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20/05/2020 Dentro do pesadelo

revista piauí
tempos da peste

DENTRO DO PESADELO
O governo Bolsonaro e a calamidade brasileira
01maio2020_07h00

FERNANDO DE BARROS E SILVA

A pancadaria de 1968, numa imagem clássica dos tempos de chumbo, agora atualizada: a eleição
de Bolsonaro é um revés histórico comparável ao golpe que instaurou a ditadura militar

Começo com a lembrança de um pesadelo clássico da literatura:

Raskólnikov ficou de cama no hospital todo o fim da Quaresma e


também na Semana Santa. Quando já estava se recuperando,
recordou seus sonhos da fase de febre e delírio. Doente, sonhou
que o mundo todo parecia condenado ao sacrifício por uma peste
terrível, desconhecida e nunca vista, que provinha das
profundezas da Ásia para a Europa. Todos tinham de morrer,
exceto alguns escolhidos, muito poucos. Apareceram novos
parasitas, criaturas microscópicas que se instalavam no corpo das
pessoas. Só que tais criaturas eram espíritos, dotados de
inteligência e vontade. As pessoas contaminadas por eles se
tornavam imediatamente endemoniadas e loucas. Mas nunca,
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nunca as pessoas se consideravam tão inteligentes e tão


inabaláveis na verdade como ocorria com os infectados. Jamais
consideravam que houvesse algo mais inabalável do que suas
sentenças, suas conclusões científicas, suas convicções morais e
suas crenças. Povoados inteiros, cidades e populações inteiras se
infectaram e enlouqueceram. Todos ficaram perturbados,
ninguém se entendia, cada um achava que a verdade se encerrava
só nele e sofria ao olhar para os demais, cada um batia no peito,
chorava e retorcia as mãos. Não sabiam quem nem como julgar,
não conseguiam entrar em acordo sobre o que era bom e o que era
mau. Não sabiam quem deviam culpar e quem deviam inocentar.
As pessoas se matavam umas às outras numa espécie de raiva
insana. Uniam-se em exércitos inteiros, mas as tropas já em
marcha começavam de repente a se dilacerar, as fileiras se
dispersavam, os militares se atracavam entre si, furavam e
cortavam, mordiam e comiam uns aos outros. Nas cidades, o sino
de alerta tocava o dia inteiro: reuniam todos, mas ninguém sabia
quem estava convocando nem para quê, e todos ficavam
perturbados. Os ofícios mais corriqueiros foram abandonados,
porque cada um propunha suas ideias, suas correções, e não
conseguiam entrar num acordo; a agricultura parou. Aqui e ali, as
pessoas se juntavam em bandos, concordavam em alguma coisa,
juravam não se separar – mas logo começavam algo muito
diferente daquilo que elas mesmas tinham acabado de propor,
passavam a acusar uns aos outros, brigavam e se dilaceravam.
Irromperam incêndios, começou a fome. Tudo e todos pereciam.
A peste crescia e se alastrava cada vez mais. No mundo todo, só
algumas pessoas conseguiram salvar-se, eram os puros e os
eleitos, destinados a originar uma nova espécie de pessoas e uma
nova vida, a renovar e purificar a terra, mas ninguém via tais
pessoas, em nenhum lugar, ninguém ouvia suas palavras nem sua
voz. [1]

B
astam algumas linhas para que o leitor se veja diante da
pandemia do novo coronavírus. É impossível atravessar
esse trecho do romance de Fiódor Dostoiévski sem associá-
lo imediatamente à peste que assola o planeta. Embora seu poder

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de sugestão para os dias que correm seja flagrante e dispense


comentários, devo uma explicação sobre as circunstâncias que
trouxeram os delírios noturnos de Raskólnikov até aqui. Crime e
Castigo foi publicado há mais de 150 anos, em 1866. Li o romance
quando já era adulto, há mais ou menos três décadas – e só uma
vez. Bem próximo do final da trama, o pesadelo foi uma das cenas
que me capturaram para sempre. Mas permaneceu todo esse
tempo bem guardado, num canto remoto da memória, como que
adormecido. E, ironicamente, não foi o cataclismo do coronavírus
que o despertou.

Estávamos na campanha presidencial de 2018, poucos dias depois


do atentado sofrido por Jair Bolsonaro em Juiz de Fora, quando
essa passagem de Crime e Castigo acendeu na minha mente como
faísca. Corri para a estante, peguei o livro, achei o trecho, li uma,
duas, várias vezes, e transcrevi a cena para o computador. Sem
que tivesse isso muito claro, eu estava à procura de uma imagem
que fosse excessiva, hiperbólica ou absurda mesmo para dar conta
do sentimento de horror e incredulidade que havia me tomado.
Tentei escrever um artigo a quente para o site da piauí usando a
alegoria da peste que enlouquecia as pessoas para falar da
calamidade que então se desenhava no horizonte do país.
Simplesmente não funcionou. Não demorou para que o recurso à
literatura me parecesse postiço e um pouco afetado diante da
urgência da situação. A dinâmica daqueles dias tumultuados
acabou devorando as minhas pretensões de iluminar o ingresso
do país nas trevas com a imaginação sombria de Dostoiévski.

Sigo mais um pouco com essa digressão. Quando Bolsonaro e


Fernando Haddad passaram ao segundo turno, logo ficou
evidente quem iria ganhar. O PIB (ou a parte dele que ainda não
tinha assumido publicamente seu lado) correu em bloco para o
colo do candidato da extrema direita; do outro lado – onde se
encontravam supostamente os democratas do país –, cada um
correu para um canto, com cara de paisagem. Àquela altura da
campanha, além da óbvia associação com o transe bolsonarista, o
pesadelo de Raskólnikov me servia também como imagem da
autofagia do campo político civilizado: Todos ficaram
perturbados, ninguém se entendia, cada um achava que a verdade
se encerrava só nele e sofria ao olhar para os demais, cada um
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batia no peito, chorava e retorcia as mãos. Não sabiam quem nem


como julgar, não conseguiam entrar em acordo sobre o que era
bom e o que era mau. Não sabiam quem deviam culpar e quem
deviam inocentar.

Não se tem notícia de que lideranças comprometidas


historicamente com a democracia chegaram a chorar ou retorcer
as mãos, mas todas, sem exceção, abdicaram de suas
responsabilidades, cada uma batendo no próprio peito, como se a
verdade se encerrasse toda em si, como se essa fosse apenas uma
eleição – mais uma. Cegos ou omissos, colaboraram todos para
pavimentar o caminho que Bolsonaro atravessou com ares
triunfais, cuspindo ódio. É mais do que provável que esse
desfecho fosse inevitável. Não acredito que a onda conservadora e
a fúria revanchista que fermentaram na sociedade ao longo dos
últimos anos pudessem ser revertidas nas urnas. Nada, no
entanto, justifica as mesquinharias, a falta de percepção ou o
pouco caso dos democratas diante do que estava em jogo.
Ninguém fez boa figura. Ninguém mesmo.

Os tucanos empilharam vexames. Começaram lá atrás, em 2014,


quando, derrotado por Dilma Rousseff, Aécio Neves colocou o
resultado da eleição sob suspeição (nunca é demais relembrar os
momentos marcantes da acumulação primitiva do bolsonarismo,
chamemos assim). O playboy emplumado das Alterosas foi
depenado pelo caminho, mas os tucanos seguiram sua marcha
torta. Depois de apoiar o impeachment, dando aval (e não apenas
os votos) à destituição de Dilma, o PSDB embarcou no governo de
Michel Temer, capitaneado pelas pretensões delirantes de José
Serra. Nomeado chanceler em retribuição à participação ativa nas
articulações da parlamentada (na boa definição de Marcos Nobre),
Serra acreditava que Temer era Itamar e ele seria o novo Fernando
Henrique Cardoso. A sequência do filme todos conhecem. O
senador tucano está praticamente reduzido à condição de fugitivo
da Lava Jato – ele, que foi um importante ministro da Saúde na
era FHC, hoje é irrelevante. E o PSDB, como se sabe, foi parar nas
mãos de João Doria Júnior. Depois de abandonar a prefeitura
paulistana e trair o padrinho Geraldo Alckmin, ele não hesitou em
se oferecer para a dança do acasalamento com Bolsonaro,
elegendo-se governador de São Paulo no sufoco, agarrado à chapa
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Bolsodoria. Da molecagem de Aécio em 2014, passando pelo


patrocínio ao impeachment em 2016, até a carona no colo de
Bolsonaro, em 2018, a trajetória descrita pelos tucanos pode ser
lida como uma sucessão de flertes, cada vez mais ousados e
explícitos, com a direita incivilizada. Em determinado momento
pareceu impossível discernir a linha que separava o PSDB do
Novo.

Ciro Gomes decidiu flanar em Paris no segundo turno da


campanha, como se nada fosse, delegando ao irmão Cid a tarefa
de avançar com a retroescavadeira contra a militância petista.
Retroescavadeira era apenas metáfora, entendam. Como me disse
um bom observador logo depois da eleição: “Descobrimos na
campanha que o Ciro era melhor do que a gente imaginava, e
também muito pior do que podíamos imaginar.” A definição
paradoxal vai ao ponto. Os valores de Ciro são progressistas, sua
atuação é relevante e faz diferença, mas sua personalidade é
autoritária e ele invariavelmente descamba. Ciro quase nunca
respeita o seu interlocutor. Exercita com gosto um tom professoral
diante de entrevistadores inofensivos ou servis; quando o
entrevistador lhe aperta o calo – às vezes basta um beliscão de
leve –, tende a ser agressivo ou truculento, com variações de grau.
É uma pena.

Lula e o PT tampouco estiveram à altura dos acontecimentos. Não


é possível desconsiderar a circunstância decisiva de que o líder
petista estava preso – vítima de um processo viciado, conduzido
de maneira francamente parcial, com o propósito claro de alijá-lo
da disputa eleitoral –, mas isso não o eximia de responsabilidades
políticas. Da cadeia, o ex-presidente levou Haddad ao segundo
turno e ao mesmo tempo o impediu de ter alguma chance de virar
presidente. No dia seguinte à votação do primeiro turno, o
candidato foi a Curitiba visitar seu criador. Pretendia sair dali
com respaldo para fazer a campanha a seu modo. Queria
caminhar ao centro e, entre outras coisas, tinha a intenção de
convidar Pérsio Arida para ministro da Fazenda. Seria um lance
ousado, com chances remotas de dar certo (um dos pais do Plano
Real, banqueiro e ex-sócio de André Esteves, Arida era até a
véspera responsável pela coordenação da área econômica de
Geraldo Alckmin). Tudo isso, porém, ficou para as calendas
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gregas. Haddad saiu da sede da Polícia Federal como havia


chegado: sob tutela. Foi até o fim o candidato de Lula, quando
precisava ter sido o candidato da democracia. A direção do PT
tratou de enquadrá-lo nos termos definidos pelo ex-presidente.
Gleisi Hoffmann está lá para isso. Tem o espírito tarefeiro, mesmo
diante das missões mais constrangedoras. Nem ela nem a
burocracia petista fizeram esforço para derrotar Bolsonaro. Pelo
contrário, houve um boicote branco a Haddad, como se fosse
preferível a derrota nas urnas para não perder o discurso de que
Lula estava sendo vítima de um complô. Naquelas condições, o
desempenho do candidato foi surpreendente. O que o
impulsionou na reta final foi uma espécie de mutirão espontâneo
e desesperado na sociedade, sobretudo entre os jovens, à revelia
do PT e das lideranças políticas – todos acoelhados.

B
olsonaro venceu nos termos dele, a bordo de um partido de
aluguel, sem alianças regionais nem tempo de exposição na
tevê, carregando como vice um general que, como ele, só
tem boas recordações do golpe de 1964. Venceu sem fazer
concessões, sem nenhum aceno ao centro do espectro político,
contrariando a tendência das eleições em dois turnos. Venceu
reiterando a retórica extremista e desafiando o establishment
(parte dele encantado com a “sinceridade rústica” do capitão).
Bolsonaro venceu misturando o discurso do ódio, do
ressentimento e da revanche à promessa de redenção nacional,
com forte conotação religiosa. O atentado que sofreu no início de
setembro elevou à potência máxima os contornos messiânicos e a
carga irracional da candidatura. A partir da facada nasceu um
mártir que estava sacrificando a própria vida para salvar o país. A
graça divina havia intercedido em favor do Brasil.

O fervor cristão, a fanatização da política, o anticomunismo


delirante, a defesa da família patriarcal e o nacionalismo tacanho
passaram a compor a nova gramática do poder. Era preciso
expurgar os traidores da nação, restaurar os valores perdidos,
fazer a limpeza, promover uma verdadeira faxina – dos
esquerdistas, dos corruptos, dos transviados, a lista é
virtualmente infinita, porque sempre haverá algo a ser varrido do
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mapa –, tudo convergindo para a ideia de que a missão de


Bolsonaro, vocalizada por ele próprio, seria destruir o que existe e
a partir daí refundar a pátria, entendida como um lugar idílico,
onde estariam salvos, para falar como Dostoiévski, os puros e os
eleitos, destinados a originar uma nova espécie de pessoas e uma
nova vida, a renovar e purificar a terra. É claro que ninguém via
tais pessoas, em nenhum lugar, ninguém ouvia suas palavras nem
sua voz. Aliás, cadê o Queiroz?

O pesadelo de Raskólnikov reproduz a dinâmica do livro bíblico


do Apocalipse (o Juízo Final antecede a paz eterna dos justos no
Paraíso), duvidando, ao mesmo tempo, do final feliz da história.
Não há salvação em Dostoiévski. No caso de Bolsonaro, isso não é
um problema. Enquanto a obra divina não se realiza, ele já elegeu
para si um Éden tropical. Sua imagem do paraíso sempre foi a
grande obra dos golpistas fardados que usurparam o poder no
país por 21 anos. Dentro da longa noite do arbítrio, o presidente
nunca escondeu que tem, digamos assim, um carinho especial
pelo período de maior escuridão do regime militar, aquele em que
a engrenagem da tortura, das mortes e dos desaparecimentos
funcionou a todo vapor. (Aqui vale um parêntese:
desaparecimentos, como se sabe, é um eufemismo para designar
as mortes produzidas pelo Estado e não assumidas enquanto tais,
o que representa uma volta a mais no parafuso da crueldade, com
consequências indeléveis para parentes e amigos das vítimas).
Estamos falando do intervalo de tempo que vai do AI-5, no final
de 1968, até a metade dos anos 1970, quando o regime começa a
“dar uma fraquejada” e Ernesto Geisel decide encampar aquela
besteira de “abertura lenta, gradual e segura”. Erro brutal, porque
para resolver os problemas do Brasil só “matando 30 mil”. A frase
poderia estar na boca de um personagem de Rubem Fonseca, mas
quem a pronunciou foi Bolsonaro, ao defender, em 1999, numa
entrevista à TV Bandeirantes, o fechamento do Congresso e a
necessidade de uma guerra civil para fazer “um trabalho que o
regime militar não fez”. O primeiro alvo a ser executado seria o
próprio presidente da República: “Começando com FHC. Não
deixar ele de fora, não. Matando!” Vão “morrer alguns inocentes”,
ele admitiu, mas acrescentou: “Tudo bem.” É assim mesmo, “em
tudo quanto é guerra morre inocente”.

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Não havia guerra nenhuma, a não ser aquela que fermentava na


mente ruim do deputado. O disparate gerou, é claro, certo
desconforto, mas ninguém levou adiante o pedido de cassação do
mandato do genocida. Afinal, parecia ocioso perder tempo com
um tipo periférico e perturbado, uma espécie de zumbi
boquirroto, saudoso de “uma página infeliz da nossa história”, já
superada.

O país atravessava uma séria crise monetária em 1999, é verdade,


mas se respirava por toda parte ares democráticos. Àquela altura,
uma década depois da Constituição de 1988 – a Cidadã – e depois
da travessia de um impeachment que havia fortalecido a crença
nas instituições, o consenso em torno da democracia parecia
consolidado. Era sobre esse solo comum democrático que as
divergências brotavam. A despeito de todos os problemas, tinha
se formado a partir do Plano Real a perspectiva concreta de um
novo ciclo de desenvolvimento e, com ele, a esperança de que
iniquidades históricas do país começariam a ser reparadas.
Tínhamos a sensação muito palpável de que algo estava em
construção.

É divertido e triste ao mesmo tempo recordar que em 1994 a


aliança dos tucanos com o então PFL foi motivo de grande
escândalo e intermináveis discussões entre intelectuais. A muitos
aquilo soava como uma concessão moralmente intolerável, um
imperdoável passo em falso à direita, que recolocava em cena,
ainda que na condição de coadjuvantes, velhas raposas da Arena,
o braço de sustentação da ditadura no Congresso. Na grande
angular da história, porém, o vilão da esquerda naqueles anos era
a globalização, da qual FHC seria um fantoche, um presidente
mais ou menos decorativo a serviço do capital que desconhecia
fronteiras. À luz dos dias atuais, diante do avanço da xenofobia
de extrema direita pelo mundo e da participação especial do
Brasil nesse circo de horrores, vislumbro a montanha de ilusões
em que estávamos sentados e o tamanho do tombo que levamos.
Ainda estamos caindo, não se animem.

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atmosfera do país e a relevância política de Bolsonaro haviam

A
mudado muito quando ele proferiu, em abril de 2016, seu
voto a favor do impeachment de Dilma Rousseff. À sua
maneira, o futuro presidente lançava ali o seu programa de
governo, com direito ao bordão de campanha no final. O oxigênio
da democracia brasileira já estava sendo cortado:

Nesse dia de glória para o povo brasileiro, tem um nome que


entrará para a história nessa data, pela forma como conduziu os
trabalhos nessa Casa. Parabéns, presidente Eduardo
Cunha. Perderam em 1964. Perderam agora em 2016. Pela família
e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca
teve. Contra o comunismo. Pela nossa liberdade. Contra o Foro de
São Paulo. Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante
Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas
nossas Forças Armadas. Por um Brasil acima de tudo e por Deus
acima de todos, o meu voto é sim!

Em poucos segundos, Bolsonaro estabeleceu a conexão histórica


entre os dois golpes (1964-2016) – o primeiro, militar; o segundo,
jurídico-parlamentar –, como se desenhasse uma moldura para
homenagear no centro do quadro o “pavor de Dilma Rousseff”.
Ao acrescentar esse aposto ao nome do torturador, o deputado de
alguma maneira fez reviver a própria tortura, num exercício de
sadismo de que pouca gente é capaz. De forma provavelmente
inédita no Congresso Nacional desde o fim do regime militar,
estavam sendo atiradas no lixo a democracia como experiência
histórica e a democracia como ideia e referência fundamental da
vida política.

Detenho-me mais um pouco aqui porque Brilhante Ustra não foi


um patife qualquer. Teve papel de destaque no “trabalho” que,
segundo o lamento de Bolsonaro, a ditadura não terminou. O
DOI-Codi que Ustra comandou entre 1970 e 1974 foi chamado de
“casa dos horrores” na sentença histórica, proferida em 2008, em
que o juiz Gustavo Santini Teodoro condenou o coronel. Ustra foi
o único oficial militar condenado civilmente pela Justiça brasileira
pelo crime de tortura. Isso porque a Lei da Anistia, de 1979, serviu
como escudo legal para impedir que os torturadores fossem
levados penalmente ao banco dos réus.
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Ao contrário do que aconteceu no Chile, na Argentina e no


Uruguai, no Brasil a tortura e os assassinatos cometidos por
agentes do Estado jamais foram punidos. Nunca mais serão – e
isso não é trivial. Faz pensar na maneira como o país costuma
lidar com seus traumas, por meio de negaças e acomodações, sem
nunca enfrentá-los. Na língua de Freud, se diria que o país,
incapaz de elaborar os traumas, convive indefinidamente com
seus sintomas. A começar pela escravidão, o trauma que nos
formou como nação. Foi abolida há mais de 130 anos, em 1888,
mas a dívida com a população negra jamais foi reparada. Os
sintomas dessa omissão crônica, dessa nossa maneira de driblar as
exigências da civilização e perpetuar no presente a herança
colonial, estão aí, à vista de todos, nos morros, nas periferias, nas
prisões, dentro das nossas casas, estampados em praticamente
todos os indicadores sociais – renda, escolaridade, mortes,
oportunidades de trabalho etc. Alguém pode mostrar um
indicador, deve haver ao menos um, em que os negros não
estejam expostos a situações de maior vulnerabilidade ou
exclusão? Pois é.

Ustra foi condenado por uma ação movida pela família Almeida
Teles, não por uma iniciativa do Estado. Entre 1972 e 1973, pai,
mãe e dois filhos, uma criança de 4 e outra de 5 anos, foram
presos e torturados nas dependências do DOI-Codi em São Paulo.
Além deles, a irmã da mãe, uma jovem grávida de sete meses,
também foi vítima de sevícias. Todos presenciaram a morte por
tortura de um amigo da família. Ustra, segundo os termos da
ação, “praticou pessoalmente os atos de tortura”. Quem conta isso
é a historiadora Janaína de Almeida Teles, a criança de 4 anos da
família torturada, hoje com 53 anos. Extraí seu relato de um artigo
intitulado Os Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e a
Luta por Verdade e Justiça no Brasil, incluído no livro O que Resta
da Ditadura, organizado por Vladimir Safatle e Edson Teles,
irmão da autora. O livro, que reúne reflexões feitas num
seminário promovido pela Universidade de São Paulo em 2008,
quando o AI-5 completou 40 anos, só seria lançado em 2010, num
momento em que falar dos restos da ditadura estava meio fora de
moda até na esquerda (Lula vivia sua apoteose como presidente,
com mais de 80% de aprovação popular).

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Eu estava na redação da piauí com alguns colegas no domingo em


que a Câmara aprovou o impeachment de Dilma. Lembro-me
bem do mal-estar que os termos do “sim” de Bolsonaro provocou
em todos. Sua apologia ao torturador representava uma ruptura
na sequência modorrenta de votos paroquiais e involuntariamente
cômicos (em nome de Deus, em nome da minha tia, pelo futuro
dos meus filhos, em homenagem ao meu papagaio…). Houve
silêncio na redação por alguns segundos. Alguém soltou um
sonoro “filho da puta”. Escrevi naquela mesma noite um pequeno
texto para o site da revista, comentando um aspecto até então
despercebido de uma pesquisa recém-publicada do Datafolha. No
topo da pirâmide social, Bolsonaro já então liderava a corrida
presidencial. Tinha 23% das intenções de voto entre os eleitores
com renda familiar superior a dez salários mínimos. No conjunto
da sociedade, ainda estava em quarto ou quinto lugar, com 7% ou
8%, dependendo dos adversários, mas sempre atrás do líder Lula,
de Marina Silva e do candidato tucano (Aécio, Serra ou Alckmin).
Na tarde em que Jair Bolsonaro “reparou uma justiça” ao exaltar o
militar condenado por tortura na ditadura, boa parte da elite já
havia arrastado suas fichas para o lado do capitão.

Dois anos e meio depois, a uma semana de ser eleito presidente, o


candidato fez aquele famoso discurso transmitido por celular a
manifestantes aglomerados na Avenida Paulista, em São Paulo.
Para quem convalescia de uma facada, Bolsonaro aparece em cena
bastante disposto e corado, sorridente na maior parte do tempo.
Postado em pé no quintal dos fundos de casa, veste uma camiseta
verde e tem atrás de si, como cenário, algumas peças de roupa e
lençóis brancos pendurados no varal. Tudo é muito descontraído,
casual, calculadamente mambembe. Revendo o vídeo, tive a
impressão de que Bolsonaro lia o que falava de forma pausada,
interagindo com a excitação da massa. Foi um discurso atroz.
Atrás da câmera, fora de quadro, pode-se ouvir uma pessoa rindo
em pelo menos duas ocasiões, quando o candidato diz que Lula
iria “apodrecer na cadeia” e quando diz que vai mandar a
“petralhada” para “a ponta da praia”. É um risinho sarcástico e
meio abafado, de personagem de desenho animado, uma espécie
de Muttley, o cão rabugento de Dick Vigarista, que sabe do que o
chefe (ou o papai) está falando. Pinço algumas passagens desse

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discurso, em ordem aleatória, preservando os erros de português,


em nome da autenticidade:

“Lula, você vai apodrecer na cadeia.”

“A faxina agora será muito mais ampla.”

“Será uma limpeza nunca visto na história do Brasil.”

“Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria.”

“Vocês verão umas Forças Armadas altiva.”

“Vocês, petralhada, verão uma polícia civil e militar com


retaguarda jurídica pra fazer valer a lei no lombo de vocês.”

“Bandidos do MST, bandidos do MTST, as ações de vocês serão


tipificadas como terrorismo.”

“Petralhada, vai tudo vocês pra ponta da praia.”

“O Brasil não será mais motivo de chacota junto ao mundo.”

Essa última frase está aí apenas para que você, leitor, possa dar
uma risada nesses tempos de cólera. A verdade é que “rimos do
fato de que não há nada de que se rir”, como escrevem Adorno e
Horkheimer na Dialética do Esclarecimento. “Faxina”, “limpeza”,
“marginais”, “banidos”, “apodrecer”, “lombo”, “bandidos”,
“petralhada” – tudo transpira ódio e recende a fascismo. A “ponta
da praia”, talvez nem todos saibam, era o nome dado pela
ditadura a um local de desova de cadáveres no Rio de Janeiro.
Bolsonaro fala como torturador, não como candidato à
Presidência. Assim como hoje governa como miliciano, não como
estadista.

I
nsisti nesses registros já antigos porque a demência atual já
aparece inteira lá. Não havia nada incubado. Tudo já era

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explícito. O inimigo da democracia que dedica em 2016 seu voto


ao “pavor de Dilma Rousseff” é o mesmo que, em 2018, ameaça
mandar os adversários para “a ponta da praia”. É exatamente o
mesmo que, vinte anos antes, queria “matar 30 mil” e fechar o
Legislativo para resolver o problema do país. É o mesmíssimo
inimigo da democracia que, agora, no meio da mais grave
pandemia mundial em mais de um século, participa, na condição
de presidente da República, montado na caçamba de uma
camionete, de um ato público em frente ao Q.G. do Exército a
favor do AI-5, contra o Congresso e o STF – isso tudo três dias
depois de ter demitido seu ministro da Saúde porque ele teimava
em ser… razoável. Esse é o Messias do Brasil.

Mas ainda era pouco. Quando já estávamos estupefatos,


exauridos, sem saber o que dizer nem como dizer diante da
capacidade infinita do presidente de humilhar a racionalidade,
multiplicar o caos e vilipendiar o sofrimento alheio, quando a cota
de desmandos e desvarios no meio da pandemia já havia
transbordado, Bolsonaro decide dobrar a sua meta e investe sobre
a Polícia Federal, na intenção de capturá-la para si, provocando o
pedido de demissão de Sergio Moro.

A queda do ministro da Justiça elevou a crise político-institucional


a um patamar inédito. Veio uma semana depois da saída do
ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que encarou um mês
de fritura em praça pública, período durante o qual Bolsonaro deu
seus rolezinhos pelos arredores de Brasília, conclamou a
população a desrespeitar o isolamento social, fez discursos
mistificadores, propaganda indevida de remédio, tossiu, fungou,
abraçou e apertou a mão de incautos. “A hora dele ainda não
chegou”, disse o presidente a meia dúzia de admiradores na
entrada do Palácio da Alvorada, dias antes de demitir Mandetta,
falando como se fosse um meganha ameaçando um delinquente.
Já a hora de Moro chegou sem aviso. Havia, sim, um acúmulo de
rusgas entre eles, sobretudo “no tocante à qüestão” da Polícia
Federal, mas a briga estava fora dos holofotes. Entramos numa
nova fase do governo, não há dúvida. Pode ser o início do fim de
Bolsonaro, mas está parecendo apenas o início de algo ainda pior
sob Bolsonaro – “É melhor já ir se acostumando”, dizia o slogan
de campanha, em tom intimidador.
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N
a reunião que decretou o AI-5, em 13 de dezembro de 1968,
quando chegou sua vez de votar, o coronel Jarbas
Passarinho, então ministro do Trabalho, dirigindo-se ao
presidente, justificou sua adesão ao fechamento do regime com
uma frase que entrou para a história: “Sei que à Vossa Excelência
repugna, como a mim, e creio que a todos os membros deste
conselho, enveredar para o caminho da ditadura pura e simples.
[…] Mas, às favas, senhor presidente, neste momento, todos,
todos os escrúpulos de consciência.” Atribui-se a Pedro Aleixo,
vice-presidente do marechal Costa e Silva, uma ressalva ao AI-5
que ele teria feito na famigerada reunião: “O problema desse ato
não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país, mas o
guarda da esquina.” A autoria da frase é duvidosa (não consta da
gravação em áudio da reunião), mas ela entrou para a mitologia
do período.

Não estou equiparando a ocupação da PF e do Ministério da


Justiça pelos apaniguados do clã Bolsonaro com um novo AI-5.
Rememoro as duas passagens da reunião porque ambas me
vieram à mente quando o presidente foi questionado por uma
seguidora no Twitter a respeito da amizade do diretor indicado
para a PF com o seu filho Carlos, o atormentado Zero Dois. Ele
respondeu assim: “E daí? Devo escolher alguém amigo de quem?”
Afinal, para que escrúpulos de consciência? Pulemos então para a
parte que interessa – “Vai tudo vocês às favas!” Escrevi na véspera
da eleição, em 2018, que o país estava muito próximo de
transformar o guarda da esquina do AI-5 em presidente da
República. Aqui estamos, um ano e meio depois. No eco desse “e
daí?”, pode-se escutar a voz do guarda da esquina da ditadura.

Bolsonaro escancarou a intenção de fazer da PF um braço de sua


polícia política. Um arremedo disso já existe, infiltrado na Agência
Brasileira de Inteligência (Abin), na inteligência militar, nessa
coisa anômala e ao mesmo tempo didática chamada “gabinete do
ódio”, espalhada entre representantes das polícias pelos estados e
sabe-se lá entre quantos milicianos, a exemplo de Fabricio
Queiroz e do finado Adriano da Nóbrega. O cavalo de pau na PF
é um passo decisivo para consolidar a submissão do aparato de
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segurança e investigação do Estado aos interesses particulares do


presidente, escusos por definição. É também um passo arriscado,
entre outras razões porque na cúpula da corporação existem hoje
profissionais sérios e comprometidos com o combate à corrupção
e ao crime organizado nos marcos da legalidade. O fato é que a
distância entre o topo da República e o submundo do aparelho
estatal e paraestatal de segurança e repressão do país nunca foi
tão pequena. O bolsonarismo representa a vitória do modelo
miliciano de gestão da violência brasileira.

H
á ainda muita gente que se apega à capacidade de
resistência das instituições. É uma maneira de brincar de
avestruz. Basta um “recuo” do presidente para que os
arautos da nossa vitalidade democrática venham dizer nos jornais
e nas redes sociais que está tudo bem. Ou, quando Bolsonaro não
recua, nossos arautos vêm a público para dizer que “desta vez, ele
se excedeu”, apenas para, depois do próximo absurdo do
presidente, voltarem a público para repetir, com a mesma inflexão
na voz, que “desta vez, ele se excedeu”, num moto-contínuo que
revela mais apatia diante das ameaças às instituições do que
propriamente confiança cega nelas.

Os adeptos dessa tese terão sempre uma parcela de razão – as


instituições, bem ou mal, exercem aqui e ali a função de
contraponto à insanidade presidencial, evitando algumas vezes o
pior. Isso vale até o momento em que forem imperceptivelmente
contagiadas pela demência. Volto aqui às perturbações de
Raskólnikov:

As pessoas contaminadas por eles se tornavam imediatamente


endemoniadas e loucas. Mas nunca, nunca as pessoas se
consideravam tão inteligentes e tão inabaláveis na verdade como
ocorria com os infectados.

As instituições, tão inteligentes e tão inabaláveis em suas


convicções, já foram contaminadas, perdão pela insistência, em
2016. Em 2018, veio a segunda onda da contaminação, mais
resistente porque disfarçada numa eleição democrática. O vírus
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antidemocrático tem levado a melhor sobre as notas de repúdio


que pretendem combatê-lo. A indignação retórica se transformou
numa espécie de cloroquina política. Não vai conter o avanço da
pandemia autoritária.

O que temos visto nos constantes embates entre o presidente e a


ordem legal segue um padrão teatral, com forte componente de
autoengano: a cada “vitória” da institucionalidade, a cada “recuo”
de Bolsonaro, o que ocorre na prática é uma pequena vitória do
perdedor – ele avançou mais duas casas, avançou mais 5%. A
exemplo do que acontece em várias partes do mundo, a
democracia brasileira está sendo roída e vai se desmanchando aos
poucos. É um processo de erosão, com picos de aceleração e
momentos menos perceptíveis, não uma implosão. Não há no
Brasil, até segunda ordem, espaço político para um golpe de
manual, na antiga acepção de tomada abrupta do poder pela
força. Até porque os militares já estão no poder. Bolsonaro
entupiu o primeiro escalão do governo de generais. Estima-se que
sejam em torno de 2,5 mil os militares que ocupam cargos de
confiança na esfera federal. Estão no filé-mignon da administração
pública. É o que se chamava na época do PT de aparelhamento do
Estado. Alguém acha que essa gente toda estaria disposta a inibir
as tentações autoritárias do presidente? Teria compromisso
efetivo com a democracia? Bolsonaro é pior que os militares, mas
os militares não são melhores do que ele. Soa estranho? Vamos
fingir que o nome disso seja dialética.

O general Hamilton Mourão, herdeiro da cadeira de Bolsonaro na


hipótese de impeachment ou na eventualidade de renúncia
(ambas por ora improváveis), organizou em 2015, quando
ocupava o posto de comandante militar do Sul, uma homenagem
à memória do coronel Brilhante Ustra, morto naquele ano. Corria
o governo Dilma, e Mourão acabou sendo demitido do cargo pelo
então chefe do Exército, general Eduardo Villas Bôas.

Augusto Heleno, atual chefe do Gabinete de Segurança


Institucional da Presidência, mentor de Bolsonaro e patriarca do
generalato instalado no Planalto, é um herdeiro da linha dura do
regime militar. Atuava como ajudante de ordens do general
Sylvio Frota quando este, então ministro do Exército, em 1977,
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tentou emparedar o presidente Ernesto Geisel. Acabou exonerado


por Geisel, a quem criticou publicamente, depois de ser apeado
do ministério, por “complacência com a infiltração comunista e a
propaganda esquerdista”, conforme relata o jornalista Elio
Gaspari em seu livro A Ditadura Encurralada. A abertura do
regime avançou. Mais de quarenta anos depois, não consta que as
ideias do então jovem capitão Heleno tenham evoluído.

Esses são os “moderados”, os razoáveis, os que controlam os


impulsos do presidente. Chegamos a esse ponto. Sim, claro que
existem divergências entre os militares de alta patente. Deve
haver entre eles aqueles que sejam democratas além da página 2.
Não é certamente o caso nem de Mourão nem de Augusto Heleno.
Numa democracia digna do nome, de toda maneira, essas
divergências deveriam ser resolvidas dentro dos quartéis, não no
terceiro andar do Palácio do Planalto.

B
olsonaro substituiu o chamado presidencialismo de coalizão
pelo presidencialismo de colisão. Trocou a cooptação pelo
conflito. Sim, é verdade que ele agora está pedindo socorro
ao Centrão, mas logo a coisa vai desandar. É só esperar. O que
define o bolsonarismo é o desprezo pelo Congresso, pelos
partidos, pelas instituições, pela imprensa livre, pela sociedade
civil organizada. Ele gosta do caos, ele gosta de dar tiros. Sua
opção política funciona porque ele tem o Exército às suas costas.
O projeto autoritário de Bolsonaro passa pela atrofia do poder
civil e do estado laico, dois pilares da vida democrática.

Até aqui falei mais do primeiro aspecto, mas é evidente que a


deslaicização do Estado está no centro da regressão brasileira.
Assim como está em formação uma polícia política, há uma
milícia neopentecostal em expansão no país. Não me refiro aos
fiéis, embora seja fato que a pauta conservadora encontre maior
acolhida entre a população evangélica. Para não cairmos nós na
intolerância obscurantista, é preciso fazer esforço e separar as
vítimas da ausência do Estado e da exclusão social dos
neotubarões da fé que falam em seu nome. Bolsonaro os abraçou,
estamos nos convertendo numa república semirreligiosa, na qual
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o chefe da nação ignora as recomendações médicas contra a


pandemia, mas participa de rodas de oração para afastá-la do país
(ou apenas deles, os eleitos de Deus).

Se dependesse da vontade de Bolsonaro, Edir Macedo seria o


novo Roberto Marinho. Se isso acontecesse – acho que não
chegaremos a tanto –, seríamos um país bem pior do que já
somos. Não é preciso deixar de lado a memória do vínculo
umbilical da Globo com a ditadura, nem mesmo é preciso aliviar
nas críticas que lhe dirigimos hoje para reconhecer, ao mesmo
tempo, que não é na tela da emissora que a barbarização do país
está se desenrolando. Por abominável que seja, o BBB da Globo é
mais inofensivo que o BBB da Bíblia, do Boi e da Bala que cerram
fileiras com Bolsonaro. Não precisamos escolher entre um e outro,
alguém dirá. Minha resposta é que talvez precisemos, sim. Seria
como ter que escolher entre um horizonte muito acanhado e
horizonte nenhum.

A
eleição de Bolsonaro representa um revés histórico
comparável ao golpe de 1964. Isso para mim era
intuitivamente óbvio desde o começo, quando desencavei
sem querer da memória o romance de Dostoiévski. De tudo que li
nos últimos meses, foi o crítico Roberto Schwarz quem melhor
organizou o que aproxima e o que diferencia o governo do guarda
da esquina de hoje do regime autoritário de ontem. Recapitulo os
pontos principais da entrevista que ele concedeu à Folha de S.
Paulo, em novembro passado.

Como em 1964, houve em torno de Bolsonaro uma aliança entre o


fundo regressivo da sociedade, descontente com os rumos liberais
da civilização, e um programa pró-capital, encarnado nas
promessas de Paulo Guedes. “Ao dar protagonismo político, a
título de compensação, aos sentimentos antimodernos de parte da
população, os mentores do capital fizeram um cálculo cínico e
arriscado”, diz Schwarz. Na Alemanha dos anos 1930, o cinismo
custou muito caro: “Aceitando e estimulando o nazismo, a grande
burguesia alemã deflagrou um processo incontrolável, ao fim do
qual já não se sabia quem devorava quem.” Nas palavras do
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crítico, se Bolsonaro não chegar lá, “não terá sido por falta de
vontade”.

Feita a aproximação, Schwarz ressalva que há uma diferença


decisiva entre o atual casamento das pautas arcaizantes do
bolsonarismo com a reforma liberal da economia e aquele outro
casamento celebrado em 1964. “Cinquenta anos atrás, quem
marchava com Deus, pela família e a propriedade eram os
preteridos pela modernização, representativos do Brasil antigo,
que lutava para não desaparecer”, diz Schwarz. Apesar da
“derrota do campo adiantado, continuava possível – assim parecia
– apostar no trabalho do tempo e na existência do progresso e do
futuro”.

Já o neoatraso bolsonarista é de outro tipo e está longe de ser


“dessueto”, diz o crítico. A própria escolha da expressão
“dessueto”, impregnada de naftalina e com cheiro de coisa antiga,
assume aqui conotação crítica. Vejamos:

A deslaicização da política, a teologia da prosperidade, as armas


de fogo na vida civil, o ataque aos radares nas estradas, o ódio aos
trabalhadores organizados etc. não são velharias nem são de outro
tempo. São antissociais, mas nasceram no terreno da sociedade
contemporânea, no vácuo deixado pela falência do Estado. É bem
possível que estejam em nosso futuro, caso em que os
ultrapassados seríamos nós, os esclarecidos.

Dessueto, caro leitor, somos você e eu (peço escusas para


preservar a veleidade de estar no campo esclarecido nestes
tempos em que a linha que separa o esclarecimento da escuridão
anda desbotada).

Em 1964, transpor o subdesenvolvimento era uma ambição real


tanto da esquerda como da direita – “horizonte com que hoje
ninguém mais sonha”, diz Schwarz. Sua hipótese, que ele mesmo
admite ser pessimista, é de que “a sequência de superações que
durante algum tempo deu a sensação de que o país decolava
rumo ao Primeiro Mundo pode ter chegado a seu limite”. Em
sentido substantivo, o Brasil deixou de ser um país em formação.
Somos isso que está aí, esse bicho anômalo, improvável, como o
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ornitorrinco de que falava o sociólogo Francisco de Oliveira em


2003. Nossa próxima contribuição ao mundo será a destruição
irreversível da Amazônia. Com um pouco de sorte, se lhe
deixarem trabalhar, esse será mais um legado de Bolsonaro.

N
um registro mais pessoal, a mesma ideia de algo
definitivamente malformado aparece no último livro de
ensaios de Nuno Ramos. No prefácio de Verifique Se o
Mesmo, lançado pela Todavia, o artista plástico e escritor diz a
certa altura: “Quero apenas declarar, e me perdoe o leitor esse tom
abrupto, que os acontecimentos recentes parecem encerrar o ciclo
de esperanças que acompanhou minha vida adulta desde os anos
1980.” O texto é de maio de 2018, anterior, portanto, à eleição
presidencial, mas já está impregnado pelo ambiente que levou
Bolsonaro ao poder.

Logo depois de dizer isso, Ramos menciona que a consciência do


fim desse ciclo aparece pela primeira vez num texto que ele
publicou na Folha, em 2014 (incluído no livro). Suspeito que
Estamos é uma intervenção política, mas também uma obra de
escritor. “Suspeito que o tema primordial e decisivo da sociedade
brasileira sempre tenha sido, e seja ainda, a violência”, ele diz.
Ramos suspeita de muita coisa, mas é em torno dessa ideia
poderosa que tudo orbita. Cito duas passagens do texto.

Por estar em toda parte, suspeito que esse tema [a violência]


aproxime-se, entre nós, do impensável, e que traga em seu DNA,
como esses vírus de mutações constantes e velozes, alguma coisa
metamórfica que sempre se transfigura e escapa.

E mais adiante:

Suspeito que Paulo Coelho, o padre Marcelo Rossi e o bispo Edir


Macedo sejam três faces de uma mesma e última privatização – a
do infinito.

É espantoso que um texto de maio de 2014, escrito meses antes da


reeleição de Dilma (contra Aécio, Eduardo Campos e depois
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Marina, lembrem-se disso), exprima tão bem o país tão pior que
estamos experimentando neste momento.

Volto ao prefácio: “Sempre considerei que meu trabalho


representava uma inflexão ao mesmo tempo gulosa e pessimista
diante desse quadro [do país], mas, para que houvesse
pessimismo, era preciso que o outro polo estivesse vivo.” A
dinâmica alimentada por décadas se quebrou. “Alguma coisa
definitivamente se formou, está formada, deixamos que se
formasse – e não parece nada boa”, diz Ramos.

C
omecei este texto revelando os sentimentos de horror e
incredulidade diante do que estava por vir em 2018. Um
ano e meio depois, termino renovando aqueles sentimentos,
dos quais não me livrei, fisicamente falando, acrescidos, neste
momento, da sensação incontrolável de que “os acontecimentos
recentes parecem encerrar o ciclo de esperanças que acompanhou
minha vida adulta desde os anos 1980”.

Com a licença de Nuno Ramos, suspeito que as consequências do


estrago de Bolsonaro na vida brasileira vão perdurar por muito
tempo depois do fim de seu mandato. A violência sempre foi e,
mais do que nunca, é o tema primordial e decisivo da sociedade
brasileira. Com a eleição de Bolsonaro, abrimos um alçapão que
não poderia ter sido aberto. O cinismo das elites brasileiras pode
custar, já está custando muito caro. Tenho vontade de dizer: as
vítimas do novo coronavírus são os petralhas que o presidente
ameaçou mandar para a ponta da praia uma semana antes de
vencer. Naquela época, a imprensa dizia – com falsa isenção, com
falso espírito crítico, com uma equidistância que só ela, na sua
miopia de classe, conseguia enxergar e, sim, com uma dose
intolerável de cinismo – que estávamos diante de “dois extremos”
igualmente perigosos, diante de uma “escolha difícil”, diante de
“duas ameaças” à democracia. Aqui estamos hoje. Não venham
agora, por favor, com a ladainha de que Bolsonaro passa e as
instituições permanecem. É justamente o contrário o que está se
desenhando no horizonte muito acanhado ou no horizonte
nenhum que temos à nossa frente.
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Volto a Crime e Castigo, exatamente ao ponto em que acaba o


pesadelo narrado no início deste texto:

O que atormentava Raskólnikov era o fato de que esse delírio


insensato se refletia nas suas recordações de modo tão triste e tão
angustiante que a sensação dos devaneios febris demorou muito
tempo para passar.

[1] A
tradução é de Rubens Figueiredo e consta da edição de
Crime e Castigo lançada pela Todavia, em 2019.

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