Você está na página 1de 244

PE.

JULIO MEINVIELLE

CONCEPÇÃO
CATÓLICA
DA POLÍTICA
Vitória/ES
2ª Edição - 2020

CENTRO
ANCHIETA
EDITORA
Concepção Católica da Política
Pe. Julio Meinvielle

Título Original: Concepción Católica de la Política

Os direitos desta edição pertencem à


Editora Centro Anchieta.
Rua José Farias, 160, Santa Luíza, Vitória-ES.
CEP - 29045-300 – Telefone: +55 27 99620-1672
E-mail: editora@centroanchieta.org

Tradução: José Eduardo Câmara


Prefácio: Pe. Arturo Ruiz Freites
Revisão: Lucas Lagasse Corrêa e José Eduardo Câmara
Capa e projeto gráfico: Danilo Croce

Imagem da capa: Reprodução


Coordenador Editorial: Marcos Eugênio Lopes e Madalena Nabuco

M514c

Julio Meinvielle, Padre, 1905-1973


Concepção Católica da Política: Pe. Julio Meinvielle; tradução
José Eduardo Câmara – Espírito Santo: Ed. Centro Anchieta, 2018.
236 p.; 21 cm.

Tradução de: Concepción Católica de la Política


ISBN 978-855-54032-00-5

1. Filosofia e Teoria da Religião 2. Cristianismo e Teologia Cristã


3. Ciência Política I. Título

CDU 101:2

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução


desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica,
fotocópia, gravação ou qualquer meio.
APRESENTAÇÃO À 2ª EDIÇÃO BRASILEIRA

Os ventos começam a mudar na Terra de Santa Cruz. Está


havendo um estupendo renascimento do catolicismo, e com
ele a vida cultural do Brasil mostra uma transformação e re-
novação inauditas. Diversas obras clássicas edificantes, dos
mais variados conteúdos, desde as humanidades, passando
pela política e culminando na vida mística, estão vindo à luz
no cenário editorial brasileiro, em grande parte devido ao
surgimento de diversos Centros e Institutos católicos sabedo-
res de suas responsabilidades históricas. Assim quer a Divina
Providência, e assim há e haverá de ser.
Olhando as coisas sob uma perspectiva mais ampla, não
podemos deixar de notar uma certa coordenação das ações
católicas, tanto no campo cultural quanto no campo político, sem

3
que tivesse havido, entre os diversos centros ou institutos, uma
anterior e norteadora confabulação – digo-o por experiência
pessoal. Tudo tem acontecido pela Santíssima Vontade de Deus,
que até agora nos tem guiado. Os resultados são harmônicos,
ainda que não premeditados coletivamente.
Vejo que o Brasil cumpre a sua vocação universal, a vocação
de Império Católico e, por seu espírito hispânico, precisa levar
a salvação e a Graça a todas as almas. Se já não nos é possível
a conquista de novos territórios, que cuidemos de salvar as
almas e resgatá-las dos sistemas ímpios que desde a revolta
protestante nos têm assolado.
E agora o Centro Anchieta, que nasce sob o signo prioritário da
ação política (ao menos assim tenho entendido a sua missão), para
contrabalançar a preocupação quase que exclusiva com a guerra
cultural de tantos outros Centros e Institutos, vem nos entregar
esta segunda edição do livro Concepção Católica de Política, do Pe.
Julio Meinvielle, grande baluarte do sacerdócio argentino.
E retomando a ideia inicial que permeia esta apresentação,
não deixa de ser significativo e até mesmo indicativo, que tenha
nascido na Argentina, Pátria descoberta e conquistada pelo
grande Império Espanhol, este valoroso sacerdote que vem
agora nos esclarecer, a nós, filhos da Pátria-Mãe portuguesa,
a verdadeira concepção católica de política e nos advertir
sobre os erros perniciosos dos sistemas políticos modernos.
Nunca é demais lembrar que tanto Espanha, como Portugal,
imprimiram em nossa Hispano-américa o espírito guerreiro
e missionário de São Tiago Maior, a quem Nosso Senhor Jesus
encomendou a saga de catequizar a Península Ibérica – sob o
manto de Nossa Senhora, a Virgem Puríssima. Somos filhos

4
de São Tiago Maior, somos filhos da Cruz e da Espada. Por isso
o nosso grande épico, a glória da língua portuguesa, Luís de
Camões, havia notado esta grande verdade, quando se referia
aos lusitanos como uma gente fortíssima de Espanha. Esta é a
nossa dignidade, a nossa tradição e a nossa honra.
Como estava dizendo, o Centro Anchieta, consciente da
missão histórica do Brasil, quer difundir a verdadeira doutrina
da Igreja quanto aos assuntos políticos, porque o movimento
revolucionário anticristão objetivou (e objetiva), em última
instância, à modificação extrema de todas as estruturas políticas
da Cristandade. A confusão reinante no Brasil sobre a natureza da
política, seus sistemas e regimes, é de certa forma a responsável
por nosso fracasso enquanto comunidade política.
A perda da tradição política, o esquecimento programado das
lições aristotélico-tomistas sobre os regimes políticos, colocou o
Brasil no meio do furacão maçônico-liberal, culminando com a
instauração de uma republiqueta positivista-liberal-maçônica
que retoma sua indigna origem em Marsílio de Pádua (mais
remotamente) e Jean-Jacques Rousseau (mais proximamente).
O golpe final nos vem em 1988, com a chamada e atual constitui-
ção republicana, coisa postiça, que constitui o e no vazio, além de
ser inteiramente liberal e maçônica – nos moldes das ideias
venenosas de Rousseau. E, como há de ser, com elementos
socialistas explícitos, porque o liberalismo só está no mundo
para abrir as portas para o socialismo, especialmente o marxista.
Assim as coisas têm acontecido no Brasil. De tudo se diverge
por aqui, mas uma coisa existe de que ninguém tem dúvidas,
nem mesmo aqueles que se consideram católicos sinceros:
não se discute a democracia, o chamado estado democrático de

5
direito – que é uma construção fictícia do iluminismo francês e
uma imposição da revolução francesa. A atual estrutura jurídica
do nosso país nasce de uma simbiose artificial entre o totalita-
rismo democrático (representado pela ideia revolucionária de
“assembleia constituinte”) e a impiedade do liberalismo maçôni-
co – ambos trabalhando para a efetiva revolução comunista – que
temos agora experimentado por aqui com as diversas agendas
propagadas por aqueles que estão a serviço do Governo Global.
Pois bem. Um só livro como este do Pe. Meinvielle seria o
bastante, se bem lido e refletido, ao menos por nós católicos,
para iluminar a nossa inteligência ou ao menos abri-la aos
verdadeiros ensinamentos da Igreja sobre o assunto. Seria o
bastante para ligar o alarme vermelho contra sistemas políticos
estranhos à nossa história, à nossa tradição, e aos prudentes
ensinamentos da Santa Igreja.
Faltava-nos, portanto, uma obra que, em língua pátria, escla-
recesse didaticamente o que são os regimes políticos, segundo a
doutrina segura da Igreja e de seus doutos expoentes, a forma
de constituição de uma cidade, as vantagens e desvantagens
deste ou daquele regime, as combinações possíveis entre eles,
as regras gerais de uma economia católica, e, sobretudo, aquilo
que não devemos, em hipótese alguma, seguir.
Este livro é a melhor maneira de nos livrar de muitas arma-
dilhas pela luz que traz ao intelecto. Pe. Julio Meinvielle faz um
trabalho pastoral muito relevante neste livro, assim como em
todos os outros. Nunca teve pretensões acadêmicas, e nem de-
veria. Sua preocupação sempre foi tratar assuntos complexos
com aquela didática de um sacerdote paroquiano para alertar
suas ovelhas contra os caminhos espinhosos.

6
Assim, Pe. Julio empreende uma pastoral política e trata
com muita simplicidade assuntos que normalmente exigiriam
grandes estudos e meditações. Ele as fez sozinho e nos entregou
tudo resumido, e é justamente este elemento que faz dele o guia
essencial e necessário ao nosso país – que mais do que nunca
tem solicitado um bom pastor também nos assuntos mais amplos
e, por isso mesmo, mais problemáticos.
Vamos ao livro propriamente dito. A primeira parte é toda
para desconstruir o mito da vontade geral em Rousseau e da
soberania popular, mito herético e sacrílego. Mito, aliás, que
resolvemos seguir em nossa constituição republicana de 1988.
Já nas primeiras páginas somos levados a concluir, com muita
facilidade, que vivemos sob a égide de uma estrutura política
postiça, artificial e concebida na mente de inimigos de Deus e
da Igreja Católica.
Condena também, com base nos textos de Santo Tomás de
Aquino e do Magistério dos Papas, o outro extremo da moeda,
que é a teoria física da política, levantada pelo movimento da
Ação Francesa. Conclui Pe. Julio, muito didaticamente, que
a nenhum católico é dado pensar a política como uma arte
(porque, neste caso, cairia no erro de Rousseau, para quem
o homem é o dono absoluto do poder político e pode com ele
fazer o que quer, tal qual um artista diante de um quadro ou
um mármore bruto), muito menos como uma física (como foi
o caso da Ação Francesa, que desejava ver na ação política leis
inflexíveis e absolutas). Nem arte, nem física, mas moral. A
política é uma atividade moral. Este é o primeiro e importante
esclarecimento que nos faz o Pe. Julio Meinvielle.
Logo após, em outro título, explica-nos com a paciência

7
de um verdadeiro pastor, que o autor da sociedade política é
Deus. Isto é, Deus é a fonte da soberania do corpo político, e
não o povo – como hoje afirma a nossa norma fundamental
revolucionária. Trabalha as relações entre a política e a teologia,
e conclui catolicamente que a política se submete à teologia,
está intrinsecamente subordinada a ela – e com isto edifica
um muro intransponível entre a verdadeira doutrina católica de
política e a cosmovisão liberal e maçônica, que tenta ver na ação
política uma absoluta independência e separação relativamente
à teologia.
Em dois dos principais pontos desta obra, Pe. Meinvielle nos
ilumina quanto ao verdadeiro sentido da expressão “democra-
cia”, esclarecendo a destruição que este termo recebeu com as
ideias modernas, restituindo o verdadeiro e católico significado
do referido termo, e nos ajudando a perder, de vez por todas,
esse amor quase que sacramental pelo mito da democracia
(modernamente entendida), ou seja, pelo novo deus criado
pelo filosofismo francês.
Muito significativo para nós católicos é o tópico no qual o Pe.
Meinvielle trabalha o problema intrincado da escolha, por nós,
do sujeito e do regime político (forma) que deve estruturar o cor-
po social. E faz uma diferença, esquecida por muitos, sem a qual
cairíamos nas imprecisas e perniciosas invenções políticas dos
ideólogos protestantes, entre o direito divino dos reis e o direito
humano dos regimes políticos. É que, como sempre defendeu a
doutrina da Santa Igreja, a soberania vem de Deus, mas o sujeito
que a exerce e a forma (regime) pela qual ela será atuante podem
ser estabelecidos pela lei positiva humana, ou seja, pelos homens
– e aqui entra a verdadeira teoria constitucional do Estado.

8
Mas quem não sabe que até hoje circula, inclusive nos círculos
católicos de elevada intelectualidade, a ideia de que a Igreja
sempre defendeu a doutrina pueril do “direito divino dos reis”,
segundo a qual os governantes são eleitos ou escolhidos direta-
mente por Deus para dirigir uma nação? Ora, nada mais injusto
e historicamente sem fundamento. Esse tipo de doutrina é
justamente o oposto da tradição católica, e foi concebida pelos
teóricos protestantes para justificar a unidade de todos os ho-
mens em torno de um outro homem, escolhido, segundo eles,
pela própria Majestade Divina. Chega a ser um desrespeito à
inteligência de tantos mestres do catolicismo esse tipo de acu-
sação leviana, porque não tem havido na Filosofia Política,
data maxima respecta, ideia mais pueril do que esta.
Depois o Pe. Meinvielle nos ensina a postura dos homens
diante de um poder tirânico e injusto, que atenta contra a lei
natural e os direitos da Igreja e de Deus. E com maestria nos
conduz à doutrina pura do catolicismo sobre o direito de re-
sistência contra o poder abusivo e, sendo o caso, até mesmo de
Guerra Justa.
Em outro ponto alto do livro, o Pe. Julio nos ensina como
deve ser a estrutura político-social da vida política, e então, com
mais detalhes, faz uma imponente crítica às duas cosmovisões
que hoje tem corrompido a verdadeira doutrina política e
gerado confusões quase insanáveis na inteligência de todos
nós: o liberalismo e o socialismo. Dá-nos uma aula de como se
estruturavam as sociedades medievais, na áurea Cristandade,
e nos apresenta uma forma de estruturar o organismo político
através dos corpos intermediários – família, representação
profissional e municípios, pelos quais os homens são chamados

9
a uma vida de união real pelo bem comum temporal, e com
isso apresenta uma via interessante para combater e superar
(de uma vez por todas) esta indecente democracia moderna,
que só conhece o sufrágio universal como único meio de gerar
uma representação política, numa maravilhosa magia numérica
pela qual da quantidade brota imediatamente a qualidade.
Por fim, o Pe. Julio nos apresenta a função do Estado e sua
relação com esses mesmos corpos intermediários, com a cultura,
com a economia, com a comunidade internacional e, em especí-
fico, com a Santa Igreja – e neste particular o nosso sacerdote
argentino dá o tiro de misericórdia no liberalismo e na chamada
“sã laicidade”. Termina, de fato, com um tópico sobre a teoria
anticatólica de Jacques Maritain a respeito da intitulada cidade
fraterna, que nada mais é do que a ideia maçônica elevada à
sua quintessência. Não poderia terminar melhor.
Dos apêndices, acrescentados em edições posteriores, nos quais
o Pe. Julio atualiza as suas impressões sobre os acontecimentos de
época, o mais interessante, em meu sentir, é o que trata de
Charles Maurras. O Pe. Meinvielle, com muita honestidade
intelectual, restaura a imagem deste grande mestre, que não se
pode confundir com a imagem do movimento conhecido como
Ação Francesa. Acrescenta, claro, que a concepção política de
Maurras está incompleta (embora verdadeira), e precisa ser
aperfeiçoada pela verdadeira doutrina que só pode vir da Igreja.
É preciso dizer, por fim, que as obras do Pe. Julio Meinvielle,
especialmente esta que agora apresentamos, está em inteira
consonância com a Santa Doutrina Social da Igreja, com toda a
Santo Magistério, ou ordinário ou extraordinário, inclusive com
as constituições do Concílio de Vaticano II, e com o designado

10
Compêndio da Doutrina Social. Muitos católicos que costumam
flertar (expondo-se ao perigo de um pecaminoso adultério)
com as consequências mórbidas do modernismo pensam que este
último (o Compêndio) teria aderido ao espírito do democratismo,
da democracia maçônico-liberal, e ao pernicioso sistema do
sufrágio universal.
Não é, sinceramente, a nossa visão. Quando tal documento se
utiliza do termo “democracia”, ou “representação democrática”,
e o faz em algumas ocasiões, está a se referir justamente ao
que a doutrina tomista entende por democracia, ou seja, por
uma participação popular hierárquica e não por mero consenso
ou por um simples sufrágio universal – esta última expressão
o Compêndio nem sequer se utiliza. Ali, no meio de tantos pará-
grafos, podemos ler: “(...) No entanto, o mero consenso popular
não é suficiente para que as modalidades de exercício da autori-
dade política sejam consideradas justas” (§ 395, do Compêndio).
São palavras do Compêndio da Doutrina Social da Igreja
a nos convidar a refletir sobre os problemas que pode trazer
a aplicação de uma democracia rousseauniana e moderna –
justamente a que nós, por aqui, temos usado. Isto sem contar
os diversos parágrafos, contidos no Compêndio, destinados a
combater o relativismo moral que hoje domina as nações de
todo o mundo, e inferindo que um regime democrático sem
respeito aos direitos naturais tenderá para o totalitarismo.
Não é este o momento e o espaço mais adequado para fazer-
mos uma apologia do livro comparando-o com a doutrina polí-
tica ensinada pela Santa Igreja após o Concílio do Vaticano II, até
porque o Pe. Meinvielle viveu muito bem o pós-concílio e sempre
teve um olhar caridosos para as conclusões do mesmo – vendo

11
nelas, inclusive, como dizia em alguns textos, uma forma caridosa
pela qual a Igreja colocava as verdades católicas para uma socieda-
de com ouvidos já profundamente modificados pela cosmovisão
modernista. Ou seja, o Pe. Meinvielle acertou mais uma vez ao
ensinar que não se pode adotar o mesmo tom para um ouvindo
já maduro e o outro totalmente infantilizado. E mais: mesmo
após a publicação de todos os documentos gerados pelo Concílio
do Vaticano II, o Pe. Julio Meinvielle em nada, nem sequer
uma vírgula, modificou a Concepção Católica de Política. Cer-
tamente porque não enxergara qualquer discrepância digna
de nota entre ambos.
Para finalizar, quero dizer que neste livro o Pe. Meinvielle
executa com primor o que nos prometeu: entregar-nos uma
obra bem sintética e não menos profunda sobre as posições
oficiais da Igreja Católica a respeito da ordenação política de
um corpo social, e o fez de uma forma compreensível, pastoral
e caridosa.
E é exatamente este tesouro que temos em mãos. Que a ação
política católica, que vem tomando corpo nesta Terra de Santa
Cruz, possa ter como guia seguro este opúsculo que agora apa-
rece com nova revisão. Sendo mais direto, que nós católicos
nos encorajemos e nos lancemos na vida política, na partici-
pação política genuína, após, óbvio, um santo discernimento
espiritual, e sempre muito conscientes do nosso papel e de
como podemos conduzir a Pátria a Cristo Rei.
Não se assuste o leitor, por exemplo, quando ler o Pe. Mein-
vielle dizer que não cabe à política católica aceitar a ideia de
soberania popular, de sufrágio universal, de democracia par-
lamentar, etc., e não vá imaginar, só com a superfície, que, por

12
isso e automaticamente, a Igreja está a defender uma forma
totalitária de política. Este é o outro grande motivo pelo qual este
livro precisa urgentemente ser conhecido por todos os católicos
brasileiros e por todos os homens de boa vontade. E de certa
forma isto também revela que a deformação do pensamento
político clássico sofreu um golpe tão profundo, mas tão profundo,
a ponto de se poder identificar, de maneira automática na cabeça
da grande parte das pessoas de hoje, um antidemocratismo
com um pró-totalitarismo. As coisas chegaram a um nível tão
extraordinário de inversão conceitual, que aquilo que antes
fora considerado uma das causas de um regime opressor e
totalitário (a própria democracia), agora passa a ser considerada
justamente o oposto disso; a democracia é conhecida como o
único regime que combate o totalitarismo e a ele oposto. Nada
mais falso, e o Pe. Meinvielle, fazendo eco das vozes autori-
zadas do Santo Magistério, amplia os horizontes da nossa
imaginação e da nossa inteligência para nos fazer ver que
é possível e até desejável evitar a democracia, tal qual mo-
dernamente concebida, a fim de construir outro sistema de
representação baseado na participação hierárquica dos corpos
intermediários – que está muito longe de ser totalitário, e que
na verdade é um antídoto eficaz contra o avanço opressor do
Leviatã moderno.
O que fazer então, se vivemos num país que adotou em sua
norma positivada máxima, a chamada constituição da re-
pública de 1988, um regime democrático moderno, liberal e
maçônico? Como devemos fazer para inserirmo-nos na vida
política nacional, para participar da vida social da nação, sem
parecer que estamos consentindo ou sendo coniventes com

13
um sistema corrupto e corruptor como a democracia moderna?
A questão é muito mais complexa do que podemos imaginar, e
até mesmo nos meios intelectuais católicos as coisas não estão
ainda bem definidas: uns dizem que seria necessário parti-
cipar desse sistema equivocado de forma apenas estratégica,
sem adesão essencial, mas apenas acidental, podendo assim
colocar impedimento e dificuldades a certas pautas revolu-
cionárias que porventura chegassem para votação numérica
no parlamento nacional; outros, por sua feita, dizem que se
deve evitar à todo o custo a inserção de católicos num sistema
que é, em si, revolucionário (a democracia parlamentar), e que
nossa ação deve ser exclusivamente a resistência em obedecer
eventuais leis humanas concebidas contra o direito natural e
os direitos da Igreja e de Deus, ou, ao menos, agindo através de
institutos, centros, ou seja, por meio de corpos intermediários
e de pressão.
De qualquer forma, aqueles que escolhem, por questões
estratégicas, a primeira forma de atuação, isto é, que escolhem o
caminho do mal menor, da participação ativa no jogo do sistema
democratista, nos bastidores do poder democrático moderno,
sujeitando-se ao sufrágio universal, a ter que ver colocado em
votação projetos para aprovar aborto ou ideologia de gênero,
nunca podem se dar ao luxo de esquecer que estão escolhendo
um mal, ainda que seja, para eles, um mal menor. E que o mal,
menor ou maior, deve ser duramente combatido, na primeira
oportunidade, mesmo que pela via da estratégia.
Sendo mais direto, o que quero dizer é que não dá para um
católico se acostumar com o jogo democrático e gostar de par-
ticipar dele, sem que tenha de fato uma estratégia a curto, mé-

14
dio ou ao menos a longo prazo para implementar, dentro dos
limites conjecturais existentes, um regime político legítimo e
verdadeiramente católico, fundado nos corpos intermediários e
numa hierarquia do corpo político. O que realmente não pode
ocorrer, em nossa opinião, é lutar o e dentro do jogo democrático,
dizer que o faz por questões estratégicas, e não dar nenhuma
mostra de que tem alguma estratégia para a superação dessa
democracia sufragista inidônea.
Vejo hoje um grande número de católicos se tornando can-
didato. Que seja! Mas não vejo sequer um católico candidato
gritar, como o fez José Antonio Primo de Rivera: sou candidato
sim, mas sem fé nem respeito! Não quero crer que estejam
todos muito acomodados com suas momentâneas (e impor-
tantes, não há como negar) conquistas. Momentâneas e frá-
geis conquistas, porque a permanecer as coisas como estão,
amanhã ou depois todos os temas contrários ao direito natural
e à Fé Católica retornarão e entrarão em pauta novamente. A
democracia moderna é um sistema que, apenas por existir,
coloca em risco permanente o direito natural e os direitos de
Deus. É um regime político que vive de desafiar o Criador. Não
dá para ficar dentro dele sem querer um dia superá-lo.
Que um católico admita participar de uma votação meramente
numérica para decidir se se pode matar uma vida humana no seio
mesmo de sua mãe, isto é, que um católico possa ao menos
admitir que um assunto como este, já definido desde a eternidade
por Deus, possa ser exposto ao banquete sujo do consenso
humano na ordem temporal, é coisa que não posso digerir
muito bem. Agora, se este candidato, ou parlamentar católico já
eleito, acaba gostando e se adaptando aos meandros perversos

15
desse sistema e permaneça, só porque conseguiu uma vitória aqui
e acolá, indefinidamente lutando dentro da arena do inimigo,
então podemos dizer, sem medo de errar, que esta ação política
é oportunista, e não católica.
E se ao menos essa grande lição for aprendida no final da
leitura deste opúsculo tão informativo, acredito que esta obra do
Pe. Julio Meinvielle terá cumprido o seu principal desiderato: tirar
a máscara dos inimigos da Igreja, que se fazem de bons moços sob
o sepulcro de uma democracia pretensamente participativa. Com
este livro, as coisas agora se mostram como são, em toda a sua
fealdade e insensatez.

Viva Cristo Rei!

Vila Velha (ES), próximo ao Santuário de Nossa Senhora


da Penha e do Santuário do Divino Espírito Santo,
em 14.12.2019 – Dia de São João da Cruz.

Leonardo S. Penitente
Advogado

16
SUMÁRIO

PREFÁCIO À EDIÇÃO ITALIANA......................................................... 19


INTRODUÇÃO...........................................................................................39

CAPÍTULO 1
Natureza moral da política..................................................................................45
CAPÍTULO 2
O Problema da Soberania .................................................................................. 77
CAPÍTULO 3
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política...............................................119
CAPÍTULO 4
Funções da Autoridade....................................................................................... 157

CONCLUSÃO............................................................................................ 193

APÊNDICE 1
O Igualitarismo e o Evangelho .......................................................................201
APÊNDICE 2
Os três sentidos da palavra democracia..................................................... 204
APÊNDICE 3
Leão XIII e a democracia cristã......................................................................208
APÊNDICE 4
Filosofia da democracia moderna....................................................................211
APÊNDICE 5
A “física política” de Charles Maurras e a política cristã..................... 232
PREFÁCIO À EDIÇÃO ITALIANA

ℙ enso que não há melhores palavras para apresentar esta


primeira edição italiana de Concepção Católica da Política, do
que aquelas que o próprio Padre Meinvielle utilizou no Prólogo
da terceira edição, na já distante Páscoa de 1961:

“Decidi publicar novamente este livro, publicado pela primeira vez


em 1932, porque expõe em síntese os grandes princípios de uma
concepção católica da política. Hoje, há desordem na inteligência,
porque não se conhecem os princípios elementares das grandes
realidades (...). Urge, portanto, que aqueles jovens eleitos ávidos em
pôr em ordem sua inteligência, no que se refere à política, ter em
mãos um livro de leitura fácil que exponha a eles em modo relevante
os grandes e permanentes princípios da sociedade política”.

Esta é, portanto, sua finalidade, plenamente alcançada, e


o primeiro mérito do presente livro foi ter sido escrito vi-
sando à formação política católica dos jovens. Transmite-

19
PREFÁCIO

-se nele, sucintamente, a melhor tradição do pensamento polí-


tico clássico e cristão que, pela força dos princípios assumidos e
expressos pelo magistério político e social da Santa Mãe Igreja, é
imperecível e sempre fecundo. Eis o motivo desta primeira edição
em italiano, depois de tantos anos de sua primeira redação, reim-
presso sucessivamente em 1961 e 1974.
Eu mesmo experimentei a clareza emanada deste livro
por um jovem desejoso de verdade política, quando, num
distante dia da minha primeira juventude, conversando com
meu pai, outrora decano-fundador da Faculdade de Ciências
da Educação da Universidade Católica Argentina, na minha
distante Mendoza, aos pés dos Andes, ele me indicou ler o
Concepção Católica da Política, de Meinvielle. Tal leitura perma-
neceu impressa em mim como um “caráter”, como uma pedra
basilar do pensamento, fonte de discernimento, por vários
motivos, que hoje podemos elencar:

‒ o modo de realçar a excelência do pensamento político


católico sobre a natureza social do homem, sobre a reali-
dade da ordem moral da sociedade política, sobre a mútua
correspondência e ordenamento do bem comum e do bem
próprio da pessoa, sobre a autoridade política e as formas
de governo. Tudo isso emerge claramente e é contraposto
às opostas ideologias do individualismo e do totalitarismo,
particularmente aquele o comunista;
‒ a luz que provém da Fé na Revelação, assumindo o melhor
da filosofia política, com apego e fidelidade ao magistério
das grandes Encíclicas sobre a Doutrina política e social da
Igreja, e a síntese resolutiva – política de Santo Tomás, cuja

20
Concepção Católica da Política

ordem da inteligência, pensando a política a partir da teolo-


gia moral e do pensamento clássico, não tem comparação;
‒ o realismo que confere à prudência política e à viabilidade
do possível;
‒ enfim, a clareza das ideias expostas com a simplicidade
pedagógica própria de Meinvielle.

Este livro, nutrido da mais genuína doutrina que, emanada


da Sé Romana e do Aquinate chegou “dos Apeninos aos Andes”,
tem, portanto, muitos motivos para ser hoje um claro eco que
retorna “dos Andes aos Apeninos”.
Este não é um livro de erudição científica de um especia-
lista, mas um livro de pedagogia escrito por um professor, pai
e pastor, por um sacerdote de Cristo, para jovens leigos que
necessitam de critérios – guia da doutrina católica na grande
tarefa de “procurar o Reino de Deus tratando das realidades tempo-
rais e ordenando-as segundo Deus (...) iluminar e ordenar de tal modo
as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam
sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e
Redentor”1. Isto é “santificar as estruturas temporais”2, seguindo o
mandato evangelizador de Cristo e a missão santificante da
Igreja no seu ambiente próprio:

“A obra redentora de Cristo, que por natureza visa salvar os homens,


compreende também a restauração de toda a ordem temporal. Daí que
a missão da Igreja consiste não só em levar aos homens a mensagem

1
CONCÍLIO VATICANO II, Lumen gentium (LG) IV, 31.
2
CONCÍLIO VATICANO II, Ad Gentes (AG) 41. NdT. Na versão em português: “administrem as coisas temporais”.

21
PREFÁCIO

e a graça de Cristo, mas também em penetrar e atuar com o espírito


do Evangelho as realidades temporais. Por este motivo, os leigos,
realizando esta missão da Igreja, exercem o seu apostolado tanto
na Igreja como no mundo, tanto na ordem espiritual como na tem-
poral. Estas ordens, embora distintas, estão de tal modo unidas no
único desígnio divino que o próprio Deus pretende reintegrar, em
Cristo, o universo inteiro, numa nova criatura, dum modo incoativo
na terra, plenamente no último dia. O leigo, que é simultaneamente
fiel e cidadão, deve sempre guiar-se, em ambas as ordens, por uma
única consciência, a cristã”3.

É mais que oportuno recordar a urgência desta missão


apontada pelo Concílio Vaticano II para o nosso tempo4:

“Pois o Senhor deseja dilatar também por meio dos leigos o Seu
reino, reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça,
reino de justiça, de amor e de paz, no qual a própria criação será
liberta da servidão da corrupção, alcançando a liberdade da glória
dos filhos de Deus (cfr. Rom. 8, 21). Grande é a promessa, grande o
mandamento que é dado aos discípulos: “tudo é vosso; vós sois de
Cristo; e Cristo é de Deus” (1 Cor 3, 23).
(...) Deste modo, por meio dos membros da Igreja, Cristo iluminará
cada vez mais a humanidade inteira com a Sua luz salvadora.
Além disso, também pela união das próprias forças, devem os leigos sa-
near as estruturas e condições do mundo, se elas porventura propendem
a levar ao pecado, de tal modo que todas se conformem às normas
da justiça e antes ajudem ao exercício das virtudes do que o estorvem.
Agindo assim, informarão de valor moral a cultura e as obras humanas. E,
por este modo, o campo, isto é, o mundo ficará mais preparado para a

3
CONCÍLIO VATICANO II, Apostolicam actuositatem (AA) 5.
4
LG 36, “Participação dos leigos no ministério real”. Meinvielle, filho fiel da Igreja, defendeu o Concílio e
esteve entre os primeiros a reivindicar a “hermenêutica da continuidade” contra o progressismo secularista.
Veja-se La Iglesia y el Mundo Moderno, Buenos Aires 1966, Riguardo al Progressismo cristiano, La libertad
religiosa, e outros ensaios, todos disponíveis na página web juliomeinvielle.org.

22
Concepção Católica da Política

semente da palavra divina e abrir-se-ão à Igreja mais amplamente as


portas para introduzir no mundo a mensagem de paz.
Devido à própria economia da salvação, devem os fiéis aprender
a distinguir cuidadosamente entre os direitos e deveres que lhes
competem como membros da Igreja e os que lhes dizem respeito
enquanto fazem parte da sociedade humana. Procurem harmonizar en-
tre si uns e outros, lembrando-se de que se devem guiar em todas as coisas
temporais pela consciência cristã, já que nenhuma atividade humana, nem
mesmo em assuntos temporais, se pode subtrair ao domínio de Deus. É
muito necessário em nossos dias que esta distinção e harmonia se
manifestem claramente nas atitudes dos fiéis, que a missão da Igreja
possa corresponder mais plenamente às condições particulares do mundo
atual. Assim como se deve reconhecer que a cidade terrena se consagra
a justo título aos assuntos temporais e se rege por princípios próprios,
assim com razão se deve rejeitar a nefasta doutrina que pretende construir
a sociedade sem ter para nada em conta a religião, atacando e destruindo
a liberdade religiosa dos cidadãos”5.

Depois da Encarnação do Verbo, que inaugurou a realização


do desígnio salvífico universal de Deus, “toda a criação geme e sofre
como que dores de parto até o presente dia”. Não só ela, mas também

5
[n. 116] Cfr. LEÃO XIII, Encícl. Immortale Dei, 1° nov. 1885: ASS 18 (1885), p. 166ss. IDEM, Encícl.
Sapientiae Christianae, 10 jan. 1890: ASS 22 (1889-90), p. 397ss. PIO XII, Disc. Alla vostra filiale, 23 de março
de 1958: AAS 50 (1958), p. 220: “a legítima sã laicidade do Estado”. A expressão do discurso de Pio XII, Alla
vostra filiale, dirigido aos residentes em Roma originários das Marcas, se insere numa bela síntese do con-
ceito do que é a “Cristandade”, em contraposição à confusão, ao mesmo tempo secularista e “religiocrata”,
que se tem quando falta a Igreja, e que implica na negação da distinção e da subordinação das ordens
da sociedade e poderes civis e eclesiásticos (sociedade pagã, hebraica, islamista, protestante): “Há, na
Itália, quem se agita, porque teme que o cristianismo tire a César o que é de César. Como se dar a César
aquilo que lhe pertence, não fosse uma ordem de Jesus; como se a legítima sã laicidade do Estado não
fosse um dos princípios da doutrina católica; como se não fosse tradição da Igreja o contínuo esforço
para manter distintos, mas também segundo os retos princípios, unidos os dois Poderes, como se, ao invés, a
mistura entre sacro e profano não tivesse se verificado mais fortemente na história, quando uma porção dos
fiéis se separou da Igreja. As cidades serão partes vivas da Igreja, se nelas a vida dos indivíduos, a vida das
famílias, a vida das grandes e pequenas coletividades, serão alimentadas pela doutrina de Jesus Cristo,
que é amor de Deus e, em Deus, amor ao próximo, tudo. Indivíduos cristãos, famílias cristãs, cidades
cristãs, Marcas cristã” (cursivo nosso).

23
PREFÁCIO

nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interior-


mente, aguardando “a adoção de filhos” (Rm 8, 22). Não há um
outro verdadeiro fim último existencial e concreto para os homens que
a união eterna e definitiva com Deus Trino que nos salva pela
graça em Cristo e na Igreja, sociedade sobrenatural de salva-
ção. E é o fim transcendente do homem o primeiro princípio
ordenador, universal, e preenche a ordem moral humana, a
que pertence a política, entendida como necessária atividade
do homem na sua conatural dimensão social de multidão or-
denada pelo bem comum temporal. Já dizia Aristóteles que “in
agendis primum principium est finis”6, e Santo Tomás ensinava no
seu De Regno (Do Reino) que a sociedade política é comparável a
uma nave, cuja navegação não se esgota em si, mas em levar os
passageiros ao porto, indicando assim as duas faces, a imanente e
a transcendente, do bem comum7.
Portanto, a sociedade civil, entendida como âmbito em que
se realiza e se busca o bem comum temporal, sem perder a pró-
pria realidade e o próprio domínio – como não a perde o indi-
víduo e nem sequer a sociedade – ordena-se realmente e exis-
tencialmente, graças à conjunção da lei natural8 e da positiva

6
NdT: “cabe à razão ordenar ao fim, que é o primeiro princípio do agir”. “...rationis enim est ordinare ad
finem, qui est primum principium in agendis, secundum Philosophum” [Phys. 2, 9; Ethic. 7, 8] dizia o Doutor
Angélico ao tratar sobre a lei, Summa theologiae, Ia IIae, q. 90, a. 1.
7
De Regno o De regimine principum, L. I, c. 15.
8
PIO XII, Discurso aos filósofos humanistas reunidos em Roma para seu Congresso Internacional, 25 de
setembro de 1949: “A lei natural! Eis o fundamento sobre o qual se apoia a doutrina social da Igreja.
Exatamente o conceito cristão do mundo inspirou e sustentou a Igreja ao construir esta doutrina sobre
tal fundamento. Se ela combate para conquistar ou defender sua própria liberdade, o faz também pela
verdadeira liberdade, pelos direitos primordiais do homem. Para ela, esses direitos essenciais são tão
invioláveis que nenhuma razão de Estado, nenhum pretexto do bem comum os poderiam predominar.
São protegidos por uma muralha insuperável. Deste lado, o bem comum pode legislar à vontade. Do

24
Concepção Católica da Política

vontade salvífica divina – a Lei nova do Evangelho – ao bem


eterno sobrenatural das pessoas, que é também um bem comum
sobrenatural da comunhão e sociedade eclesial: “(...) o mundo, a
vida, a morte, o presente e o futuro. Tudo é vosso! Mas vós sois de Cristo, e
Cristo é de Deus.” (1 Cor 3, 22-23).
É também um dever moral da pessoa humana, enquanto
membro e parte da sociedade, com as suas exigências da lei
natural de “buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a Deus” e
“dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira
religião e a única Igreja de Cristo”, como recorda o Concílio9, o estar
ordenada e se esforçar para ordenar tudo ao fim último pro-
posto à liberdade dos homens pela própria consciência deles
e pela Revelação divina. Obrigação moral que é direito e dever
pela lei divina natural e pela lei divina positiva e requisito, por-
tanto, para o cumprimento da cooperação humana à salvação
integral que Deus nos concede. A pessoa, com a sua dignidade
de criatura espiritual, com sua inalienável e espiritual sede de
Deus, e a pessoa mesma, que enquanto católica, com a sua fé e
vida da graça e com a pertença a Igreja, ordena-se com respon-

lado de lá, não podem atentar contra esses direitos, porque eles constituem o que há de mais precioso
no bem comum. Se se respeitasse esse princípio quantas trágicas catástrofes e quantos perigos amea-
çadores teriam sido evitados! Ele, sozinho, poderia renovar a fisionomia social e política da terra. Mas
quem, portanto, haverá um similar respeito incondicional pelos direitos do homem, senão aquele que
tem consciência de agir sob o olhar de um Deus pessoal?”
9
No Prólogo da declaração do CONCÍLIO VATICANO II sobre a liberdade religiosa, Dignitatis humanae
(DH,1): “...todos os homens têm o dever de buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a Deus e à
sua Igreja e, uma vez conhecida, de a abraçar e guardar. O sagrado Concílio declara igualmente que tais
deveres atingem e obrigam a consciência humana e que a verdade não se impõe de outro modo senão
pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte. Ora, visto que
a liberdade religiosa, que os homens exigem no exercício do seu dever de prestar culto a Deus, diz res-
peito à imunidade de coação na sociedade civil, em nada afeta a doutrina católica tradicional acerca do
dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo”.

25
PREFÁCIO

sabilidade moral – direito e dever – ao bem comum temporal da


sociedade civil; por sua vez, também o bem comum temporal,
porque o fim da pessoa o transcende, ordena-se por sua parte
– com um ordenamento que se torna parte integrante do bem
comum temporal, seja por direito natural, seja também cristão
numa Civilização cristã10 – ao bem último supremo, espiritual e
religioso das pessoas, ou ao bem comum sobrenatural. Assim,
na “cidade católica”11, a sociedade dos homens ferida pelo peca-
do original é curada e elevada, e o seu bem comum temporal é
um bem comum cristão, de sociedade e civilização cristã.
Segundo o ensinamento genuíno de Santo Tomás, “Doctor
Communis Ecclesiae”12, e “Doctor humanitatis”13, essa é uma exigência

10
S. TOMÁS, De Regno, L. I, c. 16.
11
Cfr. S. PIO X, encíclica Notre charge apostolique, 11: “... Ela existiu, ela existe; é a civilização cristã.
Trata-se unicamente de instaurá-la e restaurá-la incessantemente sobre seus fundamentos naturais
e divinos contra os ataques sempre ressurgente da doentia utopia, da revolta e da impiedade: ‘omnia
instaurare in Christo’ (Ef 1,10).”
12
Como o chama PAULO VI, seguindo a tradição dos Pontífices desde 1317, na sua bela Carta “Lumen
Ecclesiae” (20 de novembro de 1974, 2) na qual exorta: “Por isso, também Nós, como Pio XI, recomen-
damos a quem quiser formar uma madura consciência acerca da posição a tomar em tal matéria: Ide
a Tomás! (Encicl. Studiorum Ducem: AAS 15, 1923, p. 323)”. Sempre nela (n.5) Paulo VI ensinava: “Santo
Tomás, no centro do grande debate cultural – religioso e humano – com o olho atento ao desenvolvi-
mento da realidade política, não tem dificuldade para considerar as novas condições dos tempos e a
discernir neles os “sinais” dos princípios universais – de razão e de fé – com que vão confrontadas as
coisas humanas e julgados os eventos. E reconhece a relativa autonomia dos valores e das instituições
deste mundo, enquanto reafirmando sem hesitação a transcendente supremacia do fim último a que
tudo, no mundo, deve ser ordenado e subordinado: o reino de Deus, que é ao mesmo tempo o lugar da
salvação do homem e a base de sua dignidade e liberdade” (Cfr. Summa Theologiae, I-IIæ, q. 21, a. 4, ad 3:
Ed Leonina, VI, p. 167).
13
Título dado ao Santo Doutor e patrono universal das Escolas e dos estudos católicos, por JOÃO
PAULO II, Discurso aos participantes no VIII Congresso Tomista Internacional, 13 de setembro de 1980;
Insegnamenti, III, 2 [1980] 609; também indicado no Discurso aos participantes no IX Congresso Tomista
Internacional, 29 de setembro de 1990, 5): “Portanto, de se desejar e favorecer de todos os modos o estudo
constante e aprofundado da doutrina filosófica, teológica, ética e política que Santo Tomás deixou como
herança às escolas católicas e que a Igreja não hesitou em fazer própria, especialmente no que diz
respeito à natureza, à capacidade, à perfectibilidade, à vocação, à responsabilidade do homem na esfera
seja pessoal como social, como se evidencia das diretiva do Concílio Vaticano II” (cfr. Optatam totius,

26
Concepção Católica da Política

do fim último, eterno e transcendente das pessoas humanas cha-


madas à união salvífica com Deus, tornado possível com a ajuda
da Igreja, e indica a condição de meio, isto é, de fim intermédio,
do bem comum temporal devidamente ordenado, ao qual um
católico não pode se subtrair de cooperar enquanto é dever de
moral sobrenatural, de caridade, de justiça, e de todas as outras
virtudes nas suas dimensões comunitárias:

“(...) é evidente que todos os que compõem uma coletividade estão


para essa coletividade como as partes para o todo. Mas a parte é es-
sencialmente do todo, pelo qual qualquer bem da parte é ordenável
ao bem do todo. Portanto, o bem de qualquer virtude, ou porque que
ordene um indivíduo em si mesmo, ou o ordene com respeito aos
outros indivíduos, é referível ao bem comum, ao qual é interessada
a justiça. Por tal motivo, portanto, à justiça podem pertencer os atos
de todas as virtudes, enquanto ela ordena o homem ao bem comum.
Ora, com respeito a esse dever, a justiça vem considerada como
uma virtude geral, ou universal. E porque cabe à lei ordenar ao
bem comum, como se viu acima [I-II, q. 90. a. 2], essa justiça geral é
chamada justiça legal: porque com ela o homem chega a concordar
com a lei, que ordena os atos de todas as virtudes ao bem comum14.

Assim ensina o supremo Magistério, como diz Bento XVI,


na Caritas in veritate, 7:

“Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social


das pessoas: o bem comum. É o bem daquele ‘nós-todos’, formado

16; Gravissimum educationis, 9 e note).” Cfr. Tommaso d’Aquino Doctor Humanitatis. Atti del IX Congresso
Tomistico, Internazionale, Roma 24-29 de setembro de 1990, Cidade do Vaticano 1991. Veja-se G. TURCO,
“S. Tommaso ‘Doctor humanitatis’. Implicazioni e sviluppi dell’antropologia tomistica alla luce degli Atti
del IX Congresso Tomistico Internazionale” in: Sapienza 1992, vol. 45, no 3, pp. 307-325.
14
Cfr. S. TOMÁS, S. Th. II-II, 58, 5.

27
PREFÁCIO

por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em


comunidade social [Cfr Conc. Ecum. Vat. II, Gaudium et spes, 26]. Não
é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem
parte da comunidade social e que, só nela, podem realmente e com
maior eficácia obter o próprio bem. Querer o bem comum e traba-
lhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Comprometer-se
pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daquele
conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e
culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis,
cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se
trabalha em prol de um bem comum que dê resposta também às
suas necessidades reais. Todo o cristão é chamado a esta caridade,
conforme a sua vocação e segundo as possibilidades que tem de
incidência na pólis. Este é o caminho institucional — podemos mes-
mo dizer político — da caridade, não menos qualificado e incisivo do
que o é a caridade que vai diretamente ao encontro do próximo,
fora das mediações institucionais da pólis. Quando o empenho pelo
bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à
do empenho simplesmente secular e político. Aquele, como todo o
empenho pela justiça, inscreve-se no testemunho da caridade divina
que, agindo no tempo, prepara o eterno. A ação do homem sobre a
terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para
a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para
onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em
vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não
podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira,
ou seja, da comunidade dos povos e das nações [Cfr. João XXIII, Lett.
enc. Pacem in terris (11 de abril de 1963): AAS 55 (1963), 268-270], para
dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa
medida antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras”.

Portanto, o bem próprio do homem e o bem comum tem-


poral se ordenam entre eles mutuamente, um ao outro, e em
certo sentido coincidem, desde o momento em que a pessoa

28
Concepção Católica da Política

humana se subordina como a parte potestativa ao todo moral,


que é a sociedade, e ao bem dessa, que é o bem comum15; e, por
outra parte, esse bem comum não pode não se ordenar ao bem
transcendente do homem16, ao qual o próprio homem tende
por natureza e que se torna possível para ele efetivamente
pelo auxílio do Evangelho e da graça em Cristo e na Igreja17.
Pode-se afirmar, portanto, a legítima e relativa autonomia
das duas sociedades, a civil e a eclesiástica, “a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21), com a subordinação,
porém, da primeira à segunda no âmbito dos fins e dos deveres
morais enquanto também César deve “dar a Deus o que é de Deus”;
essa mesma subordinação é um fim e um dever moral para
perseguir irrenunciavelmente na evangelização do mundo18.
Dizemos tudo isso sem nos iludir com utopias, porque o
mal moral é, infelizmente, também uma realidade existencial
deste mundo depois do pecado original, e as suas consequências
perdurarão até o fim dos séculos. No entanto, o dizemos sem
renunciar a missão moral e idealmente possível da Civilização
cristã, a “Christianitas” – chamada também pelos Pontífices, com
outras palavras, “Civilização do amor”19 – e, além disso, sem cegueira
no presente, mas com um olhar cheio de solertia realista, de

15
S. Th. II-II, q. 58, a. 5.; II-II, q. 26, a. 3.
16
S. Th. I-II, q. 21, 4, ad 3. ; II-II, q. 26, a. 3.
17
O homem é “a primeira e fundamental via da Igreja” (JOÃO PAULO II, Redemptor Hominis, 14).
18
Cfr. CONCÍLIO VATICANO II, Gaudium et spes, 47-52; PAULO VI, Evangelii nuntiandi, III. Conteúdo da
Evangelização, 25-39, entre vários do Magistério.
19
Em vários lugares, cfr. Mensagem de SS Bento XVI para XII Jornada Mundial da Juventude (01 de
abril de 2007).

29
PREFÁCIO

prudência e de caridade política, para fazer o possível e rea-


lizá-lo concretamente nas difíceis condições do nosso tempo
pós-cristão, de apostasia pública coletiva, que domina o “oci-
dente cristão” de outrora, e de globalização pluralística, muitas
vezes com a força laicista e ateísta, e de perseguições abertas ou
dissimuladas contra o Cristianismo. E finalmente, o dizemos
para nos pôr, na escola do Padre Meinvielle, à obra de formação
das gerações futuras e da consciência do povo cristão, sem isso
seria uma utopia pretender uma restauração da civilização
cristã. Bem escreve Meinvielle:

“Se as condições concretas de muitas repúblicas modernas, onde a


corrupção entrou tão profundamente no ser social que não é capaz
de conhecer seu próprio bem, impedem a implantação de tal Estado,
deve se criar as condições propícias para isso. Há muitos que imagi-
nam que tudo é questão de força material e de violência. Essa pode
ser necessária e então se deve empregar. Mas, só ela, sem outras
condições propícias e, de modo particular, sem uma indispensável
colaboração de homens capacitados e orientados por sãos prin-
cípios de ordem social-político, com experiência de homens e de
coisas, com uma ardente e generosa paixão do bem comum, não
basta e será terrivelmente nefasta e prejudicial.

Se faltam essas condições, vale mais deixar as coisas como estão


e esperar.

Isso não se deve entender, no entanto, como uma renúncia total


a melhorar a condição política das sociedades em que nos tocou
viver. Porque tal renúncia seria com mais exatidão uma lamentável
claudicação que dia a dia nos faria descer no tom de nossa vida,
que não pode ficar estática, sob pena de se debilitar e morrer.

Na política, como em todas as outras manifestações da vida, há que


se manter um desejo, uma aspiração a um ideal de perfeição.

30
Concepção Católica da Política

Mas enquanto não haja condições propícias para tentar uma reforma
política salutar, é preferível se limitar a uma ação no âmbito religioso e
social, intensificando a vida cristã das multidões, consolidando os lares
cristãos, fomentando as agrupações de trabalhadores e as corporações
de profissionais, estimulando a autarquia econômica do próprio país,
de modo que toda essa melhora que vai se operando na vida social
acabará por melhorar a própria vida política. E mesmo assim – se não
houvesse lugar a uma melhor ação política – é possível promover
um fecundo movimento de estudos políticos que ordene as mentes
dos cidadãos e prepare os mais capazes para o desempenho da
função pública.
Ao mesmo tempo, deve-se influir fortemente, por uma pregação
constante em todos os ambientes do país, para criar um estado de
consciência geral que deseje uma restauração da coisa pública.
É necessário se persuadir-se de que, se é certo que o povo não deve
governar, deve, no entanto, assentir e sancionar com seu aplauso
a obra do governo. Porque o povo não pode estar ausente de uma
tarefa que, embora não a faça, há de se fazer em seu exclusivo
benefício. É necessário então, interessar a população no problema
do novo Estado.
Se não se consegue forjar esta consciência coletiva que dê seu bene-
plácito à tarefa indispensável da reforma do Estado, deverá se preparar
para graves e tremendas convulsões que, por caminhos que só Deus
conhece, hão de levar os povos ao justo ordenamento social”20.

Três recentes chamados vindos da Sé de Pedro que “preside


na caridade”21 particularmente nos encorajaram no trabalho
cansativo da tradução, organização e publicação do clássico
de Meinvielle.

20
Concepção Católica da Política, C. III.
21
S. INÁCIO DE ANTIOQUIA, Aos romanos, prólogo.

31
PREFÁCIO

Em primeiro lugar, a atualidade política “global”22, com os


seus graves problemas, da “ditadura do relativismo” e da “cultura
da morte” às crises econômicas mundiais provocadas pela usura
financeira, diante dos quais a “caridade de Cristo nos impulsiona”
(“caritas Christi urget nos” 2 Cor 5, 14), e nos exorta a “caritas in
veritate politica”, como nos recorda urgentemente Bento XVI:

“Sem a verdade, a caridade acaba confinada num âmbito restrito


e carecido de relações; fica excluída dos projetos e processos de
construção dum desenvolvimento humano de alcance universal, no
diálogo entre o saber e a realização prática.
A caridade é amor recebido e dado; é “graça” (cháris). A sua nascente
é o amor fontal do Pai pelo Filho no Espírito Santo. É amor que, pelo
Filho, desce sobre nós. É amor criador, pelo qual existimos; amor re-
dentor, pelo qual somos recriados. Amor revelado e vivido por Cristo
(cf. Jo 13, 1), é “derramado em nossos corações pelo Espírito Santo”
(Rm 5, 5). Destinatários do amor de Deus, os homens são consti-
tuídos sujeitos de caridade, chamados a fazerem-se eles mesmos
instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer
redes de caridade.
A esta dinâmica de caridade recebida e dada, propõe-se dar resposta
a doutrina social da Igreja. Tal doutrina é “caritas in veritate in re sociali”,
ou seja, proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade;
é serviço da caridade, mas na verdade. Esta preserva e exprime a
força libertadora da caridade nas vicissitudes sempre novas da his-
tória. É ao mesmo tempo verdade da fé e da razão, na distinção e,
conjuntamente, sinergia destes dois âmbitos cognitivos. O desen-
volvimento, o bem-estar social, uma solução adequada dos graves
problemas socioeconômicos que afligem a humanidade precisam

22
“Aquilo que a doutrina social da Igreja, partindo da sua visão do homem e da sociedade, sempre
defendeu, é hoje requerido também pelas dinâmicas características da globalização” (BENTO XVI, Caritas
in veritate [29 de junho de 2009] 39).

32
Concepção Católica da Política

desta verdade. Mais ainda, necessitam que tal verdade seja amada e
testemunhada. Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é ver-
dadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a atividade
social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com
efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em
vias de globalização que atravessa momentos difíceis como os atuais.
“Caritas in veritate” é um princípio à volta do qual gira a doutrina
social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios
orientadores da ação moral (...)
A fidelidade ao homem exige a fidelidade à verdade, a única que é
garantia de liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade dum desenvol-
vimento humano integral. É por isso que a Igreja a procura, anuncia
incansavelmente e reconhece em todo o lado onde a mesma se
apresente. Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenun-
ciável. A sua doutrina social é um momento singular deste anúncio:
é serviço à verdade que liberta. Aberta à verdade, qualquer que
seja o saber donde provenha, a doutrina social da Igreja acolhe-a,
compõe numa unidade os fragmentos em que frequentemente a
encontra, e serve-lhe de medianeira na vida sempre nova da socie-
dade dos homens e dos povos [Cfr. Pontifício Conselho Justiça e Paz,
Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 76]”23.

Em segundo lugar, o chamado da Caritas in veritate à dimensão


propriamente humana e cristã da vida política diante do falso
binômio dialético de liberalismo e determinismo fatalista, que
emancipa as “livres” regras do mercado “global” segundo um seu
mecanismo fatal, com a mentalidade materialista de absoluti-
zação da produção e consumo, do interesse e renda financeira
pilotada pela avareza da usura bancária (...) recordando e repro-
pondo o primado na sociedade da integral dimensão humana,

23
BENTO XVI, Caritas in veritate 4-6.9.

33
PREFÁCIO

da transcendência, da racionalidade, da liberdade, da gratuidade


como fundamento de toda relação de justiça e de atividade
econômica humana, porque essa última é fundada sobre os
bens do criado, recebidos em dom (...) e a recuperação da coor-
denação de funções entre mercado, estado, civilização, tecido
social, âmbitos locais e localização.

“Se a globalização for lida de maneira determinista, perdem-se os


critérios para a avaliar e orientar. Trata-se de uma realidade huma-
na que pode ter, na sua fonte, várias orientações culturais, sobre
as quais é preciso fazer discernimento. A verdade da globalização
enquanto processo e o seu critério ético fundamental provêm da
unidade da família humana e do seu desenvolvimento no bem. Por
isso é preciso empenhar-se sem cessar por favorecer uma orienta-
ção cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do
processo de integração mundial.
Não obstante algumas limitações estruturais, que não se hão de
negar nem absolutizar, “a globalização a priori não é boa nem má.
Será aquilo que as pessoas fizerem dela” [n. 104: João Paulo II, Dis-
curso a Pontifícia Academia de Ciências Sociais (27 de abril de 2001):
Insegnamenti XXIV, 1 (2001), 800]. Não devemos ser vítimas dela,
mas protagonistas, atuando com bom senso, guiados pela caridade
e a verdade”.

Em particular, recorda o Santo Padre, a recuperação do papel


político do Estado para ordenar a economia:

“Atualmente, o Estado encontra-se na situação de ter de enfrentar


as limitações que são impostas à sua soberania pelo novo contex-
to econômico comercial e financeiro internacional, caracterizado
nomeadamente por uma mobilidade crescente dos capitais finan-
ceiros e dos meios de produção materiais e imateriais. Este novo
contexto alterou o poder político dos Estados.

34
Concepção Católica da Política

Hoje, aproveitando inclusivamente a lição resultante da crise eco-


nômica em curso que vê os poderes públicos do Estado diretamente
empenhados a corrigir erros e disfunções, parece mais realista uma
renovada avaliação do seu papel e poder, que hão-de ser sapien-
temente reconsiderados e reavaliados para se tornarem capazes,
mesmo através de novas modalidades de exercício, de fazer frente
aos desafios do mundo atual. Com uma função melhor calibrada dos
poderes públicos, é previsível que sejam reforçadas as novas formas
de participação na política nacional e internacional que se realizam
através da ação das organizações operantes na sociedade civil; nesta
linha, é desejável que cresçam uma atenção e uma participação mais
sentidas na res publica por parte dos cidadãos”24.

Meinvielle não indica coisa diferente, que com a virilidade de


um profeta da verdade, denuncia esta desordem de subversão
econômico-política de primazia do mercantilismo que se serve
da partidocracia para escravizar os povos, e propõe a recuperação
das dimensões do principado político do Estado e do tecido dos
corpos sociais intermédios:

“Daí que as democracias modernas, ainda que levem o nome de


república, nada tenham que ver com a politia de que fala Santo
Tomás. Mescla da demagogia com a oligarquia dos patifes, repre-
sentam um tipo instável e sedicioso, porque nelas nunca se busca
o bem comum temporal; não o bem, porque esse é essencialmente
ético-teológico, bem virtuoso, como se demonstrou no primeiro capí-
tulo e as modernas sociedades não pensam senão na busca dos bens
econômicos; não comum, porque o bem do indivíduo-governante prima
sobre o bem do partido, o do partido sobre o bem da nação, o da nação
sobre o bem dos direitos internacionais e sobre o bem divino da Igreja.
Ademais, que as modernas sociedades, perversamente conformadas

24
BENTO XVI, Caritas in veritate 24.

35
PREFÁCIO

em seu interior por ter perdido o reto sentido do bem humano, são
vítimas dos consórcios financeiros internacionais, os quais, depois de
ter corrompido as consciências, concedendo prebendas às pessoas
influentes das coletividades, manejam por meio delas, a própria coisa
pública, fazendo derivar, em proveito da proliferação do ouro que
acumularam, toda a vida produtiva do país. Daí que, no sentido lite-
ral mais próprio, as sociedades modernas, que não vivem senão com
a permanente preocupação do enriquecimento, o qual subordinam
loucamente tudo, arrastam uma existência miserável, carregada de
pesadas e insuportáveis cargas. São sociedades de escravos, em que
a multidão trabalha para o gozo de uns poucos, que usufruem todos
os privilégios; mas a multidão, por outra parte, sem consciência de
seus verdadeiros direitos e de seu verdadeiro bem, desorganizada,
incapaz de exigir nem de reclamar eficazmente nada, embrutecida e
satisfeita com alguns alívios, tais como o sufrágio universal, que lhe
proporciona esse perpétuo carnaval político do qual conhecemos as
tristes e feias consequências”25.
“(...) No que se refere à organização, cremos que à dois podem se
reduzir as características que devem distinguir os estados novos para
cumprir as exigências de justiça que exige o bem comum: devem ser
corporativos e autoritários.
(...) Não é supérfluo advertir que essas duas características, indis-
pensáveis para que um Estado possa procurar eficazmente o bem
comum, não bastam para constituir o Estado tipicamente cristão.
Mas um Estado cristão não é tampouco possível enquanto não haja
absolutamente um Estado, e esse não pode por sua vez existir sem
as duas características apontadas.
O esforço urgente, então, de todos que sabem apreciar a importância
significativa do Estado para ordenar a vida e o homem, deve tender a
instaurar este Estado corporativo e autoritário”26.

25
Concepção Católica da Política, C. III.
26
Concepção Católica da Política, C. III.

36
Concepção Católica da Política

Também o terceiro chamado, intimamente ligado e depen-


dente dos dois precedentes, ou seja, a validez perene dos prin-
cípios da “verdade política” com os quais iluminar as urgências
do presente, é muito distintamente indicado por Bento XVI nas
suas encíclicas sociais:

“...o Concílio constitui um aprofundamento de tal magistério na continui-


dade da vida da Igreja [Cfr. Bento XVI, Encontro com a Cúria Romana para
as felicitações de Natal (22 de dezembro de 2005): Insegnamenti I (2005),
1023-1032]. Neste sentido, não ajudam à clareza certas subdivisões
abstratas da doutrina social da Igreja, que aplicam ao ensinamento
social pontifício categorias que lhe são alheias. Não existem duas
tipologias de doutrina social — uma pré-conciliar e outra pós-con-
ciliar —, diversas entre si, mas um único ensinamento, coerente e
simultaneamente sempre novo [Cfr. João Paulo II, Enc. Sollicitudo
rei socialis, 3: l.c., 515]. É justo evidenciar a peculiaridade de uma
ou outra encíclica, do ensinamento deste ou daquele Pontífice, mas
sem jamais perder de vista a coerência do corpus doutrinal intei-
ro [Cfr. ibid.,1: l.c., 513-514]. Coerência não significa reclusão num
sistema, mas sobretudo fidelidade dinâmica a uma luz recebida. A
doutrina social da Igreja ilumina, com uma luz imutável, os pro-
blemas novos que vão aparecendo [Cfr. ibid., 3: l.c., 515]. Isto salva-
guarda o caráter quer permanente quer histórico deste “patrimônio”
doutrinal [Cfr. João Paulo II, Enc. Laborem exercens (14 de setembro
de 1981), 3: AAS 73 (1981), 583-584], o qual, com as suas caracte-
rísticas específicas, faz parte da Tradição sempre viva da Igreja [Cfr.
Id., Enc. Centesimus annus, 3: l.c., 794-796]. A doutrina social está
construída sobre o fundamento que foi transmitido pelos Apósto-
los aos Padres da Igreja e, depois, acolhido e aprofundado pelos
grandes Doutores cristãos. Tal doutrina remonta, em última análise,
ao Homem novo, ao “último Adão que Se tornou espírito vivifican-
te” (1 Cor 15, 45) e é princípio da caridade que “nunca acabará”
(1 Cor 13, 8). É testemunhada pelos Santos e por quantos deram
a vida por Cristo Salvador no campo da justiça e da paz. Nela se

37
PREFÁCIO

exprime a missão profética que têm os Sumos Pontífices de guiar


apostolicamente a Igreja de Cristo e discernir as novas exigências
da evangelização”27.

Aquela “verdade política” da doutrina moral da Igreja, que é uma


urgência da caridade pelos problemas do presente, não muda e é
uma só nos seus princípios, princípios tão bem fielmente ex-
postos por Meinvielle neste livro para torná-lo perenemente
atual. O original, saído de sua pena nos inícios de seu ministério
sacerdotal, amarelado pelo tempo, revive no seu renovamento
brotando hoje em língua italiana, da linfa vital perene da ver-
dade, para iluminar, vivificar e fazer frutificar em boas obras
as situações novas que tem necessidade de justo discernimento.
Aproveito a ocasião para agradecer a todos os que colabo-
raram com as publicações desta obra, militantes operosos da
Cidade de Deus.

R. P. Doutor. Arturo A. Ruiz Freites I.V.E.


Segni (RM), 7 de março de 2011
Festa de Santo Tomás no Lácio

27
BENTO XVI, Caritas in veritate 12.

38
INTRODUÇÃO

𝔸 política deve servir ao homem. Eis aqui uma fórmula que


condensa o presente livro, fórmula que diz muito pouco e
muito confusamente se não se tem um verdadeiro conceito de
homem; fórmula que, ao invés, diz tudo, e muito luminosamente,
se se possui este autêntico conceito.
O filosofismo e a Revolução antes de corromper a política,
e diga-se o mesmo da economia, corromperam o homem. A
Igreja, ao invés, antes de dar uma política cristã, ordenou o
homem e nos deu o cristão.
Por isso é essencial, na primeira página deste livro, indicar
o que é o homem. Porque é manifestamente claro que não pode
ser igual a concepção da política se fazemos do homem um
simples exemplar da escala zoológica que se fazemos dele um
ser iluminado pela luz da razão, com um destino eterno.
E o homem é isto: um ser com necessidades materiais, porque

39
INTRODUÇÃO

tem um corpo, mas sobretudo com necessidades intelectuais,


morais e espirituais, porque tem uma alma imortal. E isso não
surge de uma consideração apriorística, senão que é compro-
vação do que observamos em nós mesmos pelo sentido íntimo,
nos demais por observação, e na história em todo o curso da
existência humana.
E com isso já teríamos o suficiente para formular as leis
de uma política humana, e pelo mesmo motivo verdadeira, e
posta ao serviço do homem. E essa não seria individualista,
nem liberal, nem democratista, como imaginou Rousseau;
nem organicista, nem estatista, como fingiram os filósofos e
juristas inspirados por Hegel. Seria uma política humana. Não
há palavra mais exata e precisa para qualificá-la.
Seria também uma política cristã? Sim, no sentido de que
todo esse ordenamento político, derivado de uma reta consi-
deração da natureza humana, é querido por Deus, e como tal
imutável e válido mesmo no caso de uma política cristã. Mas é
evidente que uma política cristã, sem alterar nem diminuir as
exigências de uma política puramente humana, está condicio-
nada por uma lei mais alta, que deriva de princípios mais altos
e novos que o cristianismo acrescentou à natureza humana. A
política cristã é então mais que humana, porque enche mais
completamente as exigências dessa. Da mesma maneira que a
vida cristã, sem deixar de ser humana, é algo mais que humana.
E sabe-se o que significa esse “algo mais”. A vida cristã é uma
vida sobrenatural que transcende todas as exigências de qual-
quer natureza criada ou criável, é uma nova criatura em Cristo
(2 Cor 5, 17) que se enxerta na natureza do homem e a trans-
forma na divina, sem destruí-la, do mesmo modo que, sem

40
Concepção Católica da Política

destruí-la, o enxerto transforma a eficácia da planta selvagem.


O homem sobrenatural, o homem católico, é um homem de vida
nova (Rm 6, 4), com operações novas porque todas suas operações
estão divinizadas, como está sua natureza de homem.
Sem a compreensão desse mistério, tudo é absolutamente
absurdo no catolicismo, porque tudo quanto há nele recebe
sentido desse mistério de vida que manifesta e opera. A Igreja
Visível, por exemplo, é um mistério invisível. Peregrinando na
terra, misturada em certo modo com as coisas da terra, opera
a união invisível das almas com Cristo e por Cristo com Deus.
O homem católico não é homem e, ademais, católico, como
se o católico fosse algo separado de sua qualidade de homem
ou de pai de família, artista, economista, político. O homem
católico é uma unidade. Tudo quanto de homem e de atividade
há nele, tanto deve ser católico; isto é, adaptado às exigências
de sua fé e caridade cristãs.
O Verbo assumiu toda a humanidade, exceto o pecado; a
vida católica deve assumir e elevar toda a vida humana, exceto
as corrupções de sua debilidade.
A política é uma atividade moral que nasce naturalmente das
exigências humanas em sua vida terrena. Daí que, tanto a ciên-
cia política que legisla as condições essenciais da cidade terrena,
como a prudência política que determina as ações que convém
em certas circunstâncias concretas, para realização de determi-
nados fins políticos, devem se ajustar à vida sobrenatural. Por
si mesmas se desenvolvem num domínio puramente humano
com uma autonomia de ação regulada pela razão, mas toda essa
ordem está elevada, na economia presente, ao fim sobrenatural
que Deus atribuiu ao homem.

41
INTRODUÇÃO

Esta subordinação não é puramente extrínseca, como se a


política se referisse a um fim superior sem renovar-se no seu
interior; deve tender positivamente à realização de um fim
sobrenatural, pois comporta uma renovação interior, uma re-
gulação nova. Porque a política, mesmo ficando na ordem das
realizações temporais, deve dispor de meios superiores aos da
natureza no estado de suas exigências puras. A política cristã
é, pois, de um valor humano novo e superior ao simplesmente
da política.
O católico, como católico, deve ajustar sua vida política às
exigências de sua reta razão, iluminada pela fé. Para isso, ne-
cessita conhecer reflexivamente as exigências de sua fé na sua
atividade de membro da coletividade.
Por outra parte, as condições presentes da vida política
reclamam com especial urgência que o católico conheça a
doutrina católica sobre a política. Mas este conhecimento,
ademais de ser reflexivo, deve penetrar na essência da reali-
dade política e nos seus múltiplos nexos causais; deve ser de
ordem filosófica.
A pura erudição das teorias e dos fatos políticos, o que se
chama atualidade política, é nociva se não se está em posse da
autêntica filosofia da política; e por isso, da metafísica natural
da inteligência humana, o que Santo Tomás chama senso comum,
hoje completamente destruído pelas perversões ideológicas
quase inverossímeis. O fato é contingente, individual, atado
às exigências dissolutas da matéria que divide e individualiza;
ainda que se multiplique e sistematize em leis empiricamen-
te formuladas, está destituído de toda explicação ontológica.
Poderá nos revelar o que se faz, mas nunca o que se deve fazer.

42
Concepção Católica da Política

Os fatos se explicam à luz dos princípios ontológicos; os fatos


políticos à luz dos princípios ontológicos do ser humano. À luz
destes princípios, a observação e interpretação desses fatos é
necessária para considerar as condições de fato de uma cidade
concreta e determinada. A metafísica não exclui a observação
empírica, antes a exige; mas a exige sustentada em seu próprio
seio. Quando dizemos metafísica, não dizemos algo inextricável,
inalcançável para o comum dos humanos; nos referimos sim-
plesmente à sabedoria que considera os princípios do ser. Essa
sabedoria, que possui espontaneamente todo o homem que não
corrompeu deliberadamente sua própria inteligência, observa
os fatos, os avalia e coloca, a cada um deles, no lugar da hierarquia
que lhes corresponde.
O sinal mais típico e grave da decomposição do mundo mo-
derno é, precisamente, esta guerra à sabedoria que contempla
os princípios do ser.
Daí que o mundo moderno seja uma feira de fenômenos
absolutos, chamados Estado, Indivíduo, Liberdade, Soberania,
Revolução, Igualdade, Fascismo, Democracia, Direita, Esquerda,
Centro. Cada um destes fenômenos sublimados ao absoluto, luta
desordenadamente para impor sua tirânica dominação. E o ser,
o humano e o divino, perece vítima desta luta louca e quimérica
dos mitos que desatou o homem. E nela perecem também todos
os valores humanos, inclusive a política.
Por isso, submetendo-nos com humildade a esta sabedoria
dos primeiros princípios, que Santo Tomás possuiu em alto grau,
e sob essa luz, focando nos fatos que registra a observação,
tentaremos este estudo de política, que consideraremos em
quatro capítulos.

43
INTRODUÇÃO

Primeiro: Natureza da sociedade política.


Segundo: Natureza, condição e alcance da soberania.
Terceiro: Organização da sociedade e do Estado para que
seja efetiva a realização do bem comum.
Quarto: Funções e atribuições do Estado.
Nestes quatro capítulos condensaremos tudo quanto possa
se exigir para que a cidade possa se governar politicamente.
Para que haja governo sem tirania. Simplesmente, para que
haja governo. Porque só na medida em que esse deserta por
defeito ou por excesso, há tirania. Para que haja constante e
permanente cuidado do bem comum, desse bem comum, fruto
do reinado público da justiça, único capaz de produzir, por sua
vez, o dom divino da paz que “é, mesmo entre todos os bens terrenos e
passageiros, o mais agradável do qual que se possa falar, o mais desejável
de tantos quantos possam apetecer, e o melhor que se possa encontrar”
(Santo Agostinho)1.

1
A Cidade de Deus, L. XIX, c. 11.

44
CAPÍTULO 1

Natureza moral da política

𝕊 e sempre resulta difícil determinar a natureza de uma


coisa, maior é a dificuldade quando se trata de realidades
morais como a política.
Antes de tudo, deve-se advertir que, embora aqui nossa tarefa
verse exclusivamente sobre a ciência política, não se deixa de
lado o que é próprio da prudência política, ou seja, da política
em sua acepção genuína que considera a formação, estrutura e
governo das sociedades humanas chamadas políticas.
E aqui nos perguntamos o seguinte: O fato das sociedades
políticas é um fenômeno natural, regido por leis fixas e inva-
riáveis, como por exemplo, a formação dos cristais que estuda
a cristalografia? Ou é um produto artificial do homem, como

45
CAPÍTULO 1

pode ser um quadro, uma máquina ou um artefato qualquer


que o homem pode a seu total arbítrio, fazê-lo ou não, executar
desta ou daquela maneira? Ou é, finalmente, um fato especifi-
camente humano, de categoria moral, como são os atos da virtude
da temperança ou da fortaleza, que não pode o homem, sem
quebrar as leis de conduta, deixar de executar?
A questão consiste em averiguar se a ciência política é uma
ciência natural como a biologia, que indaga a constituição dos
seres vivos, ou uma pura arte, como a fabricação de navios, que
tende a construir convenientemente um barco sem atenção
para a retidão moral da ação de fabricar; ou se é, na realidade,
uma ética que compreende e regula a atividade específica do
homem, aquela que não pode validamente evadir-se do campo
do bom e do mal.
Supondo, como é evidente e ninguém o nega, que somente
entre os homens se realizam as sociedades chamadas políticas,
deve-se examinar que tipo de tendências do homem dão lhe
existência: se fixas e invariáveis como as que levam a abelha
a criar sua colmeia, ou uma ação livre e arbitrária como a que
move o homem a fabricar um artefato; ou uma ação especifi-
camente humana, livremente exercida, mesmo que obedecendo
às exigências profundas da própria natureza humana.
Porque se observamos as ações que executa o homem, pode-
mos classificá-las em três grandes categorias. Na primeira pode-
mos pôr todas as ações que se executam nele, necessariamente,
independentemente de sua vontade; assim, por exemplo, sua
atividade físico-química e biológica. Delas se ocupam as distin-
tas ciências que formulam as leis que regem essa atividade fixa
e invariável. Numa segunda categoria, podemos incluir as ações

46
Natureza Moral da Política

do homem que se dirigem à produção de coisas, tais como obras


mecânicas ou artísticas. Essas ações, excetua-as livremente,
sem estar obrigado a executá-las por nenhuma exigência de
sua natureza racional, de modo que, mesmo quando as deixasse
de executar ou as executasse desta ou daquela maneira, não
violaria os ditames de sua natureza racional de homem. Há,
por fim, uma terceira categoria das ações que, se é certo que o
homem delas dispõe livremente, vê-se impelido a isso em vir-
tude de sua natureza racional, que lhe dita imperativamente que
deve fazer isso e que não pode deixar de o fazer. Essas ações
buscam a perfeição do homem enquanto tal.
Há, então, três ordens: a da natureza física, a das obras de arte
e a da conduta moral. Em qual das três devemos incluir a política?
Da resposta a essa questão depende toda teoria política.

DUAS TEORIAS ERRÔNEAS

Ainda que possa parecer anacrônico mencionar aqui L'Action


Française, nada mais conveniente para fixar uma posição definida
na questão presente. L'Action Française, nutrida escola de observa-
dores rigorosos, concebe a política como uma ciência física que
comprova fenômenos da natureza e os organiza em leis, do mes-
mo modo que a botânica ou a cristalografia. A sociedade não seria
uma realização livre do homem que atualiza as virtualidades
sociais depositadas em seu ser, senão o produto necessário de
compulsórios instintos, como no caso dos formigueiros1.

1
Pode admitir-se uma ciência política positiva, uma sociologia política, distinta da filosofia política
que se reduza a considerar os fatos políticos como fatos. Uma tal ciência busca tão somente o que é

47
CAPÍTULO 1

“A sociedade – dizem2 – está fundada no mais estável e firme de nossa


natureza, no instinto de conservação, que expressa as necessidades ele-
mentares da vida. Esse instinto de conservação, inseparável do instinto
familiar, nos determina a defender nossa vida e a de nossos filhos, nos
faz desejar que esteja assegurada contra a miséria, e para isso funda
primeiro a propriedade e depois a herança; ademais, nos faz desejar
que esteja defendida contra os perigos que a rodeiam, e para isso funda
a sociedade. Não há em tudo isso nenhum esforço virtuoso, nenhuma
intervenção da vontade no sentido moral desta palavra”.

Fica, portanto, eliminado da fundação e estrutura da sociedade


o elemento virtude, já que nela não intervém nenhuma deter-
minação livre. Excluída a virtude, resulta que a vida política é
alheia à justiça e aos preceitos evangélicos. Seu fim específico
não será o bem comum temporal, como ensina a moral cristã,
senão o interesse nacional, isto é, a realização, por todos os
meios possíveis, bons ou maus, do que parece servir a “restau-
ração monárquica” da França. Toda a política se reduzirá não a
alcançar a vida perfeitamente virtuosa da sociedade, o totum bene
vivere dos escolásticos, senão a pôr “em boa marcha os negócios
materiais da nação, equilibrar seu pressuposto, assegurar com
uma artilharia de qualidade, a defesa nacional”3.

a realidade política de uma sociedade concreta determinada, tentando explicar a mútua interação dos
elementos da vida social sem explicar as normas da vida política e menos julgar a moralidade dessas
ações. Tal ciência não poderá explicar se tal forma de associação é normal ou anormal, boa ou má, por-
que tais juízos, que supõem o conhecimento do fim da vida humana, só são possíveis na filosofia social
política. Se os teorizadores da L’Action Française tivessem se reduzido a isso, não seriam censuráveis. Mas
eles quiseram construir uma política para a França, o que não é possível sem formular juízos de valor
sobre o bom e o mal na política e sem ter um fim que fixe a conformação da boa sociedade política. Aqui
não censuramos Charles Maurras, mas só alguns de seus discípulos, pois cremos que o pensamento do
próprio Maurras sai ileso a toda censura.
2
Maurice Pujo, em Comment Rome est Trompée, pág. 166, citado por Lallement em Clairvoyance de
Rome, pág. 166.
3
ib., pág. 163.

48
Natureza Moral da Política

De onde resultaria que a política é tão independente da moral


como o funcionamento do pâncreas.
Ainda que inspirados em outras correntes filosóficas, o
maquiavelismo e o fascismo têm grandes afinidades com a
ideologia maurrasiana.
Maquiavel, privado de toda inteligência religiosa e imbuído
das concepções greco-romanas da vida, vê na pátria a única gran-
deza espiritual capaz de inspirar e gerar a glória, o heroísmo, o
trabalho e a criação. A pátria é uma divindade em cujo altar
há que se imolar tudo. Tudo que por ela se faça está permitido,
e as ações que na vida privada seriam más, se se fazem pela
pátria, são magnânimas. A razão de Estado, a famosa razão de
Estado, encerra em si plena justificação.
Continuando parcialmente esta tendência maquiavélica, o
fascismo, dirigido por uma vontade de aço e fundado numa
compreensão da realidade imediata, propõe-se realizar a
grande Itália, herdeira plena da Roma Imperial. Esta Itália
grande, formada não por indivíduos, mas por corpos sociais
empenhados todos numa produção harmônica seria pratica-
mente supra-humana.
A definição que o próprio Benito Mussolini faz do fascismo
na Enciclopédia Italiana4 reflete de forma inconfundível esta
exaltação exorbitante do Estado:

“O liberalismo negava o Estado em proveito do indivíduo em parti-


cular; o fascismo confirma o Estado como a verdadeira realidade do
indivíduo. E se a liberdade há de ser o atributo do homem real e não do

4
La Nación, 30 de junho de 1932.

49
CAPÍTULO 1

abstrato fantoche que pensava o liberalismo individualista, o fascismo


se pronuncia em favor da liberdade. Está pela única liberdade que
possa ser uma coisa séria, a liberdade do Estado e do indivíduo no
Estado, já que para o fascista tudo está dentro do Estado e nada de
humano ou espiritual se acha fora do Estado, e muito menos tem
valor. Em tal sentido, o fascismo é totalitário, e o Estado fascista,
síntese e unidade de todos os valores, interpreta, desenvolve e encerra
em potência toda a vida do povo”.

Há, no entanto, sob o aspecto que aqui nos interessa, uma


diferença entre a ideologia da L'Action Française e a maquiavé-
lico-fascista. A primeira é amoral; a segunda, imoral, porque
estabelece a razão do Estado como norma de moralidade.
Mas uma e outra coincidem em exaltar a noção de Estado,
fazendo reviver o Estatismo pagão. Chama-se estatismo toda con-
cepção política na qual o homem está inteiramente subordinado
ao Estado como a parte ao todo. Da mesma maneira que as raízes
e as partes posteriores da árvore não têm razão de ser senão como
parte do todo, assim é o homem como membro da sociedade
política. O Estado pode sacrificá-lo de todos os modos, como
melhor convenha a seus interesses. E segundo as particularidades
históricas em que se verifique, leva os nomes de fascismo, absolu-
tismo, bolchevismo, comunismo platônico, cesarismo, etc5.

5
A análise e juízo que aqui formulamos do fascismo leva em conta unicamente seu enunciado
doutrinário. Considerado assim não é possível, sob o aspecto da doutrina católica, formular dele senão
um juízo severo e definitivo, já que é uma aplicação à política do panteísmo hegeliano. Mas o fascismo pode
considerar-se também na sua realização concreta e então não é senão uma reação econômico-política contra
o demoliberalismo, que pode chegar, não só a ser são, senão até católico, de acordo com o meio em
que se desenvolva. Sob este aspecto o considerei em outros livros meus, particularmente em Un juicio
católico sobre los problemas nuevos de la política, ao qual remeto o leitor. Recomendo também o excelente
livro de César E. Pico: Carta a Jacques Maritain sobre la colaboración de los católicos con los movimientos
de tipo fascista. Com respeito ao nacional-socialismo, pode ver-se o meu livro Entre la Iglesia y el Reich.

50
Natureza Moral da Política

Ao fisicismo da L'Action Française opõe-se diametralmente o


individualismo de Rousseau.
Para Rousseau o homem nasceu livre, com a liberdade do
selvagem num bosque, e assim há de permanecer essencial-
mente. Como os homens são todos livres, existe entre eles a
igualdade aritmética mais absoluta, sendo inconcebível e injusta
a menor subordinação.
Como, por outra parte, a sociedade política é inevitável,
Rousseau busca construí-la de forma tal que ninguém se veja
ferido em sua liberdade e igualdade essenciais. Finge para
isso um contrato social pelo qual os homens, até então livres,
determinam-se a viver em sociedade. O curioso deste pacto é
que não anula a liberdade individual dos contratantes, porque
esses, ao dar-se a todos, não se dão a nenhum; e em segundo
lugar, porque ao submeter-se ao grande eu comum, à vontade
geral que se gera, submetem-se a si mesmos.
A vontade geral é a vontade do povo soberano, ou seja, da
multidão numericamente computada, onde todos os direitos e
obrigações são gerados pelo número.
Em Rousseau, patriarca do liberalismo, a sociedade é um
produto artificial elaborado pelo indivíduo para assegurar sua
intangível liberdade individual.
Se examinamos empiricamente a concepção política de
Rousseau e da L'Action Française as achamos completamente
opostas. Essa faz da política uma física; aquela, uma mera arte.
Um, fá-la derivar integramente da vontade livre do homem, como
se fosse um artefato qualquer; a outra assegura que é o produto de
uma função natural, como a do pâncreas, sem conexão com a
vontade do homem. L'Action Française lhe atribui, como razão

51
CAPÍTULO 1

de ser, o interesse coletivo; Rousseau, a liberdade individual.


Artificialismo, liberalismo, individualismo, em Rousseau; fisi-
cismo, estatismo, na L'Action Française.
No entanto, uma consideração de ordem filosófica de-
monstra que ambas concepções, ainda que distintas, não são,
na realidade, irredutíveis. Uma e outra, do mesmo modo que o
autonomismo kantiano, implicam a adoração do homem, com
a exígua diferença de que, se em uma são aduladas suas tendên-
cias individuais, na outra se exaltam suas tendências sociais.
Daniel Rops destaca, no Le monde sans âme (Plon, 1932), esta
comum derivação de todos os sistemas modernos, aparente-
mente antagônicos:

“A natureza humana está feita de tal modo que reclama imperio-


samente a existência de um absoluto; se não o coloca em Deus, o
glorificará em si mesmo; seja no indivíduo, seja nos conceitos dele
derivados, como a raça, a nação, o Estado”.

E o absurdo de ambas concepções repousa precisamente


em que se faz um deus do indivíduo ou do Estado. No primeiro
caso sacrifica-se o Estado e desemboca na anarquia; no segun-
do, sacrifica-se o indivíduo e entroniza-se o absolutismo. É o
sempiterno vai e vem de uma sociedade que repudiou a Deus,
ao Deus Vivo e Verdadeiro que a todas as nações apontou quem as
governasse (Eclo 17, 14).

DEUS, AUTOR DA SOCIEDADE POLÍTICA

Por isso, só o Catolicismo, que estabelece eficazmente a trans-


cendência de Deus sobre todo o criado e a absoluta dependência do

52
Natureza Moral da Política

homem relativamente a seu Criador, pode nos salvar do absurdo


destas concepções.
É certo que a liberdade de que está dotado o homem é uma
perfeição específica de sua natureza, muito excelente, mas
não é a perfeição. A perfeição é a plenitude racional, isto é, a
operação daquelas ações que são proporcionais à razão, prin-
cípio especificativo de seu agir, se se trata de uma perfeição
puramente humana; ou das que estão em proporção com os
movimentos divinos, se se trata da perfeição sobrenatural,
concedida gratuitamente ao homem pela Causa primeira6.
O homem deve aspirar à sua perfeição; não nasce com ela,
mas pode possuí-la; sua inteligência e sua vontade têm capa-
cidades de certo modo infinitas, como o Ser que é seu objeto
adequado. Mas, com respeito a esse Ser, encontra-se em estado
de pura possibilidade, como tábula rasa, na qual nada se escreveu
(S. Th. I, q. 79, a. 2). Deve alcançá-la com seus atos, tendendo ao
Ser que está fora dele, com seus atos livres. Mas não basta que
sejam livres para que lhes aperfeiçoem; devem ser atos bons
livremente exercidos.
A possibilidade de agir mal não é própria da perfeição de
sua liberdade; é antes sua debilidade, como é debilidade de sua
inteligência o equivocar-se e errar. Daí que seja um absurdo

6
De fato, na atual Providência de Deus com respeito ao homem, ele deve tender à perfeição sobre-
natural que só pode obter por sua incorporação em Cristo que vive na Igreja; ninguém pode ser bom
ou reto sem essa incorporação, porque desde o momento que Deus a manifestou como imposição de
Sua Divina Vontade, seria contra a retidão natural subtrair-se dela. De qualquer modo, é impossível a
observação dos mesmos preceitos naturais, sem a graça sobrenatural, segundo ensina a Igreja contra os
pelagianos. É necessário ter um conceito exato do sobrenatural para não o identificar com o simples-
mente divino. Há uma ordem divina natural e uma sobrenatural. O conhecimento que temos de Deus
pela existência das criaturas que proclamam a glória de seu Criador, é natural. O que temos pela mesma
manifestação que de si Deus fez, pelos Profetas e por Cristo que persevera na Igreja, é sobrenatural.

53
CAPÍTULO 1

anti-humano fundar a perfeição do homem na ilimitação de sua


liberdade, como se estivesse dotado de um puro autonomismo.
O homem está sujeito a uma lei, anterior a ele, que o acompa-
nha em sua existência, e essa lei, longe de rebaixá-lo, constitui sua
glória, porque, exigida intrinsecamente pela perfeição própria de
seu ser, é a garantia de seu aperfeiçoamento. Inversamente, todo
puro autonomismo, precisamente porque não corresponde às
exigências reais de sua estrutura interna, o violenta, o degrada e
destrói. Seria como subtrair do mundo dos astros as leis que
condicionam seu movimento; num e noutro caso, a consequência
inventável é o caos.
Existe, pois, uma lei eterna na Inteligência do Criador, que
ordena os princípios do ser e da ação a que devem se ajustar
todos os seres criados. Essa lei eterna, enquanto está gravada na
própria essência das coisas, conhece-se com o nome de lei natural.
A lei natural, participação da lei eterna, não é, portanto, algo
exterior às coisas, imposto de fora. É sua própria constituição
interna, ajustada a um modo específico de agir. É recebida
como é recebido o ser: pelo próprio ato criador. Neste sentido,
é imanente, porque se encontra identificada com a natureza
da coisa.
Entre os seres criados, há alguns que, privados de inteligência
e liberdade, estão fisicamente necessitados em sua operação, de
modo que não podem querer agir de outro modo senão como lhes
exige sua natureza. Seguindo Santo Tomás, podem-se dividir
esses seres em três grandes hierarquias, que compreendem os
corpos brutos, as plantas, os animais. A lei natural comporta
neles uma necessidade física que não podem violar.
O homem, dotado de inteligência e, consequentemente,

54
Natureza Moral da Política

de liberdade, tem sua natureza específica sujeita também a


um modo normal ou natural de agir, isto é, exigido por sua
natureza. Assim sua natureza de homem exige que ame seus
progenitores, que não machuque ninguém, que pense retamente
sem se desviar da verdade. Isso que sua natureza exige é nele a
lei natural, a mesma que enquanto se encontra na inteligência
ordenadora de Deus, chama-se lei eterna.
Esta lei não o subjuga fisicamente, como acontece com
os demais seres inferiores; ainda que exija um determinado
modo de agir, ele pode querer agir de outro modo; pode con-
trariá-la e violá-la. Comporta só uma necessidade moral, que
não deve, mas que pode violar.
Se o homem, em seu agir, ajusta-se à lei natural, age virtuo-
samente; se não se ajusta, age viciosamente.

“À lei natural – diz Santo Tomás — pertence tudo aquilo a que está
inclinado o homem por sua natureza. Ora, cada qual está inclinado
à operação que lhe é conveniente segundo sua forma, como o fogo
à operação de aquecer. Sendo a alma racional a forma própria do
homem, há em cada homem inclinação natural a agir segundo a
razão, isto é, virtuosamente” (I-II, q. 94, a. 3).

É sabido que não é qualquer inclinação, mas tão somente a


inclinação a agir segundo a razão pode considerar-se no ho-
mem como uma lei imposta por sua natureza. E assim as más
inclinações, que procedem de sua natureza viciada, longe de
considerar-se de lei natural, devem ser encaradas como vio-
ladoras dessa admirável ordem que as próprias essências dos
seres proclamam. E no homem, a razão é como uma luz pela
qual discerne o que é bom e o que é mau. E essa luz é como uma

55
CAPÍTULO 1

impressão no homem da luz divina que marcou seus limites


para cada coisa.
Santo Tomás fixou esta doutrina com uma simplicidade
maravilhosa, cuja beleza não poderá ser superada. Demonstra
assim a existência da lei eterna:

“A lei, conforme expusemos na questão precedente, não é outra


coisa que o ditame da razão prática do príncipe que governa uma
comunidade ou sociedade perfeita. Ora, é evidente, se se admite – e
nós já o provamos – que o mundo é regido pela Divina Providência,
que a comunidade inteira do universo é governada pela razão divina;
portanto, essa razão do governo e da ordenação de todas as coisas
existente em Deus como num supremo monarca de todo universo,
tem caráter de lei. E desde que a razão divina não concebe nada no
tempo, senão que todas as suas concepções, como se escreve no
livro dos Provérbios, são eternas, por força deve-se chamar eterna
essa lei que rege os destinos do mundo” (I-II, q. 91, a. 1).

Em seguida, demostra o Angélico Doutor como essa lei


eterna, enquanto está impressa na natureza racional do homem,
chama-se lei natural:

“A Lei por seu caráter de regra e medida, pode encontrar-se num


sujeito de duas maneiras: enquanto esse sujeito é regulador e mensu-
rador, ou enquanto esse sujeito é regulado e medido. Porque uma
coisa participa de uma regra ou medida enquanto é regulada ou
medida. Ora, encontrando-se todas as coisas submetidas à Divina
Providência, e, portanto, reguladas e medidas pela lei eterna – assim
consta do dito no artigo precedente – todas participam da lei eterna
de alguma maneira, a saber, enquanto a impressão desta lei em suas
naturezas as impele a agir e as faz tender a seus respectivos fins.
Neste plano de sujeição à Divina Providência sobressai o homem
dentre os demais seres porque não somente participa como eles
deste influxo, senão porque é capaz de ser sua própria providência

56
Natureza Moral da Política

e a dos demais. Participa, pois, da razão eterna; essa o impele a agir


e o força a buscar e seguir o caminho que lhe conduz a seu destino.
E semelhante participação da lei eterna nos seres racionais é o
que se chama lei natural. Eis aqui porque o Salmista, depois de ter
cantado: ‘Sacrificai a Deus um sacrifício de justiça’ [Sl 4, 6], como
se se perguntasse quais são as obras de justiça, acrescenta: ‘Muitos
dizem: quem nos mostrará o bem’. E na resposta de tal pergunta,
nos diz: ‘A luz de tua face, Senhor, ficou impressa em nossas mentes’;
como se a lei da razão natural, pela qual discernimos o bom e o
mau – tal é o objetivo e a finalidade da lei natural –, não fosse outra
coisa senão uma certa participação da lei eterna na criatura racional”
(I - II, q. 91, a. 2).

Por essa lei natural está gravada na razão de todo homem a


ordem da moralidade, ou seja, do que é bom e do que é mau, do
que deve fazer e do que deve evitar; e, de tal modo gravada, que
em seus enunciados mais universais não pode ser arrancada do
coração humano. Transcrevemos textualmente a exposição do
Doutor Angélico, porque seu modo de raciocínio é sumamente
ilustrativo e educativo para as oblíquas inteligências modernas.

“Integram o conteúdo da lei natural – como já dissemos – primeira-


mente certos preceitos universalíssimos, por todos conhecidos; depois
outros mais secundários e particulares que são como as conclusões
imediatas daqueles primeiros princípios. Em ordem pois, aos preceitos
universalíssimos, a lei natural não pode de maneira alguma ser abolida
do coração humano no terreno puramente cognoscitivo; pode o ser no
terreno da prática e com respeito a algo particular, enquanto que as
paixões ou a concupiscência desordenada são um impedimento para
aplicação da lei dos princípios a tais ações em particular. Em ordem
aos preceitos secundários, a lei natural pode chegar a desaparecer do
coração do homem por causa das más persuasões (do mesmo modo
que no campo teórico pode se dar erros com respeito às próprias
conclusões necessárias), ou da depravação dos costumes e perversão

57
CAPÍTULO 1

dos hábitos, ou disposições naturais impulsivas para o bem, como


o demonstra o fato de que para certos povos o roubo não era uma
injustiça, e os pecados contra a natureza – disso dá testemunho o
Apóstolo – eram considerados como lícitos” (I -II, q. 94, a. 6).

Não podemos começar a considerar diretamente a política


se não transcrevemos um artigo importantíssimo, cheio de
luz, no qual Santo Tomás estabelece que a lei natural contém
diversos preceitos que ocupam vários locais numa hierarquia
de valores. Este artigo tem capital importância para nosso
estudo, não só porque indica o ponto preciso de união entre
a sociedade política e a lei natural, senão porque compara e
relaciona este ponto com outros direitos naturais do homem.
Diz assim:

“Como o ser, em toda ordem das coisas, é o primeiro que cai sob a
ação perceptiva da razão especulativa, assim o bem é o primeiro
que apreende a razão prática, ordenada à ação. Como todo agente
age por um fim, e o fim tem natureza de bem, o primeiro princípio
da ordem prática deverá ser aquele que se funda, imediatamente
na noção de bem; bem é o que a todo ser apetece. Eis aqui, pois,
formulado, o primeiro preceito da lei: ‘se deve fazer o bem e evitar
o mal’. Sobre esse primeiro preceito se fundam todos os demais
preceitos da lei natural, de tal modo que todo o restante que deva
ser feito ou evitado terá caráter e natureza de preceito natural, en-
quanto a razão prática o julga naturalmente como um bem humano.
Mas como, por outra parte, o bem tem razão de fim, e o mal razão
do contrário, a inteligência perceberá como bem, e portanto, como
necessariamente praticável, tudo que aquilo para o qual sente o
homem uma inclinação natural; e como um mal que a todo custo
deve se evitar, aquilo que contraria e se opõe a esse bem. A ordem,
portanto, dos preceitos da lei natural estará em tudo paralela à
ordem das inclinações naturais. Vejamos esta ordem.

58
Natureza Moral da Política

Há, primeiramente, no homem uma inclinação para o bem, que é


de sua natureza; inclinação comum a todos os seres, pois todos
apetecem sua própria conservação, segundo as exigências de sua
própria natureza. Correspondentemente a essa inclinação, é preciso
integrar a lei natural com todos aqueles preceitos que se referem à
conservação da vida do homem, ou que vem a impedir os males con-
trários a essa vida. Existe uma segunda inclinação – filha, da mesma
forma, da natureza humana, mas do ponto de vista que se comunica
com os demais animais – a um bem mais particular, mais concreto.
Conforme a esta inclinação, pertencerão à lei natural todas aquelas
prescrições que versam sobre o que a natureza ensina a todos os ani-
mais: a procriação ou perpetuação da espécie, a formação e criação
dos filhos, e outras desta índole. Finalmente, encontra-se no homem
uma terceira, própria sua, fruto de sua natureza particular, racional,
específica, a um bem mais peculiar e concreto: o conhecimento das
verdades divinas; a convivência social. Equivalente a esta ordem
de inclinações naturais, serão preceitos da lei natural aqueles que
proscrevem a ignorância e recriminam as injustiças sociais, rompem
a paz cidadã, etc” (I-II, q. 94, a. 2).

Supostos esses preâmbulos indispensáveis, porque da ne-


gação da lei eterna brotam todos os desvarios modernos na
ordem moral, é fácil demostrar que a sociedade política está
exigida pela natureza do homem, ou seja, que é de lei natural.
Ninguém demostrou com maior perfeição que Santo Tomás,
no opúsculo De Regno, que a sociedade política está postulada
pelas próprias raízes da vida do homem, porque sem ela não
pode alcançar sua perfeição própria na tríplice ordem: material,
intelectual e moral. Sigamos o Doutor Angélico em seu raciocínio:

“O homem vem ao mundo no estado de desnudez, sem que a natureza


lhe proveja alimentos, recoberto de pelo, meios de defesa, tais como
os dentes, chifres, unhas, ou ao menos rapidez na fuga. É certo que

59
CAPÍTULO 1

no lugar de tudo isso está provido de razão, por meio do qual pode
fazer para si, com o trabalho de suas mãos, tudo quanto necessite;
mas um só não é suficiente para isso, senão que hão de unir-se
muitos em sociedade.

Além disso, nos outros animais há como depositada uma habilidade


natural para discernir o útil do nocivo. Assim, a ovelha reconhece
instintivamente no lobo um inimigo; e outros animais conhecem,
graças a esta habilidade, certas plantas curativas e tudo que lhes é
necessário para viver.

O homem também possui o conhecimento natural do que neces-


sita para viver, mas só em geral; para chegar a conhecer as coisas
particulares, necessárias à vida humana tem que usar de sua razão
partindo dos princípios universais. Ora, não é possível que um só
homem alcance com sua razão todas as coisas desta ordem; logo,
necessita viver em sociedade com muitos outros para se ajudarem
mutuamente e poderem se consagrar a investigações racionais
especializadas; assim um à medicina, etc.

Tão certo é que o homem não pode alcançar sua perfeição senão
se beneficiando de todos os bens materiais, intelectuais e morais
que produzem os demais membros da coletividade social, que para
isso possui a linguagem, com o qual pode manter um comércio com
seus semelhantes muito mais estreito que qualquer outro animal
dos que vivem em grupo, como a grou, a formiga e a abelha. Esta
consideração faz Salomão dizer, no Eclesiastes (4,9): ‘melhor é que
estejam dois e não um, pois cada um se beneficia da mútua companhia’”.

Nem se diga que poderia o homem alcançar estes bens na


sociedade doméstica, porque ainda que só ela possa lhe for-
necer o estritamente indispensável para a vida rudimentar,
não pode proporcionar-lhe, com a suficiência requerida, nem
pode abastecê-lo de certos bens intelectuais e morais que são
frutos de longos estudos e se transmitem por tradição.

60
Natureza Moral da Política

Nem se creia que só na indigência em que nasce atualmente o


homem se funda a razão de ser da sociedade política; ela nasce de
sua inata condição social de criatura inteligente e livre, de modo
que, como explica Santo Tomás (S. Th., I, q. 96, 4, l), “mesmo no
estado de inocência os homens teriam vivido socialmente”, e “haveria
quem exercesse mando sobre os outros”.
De tudo isso segue que a sociedade política é um produto
natural, ou seja, exigido pelos impulsos sociais que estão deposi-
tados em todo homem. Logo, Deus, autor da natureza humana, é
autor da sociedade política.
O artificialismo de Rousseau e o agnosticismo de Maurras
ficam radicalmente excluídos da ciência política.
Observemos, contra Maurras, que esse impulso social não é
forçoso nem cego como um instinto. Santo Tomás empregou uma
fórmula luminosa para explicar sua natureza; diz que “há uma
inclinação à vida social assim como às virtudes” (Comm. in Pol. I. 1). Isso
quer dizer que, assim como na vontade do homem, Deus pôs
certos apetites que nos dão capacidade e impulsionam a agir
virtuosamente – apetites que não nos forçam, que podemos
contrariar –, assim também o impulso que nos move à vida social.
Essa observação nos indica, desde já, que a realidade política
é essencialmente ética em sua própria constituição interna, pois
o movimento que a funda não é a vontade livre pura nem um
instinto forçoso, senão um movimento intrinsecamente moral
e moralmente obrigatório. Assim como é obrigatório tender à
própria perfeição, é obrigatória a vida em sociedade. Portanto,
é a ordem moral que dá existência e rege a vida política.
Aprofundemos a análise da estrutura da realidade política
para ver como em sua própria medula é uma realidade moral.

61
CAPÍTULO 1

Ao mesmo tempo descobriremos a lei fundamental única de


toda sociedade política: o bem comum temporal.
Analisando as tendências profundas do homem e a indigência
potencial com que vem ao mundo, dizíamos que é necessária sua
incorporação a uma sociedade que lhe assegure o indispensável
para vida, ea quæ sunt vitæ necessaria; essa sociedade, cuja constitui-
ção não nos interessa aqui, é a família, com sua tripla ordenação
conjugal, parental e filial.
Mas como ela por si só não pode lhe assegurar mais que o
estritamente imprescindível, dizíamos que é necessária uma
sociedade mais ampla, onde as famílias se congreguem para al-
cançar uma perfeita suficiência de vida, vitæ suficientiam perfectam.
Ora, de que natureza é este bem que busca o homem na co-
munidade social? É, em primeiro lugar, um bem que não pode
lhe proporcionar nem a família nem as sociedades particulares
por si mesmas; logo, é um bem supra-individual e suprafami-
liar, ou seja, um bem comum. Ademais, é um bem exigido no
presente pela indigência do homem em sua condição terrena;
logo, é um bem comum temporal.
Um bem, porém, de que natureza? Material, moral, espiritual,
sobrenatural? A análise que nos descobriu a necessidade natural
da sociedade política, descobre também a natureza deste bem.
O homem, repetimos, se sente inclinado por natureza à
vida social, pois só nela pode alcançar a perfeição. Em que
consiste sua perfeição? O homem alcança sua perfeição na ple-
nitude racional, isto é, na consumação de todo seu ser, que se é
corpo, é também e sobretudo, alma inteligente, com capacidades
intelectivas e morais.
Logo, o bem que a sociedade política deve proporcionar ao

62
Natureza Moral da Política

homem é o bem de todo o composto: o bem humano. Bens


econômicos e materiais, sem dúvida; mas também intelectuais
e morais. Sobretudo esses, porque são eles os que especificam o
homem, levantando-o acima de toda a escala dos seres inferiores.
E mais: os bens econômicos subordinados aos espirituais, porque
no homem o corpo está subordinado à alma, e as operações
vegetativas e sensitivas se requerem enquanto são necessárias ao
exercício da pura vida intelectiva (S. Th. I, q. 76, a. 5).
Por isso observa Leão XIII que “se uma sociedade não busca senão
vantagens exteriores, a elegância e a abundância dos bens da vida, se
faz profissão de desprezar a Deus na administração da coisa pública
e de não se preocupar das leis morais, se aparta criminalmente de seu
fim e das prescrições da natureza, e não é na realidade uma sociedade e
comunidade humana, senão uma mentirosa simulação de sociedade”7.
Note-se que descuidando-se desse fim moral, não só se peca
contra a religião, senão contra o próprio fim da sociedade. Peca-se
mesmo na pura ordem política. Porque o fim próprio da política
é assegurar o totum bene vivere, a plena vida boa da comuni-
dade social. Até se poderia demonstrar que, se a política tende a
procurar os bens econômicos, em detrimento dos morais, será a
tal ponto corrompida que se tornará incapaz de proporcionar os
econômicos. Porque, como nesses, a subordinação aos morais é
essencial; privados dessa sua condição essencial, corrompem-se.
É precisamente o caso das sociedades políticas modernas, tão
profundamente submersas no materialismo, que chegaram a
tornar impossíveis as simples condições materiais de vida.

7
Leão XIII, Sapientiae christianae, de 10 de janeiro de 1890.

63
CAPÍTULO 1

Detalhando mais, esse bem comum temporal da cidade


deve cumprir três condições que Santo Tomás aponta no De
Regno (L. I, cap. 15). A primeira: que assegure a paz de todos
os que formam a comunidade. Para isso, todos os indivíduos
e todos os grupos devem se ver protegidos em seus direitos,
de modo que se alcance uma comunidade com um regime de
vida estável e harmônico, sem injustiças e sem assimetrias irri-
tantes. A segunda: que todos os indivíduos e os grupos socais,
firmemente unidos pelo vínculo da paz, empenhem-se na
ação comum de alcançar um alto nível de convivência humana
e virtuosa. A terceira: que pela habilidade do poder público e
sob sua direção, todos os indivíduos e grupos sociais alcancem
e tenham à sua disposição abundância de bens materiais, cul-
turais e espirituais, que assegurem a plenitude de uma vida
virtuosa, digna do homem, no grau mais alto que permita um
determinado desenvolvimento cultural.
A soma desses bens que constitui o patrimônio de uma socie-
dade num momento determinado é fruto e efeito da aspiração
e tendência de todos os indivíduos e grupos sociais ao bem
comum imanente da sociedade.
Esse bem comum imanente não existe somente como uma
realidade de fato, mas como uma realidade a ser conquistada. Por
ele, é certo, dispomo-nos a querer manter os bens reais que já
possuímos; mas nos movemos também a querer seu aumento,
e isso de forma indefinida. Daí que esse bem tenha como que
duas faces: uma que olha para sociedade e pela que se identifica
com a sociedade mesma e com todos os bens que ela possui e
proporciona. Esse bem, embora seja comum, isto é, não aper-
feiçoa um indivíduo exclusivamente, senão todos, é também

64
Natureza Moral da Política

próprio de cada um, e mais próprio e perfectivo que o bem


privado e particular que um indivíduo ou grupo pode possuir.
A outra face do bem comum imanente olha para Deus, bem
comum transcendente, e se sente atraído por Ele. A sociedade, que,
como dissemos, é algo natural ao homem, sai de Deus e retorna
para Deus. Daí que esta inclinação que, definitivamente, move
o homem e a sociedade para Deus, bem comum, como para seu
último e supremo fim, seja também a causa de todos os bens,
também do social, para os quais aspira o homem sem nunca
descansar. Por isso, o homem e a sociedade se sentem estimu-
lados por uma aspiração inesgotável de progresso, mas o pro-
gresso para a verdade e o bem, cuja plenitude só se alcança em
Deus. Daí que o bem comum temporal de toda sociedade seja
divino, porque vem de Deus e a Deus conduz8.

MORAL E TÉCNICA POLÍTICA

Aqui é oportuno ir ao encontro de um conceito estreito e


equivocado que alguém poderia forjar da natureza moral da
política. O erro poderia proceder de que para muitos a moral,
longe de ser uma realidade profundamente humana, que se
confunde com as mais nobres exigências da natureza racional
do homem, é como um molde estreito, forjado de antemão, que
não tem outra função senão pôr limitações a todas as aspira-
ções humanas. Se substitui, então, a moral por um moralismo,
por um conjunto de preceitos mais ou menos conveniente.

8
Ver Santiago Ramírez. O. P. Doctrina política de Santo Tomás, cap. II, pág. 25, Instituto León XIII; e
Teófilo Urdanoz O. P., Suma Teológica, de la B. A. C., Tomo VIII, Apêndice II.

65
CAPÍTULO 1

Esse é um erro gravíssimo. Porque, como vimos ao reproduzir


os luminosos ensinamentos do Doutor Angélico, a ordem moral
não se ajusta ao homem desde fora, senão que, ao surgir em
virtude de suas próprias exigências racionais, está condicionado
por sua estrutura interna. Os preceitos morais surgem das
inclinações naturais. Para conhecer o que o homem deve fazer
ou deve evitar, estudamos em que medida uma coisa responde
ao bem humano; e precisamente se sustentamos que a ordem
política é uma parte da moral, é porque não se pode conceber o
homem na plenitude de suas inclinações ou exigências naturais
se não convive com outros em sociedade política.
Isso demostra ao mesmo tempo como a moral verdadeira
não se constrói aprioristicamente, senão que deve partir da
observação, porque só ela nos pode ensinar quais são as au-
tênticas inclinações do homem. E se analisamos o raciocínio
de Santo Tomás, transcrito acima, sobre a condição moral da
sociedade, comprovamos que ele parte da observação.
Se a observação é necessária para estabelecer os mais uni-
versais preceitos morais, ela é maior na medida que descemos
ao particular. Daí que não deve ninguém imaginar que a ciência
e a prudência política devam se extrair dos puros princípios,
fixos e invariáveis, que fazem inútil o imenso e inesgotável
arsenal de experiências acumuladas pela história humana.
Ao contrário, pelo mesmo motivo que a política é uma parte
da moral, e a moral não se forja aprioristicamente, senão que deve
responder aos postulados da natureza concreta do homem, e
são a observação, a experiência, a geografia e a história, que
versam sobre o homem vivente, as que, retamente aplicadas,
sem esquecer sua subordinação aos princípios reitores, devem

66
Natureza Moral da Política

ditar o que é mais conveniente para o regimento dos povos.


Existe, então, o que com certa impropriedade poderia se
chamar técnica política, e que deve se levar muito em conta
para resolver problemas concretos, que variam para cada povo
e para cada época, tais como o problema da vida no campo e
nas cidades, a centralização ou descentralização do poder, a
distribuição dos cargos e dos encargos públicos, as formas de
governo, a organização do ensino popular, etc.
Como para resolver o que se deve fazer terá que se levar em
conta o que é mais conveniente ao bem verdadeiro do homem,
nestas condições determinadas e concretas, ao homem com
seus elementos complexos, hierarquizados e com seu destino
essencial de criatura feita para o supremo Bem, se procederá
dentro da ordem moral, que não é outra coisa senão servir
verdadeiramente o homem procurando seu bem. Daí que mais
propriamente deva se chamar prudência política a arte de governar
os povos.
Prudência política que envolve em seu conceito dois caracteres
essenciais: o da subordinação intrínseca à moral com respeito
ao governo dos povos, e o condicionamento desse às condições
existenciais do momento histórico. Não se pode governar com
fórmulas atemporais, embora se deva respeitar as leis atemporais
dos seres.

POLÍTICA E TEOLOGIA

A política deve servir o homem. Eis aqui a grande verdade,


que estamos proclamando com insistência. Daí que, no caso
de que este bem moral do homem, sem ser destruído, fosse

67
CAPÍTULO 1

subordinado a um bem superior, a política teria também que


se subordinar a esse mesmo bem superior.
Tal é o que ocorre na presente economia das coisas em que
Deus, por um efeito de sua infinita bondade, dignou-Se a elevar
o homem a um fim sobrenatural, totalmente não devido a toda
natureza criada ou criável.
O bem que deve proporcionar a política na presente condição
da humanidade resgatada não é puramente ético: está subordi-
nado ao fim sobrenatural, o que não significa que deva reger os
cidadãos para levá-los à vida eterna. Não tem esse poder, nem é
capaz disso. Sua missão é ordenar a vida da comunidade em sua
condição terrena. Mas ao ordená-la em sua condição terrena, ao
legislar as condições da convivência social, deve ter presente
essa elevação sobrenatural do homem e não somente não deve
ordenar nada que se oponha à fé cristã, mas deve pôr-se a ser-
viço dela, segundo explicaremos ao nos referirmos às funções
da autoridade.
A política não é independente da teologia; está intrinseca-
mente subordinada a ela como está toda atividade moral. A
verdade desta doutrina escapa a mutilada inteligência moderna,
que nem conhece o âmbito próprio da política nem da teologia,
nem possui o sentido da subordinação hierárquica. Santo
Tomás a expõe de modo admirável em seu mencionado opúsculo
De Regno:

“Posto que o fim desta vida que merece aqui na terra o nome de vida
boa é a beatitude celeste, é próprio da função real proporcionar a
vida boa da multidão no que lhe é necessário para lhe fazer obter
a felicidade celeste; o que significa que o rei deve prescrever o que
conduz a esse fim e, na medida do possível, proibir o que se lhe opõe.

68
Natureza Moral da Política

Qual o caminho que conduz à verdadeira beatitude e quais seus


obstáculos, conhece-se pela lei divina, cuja doutrina está reservada
ao sacerdote, segundo diz Malaquias (2,7): ‘Os lábios do sacerdote
são depositários do saber’”.

Daí que para o bom governo de uma sociedade política seja


necessário se instruir sobre o magistério da Igreja, que, pos-
suidora de todo saber humano e divino, conhece “a verdadeira
finalidade da sociedade política”. Se o laicismo é um sangrento
absurdo na pura ordem natural, na ordem sobrenatural a que
está elevado o homem, não há palavra adequada para o definir. Só
o diabo pôde alucinar com esta aberração imbecil as nações, con-
vencendo-as de que há setores da atividade humana que se bas-
tam a si mesmos, que estão dotados do privilégio da Asseidade,
que não necessitam se dobrar nem diante da Igreja nem diante
de Deus. Pôde até convencer um bom número de católicos, que só
conhecem da Sagrada Escritura – por terem lido nos autores libe-
rais e socialistas – aquele “Daí a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus”, pôde convencê-los – digo – de que César (a política) forma
um mundo à parte, totalmente autossuficiente. Como se César,
como se aquilo que a César pertence, não estivesse subordinado,
como todo o contingente, Àquele de quem provém todo bem.
Resumindo, a sociedade política é essencialmente moral,
porque moral é o movimento que a origina, e porquê de ordem
moral é a lei fundamental que a rege. Daí que deva permanecer
intrinsecamente dependente da ordem teológica.
Tudo que foi dito nos conduz a determinar, na constituição
essencial da sociedade política, as quatro causas: eficiente,
material, formal e final, que, segundo ensina Aristóteles, esgo-
tam a essência de todo ser.

69
CAPÍTULO 1

As famílias e demais associações naturais e livres, que se


congregam na unidade social, são a causa material, o elemento
indeterminado da essência política. Não são, pois, os indivíduos
que integram imediatamente a sociedade, nem em quem, em
último termo, resume-se. Essa observação é de capital impor-
tância para resolver os problemas levantados pela democracia
moderna, como o sufrágio universal e o feminismo.
O vínculo concreto, o regime de sociedade pelo qual todas
as famílias vivem congregadas na aspiração do bem comum,
constitui a causa formal.
O bem comum temporal, cuja realização se busca, é a causa
final próxima da sociedade, e os homens, impulsionados pela
lei natural a entrar em sociedade política, são a causa eficiente
da mesma.

NEM INDIVIDUALISMO NEM ESTATISMO

Ao expor os erros modernos na questão presente, dizíamos


que assim como o artificialismo de Rousseau é individualista,
o ficisismo de Maurras é estatista.
A concepção católica, ao mesmo tempo que corrige os dois
mencionados erros sobre a natureza da política – que convulsio-
nam o mundo moderno – evita seus dois desastrosos corolários: o
individualismo, que desatando o homem de todos seus vínculos
que o protegiam na vida social, o condena a perecer indefenso na
boca do mais forte, e o estatismo, que sob pretexto de salvar
a nação enlouquecida pela anarquia individual, absorve no
Deus-Estado os direitos intangíveis de cada homem.
Nem individualismo, nem estatismo. Não o primeiro, porque

70
Natureza Moral da Política

a incorporação ao Estado é necessária para que o indivíduo


alcance sua plena formação humana. Tampouco o segundo,
porque sua incorporação ao Estado é uma e não a única das
etapas na série de bens que aperfeiçoam o homem.
A doutrina católica é o cume de um monte que salva, trans-
cendendo, naquilo que de verdade contém, o individualismo
e o estatismo. Santo Tomás, como sempre, proporciona-nos,
em fórmula transparente, a doutrina católica mais pura.

“Manifesto é que todos os que vivem em comunidade são, com res-


peito à comunidade, como partes de um todo, e como tal, ordenáveis
ao bem do todo” (S. Th. II-II, q. 58, a. 5); mas “o homem não se ordena à
comunidade política com todo seu ser e todas suas coisas - secundum
se totum et secundum omnia sua -, senão tão somente sob o aspecto da
temporalidade pública de seus atos. Essa ordenabilidade parcial do
homem à cidade terrena está subordinada, por outra parte, ao outro
aspecto que tem por fim último o Bem Incriado” (I-II, q. 21, a. 4, ad 3).

A Igreja, que ensinou sempre a obrigação moral de obe-


decer ao poder civil, não imolou diante de nenhum poder da
terra os direitos de Deus, que prevalecem sobre os do homem.
Os mártires nos dão a mais persuasiva lição a este respeito. A
pessoa humana que se ordena, com certa relatividade, ao bem
do Estado, como uma parte do todo, se ordena também, com
uma relatividade mais estreita, ao bem sobrenatural que nos
comunica a Igreja, e se ordena, de um modo absoluto e total,
a Deus, que é bem comum de todos (cf. S. Th., II-II, q. 26, a. 3).
Durante sua peregrinação terrena, toda pessoa humana
pertence a duas cidades: uma cidade terrena, que tem por fim
o bem comum temporal; e uma cidade celeste, cujo fim é a vida
eterna. Entre os mesmos muros e a mesma multidão humana há

71
CAPÍTULO 1

dois povos, e esses dois povos dão origem a duas vidas distintas,
a dois principados, a uma dupla ordem jurídica. Verdade antiga
como a Igreja, que o Papa Gelásio ensinava no século V: “Há dois
poderes pelos quais está este mundo soberanamente governado: a santa
autoridade do Pontífice e o poder real”.
Distinção de uma e outra vida, de um e outro poder, explicado
magistralmente por Leão XIII, na famosa Immortale Dei9:

“Deus dividiu, pois, o governo do gênero humano entre dois poderes:


o poder eclesiástico e o poder civil; àquele preposto às coisas divinas,
este às coisas humanas. Cada uma delas no seu gênero é soberana;
cada uma está encerrada em limites perfeitamente determinados, e
traçados em conformidade com a sua natureza e com o seu fim especial”.

Mas distinção não é separação. São duas coisas distintas,


mas unidas. Unidas hierarquicamente na primazia do eterno
sobre o temporal, da Igreja sobre a sociedade política, de Deus
sobre o homem.
Como pode apreciar o leitor, evitamos anatemizar este erro do
absolutismo ou estatismo, recorrendo a uma falaz distinção de
indivíduo e pessoa que alcançou ultimamente popularidade,
como se o erro do estatismo proviesse de considerar o homem
como um mero indivíduo, desprovido dos atributos da pessoa.
Sem chegar a contestar o inconsistente desta distinção e
sua inaplicabilidade no caso presente, fazemos notar que a
anatematização do estatismo ou absolutismo do Estado é tão
antiga como a Igreja, que já nos tempos do Apóstolo São Pedro,
não muitos dias depois da Ascensão de Jesus Cristo, ensinava:

9
NC. Carta Encíclica de 1 de novembro de 1885. Texto disponível em português em: www.vatican.va

72
Natureza Moral da Política

"Importa obedecer antes a Deus do que aos homens." (At 5, 29) sem
que, nem agora nem depois, tenha-lhe ocorrido invocar essa
ou semelhante distinção.
O estatismo é um absurdo monstruoso, porque faz derivar do
Estado todo Direito, quando a sã razão ensina que se é certo que
o Estado tem certos e determinados direitos, também tem os
seus – e tão inalienáveis como os do Estado – o homem-indiví-
duo, o homem-família e o homem-sociedade particular. E pre-
cisamente a ordenação divina, manifestada pela lei natural, diz
que o Estado deve ordenar ao bem comum todos esses direitos
do homem-indivíduo, do homem-família e do homem-socie-
dade, deve ordená-los, não os devorando, mas os defendendo e
protegendo. Porque para isso vivem os homens em sociedade:
para proteger seus legítimos e inalienáveis direitos, que não po-
deriam fazer valer na selva, onde imperaria a lei do mais forte.
De maneira que a razão que justifica a existência e a necessidade
do Estado condena o estatismo. Porque o Estado não está para
suprimir, senão para assegurar os direitos das unidades que lhe
estão subordinadas.
Além disso, como vimos naquele luminoso artigo onde
Santo Tomás (I - II, q. 94, a. 2) estabelece a ordem dos preceitos
naturais, primeiro que os deveres e direitos sociais são para cada
homem os deveres e direitos que lhe competem na conservação
de seu próprio ser e na perpetuação da espécie, isto é, seus
deveres e direitos como homem-indivíduo e como homem-
-família. Logo, se da lei natural deriva a necessidade do Esta-
do, ele não pode se constituir de forma tal que viole e destrua
aqueles direitos anteriores que a própria lei natural concedeu
ao homem.

73
CAPÍTULO 1

Enfim, tal é a condição do homem, em atenção precisamente


à sua natureza racional, à sua alma imortal que não pode ser
absorvida por nenhuma atadura terrena. Seu fim, seu destino
eterno, ultrapassa infinitamente o destino temporal da estadia
terrena em que vive ordenado sob o Estado. Ora, se o Estado
quisesse ordenar o destino eterno do homem, condicionando-o
aos seus fins temporais, seria absurdo e monstruoso, porque é o
temporal que deve se colocar ao serviço do eterno, como o relativo
deve servir ao absoluto.
Finalmente, o estatismo ou totalitarismo provém de fazer
do Estado o supremo Tudo, do qual se derivam os direitos dos
indivíduos e das famílias como se o homem-indivíduo não tives-
se outra ordenação e outro destino que ser uma parte mais ou
menos conspícua deste Todo; ao contrário, na sã doutrina, o
homem é um todo, completo, autônomo, que em razão de seu
destino não se ordena senão a Deus, e d´Ele deriva o Estado,
como uma sociedade que há de aperfeiçoá-lo.
Do dito se desprende que a órbita de atividade de um homem,
por indefeso que se suponha, não pode ser compreendida total-
mente pela sociedade política nem por nenhuma outra sociedade,
inclusive a Igreja. Em outro local10, isso foi exposto de forma
rigorosa, que merece ser recordado aqui:

“... a política é uma parte da atividade humana. Não é o poder único


que abarca tudo e constitui tudo. Tem um âmbito limitado de ativida-
de, especificado por seu objeto próprio. Fora da política existem outras
atividades e outros poderes que de nenhum modo podem se fundir

10
J. Meinvielle, Un juicio crítico sobre los problemas nuevos de la política, Gladium, Buenos Aires, 1937.

74
Natureza Moral da Política

no político. São estes: o Poder religioso, os poderes econômicos11, os


poderes individuais. Deste modo, a atividade do homem não pode ser
governada totalmente por um só poder. Pretender isso seria incorrer no
totalitarismo, que é uma concepção brutal e anti-humana do homem”.

É o erro do comunismo, e também o do nacional-socialismo,


e não o é menos do demoliberalismo, “já que esse ao suprimir o
Poder Espiritual e os poderes econômicos, deixa os indivíduos e
a sociedade entregues a uma burguesia materialista devoradora
e tudo fica absolutizado num regime laico, burguês e democratista”12
Por isso, nada mais admirável que a doutrina católica, que ao
fazer descer de Deus – Simplíssima e Riquíssima Unidade – o homem,
faz descer d´Ele também aquelas sociedades tais como a família,
o Estado e a Igreja, que embora limitem o homem, é para pôr-se a
seu serviço e fazê-lo chegar até Aquele de cujas mãos saiu. Porque
se o homem saiu de Deus, a Ele deve voltar, mas deve voltar
através da família, do Estado e da Igreja, que são os canais na-
turais por onde Deus quer que volte. Mas para que em verdade
possa o homem, através destes canais, chegar a Deus, é preciso
que esses se conservem dentro de seus próprios limites, fixados
pelo Criador. Daí que só uma doutrina como a católica, que põe o
Primeiro Princípio como fonte e ápice do homem, pode salvá-lo
e aquelas sociedades que a ele se referem, porque o múltiplo só
pode ser harmonizado e unificado pelo princípio Uno de que saiu.
Pelo contrário, toda doutrina desconhecedora do Primeiro

11
Por poderes econômicos não entendemos precisamente os grandes “trusts” financeiros que abu-
sivamente regulam hoje toda vida econômica, mas a força de que, no econômico, estão dotados os
diversos indivíduos e grupos sociais e que constituem um setor e dimensão da sociedade irredutível ao
poder propriamente político, mesmo que esteja vinculado com ele.
12
Ver ibidem, pág. 42.

75
CAPÍTULO 1

Princípio, que parta de uma ideia ou de um fato, chame-se


liberdade individual ou nação, Estado, comunidade, classe
trabalhadora ou raça, fingirá um Absoluto, que pelo mesmo
motivo não pode ser limitado por ninguém nem por nada.
É fácil adivinhar os absurdos monstruosos que daí se deri-
vam. Porque este Absoluto, ilimitado, é por definição um fato e
que por sê-lo está sujeito a mil limitações; é um fato que coexiste
em meio a outros mil que podem ser glorificados como ele e de
onde há de surgir uma infinidade de Absolutos ou ilimitados, que
no final hão de terminar com uma total e absoluta dilaceração
do homem. Quem pode imaginar o destino desta pobre carcaça
humana, que é cada homem, se é puxado por infinitos absolutos?
Então, só aquela doutrina que coloque um Absoluto, um só,
ali onde o deva pôr, poderá salvar a sociedade política, e com ela
o homem em função de quem ela existe. Porque esse Absoluto
não será então o fruto de um pobre cérebro humano, senão a
eterna e infinita substância, que em riquíssima e fecunda sim-
plicidade tudo contém, e de quem todo o criado deriva e a quem
deve retornar. Porque "toda dádiva boa e todo dom perfeito vêm de
cima: descem do Pai das luzes, no qual não há mudança, nem mesmo
aparência de instabilidade." (Tg 1, 17)

76
CAPÍTULO 2

O Problema da Soberania

𝔼 studamos as bases filosóficas da política para chegar à conclu-


são de que é uma ética que tem por lei fundamental assegurar
o bem comum terreno às famílias congregadas no corpo social.
Determinamos a natureza deste bem público destacando
seus dois caracteres, moral e teológico, já que deve responder ao
fim atribuído por Deus ao homem na economia presente, a saber:
o próprio Deus possuído na visão intuitiva. O que significa
que o Estado, ao regular o homem na vida social, deve levar
em conta sua elevação sobrenatural, não ordenando nada
que possa obstaculizar esta elevação, proporcionando-lhe ao
mesmo tempo os demais bens humanos, de tal modo que o
disponham, na ordem natural, a alcançar essa sobre-elevação.

77
CAPÍTULO 2

Movida a sociedade política pelo bem humano, como por seu


bem específico, fica excluído o liberalismo rousseauniano, que
finge a sociedade política como meio de garantir as liberdades
individuais; e o estatismo, que sacrifica na boca do Moloc-Estado
os direitos dos indivíduos humanos.
Mas se a sociedade política é um conjunto de unidades que de-
vem aspirar a um bem específico próprio, que não é a resultante
dos bens particulares a quem essas tendem, é necessário que
haja nela uma autoridade que promova eficazmente este bem
comum a que aspira. Santo Tomás de Aquino expressou com
sua habitual luminosidade esta doutrina, no primeiro capítulo
de seu opúsculo De Regno:

“Se é natural ao homem que viva em sociedade com os outros, é


necessário que alguém reja a multidão. Porque existindo muitos
homens, e cada um buscando aquilo que lhe convém, a multidão se
dissolveria se não houvesse quem cuidasse do bem da multidão; do
mesmo modo que se dissolveria o corpo do homem e de qualquer
animal se não existisse em seu corpo uma força de direção que
atendesse ao bem comum de todos os membros. Esta consideração
motivou Salomão a dizer: ‘Onde não há um governador, o povo se
dissipa’ (Pr 11, 3). Acontece isso racionalmente, pois não é o mesmo o
próprio que o comum. Porque, quanto ao próprio, as coisas diferem;
e, quanto ao comum, unem-se. Porque coisas diversas têm causas di-
versas. É, pois, necessário que ademais do que move a cada um ao seu
bem próprio, haja algo que o mova ao bem comum de todos”.

Com esses termos estabelece o Angélico Doutor a necessi-


dade da autoridade pública e, portanto, o direito da soberania,
que não é outra coisa senão a faculdade que compete a toda
sociedade, plenamente suficiente no âmbito do temporal, de
buscar eficazmente seu próprio bem.

78
O Problema da Soberania

Se o corpo social, que é uma instituição de direito natural,


reclamada pela lei que inscreveu Deus no fundo do ser humano,
exige inevitavelmente, para sua existência permanente, um
poder soberano, se segue que a soberania política é também
de direito natural, o que significa que tem a Deus por autor. A
soberania, então, vem de Deus. Omnis potestas a Deo est, diz São
Paulo com uma linguagem forte.
Se o bem comum temporal é a razão especificativa do corpo
social; e se para assegurar sua existência se reivindica a soberania
política, segue-se que ela, em sua essência e funções, está limitada
por esse mesmo bem comum temporal. Ficam, então, fixados
com precisão os limites da soberania política. O poder soberano,
qualquer que seja sua organização, não pode extrapolar, em
suas funções, de modo que saia do âmbito de sua própria essên-
cia, que é a busca eficaz do bem comum.
Se, ampliando o conceito de autoridade pública, temos presen-
te que ela deve ordenar ao bem comum os esforços individuais e
sociais de seres que se determinam livremente por sua razão, con-
cluiremos que a soberania traz consigo a faculdade de impor aos
súditos ordenações racionais que dirijam sua atividade para o bem comum,
ou seja, regulá-los pela lei. E como a lei seria completamente inefi-
caz sem a faculdade de julgar sobre o cumprimento e a infração, de
aplicar as sanções correspondentes aos que a violam, segue-se que
a soberania inclui o poder de legislar, julgar e castigar os membros
da coletividade social para fazê-los realizar o bem coletivo.
Em resumo: a soberania política é, então, na boa doutrina
da Igreja que encontra sua melhor expressão em Santo Tomás,
a faculdade que compete à sociedade política de impor, de
forma efetiva, leis que assegurem o bem coletivo da multi-
dão congregada.

79
CAPÍTULO 2

DOUTRINA FALSA DA SOBERANIA

Retenhamos firmemente este conceito para apreciar quão à


margem da verdade católica e da sã razão é a ideia da soberania
em que se forjam os estadistas modernos. Para eles “a soberania
é a fonte de todo o poder do Estado, com os caracteres de absoluta,
ilimitada, indivisível, inalienável e imprescritível”. E enfatizando
estas expressões, acrescenta: “a soberania é um conceito absoluto;
qualquer limitação a faz desaparecer; sua nota essencial consiste em que
nada nem ninguém pode limitá-la”1.
É explicável que, tal conceito da soberania, o citado professor
só o encontre formulado, pela primeira vez, no século XVI, por
Bodin, e faça Rousseau o teórico integral dela. “Nem a Aristóteles nem
a Santo Tomás lhes preocupou nunca a ideia da soberania”, acrescenta.
Se por soberania se entende coisa tão monstruosa – um abso-
luto na ordem fenomênica - não deve nos surpreender que nem
Santo Tomás nem Aristóteles tenham imaginado tal anomalia.
É preciso chegar a época moderna, onde a inteligência, desviada
de seu objeto próprio, que é a consideração do ser, move-se ver-
tiginosamente no vazio, para encontrar uma infinidade de en-
tes absolutos que fabrica o homem e se chamam Estado, Direito,
Povo, Soberania, Democracia, Liberdade, Ciência, Humanidade,
etc. Outros tantos mitos ou ídolos que enchem a mente de uma
sociedade que está disposta a endeusar tudo no intento de des-
tronar o Único que tem direito de reinar com absoluta soberania
sobre todo o criado.

1
Mariano de Vedia y Mitre “Curso de derecho político”, Buenos Aires 1928-29.

80
O Problema da Soberania

O que sim causa estupefação é a petulância que tantos homún-


culos modernos, que chegam a imaginar que de tal modo escalou
o homem do século XIX o cume do progresso que só ele, graças a
Jean Jacques Rousseau, pode desfrutar da soberania. O homem,
que conheceu as mais diversas e aperfeiçoadas civilizações em
todas as latitudes, teria vivido durante dezenas de séculos sem
suspeitar a existência de algo tão essencial para sociedade política
como a soberania.
Mas não é a soberania o que inventou Jean Jacques, senão
o mito da soberania popular. O povo, que longe de ser gover-
nado e encaminhado ao bem, é governante e criador de toda
moralidade e direito.
Não é necessário recorrer a um ser extramundano, a uma
Inteligência Ordenadora, para saber se o homem deve viver
na selva ou em sociedade, se deve se ajustar à lei ou não, se
deve mandar ou obedecer. O próprio homem, deixado a seu
libérrimo e soberano arbítrio, dará resposta a essas interroga-
ções. E não será, precisamente, aquele homem que, pelo cultivo
de seu próprio ser, alcançou a plenitude de sua perfeição –, de
modo que vive constante e perpetuamente a lei da razão, mas
o homem, qualquer homem, por plebeu que seja, agrupado na
multidão, que opinará sobre estes transcendentais problemas.
Para isso imagina Rousseau que os homens, livres e iguais,
reunidos em solene convenção, concordam viver mancomuna-
dos; em virtude de um pacto se gera uma todo-poderosa vontade
geral, dotada de absolutismo – já que absorveu em suas entranhas
a irreprimível vontade dos milhares de associados – e com um
impetuoso dinamismo para criar todos os direitos e obrigações.
Esta Vontade Geral é a vontade do povo, da maioria, da

81
CAPÍTULO 2

metade mais um. A soberania reside, pois, essencial e abso-


lutamente no povo, na massa informe de todas as unidades
individuais e tem como razão de ser assegurar o máximo de
liberdade a essas mesmas unidades.
Deixemos que Rousseau nos explique as cláusulas do Con-
trato Social:
“Estas cláusulas devidamente entendidas, se reduzem todas a uma só,
a saber: a alienação total de cada associado, com todos seus direitos à
toda a comunidade; porque, em primeiro lugar, dando-se cada um por
inteiro, a condição é a mesma para todos; e sendo a condição igual para
todos, ninguém tem interesse em fazê-la onerosa aos demais.
Enfim, dando-se cada um a todos, não se dá a ninguém; e como não
há um associado sobre quem não se adquire o mesmo direito que
se lhe concede sobre si mesmo, se ganha o equivalente de tudo o
que se perde e mais força para conservar o que se tem.
Portanto, se se elimina do pacto social o que não lhe é essencial,
encontraremos que se reduz aos seguintes termos: ‘Cada um de nós
põe em comum sua pessoa e todo seu poder sob a suprema direção
da vontade geral, e recebemos, ademais, a cada membro como parte
indivisível do todo’”.2

O que se deve pensar desta aberração foi resumido de forma


definitiva por um ilustre teólogo3.
“Referir esta ficção é a ter refutado, porque à simples vista aparece ím-
pia em seus fundamentos, contraditória em seu conceito, monstruosa
em suas consequências e completamente quimérica e absurda. Ímpia,
digo, nos fundamentos, porque do ateísmo se origina, isto é, da radical
negação da sujeição moral do homem a Deus e à sua lei. Contraditória

2
Rousseau, O Contrato Social, tradução ao espanhol por Fernando de los Ríos.
3
Cardenal Billot, De Ecclesia Christi.

82
O Problema da Soberania

em seu conceito, porque se a inata liberdade do homem não pode


se limitar antes do pacto por nenhuma obrigação, nem direito, não apa-
rece porque possa se alienar irrevogavelmente, total e parcialmente, em
virtude do pacto, já que, excluída uma lei superior que dê firmeza aos
pactos e doações celebrados entre os homens, não pode conceber-se
nenhuma estável transferência de domínio de um ao outro. Monstruosa
em suas consequências, já que submete todas as coisas ao ídolo da
vontade geral; e no que se refere aos fatos, opõe aos demais cidadãos a
violência desenfreada e a tirania dos partidos dominantes. Por fim,
completamente ridícula e absurda, porque atribui à sociedade uma
origem quimérica, que está em contradição com o sentido íntimo,
com a história do gênero humano e com os fatos mais evidentes.
E ainda que o assunto não merece insistir mais, observamos dois
pontos, aos que se reduz todo o sistema. O primeiro é que todo o poder
político vem só do povo e que dele depende tanto na sua origem como
no seu ser; o segundo é que a própria soberania popular nasce do
contrato, já que cada membro da sociedade fez cessão voluntária
de seu próprio direito, e cada um se entrega ao poder, resultante
de todos aqueles direitos parciais, ou seja ao poder da comunidade.
Ora, destes dois princípios, o primeiro, por seu próprio e natural peso,
conduz à uma perfeita anarquia e o outro a um perfeito despotismo4
e portentoso comunismo5”.

4
O povo é soberano e o governo é seu empregado, menos que seu empregado, seu servo. Não há
entre eles contrato definido ou, pelo menos, duradouro. Está contra a natureza do corpo político que o
soberano se imponha uma lei que nunca possa infringir. Não deve haver carta consagrada inviolável que
encadeie um povo a formas constitucionais preestabelecidas. O direito de mudá-las é a primeira de todas as
garantias. Não há, não pode haver, nenhuma lei fundamental obrigatória para o corpo popular, nem sequer o
contrato social. O ato pelo qual o povo se submete aos chefes não é absolutamente senão uma comissão, um
emprego, no qual, simplesmente oficiais do soberano, exercem em seu nome o poder do qual lhes fez deposi-
tário, e que ele pode modificar, limitar, voltar a tomar quando lhe agrade... Não tem condições que lhe impor;
nem podem reclamar dele nenhum compromisso... Voluntariamente ou à força, eles (os magistrados)
são os porteiros do Estado, mais desgraçados que um mucamo e ou um estivador, já que o estivador
trabalha em condições pré-estabelecidas e o mucamo despedido pode reclamar seus salários de oito
dias. Quando o governo sai desta humilde atitude, usurpa, e as constituições proclamarão que nesse
caso a insurreição é, não só o mais santo dos direitos, senão o primeiro dos deveres. (Taine, in: El antiguo
régimen, 1-3, c. 4. 3, citando Rousseau, O Contrato Social, 1-7 III-1, IV-3, etc)
5
“A teoria tem duas faces, e enquanto por um lado conduz à demolição perpétua do governo, desemboca

83
CAPÍTULO 2

ORIGEM DIVINA DA SOBERANIA

A tese cristã sobre a origem divina da soberania é um dogma


de fé claramente expresso na Sagrada Escritura e ensinado
magistralmente em repetidas ocasiões pela Cátedra Romana.
Deus é quem propôs um chefe para governar cada nação, lemos no
livro do Eclesiástico. “Tu não terias nenhum poder se não te houvesse sido
dado do alto”, disse Jesus Cristo ao governador romano. E Santo
Agostinho, comentando essa passagem, exclama: “Aprendemos
aqui dos lábios do Mestre o que ensina, em outra parte, pela boca de seu
Apóstolo: que não existe nenhum poder senão aquele que vem de Deus
(omnis potestas a Deo est)”.
E nas primeiras linhas destes capítulos vimos como o conceito
de soberania é forçosamente divino; tão divino, em sua origem,
como a própria sociedade política que inevitavelmente a exige.
Mas essa origem divina, não implica talvez uma limitação que
anula o conceito de soberania? Assim parecem entender os ideó-
logos liberais, sem advertir que é precisamente esta dependência

pelo outro na ditadura ilimitada do Estado... Com efeito, as cláusulas do contrato social se reduzem todas
a uma só, a saber, a alienação total de cada associado com todos seus direitos à comunidade. Cada um se
dá inteiro, tal como se encontra atualmente ele mesmo e todas suas forças, das quais formam parte os bens
que possui. Não há qualquer exceção nem restrição; nada de quanto era ou possuía anteriormente lhe
pertence já em propriedade. O que de agora em diante será e terá, só lhe será adjudicado por delegação
do corpo social, proprietário universal e amo absoluto. É necessário que o Estado tenha todos os direitos
e que os particulares não tenham nenhum; do contrário haveria entre eles e ele litígios, e como não há
ninguém superior comum que possa pronunciar-se entre eles e ele, esses litígios não teriam fim. Ao contrário,
pela completa doação que faz cada um de si mesmo, a união é a mais perfeita possível. Por ter renunciado
a tudo e assim mesmo, já nada lhe sobra para reclamar... Todos esses artigos são consequência forçosa
do contrato social. Desde que, ingressando num corpo, nada reservo de mim mesmo, renuncio, só por
isso, a meus bens, a meus filhos, a minha Igreja, a minhas opiniões. Deixo de ser proprietário, pai, cristão,
filósofo. É o Estado, que se substitui a mim em todas essas funções. Em lugar de minha vontade, existe
de agora em diante a vontade pública, isto é, teoricamente, o arbítrio mutável da maioria contada por
cabeças; de fato, o arbítrio rígido da assembleia, da facção, do indivíduo que tenha o poder público”.
(Taine, 1. e. § 4 e 5.)

84
O Problema da Soberania

da Causa Primeira a que lhe dá fundamento sólido. Ora, se a


faculdade de impor obrigações que devem acatar os membros da
comunidade, e que compete a autoridade social, não se alicerça
na vontade de Deus, em que se fundaria? Na vontade do homem?
E quem é o homem para mandar em outro homem? Aquele que
tem força para isso. Então, manda justificado por sua força, e toda
autoridade acaba sendo uma tirania? Acaso é a vontade do povo?
E o que é o povo, senão um conjunto ou soma de homens? E acaso
porque eles se somam, podem mandar em outro homem?
A ideia de mando, de autoridade, importa uma subordinação,
ou seja, implica um superior que ordena e um inferior que obe-
deça. Se essa subordinação não se funda na vontade divina que
intima a cada homem pelas prescrições da lei natural, não pode se
fundar em nada sólido. Ou há que destruir a sociedade como algo
sem fundamento, e temos então a anarquia, ou há que fundá-la
na força bruta, e temos então não uma sociedade humana, senão
um regime de escravos.
A ficção do pacto não evita a dificuldade; porque se o pacto
depende de minha vontade, guardo-o quando me agrada e o
violo por meu capricho. E se não depende de minha vontade,
quem e com que direito vincula de tal forma a minha vontade
para me fazer cumprir o pacto?
Mais insolúveis são estas dificuldades na teoria e prática
liberais, em que se pressupõe como premissa indiscutível a
omnímoda independência do humano. Nem se imagine que na
obediência civil se obedece a si mesmo e não a outro, porque de
qualquer modo a obediência implica subordinação; e admitir
essa pretendida auto-obediência seria admitir que um ser
pode estar ao mesmo tempo em ato e em potência com respeito

85
CAPÍTULO 2

à mesma forma. Tanto o autonomismo que Kant reclama para


a razão humana como o que Rousseau reivindica para o corpo
social (admire-se, de passagem, o enorme esforço de dialética
sentimental destes ideólogos ao concluir pelo autonomismo do
corpo social partindo do autonomismo moral do indivíduo)
encerra, como dizíamos antes, o espantoso absurdo de atri-
buir ao homem, ser caduco, frágil como argila, os caracteres
de infinitude, privativos de Deus. O que se consegue com esta
sublimação do indivíduo e da sociedade é desorbitá-los e com
isso destruí-los. O liberalismo desemboca na anarquia e essa
não é mais que a tirania da desordem.
Em Deus, Plenitude de Bem, em quem não existe composição
de ato e potência, existe a autonomia pura sem o risco de uma
autodestruição; n´Ele, o movimento autonômico é o determi-
nar-se inefável e incessantemente por sua própria Plenitude.
Como sua Plenitude é a Bondade, a liberdade se identifica com
a Plena Bondade.
Por outro lado, no homem a única autonomia possível é
relativa. Consiste precisamente em se autodeterminar pela
plenitude racional, sem sofrer o menor impulso estranho,
contrário ao princípio interno de ação que especifica sua essência,
que é, a saber, a razão. E mesmo essa não pode chegar a se realizar
senão pelo caminho de uma dolorosa purificação, dado o divórcio
que, por consequência do pecado, separa a bondade da liberdade
no mais recôndito do ser humano. Filhos do pecado, estigma com
o qual nascemos, nossa vontade enferma se sente inclinada,
muitas vezes, a escolher o que nos desvia da própria perfeição.
Por outra parte, essa única autonomia possível no homem,
a única que liberta verdadeiramente porque lhe faz viver sua

86
O Problema da Soberania

própria lei que é a lei da razão, exige-lhe a subordinação às


legítimas potestades. Porque sua razão lhe impõe a ordem e a
ordem exige que o homem obedeça aos seus progenitores e se
submeta ao supremo procurador do bem da cidade.
Vem aqui ao caso o que lindamente ensina Santo Tomás na
Suma Contra Gentios (L. III, c. 128):

“De duas maneiras se inclina o homem a observar a justiça esta-


belecida pela lei divina; de um modo, interiormente; de outro, ex-
teriormente. Interiormente, quando o homem voluntariamente está
pronto para observar o que lei divina manda; o que se faz por amor
a Deus e ao homem, porque o que ama o outro, espontaneamente e
com prazer, devolve-lhe o que deve, e mesmo algo a mais lhe dá
liberalmente; daí que o cumprimento íntegro da lei depende do
amor, segundo o que diz o Apóstolo: ‘a plenitude da lei é o amor’
(Rm 13, 10); e o Senhor diz que ‘nestes dois mandamentos’, a saber,
no amor de Deus e do próximo, ‘está contida toda a lei’ (Mt 22, 60).
Mas como alguns não estão assim interiormente dispostos para
que façam espontaneamente por si mesmos o que manda a lei,
devem ser impulsionados exteriormente para cumprir a justiça da
lei; o que acontece quando por temor das penas, e não liberal mas
servilmente, cumprem a lei; daí se diz: ‘quando fizeres tua justiça na
terra’, a saber, castigando os maus, ‘aprenderão a justiça os habitantes
da terra’ (Is 26, 9). Outros são de tal modo dispostos, que por si mesmos
fazem espontaneamente o que a lei manda. Estes segundos são
para si mesmos sua própria lei; os que tem a caridade que, em
lugar da lei, inclina-os e os faz agir liberalmente. A lei exterior não é
necessária, então, para eles, senão para aqueles que por si mesmos
não se inclinam ao bem, daí se diz: ‘a lei não foi posta para justo,
senão para os injustos’ (1 Tm 1, 9); o que não se deve entender que
os justos estejam obrigados ao cumprimento da lei, como alguns
perversamente entenderam, senão que eles se movem por si mes-
mos, mesmo sem a lei, a praticar a justiça”.

87
CAPÍTULO 2

DEMOCRATISMO E DEMOCRACIA

A reivindicação da soberania no sentido rousseauniano


comporta, de fato, a licença de todos os impulsos anárquicos
que se escondem no submundo do coração humano, e assim a
vitória sistemática dos instintos contra a lei da razão.
Rousseau encontrou, com sua decantada soberania da
maioria, o instrumento prático para elevar à categoria divina
todas as rebeldias que a soberania de uma falsa ciência tinha
desatado no homem. A dissolução total do homem e da sociedade,
operada desde então pelo liberalismo, é a história documentada
destas considerações da filosofia tomista.
Daí que a doutrina católica, ao afirmar o caráter divino da
soberania, longe de destruí-la, funda-a e a faz benéfica; porque
se a soberania não vem de Deus, a soberania não existe; e se, por
um impossível, pudesse existir sem derivar de Deus, conteria
uma força impetuosa que escravizaria o povo ou aniquilaria a
sociedade. Porque todo conceito absoluto fabricado pelo homem,
como se funda no nada, tem uma pavorosa força para reduzir ao
nada tudo quanto toca.
Se durante estes quatro séculos que constituem a época
moderna, enquanto o homem moderno estava empenhado em
realizar suas ideias libertárias, a desprezada Igreja de Cristo não
tivesse continuado em sua secular tarefa de irradiar sobre as
almas sua sobrenatural influência, a que extremos inauditos de
selvageria e barbárie não teríamos chegado? A época sombria,
em cujas nuvens vamos entrando, cheia de profundas e temí-
veis convulsões, é fruto maduro daquela semente da soberania

88
O Problema da Soberania

popular que cultivou Rousseau, e que hoje conhecemos como o


dogma intangível da Democracia.
É evidente que não nos referimos aqui à democracia como
pura forma de governo. Esta é legítima se, respeitando a ordem
moral como emanação da lei divina, reconhece a Deus como
origem e fonte de toda razão e justiça, e se reduz a propiciar uma
organização que dá lugar para um maior número de cidadãos na
direção dos negócios públicos, sempre que assim permita o bem
comum, que é a suprema e decisiva lei de toda sociedade política.
Referimo-nos sim à Democracia, vivida e proclamada hoje, a essa
que não pode ser escrita senão com uma descomunal maiús-
cula, porque se apresenta como solução universal de todos os
problemas e situações. Essa Democracia é o mito rousseauniano
da soberania popular, ou seja, sempre e em todas as partes se deve
fazer o que o povo quer porque o povo é lei; e o povo é a maioria
igualitária que com seu voto decide tudo, tanto o humano quanto
o divino, o que se refere à ordem nacional como internacional,
à santidade do matrimônio como à educação dos filhos, aos
direitos do Estado como à majestade sacrossanta da Igreja.
Maritain destacou o erro em que incorrem Rousseau e o
mundo do qual é pai, ao confundir a Democracia como mito e
doutrina universal da soberania, com a democracia como forma
particular de governo. Pode se discutir sobre a questão de se a
forma de governo é boa ou má para tal povo e em tais condições,
mas o democratismo, o moderno princípio espiritual de iguali-
tarismo, é indiscutivelmente um sangrento absurdo6.

6
J. Maritain, Primautè du Spirituel, Plon. Paris, 1927.

89
CAPÍTULO 2

O que Leão XIII escrevia em sua encíclica Diuturnum illud


em 29 de junho de 1881, cada dia que passa, cumpre-se, dia
após dia, surpreendentemente:

“(…) as teorias modernas sobre o poder público causaram já grandes


males, e é de temer que estes males alcancem no futuro os piores
excessos. Com efeito, não querer referir a Deus como autor e fonte
do direito de mandar é tirar do poder público seu esplendor e seu
vigor. Ao fazê-lo depender da vontade do povo não somente se come-
te um erro senão que se atribui à autoridade um fundamento frágil e
sem consistência. Tais opiniões são como um estimulante perpétuo
às paixões populares, que aumentam de audácia a cada dia e ameaçam
levar à ruína as repúblicas por conspirações ou por abertas sedições. Já
no passado, o movimento que se chama Reforma teve por auxiliares
e por chefes homens que, por suas doutrinas, derrubavam os dois
poderes, tanto espiritual como o temporal; tumultos repentinos,
rebeliões audazes, sobretudo na Alemanha, foram as consequências
destas novidades, e a guerra civil e o crime recrudesceram com tanta
violência que não houve região que não fosse vítima de agitações e
massacres. Desta heresia nasceu, no século passado, o que se chama
‘direito moderno’ e ‘soberania do povo’ e essa desenfreada licença,
com a qual muitos identificam a liberdade. Daí se avançou até os mais
extremos erros, tais como o comunismo, o socialismo, o nihilismo,
que são terríveis monstros que ameaçam sepultar a sociedade (...)”

A DEMOCRACIA E OS CATÓLICOS

Se é assim, que pensar então de certos católicos que se cha-


mam democratas, e que creem que a Igreja deva se irmanar
com a democracia?
Esses católicos que costumam sentir suas entranhas devoradas
por uma incoercível necessidade de ação, devem primeiro,

90
O Problema da Soberania

antes de tudo, pôr ordem em suas ideias. Para isso, é neces-


sário que entendam que, em propriedade de termos, democracia
ou ação democrática são termos que se referem ao setor exclusiva-
mente político, ou seja, do governo político. Não há direito então
a denominar democrática qualquer ação que se faça em favor
das classes populares. Só um abuso consentido de linguagem
pode autorizar o uso deste vocábulo e assim Leão XIII em sua
encíclica Graves de communi chama de democracia cristã a ação
realizada pelos católicos socais para remediar a misérias das
classes assalariadas. Mas, neste caso, o Pontífice toma todas as
precauções para explicar o alcance dos termos utilizados e a
impropriedade dos mesmos7. Como, apesar disso, não deixou
de trazer inconvenientes, a Igreja desistiu de utilizá-lo com
este significado.
Esses católicos devem, pois, entender que agem dentro das
mais estritas e salutares diretivas da Igreja, tão sabiamente
enunciadas na Rerum Novarum e na Quadragesimo Anno, quando
se entregam a esta atividade econômico-social de alívio das
classes populares. Mas devem entender que isso nada tem a ver
com a democracia, que é uma organização política da nação, por-
que seja ou não democrática esta organização, aquela atividade
deve ser exercida igualmente e, de fato, exerceu-se em sociedades
não organizadas democraticamente, segundo prova a história
das eras cristãs.
Se, tendo presente essa observação, querem atuar na política e

7
Num dos Apêndices, ao final do presente livro, são reproduzidas passagens da encíclica Graves de communi
em que Leão XIII expõe as precauções sob as quais deve se empregar a expressão “democracia cristã”.

91
CAPÍTULO 2

querem propiciar, com preferência a outras, a forma democrá-


tica de governo, podem-no fazer contanto que levem em conta
os seguintes pontos:
1. A soberania vem de Deus e não do povo.
2. A ordem moral não é uma criação humana.

3. A ordem jurídica não é tampouco um produto do ca-


pricho humano. Tira da ordem moral – como as con-
clusões dos princípios ou como certas determinações
de leis mais comuns, assim se expressa Santo Tomás (S.
Th. I-II. q. 95, a. 2) – e não pode nunca contrariar a lei
eterna inscrita por Deus na razão humana.

4. A cidade não pode tampouco se organizar ao capricho


da multidão. É permitida tão somente a organização que
respeite a lei fundamental da política, que é a busca efi-
caz do bem comum. Um católico, pois, que queira fazer
profissão democrática em política, terá que se limitar a
propiciar, com preferência às outras, a forma de governo
chamada democracia, em que se determina uma maior
ou menor participação da multidão na coisa pública. No
próximo capítulo se determinará de modo mais expresso
as condições sob as quais é admissível a forma de governo
denominada democracia.

Para terminar este assunto, observe-se o improcedente e


ridículo de toda confissão democrática na solução de proble-
mas universitários, filosóficos, artísticos. Equivale a transladar
uma noção puramente política à uma ordem independente do

92
O Problema da Soberania

político. Esse é um erro em que nunca pode incorrer um bom


católico; porque implica a adoção, não já da concepção política,
senão de uma falsa teologia; o endeusamento do demos, ou da
liberdade, que passa a ser fonte de toda verdade e justiça.

DIREITO HUMANO DOS REGIMES POLÍTICOS

O conceito cristão da soberania fica assim justificado. Have-


remos de pensar então, com a ingenuidade que nos atribuem os
ideólogos, que na concepção católica Deus criou “as monarquias de
direito divino” e nomeou e nomeia os poderes da terra? Se Deus não
determina a forma e o sujeito da soberania, quem o determina?
Gravíssimo problema que foi objeto de profundas investiga-
ções por parte dos teólogos católicos, cujas soluções trataremos
de resumir da forma mais breve e fiel que nos seja possível.
É doutrina constante da Igreja que Deus não fixa forma deter-
minada de governo nem aponta nenhum sujeito que deve ser in-
vestido da soberania. Se nos impusermos o raciocínio que Santo
Tomás usa para chegar à conclusão de que a soberania vem de
Deus, compreenderemos plenamente a verdade desta doutrina.
Por que afirmávamos que a soberania vem de Deus? Porque
sem a soberania não é possível a sociedade política. Sem a so-
ciedade política não se atualizam as virtualidades sociais que
depositou Deus no seio da natureza racional. Logo, Deus, que
depositou estas virtualidades, instituiu também a sociedade
política e a soberania pelas quais aquelas se atualizam.
Por outra parte, se estas virtualidades sociais podem se
atualizar igualmente neste ou naquele outro regime político,
com esta ou aquela outra pessoa que detenha a soberania, se

93
CAPÍTULO 2

segue que a lei natural (ou Deus, seu autor) deixa à vontade e
ao arbítrio dos homens darem-se a forma política que mais
lhes agrade, e designar as pessoas que hão de os governar.
Esta é e foi a doutrina constante da Igreja, de modo que o
famoso Suárez, o autor do Tratado das Leis, pode escrever contra
Jaime da Inglaterra, que se dizia soberano de direito divino:

“Não existe rei ou monarca que tem ou tenha imediatamente de


Deus, ou por instituição divina, o principado político. Este é um
egrégio axioma da teologia, não considerado ridiculamente, como
disse o Rei Jaime, senão verdadeiramente, porque bem entendido,
está cheio de verdade e é mui necessário para entender os fins e os
limites do poder civil”8.

“Não é um mistério sobrenatural, nem coisa confiada à opinião,


senão sentença comum de todos os doutores”, afirma por sua parte,
o Santo Cardeal Belarmino. Doutrina, ademais, insinuada por
Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica, quando diz que o
“domínio e a autoridade foram introduzidos pelo direito dos homens”
(S. Th. II-II, q. 10 a. 10).
Se a lei natural não o determina, fica entregue ao arbítrio do
homem, único que pode o impor mediante uma lei humana, a
qual, como ensina Santo Tomás (I-II, q. 95, a. 2), deriva-se da lei
natural como determinação de coisas que a lei natural prescreve
com certa generalidade; assim por exemplo, “a lei natural manda
que aquele que peca seja castigado, mas que o seja com tal ou qual pena
é uma determinação humana da lei natural”.
Mas, quem promulgará esta lei? Não poderá ser um simples

8
N.C. F. Suárez. De legibus (1612).

94
O Problema da Soberania

particular ou um simples pai de família, porque a lei visa “primeiro


e principalmente o bem comum; ora, ordenar algo ao bem comum pertence a
toda a comunidade ou ao que rege a comunidade” (I-II, q. 90, a. 3). Mas
se, hipoteticamente, não há no caso quem a governe, haverá de
pertencer a toda a comunidade.
Logo, a lei política fundamental ou lei constitucional de uma
sociedade política, pela qual se estabelece sua forma determinada
de governo sempre é ditada pelo corpo social ou comunidade de
famílias que se constituem em sociedade.
Seria sumamente infantil imaginar que esta Lei se elabora e
promulga numa assembleia ou corte constituinte, onde se tenha
convocado toda a multidão ou acudam convencionais ungidos
pelo veredito popular.
As leis, e especialmente a lei constitutiva primeira e suprema
de um Estado, não são, nas boas sociedades, produto artificial de
uma convecção, por conspícuos que sejam os constituintes.
Santo Tomás, que não deixou sem solução nenhum pro-
blema verdadeiramente humano, ao explicar o processo de
elaboração de toda lei humana, indica precisamente como se
elaborou essa lei fundamental.

“Toda lei parte da razão e da vontade do legislador. Ora, como a


razão e a vontade do homem se manifestam por palavras, também
se manifestam por fatos; pois cada um costuma apreciar como bom
aquilo que faz. Se a lei pode se estabelecer pela palavra humana,
enquanto essa manifesta o movimento interior e o pensar da razão
humana, também pode se instituir pela repetição de atos que originam
o costume, já que o movimento interior da vontade e o pensamento
da razão se manifestam pelos atos exterior que se multiplicam”
(I-II, q. 97, a. 3).

95
CAPÍTULO 2

Logo, não serve fingir que a lei constitutiva da sociedade é


criada por manifestações verbais dos associados políticos. Ge-
ralmente os governos alcançam sua constituição jurídica pela
adesão tácita e constante do povo. Pouco importa conhecer
como e com que direito se introduziu um regime, pois desde
que a multidão social lhes presta tacitamente sua aprovação,
chegou a ser uma instituição legítima.
Observemos – já que a ocasião se apresenta – que mesmo que
essa lei fundamental possa se promulgar numa assembleia
especialmente convocada para isso, não se segue que deva
promulgar o que agrada aos constituintes.
Como toda lei deve ser uma ordenação da razão dirigida ao
bem comum, deve ser honesta, justa, possível, respeitando a natu-
reza, os costumes pátrios e as conveniências de tempo e lugar
(I-II, q. 95, a. 3). Se o corpo social dita a lei em virtude da lei
natural, deve respeitar suas prescrições. Exige-o a justiça, e
vai nisso sua conveniência; porque mal pode ser acatado quem
infringe a lei que o justifica e protege.
Nada mais injurioso, por isso, à lei eterna de Deus, e nada mais
pernicioso ao bem das coletividades, que as ímpias constituições
que vem se sucedendo desde aquela nefasta da Revolução
Francesa. Nada tampouco tão débil e frágil como elas, não só
porque contrariam os direitos de Deus e as exigências profundas
da natureza humana, senão porque, estereotipadas, legislaram
o momento passado, a loucura do dia, loucura que se perpetua
através de várias gerações e violenta a flexibilidade da natureza
humana que, não obstante sua unidade e perseverança universais,
deve se ajustar ritmicamente às mudanças de lugar e de tempo.

96
O Problema da Soberania

A comunidade, com sua adesão usual, é quem dá eficácia


jurídica ao regime de governo e realiza a lei constitucional de
um país. Essa adesão usual é como o testemunho de que o bem
comum foi alcançado nessa sociedade. Por mil circunstâncias
imprevisíveis, fortuitas, criam-se os regimes e os governos.
Desde que o bem comum temporal seja alcançado, a forma de gover-
no e o sujeito da autoridade merecem ser sancionados como
legítimos; a comunidade social com seu pacífico acatamento,
promulga esta sanção9.
É soberano o povo ao promulgar esta lei? No entanto, não
é no sentido de Rousseau, como se gozasse de uma autoridade
ilimitada, com faculdade de criar toda moralidade e direito;
deve respeitar, como dizíamos, os direitos imprescritíveis da
lei natural; deve recordar que a autoridade que exerce é um
poder recebido do Supremo Legislador no próprio ato da criação
do homem.
Mas excluída a soberania rousseauniana, não se poderia
imaginá-lo soberano no instante em que está legislando?
Poder-se-ia se imaginar que tem em si a soberania como entidade
recebida, e que logo, ao legislar, transfere-a a este ou aquele
determinado governo?
Assim parecem conceber as coisas o sábio Cardeal Belarmino10
e o eruditíssimo Suárez11. Mas usaram uma linguagem deficiente,
segundo a qual consideram os atos morais como se fossem
entidades físicas.

9
Leão XIII, Au Millieu des Sollicitudes, 18 de fevereiro de 1892.
10
De Laicis, L. III, c. 5.
11
De Legibus, L. III, c. 6.

97
CAPÍTULO 2

Nem sequer nesse instante pode ser soberano o corpo social,


porque a soberania, segundo se explicou longamente, com-
porta a faculdade de impor leis de forma efetiva (legislando,
julgando, executando e castigando), que assegurem o bem
coletivo da multidão congregada; ora, o corpo social não pode
exercer estas funções de forma que se assegure o bem comum
da multidão, não possui a soberania que se identifica com a
plena autoridade de governo.
Para que se entenda o alcance deste raciocínio farei notar que o
corpo social não pode se constituir numa assembleia permanente
que exerça todas as funções governativas, tais como promulgar
leis, velar por seu cumprimento, julgar sobre suas infrações.
Em outras palavras, não pode governar. Impede-lhe a própria
condição de sociedade política, não só pela amplitude dos que a
compõem e pela complexidade dos problemas de governo, senão
porque no caso de se dedicar a isso o corpo social, não poderão
seus componentes atender aos seus próprios e peculiares fins,
com isso desaparecia a razão de ser que deu nascimento a pró-
pria sociedade; a saber, alcançar a felicidade, que não podem
conseguir fora da sociedade. Porque essa felicidade, que brota
dos bens que proporciona o corpo social, está precisamente
em que os indivíduos congregados possam buscar seus próprios
e peculiares bens, sem impedimentos. Mas se todos devem
se ocupar de forma direta do bem comum, quando e como se
ocupam dos seus próprios bens? Este raciocínio demonstra
que de nenhuma forma pode a comunidade governar, ou o que
é o mesmo, exercer a soberania. A comunidade deve ser governada.
Se alguém acreditasse resolver a questão alegando que porque
não pode se governar a si mesma, a comunidade transfere aos

98
O Problema da Soberania

mandatários o governo, se lhe responde: não pode transferir o


que não possui, e não possui o que não pode exercer.
Isto é, que se a comunidade social não é capaz do exercício
pleno da soberania, não há razão para lhe atribuir, em virtude
da lei natural, a posse desse direito. Porque precisamente o
critério para estabelecer os direitos naturais é a necessidade
que de seu uso ou exercício se tem. Por que, por exemplo, se
diz que a propriedade privada é de direito natural? Por que
sem ela o homem não poderia assegurar a subsistência e a dos
seus, e assim outros mil exemplos. Mas se a comunidade ou o
povo nunca podem exercer a soberania, que é um poder com-
pleto de governar, como podem ter recebido pela natureza, esse
direito? Como pode a natureza lhe conceder um direito que não
podem nunca exercer? E se não tem esse direito, como podem
transferi-lo?
Ademais, este modo de entender a posse da soberania desvir-
tua o princípio em que se funda a doutrina dos teólogos citados
sobre o direito humano de qualquer regime político12.
Com efeito, se por uma parte se diz que a instituição humana
é causa determinante de qualquer forma de governo, e por outra
se afirma que o mesmíssimo poder (a soberania) transferido aos
governantes residia, por lei natural, no povo, a forma democrática
resulta ser de direito natural e como congênita, e diretamente
instituída por Deus; conclusão que nem eles admitem nem a
linguagem da Igreja permite, que sempre atribui igual direito e
justiça a uma e outra forma de governo. Pio X, em sua carta de
23 de agosto de 1910, condenando as teorias democratistas dos

12
Billlot, De Ecclesia, pág. 513

99
CAPÍTULO 2

católicos do Le Sillon, escreve textualmente: “Ao ensinar (Leão XIII)


que a justiça é compatível com as três formas de governo conhecidas, ensinava
também que, por este lado, não goza a democracia de especial privilégio”.
Daí que seja indispensável afirmar que nem sequer neste
instante o povo é soberano; formalmente soberano, com as
atribuições essenciais que comporta o conceito. No máximo, se
pode dizer que é radicalmente soberano, isto é, que tem a soberania
como em raiz, já que a capacidade de determinar o sujeito e
forma da soberania comporta em certo modo uma posse inicial
da mesma soberania.
Se de direito natural, reside no povo, não o poder público, se-
não tão somente a faculdade de o determinar “não é necessário fingir
na comunidade uma imaginária abdicação do poder; não se coloca por lei
natural um poder num sujeito que geralmente é inepto para a exercer; não
se estabelece a democracia como forma primitiva que se trocou depois por
outra, senão que todas são igualmente de direito humano, porque todas
devem igualmente ser determinadas por consenso da comunidade”13.
Para apreciar quão diferente é uma explicação da outra, é
útil o exemplo que aduz o mesmo teólogo, tomado do modo
como pode se adquirir uma propriedade.
Posso chegar a ser dono de um objeto ou porque alguém me
dá, e assim concebe Suárez a transmissão da soberania, ou porque
o legislador determina um modo que me constitui dono; por
exemplo, se em virtude da lei de usucapião começa-se a possuir
em domínio um campo que antes não possuía. Começaria a ser
proprietário, não porque o poder público me dá a propriedade,

13
Billlot, Ibidem.

100
O Problema da Soberania

senão porque determina um dos modos de adquirir o domínio.


Exatamente o mesmo que faz a multidão: ao legislar um regime
com preferência ao outro, não entrega a soberania nas mãos
deste regime; só determina a forma concreta em que há de
exercer esta soberania.
Para expressar essa doutrina com a linguagem da Escola,
diremos que a comunidade social é a causa próxima que con-
cretiza esta determinada sociedade política e este determinado
poder enquanto fixa a causa material (que famílias e quantas) e
a causa formal (que espécie de vínculo) desta sociedade política.
A soberania como tal é conferida imediatamente pela lei natural,
ou, o que é o mesmo, por Deus, enquanto ela exige que haja um
poder soberano que governe a comunidade política.
Seria ingênuo e ridículo imaginar a soberania como uma enti-
dade divina, depositada por Deus nos governantes. Como entidade
não existe em nenhuma parte, como não existem as disposições
da lei natural nem civil. Onde existe como entidade a proibição de
matar? Onde estão as prescrições de direito civil? Essa proibição
e essas prescrições existem, as leis naturais estão implicadas
na consciência de todo homem e gravadas em sua essência,
como se explicou no capítulo anterior. Mas não como entidades
que passam de um lugar a outro e se transferem de mão a mão.
Para não errar, é necessário transcender a imaginação, como
diz Santo Tomás, e possuir conhecimentos inteligíveis e não
puramente sensíveis.
De tudo que foi dito se desprende quão absurdo é falar da
soberania popular ou da soberania que reside no povo, ainda que
não fosse mais que no fugitivo instante em que usa de sua facul-
dade constitucional. Linguagem que, apesar de seu absurdo, a

101
CAPÍTULO 2

Igreja não proscreve, porque como Mãe, tolera grande liberdade


de ideias, enquanto nessas não se sistematizam erros essenciais.
Não assim, por certo, quando se considera a soberania como
algo inerente ao povo, inalienável, que continua residindo nele
mesmo depois de a ter delegado aos mandatários. Erro muito
comum – apesar de estar proscrito por Leão XIII e Pio X – entre
os católicos democratas. Esses imaginam a soberania como
“coisa de Deus”, derivada ao povo, que, por sua vez, delega-a
aos governantes sem aliená-la. Pio X, quando condena essa
ideologia, não só a rejeita como falsa quando faz inaliável a
soberania, senão também quando a faz remontar do povo aos
governantes, de baixo para cima. O parágrafo é longo, mas
merece ser transcrito integramente:

“Le Sillon coloca primordialmente a autoridade pública no povo, do


qual logo passa aos governantes, de tal maneira que, no entanto,
continua residindo nele. Mas Leão XIII condenou formalmente esta
doutrina em sua Encíclica Diuturnum Illud, sobre o Principado po-
lítico, onde diz: ‘Muitíssimos modernos, seguindo as pegadas dos
que no século passado se atribuíram o nome de filósofos, afirmam
que todo poder procede do povo, pelo qual os que o exercem na
sociedade não o exercem por direito próprio, senão por delegação
do povo e com a expressa condição de ser revogável pela vontade
do mesmo povo que lhe conferiu. Inteiramente contrário o sentir
dos católicos que fazem derivar de Deus o direito de mandar, como
de seu princípio natural e necessário’.

Continua Pio X:

“Indubitavelmente, Le Sillon faz descer de Deus esta autoridade, que


coloca primeiro no povo; mas de tal maneira que ‘se transmite de baixo
para cima, enquanto que na organização da Igreja o poder vem do alto
para baixo’ (Marc Sangnier, Discours de Rouen, 1907). Mas, prescindindo

102
O Problema da Soberania

da anomalia de uma delegação que sobe quando por sua condição é


natural que desça, Leão XIII refutou de antemão esta tentativa de con-
ciliação da doutrina católica com o erro do filosofismo. Porque, conti-
nua: 'importa advertir neste lugar que os supremos governantes podem
em certos casos ser eleitos pela vontade e decisão do povo, sem que
contradiga nem repugne a doutrina católica. Embora esta eleição de-
signe o príncipe, não lhe confere os direitos do principado nem delega
o poder, senão que determina por quem deve ser exercido.14'”

Os católicos democratistas, empenhados em cristianizar a


democracia moderna, isto é, em conciliar a doutrina católica com o
erro do filosofismo (Pio X), não têm nem sequer uma migalha que
desperdiçar deste precioso documento, escrito precisamente
para condenar suas pretensões. Porque os católicos do Le Sillon,
como os católicos democratistas que ainda abundam entre nós,
ardiam num vivo desejo de se fazerem simpáticos ao vulgo, à
multidão, ou como agora dizem, “às massas”, pelo qual lhes
parecia conveniente “dar de ombros ao que, não sendo essencial nem dog-
mático no catolicismo, é menos compatível com as aspirações modernas15”.
Como a comunidade social (no próximo capítulo veremos
que não entendemos por essa a massa amorfa de indivíduos,
senão a multidão hierarquicamente constituída em unidades
sociais) possui o direito de determinar o regime político legítimo
de um povo e de modificá-lo se assim exige o bem público, o
critério infalível da legitimidade de um governo é a adesão
tácita e pacífica que lhe presta a mesma comunidade. Se se
entendeu como a soberania vem de Deus, e em que sentido é

14
Encíclica Diuturnun illud.
15
N. Noguer, Razón y fe, octubre de 1910.

103
CAPÍTULO 2

possível dizer que reside originariamente na comunidade e


que está à serviço dela, não se poderá incorrer na inextricável
confusão de um conhecido professor de direito político que
explica deste modo a política tomista:

“Os Doutores da Igreja tinham assentado como dogma inquestionável


o princípio de que todo poder emana de Deus, e que o governo, que
encarna a vontade divina, é seu representante sobre a terra. Santo
Tomás reage contra essa concepção. Para ele, o fundamental no Estado
é a vontade da maioria, e neste sentido seus intérpretes e glosadores
pretendem ver nele um expositor da doutrina da democracia16”.

Na infortunada explicação deste autor, Santo Tomás aparece


como um vulgar católico democratista. Faltando-lhe iniciação
filosófica, não adverte que é coisa muito diferente criar a so-
berania por um contrato popular, segundo pretende Rousseau,
que admitir sua procedência divina e deixar ao arbítrio da
comunidade social a determinação da forma e do sujeito de
seu exercício.
Muito mais lamentável é sua confusão quando atribui ao
Santo Doutor ideias democráticas porque considera o bem comum
temporal, o bem da comunidade, como lei suprema que rege toda
a vida política. Se por democracia se entende tal coisa, Santo
Tomás, com a Igreja, professa a democracia, com um direito do
qual ninguém pode duvidar; mas é o caso de frisar que a lingua-
gem do Doutor Angélico não permite interpretações caprichosas.
É certo que para ele e para todos nós que fielmente segui-
mos seus ensinamentos não há outra soberania que a do bem

16
Mariano de Vedia y Mitre, Derecho político.

104
O Problema da Soberania

comum, já que toda autoridade política não tem outra razão de


ser senão para realizar o bem da comunidade, seus verdadeiros
e profundos interesses; mas esse bem pode ser proporcionado
tão eficazmente por um regime real ou aristocrático como por
um popular ou democrático. Ainda que, segundo veremos no
próximo capítulo, a democracia não o pode alcançar se não for
temperada por elementos aristocráticos ou oligárquicos.

DA OBEDIÊNCIA AO PODER

Explicado o conceito de soberania, sua origem e o sujeito


na qual reside, só resta examinar o acatamento que se deve ao
poder do Estado.
Se a autoridade vem de Deus, como demonstramos, nada mais
evidente que a obrigação inevitável de obedecer aos poderes
legítimos, sempre que legislem e ordenem dentro da esfera de
suas atribuições. Não impede a obediência que os poderes
desconheçam que imperam em virtude da autoridade que Deus
lhes confere, nem que sejam seus possuidores indignos; enquanto
estejam constituídos legitimamente em poder e não prescrevam
coisa injusta ou perversa, a obediência é obrigatória, mesmo no
foro da consciência. Quando em Roma ressoava a voz de São
Paulo: “Não há poder que não emane de Deus e quem resiste ao poder, a
Deus resiste, porque o governante é ministro de Deus”, imperava o
tirânico Nero. Logo, não é permitido desprezar o poder legítimo,
qualquer que seja a pessoa no qual resida17.

17
Leão XIII, Immortale Dei, de 01 de novembro de 1885.

105
CAPÍTULO 2

“Os cristãos rodeiam de religioso respeito a noção de poder no qual,


mesmo quando resida num mandatário indigno, veem um reflexo e uma
imagem da divina majestade. Tem pelas leis o justo respeito que lhes é
devido, não por causa da força e das sanções penais, senão pelo dever
de consciência, pois ‘Deus não nos deu espírito de temor’ (2 Tm 1, 7)”18.

A própria Sagrada Escritura ensina categoricamente


essa obrigação.

1. Toda pessoa – diz São Paulo (Rm 13, 1-5) – esteja sujeita
às potestades superiores, porque não há poder que não
provenha de Deus, e Deus estabeleceu quais são.

2. Por isso, quem desobedece a potestade, a ordem de


Deus desobedece. Por consequente, os que tal fazem,
eles mesmos se conduzem à condenação.

3. Mas os príncipes não devem ser temidos pelas boas


obras que são feitas, senão pelas más. Queres não temer
nada daquele que tem o poder? Pois age bem e merecerás
o louvor.

4. Porque o Príncipe é um ministro de Deus, posto para


teu bem. Mas se ages mal, treme, porque não em vão se
cinge a espada; sendo como é o ministro de Deus, para
exercer sua justiça, castigando aquele que age mal.

5. Portanto, é necessário que lhe estejais sujeitos, não só


por temor do castigo, senão também por consciência.

18
Leão XIII, Sapientia Christiana, de 10 de janeiro de 1890.

106
O Problema da Soberania

Mas se o poder legítimo merece obediência e respeito, nem


tudo que ordena deve ser cumprido.
Há casos em que se pode negar a obediência, como quando
se impõe uma lei injusta que viola um direito da pessoa humana
ou da família, sempre que, como ensina Santo Tomás, não se
oponha “o escândalo ou a turbação que poderia levar à violação da lei;
por cujo motivo o homem está obrigado a abandonar mesmo seu direito,
como se diz em São Mateus: ‘Se alguém te obriga a dar mil passos, faz com
ele dois mil; e ao que te tira a túnica, dá-lhe também o manto’ (Mt 5, 40)”.
(I-II. q. 96, a. 4).
Há casos em que se deve negar a obediência: “Há uma só causa
verdadeira para recusar a obediência, é o caso de um preceito manifes-
tamente contrário ao direito natural e divino, porque se trataria então de
violar seja a lei natural seja a vontade de Deus; o mandamento e a exe-
cução seriam igualmente criminosos. Se, portanto, se encontrasse alguém
reduzido à alternativa de violar as ordens de Deus ou a dos governantes,
conviria seguir o preceito de Jesus Cristo que quer que se dê ‘a César o que é
de César e a Deus o que é de Deus’ (Mt 22, 21)”19.
Deve-se recordar que nestes casos só é lícito desobedecer
às leis injustas e não negar toda obediência aos perseguidores,
como ensinava lindamente Santo Agostinho e repete Leão XIII:

“Alguns poderes da terra são bons e temem a Deus; outras vezes


não o temem. Juliano era um imperador infiel a Deus, um apóstata, um
perverso, um idolatra. Os soldados cristãos serviram a este imperador
infiel. Mas desde que se tratasse da causa de Jesus Cristo, não reco-
nheciam senão aquele que está no céu. Juliano lhes prescrevia honrar
os ídolos e incensá-los? Colocavam Deus acima do príncipe. Mas

19
Leão XIII, Diuturnum illud.

107
CAPÍTULO 2

se lhes dizia: ‘Alinhai-vos para marchar contra esta nação inimiga’.


Imediatamente obedeciam. Distinguiam o Senhor Eterno do senhor
temporal, e, contudo, em vista do Senhor Eterno, submetiam-se a
um tal senhor temporal20”.

Será necessário, às vezes, evitar a obediência não a uma


lei, senão a um conjunto de leis, talvez a toda uma legislação,
porque toda ela é contrária aos sacrossantos direitos de Jesus
Cristo e de sua Igreja. Tais, por exemplo, as famosas leis laicas
que na França motivaram uma declaração pública dos Cardeais
e Arcebispos, com data de 10 de maio de 1925, da qual alguns
trechos merecem ser reproduzidas aqui:

“As Leis do laicismo – diz a dita Declaração – são injustas, em primeiro


lugar, porque são contrárias aos direitos formais de Deus. Procedem
do ateísmo e a ele conduzem na ordem individual, familiar, social,
político nacional e internacional. Supõe o desconhecimento total de
Nosso Senhor Jesus Cristo e de seu Evangelho. Tendem a substituir o
verdadeiro Deus por ídolos (a liberdade, a solidariedade, a humanidade,
a ciência, etc.), a descristianizar todas as vidas e todas as instituições.
Os que inauguraram seu reino, os que o fortaleceram, estenderam,
impuseram, não tiveram outro objetivo. De fato, são obras da im-
piedade, que é a expressão da mais culpável das injustiças, como a
religião católica é a expressão da justiça mais alta.
São, ademais, injustas porque são contrárias aos nossos interesses
espirituais e temporais. Examine-se, e se verá como não há uma que
não nos fira, ao mesmo tempo, em nossos bens terrenos e nossos
bens sobrenaturais. A lei escolar priva os pais da liberdade que lhes
pertence e lhes obriga a pagar dois impostos: um para ensino oficial e
o outro para o ensino cristão; ao mesmo tempo, engana a inteligência
das crianças, perverte sua vontade e falsifica sua consciência. A lei

20
NC Leão XIII, Au milieu des sollicitudes, de 16 de fevereiro de 1892.

108
O Problema da Soberania

de separação nos despoja das propriedades que nos eram necessárias


e põe mil travas ao nosso ministério sacerdotal, sem contar que leva
consigo a ruptura oficial, pública, escandalosa, da sociedade com a
Igreja, a religião e Deus. A lei do divórcio separa os esposos, dá origem
a ruidosos processos, que humilham e rebaixam as famílias, dividem
e entristecem os filhos, faz que, total ou parcialmente, os matrimônios
sejam estéreis e ademais autoriza juridicamente o adultério. A
laicização dos hospitais priva os enfermos dos cuidados abnegados
e desinteressados, que somente a religião inspira, dos consolos
sobrenaturais, que dulcificariam seus sofrimentos e os expõe a morrer
sem sacramentos”.

Poder-se-iam desenvolver essas considerações até o infinito,


acrescentando e demonstrando como o laicismo, em todas as
esferas, contrairia tanto o bem público como o privado.
Portanto, as leis do laicismo não são leis. Não tem de lei mais
que o nome, um nome usurpado. Não são mais que corrupções
da lei, “violências ao invés de leis” diz Santo Tomás: Magis sunt
violentiae quam leges (S. Th. I-II, q. 96, a. 4). Ainda que só nos
prejudicassem na ordem temporal, em si não nos obrigariam
em consciência. Tales leges non obligant in foro conscientiæ. Não
poderiam nos obrigar mais que no caso em que se tivesse que
ceder a um interesse puramente terreno para evitar desordens
e escândalos.
Mas como as leis do laicismo atentam contra os direitos de
Deus, como nos ferem em nossos interesses espirituais, como
depois de ter arruinado os princípios essenciais sobre os quais
repousa a sociedade, são inimigas da verdadeira religião - que
nos ordena reconhecer e adorar, em todos os domínios, a Deus
e a Jesus Cristo, a aderirmos a seus ensinamentos, a nos sub-
metermos aos seus mandamentos, a salvar a todo preço nossas

109
CAPÍTULO 2

almas - não nos está permitido obedecê-las, temos o direito e a


obrigação de combatê-las e de exigir por todos os meios honestos
sua ab-rogação.

“As leis podem ser injustas porque contrariam o bem divino, como
as leis tirânicas que induzem à idolatria ou à qualquer outra coisa
que seja contra a lei divina; não é lícito de nenhum modo observar
tais leis, porque como está dito ‘deve-se obedecer a Deus antes que
aos homens’ (At 5,29)” (S. Tomás, S. Th. I-II, q. 96, a. 4).

A RESISTÊNCIA AO PODER ABUSIVO

A doutrina da Igreja, até aqui exposta, consagra a soberania


como divina em sua origem e manda obedecer e reverenciar os
legítimos governantes como ministros de Deus. Todo o contrá-
rio prega a doutrina do filosofismo e da revolução formulada
deste modo na celebérrima Declaração dos Direitos do homem: “A
insurreição é o mais sagrado dos direitos do homem”.
Alguém poderia abrigar o temor de que a doutrina da Igreja
teria consagrado também os piores excessos dos tiranos, sem
oferecer remédio para os casos em que um poder legítimo, em
sua origem, abusasse de tal modo da autoridade pública que
se usasse dela para oprimir os cidadãos ou também dos casos
possíveis em que um poder invasor arrebatasse o poder público.
Que cabe fazer num e noutro caso?
Seguindo os teólogos, podemos classificar em quatro as ati-
tudes que podem ser adotadas diante de um poder que, legítimo
em sua origem, converteu-se logo em tirânico.
Resistência passiva, que consiste em negar obediência às
leis injustas.

110
O Problema da Soberania

Resistência ativa legal, que consiste em exigir, por meios le-


gítimos (estejam ou não autorizados pela lei), a revisão da lei.
Resistência ativa, à mão armada, que consiste em se opor pela
força à execução de uma lei.
Rebelião, que consiste em tomar a ofensiva contra a autoridade,
de onde emana a lei.
Esta última atitude está sempre proibida; a primeira é obriga-
tória diante das leis que prescrevem atos contrários à consciência;
a segunda está sempre permitida. Sobra, portando, a terceira
atitude: é permitida? Quando?
A autoridade de Santo Tomás é decisiva na matéria presente.
Pergunta-se o Santo Doutor (II-II, q. 42, a. 2, ad 3) se seria
pecado de sedição livrar do regime tirânico um povo, e responde
que não.

“Há que dizer que o regime tirânico não é justo, porque não se ordena
ao bem comum, senão ao bem privado do governante, como ensina
o Filósofo. E por isso a ação contra tal regime não tem razão de
sedição; a não ser que se proceda tão desordenadamente contra tal
regime que a multidão venha a sofrer maior dano com a perturbação
deste regime em vista do que sofria antes. O sedicioso é ao invés o
tirano que alimenta discórdias e rebeliões no povo a ele sujeito, para
poder dominá-lo mais facilmente”.

Essa doutrina, corrente nos teólogos católicos, foi exposta


com singular força por Meyer no seu Institutiones juris naturalis21.
Diz assim, textualmente: “Podem existir circunstâncias em que a

21
Theodor Meyer. Institutiones iuris naturalis seu philosophiae moralis universae secundum principia
Sancti Thomae Aquinatis, ad usum scholarem.

111
CAPÍTULO 2

resistência ativa aos abusos da autoridade não seja contrária ao direito


natural”. E prova desta maneira:

“Assim, como todo indivíduo tem um direito inato de prover por sua
conservação, e portanto, de se defender à mão armada contra violência
de uma injusta agressão, sem contudo exceder as medidas que legi-
timam as necessidades de defesa, igualmente um povo, cuja unidade
social constitui uma pessoal moral, deve necessariamente estar pro-
vido pela natureza do mesmo direito essencial. O direito natural de
defesa se estende, com efeito, sem exceção, à toda criatura racional, e,
portanto, a pari, ou a fortiori, a uma personalidade coletiva. Portanto,
todas as vezes que um abuso tirânico do poder, não transitório, mas
constante e tiranicamente perseguidor, tiver reduzido o povo a ex-
tremos tais que manifestamente sua salvação esteja em perigo (por
exemplo: se se trata de conjurar um perigo iminente para o Estado, ou
bens supremos e essenciais da nação, e, em primeiro lugar, de salvar de
uma ruína certa o tesouro da verdadeira fé), então, por direito natural,
é permitido opor uma resistência ativa a uma opressão desta natureza,
na medida que o exige a causa e as circunstâncias. A Escritura nos
apresenta um ilustre exemplo deste modo de defesa na história dos
Macabeus. Qualquer grupo de cidadãos, mesmo sem constituir uma
pessoa moral completa, nem uma unidade social orgânica, em virtude
do direito pessoal inerente a cada pessoa, pode neste caso de extrema
necessidade pôr em comum as forças de todos para opor, a uma
repressão comum, a trave de uma resistência coletiva”22

Até aqui Meyer. Sem absolutamente diminuir em nada o


valor do argumento de Meyer, cremos que a resistência à mão
armada pode derivar-se dos direitos primários que competem
a todo indivíduo humano. Porque a lei natural, segundo vimos no
primeiro capítulo (I-II, q. 96, a. 2), dá direito ao homem de buscar

22
Th. Meyer. Instituciones juris naturalis, 1900, T. II, N° 531 y 532.

112
O Problema da Soberania

o bem da própria conservação, da família e da sociedade. Ora, se


esses bens são concedidos pelo direito natural e há casos em
que um regime ou um governante se opõe sistematicamente a
eles, o próprio direito natural concede ao homem a faculdade,
e mesmo lhe impõe a obrigação, de defender eficazmente esses
direitos contra os atropelos do regime e do tirano.
Nem se queria sustentar, invocando a paciência cristã, que
quadra melhor com os preceitos evangélicos tolerar as injúrias
do tirano e esperar resignadamente que Deus ponha remédio
quando for do seu agrado.
Porque se é certo que poderia chegar a ocasião de que de tal
modo se entronizasse um regime tirânico, como vimos recente-
mente na Rússia e México, que de nenhum modo possam se
libertar os cidadãos, e em tal caso nada melhor que tolerar as
injúrias e dirigir o coração a Deus, pondo n´Ele toda a esperança;
mas enquanto não se verifique esta condição de irremediável,
enquanto possam os cidadãos impedir que ela se realize, como
aconteceu com o heroico movimento encabeçado pelo Caudillo
na revolução espanhola, devem todos que amam seu próprio
bem, o dos seus e o da pátria, se reunir como novos macabeus e
se decidir ao combate dizendo: “Se todos nós fizermos como fizeram
nosso irmãos, e não lutarmos para defender nossas vidas e nossa lei contra
as nações, em breve tempo acabarão conosco” (1 Mc 2, 40-41).
Devem fazer não tanto pela defesa do próprio bem, porque
a ela podem renunciar, senão pelo bem da família e da sociedade;
porque assim como não seria bom pai aquele que, podendo,
não usasse da força para impedir a violação ou o abuso de suas
filhas, tampouco seria bom cidadão aquele que, podendo, não
salvaguardasse com o uso da força a nação em perigo.

113
CAPÍTULO 2

DA ILEGITIMIDADE DO PODER

Até aqui consideramos a atitude que corresponde adotar


frente aos poderes legítimos, tanto nos casos em que ditos po-
deres procedam dentro de suas atribuições como quando se
apartam delas. Mas, é sempre legítimo o poder? Que critério
seguir para discernir a legitimidade? E em caso de um poder
ilegítimo em sua origem, que posição adotar frente a ele?
Fácil é responder à primeira pergunta. Porque nem sempre
um poder possui a legitimidade de origem, embora nada lhe
seja mais necessário, como escreve magnificamente Balmes:
“Todo poder no primeiro momento de sua existência, antes de agir,
antes de exercer algum ato, o primeiro que faz é proclamar sua
legitimidade. A busca no direito divino ou humano, ele a funda no
nascimento ou na eleição, a faz derivar de títulos históricos ou do
súbito desenvolvimento de extraordinários acontecimentos, mas
sempre vem parar no mesmo: na pretensão da legitimidade; a palavra
fato não sai de seus lábios; o instinto de sua própria conservação está
lhe dizendo que não a pode empregar e que lhe bastaria fazê-lo para
desvirtuar sua autoridade, para minar seu prestígio, para ensinar o
caminho da insurreição, para se suicidar (...)23”.

Qual critério último e definitivo para conhecer a legitimidade?


Indicamo-lo anteriormente. A comunidade, com sua adesão usual, é
que dá eficácia jurídica ao regime de governo e realiza a lei constitucional
de um país. Essa adesão usual é como o testemunho de que o bem comum
foi alcançado nessa sociedade.
Escrevendo aos Cardeais franceses, Leão XIII diz:

23
J. Balmes, El protestantismo comparado con el catolicismo en sus relaciones con la civilización europea.
Vol. II, c. LV, España, 1842. NC. Indicado no original como 1. IV, c. v.

114
O Problema da Soberania

“Formas políticas adotadas se substituem por outras. Essas mudanças


estão muito longe de serem sempre legítimas em sua origem; é
muito difícil que o sejam. Contudo, o critério supremo do bem comum
e da tranquilidade pública impõe a aceitação destes novos governos
estabelecidos de fato em lugar dos governos anteriores, que de fato
não existem mais”24.

Que posição cabe adotar frente a estes poderes de mero fato,


enquanto não conseguem se legitimar pela adesão usual que
lhes concede a comunidade? A resposta é clara e terminante:
não se deve obediência a eles, porque não sendo legítimos, não
têm direito de mandar. Mas como, por outra parte, os cidadãos
têm deveres para com a sociedade em que vivem, devem cumprir
as coisas justas que este poder ilegítimo manda quando assim o
exige o bem comum da sociedade.
Escreve Suárez, o eruditíssimo teólogo jesuíta:25

“Acontece que, quando a república não pode resistir ao tirano, o


tolera e se deixa governar por ele, porque ser por ele governada é
mal menor que carecer de toda coação e direção”.

E o célebre Cardeal Mercier, quando da ocupação da Bélgica


pelas tropas alemãs em 1914, estimando como um ultraje não
só a invasão, senão a constituição do governo alemão no Estado
belga, declarou desta maneira a obrigação dos cidadãos para
com o poder de fato:

“Considero como uma obrigação de meu cargo pastoral definir nos-


sos deveres de consciência frente ao poder que invadiu nosso solo

24
Carta de Leão XIII aos Cardeais franceses em 03 de maio de 1892.
25
De Legibus, c. X.

115
CAPÍTULO 2

e que momentaneamente ocupa sua maior parte. Esse poder não


é uma autoridade legítima. Portanto, no fundo de vossa alma não
lhe deveis nem estima, nem adesão, nem obediência. O único poder
legítimo na Bélgica é o que pertence ao nosso rei, ao seu governo,
aos representantes da nação. Só ele é para nós a autoridade; só
ele tem direito ao afeto de nossos corações, à nossa submissão. Os
atos de administração da autoridade ocupante careceriam por si
mesmos de vigor, mas a autoridade legítima ratifica tacitamente
quando justifica o interesse geral, e só desta ratificação lhes vêm
todo seu valor jurídico (...)”

Mas frente a estes poderes ilegítimos de origem, se se


pode resistir, deve-se fazer; e essa resistência pode chegar
até o tiranicídio.
O que se deve pensar do tiranicídio? É lícito a uma pessoa
privada, isto é, a um simples membro da comunidade, matar o
tirano? Para resolver essa situação, distinguem os teólogos entre
o tirano de usurpação (tyrannus tituli, usurpationis) e o tirano de
governo (tyrannus regiminis), ou seja, o usurpador que se apodera
do poder pela força e o governo legítimo que exerce um domínio
despótico sobre seus subordinados. E dizem que o primeiro
qualquer particular pode matar, de acordo com a doutrina de
Santo Tomás, que comentando o elogio feito por Cícero aos as-
sassinos de César, declara: “Túlio fala do caso em que um homem se
apodera do poder pela força, contra a vontade dos cidadãos, obrigando-os
violentamente; e então, quando não se pode acudir a um superior para
que faça justiça, aquele que, para livrar a pátria, mata o tirano, merece
louvor e recompensa” (In II Sent., d. 44, q. 2, a. 2).
No que se refere ao tirano de governo, só autorizam os teólogos
o assassinato quando se age com o poder público, ou seja como
mandatário da comunidade de acordo com a doutrina de Santo

116
O Problema da Soberania

Tomás, que diz: “Se a tirania chegou a ser intolerável, seria perigoso para a
sociedade e seus mandatários que os particulares se arrogassem o direito de
atentar contra a vida dos governantes, mesmo que fossem tiranos... contra a
crueldade dos tiranos não deve agir a iniciativa presunçosa dos particulares,
senão a autoridade pública”26.
Podemos terminar este capítulo dizendo que a doutrina
católica, ao fazer derivar de Deus, fonte de todo ser, o im-
pulso social que move o homem a viver politicamente, justifica
a soberania, aponta seus limites e a orienta para o bem do
homem como seu objeto próprio. Pelo contrário, Rousseau,
precisamente porque faz arrancar do puro arbítrio humano o
impulso que determina a vida política, não pode justificar a
soberania, e se vê forçado a concebê-la como uma pura força
sem direção, e por isso, com uma nocividade infinita.
A soberania não é um absoluto; mas isso mesmo constitui seu
valor e dignidade. Porque, como poderia um absoluto reger
proximamente um ser finito, que se desenvolve no contingente?
Porque vem de Deus, está limitada em sua perfeição, e deve se
limitar a buscar o bem do homem-indivíduo e do homem-família
agrupado na coletividade.
Essa razão de bem comum especifica sua razão de ser. Daí que
se poderia se condensar toda uma política cristã dizendo que
é a soberania do bem comum. Porque sobre essa razão do bem
comum descansam os direitos e deveres do poder público assim
como dos particulares; a legitimidade do poder como o direito de
insurreição dos povos; essa autoriza as diversas formas ou regi-
mes políticos quando mantém a integridade e inviolabilidade dos

26
NC. No original, sem indicação da citação Cf. De Regimem Principum, L.I, c.7.

117
CAPÍTULO 2

direitos da nação através das mudanças dos homens e das coisas;


essa, enfim, fixa o limite de todos os direitos e obrigações de todos
que convivem na cidade para que este bem - que é “maius et divinius
quam bonum unius”( S. Th. II-II, p. 39, a. 2), que é maior e mais divino
que o bem de um particular, seja sempre salutarmente alcançado.

118
CAPÍTULO 3

Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

𝔼 studou-se até aqui a lei fundamental que rege a vida política


e que não é outra coisa senão sua definição essencial: A so-
ciedade política é um conjunto de unidades agrupadas pela ação
de um poder soberano em vista do bem comum temporal. Tal é
a ordenação essencial que Deus, legislador supremo, impõe à
sociedade política. O poder, que tem como orientação concreta o
bem comum temporal da coletividade social, está exclusivamente
à serviço da nação, ou seja, do povo hierarquicamente constituído.
O Estado tem, pois, direitos sobre a coletividade social; direi-
tos condicionados proximamente pelo bem comum temporal e
remotamente pela perfeição própria da pessoa humana. Para que
esses direitos se tornem efetivos, o Estado deve impor mandatos

119
CAPÍTULO 3

que devem ser acatados em virtude da justiça, que recebem


neste caso o nome de legal. Assim, como o cidadão se subordina
ao Estado com o propósito de alcançar seu bem próprio, a justiça,
neste caso distributiva, funda os direitos que o cidadão reivindica
frente ao Estado.
Não poderia surgir um conflito entre os direitos do Estado e
os direitos dos cidadãos, entre a justiça legal e a distributiva?
Impossível, porque o bem harmoniza um e outro direito, uma
e outra justiça. O cidadão se submete para alcançar seu bem e, por
sua vez, o Estado não pode lhe impor senão o que conduz a este
mesmo bem. No entanto, a realidade nos diz que os conflitos
se multiplicam diariamente e são frequentes os casos em que
o Estado, representado pela espada dos militares, tem que sair
em sua defesa contra os desmandes do povo ou a própria nação
tem que desalojar seu governo para garantir sua existência.
Como explicar conflitos reais teoricamente impossíveis?
Como anular ou ao menos reduzir tais anomalias? Se o conflito
surge, uma de duas: ou o Estado perdeu a noção de suas funções
ou a coletividade do seu bem próprio.
Como no próximo capítulo determinaremos as funções da
autoridade, aqui nos reduziremos a indicar as linhas gerais
da estrutura que devem ter a sociedade e o Estado para que os
conflitos sejam impossíveis ou ao menos difíceis.

LIBERALISMO E SOCIALISMO

Se é certo que muitos dos conflitos entre a liberdade e a au-


toridade que registra a história devem ser atribuídos à néscia
prepotência dos que mandam, estes mesmos que, esquecendo

120
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

sua razão de servos e ministros de Deus postos à serviço da co-


letividade, não pretendem senão a satisfação de seus interesses
particulares ou do partido. Mas não é menos certo que na atuali-
dade a maioria dos conflitos são provocados pela desarticulação
em que se encontra o corpo social, por ter perdido a consciência
de sua unidade, e a desorbitação do indivíduo que, regido por seus
instintos infrarracionais, despreza tudo que não seja seu egoísmo.
Porque o individualismo liberal, depois de romper a ordem
individual, destruiu a ordem natural da vida política, hoje é
impossível que qualquer governo, por extraordinárias que
finjamos suas qualidades, governe sem que produza um conflito
e sucumba.
Uma rápida síntese histórica da ação libertária da idade mo-
derna no seu afã de destruir a organização criada pela Igreja,
nos fará entender, mostrando-nos ao mesmo tempo o abismo
que há entre a concepção moderna e a tradicional com respeito
a estruturação estatal da vida política.
O cristianismo realizou o tipo ideal de sociedade política, no
qual se harmonizavam os direitos de Deus e os de César, os do
Estado e da nação, os da liberdade e da autoridade. A sociedade
política medieval é um organismo vivo em plenitude de vida,
organismo natural transbordante de saúde, porque era obra
da sociedade espiritual que com seus dons do Céu inspirava e
criava desde dentro a ordem normal da vida humana.
Tipo ideal que não pode realizar senão a Igreja. Porque se
as instituições políticas surgem por uma postulação das pró-
prias raízes da vida humana (como se explicou, contra L'Action
Française), e se, por outra parte, é impossível na economia atual
assegurar a integridade das virtudes morais sem a influência

121
CAPÍTULO 3

sobrenatural, como ensina o Concílio Vaticano I1, nenhuma


força humana pode realizar uma sociedade política que, por
virtude das próprias instituições, seja sã.
É, pois, necessária a sociedade espiritual para a constituição
íntegra de uma sociedade política. E assim, só a Idade Média, a
denegrida Idade Média, cada dia mais conhecida e admirada,
realizou o tipo normal da sociedade política. Mas este admirável
organismo, pela ação corruptora aninhada nas entranhas do
homem, vai se perdendo, e como acontece nas corrupções de
todos os seres, as formas, princípio de ser e perfeição, vão
desaparecendo em escala descendente.
O egoísmo que animou Felipe (o Belo) em suas contendas com
Bonifácio VIII começa a minar os fundamentos da Europa cristã,
e o homem, com o pretexto de se unir mais diretamente a Deus,
rompe o vínculo que o une com a Igreja e se atomiza assim no
individualismo religioso do protestantismo. Desvinculado dos
dons sobrenaturais que garantiam sua integridade natural,
reclama liberdade para sua inteligência e para sua vontade, e
rompe, com o subjetivismo da razão pura e o autonomismo
da razão prática, os vínculos que o atam à verdade e à justiça.
Desprendido de Deus, da verdade e da justiça, o liberalismo de
Rousseau se encarrega de libertar o homem da soberania política,
fazendo dela uma criação popular; da família, reduzindo-a à con-
dição de uma simples sociedade humana, igualitária e dissolúvel;
da profissão e da corporação, deixando a um livre acordo entre
o patrão e o operário, a determinação das condições de trabalho.
Por essa sucessiva ruptura de vínculos, origina-se a sociedade

1
Cfr. Concílio Vaticano I, Ses. III. (24 de abril de 1870).

122
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

liberal que podemos definir deste modo: uma soma de indivíduos


desatados de todos os laços sociais que, sob a ação de um po-
der por eles condicionado mediante o sufrágio universal, se
conglomeram numa absoluta igualdade quantitativa de todas
as liberdades individuais.
Observamos os caracteres que dão fisionomia à sociedade
liberal, um conjunto de indivíduos sem vínculos social: indi-
vidualismo.
Como nenhuma orientação dirige este conjunto, isto é, como
na realidade não há vontade popular, excogita-se o sufrágio uni-
versal – uma computação aritmética de vontades – para imprimir
um impulso a essa plebe indiferenciada: Democratismo.
Esse impulso, como é resultante de uma sociedade de vonta-
des iguais e livres, garante ilusoriamente o objetivo supremo da
sociedade liberal, a saber, que todos os associados vivam dentro
do conjunto social iguais e livres, isto é, isentos de laços que os
sujeitam: Liberalismo.
Individualismo, democratismo e liberalismo: eis aqui os três
elementos que se compenetram na formação da sociedade liberal.
Uma sociedade assim desorganizada devia possuir uma es-
pantosa energia de destruição e a história nos diz que, lançados
os homens à livre concorrência, surge na ordem econômica o
proletário e na ordem política “o monarca povo, o mais duro, o mais
despótico, o mais intolerável de todos os monarcas”, como escreveu
Joseph de Maistre2.
A sociedade liberal – desatando o homem dos vínculos que o
protegiam – escravizou-o no religioso às divindades da Ciência,

2
Étude sur la souveraineté, L. II cap. 6.

123
CAPÍTULO 3

do Progresso, da Democracia; no intelectual, submetendo-o aos


mitos do materialismo evolucionista; na moral, ao sentimen-
talismo romântico; no econômico, ao despotismo do dinheiro;
no político, à oligarquia dos maiores patifes. No estúpido século
XIX chega ao seu ápice o desenvolvimento desta sociedade que
adora, em postura romântica, tão néscios e desolados ídolos.
Ninguém sentiu mais dolorosamente os efeitos da desor-
ganização social e da glorificação do indivíduo, que o próprio
indivíduo. Porque ao desatar seus vínculos familiares e profis-
sionais, viu-se entregue às suas próprias forças e tragado como
num turbilhão pela força onipotente do capital moderno.
Cheio de raiva em sua impotência, o proletário, que é o tipo
normal resultante do regime liberal, se agrupou então indife-
renciado, como se amontoam num saco os grãos de milho, para
clamar contra esse regime burguês que, apesar de sua ideologia
sentimental e igualitária, deu nascimento ao mais exorbitante
antagonismo de classes. Guerra a desigualdade social! – foi o
grito. E, conforme essa nova postura, designou-se ao Estado a
missão soberana de nivelar os estômagos de todos os cidadãos.
O Estado é, desde então, um enorme monstro encarregado de
subministrar igual ração de comida, de trabalho e de instrução
a todos os indivíduos que vivem absorvidos em suas vísceras.
Desígnio satânico, inconcebível se a Rússia não fosse o ex-
perimento! O socialismo é uma enorme máquina composta de
engrenagens múltiplas e minúsculas, os indivíduos, sem hie-
rarquias ao menos teóricas; todos subordinados totalmente à
maior eficiência da máquina. Aquilo que for produtivo se aceita
e absorve; o improdutivo, como a religião, elimina-se.
Entenda-se que não falo do nosso socialismo burguês, cópia

124
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

do socialismo francês de Jean Jaurés. Na realidade, esse não


é mais que um liberalismo sentimental que se anexou numa
confusa mescla o ódio ao católico e as teses sobre a socialização
da terra e dos meios de produção.
O socialismo autêntico é anti-individualista, antidemocrata e
anti-libertário. A soberania panteísta que o liberalismo atribui ao
povo, o socialismo atribui à classe proletária. Para ele – na expres-
são de Berdiaeff – existe uma classe eleita, uma classe-messias,
pura de toda cultura chamada burguesa, pura deste pecado origi-
nal que gera toda a história, pecado que constitui a exploração do
homem pelo homem e da classe pela classe. Essa classe-messias
é o próprio embrião da verdadeira humanidade, da humanidade
futura que não conhecerá exploração.
Mas a soberania não corresponde ao proletário real, mas ao
proletário ideal. Só uma minoria privilegiada conhece a verda-
deira missão do proletariado, e essa minoria deve levar à vitória o
proletariado efetivo, mesmo que seja sujeitando-o, às vezes, a vio-
lências inauditas. O socialismo absorve o homem inteiro – corpo
e alma – “quer adestrar as almas à mecânica, discipliná-las, de modo que
se sintam confortáveis no formigueiro humano, que amem a vida de quartel,
que renunciem à liberdade de espírito”3.
Existe irredutibilidade entre o liberalismo e o socialismo?
Nenhuma. Em primeiro lugar, porque o liberalismo conduz ao
bolchevismo, como indicamos. Em segundo lugar, porque uma
e outra ideologia humana é, qualitativamente, considerada do
mesmo modo.

3
Berdiaeff, Un Nouveau moyen âge.

125
CAPÍTULO 3

Um e outro privam de religião os indivíduos; liberalismo


porque, por força da liberdade, nele impera a ideia laica; o so-
cialismo porque, em nome de materialismo, só faz possível a
confissão ateia. E ambos privam do moral; porque o liberalismo
rompe os freios que detém os instintos, e o socialismo impulsiona
todos os movimentos irracionais.
Também destroem a família: o liberalismo, porque a entrega
à regulamentação dos contraentes; o socialismo, porque legisla o
amor livre. Destroem as associações e corporações: o liberalismo,
em nome da liberdade que desata; o socialismo em nome do Esta-
do que só ata. A propriedade: o liberalismo, porque ao proclamar
a livre concorrência deixa a multidão faminta escravizada em
mãos de uns poucos capitalistas; o socialismo, porque, em nome
da igualdade, retira-a de todos por meio da oligarquia bolchevista.
Resumindo: o Estado desumano que decreta o socialismo a
fim de nivelar todos os estômagos do universo, o liberalismo o
realiza pela lógica mesma da ideia liberal. Um impõe a desordem
em virtude da lei; o outro, ao não legislar a ordem, faz com que a
desordem impere. Se no liberalismo, o Estado é uma caldeira
cheia de moléculas que fervem ao calor das próprias paixões,
sem sofrer pressão externa, no socialismo fervem pela ação
exclusiva da ditadura proletária. Não é possível conceber uma
diferença mais acidental. Leia-se La Russie nue, de Panaït Istrati
e se comprovará que não há vício da sociedade liberal que a
Rússia não o produza reagravado.
Liberais e socialistas são filhos de um mesmo pai, o lacaio
Jean-Jacques. Aqueles querem indivíduos livres ainda que
morram de fome; estes, preferem-nos saciados (na prática
também os matam de fome), ainda que vivam escravizados. Meio

126
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

irmãos irreconciliáveis, amamentados na trilogia revolucio-


naria, com a diferença de que, a um embriaga a liberdade, e ao
outro a igualdade.

REGIME CORPORATIVO

Como seus pais, que em 1791 arrasaram as famosas corpo-


rações, nem um nem outro querem a existência de um corpo
social – distinto e anterior ao Estado – formado de células vivas
que se diferenciam e organizam em tecidos, órgãos e aparatos.
No entanto, a reconstrução destes organismos é de essencial
importância para o estabelecimento de um regime normal de
vida político-social. O indivíduo não se insere imediatamente
na vida pública, senão que, em primeiro lugar, agrupa-se na
família, no município, e pelo município na província ou região,
e pela região na nação.
Paralelamente, em razão dos interesses comuns que tem com
os companheiros de trabalho do mesmo ofício ou profissão, se
criam outros organismos naturais, indispensáveis ao menos,
para que os indivíduos possam alcançar uma suficiente indepen-
dência econômico-social a que seu trabalho lhes dá direito; sob
este aspecto se agrupam primeiramente na oficina e pela oficina
na corporação, e pela corporação nos corpos profissionais ou
gremiais, e pelos corpos profissionais na nação.
Dupla série de organismos cuja vida, em seus constitutivos
essenciais, está regulada por disposição da lei natural que ne-
nhum poder humano pode modificar a seu arbítrio, senão que
deve acatá-la religiosamente porque vem de Deus, autor do
direito natural.

127
CAPÍTULO 3

É necessário destacar o caráter divino-natural destes grupos


sociais, precisamente porque revolta os instintos pagãos de todos
os ideólogos.
Reafirmada a existência do corpo social diferenciado, hie-
rárquico, autônomo, fica garantida a liberdade e assegurada
a autoridade. A liberdade que não é a isenção de laços como
imaginou o liberalismo, mas o respeito dos próprios direitos,
que não pode se garantir se não há vínculos que o protejam.
Como demonstrou La Tour du Pin, essa liberdade existia na
cidade cristã.

“O monarca em seu trono, o magistrado na sua cátedra, o comerciante


em seu negócio, o artesão na sua oficina, o agricultor em seu arado,
do mesmo modo o bispo em seu cargo pastoral, cada um se sentia
protegido ao mesmo tempo que obrigado pelas regras de seu estado,
regras nascidas do costume, isto é, da forma mais livre e mais certa
de consentimento. Cada um se movia livremente no corpo social
ao qual pertencia e não excentricamente como se tivesse caído da
lua. E esses mesmos corpos, por sua vez, se moviam por si mesmos
em suas órbitas, com a mesma liberdade, uns e outros. Era tal a
formação do corpo social, que a liberdade se situava no livre jogo
de seu funcionamento e não na potestade de criar o desconcerto
semeando a desordem4”.

O regime corporativo é, precisamente, aquele que quer


promover a organização de todas as forças sociais; fomenta
seu desenvolvimento vital e fecundo na medida em que propor-
ciona seu concerto e harmonia. Na ordem econômica, por meio
da corporação, substitui a liberdade desenfreada do capital,
do trabalho e a luta de interesses que daí se deriva, com regras

4
Vers un ordre social chrétien: jalons de route, (1882-1907).

128
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

variáveis ditadas pelo próprio corpo profissional que asseguram


a lealdade e a segurança do ofício. Contra a liberdade desenfreada
que proclama o liberalismo, invoca o direito de associação ao
operário, a fim de o defender contra a exploração capitalista.
Contra o princípio socialista da luta entre o capital e o trabalho,
exige a colaboração de um e outro em benefício da própria
classe trabalhadora.
O regime corporativo é a organização do trabalho mais
conforme aos princípios da ordem social cristã e mais favorável
à prosperidade geral.
Como pelo momento é quase quimérico pensar numa orga-
nização corporativa da sociedade, pode-se ir tendendo a ela por
meio do sindicalismo e da organização das profissões.

REPRESENTAÇÃO PROFISSIONAL

A estruturação que esboçamos ao afirmar a constituição da


família, da comuna, da região, por uma parte, e da oficina e da
corporação, por outra, com direitos inalienáveis que recebem
sua eficácia da própria lei natural, é puramente social.
No entanto, como o poder supremo que governa o corpo
social necessitará, para um governo mais eficiente e harmonioso,
conhecer quais são as imposições que deve fixar ao corpo social,
segue-se que é necessário, ou ao menos muito conveniente que
haja no Estado, qualquer que seja sua organização – monárquica,
aristocrática ou democrática – um órgão que expresse com fideli-
dade os desejos da coletividade social e dê seu consentimento às
leis que se lhe imponham.
Esse órgão, que representará realmente o país, terá caráter

129
CAPÍTULO 3

estatal ou político, pois sua missão será colaborar, ainda que


só seja representando, no governo efetivo da nação.
Como deve se constituir este órgão? Estando composta a
nação por unidades, não de pessoas individuais, mas de grupos
sociais, são esses grupos sociais que devem constituir o órgão
que os represente. O âmbito da atividade política dos indivíduos
está determinado pelo grupo social a que pertence. Um chefe
de família – único que tem direito ao voto – não possui, como
tal, faculdade para determinar o governo provincial; sua facul-
dade só alcança a comuna. As comunas poderão determinar,
por sua vez, o poder central. Igual processo deve se seguir na
série profissional. O artesão, o operário da fábrica, o agricultor,
tem reduzida sua atividade política dentro da corporação; as
corporações como tais determinarão a autoridade dos corpos
profissionais ou gremiais, e apenas esses, as nacionais.
Desta forma, ademais de se reduzir ao justo a ingerência po-
lítica dos cidadãos, essa não vai além do que sua competência
alcança. Um chefe de família poderá conhecer convenientemente
o modo de organizar a vida comunal, mas dificilmente alcançará
entender as necessidades nacionais, já que isso depende de
inúmeros fatores que só compreenderá sem deformações
aquele que estiver à frente dos grandes corpos que integram
imediatamente a nação.
Alcançar-se-á, assim, a formação de um órgão que represente
realmente o país, pois a dupla linha família-comuna-província
e oficina-corporação-corpo profissional, abarca os interesses
todos da nação.
Observe-se bem que ao propiciar esta representação de in-
teresses faz-se em geral, sob o aspecto do que essencialmente

130
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

reclama o bem temporal, sem determinar, no entanto, suas


condições concretas, que só podem depender das condições
geográficas e históricas de cada povo.
Todas estas particularidades oferecem tarefa abundante
para uma escola política que, neste estudo, deve seguir um
método preferencialmente empírico.
O fato indubitável que há de se destacar é que o povo deve
forjar as leis; mas não chamamos povo uma geração humana
que rompeu todos os vínculos que a uniam com suas gerações
maternas; que nem sequer chega a ser uma realidade; porque
vive desintegrada e dispersa; “o povo é um grande conjunto histórico
que compreende todas as gerações ligadas, não só as viventes senão as
do passado, as de nossos pais e avós5”. Por isso, há que unir a atual
geração, organizando-a politicamente pela representação profis-
sional, e há que a unir com as gerações anteriores, com as forças
tradicionais do país, fazendo desse órgão representativo um
organismo que recolha toda a cidade do passado, continuando-a.

SUFRÁGIO UNIVERSAL

Nada mais deplorável, ao invés, e oposto ao bem comum


da nação, que a representação em base do sufrágio universal.
Porque o sufrágio universal é injusto, incompetente, corruptor.
Injusto, pois nega por sua natureza a estruturação da nação
em unidades sociais (família, oficina, corporação); organiza
numericamente fatos vitais humanos que se subtraem à lei do

5
Berdiaeff, Un Nouveau moyen âge.

131
CAPÍTULO 3

número; funda-se na igualdade dos direitos quando a lei natural


impõe direitos desiguais: não pode ser igual o direito do pai e do
filho, do professor e do aluno, do sábio e do ignorante, do honrado
e do ladrão. A igual proporção, ao invés – isso é justiça – exige que
a direitos desiguais se imponham obrigações desiguais.
Incompetente, por parte do eleitor, pois ele com seu voto
resolve os mais transcendentais e difíceis problemas religiosos,
políticos, educacionais, econômicos. Da parte dos ungidos com
veredito popular, porque se lhes dá carta branca para tratar e
resolver todos os problemas possíveis e, em segundo lugar,
porque devem ser eleitos, de ordinário, os mais hábeis em seduzir
as massas, ou seja, os mais incapazes intelectual e moralmente.
Corruptor, porque cria os partidos políticos com suas sequelas
de comitês, isto é, oficinas de exploração do voto; onde, como é de
imaginar, o voto se oferta ao melhor pagador, que não pode ser
senão o maior corruptor e o mais corrompido. Ademais, como as
massas não podem votar pelo que não conhecem, o sufrágio
universal demanda a montagem de poderosas máquinas de
propaganda com seus enormes gastos. A ninguém se oculta
que a custas do erário público se contraem compromissos e se
realiza a propaganda.
Tão decisiva é a corrupção da política por efeito do sufrágio
universal, que uma pessoa honrada não pode se dedicar a ela
senão vendendo sua honradez; feito tanto mais grave se recorda-
mos que, segundo Santo Tomás, um governante não pode reger
bem a sociedade se não é “simpliciter bonus”, absolutamente bom
(S. Th. I-II, q. 82, a. 2 ad 3).
O sufrágio universal cria os parlamentos, que são Conselhos
onde a incompetência resolve todos os problemas possíveis,

132
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

dando-lhes sempre aquela solução que deve surtir melhor efeito


de conquista eleitoral. Nas pretendidas democracias modernas
(na realidade não existe hoje nenhum governo puramente
democrático, segundo se exporá mais à frente), onde o sufrágio
universal é o grande instrumento de ação, os legisladores têm
por missão preferencial abrir e ampliar os diques da corrupção
popular. Há quem pretenda salvar o sufrágio universal, e seu
corolário, o parlamento, imputando aos homens e não a essas
instituições, os vícios que se observam. Mas não advertem que
os vícios indicados lhe são inerentes, e é nelas onde reside o
princípio da corrupção dos costumes políticos. O individualismo,
que é a essência do sufrágio universal, parte da matéria, marcada
pela quantidade, e a matéria, erigida em expressão de discer-
nimento, dissolve, destrói, corrompe, porque a bondade vem
sempre às coisas por via da forma, segundo os grandes princípios
da metafísica tomista.
Fácil seria demonstrar que os descalabros da política mo-
derna são consequência de considerar toda questão sob o signo
da matéria.

REGIMES POLÍTICOS

Suposta a constituição do Corpo Social com faculdade de


deixar ouvir sua voz por meio de um órgão que o represente,
toca-nos fixar o que a doutrina católica ensina com respeito aos
diversos regimes políticos, segundo os quais pode a autoridade
pública se constituir. Será necessário estudar com especial
atenção o regime democrático, porque oferece especial interesse.

133
CAPÍTULO 3

Este assunto deve ser abordado com espírito totalmente


purgado de paixões e de fobias políticas; se em alguma questão
é necessária a serenidade do filósofo, é precisamente nesta.
Antes de tudo, deve se supor resolvido o problema da soberania,
para não incorrer na confusão perene dos democratistas, que
pretendem justificar a democracia com argumentos tomados
da suposta soberania popular.
Ainda que a soberania viesse do povo ou nele residisse,
coisa abertamente falsa, segundo se demonstrou, não traria
nenhum privilégio em favor da democracia como forma de
governo. Porque o povo que, como todo ser, é feito para seu
próprio bem, deve preferir aquela forma mais apta para o
proporcioná-lo, e não há nenhuma razão especial que justi-
fique neste sentido a democracia; pelo contrário, há muitas e
abundantes contra ela.
Não se pretende com isso invalidá-la; só se busca fazer
compreender a necessidade de distinguir questões que geral-
mente se confundem, em prejuízo de um conhecimento claro
do problema e de sua solução.
Entrando na matéria, seguindo o Angélico Doutor, cujo
pensamento expôs Demongeot no seu admirável estudo Le
Meilleur Regimen Politique Selon Saint Thomas, distingamos quatro
tipos puros de regimes políticos.
No caso de que governe um, o governo tende essencialmente
à unidade, à coesão e ao poder mais absoluto: regime real ou
monarquia. Se governam os melhores, a preocupação dominante
é que o poder se dê a cada um em proporção à sua virtude: aristo-
cracia. Se governa o mais rico ou mais ricos e poderosos, o ideal
que determina a estrutura é a riqueza: oligarquia. Quando o poder

134
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

está encomendado à multidão que se governa livremente, o


regime se chama democracia.
Qualquer um desses regimes, ou uma combinação deles,
é permitida, sempre que possa coexistir com o bem comum
temporal, lei fundamental de toda vida política.
Essa possibilidade de coexistência não deve ser determinada
tão somente assim em abstrato, de modo geral, senão também
em concreto, atendendo às condições geográfico-históricas
deste povo determinado, povo determinado que não é o povo
de um preciso momento, como se estivesse isolado no tempo,
senão considerado em sua relação com as gerações passadas e
com as futuras.
Leão XIII6 difundiu este princípio que rege tão importan-
tíssima questão; e quando o enunciava, parecia ter presente os
democratas, que confiam ao capricho da multidão a implantação
das formas de governo.
Depois de recordar que os governantes podem, em alguns
casos, ser eleitos por vontade e juízo da multidão sem que se oponha à
doutrina católica, já que então não se dá o poder, senão que se estabelece
quem o deve exercer, prossegue:

“Nada impede que a Igreja aprove o governo de um só ou de vários,


contanto que seja justo e aplicado ao bem comum. Portanto, salva a
justiça, não está vedado aos povos dar-se aquela forma política que
melhor se adapte à sua índole, tradições ou costumes”.

Como se destaca do teor do documento, não é o capricho da


multidão que, dentre as formas possíveis e lícitas, elege a forma

6
Encíclica Diuturnum illud, de 29 de junho de 1881.

135
CAPÍTULO 3

concreta que deve se reger a cidade. Será necessário contemplar


a índole, tradições, costumes do próprio povo para determinar
aquela que é realmente apta para assegurar eficazmente o
bem comum temporal dessa determinada cidade. Nada mais
absurdo do que implantar um regime monárquico num país
de franca tradição republicana, e inversamente estabelecer a
república num país tradicionalmente monárquico.
Com efeito, um regime de governo postiço, sem verdadeiro
arraigo nas tradições do povo, pode impor ao país uma direção
contrária a seu movimento natural, expondo-o a um desequilí-
brio constante.

A DEMOCRACIA

Apliquemos este princípio ao regime democrático e vejamos


até onde pode coexistir com o bem comum. Mas será necessário
expor antes, seguindo a doutrina do Doutor Angélico, os consti-
tutivos essenciais da democracia em seu estado puro e simples.
Disse constitutivos essenciais, porque a democracia, como
todo ser material, é uma essência que não pode existir senão
numa realidade concreta, individualizada graças a certas de-
terminações acidentais, provenientes da matéria quantitativa:
materia signata quantitate, diz Santo Tomás. Precisamente porque
essas determinações vêm da matéria quantitativa, carecem de in-
teligibilidade, já que a matéria por si mesma é ininteligível. Logo,
se são ininteligíveis, são distintas e separáveis da essência, que é
em todos o princípio necessário e primeiro de inteligibilidade.
Ao filósofo não pode interessar o estudo destas determinações
acidentais. Porque ele quer entender (intelligere), isto é, ler

136
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

dentro (intus-legere) das coisas, captar as essências ou princípios


ininteligíveis das coisas.
Falo também da democracia em seu estado puro e simples.
Porque há essências simples e já outras que resultam da com-
binação de várias simples. Assim, por exemplo, o hidrogênio
é uma essência simples ou em estado puro, enquanto a água
é uma combinação de hidrogênio e oxigênio. Evidentemente
que a água é uma só e nova essência. Mas não é simples, nela
as qualidades das essências simples de que é composta estão
como que temperadas.
Suposta a inteligência dessas observações, podemos em-
preender o presente estudo. Que é, pois, a democracia em seu
estado puro e simples? É o regime em que todos os cidadãos
são e se sentem livres, iguais e soberanos. São três as notas
essenciais deste regime: liberdade, igualdade e soberania de
todos e de cada um dos cidadãos.
Das três notas indicadas, a principal, aquela que está antes de
tudo implicada (Pol. VI, 2)7, e da qual derivam as outras duas, é a
liberdade. Ela é o princípio e o fim da democracia (Pol. IV, 7), diz Santo
Tomás, em sua linguagem metafísica. Daí que numa democracia
o cidadão não está dirigido por outro nem para o fim do outro,
senão que por si mesmo se dirige para o fim da cidade (Pol. II, 2). O
cidadão, em sua atividade política, é verdadeiramente livre.
Se a liberdade é um atributo essencial de todos os cidadãos,
todos devem gozar dela igualmente. Todos serão, então, pura e
simplesmente iguais com direito a participar na mesma medida

7
NdT. “Pol.” remete ao “Sententia libri Politicorum”, de Santo Tomás de Aquino, isto é, à seu Comentário
à Política de Aristóteles.

137
CAPÍTULO 3

dos favores ou bens comuns (Pol. III, 4). E isso, segundo uma
estrita igualdade aritmética, sem que se tenha em conta dife-
renças de dignidade, senão que tanto deve participar o pobre
como o rico, o sábio como o ignorante (Pol. VI, 2).
A liberdade política que todos igualmente possuem não
consiste tão somente em ser governado como livre, nem sequer
em controlar o governo ou participar dele pelo sufrágio igua-
litário, senão que comporta o acesso de todos os cidadãos às
funções mais altas da cidade, e que não haja ninguém acima
de outro (Pol. IV, 2). Isto é, que todo cidadão seja soberano.
Logo, a democracia pode se definir: “regime no qual governa toda
a multidão” (Pol. II, 7). Mas como governa toda a multidão? Em
primeiro lugar, porque os funcionários são eleitos dentre todos,
sem atender a considerações de dignidade ou valor, ao menos
para o desempenho das funções que não reclamam especial
sabedoria ou prudência (Pol. VI, 2). E como o sorteio é o único
procedimento capaz de assegurar essa perfeita igualdade, a
lei decidiu que por meio dele sejam escolhidos os governantes
(Pol. IV, 8), que durem pouco em suas funções e que não possam
desempenhar várias vezes a mesma (Pol. VI, 2). Em segundo
lugar, porque o verdadeiro governante é a massa dos cidadãos
reunidos em Assembleia ou Consilium8, os funcionários não são
mais que executores da vontade popular.
Das características apontadas é fácil deduzir que a democracia,
em seu estado puro, deve ser a dominação dos pobres; porque
se a multidão manda, como nela há mais pobres que ricos (Pol. VI, 2),

8
Nesta Assembleia intervém imediatamente todos os cidadãos; é coisa muita distinta dos parlamentos
nos quais os parlamentários fingem representar o povo.

138
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

os pobres hão de possuir mais autoridade que os ricos. Daí


que nas democracias os governantes se caracterizem por seu
nascimento obscuro, pobreza e ignorância, ou por seu ofício
miserável, de modo que assim como no estado aristocrático os
que mandam são nobres, ricos e virtuosos, assim no democrático
são homens obscuros, pobres e sem razão social (Pol. VI, 2).
Que juízo formular sobre a democracia assim definida? É
um governo justo, capaz de assegurar o bem comum?
É necessário distinguir. Se se trata de uma sociedade na que
não existem desigualdades sociais porque todos são igualmente
pobres e ignorantes, ou todos igualmente ricos e virtuosos,
o bem comum é assegurado, porque não é de temer que uma
classe, aproveitando-se de seu maior número, oprima as outras
(Pol. VI, 1). Tal caso, como se vê, é utópico, só possível num país
de cretinos. Porque a desigualdade das naturezas individuais
é coisa que se impõe à evidência. Não todos possuem nem
podem possuir as mesmas riquezas espirituais ou materiais.
Neste sentido é muito instrutiva a experiência realizada pelo
mundo moderno, ou seja, o mundo saído dos princípios da
Reforma protestante. Levava em suas entranhas o mito da reali-
zação democrática universal; e como não encontrou a igualdade
econômico-social necessária para a democracia política, quis
criá-la. Não podendo criá-la, levantando todos à mesma me-
dida de virtude e riqueza, já que nem todos são capazes, de fato,
de uma medida alta, empenhou-se em rebaixar as condições
de cultura de todos, por meio da democratização da escola e
do conforto. Assim se criou o tipo standard de incultura: uma
multidão obcecada pelos mesmos mitos, regida pelos mesmos
luxos na universalização do automóvel e do rádio. Igualdade

139
CAPÍTULO 3

artificial, numa certa participação em comum no que de menos


humano há no homem. A igualdade natural, ao invés, não se for-
ja com um decreto (Pol. VI, 2), nem se cria artificialmente, afirma
Santo Tomás com Aristóteles.
Ora, se a igualdade natural não existe, a democracia será
injusta, porque uma classe, em virtude do número, se apoderaria
do poder e dominaria a outra. Coisa abertamente injusta, já que
o poder deve ser exercido em vista do bem comum de todos e de
todas as classes sociais. Esta é precisamente a crítica fundamental
que Santo Tomás formula contra o regime democrático no opús-
culo De Regno (L. I., 1): “Se o governo iníquo é exercido por muitos,
chama-se democracia, isto é, dominação do povo; quando, valendo-se sua
quantidade, a plebe oprime os ricos, todo povo chega a ser então como
um único tirano”. Daí que Santo Tomás classifique a democracia
entre as formas corrompidas de governo.
Ainda que a democracia em seu estado simples ou puro
seja essencialmente tirânica, não seria possível escolher dela
alguns elementos bons, que talvez contenha, e temperá-los com
elementos das outras formas de governo, também simples,
tais como a aristocracia (governo dos melhores) e monarquia
(governo de um) e dar vida a uma nova forma de governo na
qual abunde o elemento democrático? Santo Tomás acredi-
tou possível, e propôs a república como forma boa de governo,
opondo-a à democracia.
Porque se é má a democracia em seu estado puro, já que
logicamente termina num governo de classe, não é má, no
entanto, a tendência fundamental que a inspira: assegurar a
liberdade do corpo social em seu movimento ao bem comum.
É claro que essa liberdade também pode ser alcançada num

140
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

regime monárquico ou aristocrático; nunca, por exemplo,


tiveram os cidadãos maior liberdade que na monarquia de São
Luís, rei da França.
Mas, suposta a psicologia reflexa do homem, esta autodeter-
minação não aparece ao cidadão com tanta evidência dentro
da monarquia como no regime republicano9.
Diz Santo Tomás no De Regno (L. I, 4):

“Acontece frequentemente que os homens que vivem sob um rei não


se movem ao bem comum, com tanta eficácia porque estimam que a
busca do bem comum não é coisa que interessa a eles, senão só ao
governo. Porém, quando veem que o bem comum está em poder de
todos, tendem a ele como a seu bem próprio”.

Como no regime democrático todos os cidadãos participam


numa ou outra forma do poder, amam-no como coisa própria e
querem que persevere. Nada mais conveniente para a estabili-
dade de um regime, como que as diversas partes ou classes que
constituem a cidade estejam interessadas em sua conservação
(Pol. II, 14).
Com esta discriminação, aparecem os elementos bom e mau
da forma democrática em seu estado puro. A participação de
todos os cidadãos no governo é, de per se, boa; a participação
aritmética igualitária é má, porque conduz ao governo de uma
classe, e precisamente a menos capacitada.
Será necessário, então, temperar o regime democrático

9
Por isso o regime democrático teve que aparecer como necessário nas épocas reflexas da história tais
como a idade moderna. O que aponta a inferioridade desta forma diante das outras. Porque a reflexividade
é um sintoma evidente de enfermidade, já que supõe que o homem olhe mais para si mesmo do que
para o ser exterior. Ora, o homem não é atualizado e aperfeiçoado senão pelo Ser, que está fora dele; o
homem se acha num estado de potência passiva com respeito a esta sua perfeição; é uma tábula rasa,
no qual nada há escrito, segundo a sabedoria de Santo Tomás e Aristóteles.

141
CAPÍTULO 3

com o princípio da aristocracia (governo dos mais virtuosos)


e com o da oligarquia (governo daqueles de maior eficiência
econômica), e mesmo com o da monarquia (governo da unidade)
para que resulte um regime onde todos governem na busca do
único bem comum do corpo social (Pol. IV, 7).
Essa temperança se alcançará compensando a exígua quan-
tidade de bons, de sábios e de ricos, com um aumento de seus
direitos políticos, proporcional à sua função social; no qual
não haverá injustiça, mas pelo contrário, já que a “igualdade da
justiça distributiva consiste em que de modo diverso sejam honradas
e beneficiadas as pessoas diversas em atenção à sua dignidade” (S. Th.
II-II., q. 63, a. 1).

Porque na justiça distributiva não se dá a cada um segundo sua


igualdade aritmética de coisa a coisa (tanto por tanto), “mas segundo
uma proporção das coisas com respeito às pessoas, de modo que, assim
como uma pessoa é superior a outra, assim a coisa que se outorga a
ela seja superior a que se outorga a outra. Por isso diz o Filósofo
que na justiça distributiva o justo meio se equilibra segundo uma
proporcionalidade geométrica, na qual a igualdade não é quantitativa,
senão proporcional; como se disséssemos que assim como seis está
para quatro, três está para dois, porque numa e noutra existe a mes-
ma proporção, que é dois, ainda que não haja a mesma igualdade
quantitativa, porque seis é maior que quatro em duas unidades, três
maior que dois numa unidade” (II-II, p. 61, a. 2).

De modo que essa compensação proporcional de direitos


políticos em atenção à dignidade econômico-social das pessoas
não só é conveniente para a estabilidade do corpo social, mas
é exigida pela justiça distributiva, que segundo o ensinamento
do Doutor Angélico, pede que a uma diversidade de dignidade
corresponda uma diversidade de direitos e de honras.

142
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

Recorde-se, para entender plenamente esta doutrina, que é


certo que a virtude seja a única causa justa de honra. Mas pode al-
guém ser honrado não só por sua virtude pessoal, senão também
pela virtude funcional, como quando se dá honra aos príncipes e
prelados, ainda que sejam maus, enquanto são representantes de
Deus e da comunidade que governam... E assim igualmente são
honrados os pais e senhores pela participação da dignidade de
Deus, que é Pai e Senhor de todas as coisas. São honrados os an-
ciãos pela idade avançada, que é sinal de virtude, mesmo quando
esse sinal às vezes falhe. São honrados os ricos porque ocupam
um lugar mais alto na sociedade (II - II, q. 63, a. 3).
É claro que a honra não se dá sem o correspondente contra-
peso do dever. O governante dispõe do poder para o serviço dos
súditos, e o rico “não deve ter as coisas exteriores como próprias, senão
como comuns, de modo que facilmente dê parte dela aos outros quando
necessitem. Por isso, o Apóstolo (1 Tm 6, 17) manda os ricos deste século
(...) que deem e repartam francamente seus bens (...)” (II-II, q. 66, a. 2).
Toda essa doutrina repousa sobre a evidência natural da
desigualdade das “naturezas individuais”, evidência que é pe-
rigoso evitar.
Na doutrina católica, tão maravilhosamente exposta por
Santo Tomás na Suma Teológica, a essência do homem, ou seja, o
princípio necessário e primeiro de inteligibilidade10, é a mesma
e única em todos os homens, já que não existe senão uma só
espécie humana.
Não é assim a natureza individual, a essência do homem
realizada numa matéria quantitativa concreta; essa é individual,

10
Ver Maritain, Introducción Générale à la Philosophie, 1930, pág. 149 e seguintes.

143
CAPÍTULO 3

e portanto, incomunicável, diferente e desigual de um homem


para o outro.
A doutrina metafísica do Doutor Angélico se faz evidente pela
experiência cotidiana, que nos mostra que não há na natureza
duas coisas ou pessoas iguais. Tudo é diferente e hierárquico, como
aparece esplendidamente no microcosmo humano, no que cada
órgão tem sua função específica, própria, hierarquizada para o
bem total de todo o composto.
A sociedade, que é o conjunto das naturezas individuais har-
monizadas na busca do bem comum, não podia estar constituída
em forma que contradissesse esse fato das desigualdades indivi-
duais. Precisamente porque trata de assegurar o bem comum de
todos, deve atender à condição desigual do bem de cada um.
Não se creia que isso implique um rebaixamento das funções
sociais inferiores; ao contrário, porque o bem do pé não está em
mandar na cabeça, senão em ser dirigido por ela. Se o pé manda,
não só destrói a cabeça, senão que inutiliza a si mesmo, pois sem a
direção da cabeça caminhará para sua ruína. Por outra parte, a
cabeça não pode se ensoberbar de sua superioridade, como se
dirigisse sem necessitar dos pés, pois sem ele não pode estar
dignamente sustentada nem alcançar a execução de muitos de
seus desígnios.
É verdade incontrovertível que a hierarquia natural da so-
ciedade não se pôde negar sem transtornos mortais para a
vida humana.
Assim, o mundo moderno, que igualou politicamente o in-
ferior e o superior, apresenta dois fenômenos opostos; por uma
parte, as classes superiores abandonam sua função diretiva e só
querem aumentar sua riqueza; e por outra, a plebe exasperada

144
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

afirma sua tirania, com o que o escravo econômico se erige em


divindade política.

REPÚBLICA E DEMOCRACIA

Dizia anteriormente que Santo Tomás chama república ou po-


lítica a democracia temperada que resulta da participação hierár-
quica de todos no governo da coisa pública, e reserva o nome de
democracia ao regime tirânico do governo popular (De Regno I, 1).
Não sem profunda sabedoria, já que a democracia, em virtude de
sua essência igualitária, resulta na opressão de uma classe ou de
um partido sobre o outro. Não devemos imaginar a república, de
que fala Santo Tomás, como uma democracia atenuada, que no
fundo seguiria sendo uma verdadeira democracia. Isso suporia
que não entendemos o conceito do corpo misto da filosofia tomista.
A água, por exemplo, não é hidrogênio e oxigênio atenuado. É
uma essência nova com propriedades específicas novas. Assim a
república é uma essência nova, com um caráter político novo,
inassimilável à pura justaposição da democracia e aristocracia.
De tudo que foi exposto, aparece quão tomista seja a distinção
entre república e democracia, entre republicano e democrata.
Distinção tanto mais imprescindível, quanto nestes tempos
em que a democracia vivida e vociferada não é um simples
regime de governo, mais ou menos preferível ao monárquico
ou ao aristocrático, mas está assimilada ao mito da soberania
popular e do igualitarismo universal, o que Louis Rougier chama
“la mystique démocratique11”.

11
Louis Rougier. La Mystique démocratique, ses origines, ses illusions, Flamarion, Paris. 1929.

145
CAPÍTULO 3

A Igreja, e Leão XIII, sua voz autêntica, não admite senão a


forma republicana de governo quando escreve: “Preferir para o
Estado uma constituição temperada pelo elemento democrático não é
em si contra a justiça, contanto que se respeite a doutrina católica sobre
a origem e o exercício do poder público12”.
De todos os modos, esquecendo-se a profunda sabedoria
da linguagem tomista quer-se usar o vocábulo democracia
para significar a república ou política, entenda-se que essa não
se realizou nem há de se realizar em nenhuma das repúblicas ou
democracias modernas. O caso mais típico na história de sua re-
alização é a antiga democracia helvética da Suíça. Digo a antiga,
porque, como demonstrou o filósofo suíço Gonzague de Reynold
no “La démocratie et la Suisse”, a autêntica e histórica democracia
helvética foi sufocada pela democracia teórica dos modernos, e
agora ameaça precipitar-se no caos igualitário socialista.

“Porque na Suíça se encontra hoje frente a frente duas concepções da


democracia – diz o citado autor – a concepção teórica e a concepção
histórica. A primeira está representada pelo país legal; a segunda, pelo
país vivente. O país legal é nosso governo, nossas Câmaras, os partidos
políticos, os eleitores. O país legal está completamente penetrado de
democratismo; repousa, portanto, sobre uma doutrina falsa”.
Ao invés, o país vivente é a antiga Suíça que sobrevive, que quer
viver; são as tradições, a originalidade, a resistência do espírito suíço.
Ali estão as forças de salvação. E estão no mesmo povo. Povo que não
é o corpo eleitoral ou o proletariado ou a única geração presente,
senão a soma de todos os suíços, qualquer que seja sua condição so-
cial, não contados por unidades, por indivíduos, senão agrupados em
cantões, comunas, famílias, profissões, com tudo o que os distingue

12
Encíclica Libertas, de 20 de junho de 1888.

146
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

uns de outros, e os faz diferentes e desiguais. E vemos muito mais


esse povo em profundidade que em extensão, porque acrescentamos
todos os mortos aos vivos... Na Suíça, a desigualdade é fecunda e
sagrada, é a poderosa armadura de um povo”.

A única forma legítima de democracia política é, pois, a hierár-


quica que Santo Tomás descreveu e a Suíça tradicional realizou.

REPÚBLICAS MODERNAS

Talvez seja conveniente fazer uma sumária aplicação da


doutrina exposta às repúblicas ou democracias modernas.
Que tipo de regime político representam? São aceitáveis?
Evidentemente não são democracias no estado puro, já que
nem todos participam no governo efetivo da nação, nem todos são
elegíveis. Intervém um elemento de privilégio, ou anti-igualitário,
que regula a elegibilidade dos cidadãos: o partido político, com sua
sequela lógica, o comitê.
Portanto, há nelas, justapostos, um elemento democrático
e outro oligárquico. O democrático, representado pelo sufrágio
igualitarista universal que outorga a todos uma participação
quantitativamente igual da coisa pública. O oligárquico, na
minoria dos mais audazes que, traficando com os votos, apo-
deram-se do governo efetivo e o usam em proveito de suas
conveniências pessoais.
Daí que as democracias modernas, ainda que levem o nome de
república, nada tenham que ver com a política de que fala Santo
Tomás. Mescla da demagogia com a oligarquia dos patifes,
representam um tipo instável e sedicioso, porque nelas nunca
se busca o bem comum temporal; não o bem, porque esse é

147
CAPÍTULO 3

essencialmente ético-teológico, bem virtuoso, como se demons-


trou no primeiro capítulo e as modernas sociedades não pensam
senão na busca dos bens econômicos; não comum, porque o
bem do indivíduo-governante prima sobre o bem do partido,
o do partido sobre o bem da nação, o da nação sobre o bem dos
direitos internacionais e sobre o bem divino da Igreja.
Ademais, as modernas sociedades, perversamente confor-
madas em seu interior por ter perdido o reto sentido do bem hu-
mano, são vítimas dos consórcios financeiros internacionais, os
quais, depois de terem corrompido as consciências, concedendo
prebendas às pessoas influentes da coletividade, manejam por
meio delas, a própria coisa pública, fazendo derivar, em proveito
da proliferação do ouro que acumularam, toda a vida produtiva
do país. Daí que, no sentido literal mais próprio, as sociedades
modernas, que não vivem senão com a permanente preocupa-
ção do enriquecimento, o qual subordinam loucamente tudo,
arrastam uma existência miserável, carregada de pesadas e
insuportáveis cargas. São sociedades de escravos, em que a
multidão trabalha para o gozo de uns poucos, que usufruem
todos os privilégios; mas a multidão, por outra parte, sem cons-
ciência de seus verdadeiros direitos e de seu verdadeiro bem,
desorganizada, incapaz de exigir nem de reclamar eficazmente
nada, embrutecida e satisfeita com alguns alívios, tais como o
sufrágio universal, que lhe proporciona esse perpétuo carnaval
político do qual conhecemos as tristes e feias consequências.
Logo, do ponto de vista católico, que aponta como programa
fundamental de toda política a realização do bem comum da
cidade temporal, é inaceitável a forma impura de democracia
que revestem as repúblicas modernas.

148
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

A Igreja tolera essa forma como fato irremediável; nunca


legislou expressamente sobre sua legitimidade, ainda que
tenha exposto abundantemente em documentos públicos sua
doutrina sobre o ordenamento da cidade para que possamos
apreciar que a atual organização da cidade terrena não é aquele
propiciado por ela. E como poderia coincidir com os divinos
postulados da Igreja uma sociedade forjada por ímpios e ridículos
delírios do filosofismo e da revolução?
No entanto, a Igreja não insiste em que seus filhos façam
questão prática desta legitimidade porque com isso se reagrava-
riam os males, e os católicos distrairiam sua ação da simplesmente
católica (Pio X) ao que quer vê-los dedicados.
Mas nunca lhes obrigou a reconhecê-las de direito; se os
exorta a aderir à república como, Leão XIII ao ralliement13 aos
católicos franceses, é porque quer que trabalhem pela extensão
do reino de Deus dentro dos meios atuais possíveis.
A posição da Igreja e dos católicos nas imbecis e degradadas
repúblicas modernas, é a mesma que a dos cristãos na Roma
Imperial. Evidentemente que o regime dos césares era perverso;
mas os cristãos, aceitando-lhe como fato forçoso que não estava
em suas mãos remediar, serviam-se de suas possibilidades para
estender o reinado de Cristo.
Façamos um parêntesis para resolver uma questão que levanta
o governo das repúblicas modernas. Quem detém nelas a sobera-
nia? Acaso o povo que governa por meio de seus mandatários? E
se é o governo, qual dos três poderes?

13
Na Encíclica Au milieu des sollicitudes, de 16 de fevereiro de 1892.

149
CAPÍTULO 3

A soberania não é uma entidade indivisível, segundo se ex-


plicou longamente no capítulo anterior. Pode estar por diversos
títulos em sujeitos distintos que devem, no entanto, manter
entre si a unidade de governo. Não é o caso de precisar aqui as
diversas formas de realizar essa unidade nem de examinar até
onde harmoniza com o bem comum a separação dos três poderes,
ao qual atribuem tão grande importância os estadistas modernos.
O certo é que a soberania só se possui enquanto é exercida.
Se alguém não manda, ridículo é que se afirme sua soberania.
Os valores morais não se criam por ficção, ainda que sejam de
toda a multidão; ora, o povo não governa nem pode governar
nas nações modernas; logo nenhuma ficção será suficiente para
o fazer soberano. Elegem-se os mandatários, seu poder se reduz
a eleger, isto é, a determinar quem mandará. Este direito não lhe
dá nenhuma faculdade para impor condições aos governantes
nem para esses se crerem na obrigação de as cumprir, pois uma
vez eleitos só devem se guiar pelas exigências do bem comum.

EM DIREÇÃO A UM REGIME
CORPORATIVO E AUTORITÁRIO

Se a democracia pura e a república moderna são inadmissí-


veis, que tipo de governo pode se adequar à tradição republicana
de países como o nosso14?
No que se refere à organização, cremos que a duas podem
se reduzir as características que devem distinguir os estados

14
NdT. Obviamente aqui o autor se refere à sua própria nação, isto é, a Argentina.

150
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

novos para cumprir as exigências de justiça que exige o bem


comum: devem ser corporativos e autoritários.
Estados corporativos. Porque suprimido o eleitoralismo
com as sequelas do comitê, sufrágio igualitário, parlamen-
tarismo, há que coordenar devidamente no Estado todos os
elementos políticos da sociedade. Estes elementos não são os
indivíduos, o cidadão abstrato do século XIX, senão a família
e demais unidades morais a ela assimiláveis, tais como as
agrupações ou corporações em que se diversifica a atividade
da multidão agrupada.
Na organização das corporações econômicas deve se ter
presente que os interesses por eles representados, ou melhor
dito, os interesses da produção devem se subordinar não só
aos da economia nacional em seu conjunto, senão também à
finalidade espiritual ou destino superior da nação e dos indi-
víduos que a constituem.
Por outra parte, para a mais perfeita realização de nossa
fórmula de nação organizada, deve-se levar em conta, ademais,
as corporações morais, como aquelas das artes, das ciências, da
assistência e da solidariedade, que por uma adequada evolução,
devem formar parte da organização corporativa. Por muitas
razões, essas entidades estarão submetidas à mesma finalidade
espiritual e ao mesmo interesse nacional que domina as primeiras.
Estado autoritário. Atravessa o mundo, tanto na ordem
interna como na internacional, uma etapa de evidente debili-
dade do Estado; por outra parte, certas reações - justificadas,
mas excessivas - caminham, aqui e ali, para sua onipotência e
divinização.
A um e outro excesso deve se contrapor o Estado forte, mas

151
CAPÍTULO 3

limitado pela moral, pelos princípios dos direitos dos povos,


pelas garantias e liberdades individuais, que são a suprema
exigência da solidariedade social. O Estado tem o direito de
promover, harmonizar e fiscalizar todas as atividades nacio-
nais no amor à Pátria, e na disciplina dos exercícios vigorosos,
que a preparem e disponham para uma atividade fecunda e
para tudo que possa exigir dela a honra e o interesse nacional.
Por cima do fracionamento do poder – os serviços, as autar-
quias, as atividades particulares e públicas, a vida local, os domí-
nios coloniais, as mil manifestações da vida em sociedade – sem
as contrariar ou entorpecer em sua ação, o Estado estenderá o
manto de sua unidade, de seu espírito de coordenação e de sua
força. O Estado deve ser tão forte que não necessite ser violento.
O que creio importante insistir é que, ainda que possa ser
facultativo o juízo sobre a forma que podem revestir na aplicação
concreta, essas são duas características que não podem, em rigor,
faltar sob nenhum aspecto. A autoridade de Santo Tomás, com as
razões que aduz, abona essa proporção, ao mesmo tempo em que
repudia, de forma antecipada, uma sociedade que pretendeu se
forjar violando a lei da hierarquização dos homens. Diz textual-
mente na Suma Contra Gentiles (L. III, c. 81):

“(…) Pela mesma causa, mesmo entre os próprio homens existe


hierarquia; porque aqueles que se sobressaem pelo entendimento
dominam por direito natural; aqueles, ao invés, que são de escas-
so entendimento, mas robustos de corpo, parecem destinados por
natureza para servir, como ensina Aristóteles em sua Política, no
que concorda com a sentença de Salomão que diz: ‘O néscio ser-
virá o sábio’ (Prov 11, 29); e está escrito: ‘(...) Escolhe dentre todo o
povo homens de firmeza e temerosos de Deus... e deles estabelece
tribunos, centuriões e cabos de cinquenta pessoas e de dez, que

152
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

sejam juízes do povo continuamente’ (Ex 18, 21-22). Porque assim


como nas obras de um só homem, a desordem provém de que o
entendimento siga a força sensual, e a força sensual por causa da
indisposição do corpo é arrastada pelo movimento do corpo, como
aparece nos que mancam, assim também no regime humano, a de-
sordem provém de que alguém que manda, não pela preeminência
do entendimento, mas porque arrebata o poder, servido da robustez
corporal, ou porque alguém o pôs para governar pelo afeto sensual;
desordem que Salomão denuncia, quando diz: ‘Há outra desordem
que vi debaixo do sol, causada pelo erro do príncipe, o tonto colocado
em alta dignidade’ (Ecl 10, 5)”.

Quando Santo Tomás (II-II, q. 183, a. 2) estuda se é conve-


niente que haja na Igreja diversidade de ofícios ou de estados,
propõe-se a dificuldade de que não convém tal diversidade por-
que perturbaria a paz que parece causada mais pela igualdade e
não pela diversidade e responde deste modo:

“A esta terceira dificuldade há que responder que assim como no cor-


po natural membros diversos são contidos na unidade pela virtude
do espírito vivificante, que ao se ausentar os membros do corpo se
separam; assim também no corpo da Igreja se conserva a paz dos
diversos membros por virtude do Espírito Santo que vivifica o corpo
da Igreja, como ensina Santo João. Por isso Por isso, o Apóstolo diz:
‘Sede solícitos em conservar a unidade do espírito no vínculo da
paz’. Ora, aparta-se alguém da unidade do espírito, quando busca as
coisas que lhe são próprias, assim como também na cidade terrena
desaparece a paz quando cada um dos cidadãos busca o que lhe é
próprio. Mas ao contrário, pela distinção dos ofícios e dos estados
se conserva muito mais a paz espiritual como a social; já que por
eles são em maior número os que se entregam aos atos públicos.
Por essa razão também diz o Apóstolo (1 Cor 12, 24) que ‘Deus dispôs
de tal modo que não haja dissensões no corpo, mas que todos os
membros conspirem entre si para se ajudarem uns aos outros’”.

153
CAPÍTULO 3

E na Suma Contra Gentiles (L. III, c. 98) escreve:


“De tudo que dissemos, podemos considerar a existência de uma
dupla ordem; uma que depende da Primeira Causa e que, portanto,
compreende todas as coisas; a outra que é particular, depende de
qualquer causa criada e compreende tudo o que está sujeito a essa
causa. Essa ordem é múltipla, segundo a diversidade das causas
que encontramos entre as criaturas. Mas uma está compreendida
sob a outra, assim como vemos nas causas que uma está sob a
outra. É necessário então que sob aquela ordem universal estejam
contidas e dela desçam todas ordens particulares, que existem en-
tre as criaturas e que dependem da Causa Primeira. Temos disso um
exemplo na vida política; porque todos os criados de uma chefe
de família, guardam certa ordem e hierarquia entre eles; e por sua
vez, tanto o chefe de família como todos os outros da mesma cidade
guardam também certa ordem e hierarquia entre eles e com respeito
ao príncipe da cidade, o qual por sua vez com todos os outros que
estão no reino guardam certa ordem e hierarquia com respeito ao rei”.

Não é supérfluo advertir que essas duas características, indis-


pensáveis para que um Estado possa procurar eficazmente o bem
comum, não bastam para constituir o Estado tipicamente cristão.
O Estado cristão só pode surgir de uma ação profundamente
cristã que renove e santifique indivíduos, famílias, propriedade,
corporação, para que, renovadas e cristianizadas, seja também
renovada a universal dispensadora dos bens comuns que é a
sociedade política.
Mas um Estado cristão não é tampouco possível enquanto
não haja absolutamente um Estado, e esse não pode, por sua
vez, existir sem as duas características apontadas.
O esforço urgente, então, de todos que sabem apreciar a im-
portância significativa do Estado para ordenar a vida e o homem,

154
Estruturação Sócio Estatal da Vida Política

deve tender a instaurar este Estado corporativo e autoritário.


Se as condições concretas de muitas repúblicas modernas,
onde a corrupção entrou tão profundamente no ser social que
não é capaz de conhecer seu próprio bem, impedem a implanta-
ção de tal Estado, deve se criar as condições propícias para isso.
Há muitos que imaginam que tudo é questão de força material e
de violência. Essa pode ser necessária e então se deve empregar.
Mas, só ela, sem outras condições propícias e, de modo particu-
lar, sem uma indispensável colaboração de homens capacitados
e orientados por sãos princípios de ordem sociopolítica, com
experiência de homens e de coisas, com uma ardente e gene-
rosa paixão do bem comum, não basta e será terrivelmente
nefasta e prejudicial.
Se faltam essas condições, vale mais deixar as coisas como
estão e esperar.
Isso não se deve entender, no entanto, como uma renúncia
total a melhorar a condição política das sociedades em que nos
tocou viver. Porque tal renúncia seria com mais exatidão uma
lamentável claudicação que dia a dia nos faria descer no tom de
nossa vida, que não pode ficar estática, sob pena de se debilitar
e morrer.
Na política, como em todas as outras manifestações da
vida, há que se manter um desejo, uma aspiração a um ideal
de perfeição.
Mas enquanto não haja condições propícias para tentar uma
reforma política salutar, é preferível se limitar a uma ação no
âmbito religioso e social, intensificando a vida cristã das multi-
dões, consolidando os lares cristãos, fomentando as agrupações
de trabalhadores e as corporações de profissionais , estimulando

155
CAPÍTULO 3

a autarquia econômica do próprio país, de modo que toda essa


melhora que vai se operando na vida social acabará por melhorar
a própria vida política. E mesmo assim – se não houvesse lugar
para uma melhor ação política – é possível promover um fe-
cundo movimento de estudos políticos que ordene as mentes
dos cidadãos e prepare os mais capazes para o desempenho da
função pública.
Ao mesmo tempo, deve-se influir fortemente, por uma prega-
ção constante em todos os ambientes do país, para criar um estado
de consciência geral que deseje uma restauração da coisa pública.
É necessário se persuadir de que, se é certo que o povo não deve
governar, deve, no entanto, assentir e sancionar com seu aplauso
a obra do governo. Porque o povo não pode estar ausente de uma
tarefa que, embora não a faça, há de se fazer em seu exclusivo be-
nefício. É necessário, então, interessar a população no problema
do novo Estado.
Se não se consegue forjar esta consciência coletiva que dê
seu beneplácito à tarefa indispensável da reforma do Estado,
deverá se preparar para graves e tremendas convulsões, que
por caminhos que só Deus conhece, hão de levar os povos ao
justo ordenamento social.

156
CAPÍTULO 4

Funções da Autoridade

𝔻 estacávamos no capítulo anterior a impossibilidade teó-


rica de um conflito entre a autoridade e a liberdade, entre
a sociedade e o Estado, pois os direitos de uma e de outro se
harmonizam reciprocamente.
Se surge um conflito, deverá ser: ou porque a sociedade se
encontra constituída de tal forma que não é capaz de alcançar
seu bem próprio, ou porque o Estado exorbitou no exercício
de suas funções. Na realidade, uma e outra causa dão conta
das convulsões que sacodem a sociedade contemporânea; tão
monstruosa e diabólica é a ideologia liberal que perverteu todos
os valores políticos.
Como no capítulo anterior se estudou a primeira causa das

157
CAPÍTULO 4

convulsões, falta agora examinar a segunda e restituir aos


seus justos termos as funções da autoridade pública.

DOUTRINAS ERRÔNEAS

Examinemos antes de tudo as ideologias modernas com


respeito à presente questão.
Forçoso é começar por Rousseau, o Copérnico político. Rous-
seau, a quem enternecia a bondade do homem primitivo – o ho-
mem livre – imaginou o Estado como uma colossal máquina na
qual, ao integrar-se o homem, sentir-se-ia livre e bom. O Estado,
a única realidade existente frente ao indivíduo que ficara livre
da família e da corporação, não podia ter outras funções que
reprimir toda tentativa de limitação da liberdade individual.
Sua função primordial se reduzia ao de tutor, tarefa delicadís-
sima, pois com tato psicológico muito fino, devia ir excitando
e dirigindo as energias latentes na alma ingênua do indivíduo.
Na ideologia liberal, portanto, o Estado é mestre e só mestre.
Se exerce funções de policial não é precisamente para impor
uma regulação na atividade pública do homem, senão para
impedir que a evolução espontânea individual seja alterada.
Inútil falar, por outra parte, dos deveres do Estado para com
Deus e a Sociedade Espiritual, pois o Estado liberal é o grande
Todo que limita sem ser limitado.
Explicou-se as consequências destas ideologias. Entregues
às feras da livre concorrência de seus instintos, produziu-se
mais ou menos o previsto por Darwin em sua teoria sobre a
eliminação das espécies inferiores, e assim, frente à massa de
proletários, surgiu o burguês, tipo especificamente original

158
Funções da Autoridade

do século XIX. Marx, socialista autêntico, provocou tão forte


impressão nas tropas liberais, que boa porção delas se desagre-
garam para formar o socialismo burguês que conhecemos. Os
socialistas apareceram em todos os bairros das grandes cida-
des e levantaram tribunas para clamar contra os libertinos
que descuidaram das funções específicas e supra-econômicas
do Estado com evidente detrimento da classe trabalhadora,
entregue à mercê da capacidade capitalista. O Estado, ademais
de mestre, deve ser economista, proclamou em substância o
socialismo, convencido que o homem, especialmente o pro-
letário, é essencialmente bom. Certas doutrinas românticas,
muito propagadas entre os médicos e penalistas, divulgaram,
entretanto, a convicção de que não existem criminosos, mas
loucos, idiotas e outros degenerados mentais, com o que a tese
liberal-socialista sobre a bondade do homem e a conveniência
de centuplicar escolas (por suposto, gratuitas, laicas e obriga-
tórias) alcançou um formidável apoio científico.
Descuidada a função primordial de promotor do bem comum
que compete ao Estado, a desordem progrediu enormemente,
ameaçando minar as bases da vida política, até que se impôs a re-
ação, concretizada no totalitarismo moderno em que o Estado se
converte em dono absoluto de toda vida privada e pública.

DOUTRINA CATÓLICA

A tese católica abomina igualmente todos esses erros, que,


na realidade, não são irredutíveis, como já sugerimos. Sua
doutrina se condensa na fórmula, aqui muitas vezes repetida,
de que o Estado é o supremo promotor do bem comum.

159
CAPÍTULO 4

Mas não se pode alcançar o bem comum da nação se não se


estabelece um regime em que todas as unidades que o integram
possam conseguir seu bem próprio. Porque, ainda que sejam
dois bens especificamente distintos, como ensina o Doutor
Angélico (II-II, q. 58, a. 7, ad 2), estão de tal modo ordenados um
ao outro, que mutuamente se solicitam. E o bem próprio do
homem-indivíduo, isto é, seu direito à existência, à dignidade,
à liberdade, e o bem próprio do homem-família, ou seja, o direito
a constituir um lar estável, no qual os pais se perpetuem, não
pode ser alcançado, na concorrência de muitos, se um poder
central não é capaz de assegurar a cada um deles o exercício
desses respectivos direitos.
É função então do Estado assegurar aos particulares o exer-
cício de seus direitos naturais.
Mas não pode ser essa, no entanto, sua função específica e
primordial. Porque, em rigor, os próprios particulares, tanto
indivíduos como sociedades menores, devem se constituir e
harmonizar de tal modo que possam, ordinariamente, sem
recorrer a um poder estranho, assegurar o exercício dos direitos
cuja esfera de ação não vai além, por si mesmos, do âmbito dos
bens privados.
O poder do Estado começa propriamente, e alcança seu lugar
e esfera própria no setor do público, do comum, ou seja, quando
se trata de regular os atos dos particulares, não enquanto esses
estão relacionados uns com o outro, senão enquanto estão re-
lacionados com a comunidade, ou afetam ou podem ter reper-
cussão na comunidade, ou na vida social. O campo próprio de
ação do Estado é, então, a esfera pública, ou seja, aquilo que
ultrapassa o limite das puras relações privadas.

160
Funções da Autoridade

Esse é o sentido do bonun commune da Antiguidade e da


Idade Média, que encontrou seu mais admirável e acabado
expositor em Santo Tomás de Aquino. Daí a insistência deste
Angélico Doutor em distinguir demoradamente o que chama
bonum privatum [bem de uma pessoa singular], ou salus privata
[salvação privada], felicitas privata [felicidade privada], bonum
singulare [bem singular], particulare [particular], bona particularia
[bens particulares], ou seja, o ordenamento do homem consi-
go mesmo ou com outra pessoa singular, segundo ensina na
Suma Teológica (II-II, q. 58, a. 7). E o bonum commune multorum
[bem comum de muitos] (De Reg. Princ. I, Q), o bonum commune
multitudinis [bem comum da multidão] (II-II, q. 58, a 6), bonum
multitudinis [bem da multidão] (I-II, q. 96, a. 3), bonum totius
[bem do todo] (II-II, q. 58, a. 6), bonum commune civitatis [bem
comum da cidade] (I-II, q. 95, a. 4), communis utilitas [utilidade
comum] (I-II, q. 97, a. 2), communis salus [saúde comum] (I-II,
q, 97, a, 2) commodum multitudinis [proveito da multidão] (I-II,
q. 97, a. 3), ou seja, o ordenamento de todas as atividades dos
particulares na medida que se relacionam com o bem público.
O Estado é, portanto, o procurador universal do bem comum,
e, portanto, o custódio do direito público, entendendo que,
“nas coisas civis, todos os homens formam parte de uma comunidade, e
devem se considerar como um só corpo, e toda a comunidade como um
só homem” (I-II, q. 81).
Santo Tomás estabeleceu, com profundidade não supera-
da, a razão de ser desta missão do Estado quando no artigo I
do Tratado da Lei humana, estuda a conveniência de instituir
leis humanas.

161
CAPÍTULO 4

“Há no homem uma disposição natural à virtude. No entanto, a virtude


perfeita não vem ao homem senão depois de um trabalho discipli-
nar ordenado para sua realização (...) Pois bem, para a aquisição
desta disciplina causadora da virtude perfeita nem sempre se basta
a si mesmo todo homem. Essa virtude pede uma retirada total dos
prazeres não honestos, aos quais sente o homem, principalmente
nos anos de sua juventude – é então quando a disciplina resulta
mais eficaz –, uma pronta inclinação. Precisa-se, portanto, que haja
alguém que estabeleça e imponha essa disciplina que conduz ao
ápice da virtude. Para aqueles jovens que, graças a uma inclinação
natural bondosa, ou à boa educação, ou talvez com maior verdade,
a um dom de céu, sentem-se propensos aos atos de virtude, bastará
a disciplina paterna, fundada em admoestações. Mas para aqueles
outros – eque realmente existem – e que tem uma inclinação natural
obstinada, propensos aos vícios, para quem resulta ineficaz toda
persuasão e bom conselho, faz-se totalmente necessária a coação e
a ameaça do castigo para que cessem a prática do mal. Desta ma-
neira, cessando seus empenhos de fazer o mal, não perturbam a paz
dos demais com quem convivem, e eles por sua vez podem chegar
a fazer espontaneamente, livremente, o bem que só por temor da
pena começaram a praticar, conseguindo deste modo conquistar
finalmente a virtude. Essa disciplina que se baseia e fundamenta
no temor do castigo, é a disciplina da lei. A convivência pacífica dos
homens, então, e a virtude, exigem uma elaboração e instituição de
leis humanas”.

Neste artigo, Santo Tomás aponta a razão profunda que exige


do Estado a custódia do direito público. Porque, sendo o Estado o
procurador do bem comum e sendo esse bem essencialmente
virtuoso, deve então o Estado procurar a felicidade humana que
consiste na prática da virtude. Segue-se, portanto, que deve
impor uma regulação pública aos costumes ajustada à virtude,
que contribua, assim, a fazer virtuosos os cidadãos.

162
Funções da Autoridade

Em outros termos, se faltar na comunidade humana um


poder como o do Estado, que dispõe de meios externos eficazes,
meios coercitivos, para impor uma regulação virtuosa, não ha-
veria virtude nem moral pública; e os homens que, assim como
estão feitos, não podem conquistar seu aperfeiçoamento senão
nesta sociedade pública, como vimos anteriormente, tampouco
poderiam ser virtuosos.
Logo, o Estado deve ser antes e sobretudo o assegurador do
direito público, porque só ele pode estabelecer a disciplina da
lei que se baseia e fundamenta no temor do castigo (hujusmodi
autem disciplina cogens metu poenae est disciplina legum).
A necessidade, então, de que exista uma convivência humana
virtuosa, em outras palavras, de que haja um direito público,
que produza essa paz da convivência humana exige a existência
do poder público com faculdade de impor obrigações coerciti-
vas. Assim, não é função primordial do Estado a pura tutela dos
direitos privados, como parecem entender muitos e conspícuos
autores católicos (por exemplo, Antoine, Cours d’économie sociale1),
mas sim uma positiva ação promotora do bem virtuoso, para
que haja paz e justiça pública.
De que maneira deve o Estado impor essas leis humanas
para criar este bem público virtuoso, explica-o o Santo Doutor,
quando ensina:

“O fim que a lei persegue é o bem comum (...); portanto, o que a lei
ordena deve ter aquela proporção que exige o bem comum. E como
esse bem comum consta de muitas coisas, a todas elas deve atender

1
R. P. Ch. Antoine. Cours d’économie sociale, Guillaumin and Co; Paris, 1896.

163
CAPÍTULO 4

a lei humana. Deve ter presente as pessoas, os negócios ou assuntos,


o tempo; porque toda comunidade política se compõe de muitas
pessoas, e seu próprio bem se obtém por múltiplas ações, e sua
instituição não obedece a um fim momentâneo, senão permanente,
que persevere através de todos os tempos, graças à sucessão dos
indivíduos que a compõe, como expressa Santo Agostinho”.

Do que foi exposto, aparece tão amplo o poder do Estado


que poderíamos qualificá-lo de totalitário. Totalitarismo do bem
comum, porque o Estado pode prescrever todas aquelas ações que
sejam ordenáveis ao bem comum. Assim, declara o próprio Santo
Tomás, quando resolve a questão de se a lei humana estipula
todos os atos de todas as virtudes, e contesta:

“Há diversidade específica de virtudes ali onde há objetos especi-


ficamente distintos; em outra parte demostramos a verdade desta
afirmação. Todos os objetos das virtudes são referíveis ou ao bem
privado de alguma pessoa particular, ou ao bem comum, de uma
multidão. Assim, por exemplo, pode alguém realizar atos de fortaleza,
seja em defensa de uma cidade, seja em defesa dos direitos de um
amigo. Outro tanto cabe dizer das demais virtudes. Se, pois, isso
é assim, como a lei se ordena ao bem comum não haverá virtude
alguma cujos atos não possa prescrever a lei. No entanto, as leis
humanas concretizam sua atividade preceptiva naqueles atos de
determinadas virtudes que são referíveis de per se ao bem comum,
ou só mediatamente, como quando se realizam diretamente para o
bem comum; ou seja só mediatamente, como quando tende a fomentar
a disciplina, que deve existir entre os cidadãos e em virtude da qual
se obtém o bem que exigem a justiça e a paz para sua conservação”.

E na questão em que Santo Tomás estuda se a justiça é


uma virtude geral (II-II, q. 58, a. 5), expressa-se de forma mais
categórica, quando cabe:

164
Funções da Autoridade

“Respondo dizendo que, como se disse (art. 2), a justiça ordena o


homem em relação ao outro; o que pode se efetuar de dois modos:
de um modo, com respeito ao outro singularmente considerado; de
outro modo, ao outro em geral, isto é, enquanto aquele que serve
alguma comunidade, serve também a todos os homens que integram
aquela comunidade. Num e noutro caso, portanto, a justiça pode
se referir em virtude de sua natureza. Ora, é manifesto que todos
os que vivem numa comunidade são, com respeito à comunidade,
como partes de um todo; ora, o que a parte é, pertence ao todo; daí
que qualquer bem da parte é ordenável ao bem do todo. De acordo
com isso, o bem de qualquer virtude, seja quando ordene o homem
com respeito a si mesmo, seja quando o ordene com respeito a outras
pessoas singulares, é referível ao bem comum, ao qual ordena a
justiça. E de acordo com isso podem pertencer à justiça, na medida
em que ordena o homem ao bem comum, os atos de todas as vir-
tudes. E assim como pertence à lei ordenar ao bem comum, como se
sustentou acima (I-II, q. 90, a. 3), daí que tal justiça se chame legal,
porque por ela o homem se conforma com a lei que ordena ao bem
comum os atos de todas as virtudes”

Desta doutrina se deduz que não deve haver, então, dentro


dos âmbitos de um Estado, nada que se refira ao bem comum
que não possa ser regulado pelo Estado. O Estado é um ver-
dadeiro promotor do bem comum. Neste sentido é aceitável o
totalitarismo, como ensina Pio XI:

“Nós cremos que se pode entender como bom um totalitarismo


no sentido de que para tudo aquilo que é competência do Estado,
segundo seus fins próprios, a Totalidade dos cidadãos de um Estado
atenha-se às diretivas do Estado e do regime, e a defensa dele;
cabe, portanto, atribuir ao Estado e ao regime um totalitarismo que
poderemos chamar subjetivo. Mas não podemos dizer o mesmo de
um totalitarismo objetivo, no sentido de que a totalidade dos cida-
dãos deve ater-se ao Estado e depender dele, e, pior ainda, só dele,

165
CAPÍTULO 4

ou principalmente dele, para tudo aquilo que possa ser necessário


para o desenvolvimento de sua vida individual, doméstica, espiri-
tual e sobrenatural”2.

Estas palavras do Romano Pontífice especificam em que


sentido se deve admitir um totalitarismo do poder estatal. E tudo
que dissemos, desde a primeira página do presente livro, fixa da
mesma forma com precisão o sentido exato deste totalitarismo
estatal. Porque se o Estado deve propor como supremo obje-
tivo de sua missão o bem comum, não deve pretender realizá-lo
por si mesmo e diretamente, absorvendo todos os direitos dos
indivíduos ou sociedades pré-existentes, senão através deles,
canalizando-os, harmonizando-os, tendo presente que não é
ele o criador único desse bem comum, senão tão somente seu
regulador e promotor, já que o deve realizar os indivíduos e
sociedades particulares, ainda que sob sua suprema regulação.
O Estado deve ter presente, por outra parte, que deve procurar
o bem comum humano, ou seja, não quaisquer bens, senão bens
que sejam efetivamente capazes de aperfeiçoar os homens de
uma coletividade, os quais, como dizíamos no primeiro capí-
tulo, são corpo e alma subordinados hierarquicamente; bens,
então, materiais, mas sobretudo intelectuais e espirituais, e
aqueles subordinados às exigências desses.
O Estado deve recordar, finalmente, que esses bens não devem
satisfazer as exigências ou os caprichos de um dia, senão que
devem ser integráveis no acervo cultural da nação. Daí que

2
Acta Apostolicae Sedis, t. 23, 1931, pág. 147. NC. A citação é do Quirógrafo Dobbiamo intrattenerla, de
Pio XI ao Beato Cardeal Schuster de Milão, em defesa da Ação Católica Italiana, de 26 de abril de 1931.

166
Funções da Autoridade

seja tão profunda a fórmula o Estado deve servir à nação, enten-


dendo por Estado o regime político de um povo e por nação a
totalidade das forças de uma determinada sociedade com este
ímpeto que trazem das gerações passadas e com este desejo
que as move a trabalhar pelo acréscimo do patrimônio coletivo
de bens, perpetuado através de gerações.
É então o Estado a autoridade suprema que canaliza, regula,
promove, por uma disciplina de sábias leis, os esforços dos in-
divíduos, das famílias, das sociedades particulares, para que esse
acervo comum de bens cresça cada dia, e venha assim beneficiar a
todos que participam desta coletividade, que podem, em tal meio
e ambiente, encontrar as condições de sua felicidade terrena sem
prejuízo para tender também à celeste para qual foram criados.
A função do Estado reduz-se então a que, sem pretender
diminuir os direitos das unidades particulares que lhe estão
subordinadas, proteja-as no exercício de seus legítimos direitos,
e promova e ordene a totalidade de seus esforços ao bem comum
da nação.
O bem comum, então, fixa os termos precisos de um são e
necessário totalitarismo.
Apesar de insistirmos tanto em sustentar a doutrina tomista
que indica como função própria e primordial do Estado a ma-
nutenção do direito público, cremos que esse modo de expor a
doutrina sobre as funções da autoridade, ainda que seja mais
profundo e exato, não dista nas aplicações concretas, do modo
que usam Antoine e os autores católicos mais recentes, quando
reduzem a duas as funções do Estado. Uma primeira e absoluta
que chamam de proteção dos direitos ou tutela jurídica e outra
segunda, secundária, supletiva, que chamam de assistência,

167
CAPÍTULO 4

pelo que condensam toda sua exposição na conhecida fórmula


de que o Estado não deve fazer nem deixar de fazer senão
ajudar a fazer.
A linguagem utilizada pelos Romanos Pontífices, particular-
mente por Pio XI na Quadragessimo Anno3, parece inspirada neste
modo de exposição que, ainda que menos filosófico, pode resultar,
na prática, mais útil, mais jurídico, e muito mais conveniente,
tendo em conta a confusão presente, não só pela incapacidade
metafísica dos homens modernos, senão também pela condição
dos Estados modernos que não fazem o que devem fazer e se
intrometem a fazer o que não devem. Pode resultar, sobretudo,
mais conveniente para fazer compreender a um mundo que des-
truiu todos os órgãos intermédios entre o indivíduo e o Estado, a
necessidade imperiosa, inevitável, de os restituir, se o Estado
quer, de verdade, deixar de fazer o que não deve fazer para se
limitar a fazer o que deve.
O que de todas as maneiras se deve repetir oportuno et importune
contra a estupidez sentimental do demoliberalismo é que o Esta-
do não tem outra razão de ser senão impor uma ordem pública de
convivência humana, baseada na justiça. Esperar que esta ordem
nasça sozinha, pela livre ação dos particulares, é não conhecer o
homem e é sobretudo perverter a noção do Estado.
Se o Estado se desinteressa da moral pública, perde sua
razão de ser.
Precisamente nisso se funda a grande tragédia da sociedade
moderna. Que não somente o Estado não impõe a ordem pú-

3
Encíclica de 15 maio de 1931.

168
Funções da Autoridade

blica, senão que a altera e corrompe. Os costumes públicos e “a


sociedade” são piores, mais imorais e mais desprovidas de caráter
que os indivíduos. A totalidade pesa com seus costumes sobre a
moral de seus membros, e corrompe a maioria deles. A maior
parte estaria contente de poder viver livre segundo sua cons-
ciência; mas sucumbe ao poder corruptor da moral pública,
porque o poder de fazer-lhe frente, sem prejudicar o caráter,
só é próprio de uns poucos favorecidos por Deus.
Sob este conceito, nossos avós viviam em melhor situação.
Nem todos foram santos naqueles tempos, demasiado louvado
às vezes; mas os tempos, como tais, eram melhores que os
nossos, e muito melhores. A causa consistia no severo poder
que exerciam os costumes sociais4.
Muitos indivíduos viviam pessoalmente numa situação
pior que seus descendentes atuais, aos quais faltam o vigor e a
força para se entregarem às suas perversas ambições. Mas se
se mostravam em público eram excomungados pela moral e os
costumes. Se tentavam se passar pelo que não eram, podiam
estar seguros de que seriam expulsos de sua corporação ou de sua
classe, considerados como falsários e expulsos da sociedade. As-
sim exigia o caráter público dessa última. Aquele que não queria
perder suas honras e vantagens, devia respeitá-la. Isso devia,
naturalmente, repercutir, de modo benéfico, no caráter pessoal.
Ocorre hoje precisamente o contrário. Pessoas que não são
más nem hostis à religião, numa esfera mais restrita, mais
circunscrita, mostram, desde que se apresentam em público,

4
Le Play, La Reforme Sociale, III, 6 ss.

169
CAPÍTULO 4

uma falta de princípios e uma tal debilidade de caráter, que com


frequência oprime a si mesmos. Evidentemente, isso acontece
porque não estamos protegidos por instituições sólidas, pela tra-
dição e estima pública, contra as influências sedutoras do mundo5.
O Estado, então, único que cinge a espada, deve ser o per-
manente protetor da moral e do direito público. Neste sentido
a tutela jurídica, compreendendo principalmente e sobretudo
o direito público, é a função própria e específica do Estado.
Assim deverá ser entendido quando utilizemos esses con-
ceitos nas páginas seguintes.

O ESTADO E A FAMÍLIA

Indicando o princípio que rege a questão das funções estatais,


é oportuno descer às particularidades.
A família é o primeiro organismo natural do corpo social
que deverá ser tutelado pela ação do governo. Leão XIII, e mais
recentemente Pio XI, na encíclica Casti Connubii6, pontuou de
forma completa os deveres do Estado para com a família. Dever
de assistência para “remediar a penúria das famílias carentes tanto
quando legisla como quando se trata da imposição de tributos”, dever de
defesa impondo “leis relativas à fidelidade conjugal, ao mútuo auxílio dos
esposos e coisas semelhantes”.
Defesa que não alcançará o caráter de católica se não for
feita em harmonia com a Igreja, como o destaca e ilustra o

5
Alberto Weiss, O. P., Apología del Cristianismo, VIII, pág. 303.
6
Encíclica de 31 de dezembro de 1930.

170
Funções da Autoridade

próprio Pio XI com o exemplo da concordata entre Santa Sé


e Itália, onde se estabelece: “A nação italiana, querendo restituir ao
matrimônio, que é a base da família, uma dignidade que esteja em
harmonia com as tradições de seu povo, reconhece efeitos civis ao
matrimônio que se conforma com o direito cristão”.
O matrimônio civil, ao invés, é pernicioso, e o Estado, ao
legislá-lo atenta contra os direitos da Igreja e contra a dignidade
da família, pois na prática o matrimônio civil é a legislação
do concubinato. O Estado tem direitos com respeito à família
relativamente aos efeitos civis dela, mas esses direitos são
alcançados senão em harmonia com o poder religioso, que os tem
de modo mais elevado, pois dizem respeito à própria substância
do matrimônio.

O ESTADO NA EDUCAÇÃO E NA CULTURA

Dependente da família está todo setor educativo e cultural,


que tem por missão o aperfeiçoamento da mesma. Por isso, o
direito de ensinar e desenvolver a cultura pertence aos parti-
culares que integram as famílias, às próprias famílias, ou aos
grupos sociais intermediários, ao próprio Estado e à Igreja, e
tudo isso em proporção diversa.
Às famílias pertence por um direito originário concedido
por Deus, autor da natureza. Como ensina Santo Tomás (II-II,
q. 102, a. 1), o pai de família é o princípio da geração, educação
e disciplina; e por isso reclama originária e inviolavelmente os
direitos da formação do homem enquanto homem, a quem se
dirigem todos os esforços da educação e da cultura.
O que por um direito natural pertence à família, por direito

171
CAPÍTULO 4

sobrenatural pertence também à Igreja. Com efeito, à Igreja


concedeu Cristo todo poder de ensinar (Mt 28, 19). Ela também
é Mãe, em cujo seio nascem os cristãos, sobre os quais tem
direito irrenunciável de formar não só como homens senão
também como cristãos.
Também o Estado pode invocar direitos sobre a educação e
a cultura, pois a ele está confiado o bem comum da sociedade, ao
qual contribuem eficazmente tanto uma como a outra. Mas o
Estado não tem um direito originário de criar educação e cultura,
porque isso pertence às famílias e à Igreja. O homem e as fa-
mílias, com todas as suas atividades, são anteriores ao Estado,
e se desenvolvem, de per se, no setor privado da vida. Neste se
desenvolvem também a educação e a cultura. Mas ao Estado
compete um direito de vigilância, de coordenação, de promoção,
encaminhando ao bem comum todos os esforços dos particu-
lares também neste plano. Portanto, sendo um e o mesmo o
sujeito da educação, as três sociedades devem coordenar seus
esforços para que essa tarefa se cumpra convenientemente e
se consiga a perfeita educação do homem cristão, em proveito
da família, da sociedade civil e da Igreja. Essa coordenação de
esforços deve respeitar o direito originário tanto natural da
família como sobrenatural da Igreja; e em consequência o Estado,
que por dispor da força material está mais exposto aos abusos de
poder, deve se limitar estritamente aos seus direitos.
O Estado deve primeiramente proteger e apoiar o esforço
educativo das famílias e da Igreja. A elas corresponde, com um
direito anterior como dissemos, tomar a iniciativa e desenvolver
todo um programa educativo da infância e da juventude. O
Estado pode também suprir e completar a ação da Igreja e das

172
Funções da Autoridade

famílias abrindo escolas onde, sempre dentro das normas e


do espírito da Igreja e das próprias famílias, se dê instrução
e educação. Particularmente corresponde ao Estado reservar
para si a instituição e direção das escolas preparatórias para
alguns de seus cargos, notavelmente para os militares, con-
tanto – também aqui – que tenham cuidado para não violar
os direitos da Igreja e das famílias no que a elas concerne. Em
geral, pois, não só a juventude, senão para todas as idades e
condições, pertence ao Estado a educação que pode se chamar
cívica, que consiste na arte de se mover convenientemente em
ordem à convivência civil.
O que dissemos implica a reprovação de todo monopólio
escolar, seja direto, seja indireto, como quando o Estado se
arroga a atribuição exclusiva de uniformizar programas e mé-
todos de ensino. De modo particular, há de se reprovar ener-
gicamente o laicismo escolar. Esse disparate foi sugerido pelo
diabo para reconquistar a terra cristã, e, como obra digna do
diabo não podia ser mais injusto. Nossa lei 14207 de educação
comum adoece, dentre outras coisas, desta enfermidade. Viola os
direitos de Deus, que deve reinar como mestre da inteligência e

7
NdT. Neste particular específico, pareceu imprescindível acrescentar esta nota escrita pelo Rev. Padre
Arturo A. Ruiz Freites I.V.E., para primeira edição italiana desta obra:
A Lei 1420 de educação comum geral da Argentina marcou uma girada nacional de tipo laicista
liberal e estatista que impôs a educação compulsiva secular excluindo o ensino tradicional da religião
do horário escolar com o artigo 8, e foi ocasião de grande controvérsia pública. Foi imposta em 1884
durante a governo do presidente Julio Argentino Roca, após as contestadas conclusões do Congresso
Pedagógico de 1882. Isso causou um conflito grave e duradouro entre o governo argentino e a Igreja
Católica, e o massivo protesto dos católicos argentinos. Na defesa da educação católica se destacaram
entre os leigos o eminente orador e legislador Dr. José Manuel Estrada, Pedro Goyena, Emilio Lamarca,
Tristán Achával Rodríguez, Nicolás Avellaneda; entre os clérigos, o Núncio Apostólico Mattera (foi expulso
do país) e o Vigário Capitular de Córdoba, Jerónimo Clara, que protestou com veemência contra a imposição
de professores e diretrizes protestantes estado-unidenses convocadas pelo governo. A lei perdurou por
cerca cem anos, com nefasto influxo sobre a sociedade argentina, predominantemente de maioria católica.

173
CAPÍTULO 4

no coração da criança; os direitos de Cristo, que comprou com


seu sangue sua alma; os direitos da Igreja, que a fez seu filho
no sacramento da regeneração e a alimenta com sua vida no
sacramento da comunhão; os direitos dos pais, que têm que
velar por sua educação total; e, por fim, os direitos da criança,
que se necessita de algo com urgência é precisamente de Deus.
Não há razão que justifique em nenhum caso o laicismo,
como não há em nenhum caso motivo para envenenar ninguém.
Se nas escolas, assistem crianças de diferentes crenças, respeite-se
o direito de todos e se proporcione a cada um uma educação
conforme as suas crenças; não é justo que com o laicismo ou
neutralidade se violem os direitos de todos.
Ensina Pio XI, na Divini Illius Magistri8:

“Nem se diga ser impossível ao Estado, numa nação dividida em


várias crenças, prover à instrução pública por outro modo que não
seja a escola neutra ou a escola mista, devendo o Estado mais ra-
zoavelmente, e podendo também mais facilmente, prover, deixando
livre e favorecendo até com subsídios a iniciativa e obra da Igreja e
das famílias. E que isto seja realizável com satisfação das famílias,
com utilidade da instrução, da paz e tranquilidade pública, bem o
demonstra o fato de haver nações divididas em várias confissões
religiosas, onde a organização escolástica corresponde ao direito
educativo das famílias, não só quanto ao ensino, particularmente
com a escola inteiramente católica, para os católicos, mas também
quanto à justiça distributiva, com o subsídio financeiro da parte do
Estado, a cada uma das escolas desejadas pelas famílias.

Noutros países de religião mista procede-se diferentemente com não


leve encargo dos católicos que, sob os auspícios e direção do Epis-
copado, e pela ação incansável do clero secular e regular, sustentam

8
Encíclica de 31 de dezembro de 1929. Texto disponível em português em: www.vatican.va

174
Funções da Autoridade

à própria custa a escola católica para os seus filhos, que a reclama


a gravíssima obrigação de sua consciência, e com generosidade e
constância, dignas de louvor, perseveram no propósito de assegurar
inteiramente, como eles proclamam à maneira de divisa: 'educação
católica, para toda a juventude católica, nas escolas católicas'. O que,
se não é auxiliado pelo erário público, como por si exige a justiça
distributiva, não pode ser impedido pela autoridade civil, que tem a
consciência dos direitos da família e das condições indispensáveis
da legítima liberdade. Onde quer que esta liberdade é impedida ou
de vários modos dificultada, nunca os católicos se esforçarão demais,
ainda à custa de grandes sacrifícios, para sustentar e defender as suas
escolas, e para procurar que se promulguem leis escolares justas”.

Ademais, o ensino atual não só é mau por monopolista e


laicista, senão também por enciclopedista e puramente memo-
rista. A criança e o adolescente não adquirem uma formação
de hábitos intelectuais e morais. São-lhes transmitidos conhe-
cimentos puramente teóricos, e dispersos, que não podem ser
assimilados pela inteligência porque carecem de estrutura in-
teligível. Por outra parte, a educação da afetividade e do caráter
da criança é totalmente abandonada. As várias dimensões que
compõem o homem não se desenvolvem harmonicamente. Ao
não dar à criança e ao jovem o sentido da vida, se lhe incapacita
para seguir sua vocação e cumprir a missão que lhe cabe na
família, na comunidade nacional, no mundo e mesmo no Uni-
verso. Toda criança e todo jovem, mesmo antes de agir, já é um
fracassado. E o fracasso das gerações que se lançam na vida,
devido em grande parte ao nosso péssimo ensino primário e
médio, determina o fracasso da vida social. E para isso carecemos
de pessoal para cumprir uma missão na vida pública e política da
nação. Ela não conta com gerações bem formadas, que possam

175
CAPÍTULO 4

fazer frente à solução dos problemas que se lhes apresentam


no seu desenvolvimento.
A Universidade não pode ser medianamente boa num país
se as escolas primária e secundária não são boas. Em primeiro
lugar, entre nós, até pouco atrás, a edificação de Universidades foi
função exclusiva do Estado. E é claro que não há nenhuma razão
válida que justifique esse regime de monopólio, e ainda menos
quando a penetração de uma ideologia marxista se apoderou
de todos os quadros da Universidade, convertendo-a num foco
de perversão das inteligências e de disseminação de deletérios
germes sociais.
No plano universitário, corresponde ao Estado estimular e
proteger o que faz a iniciativa dos particulares. Como órgão
regulador da vida social, não lhe toca suplantar os particulares
em suas atividades e direitos, senão só dirigir seus esforços em
busca do bem comum. Pode invocar como privativo, no entanto,
o controle e vigilância do exercício de profissões que visam à
vida pública, como medicina, arquitetura, advocacia, etc.
Seja quando erija universidades, seja quando estimule e
garanta aquelas estabelecidas pelos particulares, o Estado
promoverá, caso seja necessário, a existência de um regime em
que se crie a alta cultura e a investigação em todos os aspectos do
saber científico, e em que se preparem os jovens para o exercício
das profissões mais excelentes e se capacitem os grupos que
devem dirigir a cultura e a vida nacional.
Essa cultura superior que deve formar os primeiros e mais
influentes quadros da vida nacional, para dali descer, por
graus, até os estratos intermédios e inferiores, deve estar regida
pela concepção católica da vida. É necessário se persuadir que

176
Funções da Autoridade

em certos saberes, como nos filosóficos, ou dele dependentes,


não pode haver neutralidade. Se a cultura não é católica, será
iluminista ou materialista. Mas não poderá deixar de ter uma
conformação que a qualifique. Isso não será obstáculo para
que, dada a atual divisão dos espíritos, possa se exercer certa
tolerância para doutrinas mais ou menos problemáticas,
sempre que sejam sustentadas com seriedade científica e que
sejam ensinadas um pouco à margem do quadro central do ensino,
que deve ser verdadeiramente formativo. Outra característica que
deve distinguir esse saber, especialmente nos ramos históricos,
deve ser sua marca nacional, ainda que sem fobias nem filias.
Conectado com os problemas da educação está o grave
problema da cultura popular. Sabido é que ela se difunde hoje
por meio da literatura, da imprensa, do rádio, do cinema e da
televisão. O Estado deve deixar toda esta atividade ao domínio
privado, exercendo, no entanto, suas funções de vigilância e
estímulo não só no que se refere aos bons costumes mas também
no que visa ao bom gosto e educação do povo.

O ESTADO E A ECONOMIA

A economia não pertence ao setor público, mas ao setor


privado da vida social. Consequentemente, as relações entre
operários e empresários na unidade de uma empresa, de uma
empresa com outra, de uns ramos de produção com outros,
tudo isso pertence ao setor privado, porque se trata das relações
de uma parte com a outra dentro do organismo social. O Estado
pode e deve intervir, mas não como uma parte, senão de fora, em
outro plano, como poder regulador que estabelece a legislação

177
CAPÍTULO 4

que condiciona o âmbito da justiça dentro do qual devem se


mover as partes.
O liberalismo negou ou restringiu toda intervenção do Estado
na economia. O socialismo, pelo contrário, fez da economia uma
atividade essencialmente pública e estatal. Uma e outra posição
são equivocadas. Deve-se afirmar contra o socialismo o caráter
privado da atividade econômica, é também necessário assentar
contra o liberalismo a necessária regulação do poder público. Essa
é tanto mais indispensável se na atividade econômica é desen-
volvida uma luta de interesses que faz difícil a sobrevivência
dos setores mais frágeis. Se se dá liberdade absoluta às forças que
intervêm no processo econômico, as mais poderosas devorarão
as inferiores. Aqui não há um problema tão somente de jus-
tiça. Sabido é que em economia uns setores interdependem
reciprocamente de outros. Assim por exemplo, a classe que
recebe soldos e salários depende da classe empresarial, que
busca fazer maiores seus benefícios. Essa classe, incitada pelo
aumento de seus benefícios, pode estar tentada a reduzir os
soldos e salários dos operários e empregados. Mas a longo
prazo, comprimindo o volume dos soldos e salários, reduz-se
também o consumo, já que a massa de assalariados constitui
a massa de consumidores. Sem vendas regulares e contínuas,
as empresas não podem assegurar seu funcionamento, com o
que o processo regular da economia se deteriora. E, no final,
detém-se. As célebres crises periódicas se fizeram tão violentas
durante o capitalismo liberal por ter aguçado o desajuste entre
os diversos grupos que intervêm, com interdependência, no
processo econômico.

178
Funções da Autoridade

O equilíbrio e desenvolvimento harmônico das forças eco-


nômicas não se obtém se o poder público, colocado acima e
além dos interesses das partes, não intervém para alcançar uma
justa harmonia entre todas elas. Pelo mero jogo automático não se
obterá esse equilíbrio harmônico. É certo que no processo econô-
mico existem algumas conexões necessárias de uns fatores com
outros. Mas não todas as conexões são necessárias. Além disso,
embora de alguns pressupostos possa se seguir, com certa
necessidade, determinadas consequências, os pressupostos
mesmos não são sempre necessários. Sempre cabe o governo
racional dos fatores e do processo econômico.
O poder público deve governar a economia estabelecendo
tal regulação nas forças e grupos que criam a renda nacional,
para que se efetue uma distribuição equitativa desta mesma
renda entre todos os que contribuem para criá-la. Para isso,
deve subordinar o processo econômico com seu relativo fun-
cionamento automático, a um jogo equilibrado e harmônico
em que todos os que nele intervenham consigam sua par-
te correspondente. Com este fim, o Estado, colocando-se do
ponto de vista da economia nacional, deve estabelecer uma
conveniente legislação e regulação. Para confirmar esta dou-
trina, vem ao caso os precisos ensinamentos de Pio XII, em
03 de junho de 1952, na Carta ao presidente das semanas sociais da
França, quando diz:

“Estas poucas reflexões mostram já a dificuldade de uma sã distri-


buição; para responder às exigências da vida social, ela não pode ser
abandonada ao livre jogo das forças econômicas cegas, mas deve ser
considerada no nível da economia nacional, porque é aqui onde se
tem uma clara visão do fim que se deve conseguir, ao serviço do bem

179
CAPÍTULO 4

comum temporal. Ora, quem considera assim as coisas é levado a se


interrogar sobre as funções normais, embora restritas, que pertencem
ao Estado, nestas matérias. Em primeiro lugar, o dever de aumentar
a produção e de a proporcionar sabiamente às necessidades e à
dignidade do homem, coloca em primeiro plano a questão do orde-
namento da economia no capítulo da produção. Agora, sem substituir
sua onipotência opressiva à legítima autonomia das iniciativas
privadas, os poderes públicos têm aqui uma função inegável de
coordenação, que se impõe sobretudo nas complicadas condições
da vida social. Em particular, não é sem seu concurso que se pode
construir uma política econômica de conjunto que favoreça a ativa
cooperação de todos e o crescimento da produção das empresas,
fonte direta da renda nacional”.

Na função de governar a economia, assegurando um har-


mônico desenvolvimento de todas as partes que intervêm no
processo, o Estado deve intervir primeiramente por uma sábia
legislação, e logo também através da moeda, do crédito e da polí-
tica fiscal. A legislação nesta matéria será tanto menos frondosa
quanto maior for o grau de estruturação das forças sociais.
Nunca se insistirá o suficiente em que não pode haver justo
ordenamento econômico enquanto não se sigam as diretrizes
pontifícias, tão magnificamente expostas por Pio XI, na Qua-
dragesimo Anno, sobre o Regime Corporativo.
O manejo da moeda e do crédito, dada sua conexão tão direta
com toda a vida da comunidade, é função privativa do Estado.
Sabido é que um maior ou menor volume de moeda e crédito
afeta todo corpo social, favorecendo uns grupos ou prejudicando
outros. Portanto, seu manejo deve pertencer ao Estado, a quem
corresponde cuidar com justiça do bem-estar social.
No manejo da moeda e do crédito, o Estado deve evitar
igualmente as duas armadilhas que são a deflação e a inflação.

180
Funções da Autoridade

O dinheiro em circulação deve estar de tal modo proporcionado


ao processo de bens e serviços que favoreça o desenvolvimento
harmônico de toda economia nacional. Se houver grupos que
se desenvolvem demasiado em detrimento de outros que perma-
necem submersos, é obrigação do Estado, mediante uma sábia
política creditícia e fiscal, assegurar a reciprocidade nos câmbios,
que é a grande lei que deve presidir a economia nacional9.
A política fiscal, que será instrumento para impor um de-
senvolvimento harmônico dos grupos sociais, deve evitar
o terrível mal da burocracia, que ameaça coletivizar a atual
sociedade. Se o Estado se limitar à sua função irrenunciável
de regular a vida comum e não quiser assumir as funções de
educador e de empresário, reduzirá enormemente seu atual
tamanho, com visível proveito para o corpo social.
O Estado deve também defender, com uma sábia política adu-
aneira e de preços, a economia nacional, de modo que logre sua
unidade natural, o que por sua vez requer o desenvolvimento mais
harmonioso possível de todos os meios de produção no interior
do território habitado por um povo. Consequentemente, o Estado
deve estimular as relações econômicas internacionais como fun-
ção positiva e necessária, mas subordinada ao desenvolvimento
da economia nacional.
Por último, tendo em conta que, em razão do progresso da
ciência e da técnica, o desenvolvimento econômico é altamente
dinâmico, o Estado deve, com o concurso de todas as forças pri-
vadas, tomar a iniciativa na elaboração de planos periódicos de
desenvolvimento da economia nacional para que alcance um

9
Ver meu livro Conceptos Fundamentales de la Economía.

181
CAPÍTULO 4

alto nível, em consonância com o dos países mais adiantados,


para o melhor bem-estar da comunidade.

O ESTADO E A COMUNIDADE INTERNACIONAL

O que até aqui apontamos se refere à conservação da paz


interna, mas é necessário assegurar também a paz frente aos
inimigos externos.
Para garantir a paz exterior será necessário guardar relações
diplomáticas com as demais nações e contar com forças armadas
íntegras e tecnicamente capazes para quando for necessário
recorrer a elas. Não há dúvida de que é mais humano e mais
cristão resolver os conflitos pacificamente, atendendo a razões de
direito, mas o direito é coisa frágil se a força não o respalda. A teo-
logia cristã, que faz da caridade a rainha das virtudes, justifica toda
a guerra empreendida pela reinvindicação de um direito, sempre
que não haja outro modo pacífico de assegurá-lo. A caridade não
destrói a justiça, mas a corrobora e eleva.
Como dizíamos anteriormente, o supremo objetivo a que deve
aspirar a ação do Estado é robustecer o sentido da nacionalidade
nos cidadãos; para isso deve tender a aumentar o acervo da civi-
lização, de cultura, de valores espirituais, que, legados pelos mais
velhos, constitui para os povos de um território, de uma língua, de
uma mesma vida em geral, o que se chama nação.

“A lei natural nos ordena amar com um amor de predileção e defender


o país onde nascemos e onde fomos educados, até tal ponto que o bom
cidadão não tema enfrentar a morte por sua pátria”10.

10
Leão XIII, Sapientiae Christianae, de 10 de janeiro de 1890.

182
Funções da Autoridade

“O amor à pátria e à própria terra é uma fonte poderosa de múltiplas


virtudes e de atos de heroísmo quando se acha regulado pela lei cristã”11.

Mas o amor à própria nação, para que seja virtuoso, deve


se basear no respeito dos direitos dos demais. Daí que a Igreja
condena um “nacionalismo” tão inimigo da paz verdadeira e
da prosperidade como cheio de exagero e falsidade.

“Os outros países têm, como o nosso, direito à vida e à prosperidade.


Não é permitido nem é sábio separar o útil do honesto: ‘A justiça faz a
grandeza das nações, o pecado faz a desgraça dos povos’ (Prov 14, 34).
Porque se um Estado obteve vantagens em detrimento de outros,
isso poderá parecer aos homens uma ação brilhante e de alta política;
mas Santo Agostinho nos diz com sabedoria que ‘é uma felicidade
que tem o brilho e também a fragilidade do cristal, que se teme que
logo se quebre para sempre (De Civ. Dei , n. 3)’12.

Pio XII expôs os princípios de direito internacional que devem


reger toda política católica nas presentes circunstâncias de
desenvolvimento do mundo.
O caminho que leva à comunidade dos povos não tem como
norma única e última a vontade dos Estados, mas é Deus, autor
da natureza humana, quem dita ao homem este preceito de
superar, sem suprimir, a vida nacional e estatal, e se conjugar
numa comunidade que abrace todos os povos. Daí que sejam
também naturais os direitos que emanam deste primeiro direito
fundamental, tais como o direito à existência de cada Estado,
o direito ao respeito e ao bom nome, o direito ao próprio caráter

11
Pio XI, Ubi Arcano, de 23 de dezembro de 1922.
12
Ibid.

183
CAPÍTULO 4

e a uma cultura própria, o direito a desenvolver-se, o direito à


observância dos tratados internacionais.
É, portanto, a lei moral que emana da lei natural que funda
um direito internacional que assegura a todos os povos uma
paz justa e duradoura, fecunda de bem-estar e de prosperidade.
Daí que seja um erro conceber a soberania de um Estado como a
ausência absoluta de limites. Soberania significa poder supremo
e independente no âmbito nacional, nos casos que são de sua
incumbência, de modo que não se veja submetido a outro Estado.
Mas todo Estado está submetido diretamente ao direito inter-
nacional. A Soberania não é a divinização ou a onipotência do
Estado, como no sentido de Hegel ou da maneira de um posi-
tivismo jurídico absoluto.
A organização mundial das nações não deve se unificar num
unitarismo mecânico, senão que deve se estruturar como uma
unidade de unidades naturais que respeite a diversidade e
comum destino dos povos. Por isso, anterior à comunidade
mundial de Estados, e como preparação para ela, deve se pro-
mover a federação de povos que por razões históricas tenham
um destino comum.
No campo de uma organização mundial fundada sobre as leis
naturais não há lugar para violação da liberdade, da segurança e
integridade de outras nações, qualquer que seja sua extensão
territorial ou sua capacidade de defesa. Se é inevitável que os
grandes Estados, por causa de suas maiores possibilidades e de
seu poderio, tracem o caminho para a constituição de grupos
econômicos, isso não deve se efetuar à custa do desenvolvimento
dos países fracos. Também deve ser superada, para o bem da
paz internacional e da concórdia dos povos, a monopolização

184
Funções da Autoridade

das fontes econômicas e das matérias de uso comum, de modo


que nenhum povo seja delas excluído.
No campo de uma nova organização mundial fundada sobre
os princípios morais não pode haver lugar para uma guerra total
nem para uma corrida desenfreada armamentista. Não se deve
permitir que a desgraça de uma guerra mundial com suas ruínas
econômicas e sociais, com suas aberrações e perversões so-
ciais, caia uma terceira vez sobre a humanidade. Para pô-la ao
abrigo de tal flagelo é necessário que se proceda com seriedade
e honradez para uma limitação progressiva e adequada de ar-
mamentos. O desequilíbrio entre o armamento exagerado dos
Estados poderosos e o armamento insuficiente dos fracos cria
um perigo para a conservação da tranquilidade e da paz dos
povos, e aconselha chegar a uma limitação ampla e proporcional
na fabricação e posse de armas defensivas.
A Igreja pensa, ademais, que não se alcançará a paz efetiva
dos povos se não alcança a paz dos espíritos. Por isso, se deve
obter hoje a vitória sobre o ódio e a desconfiança, renunciando
à sistemas e práticas que alimentam um e outra. Daí a necessi-
dade de praticar, também na ordem das relações mundiais, a
veracidade, a justiça, a cortesia, a cooperação no bem e sobre-
tudo o sublime ideal sobrenatural do amor fraterno trazido
ao mundo por Cristo. Justamente nisso falham os organismos
internacionais que dirigem hoje a vida mundial. Inspirados
em princípios iluministas, longe de servir, muitas vezes, a uma
efetiva pacificação do mundo, dentro dos princípios cristãos
de convivência, fomentam a desconfiança que nasce de toda
postura falsa e enganosa.

185
CAPÍTULO 4

O ESTADO E A IGREJA

Antes se dizia que a função de defesa que deve exercer o Estado


deve ser cristã, católica. Porque o Estado deve ser católico.
A Deus lhe deve culto todo o humano, e o Estado, como vimos
no primeiro capítulo, é coisa essencialmente humana. Ademais, o
Estado, encarnação da soberania, é ministro de Deus, e como tal
lhe deve culto em razão do ministério que exerce.
A profissão de fé católica comportará a defesa e proteção
da Igreja Católica, a Sociedade Espiritual, pela qual se rende a
Deus de forma completa as homenagens que lhe são devidas.
Para entender como se exerce esta proteção, deve se recordar
aquelas palavras de Santo Agostinho:

“Como servem os reis ao Senhor senão proibindo e castigando com


severidade religiosa tudo que se faz contra os mandatos do Senhor?
Pois de um modo serve enquanto homem, de outro enquanto rei;
como homem serve vivendo fielmente, enquanto rei serve dispondo
as leis justas e proibindo as injustas”13.

Isto é, que a profissão e a proteção da fé católica se verificarão


se as leis são católicas.
Será, pois, necessário reprimir energicamente todas as licen-
ciosidades. O liberalismo, com suas decantadas liberdades de
pensamento e de imprensa, é repudiável num regime ajustado
às normas católicas. Por outra parte, torna impossível uma dis-
creta regulação da política. Porque se todo mundo pode pensar,
dizer e imprimir tudo que exigem seus apetites, criar-se-á uma
atmosfera pública relutante a toda regulação e se ampararão

13
NC. Cf. Santo Agostinho. Epistola 185, De Correctione Donatistarum Liber, 5,19.

186
Funções da Autoridade

legalmente as teorias e práticas subversivas da ordem social


mais elementar.
No que se refere à liberdade de culto, conhecidas são as
condenações fulminadas por Gregório XVI no Mirari Vos, Pio
XI no Syllabus e Leão XIII em suas Encíclicas.
Se a Deus se deve render culto, terá que ser certamente um
culto digno e aceitável a sua Divina Majestade. Se o Filho de Deus
veio nos ensinar que Ele é o Caminho, petulância imbecil seria
querer nos aproximar do Pai por outro caminho. Petulância que
nos levará, por nosso caminho, ao lugar das Trevas. O caminho é
Cristo, e com Cristo andamos se nos unimos como membros
ao seu Corpo que é a Igreja. Um só Cristo, uma só Igreja. Cristo,
cabeça; a Igreja, corpo. Cristo, a videira; a Igreja, os ramos. A
profissão de fé católica é nossa união com Cristo, e por Cristo
com Deus.
Se o Estado não deve ser indiferente, pode, no entanto, ser
tolerante. Tolerância que não brota do desprezo de Deus, nem
se mostra indiferente com respeito a todas as religiões, nem
oprime a verdade equiparando-a ao erro, senão que tolera, isto
é, permite o exercício de falsos cultos quando existem razões
que justificam esta tolerância.
Na sociedade liberal, em que se rompeu a unidade de crença,
seria desastroso perseguir os cultos falsos. Os erros não têm
direitos, mas os têm as consciências que erram. Se, em tese, o Estado
deve ser exclusivamente católico, na hipótese de diversidade de
crenças, deverá ser tolerante.

“A Igreja – ensina Leão XIII – em sua apreciação maternal tem em


conta a impiedade humana. Não ignora os movimentos que em
nossa época arrastam os espíritos e as coisas. Por esse motivo,

187
CAPÍTULO 4

embora não reconheça direitos senão ao verdadeiro e ao bom, não se


opõe, contudo, à tolerância, da qual crê poder e dever usar o poder
público (...) Deus mesmo, embora infinitamente bom e poderoso,
permite a existência do mal no mundo, seja para impedir males
maiores, seja para não impedir bens mais excelentes. Convém, no
governo dos Estados, imitar a sabedoria que governa o universo14”.

A proteção que o Estado deve à Igreja comportará, em tese,


uma ajuda econômica, porque a Igreja deve ser ajudada pelos
fiéis para os enormes gastos que demanda sua ação cultural e
caritativa; e como dizia antes, o Estado é o primeiro fiel.
Nas sociedades contemporâneas a ajuda oficial não se faz
por este conceito, senão em restituição dos bens espoliados nos
momentos em que o sectarismo se intensificou. Talvez tenha
chegado uma época em que conviria auspiciar uma indepen-
dência econômica absoluta da Igreja com respeito ao Estado.
Não parece espiritualmente vantajoso que a Imaculada Igreja
de Jesus Cristo esteja ligada por uns centavos – ainda que lhes
sejam devidos com justiça – com governos ímpios e insolentes,
no melhor dos casos, incompreensíveis dos direitos espirituais.
Ademais, essa ridícula ajuda dispensada serve de pretexto para os
que pretendem impedir a ação espiritual dos pastores (como se
fossem funcionários públicos) e para difundir nas envenenadas
massas não sei quantos embustes sobre a riqueza da Igreja.
Por último, a profissão de fé católica num Estado Cristão,
como a Idade Média conheceu, exige dele sua colaboração com
a Igreja para reprimir as heresias contumazes e públicas que

14
Encíclica Libertas, 20 de junho de 1888.

188
Funções da Autoridade

poderiam perturbar a unidade e corromper a fé do povo cristão.


Braço secular posto ao serviço da Igreja para reprimir a difusão
dos erros, e jamais para propagar a verdade.
Os direitos da Igreja e os do poder civil se devem harmonizar
por meio de um regime concordatário estipulado entre a Santa Sé e
os respectivos governos. Não cabe dúvida de que, embora um
e outro poder se desenvolvem em esferas diferentes, muitos e
graves pontos de contato existem numa e outra esfera para que
os conflitos não se produzam. Por isso, a separação é inadmissível,
em tese, e nas hipóteses correntes. A união substancial, tal como a
conheceu a Idade Média, pela plena subordinação do temporal ao
espiritual, é impossível pelo desequilíbrio que nas consciências e
nas instituições semeou o vírus liberal. Só é possível, então, que
ambos poderes se ponham de acordo e tratem de harmonizar
seus interesses numa concordata.
Deste modo, as nações, mesmo desmembradas no seu interior
por ideologias deletérias, serão revigoradas pela ação maternal
da Igreja, que paciente, mas de forma eficaz, irá higienizando as
inteligências e os corações das corrupções espantosas que gerou
nelas o liberalismo. Precisamente nesta hora em que o homem
perdeu a fé no homem porque para salvar a Europa, pensou-se no
Oriente e o Oriente segue corrompido como a Europa; pensou-se
na América, e a América é a Babilônia que vacila um momento
antes de cair. Agora há quem sonhe com um messianismo
reservado para a América Latina, quando já percebemos que a
América Latina sofre idênticos maus. Quando se perdeu a fé
no homem, digo, é necessário voltar com humildade penitente
ao seio da Mãe que abandonamos. Retorno à Mãe suave, para

189
CAPÍTULO 4

que Ela, antes de nos revestir com as prendas dos filhos, puri-
fique-nos do lodo que nos mancha. A Concordata fará possível
a ação suave e eficaz desta Mãe que nos devolverá a Vida.

“A CIDADE FRATERNAL” DE MARITAIN

É notório que Maritain defendeu a doutrina tradicional da


Igreja e do Estado em sua primeira época, quando escreveu
Antimoderne e Primauté du Spirituel. Mas depois de 1930 começou
a excogitar e elaborar uma cidade “cristã” para a nova época,
na qual, segundo ele, entra a humanidade. Escreveu então
Humanisme intégral e muitas obras de valor inferior, em que
defendeu a chamada “sociedade vitalmente cristã”. De um
modo particular, explicitou as linhas desta sociedade em Os
direitos do homem e a lei natural, e Cristianismo e Democracia.
Para a elaboração de sua cidade, Maritain começa por sepa-
rar – digo separar e não simplesmente distinguir – o plano da
cidade temporal do plano da Igreja, ou cidade espiritual. A
cidade temporal não se subordina - como exige a concepção
tradicional ensinada por Leão XIII na Immortale Dei – à Igreja, mas
se move por princípios inteiramente próprios e independentes
que buscam satisfazer igualmente as pessoas humanas que a
integram, qualquer que sejam suas crenças ou falta de crenças.
Ensina Maritain:

“Quem não crê em Deus ou não professa o cristianismo, pode, no en-


tanto, se crê na dignidade da pessoa humana, na justiça, na liberdade,
no amor ao próximo, cooperar para a realização de tal concepção da
sociedade (vitalmente cristã) e cooperar ao bem comum, embora não

190
Funções da Autoridade

saibam chegar aos primeiros princípios de suas convicções práticas ou


procurem fundá-las sobre princípios deficientes”.

Na proposta de Maritain há vários erros sumamente graves.


Primeiro, qualificar de cristã uma sociedade que não chega a ser
teísta. Não chega a ser teísta porque a sociedade, enquanto tal,
não professa a crença em Deus. E não a poderia professar, para
não exercer pressão sobre os possíveis ateus que encerraria em
seu seio.
Segundo, o alterar o conceito de cristão. Para ser cristão não
basta crer na dignidade da pessoa e em outros valores humanos;
é necessário crer, com fé sobrenatural, no mistério de Cristo e da
Igreja. E uma sociedade cristã é aquela que em sua legislação e em
sua vida vivida aceita as normas da lei natural e da lei evangélica,
sustentadas pela Igreja.
Terceiro, o rebaixar o esforço dos católicos que trabalham na
vida cívica. Os católicos que trabalham na vida cívica de nossas
cidades descristianizadas não devem se contentar com trabalhar
por um ideal puramente iluminista de uma cidade fraterna ou
humanista, senão que, seguindo o mandato expresso de Cristo,
devem “buscar em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e todas
estas coisas vos serão dadas em acréscimo." (Mt 6, 33). Os católicos, se
amam seus irmãos extraviados, devem tender à cidade católica,
porque só ela é solução dos problemas gravíssimos a quem estão
condenadas as sociedades modernas.
Quarto, o fato de que nas sociedades outrora totalmente
cristãs haja hoje divisão de crenças, não deve ser obstáculo a
que se trabalhe por uma cidade catolicamente conformada. A
prudência deverá indicar o grau de tolerância que deverá se

191
CAPÍTULO 4

ter para com os diversos erros e extravios. O que não deverá se


admitir é a consolidação de uma cidade fraternal iluminista,
onde todos os erros tenham os mesmos direitos que a verdade.
Quinto, a cidade católica exige que não só a sociedade esteja
conformada por uma concepção sobrenatural da vida, única
que merece se chamar vitalmente cristã, senão que de modo
particular o poder público se ponha ao serviço do reino de Deus.
É um erro sumamente grave insinuar, como faz Maritain, que o
poder público deve permanecer neutro com respeito aos direitos
de Deus. Precisamente a grande dignidade de que está dotado o
poder público e a eficácia que possui o forçam a promover o bem
comum da cidade, que não será tal senão encaminha os cidadãos
ao seu fim último, Deus, que é na realidade o único bem comum
absolutamente tal15.

15
Sobre os erros sociais-políticos de Maritain, ver meus livros, De Lamennais a Maritain e Crítica de la
concepción de Maritain sobre la persona humana.

192
CONCLUSÃO

𝔼 sboçou-se a natureza da política numa concepção católica.


Mas, é possível realizar uma política cristã?
Segundo se insinua no capítulo anterior, querer desejar
uma política cristã sem o Espírito cristão que move as almas não
só é impossível, senão que seria o mais pernicioso que poderia
acontecer a uma nação e à própria política cristã. Seria reproduzir
o grave erro da Ação Francesa. Ideólogos que fabricam uma
política por encargo, sem metafísica, teologia nem mística.
Se é assim, para que, então, estas páginas de política cristã?
Mistério fecundo será sempre se alcançamos levar a outros a
convicção de que a política, tal como a quer a Igreja, não é pos-
sível sem Jesus Cristo. Ele é Vida, Verdade e Caminho, e não há
nada, absolutamente nada, que seja verdadeiramente humano que
possa alcançar sua integridade sem Ele. Mais: todo o humano que
sem Ele nasça e se desenvolva cairá sob a proteção do diabo. A

193
CONCLUSÃO

política, pois, a política concreta, militante, do mundo moderno,


que devia ser cristã, e por malícia do homem não é, está amassada
em cinzas de condenação.
Mas eis que este mundo se desfaz. O homem moderno tinha
fixado seu ideal em realizar o “homo oeconomicus”, o homem regido
por suas necessidades econômicas. E acreditou ter triunfado
com a implantação gigantesca de indústrias, obra do homem
e para o homem.
Mas chegamos a um ponto em que o “homo oeconomicus”
sente que tudo nele é barro. Desfaz-se esse mundo imbecil
que pretendeu ser cômodo sem Jesus Cristo. Não que Cristo lhe
faça cômodo, pois a Cruz é o oposto ao “confort” dos burgueses.
Mas a loucura da Cruz, ao mesmo em tempo que restituía ao
homem a participação sobrenatural da vida da Trindade, sal-
vava-lhe a integridade de sua própria condição humana, fazia
possível sua vida de desterro.
A Igreja e Cristo, sua cabeça, nunca prometeu nada mais
do que a realidade presente permite. “Buscai em primeiro lugar
o Reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em
acréscimo." Prometeu-nos, é verdade, o reino dos céus e não
a comodidade da terra. Mas em acréscimo nos assegurava a
habitabilidade deste vale.
Os pretendidos filósofos, ao contrário, os teóricos da política
liberal e socialista, prometeram-nos o paraíso na terra, e nos
deram um confortável inferno aqui em baixo e a garantia do
inextinguível fogo na vida futura.
Afortunadamente para o homem, para os autênticos direitos
do Homem, que não são outros que os direitos de Cristo – Salvador
do homem – este mundo estúpido se desfaz. Nesta sua destruição

194
Concepção Católica da Política

se salvarão as pedras de um mundo novo. Este mundo novo não


o elaborará nem a economia, nem a política, nem a ciência, nem
sequer a sabedoria metafísica. Só a teologia, a sabedoria divina, em
sua realização autêntica que é a mística ou sabedoria dos santos,
poderá com seu hálito transformar a morte em vida. Um poderoso
sopro de santidade há de reanimar os despojos do mundo moderno.
E os católicos? Andaremos, enquanto isso, ansiosos por tomar
posições à direita, no centro ou à esquerda?
À direita, no centro, ou à esquerda de quem?
Rodeia-nos a podridão, e pretendemos nos situar no centro ou
a seus lados? Deixemos aos mundanos esses termos, e deixemos
que eles tomem posições nas filas do diabo.
Faremos aliança com o fascismo ou com a democracia?
Propiciaremos as conquistas modernas do sufrágio feminino?
Trataremos de cristianizar o liberalismo, o socialismo, a demo-
cracia, o feminismo?
Será mais salutar que nos cristianizássemos a nós mesmos.
Sejamos católicos. E como católico significa unicamente santo,
busquemos verdadeiramente ser santos.
A santidade é a vida sobrenatural. Não consiste em falar e
pensar na santidade. É vida. Se é certo que toma raízes na fé,
ou seja, no conhecimento sobrenatural de Jesus Cristo, não
culmina senão na Caridade, que é o amor de Deus sobre todas
as coisas e do próximo por amor de Deus.
A vida católica, plenamente vivida no exercício da caridade,
nos imporá, por acréscimo, uma fisionomia católica nas ma-
nifestações puramente humanas da vida: na arte, ciência, eco-
nomia e política. A superabundância da caridade dará lugar a
uma arte, ciência, economia e política católicas.

195
CONCLUSÃO

Esse é precisamente o programa da ação católica, a que com


instâncias supremas nos convida o Vigário de Cristo. Ação ca-
tólica, não ação nossa, não ação dos católicos como se fossem
uma agrupação partidária que tem que se defender como se
defendem os burgueses ou socialistas e comunistas.
Ação católica, isto é, ação do Pai por Jesus Cristo que vive
sobrenaturalmente na alma cristã; ação santa e santificadora;
ação impossível de se realizar, embora se possua uma ciência e
habilidade muito grande das coisas de religião, enquanto não
se esteja em contato com Jesus Cristo; ação cuja eficácia não
está em proporção do movimento ou da energia utilizada, mas
da santidade de que se vive.
Ação católica, que é o apostolado dos leigos com a hierarquia.
Mas que é apostolado, ou seja, atividade da santidade interior, que
por sua superabundância, derrama-se e comunica.
Ação católica, eis aqui a posição indispensável dos católicos.
Note-se bem: indispensável.
Será, então, necessário que nós católicos abandonemos as
lutas no próprio terreno político e econômico, e nos reduzamos
somente à ação católica?
A ação católica é a posição indispensável, mas não exclusiva.
Ela é a primeira, de modo que não podemos nos ocupar em outra
atividade se resulta em seu detrimento, e qualquer outra ativi-
dade deve ser exercida enquanto tenda, direta ou indiretamente, à
auxiliar a ação católica. O exige o sentido da hierarquia das obras.
Hierarquia não é absorção nem negação, senão afirmação dos
direitos autônomos na unidade do conjunto.
Salva, então, essa primazia da ação católica, os católicos
tendo em conta as exigências de sua fé e de sua missão, e as

196
Concepção Católica da Política

possibilidade de sua própria vocação, podem se dedicar espe-


cialmente a forjar a cidade católica em nossas sociedades des-
cristianizadas. O programa da cidade católica para os tempos
atuais já está elaborado. Em documentos públicos, Leão XIII,
São Pio X, Pio XI, Pio XII e João XXIII deram as bases de uma
ordem social cristã da sociedade. Nenhum problema funda-
mental, econômico ou político foi omitido. Só falta que os ca-
tólicos, com seriedade e honradez, assimilem essa doutrina
que constitui o direito público cristão. Digo com seriedade e
honradez, porque desgraçadamente, os católicos, em lugar
de escutar atenta e fielmente aos Pontífices (sem misturar o
que eles dizem com suas próprias concepções), às vezes fazem
uma mistura de princípios cristãos com liberalismo, socialismo
e comunismo, que resulta um perigoso explosivo.
Uma vez assimilados os princípios que devem reger a cidade
católica, devem se disseminar em todos os ambientes e estratos
sociais. Essa é, por excelência, a obra da cidade católica.
Referente a esta tarefa específica da construção em nosso
tempo da cidade católica, como missão que compete aos cidadãos
católicos, ainda que não seja propriamente uma missão de apos-
tolado, convém ter presente as palavras pertinentes de Pio XII aos
Comitês Cívicos Italianos, em 15 de abril de 19531. Dizia-lhes então o
grande Pontífice:

“Notai bem, desde que a humanidade realizou sua progressiva


apostasia, longe de Jesus, muitos mestres pretenderam O substituir
para a instruir e guiar; muitos construtores tentaram fornecer-lhe

1
NC. Na realidade a data deve ser 14 de abril.

197
CONCLUSÃO

as estruturas necessárias; muitos médicos empreenderam a cura


de suas enfermidades e chagas. Mas todos, no fim, encontraram-se
diante de uma humanidade desorientada, desanimada, sem força.
É necessário, portanto, com grandíssimo empenho, levar aos homens
a persuasão final que só Cristo é o único Mestre e de que só n´Ele,
se pode encontrar a salvação do mundo com todas suas estruturas e
dos homens com todos seus problemas. Non est in alio aliquo salus.
Um tal estado de coisas exige a intervenção pronta e animosa, não
só – é evidente – da Igreja docente e hierárquica, senão também
de todos os cristãos comprometidos no corpo social. Se trata de
sublinhar a necessidade de impregnar de sentido cristão todos os
campos da vida humana. Tal foi sempre a vontade de Cristo e a espera
de uma parte da humanidade, cansada de viver nas construções que
se desmoronam do mundo de hoje.
Considerai, portanto, queridos filhos, vossa vocação. Levai vossa
ação a todos os lugares e aos ambientes de todo tipo.
Não se pode dizer certamente que vós – como tais – sejais chamados
ao apostolado propriamente dito. Vós sois cidadãos que quereis vos
interessar mais diretamente na formação de melhores estruturas
econômicas, políticas, jurídicas e sociais...
Como cidadãos leais e ativos, buscais criar em todos uma consciência
cívica reta que leva cada um a ver como próprias as necessidades
da coletividade...
Como cristãos decididos à ação, considerais um dever vigiar que
nada chegue a ferir os interesses da verdadeira religião, da vossa
religião. Vós não formais um partido político, mas ninguém pode
vos negar o direito de vos unir, de vos organizar por todo meio
lícito, para que a legislação sobre a família, as normas para uma
distribuição mais equitativa da riqueza e para a educação da ju-
ventude, em todos os artigos que tocam o campo da fé e da moral
sejam realizados segundo os postulados do pensamento cristão e
do ensinamento da Igreja”.

198
Concepção Católica da Política

Cabe também ao católico intervir na gestão dos negócios


públicos e nas tomadas de decisões, mesmo da política partidária,
com respeito à busca do bem comum.
Nesta tarefa concreta da busca do bem comum, o católico
poderá se encontrar frente a dois tipos de problemas: uns, que
comprometem os direitos ou o bem da Igreja na vida da cidade, e
então o católico enquanto tal deve agir com fortaleza, sabendo
que sua atuação também cria diante da comunidade uma certa
responsabilidade da própria Igreja; os outros, em que não há
tal compromisso, deve se resolver sob sua própria e exclusiva
responsabilidade de cidadão, buscando, no entanto, dar-lhes
a solução que melhor contemple o bem comum, o qual, defini-
tivamente, concorrerá não só ao bem da nação, senão também
ao da Igreja.
Labor difícil e perigoso esse da ação política concreta, porque
se desenvolve num plano de fatos e contingências sumamente
variáveis, e por isso mesmo, difíceis de conciliar com os interes-
ses eternos; labor, no entanto, necessário, porque até ele deve,
em certa medida, chegar a influência da ação cristã; labor que
exige então, da parte dos que a ele se dediquem, uma vocação
especial, que é patrimônio de poucos, e sem a qual é preferível
se abster ou limitar estritamente as energias, que a ele dedicam,
à possibilidade do próprio esforço. Labor que deve se empre-
ender com entusiasmo, mas também com certa modéstia, sem
nos crermos predestinados a reformar ou melhorar tudo, como
se estivesse em nossas mãos o governo dos acontecimentos e
dos homens, e não fosse Deus quem, por caminhos que só Ele
conhece, dispõe todas as coisas para seus fins providenciais.
Labor, enfim, que pelo mesmo motivo que se desenvolve no

199
CONCLUSÃO

variável e num terreno escorregadio, entregue aos pareceres ou


disputas dos homens, não deve desunir os esforços de todos os
cidadãos, que no estritamente temporal, devem convergir para
o bem comum da nação; nem muito menos desunir os católicos
que, no espiritual, devem convergir sempre sua atividade e sua
vida ao cumprimento do supremo mandamento, para que todos,
unidos em Cristo, faça existir “um só corpo e um só espirito”,
como "há um só Deus e Pai de todos, que atua acima de todos,
por todos e em todos." (Ef 4, 4 e 6)

200
APÊNDICE 1

O Igualitarismo e o Evangelho

ℂ ertos católicos, imbuídos do espírito igualitarista de Rous-


seau, quiseram buscar no Evangelho um fundamento para
a democracia. Para isso, violentaram as passagens em que Jesus
Cristo afirma a preeminência dos pobres no Reino dos céus. Esses
católicos democratistas naturalizaram ou carnalizaram a verdade
sobrenatural do Evangelho.
1. O Evangelho e, consequentemente, a doutrina da Igreja,
nunca preconizou a igualdade aritmética dos homens nem na
ordem natural nem na sobrenatural.
Na ordem natural não, porque Cristo não veio destruir, senão
aperfeiçoar a lei (Mt 5, 17). Ora, a lei natural exige que a uma diver-
sidade natural corresponda direitos sociais e políticas desiguais,

201
APÊNDICE 1

segundo explica o Doutor Angélico nas passagens citadas.


Na ordem sobrenatural não, porque, como maravilhosamente
expõe o Apóstolo São Paulo, há na Igreja diversidade de méritos,
segundo a graça que se dá a cada um, por isso no Céu há diversas
moradas, como ensinava Cristo (Cf. Jn 14, 2). E “uma é a claridade
do sol, outra a claridade da lua e outra a claridade das estrelas; e ainda uma
estrela difere da outra na claridade" (1 Cor 15, 41).
Há, além disso, diversidade de funções na mesma Igreja,
porque “há diversidade de ministérios”, como ensina o Apóstolo
(1 Cor 12, 5).

"A um é dada pelo Espírito uma palavra de sabedoria; a outro, uma


palavra de ciência (...) Mas um e o mesmo Espírito distribui todos
estes dons, repartindo a cada um como lhe apraz. Porque, como o
corpo é um todo tendo muitos membros, e todos os membros do
corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é corpo
místico de Cristo (...) Assim o corpo não consiste em um só membro,
mas em muitos. Assim o corpo não consiste em um só membro, mas
em muitos. Se o pé dissesse: Eu não sou a mão; por isso, não sou do
corpo, acaso deixaria ele de ser do corpo? E se a orelha dissesse: Eu
não sou o olho; por isso, não sou do corpo, deixaria ela de ser do
corpo? Se o corpo todo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se fosse
todo ouvido, onde estaria o olfato? Mas Deus dispôs no corpo cada
um dos membros como lhe aprouve." (cf. 1 Cor 12, 5; 11-12; 14-18)

2. Afirmada a constituição hierárquica da economia natural


e da sobrenatural, o Evangelho ensina que a economia sobrena-
tural está regida por uma lei de apreciação contrária à economia
natural. No Reino dos céus são bem-aventurados os pobres, os
mansos, os que choram e os que sofrem perseguição pela justiça
(Cf. Mt 5).
Daí que no cristianismo o mérito sobrenatural se meça pela

202
O Igualitarismo e o Evangelho

loucura da cruz e não pela sabedoria das palavras ou pelo po-


der do mundo, e a hierarquia eclesiástica exige que o maior se
reconheça menor (assim o Sumo Pontífice é Servo dos servos
de Deus), porque Cristo, o Mestre, não veio para ser servido,
mas para servir.
Bossuet expôs essa doutrina em seu sermão sobre A eminente
dignidade dos pobres na Igreja. Os pobres entram por direito próprio;
os ricos não podem participar das riquezas sobrenaturais acaso
não consintam em abrir seus tesouros e distribuí-los aos pobres
depois de ter beijado humildemente seus pés.

203
APÊNDICE 2

Os três sentidos da palavra democracia

𝔸 filosofia deve, para não complicar tudo, distinguir três


sentidos na palavra democracia:
1. A democracia como tendência social recomendada pelos Papas
(demofilia, democracia cristã), e que não é senão o zelo de dar às
classes trabalhadoras, hoje mais que nunca oprimidas no mun-
do moderno, condições humanas de vida, requeridas não só pela
caridade, senão antes de tudo pela justiça (Continuando nesta
direção, chegar-se-ia, sem dúvida, a uma crítica radical de nosso
regime econômico, como esboçaram já muitos autores católicos).
Pode-se deplorar que a preocupação das massas católicas na
defesa da ordem social, e a luta contra os elementos revolucioná-
rios, haja coincidido frequentemente com uma omissão deste

204
Os três sentidos da palavra democracia

dever essencial e uma falta de atenção às prescrições de Leão XIII.


2. A democracia política (politeia) entendida no sentido de Aristó-
teles e de Santo Tomás, e por exemplo, da antiga democracia
helvética, e que a Igreja, como a filosofia, considera como uma das
possíveis formas de governo de direito (e recomendada de fato ou
não, a depender das condições e formas históricas).
3. O democratismo, ou a democracia no sentido de Rousseau,
melhor dizendo, o mito religioso da Democracia, que é coisa
muito diferente do regime democrático legítimo (esse mito
rege, no Contrato Social, uma teoria dos três regimes clássicos:
monárquico, aristocrático e democrático, igualmente falsa e
perniciosa). A democracia assim entendida se confunde com
o dogma do Povo Soberano, que unido ao dogma da Vontade
geral e da Lei como expressão do número, constitui em seu
limite, o erro do panteísmo político (a multidão-Deus).
É necessário observar, contudo, que o que faz trágica a condi-
ção dos povos nos tempos modernos é que, de fato, na realidade
concreta, o mito religioso da Democracia invadiu e contaminou
completamente a democracia política e mesmo todas as formas
atuais de governo.
Deve haver esforço da inteligência para fazer as discrimi-
nações necessárias e estudar (tendo em conta as conexões de
fato levantadas pela história) as condições de um ajuste prático,
que não terá êxito se não for total.
Acrescentamos que, no vocabulário de Santo Tomás, a demo-
cracia como forma política legítima (democracia no sentido do
número 2) não se chama democracia, mas República (politia). É
uma forma de regime misto, no qual o princípio democrático que,
em seu estado puro, tende a dominação do número (Democratia, id

205
APÊNDICE 2

est potentatus populi, quando scilicet populus plebeiorum per potentiam


multituditus opprimit divites1) está temperado pelo princípio aris-
tocrático (poder dos que se distinguem em valor e virtude) e
sobretudo pelo princípio oligárquico (poder dos que se distin-
guem pela riqueza ou poder)2 – Nisto consiste propriamente
uma democracia melhorada3.
“Em relação à palavra democracia, designa, em Santo Tomás, a forma
corrompida de politia e o princípio democrático em seu estado puro”4.
Seja lícito acrescentar que os católicos democratistas costu-
mam confundir os três sentidos apontados da palavra democra-
cia; como o democratismo no sentido do Povo Soberano, criador
de toda moralidade e direito, independente de Deus, é manifes-
tamente herético, rebaixam-no, acomodam e explicam dizendo
que o Povo, depositário da Soberania que recebe de Deus, delega-
-a aos governantes, que não são mais que vigários de sua Vontade.
Dificilmente se encontrará um católico democratista (católicos
que não falam de Cristo, mas sim da Democracia, ou da Democra-
cia cristã, ou da Democracia e Cristo, ou da Democracia e a Igreja,
como se Cristo não bastasse para salvar o mundo); dificilmente
se encontrará, digo, que para justificar a democracia não acuda
a essa teoria sobre a origem do poder. Sintoma significativo, que
revela uma mentalidade democratista, pois com isso pretende-se
dar certa preeminência ou superioridade à democracia sobre as

1
De Regno I. 1.
2
Cf. Comment, in polit. Aristotelis, V, VII.
3
Marcel Demongeot, Le meilleur Régime Politique Selon Saint Thomas.
4
Maritain, Primauté du spirituel, Annexes, VI.

206
Os três sentidos da palavra democracia

demais formas de governo; coisa condenada por Pio X quando


em sua carta ao Le Sillon escreve:

“Assim, a democracia é a única que, segundo ele (Le Sillon) inaugurará


o reinado da justiça perfeita; mas não é isso injuriar as outras formas
de governo, que se rebaixam, deste modo, a condição de governos im-
potentes, sofríveis tão somente por falta de coisa melhor? Por outro
lado, Le Sillon tropeça também neste ponto nos ensinamentos de Leão
XIII. Poderia ter lido na Encíclica já citada sobre o Principado político
que salva a justiça, que não está proibido aos povos dar-se o governo
que responde melhor ao seu caráter ou às instituições e costumes
que receberam de seus antepassados. Ora, como a Encíclica se refere
à tríplice forma de governo bem conhecida, supõe, pelo mesmo caso,
que a justiça é compatível com cada uma delas. Pois a Encíclica sobre
a condição dos operários, não afirma claramente a possibilidade de
restaurar a justiça nas organizações atuais da sociedade, já que indica
os meios? Mas como, sem dúvida, queria falar Leão XIII não de uma
justiça qualquer, senão de uma justiça perfeita, ao ensinar que a justiça
é compatível com as três formas de governo conhecidas, ensinava tam-
bém que, por este lado, não goza a democracia de especial privilégio.
Os sillonistas, que pretendem o contrário, ou recusam ouvir a Igreja,
ou formam da justiça e da igualdade um conceito que não é católico”.

207
APÊNDICE 3

Leão XIII e a democracia cristã

ℝ eproduzimos aqui os parágrafos da Encíclica Graves De


Communi Re1, de 18 de janeiro de 1901, onde Leão XIII expõe
os cuidados com as quais deve se entender a democracia cristã:

“Deste modo se estabeleceu entre os católicos, sob os auspícios da


Igreja, uma comunidade de ação e uma série de obras destinadas
a ajudar o povo, exposto a armadilhas e perigos, não menos que a
indigência e trabalhos.
No começo, esse tipo de beneficência popular não se distinguia
por nenhuma denominação especial. O termo de socialismo cristão,
introduzido por alguns, e outras expressões derivadas dele, caíram

1
Encíclica de 18 de janeiro de 1901.

208
Leão XIII e a democracia cristã

justamente em desuso. Agradou a outros, e com razão, chamá-la


ação cristã popular. Em outras partes, os que se ocupam destas
questões são chamados cristãos sociais. Não falta onde se chame
essa ação de democracia cristã, e aos que se entregam a ela democra-
tas cristãos; o sistema, ao invés, defendido por socialistas se designa
com o nome de democracia social.
Ora, destas duas últimas expressões, se a primeira, “cristãos sociais”,
mal suscita protestos, a segunda, “democracia cristã”, desagrada
muitas pessoas honestas, que nela acham um sentido equívoco e
perigoso, e por mais de um motivo desconfiam desta denominação.
Temem que essa palavra não seja senão um mal disfarce do governo
popular, que indique em seu favor uma preferência sobre as outras
formas de governo.
Como a esse propósito existem atualmente discussões demasiado
prolongadas e com frequência ásperas, a consciência de nosso cargo
nos adverte a pôr fim a esta controvérsia definindo quais devem ser
as ideias dos católicos nesta matéria.
A democracia cristã, só pelo fato de se dizer cristã, deve se apoiar
sobre os princípios da fé divina como sobre sua base própria. Deve
prover pelos interesses dos fracos, sem deixar de conduzir à perfeição
que convém às almas criadas pelos bens eternos. Para ela, nada há
de haver de mais sagrado que a justiça; deve guardar ao abrigo de
todo ataque, o direito de propriedade e de posse; manter a distinção de
fins, que sem dúvida é necessária para um estado bem constituído; por
fim, deve propiciar à comunidade humana uma forma e um caráter em
harmonia com os que estabeleceu Deus criador.
Mas é ilícito desviar para um sentido político o termo de democracia
cristã. Sem dúvida, a democracia, de acordo com a etimologia da
palavra e o uso que dela fizeram os filósofos, se refere ao regime
popular; mas nas circunstâncias atuais não há que utilizá-la senão
despojando-a de todo sentido político e não lhe atribuindo outro
significado que aquele de uma benfeitora ação cristã entre o povo.
Com efeito, os preceitos da natureza e do Evangelho, estando por sua
própria autoridade, acima das vicissitudes humanos, é necessário

209
APÊNDICE 3

que não dependam de nenhuma forma de governo civil; podem, no


entanto, se acomodar com qualquer dessas formas, contanto que não
repugne com a honestidade ou a justiça. São, portanto, e permanecem
completamente alheios às paixões dos partidos e aos diversos
acontecimentos, de modo que, qualquer que seja a constituição do
Estado, os cidadãos podem e devem observar esses mesmos preceitos
que mandam amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como
a si mesmos. Tal foi a constante disciplina da Igreja; foi a que sempre
aplicaram os Romanos Pontífices com os Estados, qualquer que fossem
suas formas de governo.
Estabelecido isso, as intenções e a ação dos que trabalham pelo
bem dos proletários não podem tender nunca a preferir um regime
civil a outro, nem servir como meio para o introduzir”.

210
APÊNDICE 4

Filosofia da democracia moderna 1

𝕆 Romano Pontífice dedicou a alocução do último Natal ao


exame das condições que deve revestir a democracia para
ser legítima e sã. Os comentários que a dita alocução suscitaram
foram bastante superficiais, e na maioria dos casos de um irre-
verente partidarismo. Não se escutou o Papa, senão se utilizou
dele. Terrível condição dos tempos, em que a verdade não pode
chegar aos ouvidos dos homens senão por meio dos veículos
de difusão em mãos do pai da mentira.
No entanto, é interessante advertir que dentre todos os co-
mentários não se levantou nenhum decididamente adverso,

1
A propósito da alocução do Papa no Natal de 1944.

211
APÊNDICE 4

senão unicamente aquele emitido pelo observador de assuntos


internacionais do Pravda, de Moscou, que entre outras coisas,
formula esta insólita, e ao parecer, incompreensível apreciação:
“(...) A mensagem papal está dirigida contra as grandes massas e suas
aspirações em favor da autêntica democracia (...)”.
A acusação do comunismo ateu, hoje universalmente
triunfante, feita em nome da “autêntica” democracia contra
a democracia aceita pelo Pontífice, deve ter algum sentido.
Vamos tentar desvendá-lo. Isso vai nos obrigar a tomar como
ponto de partida as linhas da dialética em que se desenvolve a
história, para situar com precisão o momento excepcional em
que vivemos.

DIALÉTICA DA HISTÓRIA

A história não se desenvolve num plano horizontal, mas vai


seguindo também uma linha vertical cuja densidade se deve
medir pelos valores humanos nela contidos. A antropologia
aponta então a lei da história, porque essa não é senão o homem
se projetando no tempo.
Essa lei marca quatro tempos numa civilização: um pri-
meiro momento de plenitude, uma idade de ouro, teológica,
pelo primado da verdade sagrada ou sacerdotal; um segundo
momento, de decadência, uma idade de prata ou aristocrática
pelo primado da verdade natural ou racional, ou metafísica;
um terceiro momento, uma idade de bronze ou oligárquica,
pelo primado da vida afetiva ou sentimental, ou sensível, ou
animal ou econômico-burguesa; um quarto momento, uma
idade de ferro ou democrática, pelo primado da matéria, ou da

212
Filosofia da democracia moderna

quantidade que é sua propriedade necessária, ou da multidão


ou do econômico-proletário.
Ora, a civilização cristã – note-se bem que não dizemos a
Igreja, porque ela, semelhante a alma espiritual, não esgota
suas energias vitais naquela – não escapa a essa lei. A civilização
cristã conheceu um primeiro momento de plenitude. Leão
XIII descreveu o esplendor medieval com palavras magistrais
que nunca deveriam ser apagadas dos pensadores católicos.
Diz na Immortale Dei:
“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados.
Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina
penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas
as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a religião
instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de
dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças
ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o
sacerdócio e o império estavam ligados em si por uma feliz concórdia
e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a so-
ciedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja
memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros
documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper
ou obscurecer”2.

Mas esta civilização foi objeto de tremendos e sucessivos


ataques que a reduziram a uma condição cada vez mais de-
cadente. O próprio Leão XIII descreve deste modo o primeiro
ataque perpetrado pela Reforma Protestante:
“Mas esse pernicioso e deplorável gosto de novidades que o século
XVI viu nascer, depois de primeiro haver transtornado a religião

2
NC. Encíclica de 1° de novembro de 1885. Texto disponível em português em: www. vatican.va

213
APÊNDICE 4

cristã, em breve, por um declive natural, passou à filosofia, e da


filosofia a todos os graus da sociedade civil”.

Isso deu como resultado uma sociedade civil ou uma ordem


pública subtraída à influência da Igreja ou da ordem sobrena-
tural nela encarnada, isto é, uma sociedade na qual cada um
dos grupos até então unidos sob uma forma universal de vida,
que era a Igreja, adquire independência. As nações, livres de
toda forma superior, tomam posições, umas frente a outras.
Aparecem, deste modo, pela primeira vez, os nacionalismos
exagerados; e os monarcas postos diante dos povos rejeitam
todo poder superior e se erigem em divindades. A razão se faz
independente da teologia, a ciência da fé, a política da moral,
o natural do sobrenatural.
A civilização originariamente cristã se converte em natu-
ralista, mas se mantém como civilização, na medida em que
não sofrem corrupção os princípios da vida natural que são os
que formalmente a constituem. Mas como ensina tão magnifica-
mente Pio X no Il Fermo proposito, mesmo se de índole natural, a
civilização não pode subsistir plenamente, nem sequer se manter,
se não pela influência da Igreja.
Destituído, então, dos auxílios sobrenaturais, a ordem natural
caminha para sua própria ruína. E assim vemos, nos séculos XVII
e XVIII, o caminhar apressado para a ruína da civilização. A razão
termina com seu suicídio em Kant, e é suplantada pela ciência,
que é uma soma das comprovações físico-matemáticas; o bem
comum, que centrava a política e a economia, é substituído
pela liberdade; os monarcas são levados ao cadafalso pela mul-
tidão soberana. A civilização – assim entendida, sem nenhuma

214
Filosofia da democracia moderna

adição – termina com a Revolução Francesa. Com ela começa a


civilização moderna, a qual, no que tem de próprio e peculiar, é a
barbárie, armada com o poder da força industrial.
A Revolução Francesa, que Leão XIII chama “a grande revolu-
ção”, marca então a fronteira definitiva de dois modos de vida es-
sencialmente diversos que se realizam na civilização cristã. Com
ela, opera-se no homem uma alteração de sua própria condição
de ser racional, coisa que não tinha chegado a se realizar formal-
mente no século XVI. Até então, os princípios reitores da vida
tinham sido humanos, agora começavam a ser infra-humanos
ou animais; até então, racionais, agora puramente sentimentais;
até então, qualitativos, agora quantitativos; até então, atraídos
pela ideia do bem que une, agora pela liberdade, que desvincula e
desune. Daí o liberalismo, o individualismo e romanticismo deste
terceiro momento histórico.
Para uma reta interpretação da história moderna e, portan-
to, dos fatos atuais, é fundamental esta localização da Revolução
Francesa como ponto de partida de um homem novo que começa
a se reger por princípios de vida infra-humanos, e pelo mesmo
motivo, infra-civilizados. A Revolução Francesa é, então, o pon-
to de partida de um caminho que deve terminar inexoravelmente
na revolução comunista, como ela, por sua vez, é a etapa imedia-
tamente anterior à apostasia universal ou reinado de anticristo,
reinado que não consiste nem se instaura numa revolução, senão
é uma lógica culminação das revoluções anteriores.
Isso explica a profundidade do pensamento de De Maistre,
que viu na Revolução Francesa algo definitivo e satânico. É, na
verdade, como iniciação do íntimo e último estado da apostasia

215
APÊNDICE 4

universal. Por isso, Babeuf, antes de morrer, anunciou que a


Revolução Francesa era precursora de outra revolução maior,
mais solene, e que essa seria a última3.
O Estado infra-humano de civilização, inaugurado pela
Revolução Francesa, vai se caracterizar em substância por um
cruzar o homem a linha de inteligência que o distingue e separa
da matéria, e num entrar já resolutamente na órbita de atração
da própria matéria. Por isso, a nova idade vai estar regida
pelo materialismo ou pelo econômico. Mas como num ciclo
econômico ou materialista há dois momentos perfeitamente
caracterizados, um da matéria viva, outro da matéria inorgânica,
um da economia dirigente, burguesa ou capitalista, e outro
da economia dirigida ou proletária, nesta nova civilização,
a moderna, que é uma civilização infra-civilizada, podemos
distinguir dois períodos: um que é o liberalismo propriamen-
te dito, e outro o comunismo; um de dominação dos grupos
burgueses oligárquicos e o outro de dominação das massas
proletárias, ou verdadeiramente democrático.
Destes dois momentos, aquele burguês já está esgotado e
definitivamente concluído. Chega então por sua vez o quarto
momento, o democrático ou comunista. O clero prevaleceu na
Idade Média; a nobreza ou aristocracia nos séculos XVII e XVIII;
os ricos ou burgueses no século XIX, e hoje há de dominar a
multidão proletária ou democrática. Isso nos obriga a estudar
a essência da democracia, buscando desvendar sua lei íntima.

3
Appel au peuple francais, 1797.

216
Filosofia da democracia moderna

A DEMOCRACIA. DOMINAÇÃO DA PLEBE

Ninguém analisou tão profundamente a democracia como


Santo Tomás de Aquino e Aristóteles. Falemos do conceito puro
da democracia, pelo que implica em si mesma, em virtude de
suas próprias e internas exigências. Parte o Santo Doutor da
premissa que “a razão de ser e o termo do estado popular é a liberdade,
e por isso, o poder ou autoridade se distribui nesse Estado de acordo com
a dignidade da liberdade” (Politica IV, 7).
Em sua mente a democracia está ligada a uma concepção da
vida em que se faz da liberdade o supremo bem do homem, e
pelo mesmo motivo, o fim da cidade. “No estado popular – diz
Santo Tomás - só se busca a liberdade” (Politica III, 4), e só ela é o que
em comum conferem todos os cidadãos. Todas as outras coisas
existem pela liberdade e para a liberdade. Nada valem, portanto,
as diferenças que separam um homem de outro, nada as depen-
dências naturais ou históricas, nada os vínculos familiares ou
nacionais, nada a diversidade dos engenhos, das aptidões, da
educação, da cultura ou dos direitos adquiridos. Como a todos
e a cada um deu a natureza idêntica liberdade, será necessário
que todos e cada um, em qualquer parte, sejam iguais4.
Mas, que implica para Santo Tomás a noção de liberdade?
Declara-o em diversas ocasiões; mas aqui vamos nos limitar
ao comentário que faz ao livro VI, 2 da Política de Aristóteles,
onde depois de insistir em que a liberdade é a única e principal
base do estado popular, acrescenta:

4
NdT. No original, todo o parágrafo aparece como citação do Comentário à Política de Aristóteles. Na
tradução italiana, se aponta como só a primeira frase é citação literal, as demais citadas livremente
pelo autor.

217
APÊNDICE 4

“(...) por liberdade se entende que alguém possa se determinar por


vontade própria e a um fim que a si mesmo se propõe. Alguém é
livre quando é causa de si mesmo, tanto no mover-se, enquanto se
move por vontade própria e seguindo a própria razão, como enquanto
se move ou age em atenção a um fim próprio e não ao fim de outro.
Também se toma a palavra liberdade pela mesma operação ou pelo
ato pelo qual se diz que alguém se move e age para um fim próprio.

Ora, seja numa acepção seja na outra, alguém a tem ou por uma
disposição natural, e esses são os naturalmente livres; ou pela
constituição da república, que estabelece que ninguém seja governado
por outro além de si mesmo, nem ao fim de outro senão ao seu
próprio, e ao fim da república. E assim entendem a liberdade os
autores do Estado popular”.

Santo Tomás entende que há uma liberdade natural, que


alguém possui quando é capaz de se governar por si mesmo,
enquanto é capaz de fixar a norma reta e conveniente do que
deve agir e é capaz também de cumprir dita norma. Isto é, essa
liberdade a possuem os homens perfeitos que, ordenados pelo
reto sentido de sua razão, se autodeterminam na prática da
ordem que sua razão lhes indica. Essa é a verdadeira liberdade.
A outra liberdade, a que serve de base ao regime democrá-
tico, e que não tem de seu senão uma realidade legal, porque
surge do decreto constitutivo da república, ex constitutione rei-
publicae, consiste numa pura e simples autodeterminação; a
saber, em que todos e cada um dos que integram dito regime
não sofrem prejuízo nem violência em querer isto ou aquilo,
de acordo com o próprio beneplácito. E como, enquanto a essa
autodeterminação ou liberdade, todos são iguais, “a justiça popular
ou democrática exige que todos participem nas honras e favores públicos

218
Filosofia da democracia moderna

de acordo com a unidade quantitativa, e não ao invés, de acordo com


a dignidade da pessoa ou a igualdade de proporção, senão que tanto o
pobre como o rico, tanto o ignorante como o instruído [sed tantum
pauper quantum dives, tantum idiota quantum studiosus].
Por outra parte, como deve haver quem estabeleça e conserve esta justiça
popular... se segue que o fim e a justiça do Estado democrático é a opinião
da multidão [manifestunt ass quad necesse est illud esee finem
populari statui, et justum, quod videtur multitudini] (Pol. VI, 2).
A opinião e vontade da multidão é a lei, então, no regime
democrático.
Qual é o resultado de um regime fundado nessas premissas?
O resultado dependerá da condição moral dos que constituem
dita cidade. Porque como o regime político da mesma descansa na
liberdade ou autodeterminação dos cidadãos, sua índole – justa
ou injusta, boa ou perversa – dependerá da condição moral
da multidão. Se essa, na sua maioria, é virtuosa, a cidade será
virtuosa; se perversa, a cidade será perversa.
Mas o Doutor Angélico tira imediatamente a conclusão
de que tal cidade, em que a multidão fixa a norma da justiça
haverá de ser perversa, porque ali mandam viles et pauperes et
inordinati [os vis, os pobres e os desordenados] (Pol. VI, 2). Daí
que constantemente coloque a democracia entre as formas de
governo tirânicas e seja célebre aquela definição da democracia
do De Regno (I, 1):

“A democracia, isto é, o governo do povo é, a saber, quando o número


dos plebeus, pelo poder do número, oprime os ricos. Democratia, id
est potentatus populi, quando scilicet populus plebeiorum per potentiam
multitudinis opprimit divites.”

219
APÊNDICE 4

A conclusão de Santo Tomás está determinada pelo conceito


pessimista que tem da multidão. Poder-se-iam acumular citações
e citações nas que ensina que a multidão, na maioria dos casos,
se deixa levar por suas más inclinações, violando a ordem reta da
razão5. Mas uma só citação basta para estabelecer o pensamento
do Santo Doutor:

“(…) no homem há uma dupla natureza, a saber, a racional e a sensitiva.


E como o homem chega ao ato da razão por operação dos sentidos, a
maioria segue as inclinações da natureza sensitiva em lugar da ordem
da razão... Daqui provêm os vícios e pecados, de que os homens
seguem as inclinações da natureza sensitiva em lugar da ordem da
razão” (S. Th. I-II, q. 71 a. 2 ad. 3).

“O povo se aparta da razão na maioria das vezes” - diz o Santo


(Pol. IV. 13) - Populus enim deficit a ratione, ut in pluribus. Substancial-
mente, o povo, ao não reagir senão afetivamente, está exposto a se
equivocar e a se extraviar; necessita que outros – a minoria – lhe
indiquem o que lhe convém e o faça querer; se uma minoria
virtuosa não lhe confere virtude, qualquer outra minoria audaz
lhe imporia o jogo do dinheiro e do trabalho coletivo.

A DEMOCRACIA E O COMUNISMO BOLCHEVISTA

A análise da essência da democracia nos conduz à conclusão


de que ela, partindo da ideia de liberdade, que é seu principal e
indispensável pressuposto, termina inexoravelmente na tirania,
ou ditadura da multidão, do número, da quantidade, e, pelo

5
Ver S.Th I, q. 63, a 9. ad. 1; I, q. 49. a. 3 ad. 5; Contra Gentiles, III. c. VI.

220
Filosofia da democracia moderna

mesmo motivo, da irracionalidade e da desordem. O princípio


fundamental que a move é o igualitarismo universal absoluto.
Ora, como os homens – sem uma intervenção especial de Deus
– não podem ser igualados ou nivelados pelo mais elevado que
há neles, a saber, a ciência e a virtude, não sobra senão a possi-
bilidade de tentar o nivelamento absoluto universal pelo mais
baixo que há neles, isto é, por sua condição material. Tal é a
tentativa do comunismo soviético, como ensina Pio XI em sua
magistral e atualíssima encíclica Divini Redemptoris6.
Daqui que seja no comunismo ateu e materialista onde se
verifique plenamente as exigências intrínsecas da democra-
cia absoluta; porque consistindo essa num nivelamento ou
igualação universal absoluta, e não podendo se realizar “para
cima” para “o Ser, princípio de todo ser”, aonde se chega por
auxílios hierárquicos, que vem sempre de cima para baixo,
não sobra senão a possibilidade de uma nivelação absoluta no
mais comum que há em todos os homens, que é a matéria.
O materialismo, isto é, uma concepção da vida em que se
faz da matéria a única realidade, da que procede tudo e ao qual
tudo se ordena, consiste na essência do comunismo.
E como na escala real de valores – que não pode ser destruída
por nenhuma teoria nem sistema – a matéria ocupa o último
lugar, depois dos outros mais elevados (Deus ou sobrenatural ou
o sacerdócio – o humano ou o natural; a virtude ou a nobreza; o
animal ou o econômico burguês), uma concepção de vida ao redor
da matéria se liga por conexão em metafísicas necessárias com o
puramente quantitativo, que é uma propriedade necessária da

6
Encíclica de 19 de março de 1937. Texto disponível em português em: www. vatican.va

221
APÊNDICE 4

matéria; com o número, que tem relação com a quantidade; com


o sufrágio universal direto, que está ligado ao número; com a
liberdade, pressuposto da democracia; com o liberalismo, que é
a deificação de dita liberdade; com a democracia, que descansa na
igualdade quantitativa da pura liberdade ou autodeterminação.
Por outra parte, como a pura matéria é a única realidade que,
sendo tal, é nada, na célebre definição aristotélico-tomista da
matéria prima, pelo mesmo motivo é a mais oposta a Deus de
todas as realidades; e como, por outra parte, o mais oposto a
Deus é o diabo, que é Deus ao revés, a matéria tem conexões
necessárias com o diabo, e pelo mesmo motivo, com o anticristo,
que é o diabo encarnado; e pelo mesmo motivo, com todos os
grupos e seitas humanas que trabalham sistematicamente
pela entronização do anticristo na terra; e com a Revolução,
que é o processo continuado para verificar essa entronização7.

7
NC. Para deixar mais claro o sentido destas palavras, se faz imprescindível a seguinte nota escrita pelo
Rev. Padre Arturo A. Ruiz Freites I.V.E., para primeira edição italiana desta obra:
Para tornar mais claro o discurso devemos fazer aqui algumas precisões sobre estas expressões bem
mais de estilo, oratórias, retóricas e hiperbólicas do Padre Meinvielle, tendo em conta seu pensamento
mais rigoroso e explícito a respeito disso, da doutrina católica e de Santo Tomás: 1. A matéria prima não
é “nada” mas antes “prope nihil” (S. Th. I, 44, 2, sed contra, citando S. Agostinho, Confes. XII) sendo pura
potência, mas de certo modo é, como co-princípio intrínseco potencial limitante e multiplicante dos
seres corpóreos. 2. Per se, a matéria é boa, seria maniqueísmo uma sua malícia natural ou necessária
conexão com o maligno; mas sendo ontologicamente a criatura mais distante de Deus, no homem é
ocasião, depois da queda do pecado original e perda da ordem interior, de mais insídias do Maligno (cfr.
Entre muitos outros textos, S. Th. I, 114, 1 ad 3: “À debilidade humana bastaria certamente as tentações da
carne e do mundo; mas não basta, porém, à malícia dos demônios, que se servem de uma e de outra para
combater o homem. Isso, contudo, por divina disposição, reverte para glória dos eleitos”) 3. O anticristo
não é propriamente uma encarnação do diabo, senão metaforicamente, enquanto será um homem de
suprema malícia e por isso sob o maior influxo do Maligno (cfr. S. Th. III, 8, 8: “…da Glossa [ord.]: “Como
em Cristo habitou a plenitude da divindade, assim no Anticristo a plenitude de toda a maldade”; mas
não no sentido que o diabo assuma na unidade da pessoa a humanidade deste último, como o Filho de
Deus a humanidade de Cristo, mas no sentido que o diabo lhe sugerirá a sua malícia mais que a todos
os outros. (sicut in Christo omnis plenitudo divinitatis inhabitavit, ita in Antichristo plenitudo omnis malitiae,
non quidem ita quod humanitas eius sit assumpta a diabolo in unitate personae, sicut humanitas Christi a
Filio Dei; sed quia diabolus malitiam suam eminentius ei influit suggerendo quam omnibus aliis)”.

222
Filosofia da democracia moderna

No limite extremo aonde são conduzidas por suas próprias


exigências, se encontram, em profunda solidariedade, todas
estas realidades. São exatíssimas, então, estas igualdades:
comunismo – materialismo – liberalismo – democracia –
ditadura da plebe – tirania do número – satanismo – anticristo
– maçonaria – Revolução.
O resultado final dos esforços e das tendências de cada um
deles é o estabelecimento universal na terra daquela sociedade
que descreve Pio XI na Divini Redemptoris:

“Que viria a ser então, a sociedade humana, baseada em tais fun-


damentos materialistas? Viria a ser uma coletividade, sem outra
hierarquia mais do que a derivada do sistema econômico. Teria por
missão única a produção de riqueza por meio do trabalho coletivo,
e único fim o gozo dos bens da terra num paraíso ameníssimo de
delícias onde cada qual “produziria conforme as suas forças e recebe-
ria conforme as suas necessidades”... E nesta sociedade comunista
proclamam que tanto a moral como a ordem jurídica não brotam
de outra fonte mais do que do sistema econômico do tempo o que,
por conseguinte, de sua natureza são valores terrestres transitórios
e mutáveis. Em suma, para resumirmos tudo em poucas palavras,
pretendem introduzir uma nova ordem de coisas e inaugurar uma
era nova de mais alta civilização, produto unicamente duma cega
evolução da natureza: “uma humanidade que tenha expulsado a
Deus da terra”.

Observe-se, de passagem, que a este resultado final se


pode chegar tanto pelo caminho revolucionário – comunismo
bolchevista – como por um caminho democrático: democracia
materialista norte-americana.

223
APÊNDICE 4

O MOMENTO ATUAL

Tanto a dialética histórica como as exigências metafísicas da


democracia exigem hoje que o universo seja entregue à domina-
ção comunista. O comunismo bolchevista é o único dos sistemas
de vida existentes que realiza os anseios de liberdade e democracia
que estão nas estranhas do mundo moderno. Os Estados Unidos,
que representam para muitos o ideal de liberdade e democracia,
são, ao invés, um regime plutocrático, isto é, onde a liberdade
legalmente igual para todos se converte na liberdade real para
uns poucos privilegiados. Os Estados Unidos – e com muito maior
razão a Inglaterra – representam hoje já dois tipos anacrônicos
de vida, sem vigência histórica, e que se não querem burlar as
exigências profundas da liberdade e democracia que proclamam,
devem ir evoluindo para um tipo igualitário universal, que só
a Rússia verdadeiramente implantou.
Daqui que não seja simplesmente tática a razão da propa-
ganda comunista feita em nome da liberdade e da democracia.
A razão é metafísica. A Rússia levou às suas consequências
mais lógicas o desenvolvimento do igualitarismo, aninhada
nos conceitos de liberdade e democracia. E não valeria arguir,
como agrada aos retardados burgueses, que na Rússia a liber-
dade e a democracia estão sufocadas pela ditadura do Estado
soviético. Porque a isso se responde: primeiro, que nos estados
plutocráticos a liberdade e a democracia estão burladas pela
ditatura onipotente dos consórcios internacionais; e segundo,
que como tão sagazmente ensina Pio XI na Divini Redemptoris,
quando “tiverem sido alcançadas por todos em tal grau, que por fim
tenha surgido aquele ideal utópico de sociedade, que eles sonham, sem

224
Filosofia da democracia moderna

distinção de classes, então o Estado político, que ao presente unicamente


se organiza como instrumento de domínio dos capitalistas sobre os
proletários, perderá totalmente a razão de ser e, por necessidade natural,
se dissolverá! Todavia, enquanto não se tiver chegado a essa idade de
ouro, os comunistas empregam o governo e o poder público como o mais
eficaz e universal instrumento, para atingirem o seu fim”.
Isto é, que a sociedade comunista, em que se destruíram total-
mente as diferenças e privilégios religiosos, estatais e burgueses,
é a única sociedade que leva à plenitude a universal nivelação
igualitária da liberdade e democracia.
Em nome, então, da liberdade e da democracia, correspon-
de-lhe ao comunismo soviético o cetro do universo. Se é assim,
deve-se dar, então, por decidida a sorte da terra e se preparar para
tomar o lugar mais cômodo possível no paraíso dos sem Deus?
Se a Igreja fosse unicamente uma instituição humana, total-
mente identificada com a civilização cristã, certamente já estaria
tudo terminado, e não sobraria outra alternativa que se preparar
para os últimos dias da apostasia universal.
Mas a Igreja, semelhante à alma espiritual que, embora seja
o princípio do ser e da ação do corpo humano, não esgota nele
todas suas possibilidades de essência e operação, senão que
mesmo sem o corpo mantém uma poderosa vitalidade própria
e independente, possui um ser e uma atividade que não sofreu
nada nas sucessivas degradações em que caiu a civilização cristã.
A Igreja, esposa da Jesus Cristo, mantém hoje uma vitalidade
prodigiosamente fresca e se sente com forças para converter
em filhos de Abraão as pedras. O comunismo o sabe. Porque o
comunismo, “duro jugo da mais iníqua escravidão, que foi imposta por

225
APÊNDICE 4

homens (...) que consideraram aquela nação [Rússia] como o terreno mais
apto para lançarem a semente do seu sistema, há muito tempo preparada, e
de lá a disseminarem por todas as regiões do globo” (Pio XI, na Divini
Redemptoris), está em conexão com agentes diabólicos terrenos
que agem num plano teológico, com ciência e métodos teológicos,
aos que se refere Leão XIII na Humanum Genus.
O comunismo, obra direta das forças teológicas do diabo,
conhece perfeitamente o significado da Igreja Católica. Por isso,
quase a ponto de se gabar de sua vitória mundial definitiva,
treme diante de um ancião indefeso que lhe arrebatou a palavra
“democracia” para dizer “urbi et orbi”: “Povos! Não vos enganais; o
bem que alucinados buscais nessa sedutora palavra só encontrareis no
ensinamento tradicional da Igreja”.

A DEMOCRACIA TRADICIONAL

Para que ninguém – senão os que por sua jactância não


querem nem podem conhecer a verdade, tem olhos e não
veem, ouvidos e não ouvem – se engane, começa o Pontífice
sua alocução afirmando o caráter tradicional da democracia
sã, que se sempre foi optativa para os povos, hoje parece ser
imperativa.
Apenas é preciso recordar que segundo os ensinamentos da
Igreja, “não está proibido preferir com moderação as formas populares
de governo, sem prejuízo, no entanto, dos ensinamentos católicos
sobre a origem e o uso da autoridade”; e que a Igreja “não desaprova
nenhuma entre as formas de governo, sempre que sejam conducentes
ao bem comum dos cidadãos” (Leão XIII, Encíclica Libertas, de 20
de junho de 1888).

226
Filosofia da democracia moderna

E nestas palavras tradicionais, expressamente recordadas,


está toda a doutrina que o Pontífice não faz senão esclarecer.
A democracia que Pio XII considera aceitável em primeiro
lugar, não é a democracia pura – para a qual tende o mundo
moderno – senão uma forma popular moderada; segundo,
não a proclama nem a melhor nem a única boa; terceiro, não
deve estar condicionada pela ideia de liberdade, senão pela do
bem comum; quarto, supõe a constituição, não de uma massa
igualitária, senão de um povo hierarquicamente estruturado;
quinto, exige uma autoridade real e eficaz, derivada e submetida
a Deus; sexto, compreende um corpo legislativo composto por
homens seletos, espiritualmente superiores e de caráter integro
que se consideram representantes do povo inteiro, e não man-
datários de uma ralé; sétimo, que não incorra no absolutismo
do Estado.
Isto é que o Santo Padre, partindo, como de base, da ideia de
que a democracia comporta um autogoverno ou participação
da multidão no governo, estabelece as condições ou precauções
que, temperando e modelando esse autogoverno ou participação
da multidão no governo, possa dar origem a uma forma legítima
e sã da democracia.
Exatamente o mesmo que faziam Aristóteles e Santo Tomás,
que depois de analisar a natureza última da democracia, che-
gavam à conclusão de sua injustiça e perversidade se levada às
últimas consequências entranhadas por seu conceito; mas re-
conheciam que essa tendência ao autogoverno da multidão, se
não se permitisse chegar às últimas consequências, mas fosse
temperada e moderada com elementos de outras formas pu-
ras como a unidade da monarquia, a virtude da aristocracia, e

227
APÊNDICE 4

mesmo a riqueza da oligarquia, podia ser um regime legítimo


e aceitável, que denominavam “politia” ou república.
Condições, em rigor, antidemocráticas, que, ao temperar e
moderar a perversidade expansiva do igualitarismo universal
absoluto, dão origem a uma certa e conveniente participação
da multidão no poder.
Daqui se segue que a democracia tradicional aceita pelo
Pontífice implica a reprovação da democracia moderna, tanto na
forma liberal e socialista como na absurda dos católicos democra-
tistas. Porque essas democracias se apoiam num conceito de
uma nova civilização; negam ou rebaixam a origem divina da
autoridade; fazem do povo um ídolo ou um mito; não podem
evitar a tirania da quantidade e do número; identificam a
noção de justiça com o regime popular; estão impulsionadas
pelo igualitarismo universal absoluto, etc.

POSSIBILIDADE DA DEMOCRACIA TRADICIONAL

A Alocução do Soberano Pontífice, ao preconizar a de-


mocracia tradicional, voltou a propor a possibilidade desta
democracia nas condições atuais da vida moderna, em que o
homem está atomizado por 400 anos de progressiva descris-
tianização. Como estruturar a sociedade para que seja povo e
não massa? Como se pode infundir a ideia de bem comum a
uma massa que perdeu as noções fundamentais dos valores
morais? Que procedimentos empregar para que, sem alterar
os anelos de igualdade, se alcance a assembleia de seletos de
que fala o Pontífice? Como assegurar um governo-expressão

228
Filosofia da democracia moderna

da nação, quando essa se encontra dividida por tantas facções


e dissensos? Sobre que base realizar a unidade dos povos?
Aprecia-se o alcance destas tremendas interrogações
quando se têm presentes as palavras de Pio XII no Summi
Pontificatus8, referentes ao processo de descristianização, válidas
perfeitamente para as multidões universais:

“Muitos talvez, ao se afastarem da doutrina de Cristo, não tiveram plena


consciência de serem enganados pela falsa miragem... Falavam de pro-
gresso quando retrocediam; de elevação, quando se degradavam; de
ascensão ao amadurecimento, quando caíam na escravidão (...)”

Ora, o problema é gravíssimo. Porque não há dúvida que é


certíssimo o que diz o Papa, que “instruídos por amargas experiências,
os povos se opõem hoje com maior agressividade contra toda concentração
ditatorial9”, mas não é menos certo que depois de quatro séculos
de descristianização sistemática dos povos, esses se encontram
numa prostração humana, intelectual e moral, espantosa; os
povos estão devorados por profundos dissídios que “provêm
não somente do ímpeto de paixões rebeldes, mas de uma profunda crise
espiritual que subverte os sãos princípios da moral privada e pública” e
faz naufragar “a consciência do justo e do injusto, do lícito e do ilícito,
que facilita os entendimentos, enquanto freia o desencadear das paixões
e deixa aberta a via a um honesto acordo10”.

8
Encíclica de 20 de outubro de 1939. Texto disponível em português em: www. vatican.va
9
Radio Mensagem de Natal de 1944.
10
Encíclica Summi Pontificatus.

229
APÊNDICE 4

SENTIDO DA MENSAGEM PAPAL

Aqui está o sentido da mensagem papal. Quereis democracia


e uma democracia melhor? – diz aos povos o Papa. Tomai-a, con-
tanto que seja tal que respeite as leis essenciais das sociedades po-
líticas, que devem se reger pelo bem comum. A Igreja não se opõe
a isso; e ainda que considere acessórios e indiferentes os regimes
políticos, crê conveniente, hoje mais que nunca certa participação
dos povos em seu próprio governo. Mas sabei que quanto maior
seja essa democracia ou participação, mais necessário será que
minha influência se faça sentir profunda e universalmente.
Ela exigirá de vós uma humildade e total aceitação de todos os
ensinamentos dos Pontífices Romanos, desde Gregório XVI na
Mirari Vos, Pio IX no Syllabus, até Leão XIII, Pio X, Pio XI, onde se
condenam os pestilentos erros modernos e se estabelecem as
bases autênticas da cidade cristã.
As palavras do Papa se fazem ouvir num momento de ex-
cepcional solenidade. Porque os povos, num louco declive, e
alucinados pelo falso progresso, estão a ponto de cair no abismo
do comunismo ateu. A democracia, de que andam embriagados,
conduz inexoravelmente a esse abismo. Nenhum poder hu-
mano pode livrá-los de que se precipitem nele sem remédio. O
poder material do Estado, em que muitos tinham depositado
sua confiança e que com mão forte e totalitária tinha tentado
deter a avalanche, tem que confessar seu fracasso.
Então, o que fazer? Fala a Igreja pela boca de seu Pastor
Supremo e diz: Só eu posso vos libertar. Não com a democracia,
que é uma forma política acessória e indiferente, senão apesar
da democracia, que por suas exigências metafísicas tende a vos

230
Filosofia da democracia moderna

perder. Eu posso vencer a dialética da história, e se humanamente


o mundo hoje pertence a Moscou, por disposição divina corres-
ponde a mim na verdade, porque fui colocado para salvar a hu-
manidade, ontem, hoje e sempre, até a consumação dos séculos.
E só Roma pode elevar as multidões à virtude para que então,
sem perigo, possa ser virtuosa a cidade. Porque tem um poder
santificante, pode transformar por dentro o homem, e da condi-
ção materialista em que por si mesmo é arrastado pode levantá-lo
para verdadeira virtude e a verdadeira liberdade, que só se
alcança na santidade, quando alguém, cheio de ordem e de
virtude, autodetermina-se na ordem e na virtude.
Por isso, cada dia aparece mais claro que a humanidade,
hoje dilacerada nas entranhas de seu ser, que pede liberdade
e democracia, sem saber o que pede nem como o conseguir, só
pode ser salva pela Efusão do Espírito de Deus, que só habita na
Igreja Católica. Efusão que chega às almas individuais e que
chega também às estruturas sociais. Se não quer cair na escra-
vidão de Moscou, a humanidade deve se submeter à disciplina
sobrenatural de Roma.
(Nuestro tiempo, nº 26, 16 de Março de 1945).

231
APÊNDICE 5

A “física política” de
Charles Maurras e a política cristã 1

ℂ harles Maurras foi um grande mestre da política, um


mestre só comparável a Aristóteles. Viu a política em
suas conexões concretas: o interesse geral, que Santo Tomás
denomina bem comum, sobre os bens particulares dos grupos
e pessoas. Esse interesse geral, que constitui a lei essencial da
política, não se funda no contrato, como pretendeu Rousseau e
depois dele, o liberalismo.
A essência da política está dada na natureza. Charles Maurras

1
Artigo inédito escrito no ano de 1972.

232
A “física política” de Charles Maurras e a política cristã

chama física a essa natureza2. E nela contém: A estrutura das


famílias, o regime dos matrimônios, a pertença do filho; a
educação, a instrução, a escola; a estrutura da comuna e da
província, a do país e do ofício; a estrutura da Nação, do Estado
central, dos Estados descentralizados; a relação do temporal e
do espiritual3. Nesta classificação dos elementos sociais, que não
dependem do contrato, mas se fundam na natureza, Charles
Maurras segue os passos de Aristóteles, que, no começo de sua
célebre Política, estabelece a lei de ouro que deve reger toda
convivência política entre os homens: “que aquele bem ao que se
ordena a cidade deve ser o principalíssimo entre todos os bens humanos.
Se toda comunidade se ordena ao bem, é necessário que aquela comunidade
que é a mais principal seja a que busque o bem mais principal entre todos
os bens”.4
Pode-se discutir com Charles Maurras se essa natureza
deve se chamar física como ele pretende, ou antes moral, como
ensina Santo Tomás com Aristóteles. Mas o que sem dúvida
deve-se reconhecer é que antes de fazer intervir a vontade
livre dos homens no arranjo das sociedades humanas, existe
uma estrutura determinada pela própria natureza do homem
e da sociedade, que exige que a sociedade deva se orientar para
o bem comum e que deve estar condicionada de uma maneira
determinada bem precisa. Entre estas condições, a família
deve ser monogâmica e indissolúvel, deve ser responsável pela

2
Le Bienheureux Pie X, Sauveur de la France, Plon. 1953, Paris, pág. 219.
3
Ibid. P. XVIII
4
Santo Tomás In Politicorum, Marietti, 1951, Nº. 11 (N. del A.).

233
APÊNDICE 5

educação dos filhos; só assim poderá contar a sociedade com


cidadãos responsáveis. A economia deve se basear na estrutura-
ção dos corpos intermédios, só assim se assegurará a justiça no
intercâmbio econômico, o que determinará o interesse de todos
em manter o vínculo societário. A autoridade da sociedade deve
ser firme e duradoura e não pode ser deixada ao capricho dos
grupos ou indivíduos que a compõem.
Essa concepção da política fundada na estabilidade de institui-
ções naturais oferece uma garantia contra o liberalismo e contra
o socialismo. A escola política de Charles Maurras constitui na
França o grande baluarte contra a Revolução no primeiro quarto
do século em que vivemos. Assim o compreendeu o grande
Pontífice São Pio X e, consequentemente, não deixou de dar seu
generoso apoio contra as tentativas do socialismo, disfarçado
então com uma coloração cristã. Não só Roma os apoiou, senão
que os erigiu como inimigo implacável do sillonismo, seu
inimigo. Marc Sangnier, com efeito, com seu movimento “Le
Sillon”, exercia uma mórbida influência sobre os jovens fran-
ceses, “inflamando seus corações no amor das causas sedutoras, mas
funestas”5. São Pio X os condenou na Notre Charge Apostolique,
onde ao mesmo tempo estabelece o verdadeiro perigo do de-
mocratismo e do socialismo. Ali, o Santo Pontífice denuncia a
nivelação das classes, uma falsa exaltação da pessoa humana, a
soberania popular, advertindo que “os verdadeiros amigos do povo não
são nem os revolucionários nem os inovadores, mas os tradicionalistas.”6
No entanto, os inimigos de Maurras não deixavam de fazer

5
Notre Charge Apostolique, Encíclicas Pontificas, Guadalupe, 1965, T. I, p. 2271.
6
Ibid., p. 2285

234
A “física política” de Charles Maurras e a política cristã

intrigas tanto no Episcopado francês como em Roma mesmo,


e conseguiram que a Congregação do Index preparasse um docu-
mento condenando Maurras. Porque deve se observar que,
embora a escola política de L’Action Française não fosse objetável,
no entanto seu fundador e diretor indiscutido, Charles Maurras,
era homem de ideias perversas e anticristãs. No entanto, os
elementos mais ilustres de L’Action Française eram católicos
exemplares. Não somente isso, mas L’Action Française servia
para que muitos incrédulos se convertessem e entrassem na Igreja.
Mas São Pio X advertiu com sagacidade que se queria produzir
a condenação de L’Action Française não pelas ideias ímpias de seu
fundador e diretor, senão por sua concepção sã e antidemocra-
tista da política. Por isso, opôs-se à sua condenação e guardou na
sua gaveta particular o decreto do Santo Ofício e manifestou que
enquanto ele vivesse, L’Action Française não seria condenada.
Chegou a mais ainda. À mãe de Maurras, que em 1911 esteve
ajoelhada diante dele, pedindo-lhe a benção para seu filho,
disse-lhe: Bendigo sua obra, terá êxito.
Durante o Pontificado de Bento XV voltaram a aumentar os
ataques contra Charles Maurras e sua Action Française, mas Bento
XV seguiu neste ponto as normas de seu ilustre predecessor.
As coisas deviam mudar no Pontificado do Pio XI. O assun-
to seria longo para explicar porque a manobra foi astutamente
maquinada. O Cardeal Andrieu, Arcebispo de Bordeaux, iniciou
a campanha com uma “vergonhosa requisitória”, na opinião do
Cardeal Billot. Ali se acusava os dirigentes de L’Action Française de
professar erros sobre Deus, a divindade de Jesus Cristo e sobre
a Igreja. Mas a maquinação não teria surtido efeito se Aristides
Briand não tivesse voltado a tomar a direção das relações com

235
APÊNDICE 5

o Vaticano no Quai d’Orsay, e dali não tivesse manobrado se


servindo do Núncio de Paris.
A manobra esteve tão bem maquinada que se chegou a fa-
bricar e fazer chegar a Pio XI para a leitura diária uma Action
Française “de fantasia, fabricada com grandes gastos para o irritar
e o encher de horror”.7
Tudo o que se seguiu foi efeito da manobra. Pio XI, diante da
leitura de exemplares perversos, preparados especialmente para
o indispor com L’Action Française, condenou-a, impondo sanções
severas a quem pertencia a ela ou se entregava à leitura de
suas publicações.
Como o reconheceu o próprio Maurras mais adiante8, L’Action
Française devia ter evitado o conflito formal com as autoridades
espirituais e assim evitar toda a aparência de insubordinação. Isso
devia ter sido feito a todo preço. Mas não somente não o fez, como
desatou uma polêmica envenenada que devia dilacerá-los e que,
envenenando-se, devia envenenar nossos males.9
O assunto de L’Action Française foi um assunto rumoroso que
devia transformar radicalmente as posições da Igreja na França
e consequentemente no mundo. Os efeitos seriam palpáveis
com o passar dos anos. O exemplo típico foi o caso Maritain.
Esse filósofo que vinha do bergsonismo estava então dedicado
com devoção singular ao tomismo. Tinha escrito nesse tempo
um livro que definia seu estado de espírito, Antimoderno. Mas

7
Le Bienheureux Pie X, Sauveur de la France, p. 13.
8
Ibid., p. 140.
9
Ibid., p. 140.

236
A “física política” de Charles Maurras e a política cristã

o drama L’Action Française atuou como um poderoso repulsivo


que lhe fez mudar de posição. Desde então começou a seguir
outra linha intelectual em doutrina política e na valorização
da civilização para acabar como vulgar democratista, seguidor
de Lamennais e de Marc Sangnier.10
O que aconteceu com Maritain aconteceu igualmente com o
catolicismo francês e mesmo com o mundial. Atrás de Maritain
veio um guia da juventude, inquieto e inflamado, Emmanuel
Mounier, que orientou as novas gerações para o personalismo,
nome que se deu ao novo socialismo para uso dos cristãos.
Mounier e sua revista Esprit arrastaram atrás de si e sua funesta
empresa a Chenu e Congar, que deviam efetuar a liquidação do
catolicismo tradicional e o substituir por um progressismo
delinquente e dissolvente. Tudo isso devia terminar nas posições
secularistas e marxistas de hoje. O fato certo é que a condenação
de L’Action Française em 1926 transformou radicalmente a sorte
do catolicismo francês e do mundo.
Enquanto isso, as relações de L’Action Française com o Vati-
cano foram entrando numa situação cada vez mais benévola.
Aqui intervieram as orações e as recomendações das santas
irmãs de Lisieux, que aproveitaram sobretudo a visita que
lhes fez o então Cardeal Pacelli, logo o grande Pio XII, para
pedir-lhe como um favor especialíssimo o levantamento das
sanções contra L’Action Française. Essas foram levantadas por
Pio XII em 13 de julho de 1939.

10
Ver meu livro De Lamennais a Maritain, Teoría, Buenos Aires 1967

237
APÊNDICE 5

Charles Maurras, condenado a prisão perpétua por um tribu-


nal que o acusava de colaboracionista, converteu-se totalmente
ao catolicismo.
Que pensar da doutrina de L’Action Française à luz do ensina-
mento católico? Limitamo-nos exclusivamente a este ponto,
sem entrar na análise dos perigos que pode correr um católico
por seguir um mestre incrédulo embora só o faça em sua doutrina
política que neste caso não seria objetável.
Para responder a essa questão, vamos seguir os pontos expres-
sos pelo próprio Maritain no seu opúsculo Une opinión sur Charles
Maurras et le devour des Catholiques, Plon, Paris 1926.
1. O empirismo organizador. Sabido é que o método que
segue em suas elucubrações, Charles Maurras o qualifica de
empirismo organizador. Daí se segue que suas ideias políticas
não derivam de uma ética e muito menos de uma metafisica,
senão da observação histórica dirigida a uma situação concreta.
Estuda as causas próximas que explicam a saúde de uma situação
política, ou, pelo contrário, sua corrupção e decadência. Embora
não participe do positivismo filosófico de um Comte, segue suas
observações no que se refere ao governo do pensamento, dos
costumes e mesmo da própria cidade. Suas ideias políticas se
apresentam como um conjunto de conclusões adquiridas por via
indutiva e como comprovações imediatas da razão. Procedendo
de uma maneira empírica e indutiva, pede à observação e à
história responder a questão seguinte: Existem condições gerais e
constantes para determinar a decadência e corrupção do corpo social?
Quais são?
Que se deve pensar deste empirismo organizador? Enquanto
se limite a tirar as consequências implicadas nas premissas, não

238
A “física política” de Charles Maurras e a política cristã

há nada que censurar. É o método que tão sabiamente seguiu Le


Play para determinar as condições morais da vida das sociedades.
Se a história é mestra da vida, estudá-la com esta dedicação não
pode ser mais que legítimo e instrutivo.
2. A democracia – Uma coisa é a democracia entendida no
sentido de politeia de Aristóteles e outra no sentido moderno,
infectada com o mito da soberania popular do Contrato Social de
Rousseau. E é claro que a democracia de hoje, embora teorica-
mente possa ser uma forma legítima de governo, na prática
o deixou de ser porque o mito rousseaniano a contaminou. As
críticas de Maurras são, então, legítimas.
3. Primeiro a política, isto é, politique d’abord. – Acu-
sou-se L’Action Française de dar primazia à política sobre qualquer
outro valor moral. Mas aqui se deve advertir que uma ou outra
primazia se impõe segundo o ponto de vista a partir do qual se
considera as coisas. É claro que numa apreciação da importância
dos valores corresponde a primazia ao valor religioso; mas se se
consideram as coisas desde o ponto de vista da necessidade e da
vigência da moral pública, então há que se dar primazia à política.
Porque é o cumprimento das leis que assegura os bons costumes
que oferece garantia de segurança e de saúde moral. Por isso, o
próprio Maritain sustenta a política primeiro – se “primeiro” se refere
assim, não ao fim perseguido e à ordem da intenção (o que seria divinizar
o Estado) senão as condições que deve supor na ordem da execução, é uma
verdade de sentido comum.11
O próprio Maurras explicou no Minhas ideias políticas12 quando

11
Une opinion sur Charles Maurras, ibid., p. 32.
12
Editorial Huemul, Buenos Aires, pág. 139.

239
APÊNDICE 5

diz: “Quando dizemos ‘antes de tudo, política’, queremos dizer,


primeiro a política, primeira na ordem do tempo, de nenhuma
maneira na ordem da dignidade. Equivale dizer que deve se
tomar a rota antes de chegar ao seu ponto final; a flecha e o arco
deverão ser empunhados antes de acertar o alvo; o meio de ação
precederá o centro a que se destina”.
4. Política e política cristã – Deve-se reconhecer os méritos
da doutrina política de Charles Maurras enquanto usou um
método e princípios realistas que o levaram a defender valores
fundamentais de um realismo político e o livraram de cair nos
erros do liberalismo rousseauniano. Sua política constitui uma
política sã, o que é pedir muito num tempo de delinquência e
degradação da vida pública. Mas, no entanto, devemos reconhe-
cer que se temos em conta que a política deve reger a homens
e sociedades cristãs que não devem acomodar sua vida a um
módulo puramente natural, mas sobrenatural da vida eterna;
então, há uma insuficiência em Maurras. Sua política, poderá
ser qualificada de natural ou de naturalista.
Não há dúvida que resulta algo anormal que um incrédulo
seja o mentor de uma política para cristãos. Essa insuficiência,
se de algum modo não fosse reparada, ia criar uma crise dentro da
própria L’Action Française.
No entanto – e isso viu sagazmente o grande Pio X – os ataques
contra L’Action Française não se levantaram contra essa carência
num desejo nobre de a remediar, mas o contrário, se atacava a
L’Action Française pelo que representava de valioso e de conforme
a lei natural, porque era uma política de autoridade e de ordem.
Aqui se radica a diferença entre um Pontífice santo e outro que
não o é, embora possa ser muito virtuoso. O santo está dotado de

240
A “física política” de Charles Maurras e a política cristã

uma prudência sobrenatural que discerne a malícia do inimigo


em coisas aparentemente inocentes. Por isso, São Pio X pôde
dizer a um bispo francês que se empenhava em conseguir a
condenação de L’Action Française: “Não temos aqui, querido filho,
tudo o que é preciso para o condenar. Mas nós estamos seguros de que as
pessoas que nos informaram tão bem atuaram menos por amor e zelo
da santa religião que por ódio das doutrinas sustentadas por L’Action
Française”. Depois, fechando com um golpe seco a gaveta do
escritório, Pio X acrescentou: “Assim, enquanto eu viver, jamais
será L’Action Française condenada. Ela faz bem. Ela defende o princípio
de autoridade. Ela defende a ordem”.13
São Pio X se constitui em defensor de Charles Maurras. Pio
XI condenou a Maurras. Mas outro pontífice que, sem dúvida,
deve ser elevado aos altares, Pio XII, levantou a condenação de
Maurras, e isso sem exigir aos membros da L’Action Française
a menor retratação de nenhum erro determinado. Só houve
uma mudança de cartas em termos gerais. Como se explica
tudo isso? Pelo discernimento dos espíritos que ilumina os
santos. Um santo e somente um santo, Pio XII, compreende
e interpreta a outro santo, a São Pio X. Assim o manifestou
o próprio Pio XII no discurso pronunciou em 03 de junho de
1951, na Praça de São Pedro, por ocasião da beatificação do
grande Pontífice.

Agora, que “o exame mais minucioso descobriu a fundo todos os


atos e vicissitudes de seu pontificado, agora que se conhecem as
consequências daquelas vicissitudes, nenhuma dúvida, nenhuma

13
Charles Maurras, Le Bienheureux Pie X, Sauveur de la France, p. 72.

241
APÊNDICE 5

reserva ainda é possível, e se deve reconhecer que, mesmo nos perío-


dos mais difíceis, mais ásperos, mais graves e de mais responsabilidade,
Pio X, assistido pela grande alma de seu Secretário de Estado, o
Cardeal Merry del Val, deu prova daquela iluminada prudência que
nunca falta aos santos, embora em suas aplicações se encontre em
contraste doloroso, mas inevitável, com os enganosos postulados
da prudência humana e puramente terrena”.

E logo acrescentou:

“Com seu olhar de águia, mais perspicaz e mais seguro que a curta
vista dos míopes raciocinadores, via o mundo tal como era, via a
missão da Igreja no mundo, via com olhos de Santo Pastor qual era
seu dever no seio da sociedade descristianizada, de uma cristandade
contaminada, ou ao menos, perseguida pelos erros da época e pela
perversão do século”.14

O olhar de águia de São Pio X viu claramente no assunto de


L’Action Française e de Charles Maurras. Certo que a incredulidade
religiosa de Maurras, que tinha perdido a fé em sua juventude,
alcançou um grau de sacrílega impiedade e de blasfêmia em
obras como Anthinea e Le Chemin de Paradis. Mas o programa de
ação política contra o demoliberalismo da Revolução forjado por
Maurras oferecia garantias para uma firme restauração social
política na linha católica. Sua Action Française era, no plano
político, uma defesa da Igreja contra a Revolução. A Camille
Bellaigne, que pedia uma benção para Maurras, respondeu-lhe
São Pio X: “Nossa benção! Mas todas nossas bênçãos! E dizei-lhe que
é um defensor da Fé”15.

14
Ecclesia, de Madri, 9 de junho de 1951.
15
Harry Mitchell, Pie X et la France, Les Editions du Cédre, Paris, 1954.

242
Este livro foi produzido pelas famílias tipográficas Vollkorn e PT Sans.
Impresso em Papel Supremo 300g e Polen Bold 90g.

Você também pode gostar