos irmãos, é


aquele que da Encarnação do Senhor nada admite de falso e da Divindade d’Ele nada
pensa de indigno...
4289 2. Nosso Senhor Jesus Cristo, nascendo como verdadeiro homem, sem nunca deixar
de ser verdadeiro Deus, iniciou em Si uma nova criatura... Que inteligência poderá
compreender este mistério, que língua será capaz de descrever semelhante benefício?...
4290 3. Não cessa o antigo Adversário... de armar por toda a parte os laços e redes dos
seus enganos e de trabalhar sem descanso em corromper de todas as maneiras a fé dos
crentes... Daqueles que ligou a si com mais força, tem muitos habilidosos nos seus
artifícios, de cujas invenções e palavras se serve para enganar outros. Estes prometem
a cura das doenças, revelações do futuro, favores dos Demónios, expulsão dos espíritos.
Aqueles afirmam com desavergonhada mentira que a vida humana depende toda das
influências das estrelas, e dizem que é inevitável fatalidade o que é disposição divina
ou vontade nossa. Para fazerem o maior mal que podem, prometem que estas
circunstâncias se podem modificar por meio de pedidos aos astros adversos...
4291 4. De tais princípios nasce ainda outra impiedade e é que, quando o sol se levanta
aos primeiros alvores do dia, alguns mais estultos sobem para adorá-lo aos cumes mais
altos; nem faltam cristãos que julgam proceder com piedade imitando tal costume, pois
antes de entrarem na basílica de S. Pedro Apóstolo, dedicada ao único Deus vivo e

10
O crescimento dos dias inaugurado com o solstício do Inverno, no dia 21 de Dezembro, dá a impressão de
o sol nascer ao mesmo tempo em que nasce o Salvador.
11
É este o primeiro testemunho da presença do Glória a Deus na missa.
PAPA LEÃO MAGNO 1023

verdadeiro, depois de terem subido os degraus por onde se vai para o átrio de cima, se
voltam para o sol nascente e, curvando a cabeça12, se inclinam em honra do disco de luz.
Isto, que procede em parte da ignorância e em parte do espírito pagão, muito nos
dói e aflige; porque, embora talvez alguns venerem antes o Criador desta linda luz do
que a própria luz13, que é simples criatura, é preciso, contudo, abster-se até da aparência
de tal obséquio, pois, se alguém que tenha deixado o culto dos deuses a descobre nos
nossos, não voltará porventura a esta parte das antigas crenças, julgando-a lá consigo
louvável, já que vê que ela é comum aos cristãos e aos pagãos?
5. Deitem, portanto, os fiéis, para longe dos seus costumes, perversidade tão digna 4292
de condenação e guardem-se de misturar a honra devida só a Deus, com os ritos de
gente que é escrava das criaturas...
6. Desperta, ó homem, e reconhece a dignidade da tua natureza... Se somos templos 4293
de Deus e o Espírito Santo habita em nós, vale muito mais o que cada fiel tem na alma,
do que todas as maravilhas que se contemplam no Céu.
Com estas palavras, irmãos caríssimos, não queremos incitar-vos ou persuadir-vos
a desprezar as obras de Deus, ou a pensar que as coisas boas que o bom Deus criou
sejam um obstáculo para a vossa fé; o que pretendemos é que useis de modo razoável
e conveniente todas as criaturas e toda a beleza deste mundo, como diz o Apóstolo: O
que se vê é passageiro, mas o que não se vê é eterno.
Nascemos para esta vida, mas renascemos para a futura. Por isso, não nos
entreguemos aos bens temporais, mas procuremos os eternos...
SERMÃO 8 (28)

1. Quando todas as palavras divinas, caríssimos irmãos, nos exortam a que sempre 4294
nos regozijemos no Senhor, não há dúvida de que hoje, em que o mistério do seu
nascimento brilha para nós com mais claridade, somos mais copiosamente incitados à
alegria espiritual...
2. Ao celebrar o dia de Natal de nosso Senhor e Salvador, tenhamos, amados irmãos, 4295
ideias exactas do parto da Santíssima Virgem e acreditemos que o poder do Verbo nem
um momento esteve ausente do corpo e da alma que eram concebidos...
4. Despreze, pois, a fé católica, caríssimos irmãos, os erros difundidos pelos 4296
hereges... Uns, com efeito, atribuíam ao Senhor apenas a humanidade, outros unicamente
a divindade. Alguns concederam que havia n’Ele a divindade, mas sustentaram que era
aparente a humanidade. Houve quem reconhecesse que Ele tinha tomado um corpo
verdadeiro, mas pretendesse que não tivera a natureza de Deus Pai; e conferindo à sua
divindade o que é próprio da natureza humana, fingiram ou inventaram um deus maior
e um deus menor, quando na verdadeira divindade não pode haver graus, porque tudo
aquilo que é menos em Deus, não é Deus.
Outros ainda, conhecendo que do Pai ao Filho não vai distância nenhuma...,
decidiram que o Pai era a mesma pessoa que o Filho... Fantasiaram alguns que nosso
Senhor Jesus Cristo não tinha um corpo da substância do nosso, mas de elementos
superiores e mais subtis. Não faltou quem imaginasse que na carne de Cristo não havia
alma humana e devaneasse que a divindade do Verbo é que fazia as vezes dela...
Finalmente, tiveram estes sábios a audácia de asseverar que certa parte do Verbo se
tinha transformado em carne...
5. Há ainda muitos outros portentos de mentira..., mas advirto a piedade da vossa 4297
obediência, para que evite principalmente dois erros..., o de Nestório... e o de Eutiques.

12
Converso corpore ad nascentem solem se reflectant.
13
Venerantur... creatorem potius pulchri luminis quam ipsum lumen.
1024 SÉCULO V

Aquele teve a insolência de ensinar que a bem-aventurada Virgem Maria era Mãe de
um simples homem..., porque o Filho de Deus não Se teria feito filho do homem, mas só
Se teria dignado associar-Se a um homem já criado..., ao passo que este mais recente...
disse que o resultado da união das duas naturezas foi que só uma das duas ficou e que
a substância da outra deixou totalmente de existir...
4298 6. Longe dos vossos corações, irmãos caríssimos, as mentiras inspiradas pelo Diabo...
SERMÃO 9 (29)

4299 1. Para não nos afligirmos com as estreitezas da nossa humana fraqueza, acodem-nos
com o esforço das suas palavras o Evangelho e os profetas, que nos ensinam que o
Natal do Senhor, em que o Verbo Se fez carne, não tanto o havemos de lembrar como
acontecimento passado, mas antes imaginá-lo como se o vissem agora os nossos olhos14.
4300 2. Quando, pois, irmãos caríssimos, celebramos o Natal do Senhor, dia que foi
escolhido entre todos os dos tempos passados, embora a ordem dos acontecimentos
materiais, como os tinha destinado o decreto eterno, já tenha passado, e a humanidade
do Redentor já tenha sido toda elevada à glória da majestade do seu Pai..., contudo, não
cessamos de adorar o próprio parto da Virgem que nos traz a salvação; e aquela
indissolúvel união do Verbo e da carne não menos a contemplamos deitada no presépio
do que sentada no altíssimo trono de seu Pai.
SERMÃO 10 (30)

4301 1. Como o nascimento de nosso Senhor e Salvador... se eleva tanto acima das
possibilidades da linguagem humana..., há sempre razões para dele falar, não porque
seja livre a variedade de opiniões, mas porque não há língua que possa igualar a
dignidade da matéria.

Sermões para a Epifania 15

SERMÃO 1 (31)

4302 1. Mal acabado de celebrar o dia em que a Virgem sem mácula deu ao mundo o
Salvador, eis que se apresenta, caríssimos irmãos, à nossa veneração, para prolongar o
nosso júbilo, a festa da Epifania...
Apareceu a três Magos, na região do Oriente, uma estrela nova, que por ser mais
brilhante e mais bela do que os outros astros, facilmente atraía os olhos e os corações
dos que a viam... Aquele que mostrou aos Magos este sinal, fê-los compreender o que
ele significava, e, como o buscavam, deixou-se encontrar.
4303 2. Seguem os três homens o caminho que a luz do céu lhes indica e, acompanhando
e contemplando com olhos atentos o fulgor que os precede e lhes serve de guia, são
levados pelo esplendor da graça ao conhecimento da verdade...
Herodes, ao ouvir que tinha nascido um príncipe dos Judeus, apavorou-se com
medo de um sucessor, e, maquinando a morte ao autor da salvação, prometeu com
fingimento um acto de devoção...

14
Aqui temos de novo a concepção de S. Leão Magno, fundada na fé de que os mistérios comemorados são
realmente tornados presentes, numa actualidade sacramental e eficaz. As palavras inspiradas da Escritura
é que os fazem assim reviver aos olhos da fé.
15
PAPA L EÃO M AGNO , Sermones in Epiphania Domini [8] (=PL 54, 234-263; CCL 138; SCh 22 bis; BAC
291; Verbo [Origens do Cristianismo 4], Lisboa 1974; cf. LH, I).
PAPA LEÃO MAGNO 1025

Realizam, pois, os Magos o seu desejo e, guiados pela estrela, chegam ao pé do


Menino, nosso Senhor Jesus Cristo. Na carne adoram o Verbo, na infância a sabedoria,
na fraqueza a omnipotência e num homem verdadeiro o Senhor da majestade... Oferecem
a Deus incenso, mirra ao homem, oiro ao rei...
3. Regressados os Magos à sua região e levado Jesus por aviso divino ao Egipto..., 4304
Herodes dá ordem de matar em Belém todos os meninos.
SERMÃO 3 (33)

1. Tendo a misericordiosa providência de Deus decidido vir, nos últimos tempos, 4305
em auxílio do mundo perdido, determinou salvar todos os povos em Cristo.
3. Instruídos nestes mistérios da graça divina, caríssimos irmãos, celebremos com 4306
alegria espiritual o dia das nossas primícias e o princípio da vocação dos gentios à fé e
à salvação, dando graças a Deus misericordioso.
5. Tudo isto se realizou, como sabemos, quando os três Magos, chamados da sua 4307
longínqua terra, foram conduzidos por uma estrela para irem conhecer e adorar o Rei
do céu e da terra. A docilidade da estrela nos exorta a imitar o seu exemplo, isto é, a servir
na medida das nossas possibilidades esta graça que chama todos os homens para Cristo...

Sermão para a Anunciação 16


1. A Igreja universal celebra, em cada ano, a vinda de nosso Senhor e Salvador, e, 4308
graças a este retorno anual, recebe grande alegria. O que o mundo crente recebeu uma
vez para sua salvação, transmite-o Ele de geração em geração para ser celebrado... O
milagre passado volta a reviver agora diante dos nossos olhos quando, em cada ano, as
leituras divinas tornam presentes os acontecimentos de outrora e quando, na celebração,
comemoramos com fé o seu retorno anual.

Sermões da Quaresma 17
SERMÃO 1 (39)

3. Aproximando-se, irmãos caríssimos, o início da Quaresma..., disponhamos o 4309


espírito para o embate das tentações. Saibamos que, na medida em que nos mostrarmos
empenhados na nossa salvação, seremos assaltados com maior ardor pelos adversários.
Mais forte, contudo, é Aquele que está em nós...
Permitiu o Senhor que o Tentador O tentasse para que nos instruísse o exemplo
d’Aquele cujo auxílio nos fortalece. Ele venceu o Adversário, como ouvistes, com
testemunhos da lei e não com força e poder... Lutou então, para que também nós
lutássemos depois. Venceu para que nós vencêssemos também. Não há, caríssimos,
obras de virtude sem experiência da tentação, fé sem provações, combate sem inimigo,
vitória sem luta...
6. Quem se empenhar em conseguir esta perfeição, ajudado pela graça de Deus, 4310
observará fielmente um santo jejum; purificado do velho fermento da malícia, chegará

16
P APA L EÃO M AGNO , Sermo ad Anuntiationem (=PL 54, 508-511; CCL 138; SCh 22. 49; cf. LMD 65, 131).
17
P APA L EÃO M AGNO , Sermones de Quadragesima [12] (=PL 54, 263-308; CCL 138 A; SCh 22. 49; LH II).
1026 SÉCULO V

com ázimos de sinceridade e de verdade à feliz Páscoa. Alegrar-se-á dignamente pela


renovação da vida, no mistério da restauração humana, por Cristo Senhor nosso, que
com o Pai e o Espírito Santo vive e reina nos séculos dos séculos. Amen.
SERMÃO 3 (41)

4311 1. Parece razoável e de certo modo religioso aparecer em público, nos dias de festa,
com vestes mais belas, mostrando assim, pelo modo de vestir o corpo, a alegria que
nos vai na alma18.
SERMÃO 4 (42)

4312 4. Acautelemo-nos diante dos enganos do Adversário, não só relativamente aos


apetites da gula, mas também aos propósitos de abstinência. Quem soube infligir a
morte ao género humano por meio da comida, também sabe prejudicar, por meio dela,
o jejum. Utiliza os Maniqueus, seus servos, para uma fraude oposta. Como levou a
tirar o que era proibido, persuade agora a evitar o que é permitido...
4313 5. Não vos contagie de modo nenhum o erro daqueles... 19 que fazem uma louca
abstinência em honra dos luzeiros do céu, isto é, escolhendo para o jejum, em honra do
sol e da lua, o primeiro e o segundo dia da semana... Por um só acto perverso tornam-se
duplamente ímpios e sacrílegos, estabelecendo tal jejum a fim de prestarem culto aos
astros, e desprezando a Ressurreição do Senhor. Fogem, portanto, do mistério da salvação
humana e não crêem que Cristo nosso Senhor possa verdadeiramente ter nascido em
verdadeira carne igual à nossa, ter sido verdadeiramente sepultado e verdadeiramente
ter ressuscitado. Por esta razão, condenam o dia destinado à nossa alegria, com o luto
de um jejum.
Se, para disfarçar a sua descrença, ousam introduzir-se nas nossas assembleias,
comportam-se do seguinte modo relativamente à participação nos sacramentos: como
às vezes não conseguem ficar inteiramente ocultos, recebem indignamente o Corpo de
Cristo, mas recusam-se terminantemente a beber o Sangue da nossa redenção. Fazemo-lo
notar à vossa santidade, a fim de que estes indícios vos ajudem a identificar tais
homens e aqueles cuja simulação sacrílega for descoberta sejam expulsos da sociedade
dos santos pela autoridade sacerdotal...
4314 6. Suficientemente informados, irmãos caríssimos, por estas advertências, que
frequentemente fazemos ressoar aos vossos ouvidos acerca deste erro abominável,
entrai com piedosa devoção nos santos dias da Quaresma...
SERMÃO 6 (44)

4315 1. Em todo o tempo, irmãos caríssimos, a terra está cheia da misericórdia do


Senhor... Mas, quando se aproximam estes dias que comemoram de modo especial os
mistérios da redenção humana e que precedem imediatamente as festividades pascais,
devemos preparar-nos com a maior diligência por meio da purificação espiritual.
Na verdade, é próprio da festa da Páscoa fazer com que toda a Igreja se alegre
pelo perdão dos pecados, não só aqueles que então renascem pelo santo baptismo,
mas também os que pertencem desde há muito à família dos filhos adoptivos.
É, sem dúvida, o banho de regeneração que nos faz homens novos; mas todos
têm necessidade de se renovar quotidianamente, para remediar a ferrugem inerente à
nossa condição mortal...

18
Estas palavras do Papa não deixam dúvida acerca da cessação do trabalho nos dias das festas religiosas.
19
Trata-se dos Maniqueus.
PAPA LEÃO MAGNO 1027

2. Portanto, irmãos caríssimos, aquilo que cada cristão deve praticar em todo o 4316
tempo, pratique-o agora com maior solicitude e devoção, para que se cumpra a santa
instituição apostólica do jejum quaresmal, que consiste não só na abstenção dos
alimentos, mas também e sobretudo em abster-se do pecado.
A estes santos jejuns nada virá juntar-se melhor do que a boa obra que é a esmola;
sob este nome de obras de misericórdia incluem-se muitas e louváveis acções de
bondade... Se verdadeiramente amamos a Deus e ao próximo, nenhum obstáculo impedirá
a nossa boa vontade...
São inúmeras as obras de misericórdia, o que permite a todos os verdadeiros
cristãos, tanto ricos como pobres, tomar parte na distribuição das esmolas; e, embora
nem todos possam ser iguais na possibilidade de dar, todos podem sê-lo na boa vontade
que manifestam.
3. Prestes a celebrar a Páscoa do Senhor, exercitai-vos, caríssimos, nos santos 4317
jejuns, para chegardes, livres de toda a perturbação, à mais sagrada de todas as festas...
SERMÃO 7 (45)

1. Quer se trate desta porção do povo que, tendo abordado já os combates da arena 4318
evangélica, se esforça sem descanso por conquistar a palma na corrida do estádio
espiritual, quer daquela que, consciente de faltas mortais, corre para o perdão através
do remédio da reconciliação, ou daquela que, prestes a ser regenerada pelo baptismo do
Espírito Santo, aspira a despojar-se do velho Adão para ser revestido da novidade de
Cristo, a todos o convite é útil e adaptado: Preparai o caminho do Senhor...
SERMÃO 9 (47)

1. Nós não ignoramos, irmãos caríssimos, que o mistério pascal constitui a principal 4319
solenidade cristã. As instituições de todo o ano preparam-nos para recebê-la de maneira
digna e conveniente; mas, em grau mais elevado, exigem a nossa devoção os dias que
correm, e que são os mais próximos do sublime sacramento da misericórdia divina, e
nos quais, com toda a justiça, os santos Apóstolos, movidos pelo Espírito Santo,
ordenaram jejuns mais intensos...
SERMÃO 10 (48)

1. Entre os dias, irmãos caríssimos, que a devoção cristã guarda de vários modos, 4320
não há nenhum mais excelente do que a festa pascal, que, na Igreja de Deus, torna
sagrada a dignidade de todas as solenidades. De facto, até a própria geração do Senhor
no seio de sua Mãe tinha em vista este mistério. Para o Filho de Deus não existiu outro
motivo de nascer senão para poder ser crucificado... Por inefável plano da misericórdia
de Deus, a paixão tornou-se para nós sacrifício redentor, abolição do pecado e início da
ressurreição para a vida eterna. Se considerarmos, porém, o que o universo alcançou
através da cruz do Senhor, teremos de reconhecer que, para celebrar o dia de Páscoa,
nos devemos preparar pelo jejum de quarenta dias, a fim de nos tornarmos dignos de
participar nos divinos mistérios.
Não são só os pontífices de grau mais elevado, nem os presbíteros da segunda
ordem, ou os ministros dos sacramentos, mas todo o Corpo da Igreja e a totalidade dos
fiéis, que precisam de se purificar de todas as manchas...
4. Examine-se a si mesmo cada um dos fiéis, e procure discernir com sinceridade os 4321
mais íntimos sentimentos do seu coração; e, se encontrar na sua consciência os frutos
da caridade, não duvide que Deus está com ele, mas esforce-se por se tornar cada vez
mais digno de tão grande hóspede...
1028 SÉCULO V

É certo, irmãos caríssimos, que todos os tempos são bons para o exercício da
caridade. Mas estes dias da Quaresma a isso nos exortam de modo especial. Quem
deseja celebrar a Páscoa do Senhor em santidade de alma e coração, esforce-se o mais
possível por adquirir essa virtude que em si contém todas as outras e cobre a multidão
dos pecados.
Ao aproximar-se a celebração deste mistério que transcende todos os outros, o
mistério do Sangue de Jesus Cristo que apagou as nossas iniquidades, preparemo-nos
em primeiro lugar mediante o sacrifício espiritual da misericórdia...
4322 5. Nenhuma devoção dos fiéis é mais agradável a Deus do que a dedicação pelos
seus pobres. Onde Deus encontra a preocupação de amar, aí reconhece a imagem do
seu amor... Ninguém receie que estas liberalidades lhe tragam falta de recursos, porque
a benevolência é já por si uma grande riqueza... Quem dá esmola, faça-o com alegria e
confiança...

SERMÃO 11 (49)

4323 1. A cada dia e a cada tempo, caríssimos, está ligada uma recordação da bondade
divina, e não há nenhuma parte do ano que esteja privada de sagrados mistérios. Tendo
sempre diante dos olhos os auxílios da nossa salvação, nós podemos, desse modo,
invocar com mais intensidade a misericórdia de Deus, que nos chama sempre.
Mas, apesar dos diversos actos e dons da graça cooperarem para a salvação das
nossas almas, tudo nos é oferecido mais claramente e com maior abundância, não
quando se realizam alguns mistérios separadamente, mas quando são celebrados todos
ao mesmo tempo.
Com a aproximação da festa da Páscoa vai estar presente, para nós, o maior e
mais sagrado jejum que é proposto à observância de todos os fiéis sem excepção,
porque ninguém é tão santo que não se possa santificar mais...
4324 3. Aquele por cuja inveja a morte entrou no mundo... vê novos povos, vindos de
todo o género humano, ser introduzidos na adopção de filhos de Deus, vê multiplicar-se,
pela fecundidade virginal da Igreja, o nascimento dos regenerados. Vê-se privado do
direito sobre o qual fundava o seu império e ser expulso dos corações que possuía; vê-se
espoliado, num e noutro sexo, de milhares de velhos, de milhares de jovens, de milhares
de crianças; vê que nem o pecado pessoal, nem o pecado original são obstáculo para
ninguém, uma vez que a justificação não é dada em retribuição dos méritos, mas é
concedida apenas pela liberalidade da graça. Vê os lapsi e os iludidos pela fraude das
suas insídias lavarem-se nas lágrimas da penitência e serem admitidos aos remédios da
reconciliação, depois que a chave dos Apóstolos lhes abriu as portas da misericórdia.
Pressente, além disso, que está iminente o dia da Paixão do Senhor...
4325 4. Preparados de corpo e alma, recebamos o tempo em que ocorrem todos os
mistérios da misericórdia divina...
4326 5. Ninguém ouse negar o perdão aos pecados dos outros, se quiser recebê-lo para si
próprio...
4327 6. Ninguém julgue que irá participar na festa pascal, se tiver descurado a restauração
da paz fraterna... Os jejuns cristãos tornam-se ricos pela distribuição de esmolas e
cuidados dispensados aos pobres... Os pecados que são lavados pelas águas baptismais
ou pelas lágrimas da penitência devem também ser apagados pelas esmolas... Por
nosso Senhor Jesus Cristo, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo, pelos séculos
dos séculos. Amen.
PAPA LEÃO MAGNO 1029

SERMÃO 12 (50)

1. Aproximando-se, irmãos caríssimos, a solenidade pascal, chega também o jejum habitual 4328
que a precede e nos convida a santificar o corpo e a alma, ao longo de quarenta dias...
2. De entre as celestes disciplinas da Igreja, grande utilidade trazem os jejuns 4329
divinamente instituídos...

Sermões sobre a Paixão 20

SERMÃO 3

7. Seria demasiado, irmãos caríssimos, se o sermão deste dia quisesse contar tudo; 4330
por isso, remetamos a continuação para quarta-feira, dia em que recomeçaremos a
leitura da Paixão.
SERMÃO 8

6. Com a inteligência iluminada pelo Espírito da Verdade e de coração puro e livre, 4331
celebremos a glória da cruz, que resplandece sobre o céu e a terra... Oh admirável poder
da cruz! Oh inefável glória da Paixão! Nela se encontra o tribunal do Senhor, o julgamento
do mundo, o poder do Crucificado!
Agora, com efeito, é mais ilustre a ordem dos levitas, mais elevada a dignidade
dos sacerdotes, mais santa a unção dos pontífices, porque a vossa cruz é a fonte de
todas as bênçãos, a origem de todas as graças...
SERMÃO 12

3. É indubitável, caríssimos, que o Filho de Deus Se uniu à natureza humana tão 4332
intimamente que não só nesse homem, que é o Primogénito de toda a criatura, mas
também em todos os seus santos, está o mesmo Cristo..., que habita inseparavelmente
no seu templo, que é a Igreja...
7. Não é só a gloriosa fortaleza dos mártires que participa na sua Paixão, mas a 4333
própria regeneração (baptismal) de todos aqueles que renascem pela fé. Deste modo se
celebra, segundo a Lei, a Páscoa do Senhor nos ázimos da pureza e da verdade... A
nossa participação no Corpo e Sangue do Senhor não tem outro efeito senão transformar-nos
naquilo que recebemos e revestir-nos em tudo, no corpo e no espírito, d’Aquele em
quem estamos mortos, em quem fomos sepultados e em quem ressuscitámos.
SERMÃO 13

O mistério da Paixão e da Ressurreição do Senhor, caríssimos, está sempre 4334


presente no espírito dos cristãos, e não há acção (litúrgica) nenhuma da nossa religião
que não celebre, não apenas a reconciliação do mundo, mas também a elevação da
natureza humana em Cristo. Mas agora (nestes dias solenes) a Igreja no seu todo deve
aplicar-se a compreender mais profundamente e inflamar-se com uma esperança mais
viva, quando o regresso dos dias santos e a leitura do Evangelho da verdade fazem
sobressair tão bem a nobreza das coisas, de modo que a Páscoa do Senhor não se
oferece já tanto como um facto do passado, mas como uma realidade presente que
devemos honrar.

20
PAPA LEÃO MAGNO, Sermones de Passione Domini [19] (=PL 54, 313-384; CCL 138 A; SCh 22. 49; LH, II).
1030 SÉCULO V

SERMÃO 15

4335 3. Aquele que deseja honrar verdadeiramente a Paixão do Senhor, de tal modo deve
olhar com os olhos do coração para Jesus crucificado, que reconheça na carne do
Senhor a sua própria carne... A nenhum pecador é negada a vitória da cruz, a nenhum
homem é recusado o auxílio da oração de Cristo. Se foi frutuosa para muitos dos que O
perseguiam, quanto mais o não será para os que a Ele se convertem?
4336 4. Foi precisamente para curar a nossa natureza das suas antigas feridas e purificá-la
da corrupção do pecado, que o Filho unigénito de Deus Se fez também Filho do homem,
de modo que não Lhe faltasse nem a humanidade em toda a sua realidade, nem a divindade
em toda a sua plenitude.
É verdadeiramente nosso O que esteve no sepulcro, O que ressuscitou ao terceiro
dia, O que subiu à glória do Pai, no mais alto dos Céus...
SERMÃO 19

4337 O relato evangélico descreveu como é costume, irmãos caríssimos, a história


sagrada da Paixão do Senhor; penso que ela se fixou de tal modo nos corações de todos
vós, que a leitura se tornou como que uma visão para cada um dos ouvintes..., não que
a tristeza nos sobrecarregue ou que a violência dos Judeus furiosos nos meta medo,
pois a Ressurreição do Senhor e a sua Ascensão deram uma firmeza invencível, mesmo
àqueles que ficaram perturbados pela violência da tempestade; mas, pensando naquilo
que então foram as multidões de Jerusalém e dos sacerdotes, trememos em nós mesmos
com medo de nos deixar arrastar a este crime enorme que os ímpios levaram a cabo.

Sermões para a Ascensão 21

SERMÃO 1

4338 2. Aqueles dias, irmãos caríssimos, que decorreram entre a Ressurreição do Senhor
e a sua Ascensão, não foram passados na ociosidade; pelo contrário, neles se
confirmaram grandes sacramentos, neles foram revelados grandes mistérios.
Nestes dias, mediante o sopro do Senhor, todos os Apóstolos receberam o
Espírito Santo; nestes dias foi confiado ao apóstolo Pedro, mais que a todos os outros,
o cuidado do rebanho do Senhor, depois de ter recebido as chaves do Reino.
Durante esses dias, o Senhor juntou-Se, como terceiro companheiro, a dois
discípulos que iam de viagem e, para dissipar todas as trevas das nossas dúvidas,
repreendeu a lentidão de espírito desses homens cheios de medo e de pavor... Ao partir
do pão, quando estavam sentados com Ele à mesa, abriram-se-lhes também os olhos...
SERMÃO 2

4339 2. Assim como na solenidade da Páscoa a Ressurreição do Senhor foi para nós
motivo de grande júbilo, também agora nos enche de alegria inefável a sua Ascensão aos
Céus, porque recordamos e veneramos o dia em que a humildade da nossa natureza foi
exaltada, em Cristo, acima de toda a milícia celeste... Toda a vida cristã se funda e eleva

21
PAPA LEÃO MAGNO, Sermones de Ascensione Domini [2] (=PL 54, 394-400; PLS 3, 337; CCL 138 A; SCh 74 bis;
LH, II).
PAPA LEÃO MAGNO 1031

sobre uma série admirável de acções divinas, pelas quais a graça de Deus nos manifesta
sabiamente todos os seus prodígios, de tal modo que, embora se trate de mistérios que
escapam à percepção humana..., nem por isso vacile a nossa fé, esmoreça a nossa
esperança ou se resfrie a nossa caridade.
Nisto consiste, efectivamente, o vigor das almas grandes e a luz dos corações
fiéis: crer, sem hesitar, naquilo que não se vê com os olhos do corpo e fixar o desejo
aonde não pode chegar a vista. Como poderia nascer esta piedade, ou como poderíamos
ser justificados pela fé, se a nossa salvação consistisse apenas naquilo que nos é dado ver?
3. Assim, o que na vida do nosso Redentor era visível passou para os ritos 4340
sacramentais; e, para que a fé fosse mais firme e autêntica, à visão sucedeu a doutrina,
em cuja autoridade se devem apoiar os corações dos crentes, iluminados pela luz
celeste.
Esta fé, aumentada com a Ascensão do Senhor e robustecida com o dom do
Espírito Santo, nem os grilhões, nem os cárceres..., nem os tormentos inventados pela
crueldade dos perseguidores a puderam jamais atemorizar.
4. Foi então, caríssimos, que o Filho do homem Se manifestou de um modo mais 4341
sagrado e sublime como Filho de Deus, quando foi recebido na glória da majestade do
Pai... Então, a nossa fé começou a adquirir um maior e mais progressivo conhecimento
da igualdade do Filho com o Pai, e a prescindir da presença palpável da substância
corpórea de Cristo pela qual Ele é inferior ao Pai; porque, subsistindo a natureza do
corpo glorificado, a fé dos crentes é atraída para lá, onde o Filho unigénito, igual ao Pai,
poderá ser tocado, não já pela mão carnal, mas pela contemplação do espírito.

Sermões sobre o jejum do Pentecostes 22

SERMÃO 1 (78)

1. Como bem sabeis, irmãos caríssimos, a festa de hoje, consagrada pela vinda do 4342
Espírito Santo, é seguida de um jejum solene que foi instituído no interesse e para a
salvação da alma e do corpo. Devemos celebrá-la com zelo e piedade. Os Apóstolos,
depois de terem sido fortalecidos pela força que lhes tinha sido prometida, uma vez
que o Espírito da verdade entrou em seus corações, entre todos os outros mistérios do
ensinamento divino, pensaram, em primeiro lugar, sob a luz do Paráclito – não
duvidamos disso – nesta disciplina de temperança espiritual, para que as suas almas,
santificadas pelo jejum, se dispusessem melhor para receber os carismas...
2. Os doutores, que ensinaram todos os filhos da Igreja pelos seus exemplos e 4343
tradições, começaram a preparação da milícia cristã pelos santos jejuns... Embora a
graça dê aos seus santos a vitória diária, não lhes retira, contudo, as ocasiões de luta,
porque também isto procede da misericórdia do nosso protector...
3. Por isso, completados os dias de alegria santa em honra do Senhor que ressuscitou 4344
de entre os mortos e, em seguida, subiu aos Céus, e depois de recebido o dom do
Espírito Santo, foi... instituído o costume de um jejum, a fim de que, se entre as
alegrias das festas, acaso se manifestou uma liberdade negligente e excessiva, que
talvez tenha permitido ir além do que se devia, a corrija agora uma abstinência religiosa...

22
PAPA LEÃO MAGNO, Sermones in ieiunium Pentecostes [4] (PL 54, 415-422; CCL 138 A; SCh 74; BAC 291).
1032 SÉCULO V

4345 4. Jejuemos, portanto, na quarta e na sexta-feira, e no sábado celebramos as vigílias


junto do apóstolo São Pedro, por cujas orações confiamos ser libertados, quer dos
inimigos espirituais, quer dos adversários do corpo. Por nosso Senhor Jesus Cristo
que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina pelos séculos dos séculos. Amen.
SERMÃO 2 (79)

4346 1. Não podemos duvidar de modo nenhum, caríssimos, de que toda a observância
cristã procede de instruções divinas e que tudo o que a Igreja recebeu como costume de
devoção provém da tradição apostólica e do ensinamento do Espírito Santo... De
facto, se no Pentecostes, celebrado no quinquagésimo dia após a Páscoa do Senhor, o
Espírito Santo... encheu as mentes dos que O esperavam, com abundância maior do
que nunca..., fica bem claro que foi concedido então entre os dons de Deus também a
graça dos jejuns imediatamente a seguir à festa de hoje...
4347 4. Por isso, caríssimos, segundo o ensinamento do Espírito Santo, que oferece à
Igreja o dom de todas as virtudes, acolhamos com fé viva o jejum solene...
SERMÃO 3 (80)

4348 1. Depois de termos celebrado, caríssimos, toda a sequência das santas


solenidades..., torna-se necessário recorrer agora à sobriedade salutar e ao remédio do
jejum..., por Cristo nosso Senhor. Amen.
SERMÃO 4 (81)

4349 1. Caríssimos: entre todas as instituições ensinadas pelos Apóstolos, mas provenientes
da fonte das instruções divinas, não há dúvida de que foi por inspiração do Espírito
Santo que os príncipes da Igreja em primeiro lugar conceberam esta observância...
4350 3. Decorridos os cinquenta dias entre a Ressurreição do Senhor e a vinda do Espírito
Santo, passados na alegria da maior das festividades, recorramos ao remédio dos jejuns...

Sermões sobre o jejum do sétimo mês 23

SERMÃO 1 24 (86)

4351 1. Sabemos, caríssimos, que a vossa observância é cheia de zelo, porque cuidais da
alma, não só através dos jejuns prescritos, mas também com jejuns voluntários...
4352 2. Por isso, sendo conveniente celebrar o jejum do sétimo mês, exortamos a vossa
santidade a jejuar na quarta e na sexta-feira, e a celebrarmos unidos, nos sábados, as
vigílias junto do bem-aventurado apóstolo Pedro...
SERMÃO 2 25 (87)

4353 1. Não nos há-de faltar, de modo algum..., o auxílio do nosso Rei misericordioso,
que nos instruiu com as normas de uma observância muito salutar, determinando, com
o regresso das estações, certos dias de jejum...
4354 3. Tal como são estéreis suores e fadigas para os que nada omitem da humilhação
23
PAPA L EÃO M AGNO , Sermones in ieiunium septimi mensis [9] (=PL 54, 437-460; CCL 138 A; SCh 74; BAC
291). O sétimo mês é Setembro. Trata-se, portanto, dos sermões para as Têmporas do Outono.
24
Este sermão foi pronunciado em Setembro de 441.
25
Este sermão foi pronunciado em Setembro de 442.
PAPA LEÃO MAGNO 1033

do jejum se não se santificarem pela distribuição de esmolas segundo a medida das suas
possibilidades, também é conveniente que seja mais abundante a liberalidade para a
refeição dos pobres por parte daqueles que têm menos força para a abstinência... Não
se inculpa ao fraco a quebra do jejum, se dele recebe comida o pobre faminto...
SERMÃO 3 (88)

2. O respeito pelas instituições divinas tem sempre lugar privilegiado em relação a 4355
qualquer pretensão de observância espontânea. Mais sagrado é o que se cumpre em
razão de uma lei pública do que aquilo que depende de uma determinação privada. O
exercício da abstinência que cada um se impõe a si mesmo por decisão pessoal tem por
fim a utilidade de uma só pessoa, mas o jejum adoptado pela Igreja universal a ninguém
exclui da purificação geral, e o povo de Deus torna-se mais forte quando os corações de
todos os fiéis se congregam na unidade da santa obediência...
3. Se o Senhor prometeu conceder tudo o que dois ou três pedissem, em santa e 4356
piedosa concórdia, que será negado ao povo constituído de muitos milhares, que juntos
praticam a mesma observância e suplicam com um só coração e uma só alma?
4. É importante, caríssimos, e muito precioso aos olhos do Senhor que todo o povo 4357
de Cristo participe nas mesmas funções, graus e ordens... e que todos juntos tenham
igual critério para se afastarem do mal e fazerem o bem...
5. Jejuemos, pois, quarta e sexta-feira; sábado, celebremos reunidos as vigílias 4358
junto do apóstolo São Pedro, por cujos méritos e orações confiamos que em tudo o
nosso Deus usará de misericórdia para connosco. Por nosso Senhor Jesus Cristo, que
vive e reina pelos séculos dos séculos. Amen.
SERMÃO 4 (89)

1. A obediência suaviza a ordem, e não se serve como escravo por dura necessidade, 4359
quando se ama aquilo que é mandado. Por isso, caríssimos, ao exortar-vos a alguns
exercícios já instituídos no Antigo Testamento, não vos submetemos ao jugo da
observância judaica... A abstinência cristã é mais excelente do que os jejuns daquele
povo, e, se temos algo em comum, relativamente ao tempo, não coincidem os nossos
costumes. Tenham eles procissões com os pés descalços e façam ostentação, pela
tristeza do rosto, dos seus vãos jejuns. Nós, ao contrário, em nada alteramos a
honestidade dos hábitos...
2. Embora cada um de nós seja livre de levar a cabo mortificações voluntárias..., 4360
todavia é necessário fazerem todos juntos um jejum geral... Seja, pois, o que é público
preferido ao particular...

Sermões sobre o jejum do décimo mês 26

SERMÃO 1 (12)

1. Deus ama-nos, e, por isso, refaz-nos à sua imagem; ao querer encontrar em nós 4361
a semelhança da sua bondade, concede-nos que façamos o que Ele faz; acende as
lâmpadas do nosso coração e mete nelas o fogo do seu amor, para que o amemos a Ele
e a tudo o que Ele ama...
SERMÃO 2 (13)
26
P APA L EÃO M AGNO , Sermones in ieiunium decimi mensis [9] (=PL 54, 168-190; CCL 138; SCh 74; BAC
291). O décimo mês é Dezembro. Trata-se, portanto, dos sermões para as Têmporas do Inverno.
1034 SÉCULO V

4362 1. Devemos celebrar o jejum do décimo mês pelos fins da colheita de todos os
frutos, oferecendo a Deus, que no-los concedeu, o sacrifício da abstinência... Mas,
visto que não se adquire a salvação das nossas almas somente pelo jejum, completemo-lo
com a misericórdia para com os pobres... A abstinência de quem jejua torne-se refeição
para o pobre...
SERMÃO 5 (16)

4363 2. Qualquer ocasião é oportuna para a realização desta obra, mas particularmente
apta e adequada é esta, na qual os nossos santos padres, divinamente inspirados,
promulgaram o jejum do décimo mês, de modo que fosse dedicado a Deus, por
abstinência racional, o termo da colheita de todos os frutos...
4364 4. Ordenámos que comparecessem27 alguns eleitos e eleitas, estando sentados junto
de mim bispos e presbíteros, e reunidos também cristãos respeitáveis. Tendo eles revelado
muita coisa sobre a perversidade da sua doutrina e dos costumes das suas festas,
denunciaram igualmente aquele crime, que temos vergonha de contar, e foi tão
cuidadosamente investigado, a fim de que nada se deixasse em dúvida, tanto por causa
dos menos crédulos como dos detractores.
Estavam presentes todas as pessoas que perpetraram a infâmia, a saber, uma
menina de dez anos no máximo e duas mulheres que a criaram e prepararam para este
acto criminoso. Estava também o adolescente que abusou da menina e o bispo deles
que ordenara a detestável má acção. Todos eles fizeram uma só e idêntica confissão e
ficou provada a coisa abominável que os nossos ouvidos mal puderam suportar. Para
não ofender os vossos ouvidos falando mais abertamente, bastam os documentos dos
factos, que nos informam plenamente de que não existe nesta seita pureza, honestidade
e castidade; nela, a mentira é lei, o Diabo religião, o sacrifício baixeza...
SERMÃO 8 (19)

4365 1. O Salvador, ao instruir os discípulos acerca da vinda do reino de Deus e do fim


dos tempos e ao ensinar toda a sua Igreja na pessoa dos Apóstolos, disse: Tende
cuidado convosco: que os vossos corações não se tornem pesados com o excesso de
comer, a embriaguez e as preocupações da vida 28...
4366 2. Os jejuns, por inspiração do Espírito Santo, distribuem-se pelo ciclo do ano todo,
de tal modo que a lei da abstinência atinge todas as estações. De facto, celebramos o
jejum da Primavera na Quaresma, do Verão no Pentecostes, do Outono no sétimo mês,
porém, o do Inverno, neste décimo mês... Quem não entende a grandeza do socorro que
lhe trazem os jejuns?... Enquanto o corpo jejua de alimentos, jejue o espírito de vícios...
4367 3. Lembre-se de que, em primeiro lugar, deve amar a Deus, e em segundo amar o
próximo...; não se deve afastar do culto do Senhor, nem da ajuda aos companheiros de
serviço... Abstendo-se da maldade..., purificar-se-á pela santificação do verdadeiro jejum...
Jejuemos, portanto, quarta e sexta-feira; sábado, porém, celebremos as vigílias
junto do apóstolo São Pedro, que se dignará corroborar as nossas orações, os nossos
jejuns e as nossas esmolas com as suas súplicas, pela graça de nosso Senhor Jesus
Cristo, que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina pelos séculos dos séculos. Amen.

27
O Papa conta, de maneira velada, um acto de abuso sexual cometido com o conhecimento e a conivência do
bispo dos Maniqueus, com uma menina de 10 anos.
28
Lc 21, 34.
PAPA LEÃO MAGNO 1035

Sermões sobre os Santos 29

SERMÃO 82 30

6. É preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus santos, e nenhuma espécie de 4368
crueldade pode destruir a religião que foi fundada pelo mistério da cruz de Cristo. A
Igreja não diminui com as perseguições, mas aumenta; e o campo do Senhor reveste-se
sempre com uma seara mais abundante quando os grãos, caídos um a um, nascem
multiplicados. Por isso, estes dois ilustres germes da semente divina (Pedro e Paulo)
deram origem a uma inumerável descendência...
7. Devemos certamente alegrar-nos, irmãos caríssimos, na comemoração de todos 4369
os santos, que são para nós um dom de Deus, protecção da nossa fraqueza, exemplo de
paciência e confirmação da nossa fé. Mas ao celebrarmos a memória dos apóstolos
Pedro e Paulo, com razão nos devemos gloriar mais jubilosamente, pois a graça de
Deus os elevou tão alto entre os membros da Igreja que os constituiu como a luz dos
dois olhos no corpo de que Cristo é a cabeça.
Tal como nós já experimentámos e os nossos maiores demonstraram, cremos e
confiamos que, no meio de todas as dificuldades desta vida, seremos sempre ajudados
pela oração dos nossos principais protectores, para obter a misericórdia de Deus.
Deste modo, se os nossos pecados nos abatem, elevam-nos os méritos dos Apóstolos.
SERMÃO 84 31

1. A devoção com que todo o povo acorria, irmãos caríssimos, a dar graças a Deus 4370
pelo dia do nosso flagelo e da nossa libertação, vem sendo quase completamente
esquecida por todos. Mostra-o o reduzido número dos presentes...
2. Convertei-vos ao Senhor, reconhecendo as maravilhas que Se dignou realizar em 4371
nosso favor, e não atribuindo a nossa libertação à influência das estrelas, como dizem
os ímpios, mas à inefável misericórdia de Deus todo-poderoso, que Se dignou amansar
os corações dos bárbaros furiosos...
SERMÃO 85 32

2. A gloriosa dignidade do mártir São Lourenço, cuja paixão tornou célebre o dia de 4372
hoje, foi percebida pelos próprios perseguidores... Quando, de facto, o furor das
autoridades pagãs perseguia violentamente cada um dos membros escolhidos de Cristo
e atacava de preferência os que pertenciam à ordem sacerdotal, o ímpio perseguidor
enfureceu-se contra o diácono Lourenço, que se distinguia, não só no ministério dos
sacramentos, mas também na administração dos bens da Igreja...
3. O usurpador frustrado enfureceu-se... e mandou assar no fogo os membros 4373
dilacerados e retalhados por inúmeros golpes...
4. Nada obténs, nada adiantas, ó feroz crueldade... A chama da caridade de Cristo 4374
não pôde ser apagada pelas tuas chamas, e o fogo que queimou por fora foi mais brando
do que aquele que ardeu por dentro... O Senhor fez resplandecer de tal modo a sua
glória pelo universo, que do Nascente ao Poente brilham os fulgores dos seus diáconos,
tornando-se Roma tão ilustre por causa de Lourenço como Jerusalém graças a Estêvão...

29
P APA L EÃO M AGNO, Sermones in natale sanctorum (=PL 54, 422-437; CCL 138 A; SCh 200; cf. LH, IV).
30
No natalício dos apóstolos Pedro e Paulo.
31
Na oitava dos apóstolos Pedro e Paulo, a propósito da solenidade pouco frequentada.
32
No natalício do mártir São Lourenço.
1036 SÉCULO V

Sermões sobre a ordenação 33

SERMÃO 1 (92)

4375 1. Cante a minha boca os louvores do Senhor... É bem que um pontífice acabado de
consagrar inicie o seu ministério com o sacrifício do louvor do Senhor... Só Ele fez
grandes maravilhas em meu benefício, fazendo com que a afeição de vossa santidade
me considerasse presente, quando estava ausente por necessidade, numa longa viagem34.
Por isso dou e darei sempre graças ao nosso Deus, por tudo o que me concedeu.
Celebro ao mesmo tempo, com a devida gratidão, o ter sido escolhido..., e suplico-vos,
pela misericórdia do Senhor, que ajudeis com as vossas orações aquele que desejastes
ter, a fim de permanecer em mim o Espírito da graça e não precise o vosso juízo de
mudar... Em todos os dias da minha vida ao serviço de Deus omnipotente e disposto a
socorrer-vos, possa eu orar com toda a confiança ao Senhor: Pai santo, guarda em teu
nome aqueles que Me deste. E, enquanto progredis continuamente para a salvação,
glorifique a minha alma o Senhor, e, na futura retribuição do juízo, de tal modo preste
contas do meu sacerdócio perante o justo Juiz que sejais, por vossas boas obras, a
minha alegria e a minha coroa, vós que, de boa vontade, destes um sincero testemunho
acerca da minha vida presente. Por Cristo nosso Senhor. Amen.
SERMÃO 2 (93)

4376 1. A condescendência divina, irmãos caríssimos, fez com que eu honrasse o dia de
hoje... Com o regresso anual do dia que o Senhor escolheu para que eu iniciasse o
exercício do múnus episcopal, tenho motivos suficientes de me alegrar para glória de
Deus... Ninguém deve presumir da própria justiça, nem desconfiar da sua misericórdia...
A medida do dom é independente da qualidade das nossas obras...
4377 2. Por isso, irmãos caríssimos, glorificai comigo o Senhor, juntos exaltemos o seu
nome, a fim de que todo o sentido da presente comemoração se oriente para o louvor
do seu autor... Ao ver este esplêndido e numeroso ajuntamento dos meus veneráveis
irmãos no sacerdócio, tenho a sensação de que está entre nós a assembleia dos Anjos...
Presente está também, assim espero, a condescendência piedosa e o amor fiel do
apóstolo São Pedro. Não vos abandona, na vossa devoção, aquele em cuja honra vos
reunistes... Ele aprova a caridade bem ordenada de toda a Igreja que acolhe Pedro na Sé
de Pedro, e não deixa arrefecer a caridade para com tão grande pastor, nem mesmo
através da pessoa de um sucessor tão pouco semelhante a ele...
SERMÃO 3 (94)

4378 1. Temos, irmãos caríssimos, motivo justo e razoável para nos alegrar, todas as
vezes que a misericórdia divina se digna fazer voltar os dias assinalados pelos seus
dons... Este modo de agir convém a todos os sacerdotes, mas reconheço que me é
particularmente necessário, porque, olhando para a fraqueza da minha pequenez e
para a grandeza do múnus assumido, também eu devo clamar como o profeta: Senhor,
eu ouvi a vossa mensagem e enchi-me de temor... Contudo, não desesperamos nem
desanimamos, porque não presumimos de nós mesmos, mas esperamos n’Aquele que
em nós espera. Por essa razão, caríssimos, cantámos a uma só voz o salmo de David,
não para nos enaltecermos a nós próprios, mas para dar glória a Cristo Senhor...

33
PAPA LEÃO MAGNO, Sermones in anniversarium ordinationis (=PL 54, 141-156; SCh 200; BAC 291; cf. LH, IV).
34
Leão Magno foi eleito Papa pelo clero e o povo de Roma quando, como arquidiácono, se encontrava em
missão diplomática na Gália.
PAPA LEÃO MAGNO 1037

Quando o sacramento deste sacerdócio divino começa a ser exercido por homens,
deixa de ser transmitido através de gerações sucessivas, e já não se escolhe aquele que
nasceu da carne e do sangue mas, eliminado o privilégio dos pais e abandonada a
categoria das famílias, a Igreja recebe para a governar aqueles que o Espírito Santo preparou...
2. Tendo em nosso favor a protecção incessante do omnipotente e eterno Sacerdote..., 4379
justa e piedosamente nos alegramos do que Ele dispôs: tendo embora delegado em muitos
pastores o cuidado das suas ovelhas, não abandonou todavia Ele próprio a guarda do
seu amado rebanho.
Com esta essencial e eterna assistência recebemos também a protecção do
Apóstolo, que não abandona a sua função... Com efeito, é perene a solidez daquela fé
que foi louvada no Príncipe dos Apóstolos; e como permanece o que Pedro acreditou
acerca de Cristo, assim permanece o que Cristo instituiu em Pedro...
3. Com efeito, ele é chamado pedra, é declarado fundamento, é constituído 4380
depositário das chaves do Reino dos Céus e designado juiz do que se deve ligar e
desligar, ficando válida nos mesmos Céus a decisão dos seus juízos... Por conseguinte,
se alguma coisa boa é por nós feita e por nós decidida..., é devido às obras e méritos
daquele cujo poder vive e cuja autoridade se ergue nesta sede que é sua. Isto obteve-o,
irmãos caríssimos, aquela profissão de fé que, inspirada ao coração do Apóstolo por
Deus Pai, ultrapassou todas as incertezas das opiniões humanas... Na verdade, cada
dia diz Pedro em toda a Igreja: Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo; e toda a língua que
louva o Senhor está impregnada do magistério desta palavra.
4. Veja-se e honre-se na minha pessoa, irmãos caríssimos, aquele no qual persevera 4381
a solicitude de todos os pastores através da vigilância sobre as ovelhas que lhe foram
confiadas e cuja dignidade não desaparece mesmo quando o sucessor é indigno. Por
isso, a presença desejada e respeitável dos meus veneráveis irmãos e companheiros no
sacerdócio tornar-se-á mais santa e dedicada se prestarem esta piedosa homenagem, à
qual se dignaram estar presentes, sobretudo àquele que reconhecem não só como bispo
desta Sede, mas também como primaz de todos os bispos. Ao fazermos chegar até vós
esta nossa exortação, acreditai que vos fala aquele de quem fazemos as vezes...
SERMÃO 4 (95)

1. Alegro-me, irmãos caríssimos, por causa dos vossos sentimentos de dedicação e 4382
dou graças a Deus por reconhecer em vós a piedade característica da unidade cristã.
Como o próprio número dos presentes o atesta, compreendeis que o regresso deste dia
é causa de júbilo comum, e que toda a grei é honrada na festa anual do pastor. Com
efeito, toda a Igreja de Deus está organizada em diversas ordens, de modo que a
integridade do corpo sagrado subsiste na diversidade dos seus membros... A diversidade
de funções não é de modo nenhum causa de divisão entre os membros, já que todos,
por mais humilde que seja a sua função, estão unidos à cabeça. Na unidade da fé e do
baptismo, formamos uma comunidade indissolúvel, na qual todos têm a mesma
dignidade...
Todos os que renasceram em Cristo obtiveram, pelo sinal da cruz, a dignidade
real e, pela unção do Espírito Santo, receberam a consagração sacerdotal. Por isso, não
obstante o serviço especial do nosso ministério, todos os cristãos foram revestidos de
um carisma espiritual, que os torna membros desta família de reis e deste povo de
sacerdotes. Não será, na verdade, função régia o facto de uma alma, submetida a Deus,
governar o seu corpo? E não será função sacerdotal consagrar ao Senhor uma consciência
pura e oferecer no altar do coração a hóstia imaculada da nossa piedade? Pela graça de
Deus, estas prerrogativas sejam comuns a todos. Mas é digno e justo que vos alegreis
no dia da nossa eleição, como se se tratasse da vossa própria honra, para que em todo
o Corpo da Igreja se celebre um único sacramento do sacerdócio. Ao derramar-se o
1038 SÉCULO V

unguento da consagração, este sacramento derramou-se certamente com mais abundância


nos membros superiores, mas desceu também, e não pouco, até aos inferiores.
4383 2. Se a participação neste dom nos traz, com toda a razão, tão grande alegria, mais
verdadeiro e excelente será o motivo do nosso júbilo, caríssimos irmãos, se não vos
detiverdes a considerar a nossa humilde pessoa. Pelo contrário, será muito mais útil e
digno dirigir a atenção do nosso espírito para a contemplação da glória do bem-aventurado
apóstolo Pedro e dedicar especialmente este dia à veneração daquele que foi inundado
de bênçãos tão copiosamente pela própria fonte de todos os carismas, de tal modo que,
tendo recebido muitas graças exclusivas à sua pessoa, nada se comunica aos sucessores
sem a sua intervenção. O Verbo encarnado já habitava no meio de nós; Cristo já Se
tinha entregado totalmente para a redenção do género humano.
De entre os homens de todo o mundo é Pedro o único escolhido para ser posto à
frente de todos os povos chamados à fé, para ser posto à frente de todos os Apóstolos
e de todos os Padres da Igreja; e, assim, embora haja no povo de Deus muitos sacerdotes
e muitos pastores, Pedro é o verdadeiro guia de todos aqueles que têm Cristo como
chefe supremo...
4384 3. Por isso foi dito a Pedro: Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus. Tudo o que
ligares na terra será ligado nos Céus, e tudo o que desligares na terra será desligado
nos Céus35.
Passou sem dúvida também para os outros Apóstolos o direito deste poder, e a
constituição deste decreto atingiu todos os príncipes da Igreja; mas não é sem razão
que é confiado a um o que é imposto a todos. O poder é concedido de modo singular a
Pedro, porque foi posto à frente de todos os que têm de governar a Igreja.
SERMÃO 5 (96)

4385 1. Assim como, irmãos caríssimos, a glória dos filhos é a alegria dos pais, assim a
alegria do bispo é o regozijo do povo... Unamos, então, o motivo e a causa da solenidade
de hoje à sua origem e ao seu chefe. Louvemos com acções de graças Aquele em cujas
mãos se encontram os diversos graus das funções e os momentos do tempo.
4386 2. Cada um dos pastores está à frente do seu rebanho com especial solicitude...,
mas a nós, com todos eles, pertence a preocupação comum, e não existe governo de
nenhum que não seja uma porção do nosso trabalho. Quando de todo o mundo se
acorre à Sé do Apóstolo Pedro e se reclama de nós que dispensemos à Igreja universal
aquele amor que lhe foi recomendado pelo próprio Senhor, sentimos o peso da
responsabilidade na medida em que devemos dar mais a todos...
4387 3. O Senhor Jesus Cristo, irmãos caríssimos, está presente no meio dos fiéis... Ele,
que é o supremo Pontífice, não se afasta do conjunto dos seus pontífices... Ele é, sem
dúvida, o verdadeiro e eterno sacerdote, cujo governo não se altera, nem acaba... O Pai
não instituiu o seu sacerdócio segundo a ordem de Aarão, que haveria de passar com o
tempo da Lei, mas segundo a ordem de Melquisedec, para ser celebrado eternamente...
4388 4. Não é, portanto, irmãos caríssimos, presunção nossa a festa em que honramos,
lembrados do dom de Deus, o dia em que recebemos o sacerdócio. De facto, confessamos
com piedade e verdade que é Cristo quem realiza a obra do nosso ministério em tudo
aquilo que fazemos bem feito. E nós, que sem Ele nada podemos, não nos gloriamos em
nós mesmos, mas n’Aquele que nos dá a possibilidade de agirmos assim...
4389 5. Em nossos dias..., reconhecemos que somos ajudados pelos méritos e orações de
Pedro..., experimentamos que é ele quem preside..., que é sob a direcção de Pedro que
o culpado é levado à penitência e o reconciliado ao perdão. Por este motivo, todas as

35
Mt 16, 18.
PAPA LEÃO MAGNO 1039

atenções que hoje tivestes para connosco, por consideração fraterna ou amor filial,
sabei que as dispensastes comigo àquele em cuja Sé nos alegramos, não tanto por presidir,
mas por servir...

Cartas 36

CARTA 6 37

6. Soubemos com certeza..., por alguns irmãos, que os bispos são ordenados somente 4390
nos dias de domingo, mas que os presbíteros e os diáconos, que também devem ser
ordenados de igual modo, recebem a dignidade do ofício sacerdotal ora nuns dias ora
noutros, o que está contra a tradição dos Padres e deve ser corrigido...
CARTA 9 38

1. Aquilo que sabemos ter sido observado pelos nossos pais com mais cuidado, 4391
também queremos que o observeis vós, para que a ordenação dos presbíteros 39 e
diáconos não se celebre ora nuns dias ora noutros, mas depois do dia de sábado, na
noite de sábado para domingo... Nunca se dê a bênção aos que hão-de ser consagrados fora
do dia da Ressurreição... O domingo é o dia em que devem dar-se todos os dons da graça...
2. Para que a nossa observância concorde em tudo, queremos também que se guarde 4392
este costume: sempre que uma festividade mais solene atraia um grande número de
povo e os fiéis se reúnam em tal multidão que não seja possível acolhê-los juntamente
na basílica, não se hesite em repetir a oblação do sacrifício, não seja que, admitindo a
esta devoção apenas os que chegaram em primeiro lugar, possa parecer aos que chegaram
pouco depois que não foram recebidos. É plenamente piedoso e razoável oferecer o
sacrifício correspondente, todas as vezes que a presença de uma nova multidão encha
a basílica em que se celebra. De outro modo, uma parte do povo ficará privada da sua
devoção, se, como é costume, se celebrar apenas uma missa, e só poderão oferecer o
sacrifício aqueles que chegarem às primeiras horas do dia 40.
É com interesse e familiaridade que te dizemos isto, para que a tua solicitude não
descuide o que faz parte no nosso costume, tal como o entendeu a tradição dos Padres,
a fim de estarmos totalmente de acordo na fé e nas obras.
CARTA 10 41

4. Não se deve recusar facilmente a comunhão a nenhum cristão. Uma tal decisão 4393
não deve ser tomada com ligeireza por um bispo encolerizado... Soubemos que, por
acções e por palavras de pouca importância, alguns foram excluídos da graça da
comunhão e que, deste modo, uma alma pela qual foi derramado o sangue de Cristo,
punida por um suplício tão cruel, ferida e como que sem armas e privada de qualquer
defesa, foi abandonada aos ataques do Diabo, que poderia facilmente ter-se tornado
seu senhor.

36
P APA L EÃO M AGNO , Epistulae (=PL 54, 593-1262; 55, 161-180; 56, 1245; CSEL 35).
37
Carta 6, ao bispo Anastácio de Tessalónica.
38
Carta 9, a Dióscoro, bispo de Alexandria, de 21 de Julho de 445.
39
Sacerdotes.
40
Necesse est autem ut quaedam pars populi sua devotione privetur, si unius tantum missae more servato,
sacrificium offerre non possint, nisi qui prima diei parte convenerint.
41
Carta 10, aos bispos da província vienense.
1040 SÉCULO V

Certamente, se alguma vez se der o caso de haver causa justa para, de acordo com
a gravidade do crime cometido, privar alguém da comunhão, deve ser submetido à pena
só aquele sobre quem pesa a responsabilidade, mas não deve ter parte no castigo
aquele que não se provar que tenha tido parte no pecado. Admiras-te que haja leigos
que costumem alegrar-se com a condenação dos sacerdotes?
4394 6. A ordenação deve celebrar-se não neste ou naquele dia, mas no dia legítimo, o
domingo da Ressurreição, o único que os nossos maiores julgaram digno desta honra42...
4395 8. Aquele que vai estar à frente (da Igreja) deve ser eleito por todos...
CARTA 16

4396 3. Junta-se a esta observância também a do Pentecostes, solenidade consagrada


pela vinda do Espírito Santo, e que depende da data da Páscoa43.
4397 6. Ao aproximar-se a Páscoa os catecúmenos são perscrutados pelos exorcismos,
santificados pelos jejuns e preparados por pregações mais frequentes44.
CARTA 28 45

4398 3. Para saldar a dívida da nossa condição humana, a natureza impassível uniu-se à
nossa natureza passível, a fim de que, como convinha para nosso remédio, o único
mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, pudesse ser submetido à
morte como homem e dela estivesse imune como Deus.
Numa natureza perfeita e integral de verdadeiro homem nasceu o verdadeiro
Deus, perfeito na sua divindade, perfeito na sua humanidade. Por «nossa humanidade»
queremos dizer a natureza que o Criador desde o início formou em nós, e que Ele
assumiu para a renovar.
Mas daquelas coisas que o enganador trouxe, e o homem enganado aceitou, não
há nenhum vestígio no Salvador; nem pelo facto de Se ter irmanado na comunhão da
fragilidade humana Se tornou participante dos nossos delitos...
Entra, portanto, o Filho de Deus na baixeza deste mundo, descendo do trono
celeste, mas sem deixar a glória do Pai; é gerado e nasce, de modo totalmente novo.
CARTA 31 46

4399 2. De nada serve afirmar que nosso Senhor é filho da bem-aventurada Virgem Maria,
homem verdadeiro e perfeito, se não se acredita também que é descendente daquela
estirpe que no Evangelho se menciona...
4400 3. Como consequência desta admirável participação da nossa natureza, brilhou
para nós o mistério da regeneração, porquanto, graças ao mesmo Espírito por cuja
virtude Cristo foi concebido e nasceu, também nós conseguimos uma nova geração, espiritual.
CARTA 59 47

4401 2. Esses tais devem ser desprezados pelos santos membros do Corpo de Cristo,
porque a liberdade católica não deve aceitar que se lhe imponha o jugo dos infiéis.

42
Die sabbati vespere, quod lucescit in prima sabbati vel ipso die dominico. Também aceitaram os dias dos
natalícios dos Apóstolos.
43
Additur sane huic observantiae etiam Pentecostes ex adventu Spiritus sancti consacrata sollemnitas,
quae de Paschalis pendet articulo.
44
Et exorcismis scrutandi, et ieiuniis sanctificandi et frequentius sunt praedicationibus imbuendi.
45
Carta 28, a Flaviano; cf. LH, II.
46
Cf. LH, I.
47
Carta 59, aos cidadãos de Constantinopla.
PAPA LEÃO MAGNO 1041

Aqueles que negam que a carne de Cristo é da nossa natureza, devem ser considerados
por nós fora do dom da divina graça e do sacramento da salvação humana, pois
contradizem o Evangelho e se opõem ao Símbolo... Em que trevas da ignorância, em
que letargo têm vivido prostrados, se não foram capazes de aprender pelo ouvido nem
de conhecer pela leitura, o que na Igreja de Deus corre de boca em boca com tal
unanimidade, e que nem mesmo as línguas das crianças calam, sobre a verdade do
Corpo e Sangue de Cristo no sacramento da comunhão! É Ele que Se distribui, é Ele que
Se recebe nessa distribuição mística do alimento espiritual, para que, recebendo a força
do manjar celeste, nos transformemos na carne d’Aquele que Se fez nossa carne...
CARTA 108 48

2. Deus vem em socorro das quedas humanas com uma tal abundância de misericórdia 4402
que a esperança da vida eterna é dada aos pecadores, não só pela graça do baptismo,
mas também pelo remédio da penitência. Aqueles que alteram os dons recebidos na
regeneração baptismal e se reconhecem culpados, podem chegar à remissão dos pecados.
Mas as disposições da bondade divina são tais, que o perdão de Deus não pode ser
obtido senão pelas orações dos bispos. O mediador entre Deus e os homens, o homem
Jesus Cristo, concedeu aos chefes da sua Igreja o poder de dar aos pecadores
arrependidos a penitência e de os readmitir, por meio da reconciliação, à comunhão dos
sacramentos, depois de serem purificados por uma expiação salutar...
3. Se um dos pecadores pelos quais oramos a Deus, por um qualquer impedimento 4403
se vê privado do benefício do perdão, e morre antes de chegar ao remédio preparado
para este fim, o efeito que ele não recebeu durante a vida, não pode recebê-lo depois de
morto. É inútil examinarmos os méritos e as acções dos pecadores mortos desta maneira,
porque o Senhor nosso Deus, cujos juízos são insondáveis, reservou para o seu próprio
julgamento aquilo que o ministério episcopal não teve tempo de cumprir. Ele quis que
se tema o seu poder, para que nasça um temor proveitoso a todos, e que cada um tema
para si a infelicidade acontecida a certos pecadores tíbios e negligentes.
4. Quanto àqueles que, em caso de perigo ou de perigo extremo, imploram o socorro 4404
da penitência e da reconciliação imediata, não se lhes deve recusar nem a expiação nem
a reconciliação. Com efeito, não nos pertence a nós pôr limites à misericórdia de
Deus... Ao oferecermos aos outros os dons de Deus, não nos devemos mostrar avaros,
nem desprezar as lágrimas e os rogos dos pecadores que se reconhecem culpados, porque
acreditamos que as disposições que levam à penitência provêm da inspiração divina...
5. Importa, pois, que cada cristão se entregue à sua consciência, sem diferir de dia 4405
em dia a conversão, e sem fixar, como momento para a sua reconciliação, o fim da
vida..., e enquanto pode merecer o perdão com maior reparação, escolha aquele tempo
apertado em que talvez não haja espaço para a confissão do penitente ou para a
reconciliação do sacerdote. No entanto, como já o disse, é preciso levar o socorro
inclusivamente à tristeza desses doentes, e não lhes recusar nem a penitência nem a
graça da reconciliação, se eles a pedirem, mesmo que seja só por sinais. E, se estão de
tal modo doentes que nem sequer podem pedir na presença do sacerdote aquilo que
reclamavam antes, ouvir-se-ão os testemunhos dos fiéis presentes, e, em seguida, ser-lhes-á
concedido, ao mesmo tempo, o benefício da penitência e da reconciliação. Convém,
entretanto, observar a regra estabelecida pelos Padres da Igreja em relação às pessoas
que pecaram por crime de apostasia.

48
Esta carta é do ano 452. Foi escrita ao bispo de Frejus, no sul da França; C. V OGEL , Paris 1966, 172-174).
1042 SÉCULO V

CARTA 156 49

4406 5. Acaso não está claro a quem a vossa piedade deve socorrer e a quem deve opor-se,
para que a Igreja de Alexandria, que foi sempre uma casa de oração, não seja agora covil
de ladrões? É coisa manifesta que por uma crueldade louca e inconcebível se extinguiu ali
toda a luz dos sacramentos celestes, se interrompeu a oblação do sacrifício, faltou a
santificação do crisma e se afastaram das mãos parricidas dos ímpios todos os mistérios...

CARTA 159 50

4407 1. Dizes (na tua carta), que por causa das calamidades da guerra e das gravíssimas
incursões dos inimigos, alguns cônjuges ficaram divididos, na medida em que os homens
foram feitos prisioneiros, e as suas esposas ficaram sós. Julgando elas que os seus
maridos tinham sido mortos ou pensando que já não podiam ser libertados do poder
dos inimigos, sob o peso da solidão acabaram por casar com outros. Tendo agora
melhorado a situação, com a ajuda de Deus, alguns dos que se pensava que tivessem
morrido, regressaram. Por isso, é com razão que a tua caridade se mostra insegura
sobre o que se deve dispor, pela parte que nos toca, a respeito das mulheres que se
uniram a outros homens.
Mas uma vez que sabemos que está escrito que a mulher está unida ao homem
por Deus, e que também aprendemos o mandamento de que o homem não deve separar
o que Deus uniu, é necessário que consideremos que devem ser reintegrados os pactos
das núpcias legítimas e que, tendo-se afastado os males que a guerra causou, seja
restituído a cada qual o que legitimamente possuía, pelo que se deve procurar com toda
a solicitude que cada um receba o que lhe pertence.
4408 2. No entanto, não se julgue culpável nem se considere usurpador do direito de
outrem aquele que assumiu a função do cônjuge que se pensava ter deixado de existir.
Assim muitas coisas que pertenciam aos que foram levados em prisão poderão passar
para o direito de outros, e, no entanto, é plenamente justo que, se estes regressam, lhes
sejam restituídas as coisas. Porque, se justamente se observa isso no direito de
propriedade a respeito dos campos, e também das casas e das propriedades, quanto
mais na reintegração de cônjuges se deve procurar que, o que tinha sido perturbado pela
calamidade da guerra, seja restabelecido com o remédio da paz!
4409 3. Por isso, se os maridos que regressam depois de longa prisão perseveraram tanto
no amor para com as suas mulheres que desejam que estas voltem a ser suas esposas,
deve esquecer-se e julgar-se sem culpa o que a força das circunstâncias causou, e deve
restituir-se o que a fidelidade pede.
4410 4. Se, ao contrário, algumas mulheres estão tão presas pelo amor para com os
maridos posteriores, que prefiram estar unidas a estes em vez de regressar à união legítima,
com razão devem ser censuradas, até ao ponto de as privar também da comunhão com
a Igreja, pois escolheram fazer de uma acção sem culpa uma contaminação delituosa,
mostrando comprazer-se na sua incontinência, que uma justa remissão podia expiar51...
4411 6. Todos os que, ao contrário..., foram obrigados pelo medo ou levados pelo erro a
repetir o baptismo, e agora reconhecem ter actuado contra o sacramento da fé católica,
devem observar aquela norma segundo a qual se unem a nós através do remédio da
penitência, e recebem a unidade da comunhão pela imposição da mão do bispo...

49
Esta carta é do ano 458. Foi escrita ao imperador Leão.
50
Esta carta é do ano 458. Foi escrita ao bispo Nicetas de Aquileia; Denz., 38ª ed., 1999, 311-316.
51
Ostendentes sibimet pro sua incontinentia placuisse, quod justa remissio poterat expiare...
PAPA LEÃO MAGNO 1043

7. Com efeito, os que receberam o baptismo dos hereges sem que antes tivessem 4412
sido baptizados, devem ser confirmados só com a invocação do Espírito Santo mediante
a imposição das mãos, uma vez que receberam só a forma do baptismo sem a força da
santificação. Como sabeis, insistimos em que se observe esta regra em todas as Igrejas,
afim de que o banho, uma vez recebido, não seja violado por nenhuma repetição, pois
o Apóstolo diz: Um só Senhor, uma só fé, um só baptismo. A sua ablução não se deve
profanar com nenhuma repetição, mas, como dissemos, deve só invocar-se a santificação
do Espírito Santo, a fim de que o que ninguém recebe dos hereges, o receba dos
sacerdotes católicos.
CARTA 166 52

1. Fomos informados, através de alguns irmãos, que certos prisioneiros, ao 4413


regressarem em liberdade aos seus lugares – após terem caído em cativeiro numa idade
que não lhes permitia ter conhecimento certo de nada – pedem o remédio do baptismo,
sem poderem recordar-se, devido à ignorância própria da pouca idade, se já tinham
recebido alguma vez o mistério do próprio baptismo e os sacramentos. No meio de tal
incerteza, devida a uma recordação impossível, as suas almas estão expostas ao perigo,
uma vez que, a pretexto de prudência, se lhes nega a graça, por se pensar que já lhe
pode ter sido concedida. Dado que, com razão, o temor produz a incerteza em alguns
irmãos de dar a tais pessoas os sacramentos do mistério do Senhor, na assembleia
sinodal, como dissemos, recebemos uma petição formal de conselho sobre tal assunto...
Antes de mais, devemos ver se, a pretexto de mantermos uma certa prudência,
não prejudicamos as almas que têm de ser regeneradas... Portanto, se aquele que tem o
desejo da regeneração não se recorda de ter sido baptizado e se outra pessoa não pode
testemunhar a seu respeito por desconhecer se está consagrado ou não, não há nada em
que possa cometer-se pecado, uma vez que não é culpável quanto a este ponto nem o
que é consagrado nem o que consagra.
Sabemos certamente que é sempre delito grave obrigar alguém, segundo os
costumes dos hereges condenados pelos santos Padres, a submeter-se duas vezes ao
banho, ao qual já foi admitido uma vez; opõe-se a isso o ensinamento apostólico, que
nos anuncia uma só divindade na Trindade, uma só profissão na fé, um só sacramento
no baptismo. Mas, neste caso, não há que temer nada de semelhante, dado que não se
pode considerar culpa de repetição o que totalmente se ignora se foi feito...
2. Se constar com certeza que alguém foi baptizado pelos hereges, não se repita de 4414
modo nenhum o sacramento da regeneração, mas confira-se-lhe apenas o que faltou, a
fim de que, através da imposição da mão episcopal, consiga a força do Espírito Santo.
CARTA 167 53

1. Não há razão nenhuma para se contarem entre os bispos aqueles que não foram 4415
escolhidos pelo clero, nem aceites pelo povo cristão, ou que não tiverem sido ordenados54
pelos bispos da província com o assentimento do bispo metropolitano55. Por isso,
dado que muitas vezes se pergunta o que deve pensar-se duma eventual qualidade
episcopal recebida em condições irregulares56, não se pode atribuir a esses ordenados
aquilo que manifestamente não lhes foi conferido57.

52
Esta carta é do ano 458. Foi escrita a Neo de Ravena; Denz., 38ª ed., 1999, 319-320.
53
Esta carta é do ano 458 ou 459. Foi escrita a Rústico de Narbona; C. V OGEL , Paris 1966, 174-176.
54
Consecrati.
55
O bispo da capital provincial.
56
Male acceptus honor.
57
Nequaquam esse tribuendum quod docetur non fuisse collatum.
1044 SÉCULO V

Na hipótese de esses falsos bispos terem ordenado clérigos para igrejas que
dependem de outros bispos, e de essa ordenação ter sido realizada com o consentimento
desses bispos e sob a sua presidência, tal ordenação pode ser considerada como
consistente, e os clérigos, por conseguinte, permanecerão ao serviço dessas igrejas. Em
todos os outros casos, é preciso considerar como não existente uma criação de
presbíteros que não tenha relação com uma comunidade local, ou que tenha sido levada
a cabo por um bispo não qualificado58.
4416 2. Devem impor-se as mãos ao sacerdote ou ao diácono que, em razão dos seus
pecados, pedem a penitência?
É contrário aos usos da Igreja que os clérigos ordenados, sacerdotes ou diáconos,
possam receber o remédio da penitência para os seus pecados, pela imposição das
mãos. Esta regra tem a sua origem, sem qualquer dúvida, na tradição apostólica, porque
está escrito: Se o sacerdote pecou, quem intercederá por ele59? Os clérigos que
pecam, para merecerem a misericórdia de Deus devem pedir autorização, e retirar-se
para um lugar isolado. Aí, a sua expiação, se for adequada às suas faltas, ser-lhes-á
proveitosa...
4417 3. É conveniente que os diáconos e os presbíteros não despeçam as suas esposas, e
as tenham como se as não tivessem, para que o matrimónio carnal se torne espiritual e
assim seja salvo o amor do matrimónio e cessem as relações das núpcias...
4418 7. Os que recebem a penitência durante a doença e que, depois de curados,
não se lhe querem submeter.
Devem ser condenados aqueles que se tornam culpados de semelhante negligência,
mas não completamente rejeitados. É preciso agir de tal modo que, exortados sem
descanso, eles cumpram lealmente a penitência que pediram quando estavam aflitos.
Ninguém deve ser abandonado ao desespero enquanto vive; muitas vezes, uma
penitência diferida em razão da idade acaba por ser cumprida quando chega a maturidade.
4419 8. Os que recebem a penitência nos últimos instantes e morrem antes de ter recebido
o viático.
Há que abandonar esses casos ao juízo de Deus. Depende d’Ele que a morte
sobrevenha antes do remédio da comunhão. Quanto a nós, que não pudemos reintegrar
esses pecadores na comunhão quando ainda estavam em vida, não podemos fazê-lo
depois de morrerem.
4420 9. Aqueles que, levados pelo sofrimento, pedem que a penitência lhes seja dada e
que, ao chegar o sacerdote, tendo cessado a dor, se recusam e já não querem recebê-la.
Esta recusa pode provir, não dum desprezo pelo remédio, mas do temor de pecar
ainda gravemente no futuro. Do mesmo modo, a penitência diferida uma primeira vez,
se voltar a ser pedida com pressa, não deve ser recusada, seja em que circunstância for;
uma alma ferida deverá receber sempre o remédio do perdão.
4421 10. Os penitentes que põem processos em tribunal.
Uma coisa é reclamar o que é devido em justiça, outra coisa abandonar o que é
seu por desejo de perfeição. O penitente que pede perdão dos seus pecados deve
abster-se de muitas coisas lícitas, porque o Apóstolo diz: Nem tudo me é permitido,
mas tudo me pode ser útil60. Por conseguinte, se um penitente tem um problema de
justiça que talvez não possa abandonar, é melhor que se dirija aos tribunais eclesiásticos,
em vez de se dirigir aos tribunais civis.

58
Vana habenda est creatio quae nec loco fundata est, nec auctore munita.
59
Lev 5 ?
60
1 Cor 6, 12.
PAPA LEÃO MAGNO 1045

11. Penitentes que, durante a sua penitência ou depois dela, fazem comércio. 4422
A natureza do lucro desculpa ou acusa o comerciante, porque há lucros lícitos e
lucros ilícitos. Para um penitente, é melhor suportar perdas do que meter-se nos
perigos que o comércio faz correr; é difícil, com efeito, que na profissão de comprador
ou vendedor não se cometam pecados.
12. Aqueles que depois da sua penitência retomam o serviço militar. 4423
É absolutamente contrário às leis da Igreja retomar o serviço militar após o
processo penitencial. Com efeito, diz o Apóstolo: Ninguém que combate por Deus se
deve meter em assuntos do mundo 61. Por conseguinte, o homem que se alista no
serviço militar não está livre dos entraves do Diabo.
13. Aqueles que, depois da penitência, se casam ou têm concubinas. 4424
Um homem ainda jovem, levado pelo sofrimento ou pelo medo de morrer ou em
perigo de ser feito prisioneiro, fez penitência; em seguida, temendo recair, pela
incontinência natural na sua idade, escolheu os laços do casamento para não ter relações
ilícitas. Este homem jovem parece-me ter cometido uma falta apenas venial se, além da
sua esposa, não tem qualquer outra relação. No entanto, ao falarmos assim, não
queremos de modo nenhum estabelecer uma regra; julgamos apenas o que é mais ou
menos admissível. Porque, segundo um juízo exacto das coisas, nada teria sido mais
conveniente, para aquele que fez penitência, do que permanecer, para o futuro, casto
de corpo e de coração.
CARTA 168 62

2. Estabeleceu-se de forma indevida, como o vim a saber há pouco tempo, uma 4425
forma de agir contrária aos regulamentos apostólicos e cuja supressão ordeno. Trata-se
dos fiéis no momento em que pedem a penitência. Proibimos que seja lido, nessa
ocasião, em público, qualquer escrito em que figurem em pormenor os seus pecados.
Basta, com efeito, que as faltas sejam indicadas apenas ao bispo, num diálogo secreto.
Ainda que se deva louvar a grande fé daqueles que, por temor de Deus, não têm medo
de se envergonhar diante dos homens, há, contudo, pecados, que aqueles que pedem a
penitência não gostariam de ver tornarem-se públicos. Suprima-se, portanto, um hábito
tão contestável, para que muitos não se afastem do remédio da penitência, por vergonha
ou porque temem que os seus actos sejam conhecidos dos seus inimigos, que poderiam
então persegui-los diante dos tribunais.
Basta a confissão feita primeiro a Deus, e em seguida ao bispo, que se torna o
advogado das faltas dos pecadores. Não se pode convidar a maioria dos fiéis a vir
constituir-se como penitentes, se o segredo das consciências for entregue ao
conhecimento público.

61
Cf. 2 Tim 2, 4.
62
Esta carta é do ano 459. Foi escrita aos bispos da Campânia, do Sâmnio e do Piceno (Denz., 38ª ed., 1999,
323; C. V OGEL , Paris 1966, 174).
1046 SÉCULO V

Concílios do século V 1

I Concílio de Toledo (400) 2


4426 20. 1 Apesar de em quase toda a parte se observar que ninguém, excepto o bispo,
consagra o crisma, no entanto, uma vez que, segundo dizem, nalgumas partes ou
províncias os presbíteros o consagram, decidiu-se que, de agora em diante, ninguém,
excepto o bispo, consagre o crisma e o destine à diocese. Proceda-se de tal modo que,
de cada igreja, antes do dia de Páscoa, sejam mandados diáconos e subdiáconos até
junto do bispo, a fim de que o crisma consagrado e assinalado pelo bispo possa estar
à disposição para o dia de Páscoa.
2 Sem dúvida, é lícito ao bispo consagrar o crisma em qualquer tempo. Mas não
se faça nada sem que o bispo o saiba. Também se estabeleceu que o diácono não deve
fazer unções com o crisma. Mas, quando o bispo está ausente, o presbítero pode fazê-las,
e também na presença do bispo quando ele o encarregar disso.

Concílio de Cartago (401) 3


4427 6. A respeito das crianças, todas as vezes que não se encontrem testemunhas
categóricas que certifiquem sem hesitação o facto dos seus baptismos, e que essas
crianças, em virtude da sua idade, sejam incapazes de responder acerca dos sacramentos
que teriam recebido, pareceu bem que se baptizem sem qualquer escrúpulo, não aconteça
que sejam privadas da purificação dos sacramentos por causa desta dúvida. A este
respeito, os nossos irmãos, delegados dos Mouros, perguntaram-nos a nossa opinião,
pois resgataram aos bárbaros um grande número de crianças nestas circunstâncias.

Concílio de Cartago (407) 4


4428 9. Ao altar, todos os bispos devem dizer orações que tenham sido aprovadas em
concílio5.

1
Concílios do século V (=PL 84, 237-302; CCL 148-148 A-149, Cânones dos Concílios gauleses do
século V; M ANSI , III. IV; J. B. C HABOT , Synodicon orientale, Paris, Impr. Nation. 1902; BRUNS , I; Denz., 38ª
ed., 1999, 305; A LBERICO , Decisioni dei Concili Ecumenici, Torino 1978; C. VOGEL , Paris 1966, 190-192).
As datas dos Concílios do século V estendem-se do ano 400 ao ano 465.
2
I Concílio de Toledo (=PL 84, 327-334; B RUNS , I). Não existe unanimidade sobre o ano em que se realizou
este sínodo. Há quem proponha o ano 400.
3
Concílio de Cartago (=M ANSI , III; CCL 149; C. Munier, Concilia Africana).
4
Concílio de Cartago (=M ANSI , III; CCL 149; C. Munier, Concilia Africana).
5
Ut preces altaris quae probata fuerint in concilio, ipsae ab omnibus episcopis dicantur.
CONCÍLIOS 1047

Sínodo de Selêucia-Ctésiphon (410) 6


13. Os diáconos, de cima do ambão7, fazem proclamações8... 4429

Concílio de Milevo (412) 9


12. Também foi decidido que todos utilizem as preces e orações, (as palavras dos) 4430
prefácios, as encomendações, e as imposições das mãos da Missa que forem aprovadas
em concílio. De modo nenhum se devem dizer na igreja outras orações, a não ser que
tenham sido compostas por pessoas prudentes ou aprovadas em sínodo, para não
acontecer que se diga algo contra a fé, quer por ignorância, quer por pouco saber10.

Concílio de Cartago (418) 11


2. Decidiu-se que aqueles que negam que se devem baptizar as crianças recém- 4431
-nascidas do seio materno ou afirmam... que a fórmula do baptismo «para a remissão
dos pecados» há-de entender-se como não verdadeira, mas falsa, seja anátema... É em
virtude desta regra de fé da Igreja, acerca do pecado original, que também os mais
pequeninos, que não puderam ainda cometer qualquer pecado pessoal, são verdadei-
ramente baptizados para a remissão dos pecados, para que a regeneração purifique
neles aquilo que a geração lhes fez contrair.

Concílio de Cartago (419) 12


103. Também foi decidido o seguinte: todos devem utilizar orações, prefácios, encomen- 4432
dações ou imposições das mãos aprovadas em concílio, e, de modo nenhum, devem
dizer outras contrárias à fé, mas podem dizer aquelas que tenham sido feitas por pessoas
prudentes 13.

6
Sínodo de Selêucia-Ctésiphon (=J. B. Chabot, Synodicon Orientale). Este Sínodo foi realizado por Mar
Isaac.
7
Bêma.
8
Eram as intenções propostas pelos diáconos ao povo, semelhantes às da Oração dos fiéis.
9
Concílio de Milevo (=PL 84; MANSI , IV).
10
Placuit etiam et illud ut preces vel orationes, seu missae quae probatae fuerint in concilio, sive
praefationes, sive commendationes, seu manus impositiones ab omnibus celebrentur. Nec aliae omnino
dicantur in ecclesia, nisi quae a prudentioribus tractatae vel comprobatae in synodo fuerint, ne forte
aliquid contra fidem, vel per ignorantiam, vel per minus studium sit compositum.
11
Concílio de Cartago (=MANSI , III; CCL 149; C. Munier, Concilia Africana).
12
Concílio de Cartago (=MANSI , III; CCL 149; C. Munier, Concilia Africana).
13
Placuit etiam hoc, ut preces quae probatae fuerint in concilio, sive praefationes, sive commendationes
seu manus impositiones, ab omnibus celebrentur, nec aliae omnino contra fidem proferantur, sed
quaecumque a prudentioribus conlatae, dicantur.
1048 SÉCULO V

Concílio de África 14
4433 61. Pedimos ainda (aos imperadores) que os espectáculos de teatro e os outros
divertimentos sejam retirados do dia do domingo e dos outros dias festivos mais
célebres da religião cristã, especialmente porque, nos oito dias da santa Páscoa, as
pessoas se reúnem mais facilmente no circo do que na igreja. Por isso, quando (tais
divertimentos) ocorrerem, devem ser transferidos daqueles dias santíssimos.

Concílio de Riez (439) 15


4434 2. Uma ordenação que os cânones consideram nula e sem efeito foi, também por
nós, considerada sem significado16..., e não se mostrou ter sido feito nada (do que se
faz na ordenação) de um bispo17.

Concílio de Orange (441) 18


4435 2. Nenhum dos ministros que tenha recebido o ofício de baptizar deve andar sem o
crisma, porque entre nós foi admitido que não se faça a crismação mais do que uma
vez. Se, por qualquer motivo, alguém não tiver sido crismado no baptismo, o sacerdote
será avisado na confirmação. Só se faz uma bênção com o crisma, não para prejudicar
seja quem for, mas porque não é preciso repetir a crismação.
4436 3. No que se refere aos moribundos, decidimos conceder-lhes a comunhão, depois
de receberem a penitência, mas sem os reconciliar pela imposição das mãos, porque
isso basta para a consolação do moribundo, segundo os decretos dos Padres, que
chamaram muito justamente a esta comunhão o viático. Se estes doentes recuperarem
a saúde, tomarão lugar na ordem dos penitentes, e, depois de terem cumprido as obras
de expiação necessárias, receberão a comunhão regular, com a imposição reconciliadora
das mãos.
4437 5. Em caso de perigo de morte, nem aos clérigos se deve recusar a penitência, se eles
a pedirem.
4438 11. Aquele que subitamente perde a voz, como já foi dito, pode ser baptizado ou
receber a penitência, se essa for a sua vontade, expressa anteriormente e autentificada
pelo testemunho de outras pessoas, ou a sua vontade presente expressa por um
movimento da sua parte.
4439 14. Os energúmenos já baptizados que se preocupam com a sua cura, se se entregam
aos cuidados dos clérigos e obedecem às suas ordens, devem comungar, para que a
força do sacramento os defenda dos ataques do Demónio com que estão infestados, ou
os purifique, se já estiverem perto da cura.
4440 17. Decidimos que, em toda a Igreja das nossas províncias, se leia logo a seguir o
Evangelho aos catecúmenos.

14
Concílio de África (=B RUNS , I; Codex canonum Ecclesiae Africanae).
15
Concílio de Riez (=CCL 148, Cânones dos Concílios gauleses do século V).
16
Evacuandam ordinationem censuimus.
17
Nihil quod episcopum faceret ostensum est.
18
Concílio de Orange (=CCL 148, Cânones dos Concílios gauleses do século V; C. V OGEL , Paris 1966, 190).
CONCÍLIOS 1049

Concílio de Vaison (442) 19


2. No que se refere àqueles que, depois de terem recebido a penitência e levado vida 4441
honesta no remorso e na expiação, foram surpreendidos, no campo ou em viagem, por
morte súbita, sem terem recebido a comunhão, é conveniente receber as oferendas
feitas por estes defuntos, conceder-lhes funerais cristãos e fazer memória deles nos
ofícios. Com efeito, seria uma impiedade recusar a comemoração desses fiéis na
celebração eucarística, uma vez que se prepararam para os santos mistérios com fé e
confiança, se comportaram como culpados arrependidos durante um longo período de
tempo, se julgaram indignos dos mistérios da salvação e, desejando ser admitidos neles
após terem sido completamente purificados dos seus pecados, morreram sem o viático.
Nenhum bispo teria hesitado, certamente, em conceder-lhes a reconciliação definitiva,
se estivessem vivos.

Da chamada colecção do II Concílio de Arles (442-506) 20


12. Não deverá ser deixado sem viático nenhum pecador que, depois de ter recebido 4442
a penitência, esteja para morrer (antes da reconciliação solene); uma vez que respeitou
as leis da penitência, aceite-se a sua oferenda.
22. Não se deve dar a penitência às pessoas casadas, sem o consentimento do cônjuge. 4443
28. Decidimos conceder a comunhão àqueles que, depois de receberem a penitência, 4444
estão em perigo de morte. Se sobreviverem depois de receberem o viático, tomarão
lugar na ordem dos penitentes. Quando tiverem mostrado os frutos indispensáveis da
penitência, receberão a imposição reconciliadora das mãos, prevista pelos cânones.
29. A penitência não deve ser recusada, nem mesmo aos clérigos que a pedem (no 4445
leito de morte).

Concílio de Calcedónia (451) 21


2. Se um bispo fizer uma sagrada ordenação por dinheiro, se vender a graça que não 4446
pode ser vendida, se consagrar por lucro um bispo, um corepíscopo, um presbítero,
um diácono ou qualquer outro clérigo, ou promover alguém ao ofício de administrador,
de defensor público, de guardião ou a qualquer outra responsabilidade na cúria por lucro
desonesto, expõe-se, se o caso for provado, ao perigo de perder o seu grau. Quanto ao
que recebeu a ordenação desse modo, não lhe advirá nenhuma vantagem por uma
ordenação ou promoção negociada, mas será deposto da dignidade ou do ofício que
obteve por dinheiro. E, se alguém tiver feito de mediador neste negócio ilícito e
vergonhoso, se for um clérigo, seja degradado, se for um leigo ou um monge, seja excomungado.
5. Quanto aos bispos e clérigos que passam de uma cidade para outra, foi decidido 4447
que conservem toda a sua força os cânones estabelecidos pelos santos Padres sobre
este assunto.

19
Concílio de Vaison (=CCL 148, Cânones dos Concílios gauleses do século V; C. VOGEL , Paris 1966, 190-
191).
20
II Concílio de Arles (=CCL 148, Cânones dos Concílios gauleses do século V; C. V OGEL , Paris 1966, 191).
21
Concílio de Calcedónia, 15ª sessão (=B RUNS, I; Denz., 38ª ed., 1999, 305; A LBERICO , Decisioni dei Concili
Ecumenici, Torino 1978). Este Concílio realizou-se em 451.
1050 SÉCULO V

4448 6. Ninguém deve ser ordenado presbítero, diácono ou clérigo de qualquer grau, de
maneira absoluta22. A quem for ordenado deve ser-lhe determinada, de maneira precisa,
uma igreja urbana, uma igreja rural, um martu/rion ou um mosteiro.
O santo concílio decidiu que a ordenação dos que tiverem sido ordenados de
maneira absoluta23 seja nula e considerada nula24 e que, para vergonha daquele que a
conferiu, eles não poderão exercer as suas funções25 em parte nenhuma.
4449 7. Os que foram admitidos uma vez no clero ou que se fizeram monges não devem
aceitar o serviço militar nem qualquer dignidade civil; tanto os que ousaram fazê-lo e
não se arrependem, como os que abandonaram o estado que tinham escolhido por Deus
devem ser excomungados.
4450 10. ... A partir do momento em que alguém foi transferido duma igreja para outra,
deve deixar de ocupar-se doravante seja de que assunto for da primeira igreja.
4451 13. Os clérigos e leitores forasteiros não devem, de modo nenhum, exercer um serviço
litúrgico noutra cidade, sem cartas de recomendação do seu bispo próprio.
4452 14. Dado que nalgumas províncias é permitido aos cantores e aos leitores casarem-se,
este santo Concílio decidiu que não seja lícito a nenhum deles tomar uma mulher
herética por esposa. Os que já tiverem tido filhos de tais bodas, se já fizeram baptizar
os filhos pelos hereges, devem fazê-los admitir à comunhão da Igreja católica; se ainda
não tiverem sido baptizados, não podem baptizá-los entre os hereges. Nem devem dá-
-los em matrimónio a um herege, a um Judeu ou a um pagão, excepto se a pessoa que
se une à parte ortodoxa declarar converter-se à verdadeira fé. Se alguém transgredir
esta prescrição do santo Concílio seja submetido às sanções eclesiásticas.
4453 15. Não se ordene diácono uma mulher antes dos quarenta anos e sem um exame
cuidadoso. Se, por acaso, depois de ter recebido a imposição das mãos e de ter vivido
durante algum tempo no ministério, ela ousar contrair matrimónio, desprezando com
isso a graça de Deus, seja anátema juntamente com aquele que se uniu a ela.
4454 16. As paróquias rurais ou aldeãs pertencentes a uma igreja, permanecem atribuídas
de modo absoluto ao bispo que possui essa igreja, especialmente se tiver estado na sua
posse pacífica há mais de trinta anos...

Concílio de Angers (453) 26


4455 2. Os diáconos devem prestar toda a deferência aos presbíteros...
4455a 4. Saibam todos os clérigos que se deve evitar a familiaridade com mulheres
estranhas. Os que são celibatários devem ser assistidos apenas pelas suas irmãs, tias
ou mães, porque assim como não é bom que o homem esteja só, assim também não
convém que vivam mulheres estranhas com os clérigos, porque frequentemente temos
de lamentar a ruína de muitos por esse motivo. Se alguém, depois desta proibição, não
quiser renunciar às citadas familiaridades, não se lhe dará nenhum grau mais elevado e,
se já o tiver recebido, não o exerça. Se forem detectados nas cidades alguns a quem já
foram entregues ou que se preparam para os receber, não só devem ser tidos por
afastados da comunhão, mas nem sequer devem ser admitidos a participar em qualquer
reunião.
22
a) p olelu/ m enwj (=sem título, sem ligação a uma igreja).
23
a) p olu/ t wj (=sem ligação a uma igreja).
24
a) k uro/ n xeiroqesi/ a n .
25
mhdanou= .
26
Concílio de Angers (=CCL 148, Cânones dos Concílios gauleses do século V; C. V OGEL , Paris 1966,
191).
CONCÍLIOS 1051

5. Acerca daqueles que depois de recebida a penitência devida voltam a cair, 4455b
observar-se-á a devida severidade; também foi decidido que as virgens que tombaram,
por culpa própria, do estado de virgindade, devem permanecer no seu estatudo.
6. Do mesmo modo aqueles que abusaram das esposas alheias... sejam tidos como 4455c
estranhos da comunhão.
7. Os clérigos que abandonaram o estado clerical e se entregaram à vida militar, não 4455d
é injusto removê-los da igreja que abandonaram...
9. Não é permitido aos bispos elevar o grau dos clérigos de outros bispos. 4455e
11. Ordenem-se diáconos e presbíteros que tenham sido maridos de uma só e única 4455f
esposa...
12. A ordem dos penitentes será aberta a todos os pecadores que, tendo-se convertido, 4455g
desejam reconhecer os seus erros; segundo a natureza do pecado, ser-lhes-á concedido
o perdão, de acordo com o julgamento do bispo.

Concílio de Vannes (465) 27


1. Pensamos que os homicidas e as falsas testemunhas devem ser afastados da 4456
comunhão eclesiástica, salvo se apagarem os seus crimes com a satisfação da penitência.
3. Os penitentes que, interrompendo a penitência pública, voltam à sua anterior má 4456a
maneira de viver e regressam à vida secular e aos hábitos do mundo, não só serão
privados da comunhão dos sacramentos do Senhor, mas também serão afastados das
reuniões dos fiéis.
10. Os bispos que ordenarem clérigos de outros bispos sem sua permissão, não 4456b
ousem promovê-los a uma ordem superior...
11. Os presbíteros, diáconos e subdiáconos, aos quais não é permitido depois ter 4456c
esposa, evitem as festas de casamento e não frequentem as reuniões onde se cantam
canções amorosas e torpes e onde se fazem movimentos de danças obscenas...
12. Todos os clérigos devem, de agora em diante, evitar o convívio dos Judeus... 4456d
13. Antes de mais os clérigos evitem a embriaguez... 4456e
14. Todo o clérigo que mora dentro dos muros da sua cidade e que, sem ser por 4457
motivo de doença devidamente justificada, falta aos hinos da manhã28, será privado da
comunhão durante sete dias, pois não é permitido ao ministro das coisas sagradas
abandonar a sua saudável devoção durante aquele tempo em que não pode ocupar-se
do seu ofício por qualquer necessidade honesta.
15. Também foi decidido que, dentro da nossa província, haja um só modo de celebrar 4457a
os ritos sagrados29 e de salmodiar30. Tal como é uma só a fé com que confessamos a
Trindade, também observamos uma só regra nos ofícios, para que não se pense que
estamos divididos por alguma diferença na nossa devoção...
16. E para que não pareça que nos esquecemos..., se for encontrado algum clérigo 4458
que aconselhe ou ensine a consulta dos áugures, o deitar sortes ou a ciência da
adivinhação..., seja tido como estranho pela Igreja...

27
Concílio de Vannes (=CCL 148, Cânones dos Concílios gauleses do século V; C. V OGEL , Paris 1966,
192).
28
Laudes.
29
Os ritos da Missa.
30
Celebrar o Ofício divino.
1052 SÉCULO V

Teodoreto de Ciro

História Eclesiástica 1

LIVRO V

4459 18. Tu, ó imperador, és chefe de homens iguais a ti e servos como tu. Porque um só
é o Senhor e Rei de tudo, Criador de todas as coisas. Com que olhos contemplarás o
templo do Senhor de nós todos? Com que pés pisarás aquele santo pavimento? Como
estenderás essas mãos, das quais ainda escorre o sangue das mortes injustas? Como
receberás com essas mãos o santíssimo Corpo do Senhor? Como levarás o precioso
Sangue à tua boca, que pelo furor das tuas palavras derramou injustamente tanto
sangue? Afasta-te e não aumentes com mais pecados a maldade do primeiro...

História Religiosa 2
4460 20. Há entre nós uma pequena povoação chamada Homero. O admirável Máris
construiu, perto, uma casa de pequenas dimensões e nela permaneceu encerrado durante
trinta e sete anos. Recebia muita humidade do monte vizinho, até ao ponto de toda a
casa ressumar gotas de água. Tanto os da cidade como os do campo sabem quanto mal
isto faz aos corpos... Mas tais inconvenientes não persuadiram aquela sagrada cabeça
a mudar de domicílio, permanecendo sempre ali até terminar o curso da sua vida... Eu
tive o privilégio de gozar com frequência da sua familiaridade. Mandava-me abrir a
porta e, ao entrar, abraçava-me e falava longamente sobre a vida santa... Aos noventa
anos usava vestes de pele de cabra e sustentava-se com um pouco de pão e sal.
Tendo desejado ardentemente, há muito tempo, ver celebrar o sacrifício espiritual
e místico, pediu que se oferecesse ali a oblação do dom divino. Eu condescendi com
muito gosto, e, tendo mandado que fossem levados para lá os vasos sagrados (pois não
distava muito do lugar) e utilizando as mãos dos diáconos em vez do altar, ofereci o
sacrifício místico, divino e salvador. Ele, cheio de suavidade espiritual, pensava ver o
próprio Céu e dizia que nunca tinha experimentado semelhante alegria. E eu, que me
sentia ardentemente amado por ele, penso que seria fazer-lhe uma injúria, se o não
louvasse mesmo depois de morto...

Heresias comparadas 3
4461 5. 18 Se o único sentido do baptismo fosse o perdão dos pecados, por que
haveríamos de baptizar as crianças recém-nascidas, se elas não fizeram ainda a experiência

1
T EODORETO DE C IRO , Historia ecclesiastica (=PG 82, 881-1280; CSEL 71; GCS 44). Teodoreto de Ciro
nasceu por volta de 393. Em 433 foi eleito bispo de Ciro, pequena aldeia perto de Antioquia. Governou a
sua diocese durante trinta e cinco anos com grande sabedoria e zelo. Morreu por volta de 466.
2
T EODORETO DE C IRO , Historia religiosa seu ascetica (=PG 82, 1283-1496; SCh 234 e 257).
3
T EODORETO DE C IRO , Haereticarum fabularum compendium (=PG 83, 335-556).
TEODORETO DE CIRO 1053

do pecado? Mas o mistério do baptismo não se limita a isso; ele é promessa de dons
maiores e mais perfeitos. Nele se encontram as promessas da felicidade futura; ele é
figura da ressurreição futura, comunhão na paixão do Senhor, participação na sua
ressurreição, túnica de alegria, veste luminosa, melhor ainda, ele é a própria luz.

Terapêutica das doenças helénicas 4


8. 62 Os santuários dos nossos gloriosos mártires são esplêndidos. São de tal modo 4462
imponentes e tão ricamente decorados que atraem todos os olhares. Não vamos lá uma
ou duas vezes por ano, nem mesmo cinco vezes, mas com muito mais frequência, para
aí celebrar o elogio dos santos. Por vezes, em certos lugares, oferecemos diariamente
os nossos cânticos ao Senhor dos mártires.
63 Os fiéis que têm saúde pedem ao Senhor que lha conserve; os que sofrem de
alguma doença pedem que os alivie dela. Os esposos que não têm filhos pedem filhos;
as mulheres estéreis pedem para ser mães. Os viajantes que partem para terras longínquas
pedem aos mártires que estejam com eles ao longo do caminho. Os que têm a sorte de
voltar após uma longa viagem levam até ali o sinal do seu reconhecimento.
64 Certamente não recorrem aos mártires como se fossem deuses, mas invocam-nos
como homens de Deus. Pedem-lhes que sejam seus intercessores, e todos os que lhes
fazem os seus pedidos com fé obtêm o que pedem: os ex-votos dão testemunho, à vista
de todos, da cura obtida. Uns oferecem imagens de olhos, outros de pés, outros de
mãos; alguns destes ex-votos são de ouro, outros de madeira. O Senhor também aceita
as coisas pequenas, as que não têm grande valor, porque conhece as disponibilidades
de cada um.
65 Estes objectos estão ali para testemunhar a cura obtida; são a memória daqueles
que foram curados. Proclamam o poder dos mártires que ali repousam, poder que
confirma o do seu Deus, que é o único Deus verdadeiro.

Cartas 5

CARTA 145 (146) 6

Mas para quê prolongar o discurso, quando é possível refutar a mentira com 4463
algumas palavras apenas? Àqueles que, em cada ano, se aproximam do santíssimo
baptismo, ensinamos-lhes a fé exposta em Niceia pelos santos e bem-aventurados
Padres e, iniciando-os nos mistérios, pela ordem em que os recebemos, baptizamo-los
em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, pronunciando separadamente cada
nome. De igual modo, quando celebramos solenemente as santas liturgias7 nas igrejas,
quer no princípio quer no fim do dia, e durante o próprio dia, também dividimos o dia
em três partes 8 e glorificamos o Pai e o Filho e o Espírito Santo.

4
T EODORETO DE C IRO , Graecarum affectionum curatio (=PG 83, 783-1152; SCh 57).
5
T EODORETO DE C IRO , Epistulae (=PG 83, 1173-1494; SCh 40, 98, 111 e 429).
6
Aos monges de Constantinopla.
7
O termo liturgias significa Laudes e Vésperas.
8
Será isto uma referência às horas de Tércia, Sexta e Noa?
1054 SÉCULO V

Basílio de Selêucia

Homilia Pascal 1
4464 1. A filantropia de Cristo por nós é inexplicável. Ele enriqueceu com muitos dons a
sua Igreja. Grande nos seus desígnios e poderoso nas suas obras, resgatou da maldição
da Lei a nossa natureza, libertando-a do antigo documento de dívida. Na árvore da
Cruz, triunfou daquele que tinha feito vacilar Adão por meio da árvore. Ele destruiu o
aguilhão da temerosa morte e renovou os que tinham envelhecido no pecado, não pelo
fogo, mas pela água. Mostrou que aquele túmulo de três dias se tornara numa porta que
levava à Ressurreição. Os que não tinham direito de cidadania em Israel, proclamou-os
concidadãos e familiares dos santos. Aos que eram estranhos às promessas da aliança,
entregou-lhes os mistérios celestes. Deus gratuitamente o Espírito aos que não tinham
esperança, como garantia de salvação. Aos que no mundo estavam sem Deus, fê-los
templos da Trindade. Os que outrora andavam longe, não pelo lugar, mas pela sua ma-
neira de viver, não pela distância, mas pela intenção, não pelo espaçamento mas pelo
culto, tornou-os próximos pela cruz salvadora, abraçando aqueles que se mostravam
renitentes. Fora realmente isso o que o Profeta anunciara. Quem ouviu jamais tal
coisa ou viu algo semelhante. Todos os Anjos estão cheios de espanto diante do mis-
tério. Todos os poderes celestes tremem diante do prodígio. O trono não cessou de estar
ocupado e o mundo foi salvo. Sem Se afastar dos Céus, Ele libertou a terra. Não fugiu
do seio do Pai, mas despojou o Inferno. Permaneceu imutável, mas tornou-Se a veste
dos novos iluminados... 3. Vê, pois, ó novo iluminado, de que mistérios foste julgado
digno.
Aprendeste por experiência a conhecer o seu poder. Foste resgatado: não te tor-
nes novamente prisioneiro. Renunciaste: liga-te, sem te deixares novamente seduzir.
Assinaste publicamente: ocupa-te com os lucros. Recebeste um talento em depósito:
cuida de o fazeres render. Fizeste a experiência dum casamento: não cometas adultério,
blasfemando. Foste posto em liberdade: não ultrajes o teu libertador, como se fosse teu
escravo. Vestiste esta veste de brancura resplandecente: resplandece pela tua consci-
ência. Modificaste a tua atitude: não contristes o Espírito, porque o mistério do baptismo
e a graça sem medida do Crucificado foram proclamados do alto pelo profeta que grita-
va: Ele quer a misericórdia. Quem, ó Profeta? _ Cristo, que Se tornou homem por
misericórdia. Aquele que nasceu sem abrir as portas virginais, Ele mesmo Se voltará e
terá piedade de nós. Tendo-Se voltado tornou-te estranho ao erro. Ele teve piedade de
ti: com efeito, sobre a Cruz, Ele triunfou do pecado comum e submergiu as nossas
injustiças, porque as águas místicas do baptismo apagam os nossos pecados nas profun-
didades da morte.
Pensa na piscina baptismal e proclama a graça: o baptismo é, efectivamente, um
resumo de todos os bens, um princípio de purificação para o mundo, uma renovação da
natureza, uma renovação em resumo, um remédio fácil de administrar, uma humidade
que consome os pecados, uma esponja que purifica o conhecimento, uma veste que não
envelhece com o tempo, um seio que gera espiritualmente, um sepulcro que faz renascer
os que nele são sepultados, um abismo que afoga os pecados, um elemento que se torna
o túmulo do Diabo, um selo gravado por aquele que toma a muralha, um advogado
seguro diante do juiz, uma fonte que serve para extinguir a Geena, uma graça que dá
acesso à ceia do Mestre, um mistério antigo e novo, esboçado em Moisés. A Cristo,
nosso Deus, seja dada a glória pelos séculos dos séculos. Amen.
1
B ASÍLIO DE S ELÊUCIA , Homilia in sancta Pascha (=PG 28, 1073-1081; SCh 187). Bispo entre 431 e 468.
SALVIANO DE MARSELHA 1055

Salviano de Marselha

O governo de Deus 1

LIVRO III

2. 8 Talvez me perguntem quais são os bens que Deus dá aos cristãos. Quais são 4465
eles senão todas as coisas graças às quais temos fé, isto é, graças às quais somos
cristãos? Primeiro a Lei, depois os Profetas, em terceiro lugar os Evangelhos, em
quarto os escritos dos Apóstolos, enfim o dom dum novo nascimento, a graça do santo
baptismo e a unção do crisma divino.

LIVRO IV

17. 85 Quão mal e criminosamente sempre pensaram os pagãos das coisas sagradas 4466
do Senhor, mostram-no as perguntas desonestas dos cruéis perseguidores, que
acreditavam não haver nos sacrifícios cristãos mais do que impurezas e abominações.
E também pensavam que os próprios começos da nossa religião tinham tido a sua
origem em crimes gravíssimos, tais como: em primeiro lugar no homicídio... de crianças
inocentes, que os pagãos não só acreditavam que eram mortas pelos cristãos, mas, o
que ainda é mais abominável, que também eram comidas por eles: e tudo isto para
aplacar a Deus, como se houvesse outro crime com que pudesse ser mais ofendido...

LIVRO VI

7. 38 O templo de Deus é desprezado pelos maus cristãos que correm para o 4467
teatro; a igreja fica vazia, e o circo fica cheio; abandonamos Cristo no altar e vamos
encher os olhos com as imagens impuríssimas dos espectáculos obscenos... que nos
são oferecidos por esses divertimentos vergonhosos...

LIVRO VIII

2. 11 Há quem entre pela porta da casa de Deus a cheirar aos sacrifícios demoníacos 4468
e com o mau odor dos próprios Demónios suba ao altar de Cristo. Teria sido menor
crime não vir ao templo do Senhor do que vir assim. O cristão que não vem à igreja é réu
de negligência, mas aquele que vem nessas condições é réu de sacrilégio, pois é menor
impiedade não dar louvor a Deus do que fazer-Lhe uma injúria. 12 Por isso, todos os
que agiram deste modo, longe de prestar honra a Deus, ultrajaram-n’O. As saudações
que faziam na igreja dirigiam-se, de certo modo, ao ídolo... Eram assim a fé, a religião
e o cristianismo dos Africanos, e principalmente da nobreza. Chamavam-se cristãos
mas para vergonha de Cristo. 13 O Apóstolo diz: Não podeis beber do cálice do
Senhor e do cálice dos Demónios... Não lhes bastava beber o cálice dos Demónios
juntamente com o cálice do Senhor... Após um culto de superstições infames, ainda
vinham ao templo de Deus e espalhavam nos santos altares de Cristo um cheiro
imundo, dado que eram conduzidos pelo espírito diabólico.

1
S ALVIANO DE M ARSELHA , De gubernatione Dei (=PL 53, 25-158; CSEL 8; SCh 176 e 220). Salviano foi
presbítero. Nasceu por volta de 400 e ainda vivia em 470.
1056 SÉCULO V

Carta Cornutiana 1

4469 ... Por minha livre vontade faço doação, nos termos deste documento, das
propiedades [massae] da igreja Cornutiana, que me pertence, construída e fundada por
mim próprio com a benevolência e a ajuda de Deus: do prédio [fundum] Paternum
maranus, do prédio Mons Paternus, do prédio Casa Martis, do prédio Vegetes, ou
seja, da Casa Proiectici, e do prédio Batilianum..., para serem possuídos a título de
oferta, com todas as coisas que lhes pertencem...
Quero doar também o próprio solo [solum] em que está construída a igreja, com
a sua área e separamo-lo, por direito, do citado pretório, para fazer uma horta ou casa
de habitação do clero e dos guardas, e que vai desde o arco da cova que se dirige para
o pretório, e depois continua pelos muros que do pretório vão até ao terrno da igreja e se
fecham para além da ábside...
Ofereço também os seguintes campos: o campo Caliciano, o campo da Casa nova,
o campo da Casa do prado2, o campo da Casa do marte, o campo da Casa de Crispim,
o campo de Boaricum e o campo da Casa presa, na província do Piceno, constituídos no
território Tiburtino, retendo o usufruto para mim, durante a minha vida, passando a
propriedade dos bens descritos nesta carta para a Igreja católica, com a condição e o
direito de começar a receber e reclamar para si os frutos após a minha morte...
Ofereço também a prata para ornamentar a mesma igreja na celebração dos santos
mistérios acima mencionados3: 1 patena de prata, 1 cálice grande de prata, 2 cálices
pequenos de prata, 1 jarro de prata para a oferenda, 1 passador, 1 queimador de incenso,
1 lampadário de prata com correntes e 18 suportes, 4 lâmpadas com correntes pequenas,
1 par de candelabros, 2 portas com parafusos para a confessio4...
Ofereço ainda os seguintes objectos de cobre e outros: 24 lampadários de cobre
em forma de coroa com 8 suportes cada um, 6 bocas de mecha de cobre para os
candelabros, 12 bocas de mecha de cobre mais pequenas, 2 candelabros grandes de
cobre, 2 lírios de cobre, 2 grandes candelabros de cobre, algumas cortinas de seda, de
renda ou de linho...
E também os seguintes códices: 4 dos Evangelhos, dos Apóstolos, do Saltério e do
Comes 5.
Antes de mais, tomo as minhas precauções, para que a realização do culto da
igreja Cornutiana não venha a extinguir-se..., e para que nenhum dos bispos ou presbíteros
ou os que lhes vierem a suceder-lhes... possa alienar, seja a que título for, nenhuma das
coisas que, por minha vontade, devem pertencer sempre à referida igreja...
Ditei esta escritura de doação ao meu notário Feliciano, que a escreveu e, depois
de lida, sem má intenção a subscrevi pela minha mão..., e a propus ao venerável
presbítero, aos diáconos e a todos os clérigos da referida igreja, no dia XV das Calendas
de Maio [do ano 471]...

1
Charta Cornutiana (=PL 127, 993-998; BRUZZA , Regesto della Chiesa di Tivoli, em Studi e documenti di
storia e diritto, vol. I, 1880, n. 15-17; D UCHESNE, Liber Pontificalis, vol. I, pref., p. CXLVIII; DACL 3, 881-
884). É a mais antiga carta de fundação e dotação conhecida (ano 471). Refere-se a uma igreja do campo.
Mostra os mínimos pormenores duma doação. No que se refere à liturgia ela tem interesse porque, no seu
inventário, se enumeram os quatro Evangelhos, os Apóstolos, o Saltério e o Comes.
2
Os rendimentos destes campos destinavam-se a sustentar os ministros que serviam a igreja da aldeia e a
pagar as despesas de conservação do edifício.
3
Estas peças todas pesavam 54 libras e 7 onças de prata, pesada com pesos públicos.
4
Era o sepulcro das relíquias colocadas sob o altar.
5
Indicava as leituras de cada dia.
STATUTA ECCLESIAE ANTIQUA 1057

Statuta Ecclesiae Antiqua 1

1. Aquele que há-de ser ordenado bispo, primeiro deve examinar-se se é naturalmente 4470
prudente, dócil, de bons costumes, afável em relação às pessoas, misericordioso, culto,
instruído na lei do Senhor, seguro na interpretação das Escrituras, experimentado nos
dogmas da Igreja e, antes de tudo, se expõe com palavras simples os documentos da fé,
isto é, se confirma que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só Deus; se ensina que
na Trindade há uma só divindade comum na essência, na substância, na eternidade e na
omnipotência; se cada uma das três Pessoas é verdadeiro Deus e se as três são um só Deus;
se acredita que a encarnação divina não aconteceu no Pai nem no Espírito Santo, mas só no
Filho, de tal modo que Aquele que era Filho de Deus Pai Se tornou filho do homem (ao
nascer da sua) Mãe, Deus verdadeiro pelo Pai e homem verdadeiro pela Mãe, que
recebeu o corpo das entranhas da sua Mãe e a alma humana racional, que nele existem
duas naturezas, ou seja, que é homem e Deus, uma pessoa, um Filho, um Cristo, um
Senhor, Criador do mundo e de tudo quanto existe, autor, Senhor e governador de todas
as criaturas com o Pai e o Espírito Santo, que na sua carne sofreu verdadeira Paixão,
que morreu verdadeiramente no seu corpo, que ressuscitou verdadeiramente na Ressurreição
da sua carne e no verdadeiro retomar da alma, na qual virá julgar os vivos e os mortos.
Deve também perguntar-se-lhe se acredita que um só e mesmo Deus é o autor do
Novo e do Antigo Testamento, isto é, da Lei, dos Profetas e dos Apóstolos; se o Diabo
se tornou mau, não por natureza, mas por decisão.
Pergunte-se-lhe também se acredita na ressurreição desta carne, que é nossa e
não outra; se acredita no Juízo que há-de vir, e que cada um há-de receber a condenação
ou a glória por aquilo que fez neste corpo; se não rejeita o matrimónio; se não condena
o segundo matrimónio; se não censura quem come carne; se dará a comunhão aos
penitentes reconciliados; se acredita que no baptismo são perdoados todos os pecados,
isto é, tanto o original como os cometidos voluntariamente; se acredita que ninguém se
salvará fora da Igreja católica.
Quando, depois de examinado sobre tudo isto, se achar que está perfeitamente
instruído, então, com o consentimento dos clérigos e dos leigos, e a reunião dos bispos
de toda a província, particularmente com a presença ou a autorização do Metropolita,
seja ordenado bispo.
Depois de receber o episcopado em nome de Cristo, aceite as determinações dos
Padres, e não as que lhe agradam ou as que nascem dele.
Para a ordenação também se requer a idade que, a exemplo do Salvador, os santos
Padres observaram ao escolherem os bispos.
Recapitulação das ordenações oficiais da Igreja.
2. Quando se ordena um bispo, dois bispos colocam e seguram o códice dos 4471
Evangelhos sobre a cabeça dele, e, enquanto um derrama sobre ele (o óleo) da bênção,
todos os outros bispos presentes lhe tocam na cabeça com as mãos 2.
3. Quando se ordena um presbítero, enquanto o bispo o abençoa, todos os 4472
presbíteros presentes mantêm também as suas mãos sobre a cabeça dele, junto das
mãos do bispo 3.

1
Statuta Ecclesiae Antiqua (=PL 56, 879-889; CCL 148; A NDRIEU , OR, vol. III, 616-619; C. V OGEL , Paris
1966, 194-195). Os Statuta Ecclesiae Antiqua devem ter sido compostos por Genádio de Marselha, numa
data que não andará muito longe de 475. Existem várias numerações destes cânones.
2
Can. 90.
3
Can. 91.
1058 SÉCULO V

4473 4. Quando se ordena um diácono, só o bispo, que o abençoa, lhe põe as mãos sobre
a cabeça, porque não é consagrado para o sacerdócio, mas para o ministério4.
4474 5. Quando se ordena um subdiácono, que não recebe a imposição das mãos, recebe,
da mão do bispo, a patena sem nada e o cálice vazio, e da mão do arquidiácono recebe
um vaso pequeno com água, a bacia de lavar as mãos e a toalha5.
4475 6. Quando se ordena um acólito, o bispo deve instruí-lo sobre o modo como deve
proceder no seu ofício; recebe, do arquidiácono, o porta-círios com o círio, para que
saiba que é encarregado de acender as luzes da igreja, e recebe também um pequeno
vaso sem nada, para levar vinho na Eucaristia do Sangue de Cristo6.
4476 7. Quando se ordena um exorcista, recebe, da mão do bispo, um livro pequeno, no
qual estão escritos os exorcismos, e o bispo diz-lhe: Recebe e guarda o poder de impor
a mão sobre os possessos do Demónio e sobre os baptizandos 7.
4477 8. Quando se ordena um leitor, diga o bispo uma palavra a seu respeito ao povo,
sobre a sua fé, vida e capacidade. Depois disto, enquanto o povo espera, entregue-lhe
o códice do qual há-de ler, dizendo-lhe: Recebe e sê o leitor habitual da palavra de
Deus; se cumprires o (teu) ofício com fidelidade e de maneira proveitosa, (terás) parte
com aqueles que administram a palavra de Deus8.
4478 9. Quando se ordena um ostiário, depois de instruído pelo arquidiácono sobre o modo
como deve comportar-se na casa de Deus, o bispo, a pedido do arquidiácono, entrega-
-lhe as chaves da igreja (que estão) no altar, dizendo: Procede de modo a prestares
contas a Deus das coisas que serão fechadas por estas chaves9.
4479 10. O salmista, ou seja, o cantor, pode, sem conhecimento do bispo, mas só por decisão
do presbítero, receber o ofício de cantar, dizendo-lhe o presbítero: Presta atenção,
para acreditares com o coração naquilo que cantas com a boca e para confirmares
com obras aquilo em que acreditas10.
4480 11. Quando uma virgem religiosa é apresentada ao seu bispo para a consagração,
aproxime-se com as vestes que passará a usar sempre, apropriadas à profissão e às
religiosas11.
4481 12. As viúvas ou virgens consagradas que forem escolhidas para o ministério do
baptismo das mulheres, devem ser instruídas no ofício, para que possam ensinar, com
palavras claras e prudentes, as mulheres ignorantes e rústicas que se preparam para ser
baptizadas, de modo que elas saibam responder às perguntas daquele que as baptizará
e depois vivam de acordo com o baptismo recebido12.
4482 13. O esposo e a esposa que vão ser abençoados pelo sacerdote sejam apresentados
pelos seus pais ou padrinhos. Depois de receberem a bênção, permaneçam em virgindade
durante essa noite, por respeito à bênção recebida13.
4483 14. As viúvas que são sustentadas a expensas da Igreja devem ser de tal modo
assíduas no serviço de Deus, que ajudem a Igreja com os seus méritos e as suas
orações14.
4
Can. 92.
5
Can. 93.
6
Can. 94.
7
Can. 95.
8
Can. 96.
9
Can. 97.
10
Can. 98.
11
Can. 99.
12
Can. 100.
13
Can. 101.
14
Can. 102.
STATUTA ECCLESIAE ANTIQUA 1059

16. O bispo não deve impedir ninguém de entrar na igreja, para aí escutar a palavra 4484
de Deus, quer seja pagão, ou herege, ou judeu, até à despedida dos catecúmenos15.
18. O bispo deve impor as obrigações inerentes à penitência a todos aqueles que a 4485
pedem, sem fazer acepção de pessoas16.
19. Os penitentes pouco zelosos devem ser reconciliados mais tarde do que os outros17. 4486
20. No que diz respeito ao pecador que pede a penitência durante uma doença e que 4487
perde a fala no momento em que o sacerdote chega junto dele, ou que entra em delírio,
os que o ouviram pedir o sacerdote darão testemunho, e o doente receberá a penitência.
Se o pecador entrar em agonia, será reconciliado pela imposição das mãos e colocar-se-lhe-á
a Eucaristia na boca. Se sobreviver, será informado pelas testemunhas de que o seu
pedido de receber a penitência foi satisfeito; em seguida, será submetido às leis da
penitência, por todo o tempo que o sacerdote que lhe deu a penitência julgar oportuno18.
21. Os penitentes a quem foi dada a Eucaristia como viático no decurso de uma 4488
doença não devem pensar que, no caso de sobreviverem, os pecados lhes são perdoados
sem receberem a imposição das mãos (reconciliadora, após o estágio penitencial)19.
22. Quanto aos penitentes que observam fielmente as leis penitenciais, se vierem a 4489
morrer inesperadamente, em viagem ou no mar, onde o socorro da reconciliação lhes
faltou, far-se-á memória dos seus nomes nas orações da Igreja e nas oferendas20.
33. Se os bispos ou os presbíteros chegarem a outra Igreja para fazer a visita, devem 4490
ser recebidos segundo o seu grau e ser convidados a dirigir a palavra (ao povo) e a
consagrar a oblação.
49. Não se devem aceitar as oferendas dos dissidentes, nem na sacristia nem no 4491
tesouro.
65. Durante todo o tempo do jejum oficial, os sacerdotes imporão as mãos aos 4492
penitentes.
66. Os penitentes levarão os mortos à igreja e dar-lhes-ão sepultura. 4493
67. Os penitentes rezarão de joelhos, mesmo nos dias de festa. 4493a
78. A solenidade da Páscoa deve celebrar-se num mesmo dia e tempo. 4494
84. Nenhum penitente, mesmo que seja um homem de bem, será ordenado clérigo. Se 4495
tiver sido feito bispo por engano, será deposto, por não ter revelado, no momento da
ordenação, a sua qualidade de penitente. O bispo que ordenou um penitente, sabendo
qual era o seu estado, será privado do seu poder episcopal de ordenação.
85. A igual sentença fica sujeito o bispo que, sabendo-o, ordenar clérigo alguém que 4495a
teve por esposa uma viúva ou uma repudiada.
86. Aqueles que negam às igrejas as oblações dos defuntos ou as dão com dificuldade, 4495b
serão excomungados como assassinos dos indigentes.
87. Os presbíteros que têm a responsabilidade das paróquias através da diocese, 4495c
peçam o crisma não a quaisquer bispos, mas aos seus. Também o não devem fazer
através de um clérigo jovem, mas por si próprios ou pelo responsável da sacristia.

15
Can. 104. Ut episcopus nullum prohibeat ingredi ecclesiam et audire verbum Dei, sive gentilem, sive
haereticum, sive judaeum usque ad missam catechumenorum.
16
Can. 106.
17
Can. 107.
18
Can. 108.
19
Can. 109.
20
Can. 110.
1060 SÉCULO V

Fausto de Riez

Sermões 1

SERMÃO 16

4496 3. Ainda há pouco, estranho à vida, afastado da misericórdia e do caminho da


salvação, estavas no exílio, interiormente morto. De repente, iniciado na lei de Cristo,
renovado pelos mistérios da salvação, começaste a fazer parte do Corpo da Igreja, não
porque o vejas, mas porque o crês, e de filho da perdição mereceste ser feito, pela
purificação escondida, filho adoptivo de Deus. Permanecendo embora no teu mesmo
tamanho visível, cresceste, sem aumentar visivelmente de estatura, e permanecendo o
mesmo, mudaste por completo em virtude dos passos que deste no caminho da fé.
Exteriormente nada foi acrescentado, e, no entanto, no interior mudaste por completo,
e, deste modo, o homem tornou-se filho de Cristo, e Cristo foi formado no espírito do
homem. Assim como, sem o sentires, despojado da pobreza anterior, foste, de repente,
revestido de uma nova dignidade, e, assim como não podes ver com os olhos nem com
os sentidos as feridas que Deus curou em ti, as chagas que lavou, as manchas que
limpou, assim também, quando te aproximas do venerável altar, para te saciares com os
celestes manjares, olha o Sangue e o Corpo sagrado do teu Deus. Honra-os, admira-os,
toca-lhes com a mente, colhe-os com a mão do teu coração e, sobretudo, toma-os com
gosto espiritual.
4497 5. Não há dúvida de que (o Corpo do Senhor) foi prefigurado na realidade do maná.
Mostra-o claramente o profeta ao dizer: Deu-lhes o pão do Céu e o homem comeu o
pão dos Anjos2. Quem é o pão dos Anjos senão Cristo, que nos sacia com a comida da
sua caridade e com o brilho da sua claridade? Este é o pão que Ele dá, como diz o
profeta: No sexto dia recolherás o dobro 3. Dado que é na Lei que isto se concede pela
primeira vez ao domingo e se nega ao sábado, isso quer dizer que já então se simbolizava
que Cristo devia ser recebido pela Igreja, para a qual consagrou o dia dominical da
Ressurreição, e se manda que não seja dado à Sinagoga, à qual pertence o culto do
sábado... A recepção da Eucaristia não depende da quantidade, mas da eficácia. Nós
sabemos que o Corpo do Senhor, ao ser distribuído pelo sacerdote, tanto está numa
pequena parte como está no todo. Quando a Igreja dos fiéis o recebe, sabemos que está
plenamente na universalidade de todos eles, como está todo inteiro em cada um.
Daqui nasceu a afirmação do Apóstolo, que diz: Quem muito recolheu não teve
de mais, e a quem recolheu pouco nada faltou4. Estas palavras não foram ditas a
propósito do pão comum. Esse, se o distribuíssemos pelos que têm fome, não chegaria
inteiro a cada um, dado que cada um, pela sua parte, o receberia fraccionado e diminuído
em relação ao todo. Mas, quando se toma deste pão, cada um em separado não fica com
menos do que todos em conjunto; recebe-o todo um só, recebem-no todo dois, recebem-no
todo muitos, sem o diminuírem, porque a bênção deste sacramento sabe multiplicar-se,
mas, ao multiplicar-se, não diminui.

1
FAUSTO DE R IEZ , Sermones (=PL 30, 271-278; 58, 889; 67, 1052-1056; 83, 1225-1228; CSEL 21). Fausto
de Riez foi bispo. Morreu por volta de 480.
2
Sal 77, 24-25.
3
Ex 16, 5.
4
2 Cor 8, 15.
FAUSTO DE RIEZ 1061

8. Nós sabemos, não só pela tradição, mas também pela própria natureza da paixão, 4498
que este vinho do Sangue do Senhor deve ser misturado com água. Do lado sagrado
brotou sangue e água pela ferida da lança... Ao que bebe da graça de Cristo segue-o a
misericórdia de Cristo... Por isso lemos que o vinho foi misturado com água.
9. Investiguemos agora qual será a causa pela qual o Senhor quis que ambas as 4499
coisas fossem misturadas... Podemos entender que nas águas estão figuradas as pessoas
e no vinho o Sangue da Paixão do Senhor. Deste modo, quando nos sacramentos a água
se mistura com o vinho, o povo fiel é incorporado e junta-se em Cristo, unindo-se a Ele
numa união de perfeita caridade, para poder dizer como o Apóstolo: Quem poderá
separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição? Quando o
homem recebe a santificação, Deus junta-Se a ele, e essa santificação infunde, no
próprio pecador, a fé, o desejo da santidade e a piedosa misericórdia.
11. Assim como os grãos, uma vez feito o pão, já não podem separar-se da unidade 4500
que formam com ele, e assim como o vinho não pode voltar ao seu estado primitivo,
assim todos os fiéis que se sabem redimidos pelo Sangue e a Paixão de Cristo de tal
maneira devem unir-se à sua cabeça, como membros inseparáveis, por uma grande
fidelidade na fé e uma ardentíssima piedade, que não possam ser separados por vontade
nem por necessidade nenhuma, nem arrancados por qualquer ambição de esperança
terrena, nem mesmo pela própria morte. Ninguém duvide de que o pão e o vinho
possam converter-se na natureza do Corpo do Senhor pela presença da suma majestade,
pois vê o próprio homem feito corpo de Cristo por uma maravilhosa disposição da
misericórdia celeste.
12. Assim, pois, como todo o que vem à fé de Cristo, antes das palavras do baptismo 4501
ainda está preso pela antiga culpa, mas, uma vez pronunciadas essas palavras,
imediatamente fica despojado de toda a fealdade do pecado, da mesma maneira, quando
o pão e o vinho são colocados sobre os santos altares a fim de serem abençoados com
as palavras celestes, antes de serem consagrados com a invocação do seu nome está ali
a substância do pão e do vinho, mas depois dessas palavras está o Corpo e o Sangue de
Cristo. Que admira, pois, que Aquele que as criou com a palavra possa converter
também com a palavra as coisas criadas?... Associe-nos ao corpo da sua imortalidade
e digne-Se preparar-nos para a gloriosa ressurreição com boas obras, Aquele que vive
e reina pelos séculos dos séculos. Amen.
SERMÃO 5

Está certo que se dê a penitência aos leigos que se encontram ainda debaixo do 4502
jugo do mundo, calculando o tempo da penitência segundo a gravidade do crime... Mas,
quando se trata do monge que renunciou ao mundo e ao seu serviço, e que prometeu
servir o Senhor todos os dias, porquê impor-lhe a penitência?... Para o monge, a
penitência pública é inútil, porque, ao regressar dos seus pecados, ele chorou e fez um
pacto eterno com Deus. As faltas que cometeu no mundo foram apagadas a partir do
dia em que prometeu a Deus viver doravante segundo a justiça. Após o pacto escrito
pela sua mão, pelo qual promete cumprir os seus deveres com toda a fé – mesmo que,
depois do baptismo, tenha pecado no mundo – não deve o monge, após a segunda
renunciação (a sua profissão religiosa) hesitar em receber o Corpo do Senhor, não seja
o caso que, por uma humildade excessiva, fique demasiado tempo afastado do Corpo
e do Sangue d’Aquele a quem se uniu para formar com Ele um só corpo. Não cesse,
pois, de comungar, aquele que cessou de pecar, mas que não peque mais para o futuro...
O Corpo ardente do Senhor, quando é recebido com temor e respeito, queima os
pecados do corpo e ilumina as faculdades da alma. Por isso o monge deve comungar
com frequência.

5
Cf. C. V OGEL , Paris 1966, 130-131.
1062 SÉCULO V

Homilia para o Pentecostes 6


4503 Porque dissemos que a imposição das mãos e a confirmação podem confirmar
alguma coisa em quem foi baptizado, talvez alguém pense: «Para que serve o sacramento
da confirmação depois do sacramento do baptismo?» ou: «Ao que parece, não recebemos
tudo da fonte, dado que, depois dela, precisamos de algo mais». Não se trata disso,
caríssimos. Vede bem. Assim como a ordem militar exige que, quando o imperador
admite alguém no seu exército, não apenas inscreva aquele que se alistou, mas também
o prepare para a luta com armas adequadas, assim também aquela bênção é uma
protecção para quem que foi baptizado. Tens o soldado, dá-lhe as armas para a luta.
Acaso adianta alguma coisa aos pais deixar ao filho (menor) uma grande herança, se não
procuram deixar-lhe um tutor? Por isso, o Espírito Santo, que desceu sobre as águas do
baptismo numa irrupção salvadora, na fonte baptismal concede a plenitude da inocência,
e na confirmação concede o aumento da graça, uma vez que os que vivem a sua vida
neste mundo têm de caminhar no meio de inimigos invisíveis e de perigos. No baptismo
renascemos para a vida; depois do baptismo somos confirmados para o combate. No
baptismo somos lavados; depois do baptismo somos robustecidos. Aquilo que a
imposição da mão, na confirmação dos neófitos, concede a cada um é o que a vinda do
Espírito Santo sobre o povo concedeu a todos.

Carta a Paulino de Bordéus 7


4504 Perguntais a vós mesmo se a penitência dada no último momento àqueles que se
encontram em artigo de morte pode perdoar os pecados mortais. O pecador que imagina
poderem as faltas cometidas durante uma vida longa ser abolidas por gemidos súbitos
e nesse momento já inúteis, engana-se a si mesmo e deixa-se embalar numa ilusão
mentirosa. Com efeito, nesse momento extremo em que a confissão das faltas ainda
pode, em rigor, ser feita, a expiação já não pode ter lugar, porque de Deus não se ri 8.
Engana-se a si próprio aquele que viveu durante longos anos para se condenar, e que
para reviver espiritualmente se levanta quando está para morrer, e se mostra cheio de
zelo quando o seu corpo e a sua alma já são incapazes de se pôr ao serviço do Senhor.
Para recuperar a saúde da alma, não se requer simplesmente a boa vontade de receber
a penitência, mas também para a cumprir: Se o pecador renuncia a todos os pecados
que cometeu, se observa todas as minhas leis e pratica o direito e a justiça, deve viver
pela justiça que tiver adquirido. Dizeis que este remédio deve ser pedido pela voz do
pecador, e está certo, mas deve também ser levado a cabo pelas obras. É um insulto a
Deus recusar ir ao médico quando ainda há tempo e querer ir quando é tarde demais...
Em segundo lugar perguntais se para a salvação conta apenas o conhecimento da
Trindade. Nas coisas divinas não conta só como se acredita, mas também como se vive.
Com efeito, a fé sem méritos está nua, morta e vazia, como diz o Apóstolo: De que
aproveita que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá
salvá-lo?... Se a fé não tiver obras, está completamente morta... Mas dirá alguém: Tu
tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas
minhas obras, te mostrarei a minha fé. Não se prova por estas palavras que basta ter
fé. Com efeito, o Diabo também sabe e acredita, como diz o Apóstolo: Tu crês que há um só
Deus. Fazes bem. Também o crêem os Demónios, mas enchem-se de terror...

6
FAUSTO DE R IEZ , Homilia para o Pentecostes (=PL 58, 870-890).
7
FAUSTO DE R IEZ , Epistulae (=PL 58, 835-870; CSEL 21; C. VOGEL , Paris 1966, 129-130).
8
Gal 6, 7.
VÍTOR DE VITO 1063

Vítor de Vito

História da perseguição vandálica 1

LIVRO I

1. Ao invadir a África, Genserico encontrou uma província pacata e tranquila... 3. 4505


Em Cartago, os vândalos destruíram a basílica maior onde estavam sepultados os
corpos das santas mártires Perpétua e Felicidade... Nessa mesma tempestade desapa-
receu a cidade de Hipona, da qual santo Agostinho fora bispo... 5. Genserico mandou
expulsar, da cidade de Cartago, o bispo Quodvultdeus... Depois... entregou a igreja
chamada Restituta... aos da sua religião...
6. Sebastião falou assim: «Tal como este pão... também eu fui moído pela mó da Igreja 4506
católica, peneirado pelos escrutínios, limpo como flor de farinha, regado pela água baptismal
e cozido pelo fogo do Espírito Santo. E tal como este pão saiu limpo do forno, também eu,
por obra dos divinos sacramentos e pela graça de Deus, subi purificado da fonte...».
7. Voltando ao que falávamos antes, Genserico sobrecarregou os nossos com pre- 4507
ceitos pesadíssimos. Quase lhes não permitia que respirassem no meio dos Vândalos
e não concedeu, aos que lhe suplicavam, lugar em parte nenhuma, para orar ou fazer
sacrifícios... Quando morria algum dos bispos dos que ele mandara para o exílio, não
permitia que fossem ordenados outros para as respectivas cidades. Mas, apesar de
tudo, o povo de Deus permanecia firme na fé...
12. Depois disto, acendeu-se a violência de Genserico contra a Igreja de Deus... 13. 4508
Celebrava-se então uma solenidade do tempo pascal. Numa povoação chamada Régia,
os nossos, para honrarem o dia pascal, reabriram a igreja que tinha sido fechada.
Surgiram então os Arianos, conduzidos por um dos seus presbíteros... Alguns deles
subiram ao tecto e começaram a atirar flechas pelas janelas da igreja. Estávamos no
canto que primeiro é escutado e depois é retomado pelos fiéis 2, e um leitor, de pé, no
ambão, cantava as modulações do Aleluia3. Nesse preciso momento é atingido, na
garganta, por uma flecha. O livro tomba-lhe das mãos, e ele cai morto... Na povoação
de Amonia, no momento em que se distribuíam os sacramentos ao povo de Deus, (os
Arianos) entraram e espalharam pelo chão, com grande furor, o Corpo e o Sangue de
Cristo e pisaram-nos com os pés sujos.
17. Depois de tudo isto, Genserico mandou encerrar a igreja de Cartago, que já não 4509
tinha bispo, tendo os presbíteros e os diáconos sido separados e dispersos por diver-
sos lugares de exílio...

1
V ÍTOR DE V ITO , Historia persecutionis africae provinciae (=PL 58, 179-260; CSEL 7). Nesta obra narra-
se a paixão dos católicos sob o governo dos vândalos Genserico e Hunerico. Nela se encontra a menção do
Sanctus, cuja utilização já era comum por volta dos meados do século V. Vítor de Vito morreu por volta de
488.
2
Massacre duma comunidade cristã pelos Vândalos, Arianos, no norte de África, no dia de Pentecostes de
459, que invadem a igreja de Régia, na Numídia.
3
In pulpitu sistens alleluiaticum melos canebat.
1064 SÉCULO V

LIVRO II

4510 1. Hunerico..., a fim de mostrar que era religioso..., autorizou que a Igreja de Carta-
go ordenasse quem quisesse como bispo, direito de que fora destituída há mais de vinte
e quatro anos... 3. Ordenado o bispo Eugénio, homem santo e aceite por Deus, nasceu
uma grande alegria, e a Igreja de Deus ficou repleta de gozo... 4. Mas não tardou em
começar a perseguição contra nós...
4511 11. Foi num domingo que os confessores começaram a caminhar para o exílio... Dos
cimos dos montes e das azinhagas descia uma multidão incontável de fiéis, que traziam
círios nas mãos e encaminhavam os seus filhinhos pelos passos dos mártires, claman-
do com estas palavras: «Em mãos de quem nos deixais, enquanto vós ides para as
coroas (do martírio)? Quem irá baptizar estes meninos com a água da fonte inesgotá-
vel? Quem nos dará a penitência e a indulgência da reconciliação e quem nos desligará
das cadeias dos pecados...? Quem dirá as orações solenes da sepultura quando morrer-
mos? Quem irá fazer o costumado rito do divino sacrifício? Queríamos ir convosco, se
isso nos fosse permitido, para que, desta maneira, ninguém pudesse separar os filhos
dos pais... 17. Eugénio, de joelhos, com grande clamor..., disse a bênção sobre a piscina
da fonte... e ao mesmo tempo fez o sinal da cruz sobre os olhos do cego, que imedia-
tamente ficou a ver por dom de Deus... Aquele que fora cego aproximou-se do altar, com
Eugénio, como é costume, para apresentar a oferenda ao Senhor, pela sua salvação. O bispo
aceitou-a e colocou-a no altar...

LIVRO III
4512 11. Nós adoramos e louvamos a Trindade perfeita, quando, durante os mistérios, dizemos
com a nossa boca e professamos com a consciência: «Santo, Santo, Santo, Senhor Deus
omnipotente4...».

LIVRO V
4513 9. A partir do momento em que Eugénio foi para o exílio, todo o clero da Igreja de
Cartago caiu sem força e sem comida. Eram cerca de quinhentas ou mais pessoas, na
maioria leitores ainda crianças5, que, cheias de alegria no Senhor, eram arrastadas para
um cruel exílio longínquo...

Papa Félix II (III)

Carta 7 6
4514 2. Os bispos e presbíteros que caírem em pecado mortal, se se arrependerem,
devem permanecer em penitência de joelhos; não devem participar de modo algum na
oração dos fiéis, nem tão pouco na oração dos catecúmenos7.

4
Perfectam Trinitatem adorantes et magnificantes, sicut in mysteriis ore nostro dicimus, ita conscientia
teneamus: Sanctus, sanctus, sanctus Dominus Deus omnipotens.
5
Lectores infantuli.
6
PAPA F ÉLIX II (III), Epistulae et decreta (=PL 58, 893-973; T HIEL , Braunsberg 1868). Félix II (III) foi Papa
desde 483 até 492.
7
In paenitentia, si resipiscunt, iacere conveniet; nec orationi non modo fidelium, sed ne cathecumenorum
quidem omnimodis interesse.
JOÃO DIÁCONO 1065

João Diácono

Carta a Senário de Ravena 1


1. Ao Senhor ilustríssimo e sempre magnífico filho Senário, o diácono João. 4515
Recebi a carta da tua magnanimidade, trazida pelo meu filho Renato... Vou procurar
responder com brevidade às tuas perguntas... Confio na ajuda das tuas orações... e
peço-te que não esperes de mim eloquência ou suma doutrina, não só porque a não
estudei profundamente, mas também porque prefiro antes ser ensinado do que ouvir o
nome de doutor2...
2. São estas as palavras das tuas perguntas: «Peço-te que me digas porque é que, 4516
antes que alguém receba o baptismo, se faz catecúmeno? Que significa este vocábulo
ou esta catequização? Em que regra está prescrita no Antigo Testamento? Não será
antes uma nova regra que teve início no Novo Testamento? O que é o escrutínio?
Porque é que às crianças se faz o escrutínio três vezes antes da Páscoa? Que quer dizer
esta solicitude pelo escrutínio, etc.3»?
3. Vou responder a estas questões. Sabes, pelos teus estudos, que todo o género 4517
humano, logo no princípio do mundo, em virtude da prevaricação do primeiro homem,
ficou sujeito à morte, da qual não pode ser remido sem a graça do Salvador, gerado do
Pai antes dos séculos, e que, por nossa causa, Se fez homem no tempo, nascendo
somente de mãe. Não há, portanto, dúvida de que, antes de alguém renascer em Cristo
está ligado ao poder diabólico, de cujos laços não pode libertar-se sem primeiramente
a eles renunciar pela verdadeira profissão dos rudimentos da fé, para chegar à graça do
banho da salvação. Por isso é necessário que ele entre primeiro no grupo dos
catecúmenos ouvintes.

1
J OÃO D IÁCONO , Epistula Iohannis diaconi ad Senarium (=PL 59, 399-408; A. W ILMART , Epistula Iohannis
diaconi ad Senarium, Analecta Reginensia [ST 59], Città del Vaticano, 19331 . Modena 1984 2, 170-179).
João Diácono, que virá a ser o futuro Papa João I, é o provável autor desta carta. Senário era um funcionário
de Ravena. A carta foi escrita em 492.
2
I. Domino merito inlustri semperque magnifico filio Senario, Iohannes diaconus.
Sublimitatis vestrae paginam filio nostro spectabili viro Renato deferente suscepimus, in qua et
antiquae gratiae nobis iucundam fecistis memoriam, et quantos pectori nostro divini cultos ardor
insidat, catholica sollicitudine non celastis. Nam, ut vestrae loquuntur litterae, quaedam vobis scribi,
quaedam dirigi transcripta voluistis; sed in transcribendo curam nostram utcumque notariorum labor
adiuvit, in his vero quae scribenda sunt multum fateor laboris indicitis, et supercadere hoc mensuram
meam adducta fronte respondeo. Primum quo ea, sicut opus est, diu serere, non ita, ut credit amini
aestimatio, meum valet ingenium; fallitur enim amantium saepe iudicium, cum plus dilectioni tribui
quam meritis dilectus ostendit. Accidit deinde quod infirmus corpore, ut alia taceam, ecclesiastico
iugiter adstringor officio. Postremo otiosum tempus res postulat ut maiorum volumina recensentibus
quid de una quaque re dici debeat illorum tuta iuvamine procedat oratio. Quid igitur in haec possumus
nisi forte quod me posse vota desideriaque vestra praestiterint? Idcirco quaesita breviter conabor
attingere, ne, si omnino taceam, infructuosi silentii poenas excipiam. Confido enim orationibus tuis me
posse iuvari, qui ut haec audirem tam ardua conpulisti. Unde quaeso ut nihil in me eloquentiae, nihil
summae doctrinae desideres, quia nec illi plene studui, et doceri adhuc malo quam doctoris nomen
audire. Igitur si in hac inquisitione mea qualiscumque est placet aut expectatur oratio, iam nunc de
singulis quae sunt proposita videamus. Illud interea prudentiae vestrae praedico quia inquisitionum
ordo non ita ut vestra legitur pagina consequetur, sed, ut se unaquaeque suggesserit, absolutione congrua
terminabitur.
3
II. Itaque inquisitionis tuae verba ita se habent: «Requiro - inquis - a vobis quare, antequam baptisma
quis consequatur, catechumenus fiat, vel quid sibi habeat hoc vocabulum aut haec catechizatio, aut qua
regula in veteri testamento praemissa sit, aut certe si novella regula est et magis a novo testamento
sumpsit exordium; simul etiam scrutinium quid sit aut quare tertio ante pascha scrutinentur infantes,
aut quid sibi haec destrictio vel sollicitudo scrutaminis vindicet, et cetera.
1066 SÉCULO V

Catequese em grego significa instrução. O candidato deve instruir-se no ministério


da Igreja pela bênção e pela imposição das mãos, para que entenda quem vai ser, isto
é, que de condenado se torna santo, de injusto passa a justo e por fim de servo se torna
filho, de modo que de perdido que era no primeiro pai, seja restaurado pelo dom do
segundo, e venha a possuir a herança paterna.
Depois de exsuflado (o candidato) é exorcizado, a fim de que, expulso o Diabo,
se prepare a entrada de Cristo, nosso Senhor4, e com o seu poder, livre das trevas, seja
transferido para o reino da glória da caridade de Deus, de modo que aquele que há
muito tempo fora vaso de Satanás se torne agora morada do Salvador. É exsuflado
porque o antigo desertor merece tal ignomínia; é exorcizado, isto é, conjurado a sair e
a retirar-se, porque, conhecendo a vinda d’Aquele de quem o homem era a imagem
colocada na felicidade do Paraíso, a lançara por terra por iníqua sedução.
O catecúmeno recebe também o sal benzido com que é assinalado, porque, assim
como, temperada com sal, toda a carne se conserva, assim também o sal da sabedoria e
a pregação da palavra de Deus defendem a inteligência (humana) das ondas do mundo
que a inundam, para que chegue à morada sólida e estável da perseverança,
completamente livre do sabor da corrupção pela suavidade do sal divino. Isto faz a
frequente imposição das mãos e a bênção do Criador invocada três vezes, em memória
da Trindade, sobre a cabeça do (catecúmeno)5.
4518 4. Depois de um certo progresso e crescimento aquele que, há pouco exsuflado,
renunciou aos laços e pompas do Diabo, já merece receber as palavras do Símbolo entregue
pelos Apóstolos, a fim de que, quem há pouco se chamava tão somente catecúmeno,
agora se chame também competente ou eleito. Efectivamente foi concebido no ventre
da mãe Igreja e já começou a viver, mesmo sem ter completado o tempo do parto sagrado.
Fazem-se então aqueles escrutínios que, por costume eclesiástico, costumam
repetir-se. Perscrutam-se os seus corações pela fé, para verificar se as suas mentes,
depois da renunciação ao Diabo, fixaram as palavras sagradas, se já conhecem a futura
graça do Redentor, se confessam acreditar em Deus, Pai todo-poderoso.
E, quando, pela resposta deles, se verificar que estas coisas estão claras, dado
que está escrito: Acreditar de coração leva a obter a justiça, e confessar com a boca
leva a obter a salvação6, tocam-se-lhes os ouvidos e o nariz com o óleo da santificação:

4
O tempo que precede a iniciação é reduzido a algumas semanas, e a entrada em catecumenado vai-se confundir
com a inscrição no número dos competentes no princípio da Quaresma.
5
III. Ad haec ita respondeo. Studium vestrum nosse confidimus quia omne genus humanum in ipsis, ut ita
dicam, mundi cunabulis praevaricatione primi hominis in morte fuerit iure conlapsum, nec ab ea posse
redimi nisi affuerit gratia salvatoris, qui, dum ante saecula genitus esset ex patre, propter nos homo ex
sola matre fieri non est dedignatus in tempore. Non est ergo dubium quod, priusquam aliquis renascatur
in Christo, diabolicae potestate teneatur adstrictus, cuius laquaeis nisi inter ipsa primitus fidei
rudimenta veraci professione renuntians exuatur ad salutaris lavacri gratiam non accedit; et ideo hunc
oportet prius cathecumenorum auditorium introire. Catechisis enim Graece instructio dicitur. Instruitur
namque aecclesiastico ministerio per benedictionem inponentes manum, ut intellegat quis sit qui ve
futurus sit, hoc est quia ex damnabili sanctus fiat, ex iniusto iustus appareat, ad postremum filius fiat
ex servo, ut qui in primo parente perditus fuerat secundi reparatus beneficio haereditatis paternae
possessor existat. Exsufflatus igitur exorcizatur, ut, fugato diabolo, Christo domino nostro paretur
introitus, et a potestate, erutus tenebrarum transferatur in regnum gloriae caritatis dei, ut qui dudum
vas fuerat satanae fiat nunc domicilium salvatoris. Exsufflatur itaque, quia tali dignus est ignominia
desertor antiquus; exorcizatur autem, id est coniuratur, ut exeat et recedat, illius agnoscens adventum
cuius erectam in paradisi felicitate imaginem prava suasione deiecerat. Accipit etiam cathecuminus
benedictum sal in quo signatur, quia, sicut omnis caro sale condita servatur, ita sale sapientiae et
praedicationis verbí dei mens fluctibus saeculi madida et fluxa conditur, ut ad soliditatem stabilitatis
atque permansionis digesto paenitus corruptionis humore divini salis suavitate perveniat. Hoc ergo
agit frequens impositio manus et in reverentia trinitatis invocata super caput eius tertio benedictio
conditoris.
6
Rom 10, 10.
JOÃO DIÁCONO 1067

os ouvidos, porque a fé vem por eles, como diz o Apóstolo: A fé vem pelo ouvido
através da pregação da palavra de Deus 7, para que os ouvidos protegidos por uma
espécie de muro de santificação, não admitam nada de mau, nada que os leve a voltar
atrás 8 .
5. Toca-se-lhes o nariz, sem dúvida para os aconselhar a continuarem fiéis ao 4519
serviço e aos mandamentos de Deus, durante todo o tempo que aspirarem com o nariz
o espírito desta vida. Por isso dizia aquele homem santo: Pelo Deus vivo que me
recusa a justiça, pelo Omnipotente que enche a minha alma de amargura! Enquanto
em mim houver um sopro de vida e Deus me conservar a respiração, os meus lábios
não pronunciarão uma maldade e a minha língua jamais dirá uma mentira9.
A unção do nariz tem também outro significado: aquele óleo benzido em nome do
Salvador há-de levá-los a um odor espiritual com uma espécie de suavidade de sentido
interior, para que cantem com alegria: O meu nome é óleo derramado, corramos ao
encontro do odor dos teus perfumes 10; o sentido do olfacto defendido por este mistério
não pode admitir nada de volúpia do mundo, nada pode perturbar-lhe a mente11.
6. Depois os (eleitos) são ungidos com óleo da consagração no peito, que é a sede 4520
e a morada do coração, para entenderem que devem prometer com firme consciência e
coração puro que, depois de terem renunciado ao Diabo, devem seguir os mandamentos
de Cristo.
Também são mandados avançar com os pés descalços e despojados das vestes
caducas e carnais, para aprenderem que devem seguir aquele caminho onde não se
encontra nada de áspero, nada de prejudicial. Foi isto que a solicitude da Igreja instituiu,
com todo o cuidado, na sucessão dos tempos, embora não se encontrem vestígios no
Antigo Testamento.
Depois de o eleito ou catecúmeno ter avançado na fé com esta espécie de veículos
espirituais, é necessário que seja consagrado com o único banho do baptismo. Neste
sacramento o baptizado é purificado com a tríplice imersão. E com razão. Pois aquele
que se aproxima do baptismo em nome da Trindade deve ser assinalado com a tripla
imersão e reconhecer-se devedor dos benefícios d’Aquele que, por amor dele,
ressuscitou dos mortos ao terceiro dia.

7
Rom 10, 17.
8
IV. Dehinc quodam profectu atque provectu ille qui dudum exsufflatus diabolicis laqueis pompisque
renuntiaverat symboli ab apostolis traditi iam meretur verba suscipere, ut qui paulo ante solum
catechuminus dicebatur nunc etiam vocetur competens vel electus. Conceptus enim est in utero matris
aecclesiae, et vivere iam incepit, etiam si nondum sacri partus tempus explevit. Tunc fiunt illa quae ab
aecclesiastica consuetudine scrutinia dictitantur. Perscrutamur enim eorum corda per fidem utrum
menti suae post renuntiationem diaboli sacra verba definxerint, utrum agnoverint futuram gratiam
redemptoris, utrum se credere fateantur in deum patrem omnipotentem. Et cum haec ita esse illorum
responsione claruerit, quia scriptum est: Corde creditur ad iustitiam ore autem confessio fit in salutem,
(Rom 10, 10) tanguntur sanctificationis oleo aures eorum, tanguntur et nares: sed aures ideo quia per
eas ad intellectum fides ingreditur, apostolo dicente: Fides autem per auditum, auditus vero per verbum
dei, (Rom 10, 17) ut, quasi quodam sanctificationis muro aures instructae, nihil noxium nihil quod
retro revocare possit ammittant.
9
Job 27, 2-4).
10
Cant 1, 1b. 3b.
11
V. Cum vero tanguntur nares eorum, ammonentur sine dubio ut quamdiu spiritum vitae huius naribus
trahunt, in dei servitio mandatisque perdurent; unde ille vir sanctus dicebat: Vivit dominus qui abstulit
iudicium meum et omnipotens qui ad amaritudinem adduxit animam meam, quia donec superest alitus
in me spiritus dei in naribus meis non loquentur labia mea iniquitatem nec lingua meditabitur
mendatium. (Job 27, 2-4) Aliud quoque in narium unctione signatur, ut, quia illud oleum in nomine
benedictum est salvatoris, ad spiritalem eius odorem quadam ineffabili interioris sensus suavitate
ducantur, ut delectati cantent: Unguentum effusum est nomen meum, post odorem unguentorum tuorum
curremus (Cant 1, 1b. 3b): quo mysterio sensus narium praemunitus nihil voluptuosum saeculi, nihil
quod mentem resolvere queat possit admittere.
1068 SÉCULO V

Depois, vestido com vestes brancas é-lhe ungida a cabeça com a unção do sagrado
crisma, para que o baptizado entenda que em si se juntaram o reino e o mistério
sacerdotal. Na verdade os sacerdotes e os príncipes eram ungidos com o óleo do
crisma, para oferecerem sacrifícios a Deus e governarem os povos.
Para exprimir mais plenamente a imagem do sacerdócio, orna-se a cabeça do
recém-nascido com um pano de linho. Efectivamente, assim como os sacerdotes daquele
tempo cobriam sempre a cabeça com um véu místico, também os regenerados são
vestidos com vestes brancas para (exprimir) o ministério da Igreja que se renova, como
o próprio Senhor e Salvador Se transfigurou no monte diante de alguns discípulos e
profetas, de modo que se dissesse: O seu rosto resplandeceu como o Sol, e as suas
vestes tornaram-se brancas como a neve 12. Este facto, como foi dito, foi, para o
futuro, a figura da Igreja que se renova, da qual também está escrito: Quem é esta que
sobe vestida de branco13. Usam, pois, vestes brancas para que aqueles a quem o pano
do velho erro enegrecera a infância do primeiro nascimento, a veste do segundo
nascimento seja a veste da glória, de modo que o homem novo acorra à mesa do esposo
celeste vestido com a veste nupcial14.
4521 7. Dizemos, antes de mais, para não parecer que o omitimos, que todos estes (ritos
do baptismo) se realizam mesmo quando se trata de crianças, apesar de, pelo facto da
sua pouca idade, não compreenderem ainda nada. Por isso, deves saber que, quando
elas são apresentadas pelos pais ou por qualquer outra pessoa, têm necessidade de ser
salvas pela profissão de fé de outrem, uma vez que foram condenadas pelo erro de
outrem.
Queres ainda que te diga a razão pela qual só ao pontífice é lícito consagrar o
santo crisma, autorização que parece não ter sido dada ao presbítero. E com razão,
pois o bispo obtém o grau de sumo pontífice, mas ao presbítero só se lhe reconhece ter
o sacerdócio da segunda ordem. Todo o pontífice é sacerdote, mas nem todo o sacerdote
se pode chamar pontífice15.
Na verdade, no Antigo Testamento, para omitir outras fontes, também havia
diferença no uso das vestes, pois os sacerdotes usavam quatro espécies de vestes
místicas, o que parecia ser comum com o pontífice, mas o pontífice usava outras
quatro, o que não era permitido de modo nenhum aos sacerdotes. Acresce ainda o facto

12
Mt 17, 2.
13
Cant 8, 5.
14
VI. Dehinc pectus eorum oleo consecrationis perunguitur, in quo est sedes et habitaculum cordis, ut
intellegant firma se conscientia et puro corde debere promittere quod iam relicto diabolo Christi mandata
sectantur. Hi etiam nudis pedibus iubentur incedere, et depositis morticinis et carnalibus indumentis
agnoscant se illius viae iter arripere, in qua nihil asperum, nihil potest inveniri nociuum. Haec igitur
aecclesiastica sollicitudo per successiones temporum cauta dispositione constituit, quamvis horum
vestigia vetus pagina non ostendat. Proinde, cum istis quasi vehiculis spiritalibus electus sive
catechuminus in fide processerit, tunc et necesse est unici lavacri baptismate consecrari. In quo
sacramento baptizatus trina demersione perficitur; et recte. Nam qui in nomine trinitatis baptizandus
accedit, ipsam utique trinitatem trina debet mersione signari, et illius se agnoscere beneficiis debitorem
qui tertia pro eo die resurrexit a mortuis.
Sumptis dehinc albis vestibus caput eius sacri chrismatis unctione perunguitur, ut intellegat baptizatus
regnum in se ac sacerdotale convenisse mysterium. Chrismatis enim oleo sacerdotes et principes
unguebantur, ut illi offerrent deo sacrificia, illi populis imperarent. Ad imaginem quippe sacerdotii
plenius exprimendam, renascentis caput lintei decore conponitur. Nam sacerdotes illius temporis quodam
mystico velamine caput semper ornabant; cuncti vero regenerati albis vestibus induuntur ad ministerium
resurgentis ecclesiae, sicut ipse dominus et salvator coram quibusdam discipulis ac prophetis ita in
monte transfiguratus est, ut diceretur: Resplenduit facies eius vel ut sol, vestimenta vero eius facta sunt
candida sicut nix (Mt 17, 2). Quo facto splendorem, ut dictum est, resurgentis in futurum figuravit
aecclesiae, de qua item scriptum est: Quae est ista quae ascendit dealbata (Cant 8, 5)? Utuntur igitur
albis vestibus ut quorum primae nativitatis infantiam vetusti erroris pannus fuscaverat, habitus
secundae generationis gloriae proferat indumentum, ut ad mensam sponsi caelestis nuptiali veste
circumdatus homo novus occurrat.
JOÃO DIÁCONO 1069

de que só o pontífice tinha acesso ao santo dos santos uma vez por ano. Daqui que, no
novo povo de Deus, só o bispo mereceu o poder de ordenar presbíteros. Por isso deve
observar-se este poder apostólico de bênção e de unção, conforme a tradição, pois
consta que assim tiveram princípio as ordens eclesiásticas.
8. Também não devo omitir que na consagração dos presbíteros as palavras de bênção 4522
são ditas apenas pelo pontífice, como costumamos ouvir. Na verdade, se nada fosse
reservado ao bispo, pareceria indiferente haver graus, nem seria necessário usarem-se
vocábulos diversos para o que a mesma bênção consagra. Não nos deve admirar o que
às vezes é imposto pela força da necessidade ou o que se diz que acontece na África,
isto é, que os presbíteros consagram o santo crisma, o que certamente não aconteceria
se não tivessem licença da autoridade episcopal. Também consta que actualmente, em
situações de grande necessidade, de algum modo é autorizado pelos bispos que os
presbíteros façam o mesmo, o que constitui ordem superior16.
9. Também pretendes saber porque é que a Igreja católica não baptiza os hereges 4523
que a ela voltam. Vou dar uma resposta breve, à minha medida: são baptizados aqueles
que regressam (da heresia) e que consta que não receberam validamente o mistério em
nome da Trindade. Pois, se alguém só confessa o Pai, negando o Filho e o Espírito
Santo, deve ser baptizado com toda a certeza; ou se confessa o Filho, mas nega o Pai
e o Espírito Santo, sem dúvida que deve receber o sacramento do baptismo; ou se,
negando o Espírito Santo, confessa o Pai e o Filho, com razão, como já disse, será
limpo pela fonte mística da água, conforme aquela regra do Senhor que diz: Ide, baptizai
todos os povos em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo 17.
Se, na verdade recebem o nome da Trindade, e não fazem de qualquer modo
diferença de igualdade, como aqueles que noutro tempo seguiam Ario, não podem de
modo nenhum ser baptizados porque seguiram aquela regra do Senhor, embora pareçam
errar. Por isso devem ser ensinados deste modo de preferência a serem baptizados. A
seguir entram no seio da Igreja através da bênção do pontífice, de modo que, pela
caridade com que Deus e o próximo são amados, reconheçam o menos que tiveram,
comparado com o que agora têm, depois de completado o que recebem agora. Quanto,
porém, aos Pelagianos, Eutiquianos ou Nestorianos, tudo é conhecido e divulgado.
Quando leres o livro acerca das heresias, poderás conhecer mais plenamente todo este
assunto 18.

15
VII. Illud autem ne pretermissum videatur, ante praedicimus, quod ista omnia etiam parvulis fiant, qui
adhuc pro ipsius aetatis primordio nihil intellegunt. Unde scire debetis quia, dum a parentibus aut a
quibus libet albis offeruntur, aliena eos professione salvari necesse est qui fuerant alieno errore
dampnati. Ac proinde adiungis, ut dicam quur sanctum chrisma soli pontifici liceat consecrare, quod
presbitero non videtur esse concessum. Et merito; quia episcopus summi pontificis gradum optinet,
presbiter vero secundi sacerdotii locum retinere cognoscitur. Omnis enim pontifex et sacerdos, non
omnis sacerdos pontifex dici potest. Nam in veteri testamento, ut alia taceam, etiam indumentorum
habitu differebant, ita ut sacerdotes quattuor quibusdam mysticis vestibus uterentur, quae illis cum
pontifice videbatur esse communis, ac pontifex quattuor aliis utebatur, quibus indui sacerdotibus penitus
non licebat. Adicitur etiam quod in sancta sanctorum semel in anno solus pontifex habebat accessum.
Unde iam in novo populo episcopus ordinandi presbiteros meruit potestatem. Reste igitur benedictionis
et unctionis quodam modo potestas apostolica huic traditioni servatur, quam constat ecclesiasticorum
ordinum tenere principium.
16
VIII. Illud quoque non praetereundum videtur quia nec eadem benedictionis verba presbiteri consecratio
promeretur, quae pontificalis apex consuevit audire. Nam, si nihil speciale reservatum esset episcopo,
gradua indefferens esse videbatur; nec opus esset diverso vocabulo, quod eadem benedictio consecraret.
Sed nec illud tangat animum quod sibi aliquando quaedam vis necessitatis assumit, vel uti quod nunc
per Africam fieri dicitur, ut presbiteri sanctum chrisma conficiant, quod merito moveret, si istam
pontificalis auctoritas licentiam non dedisset. Unde constat etiam nunc a pontificibus quodam modo
fieri quod in tanta rerum necessitate, ut a presbiteris effici possit, superior ordo constituit.
17
Mt 28, 19.
18
IX. Illud etiam vultis scire quos ecclesia catholica redeuntes non baptizet hereticos. Quod ergo pro meo
modulo brevi responsione concludam illos venientes baptizari quos non constiterit in nomine trinitatis
1070 SÉCULO V

4524 10. Os acólitos diferem dos exorcistas, porque a estes é negado o poder de levar os
sacramentos e de servir os sacerdotes. Os exorcistas devem limitar-se à imposição das
mãos. Por isso se chamam exorcistas. Ou então apressem-se a completar as outras
coisas que pertencem à ordem dos acólitos. Pela ordenação os acólitos recebem o
poder de levar os vasos dos sacramentos e de servir os sacerdotes. O exorcista pode
tornar-se acólito ao passo que este, por sua vez, não desce ao ofício dos exorcistas,
por nenhuma espécie de promoção.
Aqueles que desempenharem muito bem o seu ofício poderão chegar ao grau de
subdiácono; entre nós chama-se subdiácono àquele que recebe o sacratíssimo cálice em
que o pontífice costuma imolar o mistério do Sangue do Senhor. Este subdiácono, se
não for culpado de nenhum vício e perseverar sem culpa pode chegar às sacratíssimas
dignidades de diácono ou presbítero19.
4525 11. Quanto ao que me perguntaste acerca dos sete altares que, na cidade de Roma, é
costume consagrar no Sábado da Páscoa, digo o seguinte: os nossos antepassados
podem ter decretado que assim se deveria fazer ou levados pelo espírito da graça
septiforme, ou porque entre nós há sete regiões eclesiásticas com seus exércitos, para
as quais se preparam estes altares, a fim de se dar a bênção a cada um, ou porque o
número sete é místico e sagrado, isto é, porque se julga que no nome da Trindade se
contém todo o universo. De facto, este é muitas vezes descrito pela Escritura como
que dividido em quatro partes. Ora o ternário (da Trindade) junto a este quaternário
(do universo) faz o septenário, que representa a imagem de todo o mundo entre todas
aquelas coisas sagradas.
Desconheço qual tenha sido a verdadeira razão pela qual isto foi estabelecido, e
que eu mantenho com fé firme, porque a Igreja não seguiria as tradições dos
antepassados se não estivesse certa da sua razão de ser. Não podemos dizer que estas
coisas parecem vãs e frívolas, só porque não atingimos minimamente a razão delas...20.

aeque suscepisse mysterium. Nam, sive patrem solum quis confiteatur, negans filium et spiritum sanctum,
baptizandus omnino est; sive, filium confitens, neget patrem vel spiritum sanctum, sine dubio consequi
debet baptismatis sacramentum; vel si, spiritum sanctum denegans, patrem fateatur ac filium, aequae,
ut meminimus, mystico fonte purgabitur, iuxta illam domini regulam dicentis: Ite baptizate omnes gentes
in nomine patris et filii et spiritus sancti (Mt 28, 19). Verum, si trinitatis nomen accepit inaequalitatis,
quolibet modo faciens differentiam, vel uti qui illo in tempore Arrium sunt secuti, baptizari omnino non
possunt, quia illam dominicam consecuti sunt regulam, licet videantur errare. Unde huius modi docendi
sunt potius quam baptizandi, et incorporandi matris aecclesiae visceribus, benedictione succedente
pontificis, ut per caritatem qua deus proximusque vere diligitur quid minus habuerint quid ve in eis
completum fuerit recognoscant. De Pelagianis autem, Eutycianis sive Nestorianis aperta et vulgata
sunt omnia, quae, in libro de haeresibus cum legeritis, plenius poteritis advertere.
19
X. Acolithi autem exhorcistis hoc ordine differunt quod exorcistas portandi sacramenta, ea quae
sacerdotibus ministranda, negata potestas est, tantumque manus impositioni vacent - propter quod
exorcistas dicuntur - vel cetera quae intra acolithorum ordinem esse, probantur explere festinent. Acolithi
vero sacramentorum portanda vasa suscipiunt et ministrandi sacerdotibus ordinem gerunt. Ideoque
exorcista fieri potest acolithus; iste vero ad exorcistarum officium nulla paenitus promotione descendit.
Qui si optime suum officium ministraverint, ad subdiaconatus gradum poterunt pervenire; cuius hic
apud nos ordo est ut, accepto sacratissimo calice, in quo consuevit pontifex dominici sanguinis immolare
mysterium, subdiaconus iam dicatur. Qui si rursus, nullo fuscatus vitio, inculpabilis perseverat, ad
diaconii vel presbiterii sacratissimas dignitates poterit pervenire.
20
XI. Quod de septem altaribus inquisisti, quae in urbe Roma sabbato paschae moris est consecrari, hoc
dico quia maiores nostri, - sive in septiformis gratiae spiritu decreverint faciendum, - sive quia septem
regionibus ecclesiastica apud nos militia continetur, a qua haec ipsa parantur altaria, ut singulis
benedictio praestaretur, - an quia septenarius ipse numerus mysticus et sacratus est, hoc est quia in
trinitatis nomine orbis credit universus, qui quattuor partibus ab scriptura saepe describitur, ac per
hoc ternarius quaternario iunctus septenarium efficiat, qui quasi inter illa sacra terribilia totius mundi
repraesentat imaginem, - an alia quadam ratione conpositi tutum sit, certe mihi habetur incognitum.
Illud tamen firma fide custodio quod non a maioribus tradita custodiret ecclesia, nisi certa sui ratio
poposcisset. Nec ea possumus dicere inania videri ac fribola, quia eorum minime rationem accepimus.
Nam multa, qui proxime ante nos fuerunt, et nos, ut nobis ratio persuadet, in ecclesiis quaedam nova
sancimus, quaedam ad posteros transmittimus observanda; etiam si qua id ratione nobis factum sit
JOÃO DIÁCONO 1071

12. Perguntas-me porque é que no sagrado cálice não se põem (habitualmente) leite 4526
e mel e no sábado de Páscoa se oferecem (ambas as coisas) com o sacrifício. A razão é
que está escrito no Antigo Testamento e de modo figurado também prometido ao novo
povo: Introduzir-vos-ei na terra da promessa, terra onde corre leite e mel 21. Logo a
terra da promessa é a terra da Ressurreição, que permanece sempre naquela felicidade,
e essa terra não é senão a do nosso corpo, que na ressurreição dos mortos há-de
conseguir a glória da incorruptibilidade e da paz. Aos baptizados é, pois, oferecido
este género de sacramento, para entenderem que, não outros, mas os próprios que
participam do Corpo e Sangue do Senhor receberão a Terra prometida e aqueles que
começam a caminhar como crianças, são alimentados com leite e mel, por começarem a
cantar: Como são doces ao meu paladar as tuas palavras. Mais doces do que o mel
para a minha boca 22.
Com o leite e o mel são, pois, alimentados os homens novos depois de (terem
cometido) delitos amargos. No primeiro nascimento foram alimentados com o leite da
corrupção e começaram a chorar lágrimas de amargor; no segundo nascimento provam
a doçura do leite e do mel no seio da Igreja, para que, nutridos por tais sacramentos,
sejam consagrados com os mistérios da incorruptibilidade perpétua23.
13. Também me quiseste interrogar sobre a razão por que na Igreja se canta Aleluia 4527
até ao Pentecostes. Convém que saibas que uma coisa é a fé católica que obriga todo o
cristão no mundo inteiro ou que é autoridade do Novo e Antigo Testamentos, e outra
coisa as instituições dos Padres, das quais não se pode desviar nenhum católico, como
os cânones de Niceia e outros semelhantes.
Também acontece que há as tradições próprias que cada Igreja observa como
recebidas dos seus antepassados, tradições que salva sempre a fé e a paz católica, não
são observadas pela Igreja de outras regiões, como por exemplo, a Igreja de Roma que
jejua todos os sábados, o que não parece fazer a Igreja Oriental, ou então os sete altares
que se preparam aqui, o que mais ninguém faz fora daqui; ou ainda coisas que se fazem
noutros lados e aqui não são autorizadas. Há muitas coisas que se fazem nas diversas
Igrejas de modo diverso, mas todas compõem o vestido daquela rainha de que foi dito:
À tua direita está a rainha com um vestido ornado de ouro24.
Nada, pois, me perturba quando vejo realizar-se aqui em louvor de Deus aquilo
que verifico que se realiza de modo diferente noutros lados. Quer se cante Aleluia até
ao Pentecostes, como é manifesto que se faz entre nós, quer se diga noutros lados todo
o ano, a Igreja canta o louvor de Deus; reserva-se, porém, entre nós alguma coisa da
solenidade pascal, de modo que o afecto continue no louvor de Deus com louvores
maiores e com as almas renovadas.

longe posterior aetas ignoret, non putabit tamen inania, si in deum piam praecedentium intellegat
voluntatem; hoc ergo modo etiam nos, quod maiorum ratio ipsa non venit. Nam quorum pervenit et ipsa
tenentur et res; quorum autem causa, latet et res fidei non resultat, observari ac teneri necesse est.
21
Deut 31, 20.
22
Sal 118, 103.
23
XII. Quod autem quaesistis cur in sacratissimum calicem lac mittatur et mel, et paschae sabbato cum
sacrificiis offeratur, illud in causa est quia scriptum est in veteri testamento et novo populo figuraliter
repromissum: Introducam vos in terram repromissionis, terram fluentem lac et mel (Deut 31, 20). Terra
ergo repromissionis terra est resurrectionis, et in illa felicitate semper permanentis; quae nihil est
aliud quam terra corporis nostri, quae in resurrectione mortuorum incorruptionis pacisque gloriam
consequetur. Baptizatis ergo hoc sacramenti genus offertur, ut intellegant quia non alii, sed ipsi qui
participes fiunt corporis et sanguinis domini terram repromissionis accipient, cuius iter inchoantes,
tamquam parvuli, lacte nutriuntur et melle, ut incipiant decantare: Quam dulcia faucibus meis eloquia
tua domine super mel et favum (Sal 118, 103). Lac ergo et mel potantur novi homines post amara delicta,
ut qui in prima nativitate corruptionis lacte nutriti sunt et amaritudinis lacrimas inchoarunt, secunda
generatione lactis ac mellis dulcedinem in ecclesiae visceribus sumant, ut, nutriti talibus sacramentis,
incorruptionis perpetuae mysteriis consecrentur.
24
Sal 44, 10.
1072 SÉCULO V

É por isso que se diz Aleluia, que significa na língua latina «laudate Dominum»
(louvai o Senhor) e não é mais do que, por outras palavras, a voz dos povos que dizem
todos os dias: Louvai o Senhor do alto dos céus25, e também: Louvai o Senhor todos
os seus Anjos26, e ainda: Louvai o Senhor todos os povos27. Concluindo: Sempre que
se louva a Deus com um coração fiel, seja de que modo for, canta-se Aleluia28.
4528 14. Resta agora responder ao que julgaste ainda que me devias perguntar: Se um
baptizado partir desta vida sem a unção do crisma e a bênção do pontífice é ou não
prejudicado. Sobre este assunto preferia ouvir maior desenvolvimento aos doutos do
que eu próprio dizer alguma coisa... Vou, porém, dar o meu parecer em breves palavras.
Tomemos a semelhança do primeiro nascimento, quando viemos ao mundo, para
entendermos melhor o segundo em que temos a verdadeira vida e estamos justificados.
Quando nasce uma criança e atinge a luz do dia, dizemos que nasceu um homem
perfeito e que é da mesma natureza daquele que o gerou, isto é, um animal racional
mortal, embora aquele seja grande e este pequeno; estas são diferenças acidentais de
vocabulário e não de natureza. Se depois, com o andar dos anos, se lhe juntam outras
circunstâncias, porventura junta-se alguma coisa à definição da natureza? De modo
nenhum, porque a propriedade da sua natureza nem se aumenta nem diminui29.

25
Sal 148, 2.
26
Sal 148, 2.
27
Sal 116, 1.
28
XIII. Illud etiam quod interrogare dignatus es cur alleluia usque ad pentecosten in ecclesia decantatur,
scire vos convenit alia esse in fide catholica, quibus per totum mundum omnis Christianus adstringitur,
vel uti est auctoritas novi ac veteris testamenti, – alia rursus esse instituta patrum a quibus nulli licet
catholico deviare, vel uti Niceni canones et siquid huius modi est, – itemque alia esse quae una quaeque
ecclesia tamquam propria retinet et a suis maioribus tradita sibi custodit, quae, salva fide et pace
catholica, cum alterius regionis non observat ecclesia; ut est Romana, quae sabbatis omnibus ieiunat,
quod Orientalis facere non videtur; vel quod hic septem altaria componuntur, quod alibi nullus
adtemptat; et rursus fiant alia alibi, quae hic fieri non probantur. Haec autem omnia ita diversis ecclesiis
diverso modo fiunt, ut tamen omnes illius regine vestem faciant, de qua dictum est: Adsistit regina a
dextris tuis in vestitu deaurato circum amicta varietate (Sal 44, 10). Nihil ergo moveat, cum videntur hic
aliqua in dei laudibus fieri, quae alibi alio modo fieri comprobantur. Sive enim usque ad pentecosten
alleluia cantetur, quod apud nos fieri manifestum est, sive alibi toto anno dicatur, laudes dei cantat
ecclesia; sed reservatur aliquid apud nos paschali reverentiae, ut maioribus gaudiis et quasi mentibus
innovatis ad laudem dei recurrat affectus; propter quod alleluia Latino sermone «laudate dominum»
dicitur, quamquam et aliis verbis id cotidie populorum vox dicentium resonet: Laudate dominum de
caelis laudate eum in excelsis (Sal 148, 1), itemque: Laudate dominum omnes angeli eius (Sal 148, 2),
et iterum: Laudate dominum omnes gentes (Sal 116, 1). Semper ergo, cum deus quoquo modo fideli corde
laudatur, alleluia cantatur.
29
XIV. Restat nunc illud quod interrogandum putastis, si baptizatus sine chrismatis unctione ac
benedictione pontificis ex hac vita migraverit, utrum ei obsit aliquid an non. De qua re magis a doctis
plenius audire vellem quam ipse aliquid dicere. Quid tamen mihi videatur, salvo meliore, intelligentiae
maiorum plena sententia, quod in omnibus supra dictis volo tenere, quia ita vestrae voluntati parere
studui, ut tamen de omnibus, quid melius (quod non dubito) a maioribus dictum est, hoc uterque servemus,
- quid ergo videatur, breviter dicam. Ducatur ergo similitudo ab hac prima nativitate in qua orti sumus,
ut intellegamus illam secundam, ex qua vere vivimus et in qua iustificati sumus. Cum natus fuerit infans
et lucis huius participationem contigerit, perfectum hominem natum esse dicimns, et est eiusdem
substantiae cuius est ille qui genuit, hoc est animal rationale mortale, quamquam ille grandis, hic
parvus; quae sunt accidentium vocabula, non naturae. Si ergo accidant adiumenta ad aetatis provectum,
numquid adiectum est aliquid definitioni substantiae? Absit, quia non extenditur aut minuitur ipsius
naturae proprietas.
PAPA GELÁSIO I 1073

Papa Gelásio I

Súplica litânica do Papa Gelásio 1


Digamos todos: Escutai-nos, Senhor, e tende piedade. 4529
Na fidelidade dos nossos corações invocamos o Pai do Unigénito, o Filho de Deus
Pai não gerado, e o Deus Espírito Santo. / Kyrie eleison.
I. Pela Igreja imaculada de Deus vivo, estabelecida em toda a terra / peçamos as
riquezas da bondade divina. / Kyrie eleison.
II. Pelos sacerdotes santos do grande Deus, pelos ministros do altar sagrado e por
todos os povos que prestam culto ao Deus verdadeiro / imploremos a Cristo Senhor. /
[Kyrie eleison].

1
P APA G ELÁSIO I, Deprecatio quam Papa Gelasius pro universali Ecclesia constituit canendam esse (=PL
101, 560 s; B. C APELLE , Travaux Liturgiques, 2 vol., Louvain 1962; E. LODI , Roma 1979, 476-477). O
futuro Papa Gelásio I deve ter nascido em África. São-lhe atribuídos formulários de missas que fazem parte
do Sacramentário Veronense. Foi Papa entre 492 e 496. Segundo o testemunho do II Concílio de Vaison
(529), estas preces litânicas, escritas em linguagem elegante, são da sua autoria: Dicamus omnes: Domine
exaudi et miserere. Patrem Unigeniti et Dei Genitoris ingeniti et sanctum Deum Spiritum fidelibus
animis invocamus / Kyrie eleison.
I. Pro immaculata Dei vivi ecclesia, per totum orbem constituta / divinae bonitatis opulentiam deprecamur
/ Kyrie eleison.
II. Pro sanctis Dei magni sacerdotibus et ministris sacri altaris cunctisque Deum verum colentibus
populis, / Christum Dominum supplicamus [Kyrie eleison].
III. Pro universis recte tractantibus verbum veritatis / multiformem Verbi Dei sapientiam peculiariter
obsecramus [Kyrie eleison].
IV. Pro his qui se mente et corpore propter caelorum regna castificant, et spiritualium labore desudant,
/ largitorem spiritalium munerum obsecramus [Kyrie eleison].
V. Pro religiosis principibus omnique militia eorum, qui iustitiam et rectum iudicium diligunt, / Domini
potentiam obsecramus [Kyrie eleison].
VI. Pro iucunditate serenitatis et opportunitate pluviae atque aurarum vitalium blandimentis ac
diversorum temporum prospero cursu, rectorem mundi Dominum deprecamur [Kyrie eleison].
VII. Pro is quos prima christiani nominis initiavit agnitio, quos iam desiderium gratiae caelestis
accendit, / omnipotentis Dei misericordiam obsecramus [Kyrie eleison].
VIII. Pro his quos humanae infirmitatis fragilitas, et quos nequitiae spiritalis invidia, vel varius saeculi
error envolvit, / Redemptoris nostri misericordiam imploramus [Kyrie eleison].
IX. Pro his, quos peregrinationis necessitas, aut iniquae potestatis oppressio vel hostilitatis vexat
aerumna, / Salvatorem Dominum supplicamus [Kyrie eleison].
X. Pro iudaica falsitate... aut haeretica pravitate deceptis vel gentilium superstitione perfusis, / veritatis
Dominum deprecamur [Kyrie eleison].
XI. Pro operariis pietatis et his, qui necessitatibus laborantium fraterna caritate subveniunt, /
misericordiarum Dominum deprecamur [Kyrie eleison].
XII. Pro omnibus intrantibus in haec santae domus Domini atria qui religioso corde et supplici devotione
convenerunt, / Dominum gloriae deprecamur [Kyrie eleison].
XIII. Pro emundatione animarum corporumque nostrorum, et omnium venia peccatorum, /
clementissimum Dominum supplicamus [Kyrie eleison].
XIV. Pro refrigerio fidelium animarum, praecipue sanctorum Domini sacerdotum, qui huic ecclesiae
praefuerunt catholicae, / Dominum spirituum et universae carnis iudicem deprecamur [Kyrie eleison].
XV. Mortificatam vitiis carnem et viventem fide animam / praesta, Domine, praesta.
XVI. Castum timorem et veram dilectionem / praesta, Domine, praesta.
XVII. Gratum vitae ordinem et probabilem exitum / praesta, Domine, praesta.
XVIII. Angelum pacis et solacia sanctorum / praesta, Domine, praesta.
Nosmetipsos et omnia nostra quae orta, / quae aucta per Dominum / ipso auctore suscipimus, / ipso
custode retinemus / ipsiusque misericordiae et arbitrio / providentiae commendamus / Domine miserere.
1074 SÉCULO V

III. Por todos os que investigam com rectidão a palavra da verdade / peçamos
especialmente a sabedoria multiforme do Verbo de Deus. [Kyrie eleison].
IV. Por aqueles que se purificam no corpo e na alma por causa do Reino dos Céus e
se fatigam no trabalho pastoral, / supliquemos ao distribuidor pródigo das riquezas
espirituais. [Kyrie eleison].
V. Pelos príncipes piedosos e todos os seus exércitos, que amam a justiça e a
rectidão, / peçamos a força do Senhor. [Kyrie eleison].
VI. Pela serenidade do tempo, as chuvas favoráveis, as brisas vivificantes e a
alternância benfazeja das diversas estações, / invoquemos o Senhor que governa o
mundo. [Kyrie eleison].
VII. Por aqueles que já começaram a compreender o nome cristão e pelos que já
chegaram ao desejo da graça celeste, / peçamos a misericórdia de Deus omnipotente.
[Kyrie eleison].
VIII. Por aqueles a quem envolvem a fraqueza da enfermidade humana, os enganos do
espírito ou os múltiplos erros do mundo, / imploremos a misericórdia do nosso Redentor.
[Kyrie eleison].
IX. Por aqueles que, obrigados a viagens contínuas, estão sujeitos à opressão dos
poderosos ou à hostilidade dos inimigos, / invoquemos o Senhor Salvador. [Kyrie
eleison].
X. Pelos Judeus enganados..., pelos hereges perdidos e pelos pagãos que adoram
ídolos, / supliquemos ao Senhor da verdade [Kyrie eleison].
XI. Pelos operários de Deus, que servem com caridade fraterna os que estão em
necessidade, / supliquemos ao Senhor das misericórdias. [Kyrie eleison].
XII. Por todos os que ultrapassam os átrios desta casa santa do Senhor... e se reúnem
com um coração piedoso e devoção suplicante, / invoquemos o Senhor da glória.
[Kyrie eleison].
XIII. Pela purificação das nossas almas e dos nossos corpos e pelo perdão de todos os
pecados, / supliquemos ao Senhor clementíssimo. [Kyrie eleison].
XIV. Pelo repouso das almas dos fiéis, particularmente dos santos sacerdotes do
Senhor que presidiram à Igreja católica, / supliquemos ao Senhor dos espíritos e juiz de
toda a carne. [Kyrie eleison].
XV. Dá-nos, Senhor, dá-nos um corpo mortificado para os vícios e uma alma que viva
da fé.
XVI. Dá-nos, Senhor, dá-nos um temor puro e um amor verdadeiro.
XVII.Dá-nos, Senhor, dá-nos uma vida agradecida e um fim bem-aventurado.
XVIII. Dá-nos, Senhor, dá-nos o Anjo da paz e o conforto dos Santos.
Nós mesmos e tudo o que é nosso, de quem o Senhor é o princípio e o crescimento,
/ o doador e o guardião, / nos confiamos à decisão da sua misericórdia e da sua providência.
/ [Kyrie, eleison].
PAPA GELÁSIO I 1075

Cartas 2

CARTA CONTRA AS FESTAS LUPERCAIS 3

1. Há pessoas que estão em suas casas e que não sabem o que dizem, nem aquilo 4530
sobre que dogmatizam...
2. Acusam-nos de sermos censores lentos na repressão das faltas que mancham a Igreja4... 4531
3. Mas como é que um homem que quer passar por cristão 5, que o professa e o 4532
proclama, não sente repugnância em proclamar abertamente e oficialmente: «As doenças
têm origem no facto de não se honrarem os Demónios e de não se sacrificar ao deus
Fevereiro»?...
5. O pontífice, que deve estar contra aqueles que cometem adultério carnal, não 4533
deverá estar contra os que cometem um sacrilégio...?
7. Talvez tu digas que és leigo e ele, o culpado, um ministro da Igreja, e, por isso, 4534
avolumas ainda mais o seu crime. Tens razão, e eu também não deixo de estar de
acordo: ele deve ser julgado tanto mais cuidadosamente quanto é mais da Igreja, pois é
tanto mais culpado quanto é mais elevado neste ministério... Pois bem, não
escamoteamos o processo: será julgado, e, se for achado culpado, será submetido ao
castigo que convém. E depois, que esperas tu? Será que, por não seres do ministério
sagrado, não pertences ao povo sagrado? Não sabes que também tu és membro do
sumo Pontífice? Ignoras que a Igreja no seu conjunto é um sacerdócio?
8. Finalmente, se aquele que chegou ao ministério da Igreja é culpado por ter 4535
cometido uma falta, será que tu não és culpado, tu que depois de teres confessado a
verdade, voltaste às representações depravadas, perversas, pagãs, diabólicas, às quais
fizeste profissão de renunciar6?
9. É por isso que tu também, após essas blasfémias proferidas abertamente e 4536
oficialmente, deves ser afastado por todos os modos do Corpo sagrado7. Não podes
efectivamente participar ao mesmo tempo da mesa do Senhor e da mesa dos Demónios,
nem beber o cálice do Senhor e o cálice dos Demónios; não podes ser o templo de Deus
e o templo do Diabo, a luz e as trevas não podem encontrar-se simultaneamente em ti...
17. Se verdadeiramente vós8 professais que este rito sagrado, ou antes execrável, vos 4537
é útil, celebrai-o vós mesmos à maneira dos antigos, correi vós mesmos completamente
nus com uma correia, a fim de cumprirdes, segundo o rito, os jogos desprezíveis da
vossa salvação. Se eles são grandes, se são divinos, se são salvadores, se deles depende a
integridade da vossa vida, porquê ter vergonha de os celebrar vós próprios tais como são?...
19. Dizei-nos, pois, vós que não sois nem cristãos nem pagãos..., dizei-nos, 4538
protectores das Lupercais..., dignos duma religião que se celebra com palavras obscenas
e dissolutas..., quais foram os males de que tais festas vos livraram...?
28. Também dizeis que não é conveniente suprimir aquilo que se faz há tantos séculos... 4539

2
P APA G ELÁSIO I, Epistulae (=PL 59, 13-141; 84, 798-807; CSEL 35; T HIEL , Braunsberg 1868; SCh 65).
3
Epistula adversum Andromachum et ceteros romanos qui Lupercalia secundum morem pristinum colenda
constituunt (=PL 59, 110; SCh 65). A festa pagã dos Lupercais (=jovens vestidos de peles de animais,
lupus) realizava-se em Roma no dia 15 de Fevereiro. O Papa Gelásio insurge-se contra os seus excessos e
contra os cristãos que nela tomam parte.
4
Alusão a um crime de adultério atribuído a um clérigo de Roma.
5
Este homem era Andrómaco, a quem vai dirigida a primeira parte da carta.
6
Alusão às renúncias baptismais.
7
Da Eucaristia.
8
A partir daqui a argumentação do Papa passa a dirigir-se aos cristãos de Roma em geral.
1076 SÉCULO V

4540 29. E até dizeis que as Lupercais existiram igualmente na época cristã. Mas também
houve outros ritos que foram celebrados na época cristã...
4541 30. Finalmente, pelo que me diz respeito, nenhum baptizado, nenhum catecúmeno
celebre este rito... Tenho de declarar que, para os catecúmenos, estas coisas são
indubitavelmente perigosas e funestas...
4542 31. Por mim, não ouso acusar de negligência os meus predecessores, pois creio antes
que eles provavelmente tentaram arrancar esta monstruosidade e que encontraram
algumas causas e vontades contrárias que entravaram os seus desígnios9...
CARTA 14 10

4543 2. Um candidato vindo do estado monacal fará apenas um estágio prévio de três
meses, como leitor, notário ou defensor, antes de ser ordenado acólito11.
4544 11. Devem saber que as ordenações dos presbíteros e dos diáconos se fazem em dias
e tempos determinados, isto é: no sábado à noite, nos jejuns do quarto, do sétimo e do
décimo mês, e também no início da Quaresma e na mediana dos dias da Quaresma12.
CARTA 15 13

4545 3. Ele deve saber que as ordenações dos presbíteros e dos diáconos devem ser
celebradas só no sábado à noite, no fim dos jejuns do quarto, do sétimo ou do décimo mês
(Junho, Setembro ou Dezembro), bem como no princípio da Quaresma e da semana mediana.
CARTA 103 14

4546 13. 30 Levantaram-se todos os bispos e presbíteros suplicando e dizendo: «Cristo,


ouvi-nos: Vida a Gelásio», foi dito vinte vezes, «Defendei aquele que Deus vos deu com
poder», foi dito doze vezes. «Este faz o que fez São Pedro!», foi dito dez vezes; «Pedimos
que tenhas piedade!», foi dito nove vezes. Todos os bispos e presbíteros se levantaram
no sínodo e aclamaram: «Cristo, ouvi-nos: Vida a Gelásio!», foi dito quinze vezes: «São
Pedro, conserva-o!» foi dito doze vezes: «Dele são a sede e os anos!», foi dito sete
vezes: «Vemos em ti o vigário de Cristo!», foi dito onze vezes: «Vemos em ti o Apóstolo
Pedro!», foi dito seis vezes: «Dele são a sede e os anos!», foi dito trinta e sete vezes.
CARTA A VÍTOR 15

4547 10. A tua Caridade consultou-me acerca dos clérigos que se recusam a ser promovidos
de diáconos ao grau de presbíteros, dos quais a tua Igreja precisa. Não os deves obrigar
a isso; mas, se tens entre os teus clérigos acólitos e subdiáconos com idade conveniente
e de vida exemplar, fá-los avançar para o presbiterado, a fim de se tornarem superiores
àqueles que declinaram esta elevação. Sejam os presbíteros tratados com mais vantagem
do que os diáconos, e, deste modo, os diáconos terão interesse em subir de posto.

9
O Sacramentário Veronense possui diversos formulários de missas cujas orações são claramente alusivas
ao problema central desta carta de Gelásio, isto é, à luta da Igreja contra as festas Lupercais.
10
Esta carta é escrita ad universos episcopos per Lucaniam, Brutios et Siciliam constitutos, no ano de 494.
11
Esta determinação significa que as vocações eram raras.
12
Die sabbati ieiunio circa vesperam noverint celebrandas.
13
Carta 15, seu Epistularis formula Gelasii papae.
14
Laudes episcopales papae Romae [Syn. Rom. 495] (=CSEL 35; E. LODI , Roma 1979, 477).
15
Carta ad Victorem episcopum.
PAPA GELÁSIO I 1077

CARTA A ELPÍDIO 16

2. A santa religião que mantém a disciplina católica exige para si tanta reverência, 4548
que ninguém deve atrever-se a aproximar-se dela, a não ser de consciência pura. Com
efeito, como poderá vir o Espírito celeste invocado para a consagração do divino
mistério, se o sacerdote que está presente e suplica está cheio de acções criminosas?
CARTA 17

Soubemos que algumas pessoas, na mesma região, tomam apenas um pedaço do 4549
Corpo sagrado e se abstêm do sagrado Sangue do cálice. Não tenho dúvida em afirmar,
uma vez que desconheço qual a superstição que os manda abster-se, que ou devem
receber os sacramentos integralmente, ou devem afastar-se deles integralmente, pois
não é possível dividir o mesmo mistério sem cometer um grave sacrilégio.

Tratado sobre o perdão dos pecados 18


5. Disse o Senhor que os que pecam contra o Espírito Santo não se lhes perdoará 4550
nem neste mundo nem no mundo que há-de vir. No entanto, quantos conhecemos nós
que pecam contra o Espírito Santo, como diversos hereges..., se convertem à fé católica,
aqui alcançam o perdão das suas blasfémias e recebem a esperança de conseguir o
perdão no futuro? Mas nem por isso deixa de ser verdadeira a palavra do Senhor...
Do mesmo modo, por conseguinte, há que entender o que diz o apóstolo São
João: Há um pecado que leva à morte: por esse pecado não digo que se reze; e há
um pecado que não leva à morte: por esse digo que se reze. Há pecado que leva à
morte para os que permanecem no mesmo pecado; há pecado que não leva à morte
para os que se afastam do mesmo pecado. De facto, não há pecado nenhum por cujo
perdão a Igreja não reze, ou do qual, pelo poder que lhe foi divinamente concedido, não
possa absolver os que deles se afastam, ou perdoá-los aos penitentes, pois lhe foi dito:
Tudo aquilo que perdoardes na terra... ou tudo aquilo que desatardes na terra,
será desatado no Céu. Na palavra «tudo» entra tudo, por maiores que sejam e quaisquer
que sejam os pecados...

Decreto Gelasiano 19
Início do Concílio da cidade de Roma, sob o Papa Dâmaso. Sobre a explicação da 4551
nossa fé.
1. Foi dito: 1 Começou por tratar-se do Espírito septiforme que repousou em
Cristo...; 2 Passou-se aos múltiplos nomes do ministério de Cristo...; 3 O Espírito Santo
não é só Espírito do Pai nem só Espírito do Filho, mas é simultaneamente Espírito do Pai
e do Filho...
2. Também foi dito: Vamos agora tratar das divinas Escrituras que a Igreja católica
aceita e das que se devem evitar. 1 Começa a ordem do Antigo Testamento...; 2 Ordem

16
Elpídio era bispo de Volterra.
17
Epistulae Romanorum Pontificum (=Thiels).
18
P APA G ELÁSIO I, Tomus de anathematis vinculo (=PL 59, 102-110).
19
P APA G ELÁSIO I, Decretum Gelasianum (=PL 59, 157; 62, 537; DACL 3, 740-746).
1078 SÉCULO V

dos Profetas...; 3 Ordem dos Livros históricos...; 4 Ordem das Escrituras do Novo
Testamento, que a santa e católica Igreja romana aceita e venera... Fim do cânone do
Novo Testamento.
3. 1 Também foi dito: Depois de todas estas Escrituras proféticas, evangélicas e
apostólicas que acima enumerámos, nas quais a Igreja católica foi fundada pela graça
de Deus..., acreditamos que a Igreja romana recebeu o primado...; 2 A Pedro foi associado
também o apóstolo São Paulo, que recebeu a coroa do martírio no mesmo tempo e dia
de Pedro, na cidade de Roma, no tempo do imperador Nero...; 3 A primeira sede do
apóstolo Pedro é a Igreja romana...; a segunda sede de São Pedro é Alexandria,
consagrada pelo nome de Marcos, seu discípulo e Evangelista; a terceira sede de São
Pedro é Antioquia, muito venerável, pois foi ali que ele habitou antes de vir a Roma, e ali
receberam os discípulos, pela primeira vez, o nome de Cristãos.
4. Embora «ninguém possa pôr outro fundamento além daquele que foi posto,
Cristo Jesus», no entanto, para edificação..., a santa Igreja romana também aceita estas
escrituras: 1 Dos santos Concílios de Niceia..., de Constantinopla..., de Éfeso...; 2
Apresentam-se também as obras dos santos Padres, que são recebidas na Igreja católica:
de Cipriano, de João Crisóstomo, de Teófilo de Alexandria, de Hilário de Poitiers, de
Ambrósio, de Agostinho de Hipona, de Jerónimo...; 3 Também aceita a carta do papa
Leão a Flaviano...; 4 Também se reconhecem os feitos notáveis dos santos mártires,
que foram supliciados com múltiplos tormentos e brilham com os triunfos admiráveis
das suas confissões. Quem de entre os católicos duvidará que, por maiores que fossem
os seus sofrimentos nos combates, eles os venceriam todos, não por suas forças, mas
por graça e ajuda de Deus? Mas também, segundo um antigo costume, e por singular
cautela, essas memórias não se lêem na santa Igreja romana, uma vez que se ignoram
completamente os nomes dos que as escreveram, e os infiéis e ignorantes as consideram
supérfluas ou menos apropriadas relativamente à verdade dos factos. Por isso..., a fim
de nem sequer se lhes dar a mais pequena ocasião de riso, não se lêem na santa Igreja
romana. No entanto, quer nós própios quer a citada Igreja, veneramos, com toda a
devoção, todos os mártires e os seus gloriosos combates, que são mais conhecidos de
Deus do que dos homens...; 5 O mesmo de Rufino, de alguns livros de Orígenes, de
Eusébio de Cesareia...
5. Dos livros que foram escritos por hereges e cismáticos, a Igreja romana não
aceita nenhum. Livros apócrifos: 1 Sínodo Ariminense; 2 Actos...; 3 Evangelhos...; 4
Livro da infância do Salvador...; 5 Apocalipses...; 6 Livro do Trânsito de Santa Maria...,
Penitência de São Cipriano, Cânones dos Apóstolos...; 7 Livros de Tertuliano, de
Lactâncio, de Comodiano, de Cassiano...; 8 Centão de Cristo composto com versos
virgilianos, Cartas de Jesus...; 9 Estes e outros semelhantes: Marcião, Montano,
Maniqueus, Ario, Prisciliano, Acácio...

Fragmentos dos Dicta do Papa Gelásio 20


4552 Primeiro o pecador fica excluído da companhia dos outros fiéis, que estão de pé
dentro da igreja, e é colocado fora da igreja, entre os ouvintes, isto é, os catecúmenos;
depois de algum tempo é admitido na comunhão da Igreja, isto é, em união de oração
com os penitentes; por fim volta a gozar outra vez de todos os direitos religiosos,
volta à comunhão plena, isto é, à reunião dos outros fiéis e à recepção do sagrado
Corpo e do Sangue.

20
PAPA GELÁSIO I, Fragmenta Gelasii papae, Dicta (=PL 59, 116. 140-142).
TESTAMENTO DO SENHOR 1079

Testamento do Senhor 1

Livro I

ORDENAÇÕES 2

2. Ordenação do bispo. Imposição das mãos. Os bispos impõem as mãos (ao 4553
candidato), dizendo: Impomos as nossas mãos sobre este servo de Deus, eleito no Espírito...
Oração consecratória: Senhor, que fizeste e firmaste todas as coisas..., que Te
dignaste adornar e enriquecer o teu santuário com pontífices e sacerdotes fiéis... e
constituir presidentes para o teu povo..., infunde a inteligência e a graça do teu Espírito
principal, que deste ao teu amado Filho, Jesus Cristo..., e faz com que este teu servo
Te seja agradável... Pai, que conheces os corações de todos, concede a este teu servo,
que elegeste para o episcopado, a graça de apascentar o teu rebanho santo e de gozar do
sumo sacerdócio... para Te oferecer as oblações na tua santa Igreja. Concede-lhe que
goze do poder do teu Espírito para desligar tudo o que estiver ligado, do mesmo modo
que o concedeste aos teus Apóstolos...
E o povo diga: Amen. E depois aclame em uníssono: Digno, digno, digno.

LITURGIA EUCARÍSTICA 3

23. Proclamação do diácono sobre a Eucaristia: Tende os vossos corações nos 4554
Céus. Se alguém tem ódio ao próximo, reconcilie-se; se alguém não acredita em seu
coração, confesse-o; se alguém, em sua mente, anda afastado dos preceitos, retire-se;
se alguém caiu em pecado, não se esconda, porque é mau, para ele, esconder-se; se
alguém anda doente da cabeça, não se aproxime; se alguém está impuro e não está
firme, ceda o lugar; se alguém é estranho aos preceitos de Jesus, saia; se alguém
despreza os profetas, separa-se a si mesmo e defenda-se a si próprio da ira do Unigénito;
não desprezemos a cruz; fujamos das ameaças de nosso Senhor; contemplam-nos o Pai
das luzes e o Filho, e os Anjos visitam-nos; vede vós próprios se não tendes ódio aos
vossos próximos; vede-o, para não cairdes sob a ira; Deus vê; elevai os vossos corações
e fazei a oferta da salvação da vida e da santidade. Recebamos a graça da sabedoria de
Deus que nos é oferecida.

1
Testamentum Domini (=I. R AHMANI , Moguntia 1899; E. L ODI , Roma 1979, 510-529); cf. nn. 4675. 4735.
7268-7271). Documento sírio do sec. V, adaptação e amplificação da Tradição Apostólica de Hipólito, em
língua siríaca traduzida do grego, artificiosamente atribuída aos Apóstolos. Colocamo-lo neste lugar,
antes da colecção das Orações eucarísticas. O Livro I trata das instituições deixadas por Cristo aos Apóstolos
antes da Ascensão: edifícios 19; bispo 19-22; Eucaristia 23-28; presbíteros 29-32; diáconos 33-38;
confessores 39; viúvas 40-43; clérigos 44-45; virgens 46. O Livro II trata do ordenamento da vida cristã
desde o catecumenado até às exéquias: fiéis 1; catecumenado 2; doutor 3-4; imposição das mãos 5; escrutínios
6; exorcismos 7; baptismo 8; crisma 9; Eucaristia 10.
2
Ver nn. 2, 30, 38, 41, 44, 45.
3
Ver nn. 23, 25.
1080 SÉCULO V

DIÁLOGO INICIAL

Então o bispo, proclamando, dê graças, com voz forte:


Nosso Senhor esteja convosco.
O povo responde: E com o teu espírito.
O bispo diz: Elevai os vossos corações.
O povo responde: Eles estão no Senhor.
O bispo diz: Dêmos graças ao Senhor.
Todo o povo responde: É digno e justo.
O bispo clama: As coisas santas pelos santos.
O povo proclama: No Céu e na terra sem cessar.
O bispo diz imediatamente:
Louvor e acção de graças. Nós Te damos graças, Deus santo, fim das nossas
almas, dador da nossa vida, tesouro incorruptível, Pai do teu Filho unigénito, nosso
Salvador, que nos enviaste nos últimos tempos como Redentor e anunciador da tua
vontade. É teu desígnio que sejamos salvos por Ti. Por isso, Senhor, confessam-Te o
nosso coração, a nossa inteligência e cada pensamento da nossa alma, a fim de que
venha sobre nós a tua graça para Te louvarmos a Ti, ao teu Filho unigénito e ao teu
Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.
Tu és o poder do Pai, a graça das nações, o conhecimento da rectidão, a sabedoria
dos extraviados, o remédio das almas, a grandeza dos humildes. Tu és o nosso refúgio,
o escudo dos justos, a esperança dos desterrados, o porto seguro dos que se vêem
como que agitados pelo mar, a luz dos perfeitos, o Filho de Deus vivo. Irradia sobre
nós, pela tua graça imutável, a firmeza e a consolação da nossa confiança, a sabedoria
e a eficácia de uma fé indeclinável e de uma esperança inquebrantável. Concede à nossa
humildade a inteligência do Espírito, para Te servirmos sempre em pureza e rectidão,
Senhor, e para que todos os povos Te louvem...
Depois o bispo diz: Tu, Senhor, és o fundador da coisas altíssimas, o Rei dos
tesouros brilhantes, o bispo da Sião celeste, o Rei das ordens dos Arcanjos, das
Dominações, dos Louvores, dos Tronos, dos invólucros, das luzes, das alegrias e
delícias. Pai dos reis, que na tua mão tudo sustentas e regulas pelo teu conselho, por
teu Filho unigénito, que foi crucificado pelos nossos pecados. Tu, Senhor, enviaste ao
seio virginal o teu Verbo, o Filho da tua mente, o Filho da tua existência, pelo qual
fizeste todas as coisas e no qual achaste complacência. Ele foi concebido e encarnou,
apareceu como teu Filho, nascido do Espírito Santo e da Virgem. Para cumprir a tua
vontade e preparar para Ti um povo santo, estendeu os braços para a paixão, para
libertar da paixão e da corrupção da morte aqueles que esperam em Ti.
Narração da instituição. Ele entregou-Se voluntariamente à paixão, para levantar
os que tinham caído, reencontrar os extraviados, vivificar os mortos, expulsar a morte,
quebrar as cadeias do Diabo, levar à perfeição o pensamento do Pai, calcar aos pés o
Inferno, abrir o caminho da vida, dirigir os justos para a luz, derrubar as fronteiras,
iluminar as trevas, educar os filhos, manifestar a ressurreição, tomando o pão deu-o
aos seus discípulos, dizendo: Tomai e comei. Isto é o meu Corpo, entregue por vós
para remissão dos pecados. Todas as vezes que fizerdes isto, fazei-o em memória de Mim.
De igual modo tomou o cálice de vinho misturado (com água) e deu-o como
símbolo4 do Sangue que derramou por nós.

4
Typum.
TESTAMENTO DO SENHOR 1081

Anamnese. A seguir diz: Por isso, lembrando-nos da tua morte e da tua


ressurreição, oferecemos-Te o pão e o cálice, dando-Te graças, a Ti que és o único
Deus pelos séculos, e nosso Salvador, e nos tornaste dignos de estar de pé, diante de Ti
e de Te servirmos no sacerdócio. Por isso nós, Senhor, teus servos, Te damos graças
O povo diz a mesma coisa.
Epiclese. Depois (o bispo) diz: Nós Te oferecemos esta acção de graças,
Trindade eterna, Senhor Jesus Cristo, Pai e Senhor, a quem teme toda a criatura e em
quem se refugia toda a natureza vacilante: Senhor, envia o Espírito sobre este cálice e
este teu pão santo, e faz com que não sejam para nossa condenação, nem ignomínia
nem perdição, mas para saúde e fortaleza do nosso espírito.
Intercessões. Concede-nos, Senhor, sem demora, que pelo teu Nome se afaste
todo o pensamento das coisas que não são do teu agrado. Senhor, concede-nos que seja
expelido de nós todo o conselho soberbo, pelo teu Nome, que está inscrito dentro do véu
das janelas sagradas dos teus Céus, que os Infernos emudecem quando ouvem, o abismo
é arrancado, os espíritos são expulsos, o dragão é enganado, a infidelidade é expulsa, a
desobediência é dominada, a ira é aplacada, a inveja não produz efeitos, a arrogância é
respondida, o desejo do dinheiro é extirpado, desaparece a glorificação, a soberba é
humilhada e destruída toda a natureza que produz coisas azedas. Concede-nos, Senhor, que
os nossos olhos que estão dentro Te contemplem, Te glorifiquem, Te exaltem, se lembrem
de Ti e Te sirvam, porque em Ti têm uma porção, Filho e Verbo de Deus, a quem tudo
está sujeito. Sustenta até ao fim e confirma os que têm o carisma da cura, fortalece os
que têm a virtude das línguas, dirige os que trabalham no verbo da doutrina. Cuida
daqueles que fazem sempre a tua vontade, visita as viúvas e ajuda os órfãos. Lembra-
Te daqueles que adormeceram na fé e dá-nos parte na herança com os teus santos, dá-
nos a graça de Te agradarmos, do mesmo modo que os que Te agradaram. Apascenta o
povo na rectidão e santifica-nos a todos.
Doxologia final. Por fim concede-nos, Senhor, que se unam a Ti todos os que
participando recebem dos teus sagrados (mistérios), para que o Espírito Santo os
encha para a confirmação da fé na verdade para Te darem sempre glorificação e ao teu
amado Filho Jesus Cristo, pelo qual a Ti glória e poder com o Espírito Santo pelos
séculos dos séculos.
O povo diz: Amen.
Diácono: Supliquemos com solicitude ao Senhor nosso Deus, que nos conceda a
graça de viver em concórdia na mente e no espírito.
Bispo: Dá-nos, Senhor, a concórdia da mente no Espírito Santo e cura, por esta
oblação, as nossas almas, para vivermos em Ti por todos os séculos dos séculos.
Povo: Amen.
Terminadas estas coisas, faça-se acção de graças deste modo: Bendito seja o
nome do Senhor pelos séculos.
Povo: Amen.
Sacerdote: Bendito O que vem em nome do Senhor, bendito o nome da sua própria
glória.
Todo o povo diz: Assim seja, assim seja5.
24. Consagração do óleo dos enfermos. Se o sacerdote consagra óleo para curar 4555
os que sofrem, coloca um vaso com azeite junto do altar, e diz em voz baixa: Senhor
Deus, que nos deste o Espírito Paráclito, Senhor, nome salvador, invencível, escondido
aos loucos e revelado aos sábios; Cristo, que nos santificaste e que instruíste na tua

5
Fiat, fiat.
1082 SÉCULO V

misericórdia estes servos6, escolhidos pela tua sabedoria; que nos enviaste, a nós
pecadores, pela tua santidade, a ciência do teu Espírito, quando nos ofereceste o dom
do Espírito; que curaste toda a doença e todo o sofrimento e deste o dom de curar
àqueles que tornaste dignos pelo teu dom: envia sobre este óleo, que é a imagem da tua
doçura, a plenitude da tua compaixão, para que ele liberte os que sofrem, reconduza os
doentes à saúde, santifique aqueles que se convertem e chegam à fé, porque Tu és forte
e digno de louvor pelos séculos dos séculos. O povo diz: Amen. Diz-se a mesma
oração sobre a água.
4556 25. Oração diaconal. Proclamação: Levantemo-nos. Conheça cada um o seu lugar.
Catecúmenos, saiam. Vede, não fique alguém imundo, alguém imprudente. Levantai os
olhos dos vossos corações: os Anjos vêem. Vede: quem não tem fé, saia. Supliquemos
de coração unânime. Não esteja presente nenhum adúltero, nem alguém com ira. Se
está presente alguém que seja servo do pecado, saia. Vede: oremos como filhos da luz.
Supliquemos ao Senhor, nosso Deus e Salvador Jesus Cristo.
Então o diácono diz: Supliquemos pela paz que vem do Céu, para que o Senhor,
em sua bondade, nos pacifique.
Supliquemos pela nossa fé, para que o Senhor nos dê a graça de guardar até ao
fim a fé que está n’Ele.
Supliquemos pela concórdia e unanimidade de pensamento, para que o Senhor
nos guarde numa só alma e num só espírito.
Supliquemos pela paciência, para que o Senhor nos conceda, em todas as aflições,
paciência até ao fim.
Supliquemos pelos Apóstolos, para que o Senhor faça que lhes agrademos, como
eles Lhe agradaram, e nos torne dignos da herança deles.
Supliquemos pelos santos Profetas, para que o Senhor nos conte no seu número.
Supliquemos pelos santos Confessores, para que o Senhor Deus nos dê a mesma
vontade de terminar a vida como eles.
Supliquemos pelo bispo, para que nosso Senhor o guarde por muito tempo na fé
e para que, repartindo com rectidão a palavra da verdade, presida à Igreja em pureza e
sem repreensão.
Supliquemos pelos presbíteros, para que o Senhor não lhes tire o espírito do
presbitério e lhes conceda diligência e piedade até ao fim.
Supliquemos pelos diáconos, para que o Senhor lhes permita percorrer o caminho
perfeito e alcançar a santidade, e Se lembre dos seus trabalhos e da sua caridade.
Supliquemos pelas mulheres presbíteras, para que o Senhor escute as suas súplicas
e guarde com perfeição os seus corações na graça do Espírito, e ajude os seus trabalhos.
Supliquemos pelos subdiáconos, leitores e diaconisas, para que o Senhor lhes dê
a graça de receberem a retribuição com paciência.
Supliquemos pelos fiéis seculares, para que o Senhor os faça guardar a fé com perfeição.
Supliquemos pelos catecúmenos, para que o Senhor os torne dignos do banho da
remissão e os santifique com o sinal7 da santidade.
Supliquemos pelo Império, para que o Senhor lhe conceda a paz.
Supliquemos pelos príncipes mais excelsos, para que o Senhor lhes dê inteligência
e o seu temor.

6
Os sacerdotes.
7
Signaculo.
TESTAMENTO DO SENHOR 1083

Supliquemos por todas as pessoas do mundo, para que o Senhor dê consolação a


cada uma e a cada uma conceda o que lhe convém.
Supliquemos pelos navegantes e caminhantes, para que o Senhor os dirija com a
sua mão direita de misericórdia.
Supliquemos pelos que sofrem perseguição, para que o Senhor lhes dê paciência
e sabedoria, e lhes retribua pelo trabalho perfeito.
Supliquemos pelos defuntos que partiram da Igreja, para que o Senhor lhes
conceda o lugar do repouso.
Supliquemos pelos que caíram, para que o Senhor não Se lembre das suas
insipiências e tempere as ameaças contra eles.
Supliquemos também por todos nós que precisamos de orações, para que o
Senhor nos proteja e nos conserve em tranquilidade de espírito.
Supliquemos e oremos ao Senhor, para que receba as nossas preces.
Conclusão das preces. Terminadas as proclamações feitas pelo diácono, o bispo
faz um sinal com a mão, e o diácono diz: Levantemo-nos no Espírito Santo... e, dado
que estamos edificados sobre o fundamento dos Apóstolos, suplicantes peçamos ao
Senhor que acolha favoravelmente as nossas orações.
O bispo termina logo a seguir.
O povo diz: Amen.

LITURGIA DE LOUVOR 8

26. Louvor da aurora. Para o primeiro louvor da aurora, estando presentes os 4557
presbíteros, os diáconos, e os outros clérigos e os fiéis, o bispo diz: Glória ao Senhor.
Povo: É digno e justo.
Bispo: É digno e justo que Te louvemos, exaltemos e confessemos, Deus inefável
que tudo fizestes...
E o povo diz: Nós Te louvamos, nós Te bendizemos, nós Te confessamos, Senhor,
e Te suplicamos, nosso Deus...
30. Ordenação do presbítero. Comece o bispo por dizer o seguinte: Deus e Pai de 4558
nosso Senhor Jesus Cristo..., dá a este teu servo o espírito de graça e de conselho, o
espírito de magnanimidade, o espírito do presbiterado que não envelhece nem acaba, o
espírito homogéneo... para ajudar a governar o teu povo...
O povo diz: Amen.
Quer os sacerdotes, quer o povo, dêem-lhe a paz no ósculo santo.
32. Ofício dos presbíteros. Os presbíteros digam, deste modo, o louvor quotidiano 4559
na igreja, no tempo atribuído a cada um. Louvor quotidiano:
Sacerdote: A graça de nosso Senhor esteja com todos vós.
Povo: E com o teu espírito.
Sacerdote: Louvai o Senhor.
Povo: É digno e justo.
Sacerdote: A Ti, Pai incorruptível, libertador das nossas almas..., Te louvamos
nós, teus servos e o povo.

8
Ver nn. 26, 32.
1084 SÉCULO V

Povo: Nós Te louvamos...


Sacerdote: Louvamos-Te, Senhor, a quem louvam continuamente as doxologias
incessantes dos Anjos... Por isso também nós teus servos, Senhor, como é costume, Te
louvamos com o povo.
Povo: Nós Te louvamos...
4560 38. Ordenação do diácono. O bispo ore sobre o diácono: Deus, que tudo criaste e
adornaste pela palavra..., envia o espírito de graça e de diligência sobre este teu servo...
Faz dele, Senhor, um trabalhador legal sem confusão, humilde, amigo dos órfãos, dos
que cultivam a piedade, das viúvas, ardente de espírito, amante de boas causas. Ilumina,
Senhor, aquele que amaste e escolheste para servir a tua Igreja e para oferecer em
santidade no teu santuário, as coisas que Te são oferecidas pela herança principal do
teu sacerdócio, para que desempenhe o ministério sem repreensão e com coração puro,
santo e inocente...
Povo: Amen.
4561 41. As viúvas. Senhor Deus de santidade excelsa, que olhas o que é humilde..., envia
o espírito de virtude sobre esta tua serva e fortalece-a com a tua verdade para que,
cumprindo o teu preceito e trabalhando no teu santuário seja para Ti um vaso de
honra... Dá-lhe a virtude de realizar com alegria a disciplina por Ti prescrita na regra da
tua serva. Dá-lhe o espírito de humildade, de virtude, de paciência e de benignidade
para que, levando o teu jugo com alegria inefável, suporte os trabalhos...
Povo: Amen.
4562 44. O subdiácono. De igual modo ordene-se subdiácono quem seja casto, e o bispo
ore sobre ele. No dia do domingo, o bispo dirá sobre ele, de modo a ser escutado por
todo o povo: Tu, N., serve e escuta com temor o Evangelho de Deus, cultiva em
santidade a tua própria ciência, guarda a pureza, vive com ascese, vê no interior,
ausculta e ouve com humildade, e não negligencies as orações e os jejuns, para que o
Senhor fique contente contigo e te torne digno de uma ordem maior do que esta.
Todos os sacerdotes dizem: Assim seja, assim seja, assim seja 9.
4563 45. Leitor. Tu, N., a quem Cristo chamou, para seres ministro da sua Palavra, tem
cuidado e porfia, para seres aprovado neste cânone e até num grau superior, mesmo
diante de nosso Senhor Jesus Cristo, para que Ele te retribua pelos teus serviços uma
recompensa excelente nas suas moradas eternas.
Os sacerdotes dizem: Assim seja, assim seja, assim seja.

Livro II

LITURGIA DA INICIAÇÃO 10

4564 5. Ordem dos catecúmenos: Imposição das mãos. Deus, que afastas os trovões e
mandas parar os relâmpagos, que criaste o céu e firmaste a terra, que iluminas os fiéis
e convertes os que erram, que restituis a vida aos mortos, tiras a esperança e dás a fé...,
escuta-nos, Senhor, e dá a estas almas inteligência, perfeição, fé sólida e conhecimento
da verdade...

9
Fiat, fiat, fiat.
10
Ver nn. 5, 7, 8, 9, 10.
TESTAMENTO DO SENHOR 1085

7. Exorcismo antes do baptismo. Deus dos Céus, Deus da luz, Deus dos Arcanjos..., 4565
Deus dos Anjos..., Deus dos santos, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que libertaste
as almas esmagadas pela morte... escuta-nos, Senhor Deus, e faz que cessem nestes
teus servos, chamados pelo teu nome, as armas de Satanás, toda a magia, encantamento,
culto dos ídolos, adivinhação, astrologia, necromancia, observação das estrelas,
astronomia, paixões torpes, desejos pecaminosos, angústia, cupidez pelo dinheiro,
embriaguez, adultério, relações sexuais, lascívia, audácia, litígios, ira, confusão, maldade
e más suspeitas. Escuta-me, Senhor e infunde nestes teus servos o espírito de paz,
para que, guardados por Ti, por Ti produzam frutos de fé, de virtude, de sabedoria, de
pureza, de ascese, de paciência, se esperança, de concórdia e de louvor, porque foram
chamados por Ti em nome de Jesus Cristo, como na Trindade...
8. Renunciações: O bispo, tomando cada um dos baptizandos, que se voltam 4566
para o Ocidente, diz: «Diz: Renuncio a ti, Satanás, e a todo o teu culto, às tuas festas,
aos teus desejos e a todas as tuas obras». Depois de dizer isto e de o candidato ter
feito a profissão, unja-o com óleo do exorcismo, dizendo: «Unjo-te com este óleo
para te libertar de todo o espírito mau e impuro e para te libertar de todo o mal».
Volta-se então para o Oriente e diz-lhe: «Diz: Submeto-me a Ti, Pai, Filho e
Espírito Santo, diante de quem treme e tem medo toda a natureza. Dá-me a graça de
fazer sem mácula tudo o que Te agrada».
Profissão de fé. Quando o baptizando desce à água, aquele que baptiza impõe-lhe a
mão, dizendo: Crês em Deus, Pai todo-poderoso? O baptizando responde: Creio. E
imediatamente baptiza-o a primeira vez. O sacerdote diz: Crês em Jesus Cristo, Filho
de Deus, que veio do Pai, que está com o Pai desde o princípio, que nasceu da Virgem
Maria pelo Espírito Santo, que foi crucificado sob Pôncio Pilatos, foi morto, ressuscitou
de entre os mortos ao terceiro dia, subiu ao Céu, está sentado à direita do Pai e há-de
vir para julgar os vivos e os mortos? E quando ele tiver respondido: Creio, baptiza-o
a segunda vez. A seguir diz: Crês no Espírito Santo, na santa Igreja? O que é baptizado
diz: Creio. E baptiza-o a terceira vez.
Depois, ao subir da água, unja-o o presbítero com óleo sobre o qual foi recitada
a acção de graças 11, dizendo: «Unjo-te com óleo em nome de Jesus Cristo».
9. Confirmação. Invocação do Espírito Santo. Senhor Deus, que pelo vosso amado 4567
Filho Jesus Cristo encheste os teus santos Apóstolos com o teu Espírito Santo...,
torna estes teus servos dignos de ser repletos do teu Espírito Santo, dando-lhes a tua graça...
Depois, o bispo, derrama óleo e impõe a mão na cabeça do recém-baptizado,
dizendo: Unjo-te em Deus omnipotente, em Cristo Jesus e no Espírito Santo, para que
sejas um trabalhador cheio de fé perfeita e um vaso agradável. E, assinalando-o na
fronte, dá-lhe a paz, dizendo: O Deus dos humildes esteja contigo; e aquele que é
assinalado responde: E com o teu espírito. E procede de igual modo com cada um.
10. Comunhão. Todos, como dissemos, tomam uma parte da Eucaristia, que é 4568
oferecida, dizendo: Amen. Os diáconos agitam os abanos (ou fazem passar as píxides?).
E, como já se disse, aquele que dá a comunhão, diz: O Corpo de Jesus Cristo, o
Espírito Santo, remédio para a saúde da alma e do corpo. E aquele que recebe, responde:
Amen.

11
Crisma.
1086 SÉCULO V

Pseudo-Dionísio Areopagita

A hierarquia eclesiástica 1

CAPÍTULO II

II. O MISTÉRIO DA ILUMINAÇÃO

4569 2. Quando um homem se sente movido pelo amor das realidades que não são deste
mundo e nelas deseja tomar parte, começa por se aproximar de um dos iniciados.
Suplica-lhe que o apresente ao pontífice, prometendo total obediência a tudo o que lhe
for mandado, e pede-lhe que aceite o encargo da sua preparação e de tudo o que se
refere à sua vida futura... O outro..., apesar da angústia que sente, acaba por aceder ao
pedido que lhe é feito, e conduz o noviço àquele que tem o nome de pontífice. 3. O
pontífice acolhe-os com agrado... e prostra-se para adorar e louvar a Fonte única que
chama todos os escolhidos à sombra dos que se salvam. 4. Depois reúne os sacerdotes
no lugar sagrado..., e todos entoam um hino tirado das Santas Escrituras. Em seguida o
pontífice beija o altar, dirige-se ao candidato que está de pé e pergunta-lhe ao que veio.
5. Depois de o postulante ter respondido de acordo com as instruções do padrinho...,
o pontífice proclama que se ele quer aproximar-se do Deus perfeito e sem mancha deve
fazer dom total de si mesmo... Então impõe-lhe as mãos e assinala-o com o sinal da
cruz. Por fim ordena aos sacerdotes que registem o seu nome e o do padrinho. 6.
Terminada a inscrição pronuncia uma santa invocação..., e manda aos diáconos que
desapertem a cintura do postulante e lhe tirem a roupa. Volta-o então para o Ocidente,
de mãos estendidas na mesma direcção, em sinal de abjuração e, por três vezes, ordena-lhe
que sopre contra Satanás e a ele renuncie. Depois de (o pontífice) pronunciar três
vezes a fórmula que o outro repete depois dele, volta-o para o Oriente... 7. A seguir,
manda-o três vezes fazer profissão de fé, reza, abençoa-o e impõe-lhe de novo as
mãos. Então os diáconos despem-no completamente e os sacerdotes trazem o óleo
sagrado da unção. O pontífice começa por ungi-lo três vezes em forma de cruz, e
depois entrega-o aos sacerdotes para que lhe unjam todo o corpo, e vai até junto da
mãe de toda a adopção divina2. Santifica a água desta fonte com piedosas invocações,
e consagra-a com três infusões de óleo santíssimo em forma de cruz... Manda então
que o homem lhe seja trazido. Um dos sacerdotes pronuncia o seu nome em voz alta,
bem como o do padrinho... Então os sacerdotes conduzem o iniciando até à água e
entregam-no ao pontífice. Este, de pé, num lugar mais elevado, submerge-o três vezes.
A cada imersão, os sacerdotes repetem o nome do iniciado, e cada vez que este emerge,
o pontífice invoca as três Pessoas divinas. Então os sacerdotes tomam (o novo
baptizado) e entregam-no ao seu padrinho, promotor da sua iniciação. Juntamente
com ele, revestem o iniciado com uma veste conveniente e conduzem-no de novo ao

1
PSEUDO -D IONÍSIO A REOPAGITA, De ecclesiastica hierarchia (=PG 3, 369-584; HÄNGGI -P AHL , Fribourg 1968,
210-213; SCh 58 bis; A UBIER , Oeuvres complètes du Pseudo-Denys L’Aréopagite, Bibliothèque
Philosophique, Paris 1941; BAC 511, 189-265; E. LODI , Roma 1979, 529-532). Este documento, cujo
verdadeiro autor se desconhece, parece ser dos finais do século V, embora haja quem o considere muito mais
antigo. Trata sucessivamente do baptismo, da Eucaristia, do óleo, das ordenações, dos monges e dos fune-
rais. Colocamo-lo aqui, imediatamente antes da colecção das Orações eucarísticas.
2
O baptistério.
PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA 1087

pontífice. Fazendo-lhe o sinal da cruz com óleo consagrado, este proclama-o digno de
tomar parte na santíssima acção de graças3...
III. CONTEMPLAÇÃO

6. Os ritos hierárquicos simbolizam com exactidão as realidades sagradas. O 4570


pontífice, representante de Deus, começa a ungir o corpo do candidato com os santos
óleos, mas são os sacerdotes que concluem o sagrado rito da unção e convocam
simbolicamente o iniciado para as lutas piedosas que, doravante, ele vai travar sob a
direcção de Cristo... 7. Dá-te conta comigo e observa com atenção como os símbolos
exprimem os mistérios sagrados... É com toda a razão que se imerge completamente o
iniciado na água, para figurar quer a morte quer esta sepultura onde se perde toda a
aparência anterior. Por esta lição simbólica, aquele que recebe o sacramento do baptismo
e que por três vezes é mergulhado na água, aprende misteriosamente a imitar esta
morte que foi, durante três dias e três noites, o sepulcro de Jesus, Fonte de vida...
8. Seguidamente vestem o iniciado com vestes luminosas. A sua valentia e semelhança 4571
com Deus, e a sua decidida tensão para o Uno, tornam-no indiferente ao que se lhe
opõe. No seu interior, tudo o que era desordem se ordena, toma forma o que era
informe e a luz brilha em toda a sua vida. A consagração com o óleo perfuma o iniciado
com a suavidade do odor, porque a santa perfeição do nascimento de Deus nos iniciados
une-os ao Espírito hierárquico. Mas esta efusão é indescritível, pois é no plano
inteligível que tem lugar a sua acção perfumante e aperfeiçoadora...
Depois de terminar todos estes ritos, o pontífice convida o iniciado à santíssima
acção de graças4 e, desta forma, admite-o à comunhão dos mistérios que o hão-de
tornar perfeito.

CAPÍTULO III

I. O QUE ACONTECE NA COMUNHÃO 5

Mas continuemos. Dado que mencionámos a comunhão, estaria mal passar à 4572
frente e falar de qualquer outra função da hierarquia antes dela. Segundo o nosso
célebre mestre, ela é o sacramento dos sacramentos6. Depois de termos exposto, graças
aos conhecimentos bíblicos e à tradição hierárquica, as santas alegorias que lhe dizem
respeito, teremos de nos elevar, com as luzes do Espírito divino, até à santa
contemplação daquilo que ela é em verdade.
Consideremos, pois, santamente e em primeiro lugar, o motivo pelo qual o que é
comum também aos outros sacramentos hierárquicos se atribui a este de um modo
particular, pois o chamamos pura e simplesmente comunhão ou sinaxe, quando cada
uma das outras acções sacramentais também leva a nossa vida dispersa à única
divinização e a põe em comunhão e sinaxe com o Uno, mediante a união divina das
realidades individuais.
Nós dizemos que a participação nos outros símbolos hierárquicos alcança a sua
consumação nos divinos e perfeitíssimos dons da comunhão. Com efeito, é quase
impossível celebrar qualquer dos sacramentos hierárquicos sem que, no ponto culminante
de cada rito, a santíssima Eucaristia 7 realize, pela sua divina operação, a unificação

3
Na Eucaristia.
4
À celebração da Eucaristia.
5
su/nacij .
6
teletw= n teleth\ .
1088 SÉCULO V

espiritual com o Uno, daquele que recebe o sacramento, sem que ela lhe dispense da
parte de Deus os seus misteriosos poderes consumadores, sem que ela acabe por fazê-lo
entrar na comunhão com Deus. Na verdade, nenhum sacramento hierárquico é completo
em si mesmo e, por ser incompleto relativamente à consumação perfeita, também não
realiza sozinho a nossa comunhão e sinaxe com o Uno. Ora, como o fim e a coroa de
toda a iniciação é a comunicação dos divinos mistérios ao iniciado, com razão a ciência
sacerdotal agiu bem ao atribuir à comunhão um nome que significa, com toda a verdade,
a própria essência do seu agir.
Passa-se o mesmo em relação ao santo sacramento pelo qual Deus nasce em nós.
Dado que ele é o primeiro a comunicar a luz e a fonte de toda a iluminação divina, com
razão lhe damos, pelos seus efeitos, o nome adequado de iluminação. De facto, apesar
de ser comum a todas as acções sacramentais hierárquicas tornar os iniciados
participantes da luz divina, no entanto, este sacramento foi o primeiro que me concedeu
a graça de ver e foi a sua luz original que me permitiu contemplar a luz que os outros
sacramentos difundem.
Dito isto, elevemos as nossas almas e consideremos hierarquicamente, primeiro
o ritual do mais santo dos sacramentos e, em seguida, a contemplação que corresponde
a este ritual.
II. O MISTÉRIO DA SINAXE OU COMUNHÃO

4573 O pontífice, depois de dizer as orações sagradas diante do altar divino, começa
por incensá-lo. A seguir faz o circuito de todo o espaço do recinto sagrado e, voltando
de novo ao altar divino, entoa a melodia sagrada dos salmos. Toda a assembleia, nas
suas ordens hierárquicas, canta com o pontífice as sagradas palavras dos salmos.
Depois seguem-se, por ordem, as leituras da Sagrada Escritura8, feitas pelos ministros9.
Quando estas acabam, fazem-se sair os catecúmenos do recinto sagrado e, a seguir, os
possessos e os penitentes, ficando apenas os que são dignos da contemplação e da
comunhão dos mistérios divinos.
Entre os ministros alguns estão de pé, às portas do santuário, que eles se
encarregam de fechar10, enquanto outros fazem o que é próprio da sua ordem. Os mais
elevados em dignidade11 ajudam os sacerdotes a depor no altar dos divinos sacrifícios
o pão sagrado e o cálice da bênção, depois de toda a assembleia ter cantado o hino da
fé católica12. Nesse momento, o pontífice recita uma súplica sagrada e anuncia a todos
a santa paz, e, enquanto os assistentes trocam o beijo ritual, conclui-se a leitura
mística dos dípticos sagrados13. Logo que o pontífice e os sacerdotes acabam de lavar
as mãos com água, o pontífice vai para o meio do altar dos sacrifícios divinos, e os
primeiros de entre os ministros, juntamente com os sacerdotes, ficam de pé, à volta do altar.
A seguir, o pontífice louva as sagradas obras de Deus e depois realiza santamente
a obra dos mais divinos mistérios; é então que ele expõe publicamente, sob o véu dos
símbolos sagrados, a obra divina que acaba de realizar. Depois de ter mostrado os dons
das obras divinas, prepara-se para comungar santamente e exorta os outros a imitá-lo.
Por fim, depois de receber e repartir a divina comunhão, conclui com uma santa acção

7
su/nacij.
8
A Liturgia da Palavra, cujo ordenamento e número de leituras não são especificados. O original diz: «Os
ministros comemoram as santas tábuas».
9
Que ministros seriam? Leitores e diáconos?
10
Os ostiários ou porteiros.
11
Os diáconos.
12
O hino da fé católica é o Credo.
13
Onde figuravam os nomes das pessoas e intenções a recordar na celebração.
PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA 1089

de graças. E enquanto o povo apenas presta atenção aos símbolos divinos, ele, ao
contrário, inspirado pelo Espírito divino, em contemplações bem-aventuradas e
espirituais, como convém à dignidade hierárquica na pureza do seu estado divinizado,
eleva-se até Àquele que é a fonte do rito sacramental.
III. CONTEMPLAÇÃO

1. E agora, querido filho, depois destas imagens piedosamente submetidas à verdade 4574
do seu original divino, vou falar para instruir espiritualmente os novos iniciados.
Colocando-me ao seu nível direi que, a variedade diversificada dos símbolos sagrados,
por mais exterior que possa parecer, não deixa de ser útil à inteligência. O canto das
santíssimas Escrituras e as leituras comemorativas ensinam-lhes os preceitos duma
vida virtuosa e, em primeiro lugar, a necessidade de se purificarem totalmente da
malícia corrosiva. A divina distribuição do mesmo pão e do mesmo cálice, feita em
comum e pacificamente, estabelece a norma de que, tendo recebido o mesmo alimento,
o seu modo de viver há-de estar em plena conformidade com este divino manjar.
Também lhes recorda piedosamente a memória da Ceia santíssima, símbolo primordial
de todos os ritos. O próprio autor destes símbolos, com toda a razão, exclui do sagrado
banquete quem não vive na sua amizade. Deste modo ensina, divina e santamente, que
quando alguém se torna digno destes sagrados mistérios recebe a graça de se tornar
semelhante a eles e de entrar em comunhão com eles.
2. Deixemos, contudo, estes sinais aos não iniciados que, como já disse, estão 4575
magnificamente pintados nos vestíbulos dos santuários. Isso bastará para alimentar a
sua contemplação. Nós, ao contrário, quando pensarmos na santa comunhão, subamos
dos efeitos às causas e, graças às luzes que Jesus nos dará, poderemos contemplar
harmoniosamente as realidades inteligíveis nas quais se reflecte claramente a bem-
-aventurada e primordial Formosura. Tu mesmo, ó divino e Santíssimo Sacramento,
levanta os véus enigmáticos que simbolicamente te rodeiam. Mostra-te claramente ao
nosso olhar. Enche os olhos da nossa inteligência com a luz unificante e manifesta.
3. Convém, segundo creio, que penetremos agora nos sagrados mistérios e que 4576
declaremos o sentido das primeiras imagens. Contemplemos atentamente a formosura
que lhe dá a forma divina, e lancemos um olhar divino à dupla deslocação do pontífice,
enquanto se dirige, espalhando perfume, primeiro desde o altar dos divinos sacrifícios
até aos extremos do santuário e, depois, no seu regresso ao altar para fazer o sacrifício.
A bem-aventurada Deidade que transcende todo o ser, também procede gradualmente
para fora a fim de comunicar a sua bondade àqueles que recebem santamente a sua
participação. Deus ilumina os que se configuram o mais possível com Ele, mas
permanece realmente em Si mesmo, totalmente inamovível na sua própria identidade.
Assim acontece com o Santíssimo Sacramento da comunhão: continua a ser o que é,
único, simples, indivisível e, ao mesmo tempo, por amor dos homens, multiplica-se
numa sagrada variedade de símbolos. Mas em todos eles está a Deidade. Depois,
unificando-os todos, volta à sua própria unidade e confere a unidade a todos os que,
santamente, se aproximam dele.
Algo semelhante ocorre com o divino pontífice que transmite, com bondade, aos
seus súbditos, o conhecimento hierárquico que é peculiarmente seu, servindo-se de
muitos enigmas sagrados... Mentalmente caminha para o Uno. Contempla então, com
olhos puros, a unidade fundamental das realidades latentes nos ritos sagrados e volta-se
mais divinamente para as realidades primeiras 14...
4. A santa salmodia que acompanha quase todos os mistérios hierárquicos não podia 4577
faltar no mais hierárquico de todos. As leituras bíblicas encerram uma lição para os que são

14
Alusão ao pensamento platónico da processão e retorno.
1090 SÉCULO V

capazes de ser divinizados e estão enraizados nos sagrados e divinizantes sacramentos.


Ensinam que o próprio Deus dá substância e ordem a tudo o que existe, inclusive à
legítima hierarquia e sociedade15... Ensinam a ciência aos juízes santos, aos reis e aos
sacerdotes sábios que vivem em Deus16. Exprimem o poderoso e inquebrantável ponto
de vista que deu capacidade aos nossos antepassados para ultrapassarem variadas e
numerosas desgraças17. Delas provêm sábias normas de vida 18, o cântico que descreve
gloriosamente o amor divino19, as predições proféticas do futuro, as obras divinas de
Jesus feito homem20, os actos e os ensinamentos dos seus discípulos21, a visão secreta
e mística daquele homem inspirado que foi o discípulo amado22 e a transcendente
doutrina de Jesus23... 5. Os cânticos sagrados, que resumem as verdades mais santas,
quando nos fazem sintonizar com Deus, preparam serenamente o nosso espírito para
nos porem em sintonia com os mistérios que vamos celebrar e, desse modo, não só nos
põem em harmonia com as realidades divinas, mas também connosco próprios e com
os outros, de modo a podermos formar um coro homogéneo de homens santos. Então,
qualquer sentença breve, mesmo que seja obscura, que faça parte dos cânticos ou da
salmodia, amplia-se por imagens múltiplas e inteligíveis e por aclamações de leituras
sagradas. Se considerarmos piedosamente estes textos sagrados, dar-nos-emos conta
de que existe neles unidade e concórdia, cuja fonte é o Espírito divino. Assim se
justifica o costume de proclamar ao mundo o Novo Testamento, depois do Antigo
Testamento. Parece-me que esta ordem, proveniente de Deus e determinada pela
hierarquia mostra como um previu as obras de Jesus e o outro descreve a sua realização.
Um descreve a verdade em imagens, ao passo que o outro mostra como as coisas
aconteceram. A verdade do que é anunciado por um confirma-se com os acontecimentos
que o outro refere. As obras de Deus dão cumprimento à palavra de Deus...
4578 7. A multidão dos possessos tem, certamente, algo de profano. Apesar disso, ocupa o
segundo lugar superior aos catecúmenos, que são os últimos. Segundo o meu modo de ver,
não pode comparar-se o estado de quem não recebeu a iniciação nem tomou parte em
nenhum sacramento, com outro que recebeu alguns, mas voltou a cair por excessiva actividade
ou por preguiça. Contudo, também a eles se proíbe, tanto como aos catecúmenos, contemplar
os mistérios santíssimos e entrar em comunhão com eles. E está certo... E por isso eu creio,
ou melhor, conheço-o por experiência, que os membros da hierarquia, nos seus juízos
perfeitamente sadios, entendem que os possessos, ao renunciarem às suas vidas divinas,
adoptaram em vez delas as ideias e costumes dos abomináveis Demónios, e se encontram
na pior das escravidões... Estes são os primeiros e, com toda a razão, a quem o ministro
encarregado24 faz sair, porque não está certo que eles assistam a nenhum momento da
celebração, excepto à leitura das Escrituras, destinadas a convertê-los a bens mais essenciais.
A Divina Liturgia, ao fim e ao cabo, não é deste mundo. Ela até rejeita os penitentes, apesar
de eles já terem participado nos mistérios. Só permite que entrem os santos. Na sua
perfeita pureza exclama: «Sou invisível e excluo da comunhão aqueles que, por qualquer
imperfeição, não chegam ao cume da conformidade com Deus». Esta voz puríssima afasta
também aqueles que não conseguem estar de acordo com os que participam dignamente nos
mais sagrados mistérios...

15
Alusão aos livros do Génesis, Êxodo e Levítico. Dionísio nunca menciona os livros da Bíblia.
16
Alusão aos livros dos Juízes, Reis e Crónicas.
17
Alusão ao livro de Job.
18
Alusão aos livros sapienciais.
19
Alusão ao livro da Sabedoria.
20
Alusão aos Evangelhos sinópticos.
21
Alusão ao livro dos Actos e às Epístolas.
22
Alusão ao livro do Apocalipse.
23
Alusão ao quarto Evangelho.
24
O exorcista.
PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA 1091

Os primeiros a quem se deve mandar sair do templo e excluir duma celebração


sagrada que ultrapassa os seus méritos são os não iniciados nem consagrados
sacramentalmente; a seguir, os que abandonaram a prática da vida cristã; depois, os
homens sem virilidade que sucumbem cobardemente face aos temores e fantasias
adversas e que, incapazes de perseverar firmes, deixaram de se aproximar dos santos
mistérios que lhes teriam proporcionado divinização forte e perseverante; seguem-se
os que renunciaram a viver em pecado, mas que ainda não se purificaram dos maus
pensamentos, pois não conseguiram ainda, de maneira duradoira, o desejo amoroso e
imaculado de Deus; por último, aqueles que ainda não conseguiram a unificação, mas
que, para empregar a linguagem da Lei, não são nem totalmente irrepreensíveis nem de
todo impecáveis25.
Depois de tudo isto, os ministros e os piedosos assistentes contemplam
devotamente o Santíssimo Sacramento e entoam o cântico de louvor mais universal em
honra d’Aquele que é fonte e dispensador de todo o bem, fundador dos sacramentos da
nossa salvação, com os quais se divinizam os que os recebem. Uns chamam a este hino
cântico de louvor, outros Símbolo de adoração, outros, segundo me parece mais
divinamente, acção de graças hierárquica, porque resume em si todos os dons sagrados
que devemos a Deus26. A meu juízo, este cântico celebra tudo quanto Deus fez por nós.
Recorda-nos que devemos à bondade de Deus o que somos e a nossa vida; que Ele nos
criou à imagem da sua eterna Formosura e tornou participantes das suas propriedades
divinas, para nos elevar espiritualmente. Também nos recorda que Deus, quando por
nossa loucura perdemos os dons divinos, Se preocupou em restaurar a nossa primeira
condição oferecendo-nos novos dons. Deu-nos a mais perfeita participação da sua
natureza divina ao assumir plenamente a nossa. Deste modo, Deus concedeu-nos a
graça de estar em comunicação com Ele e com todas as realidades divinas.
8. Depois de ter sido santamente celebrado o amor de Deus pelos homens apresenta-se, 4579
coberto com um véu, o pão divino juntamente com o cálice da salvação. Troca-se o
beijo da paz. Segue-se a proclamação mística e transcendente dos livros santos. Porque
é impossível congregar-se no Uno e partilhar pacificamente a união com Ele enquanto
estivermos divididos entre nós. Pelo contrário, se a contemplação e o conhecimento do
Uno nos ilumina, poderemos unificar-nos e conseguir a verdadeira união com Deus;
nunca chegaremos a cair na divisão dos corações, fonte de hostilidade material e
apaixonada entre iguais. Esta é, a meu ver, a vida unificante e indivisível que requer o beijo
da paz que une os semelhantes e proíbe a união divina e unificante aos que estão divididos.
9. A seguir à paz faz-se a proclamação dos dípticos sagrados, onde se comemoram 4580
os nomes daqueles que viveram santamente e que, pelos seus contínuos esforços,
mereceram a perfeição de uma vida virtuosa. Deste modo, somos atraídos e estimulados
a seguir o seu exemplo, adoptando um género de vida que nos proporcione maior
felicidade e a paz que resulta da configuração com Deus. Esta comemoração proclama
vivos entre nós, como nos ensina a Escritura, aqueles que passaram da morte para a
vida divina mais perfeita.
Tem em conta que se estes nomes são escritos nas listas comemorativas, não é
porque Deus tenha necessidade, como nós, de trazer à memória imagens que os recordem.
O que se pretende dar a entender de modo conveniente é que Deus honra e conhece
para sempre aqueles que chegaram a ser perfeitos, por se terem identificado com Ele.
Como diz a Escritura: O Senhor conhece os que são seus27, e também: É preciosa aos

25
Distinguem-se aqui três classes de pessoas: os catecúmenos, os possessos e os penitentes.
26
Trata-se do Credo, Símbolo da fé redigido no concílio de Constantinopla com adições do Símbolo de
Niceia. A introdução do Símbolo na Divina Liturgia aconteceu primeiro no Oriente, no ano 476, muito
antes de o mesmo vir a acontecer no Ocidente.
27
2 Tim 2, 19.
1092 SÉCULO V

olhos do Senhor a morte dos seus fiéis28. Diz-se morte dos seus fiéis em vez de
consumação na santidade. Considera também devotamente que se lêem os nomes dos
santos ao colocar no altar de Deus os símbolos sagrados pelos quais Cristo Se torna
presente e é recebido em comunhão. Fica assim claro que estão inseparavelmente
unidos a Ele em sagrada e transcendente união.
4581 10. Depois de realizar, segundo o rito sagrado, o que acabamos de dizer, o pontífice,
de pé, diante dos símbolos santíssimos, lava as mãos com água e o mesmo fazem os
sacerdotes. Como diz a Escritura, aquele que está limpo não tem necessidade de lavar
senão as pontas ou as extremidades29. Graças a esta purificação ritual das extremidades,
o pontífice permanece na pureza total de conformidade com Deus, e poderá proceder
imediatamente aos trabalhos ordinários e permanecer livre e sem mancha. Por estar
perfeitamente unificado, pode dirigir-se imediatamente ao Uno, pois está bem
compenetrado graças à conversão pura e sem mancha que mantém a plenitude e
constância da sua conformidade com Deus.
Já disse que a purificação sagrada acontecia certamente na hierarquia da Lei e,
por isso, lavam agora as mãos o pontífice e os sacerdotes. Os que se aproximam desta
sacratíssima acção estão obrigados a purificar-se, mesmo das últimas imaginações que
tenham obscurecido a alma, e a celebrar os sagrados mistérios, na medida do possível,
com pureza proporcionada aos mesmos. Deste modo, a sua iluminação aumentará com
visões mais divinas, porque aqueles raios transcendentes preferem difundir a plenitude
do seu esplendor mais pura e luminosamente sobre espelhos formados à sua imagem.
O pontífice e os sacerdotes lavam as mãos ou as pontas dos dedos diante dos
símbolos sagrados, para significar que Cristo conhece todos os nossos pensamentos,
mesmo os mais secretos, e que foi Ele próprio, com o seu olhar penetrante e seus
juízos perfeitamente justos, que determinou esta purificação ritual. Deste modo o
pontífice unifica-se com as realidades divinas. Depois de entoar louvores pelas obras
de Deus, faz a consagração e eleva os mistérios sagrados para que os contemplem.
4582 11. Vou agora explicar, dentro das minhas possibilidades, as obras divinas que nos
dizem respeito. Não me é possível dizê-las todas, nem sequer conhecê-las claramente,
para que outros penetrem nos seus mistérios. Mas, implorando a assistência da hierarquia
e com a sua inspiração poderei, ao menos, mencionar aquelas que os pontífices, que
são homens de Deus, realizam na sua liturgia, de acordo com as Santas Escrituras.
Desde o princípio, a natureza humana perdeu os dons com que Deus a tinha
enriquecido... Em vez da eternidade preferiu a morte... Mas a bondade divina, levada
pelo seu infinito amor ao homem, não cessou jamais de lhe oferecer os seus dons
providenciais. Assumiu integralmente as propriedades da nossa natureza, excepto o
pecado... Isto permitiu-nos, como membros da mesma família, entrar em comunhão
com a divindade e participar da sua própria formosura... Misericordiosamente Deus
mudou por completo a nossa situação... Salvou a nossa natureza de um quase total
naufrágio... E, por fim, mostrou-nos um caminho de vida sobrenatural, configurando-nos
com Ele em tudo o que a nossa natureza pode alcançar.
4583 12. Haverá melhor maneira de conseguir esta imitação de Deus do que através da
memória contínua das suas obras santas, com os hinos sagrados e as acções litúrgicas
estabelecidas pela hierarquia? Como dizem as Escrituras, fazemo-lo em sua memória30.
É por isso que o pontífice, homem de Deus, mantendo-se de pé diante do altar
dos divinos sacrifícios, celebra, como já disse, as obras de Deus, as obras que Jesus
levou a cabo gloriosamente, realizando aqui a sua mais santa Providência para a salvação

28
Sal 115, 15.
29
Cf. Jo 13, 10.
30
1 Cor 11, 24; Lc 22, 19.
PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA 1093

do género humano. Fá-lo com o assentimento do Pai santíssimo e no Espírito Santo,


como diz a Escritura31. O pontífice considera estas coisas com um olhar contemplativo
e procede à consagração dos símbolos segundo as regras instituídas pelo próprio Deus.
É por isso que, ao mesmo tempo que celebra os sagrados louvores das obras divinas,
pede perdão, como fica bem a um pontífice, por servir de instrumento a uma liturgia
que o ultrapassa. Na sua piedade começa por exclamar: «Foste Tu que disseste: ‘Fazei
isto em memória de Mim’».
Em seguida pede a Deus que o torne digno de realizar, à semelhança de Deus,
esta divina operação e que, como o próprio Cristo, possa celebrar os sagrados mistérios.
Pede igualmente por todos aqueles que neles tomarão parte para que o façam sem
sacrilégio. Depois consagra os mais divinos mistérios e apresenta aos olhos de todos
os mistérios que acaba de realizar sob as espécies simbolicamente presentes. O pão
estava até aqui coberto e inteiro: ele descobre-o e divide-o em numerosas partes; do
mesmo modo ele participa com todos do único cálice, multiplicando e distribuindo
simbolicamente Aquele que é Uno, o que constitui a acção mais sagrada de toda a liturgia.
Na sua bondade e amor pelos homens, a Unidade simples e misteriosa de Jesus,
Verbo perfeitamente divino, tornou-Se, pelos caminhos da Encarnação e sem sofrer
qualquer alteração, uma realidade composta e visível. Generosamente admitiu-nos à
sua comunhão unificante. Uniu a nossa baixeza com a grandeza da sua Divindade. A
esta nos devemos unir como membros de um mesmo corpo, identificando-nos com Ele
por uma vida sem pecado. Não podemos entregar-nos à morte sucumbindo à corrupção
das paixões, nem devemos quebrar a harmonia reinante entre os membros perfeitamente
sãos do corpo divino, privando-nos da união com eles...
13. É isto o que o pontífice ensina ao realizar os ritos da sagrada liturgia, quando 4584
retira publicamente o véu que cobre os dons, quando divide em partes múltiplas a
unidade primitiva; quando distribui o sacramento que unifica perfeitamente os que o
recebem. Ao apresentar Jesus Cristo aos nossos olhos, mostra-nos, de modo sensível
e como que em imagem, o que é a vida da nossa inteligência; revela-nos como o próprio
Cristo saiu do seu misterioso santuário divino para assumir, por amor ao homem, a
figura de homem, para encarnar completamente entre nós sem se manchar em nada.
Mostra-nos como desceu sem deixar de ser o que era... Manifesta-nos como, por amor
de nós..., toda a humanidade está convidada à comunhão com Ele e com os bens que
Lhe pertencem... Convida-nos a atingir a perfeição e a entrar verdadeiramente em
comunhão com Deus e seus divinos mistérios.
14. Depois de ele próprio ter tomado parte na comunhão hierárquica e de a distribuir,
o pontífice conclui a cerimónia dando graças com toda a assembleia santa. De facto, a
participação do pontífice precede a participação aos fiéis, e a sua própria recepção dos
mistérios antecede a mística distribuição dos mesmos feita, por ele. Esta é a ordem
universal e a organização que convém às realidades divinas. Em primeiro lugar deve
comungar o pontífice, saciando-se dos dons sagrados que Deus mandou dar a outros e,
só depois, os reparte aos demais.
O mesmo acontece com as normas de uma vida verdadeiramente divina. Não é
santo quem se atreve a ensinar a outros a santidade sem estar acostumado a praticá-la
primeiro. Isso é completamente alheio às normas sagradas. Se Deus não inspirou,
escolheu e chamou alguém para ser guia, se alguém não atingiu ainda perfeita e sólida
divinização, não deve arrogar-se o ofício de director...
15. Deste modo, reunidas as diferentes ordens hierárquicas e depois de todos terem 4585
comungado dos divinos mistérios, concluem a cerimónia com uma piedosa acção de
graças, confessando cada um, na medida das suas capacidades, as graças que a acção

31
Mt 3, 17; Mc 1, 11; Lc 3, 22.
1094 SÉCULO V

divina nele realiza. Quem não participa nos mistérios divinos e os não confessa não
pode, naturalmente, dar graças, apesar de aqueles diviníssimos dons serem, por sua
própria natureza, dignos de toda a acção de graças. Mas, como já o disse, os homens
inclinados para o mal não fazem caso dos dons de Deus. A sua impiedade torna-os
ingratos em relação às graças infinitas que devemos dar a Deus pelas suas obras. Diz a
Escritura: Provai e vede. Depois de se instruírem santamente nos dons de Deus, os
iniciados reconhecerão os grandes dons que receberam e, quando os receberem,
contemplarão como são esplêndidos. Descobrirão nesse momento a sua excelência,
infinita grandeza e magnificência. Só então poderão celebrar e agradecer os benefícios
celestiais da Divindade.

CAPÍTULO IV

O que se realiza graças aos santos óleos


e as consagrações para que eles servem
III. CONTEMPLAÇÃO

4586 1. Creio que este rito de consagração contém um ensinamento espiritual no modo
como se administra santamente a unção divina. Mostra-nos que os homens piedosos
guardam a fragrância da santidade no segredo das suas almas... 2. Continuemos. Já
vimos a beleza exterior da esplêndida e sagrada cerimónia. Fixemo-nos agora na sua
divina formosura... Os que rodeiam o pontífice têm o direito de assistir inteiramente à
consagração dos santos óleos. Não lhes é proibido participar e contemplar... Mas
estão obrigados a ocultá-lo, evitando que esteja ao alcance do povo, pois assim o
mandam as leis da hierarquia... Mais ainda, para evitar qualquer profanação por parte
de quem não vive em conformidade com Deus, os que secretamente contemplam o
inteligível ocultam os santos óleos... 3. Como já foi dito, o rito litúrgico do qual
cantamos agora os louvores está colocado tão alto, possui um tal poder, que se utiliza
nas consagrações hierárquicas. Mais ainda: como em dignidade e eficácia se equipara
aos sagrados mistérios da comunhão, os nossos santos mestres serviram-se quase das
mesmas imagens para o descrever, e deram-lhe a mesma importância cerimonial e os
mesmos cânticos. Por isso, o pontífice desce do seu venerável assento, difunde o odor
de suavidade até às partes menos sagradas do templo, para depois voltar ao seu ponto
de partida e ensinar dali que todo o povo é santo... De igual modo, os cânticos e
leituras bíblicas vão preparando os não iniciados para a filiação vivificante. Promovem
a santa conversão nos possessos impuros. Livram os cobardes das temíveis maldades
do inimigo. Ensinam a todos a viver o melhor que podem segundo Deus... 4. Que mais?
Não sucede na consagração dos óleos como nos próprios ritos da comunhão? Mandam-
-se sair as ordens que ainda não estão purificadas... Estes mistérios só se apresentam
em imagem aos santos... Falta-nos dizer que os santos óleos são preparados com
misturas de substâncias aromáticas. Contêm ricos perfumes que os participantes
percebem cada um à sua maneira. Deste modo aprendemos que o bálsamo essencial do
divino Jesus difunde os seus dons sobre as nossas faculdades intelectuais, enchendo-
as de suave deleite... A composição dos santos óleos é simbólica, dando forma aos que
a não tem. Ensina-nos, através de símbolos, que Jesus é a fonte fecunda das fragrâncias
divinas... 10. O santo óleo usa-se para consagrar todas as coisas, manifestando assim,
claramente, que, como diz a Escritura, Aquele que consagra todas as coisas permanece
o mesmo para sempre através de todas as acções da sua divina bondade... 11. Depois
de nos iniciarmos santamente no sacramento do divino nascimento, com a unção
perfumante dos santos óleos recebemos a visita do Espírito Santo... 12. Adverte
também nisto. Segundo as leis dos santos sacramentos, consagra-se o altar de Deus
derramando azeite sobre ele. O sentido de tudo isto há que buscá-lo para além dos
PSEUDO-DIONÍSIO AREOPAGITA 1095

Céus, por cima de todo o ser: está naquela fonte, naquela essência, naquele poder
consumador que causa toda a santidade em nós. Porque é no próprio Jesus, nosso
diviníssimo altar, que se obtém a consagração dos seres inteligentes...

CAPÍTULO V

II. MISTÉRIO DA CONSAGRAÇÃO DAS ORDENS SAGRADAS

O futuro pontífice, antes de receber a consagração pontifical, dobra os dois 4587


joelhos ao pé do altar dos sacrifícios. Tem sobre a cabeça as Escrituras que o próprio
Deus revelou, assim como a mão do pontífice que o consagra. Este último procede
então à consagração através de santíssimas invocações.
O futuro sacerdote dobra igualmente os dois joelhos diante do altar dos divinos
sacrifícios. O pontífice impõe-lhe a mão direita e é então que o pontífice realiza a
consagração através de invocações santificantes.
O futuro diácono ajoelha só com um só joelho diante do altar dos divinos sacrifícios.
Sobre a sua cabeça, o pontífice coloca a sua mão direita e é então que ele o consagra
através de invocações correspondentes à sua função de diácono.
Cada um deles recebe, do pontífice consagrante, o sinal da cruz, a oração e a
saudação final. Cada um deles é saudado pelos membros do clero presentes que
pertencem à respectiva ordem, juntamente com o pontífice consagrante.
III. CONTEMPLAÇÃO

1. As coisas comuns na consagração dos pontífices, dos sacerdotes e dos diáconos 4588
são estas: o acesso ao altar divino, a genuflexão dos joelhos, a imposição das mãos do
pontífice, o sinal da cruz, a oração (consecratória) 32 e a saudação final. Próprio do
bispo é a imposição das Escrituras sobre a cabeça, que as ordens inferiores não têm;
próprio dos sacerdotes é o ajoelhar com ambos os joelhos, que a consagração dos
diáconos não tem; quanto aos diáconos, como já se disse, ajoelham só com um dos
joelhos. 2. A apresentação e a genuflexão diante do altar ensinam a todos os que
recebem a consagração sacerdotal que hão-de consagrar plenamente as suas vidas a
Deus, fonte de toda a consagração... 3. A imposição das mãos do pontífice significa que
as ordens recebem os seus atributos e poderes... d’Aquele que é a fonte de protecção
para todo o consagrado... 4. O sinal da cruz significa a renúncia a todo o desejo carnal
e indica uma vida entregue à imitação de Deus, firmemente orientada para a vida divina
de Jesus, Verbo encarnado... 5. A proclamação que o pontífice faz a respeito da
ordenação e aos ordenados significa o mistério da eleição divina... 6. O beijo no final da
ordenação sacerdotal tem também um sentido sagrado. Beijam o recém-ordenado os
clérigos assistentes e o pontífice consagrante. Quando uma inteligência santa, por
qualidades e poderes dignos da sua função sagrada, por sua vocação divina, pelo
sacramento que se confere, chega à dignidade sacerdotal, merece o amor dos seus iguais
e de todos os que pertencem às ordens mais sagradas... 7. Só ao pontífice se lhe
impõem as Escrituras sobre a cabeça. Os pontífices, homens de Deus, possuem pleno
poder sacerdotal para santificar e ensinar. Quem lho confere é a bondade divina, fonte
de toda a santidade. Por isso se lhe impõem sobre a cabeça as Escrituras que Deus nos
entregou e nos revelam tudo o que podemos conhecer de Deus... 8. O ajoelhar indica a
humildade com que o postulante se aproxima para se colocar sob a protecção divina...
A ordem dos diáconos, cuja missão é apenas a de purificar, deve aproximar-se dos já
purificados e dobrar um só joelho... Mas os sacerdotes dobram ambos os joelhos

32
Praedicatio.
1096 SÉCULO V

porque a sua missão não se limita à purificação dos que se aproximam. Elevando-os
por meio das acções litúrgicas que eles celebram, depois de os terem purificado de toda
a mancha, os sacerdotes aperfeiçoam-nos para que possuam a propriedade estável de
poder entrar em contemplação...

CAPÍTULO VI

III. CONTEMPLAÇÃO

4589 1. O monge não se ajoelha nem se lhe impõem as Escrituras sobre a cabeça. O facto
de estar de pé enquanto o sacerdote pronuncia a invocação, significa que a ordem
monacal não tem o ofício de dirigir outros, mas se identifica como estado de santa
solidão, fazendo o que lhe mandem os sacerdotes e, como seus companheiros, podendo
chegar facilmente à ciência divina dos mistérios a que possa assistir 2. A renúncia a
todas as actividades e fantasias que pudessem levá-lo a uma vida de divisão consigo
mesmo, exprime a mais perfeita sabedoria da vida monástica... 3. O sinal da cruz
proclama, como já disse, a morte de todo o desejo carnal. A tonsura simboliza uma vida
pura e perfeitamente libertada... 4. O despojar-se do antigo vestuário e o pôr-se outro
diferente representa a passagem da vida santa da ordem mediana a outra de maior
perfeição... O beijo que o sacerdote e os outros assistentes dão ao iniciado é símbolo
do santo estado de comunhão em que se unem todos os configurados com Deus... 5. Ao
concluir estas cerimónias, o sacerdote convida os iniciados a tomar parte na comunhão
com Deus...

CAPÍTULO VII

Os ritos dos defuntos


III. CONTEMPLAÇÃO

4590 1. Se os pagãos vissem e ouvissem estas cerimónias pelos nossos defuntos, creio
que se ririam com vontade e teriam pena dos nossos erros. Isto não nos deve surpreender,
pois, como diz a Escritura: Se não tendes fé, não entendeis... 2. Os cânticos e as leituras
das promessas divinas falam, antes de mais, da bem-aventurança e da paz de que
gozarão para sempre os que chegam à perfeição... 3. Nota que, nesta cerimónia, não se
manda sair, como de costume, a todos os que estão em vias de purificação. Só os
catecúmenos são excluídos do recinto sagrado. Eles não estão ainda iniciados em nenhum
dos sacramentos e estaria mal que os admitíssemos em qualquer cerimónia... 4. Quando
o pontífice chega, faz uma oração sagrada pelo defunto. Terminada a oração, o próprio
pontífice beija o defunto e a seguir, por ordem, fazem o mesmo todos os que estão
presentes. Na oração ele suplica à divina bondade que perdoe todos os pecados que o
defunto, por fraqueza humana, possa ter cometido, o transfira para a luz santa e para
a terra dos vivos, e o coloque no seio de Abraão, de Isaac e de Jacob, no lugar donde
foram expulsos a dor, a tristeza e os gemidos. 5. São estes, creio eu, os prémios mais
ditosos dos santos. Na verdade, o que é que pode comparar-se com a imortalidade livre
de toda a pena e totalmente luminosa?... 6. Mesmo que estejas de acordo com o que eu
digo, poderás responder que não compreendes a razão pela qual o pontífice suplica à
Bondade de Deus que perdoe os pecados do defunto e lhe conceda a mesma ordem e o
mesmo destino luminoso daqueles que viveram em conformidade com Deus. Se cada
um, com efeito, recebe da justiça divina recompensa pelo bem ou pelo mal que fez
nesta vida..., então qual seria a oração com que o pontífice poderia conseguir para o
defunto uma mudança de estado diferente daquele que merecera durante esta vida? Eu
ORAÇÃO EUCARÍSTICA DE HIPÓLITO DE ROMA 1097

sei que cada um receberá o que merece... A verdadeira doutrina da Escritura transmite-nos
o facto de que as orações do justo só aproveitam àqueles que o mereceram nesta vida,
não depois de morrer... No entanto, de acordo com as Escrituras, afirmo que as orações
dos santos nesta vida são muito proveitosas para quem deseja os dons de Deus, se
dispõe a recebê-los e que, consciente da sua fragilidade, busca a ajuda de uma pessoa
piedosa e se encomenda às suas orações... 8. Quando tudo fica concluído, o pontífice
e os demais acompanhantes dão o beijo da paz ao defunto, pois os que vivem segundo
Deus mostram-se respeitosos com os que levaram uma vida santa. A seguir, depois do
beijo, o pontífice unge com óleo o corpo do defunto... 9. Logo depois destas cerimónias,
o pontífice deposita o corpo em lugar de honra... 10. Quanto às invocações
consecratórias, seria impróprio pôr por escrito o que significam, nem se pode revelar
publicamente o sentido oculto e o poder de Deus que contêm... 11. Poderás dizer, no
entanto, que o facto de admitir as crianças ao sacramento do nascimento de Deus na
alma e à sagrada comunhão, apesar da sua incapacidade para entender os mistérios
divinos, pode ser objecto de riso para os ímpios. Efectivamente, poderia parecer que
o pontífice ensina os mistérios divinos a quem os não pode entender... E ainda mais
ridículo lhes parece o facto de que outros, em vez das crianças, respondam às renúncias
e promessas sagradas. Tu, como pontífice, entende-lo e não deves aborrecer-te com os
que estão enganados. Deves antes procurar guiá-los até à luz, refutando amavelmente
as suas objecções e explicando-lhes... que o nosso conhecimento está longe de abarcar
todos os mistérios divinos... Estão muito enganados os que se riem disto, pensando
que os padrinhos se iniciam nos mistérios em vez das crianças. Na realidade, eles não
dizem «eu faço as renúncias e promessas da criança», mas sim que «a própria criança
é que se compromete». Com efeito, equivale a dizer: «Prometo que quando esta criança
puder entender as verdades sagradas, a instruirei e formarei com os meus ensinamentos,
de tal modo que ela renuncie às tentações do Demónio e se obrigue a pôr em prática as
santas promessas». Não há, pois, nada de absurdo no facto de uma formação espiritual
acompanhar o desenvolvimento da criança. Isto pressupõe, naturalmente, que haja um
chefe e padrinho que forme santos hábitos na criança e a defenda das tentações do
Diabo. O pontífice admite a criança a participar nos símbolos sagrados para que, com
eles, se alimente espiritualmente, passe toda a vida em contínua contemplação dos
sagrados mistérios, progrida espiritualmente ao estar em comunhão com eles, adquira
uma santa e perseverante forma de vida e cresça, em santidade, guiado por um padrinho
exemplar, cuja vida esteja em conformidade com Deus...

Oração eucarística
de Hipólito de Roma 1

(Ver n. 778) 4591

1
Oração eucarística de Hipólito de Roma (=H IPÓLITO DE R OMA , Tradição Apostólica). A Oração eucarística
de Hipólito de Roma é a mais antiga de quantas até hoje nos são conhecidas. Dirigida ao Pai, tem no
centro os mistério de Cristo, e o Espírito Santo é invocado sobre as oblações, a Igreja e os comungantes.
A ausência de Sanctus é sinal da sua antiguidade e também de que esse elemento não é primitivo na Oração
eucarística cristã, facto aliás confirmado pela mais antiga Anáfora oriental, a de Addai e Mari, contemporânea
da Oração eucarística de Hipólito de Roma.
1098 SÉCULO V

Oração eucarística
de Ambrósio de Milão 1

(Ver nn. 2024-2025 + 6762-6770)


NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

4592 Queres ficar convencido de que se consagra por meio de palavras celestes? Aqui tens
essas palavras. Diz o sacerdote: «Concede-nos que esta oferenda seja aprovada, espiritual,
agradável, porque ela é a figura do Corpo e do Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo. Na
véspera da sua Paixão, Ele tomou o pão em suas santas mãos e, levantando os olhos ao céu,
para Ti, Pai santo, Deus todo-poderoso e eterno, dando graças abençoou-o, partiu-o e deu-o
aos seus Apóstolos e aos seus discípulos, dizendo: Tomai, todos, e comei, porque isto é o meu
Corpo, que será entregue por vós2». 22 Presta atenção: «De igual modo, no fim da Ceia, na
véspera da sua Paixão, tomou o cálice e, levantando os olhos ao céu, para Ti, Pai santo, Deus
todo-poderoso e eterno, dando graças, abençoou-o e deu-o aos seus Apóstolos e aos seus
discípulos, dizendo: Tomai, todos, e bebei, porque isto é o meu Sangue3». 26 Aprende, depois,
qual é a grandeza deste sacramento. Presta atenção ao que ele diz: «Todas as vezes que
fizerdes isto, fazei-o em memória de Mim, até que Eu venha4».
ANAMNESE E OFERTA

E o sacerdote diz: «Recordando, pois, a sua santíssima Paixão, a sua Ressurreição dos
infernos e a sua Ascensão ao Céu, nós Te oferecemos esta vítima sem mancha, esta vítima
espiritual, esta vítima incruenta, este pão sagrado e o cálice da vida eterna5, e Te pedimos e
suplicamos que aceites esta oblação pelas mãos dos teus Anjos sobre o teu altar celeste, como
Te dignaste aceitar os dons do justo Abel, teu servo, o sacrifício do nosso pai Abraão e aquele
que Te ofereceu o sumo sacerdote Melquisedec6».
DOXOLOGIA FINAL

O Senhor nosso Deus vos guarde na graça que vos deu e Se digne esclarecer mais
completamente os olhos que Ele abriu, pelo seu único Filho, Rei e Salvador, o Senhor nosso
Deus, por quem e com quem Ele possui louvor, honra, glória, majestade, poder, com o Espírito
Santo, desde sempre, agora e para sempre por todos os séculos dos séculos. Amen.

1
Oração eucarística de Ambrósio de Milão (=A MBRÓSIO DE M ILÃO , De Sacramentis). Nas passagens da
Oração eucarística descritas por Ambrósio de Milão no seu tratado De Sacramentis, temos o testemunho
mais antigo de algumas das expressões utilizadas no Cânone Romano. Ver Os Sacramentos Livro IV, 5, 21-
22; 6, 26-27; Livro VI 5, 25
2
Vis scire, quam verbis caelestibus consecretur? Accipe, quae sunt verba. Dicit sacerdos: Fac nobis hanc
oblationem scriptam, rationabilem, acceptabilem, quod est figura corporis et sanguinis Domini nostri
Iesu Christi. Qui pridie quam pateretur, in sanctis manibus suis accepit panem, respexit ad coelum, ad
te, sancte Pater omnipotens seterne Deus, gratias agens benedixit, fregit, fractumque apostolis et
discipulis suis tradidit dicens: Accipite et edite ex hoc omnes, hoc est enim corpus meum quod multis
confringetur.
3
Adverte. Similiter etiam calicem postquam cenatum est, pridie quam pateretur, accepit, respexit ad
caelum, ad te, sancte Pater omnipotens aeterne Deus, gratias agens benedixit, apostolis et discipulis
suis tradidit dicens: Accipite et bibite ex hoc omnes, hic est enim sanguis meus; cf. Mt 26, 26-28; Mc 14,
12-16; Lc 22, 19-20; 1 Cor 11, 23-25.
4
1 Cor 11, 26. Deinde quantum sit sacramentum, cognosce. Vide, quid dicat: Quotienscumque hoc feceritis,
totiens commemorationem mei facietis, donec iterum adveniam.
5
Esta primeira parte é anamnese.
6
Esta oração corresponde ao Supra quae e ao Supplices da missa romana.
ORAÇÕES EUCARÍSTICAS 1099

Oração eucarística
do Rito Galicano 1

(Ver nn. 6801-6805) 4593

Oração eucarística
do Rito Toledano ou Hispânico 2

(Ver nn. 6863-6868 + 6893-6897) 4594

Oração eucarística
do Rito Celta 3

(Ver nn. 6827-6832) 4595

1
Oração eucarística do Rito Galicano (=E. L ODI , Roma 1979, 1033-1045).
2
Oração eucarística do Rito Toledano ou Hispânico (=Liber Ordinum, en usage dans l’Église wisigothique
et mozarabe d’Espagne du V au XI siècle, M. F ÉROTIN , Paris, Didot 1904, 1969 2; CLV, edizioni liturgiche,
Roma 1996).
3
Oração eucarística do Rito Celta (=E. L ODI, Roma 1979, 1019-1052).
1100 SÉCULO V

Cânone Romano 1

DIÁLOGO INICIAL

4596 Sac. O Senhor esteja convosco.


Povo. E com o teu espírito.
Sac. Corações ao alto.
Povo. Estão voltados para o Senhor.
Sac. Dêmos graças ao Senhor, nosso Deus.
Povo. É digno e justo.
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

4597 É verdadeiramente digno e justo, racional e salutar dar-Vos graças em todo o


tempo, mas de modo particular neste glorioso dia em que a nossa Páscoa, que é Cristo,
foi imolada. Ele é o verdadeiro Cordeiro, que tirou os pecados do mundo: morrendo
destruiu a nossa morte, e ressuscitando restaurou a nossa vida. Por isso, com os Anjos
e os Arcanjos, com os Tronos e as Dominações, e com todo o exército da milícia
celeste, cantamos o hino da vossa glória, dizendo sem cessar:
Santo, Santo, Santo, Senhor Sabaoth. Os céus e a terra estão cheios da vossa
glória. Hossana no mais alto dos Céus. Bendito O que vem em nome do Senhor.
Hossana no mais alto dos Céus.
POST SANCTUS

4598 A Vós, Pai de infinita misericórdia, por Jesus Cristo, vosso Filho, nosso Senhor,
pedimos e suplicamos que Vos digneis aceitar e abençoar + estes dons, estas oferendas,
esta santa oblação imaculada.
Nós vo-la oferecemos, antes de mais, pela vossa santa Igreja Católica: dignai-Vos
dar-lhe a paz e defendê-la, uni-la e governá-la no mundo inteiro, com o vosso servo, o
nosso Papa N., e com o nosso Bispo N. e com todos os que são fiéis à vossa verdade
e guardam a fé católica e apostólica.
COMEMORAÇÃO DOS VIVOS

4599 Lembrai-Vos, Senhor, dos vossos servos e servas N. e N. e de todos os que estão
aqui presentes, cuja fé e dedicação Vós conheceis. Por eles nós Vos oferecemos, e
também eles Vos oferecem, este sacrifício de louvor por si e por todos os seus, para
redenção das suas almas, para a salvação e segurança que esperam, elevando até Vós as
suas preces, ó Deus eterno, vivo e verdadeiro.

1
Cânone Romano (=Missal Festivo Latino-Português, Cânone da Missa).O texto latino do Cânone Romano
aparece, pela primeira vez, no Sacramentário Gelasiano antigo (Reg. Vat. 316), cuja compilação foi levada
a cabo em Roma, no século VII, com materiais litúrgicos muito anteriores a essa data, como é o caso do texto
latino do Cânone Romano. É essa antiguidade do texto do Cânone Romano que justifica a sua inserção
aqui, entre os documentos dos séc. IV, uma vez que Ambrósio de Milão cita várias das suas passagens. A
tradução que se apresenta foi oficial, em Portugal, até à nova tradução do Missal de Paulo VI. Os títulos em
versaletes não figuram no texto latino do Cânone Romano; cf. nn. 2024-2025; 4592; 5305; 6762-6770.
CÂNONE ROMANO 1101

COMEMORAÇÃO DOS SANTOS

Unidos na mesma comunhão, veneramos, em primeiro lugar, a memória da gloriosa 4600


sempre Virgem Maria, Mãe de nosso Deus e Senhor, Jesus Cristo; e também a de S.
José, seu esposo; e a dos vossos bem-aventurados Apóstolos e Mártires, Pedro e
Paulo, André, Tiago, João, Tomé, Tiago, Filipe, Bartolomeu, Mateus, Simão e Tadeu;
Lino, Cleto, Clemente, Sisto, Cornélio, Cipriano, Lourenço, Crisógono, João e Paulo,
Cosme e Damião; e de todos os vossos Santos. Por seus méritos e orações, concedei-nos
em tudo e sempre o vosso auxílio e protecção. Por Cristo nosso Senhor. [Amen].
APRESENTAÇÃO DA OBLAÇÃO

Esta oblação, nós, vossos servos, com toda a vossa família, Vo-la apresentamos. 4601
[Nós Vo-la oferecemos também por aqueles que fizestes renascer da água e do Espírito,
concedendo-lhes o perdão de todos os pecados]. Aceitai-a, Senhor, benignamente.
Ordenai na vossa paz os dias da nossa vida; livrai-nos da condenação eterna e contai-nos
entre os vossos eleitos. Por Cristo nosso Senhor. [Amen].
PEDIDO DE BÊNÇÃO [EPICLESE PRÉ-CONSECRATÓRIA]

Esta oblação, ó Deus, dignai-Vos abençoá-la, recebê-la e confirmá-la, tornando-a 4602


perfeita e de vosso agrado, e assim se converta para nós no Corpo e Sangue de vosso
muito amado Filho, nosso Senhor Jesus Cristo.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

Ele que, na véspera da sua Paixão, tomou o pão em suas santas e adoráveis mãos 4603
e, levantando os olhos ao céu, para Vós, Deus, seu Pai todo-poderoso, dando-Vos
graças, abençoou-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: Tomai e comei
todos: Isto é o meu Corpo.
De igual modo, depois da Ceia, tomou este sagrado cálice em suas santas e
adoráveis mãos e, de novo dando-Vos graças, abençoou-o e deu-o a seus discípulos,
dizendo: Tomai e bebei todos: Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna
Aliança – mistério da fé – que será derramado por vós e pela multidão dos homens,
para remissão dos pecados. Todas as vezes que isto fizerdes, fazei-o em memória de Mim.
ANAMNESE

Assim, pois, Senhor, lembrando a bem-aventurada Paixão de Jesus Cristo, vosso 4604
Filho, nosso Senhor, e a sua Ressurreição de entre os mortos e a sua gloriosa Ascensão
aos Céus, nós, vossos servos, connosco o vosso povo santo, dos próprios bens que
nos destes, oferecemos à vossa augusta Majestade, a Vítima perfeita, a Vítima santa,
a Vítima sem mancha, o Pão santo da vida eterna e o Cálice da eterna salvação.
Dignai-Vos, Senhor, olhar com benevolência e agrado para estas oferendas. E
aceitai-as como aceitastes as ofertas do justo Abel, vosso servo, e o sacrifício de nosso
pai Abraão e o que Vos ofereceu o vosso sumo sacerdote Melquisedec, sacrifício santo,
hóstia imaculada.
EPICLESE PÓS-CONSECRATÓRIA

Nós Vos suplicamos, Deus todo-poderoso, que pelas mãos do vosso santo Anjo 4605
mandeis levar estas oferendas ao vosso altar, lá nas alturas, à presença da vossa divina
Majestade. E todos nós, os que vamos participar deste altar pela comunhão do
santíssimo Corpo e Sangue de vosso Filho, sejamos repletos de todas as bênçãos e
graças do Céu. Por Cristo nosso Senhor. [Amen].
1102 SÉCULO V

COMEMORAÇÃO DOS DEFUNTOS

4606 Lembrai-Vos também, Senhor, dos vossos servos e servas N. e N., que partiram
antes de nós, marcados com o sinal da fé, e dormem agora o sino da paz. Concedei-lhes,
Senhor, a eles e a todos os que descansam em Cristo, o lugar da consolação, da luz e da
paz: nós Vo-lo pedimos. Por Cristo nosso Senhor. [Amen].
INTERCESSÃO DOS SANTOS

4607 Também a nós pecadores, vossos servos, que esperamos na grandeza da vossa
misericórdia, fazei-nos participar da companhia dos vossos santos Apóstolos e
Mártires: João, Estêvão, Matias, Barnabé, Inácio, Alexandre, Marcelino, Pedro,
Felicidade, Perpétua, Águeda, Luzia, Inês, Cecília, Anastácia; e com todos os vossos
Santos. Recebei-nos em sua companhia, não pelo valor dos nossos méritos, mas segundo
a largueza do vosso perdão. Por Cristo nosso Senhor.
Por Ele, Senhor, criais sem cessar estes bens: Vós os santificais, vivificais e
abençoais, e no-los concedeis.
DOXOLOGIA FINAL

4608 Por Ele e com Ele e n’Ele, a Vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito
Santo, toda a honra e toda a glória, pelos séculos dos séculos.
Povo. Amen.
ANÁFORA CALDAICA DOS APÓSTOLOS ADDAI E MARI 1103

Anáfora Caldaica
dos Apóstolos Addai e Mari 1
(Na Igreja Siro-oriental - Ver nn. 6971-6974)
DIÁLOGO INICIAL

Sac. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do 4609
Espírito Santo estejam connosco, agora e sempre e pelos séculos dos séculos (E faz o
sinal da cruz sobre os mistérios).
Resp. Amen.
Sac. As vossas mentes estejam voltadas para o alto.
Resp. Para Ti, Deus de Abraão, de Isaac e de Israel, Rei da glória.
Sac. Oferecemos a oblação a Deus, Senhor de todas as coisas.
Resp. É digno e justo.
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

Diác.: A paz esteja connosco. 4610


O sacerdote genuflecte e ora em silêncio, dizendo esta cusapa2 em voz baixa:
Cusapa. Senhor, Senhor, dá-me um rosto sereno diante de Ti, para que, com a fé
que vem de Ti, realizemos este sacrifício vivo e santo, purificados de toda a maldade
consciente e de toda a tristeza. Semeia em nós, Senhor, o amor, a paz e a concórdia
mútuas e para com todos os homens.
Levanta-se, beija o altar e prossegue, de braços abertos, dizendo esta ghanta3:
Ghanta. É digno de ser glorificado por todas as bocas, confessado por todas as
línguas, adorado e exaltado por todas as criaturas, o Nome adorável e glorioso [da
Trindade Santíssima,] do Pai e do Filho e do Espírito Santo, que criou o mundo pela
sua graça e os seus habitantes pela sua clemência, que salvou os homens pela sua
misericórdia e nos concedeu uma grande graça a nós, mortais.
INTRODUÇÃO E SANTO

[Milhares e milhares de seres celestes e miríades de miríades de santos Anjos 4611


bendizem e adoram, Senhor, a tua grandeza; exércitos de seres espirituais, servidores
do fogo e do espírito, glorificam o teu Nome, [e] com os santos Querubins e os Serafins
espirituais, que adoram a tua grandeza,

1
Anáfora Caldaica dos Apóstolos Addai e Mari (=H ÄNGGI-P AHL, Fribourg 1968, 375-380; E. L ODI , Roma
1979, 301-306; B. BOTTE , Problèmes de l’anaphore syrienne des apôtres Addaï et Mari, in Orient Syrien
10, fasc. 1, Paris 1965, 89-116). Esta anáfora é do século III, mas com elementos posteriores. Nas anáforas
de tipo Siro-oriental, sobretudo na Igreja assíria e caldaica, a epiclese vem em último lugar, depois das
intercessões, e em vez da anamnese encontramos a oração da oblação do sacrifício de reconciliação a Deus.
Nesta antiquíssima prece, falta a narração da instituição, mas em vez dela pode facilmente colocar-se, segun-
do D. Botte, a de Teodoro de Mopsuéstia. O texto a seguir à instituição perdeu-se, mas foi reconstituído
pelo mesmo sábio liturgista. A Anáfora caldaica de Edessa, na Síria, ainda hoje é usada pelos Nestorianos,
pelos cristãos do Malabar e pelos Caldeus unidos.
2
Cusapa quer dizer apologia pessoal em voz baixa.
3
G’hanta ou ghanta quer dizer secção de louvor ou de súplica.
1104 SÉCULO V

Canuna4. clamam e glorificam sem fim, e respondem uns aos outros dizendo:
Resp. Santo, Santo, Santo, é o Senhor omnipotente. O céu e a terra estão cheios
dos seus louvores, da natureza da sua essência e do esplendor da sua luz gloriosa.
Hossana nas alturas. Hossana ao Filho de David. Bendito Aquele que vem e virá em
nome do Senhor. Hossana nas alturas5].
Cada vez que se diz Santo, o sacerdote faz «matuniya» diante do altar.
POST SANCTUS

4612 Genuflecte e diz esta cusapa:


Cusapa. Santo, Santo, Santo, é o Senhor omnipotente. O céu e a terra estão
cheios dos seus louvores, da natureza da sua essência e do esplendor da sua luz
gloriosa, como cheios de Mim estão o céu e a terra, diz o Senhor.
Tu és Santo, Deus, Pai verdadeiro, de quem procede toda a paternidade no céu e
na terra. Tu és Santo, Filho eterno, por quem todas as coisas foram feitas. Tu és Santo,
Espírito Santo, princípio por quem são santificadas todas as coisas.
Ai de mim, ai de mim que estou perdido, porque sou um homem de lábios
impuros, que habita no meio de um povo de lábios impuros, e vi com os meus olhos o
Senhor omnipotente. Como é terrível hoje este lugar, porque vi o Senhor face a face e
esta é, na verdade, a casa de Deus e a porta do Céu.
E agora esteja connosco a tua benignidade, Senhor (repete), purifica as nossas
imundícies, santifica os nossos lábios. Une, Senhor, a fraqueza das nossas vozes com
os louvores dos Serafins e os cânticos dos Arcanjos. Glória pelas tuas misericórdias,
pois uniste os seres terrenos com os espirituais.
Levanta-se e diz: Abençoa, Senhor (três vezes). Meus irmãos, orai por mim.
E recita esta ghanta tranquilamente:
Ghanta. [E com estes poderes celestes], [também] nós, Senhor (repete), teus
servos frágeis, débeis e fracos, Te louvamos, porque nos concedeste uma graça tão
grande que nada Te podemos dar em troca. Revestiste a nossa humanidade, para nos
vivificares pela tua divindade; exaltaste a nossa humildade e nos levantaste da nossa
queda; ressuscitaste a nossa mortalidade e perdoaste as nossas faltas; remiste os
nossos pecados e justificaste a nossa culpa; iluminaste a nossa inteligência e condenaste,
Senhor, nosso Deus, os nossos inimigos; e fizeste triunfar a pequenez da nossa débil
natureza pelas misericórdias abundantes da tua benignidade (repete).
Canuna. Por todos os teus auxílios e por tuas graças para connosco, Te damos
louvor, honra, confissão e adoração, agora e sempre e pelos séculos dos séculos (E faz
o sinal da cruz sobre os mistérios).
Resp. Amen.

4
Canuna quer dizer doxologia em voz alta.
5
O Sanctus não é primitivo.
ANÁFORA CALDAICA DOS APÓSTOLOS ADDAI E MARI 1105

[Colocar-se-ia aqui a narração da instituição] 6

[Nosso Senhor Jesus Cristo, na noite em que foi entregue, celebrou, com os seus 4613
Apóstolos, este mistério grande, temível, santo e divino. Tomando o pão abençoou-o,
partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: Isto é o meu Corpo, entregue por vós em
remissão dos pecados.
De igual modo tomou o cálice, abençoou-o e deu-lho a eles, dizendo: Isto é o meu
Sangue da nova Aliança, derramado por muitos em remissão dos pecados. Tomai, todos,
comei deste pão e bebei deste cálice, e fazei assim todas as vezes que vos reunirdes em
memória de mim7].

6
A propósito da narração da instituição da Anáfora de Addai e Mari, o Conselho Pontifício para a promoção
da unidade dos cristãos publicou, com data de 20 de Julho de 2001, os seguintes esclarecimentos: [«(3).
A Anáfora de Addai e Mari. A principal questão para a Igreja católica, no que diz respeito à aceitação do
pedido de admissão à Eucaristia entre a Igreja caldaica e a Igreja assíria do Oriente, estava relacionada com
o problema da validade da Eucaristia celebrada com a Anáfora de Addai e Mari, uma das três Anáforas
tradicionalmente usadas na Igreja assíria do Oriente. A Anáfora de Addai e Mari é célebre porque, desde
tempos imemoráveis, foi sempre usada sem a recitação da chamada narração da Instituição. Dado que a Igreja
católica considera as palavras da Instituição eucarística uma parte constitutiva e, portanto, indispensável
da Anáfora, ou Oração Eucarística, empreendeu-se um prolongado e atento estudo da Anáfora de Addai e
Mari, a partir dos pontos de vista histórico, litúrgico e teológico, no final do qual a Congregação para a
Doutrina da Fé concluiu, a 17 de Janeiro de 2001, que esta Anáfora podia considerar-se válida. E sua
Santidade o Papa João Paulo II aprovou esta decisão. Tal conclusão está assente sobre três argumentações
principais:
1. Em primeiro lugar, a Anáfora de Addai e Mari é uma das mais antigas, dado que remonta à época da Igreja
primitiva; foi composta e era usada com a clara intenção de celebrar a Eucaristia em plena continuidade com
a última Ceia e em conformidade com a intenção da Igreja; a sua validade nunca foi oficialmente contestada
no Oriente ou no Ocidente cristãos.
2. Em segundo lugar, a Igreja católica reconhece a Igreja assíria do Oriente como uma verdadeira Igreja
particular, edificada sobre a fé ortodoxa e a sucessão apostólica. A Igreja assíria do Oriente conservou
também a plena fé eucarística na presença de nosso Senhor, sob as espécies do pão e do vinho e no carácter
sacrificial da Eucaristia. Por conseguinte, embora não viva em plena comunhão com a Igreja católica, a
Igreja assíria do Oriente contém «verdadeiros sacramentos e sobretudo, em virtude da sucessão apostólica,
o sacerdócio e a Eucaristia» (Unitatis redintegratio, 15).
3. E por fim, as palavras da Instituição eucarística encontram-se, efectivamente, presentes na Anáfora de
Addai e Mari, não de forma narrativa e coerente, e ad litteram, mas acima de tudo de maneira eucológica e
disseminada, ou seja, integrada nas sucessivas orações de acção de graças, de louvor e de intercessão.
(4).Directrizes para a admissão à Eucaristia: Considerando a tradição litúrgica da Igreja assíria do
Oriente, o esclarecimento doutrinal relativo à validade da Anáfora de Addai e Mari, o contexto contemporâneo
em que estão a viver os fiéis tanto assírios como caldeus, os regulamentos próprios, previstos pelos
documentos oficiais da Igreja católica e o processo de aproximação entre a Igreja caldaica e a Igreja assíria
do Oriente, tomaram-se as seguintes providências:
1. Quando for necessário, aos fiéis assírios será permitido participar nas celebrações caldaicas da santa
Eucaristia e receber a sagrada Comunhão; de igual modo, os fiéis caldeus que forem física ou moralmente
impedidos de recorrer a um ministro católico, podem participar nas celebrações assírias da santa Eucaristia
e receber a sagrada Comunhão.
2. Em ambos os casos, os ministros assírios e caldeus celebram a santa Eucaristia em conformidade com as
prescrições litúrgicas e os costumes das tradições que lhes são próprias.
3. Quando os fiéis caldeus participarem numa celebração assíria da santa Eucaristia, o ministro assírio é
calorosamente exortado a inserir as palavras da Instituição na Anáfora de Addai e Mari, em conformidade
com quanto é previsto pelo santo Sínodo da Igreja assíria do Oriente.
4. As supra mencionadas considerações sobre o uso da Anáfora de Addai e Mari, assim como as presentes directrizes
para a admissão à Eucaristia, devem ser entendidas exclusivamente em relação à celebração eucarística e à admissão
à Eucaristia, por parte dos fiéis da Igreja caldaica e da Igreja assíria do Oriente, em conformidade com as necessidades
pastorais e com o contexto ecuménico, segundo quanto já se mencionou acima» (L’Osservatore Romano (Edição
em língua portuguesa), n. 2 – 12 de Janeiro de 2002 – p. 8 (20) a 10 (22)].
7
A narração da instituição não figura em nenhum manuscrito antigo. Aquele que inserimos no texto pertence
à Anáfora caldaica de Teodoro.
1106 SÉCULO V

INTERCESSÕES

4614 O diácono diz: Orai nos vossos corações. A paz esteja connosco.
E o sacerdote prossegue, genuflectindo e dizendo esta cusapa, em silêncio:
Cusapa. Senhor, Deus omnipotente, recebe esta oblação [das mãos da minha
fragilidade] por toda a santa Igreja católica e por todos os Pais piedosos e justos que
foram agradáveis a teus olhos, e por todos os Profetas e Apóstolos, por todos os
Mártires e Confessores, por todos os que choram e estão aflitos, por todos os que são
pobres e maltratados, por todos os débeis e perseguidos, por todos os defuntos que
partiram e nos deixaram, pelo povo que aguarda e espera as tuas misericórdias e, por
mim, frágil, inconstante e pobre (repete).
Senhor, nosso Deus, pelas tuas inumeráveis graças e misericórdias, não olhes
para o teu povo e para mim segundo os meus pecados e imprudências, mas olha-nos
com ternura, a fim de que, por este Corpo santo que recebemos com verdadeira fé e
com a graça que procede de Ti, nos tornemos dignos de receber o perdão das dívidas e
a remissão dos nossos pecados.
____________

[Cusapa dos defuntos. Quando tem lugar o sacrifício pelos defuntos, diz-se
como vem a seguir:
Adoro, Senhor, a tua benignidade e dou graças à tua misericórdia, porque, apesar
de indigno, em razão dos meus pecados, me fizeste aproximar da tua clemência e me
colocaste como ministro e mediador dos teus santos e gloriosos mistérios. Peço e
suplico à tua majestade que eles sirvam para a paz e segurança do mundo, para o
incremento da verdadeira fé, para a exaltação dos santos, para a justificação dos
pecadores, para o acolhimento dos penitentes, para o encontro dos que andam perdidos,
para a perseverança dos justos, para o regresso dos ausentes, para fortalecimento dos
débeis, para reconforto dos maltratados, para consolação dos aflitos, para remédio dos
enfermos, para sustento dos pobres e para a boa memória dos defuntos. Faz, Senhor,
em relação a todos, o que os pode ajudar e que é agradável à tua vontade.
Senhor, Deus forte (repete), seja aceite, nos Céus, esta oblação das mãos pecadores
e culpáveis do teu servo, como foi aceite a oblação de Abel no campo, de Noé na arca,
de Abraão no sacrifício do seu filho, de Elias no monte Horeb, da viúva junto da caixa
das ofertas, dos Apóstolos no cenáculo, juntamente com a oblação dos Pais santos e
justos que, de geração em geração, fizeram as suas oblações.
Aceita esta oblação, Senhor nosso Deus, por toda a santa Igreja católica, para
que se fortaleça e seja servida sem perturbação, pelos sacerdotes, pelos reis e
governadores para que permaneçam em paz com as Igrejas e em tranquilidade com os
povos, pelos pobres, pelos indigentes, pelos maltratados, pelos que choram, pelos
tristes e aflitos, por todos os defuntos que se separaram e partiram do meio de nós, e
por todos os que estão diante do teu santo altar e fazem preces através de mim,
pecador: escuta as suas súplicas, perdoa as suas dívidas e absolve os seus pecados.
Recebe-a por esta região e seus habitantes, por esta cidade e seus moradores: envolve-a,
Senhor, com um muro forte e afasta dela, pela tua graça, o granizo, a fome, a epidemia,
os saltões, os gafanhotos e os grilos. Não nos domine o nosso inimigo nem se ria de nós
o nosso adversário. Aceita-a ainda por (Neste momento, ajoelhando diante do altar, o
sacerdote apresenta a Deus todos os problemas próprios e dos outros).
Senhor nosso Deus, procede para com o teu povo e para com a minha maldade,
segundo a tua bondade e a multidão das tuas misericórdias, e não segundo os meus
ANÁFORA CALDAICA DOS APÓSTOLOS ADDAI E MARI 1107

pecados e iniquidades, e faz com que mereçamos receber, eu e eles, o perdão das
nossas dívidas e a remissão dos pecados por este teu Corpo santo que, pela graça que
vem de Ti, nós comemos com verdadeira fé. Amen].
___________

Levanta-se e diz: Abençoa, Senhor (três vezes). Meus irmãos, orai por mim.
Prossegue, recitando esta ghanta com tranquilidade:
Ghanta. Senhor, pelas tuas inumeráveis e inefáveis misericórdias (repete), faz
memória boa e favorável de todos os Pais piedosos e justos que foram agradáveis a teus
olhos, ao comemorarmos o Corpo e o Sangue do teu Cristo, que Te oferecemos no teu
altar puro e santo, como nos ensinaste, e dá-nos a tua tranquilidade e a tua paz, todos os
dias da vida.
Senhor, nosso Deus, dá-nos a tranquilidade e a paz todos os dias da vida (repete),
para que todos os habitantes da terra saibam que Tu és o único e verdadeiro Deus Pai
e que enviaste nosso Senhor Jesus Cristo, o teu Filho muito amado. Foi Ele mesmo,
Senhor e nosso Deus, que veio e nos ensinou com o seu Evangelho vivificante, com
toda a pureza e santidade.
[Lembra-Te] dos Profetas, dos Apóstolos, dos Mártires, dos Confessores, dos
bispos, dos doutores, dos presbíteros, dos diáconos e de todos os filhos da santa Igreja
católica, que foram assinalados com o sinal da vida no santo baptismo.
E quando diz que foram assinalados, assinala o trono, do fundo até ao cimo e
da direita para a esquerda.
ANAMNESE

E inclinado estende-se e diz: E nós também, Senhor, teus servos frágeis, débeis 4615
e fracos, que estamos reunidos em teu nome e nos encontramos diante de Ti neste
momento, recebemos, por tradição, o exemplo que vem de Ti, e, cheios de alegria,
glorificamos, exaltamos e celebramos este grande, temível, santo, vivificante e divino
mistério da paixão, morte, sepultura e ressurreição de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
EPICLESE

O diácono, quando o sacerdote começa a primeira palavra epiclética, diz: 4616


Permanecei em silêncio e com temor e orai. A paz esteja connosco.
O sacerdote, direito eleva as mãos e diz: Venha, Senhor, o teu Espírito Santo, e
repouse sobre esta oblação dos teus servos, a abençoe e a santifique, a fim de que ela
nos conduza ao perdão das faltas e à remissão dos pecados, à grande esperança da
ressurreição de entre os mortos e à vida nova no Reino dos Céus, com todos os que
foram agradáveis a teus olhos.
E por toda a imensa e admirável economia realizada em nosso favor, nós Te
louvamos e glorificamos sem cessar, na tua Igreja resgatada pelo Sangue precioso do
teu Cristo, em voz alta e de rosto descoberto (repete).
DOXOLOGIA

Canuna. Dirigimos louvor, honra, confissão e adoração ao teu Nome vivo, santo 4617
e vivificante, agora e sempre e pelos séculos dos séculos (O sacerdote faz o sinal da
cruz sobre os mistérios).
Resp. Amen.
1108 SÉCULO V

Anáfora Caldaica de Teodoro 1

DIÁLOGO INICIAL

4618 Sac. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do
Espírito Santo estejam connosco, agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
Povo. Amen.
Sac. Corações ao alto. Estejam nas alturas sublimes, na temível região da glória,
onde os Querubins não cessam de agitar as asas nem os Serafins deixam de cantar,
jubilosos, suaves louvores de santidade.
Povo. Eles estão junto de Ti.
Sac. Oferecemos a Deus, Senhor de todas as coisas, a oblação viva e espiritual
das nossas primícias e a vítima não imolada, agradável ao Filho, nossa origem, em favor
de todas as criaturas do universo.
Povo. É digno e justo.
Diác. A paz esteja convosco.
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

4619 É digno que em cada dia, é justo que em cada tempo, é legítimo que em cada hora
louvemos o teu Nome santo, adoremos a tua majestade em todo o lugar e região, e Te
prestemos homenagem a Ti, Deus eterno, Pai da verdade, e a teu Filho unigénito, nosso
Senhor Jesus Cristo e ao Espírito Santo, pelos séculos dos séculos, porque Tu és o
Senhor e o Criador de tudo o que é visível e invisível. Pelo teu Filho unigénito, Palavra
divina, fulgor da tua glória, imagem da tua substância, criaste e fundaste o céu e a terra
e tudo o que neles existe. Pelo Espírito Santo, o Espírito da verdade, que procede de Ti,
são configuradas e santificadas todas as criaturas, e tornadas dignas de dirigir o louvor
à tua divindade adorável. Porque diante de Ti, Pai verdadeiro, e diante de teu Filho
unigénito, nosso Senhor Jesus Cristo, e diante do Espírito Santo se encontram mil
milhões e dez mil miríades de santos Anjos, cujas vidas consistem na alegria constante
de santificar o teu Nome grande e santo com o louvor incessante.
Também tornaste digno, Senhor, por tua graça, o nosso enfermo e mortal género
humano, para que, presente e cheio de alegria diante da tua absoluta santidade, dirija à
tua majestade, dominadora universal, o louvor e a honra para celebrar a glória da tua
Trindade, clamando, glorificando, gritando, sem descanso, e respondendo
alternadamente:
Povo. Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do universo. O céu e a terra estão cheios
da tua glória. Hossana nas alturas. Bendito Aquele que vem em nome do Senhor.
Hossana nas alturas.
POST SANCTUS

4620 Sac. Santo, Santo, Santo, Senhor poderoso. Tu és verdadeiramente santo, Senhor,
e digno de louvor eterno. És santo, Deus Pai único e verdadeiro, e é santo o Espírito
Santo, de natureza divina, não criada, Criador de todas as coisas. É santo por natureza

1
Anáfora Caldaica de Teodoro (=E. RENAUDOT , Liturgiarum Orientalium Collectio, Paris 1716; 2ª ed. J.
Baer, mais corrigida, 2 vol., Frankfurt 1847). Esta anáfora, a par de elementos primitivos, contém outros
tardios (cf. nn. 4652-4657).
ANÁFORA CALDAICA DE TEODORO 1109

e de modo absoluto, santo é o seu nome e a sua habitação em nós, e santifica a todos os
que são dignos de receber o dom da sua graça.
A Ti dirigimos o louvor, a glória, a acção de graças e a adoração, a Ti, Pai, e ao
Filho, e ao Espírito Santo, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Nós Te adoramos,
Senhor, Te damos graças e Te glorificamos por todos os teus favores para connosco.
Porque nos criaste do nada e nos tornaste dignos da grande honra da liberdade e da
inteligência, e porque Te preocupas em conservar a vida de cada um de nós. Diante do
teu Nome grande e tremendo nos prostramos em adoração. Connosco louvam e dão
graças todos os exércitos do alto.
Pela tua graça inefável para com os homens que nós somos e para alcançar a
nossa salvação, o Deus Unigénito, a Palavra, sendo de condição divina, não Se valeu da
sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio, assumindo a condição de
servo. Desceu do Céu e tomou, da Virgem santa, pelo poder do Espírito Santo, a nossa
humanidade, o corpo mortal e a alma racional, inteligente e imortal. Assim realizaste
plenamente este desígnio grande a admirável que tinhas preparado pela tua presença
antes da constituição do mundo e o levaste ao seu termo final nos últimos tempos, por
meio de teu Filho unigénito, nosso Senhor Jesus Cristo, em quem habita corporalmente
toda a plenitude da divindade, e que é a Cabeça da Igreja e o Primogénito de entre os
mortos, plenitude de tudo e de quem tudo recebe a sua plenitude. Pelo Espírito Santo,
Ele ofereceu-Se a Deus e santificou-nos pela oblação imaculada do seu corpo, feita de
uma vez para sempre. Pelo sangue da sua cruz estabeleceu a paz com todas as criaturas,
na terra e nos céus. Entregue pelos nossos pecados, ressuscitou para nos justificar.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

Ele, na noite em que foi entregue, celebrou com os seus Apóstolos este mistério 4621
grande, temível, santo e divino. Tomando pão abençoou-o, partiu-o e deu-o aos seus
discípulos, dizendo: Isto é o meu Corpo, entregue por vós, em remissão dos pecados.
De igual modo tomou o cálice, abençoou-o e deu-lho a eles, dizendo: Isto é o meu
Sangue da nova Aliança, derramado por muitos em remissão dos pecados. Tomai,
todos, comei deste pão e bebei deste cálice, e fazei assim todas as vezes que vos
reunirdes em memória de Mim.
Tal como nos foi mandado, assim nos reunimos nós, teus servos humildes,
débeis e enfermos, para, com a vinda da tua graça, celebrar o grande e tremendo, santo
e divino mistério, pelo qual se realizou a salvação de todo o género humano.
ANAMNESE E OFERTA

Nós Te adoramos, Senhor, Te damos graças e Te glorificamos porque quiseste, 4622


na tua misericórdia, aproximar-nos de Ti, apesar da nossa indignidade e dos nossos
pecados. Renovaste-nos e santificaste-nos pela graça do Espírito Santo. Tornaste-nos
dignos de realizar, diante de Ti, para a salvação da nossa vida, este ministério tremendo
e divino. Nós Te confessamos e damos graças pela salvação que nos trouxeste, por
meio do teu amado Filho Jesus Cristo nosso Senhor, e oferecemos diante da tua
Trindade gloriosa, de coração contrito e espírito humilhado, este sacrifício vivo e
santo, que é o sinal sacramental 2 do Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo,
suplicando-Te e pedindo-Te, Senhor, que esta oblação pura e santa, agradável à tua
divindade adorável, seja acolhida e aceite com benevolência e agrado pela tua misericórdia,
apesar dos pecados do mundo. Também agora, Senhor, oferecemos esta oblação diante
do teu Nome grande e terrível, em favor da Igreja universal...

2
Mistério.
1110 SÉCULO V

EPICLESE

4623 Venha sobre nós e sobre esta oblação a graça do teu Espírito Santo, habite e
derrame-se neste pão e neste cálice, abençoando-os, santificando-os e assinalando-os
em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. E que este pão, pela força do teu Nome,
se torne o Corpo santo de nosso Senhor Jesus Cristo, e este cálice, o Sangue de nosso
Senhor Jesus Cristo. Para que, quem comer deste pão e beber deste cálice, receba o
perdão dos seus pecados, a remissão das suas culpas, a grande esperança da ressurreição
de entre os mortos, a salvação do corpo e da alma e a vida nova no Reino dos Céus.
Torna-nos também dignos, pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo, de nos alegrarmos
no Reino dos Céus, e de gozarmos dos bens futuros que não passam, em companhia de
todos os que, na tua presença, Te foram agradáveis e orientaram a sua vida segundo os
teus preceitos.
DOXOLOGIA FINAL

4624 Lá e aqui, todos ao mesmo tempo e do mesmo modo, havemos de confessar,


adorar e louvar o Pai e o Filho e o Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
Povo. Amen.
ANÁFORA DE NESTÓRIO 1111

Anáfora de Nestório 1

DIÁLOGO INICIAL

Sac. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do 4625
Espírito Santo estejam connosco, agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
Povo. Amen.
Sac. Corações ao alto. Estejam nas alturas sublimes, na temível região da glória,
onde os Querubins não cessam de agitar as asas nem os Serafins deixam de cantar,
jubilosos, suaves louvores de santidade.
Povo. Eles estão junto de Ti.
Sac. Oferecemos a Deus, Senhor de todas as coisas, a oblação viva e espiritual
das nossas primícias e a vítima não imolada, agradável ao Filho, nossa origem, em favor
de todas as criaturas do universo.
Povo. É digno e justo.
Diác. Celebrai o memorial do desígnio admirável de Cristo Salvador realizado em
nosso favor, pelo qual nos libertou dos nossos sofrimentos. Estai, pois, com dignidade
e orai. A paz esteja convosco.
Sac. Senhor, Deus forte, dá-nos um rosto aberto e sereno na tua presença.
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

É digno, justo e conveniente que Te louvemos, confessemos e exaltemos, sempre 4626


e em todo o tempo, a Ti, Senhor forte, eterno, Deus Pai omnipotente. Na verdade, Tu
és o Deus verdadeiro, incompreensível, infinito, inexplicável, invisível, simples,
imperceptível aos sentidos, imortal, sublime e acima de todo o pensamento e da
inteligência de todas as criaturas. Tu estás em toda a parte, mas não Te deixas limitar
por nenhum espaço, Tu e o teu Filho unigénito e o teu Espírito Santo.
Dá-nos Tu próprio, Senhor, a palavra, para que abramos a boca na tua presença
e Te ofereçamos, de coração contrito e espírito humilhado, os frutos espirituais dos
nossos lábios, [nosso] culto racional: Tu és, na verdade, o nosso Deus e o Pai de nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo, nossa esperança, em quem foram escondidos todos os
tesouros da sabedoria e da ciência e por quem nós recebemos o conhecimento do Espírito
Santo, o Espírito da verdade, que procede de Ti, ó Pai, e é da natureza oculta da tua
divindade. Por Ele todas as naturezas racionais, visíveis e invisíveis, são fortalecidas,
santificadas e aperfeiçoadas. E a Ti, ao teu Filho único e ao teu Espírito Santo elas
oferecem, em todo o tempo, louvores perpétuos, porque todas são obra tua.
Tu nos tiraste do nada e nos modelaste para que existíssemos, mas nós pecámos
e caímos de velhice. Tu nos renovaste, nos levantaste e nos fizeste teus, e não deixaste
de nos visitar com solicitude, a fim de nos fazeres subir ao Céu e nos dares, pela tua
misericórdia, o teu Reino que há-de vir. Por todos estes benefícios para connosco, nós
Te damos graças, a Ti, Deus, Pai verdadeiro, e ao teu Filho unigénito e ao teu Espírito
vivo e santo. Nós Te adoramos por todos estes benefícios para connosco, os que
conhecemos e os que ignoramos, os manifestos e os ocultos.
Nós Te damos graças também por este ministério, suplicando-Te que o recebas
das nossas mãos. Com efeito, quem será capaz de narrar os milagres do teu poder e de

1
Anáfora de Nestório (=E. R ENAUDOT , Liturgiarum Orientalium Collectio, Paris 1716; 2ª ed. J. Baer,
Frankfurt 1847, vol. II, 627 ss). Esta anáfora, a par de elementos primitivos, contém outros tardios.
1112 SÉCULO V

fazer ouvir todos os teus louvores? Mesmo que todas as criaturas tivessem uma só boca
e uma só língua, não bastariam, Senhor, para falar da tua majestade. Porque, diante da
tua Trindade, Senhor, estão de pé mil milhões e dez mil miríades de Anjos: todos juntos,
voando sem cessar e para sempre, em voz alta e infatigável, cantam os teus louvores e
exultam, dizendo e respondendo alternadamente:
Povo. Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do universo. Santo, Santo, Santo, Senhor
forte, de quem estão cheios os céus e a terra.
POST SANCTUS

4627 Com estes poderes celestiais também nós, Senhor bom e Deus misericordioso,
clamamos e dizemos: Tu és verdadeiramente santo, verdadeiramente digno de ser
glorificado, exaltado e sublimado, Tu que tornaste os teus adoradores, que estão na
terra, dignos de ser assimilados aos que Te glorificam nos Céus. Santo é também o teu
Filho unigénito, nosso Senhor Jesus Cristo, que coexiste contigo desde toda a eternidade,
como quem participa da mesma natureza, autor de todas as criaturas, assim como o
Espírito Santo.
O MISTÉRIO DO FILHO.

4628 Bendizemos, Senhor, o Deus Verbo, o Filho oculto, que procede do teu seio, e
que, sendo semelhante a Ti e imagem da tua substância, não considerou como uma
rapina a igualdade contigo, mas Se aniquilou a Si mesmo e tomou a forma de escravo,
fazendo-Se homem perfeito com alma racional, inteligente e imortal, com corpo humano
mortal, que uniu a Si mesmo e O associou na glória, no poder e na honra, sendo como
era passível por natureza, Ele que foi formado pela virtude do Espírito Santo para a
salvação de todos, nascido de uma mulher, submetido à lei, para resgatar os que estavam
sujeitos à lei e dar vida a todos aqueles que tinham morrido em Adão; Ele destruiu o
pecado na sua carne e a lei dos preceitos com os seus preceitos; Ele abriu os olhos do
nosso espírito que estavam cegos e aplanou, para nós, o caminho da salvação,
iluminando-nos com a luz do conhecimento divino.
Aos que O receberam deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus: lavou-nos
e purificou-nos pelo baptismo de água santa, e santificou-nos com a sua graça pelo
dom do Espírito Santo. Aos que foram sepultados com Ele, pelo baptismo, ressuscitou-
-os, levantou-os e levou-os consigo para o Céu, segundo a sua promessa.
Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim, oferecendo-
-Se, em vez de nós, à pena devida pelo pecado da nossa raça; pela vida de todos Se
entregou Ele próprio à morte, que reinava sobre nós, e a cujo poder estávamos sujeitos,
pois a ela tínhamos sido vendidos por nossos pecados; pelo seu Sangue precioso nos
resgatou e salvou, descendo aos Infernos e desfazendo as cadeias da morte que nos devorava.
Mas, como não era justo que o príncipe da nossa salvação ficasse retido nos
Infernos pela morte, ressuscitou de entre os mortos ao terceiro dia e converteu-Se nas
primícias dos que dormem, a fim de ser o primeiro em todas as coisas. Subiu ao Céu e
sentou-Se à direita da tua majestade, ó Deus. E deixou-nos um memorial da nossa
salvação, este mistério que oferecemos na tua presença.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

4629 Quando chegou o tempo em que Ele ia ser entregue pela vida do mundo, depois
de ter ceado a Páscoa prescrita por Moisés, tomou o pão em suas mãos santas,
imaculadas e sem mancha, abençoou-o, partiu-o, comeu e deu aos seus discípulos,
dizendo: Tomai e comei todos dele. Isto é o meu Corpo, partido por vós para remissão
dos pecados.
ANÁFORA DE NESTÓRIO 1113

De igual modo misturou no cálice vinho e água, abençoou-o, bebeu e deu aos seus
discípulos, dizendo: Bebei todos dele. Isto é o meu Sangue da nova Aliança, que é
derramado por muitos para remissão dos pecados. Fazei isto em memória de Mim, até
que Eu venha. Na verdade, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste
cálice, anunciareis a minha morte até à minha parusia. Assim, a todo aquele que se
aproximar com verdadeira fé para participar na sua comunhão, receba, Senhor, o perdão
dos seus pecados e a remissão das suas culpas, receba a grande esperança da ressurreição
de entre os mortos e a vida nova no Reino dos Céus.
ANAMNESE E OFERTA

Também nós, Senhor Deus, Pai forte, celebramos o memorial deste preceito e a 4630
salvação realizada em nosso favor. Antes de mais acreditamos em Ti e confessamos-
-Te, Deus, Pai verdadeiro, do mesmo modo que confessamos o Filho unigénito, eterno
na divindade, que procede de Ti e está unido a Ti consubstancialmente. E proclamamos
o seu admirável desígnio, realizado por meio da nossa humanidade, e nos foi dispensado
para nossa salvação: a cruz, a paixão, a morte, a sepultura, a ressurreição ao terceiro
dia, a ascensão ao céu, a sessão à tua direita e a segunda vinda gloriosa de nosso Senhor
Jesus Cristo, na qual julgará os vivos e os mortos e dará a cada um segundo as suas
obras. Confessamos também o Espírito Santo, que é da gloriosa substância da tua
divindade, e contigo e o teu Unigénito é adorado e glorificado, e oferecemos-Te este
sacrifício vivo, santo, aceitável, glorioso e incruento, por todas as criaturas.
E pela Igreja santa, apostólica e católica, de um extremo ao outro da terra, a fim
de que Tu a conserves na tranquilidade e ao abrigo de todo o escândalo, e para que não
haja nela mancha, impureza, ruga nem coisa parecida. Tu disseste, com efeito, pelo teu
Filho unigénito, nosso Senhor Jesus Cristo, que as portas do Inferno não prevaleceriam
jamais contra ela.
E por todos os bispos em todo o lugar e em toda a região, que anunciam a palavra
ortodoxa da verdadeira fé. E por todos os presbíteros, que desempenham o seu
sacerdócio na tua presença, na justiça e na santidade verdadeiras. E por todos os
diáconos, que conservam o mistério da tua fé numa consciência pura. E por todas as
ordens do teu povo piedoso e santo em todo o lugar.
E por todos os que, conscientemente ou por ignorância, pecaram e Te ofenderam.
E pelo teu servo indigno e culpado, a quem, por tua graça, tornaste digno de oferecer
diante de Ti esta oblação. E por todos os que ilustram a santa Igreja com obras de justiça
de maneira digna de elogio. E por todos os que distribuem as suas esmolas pelos pobres.
E por todos os reis fiéis e pela estabilidade do seu reinado. E por todos os
príncipes e poderes deste mundo; pedimos-Te e suplicamos-Te, Senhor, confirma-os
no temor, imprime neles a tua verdade e submete-lhes todas as nações bárbaras.
Invocamos, Senhor, a tua divindade, para que afastes as guerras para as extremidades
da terra e dissipes as nações que querem a guerra, a fim de permanecermos na
tranquilidade e na serenidade, com toda a temperança e temor de Deus.
E pelos frutos da terra e a salubridade do ar, a fim de que abençoes o círculo do
ano pela tua graça. E por este lugar e pelos que nele habitam, para que tenhas piedade
deles, os abençoes, os guardes e os protejas com a tua clemência.
E por todos os que viajam, no mar ou pelos caminhos. E por todos os que estão
em cadeias, em angústia, em perseguições, em opressões e perturbação por causa do
teu Nome. E por todos os que estão no desterro, em tribulações e em cárceres, pelos
que são enviados às ilhas longínquas e a um suplício sem fim, ou estão submetidos a
dura escravidão. E por todos os nossos irmãos cativos; pedimos-Te, Senhor, que
socorras igualmente todos os que se vêem aflitos por dores e enfermidades penosas.
1114 SÉCULO V

Invocamos, finalmente, a tua misericórdia, Senhor, por tua graça, por todos os
nossos inimigos e pelos que nos odeiam, e por todos os que pensam algo mau contra
nós; não por julgamento ou vingança, Senhor, Deus forte, mas por misericórdia, salvação
e remissão dos pecados, pois Tu queres que todos os homens vivam e se convertam,
para reconhecerem a verdade. Tu, com efeito, prescreveste-nos, pelo teu Filho muito
amado, nosso Senhor Jesus Cristo, que oremos pelos nossos inimigos e pelos que nos
dominam violenta e injustamente.
APOLOGIA DO CELEBRANTE

4631 [(Neste momento, o celebrante diz uma longa apologia, isto é, uma oração privada,
na qual recorda toda a sua indignidade. Vai em itálico, para se distinguir do resto
da anáfora):
Senhor Deus, misericordioso, compassivo e clemente, comecei a falar diante de
Ti, eu que apenas sou pó, pecador, fraco e pobre, culpável diante de Ti desde o seio de
minha mãe, em exílio desde que deixei as suas entranhas, transgressor desde então.
Tem piedade de mim, Senhor, segundo a tua misericórdia, e tira-me do oceano das
minhas faltas pela tua clemência; faz-me sair do abismo dos meus pecados pela tua
bondade; cura a úlcera dos meus vícios e as chagas das minhas ofensas, Tu que és
consolador e curador. Dá-me a graça de abrir a minha boca na tua presença e torna-me
digno de mover os meus lábios diante de Ti. Concede-me a graça de Te tornar propício
para com as minhas ofensas, a fim de obter a remissão dos pecados, o perdão das
faltas, a abolição das minhas próprias iniquidades e dos pecados daqueles que são
semelhantes a mim e meus companheiros: possa eu pedir-Te o que convém à tua
divindade e que deve ser-Te pedido; porque Tu és rico e o teu tesouro nunca se esgota;
em todo o tempo Te são dirigidas petições diversas, e uma abundância de dons sem
número é distribuída por Ti para lhes responder. Na tua bondade e longanimidade, não
Te irrites comigo, porque eu não estou tão seguro na tua presença, que possa dizer o
que digo com uma boa consciência, diante da tua majestade; no entanto, aceita esta
minha audácia, porque o teu grande nome foi invocado sobre mim. Recebe este sacrifício
das minhas mãos impotentes, pelo teu povo e ovelhas da tua pastagem; por elas dou
graças ao teu Nome e ofereço a adoração à tua majestade, Senhor de todos nós].
INTERCESSÕES

4632 Senhor Deus todo-poderoso, nós Te suplicamos, bendizendo-Te e adorando-Te na


tua presença: converte os extraviados, ilumina os que andam nas trevas, consolida os
débeis, levanta os que caíram, sustenta os que estão de pé, e tudo o que possa ser
conveniente e útil dá-o a todos por tua misericórdia.
Pedimos-Te e suplicamos-Te ainda, Senhor, que Te lembres, nesta oblação, dos
Pais, dos Patriarcas, dos Profetas, dos Apóstolos, dos Mártires, dos Confessores, dos
Doutores, dos bispos, dos presbíteros, dos diáconos e de todos os que têm parte no
nosso ministério e que abandonaram este mundo, e de todos os nossos irmãos em
Cristo que partiram deste mundo na verdadeira fé, cujos nomes Te são conhecidos:
como a homens expostos ao erro e às paixões, desata e perdoa todos os seus pecados,
e tudo aquilo em que Te ofenderam, pela oração e a intercessão dos que Te foram
agradáveis.
Olha para nós e tem piedade de todos os teus servos e servas, que se encontram
diante do teu altar. Faz que todos sejamos dignos de ter parte na herança dos santos na
luz, e dá-nos a graça de vivermos diante de Ti, neste mundo em que peregrinamos, com
saúde, na abundância da caridade e na pureza dos pensamentos, na posse de um
conhecimento preciso da verdadeira fé, em Ti, e de comungar nos teus mistérios
ANÁFORA DAS CONSTITUIÇÕES APOSTÓLICAS 1115

tremendos e santos, de modo que não sejamos confundidos e condenados, quando


comparecermos diante do trono terrível da tua majestade.
E, como, neste mundo, nos tornaste dignos do ministério dos teus tremendos e
santos mistérios, concede-nos, no mundo que há-de vir, a graça de participar com o
rosto descoberto em todos os bens que não passam nem perecem. Quando consumares
o que alcançamos aqui em figuras e enigmas, possamos possuir lá, a descoberto, o
Santo dos Santos no Céu.
EPICLESE

Na verdade, Senhor, nós somos teus servos inúteis, débeis e fracos. Nós estávamos 4633
longe de Ti, mas Tu, pela multidão das tuas bondades, tornaste-nos dignos de
comparecer e desempenhar na tua presença este mistério tremendo, glorioso e excelente.
Por isso, suplicamos à tua divindade adorável e que restaura todas as criaturas: Venha,
Senhor, a graça do Espírito Santo, permaneça e repouse sobre esta oblação que
oferecemos na tua presença, para que a santifique e faça, deste pão e deste cálice, o
Corpo e o Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo. Transforma-os e santifica-os Tu
mesmo, pela acção do Espírito Santo, a fim de que a recepção destes santos mistérios
seja, para todos os que participam deles, [fonte de] vida eterna e de ressurreição dos
mortos, de expiação dos corpos e das almas, de iluminação do conhecimento, de confiança
diante de Ti e de salvação eterna, da qual nos falaste por Jesus Cristo, nosso Senhor,
para que, todos juntos, sejamos congregados na unidade por um mesmo vínculo de
amor e de paz, e nos tornemos um só corpo e um só Espírito, pois fomos chamados,
por vocação, a uma só esperança.
Ninguém coma nem beba [destes dons] para condenação do seu corpo e da sua
alma, por causa dos seus pecados, nem [essa participação] redunde para ninguém em
enfermidade ou fraqueza, por ter comido deste pão e bebido deste cálice indignamente.
Fortifica-nos e confirma-nos para tudo o que Te é agradável, de modo que nos tornemos
dignos de comungar, com boa consciência, no Corpo e no Sangue do teu Cristo. Quando
comparecermos diante de Ti, nesse tribunal tremendo e glorioso, na presença do trono
da tua majestade, faz que encontremos misericórdia e graça, e que gozemos dos bens
futuros que jamais hão-de passar, com todos os que, ao longo dos séculos, Te foram agradáveis.
DOXOLOGIA FINAL

Pela graça e misericórdia do teu Filho único, com o qual, Senhor, Te sejam dadas 4634
glória, honra, poder e exaltação, assim como ao teu Espírito de vida, santo e santificador,
agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
Povo. Amen.

Anáfora das Constituições Apostólicas 1

(Ver nn. 1609-1621) 4635

1
Anáfora das Constituições Apostólicas (=F. X. F UNK, Paterbornae 1905, Turim 1962 2; SCh 321, 329, 336;
E. L ODI , Roma 1979, 384-397). O livro VIII das Constituições Apostólicas oferece-nos, nos cap. 5-15, a
descrição mais completa dessa época sobre a liturgia eucarística, na qual figura o mais antigo texto duma
anáfora siríaca, de carácter nitidamente didáctico.
1116 SÉCULO V

Anáfora Siríaca dos Doze Apóstolos I 1

(Na Igreja Siro-ocidental)


DIÁLOGO INICIAL

4636 Sac. O amor de Deus Pai, a graça do Filho unigénito e nosso grande Senhor Deus
e Salvador Jesus Cristo e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.
Povo. E com o teu espírito.
Sac. Corações ao alto.
Povo. Já os elevámos até ao Senhor.
Sac. Dêmos graças ao Senhor.
Povo. É digno e justo
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

4637 Sac. É digno e justo que Te louvemos e glorifiquemos, a Ti, Deus Pai verdadeiro
e ao teu Filho unigénito e ao Espírito Santo. Tu nos chamaste do nada ao ser, e depois
da nossa queda nos levantaste e renovaste. Não cessaste de nos visitar até nos conduzires
às alturas do Céu, dando-nos o dom do Reino que há-de vir. Por tudo isto Te damos
graças a Ti, ao teu Filho unigénito e ao teu Espírito Santo. Diante de Ti e à tua volta
estão os Querubins de quatro faces e os Serafins de seis asas. As suas vozes jamais
guardam silêncio, nem cessam de dizer, juntamente com os poderes celestes, o hino da
vitória, cantando, clamando e dizendo:
Povo. Santo, Santo, Santo, o Senhor Sabaoth. O céu e a terra estão cheios da tua
glória. Hossana nas alturas. Bendito seja Aquele que vem e virá em nome do Senhor,
nosso Deus. Hossana nas alturas.
POST SANCTUS

4638 Sacerdote inclinado: Tu és santo e santíssimo, Deus Pai, com o teu Filho unigénito
e o teu Espírito Santo. Tu és santo e santíssimo na majestade da tua glória. Tu amaste
tanto o mundo que lhe entregaste o teu Filho unigénito, a fim de que todo aquele que
n’Ele creia não pereça, mas tenha a vida eterna.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

4639 Sacerdote eleva a voz: Quando Ele veio, e levou à sua plenitude todo o desígnio
salvador, na noite em que foi entregue pela vida e redenção do mundo, tomou o pão em
suas mãos santas e sem mancha, e, tendo-as levantado ao céu, deu graças, abençoou-o,
santificou-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos e Apóstolos, dizendo: Tomai, comei
todos dele; isto é o meu Corpo, partido e dado por vós e por muitos, para remissão dos
pecados e para a vida eterna.
De igual modo, depois da Ceia, tomou o cálice, misturou o vinho e a água, deu
graças, abençoou-o, santificou-o e, depois de o ter provado, deu-o aos seus discípulos
e Apóstolos, dizendo: Tomai, bebei todos dele; isto é o meu Sangue, o Sangue da nova

1
Anáfora Siríaca dos Doze Apóstolos I (=H ÄNGGI -P AHL , Fribourg 1968, 265-268; E. LODI , Roma 1979,
313-316; A. R AES , Anaphorae Syriacae, 2 vol., I, fasc. 2, Roma 1940; Orientalia Christiana Periodica,
Roma, Instituto Oriental 1958, 9-13); cf. nn. 7021-7030. Entre as 80 anáforas da Igreja Siríaca, esta parece
ter tido alguma influência nas anáforas de São João Crisóstomo e de São Basílio.
ANÁFORA SIRÍACA DOS DOZE APÓSTOLOS 1117

Aliança, derramado por vós e por muitos, para remissão dos pecados e para a vida
eterna. Fazei isto em memória de Mim. Todas as vezes que comerdes deste pão e
beberdes deste cálice, anunciareis a minha morte e proclamareis a minha ressurreição
até que Eu venha.
Povo. Anunciamos, Senhor, a tua morte, [proclamamos a tua ressurreição e
aguardamos a tua segunda vinda. Pedimos-Te misericórdia e indulgência e imploramos
a remissão dos pecados. A tua misericórdia esteja sobre nós].
ANAMNESE

Sac. Celebrando, agora, o memorial salvador de toda a acção redentora, por Ti 4640
instituído: da tua crucifixão, da tua morte, da tua sepultura, da tua ressurreição de entre
os mortos ao terceiro dia, da tua ascensão ao céu, da tua sessão à direita do Pai, da tua
segunda vinda gloriosa, na qual julgarás os vivos e os mortos, dando a cada um segundo
as suas obras, a tua Igreja e o teu povo suplicam-Te, pelo teu amor para com os homens,
que lhes concedas a felicidade de estarem unidas a Ti, no teu Reino. E por Ti e contigo
suplicam ao Pai, dizendo:
Povo. Deus Pai todo-poderoso, tem piedade de nós.
Sac. Também Te damos graças, Senhor, pelos teus favores e Te louvamos por tudo.
Povo. Nós Te louvamos, Te bendizemos, Te adoramos e Te pedimos, Senhor nosso
Deus: sê propício, Tu que és bom, e tem piedade de nós.
Diác. Em silêncio e com temor, estai de pé e orai. Orai: a paz esteja connosco e
a tranquilidade com todos nós.
EPICLESE

Sac. Nós Te pedimos, Senhor todo-poderoso e Deus dos exércitos, prostrando-nos 4641
diante de Ti: envia o teu Espírito Santo sobre nós e sobre as oferendas apresentadas.
Faz que este pão seja o Corpo venerável de nosso Senhor Jesus Cristo, e este cálice, o
seu Sangue, para que os que o receberem, obtenham a vida, a ressurreição, o perdão dos
pecados, a cura da alma e do corpo, a iluminação do Espírito e a defesa diante do
tremendo tribunal [Béma] do teu Cristo, de modo que ninguém deste teu povo se
perca, Senhor; mas antes, pelo contrário, todos Te sirvamos e celebremos o teu culto,
alegrando-nos por permanecer ao teu serviço todo o tempo da nossa vida, e de gozar
dos teus mistérios celestiais, imortais e vivificantes, pela tua graça, a tua misericórdia
e a tua compaixão, agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
Povo. Amen.
INTERCESSÕES

Sacerdote inclinado: Nós Te oferecemos, Senhor todo-poderoso, este sacrifício 4642


espiritual por todos os homens, pela tua Igreja católica, pelos bispos, que dispensam
a palavra da verdade, pela minha indignidade, pelos presbíteros e os diáconos, por
todos os crentes da região, por todo o povo dos teus fiéis, pela guarda do teu rebanho,
por esta Igreja santa, por cada cidade e região dos fiéis, pelo tempo favorável e pelos
frutos da terra, pelos irmãos fiéis que estão na miséria, pelos que apresentaram estas
oferendas, pelos que costumam ser nomeados nas tuas santas Igrejas... Concede a cada
um o auxílio de que precisa. Aos nossos pais e irmãos, que morreram na verdadeira fé,
dá-lhes a glória divina no dia de Juízo; não entres em litígio com eles, porque nenhum
ser vivo é inocente diante de Ti.
1118 SÉCULO V

Eleva a voz: Um só foi achado sem pecado na terra, o teu Filho unigénito, nosso
Senhor Jesus Cristo, o grande propiciador da nossa raça, por quem esperamos achar
misericórdia e remissão dos pecados, para nós e para eles.
Povo. Perdoa, apaga, [ó Deus, os nossos pecados que cometemos por querer e
sem querer, consciente e inconscientemente].
Sac. Fazemos memória em primeiro lugar da Santa Mãe de Deus e sempre Virgem
Maria, dos Apóstolos divinos, dos santos Profetas, dos Mártires que resplandecem
com a sua vitória e de todos os Santos que Te foram agradáveis. Pela sua oração e a sua
intercessão livra-nos do mal, e esteja sobre nós a tua misericórdia, neste mundo e no
que há-de vir.
DOXOLOGIA

4643 Sac. Para que também neste tempo e em todos os tempos glorifiquemos muito o
teu Nome bendito, juntamente com o [nome] de Jesus Cristo e do teu Espírito Santo.
Povo. Como era em todo o tempo e pelos séculos dos séculos.
ANÁFORA GREGA DE SÃO JOÃO CRISÓSTOMO 1119

Anáfora Grega de São João Crisóstomo 1

DIÁLOGO INICIAL 2

O sacerdote diz: A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai, e a 4644
comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós.
Povo. E com o teu espírito.
Sac. Corações ao alto.
Povo. Já os elevámos até ao Senhor.
Sac. Dêmos graças ao Senhor.
Povo. É digno e justo3.
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

O sacerdote começa a santa anáfora, em voz baixa: É digno e justo cantar-Te 4645
com hinos, dar-Te graças, adorar-Te em todo o espaço dos teus domínios. Tu és [o]
Deus inefável, inconcebível, invisível, incompreensível. Tu existes desde sempre e és
sempre o mesmo, Tu e o teu Filho unigénito e o teu Espírito Santo. Tiraste-nos do nada
para o ser, levantaste-nos da queda e não descansaste até nos fazeres subir ao Céu, a
fim de nos dares o Reino que há-de vir. Por tudo isto Te damos graças a Ti, ao teu Filho
unigénito e ao teu Espírito Santo, pelos teus dons que conhecemos e pelos que ignoramos,
pelos que estão à vista e pelos ocultos.
Introdução ao Santo. Também Te damos graças por este santo serviço
(leitourgi/aj), que Te dignas receber das nossas mãos, apesar de Te assistirem milhares
de Arcanjos e miríades de Anjos, Querubins e Serafins de seis asas e múltiplos olhos,
que se lançam, voam, (elevando a voz) proclamam e exclamam, dizendo:
Povo. Santo, Santo, Santo, Senhor Sabaoth. Os céus e a terra estão cheios da tua
glória. Hossana nas alturas. Bendito O que vem em nome do Senhor. Hossana nas alturas.
POST SANCTUS

O sacerdote ora, em voz baixa: Com eles também nós, Senhor das Potestades, 4646
amigo dos homens, proclamamos e dizemos: Tu és santo e santíssimo, assim como o
teu Filho único e o teu Espírito Santo. Tu és santo e santíssimo, e magnífica é a tua
glória. Amaste de tal modo o mundo, que lhe deste o teu Filho unigénito, para que, todo
o que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

Quando Ele veio cumprir o desígnio 4 que tinha aceitado, na noite em que foi 4647
entregue, ou, melhor, em que Se entregou para a vida do mundo, tomando o pão em

1
Anáfora Grega de São João Crisóstomo (=J. G OAR , Eu) x olo/ gion sive Rituale Graecorum, Veneza 1730; F.
E. B RIGHTMAN , Liturgies Eastern and Western, Oxford, Clarendon 1896, 1965 2 ); cf. nn. 7066-85.
2
Em data posterior à composição da anáfora, o diálogo inicial passou a ser precedido duma admonição
inicial do diácono, à qual responde o coro: [Diácono. Estejamos como se deve, de pé e com temor. Estejamos
atentos a oferecer, em paz, a santa oblação. Coro. Misericórdia de paz, sacrifício de louvor].
3
Quando a resposta é cantada pelo coro: [É digno e justo que nos prostremos diante do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, Trindade consubstancial e indivisa].
4
o) i konomi/ a n .
1120 SÉCULO V

suas mãos santas, puras e sem mancha, deu graças5, abençoou-o6, santificou-o7, partiu-o e
deu-o aos seus santos discípulos e Apóstolos, dizendo (elevando a voz): Tomai e comei:
isto é o meu Corpo entregue por vós, para remissão dos pecados.
Clero e povo: Amen.
De igual modo, depois da Ceia, tomou o cálice, dizendo (elevando a voz): Bebei
todos dele: isto é o meu Sangue, o Sangue da nova Aliança, derramado por vós e por
muitos para remissão dos pecados.
Clero e povo: Amen.
ANAMNESE

4648 O sacerdote ora, em voz baixa: Celebrando, pois, o memorial deste mandato
salvador e de tudo o que foi realizado em nosso favor, da cruz, da sepultura, da ressurreição
ao terceiro dia, da ascensão aos Céus, da sessão à [tua] direita, da segunda e gloriosa
parusia, (elevando a voz) nós Te oferecemos, de entre as tuas coisas, o que é teu por
tudo e em tudo.
Povo. Nós Te cantamos8, nós Te bendizemos9, nós Te damos graças10, Senhor, e
Te pedimos, nosso Deus.
EPICLESE

4646 O sacerdote ora em voz baixa: Também Te oferecemos11 este culto espiritual12
e incruento e Te invocamos, Te pedimos, Te suplicamos: envia o teu Espírito Santo
sobre nós e sobre estes dons apresentados13, e faz deste pão o precioso Corpo do teu
Cristo, mudando-o14 pelo teu Espírito Santo.
Povo. Amen.
Sac. E do que está neste cálice, o precioso Sangue do teu Cristo, mudando-o pelo
teu Espírito Santo.
Povo. Amen.
Sacerdote em voz baixa: De modo que eles sejam, para quantos deles
participarem, sobriedade da alma, remissão dos pecados, comunicação do Espírito Santo,
plenitude do Reino, livre acesso junto de Ti, e não juízo ou condenação.
INTERCESSÕES

4650 Nós Te oferecemos também este culto espiritual pelos Pais, os Patriarcas, os
Profetas, os Apóstolos, os Pregadores, os Evangelistas, os Mártires, os Confessores, os
castos que entraram em repouso na fé e por todos os justos consumados na fé (em voz
alta), e acima de tudo a Santíssima, Pura, Gloriosíssima e Bendita Senhora nossa, a
Mãe de Deus e sempre Virgem Maria, São João Baptista, o precursor, e os santos
Apóstolos, dignos de todo o louvor, e santo N., de quem fazemos memória, e todos os

5
eu) x aristh/ s aj .
6
eu)logh/saj.
7
a( g ia/ s aj .
8
u( m nou= m en .
9
eu)logou=men.
10
eu) x aristou= m en .
11
prosfe/romen.
12
latrei/ a n logikh/ n .
13
dw= r a prokei/ m ena .
14
metabalw/ n .
ANÁFORA GREGA DE SÃO JOÃO CRISÓSTOMO 1121

Santos, por cujas orações [Te pedimos], Senhor Deus, Te dignes proteger-nos. Lembra-
-Te também de todos os que adormeceram na esperança da ressurreição da vida eterna
e dá-lhes o descanso, lá onde irradia a luz do teu rosto.
Nós Te invocamos ainda, Senhor, para que Te lembres de todo o episcopado
ortodoxo que dispensa a palavra da tua verdade, de todo o presbiterado, do diaconado
em Cristo e de todas as ordens sagradas.
Nós Te oferecemos ainda este culto espiritual pela terra habitada, pela santa Igreja
católica e apostólica, pelos que passam a sua vida na pureza e santidade, pelos que
vivem nas montanhas, nas grutas e nas cavidades da terra, pelo rei fidelíssimo, pela
rainha que ama a Cristo, por todo o seu palácio e o seu exército: dá-lhes, Senhor, um
reinado pacífico, a fim de que, nesta quietude, levemos uma vida calma e tranquila, com
toda a piedade e santidade. Lembra-Te, Senhor, da cidade onde vivemos e de todas as
cidades e povoados, assim como dos que neles habitam com fé.
(Em voz alta) Em primeiro lugar, Senhor, lembra-Te do nosso arcebispo N.
Lembra-Te, Senhor, dos que navegam, dos que viajam, dos que estão enfermos,
prisioneiros ou cativos, e da sua salvação.
Lembra-Te, Senhor, dos que dão fruto e fazem o bem nas tuas santas Igrejas e
dos que pensam nos pobres, e envia sobre todos nós as tuas misericórdias.
DOXOLOGIA FINAL

(Em voz alta) Dá-nos a graça de glorificar e cantar com hinos, num só coração e 4651
numa só voz, o teu Nome de incomparável majestade, do Pai e do Filho e do Espírito
Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
Povo. Amen.
1122 SÉCULO V

Anáfora Antioquena
de Teodoro de Mopsuéstia 1

(em forma indirecta)


DIÁLOGO INICIAL

4652 Antes de mais o pontífice abençoa o povo nestes termos: A graça de nosso
Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam com
todos vós... Alguns pontífices dizem apenas: A graça de nosso Senhor Jesus Cristo
esteja com todos vós, resumindo, deste modo, tudo o que o Apóstolo disse. Ao que o
povo responde: E com o teu espírito... Depois desta bênção, o pontífice prepara o
povo, dizendo: Corações ao alto... E o povo responde: Para ti, Senhor. Depois de o
pontífice ter preparado e predisposto deste modo a alma e o coração dos assistentes,
diz: Dêmos graças ao Senhor. Por causa disto o povo responde: É digno e justo.
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

4653 Cai então sobre ele um grande temor comum, por si próprio e por todos nós,
por causa do que aconteceu, isto é, pelo facto de nosso Senhor ter aceitado a morte por
todos nós, cujo memorial vai ser realizado neste sacrifício. Como o pontífice, neste
momento, é a língua comum da Igreja, utiliza as palavras que convêm a esta grandiosa
liturgia, – que são os louvores de Deus, – confessando que a Deus pertence todo o
louvor e toda a glória: a Ele pertence a adoração e a liturgia da parte de todos nós, e,
antes de qualquer outra, esta que, neste momento, é o memorial dessa grande graça que
nos foi feita, e cujo relato é incompreensível para toda a criação.
E como nós fomos instruídos e baptizados em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo e por isso devemos esperar o cumprimento das coisas que são feitas, o
pontífice diz: Grandeza do Pai, e também acrescenta: e do Filho, com o que Ele é e
também aqui deve ser, ou seja, verdadeira e certamente Filho, da mesma essência do
Pai e de modo nenhum menor do que Ele. E logo a seguir faz obrigatoriamente menção
do Espírito Santo, confessando que também o Espírito é de essência divina.
Em seguida diz que, a esta natureza divina, que existe desde sempre, são oferecidos
hinos e louvores, em todo o tempo, por todas as criaturas e antes de qualquer outra
pelas virtudes invisíveis. Recorda, em primeiro lugar, que os Serafins oferecem este
louvor ensinado por revelação divina a Santo Isaías... e nós dizemos, em voz alta:
Santo, Santo, Santo, Senhor dos exércitos, de cujos louvores estão cheios o céu e a
terra... Com efeito é necessário que o pontífice, nesta liturgia, depois de fazer menção
do Pai e do Filho e do Espírito Santo, diga que o louvor e a adoração são oferecidos por
todas as criaturas à natureza divina...
POST SANCTUS

4654 Depois de todos os que estão presentes terem aclamado: Santo, Santo, Santo,
Senhor dos exércitos, e de terem novamente e pouco a pouco voltado ao silêncio, o

1
Anáfora Antioquena de Teodoro de Mopsuéstia (=T EODORO DE M OPSUÉSTIA , Les Homélies Catéchétiques
de Théodore de Mopsueste, ST 145; F. E. B RIGHTMAN , The Anaphore of Theodor, Journ. Theol. Stud. 31,
1930, 160-164). Dado que esta Anáfora vem inserida na Catequese mistagógica 6 (16) em forma indirecta
e envolvida num longo comentário que dificulta a compreensão da sua sequência, entendemos por bem
inseri-la também aqui, mas sem esse comentário (cf. nn. 4618-4624).
ANÁFORA ANTIOQUENA DE TEODORO DE MOPSUÉSTIA 1123

pontífice prossegue então a liturgia sagrada dizendo, em primeiro lugar: Santo é o


Pai, Santo é o Filho e Santo é o Espírito Santo, para o professarmos... A seguir profere
também a compaixão inefável enviada sobre nós, pela qual Deus manifestou a economia
divina, realizada por Cristo. Ele, apesar de ter forma de Deus, quis aceitar a forma de
servo, assumiu o homem perfeito e completo para a redenção de todo o género humano
e destruiu as coisas antigas e difíceis que nos eram impostas, desde outrora, pelo peso
da lei e o domínio da morte que sobre nós pesava há muito tempo. Também nos deu
bens inefáveis e mais elevados do que todo o conhecimento humano e, para os adquirir,
Cristo nosso Senhor recebeu a paixão a fim de realizar a destruição completa da morte
pela sua ressurreição, e prometeu-nos a comunhão com Ele na alegria dos bens futuros.
Foi muito necessário que Ele nos desse este mistério, capaz de nos levar até esses
bens, pois foi por ele que renascemos no rito do baptismo.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

Nesta liturgia tremenda fazemos memória da morte de nosso Senhor, e recebemos 4655
o alimento imortal e espiritual do Corpo e do Sangue de nosso Senhor. Foi por nós que
nosso Senhor, ao chegar a hora da Paixão, entregou aqueles alimentos aos seus discípulos,
para que, todos nós que acreditamos em Cristo, os recebêssemos deles e por nossa vez
os fizéssemos. É por isso que, a partir de então, nós celebramos o memorial da morte
de Cristo nosso Senhor e, desse modo, recebemos um alimento inefável em que nos é
dada uma esperança capaz de nos conduzir à comunhão dos bens futuros.
EPICLESE

É, pois, necessário que o pontífice, segundo a lei do sacerdócio, peça e suplique 4656
a Deus a vinda do Espírito Santo, e para que a graça venha do alto sobre o pão e o vinho
apresentados, a fim de se poder ver que o Corpo e o Sangue de nosso Senhor, memorial
de imortalidade, são verdadeiros...
O pontífice pede também que a graça do Espírito Santo venha sobre todos os que
estão reunidos, a fim de que, tal como pelo novo nascimento eles formaram um só
corpo, sejam agora também unidos como num só corpo pela comunhão do Corpo de
nosso Senhor e que, na concórdia, na paz e na entrega ao bem, eles venham a tornar-se
um só, para que, todos nós, olhando para Deus de coração puro, não seja para nossa
condenação que tenhamos parte no Espírito Santo, por estarmos divididos em nossas
maneiras de ver, e nos sentirmos inclinados para as rixas, as disputas, a emulação e a
inveja e negligentes nos bons costumes, mas para nos tornarmos dignos, nós que O
recebemos, e para que os olhos da nossa alma, em unanimidade, em paz, na entrega ao
bem e de coração perfeito se convertam a Deus.
INTERCESSÕES

Deste modo, o pontífice completa a liturgia divina, apresentando uma súplica 4657
por todos aqueles de quem devemos fazer memória, por lei da Igreja, em todos os
tempos. E, em seguida, passa à memória dos que morreram, porque este sacrifício nos
concede a graça de sermos guardados neste mundo e também dá esta esperança
inefável, depois da morte, àqueles que morreram na fé...
1124 SÉCULO V

Anáfora Grega de São Basílio de Cesareia 1


(No Rito Bizantino)

DIÁLOGO INICIAL

4658 Sac. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai, e a comunhão do
Espírito Santo estejam com todos vós.
Povo. E com o teu espírito.
Sac. Elevemos os corações para o alto.
Povo. Já os elevámos até ao Senhor.
Sac. Dêmos graças ao Senhor.
Povo. É digno e justo
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

4659 O sacerdote começa a santa anáfora: Senhor e Dominador, Deus Pai omnipotente
e adorável, é verdadeiramente digno, justo e legítimo, é nosso dever para com a
magnificência da tua santidade, louvar-Te2, cantar-Te com hinos3, bendizer-Te4, adorar-Te5,
dar-Te graças6, glorificar-Te 7, a Ti que és o único realmente Deus, e oferecer-Te8 de
coração contrito e espírito humilhado este nosso culto racional9, pois foste Tu que nos
deste a conhecer a tua verdade. E quem é digno de louvar os teus prodígios, de fazer
ouvir os louvores10 que Te são devidos, ou de narrar11 as tuas maravilhas em todo o tempo?
Senhor e Dominador de todas as coisas, Senhor do céu e da terra e de toda a
criatura visível e invisível, que estás sentado num trono de glória e contemplas os
abismos, Tu és sem princípio12, invisível13, incompreensível14, sem limites15, imutável16,
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do grande Deus e Salvador da nossa esperança, que

1
Anáfora Grega de São Basílio de Cesareia (=J. GOAR, Ευχολογιον sive Rituale Graecorum, Paris 1647, Veneza
17302, Graz 19593; F. E. BRIGHTMAN, Liturgies Eastern and Western, I: Eastern liturgies, Oxford, Clarendon 1896,
19652, 321-327; HÄNGGI-PAHL, Fribourg 1968, 231-243; E. LODI, Roma 1979, 317-321). São Basílio viveu entre
330-379. A recensão copta da Anáfora de São Basílio, mais breve do que a recensão grega, é o fundamento arcaico
desta oração, que parece ter sido refundida pelo próprio São Basílio, com vários elementos líricos e bíblicos. É
utilizada nos domingos da Quaresma, na Semana Santa (Sexta-Feira Santa e Sábado Santo), na vigília do Natal e da
Epifania, na festa da Mãe de Deus (1 de Janeiro) e na festa do próprio São Basílio; cf. 4696-4703.
2
ai) n ei= n .
3
u(mnei=n .
4
eu)logei=n.
5
proskunei=n .
6
eu) x aristei= n .
7
doca/ z ein.
8
prosfe/rein.
9
latrei/ a n logikh/ n .
10
ai) n e/ s eij.
11
dih= k akqai.
12
a) / n arxe.
13
a) o / r ate.
14
a) k ata/ l hte.
15
a) p eri/ l hte
16
a) n alloi/ w te.
ANÁFORA GREGA DE SÃO BASÍLIO DE CESAREIA 1125

é a Imagem 17 da tua bondade, o sinal fiel do seu modelo18, que em Si mesmo mostra19 o
Pai; [que é a] Palavra vivente 20, Deus verdadeiro, antes dos séculos, Sabedoria, Vida,
Santidade, Poder, Luz verdadeira, de quem procede o Espírito Santo, o Espírito da
Verdade, o dom da filiação, o penhor da herança futura, as primícias dos bens eternos,
o poder vivificante, a fonte da santificação; por quem toda a criatura racional e espiritual
é tornada capaz de Te prestar culto21 e Te eleva uma glorificação 22 eterna, porque todas
as coisas estão ao teu serviço.
INTRODUÇÃO AO SANTO

Louvam-Te 23 os Anjos, os Arcanjos, os Tronos, as Dominações, os Principados, 4660


as Autoridades, as Potestades as Forças, os Querubins de múltiplos olhos, os dois
Serafins de seis asas que Te rodeiam, com duas das quais cobrem o rosto, com duas os
pés e com as outras duas voam, enquanto clamam alternadamente e sem descanso, em
doxologias24 incessantes,
Em voz alta: cantando, clamando, proclamando, gritando25 o hino de vitória e dizendo:
Povo. Santo, Santo, Santo, Senhor Deus Sabaoth. O céu e a terra estão cheios da
tua glória. Hossana nas alturas. Bendito O que vem em nome do Senhor. Hossana nas alturas.
POST SANCTUS

O sacerdote ora em silêncio: Juntamente com estes poderes bem-aventurados, 4661


benigno e clemente Senhor, também nós, pecadores, clamamos e dizemos: Tu és
verdadeiramente santo e santíssimo, e não há medida para a grandeza da tua santidade.
És santo em todas as tuas obras, porque tudo dispuseste para nós na justiça e no juízo
verdadeiro. Com efeito, quando formaste o homem, colhendo barro da terra, e o honraste
com a tua imagem, colocaste-o no Paraíso de delícias, prometendo-lhe, se observasse
os teus preceitos, a imortalidade da vida e o gozo dos bens eternos.
Como não Te obedeceu a Ti, Deus verdadeiro, que o tinhas criado, mas foi
seduzido pelo engano da serpente, ficando sujeito à morte por causa dos seus próprios
delitos, puseste-o neste mundo, expulsando-o do Paraíso, por justo juízo. Fizeste-o
voltar à terra donde fora tirado, dispondo para ele a salvação [que viria] de um novo
nascimento, no teu próprio Cristo. Portanto, não abandonaste para sempre a tua obra,
que em tua bondade tinhas feito, nem esqueceste a criatura das tuas mãos. Visitaste-a
de muitas maneiras pelas entranhas da tua misericórdia: enviaste-lhe os Profetas,
realizaste milagres pelos santos que em cada geração foram do teu agrado. Falaste-nos
pela boca dos Profetas, teus servidores, que anunciavam antecipadamente a salvação
que havia de vir. Deste a lei para nos socorrer, e estabeleceste os Anjos para nos guardarem.
Quando chegou a plenitude dos tempos26, falaste-nos pelo teu próprio Filho, por
quem tinhas também criado os séculos. Ele, que é o esplendor da tua glória27 e a imagem28

17
ei)kw/n.
18
sfragi/ j i) s o/ t upoj .
19
deiknh/j.
20
lo/ g oj zw= n .
21
latreu\ e i .
22
docologi/an.
23
ai) / n ousin.
24
qeologi/aij .
25
bow= n ta .
26
plh/ r wma tw= n kairw= n.
27
a) p agrasma th= j do/ c hj .
28
xarakth/ r .
1126 SÉCULO V

da tua substância29, que sustenta todas as coisas com a força da sua Palavra, não
considerou como rapina a igualdade contigo, Deus e Pai, mas, sendo Deus antes dos
séculos, foi visto na terra e conviveu com os homens, depois de ter tomado carne de
Maria Virgem. Aniquilou-Se a Si mesmo, aceitando a forma de servo, tornando-Se
semelhante ao corpo da nossa humanidade, a fim de nos tornar semelhantes à imagem
da sua glória. Uma vez que o pecado entrara no mundo por um homem, e com o pecado
a morte, aprouve ao teu Filho unigénito, que procede do teu seio, Deus e Pai, e que
nasceu, sob a Lei, de uma mulher, a Santa Mãe de Deus e sempre Virgem Maria,
condenar o pecado na sua própria carne, para dar vida, em Cristo, àqueles que estavam
mortos em Adão.
Tendo vivido como cidadão deste mundo, deu-nos os mandamentos da salvação,
desviou-nos do erro da idolatria, e levou-nos ao conhecimento de Ti, verdadeiro Deus
e Pai. Para adquirir30 para Si mesmo um povo que fosse seu, uma nação santa, um
sacerdócio real, purificado na água e santificado no Espírito Santo, Ele mesmo Se
entregou como preço da morte, na qual estávamos retidos, vendidos pelo pecado, e
desceu aos infernos, passando pela cruz, para levar tudo à sua plenitude e destruir as
cadeias da morte. Ressuscitou ao terceiro dia, abrindo o caminho da ressurreição de
entre os mortos a toda a criatura, pois não era possível que o dispensador da vida fosse
dominado pela corrupção. Deste modo veio a ser como que as primícias dos que
adormeceram, o Primogénito de entre os mortos, a fim de ter em todas as coisas o
primeiro lugar. Depois subiu aos Céus, e está sentado à direita da tua majestade, nas
alturas. Ele virá de novo para dar a cada um segundo as suas obras, mas deixou-nos,
entretanto, o memorial31 da sua Paixão salvadora, que nós Te apresentámos segundo as
suas próprias ordens.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

4662 Em voz baixa: Quando Se dirigia para a morte voluntária, digna de louvor e
vivificante, na noite em que Se entregou a Si mesmo pela vida do mundo, tomando o
pão em suas mãos santas e imaculadas, tendo-o apresentado a Ti, Deus e Pai, deu
graças, abençoou-o, santificou-o, partiu-o e deu-o aos seus santos discípulos e
Apóstolos, dizendo (em voz alta): Tomai e comei: isto é o meu Corpo, entregue por vós
para remissão dos pecados.
Povo. Amen.
Em voz baixa: De igual modo, tomou o cálice do suco da videira e, misturando-o,
deu graças, abençoou-o, santificou-o e deu-o aos seus discípulos e Apóstolos, dizendo
(em voz alta): Bebei todos dele; isto é o meu Sangue, o Sangue da nova Aliança,
derramado por vós e por muitos para remissão dos pecados.
Povo. Amen.
De novo em voz baixa: Fazei isto em memória de Mim, porque todas as vezes
que comerdes deste pão e beberdes deste cálice anunciareis 32 a minha morte e
confessareis33 a minha ressurreição.
ANAMNESE

4663 Celebrando, agora, Senhor, o memorial da sua paixão salvadora, da sua cruz
vivificante, da sua sepultura durante três dias, da sua ressurreição de entre os mortos,

29
th= j u( p osta/ s ewj.
30
kthsa/ m enoj .
31
u( p omnh/ m ata .
32
katagge/ l lete .
33
o(mologei/te.
ANÁFORA GREGA DE SÃO BASÍLIO DE CESAREIA 1127

da sua ascensão aos Céus, da sua sessão à tua direita, Deus e Pai, e da sua segunda
vinda gloriosa e temível, nós Te oferecemos de entre o que é teu o que Te pertence, em
tudo e por tudo, e em razão disso, Senhor Santíssimo, também nós, pecadores, teus
indignos servos, a quem tornaste dignos de servir ao teu santo altar, não por causa dos
nossos méritos, pois nós não fizemos nada de bom na terra, mas em virtude das tuas
misericórdias e das tuas compaixões que derramaste em abundância sobre nós, ousamos
aproximar-nos do teu santo altar.
EPICLESE

E, propondo os símbolos do sagrado Corpo e Sangue do teu Cristo, nós Te 4664


suplicamos e Te invocamos, Santo dos Santos, pela benevolência da tua bondade.
Envia o teu Espírito Santo sobre nós e sobre estes dons que Te apresentamos, para que
Ele os abençoe, os santifique e nos apresente [neste] pão o próprio Corpo precioso de
nosso Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo, e [neste] cálice o próprio Sangue precioso
de nosso Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo, derramado pela vida do mundo,
mudando-os pelo teu Espírito Santo. E a todos nós, que participamos do único pão e
do [único] cálice, une-nos uns aos outros na comunhão do único Espírito e faz que
nenhum de nós participe do Corpo e Sangue do teu Cristo para juízo e condenação,
mas que encontremos misericórdia e graça com todos os santos que Te foram agradáveis
nos séculos, os Antepassados, os Pais, os Patriarcas, os Profetas, os Apóstolos, os
Arautos, os Evangelistas, os Mártires, os Confessores, os Doutores e todo o espírito
justo consumado na fé, de modo particular a Santíssima, Imaculada, Bendita por
excelência, nossa gloriosa Senhora, a Mãe de Deus e sempre Virgem Maria, São João,
o profeta, precursor e baptista, os santos Apóstolos, dignos de todo o louvor, santo
N., cuja memória celebramos, e todos os teus santos, por cujas orações [Te pedimos],
ó Deus, Te dignes proteger-nos.
INTERCESSÕES

Lembra-Te ainda de todos os que adormeceram antes [de nós] na esperança da 4665
ressurreição de vida eterna; para a salvação, a protecção e a remissão dos pecados do
servo de Deus... [memento dos vivos]; para o repouso e a remissão da alma do teu
servo...: dá-lhe o repouso, ó nosso Deus, no lugar da luz, do qual fugiram a dor e os gemidos.
... [memento dos defuntos], dá-lhes o repouso no lugar onde irradia a luz do teu rosto.
Pedimos-Te ainda, Senhor, que Te lembres da tua santa Igreja católica e apostólica,
que se estende de um extremo ao outro da terra habitada: dá-lhe a paz, pois a adquiriste
pelo precioso Sangue do teu Cristo, e consolida esta santa casa, até à consumação dos
séculos; lembra-Te, Senhor, dos que trouxeram estes dons e daqueles para quem, por
quem e em intenção de quem os trouxeram; lembra-Te, Senhor, dos que produzem fruto
e fazem boas obras nas tuas santas Igrejas, e pensam nos pobres: dá-lhes, em
recompensa, as tuas riquezas e os teus dons celestiais; dá-lhes, em troca das coisas da
terra as do Céu, das temporais as eternas, das corruptíveis as incorruptíveis; lembra-Te,
Senhor, dos que moram nos desertos, nas montanhas, nos sepulcros e nas cavidades da
terra; lembra-Te, Senhor, dos [que vivem] na virgindade, na piedade, na ascese e passam
a sua vida na santidade.
Lembra-Te, Senhor, dos nossos reis muito veneráveis e fidelíssimos, aos quais
julgaste dignos de reinar na terra: coroa-os de verdade e de benevolência; no dia do
combate, estende a tua sombra sobre as suas cabeças; fortalece o seu braço; exalta a
sua direita; fortifica o seu reinado; submete-lhes as nações bárbaras que querem as guerras;
concede-lhes uma paz profunda e imutável; dá ao seu coração coisas boas para a tua
Igreja e para todo o teu povo, a fim de que, na serenidade que nos oferecem, levemos
uma vida calma e tranquila, em toda a piedade e santidade; lembra-Te, Senhor, de todo
1128 SÉCULO V

o principado e autoridade, dos nossos irmãos que estão no palácio e de todo o exército;
guarda os bons na sua bondade e, com a tua bondade, torna bons os maus.
Lembra-Te, Senhor, do povo que nos rodeia e dos que estão ausentes por justa
causa, tem piedade deles e de nós, segundo a multidão das tuas misericórdias; enche os
seus celeiros de todos os bens, guarda as suas uniões na paz e na concórdia, educa os
seus filhos, instrui os seus jovens, fortifica os seus anciãos, dá forças aos que desfalecem,
reúne os dispersos, orienta os extraviados e une-os à tua santa Igreja católica e apostólica;
livra os que estão afligidos por espíritos impuros; navega com os que navegam; acompanha
no caminho os que viajam; cuida das viúvas; protege os órfãos; liberta os cativos; cura
os enfermos; lembra-Te, ó Deus, de todos os que estão em julgamento, em desterro, em
qualquer tribulação, necessidade ou perturbação, de todos os que têm necessidade de
grande compaixão e dos que nos amam, dos que nos odeiam e dos que, em nossa
dignidade, nos pediram que peçamos por eles; lembra-Te, Senhor, nosso Deus, de todo o
povo; derrama sobre todos a riqueza da tua piedade, concedendo a cada um aquilo que
[Te] pede para a sua salvação; lembra-Te também daqueles de quem não fizemos
memória, por esquecimento ou devido ao seu grande número, lembra-Te Tu próprio, ó
Deus, que conheces a estatura e o rosto de cada um, que conheces cada um desde o
seio materno; porque Tu és, Senhor, o socorro dos que estão sem recursos, a esperança
dos desesperados, o Salvador dos que sofrem provações, o porto dos navegantes, o
médico dos enfermos. Sê Tu próprio tudo para todos, Tu que conheces o pedido de cada
um, a sua casa e a sua necessidade.
Livra, Senhor, esta cidade e cada cidade e povoação, da carestia, da fome, dos
tremores de terra, do fogo, da espada, da invasão estrangeira, da guerra civil. Em
primeiro lugar, lembra-Te, Senhor, do nosso arcebispo...: concede às tuas santas Igrejas
[a graça de ele permanecer] em paz, em segurança, com honra, com saúde, com vida
longa, para distribuir fielmente a palavra da verdade; lembra-Te, Senhor, de todo o
episcopado dos ortodoxos, que distribuem fielmente a palavra da verdade; lembra-Te
também de mim, Senhor, e da minha indignidade, segundo a multidão das tuas
misericórdias: perdoa-me todas as transgressões voluntárias ou involuntárias, e por causa
dos meus pecados não retires a graça do teu Espírito Santo aos dons apresentados;
lembra-Te, Senhor, do presbiterado, do diaconado em Cristo e de todas as ordens sagradas,
e não deixes confundir nenhum dos que estão à volta do teu altar. Em tua bondade,
Senhor, olha para nós, manifesta-Te a nós na riqueza das tuas misericórdias; concede-
-nos estações favoráveis e frutuosas; dá chuva à terra para que frutifique; abençoa o
círculo do ano com a tua bondade; faz que acabem os cismas das Igrejas; põe termo aos
ataques dos gentios; desfaz prontamente as sublevações das heresias pelo poder do teu
Espírito Santo; recebe-nos a todos no teu Reino, consagrando-nos como filhos da luz e
filhos do dia; dá-nos, Senhor, nosso Deus, a tua própria paz e o teu próprio amor, pois
nos fizeste dom de tudo.
DOXOLOGIA FINAL

4666 Dá-nos a graça de glorificar e cantar com hinos, num só coração e numa só voz,
o teu Nome de incomparável majestade, do Pai e do Filho e do Espírito Santo, agora e
sempre e pelos séculos dos séculos.
Povo. Amen.
ANÁFORA SIRÍACA DE TIAGO 1129

Anáfora Siríaca de Tiago 1


(Na Igreja de Edessa)
DIÁLOGO INICIAL

Sac. O amor de Deus Pai, a graça do Senhor Deus e nosso Salvador Jesus Cristo, 4667
e a comunhão do Espírito Santo, estejam com todos vós.
Povo. Amen.
Sac. Elevemos todos o espírito e os corações.
Povo. Já os elevámos até ao Senhor.
Sac. Dêmos graças ao Senhor com temor.
Povo. É digno e justo.
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS.

Sac. É verdadeiramente digno e justo, devido e conveniente glorificar-Te, bendizer-Te, 4668


louvar-Te, adorar-Te e dar-Te graças a Ti, Criador do mundo e de toda a criatura visível
e invisível, a quem glorificam os céus dos céus e os seus poderes, o sol, a lua e todo o
coro das estrelas; a terra, os mares e tudo o que eles contêm; a Jerusalém celeste, a
assembleia dos primogénitos que estão inscritos no Céu, os Anjos, os Principados, as
Potestades, os Tronos, as Dominações, as Forças que estão acima do mundo, os
exércitos celestes, os Querubins de olhos inumeráveis e os Serafins de seis asas, –
duas para cobrir os rostos, duas para cobrir os pés e duas para voar – que com vozes
incessantes, com louvores intermináveis e alternados, entoam um hino triunfal à «glória
magnífica», clamando, vitoriando e dizendo:
Povo. Santo, Santo, Santo, Senhor Sabaoth. O céu e a terra estão cheios da tua
glória. Hossana nas alturas. Bendito O que veio e que vem em nome do Senhor. Hossana
nas alturas.
POST SANCTUS

Sac. Como Tu és santo, Rei dos séculos e dador de toda a santidade. Santo é em 4669
verdade o teu Filho unigénito, nosso Deus e Senhor Jesus Cristo. Santo é em verdade
também o teu Espírito Santo, que sonda todas as tuas profundidades, ó Deus e Pai.
Santo és Tu, Pantocrator, omnipotente, tremendo, bom, compassivo, em primeiro
lugar para com a obra por Ti modelada da terra, o homem que fizeste à tua imagem e
semelhança, a quem deste as delícias do Paraíso e ao qual, quando transgrediu o teu
mandato e caiu, não abandonaste, mas como um Pai misericordioso o educaste, o
chamaste por meio da Lei e o instruíste pelos Profetas.
Nos últimos tempos, enviaste o teu Filho unigénito, nosso Deus e Senhor Jesus
Cristo, para que renovasse a tua imagem. Ele desceu dos Céus e, tendo tomado carne
da Santa Mãe de Deus, sempre Virgem e bem-aventurada Maria, por obra do Espírito
Santo, esteve presente no meio dos homens e conviveu com eles, e tudo dispos para a
salvação da nossa espécie.

1
Anáfora Siríaca de Tiago (=O. HEIMING , Anaphora syriaca sancti Iacobi fratris Domini, in Anaphorae
syriacae II, Roma 1953, 139-176; G. K HOURI -S ARKIS , L’Anaphore syriaque de st. Jacques, in Orient syrien
4, 1959, 385-449); cf. nn. 4683-4690; 6992-7001.
1130 SÉCULO V

NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

4670 Assim, ao aceitar a morte voluntária pelos nossos pecados, Ele que não tinha qualquer
pecado, na noite em que ia ser entregue pela vida e salvação do mundo, tomando o pão em
suas mãos santas, puras e imaculadas, apresentou-o a Ti, Deus e Pai, e, dando graças, abençoou-
o e santificou-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos e Apóstolos, dizendo: Tomai e comei
todos. Isto é o meu Corpo, partido e entregue por vós e por muitos, para remissão dos pecados
e a vida eterna.
Povo. Amen.
Sac. De igual modo, no fim da Ceia, tomou o cálice, e depois de misturar vinho e água,
deu graças, abençoou-o, santificou-o e deu-o aos seus discípulos e Apóstolos, dizendo: Tomai
e bebei todos. Isto é o meu Sangue, o Sangue da nova Aliança, derramado por vós e por
muitos para remissão dos pecados e a vida eterna.
Povo. Amen.
Sac. Fazei isto em memória de Mim. Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes
deste cálice, anunciareis a morte do Flho do homem e confessareis a sua ressurreição até que
Ele venha.
Povo. Anunciamos, Senhor, a tua morte, e confessamos a tua ressurreição.
ANAMNESE

4671 Sac. Por isso, Senhor, celebrando o memorial da tua morte e da tua ressurreição de
entre os mortos ao terceiro dia, da tua ascensão ao céu, da tua sessão à direita do Pai, e da tua
segunda vinda, tremenda e gloriosa, na qual julgarás o mundo com justiça, e retribuirás a cada
um segundo as suas obras, nós Te oferecemos este sacrifício tremendo e incruento. Não
procedas connosco segundo os nossos pecados, Senhor, nem nos retribuas segundo as nossas
iniquidades, mas segundo a tua mansidão e o teu amor pelos homens. Apaga os pecados dos
que Te imploram. A Ti o pede, Pai, o teu povo e a tua herança, por Ti e contigo, dizendo:
Povo. Tem piedade de nós, Pai, Pantocrator.
Sac. Nós Te damos graças e Te confessamos e do que é teu Te oferecemos em tudo e
por tudo.
Povo. Nós Te louvamos e Te damos graças e Te confessamos.
EPICLESE

4672 Sac. Tem piedade de nós, Deus Pai, Pantocrator, e envia sobre nós e sobre estes dons
que Te apresentamos, o teu Espírito Santo, Senhor vivificante, sentado contigo, Deus Pai e
Filho, que reina contigo, consubstancial e igualmente eterno, que falou pela Lei, pelos Profetas,
e pelo Novo Testamento, que desceu em forma de pomba sobre nosso Senhor Jesus Cristo, no
rio Jordão, e em forma de línguas de fogo sobre os teus santos Apóstolos. Desça agora e faça
deste pão um Corpo vivificante, salvador, celeste, libertador das nossas almas e corpos, o
Corpo de nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Salvador, para o perdão dos pecados daqueles
que o recebam e para a sua vida eterna.
Povo. Amen.
Sac. E desta mistura do cálice, faça o Sangue da nova Aliança, salvadora, vivificante,
celeste, libertadora das nossas almas e corpos, Sangue de nosso Senhor e Salvador, para o
perdão dos pecados daqueles que o recebem e para a sua vida eterna.
Povo. Amen.
ANÁFORA SIRÍACA DO «TESTAMENTUM DOMINI» 1131

(Seguem-se as intercessões) 4673


DOXOLOGIA FINAL

Sac. Pela graça, pela misericórdia e pelo amor pelos homens do teu Cristo, com o 4674
qual Tu és bendito e glorificado com o teu Espírito santíssimo, bom e vivificante, agora
e sempre e pelos séculos dos séculos.
Povo. Amen.

Anáfora Siríaca
do «Testamentum Domini» 1
(Ver nn. 4554; 4735; 7268-7271) 4675

1
Anáfora Siríaca do Testamentum Domini (=I. R AHMANI , Testamentum Domini, Moguntia 1899; E. L ODI ,
Roma 1979, 510-529). O Testamentum Domini é uma versão aumentada e modificada da Tradição Apostólica
de Hipólito de Roma, escrita nos círculos monofisitas da Síria e artificiosamente atribuída aos Apóstolos.
1132 SÉCULO V

Anáfora de São Pedro ou Sharar 1

DIÁLOGO INICIAL

4676 Sac. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai, e a comunhão do
Espírito Santo estejam com todos vós.
Povo. E com o teu espírito.
Sac. Corações ao alto.
Povo. Já os elevámos até ao Senhor.
Sac. Dêmos graças ao Senhor.
Povo. É digno e justo.
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

4677 Glória a Ti, nome adorável e glorioso, do Pai e do Filho e do Espírito Santo, que
crias os mundos pela tua graça e os seus habitantes pela tua piedade e que realizas
gratuitamente a salvação entre os mortais.
(A seguir vem o Sanctus, precedido de uma breve fórmula de introdução):
Povo. Santo, Santo, Santo, Senhor Sabaoth; o céu e a terra estão cheios da tua
glória; hossana nas alturas; bendito O que vem em nome do Senhor; hossana nas alturas.
POST SANCTUS

4678 Nós Te damos graças, Senhor, nós pecadores, teus servos, a quem deste o dom da
tua graça imerecida. Revestiste a nossa humanidade para nos fazeres viver da tua
divindade. Exaltaste a nossa humildade e levantaste-nos da nossa ruína. Fizeste viver
a nossa mortalidade e justificaste a nossa culpabilidade. Perdoaste os nossos pecados,
iluminaste a nossa inteligência, venceste os nossos inimigos, fizeste triunfar a pequenez
da nossa frágil natureza. Por todas estas graças para connosco, nós Te louvamos e
veneramos na santa Igreja, diante do teu altar reconciliador, agora e pelos séculos dos
séculos. Amen.
Em tua grande misericórdia, Senhor, lembra-Te agora de todos os Pais justos e
santos, no memorial do teu Corpo e Sangue, que Te oferecemos no teu altar puro e
santo, como Tu, nosso Mestre, nos ensinaste a fazer por meio da tua pregação, ao
dizeres: Eu sou o pão vivo, descido do Céu, para que os mortos vivam por Mim.
Nós celebramos, Senhor, o memorial da tua paixão, como nos ensinaste.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

4679 Na noite em que foste entregue aos que Te crucificavam, tomaste o pão, Senhor,
em tuas mãos puras e santas e, levantando os olhos ao céu, para o teu Pai glorioso,
abençoaste-o, marcaste-o com o sinal da cruz, consagraste-o, partiste-o e deste-o aos
teus discípulos, os bem-aventurados Apóstolos, dizendo: Este pão é o meu Corpo,
partido e entregue pela vida do mundo, para o perdão dos pecados e a remissão das
culpas daqueles que o recebem. Tomai, comei, e servir-vos-á para a vida eterna.

1
Anaphora Sancti Petri Apostoli tertia (=Edição e tradução latina de J. M. S AUGET , em Anaphorae syriacae,
t. 2, fasc. 3, 1973, 275-329); cf. n. 7044. A denominação Sharar deriva da primeira palavra da anáfora.
ANÁFORA DE SÃO PEDRO 1133

De igual modo, Senhor, deste graças e glória sobre o cálice, dizendo: Tomai, bebei
dele, e servir-vos-á para o perdão dos pecados, a remissão das culpas e a vida pelos
séculos. Todas as vezes que comerdes o Corpo santo e beberdes o Cálice da vida e da
salvação, celebrareis o memorial da morte e da ressurreição do vosso Senhor, até ao dia
da sua vinda.
Povo: Nós celebramos, Senhor, o memorial da tua morte.
ANAMNESE E OFERTA

Prostramo-nos diante de Ti, Filho único do Pai, Primogénito da eternidade, Cordeiro 4680
espiritual, que desceste das alturas até aos abismos para seres imolado, em vista da
purificação de todos os homens, o perdão e a santificação dos pecados e dos pecadores,
pelo teu sangue, e dos impuros, pela tua imolação. Faz-nos viver, Senhor, da tua vida
verdadeira, e purifica-nos espiritualmente. Dá-nos a graça de conseguir a vida, pela tua
morte vivificante. Dá-nos a graça de estar em pureza, na tua presença, de Te servir em
santidade e de oferecer esta oblação à tua divindade. A tua majestade encontre nela o
seu agrado, e derramem-se sobre nós as tuas misericórdias.
EPICLESE

Venha, Senhor, o teu Espírito vivo e santo. Que Ele pouse e repouse sobre esta 4681
oblação dos teus servos a fim de que ela sirva àqueles que a recebem, para o perdão das
suas faltas, a remissão dos seus pecados, a bem-aventurada ressurreição de entre os
mortos e a vida eterna no Reino dos Céus, para sempre.
DOXOLOGIA FINAL

Pela tua economia gloriosa para connosco, teus servos pecadores, salvos pelo 4682
teu sangue vitorioso, reconhecidos abrimos os lábios, na tua Igreja santa, diante do teu
altar reconciliador, e Te damos graças, agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
Povo. Amen.
1134 SÉCULO V

Anáfora Grega de Tiago, irmão do Senhor 1

(Na Igreja de Jerusalém)


DIÁLOGO INICIAL

4683 Sac. O amor2 de Deus Pai, a graça3 do Senhor Deus e nosso Salvador Jesus
Cristo, e a comunhão4 e o dom 5 do Espírito Santo, estejam com todos vós.
Povo. E com o teu espírito.
Sac. Elevemos o espírito e os corações.
Povo. Já os elevámos até ao Senhor.
Sac. Dêmos graças6 ao Senhor.
Povo. É digno e justo.
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

4684 O sacerdote inclina-se e diz: Como é verdadeiramente digno e justo, racional e


salutar louvar-Te7, cantar-Te com hinos8, bendizer-Te9, adorar-Te10, glorificar-Te 11,
dar-Te graças12, a Ti, Criador do mundo de toda a criatura visível e invisível, tesouro
dos bens eternos, fonte da vida e da imortalidade, Deus e Senhor de todas as coisas!
Introdução ao Santo. Cantam-Te hinos os céus e nos céus dos céus todas as
suas potestades; o sol e a lua e todo o coro das estrelas; a terra, o mar e tudo o que
neles existe; a Jerusalém celeste, a multidão dos eleitos, a Igreja dos primogénitos cujos
[nomes estão] inscritos nos Céus, os espíritos dos justos e dos Profetas, as almas dos
Mártires e dos Apóstolos, os Anjos, os Arcanjos, os Tronos, as Dominações, os
Principados, as Autoridades e as temíveis Potestades, os Querubins de olhos
inumeráveis e os Serafins de seis asas – duas para cobrir os rostos, duas para cobrir os
pés e duas para voar – clamam uns para os outros, em incessantes teologias 13

1
Anáfora Grega de Tiago, irmão do Senhor (=H ÄNGGI-P AHL , Fribourg 1968, 244-251; B. C H . M ERCIER, La
sainte liturgie de saint Jacques. Édition critique du texte grec avec traduction latine, in Patrologia
orientalis, t. 26, fasc. 2, Paris 1948). Na Igreja Siro-Antioquena, as Anáforas, cujo número é elevado,
apresentam hoje estas características: a) as orações, antes e depois do Sanctus, desenvolvem a economia
da salvação, e a maior parte das vezes começam por estas palavras: Vere dignum – Vere sanctus; b) a narração da
instituição utiliza estritamente as fórmulas do Novo Testamento; c) a anamnese é dirigida a Cristo, com omissão do
acto da oferta, exceptuando a Anáfora de Tiago, que hoje é utilizada apenas na cidade de Jerusalém. A antiguidade
desta Anáfora é testemunhada pelas 23 Catequeses de Cirilo de Jerusalém (cf. nn. 4667-4674).
2
a) g a/ p h .
3
xa/ r ij .
4
koinwni/ a .
5
dwrea/.
6
eu)xaristh/swmen.
7
ai) n ei= n .
8
u( m nei= n
9
eu)logei=n.
10
proskunei= n .
11
docologei=n.
12
eu) x aristei= n .
13
a) s igh/ t oij qeologi/ a ij.
ANÁFORA GREGA DE TIAGO 1135

(exclamação), o hino triunfal da tua glória magnífica, cantando14 com voz sonora,
clamando15, glorificando16, vitoriando17 e dizendo:
Povo. Santo, Santo, Santo, Senhor Sabaoth. O céu e a terra estão cheios da tua
glória. Hossana nas alturas. Bendito O que veio 18 e que vem19 em nome do Senhor.
Hossana nas alturas.
POST SANCTUS

O sacerdote, de pé, marca os dons com o sinal da cruz, dizendo para si: Tu 4685
és santo, Rei dos séculos, Senhor e dador de toda a santidade. Santo é o teu Filho
unigénito, nosso Senhor Jesus Cristo, por quem fizeste todas as coisas. Santo é o teu
Espírito Santo, que sonda todas as coisas e as tuas profundidades, ó Deus e Pai.
E inclinando-se, diz: Santo és Tu, o omnipotente, o temível, o bom, o misericor-
dioso, que Te compadeceste da tua criatura, que fizeste da terra o homem à tua imagem
e semelhança, e lhe concedeste logo o gozo do Paraíso. E, quando transgrediu o teu
mandamento e caiu, em tua bondade não o desprezaste nem o abandonaste, mas como Pai
misericordioso20 o educaste21, o chamaste por meio da Lei e o instruíste pelos Profetas.
Por fim, enviaste ao mundo o teu Filho unigénito, nosso Senhor Jesus Cristo, para
que, com a sua vinda, renovasse e ressuscitasse a tua própria imagem 22. Ele desceu do
Céu, e, tendo tomado carne do Espírito Santo e de Santa Maria, sempre Virgem e Mãe
de Deus, estando presente no meio dos homens e convivendo com eles23, realizou até
ao fim os seus desígnios24 em favor do nosso género humano.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

Quando Ele, sem pecado, ia sofrer por nós, pecadores, uma morte voluntária e 4686
vivificante pela cruz, na noite em que foi entregue, ou antes em que Ele mesmo Se
entregou pela vida do mundo e sua salvação (o sacerdote endireita-se, pega no pão,
marca-o com o sinal da cruz, e diz), tomando o pão em suas mãos santas, imaculadas,
puras e imortais, e, levantando os olhos ao céu, apresentou-o a Ti, seu Deus e Pai, e,
dando graças 25 , abençoou-o 26 , santificou-o 27 , partiu-o 28 e distribuiu-o 29 aos seus
santos discípulos e bem-aventurados Apóstolos, dizendo (depõe o pão e excla-
ma): Tomai e comei. Isto é o meu Corpo, partido por vós, e distribuído para remis-
são dos pecados.
Povo. Amen.

14
#)/donta .
15
bow= n ta .
16
docologou= n ta .
17
kekrago/ t a .
18
elqw= n .
19
e)rxo/menoj.
20
eu) / s plagxnoj.
21
e) p ai/ d eusaj.
22
ei) k o/ n a.
23
sunanastrafei/ j .
24
%kono/ m hse.
25
eu) x aristh/ s aj.
26
eu) l ogh/ s aj.
27
a( g ia/ s aj.
28
kla/ s aj.
29
mete/ d wke.
1136 SÉCULO V

A seguir, depois de tomar o cálice, marca-o com o sinal da cruz e diz para si:
De igual modo, no fim da Ceia, tomou o cálice, e depois de misturar vinho e água,
fixando os olhos no céu, apresentou-o30 a Ti, seu Deus e Pai, e, dando graças31,
abençoou-o32, santificou-o, enchendo-o do Espírito Santo e deu-o aos seus santos
discípulos e bem-aventurados Apóstolos, dizendo (depois de o poisar, exclama): Bebei
todos dele. Isto é o meu Sangue, o Sangue da nova Aliança, derramado e distribuído por
vós e por muitos para remissão dos pecados.
Povo. Amen.
A seguir, de pé, diz para si: Fazei isto em memória de Mim 33. Todas as vezes
que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis34 a morte do Filho do
homem e confessareis35 a sua ressurreição até que Ele venha.
Os diáconos dizem: Nós o acreditamos36 e confessamos37.
Povo. Anunciamos38, Senhor, a tua morte, e confessamos39 a tua ressurreição.
ANAMNESE

4687 Depois traça o sinal da cruz e, inclinando-se, diz: Por isso, também nós,
pecadores, celebrando o memorial da sua paixão vivificante e da cruz salvadora, da
morte, da sepultura, da ressurreição de entre os mortos ao terceiro dia e ascensão aos
céus, da sessão à tua direita, Deus e Pai, e da sua segunda, gloriosa e tremenda parusia,
quando vier com glória julgar os vivos e os mortos, para dar a cada um segundo as suas
obras, ou melhor, segundo as entranhas da sua misericórdia – sê indulgente connosco,
Senhor, nosso Deus – nós Te oferecemos40, Senhor, este sacrifício41 temível e incruento,
pedindo-Te que não procedas connosco segundo os nossos pecados, nem nos retribuas
segundo as nossas iniquidades, mas que, em tua mansidão e em teu inefável amor aos
homens, perdoando e esquecendo o documento que nos acusa, concedas às nossa
súplicas os teus eternos dons celestes – que os olhos não viram, os ouvidos não
ouviram e não subiram ao coração do homem – que Tu preparaste, ó Deus, para os que
Te amam. Não rejeites o teu povo, Senhor, amigo dos homens, por causa de mim e dos
meus pecados (três vezes. E exclama): pois o teu povo e a tua Igreja to suplicam.
Povo. Tem piedade de nós, Senhor, Deus, Pai todo-poderoso.
EPICLESE

4688 O sacerdote, de pé, diz para si: Tem piedade de nós, ó Deus, ó Pai, ó Todo-
-Poderoso; tem piedade de nós, Deus, nosso Salvador. Tem piedade de nós segundo a
tua grande misericórdia, e envia sobre nós e sobre estes dons que Te apresentamos, o
teu Espírito santíssimo (e inclinando-se, diz): Senhor vivificante, que compartilha o
trono contigo, Deus e Pai, e com o teu Filho unigénito, que reina contigo, consubstancial

30
a) n a/ d eicaj.
31
eu) x aristh/ s aj.
32
eu) l ogh/ s aj.
33
ei) j th/ n e) m h/ n a) n a\ m nhsin.
34
katagge/ l lete.
35
o(mologei=te.
36
pisteu/ o men.
37
o( m ologou= m en.
38
katagge/ l lomen.
39
o( m ologou= m en.
40
prosfe\romen.
41
qusi/ a n.
ANÁFORA GREGA DE TIAGO 1137

e igualmente eterno, que falou na Lei pelos Profetas, e no teu Novo Testamento, que
desceu em forma de pomba sobre nosso Senhor Jesus Cristo, junto do rio Jordão, e
permaneceu dentro d’Ele, que desceu sobre os teus santos Apóstolos em forma de
línguas de fogo, na sala de cima da santa e gloriosa Sião, no dia do santo Pentecostes.
(De pé, diz para si): Envia o teu próprio Espírito santíssimo, Senhor, sobre nós e sobre
estes santos dons que Te apresentamos (e exclama), para que, visitando-os com a sua
santa, boa e gloriosa presença42, os santifique43 e faça44 deste pão o Corpo santo de
Cristo.
Povo. Amen.
Sac. E deste cálice, o Sangue precioso de Cristo.
Povo. Amen.
O sacerdote, de pé, diz para si: Os que os recebem em comunhão, recebam
juntamente a remissão dos pecados, a vida eterna, a santificação 45 das suas almas e
corpos, a abundante fecundidade das suas boas obras, a confirmação da santa Igreja
católica e apostólica, que Tu fundaste sobre a rocha da fé, de modo que as portas do
Inferno não prevaleçam contra ela. Livra-a de toda a heresia e dos escândalo dos
artífices da iniquidade e dos inimigos que surgiram e hão-de surgir contra ela até à
consumação dos séculos.
E respondem só os clérigos: Amen.
O sacerdote diz: Oferecemos-Te ainda, Senhor, pelos santos lugares que Tu
glorificaste com a teofania do teu Cristo e a visita do teu Espírito santíssimo,
especialmente pela santa e gloriosa Sião, mãe de todas as Igrejas, e por toda a tua santa
Igreja católica e apostólica e pelo mundo inteiro; dá-lhe desde agora, em abundância, os
dons do teu Espírito santíssimo, ó Senhor.
INTERCESSÕES

O sacerdote diz: Lembra-Te, Senhor, de todos os nossos santos padres e bispos 4689
que dispensam em forma ortodoxa, através da terra inteira, a palavra da tua verdade.
Lembra-Te, Senhor, do nosso santo Padre N., de todo o seu clero e de todo o seu
sacerdócio, concede-lhe uma velhice honrosa e guarda-o por muito tempo para apascentar
o teu povo com toda a piedade e santidade.
Lembra-Te, Senhor, aqui e em toda a parte, do honrado presbiterado, do diaconado
em Cristo e de todos os outros ministérios e ordens eclesiásticas e da nossa fraternidade
em Cristo, assim como de todo o povo que ama a Cristo.
Lembra-Te, Senhor, dos presbíteros que nos assistem nesta santa hora, diante do
teu santo altar, na oferenda do Sacrifício santo e incruento, e dá-lhes, como a nós, uma
palavra, para que a nossa boca se abra para glória e louvor do teu santíssimo nome.
Lembra-Te, Senhor, segundo a multidão das tuas misericórdias e das tuas
compaixões, também de mim, humilde e pecador, teu indigno servidor, e protege-me na
tua misericórdia e na tua compaixão, livra-me e subtrai-me aos meus perseguidores,
Senhor das potestades, e, já que em nós abundou o pecado, superabunde a graça.
Lembra-Te, também, Senhor, dos diáconos que estão à volta do teu santo altar e
concede-lhes uma vida sem censura, guarda a sua diaconia sem mancha e obtém-lhes
uma boa promoção.

42
parousi/ # .
43
a( g ia/ s $.
44
poih/ s $.
45
a( g iasmo/ n .
1138 SÉCULO V

Lembra-Te, Senhor, desta santa cidade, que é tua, ó nosso Deus, e daquela que
exerce o império, de toda a cidade e povoado, e de todos os que neles moram na fé
ortodoxa e em piedade, da sua paz e da sua segurança.
Lembra-Te, Senhor, do nosso rei piedosíssimo e que ama a Cristo, da sua rainha
piedosa e que ama a Cristo, de todo o seu palácio e exército, dos seus auxílios do alto
e da sua vitória; toma na mão o escudo grande e o pequeno, e levanta-Te para o
socorrer, submete-lhe todas as nações, guerreiras e bárbaras, que querem a guerra,
dirige os seus conselhos, para que passemos uma vida sossegada e tranquila em toda a
piedade e santidade.
Lembra-Te, Senhor, dos cristãos que vão e vêm adorar nestes lugares de Cristo.
Lembra-Te, Senhor, dos cristãos que navegam ou viajam, que estão no estrangeiro,
dos que estão em cadeias e na prisão, dos que estão cativos ou desterrados, dos que
estão nas minas, nos tormentos e em amarga servidão, pais e irmãos nossos, e do
pacífico regresso de cada um a sua casa.
Lembra-Te, Senhor, dos que estão na velhice e na impotência, dos enfermos, dos
estropiados e dos que são afligidos por espíritos impuros; dá-lhes uma cura rápida
vinda de Ti, ó Deus e [lembra-Te] da sua salvação.
Lembra-Te, Senhor, de toda a alma cristã aflita e provada, necessitada da tua
misericórdia e do teu auxílio, ó Deus, e da conversão dos transviados.
Lembra-Te, Senhor, dos que servem na virgindade, na piedade e na ascese, dos
nossos santos pais e irmãos que lutam sobre as montanhas, nas grutas e nas cavidades
da terra, assim como de todas as comunidades ortodoxas e daquela que aqui está em Cristo.
Lembra-Te, Senhor, de nossos pais e irmãos, que trabalham e nos servem por
causa do teu santo nome.
Lembra-Te, Senhor, de todos, para seu bem, tem piedade de todos, Senhor,
reconcilia-Te com todos, dá a paz à multidão do teu povo, dissipa os escândalos,
aniquila as guerras, faz que cessem os cismas das Igrejas, dissolve prontamente as
heresias que aparecem, derruba a barreira entre as nações, levanta a força dos cristãos,
concede-lhes a tua paz e o teu amor, ó Deus, nosso Salvador, esperança de todas as
extremidades da terra.
Lembra-Te, Senhor, da salubridade do ar, das chuvas pacíficas, dos orvalhos
benéficos, da abundância dos frutos, de um fim favorável que coroe o ano com a tua
bondade, porque os olhos de todos esperam em Ti, e Tu lhes dás o sustento no tempo
oportuno, abres a tua mão e cumulas os desejos de todo o ser vivo.
Lembra-Te, Senhor, dos que deram fruto e dão fruto nas tuas santas Igrejas, ó
Deus, dos que se lembram dos pobres, e daqueles que nos pediram que façamos
memória deles nas orações.
Digna-Te também, Senhor, lembrar-Te dos que depuseram oferendas neste dia
no teu altar, e das intenções pelas quais cada um ofereceu o que pensou e de todos os
que Te recomendamos agora (e faz memória de quem quiser, entre os vivos)...
Lembra-Te, também, Senhor, dos nossos próprios pais, amigos, próximos e dos
irmãos que estão aqui.
Lembra-Te, Senhor, de todos aqueles de quem fizemos memória, e de todos os
ortodoxos dos quais não fizemos memória: dá-lhes em troca dos bens terrenos os
celestiais, dos corruptíveis os incorruptíveis, dos temporais os eternos, segundo as
promessas do teu Cristo, pois Tu tens autoridade sobre a vida e sobre a morte.
Digna-Te ainda, Senhor, lembrar-Te também dos que nos séculos passados Te
foram agradáveis, de geração em geração, dos santos Pais, Patriarcas, Profetas,
Apóstolos, Mártires, Confessores, santos Doutores e de todo o espírito justo
consumado na fé do teu Cristo.
ANÁFORA GREGA DE TIAGO 1139

[Aqui se introduz uma lista de comemorações que começa pela Virgem, o Baptista,
os Apóstolos, e que não cessa de se estender. Depois da qual o celebrante continua:]
Lembra-Te de todos estes, Deus dos espíritos e de toda a carne, dos ortodoxos
que recordámos e dos que não recordámos: fá-los Tu mesmo descansar na terra dos
vivos, no teu reino, nas delícias do Paraíso, no seio de Abraão, de Isaac e de Jacob,
nossos santos Pais, donde fugiu toda a dor, tristeza e gemido, e onde irradia a luz da tua
face que resplandece em todo o tempo; e para nós, Senhor, dispõe cristãmente o fim da
nossa vida: que ela Te seja agradável, sem pecado e pacífica; reúne-nos aos pés dos
teus eleitos quando quiseres e como quiseres, desde que seja sem vergonha e sem
pecado, pelo teu Filho unigénito, nosso Deus, Senhor e Salvador Jesus Cristo, o único
que apareceu na terra, sem pecado.
O sacerdote diz, exclamando: Por isso, Deus e Senhor bom e amigo dos homens,
a nós e a eles,
Povo. Perdoa-nos, Senhor, desculpa-nos e escusa-nos as ofensas que nós
cometemos voluntária e involuntariamente, consciente e inconscientemente.
DOXOLOGIA FINAL

O sacerdote diz, sozinho: Pela graça, pela misericórdia e pelo amor pelos homens 4690
do teu Cristo, com o qual Tu és bendito e glorificado com o teu Espírito santíssimo,
bom e vivificante, agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
Povo. Amen.

Anáfora Grega de São Cirilo de Jerusalém 1


(em forma indirecta)

(Ver nn. 1876-1881; 4716-4726)


DIÁLOGO INICIAL

Sac. O amor de Deus Pai, a graça do Senhor Deus e nosso Salvador Jesus Cristo, 4691
e a comunhão e o dom do Espírito Santo, estejam com todos vós 2.
Povo. E com o teu espírito.
Sac. Corações ao alto.
Povo. Já os elevámos até ao Senhor.
Sac. Dêmos graças ao Senhor.
Povo. É digno e justo.

1
Anáfora Grega de São Cirilo de Jerusalém (=C IRILO DE J ERUSALÉM , Catequese Mistagógica V, nn. 4-9).
São Cirilo de Jerusalém vai-se referindo à anáfora à medida que dela faz o comentário (cf. nn. 1876-1881).
Para facilitar a sua leitura, reproduzimos aqui os elementos que ele cita; cf. nn. 4716-4726.
2
Esta saudação e a sua resposta não figuram na V Catequese de Cirilo. Reproduzimos aqui a saudação da
Anáfora de Tiago.
1140 SÉCULO V

LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

4692 Depois, fazemos menção do céu, da terra e do mar, do sol e da lua, dos astros e de
toda a criatura racional e irracional, visível e invisível, dos Anjos e Arcanjos, das Virtudes
e Dominações, dos Principados e Potestades, dos Tronos e Querubins de muitas faces...
Lembramo-nos ainda dos Serafins, que Isaías contemplou, no Espírito Santo, de pé, em
volta do trono de Deus, e que escondiam o rosto com duas asas, os pés com outras duas
e com mais duas voavam e diziam: Santo, Santo, Santo é o Senhor do universo.
Dizendo esta doxologia que nos foi transmitida pelos Serafins, associamo-nos, neste cântico
de louvor, aos exércitos celestes.
EPICLESE

4693 Depois de santificados por estes hinos espirituais, suplicamos a Deus, amigo dos
homens, que envie o Espírito Santo sobre os dons colocados no altar, para que faça do
pão Corpo de Cristo e do vinho Sangue de Cristo. Pois tudo o que o Espírito Santo toca
é santificado e transformado.
INTERCESSÕES

4694 Em seguida, realizado o sacrifício espiritual, o culto incruento, pedimos a Deus,


em presença desse sacrifício de propiciação, pela paz comum das Igrejas, pela
estabilidade do mundo, pelos imperadores, pelos exércitos e seus aliados, pelos doentes,
pelos aflitos e por todos os que têm necessidade de ajuda. Todos rezamos e todos
oferecemos este sacrifício... Depois, fazemos menção dos que já adormeceram: primeiro
dos Patriarcas, dos Profetas, dos Apóstolos e dos Mártires, para que Deus, por suas
preces e intercessões, aceite a nossa súplica. Depois, rezamos pelos santos padres e
bispos falecidos e, em geral, por todos aqueles que morreram antes de nós, certos de
que isso será de grande proveito para as almas em favor das quais tal súplica se faz,
enquanto está presente a vítima santa e temível.

Anáfora de Der Baliseh 1


(fragmento)

4695 (Ver n. 2275)

1
Anáfora de Der Baliseh (=C. H. R OBERTS -B. C APELLE , An early euchologium,the Der-Baliseh papyrus
enlarged and reedited, Louvain 1949). Der Balizeh fica situado no Alto Egipto. O conteúdo eucológico
deste papiro representa a prática litúrgica do Egipto, no século IV.
ANÁFORA COPTA DE SÃO BASÍLIO 1141

Anáfora Copta de São Basílio de Cesareia 1

(Na Igreja Alexandrina)


DIÁLOGO INICIAL

Sac. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do 4696
Espírito Santo estejam com todos vós.
Povo. E com o teu espírito.
Sac. Elevemos os corações para o alto.
Povo. Já os elevámos até ao Senhor.
Sac. Dêmos graças ao Senhor.
Povo. É digno e justo
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

Ele fez o céu e a terra e o mar e tudo o que neles existe. Ele, o Pai de nosso 4697
Senhor e Salvador Jesus Cristo, que está sentado no trono de glória. Anjos, Arcanjos,
Principados, Potestades, Tronos, Senhorios e Virtudes estão na tua presença, em
círculo, à volta de Ti. Os Querubins de muitos olhos e os Serafins de seis asas, cantam
hinos, clamam e dizem continuamente 2:
Povo. Santo, Santo, Santo...
POST SANCTUS

Tu és na verdade Santo, Senhor nosso Deus. Formaste-nos e puseste-nos no 4698


Paraíso de delícias. Mas, ao violarmos o teu preceito, enganados pela serpente, e ao
sermos lançados fora da vida eterna e expulsos desse Paraíso delicioso, não nos
abandonaste de todo, mas continuamente tiveste cuidado de nós por meio dos teus
santos Profetas. Nestes dias que são os últimos, manifestaste-Te a nós por meio do
teu Filho unigénito, que tomou carne da Virgem Santa e que, fazendo-Se homem, nos
revelou os caminhos da salvação. Ao tornar-nos o seu próprio povo, santificou-nos
pelo Espírito Santo, e porque amava os seus que estavam no mundo, entregou-Se a Si
mesmo à morte, que nos dominava e oprimia, consequência dos nossos pecados, e
desceu aos Infernos, depois de passar pela cruz. Ao terceiro dia ressuscitou de entre os
mortos e, subindo aos Céus, sentou-Se à direita do Pai, depois de anunciar que viria um
dia para julgar o mundo na justiça e para dar a cada um segundo as suas obras, deixando-nos,
entretanto, este grande mistério de piedade 3.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

Na verdade, ao entregar-Se a Si mesmo à morte pela vida do mundo, tomou o 4699


pão, abençoou-o, santificou-o, partiu-o e deu-o aos seus santos discípulos e Apóstolos,
dizendo: Tomai e comei todos dele. Isto é o meu Corpo, entregue por vós e por muitos
para remissão dos pecados. Fazei isto em memória de Mim.

1
Anáfora Copta de São Basílio de Cesareia (=J. D ORESSE -E. L ANNE , Un témoin archaïque de la Liturgie
copte de st. Basile, Louvain 1960, 14-32; E. L ODI , Roma 1979, 322-324); cf. nn. 4658-4666; 7236-7245.
A recensão copta da Anáfora de São Basílio é mais breve do que a recensão grega e parece ser o texto mais
arcaico. O manuscrito donde provém esta anáfora é do séc. VII.
2
dia\ panto/ j.
3
eu) s e/ b eia .
1142 SÉCULO V

De igual modo, depois da Ceia, tomou o cálice e, misturando água e vinho, abençoou-
-o, santificou-o, deu graças e entregou-lho a eles, dizendo de novo: Tomai e bebei todos
dele: Isto é o meu Sangue, derramado por vós e por muitos para remissão dos pecados.
Fazei isto em memória de Mim. Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes
deste cálice, anunciareis a minha morte até que Eu venha.
ANAMNESE

4700 Celebrando, pois, o memorial da sua santa paixão, da sua ressurreição de entre os
mortos, da sua ascensão aos Céus, da sua sessão à direita do Pai e da sua segunda
vinda até nós gloriosa e terrível, nós apresentamos na tua presença, de entre os teus
dons, aquilo que é teu, este pão e este cálice.
EPICLESE

4701 E nós pecadores, indignos e pobres, pedimos-Te, Senhor nosso Deus, submetendo-
-nos à decisão da tua vontade, que o teu Espírito Santo desça sobre nós e sobre estes
dons que Te apresentamos: Ele os santifique e mostre [que eles são] o Santo dos Santos.
Torna-nos dignos de participar nos teus santos [mistérios], para santificação da alma e
do corpo, de modo que nos tornemos um só corpo e um só espírito, e sejamos admitidos
na companhia de todos os santos que Te foram agradáveis através dos séculos.
INTERCESSÕES

4702 Lembra-Te ainda, Senhor, da tua Igreja una, santa, católica e apostólica, e dá-lhe
a paz, pois a salvaste no precioso Sangue de Cristo. Lembra-Te de todos os bispos
ortodoxos que nela [estão]. Em primeiro lugar lembra-Te do teu servo, o arcebispo
Benjamim, e dos que lhe estão unidos no ministério, do santo bispo Coluti e daqueles
que juntamente com eles distribuem a palavra da verdade. Concede-lhes que apascentem
as tuas santas Igrejas e os teus rebanhos na paz. Lembra-Te, Senhor, dos presbíteros,
de toda a diaconia e ministério, e de todos os que vivem em virgindade e pureza, e de
todo o teu povo fiel, e tem piedade de todos eles; lembra-Te ainda, Senhor, deste lugar
e dos que nele habitam na fé de Deus...
Lembra-Te também, Senhor, da boa salubridade dos ares e dos frutos da terra.
Lembra-Te, Senhor, dos que Te ofereceram estes dons e daqueles por quem os trouxeram,
e dá-lhes a todos a recompensa celeste. E, como o teu Filho unigénito, nosso Senhor,
mandou que comungássemos em memória dos santos, lembra-Te também dos nossos
Pais que Te foram agradáveis nos séculos: os Patriarcas, os Profetas, os Apóstolos, os
Mártires, os Confessores, os Pregadores, os Evangelistas e os justos consumados na
fé, de modo particular a santa e gloriosa Mãe de Deus, Virgem Maria, por cujas orações
[Te pedimos] que tenhas piedade de todos nós e nos salves por causa do teu Nome
santo, que foi invocado sobre nós. Lembra-Te também de todos os que adormeceram
no sacerdócio e de todos os da ordem dos leigos; dá-lhes o descanso no seio de Abraão,
Isaac e Jacob, no lugar das pastagens verdejantes, junto às águas do refrigério, [lugar]
donde fugiram a dor, a tristeza e os gemidos. (Enuncia os nomes...): Dá-lhes o descanso
junto de Ti.
DOXOLOGIA FINAL

4703 E a nós que habitamos aqui, conserva-nos na tua fé e conduz-nos ao teu Reino,
dá-nos a tua paz em todo o tempo por Jesus Cristo e pelo Espírito Santo. Pai no Filho,
Filho no Pai, com o Espírito Santo na tua Igreja una, santa e católica.
Povo. Amen.
ANÁFORA GREGA ALEXANDRINA DE SÃO MARCOS 1143

Anáfora Grega Alexandrina


do Evangelista São Marcos 1
(Na Igreja Alexandrina)

DIÁLOGO INICIAL

Sac. O Senhor esteja com todos vós. 4704


E respondem todos: E com o teu espírito.
Sac. Corações ao alto.
Povo. Já os elevámos até ao Senhor.
Sac. Dêmos graças 2 ao Senhor.
Povo. É digno e justo.
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

É verdadeiramente digno e justo, santo, equitativo e salutar para as nossas almas, 4705
louvar-Te 3, a Ti que existes, Dominador, Senhor, Deus, Pai todo-poderoso, e cantar-Te4,
dar-Te graças5 e narrar6 os teus grandes feitos noite e dia, com vozes incessantes, sem
conceder repouso nem silêncio aos nossos lábios, nem aos nossos corações. Porque Tu
fizeste o céu e a terra e tudo o que neles existe, os mares, as fontes, os rios, os lagos e
tudo o que neles se encontra. Tu criaste o homem à tua imagem e semelhança e deste-lhe
as delícias do Paraíso.
Depois do seu pecado, não o desprezaste nem abandonaste, mas, em tua bondade,
tornaste a chamá-lo por meio da lei, educaste-o 7 pelos Profetas. Enfim, reformaste-o e
renovaste-o por este mistério tremendo, vivificante e celestial, e dispuseste todas
estas coisas pela tua sabedoria, na tua luz verdadeira, o teu Filho unigénito, nosso
Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo, por quem a Ti, com Ele e com o Espírito Santo,
ao dar-Te graças, Te oferecemos este culto racional8 e incruento, culto que Te oferecem,
Senhor, todas as nações desde o nascer do sol até ao seu ocaso, do Norte até ao Sul,
porque o teu Nome é grande entre as nações e em todo o lugar se oferece o incenso ao
teu santo Nome e um sacrifício puro, em imolação e oblação.

1
Anáfora Grega Alexandrina do Evangelista São Marcos (=H ÄNGGI -P AHL , Prex Eucharistica, Fribourg
1968, 116-119; E. L ODI , Roma 1979, 324-328; M. A NDRIEU -P. C OLLOMP , Fragments sur papyrus de
l’Anaphore de saint Marc [Papiro de Strasbourg, gr. 254], em Recherches de Sciences Religieuses, Paris
8, 1928, 489-515; 19, 1939). As características das anáforas de tipo alexandrino são as seguintes: a) início
do diálogo do prefácio como no Ocidente; b) intercessões antes do Sanctus; c) depois do Sanctus, oração
epiclética sobre os dons; d) introdução causal («porque») na narração da instituição; e) na anamnese,
oferta ao Pai enunciada em tempo passado. Um fragmento de papiro encontrado em 1928 mostra que a
Anáfora de São Marcos já existia no século IV, e um outro, do século VI, permitiu reconstruir todos os
elementos desta anáfora.
2
eu) x aristou= m en .
3
ai) n ei= n .
4
u(mnei=n .
5
eu) x aristei= n .
6
a) n qomologei= s qai .
7
e) p aidagw/ g hsaj.
8
logikh/ n latrei/ a n .
1144 SÉCULO V

INTERCESSÕES

4705a Nós Te pedimos e suplicamos: lembra-Te da tua santa Igreja, una e católica, de
todos os povos e de todas as tuas greis. Concede a paz celestial a todos os corações e
dá-nos também a graça da paz ao longo da nossa vida; guarda na paz o rei da terra e faz
que os seus desígnios sejam de paz, para connosco e para com o teu santo Nome..., [e
conserva em toda a paz] o comandante do exército, os príncipes e o senado.
... [dá-nos fruto para semear e para] colher... por causa dos pobres do teu povo,
das viúvas e dos órfãos, dos peregrinos e estrangeiros, por causa de todos nós que
esperamos em Ti e invocamos o teu santo Nome.
Àqueles que adormeceram, dá o descanso às suas almas. Lembra-Te daqueles de
quem hoje fazemos memória, e daqueles cujos nomes recitámos ou não recitámos; [lembra-
-Te ainda] em toda a parte dos nossos Pais santos e ortodoxos e dos bispos, e faz-nos
ter parte e herança na companhia dos teus santos Profetas, Apóstolos, e Mártires... e
agora concede-lho pelo nosso Senhor e Salvador, por quem Te é dada glória nos séculos
dos séculos.
INTRODUÇÃO AO SANTO

4706 Tu és Aquele que está acima de todo o Principado, Autoridade, Potestade e


Dominação, e de todo o nome, não só neste mundo, mas também no mundo que há-de
vir. Na tua presença estão mil milhares e dez mil miríades de santos Anjos e de exércitos
de Arcanjos. Em tua presença estão os teus dois muito veneráveis viventes, os Querubins
de múltiplos olhos e os Serafins de seis asas – duas para cobrir os rostos, duas para
cobrir os pés e duas para voar – clamando uns para os outros, com vozes incessantes,
com louvores9 intermináveis, o hino de vitória 10, o triságio. Ali cantam11, vitoriam12,
glorificam13 e dizem, gritando14, em honra da tua glória magnífica: Santo, Santo, Santo,
Senhor Sabaoth. O céu e a terra estão cheios da tua santa glória. Tu santificas 15
continuamente a todos. Mas agora recebe, Senhor e Dominador, a santificação16 dos
que Te glorificam, com os quais também nós Te louvamos17, dizendo:
Povo. Santo, Santo, Santo, Senhor Sabaoth. O céu e a terra estão cheios da tua
santa glória.
POST SANCTUS

4707 Sac. Na verdade, o céu e a terra estão cheios da tua santa glória, pela
manifestação18 de nosso Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo.
EPICLESE I

4708 Enche de igual modo, ó Deus, este sacrifício, com a bênção19 que vem de Ti, pela
visitação do teu Espírito santíssimo.

9
qeologi/aij.
10
e) p ini/ k ion .
11
#)/donta .
12
bow= n ta .
13
docologou= n ta .
14
kekrago/ t a .
15
a( g ia/ c ei .
16
a( g iasmo/ n .
17
u( m nou/ n twn .
18
e) p ifanei/ a j .
19
eu) l ogi/ a j.
ANÁFORA GREGA ALEXANDRINA DE SÃO MARCOS 1145

NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

Porque o próprio nosso Senhor e Deus, e grande Rei Jesus Cristo, na noite em 4709
que Se entregou a Si mesmo pelos nossos pecados e suportou a morte por todos na sua
própria carne, estando à mesa com os seus santos discípulos e Apóstolos, tomou o
pão em suas mãos santas, puras e inocentes, e, levantando os olhos ao céu, para Ti, seu
Pai, Deus nosso e de todas as coisas, dando graças 20, abençoou-o21, santificou-o 22,
partiu-o e distribuiu-o entre os seus santos e bem-aventurados discípulos e Apóstolos,
dizendo: Tomai e comei todos dele. (Diác.): Estai atentos. (Sac.): Isto é o meu Corpo,
entregue por vós e repartido por muitos para remissão dos pecados. Fazei isto em
memória 23 de Mim.
Povo. Amen.
De igual modo, depois da Ceia, tomou o cálice e, tendo misturado vinho e água,
levantando os olhos para Ti, seu Pai, nosso Deus e de todas as coisas, dando graças 24,
abençoou-o25, santificou-o26, encheu-o27 do Espírito Santo e entregou-o aos seus santos
e bem-aventurados discípulos e Apóstolos, dizendo: Bebei todos dele. (Diác.): Estai
atentos. (Sac.): Isto é o meu Sangue, o Sangue da nova Aliança, derramado por vós e
por muitos para remissão dos pecados.
Povo. Amen.
Sac. Fazei isto em memória de Mim, pois todas as vezes que comerdes deste pão
e beberdes deste cálice, anunciareis28 a minha morte e confessareis29 a minha ressurreição
e ascensão, até que Eu venha.
ANAMNESE

Anunciando 30, portanto, Mestre, Senhor todo-poderoso, Rei celestial, a morte 4710
do teu Filho unigénito, nosso Deus e Salvador Jesus Cristo, e, confessando a sua bem-
-aventurada ressurreição de entre os mortos ao terceiro dia, assim como a sua ascensão
aos céus e a sua sessão à tua direita, Deus Pai, e esperando a sua segunda, terrível e
temível parusia, na qual Ele há-de vir para julgar os vivos e os mortos com justiça e dar
a cada um segundo as suas obras – sê indulgente connosco, Senhor, nosso Deus –, nós
Te apresentamos de entre os teus dons, o que é teu.
EPICLESE II

Pedimos-Te e suplicamos-Te, [Deus] amigo dos homens e bom, que envies do 4711
teu altíssimo santuário, do lugar onde está estabelecida a tua morada, do teu seio
indescritível, o próprio Paráclito, o Espírito da verdade, o Senhor, o Vivificador, que
falou pelos Profetas e pelos Apóstolos, que está presente em toda a parte e tudo
enche, que por Si mesmo e não como um servidor desenvolve em quem Ele quer a
santificação segundo o teu beneplácito, que é simples por natureza, multiforme na sua

20
eu) x aristh/ s aj .
21
eu)logh/saj .
22
a( g ia/ s aj .
23
a) n a/ m nhsin .
24
eu) x aristh/ s aj .
25
eu)logh/saj .
26
a( g ia/ s aj .
27
plh/ s aj .
28
katagge/ l lete .
29
o(mologei=te .
30
katagge/ l lontej .
1146 SÉCULO V

actividade, fonte dos dons divinos, que Te é consubtancial, que procede de Ti, que
compartilha o trono do teu Reino com o nosso Deus e Salvador Jesus Cristo; olha para
nós e envia sobre estes pães e sobre estes cálices o teu Espírito Santo, para que os
santifique e aperfeiçoe como Deus todo-poderoso que é, e faça deste pão o Corpo de
Jesus Cristo e deste cálice o Sangue da nova Aliança, do próprio nosso Senhor e Deus,
Salvador e grande Rei Jesus Cristo.
Povo. Amen.
Sac. A fim de que sejam para todos nós que deles participamos, [fonte de] fé, de
vigilância, de remédio, de sobriedade, de santificação, de renovação da alma, do corpo
e do espírito, para a comunicação da bem-aventurada vida eterna e incorruptível, para
a glorificação do teu Nome santíssimo, para a remissão dos pecados.
INTERCESSÕES

4712 Senhor, soberano, Pai todo-poderoso de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo,
pedimos-Te e suplicamos-Te, ó amigo dos homens, que reúnas as almas dos nossos
pais e irmãos defuntos, que adormeceram na fé..., com os teus santos, no lugar donde
fugiu a dor, a tristeza e os gemidos... Fá-los acordar juntamente com os santos, ressuscita
os seus corpos no dia que estabeleceste, segundo as tuas promessas verdadeiras e que
não enganam, e dá-lhes aquilo que nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem
jamais subiu ao coração do homem.
INTERCESSÕES (do papiro de Estrasburgo)

4713 Nós Te rogamos e pedimos, que Te lembres da tua Igreja una, santa e católica, de
todos os povos e de todos os teus rebanhos. Dá aos corações de todos nós, a paz que
vem dos Céus, mas dá-nos também a paz desta vida; [guarda na paz] o rei da terra; faz
que pensem nela [e conserva sempre em paz] os que estão em paz connosco e com o
teu Nome santo, o comandante..., o exército, os príncipes, o senado.
... [fornece-nos a semente para semear e para] colher... por causa dos pobres do
teu povo, por causa das viúvas e dos órfãos, por causa dos hóspedes e dos estrangeiros,
por causa de todos nós que esperamos em Ti e que invocamos o teu santo nome.
Concede, aos que adormeceram, o repouso das almas. Lembra-Te daqueles de
quem hoje fazemos memória, daqueles de quem recitámos os nomes e daqueles cujos
nomes não recitámos; [lembra-te ainda], em toda a parte, dos nossos Pais ortodoxos e
santos e dos bispos, e faz-nos tomar parte e ser herdeiros com a bela comunidade dos
teus santos Profetas, dos Apóstolos e dos Mártires... Concede-lho agora pelo nosso
Senhor e Salvador, por quem [a Ti] a glória pelos séculos dos séculos.
DOXOLOGIA

4714 A fim de que, nisto e em tudo, o teu Nome santíssimo e precioso, seja glorificado,
cantado com hinos e santificado, com Jesus Cristo e o Espírito Santo, como era, é e
será de geração em geração e por todos os séculos dos séculos.
Povo. Amen.
ANÁFORA COPTA ALEXANDRINA DE SÃO CIRILO 1147

Anáfora do
Sacramentário de Serapião 1
(Ver n. 1406) 4715

Anáfora Copta Alexandrina de São Cirilo 2


(Na Igreja Alexandrina)
DIÁLOGO INICIAL

Sac. O Senhor esteja com todos vós. 4716


E respondem todos: E com o teu espírito.
Sac. Corações ao alto.
Povo. Já os elevámos até ao Senhor.
Sac. Dêmos graças ao Senhor.
Povo. É digno e justo.
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

É digno e justo, é justo e santo, é conveniente e necessário para as nossas almas, 4717
os nossos corpos e os nossos espíritos, Senhor eterno, Senhor Deus, Pai omnipotente,
que eu Te louve sempre e em todos os lugares dos teus domínios, Te cante, Te bendiga,
Te sirva, Te adore, Te dê graças, Te celebre, Te confesse dia e noite, incessantemente,
com coração incansável e louvores permanentes. Tu criaste os céus e a terra e tudo o
que neles existe: os mares, os rios, as fontes, os lagos e os seus fundos. Criaste o
homem à tua imagem e semelhança. Tudo criaste por mediação da tua Sabedoria, tua
Luz verdadeira, o teu Filho unigénito, Senhor, Deus, nosso Salvador e Rei, Jesus
Cristo.
Por isso Te damos graças e Te oferecemos, a Ti e ao Espírito Santo, à Trindade
santa, consubstancial e indivisa, este sacrifício racional, este serviço incruento que Te
oferecem todos os povos, do Norte até ao Sul, desde o nascer do sol até ao seu ocaso.
Porque o teu Nome, Senhor, é grande entre todas as nações e em todo o lugar se oferece
incenso ao teu Nome santo, e o sacrifício puro, juntamente com este sacrifício e esta oblação.

(Intercessões longas, ditas alternadamente pelo Sacerdote e pelo Diácono) 4718

1
Anáfora do Sacramentário de Serapião (=F.X. F UNK , Didascalia et Constitutiones Apostolorum, 2 vol.,
Paterbornae 1905, 172-177, Turim 1962 2; E. L ODI , Roma 1979, 338-342).
2
Anáfora Copta Alexandrina de São Cirilo (=E. R ENAUDOT , Liturgiarum Orientalium Collectio, Frankfurt
1847, Paris 1712; L. MALDONADO , La Plegaria Eucaristica. Estudio de teologia bíblica y litúrgica sobre
la misa, BAC 273, 448-450, Madrid 1967). Esta anáfora é uma tradução e adaptação copta, da Anáfora
Grega do Evangelista São Marcos. Quase todos os documentos lhe chamam Anáfora de São Cirilo. Alguns,
porém, chamam-lhe Anáfora de São Marcos; cf. nn. 1876-1881; 4691-4694.
1148 SÉCULO V

INTRODUÇÃO AO SANTO

4719 Diác. Olhai para o Oriente.


Sac. Tu está, Senhor, acima de todos os Principados, Potestades, Dignidades,
Dominações, e acima de todo o nome que possa ser pronunciado, não só neste mundo,
mas também no mundo que há-de vir. Na tua presença estão mil milhares e dez mil
miríades de santos Anjos e Arcanjos que Te servem. Em tua presença servem-Te dois
gloriosos viventes, de seis asas e múltiplos olhos. Serafins e Querubins, com duas asas
cobrem o rosto, por causa da tua divindade invisível e incompreensível à mente; com
duas cobrem os pés e com duas voam. Cada um deles está sempre a santificar-Te. Com
a sua santificação recebe também a nossa, para que com eles Te louvemos, dizendo:
Povo. Santo, Santo, Santo, Senhor Sabaoth. O céu e a terra estão cheios da tua
santa glória.
POST SANCTUS

4720 Sac. Na verdade, os céus e a terra estão cheios da tua santa glória, pelo teu Filho
unigénito, Senhor, nosso Deus e Salvador, Rei de tudo, Jesus Cristo.
EPICLESE I

4721 Enche de igual modo, Senhor, este teu sacrifício, com a bênção que vem de Ti,
fazendo descer sobre ele o teu Espírito Santo (Amen). Abençoa (Amen), purifica
(Amen) estes teus veneráveis dons, apresentados diante de Ti, este pão e este cálice.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

4722 Porque o teu Filho unigénito, Senhor Deus, Salvador, nosso Rei e de todos,
Jesus Cristo, na noite em que Se entregou a Si mesmo para padecer por nossos pecados,
antes de morrer voluntária e livremente por todos nós.
Povo. Cremos.
Sac. Tomou o pão em suas mãos santas, puras, imaculadas, ditosas e vivificantes.
Olhou para o Céu, para Ti, seu Pai e Senhor de tudo, deu graças.
Povo. Amen.
Sac. Abençoou-o.
Povo. Amen.
Sac. Santificou-o.
Povo. Amen.
Sac. Partiu-o e deu-o aos seus santos discípulos e Apóstolos, dizendo: Tomai e
comei todos. Isto é o meu Corpo, partido por vós e entregue a muitos, para remissão
dos pecados. Fazei isto em memória de Mim.
Povo. Amen.
Sac. De igual modo, depois da Ceia, tomou o cálice, misturando nele água e vinho,
deu graças.
Povo. Amen.
Sac. Abençoou-o.
Povo. Amen.
Sac. Santificou-o.
Povo. Amen.
ANÁFORA COPTA ALEXANDRINA DE SÃO CIRILO 1149

Sac. Provou-o e deu-o aos seus discípulos e Apóstolos ilustres, santos, dizendo:
Tomai e bebei todos. Isto é o meu Sangue, o Sangue da nova Aliança, derramado por
vós e entregue a muitos, para remissão dos pecados. Fazei isto em memória de Mim.
Povo. Amen.
Sac. Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciai a
minha morte, confessai a minha ressurreição e fazei memória de Mim até que Eu venha.
Povo. Anunciamos a tua morte, Senhor.
ANAMNESE

Sac. Agora, Deus Pai omnipotente, anunciamos a morte do teu Filho unigénito, 4723
nosso Senhor, Deus, nosso Salvador, Rei de todos, Jesus Cristo, e confessamos a sua
santa ressurreição e a sua ascensão aos céus, a sessão à tua direita, Pai, e esperamos a
sua segunda vinda, dos céus, terrível e gloriosa, no fim da história, para julgar a terra
com justiça e retribuir a cada um segundo as suas obras.
EPICLESE II

Sac. Desça o Espírito Santo sobre os dons veneráveis colocados diante de Ti, 4724
para sua purificação e transformação.
Povo. Amen.
INTERCESSÕES

Sac. Lembra-Te, Senhor, de todos e de cada um, de cujos nomes fizemos memória 4725
e daqueles de quem não fizemos memória, daqueles que cada um de nós tem no
pensamento e que não são dos nossos, mas que adormeceram e descansaram na fé de
Cristo; digna-Te conceder o repouso às almas de todos no seio dos nossos santíssimos
Pais Abraão, Isaac e Jacob; condu-los ao lugar coberto de erva sobre as águas do
refrigério no Paraíso de delícias, donde foi expulsa toda a dor, tristeza e gemido, na luz
dos teus Santos. Segundo as tuas promessas, verdadeiras e fiéis, dá vida aos seus
corpos no dia previsto. Dá-lhes os bens das tuas promessas, que os olhos não viram,
os ouvidos não escutaram, nem jamais subiram ao coração do homem e que Tu, Senhor,
preparaste para os que amam o teu Nome: faz com que a morte não domine os teus
servos, mas que eles vivam. Se algum foi negligente ou não foi frio nem quente, dado
que foram homens revestidos de um corpo e habitaram neste mundo, Tu, Senhor, que
amas o bem dos homens, perdoa-lhes com indulgência, porque ninguém é puro da
imundície, mesmo que só passe um dia na terra. Todos eles, Senhor, cujas almas
tomaste, obtenham o repouso e consigam o reino celeste, e concede-nos, a todos nós,
a perfeição cristã, para Te agradarmos. A nós e a eles dá-nos parte na herança com
todos os teus santos.
DOXOLOGIA FINAL

Sac. Nestas como em todas as coisas, seja glorificado e exaltado, seja louvado, 4726
abençoado e santificado o teu Nome santo, venerável e bendito, com o teu Pai imaculado
e o Espírito Santo.
Povo. Como era, como é, como será.
1150 SÉCULO V

Anáfora Copta de São Gregório 1


(Na Igreja Alexandrina)
DIÁLOGO INICIAL

4727 Sac. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do
Espírito Santo estejam com todos vós.
Povo. E com o teu espírito.
Sac. Elevemos os corações para o alto.
Povo. Já os elevámos até ao Senhor.
Sac. Dêmos graças ao Senhor.
Povo. É digno e justo
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

4728 Sac. É verdadeiramente digno e justo louvar-Te, elogiar-Te, servir-Te, adorar-Te,


glorificar-Te a Ti, o Único, o Verdadeiro, Deus amigo dos homens, inefável, invisível,
incriado, infinito, intemporal, incomensurável, imperscrutável, imutável, Criador do
mundo e de tudo, salvador de cada um, que perdoas os nossos pecados, salvas da ruína
a nossa vida e nos coroas de misericórdia e compaixão. Louvam-Te os Anjos, adoram-
-Te os Arcanjos, enaltecem-Te as Potestades, cantam-Te as Dominações, aclamam-Te
as Forças, elogiam-Te os Tronos. Milhares de miríades estão na tua presença, dezenas
de milhares e de miríades Te servem. Louvam-Te os seres invisíveis e diante de Ti
prostram-se os visíveis, obedecendo à tua vontade, Senhor nosso Deus.
Diác. Quem estiver sentado, ponha-se de pé.
Sac. Tu és, Senhor, o Deus verdadeiro do Deus verdadeiro, que nos manifestaste
a luz do Pai e nos deste o verdadeiro conhecimento do Espírito Santo. Tu nos revelaste
o grande mistério da vida e puseste entre os homens o coro dos seres incorpóreos. Tu,
que deste aos que estão na terra o canto dos Serafins, recebe agora as nossas vozes
juntamente com as suas e conta-nos entre as forças celestes. Permite-nos que cantemos
em sua companhia, depondo todo o pensamento ocioso, e que gritemos o que eles
apregoam, com vozes incessantes, com bocas incansáveis, louvando a tua grandeza.
Diác. Olhai para o Oriente.
Sac. Ao teu redor estão os Querubins e Serafins com seis asas cada um – duas
para cobrir o rosto, duas para cobrir os pés e duas para voar –, dizendo uns para os
outros, entre cantos vitoriosos e de louvor, o hino da vitória e da salvação.
Diác. Estejamos atentos.
Povo. Santo, Santo, Santo, Senhor Sabaoth. O céu e a terra estão cheios da tua glória.
Hossana nas alturas. Bendito O que veio e que vem em nome do Senhor. Hossana nas alturas.
POST SANCTUS

4729 Sac. Santo, Tu és Santo, Senhor; Santo em todas as coisas. Por cima de tudo é
sublime a luz da tua essência e é inefável a força da tua sabedoria. Língua nenhuma

1
Anáfora Copta de São Gregório (=E. R ENAUDOT , Liturgiarum Orientalium Collectio, Frankfurt 1847,
Paris 1712; L. M ALDONADO , La Plegaria Eucaristica. Estudio de teologia bíblica y litúrgica sobre la
misa, BAC 273, 451-454, Madrid 1967). É por demais evidente que esta anáfora, embora tenha elementos
comuns a todas as anáforas sírias primitivas, está cheia de outros de época tardia. Mas quisemos inseri-la
aqui como exemplo duma piedade anafórica que se manifestará também nas liturgias ocidentais.
ANÁFORA COPTA DE SÃO GREGÓRIO 1151

pode apreender o mar do teu amor pelos homens. Tu me criaste homem como um
enamorado dos homens. Não precisavas dos meus serviços, mas eu precisava do teu
senhorio. Criaste-me por tua imensa misericórdia, quando ainda não existia. Sobre mim
puseste o céu como tenda. Para mim tornaste sólida a terra para que eu caminhe. Para
mim criaste o mar. Para mim tornaste visível a natureza dos seres. Puseste todas as
coisas como solo dos meus pés. Não permitiste que me falte nada das obras da tua
magnificência. Foste Tu que me criaste e me sustentaste com a tua mão. Inscreveste em
mim a imagem do teu poder. Depositaste no meu coração o dom da inteligência. Abriste-me
o Paraíso para meu gozo. Puseste na minha mão o ensino do teu saber. Revelaste-me a
árvore da vida. Mostraste-me o aguilhão da morte.
Duma só árvore me proibiste que comesse, dizendo-me: Desta só não comerás. E
foi dessa que eu comi, seguindo o meu desejo. Violei deliberadamente a lei, desprezei as
tuas ordens e fiz cair sobre mim a sentença de morte.
Povo. Senhor, misericórdia.
Sac. Mas Tu, Senhor, converteste o castigo em salvação. Como bom Pastor, foste
atrás dos que se tinham perdido. Como Pai verdadeiro, cuidaste de mim na minha queda.
Atraíste-me com todos os meios de salvação que conduzem à vida. Enviaste-me os
Profetas quando estava enfermo. Deste-me a lei como ajuda. Fizeste que a lei me
salvasse, apesar de eu a ter violado. Apareceste como luz verdadeira diante dos
desgarrados e ignorantes.
Povo. Senhor, misericórdia.
Sac. Sendo eterno, desceste à terra, até nós, e vieste ao seio maternal da Virgem.
Sendo o Deus incomensurável, não Te valeste da tua igualdade com Deus. Pelo contrário,
aniquilaste-Te, assumindo a figura de servo. Em Ti abençoaste a minha natureza.
Cumpriste a lei por mim. Mostraste-me a ressurreição da minha queda. Concedeste o
perdão aos que estavam prisioneiros dos abismos. Eliminaste a maldição da lei. Destruíste
na carne o pecado. Ensinaste-me o poder do teu senhorio. Deste aos cegos a luz dos
olhos. Despertaste os mortos nos seus túmulos. Educaste a natureza com a Palavra.
Revelaste-me o desígnio salvador da tua misericórdia. Resististe e suportaste a violência
do Maligno. Apresentaste as costas aos açoites e as faces às bofetadas. Por mim,
Senhor meu, não afastaste o rosto da vergonha dos escarros.
Povo. Senhor, misericórdia.
Sac. Caminhaste para a cruz como cordeiro para o matadouro. Mostraste o teu
interesse por mim. Destruíste o meu pecado com o seu sepulcro. Elevaste ao Céu o
sacrifício das minhas primícias. Revelaste-me a parusia da tua vinda, na qual julgarás
e retribuirás aos vivos e aos mortos segundo as suas obras.
Povo. Segundo a tua misericórdia, Senhor, e não segundo os meus pecados.
NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

Sac. Naquela noite em que Te entregaste com toda a tua liberdade e poder, 4730
tomaste o pão em tuas mãos santas, puras, imaculadas, bem-aventuradas e vivificantes.
Povo. Cremos que foi assim de verdade. Amen.
Sac. Olhaste para o Céu, para o teu Deus, teu Pai e Senhor de tudo.
Diác. Amen.
Sac. Abençoaste-o.
Diác. Amen.
Sac. Santificaste-o.
Diác. Amen.
1152 SÉCULO V

Povo. Cremos, confessamos e louvamos.


Sac. Partiste-o e deste-o aos teus santos, dignos discípulos e santos Apóstolos,
dizendo: Tomai e comei todos, porque isto é o meu Corpo, partido por vós e por
muitos, para remissão dos pecados. Fazei isto em memória de Mim.
Povo. Assim é na verdade. Amen.
Sac. De igual modo, quando todos tinham comido, tomaste o cálice, misturaste
nele o fruto da videira e a água, deste graças.
Diác. Amen.
Sac. Abençoaste-o.
Diác. Amen.
Sac. Santificaste-o.
Diác. Amen.
Povo. Cremos, confessamos e louvamos.
Sac. Provaste-o e deste-o também aos teus santos, dignos discípulos e santos
Apóstolos, dizendo: Tomai e bebei todos, porque este é o meu Sangue, o Sangue da
nova Aliança, derramado por vós e por muitos, para remissão dos pecados. Fazei isto
em memória de Mim.
Povo. Assim é na verdade. Amen.
Sac. Todas as vezes que comais deste pão e bebais deste cálice, anunciai a minha
morte, confessai a minha ressurreição, celebrai o meu memorial até que Eu venha.
Povo. Apregoamos, Senhor, a tua morte, a tua santa ressurreição e ascensão.
Nós Te louvamos, Te enaltecemos, Te damos graças, Senhor, e Te suplicamos.
ANAMNESE E OFERTA

4731 Sac. Por isso celebramos, Senhor, o memorial da tua vinda à terra, da tua morte
vivificante, da tua sepultura durante três dias, da tua ressurreição de entre os mortos,
da tua ascensão aos céus, da tua sessão à direita do Pai e da tua segunda vinda dos céus,
terrível e magnífica. Nós Te oferecemos estes dons que Te pertencem para tudo, por
tudo e em tudo.
Diác. Adorai o Cordeiro da Palavra divina.
EPICLESE

4732 Sac. Transforma, Senhor, com a tua voz, estes dons aqui presentes. Tu, que
estás entre nós, acaba de realizar este serviço cheio de mistérios. Planta em nós o
memorial do teu santo serviço. Envia-nos a graça do teu Espírito Santo, para que santifique
os dons aqui apresentados e os transforme no Corpo e no Sangue da nossa redenção.
Diác. Estai atentos. Amen.
Povo. Amen.
Sac. Faça deste pão o teu Corpo santo.
Povo. Eu creio.
Sac. Nosso Senhor e nosso Deus, nosso Salvador, Jesus Cristo, dê o perdão dos
pecados e a vida eterna àqueles que o recebam.
Povo. Amen.
Sac. E faça deste cálice o Sangue venerável da tua nova Aliança.
Povo. Eu creio.
ANÁFORA ETÍOPE DE NOSSO SENHOR 1153

Sac. Nosso Senhor e nosso Deus, nosso Salvador, Jesus Cristo, dê o perdão dos
pecados e a vida eterna àqueles que o recebam.
Povo. Amen. Amen. Amen. Senhor.
(INTERCESSÕES) 4733

(DOXOLOGIA FINAL) 4734

Anáfora Etíope de Nosso Senhor 1

(Ver nn. 4554; 4675; 7268-7271)


LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

Nós Te damos graças, Deus santo, fim das nossas almas, dador da nossa vida, 4735
tesouro incorruptível, Pai do teu Filho único, nosso Salvador, que nos anunciou a tua
vontade. Como Tu quiseste, Senhor, que nós fôssemos salvos por Ti mesmo, o nosso
coração dá-Te graças com fervor. Tu és o poder do Pai, a graça das nações, o
conhecimento da verdade, a sabedoria dos errantes, o médico das almas, a grandeza dos
humildes. Tu és o nosso asilo, o escudo dos justos, a esperança dos exilados, o porto
tranquilo dos que andam perdidos no mar, a luz dos que são perfeitos, o Filho de Deus
vivo. Ilumina-nos pela tua graça imutável, pelo restabelecimento e o reconforto da
nossa confiança, pela sabedoria e a eficácia duma fé cheia de firmeza e duma esperança
inabalável. Concede à nossa humildade a sabedoria do Espírito, para Te servirmos
sempre, Senhor, com pureza e rectidão, e para que todos os povos Te louvem2...

1
Anáfora Etíope de Nosso Senhor (=J. M. H ARDEN , Journal of Oriental Studies, 1917 e 1919; L. B OUYER ,
Eucharistie, Paris, Desclée 19682 , 346). Esta anáfora é uma recensão etíope do Testamentum Domini, o
qual é, por sua vez, uma reelaboração da Tradição Apostólica de Hipólito de Roma.
2
A seguir volta-se ao Pai, até às palavras sobre o pão. Depois, bruscamente, a anáfora dirige-se de novo ao
Filho, o que faz com que as palavras sobre o cálice sejam ditas em estilo indirecto. A anamnese continua a
interpelar o Filho, mas a epiclese invoca o Pai. A seguir, a oblação é apresentada a toda a Trindade, e no final
a oração regressa ao Pai.
1154 SÉCULO V

Anáfora Etíope de Nossa Senhora 1

LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

4736 ... Levantemo-nos no temor de Deus para glorificar e celebrar Aquela que é
cheia de graça, cheia de louvor, expressando uma saudação de alegria Àquela que é
cheia de graça. Maior é a majestade da tua aparência do que a majestade dos Querubins
de múltiplos olhos e dos Serafins de oito2 asas3...
POST SANCTUS

4737 Ó Virgem, ó fecunda, cujo fruto comemos, fonte corrente da qual bebemos! Ó
pão que vem de Ti!... Ó cálice que deriva de Ti!... E agora ofereceremos o nosso louvor
ao teu Filho4...

Anáfora do Pseudo-Epifânio 5
4738 (Ver nn. 4256-4258)

1
Anáfora Etíope de Nossa Senhora (=J. M. H ARDEN , Journal of Oriental Studies, 1917 e 1919; L. B OUYER ,
Eucharistie, Paris, Desclée 1968 2 , 346-347). Esta anáfora não é caso único. Mas as duas passagens que
apresentamos são suficientes para imaginarmos até onde pode ir o sentimentalismo piedoso. Na sua maior
parte a oração dirige-se à Virgem. Por entre a desordem do pensamento do autor anónimo desta composição,
descobre-se, ao mesmo tempo, a sua grande candura quando diz, após uma divagação mais notória: «Voltemos,
porém, ao que eu dizia!».
2
Os Serafins, em todos os outros textos conhecidos, têm sempre seis asas. Vê-se que o autor da anáfora se
equivocou.
3
Em seguida a oração passa ao Filho, para declarar inefável a sua concepção virginal, e depois ao Sanctus,
entendido como louvor do filho encarnado. Por fim volta-se de novo à Virgem.
4
A seguir regressa-se ao Filho e, por fim, ao Pai, numa acção de graças pela encarnação redentora, que
desembocará no relato da instituição.
5
Anáfora atribuída a Santo Epifânio (=A. H ÄNGGI -I. P AHL , Prex Eucharistica, textus e variis liturgiis
antiquioribus selecti, Fribourg 1968 [Spicilegium Friburgense 12]; E. L ODI , Roma 1979, 488-490). Este
fragmento, que se conserva entre as liturgias etíopes, mas escrito originariamente em língua arménia, tem
todos os sinais de grande antiguidade: descrição da mistura do vinho e da água, ausência do louvor teológico
e do Sanctus, e narração da instituição semelhante à das anáforas de Basílio e de Tiago, seguida da epiclese.
Esta anáfora não se dirige ao Pai, mas ao Filho. Supõe-se que seja dos meados do séc. V (450). Era usada,
entre os Etíopes, no Baptismo do Senhor (11 ou 6 de Janeiro), no Mês da Chuva (Junho), na festa de Santo
Epifânio (17 de Maio) e na Oração do Quinto Dia (provavelmente a Quinta-Feira Santa).
ANÁFORA ARMÉNIA 1155

Anáfora Arménia 1

DIÁLOGO INICIAL

Sac. A graça, o amor e a virtude divina do Pai e do Filho e do Espírito Santo 4739
estejam convosco e com todos.
Coro. E com o teu espírito.
Diác. As portas! As portas! Com sabedoria e atenção! Elevai os vossos espíritos
com temor de Deus.
Coro. Já os elevámos para Ti, todo-poderoso.
Diác. Dai graças ao Senhor com todo o vosso coração.
Coro. É digno, justo e salutar [dar-Lhe graças], pois em todo o lugar é sacrificado
este Cristo de Deus. Os Serafins estremecem, os Querubins tremem e todas as Potestades
celestes clamam e dizem:
LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS

Enquanto o coro canta, o sacerdote diz em voz baixa: É verdadeiramente digno 4740
e justo glorificar-Te com todas as nossas forças, adorando-Te sempre, Pai todo-poderoso,
que desfizeste o laço da maldição pelo teu Verbo inefável, Criador contigo, que, dos
povos que crêem em Ti, formou para Si a sua Igreja, e a quem agradou habitar entre
nós, pela humildade da nossa natureza, segundo a economia que se realizou na Virgem,
e assim fez um Céu da terra, com uma obra nova, criação diviníssima. Ele, cujo resplendor
não podiam suportar os exércitos celestiais, cheios de temor pela brilhante e inacessível
luz da divindade, Ele mesmo Se fez homem para nossa salvação e nos permitiu unir as
nossas vozes aos coros celestes (em voz alta) e ousar unanimemente, com os Serafins
e os Querubins, clamar com segurança, exclamar e dizer: Santo, Santo, Santo, Senhor
Deus das potestades.
Coro. Santo, Santo, Santo, Senhor Deus das potestades. Os céus e a terra estão
cheios da tua glória: bênção nas alturas. Bendito és Tu, que vieste e que virás em nome
do Senhor. Hossana nas alturas.
POST SANCTUS

Enquanto o coro canta o Santo, o sacerdote continua em voz baixa: Santo, 4741
Santo, Santo, Tu és verdadeiramente santíssimo: quem poderia pretender exprimir
com palavras, as ternas efusões da tua imensa bondade para connosco? Ó Tu, que
desde o começo, levantando de tantas maneiras o homem caído, o consolaste por meio
dos Profetas, com o dom da Lei, com um sacerdócio em que as vítimas oferecidas eram
figurativas, mas que, no fim dos dias, rasgando por completo o documento das nossas
dívidas, nos deste o teu Filho único, para que Ele pagasse por nós, para que fosse o
nosso resgate, para que fosse a vítima, o ungido, o cordeiro, o pão celestial, o sumo
sacerdote e o sacrifício que, apesar de sempre distribuído entre nós, não pode consumir-se,
porque, tendo-Se feito verdadeiramente homem e tendo tomado carne por uma união
sem confusão, da divina e santa Virgem Maria, passou nos dias da sua carne por todas

1
Anáfora Arménia (=Ordo Divinae Missae Armenorum, Roma, 1644; P. L E B RUN , Explication littérale,
historique et dogmatiques des prières et cérémonies de la messe, 4 vol., Paris 1716-1726, com numerosas
reedições, v.g. Explication de la messe, Lex Orandi 9, Paris, Cerf 1949; L. B OUYER , Eucharistie, Paris,
Desclée 1968 2, 339-344); cf. n. 7212. Esta anáfora, a par de elementos primitivos, contém outros tardios.
1156 SÉCULO V

as paixões da vida humana, sem pecado, e, para salvar o mundo e para nossa salvação,
Se entregou voluntariamente à cruz.

NARRAÇÃO DA INSTITUIÇÃO

4742 Sacerdote, em voz baixa: Tomando o pão em suas mãos santas, divinas, imortais,
sem mancha e criadoras, abençoou-o, deu graças, partiu-o e deu-o aos seus discípulos
escolhidos e santos, que estavam à mesa com Ele, dizendo:
Diác. Abençoa, Senhor.
Sacerdote, em voz alta: Tomai, comei todos dele: isto é o meu Corpo que é
distribuído por vós em expiação dos pecados.
Diác. Amen. Abençoa, Senhor.
Sacerdote, em voz baixa: De igual modo, tomando o cálice, abençoou-o, deu
graças, bebeu dele e deu-o aos seus discípulos escolhidos e santos, que estavam à mesa
com Ele, dizendo (em voz alta): Tomai, bebei todos dele: isto (ou: este) é o meu Sangue
da nova Aliança, que é derramado por vós e por muitos em expiação e remissão dos pecados.
Diác. Amen. Amen.
Coro. Pai celeste, que entregaste o teu Filho à morte por nós, carregado com as
nossas dívidas, nós Te suplicamos, pela efusão do seu Sangue, que tenhas piedade do
teu povo racional.

ANAMNESE

4743 Enquanto o coro canta, o sacerdote diz em voz baixa: O teu Filho único, nosso
benfeitor, mandou-nos que fizéssemos sempre isto em sua memória, e, descendo à
terra dos mortos segundo a carne que tomou de nós e, quebrando as portas do Inferno
com o seu poder, deu-nos a conhecer que Tu és o único Deus verdadeiro, o Deus dos
vivos e dos mortos.
Por isso nós, Senhor, segundo este mandato, apresentando aqui este sacramento
salutar do Corpo e do Sangue do teu Filho único, fazemos o memorial da sua paixão
salvadora por nós, da sua crucifixão vivificante, da sua sepultura durante três dias, da
sua bem-aventurada ressurreição, da sua divina ascensão, da sua sessão à tua direita, ó
Pai; confessamos a sua segunda vinda temível e gloriosa.
Diác. Abençoa, Senhor.
Sacerdote, em voz alta (a rubrica arménia acrescenta: «derramando
lágrimas»): Nós Te oferecemos o que é teu daquilo que é teu, por tudo e por todos.
Coro. Tu és bendito em todas as coisas, Senhor: nós Te bendizemos, nós Te
louvamos, nós Te damos graças, nós Te suplicamos, Senhor, nosso Deus.

APOLOGIA DO SACERDOTE

4744 Durante o canto, o sacerdote diz esta apologia, em voz baixa: Com razão,
Senhor, nosso Deus, nós Te louvamos e Te damos contínuas acções de graças a Ti que,
sem levar em conta a nossa indignidade, nos estabeleceste ministros deste tremendo e
inefável sacramento, não em virtude dos nossos méritos, pois somos demasiado pobres
e desprovidos de todo o bem, mas recorrendo sempre à tua grande misericórdia, ousamos
exercer o ministério do Corpo e do Sangue de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, a
quem pertence a glória, o principado, a honra, agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
ANÁFORA ARMÉNIA 1157

Coro. Filho de Deus, que Te imolaste ao Pai pela nossa reconciliação e que és
distribuído entre nós como Pão da vida, pela efusão do teu Sangue, nós Te suplicamos,
tem piedade de nós, do povo que Tu resgataste.
EPICLESE

O sacerdote, sempre em voz baixa: Ó Deus benfeitor, nós Te adoramos, nós Te 4745
suplicamos e Te rogamos: Envia sobre nós e sobre estes dons apresentados o teu Espírito
Santo coexistente e co-eterno, a fim de fazer, por Ele, deste pão abençoado, o Corpo de
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (O diácono diz: Amen), e deste cálice abençoado,
o Sangue de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo (O diácono diz: Amen), a fim de
que por Ele, faças deste pão e deste vinho abençoados o verdadeiro Corpo na sua
própria carne e o Sangue verdadeiro de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, mudando-
os, pelo teu Espírito Santo, a fim de que este [Jesus Cristo] seja alimento para todos os
que se aproximem d’Ele, não para sua condenação, mas para propiciação e remissão
dos pecados (O diácono diz: Amen).
INTERCESSÕES

(Acompanhadas sem cessar de monições diaconais e de cantos do


coro, que aqui se omitem)

Sacerdote, em voz baixa: Por Ele, Senhor, concede-nos a caridade, a constância 4746
e a desejada paz ao mundo inteiro, à santa Igreja e a todos os bispos ortodoxos, aos
presbíteros, aos diáconos, aos reis do mundo inteiro, aos príncipes, aos nobres, aos
viajantes, aos navegantes, aos cativos, aos condenados, aos aflitos e aos que lutam
contra os bárbaros. Por ele concede a salubridade do ar, os frutos da terra e uma rápida
cura aos que sofrem de males diversos.
Por Ele dá o repouso a todos os que dormem em Cristo, aos Pais santos, aos
Pontífices, aos Apóstolos, aos Profetas, aos Mártires, aos bispos, aos presbíteros,
aos diáconos e a todo o clero da tua santa Igreja, assim como a todos os leigos, homens
e mulheres, que nos deixaram na fé, (em voz alta), com os quais Te pedimos nos visites,
Deus benfeitor.
Nós Te pedimos, Senhor, que seja feita memória, neste sacrifício, da Mãe de
Deus, a Virgem santa Maria, de João Baptista, de Estêvão, o primeiro mártir, e de
todos os santos.
Sacerdote, em voz baixa: Lembra-Te, Senhor, em tua piedade, de abençoar a tua
santa Igreja católica e apostólica que resgataste pelo sangue precioso de teu Filho
único e libertaste pela santa cruz: concede-lhe uma paz bem firme; lembra-Te, Senhor,
na tua piedade, de abençoar todos os bispos ortodoxos que, na santa doutrina, nos
distribuem a palavra da verdade (em voz alta), e particularmente do nosso arqui-prelado, o
venerável patriarca dos Arménios N.: conserva-o por muito tempo, na sã doutrina.
Sacerdote, em voz baixa: Lembra-Te, Senhor, em tua piedade, de abençoar este
povo aqui presente e os que oferecem este sacrifício, e concede-lhes o que lhes é
necessário e útil.
Lembra-Te, Senhor, e tem piedade dos que Te oferecem votos e dão fruto na tua
santa Igreja e que pensam nos pobres com compaixão, e dá-lhes cem vezes mais,
segundo a largueza da tua liberalidade, aqui e no mundo que há-de vir.
Lembra-Te, Senhor, em tua piedade, de ser propício às almas dos defuntos e
àquela pela qual Te oferecemos este sacrifício...: dá-lhes o descanso e a luz, concede-
-lhes um lugar entre os teus santos, no teu Reino celeste, e torna-os dignos da tua
misericórdia.
1158 SÉCULO V

Lembra-Te, Senhor, e tem piedade da alma do teu servo... segundo a tua grande
misericórdia: (se está vivo) livra de todo o mal a sua alma e o seu corpo.
Lembra-Te, Senhor, de todos os que se recomendaram às nossas orações, vivos
e mortos; dirige, segundo o teu salutar beneplácito, as nossas orações e as deles, e
concede a todos a recompensa, não de bens passageiros e perecíveis.
DOXOLOGIA FINAL

4747 Sacerdote, em voz alta. Purificando os nossos pensamentos, torna-nos templos


dignos de receber o Corpo e o Sangue de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo ao qual,
contigo, Pai todo-poderoso e com o Espírito Santo vivificante e libertador, pertencem
a glória, o principado e a honra, agora e sempre e pelos séculos dos séculos.
Coro. Amen.

Antigos documentos litúrgicos 1

O Ordo e os cânones das Ordenações na santa Igreja


4748 18. Como não é conveniente que o sacerdote que baptiza as mulheres as veja nuas,
estende apenas a mão, pois há um véu a separá-las dele; a diaconisa conduz a mulher
que vai ser baptizada até debaixo da mão do sacerdote, e ele, sem a ver, impõe-lhe a
mão sobre a cabeça e baptiza-a ...

1
Vetera documenta litúrgica (=I. R AHAMANI , Studia syriaca, Scharfé 1908).
INSCRIÇÕES CRISTÃS 1159

Inscrições cristãs 1

1. Inscrição na fachada do baptistério de Santa Tecla, em Milão: 4749

Esta igreja octogonal eleva-se para que nela se realizem os ritos sagrados.
Octogonal é a piscina, como convém ao dom que ela oferece.
Convinha elevar esta sala destinada ao santo baptismo
Sobre este número sagrado: aqui é dada a salvação verdadeira ao povo 2.

2. Epitáfio de La Gayole 4750

Esta graciosa criança munida do sinal da cruz,


cuja inocência não fora manchada com nenhum pecado,
o pequenino Teodósio, cujos pais tinham desejado o baptismo
com recta intenção,
foi arrebatado por morte cruel;
mas o supremo Senhor do Céu
dará o repouso ao seu corpo que o nobre sinal da cruz marcou
e será chamado herdeiro de Cristo 3.

3. Inscrições de subdiáconos 4751

3.1 + Sepulcro (locus) de Pedro, subdiácono da primeira região da santa Igreja


romana, que em vida o comprou para si 4.

3.2 Sepulcro de Importuno, subdiácono da quarta região 5.

4. Inscrição no túmulo de Teódota 4752

Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Senhor, dá o repouso eterno à


alma da tua serva, a bem-aventurada Teódota. Tem piedade dela, na grandeza da tua
misericórdia, ó Deus, e na plenitude da tua compaixão apaga os seus delitos. Tem
piedade dela, toma-a em tuas mãos, coloca-a à tua direita, no trono da justiça, mata-lhe
a sede na fonte do repouso. Ela entrou no repouso, junto do Senhor. Amen. Cristo,
nascido de Maria, Amen6.

1
Inscriptiones latinae christianae veteres, séc. V (=D IEHL , Roma 1857-1888, Berlim 1961 2; G. B. DE ROSSI ,
Inscriptiones Christianae Urbis Romae, 2 vol., Roma 1857-1883).
2
G. B. DE R OSSI , Inscriptiones Christianae Urbis Romae II, 161, 2.
3
La Gayole, fim do sec. V (=D IEHL , n. 1512).
4
Roma, no pórtico de S. Pedro, sec. V (=D IEHL , n. 1242)... Quem comparavit se bibum.
5
Roma, Santa Inês, sec. V-VI (=D IEHL , n. 1242).
6
Inscrição encontrada em Antioquia.
SÉCULO VI

Eusébio de Alexandria

Sermão 16 1
1. Depois da despedida da assembleia, no dia santo do Senhor, enquanto o santo 4753
bispo Eusébio ainda estava sentado, aproxima-se dele Alexandre e diz-lhe: «Diz-me,
meu senhor, por que razão é obrigatório para nós observar o dia dominical e não
trabalhar, e qual será a nossa recompensa se não trabalharmos»? O santo começou a
dizer: «Escuta, meu filho, e dir-te-ei o motivo pelo qual a tradição nos impõe que
observemos o dia do Senhor e não trabalhemos. Quando o Senhor entregou aos seus
discípulos o mistério, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos,
dizendo: Tomai e comei, isto é o meu Corpo, que será entregue por vós para remissão
dos pecados. Do mesmo modo também lhes deu o cálice, dizendo: Bebei todos; este é
o meu Sangue, o Sangue da nova Aliança, derramado por vós e por muitos para
remissão dos pecados; fazei isto em memória de Mim. Foi assim que Ele disse.
O santo dia do domingo é a anamnese do Kyrios. Precisamente por isso é que foi
chamado dia do Senhor, porque é o senhor dos dias. Com efeito, antes da paixão do
Senhor, não era chamado dia do Senhor, mas primeiro dia. Neste dia o Senhor deu início
à criação do mundo, e no mesmo dia deu ao mundo as primícias da ressurreição; neste
mesmo dia, como dissemos, quis que se celebrassem os sagrados mistérios. Tal dia é
para nós a origem de todos os benefícios, o início da criação do mundo, o início da
ressurreição, o início da semana. Este dia, com os seus três inícios, alude ao princípio
da Santíssima Trindade.
2. A semana tem sete dias; foi Deus que os deu para trabalhar, e destinou um só 4754
para a oração, o repouso e a libertação dos males, a fim de que, se cometermos algum
pecado nos seis dias, nos possamos reconciliar com Deus no dia do Senhor. Por isso,
de manhã vai depressa à igreja de Deus, aproxima-te do Senhor, confessa-lhe os teus
pecados, converte-te na oração e na contrição do coração, espera pelo serviço divino e
santo, dirige a Deus a tua oração, e não saias da igreja antes da despedida.
Contempla o teu Senhor dividido em pedaços e distribuído, mas não destruído,
e, se tens a consciência pura, aproxima-te e toma parte no Corpo e no Sangue do
Senhor. Se a tua consciência te condena por causa de acções inconvenientes e
vergonhosas, recusa-te a participar, enquanto não te tiveres emendado com a penitência,
persiste na oração e não abandones a igreja antes de seres despedido. Lembra-te de
Judas, o traidor2...
3. Não observamos o dia do Senhor por outra razão qualquer, mas apenas para nos 4755
abstermos do trabalho e termos tempo para a oração. Se interrompes o trabalho, mas

1
E USÉBIO DE A LEXANDRIA , Sermo XVI. De die dominica (=PG 86 1, 413-421). Eusébio é uma figura lendária.
Por isso também é conhecido por Pseudo-Eusébio de Alexandria. Quanto à época em que viveu, uns apontam
o século IV, outros o século V. Este sermão, sobre o dia do Senhor, deve ter sido pregado por volta do ano 500.
2
Judas, prossegue o texto na parte omitida, saiu antes do fim da assembleia, e Satanás entrou imediatamente
nele. Não devemos agir de modo semelhante.
1162 SÉCULO VI

não vais à igreja, não obténs vantagem nenhuma. Pelo contrário, arranjas para ti não
poucos males.
São muitos os que esperam o dia do Senhor, mas nem todos com as mesmas
intenções. Os que temem a Deus esperam o dia do Senhor para Lhe dirigirem as suas
orações e para se enriquecerem com a recepção do Corpo e do Sangue de Cristo; as
pessoas frívolas e despreocupadas esperam o dia do Senhor para se absterem do
trabalho e poderem realizar obras más. Os factos confirmam que não minto. Sai ao
meio-dia nos outros dias e não encontrarás ninguém. Sai no domingo e encontrarás
alguns a tocar cítara, outros a dançar e a acompanhar o ritmo com o movimento das
mãos, outros sentados, tratando mal e insultando o seu próximo, outros a jogar o soco,
outros a discutir entre si, outros a fazer sinais com a cabeça convidando para o mal;
onde houver barulho de música e dança, todos correm para lá.
O arauto convida a ir à igreja e todos apresentam como desculpa o cansaço e a
indisposição. Mal se ouve o som da cítara ou da flauta, ou o estrépito dos passos de
dança, e todos, como se fossem um só, correm para lá.
Que vêem e ouvem aqueles que vão à igreja? Vou dizer-to: vêem e ouvem Cristo
Senhor, que está na mesa sagrada, o canto dos Serafins, o Trisagion que é entoado, a
presença e a intervenção do Espírito Santo, o profeta e rei David cuja voz ressoa nos
salmos, o santo apóstolo Paulo que faz ressoar a sua doutrina aos ouvidos de todos, o
hino dos Anjos, o aleluia que não tem fim, a voz dos Evangelhos, os ensinamentos do
Senhor, o ensino e a exortação dos santos bispos e presbíteros, tudo coisas espirituais,
tudo coisas celestes, que nos fazem participar da salvação e do Reino de Deus. Quem
entra na igreja vê estas coisas, escuta estas coisas...
4756 4. Seja para ti suficiente, caríssimo, ocupar-te dos teus afazeres terrenos nos seis
dias e absteres-te de acções más no dia do Senhor. Conheço muitos que têm negócios
com outros..., e dizem: «Está a chegar o dia do Senhor; temos de dirimir a nossa questão».
Homem infeliz e desventurado! Que te é mandado no dia do Senhor? Que ores ou que
trates de contendas? Vem aí o dia do Senhor e quem anda envolvido em contendas, toda
a noite pensa nisso... Ai do presbítero que faz essas coisas no dia do Senhor, e que, na
hora própria, não eleva preces a Deus... Conheço muitos que no dia da santa Páscoa
tomam alimento e depois comungam... Quanto maior é este dia, tanto maior é o pecado...
Devem jejuar até à missa e depois comungar... Este dia foi-nos dado para orar e expiar os
pecados, para a penitência e a salvação, para descanso dos trabalhadores e dos servos.
4757 5. Queres ajudar os pobres? Não roubes no dia do Senhor, mas oferece aos pobres
o teu trabalho nos dias que recebeste para trabalhar... Não transgridas o mandamento
do Senhor, não roubes o seu dia, não prives do repouso os teus escravos e os teus
trabalhadores a dias, não deixes a oração, não afastes os outros da igreja.
De facto, não existe nada mais elevado do que a Igreja; ela está acima do céu, é
mais esplêndida do que o sol, mais brilhante do que a lua e os astros, mais preciosa do
que o mundo inteiro. Sei de muitos que deixam passar toda a semana sem que entrem
na igreja... Mas se acontece alguma desgraça..., deitam as culpas a Deus e não a si
próprios, dizendo: «Porque foi que Deus permitiu que isto acontecesse»? E não sabem
que se afastam da igreja do mesmo modo que Deus Se afasta deles, como disse o
Profeta: Hão-de perder-se os que se afastem de ti.
4758 6. Este dia foi-te dado para a oração e o repouso: Este é o dia que o Senhor fez;
nele exultemos e nos alegremos, dando graças Àquele que nele ressuscitou, e com Ele
ao Pai e ao Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.
NARSAI DE NÍSIBIS 1163

Narsai de Nísibis

Homilias litúrgicas 1

HOMILIA 16

Tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: Este é de 4759
verdade e sem dúvida o meu Corpo. E tomou o cálice, deu graças, abençoou-o e deu-o aos
seus Apóstolos, dizendo: Este é o meu Sangue verdadeiro derramado por vós. E mandou-
-lhes que recebessem e bebessem dele todos, para poder ser sacrifício de expiação
pelos seus pecados, para sempre.
HOMILIA 17

5. Ele chama espírito não à alma que está no sacerdote, mas ao Espírito que ele 4760
recebeu pela imposição das mãos.
6. E quando a fé tiver sido recitada na sua ordem, imediatamente o arauto da 4761
Igreja começa a orar, dizendo2: Orai, fazendo comemoração dos Pais ortodoxos, dos
bispos e dos doutores, e com eles dos presbíteros e também dos diáconos e de todas as
ordens, e de todos aqueles que partiram deste mundo na fé, para que sejam coroados no
dia em que ressurgirem de entre os mortos, e para que nós, juntamente com eles,
recebamos, em herança, a vida naquele Reino. Orai, irmãos, sobre a oblação que
oferecemos, para que seja aceite diante de Deus a quem a oferecemos; e que, por
acção do Espírito Santo seja consagrada, e se torne para nós causa da vida no Reino do
alto.
10. Aclamação diaconal antes da Anáfora. Então o sacerdote aproxima-se para 4762
orar: Orai com ele, para que a vossa paz cresça por sua mediação. Inclinai para baixo
a força dos olhos dos vossos corações e orai com seriedade e, nesta hora cheia de
tremor e de grande temor, suplicai ao Senhor de todas as coisas. Ninguém ouse dizer
palavras com a sua boca, pois caso contrário, aquele que falar, rompe e viola o mandato.
Quem orar, ore com o coração e não com os lábios, peça misericórdia com a mente e não
com a língua. E permanecei tranquilos e com temor, pois connosco está aquela paz que
é maior do que tudo o que podemos pensar.
HOMILIA 18

O sacerdote acrescenta: Todas as sentinelas estão de pé, com temor, para louvar 4763
o Pai e o Filho e o Espírito Santo.
O povo responde: Santo, Santo, Santo é o Senhor, de cujas glórias o Céu e toda
a terra estão cheios.

1
N ARSAI DE N ÍSIBIS , Homilias litúrgicas de Narsai (=R. H. C ONNOLY, The Liturgical Homelies of Narsai,
TaS VIII, Cambridge 1909). Narsai de Nísibis foi, primeiro, discípulo e reitor da escola de Edessa (437-
457), da qual o expulsou o bispo Nono. Fundou então a escola de Nísibis. Era um poeta fecundo, autor
de várias homilias em verso e hinos litúrgicos. Morreu em 503.
2
Exposição dos mistérios.
1164 SÉCULO VI

HOMILIA 22 3

4764 Início. Resp. A fonte bendita que manou do Jordão, deu de beber a Adão e
matou-lhe a sede. / − Meus irmãos −, quem poderá retribuir o seu amor ao Fundador do
universo, / que na sua caridade veio para fazer com que os homens nascessem do
Espírito? / Poucas e pequenas são as bocas das criaturas dos Céus e das Alturas para,
connosco, darem graças ao poder do Criador que renovou a nossa imagem e destruiu a
nossa iniquidade. / Como num cadinho, Ele fundiu a nossa imagem pelo baptismo, / e
de seres de barro que éramos, fez-nos agora espirituais. / Foi-Lhe agradável pintar-nos
pelo Espírito, para Si, sem utilizar fosse o que fosse, de modo que a beleza da nossa
imagem não viesse a ser alterada, no futuro, pela mortalidade. / (Deus) é um Pintor que
desenha imagens na tela das águas, cuja arte nenhum inimigo pode proibir, / é um
Artista que insufla, pelo Espírito, sem a ajuda das mãos, e que semeia a vida imortal no
meio da mortalidade.
Peroração final. Vem, ó homem, louva e exalta o teu Glorificador, / porque, por
dom seu, fez o teu corpo como outro sol. / Vem, devedor, e paga de boa vontade o
tributo ao teu Libertador, / porque te redimiu e te libertou da servidão do mal e da
morte. / Vem, mortal, dar glória ao poder de Deus, / porque colocou em ti a capacidade
de serenar a vida na mortalidade. / Aclamai, com os vossos lábios, ó descendentes de
Adão formados do barro, / Aquele que vos levantou do pó até às suas alturas.
HOMILIA 27 4

4765 Quando o primeiro dos presbíteros e dos diáconos tiverem ocupado


conjuntamente os seus lugares, começam a recitar a fé dos Pais:
Cremos, pois, num só Deus Pai, que existe desde a eternidade, que tudo governa
com o saber secreto da sua divindade, que formou todas as coisas visíveis e invisíveis
e fez surgir do nada a criação superior e inferior. E num só Senhor Jesus Cristo, Filho
de Deus, uma pessoa com dupla natureza e numa só hipóstase. Na sua divindade é
Unigénito e no seu corpo é Primogénito. Tornou-Se, entre todas as criaturas, o
primogénito dos mortos; foi gerado pelo seu Pai e não teve princípio; de modo nenhum
foi feito ou executado com as criaturas. Na verdade Ele é Deus que vem de Deus, Filho
que vem do Pai, da mesma natureza do seu Pai e igual a Ele em todas as coisas que
Lhes são próprias. Foi por Ele que todas as coisas do mundo se manifestaram, e, por
isso, tudo o que é feito foi criado. Na autoridade, na veneração e na glória é igual ao
Pai. Por nós desceu do Céu sem sofrer mudança, para nos redimir da servidão do Maligno
e da morte, e da carne de uma filha de David formou um templo, pelo Espírito Santo. Fez-Se
homem, e pela união tornou divino o seu templo. O seu corpo foi concebido, sem
núpcias, no templo de Maria, e nasceu de maneira diferente dos homens. Padeceu, foi
crucificado e atingido na sua humanidade pela morte, quando Pilatos era governador.
Esteve três dias no sepulcro como qualquer morto. Ressuscitou e continua vivo, como
está escrito na profecia. E subiu para o alto, para o Céu dos Céus, para levar todas as
coisas à plenitude. Está sentado na glória, à direita do Pai, que O enviou. E há-de vir no
fim dos tempos para renovar todas as coisas e para julgar os vivos e também os mortos
que morreram em pecado. Cremos também no Espírito Santo, igualmente eterno, igual
na natureza e na glória ao Pai e ao Filho, e que procede de modo imperscrutável do Pai,
e dá vida a todos os seres dotados de razão, que por Ele são criados. E ainda confessamos
a Igreja una, católica, patrística e apostólica, santificada pelo Espírito. E confessamos
igualmente um banho e baptismo, em que fomos baptizados para a remissão das
dívidas e a adopção de filhos. E de novo confessamos, também, a ressurreição de entre
os mortos e que um dia estaremos na vida nova pelos séculos dos séculos.

3
Poema litúrgico sobre o baptismo.
4
Paráfrase do antigo Símbolo antioqueno a recitar no tempo dos mistérios.
GENÁDIO DE MARSELHA 1165

Genádio de Marselha

Os dogmas da Igreja 1
21. Se houver crianças ou diminuídos que não possam compreender o que é ensinado, 4766
aqueles que os apresentam responderão por eles à maneira daquele que é baptizado, e
assim, fortificados pela imposição da mão e pelo crisma, sejam admitidos aos mistérios
da Eucaristia.
22. Não louvo nem critico o facto de se receber a comunhão eucarística todos os 4767
dias. Ao contrário, recomendo vivamente que se comungue todos os domingos, desde
que a nossa alma esteja liberta de todo o desejo de pecar. Mas quem continua a ter
intenção de pecar aumentaria, segundo creio, a sua culpabilidade, se comungasse em
vez de se purificar. Por isso, quem ainda sente remorsos do pecado, mas já não tem
vontade de pecar no futuro, antes de comungar chore as suas faltas com lágrimas e
orações, entregue-se à misericórdia de Deus, que perdoa os pecados quando
reconhecemos a nossa culpa, e aproxime-se da Eucaristia com coragem e confiança.
Estou a falar, evidentemente, daquele cuja consciência não está carregada de pecados
mortais e capitais.
Mas ao pecador culpado de faltas mortais, cometidas após o baptismo, e que
queira receber a Eucaristia sem ser para seu juízo e condenação, suplico-lhe que se
submeta primeiro à penitência pública e se faça reconciliar desse modo, segundo o
juízo do bispo. Não negamos, certamente, que os pecados mortais lhe possam ser
igualmente perdoados após uma satisfação secreta, com a condição de abandonar
primeiro as suas vestes seculares e fazer profissão de vida religiosa, para corrigir a sua
vida; após uma vida inteira de luto, graças à misericórdia de Deus, o pecador que tiver
agido assim receberá o seu perdão; ser-lhe-á preciso fazer o contrário dos actos pelos
quais faz penitência, e receber a Eucaristia todos os domingos, até à morte, com
humildade e devoção.
A verdadeira penitência consiste em não cometer as faltas pelas quais se exige a
penitência e em chorar os pecados cometidos. A expiação penitencial consiste em
arrancar as raízes dos pecados e em não deixar que as tentações entrem na nossa alma.
40. O baptizado recebe o Espírito Santo pela imposição da mão do pontífice; o 4768
mártir não baptizado é feito voz do Espírito Santo, pois não é ele que fala, mas o
Espírito do Pai que fala nele 2. Aquele comunga da Eucaristia em comemoração da
morte do Senhor, este morre juntamente com Cristo. Aquele confessa que renunciou às
acções do mundo, este renuncia à própria vida. Àquele perdoam-se todos os pecados, a
este extinguem-se-lhe.
41. Na Eucaristia não deve oferecer-se água pura, como erradamente o fazem alguns, 4769
sob aparência de sobriedade, mas vinho misturado com água, pois também houve
vinho no mistério da nossa redenção..., e misturado com água, como se fazia no fim da
ceia... Além disso, a água e o sangue que saíram do lado de Jesus trespassado pela lança
foram o vinho da autêntica videira, misturado com água saída da sua carne.

1
G ENÁDIO DE M ARSELHA , Liber ecclesiasticorum dogmatum (=PL 42, 1211 s; 58, 979-1000; 83, 1227 S ;
161, 1045 S ; C. V OGEL , Paris 1966, 128-129). Genádio de Marselha morreu em data desconhecida situada
entre os anos 492 e 505.
2
Mt 10, 20.
1166 SÉCULO VI

Tiago de Sarug

Homilia sobre a memória dos defuntos


e o sacrifício eucarístico 1
4770 A filha do Rei2... consagra hoje, de verdade, o misterioso pão. No meio da sala da
Ceia ela viu como o seu Senhor consagrava o seu Corpo, e d’Ele aprendeu a fazer o
mesmo, pois o Senhor foi o primeiro a fazê-lo. Não foi Melquisedec quem ensinou à
Igreja o que ela havia de fazer; a Igreja olhou para o seu Senhor e, como Ele fez, assim
o faz ela todos os dias. Também não tomou por modelo a Moisés, que era um homem;
foi Jesus, que é Deus, que lhe ensinou os mistérios. Repara como Ele vela pelos
mistérios, como os honra, como sente orgulho neles, por ser Ele a grande vítima, na
qual estão incluídos os vivos e os mortos.
Qual será o motivo pelo qual estes bens, que por si mesmos correm tão
abundantemente, estão agora a diminuir para muitos em vez de estarem a aumentar? Os
homens descuidam o pão santo e já não dão oferendas para ele; que hei-de falar agora,
com que objectivo, como e a quem me hei-de dirigir? Hei-de deixar em paz aquilo que
merece repreensão e se encontra até em homens prudentes, ou hei-de falar, uma vez
que o faço por amor, também diante dos culpados? Estimado ouvinte, com toda a amizade
te dirijo estas minhas palavras; recebe-as com simpatia, pois é o amor que me leva a
falar deste modo.
Nunca te falta o pão do Senhor na sua mesa, e Ele oferece-te espiritualmente o
seu santo vinho dia após dia. Traz contigo, à casa da misericórdia, isto é, à igreja, pão,
vinho e amor; então também o sacerdote se colocará diante da majestade recordando-se
de ti. Nas pedras preciosas da lâmina de ouro, Moisés tinha escrito os nomes das
tribos, para que o sacerdote levasse sobre si a memória delas ao santo dos santos.
Grava tu também no pão do sacrifício a tua memória e a dos teus defuntos queridos e
dá ao sacerdote dons que ele ofereça diante de Deus. Prepara um jantar e convida para
ele os teus defuntos, a fim de virem ao sacrifício que serve todas as almas, para se
robustecerem e fortificarem. Tem compaixão do defunto, mostra assim o teu amor para
com ele, não precisamente preparando grandes solenidades de lamentações, que não
têm qualquer valor para quem morreu. Apresenta a Deus o seu nome e a sua memória
juntamente com uma oferenda, e a tua fé não ficará desiludida com a sua justiça. Coloca
a sua recordação sobre a mesa, na casa da reconciliação3, em forma de pão e vinho,
que servem para os mistérios do Corpo e Sangue do Senhor.
4771 Dirigindo-me agora às mulheres, quero dizer-lhes uma palavra fácil de
compreender, se quiserem escutar-me amavelmente com os ouvidos da alma. Elas gostam
de ficar junto dos defuntos, diante da sepultura, para chorar, e mostram o seu amor
pelos mortos, chorando e lamentando-se. Abandonam a igreja, e ao mesmo tempo os
seus ofícios divinos e o seu sacrifício, e vão até às sepulturas, até aos seus queridos
defuntos, derramando lágrimas. Tu, que tens fé no templo santo, pede pelas tuas pessoas
queridas a Deus, em cujas mãos estão os espíritos. Não chames pelo morto no sepulcro,

1
T IAGO DE SARUG , Homilia sobre a memória dos defuntos e o sacrifício eucarístico (=S. L ANDERSDORFER ,
Bibliotek der Kirchenväter 1912, 305-315). Tiago de Sarug morreu em 521.
2
A Igreja.
3
Na igreja.
TIAGO DE SARUG 1167

que não te ouve por não estar agora ali. Busca-o antes na casa da misericórdia4; aqui se
reúnem as almas de todos os defuntos, pois este é o lugar onde se encontra a Vida, com
que eles se fortalecem. Aqui se guarda a recordação dos seus nomes no grande livro de
Deus, no qual todos estão escritos...
Então, se o teu defunto, ó mulher, está aqui de verdade, porque corres e dás voltas
por entre os sepulcros, como se estivesses absorta? Foi a tua razão que se extraviou, ou
falta-te a fé? Será o costume que te acorrentou a um modo de proceder tão irracional?
Arrasta-te com violência ao sepulcro para falares ali com o teu defunto aquilo que tu,
com teus medos, acumulas imprudentemente, desgosto sobre desgosto? Se ainda arde
na tua alma uma chispa de amor a Deus, faz com que da tua boca saiam orações em vez
de gritos de lamentação. Deita as lamentações para fora do teu coração simples, apoia
a tua alma no juízo da fé. A tua inclinação, para o teu defunto, seja igual ao amor
verdadeiro, e cultiva a sua recordação no sacrifício e na oração. O teu defunto não
ganha nada com o teu choro no sepulcro; pelo contrário, o teu sacrifício é para bem de
ti e dele e a ambos aproveita. As lágrimas que correm junto ao sepulcro, derrama-as
aqui na igreja, de maneira discreta.
Aos homens, já nada lhes importam as boas obras..., mas com suas vaidades 4772
anda o mundo muito ocupado... Abel ofereceu os primogénitos do seu rebanho. O
justo Noé sacrificou os animais puros de entre os que tinham ficado. Abraão entregou
três animais de três anos para o sacrifício que ofereceu, e Jacob pagou o dízimo de tudo
o que possuía em honra da divindade. O prudente Lot entregou as suas filhas, por
justiça, e o grande Moisés mandou oferecer todos os primogénitos. Para a tenda da
Aliança deram os Hebreus, cada um segundo as suas posses, todo o ouro e prata, todos
os tecidos de linho finíssimo e magníficos tapetes.
Por meio de sacrifícios e votos, e através de presentes custosos, os justos
mostraram o seu espírito de sacrifício diante de Deus. Mas tu, a quem se entregou o
encargo digníssimo de oferecer o pão do sacrifício, recusas e rejeitas dar dons, que, por
sua vez, te trazem proveito a ti mesmo. A caridade diminui quando desaparece a fé, e
a alma fica obscurecida pela maldade quando o pecado se apodera dela.
O pão eucarístico, com que se faz o sacrifício pelas almas, é recusado e ninguém
o traz para a casa da misericórdia, como conviria. O costume de fazer boas obras
desapareceu da humanidade... Todos se preocupam em repartir a herança do defunto,
mas de celebrar a sua memória na santa missa, disso não se quer saber nada.
Os herdeiros ímpios não destinam coisa alguma do que possuía o defunto, nem
mesmo do que eles possuem, para honrar a sua memória; todos se apropriam dos seus
bens, mas esquecem a piedade. Como gente sem juízo, repartem as melhores vestes
que o defunto possuía e deitam sortes sobre as suas preciosidades...
Se nos seus corações reinasse o amor ao Senhor, fá-lo-iam herdeiro com eles e, no
dia das partilhas, deixariam de lado uma porção dos bens que, como recordação do
defunto, servisse para o sacrifício por ele. Mas, como estão privados de todo o sentido
de justiça e sensatez, repartem os bens, guardam-nos e esquecem-se de agradecer. Pelo
contrário, aquele que tem no seu coração amor sobrenatural, mostra a sua piedade
depois da morte, não esquecendo o defunto, mas levando a sua causa, com memória
agradecida, até junto de Deus, no santo templo, com sacrifícios e orações.
Parece-me que está fora de discussão que os defuntos tiram efectivamente 4773
proveito do sacrifício que dá vida. Mas, se alguém tivesse a ousadia de pôr isso em
dúvida, ouça o que lhe diz a doutrina da fé acerca de Judas Macabeu...

4
Na igreja.
1168 SÉCULO VI

Judas ofereceu ao Senhor o sangue de animais, e com isso reconciliou os mortos


e expiou por eles...; hoje, pelo contrário..., a comunidade reúne-se e oferece, em expiação
pelos seus mortos, o sangue do Imortal...
Pelo bem da alma do defunto avança o sacerdote, e coloca pão e vinho no altar
para o sacrifício. O sacerdote renova o memorial da morte de Jesus e da sua ressurreição
e convida todos os defuntos para o sacrifício, a fim de obterem o perdão. Ele recorda-se,
na caridade, de todos os que trazem alguma coisa e oferecem o pão do sacrifício, e, ao
fazer a comemoração dos defuntos, assinala a Eucaristia. Apresenta a oferenda por
todos os defuntos que já partiram e invoca o Pai, recordando a morte do seu Filho.
Então o Espírito vem, desce sobre o sacrifício, toma forma no misterioso pão e
torna-se o Corpo. Com o seu sopro envolve o vinho e muda-o no Sangue. O Corpo e o
Sangue constituem o sacrifício que a todos santifica. Com este sacrifício o sacerdote
faz a expiação por todos os defuntos, porque tem em si uma força para vencer a morte
e derrubar o seu trono. Ao odor da vida que se desprende do sublime sacrifício, reúnem-se
todas as almas e aproximam-se para ficar perdoadas. E na ressurreição que é derramada
do Corpo do Filho de Deus, respiram os defuntos dia-a-dia a vida, e assim são purificados.
Cuidai, por isso, de vos lembrar das vossas pessoas queridas, e preocupai-vos com o
sacrifício que pode dar o perdão aos vossos defuntos.
4774 Mas, pensa por aí alguém, o defunto não é purificado pelo sacrifício que um vivo
faz e não pode tirar qualquer proveito deste sacrifício. Como pode aproveitar-lhe o
que outro faz sem ele o saber? Cada um só recebe lucro das obras que ele próprio faz
e não das obras dos seus familiares. A disposição do vivo é mais importante do que o
seu sacrifício, e, uma vez que é ele que o realiza, nenhum outro tira proveito dele. Na
verdade, como poderia alguém tirar vantagens de um sacrifício que um vivo oferece por
um morto, excepto ele mesmo que o oferece? Que relação existe entre a devoção de um
e a justificação de outro? Aquele que oferece o dom é que tem proveito dele.
Contra aquele que assim fala digo o seguinte: É costume da Igreja purificar
também aqueles que não têm consciência disso. Uma criança que é baptizada recebe,
sem que esteja consciente do acto do baptismo, o que lhe pertence. Ou será que, como
poderia pensar-se do que tu afirmas, as coisas se passam de outra maneira? A Igreja
purifica tanto aqueles que não têm consciência disso, como também aqueles que
conhecem o processo, pois até mortos ressuscita para a vida da fé, uma vez que recebe
dos pais a criança e a baptiza, a purifica e a santifica, sem que a criança saiba o que quer
que seja de tal processo. Se o santo sacrifício não é expiação pelos mortos, como tu
dizes, então também não aproveita nada o baptismo à criança, uma vez que também ela
não sabe nada disso. Então todos os mistérios da Igreja carecem de sentido, e é em vão
que ela se cansa para proporcionar perdão aos defuntos.
Então para que diz o sacerdote: «Orai por todos os defuntos», e para que baptiza
e santifica a criança que nada sabe do que se passa com ela? Os pais crentes levam o seu
bebé ao baptismo, e o Senhor atende a sua fé e santifica-o, colocando-o nas filas dos
filhos de Deus, mesmo que a criança não saiba nada disso, e inscreve o seu nome na
lista dos primogénitos, por mais que a criança não tenha consciência de nada. Da
mesma maneira fazem também os herdeiros crentes de um defunto que passou deste
mundo: dão, em seu nome, pão e vinho para oferecer o santo sacrifício, e a oração do
sacerdote e do povo eleva-se por aquele que morreu, e o Senhor perdoa ao defunto por
quem eles fazem comemoração.
Mas, se o morto não obtém a expiação mediante o sacrifício, então também a
criança não passa a pertencer ao número dos filhos de Deus mediante o baptismo. Se
o sacrifício de um vivo só aproveita ao vivo, então só os pais, que levam uma criança
ao baptismo, recebem pessoalmente benefício do que fazem. Que se passa então com
a fé que ressuscita os mortos para a vida, que reza pelos defuntos para os purificar,
TIAGO DE SARUG 1169

que leva a criança a baptizar, para a santificar? Teremos de dizer que nada do que a fé
pede está ao seu alcance?
A esperança da esposa do Rei é inamovível e não será enganada; grande e magnífica 4775
é a sua fé e está por cima de toda a mancha. Nos gloriosos mistérios, a Igreja serve o seu
Senhor de modo espiritual; nos seus ofícios divinos, os Anjos ficam cheios de santa
admiração. A fé da Igreja é tal, ó homem inteligente, que o pão e o vinho se convertem
no Corpo e no Sangue. Quando a Igreja parte o pão, só ali vê o Corpo, e, quando
mistura o vinho, enche o cálice da mistura com o Sangue. Então menciona os nomes de
todos os seus defuntos e une-os estreitamente a si mesma mediante as oferendas
espirituais. Reúne-os para provarem do Corpo e do Sangue, e os defuntos alegram-se
espiritualmente com ela na sua refeição.
Vós que sois inteligentes e conheceis os segredos da fé, não deixeis de oferecer
sacrifícios pelos vossos defuntos. Porque vão diminuindo os costumes que a Igreja
ensina aos seus filhos, porque vão retrocedendo e desaparecendo cada vez mais, porque
é que muitos já não querem mantê-los? De facto, o pão para a Eucaristia chega à casa
de Deus para ali ser oferecido, de modo pouco digno, ou até mesmo de modo desprezível
e indigno.
Há muitos que pura e simplesmente já o não trazem, enquanto outros, embora
ainda o tragam, não o fazem como é devido. Há quem mande a sua oferenda à casa de
Deus por meio de uma criada; ao mandar a criada levar o sacrifício ao Senhor, é como
se o mandasse a alguém de quem tivesse vergonha. Os que pisam a casa do Senhor são
tidos por desprezíveis e baixos; encarregam outros de apresentar o seu dom, mas eles
pessoalmente mantêm-se afastados. Por que não levas tu, ó homem inteligente, a tua
oferenda com as tuas próprias mãos, como Abraão...?
Mas hoje diminuiu a fé dos homens, retrocedeu a caridade, andou para trás o
gosto das boas obras. Qual é o homem rico que leva à casa de Deus o pão para a
Eucaristia, e o leva com suas próprias mãos, se é que ainda o leva à casa da misericórdia?
Ou já o não leva de todo, ou, se ainda o leva, encarrega qualquer pessoa insignificante
da sua casa de o levar, ao passo que ele não se aproxima.
Feliz a viúva que traz a oferenda nas suas próprias mãos, feliz da pobre que traz
a sua oferenda e se orgulha disso. Não manda ao Senhor o pão para a Eucaristia, como
faz o rico, mas ela própria o traz e pede ao Senhor, com coração contrito, que Ele se
digne recebê-lo da sua mão. De modo semelhante ao sacerdote, ela apresenta diante do
Senhor a sua tristeza juntamente com o seu sacrifício e as suas orações, quando se faz
memória dos defuntos...
Bem-vindo é o sacrifício dos pobres, quando é apresentado coberto de lágrimas
e acompanhado de fé e caridade: o pão do sacrifício nas mãos, as lágrimas nos olhos, o
louvor de Deus na boca e, juntamente com a oferenda, também o sacrifício da fé! Na
verdade, só é aceite um sacrifício que é apresentado com amor. Louvado seja o Senhor,
que no seu amor entregou ao sacrifício, por muitos, o seu Filho unigénito.
1170 SÉCULO VI

Imperador Justiniano

Novellas 1
4776 28. Ordenamos que todos os clérigos constituídos em cada igreja cantem por si mesmos os
salmos nocturnos, matutinos e vespertinos... De facto, se muitos leigos, para conforto das
suas almas, vão às igrejas santíssimas e se mostram empenhados em rezar os salmos, seria
indecoroso que os clérigos, ordenados para isso, não cumprissem a sua função.
4776a 57. Desde há muito foi estabelecido por lei não se autorizar ninguém a celebrar os santíssimos
mistérios no interior das casas... Assim, todos os habitantes desta grande cidade e também os
de toda a nossa jurisdição ficam probidos de ter, nas suas casas privadas, salas de orações, e
de aí celebrarem os santos mistérios, costume que é estranho à tradição católica e apostólica.
Mas se alguns acham que lhes é útil ter nas suas habitações lugares destinados à oração, sem
os destinarem, de modo algum, à celebração dos santos mistérios, permitimos-lho. Não é
motivo de inveja, o facto de algumas pessoas quererem ter algum quarto para nele fazerem
oração, como se fosse um lugar sagrado, e absterem-se de todos os outros...
4776b 58. Um sem número de clérigos, na vacância de certos oratórios, ou possivelmente tam-
bém a pedido de outras pessoas, receberam honorários avultados e afastaram-se a si mesmos
dos sagrados mistérios (melhor que ninguém sabem eles porquê) estando sempre ausentes
das igrejas que lhes foram atribuídas. Decidimos que... os amados bispos de Deus, sob cuja
tutela estas igrejas foram estabelecidas, coloquem outros naqueles lugares, que lhes recebam
os emolumentos. Não permitimos seja a quem for que converta em lucro pessoal aquilo que as
santas igrejas já pagaram por eles próprios ou por outros. Não queremos dar a ninguém
ocasião de enriquecer com o que pertence a outros.
4777 137. Em resposta a certas queixas que me foram dirigidas2, quero assegurar o respeito
dos cânones violados pelos clérigos, pelos monges e até por alguns bispos. Tudo isto
tem a ver com a negligência que levou a abandonar a atitude regular dos sínodos. Daí
nasceu um desleixo que levou a ordenar pessoas que nem sequer sabem as orações da
divina anáfora e do santo baptismo. Doravante nunca mais se ordenarão pessoas que
não tenham previamente posto por escrito a profissão que devem dizer em voz alta, bem
como a divina anáfora no serviço da santa comunhão, as orações no santo baptismo, e
as outras orações3... Além disso, ordenamos a todos os bispos e presbíteros que digam
as orações utilizadas na divina anáfora e no santo baptismo, não de maneira inaudível,
mas com voz que possa ser escutada pelo povo fiel, de modo que o espírito daqueles que
escutam possa ser levado a uma maior compunção... É, pois, de toda a conveniência,
que as orações dirigidas ao Senhor Jesus Cristo, nosso Deus, bem como ao Pai e ao
Espírito, na santa anáfora e noutros lugares, sejam ditam em voz alta4: os que se recusarem
a fazê-lo deverão responder perante o tribunal de Deus e, quando tivermos conhecimento
de tais casos, não os deixaremos impunes5.
1
I MPERADOR J USTINIANO , Novellae selectae (=PL 72, 921-1053. 1054-1110; M OMMSEN -K RÜGER -S CHWELL ,
Imperador Justiniano, Corpus iuris civilis, 3 vol., t. 2, Berlim 1886-1895). Este decreto é do ano 528.
2
Imperador Justiniano. Esta Novella é de 26 de Março de 565.
3
O sentido desta determinação é ambíguo. A que se refere ela? a) A uma confissão de fé, escrita pelo candidato e que
ele próprio deverá recitar em voz alta para ser ordenado, e bem assim as orações rituais? b) À confissão de fé pessoal,
escrita pelo candidato e que ele próprio deverá recitar em voz alta, tal como, no exercício do seu ministério, deverá
pronunciar em voz alta as orações rituais? c) A uma simples redacção por escrito deste conjunto de textos (confissão
de fé e orações) que mais tarde deverá dizer em voz alta?
4
meta\ fwnh= j .
5
A insistência do imperador denuncia o facto de que a prática da oração em voz baixa devia estar muito
generalizada.
REGRA DO MESTRE 1171

Regra do Mestre 1

14. 1 Ao celebrar-se uma Hora do ofício divino na igreja..., depois de terminar um 4778
salmo, todos se prostram para a oração...
21. 7 Depois de uma oração breve, comungarão imediatamente e beberão do cálice e, 4779
a seguir farão de novo uma oração breve, dirão o versículo... e o abade concluirá...
28. 37 Desde a Páscoa até ao Pentecostes..., coma-se sempre à sexta hora, 38 e a 4780
refeição da tarde deve ser substituída pela do meio-dia, 39 porque a Sagrada Escritura
diz: Não vos é permitido jejuar quando o Esposo está convosco. 40 Só se deve cear
na quinta-feira e no domingo. 41 Na verdade, seja qual for o tempo, nunca é permitido
jejuar na quinta-feira, porque a Ascensão do Senhor cai todos os anos nesse dia. 42 No
domingo também não é permitido jejuar, porque é o dia da Ressurreição do Senhor. 43
São Silvestre proibiu isso nos seus livros. 44 Desde a Páscoa até ao Pentecostes, não é
permitido jejuar, porque no sábado de Páscoa terminam os jejuns da tristeza e começa o
aleluia da alegria. 45 E no sábado de Pentecostes termina o aleluia e começam os jejuns2.
33. 1 No Ofício nocturno, durante uma parte do ano, no Inverno, salmodiam-se os 4781
nocturnos antes do cantar do galo... 42 Ao salmodiar, tanto no Inverno como no Verão,
quer de dia quer de noite quer nas vigílias, deve evitar-se juntar os salmos, o que é
proibido. 43 Ao contrário, devem terminar-se uns após os outros com o Glória, 44 de
modo a não perder as orações que se devem fazer entre eles, nem dar a impressão de
lhes retirar o Glória em louvor de Deus... ao colocar os salmos, para os abreviar..., uns
a seguir aos outros. 45 O Profeta, ao colocar um início a cada salmo, tinha um fim em vista.
35. 1 Quanto aos salmos de Matinas, em qualquer estação dir-se-ão seis, uma única 4782
antífona, o versículo, a leitura do Apóstolo e o Evangelho, que será sempre dito pelo
abade e a oração a Deus. 2 Quanto aos salmos das Horas acima designadas, isto é,
Prima, Tércia, Sexta e Noa, devem dizer-se três, pela ordem como se sucedem no
Saltério, uma única antífona, a leitura do Apóstolo, a leitura do Evangelho, que será
sempre dito pelo abade... e, por fim, a oração a Deus.
36. 1 Durante o Lucernário devem dizer-se, no Inverno, seis salmos, sempre pela 4783
ordem como se sucedem no Saltério, uma única antífona, o versículo, a leitura do Apóstolo
e o Evangelho, que será sempre dito pelo abade, seguido da oração a Deus. 2 No seu
conjunto, estas determinações... fazem-nos dobrar os joelhos vinte e quatro vezes... 5 à
semelhança dos vinte e quatro anciãos que, nos Céus, adoram Deus, sem cessar...
37. 1 Nas Completas devem dizer-se três salmos, a antífona, a leitura do Apóstolo, a 4784
leitura do Evangelho, que será dita pelo abade sempre que estiver presente, a oração a
Deus e o versículo final.
45. 1 Desde a Páscoa até ao Pentecostes, todas as antífonas e responsórios, de dia e 4785
de noite, serão salmodiados com aleluia e não se ajoelhará. 2 Além disso, desde o Natal
do Senhor até à Epifania, todas as antífonas e responsórios, de dia e de noite, serão
salmodiados com aleluia e não se ajoelhará nem se observará o jejum nem a abstinência...
49. 1 Todos os sábados se deve celebrar uma vigília no mosteiro, desde a noite até ao 4786
segundo canto do galo, e então celebram-se as matinas. 2 Para justificar este nome de
vigília, os irmãos não vão dormir, mas ficam a salmodiar e a escutar leituras. 3 Só irão
repousar nos seus leitos depois das matinas.

1
Regra do Mestre (=PL 88, 943 s; SCh 105-107). A Regra do Mestre é anterior à Regra de São Bento. Os
autores apontam como limite da sua composição o ano 530.
2
A evolução das ideias começou aqui a fazer um caminho novo, deixando cair no esquecimento as lições dos
primeiros Padres da Igreja.
1172 SÉCULO VI

Fulgêncio de Ruspas

A Mónimo 1

LIVRO II
4787 5. Se houve alguns fiéis católicos que até agora parece terem desconhecido este
mistério, fiquem a saber daqui por diante que a Igreja católica oferece todo o louvor e
sacrifício de salvação de igual modo ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, isto é, à
Santíssima Trindade, e que também é em nome da Trindade que se celebra o santo
baptismo. Não se pense que o Filho e o Espírito Santo ficam diminuídos pelo facto de
o oferente, ao orar, se dirigir à pessoa do Pai. O final da oração, ao unir o nome do Filho
e do Espírito Santo, mostra que não há diferença alguma na Trindade. Ao dirigir-se o
louvor só à pessoa do Pai, toda a Trindade é honrada pela fé daquele que crê com
rectidão, e, quando a intenção daquele que faz o sacrifício se dirige ao Pai, o louvor do
sacrifício dirige-se, através do mesmo acto daquele que sacrifica, a toda Trindade.
Por isso, quando nós oferecemos um único sacrifício à Trindade, que é um só
Deus verdadeiro, não nos deixemos abalar pelas objecções fúteis dos hereges, uma vez
que ao fazer e manter o que fazemos com toda a firmeza, somos instruídos pelos
oráculos divinamente promulgados e confirmados com o exemplo dos santos que nos
precederam.
4788 6. Vamos esclarecer agora a pergunta sobre a vinda do Espírito Santo. Porque é que,
se o sacrifício é oferecido a toda a Trindade, se pede só o envio do Espírito Santo para
santificar o dom da nossa oferenda? É como se, por assim dizer, Deus Pai, de quem
procede o Espírito Santo, não pudesse santificar o sacrifício que lhe é oferecido; ou
como se o Filho não pudesse santificar o sacrifício do seu corpo que nós oferecemos,
quando foi Ele que santificou o seu corpo, que ofereceu para nos remir a nós; ou como
se o Espírito Santo tivesse de ser enviado para consagrar o sacrifício da Igreja em
virtude de faltar o Pai e o Filho àqueles que fazem o sacrifício!
Antes de mais importa recordar que a palavra missão não significa que o Espírito
Santo é inferior ou menor, porque se fosse menor era inferior, e, se fosse inferior, era
menor. Começamos por dizer isto, por sabermos com que força os hereges se opõem
frequentemente à nossa fé, como se devêssemos acreditar que o Espírito Santo, pelo
facto de ser enviado pelo Pai e pelo Filho, é menor que o Pai e o Filho...
4789 7. Como já dissemos, a Trindade permanece naturalmente imensa e infinita na
unidade da sua divindade; de tal modo não está localmente em parte nenhuma, que em
parte nenhuma falta, e assim está toda em toda a parte. Não está dividida pelas diversas
partes da criação universal, nem cabe dentro do universo criado. É por isso que, todas
as vezes que pedimos ao Pai (que envie) o Espírito Santo para consagrar o sacrifício...,
o primeiro cuidado que todos os cristãos devem ter é não pensar ou crer que a vinda do
Espírito Santo é localizada...

1
FULGÊNCIO DE R USPAS , Ad Monimum (=PL 65, 151-206; CCL 91; cf. LH, II). Fulgêncio de Ruspas nasceu
por volta de 467 e morreu em 532.
FULGÊNCIO DE RUSPAS 1173

9. Quando se pede a vinda do Espírito Santo para santificar o sacrifício de toda a 4790
Igreja, parece-me que o que se pede é que, no próprio Corpo de Cristo, que é a Igreja,
se mantenha sempre inquebrantável, por graça espiritual, a unidade da caridade. Este é
o principal dom do Espírito Santo. Sem ele, ainda que alguém fale as línguas dos
homens e dos Anjos..., pode dar som, mas não tem vida...
10. Por isso, quando a Igreja pede que lhe seja enviado do Céu o Espírito Santo, pede 4791
a Deus que lhe dê o dom da caridade e da unidade dos corações. A santa Igreja, que é o
Corpo de Cristo, deve pedir com tanto mais empenho a vinda do Espírito Santo para
consagrar o sacrifício do corpo de Cristo, quanto mais ela sabe que foi do Espírito
Santo que, segundo a carne, a sua Cabeça nasceu...
11. A edificação espiritual do Corpo de Cristo realiza-se na caridade, segundo as 4792
palavras de São Pedro: Como pedras vivas, entrai na construção deste templo espiritual,
para constituirdes um sacerdócio santo, destinado a oferecer sacrifícios espirituais,
agradáveis a Deus por Jesus Cristo2. Esta edificação espiritual nunca nos é pedida
com maior oportunidade do que quando o mesmo Corpo de Cristo, que é a Igreja,
oferece o Corpo e o Sangue de Cristo no sacramento do pão e do cálice: Com efeito, o
cálice que bebemos é a comunhão do sangue de Cristo, e o pão que partimos é a
participação do corpo do Senhor; uma vez que há um só pão, todos nós, embora
muitos, formamos um só corpo, porque participamos todos desse único pão 3.
Por isso, pedimos que a mesma graça que fez da Igreja o Corpo de Cristo, faça
com que todos os membros, unidos pelo vínculo da caridade, perseverem firmemente
na unidade do Corpo. E com razão pedimos que isto se realize em nós pelo dom
daquele Espírito que é, ao mesmo tempo, o Espírito do Pai e do Filho; porque, sendo
a Santíssima Trindade, na unidade da natureza, igualdade e amor, e o único e verdadeiro
Deus, é unânime a acção das Três Pessoas divinas na obra santificadora daqueles que
adopta como filhos.
12. Por isso, está escrito: O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo 4793
Espírito Santo, que nos foi dado 4. Na verdade, o Espírito Santo, que é o Espírito único
do Pai e do Filho, produz, naqueles a quem concedeu a graça da adopção divina, a
mesma transformação verificada naqueles que, segundo os Actos dos Apóstolos,
receberam o mesmo Espírito. Deles se diz: A multidão dos fiéis tinha um só coração e
uma só alma. Quem fez dessa multidão de crentes em Deus um só coração e uma só
alma foi aquele que é o Espírito único do Pai e do Filho e com o Pai e o Filho é um só Deus.
Por isso, nos exorta tanto o Apóstolo a que conservemos, com toda a solicitude,
esta unidade espiritual pelo vínculo da paz, advertindo assim os Efésios: Eu, prisioneiro
no Senhor, exorto-vos a que procedais de um modo digno do chamamento que
recebestes; com toda a humildade e mansidão, com paciência, suportando-vos uns
aos outros no amor, esforçando-vos por manter a unidade do Espírito, mediante o
vínculo da paz, porque há um só Corpo e um só Espírito 5.
Na verdade, Deus, enquanto conserva na Igreja o amor que ela recebeu pelo
Espírito Santo, transforma-a num sacrifício agradável a seus olhos, de modo que,
continuando a receber sempre esse dom da caridade espiritual, a Igreja possa apresentar-se
sempre como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus.

2
1 Ped 2, 5.
3
1 Cor 10, 16-17.
4
Rom 5, 5.
5
Ef 4, 1-4.
1174 SÉCULO VI

Cartas 6

CARTA 12

4794 24. Nenhum dos fiéis, por causa daquela palavra do Salvador: Se não comerdes a
carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós7,
deve inquietar-se a propósito dos que, baptizados legitimamente e em seu juízo perfeito8,
morrem imediatamente sem terem a possibilidade de comer o Corpo do Senhor e beber
o seu Sangue. Se alguém for capaz de pensar nisso, não apenas segundo os mistérios da
verdade, mas também segundo a verdade do mistério, verá que, no baptismo da santa
regeneração, se providencia a isso9.
Na verdade, que se passa no sacramento do baptismo? Não será que aí os crentes
se tornam membros de nosso Senhor Jesus Cristo e ficam a pertencer à estrutura do
corpo pela unidade eclesial? É a estes crentes que São Paulo diz: Vós sois o Corpo de
Cristo, e cada um, pela sua parte, é um membro10. Assim lhes mostra não só que eles
participam do sacrifício, mas que são o próprio sacrifício. Por isso, lhes manda que se
ofereçam como hóstia viva a Deus, quando lhes diz: Exorto-vos, irmãos, pela
misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo,
agradável a Deus11... Deste modo, cada um começa a participar daquele único pão,
quando começa a ser membro daquele único corpo, que então já se imola verdadeiramente
como hóstia viva a Deus em cada um dos membros, quando, no baptismo, se une à
cabeça que é Cristo...
Como se pode então dizer que quem é feito membro do Corpo de Cristo não
recebe aquilo em que se tornou?... Quem é baptizado, pela regeneração do santo
baptismo, torna-se naquilo mesmo que vai receber do sacrifício do altar. Nós sabemos
ter sido assim que os santos Padres ensinaram e acreditaram, como é o caso de Santo
Agostinho, que fez sobre este assunto um esplêndido sermão, muito adequado à
edificação e instrução dos fiéis12...
4795 26. Cada um dos fiéis se torna participante do Corpo e Sangue do Senhor quando se
torna membro do Corpo de Cristo no baptismo, e não fica separado daquela união do
pão e do cálice, mesmo que saia desta vida antes de comer daquele pão e beber do
cálice, pois pertence à unidade do Corpo de Cristo. Não é privado do benefício e participação
daquele sacramento, uma vez que ele próprio é aquilo que o sacramento significa...
CARTA 14

4796 36. Na conclusão das nossas orações, dizemos: «Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso
Filho»; e nunca dizemos: «Pelo Espírito Santo». Esta prática universal da Igreja tem a
sua explicação naquele mistério, segundo o qual o Mediador entre Deus e os homens é
Jesus Cristo homem, sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedec, que entrou de

6
FULGÊNCIO DE RUSPAS , Epistulae (=PL 65, 303-498; CCL 91; cf. LH, II e III).
7
Jo 6, 53.
8
Trata-se, portanto, de adultos, ou pelo menos de crianças chegadas ao uso da razão.
9
S. Fulgêncio diz que, se alguém que acaba de ser baptizado morre imediatamente, sem haver tempo de lhe dar
a comunhão – o que significa que ainda então, pelo menos o baptismo e a Eucaristia se davam ao neófito
imediatamente um a seguir ao outro – os familiares não devem ficar aflitos, pois em tal caso o baptismo foi
a primeira participação não na comunhão do pão consagrado, mas no verdadeiro Corpo de Cristo, que é a
Igreja, e do qual a comunhão é símbolo.
10
1 Cor 12, 27.
11
Rom 12, 1.
12
Trata-se do Sermão 272 de Santo Agostinho e que S. Fulgêncio transcreve, a seguir, na sua carta.
FULGÊNCIO DE RUSPAS 1175

uma vez para sempre pelo seu próprio sangue no santuário, não no que foi construído
pela mão dos homens e que era figura do verdadeiro, mas no próprio Céu, onde está
sentado à direita de Deus e intercede por nós.
Considerando este ofício sacerdotal de Cristo, o Apóstolo afirma: Por meio d’Ele
oferecemos a Deus um sacrifício de louvor, o fruto dos lábios que confessam o seu
nome. Por Ele oferecemos um sacrifício de louvor e oração, uma vez que fomos
reconciliados pela sua morte, quando éramos ainda inimigos. Por meio de Cristo, que
Se ofereceu em sacrifício por nós, pode o nosso sacrifício ser agradável aos olhos de
Deus. Por isso nos exorta São Pedro: Como pedras vivas, entrai na construção deste
templo espiritual, para constituirdes um sacerdócio santo, destinado a oferecer
sacrifícios espirituais, que serão agradáveis a Deus por Jesus Cristo. Esta é a razão
por que dizemos a Deus Pai: «Por nosso Senhor Jesus Cristo».
37. Quando se menciona o sacerdócio de Cristo, necessariamente se põe em evidência 4797
o mistério da Encarnação, pelo qual o Filho de Deus, que era de condição divina, Se
aniquilou a si próprio tomando a condição de servo, isto é, Se humilhou, obedecendo
até à morte, e Se tornou por um pouco inferior aos Anjos, permanecendo, não obstante,
na sua divindade igual ao Pai. Permanecendo igual ao Pai, o Filho tornou-Se por um
pouco inferior aos Anjos, na medida em que Se fez semelhante aos homens. Humilhou-Se
quando Se aniquilou a Si próprio tomando a condição de servo. A humilhação de Cristo é o
seu aniquilamento; e o seu aniquilamento não é senão o acto de assumir a condição de servo.
Portanto, Cristo, permanecendo na sua condição divina, é o Unigénito de Deus,
a quem oferecemos como ao Pai os sacrifícios; ao tomar a condição de servo, tornou-
-Se sacerdote, para que, por meio d’Ele, possamos oferecer um sacrifício vivo, santo,
agradável a Deus. Não poderíamos oferecer o sacrifício a Deus, se Cristo não Se
tivesse oferecido em sacrifício por nós: é n’Ele que a natureza do género humano se
torna um sacrifício verdadeiro e salvador. De facto, quando dizemos que as nossas
orações são oferecidas por nosso Senhor, eterno Sacerdote, reconhecemos n’Ele a
verdadeira carne da nossa natureza, como diz o Apóstolo: Todo o sumo sacerdote,
escolhido de entre os homens, é constituído em favor dos homens nas suas relações
com Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados. Por isso, quando dizemos:
«vosso Filho» e acrescentamos: «que convosco vive e reina na unidade do Espírito
Santo», comemoramos a unidade de natureza que têm o Pai, o Filho e o Espírito Santo,
e proclamamos que o mesmo Senhor Jesus Cristo, que exerce em nosso favor a função
sacerdotal, é também por natureza igual ao Pai e ao Espírito Santo.
44. No próprio sacrifício do Corpo de Cristo começamos pela acção de graças 13, 4798
para mostrarmos que Cristo não nos vai ser dado, mas que já nos foi dado de verdade.
Ao darmos graças a Deus na oblação do Corpo e do Sangue de Cristo, reconheçamos
que Cristo não vai ser morto pelas nossas iniquidades, mas que já foi morto.
Reconheçamos também que não temos de ser remidos com aquele Sangue, mas que já
fomos remidos...

Contra Fabião 14
28. 12 Pareceu-te, acerca da oração pela qual no momento do sacrifício se pede a 4799
vinda do Espírito Santo, que ela indica uma vinda do Espírito àquele lugar. Ora, acerca
do Espírito Santo só poderás pensar correctamente, se não seguires o pensamento da
carne, que é inimiga de Deus...

13
In ipso sacrifício corporis Christi a gratiarum actione incipimus.
14
F ULGÊNCIO DE R USPAS , Contra Fabianum (=PL 65, 749-834; CCL 91 A; cf. LH, IV).
1176 SÉCULO VI

13 De facto, se o Espírito Santo habita sempre nos que adoram a Deus com
rectidão, como pedem eles que lhes seja enviado? A verdade é que não assistiriam15
dignamente ao sacrifício, se não tivessem em si mesmos o Espírito Santo...
14 Como pedem então que lhes seja enviado Aquele que eles sabem que lhes foi
dado por Deus e que permanece sempre neles? Será que, antes de os homens santos se
porem a orar, o Espírito Santo repousa neles e que, ao sentir que eles vão orar, se vai
imediatamente embora? Se assim fosse, era melhor que os homens santos nunca orassem
e tivessem continuamente em si o Espírito Santo... Quem é que, em seu perfeito juízo,
dirá que aquele que ora no Espírito não tem o Espírito?
15 Ou será que tu acreditas que, no momento em que se oferece o sacrifício, o
Espírito Santo está naqueles que oram, mas não está no próprio lugar em que se coloca
o sacrifício? Haverá alguém que pense assim, a não ser que tenha perdido a razão? Ou
quem entenderá a vinda do Espírito Santo de maneira localizada, senão aquele que,
possuído por pensamentos carnais e, por isso, privado de todo o pensamento espiritual,
quer pensar as coisas divinas como pensa as humanas, e pensa acerca do Espírito de
Deus, que enche toda a terra, como se pode pensar do espírito humano ou angélico?...
16 Quando oferecemos o nosso sacrifício, cumprimos o que o nosso Salvador
nos mandou fazer, segundo o testemunho do Apóstolo: O Senhor Jesus, na noite em
que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: Isto é o meu
Corpo, entregue por vós; fazei isto em memória de Mim. De igual modo, no fim da
Ceia, tomou o cálice e disse: Este cálice é a nova Aliança no meu Sangue; todas
as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de Mim. Com efeito, todas as vezes
que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor
até que Ele venha16. Portanto, o sacrifício oferece-se para anunciar a morte do Senhor
e celebrar o memorial d’Aquele que deu a sua vida por nós. Ele mesmo diz: Ninguém
tem maior amor do que Aquele que dá a vida pelos seus amigos.
17 Cristo morreu por nosso amor; e é por isso que, ao celebrarmos no sacrifício o
memorial da sua morte, invocamos a vinda do Espírito Santo para que derrame sobre
nós o dom do amor. Com esta oração, pedimos ardentemente aquele mesmo amor que
levou Cristo a morrer crucificado, a fim de que, pela graça do Espírito Santo, também
nós possamos ser crucificados para o mundo e o mundo para nós. E, deste modo,
imitando a morte de nosso Senhor, assim como Cristo morreu para o pecado de uma
vez para sempre e a sua vida é uma vida para Deus17, também nós, movidos pelo
dom do seu amor, vivamos uma vida nova, morrendo para o pecado e vivendo para Deus.
18 O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo,
que nos foi dado18, e a participação no Corpo e Sangue do Senhor, ao comermos o seu
pão e bebermos o seu cálice, sugere-nos realmente que morramos para o mundo e
conservemos a nossa vida escondida com Cristo em Deus e crucifiquemos a nossa
carne com seus vícios e concupiscências.
19 Assim, todos os fiéis que amam a Deus e ao próximo, embora não bebam o
cálice da paixão corporal, bebem, no entanto, o cálice do amor do Senhor. Inebriados
nesse cálice, mortificam os seus membros terrenos e, revestidos do Senhor Jesus
Cristo, não se prendem aos desejos da carne nem se fixam no que se vê, mas no que não

15
Digne non assisterent. Começa a aparecer a ideia de assistir, em vez de participar, como também, ao longo
de toda a obra de S. Fulgêncio, a palavra sacrificium já substituiu quase por completo a expressão santos
mistérios, tão do agrado dos Padres da Igreja.
16
1 Cor 11, 23-26.
17
Rom 6, 10.
18
Rom 5, 5.
FULGÊNCIO DE RUSPAS 1177

se vê. Assim se bebe o cálice do Senhor, vivendo na divina caridade, sem a qual, ainda
que alguém entregasse o corpo às chamas, de nada lhe serviria. Mas, com o dom da
caridade, chegamos a transformar-nos realmente naquilo mesmo que sacramentalmente
celebramos no sacrifício...
24 Portanto, a santa Igreja, ao pedir no sacrifício do Corpo e Sangue de Cristo
que lhe seja enviado o Espírito Santo, pede certamente o dom da caridade, com o qual
possa guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz...
25 O Espírito Santo, por conseguinte, santifica o sacrifício da Igreja católica, e,
por isso, o povo cristão permanece na fé e na caridade, enquanto cada um dos fiéis,
pelo dom do Espírito Santo, come e bebe dignamente o Corpo e Sangue do Senhor,
porque tem rectidão de fé acerca de Deus e, vivendo bem, não abandona a unidade do
corpo da Igreja...

A fé de Pedro 19
22. 62 Os sacrifícios das vítimas materiais, que a própria Santíssima Trindade, Deus 4800
único do Antigo e Novo Testamento, tinha ordenado a nossos pais, significavam já a
oblação agradabilíssima daquele sacrifício em que o Filho de Deus Se havia de oferecer
misericordiosamente por nós.
Na verdade, segundo a palavra do Apóstolo, Cristo ofereceu-Se a Si mesmo por
nós, como sacrifício e vítima agradável a Deus. Ele é o verdadeiro Deus e o verdadeiro
sumo sacerdote, que entrou de uma vez para sempre no Santuário..., com o seu próprio
sangue...
Ele é, portanto, Aquele que por Si só ofereceu tudo o que sabia ser necessário
para a nossa redenção; Ele é ao mesmo tempo sacerdote e sacrifício, Deus e templo: o
sacerdote por meio do qual somos reconciliados, o sacrifício que nos reconcilia, o templo
em que somos reconciliados, Deus com quem nos reconciliamos. Todavia, pela sua
condição de servo, só Ele é o sacerdote, o sacrifício e o templo; mas, na sua condição
divina, é Deus com o Pai e com o Espírito Santo.
Acredita, pois, firmemente, sem admitir a menor dúvida, que o próprio Filho
Unigénito de Deus, o Verbo feito carne, Se ofereceu por nós como sacrifício e vítima
agradável a Deus. A Ele, na unidade do Pai e do Espírito Santo, sacrificavam animais os
Patriarcas, os Profetas e os sacerdotes no tempo do Antigo Testamento; e agora, no
tempo do Novo Testamento, é a Ele, na unidade do Pai e do Espírito Santo, com os quais
é um só Deus, que a Igreja católica oferece incessantemente em toda a terra o sacrifício
do pão e do vinho na fé e na caridade.
Antigamente, aquelas vítimas animais simbolizavam a carne e o sangue de Cristo:
a carne que Ele, livre de todo o pecado, havia de oferecer pelos nossos pecados, e o
sangue que Ele havia de derramar para remissão dos nossos pecados. Agora, este
sacrifício é acção de graças e memorial da carne de Cristo oferecida por nós e do
sangue que o mesmo Deus derramou por nós...

19
F ULGÊNCIO DE RUSPAS , De fide ad Petrum (=PL 40, 753-780; 65, 671 s; CCL 91 A; cf. LH, II).
1178 SÉCULO VI

Cesário de Arles

Sermões 1

SERMÃO 1 2

4801 1. Se eu me pusesse a considerar como censor escrupuloso as minhas negligências


culpáveis, as minhas maneiras rústicas e as minhas limitações, talvez não ousasse, nas
paróquias distantes, convidar os camponeses3 a fazer obras boas, por me lembrar
daquilo que está escrito: Tira primeiro a trave que tens nos teus olhos, e então verás
bem para tirar a palha dos olhos do teu irmão... Mas, se é certo que estas palavras
me metem medo... conheço outra ainda mais importante, fardo intolerável que pesa
sobre a minha cabeça, que é aquela que diz: Servo mau, porque não depositaste o
meu dinheiro no banco...? Reflectindo nisso, tenho medo de me tornar duplamente
culpado, se me recusar quer a dar conselhos quer a pô-los em prática.
4802 2. Não venho dar-vos conselhos como mestre que ensina um aluno..., mas antes
como um inferior que se dirige ao superior..., para vos pedir que continueis a fazer,
ainda com mais zelo, aquilo que, graças a Deus, estamos persuadidos que sempre
fizestes: se já tendes o costume, útil e necessário à salvação das almas, duma leitura
quotidiana à vossa mesa e duma pregação na igreja, conservai-o e reforçai-o; se não o
tendes, estabelecei-o por inspiração de Cristo e zelo vosso.
4803 3. De facto, se meditarmos bem e de coração atento no grave perigo e no pesado
fardo que pesa sobre a cabeça de todos os bispos4... não deixaremos de sentir grande temor...
4804 4. Os pontífices são chamados vigilantes5, por estarem colocados num lugar mais
elevado e como que no alto da cidadela, isto é, a Igreja. Estabelecidos no altar, devem
preocupar-se com a cidade e o campo do Senhor, isto é, com toda a Igreja, e não guardar
apenas os espaços das grandes portas...
4805 6. O bispo só deve fazer por si próprio aquilo que não pode ser feito sem ele. Com
efeito, para cultivar os campos, aí trabalhar e praticar a cultura que é necessária às
terras, se quisermos procurar, encontraremos jovens leigos ou mesmo clérigos, aptos
para este trabalho; deste modo, entregar-nos-emos sem cessar àquilo para que fomos
ordenados...
4806 7. Mas alguém dirá: Então não devemos preocupar-nos com a administração das
igrejas? Deveis ter cuidado com os bens temporais, mas não demasiado, e devemos
ordenar esses bens de tal modo que essa gestão não venha diminuir nem suprimir a
nossa preocupação pelas almas...
4807 12. Talvez alguém me diga: Não sou eloquente e, por isso, não sei tirar nada das
santas Escrituras. Se assim é, Deus não nos pede o que não podemos fazer... Mas esse
poderá, sem qualquer dúvida, se quiser, repreender os ébrios, corrigir os adúlteros,

1
C ESÁRIO DE A RLES, Sermones (=PL 39, 1735-2354; M ORIN , S. Caesarii opera omnia, Maredsous 1937
[CCL 103-104, 1953 2]; CSEL 21; SCh 175, 243 e 330; C. VOGEL , Paris 1966, 138-152. 158-165; cf. LH, III).
Cesário nasceu em 470, quando ia desaparecer o Império do Ocidente, e morreu em 542.
2
Este primeiro sermão é uma espécie de admonição ou conselho dirigido de maneira geral a todos os servidores
de Deus e a todos os bispos (sacerdos).
3
Rusticus.
4
Sacerdotes.
5
Speculatores.
CESÁRIO DE ARLES 1179

admoestar os orgulhosos... ou ainda ensinar que ninguém deve prestar culto às árvores,
observar os áugures, dirigir-se aos encantadores...
Quem será tão simples que não possa dizer: Vinde cedo para a igreja, trazei
oferendas que possam ser consagradas no altar, visitai os doentes...? Quem não poderá
exortar, quando se aproximam as santas solenidades, que todos devem guardar castidade
vários dias antes com a sua própria mulher, a fim de se aproximarem do altar do Senhor
com uma consciência sincera e pura?... Quem não poderá dizer que se deve oferecer às
igrejas a décima de todas as colheitas e de todas as receitas, para ser distribuída aos
pobres segundo o preceito de Deus..., que os jovens e as jovens devem conservar a
virgindade até às suas núpcias, que o Símbolo e a Oração dominical devem ser aprendidos
de cor por todos os cristãos, que se deve guardar a continência durante toda a Quaresma
e mesmo até ao fim do tempo da Páscoa?
13. Estes conselhos e muitos outros semelhantes, não sei se haverá um bispo, um 4808
presbítero ou mesmo um diácono incapaz de os pregar na igreja e de os recordar em
toda a parte...
14. Um outro ponto sobre o qual muitos de nós se deixam surpreender com muita 4809
frequência, agindo contra os cânones: qual é o bispo que não poderá dizer a si próprio
e fazer notar aos outros..., que nenhum leigo deve ser ordenado clérigo, se previamente,
durante muitos anos ou pelo menos um, não levou uma vida totalmente convertida a
Deus; que nenhum homem casado segunda vez, nenhum penitente público, nenhum
marido da mulher casada segunda vez pode receber a honra da clericatura? Além disso,
segundo o santo e muito salutar costume romano, oriental e africano, ninguém, antes
dos trinta e quatro anos deve ser ordenado, nem mesmo para o diaconado, quanto mais
para o presbiterado; ou então, quem não poderá dizer a si mesmo e aos outros com
caridade que, pelo menos, segundo o sínodo de Agde, onde se condescendeu com o mau
costume, ninguém deve ser ordenado diácono antes dos vinte e cinco anos?
15. Se eventualmente for difícil a alguns dos meus senhores bispos pregar por si 4810
mesmos, porque não introduzem eles, para bem das almas, o antigo costume dos
santos que se manteve até hoje, com tanta utilidade, nas regiões do Oriente, de mandar
ler nas igrejas, pelo ministério de presbíteros santos, as homilias dos Padres de outrora?...
Atrevo-me até a dizer, no caso de virem a faltar presbíteros capazes de realizar
este ofício, que não seria inconveniente nem indigno ordenar aos diáconos que
pronunciem as homilias dos santos Padres diante do povo. De facto, se um diácono é
digno de ler o que Cristo disse, não se deve julgar indigno que ele pronuncie aquilo que
pregou santo Hilário, santo Ambrósio, santo Agostinho e os outros Padres...
SERMÃO 2 6

Levado pelo amor paternal e pela solicitude própria de todo o pastor e para 4811
responder às necessidades das paróquias, pus por escrito, neste livro, admonições7
simples que os santos presbíteros e diáconos devem recitar por ocasião das grandes
festas, diante dos fiéis confiados aos seus cuidados... Mas, se houver presbíteros e
diáconos demasiado ocupados em obrigações profanas que, por negligência, deixem de
pronunciar estes sermões diante dos fiéis, saibam que darão contas disso perante o
tribunal de Cristo... Voltai a ler com cuidado, todos os anos, do princípio ao fim, esta
colecção... E, dado que tivemos de fazer várias colecções destas simples admonições,
se não vos desagradar, podeis e deveis copiá-las, segundo os vossos meios, com letra
mais cuidada e sobre pergaminhos, e dá-las a copiar noutras paróquias... E, porque é

6
Este sermão é um simples prefácio colocado no princípio das colecções de sermões de Cesário.
7
Admonitiones são os sermões de Cesário.
1180 SÉCULO VI

preciso que por estrita obrigação de todos, não só os clérigos mas também os leigos
conheçam a fé católica, escrevemos em primeiro lugar nestas colecções esta mesma fé
católica, tal como os santos Padres a definiram8. Devemos ler com frequência a exposição
desta fé e devemos inculcá-las nos outros. E, como os nossos escribas são ainda
principiantes, se encontrardes nas palavras ou até no pensamento acrescentos ou
omissões, perdoai com caridade, rectificai como deve ser e ordenai que tudo seja
recopiado correctamente.
SERMÃO 6

4812 1. Damos graças a Deus, irmãos caríssimos, por nos ter permitido, apesar das
nossas numerosas ocupações, estar de novo diante da vossa querida e santa assembleia.
Deus, em sua bondade, sabe-o muito bem: mesmo que eu tivesse possibilidade de vir
duas ou três vezes por ano9, isso não satisfaria os meus desejos...
4813 2. Quando as noites são mais longas, haverá alguém capaz de dormir tanto que não
possa ler pessoalmente ou ouvir os outros ler a Escritura sagrada, pelo menos durante
três horas?...
4814 3. Quantos homens e mulheres do campo sabem de cor e fazem passar pelos seus
lábios diabólicas canções de amor ou cânticos obscenos! Quanto mais fácil, preferível
e útil não seria que esses camponeses estudassem o Símbolo, aprendessem, fixassem e
dissessem frequentemente a Oração dominical, algumas antífonas e os salmos cinquenta
e noventa...!
4815 7. Na santa Igreja católica há três estados10: o das virgens, o das viúvas e o das
pessoas casadas. As virgens produzem cem, as viúvas sessenta, as pessoas casadas
trinta..., mas todas serão recolhidas no celeiro celeste...
SERMÃO 7

4816 1. Cristo vos ajude, irmãos caríssimos, a acolher sempre a leitura dos textos sagrados
com um coração tão ávido e tão sedento que a vossa obediência fidelíssima nos cause
alegria espiritual. Mas, se desejais que as santas Escrituras se vos tornem doces e os
preceitos divinos vos aproveitem como convém, roubai algumas horas às ocupações
do mundo, para voltardes a ler em vossas casas as palavras divinas...
4817 2. As santas Escrituras foram-nos transmitidas, por assim dizer, como cartas vindas
da nossa pátria. Com efeito, a nossa pátria é o Paraíso: os nossos pais são os Patriarcas,
os Profetas, os Apóstolos e os Mártires; os nossos concidadãos são os Anjos; o nosso
rei é Cristo...
4818 5. Por isso, irmãos caríssimos, meditemos com sabedoria nestas coisas e, na medida
do possível, procuremos... consagrar algumas horas... à oração e à leitura... Digne-Se o
Senhor conceder-nos isso, Ele que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo, Deus por
todos os séculos dos séculos. Amen11.
SERMÃO 9

4819 1. A profissão e a entrega por inteiro do Símbolo, irmãos caríssimos, é isso a fé e a


vida do cristão: a fé no presente, a vida no futuro; a fé no caminho, a vida na pátria...;
é por isso que no princípio do Símbolo vem: «Creio em Deus», e, em seguida, na

8
A seguir a este prefácio vem o símbolo Quicumque.
9
Este sermão é um dos muitos pronunciados por Cesário nas suas viagens pastorais.
10
Professiones.
11
A maior parte dos sermões termina por uma conclusão semelhante a esta.
CESÁRIO DE ARLES 1181

conclusão do Símbolo: «a vida eterna». Assim, irmãos caríssimos, o Símbolo é como


que um belo edifício bem construído: o fundamento é muito sólido e a cúpula é imortal...
Aquele que crê compreender melhor pela inteligência do que pela fé os santos mistérios,
age como um homem que abandonasse o bom caminho para tomar um caminho de través...
SERMÃO 12

1. Fé vem de fit («está feito»), isto é, do facto de ela «se fazer». Com efeito, nela 4820
reside a solidez não só de todas as coisas divinas, mas também de todas as coisas
humanas. Por isso, se alguém disser, seja em que termos for, mesmo com muitos
juramentos, que tem fé, mas não quiser realizar por obras aquilo em que diz acreditar
por palavras, não tem fé, porque fé vem de fit («está feito»), como já disse.
2. Uma vez que fé recebe o seu nome de fit, como disse mais acima, é em vão que 4821
dizes teres fé, se não quiseres realizar por obras o que prometes por palavras. Isso não
é de modo nenhum fé.
3. Embora o homem deva fazer por obras, se puder, tudo aquilo que prometeu, 4822
devemos muito particularmente respeitar, com a ajuda de Deus, a primeira e mais
célebre promessa que lhe fazemos ao renascer no baptismo. Perguntam-nos no baptismo
se renunciamos ao Diabo, às suas pompas e às suas obras, e nós respondemos livremente
que estamos prontos a renunciar-lhes. E, como as crianças não o podem dizer por si
mesmas, os pais servem-lhes de garantes...
Examine cada qual a sua consciência e, se vir que foi fiel às suas promessas, se
constatar que renunciou ao Diabo e às suas pompas por palavras e sobretudos por
obras, alegre-se por ter guardado intacta a sua fé... Mas ninguém pense que a fé pode
ser destruída apenas pelos pecados capitais. Que importa que alguém seja morto com
uma espada grande ou pequena?
4. Portanto, cada um reflicta, como já foi dito, naquilo que prometeu no sacramento 4823
do baptismo e veja se violou nalgum ponto o pacto que fez com o Senhor. Na verdade,
quando lhe perguntaram: Renuncias ao Diabo, às suas pompas e às suas obras, o
sacerdote apresentou-lhe um contrato para assinar; e, quando ele respondeu: Renuncio,
escreveu a sua assinatura...
Prometemos estar prontos a renunciar ao Diabo, às suas pompas e às suas obras,
e quase ninguém ignora o que são as pompas do Diabo. Contudo, é preciso que vos
diga algumas palavras sobre um dos seus aspectos. Todos os espectáculos violentos,
sangrentos, escandalosos, são pompas do Diabo...
SERMÃO 13

1. Peço-vos, caríssimos irmãos, que reflictamos com muita atenção no seguinte: 4824
Porque somos nós cristãos e trazemos na fronte a cruz de Cristo? Na verdade, devemos
saber que não basta ter recebido o nome de cristãos, se acaso não agimos como cristãos...
De que nos serve fazer o sinal da cruz na fronte e na boca se, no interior da alma,
acumulamos pecados e faltas?...
2. Trazei oferendas dignas de ser consagradas no altar. Aquele que vive bem deve 4825
corar por ter comungado graças à oferenda de um outro. Os que podem dêem pequenos
círios ou azeite destinado às lâmpadas. Aprendei de cor o Símbolo e a Oração dominical
e ensinai-os aos vossos filhos, pois eu não sei com que cara é que pode dizer-se cristão
aquele que se descuida de aprender de cor algumas linhas do Símbolo e da Oração
dominical. Sabei que fostes instituídos garantes, diante de Deus, das crianças que
recebestes no baptismo; por isso, ensinai e corrigi sem cessar, tanto as que nasceram
de vós como as que recebestes das fontes...
1182 SÉCULO VI

4826 3. Reuni-vos na igreja em cada domingo. Com efeito, se os infelizes Judeus celebram
o sábado com tão grande devoção que, nesse dia, não se entregam a nenhum trabalho
material, quando mais os cristãos devem, no dia do Senhor, consagrar-se somente a
Deus e reunir-se na igreja para a salvação da sua alma! Quando vos reunis na igreja, orai
pelos vossos pecados... Na igreja ficai de pé, sem falar, mas escutai com paciência a
leitura dos textos sagrados... Quando surgir alguma doença, o doente deve receber o
Corpo e o Sangue de Cristo, pedir humildemente e com fé aos presbíteros o óleo
benzido e fazer com ele uma unção sobre o seu pobre corpo, para que se realize nele a
palavra da Escritura... Vede, irmãos, aqueles que, em caso de doença, recorrem à Igreja,
merecerão receber ao mesmo tempo a saúde do corpo e o perdão dos pecados.
SERMÃO 14

4827 1. A vossa fé e a vossa devoção, caríssimos irmãos, causaram-nos grande alegria.


Com efeito, quanto mais vos vemos apressados em vir à igreja, mais exultamos com
grande júbilo e damos graças a Deus por Se dignar possuir o vosso coração...
4828 2. Quando vos reunis na igreja, cada um de vós traga o que puder para ser distribuído
aos pobres...
4829 3. Quando vierdes à igreja, apresentai uma oferenda que possa ser consagrada no
altar. Há muitos fiéis pobres que apresentam com frequência oferendas na igreja... Ao
contrário, há ricos que não distribuem nada aos pobres nem apresentam oferendas nas
igrejas e que não têm vergonha de comungar da oferenda oferecida por um pobre...
4830 4. Exorto-vos novamente a que destruais todos os fetiches pagãos, onde quer que
os encontreis...
SERMÃO 16

4831 1. Devemos, caríssimos irmãos, aplicar-nos com todas as forças do nosso espírito
a descobrir e a compreender por que razão somos bons cristãos e porque levamos na
fronte a cruz de Cristo...
4832 2. Não nos basta, irmãos, ter recebido o nome de cristãos, se acaso não agimos
como cristãos... Bom cristão é aquele que, quando vem à igreja, apresenta uma oferenda
para colocar no altar e oferece aos pobres, segundo as suas posses, uma moeda de
prata ou um pouco de pão..., que, quando se aproxima cada grande festa, para comungar
com mais segurança permanece, vários dias antes, casto com a sua própria esposa,
para se preparar a ir até ao altar do Senhor de consciência livre e tranquila, casto de
corpo e puro de espírito, que sabe de cor o Símbolo e a Oração dominical e os ensina
aos seus filhos e filhas, para que também eles os guardem fielmente...
4833 3. Poderá acaso dizer-se cristão aquele que só vem, de tempos a tempos, à igreja e
que, assim que chega, não fica de pé a orar pelos seus pecados, mas aí discute causas
ou excita querelas e discussões...? Os que agem desse modo, sejam homens ou mulheres,
recebem o nome de cristãos e o sacramento do baptismo não como um remédio, mas
para sua condenação; e, se não fizerem penitência, perecerão eternamente...
SERMÃO 19

4834 3. Quando houver festas solenes, permanecei castos vários dias antes, mesmo com
a vossa própria mulher, para poderdes aproximar-vos do altar do Senhor com uma
consciência tranquila.
Quando vierdes à igreja, não provoqueis rixas nem escândalos. Não bebais até à
embriaguez, não canteis canções inconvenientes ao dançar, porque não é justo que da
CESÁRIO DE ARLES 1183

vossa boca, onde entrou a Eucaristia de Cristo, saiam palavras diabólicas. Na igreja,
mantende-vos de pé e suplicai com fé pelos vossos pecados; acolhei em silêncio e sem
vos mexerdes as leituras que vos são feitas dos textos sagrados. Não faleis na igreja...
Em primeiro lugar, entregai às vossas igrejas a décima de todos os vossos mais pequenos
lucros, porque é justo que Deus, que vos deu tudo, receba a décima em esmolas para os
pobres...
Antes de tudo o mais, aprendei vós próprios de cor o Símbolo e a Oração dominical
e ensinai-os a vossos filhos, porque eu não sei se deve chamar-se cristão aquele que se
descuida de aprender de cor as poucas palavras do Símbolo...
4. Quando vierdes à igreja, apresentai oferendas que possam ser consagradas no 4835
altar. Aquele que tem algo de seu e não traz nada, com que cara ousa ele comungar da
oferenda trazida por um pobre? Antes de mais respeitai os vossos sacerdotes... Ninguém
se deixe persuadir a prestar culto a um ídolo ou a beber o que foi sacrificado aos ídolos.
Aquele que é baptizado deve evitar o que é sacrilégio. Ninguém ouse tomar por mulher
a sua tia materna, a sua prima ou a irmã da sua mulher...
Ninguém recorra ou ouse interrogar, com prazer sacrílego, mágicos, adivinhos ou
encantadores, a respeito de qualquer indisposição. Ninguém traga suspenso sobre si
ou sobre os seus, filactérias ou amuletos, porque todos os que cometem esta má acção
perdem o sacramento do baptismo, se a isso não remediarem pela penitência. Ninguém
se permita observar a quinta-feira em honra de Júpiter, abstendo-se de trabalhar.
Afirmo, irmãos, que ninguém, homem ou mulher, deve jamais observar este mau costume,
para não ser contado pelo Senhor, no dia do Juízo, entre os pagãos e não entre os
cristãos, porque esses transferem de maneira sacrílega para o dia de Júpiter aquilo que
deve ser observado no dia do Senhor.
5. Sempre que apareça alguma doença a algum de vós, recorra à Igreja, receba o 4836
Corpo e o Sangue de Cristo e seja ungido pelos presbíteros com óleo benzido12. Todos
os que estão doentes peçam aos presbíteros e aos diáconos que orem sobre eles em
nome de Cristo; se fizerem isso, não só receberão a saúde do corpo, mas também o
perdão dos pecados. Com efeito, assim Se dignou prometer o próprio Senhor pelo apóstolo
Tiago, dizendo: Alguém entre vós está doente?... Porquê matar a alma, recorrendo aos
bruxos e adivinhos..., quando podemos curar a alma e o corpo pela oração de um
presbítero e o óleo benzido?...
SERMÃO 20

2. O leitor faz-se ouvir, o sacerdote prega, o diácono pede silêncio para o ensino... 4837
4. Não demoreis, irmãos, em converter-vos ao Senhor. Na verdade, há quem prepare 4838
a sua conversão e quem a defira... Com efeito, é fácil dizer: Conheço a Deus, creio em
Deus, amo a Deus, temo a Deus, sirvo a Deus; mas não O conhece quem não crê; não
crê quem não ama; não ama quem não teme; não teme quem não serve; não serve quem
despreza com frequência...
SERMÃO 22

4. Mas alguém dirá: Se (a raiz) está plantada no coração dos fiéis, dá a impressão de 4839
que os fiéis ainda estão no mundo; como é então que tal raiz está plantada no Céu?
Queres saber como? Porque os corações dos fiéis são celestes, dado que se elevam
todos os dias para o Céu, quando o sacerdote diz: «Corações ao alto» e todos respondem:
«Eles estão no Senhor»...

12
O texto deve ter sido retocado. No tempo de Cesário eram os próprios cristãos que se ungiam a si mesmos
com o óleo benzido. Mais tarde, isso será reservado aos presbíteros.
1184 SÉCULO VI

SERMÃO 33

4840 1. Graças à bondade de Cristo, irmãos caríssimos, já estão próximos os dias em que
se fazem as ceifas. Por isso, enquanto damos graças a Deus pelo que nos deu, reflictamos
no dízimo que devemos oferecer...
4841 4. Uma vez que desejamos celebrar com alegria o nascimento de São João Baptista,
ao aproximar-se esta solenidade tão famosa... todos devem guardar, vários dias antes,
uma castidade e honestidade sem falha, a fim de poderem celebrar na alegria esta festa
e merecerem avançar para o altar do Senhor de consciência livre e purificada...
SERMÃO 34

4842 2. A ordem justa e legítima das esmolas é esta: assegura primeiro a ti e aos teus
alimentação e vestuário suficiente e decente...; em seguida..., se houver pobres entre os
teus familiares, dá-lhes com generosidade tudo o que puderes; em seguida, não deixes
os teus servos e as tuas servas passar fome...; e, quando o sacerdote clamar: «Corações
ao alto», poderemos responder com segurança e verdade: «Eles estão no Senhor»...
SERMÃO 35

4843 1. Sempre que celebramos alguma solenidade, irmãos caríssimos, e que nos
preparamos para comungar, sabeis de quem nos vamos aproximar, e que, antes de nos
aproximarmos, iremos dizer a Deus na Oração: Perdoai-nos as nossas ofensas, assim
como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...
SERMÃO 42

4844 3. Os homens e as mulheres foram igualmente resgatados pelo Sangue de Cristo,


ambos foram lavados no banho sagrado do baptismo, ambos se aproximam do altar do
Senhor para aí receber juntos o seu Corpo e o seu Sangue e, diante de Deus, não há
diferença entre o masculino e o feminino: Deus não faz acepção de pessoas. Por isso,
o que não é permitido às mulheres também nunca foi nem será permitido aos homens...
4845 4. Quanto a mim, com liberdade de consciência, proclamo e, ao mesmo tempo, dou
testemunho de que todo o homem casado que comete adultérios, a não ser que uma
longa penitência e grandes esmolas venham em seu socorro e que renuncie ao seu
próprio pecado, perecerá eternamente se morrer de repente, como acontece com
frequência, e que de nada lhe servirá o nome de cristão, pois não só não fez o que o
Senhor ordenou, mas até mesmo perpetrou o que Cristo proibiu...
4846 5. Mas ainda há pior: muitos são aqueles que têm concubinas antes de se casar; e,
porque essa é a situação de um grande número, o bispo não pode excomungá-los a
todos. Tolera-os, com gemidos e suspiros, e aguarda, em esperança, que o Senhor lhes
conceda, um dia..., a graça de fazerem uma penitência frutuosa, pela qual possam
chegar ao perdão.
Uma vez que este mal passou de tal modo para os costumes que não se considera
pecado, eis que diante de Deus e dos seus Anjos declaro que se alguém vive com uma
concubina, quer antes, quer depois do seu casamento, comete adultério13, e adultério
tanto mais grave, quanto... ele o comete publicamente, sem nenhuma vergonha, quase
legalmente...
Com efeito, trata-se de um pecado tão grave que em Roma, se aquele que quer
casar reconhece que não está virgem, não ousa de modo nenhum vir receber a bênção

13
Cesário toma aqui a palavra adultério no sentido amplo de união fora do matrimónio.
CESÁRIO DE ARLES 1185

nupcial 14. Vede então como é duro não ser digno de receber a bênção com aquela que
alguém escolheu para se casar.
SERMÃO 43 15

1. Quando vos recomendamos a castidade, irmãos caríssimos, como convém e é 4847


necessário, talvez alguns jovens e os homens em plena maturidade me respondam:
«Ainda somos novos, não podemos viver em continência»... Digam-nos esses que
declaram ser incapazes de viver castamente se são casados ou não. Se são casados...,
porque não guardam eles às suas esposas a fidelidade que exigem delas?... Porque exige
o marido que a sua esposa lute vitoriosa contra esta fera cruel que é a luxúria, quando
ele próprio cai vencido ao primeiro assalto do desejo?
2. Talvez os celibatários pensem encontrar aqui uma desculpa: não sendo casados, 4848
não têm ninguém a quem permanecer fiéis e, portanto, não têm que guardar continência...
Gostaria de saber se os celibatários que, antes de se casar, não tiveram receio nem
vergonha de ter relações sexuais, não se importariam que as suas esposas fossem
desfloradas por outros antes dos seus casamentos? Ninguém o aceitaria com gosto;
então porque não guarda o marido à sua esposa a fidelidade que ela espera dele? Porque
deseja ele desposar uma virgem, quando ele próprio está corrompido?...
3. Alguns pensam talvez que é proibido às mulheres cometer a impureza antes do 4849
casamento, mas que os homens o podem fazer. E o que ainda é pior, esses actos
delituosos, muito graves, são cometidos por um grande número de homens, sem qualquer
receio do Senhor, e tornaram-se de tal modo habituais, que passam por coisas mínimas
e leves, sem qualquer gravidade. Ora, segundo a fé católica, o que é proibido às mulheres
não é permitido aos homens. Homens e mulheres foram resgatados pelo mesmo preço,
isto é, pelo precioso Sangue de Cristo; são chamados à mesma fé e pertencem ao corpo
duma mesma Igreja. Uns e outros receberam a graça do baptismo e ambos se aproximaram
do altar para receber o Corpo e o Sangue de Cristo, os mesmos mandamentos foram
dados a um e ao outro sexo. Sendo assim, por que razão crêem os homens poder
cometer impunemente as acções proibidas aos dois sexos? Saibam os culpados, que se
não se corrigirem e submeterem a uma penitência expiatória, arderão no fogo eterno,
sem qualquer remédio possível.
4. Como qualificar a maneira de agir de muitos homens que, antes dos seus 4850
casamentos, não se envergonham de tomar concubinas, que abandonam alguns anos
depois para tomar esposas legítimas? Antes de casar, pensam em enriquecer com
riquezas e ganhos injustos, provenientes de roubos e de enganos, para desposar em
seguida, e contra a razão, mulheres mais bem nascidas do que eles e mais ricas... Diante
de Deus e dos seus Anjos vos afirmo solenemente que Deus sempre proibiu esses
maus costumes e nunca os aceitou; principalmente depois do cristianismo, nunca foi
permitido aos homens e nunca o será ter concubinas. Muitos de entre eles, o que é
ainda pior, fazem isso com o apoio do direito civil, mas não certamente com o apoio do
Céu... Assim, repito-o claramente, aquele que, antes do casamento, tem concubina,
comete um pecado maior do que aquele que tem relações sexuais. Com efeito, o que
tem relações sexuais esforça-se por manter escondida a sua má acção, enquanto o
concubinário pensa que o seu modo de agir detestável pode mostrar-se impunemente
diante de toda a gente.

14
Os Statuta ecclesiae antiqua mencionam já esta bênção, subentendendo que os dois esposos eram virgens:
«Sponsus et sponsa, cum bendicendi sunt a sacerdote, a parentibus suis vel a paranymphis offerantur.
Qui cum benedictionem acceperint, eadem nocte, pro reverentia ipsius benedictionis, in virginitate
maneant» (n. 101). Cesário fixou esta bênção três dias antes do casamento: «Statuit etiam regulariter, ut
nubentes ob reverentiam benedictionis ante triduum coniunctionis eorum eis benedictio in basilica
daretur» (Vita Cesarii I, 59).
15
Cf. C. V OGEL , Paris 1966, 138-143.
1186 SÉCULO VI

4851 5. Os fiéis que não se sujaram com este pecado talvez me digam: «Porque é que
então os concubinários não são afastados da comunhão»? Pois bem, os concubinários
não são castigados pelos sacerdotes pela simples razão de que são muito numerosos.
Se fossem apenas dois, três, quatro ou cinco fiéis que cometessem esse crime, poder-se-ia
e dever-se-ia não só afastá-los da comunhão, mas também proibi-los de falar e de
participar nas refeições dos outros cristãos, como diz o Apóstolo: Nem sequer comais
com pessoas dessa espécie 16. O seu grande número, como dissemos, impede os
sacerdotes de castigar com rigor. Os sacerdotes devotados fazem o que podem e, com
toda a caridade, rezam, gemem, indignam-se, a fim de reconduzir um dia, pelo seu
ensinamento e as suas orações, à penitência aqueles a quem são incapazes de castigar
com rigor, dado o seu grande número...
4852 6. Meus irmãos, se os celibatários que se entregam à impureza ou que têm concubinas
se encontram em situação tão culpável, em que pensam os infelizes que, sendo casados,
cometem o adultério e não crêem no juízo de Deus, cegos pela sua demência e
inconscientes do seu infeliz estado...? Em público, diante dos homens, têm cuidado de
esconder os seus adultérios; em segredo, diante de Deus, não têm medo nenhum de os
cometer...
4853 7. Talvez algum de vós me diga: «Por causa do meu comércio, ou pelo serviço do
rei, vivo separado da minha mulher tantos meses ou tantos anos, como posso eu
guardar castidade nessas condições»? Poderíamos responder muito simplesmente: «Volta
para junto da tua esposa». O comerciante responder-me-á que, se ele abandona o seu
negócio, não terá mais de que viver; o soldado, que se ele foge da tropa, incorrerá na
cólera do rei. Aos dois eu direi, e com todo o direito: «Se por medo do rei não te juntas
à tua esposa, não te aproximes de outra mulher, por temor de Deus»...
4854 8. Não é raro ver um soldado corajoso matar em combate mais duma dezena de
inimigos e receber após a vitória uma jovem como presa de guerra; se ele se unir a ela
de maneira adúltera, matará a sua própria alma com a espada do pecado...
4855 9. Se não vos dissesse isto, caríssimos irmãos, teria de responder pelas vossas
almas no dia do Juízo. Mas, se alguém preferir irritar-se contra mim em vez de se
emendar, não poderá pelo menos defender-se com a sua ignorância diante do tribunal
do Juiz eterno...
SERMÃO 44 17

4856 1. Antes de mais guardai castidade, com a ajuda de Deus... Os jovens e as jovens
que têm intenção de se casar guardem a sua virgindade até esse dia, porque, se se
corromperem pela impudicícia antes da união legítima, é certo que chegarão ao casamento
com o corpo vivo, mas a sua alma estará morta...
4857 2. Nenhuma mulher tomará bebidas abortivas nem matará os filhos após a concepção
ou depois de nascerem. Aquela que for culpada deste crime terá de defender a sua causa
diante do tribunal de Cristo com os filhos que tiver morto. As mulheres não tomarão
também poções diabólicas para impedir a gravidez... A mulher livre que toma bebidas
anti-conceptivas quereria que as suas escravas fizessem o mesmo?... Ela deve aceitar e
criar ela própria os seus próprios filhos, qualquer que seja o número, ou dá-los a criar
a amas. Ela não pode recusar-se a conceber. Menos ainda pode matar os seus filhos
recém-nascidos, que poderiam vir a ser bons cristãos...
4858 3. Sempre que vierdes à igreja para uma solenidade qualquer e quiserdes receber os
sacramentos de Cristo, guardai castidade vários dias antes, a fim de vos aproximardes
do altar do Senhor com uma consciência pura. Guardai também castidade durante toda

16
1 Cor 5, 11.
17
Cf. C. V OGEL , Paris 1966, 143-147.
CESÁRIO DE ARLES 1187

a Quaresma e até ao fim do Tempo Pascal, para que nas festas da Páscoa vos encontreis
castos e puros. O bom cristão, não só guarda castidade vários dias antes de comungar,
mas também não tem relações sexuais com a sua esposa sem intenção de ter filhos,
porque não se toma esposa para satisfazer o desejo pessoal, mas para ter filhos. Aliás,
os próprios contratos de casamento o estipulam: «Para procriar filhos», dizem eles...
4. Alguém objectará: «Sou jovem, não posso praticar a castidade». Não será por 4859
acaso porque comes e bebes mais do que convém? Não ocuparás tu o teu espírito com
pensamentos impudicos, não gostarás tu, sem ter vergonha, de ouvir de boa mente e
muitas vezes conversas lascivas? Começa, com a ajuda de Deus, por reprimir a tua
avidez e por pensar e falar castamente e verás que, com a ajuda de Deus, serás capaz
de permanecer casto...
5. Se depois de uma poluição involuntária não nos é permitido comungar, sem 4860
antes nos arrependermos, dar esmola e até, se a saúde o permite, jejuar, quem pode
permitir-se dizer que aquilo que fazemos acordados e voluntariamente não é um pecado?...
6. Mas tu dizes: «É um pecado, mas de pequena gravidade». Não digo que seja 4861
mortal: contudo, se o cometemos muitas vezes, sem o resgatarmos pelo jejum e a
esmola, suja a alma. Não negligencies os teus pecados por serem pequenos, mas
preocupa-te antes por serem muitos...
7. Em primeiro lugar, nos domingos e festas, nenhum marido se aproxime da sua 4862
esposa... Os filhos concebidos em relações sexuais durante o período menstrual ou nos
domingos e dias de festa nascem leprosos ou epilépticos, ou mesmo possessos do Demónio...
8. Perdoai-me, meus irmãos, se para a salvação das vossas almas abordei estes 4863
assuntos, com um certo receio e um pouco contra-vontade; mas era preciso que eu
dissesse estas coisas e que vós as ouvísseis...
SERMÃO 50

1. Bem sabeis, irmãos caríssimos, que todos os homens procuram a saúde do corpo... 4864
Devemos orar pela saúde do corpo, mas é preciso suplicar duas e muitas vezes pela
saúde da alma... Deus queira que todos corram à igreja quando o próprio corpo
enfraquece e peçam o remédio da misericórdia de Cristo; mas, o que é deplorável, é que
alguns, seja em que doença for, se metem à procura de sortilégios, interrogam arúspices
e adivinhos, recorrem aos encantadores e trazem suspensos, em si próprios, filactérias
diabólicas e caracteres.
Por vezes recebem amuletos até mesmo dos clérigos e religiosos; mas estes não
são religiosos nem clérigos: são aliados do Diabo. Vede, irmãos, peço-vos que não
aceiteis esses objectos maléficos, mesmo que sejam clérigos que vo-los ofereçam, pois
o que neles existe não é o remédio de Cristo, mas o veneno do Diabo...
De tempos a tempos, parece que as filactérias são mais eficazes e úteis, porque,
quando o Diabo toca uma alma que o consente, deixa de perseguir-lhe o corpo. Aquele
que faz filactérias, os que pedem que lhas façam e todos os que nisso consentem
demonstram que são pagãos; se não fizerem uma penitência conveniente, não podem
escapar aos castigos. Mas vós, irmãos, pedi a saúde a Cristo, que é a verdadeira luz;
recorrei à Igreja, ungi-vos com óleo benzido, recebei a Eucaristia de Cristo. Se agirdes
deste modo, recobrareis não só a saúde do corpo, mas também a da alma.
3. De pé, na igreja, não passeis o tempo em conversas ociosas. O cúmulo é que 4865
alguns homens e sobretudo mulheres falam de tal modo na igreja que eles próprios não
ouvem a palavra de Deus nem permitem que os outros a ouçam...
Quanto aos filhos que recebeis no baptismo, sabei que vos fizestes seus garantes
junto de Deus, pelo que deveis repreendê-los e ensiná-los sempre, a fim de que se
esforcem por observar o que diz respeito à justiça, à castidade, à sobriedade e à misericórdia...
1188 SÉCULO VI

SERMÃO 51

4866 1. Alguns homens e mulheres, irmãos caríssimos, quando vêem que o seu casamento
fica sem filhos, costumam afligir-se exageradamente e, o que ainda é pior, chegam a
sucumbir à tentação. Para terem filhos, entregam-se não a Deus, mas a não sei que
medicamentos sacrílegos... Se alguém, eventualmente enganado por algum amigo do
Diabo, cometeu semelhante coisa, deve fazer penitência com grande arrependimento...
SERMÃO 52

4867 5. Quando os filhos de certas mulheres são incomodados por diversas tentações ou
doenças, as mães, em lágrimas, correm esbaforidas; e o pior é que não procuram
remédio junto da Igreja, nem junto do autor da salvação, nem reclamam a Eucaristia de
Cristo. O que elas deveriam, como está escrito, era ungi-los com óleo benzido pelos
presbíteros e pôr toda a sua esperança em Deus. Mas o que fazem é o contrário, e, por
isso, ao procurarem a saúde do corpo, o que encontram é a morte da alma...
SERMÃO 53

4868 1. É-nos muito agradável, irmãos caríssimos, e damos particulares graças a Deus,
ver que sois fiéis em vir à igreja. Na verdade, convém e é útil que os cristãos corram
para a sua mãe Igreja como bons filhos, com grande desejo e verdadeira piedade. Mas,
ao mesmo tempo que nos alegramos, irmãos caríssimos, ao ver-vos correr fielmente
para a igreja, também nos entristecemos e nos lamentamos por sabermos que alguns de
entre vós vão assistir com frequência ao antigo culto dos ídolos, como fazem os pagãos
sem Deus e sem a graça do baptismo.
Ouvimos dizer que alguns de entre vós prestam culto às árvores, rezam junto das
fontes, observam os áugures diabólicos; temos acerca disso uma tal dor na nossa alma
que não podemos receber qualquer consolação. Efectivamente, o pior é que há infelizes
e miseráveis que não só não querem destruir os templos pagãos, mas até mesmo nem
se envergonham de reconstruir os que foram destruídos. E, se alguém, pensando em
Deus, pretende queimar as árvores da superstição ou partir e destruir os altares
diabólicos, zangam-se, ficam loucos e inflamam-se com extremo furor, de tal modo que
chegam ao ponto de bater naqueles que, por amor de Deus, se esforçam por deitar
abaixo os ídolos sacrílegos e nem sequer hesitam em dar-lhes a morte...
SERMÃO 54

4869 1. Bem sabeis, irmãos caríssimos, que vos tenho suplicado com frequência e também
advertido e conjurado a que não deveis entregar-vos à observância dos costumes
sacrílegos dos pagãos; mas, de acordo com tudo aquilo que chega até mim pelo relato
de muitos, a nossa exortação teve pouco efeito junto de alguns... Pela minha parte
tenho-vos exortado e conjurado uma e muitas vezes, a fim de que nenhum de vós
frequente magos, adivinhos e aqueles que fazem sortilégios, nem tão pouco os
interrogue seja por que causa ou doença for. Ninguém recorra para si a encantadores...
Do mesmo modo, não observeis os áugures e, ao partirdes de viagem, não leveis em
conta o canto de certos pássaros nem tenhais a audácia de anunciar adivinhações
diabólicas segundo o seu canto... Não presteis atenção nem deis sentido sacrílego e
também ridículo aos espirros, mas, sempre que for necessário ir depressa a qualquer
lugar, fazei o sinal da cruz em nome de Cristo, dizei com fé o Símbolo e a Oração
dominical e ponde-vos a caminho, certos da ajuda de Deus.
CESÁRIO DE ARLES 1189

SERMÃO 55

1. É grande alegria para mim, caríssimos irmãos, e dou graças a Deus, porque vos 4870
reunis na igreja por ocasião das santas festas e por piedosa devoção; mas, apesar de
nos alegrarmos e darmos graças a Deus pela vossa devoção, há, contudo, muitos cuja
perda nos entristece grandemente. Falo daqueles que, ao virem à igreja, mais desejam
discutir do que orar. Em vez de virem à igreja para acolher as leituras divinas, com
ouvidos atentos e grande piedade, põem o seu zelo em discutir lá fora processos e em
se atacar com diversas calúnias. Por vezes até, o que é pior, alguns inflamam-se com
grande cólera e disputam com enorme violência, lançando-se mutuamente e de maneira
vergonhosa injúrias e acusações. E não é raro que dêem uns aos outros murros e
pontapés. Mais valia que tais pessoas não viessem à igreja... Mesmo que venham à
igreja com um pecado pequeno, esses homens deixam a igreja com pecados numerosos
e graves. É por isso que, apesar da minha alma se alegrar com a vossa devoção, vos
peço, no entanto, a todos vós que sois honestos e sóbrios..., que me perdoeis e aceiteis
com paciência, porque tenho necessidade de repreender esses homens negligentes e
tíbios, que vêm a uma festa para se ocupar de conversas inúteis, e não para acolher
num coração fiel, na igreja, as leituras divinas...
4. Quando vierdes à igreja, não vos ocupeis de coisas com as quais podeis fazer 4871
mais pecados... Quando vierdes a uma festa ou à missa, escutai, de pé, na igreja, com
fé e alegria, as leituras divinas; guardai na memória aquilo que escutais e, com a ajuda
de Deus, esforçai-vos por cumpri-lo. Na igreja, não empregueis o tempo em conversas
inúteis, não faleis uns com os outros. Na verdade, há muitos e em particular mulheres
que, na igreja, conversam tão bem, falam tão bem, que elas próprias não ouvem as
leituras divinas nem permitem que os outros as escutem...
5. Quando pregamos deste modo, talvez alguns se voltem contra nós dizendo: Os 4872
próprios pregadores se esquecem de cumprir aquilo que pregam; os próprios bispos 18,
presbíteros e diáconos cometem uma multidão de coisas semelhantes. E, de facto,
irmãos, por vezes isso é verdade; e, pior ainda, até há clérigos que têm o costume de se
embriagar... Mas será que todos devem ser condenados por haver alguns que são
maus?...
SERMÃO 56 19

2. Examinemos a nossa consciência... e, se nos sentimos ainda dominados por 4873


crimes ou pecados mortais, não purificados pelas orações e pelas esmolas, apressemo-nos
a entrar no porto da penitência...
3. Quando vos convidamos a todos, sem distinção, à penitência, talvez alguém diga 4874
a si próprio: «Ainda sou jovem, tenho esposa, como poderei cortar o cabelo e tomar o
hábito de penitente»? Nós não queremos dizer isso, caríssimos irmãos; não
preconizamos que as pessoas ainda jovens, unidas em matrimónio, devam mudar de
vestuário (entrando em penitência), mas sim de costumes. Que prejuízo adviria para
um homem casado corrigir a sua maneira de viver dissoluta e levar uma vida digna e
honesta, curar as suas feridas causadas pelos seus pecados, dando esmolas, jejuando e
orando? Será que uma conversão sincera, mesmo sem mudar de vestes, não basta? As
vestes de penitente, por si sós e sem boas obras, não só não constituem um remédio,
mas arrastam consigo o justo juízo de Deus. Convertamo-nos, portanto, ao bem,
enquanto temos à nossa disposição os meios para o fazer...

18
Sacerdotes.
19
Cf. C. V OGEL , Paris 1966, 147-149.
1190 SÉCULO VI

SERMÃO 59

4875 1. Em todas as Escrituras divinas, irmãos caríssimos, somos advertidos, para nosso
bem e salvação, a confessar continuamente os nossos pecados com humildade, não só
a Deus, mas também a homens santos e tementes a Deus20. É assim que o Espírito
Santo nos exorta pela boca do apóstolo Tiago: Confessai mutuamente os vossos pecados
e orai uns pelos outros, para serdes salvos21... Se Deus quer que confessemos os
nossos pecados, não é porque Ele próprio os não possa conhecer, mas porque o Diabo
deseja ter algo a imputar-nos diante do tribunal do Juiz eterno... Mas o nosso Deus,
que é bom e misericordioso, quer que os confessemos neste mundo, para não sermos
depois confundidos por eles no mundo futuro. De facto, se nos confessamos, Ele
mostra-Se clemente; se nos reconhecemos culpados, Ele perdoa...
4876 4. Deus estava pronto a conceder-te o perdão se, pela tua confissão, Lhe abrisses,
por assim dizer, o coração; tu desculpas-te, fechas o teu coração, encerras o pecado,
excluis o perdão do pecado...
4877 5. Deus cura-te; confessa apenas a tua ferida... Serás curado, se te mostrares ao
médico; não é que Ele não veja, se te esconderes, mas porque a confissão é o começo da cura.
4878 7. Confessemos os nossos pecados, não nos desculpemos. Foste tu que agiste, és
tu que és culpado; foste tu que confessaste, és tu que és perdoado. Mas tu dizes: não,
não fui eu; enquanto pretenderes negar coisas verdadeiras, o teu pecado permanece em
ti, és culpado de pecado... Deste pecado nos livre o Senhor, Ele que vive e reina com o
Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amen.
SERMÃO 60 22

4879 1. Muitos dos nossos irmãos e dos nossos filhos estão preocupados com saber se o
homem doente, quando recebe a penitência e morre imediatamente depois, pode chegar
ao perdão completo. Esta questão tem suscitado discussões muito vivas. Uns dizem que
ao pecador que recebe a penitência nestas condições está assegurado o perdão completo,
e outros afirmam que uma tal penitência tem pouco valor. Vou tentar explicar-vos, com
brevidade, de acordo com o pensamento dos santos Padres, o que deve pensar-se sobre
isso.
Ninguém se enganará admitindo que se pode chegar de três maneiras à penitência
que se recebe no leito de morte23. A primeira maneira, de longe a melhor, é esta: o
cristão, ou não comete pecados mortais durante a sua vida ou, se os comete, faz
penitência, resgata-os com boas obras e não cai de novo em pecado; paga o dízimo de
todos os seus bens, expia as faltas veniais e quotidianas e pratica a caridade não só
para com os amigos, mas também para com os inimigos. Aquele que cumpre fielmente
este programa deixará este mundo em excelentes condições, mesmo que não receba a
penitência, porque sempre fez penitência fiel e eficazmente. Se, no momento de morrer,
receber a penitência e tornar Cristo herdeiro dos seus bens com os seus próprios
filhos, acreditamos que não só obterá a remissão dos pecados, mas também um aumento
de recompensas eternas.
4880 2. A segunda maneira de chegar àquela penitência apresenta-se assim. Alguém
cometeu durante a sua vida não apenas faltas ligeiras, mas também faltas graves; no

20
Não se trata da confissão sacramental, que em Cesário parece sempre ligada à penitência canónica e à
reconciliação dos doentes e que precisa da intervenção de um sacerdote. Neste sermão, o bispo preconiza
simplesmente um gesto de ascese, bem conhecido dos monges orientais, que consistia em abrir a alma a
«homens santos», para deles receber consolação e aconselhamento espiritual.
21
Tg 5, 16.
22
Cf. C. V OGEL , Paris 1966, 149-152.
23
Subitaneam paenitentiam.
CESÁRIO DE ARLES 1191

entanto, agiu mais por ignorância do que por esperança enganadora de receber a penitência
na última hora, e não se deixou arrastar para o pecado por esta razão. No momento de
passar da vida à morte, ele pede a penitência com grande humildade, com contrição
verdadeira, chorando e gemendo; toma, além disso, a resolução de, em caso de cura,
fazer penitência salutar e sincera durante toda a sua vida, com todas as suas forças;
restituirá integralmente tudo aquilo de que se tinha apropriado por fraude, entregará, de
acordo com a palavra do Profeta, os objectos que roubou e perdoará de todo o coração
aos seus inimigos. Estabelecerá Cristo, juntamente com os seus filhos, como herdeiro
da sua fortuna e, mesmo durante a sua doença, na medida do possível, dará ordem de
distribuir grandes esmolas. Podemos e devemos acreditar que, se o moribundo agir com
humildade e arrependimento, o Senhor lhe perdoará todos os seus pecados...
3. A terceira forma de chegar à penitência é esta. Alguém, depois de uma vida de 4881
pecados, espera o último momento para pedir a penitência; leva uma vida pecadora na
vã esperança de que, pela penitência a receber no momento da sua morte, todas as
faltas lhe serão perdoadas. Mas, depois de receber a penitência no leito de morte,
negligencia restituir aquilo de que se apropriou injustamente e perdoar aos seus inimigos.
Não toma a resolução de fazer penitência sinceramente e com humildade, em caso de
cura, e não faz Cristo herdeiro duma parte, com os seus filhos, para resgate dos seus
pecados. Se, depois de ter recebido a penitência, este doente acabar por morrer sem ter
utilizado os meios salutares indicados, nós ignoramos, dizemo-lo com toda a clareza,
qual a sorte que lhe está reservada... Se um tal pecador me pede a penitência no fim da
vida e está ainda na idade em que a penitência pode e deve dar-se, posso conceder-lha,
mas não estou em condições de lhe garantir a sua eficácia. Só Deus, que conhece as
consciências e julga cada um segundo o seu mérito, pode saber com que disposições e
com que finalidade o nosso pecador reclamou a penitência. Pela minha parte, tenho
medo que um tal penitente não tenha em si mesmo as disposições que não manifesta
nas suas obras; é certo que não podemos ler no coração do pecador... e, por isso, sendo
essa a situação, proíbo-me de pensar que este pecador, que morreu sem ter cumprido
as boas obras enumeradas mais acima, não teve uma boa morte.
Esta é a minha opinião sobre a penitência recebida no leito da morte. Se alguém
de entre vós continua a ter dúvidas sobre as minhas palavras, desejamos vivamente que
venha procurar junto de nós explicações mais amplas.
4. Quanto a nós, irmãos caríssimos, deixemos de lado os pontos incertos e duvidosos 4882
e consagremos toda a nossa atenção a esta forma de penitência que os bons cristãos
realizam durante toda a sua vida: evitar todos os pecados mortais como uma abominação
e resgatar as faltas veniais. Se durante toda a vida realizarmos esta forma de penitência,
juntamente com boas obras, é-nos garantida uma segurança total, graças à misericórdia
de Deus. Todos os fiéis desejam que se lhes dê a penitência no leito de morte, mas
muito poucos, segundo aquilo que vemos, merecem recebê-la...
SERMÃO 61

1. Uma vez que, irmãos caríssimos, não só os pecados pequenos 24, mas também os 4883
crimes maiores25, se esforçam dia e noite por insinuar-se em nós, não esperemos por
essa penitência que se recebe no fim26, mas esforcemo-nos por fazer penitência, cada
dia, enquanto vivermos. Isso devem fazê-lo continuamente não só os leigos e os clérigos,
mas também os monges e os sacerdotes. É certo que o bispo que faz penitência todos
os dias ora por mim; mas aquele que, presumindo da sua honra e da sua santidade, é
negligente em fazer penitência, deve perguntar a si próprio quem fará súplicas por ele.

24
Minuta peccata.
25
Crimina maiora.
26
Illam paenitentiam quae in finem accipitur.
1192 SÉCULO VI

4884 4. Se aguardamos o último dia da nossa vida para fazer penitência e resgatar pecados
e crimes, devemos temer que a morte repentina surja quando menos contamos e não
nos dê tempo de chegar a esse momento súbito da penitência pelo qual queremos
esperar, cheios de confiança fatal...
SERMÃO 62

4885 1. Damo-nos conta, muitas vezes, irmãos caríssimos, de que alguns de vós se
afastam da comunhão eclesiástica, e compreendo que isso se deve à consciência de
pecados pesados e muito graves. Por isso vos aviso, bem-amados, que essa é uma
solução duplamente errada e má, porque as pessoas que assim fazem aumentam o
fardo dos seus delitos e deixam escapar o dom da salvação eterna... Por isso vos peço,
irmãos caríssimos, e vos exorto: se algum de vós, consciente dos seus crimes, se julga
indigno da comunhão eclesiástica, torne-se digno dela.
Vós dizeis: Como é que alguém se pode tornar digno dela? Como? Deixando os
erros passados e pedindo a penitência27, para que quem se tiver manchado com a
sordidez dos seus crimes seja purificado pela satisfação da penitência28. E não espere,
para pedir a penitência, o último momento da sua vida, quando já não puder fazê-la.
Uma tal segurança, caríssimos, é vã. Para um pecador é pouco ter pedido a penitência,
se a não fizer. Com efeito, a simples palavra penitência não basta para purificar dos
crimes, dado que, para satisfazer por tão grandes pecados, são precisas não só palavras,
mas também obras.
Na verdade, a penitência é dada nos últimos momentos29 apenas porque não
pode recusar-se; mas o certo é que não se pode garantir que aquele que a pediu dessa
forma mereça ser absolvido. Como pode ele fazer penitência, se está doente e chegou
ao extremo limite da sua vida? Como pode ele fazer penitência, se já não pode, por si
mesmo, oferecer nenhuma obra de satisfação? É por isso que a penitência pedida por
um ser débil também é débil; a penitência pedida apenas por um doente é doente; e
tenho medo que a penitência pedida apenas por um moribundo não esteja ela própria morta.
Por isso, irmãos caríssimos, se alguém quiser encontrar a misericórdia de Deus,
faça penitência neste mundo, enquanto tem saúde, para merecer ser salvo no mundo
que há-de vir. Com a assistência de nosso Senhor Jesus Cristo, que com o Pai e o
Espírito Santo vive e reina pelos séculos dos séculos. Amen.
SERMÃO 63

4886 1. Escutai o que tenho para vos dizer: Estou certo de que, se um homem baptizado
levou a vida sem crime (não ouso dizer sem pecado, pois quem é que não tem pecado?),
mas, se ele levou a vida sem crime, cometendo apenas esses pecados que são perdoados
diariamente na oração Àquele que diz: Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós
perdoamos a quem nos tem ofendido, se, enfim, faz o que deseja que Deus faça por ele,
quando o seu dia acabar não acabará a sua vida, mas passará da vida à vida... Quer ele
corra por sua própria vontade ao baptismo quer o receba por estar em perigo, quando
morrer irá para o Senhor, irá para o repouso.
Aquele que foi baptizado e em seguida abandonou e violou o sacramento, o
pecado afasta-o de Deus. No entanto, se fizer penitência de todo o coração, mas uma
verdadeira penitência, então Deus olha para ele...

27
Paenitentiam petat.
28
Exomologesis satisfactione mundetur. A palavra exomologesis só aparece outra vez numa homilia de
Cesário.
29
In extremis.
CESÁRIO DE ARLES 1193

Mas, se alguém chegou à última extremidade da sua doença, recebeu a penitência


e morreu imediatamente depois de reconciliado..., confesso-vos que não lhe nego o que
pede, mas não tenho a certeza de que saia daqui em boas condições. Não tenho a
certeza, não me comprometo, não digo, não vos engano, não vos prometo. O fiel que
vive bem sairá bem deste mundo. Aquele que foi baptizado na hora certa sai daqui em
segurança. Aquele que faz penitência quando tem boa saúde, se for reconciliado e a
seguir viver bem, está em segurança...
3. Mas pessoalmente não estou certo de que quem faz penitência e é reconciliado 4887
no último momento parta daqui em segurança. Posso dar a penitência, mas não posso
dar a segurança. Prestai atenção àquilo que eu digo: vou expô-lo com muita clareza, não
aconteça que alguém me compreenda mal. Acaso digo que será condenado? Não, não
digo isso; mas também não digo que será libertado... O que eu digo é que não tenho a
certeza, não prometo, não estou seguro da vontade de Deus. Queres, irmão, libertar-te
da dúvida? Queres escapar àquilo que é incerto? Faz penitência enquanto tens saúde.
Se fizeres uma verdadeira penitência enquanto tens saúde e de repente chegar o teu
último dia, corre e serás reconciliado. Se fizeres assim, estás seguro. Queres que te diga
o motivo por que estarás em segurança? Porque fizeste penitência no tempo em que
ainda podias pecar... Mas, se quiseres fazer esta penitência quando já não puderes
pecar, são os teus pecados que te deixam, não foste tu que os deixaste.
Mas tu dizes-me: Como sabes tu que Deus me concederá misericórdia e me
perdoará os pecados? É verdade o que dizes, irmão, é verdade o que dizes: como é que
eu o sei? E é por isso que te dou a penitência, porque não sei... Porque, se eu soubesse
que a penitência não tem para ti qualquer utilidade, não ta daria. Do mesmo modo, se
eu soubesse que te será útil, não te poria de sobreaviso, não te meteria medo. Das duas
coisas uma: Deus perdoar-te-á, ou não te perdoará? O que te vai acontecer, não sei;
mas dou-te um conselho: rejeita o que é incerto e escolhe o que é certo. Enquanto vives,
faz uma verdadeira penitência para que, quando chegar o juízo de Deus, não sejas
confundido por Ele, mas por Ele sejas introduzido no Reino.
SERMÃO 64

1. Sempre que acontecer, irmãos caríssimos, que alguém, vítima da fragilidade 4888
humana, caia em qualquer pecado grave ou mesmo num crime, nem deve desesperar,
porque Deus é justo, nem tranquilizar-se com excessiva confiança, porque é
misericordioso; tema antes a sua justiça, de modo a procurar a sua misericórdia; confie
na sua misericórdia, de modo a temer a sua justiça...
Se alguém disser: Quando me aproximar da velhice, então procurarei refúgio no
remédio da penitência. Por que razão presume a fragilidade humana uma tal coisa,
quando não está em seu poder um único dia da sua vida?... Temos vergonha de fazer
agora penitência por pouco tempo e não tememos sofrer sem fim os suplícios eternos...
Tu que não queres fazer penitência, descuidas-te, sem dúvida alguma, de aplicar remédios
nas tuas feridas...
2. Mesmo que não nos deixemos surpreender por crimes capitais, se juntássemos 4889
num monte as nossas faltas veniais, a que não prestamos atenção ou até consideramos
insignificantes, não sei que quantidade de boas obras seria suficiente para ultrapassar
o seu peso. Pensemos no que aconteceu, desde que chegámos ao uso da razão..., apesar
das nossas promessas baptismais...
Então, que essas faltas de que acabo de falar, e das quais homem nenhum está
livre, nos apressem... a procurar o remédio da penitência...
3. Alguém dirá: Quando eu chegar à velhice ou estiver numa situação desesperada, 4890
então pedirei a penitência. Não dizemos, claro, que esta penitência não possa ser útil;
de certo será útil a quem a receber e... perdoar a todos os seus inimigos, pedir perdão
1194 SÉCULO VI

a todos aqueles a quem fez mal... e, se escapar, fizer, com humildade e fidelidade,
durante o resto da vida, esta penitência, com todas as suas forças, com lamentos e
gemidos e a isso juntar muitas esmolas...
4891 4. Se reconheceres a tua iniquidade, Deus perdoa-a. Por isso, ninguém desespere,
mas ninguém espere mal. Desespera todo aquele que, mesmo fazendo penitência pelos
seus pecados, crê que a providência divina não lhe perdoará; mas espera mal, aquele
que guarda para muito mais tarde o remédio da penitência...
SERMÃO 65

4892 2. Mas talvez alguém me diga: Tenho um posto no exército, sou casado; como
posso eu, nestas condições, fazer penitência? Como se, quando convidamos à
penitência, disséssemos que é mais urgente cortar os cabelos do que renunciar aos seus
pecados, e que é mais necessário despojar-se alguém das suas vestes do que dos seus
maus hábitos. Aquele que procura, por esta dissimulação, mais do que escusar-se,
preste atenção ao facto de que nem a honra da realeza nem a dignidade das vestes
impediram o rei David de fazer penitência.
SERMÃO 66

4893 1. Apesar de vos ter exortado frequentemente, irmãos caríssimos, exorto-vos e


suplico-vos de novo e de novo: aquele que reconhece ter sido lançado, pela tempestade
do desejo, do litoral da continência no alto mar da luxúria e sofrido o naufrágio da sua
castidade, tome rapidamente a confissão dos seus pecados, como se fosse uma tábua
do navio destruído, a fim de poder escapar ao abismo profundo da luxúria e chegar ao
porto da penitência... De facto, é conveniente que cada um gema sobre si mesmo como
sobre um defunto e entoe grandes lamentações sobre a sua alma morta...
Em primeiro lugar, como vos exortei com frequência, cada pecador deve ter
cuidado e velar para não dar esmolas pelos seus crimes sem renunciar aos próprios crimes...
4894 2. Não nos fiemos na saúde nem na idade. No que diz respeito à salvação, está
sempre atrasado aquele cuja vida é incerta...
4895 3. Uma vez que nos é dada, mesmo que por tempo breve e incerto, a possibilidade
de limpar as nossas manchas, de lavar as nossas faltas, de reparar o passado..., de
desfazer o que foi feito, esforcemo-nos com todas as nossas forças por levar uma vida
que nos possa ser contada como vida...
Apressemo-nos a oferecer ao Senhor uma vida emendada, antes que nos seja
tirada. Extingamos aqui em baixo a morte, morrendo para os pecados..., e não remetamos
para o tempo da velhice os remédios da penitência...
SERMÃO 67 30

4896 1. Todas as vezes, irmãos caríssimos, que vemos alguns dos nossos irmãos ou
algumas das nossas irmãs pedir publicamente a penitência, podemos e devemos, com
a ajuda de Deus, fazer nascer em nós sentimentos de arrependimento, inspirados pelo
temor de Deus. Quem não se felicitaria ou não se alegraria, dando graças a Deus,
quando vê um pecador indignar-se contra as suas próprias faltas e proclamá-las em
voz alta, acusar salutarmente o que tinha costume de justificar sem vergonha? O
pecador faz-se aliado de Deus; não pretende justificar mais os pecados, mas denunciá-los.
Deus odeia o pecado quando o pecador começa a odiar as suas próprias faltas, se
liberta delas e se coloca do lado de Deus. Em verdade, aquele que recebe publicamente

30
Cf. C. V OGEL , Paris 1966, 158-161.
CESÁRIO DE ARLES 1195

a penitência podia fazer penitência em segredo. No entanto, penso que, contando o


número dos seus pecados, o culpado se dá conta de que não está em condições de os
expiar sozinho, e é por isso que ele deseja pedir a ajuda de todo o povo cristão. É assim
que as coisas se passam quando, por negligência, a vinha dum camponês fica inculta...
Todo aquele que se prepara para pedir publicamente a penitência faz como o
proprietário... Ajudado pela oração de todos os fiéis, será capaz de arrancar os tojos e
os cardos que são os seus pecados...
Não penseis, irmãos, que seja coisa indiferente o facto de o penitente ser coberto
com um cilício. O cilício é feito de pêlos de cabra, e, como as cabras são símbolo dos
pecadores, o fiel que recebe a penitência mostra publicamente que não é um cordeiro
mas um bode, coisa que o seu vestuário indica, e diz: «Olhai para mim, todos vós, e
chorai lágrimas de compaixão pelo infeliz que eu sou; mostro-me por fora como sou
por dentro de mim mesmo. Doravante, não quero mais parecer por fora como um justo
e esconder em mim mesmo as injustiças e violências. Como o publicano prostrado por
terra, já não ouso para o futuro levantar os meus olhos para o céu... Por isso vos peço,
invocai todos para mim a misericórdia de Deus»...
2. Notai ainda isto, irmãos: o penitente pede para ser excomungado. Depois de 4897
receber a penitência, é coberto com o cilício e expulso da igreja. Ele pede para ser
excomungado, porque se julga indigno de receber a Eucaristia do Senhor; deseja ser
separado por um certo tempo do altar, para merecer chegar, de consciência tranquila,
ao altar celeste. Deseja ser afastado do Corpo e do Sangue de Cristo, como um culpado
e um ímpio, por profundo respeito, a fim de merecer, pela sua humildade, aproximar-se do
altar santíssimo.
3. E, contudo, irmãos caríssimos, o pecador que, de coração contrito e humilhado, 4898
pede com toda a confiança a penitência, apesar de estar certo da intercessão de toda a
comunidade, deverá empregar todas as suas forças, com a ajuda de Deus, para obter a
sua salvação. Nenhum penitente diga: «Agora que todos oraram pelos meus pecados,
posso e devo ficar seguro». Este pensamento, e menos ainda esta maneira de falar, não
devem aflorar sequer ao pecador que faz penitência. Com a ajuda de Deus, a sua
confiança na oração dos outros não deve desviá-lo, na medida das suas possibilidades,
de se entregar ao jejum, às esmolas, às orações, à humildade, à caridade e a toda a obra
santa. Visitará os doentes, fará a paz entre os inimigos, receberá os peregrinos, lavar-lhes-á
os pés e abster-se-á de calúnias e maledicências. Não beberá vinho, salvo em caso de
doença; se não puder privar-se dele, em razão da idade ou por causa das dores do
estômago, medite ao menos na palavra do Apóstolo: Toma um pouco de vinho por
causa do teu estômago31. Alguns penitentes aspiram a ser reconciliados rapidamente,
para poderem comer carne. Ora, é certo que um pecador não recebe a penitência com
suficiente contrição se deseja comer carne, a não ser em caso de doença. Mesmo o
penitente reconciliado, quando encontra na sua mesa ou nas mesas dos outros, legumes
frescos ou secos e peixe, não deve provar carne. Insisti neste ponto, porque, apesar de
abominável, chega a haver penitentes não reconciliados que devoram pratos de carne e
bebem por vezes até ficar ébrios. Devemos alimentar o corpo com a maior precaução,
para que ele não nos leve aos pecados anteriores, na sequência do nosso vício pelo
vinho ou exagerado desejo de comer; neste caso, não nos teria aproveitado nada ter
feito penitência. Com a ajuda de Deus, apliquemo-nos a não comprometer, uma vez
mais, por nossa negligência, a cura das nossas chagas, obtida por graça da misericórdia
de Deus. Queira conceder-nos tudo isto, Aquele que vive e reina com o Pai e o Espírito
Santo, nos séculos dos séculos. Amen.

31
1 Tim 5, 23.
1196 SÉCULO VI

SERMÃO 68

4899 1. Peço-vos, irmãos, a vós que fazeis penitência com fidelidade e compunção, que
não vos sintais ofendidos pelo facto de o nosso sermão deste dia se dirigir aos penitentes
negligentes.
Escutai-me, vós, a quem chamam penitentes, penitentes de nome, não de coração,
por chamamento, não pelas suas obras. Receio até que tenhais vergonha de ser chamados
pelo nome de penitentes e que penseis que isso constitui, para vós, um insulto mais
que um remédio. Peço-te que me digas: Como te gabas de fazer penitência, tu que
praticas todos os dias o que é passível de penitência? Como crês chegar ao perdão, tu
que vens à igreja mais raramente que o comum dos fiéis; tu que não limpas a igreja com
as tuas mãos...
Ignoras o que é o jejum e não te contentas com uma alimentação suficiente..., passas o
tempo a contar histórias profanas ou vergonhosas..., e, no meio de tudo isso, nenhum cuidado
de emenda, nenhuma tristeza da confissão dos pecados. Andas satisfeito, tranquilo...
4900 2. Vê a que estado chegaste... Por isso, vos advertimos, com voz de pastor, é certo,
mas gemendo com afecto de pai...
Em todo o tempo..., mas particularmente nestes dias32, refreemos a concupis-
cência nas relações sexuais, a avidez nas refeições, os vícios no espírito...
SERMÃO 69

4901 1. Tudo o que Deus fez louva a Deus. Ouviste-o nas Bênçãos 33 e ouve-lo em cada
solenidade, quando se lê como todas as coisas louvam a Deus, as celestes e as terrestres,
os Anjos, os homens, as estrelas do céu, as árvores da terra, os rios, os mares; tudo o
que Deus criou, quer no céu, quer na terra, quer no mar, louva a Deus...
SERMÃO 70

4902 2. Conhecemos muitos que, nesta desgraça, foram arrancados desta vida sem o
sacramento do baptismo...
SERMÃO 72

4903 1. Alegro-me, irmãos caríssimos, e dou graças a Deus por vos ver acorrer fielmente
à igreja para escutar as leituras divinas; mas, se quereis tornar mais completos o vosso
progresso e a nossa alegria, deveis vir mais cedo. Com efeito, quando as noites são tão
grandes, aquele que não está doente não chega tarde à igreja sem cometer falta... Por
isso vos peço que venhais mais cedo e que, uma vez na igreja, vos ocupeis mais a orar
e a salmodiar do que em histórias ociosas e profanas... Aquele que se ocupa com
histórias inúteis nem salmodia nem permite que os outros salmodiem e ouçam as
leituras divinas...
4904 2. Em primeiro lugar, irmãos caríssimos, todas as vezes que nos entregamos à
oração, devemos suplicar em silêncio e com recolhimento, pois quem reza em voz alta
parece querer roubar a todos os que estão de pé, a seu lado, o fruto das suas orações...
4905 5. Oremos, pois, irmãos, não só por nós, mas também por todos os cristãos,
estejam eles onde estiverem; supliquemos a misericórdia de Deus não apenas pelos
nossos amigos, mas também pelos nossos inimigos. E uma vez que o bem-aventurado
Apóstolo diz que não sabemos o que pedir para orar como devemos, peçamos sempre

32
Provavelmente na Quaresma.
33
Parece que, depois das duas primeiras leituras, se cantava sempre o hino dos três jovens na fornalha ardente,
também chamado a Bênção, da palavra Benedicite que aí se repte várias vezes.
CESÁRIO DE ARLES 1197

a Deus, para nós e para todos os outros, que Ele se digne conceder-nos o que sabe ser
mais conveniente à nossa alma. Em primeiro lugar, irmãos, ao orar, digamos a Oração
dominical, pois sem sombra de dúvida Ele escuta de bom grado a oração por Si instituída
em sua inefável bondade...
SERMÃO 73

1. Peço-vos e recomendo-vos com benevolência paternal, irmãos caríssimos: quando 4906


se diz missa34, no domingo ou por ocasião das outras grandes festas, ninguém saia da
igreja antes de terminarem os divinos mistérios35. Embora haja muitos cuja fé e devoção
nos alegram, são, contudo, mais numerosos aqueles que, menos preocupados com a
salvação da sua alma, saem da igreja logo que terminam as leituras divinas36, enquanto
alguns, até mesmo durante as leituras, se ocupam com histórias ociosas e profanas e,
desse modo, nem eles próprios as escutam nem permitem que os outros as ouçam.
Culparíamos menos tais pessoas, se não viessem à igreja...
2. Por isso, vos peço, irmãos, que acolhais o conselho da nossa humildade não só 4907
com paciência, mas também de bom grado. Com efeito, se prestardes atenção diligente,
reconhecereis que a missa37 não acontece no momento em que se lêem as leituras
divinas na igreja, mas só no momento da oferenda dos dons e da consagração do Corpo
e do Sangue do Senhor. De facto, quer sejam feitas leituras proféticas, apostólicas ou
evangélicas, podeis também lê-las em vossa casa ou ouvir aqueles que as lêem; mas a
consagração do Corpo e do Sangue de Cristo, só podeis escutá-la e vê-la na casa de
Deus. Por isso, aquele que quiser participar na missa inteira com benefício para a sua
alma deve ficar na igreja, em atitude humilde e de coração contrito, até ao momento em
que se diz a Oração dominical e em que a bênção é dada ao povo.
Com efeito, quando a maior parte do povo ou, o que ainda é pior, quando quase
toda a gente sai da igreja após as leituras, a quem dirá o sacerdote: «Corações ao alto»?
Ou como lhe poderão responder que os seus corações estão no alto, quando descem às
praças, de corpo e coração? E de que modo exclamarão, num misto de alegria e de
temor: «Santo, Santo, Santo; bendito O que vem em nome do Senhor38»? Ou quem
clamará com simplicidade e com verdade, quando se diz na Oração dominical: Perdoai-nos
as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores? Na verdade,
quando até aqueles que estão na igreja não perdoam as dívidas aos seus devedores, é
mais em ordem ao seu julgamento do que à sua cura que pronunciam com a boca a
Oração dominical, pois a não põem em prática e dizem sem razão: Livrai-nos do mal,
quando eles próprios não cessam de pagar o mal com o mal...
Após uma ou duas horas durante as quais parecem estar presentes na igreja mais
de corpo que de coração, voltando as costas aos sacrifícios e aos sacerdotes de Deus,
apressam-se a abraçar o prazer deste mundo, sem saberem o que os espera nem o que
deixam... Na verdade, aquele que sai da igreja a toda a pressa ignora tudo o que de bom
existe na celebração da missa.
3. Se um rei ou alguma personagem poderosa convidasse tais pessoas para jantar, 4908
eu gostaria de saber se elas ousariam partir antes de a refeição estar completamente
terminada! Mesmo que a pessoa o não impedisse, retê-la-ia o seu desejo de comer. Por
que razão não deixamos nós o banquete oferecido por um homem antes de estar
completamente terminado, senão porque queremos encher o estômago, talvez mais do
que convenha, e também porque temos receio de o ofender? Porque deixamos nós tão

34
Missae fiunt.
35
Nullus de ecclesia discedat, donec divina mysteria compleantur.
36
Qui lectis divinis lectionibus statim de acclesia foris exeunt.
37
Missae.
38
É este o primeiro testemunho do Benedictus ligado ao Sanctus.
1198 SÉCULO VI

depressa o banquete espiritual e divino? Tenho receio de o dizer, para não irritar, quem
sabe, alguns, mas, apesar disso, quer por causa do meu próprio perigo quer do vosso,
vou dizê-lo: agimos assim, porque não nos preocupamos com o alimento da alma, não
tememos a Deus, nem respeitamos o homem.
É certo, graças a Deus, que nem todos são culpados neste ponto; muitos são
aqueles que, ao contrário, com grande devoção, não deixam a igreja antes de ser dada a
bênção sobre o povo39 e que não cessam de orar com humildade, não apenas por eles,
mas também pelos outros; a esses, aos quais Deus deu uma tão grande devoção que
permanecem na igreja, dar-lhes-á uma retribuição, mas àqueles que são negligentes,
condená-los-á num julgamento justo. Por isso, irmãos, admoestai os que não querem
dizer a Oração dominical nem receber a bênção e não cesseis de os repreender, dizendo-lhes...
que de nada lhes serve escutar as leituras divinas, se acaso se retiram antes de terminados
os divinos mistérios. Contudo, os que estão ocupados em necessidades públicas e
aqueles que, impedidos por uma doença, não podem ficar, não podemos nem devemos
importuná-los. Sejam eles próprios a ver nas suas consciências se é a necessidade ou a
sua vontade que os leva a retirar-se.
4909 4. Por isso, de novo vos peço e conjuro: ninguém, em cada domingo e especialmente
nas grandes festas, se retire da igreja antes de terminarem os mistérios divinos, salvo
se, como o dissemos mais acima, uma grave enfermidade ou a necessidade pública
impede de ficar mais tempo.
Na verdade, irmãos, digo que é bem penoso e até quase ímpio haver cristãos que
não têm pelo dia do Senhor aquele respeito com que vemos os Judeus observar o
sábado. De facto, se esses infelizes observam tão bem o sábado que nesse dia não
ousam entregar-se a nenhuma actividade profana, quanto mais aqueles que foram
resgatados não com prata ou ouro, mas com o Sangue precioso de Cristo devem
prestar atenção ao seu preço e consagrar a Deus o dia da Ressurreição, pensando muito
atentamente na salvação da sua alma!...
4910 5. Por isso peço e volto a pedir que nenhum de vós deixe a igreja antes de os divinos
mistérios estarem inteiramente celebrados; comportai-vos na igreja de tal modo que
nenhum de vós passe o tempo ocupado com palavras ociosas ou com histórias profanas...
SERMÃO 74

4911 1. Se quisésseis reconhecer e olhar com atenção, irmãos caríssimos, como o meu
espírito fica cheio de dor e de amargura quando vejo que não quereis assistir à missa até
ao fim, poderíeis ter piedade de vós e de mim. Porque aquele que compreende o que se
passa na igreja, quando se celebram os mistérios divinos, reconhece o mal que fazem os
que, sem qualquer grande necessidade, deixam a igreja antes de a missa estar terminada...
4912 2. Quando vindes à igreja, não vos convidamos para um banquete terrestre no qual
se serve uma comida destinada aos homens, mas para um banquete celeste e espiritual,
no qual é apresentado o pão dos Anjos. Não rejeiteis com desdém nem desprezeis o
banquete do vosso Senhor, para que Ele não vos rejeite na bem-aventurança do seu
Reino. Com efeito, deveis temer esta palavra do Evangelho, segundo a qual o próprio
Senhor declarou indignos do seu banquete aqueles que tinham sido convidados para as
núpcias e desdenhado vir, e mandou convidar outros..., pois aqueles que não tinham
querido vir por causa dos entraves do mundo, foram julgados indignos pela boca do
próprio Senhor. Por isso, e para que o mesmo não seja dito a nosso respeito, tal como
já vos supliquei, sejamos pacientes pelo espaço de uma ou duas horas, até que o
alimento das almas esteja colocado sobre esta mesa espiritual e que os sacramentos
espirituais40 sejam consagrados.

39
Benedictio super populum detur.
40
Sacramenta spiritalia.
CESÁRIO DE ARLES 1199

E, como após a Oração dominical vos é dada a bênção, não de um homem, mas
por intermédio de um homem 41, recebei com espírito agradecido e piedoso e com o
corpo numa atitude de humildade e de coração contrito, o orvalho da bênção divina,
para que, segundo a promessa do Senhor, nasça em vós uma fonte de água que jorre
para a vida eterna.
3. Há ocupações diversas e variadas que fazem com que nem todos possam ficar na 4913
igreja. De facto, a uns retém-nos uma enfermidade corporal, a outros, uma necessidade
pública... Quantos são, neste momento, os que, nas praças públicas ou nas esplanadas
das basílicas, se ocupam de processos ou de negócios! Quantos são os que, sob os
pórticos das basílicas ou nas sacristias, passam o tempo em calúnias ou em conversas
ociosas, entre os quais até se encontra habitualmente um bom número de clérigos! Que
proveito poderão tais pessoas tirar das Escrituras divinas, quando nem sequer permitem
que o próprio som da Escritura chegue aos seus ouvidos?...
4. Por isso, vos peço, irmãos caríssimos, que tudo o que ouvistes e acolhestes de 4914
bom grado nestas pregações, sob a inspiração do Senhor, o leveis, com grande cuidado,
por toda a parte onde vos encontrardes, aos vossos vizinhos e familiares que não
podem vir à igreja convosco ou, o que é pior, talvez não queiram vir, e àqueles que
vieram, mas saíram imediatamente...
SERMÃO 75

1. Não sou capaz de exprimir por palavras a alegria que o Senhor me concedeu, por 4915
causa da vossa santa e fiel devoção. Há já muitos anos que o meu espírito ardia por isto
e que eu desejava, com todas as forças do meu coração, que o Senhor, em sua bondade,
vos inspirasse este hábito de salmodiar42. Por isso, bendigo o meu Deus e, na medida
em que posso, não cesso de Lhe dar graças, pois Se dignou realizar o meu desejo. Com
efeito, como eu desejava que salmodiásseis como se faz nas outras cidades vizinhas, Deus
preparou de tal modo o vosso espírito que o fazeis, com a ajuda do Senhor, ainda melhor.
Que devemos nós fazer agora, em meio da nossa alegria, que não seja suplicar ao
Senhor, com todas as nossas forças, que, do mesmo modo que vos permitiu começar
esta obra, Se digne também levá-la até ao fim, e que àqueles a quem comunicou uma
devoção tão santa pela salmodia, conceda também, em sua bondade, uma perseverança
cheia de felicidade? E, como não é aquele que começa, mas aquele que persevera que será
salvo, também vós, na medida em que puderdes, atiçai em vós o fogo do amor divino através
duma oração contínua e da compunção do coração, para que a chama da caridade que começa
a arder em vós com fidelidade não venha a esfriar por alguma negligência.
2. Antes de mais, procurai não só por meio de orações, mas também com santas 4916
meditações, fazer vossas, ao orardes, as palavras que salmodiais, permitindo assim ao
Espírito Santo, que Se faz ouvir na vossa boca, que venha habitar em pessoa no vosso
coração. Na verdade, quando a língua salmodia fielmente, isso é bom e muito agradável
a Deus; mas, se a vida estiver de acordo com a língua, então é que é verdadeiramente bom...
Não vos ocupe apenas, irmãos, a suavidade do canto, mas mantenha-vos também
ocupados o sentido da própria leitura, para que, assim como a melodia do canto deleita
os ouvidos, assim a virtude da própria leitura seja doce ao coração... Na verdade,
quando aquele que salmodia só presta atenção à suavidade do canto e à harmonia dos
sons e não repara, como devia, no sentido das palavras, os seus ouvidos captam um
alimento efémero, mas a palavra de Deus não chega até à sua alma. É, de algum modo,
como que ruminar apenas cera pura e não chegar a provar nada da doçura do mel.

41
Benedictio vobis non ab homine sed per hominem datur.
42
Cesário atribuía muita importância à salmodia. Mandou preparar hinos e salmos à maneira popular, para que
os leigos os cantassem à semelhança dos clérigos, assim como antífonas umas em latim outras em grego (cf.
Vita, I, 19).
1200 SÉCULO VI

4917 3. Mas vós, irmãos, como já vo-lo sugeri mais acima, prestai atenção antes de tudo
às virtudes contidas nos salmos. Quando algum de vós salmodia um versículo de salmo
onde se diz: Sejam confundidos os orgulhosos..., esforce-se em fugir do orgulho, para
merecer escapar à confusão eterna...
E, todas as vezes que nos salmos se maldizem os pecadores, procuremos fugir do
pecado, para não parecer que nos amaldiçoamos a nós mesmos pela nossa própria boca...
Peço-vos ainda e suplico-vos: sempre que salmodieis, meditai com muita atenção naquilo
que, nos próprios salmos, deve ser compreendido e observado, a fim de que, enquanto a
vossa língua louva o Senhor, a bênção divina chegue até à vossa alma, com a ajuda de
nosso Senhor Jesus Cristo, que vive e reina pelos séculos dos séculos. Amen.
SERMÃO 76

4918 1. Suplico-vos, irmãos caríssimos, e exorto-vos com benevolência paternal: no princípio


de cada oração43, aquele a quem uma enfermidade qualquer impede eventualmente de
se ajoelhar44, deve sem demora inclinar-se45 e baixar a cabeça 46. Para que te serve
salmodiar fielmente se, depois de ter acabado de salmodiar, não queres suplicar a Deus?
Cada um, portanto, quando acaba de salmodiar, ore e suplique ao Senhor com toda a
humildade, a fim de merecer, com a ajuda de Deus, pôr por obras as palavras que
pronunciou com a boca. Salmodiar, irmãos, é como semear um campo; orar é como
enterrar e cobrir a semente lavrando de novo. Com efeito, quando aquele que anda a
semear um campo se esquece de cobrir inteiramente a semente, vêm as aves e comem
tudo o que ele pensava ter semeado; do mesmo modo, aquele que espalha no campo do
seu coração as sementes da palavra de Deus, ao salmodiar e ao ler, se, em seguida, de
certo modo, as não enterra orando, vêm as aves... e apoderam-se daquilo que fora
semeado. Por isso, ninguém pare de orar, quando acaba de salmodiar, se quiser que a
sementeira da misericórdia divina seja proveitosa ao campo do seu coração.
4919 2. Peço-vos, irmãos, cada vez que se reza no altar, inclinai também vós a cabeça,
não aconteça que, se preferirdes orar de pé, sem vos inclinar47, se realize em vós o que
está escrito acerca do fariseu, que orava de pé; de facto, o publicano que, curvado,
acusava os seus pecados, agradou mais a Deus do que o fariseu, que, sem se inclinar,
louvava os seus próprios méritos...
4920 3. Embora, caríssimos irmãos, eu me alegre com a vossa devoção fervorosa, no
entanto, alguns, pouco numerosos, é certo, chegam tarde às vigílias e, assim que começa
a ler-se a palavra de Deus, saem imediatamente... Durante quanto tempo, meus irmãos,
os temos nós ocupados? Vós próprios vedes que é apenas pelo espaço de uma meia
hora; e, ainda assim, para não fazer chegar os pobres e os operários atrasados ao seu
trabalho, todas as vezes que está previsto um sermão, fazemos dizer mais cedo o
salmo cinquenta, para não se sair mais tarde da igreja, mas sempre à hora do costume...
SERMÃO 77

4921 1. Peço-vos e exorto-vos, irmãos caríssimos: todas as vezes que os clérigos oram
junto do altar ou que o diácono convida em voz alta à oração, inclinai fielmente não
apenas o coração, mas também o corpo. Com efeito, quando o diácono proclama:
«Ajoelhemos»48, eu que tenho o hábito, como convém, de estar atento, vejo que a maior

43
Trata-se aqui das orações silenciosas que seguem cada salmo.
44
Genua flectere.
45
Dorsum curvare.
46
Cervicem humiliare.
47
Ne forte stantes.
48
Flectamus genua.
CESÁRIO DE ARLES 1201

parte dos fiéis ficam direitos como colunas, o que é absolutamente ilícito e inconveniente
para os cristãos, quando se reza na igreja, pois não é por causa de nós, mas por vossa
causa que o diácono eleva a voz. E, porque é especialmente a vós e muito particularmente
aos negligentes que aquela palavra se dirige, é justo que a executeis fielmente...
Do mesmo modo, aquele que uma enfermidade qualquer impede de se ajoelhar, não
tenha vergonha de, ao menos, se inclinar e baixar a cabeça. Pense que foi graças a esta
humildade que o publicano obteve a misericórdia de Deus, ele que não ousava sequer
levantar os olhos para o céu, mas que, com a cabeça inclinada para o chão, batia no peito...
2. Talvez alguns não queiram ajoelhar-se, porque acreditam que não têm pecados 4922
graves. Deus afaste tal pensamento dos espíritos cristãos...
3. Desejaria saber daqueles que não se ajoelham nem querem inclinar a cabeça se 4923
pediriam, com negligência e tibiamente algo que lhes fosse muito necessário, ao rei ou
a qualquer personagem poderosa, hirtos e de cabeça levantada... Ninguém tenha
vergonha, se acaso uma enfermidade o não impedir, de se humilhar e prostrar por terra.
4. Nós devemos vir à igreja, irmãos, como a uma fonte viva, a um rio espiritual, 4924
para receber esta água da qual o Senhor disse: Se alguém tem sede, venha a Mim e
beba...49. Mas, do mesmo modo que não se pode beber duma fonte terrestre e dum rio
material se não quisermos inclinar-nos, assim também ninguém poderá beber a água
viva da fonte viva que é Cristo e do rio do Espírito Santo, se não quiser inclinar-se
humildemente, em razão desta palavra da Escritura: Deus resiste aos soberbos, mas
dá a sua graça aos humildes50.
5. Também vos exorto ao seguinte, irmãos caríssimos: Cada vez que o diácono 4925
proclame que deveis inclinar-vos para a bênção, inclinai fielmente o corpo e a cabeça;
porque a bênção não vos é dada por um homem, ainda que o seja por intermédio de um
homem. E não repareis naquele que faz o gesto51, se acaso for negligente, mas olhai
para Deus, que o transmite; porque a bênção que vos é dada bem sabemos que é
orvalho e chuva celeste. Com efeito, Moisés exprimiu-se assim: Derrame-se como
chuva o meu ensinamento, espalhe-se como orvalho a minha palavra52. E vós sabeis
perfeitamente, irmãos, que, se a chuva cai sobre um monte muito alto, desce
imediatamente para o vale. E é por isso que aqueles que se inclinam humildemente para
receber a bênção imitam os vales; recebem a chuva da bênção divina, e a palavra da Escritura
cumpre-se neles: Todo o vale será elevado, e todo o monte e colina serão abaixados53.
Aliás, aqueles que não se ajoelham para orar e não baixam a cabeça para a bênção
são os mesmos que, sempre direitos na igreja, gostam mais de falar do que de salmodiar.
6. Quando vierdes à igreja, fazei aí apenas o que deve ser feito, isto é, orai ou 4926
salmodiai, para que possais, ao orar, receber o perdão dos vossos pecados e, ao
salmodiar, chegar à alegria espiritual... Aquele que não quer salmodiar ao menos cale-se e
observe o silêncio, a fim de que, se não edifica, também não destrua os outros com um
mau comportamento...
7. O Diabo, irmãos caríssimos, tem o costume de nos atacar sobretudo no momento 4927
em que sabe que estamos equipados contra ele com as armas espirituais; e, porque não
nos pode expulsar fisicamente da assembleia da igreja54, esforça-se, na própria igreja,
por nos encher de pensamentos estéreis... Sempre que o diácono proclamar que vos
deveis ajoelhar para orar, ou inclinar a cabeça para a bênção, fazei-o com docilidade e

49
Jo 7, 37.
50
Prov 3, 34.
51
Qui exhibet.
52
Deut 32, 2.
53
Lc 3, 5.
54
De ecclesiae conventu.
1202 SÉCULO VI

fielmente, com verdadeira humildade, a fim de que, ao orar, os vossos corações sejam
libertados de todos os males e que, recebendo a bênção, mereçam ser repletos de bens
espirituais, com o auxílio de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertence a honra e o
poder com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amen.
SERMÃO 78

4928 1. Há já alguns dias, por causa daqueles a quem doem os pés ou que sofrem de
qualquer enfermidade corporal, levado pela solicitude paternal, dei um conselho e de
certo modo fiz um pedido: Enquanto se lêem as longas paixões55 ou pelo menos certas
leituras particularmente demoradas, aqueles que não podem ficar de pé, devem sentar-se
com simplicidade e em silêncio, para escutar, de ouvidos atentos, o que se lê. Mas
agora, algumas das nossas filhinhas, todas ou pelo menos a maior parte de boa saúde,
pensam que devem habitualmente proceder assim. Com efeito, logo que se começa a ler
em voz alta a palavra de Deus, querem estender-se como numa cama. E nada mau,
quando elas se contentam apenas em estender-se e escutar em silêncio, com um coração
sedento, a palavra de Deus; de vez em quando, estão de tal modo ocupadas em histórias
frívolas, que não escutam o que é pregado nem permitem que os outros ouçam! É por
isso que vos peço, veneráveis filhas, e vos exorto com solicitude paternal: Quando se
lêem as leituras ou quando se prega a palavra de Deus, ninguém se deve estender no
chão, a não ser, porventura, obrigado por uma enfermidade muito grave; neste caso, no
entanto, não se estenda, mas sente-se e, com os ouvidos atentos, acolha, num coração
ávido, aquilo que é pregado.
4929 2. Faço-vos uma pergunta, irmãos e irmãs, dizei-me: O que é tem maior valor,
segundo vós, a palavra de Deus ou o Corpo de Cristo? Se quiserdes responder com
verdade, deveis certamente dizer que a palavra de Deus não é menos valiosa que o
Corpo de Cristo. Desse modo, que cuidado nós pomos, quando nos dão o Corpo de
Cristo, em não deixar que das nossas mãos caia por terra nenhuma das suas parcelas!
De modo semelhante devemos ter idêntico cuidado a fim de não deixarmos escapar do
nosso coração a palavra de Deus que nos é dirigida, pensando ou falando doutra coisa;
com efeito, aquele que escuta com negligência a palavra de Deus não é menos culpado
do que aquele que, por sua negligência, permite que o Corpo de Cristo caia por terra.
4930 5. Irmãos caríssimos e veneráveis filhas: Não dizemos isto por nos termos apercebido
de que não recebeis a palavra de Deus de bom grado. Com efeito, pela misericórdia de
Deus, a nossa alma rejubila e exulta pela vossa obediência, mais do que se pode pensar
ou dizer. Mas, no nosso desejo de que subais sempre mais alto, mesmo acerca do que
sabemos que fazeis perfeitamente, permitimo-nos exortar-vos com paternal solicitude.
E uma vez que nem todos os homens e mulheres quiseram reunir-se hoje para as
vigílias, peço-vos, filhos e filhas, que transmitais muito fielmente aos ausentes o que
vos foi dito, para que possais ter uma recompensa, não só para vossa emenda, mas
também para a deles.
SERMÃO 80

4931 1. Peço-vos, irmãos caríssimos, sempre que vos reunis na igreja afastai para longe
de vós as conversas frívolas e as histórias profanas e acolhei com um coração faminto
e sequioso as leituras divinas. Com efeito, aquele que, ao vir à igreja, não se preocupa
em orar e salmodiar, faria melhor se não viesse...
E isto, irmãos, digo-o a todos, tanto aos homens como às mulheres, aos religiosos
e aos leigos, tanto aos que estão no meio dos fiéis como aos que estão ao altar: aquele
que deseja dizer alguma coisa ao seu amigo tem todo o tempo para o fazer quando tiver
deixado a igreja...

55
Trata-se do relato das Paixões dos mártires, que eram muito apreciadas na Gália.
CESÁRIO DE ARLES 1203

2. Aquele que pode salmodiar, salmodie; o que não pode, dê graças a Deus dentro 4932
do seu coração e alegre-se com aquele que salmodia, guardando silêncio para que a sua
tagarelice não perturbe os que salmodiam...
3. Irmãos, ao entrarmos na igreja, devemos combater por Cristo mais do que pelo 4933
adversário, servir a Deus mais que ao mundo. Aquele que, na igreja, reza e salmodia
fielmente oferece a Deus, no santo turíbulo do seu coração, um perfume suave...
SERMÃO 84 56

Peço-vos, irmãos, se alguém deseja mandar baptizar o seu filho ou o seu escravo, 4934
não se demore e apresente-o desde agora à Igreja; porque não é razoável que se procure,
com negligência e uma demora que ultrapassa os limites, uma coisa que se considera
tão grande e gloriosa. Tenho medo, com efeito, que algumas mulheres apresentem os
seus bebés tão tarde, para não terem de vir com eles às vigílias. Ora nós acreditamos,
sem qualquer dúvida, acerca das pessoas que desejam apresentar as crianças ao baptismo
no princípio da Quaresma e que vêm assiduamente às vigílias com elas, que não só os
seus filhos receberão legitimamente o sacramento do baptismo, mas também elas próprias
obterão o perdão dos seus pecados.
SERMÃO 107

4. Como está próxima a vindima espiritual, isto é, a solenidade pascal, festividade 4935
em que aquele cacho de uvas de que falámos antes foi espremido pela injustiça e pelo
peso da cruz, devendo nós tomar de tão grande e excelente uva o cálice da salvação e
beber o vinho da alegria, limpemos com toda a diligência a morada do nosso coração e
do nosso peito, com jejuns, vigílias, orações, esmolas e principalmente com a limpeza
da nossa castidade...
SERMÃO 130 57

5. Aqueles que vão receber as crianças digam eles próprios o Símbolo em vez delas 4936
ou façam-no dizer por outros... Quanto aos que vós recebeis, uma vez baptizados,
ensinai-os sempre...
SERMÃO 161

1. O azeite que o (o samaritano) derramou nas feridas (do homem) significa a 4937
misericórdia, e o vinho a justiça, ou, melhor ainda, o azeite é a unção do crisma e o
vinho a consagração da Eucaristia...
SERMÃO 170

4. O Senhor fala de um único baptismo que, depois de o homem entrar na fonte 4938
eterna e receber o sacramento da bebida celeste, não deixa que nenhum de nós tenha sede...
SERMÃO 179 58

1. São numerosos os pecadores que, compreendendo mal o que o Apóstolo diz, se 4939
deixam enganar por uma falsa segurança, imaginando que, se puserem todos os seus
pecados mortais sobre o fundamento que é Cristo, poderão expiá-los pelo fogo do

56
Sermão 84 (=M ORIN, 1).
57
Sermão 130 (=MORIN , 1; CCL 104).
58
Sermão 179 (=M ORIN, I; CCL 104; C. V OGEL , Paris 1966,161-165.
1204 SÉCULO VI

Purgatório e assim chegar à vida eterna. É preciso rectificar, irmãos, esta maneira de
compreender, porque aqueles que acariciam tais pensamentos enganam-se a si próprios...
4940 2. Apesar de o Apóstolo ter citado vários pecados mortais, enumeramo-los
rapidamente, para não vos deixar na incerteza. São pecados mortais: o sacrilégio, o
homicídio, o adultério (e as relações ilícitas), o falso testemunho, o roubo, a rapina, o
orgulho, a raiva, a cólera persistente, a embriaguez habitual e a calúnia. Se qualquer
pessoa, dando-se conta de que um destes pecados a domina, não faz penitência durante
um tempo longo e conveniente, se negligencia dar esmolas abundantes e cai nas mesmas
faltas em que já caíra antes, não poderá ser purificada pelo fogo do Purgatório, mas
arderá sem qualquer remédio nas chamas eternas.
4941 4. As faltas veniais deverão ser resgatadas pelas orações contínuas e frequentes,
pelos jejuns e as esmolas abundantes, pelo perdão dado aos inimigos... Os pecados
veniais que ficarem por expiar por estes meios serão purificados pelo fogo do
Purgatório...
4942 5. Alguém dirá: «Pouco me importa passar algum tempo no Purgatório, desde que
chegue à vida eterna». Não faleis assim, amados irmãos, porque o fogo do Purgatório
causa uma dor mais cruel do que tudo o que possamos sentir, imaginar ou ver neste mundo...
Mas aqueles que cometem pecados mortais, se os não expiarem durante a vida
pela penitência (canónica), não irão para o fogo do Purgatório... mas para o fogo eterno...
4943 7. Para os pecados mortais não bastam os remédios dos pecados veniais. São
precisas, além disso, lágrimas, choros, gemidos, jejuns severos e ininterruptos, esmolas
que excedem muitas vezes as nossas possibilidades; além disso, o pecador deverá
separar-se da comunhão da Igreja, permanecer na tristeza e na aflição e fazer penitência
publicamente...
SERMÃO 184

4944 4. As mulheres costumam convencer-se umas às outras de que, quando os seus


filhos adoecem, devem utilizar para sortilégio algo que não esteja de acordo com a fé
católica. Este engano vem da parte do Diabo...
4945 5. Seria muito melhor e mais saudável que corressem à igreja, recebessem o Corpo
e o Sangue de Cristo e, cheias de fé, se ungissem a si mesmas e aos seus com óleo
benzido, de tal modo que, segundo a palavra do apóstolo Tiago, não só recuperariam a
saúde do corpo, mas receberiam o perdão dos pecados. Foi isso que, através do seu
intermediário, o Espírito Santo prometeu.
SERMÃO 187

4946 1. Por graça de Deus, irmãos caríssimos, já está perto o dia em que, cheios de
alegria, iremos celebrar o nascimento do Senhor e Salvador. Por isso vos rogo e admoesto
que, na medida em que pudermos, trabalhemos, com a ajuda de Deus, para que, naquele
dia, nos possamos aproximar do altar do Senhor, de consciência pura e sincera e de
coração limpo e corpo casto, e mereçamos receber o seu Corpo e Sangue, não para
julgamento, mas para remédio da nossa alma.
De facto, no Corpo de Cristo está a nossa vida, como o disse o Senhor: Se não
comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida
em vós59. Por isso, mude de vida quem quiser receber a vida, porque, se não mudar de
vida, receberá a vida para condenação e por ela ficará mais corrompido que curado,
mais morto que vivificado...

59
Jo 6, 53.
CESÁRIO DE ARLES 1205

4. Aquele que sabe que tem ódio a um só homem, não sei se poderá aproximar-se 4947
com segurança do altar do Senhor... Julgai vós mesmos se o homicida, antes de ter feito
penitência60, deverá atrever-se a receber a Eucaristia...
SERMÃO 190

7. Embora eu acredite que, por inspiração de Deus, sempre que se aproximam as 4948
festas, guardais castidade muitos dias antes mesmo com as vossas próprias esposas,
no entanto, apesar de não ser preciso, porque acredito que o fazeis, advirto-vos, tendo
em conta a caridade, que guardeis castidade, com a ajuda de Deus, durante toda a
Quaresma e até ao fim da Páscoa. Revestidos com o esplendor da caridade, branqueados
pelas esmolas, adornados com orações, vigílias e jejuns e com margaridas celestes e
espirituais, em paz, não só com os amigos, mas também com os inimigos, de consciência
livre e tranquila, aproximando-vos do altar do Senhor naquela santíssima solenidade da
Páscoa, podereis receber o seu Corpo e Sangue, não para condenação, mas para remédio.
SERMÃO 193

1. Quando chega a festa das Calendas de Janeiro, alegrais-vos estupidamente, 4949


embriagais-vos, cantais cânticos indecentes e entrais em brincadeiras eróticas e
obscenas. Convidais os Demónios como se celebrásseis um sacrifício em sua honra. Na
verdade, é uma verdadeira loucura que um homem se transforme vestindo-se de mulher.
É loucura transformar o rosto mascarando-se até ao ponto de os próprios Demónios
ficarem com medo. É uma loucura cantar e achar prazer em canções que fazem o elogio
dos vícios, dançar de maneira desordenada tomando posições impudicas. Ao
transformar-se em cabra, em veado, o homem, que foi feito à imagem de Deus, torna-se
cabra ou veado. E, deste modo, oferece um sacrifício aos Demónios e merece o fogo
eterno dos Infernos...
SERMÃO 196

2. Por isso vos peço, irmãos caríssimos, levantai-vos mais cedo para as vigílias 4950
matutinas e reuni-vos antes de tudo o mais para a Tércia, Sexta e Noa.
SERMÃO 225 61

6. Cada vez que se aproximam festas, especialmente festas de santos, os que desejam 4951
fazer baptizar um dos seus, devem vir à igreja cerca de dez dias antes, ou pelo menos
uma semana antes, com aqueles que devem ser baptizados e apresentarem-se à unção
do óleo e à imposição da mão... Embora seja muito melhor guardar os baptismos para
a solenidade pascal, no entanto, por causa da fragilidade humana e sobretudo para os
catecúmenos que estão muitas vezes doentes, não se pode recusar o dom do baptismo...
SERMÃO 227

1. Sempre que celebramos, caríssimos irmãos, alguma festividade do altar ou do 4952


templo, se prestarmos atenção fiel e diligente e vivermos em santidade e justiça, tudo
o que realizamos nos templos com as nossas mãos será cumprido em nós com edificação
espiritual, porque não mentiu aquele que disse: O templo de Deus é santo, e vós sois
esse templo...
2. Por isso, caríssimos irmãos, examine cada qual a sua consciência e, quando 4953
reconhecer que está manchado por algum crime, procure limpar a consciência com

60
Paenitentiam agat.
61
Sermão 225 (=MORIN , 2; CCL 104).
1206 SÉCULO VI

orações, jejuns e esmolas, e depois ouse receber a Eucaristia. Na verdade, se alguém


reconhecer a sua culpa e se afastar do altar divino, depressa chegará à indulgência da
misericórdia divina... Aquele que, como acabei de dizer, reconhecendo-se culpado,
decide humildemente afastar-se por si próprio do altar da igreja, para emenda da sua
vida, não será de modo nenhum expulso do eterno e celeste banquete...
4954 4. Peço-vos, irmãos, que penseis nisto: Se alguém fosse afastado hoje da reunião
desta igreja por causa de algum crime, quanta dor e tribulação não sentiria na sua alma?
Ora, se é dor insuportável ser posto fora desta igreja, apesar de aquele que é expulso
poder comer, beber e falar com os homens e ter esperança de merecer de novo ser
chamado à igreja, pensemos como será doloroso que alguém, por causa dos seus crimes,
seja separado daquela Igreja que está nos Céus, da assembleia dos Anjos e da reunião
de todos os santos...?
4955 5. Pensando nestas coisas, caríssimos irmãos, procuremos, com a ajuda de Deus,
aproximar-nos deste altar tão castos, tão sóbrios e em tão grande paz que não mereçamos
ser excluídos do altar eterno... Em última análise, não é pesado nem difícil o que vos
sugiro. Digo-vos o que vos vejo fazer com frequência. Todos os homens, quando vão
aproximar-se do altar, lavam as mãos com água, e todas as mulheres apresentam
imaculados os panos onde hão-de receber o corpo de Cristo. Não é difícil o que vos
digo, irmãos: assim como os homens lavam as mãos com água, lavem do mesmo modo
as suas almas com esmolas. E, de modo semelhante, as mulheres: assim como apresentam
um lenço imaculado onde recebem o Corpo de Cristo, apresentem também um corpo
casto e um coração puro, para receber, com boa consciência, os sacramentos de Cristo...
SERMÃO 229 62

4956 1. Pela graça de Cristo, irmãos caríssimos, celebramos hoje com alegria e júbilo o
dia aniversário da consagração deste templo... Com razão as comunidades cristãs
celebram fielmente a solenidade da Igreja Mãe, pois sabem que renasceram
espiritualmente por meio dela...
4957 3. Se desejamos, irmãos, celebrar com alegria o aniversário deste templo, não devemos
destruir em nós, com obras más, os templos vivos de Deus. E direi isto de maneira que
todos possam compreender: sempre que vimos à igreja, devemos preparar bem a nossa
alma, tal como gostamos de ver adornado o templo de Deus. Queres encontrar a
basílica limpa? Então não queiras sujar a tua alma com a imundície do pecado. Se
queres que a basílica esteja iluminada, também Deus deseja que a tua alma não esteja
nas trevas... Assim como tu entras nesta igreja, também Deus quer entrar na tua alma...
4958 4. Portanto, sempre que desejardes celebrar o nascimento do templo, deveis vir
sóbrios e pacíficos à igreja...; oferecei oblações que sejam consagradas no altar, dai os
dízimos dos vossos frutos, acolhei os peregrinos, fazei a paz entre os desavindos. Se
viermos deste modo ao nascimento 63 da basílica e às solenidades dos santos,
mereceremos receber de Deus quanto Lhe quisermos pedir e seja justo.
Antes de mais, é preciso que, assim como vindes à igreja com roupa limpa, venhais
também com os corações puros; de nada serve aparecerdes limpos aos olhos dos homens,
se estiverdes sujos aos olhos dos Anjos. Certamente, irmãos, quando queremos entrar
na igreja e comungar, lavamos antes as nossas mãos; mas é preciso que, tal como
lavamos as nossas mãos com água, assim lavemos as nossas almas com a caridade e a
esmola.
Porque de nada aproveita a limpeza do corpo, se não se guarda a limpeza do
coração. Se é mau e vergonhoso aproximar-se do altar com as mãos sujas, quanto pior

62
Sermão 229 (=M ORIN , 2; CCL 104; cf. LH, III).
63
Natale, ou seja, ao aniversário da dedicação.
CESÁRIO DE ARLES 1207

é receber o Corpo e Sangue de Cristo numa alma suja... É certo que todas as mulheres,
ao aproximarem-se do altar, tiram lenços limpos para neles receber os sacramentos de
Cristo, e fazem-no bem e com dignidade 64; mas prestem atenção e reflictam para que,
assim como apresentam panos limpos, apresentem também limpas as suas almas, não
seja que, se procederem de outro modo, os sacramentos de Cristo nelas sofram injúria...,
uma vez que todo o que procede mal injuria Cristo...
Todos os cristãos que procedem assim, como já disse, por mais que venham à
igreja e comunguem no altar, por mais que os vejamos benzer-se com frequência, se não
se emendarem pela penitência, fica provado que não servem a Cristo, mas ao Diabo...
6. É bom e legítimo que os (baptizandos) que têm saúde observem a solenidade 4959
pascal e, segundo a regra eclesiástica, jejuem e façam vigílias nos dias da Quaresma e se
aproximem do óleo e das imposições da mão.
SERMÃO 280

Os santos doutores da Igreja decidiram transferir toda a glória do sabatismo 4960


judaico para o (domingo). Observemos, portanto, irmãos, e santifiquemos aquele dia
como está mandado aos antigos para o sábado, quando o legislador diz: Celebrareis os
vossos sábados de um pôr-do-sol até ao outro pôr-do-sol 65...; desde as Vésperas
de sábado até às Vésperas de domingo abandonai todo o trabalho rural e todos os negócios,
e entreguemo-nos só ao culto divino. Assim também satisfazemos bem o sábado do
Senhor, pois o Senhor diz: Não fareis nele nenhum trabalho servil 66.
SERMÃO 281

Se prestardes atenção, reconhecereis que a missa não é celebrada precisamente 4961


no momento em que se lêem na igreja as leituras divinas, mas quando se oferecem as
oblações e se consagra o Corpo e o Sangue do Senhor 67. As leituras quer dos Profetas,
quer dos Apóstolos, quer dos Evangelhos, podeis também lê-las vós próprios, ou
ouvi-las ler por outros em vossas casas; mas a consagração do Corpo e do Sangue do
Senhor não podeis escutá-la nem vê-la noutro lugar que não seja na casa de Deus.
Aqueles de entre vós que persistirem na sua negligência serão condenados pelo justo
juízo de Deus. Avisai-os, portanto, irmãos... e dizeis-lhes muito claramente que não
lhes serve de nada escutar as leituras divinas, se se forem embora antes de terminarem
os divinos mistérios... Ninguém saia da igreja, a não ser aqueles que não puderem estar
mais tempo, quer por doença grave, quer por uma necessidade pública... Assim, se
alguém quiser celebrar a missa completa com lucro para a sua alma, deve permanecer na
igreja até se dizer a Oração dominical e se dar a bênção ao povo68...

Regra das virgens 69


66. Com a ajuda de Deus, salmodiai com sabedoria. Quanto ao resto, julgámos 4962
oportuno inserir neste opúsculo, inspirando-nos principalmente na Regra do mosteiro de

64
Et bene et iuste faciunt.
65
Lev 23, 32.
66
Lev 23, 36.
67
Non tunc fiunt missae, quando divinae lectiones in ecclesia recitantur, sed quando munera offeruntur
et corpus et sanguis Domini consecratur.
68
Ideo, qui vult missas ad integrum cum lucro animae suae celebrare, usquequo oratio Dominica dicatur
et benedictio populo detur... se debet in ecclesia continere.
69
C ESÁRIO DE A RLES , Statuta sanctarum virginum (=PL 67, 1105 s; PLS 5, 402 s; SCh 345)
1208 SÉCULO VI

Lerins, uma regulamentação referente ao modo como deveis salmodiar. No primeiro dia
de Páscoa, na hora de Tércia, cantareis doze salmos com os seus aleluias e antífonas;
proclamar-se-ão três leituras: uma dos Actos dos Apóstolos, outra do Apocalipse e a
terceira do Evangelho; o hino Iam surgit hora tertia. Na hora de Sexta seis salmos com
uma antífona, o hino Iam sexta sensim volvitur, e as leituras. Na hora de Noa, do
mesmo modo, dir-se-ão seis salmos com uma antífona, o hino Ter hora trina volvitur,
a leitura e o versículo. No Lucernário, o salmo recitado por todos de um modo seguido
e três antífonas, o hino Hic est dies verus Dei. Este hino cantá-lo-eis durante todo o
tempo de Páscoa, tanto nas Matinas como nas Vésperas.
Na hora duodécima, começar-se-á com o Sol cognovit occasum suum, e dir-se-ão
dezoito salmos, três antífonas e o hino Christe precamur annue. No dia seguinte, à
mesma hora, cantar-se-á o hino Christe qui lux est et dies. E da mesma maneira, em todo
o tempo litúrgico, cantar-se-ão estes dois hinos alternadamente. Neste ofício pascal da
duodécima hora proclamar-se-ão como leituras, uma do Apóstolo e outra dos
Evangelhos da Ressurreição.
Nos Nocturnos cantar-se-ão dezoito salmos e as antífonas menores com os seus
aleluias, depois duas leituras, o hino e o versículo. Deste único modo se celebrarão
durante os sete dias. Depois da Páscoa dir-se-ão estes mesmos Nocturnos até às
Calendas de Outubro, e até às Calendas de Agosto só haverá vigílias nas sextas-feiras
e no domingo. Depois da Páscoa e até ao Pentecostes, na sexta-feira tomar-se-á só uma
refeição. E depois da hora duodécima haverá seis grupos de leituras, quer dizer, dir-se-ão
de cor dezoito leituras e, depois dos dezoito salmos, três antífonas. Depois dos
nocturnos proclamar-se-ão três séries de leituras, lendo no livro, até de madrugada.
4963 68. No Natal e na Epifania far-se-á Vigília desde a terceira hora da noite até à alva, de
tal modo que antes dos nocturnos se proclamarão seis grupos de leituras dos Evangelhos.
Nos dias comuns, em Tércia, Sexta e Noa, dir-se-ão seis salmos de cada vez com
as suas antífonas, hinos, leituras e preces. No domingo e no sábado, na hora de Tércia,
outra do Apóstolo e a terceira dos Evangelhos. E depois das leituras, seis salmos, uma
antífona, o hino e o versículo. Todos os dias de festa se acrescentarão três antífonas
aos doze salmos ditos em Tércia e as leituras relacionar-se-ão com o tema da festa.
4964 69. Depois das Calendas de Outubro até à Páscoa acrescentareis aos segundos
nocturnos dezoito salmos, duas leituras e um hino. Nos primeiros nocturnos direis no
início Miserere mei Deus secundum magnam misericordiam tuam, e no final Rex
aeterne Domine; no segundo nocturno, Magna et mirabilia. Na noite seguinte, no
primeiro nocturno dir-se-á Mediae noctis tempus est, e no segundo nocturno Aeterne
rerum conditor. No início dos segundos nocturnos começai com Miserere mei Deus,
miserere mei.
Depois dos nocturnos ler-se-ão três orações, e cantar-se-ão uma antífona, um
responsório e outra antífona. Seguidamente, até à alva, proclamar-se-ão quatro grupos
de leituras; na medida do possível, este número não se diminuirá nunca; jamais haverá
mudança na hora de despertar das irmãs, adiantando ou retardando o momento. Logo
a seguir dir-se-ão os salmos da regra pela manhã, cantando-os com antífonas nos dias
comuns e com aleluias nos dias festivos.
Todos os domingos se proclamarão seis grupos de leituras; depois fazem-se as
Matinas. No princípio, dizei seguido o salmo breve; o Confitemini dizei-o com antífona;
o Cantemus Domino e todos os outro salmos matutinos digam-se com os salmos
aleluiáticos. Nos sábados e em todos os dias de festa celebrar-se-á uma Vigília. E
nestas solenidades, terminadas as Matinas, digam o hino Te Deum laudamus. Quando
se celebrar no oratório exterior dir-se-á seguido o salmo breve, depois o cântico
Cantemus Domino, logo a bênção dos três jovens, a seguir a bênção e o hino Gloria in
excelsis Deo. Em seguida, dir-se-á Prima com seis salmos, o hino Fulgentis auctor
CESÁRIO DE ARLES 1209

aeteris e duas leituras, uma do Antigo Testamento e outra do Novo Testamento e a


oração. É este o modo como deve fazer-se no domingo, no sábado e nas grandes festas.
Nas Vésperas, no oratório exterior, dir-se-á do mesmo modo o salmo breve e três
antífonas, e um dia o hino Deus qui certis legibus e no dia seguinte o hino Deus creator
omnium.
Todos os domingos, nas Vigílias, se proclamarão os grupos dos Evangelhos; mas
sempre no primeiro grupo se proclamará um Evangelho da ressurreição, no domingo
seguinte outro Evangelho da ressurreição, e do mesmo modo no terceiro e no quarto
domingo. E enquanto se lê o Evangelho da ressurreição naquele primeiro grupo, e
sempre neste primeiro grupo, leia-se um Evangelho da ressurreição, e ninguém se
atreva a sentar-se; no entanto, depois, durante os seguintes cinco grupos de leituras,
todos permanecerão sentados segundo o costume.
Quando se celebram as festas dos mártires, no primeiro grupo de leituras leiam-se
dos Evangelhos, e as restantes das Actas dos Mártires. Nos dias comuns, nas Vigílias,
proclamar-se-ão os livros do Novo Testamento e do Antigo na seguinte ordem. No
Inverno proclamar-se-ão três grupos de leituras, cada dia, depois dos nocturnos.
Antes de mais, nas Vigílias, há-de moderar-se a própria leitura, de modo que a
comunidade fique com desejos de continuar. É por este motivo que, em cada oração,
não é preciso ler mais que duas páginas ou no máximo três. No caso de se chegar tarde
às Vigílias, ler-se-á uma só página por leitura ou o que a abadessa julgar oportuno. Ela
é que há-de decidir, e quando ela der o sinal, a leitora levantar-se-á prontamente para
que seja possível cumprir o número dos grupos de leituras segundo a Regra. Pela
mesma razão hão-de moderar-se as próprias Vigílias, de modo que as que gozam de boa
saúde não sejam vencidas pelo sono depois das Vigílias.
Depois de Matinas, durante todo o ano, as irmãs lerão até à segunda hora. A
seguir farão os seus trabalhos.
70. Quando alguma (irmã) morrer, velá-la-ão algumas irmãs até à meia-noite, lendo o 4965
Apóstolo. Depois da meia-noite, as que velaram descansarão até Matinas, e as que
velaram o resto do tempo lerão um grupo de leituras evangélicas e o resto do Apóstolo.
Assim se fará se a que morrer for idosa. Mas se for jovem far-se-ão dois grupos de
leituras do Apóstolo até Matinas.

Regra dos monges 70


20. Nas Vigílias, desde o mês de Outubro até à Páscoa, recitar-se-ão dois nocturnos 4966
e três grupos de leituras. O irmão lerá três fólios em cada grupo de leituras, e o oremos;
lerá as outras três, e o oremos.
21. Recitai uma antífona, um responsório e outra antífona; estas antífonas tomar-se-ão 4967
pela ordem do Saltério. Depois rezar-se-ão as Laudes, o salmo Exaltabo te, Deus meus
et Rex meus seguido. A seguir, por ordem, os salmos de Laudes antifonadamente.
Façam-se cada domingo seis grupos de leituras. Na primeira série leia-se sempre a
Ressurreição, permanecendo todos de pé. Terminados os grupos de leituras, recitar-se-ão
os salmos matutinos sem antífonas, Exaltabo te, Deus meus et Rex meus. Depois,
Confitemini. Logo a seguir, Cantemus Domino, Lauda, anima mea, Dominum, o
cântico da Bênção, Laudate Dominum de coelis, Gloria in excelsis Deo e o versículo.
Far-se-á deste modo em cada domingo.

70
C ESÁRIO DE A RLES , Regula monacorum (=PL 67, 1099 s; SCh 398).
1210 SÉCULO VI

4968 25. Em cada sábado e domingo e em todos os dias festivos dir-se-ão doze salmos, três
antífonas e três leituras, uma dos Profetas, outra do Apóstolo e a terceira do Evangelho.

Vida do bispo Cesário de Arles 71

LIVRO I

4969 14. Estabeleceu que o clero cantasse todos os dias os ofícios das horas de Tércia,
Sexta e Noa na basílica de Santo Estêvão, de modo que, se algum secular ou penitente
quisesse levar a cabo uma boa obra, tivesse a possibilidade de frequentar o ofício diário
sem qualquer desculpa.
4970 15. Teve o cuidado de mandar ensinar aos leigos salmos e hinos para que, uns em
grego e outros em latim, cantassem prosas e antífonas em voz alta e com ritmo, à maneira
dos clérigos, e desta forma não tivessem oportunidade de se entregar a conversas na igreja.
4971 19. Certo, olhando do altar, viu que alguns saíam da igreja depois da leitura do
Evangelho... Por causa disso, muitas vezes mandava fechar as portas da igreja, para
que os fiéis não saíssem antes de terminar a missa.

LIVRO II
4972 17. No Sábado Santo, quando se consagravam os óleos para o baptismo dos
competentes, as famílias mandavam os seus filhos que levavam ânforas com água e
outras com óleo para que fossem benzidas.
4973 19. Um dia, tendo-lhe sido apresentada uma mulher atormentada por obsessão,
impondo-lhe as mãos na cabeça, deu-lhe a bênção, e depois benzeu óleo e mandou que
a ungissem com ele durante a noite.

Ferrando de Cartago

Carta a Fulgêncio de Ruspas 72


4974 Segundo o costume, foi feito catecúmeno, apesar de ter passado pouco tempo;
ao aproximar-se a solenidade pascal, foi aceite entre os competentes, inscrito e ensinado;
depois de conhecer e também receber todos os mistérios venerandos da religião católica,
celebrou-se solenemente o escrutínio pelo exorcismo para o defender contra o Diabo;
a ele renunciou constantemente, como é costume daqui, e professou o Símbolo que
ouvira. Aprendeu de cor as próprias palavras do santo Símbolo e pronunciou-as com
voz clara diante do povo fiel, e aceitou a santa regra da Oração dominical.

71
Vita S. Caesarii episcopi (=PL 67, 1001-1042; MGH - Scriptores Rerum Merovingiarum III, 1885 s).
72
FERRANDO DE C ARTAGO , Epistula ad Fulgentium ep. (=PL 65, 378-380. 392-394; CCL 91). Ferrando era
diácono. Na sua carta resume muito bem todas as etapas da preparação baptismal. Morreu em 546.
BENTO DE NÚRCIA 1211

Bento de Núrcia

Regra dos monges 1


Prólogo. Escuta, filho, os preceitos do Mestre e inclina o ouvido do teu coração... 4975
Em primeiro lugar, qualquer obra que empreenderes, com instantíssima oração hás-de
pedir a Deus que a leve a bom termo; de modo que, havendo-Se dignado contar-nos
entre o número dos seus filhos, não tenha alguma vez de Se entristecer por causa das
nossas más acções. Com efeito, devemos em todo o tempo pôr ao seu serviço os bens
que em nós depositou, para não suceder que Ele, como pai irado, venha a deserdar os
seus filhos, ou, como tremendo Senhor irritado com os nossos pecados, nos entregue
a penas eternas, como servos perversos, que o não quiseram seguir para a glória...
Assim como há um zelo mau de amargura, que afasta de Deus e leva ao Inferno,
assim também há um zelo bom, que aparta dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna.
É este zelo que, com ardentíssimo amor, devem exercitar os monges, quer dizer:
antecipem-se uns aos outros na estima recíproca; suportem com muita paciência as
suas enfermidades, físicas ou morais; rivalizem em prestar mútua obediência; ninguém
procure o que julga útil para si, mas antes o que o é para os outros; amem-se mutuamente
com pura caridade fraterna; vivam sempre no temor e no amor de Deus; amem o seu
abade com sincera e humilde caridade; nada anteponham a Cristo, e Ele nos conduzirá
a todos à vida eterna...
Vamos então instituir uma escola do serviço do Senhor. E, ao instituí-la, esperamos
não estabelecer nada de rigoroso nem pesado...
1. As diversas espécies de monges. É sabido que há quatro espécies de monges. A 4976
primeira é a dos cenobitas, isto é, dos que vivem em mosteiro... A segunda é a dos
anacoretas ou seja eremitas..., que trocaram as fileiras fraternas pelos combates
singulares do ermo... A terceira espécie de monges, esta detestável, é a dos sarabaítas.
São os que, não submetidos nunca à prova de uma regra..., em suas obras continuam
guardando fidelidade ao século e mostram andar a enganar a Deus com a tonsura... A
quarta espécie de monges é a dos chamados giróvagos. Estes passam a vida a correr de
terra em terra...
4. Quais são os instrumentos das boas obras. Quais são os instrumentos das boas 4977
obras? Em primeiro lugar amar o Senhor com todo o teu coração, com toda a tua alma,
com todas as tuas forças; depois amar o próximo como a si mesmo... Nada antepor ao
amor de Cristo...
8. O ofício divino nocturno. Durante o Inverno, isto é, desde as Calendas de 4978
Novembro até à Páscoa, os monges levantam-se à oitava hora da noite... Os irmãos que
disso tiverem necessidade empreguem o tempo que resta depois das Vigílias no estudo
do saltério ou das leituras.
Desde a Páscoa até às sobreditas Calendas de Novembro, deve calcular-se a hora,
de modo que o ofício das Vigílias, após curtíssimo intervalo..., seja imediatamente
seguido de matinas, que hão-de dizer-se ao romper da aurora.
9. Quantos salmos se hão-de dizer nas horas nocturnas. No tempo do Inverno, de 4979
que acima se falou, diz-se em primeiro lugar, três vezes, o versículo: Abri, Senhor, os

1
B ENTO DE N ÚRCIA , Regula monasteriorum (=PL 66, 215-932; CSEL 75; SCh 181-186; L INDERBAUER ,
Sancti Benedicti Regula [FP 17], Bonn 1904). Não se sabe quando São Bento nasceu. Escreveu a sua
Regra entre 523 e 526 e deve ter morrido por volta de 547.
1212 SÉCULO VI

meus lábios, e a minha boca anunciará os vossos louvores; ao qual versículo se junta
o salmo terceiro e Glória. Depois deste, diz-se o salmo noventa e quatro, com antífonas
ou, pelo menos, cantado. Segue-se o ambrosiano; depois, seis salmos com antífonas.
Terminados estes e dito o versículo, dá o abade a bênção. E, sentados todos nos
bancos, lêem os irmãos, à vez, pelo livro colocado na estante, três lições, depois de
cada uma das quais se canta um responsório. Os dois primeiros responsórios dizem-se
sem Glória; mas, depois da terceira lição, o cantor diz o Glória. E, no momento em que
o cantor o começa, logo todos se levantam dos bancos, por honra e reverência da
Santíssima Trindade.
Os livros que se hão-de ler em Vigílias devem ser os da Sagrada Escritura, tanto
do Antigo como do Novo Testamento, e bem assim os comentários que deles fizeram
os mais categorizados Padres ortodoxos universalmente aceites.
Depois destas três lições com seus responsórios, seguem-se outros seis salmos,
que se hão-de cantar com Aleluia. A estes segue-se uma lição do Apóstolo, que se há-de
recitar de cor, o versículo e a súplica da ladainha, isto é, Kyrie eleison, e assim terminam
as Vigílias nocturnas.
4980 10. Como há-de celebrar-se o louvor nocturno no Verão. Desde a Páscoa até às
Calendas de Novembro, guarda-se na salmodia a mesma norma acima estabelecida;
salvo que, em razão de as noites serem curtas, não se lêem lições pelo livro, mas em
lugar das três lições, diz-se uma só, de cor, tirada do Antigo Testamento, à qual se
segue um responsório breve. Tudo o mais se deve fazer como acima ficou dito, convém
a saber, que nunca se digam nas Vigílias nocturnas menos de doze salmos, além do
terceiro e noventa e quatro.
4981 11. Como hão-de celebrar-se as Vigílias nos domingos. Aos domingos, levantam-se
os irmãos mais cedo para as Vigílias, nas quais se devem observar as seguintes normas.
Cantados, conforme acima ordenamos, seis salmos e o versículo, sentam-se todos
nos bancos, cada qual no seu lugar, por ordem, e lêem-se pelo livro, como acima
dissemos, quatro lições com seus responsórios. Só no quarto responsório é que o
cantor dirá Glória; e, apenas o começar, logo todos se levantam com reverência.
Depois destas lições, seguem-se, por ordem, outros seis salmos com antífonas,
como os anteriores, e o versículo. Depois deles, lêem-se outras quatro lições com seus
responsórios, da maneira acima indicada.
A seguir, dizem-se três cânticos dos Profetas, a determinar pelo abade. Estes
cânticos devem salmodiar-se com Aleluia. Dito o versículo e dada a bênção pelo abade,
lêem-se outras quatro lições, tiradas estas do Novo Testamento, pela mesma ordem
que acima.
Depois do quarto responsório, entoa o abade o hino Te Deum laudamus.
Terminado este, lê o abade uma lição tirada dos Evangelhos, durante a qual todos estão
de pé, com respeito e temor. No fim, respondem todos: Amen. E, em seguida, entoa o
abade o hino Te decet laus. E, dada a bênção, começam as Matinas.
Esta ordem das Vigílias deve observar-se aos domingos em todo o tempo, tanto
de Verão como de Inverno, salvo se acontecer – o que Deus não permita – levantarem-
se os irmãos mais tarde e se tenham, por isso, de encurtar um tanto as lições ou os
responsórios. No entanto, haja o máximo cuidado em que tal não aconteça; e, se
acontecer, faça condigna satisfação a Deus, no oratório, aquele que, por sua negligência,
disso tiver sido o causador.
4982 12. Como há-de celebrar-se o ofício de Laudes. Às Matinas de domingo, diz-se em
primeiro lugar o salmo sessenta e seis, sem antífona, todo seguido. Depois deste, diz-se
o cinquenta, com Aleluia; e a seguir o cento e dezassete e o sessenta e dois; depois, as
«Bênçãos» e os «Louvores», uma lição dos Apocalipse, de cor, o responsório, o hino, o
versículo, o cântico do Evangelho, a ladainha, e termina.
BENTO DE NÚRCIA 1213

13. Como hão-de celebrar-se as Laudes nos dias de semana. Nos dias de semana, 4983
o ofício de Matinas celebra-se da seguinte maneira. Diz-se o salmo sessenta e seis sem
antífona, como ao domingo, um tanto de vagar para que todos cheguem ao salmo
cinquenta, que se diz com antífona. Depois deste, dizem-se mais dois salmos, segundo
o costume, a saber: segunda-feira, o quinto e o trinta e cinco; terça-feira, o quarenta e
dois e o cinquenta e seis; quarta-feira, o sessenta e três e sessenta e quatro; quinta-
-feira, o oitenta e sete e oitenta e nove; sexta-feira, o setenta e cinco e o noventa e um;
sábado, o cento e quarenta e dois e o cântico do Deuteronómio, que se há-de dividir em
dois Glória. Nos outros dias, diz-se um cântico próprio de cada dia, tirado dos Profetas,
conforme canta a Igreja romana. Seguem-se os «Louvores»; depois, uma lição do
Apóstolo, que se há-de recitar de cor, o responsório, o hino, o versículo, o cântico do
Evangelho, a ladainha, e termina.
Os ofícios, tanto o matutino como o vespertino, nunca se devem terminar sem que
o superior, no fim de tudo, recite integralmente, de maneira que todos o ouçam, a Oração
dominical, por causa dos espinhos dos escândalos que costumam aparecer, para que,
concordes entre si pelo compromisso contido nesta Oração, em que dizem: Perdoai-
-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, se
purifiquem das faltas desta natureza. Nos outros ofícios, diz-se (em voz alta) apenas a
última parte da Oração, de modo que todos respondam: Mas livrai-nos do mal.
14. Como hão-de celebrar-se as Vigílias nas festas dos Santos. Nas festas dos 4984
Santos e em todas as solenidades, celebra-se o ofício como dissemos que se havia de
fazer aos domingos, com a diferença de que se hão-de dizer os salmos, antífonas e
lições próprias do dia. Quanto ao número, porém, observe-se a norma acima prescrita.
15. Em que tempos se há-de dizer Aleluia. Desde a santa Páscoa até ao Pentecostes, 4985
o Aleluia diz-se sempre, tanto nos salmos como nos responsórios. Desde o Pentecostes
até ao princípio da Quaresma, diz-se todas as noites, nos nocturnos, somente com os
seis últimos salmos. Todos os domingos, fora da Quaresma, se dizem com Aleluia os
cânticos de Matinas, Prima, Tércia, Sexta e Noa; Vésperas, porém, já se dizem com
antífona. Os responsórios, esses nunca se dizem com Aleluia, a não ser desde a Páscoa
até ao Pentecostes.
16. Como hão-de celebrar-se os ofícios divinos durante o dia. Como diz o Profeta: 4986
Sete vezes ao dia cantei os vossos louvores. Este sagrado número de sete cumpriremos
nós, se a Matinas, Prima, Tércia, Sexta, Noa, Vésperas e Completas nos
desempenharmos das obrigações do nosso ofício; pois foi destas horas do dia que o
disse o Profeta: Sete vezes ao dia cantei os vossos louvores. Das Vigílias da noite disse
o mesmo Profeta: À meia noite me levantava para Vos louvar.
Por conseguinte, àquelas horas ofereçamos os nossos louvores ao Criador, pelos
juízos da sua justiça, a saber: a Matinas, Prima, Tércia, Sexta, Noa, Vésperas e
Completas; e de noite levantemo-nos para O louvar.
17. Quantos salmos se hão-de cantar a estas mesmas horas. Regulámos já a ordem 4987
da salmodia dos nocturnos e Matinas. Vejamos agora as horas seguintes.
A Prima, dizem-se três salmos, separadamente e não sob um único Glória. O hino
desta hora diz-se depois do versículo Deus in adjutorium, antes de se começarem os salmos.
Acabados os três salmos, recita-se uma lição, o versículo, Kyrie eleison e preces finais.
Pela mesma ordem se celebra o ofício de Tércia, Sexta e Noa, a saber: versículo,
hino da respectiva hora, três salmos, uma lição, versículo, Kyrie eleison e orações
finais. Se a comunidade for muito numerosa, dizem-se os salmos com antífonas; se for
pouco numerosa, dizem-se todos seguidos.
O ofício de Vésperas constará de quatro salmos com antífonas. Depois destes
salmos, recita-se uma lição, responsório, hino, versículo, cântico do Evangelho, ladainha
e termina-se com a Oração dominical.
1214 SÉCULO VI

A Completas recitam-se apenas três salmos, que se dizem todos de seguida, sem
antífonas. Depois deles, diz-se o hino da mesma hora, uma lição, o versículo, Kyrie
eleison e termina-se com a bênção2.
4988 18. A ordem por que se hão-de dizer os salmos. Em primeiro lugar, diz-se o versículo
Deus, vinde em nosso auxílio; Senhor, socorrei-nos e salvai-nos.
Depois, a Prima do domingo, dizem-se quatro secções do salmo cento e dezoito;
e a cada uma das outras horas, ou seja, a Tércia, Sexta e Noa, dizem-se três secções do
referido salmo cento e dezoito.
A Prima da segunda-feira, dizem-se três salmos, a saber: o primeiro, segundo e
sexto. E assim, até domingo, se dizem a Prima, cada dia, três salmos, por ordem, até ao
salmo dezanove; dividindo, porém, em dois os salmos nono e dezassete. Deste modo,
as Matinas do domingo começam sempre pelo salmo vinte.
A Tércia, Sexta e Noa da segunda-feira, dizem-se as nove secções restantes do
salmo cento e dezoito, três a cada uma destas horas.
Distribuído assim o salmo cento e dezoito por dois dias, domingo e segunda-feira,
na terça-feira, a Tércia, Sexta e Noa, já se dizem a cada hora três salmos, desde o
cento e dezanove até ao cento e vinte e sete, ou seja nove salmos. Estes salmos
repetem-se todos os dias a estas mesmas horas, até ao domingo. E pelo que respeita
aos hinos, lições e versículos, mantém-se a mesma disposição. Desta forma, começar-se-á
ao domingo sempre pelo salmo cento e dezoito.
A Vésperas, cantam-se todos os dias quatro salmos, desde o cento e nove até ao
cento e quarenta e sete, pondo de parte os que ficam reservados para outras horas, que
são: desde o cento e dezassete até ao cento e vinte e sete, o cento e trinta e três e o
cento e quarenta e dois. Todos os mais se hão-de dizer a Vésperas. Mas, como há três
salmos a menos, dividem-se aqueles que, entre o número dos referidos, são mais
compridos, ou seja, o cento e trinta e oito, cento e quarenta e três e cento e quarenta e
quatro. O salmo cento dezasseis, como é pequeno, junta-se com o salmo cento e
quinze.
Regulada assim a ordem dos salmos de Vésperas, o resto, quer dizer, lição,
responsório, hino, versículo e cântico, diz-se conforme acima indicámos.
A Completas, repetem-se todos os dias os mesmos salmos, a saber: o quarto,
noventa e cento e trinta e três.
Regulada a ordem da salmodia diurna, todos os restantes salmos se hão-de
distribuir, em número igual, pelas Matinas dos sete dias da semana, partindo em dois
os salmos que, de entre estes, são mais compridos, de modo a ficarem doze para cada noite.
Chamamos particularmente a atenção para o seguinte: se a alguém não agradar
esta distribuição dos salmos, distribua-os ele doutra maneira que julgar melhor. De
qualquer forma, porém, haja todo o cuidado em que se recite na íntegra, cada semana,
o saltério de cento e cinquenta salmos, e a Matinas do domingo se volte sempre a
repetir desde o princípio. Com efeito, prova de excessiva frouxidão no serviço a que se
votaram dariam os monges que, no decurso duma semana, recitassem menos de um
saltério com os cânticos acostumados, quando lemos que os nossos santos Pais
animadamente se desempenhavam, num só dia, duma tarefa que nós outros, tíbios,
oxalá cumpramos em toda uma semana.
4989 19. A maneira de salmodiar. Cremos que Deus está presente em toda a parte, e que
por toda a parte o olhar do Senhor observa tanto os bons como os maus. Com mais
firmeza, porém, e sem hesitação alguma devemos crer que assim é, quando assistimos
ao ofício divino. Por isso, concordamos sempre com o que disse o Profeta: Servi o

2
Et fit missa cum benedictione.
BENTO DE NÚRCIA 1215

Senhor com temor. E ainda: Cantai os hinos mais belos. E mais ainda: Na presença
dos Anjos Vos hei-de cantar. Consideremos, pois, de que maneira temos de estar na
presença de Deus e dos seus Anjos, e guardemos tal atitude ao salmodiar, que o nosso
espírito concorde com a nossa voz 3.
20. A reverência na oração. Devemos apresentar as nossas súplicas ao Senhor Deus 4990
do universo com toda a humildade e pureza de devoção. E saibamos que não é pelas
muitas palavras que seremos atendidos, mas sim pela pureza do coração e compunção
de lágrimas. Por isso, deve a oração ser breve e pura, salvo se um toque da inspiração
da divina graça nos levar a prolongá-la. No entanto, em comunidade, a oração deve ser
muito breve e, dado o sinal pelo superior, todos se levantem ao mesmo tempo.
35. Os semanários da cozinha. Uma hora antes da refeição, tomem os semanários4, 4991
além da ração estabelecida, um copo de vinho e pão, para que, ao tempo da refeição,
sirvam os seus irmãos sem murmurar e sem se cansarem demais. Nos dias solenes,
porém, esperem até acabada a missa5.
Tanto os que entram como os que saem de semana, ao domingo, no fim de
Matinas, prostram-se no oratório aos pés de todos, pedindo que orem por eles. O que
sai diz este versículo: Bendito sejais, Senhor Deus, porque me ajudastes e
consolastes6. Repetido três vezes (por todo o coro), recebe a bênção e sai. Segue-se o
que entra, e diz: Deus, vinde em meu auxílio; Senhor, apressai-Vos a socorrer-me7.
E isto mesmo repetem todos três vezes e, recebida a bênção, entra (de serviço).
38. O leitor da semana. À mesa dos irmãos não deve faltar a leitura. No entanto, 4992
não deve ler quem for o primeiro a pegar no livro, mas o que houver de ler toda a
semana e tiver entrado no domingo para leitor. Este, antes de entrar de semana, depois
da missa e comunhão8, pedirá a todos que orem por ele, para que Deus afaste dele o
espírito de vaidade. (Para isso), dirão todos no oratório, três vezes, o seguinte versículo,
que ele começará: Abri, Senhor, os meus lábios, e a minha boca anunciará os vossos
louvores9. E, depois de receber assim a bênção, entre a ler.
Guarde-se à mesa absoluto silêncio, de forma que não se ouça murmúrio ou palavra
de ninguém e não ser tão somente a voz do leitor...
O leitor da semana tome um «misto» 10 antes de começar a ler, por respeito para
com a sagrada comunhão e para lhe não custar muito estar em jejum. No fim, coma com
os semanários da cozinha e com os serventes.
Os irmãos não devem ler ou cantar pela ordem (que ocupam na comunidade),
mas só os que o puderem fazer de maneira a edificar os ouvintes.
41. As horas da refeições. As Vésperas devem celebrar-se de modo que não haja 4993
necessidade de candeia para a refeição, mas termine tudo ainda com luz do dia...
42. Ninguém fale depois de Completas. Se for dia de jejum, ditas as Vésperas e após 4994
um pequeno intervalo, reúnem-se imediatamente os irmãos para a leitura das
«Colações»...
Uma vez todos assim reunidos, dizem as Completas. E, acabadas estas, a ninguém
é permitido dizer mais seja o que for...

3
Sic stemus ad psallendum, ut mens nostra concordet voci nostrae.
4
Os semanários eram os que entravam de serviço na cozinha no início de cada semana.
5
Na qual comungavam.
6
Sal 85, 17.
7
Sal 69, 2.
8
Post missam et communionem.
9
Sal 50, 17.
10
Um copo de vinho misturado com água.
1216 SÉCULO VI

4995 43. Os que chegam tarde ao ofício divino ou à mesa. À hora do ofício divino, tanto
que se ouvir o sinal, deixem imediatamente tudo quanto tiverem entre mãos e acorram
com toda a presteza, com gravidade, porém, não vá encontrar nisso alimento a
dissipação. Assim que nada se anteponha à obra de Deus.
Nas Vigílias nocturnas, se alguém chegar depois do Glória do salmo noventa e
quatro, o qual, por este motivo, queremos se diga muito pousada e lentamente, esse
não se vá colocar no seu lugar de ordem no coro, mas fique no último de todos ou num
lugar à parte que, para tais negligentes, o abade tiver designado, donde possa ser visto
por ele e por todos; e isto até que, terminado o ofício divino, faça penitência,
satisfazendo publicamente.
A razão por que achamos bem deverem ficar no último lugar ou num lugar à
parte, é para que, sendo vistos por todos, ao menos por vergonha se emendem.
Porquanto, se ficassem fora do oratório, haveria acaso quem se fosse outra vez deitar
a dormir ou se sentasse cá fora ou se entretivesse em conversas frívolas... Por isso,
melhor é que vá lá para dentro, a fim de não perder tudo e se emendar para o futuro.
Às horas diurnas, quem chegar ao ofício divino depois do versículo (Deus, vinde
em nosso auxílio) e do Glória do primeiro salmo que se diz depois deste versículo,
fique no último lugar, segundo a norma que acima estabelecemos, e não se atreva a
associar-se ao coro dos irmãos que salmodiam, enquanto não tiver feito satisfação,
salvo se o abade o permitir, concedendo-lhe o perdão; mas isto mesmo, com a condição
de o culpado fazer satisfação por esta falta...
4996 44. Como hão-de satisfazer os excomungados. Aquele que, por culpas graves, tiver
sido excomungado do oratório e da mesa, conserve-se prostrado à entrada do oratório,
enquanto nele se celebra o ofício divino, sem dizer palavra, com a cabeça posta de face
para a terra e o corpo estendido aos pés de todos os que saem do oratório. E isto faça
até que o abade julgue completa a satisfação. E, quando o abade o chamar, vá-se
prostrar a seus pés, depois aos pés de todos os irmãos, para que orem por ele. E então,
se o abade mandar, seja recebido no coro, no lugar de ordem que o mesmo abade
determinar. Contudo, não se permita, no oratório, entoar salmo nem ler lição ou outra
coisa qualquer, sem nova ordem do abade. E a todas as horas, ao terminar o ofício
divino, prostre-se por terra, no lugar em que está, e assim satisfaça, até que o abade lhe
torne a mandar que cesse por uma vez dessa satisfação.
Os que, por culpas leves, forem privados apenas da comunhão da mesa, façam
satisfação no oratório até ordem do abade. E façam-na, até que ele lhes dê a bênção e
diga que basta.
4997 45. Os que cometem alguma falta no oratório. Se alguém se enganar na recitação
dum salmo, responsório, antífona ou lição, e não se humilhar logo ali, diante de todos,
fazendo satisfação, seja castigado mais severamente, por isso que não quis emendar
com um acto de humildade uma falta por negligência...
4998 47. O toque ou sinal para o ofício divino. É o abade quem deve ter ao seu cuidado
anunciar a hora do ofício divino, tanto de dia como de noite, ou dando ele próprio o
sinal ou encarregando disso um irmão tão solícito, que tudo se faça às horas competentes.
Os salmos e antífonas, entoá-los-ão, depois do abade, por ordem, aqueles que
disso forem encarregados. Ninguém se atreva a cantar ou ler, senão quem for capaz de
desempenhar esse ofício, de modo a edificar os ouvintes. E isto se faça sempre com
humildade, gravidade e santo temor, e aquele só a quem o abade mandar.
4999 48. O trabalho manual de cada dia. Aos domingos, todos se devem ocupar em
leitura, salvo aqueles que forem deputados para os diversos ofícios. Se, porém, houver
algum irmão tão negligente ou preguiçoso que não queira ou não possa meditar ou ler,
seja encarregado de algum trabalho que possa fazer, de modo a não estar ocioso.
BENTO DE NÚRCIA 1217

52. O oratório do mosteiro. O oratório seja o que o seu nome indica, e coisa alguma 5000
outra ali se faça ou guarde. Findo o ofício divino, saiam todos em profundo silêncio,
possuídos de reverência para com Deus; de modo que, se algum irmão quiser continuar
a orar em particular, não seja estorvado pela importunidade de outrem. Aliás, se
alguém quiser orar em particular, com mais recolhimento, entre simplesmente e ore,
não em altas vozes, mas com lágrimas e fervor do coração. E a quem assim não fizer,
não se lhe permita, findo o ofício divino, demorar-se no oratório, como se disse, para
que outrem não seja estorvado.
53. O acolhimento dos hóspedes. Todos os hóspedes que se apresentam sejam 5001
recebidos (no mosteiro) como se fosse Cristo em pessoa... E, antes de mais, façam
oração em comum, e só depois se dêem mutuamente a paz. O ósculo da paz não se deve
dar senão depois de feita a oração... Recebidos assim os hóspedes, levem-nos à oração
e, depois, sente-se com eles o superior ou quem este mandar. Leia-se diante do hóspede
a lei divina, para que se edifique; e, depois disto, usem para com ele de toda a humanidade.
O superior quebre o jejum, em atenção ao hóspede, salvo se for dia de jejum dos
principais, que se não possa quebrar. Os irmãos, porém, continuem com os jejuns
costumados.
O abade deite água às mãos dos hóspedes. E, tanto ele como toda a comunidade,
a todos os hóspedes lavem os pés...
58. A forma de receber os irmãos. Examinem cuidadosamente se o noviço, na verdade, 5002
busca a Deus, se é possuído de zelo pelo ofício divino... Aquele que houver de ser
recebido faça no oratório, na presença de todos, promessa de estabilidade, vida de
perfeição e obediência, ali na presença de Deus e dos seus Santos... Desta promessa
faça uma carta ou petição... Esta carta deve ser escrita pelo próprio punho ou, se
porventura não souber escrever, escrita por outrem a rogo dele; o noviço põe-lhe a
assinatura e, com suas próprias mãos, coloca-a em cima do altar. E, apenas a tiver
colocado, começa logo o noviço este versículo: Recebei-me, Senhor, segundo a vossa
promessa para que eu viva e não seja desiludida a minha esperança 11. Este versículo
toda a comunidade o repete por três vezes, acrescentando (à terceira vez) Glória ao
Pai. Em seguida, o irmão noviço prostra-se aos pés de cada um (dos irmãos) para que
orem por ele. E, daquele dia em diante, passa a ser contado como membro da comunidade.
Se (o noviço) possuir alguns bens, ou os distribui de antemão pelos pobres ou
faz deles doação solene ao mosteiro, não se reservando para si absolutamente nada;
porquanto sabe que daquele dia em diante nem sequer do seu próprio corpo pode dispor.
Ali mesmo, no oratório, é em seguida despojado das vestes com que anda vestido,
e revestido do hábito do mosteiro. Entretanto, a roupa que despiu põe-se a guardar na
rouparia, para que, se um dia, por sugestão do Demónio, consentir em abandonar o
mosteiro (o que Deus não permita), lhe tirem o hábito do mosteiro e assim o mandem
embora. A carta de profissão, porém, que o abade recolheu de cima do altar, essa não
lhe será entregue, mas ficará guardada no mosteiro.
60. Os sacerdotes que porventura quiserem recolher-se no mosteiro. Se alguém da 5003
ordem sacerdotal pedir para ser recebido no mosteiro, não se aceda logo ao seu desejo.
Mas, se persistir absolutamente no seu pedido, deve saber que fica obrigado a observar
toda a disciplina da Regra...
Todavia, conceda-se-lhe um lugar a seguir ao abade, bem como dar as bênçãos e
celebrar a missa12, com a condição de o abade a isso o autorizar...
62. Os sacerdotes do mosteiro. Se um abade quiser mandar ordenar, para serviço do 5004
seu mosteiro, presbítero ou diácono, escolha de entre os seus monges quem seja digno

11
Sal 118, 116.
12
Missas tenere.
1218 SÉCULO VI

do sacerdócio. E o que houver recebido a ordenação veja não se deixe levar pela exaltação
do orgulho. Em nada se intrometa fora daquilo que o abade lhe mandar, porquanto se
deve considerar muito mais sujeito à disciplina da Regra...
Considere sempre como seu o lugar que lhe toca pela sua entrada para o mosteiro,
salvo no que respeita ao ministério do altar ou se acaso o sufrágio da comunidade e a
vontade do abade... o colocarem em lugar mais elevado...
5005 63. A ordem da comunidade. No mosteiro guardem (os irmãos) o lugar (que lhes
compete) conforme a data de entrada para a vida religiosa... Por essa mesma ordem
hão-de receber a paz e a comunhão, entoar os salmos e estar no coro...
5006 64. A ordenação do abade. Na instituição do abade, ter-se-á sempre presente esta
norma: Seja instituído aquele que houver sido eleito por acordo unânime de toda a
comunidade ou por uma parte só da comunidade, embora menos numerosa, orientada
por mais são conselho...
Se porventura... toda a comunidade, de comum acordo, vier a escolher pessoa
conivente com os seus desregramentos e estes chegarem ao conhecimento do bispo a
cuja diocese pertence aquele lugar ou dos abades e cristãos vizinhos, obstem os mesmos
a que prevaleçam as maquinações dos maus e ponham à frente da casa de Deus um
administrador digno...

Cassiodoro

Comentários aos Salmos 1


5007 Prefácio ao Saltério. São os salmos que nos tornam as vigílias agradáveis, quando
no silêncio da noite, se ouve cantar a voz humana nos coros que salmodiam, para voltar
a dizer, com palavras moduladas pela arte, a finalidade da palavra divina em ordem à
salvação do género humano. O canto, que deleita os ouvidos e educa as almas, faz uma
só coisa com a voz dos que salmodiam; e, como nós não podemos ouvir os Anjos de
Deus, misturamos as palavras de louvor, por meio d’Aquele que veio da descendência
de David, o Senhor Jesus Cristo, tal como Ele próprio diz no Apocalipse: Eu sou o
descendente e a estirpe de David. Foi por Ele que recebemos a religião salvadora e
conhecemos os mistérios revelados da Trindade santa.
É mérito dos salmos unir, numa mesma glória, o Pai, o Filho e o Espírito Santo2,
para que seja confirmado o seu louvor perfeito. Eles unem na exultação o dia que há-de

1
C ASSIODORO , Expositio psalmorum (=PL 70, 9-1056; CCL 97-98). Cassiodoro fundou o célebre mosteiro
de Vivarium. Os comentários aos Salmos foram escritos em 545. Cassiodoro nasceu em 490 e deve ter
morrido por volta de 570.
2
Através da doxologia final.
CASSIODORO 1219

vir nas Laudes, levam-nos a dedicar a Deus a primeira hora do dia e a consagrar-Lhe a
hora de Tércia; eles alegram-nos na hora Sexta através da fracção do pão, desligam-
nos dos jejuns na hora Nona, com eles concluímos os últimos momentos do dia e por
meio deles nos aproximamos da noite, para que a nossa alma não caia nas trevas, como
eles próprios dizem: Se as trevas me ocultarem, a luz, em volta de mim, se fará noite
(138, 11-12)... Os salmos são verdadeiros depósitos da verdade; neles cabem todas as
virtudes, neles se misturam todos os perfumes divinos, e estão cheios de todos os tesouros
celestes. São odres que recebem o vinho celeste e o conservam na novidade da sua
pureza, na sua doçura admirável, que o não azedam devido à corrupção do tempo, mas
o fazem permanecer na sua autenticidade, aumentando-lhe sempre o gosto da sua
suavidade puríssima. Os salmos são uma adega riquíssima. Apesar de beberem dela
tantos povos da terra, não perde a sua fertilidade.
Como é admirável a suavidade que deles se desprende quando os cantamos! A
doçura do órgão rivaliza com as vozes humanas; o som das tubas ressoa como grandiosas
aclamações; a cítara harmoniza-se perfeitamente com as cordas vocais dos seres vivos;
e tudo o que antes era feito pelos instrumentos musicais, desenvolvem-no agora os
seres inteligentes... A doçura da poesia deleita o espírito, mas não leva até às lágrimas
frutuosas; agrada aos ouvidos, mas não eleva os que a escutam até às coisas do alto.
Porém, quando cantamos os salmos e prestamos atenção ao que dizemos com os lábios,
sentimos o espírito compungido, como diz o Saltério: Feliz o povo que sabe louvar-Vos,
Senhor, e também: Deus é o rei de toda a terra, cantai-Lhe um poema de louvor.
SALMO 65

Hei-de cumprir os meus votos para contigo: isto quer dizer que hei-de cantar 5008
para sempre os teus louvores, ou seja, com os Anjos e os Arcanjos, com os Tronos e as
Dominações, hei-de proclamar eternamente o hino da tua misericórdia...
O nosso costume é chamar nocturnos àquilo que o salmista chama vigílias.
SALMO 101

O cristão, ao orar, deveria aplicar-se a compreender o sentido das palavras que 5009
utiliza, para pensar no que reza e para ver com a mente Aquele a quem suplica... A
oração dos que cantam será aceite por Deus, se for gerada por uma mente pura que a
voz do cântico explica.
SALMO 104

O Aleluia acomoda-se com facilidade às santas festividades. Ora ornado pela 5010
língua dos cantores, ora como resposta alegre da assembleia do Senhor, vai variando
sempre com tropos novos, como se fosse um bem inexaurível3.
SALMO 118

Se entendermos à letra a passagem onde o salmista diz: Sete vezes ao dia, ela 5011
significa os sete momentos em que a devoção dos monges se sente consolada, isto é,
Matinas, Tércia, Sexta, Noa, Vésperas 4, Completas5, Nocturnos. Santo Ambrósio
confirma-o num hino da hora Sexta.

3
Hoc (Alleluia) sanctis festivitatibus decenter accomodatum. Hinc ornatur língua cantorum, istud aula
Domini laeta respondet, et tamquam insatiabile bonum tropis semper variantibus innovatur.
4
Lucernaria.
5
Completoriis.
1220 SÉCULO VI

Leôncio de Constantinopla

Homilias Pascais 1

HOMILIA 1

5012 8. Como te ensinaram, ó novo iluminado, observa as práticas religiosas; como


foste baptizado, profere a doxologia; como foste regenerado, crê e cresce; guarda
a fé que recebeste; não rasgues o que vestiste; não vendas o que adquiriste; foste
regenerado como a águia, busca as coisas do alto; saíste de Sodoma, não voltes
para trás...
HOMILIA 2

5013 1. É oportuno, harmonioso e conveniente para nós, neste momento, crer em David, o
cantor sagrado, dizendo estas palavras às quais respondíamos há pouco: Eis o dia que
o Senhor fez; passemo-lo em júbilo e alegria, porque vimos o que tínhamos desejado,
tocámos o que procurámos, compreendemos o que ouvimos, porque se levantou a
Primavera dos cristãos, desabrocharam as flores dos santos, cresceram os lírios dos
novos iluminados e resplandecem os filhos da piscina baptismal. Verdadeiramente Eis
o dia que o Senhor fez; passemo-lo em júbilo e alegria. Ó dia, dia entre todos os dias!
Ó dia que pôs termo à obscuridade da ignorância e fez conhecer a luz do conhecimento!
Ó dia que tornou vã a noite da Sinagoga e deixou entrever a aurora da Ressurreição! Ó
dia que aboliu as trevas dos descrentes e pacificou a razão dos crentes! Ó dia que
manifestou da mesma maneira um imperador e um simples particular! Ó dia que despojou
o Diabo e não lhe deixou nenhum devedor! Ó dia que consagrou antigos escravos para
serem agora sacerdotes dos seus senhores! Ó dia que ofereceu ao altar do sacrifício tão
belas pombas espirituais.
5014 2. Onde se alimentam agora os corvos dos Sabatinos 2 ? Onde estão os vãos
problemas daqueles que despojaram a festa da Páscoa? Quando é que o Diabo
perdeu uma quantidade de filhos, então ou agora? Quando é que a rede do mestre
que ensina capturou tantos passarinhos espirituais, então ou agora? Quando é que
as luzes alimentadas com azeite e cera eclipsaram os raios do sol, então ou agora?
Quando é que as janelas, pórticos e vestíbulos das casas mostraram uma tão grande
bordadura de lâmpadas, então ou agora? Estas palavras não te persuadem nada, ó
celebrante clandestino da Páscoa?... Não vês que, no dia de hoje, debaixo do céu,
tudo se veste de túnicas brancas?... Como celebras a festa, se nunca vestes roupas
limpas?... É certo que não são as vestes que salvam o homem, mas uma alma clara
e uma vida virtuosa. Ora é preciso, seja de que forma for, que quem celebra a
Ressurreição use a veste que convém a esta festa, adaptada às suas posses, não
acima dos seus meios: por isso hoje, entre nós, mesmo os pobres são vestidos de
túnicas reais para a procissão da prótese...

1
L EÔNCIO DE C ONSTANTINOPLA , Homilia in sanctum pascha (=SCh 187). Pouco ou nada se sabe acerca de
Leôncio, presbítero de Constantinopla. Deverá ter morrido por volta de 550.
2
Os Sabatinos celebravam a festa da Páscoa no mesmo dia dos Judeus.
PAPA VIGÍLIO 1221

Papa Vigílio

Cartas 1

CARTA 1 2

Recebemos a carta que nos dirigiste e bendizemos a Deus, porque, em sua 5015
providência, mesmo em lugares tão remotos do mundo, Se digna dar às suas ovelhas
pastores que as guiam às pastagens da salvação...
1. Em primeiro lugar e no que diz respeito aos seguidores da heresia de Prisciliano..., 5016
que parecem rejeitar a alimentação de carnes, a pretexto de abstinência simulada...,
nem reprovamos a abstinência que é agradável a Deus, nem admitimos na nossa
comunhão os que rejeitam aquilo que Deus criou.
2. Sobre o modo de celebrar solenemente o baptismo, ficarás a conhecer, pelo que 5017
adiante vai exposto, o que a autoridade apostólica determinou e observa a tal respeito.
Consideramos, porém, como indício de um novo erro o facto de, quando todos os
católicos dizem no fim dos salmos: Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto, alguns,
como indicas, omitindo uma sílaba conjuntiva, procurarem atenuar a denominação
perfeita da Trindade, dizendo: Gloria Patri, et Filio, Spiritui Sancto. A própria razão
nos mostra, com evidência, que retirada aquela sílaba se designa o Filho e o Espírito
Santo como se fossem uma só pessoa. Para convencer de erro a esses tais, basta pensar
que nosso Senhor Jesus Cristo, ao determinar que o baptismo dos crentes fosse
administrado com a invocação da Trindade, disse: Ite docete omnes gentes, baptizantes
eos in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Logo, não tendo Ele dito In nomine
Patris, et Filii, Spiritus Sancti, mas tendo mandado que se nomeasse com igual distinção
o Pai, o Filho e o Espírito Santo, é óbvio que se afastam totalmente da doutrina do
Senhor os que quiseram tirar alguma coisa a esta confissão. Os que permanecerem
neste erro não podem estar unidos a nós.
3. Acerca dos que receberam a graça salutar do baptismo e depois foram de novo 5018
baptizados pelos Arianos..., deverá deixar-se o caso à tua apreciação e dos outros
pontífices, nas suas dioceses, para que, se a qualidade e a devoção do penitente
merecerem aprovação, não demore o remédio do perdão. Todavia, a sua reconciliação
não deve acontecer pela imposição das mãos que se faz mediante a invocação do
Espírito Santo, mas através daquela pela qual se adquire o fruto da penitência e se
completa a restituição à santa comunhão.
4. Se uma igreja onde nunca existiram relíquias for destruída e vier a ser novamente 5019
reedificada, nada obsta que nela se repita a celebração da consagração, não sendo
preciso aspergi-la com água benta. Sabemos, com efeito, que para a consagração de
uma igreja em que não se põem relíquias, basta a celebração da missa. Por isso, qualquer
basílica edificada em honra dos Santos, e restaurada desde os alicerces, fica sem dúvida
plenamente consagrada a partir do momento em que aí foi celebrada missa. Mas, se
tiverem sido retiradas as relíquias que nela havia, receberá de novo a reverência da
santificação pela reposição das mesmas e a celebração da missa.

1
P APA V IGÍLIO , Epistulae et decreta (=PL 69, 15-144; 84, 829-832). Vigílio foi Papa entre 537 e 555.
2
Epistula ad Profuturum (=PL 69, 15 s; PL 84, 829-832; F ORTUNATO DE A LMEIDA , vol. IV, 49-53; J. O.
B RAGANÇA , Braga 1968). Revimos a tradução de Fortunato de Almeida. Esta carta é de 29 de Junho de 538.
1222 SÉCULO VI

5020 5. Ficai sabendo que nós, se Deus quiser, havemos de celebrar a próxima Páscoa no
décimo primeiro dia antes das Calendas de Maio (21 de Abril). Também vos damos a
saber que não alteramos a ordem das preces na celebração da missa, em nenhum tempo
ou festividade, mas consagramos sempre com o mesmo texto as oblatas oferecidas a
Deus. Quando é preciso celebrar as festas da Páscoa, da Ascensão do Senhor, do
Pentecostes, da Epifania e dos Santos de Deus, acrescentamos parágrafos especiais,
próprios desses dias, e nos quais fazemos a comemoração da solenidade particular ou
do santo cujo natalício celebramos; e, quanto ao resto, continuamos a ordem habitual3.
Por isso vos enviamos o próprio texto das orações do cânone4 que, por graça de Deus,
recebemos da tradição apostólica, e que ajuntamos no fim desta carta. E, para que a tua
caridade saiba em que passagens deverá adicionar o que é próprio de cada festividade,
juntamos também as preces do dia de Páscoa. Dadas estas respostas às perguntas da
tua fraternidade, pedimos com todas as nossas forças a Deus nosso Senhor que
multiplique os dons da sua graça em todas as Igrejas da religião católica e em todos os
fiéis, e Se digne tornar todos os povos imunes a todas as ciladas tanto do inimigo
espiritual, como do inimigo corporal. Damos-te ainda a saber que te enviamos as
relíquias dos bem-aventurados Apóstolos e mártires, na esperança de que, doravante,
a vossa fé seja plenamente ajudada pelos seus méritos.
5021 6. Se algum bispo ou algum presbítero não baptizar, como é preceito do Senhor, em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, mas sim numa só pessoa da Trindade, ou em
duas, ou em três Pais, ou em três Filhos, ou em três Paráclitos, seja excluído da Igreja
de Deus.
5022 7. Homem nenhum, pouco sábio ou muito sabedor, põe em dúvida que a Igreja
romana é o fundamento e o modelo das Igrejas e que a partir dela tiveram princípio
todas as Igrejas, como é sabido pelos verdadeiros crentes. Com efeito, embora todos
os Apóstolos fossem escolhidos de igual modo, todavia a São Pedro foi concedido que
presidisse aos outros... Por esse motivo a santa Igreja romana, consagrada pela palavra
do Senhor em atenção a Pedro, e consolidada pela autoridade dos santos Padres, tem o
primado sobre todas as Igrejas e, perante ela, como autoridade suprema que é, devem
ser levados os problemas e processos mais importantes dos bispos e as queixas e
questões maiores das Igrejas... Por isso, é evidente que são reservados à Santa Sé os
processos de todos os bispos que apelam para a mesma Sé Apostólica e bem assim
todas as chamadas causas maiores...
Dada nas Calendas de Março, sendo cônsules os ilustríssimos Volusiano e João5.
CARTA 4 6

5023 Por tradição antiga todos nós, os pontífices, ao oferecermos o sacrifício, pedimos
e suplicamos que o Senhor Se digne congregar, governar e defender a Igreja em toda a
terra 7 .

3
Ordinem quoque precum in celebritate missarum, nullo nos tempore, nulla festivitate significamus habere
diversum, sed sempre eodem tenore oblata Deo munera consecrare. Quoties vero Paschatis, aut
Ascensionis Domini vel Pentecostes et Epiphaniae, Sanctorumque Dei fuerit agenda festivitas, singula
capitula diebus apta subiungimus, quibus commemorationem sanctae solemnitas, aut eorum facimus
quorum natalitia celebramus; caetera vero ordine consueto prosequimur.
4
Quapropter nos ipsius canonicae precis textum dirigimus. É a primeira vez que se encontra a expressão
canonicae precis no sentido de Oração eucarística ou Cânone.
5
Data errada. A data certa é 29 de Junho de 538.
6
Epistula 4 ad Iustinianum (=PL 69, 21-25. 67).
7
Pro Ecclesia quam adunare, regere, custodire digneris.
PELÁGIO I 1223

Papa Pelágio I

Cartas 1

CARTA AO BISPO DE GRUMENTO 2

Recebemos a carta da tua Caridade, na qual nos dás a saber que o teu diácono 5024
Latino foi escolhido de maneira conveniente para a Igreja Marceliana, pelo clero e por
todos... Escrevemos para que ele viesse... Mas agora dizemos que, se todos o elegeram
e tu o queres ceder..., que venha depressa, se puder antes do dia santo, para poder ser
ordenado, com a graça de Deus, na própria noite de sábado depois do baptismo. De
outro modo terá de esperar até aos jejuns do quarto mês 3.
CARTA AO BISPO BOM

O prefeito Teodoro, nosso filho (que construiu, na sua propriedade, uma basílica 5025
dedicada a São Lourenço), lembrou-nos que encontrou Rufino, monge de vida e costumes
comprovados, e pediu-me que o consagrasse presbítero, mas eu não quis conceder-lhe
imediatamente essa prerrogativa. Por isso, no primeiro sábado depois de teres recebido
a minha carta, ordenarás Rufino subdiácono e, se Deus quiser e eu viver, fá-lo-ei
presbítero na semana mediana, a fim de que ele possa, quando chegarem as próximas
festas pascais, celebrar os santos mistérios na citada basílica4.
CARTA AOS BISPOS DA TOSCANA

Como é que vós acreditais não estar separados da comunhão de toda a terra, se, 5026
na celebração dos santos mistérios, não fazeis, como é costume, memória do meu nome?
CARTA 21 5

Sobre os hereges (que querem voltar à Igreja católica, a propósito dos quais)... 5027
pensaste que devias consultar-nos..., para saberes se devem ser baptizados ou
simplesmente reconciliados, quero... que guardes esta observância...: uma vez que
afirmam ter sido baptizados só em nome de Cristo e com uma só imersão, e como o
mandato evangélico... nos adverte que devemos dar o santo baptismo a cada um em
nome da Trindade e também por tríplice imersão..., se realmente os hereges... confessam
que talvez tenham sido baptizados só em nome do Senhor, quando voltarem à fé
católica baptizá-los-ás, sem qualquer hesitação, em nome da santa Trindade. Se, ao
contrário..., por manifesta confissão aparecer claro que foram baptizados em nome da
Trindade, depois de lhes dispensares só a graça da reconciliação, apressar-te-ás a uni-
-los à fé católica...

1
PAPA PELÁGIO, Epistulae (=PL 69, 139. 145. 156; 68; 69; 72; THIEL, Braunsberg 1868). Papa entre 556 e 561.
2
Epistula Tulliano episcopo Grumentino.
3
Quatro Têmporas de Junho.
4
Este monge foi ordenado subdiácono e a seguir presbítero, sem passar pelo diaconado. O Liber Pontificalis
dá-nos a conhecer o cursus honorum de uma quinzena de Papas, entre os séculos VIII e IX. Seis
passaram directamente do diaconado a bispos e os nove restantes tinham passado de subdiáconos a
presbíteros, sem passarem pelo diaconado.
5
Esta carta foi escrita ao bispo Gaudêncio de Volterra em 558 ou 559.
1224 SÉCULO VI

Eutíquio de Constantinopla

Páscoa e Eucaristia 1
5028 8. Há alguns que agem insensatamente, quando, em solene procissão litúrgica, se
dirigem para o altar, levando os pães da oblação e o cálice acabado de preparar, ao
mesmo tempo que o povo canta um hino sálmico adaptado para acompanhar os que
transportam os dons, e no qual dizem que levam ali o Rei da glória, pois já chamam
assim àqueles dons, antes da invocação do pontífice ter realizado a consagração do pão
e do cálice, objectos desta honra. Pode ser que eu ignore o verdadeiro sentido daquele
hino. Mas, o grande Atanásio, no seu sermão aos recém-baptizados, diz o seguinte:
«Verás que os diáconos levam os pães e o cálice com vinho, e os colocam no altar.
Enquanto as preces e invocações não tiverem sido proferidas, aquelas coisas são apenas
pão e um cálice. Mas, imediatamente depois de terem sido ditas aquelas preces longas
e admiráveis, o pão torna-se o Corpo de nosso Senhor Jesus Cristo, e o cálice torna-se
o seu Sangue». E depois acrescenta: «Venhamos à compreeensão dos mistérios. Este
pão e este cálice, antes das súplicas e das preces, nada mais contêm do que a sua
natureza própria; mas, assim que as longas preces e santas invocações tiverem sido
pronunciadas, o Verbo desce ao pão e ao cálice, e o seu Corpo torna-se realidade».

Papa João III

Cartas 2

CARTA AOS BISPOS DA GERMÂNIA E DA GÁLIA

5029 1. Chegou ao conhecimento da Sé Apostólica... que alguns chorespíscopi... dão o


Espírito Santo pela imposição das mãos e fazem ilicitamente outras coisas que só per-
tencem aos bispos... 3. Se eles não são bispos, e ambicionam ser mais do que presbíteros,
qual foi a porta por onde entraram? Se existem apenas essas duas ordens na Igreja e
não há mais nenhuma porta para chegar ao ministério pastoral, por onde entrará o pastor?
CARTA A EDALDO, BISPO DE VIENA

5029a Saiba a tua Caridade que os ritos da missa, acerca dos quais fazes perguntas na tua
carta, variam conforme as diversas Igrejas: são de um modo na Igreja de Alexandria, de outro
na de Jerusalém, de outro na de Éfeso, de outro na de Roma. A tua Igreja deve observar os
costumes e instituições desta última, pois foi dela que recebeu o fundamento da santa tradição...
Escrito por outra mão: A bênção dos Apóstolos vos defenda das chuvas perigosas.

1
E UTÍQUIO DE C ONSTANTINOPLA , De paschate et de sacrosancta eucharistia (=PG 86, 2391-2402). Eutíquio
foi bispo de Constantinopla entre 552 e 565.
2
PAPA J OÃO III, Epistulae (=PL 72, 9-18; MANSI , IX). A carta a Edaldo é de 565. João III foi Papa entre 561
e 574
MARTINHO DE BRAGA 1225

Martinho de Braga

A instrução dos rústicos 1


1. Desejamos, filhos caríssimos, instruir-vos, em nome do Senhor, nalgumas coisas 5030
que ainda não ouvistes ou das quais vos esquecestes... 2. Chamou-se o primeiro homem
Adão... e, quando a multidão reproduzida começou a encher o mundo..., começaram a
prestar culto às criaturas, esquecendo o Criador. Uns adoravam o Sol, outros a Lua ou
as estrelas, uns o fogo, outros a água subterrânea ou as fontes das águas... 3. Foram os
Demónios que persuadiram os rústicos ignorantes a levantar-lhes templos, a colocar
dentro deles os retratos e as estátuas desses malvados e a consagrar-lhes altares onde
derramarão sangue de animais e até de seres humanos. Além disso, a maior parte dos
Demónios, de entre os que foram expulsos do Céu, estão de vigia sobre as ondas do
mar, os rios, as fontes e os bosques. Os homens que ignoram o verdadeiro Deus
veneram-nos como divindades e oferecem-lhes sacrifícios. Chamam Neptuno aos do
oceano, Lâmias aos dos rios, Ninfas aos das fontes, Diana aos dos bosques; mas, na
realidade, todos eles são Demónios malfeitores, espíritos do mal, que atormentam e
maltratam os homens descrentes que não sabem proteger-se deles pelo sinal da cruz.
Mas esses Demónios não podem causar mal sem permissão de Deus... Muito fracos
são os cristãos que designam cada um dos dias da semana pelo nome dos próprios
Demónios, e que falam do dia de Marte, de Mercúrio, de Júpiter, de Vénus e de
Saturno, todos eles Demónios que não criaram dia nenhum, mas foram homens muito
maus, e entre os Gregos celerados. Porque foi Deus todo-poderoso que, ao fazer o céu
e a terra, criou também a luz, cujo retorno regular faz a distinção dos sete dias da
semana...
5. Outro erro se introduziu entre os ignorantes e rústicos: o julgarem o princípio do 5031
ano nas Calendas de Janeiro, o que é totalmente falso... 7. Vendo Deus que os homens
andavam tão iludidos pelo Diabo e seus Anjos..., mandou o seu Filho, a sua Sabedoria,
o seu Verbo, para os reconduzir do erro do Diabo ao culto do verdadeiro Deus...
Nasceu o Filho de Deus em carne humana... Mandou aos seus discípulos que anunciassem
a todas as nações a Ressurreição do Filho de Des e as baptizassem em nome do Pai e
do Filho e do Espírito Santo... 8. Vós que chegastes ao baptismo de Cristo..., considerai
que promessas fizestes a Deus no mesmo baptismo. Porque cada um de vós deu o
nome na fonte baptismal..., e fostes interrogados pelo sacerdote desta maneira: Como
te hás-de chamar? Se já podias, respondeste tu próprio, se não podias, respondeu por
ti o teu padrinho... E o sacerdote perguntou de novo: Renuncias ao Diabo, e aos seus
Anjos, aos seus cultos e ídolos, aos seus furtos e fraudes, às suas impurezas e gulas e
a todas as suas más obras? Respondeste: Renuncio. Depois desta renúncia ao Diabo o
sacerdote perguntou-te outra vez: Crês em Deus Pai todo-poderoso? Respondeste:
Creio. E em seu Filho Jesus Cristo, nosso único Deus e Senhor, que nasceu, pelo
Espírito Santo, da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado e sepultado,
desceu aos infernos, ao terceiro dia ressuscitou vivo de entre os mortos, subiu aos
Céus e está sentado à direita do Pai, donde há-de vir julgar os vivos e os mortos?
Respondeste: Creio. Perguntaram-te de novo: Crês no Espírito Santo, na santa Igreja
católica, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna? Respondeste:
Creio... 9. Foi com esta promessa e confissão que vos ligastes a Deus. Como é então
que alguns de vós... voltaram outra vez ao culto do Diabo? Na verdade, prestar culto

1
M ARTINHO DE B RAGA , De correctione rusticorum (=CPL 1086; PLS 4, 1395; Academia Real das Ciências,
Lisboa 1803). Esta obra foi escrita entre 572 e 574. O autor nasceu em 515 e morreu em 20 de Março de 579.
1226 SÉCULO VI

às pedras, às árvores, às fontes e acender velas nos cruzamentos dos caminhos não
será religião do Diabo? As práticas de adivinhação, os áugures, a observância do dia
dos ídolos não será religião do Diabo? Observar a festa das Calendas, adornar as mesas
nessa noite, colocar ramos de loureiro nas casas, preocupar-se com que pé se sai de
casa, espalhar na eira grão e vinho, lançar pão nas fontes, tudo isso é religião do Diabo.
Quando as mulheres tecem invocando Minerva, quando escolhem para se casar o dia
consagrado a Vénus, quando se presta atenção ao dia do embarque, quando se consagram
ervas por meio de sortilégios para lançar sortes, quando se evocam, por magia, os
nomes dos Demónios, e muitas outras coisas ainda, tudo isso não passa de religião do
Diabo.
5032 10. Reuni-vos, para falar de Deus, na igreja e nos lugares dos santos. Não desprezeis,
mas observai com profundo respeito o dia do Senhor, que recebeu este nome porque o
Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, nesse dia ressuscitou dos mortos. No dia do
Senhor não façais trabalhos servis, isto é, trabalhos nos campos, nos prados e nas
vinhas, nem qualquer outro trabalho pesado, com excepção do que é preciso para
alimentar o nosso pobre corpo, ou seja, para cozinhar a comida e para necessidades
duma longa viagem. No dia do domingo também é permitido viajar até aos lugares mais
próximos, não com más intenções, mas sobretudo com intenções boas, por exemplo,
para ir até aos lugares santos, visitar um irmão ou um amigo, confortar um enfermo,
levar com boa intenção conselho ou ajuda a quem está a sofrer. É assim que convém a
um cristão honrar o dia do Senhor. Com efeito, é muito injusto e inconveniente que
aqueles que são pagãos, que ignoram a fé cristã e adoram os ídolos do Demónio,
honrem o dia de Júpiter ou de qualquer outro Demónio e se abstenham do trabalho,
apesar de os Demónios não terem certamente criado nenhum dia nem nenhum deles
lhes pertencer, e nós, que adoramos o verdadeiro Deus e acreditamos que o Filho de
Deus ressuscitou dos mortos, tenhamos em tão pouca conta o dia da Ressurreição, isto
é, o dia do Senhor. Não façais injúria à Ressurreição do Senhor, mas honrai-a e observai-
a com grande respeito, por causa da esperança que nela temos...

Capítulos 2
5033 40. Não é permitido ao diácono sentar-se antes do presbítero... 41. Na sacristia, só
o subdiácono e o acólito podem tocar nos vasos do Senhor... 42. Não é permitida à
mulher entrear na sacristia. 43. Se um leitor casar com a viúva de um outro, permaneça
no estado de leitor, ou, quando muito, seja feito diácono... 44. Se um subdiácono casar
segunda vez, permaneça entre os leitores ou ostiários, mas não leia o Apóstolo. 45. Só
àqueles a quem o bispo ordenou leitores é permitido salmodiar ou ler no púlpito. 49.
Duas semanas ou três antes da Páscoa, não é permitido admitir seja quem for ao
baptismo, pois é preciso que os que são baptizados nesses dias aprendam o Símbolo
e o devolvam ao bispo ou ao presbítero na quinta-feira da última semana. 51. O bispo
pode confeccionar o crisma em todo o tempo, e enviá-lo às suas paróquias... 55. Não
é conveniente oferecer outras coisas no santuário além de pão, vinho e água, que são
benzidos em figura3 de Cristo, porque quando Ele pendia da cruz, do seu corpo saiu
sangue e água. Estas três coisas são uma só em Jesus Cristo: a vítima e a oblação de
Deus [a Deus] em odor de suavidade... 67. Na igreja, não é conveniente cantar salmos
compostos em língua vernácula..., e só podem ler-se os livros canónicos do Antigo e do
Novo Testamento.

2
M ARTINHO DE BRAGA , Capitula Martini episcopi Bracarensis (=PL 84, 574 s; 130, 575-588).
3
In typo Christi benedicuntur.
COLUMBANO 1227

Columbano

Regra 1
7. O cursus dos salmos. Há que distinguir algumas coisas relativamente à reunião 5034
para a oração dos salmos, uma vez que a tradição nos transmitiu diversas maneiras de
proceder. A maneira de viver e a sucessão dos tempos também me aconselham a proceder
do mesmo modo. Não deve haver uniformidade para a recitação nos diversos tempos,
mas convém que seja mais longa nas noites grandes e mais breve nas noites pequenas.
Para o ofício nocturno 2, cantar-se-ão nas noites pequenas do Verão doze salmos,
e quando as noites se tornarem maiores, pelo menos dezoito salmos nos sábados e nos
domingos, e na maior parte do tempo trinta e seis. Durante o Inverno, nos dias de
semana, trinta e seis salmos nas Vigílias, mas nas pannu/xia do sábado e domingo,
setenta e cinco salmos.
Devemos também conhecer a ordem das orações canonicamente estabelecidas,
segundo a qual todos devem orar nas mesmas horas, findas as quais cada monge deve
orar no seu quarto três salmos em cada uma das horas diurnas, intercaladas com o
trabalho. Foi estabelecido pelos nossos maiores que, com a ajuda de versículos
acrescentados, se deve orar no fim do ofício, primeiro pela remissão dos nossos pecados,
a seguir por todo o povo cristão, depois pelos sacerdotes e demais graus do povo
santo consagrados a Deus, a seguir pelos que dão esmolas e, por último, pela paz do
reino, de novo pelo inimigos, para que Deus não os ponha em pecado de nos perseguir
e destruir, porque não sabem o que fazem.
No início da noite3 rezam-se doze salmos e também doze salmos à meia noite;
para o ofício nocturno vinte e quatro, e ao cantar do galo doze salmos. Este cursus, tal
como a alguns parece pequeno no Inverno, assim a outros parece demasiado pesado no
tempo do Verão...

Livro penitencial 4
1. A verdadeira penitência consiste em não cometer actos sujeitos à penitência e em 5035
lamentar as faltas cometidas. Mas, como muitos, para não dizer todos, em razão da sua
fraqueza, vão contra esta regra, torna-se necessário conhecer as tabelas penitenciais. O
princípio geral, enunciado pelos nossos santos Padres, consiste em fixar a duração do
jejum segundo a gravidade da falta.

1
C OLUMBANO , Regula monachorum (=PL 80, 209-224; O. S EEBASS , 1897, 215-234; MGH - Scriptores
rerum Merovingiarum IV, 1-152). Columbano veio, por volta de 590, para as Gálias, onde escreveu uma
regra para os monges, que acabaria, mais tarde, por ser suplantada pela Regra beneditina.
2
Matutinum.
3
Vésperas.
4
COLUMBANO, Liber penitentialis (=PL 80, 223-230; F. W. WASSERSCHLEBEN, Liber penitentialis, Halle 1851, Graz
19582; H. J. SCHMITZ, Die Bussbücher und die Bussdisciplin der Kirche, Moguntia 1883. Graz 19582; C. VOGEL,
Paris 1969, 63-73). Pelo menos alguns dos seus cânones foram redigidos por Columbano, à volta do ano 570.
Compõe-se de três partes: uma destinada aos monges, outra aos clérigos e a terceira aos leigos. Os pecados são:
o assassínio, as faltas sexuais, o juramento falso, o roubo, o infanticídio, a idolatria.
1228 SÉCULO VI

5036 2. Penitencial monástico. Se alguém peca por pensamento, isto é, tendo desejo de
matar, de ter relações sexuais, de roubar, de comer às escondidas, de se embriagar, de
bater noutro, de trair ou de cometer qualquer acção deste género ou estiver disposto a
cometer tais actos, jejuará a pão e água 6 meses ou 40 dias, segundo a gravidade dos
actos (que se propôs cometer).
5037 3. Se alguém se deixou arrastar a cometer efectivamente actos como o homicídio ou
a sodomia: 10 anos de jejum; se realiza actos sexuais apenas uma vez: 3 anos de penitência;
se o fez mais vezes: 7 anos de penitência. Se um monge abandona ( o estado monacal)
e rasga os seus votos, mas volta rapidamente, jejuará 3 Quaresmas; mas, se volta após
longos anos, fará penitência 3 anos.
5038 4. O ladrão jejuará durante 1 ano.
5039 5. O que jura falso jejuará durante 7 anos.
5040 6. Se alguém, numa disputa, fere o seu irmão e faz correr sangue, jejuará 3 anos.
5041 10. Tais são as tarifas para as faltas maiores. Eis agora o que diz respeito às faltas
habituais de menor gravidade...
5042 11. O monge que calunia o seu irmão ou escuta com agrado os caluniadores fará 3
dias de jejum prolongado; se caluniar o seu superior, jejuará durante 7 dias.
5043 14. Pecados diferentes exigem penitências diferentes...
5044 15. Penitencial dos clérigos. Primeiro devemos tratar das faltas capitais, que são
igualmente punidas pelas leis civis.
Um clérigo que comete um assassínio ou mata o seu próximo será exilado durante
10 anos. Em seguida, será autorizado a voltar à sua terra, desde que tenha jejuado
regularmente a pão e água, o que deverá constar da atestação do bispo ou do presbítero
que vigiou a sua penitência e ao qual ele foi confiado. O culpado reparará o mal causado
aos familiares da sua vítima...
5045 26. Aquele que deixa cair a Eucaristia (ou: perde a Eucaristia em viagem) jejuará
durante um ano. Aquele que vomita a Eucaristia por estar embriagado ou por ter
comido em excesso... jejuará durante 3 Quaresmas a pão e água. Se os vómitos tiverem
sido provocados por doença, jejuará durante 7 dias.
5046 27. Penitencial dos leigos. O homicida jejuará 3 anos a pão e água, não usará armas
e viverá no exílio. Após esses três anos regressará à sua pátria e pôr-se-á ao serviço dos
familiares da vítima, substituindo aquele a quem matou...
5047 32. O pai ou a mãe que mata o seu filho de pouca idade jejuará 1 ano a pão e água;
durante os dois anos seguintes, abster-se-á de vinho e de carne. Em seguida, de acordo
com o parecer do confessor, será readmitido à comunhão...
5048 44. Ordenamos (aos religiosos autorizados a sair do convento) que se confessem
prontamente dos seus impulsos e movimentos passionais, antes de ir à missa, para que
ninguém se aproxime indignamente do altar... É melhor esperar (para comungar) que o
coração esteja puro... do que aproximar-se com atrevimento do tribunal. Com efeito, o
altar de Cristo é um tribunal, e o seu Corpo e Sangue julgam os que se aproximam
indignamente...
GREGÓRIO DE TOURS 1229

Gregório de Tours

História dos Francos 1


Proémio. Poucos são os que entendem um orador filósofo, e muitos os que 5049
entendem um outro que fala a língua rústica 2.

LIVRO II
3
17. Ela tinha um livro sobre os joelhos e lia a história dos feitos antigos, indicando 5050
aos pintores o que eles deviam representar nas paredes4... 22. Quando (o bispo) foi
convidado para a festa (da dedicação) da basílica do mosteiro, alguém lhe tirou
maldosamente o livro pelo qual tinha o costume de se orientar para fazer a celebração...
29. O rei Clóvis teve, da rainha Clotilde, o seu filho primogénito. Como ela queria 5051
consagrá-lo pelo baptismo, falava muitas vezes ao marido, dizendo-lhe: «Os deuses que
adorais não são nada...». Cheia de fé, a rainha apresentou o filho ao baptismo, e mandou
adornar a igreja com tapeçarias e cortinados, para que a celebração atraísse mais
facilmente à fé aquele a quem ela não pudera influenciar pela pregação. Mas a criança,
que recebera o nome de Ingomer, morreu imediatamente depois de baptizada, ainda
com as vestes brancas do seu novo nascimento.
O rei, encolerizado, acabrunhou a rainha com as suas críticas, dizendo: «Se a
criança tivesse sido consagrada aos meus deuses, estaria viva. Mas como foi baptizada
em nome do vosso Deus, tinha de morrer». A rainha respondeu: «Dou graças a Deus
todo-poderoso, Criador de tudo quanto existe, que não me julgou totalmente indigna,
pois Se dignou acolher no seu Reino a criança saída do meu seio. Isso não faz sofrer o
meu coração, porque eu sei que os novos baptizados chamados a deixar este mundo são
destinados a viver na visão de Deus».
Depois desse ela teve outro filho; no baptismo chamou-lhe Clodomiro. Começando
a ficar doente, o rei dizia: «Vai passar-se com este o que se passou com o seu irmão;
como foi baptizado em nome do vosso Cristo, vai morrer dentro em breve». Mas, pela
oração da sua mãe, o Senhor mandou que ele se curasse.
30. A rainha não cessava de dizer ao rei que reconhecesse o verdadeiro Deus e 5052
abandonasse os ídolos, mas não conseguia, de modo nenhum, encaminhá-lo para a sua
fé, até que um dia começou a guerra contra os Alemães, no decurso da qual Clóvis foi
obrigado, por necessidade, a confessar o que a sua vontade sempre recusara... Ao ver
o seu exército exposto a uma exterminação completa, Clóvis ergueu os olhos ao céu e,
de coração trespassado, comovido até às lágrimas, disse: «Jesus Cristo, a quem Clotilde
proclama como Filho de Deus vivo..., suplico ardentemente a tua ajuda gloriosa. Se me
concederes a vitória sobre os meus inimigos..., acreditarei em Ti e far-me-ei baptizar
em teu nome... É a Ti que eu agora invoco, é em Ti que eu quero acreditar, se for
libertado dos meus inimigos»... Quando os Alemães viram que o seu rei fora morto,

1
G REGÓRIO DE T OURS , Historiarum libri X (=PL 71, 159-572; W. A RNDT-B. K RUSCH-M. B ONNET , MGH -
Scriptores rerum Merovingiarum I, 1937-1951 2 ; P OUPARDIN , Picard 1913). Gregório de Tours viveu
aproximadamente entre 538 e 594.
2
Philosophantem rethorem intelligunt pauci, loquentem rusticum multi.
3
A esposa do bispo Namatius.
4
Esta passagem refere-se à construção da basílica de Santo Estêvão, em Clermont, no século V, cujas paredes
foram mandadas ornar com pinturas pela esposa do bispo Namatius.
1230 SÉCULO VI

submeteram-se a Clóvis, dizendo: «Por favor, não deixes que o povo continue a morrer.
Doravante somos teus». Clóvis mandou parar o combate, aceitou a submissão do povo
e, depois de restabelecida a paz, regressou a sua casa e contou à rainha como a invocação
do nome de Cristo lhe fizera obter a vitória. Então a rainha convocou em segredo São
Remígio, bispo de Reims, e pediu-lhe que ensinasse ao rei a palavra da salvação.
5053 31. O bispo começou a fazer-lhe compreender que ele devia crer no verdadeiro
Deus..., e ordenou que se preparasse o baptismo. As galerias da igreja estavam cobertas
de tapeçarias e adornadas com colchas brancas. Prepara-se a piscina, espalham-se
perfumes, acendem-se círios e queima-se incenso. Toda a capela do baptistério fica
repleta de um odor celeste...O rei foi o primeiro a pedir para ser baptizado pelo
pontífice... Quando entrou na água para receber o baptismo, o santo de Deus dirigiu-lhe
esta interpelação eloquente: «Inclina a cabeça com humildade, Sicambre; adora o que
queimaste e queima o que adoraste»... Tendo o rei confessado a Trindade do Deus
todo-poderoso, foi baptizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo5. A seguir
recebeu a unção do santo crisma com o sinal da cruz de Cristo6. Foram também
baptizados mais de três mil homens do seu exército...

LIVRO III

5054 31. A esposa e a filha do rei Teodorico viviam sob a seita ariana. E como é costume
deles, ao virem ao altar, que os reis se aproximem de um cálice e de outro o povo miúdo,
a filha pôs veneno no cálice do qual a mãe havia de comungar. Assim que esta o bebeu,
morreu imediatamente. Não há dúvida de que tal malefício vem do Demónio. Que
responderão os hereges, ao facto de o inimigo ter parte nos seus sancta?...

LIVRO IV

5055 31. Então morreu também o presbítero Catão. Apesar de muitos fugirem da peste, ele
nunca se afastou daquele lugar, enterrando o povo e dizendo missas por cada um...

LIVRO V

5056 3. Diziam alguns homens que, naquele tempo, dois da família de Rauchingus, como
acontece muitas vezes, se enamoraram um pelo outro, isto é um rapaz e uma rapariga.
Como este amor se arrastava há já dois anos ou mais, pediram à Igreja que os unisse um
ao outro. Quando Rauchingus o veio a saber, foi ter com o sacerdote do lugar e pediu-lhe
que considerasse imediatamente os seus criados desculpados. Então o sacerdote disse-lhe:
«Tu sabes o respeito que a Igreja de Deus deve merecer; não deves pedir que eles se
recebam, a não ser que tenhas a certeza da sua união permanente; do mesmo modo
também deves tomar o compromisso de que permanecerão livres de toda a pena
corporal». Ele ficou em silêncio por muito tempo, mas finalmente, voltando-se para o
sacerdote, pôs as mãos sobre o altar e jurou dizendo: «Nunca serão separados por mim,
mas antes tudo farei para que permaneçam nesta união...». O sacerdote acreditou naquela
promessa do homem astuto, e desculpou os homens.
5057 38. Goisuinda mandou despir Ingonda e imergi-la na piscina7.

5
Relato do baptismo de Clóvis em Reims, no ano 496.
6
Delibutus sacro crismate cum signaculo sanctae crucis.
7
Trata-se do baptismo forçado da jovem rainha Ingonda.
GREGÓRIO DE TOURS 1231

LIVRO VI

15. Volta a Nantes, dirige-te ao que te enviou, para que comece por dar-te a tonsura. 5058
Depois, quando fores sacerdote e te mostrares assíduo à igreja, poderás esperar chegar
a bispo8.
40. Tendo chegado este legado9 a Tours no dia santo da Páscoa, perguntámos-lhe se 5059
era da nossa religião. Respondeu que acreditava no que os católicos crêem. Pouco
depois, indo connosco à igreja, esteve na celebração da missa10; mas nem deu a paz aos
nossos 11, nem comungou dos sacrifícios sagrados. E assim se conheceu que mentira
quando disse que era católico. No entanto, esteve presente no jantar12 como convidado.
Tendo-lhe eu perguntado com interesse no que acreditava, respondeu: «Creio que o Pai
e o Filho e o Espírito Santo têm um mesmo poder». Eu respondi-lhe: «Se, como
afirmas, acreditas assim, qual foi a causa que te impediu de te aproximares da comunhão
dos sacrifícios que oferecemos a Deus»? Ele respondeu: «É que não dizeis bem o
Glória...».

LIVRO VIII

9. O baptismo da criança foi adiado várias vezes, sendo fixado sucessivamente 5060
primeiro no Natal, depois na Páscoa e, por fim, no dia de São João13.

LIVRO IX
14
3. Terminada a missa , o rei Gontran aproximou-se do altar para comungar... 5061

LIVRO X

8. Como ninguém soubesse quem tinha cometido o crime, atribuiu-se o parricídio ao 5062
filho (Eulálio). Ao inteirar-se disto Cautino, bispo da cidade de Arvena, privou-o da
comunhão. Mas, reunindo-se os vizinhos com o sacerdote para a festividade do mártir
São Julião, Eulálio lançou-se aos pés do bispo, queixando-se de ter sido afastado da
comunhão sem o terem ouvido. Então o bispo permitiu-lhe que contemplasse com os
outros a celebração da missa 15. Mas, quando se chegou à comunhão e Eulálio se
aproximou do altar, o bispo disse-lhe: «O rumor popular proclama que tu és parricida.
Mas eu, no entanto, não sei se fizeste ou não esse crime. Portanto, deixo isso ao juízo
de Deus e do mártir São Julião. Se tu, na verdade, és digno, como o afirmas, aproxima-te
mais e toma para ti uma partícula da Eucaristia e põe-a na boca. Deus será o examinador
da tua consciência». E ele, recebida a Eucaristia, afastou-se, depois de ter comungado...

8
Trata-se de um leigo de vinte e cinco anos, chamado Burgúndio, a quem seu tio, o bispo de Nantes, queria
escolher para sucessor.
9
Legado do rei Leovigildo de Espanha.
10
Missarum sollemnia tenuit.
11
Nec pacem cum nostris fecit.
12
Ad convivium invitatus adfuit.
13
Gregório de Tours fala do baptismo em diversas festas do ano, como no caso desta criança.
14
Peracta solemnia.
15
Tunc episcopus permisit eum cum ceteris missarum expectare sollemnia.
1232 SÉCULO VI

Oito livros de milagres 16

LIVRO I

5063 9. Para confirmar a fé católica, não calarei o que sucedeu no Oriente. Como o filho
de certo judeu vidreiro andasse a estudar letras com as crianças cristãs, um dia, enquanto
se celebravam as festas das missas na basílica de Santa Maria, o menino judeu veio à
comunhão do glorioso Corpo e Sangue do Senhor juntamente com os outros meninos.
Depois de receber a Eucaristia, todo contente, voltou para casa de seu pai; e, com alegria,
entre abraços e beijos, contou ao pai, que estava a trabalhar, o que tinha recebido. Mas ele,
que era inimigo de Cristo, o Senhor, e das suas leis, exclamou: «Se comungaste juntamente
com esses meninos, vou esquecer-me do amor de pai, e, para vingar a injúria à lei moisaica,
serei para ti um cruel parricida». E, apanhando o menino, lançou-o pela boca do forno ardente
e, metendo lenha para que se queimasse com mais veemência, pôs-se à espera.
Mas não faltou a misericórdia que noutro tempo tinha refrescado com uma nuvem
de orvalho os jovens hebreus atirados ao forno caldeu. Essa mesma misericórdia também
não permitiu que chegasse a consumir-se o menino, que jazia no meio das chamas e do
monte de brasas.
Quando a mãe ouviu que o pai tentava queimar o filho de ambos, correu para o
livrar. Mas, quando viu o incêndio que saía da boca aberta do forno a estender-se por
aqui e por ali e a chama a dominar tudo, atirou por terra o enfeite que trazia na cabeça
e, com os cabelos em desalinho, chamando-se miserável, encheu a cidade com os seus gritos.
Quando os cristãos souberam o que tinha sucedido, correram todos para ver tão
triste espectáculo, e, apagado o fogo da boca do forno, encontraram o menino deitado
como que sobre penas macias. Depois de o tirarem, todos contemplaram, admirados,
o menino ileso. O lugar encheu-se de clamores, e todo o povo bendisse o Senhor...
Os cristãos perguntaram ao menino qual tinha sido a sombra que o protegera no
meio das chamas, e ele disse: «A mulher que naquela basílica onde recebi o pão da mesa
está sentada num trono e tem um menino pequeno sentado no colo, é que me cobriu
com o seu manto, para que o fogo não me devorasse». Ficou fora de dúvida que lhe
aparecera Santa Maria.
Depois de o menino aceitar a fé católica, acreditou no nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo e, lavado com as águas da salvação juntamente com sua mãe, nasceram
de novo para o Senhor. Muitos Judeus naquela cidade se salvaram por este exemplo.
5064 74. Que o (rei Segismundo) foi admitido na companhia dos santos, mostram-no os
factos que sucedem. As pessoas que têm febre celebram missas com devoção em sua
honra e oferecem, pelo seu descanso, a oblação a Deus, e, imediatamente, dominado o
tremor e extinta a febre, voltam ao seu primitivo estado de saúde.
5065 85. Nós choramos os nossos crimes e lamentamo-nos, sem saber se estamos limpos.
Se estivermos actualmente manchados e nos aproximarmos do altar do Senhor, ao
tomarmos o seu santo Corpo e Sangue com ousadia, fazemo-lo mais para condenação
do que para alcançar perdão.
Recordo um acontecimento que ouvi na minha adolescência. Era o dia da paixão
do grande mártir Policarpo, e, na aldeia de Ricomage, vizinha de Arvérnia, celebrava-se
a sua solenidade. Depois de lida a paixão com as demais leituras introduzidas pelo
cânone sacerdotal, chegou o momento de oferecer o sacrifício. O diácono pegou na

16
G REGÓRIO DE T OURS , Miraculorum libri VIII (=PL 71, 705-1008).
GREGÓRIO DE TOURS 1233

torre17 em que se guardava o mistério do Corpo do Senhor e encaminhou-se com ela


para a porta; ao entrar no templo para a colocar no altar, escapou-se-lhe das mãos e foi
levada pelo ar, e assim chegou ao próprio altar, sem que as mãos do diácono a pudessem
alcançar mais. Isto deve ter sucedido, segundo cremos, porque ele tinha a consciência
manchada. Dizia-se que cometera adultério muitas vezes. Só a um presbítero e a três
mulheres, uma das quais era a minha mãe, lhes foi dado ver isto; os outros não viram.
Confesso que também eu estava então presente nesta festividade, mas não mereci ver
estas coisas.
86. Do mesmo modo, o presbítero Epáquio, ao tentar temerariamente levar a cabo 5066
aquilo de que era indigno, caiu ao chão projectado pelo juízo de Deus. Tendo-se
dirigido à igreja para celebrar a vigília do Natal, saía do templo de Deus a cada momento...
Aquele infeliz, cheio de vinho, não teve medo de tomar entre as mãos aquilo que
qualquer pessoa, mesmo estando em jejum, não pode celebrar sem temor de consciência
e sem receio. Mas, quando, terminadas as palavras sagradas e feita a fracção do
sacramento do Corpo do Senhor, ele o tomou e o distribuiu aos outros para que o
comessem, lançando imediatamente um grito semelhante ao relinchar de um cavalo,
caiu por terra, e, vomitando espuma pela boca juntamente com a própria partícula do
mistério sagrado que não pudera quebrar com os dentes, foi levado da igreja em braços
pelos seus.

As virtudes de São Martinho 18

LIVRO I

2. 30 Uma mulher foi curada no momento do Pater e pôs-se a cantar com os 5067
outros... 47 Feita a despedida19, o povo começou a receber o santíssimo Corpo do Redentor.
12. Tendo (a rainha Ultrogoda) passado uma noite em vigílias, orações e abundantes 5068
lágrimas (na basílica de São Martinho), de manhã ofereceu muitos dons e pediu que
fossem celebradas missas em honra do santo confessor. Enquanto essas missas estavam
a ser celebradas, três cegos, que há bastante tempo estavam sentados aos pés do santo
bispo privados da luz, de repente foram envolvidos por um grande fulgor e receberam a
luz que há muito tempo tinham perdido...

Em honra dos Mártires 20

24. O baptistério é fechado na Quinta-Feira Santa e reaberto no Sábado Santo... 5069


28. Aquele que deseja orar, depois de afastadas as cancelas que rodeiam este lugar, 5070
tem acesso ao túmulo, e, assim, por meio duma pequena janela que se abre, introduzindo
a cabeça no interior, pede aquilo de que precisa.

17
Assim se chamava o recipiente onde, na sacristia, se guardava o pão consagrado. Este nome é indicação
segura da forma do vaso. Sabemos, aliás, que nesse tempo também o pão que os fiéis traziam de casa era
levado para o altar em recipientes com essa mesma forme de torre, o que vai ter como consequência que o
povo se ajoelhava à passagem dos dons, antes de serem consagrados.
18
G REGÓRIO DE T OURS , De virtutibus sancti Martini (=PL 71, 913-1008; MGH - Scriptores Rerum
Merovingiarum I, 1885 s).
19
Expletis missis.
20
G REGÓRIO DE T OURS , Liber miraculorum de gloria martyrum (=PL 71, 705-800; cf. LMD 70, 146-147).
1234 SÉCULO VI

5071 44. Namácius, bispo de Clermont, procurou com toda a devoção colocar relíquias
destes mártires na igreja que ele próprio tinha construído. Para isso enviou um presbítero
(a Bolonha), o qual, partindo com a graça de Deus, trouxe o que ele tinha pedido. Ao
regressar com os seus companheiros, pararam a cinco milhas de Clermont e enviaram
emissários ao bispo, para que ele se dignasse dizer-lhes o que deviam fazer.
De manhãzinha, o bispo, que tinha alertado os cidadãos, foi com grande devoção
ao encontro das santas relíquias, com círios e cruzes. E como o presbítero se prontificou,
se ele quisesse, a mostrar-lhe as santas relíquias, respondeu: «Desejo mais acreditar
nelas do que vê-las...».
Tendo o bispo manifestado assim a sua fé, Deus glorificou os seus santos com
um milagre. Ao aproximarem-se, de repente o céu obscureceu-se, e começou a cair
sobre eles uma chuva negra, em tão grande abundância que dir-se-ia que os caminhos se
tinham transformado em rios. Entretanto, à volta das santas relíquias, pelo espaço de
um arpente21, não caiu uma só gota. E, à medida que eles avançavam, a chuva seguia-
os de longe, como que para lhes prestar homenagem, envolvendo a multidão, mas não
tocando nos que transportavam as relíquias.
Vendo isto, o pontífice deu glória a Deus que, em atenção à sua fé, Se dignou
realizar tão grandes prodígios para glória dos santos. E, perante os cidadãos reunidos
com muita alegria e devoção, consagrou a igreja santa, honrada por estas relíquias.
5072 85. No dia da festa de São Policarpo, ao chegar o momento de oferecer o sacrifício,
depois de o diácono receber a torre22, na qual estava o mistério do Corpo do Senhor23,
começou a aparecer à porta. Ao entrar no templo para a colocar sobre o altar, escapou-se-lhe
das mãos e foi levada pelo ar e assim chegou ao próprio altar, sem que as mãos do
diácono a pudessem seguir. Não encontrámos outra explicação que não fosse o facto de
ele estar manchado na sua consciência.

Em honra dos Confessores 24


5073 20. Acerca do nosso oratório, no qual foram colocadas as relíquias de São Saturnino
mártir e do bispo Martinho com as do confessor Ilídio e de outros santos, vou contar
algumas coisas para instrução dos fiéis. Direi como se manifestou o poder de São
Martinho, de tal modo que muitos viram esse admirável globo de fogo que outrora se
elevara por cima dele enquanto celebrava a missa, sobressaindo acima da sua cabeça,
mas apenas vista por alguns poucos espectadores.
O meu espírito, por inspiração da piedade divina, teve a ideia de consagrar a cela
graciosa que Santo Euforo tinha habitado como quarto, para fazer dela um oratório.
Quando ficou devidamente arranjada e o altar colocado como de costume, passámos
uma noite em vigílias na santa basílica e, de manhã, viemos à cela e consagrámos o altar
que tínhamos erigido. Voltámos à basílica e, solenemente, precedidos de cruzes e círios
acesos, trouxemos as relíquias deste santo, juntamente com as dos mártires Saturnino e
Juliano e também do bem-aventurado Ilídio. Havia um número considerável de presbíteros
e diáconos vestidos de branco, e o grupo ilustre dos funcionários civis, e ainda uma
grande multidão de povo humilde.

21
O arpente era uma unidade de medida agrária dos Gauleses, que variava entre os 20 e os 50 ares.
22
Turre.
23
Mysterium dominici corporis.
24
G REGÓRIO DE TOURS , Liber de gloria confessorum (=PL 71, 827-910; cf. LMD 70, 146-147).
GREGÓRIO DE TOURS 1235

Transportando as santas relíquias elevadas, em panos e relicários decorados,


chegámos à porta do oratório. De repente, ao entrar, uma luz fortíssima encheu a cela,
a ponto de os espectadores, cheios de medo e sem poderem olhar, terem de fechar os
olhos. Era uma espécie de relâmpago que percorria a cela, inspirando-nos um grande
temor; ninguém sabia o que era, e todos nós, cheios de medo, caímos por terra.
Então eu disse-lhes: «Não tenhais medo. O que vedes é um milagre dos santos;
sobretudo lembrai-vos do livro da vida de São Martinho e recordai como, enquanto ele
pronunciava as palavras sagradas, um globo de fogo saiu da sua cabeça e pareceu
elevar-se até ao céu: por conseguinte, não estejais com medo, mas acreditai que ele nos
visitou com as santas relíquias». Então, já sem medo, glorificámos a Deus, dizendo:
Bendito aquele que vem em nome do Senhor, e o Senhor Deus nos ilumine.
Se outrora este milagre foi visto por um pequeno número, hoje apareceu a todos
os povos; outrora foi o sinal de um mistério, hoje foi uma abundância de graça; outrora
foi escondido para evitar a vaidade, hoje mostrou-se a todos por causa da glória; então,
segundo o costume, os mistérios realizados com fé eram proclamados por Deus; hoje,
na inauguração deste oratório, consagra-se, para glorificação das santas relíquias, o que
pode servir para louvor de Deus. Devemos pedir com fé e orar muito para que visite
este povo aquele que, várias vezes, por este fogo sagrado, elevou para o Céu as aspirações
da oração. Este fogo, quer aquele que, como eu contei, saía do monge em oração, quer
aquele que, como também contei, o abade Bráquio viu sair das relíquias dos santos,
penso que é um fogo místico, porque não queima, mas ilumina; e não é sem uma graça
da majestade divina que ele pode mostrar-se ou aparecer apenas a alguns...
65. Diz-se que houve duas pessoas nesta cidade, um marido e a sua esposa, gente 5074
poderosa de família senatorial, que, tendo falecido sem filhos, deixaram a Igreja por
herdeira. Tendo morrido primeiro o homem, foi sepultado na basílica de Santa Maria.
A mulher, permanecendo durante um ano inteiro neste templo, entregava-se
assiduamente à oração, celebrando a missa todos os dias25 e oferecendo a oblação pela
memória de seu marido, sem duvidar da misericórdia de Deus, e acreditando firmemente
que o seu defunto marido tinha repouso, no dia em que ela apresentava ao Senhor a
oferenda pela sua alma. A viúva oferecia cada dia meio litro de vinho de Gaza para o
sacrifício celebrado na santa basílica, mas um subdiácono velhaco guardava o vinho de
Gaza para as suas goelas, e deitava no cálice uma água-pé muito forte, dado que a viúva
nem sempre se aproximava da graça da comunhão. Deus, porém, quis que a fraude
fosse descoberta... Levantando-se cedo, como era seu costume, depois de celebrada a
missa, a mulher aproximou-se do cálice da salvação. Ao tomá-lo, descobriu imediatamente
que bebera uma água-pé muito forte... Repreendido o subdiácono, corrigiram-se as coisas
que ele fizera com tanta malícia.
85. As oblatas26 escaparam das mãos de um diácono indigno, quando ele as levava 5075
para o altar...

25
Celebrans cotidie missarum sollemnia.
26
Mysterium dominici corporis
1236 SÉCULO VI

Concílios do século VI 1

Concílio de Agde (506) 2


5076 2. Foi decidido que o Símbolo seja entregue aos competentes, em todas as igrejas,
no mesmo dia, isto é, oito dias antes do Domingo da Ressurreição, publicamente, na
igreja, pelo sacerdote.
5077 12. Foi decidido que todos os filhos da Igreja3, excepto nos domingos, jejuem na
Quaresma também no dia de sábado, por imposição e ordem dos sacerdotes.
5078 14. Foi decidido que os altares sejam consagrados, não apenas com a unção do
crisma, mas também com a bênção sacerdotal.
5079 15. Os penitentes, ao pedirem a penitência, receberão a imposição das mãos do
bispo, assim como o cilício sobre a cabeça, como está determinado por toda a parte. Se
não cortarem o cabelo ou não abandonarem as vestes seculares, serão rejeitados e, a
não ser que se emendem, não serão recebidos. Às pessoas ainda jovens conceder-se-á
com dificuldade a penitência, em virtude da fraqueza da sua idade. O viático não será
recusado a ninguém, no momento da morte.
5080 18. Os leigos4 que não comungarem no Natal do Senhor, na Páscoa e no Pentecostes,
não pensem que são católicos nem sejam tidos como católicos.
5081 22. Se alguém, fora das igrejas paroquiais nas quais é legítimo reunir a assembleia
cristã, quiser ter uma capela na sua propriedade para aí se poder celebrar a missa, a fim
de evitar uma viagem cansativa às suas gentes, fora das grandes festas, permitimo-lo,
desde que no Natal, na Epifania, na Páscoa, na Ascensão, no Pentecostes e no dia de
São João Baptista, eles venham às cidades ou às suas igrejas paroquiais.
5082 30. Dado ser conveniente que, na Igreja, todos observem a mesma maneira de celebrar,
deve procurar-se, como se faz por toda a parte, que depois de os bispos ou presbíteros
dizerem por ordem o conjunto das antífonas, sejam cantados, todos os dias, os hinos
matutinos ou vespertinos, e que, na conclusão dos ofícios da manhã e da tarde5, depois
dos hinos, se digam capitella de salmos; a seguir, o povo, reunido para a oração de
Vésperas, será despedido pelo bispo com a bênção.
5083 43. No que diz respeito aos penitentes, aplicar-se-á o que os nossos Padres decidiram
nos seus cânones: nenhum penitente será ordenado clérigo. Aqueles que o foram, por
ignorância, serão considerados bígamos ou viúvos. Ao diácono ou ao presbítero em
questão, não se lhes permitirá nem oferecer nem consagrar.
5084 47. Os leigos, no domingo, são obrigados a ouvir missa inteira; por isso, o povo não
deve ter a presunção de se ir embora antes da bênção do sacerdote.

1
Concílios do século VI (=CCL 148, Cânones do Concílio de Agde; SCh 353-354, Cânones dos Concílios
Merovíngios; MANSI , VIII. IX. X. XII; J. B. C HABOT , Synodicon orientale, Paris, Impr. Nation. 1902;
B RUNS, I. II; M. G. P ERTZ , Legum, III, 57; C. V OGEL , Paris 1966, 192 ; F ORTUNATO DE A LMEIDA , vol. IV, 22-
31. 32-38).
2
Concílio de Agde (=CCL 148, Cânones do Concílio de Agde; C. V OGEL , Paris 1966, 192).
3
Ecclesiae filii. Desta expressão virão a nascer palavra como freguesia e fregueses.
4
Saeculares.
5
Et in conclusione matutinarum vel vespertinarum missarum.
CONCÍLIOS 1237

48. Ordenamos, por uma prescrição especial, que os leigos 6 participem na missa 5085
toda nos domingos, de tal modo que o povo não ouse sair antes da bênção do sacerdote.
Os que fizerem isso serão repreendidos publicamente pelo bispo.
64. Se algum clérigo se ausentar da sua igreja nos dias solenes do Natal, Epifania, 5086
Páscoa e Pentecostes para se entregar mais aos negócios temporais do que ao serviço
de Deus, é conveniente suspendê-lo da comunhão durante três anos.

I Concílio de Orleães (511) 7


4. Acerca das ordenações dos clérigos, pensámos que é preciso observar isto: ninguém 5087
ouse promover nenhum leigo à função clerical, a não ser por ordem do rei, ou com
autorização do conde8...
8. Se um escravo for ordenado diácono ou presbítero, na ausência do seu senhor ou 5088
sem ele saber, por um bispo que sabia que ele era escravo, permaneça na sua função,
mas o bispo indemnize o senhor com uma dupla compensação...
9. Se um presbítero ou um diácono cometer um crime capital, seja expulso do seu 5089
ofício e da comunhão.
11. A respeito daqueles que, depois de terem sido admitidos ao estado de penitentes, 5090
esquecem o compromisso da sua profissão e recaem na vida secular, pareceu bem
privá-los da comunhão e separá-los da mesa comum de todos os católicos. Se, depois
desta interdição, alguém ousar comer com eles, seja também privado da comunhão.
12. Se um diácono ou um presbítero, por uma falta pessoal, foi privado da comunhão 5091
do altar para fazer profissão de penitência, seja-lhe permitido, na ausência de outros e
em caso de necessidade, baptizar aquele que lhe faça o pedido.
13. Se uma mulher, viúva de um presbítero ou de um diácono, se casar com alguém 5092
em segundas núpcias, sejam ambos punidos e separados; ou então, se persistirem na
sua obstinação criminosa, sejam fulminados por uma excomunhão igual.
24. Foi decidido por todos os bispos que antes da solenidade da Páscoa se observe, 5093
não uma cinquentena, mas uma quarentena (de dias de jejum).
26. Quando nos reunimos em nome de Deus para celebrar a missa, o povo não deve 5094
sair antes de ela terminar e, se o bispo estiver presente, antes de receber a bênção
pontifical.
27. Pareceu bem que as Rogações, ou seja as ladainhas, sejam celebradas por todas 5095
as igrejas antes da Ascensão do Senhor, de tal maneira que o jejum de três dias que as
precede termine na festa da Ascensão. Durante esses três dias os escravos, homens e
mulheres, devem ser dispensados de todo o trabalho, para que o povo se reúna em
maior número, e todos devem fazer abstinência e comer os alimentos da Quaresma.
30. Todos devem observar do mesmo modo a regulamentação imposta pela Igreja de 5096
dizer, depois das antífonas, as colectas (collectiones) recitadas pelos bispos ou
presbíteros, como se faz por toda a parte. Devem cantar-se todos os dias os hinos
matutinos e vespertinos, e no final da celebração (missae) da manhã e do entardecer,
depois dos hinos, digam-se as preces (capitella) tomadas dos salmos; nas vésperas,
depois de uma colecta feita pelo bispo, despede-se o povo com uma bênção.

6
Saeculares.
7
I Concílio de Orleães (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
8
Governador da província.
1238 SÉCULO VI

Concílio de Tarragona (516) 9


5097 7. Nas igrejas do campo10, os presbíteros, os diáconos e os clérigos devem suceder-se,
no serviço da igreja, cada um na sua semana, de modo que, todos os dias, aí sejam
celebradas solenemente Vésperas e Laudes11. Mas no sábado, com a presença de todos,
será celebrado o ofício de domingo.

Concílio de Épaone (517) 12


5098 2. Não seja ordenado presbítero ou diácono aquele que desposou uma segunda
mulher ou uma mulher casada segunda vez...
5099 3. Os que fizeram profissão de penitência não sejam em caso nenhum chamados à
clericatura.
5100 6. Ninguém admita à comunhão um presbítero ou um diácono que viaja sem cartas
do seu bispo.
5101 15. Se um clérigo maior tiver participado na refeição de algum clérigo herege, não
terá a paz da Igreja13 durante um ano. Se os jovens clérigos fizerem isso serão fustigados.
Quanto às refeições dos Judeus, a nossa constituição proíbe-as mesmo aos leigos;
aquele que se tiver manchado numa refeição dos Judeus não coma mais o pão com um
dos nossos clérigos.
5102 16. Tendo em conta a salvação das almas que todos desejamos, permitimos aos
presbíteros que socorram pelo crisma os hereges acamados sem esperança, se estes
pedirem para fazer uma conversão imediata. Todos aqueles que queiram converter-se,
se estiverem de saúde, saibam que é preciso solicitá-lo ao bispo.
5103 21. Anulamos totalmente em todo o nosso território a consagração das viúvas a quem
chamam diaconisas. Só lhes será dada a bênção penitencial, se desejarem a conversão14.
5104 22. Se um diácono ou um presbítero vier a cometer um crime capital, seja deposto da
honra do seu ofício e encerrado num mosteiro, recebendo aí apenas, durante a sua vida,
a comunhão.
5105 23. Se alguém, depois de ter recebido a penitência e feito profissão de penitente,
regressa, esquecendo-se do bem, à vida do mundo, não poderá de modo algum comungar,
a não ser que volte à observância do compromisso que tinha transgredido indevidamente.
5106 25. As relíquias dos Santos não sejam depostas nos oratórios das uillae 15, a não ser
que se encontrem nas vizinhanças clérigos de qualquer paróquia que possam rodear
essas cinzas sagradas com uma salmodia frequente. Se não os houver, não serão
ordenados para este efeito antes de lhes ter assegurado alimentação e vestuário suficiente.
5107 26. Só os altares de pedra podem ser consagrados com a unção do crisma.
5108 27. Para a celebração dos ofícios divinos, os bispos das províncias deverão observar
o ordo que seguem os seus metropolitas.

9
Concílio de Tarragona (=MANSI , VIII).
10
Dioecesanis ecclesiis.
11
Omnibus diebus Vésperas et Matutinas celebrent.
12
Concílio de Épaone (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
13
Isto é, será posto de parte.
14
A conversio é a mudança de vida que faz passar da vida laical a um estado de penitência e de perfeição.
15
Oratoriis uillaribus: oratórios das propriedades por oposição às igrejas das comunidades rurais.
CONCÍLIOS 1239

29. Relativamente aos lapsi, isto é, aqueles que, baptizados na Igreja católica, em 5109
seguida passam, por uma depravação condenável, para a heresia, a disciplina antiga
punha graves dificuldades à sua admissão. Nós impomos-lhes uma penitência reduzida
a dois anos, sob as seguintes condições: durante esses dois anos jejuarão estritamente
cada três dias; frequentarão assiduamente a igreja; praticarão a humildade nas atitudes
e a oração no grupo dos penitentes, e retirar-se-ão, eles também, quando os catecúmenos
são convidados a sair. Se quiserem observar devidamente esta obrigação, seja-lhes
levantada a penitência no tempo fixado e sejam admitidos ao altar; se acontecer que
eles a acham rude e dura, deverão ser submetidos às regras dos antigos cânones.
35. Saibam os habitantes da cidade, que são de mais elevado nascimento, que devem 5110
ir até junto dos bispos para a noite de Páscoa e na solenidade do Natal, a fim de receber
a sua bênção, seja qual for a cidade onde estes se encontrem.
36. Ninguém seja excluído da Igreja sem recurso nem esperança de perdão, e ninguém 5111
se veja recusar o acesso ao perdão que o reintroduz, se fizer penitência ou se corrigir.
Mas, se alguém se encontrar em perigo de morte, os prazos prescritos para a pena
devem ser diminuídos. Se acontecer que o doente, depois de ter recebido o viático,
acaba por curar-se, convém respeitar os prazos fixados.

Concílio de Girona (517) 16


1. Relativamente à celebração da liturgia, tal como se faz na Igreja metropolitana, 5112
assim se deve proceder, em nome de Deus, em toda a província Tarraconense, quanto
aos ritos da missa, do ofício e à forma de ministrar.
2. Na semana a seguir à solenidade do Pentecostes, far-se-ão as ladainhas, desde 5113
quinta-feira até sábado...
3. De igual modo se fará a segunda ladainha na primeira semana de Novembro, de 5114
modo que comece na quinta-feira e termine no sábado à tarde, depois da missa.
4. Acerca dos catecúmenos candidatos ao baptismo, foi estabelecido que eles devem 5115
apresentar-se na Páscoa ou no Pentecostes; só os doentes devem ser baptizados noutras
solenidades, sendo conveniente não lhes recusar o baptismo em nenhum momento.
5. Quanto às crianças recém-nascidas, pareceu bem determinar que, se estiverem 5116
doentes, como é frequente, e recusarem o seio, sejam baptizadas no próprio dia do
nascimento, se o pedido for feito.
10. Também decidimos que, todos os dias, depois de Laudes e Vésperas, o sacerdote 5117
deve proferir (em voz alta) a Oração dominical 17.

Concílio de Lião (518-523) 18


1. Reunidos novamente em nome da Trindade por causa do assunto de Estêvão 19, 5118
manchado com o crime de incesto, e encontrando-nos na cidade de Lião, decidimos

16
Concílio de Girona (=M ANSI , VIII). Girona é na Espanha.
17
Ita nobis placuit, ut omnibus diebus post matutinas et vespertinas oratio Dominica a sacerdote proferatur.
18
Concílio de Lião (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
19
Estêvão era um funcionário do fisco real que, depois da morte de sua mulher, tinha casado com a sua
cunhada. O Concílio pronunciou-se sobre esta união incestuosa.
1240 SÉCULO VI

manter-nos inviolavelmente fiéis ao acto que subscrevemos por unanimidade, relativo à


sua condenação e à da mulher à qual ele se uniu ilegalmente. E foi decidido que isto se
deve aplicar, não só a essas ditas pessoas, mas também àquelas que venham a ser
encontradas culpadas de semelhante perversão, seja em que lugar e tempo for...
5119 Apêndice.Concedemos aos ditos Estêvão e Paládia autorização de orar nos lugares
santos, até à oração do povo que se diz depois do Evangelho20.

Concílio de Lérida (523) 21


5120 4. As pessoas culpadas de incesto podem permanecer na igreja até à missa dos
catecúmenos 22.

Concílio de Carpentras (527) 23


5121 1. Dado que na nossa reunião de Carpentras chegou até nós uma queixa deste género,
a saber, que as oferendas feitas pelos fiéis às paróquias são de tal modo reivindicadas
por certos bispos que resta apenas pouca coisa ou quase nada às igrejas às quais tinham
sido oferecidas, pareceu-nos justo e razoável que, se a igreja da cidade à qual preside o
bispo é tão bem provida que, por graça de Cristo, nada lhe falta, tudo o que for deixado
às paróquias seja atribuído com justiça aos clérigos que servem essas paróquias e às
reparações das basílicas. Se, ao contrário, parecer que o bispo tem grandes despesas e
poucos rendimentos, reservar-se-á às paróquias às quais são feitas grandes oferendas o
que parecer razoavelmente suficiente para os clérigos e a conservação das igrejas.
Quanto ao resto, o bispo deve reclamá-lo por causa das suas grandes despesas, ficando
claro que não lhe é permitido, no entanto, diminuir as modestas receitas nem os objectos24
dos clérigos do lugar...

II Concílio de Vaison (529) 25


5122 1. Achou-se bem que todos os presbíteros que vivem nas paróquias, de acordo com
o costume observado, de maneira muito positiva, em toda a Itália, como nós sabemos,
acolham junto de si, nas residências paroquiais onde habitam, leitores ainda jovens,
não casados. Procurem educá-los como bons pais espirituais, de modo que eles aprendam
de cor os salmos, se apliquem às leituras divinas e se instruam na lei do Senhor. Agindo
assim, estão a preparar bons sucessores para si próprios e receberão do Senhor eterna
recompensa. Ao atingirem a idade adulta, se algum deles, em razão da fraqueza da
carne, quiser tomar mulher, não se proíba de contrair matrimónio.

20
... ut Stephano praedicto uel Palladiae usque ad orationem plebis, quae post euangelia legitur, orandi in
locis sanctis spatium praestaremus.
21
Concílio de Lérida (=M ANSI , VIII).
22
Usque ad missam cathecumenorum.
23
Concílio de Carpentras (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
24
Ministerium.
25
II Concílio de Vaison (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios). Este concílio foi presidido
por S. Cesário de Arles.
CONCÍLIOS 1241

2. Achou-se que era bom, para o progresso de todas as igrejas e para utilidade de 5123
todo o povo, dar autorização aos presbíteros, não só nas cidades, mas em todas as
paróquias, de tomar a palavra 26. No caso de o presbítero estar impedido por qualquer
doença e não poder pregar ele próprio, sejam lidas as homilias dos santos Padres pelos
diáconos27; com efeito, se os diáconos são dignos de ler o que Cristo diz no Evangelho,
porque haviam de ser julgados indignos de ler em público os comentários dos santos
Padres?
3. Como na Sé Apostólica e em todas as províncias do Oriente e da Itália, se 5124
introduziu o agradável e salutar costume de dizer várias vezes, com muito fervor e
compunção, o Kyrie eleison, também nos pareceu bem a nós que em todas as nossas
igrejas seja introduzido, com a ajuda de Deus, uso tão santo, no ofício da manhã, na
missa e em Vésperas. E que em todas as missas, quer da manhã, quer da Quaresma,
quer nas que se dizem nas memórias dos defuntos28, se deve dizer: Sanctus, Sanctus,
Sanctus, do mesmo modo que se diz nas missas solenes, porque uma palavra tão santa,
tão agradável e desejável, mesmo que a digamos dia e noite, nunca poderá gerar cansaço.
4. Também nos pareceu justo que o nome do Senhor Papa que na altura presida à Sé 5125
Apostólica seja mencionado nas nossas igrejas29.
5. Dado que, não só na Sé Apostólica, mas também em todo o Oriente e em toda a 5126
África e na Itália, se diz nas conclusões, depois do Glória: Sicut erat in principio, em
razão do artifício dos hereges que blasfemam ao afirmarem que o Filho de Deus não
esteve desde sempre com o Pai, mas começou a existir no tempo, decretámos também
nós que é preciso dizer desse mesmo modo em todas as nossas igrejas.

II Concílio de Orleães (533) 30


16. Em caso algum se deve ordenar um presbítero ou um diácono que não saiba ler ou 5127
que ignore o rito do baptismo.

Concílio de Clermont (535) 31


3. Velar-se-á para que os corpos dos defuntos não sejam envolvidos em roupas ou 5128
panos sagrados.
7. O corpo de um bispo, quando é conduzido ao túmulo, não seja nunca coberto 5129
com o véu que serve para o corpo do Senhor, pois desse modo, quando o véu sagrado
voltasse ao seu uso, manchar-se-iam os altares por ele ter honrado os corpos.

26
Tomar a palavra quer dizer fazerem eles próprios a homilia, sem terem de ler algum sermão dos Padres.
27
Si presbyter, aliqua infirmitate prohibente, per seipsum non potuerit praedicare, sanctorum Patrum
homiliae a diaconibus recitentur.
28
Seu in matutinis, seu quadragesimalibus, seu in illis quae pro defunctorum commemoratione fiunt.
29
Na Liturgia galicana, estes nomina eram lidos no fim da Oração dos fiéis.
30
II Concílio de Orleães (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
31
Concílio de Clermont (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
1242 SÉCULO VI

III Concílio de Orleães (538) 32


5130 15. Sobre a celebração da missa, pelo menos nas principais solenidades: Deve
velar-se para que a celebração da missa comece, em nome de Deus, à hora tércia, de
modo que este ofício termine no tempo devido, e os bispos possam mais facilmente ir ao
ofício da tarde, à hora de Vésperas, porque não é conveniente e não deve acontecer
que o bispo esteja ausente da igreja no ofício da tarde, sobretudo em semelhantes dias.
5131 27. Sobre a conversão dos penitentes 33: Ninguém tenha a ousadia de conceder a
bênção dos penitentes às pessoas jovens; de qualquer modo, não tenha a audácia de a
dar às pessoas casadas, a não ser com o consentimento dos seus cônjuges e numa idade
já avançada.
5132 28. Se alguém, depois de ter recebido a bênção dos penitentes, se permite voltar ao
hábito e à carreira do mundo, seja punido com a excomunhão até à morte, tendo, no
entanto, direito ao viático.
5133 31. Como o povo está persuadido de que não se deve, no domingo, viajar com
cavalos ou com bois e viaturas, nem preparar qualquer alimento, nem fazer nenhum
trabalho que diga respeito à limpeza das casas ou das pessoas, coisas que pertencem
mais à observância judaica do que à observância cristã, estabelecemos que é permitido
fazer, no domingo, tudo o que era permitido antes. Contudo, relativamente aos trabalhos
do campo, como sejam lavrar, cuidar da vinha, ceifar, malhar, roçar mato e fazer
valados, decidimos que não devem fazer-se, para ser mais fácil vir à igreja participar no
bem da oração. Se alguém for surpreendido a executar os trabalhos acima enumerados
como proibidos, a medida da pena imposta não deve depender do rigor do juiz leigo,
mas da correcção do bispo.
5134 32. Nenhum leigo deixe a missa antes de ser dita a Oração dominical, e, se o bispo
estiver presente, espere-se pela sua bênção. Ninguém assista ao sacrifício da missa da
manhã ou da tarde com armas destinadas à guerra. Se alguém o fizer, pertence ao bispo
julgar ele próprio a natureza da correcção.

IV Concílio de Orleães (541) 34


5135 1. Foi decidido, com a ajuda de Deus, que a santa Páscoa seja celebrada por todos
os bispos na mesma data, segundo a tabela de Vítor de Aquitânia. Esta festa deve ser
anunciada ao povo, na igreja, no dia da Epifania. Sempre que se levante alguma dúvida
a propósito desta solenidade, aceite-se a decisão pedida ou conhecida da Sé Apostólica
pelos metropolitas.
5136 2. Também decidimos que seja observado o seguinte: Em todas as igrejas deve
haver uniformidade relativamente à Quaresma, e nenhum bispo deve permitir-se
prescrever antes da Páscoa uma Quinquagésima ou uma Sexagésima; do mesmo modo,
ninguém, a não ser que esteja doente, deve quebrar o jejum quaresmal nos sábados, mas
deve almoçar apenas no domingo: os estatutos dos Padres estabeleceram especialmente
que assim seja. Se algum bispo violar esta regra, seja considerado pelos bispos como
transgressor da disciplina.

32
III Concílio de Orleães (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
33
A penitência pública impunha que se vivesse em continência.
34
IV Concílio de Orleães (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
CONCÍLIOS 1243

4. Ninguém tome a liberdade, no ofertório do santo cálice, de oferecer algo que não 5137
provenha do fruto da videira, misturado com água, porque é considerado sacrilégio
oferecer coisa diferente daquela que o Senhor fixou nos seus mandamentos santíssimos35.
17. Os presbíteros e os diáconos não devem ter leito comum nem quarto comum com 5138
as suas esposas, para que a honra da religião não seja manchada pela desconfiança de
relações carnais. Os que o fizerem devem ser depostos dos seus ofícios, de acordo com
os antigos cânones.
24. Se algumas pessoas não livres se refugiarem na cerca da igreja a pretexto de 5139
contrair matrimónio, pensando que podem casar-se desta forma, é preciso impedir-lho
por todos os meios, e os clérigos não devem proteger uma união deste género. É uma
profanação que pessoas deste género se unam nos lugares sagrados para um concubinato
vergonhoso, ao passo que os que se casaram legitimamente (isto é, com a cooperação
dos seus tutores), permanecem afastados da comunidade eclesial durante o tempo fixado...

V Concílio de Orleães (549) 36


10. Não seja permitido a ninguém obter o episcopado com presentes ou por compra, 5140
mas que a ordenação se faça com o consentimento do rei 37, em conformidade com a
eleição do clero e do povo, como está escrito nos antigos cânones...
11. Tal como o prescreveram os antigos cânones, nenhum bispo deve ser dado àqueles 5141
que o não querem, e os cidadãos ou os clérigos – é triste dizê-lo – não devem ser
influenciados no seu consentimento pela pressão de pessoas poderosas. Se tal acontecer,
o bispo ordenado, mais por violência do que por decisão legítima, deve ser deposto
para sempre da honra do episcopado obtido.

Concílio de Eauze (551) 38


5. No que respeita à ordenação dos clérigos, convém observar o seguinte: Quando 5142
a ordenação de um presbítero e de um diácono é solicitada pelo bispo, o povo deve
sabê-lo oito dias antes da ordenação, e, se alguém conhecer defeitos no candidato, não
deixe de o dizer antes da ordenação; se ninguém vier fazer objecções à admissão decidida,
o candidato merece, sem qualquer hesitação, receber a bênção.

V Concílio de Arles (554) 39


1. As oblatas, oferecidas no santo altar, pelos bispos desta província, não devem 5143
ter forma diferente das que se oferecem na Igreja de Arles.

35
Os Romanos tinham o costume de adoçar o vinho com mel.
36
V Concílio de Orleães (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
37
Na prática já era assim desde Clóvis; no entanto, é o primeiro texto que reconhece oficialmente esta
intervenção do rei na ordenação dos bispos.
38
Concílio de Eauze (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
39
V Concílio de Arles (=SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
1244 SÉCULO VI

Sínodo Nestoriano (554) 40


5144 19. Quando algum daqueles que caíram nesta grande enfermidade41 se converter,
ofereçam-lhe, como meio de cura, tal como àquele que está fisicamente doente, o óleo
da oração benzido pelos sacerdotes e a água da oração.

I Concílio de Braga (561) 42


5145 Como os bispos da província da Galiza, Lucrécio, André, Martinho, Coto, Ilderico,
Lucêncio, Timóteo e Malioso, por ordem do gloriosíssimo rei Ariamiro se juntaram na
Igreja metropolitana da mesma província bracarense: sentados todos os bispos,
presentes também os presbíteros, e estando de pé os ministros e todo o clero, Lucrécio,
bispo da referida Igreja metropolitana, disse: «Há muito tempo, santíssimos irmãos,
desejávamos que se fizesse entre nós... um congresso sacerdotal... Agora, que o nosso
gloriosíssimo e piedoso filho, por inspiração do Senhor, nos concedeu, com suas
ordens reais, o desejado dia deste ajuntamento e nos achamos aqui reunidos, em primeiro
lugar... tratemos dos dogmas da fé católica; depois recordem-se os estatutos dos santos
Padres, lendo os cânones que os contêm; e, por fim, tratar-se-ão com pormenor as
coisas que pertencem ao culto divino e aos ofícios do clero43, para que, no caso de
haver entre nós práticas variadas ou inconstantes, introduzidas pela ignorância, descuido
ou inveterada corruptela, sejam reconduzidas, como convém, a uma só fórmula, que
requer a verdade e a razão. Todos os bispos disseram: A proposta da tua santidade é
justa, pois foi por essa causa que nos juntámos, para que resulte algum proveito, ao
pormos ordem nas coisas da Igreja...
Os capítulos propostos e lidos contra a heresia de Prisciliano contêm o seguinte44:
.... Propostos e lidos que foram estes capítulos, disse o bispo Lucrécio:
Pois que já ficam expostas com bastante clareza e distinção, mesmo para os
ignorantes, as coisas que todo o católico deve abominar e condenar, entendo ser agora
necessário, se parecer bem a vossa fraternidade, que se nos dêem a conhecer os institutos
dos Santos Padres contidos nos antigos cânones, e dos quais se leia, se não tudo, ao
menos alguma coisa que pertença à instrução da disciplina clerical. Responderam todos
os bispos: Estamos de acordo com o que se acaba de propor...
Foram lidos do códice, em presença do concílio, os cânones dos concílios quer
gerais quer locais.
Depois de se lerem os cânones, disse o bispo Lucrécio: Por esta leitura dos
cânones ficou vossa santa fraternidade a conhecer... as coisas que os bispos, congregados
em concílios gerais e locais, de uniforme consenso entenderam que convinham à ordem
eclesiástica... Portanto, se assim apraz a vossa caridade, visto haver alguma variedade
em certas práticas de disciplina eclesiástica, especialmente na extremidade desta

40
Sínodo Nestoriano (=J. B. Chabot, Synodicon orientale, Paris 1902).
41
A superstição.
42
I Concílio de Braga (=PL 84, 561-568; M ANSI , IX; B RUNS , II; F ORTUNATO DE ALMEIDA , vol. IV, 22-31). Por
razões que se compreendem, quisemos dar, a este Concílio, a importância que ele nos merece, transcrevendo
a maior parte do seu texto, mesmo quando algum dos cânones não se refere directamente à liturgia.
43
Postremo quaedam etiam quae ad obsequium Dei vel officium pertinent clericale diligentius pertractentur.
44
Seguem-se dezassete capítulos de doutrina, numerados de I a XVII, que não se transcrevem, por não
dizerem directamente respeito à liturgia.
CONCÍLIOS 1245

província, não por obstinação, o que esteja longe de nós, mas por incúria, como
dissemos, ou por ignorância, ordenemos alguns capítulos, pelos quais todas estas
coisas, que entre nós se não praticam da mesma maneira, se reduzam a uma só fórmula.
Disseram os bispos todos: Temos isto por muito útil e necessário... Pelo que se há
alguma coisa, grande ou pequena, em que pareça que nos diferençamos, reduza-se,
como está dito, a uma só forma, distribuída razoavelmente em capítulos. Muito mais
tendo nós já a respeito de alguns artigos uma instrução da Sé Apostólica, que da mesma
cadeira de São Pedro emanou em consequência de consulta, que em certo tempo lhe
fizera o teu predecessor Profuturus, de venerável memória. O bispo Lucrécio disse
então: Lembrastes-vos muito bem, irmãos, do rescrito da Sé Apostólica... Se apraz a
vossa unanimidade, visto termo--lo entre mãos, leia-se diante de todos. Disseram os
bispos todos: É justo, uma vez que se fez menção do sobredito rescrito, que os
circunstantes ouçam a doutrina que nele se contém. Leu-se o rescrito da Sé Apostólica
dirigido ao bispo Profuturus, o qual, para evitar prolixidade, se não inclui nestas actas.
Depois da sua leitura disse o bispo Lucrécio: Está claramente conhecido quanto a
doutrina apostólica nos favorece. Portanto, conforme ao que vossa fraternidade já
disse, se alguma coisa por ignorância é praticada por alguns de maneira diversa, seja
reduzida a uma regra uniforme ajustando entre nós certos capítulos. Foram, pois,
apresentados e lidos os capítulos que contêm o seguinte:
1. Do canto dos ofícios: Aprouve a todos, de comum acordo, que se observe uma e 5146
a mesma ordem de cantar nos ofícios matutinos e vespertinos; e que neste ritual da
Igreja se não misturem diversos usos particulares, nem os dos mosteiros.
2. Dos dias de solenidade: Aprouve também que, nas vigílias dos dias solenes e nas 5147
missas, todas as leituras que se lêem sejam as mesmas, e não diferentes em cada uma
das igrejas.
3. Da saudação – Dominus vobiscum: Aprouve também que os bispos não saúdem 5148
o povo de um modo e os presbíteros de outro, mas todos digam igualmente: Dominus
sit vobiscum, como se lê no livro de Rute e se responda: Et cum spiritu tuo, como o
mantém todo o Oriente, segundo a tradição dos Apóstolos, e não como o mudou a
perversidade prisciliana.
4. Do teor das missas: Aprouve também que as missas se celebrem universalmente 5149
segundo o modo que Profuturus, outrora bispo desta igreja metropolitana, recebeu por
escrito da autoridade da Sé Apostólica.
5. Da forma de baptizar: Aprouve igualmente que ninguém abandone aquela forma 5150
de baptizar que a igreja metropolitana de Braga guardou sempre e que o sobredito
bispo Profuturus, para eliminar a dúvida de alguns, obteve em escrito da Sé do bem-
-aventurado Apóstolo Pedro.
6. Da primazia episcopal: Aprouve também que, guardada a primazia do bispo 5151
metropolitano, os demais bispos tenham a precedência uns a outros no assento, segundo
a antiguidade da sua ordenação.
7. Sobre os bens eclesiásticos: Aprouve igualmente que das rendas e bens 5152
eclesiásticos se façam três porções iguais, a saber: uma do bispo, outra do clero e outra
para as reparações e lâmpadas da igreja; e desta tenha a administração o arquipresbítero
ou o arquidiácono, que dará contas ao bispo.
8. Sobre a ordenação de clérigo estranho: Aprouve também que nenhum bispo 5153
ouse ordenar clérigo de outrem, como os antigos cânones já proibiram, sem ter recebido
cartas assinadas pelo seu bispo próprio.
9. Sobre o orárion dos diáconos: Aprouve também, dado que nalgumas igrejas 5154
desta província os diáconos costumam trazer o orárion debaixo das túnicas, de modo
que em nada se distinguem dos subdiáconos, que daqui por diante tragam o orárion em
cima do ombro, como deve ser.
1246 SÉCULO VI

5155 10. Sobre os vasos sagrados: Aprouve também que não seja permitido aos leitores
levar os vasos para o altar, mas só aos que tiverem recebido do bispo a ordem de
subdiácono.
5156 11. Sobre os leitores da igreja: Aprouve ainda que os leitores não cantem, na igreja,
em hábito com ornato secular, nem deixem crescer guedelhas à maneira pagã.
5157 12. Sobre as Escrituras canónicas: Aprouve também que, além dos Salmos ou das
Escrituras canónicas do Antigo e do Novo Testamento, nenhuma composição poética
se cante na igreja, como os santos cânones mandam.
5158 13. Onde se deve comungar: Aprouve também que só aos clérigos seja permitido
entrar no santuário do altar para comungarem, e não aos leigos, homens ou mulheres,
como está ordenado nos cânones antigos.
5159 14. Sobre carnes e hortaliças: Aprouve igualmente que todos os eclesiásticos, que
não usam comida de carnes, sejam obrigados a provar ao menos das hortaliças cozidas
com carne, para tirar toda a suspeita de heresia prisciliana. E, se recusarem fazê-lo, é
preciso que, segundo o que a respeito de tais coisas ordenaram antigamente os santos
padres, sejam por todos os modos removidos do ofício, e excomungados, como suspeitos
daquela heresia.
5160 15. Sobre o convívio com os excomungados: Aprouve igualmente que ninguém ouse
comunicar com os que foram excomungados por motivo de heresia, ou de algum crime,
como prescrevem os antigos estatutos dos cânones; se alguém os desprezar, envolve-se
voluntariamente na condenação alheia.
5161 16. Sobre os suicidas e justiçados: Aprouve também que, na oblação, não se faça
comemoração alguma daqueles que se dão a si mesmos morte violenta ou com ferro, ou
com veneno, ou despenhando-se, ou enforcando-se, ou por qualquer modo que seja,
nem seus corpos sejam levados à sepultura com salmos, pois muitos o têm feito por
ignorância. O mesmo se observe a respeito dos que são condenados à morte por crimes.
5162 17. Sobre os que morrem enquanto catecúmenos: Aprouve também que, do mesmo
modo, não se faça comemoração na oblação nem ofício de salmos, pelos catecúmenos
mortos sem a redenção do baptismo, pois que também isto se tem praticado por
ignorância.
5163 18. Sobre o lugar de sepultura dos fiéis: Aprouve também que os corpos dos defuntos
de modo nenhum se enterrem dentro da basílica dos santos; mas, quando for necessário,
da parte de fora junto à parede da igreja, onde não fica tão indecoroso. Porque se as
cidades até agora conservam inviolável o privilégio de não se enterrar o corpo de
defunto dentro do recinto de seus muros, quanto mais se deve guardar em reverência
aos mártires veneráveis!
5164 19. Sobre a bênção do crisma e consagração das igrejas: Aprouve também que se
algum presbítero, depois desta proibição, ainda ousar benzer crisma ou consagrar
igreja ou altar, seja deposto do seu ofício, porque os cânones antigos proibiram isto.
5165 20. Sobre os graus dos leigos: Aprouve também que ninguém suba de leigo ao grau
do sacerdócio, sem que primeiro aprenda, por um ano inteiro, a disciplina eclesiástica
no ofício do leitorado ou do subdiaconado, e, assim, pelos diferentes graus, chegue ao
sacerdócio, porque é muito repreensível que aquele que ainda não aprendeu presuma já
ensinar, coisa que se acha proibida pelos antigos documentos dos padres.
5166 21. Sobre as colectas dos fiéis: Aprouve também que, se os fiéis, em sua liberalidade,
oferecerem alguma coisa por ocasião das festividades dos mártires ou da comemoração
dos defuntos, tudo seja fielmente depositado na mão de um dos clérigos; e, em tempo
determinado, ou seja uma vez no ano, ou duas, se reparta por todos os clérigos; porque
nascem grandes discórdias da desigualdade, se acontece que cada um tome para si o que
foi ofertado na sua semana.
CONCÍLIOS 1247

22. Sobre a observância dos antigos cânones: Aprouve, finalmente, que ninguém 5167
ouse transgredir qualquer dos preceitos dos antigos cânones, que acabam de ser recitados
neste concílio. E se alguém os quebrantar por obstinação, seja deposto do seu ofício.
Lidos os capítulos, disse o bispo Lucrécio: Pois que, com a ajuda do Senhor, 5168
decretámos com unânime consenso, como convinha, as coisas que pertencem tanto à
firmeza da fé católica e ortodoxa, como ao ofício do estado eclesiástico, resta agora que
de todas estas coisas, que com a graça de Deus ficam saudavelmente estabelecidas,
cuide cada um de nós em instruir, e informar a sua respectiva diocese. E, se algum de
nós nas suas paróquias achar clérigo ou monge, que depois de publicados os decretos
deste concílio, se oponha a esta sã doutrina, ou pressentir que ainda conserva algum
erro da seita prisciliana, e logo o não excomungar e anatematizar e lançar fora da Igreja,
de modo que com tal homem nenhum fiel ouse mais comunicar na comida ou no trato,
saiba todo aquele que o acolher, que fica excluído da comunhão de seus irmãos e sem
dúvida réu da divina sentença. Responderam os bispos todos: Tudo quanto pela graça
de Deus fica decretado de comum consenso, é preciso que com o mais vigilante cuidado
se guarde. E para que isto mesmo adquira a estável firmeza da constituição acordada, subscreva
cada um estas actas com sua própria mão. E seguiu-se logo a subscrição dos bispos.
Lucrécio, bispo, subscrevi. André, bispo, subscrevi. Martinho, bispo, subscrevi.
Coto, bispo, subscrevi. Ilderico, bispo, subscrevi. Lucêncio, bispo, subscrevi. Timóteo,
bispo, subscrevi. Malioso, bispo, subscrevi.

II Concílio de Tours (567) 45


3. O Corpo do Senhor deve ser disposto sobre o altar não de maneira figurativa, 5169
mas à imagem da cruz46.
4. Os leigos não devem estar de modo algum perto do altar onde se celebram os 5170
santos mistérios, entre os clérigos, tanto nas vigílias como nas missas: o espaço
delimitado entre as cancelas e o altar só deve ser aberto aos coros de clérigos que
salmodiam. Para orar ou para comungar, os leigos e as mulheres, segundo o costume,
podem ter acesso ao santuário47.
10. Quanto à familiaridade com as mulheres..., doravante nenhum clérigo, por motivo 5171
da confecção duma peça de roupa, ou por causa da limpeza da casa, ouse manter na sua
casa uma mulher que lhe seja estranha...
11. Nenhum clérigo, quer seja bispo, presbítero, diácono ou subdiácono, ouse instalar 5172
em sua casa uma pessoa para tratar da casa a pretexto de ser uma religiosa, ou uma
viúva, ou uma escrava pessoal: esta última também lhe é estranha, pois não é sua mãe,
nem irmã, nem filha; ela é até mais levada e mais exposta à falta, uma vez que está
naturalmente submetida à autoridade do seu patrão. Se algum bispo, presbítero, diácono
ou subdiácono ousar, neste ponto, ir contra os estatutos dos Padres e contra os nossos,
seja excomungado.
13 (12). O bispo considere a sua esposa48 como irmã e governe de maneira santa a 5173
sua casa – a da igreja e a própria – orientando-a de tal maneira que não se levante
qualquer suspeita a seu respeito, seja por que razão for. E mesmo que, por graça de
Deus e segundo o testemunho dos seus clérigos ele viva castamente – pois estes

45
II Concílio de Tours (=CCL 148 A; SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
46
Trata-se da maneira de colocar o pão consagrado sobre o altar.
47
Sancta sanctorum.
48
Conjugem.
1248 SÉCULO VI

moram com ele e acompanham-no no seu quarto e por toda a parte onde ele se encontra,
e os presbíteros, os diáconos e o grupo dos jovens clérigos vivem com ele –, no
entanto..., devem habitar em quartos suficientemente afastados e separados pela
distância da habitação dele, a fim de que também aqueles que andam a ser educados nos
deveres dos clérigos, na esperança da substituição, não sejam corrompidos pela
promiscuidade das criadas.
5174 14 (13). O bispo que não tem esposa49 não deve ser seguido por uma multidão de
mulheres. É certo, como diz o Apóstolo, que o homem é salvo pela mulher fiel, tal
como a mulher é salva pelo homem fiel50. Mas onde uma tal protecção não é precisa,
que necessidade há duma escolta importuna, que gera rumores? Os criados da igreja, e
naturalmente os clérigos que servem o bispo e o devem guardar, tenham autorização
para expulsar as mulheres estranhas da multidão dos comensais.
5175 18 (17). Quanto aos jejuns, os monges devem observar as prescrições antigas: da
Páscoa ao Pentecostes, excepto nas Rogações, sirva-se o almoço todos os dias aos
irmãos; depois do Pentecostes devem jejuar completamente uma semana inteira51. Em
seguida, até ao primeiro de Agosto, jejuarão três vezes por semana: na segunda-feira,
na quarta-feira e na sexta-feira, excepto aqueles que estiverem impedidos por qualquer
doença. Em Agosto, uma vez que todos os dias há missas de santos, almoçam. Durante
os meses de Setembro, Outubro e Novembro jejuam, como se disse, três vezes por
semana, e em Dezembro todos os dias, até ao Natal do Senhor. E, como desde o Natal
do Senhor até à Epifania há festas todos os dias, almoçam igualmente, excepto nos três
dias fixados pelos nossos Pais, para se oporem aos costumes dos pagãos: no primeiro
de Janeiro terão lugar ladainhas privadas; deve salmodiar-se na igreja, e no próprio dia
um de Janeiro, à hora oitava, celebra-se, com a ajuda de Deus, a missa da Circuncisão.
A seguir à Epifania e até à Quaresma jejuam três vezes por semana.
5176 19 (18). Igualmente, por respeito à honra de São Martinho, ao seu culto e aos seus
milagres, estabelecemos que seja observada, tanto nesta basílica como nas nossas
Igrejas próprias, a ordem seguinte na salmodia: no Verão, na hora de Laudes52, devem
recitar-se seis antífonas com dois salmos sob cada uma; durante todo o mês de Agosto
usam-se fórmulas mais breves53, porque há festas e missas; em Setembro cantam-se
sete antífonas com dois salmos sob cada uma; em Outubro, oito antífonas com três
salmos sob cada uma; em Novembro, nove antífonas com dois salmos sob cada uma;
em Dezembro, dez antífonas com três salmos sob cada uma; em Janeiro e Fevereiro, o
mesmo até à Páscoa; isto segundo a possibilidade, fazendo um mais e outro menos,
cada qual como puder. Seja como for, em Laudes devem cantar-se pelo menos doze
salmos, como o prescreveram os Padres; à hora sexta, seis salmos com Aleluia; à hora
décima segunda, doze salmos também com Aleluia, como foi revelado aos Padres por
um Anjo. Se à décima segunda hora há doze salmos, como não havíamos de cantar pelo
menos doze em Laudes? Se alguém disser menos de doze salmos em Laudes jejuará até
às Vésperas; fique só a pão e água e nesse dia não coma nenhuma refeição. Aquele que
desprezar esta prescrição fique a pão e água durante uma semana e jejue todos os dias
até Vésperas.
5177 20 (19). O povo desconfia que os presbíteros rurais54, bem como os diáconos e os
subdiáconos, não todos, mas muitos deles, vivem em companhia das suas esposas55.

49
Episcopia.
50
1 Cor 7, 14.
51
Este modo de jejuar por parte dos monges mostra que já então desaparecera a noção do tempo pascal.
52
Matutinum.
53
Manicationes.
54
Archipresbiteri vicani.
55
Coniugibus suis.
CONCÍLIOS 1249

Por isso foi decidido observar que, sempre que o arquipresbítero fique no burgo56, ou
vá para a sua propriedade57, um dos leitores ligados à sua igreja58 ou ao menos algum
dos clérigos vá com ele e tenha uma cama num quarto onde ele próprio dorme, para lhe
servir de testemunha. Sejam-lhe, portanto, dados sete subdiáconos, leitores e leigos
que rotativamente assegurem por completo, junto dele, as suas semanas; se algum se
dispensar, seja castigado. E, se esse presbítero se mostrar negligente quanto a isto,
sem se preocupar em cumprir esta obrigação, seja privado da comunhão durante trinta
dias, até fazer penitência e, desse modo, reentrar em graça. Os outros presbíteros,
diáconos e subdiáconos rurais ordenem às suas escravas59 que fiquem onde moram as
esposas deles. Aqueles que não têm esposas, vão para os seus quartos à parte, separados
das suas escravas, e orem e durmam lá, separados. Se um presbítero for encontrado
com a sua presbítera60, ou um diácono com a diaconisa61, ou um subdiácono com a sua
subdiaconisa 62, ficará um ano inteiro separado da comunhão e, deposto de qualquer
ofício clerical, participará no culto entre os leigos, mas com a permissão de ocupar o
lugar entre os leitores no coro dos cantores. Quanto aos arquipresbíteros que
negligenciem tomar tais precauções a respeito dos seus clérigos jovens, e que não se
preocupem em puni-los, sejam encerrados pelo seu bispo na cidade, numa célula, onde
ficarão, durante um mês inteiro, a pão e água, fazendo penitência pelo clero que lhes
está confiado. Com efeito, de acordo com as disposições dos cânones, não é permitido
a nenhum clérigo permanecer com a sua esposa, e a heresia dos Nicolaítas nasceu do
facto da liberdade de Nicolau, como está escrito: «Esta heresia dos presbíteros teve a
sua origem num presbítero». Ninguém poderia supor que aquele que consagra o Corpo
do Senhor ousasse cometer tais faltas, mas estas coisas apareceram há pouco tempo
por causa dos nossos pecados. Se esses diáconos foram condenados e considerados
heréticos por todos os bispos, e se os diáconos semelhantes a eles caem sob a mesma
maldição, uma vez que as determinações dos Padres os condenaram por esse motivo,
que será desses infelizes presbíteros que vivem sujeitos ao mesmo pecado, de tal modo
que arrastam na sua queda os outros que os vêem viver dessa maneira?...
23 (22). Soubemos, na verdade, que há certas pessoas, adeptas do erro antigo, que 5178
festejam o primeiro de Janeiro, sabendo nós que Janus foi um pagão... Ora, todo aquele
que crê num só Deus, o Pai que reina com o Filho e o Espírito, não se pode dizer
inteiramente cristão se observa, nesse ponto, os usos do paganismo. E também há
pessoas que, na festa da Cadeira de São Pedro, oferecem sopa aos mortos, e que, ao
entrarem em casa depois da missa, regressam aos erros dos pagãos e tomam, depois do
Corpo do Senhor, iguarias consagradas aos Demónios. Conjuramos os pastores e os
presbíteros a velar atentamente. E, se virem pessoas que persistem nessas tolices, e
que realizam junto de não sabemos que pedras, árvores e fontes, lugares escolhidos
pelos pagãos, ritos incompatíveis com o espírito da Igreja, as expulsem da igreja pela
sua santa autoridade e não deixem participar no santo altar aqueles que mantêm essas
observâncias pagãs...
24 (23). Apesar de nós utilizarmos, no cânone63, os hinos ambrosianos, uma vez 5179
que existem outros que, pela sua forma, são dignos de ser cantados, acolhemos de
boamente, além daqueles, outros que trouxerem indicados os nomes dos seus autores:
com efeito, os que forem obra de fé não devem deixar de ser ditos por causa do seu estilo.

56
Vicus.
57
Villa.
58
Lectorum canonicorum suorum.
59
Mancipiola.
60
Presbytera.
61
Diaconissa.
62
Subdiaconissa.
63
No cânone do saltério, isto é, no ordo officii.
1250 SÉCULO VI

5180 28 (27). Nenhum bispo ouse exigir gratificação pelas ordenações dos clérigos, porque
essa maneira de proceder não só é sacrílega como também herética...

II Concílio de Braga (572) 64


5181 1. Foi decidido por todos os bispos e é muito conveniente que, ao percorrerem os
bispos cada uma das igrejas da sua diocese, comecem por examinar como procedem os
clérigos na administração do baptismo, na celebração das missas e nos restantes ofícios
eclesiásticos. Se acharem que procedem bem, dêem graças a Deus; caso contrário,
devem ensinar os ignorantes e bem assim mandar-lhes, por todas as maneiras (como
dispõem os antigos cânones), que os catecúmenos acorram à purificação do exorcismo
vinte dias antes do baptismo. Durante esses dias será especialmente ensinado aos
catecúmenos o Símbolo que começa: Credo in Deum Patrem omnipotentem. Depois
de os bispos examinarem os clérigos nestas matérias, no dia seguinte, reunido o povo
no templo, ensinem-no a fugir dos erros da idolatria e de outros crimes, como são:
homicídio, adultério, juramento falso, falso testemunho e os restantes pecados mortais;
que não façam a outrem o que não quereriam que lhes fizessem a eles; que creiam na
ressurreição de todos os homens e no dia de Juízo, no qual cada um há de receber
segundo as suas obras. E, depois disto feito, parta o bispo daquela para outra igreja.
5182 2. Foi decidido que o bispo, ao visitar as igrejas da diocese, não receba de cada
igreja alguma outra coisa mais que o reconhecimento da sua dignidade, que são dois
soldos; nem exija nas igrejas paroquiais a terça parte das ofertas do povo; mas aquela
terça parte guarde-se para cera ou para reparação do templo, dando-se da sua aplicação
contas anuais ao bispo; porque, se este tomar para si aquela terça parte, despoja a
igreja de cera e de telhados. Da mesma maneira, os clérigos que exercem funções
paroquiais não sejam violentados como escravos em quaisquer serviços do bispo,
porque está escrito: Neque ut dominantes in cleris.
5183 3. Foi decidido que os bispos não recebam dádivas algumas por ordenarem os
clérigos, antes (como está escrito) dêem de graça aquilo que gratuitamente recebem da
mão de Deus; nem se venda a graça de Deus e a imposição das mãos por nenhum preço,
porque a definição antiga dos padres assim o determinou a respeito das ordenações
eclesiásticas, dizendo: Seja excomungado o que der e o que receber. Porque algumas
pessoas, sobrecarregadas de muitos crimes, obtêm o serem admitidas como ministros
indignos do altar santo, não pelo testemunho das suas boas obras, mas pela profusão
das dádivas, convém por isso ordenar os clérigos, não por atenção às dádivas, mas
primeiro por exame rigoroso e depois pelo testemunho de muitas pessoas.
5184 4. Foi decidido que daqui em diante nada se exija por aquele pouco de bálsamo
bento que se reparte pelas igrejas para o sacramento do baptismo, e pelo qual se
costuma pedir a cada pessoa que o leva a terça parte de um soldo; para que não pareça
que nós, condenavelmente, nos propomos vender aquilo que para a saúde das almas foi
consagrado pela invocação do Espírito Santo, à imitação de Simão Mago, que pretendeu
comprar por dinheiro o dom de Deus.
5185 5. Foi decidido que todas as vezes que os bispos forem convidados por qualquer
dos fiéis para consagrarem igrejas, não exijam coisa alguma ao fundador como se lha
devesse; se ele, por sua livre vontade, oferecer alguma coisa, não se lhe enjeite; mas, se
estiver pobre ou necessitado, não se lhe exija coisa alguma. Advirta, todavia, cada um

64
II Concílio de Braga (=PL 84, 569-586; M ANSI , IX; B RUNS, II; F ORTUNATO DE ALMEIDA , vol. IV, 32-38). Há
dúvidas sobre a denominação deste II Concílio de Braga e também quanto à sua data. Ano 572.
CONCÍLIOS 1251

dos bispos que não deve consagrar igreja ou basílica, sem que previamente esta receba
património para seu serviço, confirmado por doação escrita; porque é grande temeridade
consagrar um templo sem cera e sem renda para sustentação dos que hão-de servir
nele, como se fora uma casa particular.
6. Foi decidido que, se alguém edificar igreja, não por devoção da fé, mas por interesse 5186
de cobiça, para compartilhar com os clérigos metade do que nela se recolhe das ofertas
do povo, pelo facto de ter fundado um templo em terra sua (como é fama que ainda hoje
se faz em certos lugares); daqui em diante se deverá observar que nenhum bispo consinta
tão abominável coisa, nem ouse consagrar igreja fundada mais sob condição tributária
do que para o patrocínio e invocação dos santos.
7. Foi decidido que cada bispo estabeleça o seguinte preceito nas igrejas da sua 5187
diocese: os que levam os seus meninos ao baptismo, se voluntariamente quiserem, por
sua devoção, oferecer alguma coisa, se lhes receba. Mas, se por necessidade e pobreza
não têm coisa que oferecer, não lhes tomem os clérigos penhor algum contra sua
vontade; porque muitos pobres, com este temor, deixam de trazer os seus filhos ao
baptismo; ora, se nesse meio tempo de dilação eles morrerem sem a graça do baptismo,
será forçoso pedir contas de sua perdição àqueles a quem os fiéis, por temor de sua
avareza, se retraíram de pedir a graça baptismal.
8. Foi decidido que, se alguém demandar um clérigo, acusando-o de luxúria, se lhe 5188
exijam duas ou três testemunhas, conforme o preceito do apóstolo São Paulo; e, se com
as testemunhas apresentadas não puder provar o que alegou, aplique-se ao acusador a
pena de excomunhão, que merecia o acusado.
9. Foi decidido que, depois de tudo ter sido regulamentado em concílio sacerdotal, 5189
invariavelmente se observe que o bispo metropolitano anuncie a Páscoa do ano futuro,
indicando a quantos da lua se há-de celebrar; os outros bispos da província, assim como
o restante clero, apontando esse dia no calendário, o anunciará cada um ao povo reunido
na sua igreja, depois da leitura do Evangelho, por ocasião do Natal, para que ninguém
desconheça a entrada da Quaresma. No principio da Quaresma, reunindo-se as freguesias
vizinhas durante três dias e percorrendo as igrejas dos santos, cantando salmos, celebrem
as ladainhas; e, no terceiro dia, celebradas missas à hora nona ou décima e, despedindo
o povo, se lhe recomende a observância do jejum quadragesimal; e, a meio da Quaresma,
se lembre aos interessados que, durante vinte dias, ofereçam à purificação dos exorcismos
as crianças que se houverem de baptizar.
10. Constando-nos que alguns presbíteros, pelo desatino do erro introduzido há pouco, 5190
ou antes afectados pela depravação da antiga heresia de Prisciliano, perseveram no
atrevimento de tal presunção que, na missa pelos defuntos, usam consagrar depois de
terem bebido vinho; foi decidido que se guarde com admoestação de sentença pública e
evidente que, se algum presbítero, depois deste nosso edicto, tornar a ser surpreendido
no desatino de consagrar a oblação no altar, não estando ele em jejum, mas tendo
tomado já algum alimento, seja desde logo privado do seu ofício e deposto pelo
respectivo bispo.
Ordenadas assim estas coisas, aprouve a todos, para confirmação da observância
delas, que cada um as assinasse por sua mão, feito entre todos esse acordo de que, se
algum, transgredindo o teor destes capítulos, quiser tornar aos desordenados costumes,
além de incorrer na censura de todo o Concílio, saiba que tem sobre si verdadeira
sentença de privação da sua dignidade.
Da jurisdição de Braga: Martinho, bispo da Igreja metropolitana de Braga,
subscrevi estas actas; Remissol, bispo da Igreja Besense (de Viseu?); Lucrécio, bispo
da Igreja de Coimbra; Adorico, bispo da Igreja Egestana (da Idanha?); Sardinário,
bispo da Igreja de Lamego; Viator, bispo da Igreja Magnetense (de Meinedo?).
Da jurisdição de Lugo: assinaram mais seis bispos.
1252 SÉCULO VI

I Concílio de Mâcon (581-583) 65


5191 9. Desde as férias de São Martinho até ao Natal do Senhor, deve jejuar-se nas
segundas, quartas e sextas-feiras e nos sábados e celebrar-se, por ordem, os sacrifícios
quaresmais.
5192 10. Os presbíteros, os diáconos e os clérigos de cada ordem devem submeter-se
devota e disciplinadamente ao seu bispo, e não deve ser-lhes permitido passar ou
celebrar os dias de festa noutro lugar que não seja ao serviço do seu bispo. Se algum
deles, por obstinação ou em nome do padroado de alguém, vier a faltar a este dever,
seja deposto do seu ofício.
5193 11. Os bispos, os presbíteros e todos os clérigos de grau honroso, a partir do momento
em que são elevados ao cimo da sua dignidade, devem renunciar inteiramente às acções
seculares; se forem escolhidos para o santo mistério, devem rejeitar a união sexual e
substituir o comércio das suas relações anteriores por uma afeição fraterna; cada um,
seja quem for, depois de receber a bênção66, passa imediatamente, por direito divino,
de marido que era, a irmão daquela que era antes a sua esposa. Ora nós tivemos
conhecimento de que alguns, inflamados pelo fogo do desejo..., voltaram à vida conjugal,
manchando a honra pura do sacerdócio..., o que se tornou manifesto pelos filhos que
lhes nasceram. Todo aquele que for reconhecido como tendo feito isso, será privado
para sempre de toda a dignidade que perdeu, ao cometer este crime.

II Concílio de Mâcon (585) 67


5194 1. Vemos que o povo cristão tem o mau hábito de desprezar o dia do Senhor e de
nele se entregar aos trabalhos correntes como nos dias feriais. Por isso, decidimos,
através desta nossa carta sinodal, que cada um de nós, nas santas igrejas, deve advertir
o povo que lhe está confiado: se as pessoas derem o seu assentimento a esta advertência,
fá-lo-ão para seu bem; mas, se o não fizerem, sofrerão as penas definidas por nós sob
inspiração divina. Assim, todos vós, cristãos que não levais em vão este nome, prestai
atenção à nossa advertência, sabendo que é da nossa responsabilidade velar pelo vosso
bem e impedir-vos de fazer o mal. Observai o dia do Senhor, que nos fez renascer e nos
libertou de todos os pecados. Nenhum de vós se empregue a atiçar disputas; nenhum
de entre vós intente acção de justiça; ninguém imagine estar em tal necessidade que seja
obrigado a pôr o jugo no pescoço dos bois. Estai atentos, de espírito e de corpo, aos
hinos e aos louvores de Deus. Se algum de vós se encontrar perto de uma igreja, corra
até lá e, no domingo, entregue-se aí às orações e às lágrimas. Nesse dia, tenhamos as
mãos e os olhos elevados para Deus. Esse é o dia de repouso perpétuo, aquele que é
significado pela Lei e pelos Profetas sob a figura do sétimo dia. Por isso, é justo que
celebremos com um só coração esse dia, graças ao qual nos tornámos o que não éramos:
com efeito, antes éramos escravos do pecado e, graças ao domingo, tornámo-nos filhos
da justiça. Ofereçamo-nos como escravos ao Senhor, por cuja misericórdia fomos
libertados das prisões do erro. Não é que o Senhor exija de nós que celebremos o
domingo através da abstinência corporal: Ele pede a obediência, graças à qual deixamos
as actividades materiais, e Ele nos conduz misericordiosamente até ao Céu. Por isso, se
algum de entre vós fizer pouco caso desta exortação salutar ou a tratar com desprezo,
saiba que será punido antes de mais por Deus e depois se sujeita também ao castigo

65
I Concílio de Mâcon (=CCL 148 A; SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
66
Depois de ser ordenado.
67
II Concílio de Mâcon (=CCL 148 A; SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
CONCÍLIOS 1253

dos bispos. Se for advogado, perderá irreparavelmente a sua causa. Se for aldeão ou
escravo, receberá pancadas fortes. Se for clérigo ou monge, será suspenso durante seis
meses da companhia dos seus irmãos. Tudo isto, por um lado, torna o espírito de Deus
indulgente para connosco e, por outro lado, afasta ou repele os golpes da doença e da
esterilidade. A própria noite, que nos torna sensíveis à luz inacessível que vem do alto,
empreguemo-la em vigílias espirituais e não durmamos nela, como dormem aqueles que
apenas são cristãos de nome, mas rezemos e velemos em santas ocupações, de modo a
tornarmo-nos dignos de ser herdeiros do Salvador no Reino.
2. Todos devemos celebrar a nossa Páscoa, na qual o sumo sacerdote e pontífice foi 5195
imolado pelos nossos pecados, sem ter cometido qualquer falta, com grande solenidade
e venerá-la de todas as formas na sinceridade dum coração diligente: durante esses seis
dias santíssimos ninguém ouse fazer trabalho servil, mas entreguem-se todos, reunidos
e unidos, ao canto dos hinos pascais e estejam presentes com assiduidade aos
sacrifícios 68 quotidianos, louvando o autor da nossa criação e da nossa regeneração à
tarde, de manhã e ao meio-dia.
3. Por informação de alguns dos nossos irmãos, ficámos a saber que os cristãos, 5196
sem observarem o dia legítimo do baptismo, baptizam os seus filhos em quase todos
os dias de festa e nos aniversários dos mártires, de modo que, no santo dia de Páscoa,
é com dificuldade que se encontram dois ou três para serem regenerados pela água e
pelo Espírito Santo. Em consequência disto, decidimos que, doravante, não seja
permitido a nenhum deles cometer tal abuso, excepto se, em razão de uma doença grave
ou da aproximação do último dia, alguém se vir obrigado a fazer administrar o baptismo
às suas crianças. Por isso, prescrevemos pelo presente mandato que todos, fazendo
marcha atrás nos seus erros ou na sua ignorância, se apresentem à igreja no primeiro dia
da Quaresma com os seus filhos, para que estes, depois de receberem a imposição da
mão nos dias fixados e de terem sido ungidos com o óleo santo, participem na solenidade
do dia legítimo e sejam regenerados pelo santo baptismo, que lhes permitirá, se a vida
os ajudar, exercer as funções sacerdotais e participar na solenidade de cada uma das
celebrações.
4. Estando nós reunidos em concílio, viemos a saber, por informação dos nossos 5197
irmãos, que os cristãos, em certos lugares, de tal modo se afastaram da Lei de Deus que
alguns deles não querem satisfazer o dever legítimo de submissão a Deus, não trazendo
qualquer oferta ao santo altar. Por isso, decretamos que, todos os domingos, a oferenda
seja apresentada por todos ao altar, homens e mulheres, tanto pão como vinho, a fim
de que, por estes sacrifícios, eles sejam libertados do fardo dos seus pecados e mereçam
ser associados a Abel e aos outros autores de oferendas justas. Se alguém tentar, por
desobediência, infringir as nossas decisões, caia sobre ele o anátema.
6. Decretamos também que nenhum presbítero empanturrado de comida ou cheio 5198
de vinho ouse tocar nas espécies consagradas69 ou celebrar missa, quer nos dias feriais
quer nos dias festivos, pois é injusto que o alimento corporal passe à frente do espiritual.
Se alguém tentar infringir esta regra, perca a sua dignidade e o seu lugar. Com efeito, já
foi tomada uma decisão semelhante nesta matéria pelos concílios de África, e nós
julgámos que seria bom juntar essa decisão à nossa. Eis a citação, depois de outras:
«Excepto na Quinta-Feira de Páscoa, os sacramentos devem ser celebrados em jejum,
pelos ministros». No que diz respeito ao que sobra das espécies consagradas e que se
guardam na sacristia depois de terminada a missa, sejam levadas algumas crianças70 à
igreja, na quarta e na sexta-feira, por aquele que é o seu responsável e, depois de
observado o jejum, recebam estes restos humedecidos em vinho.

68
Celebração da Missa.
69
Sacrificia.
70
Innocentes.
1254 SÉCULO VI

5199 9. A audácia dos homens cresce contra os bispos de Deus, até ao ponto de os
arrancar violentamente do recinto das igrejas e de os meter em cadeias públicas.
Decidimos que nenhum detentor dos poderes públicos ouse apropriar-se do direito de
arrancar um bispo à santa Igreja a que ele preside...
5200 10. A nossa decisão acerca dos bispos também é válida a respeito do clero, de tal
modo que nem um presbítero, nem um diácono, nem um subdiácono deve ser arrastado
das igrejas ou deve sofrer qualquer injúria sem o seu bispo saber; mas quem tiver
alguma acusação contra eles leve-a ao conhecimento do bispo, e este, examinando a
causa segundo a justiça, dê satisfação ao espírito dos que acusam os clérigos.
5201 17. Viemos a saber que muitas pessoas abrem os túmulos quando os corpos dos
mortos ainda não estão decompostos e depõem por cima desses corpos os seus
próprios mortos, ou que usurpam, para os seus mortos, o que é um sacrilégio, lugares
destinados a outros, e isso sem autorização do proprietário dos túmulos. Por
conseguinte, prescrevemos que ninguém doravante cometa tal abuso. E, se viesse a ser
cometido, os corpos depostos por cima de outros sejam, segundo a autoridade das leis,
tirados desses túmulos.

Concílio de Narbona (589) 71


5202 4. Homem nenhum, livre ou escravo, godo, romano, siríaco, grego ou judeu, faça
qualquer obra no dia do Senhor, nem junja os bois, a não ser que se imponha a necessidade
de uma viagem. Se alguém ousar fazê-lo, se for homem livre, pague uma multa de seis
moedas de ouro ao chefe da comunidade; se for escravo, receba cem golpes de azorrague.

III Concílio de Toledo (589) 72


5203 2. De agora em diante, na missa, o povo deve recitar o Credo imediatamente antes
do Pater noster, a fim de purificar os corações pela confissão da fé antes de receber o
Corpo e o Sangue do Senhor.
5204 11. Soubemos que certas pessoas, nalgumas regiões de Espanha, fazem penitência
por suas faltas, não conforme determinam as antigas prescrições, mas de maneira
indigna, reclamando a absolvição sacerdotal cada vez que cometem pecados. A fim de
pôr cobro a uma maneira de agir tão execrável e pretensiosa, este santo Concílio manda
o seguinte: Dar-se-á a penitência segundo as antigas formas oficiais. O pecador que se
arrepende de seus pecados deverá primeiro receber várias vezes a imposição das mãos,
na ordem dos penitentes, sendo-lhe proibido comungar; uma vez terminado o tempo
de expiação, segundo o julgamento do bispo, será readmitido à comunhão eucarística.
Quanto aos que recaem nas mesmas faltas durante o tempo da penitência ou depois de
terem sido reconciliados, serão punidos severamente, de acordo com o que prescrevem
os antigos cânones.

71
Concílio de Narbona (=CCL 148 A; SCh 353-354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
72
III Concílio de Toledo (=M ANSI, IX; BRUNS , I; C. V OGEL , Paris 1969, 191-192). Este Concílio realizou-se no
ano 589.
CONCÍLIOS 1255

Concílio de Auxerre (561-605) 73


2. Todos os presbíteros, antes da Epifania, enviem os seus emissários que os 5205
informarão sobre o início da Quaresma; e o povo seja avisado disso no dia da Epifania.
3. Não é permitido celebrar, nas casas particulares, oferendas privadas nem vigílias 5206
para as festas dos Santos... Se alguém fizer uma promessa, vá fazer vigília na igreja e
cumprir essa promessa em favor da matrícula74 dos pobres; e não tome a liberdade, de modo
algum, de fabricar objectos esculpidos: quer seja um pé, quer seja um boneco de madeira.
6. A meio da Quaresma, os presbíteros venham procurar o Crisma, e, se um deles, 5207
retido por doença, não puder vir, delegue no arquidiácono ou no seu arqui-subdiácono75,
mas com o vaso do crisma76 e um pano de linho, como se faz para transportar as
relíquias dos Santos.
8. Não é permitido oferecer no altar, para o sacrifício divino, essa bebida com mel 5208
que se chama mulsa, nem outra bebida qualquer, mas apenas vinho misturado com
água, porque é grande falta e pecado que um presbítero se permita oferecer, para a
consagração do Sangue de Cristo, outra bebida que não seja vinho.
9. Não é permitido aos coros de leigos ou de raparigas executar cânticos na igreja, 5209
nem se devem oferecer aí refeições, pois está escrito: A minha casa será chamada
casa de oração.
10. Não é permitido dizer duas missas no mesmo altar, no mesmo dia. E num altar 5210
onde o bispo disse missa, não diga missa um presbítero nesse dia77.
11. Na vigília da Páscoa, não é permitido acabar as vigílias antes da segunda hora da 5211
noite, porque nessa noite não é permitido beber depois da meia-noite78.
12. Não é permitido dar aos mortos nem a Eucaristia nem o beijo, nem tão pouco 5212
envolver os corpos em telas79 ou em toalhas80 de altar.
13. Não é permitido ao diácono cobrir as costas com toalhas do altar. 5213
14. Não é permitido enterrar corpos no baptistério. 5214
15. Não é permitido enterrar um morto sobre outro morto. 5215
16. Não é permitido, no domingo, atrelar os bois ou fazer outros trabalhos. 5216
18. Não é permitido baptizar noutra data que não seja a solenidade pascal, com 5217
excepção daqueles que estão próximos da morte, os que são chamados «grabatários».
Se alguém se rebelar contra a presente interdição e levar os seus filhos a outra diocese
para aí os fazer baptizar, essas pessoas não devem ser admitidas nas nossas igrejas; e,
se qualquer presbítero, sem nossa permissão, ousar admiti-las, seja excluído da
comunhão da Igreja durante três anos.
19. Não é permitido que um presbítero, um diácono ou um subdiácono participem na 5218
missa depois de tomarem alimento ou bebida, ou que permaneçam na igreja enquanto se
diz a missa.

73
Concílio de Auxerre (=CCL 148 A; SCh 354, Cânones dos Concílios Merovíngios). Desconhece-se a data
exacta deste Concílio. Há quem proponha a data 590-603.
74
A matrícula parece ser uma oferta especial para socorrer as necessidades do pessoal menor das igrejas e
daqueles que eram socorridos. A lista dos beneficiários era fixada pelo clero.
75
O mais digno dos clérigos.
76
Crismarium.
77
Na prática, esta interdição não era respeitada.
78
O sentido desta proibição é obscuro. A segunda hora da noite corresponde às sete horas da tarde. A vigília
prolonga-se, portanto, até esta hora e o jejum não cessa à meia-noite.
79
Velum.
80
Pallae.
1256 SÉCULO VI

5219 21. Não é permitido ao presbítero, depois de receber a bênção81, dormir na cama com
a sua presbítera, nem ter relações carnais com ela, nem ao diácono (com a sua diácona)
nem ao subdiácono (com a sua subdiácona).
5220 22. Não é permitido à viúva do presbítero, nem à viúva do diácono nem do subdiácono
voltar a casar depois da morte deles.
5221 36. Não é permitido a uma mulher receber a Eucaristia na mão nua.
5222 37. Não é permitido a uma mulher tocar com a mão a toalha do Senhor.
5223 42. Toda a mulher, quando comunga, deve ter o seu véu82. Se alguma o não tiver,
espere pelo domingo seguinte para comungar.

Concílio de Roma (595) 83


5224 1. Nesta santa Igreja Romana, à qual Deus quis que eu presidisse, apareceu um
costume muito reprovável, que consiste em escolher para cantores alguns que foram
eleitos para o ministério do altar, acabando os que foram constituídos na ordem do
diaconado por gostar de mostrar a beleza da sua voz, quando deviam era consagrar-se
ao ministério da pregação e à distribuição de esmolas84. Daqui resulta quase sempre
que se procure para o sagrado ministério quem tenha bela voz, e se negligencie procurar
quem tenha vida digna. Ora, o ministro cantor deve agradar mais a Deus pelos costumes,
do que deleitar o povo com os seus cânticos. Por isso, pelo presente decreto fica
estabelecido que, nesta Sede, na celebração da missa, os ministros do altar sagrado85
não devem cantar86, mas só devem proclamar a leitura evangélica. Os Salmos e as
outras leituras penso que devem ser lidos pelos subdiáconos ou, se for necessário,
pelas ordens menores87.
5225 2. É um costume vergonhoso e que atinge as raias da indiscrição permitir que
estejam ao serviço desta Sede pontifícia, e tenham acesso aos segredos mais íntimos
dos quartos, crianças leigas e seculares. Como a vida do pastor deve ser sempre um
exemplo para os discípulos, muitas vezes os clérigos desconhecem como é a vida
privada do seu pontífice e, entretanto, como por aí se diz, sabem-no simples meninos
seculares. Por causa disso, pelo presente decreto determino que se destinem para os
quartos do pontífice alguns clérigos e também monges eleitos para o ministério, a fim
de que aquele que está no lugar do rei tenha testemunhas que vejam como é a sua
verdadeira vida privada, e daí possam tirar exemplo diligente para si próprios88.

81
Depois de ser ordenado.
82
Dominicalis. Este véu era para cobrir a mão.
83
Concílio de Roma (=PL 77; M ANSI , X).
84
Praedicationes officium, eleemosynarumque studium.
85
Os diáconos.
86
Subentende-se: «O salmo responsorial».
87
Plerumque ut ad sacrum ministerium dum blanda vox quaeritur, quaeri congrua vita negligatur. Et
cantor minister Deum moribus stimulet, cum populum vocibus delectat. Qua de re praesenti decreto
constituto, ut in sede hac sacri altaris ministri cantare non debeant solumque evangelicae lectionis
officium inter missarum sollemnia exsolvant. Psalmos vero ac reliquas lectiones censeo per subdiaconos
vel, si necessitas exigit, per minores ordines exhiberi.
88
Verecundus mos torpore indiscretionis inolevit, ut huius Sedis pontificibus ad secreta cubiculi servitia
laici pueri ac saeculares obsequantur: et cum pastoris vita esse discipulis semper debeat in exemplo,
plerumque clerici qualis in secreto sit vita sui pontificis nesciunt, quam ut dictum est, saeculares pueri
sciunt. De qua re praesenti constituto, ut quidem ex clericis, vel etiam ex monachis, electi ministerio
cubiculi pontificalis obsequantur, ut is qui in loco regiminis est, habeat testes tales, qui veram eius in
secreto conversationem videant, qui ex visione sedula exemplum profectus sumant.
CONCÍLIOS 1257

Leis eclesiásticas de Ina,


Rei dos Saxões do Ocidente 89
3. Se um homem escravo trabalhar no domingo a mandado do seu senhor, fique 5226
livre, e o senhor seja multado em trinta soldos. No caso de o escravo trabalhar sem o
senhor saber, leve vergastadas, ou pague multa de compensação90. Se um homem livre
trabalhar no domingo sem o senhor saber, perca a sua liberdade, ou pague sessenta
soldos; se for sacerdote, pague o dobro.

LEI DOS ALEMÃES 91

LIVRO I

38. Ninguém ouse fazer, no domingo, obras servis 92, porque a lei o proíbe e a 5227
Escritura se lhe opõe. Se algum servo for surpreendido a fazê-las, encha-se de golpes;
se for um homem livre, corrija-se até três vezes. Se, depois destas três vezes, for
surpreendido ainda em falta, a negligenciar a dedicação a Deus no dia do domingo e a
fazer obras servis, perderá a terça parte dos seus bens. Se não ficar ainda corrigido e for
encontrado a desonrar o domingo e a fazer obras servis, conduzir-se-á diante do conde
e, depois de feita a prova do seu delito, o duque enviá-lo-á em serviço: uma vez que ele
não quis descansar ao serviço de Deus, permanecerá servo para sempre.

Lei dos Bajuvariões 93


Se alguém, no domingo, fizer trabalho servil e se um homem livre puser os bois 5228
ao carro e partir de viagem, perderá o boi do lado direito. Se colher ou secar feno, se
colher ou secar cereais, ou fizer algum trabalho servil no domingo, será admoestado
uma ou duas vezes, e, se não se emendar, receberá cinquenta vergastadas nas costas. Se
voltar novamente a trabalhar no domingo, tirar-lhe-ão três partes dos seus bens. No
caso de nova reincidência, então perderá a sua liberdade e tornar-se-á escravo, já que
não quis ser livre no dia santo. Se for um escravo será vergastado por esse crime; se
reincidir, perderá a mão direita, porque se devem evitar a todo o custo as coisas que
excitam a cólera de Deus, e que atraem sobre nós os flagelos nos frutos e a miséria.
É preciso proibir igualmente, no domingo, as viagens, e, se alguém for de caminho
em carros ou em navios, nesse caso repouse no domingo até segunda-feira. Se alguém
não quiser guardar o preceito do Senhor, no caminho ou seja onde for, uma vez que
Deus disse: Não farás qualquer trabalho no dia santo, nem tu, nem o teu servo, nem
a tua criada, nem o teu boi, nem o teu burro, nem nenhum dos que te estão sujeitos,
seja condenado em doze soldos; e, se fizer isso com frequência, seja submetido às
penas acima indicadas.

89
Leges ecclesisticae Inae regis Occiduorum Saxonum (=M ANSI , XII, 57).
90
Vel cutis pretium solvat.
91
Lex Alamannorum (=MGH, Leges, III, 57). Estas leis são atribuídas ao rei Dagoberto I.
92
É a primeira vez que aparece escrita a expressão obras servis, que designa não o trabalho do servo ou do
escravo, mas uma qualidade de trabalho corporal considerado penoso, difícil, duro.
93
Lex Bajuvariorum (=MGH, Leges, III).
1258 SÉCULO VI

Penitencial de Finião ou Vinião 1

5229 Em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo


5230 1. Pecados por pensamentos. Se alguém peca por pensamento e imediatamente se
arrepende: baterá no peito, pedirá perdão a Deus, fará uma penitência apropriada, e
será curado.
5231 2. Aquele que peca muitas vezes por pensamento, mas hesita em executar os seus
pensamentos ou ignora se verdadeiramente consentiu nos seus maus pensamentos:
pedirá perdão a Deus com oração e jejuns, dia e noite, até que os pensamentos maus se
afastem, e será curado.
5232 3. Se alguém pensou e quis fazer o mal, mas não teve possibilidade de o fazer, o
pecado é o mesmo (como se tivesse cometido a falta), mas a penitência será diferente.
Assim, se quis cometer um acto de impureza ou um homicídio, mas a execução não se
seguiu à intenção, já pecou no seu coração; se fizer penitência sem tardar, pode curar-se.
A penitência consistirá em seis meses de jejum e, durante um ano, abster-se-á de carne
e de vinho.
5233 4. Injúrias, disputas e violências. Se alguém pecar por palavras injuriosas e se
arrepender imediatamente, e se não agiu com premeditação, deve submeter-se à
penitência. Fará um jejum prolongado (ou seja de dois dias) e guardar-se-á de pecar no
futuro.
5234 5. Se alguém discute com os clérigos e os ministros de Deus, jejuará durante uma
semana a pão e água; pedirá perdão a Deus e ao seu próximo, humilde e sinceramente,
e assim se reconciliará com Deus e com o outro.
5235 6. Se um clérigo pensou no desígnio escandaloso de ferir ou matar o seu próximo,
jejuará seis meses a pão e água, abster-se-á de vinho e de carne; assim será autorizado
a voltar ao altar (para oferecer e comungar).
5236 7. Mas, se se trata de um leigo, jejuará durante sete dias, porque a falta de um
homem deste mundo é menos grave aqui, tal como também será menor a sua recompensa
no além.
5237 8. Se um clérigo bateu no seu irmão ou no seu próximo e derramou sangue, o crime
é como se o tivesse morto, mas a penitência é diferente: jejuará um ano a pão e água e
não exercerá o seu ministério; rezará, com lágrimas e gemidos, para obter o seu perdão
de Deus, pois, se a Escritura diz: Aquele que odeia o seu irmão é um homicida –
quanto mais culpável é aquele que fere o seu irmão.
5238 9. Se um leigo bater no seu irmão, fará penitência durante quarenta dias e pagará a
multa fixada pelo sacerdote ou por um monge. Mas um clérigo não deve dar nem
receber dinheiro (como penitência).
5239 10. Impureza dos clérigos. Um clérigo que caiu no pecado da impureza e que perdeu
a sua inocência, mas só uma vez e sem as pessoas saberem, embora nada se faça sem
Deus saber, jejuará durante um ano a pão e água; durante dois anos abster-se-á de
vinho e de carne e não exercerá qualquer função eclesiástica. Declaramos com efeito: os
pecados podem ser absolvidos em segredo, pela penitência e por um esforço sério.

1
Penitentiale Vinniani (=F. W. W ASSERSCHLEBEN , Penitencial de Finião ou Vinião, Halle 1851, Graz 1958 2;
H. J. S CHMITZ , Die Bussbücher und die Bussdisciplin der Kirche, Moguntia 1883. Graz 1958 2 , C. V OGEL ,
Paris 1969, 53-62). É o mais antigo penitencial que chegou até nós. A tradição atribui-o a Finião, que
fundou o convento de Clonard, na Irlanda, e morreu em 549. Este documento foi escrito na Irlanda, entre 550
e 595.
PENITENCIAL DE FINIÃO 1259

11. Um clérigo que tem o hábito de pecar por impureza, sem as pessoas saberem, 5240
fará penitência durante três anos a pão e água e perderá o seu ofício; durante três
outros anos, abster-se-á de vinho e de carne.
12. Um clérigo que cai numa desgraça maior e mata o filho de que ele é o pai, tem um 5241
crime de fornicação e de homicídio – que, no entanto, pode ser resgatado pela penitência
e as boas obras. O culpado fará três anos de penitência a pão e água; com lamentações,
lágrimas e orações, dia e noite, pedirá perdão a Deus, a fim de obter o perdão dos seus
pecados. Durante três anos abster-se-á de vinho e de carne; perderá o seu ofício
clerical e, nas três últimas Quaresmas, jejuará a pão e água. Será proscrito da sua
própria terra, durante sete anos. Depois, será restabelecido no seu cargo, de acordo
com o parecer do bispo ou do presbítero.
13. Se o clérigo não mata o seu filho, o pecado é menor, mas a penitência permanece 5242
a mesma.
14. Um clérigo que mantém relações familiares com uma mulher, mas nada faz de 5243
culpável, não ficando junto dela nem a abraçando com impudicícia, a penitência será
esta: durante todo o tempo em que ele se sentir ligado à mulher em questão, abster-se-á de
comungar; fará penitência 40 dias e 40 noites até extirpar do seu coração o amor que o
liga à mulher. Depois será readmitido ao altar.
15. Mas um clérigo que mantém relações familiares com várias mulheres, que se 5244
alegra da sua companhia, se abandona às suas carícias, mas evita, segundo aquilo que
diz, a desonra definitiva, fará penitência 6 meses a pão e água e abster-se-á de vinho e
de carne. Mas não perderá o seu ofício clerical e após um ano de jejum, será readmitido
ao altar.
16. O clérigo que deseja carnalmente uma rapariga virgem ou qualquer outra mulher, 5245
sem lho confessar e uma só vez, jejuará sete dias a pão e água.
17. O clérigo que mantém durante muito tempo os seus maus desejos, mas não 5246
conseguiu realizá-los, seja porque a mulher o rejeitou, seja porque ele teve vergonha de
lhe fazer propostas, este clérigo já cometeu adultério no seu coração. O pecado reside
no seu coração, mas a penitência não é a mesma (como se ele tivesse executado os seus
desejos): o culpado jejuará quarenta dias a pão e água.
18. Feitiçaria. Se um clérigo feiticeiro ou uma feiticeira matarem um ser humano 5247
pelos seus sortilégios, cometem um pecado enorme, mas que pode ser resgatado por
esta penitência: 6 anos de jejum, sendo os 3 primeiros a pão e água, e os outros 3 sem
vinho e sem carne.
19. Se o feiticeiro ou a feiticeira em questão não usaram dos seus sortilégios para 5248
matar, mas apenas para provocar o amor carnal: um ano de jejum a pão e água.
20. Infanticídio. A mulher que, pelos seus malefícios, mata o filho acabado de nascer 5249
de outra mulher: 6 meses de jejum a pão e água, 2 anos sem vinho e sem carne e 6
Quaresmas a pão e água.
21. Relações sexuais das religiosas e dos religiosos. Se uma religiosa deu à luz uma 5250
criança e o seu pecado for conhecido de todos, jejuará a pão e água durante 6 anos,
como se disse do clérigo; no sétimo ano, será reconciliada e poderá então renovar a sua
profissão religiosa, usar vestes brancas e ser de novo chamada «virgem».
O clérigo que cai da mesma maneira deverá recuperar o seu ofício após um jejum
de 7 anos, porque a Escritura diz: O justo cai sete vezes e levanta-se, o que quer dizer:
após 7 anos de penitência, o monge que caiu poderá ser novamente chamado «religioso».
Doravante terá cuidado para não voltar a cair, porque Salomão diz: O cão que volta ao
seu vómito é execrável – tal como aquele que, por fraqueza, volta ao seu pecado.
22. Juramentos falsos. O juramento falso é um crime que não pode ou só muito 5251
dificilmente pode ser resgatado; entretanto é melhor fazer penitência do que desesperar,
1260 SÉCULO VI

porque a misericórdia de Deus é grande. A penitência será esta: nunca mais jurar falso
durante a vida, porque o homem que faz juramentos não será justificado e a desgraça
estará sobre a sua casa. Um remédio espiritual prontamente administrado prevenirá as
penas do outro mundo: 7 anos de penitência e fazer o bem o resto da vida, libertar um
escravo ou uma escrava, ou então distribuir pelos pobres o preço da composição legal.
5252 23. Assassínio e morte. O clérigo assassino será exilado durante 10 anos e fará 7 anos
de penitência, 3 dos quais a pão e água e, durante três Quaresmas, um jejum ainda mais
rigoroso; nos outros quatro anos o culpado abster-se-á de vinho e de carne. No fim dos
10 anos, se o clérigo viveu bem, segundo o testemunho de um abade ou do presbítero
ao qual foi entregue (para cumprir a sua penitência), poderá voltar à sua terra. Dará aos
parentes (da pessoa assassinada) a composição legal devida pela vítima; pôr-se-á ao
serviço do pai e da mãe da vítima e dir-lhes-á: «Farei, em vez do vosso filho, tudo o que
me mandardes». Se o culpado não expiar suficientemente, jamais será admitido à
comunhão.
5253 24. Mas, se o clérigo matou sem premeditação e sem ódio e foi amigo da vítima e,
portanto, matou por arrebatamento e instigação do Diabo, jejuará 3 anos a pão e água
e durante 3 outros anos abster-se-á de vinho e de carne. Fará a penitência longe da sua terra.
5254 25. Roubos. Se um clérigo cometeu um roubo, uma ou duas vezes, roubando, por
exemplo, uma ovelha, um porco ou um outro animal, jejuará um ano a pão e água e
restituirá o quádruplo do seu roubo.
5255 26. Mas, se um clérigo tem o hábito de roubar, fará 3 anos de penitência.
5256 27. Incontinência dos clérigos. Se um diácono ou um clérigo nas ordens mora com os
seus filhos, as suas filhas e a mulher que tinha desposado antes de entrar nas ordens,
e que, levado por um desejo carnal mora conjuntamente com a esposa e gera um filho,
saiba tal clérigo que caiu muito baixo. A sua falta não é menor do que, se fosse clérigo
desde a juventude (e não casado), tivesse pecado com uma mulher. Uma vez que,
consagrados a Deus, eles pecaram após a sua promessa de castidade e transgrediram o
seu voto, o clérigo e a sua esposa jejuarão 3 anos a pão e água; durante outros 3 anos
abster-se-ão de vinho e de carne, mas cada um fará penitência por seu lado. Após 7
anos, voltarão a reunir-se, e o clérigo recuperará o seu ofício.
5257 28. Avareza, roubo, cólera e desvio dos bens da Igreja. O clérigo avaro é um grande
culpado, porque a avareza é uma espécie de idolatria; pode ser corrigida pela caridade
e as esmolas. A penitência consistirá em extirpar o pecado de avareza pela virtude oposta.
5258 29. A cólera, o rancor, a calúnia, a maldade e a inveja, sobretudo num clérigo, são
crimes e vícios capitais que matam a alma e a mergulham nos abismos do Inferno. A
penitência far-se-á como segue. Até que estes vícios sejam arrancados e desenraizados
do nosso coração, com a ajuda do Senhor e graças à nossa persistência, pediremos a
misericórdia do Senhor e a vitória sobre os nossos pecados. Ficaremos em penitência,
com lágrimas e choros, dia e noite, todo o tempo em que os vícios em questão
permanecerem no nosso coração. Dedicar-nos-emos a curar as doenças com os remédios
que lhes são contrários, e os vícios com as virtudes: a cólera pela bondade, o amor de
Deus e do próximo, a calúnia pela discrição nos pensamentos e nas palavras, o
abatimento pela alegria espiritual, a avareza pela generosidade. Dizem as Escrituras:
Aquele que calunia o seu próximo será arrancado do meio dos vivos. A tristeza
destrói e consome a alma. A avareza é a raiz de todos os males, diz o Apóstolo.
5259 30. Um clérigo é persuadido a roubar mosteiros e igrejas, a pretexto, falso, de resgatar
os cativos. Se o culpado se emenda, fará um ano de jejum a pão e água; todos os bens
roubados que forem descobertos em sua casa serão distribuídos pelos pobres e dados
em penhor. Durante dois anos, abster-se-á de vinho e de carne.
5260 31. Ordenamos (que esses bens sejam utilizados) no resgate de cativos e, segundo o
ensino da Igreja, sejam postos à disposição dos pobres e dos miseráveis.
PENITENCIAL DE FINIÃO 1261

32. Se o clérigo culpado não se emenda, será excomungado e banido dos cristãos; 5261
será expulso da sua terra. No caso de se tornar reincidente, levará pancada, até se
converter com sinceridade e definitivamente.
33. É preciso acudir com os nossos bens às necessidades das igrejas dedicadas aos 5262
Santos e socorrer todos os que estejam em dificuldade. Devemos acolher os peregrinos
nas nossas casas, como está escrito: É preciso visitar os doentes. É preciso socorrer
os presos. É preciso obedecer aos mandamentos de Deus nos seus mínimos pormenores.
34. Conversão. Quando um pecador ou uma pecadora – quem quer que eles sejam – 5263
pedem a comunhão no fim da sua vida, não se lhes deve recusar o corpo de Cristo 2, se
prometerem emendar-se, se fizerem o bem e cumprirem os seus compromissos. Se
forem infiéis às suas promessas (de se corrigirem), o castigo recairá sobre eles – mas
nós não podemos recusar aquilo que devemos conceder. Não podemos cessar de arrancar
a presa da goela do leão ou do dragão, isto é, das garras do Demónio, porque ele não
cessa de arrancar a nossa alma; ajudemos aqueles que estão em artigo de morte.
35. Quando um leigo se converte ao Senhor depois de ter feito o mal – impureza e 5264
morte – fará 3 anos de penitência, nunca mais levará armas, excepto um bordão, e
deixará a sua esposa durante o primeiro ano de jejum a pão e água. Após esses três
anos, dará ao presbítero uma soma de dinheiro para o resgate da sua alma e oferecerá
uma refeição aos monges. Durante esta refeição será reconciliado e recebido na comunhão.
Em seguida poderá ir reencontrar a sua esposa e comungar.
36. Delitos sexuais dos leigos e das pessoas casadas. Um leigo que tiver tido relações 5265
carnais com a mulher de outrem ou com um virgem (consagrada?), fará penitência
durante um ano a pão e água; não se unirá à sua própria esposa. Após um ano, será
recebido na comunhão; pagará uma multa pelo resgate da sua alma e no futuro cessará
de ter relações ilegítimas.
37. O leigo que viola uma religiosa, a desflora e torna grávida, jejuará durante 3 anos. 5266
No primeiro ano a pão e água, e deixará as armas e não terá relações íntimas com a sua
esposa. Nos dois anos seguintes, abster-se-á de vinho e de carne e continuará a não se
aproximar da sua esposa.
38. Se o leigo em questão não tornar a religiosa grávida, mas apenas a desflorar, 5267
jejuará durante um ano a pão e água, abster-se-á durante 6 meses de vinho e de carne e
não terá relações carnais com a sua esposa antes de terminar a sua penitência.
39. O leigo casado que teve relações carnais com a sua escrava (serva), venderá a sua 5268
escrava e, durante um ano, não terá relações íntimas com a sua esposa.
40. Se um leigo casado tornou grávida a sua escrava e dela lhe nascerem um ou mais 5269
filhos, a escrava deverá ser libertada; neste caso, não será permitido ao seu senhor
vendê-la. Mas os dois cúmplices serão separados, e o culpado jejuará um ano a pão e
água. No futuro deixará a sua escrava concubina e contentar-se-á com a sua esposa.
41. O marido não despedirá a sua esposa pelo facto de ser estéril. Deverão permanecer 5270
juntos, na continência, e serão felizes se perseverarem na castidade, até que Deus lhes
faça justiça. Se permanecerem como Abraão e Sara, Isaac e Rebeca, como Ana, mãe de
Samuel ou Isabel, mãe de João, serão felizes no último dia. O Apóstolo diz: Aqueles que
têm esposas vivam como se as não tivessem, porque a figura deste mundo é passageira.
42. A esposa não deve abandonar o seu marido; se o fizer, deverá permanecer só 5271
(sem se voltar a casar) ou reconciliar-se com o seu marido.
43. Se a esposa cometeu adultério e habita com um homem que não é o seu, o seu 5272
marido não tem o direito de se casar com outra mulher durante todo o tempo que a sua
esposa adúltera for viva.

2
Nomen Christi.
1262 SÉCULO VI

5273 44. Se a esposa adúltera fizer penitência, o seu marido é obrigado a recebê-la, com a
condição de ela lho pedir livre e claramente; o marido não lhe dará o dote, e ela servirá
o seu primeiro marido enquanto for viva, como uma escrava, com toda a submissão e
dedicação.
5274 45. Uma esposa abandonada pelo seu marido não desposará um outro enquanto o
seu primeiro marido viver. Esperará sozinha, com paciência e castidade, que Deus
apazigúe o espírito do seu marido. A penitência para um marido ou uma esposa
adúlteros: um ano a pão e água; os esposos cumprirão a sua penitência separadamente
e não dormirão na mesma cama.
5275 46. Exortamos à continência no matrimónio, porque o casamento sem continência
não é um verdadeiro casamento, mas um pecado. O matrimónio não foi dado por Deus
para o prazer, mas para ter filhos. Com efeito está escrito: Serão dois numa só carne,
isto é, na unidade da carne tendo em vista a geração e não o prazer dos sentidos.
Ao longo de cada ano, os esposos praticarão a continência 3 vezes durante 40
dias, por consentimento mútuo, a fim de poderem entregar-se à oração para a salvação
das suas almas. Abster-se-ão igualmente de relações conjugais na noite de sábado para
domingo. Do mesmo modo o homem não se aproximará da sua esposa grávida; após o
parto, poderão unir-se de novo, como diz o Apóstolo.
5276 47. Negligência na administração do baptismo. Se uma criança morrer por negligência
dos pais, é um grande crime, porque se perde uma alma. Este crime pode ser resgatado
pela penitência: um ano de jejum para os pais, a pão e água; não dormirão juntos na
mesma cama durante o mesmo período.
5277 48. Um clérigo duma paróquia, que não tenha recebido ao baptismo uma criança,
jejuará um ano a pão e água (se por sua falta a criança morrer sem baptismo).
5278 49. Quem for incapaz de administrar o baptismo não deve ser chamado clérigo ou
diácono, nem receber a dignidade clerical ou a ordenação.
5279 50. Os monges não baptizarão nem receberão as oferendas (para a Eucaristia): se
eles pudessem receber oferendas, porque não haviam de baptizar?
5280 51. Prescrições diversas. O marido cuja esposa cometeu adultério não se unirá a ela,
até que ela tenha feito penitência, como ficou dito mais acima, isto é, durante um ano.
Do mesmo modo, a esposa não se unirá ao seu marido que cometeu adultério até ele ter
cumprido a mesma penitência.
5281 52. Quem destrói um ser humano, que é um dom de Deus, fará 7 anos de penitência.
5282 53. É proibido comungar antes de terminar a penitência. Fim. Graças a Deus.
5283 Eis aqui, caríssimos irmãos, alguns pontos que se referem aos remédios da
penitência, segundo o ensinamento das Escrituras e o parecer de pessoas doutas.
Tentei pô-las por escrito, levado pelo meu amor por vós, apesar de a tarefa estar acima
das minhas forças e das minhas capacidades. Há outros ensinamentos sobre os remédios
e sobre a diversidade dos males a curar que não podemos enumerar aqui, por falta de
espaço disponível e também por incapacidade. Se alguém, mais ao corrente das
Escrituras, achar melhores (soluções), estaremos de acordo em segui-lo.
Fim do livro que Finião compilou para os seus filhos, a fim de que os crimes
desapareçam de entre os homens.
LIBER ORDINUM 1263

Liber Ordinum 1

IN NOMINE DOMINI NOSTRI IHESU CHRISTI


INCIPIT LIBER ORDINUM DE ORDINIBUS ECCLESIASTICIS

1. Exorcismo do óleo com a sua bênção, para expelir toda a fragilidade pelo sinal e o 5284
poder de Cristo 2
2. Rito para o sal colocado diante do altar antes de ser exorcizado 5285
3. Exorcismo do óleo 5286
4. RITO DO BAPTISMO A CELEBRAR EM QUALQUER TEMPO

Quando se entrega uma criança ao sacerdote para ser exorcizada, ele sopra-lhe 5287
três vezes na face...
E, assinalando-a na fronte, impõe-lhe o nome durante este exorcismo. Recita-o,
perguntando pelo seu nome, e diz-lhe: F., recebe o sinal da cruz e observa os preceitos
divinos... Faço-te o sinal da cruz em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, que
reinam pelos séculos dos séculos. Amen.
Depois disto, o sacerdote diz-lhe este exorcismo, voltado para o Ocidente...
Depois o sacerdote toca-lhe a boca e os ouvidos com óleo benzido, dizendo:
Effeta, effeta, com o Espírito Santo em odor de suavidade, effeta. Fez tudo bem feito:
fez ouvir os surdos e falar os mudos.
Depois impõe-lhe a mão e diz: Bendito o Senhor Deus de Israel...
Terminada a imposição da mão, entrega-lhe o Símbolo, dizendo: F. acreditas em
Deus?... até ao fim.
Feito isto, o sacerdote vai para a fonte e sopra-a por três vezes, ou o vaso onde
a criança há-de ser baptizada, dizendo este exorcismo, com o rosto voltado para o
Ocidente: Afaste-te, espírito imundo...
Depois disto, diz esta oração: Bênção da fonte. Esta bênção diz-se do mesmo
modo como costuma dizer-se na missa... Depois, o sacerdote lança óleo na fonte em
forma de cruz, ou no vaso onde vai baptizar, dizendo... Depois da mistura da água e
do óleo, diz esta bênção: Benedictio...
Terminado isto, aquele que serve o sacerdote traz-lhe a criança nua, e segura-a
nos seus braços. E, voltado para o sacerdote, este interroga-o assim:
F., servo de Deus, renuncias ao Diabo e aos seus anjos? Os ministros respondem:
Renuncio. Interr.: E às suas obras? Resp.: Renuncio. Interr.: E às suas seduções?
Resp.: Renuncio. Interr.: Como te chamas? Resp.: F.
Interr.: F., crês em Deus Pai todo-poderoso? Resp.: Creio. Interr. E em Jesus
Cristo, seu único Filho, Deus e Senhor nosso? Resp.: Creio. Interr.: E no Espírito
Santo? Resp.: Creio.
E eu te baptizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, para que tenhas
a vida eterna. Amen.

1
Liber ordinum (=M ARIUS F ÉROTIN, Didot 1904; CLV, edizioni liturgiche, Roma 1996). A maior parte dos
seus formulários deve remontar aos anos 400-450. Como livro litúrgico será dos finais do séc. VI (595).
2
Segue-se o exorcismo do óleo. Esta primeira parte do manuscrito corresponde ao nosso Ritual. Trata só dos
sacramentos, exceptuando a Missa, que virá na segunda parte.
1264 SÉCULO VI

Depois de a criança ter sido baptizada, aproxima-se do sacerdote aquele que a


recebe da fonte, segurando-a vestida sobre o braço direito, de cabeça descoberta, e o
sacerdote crisma-a, fazendo-lhe o sinal da cruz só na fronte, e dizendo: Sinal da vida
eterna, que Deus Pai omnipotente, por Jesus Cristo seu Filho, dá aos crentes para a
salvação. Amen.
Feito isto, faz-lhe a imposição das mãos, dizendo: ... pedimos-Te e suplicamos-Te
que infundas sobre estes teus servos o teu Espírito Santo. Amen. Espírito de sabedoria
e de inteligência. Amen. Espírito de conselho e de fortaleza. Amen. Espírito de ciência
e de piedade. Amen. Enche-os do espírito do teu temor... Confirmados em nome da
Trindade, e pelo crisma de Cristo, e por Cristo mereçam tornar-se cristãos.
Depois disto, o sacerdote cobre as cabeças das crianças que foram baptizadas.
E, terminado isso, dá-lhes a comunhão.
No terceiro dia depois do baptismo, as crianças são trazidas ao sacerdote. E diz
sobre elas esta oração. Bênção das vestes brancas.
Depois desta, não se diz a oração do domingo, mas só a bênção (Segue-se a
tríplice bênção). No fim de tudo, o sacerdote tira-lhe a veste branca, e depois ele
vai para onde quiser.

5288 9. RITO PARA ORDENAR UM CLÉRIGO

Em primeiro lugar, quando chega aquele que deve ser ordenado clérigo, o
sacerdote veste-lhe a túnica e a alva e, de joelhos por terra, no meio do coro,
recebida a tonsura, o sacerdote faz-lhe uma cruz na cabeça, dizendo: Em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo que reinam pelos séculos dos séculos. Logo a seguir
diz esta antífona... Oração. Bênção.

5289 10 . RITO NA ORDENAÇÃO DO SACRISTÃO

Quando se ordena um sacristão, estando todos presentes, o bispo, na sacristia,


entrega-lhe o anel do cofre, não diante do altar, mas na sacristia, dizendo-lhe: Sê o
guarda das coisas santas, o porteiro das entradas e o responsável dos ostiários.
E, deste modo, aquele que é ordenado beija o pé do bispo e permanece no lugar
da sua ordem.

5290 11 . RITO NA ORDENAÇÃO DAQUELES A QUEM SE ENTREGA O CUIDADO DOS LIVROS


E DOS ESCRIBAS

Quando se ordena aquele que pode assegurar o cuidado dos livros e dos
escribas, estando de igual modo presentes os irmãos, o bispo, na sacristia, entrega-lhe
o anel dos escrínios, dizendo-lhe. Sê o guarda dos livros e o mais velho dos escribas. E,
deste modo, depois de beijar o pé do bispo, fica na sua ordem.

5291 13 . BÊNÇÃO PARA ORDENAR UM SUBDIÁCONO

Em primeiro lugar o arquidiácono dá-lhe o ministério de lavar as mãos, a


patena e o cálice. Depois diz-lhe esta oração: Oratio. Deus, que sem interrupção
mandaste preparar ministros para o teu tabernáculo...
Terminada a oração, o bispo entrega-lhe o códice do apóstolo Paulo e diz-lhe
esta confirmação: Recebe os documentos apostólicos e anuncia-os na Igreja de Deus.
Tem cuidado, a fim de creres com o coração o que anuncias com a boca, e realizares nas
obras o que crês no coração. Amen.
LIBER ORDINUM 1265

14. PREFÁCIO PARA ORDENAR UM DIÁCONO 5292


Assim que vier para ser ordenado, o bispo impõe-lhe o orárion no ombro
esquerdo e diz sobre ele estas três orações...
Acabada a «completuria» das mesmas, o bispo entrega-lhe o Evangelho e
diz-lhe esta confirmação...
Terminada esta, o bispo beija aquele que foi ordenado.

15. BÊNÇÃO PARA ORDENAR UM ARQUIDIÁCONO 5293

Terminada a oração Criador de todas as coisas e Senhor omnipotente, o bispo


entrega-lhe a férula, dizendo...

17. PREFÁCIO PARA ORDENAR UM PRESBÍTERO 5294

Ao chegar aquele que deve ser ordenado presbítero, ponha-se-lhe o orárion ao pescoço
e vista-se-lhe a casula: e, com o joelho direito diante do altar, os presbíteros impõem-lhe as
mãos, e o bispo abençoa-o com estas três bênçãos. Bênção, oração de ordenação, «completuria»...
Terminada esta, dá-lhe o ritual e diz-lhe esta confirmação. Confirmação depois de ordenado
presbítero. Terminada esta, o bispo beija-o, e fica na sua ordem.

18. RITO PARA ORDENAR UM ARQUIPRESBÍTERO 5295


Ao chegar aquele que deve ser ordenado arquipresbítero, primeiro é eleito pelo bispo,
na sacristia, diante de todos os irmãos, e por ele é estimulado a ser rico de humildade e a
realizar a ordem aceite com recta intenção.
A seguir, diante do altar principal, estando todos os clérigos na sua ordem, com o
joelho direito dobrado diante do altar, aquele que vai ser ordenado arquipresbítero é
abençoado pelo bispo com esta bênção que se segue: Cristo, Filho de Deus, Cabeça
gloriosa da Igreja e paz verdadeira dos corações humanos... Terminada esta bênção, o
bispo entrega-lhe o livro das Orações, com a férula vestida, dizendo-lhe: O Senhor te
guarde de todo o mal, o Senhor guarde a tua alma.
Dá-lhe o beijo da paz, e fica na sua ordem.

19. RITO PARA ORDENAR UM ABADE 5296

Ao chegar aquele que deve ser ordenado abade, inquira-se primeiro acerca da
honestidade da sua vida, da santa regra da ordem eclesiástica e das sentenças das
regras dos santos Padres: e assim se aproxima depois para receber a ordem seguinte.
Quando o bispo, na sacristia, se aproxima do abade a ordenar, veste-lhe a
camisa de lã, as meias e os sapatos, e diz-lhe: Em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo, sirvam-te estas vestes para santificação da alma e do corpo...
Então, aquele que deve ser consagrado abade entrega o seu «placitum» ao
bispo acerca da honestidade da vida regular, tanto sua como dos súbditos. Oratio.
Cristo, Senhor omnipotente...
Quando esta oração termina, o bispo entrega-lhe o báculo e o livro das
Regras, dizendo-lhe: Recebe o báculo... Recebe este livro das Regras... E assim depois
fica na sua ordem. E dá o beijo da paz ao bispo e a todos os irmãos.
1266 SÉCULO VI

5297 25 . RITO PARA VISITAR OU UNGIR UM ENFERMO

Quando o sacerdote entra onde está o enfermo faz-lhe o sinal da cruz no cimo da
cabeça com o óleo benzido, dizendo: Em nome do Pai...
Depois diz três antífonas e por fim uma oração... Oratio.
Jesus, nosso Salvador e Senhor, que és a saúde e o remédio verdadeiros...
Pai nosso... Benedictio.
O Senhor te perdoe todas as tuas iniquidades e cure todas as tuas debilidades...
Em nome da santa e indivisível Trindade vos visite o Anjo da saúde e da paz.

5298 30 . RITO DA PENITÊNCIA

Se um enfermo desejar receber a penitência, o sacerdote, ao entrar, começa


por cortar-lhe o cabelo rente. A seguir, dá-lhe a comunhão. Depois, cobre-o com
o cilício, faz uma cruz na cinza e diz este responsório:
Laudes: Deus, que permites a penitência...
Depois, o sacerdote diz esta oração sem a Oração dominical: Oratio.
Juntamente connosco, irmãos caríssimos...
Depois desta oração, canta o salmo quinquagésimo com esta antífona, até
onde se diz: Não me afastes...
Se a hora da morte está próxima, recita-se esta antífona:
Antífona: Afasta o teu rosto, Senhor, dos meus pecados.
Tende piedade de mim, Senhor...
Depois estas três orações:
Escuta... Senhor omnipotente e cheio de misericórdia... Pedimos, Senhor, a tua
clemência... Pai nosso. Bênção...
Terminada a Oração dominical, tira-se o cilício ao enfermo e, se continuar a
viver por algum tempo, suspende-se da comunhão 3. Mas, se o perigo for iminente,
vestem-se-lhe roupas brancas, recita-se ou canta-se o que falta do salmo 50, com esta
antífona, desde o lugar onde se diz: Dá-me de novo a alegria..., até ao fim.
«Completuria». Deus misericordioso, Deus clemente... Bênção: Deus todo-poderoso...
Terminada a bênção, dá-lhe a comunhão e diz esta oração:
Propitiare, Domine...

5299 81 . ORDO IN RAMOS PALMARUM AD MISSAM 4

Todo o povo vai para a igreja. Daqui, levando palmas e cantando salmos,
dirigem-se para outra onde se celebrará a missa5. Quando todo o povo se tiver
juntado aonde levam os ramos e as palmas, então o bispo ou o presbítero6 entra
na igreja e colocam-se as palmas e os ramos no altar, e benze-os deste modo:
Oremos. Senhor santo, Pai eterno, Deus omnipotente...
5300 82. Incipit officium quod dicendum est per titulos in Cena Domini

3
Esta expressão suspenditur a communione deve entender-se assim: no caso de o perigo de morte não ser
iminente, a comunhão deve ser diferida.
4
É este o documento litúrgico mais antigo do Ocidente sobre os Ramos.
5
Ambulat omnis populus ad ecclesiam unde palmae levantur, et psallendo ad aliam ubi et missa
complebitur peraccedunt...
6
Sacerdos.
LIBER ORDINUM 1267

83. Oratio post pedes lavatos 5301


84. Ordo de VIª feria in parasceve 5302
85. Ordo die sabbato celebrandus 5303

86 . ORDO DIE SABBATO IN VIGILIA PASCHE 5304

No dia de sábado, para começar a vigília, toca-se o sino à hora nona. Depois
de todos se reunirem, os diáconos e clérigos vestem alvas; o bispo senta-se na
cadeira que está no estrado, aproximam-se dele os presbíteros, os diáconos, todo
o clero e o povo e recebem dele uma vela. Todos permanecem de pé, nos seus
lugares, enquanto o bispo, só com os presbíteros e os diáconos, entra na sacristia 7.
Tapam-se as portas e janelas com panos, para que não entre de fora nem
uma réstia de luz; o responsável pelo tesouro entrega ao bispo uma pedra, uma
isca e faz lume. E pouco depois de ter luz na sua mão, acende-se a estopa, a
seguir a resina, desta a candela e, por fim, da candela, o círio. Ninguém acende a
sua vela. Aproxima-se o bispo e benze a candela, que o diácono segura, e que depois
há-de ser benzida no coro.
O bispo diz esta bênção: Bênção da candela na sacristia.
Escuta-nos, luz indeclinável, Senhor nosso Deus...
Depois aproxima-se do bispo outro diácono, trazendo o círio que deve ser benzido.
E, fazendo uma cruz no próprio círio, benze-o com esta bênção: Bênção do círio na sacristia.
Senhor, nós Te oferecemos a luz rutilante deste círio tirada do fogo divino...
Depois de terminar, o bispo acende a sua vela no círio benzido, e o clero
entra às escuras na sacristia, de modo que não se veja nem uma réstia de luz dos
círios acesos. Os presbíteros e os diáconos acendem as suas velas no círio benzido
e o mesmo faz todo o clero.
Quando todas estiverem acesas, o bispo coloca-se junto da porta, e o diácono
à sua frente, segurando o círio que há pouco fora benzido. De repente, levanta-se
o pano da porta, e o bispo diz:
Deo gratias.
E todos respondem não mais de três vezes. Depois, canta-se esta antífona: A
luz verdadeira ilumina todo o homem que vem a este mundo...
A seguir ao Glória et honor, antes de chegarem ao coro, enquanto se canta a
antífona, aproximam-se os mais velhos do povo e acendem as suas velas no círio
benzido. E, deste modo, passando a luz uns aos outros, se acendem as velas de todo o povo.
Ao chegarem ao altar, o diácono que vai dizer o louvor do círio, diz:
Levantai-vos. Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, a luz com paz.
O clero responde: Deo gratias.
Depois de levantarem as velas, o bispo diz esta oração:
A Ti, primeiro e principalmente, ó Deus, Pai omnipotente...
Depois desta oração, o diácono diz: Prestai ouvidos ao Senhor.
O clero responde: Já os abrimos ao Senhor.
Novamente ele: Dêmos graças e louvores ao nosso Deus e Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, que está nos Céus.
O clero responde: Equum et iustum est, dignum et iustum est.

7
Thesaurum, uma das salas da sacristia onde se guardavam os objectos mais preciosos da catedral.
1268 SÉCULO VI

Dito isto, o diácono canta a bênção do círio: É verdadeiramente digno e justo...


E assim continua a bênção até ao fim... Depois desta bênção, o bispo diz esta oração:
Chegou, caríssimos irmãos, a solenidade festiva do tempo esperado...
Depois, aproximam-se dois diáconos e saúdam o bispo...
E logo sobe o diácono que vai ler esta leitura do livro do Génesis: No princípio
Deus criou o céu e a terra...
Enquanto se lê esta leitura, retiram-se do círio benzido as folhas e coroas
que o rodeavam. Colocam-se na patena, e o bispo aproxima-se e senta-se à porta
do coro. Aproximam-se do bispo os presbíteros com os diáconos, o clero e todo o
povo, e recebem dele as velas benzidas. E, assim, nesta leitura, veste-se o altar e
sobre ele se colocam as coroas.
Terminada a primeira leitura, o sacerdote diz esta oração:
Tendo começado, irmãos caríssimos, a solene festa anual...
Depois o diácono clama, dizendo: Oremos ao Senhor pela solenidade pascal.
Depois diz-se esta oração: Santifica, Senhor, os teus servos...
Depois o bispo saúda8. Aproxima-se outro (leitor), e lê esta leitura do Génesis:
II Leitura: Formou... Oração:
Peçamos ao Senhor, nosso Deus e Pai, pela unidade da Igreja...
Depois, aproxima-se outro diácono, e diz: Oremos ao Senhor pela paz das
Igrejas e tranquilidade do povo... Oração: Senhor Deus, que alegras...
Depois disto saúda. E aproxima-se outro (leitor), e lê esta leitura do profeta
Isaías: III Leitura: Todos os que tendes sede...Nesta terceira leitura9 o bispo vai
para a fonte celebrar o santo baptismo.

RITO DO BAPTISMO
Neste dia e no outro tempo em que se baptiza, a fonte não se deve encher com água dos
poços, mas dos rios. Depois de começar a citada terceira leitura, o bispo vai só com os
presbíteros e os diáconos até à (capela) de São João10, todos com as suas velas; o crisma e
a santa Comunhão encontram-se no altar de São João11.
Descem à fonte, os diáconos estão de pé à volta da fonte, e as crianças no
«agnile»12 colocados por ordem, o bispo levanta-se e diz esta oração:
Viemos a caminhar até à venerável fonte da salvação eterna, e pedimos à tua
magnificência, Deus dominador e omnipotente, que por tua indulgência Te dignes abrir
para nós a fonte selada13...
Outra oração: Deus dos dons imortais e das graças da salvação...
Terminadas estas orações, celebra-se o baptismo, ordenadamente14...

8
Este esquema (leitura, admonição convidando à oração, intenção de oração anunciada pelo diácono,
oração do presidente, saudação) repete-se dez vezes; só assim não acontece no fim da terceira leitura, que
é seguida da procissão até ao baptistério e do baptismo.
9
As leituras são onze.
10
Isto é, o baptistério.
11
Os neófitos recebiam, portanto, a Eucaristia no lugar (do baptismo) e, em seguida, eram levados para suas
casas, embora isso não se diga.
12
Redil dos cordeiros, neste caso, lugar onde se reuniam os neófitos.
13
Alusão ao costume muito antigo de fechar e selar com o anel do bispo, no início da Quaresma, a porta do
baptistério.
14
Seguem-se mais oito leituras. Em nenhuma delas se canta o salmo responsorial.
LIBER ORDINUM 1269

ITEM ALIUS LIBER ORDINUM

1. MISSA SANCTI PETRI APOSTOLI ROMENSIS 15 5305

........................................................................................................
et accepta habere, sicuti accepta habere dignatus es munera pueri tui iusti Abel, et
sacrificium patriarche nostri Abrahe, et quod tibi obtulit summus sacerdos tuus
Melchisedec sanctum sacrificium, inmaculatam hostiam...16
___________________________________________________________

2. RITO DA MISSA OMNÍMODA 17 5306

RITOS INICIAIS 18 5307

Quando o sacerdote chega para oferecer o sacrifício, antes de começar a cantar-se


o «prelegendum», inclinado diante do altar diz, em voz baixa, esta oração:
Oratio. Aproximar-me-ei de Ti, Senhor, na humildade do meu espírito, falar-Te-ei,
porque me deste muita fé e esperança. Tu, Filho de David, que vieste na tua carne
revelar-nos o mistério, que abriste a porta de David, abre o segredo do meu coração.
Envia-me um dos Serafins, e que ele, com o carvão ardente que tirou do teu altar,
purifique a sordidez dos meus lábios, ilumine a minha mente..., para que a minha
língua, possa servir para utilidade do próximo... Por Ti, meu Deus, que vives e reinas
nos séculos dos séculos. Amen.
Aleluia: Tem compaixão de nós, Senhor, aleluia; tem compaixão de nós, aleluia,
aleluia. Vers. Para Ti elevamos...
Oratio. Tem compaixão de nós, Senhor, tem compaixão, e concede-nos o auxílio
que pedimos; aceita o desejo de Te louvar que habita em nós, e vem consolar
piedosamente as nossas lágrimas. – Amen.

LITURGIA DA PALAVRA 5308

Leitura do livro do profeta Isaías


Naqueles dias, Isaías falou, dizendo: Senhor, tem compaixão de nós, porque confiamos
em Ti. Sê o nosso auxílio todas as manhãs, e o nosso socorro no tempo da tribulação19.

Psallendum
Senhor, salva o teu povo e abençoa a tua herança. Vers. Governa-a e defende-a
para sempre, Senhor.

15
Começa aqui a segunda parte do manuscrito, que corresponde ao Missal. Só tem fórmulas de Missa.
Desapareceu uma página, onde vinha a primeira parte do Cânone Romano; cf. nn. 4596-4608.
16
Continua o texto do Cânone Romano.
17
Apresentamos aqui o texto completo desta missa.
18
Os títulos que vão entre [] foram acrescentados por nós.
19
Is 33, 2.
1270 SÉCULO VI

Epístola do apóstolo Paulo aos Romanos


Irmãos, o Deus da esperança vos encha de toda a alegria e paz na fé, para que
transbordeis de esperança, pela força do Espírito Santo. – Amen 20.

Leitura do santo Evangelho segundo João


Naquele tempo, nosso Senhor Jesus Cristo falou aos seus discípulos, dizendo:
Permanecei em Mim, e Eu permanecerei em vós... para que a vossa alegria seja completa21.

5309 Laudes
Aleluia, Senhor, salva o teu povo e abençoa a tua herança. Aleluia.

5310 [PREPARAÇÃO DOS DONS]

SACRIFICIUM

I. O sacerdote eleva os dons sobre o altar, dizendo: Aceita, Senhor, o sacrifício


pelo teu povo, e santifica a tua herança. Aleluia.
II. E, permanecendo de pé, diante do altar, suplica, dizendo: Aceita...
III. O sacerdote abençoa todo o povo. Deo gratias. – Semper agamus.

5311 [INTERCESSÕES SOLENENES]


MISSA OMNIMODA [Primeira oração]
(À margem:) A primeira oração de admonição da missa é dirigida ao povo,
para levar os seus corações a orar a Deus.
Oremos: Deus omnipotente e sempiterno, suplico com devoção a piedade da tua
glória, para que destruas os vínculos de todos os meus males e esqueças, por clemência,
todos os meus crimes. Tu dignaste-Te chamar-me, a mim, indigno e pecador, ao teu
ministério... Amen.
Protege-nos com a tua misericórdia, nosso Deus, que vives e reinas.
5312 ALIA [Segunda oração]

(À margem:) A segunda invocação a Deus é para que Ele receba, com cle-
mência, as preces dos fiéis e as suas oblações.
Peçamos com todo o fervor a misericórdia de Deus omnipotente: para que faça
crescer a fé da sua santa Igreja católica, lhe dê paz e nos conceda a remissão e o
perdão dos pecados. Ele Se digne dar saúde aos enfermos, levantar os que caíram,
alegria aos atribulados, redenção aos cativos, alívio aos oprimidos, boa viagem aos
caminhantes, paz à sua terra e aos fiéis defuntos o descanso eterno.
Resp.: Escuta-nos, Deus eterno e omnipotente.
E o sacerdote diz: Levantai-vos.

20
Rom 15, 13.
21
Jo 15, 7-11.
LIBER ORDINUM 1271

ALIA 5313
Escuta, Senhor, por piedade, o serviço da minha servidão e tem compaixão dos
teus servos fiéis N. e N., para que, livres de todos os seus crimes, sejam protegidos
pela tua defesa misericordiosa e mereçam ser perfeitos na observância dos teus
mandamentos, para que se vejam livres, nesta vida, de todos os males e cheguem, sem
vergonha, à tua presença. – Amen.
Precedidos pela luz da tua divindade, nosso Deus, que vives.
NOMINA OFFERENTIUM 5314
Fazemos a comemoração da gloriosa santa Maria sempre Virgem, de Zacarias,
dos Inocentes22, de João, de Estêvão, de Pedro e Paulo, de André e Tiago, e de todos os
santíssimos mártires.
Os sacerdotes oferecem ao Senhor Deus a oblação pelo senhor Papa de Roma N.,
e N., e pelos outros. Também oferecem todos os presbíteros e diáconos, fazendo
memória de si, e por todo o clero, e por todos os irmãos23.
Oferece o servo de Deus N., com sua esposa e filhos, ou com todos os seus fiéis:
para que Deus Se digne conservá-los e ajudá-los nas boas obras.
Oferece todo o povo, para que o Senhor escute as suas súplicas e orações.
Oferece a Igreja de Deus santa e católica, pelos espíritos e almas de todos os
fiéis defuntos: para que o Senhor Se digne colocá-los benignamente entre os exércitos
dos Santos.
POST NOMINA [Terceira oração] 5315
(À margem:) A terceira oração diz-se pelos oferentes, ou pelos fiéis defuntos,
para obterem o perdão pelos seus sacrifícios.
Recebe, Deus santíssimo, os votos dos que Te suplicam e os nomes que ouviste
recordar diante do teu altar, e escreve-os no livro da vida eterna. Tem piedade da minha
indignidade e de todos aqueles por quem Te suplico, dá o descanso eterno aos teus
servos N. e N., e a todos os fiéis defuntos, para que, colocados no seio de Abraão,
escapem às penas do Inferno e Te dignes associá-los, no tempo da ressurreição, aos
coros dos Anjos.
AD PACEM [Quarta oração] 5316

(À margem:) A quarta oração oferece-se para o ósculo da paz; para que,


reconciliados uns com os outros no amor, participem no sacramento do Corpo e
do Sangue de Cristo: para que o Corpo indivisível de Cristo não receba qualquer
divisão.
Senhor Deus, que és o autor da caridade e amas muito a paz e o amor, aceita as
oblações dos que as ofereceram e cura as dores de todos os enfermos, para que,
medicados por Ti, recebam a plenitude da saúde... – Amen.
Nós To pedimos pelo autor da paz e da caridade, nosso Senhor Jesus Cristo, teu
Filho, que tem contigo uma só e igual essência, e reina na unidade do Espírito, Deus,
pelos séculos dos séculos. Amen.

22
Infantum.
23
Universa fraternitate.
1272 SÉCULO VI

ORAÇÃO EUCARÍSTICA

5317 DIÁLOGO INICIAL

A graça de Deus, Pai todo-poderoso, a paz e o amor de nosso Senhor Jesus


Cristo e a comunhão do Espírito Santo estejam sempre com todos vós.
Resp. E com os homens de boa vontade.
Prestai atenção ao Senhor.
Resp. Toda a nossa atenção está no Senhor.
Elevemos o coração.
Resp. Já o elevámos até ao Senhor.
Dêmos as devidas graças e louvores a Deus e a nosso Senhor Jesus Cristo, Filho
de Deus, que está no Céu.
Resp. É necessário e justo, é digno e justo.

5318 INLATIO - LOUVOR E ACÇÃO DE GRAÇAS [Quinta oração]

(À margem:) A quinta a dizer é a «Inlatio», para santificação da oblação, na


qual todas as criaturas terrestres e virtudes celestes dizem o louvor de Deus e
cantam Hossana in excelsis, para que a salvação do mundo, trazida pelo Salvador,
nascido da estirpe de David, chegue até às alturas.
É digno e justo que sempre Te dêmos graças, nosso Deus todo-poderoso, pelo teu
Filho Jesus Cristo, nosso Senhor, verdadeiro pontífice e o único sacerdote sem mancha
de pecado. Por Ele, Pai e Senhor eterno, Te peço com toda a intenção, que aceites
benignamente esta oblação dos teus servos, dês o remédio da saúde aos enfermos,
concedas o lugar da luz e do repouso às almas dos fiéis defuntos, olhes para a nossa
humildade e para a de todos os outros, e em toda a parte a protejas e defendas, para
que, livres das adversidades do mundo, santificados aqui e na vida eterna, Te louvemos
incessantemente com os Anjos, numa só voz, dizendo:
Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do universo. Os céus e a terra estão cheios da
tua majestade gloriosa. Hossana ao Filho de David. Bendito o que vem em nome do
Senhor. Hossana nas alturas.
O presbítero diz: Hossana nas alturas.
5319 POST SANCTUS [Sexta oração]

(À margem:) Pela sexta oração, a partir daqui, acontece a confirmação do


sacramento, para que a oblação oferecida a Deus, santificada pelo Espírito Santo, se
conforme ao Corpo e Sangue de Cristo.
Tu és verdadeiramente santo, verdadeiramente bendito, Filho de Deus vivo,
porque és incomparavelmente justo e inestimavelmente glorioso. Por isso imploramos
a glória da tua piedade, e Te imolamos a vítima do teu agrado, para que escutes agora as
nossas orações e perdoes os pecados, e para que tudo o que Te pedimos segundo a tua
vontade, por clemência no-lo dês sem demora, e Te dignes tirar-nos de todos os males,
e encher-nos de bens.
Cristo Senhor e eterno redentor.
LIBER ORDINUM 1273

MISSA SECRETA [Narração da instituição] 5320


Nosso Senhor Jesus Cristo, na noite em que foi entregue tomou o pão, abençoou-o e,
dando graças, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: Tomai e comei: Isto é o meu
Corpo, que será entregue por vós. Fazei isto em memória de Mim.
De igual modo, depois da Ceia, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da nova
Aliança, que será derramado por muitos para remissão dos pecados. Fazei isto, todas
as vezes que o beberdes, em memória de Mim. Sempre que comerdes deste pão e
beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha abertamente do Céu.
Resp. Assim acreditamos, Senhor Jesus.
POST PRIDIE [Anamnese e Epiclese] 5321
Santifica, Senhor, este sacrifício que Te oferecemos, e purifica, com a habitual
piedade, os corações dos que o vão receber, para merecermos agradar-Te, Senhor, e
servir continuamente sem ofensa, e receber a herança da vida eterna sem fim. – Amen.
Com a tua ajuda, Deus supremo, que na Trindade és um só Deus glorioso pelos
séculos dos séculos. – Amen.
O Senhor esteja convosco.
Resp. E com o teu espírito.
Laudes: Realizamos, Senhor, o nosso sacrifício na tua presença, para que Te agrade.

[RITO DA COMUNHÃO]

ORATIO DOMINICA [Sétima oração] 5322


(À margem:) A sétima e última oração, pela qual nosso Senhor ensinou os
seus discípulos a orar, dizendo: «Pai nosso, que estais nos Céus». Nela se contêm
sete petições para conseguirmos a vida eterna e nos juntarmos à companhia dos
Santos.
Oremos: Senhor nosso Deus, que concedes o dom de orar, dá-nos o efeito da
oração. Recebe os votos dos que oram e dá-nos, benignamente, o remédio pedido; não
nos negues o que pedimos, quando, da terra, Te clamamos com os nossos lábios:
Pai nosso, até ao fim.
[EMBOLISMO] 5323
Livra-nos, Senhor, de todos os males passados, presentes e futuros, e por
intercessão da santíssima e gloriosa sempre Virgem Maria, Mãe de Deus, dos santos
Apóstolos e de todos os teus santos. Salva-nos, por benevolência, Senhor, das ciladas
do inimigo antigo, defende das insídias as almas dos teus servos e servas, e orienta os
nossos dias na tua paz, para que, defendidos pela tua direita, vençamos os obstáculos
e nos sintamos livres do pecado e ao abrigo de toda a perturbação. – Também Te pedimos,
Senhor, pela tua Igreja santa e católica, difundida por todo o orbe da terra, para que Te
dignes dar-lhe a paz, reuni-la e governá-la, juntamente com o teu servo o nosso bispo
N., e todo o seu colégio de clérigos e monges, e com todos os que conservam a fé
ortodoxa e apostólica.
Lembra-Te ainda, Senhor, dos teus servos e servas, N. e N., e de todos os enfermos,
dos atribulados, dos presos, dos que caíram, dos cativos, dos peregrinos e dos pobres e
dos que estão em diversas situações e necessidades ou ocupados em muitos trabalhos,
1274 SÉCULO VI

e de todos os circunstantes, cuja fé e devoção Tu bem conheces... e que Te entregam a


Ti, Senhor piedoso, os nomes e as calamidades, aflições e misérias, e por Ti esperam
ser levantados e ajudados.
Tu, Senhor, alegra-os a todos em comum, olhando por eles e consolando-os, dá o
remédio necessário a cada um..., e, com abundância, a força de que têm necessidade.
Durante toda a sua vida, acolhe no regaço da tua piedade todos os do nosso
sangue e familiares, não os expulses, no futuro, da sorte dos eleitos nem os faças
padecer. E, porque Te pertencem o conselho e a equidade, a prudência e a fortaleza...,
contém os corações dos reis e dos poderosos, para que julguem os povos com piedade
e equidade. Aqueles que nos perseguem com o aguilhão da inveja e do ciúme e que
meditam algo de mal contra nós com malévola e sinistra mente..., converte-os, Deus
piedoso e omnipotente, ao nosso amor..., e junta-nos a uns e outros na tua doçura, para
que todos, santificados por Ti, gozemos depois da morte o descanso do Paraíso.
Dá também o descanso eterno, Senhor, às almas dos teus servos e servas N. e N.,
e de todos os defuntos, que nos precederam marcados com o sinal da fé e dormem agora
o sono da paz; cujos corpos repousam aqui e noutros lugares e cujos espíritos mandaste
partir desta luz, cujos nomes foram lembrados por nós e parecem colocados sobre o
teu altar, ou pelos quais aceitámos esmolas para pedirmos. A eles, Senhor, e a todos os
que descansam em Cristo, Te pedimos que lhes perdoes as iniquidades e concedas o
lugar do refrigério, da luz e da paz.
Protege também dos pecados, com a tua direita, a vida laboriosa do teu servo N.,
tira-o de todos os males e dá-lhe depois a participação eterna com os teus santos.
Por Cristo nosso Senhor, que contigo, Deus Pai, e com o Espírito Santo, vive e
reina glorioso, piedoso e misericordioso, um só Senhor na Trindade, por infinitos
séculos dos séculos. – Amen.
5324 [AS COISAS SANTAS PARA OS SANTOS E IMMIXTIO]

E assim mete no cálice uma partícula tirada do pão, dizendo em voz baixa:
As coisas santas para os santos. A união do Corpo e do Sangue de nosso Senhor
Jesus Cristo dê a vida eterna aos que o comem e bebem. – Amen.

5325 BENEDICTIO [Bênção para todos os fiéis]

Diác. Inclinai-vos para a bênção. – Graças a Deus.


O Senhor esteja sempre convosco. – E com o teu espírito.
O Senhor clemente olhe para a vossa devoção e vos conceda vida longa e tranquila.
– Amen.
Ele vos dê uma tal ajuda nesta vida, que vos torne no futuro habitantes do
Paraíso. – Amen.
E vos santifique abençoando os vossos corações, para sentir prazer em habitar
juntamente convosco. – Amen.
O próprio Senhor misericordioso, que vive e governa todas as coisas, vos abençoe
sempre e por infinitos séculos dos séculos. – Amen.

5326 ADMONIÇÃO DIACONAL PARA ORGANIZAR A COMUNHÃO

Diác. Aproximai-vos dos vossos lugares.


Resp. Graças a Deus.
LIBER ORDINUM 1275

CANTUS AD ACCEDENTES 24 5327


Da tradição africana. Saboreai e vede com o Senhor é suave. Aleluia. – Vers.: A
toda a hora bendirei o Senhor, o seu louvor estará sempre na minha boca. – Aleluia.
A minha alma gloria-se no Senhor; ouçam e alegrem-se os humildes. – Aleluia.
O Senhor redime as almas dos seus servos, e não abandona os que n’Ele põem a
sua esperança. – Glória. Amen. – Aleluia.
A nossa boca está cheia de alegria, e a nossa língua de exultação. – Aleluia.
[ Na Quaresma]
Quem vem a Mim não terá fome, e quem crê em Mim não terá sede. Quem
come a minha carne e bebe o meu Sangue permanece em mim e Eu nele.
– Quem vem. Glória e honra ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo. – Amen.
Aquele que vive e crê em Mim não morrerá para sempre. A nossa boca está
cheia de alegria e a nossa língua de exultação.
[ Na Ressurreição do Senhor]
Alegrai-vos, povos, e regozijai-vos. O Anjo está sentado sobre a pedra (do túmulo)
do Senhor. Ele próprio vos evangelizará. Cristo, o Salvador do mundo, ressuscitou dos
mortos e encheu tudo de suavidade. – Alegrai-vos, povos, e regozijai-vos.
E, aproximando-se, removeu a pedra e sentou-se sobre ela. O seu aspecto era
como o relâmpago, e as suas vestes como a neve. – Alegrai-vos. – Glória... pelos
séculos dos séculos. Amen. Alegrai-vos. – A nossa boca está cheia de alegria...
COMPLETURIA [Oração depois da Comunhão] 5328

O Corpo de nosso Senhor Jesus Cristo, que recebemos, e o seu sagrado Sangue, que
bebemos, permaneça em de nós, Deus eterno e omnipotente, para que não seja para nosso
juízo e condenação, mas aproveite para a salvação e remédio das nossas almas. – Amen.
ALIA

Encha-se a nossa boca, Senhor, dos teus louvores, e o nosso coração da tua graça, para
que a nossa voz exulte sempre com os louvores, e a nossa alma seja repleta de dons. – Amen.
[DOXOLOGIA] 5329
Com a tua ajuda, Deus altíssimo, que és um só Deus na Trindade e és glorificado
pelos séculos dos séculos.

[DESPEDIDA FINAL] 5330


25
A missa votiva está completa. Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, «eamus »
com paz.
Resp. Graças a Deus.
___________________________________________________________

24
Canto da comunhão.
25
Vamos.
1276 SÉCULO VI

5331 3. Missa votiva que o bispo diz quando ordena um presbítero


5332 4. Missa que o sacerdote deve dizer por si mesmo 26
5333 11. Missa votiva pelo Rei
5334 14. Missa votiva por uma intenção27
5335 16. Missa votiva por vários28
5336 18. Oração a dizer depois dos nomes dos oferentes em qualquer Missa
5337 19. Missa por um atribulado
5338 20. Missa por vários atribulados
5339 21. Missa por todos os atribulados, que sofrem aflições ou atravessam o mar
5340 22. Missa pelos que vão de caminho
5341 23. Missa por um penitente
5342 24. Missa dos penitentes
5343 26. Missa votiva de um enfermo
5344 28. Missa por um energúmeno
5345 30. Missa pelos doentes
5346 31. Missa dos enfermos em geral29
5347 32. Missa de acção de graças pela tribulação expulsa ou pela prosperidade e saúde
readquiridas
5348 33. Missa para o fim da vida do homem
5349 34. Missa por um defunto
5350 37. Missa por um presbítero defunto
5351 41. Missa pelos defuntos em geral

26
Seguem-se mais dez Missas que o sacerdote pode dizer por si mesmo, em diversas situações.
27
Seguem-se mais duas Missas idênticas.
28
Seguem-se mais seis Missas idênticas.
29
Inclui também um Ordo de infirmis, isto é, um ofício.
LIBER ORDINUM 1277

SUPLEMENTO

1 . RITO DA BÊNÇÃO DO QUARTO NUPCIAL 30 5352

Em primeiro lugar, segundo o costume, no sábado, por volta da hora tércia,


espalhe-se sal na casa ou no quarto. Depois, quando o sacerdote entra para benzer
o quarto, diz este versículo:
Olha, Senhor, para os teus servos e para o seu trabalho, e dirige com bênçãos os
seus filhos.
Depois esta oração: Senhor... Pai nosso. Bênção solene.

2. RITO DAS ARRAS 5353


Se alguém quiser entregar arras, aproxima-se do sacerdote, apresenta a
bandeja e sobre ela coloca o corporal limpo e dois anéis. Oração:
Senhor Deus omnipotente... Bênção: O Senhor vos encha...

3. RITO PARA ABENÇOAR AQUELES QUE SE CASAM DE NOVO 5354

Quando chegarem aqueles que se vão casar, terminada a missa como de


costume, antes de o diácono fazer a despedida, aproximam-se do sacerdote, perto
das grades; e vêm os pais da jovem, ou algum dos familiares próximos, se não
tiver pais, e entrega a jovem ao sacerdote. Este cobre-os com o pálio ou o pano,
que coloca sobre o jugo vermelho e branco, e diz este prefácio com as duas orações
que se lhe seguem: «Prefatio»:
Senhor Deus, que para multiplicar os filhos do género humano... Oração: ... Faz
que eles se amem e não se afastem de Ti. Amen. Dá-lhes, Senhor, abundância de bens
neste mundo e descendência dilatada. Amen. Dá-lhes, Senhor, uma vida presente longa
e feliz e um desejo futuro sem fim. Amen31...
Bênção só da jovem: Senhor Deus, que pelo teu Espírito... Bênção: O Senhor vos
abençoe pela palavra da nossa boca...
Terminado isto, o sacerdote entrega a jovem ao homem, e diz-lhes que, por
respeito pela comunhão, não tenham relações sexuais nessa noite 32 . E depois
comungam.
Depois disto, o diácono faz a despedida, dizendo:
Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, acabou a missa. Vamos com paz.
E, quando começarem a caminhar e a sair da igreja, canta-se esta antífona:
Vós, a quem o Senhor conduziu à alegria conjugal... Procura acima. Depois disto, diz:
Abençoe-vos a Majestade trina e a Divindade una. Amen. Pai e Filho e Espírito Santo.
Que no dia do Juízo vos encontre tal como saístes da fonte da regeneração.

30
Os números de cada um dos Ritos deste Suplemento são da nossa responsabilidade. Não se encontram no
original.
31
Nesta oração sucedem-se os Amen por dez vezes, a cada súplica.
32
A pollutione in ea nocte se custodiant.
1278 SÉCULO VI

João Jejuador

Penitencial 1
5355 Salmodia. O sacerdote toma pela mão aquele que vem confessar os pecados,
e vai com ele até junto do altar, onde ambos cantam o triságio e o salmo 6: Senhor,
não me repreendais na vossa ira; o salmo 24: Para Vós, Senhor, elevo a minha
alma; o salmo 50: Compadecei-Vos de mim, ó Deus, pela vossa bondade; Kyrie,
eleison. Depois glorifica. Por fim recita o salmo 31: Feliz daquele a quem foi perdoada
a culpa; o salmo 69: Deus, vinde em meu auxílio; o salmo 101: Ouvi, Senhor, a minha
oração e chegue até Vós o meu clamor. Glória. E diz o tropário do quarto tom:
Visita a minha alma humilhada. E outro: Navegando no mar alto, agora olhamos com
cuidado para a Mãe de Deus.
5356 Oração. A seguir recita esta oração: Senhor nosso Deus, que és o Senhor e o
Pai de todos nós; que tudo vês e perdoas benignamente e com amor àqueles que, pela
penitência, a Ti se convertem dos seus pecados; que usaste de misericórdia para com
David quando confessou a sua falta...; que, pelas suas lágrimas, concedeste o perdão a
Pedro e à pecadora; que justificaste o publicano arrependido; que abriste os braços do
pai ao pródigo; que queres que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade;
que Te alegras com o pecador penitente e não queres a morte do pecador, mas que ele
se converta e viva...; escuta a minha oração, súplica indigna e inútil do teu servo que,
por causa da multidão das minhas iniquidades não sou digno de invocar o teu nome
santíssimo. Uma vez que estou revestido da dignidade do sacerdócio, e que, segundo a
benignidade do teu mandamento, aceitas os que Te confessam os pecados próprios,
suplico-Te, cheio de temor e tremor: Escuta o pecador que eu sou, segundo a multidão
das tuas misericórdias, e recebe o teu servo N., que se confessa. E se ele cometeu algum
pecado, voluntária ou involuntariamente, por palavras, por obras ou por pensamentos,
por misericórdia, não olhes para isso. Só Tu tens o poder de perdoar os pecados. Por
isso nos aproximamos de Ti, Te rogamos e Te glorificamos, com o Pai e o Espírito
Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. Amen.
5357 Admonição. A seguir ele próprio dispõe e manda que, de cabeça descoberta, o
penitente faça três genuflexões. Depois de ele se levantar, ensina-o e catequiza-o
assim: Filho espiritual, não sou eu o primeiro nem o principal que recebo a tua confissão,
ou te concedo a absolvição, mas, por meu intermédio é Deus (a quem pertence esta
obra), que recebe a confissão dos teus pecados, e que, pela nossa voz, lhes concede a
remissão, como Ele próprio declarou com as suas palavras, quando, por muitas outras
que não podem exprimir a sua misericórdia, disse: Tudo o que ligardes ou desligardes
na terra, também será ligado ou desligado nos Céus.. Por Cristo, nosso Senhor, a
quem seja dada glória pelos séculos. Amen.
5358 Confissão. Depois, prostrado diante do altar, ajuda-o a dizer: Por isso Te confesso,
ó Pai, Senhor e Criador do Céu e da terra, todas as coisas ocultas do meu coração.
Depois de dizer estas palavras, manda-o levantar-se e ficar de pé num dos lados do
altar, enquanto ele próprio fica de pé, no outro lado: interroga-o então com toda a
alegria e benignidade e, se for possível, beija-o, coloca as suas mãos à volta do

1
JOÃO J EJUADOR , Paenitentiale (=PG 88, 1889-1918; E. LODI , Roma 1979, 568-574). João foi um asceta que
veio a ser nomeado patriarca ecuménico de Constantinopla antes de 595. Atribui-se-lhe a autoria de um
Penitencial que nos conservou o cânone da reconciliação antiga no Oriente. Morreu em 596.
JOÃO JEJUADOR 1279

pescoço daquele que se confessa, particularmente se o vir cheio de grande tristeza


e se der conta de que a vergonha o domina como escravo, dizendo-lhe com voz serena
e calma...
Absolvição. À medida que for perguntando e examinando tudo com diligência, 5359
deve dizer, a cada coisa que o penitente escuta e confirma: Deus te perdoe. Depois de
tudo estar reconhecido e após o final da confissão, estando o penitente ajoelhado mais
abaixo, acrescenta: Jesus Cristo que é Deus te perdoe tudo o que, na sua presença,
confessaste à minha nulidade.
Oração de absolvição. Oração sobre aquele que foi ligado pelo sacerdote, 5360
quando o absolve: Senhor misericordioso, benigno e clemente, que segundo a tua
misericórdia enviaste ao mundo o teu Unigénito, para rasgar o documento que nos
acusava, destruir os laços dos que viviam dominados pelo pecado, pregar a redenção
aos cativos e destruir o aguilhão da morte, liberta, Senhor, com a tua benignidade, este
teu servo N. aqui presente do jugo que o domina e desliga-o do jugo que lhe foi
imposto; concede-lhe que em todo o tempo e lugar possa viver sem pecado e aproximar-
-se, com pureza de consciência, da tua majestade, e obter as riquezas da tua misericórdia,
porque és um Deus clemente e compassivo. A Ti pertence a glória, Pai e Filho e
Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos. Amen.

Tratado das equivalências penitenciais 1

1. Comutação para um jejum de 2 dias: recitação de 100 salmos, mais 100 5361
genuflexões ou 1500 genuflexões e sete cânticos.
2. Comutação para um jejum de 3 dias: ficar de pé um dia e uma noite, sem 5362
dormir – ou muito pouco – ou recitar três vezes 50 salmos com os cânticos
correspondentes, ou recitar o ofício das 12 Horas com 12 prostrações em cada Hora, com
os braços em cruz.
4. Comutação para um jejum de um ano: passar três dias na igreja, sem beber 5363
nem comer, nem dormir, completamente nu, sem se sentar; durante este tempo o pecador
cantará salmos com os cânticos e recitará o ofício coral. Durante esta oração fará 12
genuflexões, tudo isto depois de ter confessado os seus pecados diante do presbítero
e diante do povo.
6. Outra comutação para um jejum de um ano: fazer doze jejuns de 3 dias 5364
contínuos.
9. Outra comutação para um jejum de um ano: 50 dias de jejum prolongado, mais 5365
a recitação de 60 salmos e prostrações durante a oração das Horas.
12. Todos estes jejuns consistem na privação de carne, de vinho – é permitido um 5366
pouco de cerveja – e em morar na célula de um outro diferente da própria.
1
De arreis. Canones Hibernenses (=F. W. W ASSERSCHLEBEN, Tratado das equivalências penitenciais, Halle
1851, Graz 1958 2; C. V OGEL , Paris 1969, 123-124). Este tratado é do século VI e vem inserido no segundo
livro dos Cânones da Irlanda. Percebe-se que estas comutações se destinavam aos monges.
1280 SÉCULO VI

Martirológio Jeronimiano 1

5367 «No dia 29 de Junho, em Roma, na via Aurélia, natal dos Apóstolos Pedro e Paulo:
no Vaticano, de Pedro, mas de Paulo na via de Óstia; de um e de outro nas Catacumbas;
martirizados sob Nero, sendo cônsules Bassus e Tuscus» (Texto latino: «III kal. iul.
Romae, via Aurelia, natale apostolorum Petri et Pauli: Petri in Vaticano, Pauli
vero in via Ostensi; utriumque in Catacumbas; passi sub Nerone, Basso et Tusco
consulibus»; cf. Liber Pontificalis, Tomo I, volume II, nota 1, p. 11).
Ou: «No dia 29 de Junho, em Roma, natal dos santos Apóstolos Pedro e Paulo: de
Pedro no Vaticano, na via Aurélia; de Paulo, porém, na via de Óstia; de um e de outro nas
Catacumbas; martirizados sob Nero, sendo cônsules Bassus e Tuscus» (Texto latino: III
kal. iul. Romae, natale sanctorum apostolorum Petri et Pauli: Petri in Vaticano, via
Aurelia; Pauli vero in via Ostensi; utriusque in Catacumbas; passi sub Nerone, Basso
et Tusco consulibus»; cf. Liber Pontificalis, Tomo I, volume I, p. CV).

Teodoro, o Leitor

História Eclesiástica 2

LIVRO II

5368 32. Timóteo decretou que o Símbolo dos trezentos e dezoito Padres3 fosse doravante
recitado em cada sinaxe. Fê-lo por aversão a Macedónios4 , como se este tivesse
desprezado este Símbolo. Antes, só se recitava uma vez por ano, na Sexta-Feira Santa,
no momento em que o bispo catequizava os candidatos ao baptismo. 33. Tendo morrido
aquele que presidia ao mosteiro dos Estuditas, o bispo Timóteo dirigiu-se para lá, a fim
de lhes ordenar um outro. Mas o candidato que devia ser ordenado disse a Timóteo que
não podia receber a ordenação daquele que fora anatematizado pelo concílio de
Calcedónia. Então Timóteo disse-lhe: «Anátema a todos os que se opõem ou condenam
o concílio de Calcedónia». E deste modo, aquele que devia ser ordenado, recebeu a
ordenação de Timóteo. Mas o arquidiácono João, que era Maniqueu..., correu ao palácio
e informou o imperador do que Timóteo dissera. Este, fê-lo vir imediatamente à sua
presença e criticou-o. Mas ele negou o que dissera, usando estas palavras: «Anátema a
todos os que aceitam o concílio de Calcedónia».

1
Martyrologium hieronymianum (=PL 30, 435; J. B. D E R OSSI-L. D UCHESNE , Acta Sanctorum, Novembris,
t. II, Pars posterior, Bruxelas 1894). Este martirológio foi redigido nos finais do século VI.
2
TEODORO, O LEITOR, Historia ecclesiastica (=PG 86, 165-228). O nome do autor é Qeodo/ruj A)nagnw/stej.
3
São os Padres de Niceia.
4
Timóteo I foi patriarca de Constantinopla de 511 a 518, e Macedónios II fora patriarca imediatamente
antes dele. Parece, no entanto, que o Símbolo já fora recitado antes, em Antioquia. Esta decisão foi
tomada no ano 515.
INSCRIÇÕES CRISTÃS 1281

Inscrições cristãs 1

1. Inscrições de ministros da liturgia 5369

1.1 Sepulcro de Marcelo, subdiácono da sexta região, que morreu com a idade
de 68 anos 2.

1.2 XR.AW André, servo de Deus, chefe de coro, da sacrossanta Igreja de


Mértola. Viveu 36 anos e descansou em paz no dia 28 de Março da era 525.
+ AW3.

1.3 + Tibério, leitor, servo de Deus, viveu mais ou menos 14 anos e nove meses.
Descansou na paz do Senhor no dia 19 de Maio, da era 566 4.

1.4 + Severo, presbítero, servo de Cristo, viveu 55 anos. Descansou na paz do


Senhor em 21 de Outubro, da era 584 5.

2. Inscrição de uma virgem 5370

2.1 + Florentina, virgem de Cristo, viveu 21 anos e numa vida breve realizou
muito tempo. Adormeceu na paz de Jesus, a quem amou, no dia 1 de Abril,
da era 5886.

1
Inscriptiones latinae christianae veteres (=DIEHL , Roma 1857-1888, Berlim 1961 2; J. L EITE DE V ASCONCELOS ,
O Archeólogo Português, t. 3, Lisboa 1897; H UBNER , Inscriptiones Hipaniae Christianae, 4 e 7).
2
Roma, ano 563 (=D IEHL , n. 1242).
3
Mértola, ano 525 (=J. L EITE DE V ASCONCELOS , O Archeólogo Português, t. 3, Lisboa 1897, 292. XR.AW
Andreas famulus Dei princeps cantorum sacrosancte Aeclisiae mertilliane vixit annos XXXVI requievit in
pace sub die terteo kal Apriles aera DLX trisis. + AW.
4
Mértola, ano 566 (=J. LEITE DE V ASCONCELOS , O Archeólogo Português, t. 3, Lisboa 1897, 291). Tyberius
lector famulis Dei vixit annos plus minus XIIII menseque novem requievit in pace Domini die XIII
kalendas iunias era DCIIII.
5
Beja, ano 584 (=H UBNER , Inscriptiones Hipaniae Christianae, 4).
6
Seixas, perto de Lamego, ano 588 (=H UBNER , Inscriptiones Hipaniae Christianae, 7, n. 21).
SÉCULO VII

Sacramentário Veronense ou Leonino 1

<Mês de> Abril


8 2 . (nn. 1-5)3. <VI. Item alia... Olhai benignamente, Senhor, para as preces e oblações 5371
dos vossos fiéis>, a fim de que, na festividade dos vossos mártires, elas Vos sejam
agradáveis e nos alcancem o auxílio da vossa misericórdia. Por... 4
É verdadeiramente digno... 5 realizar para Vós a solenidade festiva e celebrar o
dia sagrado que o vosso bem-aventurado mártir São Tibúrcio6 assinalou, ao derramar o
sangue, como testemunho da vossa verdade, em honra do vosso nome magnífico. Por
isso, com os Anjos...
É verdadeiramente digno... maravilharmo-nos, Senhor, pelas vossas virtudes e
vitórias, todas as vezes que na vossa Igreja se celebram as festas destes dias, que as
palmas dos vossos ilustres mártires e confessores tornaram sagrados, para perpétua
memória e alegria solene dos povos fiéis. Por... 7
Defendei, Senhor, com o vosso auxílio, aqueles que saciais com os dons celestes,
para que, livres de todos os perigos, corramos de todo o coração após a vossa salvação. Por...
Concedei, Senhor, aos que Vos suplicam, a abundância da vossa graça, para que
os que Vos seguem no cumprimento dos vossos mandamentos, recebam a consolação
da vida presente e cheguem às alegrias da vida futura. Por... 8

1
Sacramentarium Veronense (=Manuscrito de Verona, Bibl. Capitolare, LXXXV [80], séc. VI-VII; PL 55,
21-156; L. C. M OHLBERG -L. E IZENHOFER -P. S IFFRIN , Roma, Herder 1955-1956 1 . 1966 2 . 1978 3 [Rerum
ecclesiasticarum documenta, Series maior, 1]; C. L. F ELTOE , Sacramentarium Leonianum, 19s. 58s. 91s.,
Cambridge, 1896). O Sacramentário Veronense ou Leonino é a mais antiga colecção até hoje conhecida de
orações litúrgicas para a missa celebrada na cidade de Roma. Não se trata propriamente de um
Sacramentário, mas antes de uma colecção de folhas ou libelli que continham formulários para diversas
festas e circunstâncias do ano, e que alguém se lembrou de copiar para um manuscrito, encontrado, no
séc. XIX, na Biblioteca de Verona (donde a designação de Veronense). Muitas dessas orações utilizam
expressões caras ao Papa São Leão Magno (daí a designação de Leonino). Quando terá o escriba copiado os libelli
e feito deles um livro? É difícil dizê-lo. Talvez tenha acontecido nos princípios do século VI. Os libelli foram
dispostos por meses, de Abril a Dezembro. Faltam os meses de Janeiro, Fevereiro, Março e os primeiros sete
formulários de Abril. Não tem o Cânone. Possui 267 Vere dignum, 28 missas para a festa de São Pedro, 8 para o
Natal do Senhor, etc. Vogel supõe que o Veronense deve ter sido compilado entre 558 e 590. A cópia que chegou
até nós situa-se, paleograficamente, entre 600-625. Alguns dos libelli remontam aos papas Leão Magno (440-
461), Gelásio (492-496) e Vigílio (537-555). Colocamo-lo no início do séc. VII (600).
2
É este o primeiro formulário de missa do Veronense. Para facilitar a leitura, substituímos a numeração
romana pela numeração árabe.
3
Esta é a numeração que vem na margem da edição de L. C. Mohlberg.
4
Cada formulário de missa é composto por uma ou várias Orações colectas, um Prefácio (às vezes dois)
e duas ou mais Orações depois da Comunhão. Todos os formulários terminam pela preposição latina per
(por), abreviação da terminação Per Dominum nostrum Iesum Christum Filium tuum...
5
Cada Prefácio começa sempre com as palavras Vere dignum..., subentendendo-se as restantes et iustum
est, aequum et salutare... O Veronense tem 267 prefácios, o Gelasiano Antigo apenas 54, e o Gregoriano
somente 14.
6
Os 38 formulários do mês de Abril são quase todos do comum dos mártires ou dos santos. Poucos são os
próprios, isto é, os que nomeiam determinado santo, como é o caso de Tibúrcio (formulário 6), Lourenço
(20), Gregório (33), aniversário da dedicação da basílica de São Pedro (34).
7
Abreviação da fórmula Por Cristo, nosso Senhor.
8
Seguem-se os outros formulários de Abril, até ao número 43.
1284 SÉCULO VII

5372 [8.20 bis9] (nn. 75-78). [Oração 1] Ó Deus, que mostrais aos errantes a luz da
verdade para que voltem ao caminho, dai a todos os que se reclamam da profissão de fé
cristã a graça de rejeitar o que se opõe ao nome cristão e de seguir o que lhe é conforme.
Por.
[Secreta] Deus todo-poderoso e eterno, que ordenais àqueles que tomam parte
na vossa mesa que se afastem do banquete dos Demónios, concedei ao vosso povo, nós
Vo-lo pedimos, que, depois de ter perdido o gosto do paganismo que dá a morte, se
aproxime com um coração puro dos alimentos que conferem a salvação eterna. Por.
[Prefácio] É verdadeiramente digno (louvar-Vos)... a Vós cuja Igreja apresenta
por agora uma tal mistura de verdadeiros e falsos cristãos que temos de estar, no entanto,
em guarda contra a inconstância devida à fragilidade humana, sem nunca desesperar da
conversão de ninguém. Estes são motivos suficientes para Vos pedir com mais insistência,
dado que sem Vós a piedade não pode manter-se estável, que concedais ao mesmo
tempo a perseverança àqueles que permaneceram firmes e o arrependimento aos que
fraquejaram. Por.
[Pós-comunhão] Nós Vos pedimos, Senhor, dai ao vosso povo a graça de se
afastar das ciladas do Demónio, às quais renunciou10, e de progredir diante de Vós com
todo o seu coração. Por.

Mês de Maio
5373 9. Preces na Ascensão do Senhor (6 formulários).
5374 10. Orações da Vigília do Pentecostes (5 formulários).
5375 11. No domingo de Pentecostes (2 formulários).
5376 12. No jejum do quarto mês (1 formulário).

Mês de Junho
5377 13. Na oitava das Calendas de Junho. Nascimento de São João Baptista (5
formulários).
5378 14. Santos João e Paulo (8 formulários).
5379 15. Apóstolos Pedro e Paulo (28 formulários).
5380 16. União da oblação das virgens sagradas (1 formulário).

Mês de Julho
5381 17. Aos seis dos Idos de Julho. Santos mártires Félix e Filipe; Vital, Marcial e
Alexandre; Silano; e Januário (7 formulários).

9
Traduzimos alguns formulários de missas do Veronense que foram utilizados pelo Papa Gelásio a propósito
das festas pagãs dos Lupercais, defendidas por certos cristãos e celebradas por muitos. Ver sobre o
assunto a sua Carta contra os Lupercais. Os formulários desta missa foram utilizados por Gelásio no dia
1 de Janeiro de 495.
10
Alusão à renunciação solene ao Demónio, na manhã de Sábado Santo.
SACRAMENTÁRIO VERONENSE 1285

18. Começam as orações e preces quotidianas (45 formulários) 5382


[18.1 11] (nn. 413-418). [Oração 1] Deus todo-poderoso e eterno, que nos mandais 5383
não fazer a ninguém o que não desejamos que nos façam a nós, dai-nos a graça, nós Vos pedimos,
que não enganarmos ninguém, nem nos deixarmos enganar pelos enganos dos outros. Por.
[Oração 2] Deus, que Vos alegrais com a união sincera do género humano, dai-nos,
a nós mesmos a graça de testemunhar a todos uma caridade imparcial, e aos outros a de
não fazer todo o possível por pagar o bem com o mal. Por.
[Secreta] Nós Vos apresentamos, Senhor, a nossa oferenda, e, a fim de que ela
seja digna de aparecer na vossa presença, nós Vos pedimos que, graças a Vós, ela
nasça da sinceridade do nosso coração. Por.
[Prefácio] É verdadeiramente digno (louvar-Vos), a Vós que, instruindo-nos através
das regras de vida espiritual, nos ensinais a perdoar indefinidamente as ofensas daqueles
que se opõem a nós, sem, contudo, cairmos nas suas armadilhas; a não levar em conta
as faltas e ao mesmo tempo a fugir da malícia em que se esforçam por perseverar
aqueles que, a pretexto de benefícios religiosos12, procuram prejudicar. Com efeito,
Senhor, ao enviar-nos para o meio dos lobos, quisestes que permanecêssemos como
pombas e que nos tornássemos prudentes como serpentes, não, certamente, para
prejudicar a quem quer que seja, mas para nos defendermos cuidadosamente da astúcia
dos outros. Vós nos formais para sermos mansos para com todos, mas também nos
mandais reprimir os causadores de perturbações. Assim, uma coisa é passar por cima
do ultraje, e outra bem diferente é andar atento para não ser vítima duma bondade
imprudente13; mesmo a vossa clemência destruiu os nossos erros, usando desta regra. É
ela que nos impede que erremos de novo, para não cairmos no pior e para que ninguém
possa declarar que para si o pecado não acabou, nem se possa talvez considerar lesado,
se se lhe tira a possibilidade de fazer mal. Na verdade, o que se dá a tais pessoas é o
grande benefício de as ensinar a não ser más, pondo-as na impossibilidade até mesmo
de pecar. Por.
[Pós-comunhão] Vivificados pelo dom que realiza a nossa Redenção, nós Vos
pedimos, Senhor, que uma fé sempre conforme à verdade seja para nós uma ajuda de
salvação eterna. Por.
[Oração sobre o povo] Nós Vos pedimos, Senhor, salvai o vosso povo e derramai
sobre ele a doçura da vossa santa bênção, para que, entre os assaltos que vêm da
condição humana e da fraude diabólica, a vossa indulgência o ampare continuamente
nas suas dificuldades. Por.

Mês de Agosto
19. Aos quatro das Nonas de Agosto. Santo Estêvão (9 formulários). 5384
20. Aos oito dos Idos de Agosto. Santos Sisto e Agapito (8 formulários). 5385
21. Aos quatro dos Idos de Agosto. São Lourenço (14 formulários). 5386
22. Nos Idos de Agosto. Santos Hipólito e Ponciano (2 formulários). 5387
23. Aos três das Calendas de Setembro. Santos Adauto e Félix (7 formulários). 5388

11
Este formulário foi utilizado por Gelásio no dia 8 de Janeiro de 495.
12
As Lupercais eram uma festa religiosa, e os seus defensores pretendiam que se lhe deviam grandes
benefícios.
13
Como no princípio deste prefácio, Gelásio declara que está disposto a perdoar o ultraje pessoal, mas que
1286 SÉCULO VII

Mês de Setembro
5389 24. Aos dezoito das Calendas de Outubro. Santos Cornélio e Cipriano (3 formulários).
5390 25. Aos dezasseis das Calendas de Outubro. Santa Eufémia (3 formulários).
5391 26. Véspera das Calendas de Outubro. Aniversário da basílica dos santos Anjos (5
formulários).
5392 27. Anúncio do jejum do sétimo mês, e orações e preces (14 formulários).
5393 28. Consagração dos bispos (1 formulário)14.
Bênção dos diáconos (1 formulário).
Consagração dos presbíteros (1 formulário).
5394 29. No aniversário dos bispos (23 formulários).
5395 30. Consagração das virgens (1 formulário).
5396 31. Incipit velatio nuptialis (nn. 1105-1110) (1 formulário).

Mês de Outubro
5397 32. Tempo de seca (6 formulários).
5398 33. Pelos defuntos (5 formulários).
5399 [33.] Pelos defuntos 15 (nn. 1141-1146). [Oração 1] Deus omnipotente e
misericordioso, em cujo poder está a sorte do homem, libertai a alma do vosso servo N.
de todo o pecado, para que ele não perca, por causa da sua morte súbita, o fruto duma
penitência que tão ardentemente desejou. Por.
[Oração 2] Nós Vos pedimos, Senhor, que a oferenda deste sacrifício seja
proveitosa à alma do vosso servo N., para que encontre o perdão que procurou e receba,
em troca do desejo ardente que sentia, a penitência que não pôde pedir de viva voz. Por.
[Oração 3] Deus omnipotente e misericordioso, para quem a boa vontade do
homem substitui as suas boas obras, fazei com que baste ao vosso servo N., para obter
a cura completa da sua alma, o ter constantemente desejado receber a penitência. Por.
[Oração 4] Concedei, Senhor, por este sacrifício da nossa redenção, a remissão
dos pecados à alma do vosso servo, para que o desejo de receber a penitência que
habitou no seu coração, lhe obtenha o benefício da salvação eterna. Por.
[Oração 5] Senhor, nosso Deus, que inspirais ao coração do homem todos os
bons movimentos e que destes ao vosso servo a graça de querer entrar em penitência,
concedei-lhe, na vossa misericórdia, a remissão dos pecados que tanto desejou. Por.
5400 34. São Silvestre (1 formulário).
[Colecta] Senhor nosso Deus, herança dos defuntos que Vos confessaram, acolhei
benignamente as preces que Vos dirigimos na deposição do bispo Silvestre...

não pode negligenciar a atitude dos seus adversários, por causa do perigo escondido contra a Igreja.
14
Oração consecratória de tipo romano.
15
O Veronense contém uma série de orações para os pecadores surpreendidos pela morte antes de terem
podido cumprir integralmente a penitência que lhes fora imposta, a qual terminaria pela reconciliação,
obtida pela futura imposição das mãos e pela participação na comunhão eucarística. Incluímos aqui um
SACRAMENTÁRIO VERONENSE 1287

Mês de Novembro
35. Os quatro Santos Coroados (2 formulários). 5401
36. Santa Cecília (5 formulários). 5402
37. Aos nove das Calendas de Dezembro. Santos Clemente e Felicidade (3 5403
formulários).
Santa Felicidade (3 formulários).
38. Aos oito das Calendas de Dezembro. Santos Crisógono e Gregório (1 formulário). 5404
39. Véspera das Calendas de Dezembro. Santo André apóstolo (4 formulários). 5405

Mês de Dezembro
40. Aos oito das Calendas de Janeiro. Natal do Senhor e dos mártires Pastor, Basileu 5406
e Joviano e Vitorino e Eugénia e Felicidade e Anastásia (9 formulários).
[40.] Formulário da missa do Natal do Senhor (nn. 1239). [Oração 1] Senhor, nosso 5407
Deus, que maravilhosamente criastes a natureza humana e mais maravilhosamente a
reformastes, concedei-nos a graça de ter parte na divindade do vosso Filho Jesus Cristo,
que Se dignou participar da nossa natureza. Por 16.
[Oração 2] Concedei-nos, Pai eterno, Deus omnipotente e cheio de misericórdia,
que assim como a solenidade do nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo, que
antecipamos nesta celebração, foi nova para nós e continua a sê-lo, assim persevere
para sempre, a fim de que, por milagre seu, tudo seja sempre novo. Por.
[Prefácio] É verdadeiramente digno, [justo, racional e salutar, que sempre e em
toda a parte Vos dêmos graças, Senhor Santo, Pai omnipotente e Deus eterno] porque
tudo o que pertence à fé cristã e que por nós é celebrado com devoção, teve o seu
princípio nesta solenidade e se continua no exercício deste mistério. Ele foi declarado
aos próprios pais do género humano, como o diz o Apóstolo, ao falar dos primeiros
homens: Grande é este mistério, digo-o em relação a Cristo e à Igreja. Os Patriarcas
assinalaram-no por meio de diversas palavras e acções. Ele foi guardao pelos que
observaram a lei e predisseram-no os anúncios de todos os profetas...
41. São João evangelista (2 formulários). 5408
42. Natal dos Inocentes (2 formulários). 5409
43. No jejum do mês de Dezembro (5 formulários). 5410
INCIPIT BENEDICTIO FONTES
Nós Vos suplicamos, Senhor, origem eterna de todas as coias, Deus todo-poderoso,
cujo Espírito pairava sobre as águas, e que olhastes lá do alto o rio Jordão, quando João
mergulhava na penitência os que confessavam os seus pecados. Por isso Vos pedimos,
por vossa santa glória, que a vossa mão esteja escondida nesta água, para que limpeis
totalmente e purifiqueis o homem interior que nela for baptizado, para que, apagados os
seus pecados mortais ele renasça e se torne um homem novo, criado em Cristo Jesus,
com o qual viveis e reinais na unidade do Espírito Santo, pelos séculos.

dos formulários dessas orações.


16
A oração colecta do primeiro formulário é aquela que veio a tornar-se na oração que, embora de modo
resumido, ainda hoje se diz ao juntar a água ao vinho, mas agora formulada deste modo: «Pelo mistério
desta água e deste vinho sejamos participantes d’Aquele que assumiu a nossa humanidade» (MR).
1288 SÉCULO VII

Evágrio Escolástico

História Eclesiástica 1

LIVRO IV
5411 36. É costume antigo em Constantinopla, quando sobra grande quantidade de partículas
sagradas do Corpo imaculado de Cristo nosso Deus, chamarem-se crianças inocentes,
de entre as que frequentam as escolas dos gramáticos, para que elas as comam.
Numa dessas ocasiões foi chamado, juntamente com outras crianças, o filho de
um vidreiro de raça judia. Perguntando-lhe seus pais o motivo da sua demora, contou-lhes o
que tinha sucedido e o que tinha comido com os outros meninos. O pai, cheio de ira,
pegou no menino e lançou-o no forno ardente, em que costumava cozer o vidro.
A mãe procurou o menino por toda a parte e, não o podendo encontrar, começou
a percorrer a cidade a chorar e a gritar. Três dias depois, estando a chorar e a bater no
peito à porta da oficina do seu marido, começou a chamar o filho pelo nome. Então a
criança, conhecendo a voz da mãe, respondeu-lhe de dentro do forno.
Ela, arrombando as portas entrou na oficina, viu o filho de pé entre as chamas,
sem que o fogo lhe tivesse tocado. Perguntando-lhe de que modo ficara ileso, o menino
respondeu que uma mulher, com um vestido de púrpura, tinha vindo muitas vezes até
junto dele, e lhe tinha dado água, apagara as brasas que estavam perto dele e lhe dera
de comer.
Quando estas notícias chegaram ao conhecimento de Justiniano, depois de o menino
e sua mãe terem sido iluminados pelo banho de regeneração, inscreveu-os entre o clero2...
Isto é verídico3.
5411a 39. Por aquele mesmo tempo Justiniano desviou-se do caminho da verdadeira fé
católica e, seguindo por veredas não pisadas pelos pés dos Apóstolos e dos seus
antepassados, resvalando entre espinhos e abrolhos. Querendo também encher com
eles a Igreja, jamais conseguiu realizar os seus intentos, pois o Senhor protegera o
caminho régio com barreiras firmíssimas, de modo que a não pudessem assaltar ladrões
e assassinos, como se fosse parede arruinada e muro destruído. Assim se cumpriu o que
fora dito pelo profeta...: Justiniano escreveu um documento que os Romanos chamam
edicto no qual chama chama incorruptível o corpo do Senhor, negando que ele fosse
capaz de inclinações naturais e desregradas, dizendo que o Senhor comera do mesmo
modo antes da paixão e depois da paixão, e que o seu santíssimo corpo, a partir do
momento em que fora formado no utero materno, não recera qualquer conversão ou
mudança nos sofrimentos voluntários e naturais, nem depois da ressurreição

ESCOLHER OUTRO TEXTO)

1
EVÁGRIo ESCOLÁSTICO, Historia ecclesiastica (=PG 86, 2415-2885). Evágrio morreu no ano 600.
2
A nota 91 (=PG 86, 2770), diz: «Justiniano fez que ficassem inscritos o menino como leitor e a mãe como
diaconisa».
3
«Evágrio, naquilo que narra, é um amante da verdade, sem paixões partidárias. No entanto, é simultaneamente
um homem crédulo e que não se livra de uma inclinação desmedida para as coisas milagrosas» (Altaner,
205).
LICINIANO DE CARTAGO 1289

Liciniano de Cartago

Carta a Vicente de Ibiza 1


1. 1 Fiquei muito triste por teres mandado ler do ambão (de tribunali populis), 5412
como tu mesmo o dizes na tua missiva, a carta 2 que me enviaste... Mal a recebi..., logo
comecei a ler as suas primeiras frases, mas, faltando-me a paciência..., rasguei-a
imediatamente e atirei-a ao chão, admirado de que sejas tão crédulo. Depois dos oráculos
dos Profetas, do Evangelho de Cristo e das Epístolas dos seus Apóstolos, não reconheço
a ninguém o direito de escrever cartas em nome de Cristo e a quem se deva dar crédito.
E muito menos quando nelas não encontramos nem discurso elegante nem doutrina
sadia.
2 Logo no princípio dessa carta lemos como se deve observar o dia do Senhor.
Haverá algum cristão que o não considere digno de grande respeito, não tanto pelo dia
em si mesmo, mas pela ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, uma vez que foi
nesse dia que Ele ressuscitou dos mortos? Mas, por aquilo que me é dado entender, este
novo pregador diz aquilo para nos induzir a observar as práticas judaicas, pelo que,
nesse dia, ninguém deve preparar para si o necessário para a alimentação, nem tão
pouco caminhar pela estrada. Mas é bom que a tua Santidade repare no que ainda é
mais grave! Deus queira que o povo cristão, no caso de não se reunir nesse dia na
igreja, ao menos faça qualquer outro trabalho para não se abandonar à dança. Melhor
seria para um homem cultivar o jardim ou fazer uma viagem, e para uma mulher cuidar
do tear, do que, como aí se diz, por-se a bailar, a saltar, a torcer e a retorcer os membros
que Deus fez tão bem feitos, e a cantar canções licenciosas para acender paixões.
3 Longe da tua Santidade acreditar nisso, como se tal carta nos tivesse sido
enviada agora por Cristo. Basta o que Ele disse pelos Profetas, por Si próprio e pelos
seus Apóstolos. Ele também não lhes mandava cartas do Céu, mas enchia-lhes o coração
com o Espírito Santo. Excepto os dez mandamentos, escritos de modo admirável em
tábuas de pedra, a nenhum dos Profetas ou dos Apóstolos foram enviadas cartas do
Céu. Por isso não acredites em coisas que nunca foram lidas. Mesmo que fossem factos,
já não seriam necessários depois da pregação do Evangelho. E se acontecer que aquilo
que te agradou foi o facto de a própria carta, como escreveu o simulador, ter descido do
Céu, por cima do altar de Cristo, na memória do apóstolo Pedro, fica a saber que se
trata de um engano do Diabo, e que todas as divinas Escrituras e Epístolas são celestes
e nos foram mandadas do Céu.
4 Queira a tua Santidade emendar-se, pois acreditou inconsideradamente, e se
ainda tens em teu poder essa carta, rasga-a na presença do povo, e penitencia-te por a
teres mandado ler do ambão (de tribunali). Segue a doutrina do santo Apóstolo, que,
entre outras coisas, escreveu aos Gálatas: Se alguém vos ensinar um Evangelho
diferente daquele que recebestes de mim, seja anátema. O Evangelho, toda a lei e os
Profetas profetizaram até João. Daí para cá, se for divulgada alguma doutrina nova ou
desconhecida, saiba a tua Santidade que deve ser desprezada e rejeitada. Reza por
mim, senhor santo e caríssimo irmão em Cristo.

1
L ICINIANO DE C ARTAGO , Carta a Vicente de Ibiza (=PL 72, 689-700; 77, 599 s). Liciniano nasceu em
Espanha, e foi bispo entre 582 e 602.
2
Trata-se de uma carta celeste que Vicente tinha entregado a Liciniano.
1290 SÉCULO VII

Papa Gregório Magno

Homilias sobre o profeta Ezequiel 1

LIVRO I

5413 11. Ao falar assim, estou a ferir-me a mim próprio, porque nem a minha pregação
nem a minha vida estão à altura da missão que desempenho. Reconheço-me culpado,
confesso a minha tibieza e negligência. Talvez o próprio reconhecimento da culpa me
alcance o perdão do piedoso juiz.
Quando vivia no mosteiro, eu conseguia guardar a minha língua de conversas
inúteis e manter quase continuamente o meu espírito em atitude de oração. Mas, depois
que tomei sobre os meus ombros a responsabilidade pastoral, o espírito não consegue
recolher-se tão assiduamente como queria, porque se encontra solicitado por muitas
preocupações.
Vejo-me obrigado a ocupar-me ora dos problemas das igrejas ora dos mosteiros e
a analisar muitas vezes a vida e actuação de cada pessoa em particular; ora a ocupar-
-me de assuntos de ordem civil, ora a lamentar os estragos dos exércitos invasores dos
bárbaros e a temer os lobos que ameaçam o rebanho que me foi confiado; ora a zelar
pelos interesses daqueles que vivem submetidos a uma disciplina regular, ora a suportar
com paciência certos assaltantes, ora a sair-lhes ao encontro para salvaguarda da
caridade.
Estando assim dividido e subjugado por tão numerosas e tão grandes preocupações,
como poderá o meu espírito recolher-se e concentrar-se para se poder dedicar plenamente
à pregação e não se afastar do ministério da Palavra?... Mas o Criador e Redentor do
género humano é assaz poderoso para me conceder a mim, embora indigno, a altitude
da vida e a eficácia da linguagem: é por seu amor que, ao serviço da sua Palavra, nem
a mim mesmo perdoo.
5414 15. O Senhor omnipotente abre caminho ao coração, pela voz da salmodia, quando
esta se faz com devoção do coração, para infundir na alma devota, quer os segredos da
profecia, quer a graça da compunção... Quando, por meio da salmodia, se infunde a
compunção em nosso coração, abre-se um caminho pelo qual, por fim, se chega a Jesus
Cristo.

LIVRO II
5415 10. 19 O que é o altar de Deus, senão o espírito dos que vivem com perfeição?...
Com razão, pois, se chama altar de Deus ao coração dos justos.

1 PAPA G REGÓRIO M AGNO , Homiliae in Hiezechielem (=PL 76, 785-1072; CCL 142; cf. LH, IV). Gregório
Magno foi Papa desde 590 a 604.
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1291

Homilias sobre Job 2

LIVRO IV

3. Aquilo que a água do baptismo opera em nós, entre os antigos era só a fé (dos 5416
pais) que o obtinha para os filhos, a virtude do sacrifício para os adultos e o mistério da
circuncisão para aqueles que tinham nascido da raça de Abraão.

Homilias sobre os Evangelhos 3


Prólogo. De entre aquilo que, em certos dias, é costume ler-se nesta Igreja, 5417
expus quarenta (passagens) do santo Evangelho.
HOMILIA 17

1. Quem não tiver caridade para com os outros de modo algum deve assumir o ofício 5418
da pregação.
3. Para a messe, que é tão grande, os trabalhadores são poucos, o que não podemos 5419
referir sem tristeza; pois, embora haja quem ouça a Boa Nova, falta quem a pregue. De
facto, o mundo está cheio de sacerdotes, mas muito raramente se encontra um operário
na messe de Deus. É verdade que recebemos o ministério sacerdotal, mas não cumprimos
as obrigações do cargo.
14. Muitas vezes é a própria maldade dos pregadores que os impede de fazer ouvir a 5420
sua voz; outras vezes é por culpa dos súbditos que a palavra dos que presidem às nossas
comunidades não chega aos ouvidos do povo... Não é fácil saber por culpa de quem é
retirada a palavra ao pregador; mas o que facilmente se vê é que o silêncio do pastor é
sempre prejudicial para o povo, e algumas vezes para o próprio pregador.
Há outra coisa, caríssimos irmãos, que me aflige profundamente na vida dos
sacerdotes... Somos arrastados muitas vezes para assuntos profanos, o que não
corresponde às exigências da nossa missão sacerdotal. Abandonamos o ministério da
pregação e, para nossa vergonha, continuamos a chamar-nos bispos, tendo de bispos o
título honorífico, mas não a virtude. Abandonam a Deus os que nos foram confiados, e
calamo-nos. Vivem imersos no pecado, e não estendemos a mão para os corrigir e salvar.
Mas como podemos nós corrigir a vida dos outros, se descuidamos a nossa?
Envolvidos nos cuidados mundanos, vamo-nos tornando tanto mais insensíveis às
realidades interiores do espírito, quanto mais nos dedicamos às coisas exteriores do
mundo... Escolhidos como guardas das vinhas, não guardamos sequer a nossa vinha,
porque, entregando-nos a actividades estranhas, descuidamos os deveres do nosso ministério.
HOMILIA 22

8. A simples recepção dos sacramentos do nosso Redentor não basta para a 5421
verdadeira solenidade do espírito, se não lhes acrescentarmos também boas obras. Na
verdade, que aproveita receber com a boca o seu Corpo e Sangue e opormo-nos a Ele
com costumes perversos?...

2
P APA G REGÓRIO M AGNO , Morales in Job (=PL 75, 515-1162; 76, 1-781; CCL 143 e 143 A; SCh 32 bis).
3
P APA G REGÓRIO MAGNO , Homiliae XL in Evangelia (=PL 76, 1075-1314; CCL 141; C. V OGEL , Paris 1969,
135-136; cf. LH, IV).
1292 SÉCULO VII

HOMILIA 26

5422 É preciso examinar as circunstâncias (que acompanham os pecados) e, em seguida,


empregar o poder de ligar e desligar. É preciso examinar a falta e a penitência que a
seguiu: absolveremos aqueles a quem Deus todo-poderoso já deu a graça do
arrependimento. Porque a absolvição só será eficaz, se vier a seguir à decisão do juiz
interior. A famosa ressurreição de Lázaro, morto há já quatro dias, é uma prova do que
dizemos. Ela mostra efectivamente que em primeiro lugar o Senhor chamou Lázaro e
fez voltar o seu corpo à vida ao dizer: Lázaro, vem para fora. Só então, quando Lázaro
já regressara à vida, Ele o desligou através dos seus discípulos: Desligai-o e deixai-o
ir.
Como vedes, os discípulos desligaram aquele que já estava vivo e que o Mestre
acabava de ressuscitar há momentos. Se os discípulos tivessem desligado Lázaro ainda
morto, teriam descoberto a sua podridão, em vez do poder deles. A conclusão é esta:
Devemos absolver pela nossa autoridade pastoral aqueles que sabemos terem sido já
vivificados pela graça.
Este conhecimento manifesta-se, antes da nossa absolvição, pela confissão dos
pecados. A Lázaro não foi dito: «Volta a nascer», mas «Vem para fora». Todo o pecador,
enquanto mantiver escondida a sua falta na sua consciência, permanece preso, envolvido
em trevas. A morte sai para a luz quando o pecador confessa espontaneamente as suas
faltas. Por isso foi dito a Lázaro: Vem para fora. É como se disséssemos a um homem
sepultado no seu pecado: «Porque escondes o teu crime no interior de ti mesmo? Sai
para a luz pela confissão, pois estás fechado por te recusares a confessares-te». O
pecador tem de sair, isto é, tem de confessar o seu pecado. Os discípulos desligaram
aquele que saiu do seu túmulo, do mesmo modo que os pastores da Igreja devem tirar a
pena merecida àquele que não teve vergonha de confessar o seu crime.
Acrescentarei ainda o seguinte: Os pastores pesarão cuidadosamente a sua decisão
de ligar e desligar. Mas, quer o pastor ligue justamente ou injustamente, a sua decisão
deverá ser respeitada pelo rebanho dos fiéis; sem isso o homem que talvez esteja ligado
injustamente mereceria esta injustiça por causa de uma outra falta. O pastor deve ter
cuidado em não ligar ou desligar sem discernimento. O fiel que está sob a autoridade do
pastor deve ter medo de ser ligado, mesmo injustamente; não reclame temerariamente
contra uma sentença mesmo injusta; se o fizer, mesmo que tenha sido ligado injustamente,
o seu orgulho e recriminações altivas serão causa duma falta que sem elas não existiria.
HOMILIA 34

5423 8. Deveis saber que a palavra «Anjo» designa uma função, não uma natureza. Na
verdade, aqueles santos espíritos da pátria celeste são sempre espíritos, mas nem sempre
se podem chamar Anjos. Só são Anjos quando exercem a função de mensageiros. Os
que transmitem mensagens de menor importância chamam-se Anjos; os que transmitem
mensagens de maior transcendência chamam-se Arcanjos. Esta é a razão pela qual à
Virgem Maria não foi enviado um Anjo qualquer, mas o Arcanjo Gabriel...
É pela mesma razão que se lhes atribuem nomes particulares, que designam a
missão respectiva que desempenham... Assim, Miguel significa «Quem como Deus?»;
Gabriel, «Fortaleza de Deus»; e Rafael, «Medicina de Deus»...
HOMILIA 37

5424 8. Muitos de vós, caríssimos irmãos, conheceis isto que quero recordar. Vou narrá-lo
para ajudar a vossa memória. Diz-se que não longe do nosso tempo, sucedeu que um
prisioneiro, apanhado pelos inimigos, foi levado para terras longínquas. Como esteve
muito tempo preso em cadeias, a sua mulher, que não o pôde tirar desse seu cativeiro,
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1293

considerou-o morto. Semana após semana, procurava ela oferecer oferendas por ele
como se tivesse morrido. Todas as vezes que eram oferecidas por sua esposa hóstias
pela absolvição da sua alma, no cativeiro soltavam-lhe as cadeias. Voltando depois de
muito tempo, muito admirado, indicou à sua esposa em que dias fixos de cada semana
lhe soltavam as cadeias. Calculando então a sua mulher aqueles dias e horas, chegou à
conclusão de que ele era libertado das cadeias quando ela oferecia por ele o sacrifício.
Daqui, caríssimos irmãos, concluímos com certeza como a hóstia sagrada, oferecida
pós nós mesmos, é poderosa para soltar em nós as cadeias do nosso coração, uma vez
que, oferecida por outros, pôde soltar noutro as cadeias do corpo...

Diálogos 4

LIVRO I

4. 8 Um nobre chamado Félix, da província de Núrcia, pai deste Castório que 5425
actualmente habita connosco na cidade de Roma, via o venerável Equício ir, de terra em
terra, pregar com zelo, sem ter recebido a ordem sacra. Um dia abordou-o e disse-lhe
como se o conhecesse há muito: «Como ousais vós fazer pregações, se não tendes a
ordem sacra nem recebestes licença de pregar do Romano Pontífice, vosso superior»?
Forçado pela pergunta, o santo indicou como recebera licença de pregar, dizendo: «Sou
eu o primeiro que me pergunto a mim mesmo aquilo que vós me perguntais. Mas uma
noite, em visão, aproximou-se de mim um jovem que me poisou na língua um instrumento
médico, uma lanceta, e me disse: “Eis que pus as minhas palavras na tua boca. Sai para
pregar”. A partir desse dia, mesmo que eu quisesse, não poderia calar-me acerca de
Deus»...
11 O ruído que este apostolado produzia chegou até Roma, e, como a língua dos
lisonjeiros mata com as suas carícias a alma que deseja ouvi-la, alguns clérigos de então
lamentaram-se, por lisonja, ao bispo desta Sé Apostólica, dizendo: «Quem é este rústico
que se arroga o poder de pregar e que ousou usurpar, sendo um ignorante, o ofício do
nosso senhor apostólico? Envie-se alguém, se for da vossa vontade, que o faça
comparecer aqui; então aprenderá qual é a força dos cânones da Igreja»... O Pontífice
deu o seu assentimento às sugestões dos seus clérigos: Equício deveria ser trazido à
cidade de Roma, a fim de saber quais eram exactamente as suas atribuições.
12 Contudo, ao mandar ad hoc o defensor Julião, que depois veio a ser bispo de
Sabina, recomendou-lhe que trouxesse Equício com grandes honras, para que o servo
de Deus não sofresse qualquer injúria motivada por esta citação. Julião, querendo
obedecer com rapidez aos desejos dos clérigos, correu depressa ao seu mosteiro. Ele
estava ausente. Encontrando alguns copistas a escrever, Julião perguntou onde estava o
abade. Eles responderam: «Neste vale, abaixo do mosteiro, a ceifar feno»...
16 No dia seguinte, às primeiras claridades da aurora..., chega a Julião um criado
com uma carta: ordem de não tocar no servo de Deus e que não é permitido deslocá-lo
do mosteiro. Julião pergunta porque é que a decisão foi alterada. E fica a saber que na
própria noite em que ele fora enviado buscar Equício, o Pontífice ficara vivamente
aterrado por uma visão: porque enviara ele alguém para mandar comparecer o homem
de Deus?

4
P APA G REGÓRIO M AGNO , Dialogorum libri IV (=PL 77, 149-430; 66, 126 s; SCh 251, 260, 265; A NDRIEU ,
OR, vol. IV, 370; C. V OGEL , Paris 1969, 133-135).
1294 SÉCULO VII

5426 12. 1 Um pai de família, em artigo de morte, mandou emissários ao presbítero Severo,
a toda a pressa, pedindo-lhe que viesse o mais rapidamente possível, a fim de interceder
pelos pecados com as suas orações; deste modo, faria penitência pelas suas más acções,
e o moribundo poderia deixar este mundo livre de todas as faltas. O presbítero Severo
estava ocupado a podar a sua vinha e disse aos enviados: «Ide à minha frente, que eu
vos seguirei». Como estava quase a terminar o trabalho, demorou-se ainda um pouco, e
depois pôs-se a caminho para ir encontrar-se com o doente. No caminho, os enviados
que tinham vindo procurá-lo, vieram ao seu encontro: «Pai, porque vos demorastes?
Não vale a pena correrdes mais, o doente acaba de morrer». A estas palavras o presbítero
começou a tremer e a gritar que acabava de o matar.
2 Banhado em lágrimas, chegou junto do defunto e lançou-se por terra, diante do
seu leito. Chorava, batia com a cabeça no solo, acusava-se de ser o culpado da sua
morte e eis que o defunto voltou à vida. Os assistentes, ao verem este espectáculo,
choravam ainda mais, mas desta vez de alegria. Perguntaram ao que acabava de voltar
(à vida) onde tinha estado e como é que tinha vindo, e eis as palavras que lhes disse o
nosso doente: «Os homem que me levavam tinham ar sombrio, e da boca e nariz de cada
um deles saía fogo que eu não podia suportar. Levavam-me por lugares escuros e eis
que, de repente, um jovem de belo aspecto se pôs diante de nós e disse aos que me
transportavam: “Voltai a levá-lo, porque o presbítero Severo chorou e Deus teve piedade
das suas lágrimas”».
3 A estas palavras Severo levantou-se e concedeu a ajuda do seu ministério ao
moribundo ressuscitado e arrependido. Durante oito dias aquele que voltara fez penitência
pelas suas faltas e no oitavo morreu, todo feliz...

LIVRO II

5427 23. 2 Não muito longe do seu mosteiro, viviam, na sua casa, duas religiosas de nobre
linhagem. Um homem piedoso pusera-se ao seu serviço para os cuidados da vida
corrente... Estas religiosas ainda não tinham sabido refrear perfeitamente a língua por
respeito ao hábito que vestiam, e ofendiam com as suas palavras maledicentes este
homem piedoso que lhes prestava serviço nas suas necessidades da vida material.
3 Durante muito tempo o homem suportou isso. Mas, depois, foi encontrar-se com
Bento, o homem de Deus, e contou-lhe os ultrajes que ouvia constantemente. Ao ouvir
o comportamento delas, o homem de Deus mandou-lhes dizer imediatamente: «Corrigi a
vossa língua, porque, se não mudardes, excomungo-vos»...
4 Mas elas não mudaram nada ao seu modo de proceder. Poucos dias depois
morreram, e foram sepultadas na igreja. Quando se celebrava a missa5, e no momento
de o diácono proclamar, como é costume: «Se alguém não comunga, saia6», a aia delas,
que costumava levar por elas a oferenda ao Senhor, viu-as surgir dos seus túmulos e
sair da igreja. Observando várias vezes que elas saíam quando o diácono fazia o convite
e que não podiam permanecer dentro da igreja, lembrou-se de que, enquanto viviam, o
homem de Deus lhes tinha mandado dizer que as privaria da comunhão, se elas não
corrigissem os seus modos e a sua linguagem.
5 Cheia de pena, ela fê-lo saber ao homem de Deus. E este deu imediatamente da
sua mão uma oferenda, dizendo: «Ide e fazei apresentar ao Senhor esta oferenda por
elas; doravante já não serão mais excomungadas». Tendo a oferenda sido imolada por
elas, quando o diácono, como de costume, advertiu os que não comungavam para saírem
da igreja, nunca mais foram vistas a sair da igreja. Deste modo se constatou

5
Missarum sollemnia.
6
Si quis non communicat, det locum. É este o primeiro testemunho conhecido da despedida dos penitentes
imediatamente antes da comunhão.
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1295

indubitavelmente que, uma vez que já não saíam com aqueles que tinham sido proibidos
de comungar, tinham recebido a comunhão do Senhor pelo servo de Deus.
37. 2 Como (Bento) cada dia piorasse mais pela doença, no sexto dia fez-se transportar 5428
pelos discípulos ao oratório, e ali se fortaleceu, para a sua partida, com a recepção do
Corpo e do Sangue do Senhor...
4 Foi sepultado no oratório de São João Baptista, que ele mesmo mandara construir,
sob o altar destruído de Apolónio.

LIVRO III

30. 2 Dado que a igreja dos Arianos, situada no bairro desta nossa cidade chamada 5429
Subura, permanecia fechada há cerca de dois anos, foi decidido que devia ser dedicada,
segundo a fé católica, depondo aí relíquias dos mártires São Sebastião e Santa Águeda,
o que foi feito. Entrámos nessa igreja acompanhados duma grande multidão de povo,
cantando louvores a Deus omnipotente7.
3 Aí celebrámos a missa8... 4 e, depois de terminada a celebração, saímos 9.
31. 3 Quando chegou a festa da Páscoa, no silêncio, a meio da noite, o seu mau pai 10 5430
enviou-lhe um bispo ariano para que ele recebesse da sua mão uma comunhão consagrada
de maneira sacrílega 11... Mas o homem, que se entregara totalmente a Deus, fez ao
bispo ariano que veio até junto dele as admoestações que ele merecia..., porque, se
exteriormente jazia encadeado, no seu foro interior... se sentia em segurança...

LIVRO IV

11. 1 Não deixarei em silêncio o que o venerável abade Estêvão, que morreu há 5431
pouco tempo nesta cidade de Roma e que vós bem conhecestes, dizia ter acontecido no
distrito de Núrsia.
2 Contava ele que, naquela região, certo presbítero dirigia com grande temor de
Deus a igreja que lhe fora confiada. A partir da sua ordenação, passou a amar a sua
esposa como irmã, mas fugia dela como de um inimigo: nunca a deixava chegar demasiado
perto de si e não lhe permitia que se aproximasse fosse qual fosse o pretexto, tendo
cortado por completo com toda a familiaridade entre ela e ele12...
3 Este presbítero venerável, chegado a uma idade avançada, quarenta anos depois
da sua ordenação, foi atingido gravemente por uma febre altíssima e chegou a uma
situação extrema. A sua esposa, vendo-o sem forças e como que já na rigidez da morte13,
quis saber se ele ainda respirava e para isso aproximou o ouvido das suas narinas. Ele,
dando-se conta e restando-lhe ainda um ligeiro sopro, reuniu as suas últimas forças para
falar e, no fervor de espírito, ainda achou voz para dizer estas palavras: «Afasta-te de
mim, mulher! A chispa está ainda viva. Retirai a palha»...

7
O texto não diz claramente se as relíquias já tinham sido transferidas para a igreja antes de o Papa aí se
deslocar com grande solenidade para celebrar a missa.
8
Missarum sollemnia.
9
Foi pela celebração da Eucaristia que terminou a dedicação do edifício reconciliado.
10
Trata-se do pai de Leovigildo, rei dos visigodos espanhóis, que se convertera da heresia ariana à fé
católica, instruído por São Leandro, bispo de Sevilha.
11
Sacrilegae consecrationis communionem percipere.
12
Qui ex tempore ordinis accepti presbiteram suam ut sororem diligens, sed quasi hostem cavens, ad se
propius accedere numquam sinebat, eamque sibimet propinquare nulla occasione permitens, ab ea sibi
communionem funditus familiaritatis absciderat.
13
Sed cum eum presbitera sua conspiceret, solutis iam membris.
1296 SÉCULO VII

5432 57. 2 Se, depois da morte, as culpas não são imperdoáveis, quer dizer, se alguém não
morre em pecado mortal, a sagrada oblação da vítima salutar costuma ajudar muito as
almas depois da morte, de tal modo que algumas vezes, parece que são as próprias
almas dos defuntos que a solicitam.
3 Com efeito, o bispo Félix, mencionado antes, afirma que se inteirou por um
presbítero de vida respeitável, que morreu há cerca de dois anos..., que este mesmo
presbítero costumava ir a banhos, quantas vezes o exigia a necessidade do corpo, àquele
lugar onde as águas quentes exalam muitos vapores.
4 Certo dia, ao entrar, encontrou um homem desconhecido, preparado para o seu
serviço, a tirar-lhe o calçado dos pés, a tomar-lhe as vestes, a oferecer-lhe uma toalha
quando saía da água quente e a realizar todo o serviço com grande deferência.
5 Sucedendo isto muitas vezes, certo dia, ao ir para o banho, o presbítero, pensando
consigo mesmo, disse: «Não devo ser ingrato para com este homem que me serve com
tanta atenção, quando vou ao banho; tenho de lhe levar um presente». Então levou
consigo dois pães redondos, dos que se ofereciam no sacrifício. Logo que chegou ao
lugar, encontrou o homem que, segundo o seu costume, o ajudou em tudo. Tomou banho
e, já vestido, quando ia a sair, ofereceu como bênção o que levara consigo, ao homem
que se mostrara tão atencioso para com ele, pedindo-lhe que aceitasse benignamente o
que lhe oferecia como prova de amizade.
6 Ao que ele respondeu entristecido e aflito: «Porque me dás isto, Pai? Este pão é
santo, e não posso comê-lo. Eu próprio fui o dono destes lugares e, por meus pecados,
fui enviado aqui depois da minha morte. Por isso, se queres ajudar-me, oferece por mim
este pão a Deus todo-poderoso e intercede pelos meus pecados. Se, na próxima vez que
vieres aqui tomar banho não me encontrares, fica sabendo que foste escutado». A estas
palavras, o desconhecido, que era um espírito, desapareceu.
7 O presbítero, durante sete dias, mortificou-se por ele com lágrimas, ofereceu
diariamente a hóstia salutar e, ao voltar ao bosque para tomar banho, nunca mais encontrou
o desconhecido. Com isto se mostra quanto aproveita às almas a imolação da sagrada
oblação. Os próprios espíritos dos mortos a pedem aos vivos e lhes dão sinais, que
mostram ter sido absolvidos por ela.
8 Mas penso que não devo passar em silêncio o que se passou no meu mosteiro,
se bem me lembro, há três anos. Um monge chamado Justo, que tinha estudado medicina,
servia-me com todo o zelo, quando eu estava no mosteiro. Era ele que cuidava de mim
nas minhas permanentes doenças. Um dia caiu doente e chegou ao fim. Tratava-o o seu
próprio irmão, chamado Copioso, que ainda agora ganha a sua vida temporal em Roma,
no exercício da arte da medicina.
9 Justo, vendo que o seu fim se aproximava, confessou ao seu irmão Copioso que
tinha escondido três moedas de ouro...
10 Quando me anunciaram o facto, não consegui fechar os olhos sobre um mal
tão grande num irmão que levava vida comum connosco, porque a regra do nosso mosteiro
foi sempre esta: que todos vivam em comum, sem que ninguém tenha o direito de guardar
nada como seu. Com muita pena perguntava a mim próprio como havia de corrigir o moribundo
e fazer deste caso um exemplo para o governo dos irmãos vivos.
11 Chamei Precioso, o prior do mosteiro, e disse-lhe: «Vai e põe o moribundo de
quarentena. Proíbe os irmãos de o irem ver. Nenhum lhe dirija qualquer palavra de
consolação. Mas, quando, chegado o momento da morte, reclamar os seus irmãos,
mandar-lhe-ás dizer pelo seu irmão carnal que todos o amaldiçoaram, a fim de que, ao
menos à hora da morte, o arrependimento da sua falta o aflija e, desse modo, lhe seja
perdoado o pecado que cometeu. Quando morrer, não o enterreis no cemitério monástico,
mas fazei uma sepultura algures, na estrumeira, enterrai aí o morto e lançai por cima
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1297

dele as três moedas de ouro, dizendo todos em coro: “Vá contigo o teu dinheiro para a
perdição”. Depois, cobri-o com terra»...
14 Trinta dias depois da sua morte tive piedade do irmão defunto e pensei com
tristeza nos suplícios que ele sofria; pus-me a cogitar se haveria um meio de o salvar.
Chamei o guardião e, cheio de pena, disse-lhe: «Há muito tempo que o nosso irmão
Justo está a ser atormentado pelo fogo, e nós devemos mostrar-lhe a nossa caridade e
procurar livrá-lo segundo os nossos meios. Vai, e, durante trinta dias, oferece por ele o
sacrifício da missa, sem omitir um único dia». O guardião do mosteiro foi-se embora e
fez como eu lhe disse.
15 Ocupado com outros assuntos, não contei os dias. Uma noite, o irmão defunto
apareceu em sonhos a seu irmão Copioso, que lhe perguntou: «Irmão, que se passa?
Como te sentes»? Justo respondeu: «Até agora estive muito mal, mas sinto-me melhor e
hoje recebi a comunhão».
16 Copioso foi depressa dizê-lo aos irmãos do mosteiro. Estes contaram os dias
com cuidado, e verificaram que este era o trigésimo dia em que a oblação tinha sido
celebrada por ele.
58. Haverá algum fiel que possa pôr em dúvida que, no momento da imolação 14, os 5433
céus se abrem à voz do sacerdote? Neste mistério de Jesus Cristo, os coros dos Anjos
estão ali; os seres mais simples associam-se aos mais elevados, os seres da terra unem-se
aos do Céu, o visível faz um só com o invisível.
59. 1 Também ouvimos que um certo homem caiu em cativeiro nas mãos dos seus 5434
inimigos e estava preso com cadeias. Sua mulher costumava oferecer o sacrifício por
ele em determinados dias. Muito tempo depois voltou até junto da mulher e deu-lhe a
conhecer em que dias se soltavam as suas cadeias, e ela reconheceu que eram os
mesmos em que oferecia o sacrifício por ele. Tudo isto foi confirmado com toda a
certeza por outra história ocorrida à volta de sete anos.
2 Agatão, bispo de Palermo, como me asseguraram e asseguram muitos fiéis e
homens religiosos, tendo-lhe sido mandado que viesse a Roma no tempo do meu
antecessor, de feliz memória, suportou a fúria de uma grande tempestade, tão grande
que chegou a desconfiar se conseguiria sair de tão grande perigo das ondas. Um tripulante
do navio, chamado Baraca, que agora exerce um ofício clerical na mesma igreja,
governava uma canoa de caranguejos, coberta de couro, e que seguia atrás da nave; de
repente, tendo-se partido a amarra, desapareceu entre as ondas com a canoa que
governava. Ao contrário, a nave a que presidia o bispo, depois de muitos perigos, acabou
por chegar, maltratada pelas ondas, à ilha de Ustícula.
3 Tendo passado três dias sem que o bispo visse aparecer em parte alguma do
mar o navegante que tinha sido arrebatado na canoa de juncos, muito aflito, pensou que
estava morto e, por dever de caridade, fez o que devia pelo morto, isto é, mandou
oferecer o sacrifício da vítima da salvação a Deus omnipotente pela absolvição da sua
alma. Oferecido o sacrifício e reparada a nave, seguiu para Itália. Ao chegar ao porto
de Roma, encontrou ali o navegante que julgara morto. Então alegrou-se muito com o
encontro inesperado e perguntou-lhe como tinha podido viver tantos dias naquele tão
grande perigo de mar.
4 Ele contou-lhe quantas vezes se vira envolvido nas ondas daquela tempestade
juntamente com a canoa que governava, como tinha navegado com ela cheia de água e
quantas vezes se tinha sentado sobre a quilha da canoa, com a parte superior voltada
para baixo, e acrescentou que, tendo feito isto dia e noite sem cessar, já sem forças,
debilitado pela fome e pelo trabalho, acabou por ser guardado pela divina misericórdia.

14
A celebração da Eucaristia.
1298 SÉCULO VII

5 Continua, ainda hoje, a afirmá-lo, dizendo: «Lutando contra as ondas e fugindo-me


as forças, de repente sobreveio-me um peso enorme de entendimento, de tal modo que
não sabia se estava desperto ou cheio de sono. E eis que, estando no meio do mar, me
apareceu alguém que me trouxe pão para eu comer. Assim que o comi, recuperei as
forças, e pouco depois passou uma nave que me tirou daquele perigo das ondas e me
trouxe para terra». Ao ouvir isto, o bispo perguntou-lhe o dia, e reconheceu ser o mesmo
em que um presbítero imolou por ele a hóstia da sagrada oblação a Deus omnipotente na
ilha de Ustícula...
6 Por isso eu creio que isto acontece tão abertamente com os vivos, que o não
conhecem, para que seja mostrado a todos os que o fazem e conhecem que, se as
culpas não forem mortais, a vítima da oblação sagrada pode aproveitar também aos
mortos. Mas há que saber isto: as vítimas sagradas aproveitam àqueles mortos que,
enquanto viveram neste mundo, acreditaram que as obras boas que outros fazem por
eles também os podem ajudar depois da morte.
5435 60. 1 Entre outras coisas há que ponderar que é mais seguro o caminho que leva cada
um a fazer por si mesmo, enquanto vive, o bem que espera vir a ser feito por sua
intenção depois da sua morte. Porque é mais salutar sair livre do que buscar a liberdade
depois de a perder. Por isso, devemos desprezar com toda a alma o mundo presente,
quanto mais não seja por vermos que já passou, e imolar diariamente a Deus sacrifícios
de lágrimas e as hóstias quotidianas da sua carne e sangue.
2 Porque só esta vítima salva a alma da ruína eterna de modo inteiramente singular.
Com efeito, ela torna-nos presente, em mistério, a morte já acontecida15 do Filho unigénito.
Embora Ele, ressuscitado de entre os mortos, já não morra, pois a morte não tem
mais domínio sobre Ele16, no entanto, no que em si mesmo é vivo e imortal, continua a
ser imolado por nós neste mistério da santa oblação...
3 Que grande valor tem este sacrifício, que imita sempre a paixão do Filho unigénito.
Haverá algum fiel que possa duvidar de que, no momento da imolação, os Céus se
abrem à voz do sacerdote, de que os coros dos Anjos estão presentes neste mistério de
Jesus Cristo e de que se associam os seres inferiores e os superiores, de que se unem as
coisas da terra e as do Céu e de que o visível e o invisível fazem uma só coisa?
5436 61. 1 Mas é preciso que, quando fazemos (o sacrifício eucarístico), nos imolemos a
nós mesmos a Deus em contrição de coração, pois os que celebram os mistérios da
paixão do Senhor devem imitar o que fazem. Na verdade a oblação a Deus será para
nós, quando nos fizermos oblação a nós mesmos...
5437 62. 1 Em tudo isto há que saber que aquele que pede com rectidão o perdão da sua
culpa, deve primeiro perdoar àquele que pecou contra ele próprio, porque o dom não se
recebe, se primeiro não se expulsa a inimizade da alma, como o disse a Verdade17...
Devemos, pois, ir com o pensamento até ao próximo, mesmo que esteja longe e muito
distante, submeter-lhe o nosso espírito, apaziguá-lo com humildade e benevolência, para
que o nosso Criador, que aceita a oferenda pela culpa, ao ver a boa disposição do nosso
espírito, perdoe o nosso pecado.
2 Por testemunho da voz da Verdade aprendemos que aquele servo que devia dez
mil talentos, fazendo penitência, obteve do Senhor o perdão da sua dívida; mas, porque
não perdoou ao seu companheiro, que lhe devia cem denários, foi-lhe exigido o que já
lhe fora perdoado. Por estas palavras se torna claro que, se não perdoarmos de coração
as faltas cometidas contra nós, ser-nos-á exigido de novo, mesmo aquilo de que nos
alegrávamos por nos ter sido perdoado pela penitência.

15
Illam mortem.
16
Rom 6, 9.
17
Cf. Mt 5, 23 s.
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1299

3 Por isso, enquanto no-lo permite o tempo do perdão, enquanto o juiz aguarda,
enquanto Aquele que examina as culpa espera a nossa conversão, tornemos mais suave
com as lágrimas, a dureza da mente... Atrevo-me a dizer com toda a confiança que, se
antes da morte nos tornamos nós mesmos hóstia para Deus, não necessitaremos da
hóstia salvadora depois da nossa morte.

Registo de Cartas 18

LIVRO I

CARTA 1 19

Vimos que era absolutamente necessário, como o tinham já reconhecido os nossos 5438
predecessores, dar a nossa delegação geral a uma só e mesma pessoa... Designámos,
portanto, Pedro, subdiácono da nossa Sede, para, com a ajuda de Deus, ocupar o nosso
lugar na província da Sicília.
Consideramos também que será necessário, como nós lhe mandámos a ele, que
vossas Fraternidades se reúnam uma vez por ano, com a solenidade conveniente, na
cidade de Siracusa ou na de Catânia...
CARTA 4 20

Apesar de indigno e doente, recebi este velho navio 21 todo desconjuntado, que 5439
mete água por todos os lados; e, na tremenda tempestade que o sacode em cada dia, as
suas tábuas apodrecidas dão estalidos de naufrágio. Peço, por isso, ao Senhor todo-
-poderoso que neste perigo tu me estendas a mão da tua oração, pois podes suplicar
com tanta mais intensidade quanto mais afastado estás da confusão das tribulações de
que eu sofro nesta terra...
CARTA 5 22

Sob a cor do episcopado fui reconduzido ao mundo; aí me encontro sujeito a 5440


tantas preocupações seculares, que não me recordo de jamais ter estado sujeito a tão
grande número na minha vida leiga. Perdi as grandes alegrias do meu repouso, e parece-
me que só posso elevar-me exteriormente afundando-me interiormente. É por isso que
me aflijo de ter sido banido para longe da face do meu Criador. Esforçava-me cada dia
por me tornar estranho ao mundo, estranho à carne, por expulsar dos olhos da alma
todas as imagens corporais, olhando de maneira imaterial as alegrias do alto. Aspirando
à visão de Deus eu dizia, não só por palavras, mas do mais profundo do meu ser: «O
meu coração disse: Senhor, é o teu rosto que procuro»... Sinto-me sacudido de todos os
lados pelas ondas e açoitado pelas tempestades dos negócios... Ao sair destes, desejo

18
P APA G REGÓRIO MAGNO , Registrum epistularum (=PL 77, 441-1352 [Liber I, 30. 43. 44. 47. 56. 57. 58.
60. 68. 71. 78. 83; Liber II, 5. 6. 12. 18. 46]; 84, 831; CCL 140 e 140 A; SCh 370, 371; MGH - I, 1. 4. 5.
10. 11. 12. 15. 17. 18. 19. 29. 41. 42. 45. 54. 55. 56. 58. 66. 69. 76. 81; MGH - II, 5. 9 15. 20. 24. 25. 37.
45; A NDRIEU , OR, vol. IV, 362-363. 373; C. VOGEL , Paris 1969, 135).
19
Gregório aos bispos da Sicília (=PL 77, 441-443; MGH - I, 1). Setembro de 590.
20
Gregório a João de Constantinopla (=PL 77, 447-448; MGH - I, 4). Setembro de 590.
21
A Igreja.
22
Gregório a Theoctista, irmã do imperador Maurício (=PL 77, 448-450; MGH - I, 5). Outubro de 590.
1300 SÉCULO VII

fazer marcha atrás no meu coração..., mas não posso reentrar nele... Amei a beleza da
vida contemplativa, como Raquel, estéril mas bela e com olhos sadios... Mas, não sei
por que razão, foi Lia que se uniu a mim de noite, isto é, a vida activa... Apressava-me
em sentar-me com Maria aos pés do Senhor, para ouvir as palavras da sua boca, e eis-me
forçado a empregar-me com Marta em trabalhos exteriores... Estas coisas tornam-se-
me difíceis, porque para mim são muito dolorosas, e o espírito não se ocupa convenien-
temente daquilo que não gosta...
CARTA 10 23

5441 Ficámos triste pelo facto de nos terdes escrito, tu e o teu bispo, cartas contradi-
tórias... Ordenamos-te que cumpras o ofício para que foste ordenado... Queremos que
saibas que nos informaremos cuidadosamente junto de ti acerca das igrejas particulares
e se os tesouros sagrados provenientes de diversas igrejas estão fielmente conservados
e com todo o cuidado necessário...
CARTA 11 24

5442 Pedistes-me que vos enviasse o diácono Anatólio. O que nos impede de o fazer é
mais a importância do motivo do que uma questão de rigorosa inflexibilidade, pois o
estabelecemos como mordomo, confiando-lhe a administração da nossa casa episcopal25.
CARTA 12 26

5443 Agapito, abade do mosteiro de São Jorge, comunicou-nos que tem de suportar
muitos vexames da parte de vossa Santidade... Estaria mesmo proibido de celebrar
missas nesse mosteiro, e tu terias até proibido de aí se enterrarem os mortos. Se assim
é, exortamos-te a pôr fim a uma tal desumanidade; permite que os mortos aí sejam
enterrados e que sejam celebradas missas, sem continuares a opor-te a isso...
CARTA 15 27

5444 Chegou ao nosso conhecimento que a Igreja de Populónia está tão desprovida do
ofício sacerdotal, que os moribundos não podem receber a penitência nem as crianças o
baptismo... Mandamos-te que, por força da autoridade do presente decreto vás, como
visitador da dita Igreja, ordenar aí um presbítero com título28 e dois diáconos. E, nas
paróquias da dita Igreja, igualmente três presbíteros. Ordena só aqueles que julgues
dignos de tal ofício, pelo carácter venerável das suas vidas e a seriedade dos seus costumes...
CARTA 17 29

5445 Uma vez que o iníquo Autarico30, na solenidade da última Páscoa, proibira que se
baptizassem na fé católica os filhos dos Lombardos..., é conveniente que vossa
Fraternidade exorte todos os Lombardos das vossas dioceses, em razão da grave epidemia
que se espalha por toda a parte, a mandar reconciliar na fé católica essas crianças
baptizadas na heresia ariana...

23
Gregório a Honorato, diácono de Salona (=PL 77, 465-466; MGH - I, 10). Novembro de 590.
24
Gregório à patrícia Clementina (=PL 77, 457-458; MGH - I, 11). Dezembro de 590.
25
O palácio do Latrão.
26
Gregório a João, bispo de Orvieto (=PL 77, 458-459; MGH - I, 12). Dezembro de 590.
27
Gregório a Balbino, bispo de Rosella (=PL 460-461; MGH - I, 15). Janeiro de 591.
28
Cardinalis presbyter, o presbítero em título da Igreja.
29
Gregório a todos os bispos da Itália (=PL 77, 462-463; MGH - I, 17). Janeiro de 591.
30
Autarico era o rei dos Lombardos.
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1301

CARTA 18 31

Foi-nos dito que Marcelo, da Igreja de Barunito, enviado em penitência para o 5446
mosteiro de Santo Adriano na cidade de Palermo, sofria não só da falta de comida, mas
tinha de suportar a dificuldade dum grande despojamento... Pela presente mandamos-te
que lhe estabeleças uma pensão anual...
Além disso..., se algumas cidades da província da Sicília estão privadas do
ministério pastoral por defecção dos bispos, verás se é possível encontrar pessoas dignas
da função episcopal entre o clero dessas Igrejas ou nos mosteiros... Se não for possível
encontrar na própria Igreja ninguém que seja apto para esta dignidade, diz-mo do mesmo
modo após um inquérito cuidadoso, para que Deus Se digne fazer-nos conhecer aquele
que Ele tiver julgado digno de ser ordenado... Deste modo poderemos restabelecer a
ordem nesses lugares; e aqueles que abandonaram, não terão mais a esperança de
voltar à sua dignidade anterior, para melhor fazerem penitência.
CARTA 19 32

Demo-nos conta de que as actas redigidas na sessão do vosso Sínodo e que me 5447
enviastes, actas nas quais o arquidiácono Honorato é acusado, estão cheias de sementes
de discórdia, pois ao mesmo tempo uma mesma pessoa é promovida contra sua vontade
à ordem sacerdotal e afastada como indigna do ofício do diaconado. E, como é justo que
ninguém seja forçado contra a sua vontade a ser elevado em dignidade, penso que se
deve considerar do mesmo modo que nenhum inocente seja excluído injustamente do
exercício da sua ordem...
CARTA 29 33

Dei ordem para que vos enviem, do corpo do apóstolo São Pedro, uma chave 5448
santíssima34 que costuma fazer numerosos e esplêndidos milagres nos doentes, porque
contém dentro dela partículas das suas cadeias. Essas cadeias, que prenderam aquele
santo pescoço, suspensas do vosso, santificá-lo-ão.
CARTA 41 35

Acerca da tríplice imersão baptismal, nada se pode responder com mais verdade 5449
do que aquilo que tu próprio pensas: desde que haja uma só fé, um costume diferente em
nada prejudica a santa Igreja 36. Quanto a nós, pela tríplice imersão significamos os
mistérios da sepultura durante três dias; e, do mesmo modo, quando a criança é tirada
da água pela terceira vez, exprime-se a ressurreição após um período de três dias. Se
eventualmente alguém pensar que isso se faz por veneração à Trindade suprema, nada
impede que se mergulhe uma só vez nas águas, aquele que baptizamos. Com efeito,
dado que nas três subsistências há uma só substância, não se pode julgar repreensível o
mergulhar uma criança, ao ser baptizada, três vezes ou uma só, uma vez que pelas três
imersões se pode designar a Trindade das Pessoas, e por uma só a unicidade da divindade.
Mas, se até hoje, entre os hereges, a criança era mergulhada três vezes no baptismo,
penso que não deveis fazer assim entre vós, não aconteça que, ao contarem as imersões,

31
Gregório ao subdiácono Pedro (=PL 77, 463-464; MGH - I, 18). Janeiro de 591.
32
Gregório a Natal, bispo de Salona (=PL 77, 552-554; MGH - I, 19). Janeiro de 591.
33
Gregório a André de Constantinopla (=PL 77, 483; MGH - I, 29). Fevereiro de 591.
34
Miniaturas das chaves das cancelas da Confissão de São Pedro, na Basílica do Vaticano. Eram consideradas
relíquias.
35
Gregório a Leandro, bispo de Sevilha (=PL 77, 496-498; MGH - I, 41). Abril de 591.
36
In una fide, nihil officit sanctae Ecclesiae consuetudo diversa.
1302 SÉCULO VII

eles separem a divindade, ou que, fazendo o que eles faziam, se gloriem de que vós
mudastes a vossa maneira de fazer.
CARTA 42 37

5450 Há já três anos que tínhamos proibido terminantemente que os subdiáconos de


todas as Igrejas da Sicília, de acordo com o costume da Igreja romana, dormissem com
as suas esposas. Parece-me duro e mal feito que aquele que não adquiriu o hábito desta
continência, e que antes não se tinha proposto a castidade, seja forçado a separar-se da
sua esposa... Por este motivo, parece-me ser preciso dizer, a partir deste dia, a todos os
bispos, que não permitam mais que se torne subdiácono alguém que não tenha prometido
suportar a castidade... Aqueles que, após esta proibição feita há três anos, têm vivido
em continência com as suas esposas, devem ser louvados, recompensados e exortados
a manterem-se nesta boa maneira de viver. Quanto àqueles que, ao contrário, depois da
proibição, não quiseram abster-se das suas esposas, proibimos que cheguem à ordem
sacra, pois ninguém deve aceder ao ministério do altar, se a sua castidade não foi posta
à prova, antes de assumir o ministério...
CARTA 45 38

5451 Vários Judeus residentes nessa província, e que de tempos a tempos viajam, para
os seus negócios, na região de Marselha, fizeram-nos saber que um grande número de
Judeus que ali vivem foram levados à fonte baptismal mais pela força do que pela
pregação. Considero, certamente, que a intenção num caso semelhante é digna de elogio,
e estou seguro que ela provém do amor de nosso Senhor. Mas temo que daí não resulte
qualquer benefício, se tal intenção não for acompanhada da força própria de Escritura...
Quando alguém chega à fonte baptismal sob pressão e não pela doçura da pregação..., e
depois volta à primeira superstição, se vier a morrer encontra-se numa situação mais perigosa,
por dar a impressão de ter recebido um novo nascimento... Portanto, é preciso anunciar-lhes
a palavra... e, pela pregação, iluminar aquilo que neles são trevas...
CARTA 54 39

5452 Querendo prestar uma viva atenção às festas dos santos, julgámos necessário
enviar-te esta carta com a nossa ordem, para te dizermos que decidimos, com a ajuda
de Deus, fazer dedicar no mês de Agosto 40, com o maior cuidado, o oratório de Santa
Maria, recentemente construído no mosteiro dos irmãos que têm por superior o abade
Mariniano, de modo que o que foi começado por nós, com a ajuda de Deus, possa
chegar ao fim. Mas exigindo a pequenez deste mosteiro que prestemos o nosso concurso
para a festividade desse dia, queremos que, para a celebração da dedicação, tu entregues,
para ajudar os pobres, dez moedas de ouro, trinta ânforas de vinho, duzentos pães, duas
jarras de azeite, doze cordeiros, cem galinhas, que poderão em seguida ser metidas nas
tuas contas. Prepara-te desde já para que isso possa ser feito sem tardar, a fim de que
os nossos desejos, com a ajuda de Deus, possam realizar-se rapidamente.
CARTA 55 41

5453 A carta da tua Fraternidade informa-nos que alguns se puseram de acordo para
eleger Ocleatino ao episcopado. Mas, como nós não lho concedemos, não devem persistir

37
Gregório a Pedro, subdiácono de Sicília (=PL 77, 498-508; MGH - I, 42). Maio de 591.
38
Gregório a Teodoro, bispo de Marselha, na Gália (=PL 77, 509-511; MGH - I, 45). Junho de 591.
39
Gregório ao subdiácono Pedro, da Sicília (=PL 77, 517; MGH - I, 54). Julho de 591.
40
Deve ser em honra da Assunção, no dia 15 de Agosto.
41
Gregório ao bispo Severo (=PL 77, 517-518; MGH - I, 55). Julho de 591.
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1303

na escolha da sua pessoa. Ordena aos habitantes dessa cidade que, se encon-trarem
nessa mesma Igreja alguém digno deste cargo, que todos mudem de opinião e o elejam.
Caso contrário, o portador desta carta indicar-te-á uma pessoa da qual lhe falámos e
cuja eleição desejamos que se faça...
CARTA 56 42

Os termos do relatório que vós me enviastes mostram com clareza que tendes 5454
pressa em ter um pontífice. Mas, como aquele que o vai ordenar deve, sem sombra de
dúvida, ser consultado sobre o assunto, é a nós que incumbe o cuidado desta deliberação.
Por esta carta advertimos vossa Caridade que ninguém se obstine em falar-nos da pessoa
de Ocleatino. Mas, se, nessa mesma cidade, se encontrar alguém que seja capaz deste
cargo, de tal modo que nós não venhamos a opor-nos, elegei-o de comum acordo. Se,
pelo contrário, não se encontrar um homem que seja digno disso, nós próprios já dissemos
ao portador desta carta a quem deveis dar o vosso acordo...
CARTA 58 43

Estamos admirados, irmãos caríssimos em Cristo, que vejais a Igreja de Deus 5455
privada de chefe durante tanto tempo e que não penseis em escolher para vós um guia,
para vós e para todo o povo. Sabemos bem que um rebanho ao qual faltam os cuidados
dum pastor... cai nas ciladas que o Inimigo lhe estende. Por isso, é preciso procurar com
cuidado, no temor do Senhor, entre aqueles que militam na Igreja, um homem que possa
receber dignamente o ofídio de pastor e, com a ajuda de Deus, ser aí o dispensador dos
divinos mistérios. Desse modo, ele oferecerá todos os dias pelos filhos da Igreja o
holocausto de um espírito puro, e, ao mesmo tempo, mostrará ao rebanho o caminho
pelo qual nos dirigimos para a cidade celeste.
CARTA 66 44

Fusco, chefe dos médicos..., diz que o diácono Opílio, assim como dois clérigos da 5456
Igreja de Venafro, esquecendo o temor do juízo futuro, teriam, o que é lamentável dizer,
vendido objectos de culto da dita Igreja a um certo judeu. Trata-se de dois cálices de
prata, duas coroas lampadárias ornadas de delfins e de representações de flor-de-lis
vindas de outras coroas lampadárias, e de seis tapetes, uns maiores outros mais pequenos.
Assim que tiveres recebido esta ordem, faz vir, sem tardar, à tua presença, os citados
clérigos e, depois de teres verificado os factos..., farás comparecer esse judeu diante
do governador da província..., para que devolva imediatamente esses objectos de culto...
Quanto ao diácono e aos outros clérigos, que ousaram cometer um tal delito, não tardes
em enviá-los em penitência...
CARTA 69 45

Como se diz que esta mulher foi incomodada pelo facto de ter passado da religião 5457
judaica para a religião cristã, depois de receber os dons dos esponsais 46, e que este
processo teria já sido julgado e terminado, faz um inquérito rigoroso, e, se concluíres que
a causa já foi julgada, não permitas que qualquer querela venha de novo a introduzir-se, seja
de que modo for, contra esta mulher...

42
Gregório ao clero, ao senado e ao povo de Rimini (=PL 77, 518; MGH - I, 56). Julho de 591.
43
Gregório ao clero, ao senado e ao povo residente em Perúsia (=PL 77, 519; MGH - I, 58). Julho de 591.
44
Gregório ao subdiácono Antímio (=PL 77, 524; MGH - I, 66). Agosto de 591.
45
Gregório ao subdiácono Pedro (=PL 77, 526; MGH - I, 69). Agosto de 591.
46
Sponsalitias arras.
1304 SÉCULO VII

CARTA 76 47

5458 Como sabemos que a Igreja de Saona está totalmente desprovida, dado que o seu
pontífice morreu há vários anos, entendemos encarregar-te de lhe fazeres a visita, de
modo que, pelas disposições que tomarás, os seus assuntos possam ser postos em bom
caminho. Nesta Igreja e nas suas paróquias autorizamos-te a ordenar diáconos e
presbíteros. Terás cuidado, no entanto, em fazer, a seu respeito, um inquérito muito
diligente, para veres se não haverá nada neles que seja contrário aos sagrados cânones.
Mas aqueles que a tua Fraternidade reconhecer dignos de tal ministério, e vir que os
seus costumes e as suas acções estão de acordo com essa ordenação, tens autorização,
em virtude da nossa autoridade, de os promover a este ofício. Queremos que, no que se
refere a esta Igreja, te comportes como o seu próprio pontífice, até à minha próxima
carta...
CARTA 81 48

5459 Liberato..., que desempenhava o ofício do diaconado, se acaso não foi estabelecido
no primeiro posto pelo teu predecessor, não deve, de modo nenhum, antecipar-se aos
diáconos ordenados por ti, para não parecer que tu, de certo modo, colocando-os num
posto inferior, censuras aqueles que mereceram a sua consagração. No que diz respeito
ao dito Liberato, inchado por um espírito ambicioso que é preciso moderar, repreende
com força o seu desejo culpável e coloca-o no último posto entre os diáconos, não
aconteça que, enquanto ele se esforça por colocar-se ilicitamente à frente deles, venha
afinal a verificar-se que nem sequer merece o lugar que ocupa neste momento...

LIVRO II

CARTA 3 49

5460 Demétrio nem mesmo antes merecia o nome de bispo... Mas, dado que, para se
submeter à penitência, foi privado da dignidade episcopal, não podemos suportar que a
Igreja de Deus permaneça muito tempo sem doutor, uma vez que as regras canónicas
estabelecem que, depois da morte ou deposição dum pastor, a sua Igreja não fique muito
tempo privada dum bispo. Por isso... recordo-vos que não deve haver na eleição dum
pontífice nem demora nem discórdia... Procurai vós próprios, com solicitude, uma pessoa
que obtenha a unanimidade do consenso... e que não seja rejeitada pelos sagrados
cânones...
CARTA 6 50

5461 Janeiro, diácono da Igreja de Messina... fundou, por devoção, uma basílica e deseja
que ela seja consagrada em honra dos santos Estêvão, Pancrácio e Euplus... Uma vez
asseguradas todas as coisas que te indico, realiza a bênção desejada. Mas não faças a
dedicação antes de ser feita a doação...

47
Gregório a Leão, bispo da Córsega (=PL 77, 532-533; MGH - I, 76). Agosto de 591.
48
Gregório a Januário, arcebispo de Cagliari na Sardenha (=PL 77, 536-537; MGH - I, 81). Agosto de 591.
49
Gregório ao clero, nobreza, senado e povo de Nápoles (=PL 77, 542-543; MGH - II, 5). Setembro de 591.
50
Gregório a Félix, bispo de Messina (=PL 77, 541-542; MGH - II, 9). Outubro de 591.
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1305

CARTA 11 51

A nobre senhora Timótea... fundou, para a sua devoção..., num lugar que lhe 5462
pertence, um oratório, e deseja que ele seja consagrado em honra da santa Cruz...
Consagrarás solenemente esse oratório, sem missa pública... No futuro, não será aí
construído nenhum baptistério, e não nomearás para lá nenhum presbítero próprio. Se
ela quiser que aí sejam celebradas missas, informa-a de que deve pedir-te um presbítero...
Quanto às relíquias recebidas, depô-las-ás com reverência no seu lugar.
CARTA 17 52

Através de muitas pessoas vindas da tua cidade, irmão caríssimo, soube que, 5463
deixando o cuidado pastoral, te ocupas apenas de banquetes... Quando o meu predecessor,
de santa memória, te proibiu por escrito que guardasses no coração a dor duma tão
longa aversão contra o teu arquidiácono Honorato, e quando eu próprio também to proibi
terminantemente, tu, negligenciando os mandamentos de Deus e desprezando as nossas
cartas, procuraste, de maneira perversa, degradar o dito Honorato, teu arquidiácono, a
pretexto duma promoção a uma honra superior. Seguiu-se que, uma vez afastado do seu
grau de arquidiácono, procuraste outro que pudesse estar de acordo com o teu modo de
agir, pois este, de quem falámos antes, só te desagradou, creio eu, por não permitir que
desses alguns vasos sagrados e tapetes aos teus parentes... Por conseguinte, arrepende-te da
falta que cometeste depois de tantas admonições e restabelece Honorato no seu grau,
assim que receberes a minha carta. Se por acaso demorares a fazê-lo, fica sabendo que
te será tirado o uso do pálio que foi concedido por esta Sede. E, se, mesmo depois da
perda do pálio, persistires ainda na tua obstinação, fica a saber que serás privado da
participação do Corpo e do Sangue do Senhor. Depois disso..., decidirei com o maior
cuidado, e após inquérito, se deves ser mantido no episcopado. Quanto àquele que,
contra a regra da justiça, consentiu em ser promovido ao grau de um outro, depomo-lo
da honra de arquidiácono. E, se ele se permitir desempenhar essa função, será privado
da participação da sagrada comunhão...
CARTA 21 53

Félix, homem ilustríssimo, portador desta carta, disse-nos que há nessas regiões 5464
um presbítero que parece digno, pelo mérito da sua vida, de ser promovido à ordem do
episcopado. Fá-lo vir à tua presença, e examina-o com diligência... Se vires claramente
que ele é digno de ser promovido a este posto, procura enviá-lo até nós para que possamos,
se Deus quiser, ordená-lo pastor para o lugar que previrmos...
CARTA 22 54

Como sabemos que Libério, bispo da Igreja de Cumes, deixou a luz desta vida, 5465
delegamos solenemente em ti o cuidado de visitar a Igreja órfã... Desejamos que dirijas
ao clero e ao povo desta Igreja exortações frequentes, para que... escolham
unanimemente, para os dirigir, um bispo que seja digno de tão grande ministério e que os
sagrados cânones não excluam. Depois de escolhido, venha até nós para ser consagrado,
munido dum decreto solene com a assinatura de todos e com cartas do teu próprio
testemunho. Advertimos-te de que não deves permitir que seja eleito alguém de outra

51
Gregório a Castório, bispo de Rimini (=PL 77, 548-549; MGH - II, 15). Janeiro de 592.
52
Gregório a Natal, bispo de Salona (=PL 77, 464-465; MGH - II, 20). Março de 592.
53
Gregório a Maximiano, bispo de Siracusa (=PL 77, 560; MGH - II, 24). Março de 592.
54
Gregório a Benenatus, bispo, visitador de Cumes (=PL 77, 561; MGH - II, 25). Março de 592.
1306 SÉCULO VII

Igreja, a não ser que não se possa encontrar nenhum dos clérigos dessa cidade que seja
digno do episcopado, eventualidade em que não acreditamos...
CARTA 31 55

5466 Entretanto mandamos que nunca faças ordenações ilícitas, nem permitas que
aceda às ordens um homem casado segunda vez ou que não recebeu uma esposa virgem,
ou um homem que não saiba ler, ou um outro afectado por um defeito em qualquer
parte do seu corpo, um penitente ou aquele que tiver um impedimento por pertencer
a uma cúria ou pela sua condição...
CARTA 38 56

5467 O que me dizeis daquele que, depois de ordenado, deveria receber novamente a
ordenação, é perfeitamente ridículo e alheio àquilo que conheço da vossa sagacidade...
Do mesmo modo que, quem foi baptizado não deve ser novamente baptizado, assim
também quem foi consagrado uma vez não pode ser consagrado de novo na mesma
ordem. Mas, se alguém chegou ao sacerdócio talvez com uma falta ligeira, deve receber
uma penitência pela sua falta, mas a ordem deve ser mantida...

LIVRO IV
CARTA 26 57

5468 Qual será a razão de eu vos advertir que enquanto conduzis até Deus os de fora,
vos descuidais de corrigir a infidelidade dos vossos? É urgente fazer todo o possível
para cuidar da sua conversão. Por isso, se eu puder encontrar algum pagão perito na
língua rústica, escolhê-lo-ei corajosamente para bispo...
Soubemos também que alguns lapsos de ordens sacras voltaram a ser chamados,
depois ou antes da penitência, para o seu ministério. Proibimo-lo terminantemente...
CARTA 30 58

5469 Fica a saber, sereníssima senhora59, que não é costume entre os Romanos, quando
dão relíquias dos santos, ousar tocar no que quer que seja do corpo. Só é permitido
encerrar pequenos pedaços de tecido60 numa píxide61 e colocá-los junto dos corpos
santíssimos dos santos. Depois são levados para a igreja a dedicar, onde são depostos
com a devida veneração. E deste modo se realizam aí tantos milagres espectaculares,
como se para lá fossem especialmente levados os seus corpos... Quanto ao sudário que
pediste para te enviar, ele envolve o seu corpo62. Por essa razão não se lhe pode tocar,
tal como não se pode chegar até ao corpo... Quando muito, poderei enviar-vos algumas
parcelas das cadeias que o próprio apóstolo São Paulo levava no pescoço e nas mãos,
desde que consiga retirá-las com a ajuda de uma lima...
55
Gregório a João, bispo de Esquilace, a propósito de ordenações (=PL 77, 575-576; MGH - II, 37). Julho de 592.
56
Gregório a João, bispo de Ravena (=PL 77, 583-586; MGH - II, 45). Julho de 592.
57
Gregório a Januário, arcebispo de Cagliari na Sardenha (=PL 77, 694-696; CCL 140).
58
Gregório a Constantina (=PL 77, 700-705; CCL 140; ANDRIEU , OR, vol. IV, 362-363).
59
Trata-se de Constantina, esposa do imperador Maurício. A imperatriz, quando se estava a construir em
Constantinopla uma basílica em honra de São Paulo, pediu ao Papa São Gregório Magno que lhe enviasse
a relíquia da cabeça do apóstolo Paulo. O Papa explica-lhe que isso é impossível, pois em Roma é considerado
grande crime violar um túmulo para extrair relíquias do corpo aí sepultado.
60
Brandea.
61
Buxide.
62
O corpo de São Paulo.
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1307

CARTA 34

Honorata, viúva do subdiácono Especioso, da diocese de Catânia, foi encerrada 5470


num mosteiro por ter contraído novas núpcias. Mas, como ela afirmava que o seu
primeiro marido, Especioso, para não ser obrigado à continência, sempre se abstivera
de desempenhar o ofício de subdiácono e só tinha, até à morte, exercido o cargo de
notário, estudou-se o caso e verificou-se que os factos eram verdadeiros, pelo que,
Honorata, injustamente condenada à claustração, deve ser entregue ao seu segundo marido.

LIVRO V
CARTA 46 63

Não está bem que tenhas mandado construir na igreja de um mosteiro uma cátedra 5471
episcopal... Deves tirá-la imediatamente e não celebrar lá as funções episcopais...

LIVRO VII
CARTA 22 64

Recebi a vossa amável carta na qual fazeis uma confissão pormenorizada das 5472
vossas faltas. Também sei que amais com todo o fervor a Deus todo-poderoso; espero
que vos seja aplicada a palavra dita um dia a uma santa mulher: São-lhe perdoados
muitos pecados, porque muito amou.
Dizeis que nos ides importunar com as vossas cartas, até que eu vos escreva,
dizendo que por uma revelação acabo de saber que os vossos pecados foram perdoados.
O que me pedis é difícil e inútil. Difícil, porque eu não sou digno de ter uma revelação.
Inútil, porque deveis estar certa do vosso perdão só no fim da vida, quando não puderdes
deplorar mais os vossos pecados. Até chegar esse dia, deveis tremer e temer pelos
vossos pecados e lavar-vos dia após dia com as vossas lágrimas.

LIVRO IX
CARTA 26 65

Quando lhe perguntei quais são os costumes deles que nós seguimos, respondeu... 5473
que nós determinámos que a Oração dominical fosse dita imediatamente depois do cânone.
Respondi-lhe que em nada seguimos as Igrejas deles.
Como o Aleluia não se dizia aqui, no tempo do Papa Dâmaso de santa memória,
introduziu-se o tracto da Igreja de Jerusalém, por tradição de São Jerónimo, e, deste
modo, no que a isto diz respeito, eliminámos aquele costume que viera dos Gregos...
Nós não dizemos nem nunca dissemos o Kyrie eleison como o dizem os Gregos. Entre
eles recitam-no todos ao mesmo tempo, ao passo que entre nós primeiro é recitado pelos
clérigos, e o povo responde. E recita-se o mesmo número de vezes o Christe eleison, coisa
que os Gregos não fazem de modo nenhum. Porém, nas missas quotidianas omitem-se
algumas coisas que se costumam recitar (nas solenes), dizendo-se apenas Kyrie eleison e
Christe eleison, a fim de nos demorarmos pouco tempo nessas expressões de súplica.

63
Gregório ao bispo de Pesaro.
64
Gregório a Gregória (=PL 77, 877-879; CCL 140; MGH - I; C. V OGEL , Paris 1969, 135).
65
Gregório a João, bispo de Siracusa (=PL 77, 955-958; CCL 140 A; MGH - II). Ano 598.
1308 SÉCULO VII

Nós dizemos a Oração do Senhor logo a seguir à prece (cânone) por esta razão:
os Apóstolos tinham o costume de consagrar o sacrifício unicamente pela oração de
oblação. Pareceu-me que não era conveniente dizer sobre a oblação uma oração
composta por um literato qualquer e não dizer sobre o Corpo e o Sangue do Redentor
aquela que Ele próprio compôs e que nos vem da tradição. Mas, ao passo que entre os
Gregos esta oração é dita por todo o povo, entre nós, é apenas o sacerdote que a recita66.

LIVRO XI
CARTA 10 67

5474 Foi-nos referido que... terias destruído imagens de santos com a desculpa de que
não devem ser adoradas. Louvamos certamente que tenhas proibido que sejam adoradas,
mas reprovamos que as tenhas destruído... Com efeito, uma coisa é adorar uma pintura
e outra aprender quem devemos adorar por meio da imagem da pintura. Porque aquilo
que a Escritura é para os que sabem ler, isso o oferecem as pinturas aos não instruídos
que olham para elas, a fim de que, ao contemplá-las, possam ler, pelo menos nas paredes,
aquilo que não são capazes de ler nos livros; por isso, principalmente para os povos, a
pintura ocupa o lugar da leitura...
Se alguém quiser fazer uma imagem, não lho proíbas de modo nenhum; proíbe, ao
contrário, que adorem as imagens. Depois, deves procurar, com solicitude, que da visão
da realidade se lhes faça perceber o ardor da compunção, a fim de se prostrarem
humildemente só em adoração da omnipotente Trindade Santíssima.
CARTA 36 68

5475 Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade, porque
Cristo, o grão de trigo, caiu na terra e morreu, para não reinar sozinho no Céu. Nós
vivemos pela sua morte; por sua fraqueza nos fortalecemos, por sua Paixão nos livramos
da nossa, por seu amor procuramos na Bretanha irmãos que não conhecemos, por sua
bondade encontrámos a quem procurávamos sem conhecer.
Quem será capaz de contar a enorme alegria que encheu o coração de todos os
fiéis, pelo facto de os Anglos, pela acção da graça de Deus omnipotente e do teu trabalho,
irmão, terem repelido as trevas do erro e terem sido inundados pela luz da santa fé?
Com grande fidelidade de espírito, já calcam aos pés os ídolos que antes adoravam com
insensato temor; com pureza de coração, já se prostram diante de Deus omnipotente;
obedecendo às normas da santa pregação, abandonam as obras do pecado e aceitam de
boa mente os mandamentos de Deus para chegarem a compreendê-los melhor; prostram-
se por terra em oração, para que o espírito não fique preso à terra...
CARTA 52 69

5476 Da antiga tradição dos Padres aprendemos que aqueles que, na heresia, foram
baptizados em nome da Trindade, quando voltam à santa Igreja são chamados de novo
66
Cuí cum dicerem: quas consuetudines sequimur? respondit... quia orationem dominicam mox post
canonem dici statuisti. Cuí ego respondi, quia in nullo eorum aliam ecclesiam secuti sumus... Orationem
vero dominicam idcirco mox post precem dicimus, quia mos apostolorum fuit, ut ad ipsam solummodo
orationem oblationis hostiam consecrarent, et valde mihi inconveniens visum est ut precem quam
scholasticus composuerat super oblationem diceremus et ipsam traditionem quam Redemptor noster
composuit super eius corpus et sanguinem non diceremus. Sed et dominica oratio apud Graecos ab omni
populo dicitur, apud nos vero a solo sacerdote.
67
Carta ao bispo Sereno de Marselha (=CCL 140 A). Ano 600.
68
Gregório a Agostinho, bispo de Cantuária (=CCL 140 A; MGH - II).
69
Carta aos bispos da Ibéria (Geórgia) (=CCL 140 A). Ano 601.
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1309

ao seio da santa mãe Igreja ou pela unção do crisma, ou pela imposição das mãos, ou só
pela profissão da fé. Por isso, para a entrada na Igreja católica, o Ocidente recebe os
Arianos com a imposição das mãos, e o Oriente com a unção do santo crisma. Ao
contrário, acolhe os Monofisitas e os outros só com a profissão de fé, porque o santo
baptismo que receberam entre os hereges, nesse momento adquire neles a força da
purificação, quando se unem pela fé santa e às entranhas da Igreja santa e universal.
Mas aqueles hereges que de modo nenhum foram baptizados em nome da Trindade...
são baptizados quando vêm à santa Igreja, pois aquilo que receberam em nome da Trindade,
quando ainda estavam no erro, não foi nenhum baptismo. E também não se pode dizer que
este baptismo é repetido, pois, como fica dito, aquele não foi dado em nome da Trindade...
Sem qualquer dúvida a tua santidade deve recebê-los 70 na vossa comunidade,
mantendo-os nas suas próprias ordens, a fim de que, não lhe opondo por tua mansidão
qualquer contrariedade ou dificuldade quanto às suas próprias ordens, os arrebates da
boca do antigo Inimigo.
CARTA 56 71

Os templos sagrados dos ídolos desses povos 72 não devem, de modo nenhum, ser 5477
destruídos; mas devem ser destruídos os ídolos que neles houver. Prepare-se água benta,
sejam esses templos aspergidos com ela, construam-se altares e deponham-se relíquias,
porque, se esses templos estiverem bem construídos, devem passar necessariamente do
culto dos Demónios ao culto do verdadeiro Deus73...

LIVRO XIII
CARTA 1 74

Foi-me contado que alguns homens de espírito perverso difundiram entre vós 5478
certas opiniões reprováveis e contrárias à santa fé, até ao ponto de proibirem qualquer
trabalho no dia de sábado75. Como hei-de chamar-lhes senão pregadores do Anticristo?
Quando este vier, induzirá a abstermo-nos de qualquer trabalho no sábado e no dia do
Senhor76... Contudo, nós interpretamos em sentido espiritual o que está escrito acerca
do sábado, e em sentido espiritual o observamos. De facto, o sábado significa repouso.
Ora, nós consideramos como verdadeiro sábado a pessoa do nosso Redentor, o Senhor
Jesus Cristo77... Também me contaram que vos foi ensinado por homens perversos que
ninguém deve lavar-se no dia do domingo78. Decerto, se alguém quiser lavar-se por
sensualidade ou busca de prazer, admitimos que não deve fazê-lo mesmo em qualquer
outro dia; mas, ao contrário, se é por necessidade higiénica, não o proibimos nem
sequer no dia do domingo... No dia do Senhor o que devemos é cessar toda e qualquer
actividade mundana e consagrar-nos inteiramente à oração, de modo a podermos expiar

70
Os Nestorianos convertidos.
71
Gregório ao bispo Agostinho de Cantuária (=ANDRIEU , OR, vol. IV, 373; E WALD -H ARTMANN , t. II, 331).
72
Os Anglos, habitantes das Ilhas Britânicas.
73
Fana idolorum in eadem gente (anglorum) minime debeant, sed ipsa, quae in eis sunt idola destruatur.
Aqua benedicta fiat, in eisdem fanis aspergatur, altaria construantur, reliquiae ponantur, quia, si fane
eadem bene constructa sunt, necesse est, ut a cultu daemoniorum in obsequio veri Dei debeant commutari.
74
Carta aos cidadãos de Roma (=PL 77, 1253-1255; CCL 140 A). Ano 602.
75
Quer isto dizer que no princípio do séc. VII ainda eram correntes os zeladores do sábado.
76
O papa Gregório Magno opõe-se, portanto, à opinião errada da abstenção total do trabalho no domingo.
77
O papa defende a tradição da teologia do sábado, cara à Igreja antiga.
78
A proibição do banho e dos cuidados do próprio corpo virá mais tarde a fazer parte das prescrições
eclesiásticas referentes ao domingo.
1310 SÉCULO VII

com as orações no dia da Ressurreição do Senhor as negligências de que nos tenhamos


tornado culpados nos outros seis dias79...
CARTA 13 80

5479 Os que, com recta intenção, desejam levar à fé verdadeira os que estão afastados
da religião cristã, devem utilizar palavras de bondade e não ásperas, de modo que a
inimizade não afaste aqueles cujo espírito teria podido pôr-se em movimento pela indicação
de uma razão clara. Todos os que procedem de outro modo, e que, a pretexto disto
querem afastá-los da prática habitual dos seus ritos, trabalham mais pela sua própria
causa do que pela de Deus. Com efeito, uns Judeus que vivem em Nápoles queixaram-
se-nos, dizendo que alguns se esforçam de maneira não razoável por impedi-los de celebrar
algumas das suas festas, de modo que a eles e a seus pais já não lhes é permitido
celebrar as suas festas como lhes era permitido há tempos atrás observá-las ou celebrá-
las. Se realmente é assim, esta gente parece que anda a esforçar-se por uma causa
inútil. Na verdade, que utilidade terá impedir um uso antigo, se isso não lhes favorece
em nada a fé e a conversão? Ou porquê estabelecer para os Judeus regras sobre como
devem celebrar as suas festas, se com isso os não podemos ganhar?
Convém proceder de outra maneira, para que, animados mais pela razão e pela
doçura, não se afastem, mas prefiram seguir-nos. Deste modo, explicando-lhes pelas
Escrituras aquilo que dizemos, talvez possamos, com a ajuda de Deus, trazê-los ao seio
da mãe Igreja. Por isso, que a tua fraternidade, enquanto o puder com a ajuda de Deus,
os inflame à conversão através de advertências, e não permita que sejam novamente
molestados por causa das suas festividades, mas sejam livres de observar e celebrar
todas as suas festividades e festas, tal como até agora o fizeram sempre.

APÊNDICE III 81
5480 No tempo do Papa Gregório, sob o consulado do imperador Maurício, no sétimo
ano, foi deposto Lourenço, que tinha sido o primeiro da ordem do diaconado da Sé
apostólica, por causa do seu orgulho e más acções, que pensámos dever passar em
silêncio. E Honorato foi promovido a arquidiácono diante de todos os presbíteros, diáconos,
notários e subdiáconos e de todo o clero, na basílica Áurea.

APÊNDICE IV 82
5481 Em nome do Senhor. Documento acerca da ladainha maior, que deve ser lido na
Basílica de Santa Maria. A solenidade desta festa anual, filhos caríssimos, convida--
nos a celebrar, ajudados pelo Senhor, com atenção e devoção de espírito, a ladainha que
todos chamam maior: por ela mereçamos, nós que suplicamos a sua misericórdia, ser
purificados dos nossos erros, tanto quanto possível. Na verdade, caríssimos, é
conveniente que pensemos de que catástrofes diversas e permanentes somos afligidos,
em virtude das nossas faltas e ofensas, e como o próprio Senhor, bom médico do Céu,
vem muitas vezes em nossa ajuda. Por isso, na próxima sexta-feira, partiremos do título
do santo mártir Lourenço in Lucina e iremos para a igreja de São Pedro, príncipe dos
Apóstolos, dirigindo súplicas ao Senhor com hinos e cânticos espirituais, para aí
celebrarmos os santos mistérios e merecermos dar graças à sua bondade, na medida das
nossas forças, pelos benefícios passados e presentes.

79
A organização cultual do repouso dominical que aqui aparece só tomará forma durante a reforma carolíngia.
80
Carta ao bispo Pascásio de Nápoles (=PL 77, 1267-1268; CCL 140 A). Ano 602.
81
Relato da deposição do arquidiácono Lourenço e da promoção de Honorato (=CCL 140 A, 1095).
82
Documento e anúncio da ladainha maior do dia 25 de Abril, que substituiu a procissão pagã das Rubigalia.
Esta fórmula é, provavelmente, do ano 592 (=CCL 140 A, 1096. 1102-1104).
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1311

APÊNDICE V

O usurpador Máximo foi aclamado imperador, na Dalmácia, pelos soldados, 5482


contra a vontade do Papa Gregório... Depois deste lhe ter infligido o castigo e as
penas, deixando a Dalmácia, veio à cidade de Ravenaa, e atirou-se completamente por
terra, em plena cidade, diante do bem-aventurado arcebispo Mariniano, como se fosse
uma pedra, gritando nestes termos: «Pequei contra Deus e contra o bem-aventurado
Papa Gregório». Fez penitência durante três horas. Vieram então o exarca Calínico, o
chanceler da Igreja romana Castório e o arcebispo Mariniano. Levantando-se, Máximo
pos-se a intensificar diante deles a sua penitência...

APÊNDICE IX

Anúncio da ladainha septiforme. Caríssimos irmãos, ao menos devemos ter medo 5483
dos flagelos de Deus, quando estão presentes e os experimentamos... Que a dor nos
abra o caminho da conversão e que o castigo que sofremos quebre a dureza do nosso
coração... Já não é a doença que anuncia a morte, mas como vedes, é a morte que se
adianta à lentidão da doença. Cada qual é atingido e levado antes de se ter convertido
pelas lágrimas da penitência... As casas ficam vazias, os pais vêem os funerais dos seus
filhos, e os seus herdeiros precedem-nos na morte... Recordemos, aos olhos do nosso
espírito, todos os erros que cometemos e punam as nossas lágrimas o que fizemos de
mal... Mas ninguém desespere por causa das suas muitas iniquidades, porque os três
dias de penitência apagaram as faltas inveteradas dos Ninivitas, e o ladrão convertido
mereceu as recompensas da vida sob o próprio golpe da sentença...
Por isso, irmãos caríssimos, amanhã, ao romper do dia, de coração contrito e
com os vossos negócios postos em ordem, dirijamo-nos, com lágrimas e piedade, à
ladainha septiforme, de acordo com o esquema indicado mais abaixo. Ninguém de entre
vós vá para os seus campos trabalhar a terra. Ninguém ouse ocupar-se de qualquer
trabalho: vamos todos à igreja da Santa Mãe do Senhor, todos nós que pecámos juntos,
e uns com os outros choremos os males que cometemos, a fim de que o juiz severo...
nos poupe à decisão da condenação prevista.
Em seguida, a procissão dos clérigos sairá da igreja de São João Baptista, a dos
homens da igreja do mártir São Marcelo, a dos monges da igreja dos bem-aventurados
mártires João e Paulo, a das servas de Deus da igreja dos bem-aventurados Cosme e
Damião, a das mulheres casadas da igreja do bem-aventurado mártir Estêvão, a das
viúvas da igreja do bem-aventurado mártir Vital, a dos pobres e das crianças, da igreja
da bem-aventurada mártir Cecília.
Feita na Basílica de Santa Sabina no IV dia das Calendas de Setembro, durante a
VI indicção.

APÊNDICE X

Gregório, servo dos servos de Deus, ao seu caríssimo filho Secundino... Pedes- 5484
-me que te diga se é possível ao ministério sacerdotal levantar-se depois da queda...
Começando pela cabeça e indo até ao quarto ministro do altar..., doravante a sua
penitência deve ser considerada frutuosa... Após uma satisfação digna deste nome,
acreditamos que é possível ser reabilitado no seu posto... Se o nosso Redentor veio, não
para perder os pecadores, mas para os justificar, deixando cair no esquecimento as
faltas dos pecadores, quem de entre os homens poderá guardar seja o que for para
condenar, quando o Apóstolo disse: Se Deus os justifica, quem irá condená-los? Ao
recorrermos à fonte da misericórdia, ponhamos à frente a palavra evangélica... Bastem
1312 SÉCULO VII

estas palavras, filho caríssimo, para não duvidares de que alcança misericórdia aquele
que, chorando diante de Deus, tu vês destruir os seus pecados, pois Aquele que veio
resgatar os pecadores pelo seu sangue não rejeita nenhum pecador que se converta...
Quanto à imagem que nos pediste para te enviarmos pelo teu diácono Dulcídio,
o teu pedido foi-nos muito agradável, porque procuras, no teu coração, com todas as
tuas forças, Aquele de quem desejas ter a imagem diante dos olhos, a fim de que a visão
corporal a torne visível cada dia. Deste modo, olhando para esta pintura, sentirás, na tua
alma, um grande fogo por Aquele cuja imagem desejas ver. Não nos afastamos do
verdadeiro quando, através das coisas visíveis, mostramos o que é invisível... Sabemos
que não nos pedes a imagem do nosso Salvador para a venerar como se ela fosse Deus,
mas para que, ao recordar-te o Filho de Deus, ela te aqueça no amor d’Aquele cuja
imagem desejas ver. Na verdade, nós não nos prostramos diante desta imagem como
diante da divindade, mas adoramos Aquele cuja imagem nos recorda o Nascimento, a
Paixão ou a permanência na sua glória... Por isso te enviámos, pelo citado diácono,
nosso filho, duas telas, uma com a imagem do Salvador e de Maria, a Santa Mãe de
Deus, e outra com a dos santos apóstolos Pedro e Paulo, e ainda uma cruz, que é como
que uma chave para a bênção... Proteja-te até ao fim Aquele que Se dignou resgatar o
mundo inteiro, Jesus Cristo nosso Senhor, que vive pelos séculos.

APÊNDICE XI 83

5485 Quando Agostinho, homem de Deus, veio a Arles, foi ordenado arcebispo do
povo dos Anglos, de acordo com as ordens recebidas do Santo Padre Gregório, por
Etério, arcebispo desta cidade. Depois voltou para a Bretanha e enviou imediatamente
a Roma o presbítero Lourenço e o monge Pedro, para informar o bem-aventurado Papa
Gregório de que o povo dos Anglos tinha acolhido a fé cristã e que ele próprio se tinha
tornado o seu bispo. Ao mesmo tempo, pedia-lhe a sua opinião sobre algumas questões
que lhe parecia deverem ser resolvidas. Obteve, sem tardar, as respostas dadas às suas
perguntas, e nós pensámos que seria conveniente inseri-las na nossa História.
5486 I. Pergunta do bem-aventurado Agostinho, bispo da Igreja de Kent:... Como
devem ser repartidas as ofertas trazidas ao altar pelos fiéis?
Gregório, Papa da cidade de Roma, respondeu:... É costume da Sé Apostólica
dar as suas instruções àqueles que foram ordenados bispos. Tudo aquilo que é recebido
deve ser dividido em quatro partes: uma para o bispo e sua casa...; outra para o clero;
a terceira para os pobres; a quarta para a manutenção das igrejas... Se alguns clérigos
que não receberam ordens sacras não podem viver em continência, devem tomar esposa
e receber um salário, mas viver fora do convento...
5487 II. Pergunta de Agostinho: Embora a fé seja uma, os costumes são variados nas
Igrejas? Haverá um rito da missa na santa Igreja romana e um outro na Igreja das Gálias?
O Papa Gregório respondeu: Tu conheces os costumes da Igreja de Roma,
onde foste educado. Mas eu desejo, no caso de encontrares na Igreja romana, ou na das
Gálias, ou noutra qualquer, alguma coisa que possa agradar mais a Deus todo-poderoso,
que faças uma escolha cuidadosa e difundas, por disposições particulares, na Igreja
dos Anglos, que é muito jovem na fé, o que pudeste recolher das outras Igrejas. Não se
devem amar as coisas em virtude dos lugares, mas amar os lugares em virtude das
coisas boas que aí existem. Escolhe, pois, em cada Igreja o que aí encontrares de bom,
de religioso e de correcto, faz de tudo isso um lindo presente, e depõe-o no espírito
dos Anglos, para que entre em seus costumes.

83
Carta 64 (=PL 77, 1183-1200; SCh 371).
PAPA GREGÓRIO MAGNO 1313

VI. Pergunta de Agostinho: Se a distância que separa os bispos for tão grande 5488
que eles não possam reunir-se facilmente, será que um bispo pode ser ordenado sem a
presença de outros bispos?
Gregório respondeu: Certamente, na Igreja dos Anglos, onde até ao presente tu
és o único bispo, não podes ordenar um bispo de outro modo que não seja sem bispos.
Com efeito, como poderão os bispos vir da Gália para assistir como testemunhas à
ordenação dum bispo? Mas nós queremos que tu ordenes bispos que não fiquem separados
uns dos outros por uma grande distância, a não ser que seja muito necessário; e, desse
modo, durante a ordenação dum bispo, outros pastores, cuja presença é muito importante,
poderão reunir-se facilmente. Portanto, quando pela graça de Deus forem ordenados
bispos em lugares próximos uns dos outros, não se deve fazer a ordenação dum bispo
sem a presença de três ou quatro bispos. Com efeito, para que as realidades espirituais
sejam feitas com sabedoria e adequadamente, podem tomar-se como exemplo as
realidades da vida corrente. Assim, quando no mundo se celebram casamentos, convidam-
-se outros casais, para que aqueles que já iniciaram a vida de casados se juntem à
alegria desta nova união. Por que razão, na ordenação espiritual que une um homem a
Deus no ministério sagrado, não haveriam de reunir-se homens que se alegrem pela
promoção dum novo bispo, a fim de elevarem juntos as suas orações a Deus todo-
-poderoso, para que Ele o guarde?
VIII. Pergunta de Agostinho: Será que uma mulher grávida pode ser baptizada? 5489
Quando é que ela, depois do nascimento da criança, poderá entrar na igreja? Para evitar
a ansiedade pela morte da criança, com quantos dias poderá o recém-nascido receber
o sacramento do baptismo?... Se uma mulher está nas suas regras, poderá entrar na
igreja e receber aí o sacramento da sagrada comunhão? Poderá o marido que se uniu à
sua mulher, entrar na igreja e receber aí o sacramento da sagrada comunhão antes de
se ter lavado com água? É preciso ensinar tudo isso ao povo ignorante dos Anglos.
Gregório respondeu: Não duvido de que tenhas sido interrogado sobre estes
pontos. Penso que já te respondi, mas julgo que o que tu queres é confirmar, pela
minha resposta, aquilo que tu próprio já disseste e sentes. Por que motivo é que uma
mulher grávida não poderia ser baptizada, uma vez que aos olhos de Deus todo-
poderoso a fecundidade humana não é nenhuma falta?... Aquilo que foi concedido à
natureza humana por um dom de Deus todo-poderoso, por que razão o afastaríamos
nós da graça do santo baptismo? Com efeito, seria uma grande loucura opor este dom
à graça deste sacramento, no qual toda a falta é totalmente apagada...
Quanto a baptizar uma mulher que deu à luz ou o seu bebé, no caso de perigo de
morte, não há nenhum impedimento quer para a mulher na hora em que ela dá à luz,
quer para a criança na hora do seu nascimento. Porque se a graça deste santo mistério
deve ser dada com discernimento aos seres vivos e capazes de julgar, deve ser oferecida
sem demora àqueles que estão ameaçados de morte, não aconteça que, durante o tempo
necessário para celebrar este mistério da redenção, mesmo que a demora seja pequena,
acabe por não haver já ninguém para beneficiar da redenção.
Uma mulher não deve ser impedida de receber o sacramento da santa comunhão
nos dias das suas regras. Se é ela que não ousa recebê-lo por grande respeito, deve
louvar-se; mas, se o receber, não deve ser julgada; é próprio das almas delicadas
reconhecer as suas faltas de determinada maneira, mesmo quando não há falta... Para as
mulheres, as regras não são uma falta, uma vez que se trata de fenómenos naturais...
Por isso, quando elas, reflectindo em si próprias, não ousam aproximar-se do sacramento
do Corpo e do Sangue durante o tempo das suas regras, devem ser louvadas pela
delicadeza da sua consciência; mas quando, levadas pelo amor deste mesmo sacramento,
comungam por desejo e hábito de piedade, não devem ser afastadas, como já o dissemos
antes...
1314 SÉCULO VII

Quanto ao homem que dorme com a esposa, não deve entrar numa igreja sem se
ter lavado com água. E mesmo depois de se ter lavado, não deve aí entrar imediatamente...
porque, se o fogo da concupiscência não arrefeceu primeiro no seu espírito, não deve
considerar-se digno de se juntar à assembleia dos seus irmãos... Apesar de a tal respeito
os diversos povos terem sentimentos diferentes e parecerem guardar outros hábitos,
foi sempre esse o costume dos Romanos desde tempos antigos: depois de um homem
se ter unido à sua própria mulher, é bom desejar a purificação do banho e abster-se,
respeitosamente, por um pouco de tempo, de entrar numa igreja
5490 IX. Pergunta de Agostinho: Depois de se ter sido enganado pela imaginação,
como acontece muitas vezes durante um sonho, poderá receber-se o Corpo do Senhor
ou, no caso de alguém ser sacerdote, poderá celebrar os santos mistérios?
Gregório respondeu: O Testamento da Antiga Lei, como já o dissemos nos
capítulos anteriores, declara poluído este homem... Mas o povo espiritual, que
compreende as coisas de outro modo, acolhê-las-á segundo o espírito que acima
indicámos...: deve lavar-se com água, isto é, deve lavar as faltas do seu pensamento
com lágrimas e, a não ser que o fogo da tentação se retire antes, deve considerar-se,
até à tarde, quase como se fosse culpado. Mas, a respeito dessas ilusões (nocturnas) é
preciso fazer uma distinção que exige grande subtileza, para sabermos como surgem no
espírito daquele que dorme. Umas vezes elas têm origem na embriaguez, outras vezes
no excesso de comida ou nalguma fraqueza natural, e outras ainda no pensamento.
Com toda a certeza quando provém do excesso de comida ou da fraqueza natural, não
há que temê-las, porque o espírito as sente contra seu gosto... Mesmo que tenham sido
provocadas pelos excessos da comida, não é motivo para proibir alguém de receber o
santo sacramento ou de celebrar missa sempre que o exija a solenidade do dia, ou
quando, na ausência de um outro sacerdote, nesse momento, a própria necessidade
pede que se celebre o mistério. Mesmo no caso de estarem presentes outros que possam
cumprir este ministério, a imaginação nascida da embriaguez não deve afastar da recepção
do santo sacramento, mas talvez deva, segundo me parece, levar a abster-se com humildade
da celebração dos sagrados mistérios... Com efeito, para que haja pecado são necessárias
três condições: a sugestão, o deleite e o consentimento. A sugestão é feita pelo Diabo,
o deleite vem da carne, e o consentimento do espírito... É preciso um grande
discernimento para que o espírito, juiz de si mesmo, dirija o debate entre sugestão,
deleite e consentimento... Por isso é que esse soldado de elite do exército celeste se
lamentava assim: Eu sinto gosto pela lei de Deus, enquanto homem interior. Mas
vejo que há outra lei nos meus membros a lutar contra a lei da minha razão e a
reter-me prisioneiro na lei do pecado que está nos meus membros.
ISIDORO DE SEVILHA 1315

Isidoro de Sevilha

Etimologias 1

LIVRO VI

19. 4 A missa é o momento do sacrifício em que os catecúmenos são despedidos, 5491


quando o diácono clama: «Se ficou algum catecúmeno, saia para fora». Daí a palavra
missa2, porque não podem estar presentes nos sacramentos do altar os que ainda não
foram regenerados.
38 Chama-se sacrifício como algo sacrum factum, uma vez que a paixão do Senhor
se consagra para nós com orações místicas, pelo que, por seu mandato, chamamos a
estas coisas o Corpo e Sangue de Cristo. Sendo estas coisas frutos da terra, santificam-se e
tornam-se sacramento pela acção invisível do Espírito Santo. A este sacramento do
pão e do cálice chamam os Gregos Eucaristia, que em latim quer dizer «boa graça».
Que há de melhor do que o Sangue e o Corpo de Cristo?
39 O sacramento consiste numa celebração. Aquilo que nela se realiza deve levar
a perceber o seu significado profundo e a receber o sacramento santamente. Sacramentos
são o Baptismo e o Crisma, e o Corpo e Sangue do Senhor.
40 A essas coisas chama-se sacramentos, porque, sob o véu de realidades corporais, a
força divina realiza secretamente a salvação através dos próprios sacramentos; chamam-se
sacramentos pelas virtudes «secretas» ou pelas realidades «sagradas».
41 Estes sacramentos celebram-se com fruto na Igreja, porque o Espírito Santo,
que está nela, realiza ocultamente o próprio efeito dos sacramentos.
42 Por isso, mesmo que sejam administrados dentro da Igreja de Deus por bons
ou por maus ministros, uma vez que quem os vivifica misticamente é o Espírito Santo,
que no tempo dos Apóstolos Se manifestava por obras visíveis, nem se aumentam estes
dons pelos méritos dos bons dispensadores nem se diminuem pelos dos maus, porque
não é nada o que planta nem o que rega, mas Aquele que faz crescer, que é Deus. Por
isso, em grego também se diz «mistério», por ter uma forma de ser secreta a escondida.

LIVRO VII

12. 29 O que em grego se diz acólitos, em latim chama-se ceroferários, por levarem 5492
os círios3.

LIVRO VIII
5. 22 Os artotoritas são chamados assim pela oblação, pois oferecem pão e queijo, 5493
dizendo que a oblação foi celebrada pelos primeiros homens com os frutos da terra e
das ovelhas.

1
I SIDORO DE S EVILHA , Etymologiarum sive Originum libri XX (=PL 82, 73-728). Isidoro foi bispo de
Sevilha. Viveu aproximadamente entre 560 e 636.
2
Missa tempore sacrificii est quando cathecumeni foras mittuntur, clamante levita: Si quis cathecumenus
remansit, exeaat foras...
3
Acolithi graece, latine ceroferarii dicuntur, a deportandis cereis.
1316 SÉCULO VII

23 Os aquários são assim chamados porque oferecem só água no cálice do sacramento.


38 Os aerianos são chamados assim por causa de Aerio; estes rejeitam oferecer
sacrifícios pelos defuntos.

LIVRO XV

5494 2. 1 Civitas é uma multidão de homens reunidos por um vínculo de proximidade,


chamados cidadãos, ou seja, pelos próprios habitantes da cidade... A cidade são os
muros, ao passo que a civitas são os habitantes, não são as pedras.

LIVRO XIX

5495 31. A mitra é um barrete frígio, para proteger a cabeça, e um ornamento da cabeça
das virgens consagradas.

Ofícios eclesiásticos 4

LIVRO I

CAPÍTULO 7

5496 1. Os Gregos foram os primeiros a compor antífonas. Formavam dois coros, que
cantavam alternadamente, como dois Serafins. Entre ao Latinos, foi Ambrósio, de feliz
memória, o primeiro que os estabeleceu, a exemplo dos Gregos. Daí por diante o seu
uso espalhou-se em todos os países do Ocidente.
CAPÍTULO 15

5497 1. O ordenamento da missa e das orações, através das quais se consagram os


sacrifícios oferecidos a Deus, foi estabelecido pela primeira vez por São Pedro, e esta
celebração realiza-se da mesma maneira em toda a parte do mundo. A primeira destas
orações é a admonição feita ao povo, para que se disponha a suplicar a Deus. A segunda
é a invocação de Deus, para que receba benignamente as preces dos fiéis e as suas
oblações. A terceira diz-se pelos que oferecem e pelos fiéis defuntos, para que consigam
o perdão pelo próprio sacrifício.
5498 2. A quarta, depois destas, introduz-se para o ósculo da paz, a fim de que,
reconciliados pela caridade, todos mutuamente se associem dignamente ao sacramento
do Corpo e Sangue do Senhor, porque o Corpo indivisível de Cristo não admite divisões
de ninguém. A quinta tem como finalidade a santificação da oblação, na qual se convida
também ao louvor de Deus o conjunto das criaturas terrestres e das virtudes celestes, e
canta-se o Hossana in excelsis, porque, tendo nascido o Salvador da família de David,
a salvação do mundo chegou ao ponto mais alto.
5499 3. A partir daqui vem a sexta, a conformação do sacramento, para que a oblação
que se oferece a Deus, santificada pelo Espírito Santo, se conforme ao Corpo e ao

4
I SIDORO DE S EVILHA , De ecclesiasticis officiis (=PL 83, 737-826; CCL 113). Livro I: elementos da oração
litúrgica (cânticos, fórmulas, salmos), orações da missa mozárabe e da sua organização, horas canónicas,
tempos litúrgicos e festas, dias de jejum litúrgico; Livro II: diversas ordens de fiéis (clérigos, monges,
penitentes, virgens, viúvas, etc.), baptismo, confirmação.
ISIDORO DE SEVILHA 1317

Sangue de Cristo. A última das orações é aquela com a qual nosso Senhor ensinou os
seus discípulos a orar, dizendo: Pai nosso, que estais nos Céus. Esta oração, como
escreveram os Santos Padres, tem sete petições: nas três primeiras pedem-se coisas
eternas; nas quatro a seguir, coisas temporais, mas que se pedem, no entanto, para
alcançar as eternas.
4. Porque quando dizemos: Santificado seja o vosso nome, venha o vosso reino, 5500
seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu, aqui se iniciam certamente
estas três coisas, mas esperam-se naquela vida, onde a santificação de Deus, a sua
vontade e o seu reino permanecerão nos seus santos para sempre. Ora bem, pede-se
aqui (na terra) o pão de cada dia, aquele que se dá à alma e o que se dá ao corpo; aqui
também, depois da ajuda do alimento, pede-se perdão, a exemplo do perdão concedido
ao irmão; aqui pedimos para não cair na tentação do pecado; aqui, finalmente, imploramos
o auxílio de Deus para nos vermos livres dos males. Ali, ao contrário (na outra vida),
nada há destas coisas.
5. Esta oração foi, pois, ensinada pelo Salvador, e nela se contém a esperança dos 5501
fiéis e a confissão dos pecados...
Estas são as sete orações do sacrifício recomendadas pela doutrina evangélica e
apostólica. A razão do número parece ter sido estabelecida ou pela universalidade
septenária da santa Igreja ou pelo Espírito da graça septiforme, por cujo dom são
santificadas as coisas que se levam.
CAPÍTULO 18

1. O sacrifício que os cristãos oferecem a Deus, instituiu-o, pela primeira vez, Cristo, 5502
nosso Senhor e Mestre, quando recomendou o seu Corpo e o seu Sangue aos Apóstolos
antes de ser entregue, como se lê no Evangelho... E Melquisedec, rei de Salém, foi o
primeiro que ofereceu este sacramento de maneira figurada como tipo do Corpo e Sangue
de Cristo, e o primeiro que em imagem expressou o mistério de tão grande sacrifício,
mostrando a semelhança do Senhor e nosso Salvador, Jesus Cristo, sacerdote eterno, ao qual
disse: Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec.
2. Terminadas e acabadas as vítimas judaicas, que foram mandadas celebrar durante 5503
a deportação do antigo povo, foi mandado aos cristãos que celebrem este sacrifício. Por
isso, nós fazemos o que o próprio Senhor fez em nosso favor. Mas Ele ofereceu-o não
de manhã, mas depois da ceia, ao entardecer. Assim convinha que Cristo cumprisse (as
figuras) ao entardecer do dia, para que a própria hora do sacrifício assinalasse o
entardecer do mundo. E, por isso, os Apóstolos não comungaram em jejum, porque era
preciso que aquela Páscoa típica tivesse lugar antes, e só depois passassem ao verdadeiro
sacramento da Páscoa.
3. Pelo facto daquilo que então foi feito não ter tido lugar em mistério, os Apóstolos 5504
não receberam em jejum o Corpo e o Sangue do Senhor. Mas agora, em toda a Igreja,
sempre se recebe em jejum. Aprouve ao Espírito Santo, por meio dos Apóstolos, que em
honra de tão grande sacramento o Corpo do Senhor entrasse na boca do cristão antes
dos demais manjares, e por isso todo o mundo guarda este costume. Porque o pão que
partimos é o Corpo de Cristo..., e o vinho é o seu Sangue... Mas, porque o pão robustece
o corpo, é chamado Corpo de Cristo, e o vinho, porque produz o sangue na carne,
refere-se por isso ao Sangue de Cristo.
4. Estas coisas, apesar de visíveis, são santificadas pelo Espírito Santo e passam a 5505
ser o sacramento do Corpo divino...
7. Dizem alguns que, se o não impede nenhum pecado, a Eucaristia se deve receber 5506
diariamente, pois por mandato do Senhor pedimos que nos seja dado este pão cada dia,
quando dizemos: O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Dizem-no, com razão, os que
o recebem com reverência, devoção e humildade, e que não o fazem confiados na sua
1318 SÉCULO VII

justiça com presunção e orgulho. Quanto ao mais, se os pecados forem tais que afastem
alguém do altar, como se estivesse morto, então há que fazer antes penitência, e só
depois se há-de receber este remédio de salvação, pois quem o comer indignamente,
come e bebe a sua condenação. Recebe-o indignamente quem o recebe no tempo em
que deve fazer penitência.
5507 8. Quanto ao resto, se não houver tão grandes pecados que se julgue que alguém
merece ser afastado da comunhão, não se deve afastar do remédio do Corpo do Senhor,
não seja que, se o proibirmos e tenha de se abster por muito tempo, venha a separar-se do
Corpo de Cristo. É manifesto que aqueles a quem o seu Corpo alimenta têm vida. Por
isso, há que recear que aquele que se separa por muito tempo do Corpo de Cristo, acabe
por se tornar alheio à salvação... Então, quem deixou de pecar não deixe de comungar.
5508 9. Mas os que estão casados hão-de abster-se do matrimónio e entregar-se à oração
durante muitos dias. Depois é que poderão aproximar-se do Corpo de Cristo...
5509 10. Hão-de escolher-se alguns dias em que o homem viva com toda a continência,
para poder aproximar-se dignamente de tão grande sacramento.
5510 11. Nós acreditamos que a oferta do sacrifício pelo descanso dos fiéis defuntos ou a
oração por eles, costume que se guarda em todo o mundo, foi ensinado pelos próprios
Apóstolos. A Igreja católica defende isto em toda a parte; se não acreditasse que os
pecados são perdoados aos defuntos, não faria esmolas pelas suas almas nem ofereceria
o sacrifício a Deus.
CAPÍTULO 24

5511 1. Os próprios Apóstolos proclamaram santo o dia do Senhor, observando-o


religiosamente, pois foi nele que o nosso Redentor ressuscitou dos mortos. É chamado
dia do Senhor, porque, abstendo-nos nele das fadigas terrenas e das tentações do mundo,
apenas servimos o culto divino, dando a este dia honra e respeito por causa da esperança
na nossa ressurreição que dele nos vem.
5512 2. Na verdade, como o próprio Jesus Cristo nosso Senhor e Salvador ressuscitou
dos mortos ao terceiro dia, assim também nós esperamos ressuscitar nos últimos tempos.
Esta é a razão pela qual no dia do Senhor oramos de pé, posição que é sinal da futura
ressurreição; assim faz toda a Igreja que peregrina na sua condição mortal, aguardando
o fim deste tempo...
5513 4. Sete vezes sete dá cinquenta, se lhe acrescentarmos uma unidade que, segundo a
tradição vinda da autoridade dos antigos, prefigura o século futuro; este dia é sempre,
por si mesmo, o oitavo e o primeiro, ou melhor, é sempre o único, é o dia do Senhor...
CAPÍTULO 45

5514 1. O uso da carne e do vinho só foi concedido aos homens depois do dilúvio... Mas
depois da vinda de Cristo, que é o princípio e o fim, o que no princípio fora suspenso foi
de novo retirado no fim dos tempos, pois o próprio Jesus Cristo disse, pela boca do seu
Apóstolo: É bom não comer carne nem beber vinho. E acrescentou: Quem estiver
doente, contente-se com legumes. A carne não foi proibida por ser coisa má, mas sim
porque o seu uso leva à impureza... Mas, dado que Nosso Senhor utilizou peixe depois
da sua Ressurreição, também nós podemos utilizá-lo, uma vez que, a seguir, nem o
Salvador nem os Apóstolos o proibiram.

LIVRO II

5515 5. Quando se consagra o bispo, é-lhe entregue o báculo, para que ele possa reger e
orientar o povo que lhe está confiado, segundo o seu juízo, e ajudar os doentes nas suas
ISIDORO DE SEVILHA 1319

enfermidades. Também se lhe entrega o anel, sinal da dignidade pontifical e símbolo


das coisas secretas... Impõem-se-lhe as mãos... e é ordenado por todos os bispos da
província...
12. Costumam escolher-se para o ofício de salmistas ou cantores, mesmo sem 5516
conhecimento do bispo, e só por ordem do presbítero, aqueles que hão-de ser constituídos
na arte de cantar.
21. O primeiro grau é o dos catecúmenos, o segundo o dos competentes e o terceiro 5517
o dos baptizados... Foi determinado pelos Padres que o sal fosse dado, no ministério,
aos catecúmenos...
24. Três degraus a descer, por causa das coisas a que renunciámos; três degraus 5518
para subir, porque são três os que confessamos; o sétimo degrau, isto é, o quarto,
semelhante ao Filho do homem, é o fundamento da água.
26. Não só os pontífices e os reis são consagrados com a unção do crisma, mas todas 5519
as igrejas...
27. Depois do baptismo, o Espírito Santo é dado pelos bispos com a imposição das 5520
mãos 5 .

LIVRO XII

1. Entre nós, segundo a antiga tradição das Espanhas, excepto nos dias dos jejuns ou 5521
da Quaresma, canta-se Aleluia em todo o tempo 6.

Carta a Leudefrede 7
8. Pertence ao diácono assistir aos sacerdotes e servir em tudo o que se faz nos 5522
sacramentos de Cristo, isto é, no baptismo, no crisma, na patena e no cálice; colocar e
dispor as oblações no altar, preparar e vestir a mesa do Senhor, levar a cruz, pregar o
Evangelho e o Apóstolo. Tal como aos leitores do Antigo Testamento, assim também
aos diáconos do Novo é mandado pregar; também lhes pertence o ofício das preces e a
recitação dos nomes; eles mandam prestar atenção ao Senhor, exortam com clamor,
anunciam a paz.
11. O arquidiácono superintende nos subdiáconos e nos diáconos. Pertencem-lhe estes 5522a
ministérios: organizar os diáconos quanto ao arranjo do altar e ao transporte para o altar
do incenso e do sacrifício; velar para que os subdiáconos também levem para o altar as
coisas necessárias ao sacrifício; preocupar-se com os diáconos que lêem o Apóstolo e o
Evangelho, e com os que dizem as preces e o responsório nos domingos e solenidades...
É ele que recebe a colecta do dinheiro da comunhão e a entrega ao bispo e que distribui
as partes correspondentes aos clérigos. É o arquidiácono que anuncia ao bispo os excessos
dos diáconos; ele próprio anuncia aos sacerdotes, na sacristia, os dias de jejum e as
solenidades; eles pregam publicamente na igreja. Quando o arquidiácono está ausente,
é substituído pelo diácono seguinte.
13. Ao primeiro clérigo 8 pertence velar pela honestidade da vida dos acólitos, 5522b
exorcistas9 e leitores, preocupar-se quanto ao modo como realizam o ofício, ter solicitude

5
S. Isidoro utiliza o termo manuum que até então não se encontrava.
6
Apud nos, secundum antiquam Hispaniarum traditionem, praeter dies ieiuniorum vel quadragesimae,
omni tempore cantatur Alleluia.
7
I SIDORO DE S EVILHA , Epistulae (=PL 83, 893-914).
8
Primicerius.
1320 SÉCULO VII

pelo seu modo de proceder e também dar o sinal para o ofício dos clérigos. Ver quem
são os clérigos que devem fazer as leituras, as bênçãos, o salmo, os louvores, o ofertório
e os responsórios; o ordenamento e o modo de salmodiar no coro nas solenidades e no
tempo comum; a ordem dos que levam os círios; é ele que informa o sacerdote acerca
do necessário para a reparação das basílicas da cidade; envia, pelos ostiários, as cartas
do bispo acerca dos dias de jejum nas paróquias; admoesta os clérigos que ele sabe que
prevaricaram; dá conhecimento ao bispo dos excessos daqueles que não querem emendar-se;
constitui os encarregados das basílicas e dispõe as suas matrículas. Quando o primeiro
clérigo está ausente, as coisas que acima indicámos são realizadas por aquele que lhe
está próximo pelo lugar ou que tem experiência delas.

Regra de S. Isidoro 9

CAPÍTULO 6

5523 Na salmodia do Ofício guardar-se-á esta distribuição: dado o sinal a horas


determinadas, todos acorrerão às orações canónicas com diligente pontualidade. Não é
permitido a ninguém sair antes de concluído o Ofício, salvo quem se vir obrigado por
uma necessidade natural. Durante a reza, no fim de cada salmo, os monges, prostrando-se
todos ao mesmo tempo por terra, farão uma adoração e, levantando-se em seguida,
continuarão os salmos seguintes; assim farão em cada Ofício. Quando se estão a celebrar
os sacramentos espirituais dos salmos, o monge, fugindo de risos e piadas, há-de antes
meditar no seu íntimo aquilo que canta com os lábios. Nas horas de Tércia, Sexta e Noa
hão-de rezar-se três salmos, um responsório, duas leituras do Antigo e Novo Testamento
respectivamente, e logo laudes, o hino e a colecta. Nos Ofícios vespertinos, em primeiro
lugar, celebrar-se-á o lucernário; a seguir dois salmos, um responsório e laudes, e o hino
com a colecta.
Depois dos Ofícios vespertinos, os monges reunidos devem meditar ou tratar, em
conversação piedosa e saudável, de algumas leituras da Sagrada Escritura, e permanecer
assim até ao Ofício de Completas. Antes de irem dormir, como é costume, depois de
rezadas Completas e após a despedida recíproca dos monges, há-de ir-se descansar
com todo o recolhimento e silêncio até que se levantem para Matinas. Nas Vigílias
feriais, primeiramente hão-de rezar-se os três salmos canónicos; depois três conjuntos
de três salmos cada um; um quarto conjunto de três cânticos, e um quinto conjunto com
os três salmos de Matinas; nos domingos e festividades de mártires, em razão da
solenidade, acrescentar-se-ão os seus próprios conjuntos. Mas, nas Vigílias, deverá
manter-se o costumado uso da recitação; em Matinas manter-se-á o costume na forma
de salmodiar e cantar, para que o espírito dos servos de Deus se exercite de ambos os
modos com o gosto da variedade e se excitem, com ardor e sem cansaço, ao louvor de
Deus.
Desde as Vigílias até Matinas descansar-se-á. Depois de Matinas dedicar-se-á o
tempo ao trabalho ou à lectio. Todos os dias, nos ofícios feriais, devem proclamar-se
leituras do Antigo e do Novo Testamento. No sábado e no domingo, contudo, devem
proclamar-se leituras do Novo Testamento. Se um monge faltar aos Ofícios diurnos ou
às Vigílias deixe a comunhão, se for evidente a sua boa saúde.

9
ISIDORO DE SEVILHA, Regula monachorum (=PL 83, 867-894; 103, 555-572; BAC 321). Entre 590 e 600.
LIBER PONTIFICALIS 1321

Liber Pontificalis 1

1. São Pedro, Apóstolo e príncipe dos Apóstolos..., entrou na cidade de Roma no 5524
tempo do César Nero..., ordenou dois bispos, Lino e Cleto..., e por fim foi coroado pelo
martírio, com Paulo..., e foi sepultado... perto do palácio de Nero, no Vaticano..., a III
das Calendas de Julho2...
6. Evaristo (101-105) dividiu os títulos da cidade de Roma por presbíteros3. 5525
7. Alexandre I (105-115) inseriu a paixão do Senhor na oração sacerdotal, durante 5526
a celebração da missa4. ... Determinou que se preparasse água com sal benzido, para
aspergir as casas dos homens 5.
8. Sisto I (115-125) determinou que, dentro da Oração eucarística, o sacerdote 5527
começasse e o povo cantasse: Santo, Santo, Santo, Senhor Deus dos Exércitos, etc6...
9. Telésforo (125-136) determinou que se celebrassem sete semanas de jejum antes 5528
da Páscoa e fosse celebrada missa na noite de Natal do Senhor... e que, antes do
sacrifício, se dissesse o hino dos Anjos, isto é, o Glória a Deus nas alturas7.
16. Zeferino (198-217) estabeleceu o uso de colocar patenas de vidro diante dos 5529
presbíteros, na igreja, e de as fazer segurar por ministros. Enquanto o bispo celebra a
missa, todos os presbíteros estão diante dele. É assim que se deve celebrar a missa. O
clero, salvo o direito do bispo (de o dispensar ou ocupar noutra coisa), deve estar presente
a tudo. Ao terminar a consagração, o presbítero recebe, da mão do bispo, a coroa
consagrada para a dar ao povo 8.
17. Calisto (217-222) mandou que se jejuasse três vezes por ano, nos sábados do 5530
trigo, do vinho e do azeite, segundo a profecia9.

1
Liber Pontificalis (=PL 127, 1003-1596; 128, 9-1406; L. D UCHESNE ; 2ª ed. por C. V OGEL , E. DE B OCCARD ,
3 vol., Paris 1955-1957). O Liber Pontificalis é uma crónica, uma espécie de diário escrito pelos liturgistas
dos Papas, a partir dos anos 500-530 (C. V OGEL , Introduction, 39). Esta data constitui, por isso, uma
divisória: as notícias que se referem a datas anteriores, terão tanta mais necessidade de confirmação por
outras fontes, quanto mais antigas forem e incríveis parecerem; as posteriores são certamente seguras. Embora as
notícias do Liber Pontificalis se estendam até muito tarde, inserimo-las aqui, nos meados do séc. VII (650).
2
Beatus Petrus, apostolus et princeps apostolorum..., ingressus in urbe Roma, Nerone Caesare..., ordinavit
duos episcopos, Linum et Cletum..., et post hanc dispositionem martyrio cum Paulo coronatur..., sepultus
est... iuxta palatium Neronianum, in Vaticanum..., III kal. iul.
3
Hic títulos in urbe Roma dividit presbiteris... Os tituli eram igrejas paroquiais.
4
Hic passionem Domini miscuit in predicatione sacerdotum, quando missae celebrantur. Trata-se do Qui
pridie, ou seja, o relato da instituição.
5
Hic constituit aquam sparsionis cum sale benedicti in habitaculis hominum. É o testemunho mais antigo
da bênção da água, fora da celebração do baptismo.
6
Hic constituit, ut intra actionem, sacerdos incipiens populo hymnum decantaret: Sanctus, sanctus, sanctus
Dominus Deus Sabaoth, etc.
7
Hic constituit ut septem ebdomadas ante pascha ieiunium celebraretur, et natalem Domini noctu missas
celebrarentur... et ante sacrificium hymnus diceretur angelicus, hoc est: «Gloria in excelsis Deo».
8
Et fecit constitutum de ecclesia, et patenas vítreas ante sacerdotes in ecclesia, et ministros supportantes,
donec episcopus missas celebraret, ante se sacerdotes adstantes, sic missae celebrarentur; excepto quod
ius episcopi interest tantum, clerus sustineret omnibus praesentes; ex ea consecratione de manu episcopi
iam coronam consecratam acciperet presbiter tradendam populo. Comentário de Duchesne: «Este texto
é tão importante como obscuro; e a sua obscuridade é tanto mais desagradável quanto nós conhecemos
bem pouco das cerimónias da missa romana, nos séculos V e VI». A corona consecrata era um pão em
forma de coroa, um pão redondo.
9
Hic constituit ieiunium die sabbati ter in anno fieri, frumenti, vini et olei, secundum prophetiam É o jejum
que veio a ser chamado das Quatro Têmporas, ou quatro estações, a partir do momento em que se
acrescentou o do início da Quaresma aos três aqui mencionados. Os sermões de S. Leão Magno são os
documentos mais antigos desta instituição. A profecia a que se refere o texto é a de Zacarias 8, 19.
1322 SÉCULO VII

5531 18. Urbano I (222-230) mandou que todos os vasos sagrados fossem de prata e fez
vinte e cinco patenas de prata10.
5532 19. Ponciano (231-235), bispo, e Hipólito, presbítero, foram deportados para a ilha
da Sardenha, em exílio, por Alexandre11.
5533 21. Fabião (236-250) dividiu as regiões pelos diáconos e criou sete subdiáconos, que
superintendiam sobre sete notários e que deviam coligir com fidelidade os feitos
memoráveis dos mártires, e mandou fazer muitas obras nos cemitérios12.
5534 24. Estêvão I (254-257) determinou que os sacerdotes e os diáconos não usassem as
vestes sagradas na vida quotidiana, mas apenas na igreja13.
5535 26. Dionísio (259-269) instituiu presbíteros nas igrejas e fundou cemitérios, dioceses
episcopais e dioceses primaciais14.
5536 27. Félix (269-274) determinou que se celebrassem missas sobre as memórias dos
mártires15.
5537 28. Eutiquiano (275-283) determinou que se benzessem, no altar, somente frutos,
favas e uvas16.
5538 29. Caio (283-296) determinou que na Igreja se passasse por todas as ordens, deste
modo: se alguém merecesse ser bispo, fosse primeiro ostiário, depois leitor, exorcista,
sequens, subdiácono, diácono, presbítero, e por fim fosse ordenado bispo. Dividiu as
regiões pelos diáconos17.
5539 31. Marcelo (308-309) fez o cemitério Novela, na via Salária, e estabeleceu na cidade
de Roma vinte e cinco títulos, como se fossem dioceses, por causa do baptismo e da
penitência de muitos que se converteram do paganismo, e por causa da sepultura dos
mártires18.
5540 33. Milcíades (311-314) fez com que fossem enviadas oblações consagradas às igrejas,
a que chamou fermentum 19. Também determinou que nenhum fiel fizesse jejum no
domingo e na quinta-feira.
5541 34. Silvestre (314-335) determinou que se alguém desejasse trabalhar ou progredir
na Igreja, devia ser trinta anos leitor, trinta dias exorcista, cinco anos acólito, cinco anos

10
Hic fecit ministeria sacrata omnia argentea et patenas argenteas XXV posuit. As vinte e cinco patenas,
certamente para a Eucaristia, devem referir-se ao número de tituli existentes no tempo de Inocêncio I
(401-417).
11
Eodem tempore Pontianus episcopus et Yppolitus presbiter exílio sunt deportati ab Alexandro in Sardinia
insula Bucina.
12
Hic regiones dividit diaconibus et fecit VII subdiaconos qui VII notariis inminerent, ut gestas martyrum
in integro fideliter colligerent, et multas fabricas per cymiteria fieri praecepit.
13
Hic constituit ut sacerdotes et levitas ut vestes sacratas in usu cottidiano non uti, nisi in ecclesia.
14
Hic presbiteris ecclesias dedit et cymiteria et parrocias diocesis constituit.
15
Hic constituit supra memorias martyrum missas celebrare.
16
Hic constituit ut fruges super altare tantum fabae et uvae benedici.
17
Hic constituit ut ordines omnes in ecclesia sic ascenderetur: si quis episcopus esse mereretur, ut esset
ostiarius, lector, exorcista, sequens, subdiaconus, diaconus, presbyter et exinde episcopus ordinaretur.
Hic dividit regiones diaconibus.
18
Hic fecit cymiterium Novellae, via Salaria, et XXV títulos in urbe Roma constituit quasi diocesis, propter
baptismum et poenitentiam multorum qui convertebantur ex paganis et propter sepulturas martyrum
Nós sabemos que o vigésimo quinto e último titulus, de São Vital, pertence a Inocêncio I (401-417), mas
que um terço dos tituli é anterior ao início do século IV. Cada um tinha a sua população própria e um clero
nomeado, segundo o testemunho das actas dos sínodos romanos de 499 e 595.
19
Fecit ut oblationes consecratas per ecclesias ex consecratu episcopi dirigerentur, quod declaratur
fermentum.
LIBER PONTIFICALIS 1323

subdiácono, dez anos guardião dos mártires, sete anos diácono, três anos presbítero e
devia ser provado por todos os modos 20.
Constantino fez... uma patena de ouro com uma torre de ouro puríssimo, com uma
pomba, adornada de gemas verdes e jacintos, com cento e quinze margaridas, com o
peso de trinta libras 21.
Pelo mesmo tempo, Constantino Augusto fez uma basílica no palácio Sessoriano e
(um relicário) de ouro e gemas onde encerrou o madeiro da Santa Cruz de nosso Senhor
Jesus Cristo, e dedicou o nome da igreja, que até hoje continua a ser chamada (Santa
Cruz de) Jerusalém. A esse lugar fez dom de: quatro candelabros de prata que estão
acesos diante da Santa Cruz, segundo o número dos quatro Evangelhos...; cinquenta
fara canthara de prata...; um jarro de ouro...; cinco cálices ministeriais de ouro...; três
jarros de prata...; dez cálices ministeriais de prata...; uma patena de ouro...; uma patena
de prata fechada com ouro e gemas...; um altar de prata...; três pratos de prata22...
39. Dâmaso (366-384) era oriundo de Espanha, e o pai chamava-se António; presidiu 5542
dezoito anos, três meses e onze dias 23.
Fundou um título na cidade de Roma e construiu-lhe uma basílica, à qual ofereceu:
uma patena de prata com o peso de vinte libras; um prato de prata com o peso de quinze
libras; um jarro cinzelado com o peso de dez libras; cinco cálices ministeriales de prata
com o peso de três libras cada um; cinco coronas de prata, com o peso de oito libras
cada uma; dezasseis cantara cerostata aerea; uma casa à volta da basílica no valor de
cento e cinquenta e cinco moedas; a propriedade Papirana no território Ferentino, com
os anexos contíguos no valor de cento e vinte moedas et tremissium; a propriedade
Antonianam, no território Casino, no valor de cento e três moedas; um balneário perto
do título, no valor de vinte e sete moedas 24.
Determinou que, em todas as igrejas, se cantassem salmos dia e noite,
responsabilizando por isso os presbíteros, os bispos e os mosteiros25.
Procurou e encontrou muitos corpos de santos 26.

20
Hic constituit ut si quis desideraret in ecclesia militare aut proficere, ut esset lector annos XXX, exorcista
dies XXX, acolitus annos V, subdiaconus annos V, custus martyrum annos X, diaconus annos VII, presbiter
annos III, probatus ex omni parte. Nós sabemos que a obrigação de seguir o cursus honorum é puramente
teórica, pois existem muitíssimas provas em contrário.
21
... patenam auream cum turrem, ex auro puríssimo cum columbam, ornatam gemmis prasinis et yachintis
qui sunt numero margaritis CCXV, pens. lib. XXX.
22
Eodem tempore fecit Constantinus Augustus basilicam in palatio Sessoriano, ubi etiam de ligno sanctae
Crucis domini nostri Iesu Christi in auro et gemmis conclusit, ubi et nomen ecclesiae dedicavit, quae
cognominatur usque in hodiernum diem Hierusalem; in quo loco hoc constituit donum: candelabra ante
lignum sanctum quae lucent ex argento IIII, secundum numerum IIII evangeliorum...; fara canthara
argentea L...; scyphum ex auro...; calices aureos ministeriales V...; scyphos argenteos III...; calices
ministeriales argenteos X...; patenam auream...; patenam argenteam auroclusam cum gemmis...; altare
argenteum... O palácio Sessoriano parece ter sido a morada da imperatriz Helena.
23
Damasus natione Spanus, ex patre Antonio sedit annos XVIII, menses III, dies XI. Uma inscrição encontrada
por De Rossi, diz que o pai de Dâmaso foi escrivão (exceptor), leitor (lector), diácono (levita) e presbítero
(sacerdos).
24
Hic constituit titulum in urbe Roma basilicam quam ipse construxit, ubi et donavit: patenam argenteam
pens. lib. 20; amam argenteam pens. lib. 15; scyphum anaglyfum pens. lib. 10; cálices ministeriales
argenteos 5 pens. sing. lib. 3; coronas argenteas 5 pens. sing. lib. 8; cantara cerostata aerea 16; domus
in circuitu basilicae praest. sol. 155; possessio Papirana territurio Ferentino, cum adiacentibus adtiguis
praest. sol. 120 et tremissium; possessio Antonianam, territurio Casino praest. sol 103; balneum juxta
titulum praest. sol. 27.
25
Hic constituit ut psalmos die noctuque canerentur per omnes ecclesias, qui hoc praecepit presbiteris vel
episcopis aut monasteriis.
26
Hic multa corpora sanctorum requisivit et invenit.
1324 SÉCULO VII

5543 40. Sirício (384-399) determinou que nenhum presbítero celebrasse missa durante a
semana, a não ser que recebesse do bispo do lugar designado o pão consagrado, que se
chama fermentum 27.
5544 41. Anastácio (399-402) decretou que todas as vezes que se lessem os santos
Evangelhos, os presbíteros não estivessem sentados, mas de pé e inclinados28.
5545 42. Inocêncio I (401-417) dedicou a basílica dos santos Gervásio e Protásio... e criou
aí o título romano de Vestina... e um baptistério com as seguintes alfaias litúrgicas: um
veado de prata, que deitava água, com o peso de vinte e cinco libras; um vaso de prata
para o óleo do crisma, com o peso de cinco libras; outro vaso para o óleo do exorcismo,
com o peso de cinco libras; duas patenas para o crisma, com o peso de três libras cada
uma; um jarro de prata cinzelada, com o peso de dez libras; um jarro de prata, com o
peso de dez libras; cinco cálices de prata, com o peso de três libras cada um; três
cálices de prata para o baptismo, com o peso de duas libras cada um; lavandas de prata,
com o peso de dezasseis libras29.
Determinou que se celebrasse jejum no sábado, porque o Senhor estivera no
sepulcro durante o sábado, e os discípulos jejuaram30.
5546 45. Celestino I (422-432) determinou que os 150 salmos de David fossem salmodiados
sob forma antifonada, por todos, antes do sacrifício, coisa que não se fazia antes, mas
apenas se recitava a epístola de São Paulo e o santo Evangelho31.
5547 46. Sisto III (432-440) construiu a basílica de Santa Maria, que pelos antigos foi
chamada Liberiana32...
5548 47. Leão Magno (440-461) acrescentou à acção do sacrifício 33 as palavras “santo
sacrifício, hóstia imaculada”34.
5549 48. Hilário (461-468) fixou os vasos sagrados que, na cidade de Roma, deveriam ser
levados às estações estabelecidas: um jarro estacional de ouro, com o peso de oito
libras; vinte e cinco jarros de prata para os títulos, com o peso de dez libras cada uma;
vinte e cinco pratos de prata, com o peso de dez libras cada um; cinquenta cálices

27
Hic constituit ut nullus presbyter missas celebraret per omnem ebdomadam nisi consecratum episcopi
loci designati suciperet declaratum, quod nominatur fermentum.
28
Hic constituit ut quotiescumque evangelia sancta recitantur, sacerdotes non sederent, sed curvi starent.
29
Cervum argenteum fundentem aquam, pens. lib. XXV; vasum ad oleum crismale argenteum, pens. lib. V;
vas alium ad oleum exorcidiatum, pens. lib. V; patenas II ad crismam, pens. sing. lib. III; scyphum
argenteum anaglifum, pens. lib. X; scyphum argenteum, pens. lib. X; calices argenteos V, pens. sing. lib.
III; cálices argenteos ad baptismum III, pens. sing. lib. II... Os três cálices ad baptismum eram destinados
à comunhão dos neófitos.
30
Hic constituit sabbatum ieiunium celebrari, quia sabbato Dominus in sepulchro positus est et discipuli
ieiunaverunt.
31
Hic... constituit ut psalmi David CL ante sacrificium psalli antephonatim ex omnibus, quod ante non
fiebat, nisi tantum epistula B. Pauli recitabatur et sanctum Evangelium. De facto, nos primeiros 17
domingos depois de Pentecostes (terminologia do missal anterior à reforma do Vaticano II), nas antífonas
de entrada, os salmos escolhidos sucediam-se na ordem do saltério, do salmo 12 ao salmo 118. Exemplo
das antífonas de entrada: 1º dom. Sal 12, 6; 2º dom. Sal 17, 19-20; 3º dom. Sal 24, 16.18; 4º dom. Sal 26,
1.2; 5º dom. Sal 26, 7. 9; 6º dom. Sal 27, 8-9; 7º dom. Sal 46, 2; 8º dom. Sal 47, 10-11; 9º dom. Sal 53, 6-
7; 10º dom. Sal 54, 17.18.20.23; 11º dom. Sal 67, 6-7.36; 12º dom. Sal 69, 2-3; 13º dom. Sal 73, 20.19.23;
14º dom. Sal 83, 10-11; 15º dom. Sal 85, 1.2-3; 16º dom. Sal 85, 3 e 5; 17º dom. Sal 118, 117 e 124. O
mesmo sucedia nas antífonas do Ofertório e da Comunhão, sem que as três séries coincidissem.
32
Hic fecit basilicam sanctae Mariae, quae ab antiquis Liberii cognominabatur...
33
Oração Eucarística ou Cânone.
34
Hic constituit ut intra actionem sacrificii diceretur “sanctum sacrificium” et cetera.
LIBER PONTIFICALIS 1325

ministeriais de prata, com o peso de duas libras cada um. Mandou guardar todos estes
objectos na basílica constantiniana e em Santa Maria 35.
49. Simplício (468-483) dedicou a basílica de Santo Estêvão no monte Célio, na cidade 5550
de Roma, e a basílica do apóstolo Santo André, perto da basílica de Santa Maria, e outra
basílica de Santo Estêvão, perto da basílica de São Lourenço, e outra basílica na cidade de
Roma, perto do palácio Liciniano, da mártir Santa Bibiana, onde repousa o seu corpo36.
51. Gelásio I (492-496) compôs alguns hinos à maneira de Santo Ambrósio... e também 5551
compôs prefácios dos sacramentos e orações 37 com palavras muito bem escolhidas 38.
53. Símaco (498-514) determinou que em todos os domingos e natais dos mártires se 5552
dissesse o hino Glória a Deus nas alturas39...
66. Gregório Magno (590-604) acrescentou, na proclamação do Cânone, as palavras: 5553
Dai a paz aos nossos dias, livrai-nos da condenação eterna e contai-nos entre os
vossos eleitos... Mandou celebrar missas por cima do túmulo de São Pedro e fez o
mesmo na igreja de São Paulo 40.
71. Bonifácio V (619-625) determinou que, no Latrão, o acólito não baptize com o 5554
diácono, mas sim os subdiáconos extra-numerários41.
86. Sérgio I (687-701) fez um grande queimador, de ouro, com colunas e cobertura, 5555
que suspendeu diante das três imagens de ouro do apóstolo São Pedro, e no qual mandava
pôr muito incenso que, nos dias de festa, enquanto se celebrava missa, ardia em odor
de suavidade, para Deus omnipotente... Determinou que, no momento da fracção do
Corpo do Senhor, fosse cantado, pelo clero e pelo povo, Cordeiro de Deus que tirais o
pecado do mundo, tende piedade de nós. Também estabeleceu que, nos dias da
Anunciação do Senhor, da Dormição e da Natividade da sempre Virgem Santa Mãe de
Deus e de São Simeão, que os Gregos chamam Ypapante, uma ladainha partisse de
Santo Adriano e que o povo fosse até Santa Maria42.

35
In urbe vero Roma constituit ministeria qui circuirent constitutas stationes: scyphum aureum stationarium,
pens. lib. VIII; scyphos argenteos XXV per titulos, pens. lib. X; amas argenteas XXV, pens. sing. lib. X;
calices argenteos ministeriales L, pens. sing. lib. II. Hic omnia in basilica Constantiniana vel ad
sanctam Mariam constituta recondit.
36
Hic dedicavit basilicam sancti Stephani in Celio monte, in urbe Roma, et basilicam beati apostoli Andreae,
iuxta basilicam sanctae Mariae, et aliam basilicam sancti Stephani, iuxta basilicam sancti Laurenti, et
aliam basilicam intra urbe Roma, iuxta palatium Licinianum, beatae martyris Bibianae, ubi corpus eius
requiescit. Uma carta de fundação duma igreja rural perto de Tivoli (a 25 quilómetros de Roma), escrita
em 471 (portanto na época do Papa Simplício), fornece as seguintes informações sobre as leituras da
missa: «Item codices, evangelia IIII, apostolorum, psalterium et comitem».
37
Orações e prefácios próprios da missa.
38
Fecit et ymnos in modum beati ambrosii; ... fecit etiam et sacramentorum praefationes et orationes cauto
sermone.
39
Hic constituit ut omne die dominicum vel natalícia martyrum Gloria in excelsis ymnus diceretur.
Anteriormente a Símaco o Glória a Deus nas alturas cantava-se apenas no Natal. O Liber Pontificalis
deve ter começado a ser escrito, por um autor anónimo, contemporâneo do Papa Símaco (498-514). Esse
mesmo autor deve tê-lo continuado até ao Papa Félix IV (526-530).
40
Hic augmentavit in praedicationem canonis, “diesque nostros in tua pace dispone”, et cetera... Hic fecit
ut super corpus beati Petri missas celebrarentur; item et in ecclesiam beati Pauli apostoli eadem fecit.
41
Hic constituit ut in Lateranis acholitus non baptizet cum diácono, sed subdiaconi sequentes. Os subdiáconos
sequentes são intermediários entre os subdiáconos regionários e os acólitos.
42
Hic fecit tymiamaterium aureum maiorem cum columnis et coperculo, quem suspendit ante imagines tres
eureas beati Petri apostoli, in quo incensum et odor suavitatis festis diebus, dum missarum solemnia
celebrantur, omnipotenti Deo opulentius mittitur... Hic statuit ut tempore fractionis dominici corporis,
“Agnus Dei que tollit peccata mundi, miserere nobis” a clero et populo decantetur. Constituit autem ut
diebus Adnuntiationis Domini, Dormitionis et Nativitatis sanctae Dei genetricis semperque virginis
Mariae ac sancti Symeonis, quod Ypapanti Greci appellant, letania exeat a sancto Hadriano et ad sanctam
Mariam populus occurrat.
1326 SÉCULO VII

5556 91. Gregório II (715-731) determinou que, nas quintas-feiras do tempo da Quaresma,
se celebrasse missa nas igrejas, o que até então não se fazia43.
5557 92. Gregório III (731-741) ordenou que, no Cânone (depois das palavras e de todos
os santos), o celebrante dissesse: Cuja solenidade celebramos hoje, diante da vossa
divina majestade, Senhor nosso Deus, em toda a face da terra44.
E também mandou acrescentar no Cânone: Em primeiro lugar a memória da
gloriosa sempre Virgem Maria... e de todos os vossos santos, mártires, confessores
e justos perfeitos, cuja solenidade celebramos hoje, diante da vossa divina
majestade. Por seus méritos e orações, concedei-nos45...
5558 96. Estêvão III (768-772) estabeleceu que, todos os domingos, as missas solenes
fossem celebradas no altar de São Pedro por sete cardeais bispos, que servem na igreja
do Salvador (no Latrão) e se dissesse o Glória a Deus nas alturas46.
5559 97. Adriano I (772-795), (quando, em 774, Carlos Magno, rei dos Francos) se
aproximava da cidade de Roma, enviou ao seu encontro... as santas cruzes, isto é, os
sinais, como é costume receber os exarcas e os patrícios47...
Mandou reconstruir os aquedutos chamados de Cláudia, há muitos anos
demolidos, dos quais costumava correr água para o balneário Lateranense e para o
baptistério da igreja do nosso Salvador Jesus Cristo, e para várias igrejas, no dia
santíssimo da Páscoa 48 .
5560 98. Leão III (795-816), (ao voltar a Roma em 799, depois da sua visita a Carlos
Magno), os Romanos receberam o seu pastor com grande alegria...: o alto clero com
todos os clérigos, a nobreza e o senado, os militares, todo o povo romano, as monjas e
diaconisas, as matronas mais nobres e todas as mulheres, e bem assim todos os grupos
de peregrinos... Todo o povo saiu ao seu encontro na ponte Mílvio, com estandartes e
bandeiras, recebendo-o com cânticos espirituais. Tendo conduzido o Papa até à igreja
do apóstolo São Pedro, ele celebrou aí a missa e todos, do mesmo modo, participaram
com fé do Corpo e do Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo49... [Como o lugar onde o

43
Hic quadragesimali tempore ut quintas ferias missarum celebritas fieret in ecclesias, quod non agebatur,
instituit.
44
Instituit in canone ita a sacerdote dicendum: “Quorum solemnitas hodie in conspectu tue maiestatis
celebratur, domine Deus noster, toto in orbe terrarum”.
45
Infra actionem: “In primis gloriosae... et omnium sanctorum tuorum, martyrum ac confessorum
perfectorum iustorum, quorum solemnitas hodie in conspectu gloriae tuae celebratur. Quorum meritis
precibusque concedas”.
46
Hic statuit ut omni dominico die a septem episcopis cardinalibus ebdomadariis, qui in ecclesia Salvatoris
observant, missarum solemnia super altare beati Petri celebraretur et “Gloria in excelsis Deo” ediceretur.
É esta a mais antiga referência a esta classe de cardeais.
47
Et dum adpropinquasset... a Romana urbe... obviam illi... dirigens venerandas cruces, id est signa, sicut
mos est exarchum aut patricium suscipiendum.
48
Dum vero forma quae Claudia vocatur per annorum spatia demolita esse videbatur, unde et balneus
Lateranensis de ipsa aqua lavari solebat et in baptisterio ecclesiae Salvatoris domini nostri Iesu Christi
et in plures ecclesias in die sanctum Paschae decurri solebat.
49
Qui Romani, prae nimio gaudio, suum recipientes pastorem..., tam proceres clericorum cum omnibus
clericis quamque optimates et senatus cunctaque militia, et universo populo Romano cum sanctimonialibus
et diaconissis et nobilissimis matronis seu universis feminis, simul etiam et cuncte scole peregrinorum...,
simul omnes conexi, ad pontem Molvium, cum signis et vandis, canticis spiritalibus susceperunt, et in
ecclesia beati Petri apostoli eum deduxerunt, ubi et missarum solemnia celebravit et omnes pariter
corpus et sanguinem domini nostri Iesu Christi fideliter participati sunt.
LIBER PONTIFICALIS 1327

povo se juntava para o baptismo, na basílica do apóstolo São Pedro, era apertado, mandou
construir de raiz, na rotunda, um baptistério amplo, e edificou uma fonte sagrada no
meio do espaço maior, decorando-a à volta com colunas de porfírio; no meio colocou a
coluna da fonte, e sobre a coluna um cordeiro de prata puríssima, de onde jorrava água...
, e estabeleceu que, nos domingos e nas santas solenidades..., de um lado e outro do
ambão, refulgisse o esplendor da luz no momento em que iam ser lidas as leituras
sagradas... Mandou construir de raiz o hospital do apóstolo São Pedro... e tudo o que
era necessário para o serviço do mesmo... Este santíssimo pontífice governou a sede
Romana e apostólica durante XX anos, V meses e XVI dias.... Ordenou CXXVI bispos
para vários lugares...].
106. Bento III (855-858) refez sete cruzes de prata que, nos tempos costumados, iam 5561
à frente, do modo habitual, a todas as igrejas, e que a muita idade tinha deteriorado. O
ilustre e santíssimo pontífice restaurou-as novamente e mandou repô-las no seu estado
primitivo. Em conjunto pesam cinquenta e uma libras e meia50...[Dotou o título do mártir
São Ciríaco com um evangeliário de prata puríssima, para louvor e glória da mesma
igreja... Na igreja da santa Mãe de Deus e sempre Virgem Maria senhora nossa além
do Tibre, mandou fazer um pórtico, e um baptistério com uma sacristia... Como tivesse
sido roubado ou se perdera o volume das epístolas de Paulo e dos outros Apóstolos e
Profetas, com as leituras pela ordem como são lidas, nas estações de cada uma das
igrejas, do alto do ambão, pelos subdiáconos, mandou, com grande solicitude, preparar
um outro semelhante, com as leituras em grego e em latim, que os subdiáconos costumam
ler no Sábado Santo da Páscoa e no Sábado do Pentecostes... No seu tempo Miguel,
filho do imperador Teófilo, imperador da cidade de Constantinopla..., enviou ao apóstolo
São Pedro... um evangeliário de ouro puríssimo com diversas pedras preciosas, um
cálice também de ouro e circundado de pedras..., pequenas coberturas do mesmo cálice,
como é costume dos Gregos, e ainda uma veste imperial de púrpura... Estava sempre
atento ao culto divino... Ordenou que, com cada bispo, morasse um presbítero ou um
diácono...].
133. João XII (955-964). Depois de o Papa Leão VIII morrer, todos os Romanos... 5562
elegeram João, reverendíssimo e piedoso bispo da santa Igreja Narniense, muito douto e
erudito nos livros divinos e canónicos. No palácio Lateranense foi levado à ordem clerical
desde o início, e ordenado nos diferentes graus da Igreja romana: ostiário, salmista,
leitor, exorcista, acólito, subdiácono, diácono. Deste modo, por vontade de Deus, é
pontífice consagrado de maneira legítima e canónica 51...

50
Ipse vero insignis et beatissimus papa fecit cruces argenteas VII, quae per olitana tempora per omnes
catholicas ecclesias more solito procedebant, prae nimia vetustate confracte fuerant, isdempraeclarus et
sanctissimus praesul a noviter restauravit et in pristino statu iterum erexit, qui pens. simul lib. LI et
semis. São as sete cruzes estacionais que serviam de sinal à população de Roma quando se dirigia, por
grupos regionais, às estações ou outras reuniões solenes.
51
Mortuo vero domno Leone, omnes Romani... elegerunt sibi domnum Iohannem, reverentissimum et pium
episcopum sanctae Narniensis ecclesiae, bene ductum et honorifice eruditum de divinis et canonicis
libris. Nam a cunabulis ad clericatus ordinem in Lateranensi palatio est ductus, et hostiarius, psalmista,
lector, exorcista, acolitus, subdiaconus, diaconus, in eadem Romana ecclesia per distinctos ordines est
ordinatus, et ita, Deo volente, legitime et canonice est pontifex consecratus.
1328 SÉCULO VII

Sacramentário Gelasiano Antigo 1

A +W
A + W IN NOMINE DOMINI IESU CHRISTI SALVATORIS
INCIPIT LIBER SACRAMENTORUM ROMANAE AECLESIAE
ORDINIS ANNI CIRCULI

Livro I
5563 1 2 . Orações e preces na Vigília do Natal do Senhor ad nonam3. 2. Vigília do Senhor
in nocte. 3. Vigília do Senhor mane prima. 4. Natal do Senhor in die. 5. Orações do
Natal do Senhor ad vesperos sive matutinos. 6. No natal4 de Santo Estêvão, mártir.
VII das Calendas de Janeiro (26/12)5. 7. No natal de São João evangelista (27/12). 8.
No natal dos Inocentes (28/12). 9. Oitava do Senhor (01/01). 10. Para fugir dos ídolos.
11. Na vigília da Teofania. 12. Na Teofania in die. 13. Na Septuagésima. 14. Na Sexagésima.
5564 15. Orações e preces sobre os penitentes6.
Escuta, Senhor, as nossas orações e perdoa os pecados dos que em Ti confiam,
para que a tua indulgência misericordiosa absolva aqueles cuja consciência ainda os
acusa de faltas. Por.
Senhor, a tua misericórdia preceda este teu servo, e todos os seus pecados sejam
prontamente apagados pelo teu perdão. Por.
Atende, Senhor, as nossas súplicas, e não se afaste do teu servo a tua misericórdia:
cura as suas feridas e perdoa os seus pecados, para que nenhuma iniquidade o separe
de Ti, e ele Te sirva sempre como Senhor dele. Por.
Senhor, nosso Deus, que triunfas do pecado e Te deixas aplacar pela expiação,
lança os olhos sobre o teu servo, que reconhece ter pecado gravemente contra Ti. A Ti

1
Sacramentarium Gelasianum Vetus, Liber sacramentorum Romanae Aeclesiae ordinis anni circuli (=Cod.
Vat. Reg. Lat. 316 e Paris. Bibl. Nat. 7193; PL 74, 1055-1244; L. C. M OHLBERG-L. E IZENHÖFER -P. S IFFRIN ,
Roma, Herder 1960. 1968 2 [Rerum ecclesiasticarum documenta..., Series maior, Fontes, 4]). É também
conhecido pelo nome de Reginensis lat. 316 da Biblioteca Vaticana. O Sacramentário Gelasiano Antigo
foi compilado em Roma, no século VII. Divide-se em três livros (I=Temporal; II=Sanctoral; III=Orações
diversas). É um sacramentário presbiteral romano para ser utilizados nos tituli. O exemplar único que se
conservou foi transcrito na Gália, nos meados do séc. VIII, com aditamentos galicanos muitas vezes
oriundos do Pontifical. Possui 54 Vere dignum, e muitos Hanc igitur. Ainda não contém as missas das
quintas-feiras da Quaresma. É nele que aparece, pela primeira vez, o Cânone Romano. Contém o mais
antigo ritual da penitência que nos é conhecido. Mas esse ritual não corresponde exactamente ao desenrolar
clássico da penitência antiga, pois prevê a prisão do pecador desde Quarta-Feira de Cinzas até Quinta-
Feira Santa, o que não é assinalado por nenhuma das fontes anteriores. Apenas por uma questão de
proximidade com os outros livros litúrgicos colocamo-lo aqui, nos meados do séc. VII (650).
2
No exemplar do Sacramentário Gelasiano Antigo, os números árabes que aqui utilizamos vêm em
numeração romana (I).
3
Ao contrário do que acontece no Sacramentário Veronense, no Sacramentário Gelasiano Antigo cada
título contém apenas um formulário de missa, composto por uma, duas ou três Colectas (sem nome), uma
Secreta e uma Post communionem. Alguns formulários têm ainda um Vere dignum, outros duas Secretas,
ou uma Ad populum, ou uma Intra actionem (Communicantes).
4
In natale.
5
No Sacramentário Gelasiano Antigo as datas são indicadas à maneira romana; cf. Cronógrafo de 354.
6
Orações para a entrada em penitência.
SACRAMENTÁRIO GELASIANO ANTIGO 1329

pertence conceder a remissão dos crimes e dar o perdão aos pecadores, pois disseste
que antes queres a penitência do pecador do que a sua morte. Concede, pois, Senhor, ao
teu servo, a graça de fazer vigílias e de jejuar, para que, uma vez purificado das suas
faltas, possa alegrar-se de novo contigo e celebrar as alegrias eternas. Por.
Imploramos, Senhor, a majestade e a clemência do teu nome, para que concedas
ao teu servo, que se reconhece culpado, a remissão dos pecados e o perdão dos crimes,
bem como as penas devidas pelas suas acções passadas. Tu, que reconduziste ao redil,
sobre os teus ombros, a ovelha perdida, Tu, que Te deixaste comover pelas orações do
publicano, sê também misericordioso para com o teu servo. Assiste-o, para que ele
permaneça fielmente no seu estado de pecador arrependido, obtenha rapidamente a tua
indulgência e tenha de novo o direito de esperar a glória eterna, quando for readmitido a
aproximar-se do santo e venerável altar. Por.
16. Ritual dos que fazem penitência pública7. 5565
Receberás o penitente na quarta-feira do início da Quaresma, de manhã.
Cobri-lo-ás com o cilício, rezarás por ele e encerrá-lo-ás até à Ceia do Senhor.
Neste mesmo dia, o penitente será apresentado na assembleia da igreja, e, depois
de prostrar todo o corpo por terra, o bispo diz sobre ele a oração da reconciliação,
como vem indicado no sacramentário, na Quinta-Feira da Ceia do Senhor.
17. Orações e preces desde a Quinquagésima até à Quadragésima. No jejum da 5566
primeira estação. Quarta-feira. Sexta-feira da Quinquagésima. Sábado da
Quinquagésima. 18. Orações e preces do domingo que dá início à Quaresma. Segunda-
-feira da Quaresma. Terça-feira. Quarta-feira8. Sexta-feira. Sábado9. 19. As orações que
se seguem devem dizer-se na vigília do sábado do primeiro mês. Orações e preces nas
doze leituras do primeiro mês10.
20. Modo como devem ser eleitos os presbíteros, diáconos ou subdiáconos na Igreja 5567
romana da Sé Apostólica.
Nos sábados das doze leituras do I, IV, VII e X mês, em são Pedro, onde se
celebra missa, depois de dizerem a antífona da entrada, após a oração, o pontífice
dirige-se ao povo, dizendo:
Com a ajuda de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, diz de novo:
Com a ajuda de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo escolhemos, para a ordem
de diácono ou de presbítero, o subdiácono N., ou o diácono do título N.
E, depois de um breve intervalo, todos começam imediatamente Kyrie eleison
com a ladainha. Quando esta termina, os eleitos sobem à sede do pontífice, e ele
abençoa-os para o que foram chamados, e afastam-se. Ficam segundo a ordem da
bênção recebida. Por nosso Senhor. Segue-se a oração de bênção. Procurá-la no
quarto ou décimo mês.
Para ordenar presbíteros 11.
21. Capítulo do papa São Gregório. 5568
Assim como deve ser afastado dos altares sagrados aquele que, convidado, rejeita,
e, procurado, foge, assim aquele que se aproxima espontaneamente ou se imiscui de
modo importuno, deve ser repelido sem qualquer dúvida...

7
A entrada em penitência.
8
Não há formulários das quintas-feiras.
9
Chama-se-lhe feria septima.
10
Seguem-se 6 orações.
11
Segue-se um convite a orar, uma oração colecta, uma oração de consagração, uma consummacio praesbyteri
e outra benedictio.
1330 SÉCULO VII

5569 22. Para ordenar diáconos12. 23. Para completar o ministério do diaconado 13. 24.
Orações e preces para a missa. 25. Segundo domingo da Quaresma. Segunda-feira da
semana II. Terça-feira da semana II. Quarta-feira da semana II. Sexta-feira da semana
II. Sábado da semana II.
5570 26. Terceiro domingo da Quaresma14. Primeiro escrutínio dos eleitos.
No Cânone, quando se diz Lembrai-vos, Senhor, dos vossos servos e servas, que
vão receber os vossos eleitos na santa graça do vosso baptismo, e de todos os que aqui
estão presentes15. Calas-te. Dizem-se os nomes dos homens e mulheres que vão receber
os baptizandos16. E continuas: cuja fé só Vós conheceis.
De novo dentro da acção. Nós Vos pedimos, Senhor, aceitai esta oblação 17... E
dizem-se os nomes dos eleitos. Depois de nomeados, dizes: Nós Vos pedimos, Senhor,
que os prepareis 18...
5571 27. Quarto domingo do II escrutínio19.
5572 28. Quinto domingo (do escrutínio)20.
5573 29. Anúncio do escrutínio dos iniciandos, na segunda-feira da terceira semana da Quaresma.
Deveis saber, irmãos caríssimos, que está próximo o escrutínio em que os nossos
eleitos serão divinamente preparados...
Quando vierem à igreja, o acólito inscreverá os nomes das crianças, e serão
chamadas na igreja pelos nomes, segundo a ordem em que estão inscritas. Ponham-se os
meninos do lado direito, e as meninas do lado esquerdo. O presbítero diz sobre elas
a oração.
5574 30. Orações sobre os eleitos para fazer um catecúmeno21.
5575 31. Bênção do sal a dar aos catecúmenos.
Exorcizo-te, sal, em nome do Pai omnipotente, na caridade de nosso Senhor
Jesus Cristo e pelo poder do Espírito Santo...
Depois desta oração porás sal na boca da criança e dirás: N., recebe o sal da
sabedoria. Seja para ti penhor de vida eterna.
5576 32. Bênção depois de dar o sal.
5577 33. Exorcismo sobre os eleitos.
Os acólitos impõem a mão sobre as crianças e devem dizer:
Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob, Deus que apareceste ao teu servo
Moisés no monte Sinai e tiraste os filhos de Israel da terra do Egipto...
Sobre as meninas. Deus do Céu, Deus da terra...
Sobre os meninos. Escuta, maldito Satanás...
Sobre as meninas. Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob...
Sobre os meninos. Eu te exorcizo, espírito imundo...

12
Convite, oração colecta, consagração.
13
Ad consumandum diaconatus officia.
14
Repete-se o esquema dos dias de semana, como na semana II.
15
Memento, domine.
16
Infantes.
17
Hanc igitur.
18
Procede-se do mesmo modo nos domingos IV e V da Quaresma. Para a sequência de toda a iniciação, ver
a descrição que dela faz o OR 11.
19
Repete-se o mesmo esquema dos dias de semana.
20
Quae pro scrutinio celebratur Repete-se o mesmo esquema dos dias de semana.
21
Seguem-se 3 orações.
SACRAMENTÁRIO GELASIANO ANTIGO 1331

Sobre as meninas. Eu te exorcizo, espírito imundo...


Segue-se a oração que o sacerdote deve dizer. A vossa eterna e justíssima misericórdia...
34. Começa a exposição dos Evangelhos na abertura dos ouvidos dos eleitos. 5578
Em primeiro lugar avançam da sacristia quatro diáconos com quatro livros dos
Evangelhos, precedidos de dois círios e turíbulos, e colocam-nos nos quatro ângulos
do altar. E, antes que qualquer deles leia, diga o presbítero estas palavras:
Vão abrir-se para vós, filhos caríssimos, os Evangelhos 22...
5579
35. Começa a introdução do Símbolo aos eleitos.
Isto é, antes de dizeres o Símbolo, prosseguirás com estas palavras:
Caríssimos, ides receber os sacramentos do baptismo23...
36. Introdução à Oração dominical 24. 37. Domingo de Ramos na Paixão do Senhor. 5580
Segunda-feira da semana VI. Terça-feira da semana VI. Quarta-feira da semana VI.
5581
38. Orações de Quinta-Feira.
Neste dia não se diz o salmo nem se saúda, isto é, não se diz Dominus
vobiscum, e faz-se a reconciliação do penitente.
Deus eterno e omnipotente, concede a todos os teus servos...
Deus de misericórdia, concede àqueles que crêem...
Deus eterno e omnipotente, que salvaste a vida do género humano...

RITO DOS QUE FAZEM PENITÊNCIA PÚBLICA

O penitente sai do lugar onde cumpriu a sua penitência e é apresentado no 5582


meio da assembleia da igreja, prostrando-se com todo o corpo por terra. Então o
diácono faz o pedido com estas palavras:
«Eis chegado, venerável pontífice, o tempo da graça, o dia da misericórdia divina
e da salvação dos homens, o dia em que a morte foi vencida e em que teve início a vida
eterna, quando na vinha do Senhor dos exércitos se plantam os nossos rebentos, para
substituir os antigos. Apesar de não haver tempo algum em que Deus não abra os tesouros
da sua bondade e da sua misericórdia, estes dias são, contudo, mais propícios do que
outros para a remissão dos pecados e para a graça do baptismo.
A nossa assembleia vai crescer com o número dos novos baptizados e, também,
com todos os pecadores que a ela voltam. As águas baptismais purificam, como purificam
as lágrimas da penitência. Alegria pela admissão dos novos fiéis, alegria também por
causa da reconciliação dos penitentes! É por isso que, nas suas orações, o penitente
que, depois de ter caído nas faltas e no crime, ao transgredir as tuas leis, se humilha e se
prostra diante de Deus, dizendo com o profeta: Pequei, fiz o mal, cometi a injustiça:
tem piedade de mim, Senhor, ouvirá, e não em vão, a voz que fala no Evangelho:
Felizes os que choram, porque serão consolados. Ele comeu, como está escrito, o
pão da dor, ele regou o seu leito com as suas lágrimas, ele mortificou o seu coração na
aflição e macerou o seu corpo com jejuns, para que a sua alma pudesse reencontrar a
saúde que tinha perdido. A graça da penitência, única, é útil a todos e aproveita a cada
um.
O penitente, incitado a cumprir a sua expiação por todos os exemplos que vê à
sua volta, em presença de todos os que suspiram na igreja, exclama e proclama, venerável

22
Ver OR 11, nn. 44-60.
23
Ver OR 11, nn. 61-67.
24
Ver OR 11, nn. 68-71.
1332 SÉCULO VII

bispo: Reconheço as minhas faltas, e o meu pecado está sempre diante de mim. Afastai-
-Vos, Senhor, das minhas iniquidades e apagai todos os meus pecados. Dai-me de
novo a alegria da salvação e tornai-me firme com a vossa força. É assim que os
penitentes invocam e suplicam a misericórdia de Deus na aflição dos seus corações.
Venerável pontífice, renovai neles o que o Diabo rasgou e corrompeu. Pela qualidade
das vossas orações e graças à reconciliação divina, voltai a colocar estes homens em
amizade com Deus, e que os penitentes em desfavor por causa dos seus erros possam
doravante ser agradáveis a Deus entre os homens, após a derrota do Demónio, autor da
morte deles».
Depois destas palavras, o bispo ou outro sacerdote 25 exorta os penitentes a
não recaírem nas faltas que acabam de apagar pela sua penitência. Em seguida o
bispo26 dirá sobre os penitentes as orações seguintes:
«Presta atenção, Senhor, às nossas súplicas e escuta-me, embora eu seja o primeiro
a ter necessidade da tua indulgência. Escuta aquele que Tu estabeleceste como ministro
desta obra de renovação, não em virtude dos meus méritos, mas por um dom da tua
graça. Dá-nos a fé no nosso ministério e realiza por nosso intermédio o que é um efeito
da tua misericórdia.
Concede, Senhor, ao teu servo aqui presente o fruto honesto da sua penitência,
para que ele, depois de ter reencontrado a sua inocência, seja reintroduzido na santa
Igreja, da qual se tinha afastado ao pecar.
Senhor, nosso Deus, Criador do mundo bondoso e artífice misericordioso do género
humano, que resgataste pelo sangue do teu único Filho os homens que, desde as origens,
a inveja do Diabo tinha vencido, dá a vida ao pecador, que não desejas de modo algum
ver morto. Tu, que nunca abandonas o pecador nos seus enganos, acolhe-o, apesar das
suas iniquidades. Deixa-Te comover, Senhor, pelos gemidos e lágrimas do teu servo
aqui presente. Cura as suas feridas. Estende a tua mão piedosa ao teu servo abatido,
para que a tua Igreja não sofra qualquer detrimento em qualquer das suas partes, nem o
teu rebanho tenha qualquer prejuízo. Não se alegre o Inimigo do mal causado à tua
família, e uma segunda morte não mate aquele que acaba de renascer num baptismo
salutar. Diante de Ti, Senhor, derramamos as nossas orações e as nossas lágrimas.
Poupa aquele que tem confiança em Ti, para não cair sob a sentença do julgamento
futuro. Ignore para sempre as trevas terrificantes e os gritos lançados no meio das
chamas, e não seja novamente pisado por novas feridas. Agora que voltou dos caminhos
do erro, progrida nos caminhos da justiça. Os dons da graça e os benefícios da tua
misericórdia lhe sejam guardados integralmente e para sempre. Por Cristo, nosso Senhor».
5583 39. Reconciliação do penitente à hora da morte.
Deus misericordioso, Deus clemente, que apagas os pecados pela tua infinita
misericórdia...
Orações depois da reconciliação ou depois de ter comungado...
Senhor Deus, que purificas os corações dos que te confessam...
Depois disto, o povo apresenta a oferenda, e faz-se a celebração do
sacramento da Eucaristia 27...
5584 40. Na missa crismal de Quinta-Feira.
Bênção do óleo. Dirigir-te-ás ao povo com estas palavras: Este óleo é para
ungir os enfermos. Quando chegares ao Nobis quoque peccatoribus famulis tuis dirás

25
Ab episcopo sive alio sacerdote.
26
Sacerdos.
27
Post haec offert plebs, et conficiuntur sacramenta
SACRAMENTÁRIO GELASIANO ANTIGO 1333

o resto até ao Per Christum, Dominum nostrum. E começas:


Envia, Senhor, do alto Céu, o teu Espírito Santo Paráclito sobre este óleo, que Te
dignaste produzir da árvore, para refazer as forças do espírito e do corpo. Pela tua
santa bênção, sirva este óleo, a quantos com ele se ungirem, ou o provarem ou a quem
for aplicado, de auxílio do corpo, da alma e do espírito, para alívio de todas as dores,
fraquezas e doenças da alma e do corpo. Ele é o teu crisma perfeito que abençoaste,
Senhor, e com o qual ungiste os sacerdotes, os reis, os profetas e os mártires, e que
permanece nas nossas entranhas, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo: por Ele, Senhor,
crias todos estes bens28...
Depois de terminar o cânone, diz: Oremus. Praeceptis salutaribus... Segue-se
a Oração dominical. Depois segue-se a outra oração Libera nos... Depois de
terminada, fazes a fracção e cobres os dons com a toalha do altar e sobes para a
sede. O diácono apresenta aí o outro óleo para que o benzas e tu dizes: Dominus
vobiscum. Responde-se: Et cum spiritu tuo. Dizes: Oremus. E começas:
Deus, autor de todo o crescimento e progresso espiritual29...
Confecção do óleo do exorcismo. No mesmo lugar misturas o bálsamo com óleo e
segue-se este exorcismo. Exorcizo-te, óleo, em nome de Deus Pai todo-poderoso...
Depois de acabares, vens diante do altar, e pões (um pedaço) da hóstia na
boca do cálice; não dizes Pax Domini nem dão a paz; mas comungam, e reservam
do próprio sacrifício para comungarem no dia seguinte.
Missa vespertina de Quinta-Feira.
41. Início da celebração de Sexta-Feira da Paixão do Senhor. 5585
42. Sábado Santo 30. 5586
Os que vão ser baptizados31 entregam o Símbolo de manhã. Mas antes catequiza-
os com estas palavras, pondo a mão sobre as suas cabeças:
Não te escondas, Satanás...: em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que há-de
vir julgar os vivos e os mortos e o mundo pelo fogo.
Depois toca-lhes o nariz e os ouvidos com saliva, e dirás para o ouvido:
Effeta, que quer dizer abre-te, ao odor da suavidade...
Depois toca-os no peito e entre as espáduas com óleo exorcizado e, chamando-
-os pelo nome, dirás a cada um:
Renuncias a Satanás?
Responde: Renuncio.
E a todas as suas obras?
Responde: Renuncio.
E a todas as suas pompas?
Responde: Renuncio.
Então dirás o Símbolo, com a mão imposta sobre as suas cabeças. A seguir o

28
Emitte, quaesumus, domine, spiritum sanctum paraclytum de caelis in hac pinguidine olei, quam de
uiride ligno / producere dignatus es ad refectionem mentis et corporis. Et tua sancta benedictio sit omni
unguenti, gustanti, tangenti tutamentum corporis animae et spiritus, ad euacuandos omnes dolores,
omnem infirmitatem, omnem egritudinem mentis et corporis, unde unxiste sacerdotes reges et prophetas
et martyres, chrisma tuum perfectum, a te, domine, benedictum, permanens in uisceribus nostris: in
nomine domini nostri Iesu Christi: per quem haec omnia, domine, semper bona creas. Et cetera. Esta
mesma oração encontramo-la no Sacramentário Gregoriano (n. 334) com algumas pequenas variantes.
29
Segue-se a oração de consagração do óleo do Crisma.
30
Sabbatorum die.
31
Infantes.
1334 SÉCULO VII

arquidiácono diz-lhes:
Orai, eleitos, ajoelhai-vos. Completai a vossa oração ao mesmo tempo, dizendo
Amen. E todos respondem: Amen.
O arquidiácono fala-lhes de novo com estas palavras:
Os catecúmenos vão-se embora. Todos os catecúmenos saem para fora.
O diácono diz-lhes de novo:
Filhos caríssimos, voltai para os vossos lugares e esperai a hora em que a graça
de Deus poderá realizar em vós o baptismo.

MODO COMO SE COMEÇA NA VIGÍLIA DE SÁBADO SANTO


5587 Em primeiro lugar, à hora nona do dia mediante, vão para a igreja, entram
na sacristia, tomam as vestes como é costume. O clero começa a ladainha e o
sacerdos sai da sacristia com os ministros. Ficam de pé, diante do altar, de cabeça
inclinada, até dizerem Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere. Então o sacerdos
levanta-se para a oração, vai para detrás do altar, e senta-se na sua sede. O
arquidiácono vem diante do altar, recebe a luz que fora escondida na sexta-feira,
faz uma cruz no círio e acende-o, e ele próprio diz a bênção do círio.
Deus, Criador do mundo, autor da luz, Criador do mundo das estrelas...
Bênção do incenso. Deus omnipotente, venha sobre este incenso...
Depois disto, o sacerdos levanta-se da sua sede e diz a oração da Vigília da
Páscoa, como está no sacramentário.
5588 43. Orações para cada uma das leituras de Sábado Santo32.
A seguir, para baptizar, vai-se até às fontes, em procissão, cantando a
ladainha. Terminado o baptismo, os baptizados33 são consignados pelo sacerdos.
Enquanto recebem os sete dons do Espírito Santo, ele derrama crisma nas suas
frontes. Depois disso, o próprio sacerdos regressa à sacristia com todos os
ministros34. E, pouco depois, ao aparecer a estrela no céu, começam a terceira ladainha
e entram para dar início à missa da Vigília35. E procedem de modo a ter tempo de cantar
as três ladainhas.
5589 44. Descem então às fontes, cantando a ladainha. Bênção da fonte.
Deus eterno e omnipotente, com o mistério da tua grande piedade...
Senhor nosso Deus: Pelo vosso poder invisível...
Depois da bênção da fonte, baptizarás cada um na sua ordem, com estas perguntas:
Crês em Deus Pai todo-poderoso?
Responde: Creio.
Crês em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que nasceu e sofreu?
Responde: Creio.
Crês no Espírito Santo, na santa Igreja, na remissão dos pecados, na ressurreição
da carne?
Responde: Creio.

32
Às leituras e orações indicadas para a Vigília de Sábado Santo, segue-se esta rubrica que, como se fora um
guião, resume a ordem do que vai seguir-se.
33
Infantes.
34
Ordinibus.
35
In vigilia.
SACRAMENTÁRIO GELASIANO ANTIGO 1335

Então, a cada uma das três perguntas, mergulha-o na água. Depois, quando o
baptizado36 sai da fonte, é ungido com crisma na cabeça pelo presbítero, com estas palavras:
Deus todo-poderoso, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que te regenerou pela
água e pelo Espírito Santo e te deu a remissão de todos os pecados, unge-te com o
crisma da salvação em Jesus Cristo, nosso Senhor, para vida eterna.
Responde: Amen.
Então o bispo dá-lhes o Espírito septiforme. Para os consignar impõe-lhes
as mãos com estas palavras:
Deus todo-poderoso, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que regeneraste os teus
servos pela água e pelo Espírito Santo e lhes deste a remissão de todos os pecados,
envia-lhes o teu Espírito Santo Paráclito e dá-lhes o Espírito de sabedoria e de inteligência,
o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de ciência e de piedade e enche-os do
Espírito do temor de Deus. Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, com o qual, Deus,
vives e reinas sempre com o Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Amen.
Depois faz-lhes o sinal da cruz37 na fronte com o crisma, dizendo:
O sinal de Cristo para a vida eterna 38.
Responde: Amen.
A paz esteja contigo 39.
Responde: E com o teu espírito.
Depois sobe à sua sede, ao canto da ladainha, e diz:
Glória a Deus nas alturas 40.
45. Orações e preces para a missa na noite. 46. Domingo de Páscoa. 47. Começam 5590
as orações e as preces de toda (a semana) branca 41. Segunda-feira. 48. Terça-feira.
49. Quarta-feira. 50. Quinta-feira. 51. Sexta-feira. 52. Sábado. 53. Domingo da oitava
da Páscoa. 54. Orações e preces da Páscoa anual 42. 55. Orações e preces na paróquia.
56. Começam as orações pascais vespertinas. 57. Orações e preces do domingo depois
da oitava da Páscoa. 58. II domingo depois de terminada a Páscoa. 59. III domingo
depois de terminada a Páscoa. 60. IV domingo depois de terminada a Páscoa. 61. V
domingo depois de terminada a Páscoa. 62. VI domingo depois de terminada a Páscoa.
63. Orações e preces na Ascensão do Senhor. 64. Outra missa. 65. Orações e preces
do domingo depois da Ascensão do Senhor. 66. No sábado do Pentecostes celebrarás
o baptismo como na noite santa da Páscoa. Imposição das mãos a um catecúmeno
doente. 67. Imposição da mão a um catecúmeno energúmeno. 68. Outra para uma
criança energúmena. 69. Oração sobre um catecúmeno enfermo.
70. Se for um baptizando, o sacerdote aproxima-se e diz-lhe a oração e o Símbolo 5591
e catequiza-o com essas palavras, pondo-lhe a mão sobre a cabeça. Depois diz
esta oração sobre ele: Não ouses, Satanás, como está escrito no sábado. 71. Para
fazer de um pagão um catecúmeno. 72. Item, para socorrer um catecúmeno enfermo.
73. Quando o doente recupera a saúde, abençoa a fonte.

36
Infans.
37
Signat.
38
Signum Christi in vitam aeternam.
39
Pax tecum.
40
Gloria in excelsis Deo.
41
Incipiunt totius albae...
42
Orationes et praeces de pascha annotina.
1336 SÉCULO VII

5592 74. Item para aquele que vem a correr43.


Segue-se a bênção. «Senhor, Pai santo, Deus eterno e omnipotente, santificador
das águas espirituais, digna-Te olhar para este ministério da nossa humildade e envia o
Anjo de santidade sobre estas águas preparadas para purificar e vivificar os homens, a
fim de que ele edifique, nos renascidos, uma morada pura para o Espírito Santo, depois
de lavados os pecados da vida anterior e de apagada a culpa. Por nosso Senhor».
5593 75. Item outra bênção. 76. Para socorrer. Bênção do óleo do exorcismo. 77. Orações
para cada leitura no sábado do Pentecostes. 78. Orações na missa da Vigília do
Pentecostes. 79. Outras orações da Vigília do Pentecostes. 80. Orações e preces do
domingo do Pentecostes. 81. Orações para as Vésperas depois da oitava do Pentecostes.
82. Anúncio dos jejuns dos meses quarto, sétimo e décimo. 83. Começam as orações e
as preces da quarta-feira do quarto mês. Sexta-feira. Sábado das XII leituras. 84. Orações
e preces no domingo da oitava do Pentecostes. 85. Bênção sobre aqueles que dos
Arianos vêm à unidade católica. 86. Bênção para aqueles que vêm de diversas heresias.
87. Reconciliação do rebaptizado pelos hereges. 88. Orações para a dedicação de uma
basílica nova. 89. Orações e preces para a missa da dedicação de uma basílica nova.
90. Outra missa. 91. Orações e preces para a dedicação de uma basílica que o fundador
não deixou dedicada. 92. Como se deve proceder nas exéquias do seu fundador. 93.
Orações e preces na dedicação de um lugar que antes foi sinagoga. 94. Orações e
preces na dedicação do baptistério44.
5594 95. Início do ritual da bênção das ordens sacras.
Devem observar-se os tempos de cada um destes graus. Se alguém deu o
nome, desde a infância, para ministro eclesiástico, deve permanecer, de maneira
continuada, entre os leitores, até à idade de vinte anos. Se já atingiu a maioridade,
e deseja inscrever-se entre a milícia divina depois da idade do baptismo, permaneça
cinco anos entre os leitores ou entre os exorcistas, a seguir permaneça quatro
anos como acólito ou subdiácono, e, depois, se for digno, aceda à bênção do
diaconado. Se permanecer irrepreensível nesta ordem durante cinco anos, deve
ser herdeiro; e daqui..., se os testemunhos forem positivos..., poderá ser promovido
ao sacerdócio dos presbíteros. Deste lugar..., se chegar a bons costumes de vida,
deverá esperar o sumo pontificado. Deve observar-se esta lei: não se pode admitir
a estes graus ninguém que tenha sido casado duas vezes ou penitente. Mesmo os
defensores das igrejas, construídas por leigos, são obrigados à citada observância,
se quiserem ser dignos de pertencer à ordem do clero.
Quando se ordena um bispo, dois bispos colocam e seguram o códice dos
Evangelhos sobre a cabeça dele, e, enquanto um derrama sobre ele (o óleo) da
bênção, todos os outros bispos presentes lhe tocam na cabeça com as mãos.
Quando se ordena um presbítero, enquanto o bispo o abençoa, todos os
presbíteros presentes mantêm também as suas mãos sobre a cabeça dele, junto das
mãos do bispo.
Quando se ordena um diácono, só o bispo, que o abençoa, lhe põe as mãos
sobre a cabeça; os restantes sacerdotes não põem as suas mãos junto da mão do
bispo, porque não é consagrado para o sacerdócio, mas para o ministério.
Quando se ordena um subdiácono, que não recebe a imposição das mãos, recebe,
da mão do bispo, a patena sem nada e o cálice vazio, e da mão do arquidiácono recebe
um vaso pequeno com água, a bacia de lavar as mãos e a toalha.
Quando se ordena um acólito, o bispo deve instruí-lo sobre o modo como
deve proceder no seu ofício; recebe, do arquidiácono, o porta-círios com o círio,
43
Item alia ad cuccurrendum.
44
Fontis.
SACRAMENTÁRIO GELASIANO ANTIGO 1337

para que saiba que é encarregado de acender as luzes da igreja, e recebe também um
pequeno vaso sem nada, para levar o vinho na Eucaristia do Corpo de Cristo.
Quando se ordena um exorcista, recebe, da mão do bispo, um livro pequeno no
qual estão escritos os exorcismos, e o bispo diz-lhe: Recebe e guarda o poder de impor
a mão sobre o possesso do Demónio, quer baptizado quer catecúmeno.
Quando se ordena um leitor, diga o bispo uma palavra a seu respeito ao povo,
sobre a sua fé e capacidade. Depois disto, enquanto o povo espera, entregue--lhe o
códice, do qual há-de ler, dizendo-lhe: Recebe e sê o leitor habitual da palavra de Deus;
se cumprires o (teu) ofício) com fidelidade e de maneira proveitosa, (terás) parte com
aqueles que administraram a palavra de Deus.
Quando se ordena um ostiário, depois de instruído pelo arquidiácono sobre o
modo como deve comportar-se na casa de Deus, o bispo, a pedido do arquidiácono,
entrega-lhe as chaves da igreja (que estão) no altar, dizendo: Procede de modo a
prestares contas a Deus das coisas que serão fechadas por estas chaves.
O salmista, ou seja o cantor, pode, sem conhecimento do bispo, mas só por
decisão do presbítero, receber o ofício de cantar, dizendo-lhe o presbítero: Presta
atenção, para acreditares com o coração naquilo que cantas com a boca e para
confirmares com obras aquilo em que acreditas.
Quando uma virgem religiosa é apresentada ao seu bispo para a
consagração, aproxime-se com as vestes que passará a usar sempre, apropriadas
à profissão e às religiosas.
96. Bênçãos sobre aqueles que devem ser abençoados nas ordens sacras. Prefácio 45 5595
do ostiário. Prefácio do leitor. Prefácio do exorcista. Prefácio do ordinando subdiácono46.
97. No natal da consagração do diácono47. 98. No aniversário da consagração de
presbítero. Missa que ele deve celebrar 48. 99. Orações para a ordenação do bispo.
100. Missa que o bispo canta no dia da sua ordenação. 101. No aniversário do bispo, se
ele estiver doente ou ausente. Missa que o presbítero deve celebrar. 102. Missa a
celebrar por outro sacerdote. 103. Consagração da virgem sagrada, que se celebra na
Epifania, ou na segunda-feira da Páscoa, ou no natal dos Apóstolos. 104. Oração sobre
as servas de Deus, quando trocam as suas vestes por outras. 105. Orações para a
missa das mesmas. 106. Outra (missa) das mesmas. 107. Outra (missa) das mesmas.

EXPLICIT LIBER PRIMUS

A+W
A + W INCIPIT LIBER SECUNDUS
ORATIONES ET PRAECES DE NATALICIIS SANCTORUM

Livro II
1. Anúncio do natal de um mártir. Anúncio da deposição das relíquias dos mártires. 5596

45
Praefacio.
46
Este formulário, além da oração colecta e da bênção, como nos graus anteriores, apresenta também uma
consecratio manuum: «Sejam estas mãos consagradas por esta unção e pela nossa bênção, para que sejam
benzidas todas as coisas que elas benzerem, e santificadas as coisas que elas santificarem. Por nosso
Senhor».
47
A ordenação dos diáconos vem nos nn. 22-24.
48
A ordenação dos presbíteros vem no n. 20.
1338 SÉCULO VII

6. No natal de santa Inês, virgem. Na sua paixão (21/01). 8. Orações na Purificação de


santa Maria (02/02). 14. Na Anunciação de santa Maria, Mãe de nosso Senhor Jesus
Cristo (25/03). 15. No natal de santa Eufémia (13/04). 16. No natal de são Filipe e são
Tiago, Apóstolos (01/05). 31. No natal dos Apóstolos Pedro e Paulo (29/06). 43. No
natal de são Lourenço (10/08). 45. No natal de santo Hipólito (13/08). 56. Na Exaltação
da Santa Cruz (14/09). 60. Orações no jejum do sétimo mês. Na sexta-feira do sétimo
mês. Nas XII leituras de sábado. 61. No natal dos santos Marcelo e Apuleio (07/10).
65. Natal de são Clemente (23/11). 71. No natal de são Tomé, Apóstolo (21/12). 72.
Orações no natal de vários santos49. 80. Orações do Advento do Senhor50. 85. Orações
e preces do mês de Dezembro. Quarta-feira. Sexta-feira. Sábado das XII leituras.

EXPLICIT LIBER SECUNDUS DE NATALICIIS SANCTORUM


MARTIRUM

A+W
A + W INCIPIT LIBER TERCIUS
ORATIONES ET PRAECES CUM CANONE
PER DOMINICIS DIEBUS

Livro III
5597 1. Deus, que preparaste bens invisíveis para aqueles que Te amam, infunde em
nossos corações o afecto do teu amor, para que, amando-Te em tudo e acima de tudo,
alcancemos as tuas promessas que excedem todo o desejo: por nosso Senhor.
Collectio. Deus, que habitas nos santos e não abandonas os corações piedosos,
liberta-nos dos desejos terrenos e carnais, para que, livres de todo o pecado, possamos
servir-Te só a Ti, de todo o coração: por.
Secreta. Ouve, Senhor, com bondade, as nossas súplicas, e recebe estas ofertas
dos teus fiéis, para que os dons oferecidos por cada um de nós para glória do teu nome,
sirvam para a salvação de todos: por.
Post communionem. Senhor, que nos saciaste com estes dons celestes, concede-nos
a graça de sermos purificados dos pecados ocultos e libertados das ciladas dos inimigos:
por 51.
5598 [17]. INCIPIT CANON ACCIONIS52
Sursum corda.
Respondetur: Habemus ad Dominum.
Gratias agamus dominum deo nostro.
Respondetur: Dignum et iustum est.

49
Seguem-se mais 7 formulários (nn. 73-79).
50
Seguem-se mais 4 formulários (nn. 81-84).
51
Seguem-se mais 15 formulários (nn. 2-16) idênticos a este, que deviam utilizar-se, cada um duas vezes no
decurso do ano, nos 34 domingos aos quais chamamos do Tempo comum.
52
É aqui que aparece, pela primeira vez, o texto do Cânone Romano. Transcreve-se o texto tal como chegou até
nós.
SACRAMENTÁRIO GELASIANO ANTIGO 1339

Uere dignum et iustum est aequum et salutare nos tibi semper et ubique gratias
agere, domine, sancte pater, omnipotens aeternae deus, per Christum dominum nostrum.
Per quem maiestatem tuam laudant angeli, adorant dominationes, tremunt potestates,
caeli caelorumque uirtutes ac beata syrafin sotia exultatione concaelebrant. Cum quibus
et nostras uoces ut admitti iubeas depraecamur supplice confessione dicentes: Sanctus,
sanctus, sanctus, dominus deus sabaoth. Pleni sunt caeli et terra gloria tua. Osanna in
excelsis. Benedictus qui uenit in nomine domini. Osanna in excelsis.
Te igitur, clementissime pater, per Iesum Christum filium tuum dominum nostrum
supplices rogamus et petimus, uti accepta habeas et benedicas + haec dona +, haec
munera +, haec sancta + sacrificia inlibata +, inprimis quae tibi offerimus pro ecclesia
tua sancta catholica, quam pacificare custodire adunare et regere digneris todo orbe
terrarum, una cum famulo tuo papa nostro illo et antestite nostro illo episcopo.
<Superscribenda: Et omnibus orthodoxis atque catholici fide cultoribus. Memento, deus,
rege nostro cum omne populo.>
Memento, domine, famulorum famularumquae tuarum et omnium circum/
adstantium, quorum tibi fides cognita est et nota deuotio; qui tibi offerunt hoc sacrificium
laudis: pro se suisque omnibus, pro redemptione animarum suarum, pro spe salutis et
incolomitatis suae tibi reddunt uota sua aeterno Deo uiuo et uero.
Communicantes et memoriam uenerantis inprimis gloriosae semper uirginis Mariae
genetricis dei et domini nostri Iesu Christi, sed et beatorum apostulorum ac martyrum
tuorum Petri Pauli Andreae Iacobi Iohannis Thomae Iacobi Philippi Bartholomei Mathei
Simonis et Taddei Lini Cleti Clementis Xysti Corneli Cybriani Laurenti Crisogoni Iohannis
et Pauli Cosme et Damiani <Dionysii Rustici> et Eleutherii <Helarii Martini Augustini
Gregorii Hieronimi / Benedicti> et omnium sanctorum tuorum, quorum meritis
praecibusque concedas, ut in omnibus protectionis tuae muniamur auxilio: per Christum
dominum nostrum.
Hanc igitur oblationem seruitutis nostrae sed et cunctae familiae tuae, quaesumus,
domine, ut placatus accipias diesque nostros in tua pace disponas atque ab aeterna
damnatione nos eripe et in electorum tuorum iubeas grege numerari: per Christum
dominum nostrum.
Quam oblationem tu, deus, in omnibus, quaesumus, bendictam ascriptam ratam
rationabilem acceptabilemquae facere digneris, ut nobis corpus et sanguis fiat dilectissimi
filii tui domini dei nostri Iesu Christi.
Qui pridie quam pateretur accepit panem in sanctas ac venerabiles manus suas
eleuatis oculis in caelum ad te deum patrem suum omnipotentem, tibi gratias agens
bene/dixit fregit dedit discipulis suis dicens: Accipite et manducate ex hoc omnes, hoc
est enim corpus meum. Semile modo posteaquam caenatum est accipiens et hunc
praeclarum calicem in sanctas ac uenerabiles manus suas, item tibi gratias agens benedixit
dedit discipulis suis dicens: Accipite et bibite ex eo omnes, hic est enim cálix sanguinis
mei noui et aeterni testamenti mysterium fidei qui pro uobis et pro multis effundetur in
remissione peccatorum. Haec quotienscumque feceretis, in mei memoriam faciaetis.
Unde et memores sumus, domine, nos tui serui sed et plebs tua sancta Christi filii
tui domini nostri tam beatae passionis nec non et ab inferis resurrectionis sed et in
caelos gloriosae ascensionis: offerimus praeclare maiestati tuae / de tuis donis ac datis
hostiam puram, hostiam sanctam, hostiam inmaculatam, panem sanctm uitae aeternae
et calicem salutis perpetuae.
Supra que propitio ac sereno uultu respicere digneris et accepta habere, sicuti
accepta habere dignatus es munera pueri tui iusti Abel et sacrificium patriarchae nostri
Abrahae et quod tib obtulit summus sacerdos tuus Melchisedech, sanctum sacrificium,
inmaculatam hostiam.
1340 SÉCULO VII

Supplices te rogamus, omnipotens deus, iube haec perferri per manus angeli tui in
sublime altare tuum in conspectu diuine maiestatis tuae, ut qutquot ex hac altaris
participatione sacrosanctum filii tui corpus et sanguinem sumpseremus, omni
benedictione caelesti et gratia repleamur: per Christum dominum nostrum.
Nobis quoque peccatoribus famulis tuis de multitudine miserationum tuarum
sperantibus partem aliquam societatis donare digneris cum tuis sanctis apostolis et
martyribus, cum Ioanne Staphano Mathia Barnaban Ignatio Alexandro Marcellino Petro
Felicitate Perpetua Agathae Lucia Agnem Caecilia Anastasia et cum omnibus sanctis
tuis, intra quorum nos consortia non stimamur meritis sed ueniam, quaesumus, largitor
admitte: per Christum dominum nostrum.
Per quem haec omnia, domine, semper bona creas sanctificas uiuificas benedicis
et praestas nobis.
Per ipsum et cum ipso et in ipso est tibi deo patri omnipotenti in unitate spiritus
sancti omnis honor et gloria per omnia saecula saeculorum. Amen.
OREMUS. Praeceptis salutaribus moniti et diuina institutione formati audemus dicere:
Pater noster qui es in caelis. Sed libera nos a malo.
/ Libera nos, quaesumus, domine, ab omnibus malis praeteritis praesentibus et
futuris, et intercedente pro nobis beata et gloriosa semperque uirgine dei genetrice Maria
et sanctis apostolis tuis Petro et Paulo atque Andreas da propitius pacem in diebus
nostris, ut ope miserircordiae tuae adiuti et a peccatis simus liberi semper et ab omni
perturbatione securi: per.
Pax domini sit semper uobiscum.
Respondetur: Et cum spiritu tuo.
Depois disto anuncie-se ao povo o jejum do quarto, sétimo e décimo mês e
seus tempos, isto é, para os escrutínios, ou para a abertura dos ouvidos, ou para
orar pelos enfermos ou o anúncio das festas dos santos. Depois disso, o sacerdote
comunga com todas os ministros sagrados e com todo o povo.
5599 [17]. Bênçãos sobre o povo depois da comunhão. 18. Orações para as missas
quotidianas53. 24. Orações para começar o caminho54. 26. Orações para a caridade55.
28. Orações na tribulação56. 37a. Orações no aniversário (da ordenação) do presbítero.
Qual é a missa que ele deve celebrar. 38. Orações para que se afaste o tempo da
mortandade 57. 42. Orações para a mortandade dos animais. 43. Orações para a
esterilidade. 44. Orações para pedir a chuva58. 46. Orações para pedir a serenidade.
47. Orações para a tempestade e os relâmpados. 48. Orações por aqueles que fazem
ágapes59. 50. Missa no mosteiro. 51. Orações dos monges. 52. Início da celebração
nupcial. 53. Oração no dia de anos60. 54. Orações da missa para a esterilidade das
mulheres. 55. Bênção da viúva que professou castidade. 56. Orações pela paz. 57.
Orações no tempo de guerra61. 62. Missa pelos reis. 63. Missa contra os juízes que
julgam mal62. 65. Orações para a missa em que se pede um espírito pacífico63. 67.
53
Seguem-se mais 5 formulários (nn. 19-23).
54
Segue-se outro formulário (n. 25).
55
Segue-se outro formulário (n. 27).
56
Seguem-se mais 9 formulários (nn. 29-37).
57
Seguem-se mais 3 formulários (nn. 39-41).
58
Segue-se outro formulário (n. 45).
59
Segue-se outro formulário (n. 49).
60
Oratio de natale genuinum.
61
Seguem-se mais 4 formulários (58-61).
62
Segue-se outro formulário (n. 64).
63
Segue-se outro formulário (n. 66).
SACRAMENTÁRIO GELASIANO ANTIGO 1341

Orações para a missa contra os maldizentes. 68. Orações para a missa pelos irreligiosos.
69. Oração sobre o enfermo em casa. 70. Orações para a missa pelo enfermo. 71.
Oração pela saúde readquirida. 72. Oração dos que entram na casa ou bênção. 73.
Orações para a missa. 74. Orações sobre os que entram na casa. 75. Bênção da água
para aspergir a casa 64. Orações para a aspersão da água. 77. Orações contra os
relâmpagos. 78. Bênção da água exorcizada contra os relâmpagos. 79. Orações para
uma eira nova. 80. Orações no mosteiro. 81. Oração na casa das servas de Deus. 82.
Oração pelos que renunciam ao mundo. 83. Oração por aquele que corta a barba pela
primeira vez. 84. Orações para Laudes. 85. Orações para Vésperas. 86. Orações
antes de comer. 87. Orações depois de comer. 88. Oração para benzer os frutos novos.
89. Bênção das maçãs. 90. Bênção de uma árvore. 91. Orações após a morte de uma
pessoa. Encomendação da alma. 92. Missa por um sacerdote defunto65. 94. Outra
missa pelo sacerdote ou abade. 95. Orações para a missa no natal (de todos os) santos
ou na comemoração dos mortos. 96. Missa pelo defunto baptizado há pouco 66.
98. Orações para a missa pelos defuntos que desejaram a penitência, mas não a 5600
receberam.
Se alguém pede a penitência, mas perde a fala antes de o sacerdote chegar,
tem direito a isso, de modo que, se houver testemunhas idóneas que o afirmem, ou
se ele próprio o manifestar por meio de gestos, o sacerdote deve fazer, em relação
ao penitente, tudo o que é costume. Para a Missa.
99. Orações pelos defuntos leigos: Por um defunto. 100. Por vários 67. 103. Outra 5601
missa nos cemitérios68. 105. Missa no terceiro, sétimo e trigésimo dia da deposição ou
anual. 106. Orações para a missa pela saúde dos vivos.
107. Início da penitência a dar. 5602
Dirás todo o salmo 6. E dirás de novo: Oremos. E começarás o salmo 102 até
E te rejuvenesce como a águia. Depois dirás o salmo 50. Depois disto, segue-se a
oração:
Deus todo-poderoso e cheio de misericórdia...

EXPLICIT LIBER SACRAMENTORUM. DEO GRATIAS.

Sicut nauigantibus dulcis est portus


sic scriptori nouissimus uersus69.

64
Segue-se outro formulário (n. 76).
65
Segue-se outro formulário (n. 93).
66
Segue-se outro formulário (n. 97).
67
Seguem-se mais 2 formulários (nn. 101-102).
68
Segue-se outro formulário (n. 104).
69
«Tal como o porto é doce para os navegantes, assim a última palavra para aquele que escreve».
1342 SÉCULO VII

Papa Martinho I

Cartas 1

CARTA 5

5603 Martinho, servo dos servos de Deus, bispo da santa Igreja católica e apostólica
dos Romanos, a João, bispo de Filadélfia.
Exortamos a tua caridade, irmão piedosíssimo, a seres aí o nosso vigário, isto é,
nas partes do Oriente, no que se refere a todas as funções e serviços eclesiásticos.
Convém, de modo especial, que renoves a graça de Deus que está em ti pela imposição
da dignidade sacerdotal... Pelo poder apostólico que nos foi dado pelo Senhor..., manda-
mos-te... que constituas bispos, presbíteros e diáconos em todas as cidades que depen-
dem das sedes de Jerusalém e Antioquia..., a fim de que o grande e venerável mistério
da nossa fé não seja ignorado, por falta de sacerdote, nem deixe de se oferecer, para
salvação do povo, o sacrifício espiritual agradável a Deus... É urgente, sobretudo agora,
renovar e fortalecer por toda a parte os pastores espirituais que pertencem às Igrejas
católicas de Deus... Assim sendo, não demores, caríssimo, segundo o nosso mandato, a
dotar as Igrejas católicas desses lugares com bispos, presbíteros e diáconos...
Sempre que aqueles que caíram... ouvirem a voz do Senhor e O reconhecerem
por uma confissão sincera, confirma-os, um por um, na própria Ordem, dando-lhes um
documento escrito com a fé ortodoxa, a fim de produzirem frutos para Deus...
CARTA 17

5603a É meu constante desejo escrever-vos para reconfortar a vossa caridade e libertar-
-vos das preocupações que tendes por minha causa, vós e todos os santos, meus irmãos,
que por amor do Senhor tanto se interessam por mim... Isolado de todo o movimento
humano e afastado da responsabilidade apostólica, vivo como se não vivesse. Os naturais
desta região são todos pagãos e abraçaram também os costumes pagãos os que vieram
para aqui viver; não têm o menor sentimento de caridade, e perderam mesmo aquele
instinto natural de amor e compaixão que até os bárbaros tantas vezes manifestam...
Surpreendeu-me e continua a surpreender-me a falta de sensibilidade e de
compaixão de todos os que me rodeavam e dos meus amigos e parentes: esqueceram-
-se tão completamente da minha desgraça, que nem se interessam por saber como
estou, nem se estou ainda neste mundo... Foi talvez o temor ou o terror que levou
aqueles homens a não cumprirem os mandamentos de Deus. Mas como se justifica tal
temor?...
Mas Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento
da verdade... O Senhor cuidará deste meu pobre corpo como Lhe agradar, quer me
deixe em contínuos sofrimentos, quer me conceda algum alívio. O Senhor está perto de
mim: porque me hei-de afligir?...
Saudai em nome do Senhor todos os vossos familiares e todos os que por amor de
Deus sofreram também com as minhas cadeias...

1
PAPA M ARTINHO I, Epistulae (=PL 87, 119-204; cf. LH, II). O Papa Martinho I foi eleito em 649. Em 653
foi preso por ordem do imperador Constante e levado para Constantinopla. Morreu em 656.
FRUTUOSO DE BRAGA 1343

Frutuoso de Braga

Regra dos monges 1


Prólogo. Depois do amor a Deus e ao próximo, que é o vínculo de toda a perfeição e 5604
o ponto culminante das virtudes, determinou-se também que é preciso observar, em todos os
mosteiros, o seguinte da tradição regular. Primeiro, entregar-se à oração noite e dia e observar
o ritmo das horas estabelecidas; ninguém, por causa dos trabalhos prolongados, se dispense
ou perca o ardor nos exercícios espirituais.
1. As Orações. Estabeleceu-se que se observe a hora de Prima, dado que o Profeta diz: 5605
De manhã vou à vossa presença...; e noutro lugar: Eu Vos invoco, Senhor, pela manhã, e
ouvis a minha voz2. Estabeleceu-se também entre Prima e Tércia uma hora Segunda, como
passagem de uma para a outra, de modo que os monges não estejam ociosos. Por isso,
determinou-se que se celebre com a reza de três salmos, para que sirva de encerramento ao
ofício de Prima e de entrada ao de Tércia. Além disso, estabeleceu-se que nas outras horas se
observe a mesma ordem; quer dizer, em Tércia, Sexta, Noa, Duodécima e ainda em Vésperas,
de modo que antes e depois dessas três horas canónicas se façam oferendas de oração
pessoal. Além disso, pela noite, a primeira hora nocturna há-de celebrar-se com seis orações,
e depois há-de concluir-se com o canto de dez salmos com laudes e as benedictiones na igreja.
A seguir, despedindo-se mutuamente e oferecendo-se satisfação e reconciliação uns aos
outros, perdoar-se-ão mutuamente as dívidas na piedade do Pai Eterno. Os que tinham sido
separados da comunidade fraterna pelas suas faltas merecem o perdão. Por último, ao
retirarem-se todos para os seus dormitórios e indo todos em comunhão pela paz que se
deram e a absolvição dos culpados, depois de cantarem os três salmos como de costume,
recitarão todos em uníssono com louvor e bênção o Símbolo da fé cristã...
2. Do mesmo modo, levantando-se antes da meia-noite, recitam doze salmos em 5605a
dois coros, como é seu costume... Depois de um breve tempo de descanso, recitam o
ofício da meia noite, no qual se cantam quatro responsórios cada um com três salmos;
e, depois da meia-noite, durante o inverno, estando todos sentados, um deles, colocando-
se no meio, lerá um livro... No verão observar-se-á esta mesma prática depois de
Vésperas de modo que, antes de rezar Completas, se lerá o Livro da Regra ou as Vidas
dos Padres. Logo a seguir, depois de cantarem de novo doze salmos, irão para os
dormitórios. Após um breve descanso, ao cantar do galo, recitados três salmos com
louvores e o Benedictus, celebrarão a missa matutina. Quando esta tiver terminado...
meditarão até ao nascer do sol. Em todas as orações de cada uma das Horas, nocturnas
e diurnas, no fim de cada salmo, ao cantarem glória ao Senhor, prostrar-se-ão por terra,
de tal maneira, porém, que nenhum se prostre nem de novo se levante antes do superior,
mas todos hão-de levantar-se com a maior uniformidade possível e, com as palmas das
mãos levantadas para o céu, continuam a orar com a mesma uniformidade com que se
prostraram. No decurso das noites dos sábados e domingos celebram-se as vigílias com
seis responsórios, juntando aos seus próprios finais um ofício de seis finais, a fim de
que a solenidade da Ressurreição do Senhor seja festejada com uma salmodia mais
longa. Há-de celebrar-se do mesmo modo qualquer solenidade da noite precedente...
3. Os monges, após a refeição, devem fazer uma visita ao oratório, a fim de 5606
oferecerem acções de graças diante do altar de Cristo.

1
F RUTUOSO DE B RAGA , Regula monachorum (=PL 87, 1097-1110; BAC 321). São Frutuoso deve ter escrito
a sua Regra por volta de 646. Foi feito bispo de Braga em 656.
2
Sal 5, 4-5.
1344 SÉCULO VII

Jonas de Bóbio

Vida de Santa Fara, abadessa de Faremoutiers 1

Capítulo IX
5607 14. A maldade do Diabo arquitectava enganos contra esta comunidade de religiosas
de Cristo. Mas, como via que o mosteiro estava cheio de virtudes, pensou em levar por
diante a sua obra servindo-se de duas irmãs mais rudes..., às quais sugeriu que tentassem
fugir escalando a cerca do mosteiro, e regressar à ambicionada vida do mundo. Quando
já caminhavam pelo silêncio das negras sombras da noite... e começavam a escalar a
cerca do mosteiro, de repente, do meio do dormitório saiu uma massa de fogo que
iluminou toda a casa, e que depois se dividiu em três partes e penetrou com grande
fragor pelas frinchas das portas... O ruído acordou as que dormiam e paralizou as que
saltavam a cerca do mosteiro..., que ficaram paradas como se tivessem chumbo nos
pés... As fugitivas, apanhadas em flagrante, declararam a sua falta e, ao regressarem,
confessaram-se à Madre Superiora2.
5608 15. A antiga serpente atirou-se em seguida a outras duas irmãs, cuja recente conversão
tornava mais inexperientes e fracas, procurando persuadi-las a não fazer uma confissão
verídica. Com efeito, havia no convento o hábito de cada irmã, três vezes por dia, purificar
a sua alma pela confissão: a confissão piedosa apagava as rugas espirituais, fossem
elas quais fossem, devidas à fraqueza humana.
Os dardos do Demónio tinham levado as virgens em questão a não se confessaram
sinceramente, nem das faltas cometidas no mundo, nem das que cometiam diariamente
por fraqueza, por pensamentos, palavras e obras; deste modo, o Demónio não permitia
que uma confissão sincera lhes devolvesse a paz graças aos remédios da penitência. A
serpente venenosa destilava a pouco e pouco, dentro delas, o seu veneno, cegava-lhes o
espírito e, por sua malícia, tornava-as dóceis às suas ordens.
Uma noite, incitou as nossas irmãs a saltar o muro do convento e a voltar a suas
casas. As irmãs caminhavam na noite escura e quase não podiam manter-se no caminho
por causa das trevas espessas. Mas o Diabo caminhava ao lado delas e iluminava-as
com uma espécie de lâmpada – graças ao poder oculto de que dispõe – e mostrava-lhes
o caminho para o mundo e sossegava-as.
Ora, quando as duas fugitivas chegaram ao lugar para onde queriam dirigir-se,
voltaram para trás e regressaram envergonhadas ao seu convento, de sua livre vontade.
5609 16. Ao regressarem, foram interrogadas acerca dos motivos da sua fuga. Então
reconheceram ter sido enganadas pelo Diabo e ter, por esse facto, o espírito um pouco
desarranjado. Toda a comunidade das irmãs insistia com elas, sem que essas reprimendas
produzissem o mais pequeno efeito. Então as duas culpadas foram castigadas pela
vingança divina e, desse modo, aprenderam a expiar as suas maldades.

1
JONAS DE B ÓBIO , Vita santae Burgundofarae, abatissa Eboriacensis (=PL 87, 1070-1084; MGH - Scriptores
Rerum Merovingiarum IV, 1885 s; C. V OGEL , Paris 1969, 137). Jonas de Bóbio nasceu por volta do ano
600 e morreu em 659.
2
Trata-se de algumas religiosas que, ao quererem fugir do mosteiro, ficaram miraculosamente paradas no
lugar onde se encontravam.
3
Diabos.
JONAS DE BÓBIO 1345

A Madre Superiora procurava ansiosamente a causa desta punição celeste e, não


podendo descobri-la, exortava com insistência as duas religiosas, quando estavam prestes
a morrer, a reconhecer o seu crime numa confissão sincera. Mas as nossas duas irmãs
permaneciam em silêncio e recusavam o remédio (da confissão). Enquanto as açoitavam,
puseram-se a gritar: «Parai, parai um momento, não tenhais pressa»! As outras irmãs
perguntaram-lhes o que significavam tais palavras, e as culpadas responderam: «Não
vedes os etíopes3 que estão a chegar e nos querem levar»?
As que assistiam à cena, horrorizadas, ouviram de repente um grande ruído por
cima da célula e por entre as tapeçarias. A porta abriu-se e das sombras negras
chamavam-nas pelos seus nomes. Foi a custo que as irmãs presentes, depois de fazerem
o sinal da cruz, puderam continuar a recitar os salmos.
Perante este lamentável espectáculo, a Madre Superiora obriga as duas irmãs a
confessar as suas faltas, para poderem ser reconfortadas pela sagrada comunhão. As
culpadas, ao ouvirem falar de comunhão, arreganharam os dentes e puseram-se a uivar:
«Amanhã, amanhã» e repetiram: «Esperai, esperai um pouco», e a estas palavras
morreram.
17. Como a Superiora do mosteiro de modo nenhum quisesse que elas fossem 5609a
sepultadas juntamente com as outras, mandou-as enterrar fora do cemitério da
comunidade. Durante três anos, com muita frequência, sobretudo na Quaresma e até à
chegada da santa Páscoa e também na vigília do Natal do Senhor, foi visto aparecer nos
seus túmulos um globo de fogo, em forma de escudo, e ao mesmo tempo ouvia-se o
rumor de muitas vozes, entre as quais havia duas que gritavam com violência, como se
estivessem em tormentos, e que diziam: «Ai de mim! Ai de mim! Ai de mim!». A Superiora
do mosteiro... subiu ao túmulo, e tentou ver se os cadáveres permaneciam no sepulcro...,
mas aquilo que viu dentro do sepulcro foi um fogo extinto e um pouco de cinzas das
vestes...

Ilídio de Noyon

Homilia 1
Quando sobrevém alguma doença, não recorrais nem aos mágicos nem aos 5610
adivinhos..., mas que o doente ponha a sua fé unicamente na misericórdia divina, receba
com fé e devoção o sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo, e seja fiel em pedir à
Igreja o óleo benzido, com o qual ungirá o seu corpo em nome de Cristo. Segundo o
Apóstolo, a oração feita com fé restituirá a saúde ao doente, e o Senhor o aliviará.
E, desse modo, recuperará, juntamente com a saúde do corpo, também a da alma.

1
I LÍDIO DE N OYON , Homiliae (=PL 87, 593-658). Este bispo de Noyon (França) morreu em 660.
1346 SÉCULO VII

Máximo Confessor

Mistagogia 1
5611 2. A explicação simbólica das realidades inteligíveis mediante as realidades sensíveis
é ciência espiritual e sabedoria das realidades visíveis mediante as invisíveis...
5612 18. A confissão, por todos, do divino Símbolo da fé significa a misteriosa Eucaristia,
que durará eternamente, segundo regras e modos admiráveis da sapientíssima providência
de Deus a nosso respeito. Deste modo, aqueles que são dignos dela mostram o seu
reconhecimento para com os benefícios divinos, e, fora dela, não têm outro meio de
retribuir seja o que for pelos numerosos benefícios para com eles.
5613 21. Depois, como consumação de tudo, vem a participação no mistério. Ela transforma
em si mesma por graça e participação, e torna de tal modo semelhantes ao bem original
aqueles que comungam dignamente, que nada lhes falta, segundo o que pode ser
alcançado e é possível aos homens...
5614 24. Grandes são os mistérios que a graça permanente do Espírito Santo realiza e leva
à perfeição nos fiéis que se reúnem, com fé, por meio dos ritos que têm lugar na santa
sinaxe.
Assim o julgava o bem-aventurado ancião2, que não cessava de exortar todos os
cristãos a frequentar a santa igreja de Deus e a nunca se afastarem da reunião sagrada3
que aí se realiza, quer por causa dos santos Anjos que a ela assistem e tomam nota de
cada um dos que entram e por eles rezam..., quer também por causa da graça do Espírito
Santo que, de modo invisível, está sempre presente, mas sobretudo durante o tempo da
sagrada sinaxe, mudando e transformando cada um dos que estão presentes, modelando-
-os o mais divinamente possível, de modo proporcionado a cada um, e conduzindo-os às
realidades que se manifesta pelos mistérios que estão a ser celebrados, ainda que eles o
não sintam, se acaso são recém-nascidos em Cristo, e ainda não são capazes de
contemplar a profundidade das coisas que se realizam nem a própria graça da salvação
que opera neles, graça que se manifesta através de cada um dos símbolos divinos
realizados e que passa ordenadamente das coisas mais próximas até ao fim do mundo.
Na primeira entrada 4 [temos] a expulsão da infidelidade, o aumento da fé, a
diminuição do mal, o progresso da virtude, o desaparecimento da ignorância e o
desenvolvimento da ciência5. Na escuta da palavra divina6, [temos]a consolidação dos
hábitos e a disposições das coisas que já dissemos, ou seja, da fé, da virtude e da ciência.
Nos cânticos divinos que se seguem7, a submissão espontânea da alma às virtudes,

1
Máximo Confessor, Mystagogia (=PG 91, 657-717). Máximo nasceu em Constantinopla em 580. Foi secre-
tário do imperador Heráclio. Depois fez-se monge. Preso numa batalha, foi mutilado e morreu, em 662, como
confessor da fé ortodoxa.
2
Dionísio Areopagita.
3
a( g i/ a j sua/ c ewj .
4
kata\ me\ n prw/ t hn ei) / s odon ... É a pequena entrada do sacerdote oficiante e dos ministros.
5
gnw/ s ewj prosqh/ k hn .
6
dia\ de\ th= j a) k roa/ s ewj tw= n qei/ w n logi/ w n.
7
dia\ de\ tw= n e) p i\ tou/ t oij qei/ w n #) s ma/ t wn .
MÁXIMO O CONFESSOR 1347

assim como o prazer e a alegria espirituais que deles nasce. Na leitura sagrada do santo
Evangelho8, o fim do modo de pensar terreno, próprio do mundo sensível. No fechar das
portas9, que vem a seguir, [temos] a mudança e transposição da alma, quanto à sua
maneira de sentir, deste mundo corruptível para o mundo inteligível. Por essa
transposição, fechadas as sensações como se fossem portas, purificam-se das fantasias
do pecado. Na entrada dos santos mistérios10 [temos] uma ciência mais perfeita, mais
mística e totalmente nova acerca do plano de Deus para connosco. No ósculo divino11,
a identidade de todos com todos, e em primeiro lugar de cada um consigo próprio e com
Deus, nos mesmos pensamentos, sentimentos e amor. Na profissão do Símbolo da fé12,
a devida acção de graças pela forma inacreditável como obtivemos a salvação. No
triságio13, a união e igualdade em dignidade com os Anjos e a entoação uníssona e
perpétua da santificadora doxologia de Deus. Na Oração14, pela qual somos dignos de
chamar a Deus nosso Pai, [temos] a verdadeira filiação adoptiva na graça do Espírito
Santo. Naquele «um só é Santo...» 15, a graça e a familiaridade que nos une com o
próprio Deus. Na santa participação dos imaculados e vivificantes mistérios 16, a
comunhão e identificação com Ele, recebida participadamente por semelhança, e pelas
quais o homem é julgado digno de se tornar Deus.
Segundo a esperança infectível da nossa fé e a promessa anunciada, imutável e
certa, nós acreditamos que havemos de participar, no mundo que há-de vir, da realidade
verdadeira e própria dos dons do Espírito Santo em que tivemos parte na vida presente,
pela graça da fé, se guardarmos os mandamentos segundo as nossas forças, e assim
passaremos da graça da fé à graça da visão. Quando o nosso Deus e Salvador Jesus
Cristo nos transformar em Si, fará desaparecer os sinais de corrupção que em nós
existem e dar-nos-á gratuitamente os mistérios insondáveis, que nos foram mostrados
nos símbolos sensíveis daqui.
Não nos afastemos, pois, da santa Igreja de Deus. No santo ordenamento dos
símbolos divinos que nela se celebram, estão presentes os grandes mistérios da nossa
salvação, por meio dos quais a Igreja se vai formando, segundo Cristo, em cada um de
nós. Quando nos comportamos do modo mais digno que nos é possível, segundo a nossa
capacidade, [a Igreja] torna patente, numa vida segundo Cristo, aquela graça da filiação
adoptiva que nos foi dada pelo santo baptismo no Espírito Santo. Com todas as nossas
forças e diligência, tornemo-nos dignos dos dons divinos, agradando a Deus por meio de
boas obras.
A prova clara desta graça é a espontânea disposição de boa vontade para com o
próximo, e o efeito de tal disposição é o facto de qualquer homem que precisa da nossa
ajuda, se tornar para nós um familiar como o próprio Deus, e não o deixarmos abandonado
e descuidado...

8
dia\ de\ th= j i( e ra= j a) n agnw/ s ewj tou= a( g i/ o u Eu) a ggeli/ o u.
9
dia\ de\ th= j meta\ tau= t a tw= n qurw= n klei/ s ewj .
10
dia\ de\ th= j ei) s o/ d ou tw= n a( g i/ w n musthri/ w n .
11
dia\ de\ tou= qei/ o u a) s pasmou= .
12
dia\ de\ th= j tou= sumbo/ l ou th= j pi/ s tewj o( m ologi/ a j .
13
dia\ de\ tou= Trisagi/ o u .
14
dia\ de\ th= j proseuxh= j .
15
dia\ de\ tou= - ei/ = j A( / g ioj.
16
dia\ de\ th= j a( g i/ a j metalh/ y ewj tw= n a) x ra/ n twn kai\ zwopoiw= n musthri/ w n.
1348 SÉCULO VII

Ildefonso de Toledo

O conhecimento do baptismo 1
5615 24. O texto do exorcismo não deve ter palavras obscuras, nem difíceis de entender,
nem de uso raro, mas deve ser simples, adaptado, ardente e de tal modo claro e cheio de
força, que a sua simples audição possa expelir verdadeiramente o Príncipe do mundo.
5616 26. Diz-se que os catecúmenos, nalguns lugares, recebem o sal, que significa o
condimento da sabedoria.
5617 29. Aos que se convertem do erro do paganismo, depois do exorcismo tocam-se-lhes
os ouvidos com óleo, para que entendam a fé que recebem pelos ouvidos como palavras
verdadeiramente espirituais. Do mesmo modo, se lhes toca a boca, para que, pelo
conhecimento do seu Redentor, que lhes é entregue no Símbolo, acreditem na fé com o
coração para a justiça e a professem com a boca para a salvação.
5618 107. Esta fonte, que está cheia dos mistérios da salvação humana, com razão se sela
para a fechar2, como determina o Pontifical, e se bendiz para a abrir3. Fecha-se nos
dias da Quaresma, abre-se no tempo da Páscoa. Fechá-la na Quaresma significa que,
excepto em caso de gravíssima necessidade, nesses dias não se pode baptizar de modo
nenhum em todo o mundo. Abri-la na Páscoa, pela bênção4 do pontífice, significa que o
mistério da Ressurreição do Senhor está à disposição... Tal como fechar o lugar da
fonte é proibir o baptismo em toda a parte, assim também abrir a fonte é dar licença
geral de baptizar. Fecha-se a fonte com o selo do anel e abre-se com a bênção do bispo5
e os mistérios do sacramento.
5619 108. A celebração do baptismo apenas nos dois tempos de Páscoa e Pentecostes, nas
sedes dos bispos legítimos e na sua presença, foi estabelecida pela tradição dos Apóstolos
e dos Padres.
Nas igrejas paroquiais muito próximas das sedes dos bispos, não se deve fazer
isto, para não acontecer que, dividindo-se os povos por diversos lugares, acabe por não
haver a quem dar a graça da doutrina ou por se diminuir a dignidade venerável dos
pontífices. Pelo contrário, nas igrejas paroquiais situadas longe é conveniente autorizar
que isso se faça, para que, em razão da grande distância do caminho, não acabe por
diferir-se a graça que seria bom receber rapidamente. Fora destes dois tempos, só por
perigo de morte eminente se pode baptizar, com liberdade, em qualquer tempo.
5620 109. Então o bispo6 aproxima-se da fonte... e, orando a Deus, infunde nas águas a
capacidade7 de santificar... O bispo toca as águas com o sinal do lenho da cruz, e abre-se
a porta de salvação... Se agora não se tocassem as águas da fonte com o nome e com
o lenho da cruz de Cristo, não se alcançaria nenhum remédio de salvação. Acrescenta o
exorcismo, para que não se oculte, escondido algures, algo do contágio do Adversário

1
I LDEFONSO DE T OLEDO , De cognitione baptismi (=PL 96, 111-172; BAC 320). Santo Ildefonso nasceu em
Toledo no ano 607 e foi eleito bispo de Toledo em 657. Este tratado é constituído por uma série de textos
tirados da tradição, principalmente de Santo Agostinho. Santo Ildefonso morreu em 667.
2
Signatus clauditur.
3
Signatur ut reseretur.
4
Sanctificationem.
5
Sacerdotis.
6
Sacerdos.
7
Officia.
ILDEFONSO DE TOLEDO 1349

sinistro8. Derrama o óleo, para que a água participe daquele mistério, segundo o qual, no
princípio da criação, o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Pronuncia a bênção,
para que faça com que ele possa abolir o poder do Maligno.
110. Esta fonte é a origem de todos os mistérios. Tem sete degraus: três para descer, ao 5621
fazerem-se as renúncias, isto é, renúncia ao Diabo e seus anjos, às suas obras e às suas
ordens9; outros três para subir, pelas três confissões que fazemos, no Pai, no Filho e no
Espírito Santo, que são um só Deus na Trindade. O sétimo... é também o quarto...
Portanto, o baptizando desce por três degraus quando faz as três renúncias... E, deste
modo, ao chegar ao quarto degrau, que é um apoio firme, fica libertado dos inimigos a
que renunciou. Depois sobe pela confissão da Trindade. E o mesmo degrau, que foi o
quarto para a paz da liberdade, é o sétimo para a grande libertação.
111. Os compromissos são dois. O primeiro, pelo qual se renuncia ao Diabo, dizendo: 5622
Renuncio a ti, Diabo, e aos teus anjos, às tuas obras e às tuas ordens, a fim de não
o servir mais a ele... O segundo, pelo qual se crê em Deus, em nome da Trindade, a fim
de manter a força do seu amor e de permanecer com Ele nos seus louvores pelos
séculos sempiternos.
112. Depois, segundo o preceito do Senhor que disse: Ide, ensinai todos os povos, 5623
baptizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, o bispo acrescenta:
para que tenhas a vida eterna e mergulha a pessoa na água. Então se lhe manifesta a
firme promessa que o Senhor fez: Quem crê em Mim tem a vida eterna. Se se confere
o baptismo omitindo alguma das Pessoas, creia-se que não se realiza nada da solenidade
do baptismo, pois não se invoca verdadeiramente toda a Trindade...
113. Aos maiores e de idade adulta, o baptismo aproveita-lhes quer para se purificarem 5624
do pecado original, quer para o perdão das culpas actuais... Mas às crianças só lhes
aproveita para que o delito herdado da descendência de Adão seja perdoado por esta
regeneração. Se elas saírem deste mundo antes de ser regeneradas, não serão herdeiras
de Cristo no Reino de Deus... Por fim, as próprias crianças renunciam ao Diabo ou
crêem em Deus pela boca de outro, porque não podem falar por si mesmas...
114. Aqueles que recebem10 (os renascidos) do ventre da mãe Igreja, isto é, da fonte 5625
do baptismo, e que foram gerados pelo Espírito Santo como filhos adoptivos, devem
instruí-los quer antes quer depois de serem baptizados, não só com o exemplo, mas
também com as suas palavras. E, assim como ambos os sexos renascem da mesma
fonte, assim os dois sexos que recebem os renascidos devem praticar a doutrina da
salvação. Incluso devem ter consciência de que são garantes dela, pois respondem por
eles que renunciam ao Diabo, aos seus anjos e às suas obras, e afirmam que eles crêem
em nome da Trindade. Por isso, tanto os que recebem como os que são recebidos por
eles devem guardar com todo o cuidado o pacto que fizeram com Deus no sacramento
do baptismo...
116. Não há dúvida de que dar o baptismo não é permitido nem aos diáconos, nem aos 5626
clérigos, nem a qualquer pessoa, mas só aos sacerdotes... É, pois, evidente que só aos
sacerdotes é permitido dar o baptismo. O seu ministério sem o bispo ou o presbítero 11
nem aos diáconos é permitido, a não ser que os obrigue uma necessidade de doença ou
perigo e aqueles estejam longe. Em todo o caso, isto concede-se aos clérigos e aos fiéis
leigos, para que ninguém saia deste mundo sem o remédio de vida.
117. Pelo facto de imergir a criança na água, ela é baptizada na morte de Cristo, segundo 5627
diz Paulo: Todos nós que fomos baptizados em Cristo Jesus fomos baptizados na

8
Ex contagione sinistrae partis.
9
Imperiis.
10
Os que recebem são os padrinhos.
11
Absque episcopo vel presbítero.
1350 SÉCULO VII

sua morte, fomos sepultados juntamente com Ele pelo baptismo na sua morte. Do
mesmo modo, o facto de a criança ser tirada da água significa que ressuscita com
Cristo, uma vez que acrescenta o mesmo Apóstolo: Assim como Cristo ressuscitou dos
mortos para glória do Pai, assim devemos andar também nós numa vida nova...
Pelo facto de a submergir uma só vez, baptiza-se em nome de uma só divindade. E, se
a submergimos três vezes, significam-se os três dias da sepultura do Senhor. Por isso,
se a fé é uma só, não há contradição, mesmo que a prática seja diversa. Mas como os
hereges costumam partir a unidade da divindade por esse número das três imersões, é
mais de Deus o uso de uma só imersão pela Igreja de Deus.
5628 118. Uma vez recebido o baptismo, não é permitido reiterá-lo, de modo nenhum nem
por motivo nenhum...
5629 119. Há três géneros de baptismo. O primeiro baptismo é o da água e do Espírito... O
segundo é aquele em que, pelo martírio, alguém é baptizado no seu próprio sangue...
5630 120. O terceiro é a abundância de lágrimas, que acontece no arrependimento dos
pecadores. Realiza-se com esforço, mas, pela abundante piedade do Redentor, é seguro
para o perdão...
5631 121. Se puder provar-se que quaisquer hereges pertencentes a um cisma receberam o
baptismo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, não devem baptizar-se de novo,
mas apenas devem ser purificados com o crisma e a imposição das mãos...
5632 122. Depois de alguém ser submergido na água... e ser tirado da água..., depois de
cantado o cântico de acção de graças pela libertação, o baptizado é conduzido à unção
do santo crisma, para ser ungido com o Espírito de Deus, para que seja e se lhe chame
cristão, pela unção e nome de Cristo.
5633 123. O nome de Cristo vem de crisma, porque crisma diz-se unção... Uma vez que
somos raça eleita e sacerdócio real, depois do baptismo de água somos ungidos com o
crisma, para nos chamarmos cristãos, do nome de Cristo.
5634 124. O homem é ungido exteriormente pelo santo crisma e interiormente infunde-se-lhe a
força do Espírito Santo, para que, purificado na sua totalidade pelo baptismo, todo ele
cresça pela unção do Espírito, recebendo a alma a força da própria unção do Espírito
Santo...
5635 128. Ao abençoar com palavras, infunde-se o Espírito, ao tocar com as mãos mostra-se
o agir do poder espiritual. Assim, o rito da imposição da mão nos ofícios sagrados significa,
por esta imitação da acção divina, que as crianças... recebem de Deus, por meio do
sacerdote, a força da santificação...
5636 129. Depois do baptismo dá-se, a seu tempo, com a imposição da mão pelos bispos, o
Espírito Santo. Mostra-se que aconteceu assim nos Actos dos Apóstolos...
5637 130. Tal como é verdade que só pelo dom de Deus podemos receber o Espírito Santo,
também é verdade que não podemos dá-lo por nosso próprio poder...
5638 131. O crisma não deve ser consagrado... por mais ninguém senão pelo bispo, pois os
presbíteros, apesar de serem sacerdotes, não têm, contudo, o ponto culminante do
pontificado. É só aos pontífices que pertence confirmar12 e dar o Espírito Paráclito...
De facto, quando os presbíteros baptizam, quer na ausência quer na presença do bispo,
é lícito que eles unjam com o crisma os baptizados, mas com crisma consagrado pelo
bispo; mas não fazem a unção da fronte com o mesmo óleo, o que compete só aos
bispos, quando dão o Espírito Paráclito.
5639 132. Depois do banho da fonte, depois da vida nova, depois da unção do Espírito, o
homem deve ser ensinado a orar com palavras sinceras...

12
Consignent.
ILDEFONSO DE TOLEDO 1351

133. Quando dizemos: Pai nosso, que estais nos Céus... 5640
136. Depois da regeneração do nascimento espiritual, depois da graça da unção celeste, 5641
depois da doutrina sobre a Oração dominical, depois da invocação da paternidade divina,
é conveniente chegar já à participação na refeição celeste...
137. O que vedes é pão, e o que os vossos olhos vos declaram é o cálice. E, no entanto, 5642
o que a vossa fé, que deve ser instruída, afirma, é que o pão é o Corpo de Cristo e o
cálice é o Sangue de Cristo. Claro que isto foi dito em poucas palavras, o que talvez seja
suficiente para a fé. Mas a fé pede instrução, pois o Profeta diz: Se não acreditardes,
não entendereis. Podeis, portanto, dizer-me agora: «Mandaste-nos acreditar; expõe
para que compreendamos». Pode, de facto, nascer no espírito de um qualquer o seguinte
pensamento: «Sabemos que nosso Senhor Jesus Cristo recebeu o seu corpo da Virgem
Maria. Como criança foi amamentado, alimentado, cresceu, chegou à juventude, padeceu
perseguição dos Judeus, foi cravado no madeiro, morreu na cruz, foi sepultado, ressuscitou
ao terceiro dia, subiu ao Céu no dia que quis... Como é que o pão é o seu Corpo? E
como é que o que está no cálice é Sangue»? Estas coisas, irmãos, chamam-se mistérios13,
porque nelas vemos uma coisa e acreditamos outra. O que se vê tem aspecto corporal,
o que se entende tem fruto espiritual. Se queres, portanto, entender o corpo de Cristo,
escuta o Apóstolo quando diz aos fiéis: Vós sois corpo e membros de Cristo. Portanto,
se sois corpo e membros de Cristo, na mesa do Senhor está colocado um mistério;
recebestes o vosso mistério de acordo com o que sois; respondestes Amen, e ao
responderdes subscreveste-o. Ouves O Corpo de Cristo, e respondes Amen...
139. Depois de completamente terminados os mistérios anteriores, o neófito virá sem 5643
falta, durante alguns dias, às assembleias e coros da igreja, vestido de túnica branca;
Praticará a significação da festa e da santa solenidade... Deve manter-se no temor do
Senhor, cumprindo a sua vontade, amando a Deus e alegrando-se n’Ele...
142. A exortação é para vós, meninos que acabais de nascer, crianças em Cristo, nova 5644
prole da Igreja, dom do Pai, fecundidade da Mãe, rebentos piedosos, enxame novo,
fonte de honra paterna e fruto de fadigas, minha alegria e coroa minha. A todos vós que
permaneceis no Senhor, me dirijo com as palavras do Apóstolo: Vede que a noite já vai
adiantada e o dia está próximo. Rejeitai as obras das trevas e revesti-vos das
armas da luz. Andai, como convém, em pleno dia..., para vos revestirdes da vida que
revestistes com o sacramento. Todos vós que fostes baptizados em Cristo, estais
revestidos de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há
homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus. Isto está, portanto, nas
entranhas do sacramento. É, pois, sacramento de vida nova, que começa nesta vida
com a remissão de todos os pecados passados, mas se completará na ressurreição dos
mortos. Pelo baptismo, fostes sepultados juntamente com Cristo, na sua morte, a fim de
que, tal como Cristo ressuscitou de entre os mortos, assim também vós caminheis numa
vida nova. Agora caminhais pela fé, durante a peregrinação neste corpo mortal. Mas o
caminho seguro por onde caminhais é o próprio Cristo Jesus, que Se dignou fazer-Se
homem por nós... Sabemos que, quando Ele Se manifestar, seremos semelhantes a
Ele, porque O veremos como Ele é. E prometeu o mesmo no Evangelho: Se alguém
Me tem amor, há-de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e , e Nós
viremos a ele e nele faremos morada... Ilumine-vos Aquele que vos remiu, guarde-vos
Aquele que vos iluminou, para que não só vos defenda de todo o mal com a sua protecção
nesta viagem da vida, mas também vos conceda a sua glória na recompensa futura, em
presença da Trindade gloriosa, nosso Deus, que vive e reina pelos séculos dos séculos.
Amen.

13
Sacramenta.
1352 SÉCULO VII

Concílios do século VII 1

V Concílio de Paris (614) 2


5645 3. Nenhum bispo, enquanto for vivo, pode escolher o seu sucessor, e ninguém,
enquanto o bispo viver, tenha a audácia de se apropriar do seu lugar, seja qual for o
motivo ou o falso pretexto...

Concílio de Sevilha (618) 3


5646 7. Não é permitido ao presbítero preparar o crisma, nem assinalar os baptizados na
fronte, com o crisma... Também não lhe é permitido dar o Espírito Santo aos fiéis pela
imposição das mãos.

Concílio de Sevilha (619) 4


5647 7. O bispo, pela imposição das mãos aos fiéis baptizados..., dá-lhes o Espírito
Paráclito.
5648 8. Aquilo que só os bispos podem fazer legitimamente..., não devem pretender fazê-
lo os presbíteros, como, por exemplo, consagrar presbíteros, diáconos e virgens, ou
constituir altares pela bênção ou unção. Do mesmo modo, não lhes é permitido consagrar
igrejas ou altares...

IV Concílio de Toledo (633) 5


5646 2. Haja um só ordo de oração e de salmodia em toda a Espanha e na Gália: um só
ordo para a celebração das missas, um só ordo para os ofícios da manhã e da tarde, a
fim de que não haja mais diversidade de costume eclesiástico entre nós, reunidos na
mesma fé e no mesmo reino.
5650 6. No baptismo fazemos uma só imersão6.
5651 10. Alguns sacerdotes de Espanha recitam o Pai-Nosso apenas no domingo. Ora,
acontece, que esta oração deve ser recitada diariamente, como indica o seu próprio
título, que lhe chama oração quotidiana. Assim a designaram os santos Padres... Por

1
Concílios do século VII (=PL 84, 93-626; CCL 148; MANSI , X. XI. XII, XVIII; BRUNS , II; V IVES , Barcelona-
Madrid 1963; H EFELE -L EC LERCQ , Histoire des conciles, Paris, Letouzey 1938. III, 1212; SCh 354, Cânones
dos Concílios Merovíngios; FORTUNATO DE A LMEIDA , vol. IV, 39-46).
2
V Concílio de Paris (=CCL 148; SCh 354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
3
Concílio de Sevilha (=M ANSI , X; B RUNS , II; V IVES , Barcelona-Madrid 1963).
4
Concílio de Sevilha (=MANSI , X; B RUNS , II; V IVES , Barcelona-Madrid 1963).
5
IV Concílio de Toledo (=M ANSI , X; B RUNS, II; V IVES, Barcelona-Madrid 1963).
6
Simplam teneamus baptismi immersionem.
CONCÍLIOS 1353

isso, se algum sacerdote ou clérigo omitir esta Oração dominical quotidiana no ofício
público ou no privado7, uma vez julgado em virtude do seu orgulho, será multado ou
destituído da honra da sua ordem.
13. É sem razão que no ofício divino se utilizam apenas elementos e cânticos bíblicos 5652
e se rejeitam todos os hinos não canónicos em honra de Cristo, dos Apóstolos e dos
Mártires, como o fizeram os concílios de Braga e de Laodiceia. Se assim fosse, deveria
rejeitar-se também a doxologia Gloria ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo e o
Glória a Deus nas alturas, dado que os Anjos cantaram apenas a primeira parte desta
última, e foram eclesiásticos que compuseram as outras coisas que se seguem. Devem
cantar-se, em particular, os hinos de santo Hilário e de santo Ambrósio. Componham-se,
por isso, hinos, como foram compostas, para a Missa, preces e orações, súplicas e
imposições das mãos, dado que, se nada se cantar na igreja, todos os ofícios eclesiásticos
ficarão sem conteúdo... Tal como acontece com as orações, nenhum de vós, no futuro,
desaprove os hinos compostos em louvor de Deus, mas celebre-os como se faz na Gália
e na Espanha. Todo aquele que vier a rejeitar os hinos seja castigado com a excomunhão.
14. Em todos os ofícios solenes 8 deve dizer-se o hino dos três jovens. 5653
15. No fim dos salmos, deve cantar-se não: Glória ao Pai, mas: Glória e honra ao 5654
Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, à semelhança do salmo 28, 2.
16. As respostas no ofício devem ser cantadas com Glória (alguns omitem-no, porque 5655
às vezes parece não se adaptar bem). Só se deve repetir o começo quando o texto é
triste. A maneira correcta de proceder é esta: nos alegres acrescente-se «glória», e
nos mais tristes repita-se o princípio.
17. De acordo com a autoridade de numerosos concílios e os decretos sinodais dos 5656
dirigentes Romanos 9, deve ler-se o Apocalipse de São João como livro canónico desde
a Páscoa até ao Pentecostes, e nos ofícios do tempo 10.
20. O Aleluia deve ser cantado, não antes mas depois do Evangelho. 5657
26. O livro oficial paroquial a dar ao presbítero. Quando se ordenam presbíteros 5658
nas paróquias, devem receber do seu bispo o libellum officiale 11, para que presidam
como devem às igrejas que lhes foram entregues, e não ofendam, por ignorância, a
celebração dos divinos sacramentos. Do mesmo modo, quando vierem às ladainhas ou
ao concílio, dêem conta ao seu bispo da forma como celebram ou baptizam.
28. Se é subdiácono, receba a patena e o cálice. As insígnias do diácono são o orárion 5659
e a alva.
39. Alguns diáconos têm tanto orgulho, que se antecipam aos presbíteros e pensam 5660
que devem ser os primeiros no primeiro coro e os presbíteros no segundo; reconheçam,
portanto, que os presbíteros são mais elevados do que eles, estejam eles em que coro
estiverem.
40. Nem ao bispo nem ao presbítero é permitido usar dois orárion, quanto mais ao 5661
diácono, que é ministro deles! É conveniente que o diácono traga o orárion no ombro
esquerdo, porque ele ora, isto é, prega; convém que traga livre a parte direita, para
ajudar mais expeditamente o ministério sacerdotal. Deixem então depressa os diáconos
de usar dois orárion; usem apenas um e simples e não adornado com várias cores ou
dourados.

7
Estas palavras referem-se à recitação diária do ofício divino pelos clérigos.
8
In omnium missarum solemnitate.
9
São os Papas.
10
Missae tempore tanto pode significar missa como ofício.
11
Trata-se do Liber Ordinum.
1354 SÉCULO VII

5662 41. Todos os clérigos ou leitores, do mesmo modo que os diáconos e os sacerdotes,
devem rapar completamente o cimo da cabeça, deixando apenas, por baixo, uma coroa
em círculo. Não se faça como se tem visto fazer até aqui aos leitores das partes da
Galiza, que usam cabelo comprido como os leigos, rapando apenas um pequeno círculo
no alto da cabeça: este foi o rito dos hereges, nas Espanhas. Por isso, convém, para
eliminar o escândalo da Igreja, acabar com este sinal vergonhoso. Haja uma só tonsura
ou hábito, tal como se usa em toda a Espanha. Quem não observar isto será réu da fé católica.

Concílio de Chalon-sur-Saône (647/653) 12


5663 8. Quanto à penitência a cumprir pelos pecados, penitência que é o remédio da alma,
consideramos que ela é útil a todos. Os sacerdotes devem escutar a confissão dos
pecadores e impor-lhes penitência apropriada cada vez que eles se confessem. Assim
pensam unanimemente os bispos deste Concílio13.
5664 17. Uma vez que se produzem, por causa da presunção, muitos incidentes que
desagradam a Deus e são contrários aos santos cânones, que os bispos têm obrigação
de reprimir, o santo Sínodo prescreve que nenhum leigo se permita, nem na igreja, nem
no adro da igreja, suscitar qualquer espécie de escândalo ou de querela, nem brandir
armas, nem atacar ninguém para o ferir ou matar. Aquele que vier a fazê-lo seja, de
acordo com os estatutos canónicos, privado da comunhão pelo bispo do lugar onde isso
se tiver passado.
5665 18. Apesar da obrigação ser geral para todos os católicos e tementes a Deus de
observar o dia do Senhor, o primeiro da semana, decidimos, de acordo com as prescrições
dos antigos cânones, sem estabelecer qualquer nova regra, mas renovando as antigas,
que ninguém, no domingo, deve permitir-se qualquer actividade rural, isto é, lavrar, ceifar,
colher, roçar mato, ou fazer seja o que for relacionado com a cultura. Aquele que for
visto a entregar-se a isso seja corrigido com toda a espécie de sanções disciplinares.
5666 19. Acontecem muitos abusos que, se não forem corrigidos enquanto são ligeiros, se
tornam muitas vezes bastante graves. Todos sabem muito bem que é proibido, durante
as dedicações das basílicas ou nas festas dos mártires, às pessoas que afluem a essas
celebrações, cantar canções obscenas e vergonhosas, acompanhadas de coros femininos,
quando deviam orar ou escutar os clérigos que salmodiam. Por isso, convém que os
bispos do lugar as afastem e expulsem dos seus átrios e que, se elas se recusarem a
emendar-se por sua livre iniciativa, sejam excomungadas ou experimentem o aguilhão
da disciplina.

CARTA DO SÍNODO AO BISPO TEODORO DE ARLES

5667 Ao seu senhor sempre caro, Teodoro, a assembleia dos bispos que acaba de
se reunir em Chalon, por vontade de Cristo.

12
Concílio de Chalon-sur-Saône (=CCL 148; SCh 354, Cânones dos Concílios Merovíngios). Este Concílio
realizou-se entre 647 e 653.
13
Vogel pensa que se trata da «penitência tarifada», outros autores, que se trata da «penitência pública». De
poenitentia vero peccatorum, quae est medella animae, utilem omnibus hominibus esse censemus; et ut
poenitentibus a sacerdotibus data confessione indicatur poenitentia, universitas sacerdotum noscitur
consentire.
CONCÍLIOS 1355

Reunidos em assembleia na basílica de São Vicente, esperámos a todo o instante


a vossa vinda, porque tínhamos sabido que vos encontráveis nos arredores, e mesmo
dentro da cidade. É fácil de compreender a razão de não terdes querido aparecer neste
concílio, uma vez que se dizem e tornam públicas muitas coisas contra vós, quer acerca
da vossa vida chocante, quer a propósito da vossa distorção dos cânones, o que nos
causa muita pena. Temos também sob os nossos olhos, confirmado pela vossa mão e
pelas mãos dos vossos comprovincianos, o escrito onde se prova que fizestes profissão
de penitência. Ora nós pensamos que também vós lestes, e nós próprios não o ignoramos,
que todo aquele que faz profissão pública de penitência não pode ocupar nem dirigir
uma sede episcopal 14. Por isso, ao mesmo tempo que saudamos a vossa Beatitude,
significamos-lhe respeitosamente que, até ao próximo concílio, vos deveis abster de
governar a sede de Arles, da qual, é certo, ocupastes a cadeira pontifical...

Concílio de Ruão (650) 15


13. Doravante, a Eucaristia não será deposta nas mãos dos leigos, mas ser-lhes-á 5668
dada na boca.
14. Os sacerdotes devem aconselhar os seus paroquianos 16 a mandar à missa, nos 5669
domingos e dias de festa, os boieiros, os porqueiros, os pastores e os trabalhadores que
vivem habitualmente no interior das terras ou das florestas, por vezes como se não
fossem pessoas17, ou que ao menos lhes permitam vir. Na verdade, também a estes os
remiu Cristo com o seu sangue precioso. Se os patrões não ouvirem este apelo, serão
eles que responderão pela falta dos seus servos.
15. O povo deve ser informado de que, nos domingos e dias de festa, todos os fiéis, 5670
sem excepção, devem ir às Vésperas, às vigílias nocturnas e à missa. Para isso,
estabeleçam-se em cada cidade e em cada aldeia homens públicos, sinceros e tementes
a Deus, que insistam com os preguiçosos e os negligentes, a fim de irem sem demora ao
culto 18 de Deus. Estes homens comprometer-se-ão, por juramento19, a manifestar aos
sacerdotes respectivos as culpas próprias de cada um dos que tiverem sido negligentes
ou transgressores dos deveres, sem levarem em consideração a amizade ou a afinidade.

VIII Concílio de Toledo (653) 20


6. Os subdiáconos afirmam que lhes é lícito casar, pois desconhecem ter recebido a 5671
bênção do pontífice. Por isso, a fim de obviar a toda e qualquer desculpa, mandamos
que se observe o seguinte: quando se ordenarem subdiáconos, juntamente com os vasos
do ministério dê-lhes o bispo a bênção, como é tradição antiga de algumas Igrejas.

14
Sobre esta incompatibilidade ver C. Vogel, La discipline pénitentielle en Gaule, 43 e 55-58.
15
Concílio de Ruão (=CCL 148; SCh 354, Cânones dos Concílios Merovíngios).
16
Plebes subditas sibi.
17
Et ideo velut more pecudum vivunt.
18
Servitium.
19
Sacramento adstringantur.
20
VIII Concílio de Toledo (=M ANSI , X; B RUNS , II; V IVES , Barcelona-Madrid 1963).
1356 SÉCULO VII

IX Concílio de Toledo (656) 21


5672 1. Como acontece que a festa do dia em que o Anjo anunciou à Virgem a Encarnação
do Verbo não se pode celebrar condignamente, por cair algumas vezes nos dias da
Quaresma ou da festa pascal, nos quais, por preceito antigo, não é conveniente celebrar
solenidades dos santos, e também porque não é conveniente falar da Encarnação do
Verbo nos dias em que o próprio Verbo, depois de morrer no seu corpo, se ergueu pela
ressurreição gloriosa, determina-se, por lei especial, que o oitavo dia antes do nascimento
do Senhor seja tido como dia soleníssimo e celebérrimo da Mãe22.

Concílio de Nantes (658) 23


5673 8. Nenhum sacerdote poderá ter mais de uma igreja, se não puder fornecer a cada
uma das que ele serve os presbíteros e clérigos menores, para aí se cantar em cada dia
o ofício nocturno e diurno
5674 9. Todos os domingos e dias de festa o sacerdote distribuirá o pão bento ou as eulógias
àqueles que não comungam, devendo benzê-las com esta oração: Senhor santo, Pai
omnipotente, Deus eterno, abençoai este pão com a vossa bênção santa e espiritual,
para que se torne, para todos, salvação da alma e do corpo e defesa contra todas
as enfermidades e insídias dos inimigos.

Concílio de Mérida (666) 24


5675 10. Nós, os bispos abaixo citados, aprovámos por deliberação comum, que cada uma
das nossas igrejas catedrais tenha o seu arquipresbítero, o seu arquidiácono e o seu
primeiro clérigo; esta determinação é santa e deve ser observada por nós. Também foi
aprovado por este grande Sínodo, que todo aquele que chegar a este ofício preste humilde
reverência ao seu pontífice, para não incorrer de modo nenhum no pecado do orgulho;
cada um persista com simplicidade na ordem em que foi constituído e guarde a dignidade
do seu ofício...

Concílio de Losne (673-675) 25


5676 5. Para a instituição de um bispo, de acordo com os decretos canónicos, além da
idade legítima e da eleição, também é preciso o consentimento do povo.

21
IX Concílio de Toledo (=M ANSI , X; B RUNS , II; V IVES , Barcelona-Madrid 1963).
22
Qua de re, quoniam die invenitur angelus virgini Verbi conceptum et nuntiasse verbis et indidisse
miraculis, eadem festivitas non potest celebrari condigne, cum interdum quadragisimae dies vel paschale
festum videtur incumbere, in quibus nihil de sanctorum solemnitatibus, sicut ex antiquitate regulari
cautum est, convenit celebrari: cum etiam et ipsam incarnationem Verbi non conveniat tunc celebritatibus
praedicari, quando constat idipsum Verbum post mortem carnis gloria resurrectionis attoli, adeo speciali
constitutione sancitur, ut ante octavum diem, quo natus est dominus, genitricis quoque eius dies habeatur
celeberrimus et praeclarus.
23
Concílio de Nantes (=H EFELE, III; M ANSI , XVIII).
24
Concílio de Mérida (=PL 84, 301-626).
25
Concílio de Losne (=CCL 148; SCh 354, Cânones dos Concílios Merovíngios). Realizado desde 673 a
675.
CONCÍLIOS 1357

10. Os bispos que neste momento não vivem como homens espirituais, devem 5677
corrigir--se e emendar-se no prazo fixado; de outro modo, sejam degradados do seu ofício.
18. Decretamos formalmente e prescrevemos absolutamente que todo o bispo colocado 5678
à frente de uma Igreja deve pregar a palavra divina ao povo que lhe está confiado, todos
os domingos e solenidades...

III Concílio de Braga (675) 26


1. Bem convenientemente nos achamos reunidos pelo Divino Espírito na cidade de 5679
Braga, para tratar das coisas cuja prática, na Igreja de Deus, está pervertida...
2. Dado que todo o crime e pecado é apagado pelo Sacrifício oferecido a Deus, que 5680
nos resta de tudo o mais para dar ao Senhor em expiação dos delitos, se na mesma
oblação do Sacrifício se peca? Com efeito, ouvimos dizer que alguns, persistindo em
atitude cismática contra as divinas ordenações e instituições apostólicas, oferecem no
divino Sacrifício leite em vez de vinho; que outros administram aos fiéis a Eucaristia
molhada no vinho para complemento da comunhão; que alguns há que não oferecem no
sacramento do cálice do Senhor o vinho espremido, mas dão a comunhão aos fiéis com
uvas que foram oferecidas.
Não é difícil provar, pela própria fonte da verdade, donde nos veio a instituição
dos mistérios dos sacramentos, que todas estas coisas são contrárias à doutrina evangélica
e apostólica e opostas ao costume eclesiástico. De facto, quando o Mestre da verdade
entregou aos seus discípulos o verdadeiro Sacrifício da nossa salvação, não vemos que
abençoasse e lhes desse leite neste sacramento, mas apenas o pão e o cálice. Diz, com
efeito, a verdade evangélica: Jesus tomou o pão e o cálice e, abençoando-os, deu-os aos
seus discípulos. Deixe, portanto, de se oferecer leite no Sacrifício, pois é manifesto, e o
exemplo da verdade evangélica torna-o claro, que não é permitido oferecer mais nada
senão pão e vinho.
Quanto ao distribuir ao povo a Eucaristia molhada no cálice para complemento da
comunhão, não admite tal o citado testemunho do Evangelho, onde Cristo entregou aos
Apóstolos o seu Corpo e Sangue, recomendando-lhes que fizessem memória de cada
coisa separadamente, do pão e do cálice. Não lemos que Cristo lhes desse o pão molhado,
excepto àquele discípulo, relativamente ao qual o pedaço molhado serviu para indicar
quem ia ser o vendedor do seu Mestre, e não para designar a instituição deste sacramento.
Dar a comungar ao povo o cacho não espremido, isto é, os bagos de uvas, é coisa
inteiramente desconhecida. Com efeito, o cálice do Senhor, segundo um doutor já explicou,
deve oferecer-se com água misturada no vinho; na água simboliza-se o povo e no vinho
o Sangue de Cristo. Quando no cálice se mistura a água com o vinho, o povo une-se a
Cristo; a multidão dos crentes incorpora-se e junta-se com Aquele em quem crê, e esta
união e mistura de água e vinho acontece de tal modo no cálice do Senhor, que já não
pode separar-se; se alguém oferecer só vinho, o Sangue de Cristo como que está sem
nós; e, se oferecer apenas água, está o povo sem Cristo. Quando se oferecem as uvas
e se apresenta, portanto, apenas aquilo de que se extrai o vinho, despreza-se o sacramento
da nossa salvação, o qual é significado pela água; o cálice do Senhor não pode, portanto,
ser só água ou só vinho, mas ambas as coisas misturadas.
Como a este respeito já tem havido muitas e repetidas sentenças dos nossos
maiores, cuja religiosa piedade para com Deus explicou suficientemente as práticas
destes sacramentos e declarou as suas verdadeiras instituições, deve cessar de vez

26
III Concílio de Braga (=PL 84, 585-592; M ANSI , XI; Fortunato de A LMEIDA , vol. IV, 39-46).
1358 SÉCULO VII

todo o erro e abuso, pois nem uma associação de perversos é capaz de enfraquecer o
senado da verdade. Daqui por diante não deve ser permitido a ninguém oferecer o
divino Sacrifício senão de acordo com os decretos dos antigos concílios: apenas pão e
o cálice de vinho misturado com água; e todo o que transgredir este preceito será
suspenso de oferecer o Sacrifício, até que, emendado pela legítima satisfação da
penitência, seja restituído ao ofício da sua ordem, que perdeu.
5681 3. Deve pôr-se todo o cuidado e diligência para que aqueles que obtêm lugares de
responsabilidade não façam injúria aos sacramentos celestes. De facto, foi-nos relatada
uma coisa horrível de se ouvir e execrável à vista: que alguns sacerdotes, levados por
sacrílega temeridade, se servem dos vasos sagrados para os seus usos pessoais e os
utilizam para neles colocar as iguarias que hão-de comer. É com pasmo e com lágrimas
que deploramos tal maldade, lamentando que a ousadia humana prepare para si a comida
nos vasos em que se invocou o Espírito Santo; é triste que haja quem, embriagado,
ponha comida de carnes onde celebrou os divinos mistérios, e que, onde recebeu o
sacramento inefável para expiação dos pecados, aí mesmo farte o seu irreverente apetite.
Por isso, toda a pessoa que, daqui em diante, tenha a ousadia de utilizar
conscientemente, para seu uso pessoal, os vasos dos divinos mistérios ou neles coma ou
beba, seja deposta do seu grau ou ofício; bem entendido que, se for secular, ficará
submetida à excomunhão perpétua; e, sendo religiosa, será deposta do ofício. Na mesma
pena incorrerão aqueles que, sabendo-o, utilizarem para seu uso pessoal os ornamentos
eclesiásticos, véus, ou quaisquer outros paramentos ou alfaias, ou os venderem ou derem
a outros.
5682 4. Como sabemos, está determinado, por antiga decisão eclesiástica, que todo o
sacerdote, quando é ordenado, deve ter os dois ombros cobertos com o orárion. Isto
faz-se para significar que aquele a quem se manda permanecer imperturbável, quer nas
coisas prósperas quer nas adversas, em toda a parte deve aparecer revestido do ornamento
das virtudes. Por que razão não usa ele, durante o Sacrifício, aquilo que, sem qualquer
dúvida, recebeu no sacramento? É, de facto, muito conveniente que aquilo que cada um
recebeu na consagração o utilize na oblação ou na recepção da sua salvação. Isto é,
quando o sacerdote for à celebração da missa, quer para oferecer por si mesmo o
Sacrifício a Deus, quer para receber o sacramento do Corpo e Sangue de nosso Senhor
Jesus Cristo, não vá sem ambos os ombros cobertos do orárion, tal como quando foi
consagrado no momento da sua ordenação. E faça-o de tal modo que um só e o mesmo
orárion cubra juntamente o pescoço e ambos os ombros e faça o sinal da cruz no seu
peito27. Se alguém o fizer de outra maneira, incorrerá na devida excomunhão.
5683 5. Apesar de os antigos cânones terem estabelecido preceitos decisivos e múltiplas
ordenações acerca (da habitação do clero com mulheres), nós, contudo, desejando acabar
rapidamente com todo o desejo de relações imorais, determinamos, como preceito
inviolável, que nenhum sacerdote ou qualquer membro do clero, ouse juntar-se, em
segredo e sem testemunhas honestas e competentes, com quaisquer mulheres,
exceptuando a mãe; e não só com mulheres estranhas, mas nem mesmo com familiares
e irmãs, para não suceder que a liberdade do trato com parentes e irmãs acabe por
facilitar a realização do crime. Aquele que transgredir este preceito saiba que fica sujeito
por seis meses às leis da penitência.
5684 6. É, sem dúvida, bom que os sacerdotes manuseiem com familiaridade os divinos
mistérios; mas deve evitar-se cuidadosamente que alguém utilize, em benefício da sua
própria vaidade, aquilo com que deveria agradar só a Deus em pureza de consciência.
Porquanto está escrito: Ai daqueles que fazem a obra do Senhor fraudulenta e
descuidadamente. Desejamos pôr termo ao detestável atentado de alguns bispos, que

27
O orárion deve cruzar-se no peito.
CONCÍLIOS 1359

foi denunciado ao nosso congresso. Constou-nos que alguns bispos, ao irem para a
igreja, na solenidade dos mártires, levam as relíquias ao pescoço e, para se vangloriarem
com maior fausto diante dos homens (como se eles mesmos fossem a arca das relíquias),
são levados em cadeiras por diáconos revestidos de alvas.
Deve extirpar-se inteiramente um tão detestável atentado, para que, sob a
aparência de santidade, não prevaleça uma mera vaidade disfarçada, até ao ponto de
cada um não reconhecer com moderação os limites da sua ordem. Observe-se, pois,
quanto a isto, o antigo e solene costume: em qualquer festividade leve-se aos ombros a
arca de Deus com as relíquias, não os bispos, mas os diáconos, pois sabemos que na
antiga lei lhes era imposto e mandado este encargo. Se o bispo decidir que é ele próprio
que irá transportar as relíquias, não seja levado em cadeira pelos diáconos, mas antes, o
próprio bispo irá a pé, em procissão com o povo, levando as santas relíquias de Deus,
até às sagradas igrejas do ajuntamento. E todo aquele que, sabendo isto, deixar de
cumprir a presente ordenação, seja suspenso de oferecer o Sacrifício, enquanto
permanecer nesse abuso.
7. Ao passo que o santo Apóstolo manda exortar, rogar e suplicar com toda a 5685
paciência e doutrina, constou-nos que alguns dos nossos irmãos se enfurecem contra os
súbditos, mesmo honrados, com castigos próprios de salteadores. É evidente que os que
já receberam graus eclesiásticos, isto é, os presbíteros, abades e diáconos, não podem,
excepto no caso de culpas mais graves e mortais, ser sujeitos à flagelação. Não é digno
de um prelado, a seu gosto e arbítrio, sujeitar os seus mais honrados membros aos
açoites e à dor, não aconteça que, ferindo sem medida os membros que lhe estão sujeitos,
se veja privado do respeito que lhe é devido pelos súbditos, segundo aquele ditado de um
sábio: Aquele que é castigado moderadamente acata quem o castiga, mas a demasiada
aspereza do castigo não leva à correcção nem à salvação. Pelo que, se alguém, inchado
com a faculdade do poder de que está revestido, castiga, só por maldade, de maneira
diferente da que pertence aos súbditos honrados, receba a sentença de excomunhão e
degredo na proporção do castigo que der.
8. Sendo coisa abominável procurar obter por dinheiro o dom do Espírito Santo, e, 5686
apesar de haver, a esse respeito, muitas e diversas determinações dos antigos cânones,
é todavia necessário proibir repetidas vezes o que incessantemente se tenta obter. Por
este novo decreto, ordenamos que todo aquele que, por conferir algum grau do sacerdócio,
aceitar, antes da ordenação, qualquer dádiva ou promessa dela, e também o que, depois
de ordenado, se atrever a dar alguma coisa por isso, tanto o que der, como o que receber,
segundo a sentença do concílio de Calcedónia, seja deposto da sua ordem.
9. Não convém que os reitores da igreja sejam diligentes nos seus próprios interesses 5687
e remissos nas coisas eclesiásticas. Consta-nos, de facto, que alguns sacerdotes fatigam
as famílias da igreja no seu próprio serviço, para aumentar os lucros da sua fazenda,
alimentando-as a expensas das coisas do Senhor. É preciso, pois, um decreto especial
que reprima todo aquele que se descuide em beneficiar as coisas da igreja; deve procurar
saber-se se esses trabalhos foram para melhoramento da igreja, ou para fazer aumentar
os seus próprios bens; se com isto os bens eclesiásticos foram negligenciados, se
deterioraram ou se perderam; quanta tiver sido a diminuição causada a estes, tanto
deve restituir aquele dos seus próprios bens a essa igreja, com cuja fazenda e meios for
provado que aumentou as suas próprias obras. Se, ao contrário, alguma coisa gastou do
seu em benefício da igreja, ou sofreu algum dano ou perda, desde que o possa provar,
tudo lhe deve ser restituído pelos bens da mesma igreja, em cujo proveito mostrar que o
empregou.
Resta dar graças ao Deus Omnipotente, e depois rogar que o nosso piedosíssimo
rei Vamba, que ama a Cristo nosso Senhor e nos convocou para esta reunião salutar,
tenha paz, saúde e muitos anos de vida, e suplicar à divina clemência que a glória de
1360 SÉCULO VII

Cristo consolide o seu reinado até à última velhice, por graça do mesmo, que com o Pai
e o Espírito Santo vive e é glorificado, Deus Trindade, pelos séculos dos séculos. Amen.
Leodecísio, em nome de Cristo, bispo, por sobrenome Julião, reli e juntamente
com os meus santos co-epíscopos subscrevi estas Constituições, que aprovámos por
inspiração de Deus.
Genetivo, em nome de Cristo, bispo da Igreja de Tui, do mesmo modo.
Froarico, por mercê de Deus, bispo da Igreja Portucalense, do mesmo modo.
Bela, em nome de Cristo, bispo da Igreja Britoniense, do mesmo modo.
Isidoro, bispo da Igreja de Astorga, do mesmo modo.
Alário, por mercê de Deus, bispo da Igreja de Orense, do mesmo modo.
Rectogenes, em nome de Cristo, bispo da Igreja de Lugro, do mesmo modo.
Idulfo, por sobrenome Félix, bispo da Igreja de Iria, do mesmo modo.

Sínodo de Catar (676) 28


5688 13. Uma mulher não pode casar-se sem a vontade de seus pais, sem a mediação da
santa cruz e sem a bênção do sacerdote: as jovens ainda não casadas e que alguém vai
pedir em casamento à casa paterna, segundo a lei cristã, devem, segundo o costume dos
fiéis, casar-se com o acordo dos seus pais, com a mediação da santa cruz do nosso
Salvador e a bênção do sacerdote.
Como não é muito fácil, tanto para os cristãos como para os povos alheios ao
temor de Deus, violar um matrimónio legítimo e ligar-se a outra pessoa, é preciso que o
contrato de casamento seja concluído em presença do nosso Salvador, afim de que, se
os esposos forem infiéis ao seu casamento, tenham como testemunha o sinal da nossa
vitória, no qual tudo o que está escondido será revelado, e as nossas obras serão julgadas
diante do temível tribunal de sua majestade.
Por isso, os fiéis devem começar pela bênção sacerdotal, a fim de poderem concluir
a aliança do seu lar com a bênção, de acordo com a sua esperança. Mas, se
desobedecerem a esta prescrição, como se quisessem unir-se de maneira nova,
desprezando a lei, e se enganarem mutuamente, devem separar-se sem reivindicação,
pois não receberam a bênção do sacerdote, e os juízes em função não os julgarão dignos
de ser dispensados desta obrigação. Devem até ser imediatamente condenados pela
Igreja.

Sínodo anglo-saxónico de Wessex (690) 29


5689 2. As crianças devem ser baptizadas nos trinta dias (a seguir ao nascimento); se
assim não for, (os pais) pagarão trinta soldos de multa; se a criança morrer a seguir sem
baptismo, serão confiscados todos os bens dos (pais).

28
Sínodo de Catar (=H EFELE-D E C LERCQ, III, 1212).
29
Sínodo anglo-saxónico da Wessex (=M ANSI , XII, 57).
CONCÍLIOS 1361

Concílio Quinisexto (692) 30


48. Quando alguém é promovido ao episcopado, a sua esposa deve separar-se dele 5690
por consentimento mútuo. E, quando ele for consagrado bispo, ela retirar-se-á para um
mosteiro afastado da habitação do seu marido, que proverá às suas necessidades. Ela
será até, no caso de se mostrar digna, elevada à dignidade do diaconado. 52. Façam-se
os pré-santificados em todos os dias de jejum da santa Quaresma, excepto nos sábado,
nos Domingos e no dia santo da Anunciação. 55. Ouvimos dizer que, na cidade de
Roma, ao contrário da observância eclesiástica tradicional, se jejua nos sábados da
Quaresma. O santo Sínodo foi de parecer que também na Igreja de Roma tem força o
cânone que diz: «Se algum clérigo jejuar no Domingo ou no sábado, excepto num único
sábado, seja deposto, e se for leigo seja excomungado. 81. Como viemos a saber que
nalguns lugares, no hino em que se canta três vezes «Santo», depois do «Santo imortal»
se acrescenta «Que por nós foi crucificado, tende piedade de nós», coisa que é alheia à
piedade dos antigos santos Padres, mandamos que tal frase seja excluída deste hino...

XVI Concílio de Toledo (693) 31


6. Foi trazido ao nosso conhecimento que em certos lugares das Espanhas alguns 5691
sacerdotes, por ignorância ou imprudência, não oferecem em sacrifício, na mesa
do Senhor, juntamente com o vinho e a água, pães puros e preparados com todo o
cuidado..., mas antes pequenos pedaços de pão retirados daquele que usam na sua
alimentação... Ora, Mateus conta assim a verdade evangélica: Enquanto comiam,
Jesus tomou o pão e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e deu-o aos
seus discípulos. O mesmo diz Marcos: Enquanto comiam, Jesus tomou um pão
e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e entregou-o aos discípulos. E
igualmente Lucas: Tomou, então, o pão e, depois de dar graças, partiu-o e
distribuiu-o por eles. O Apóstolo diz de maneira semelhante: O Senhor Jesus,
na noite em que foi entregue, tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e
disse: Isto é o meu Corpo, que é entregue por vós. Por isso, se alguém procede
de outro modo que não seja tomar um pão inteiro, pronunciar a bênção e parti-lo,
dando a cada um dos discípulos um pedaço, está a contradizer-se... Aliás, as palavras
do Redentor dão testemunho de que Ele tomou um pão inteiro e não uma parte, e
que foi depois de dizer a bênção que o partiu e deu um pedaço a cada um dos
discípulos... São pois dignos de censura os sacerdotes que, para a consagração, se
servem dos pães preparados para seu uso e dos quais retiram um pedaço redondo...
As oblatas do sacrifício devem ser confeccionadas de propósito, em pequena
quantidade, para que, se algumas sobrarem, possam guardar-se numa gaveta
pequena..., a fim de se conservarem melhor, ou, no caso de ser preciso consumi-
-las, o estômago daquele que as consome não fique demasiado cheio, como se
tivesse um tumor 32 ...

30
Concílio Quinisexto de 692 (=MANSI , XI).
31
XVI Concílio de Toledo (=PL 84, 527-552; M ANSI , X; B RUNS , II; V IVES , Barcelona-Madrid 1963).
32
Ex studio preparati, modica tantum, ut eorum reliquae aut ad conservandum modico loculo... facilius
conserventur, aut, si ad sumendum fuerit necessarium, non ventrem illius quae sumpserit, gravis farciminis
onere premat...
1362 SÉCULO VII

Sacramentário Gregoriano Hadriano 1

5692 1. Em nome do Senhor. Este livro dos sacramentos2, apresentado segundo o círculo
do ano, editado por São Gregório, Papa romano, a partir do livro autêntico da biblioteca
palatina3. Como se celebra a missa romana4.
5693 2. No princípio o Introito, de acordo com o tempo, ou seja, os dias de festa ou
comuns, depois Kyrie eleison, a seguir, se o bispo estiver presente, mas só nos
domingos e dias de festa, diz-se Gloria in excelsis Deo; os presbíteros não o dizem,
excepto na Páscoa. Quando se diz a ladainha não há Gloria in excelsis Deo, nem se
canta Alleluia. Depois diz-se a Oratio, seguindo-se o Apostolum. Depois o Gradalem
ou o Alleluia. A seguir lê-se o Evangelium. Depois o Offertorium, e diz-se a Oratio
super oblata; uma vez terminada, o sacerdote diz em voz alta:
5694 3. Per omnia saecula saeculorum. Amen. / Dominus vobiscum / Et cum spiritu tuo /
Sursum corda / Habemus ad dominum.
5695 5. Adições no Cânone Romano. Memória do bispo: «... o nosso bispo N. e todos
os bispos que são fiéis à verdade e professam a fé católica e apostólica».
5696 282. Para baptizar um enfermo: confirmação e comunhão. Depois unge-o com
crisma na cabeça, dizendo esta oração: Deus todo-poderoso, Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo, que te regenerou pela água e pelo Espírito Santo e te perdoou todos os
pecados, unge-te com o crisma da salvação, para a vida a eterna.
A seguir dá-lhe a comunhão5.
5697 332. Quinta-Feira da Ceia do Senhor: Bênção do óleo do crisma dentro da missa.
Neste mesmo dia, na missa, confecciona-se, em último lugar, o crisma, antes de se
dizer: Por Cristo criais todos os bens. Levam as âmbulas apresentadas pelo povo e
benzem-nas, quer o senhor Papa quer todos os presbíteros 6.
5698 376. Oração para confirmar as crianças.
5699 836. Orações para velar as esposas...
5700 982. Fórmula do baptismo. Baptiza-o e unge-o com crisma no cimo da cabeça,
dizendo: N., eu te baptizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo7.
5701 994. Oração para fazer uma diaconisa.
5702 995. Oração para as servas de Deus que vão ser veladas e oração depois da
tomada do véu.

1
Sacramentarium Gregorianum Hadrianum ex authentico (=J. DESHUSSES , Le Sacramentaire Grégorien,
Fribourg, 1971 [Spicilegium Friburgense 12]; E. L ODI , Roma 1979, 727-764). Chama-se-lhe «Hadrianum»
porque o exemplar primitivo do Sacramentário foi enviado pelo Papa Adriano I (772-795) a Carlos
Magno. As suas notas características são: o Temporal misturado com o Santoral (excepto da Septuagésima
até à Páscoa); estrutura estacional com os títulos das basílicas romanas à cabeça de cada missa celebrada
solenemente pelo Papa. Colocamo-lo no final do séc. VII (695).
2
Sacramentorium.
3
O exemplar autêntico enviado pelo Papa Adriano I foi depositado na biblioteca palatina de Aix-la-
Chapelle. Era deste exemplar que se faziam as cópias a que se refere este texto.
4
Qualiter missa Romana celebratur. Este preâmbulo do Hadrianum é uma espécie de Ordo abreviado,
que indica o essencial do ordinário romano, tendo em vista os povos da Gália que tinham até aí praticado
outra liturgia.
5
Communicas et confirmas eum, isto é, fá-lo participar no pão e no cálice.
6
Cf. Ordo XXXIV B, n. 11.
7
Ill. talis, baptizo te in nomine Patris et Filii et Spiritus sancti.
ABADE PAMBO 1363

Abade Pambo

Ditos 1
Um discípulo de Pambo fora a Alexandria vender o produto do seu trabalho. Tinha 5703
assistido às liturgias e admirado os cânticos. Ao regressar, manifestou o seu desejo de
fazer o mesmo. O ancião respondeu-lhe:
Infelizes de nós, meu rapaz! Está perto o tempo em que os monges abandonarão
o alimento sólido, palavra do Espírito Santo, para se entregarem a cânticos e a tons.
Que compunção, que lágrimas podem nascer desses tropos, quando se está na igreja ou
na cela e se eleva a voz como um boi?... Os monges não vieram para esta solidão para
estar a empertigar-se diante de Deus, para cantar árias, ritmar tons, agitar as mãos e
saltar dum pé para o outro. O que devemos é oferecer as nossas orações ao Senhor,
com temor e tremor de Deus, com lágrimas e gemidos, com a voz cheia de reverência e
pronta à compunção, contida e simples.

Pseudo-Germano de Paris
(Ver Rito Galicano, nn. 6781-6814)

Exposição da Missa Galicana 2


As preces que os diáconos cantam pelo povo têm a sua origem nos livros de 5704
Moisés..., onde se diz que os levitas devem orar pelo povo, e os sacerdotes se devem
prostrar diante do Senhor, para interceder pelos pecados do povo.
O sonus que se canta quando se trazem as oblações tem a sua origem... no facto 5705
de se levar em torres o verdadeiro Corpo do Senhor, porque o sepulcro do Senhor foi
escavado na pedra em forma de torre, e dentro dele havia um leito, onde repousava o
Corpo do Senhor3.
A paz, a fé, a caridade e a comunhão do Corpo e do Sangue de nosso Senhor 5706
Jesus Cristo estejam sempre convosco 4.

1
A BADE P AMBO , Ditos (=EVERGETINOS , Synagogê II, Veneza, 1783; cf. LMD 135, 113). O abade Pambo
viveu no século VII.
2
P SEUDO -G ERMANO DE P ARIS , Expositio brevis antiquae liturgiae gallicae in duas epistulas digesta (=PL 72,
89-98. 111-382). Esta expositio foi falsamente atribuída a Germano de Paris. Trata-se de uma descrição
da liturgia galicana, talvez do séc. VII.
3
A palavra latina que significa «sono» é somnus, ao passo que sonus significa «som».
4
Pax, fides et caritas et communicatio corporis et sanguinis Domini nostri Jesu Christi sit semper vobiscum.
Esta era a fórmula de bênção dada por um presbítero no fim da missa galicana, em contraste com as
fórmulas solenes utilizadas pelo bispo, divididas em três partes, separadas pelo Amen.
1364 SÉCULO VII

Cumméan

Penitencial 1
5707 1. Gula e embriaguez. 2. Relações sexuais e poluições. 3. Adultério, rapto e incesto.
4. Furto e roubos injustos, invasões. 5. Perjúrio e mentira. 6. Homicídio e efusão de
sangue. 7. Malefícios e envenenamentos. 8. Usura, cupidez e falta de hospitalidade. 9.
Ira, maldição e inveja. 10. Tristeza. 11. Orgulho. 12. No domingo os Gregos e os Ro-
manos viajam por mar e montam a cavalo, mas não fazem pão, só viajam em carros de
triunfo para ir à igreja e não frequentam os banhos. Os Gregos não escrevem em públi-
co, mas, se for necessário, escrevem em casa. Aos que trabalham no domingo, a pri-
meira vez os Gregos chamam-lhe a atenção, da segunda vez tiram-lhes alguma coisa,
da terceira vez tiram-lhes parte dos bens ou açoitam-nos ou dão-lhes sete dias de peni-
tência. No domingo pode lavar-se a cabeça e é permitido lavar os pés com lixívia. 13. O
ministério da igreja e a reedificação. 14. A reconciliação e outras coisas.

Resgate penitencial

5708 1. Resgate de trinta e seis dias de jejum. Uns decretaram: 12 vezes 3 dias de
jejum resgatam um ano de jejum a pão e água; Teodoro é desta opinião.
5709 2. Resgate de um ano de jejum. Outros pensam que um ano de jejum é resgatado
por 10 dias de jejum mais severo, apenas com um pedaço de pão, sal e água, e mais a
recitação de 50 salmos em cada noite. Outra opinião: um ano é resgatado por 50 jejuns
severos e prolongados durante dois dias, com uma noite entre os dois.
5710 3. Resgate de sete anos de jejum. Alguns homens de juízo decretaram: (para 7
anos de jejum), o primeiro ano de jejum a pão e água é resgatado por 12 vezes 2 dias de
jejum; o segundo ano, por 12 vezes 50 salmos recitados de joelhos; o terceiro ano, por 1
jejum de 2 dias durante uma festa do calendário, mais um saltério recitado de pé; o
quarto ano, por 300 açoites com um pau sobre o corpo nu e preso; o quinto ano, por uma
distribuição de esmolas igual ao valor da sua alimentação; o sexto ano, restituindo à
vítima ou aos seus herdeiros o bem roubado; enfim o sétimo ano, fazendo o bem e
evitando o mal.
Aos que são frágeis de corpo ou de alma damos este conselho: Se o jejum a pão
e água vos parecer demasiado duro, resgatai-o desta forma: por um dia, recitai 50 salmos
de joelhos, ou 70 salmos sem genuflexão; por uma semana, recitai 300 salmos, um após
outro, de joelhos, ou 320 salmos sem vos ajoelhardes. Recitai os salmos na igreja ou em
privado.
O penitente terá cuidado em resgatar o seu tempo de penitência exactamente
como acabamos de dizer, recitando salmos. Além disso, em cada dia tomará a sua
alimentação com sobriedade, à hora de Sexta, sem pão e sem carne, como a Providência
lho der, depois de ter recitado os salmos.
O penitente que não souber recitar os salmos nem puder jejuar, escolherá um
monge que fará penitência em seu lugar; quanto ao penitente, dará por cada dia de
jejum um denário verdadeiro aos pobres.
1
Paenitentiale Cummeani (=PL 87, 979-998; F. W. W ASSERSCHLEBEN, Penitencial de Cumméan, Halle 1851,
Graz 1958 2 ; C. V OGEL , Paris 1969, 125-126). Este Penitencial é do século VII.
INSCRIÇÕES CRISTÃS 1365

Inscrições cristãs 1

1. Inscrição de Alcácer do Sal 5711

Sintício, servo de Deus, por sobrenome paterno Dom de Deus, pertencente à


linhagem dos Getas (traens lineam Getarum), jaz neste túmulo rude. Completou
12 lustros neste mundo, entregou em paz o espírito digno a Deus sub die VI dos
Idos de Agosto, da era 632. O Senhor te dê a paz2.

2. Inscrições cujas datas se desconhecem 5712

2.1 Aqui jaz Mauro, criança de cinco anos e três meses; recebeu (o baptismo)
na idade de dois ou três anos, no dia das Nonas de Agosto 3.
2.2 Dracôncio, de inocência admirável, que viveu cinco anos, dez meses, onze
dias, forte na paz 4.
2.3 Aurélio e Peregrina, os pais, a Montano, o seu filho, que viveu quatro
anos, sete meses e vinte e três dias. Morreu na paz, a 7 das Calendas de
Julho 5 .
2.4 A Severo, seu filho muito meigo..., que viveu quatro anos, oito meses e
cinco dias, chamado pelos Anjos a 7 dos Idos de Janeiro, Lourenço, seu
pai 6 .
2.5 Eusébio, criança pela idade, sem pecado. Aproximou-se da morada dos
santos e repousa na paz7.
2.6 Ora pelos teus pais, Matrónata Matrona, que viveu dois anos e cinquenta
e dois dias 8.
2.7 A Clemenciano... os seus pais construíram (este memorial). Viveu seis
anos, oito meses, oito dias. Na paz com os santos 9.
2.8 Do muito terno Doroteu. A sua alma na paz. A sua alma com os justos. (Na
idade) de oito anos e três meses10.

1
Inscriptiones latinae christianae veteres (=D IEHL , Roma 1857-1888, Berlim 1961 2; H UBNER , Inscriptiones
Hipaniae Christianae, 3; Corpus Inscriptionum Graecorum, A. KIRCHOFF -H. R OCHL , 4 vol., Berlim 1825-
1877).
2
Alcácer do Sal, ano 632 (=H UBNER , Inscriptiones Hipaniae Christianae, 3, n. 2).
3
Roma (=D IEHL , n. 1527). Ter-se-iam os pais enganado na data do nascimento do filho? Já não teria pais,
e as pessoas que trataram da sepultura não teriam a certeza da sua idade? Ou terá esta dúvida algo a ver
com a iniciação cristã recebida por duas vezes, uma vez o baptismo e outra vez a confirmação?
4
Roma (=D IEHL , n. 4331).
5
Roma (=D IEHL , n. 2883).
6
Roma (=D IEHL , n. D. 3354).
7
Roma (=D IEHL , n. 2155).
8
Roma (=D IEHL , n. 2337).
9
Roma (=D IEHL , n. 3358).
10
Roma (=CIG, n. 9580).
SÉCULO VIII

Anastácio Sinaíta

Questões e respostas 1
7. Pergunta: É melhor comungar continuamente ou deixar transcorrer algum tempo? 5713
Resposta: O Apóstolo diz: Examine-se cada um a si próprio e só então coma
deste pão e beba deste vinho2... É, pois, manifesto que convém purificar-se e limpar-se de
toda a má acção antes de comungar, e só depois nos devemos aproximar dos divinos
mistérios, para que não nos causem dano à alma e ao corpo...
98. Pergunta: Será conveniente que aquele que esteve com a sua esposa ou teve 5714
ilusões nocturnas se lave com água e entre na igreja?
Resposta: A verdadeira purificação espiritual de um cristão são as lágrimas.
Contudo, também a água foi feita para purificar o corpo. Portanto, os que se mostram
negligentes em purificar a alma com a purificação espiritual, lavem o corpo nem que
seja só com água, e, deste modo, participem dos mistérios divinos, para não procederem
com absoluto desprezo para com eles.
Pergunta: Será conveniente que aquele que teve alguma ilusão nocturna receba
os mistérios divinos?
Resposta: Segundo creio, os que vivem no meio do mundo não têm que ser
condenados por este motivo, desde que observem também as outras coisas.
100. Pergunta: Aquele que, ao lavar a boca ou ao tomar banho bebe água sem querer, 5715
pode comungar ou não?
Resposta: Pode. Porque, se o Diabo encontrar modo de o afastar da comunhão,
fará que continuamente lhe aconteça o mesmo. É por essa mesma razão que os Padres
não proíbem a comunhão, nem sequer àquele que sofre ilusões nocturnas. Contudo, ao
aproximarmo-nos dos divinos mistérios, devemos fazê-lo com temor, como de Cristo
se aproximou a mulher que tinha hemorragias.
Pergunta: Será melhor comungar todos os dias, com intervalos, ou só ao domingo?
Resposta: A esta pergunta responde-se de várias maneiras. Há alguns a quem
convém a comunhão diária; há outros a quem isto não convém; e há ainda aqueles a
quem a comunhão não convém de modo nenhum.
Pergunta: Há quem diga que os defuntos não recebem nenhum proveito das
sinaxes que por eles se fazem.
Resposta: Sobre isto dir-te-ei não o meu parecer, mas o do Padre apostólico
Dionísio, o Areopagita, que diz: Se os pecados do defunto são leves e de pouca
importância, recebe alguma utilidade das coisas que se fazem por ele, mas se são
grandes e graves, Deus exclui-o de Si. Nós é que devemos preocupar-nos com as

1
A NASTÁCIO S INAÍTA , Quaestiones et responsiones (=PG 89, 312-824). Não se sabe muito bem o número
das questões que têm Anastácio por autor. Algumas são apócrifas. Anastácio, abade, morreu em 705.
2
1 Cor 11, 28-32.
1368 SÉCULO VIII

nossas próprias almas e não adiar para depois da morte o perdão dos nossos pecados
através das oblações dos outros...
5716 113. Pergunta: Estará bem levar a santa comunhão numa pequena caixa3, quando
vamos de caminho, ou é melhor comungar onde quer que encontremos a comunhão?
Resposta: O santíssimo Corpo de Cristo não é ofendido por ser transportado assim
e levado de um lugar para o outro... Mas que não é conveniente comungar fora da
Igreja católica, isso no-lo ensina o Apóstolo, ao dizer: Um só Senhor, isto é, o
verdadeiro Senhor; uma só fé, isto é, a fé piedosa, porque as outras não são fé, mas morte...

Sermão da santa sinaxe 4


5717 Grande é a nossa cegueira, grande a nossa ligeireza, grande o nosso descuido...,
pois se aquele que oferece o sacrifício incruento se demora um pouco mais, desanimamos,
ficamos de mau humor e protestamos, tentando terminar a oração o mais rapidamente
possível, como se estivéssemos diante do tribunal...
Grande é a nossa miséria, caríssimos. Devíamos ter o espírito abrasado e atento
na oração e na súplica, principalmente na sagrada celebração dos mistérios imaculados,
e estar cheios de temor e a tremer na presença do Senhor em tal sinaxe. No entanto,
nem sequer Lha oferecemos com pureza de consciência, com espírito contrito e
humilhado, mas, durante tais sinaxes, tratamos dos nossos assuntos públicos e da
administração de muitos negócios vãos.
Muitos há que não se preocupam em pensar com que pureza e com que dor dos
seus pecados se devem aproximar da sagrada mesa, mas sim que fato hão-de vestir.
Outros vêm, mas não se dignam permanecer até ao fim; perguntam aos outros em que
ponto já vai a sinaxe e se já chegou o tempo da comunhão, e então, com rapidez...,
saltam e, arrebatando o pão místico, vão-se embora. Outros, presentes no templo de
Deus, não estão quietos nem um momento, mas conversando entre si, prestam mais
atenção às murmurações do que à oração. Outros, abandonando os sagrados ofícios
litúrgicos5, entregam-se aos prazeres da carne. Outros não se preocupam absolutamente
nada com a sua consciência, nem em limpar as manchas dos seus pecados por meio da
penitência, mas vão acumulando pecados sobre pecados, enquanto passam o tempo a
olhar para a beleza e formas das mulheres, e, assim, por causa dos seus desejos à solta,
fazem da casa de Deus uma casa de prostituição. Outros conversam acerca de negócios
e riquezas, fazendo do lugar e daquela hora um mercado e uma praça. Outros, durante
a sinaxe, ocupam-se em falar mal dos outros, até mesmo dos próprios sacerdotes que
oferecem o sacrifício...
Diz-me cá, com que consciência, com que estado de alma, com que pensamentos
te aproximas destes mistérios, se essa mesma consciência te está a acusar dentro do teu
coração?... Entrar na igreja, venerar os sagrados ícones e as santas cruzes não basta por
si só para agradar a Deus, nem tão pouco o lavar as mãos para as purificar. O que
agrada verdadeiramente a Deus é que o homem fuja do pecado e limpe as suas manchas
pela exomologese e, com lágrimas, quebre as cadeias dos seus pecados pela humildade
de coração e se aproxime assim dos mistérios imaculados...
Mas talvez tu me perguntes: «Quem é digno»? Também eu caio na conta disso.
E, no entanto, serás digno desde que queiras. Reconhece-te pecador; afasta-te do

3
kalo\ n to\ basta/ z ein a( g i/ i an e) n skeuofori/ % .
4
A NASTÁCIO S INAÍTA , Homilia de sacra synaxi (=PG 89, 825-850).
5
mustagwgi/ a n th= j qei/ a j leitourgi/ a j .
ANASTÁCIO SINAÍTA 1369

pecado..., foge da maldade e da ira. Faz obras de penitência..., dos frutos da justiça tira
compaixão e entranhas de misericórdia para os necessitados, e estás a tornar-te digno...
Ouvi o que vos diz o diácono: «Estejamos atentos, tenhamos temor». Atendamos
à santa oblação, inclinemos a cabeça, fechemos os pensamentos e a língua, enchamos a
nossa mente, elevemo-nos ao Céu. Tenhamos no alto a alma e o coração, levantemos
para Deus os olhos da alma, ultrapassemos o céu... e cheguemos ao trono do Senhor,
abracemos os pés imaculados de Cristo..., façamos penitência diante do seu altar santo
e celeste...
Destas coisas dá testemunho o sacerdote ao dizer: «Corações ao alto». Que
respondemos nós a isto? «Os nossos corações estão voltados para o Senhor». Que
dizes? Que fazes? Tens a mente... entretida em aparências... e dizes: Tenho-a voltada
para o Senhor? Tem cuidado, por favor, não aconteça que a não tenhas voltada para o
alto, para o Senhor, mas para baixo, para o Diabo...
Que fazes, homem? Enquanto os Anjos de seis asas servem nos ofícios litúrgicos,
cobrindo a mesa mística; enquanto os Querubins assistem à volta dela e cantam com
voz clara o hino do Trisagion; enquanto os Serafins se inclinam com grande reverência;
enquanto o sumo sacerdote te alcança misericórdia por meio da sua oração; enquanto
todos estão nestes momentos cheios de temor e de tremor; enquanto é sacrificado o
Cordeiro de Deus; enquanto desce do alto o Espírito Santo; enquanto os Anjos rodeiam
invisivelmente todo o povo, marcam com um sinal e inscrevem as almas dos fiéis, tu
não te importas de desprezar o teu irmão e de lhe dar o beijo de Judas e de ter
escondida, no mais íntimo do coração, a lembrança constante das ofensas e o veneno
mortal da serpente contra o teu irmão?...
Falemos assim e digamos isto cada dia, nos momentos em que participamos na
venerável e tremenda sinaxe; o sacerdote, conhecendo isto, depois da consagração do
sacrifício incruento eleva o Pão da vida e mostra-o a todos. Depois o diácono, elevando
a voz, diz: «Estejamos atentos», isto é, estai atentos a vós mesmos, irmãos, pois não
há muito que dissestes a uma só voz: «Os nossos corações estão voltados para o
Senhor». Além disso, confessando a Deus a vossa pureza e o vosso perdão das ofensas,
dissestes: Perdoai-nos, assim como nós perdoamos aos nossos devedores, e, por
isso, destes uns aos outros o ósculo da paz. Mas, como eu também sou homem e
ignoro os vossos pensamentos, abstenho-me de todo o juízo, pois não sei quem é
digno ou indigno de receber estes mistérios; por isso, elevo a voz e vos digo que
estejais atentos a vós mesmos e considereis aquilo em que participais.
A seguir, o sacerdote acrescenta: «As coisas santas, para os santos». Que quer
isto dizer? Vede, caríssimos, como vos aproximais para receber os divinos mistérios,
não seja que algum de vós, ao aproximar-se para comungar, ouça estas palavras: «Não
me toques, afasta-te de mim, tu que fomentas o rancor e fazes a maldade. Vai-te para
longe, tu que não te dignas perdoar ao teu irmão; e, depois, vem e oferece o teu dom, e
serás digno da comunhão. Deita fora toda a imundície de maldade, e, depois, aproxima-
-te e recebe a brasa purificadora»... É isto tudo o que nos quer dizer o sacerdote com
aquela breve exclamação...
Por isso, vos exorto a que não julgueis ninguém, e, menos ainda, ao sacerdote de
Deus, mas aproxima-te dos divinos mistérios com fé, com arrependimento eficaz e
com pureza de consciência, e assim encontrarás a santificação de todos...
1370 SÉCULO VIII

Bonifácio

Renunciações catecumenais 1

RENUNCIAÇÕES

5718 Renuncias ao Diabo?


Resposta: Eu renuncio ao Diabo.
E a todas as suas pompas?
Resposta: Eu renuncio por palavras ao Diabo e aos deuses Donnert, Wodam e
Saxnote, e a todos os espíritos deste género.
PROFISSÃO DE FÉ

5718a Crês em Deus Pai todo-poderoso?


Resposta: Creio em Deus Pai todo-poderoso.
Crês em Cristo, Filho de Deus?
Resposta: Creio em Cristo, Filho de Deus.
Crês no Espírito Santo?
Resposta: Creio no Espírito Santo.

Estatutos de São Bonifácio 2


5719 30. Os presbíteros devem ensinar o povo a observar o jejum das Quatro Têmporas,
isto é, no mês de Março, Junho, Setembro e Dezembro, quando, segundo os cânones
dos estatutos, têm lugar as sagradas Ordenações.
5720 34. Os presbíteros devem dizer ao povo que todos devem jejuar no sábado de
Pentecostes, do mesmo modo que no sábado da Páscoa, e reunir-se na igreja à hora
nona, para se fazer a Vigília à mesma hora do Sábado Santo. Considerem o dia de
Pentecostes tão solene como a santa Páscoa.
5721 36. Os presbíteros devem anunciar que se deixe de trabalhar em todos domingos do
ano3; durante quatro dias no Natal; um dia nas festas da Circuncisão, da Epifania e da
Purificação; na Páscoa e nos três dias a seguir ao domingo da festa; um dia nas festas
da Ascensão, do nascimento de São João Baptista, da paixão do santos apóstolos
Pedro e Paulo, da Assunção e da Natividade da Santíssima Virgem, e da paixão do
apóstolo Santo André

1
B ONIFÁCIO , Abrenuntiationes cathecumenales (=Cod. Vat. Pal. F. 6, 7; PL 89, 870-872; E. L ODI , Roma
1979, 816-817). Bonifácio foi arcebispo de Mogúncia, no tempo dos Papas Gregório II, Gregório III e
Zacarias. Era originário das Ilhas Britânicas, onde nasceu em 675. Fundou a abadia de Fulda. É chamado
o apóstolo da Germânia. Deve-se a ele o primeiro texto, para uso litúrgico baptismal, na antiga língua
popular saxónica. Morreu em 722.
2
B ONIFÁCIO , Statuta Sancti Bonifacii (=M ANSI , XII).
3
Adnuncient presbyteri diebus dominicis per annum sabbatizandum.
MISSAL DE BÓBIO 1371

Missal de Bóbio 1

ESTRUTURA DESTE MISSAL

Missa romana quotidiana: Leitura do Livro do profeta Daniel a ler todos os 5722
dias, Epístola do apóstolo Paulo aos Coríntios, Leitura do santo Evangelho segundo Lucas.
Início da missa. Senhor Deus que destes ao apóstolo São Pedro as chave do Reino dos
Céus... Collectio... Post nomina... Ad pacem... Contestatio: É verdadeiramente nos-
so dever... Sanctus... Cânone romano: Te igitur... até per omnia saecula saeculorum.
Divino magisterio edocti et divina institutione audemus dicere: Pater noster... Post
Pater noster... Post communionem... Consummatio missae... Dicitur post Aios...
Gloria ad missam decantanda...
Incipiunt lectiones de Adventu Domini: Seguem-se missas do Advento, do Na- 5722a
tal, de alguns santos, da Quaresma, da Ceia do Senhor, da Vigília pascal, do tempo
pascal, sempre com este esquema: três leituras por extenso, seguidas de vários elemen-
tos da missa, nem sempre os mesmos.
In Dei nomine incipiunt lectiones cottidianas: Seguem-se missas de vários Santos, 5722b
missas comuns, votivas, e para diversas circunstâncias, segundo o esquema referido.
Lectiones dominicales: Seguem-se várias missas dominicas. Exorcismum... In 5722c
Dei nomine incipit judicius paenitentialis... Ratio institutionis cursum ecclesiasticorum...
ORDO DO BAPTISMO NA VIGÍLIA PASCAL

Bênção da fonte baptismal... Oração... Colecta... Depois lança crisma na 5723


fonte, faz o sinal da cruz e diz... Começa o exorcismo dos homens... Tocas-lhe as
narinas, dizendo... Unge-lo com óleo santificado, dizendo... Tocas-lhe as narinas,
os ouvidos e o peito...
Perguntas pelo seu nome, dizendo: Como se chama? Fulano. Renuncias a Sa- 5723a
tanás, às suas pompas, às suas luxúrias e a este mundo? Resposta: Renuncia. Dizes
isto três vezes. Penguntas pelo seu nome.
Como se chama? Fulano. Crê em Deus Pai todo-poderoso...? Resposta: Crê. 5723b
Crê em Jesus Cristo, seu único Filho..., donde há-de vir julgar os vivos e os mortos?
Resposta: Crê. Crê no Espírito Santo, na santa Igreja católica... e ressuscitar para a
glória de Cristo? Resposta: Crê.
Tu baptiza-lo, dizendo: Eu te baptizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito 5724
Santo 2, uma só substância, para que tenhas a vida eterna e participes com os Santos.
Infundes-lhes crisma na fronte, dizendo: Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo,
que te regenerou... Veste-lo, dizendo. Recebe a veste branca... Colecta ao lavar-lhe
os pés, depois da crismação: Lavo-te os pés, como nosso Senhor Jesus Cristo fez aos
seus discípulos, para que tu o faças também aos hóspedes e peregrinos 3.

1
Missale Bobiense (=PL 72, 451-579; E. A. L OWE , The Bobbio Missal, A Gallican MassBook, HBS 53,
London, 1920). Este manuscrito, antes de cada formulário de missa, coloca as leituras litúrgicas, a maior
parte das vezes em número de três, segundo o costume galicano. Os textos são dados in extenso, pelo que
constitui um documento notável para o conhecimento do sistema de leituras galicanas. Trata-se de um caso
único nesta época, e indicia que, mesmo sem assembleia, o presidente da celebração é obrigado a fazer as
leituras e a pronunciar o Dominus vobiscum antes das orações. Dá-nos também o Cânone Romano, e chama
à colecta, umas vezes collectio outras vezes secreta. Pertence à primeira metade do séc. VIII (725).
2
Baptizas eum et dicis: Baptizo te in nomine patris et filii et spiritus sancti.
3
Ego tibi lavo pedes sicut dominus noster Iesus Christus fecit discipulis suis, ita ut facias hospitibus et
peregrinis.
1372 SÉCULO VIII

Missal Gótico 1

ESTRUTURA DESTE MISSAL

5725 Começa com o Ordo missae in Vigilia Natalis Domini, dia de Natal..., Circunci-
são do Senhor, missas da Epifania..., missas da Quaresma..., Vigília pascal, missas do
tempo pascal..., missas de vários Santos..., missas dominicais...
5725a Cada formulário de missa inclui habitualmente os seguintes elementos: Collectio
post nomina, Collectio ad pacem, Immolatio missae, Collectio post Sanctus, Post
mysterium, Ante orationem Dominicam, Post orationem Dominicam, Benedictio populi,
Post communionem, Collectio sequitur.
O BAPTISMO NA VIGÍLIA PASCAL

5726 Sopras três vezes na água, e misturas crisma em forma de cruz, dizendo: Infusão do
crisma da salvação de nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de que se torne em fonte de
água que jorra para a vida eterna, para todos os que a ela descerem. Amen. Ao baptizares,
interroga-lo, e dizes: N., eu te baptizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, em
remissão dos pecados, para alcançares a vida eterna2. Amen. Ao ungi-lo com crisma, dizes:
Unjo-te com o crisma da santidade..., túnica da imortalidade, que nosso Senhor Jesus Cristo
foi o primeiro a receber entregue pelo Pai... Ao lavar-lhe os pés, dizes: Lavo-te os pés, tal
como nosso Senhor Jsus Cristo fez aos seus discípulos, a fim de que o faças aos hóspedes e
peregrinos, para que tenhas a vida eterna. Ao impor-lhe a veste, dizes: Recebe a veste branca
e apresenta-a imaculada no tribunal de nosso Senhor Jesus Cristo.
ALGUNS DOS ELEMENTOS DA EUCARISTIA

5727 Immolatio. É digno e justo, verdadeiramente equitativo e justo, Deus inefável,


incompreensível, eterno, que Te dêmos sempre graças, nós a quem não cessas de
favorecer pela tua imensa misericórdia. Quem, com efeito, poderá louvar dignamente o
poder d’Aquele cuja divindade não pode ser vista pelos olhos mortais, e cuja imensidade
não se pode exprimir por palavras? Basta que Te amemos como Pai, que Te veneremos
como Senhor, que Te recebamos como Criador, que Te abracemos como Redentor.
Concede, Senhor todo-poderoso, que subamos para Ti pelo caminho desta via estreita
que nos prescreveste, pela qual poderemos chegar à bem-aventurança eterna, sem que
nenhum obstáculo nos detenha..., por Cristo nosso Senhor, por quem os Anjos... etc.
5727a Post Sanctus. Verdadeiramente santo, verdadeiramente bendito nas alturas é
nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho, o Rei de Israel, que, conduzido como ovelha ao
matadouro, e como cordeiro diante daquele que o tosquia, nem sequer abriu a boca. Ele
mesmo, com efeito, na véspera da sua Paixão... recolimus... hoc facimus.
5728 Post mysterium. Grande é este dom de misericórdia, pelo qual fomos instruídos na
celebração dos sacrifícios da nossa redenção, como nosso Senhor Jesus Cristo os ofereceu na
terra, Ele, por quem Te rogamos, Pai todo-poderoso, que olhes favoravelmente os dons
colocados no teu altar e os cubras com a sombra do Espírito Santo do teu Filho, a fim de
obtermos, daquilo que recebemos da tua bênção, a glória da eternidade, por Jesus Cristo...

1 Missale Gothicum (=PL 72, 225-317; L. C. MOHLBERG , Roma, Herder 1957, 1961 2 [Rerum ecclesiasticarum
documenta, series maior, Fontes, 5]). Este missal chama collectio às orações presidenciais. Deverá remontar
aos meados do séc. VIII (725).
2
Dum baptizas, interrogas eum et dicis: Baptizo te, Illum, in nomine patris et filiii et spiritus sancti in
remissionem peccatorum, ut habeas vitam aeternam.
PAPA GREGÓRIO II 1373

Papa Gregório II

Cartas 1

CARTA 14 2

4. Se alguém tiver sido confirmado pelo bispo, é proibido voltar a confirmá-lo. 5729
5. Na missa deve observar-se o que nosso Senhor Jesus Cristo confiou aos seus 5729a
discípulos. Ele tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da nova Aliança no meu
Sangue; fazei isto todas as vezes que o tomardes. Portanto, não é conveniente pôr dois
ou três cálices sobre o altar, quando se celebra a missa 3.
8. Confessaste que alguns foram baptizados por presbíteros adúlteros e indignos, 5729b
sem se lhes perguntar o Símbolo. Neste assunto guarde a tua caridade o antigo costume
da Igreja, a saber: quem tiver sido baptizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo, não é lícito, de maneira nenhuma, rebaptizá-lo, pois não recebeu o dom desta
graça em nome de quem o baptizou, mas em nome da Trindade...
9. A razão exige que deves, segundo a tradição dos Padres, baptizar as crianças que 5729c
tenham sido afastadas pelos pais, e que, ao serem interrogadas, ignoram se receberam
ou não receberam o baptismo, desde que não haja quem o testemunhe.
10. Os leprosos, se forem fiéis cristãos, devem participar no Corpo e Sangue do Senhor, 5729d
mas é proibido que se reúnam com os que têm saúde.
12. Perguntavas, no fim da tua carta, se te é lícito comer e falar com alguns presbíteros 5729e
e bispos que vivem enredados em vícios, e cujas vidas maculam o seu sacerdócio... Não
recuses falar nem conviver com eles...
CARTA AO IMPERADOR LEÃO III 4

Afirmas, imperador, que nós adoramos as pedras, as paredes e as tábuas de madeira, 5730
mas não é como dizes. A nossa memória é ajudada, e a nossa mente, pouco atenta e
débil, é guiada e elevada para o alto, por meio daqueles que esses nomes, invocações e
imagens reproduzem, não como se fossem deuses, como tu dizes, o que está bem longe
de nós. Com efeito, não é nessas coisas que nós pomos a nossa esperança. Se é uma
imagem do Senhor, dizemos: Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, socorrei-nos e salvai-nos!
Se é de sua santa Mãe, dizemos: santa Mãe de Deus, Mãe do Salvador, intercede junto
do teu Filho, nosso verdadeiro Deus, a fim de que Ele salve as nossas almas! Se é de um
mártir: Santo Estêvão, primeiro mártir, que derramaste o teu sangue por Cristo e que
tiveste a capacidade de falar com franqueza e confiança, intercede por nós! E, se é de
qualquer mártir que tenha sofrido o martírio, elevamos, por meio dele, orações
semelhantes. Nós não chamamos deuses aos mártires, como tu pretendes, imperador...
Quando entramos na igreja e contemplamos os milagres e o ícone do Senhor 5730a
Jesus Cristo e da sua Santa Mãe que segura em seus braços Aquele que é nosso Senhor
e Deus ainda criança, e os Anjos ao redor cantando o hino três vezes santo, não é sem
saudade que nos vamos embora... És perseguidor de imagens, inimigo destruidor e
ultrajante...
1
P APA GREGÓRIO II, Epistulae et canones (=PL 89, 495-534). Gregório II foi Papa desde 715 a 731.
2
Carta do ano 726, escrita a Bonifácio.
3
Congruum non est duos vel tres calices in altari ponere, cum missarum sollemnia celebrantur.
4
Esta carta foi escrita entre 726 e 730.
1374 SÉCULO VIII

Beda Venerável

Homilias 1

LIVRO I

HOMILIA 4

5731 30. Introduziu-se na liturgia da santa Igreja o costume, belo e salutar, de cantarem
todos este hino de Maria2, na salmodia vespertina, para que o espírito dos fiéis, ao
recordarem assiduamente o mistério da Encarnação do Senhor, se entreguem com
generosidade ao serviço divino e, lembrando-se constantemente dos exemplos da Mãe
de Deus, se confirmem na verdadeira santidade. E pareceu muito oportuno que isto se
fizesse na hora de Vésperas, para que a nossa mente, fatigada e distraída ao longo do
dia com pensamentos diversos, encontre o recolhimento e a paz de espírito ao
aproximar-se o tempo de descanso.

Comentário à Carta de S. Tiago 3


5732 5. 14 O costume actual da Igreja é que os enfermos sejam ungidos pelos presbíteros
com óleo consagrado, para que, mediante a oração, fiquem curados. A unção não está
reservada só aos presbíteros, mas, como escreve o papa Inocêncio, também é permitido
a todos os cristãos usar do mesmo óleo consagrado, para se ungirem nas suas
necessidades ou nas dos seus. No entanto, só os bispos têm a faculdade de consagrar
este óleo. Quando o enfermo é ungido, deve invocar-se o nome do Senhor sobre ele...
15 Se os doentes cometeram pecados e se os confessarem aos presbíteros da
Igreja e se esforçarem sinceramente, no futuro, por evitá-los e se corrigirem, ser-lhes-
-ão perdoados. Sem confissão, os pecados não podem ser perdoados, porque está
escrito: 16 Confessai as vossas faltas uns aos outros. Esta palavra deve ser entendida
deste modo: Confessaremos as faltas leves e quotidianas ao nosso próximo e
acreditaremos que, pela sua oração quotidiana, seremos salvos. Quanto às impurezas
devidas a uma lepra mais grave, segundo a lei, confessá-las-emos ao presbítero, e,
segundo o que ele decidir, esforçar-nos-emos por nos libertar delas, do modo e durante o
tempo que ele nos tiver mandado... Elias rezou com fervor... e a terra produziu o seu fruto.

1
B EDA V ENERÁVEL , Homiliae (=PL 94, 9-515; CCL 122; cf. LH, II). Beda nasceu no ano 672, «no território
de S. Pedro e S. Paulo situado em Wirimuda» (Inglaterra), como ele próprio escreveu. Grande erudito da
Sagrada Escritura, escreveu uma História eclesiástica da Igreja de Inglaterra, na qual fala de um Martirológio.
Morreu em 735.
2
O Magnificat.
3
B EDA V ENERÁVEL , Expositio in Epistula Jacobi (=PL 93, 9-42; CCL 121; C. V OGEL , Paris 1969, 139).
BEDA VENERÁVEL 1375

Penitencial de Beda 4
Diversas estipulações canónicas. Os textos que se seguem extraímo-los de 5733
documentos antigos; no entanto, não usámos da severidade habitual do juiz, mas sim
da indulgência. Recomendamos a cada presbítero que se instrua acerca de todas as
tabelas que aqui irá ler e considere com cuidado o sexo, a idade, a condição social, o
estado da pessoa de cada penitente; levará também em consideração as disposições
interiores e fará um juízo circunstanciado, como lhe parecer melhor. A uns aconselhará
o jejum, a outros a esmola, as genuflexões, o rezar de pé e de braços abertos, a recitação
de salmos ou outro exercício do mesmo género, próprio para expiar os pecados. A
muitos penitentes aconselhar-se-ão todas estas mortificações simultaneamente...
1. Relações sexuais. O jovem que peca com uma jovem virgem: 1 ano de jejum. 5734
2. Se a falta foi cometida uma só vez e ocasionalmente, a pena será menor. 5735
3. Se a jovem e o jovem tiverem 20 anos, jejuarão três vezes 40 dias, além dos dias 5736
oficiais de jejum...
4. Se, por causa deste pecado, os dois cúmplices tiverem sido feitos escravos, 5737
jejuarão só 40 dias.
5. Se se trata de uma viúva e mesmo de uma rapariga já desflorada, jejuarão durante 5738
1 ano e observarão os dias oficiais de jejum do ano seguinte.
6. Se as relações culpáveis levaram a um nascimento, jejuarão 2 anos e menos 5739
rigorosamente nos 2 anos seguintes...
1. Assassínio. O assassino de um monge ou dum clérigo deixará o serviço das armas 5740
e entrará ao serviço de Deus, ou então fará 7 anos de penitência.
5. Quem mata acidentalmente: um ano de jejum. 5741
7. O servo (o escravo) que mata por ordem do senhor: 40 dias de jejum... 5742
1. Juramento. Quem faz um juramento falso sob pressão do seu senhor: 3 jejuns de 5743
40 dias, além dos jejuns oficiais.
2. Quem conscientemente faz um juramento falso diante do bispo ou do pároco, 5744
sobre o altar ou sobre uma cruz consagrada: 3 anos de jejum...
3. Embriaguez. Quem vomita por ter comido demais: 3 dias de jejum... 5745
1. Alimentos impuros. Quem come uma carne impura ou um animal despedaçado 5746
pelas feras, jejuará durante 40 dias...
9. Quem comunga depois de ter comido: 7 dias de jejum. 5747
11. Quem deixa cair ao chão a Eucaristia ou aquele por cuja culpa as aves acabam por 5748
comer o pão da Eucaristia, jejuará 7 dias, se for por acidente; se for por negligência: 3
vezes 40 dias...
1. Comutações penitenciais. Doze vezes 3 dias de jejum, mais 3 saltérios e 300 5749
açoites resgatam 1 ano de jejum.
2. Vinte e quatro vezes 2 dias de jejum, com 3 saltérios, resgatam 1 ano. 5750
3. Setenta e três salmos recitados durante a noite, mais 300 açoites, resgatam 2 dias 5751
de jejum.

4
B EDA V ENERÁVEL , Paenitentiale Bedae (=F. W. W ASSERSCHLEBEN , Paenitentiale Bedae, Halle 1851, Graz
1958 2; H. J. S CHMITZ , Die Bussbücher und die Bussdisciplin der Kirche, Moguntia 1883. Graz 1958 2; C.
V OGEL, Paris 1969, 73-80). Este penitencial manifesta a preocupação de agrupar os diversos cânones em
subdivisões lógicas. A sua importância foi considerável, pois serviu de fonte a uma nova família de
Penitenciais.
1376 SÉCULO VIII

5752 4. Cem salmos recitados durante a noite, mais 300 açoites, resgatam 3 dias de jejum.
5753 5. Cento e vinte missas, mais 3 saltérios e 300 açoites, equivalem a 100 soldos de ouro.

Carta a Egberto, bispo de York 5


5754 É muito salutar para todos os cristãos em geral a recepção quotidiana do Corpo
e Sangue do Senhor. É assim que, como sabes, costuma fazer a Igreja de Cristo na Itália,
na Gália, em África, na Grécia e por todo o Oriente.
Em quase todas as nossas províncias anda muito esquecido tudo o que diz respeito à
religião e à verdadeira piedade para com Deus. Os leigos, por incúria dos pregadores,
olham para isso como coisa estranha. Os que entre eles são considerados mais religio-
sos, só ousam comungar os santos mistérios no Natal do Senhor, na Epifania e na
Páscoa, embora haja inúmeros meninos e meninas, jovens e virgens, idosos e idosas
que, sem qualquer espécie de escrúpulo, poderiam comungar os santos mistérios todos
os domingos e nas festas dos santos Apóstolos e dos mártires, como sucede, aliás, na
santa e apostólica Igreja romana.

André de Creta

Sermões 6

SERMÃO 10 7

5755 Celebramos a festa da Santa Cruz, que dissipou as trevas e nos restituiu a luz.
Celebramos a festa da Santa Cruz, e juntamente com o Crucificado somos elevados
para o alto... Tão grande é o valor da Cruz, que quem a possui, possui um tesouro...
Com efeito, sem a Cruz, Cristo não teria sido crucificado. Sem a Cruz, a Vida não
teria sido cravada no madeiro. E, se a Vida não tivesse sido crucificada, não teriam
brotado do seu lado aquelas fontes de imortalidade, o sangue e a água, que purificam o
mundo...
Verdadeiramente grande e preciosa realidade é a Santa Cruz! Grande, porque é a
origem de bens inumeráveis... Preciosa, porque a Cruz é simultaneamente o patíbulo e
o troféu de Deus...
A Cruz é a glória de Cristo e a exaltação de Cristo. A Cruz é o cálice precioso da
paixão de Cristo, é a síntese de tudo o que Ele sofreu por nós...

5
B EDA V ENERÁVEL , Epistula ad Egbertum (=PL 94, 657-668; Silva-Tarouca, Fontes historiae ecclesiasticae
medii Aevi 1).
6
A NDRÉ DE C RETA , Homiliae (=PG 97, 804-1302; cf. LH, IV). André de Creta viveu entre 660 e 740.
7
Sermão na Exaltação da Santa Cruz.
PSEUDO-TEODORO 1377

Pseudo-Teodoro

Penitencial 1
1. A igreja e as coisas que se fazem dentro dela. 2. Os três graus principais da 5756
Igreja. 3. Diversas ordenações. 4. O baptismo e a confirmação. 5. A missa dos
defuntos e dos mortos. 6. Os abades, os monges e os mosteiros. 7. O riso das
mulheres na igreja ou nos mosteiros. Costumes dos Gregos e dos Romanos. 9. A
comunhão dos Escoceses e dos Britânicos que na Páscoa católica não se reúnem
na igreja. 10. Os que são tentados pelo Diabo e os que se matam. 11. Problemas
dos cônjuges. 12. Criados e criadas. 13. Questões diversas. 14. A reconciliação

Resgate penitencial

Teodoro. Para os doentes que não podem jejuar, o equivalente a um mês ou a um 5756a
ano de jejum será o preço dum escravo, homem ou mulher. Nós dizemos um mês ou um
ano: com efeito, os ricos podem dar mais por um mês do que os pobres por um ano.
Aquele que estiver em condições de cumprir as penitências indicadas nos livros
penitenciais cumpri-las-á, porque aquele que peca com o seu corpo fará penitência
corporalmente.
Aquele que não puder jejuar dará a esmola segundo as suas possibilidades, isto é, 5756b
por um dia de jejum: um denário, ou dois ou três, e perdoará àqueles que pecaram contra
si e afastará os pecadores dos seus erros.
Igualmente por um ano de jejum: 30 soldos; pelo segundo ano de jejum (numa 5756c
série de vários anos): 20 soldos; pelo terceiro ano: 15 soldos.
Igualmente. Os pecadores ricos farão penitência abundantemente, isto é, 5756d
resgatarão o seu jejum, como disse Zaqueu: Senhor, vou dar metade dos meus bens.
Aquele que tiver meios para isso dará às igrejas parcelas das suas terras, libertará
alguns servos, resgatará os cativos e, sobretudo, cessará de cometer injustiças.
Igualmente. Uma missa resgata 3 dias de jejum; 3 missas resgatam uma semana 5756e
de jejum; 12 missas resgatam um mês de jejum e 12 vezes 12 missas resgatam um ano.
Igualmente. Um dia de jejum é resgatado pela recitação de 50 Salmos com 5756f
genuflexões ou pela recitação dum saltério completo, sem genuflexões.
Igualmente. Quem não conhece os salmos e, em razão da sua fraqueza, não pode 5756g
nem jejuar nem velar, nem fazer genuflexões, nem estar de braços em cruz, nem lançar-se
por terra, escolha alguém que cumpra a penitência em vez de si e pague-lhe por isso,
porque está escrito: Levai os fardos uns dos outros.

Capítulos de Teodoro
1. Como deve cumprir-se a penitência de um ano a pão e água. 2. Os que não 5756h
podem jejuar e cumprir o que está escrito no penitencial. 3. O resgate de um ano que
deveria fazer-se a pão e água. 4. O resgate de uma semana que deveria fazer-se a pão
e água. 7. Os que não podem jejuar mas têm com que resgatar. 11. Os penitentes...
1
P SEUDO-T EODORO, Paenitentiale (=PL 99, 927-952; F. W. W ASSERSCHLEBEN, Paenitentiale Ps.Teodorii, Halle
1851, Graz 1958 2; C. V OGEL , Paris 1969, 126-127). Teodoro viveu entre 690 e 740.
1378 SÉCULO VIII

Papa Gregório III

Cartas 1

CARTA 1 2

5757 1. No que se refere àqueles que, segundo dizes, foram baptizados por pagãos,
mandamos que, tal como estão as coisas, os baptizes em nome da Trindade.
5757a 3. Pediste claramente conselho sobre se é lícito oferecer oblações pelos defuntos. A santa
Igreja considera que cada qual pode oferecer oblações pelos seus mortos verdadeiramente
cristãos, e que o presbítero pode fazer memória deles. E, embora todos estejamos sujeitos ao
pecado, é bom que o sacerdote faça memória e interceda pelos católicos defuntos. Mas não
se deve fazer por pessoas ímpias, mesmo que tenham sido cristãs.
5757b 4. Impomos que sejam rebaptizados os que duvidam ter sido baptizados ou não, ou
que foram baptizados por um presbítero que imola sacrifícios a Júpiter e come carnes
sacrificadas.
5757c 7. A respeito dqueles que mataram o pai, a mãe, um irmão ou uma irmã, dizemos que não
devem receber o Corpo do Senhor durante todo o tempo da vida, e nem sequer como viático
na morte. Abstenham-se também de comer carne e de beber vinho enquanto viverem...
5757d 9. Todas as vezes que consagres alguns bispos, reúnam-se contigo dois ou três bispos...
Queremos que observes esta norma com diligência...

João Damasceno

Discurso sobre as imagens 3


5758 1. 10 Só quando eu vir o incorpóreo, que por ti se fez homem, poderei figurar a
imagem da forma humana; só quando o invisível se tornar visível na carne, poderei
compreender a semelhança daquilo que tiver visto...
16 Deus, que é incorpóreo, não Se podia figurar antigamente de modo nenhum,
mas agora que Ele Se revelou na carne e entrou em contacto visível com os homens, eu
posso fazer o ícone daquilo que vejo de Deus. E, ao venerar o ícone, não venero a
matéria mas o Criador da matéria, Aquele que por mim Se fez matéria, que Se dignou
habitar na matéria e realizar a minha salvação através da matéria; não cessarei de
respeitar a matéria através da qual foi realizada a minha salvação.

1
P APA G REGÓRIO III, Epistulae (=PL 89, 575-587; MANSI, tomo XII; MGH - Epistulae selectae I).
Gregório III lutou contra os iconoclastas e animou S. Bonifácio de Mogúncia no seu trabalho missionário
de propagação da fé. Gregório III foi Papa desde 731 até 741.
2
Carta ao bispo Bonifácio, por volta do ano 741.
3
JOÃO D AMASCENO , Orationes de imaginibus tres (=PG 94, 1231-1420). João Damasceno é considerado o
último Padre da Igreja. Morreu no ano 749.
JOÃO DAMASCENO 1379

Exposição sobre a fé ortodoxa 4

LIVRO I

1. Vós me formastes, Senhor, do corpo de meu pai; Vós me formastes no ventre de 5759
minha mãe...
Com a bênção do Espírito Santo preparastes a minha criação e a minha existência...
Preparastes o meu nascimento..., fizestes-me sair à luz do dia, adoptando-me como
vosso filho, e me contastes entre os filhos da vossa Igreja santa e imaculada.
Vós me alimentastes com o leite espiritual dos vossos divinos ensinamentos.
Vós me sustentastes com o vigoroso alimento do Corpo de Cristo, nosso Deus, vosso
Filho unigénito, e me inebriastes com o cálice divino do seu Sangue vivificante, que Ele
derramou pela salvação de todo o mundo...
Vós me alimentastes com as águas da verdadeira doutrina por meio dos vossos
pastores...
Agora, Senhor, pela imposição das mãos do vosso sacerdote, Vós me chamastes
para servir os vossos discípulos...
Ponde as vossas palavras nos meus lábios; dai-me uma linguagem clara e fácil,
mediante a língua de fogo do vosso Espírito, para que a vossa presença sempre me
assista.
Apascentai-me, Senhor, e apascentai Vós comigo...
E vós..., ilustre assembleia da Igreja, que esperais a ajuda de Deus, vós, em quem
Deus habita, recebei das nossas mãos a doutrina da fé, que fortifica a Igreja, tal como
no-la transmitiram os nossos pais...

LIVRO IV

13. Foi-nos concedido o nascimento da água e do Espírito, isto é, mediante o santo 5760
baptismo; e o manjar é o próprio pão da vida, nosso Senhor Jesus Cristo, que desceu
do Céu. Estando prestes a oferecer a sua vida por nós, na noite em que Se entregava,
estabeleceu um testamento novo para os seus santos discípulos e Apóstolos, e, por
meio deles, para todos os que n’Ele crêem. Assim, no cenáculo da santa e famosa Sião,
comendo a páscoa antiga com os discípulos, tendo dado cumprimento ao Antigo
Testamento, lavou-lhes os pés, oferecendo-lhes um símbolo do santo baptismo. Depois,
partindo o pão deu-lho, dizendo: Tomai todos, e comei; isto é o meu Corpo... Do
mesmo modo, tomando o cálice com vinho e água, deu-lho a eles, dizendo: Bebei todos
dele; este é o meu Sangue do Novo Testamento...
Se a palavra de Deus é viva e eficaz e o Senhor fez tudo quanto quis, dizendo:
Faça-se a luz, e a luz foi feita..., não poderá fazer do pão o seu Corpo e do vinho e da
água o seu Sangue?
Deus disse: Isto é o meu Corpo; e: este é o meu Sangue; e: Fazei isto em
memória de Mim, e, em virtude deste seu mandato omnipotente, realiza-se isto, até
que Ele venha... E vem a chuva para esta nova colheita mediante a epiclese, a força
fecundante do Espírito Santo, pois assim como tudo quanto Deus fez o fez pela acção
do Espírito Santo, assim também agora a acção do Espírito Santo realiza coisas que
ultrapassam a natureza e que só a fé pode compreender...

4
J OÃO DAMASCENO , Expositio fidei orthodoxae (=PG 94, 789-1228; cf. LH, IV).
1380 SÉCULO VIII

Utilizam-se pão e vinho porque Deus conhece muito bem a debilidade humana,
que habitualmente rejeita, indignada, o que não é feito segundo o costume... Tal como
no baptismo, uma vez que os homens costumam lavar-se com água e ungir-se com óleo,
uniu a graça do Espírito Santo ao óleo e à água, fazendo dela o banho da regeneração,
assim também, dado que os homens costumam comer pão e beber água e vinho, uniu-lhes
a sua divindade e fez destas coisas o seu Corpo e o seu Sangue para que, por meio de
coisas comuns e naturais cheguemos às que estão acima da natureza.
Aquele corpo que nasceu da Virgem santa está verdadeiramente unido à divindade,
não porque o corpo que subiu baixe do Céu, mas porque o pão e o vinho se mudam no
Corpo e Sangue de Deus. Se pretendes saber de que modo se realiza isto, contenta-te
em ouvir que se realiza por meio do Espírito Santo, do mesmo modo que o Senhor, por
meio do Espírito Santo, tomou carne para Si e em Si da santa Mãe de Deus, e não
podemos saber mais nada, excepto que a palavra de Deus é verdadeira, eficaz e
omnipotente, mas a maneira como se realiza não é possível conhecê-lo...
Aos que O recebem dignamente com fé, aproveita-lhes para o perdão dos pecados,
para a vida eterna e para defesa da alma e do corpo; mas os que O recebem indignamente
e sem fé, fazem-no para castigo e suplício...
O pão e o vinho não são figura5 do Corpo e Sangue de Cristo, mas o próprio
Corpo divinizado do Senhor, pois o Senhor disse: Isto é, não a figura do meu Corpo,
mas o meu Corpo, nem figura do meu Sangue, mas o meu Sangue...
Por isso, cheios de temor, de consciência pura e com fé firme, aproximemo-nos
deste Corpo... Veneremo-lo com toda a pureza espiritual e corporal... Cheguemo-nos
a ele com ardente desejo e, colocando as palmas das mãos em forma de cruz, recebamos
o corpo do Crucificado. E, apresentando os olhos, os lábios e a fronte, recebamos a
brasa divina, para que o fogo do amor impaciente que há em nós, em contacto com o
calor deste carvão ardente, queime os nossos pecados e ilumine os nossos corações...
O Corpo e o Sangue de Cristo vêm a nós para alimento do nosso corpo e alma;
Corpo de Cristo que não se consome nem se corrompe, nem vai parar a um lugar
imundo..., mas que entra na nossa substância e serve para nossa conservação, para
rejeitar todo o mal e para purificar tudo o que está manchado... Purificados por ele,
unimo-nos ao Corpo de Cristo e ao seu Espírito e tornamo-nos Corpo de Cristo...
Se alguns disseram que o pão e o vinho são figuras do Corpo e do Sangue do
Senhor, como diz Basílio, o portador de Deus6, não foi depois de consagrados que lhes
chamaram assim, mas antes da consagração, dando esse nome à própria oblação.
A comunhão chama-se participação7, porque por meio dela participamos da
divindade de Jesus. Diz-se comunhão, e é-o realmente, porque por ela comungamos
com Cristo e recebemos a sua carne e a sua divindade, e por meio dela nos unimos e
comungamos também uns com os outros, já que, por participarmos de um mesmo pão,
todos somos um mesmo Corpo de Cristo e um mesmo Sangue, e acabamos por ser
membros uns dos outros, por fazermos parte de um só Corpo de Cristo...
Chamam-se imagens das coisas futuras, não por não serem realmente Corpo e
Sangue de Cristo, mas porque participamos agora, por meio desse Corpo e desse
Sangue, da divindade de Cristo, e um dia participaremos com o entendimento por meio
de uma só visão.

5
tu/ p oj .
6
deofo/roj.
7
meta/ l hyij.
ORDO ROMANUS I 1381

Ordo Romanus I 1

Início do ordo do ministério eclesiástico da Igreja romana


ou do modo de celebrar a missa
1. Em primeiro lugar recorde-se que há sete regiões eclesiásticas na cidade de Roma 5761
e cada uma tem um diácono regional.
2. Em razão do seu ofício, os acólitos de cada região estão subordinados, através do 5762
subdiácono regional, ao diácono da sua região.
3. Quando morre algum dos diáconos e, enquanto outro o não substitui, os acólitos 5763
daquela região obedecem ao arquidiácono, porque todos os acólitos, sejam eles de que
região forem, pertencem, em razão do seu ofício eclesiástico, ao ministério dele.
4. O mesmo se deve entender das ordens seguintes. Cada um se deve manter 5764
subordinado, dentro da sua ordem, ao arquidiácono. Deste modo, se alguém, por exemplo,
sofrer violência da parte de um eclesiástico ou de qualquer militar e a sua causa não for
minimamente resolvida pelo primeiro da sua ordem, tome conta dela o arquidiácono, isto
é, o vigário do pontífice, de modo a poderem ser-lhe explicadas as queixas dos súbditos,
das quais o pontífice não teve conhecimento; quanto ao resto, resolva-se através das
ordens inferiores.
5. Depois do número das regiões eclesiásticas, a primeira coisa que quem o desejar 5765
deve saber é a sequência do serviço ao longo dos dias da semana: na primeira féria serve
a região terceira, isto é, a da Páscoa; na segunda féria a região quarta; na terceira féria a
região quinta; na quarta féria a região sexta; na quinta féria a região sétima; na sexta
féria a região primeira; no sábado a região segunda. Observa-se esta ordem, quer na
procissão quer na igreja, ou sempre que o dia próprio obrigue a ir ou a servir. Não se
pode faltar ao serviço do pontífice sem receber alguma excomunhão ou alguma
advertência disciplinar.
6. Na origem, estes ministérios dividiam-se diariamente em dois, isto é, na procissão 5766
do Papa a caminho da estação e desde que saía da sacristia até ao fim da missa.
O CORTEJO DO PAPA, DO PALÁCIO DO LATRÃO ATÉ À IGREJA ESTACIONAL 2

7. Nos dias solenes, como, por exemplo, a Páscoa, todos os acólitos da terceira 5767
região, juntamente com os magistrados3 de todas as regiões, se reúnem, ao amanhecer,
no patriarcado Lateranense, e vão a pé, à frente do pontífice 4, para a igreja estacional.
8. Os palafreneiros leigos caminham à direita e à esquerda do cavalo, não vá ele 5768
tropeçar nalgum lugar.

1
Ordo Romanus I (=PL 78, 937 s; ANDRIEU , OR, vol. II, 67-108). O OR I terá sido redigido por volta de
690, em Roma, e deve ter deixado Roma, a caminho do centro da Europa, pelos anos 750.
2
Os títulos que se encontram ao longo do OR I não pertencem ao texto original. A descrição minuciosa dos
ritos no OR I e o número de participantes que rodeiam o Papa são o mais eloquente testemunho de que
está a começar o apogeu do poder temporal do bispo de Roma. O Papa é tratado como se fosse um
soberano real ou imperial.
3
Defensores, administradores.
4
É este o nome dado ao Papa ao longo de todo o OR I. A referência ao Pontifex Maximus dos Romanos é
por demais evidente. Duas vezes chama-se-lhe Apostolicus, palavra que traduzimos por Papa.
1382 SÉCULO VIII

5769 9. Adiante (do pontífice), mas a cavalo, vão: os diáconos, o prefeito5 e dois notários
da região, os magistrados e os subdiáconos da região. Avançam divididos em grupos,
mantendo um espaço entre eles e o Papa6.
5770 10. Atrás da montada vão, também a cavalo: o mordomo do palácio7, o chefe do
vestiário8, o secretário particular9 e o tesoureiro ou intendente10.
5771 11. Um dos acólitos da região vai a pé, à frente do cavalo do pontífice, levando o
santo crisma na mão, com a âmbula11 envolta num manípulo12. Mas todos os acólitos
que não levam as bolsas, nem os panos de linho, nem o crisma, são coordenados pelo
responsável da igreja estacional13, e vão atrás.
5772 12. Se alguém, a cavalo, quiser aproximar-se do pontífice, assim que o vir, desce do
cavalo e espera à beira do caminho, até que possa fazer-se ouvir por ele.
5773 13. Depois de lhe pedir a bênção, a sua causa é examinada pelo secretário particular
ou pelo tesoureiro, que a apresentam ao pontífice e dão a resposta; procede-se deste
modo, excepto se alguma petição for óbvia para algum deles.
5774 14. Quem estiver a pé, só pode permanecer no seu lugar para ser ouvido ou abençoado
por ele.
5775 15. No Domingo da Ressurreição14, quando (o pontífice) vai para Santa Maria (Maior),
o notário da região está no lugar chamado Merulana e, depois de saudar o pontífice,
diz: Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, na noite de ontem foram baptizadas na
(basílica) de Santa Maria Mãe de Deus tantas crianças do sexo masculino e tantas do
sexo feminino15. O pontífice responde: Graças a Deus. E (o notário da região) recebe
um soldo16 do tesoureiro pagador, enquanto o pontífice prossegue para a igreja estacional.
5776 16. Na segunda-feira, faz-se do mesmo modo para os que faltaram17.
5777 17. Na terça-feira, junto da porta de São Paulo, só se faz isso para os que não
puderam vir a pé18.
5778 18. No santíssimo dia de Páscoa, todos os acólitos da terceira região, juntamente
com os magistrados de todas as regiões, se reúnem, ao amanhecer, no patriarcado
Lateranense e, enquanto o pontífice avança, vão à frente da sua montada.
5779 19. Os acólitos que partirem daí devem prestar atenção para que se leve o crisma à
frente do pontífice, e, atrás dele, como dissemos acima, os Evangeliários, os panos de
linho19, as bolsas e o necessário para lavar as mãos20.

5
Primicerius, primeiro cerimoniário.
6
Apostolicus.
7
Vicedominus, primeira dignidade do palácio pontifício.
8
Vesterarius ou copeiro, encarregado dos livros e vasos sagrados.
9
Nomincolator.
10
Sacellarius.
11
Ampulla.
12
Mappula, pano.
13
Stationarius, estacionário.
14
O OR I é um documento papal e pascal. O texto diz que estamos na manhã de Páscoa, e o Papa vai
celebrar a missa solene estacional em Santa Maria Maior.
15
Isto significa que o Papa não era o único que baptizava na cidade de Roma, e que havia mais baptistérios
além do de São João de Latrão, mandados construir pelos Papas, para responderem às necessidades pastorais
da sua cidade (cf. A NDRIEU , OR, vol. II, 410-411).
16
Solidum.
17
Quando se ia a caminho de São Pedro do Vaticano.
18
Quando se ia a caminho de São Paulo fora de muros.
19
Sindones.
20
As lavandas.
ORDO ROMANUS I 1383

20. O subdiácono que vai ler encarregar-se-á do Epistolário 21 e o arquidiácono do 5780


Evangeliário22.
21. Na igreja do Salvador 23 tomam-se, das mãos do guardião da casa24, as lavandas25, 5781
a patena diária, o cálice, os jarros 26, as cânulas27 e outros vasos28 de ouro e prata, uma
caixa de oferendas 29 de prata e ouro e outra maior de prata, baldes30 de prata, o livro de
canto31 e outros vasos de ouro e prata, os ciriais de ouro e prata, que os carregadores32 levam.
22. Nos dias festivos, o cálice, a patena grande e os Evangeliários maiores saem do 5782
vestiário pontifical33 com o selo do chefe do vestiário, por causa do número das pedras
preciosas, a fim de não se perderem.
23. Antecipadamente um criado de quarto leigo34 transportou a cadeira35 do pontífice, 5783
para estar pronta quando ele chega à sacristia.
24. Anunciada a estação dos dias festivos, logo de manhã, em primeiro lugar, todo o 5784
clero precede o Papa na igreja anteriormente anunciada como estacional, excepto aqueles
que, por sua deferência, o vão acompanhar, como dissemos acima, e que esperam o
pontífice na igreja, com o auxiliar36, os mensageiros e os outros que levam as cruzes, e,
sentados no presbitério, os bispos à esquerda dos que entram, e os presbíteros à
direita, para que, quando o pontífice se sentar, voltado para eles, os bispos fiquem à
sua direita e os presbíteros à esquerda.
25. Quando o pontífice vem a chegar perto da igreja, saem os acólitos e os magistrados 5785
da região 37, de serviço naquele dia, e vão até ao local estabelecido, antes de ele chegar
onde deve apear-se.
26. Vai também o presbítero do título ou da igreja onde se faz a estação, juntamente 5786
com os mordomos da igreja romana, ou o administrador da diaconia 38, se aquela igreja
for de diaconia, com o presbítero que lhe está sujeito e o guardião da casa. Levam o
incensário39 e, quando (o pontífice) chega, fazem-lhe uma inclinação de cabeça.
27. Pedem primeiro a bênção os acólitos com os magistrados, depois o presbítero 5787
com os seus (acompanhantes). Em seguida, afastam-se para um e outro lado e seguem
à frente do pontífice até à igreja.
28. Os mensageiros 40 da igreja estão de pé com os mordomos. Não vão à frente com 5788
eles, mas atrás do cocheiro do pontífice, com o acólito que leva a água e que deve seguir

21
Apostolum.
22
Evangelium.
23
É a igreja de S. João de Latrão.
24
Mansionarius.
25
Aquamanus.
26
Scyphus.
27
Pugillares.
28
Gemelliones.
29
Colatorio.
30
Amas.
31
Cantatorium.
32
Baiulli.
33
O vestiário pontifical era em Latrão.
34
Cubicularius laicus. Os criados de quarto leigos são anteriores a São Gregório Magno (590-604).
35
Sellam.
36
Supplementarius.
37
Os magistrados da região precedem o pontífice, a cavalo, quando ele vai em cortejo para a igreja estacional
(nn. 7, 9, 18, 25); na sacristia permanecem junto dele, quando toma as vestes litúrgicas (n. 32); na igreja têm
lugar marcado (n. 81).
38
Pater diaconiae.
39
Tymiamaterium. O incensário ou queimador de incenso era um objecto de metal, com pés. Mais tarde será
substituído pelo turíbulo.
40
Advocatores.
1384 SÉCULO VIII

sempre o pontífice, mesmo quando sobe ao altar, preparado perto do presbítero, para
trazer a água quando o subdiácono da região o chamar.
PREPARAÇÃO DA MISSA

5789 29. Quando o pontífice chega à igreja, não sobe imediatamente ao altar. Primeiro
entra na sacristia41, amparado pelos diáconos que o acolheram ao descer da sua montada.
Uma vez ali, senta-se na sua cadeira e os diáconos, depois de saudarem o pontífice,
saem da sacristia e mudam as suas vestes do lado de fora.
5790 30. Aquele que vai fazer a leitura prepara o Evangeliário42. Depois de abrir o selo,
por ordem do arquidiácono, prepara o Evangeliário, que o acólito segura sobre a sua planeta43.
5791 31. Feito isto, o acólito leva o Evangeliário até junto do altar, no presbitério, precedido
do subdiácono sequens44. Este, tomando o Evangeliário de cima da planeta, coloca-o,
com as suas próprias mãos e o maior respeito, no altar.
5792 32. Saem então os diáconos da sacristia, ficando com o pontífice o primeiro dos
magistrados, o notário da região, os magistrados da região, os subdiáconos e o
subdiácono sequens, encarregado de segurar o manto45 do pontífice no seu braço
esquerdo sobre a planeta, quando põe a água46.
5793 33. O pontífice, ajudado pelos subdiáconos da região, muda as vestes solenes por
esta ordem: o criado de quarto tonsurado47 recebe-as, dobradas, das mãos do ostiário e,
ao cimo do estrado, entrega-as ao subdiácono da região.
5794 34. Então os outros subdiáconos da região tomam as vestes para revestir o pontífice,
segundo esta ordem: um a alva de linho e outro o cíngulo, um o amito e outro a dalmática de
linho, um a dalmática maior e outro a planeta48, e por esta ordem revestem o pontífice.
5795 35. O primeiro cerimoniário e o chefe do protocolo49 arranjam as vestes do pontífice,
para que fiquem bem revestidas.
5796 36. Em seguida, o diácono ou o subdiácono que o pontífice tiver querido designar,
recebe a capa50 das mãos do subdiácono sequens e coloca-a sobre o pontífice, e, com
agulhas, segura-a à planeta atrás, à frente e no ombro esquerdo e saúda o senhor,
dizendo: Abençoai-nos, senhor. Este responde: O Senhor nos salve. Responde-se: Amen.
5797 37. A seguir o subdiácono da região, com o manípulo51 do pontífice no braço esquerdo,
sobre a planeta enrolada, vai à porta da sacristia e diz: schola 52 . Responde-se:
Presente53. E ele: Quem canta o salmo? Respondem-lhe: N. e N.
5798 38. Voltando para junto do pontífice, o subdiácono entrega-lhe o manípulo, inclinando-se até
aos joelhos, e diz: Os servidores do meu senhor, N., subdiácono54 da região, lê o
Apóstolo, e N., da schola, canta.

41
Secretarium. A sacristia era contígua ao átrio que precede a basílica.
42
O Evangeliário era um livro precioso, grande e rico. Daí o cuidado com que era guardado num estojo selado.
43
Todos os códices, com excepção de um, dizem: Se os Evangeliários forem muito grandes, seguram-nos
dois acólitos.
44
O subdiácono sequens é aquele que assiste mais de perto à pessoa do Papa.
45
Pallium.
46
Todos os códices, com excepção de um, dizem: Que segura a capa do pontífice, com a agulha, sobre a
planeta, no braço esquerdo.
47
Foi o Papa São Gregório Magno que decidiu, em 595, que houvesse criados de quarto tonsurados ao lado
de criados de quarto leigos.
48
É a casula.
49
Primicerius et secundicerius.
50
É o pálio que conserva ainda, nesta época, a sua forma primitiva.
51
Mappula.
52
No texto latino, a maioria das vezes, scola.
53
Adsum.
54
Os leitores litúrgicos não liam já nada na liturgia. O subdiácono fazia a primeira leitura.
ORDO ROMANUS I 1385

39. E, a partir desse momento, já não se pode mudar nem o leitor nem o cantor. Se 5799
isso acontecer, o arquiparafonista55, ou seja, o quarto da schola, que informa o pontífice
acerca dos cantores, será excomungado pelo pontífice56.
40. Assim que é feito o anúncio, o quarto subdiácono da schola vai e fica de pé 5800
diante do pontífice, até que este lhe faça um sinal (de cabeça) para que comece o canto.
Logo que o sinal lhe é dado, sai imediatamente da sacristia e diz: Acendei.
41. Quando começam a acender (os círios), o subdiácono sequens, segurando um 5801
incensário dourado, põe incenso do lado de fora, para ir à frente do pontífice.
42. E o quarto da schola vai ao presbitério, dirige-se ao primeiro, ao segundo ou ao 5802
terceiro da schola e, inclinando a cabeça, diz: Senhor, dai a ordem.
43. Então estes, levantando-se por ordem, vão até ao altar e colocam-se apenas em 5803
dois grupos: os parafonistas de um lado e do outro, por fora, e as crianças de ambos os
lados, por dentro.
PROCISSÃO DE ENTRADA 57

44. O primeiro 58 da schola começa então a antífona da entrada59. Os diáconos, ao 5804


ouvirem as vozes, entram de imediato na sacristia, onde está o pontífice.
45. O pontífice levanta-se e dá a mão direita ao arquidiácono e a esquerda ao segundo, 5805
ou ao que se lhe segue, segundo a ordem. Eles, depois de lhe beijarem as mãos, caminham
com ele, amparando-o.
46. À frente do pontífice vai o subdiácono sequens, com o incensário, pondo incenso, 5806
e sete acólitos da região em serviço naquele dia, com sete círios acesos, que precedem
o pontífice até ao altar.
47. Antes de chegarem ao altar, os diáconos vão ao fundo do presbitério e tiram as 5807
planetas. O subdiácono da região recolhe-as e entrega-as aos acólitos da região a que
pertencem os diáconos.
48. Então, dois acólitos, sustentando as caixas abertas com os Sancta60 – o subdiácono 5808
sequens, que vai com eles, tira a tampa das caixas com uma das mãos – e mostram os
Sancta ao pontífice ou ao diácono que o precede. Inclinando a cabeça, o pontífice ou o
diácono saúda os Sancta e olha para eles. Se forem muito abundantes, manda que os
coloquem61 no lugar onde são guardados62.
49. Depois avançam, e, antes de chegarem junto da schola, os ceroferários dividem-se, 5809
quatro para a direita e três para a esquerda. O pontífice passa pelo meio deles e vai até
à cabeceira da schola. Ali saúda o altar com uma inclinação da cabeça, ergue-a, reza e
faz uma cruz na fronte, dá a paz a um dos bispos hebdomadários, ao arquipresbítero e
a todos os diáconos.
50. E, olhando para o primeiro da schola, faz-lhe sinal (de cabeça) para que diga: 5810
Gloria. O primeiro da schola inclina-se para o pontífice e começa (a cantar). O quarto

55
Um dos primeiros responsáveis da schola.
56
Excomungado quer dizer excluído da comunhão naquele dia.
57
O OR I é testemunha de que, na sua época, ainda a liturgia de Roma desconhecia totalmente, pelo menos
na missa papal, as apologias nos ritos de entrada, na preparação dos dons e na comunhão.
58
As peças de canto eram todas executadas pela schola em conjunto ou por algum dos seus elementos (cf.
nn. 37, 38, 44, 50, 52, 57, 105, 117. 122).
59
A antífona da entrada começava, portanto, no momento em que tinha início a procissão da entrada.
60
Pão consagrado numa celebração anterior e que era guardado num lugar recatado, na sacristia, chamado
conditorium.
61
Subentende-se: o pão consagrado que for julgado desnecessário para a commixtio de que se falará mais
adiante (n. 95).
62
Conditorium.
1386 SÉCULO VIII

da schola vai diante do pontífice e coloca o genuflexório63 diante do altar. O pontífice


aproxima-se e ora sobre ele, até à repetição do versículo.
5811 51. Os diáconos, às palavras: Sicut erat, levantam-se, saúdam os lados do altar, dois
a dois, e voltam para junto do pontífice. O pontífice levanta-se, beija o Evangeliário e
o altar64 e vai para a sede, onde fica de pé, voltado para o Oriente.
5812 52. Entretanto, a schola, terminada a antífona, começa o Kyrie eleison65. O primeiro
da schola olha para o pontífice, para ver se este lhe faz sinal quando quer alterar o
número das preces litânicas, e responde ao pontífice com uma inclinação.
5813 53. Quando tiverem terminado, o pontífice volta-se para o povo66 e começa Gloria
in excelsis Deo67. E volta-se de novo para o Oriente até ao seu final. Depois disto,
volta-se de novo para o povo e diz: Pax vobis, e, voltando-se para o Oriente 68,
acrescenta: Oremus. E segue-se a oração69. Depois de terminar, senta-se. Também se
sentam os bispos e os presbíteros70.
LITURGIA DA PALAVRA 71

5814 54. Então tiram-se os círios do lugar onde primeiro se tinham posto e colocam-se em
fila pelo meio da igreja.
5815 55. Os subdiáconos da região sobem e colocam-se à direita e à esquerda do altar.
5816 56. O subdiácono72 que vai ler, assim que vê os bispos e os presbíteros sentarem-se
depois do pontífice, sobe ao ambão73 e lê.
5817 57. Depois (da leitura), sobe o cantor74 com o livro do canto75 e diz o refrão. Se for
tempo de dizer Aleluia, diz-se; se não for, diz-se o tracto; se não, diz-se apenas o refrão76.
5818 58. Ao terminar o Aleluia ou o responsório, os diáconos preparam-se para ler o
Evangelho 77. Se o diácono não estiver presente, o presbítero fica de pé junto do

63
Oratorium.
64
Um duplo beijo no Evangeliário e no altar, cujo simbolismo se percebe muito bem.
65
Alguns manuscritos acrescentam: Nesse momento os acólitos depõem os círios no pavimento da igreja,
três na parte direita, três na esquerda e um no meio, no espaço intermédio.
66
É esta a primeira vez que se fala da presença do povo na celebração; mais adiante voltará a falar-se dele a
propósito da paz, antes da comunhão (n. 96). A sua comunhão ao cálice faz-se por uma cânula (n. 111).
Quem lhe dá a comunhão do pão são os bispos (n. 114) e os presbíteros (n. 116), e do cálice são os
diáconos (n. 114) e os presbíteros (n. 116); o cântico da comunhão durava até ao final da comunhão do
povo (n. 117), e, como esta era a comunhão mais demorada, o subdiácono da região estava atento para ver
quando terminava, a fim de fazer sinal ao pontífice (n. 121). Na oração depois da comunhão o pontífice
não se voltava para o povo (n. 123) e a despedida Ite, missa est, feita pelo diácono, era dirigida ao povo (n. 124).
67
Alguns manuscritos: Se é tempo.
68
Estas sucessivas indicações sobre a orientação do pontífice foram adicionadas na Gália. São o início do
movimento que levará o presidente a celebrar de costas voltadas para o povo.
69
Oração colecta. É a primeira oração presidencial da missa.
70
O povo e os outros ministros permanecem de pé, pois não havia bancos na basílica.
71
Testemunho de que as leituras eram duas: uma do apóstolo Paulo, outra do Evangelho, separadas pelo
salmo responsorial e pelo Aleluia ou o outro cântico. Já não se lia, nesta época, o Antigo Testamento, os
Profetas, como dizia S. Justino. Tudo se lê naturalmente em latim. Mas, quando o Papa o mandava, um outro
subdiácono repetia a leitura em grego.
72
Já não existe função litúrgica própria dos leitores. Nem sequer são mencionados em todo o OR I.
73
O ambão era o lugar donde se faziam todas as leituras.
74
Os cantores são sempre membros da schola.
75
Deinde ascendit alius cum cantatorio, dicit responsum. Deinde alius Alleluia. O livro dos salmos era
levado pelo cantor. O canto do salmo responsorial viria a cair em desuso na Idade Média. Hoje voltou a ser
um dos momentos mais belos da Liturgia da Palavra.
76
Quem respondia ao refrão cantado pelo leitor? Naturalmente só a schola. Era um belo momento artístico,
mas ao qual a assembleia já era alheia.
77
A proclamação do Evangelho pertence ao diácono.
ORDO ROMANUS I 1387

pontífice, como faz o diácono, sem tirar a planeta. Mas, quando for ele a ler o Evangelho,
prepara-se como o diácono 78. Logo a seguir à leitura do Evangelho vem até junto do
altar, reveste a planeta e prepara o altar como o diácono.
59. Então o diácono beija os pés do pontífice, que lhe diz em voz baixa79: O Senhor 5819
esteja no teu coração e nos teus lábios. A seguir, vem diante do altar, beija o
Evangeliário 80, leva o códice levantado nas mãos e à sua frente caminham dois
subdiáconos da região com o incensário na mão, no qual o subdiácono sequens põe incenso.
À frente de todos vão dois acólitos com dois círios. Ao chegarem ao ambão os acólitos
dividem-se, e, pelo meio deles, passam os subdiáconos e o diácono com o Evangeliário81.
60. (O diácono), ao passar com o Evangeliário diante dos bispos, inclina-se para 5820
eles, e estes dão-lhe a bênção deste modo: Dominus tecum. Depois disto, inclina-se
para os presbíteros, e eles dizem: Spiritus Domini super te.
61. O subdiácono que não leva o incensário volta-se para o diácono e estende o seu 5821
braço esquerdo, para que este apoie nele o Evangeliário e o subdiácono o abra com a
sua mão, no lugar onde está colocado o sinal da leitura.
62. E com o dedo colocado aí, sobe o diácono ao lugar da leitura para ler, e os dois 5822
subdiáconos voltam e ficam de pé, diante dos degraus da descida do ambão.
63. Terminado o Evangelho, o pontífice diz: Pax tecum. A seguir diz: Dominus 5823
vobiscum. Respondem: Et cum spiritu tuo. E diz: Oremus 82.
64. Quando o diácono desce (do ambão), o subdiácono que antes abrira o Evangeliário, 5824
recebe-o e entrega-o ao subdiácono sequens, que está na fila. Este, levando-o à altura
do peito, sobre a planeta, dá-o a beijar a todos83 segundo a sua ordem hierárquica, e que
estão de pé.
65. Depois coloca (o Evangeliário) num estojo, que é selado. E o acólito da região do 5825
subdiácono correspondente leva-o ao seu lugar 84.
66. Os outros acólitos pegam nos círios e colocam-nos, em fila, por detrás do altar 85. 5826
RECOLHA E APRESENTAÇÃO DAS OFERENDAS 86

67. Então, quando o diácono se aproxima do altar, vem o acólito com o cálice e o 5827
corporal sobre ele. Com o braço esquerdo levanta o cálice e apresenta o corporal ao
diácono, que o tira de cima do cálice e o coloca no altar, à direita, e lança a outra ponta
ao segundo diácono, para que a estenda87.
68. Sobem então à sede o primeiro cerimoniário, o chefe do protocolo, e o primeiro 5828
dos magistrados, com todos os da região e os notários. O subdiácono segue o
arquidiácono com o cálice vazio.

78
Na ausência de diácono, era um presbítero que proclamava o Evangelho e a seguir preparava o altar.
79
Dois manuscritos, um deles à margem: abençoando-o e fazendo-lhe o sinal da cruz.
80
Antes de tomar o Evangeliário, o diácono beijava-o.
81
É soleníssima a procissão com o Evangeliário.
82
Não se diz nada sobre a homilia, embora seja prescrita noutros Ordines; não se diz o Símbolo da fé,
porque ainda não fora introduzido na missa; já não existe na missa a Oração dos fiéis.
83
Todos os bispos, presbíteros, diáconos e outros ministros beijavam o Evangeliário.
84
Todos os códices, com excepção de um, dizem: E depois disto, está o acólito preparado no poio, perto do
ambão, com o estojo no qual o mesmo subdiácono coloca o Evangeliário que é selado. Então o acólito
da região a que pertence o subdiácono leva o Evangeliário para Latrão.
85
Nada é dito da homilia, que devia ter lugar neste momento. São Gregório Magno pregava ao povo em todas
as estações litúrgicas.
86
A recolha e preparação das oferendas era soleníssima e demorada. Toda a gente, mesmo o Papa, levava de casa
as suas oferendas de pão e vinho.
87
O corporal da missa papal é uma grande toalha.
1388 SÉCULO VIII

5829 69. Então o pontífice, depois de dizer Oremus, desce imediatamente ao lugar das
autoridades88. O primeiro dos notários ampara-lhe a mão direita, e o primeiro dos
magistrados a esquerda; aí recebe as oferendas das autoridades, por ordem de hierarquia.
5830 70. O arquidiácono, atrás dele, recebe os jarros89 e despeja-os no cálice maior, com a
ajuda do subdiácono da região, ao qual segue um acólito com uma ânfora sobre a
planeta, na qual é despejado o cálice quando está cheio.
5831 71. O pontífice entrega as oferendas ao subdiácono da região, e este ao subdiácono
sequens, que as coloca no pano de linho90 que dois acólitos sustentam.
5832 72. As outras oferendas recebe-as o bispo hebdomadário, que vai atrás do pontífice,
e deposita-as com as suas mãos no pano de linho que o segue.
5833 73. Atrás dele, o diácono que segue o arquidiácono recebe os jarros e com as suas
mãos despeja-os na ânfora.
5834 74. O pontífice, antes de passar ao lugar das mulheres, desce à «confissão» e recebe
as oferendas do primeiro cerimoniário, do chefe do protocolo e do primeiro dos
magistrados, os quais, nos dias de festa, oferecem no altar a seguir aos diáconos.
5835 75. O mesmo faz o pontífice quando sobe ao lugar das mulheres, segundo a ordem
acima descrita.
5836 76. O mesmo fazem os presbíteros, se for preciso, atrás dele ou no presbitério.
Depois disto, o pontífice, ladeado pelo primeiro cerimoniário e pelo chefe do protocolo,
volta à sua sede e lava as mãos.
5837 77. Acabada a recolha dos dons, o arquidiácono, de pé, diante do altar, lava as mãos
e olha para o rosto do pontífice, que lhe faz um sinal (de cabeça); responde à saudação
e sobe ao altar.
5838 78. Então os subdiáconos da região tomam as oferendas da mão do subdiácono sequens
e entregam-nas ao arquidiácono. Este prepara o altar. Os subdiáconos entregam-lhas
de um lado e do outro.
5839 79. Preparado o altar, o arquidiácono toma o jarro do pontífice, que o subdiácono
oblacionário lhe entrega, e despeja-o no cálice. Assim faz também com os dos diáconos,
e, nos dias de festa, com o do primeiro cerimoniário, do chefe do protocolo e do
primeiro dos magistrados.
5840 80. Desce então o subdiácono sequens até onde está a schola, recebe um jarro (com
água) da mão do arquiparafonista e leva-o ao arquidiácono, que o despeja no cálice,
fazendo uma cruz.
5841 81. A seguir, sobem os diáconos até junto do pontífice. Ao vê-los, o primeiro
cerimoniário, o chefe do protocolo, o primeiro dos magistrados da região, os notários
da região e os magistrados da região descem dos assentos e ficam de pé, nos seus lugares.
5842 82. Levanta-se então o pontífice da sua sede, desce ao altar, saúda-o e recebe as
oferendas da mão do presbítero hebdomadário e dos diáconos.
5843 83. A seguir, o arquidiácono recebe do oblacionário91 as oferendas do pontífice e
entrega-lhas.
5844 84. Depois de o pontífice as colocar no altar, o arquidiácono leva o cálice que recebe
da mão do subdiácono da região e coloca-o no altar junto à oferenda do pontífice, à

88
Senatorium. A palavra faz pensar no antigo senado romano, que já não existe, agora substituído pela
aristocracia romana.
89
Amulas.
90
In sindone. Mais que toalha, era um lençol.
91
O oblacionário levava para a igreja estacional as ofertas pessoais do pontífice e, ao ofertório, dava-as ao
arquidiácono, que as entregava ao pontífice.
ORDO ROMANUS I 1389

direita, e, envolvendo-lhe as asas com o véu92, coloca-o no lado do altar e fica de pé,
atrás do pontífice.
85. O pontífice, inclinando-se um pouco para o altar, olha para a schola e faz sinal 5845
para que se calem.
86. Então, terminado o ofertório 93, os bispos ficam de pé atrás do pontífice, o 5846
primeiro no meio, e logo, por ordem, o arquidiácono à direita dos bispos, o segundo
diácono à esquerda, e os outros dispostos por ordem hierárquica94.
A ORAÇÃO EUCARÍSTICA

87. Uma vez terminado o ofertório, os subdiáconos da região vão para detrás do 5847
altar, olhando para o pontífice95, e permanecem de pé até se começar a dizer o hino
angélico, ou seja: Santo, Santo, Santo.
88. Quando tiver terminado, só o pontífice fica erecto e entra no cânone 96, ao passo 5848
que os bispos, os diáconos, os subdiáconos e os presbíteros, no presbitério, permanecem
inclinados.
89. Ao dizer: Nobis quoque peccatoribus erguem-se os subdiáconos; ao dizer: Per 5849
quem haec omnia, domine, ergue-se só o arquidiácono; ao dizer: Per ipsum et cum ipso (o
arquidiácono) levanta o cálice pelas asas com o véu e mantém-no elevado junto do pontífice97.
90. O pontífice toca então o lado do cálice com as oblatas, dizendo: Per ipsum et 5850
cum ipso, até: Per omnia saecula saeculorum, coloca as oblatas no seu lugar e o
arquidiácono põe o cálice junto delas, tirando o véu das asas.
91. Quando começa o cânone, vem o acólito com um véu de ombros ligado junto ao 5851
pescoço, pega na patena pelo lado direito, apoiando-a sobre o peito98, até que o cânone
esteja a meio.
92. Então o subdiácono sequens recebe a patena sobre a planeta, vai diante do altar 5852
e espera que o subdiácono da região a receba.
COMUNHÃO

93. Terminado o cânone, o subdiácono da região fica de pé, atrás do arquidiácono, 5853
com a patena.
94. Ao dizer: et ab omni perturbatione securi,99 o arquidiácono volta-se, beija a 5854
patena e entrega-a ao segundo diácono, que a sustenta.
95. Ao dizer: Pax domini sit semper vobiscum deixa cair no cálice uma parte dos sancta100. 5855
96. O arquidiácono dá a paz ao primeiro bispo, depois aos outros, por ordem, e ao povo. 5856

92
Offertorium.
93
Já se chamava ofertório à apresentação das oferendas.
94
Não se menciona a oração sobre as oblatas, da qual falam todos os Sacramentários. Aliás, já a seguir nada
se diz do diálogo do prefácio, o que quer dizer que o OR I não é exaustivo quanto à descrição dos ritos da
missa.
95
Dois manuscritos acrescentam: Para que quando disser: Per omnia saecula, ou Dominus vobiscum, ou
Sursum corda, estejam preparados para responder.
96
Esta expressão parece indicar que já então o Prefácio e o Sanctus não eram considerados partes da Oração
eucarística.
97
Era esta a única elevação, no final da Oração eucarística. Não havia ainda a elevação, a meio do cânone,
primeiro do pão e a seguir do cálice.
98
Esta patena era grande e pesada.
99
Esta posição do Pater noster, do qual aliás não se fala, e do Libera nos, imediatamente após o cânone,
indica que estamos numa época posterior a São Gregório Magno.
100
Isto é, do pão consagrado numa missa anterior e que fora apresentado ao pontífice ou ao diácono no início
da celebração (n. 48).
1390 SÉCULO VIII

5857 97. Então o pontífice parte a oblata pelo lado direito e deixa sobre o altar a partícula
fraccionada; as suas outras oblações coloca-as na patena que o diácono sustenta.
5858 98. O pontífice vai logo para a sua sede. Imediatamente o primeiro cerimoniário, o
chefe do protocolo e o primeiro dos magistrados, com todos os da região e os notários,
sobem ao altar e ficam de pé, à direita e à esquerda.
5859 99. Porém, o secretário particular, o tesoureiro pagador e o notário do mordomo do
palácio, quando se diz: Agnus Dei101, sobem e ficam de pé diante do pontífice, para que
lhes mande escrever os nomes daqueles que deseja convidar102, quer para a mesa do
pontífice pelo secretário particular, quer para a do mordomo do palácio103 pelo seu
notário. Terminados os nomes, descem para ir fazer os convites.
5860 100. Então o arquidiácono leva o cálice de cima do altar, dá-o ao subdiácono da região,
que o sustenta perto do lado direito do altar, até que se faça a fracção das oblações.
5861 101. Os subdiáconos sequentes aproximam-se da direita e da esquerda do altar, com
os acólitos, que levam as bolsas; os acólitos estendem as mãos com as bolsas; os
subdiáconos sequentes, de pé, de um e outro lado do altar, abrem as bocas das bolsas,
para que o arquidiácono aí possa colocar as oblações, primeiro à direita e depois à esquerda.
5862 102. Então alguns acólitos vão à direita e levam (pães) aos bispos que estão à volta do
altar; os outros descem até junto dos presbíteros, para que façam a fracção das hóstias.
5863 103. Dois subdiáconos da região levam a patena até à sede, para que os diáconos
façam a fracção.
5864 104. (Os diáconos) olham para o pontífice, para que os mande fazer a fracção; quando
ele lhes faz sinal, saúdam o pontífice e começam a fracção.
5865 105. O arquidiácono, quando o altar fica sem oblações104, olha para a schola, faz sinal
para que digam Agnus Dei e vai para onde está a patena, com os outros.
5866 106. Terminada a fracção, o diácono menor leva à sede a patena do subdiácono, para
que o pontífice comungue.
5867 107. Este, depois de comungar das próprias sancta que partira, põe um resto que ele
trincou no cálice que o arquidiácono segura nas mãos, dizendo: Fiat commixtio et
consecratio corporis et sanguinis domini nostri Iesu Christi accipientibus nobis in
vitam aeternam. Amen. Pax tecum. Et cum spiritu tuo. E o arquidiácono dá-lhe o cálice
a comungar.
5868 108. Depois vem o arquidiácono com o cálice até ao lado do altar e anuncia a estação,
lançando um pouco do cálice na jarra que um acólito segura nas mãos; os primeiros a
aproximar-se da sede são os bispos, para comungarem das mãos do pontífice, segundo
a sua ordem.
5869 109. Os presbíteros sobem todos ao altar, para aí comungarem.
5870 110. O primeiro bispo recebe o cálice da mão do arquidiácono e fica de pé, num
extremo do altar, onde dá o cálice a comungar aos que vêm a seguir, até ao primeiro dos
magistrados.
5871 111. Depois o arquidiácono recebe o cálice da mão (do primeiro bispo), despeja-o na
jarra de que falámos acima e entrega o cálice ao subdiácono da região, que lhe dá a
cânula, com a qual dá o cálice a comungar ao povo.

101
O Agnus Dei foi introduzido na missa pelo Papa Sérgio (687-701).
102
Depois do Agnus Dei o pontífice dizia quais as pessoas que desejava convidar, quer para a sua mesa, quer
para a mesa do mordomo do palácio.
103
O mordomo do palácio era sempre um clérigo de grande categoria, muitas vezes um bispo.
104
Apenas dois códices: Excepto a partícula que o pontífice partiu da sua própria oblação e deixou sobre
o altar, a fim de que, enquanto se celebra a missa, o altar não fique sem sacrifício.
ORDO ROMANUS I 1391

112. O subdiácono sequens recebe o cálice e entrega-o ao acólito, que o leva para a 5872
credência 105.
113. Enquanto (o arquidiácono) dá o cálice a comungar àqueles a quem o Papa dá a 5873
comunhão, o pontífice desce da sede, com o primeiro dos notários e o primeiro dos
magistrados, que lhe amparam as mãos, para dar a comunhão aos que estão no lugar das
autoridades, e depois o arquidiácono dá-lhes o cálice a comungar.
114. A seguir ao arquidiácono, os bispos dão a comunhão ao povo, após o primeiro 5874
ter perguntado ao pontífice e de lhes fazer sinal com a mão envolvida na planeta;
depois deles, os diáconos dão o cálice a comungar.
115. Passam depois para a parte esquerda e fazem o mesmo. 5875
116. Então os presbíteros, a um sinal do primeiro, por ordem do pontífice, dão a 5876
comunhão ao povo. E também lhe dão o cálice a comungar.
117. Quando o pontífice começa a dar a comunhão no lugar das autoridades, a schola 5877
começa imediatamente a antífona da comunhão, alternando com os subdiáconos, e
canta o salmo até que todo o povo tenha terminado de comungar. O pontífice faz sinal
para que digam: Gloria Patri; então, depois de repetirem o refrão, calam-se.
118. O pontífice, logo depois de dar a comunhão no lugar das mulheres, volta para a 5878
sede e dá a comunhão aos da região, por ordem, e aos que estiverem na fila, e, nos dias
de festa, a doze membros da schola. Nos outros dias comungam quando puderem, no
presbitério. Depois o arquidiácono dá-lhes o cálice a comungar. O pontífice, depois de
todos comungarem, senta-se e lava as mãos.
119. Depois de todos estes regressarem, o secretário particular, o tesoureiro, o acólito 5879
que segura a patena e o manustérgio e o que dá a água comungam na sede.
120. Depois do pontífice, o arquidiácono dá-lhes a comunhão no cálice. 5880
121. O subdiácono da região fica de pé, voltado para o pontífice, para lhe fazer sinal. 5881
Olha para o povo, para ver se já comungaram todos, e faz-lhe sinal.
122. Vai ao cimo106, olha para o primeiro da schola e faz uma cruz na própria fronte, 5882
querendo dizer-lhe: Gloriam; ele, saudando-o por sua vez, diz: Gloria, Sicut erat e a antífona.
123. Terminada a antífona, o pontífice levanta-se e, com o arquidiácono, vai ao altar 5883
onde, voltado para o Oriente, diz a oração depois da comunhão107, pois neste sítio,
quando diz Dominus vobiscum, não se volta para o povo.
124. Terminada a oração, o diácono indicado pelo arquidiácono olha para o pontífice, 5884
que lhe faz sinal (com a cabeça), e diz ao povo: Ite missa est. Responde-se: Deo gratias.
125. Então os sete ceroferários e o subdiácono da região, com o turíbulo 108, precedem 5885
o pontífice, no regresso à sacristia.
126. Ao descer ao presbitério, os bispos dizem primeiro: Abençoai-nos, senhor. 5886
Responde: O Senhor nos abençoe. Respondem: Amen. A seguir aos bispos seguem os
presbíteros, os monges, a schola, os soldados draconarii, isto é, os que levam os
estandartes; depois deles os mensageiros, a seguir os ceroferários, depois os acólitos
por ordem, os que levam as cruzes fora do presbitério e os jovens da casa; e entram na
sacristia.

105
Paratorium.
106
Humerum.
107
Ad complendum.
108
Cum turíbulo. É a única vez que a palavra turíbulo é utilizada no OR I.
1392 SÉCULO VIII

Ordo Romanus II 109


5887 Quando o sumo pontífice não está presente onde a statio tem lugar, o bispo que o
substitui faz de modo diferente as seguintes coisas:
5888 2. Segundo, não se senta na sede por detrás do altar.
5889 6. Em sexto lugar, antes de dizer: Pax domini sit semper vobiscum, o subdiácono
oblacionário traz uma partícula do fermentum consagrado pelo Papa, entrega-a ao
arquidiácono e este dá-a ao bispo. Ele, fazendo três vezes o sinal da cruz e dizendo:
Pax domini sit semper vobiscum, mete-a no cálice.
5890 9. Do mesmo modo procede o presbítero, quando preside à missa na statio, com
excepção do Gloria in excelsis Deo, porque o presbítero só o diz na Páscoa.
5891 10. Os bispos que presidem nas cidades fazem tudo como o sumo pontífice.

Ordo Romanus III 110


5892 1. Nos dias de festa, isto é, nas quatro solenidades da Páscoa, Pentecostes, São
Pedro e Natal do Senhor, os cardeais presbíteros devem unir-se (à assembleia), cada
um deles segurando um corporal na mão. Vem o arquidiácono e entrega a cada um três
oblatas. E, quando o pontífice se aproxima do altar, eles colocam-se à volta do altar à
direita e à esquerda e, segurando as oblatas nas mãos e não no altar, dizem o cânone
juntamente com ele111, mas de modo que a voz do pontífice se distinga, e consagram ao
mesmo tempo o Corpo e o Sangue do Senhor, mas só o pontífice faz a cruz sobre o
altar à direita e à esquerda.
5893 3. Se não houver diácono, um presbítero permanece perto do pontífice como o
diácono, mas não tira a casula. No momento de ler o Evangelho, prepara-se no mesmo
lugar do diácono; logo depois de ler o Evangelho, vem diante do altar, depois de
retomar a casula [que tinha tirado para o canto do Evangelho, como o faz ainda o
diácono nas missas da Quaresma] e prepara o altar como o diácono.

Ordo Romanus IV 112


5894 1. Em primeiro lugar todo o clero e todo o povo se dirige para a igreja onde vai ser
celebrada missa. O pontífice entra na sacristia e reveste-se com as vestes sacerdotais.
5895 8. Então os acólitos acendem os círios diante da sacristia, e o pontífice sai da
sacristia com os dois diáconos, que o amparam à direita e à esquerda, indo à frente dele
os sete círios...
5896 13. Quando o pontífice se aproxima da schola, aí estão os acólitos com os círios...

109
Ordo Romanus II (=PL 78, 948 s; A NDRIEU , OR, vol. II, 117-118). É o primeiro suplemento ao OR I da
missa papal. É anterior aos finais do séc. VII (690).
110
Ordo Romanus III (=PL 78, 958 s; A NDRIEU , OR, vol. II, 131-133). É o segundo suplemento ao OR I da
missa papal. Foi composto antes do fim do séc. VIII (795).
111
Testemunho da concelebração. Amalário referir-se-á a este costume, dizendo: «É costume da Igreja romana,
ao celebrar o sacrifício, que os sacerdotes estejam presentes e o façam com o pontífice, pelas suas palavras
e suas mãos» (Liber officialis, lib. I, c. 12, 25).
112
Ordo Romanus IV (=ANDRIEU, OR, vol. II, 157-170). Este Ordo é dos últimos anos do século VIII (790).
ORDO ROMANUS V 1393

18. Enquanto a schola termina a repetição do versículo, o pontífice levanta-se para a 5897
oração, beija o Evangelho que está sobre o altar e vai para a sua sede, no lado direito do
altar113, com os diáconos de pé, junto dele, de um lado e do outro, voltados para Oriente114.
19. Depois os acólitos colocam os círios no chão. 5898
23. Os acólitos levantam os círios e colocam-nos diante do altar, pela sua ordem 115. 5899
24. Terminada a oração, o pontífice senta-se na sua sede e os diáconos ficam de pé, 5900
de ou lado e do outro.
25. A schola vai para o estrado que está abaixo do ambão, e os subdiáconos, que 5901
estavam de pé abaixo das cancelas, vão para junto do altar, de ambos os lados.
26. O pontífice faz sinal e os sacerdotes sentam-se no presbitério. 5902
27. Então o subdiácono lê a leitura no ambão, de pé, no meio da schola... 5903
34. O diácono volta ao altar precedido dos círios, que são colocados atrás do altar 116, 5904
assim como os outros.
35. Se o pálio estiver no altar, desdobra-lhe uma parte para Oriente e o corporal é 5905
estendido no altar pelos diáconos.
37. A schola vai para a parte esquerda do presbitério 117. 5906
45. Os acólitos, na parte direita do altar, seguram a toalha com as oblatas que o 5907
pontífice recebeu do povo, e um subdiácono tira-as e dá-as ao subdiácono regionário,
que as entrega ao arquidiácono, que com elas faz três ou cinco conjuntos sobre o altar...
51. O pontífice faz sinal para que a schola termine, e a schola volta do estrado... 5908

Ordo Romanus V 118


31. Segue-se a iubilatio, à qual chamam sequência119. 5909
40. Depois da leitura do Evangelho, apagam-se as velas no seu lugar, e o bispo 5910
começa a cantar Credo in unum 120.
56. O pontífice inclina-se um pouco para o altar, olha para a schola e pede que se 5911
calem. E, voltando-se para o povo, diz: Orate 121.
58. Depois de dizer a oração sobre as oblatas em voz baixa 122, o bispo começa em 5912
voz alta: Per omnia secula seculorum... Repete-se o Hossana duas vezes. Quando
este termina, o pontífice fica sozinho de pé123 e começa o cânone em voz baixa124.

113
Novo lugar da cadeira episcopal.
114
As igrejas eram orientadas no sentido Oriente (altar) – Ocidente (porta principal).
115
Isto passou a ser possível em virtude do espaço livre, no presbitério, à frente do altar.
116
Para não impediram a recolha das oblações de pão e vinho trazidos pelos fiéis.
117
Segundo a antiga disposição romana, a scola estava situada entre o cimo da nave central e o presbitério,
voltada para o pontífice e seus ministros, quando estes ocupavam o fundo da abside. Agora, na nova
organização litúrgica, há que juntar os cantores, pelo menos em certos momentos, diante do celebrante, que
passou a estar de costas para o povo. E, como a sua cadeira está do lado direito do altar, os cantores vão
para o lado esquerdo do presbitério.
118
Ordo Romanus V (=A NDRIEU , OR, vol. II, 209-227). Este Ordo foi composto por volta de 890.
119
A sequência era cantada.
120
O Credo começa a ser dito na missa.
121
Aparece o rito do Orate, fratres, no fim do ofertório.
122
Secreta. A oração sobre as ofertas começa a ser pronunciada em voz baixa.
123
Surgit solus. O pontífice é o único que não fica inclinado.
124
Tacito intrat in canonem.
1394 SÉCULO VIII

5913 72. Depois de terminadas as bênção pontificais, como é costume nestes lugares125,
ao dizer: A paz do Senhor esteja sempre convosco, mete os Sancta no cálice.

Ordo Romanus VII 126


5914 2. Oração sobre as oblatas. Concede-nos, Senhor, a graça de servir com liberdade
de coração estes dons celestes, para que as ofertas que trazemos sejam para nossa
salvação e glória. Por nosso Senhor Jesus Cristo. O povo responde: Amen.
5915 3. O sacerdote: O Senhor esteja convosco. O povo: E com o teu espírito. O
sacerdote: Corações ao alto. O povo: Estão voltados para o Senhor. O sacerdote:
Dêmos graças ao Senhor nosso Deus. O povo: É digno e justo.
5916 4. É verdadeiramente digno e justo, racional e salutar...
5917 5. Santo, Santo, Santo...
5918 6. Nós Vos rogamos, Pai clementíssimo (Te igitur)... que aceiteis e abençoeis. Aqui
faz por três vezes uma cruz sobre a oblação e sobre o cálice, não, porém, uma só cruz,
mas faz as cruzes separadas umas das outras: estes dons, estas dádivas, este santo
sacrifício imaculado...
5919 7. Lembrai-vos, Senhor (Memento, Domine), dos vossos servos e servas. Aqui, se
quiseres, recorda os nomes dos vivos, excepto no dia de domingo, mas nos outros
dias. E de todos os que estão de pé à volta...
5920 8. Unidos em comunhão (Communicantes)...
5921 9. Aqui inclina-se até ao altar, dizendo: Dignai-Vos aceitar (Hanc igitur), Senhor,
esta oblação...
5922 10. Aqui endireita-se. Só abençoa a oblação. Nós Vos pedimos, ó Deus, que Vos
digneis fazer que esta oblação (Quam oblationem)... Aqui abençoa a oblação e o
cálice: a fim de se tornar para nós...
5923 11. Na véspera de ser entregue (Qui pridie)127...
5924 12. De igual modo, depois da ceia (Simili modo, postquam coenatum est)128...
5925 13. Por isso nós, Senhor, vossos servos, e o vosso povo santo, lembrando-nos (Unde
et memores)... Aqui faz quatro vezes faz o sinal da cruz sobre a oblata e a quinta
vez só sobre o cálice: hóstia pura, hóstia santa...
5926 14. Dignai-Vos, Senhor, olhar (Supra quae)...
5927 15. Aqui inclina-se de novo para o altar, dizendo: Nós Vos suplicamos (Supplices
te rogamus)... Aqui ora no seu interior o tempo que quiser. Depois diz: ordenai que
estas oferendas... Aqui endireita-se, dizendo estas palavras: para que todos aqueles
que vão participar deste altar...
5928 16. Aqui dizem-se duas orações, uma sobre os dípticos e outra depois da leitura
dos nomes, todos os dias ou só nos dias em que há celebração: Lembrai-vos também,
Senhor (Memento etiam, Domine), dos nomes daqueles que nos precederam marcados
com o sinal da fé e agora dormem o sono da paz. E dizem-se os nomes. A seguir,
depois de terem sido recitados, diz: Concedei-lhes, Senhor, a eles e a todos os que
adormeceram...
125
Trata-se da bênção solene, com três membros, dada antes da comunhão.
126
Ordo Romanus VII (=A NDRIEU , OR, vol. II, 296-303). Este Ordo apresenta o texto do cânone e os ritos da
comunhão, indicando, nos pontos requeridos, as atitudes e ritos, entre os quais os sinais da cruz. Foi
composto nos últimos anos do século IX (890).
127
Ainda não há inclinação às palavras da consagração nem elevação do pão consagrado.
128
Não há inclinação às palavras da consagração nem elevação do cálice consagrado.
ORDO ROMANUS IX 1395

17. E também a nós, pecadores (Nobis quoque peccatoribus)... 5929


19. Então repõe as oblações no altar e diz em voz alta: Oremos. Depois diz: Instruídos 5930
com estes preceitos salutares (Praeceptis salutaribus)... Pai nosso, que estais nos Céus...
20. Então o senhor Papa diz esta oração, sem a interferência de qualquer som: 5931
Livrai-nos, Senhor, de todos os males passados, presentes e futuros, e por intercessão
da santíssima e gloriosa sempre Virgem Maria, Mãe de Deus, dos vossos santos
apóstolos Pedro e Paulo, André e do vosso primeiro mártir santo Estêvão, e dos
vossos santos confessores Hilário, Martinho e Bento.
Nomeia aqui os santos que quiser ou aqueles que comemora: com todos os santos...
21. Depois diz: A paz do Senhor esteja sempre convosco. Resp.: E com o teu espírito. 5932
Depois dá a paz ao altar ou à patena, e do mesmo modo o povo dá a paz entre si.

Ordo Romanus IX 129


21. Depois do Credo in unum, que é cantado, o bispo diz: Dominus vobiscum. 5933
Oremus, e depois vai, amparado por dois diáconos e seguido pelos outros, primeiro
receber as ofertas de pão e vinho dos homens, e depois das mulheres.
22. O acólito, como é costume, segura diante de si um pano de linho, para receber as 5934
oblatas do pontífice; outro leva um vaso130, no qual o diácono lança o vinho que vai recebendo.
23. Voltando depois ao povo, o pontífice recebe a oblação da schola, sem vinho. 5935
24. E, avançando para a sede, senta-se; oferecem-lhe água, e ele lava as mãos. 5936
25. O subdiácono, no seu lugar, segura o cálice com vinho e coloca sobre ele o 5937
corporal dobrado, e o acólito segura a patena com as oblatas.
26. Então o diácono recebe o corporal, vai para o lado direito do altar, lança uma 5938
ponta para o outro lado, e outro diácono apanha-a e desdobra-a no altar.
27. Volta também o diácono que leu o Evangelho, beija o joelho do bispo e sobe ao 5939
altar, faz sinal ao acólito que tem a oblação do povo e da schola no pano, recebe-a,
coloca no altar, no corporal que foi estendido, o que lhe parecer suficiente das próprias
oblatas, e infunde, do vaso, uma porção de vinho no cálice.
28. E ele próprio avança com outro diácono e, sustentando o bispo pelos braços, 5940
acompanham-no ao altar. Aproximam-se os presbíteros com as suas ofertas, depois os
diáconos, mas sem vinho.
29. Terminado isto, o diácono recebe a patena da mão do acólito e entrega-a ao bispo... 5941

Ordo Romanus X 131


30. O bispo, depois de ser incensado e de beijar o Evangelho, dirige-se para o lugar 5942
da pregação, pelas mãos do presbítero e do arquidiácono.

129
Ordo Romanus IX (=ANDRIEU , OR, vol. II, 329-336). Este Ordo adapta a missa romana do OR I à celebração
presidida por um bispo. É dos finais do século IX (890).
130
Kanna, canna.
131
Ordo Romanus X (=A NDRIEU , OR, vol. II, 351-362). Este Ordo descreve a missa celebrada por um bispo
numa igreja catedral, onde estão em função os cónegos regulares. A sua composição deve ter sido realizada
entre os anos 900 e 950.
1396 SÉCULO VIII

5943 31. Entretanto, enquanto ele faz o sermão ao povo, o subdiácono, passando por entre
os irmãos, dá o Evangelho a beijar a todos, de maneira ordenada.
5944 32. Se o bispo não quiser pregar, começa em voz alta a cantar Credo in unum Deum,
e todo o coro prossegue, começando em Patrem omnipotentem, e prossegue até ao fim.
5945 37. Então, com a sua autorização, o coro canta o ofertório.
5946 38. O bispo é levado pelo presbítero e pelo arquidiácono ao lugar onde os fiéis
leigos, homens e mulheres, apresentam as oblações, e ele recebe-as, indo à sua frente o
subdiácono com o cálice e o acólito com a patena.
5947 45. Depois de a oblação ser colocada no altar, o diácono recebe o cálice do arqui-
subdiácono e coloca-o imediatamente no altar.
5948 46. Então o bispo benze as hóstias e diz: «Vinde santificador omnipotente, Deus eterno,
e abençoai este sacrifício, preparado por Vós, que viveis e reinais pelos séculos dos
séculos»132, volta-se e toma o incenso do guardião da igreja e, pondo-o no turíbulo,
oferece-o ao altar e entrega-o ao arquidiácono.
5949 48. Então o bispo diz, voltado para o povo: Orai por mim133.
5950 54. Assim que o bispo disser: Por todos os séculos dos séculos, recebe o livro das
bênçãos134 e, voltado para o povo, diz: Inclinai-vos para a bênção. O clero responde:
Graças a Deus. E apresentam o livro ao bispo.

Ordo Romanus XI 135


Começa o ordo ou anúncio do escrutínio dos eleitos,
que tem início na segunda-feira da terceira semana da Quaresma 136

ANÚNCIO DO PRIMEIRO ESCRUTÍNIO 137

5951 1. «Deveis saber, irmãos caríssimos, que está próximo o escrutínio em que os nossos
eleitos serão divinamente preparados. Por isso, na próxima quarta-feira, por volta das
nove horas, reunir-nos-emos com todo o respeito, a fim de podermos realizar o mistério
celeste, em que é destruído o Diabo com o seu cortejo, e abrirmos, pelo ministério sem
mancha, com a ajuda de Deus, a porta do reino celeste».
5952 2. Quando vierem à igreja, como dissemos, na quarta-feira, às nove horas, o acólito
inscreverá os nomes das crianças e daqueles que as vão receber138; (depois), na igreja,
o acólito chamará as próprias crianças pelos nomes ou pela ordem em que foram
inscritas, dizendo, a cada um: Menino N., e os meninos serão colocados do seu lado
direito; e a cada uma: Menina N., e as meninas serão colocadas do seu lado esquerdo.

132
Esta fórmula deriva da liturgia galicana.
133
Orate pro me.
134
Benedictionalem librum.
135
Ordo Romanus XI (=PL 78, 958 s; A NDRIEU , OR, vol. II, 417-447).
136
O OR XI, de origem romana, é anterior ao Sacramentário Gelasiano Antigo. Deve ter sido composto por
volta do ano 600 e circulou na Gália a partir do ano 700.
137
Toda a preparação para o baptismo das crianças se efectua em sete reuniões na igreja, chamadas escrutínios.
As mais importantes eram a primeira, a terceira e a sétima. As outras quatro reduziam-se à repetição dos ritos
realizados na primeira sessão. Porquê sete escrutínios? É preciso que haja sete escrutínios, diz o n. 81,
porque são eles que preparam as crianças para receber os sete dons do Espírito Santo. Desde o n. 1 ao n.
89 a celebração era presidida por um presbítero.
138
Os padrinhos e madrinhas.
ORDO ROMANUS XI 1397

PRIMEIRO ESCRUTÍNIO 139

SIGNAÇÃO

3. Então, em primeiro lugar, o presbítero faz, com o polegar, uma cruz na fronte 5953
de cada um, dizendo: Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.
IMPOSIÇÃO DA MÃO

4. E, impondo a mão sobre as cabeças (dos meninos), diz: Deus todo-poderoso e 5954
eterno, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Faz do mesmo modo sobre as meninas.
BÊNÇÃO E IMPOSIÇÃO DO SAL

5. Depois benze o sal deste modo: Eu te exorcizo, sal140. 5955


6. E põe um pouco desse sal na boca de cada criança, dizendo: N., recebe o sal 5956
da sabedoria. Seja para ti penhor de vida eterna.
AO COMEÇAR A MISSA, AS CRIANÇAS SÃO DESPEDIDAS E SAEM DA IGREJA

7. Depois saem da igreja e esperam pela hora de ser novamente chamadas. 5957
8. Então, o clero começa a antífona da entrada: Quando Eu fizer brilhar a minha 5958
santidade no meio de vós 141.
9. Quando esta tiver terminado, diz: Oremos. Dai, Senhor, aos nossos eleitos. 5959
AS CRIANÇAS VOLTAM A SER CHAMADAS E REENTRAM NA IGREJA

10. Depois senta-se na sua sede, e o diácono diz: Aproximem-se os catecúmenos. 5960
As crianças são chamadas pelo acólito, pelo nome ou pela ordem em que foram
inscritas, e são colocadas como antes.
11. Em seguida o diácono diz esta admonição: Orai, eleitos. Ajoelhai-vos. Depois 5961
de rezarem, diz: Levantai-vos. Completai a vossa oração a uma só voz e dizei: Amen.
Respondem todos: Amen.
PRIMEIRA SIGNAÇÃO DAS CRIANÇAS PELOS PADRINHOS E MADRINHAS

12. O diácono diz igualmente: Assinalai-os. Aproximai-vos para a bênção. Os 5962


padrinhos ou as madrinhas das crianças fazem-lhes o sinal da cruz na fronte, com
o polegar, dizendo: Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.
SIGNAÇÃO, IMPOSIÇÃO DA MÃO E EXORCISMO PELO PRIMEIRO ACÓLITO

13. Vem então o acólito e faz de novo a cruz na fronte de cada um, dizendo: Em 5963
nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.
14. E impõe a mão sobre (os meninos), dizendo, em voz alta, a oração com estas 5964
palavras: Deus de Abraão.
15. Volta-se para as meninas e faz a cruz na fronte de cada uma, como acima. 5965
16. E impõe a mão sobre cada uma delas, dizendo: Deus do Céu, Deus da terra. 5966

139
Os títulos e subtítulos que se encontram ao longo do OR XI, não fazem parte do texto original.
140
Creatura salis.
141
MR, quarta-feira da III semana da Quaresma.
1398 SÉCULO VIII

SEGUNDA SIGNAÇÃO DAS CRIANÇAS PELOS PADRINHOS E MADRINHAS

5967 17. O diácono anuncia, dizendo: Orai, eleitos. Ajoelhai-vos, e o resto. Os padrinhos
ou madrinhas fazem o sinal da cruz, como antes.
SIGNAÇÃO, IMPOSIÇÃO DA MÃO E EXORCISMO PELO SEGUNDO ACÓLITO

5968 18. Segue-se outro acólito, que faz a cruz sobre os meninos como fez antes e,
impondo a mão sobre eles, diz: Escuta, maldito Satanás.
5969 19. Faz de novo e do mesmo modo a cruz sobre as meninas e impõe a mão sobre
elas, dizendo: Deus de Abraão, Deus de Isaac.
TERCEIRA SIGNAÇÃO DAS CRIANÇAS PELOS PADRINHOS E MADRINHAS

5970 20. O diácono diz novamente aos eleitos que orem e as outras coisas, como antes.
Os padrinhos ou madrinhas fazem o sinal da cruz, como antes.
SIGNAÇÃO, IMPOSIÇÃO DA MÃO E EXORCISMO PELO TERCEIRO ACÓLITO

5971 21. O terceiro acólito faz a cruz na fronte dos meninos, tal como fez antes, e
impõe a mão sobre a cabeça deles, dizendo: Eu te exorcizo, espírito imundo.
5972 22. Do mesmo modo sobre as meninas, faz a cruz como antes e impõe a mão
sobre a cabeça delas, dizendo: Eu te exorcizo, espírito imundo.
QUARTA SIGNAÇÃO DAS CRIANÇAS PELOS PADRINHOS E MADRINHAS

5973 23. O diácono adverte: Orai, eleitos, e as outras coisas como antes. Os padrinhos
assinalam-nos, como antes.
SIGNAÇÃO, IMPOSIÇÃO DA MÃO E ORAÇÃO FINAL PELO PRESBÍTERO

5974 24. Então o presbítero aproxima-se, faz a cruz na fronte de cada (menino), como
antes, e impõe a mão sobre as suas cabeças, dizendo esta oração: A vossa eterna e
justíssima misericórdia.
5975 25. Faz o mesmo sobre as meninas, dizendo do mesmo modo a mesma oração.
5976 26. Terminadas todas estas coisas, são novamente advertidos pelo diácono deste
modo: Orai, eleitos. Ajoelhai-vos. Pouco depois diz: Levantai-vos. Completai a vossa
oração a uma só voz e dizei: Amen. Respondem todos: Amen.
QUINTA SIGNAÇÃO DAS CRIANÇAS PELOS PADRINHOS E MADRINHAS

5977 27. Diz novamente: Assinalai-os. Estai atentos e em silêncio. E os padrinhos


assinalam-nos, como antes.
PRIMEIRA LEITURA E REFRÃO

5978 28. Então o sacerdote volta para a sua sede. Lê-se a leitura do profeta Ezequiel:
Assim fala o Senhor: Derramarei sobre vós uma água pura, até: libertar-vos-ei de todas as
manchas142. Segue-se o refrão: Olharei por vós e far-vos-ei crescer e multiplicar143.

142
Ez 36, 25-29.
143
Lev 26, 9.
ORDO ROMANUS XI 1399

AS CRIANÇAS SÃO DESPEDIDAS E SAEM DA IGREJA

29. Depois são advertidas deste modo pelo diácono: Catecúmenos, retirai-vos. Se 5979
alguém é catecúmeno, retire-se. Saiam todos os catecúmenos.
30. Os eleitos saem e esperam lá fora, até ter terminado a celebração da missa. 5980
PROCLAMAÇÃO DO EVANGELHO

31. Em seguida lê-se o Evangelho segundo Mateus: Naquele tempo, dis

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