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"392" p.
ISBN 978-85-7900-064-5
Inclui referências bibliográficas
IMPRESSO NO BRASIL
2013
IA. Segmento Forma Rua Anseriz, 27, Campo Belo - 04618-050- São Paulo, SP. Fone: 11 3093-3300
~'J' editores www.segmentofarma.com.br • segmentofarma@segmentofarma.com.br
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39.311 Comunicaçõ"'5 médicas:Cristiana Bravo Gerentes de ne11iicios: MarcelaCrespiePhilippSan1os Coordenadoracomen;:ial: Andrea Figueiro Gerente edilorial:
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Revis<lra:VivianeRodrigues Zeppelini PJodutorgrãlico: FabioRangel •Cód.dapublicação:14\10.5.2013
..,.
".
~,
.1
CAPÍTULO 2
~ scretamente
- ~tav a-se
de Adespatologização da homossexualidade
- - regiões do
Gilda Paoliello
a Psica ná-
- pacie ntes ,
-:ção inter-
• A homossexualidade na Antiguidade grega
S
abe-se que , na Antiguidade grega, a homossexualidade era culturalmente
-- de modo aceita , sendo a pederastia um costume social. Tratava-se de um co~tume
está per- do amor dirigido aos adolescentes , costume aristocrático herdado dos
~o nq u anto dóricos_, os ~~s conservar_am algumas tradições indo-europeias muito antigas,
aspectos, como as fraternidades , soci edades exclusivamente masculinas, a partir das quais
eles c riaram uma forma de vida social, em relação à educação e à transmissão
das virtudes fundamentais. Não se tratava de uma perversão, mas sim de uma
instituição - como o casamento - sancionada e santificada pelo costume, o culto
e o Estado. Com efeito, havia dois aspetos na vida social grega - por um lado , o
registro doméstico, com a procriação física no casamento; por outro lado , o re-
gistro público dos homens no ginásio , na educação aristocrática e nos banquetes 1 •
O objetivo da educação era o seguinte: conduzir o jovem à virtude (arétê) , à
qual ele chegava ao se apaixonar pelo amante (que , então, torna-se o amado , ao
passo que o jovem amado se transforma , agora, em amante) e, ao mesmo tempo ,
como ele, apa ixonar-se também pelo modelo (o eidos, a forma perfeita, da qual
el~ é um~ cópia ) - encarnado por ele - do kalos kagathós (eq uival ência grega entre
virtude ética e beleza), que constituía o Ideal (Modelo), segundo o qua l a Anti-
guidade procurava moldar a juventude 2 .
É importante ter em conta esse 'lad~
---
homoerótico dos gregos para bem com-
preender seu mundo (artes , esportes , espírito competitivo, ambição etc. ) e a força
das paixões que dominaram a vida grega: paixão pelo belo, e a perfeição no plano
do verdadeiro e da bela aparência .
29
Por outro lado , a situação da mulher na Grécia era bastante peculi ar. A mulh~r
era inculta e bárbara, estando distante de tudo. Seu papel consistia em "servir e
calar a boca", segundo Aristóteles(!) . Devido a esse status na sociedade grega, de -
sejar uma mulher era indigno de um homem que tivesse um ideal de virilidad~L já
que sua inferioridade cultural era marcante 3 .
~ Ú. ' Q}jJ ) .Q {,;- \ _,1 r ~ ; f".J'
• Homossexualidade: de pecado a crime
Com o advento do cristianismo, a homossexuali dade passou a ser uma prática
condenada, considerada pecado abominável , como mostram vári as passagens da
Bí'blia 4 . Posteriormente, tornou-se crime merecedor de pena de morte. Séculos mais
tarde, como se verá, foi apropriada pela ciência passando a ser considerada uma
patologia.
Para_se abordar a despatologizacão da homossexualidade , será fe ito o caminho
inverso, isto é, será observado como, de pecado e crime, ela se tornou um diag-
nóstico psiquiátrico.
É importante lembrar que as categorias diagnósticas, em medici na, são arti -
fícios construídos para possibilitar o agrupamento e o estudo dos quadros com
características semelhantes, possibilitando maior entendimento da patologia e, a
partir desse conhecimento , propor um diagnóstico e um tratamento . Esse artifício
é construído dentro de determinado contexto científico e cultural. Assim, para se
entender como uma determinada prática sexual tornou - ~e um diagn_óstic.o é im -
portante considerar o contexto cultural em que se desenvolveu e qual o interesse
científico implicado.
Será realizada , então, uma retrospectiva histórica, nesse contexto em que se
devolveu o conceito de homossexualidade como doença.
No século IV AC, Hipócrates mencionou várias doenças sexuais em seus es -
critos, sem falar da homossexualidade. Da mesma forma, alguns anos mais tarde,
Platão descreveu, em seu Phaedrus , várias formas de doenças mentais, sem qualquer
alusão às práticas homossexuais 5 .
De acordo com as mais precoces classificações psiquiátric as, a primeira
~ referênci a à homossexualidade como doença ocorre em trabalhos de Cael ius
Aurelianus, no século V AC. Aurelianus traduzi u para o latim alguns trabalhos
~ de Soranus de Ephesus , que menciona m a homossexualidade como uma "aflição
-~ mental", ocorrendo tanto em homens como em mulheres 6 .
~
-~ Entretanto, desde o século V AC., há textos do Antigo Testamento, origem
8:.
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e:
~
da Bíblia e da Torah , inclusive o "Gênesis", considerando a homossexualidade uma
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<'O abominação. Essa filosofia era sustentada por argumentos de que a anatomia do
-=
~ homem e da mulher foi criada por Deus para se comp lementarem, e que a união
3i
:g
g deveria Levar a uma frutificação e multiplicação . Então, é esta a única prática se -
=
~
xual natural e aceitável. Tanto o "Levítico" quanto o "Deuteronômio" referem -se
30
à homossexualidade como prática abom ináveF. Essa posição pôde ser ilustrada, ,,
fl
ia em "servir e mais tarde, no tão citado texto de São Paulo aos Romanos: "cometendo a infâmia
edade grega, de - de h omem com homem e recebendo o justo salário de seu desregramento" 8 . •
""'
~
de v irilidad~, já Também, a partir do século V, os grandes pensadores do catolicismo, Agosti - i
nho, Jerônim o e Tomáz de Aquino, mantiveram essa posição, vinculando sexuali -
dade e procriação, e colocando9 ,
ªê:'
~-
g.
6
como exemplo inquestionável a seguir a vida 'naturalmente heterosse-
::. ;;er uma prática xual' dos an ima is. Toda prática sexual que escapasse a esta norma traria
~
-~s passagens da o chamado 'estigma negativo do prazer'. Surge a partir de então, uma
ie:
g.
.e. Séculos mais forma de moralidade que é essencialmente uma moralidade sexual. As
práticas 'contra a natureza' - consideradas atentado ao pudor, aos bons
costumes, e à opinião pública - acarretam severas sanções para que o
'normal' seja mantido
No século XII , o art. 48 do Código de Gengis Khan'º indicava a pena de morte para
"os hom;;-ns que tivessem cometido sodomia". -
Em 1553, Portugal criminal izou a sodomia instalando a Inquisição e a reforma
do Código Penal, baseada nas Ordenações Afonsinas , com grande influência do
Direito Canônico. As Ordenações Afonsinas declaram que a sodomia era o mais
torpe, sujo e desonesto pecado ante Deus e o mundo, impondo ao infrator que
fosse queimado até virar pó, para que não restasse memória de seu corpo e da
sepultura. A criminalização da sodomia foi estendida às colônias de Portugal,
inclusive o Brasil.
Nesse mesmo ano , 1553, o rei Henrique VIII da Inglaterra, por meio do Bu-
ggery Act, proclamou como crime todas as atividades sexuais não reprodutivas ,
como relações homossexuais, masturbação , sexo oral e sexo anal 11 .
No final do s~cu,lo XIX, a Revolução Francesa provocou alterações no qua-
dro político e social da França, trazendo, como consequência, a decadência da
nobreza e do clero, com a ascensão da burguesia. A partir dessas mudanças , da
influência do Iluminismo, e regida pelos princípios universais de Igualdade , Li -
a pri meira berdade e Fraternidade, em 1791 , a França foi o primeiro país no mundo a descri -
e C aelius minali z ar~ 'Q_e_ç!erastia', termo utilizado para as relações homossexuais na FraQççi .
-- traba lhos Quatro décadas mais tarde, em 1830, o Brasil situou-se como o segundo país a
a "afl ição descriminalizar a 'sodomia', por meio de mudanças determinadas pelo Novo Código
Penal do Império , a partir de decisões do imperador D. Pedro li. Na contramão desse
caminho, em 1860, a lndia e Paquistão, colônias da Inglaterra, criminalizam a
sodomia, posição que perdura até os tempos atuais.
--·-
Os estudos científicos sobre a homossexualidade iniciaram -se no século. XIX 12 .
Nos nove séculos precedentes, essa forma de sexualidade era considerada uma
31
'abom inação' e denunciada pelas autoridades religiosas e legais, atraindo a pena
de morte.
Ainda na primeira metade do século XIX, em 1832 , o inglês Alexander Morri-
son publicou o tratado Physionomy of mental disease. Na impossibilidade de substrato
anatomopatológico para esses quadros e na tentativa de documentar a realidade
das fisionomias da doença mental , o autor ilustrou a obra com 109 retratos de
pacientes, referindo -se a nove com "características homossexuais". Eoi esse um
dos prenúncios da apropriação de uma manifestação da sexualidade pela ciênciau
Foi esse mesmo autor, Alexander Morrison , que, em 1848, inaugurou o termo
'erotomania', mais tarde retomado por Clérambault, descrevendo o "delírio de
insanidade amorosa"14 .
Encontra -se, na segunda metade do século XIX, um momento bastante especial
na Psiquiatria europeia, como observa E. Shorter em A history of psychiatry: from
the era of the asylum to the age of prozac. A essa época, a maioria dos psiquiatras
atuavam em asilos, onde os pacientes eram mantidos como em cativeiros, sem
perspectivas de tratamento efetivo. Os psiquiatras eram considerados pelas out@s
especialidades médicas um pouco mais que '"tutores', não merecendo ser chamados
médicos"15 . Chama a atenção a familiaridade dessa situação, pois a Psiquiatria no
Brasil, até a década de 1970, não estava distante desse quadro.
W ilh elm Griesinger, então chefe do Departamento de Psiquiatria da Universi-
dade de Berlim, apareceu como um profeta da profissionalização de sua disciplina,
propondo uma verdadeira reforma psiquiátrica, objetivando mudar o status da
Psiquiatria. No prefácio da primeira edição do Arquivo alemão de psiquiatria e doenças
nervosas, escreveu: "A Psiquiatria necessita submeter-se a uma transformação em
sua relação com o resto da Medicina". Q ue transformação é essa proposta por
Griesinger? "Esta transformação localiza-se principalmente na constatação de se
os pacientes chamados de doentes mentais são realmente pessoas com transtornos
dos nervos e do cérebro" 16 .
Dessa forma, a partir de diretrizes diagnósticas precisas, ao invés de cuidado-
res observando pacientes, os psiquiatras se tornariam médicos tratando de doen-
ças do cérebro 17 . Como se vê, tem -se aqui outra semelhança com as propostas da
~
Psiquiatria nos anos 1970.
U~ dos o bj~tivos da medicina, analisa Shorter, é o diagnóstico. E, sob a influ-
~ ência dos reformistas liderados por Griesinger, uma paixão sem precede ntes pelo
"'
~
32
e .egais, atraindo a pena por uma mulher, criando o termo 'uranism</ , para designar esse sentimento que,
segundo ele, equivaleria a um a "alma de mulher em corpo de homem" e vice -versa .
glês Alexander Morri - Ele esperava, com sua obra, provocar um debate sobre a homossexualidade e con - •
l>
=
~
-ibil idade de substrato seguir, especialmente, no meio médico, apoio para suas ideias' 8 .1.
s-
=e
~-
"- com 109 retratos de • A patologização da homossexualidade ~·
lil"
--exuais" . Eoi esse um =
Realmente, a provocação foi ouvida: coincidentemente ou não, o eminente §l
"!idade pela ciência 13 . g
professor da Universidade de Berlim e também editor do já citado Arquivo de Psi-
inaugurou o termo
-aeven do o "delírio de
quiatria, Karl Westphal, publicou dois estudos de caso de um homem e uma mulher 1
~
que sofriam de atração sexual por pessoas do mesmo sexo. Dentro do espírito da "'
época de se criarem novos diagnósticos e classificações, Westphal desenvolveu
iemo bastante especial um novo diagnóstico, o "contrdre sexualempfindung" (sentimento sexual contrário),
--')· of psychiatry: from considerando esse sentimento congên ito e não um costume contra a natureza,
- -aiori a dos gsiquiatras e criticando as leis contra as práticas homossexuais . Dessa forma, fo i possível
_:x-o em cativeiros, sem considerar Westphal como autor do primeiro estudo médico sistematizado sobre
-~1derados pelas out@s a homossexualidade' 9 .
Apesar de abordar o tema de forma cuidadosa e delicada, bem distante do que
f~~~a~-seus colegas da _época, qlle considevam os homossexuais devassos ou cri -
mi!losos , as ç_onclusões de Westphal tinham um lado perigoso : afirmavam que as
'iiquiatria da Universi - pessoas que apresentavam esse tipo de sentimento sexual traziam, quase sempre,
-~ - -~ ~ção de sua disciplina, associações de outras doenças mentais, formalizando, decisivamente, a patologi-
mudar o status da z~ção da homossexualidade 2 º. O termo 'contrary sexual feeling' foi traduzido para o
=· 1t psiquiatria e doenças inglês como 'sexual inversion' (inversão sexual) e, dessa forma, a homossexualida~e
-e. tra nsfo rmação em e ;-i deia d e- que esta era um transtorno congênito permaneceram até o início do
é essa proposta por século XX, como veremos.
- ~~ - ~ :ia constatação de se Entretanto, o deslocamento do conceito da homossexualidade de crime para
doença não impediu que, em 1871 , a Alemanha criminalizasse a homossexualida -
de, com o famoso e polêmico parágrafo 175 do Código Criminal, que somente
viria a ser eliminado em 1994.
-~ -~tratan do de doen - O _movimento anti-homofóbico cresceu e, em 1869, o jornalista, escritor e
...z com as propostas da ativista dos direitos humanos austro -húngaro Karl -Maria Kertbeny criou o termo
;\/ ~~~' em substituição a 'pederasta'. Em 1897, Magnus Hirschfeld, médi -
ico. E, sob a influ- co alemão e homossexual assumido, fundou, junto de Eduard Oberg, Max Spohr
e Franz Josef von Bülow, o Wissenschaft-Humanitaires Komitee (Comité Científico-
--::....:: a Psiquiatria. Outra -Humanitário ), com o objetivo de defender os direitos dos homossexuais e revo-
gar o parágrafo 175 da lei alemã . Lançaram Sappho und Sokrates oder Wie erklart sich
trabalhos de Karl die Liebe der Manner und Frauen zu Personen des eigenen Geschlechts? (Safo e Sócrates ou
eclarada homosse - como explicar o amor de homens e mulheres por pessoas do seu mesmo sexo?),
-.:--:ian do -se o primeiro objetivando explicar, cientificamente, a homossexualidade como algo natura12 1 •
~ sete panfletos afir- Em 1883, o psiquiatra alemão E. Kraepelin, considerado o fundador da Psi-
quiatria moderna, lançou a primeira edição de seu Tratado de Psiquiatria, descreven -
33
do o "contrare sexualempfindung" entre os "estados de fraqueza psicopatológica". Nas
sete edições seguintes, há transferências da h o mossexualidade para várias outras
categorias nosológicas: na segunda edição , em 1887, é situada como "desenvol-
vimento sexual anormal"; na quinta edição, em 1896, apareceu como "insanidade
degenerativa"; enquanto nas sétima e oitava edições ( 1909/ 1915), foi descrita
como "condição mental de constituição original" 22 .
Em 1886, foi fundada , nos Estados Unidos, a Association of Medical Superintendence
of American Institution for the Insane, que se transformou, em 1892, na American Medic-
-Psychological AssoClation, que deu origem , em 1921, à poderosa American Psychiatric
Association (APA) . Desde a fundação, essas associações se preocupam em classificar
as doenças mentais, incluindo, logo de início, a homossexualidade como doença
sexua12 3 .
Em 1892, o professor Richard Von Krafft-Ebing, presidente da Sociedade de Neu -
rologia e Psiquiatria de Viena e considerado o fundador da 'sexologia', apresentou sua
Psycho pathia Sexualis, cunhando os termos 'sadismo' e 'masoquismo' e descrevendo -
-os como uma "sujeição sexual". Essa obra é apresentada por Elisabeth Roudines-
co, em seu Dicionário de Psicanálise 14 como um "catálogo sofisticado do qual Freud
pegou varias noções e que o Marques de Sacie não teria desaprovado". Realmente,
Eb ing foi citado por Freud em 12 de seus textos , principalmente como referênci a
em seus estudos sobre a bissexualidade humana, apesar de Ebing comentar que as
conclusões de Freud sobre a sexualidade soavam "como um conto de fadas cientí-
fico", como se lamentou Freud em seu texto de 1914, "Fluctuatis nec mergitur" 15 . Em
Psychopathia sexualis, Ebing adotou o termo 'homossexual', cunhado por Kertbeny,
popularizando -o nas comunidades científicas e médicas . Entretanto, ao contrário
desse último, Ebing classificou a homossexualidade entre as anomalias do instinto
d<: reprodução da espécie (anomalien der geschlechtstrieb) , COf!?ideransfo -a uma dege -
neração e situando o · problema -em referência à procriaç_ão, tomada como norma
para a vida sexual2 6 .
Um novo artigo de Krafft-Ebing, publicado no lahrbuch für sexuelle Zwischenstu -
fen, em 1901, apresentava um reposicionamento. Possivelmente influenciado pelos
~ estudos de Freud e pelo amplo contato com homossexuais, tanto em sua clínica
~ privada como em suas atividades como psiquiatra forense, o autor alterou o termo
'anomalia sexual' para diferenciação , concluindo, contrariamente ao pensamento
~ da época, que a homossexualidade não podia ser generalizada como doença men -
"'
~
tal ou perversão 27 .
1
~ Enquanto Ebing desenvolvia, na Áustria, seus estudos sobre a sexualidade, na
=
"'
gi Inglaterra, em 1897 o médico Havelock Ellis publicou a obra Sexual Inversion, na qual
~ discorreu que a "homossexualidade é congênita e, portanto, natural". A expressão
"§
logo se difundiu devido à repercussão da obra, primeira publicação científica sobre o
~
~
:e
tema em língua inglesa, apesar de ter sido publicada originalmente em alemão, tanto
~ por ser a língua de referência nas ciências, à época, como por ter sido, de início,
34
e =a psicopatológica" . Nas proibida sua publicação na Inglaterra, o que aumentou ainda mais sua popularidade .
.ialidade para várias outras C olocando em xeque a teoria da degenerescência, Ellis criticou a criminilização
ê situada como "desenvol- da homossexualidade, responsabilizando essa posição do Estado por inúmeros ,...•
e.
areceu como "insanidade m
suicídios. As ideias de Ellis tiveram enorme repercussão, sendo considerado um
i
'. 909/ 1915), foi descrita 'livro maldito', inclusive com seu editor condenado nos Estados Unidos 28 . Ell is foi ....
6"
citado por Freud em 17 de seus textos como um estudioso da sexual idade, apesar ~:
...
C>
e.
of Medical Superintendence de ser um crítico ferrenho das ideias de Freud, considerando que "Psicanálise não é =
ciência, mas produção artística" como Freud assinala em seu texto de 1920, "Uma lii
1892, na American Medic-
erosa American Psychiatric
;>reocupam em classificar
nota sobre a pré-história da técnica da análise" 29 . No período de 1897 a 1928 , Ell is
publicou, em sete volumes, seus Estudos sobre a psicopatologia do sexo, no qual diferencia
l
g:
g.
,,.xualidade como doença homossexualismo de travestismo, em uma tentativa de salvar da criminalização os
travestis perseguidos 3º.
e.ente da Sociedade de Neu-
·::-: ologi a', aprese ntou sua • 1896 - A era Freud
.ui sm o' e descrevendo- F~i a partir das observações clínicas da importância dos fatores sexuais na origem
- ::ior El isabeth Roudines- das neuroses e, mais tarde, das 'psiconeuroses', que Freud partiu para a investigaÇâo
ticado do qual Freud geral d~ se~ualidade, desde o início da década de 1890, como comenta o editor
inglês nas notas introdutórias aos "Três ensaios" 3 1.
___._......'.men te como referência Na Carta 52 a Fliess , de 1896, ele fez referência às zonas erógenas, passíve is de
::bing comentar que as serem estimuladas na infância e, mais tarde, sufocadas pelo recalque, e seus víncu-
con to de fadas cientí- los com as perversões, fazendo também menção à -bissexua lidade . No Rascun ho K,
1tis nec 111ergitur" 25 . Em daquele mesmo ano , surgiu uma discussão sobre a_s forças recalcadoras, o asco, a
__ nhado por Kertbeny, vergonha e a moral , já mostrando , então , que a sex~alidade hum~na é tocadapelà'>
::=:-rretan to, ao contrário cultura, não- se~do fruto (a pen~ ) da natureZa.
- · .::.:10malias do instinto ~--- - - - ---
Embora tantos elementos da teoria de Freud sobre a sexualidade já estivessem
erando-a uma dege- em sua mente por volta de 1896, sua pedra angular ainda estava por ser descober-
omada como norma ta. Foi somente no verão de 1897, quando Freud se viu forçado a abandonar sua
teoria da sedução, reconhecendo que as moções sexuais atuavam precocemente
-r sexuelle Zwischenstu- nas crianças, sem necessidade de estimulação externa (do adulto) e sua descoberta
:e influenciado pelos quase simultânea do complexo de Édipo, a partir de sua autoanáli se, que sua teo -
·amo em sua clínica ria sexual se completou, apesar dele próprio levar alguns anos para assimilar por
.::.~ror al terou o termo inteiro sua própria descoberta.
-eme ao pensamento Somente 2 anos após , prestes a lançar A interpretação dos sonhos, que Freud escre -
.:..::. como doença men- ve a Fliess, em 11 de outubro de 1899 (Carta 121 ): "é possível que uma teoria da
sexual idade seja a sucessora imediata do livro dos sonhos". Em 26 de janeiro de
~ a sexualidade, na 1900, escreveu a Fliess, na Carta 128: "estou colhendo material para a teoria sexual
1/ Inversion, na qual e esperando que alguma centelha inflame o material já acumulado".
-.::.rural". A expressão Mas essa centelha somente se manifestou anos mais tarde, permitindo o sur-
- o científica sobre o
--''-";;;i::a"'\,,...- gimento, em 1905, dos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" 32 , nos quais
~:e em alemão, tanto Freud esclareceu que não há uma sex~alidade humana determi_nada, sendo ela
- :er si do , de início, s~i:i-yre _eolimorfa, e mostrou que a homossexualidade é uma de suas nuances.
35
Sustentou essa posição partindo do complexo de Édipo, fundado sobre a bisse-
xualidade o riginal, como referência central a partir da qual a chamada "escolha
de objeto" vai se constituir. Na edição de 1915, acrescentou uma longa nota de
rodapé, que, pela força e clareza, merece ser citada 33 :
Interessante notar que , na primeira edição , de 1905 , dos "Três ensaios", Freud
usou o termo 'inversão sexual'. Entretanto, na edição de 1915, ele o substitui por
homossexualidade , provavelmente para se distanciar das conclusões de Westphal
de que a homossexualidade seja congênita 34 . Como as ideias de Freud vieram a
dominar a Psiquiatria do século XX, o termo 'homossexual' consagrou -se , substi -
tuindo o 'invertido'.
Coerente com suas ideias, Fr~ ud utilizou seus argumentos teórj cos para impedir,
na vida cotidiana, "com o máximo de decisão, que se destaquem os homossexuais,
colocando-os como um grupo à parte do_!esto_da hum_anidade, como possuidore.?
de características especiais oi"i doent~s" , como enfatiza nos 'Três ensai9s 1135 . Em vá-
~
rias situações isso veio a público, como, por exemplo, pronunciando -se em 1903, a
um jornal vienense , sobre um escândalo envolvendo práticas homossexuais 36 :
1
=
.:!i
Com a mesma força, respondeu, em carta a Ernest ]ones, então presidente da
International Psychoanalytical Association (IPA) e contrário à admissão à sociedade de
um analista homossexual. Nessa carta, assinada por Freud e Otto Rank, lê-se 37 :
36
Eê.:po , fu ndado sobre a bisse- Sua pergunta, estimado Ernest, sobre a possibilidade de filiação dos ho- "
aa qual a chamada "escolha mossexuais à Sociedade, foi avaliada por nós e não concordamos com
entou uma longa nota de você. Com efeito, não podemos excluir estas pessoas sem outras razões •
,.,.
suficientes ( ... ) em tais casos, a decisão dependerá de uma minuciosa ~
...,,
análise de outras qualidades do candidato .
s-
.g
""Ler uma escolha de objeto ~-
em seu inconsciente. Real- M ais tarde, encontra -se essa mesma firme convicção , quando, emJ 93 5 ,_ r~seon e~·
:::r
eu a uma mãe americana que solicitava orientações sobre seu filho homossexual3 8 :
:nesmo sexo desempenham -- ~- - - -·- - - - -· ---- -- - - 3
da psíq uica normal, e mais
-- ligações idênticas com o
''e}
~
A homossexualidade não é, certamente , nenhuma vantagem , mas não
é nada de que tenha de se envergonhar; não é um vício , nenhuma de-
i~
<D
onsi dera que a escolha de
. gradação, não pode ser classificada como doença, nós a cons ideramos
o - que recai igualmente
como uma variação da fun ção sexual.
-~-no ocorre na infância, nos
ros períodos da história , é Como acontece a todos que estão além de seu tempo, Freud não passou im-
:;. ca restrição num ou noutro ne e sofre as consequências pela divulgação de suas ideias. Ele foi duramente
--::-:nais como os invertidos. criticado e ridicularizado pelos próprios colegas, como relatou em "Fluctuat nec
interesse sexual exclusivo ergitur", texto de 1914 39 :
um prob lema que precisa
Ingenuamente dirigi-me a uma reunião da Sociedade de Psiquiatria
- mesmo , baseado em uma
e Neurologia de Viena, presidida então por Krafft-Ebing (cf. Freud,
1896c), na esperança de que as perdas materiais que volun tariamente
': dos ''Três ensaios", Freud sofri fossem compensadas pe lo interesse e reconhecimento dos meus
!..:: 19 15, ele o substitui por co legas . Considerava minhas descobertas contribuições normais à ciên-
"'"conclusões de Westphal cia e esperava que fossem recebidas com esse mesmo espírito. Mas o
silênci o provocado pelas minhas comunicações , o vazio que se formou
deias de Freud vieram a
em torno de mim , as insinuações que me foram dirigidas, pouco a pouco
a i' consagrou -se , substi-
me fizeram compreender que as afirmações sobre o papel da sexualidade
na etiologia das neuroses não podem contar com o mesmo tipo de tra-
·os teó.Jjcos para imQedir,
tamento dado ao comum das comun icações . ( ... ) Passei a fazer parte do
sr.aquem os homossexuais,
grupo daqueles que perturbaram o sono da humanidade.
-- idade, como possuidor~s
'Três evsai9s 1135 . Em vá- E, perturbando o sono da humanidade , Freud contribuiu de forma definitiva
:mnciando -se em 1903, a para a desconstrução da insana crença de que a homossexualidade é uma doença
_;;:;icas homossexuais 36 : o u degradação.
tribunais. (. .. ) Eu tenho
• Os pós-freudianos
- ~oe nç a.
Isto nos obrigaria Como chama a atenção Paulo R. Ceccarell i, em seu texto "A invenção da ho-
os de pensadores que ad- mossexuali dade", a posição freudia na em relação à homossexualidade não obteve
co nsenso entre os analistas pós-freudianos, chegando mesmo a provocar polêmica
en tre a Soc iedade Psicanalítica de Viena e a de Berlim. Os últimos , dirigidos por
:ies, então presidente da Ab raham, consideravam que os homossexuais eram incapazes de exerce r a profis-
;. admissão à sociedade de ão de analista, pois a análise não os "curaria" da "inversão" que sofrem. A Socie-
~--e Otto Rank, lê -se 37 : d ade de Viena, apoiada em Freud, tinha uma opin ião totalmente contrária, como
37
visto na carta de Freud a Jones, já citada. A própria Anna Freud, filha e herdeira
intelectual da obra de Freud, mostrou-se contrária à prática da Psicanálise por
homossexuais que, considerava, deveriam ser tratados . Ponto de vista semelhante
foi defendido pela escola kleiniana 40 .
Em 1919, o psiquiatra e psicanalista americano Edward Kempf descreveu um
quadro resultante de conflito inconsciente, envolvendo a identidade sexual, o
desejo e a proibição social. Observou esses sintomas em soldados e marinheiros
acompanhados por ele, como médico militar durante a Primeira Guerra Mundial,
e o nomeou 'pânico homossexual'. Foi esse o primeiro uso da palavra 'homosse-
xual' em classificação oficial internacional.
A história do movimento da despatologização da homossexualidade mostra
que ~Ça- e ; -sustentabilídade das ideias de Freud, influenciando outr~s ár~-~'
como a medicina,-psicologia, antropologia e a política de direitos humanos 1 fo ram
fundamentais para um desfecho positivo desse movimento.
A influência do Nazismo
No período de 1926, com a chegada dos nazistas ao poder na Alemanha, até
1949, com o final da Segunda Guerra Mundial, as ideias homofóbicas se acen -
tuaram enormente na Europa, com consequentes retrocessos para os movimentos
inclusivos das diferenças, entre estes a despatologização da homossexualidade. A
votação proposta por um comitê Reichstag para cancelar o famigerado Parágrafo
175 das leis alemãs que criminalizavam a prática homossexual foi cancelada. Além
da prisão, a sentença era a esterilização, em geral pela castração, ampliada por
Hitler para a morte em 1942.
Em 1930, coerente com suas ideias, Freud assinou uma petição pela descrimi-
nalização da homossexualidade. Enquanto, em 1933, a Dinamarca discriminaliza-
va a homossexualidade, em 1936 a Rússia a criminaliza Em 1937, um triângulo
rosa foi imposto aos homossexuais nos campos de concentração. A eles eram
dadas as piores tarefas , além de serem alvos de ataque de outros prisioneiros e
dos guardas das prisões. A estim~_1:.!_v a _<:!e as~assinatos. d_e hom9ssexua ~ dll_!:~nte
~ o regime nazi sta fo i além de 100 mil. Quando a guerra terminou , prisioneiros
homossexllilis per~aneceram ; ncarceradaos , já que o Parágrafo 175 ainda era lei
~
vigente na Alemanha Ocidental até sua revogação apenas em 1994.
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~
• Os sistemas classificatórios universais do século XX e a
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e
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homossexualidade
~ EJ:D.J2.~~' a APA publicou seu primeiro Diagnostic and Estatishcal Manual of Men-
gj
i'i'í
lll
tal Disorders (DSM- 1), derivado de classificações preliminares que tê_m origem -no
~ século XIX, como já mostrado neste tex.to . Essa ~lassifi.cação incluiu. o diagnÓsi(co
=
~ de homossexualidade sob a rubrica de Desvios Sexuais , na categoria de "Pertur-
38
r'
- Anna Freud, fi lh a e herdeira bações Sociopáticas de Personalidade", juntamente de transvestismo, pedofil a, ;t.~
39
Segundo ele 45 ,
40
doença. Entrevistando psiquiatras favoráveis e contra a questão da homossexuali-
dade ser patologia, o comitê conclui, em 1973, por recomendar à APA a retirada
do diagnóstico de homossexualidade per se do DSM 49 . •
,..
e caprinos. É um fun- ...,~
No congresso da APA, de maio de 1973 , em Honolulu , aconteceu um sim- s-
pósio com o título de Should homosexuality be in APA Nomenclature? , no qual Robert ,g
~-
Stoller faz uma conferência intitulada "Homossexualidade é um diagnóstico?''. ~·
Usando como referência as coordenadas que um quadro deve preencher para ter ª"
3=
:=:srados Unidos, trouxe -
~
cred ibilidade diagnóstica , tais como conjunto de sintomas e sinais patológicos
-e co nduziu em estudo aprese ntados por um grupo e ser visíve l ao observador, Stoller apontou: !!!.
Ei:
ruais, conclui ndo que a ~
• homossexualidade é somente uma preferência sexual , entre várias em nossa "'
-hante e que, assim, per sociedade;
• diferentes pessoas com suas preferencias sexuais têm diferentes psicodinâ -
- e =asz, O mito da doença micas sob seu comportamento sexual;
orno fo rma de poder e
• as diferentes experiências de vida provocam essas dinâmicas e
::estaque a homossexua-
comportamentos;
ou seus estudos sobre
• um comportamento homossexual é uma variável; não há uma
homossexualidade.
Após discorrer sobre esses argumentos, concluiu que a homossexualidade não
e político, o movimento
preenchia critérios diagnósticos e devia ser removida da nomenclatura 50 .
~·ecendo . Em junho de
=· o bar Ston ewall, reduto Após revisões e aprovações por vários comitês internos, em 15 de dezembro
de 1973, a APA organizou uma votação concluindo por suprimir a homosse -
.-ou um levante, organi- xualidade das categorias de doenças mentais. Entre 15 membros da direção ,
,.. - ~e:sso da APA, em 1970, 13 pronunciam-se favoravelmente. Durante os 2 anos seguintes, outras grandes
--:'3.'ltes em relação à ho- instituições de saúde mental, como a APA, the National Association of Social Workers
c- ~: dos homossexuais 4 7 . e a Association for Advanwnent of Behavior Therapy, en dossaram a decisão da APA5 1 .
--~sos da APA, de 1971 Entretanto, a decisão foi contestada por muitos psiquiatras, inclusive psica-
nalistas, que exigiam sua anulação ou a realização de um referendo. Entre esses,
.:...::,..-=.."'stica sustentava o pre - estava Charles Socarides, organizador do Ad Hoc Committee Against the Deletion of
- enco ntro de 1972, os Homosexuality from DSM-II, que sentenciou 52 :
ssexual, apresentado
For the next 18 years, the APA decision served as a Trojan horse, opening the gates to
widespread psychological and social change in sexual customs and mores. The decision
was to be used on numerous occasions for numerous purposes with thegoal of normal-
izing homosexuality and elevating it to an esteemed statm.
es rep resentantes da
Em abril de 1974, um referendo interno promovido pela APA aprovou, com
58% dos votos, a decisão da direção em retirar a homossexualidade da lista de
-v.'Ilitê de estudos sobre doenças mentais tomada no ano anterior. Em seguida ao referendo , a APA pro -
= Tal comitê trabalhou moveu um movimento amplo de pro teção aos direitos civis dos homossexuais no
e ps icanalítica para trabalho, alojamentos, repartições públicas e licenciamentos, repudiando qual -
ossexual idade como quer tipo de lei discriminatória 53 .
41
Essa decisão não representou uma conquista apenas para os homossexuais, mas
para o respeito aos direitos humanos e muito também para a própria Psiquiatria
co mo ciência, pois a homossexualidade como patologia nunca foi sustentada por
argumentos médicos . Esse é um acontecimento exemplar, mostrando o risco da
ciência se prestar a dete rminar normas morais .
Muitos psiquiatras das décadas passadas se ocuparam em descrever sobre quais
forças realmente pesaram, tanto dentro quanto fora da APA, para remover a homos-
sexualidade do manual diagnóstico de doenças mentais . Em seu livro Homosexuality
and American psychiatry: the politics of diagnosis 54 , Dr. Ronald Bayer, um psiquiatra
a favor da despatologização, reforçou a importância do ativismo gay desde a pri -
meira invasão ao congresso da APA, em San Francisco, em 1970, seguido pelo de
1971, como já descrito . Ele concluiu que a conquista da remoção do diagnóstico
de homossexualidade foi o resultado de forças políticas, ameaças e intimidações
aos psiquiatras americanos pelo movimento gay e não uma manifestação científica.
Entretanto, avalia -se que, somado ao ativismo gay e a todo o movimento pró-
direitos humanos surgidos no pós-guerra, muito pesou a falta de embasamento
científico para a sustentação desse diagnóstico, como as pesquisas epidemiológi -
cas de Kinsey e Hooke e os trabalhos clínicos de Stoller e Spitzer demonstraram .
O início da reforma psiquiátrica nos Estados Unidos, na década de 1960, buscan -
do critérios médicos para os diagnósticos psiquiátricos, possivelmente também
colocou em xeque a fragilidade nosológica desse quadro . Interessante observar
como a história, mesmo em relação aos diagnósticos médicos, pretensamente tão
objetivados, dá voltas, podendo se desconstruir! Como visto, na evolução histó -
rica do conceito de homossexualidade como doença, foi justamente pela neces-
sidade de fazer crescer a nosologia psiquiátrica, no final do século XIX, para dar
bases científicas à Psiquiatria, que esse diagnóstico foi constituído. Menos de cem
anos depois, ele teve sua descontrução fortalecida por essa mesma necessidade de
reconhecimento da Psiquiatria . Além disso, conclusão nossa, não é possível deixar
= de considerar que, desde o final dos anos 1950, com a descoberta dos primeiros
psicofármacos, clorpromazina e imipramina, a Psiquiatria passou a ser um campo
=
de intenso interesse da indústria farmacêutica. Esta passou a ter fo rça imensurá-
=
~ vel até nas classificações diagnósticas, como mostra sua evolução, pulverizadas
em incontáveis quadros e subquadros dirigidos para determinados tratamentos
= medicamentosos . Avalia-se que esse interesse da indústria sobre os quadros far-
~
macologicamente tratáveis poderia também ter favorecido o desinvestimento na
.="'
.,
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e:
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homossexualidade como doença, da mesma forma que aconteceu com a histeria e
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o...
outros quadros considerados apenas subjetivos.
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e:
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~ • Homossexualidade pós-DSM-11
~
...J...i~L~t i§ Após a decisão de se excluir a homossexualidade como diagnóstico do DSM -II,
"'
:e
l .lfl em suas edições posteriores há uma nota recolocando o diagnóstico com a catego -
42
~il
~
-- :Jara os homossexuais, mas ri a de "Transtorno de orientação sexual", com a explicação de que essa categoria
para a própria Psiquiatria se distingue da homossexualidade, que não pode ser considerada doença per se . No
=~ nu nca foi sustentada por DSM- 111, de 1980, há o diagnóstico 'Transtornos psicossexuais", incluindo a cate - •
:»
i5-
:>iar, mostrando o risco da goria de "Homossexualidade ego-distônica", entre "Outros transtornos psicosse - ils
xuais". Essa categoria foi removida em 1987, com o lançamento do DSM-III -R e o .g
~-
~.....-n em descrever sobre quais diagnóstico de "Transtornos psicossexuais" modificado para "Transtornos sexuais", ê!l'
- .!.PA, para remover a homos - com um subtítulo de "Transtorno sexual sem outras especificações". No DSM-IV, =
"'
=
l§
Em seu livro Homosexuality publicado em 1994, mais uma vez a categoria foi renomeada para "Transtornos g
nald Bayer, um psiquiatra sexuais de gênero e identidade", mantendo a classe de "Transtorno sexual sem ~
9õ.
~-ativis mo gay desde a pri - out ras especificações". Essa classificação foi mantida na última revisão em 2000, g=
16-
em 1970, seguido pelo de resultando no DSM-IV-TR, ainda em vigor 55 .
ca remoção do diagnóstico Enquanto a Psiquiatria americana avançava e se posicionava, colocando a
ameaças e intimidações homossexualidade ao lado da hetero como uma das vicissitudes da sexualidade
- -lIT!a manifestação científica . humana, a OMS retrocedia . Em sua nona revisão, de 1975, quando nos Estados
- e a rodo o movimento pró- U nidos já havia caído o diagnóstico de homossexualidade como doença, a Classi-
a falta de embasamento fi cação Internacional de Doenças manteve a homossexualidade na categoria "Des-
as pesquisas epidemiológi - vios e Transtornos Sexuais", na subcategoria "Homossexualismo" (código 302 .0) 56 .
-er e Spi tzer demonstraram . Somente em 17 de março de 1990, a Assembleia Mundial de Saúde, órgão má -
- :ia década de 1960, buscan- ximo decisório da OMS, acordou, em sua décima revisão da CID, que resultou na
CID -1 O, publicada em 1992, que "a orientação sexual (heterossexual, bissexual e
:1<!dro . Interessante observar ho~ o2:'exual) por si mesma não deve ser vista como um transtorno . Q dia 17 de
57
s :nédicos, pretensamente tão março passou, então, a ser considerado o "Dia Internacional contra a homofobia".
o visto, na evolução histó- Em 1982, Portugal descriminalizou a homossexualidade, enquanto, em 1993
0.:. foi justamente pela neces - a Rússia revogou o art. 121º do Código Penal, que criminalizava o sexo anal en -
.:.nal do século XIX, para dar tre homens . Finalmente, em 1994, a Alemanha descriminalizou relacionamentos
_consti tuído . Menos de cem sexuais entre pessoas do mesmo sexo, cancelando o tão danoso Parágrafo 175
::-<Jr essa mesma necessidade de de seu Código Penal. Em 1995, a Associação Japonesa de Psiquiatria deixou de
.:_ nossa, não é possível deixar considerar a homossexualidade um distúrbio mental.
-; a descoberta dos primeiros
arria passou a ser um campo
• A Psiquiatria no Brasil e a homossexualidade
- ;iassou a ter força imensurá-
sua evolução, pulverizadas A Assembleia Mundial de Saúde é formada por 192 Estados-Membro da OMS,
-~~ de terminados tratamentos entre eles o Brasil. Entretanto, é importante ressaltar que, a partir de decisão do
-ri.ústri a sobre os quadros far- Co nselho Federal de Medicina, desde 1985, o Brasil já havia retirado a homosse-
orecido o desinvestimento na xualidade da condição de d?_e_n_ça,_mental ou físi1:=a, desconsiderando o artigo 302 .0
:.re aconteceu com a histeria e da CID -9 e, em 1999, o Conselho Federal de Psicologia normatizou em portaria
(00 1/99), que "os psicólogos não colaborarão com evento ou serviços que propo-
nh am tratamento ou cura da homossexualidade" 58 . E!]tretantoJ em__Q_utubro de 2004,
o projeto de lei 717/2003- da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, de
autoria de um deputado evangélico, criou um "programa de auxílio às pessoas que,
como diagnóstico do DSM -II, voluntariamente, optarem pela mudança de orientação sexual da hpmossexualidade
-e.o o d iagnóstico com a catego- para a heterossexualidade". Segundo o parecer da Comissão de Saúde 59 ,
43
homem e mulher foram criados e nasceram com sexos opostos para se
complementarem e se procriarem (sic). O homossexualismo, apesar de
aceito pela sociedade, é uma distorção da natureza do ser humano normal.
~
a sexua lidade depende de quatro fatores psicossexuais inter-relacio-
.~ nados: indentidade sexual, identidade de gênero, orientação sexual
:<;;
e:
2 e comportamento sexual. Estes fatores afetam o crescimento e o
~
funcionamento da personaliddae. A sexualidade é algo maior do que o
"'
e:
44
eram com sexos opostos para se as características com portamentais de gays e lésbicas são tão variadas
O homossexualismo, apesar de quanto as de heterossexuais. Ambos os grupos praticam as mesmas
::a narureza do ser humano normal. ati_vidades sexuais, com as óbvias diferenças impostas pela anatom ia, •
>
ição e Justiça, "a proposição é Segundo Kapla~, ,a identi'dade sexual 1é o padrão de características sexuais
1
S"
,g
biológicas de_uma pessqa - cromossomas, genitália externa e interna, compo -
~:
o
entável , do ponto de yista da sição hormonal , gônadas e característ icas _sexuais secundárias . Estudos embrio - C>.
45
Por outro lado, é importante lembrar que as teorias diagnósticas são constru-
ções que não se isolam dos contextos culturais e políticos nos quais são formula -
das . Temas como este, sobre a patologização da homossexualidade, alertam-nos
sobre como uma característica humana pode ser equivocadamente apropriada pela
medicina, revelando como a posição normativa da ciência é perigosa e o quanto
esta, tão pretensamente objetiva e apolítica, pode ser <lanosamente moralista.
A sexualidade humana se desenvolve pelas mesmas identificações que estruturam
o psiquismo. Aquilo que nos torna humanos, desejantes, a troca do instinto pela pul-
são, prov~~a a perda de uma bula biológica, deixando-nos à deriva. Dessa forma, a
sexualidade humana é um cais meio ermo e ficamos sem um lugar certo para ancorar
o desejo, nossa agonia e êxtase. Cada um constrói seu porto como pode .
=
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46