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revista piauí
tempos da peste
DENTRO DO PESADELO
O governo Bolsonaro e a calamidade brasileira
01maio2020_07h00
A pancadaria de 1968, numa imagem clássica dos tempos de chumbo, agora atualizada: a eleição
de Bolsonaro é um revés histórico comparável ao golpe que instaurou a ditadura militar
B
astam algumas linhas para que o leitor se veja diante da
pandemia do novo coronavírus. É impossível atravessar
esse trecho do romance de Fiódor Dostoiévski sem associá-
lo imediatamente à peste que assola o planeta. Embora seu poder
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B
olsonaro venceu nos termos dele, a bordo de um partido de
aluguel, sem alianças regionais nem tempo de exposição na
tevê, carregando como vice um general que, como ele, só
tem boas recordações do golpe de 1964. Venceu sem fazer
concessões, sem nenhum aceno ao centro do espectro político,
contrariando a tendência das eleições em dois turnos. Venceu
reiterando a retórica extremista e desafiando o establishment
(parte dele encantado com a “sinceridade rústica” do capitão).
Bolsonaro venceu misturando o discurso do ódio, do
ressentimento e da revanche à promessa de redenção nacional,
com forte conotação religiosa. O atentado que sofreu no início de
setembro elevou à potência máxima os contornos messiânicos e a
carga irracional da candidatura. A partir da facada nasceu um
mártir que estava sacrificando a própria vida para salvar o país. A
graça divina havia intercedido em favor do Brasil.
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A
mudado muito quando ele proferiu, em abril de 2016, seu
voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff. À sua
maneira, o futuro presidente lançava ali o seu programa de
governo, com direito ao bordão de campanha no final. O oxigênio
da democracia brasileira já estava sendo cortado:
Ustra foi condenado por uma ação movida pela família Almeida
Teles, não por uma iniciativa do Estado. Entre 1972 e 1973, pai,
mãe e dois filhos, uma criança de 4 e outra de 5 anos, foram
presos e torturados nas dependências do DOI-Codi em São Paulo.
Além deles, a irmã da mãe, uma jovem grávida de sete meses,
também foi vítima de sevícias. Todos presenciaram a morte por
tortura de um amigo da família. Ustra, segundo os termos da
ação, “praticou pessoalmente os atos de tortura”. Quem conta isso
é a historiadora Janaína de Almeida Teles, a criança de 4 anos da
família torturada, hoje com 53 anos. Extraí seu relato de um artigo
intitulado Os Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e a
Luta por Verdade e Justiça no Brasil, incluído no livro O que Resta
da Ditadura, organizado por Vladimir Safatle e Edson Teles,
irmão da autora. O livro, que reúne reflexões feitas num
seminário promovido pela Universidade de São Paulo em 2008,
quando o AI-5 completou 40 anos, só seria lançado em 2010, num
momento em que falar dos restos da ditadura estava meio fora de
moda até na esquerda (Lula vivia sua apoteose como presidente,
com mais de 80% de aprovação popular).
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Essa última frase está aí apenas para que você, leitor, possa dar
uma risada nesses tempos de cólera. A verdade é que “rimos do
fato de que não há nada de que se rir”, como escrevem Adorno e
Horkheimer na Dialética do Esclarecimento. “Faxina”, “limpeza”,
“marginais”, “banidos”, “apodrecer”, “lombo”, “bandidos”,
“petralhada” – tudo transpira ódio e recende a fascismo. A “ponta
da praia”, talvez nem todos saibam, era o nome dado pela
ditadura a um local de desova de cadáveres no Rio de Janeiro.
Bolsonaro fala como torturador, não como candidato à
Presidência. Assim como hoje governa como miliciano, não como
estadista.
I
nsisti nesses registros já antigos porque a demência atual já
aparece inteira lá. Não havia nada incubado. Tudo já era
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N
a reunião que decretou o AI-5, em 13 de dezembro de 1968,
quando chegou sua vez de votar, o coronel Jarbas
Passarinho, então ministro do Trabalho, dirigindo-se ao
presidente, justificou sua adesão ao fechamento do regime com
uma frase que entrou para a história: “Sei que à Vossa Excelência
repugna, como a mim, e creio que a todos os membros deste
conselho, enveredar para o caminho da ditadura pura e simples.
[…] Mas, às favas, senhor presidente, neste momento, todos,
todos os escrúpulos de consciência.” Atribui-se a Pedro Aleixo,
vice-presidente do marechal Costa e Silva, uma ressalva ao AI-5
que ele teria feito na famigerada reunião: “O problema desse ato
não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país, mas o
guarda da esquina.” A autoria da frase é duvidosa (não consta da
gravação em áudio da reunião), mas ela entrou para a mitologia
do período.
H
á ainda muita gente que se apega à capacidade de
resistência das instituições. É uma maneira de brincar de
avestruz. Basta um “recuo” do presidente para que os
arautos da nossa vitalidade democrática venham dizer nos jornais
e nas redes sociais que está tudo bem. Ou, quando Bolsonaro não
recua, nossos arautos vêm a público para dizer que “desta vez, ele
se excedeu”, apenas para, depois do próximo absurdo do
presidente, voltarem a público para repetir, com a mesma inflexão
na voz, que “desta vez, ele se excedeu”, num moto-contínuo que
revela mais apatia diante das ameaças às instituições do que
propriamente confiança cega nelas.
B
olsonaro substituiu o chamado presidencialismo de coalizão
pelo presidencialismo de colisão. Trocou a cooptação pelo
conflito. Sim, é verdade que ele agora está pedindo socorro
ao Centrão, mas logo a coisa vai desandar. É só esperar. O que
define o bolsonarismo é o desprezo pelo Congresso, pelos
partidos, pelas instituições, pela imprensa livre, pela sociedade
civil organizada. Ele gosta do caos, ele gosta de dar tiros. Sua
opção política funciona porque ele tem o Exército às suas costas.
O projeto autoritário de Bolsonaro passa pela atrofia do poder
civil e do estado laico, dois pilares da vida democrática.
A
eleição de Bolsonaro representa um revés histórico
comparável ao golpe de 1964. Isso para mim era
intuitivamente óbvio desde o começo, quando desencavei
sem querer da memória o romance de Dostoiévski. De tudo que li
nos últimos meses, foi o crítico Roberto Schwarz quem melhor
organizou o que aproxima e o que diferencia o governo do guarda
da esquina de hoje do regime autoritário de ontem. Recapitulo os
pontos principais da entrevista que ele concedeu à Folha de S.
Paulo, em novembro passado.
crítico, se Bolsonaro não chegar lá, “não terá sido por falta de
vontade”.
N
um registro mais pessoal, a mesma ideia de algo
definitivamente malformado aparece no último livro de
ensaios de Nuno Ramos. No prefácio de Verifique Se o
Mesmo, lançado pela Todavia, o artista plástico e escritor diz a
certa altura: “Quero apenas declarar, e me perdoe o leitor esse tom
abrupto, que os acontecimentos recentes parecem encerrar o ciclo
de esperanças que acompanhou minha vida adulta desde os anos
1980.” O texto é de maio de 2018, anterior, portanto, à eleição
presidencial, mas já está impregnado pelo ambiente que levou
Bolsonaro ao poder.
E mais adiante:
Marina, lembrem-se disso), exprima tão bem o país tão pior que
estamos experimentando neste momento.
C
omecei este texto revelando os sentimentos de horror e
incredulidade diante do que estava por vir em 2018. Um
ano e meio depois, termino renovando aqueles sentimentos,
dos quais não me livrei, fisicamente falando, acrescidos, neste
momento, da sensação incontrolável de que “os acontecimentos
recentes parecem encerrar o ciclo de esperanças que acompanhou
minha vida adulta desde os anos 1980”.
[1] A
tradução é de Rubens Figueiredo e consta da edição de
Crime e Castigo lançada pela Todavia, em 2019.
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