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INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA
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Vivendo Viridiana:
Projeto de Graduação em Música Popular apresentada ao
Departamento de Música do Instituto de Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito
para a obtenção do título de Bacharel em Música.
Orientadora: Profa. Dra. Isabel Porto Nogueira
Porto Alegre
2019
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Agradecimentos
Aos meus pais, por me apoiarem e incentivarem desde o violão, desde a guitarra de plástico, até aqui
e muito mais. Meus primeiros e eternos professores.
À Flor, por conseguir sempre olhar lá dentro de mim e enxergar até o que escapa meus próprios
olhos. Minha irmã.
À Isabel, por me ensinar a voar com minhas asas, cantar com minha voz, criar com meu sentimento.
Minha guia.
Aos meus amigos e amigas de longa data. Larissa, Bruno, Fialho, Carlos, Pietro, Rafael, Henrique e
tantos outros. Espero ser tão presentes nas conquistas de vocês como vocês são nas minhas, há
tantos anos. Meus protetores.
À família que encontrei no curso de Música da UFRGS. Chico, Cris, Gabo e Nina. Que precioso,
afetuoso e importante esse encontro. Minhas inspirações, sempre.
Aos membros e membras da Medula com quem convivi criativa e afetuosamente: André, Chico,
Carlos, Isabel, Luciano, Nik, Ricardo, Zazá, Kevin. Grata por terem criado comigo, por terem
começado a cultivar algo que faz tanto sentido agora. Meus colaboradores.
Aos membros e membras do Sônicas: Gênero, Corpo e Música. Que manhãs lindas de troca, de
con ança, de aprendizado. Vamos sempre juntas. Minhas colegas.
A todos e todas envolvidos e envolvidas em Ao Filho Torpe, minha família teatral. Miguel, Cissa,
Vicente, Alexandre, Lu, Luiz, Jéssica, Gabi, Gustavo. Minhas segundas e quartas feiras.
A todas e todos que zeram parte de Androgênia e Anatômica: Bruna, Cassiano, Flor, Luiza, Vini,
Ricardo, Joice, Rafa, André, Regina, Sarah, Lu, Isabel, Alexandre, Cissa, Miguel, Luiz e Vicente.
Obrigada por con arem nessa criação. Meus apoiadores.
Aos professores que tive nesse trajeto todo, mesmo antes da faculdade. Marcos, Margot, Luciano,
Luciana e tantos mais. Minhas referências.
Ao Rodrigo, por me ensinar tanto, há tanto tempo.
À Sandra, por ouvir e me fazer ouvir.
À Zazá e ao Nik, por estarem sempre perto pra ouvir, pra falar, pra emprestar microfone, pra me
dizer que vai dar sim, que tá bem assim, que eu posso e que eu devo. O brilho de vocês atravessa o
oceano.
Ao meu bem. Tua importância pra mim transborda as palavras, então tento dar conta pelos sons.
Por sempre estar aqui, até nos momentos de maior dúvida, não existe gratidão o su ciente que eu
possa te expressar. Por ser mão, abraço, carinho e afeito. Meu melhor amigo.
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Resumo
Este trabalho relata o desenvolvimento, a criação e a execução de dois projetos artísticos: um
disco, chamado "Androgênia" e uma performance chamada "Anatômica", ambos os processos
ocorrendo de fevereiro a novembro de 2019. A partir dos procedimentos da pesquisa artística
relacionados com os estudos de gênero em música, procuro narrar os momentos de tomadas de
decisões e os cruzamentos que ocorrem entre as diferentes etapas do processo, borrando as
fronteiras entre elas, relacionando também com os conceitos da teoria queer sobre identidades de
gênero não-binárias, com o qual me identi co. Ao mesmo tempo, o trabalho analisa como a minha
trajetória afeta esses processos, tanto por sua convivência com diferentes grupos, como pelas
práticas que foram realizadas dentro do currículo do curso de Música Popular da UFRGS.
Palavras-Chave: Pesquisa Artística, Estudos de Gênero e Música, Teoria Queer, Música Eletrônica,
Performance
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Abstract
This paper narrates the development, creation and execution of two artistic projects: An EP,
entitled "Androgênia" and a performance entitled "Anatômica", with both of these processes taking
place from February to November of 2019. Utilizing procedures from Artistic Research, and
relating with Gender Studies in Music, I intend to describe the processes and decision making
strategies that occur during my creative practices, as well as how both creation's processes
intertwine, blurring the frontiers between them, which relates to queer theory and non-binary
gender identities, with which I identify. Simultaneously, this paper analyzes how my trajectory
a ects these processes, be it through my experiences with di erent ensembles, or through practices
that were executed as a part of the Popular Music degree at UFRGS.
Keywords: Artistic Research, Gender and Music Studies, Queer Theory, Electronic Music,
Performance
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Lista de Imagens
1. Apresentação da Medula, no Projeto Concha, 9 de Julho de 2018 14
2. Ciclo de interação e retroalimentação entre prática artística e re exão 20
3. Imagens produzidas como identidade visual do EP Androgênia 30
4. Software Serum, com o preset de baixo utilizado em Venus 34
5. Interface do plugin iZotope Vocalsynth. 35
6. Excerto do diário de bordo, rascunho da estrutura de Invencível 38
7. Uma das cadeias de efeito de send em Invencível 39
8. Sintetizador Korg Volca Fm, na con guração Glasspad 42
9. Plug-in Valhalla Vintage Verb com a con guração utilizada em Torpe 42
10. Efeito de Delay utilizado nas guitarras de Miragem de Vidro 45
11. Exemplo de compressão sidechain em um dos canais de sintetizadores de Androgênia 49
12. Visão do Adobe Premiere Pro, onde montei e editei os vídeos 52
13. Arquivo de lmagem de Venus, antes da aplicação do Chroma Key 53
14. Uma das molduras de mãos de Venus 54
15. Visão do software HexFiend 55
16. Sequência do procedimento de Datamoshing em Invencível 56
17. Uma comparação de uma das imagens capturadas para Miragem de Vidro 58
18. Imagem do vídeo de Amor Verdade 60
19. Duas con gurações diferentes do gerador de linhas "Linescape" no Resolume Arena 61
20. Registro da apresentação, na canção Miragem de Vidro. Foto por Vinicius Angeli 66
21. Comparação entre as interfaces do Ableton Live e Resolume Arena 68
22. Disposição dos equipamentos na performance 70
23. Foto com destaque do gurino utilizado na performance "Anatômica". Foto de Luiza Padilha 74
24. Retrato com destaque da maquiagem utilizada em Anatômica. Foto de Vinicius Angeli 75
25. Still do vídeo utilizado como uma das peças de divulgação 77
26. Cartaz desenvolvido para divulgação da performance 78
8
Eu quero saber quem é que foi o grande otário
que saiu aí falando
que o mundo é binário.
(Linn da Quebrada)
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Sumário
Introdução 10
1. Referencial Teórico 17
1.1 Pesquisa Artística: Ações e Métodos 17
1.2 Gênero: Identidades, Diálogos e Cruzamentos 23
1.3 Voz: Atritos e Respiros 26
2. Composições: Processos e Narrativas 31
2.1 O Ambiente da Criação 32
2.2 Catedral 33
2.3 Venus 34
2.4 Invencível 38
2.5 Torpe 40
2.6 Amor Verdade 43
2.7 Degradê 44
2.8 Miragem de Vidro 44
2.9 Androgênia 48
3. Vídeos: Produções e Projeções 51
4. A Performance: Anatômica 63
4.1 Narrativa 63
4.2 Arsenal 67
4.3 Rede 72
4.4 Relato 78
Referências 82
Apêndices 84
Diário de Campo 84
Registro da Performance em Áudio e Vídeo 106
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Introdução
Acho seguro dizer que a primeira vez que pensei nesse TCC é bem longe de hoje, bem mais
pra trás. Particularmente, na primeira semana de aula do meu primeiro semestre no curso de
Bacharelado em Música Popular (ingressei em 2016), na aula de Prática Musical Coletiva, a
professora falou de maneira simples e certeira: “O TCC é logo ali, depois de amanhã”.
Antes do ingresso na Universidade, o estudo de música que eu havia realizado era situado
ao redor do violão, o instrumento que eu mais tocava. Comecei a tocar com meus 10 anos,
largamente impulsionada por um outro passatempo meu, que era os videogames. Passava tardes
jogando Guitar Hero, um jogo que se baseia em tocar músicas (uma seleção predominantemente de
Rock) com o controle do videogame. As notas das músicas eram distribuídas em cinco cores, como
cordas de um instrumento. Meu primeiro instrumento era de plástico e tinha cinco botões, o
controle que era vendido junto do jogo. O repertório desses jogos acabou sendo o que habitou
meus ouvidos essa época, e me levou a ter vontade de conseguir tocar as músicas fora dos botões de
plástico. Comecei aulas em grupo de violão, onde aprendi alguns acordes.
Eventualmente me separei dessas aulas e comecei um período bem comum às minhas
práticas, que é o de aprender sozinha, olhando as cifras e tablaturas das músicas que eu queria tocar
na internet e aprendendo o que seria necessário para tocá-las. Passei muito tempo assim, fazendo
música no quarto, violão, voz e computador. Ainda tenho nesse navegador uma pasta de favoritos
chamada “Cifras/Tabs”, onde mantinha as que eu mais gostava de tocar em fácil acesso. Pouco
tempo depois, ganhei uma guitarra de aniversário e encontrei uma motivação para voltar a fazer
aulas, dessa voz no instrumento elétrico. O professor que me foi recomendado fazia aulas
individuais e em grupo, de maneira parecida com o que vivi nas disciplinas de Prática Musical
Coletiva na UFRGS. Após menos de um ano, meus horários individuais com o professor foram
sendo preenchidos por aulas de teoria musical, escalas, formação de acordes e improvisação. Não era
o que eu queria aprender naquele momento, e minha última aula foi selada por eu dizendo que “Eu
não preciso saber isso, a nal quem sabe disso é músico, e eu nunca vou trabalhar com música!”. Eu
tinha 13 anos.
Mesmo sem aulas, não parei de tocar violão e cantar. Por mais que as músicas que eu ouvia
mudassem, e a maneira como eu descobria elas se diversi cassem, tocar e cantar continuava ali. Uma
grande mudança desse período que seguiu foi em relação a mim e a meu autodescobrimento. Com
14 anos, lembro de falar para meus amigos que eu era gay, conclusão que cheguei de maneira
resistida, sofrida. Era algo que, quando comecei a re etir a respeito, era fonte de angústia e
estranhamento. Parecia uma quebra de regras, uma opção que não havia sido dada a mim, foi
catalisador de um momento conturbado na minha família, e encontrei muito refúgio na música
nessa época. Foi, para mim, um lugar de desenvolver uma identidade, um discurso.
11
Não foi muito tempo depois em que minha identidade passou por mais um processo de
elaboração dentro de mim, quando aos 15 anos eu manifestei pela primeira vez que não me sentia
um homem, como eu havia passado minha vida inteira sendo tratada1. Ao contrário da questão da
sexualidade, mencionada anteriormente, essa é uma que foi externalizada de maneira muito mais
cautelosa e lenta, visto que nem eu mesma tinha um entendimento completo sobre o que isso
signi cava. Eu só sabia que, sicamente, meu corpo me desagradava, eu sofria de disforia de gênero.
Foi conciliando essas questões internas que cheguei no último ano da escola, tendo que
decidir o curso para o qual eu prestaria o vestibular. No último dia de inscrição escolhi música.
Escolhi entender porque esse negócio estava sempre habitando meus ouvidos. Como o prazo era
curto, recorri a uma meia dúzia de aulas com um professor particular, para entender o que seria
exigido de mim na prova de habilitação especí ca. A prova possuía dois momentos: um prático e
um teórico. No prático, o repertório era de escolha livre, desde que se tratasse de duas peças
contrastantes. Após tocadas as peças, era realizado um solfejo e uma leitura à primeira vista no
instrumento escolhido no momento da inscrição. Em outro dia na mesma semana, era realizada a
prova teórica, que contava com conhecimentos de percepção musical, harmonia, reconhecimento
dos modos, tons e escalas. A primeira questão que encontrei di culdade nas aulas era a escolha do
repertório. Nesse momento, minha prática no violão era, majoritariamente de arranjos que eu fazia
baseados em trilhas sonoras dos videogames que eu jogava. Quando mostrei para o professor, senti
um estranhamento, como se esse repertório não estivesse em um lugar comum, o que para mim
evidentemente estava, mas havia dois territórios claramente diferentes em jogo ali. Buscamos
pesquisar no que poderia haver de comum entre o meu território e o dele, e chegamos em duas
canções, uma de Chico Buarque e outra de Stevie Wonder.
Obtive sucesso tanto no processo da habilitação especí ca quanto no vestibular, e, em
2016, estaria começando meu primeiro semestre da faculdade. Lembro de um encontro que foi
feito entre calouros/as e veteranos/as antes do início do semestre. Quando fui me apresentar lá,
disse que meu nome era “Bê”, e recebi expressões confusas em resposta. Rapidamente corrigi,
dizendo que era apenas um apelido, e que meu nome inteiro seria “Be____”. Minha trajetória
dentro da faculdade foi abundante em momentos similares a esse, de uma confusão pronominal,
uma constante necessidade de estar explicado meu nome, minha identidade, meus pronomes. Foi
no meu terceiro semestre que comecei a inserir mais incisivamente que sou não-binária quando me
apresentava.
Foi no terceiro semestre, também, que parei de levar meu violão para as disciplinas de
Prática Musical Coletiva, e comecei a assumir o papel de cantora e “tocadora - de - computador”,
impulsionada por vivências que tive em 2016, conhecendo o grupo Medula2 e tendo minhas
primeiras experiências com músicas que lançavam mão do computador como instrumento musical.
No segundo semestre da Prática Coletiva, a professora Isabel nos levou alguns equipamentos para
experimentarmos: um looper, um pedal de voz, dois sintetizadores. Sugeri que zéssemos algo com
loops ou trilha (Era “Angolana”, do grupo Metá Metá que tocávamos) e Isabel disse pra eu trabalhar
1
Uma discussão mais extensa sobre identidades e performatividades de gênero estará presente nos capítulos posteriores.
2
Coletivo de experimentos sonoros situado dentro do Instituto de Artes da UFRGS, formado por professoras/es,
bolsistas e membros externos à Universidade. O grupo servia tanto de espaço de criação artística quanto acadêmica, com
orientações dos/das professores/professoras.
12
nisso em casa. Só que eu não tinha nada disso! Tratei de conseguir uma placa de som e um
microfone, os mesmos que me acompanham até hoje. Procurei no google qual era o programa que
as pessoas usavam, e vários links me levaram em direção ao Ableton Live, que hoje é o centralizador
da minha realização de música no computador.
Aí que comecei a formar a coleção de equipamentos que até hoje me ajudam a fazer música,
montei o homestudio onde desenvolvo as músicas que falarei aqui. Ao meu computador, está ligada
uma placa de som (marca Focusrite), na qual possuo duas entradas, uma das quais está estragada. O
utensílio que mais ligo nela é um microfone condensador, da mesma marca. No meu computador,
esses sinais são processados pelo software Ableton Live, e monitoro as saídas de som por caixas de
som da marca KRK.3 De certa forma, o violão, voz e computador que praticava há anos ainda estão
presente, mas com uma ressigni cação desses elementos.
As práticas que desenvolvi a partir de 2017, então, estavam ancoradas fortemente no uso de
eletrônicos, tanto em minhas práticas de composição sozinha, quanto as experiências em grupo (na
Medula, nas Elatrônicas4, nas ReVolcadas5), e ao nal desse ano, já estava cando mais clara dentro
de mim a ideia de que eu gostaria de compor músicas no meu TCC, coisa que eu nunca tinha feito
antes. Meu estudo de voz começou em 2017 também, com aulas particulares e uma experiência
cantando em um Coro, de repertório primariamente erudito. Esse momento foi de uma urgência
muito grande, uma busca identitária muito forte, similar aos anos anteriores que narrei, como o
descobrimento de uma sexualidade, de um gênero.
Meus questionamentos sobre as relações de gênero foram fomentadas amplamente pelo
meu convívio com o grupo Sônicas - Gênero, Corpo e Música, grupo de pesquisa coordenado pela
professora Isabel Nogueira, no Instituto de Artes da UFRGS. Comecei a ter contato direto com as
ações do grupo na segunda metade de 2017, e foi aí que me aprofundei nos estudos de gênero,
questões essenciais para minha formação acadêmica. Em 2018, junto ao grupo, desenvolvemos a
ação de extensão Ciclo Sônicas - Músicas de Mulheres, onde promovemos concertos mensais que
visibilizassem a obra de mulheres compositoras. Os nove concertos ocorreram dentro dos espaços
da UFRGS, entre os meses de março e dezembro.
A segunda metade do meu curso foi com esse rmamento maior na questão da minha
identidade, tanto pessoal quanto musical. Tive a oportunidade de trabalhar e tocar com grupos,
mas nunca havia constituído um projeto meu, algo que re etisse esses movimentos, principalmente
de gênero, em uma identidade artística. No m de 2018, dei o nome Viridiana a algo que eu não
sabia direito o que seria, mas que, na minha cabeça, já existia. Um projeto de canções, de
performance, de audiovisual, de materiais meus, que seria onde eu faria minhas experimentações no
TCC. Abaixo, um registro de um momento que sinto que representa uma culminação desse
processo de descobrimento e elaboração de uma persona artística, uma foto de uma apresentação da
Medula, em formato de trio, em uma apresentação em julho de 2018:
3
Os procedimentos que utilizam esses equipamentos, a maneira como eu emprego cada um deles e mais exemplos de
equipamentos são detalhados no capítulo 3.
4
Grupo formado por Alessandra Bocchio, Bê Smidt, Isabel Nogueira e Isadora Nocchi Martins. O coletivo realizou
performances interdisciplinares, dialogando com a arte sonora, a improvisação e as artes visuais.
5
Duo formado por Bê Smidt e Isadora Nocchi Martins que realizou performances improvisadas utilizando
sintetizadores da linha Volca, produzidos pela empresa Korg.
13
fig 1. Apresentação da Medula, no Projeto Concha6 de Julho de 2018. Na foto, Isadora Martins (Guitarra,
esquerda), Isabel Nogueira (Voz e Synths, Centro) e eu (Voz, Synths e Guitarra, direita)
Fazendo esse movimento de olhar para trás, explicitar minha trajetória, que consigo ter
dimensão do que quero fazer com essa pesquisa baseada na prática artística, partindo do meu lugar
de fala de pessoa não-binária, branca de classe média. Trago isso para a escrita pensando no que
López-Cano e Cristóbal comentam sobre a prática de pesquisa artística:
[...]caracterizada por uma re exão constante sobre sua própria
prática artística e a problematização dos aspectos da sua atividade artística
pessoal junto dos seus arredores, para elaborar diagnósticos, análises,
re exões e soluções. Junto disso, a construção de um discurso próprio sobre
a sua proposta artística, que ponha em primeiro plano uma argumentação
e caz sobre seu aporte pessoal à música de nossos dias [...]7 (CANO e SAN
CRISTÓBAL, 2014, p.82).
6
Ciclo de shows de mulheres compositoras, que ocorreu em Porto Alegre em 2018 e 2019, no espaço do bar Agulha.
7
Original: “La re exión continúa sobre su propia práctica artística. La problematización de aspectos de su actividad
artística personal y de su entorno para ofrecer diagnósticos, análisis, re exiones y soluciones. La construcción de un
discurso propio sobre su propuesta artística que ponga en primer plano una argumentación e caz sobre su aporte
personal a la música de nuestros días.” (Tradução da autora)
14
Minhas re exões, antes de começar a desenvolver esse projeto, estavam muito preocupadas
com o formato. Eu sabia que queria compor músicas, e que também queria desenvolver o processo
de gravação e produção em homestudio, como vinha fazendo. Ao mesmo tempo, queria trazer essa
produção para fora, visibilizando um trabalho que falaria do meu gênero e de minha narrativa
pessoal e artística. Pelas minhas vivências anteriores com grupos que se apropriavam da metodologia
do diário de bordo, como a Medula e os pesquisadores e pesquisadoras do Sônicas, decidi iniciar
um que documentasse meu processo, minhas decisões, meu sentimentos acerca desse trabalho. Esse
dispositivo de metodologia se faz presente em algumas práticas de pesquisa artística, e,
resumidamente, propõe-se a ser um registro constante das ações tomadas dentro da pesquisa.8
Escrevi, no dia 11 de janeiro de 2019:
"[...] Quero que eu me escute. Penso que no fim do ano eu esteja fazendo uma performance com
as minhas músicas. Não sei quais, quantas, como. Não sei mesmo, mas não saber me traz um pouco de
conforto, me instiga." (11/01)
Vejo essas duas possibilidades, o lançamento da coletânea de músicas em um EP9 e a
performance, como complementares, e ambas como focos de discussão aqui. De um lado, a análise
do processo de composição - gravação - produção em homestudio, e, de outro, a transposição desse
material para o ambiente da performance pública, analisando como/se esses materiais se
transformaram, se houve a adição de materiais novos, se há uma possível re-contextualização do
material aí. Ao invés de confrontar esse binarismo, decidi assimilá-lo ao projeto, compreendendo
esses dois momentos como etapas de um processo, que se in uenciam, retroalimentam e
atravessam. Uma discussão prolongada dessas questões será desenvolvida nos capítulos 2, 3 e 4,
quando se tratar da composição das músicas, criação de vídeos e elaboração da performance.
Com essa re exão em mente, tenho em mente que o objetivo do trabalho é a elaboração de
uma performance audiovisual com músicas e vídeos10 criados por mim. Esse processo está cruzado
pela criação de um EP, que será lançado anteriormente à realização da performance, e cujas músicas
estarão presentes na performance também. As re exões que traçarei aqui, no escrito, partirão desses
processos de criação relacionados com a Pesquisa Artística e os Estudos de Gênero, com os quais
tive amplo contato durante minha graduação. Também estarão marcadas, inevitavelmente, pelos
marcadores que carrego comigo, como branca, de classe média e do Sul do Brasil.
Relacionando essa visão atravessada da produção do material musical do projeto,
relembro-me dos estudos de gênero e penso “não é assim que eu vejo a minha identidade? Como
um entre-lugar? Não seria um projeto que se debruçasse sobre as diferentes formas que um mesmo
material pode tomar um projeto não-binário? Há outros entre-lugares nesse projeto? Como
8
Uma descrição e discussão acerca do diário está presente em 1.1
9
Sigla, em inglês, de Extended Play. Formato de lançamento de músicas situado, em termos de duração, entre o single e
o LP (Long Play).
10
Originalmente, o primeiro contato que eu tive com esse tipo de performance foi com Luciano Zanatta e Chico
Machado na residência artística que a Medula realizou em 2016. Descrevo esse momento e essas referências com maior
detalhe no capítulo 3.
15
investigá-los?”. Fica nítida a relação que a minha prática musical tem com minha identidade
não-binária, e como quero articular essa discussão nas páginas que preencho nesse trabalho,
articular minha performatividade com minha performance, minha teoria com minha prática,
minha pessoa com minha música.
Iniciarei a discussão, no capítulo 1, com um apanhado teórico sobre as áreas de
conhecimento que julgo essenciais para o entendimento dos processos da criação das músicas e da
performance. No segundo capítulo, tratarei dos processos de criação das músicas, realizando,
também, uma análise dos processos de gravação, edição e mixagem das obras. No capítulo 3, tratarei
de outro eixo de criação da performance: do eixo visual, por meio dos vídeos. Na quarta seção,
relatarei os aspectos da performance como local, montagem, gurino, um relato de sua realização,
entre outros. Por m, um apanhado de todos esses processos e cruzamentos encerra essa parte
escrita da pesquisa. O que segue, agora, são os fundamentos teóricos que lanço mão para discutir os
diversos processos e momentos do trabalho.
16
1. Referencial Teórico
A Risada sem Riso
O Riso sem Risada
A Risada Chorada
A Risada da Ignorância
A Risada substituindo a Fala
A Risada Substituindo a Resposta
(Walter Smetak, adaptado)
Em vista das perguntas sobre as quais eu me propus a re etir, parto a analisar a bibliogra a
que me ampara na re exão sobre esses tópicos. Como mencionei na introdução, meus estudos
durante a graduação foram mediados, e amplamente moldados, pelo envolvimento com dois
grupos, a Medula e o Sônicas - Gênero, Corpo e Música. Em ambos, tive contato com a
metodologia de Pesquisa Artística, e com o campo de estudos de gênero em música. É partindo
deles que me equipo teoricamente neste trabalho, iniciando pela pesquisa artística.
11
Original: research about art has been part of human society ever since human beings had the capacity to evaluate and
criticise human artefacts.
17
pedagogia, psicologia e etc. A Pesquisa para as Artes é a que se propõe na criação de ferramentas
que informem ou auxiliem a prática artística, como a criação de métodos pedagógicos, ou a
pesquisa em recursos tecnológicos aplicados às artes. Por m, a Pesquisa através das Artes (ou
simplesmente Pesquisa Artística), a modalidade que empregarei amplamente aqui, é a de de nição
mais esguia e complexa (LÓPEZ, SAN CRISTÓBAL, 2014), e dedico alguns momentos à
elaboração desse pensamento.
Em COESSENS et al. (2009), as autoras enumeram algumas diferenças entre os processos
da pesquisa cientí ca tradicional e a pesquisa artística, a primeira das quais se situando no domínio
de atuação: “No caso da ciência, o objetivo dos esforços está limitado pelas fronteiras de situações
do mundo real; no caso das artes, esse objetivo é limitado apenas pelas fronteiras impostas pela
imaginação humana” (COESSENS, CRISPIN, DOUGLAS 2009: p.24)12. Observando esse
aspecto de diferentes domínios, Velardi explicita o que poderia ser visto como uma de nição
auto-contida da Pesquisa Artística como um “modo de pesquisar que centraliza suas re exões nos
processos e objetos artísticos, sem necessariamente se basear nos princípios de reprodutibilidade e
observação, privilegiados por pesquisas quantitativas e qualitativas, por exemplo” (VELARDI,
2018). Gostaria de re etir um pouco sobre essa de nição. Pensando nos objetos artísticos que
estariam em jogo aqui nessa pesquisa, podemos enumerar alguns: as canções compostas, os vídeos
construídos com as canções e a performance em mente, e até a própria performance. É a partir dos
processos de criação desses elementos que surgirão os problemas e suas (possíveis) soluções. Isso,
contudo, contraria o que Nicholas Cook descreve como o paradigma tradicional da musicologia,
que vê o “processo como sendo subordinado ao produto” (COOK, 2001 p. 7). Para Cook, que
elabora em seu trabalho uma crítica e uma reformulação desse paradigma, a ideia do objeto artístico
(nesse caso, a música) ser analisado somente em seu estado nal vem da lologia e do estudo de
textos literários, onde há um suporte físico, escrito e xo da obra, que é interpretada e contemplada
em silêncio. Contudo, em se tratando de música, principalmente de música popular, o suporte
escrito não é uma entidade sempre presente, e quando presente, ele necessariamente passará pela
gura do/da performer, que serve de um “intermediário” nessa comunicação, podendo modi cá-la,
com níveis variados de liberdade.
A partir disso, Cook defende o que seria uma musicologia da performance, baseada nesse
borramento de territórios (mais sobre esse conceito será apresentado neste capítulo) entre o
processo e o produto, havendo uma construção de sentido no próprio ato da performance e
fazendo dela um fenômeno irredutivelmente social (COOK, 2001 p. 11). Para incorporar essa visão
social e que privilegia o processo na pesquisa, encontro na Pesquisa Baseada em Artes uma loso a
de pesquisa que me parece contemplar essas questões. Relembrando a distinção em três tipos de
pesquisa artística de Frayling, Pentassuglia (2017) pensa na Pesquisa Baseada em Artes como uma
metodologia que parte dos próprios processos como elaboradores de problemas e soluções, de
forma semelhante à musicologia proposta por Cook. Questiono então, como esse sentido social da
análise da performance se relaciona com as análises de processo da Pesquisa Baseada em Artes? Para
12
Original: In the case of science the goal of the endeavour is limited by the constraints of real-world situations; in the
case of art this goal is limited only by the constraints of human imagination. (tradução da autora)
18
responder esse questionamento, procuro me debruçar mais especi camente sobre a elaboração da
metodologia que empreguei aqui.
A elaboração da metodologia na Pesquisa Baseada em Artes é um território difícil de
mapear, por se dar um processo que é imprevisível e sincrético (como descrito em COESSENS
2009), além de ser uma proposta do trabalho a re-avaliação de que fatores estão em jogo nos
processos de composição e performance. Hannula (2005) ressalta:
Comumente, o tópico de pesquisa é algo que se relaciona à experiência
artística, ao trabalho artístico ou ao olhar do artista em si. Entretanto, para
o artista, esse ponto de partida pode ser tão auto-evidente, que ele/ela
encontra di culdade para considerar uma metodologia para abordá-lo.
(HANNULA et al., 2005)
O autor vê que é nesse ponto em que talvez a pesquisa artística mais encontre diferenças da
pesquisa cientí ca, da mesma maneira que as citadas anteriormente, e ele relaciona a metodologia a
um mecanismo de poder:
Desse ponto de vista, a função sistemática de uma metodologia é fazer com
que a pesquisa seja o mais transparente e aberta o possível. Em outras palavras, o
método está lá para que se tenha um jeito fácil de criticar a pesquisa, tendo ela sido
feita por uma/um “mestra/mestre” ou uma/um “iniciante”. Isso quer dizer que a
avaliação do conhecimento cientí co é, em princípio, intersubjetiva (o que alguns
chamariam de “objetiva”) e pública. (HANNULA et al., 2005 p. 57)13
Como conciliar, então, a elaboração de uma metodologia condizente com o (meu) modo de
produção artística que não ponha em xeque o processo criativo, e que ao mesmo tempo seja passível
de argumentações e diálogos com o campo de estudo? Em COESSENS (2009), a questão é tratada
da seguinte forma:
De um ponto de vista metodológico [...] nós podemos oferecer alguns conceitos
que podem ajudar a trajetória da Pesquisa Artística para de nir sua trajetória e
possíveis relações com outras áreas de pesquisa. Os três conceitos apresentados aqui
não exaurem o potencial desse domínio, mas oferecem um início. Primeiro, a
Pesquisa Artística deve frisar a sua localização, sua relação com um contexto
especí co. Isso pode ser articulado em termos de referencial, meio ou material, essa
diversidade adiciona, e não subtrai, valor à pesquisa. Segundo, a Pesquisa Artística
deve estimular uma forma de auto-re exão, característica da modernidade, que se
13
Original: From this point of view, the systematic work that a research methodology has to do is to make the research
as transparent and open as possible. In other words, the method is there in order to make it easy to criticise the research,
whether the research is produced by a “master” or by a “novice.” This means that the evaluation of scienti c skill and
knowledge is, in principle, intersubjective (some would like to say “objective”) and public. Consequently, science has an
internal process for “error correction” or change. (tradução da autora)
19
permita gerar relações entre o objeto e o sujeito da pesquisa. Terceiro, ambas as
posições podem, juntas, levar a uma pesquisa que combine tanto visões críticas
quanto analíticas sobre arte, gerando maneiras conscientes de analisar o objeto
artístico. (COESSENS, CRISPIN, DOUGLAS 2009 p. 41)14
Com esses dois pontos de vista em mente, introduzo, agora, os dois mecanismos principais que
balizam o processo da pesquisa, apresentados em López e San Cristóbal, 2014: O Ciclo de interação
e retroalimentação entre prática artística e re exão e o Diário de Bordo. O primeiro consta na
imagem abaixo, reproduzido de LÓPEZ e SAN CRISTÓBAL, 2014 p.169:
Essa imagem dialoga com o que foi elencado pelas autoras em COESSENS (2009), uma vez
que lida com o problema da situação de localização e diálogo com seus contextos
14
Original: From a methodological point of view, and drawing on the examples above, we might o er some concepts
that could help the trajectory of artistic research to de ne further its relations and possible interactions with other
forms of research. The three concepts developed here do not exhaust the potential of this domain but o er a tentative
beginning. First, artistic research should stress its ecological situatedness, its relation to the speci c context. Whether
this is articulated in terms of the intellectual framework, the medium or the material, it is of added value, as opposed to
nuisance value, in the research. Secondly, artistic research should stimulate a form of self- re ection that is a
characteristic of modernity and which, through re exive emancipation, can open up new possibilities for
subject/object relations in research. Thirdly both positions could, together, lead to research that combines art-critical
and art-analytical points of view, moving towards forms of interpretation that are 'semiotically conscient'. (tradução da
autora)
20
(“Re exão-Conceitualização”), ao mesmo tempo em que estabelece uma relação próxima do sujeito
com o objeto (“Registro”), e promove ações artísticas embasadas a partir dessa experiência
(“Planejamento de novas ações criativas”). Recordo-me dos momentos iniciais da concepção de um
projeto desse trabalho, e na eventual elaboração de uma metodologia para sua execução, na qual
estaria prevista a composição das canções e dos vídeos, e onde tive grande di culdade para conseguir
sistematizar esses momentos e processos em uma sequência que não fosse prescritiva ou impeditiva.
Pensando no raciocínio apresentado na imagem, e comparando com a metodologia que eu havia
traçado, há uma inversão do que é proposto por López Cano e San Cristóbal. O uxo está, de
acordo com o autor e a autora, no movimento circular entre as etapas do trabalho, e não em uma
hierarquização de processos e métodos. Esse constante movimento foi um dos motivos pelos quais a
elaboração de uma metodologia xa e prescritiva, no momentos iniciais da elaboração desse projeto,
mostraram-se muito difíceis para mim, e decidi, portanto, elencar diferentes ações que tivessem
relação com meus processos, e dividi-las em protocolos de ação. No caso, a partir de uma prática
que já estava “em movimento”, procurei identi car que ações se faziam presentes corriqueiramente:
15
● A composição das minhas músicas parte de gatilhos, que podem ser/foram
○ Beats ou melodias elaboradas em momentos de improviso;
○ Textos que produzi em outros momentos da minha trajetória
○ Pedaços de poesias que surgem em improvisos
● A partir desses materiais iniciais, busco expandi-los, ora pela improvisação em cima deles,
ou pela busca de outros, que eu julgo que posso combinar, a m de formar
seções/ambientes diversos. A busca por esses materiais diversos pode se dar em ambientes
fora da música, como a busca por samples de vozes faladas
● Trabalho muito com a escuta repetida dos materiais que já tenho, deixando as partes que já
possuo em loop muitas vezes
● Os processos de composição-gravação-mixagem se confundem e se entrelaçam, e noto uma
preferência minha por deixar cada seção mixada antes de seguir para a próxima
● A busca nas referências musicais que tenho como um caminho de tomada de decisões na
composição
● A busca, também, nos procedimentos improvisatórios tanto no meio digital (como no
processamento de efeitos em clipes de áudio) quanto nos físicos (como o improviso com
voz) como uma possível resolução de problemas na composição
Visto que elaborei esses protocolos após o início da imersão no processo, um mecanismo muito
importante para sua elaboração foi o Diário de Campo (ou Diário de Bordo), mecanismo presente
em diversas abordagens da pesquisa artística, tido como um registro dos processos, dados e
descobertas do trabalho, aliados também ao registro das impressões subjetivas por parte da/do
pesquisadora/pesquisador (LOPEZ-CANO, SAN CRISTÓBAL 2014 p.110). Esse registro
recorrente do “agora” na pesquisa, que está sempre em andamento, fornece um olhar para dentro
15
Uma exploração maior dos processos e do ambiente da criação das músicas está presente no segundo capítulo do
trabalho. Aqui procuro apenas introduzir os protocolos de ação como descritivos do processo, e não prescritivos.
21
do processo, como se eu estivesse dando acesso ao banco de dados que fomenta toda essa pesquisa
(HANNULA et al., 2005 p.16).
Em momentos iniciais dessa produção, preocupei-me com a delimitação de momentos nos
quais escreveria no diário, a m de manter uma periodicidade nos registros das ações da pesquisa.
Notei que os mais recorrentes na escrita eram os momentos pós-sessão de composição. Notei que a
tomada de decisões durante esse processo era um elemento do qual eu me esquecia dos detalhes
com certa rapidez, procurei registrar esses momentos, então, no próprio dia. Além desses, há
momentos de escrita (contudo, mais esporádicos) em dias no qual me debruço sobre a elaboração
deste texto. Mesmo com esses dois gatilhos iniciais, não me proíbo de escrever no diário momentos
de dúvida, de angústia ou nervosismo com o trabalho/com as composições, pois sinto que elas
integram a pesquisa de maneira tão efetiva quanto decisões mais concretas.
Os protocolos de ação e o diário de bordo vêm, então, tentando dar conta de uma
sistematização do processo composicional, mas demonstrando que no próprio ambiente da criação
do material há uxos e diferentes territórios que se con guram. Esse movimento de redesenhar os
territórios do trabalho pode ser entendido sob a loso a de Deleuze e Guattari, no que remete a
desterritorialização.
Desterritorializar é entendido como um processo no qual um território é desvinculado de
seus contextos e entidades prévias, abrindo fronteiras e permitindo que novas relações ali se
formem. É se expor a novos modos de agir, reagir, (trans)formar (COESSENS, CRISPIN,
DOUGLAS, 2009). Vejo esse pensamento presente especialmente na observação dos registros e no
processo de re exão e conceitualização do processo. Para falar sobre desterritorializar, contudo, é
preciso ter dimensão de qual/quais território/s estou falando.
Os territórios com os quais lidarei no projeto são diversos e vastos, mas elenco alguns: o
território no qual a prática musical desenvolvida aqui está situada (criação musical em homestudio,
seguida de uma performance pública); do território que eu ocupo como artista branca, não-binária,
dialogando tanto com o material que estou construindo quanto com a realidade na qual estou
inserida, pensando que toda a minha produção está atravessada pelas minhas vivências e narrativas,
ocupando também, um espaço em uma universidade federal, em um curso de música popular no
sul do Brasil que foi criado há 7 anos.
Penso que essa pesquisa, então, possui essa característica do diálogo com os espaços que
ocupo (semelhante ao que foi comentado por COESSENS et al. 2009), tratando de uma imersão
não só nos processos e produtos decorrentes dele, mas também com como a Universidade
proporcionou e construiu esses diálogos dentro de mim. Como artista-pesquisadora, aqui, quero
contribuir também para que esse trabalho se some à crescente de pesquisas que se propõe a falar de
gênero e música que é observada desde os anos 2000, mas intensi cada a partir da década de 2010,
analisada por Zerbinatti, Nogueira e Pedro (2018), estabelecendo, então, uma ligação entre a
pesquisa artística, como loso a de pesquisa que se propõe a dialogar com as histórias pessoais e
plurais, e os estudos de gênero, sob uma ótica interseccional e performativa, que dialoga com as
minhas vivências.
22
23
possível oposição a categoria “cis-” seria a categoria “trans”. Transgênero, portanto, refere-se à
identidade que não possuiria um acordo com o gênero designado ao nascer (LESSLEY, 2017).
Mantenho em mente que as categorias aqui ainda permanecem binárias, reforçando uma
normatividade ainda, mas uma discussão mais ampla disso seguirá.
Para entender o funcionamento dessas normatividades, é importante analisar o que seria
(ou seriam) o mecanismo regulador delas. Butler (1993) aponta que é por meio da identi cação do
corpo com o constructo “sexo” que se viabiliza a própria formação do sujeito, que caso não se
possibilite, resulta em um sujeito “abjeto”, ou seja, um sujeito que é invisível, que não se materializa
frente às normatividades cis-heterossexuais. Para Butler (1993), a abjeção é o repúdio que nasce da
resistência às práticas identi catórias, que, evidentemente, variam de acordo com o local e época
que se está analisando. A partir do estabelecimento dessas categorias e dessa regulação, procuro
re etir, então, o que podem ser consideradas categorias desviantes do modelo cis-hétero normativo,
tanto porque me identi co como uma identidade que não é contemplada nisso, mas também para
explorar ainda mais uma desterritorialização que há na fundação deste trabalho: a das identidades
de gênero.
Tendo as considerações de Butler sobre performatividade como a base para o entendimento
das identidades, o entendimento de gênero como binarismo ca muito fraco, visto que esse
inicialmente era baseado apenas sob a ótica do dimor smo sexual (análise biológica/médica) ao
invés da ótica do fenômeno e da construção social (análise sociológica/interdisciplinar). Essa divisão
epistemológica, analisada por Stewart (2017), é uma das bases do que seria uma análise queer do
gênero.
Queer é uma palavra em inglês, que pode ser traduzida como “excêntrico”, “esquisito”,
“diferente”, que era usada como insultos homofóbicos nos países de língua inglesa. Os grupos
atacados pela palavra zeram um movimento de reapropriação do termo, indo contra as
(hétero)normatividades impostas pelos ataques, enaltecendo a diferença e criticando a matriz
heteronormativa dominante (LOURO, 2001). Uma mesma perspectiva teórica estava sendo
presente nos trabalhos de um conjunto de intelectuais da época, e esses se nomearam da mesma
forma, Queer. Uma perspectiva queer sobre os temas de gênero e das identidades em geral é
apresentada em Lopes 2001:
A construção discursiva das sexualidades, exposta por Foucault, vai se
mostrar fundamental para a teoria queer. Da mesma forma, a operação de
desconstrução, proposta por Jacques Derrida, parecerá, para muitos teóricos e
teóricas, o procedimento metodológico mais produtivo. Conforme Derrida, a
lógica ocidental opera, tradicionalmente, através de binarismos: este é um
pensamento que elege e xa como fundante ou como central uma idéia, uma
entidade ou um sujeito, determinando, a partir desse lugar, a posição do ‘outro’, o
seu oposto subordinado. O termo inicial é compreendido sempre como superior,
enquanto que o outro é o seu derivado, inferior. Derrida a rma que essa lógica
poderia ser abalada através de um processo desconstrutivo que estrategicamente
revertesse, desestabilizasse e desordenasse esses pares. (LOURO, 2001 p.8)
24
Onde estariam, então, esses processos que desordenam e desestabilizam os pares, descritos por
Derrida? Papoulias (2006) defende que as identidades trans16 seriam centrais nesse processo de
re-ordenação (ou desordenação?) identitária:
No contexto da crítica pós-moderna da identidade, o ativismo transgênero criou
um desa o às hegemonias binárias de gênero e a sua força naturalizada, além de
invocar a possibilidade da existência de gêneros uidos e móveis. 17
Esse entendimento de gênero, como uido, construído e re-construído através das ações
performativas é o que baliza não só o entendimento que emprego aqui neste trabalho, mas como
re ito sobre mim e minha própria identidade. É essa identidade que trago para jogo quando penso
em compor, em tocar, ou até quando não penso, quando saio de casa e caminho pela rua. Possuo
essa identi cação como não binária desde meus 17 anos, e, buscando a bibliogra a para escrever,
noto que realmente não é algo sobre o qual se escreva há muito tempo. Não há uma difusão grande
sequer de que identidades não-binárias existem (RICHARDS, BOUMAN, BARKER, 2017),
menor ainda são os trabalhos acadêmicos que relatem essas vivências. No meu caso, quero relatar
essa vivência corpori cada na minha música, na minha performatividade. Não quero que essa
análise de gênero siga uma ótica de ser um trabalho sobre uma pessoa não-binária, mas sim que seja
um trabalho de uma pessoa não-binária (STRYKER e WHITTLE apud STEWART, 2017), que
entende essa identidade como um marcador de diferença que provém uma riqueza e diversidade ao
campo de estudo de música e gênero.
Nota-se, então, que queer não está exclusivamente ligado a uma concepção de gênero, mas
sim a uma exibilização, a um borramento de fronteiras entre identidades (um des-território?).
Penso em como deixar uma prática musical queer, como fazer dela um entre-lugar, marcada pelas
diferenças, pelas pluralidades e pela uidez. Um lugar que eu sinto que é muito marcado por essa
uidez, dentro dos processos que descrevo aqui, é o da voz. Proponho-me a re etir sobre isso, sobre
esse instrumento, esse marcador.
16
Como mencionado anteriormente, “trans” nesse sentido signi caria identidades que não correspondem ao gênero
designado ao nascimento, o que por um olhar queer não se restringe apenas às categorias masculino e feminino, mas sim
quaisquer identidades que podem se situar entre/fora/através dessas.
17
Original: “In the context of postmodern critiques of identity, transgender activism forged a challenge to hegemonic
gender binaries and their naturalising force and invoked the possibility of uid mobile and provisional enactments of
gender.” (tradução da autora)
25
1.3 Voz: Atritos e Respiros
A voz vem de dentro. Vem do atrito entre estruturas que residem na laringe. Como que, de
um atrito, surgem canções, músicas, ideias? É na voz não-binária que reside uma das inquietações
do trabalho? Soar não-binária, soar queer.
Quando comecei a cantar e assumir essa identi cação de "cantora", passei por alguns
momentos de aprendizado vocal que considero bem contrastantes. Iniciei (em 2016) com aulas
particulares, onde trabalhava aspectos básicos do canto: Respiração, Fonação, Articulação etc.
(LESSLEY, 2017 p. 72). Notei rapidamente que o registro que minha voz mais facilmente soava era
muito mais grave do que eu gostaria, tendo em vista minhas referências da época, que eram, em sua
maioria, mulheres com vozes mais agudas que a minha (principalmente, cantoras de pop como Lady
Gaga, Ariana Grande, Liniker e outras). Recordo de expressar essa angústia em uma aula e receber
em troca que essa era a minha voz, e eu tinha que me conformar, porque era a única que eu teria.
No ano seguinte, 2017, z audição e fui aceita em um Coro, de repertório e técnica
majoritariamente eruditos. Lá, era do naipe dos baixos ("o naipe dos machos", como era apelido no
coro), e minha voz foi treinada e moldada, naquele contexto, para privilegiar as características que o
repertório erudito exigia. Não necessariamente propondo a criação de novos termos, mas lá conheci
o sentimento de disforia vocal. Quando ouvi uma gravação pela primeira vez, senti as mesmas coisas
que antes só me acessavam pelo espelho, o desconforto e sensação de não-pertencimento naquela
voz, como antes sentia o não-pertencimento em meu corpo. No m do ano, decidi sair do grupo, e
comecei a focar em entender como que eu chegaria em um resultado que me agradasse
sonoramente na minha voz.
Um dos caminhos que encontrei para realizar esse descobrimento foi por meio da
improvisação e da composição, ao invés da prática focada em cantar músicas de outras pessoas.
Comecei a experimentar com o pedal VE-20, da Boss, principalmente com a função de Loop18. Fiz
várias sessões de loops vocais, re-aprendendo e re-conhecendo minha voz, processando com os
efeitos do pedal e dos programas de computador. Quando comecei a compor com voz, vi que esses
processos de manipulação e lapidação do timbre da minha voz era algo que me trazia felicidade e me
estimulava a criar. Da mesma forma que há roupas que fazem eu me sentir pertencente ao meu
corpo, há jeitos de usar a voz que me proporcionam a mesma sensação, e não teria porque eu não
trazer esse sentimento de bem estar para a minha produção artística também. Uma grande parte do
processo de produção e composição das músicas foi encontrar esses lugares de conforto com a voz,
conforto com o que vem de dentro.
Trago esse breve histórico do meu relacionamento com minha voz procurando identi car
como que os conceitos que apresentei antes nos capítulos 1.1 e 1.2 dialogam com minha
experiência. Retorno, então, às questões que trouxe no primeiro parágrafo, pensando inicialmente,
nesse "atrito" do qual vem a voz, e de como e por que eu a transformo nas músicas do EP e da
performance.
18
Fragmentos (musicais) que se repetem, tratados mais a fundo no capítulo 2.
26
Noto que na trajetória que narrei anteriormente, um dos aspectos que está em jogo em
diversos momentos é a relação da materialidade do corpo com a voz que ele produz. Nesse caso, do
meu corpo e minha voz, relacionados com os conceitos de performatividade de gênero discutidos
no capítulo anterior. A voz se tornava, então, uma extensão do corpo disfórico. Em MOREIRA
(2013), a autora analisa as relações entre a materialidade dos corpos com as músicas que os corpos
produzem, buscando "abordar a música em uma relação antes de metonímia do que de metáfora"
(MOREIRA, 2013 p. 111); ou seja, levando em consideração o meio pelo qual se propaga o som, o
meio do qual se propaga o som. Se eu pretendia fazer um disco com canções que viessem desse lugar
não-binário, penso que gostaria de explorar como que essas relações se estabeleciam na minha voz.
A autora continua, citando Tomlison:
Dessa forma, reporto-me a uma noção de contiguidade entre música e
materialidade, numa relação não de causalidade mas sim de participação,
numa interação metonímica entre partes adjacentes de um mesmo todo
(TOMLINSON apud MOREIRA, 2013 p. 111)
Quero explorar as diferentes interpretações que podem surgir a respeito de materialidade, no
contexto dos trabalhos artísticos que trago aqui: o uso da voz tanto no disco quanto da
performance.
Emerald Lessley, em sua dissertação de mestrado, dedicou-se a estudar a pedagogia vocal em
pessoas trans, e argumenta que a voz assume papel central na formação identitária de seu/sua
portador/a (LESSLEY, 2017 p.28). A autora recorre a estudos da área da fonoaudiologia para
exempli car sua tese:
Estudos mostram que mesmo quando a aparência física de uma pessoa é
alinhada com sua identidade de gênero, se a sua voz não possui a mesma
correspondência, a pessoa não será reconhecida como seu gênero desejado [...].
Diversos fatores estão envolvidos nessa correspondência, como altura, presença de
ar, ressonância e variações na intensidade, altura, duração e contornos de
entonação.19 (LESSLEY, 2017)
A análise e re exão que pretendo fazer aqui não segue o mesmo referencial da
fonoaudiologia, mas trago as conclusões da autora para re etir sobre a abjeção (descrita por Butler)
que se apresenta nesse contexto. Seria uma pessoa não-binária que se identi ca mais com o gênero
feminino, mas com uma voz tipicamente percebida como masculina, vítima de abjeção quando
canta ou fala? Estaria nos registros graves a denúncia de suas pregas mais grossas? São nos 180Hz da
"fala tipicamente feminina" (BROWN apud LESSLEY, 2017 p.60) que reside a voz Queer que
19
Original: Studies have shown that even when a person’s physical appearance is aligned with their gender identity, if their
voice does not align with their gender identity, other people will not perceive them as their target gender. Studies have also
shown that there is considerable correlation between the quality of life for transgender individuals and other people’s
perception of their voices.Many factors are involved in voice matching the target gender including but not limited to pitch,
breathiness, resonance, and vocal variability in regard to pitch, loudness, duration, and intonation contours (tradução da
autora)
27
busco nas minhas canções? Sinto que uma de nição por aqui poderia recair em ser essencialista,
procurando catalogar regiões do espectro da fala. Ainda mais por tais parâmetros serem facilmente
modi cados pela manipulação digital, mas me aprofundarei nas manipulações depois. Voltando às
metonímias, e se procurássemos interpretar a performatividade da voz pelo conteúdo da fala, ao
invés de pela fala em si? Hannah Bosma observa uma tendência nos trabalhos de música eletrônica,
quando vem a se tratar do uso da voz:
Há uma tendência em música eletrônica de se usar a voz masculina e a feminina de
maneiras diferentes: a voz feminina é associada com o canto (nesse caso, treinado de
forma tradicional), geralmente sem palavras e executado ao vivo, enquanto a voz
masculina é mais associada com a língua falada. (BOSMA apud LANE, 2016)
Lane observa também as signi cações históricas da voz "feminina" (aqui entre aspas por já termos
identi cado que esse é um território em disputa e não- xo), desde o silêncio exigido nas igrejas até o
famoso timbre aerado da voz de Marilyn Monroe, e hoje em dia das inteligências arti ciais dos
celulares (LANE, 2016). Em um primeiro momento, a voz que não há, depois a voz que seduz, e
por m, a voz que obedece. A autora aponta, então, que a performatividade da voz não está
necessariamente na sua altura, contornos melódicos e etc, mas sim nos seus contextos, sejam de
exeução, performance ou audição. Jacobs (2015) argumenta que o que ocorre nesse fenômeno é
uma "engendração da vocalidade", uma impressão, replicação e perpetuação dos papéis de gênero
(tradicionalmente binários) nos usos da voz (JACOBS, 2015 p. 18).
Entendemos, então, que não é apenas o quê e como se fala (visão fonoaudiológica), mas
quem e quando se fala (visão performativa). Daiane Jacobs (2015), em seu trabalho artístico, pensa
em "propor a voz em cena como produção de corporeidade afectiva, e não apenas um meio para a
linguagem (palavra)" (JACOBS, 2015 p.23). A autora salienta essa diferença (e ruptura) que há
entre o corpo e a voz, negando que esse primeiro seria apenas um veículo para que a segunda
expresse a mensagem (o "intelectual", de acordo com a autora). Quando re ito, agora a posteriori,
mas retomando as anotações que fazia no diário de bordo, noto que tive uma preocupação grande
com isso ao longo dos processos de composição narrados aqui. Desde os mecanismos que criei para
amenizar as sensações disfóricas da voz, como as manipulações eletrônicas, até as palavras que
escrevi e cantei, sinto que uma preocupação grande desse processo foi narrar o meu corpo por essas
linhas. Penso, então, que há um diálogo, no meu caso, da voz com o texto também.
Como que podem se expressar (ou se evitam expressar) esses marcadores de gênero no
texto? Evidencio que, até agora, z um esforço consciente para desvincular essa ideia da voz com a
palavra, mas revisitando meu processo, noto que isso foi uma preocupação grande das canções.
Isabel Nogueira nota que, por meio das manipulações eletrônicas, pode-se fazer com que o texto na
voz se torne indecifrável, onde "a semanticidade da palavra deixa de ser seu sentido primordial"
(NOGUEIRA , 2017 p.12), pois quando se trata de música que está sendo ouvida/gravada com
mediação eletrônica, o que se ouve não são mais os atritos das pregas vocais, mas sim os movimentos
dos alto-falantes, e entre essas duas coisas pode haver uma série de processamentos, modi cações e
28
"marcas"20 no som. Em "Androgênia", busquei explorar essas manipulações nos formantes da voz,
por meio do software Melodyne, por exemplo. A ressigni cação da voz nesse sentido pode apontar
também para uma ressigni cação de seus outros marcadores também: quem fala, da onde fala, o
quê fala. Há, aí, uma desconstrução da "unicidade da voz e suas associações com gêneros e contextos
sociais", como escreve Nogueira (NOGUEIRA, 2017 p. 13). A autora traça, então, uma relação
íntima entre a voz não só como sonoridade, mas como expressão do lugar de fala e do corpo de
quem a produz:
20
As "marcas" aqui mencionadas são as marcas tecnográ cas, elaboradas por CAESAR (2014). Uma descrição mais
profunda delas se encontra em 2.1
29
conjuro." (NOGUEIRA, 2017 p. 15). A m de investigar as falas e as escutas, parto aos sons,
analisando as músicas que compus ao longo dos processos de Androgênia e Anatômica.
30
2. Composições: Processos e Narrativas
Escrevam com seus olhos como pintoras, com seus ouvidos como músicas, com seus pés
como dançarinas. Escrevam com suas línguas de fogo. Não deixem que a caneta lhes
afugente de vocês mesmas. Não deixem a tinta coagular em suas canetas. Ponham
suas tripas no papel.
(Gloria Anzaldúa)
Dedicarei este capítulo à apresentação dos processos de criação das músicas que compõe
tanto o disco que me propus a gravar ("Androgênia") , quanto a performance que realizei
("Anatômica"). Uma das minhas prioridades para esses dois projetos era que todo o material fosse
novo, composto durante esse ano que passei imersa nas criações, por um lado, para tentar ser um
retrato el de quem sou como artista hoje, e por outro, para que eu pudesse ter a narração desses
processos no Diário de Campo.
"Androgênia" foi lançado no dia 22 de agosto de 2019, com 5 faixas compostas entre
fevereiro e julho do mesmo ano. Um dos processos de maior colaboração dentro do disco, foi o de
criação das artes e do projeto grá co, no qual contei com ajuda da minha irmã, Flor, que é designer
grá ca, e se pronti cou a ajudar. A partir de fotos que tiramos, ela produziu 5 imagens, uma para
cada faixa do disco. Essas mesmas imagens foram integradas, também, no processo de criação de
alguns dos vídeos da performance.
fig 3. Imagens produzidas como identidade visual do EP Androgênia
31
32
papéis tanto de enviar informações de notas, sendo tocadas como instrumentos musicais, ou de
editar parâmetros dentro do software (volume, controles especí cos dentro de cada efeito, entre
outros).
São por esses dois meios que eu gravo informações que formam as composições,
informações essas que são editadas e ressigni cadas no meio digital, mas que voltam para mim pelos
alto falantes, podendo ser ainda mais mudadas se assim for o meu desejo. Os processos das peças são
marcados por essa escuta recorrente e essa união do processo de compor com o de gravar e o de
processar no meio digital, como se o instrumento maior que desse conta de todo esse processo fosse
o próprio estúdio, nesse caso homestudio (MOOREFIELD, 2005). Iazzetta (1996) nota que essa é
uma característica da informação digital, o fato de ela ser ressigni cada, convertida e utilizada de
formas diferentes (IAZZETTA, 1996). De qualquer forma, passo agora a analisar a gênese de cada
uma das peças apresentadas ao longo da constituição desse processo, usando meu diário de campo
como âncora no passado, mas tentando traçar relações entre cada uma delas, agora que possuo elas
prontas.
2.2 Catedral
Cronologicamente, Catedral é o material mais antigo que produzi que veio a integrar
Anatômica, o arquivo que tenho data de 7 de abril de 2018. Também é um dos poucos materiais
que está apenas na performance, e não no disco.
Quando a compus, estava em um período ainda de mapear todas as funções do Live, em
um contexto no qual eu nunca tinha escrito uma canção, mas que essa era uma vontade que eu
tinha. Na época, também, tinha adquirido há pouco tempo o pedal VE-20 da Boss, que me dava
possibilidades de manipulação vocal e Loops. Na versão que z nessa época e declarei a mim mesma
como pronta, eu cantava o mesmo fragmento melódico inicial que canto na performance (a
sequeência Dó - Sol - Dó). A partir disso, iniciava a loopar e testar harmonizações fornecidas pelo
pedal, em geral pelos graus de quinta e oitava acima. Acho interessante como há procedimentos
comuns nas outras músicas, como o uso de plug-ins externos ao Live para sintetizadores, ou o fato
de que a batida não é quantizada21. São como marcas que deixei na música que sinalizam o tempo
no qual ela foi composta, no qual eu não tinha inteiramente me familiarizado com a interface do
programa.
Em Anatômica, prossigo de forma parecida, contudo realizei uma fragmentação da
estrutura da música. Na primeira parte, há apenas o beat, sobre o qual canto sem harmonizações ou
loops, apenas com minha voz. E na segunda, o arranjo é incrementado do sintetizador, e inicio o
processo de construção de camadas via loops e harmonias.
21
Quantizar é um termo usado em diversos softwares de diferentes áreas, contudo, em softwares de áudio, refere-se à
locação de informações (como notas) a posições ou divisões xas (como o início de um compasso, ou a divisão de
colcheias). Aqui, referia-me a quantizar a percussão, para que todas as notas atacassem precisamente na subdivisão de
semicolcheias (MANZO, VJ. e KUHN, W., 2015 p.25)
33
Uma das motivações por trás de incluir uma música que não foi pensada nesse contexto foi
a de criar um momento inicial de "aquecimento" na performance, um início mais guiado pela
improvisação, e que pudesse ter seu tempo decidido por mim.
2.3 Venus
Venus foi uma das duas músicas dessa coletânea que compus pensando em apresentar na
disciplina de “Composição de Canção”, ministrada no primeiro semestre de 2019 pelo professor
Luciano Zanatta. A tarefa da disciplina era apresentar alguma composição que o/a aluno/a
classi casse como canção em duas datas separadas: uma no início do semestre, e outra no nal.
Quando recebi essa tarefa, decidi que iria compor duas canções do EP com essas datas em mente.
O primeiro registro que eu tenho do processo dela é de 31/03. No diário de campo, escrevi:
“Tô escrevendo uma canção, por enquanto o nome dela é “Vênus”, em referência a Venus
Xtravaganza. Começou com uns acordes e um beat que postei um vídeo no twitter, e
responderam: “Ointenteira!”. Na hora minha ficha caiu. Logo me lembrei dela [Venus], e
escrevi versos falando sobre violência em situações de intimidade e vulnerabilidade que pessoas
não-cis passam. Leve né? hehe”
Venus foi uma mulher trans que viveu em Nova York na década de 1980. Ela era uma gura
da vida noturna, dos bailes que serviam de refúgio para a comunidade LGBTQIA+ da época.
Venus trabalhava, também, como prostituta, e no documentário Paris is Burning, relata episódios
de transfobia que sofria durante seu serviço. Em 1988 ela foi encontrada morta, na casa de um
cliente (BUTLER, 1993 p.84). Tenho re etido sobre essas situações de vulnerabilidade que pessoas
não-cis passam, principalmente em situações de intimidade. Eu já sofri com isso, em proporções
menores, e senti que era um assunto que eu queria abordar musicalmente. Mantive isso em mente.
A opção por ter essa referência de uma pessoa que existiu, e da qual se possui registros em
áudio e vídeo acabou me levando a lançar mão de samples para que eu “trouxesse” essa gura de
Venus à canção. Sample é um termo em inglês (cuja tradução poderia ser “amostra”) e que, nesse
caso, refere-se a um pedaço de informação (que, relembrando Iazzetta, por ser digital, está sujeita à
manipulação intensa) musical que está sendo “citada”, ou reapropriada. O material que trato com
mais profundidade nesse caso são os samples de Venus falando, mas há diversas outras instâncias nas
outras músicas que descrevo aqui.
A primeira coisa que compus foi o beat. Usei minha controladora MIDI para fazer ele com
nger drumming. uma "peça" da bateria de cada vez, nesse caso, porque usei o bumbo de um kit de
samples, sintetizei o hat e o snare com geradores de ruído, e sampleei percussões graves também.
Como tudo isso está em tracks diferentes, preferi fazer uma de cada vez. Improvisando, porque a
essa altura eu não tinha muito referencial de para onde queria ir, lembro de pensar que queria algo
que desse pra dançar. Gravo, toco com os dedos e quantizo, para tudo car na grade dos
compassos. Mesmo gravando com o metrônomo ligado, às vezes dou uma escapada no tempo, e
queria deixar tudo na grade, uma coisa que associo com percussões de música dançante da época de
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Venus. Junto disso, criei uma melodia com um synth bass e um arpejador22 disponível no próprio
Live. O timbre do baixo veio do Serum, contudo, o modi quei pelo meu gosto com um
equalizador e um saturador.
Serum é um software de síntese wavetable, da desenvolvedora xFer. Síntese wavetable
funciona, primeiro, com um banco de dados de samples digitalmente armazenados. No caso do
Serum, existem diversas categorias, desde formas que o programa chama de mais “básicas”
(senoides, dentes-de-serra, etc.) a conjuntos de formas mais elaborados. A essas formas, são
aplicadas transformações e processamentos, a m de moldar o som ao desejo de quem está
operando (HUBER e RUNSTEIN, 2014). O programa conta com dois osciladores, cada um deles
podendo estar sintetizando formas diferentes, dentre as opções do programa
fig 4. Ssoftware Serum, com o preset de baixo utilizado em Venus.
Eu gostei do movimento que o arpejador deu, e a sequência de acordes que eu improvisei também
me agradou. Preferi já equalizar os bumbos e caixas, fazer um panorama pros hats carem se
mexendo de um ouvido pro outro, pre ro ir deixando cada partezinha o mais pronta o possível,
sinto que mantenho meu interesse por mais tempo assim. Foi essa sequência de percussão e baixo
que formou o vídeo que mencionei anteriormente, que postei no meu Twitter.
Nessa música, iniciei o uso de um plug-in que veio a ser de grande utilidade nas outras
músicas do EP, que se chama Vocalsynth, da desenvolvedora iZotope. O software sobrepõe sons
sintetizados que aproximam a voz humana e que seguem a melodia do áudio que ele está
processando. No caso dessa música, eu o usei para o efeito de vocoder no refrão e para dobrar as
22
Classi cado como Efeito MIDI no Live, o arpejador detecta as notas sendo transmitidas por MIDI e as executa em
um padrão rítmico determinado pela/pelo usuária/usuário.
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vozes na estrofe inicial. O software pode receber informações MIDI, que indicam quais alturas
sintetizar, caso se queira uma melodia diferente do que a gravação de voz realiza.
fig 5. Plugin Vocalsynth. Acima, os diferentes tipos de sintetizadores que podem ser selecionados. No
centro, um mixer, onde a intensidade de cada sintetizador pode ser ajustada. Abaixo, uma lista de
efeitos que podem ser adicionados.
A essa altura, a música era toda em 90 BPM, e eu encontrava bastante di culdade para
escrever outras seções nela. Poucos dias depois (04/04), escrevi no dário:
“Joguei tudo pro alto! menos o refrão com o vocoder bonito. Aumentei o BPM (90 ->
110) e troquei as estrofes, porque ontem tinha escrito e gravado uma letra que não resistiu ao
travesseiro. Inventei uma melodia que é meio aguda demais para ser fácil, mas persisto.“
(04/04)
Ressalto que essa tomada de decisão é amplamente facilitada pelo ambiente digital, por ser
executada apenas com um clique do mouse. Ao mesmo tempo, esse processo de “acelerar” a música,
distorceu alguns clipes de voz, principalmente, o que resultou na gravação de tomadas novas. Os
clipes MIDI, por se tratarem apenas de informação digital, e não áudio, permaneceram com a
reprodução sem marcas ou distorções.
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Foi nesse momento, também, em que eu introduzi samples da própria Venus, retirados do
documentário Paris Is Burning. Os samples aparecem antes da primeira estrofe, antes do refrão, e
na seção que segue o refrão. A equalização e mixagem deles foi difícil, visto que as cenas que
selecionei possuem bastantes marcas tecnográ cas, por serem gravadas de longe com sons da rua ao
fundo, o que di culta a compreensão do texto que ela fala, mas mesmo assim, o efeito de ter uma
outra voz junto da música me agradou bastante. Os textos que selecionei são bem agressivos, mas
busquei falas que possuíssem relação com o texto da música. Aqui seguem as traduções das falas dos
samples:
0:34 - “Toque nessa pele!”
1:15 - “Seu viadinho de merda, você é uma bicha, eu devia lhe matar”
2:02 - “Aterrorizada!”
2:05 - “Eu sou pequena…. O cabelo loiro…. Ele me tocou lá embaixo, ele sentiu aquilo, ele viu
aquilo, e ele se apavorou e disse: seu viadinho de merda, você é uma bicha, eu devia lhe matar”
2:30 - “Eu pulei pela janela”
3:20 - mesma sequênca de 2:05.
As três seções que seguem o refrão foram compostas depois da estrofe inicial, a primeira
delas sendo a instrumental imediatamente após o refrão.
“Fiz a seção “instrumental”, explorando mais samples da própria Venus, e inventei uma
modulação” (08/04)
Além de samples da voz falada, usei samples meus de outras seções da música também, como as
vozes do início. As melodias dos sintetizadores foram improvisadas. A parte que segue é um coro a
capella, cujo texto é igual ao do refrão, porém já um tom acima (Si menor).
“Gravei um coro de vozes a capella. O processo foi no improviso. Gravei uma voz -> nova track
-> gravei outra voz, com texto ou vocalize improvisado -> nova track etc…
Me impressionei com o quanto foi rápido, e até fácil. Em uns 10min devo ter gravado tudo.
Passei o melodyne e brinquei com reverbs e delays.” (08/ 04)
Uma última volta do refrão com todo o instrumental é o que termina a música. Com a adição dos
samples da voz falada e de um efeito de beat repeat23 que entra no nal, o que pra mim dava a
impressão que tudo estava desmoronando e entrando em caos, e que eu gostava muito. Esse efeito
de repetições curtas nos instrumentos gerou um padrão que é o que origina a próxima música que
eu escrevi, “Invencível”.
Quando comecei a elaborar como tocaria Venus ao vivo, ocorreu que talvez o início só com
a voz com glitch não seria algo que me agradasse, por eu não saber como que o plugin de beat repeat
23
Efeito que gera repetições de um fragmento de áudio em uma frequência determinada, podendo essa repetição se
mesclar ao áudio, ouvindo-se o restante do áudio junto da repetição, ou “cortar” o sinal original, deixando soar apenas
as repetições. (Manual do fabricante do software)
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funcionaria ao vivo, ou por eu não car tão confortável cantando ao vivo sem nenhum instrumento
no arranjo. Pensei, então, em fazer um arranjo com instrumentos nessa primeira seção, com um
baixo synth e um bumbo. O timbre e a linha de baixo, com as notas repetidas no ritmo da
semicolcheia, são os mesmos que estão no refrão, porém mais saturado com o efeito de distorção do
Serum. Optei por incluir as mesmas paradas no instrumental que tem no refrão, no m de cada
frase do texto. Gostei bastante de como cou o efeito de sair de uma "introdução" do show mais
calma, mais vazia, e desembocar em algo contrastante e distorcido.
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2.4 Invencível
Compus Invencível logo após ter terminado Venus, sem ter a intenção que elas teriam
intertextualidade entre si, por meio do sample que conecta ambas, mas logo cou claro para mim
que elas teriam essa comunicação. Escrevi, nos dias 17 e 19 de abril no diário:
“Tive um tempo livre hoje na rua. fui tentar escrever alguma letra/poesia. é incrível o quanto
é difícil, pra mim, não partir de nenhuma música antes. Igual, mapeando um território
lírico novo”. -17/04, Rua
“Comecei a fazer em som o que tentei escrever em poesia. nos últimos dias me ocorreu:
“Invencível”. Quero cantar essa palavra. Rabisquei várias micro-poesias ao redor disso. Vi que
era pelo som que viria [algum resultado sonoro]. Pelo visto, vai ser uma que emenda com
Venus.
fig 6. Excerto do diário de bordo, rascunho da estrutura de “Invencível”
Quero barulho!! Bumbos fortes e vozes fortes.” (19/04)
Pelo início, decidi encarar o sample formado pela repetição do m de “Venus” como
de nidor de alguns parâmetros, como andamento e centro tonal. O sample, em “Venus”, estava em
um ritmo de semicolcheias a 110 bpm, contudo, decidi explorar pensar nesse ritmo como tercinas a
140 bpm em Invencível, o que levou a decisão de já iniciar a música com o bumbo, procurando
explorar essa mudança de subdivisão.
A partir dessa primeira “região”, com a cama rítmico-harmônica do sample e de elementos
percussivos, iniciei a investigar o texto. Por mais que eu soubesse que queria a sonoridade de
“invencível”, eu não havia achado um jeito de fazer uma letra ao redor disso. Experimentei também
com uma combinação de efeitos em um dos sends que não havia experimentado antes, e que li num
fórum da internet. A combinação consistia em um efeito de reverb24, seguido por um saturador25,
24
Efeito que simula espaços (salas pequenas, câmaras de re exão etc) onde o som soaria. (Manual do fabricante do
software)
25
Efeito de modelação de onda, no qual ao sinal de áudio é adicionado ruído. (Manual do fabricante do software)
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dois grain delays26 e um compressor27. Essa cadeia gera repetições do som em alturas diferentes, mas
com alterações bem marcante no timbre também. Os instrumentos que enviei para esse send foram:
o Hihat, o sintetizador FM, um sintetizador com arpejador (muito presente em 1:56), e um sample
de voz do início da música (o suspiro em 0:33).
fig 7. Uma das cadeias de efeito de send em “Invencível”
Outro elemento que explorei e que, para mim, vem com uma carga referencial grande são os
ataques de sopros de metal que pontuam as frases. Pensei em algumas faixas da Björk, do disco Post
(1995), e como ela insere elementos de instrumentos orquestrais nos arranjos dela. Aqui, usei duas
camadas de sopros, uma com uma equalização que privilegia os graves, e outra que privilegia os
agudos. A construção da melodia também partiu, conscientemente de uma referência que estava
nos meus ouvidos na época, a faixa “Fear the Future”, da artista estadunidense St. Vincent (Disco
Masseduction de 2018). Na escuta dessa canção, a melodia e a combinação de muitos timbres, quase
que numa estrutura caótica, agradaram-me bastante, e quis tentar experimentar uma estrutura
parecida.
A seção seguinte, sem letra, é preenchida por um sintetizador grave, feito no software
Serum. Sobre a seção, escrevi no diário o seguinte:
“Ontem, segui jogando ideias em Invencível. Tentei construir uma parte que constrói tensão, um
pré-refrão. Não z um desses nas outras e queria tentar.” (23/04)
Foquei, então, em fazer essa parte que iniciasse com poucos elementos, mas que fosse aumentando
em intensidade de volume e de informação. Além do baixo, um sintetizador agudo, percussões com
delay, clipes de voz invertidos (tomadas de voz que eu havia feito e não utilizado em outras seções) e
um sintetizador com ataque lento que entra logo no m dessa parte, dando uma última “in ada”
no arranjo, antes de iniciar a próxima seção. Além do Serum, os sintetizadores usados aqui são do
próprio Live, chamado Operator28.
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Um efeito semelhante ao delay (gerador de repetições no som), mas que possui parâmetros que também modulam
transposições de altura, adição de frequências e mudanças aleatórias no tempo de repetição na amostra de áudio. Nesse
caso, um deles possuía um ajuste de transposição para -12 semitons e outro para +12. (Manual do fabricante do
software)
27
Efeito que visa à uniformização de dinâmica do áudio, automaticamente reduzindo a intensidade de sons que
ultrapassam um valor de limite (“threshold”). Uma explicação maior e mais minuciosa sobre compressão está presente
em HUBER e RUNSTEIN 2014.
28
Operator é descrito pelo fabricante como um sintetizador FM fácil de usar e versátil. Resumidamente, na síntese FM,
trabalha-se com geradores de sinal (ou “operadores”), que podem ser “portadores” (carriers) ou “moduladores”
(modulators), no qual esse segundo atua sobre o primeiro, modulando suas características sonoras. O Operator, no Live,
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A parte que segue adiciona vários timbres novos à música, aspecto que me chamou atenção
na escrita do processo.
“Emprestei a caixa que usei em Venus pra Invencível. Já que no EP as duas vão ser
emendadas, acho legal misturar esses timbres. Usei meu Volca FM também, para fazer uma
cama harmônica no refrão. APAIXONADA pelo timbre!! Ele tem uns glitches de bateria
fraca e um LFO muito interessante. Usei o preset “distorted” e mexi um pouco no ataque.” -
(24/04)
O Volca FM citado aqui se refere a um sintetizador FM e sequenciador da fabricante Korg. A linha
de sequenciadores Volca é um conjunto de pequenos instrumentos, que podem ser conectados
entre si para funcionarem em sincronia. Aqui, usei apenas o Volca FM, cujos timbres, de acordo
com o fabricante, emulam os dos sintetizadores FM da década de 1980.
Outro timbre de sintetizador que uso na música (o mesmo mencionado no send com os
delays), presente no primeiro plano em 1:53 foi apelidado por mim, no projeto, de “moedinha”. O
timbre me remetia aos efeitos sonoros da série de videogames Mario Brothers, quando o
personagem ganhava uma moeda. Para Chaves (2012), essa escolha de diálogo com diferentes
repertórios é chamada, dentro da tomada de decisão composicional, de uma escolha ideológica.
Evidentemente, o repertório do restante do trabalho não se trata de uma trilha sonora de
videogame, contudo, busquei nessa referência do meu passado uma opção por dialogar com um
repertório com o qual tenho familiaridade. Vejo, nessa música, um diálogo entre essas referências
passadas, como os videogames, com experiências e práticas que vim a ter na graduação, como a
experimentação com os sintetizadores, e a exploração de timbres ruidosos e distorcidos.
2.5 Torpe
Torpe tem uma parte de seu corpo no início do ano, quando z um planejamento do EP, e
outra parte em uma experiência que eu não sabia que teria quando iniciei esse processo: a de
compor uma trilha para peça de teatro. Eu recebi o convite de Gustavo Cavalheiro, colega da
Música Popular, para integrar, junto dele, a peça Ao Filho Torpe, que foi produzida no DAD
(Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS), e que é o Estágio de Atuação de Miguel Ribeiro,
aluno da instituição.
A peça tem, resumidamente, como objeto central de pesquisa a violência, explorando
diferentes manifestações e expressões da agressividade em três eixos: A violência social, a violência
sacra e o “Eu violento”. A proposta é de uma criação coletiva de cenas, textos e trilha sonora. Junto
de Gustavo, integrei os ensaios da peça, criando/improvisando em momentos de alongamento,
exercícios e improviso do elenco. As imersões nos ensaios, que ocorreram, em média, três vezes por
semana, marcaram-me tanto que quis criar um momento no disco dedicado a isso.
possui 4 osciladores, podendo estabelecer essas relações de portadores e moduladores entre si. (Manual do fabricante
do software)
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Digo que uma parte de Torpe já existia no início do ano pois sabia que queria uma faixa
“não cantada” integrando o disco, e queria também uma faixa composta inteiramente por
improvisos, prática que tive amplo contato durante a graduação, tanto na Medula quanto nas
Elatrônicas, por exemplo. Nesse caso, o objeto sobre o qual improvisei foram falas do elenco que
gravei em um dos ensaios, com meu gravador Zoom H1, e o sintetizador FM da marca Korg
chamado Volca FM, o mesmo que usei em Invencível.
Parti das gravações. Escutei o arquivo longo que tinha gravado (cerca de 10min do gravador
parado no Estúdio 4 do prédio do DAD) e selecionei alguns trechos. Três das falas respondiam a
um estímulo do ensaio (a escrita de uma carta-testamento que partiria das vivências violentas de
cada ator e atriz), e outras três eram parte de um outro diálogo, que respondia a uma pergunta feita
por mim: “No que tu é bom/boa?”. Nesse segundo caso, mesmo esse assunto estando presente, o
diálogo não era uma entrevista ou algum outro ambiente muito controlado, o diálogo corria
livremente. As frases que selecionei foram (em ordem de aparição na música):
0:08 e 0:28 - Miguel Ribeiro: “Eu minto bem.”
0:14 - Gabriela Chaves. “Cada violência é uma parte que se quebra dentro de nós.”
0:34 - Luciana Tondo: “Pode ser muito bom.”
0:40 - Cissa Madalozzo: “Não quero ser ele, e luto todos os dias para não ser.”
0:50 - Luiz Manuel: “Meu bolo de laranja é maravilhoso.”
1:08 - Vicente Vargas: “Fui eu que lustrei os trilhos e pus o carvão na máquina.”
Antes de decidir como distribuir as falas no decorrer de música, e como/se processá-las,
escolhi criar a base instrumental da música, que nesse caso é composta pelo Volca FM (instrumento
que levei para quase todos os ensaios) e por samples da minha voz, provenientes de uma peça minha
de 2017, chamada “sussurro”.
Comecei gravando uma linha do sintetizador no preset “Glasspad”, um timbre com ataque
lento e decaimento longo. Gravei quase sempre uma nota por vez, privilegiando movimentos de
ritmo lento, e saltos melódicos pequenos. Após a gravação, anotei no Live que nota que eu estava
tocando a cada momento, pois queria gravar as outras linhas sem ouvir esta. Improvisei outras 4,
procurando diversi car as regiões e oitavas onde tocava, e olhando no programa que nota que a
primeira linha estava tocando. Dessa forma, meu único referencial era a primeira gravação. Busquei
aqui relacionar os estudos e re exões de Rogério Costa acerca da memória na improvisação. O
autor relaciona os recursos utilizados na improvisação com a memória curta e a longa. A curta seria
uma reconstrução e reestruturação do tempo presente, agindo sobre ele e moldando as decisões e
gestos da improvisação, enquanto a longa dialoga com as referências de estilo, de gênero e os
conhecimentos técnicos de quem improvisa (COSTA, 2018 p. 8). A minha memória, aqui, estava
condicionada não pelo som de “outros/as improvisadores/as”, mas sim das anotações de notas que
eu havia feito no Live.
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fig. Sintetizador Korg Volca FM, no preset Glasspad, utilizado em Torpe.
A distribuição dos samples das vozes foi feita de maneira improvisada também, a m de
manter uma uniformidade ao longo da faixa. Às vozes, com exceção ao sample de Luiz, foi
adicionado um delay, porém com con gurações diferentes, em termos de duração e panorama. A
voz de Luciana, por exemplo, está distribuída de forma bem ampla no panorama Direita - Esquerda,
enquanto a de Vicente, por exemplo, não possui este movimento. Todos os samples estão sendo
enviados a um canal de Reverb, com um decaimento de 10 segundos e uma ênfase maior em
difusões tardias, que aumentam a espacialização do som à medida que ele soa. A escolha de plug-in
de reverb foi a mesma que z nas outras faixas do EP, o Valhalla VintageVerb.
fig 9. Plug-in Valhalla Vintage Verb com a configuração utilizada em Torpe.
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A essas camadas de vozes, adicionei, em um volume reduzido, gravações da minha voz que
havia feito em 2017, para uma música chamada “sussuro”. A música foi parte de um projeto dentro
da Medula, na qual cada integrante iria estreiar uma música na Sala dos Sons. Na época, eu passava
por um momento inicial de exploração da voz com os processamentos digitais, e queria desenvolver
uma peça que re etisse isso, então gravei várias tomadas de voz, em alturas e registros bem diferntes,
e por meio de delays e alguns cortes, os loops de cada faixa era imperceptível, formando uma grande
textura de vozes que não pareceria ter m. Escolhi três dessas vozes antigas para preencher, de certa
forma, a música, tentando combinar essas alturas com as que eu havia tocado no sintetizador.
Os materiais que formam Torpe englobam uma grande parte do meu tempo na graduação,
com vozes que gravei em 2017, um sintetizador que adquiri em 2018 e uma experiência com um
grupo de teatro que conheci em 2019. Mesmo sendo a faixa mais curta do EP, noto que possui
diversas referências que só foram sendo agregadas a mim ao longo desses anos que citei. Os
movimentos contrastantes de gravar algo novo e buscar em materiais antigos, o uso da voz que tem
altura de nida e a voz que não tem, a voz com texto e a voz sem, com ritmo ou sem (ou com o ritmo
gerado a partir de um processamento de efeitos). Torpe é fronteira borrada, é caminhar no
entre-lugar. É o meio do EP que tentei fazer ser um respiro (“respiro” inclusive é o nome do arquivo
do projeto) mas que foi introspecção, descoberta e investigação.
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também. O efeito estava defasado entre o lado direito e o esquerdo do panorama, parecia que os
bumbos "pulavam" de um ouvido pro outro, e isso me agradou. Quando apresentei a canção pela
primeira vez, em março, não toquei guitarra ao vivo, optei por deixar somente a trilha com os
ataques na segunda estrofe, porém, em Anatômica, toco guitarra na música toda, dobrando a
melodia da voz no instrumento. Desde a primeira vez que toquei, subi a tonalidade da música
também, pois havia uma frase que estava bem grave e era um pouco desconfortável para mim.
A incorporação de um cover ao repertório do show me causou dúvida em um primeiro
momento, inclusive conversei com Isabel a respeito disso em um determinado momento, mas no
nal optei pela inclusão da canção no repertório. Olhando esse recorte de minha trajetória que
traço aqui no trabalho, é nítido que tanto antes da universidade quanto durante, uma grande parte
da minha prática envolvia re-arranjar canções que eu gostava, de outras compositoras e
compositores.
2.7 Degradê
Não sabia direito o que eu pretendia quando disse para Luciana e Ricardo (iluminadora e
videógrafo da performance), dois dias antes da performance, que faria um segundo momento de
improviso, para o qual havia feito um vídeo com um conceito bem simples: no começo, cores claras
e pouco saturadas, que ao longo de 4 minutos e meio, se tornam intensas, saturadas e densas. Eu
havia de fato feito esse vídeo, mas não tinha uma música para ele, então aceitei que seria um
momento de improviso. Não sabia com o que estaria improvisando, mas a julgar pela posição da
música no setlist, guitarra e voz foram meus companheiros.
"Degradê foi uma escolha estranha. Era uma ideia de vídeo que eu tinha, mas não tinha música para
acompanhar, "um improviso", isso que disse para Lu e Ric quando passei o Setlist. "Lu, pega a luz azul
e faz em 4min ela virar densa, vermelha, agressiva". Acabou que não usei vídeo, só luz. Um improviso
que nunca tinha feito antes. Logo me saltou aos ouvidos uma linha que toquei. Fá Mi Mib, ou Mib
Ré Reb, porque a guitarra estava um tom abaixo. Imitei na voz, loopei, harmonizei. Textura.
Contraste. E o azul logo era vermelho. Junto dele, o nervosismo virava vontade." (08/11)
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Eu comecei esse processo pela procura de materiais em coisas que eu já havia composto e não
terminado, parcialmente porque foi um período no qual eu estava doente e sem voz. Essa
impossibilidade de iniciar o processo pelo canto foi um obstáculo bem grande que confrontei nesse
processo, e tive que contornar das maneiras que pude.
Ressalto que esse material que busquei em “coisinha” não veio a ser Miragem de Vidro, mas
foi um período de tentativa dentro de sua criação. Também tentei outra aproximação, que envolvia
uma poesia que havia escrito umas semanas antes, junto de beats picotados que havia improvisado
nos pads da controladora MIDI. Essas duas ideias acabaram não sendo esta canção, mas podem vir a
ser outras coisas. Miragem de Vidro, em sua forma mais reconhecível, começa dia 31 de maio:
“Comecei (mais) uma ideia, mas confesso que essa é a que mais me mexeu dessas últimas.
Peguei a guitarra e fiz uns padrões dedilhados com uns acordes abertos, um dedo no grave e outros nos
agudos. Pensei em dois ambientes: um escuro, [em tom] menor, mais instável, e outro [em tom] maior.
Busquei melodias na voz improvisando. Em algum momento, cantei na baboseira a palavra ‘reflexo’.
Há dias eu vinha pensando em um texto que escrevi na Medula em abril do ano passado chamado
‘Espelho’. Busquei re-interpretar ele, que era poesia em verso livre, em uma canção. Escrevi uma estrofe
e gravei.
Me esqueci de falar antes! Só gostei mesmo da guitarra passando pelo FreqEcho, da Valhalla, que dá
um delay sincopado muito chique. Aí sim fiquei feliz.” (31/05)
fig 10. Efeito de Delay utilizado nas guitarras de “Miragem de Vidro”
Esse esqueleto que eu previa acabou se concretizando, e acabei buscando em diversos
momentos o que havia escrito um ano antes, na Medula. O texto em questão, “Espelho”, foi parte
de uma tarefa proposta pelo grupo, na qual cada pessoa escolheria uma palavra, e, sobre ela,
escreveria dois textos, um literal, e outro com maiores liberdade poéticas. Colo aqui o meu, de abril
de 2018:
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Espelho (01)
Re ete os raios de luz. Pode ser plano, curvo. Dali eu saio
É onde a gente se olha. No espelho plano, se que nem tu continua andando depois de
tu olha pra alguém, esse alguém pode te olhar encontrar alguém na rua
também. como bebo visto digito arrumo limpo evito
O espelho é vaidade quando não é decepção. evito outros encontros com a gura esquisita
Existem espelhos há 8 mil anos. Existem que me observa
espelhos, de outras formas, desde que existem a gura nao emite som mas fala alto
pessoas. a gura que imita sem questionar
Os designers de interiores dizem que eles
abrem as salas. Não sei, nunca adentrei. ela é simpática, quando não é a ita
Os físicos a rmam que todo espelho prismática estática
apresenta deformações na imagem. é resenha de embalagem, crítica de cinema,
Transgêneros concordam. coluna de fofoca,
horóscopo, biscoito da sorte
Espelho (02) Saio
Eu olho e depois me olho me olhando Caminho
Tem uma pessoa dentro do vidro. Cresce um Ouço
bigode no rosto dela “não fez o bigode hoje?”
Tem sinais de uma noite mal dormida na
cara. 05042018
pode ser uma bem dormida também
Tem um sorriso de dentes que eu juro que
parecem mais amarelos do que ontem
Ainda doente, só pude gravar vozes um dia antes de apresentar a música na aula. Pela
primeira vez, então, gravei e compus todas as partes instrumentais antes de escrever o restante da
letra e da melodia. A guitarra parecia ser o que balizava as ideias ao longo desse processo. Depois
dela, a seção rítmica e o baixo:
“Gravei um baixo que gostei bastante. Não tava afim de fazer um beat intrincado, então
gravei um loop e coloquei um beat repeat com ‘Variation’ bem alto, assim ele vai agindo em intervalos
de tempo irregulares.” (08/06)
Um elemento do arranjo que remonta a algumas das primeiras experiências que tive com
produção musical é o de um sample de prato de bateria presente ao longo de quase toda a música
(mais notavelmente no início, junto da guitarra). Minha estratégia para adicionar esse elemento foi
a de estender o sample no tempo (“esticar”), para que ele adquira uma característica mais textural
do que rítmica. A primeira vez que vi isso foi na residência artística da Medula em 2016, na Galeria
La Photo. Lá, conversei com Isabel Nogueira sobre gravações de campo e paisagem sonora, e ela me
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comentou que isso era uma técnica que ela empregava eventualmente, para manipular os sons
gravados.
O outro elemento recorrente do arranjo é um sintetizador com um LFO29 que surge, na
maioria das vezes, entre versos da segunda metade da música. A ideia de pontuar esses momentos
com um timbre que fosse de sintetizador, mas mesmo assim rítmico, veio de uma canção da artista
FKA Twigs, que, na canção Two Weeks (2014), utiliza como elemento rítmico muito presente no
arranjo sintetizadores com LFOs.
Com todo o arranjo já gravado, dia 11 de junho gravei as versões de nitivas das vozes.
Contudo, a proposta de interpretação que eu havia pensado (“leve e aerada”, como descrevi no
diário), não seria possível no tom no qual eu havia composto (Sol menor). Então, selecionei todos
os clipes de áudio no Live e utilizei a ferramenta de transpor para um tom abaixo (Fá menor). Eu
esperava que o áudio se distorcesse de alguma forma, pelo processamento digital, mas o resultado
me agradou bastante, e as versões de nitivas dos instrumentos acabaram sendo essas. Enfatizei na
escrita do diário que queria que as gravações de vozes priorizassem o caráter da música, pois a
a nação poderia ser facilmente ajustada posteriormente com plug-ins.
Fiz gravações da estrutura da música inteira, parando na seção nal (3’56”). A ideia que tive
para o m foi o de buscar replicar as experiências de improvisação vocal que tive na música
experimental. Com vocalizes cheios de reverbs e delays, como fazia na Medula e Elatrônicas. Gravei
5 passadas dessa estrutura nal, improvisando, e selecionei alguns trechos, mixei de acordo com o
que queria que soasse mais evidente. Experimentei também com ruídos na voz, e não só com
vocalizes. Em uma das passadas, utilizei o efeito de flanger30 do pedal de voz Boss VE-20.
Quando comecei a preparar a canção para executar ao vivo, pensei em jeitos de criar uma
nova introdução, visto que a versão do EP não apresenta nenhuma marcação de tempo facilmente
discernível para mim, o que me dava di culdades para começar a tocar junto da trilha. Revisitei o
projeto da mix original e vi que havia uma linha de baixo em uma das partes da música que estava
sem volume. Não me lembro o porquê de eu ter silenciado essa parte, mas acabei aproveitando para
criar um pequeno prelúdio. Utilizei uma parte dessa faixa que gravei para a música e gravei uma
nova, criando, então, uma introdução, só com baixo, e uma linha que marca as trocas de acorde da
primeira estrofe.
Incorporei a essa linha do início um efeito de delay com mudança de frequência, causando
que a todas as repetições fosse adicionado um determinado valor que altera sua altura e timbre. Na
execução na performance, improviso alterando esses valores, por meio de um knob na controladora
MIDI. O trecho de baixo ca em loop, e quando estou pronta para iniciar a música de fato, disparo a
próxima sessão do projeto, que corresponde a todas as outras partes da canção.
Como a instrumentação nas partes iniciais da música é escassa, a execução em sincronia
com a trilha se prova um desa o em alguns momentos. Por mais que eu cante e toque guitarra ao
vivo, optei por fazer a primeira metade (antes da entrada da percussão que segue até o m) com
29
Do inglês Low Frequency Oscillator (oscilador de baixa frequência), funciona como um controlador de quaisquer
parâmetros de um sintetizador, por exemplo. Nesse caso, o LFO fazia o volume do sintetizador oscilar, dando o efeito
de que o som “ligava” e “desligava” alternando entre o inaudível e o volume da mix.
30
Efeito que, por meio de delays muito curtos, distorce o som. O Flanger que utilizei aqui opera com dois LFOs que
causam os delays concomitantemente, podendo ser controlados individualmente.
48
trilha, pois há alguns efeitos que gosto bastante (como o synth LFO). O que me guia é o ritmo do
próprio delay da guitarra, que na versão ao vivo está passando pelo mesmo efeito de delay de
quando gravei, e os ataques de baixo na primeira estrofe. Tenho a opção também, de adicionar à
trilha a guitarra original da gravação, em um volume mais baixo do que a toco ao vivo, assim posso
ouvir quando as duas linhas se afastam e tentar compensar.
2.9 Androgênia
Androgênia foi a primeira música que compus consciente de que faria parte de um processo
maior de composições e performances. Seu processo começou na última semana de janeiro, e foi
durante essa fase inicial da composição que decidi que o que iniciaria ali seria uma coletânea de
músicas. Em 17 de fevereiro, escrevi em um papel o que seria um “planejamento” do EP, com datas,
referências musicais e ideias acerca do processo. Entre elas, a ideia de compor uma música por mês,
resultando em 5 no meio do ano (fevereiro, março, abril, maio, junho). Um fator importante na
escrita sobre essa canção é o fato de que eu não havia iniciado os registros no diário de campo ainda,
deixando-me dependente da memória e de versões anteriores do arquivo do projeto para escrever. O
arquivo que abriga essa música se chama “Segura”, presumo que por eu ainda não ter o nome da
música quando comecei a compor. Talvez re ita um sentimento que sentia, ou que gostaria de
sentir.
Quando iniciei o processo dessa música, não sabia a sua direção, mas garimpava os timbres
que sintetizadores que o Live dispunha e me deparei com um chamado “Marina”. O nome me
remeteu a uma artista que eu gosto muito, que na época usava o nome Marina and the Diamonds.
Busquei nas canções de Marina elementos estéticos que gostaria de aplicar aqui, que, para mim,
seria algo dançante, com arranjo protagonizado por sintetizadores, batidas e a voz, além de seções
bem de nidas na estrutura da canção.
A introdução em 5/4 foi um resultado do arpejador que utilizei no acorde do início. O
arpejador disparava no ritmo de colcheias e repetia o acorde uma vez uma oitava acima, resultando
em 10 notas no total. Gostei da ideia de fazer uma seção em 5/4, e outras em 4/4 (como era mais
comum na minha prática). A batida que acompanha esse arpejo não foi tocada por mim, mas
programada diretamente no piano roll do Live, diferentemente de outros processos que escreverei
aqui, e todos os sons percussivos se encontram no mesmo conjunto de bateria, chamado Quark, e
que acompanha o software.
Não sabendo direito como seguir a seção em 5, tentei compor alguma parte que não fosse
imediatamente depois dessa, e acabei escrevendo o que veio a ser a última parte da canção. A
sequência de acordes surgiu de um improviso que z no piano que tenho em casa. Não tenho
muita uência no instrumento, então me lembro de tentar mover o mínimo de dedos o possível,
gerando esse padrão de acordes onde um dedo se mexe de cada vez. Queria muita energia em todos
os instrumentos do arranjo nessa parte. Um dos recursos que utilizei aqui, especialmente quando
mixei os elementos do arranjo, foi o de compressão sidechain. Sidechain é um termo usado na
produção musical quando um sinal de áudio age como um controle em um efeito aplicado a outro
49
sinal (HUBER; RUNSTEIN, 2014). Nesse caso, um dos bumbos graves está agindo sobre a
compressão de vários outros canais, fazendo com que quando ele soa, todos esses outros áudios
soem mais fracos, “abrindo o caminho” na mixagem.
fig 11. Exemplo de compressão sidechain em um dos canais de sintetizadores de Androgênia. Neste
exemplo, o bumbo (“kick noise”) atua sobre o sintetizador “Marina”, do plugin Serum. Cada ataque
do bumbo interfere no volume do sintetizador.
Com essas duas seções estabelecidas, eu reconhecia que tinha um início e um m, e me
restava traçar o caminho entre os dois. O resto do processo de composição foi “linear”, nesse
sentido: a ordem na qual se ouve, é a ordem na qual eu compus/realizei as decisões que lá estão.
Uma das coisas que tentei manter em mente foi a divisão entre as seções, procurando elementos que
fossem únicos de cada uma, como a diminuição da seção de percussão, ou as células rítmicas mais
marcadas, a exploração de dinâmicas/silêncios, etc.
A escrita do texto da canção veio vinculada, para mim, à ideia de relacionar o corpo trans à
gura do androide, como um corpo que é modi cado/criado arti cialmente. Há momentos, no
texto, de uma con ança e uma certeza muito grande (“De perfeita genética”), contrapostos a
momentos de uma autocrítica muito forte (“Confusão estética” ), que relaciono com o sentimento
de disforia (“Esses braços, esses ombros, essa pele não é minha”). A menção, na última estrofe, da
“carne hormonizada” seria essa união entre a modi cação corporal presente nos tratamentos de
transição de gênero com a construção do robô, do androide.
Em 16/05, após ter nalizado “Invencível”, retornei a Androgênia, buscando ver o que me
agradava ainda. Escrevi:
“O beat me parecia muito “reto”, não tinha o movimento que eu queria. Refiz todos os beats
da música.
● Troquei a caixa por uma mais “estourada”, com um saturador;
● Mudei as claves dos agogôs para serem menos repetitivas” (16/05)
Em termos de gravação e processamento da voz, várias tentativas foram feitas por mim de
chegar em um resultado que me remetesse à “voz androide” que dialogasse com o texto. Uma
primeira versão da música, nalizada em 6 de março, contava com 3 camadas de voz: Uma sem
50
efeitos e outras duas que combinavam efeitos de phaser e chorus. O resultado aqui ainda não me
agradava por completo, e audições posteriores zeram eu perceber que as gravações de voz possuíam
vários artefatos e glitches que eu não desejava, e por mais que eu experimentasse, ao longo dos
meses, outras cadeias de efeitos, eu notava que o material das gravações em si era o que não me
agradava. A gravação que está presente na versão nal é do dia 23 de junho. Fiz uso de plugins
presentes nas outras músicas, como o Melodyne, para a nação, e o Vocalsynth, para efeitos na voz,
mas o maior uso de faixas simultâneas de voz no EP foi nessa canção, o que gerou timbres que me
agradaram bastante. Ao todo, utilizei 9 pistas diferentes para as vozes.
A seção instrumental que termina a canção é composta de fragmentos MIDI de diversas
outras partes da música. Ao longo do processo da composição de cada seção, eu arrastava clipes não
utilizados ou repetições que excediam o tempo que eu queria “para longe”, e acabei criando um
pequeno cemitério de segmentos musicais. Em uma das sessões de composição, não pausei o
playback e o Live começou a tocar essas várias peças que antes só existiam separadas, juntas,
formando um último momento da música.
51
3. Vídeos: Produções e Projeções
Enquanto eu não ouço sua voz
não sei dizer se é um homem ou uma mulher
(Maria Beraldo)
Tento revirar a cabeça pra me lembrar como que me envolvi, inicialmente, com a produção
de vídeo como meio criativo. A resposta que tenho até agora é que foi nos anos nais do ensino
fundamental e do ensino médio, então entre 2012 e 2015. Era comum que os trabalhos de literatura
da minha escola fossem centrados em alguma produção criativa, algum jeito de contar a história do
livro que era tópico da aula sem ser pelas palavras no papel. Eu e meus amigos tomávamos isso
como estímulo para nossas produções mirabolantes que costumavam exceder o tempo limite
designado pelos professores.
Penso que a prática do vídeo nesses momentos era similar à da música, no sentido de eu ser
a encarregada da edição e pós-produção, e acabar me ancorando na internet como fonte de tutoriais
e resolução de problemas, muito como as cifras que usava para tocar as músicas que eu gostava.
Íamos para o jardim da casa, para a sala de estar, o quarto grande, com a câmera (a mesma que uso
em alguns vídeos deste trabalho também) e criávamos as imagens que depois viravam nossas
recontagens de Machado de Assis. Nunca encarei esses momentos, que para mim pareciam ser mais
lúdicos do que qualquer coisa, como práticas que fomentassem a uma sede criativa minha, mas
pensando bem, nem com a música achei que seria assim.
A criação de vídeos retornou na faculdade, a partir do meu segundo semestre, na disciplina
de Prática Musical Coletiva 2 (na turma ministrada pela professora Isabel Nogueira), quando a
professora sugeriu que apresentássemos, junto a uma das músicas do repertório que criamos, um
vídeo. Respondemos com dúvida àquela sugestão, a nal, a linguagem com a qual estávamos
trabalhando ali "não era essa", como se parecesse algo tão distante e impenetrável que teríamos que
nos debruçar apenas sobre essa criação. Isabel sugeriu que gravássemos coisas que já estavam
presentes nos nossos dias, o caminho até em casa, o quarto que dormíamos, a sala onde
trabalhávamos, gestos que fazíamos todos os dias. Eu me ofereci para montar esses arquivos, e
reproduzimos o vídeo junto de uma das músicas na nossa banca nal.
Paralelo a isso, eu estava criando familiaridade com o coletivo Medula, durante a ocupação
que o grupo fez na Galeria La Photo, no nal da qual, os/as integrantes apresentaram seus trabalhos
desenvolvidos no espaço. Uma das pessoas, Chico Machado, professor do Departamento de Artes
Dramáticas da UFRGS, possuía um trabalho que lançava mão do vídeo como veículo de expressão.
Luciano Zanatta, na mesma ocasião, apresentou um trabalho que manipulava vídeo e som ao vivo,
em conjunto. Talvez as linguagens não precisassem ser tão diferentes assim.
Em shows da Medula que participei, em 2017, e em apresentações do coletivo Elatrônicas,
em 2018, foram as vezes que toquei acompanhada de vídeo-projeções, feitas por outras pessoas
nesses casos. Conversava com as pessoas responsáveis pelos vídeos sobre como era o processo delas,
que programas usavam, como que tentavam estabelecer esse diálogo entre a música que tocávamos
com os vídeos.
52
A decisão de integrar vídeos em Anatômica veio desses encontros que tive com o meio
dentro da Universidade, mas também fora dela. Fui a shows nesse meio tempo que faziam uso deles,
e que me deixaram muito a m de experimentar: É preciso estar a m.
A ferramenta com a qual trabalhei para fazer a maior parte do processo dos vídeos foi o
Adobe Premiere (versão CC 2019). O programa foi desenvolvido para englobar todas as etapas da
edição de vídeo, desde a montagem dos arquivos até os processos de manipulação (de maneira
semelhante ao Live, é o centralizador desse processo, mesmo que em alguns momentos eu recorra a
outros softwares).
fig 12. Visão do Adobe Premiere Pro, onde montei e editei os vídeos. Na maior parte do tempo, utilizei dois
monitores. Acima, a visão do monitor primário, com as informações dos clipes, a linha do tempo onde eles são
53
montados, os controles de efeitos e o explorador de arquivos. Abaixo, a visão do segundo monitor, onde é exibido o
vídeo "resultado", chamado no software de "Program".
Esse é o mesmo software que utilizava na época das vídeos da escola, então retornar a ele não foi um
tanto um aprendizado do zero, mas uma re-lembrança.
Dando uma breve explicação de com uso o software: inicio importando todos os arquivos
de vídeo que tenho gravados para o projeto. No vídeo da imagem de exemplo (o que acompanha
"Invencível"), havia arquivos gravados com uma câmera de vídeo portátil. Após importados, de
maneira semelhante ao meu processo no Live, começo a improvisar. No caso de "Venus", a primeira
experimentação se deu da seguinte forma:
"A ideia que vinha matutando era de uma moldura de mãos. Queria experimentar
com chroma key, para conseguir só as mãos, com transparência. [...] Com dificuldades para
fazer o chroma funcionar, as condições de iluminação ideais são bem difíceis, quanto menos
sombras melhor. Descobri que diminuindo a saturação do vídeo, funciona melhor, e por elas
ficarem com menos cores, devido à diminuição, parece que tão envoltas em uma escuridão,
achei bem dark, bem chique. Vou tentar pegar mais gravações, ontem foi tudo de primeira"
(11/09)
A técnica que menciono aqui, Chroma Key, refere-se a "seletivamente diminuir a opacidade de
alguns pixels, baseado na cor de cada um" ( JAGO, 2019 p. 439). Nesse caso, posicionei a câmera de
frente para um edredom azul que tenho em casa e gravei as mãos ali. Em seguida, no Premiere,
tentei ao máximo eliminar todo o fundo azul, utilizando o efeito de Chroma Key disponibilizado
no programa. Como mencionei no diário, surgiram artefatos e ruídos ao tentar remover o fundo,
por não se tratar de uma iluminação tão plena, como é recomendado para utilizar a técnica, mas o
recurso que encontrei foi diminuir a saturação do vídeo, para que as cores se "uniformizassem", e eu
pudesse mais facilmente seleiconar o tom de azul que removeria todo o fundo.
fig 13 Arquivo de filmagem de Venus, antes da aplicação do Chroma Key
54
A utilização da técnica possibilitou que eu compusesse uma imagem com vários elementos
repetidos e sobrepostos, pois estavam todos sem o fundo, um dos resultados foi o seguinte:
fig 14. Uma das molduras de mãos de Venus
Outro procedimento que utilizei para a criação dos vídeos foi o da manipulação do vídeo
por meio do corrompimento do código do arquivo, o nome comumente dado a essa técnica é
Datamoshing (BROWN e MUTTY, 2012). A referência que tinha em mente quando pensei em
utilizar a técnica era um clipe da banda estadunidense Ok Go, da canção WTF? (2009). Embora o
resultado visual que eu tenha conseguido não é o mesmo, o gatilho que originou a busca por essa
técnica foi o clipe. A partir da vontade que senti, parti a pesquisar tutoriais na internet, e encontrei
um site que se provou uma das maiores fontes a respeito do assunto: datamoshing.com.
"[...] Comecei a explorar datamoshing. A ideia surgiu de algumas referências de vídeos com
glitch (tipo o WTF?! do Ok Go), e uma curiosidade de ver como se fazia. Procurei na internet
e encontrei métodos que se baseiam em abrir o arquivo de vídeo em um editor hex e mudar o
próprio código do arquivo. Os resultados acabam sendo muito na base da tentativa e erro, por
eu não conseguir interpretar todas aquelas letras e números (acho que só máquinas tem esse
privilégio). [...] Surgiram texturas bem legais que penso em usar em alguns momentos. Acho
que pegar essa prática vai ser um mecanismo bem bom pro resto do trabalho" (15/09)
Em minhas pesquisas, encontrei dois possíveis caminhos para executar a técnica: em um, o arquivo
de vídeo é aberto em formato de texto, em um software que consegue manipular as informações
55
brutas do arquivo.31 Quando aberto, o arquivo se mostra em linhas e mais linhas de caracteres que
para meu olho pareciam aleatórios, não haveria como eu desvendar qual parte do vídeo eu
necessariamente estava editando, então o processo se desenvolveu por tentativas diversas, até que
algum resultado me agradasse.
fig 15. Visão do software HexFiend, com um dos vídeos de Invencível aberto e um exemplo do vídeo
modificado por meio da técnica de datamoshing
31
Nessa ocasião, utilizei o software livre HexFiend.
56
O outro procedimento de datamoshing que utilizei é possível por meio do aproveitamento
dos algoritmos de compressão de vídeo comumente usados atualmente. Para diminuir o tamanho
dos arquivos digitais, é comum que os softwares possuam algoritmos que deixem os arquivos mais
compactos, e em vídeo há um tipo especí co de compressão, que classi ca diferentemente os
quadros que formam a imagem em movimento. Existem quadros que possuem a imagem completa
(i-frames) e quadros que possuem apenas a informação de quais pixels mudaram em relação ao
quadro anterior (p-frames) (BROWN and MUTTY, 2012 p.168). Por meio da edição de vídeo em
software, é possível que se mantenha uma mesma imagem estática (um i-frame) e a ela se "some" as
mudanças que ocorreriam na imagem subsequentemente (todas as p-frames que surgem depois
dessa). Visualmente, o processo toma este aspecto:
fig 16. Na imagem mais acima, se tem apenas a imagem (i-frame), na segunda, sobrepõe-se a ela a
informação de movimento do pé dos próximos quadros (p-frames), e na terceira o mesmo, porém com mais
camadas sobrepostas.
57
Acho interessante re etir sobre como esse processo dialoga com o que discuti em alguns
momentos quando falei sobre as composições musicais, no que diz respeito às marcas tecnográ cas.
O resultado desses vídeos só é possível, dessa forma, pela implementação das técnicas de compressão
de arquivo, mas que por sua vez, são subvertidos a m de criar um resultado artístico, que
ressigni ca o vídeo original.
De forma similar a quando se estende um arquivo de áudio, em que o resultado sonoro vira
progressivamente uma textura densa, aqui o vídeo que retrata a caminhada vira, também, uma
textura. A soma de cores do lugar onde gravei, as falhas do asfalto, as ores no chão, os dedos do pé.
O que vira marcas aqui é o meu corpo, corpo que se torna ininteligível no meio do ruído digital do
vídeo, que se perde no mar que se forma. Pouco a pouco, borram-se os territórios, na imagem, do
que é humano e o que é paisagem, ao ponto de que no nal as camadas se somam com os vídeos
anteriores, e na inquietação dos passos da música e dos passos do vídeo, o que se resulta é uma
complexa textura. De forma similar a como me uno à tecnologia para tocar, quis, em Invencível,
fundir-me ao vídeo.
Acho interessante relacionar isso com o que Paul Preciado (PRECIADO, 2018) considera,
acerca da importância da fotogra a na construção das imagens performativas de gênero:
A invenção da fotogra a, no começo do século XIX, antes do surgimento e
aperfeiçoamento das técnicas hormonais e cirúrgicas, assinala uma etapa crucial
para a produção do novo sujeito sexual e de sua verdade visual. Obviamente, este
processo de representação do corpo já havia começado no século XVII com o
desenho anatômico e pornográ co, mas é a fotogra a que vai conferir a essa
produção técnica da materialidade do corpo o valor de realismo visual.
(PRECIADO, 2018 p.121)
Essa construção de imagem é algo que eu trago, inclusive, no texto de uma das canções,
Miragem de Vidro, na qual eu trato justamente de como meu corpo foi construído e do quanto isso
me incomoda, me traz desconforto. Quando comecei a re etir sobre a criação dos vídeos, sabia que
o que correspondesse a essa canção tentaria trazer essa mensagem de alguma forma. O foco que tive
na captura de imagens nesse caso foi o rosto. Posicionei-me bem à frente da câmera, tentando não
enquadrar nada além de mim e um pouco do plano de fundo, a parede de um quarto vazio da
58
minha casa. Pensando que no contexto da performance eu não conseguiria intervir muito no vídeo,
sabia que faria um longo arquivo, que durasse todo o tempo da execução, e então queria captar
material o su ciente de vídeo para eu explorar no Premiere.
fig 17. Uma comparação de uma das imagens capturadas para Miragem de Vidro sem edição
(acima) e uma imagem com as sobreposições e colorizações (abaixo).
Dado o material relativamente similar entre si (a maioria das tomadas que captei continham
poucos gestos meus, alguns muito lentos e outros muito rápidos), explorei diversos recursos dentro
do programa de edição de vídeo. Em um primeiro momento, as sobreposições, recurso que usei
bastante nos outros vídeos também. Empilhei dois vídeos em camadas diferentes, mas deixei apenas
algumas partes do vídeo superior "transparentes", por meio da ferramenta de Máscara. Assim, os
olhos, por exemplo, são duplicados, com seus movimentos fora de sincronia. Utilizei, também,
procedimentos de manipulação da velocidade de reprodução do vídeo, o que faz com que quando
59
estou mais estática, o vídeo pareça inalterado, mas alguns gestos, como piscadas ou o movimento
das mãos, geram uma quebra nisso:
"No vídeo, experimentei acelerar e desacelerar a velocidade de reprodução, brincar com os
efeitos que surgem. Fiz datamosh em um deles também. Na parte final da canção, pensei em
me riscar toda com essas cores [primárias, que utilizei na maquiagem]. Achei que o resultado
do vídeo ficou lindo, mas… esqueci de apertar pra gravar! Perdi essa tentativa, mas terei
outras." (08/10)
Experimentei algumas relações com o arranjo musical também, como as modi cações nas
cores do vídeo simultâneas aos ataques da percussão, a troca de tomadas no início de novas frases do
texto, e a suspensão em preto antes do início do primeiro refrão. No refrão, o procedimento se deu
em duas partes: Na primeira, criei um arranjo de dois vídeos sobrepostos, em loop, de maneira
parecida a como descrevi anteriormente, porém o resultado ainda não me parecia muito legal. O
loop deles parecia muito discernível, e achei que por ser uma seção grande da música, queria um
pouco mais de variação. Juntei, então, esses arquivos e exportei esse trecho do refrão, e a esse
arquivo, apliquei os procedimentos de datamoshing pelo HexFiend, similar a Invencível. Assim, por
mais que fossem dois vídeos "iguais", os efeitos do datamoshing atuavam não sobre essas partes
separadas, mas sobre sua união. No m do refrão, utilizo a imagem estática com as cores invertidas,
que ca mais saturada à medida que o instrumental cresce no feedback do delay.
Na segunda metade da canção, vi que já tinha usado grande parte do material que gravei
com a câmera, e não queria fazer outra sessão de gravações porque achei que seria aparente que a
maquiagem, cabelo e iluminação estariam diferentes. Fiz um exercício no reaproveitamento: iniciei
por pegar toda a primeira seção da música e copiar na segunda, e iniciaria uma "segunda camada" de
manipulações a partir daí. O que me surgiu como recurso foi o de borrar a fronteira de Miragem de
Vidro, e buscar os materiais dos outros vídeos da performance, gerando nessa canção, a penúltima
do show, um momento de recapitular, de recontextualizar os outros momentos nos quais descrevi
esse corpo despedaçado. Utilizei, primariamente, as sobreposições, com os diferentes algoritmos
que o Premiere proporciona, ora gerando mais contrastes, ora gerando cores novas, iluminações
diferentes, com o momento nal, com os vocalises e a maior pressão sonora, sendo a soma de todos
esses momentos do corpo que criei nos vídeos. A sensação que eu tinha ao escrever a música era de
um desabamento dentro de mim, um sentimento de não pertencimento em mim mesma muito
forte, e queria tentar imaginar como que isso se mostra. As mãos, os pés, os olhos, todas as partes de
mim que trouxe antes se confundem e se misturam, como os nós que existem dentro de mim
quando tento visualizar o meu corpo.
Outra aproximação que tive na criação dos vídeos foi pela síntese de formas e texturas que
não partissem necessariamente de material gravado e depois processado. Para isso, recorri a recursos
tanto do Adobe Premiere quanto do Resolume Arena32, programa que utilizei para a projeção ao
vivo e manipulação dos vídeos na performance.
32
Um detalhamento maior sobre o programa está presente no Capítulo 4.
60
Em Amor Verdade, por exemplo, z bastante uso de formas circulares que interagem com
elementos do arranjo musical, principalmente o bumbo. A escolha da paleta de cores para o vídeo
foi feita com a bandeira do orgulho não-binário em mente, priorizando o roxo, amarelo e preto.
Os círculos coloridos estão presentes ao longo de todo o vídeo, mas em seções como a segunda
estrofe e o refrão, realizei uma intervenção com o efeito "Roughen Edges" (do inglês "Deteriorar as
extremidades"), que distorce o exterior dos círculos, gerando mais texturas do que formas. Na seção
nal da música criei vários círculos em movimento, visando à exploração da projeção nesse caso. Já
que as únicas fontes luminosas são os círculos coloridos, todos os elementos do ambiente sofrem
rápidas mudanças de luz e cor.
Catedral também consiste apenas de elementos gerados inteiramente no computador, sem
imagens capturadas por câmera. Nesse caso, o gerador utilizado foi o Resolume Arena, que possui
uma biblioteca de diferentes texturas e formas. Utilizei "Linescape" e modi quei os parâmetros a
meu gosto. Segue uma comparação entre a con guração padrão e a que utilizei:
61
fig 19. Acima, a configuração padrão do gerador de linhas "Linescape", e abaixo, a configuração que
utilizei para Catedral.
O mergulho na criação de vídeos para a performance foi, no geral, um processo muito
frutífero para mim. Pude voltar a uma linguagem que, de certa forma, não dedicava muito tempo
desde o ensino médio, e mesmo naquela época, exercitava de uma maneira completamente
diferente. A escuta que eu fazia das músicas durante a criação visual parecia diferente do que a que
eu fazia quando mixava, quando compunha as músicas. Eu pude perceber meus próprios materiais
de outro ponto de vista, e considero isso muito rico para minha criação.
Essa opção de dialogar com a linguagem visual foi interessante, também, como elemento
que interage com outras partes da performance: com o gurino, a maquiagem, a própria concepção
do lugar onde apresentei a performance. A nal, as projeções inundariam o ambiente, seriam o que
me iluminaria ao longo do espetáculo. Mesmo sendo um um conjunto diferente de ferramentas e
recursos quando comparados as músicas, os vídeos aqui não estão agindo separados dos sons, mas
62
agindo sobre eles e com eles. Em momentos onde os elementos visuais interagem com o arranjo, ou
até pela maneira como posso manipular eles ao vivo junto de algum efeito na trilha musical, ressalta
as relações de borramento de territórios que queria construir desde o início do projeto. Em alguns
momentos dessa criação especí ca, sentia que devia estar fazendo as coisas da maneira "errada",
porque, diferentemente da música, eu não passei os últimos anos estudando artes visuais e edição de
vídeo. Em determinados momentos, tive que pensar que talvez a estratégia a adotar fosse a de
encarar isso como uma improvisação musical livre, uma linguagem que tenho bastante
familiaridade. Sobre a improvisação livre, parafraseando Derrek Bailey (1993), Rogério Costa
(2013) escreve:
"[...] Há duas formas básicas de improvisação: de um lado a improvisação
idiomática [...], e de outro, a livre improvisação. Esta- apesar de, obviamente também
ocorrer dentro de contextos históricos e geográ cos determinados - assume como uma das
suas propostas fundamentais a superação dos idiomas. Assim, na livre improvisação não há
um sistema ou linguagem [musical] previamente estabelecida [...]. Nesse contexto, os
territórios se interpenetram e os sistemas interagem cada vez mais, de maneira que os
idiomas tornam-se mais permeáveis" (COSTA, 2013 p. 35)
Evidentemente, o trecho trata de uma prática que se situa dentro da música, mas procuro traçar
uma analogia entre esse sistema aparentemente "livre", que visa ao não-estabelecimento de uma
linguagem própria, mas sim de uma reapropriação das linguagens já adquiridas pela
intérprete/criadora, e que acabam por criar algo que está não totalmente pertencente ao seus
territórios de origem, mas sim em um território borrado entre todos os outros. A criação das
projeções partiu de diversas linguagens que eu possuía, como referências e minhas práticas
anteriores com edição de vídeo, mas que não estavam xadas por algum sistema de ensino ou
prática recorrente. Eu me via improvisando constantemente com os efeitos e técnicas
disponibilizadas pelos softwares, tentando entender esse papel de "musicista que faz vídeos" não
como um escape do território no qual atuo com mais segurança (música), mas como uma
exploração em um novo território, no qual posso utilizar minhas linguagens de outra forma.
63
4. A Performance: Anatômica
As pessoas estão longe de serem assim tão uidas,
pois elas são, ao mesmo tempo, materiais e opacas.
Os ciborgues, em troca, são éter, quintessência.
(Donna Haraway)
"Penso que no fim do ano eu esteja fazendo uma performance com as minhas músicas. Não sei quais, quantas,
como. Não sei mesmo". (11/01)
Visto os mecanismos, materiais e motivações que me trouxeram até a realização da
performance, sinto que de preâmbulos estou bem equipada. Neste capítulo narrarei o processo de
idealização e criação de Anatômica, o processo de escolha do local e colaboradores, o conjunto de
equipamentos que utilizei e minhas impressões pessoais sobre sua execução.
4.1 Narrativa
Quando iniciei a elaboração do projeto, já sabia que tinha vontade de envolver vídeos na
performance, com base nas vivências que havia tido recentemente e ao longo da universidade,
elencadas no capítulo 3. Contudo, a partir disso, diversas dúvidas surgiram para mim no quesito
temático da performance: eu procurava criar uma narração? Um arco que contasse uma história?
Ou preferia encarar cada música como um momento diferente, em uma proposta mais episódica?
Eventualmente, o mote que surgiu para mim foi o de situar todos os vídeos e momentos da
performance no lugar do corpo, visto que esse era um tema que é presente nas canções do EP. Ou
seja, de alguma forma, a criação dos materiais visuais e a tomada de decisões para a criação da
performance foi balizada por essa proposta: salientar as diferentes partes do corpo (materialmente
pensando: pés, mãos, rosto), mas também os diferentes momentos, sensações e formas que o meu
corpo evoca para mim (os momentos de disforia, a sensação fragmentada, a conciliação com o
próprio corpo). A esse processo de envolvimento íntimo com a produção, trazendo os experimentos
de criação para esse território íntimo, Luciana Lyra nomeia "Mitodologia" (LYRA, 2014. p.175). A
autora explora como, na elaboração das mitodologias, as "forças pessoais que movem o atuante na
relação consigo mesmo e com o campo, num processo constante de retroalimentação" (LYRA,
2010 p. 177). Penso nesse processo como central na criação da performance, principalmente por se
tratar de um show no qual pretendo falar sobre um conjunto de experiências que são minhas, e que
exigem, então, esse caráter de envolvimento íntimo com a criação e seus processos.
Penso muito como o processo todo de criação de Androgênia e Anatômica se desenrolaram
dessa forma, lidando com as forças que se moviam e movem em mim há muito tempo, das
inquietações com o corpo e a identidade. A autora continua:
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A Mitodologia em Arte permite ao artista viver na pluralidade, fomentando o indivíduo na
sua abertura para o imaginário e para a performance que, por si, são espaços políticos, de
transgressão e de ruptura. Abrir-se para esses espaços é abrir-se aos espaços da invenção e da
criação. (LYRA, 2010 p. 177-178)
Com esse propósito em mente, o de narrar essas diferentes formas e estados do corpo, que comecei
a elaborar os vídeos, começando por Venus e Invencível, pois sabia que esses seriam os retratos mais
concretos e imagéticos do corpo, lidando com as mãos e os pés, respectivamente. Nesse sentido, as
duas canções apresentam menções a esses membros em seus textos, mesmo que não sendo os
motivos principais que eu tinha em mente quando compus elas. Mesmo assim, os vídeos ilustram
os pés e as mãos ora de forma direta, com as imagens capturadas pela câmera, ora distorcidas, como
abordei no capítulo acerca da criação visual.
A partir de "Torpe", o quarto momento da performance, tento iniciar uma ruptura, agora
olhando para o corpo como veículo, como carregador de memórias, sensações, de marcas, de
cicatrizes. Um dos desa os que encarei para executar a música ao vivo foi tentar transpor a mesma
atmosfera da versão do EP, com a paisagem sonora e vozes, mas com um material novo. Decidi
chamar as mesmas pessoas presentes na gravação do disco para me acompanharem na performance
ao vivo, o elenco de Ao Filho Torpe. A partir dessa vontade, quis criar um texto diferente do da
versão do disco. O texto que elaborei foi o seguinte:
Se eu fizesse um corte, bem, lá de cima. Do topo Mais em cima, os outros cortes, menores,
da minha cabeça até a sola do meu pé, O que recentes.
sairia de dentro de mim?
As alergias,
Daqui, o CD da Madonna que eu ouvia
As cicatrizes,
quando era criança
As insônias,
Aqui, as vezes que tentei jogar bola
As saudades
Aqui , eu ainda sinto... a primeira vez que me
empurraram na rua Memories Musculares
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Um dos motes para a criação do texto também foi uma pesquisa que z sobre a etimologia de
"Anatômica" e "Anatomia", que me revelaram que, do grego, a palavra signi caria "incisão de alto a
baixo". Se tal origem é verdadeira não é a discussão que queria trazer, mas serviu como estímulo
para que eu pensasse no texto. Durante a performance, posicionei-me na contraluz, com um
holofote atrás de mim. Não queria aparecer, como se cada uma das pessoas que falava naquele
momento fossem diferentes partes de mim. Os pensamentos fragmentados que se manifestam
dentro de mim.
Em Amor Verdade, mantenho a ideia dos círculos no vídeo, agora com a guitarra em mãos.
O mesmo escudo que me protegia desde o início da minha prática musical me acompanha nessa e
em mais duas músicas. É a única canção que organizei em apenas uma cena no Live, principalmente
por eu estar com a guitarra em mãos, o que di culta o manuseio das controladoras MIDI. Amor
Verdade inicia a segunda metade do setlist. Em minha interpretação, se a primeira metade do show
delineia os aspectos materiais do corpo, a segunda trata das coisas que passam despercebidas pelos
olhos. São as músicas que tentam dar conta do que há por dentro de mim. Amor, Nervosismo,
Disforia, Entrega, Aceitação.
Degradê é o segundo momento de improviso mais intenso do show, junto de Catedral.
Guitarra e voz, momento de tentar acessar o que virá em Miragem de Vidro. Sem vídeos, sem
bumbos, tempo de recolher, de entender, de improvisar. Volto para as terças à tarde improvisando
com a Medula, as quartas de manhã na Prática Coletiva 4, ao meu espaço, meu quarto. Talvez eu
esteja respondendo a última pergunta de Torpe, o que sobraria? Se tudo fosse embora, se tudo
jorrasse de dentro de mim.
Miragem de Vidro, dentro do mito que criei para a performance, representa o corpo se
despedaçando, as sensações de insu ciência, de tristeza, de angústia dentro de mim mesma que me
acompanham desde que me entendo como não-cisgênera. É a única projeção que envolve, de forma
reconhecível, a imagem do meu rosto, e pela maioria do vídeo, é a única imagem que compõe o
vídeo. Os glitches que atravessam o vídeo me descon guram, desestabilizam, como o olhar do
espelho é capaz de fazer. Todos os elementos que trouxe antes retornam no nal, os materiais e os
não-materiais, a nal, eles que me compõem.
Androgênia é a aceitação de todas essas peças que me compõem, as que já me machucaram
e as que me deixam mais forte. A primeira música que escrevi é a que escolho para nalizar esse
ciclo, essa história, esse mito. Gosto do contraste gerado por tocar uma música atrás da outra,
Miragem de Vidro acaba com uma nota sustentada de sintetizador, como se estivesse passando o
bastão do revezamento à Androgênia. Essa, canto com alegria, com plenitude. Tentando achar
sentido em todos os momentos que trouxe aqui, de sentimentos ruins, de desilusão. No vídeo,
trago poucas imagens facilmente reconhecíveis, mas há fotos minhas, coisas que achei pela minha
casa, como um grande apanhado não só de quem sou, mas também de onde eu estou. As memórias
não são só do corpo, mas do ambiente também.
Olho para essa linha que tento traçar entre as músicas que escolhi apresentar e vejo
elementos em comum entre elas, não só do corpo, mas também de memória, de a ição buscando
virar tranquilidade. Não que não haja uma relação entre esses elementos, porque em mim creio que
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há, mas me parece que me propus a falar de um assunto, e vários outros vieram junto, como os
vídeos que vieram junto das músicas, as vozes que decidi agregar ao show, ou as pessoas que vieram
junto integrar isso comigo. Mesmo tendo planejado um show solo, não teria como eu ter calculado
quantas pessoas eu traria comigo nisso, ou como isso teria virado por si só uma parte do processo.
Tendo introduzido a performance pela minha versão dela, quero partir a apresentar como que
concretizei (ou não) essas ideias, e a equipe que construi para possibilitar isso. Inicio pelos comos e
depois partirei aos quems.
fig 20. Registro da apresentação, na canção Miragem de Vidro. Foto por Vinicius Angeli.
67
4.2 Arsenal
A maneira como ia executar todo esse plano que havia bolado em minha cabeça foi motivo
de bastante pensamento também: com que equipamentos eu me muniria para trazer essas visões
para o show? Utilizei dois computadores: um possuía as trilhas, processava a voz, a guitarra e o
sequenciador, e também mandava mensagens MIDI que correspondiam a cada um dos vídeos para
outro computador. O programa que utilizei nesse primeiro foi o Ableton Live, o mesmo no qual
compus e gravei as canções. O segundo computador rodava o software Resolume Arena, do qual
eram disparados os vídeos e efeitos.
Resolume Arena é um programa feito especi camente para a projeção e performance com
vídeos, possuindo a organização dos arquivos em camadas (nas quais simultâneos vídeos podem ser
sobrepostos) e colunas (que podem ser vistas como "momentos" diferentes da performance, como
z em Anatômica). Sobre cada clipe podem agir diferentes efeitos, como distorções nas cores e nas
formas dos vídeos. A interface do programa dialoga bastante com a do Live, o que de certa forma
facilitou a organização dos materiais do show para mim, por ambos trabalharem com as divisões
bem claras dos momentos da apresentação.
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fig 21. Acima, a interface do projeto que utilizei para a performance no programa Resoluma Arena 6,
e abaixo a tela do Ableton Live, também no projeto que utilizei no show. Chamo a atenção para a
maneira como ambos os programas de orientam por linhas e colunas. No caso do primeiro, as linhas
são as camadas de vídeo, e as colunas, os momentos da performance. No segundo, as colunas
representam cama macro-seção (como cada música) ou instrumentos (como as primeiras três colunas),
e as linhas representam divisões menores de tempo (como estrofes e refrões)
Em um primeiro momento, desejei fazer a performance inteira apenas com um
computador, pois pensei que facilitaria tanto a disposição dos elementos no espaço, quanto a
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destreza que eu poderia ter, por trabalhar em apenas um equipamento. Contudo, no meu primeiro
ensaio na Galeria La Photo33, enfrentei bastante di culdade com isso:
"Talvez o maior problema seja que o computador trava ao executar as coisas. O CPU vai pro
espaço, e o som começa a sair com glitch, e para de tocar. Não sei se é a temperatura, ou azar, ou se em
casa eu tava com sorte. Pensarei em soluções." - (11/10)
Em virtude disso, pesquisei alternativas para dividir a carga de trabalho do áudio e do vídeo, pois
realmente excedia a capacidade de um computador só. Descobri, no próprio site da Ableton34, que a
prática recomendada é a de enviar mensagens MIDI por rede sem o, como o Wi-Fi. O notebook
do sistema Mac que uso já possui uma ferramenta de transmissão de dados MIDI por rede,
contudo, no segundo computador que eu usei, que opera com o sistema Windows, tive usar uma
ferramenta gratuita chamada rtpMidi, que possibilita esse tipo de comunicação. Passei alguns dias
tentando fazer as duas máquinas se comunicarem, e a con guração que encontrei que mais fazia
sentido foi a seguinte: Para cada cena do Live, que representa seções diferentes das músicas ou até
músicas inteiras, além de disparar as trilhas com os instrumentos e efeitos, eu disparei junto uma
nota MIDI, que é enviada para a rede que estabeleci entre os dois computadores. A nota, então, é
recebida pelo Resolume no segundo computador, o qual eu preparei de forma similar ao Live, com
cenas de diferentes vídeos, cada um com suas notas, apenas esperando serem disparados.
A maioria dos outros equipamentos que levei são os mesmos que zeram parte da gravação
das músicas, desde o pedal de voz às controladoras MIDI, meu estúdio exposto no palco, minha
bolha de criação compartilhada ali, naquele momento. Uma das exceções que abri foi o da interface
de áudio, a qual peguei emprestada com André Brasil35, o técnico de áudio que chamei. Quando
organizávamos a performance, vimos que, para gravar o áudio, necessitaríamos de um aparelho com
mais saídas (no mínimo 6, enquanto o equipamento que uso dispunha apenas de 4) de áudio. O
microfone e a guitarra estavam conectados ao computador, pois havia efeitos (como o Voclasynth e
o delay da guitarra em Miragem de Vidro), que eu não tinha outras maneiras de produzir, além de
pelo Live. Ao todo, eu possuia três controladoras, para que o máximo possível do show estivesse na
ponta dos meus dedos, sem eu precisar me reclinar em direção ao computador: Duas estavam
conectadas ao Live. A primeira controlava efeitos de reverb e delay mapeados a cada uma das trilhas
e das vozes, para que eu pudesse improvisar com a sonoridade de cada momento, além de efeitos
especí cos para algumas músicas36. A segunda dispunha, além dos controles de disparo de cada cena
do Live, ltros de frequência para cada uma das trilhas. A terceira controladora que utilizei era
conectada ao segundo computador, pois enviava informações ao Resolume. Nela, atribui aos knobs
diferentes efeitos para cada um dos vídeos, para que pudesse manipular essa face da performance
33
Espaço onde realizei a performance, localizado em Porto Alegre, na Travessa da Paz, número 44. Explicito mais
minha relação com a galeria em 4.3
34
Usei o seguinte artigo de suporte do site do fabricante:
https://help.ableton.com/hc/en-us/articles/209071169-How-to-setup-a-virtual-MIDI-network
35
Egresso do curso de Música Popular da UFRGS, que conheci durante minha experiência na Medula. André foi o
técnico de som e de gravação de Anatômica, descrevo seu papel mais a fundo em 4.3.
36
Os efeitos eram: Um delay com feedback alto apenas nas percussões de Venus, delay e anger nas vozes do coro de
Venus, delay na percussão de Amor Verdade, delay e pitch shift na introdução de Miragem de Vidro e beat repeat na
trilha de Androgênia.
70
quando tivesse vontade. Os faders da controladora estavam atuando sobre a opacidade de cada uma
das camadas de vídeo, para que eu pudesse mesclar ou não diferentes vídeos em um determinado
momento.
O preparo que realizei para a performance, por meio de ensaios foi variado. Realizei 5
ensaios no Estúdio Soma, com as horas disponibilizadas pela Universidade, no período de agosto a
outubro, e também dispus de tempo para ensaio na Galeria La Photo, por sugestão de Regina
Protskof, a proprietária do espaço. Lá, tive dois dias ao longo do mês de outubro para ensaiar, além
de um período de ocupação da Galeria que se iniciou na semana da performance, dos dias 4 ao 7 de
novembro.
Uma das últimas questões que tive de resolver antes da performance foi como executar os
samples de voz que dispararia em Torpe, e a saída que utilizei foi usar um equipamento que me
acompanhou em alguns momentos de criações recentes, o aparelho Volca Sample, da marca Korg.
Da mesma linha do Volca FM, que citei no capítulo 2.4, o aparelho possui uma interface similar:
compacta, com um visor de LED com informações sobre o funcionamento, e com uma interface de
sequenciamento abaixo. A diferença, contudo, é que enquanto o Volca FM possui capacidades de
síntese sonora, o Volca Sample não produz som, apenas reproduz arquivos de áudio que são
carregados em sua memória.
Em um dos ensaios que tive com os atores na Galeria, gravei as falas de cada um com meu
microfone, e transferi esses arquivos para o Volca, podendo dispará-los na hora da performance,
com os efeitos e distorções proporcionados pelo próprio aparelho (que variam entre velocidade de
reprodução, mudança de altura, Reverb, reprodução ao contrário, entre outros).
fig 22. Disposição dos equipamentos na performance, com as controladoras e computadores
enquadrados.
71
Tal con guração foi apelidada por mim de "nave espacial", por eu estar constantemente
circundada desses objetos, todos com suas funções, podendo agir sobre as músicas. Ao longo dos
ensaios que realizei, um dos maiores trabalhos que tive de fazer foi incorporar essa con guração na
minha performance como algo que não fosse um impedimento ou di culdade, mas sim como
extensões do meu corpo, como movimentos uidos dentro da performance. Penso em como
Donna Haraway descreve as tecnologias que são incorporadas em nosso cotidiano:
As tecnologias e os discursos cientí cos podem ser parcialmente compreendidos como
formalizações, isto é, como momentos congelados das uidas interações sociais que as
constituem, mas eles devem ser vistos também como instrumentos para a imposição de
signi cados. (HARAWAY, 2000 . p.64)
Enxergo a minha decisão por fazer a performance rodeada e engajada com os equipamentos
eletrônicos não só como uma escolha por replicar com delidade as gravações do disco, mas por
buscar trazer uma nova oportunidade de ressigni cação para o trabalho fonográ co. Por mais que
os registros do EP estejam "congelados" naquele formato, em Anatômica eu tenho a oportunidade
de adaptá-los e trazê-los para este outro momento, este outro lugar, que é a performance nesse
formato especí co. A utilização desses equipamentos, na verdade, possibilitou a exploração de uma
outra dimensão nas performances e nas músicas, Haraway continua:
A fronteira entre ferramenta e mito, instrumento e conceito, sistemas históricos de relações
sociais e anatomias históricas dos corpos possíveis (incluindo objetos de conhecimento) é
permeável. Na verdade, o mito e a ferramenta são mutuamente constituídos. (HARAWAY,
2000 p. 64)
O que se con gura, então, não é uma relação estrita de "meus equipamentos determinam o tipo de
performance que realizarei", e também não "a performance determinará os equipamentos", mas um
constante jogo entre esses dois territórios, entendendo como se con guram as relações entre os
meios que pus para jogo no show, e não tentando con gurar o show a partir desses meios.
Recordo-me de quando comentei sobre a pesquisa artística, em seu caráter cíclico de reavaliação dos
processos e decisões, como esses movimentos são imprevisíveis e mutáveis.
Como me comportar dentro dessa meia-lua de equipamentos foi um processo de
descobrimento, principalmente durante os ensaios. Já tinha noção de que a performance seria
realizada toda de pé, dialogando com as ideias de gurino que tive, por exemplo. Sabia também que
não desejava falar com o público durante o arco das canções, por tentar manter um estado de
potência e de interrupção mínima entre cada um dos números. Parecia para mim que tentar engajar
pelo diálogo direto durante as canções seria quase como um "mudar de assunto". Ao mesmo tempo,
tive que me concentrar para tentar dar conta das coisas que queria expressar por meio dos gestos
com meu corpo, gestos na voz e gestos operando as controladoras. Um artifício que usei foi o de
tentar combiná-los: a minha mão que sobe em uma nota aguda, combinada com a outra mão
aumentando o reverb na controladora à minha direita. O vídeo que se escurece pelos meus dedos
72
enquanto o delay da minha voz soa em um momento mais silencioso. Tentar dar vida a esse corpo
de plástico e metal que eu havia criado. Tentar me sentir ciborgue, potente, presente.
4.3 Rede
Se o processo de criação do disco foi (quase) todo centralizado em mim, exceto pelas
colaborações das vozes em Torpe e das artes com minha irmã, Anatômica teve sua realização
possibilitada por uma rede de colaboradoras e colaboradores que formei junto de mim. Essa
mudança no jeito como eu estava encarando o processo foi bastante sentida por mim, por ser uma
troca bem intensa de como eu procedia até aqui. Deparei-me com diversas vulnerabilidades minhas
ao abrir o processo com outras pessoas, cava nervosa para mostrar os vídeos que já havia
produzido, tinha receio em xar de nitivamente a ordem das músicas, pensando que devia ter
algum jeito melhor que eu não havia pensado, e que seria rechaçada por causa disso. Talvez os
momentos de maior angústia em me abrir tenha sido em relação ao gurino e ao texto que escrevi
para os atores:
"Tive reunião hoje com as meninas do figurino e lá tive que fazer algo que é bem difícil pra mim, que
é dizer o que não me agradou, e que prefiro mudar. É difícil não me sentir autoritária nesses
momentos, como se estivesse podando a criatividade de alguém. Por mais que elas tenham dito que tá
tudo bem. De noite, tive outra coisa parecida, mandei o texto pros atores que vão participar de Torpe, e
fiquei muito nervosa. Parece mostrar uma música para alguém, até pior. Fico nervosa, por mais que eu
saiba que são pessoas com as quais eu tenho uma relação muito boa. Acho que trabalhar em grupo tem
muito disso, confiar nas pessoas com as quais tu trabalha e isso é algo que no EP eu não tive de dialogar
muito, porque era eu sozinha." (24/10)
Contudo, penso nas epistemologias e práticas feministas com as quais tive contato ao longo
dos estudos de gênero e música. Falávamos muito sobre redes, a formação de redes como um
mecanismo de resistência e apoio na criação artística. Sobre a formação de coletivos e teias como
abordagem feminista , Isabel Nogueira (2017) escreve:
Congregando as pessoas e seus diferentes estágios de participação, as malhas/teias se
alimentam dos tempos, das iniciativas, das capacidades, dos desejos e das possibilidades
diferentes de cada uma, de acordo com seu processo, sua etapa, seu conhecimento empírico
ou teórico e sua disponibilidade em cada momento, potencializando, através da rede o
trabalho de cada uma. (NOGUEIRA, 2017)
73
A autora defende que, dessa forma, por movimentos não hierárquicos e horizontais na organização,
há uma incorporação das particularidades e identidades de cada pessoa no processo. Para mim,
reconheço que é esse tipo de interação que eu estava buscando ao organizar a performance. Eu já
havia (e continuava, na verdade) tratando da minha narrativa e performatividade no processo, mas
sinto que, agora, buscava entender como que isso ressoava em outras pessoas, próximas, de minha
con ança, para construir esse show. Um show que pudesse trazer algo que é fundamentalmente
meu, formativo meu, mas que pudesse ser assimilado por cada um e cada uma que assistisse, de
acordo com suas próprias vivências. Eu criei uma equipe, mas também um grupo de pessoas que
pudessem me apoiar, que pudesse dialogar do seu jeito com a performance também, para que suas
contribuições fossem o mais frutíferas o possível.
Cronologicamente, as primeiras pessoas com as quais z contato foram as gurinistas,
Rafaela da Rocha e Joice Monticelli. Nos conhecemos em agosto desse ano, na gravação de um
videoclipe no qual eu trabalhei como maquiadora, e ambas como departamento de gurino. Como
na época já sabia que criaria uma performance, conversei com ambas sobre a possibilidade de
construirmos um gurino juntas, especialmente para isso. Rapidamente, vi que compartilhávamos
referências muito parecidas, e fomos ao longo dos meses seguintes criando um conceito e,
eventualmente, a peça que usei.
Desde o início conversávamos sobre uma peça longa, que tivesse bastante movimento, mas
que ao mesmo tempo, não fosse de uma cor muito saturada, para que as projeções conseguissem ser
vistas e assimiladas mesmo por cima do tecido. Dialogamos também sobre como trilhar um
caminho que não fosse normativo, e respeitasse minhas preferências de roupa, em vista da disforia
de gênero que sinto em relação a certos tipos de peça (excluímos, por exemplo, a possibilidade de as
pernas ou o peito carem expostos). Rafa introduziu a ideia de utilizarmos o tecido plástico e os
bordados, que fazem parte de sua prática artística própria, então estudamos as possibilidades de
inclusão desses elementos também, enquanto Joice foi de grande apoio em pensar o que eu usaria
por baixo da peça, por ela não cobrir totalmente meu corpo. A ideia por contrastar o lado de fora
claro, de uma cor neutra, com uma parte de dentro saturada agradou a todas nós, e busquei em meu
guarda roupa por peças que cumpririam essa função.
74
fig 23. Foto com destaque do figurino. Foto: Luiza Padilha
Paralelo a isso que desenvolvi a maquiagem que utilizaria no show. Por não ter a peça
pronta até poucos dias antes da apresentação, pensei em algo que dialogaria com o conceito geral
que tínhamos. Ao mesmo tempo, já havia elaborado que o vídeo de Miragem de Vidro teria a
mesma maquiagem que eu, então não havia muito tempo de elaborar algo com tão pouca
antecedência. Optei por cores primárias (azul, amarelo e vermelho) porque imaginei que
independente do que usaria, elas de alguma forma dialogariam com isso.
75
fig 24. Retrato com destaque para a maquiagem. Foto: Vinícius Angeli
Pensando que o show teria grande enfoque nas projeções, chamei alguém que soube que já
tinha realizado iluminação cênica em espetáculos com projeções. Conheci Luciana Tondo no
processo da peça Ao Filho Torpe, na qual ela atua como diretora. Dada minha proximidade com o
grupo ao longo do ano, e pelas outras colaborações que o grupo fez na performance, achei que ela
seria uma escolha bem apropriada para a função. Reunimo-nos no espaço do show poucos dias
antes da apresentação para veri car as questões técnicas e elaborar as orientações para cada música.
Mesmo nos momentos onde a maior parte da minha iluminação viria do projetor, Lu demonstrou
interesse em fazer luzes em níveis mais baixos, ou para fora do palco, de forma que não
perturbassem a projeção. O entusiasmo que ela apresentou foi um dos motivos para que eu
decidisse por incluir Degradê no conjunto de músicas da apresentação, mesmo sendo um número
que não havia ensaiado ou testado antes.
O local onde realizei a performance, a Galeria La Photo, surgiu em minha trajetória no ano
de 2016, quando a Medula realizou uma residência artística de um mês no local. Foi essa residência
que marcou o início do meu diálogo com o grupo, onde aprendi sobre gravações de campo e
comecei a investigar alguns territórios da música experimental, alinhada com as práticas
desenvolvidas pelo coletivo. Julguei o lugar apropriado por se tratar de um ambiente relativamente
versátil, o lugar não possui muitas paredes, se comporta como uma grande sala branca, a qual eu
poderia ocupar da maneira que julgasse mais adequada:
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"Acabei de sair de uma reunião com a Regina, proprietária da La Photo, espaço onde quero
fazer a performance do TCC [...]. Regina amou muito a ideia. Penso em fazer ensaios lá pra me
ambientar no espaço, começando em outubro. Uns 3 dias. E começar a ocupar pra performance uns 3
dias antes também. [...] Ah sim, acertamos dia 7 de novembro, uma quinta feira. veremos." (04/09)
Regina, proprietária e uma das curadoras do espaço, foi de tremendo apoio para Anatômcia,
abrindo não só seu espaço, mas ajudando em diversos momentos na produção/desprodução do
espaço e na divulgação do show.
Uma equipe para a realização dos registros da performance também foi de extrema
importância para mim. Decidi não só fotografar a performance, mas também registrar em vídeo e
áudio. Para as fotos, optei por duas pessoas que conheci recentemente em outros eventos que
participei, Luiza Padilha e Vinicius Angeli. Ambos são fotógrafos que circulam por shows de Porto
Alegre e estão acostumados com esse tipo de prática. Optei por dois porque, ao dialogar com ambos
sobre seus próprios projetos e estéticas, Luiza me comentou que estava se interessando mais por
retratos, e registros que ela chama de "o que está fora do palco", além de momentos da
pré-produção do espetáculo. Vinícius, por outro lado, havia recentemente fotografado outros
shows que lidavam com projeções de vídeo, e estava gostando de trabalhar com essa linguagem.
Quanto ao vídeo, chamei Ricardo de Carli, ex-aluno da graduação em Música Popular da UFRGS,
que conheci na Medula, no mesmo dia em que conheci a Galeria. De maneira similar aos
fotógrafos, Ricardo demonstrou muita afeição pelo projeto, dando uma série de ideias e sugestões
sobre como poderíamos fazer o vídeo. Comentamos sobre fazer algo que não fosse apenas um
"registro" da performance, mas sim um vídeo que incorporasse sobreposições e outras liberdades
criativas. Quanto ao áudio, tanto para realizar a captação quando a operação do PA ao vivo, chamei
outra pessoa que conheci pela Medula, André Brasil, também graduado em Música Popular pela
UFRGS. André foi de extrema ajuda para organizar como executaríamos a gravação junto da
execução da performance, e inclusive me emprestou a interface de áudio que utilizei no show, pois a
minha não teria saídas de áudio o su ciente para tocar e gravar ao mesmo tempo.
E, por m, não na cronologia de organização, mas talvez pela proximidade que teve do
processo, a última colaboradora com a qual contei para a performance foi minha irmã, que assinou
as artes de divulgação. Quando terminávamos de fazer as artes do EP já perguntei se Flor gostaria de
participar da performance, de maneira parecida, e ela disse que aceitava. Realizamos alguns
encontros tentando encontrar um jeito de transmitir pela arte que a performance seria com
projeções, e que de alguma forma traria uma narrativa junto do disco. A minha ideia original era a
de criar peças de divulgação digital que seriam vídeos para postar nas redes sociais, porém
incorremos na vontade de criar um cartaz impresso, que evidentemente não poderia ser em vídeo.
Então, duas peças foram criadas, um vídeo e uma imagem estática, para usarmos de cartaz. O
material base para isso foi uma tomada do vídeo de Miragem de Vidro:
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fig 25. Still do vídeo utilizado como uma das peças de divulgação de Anatômica.
A partir desse vídeo, que foi corrompido por datamosh da mesma maneira como os outros do
trabalho, tentamos chegar em um efeito parecido, com o corrompimento da imagem, mas de forma
estática. O cartaz que Flor desenvolveu foi o seguinte:
78
fig 26. Cartaz desenvolvido para divulgação da performance
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Vejo todas essas parcerias como um mecanismo de fortalecimento bem grande nesse
processo. Enquanto organizava a performance, o sentimento que habitava em mim era de grande
nervosismo, por ser algo que estava em andamento na minha cabeça há meses já, desde o início do
ano. Contudo, por estender a outras pessoas pedindo ajuda, amparo, opiniões, era como se o peso
se aliviasse um pouco. Claro, como comentei anteriormente, houve momentos de angústia
também, por eu car nervosa com a maneira como outras pessoas receberão esse trabalho. Mesmo
assim, essa abertura serviu como grande aprendizado para mim, por poder entender quais partes do
processo não são especialidades minhas, e delegá-las a pessoas que se sentem capazes, e gostam de
desempenhá-las. Como se o corpo de androide que criei não fosse só o meu junto dos meus
equipamentos, mas também das pessoas que trouxe junto, que aceitaram embarcar nisso comigo.
São relações que criei, com exceção de minha irmã, nos últimos quatro anos ou menos, que foram
proporcionadas em parte pelo ambiente que vivi na Universidade, mas que transbordam as paredes
dessa e vão para as casas de show que frequentei, os bares, as ruas, os projetos, toda essa cartogra a
dos últimos quatro anos de certa forma culminou na formação da equipe técnica do show.
80
4.4 Relato
"Foi ontem. Começou há uns meses, mas foi ontem. Meu silêncio aqui nessa semana não foi de
negligência, mas parte exaustão e parte nervosismo. [...]
Aí chegou a quinta. Acordei sem nervosismo, fui pra La Photo às 14h, e se instaurou o trubilhão.
Primeiro, o som com André. [...] Lu chega, e com um número surpreendente de T'’s, faz as luzes
funcionarem. Vini chega, meus pais chegam, minha irmã, Luiza, Joice, Isabel, elenco, e logo me dou
conta que é de verdade. A tarde foi na velocidade da luz. Mal tive tempo de tirar umas fotos com a Lu
e Vini, e logo vi que o relógio avisava 20h. Eu, os atores, Isabel, Luciana e André e Ricardo tiramos
todes de dentro do espaço e fomos concentrar. A máquina de fumaça preenchia o ambiente, deixava
tudo denso, borrado, como um sonho. Testo o Wi-Fi entre os computadores. O barulho dos meus sapatos
no chão me certificam que isso não é um sonho. Joice me alcança o figurino. Batom vermelho. Relembro
a ordem das luzes que aciono em Torpe. "Pode abrir".
A galeria-nuvem se preenche de rostos que já conheço. Meus amigos, colegas, apoiadores, todes ali. Peço
pro Vini (Medeiros) fechar a porta. A ponta dos meus dedos vão aos pés. Três respirações profundas.
"Pensa no que tu vai fazer lá em cima", minha ex-professora de canto dizia.
Catedral
Venus
Invencível
Torpe
Amor Verdade
Degradê
Miragem de Vidro
Androgênia
Fiquei nervosa, mas logo passou. Parecia que algo maior me possuía. No fundo da lente do projetor foi
onde foquei meus olhos a maior parte do tempo. Degradê foi uma escolha estranha. Era uma ideia de
vídeo que eu tinha, mas não tinha música para acompanhar, "um improviso", isso que disse para Lu e
Ric quando passei o Setlist. "Lu, pega a luz azul e faz em 4min ela virar densa, vermelha, agressiva".
Acabou que não usei vídeo, só luz. Um improviso que nunca tinha feito antes. Logo me saltou aos
ouvidos uma linha que toquei. Fá-Mi-Mib, ou Mib-Ré-Reb, porque a guitarra estava um tom
abaixo. Imitei na voz, loopei, harmonizei. Textura. Contraste. E o azul logo era vermelho. Junto dele, o
nervosismo virava vontade.
No fim, os aplausos. Sorri. Agradeci. Tudo que construí aqui sinto que é digno de agradecimento. Aos
amigos, amigas, parceiras, apoiadores. Doeu em vários momentos, o parto dói, mas o que eu criei não
vai embora. Alguns vídeos estavam travados pelo visto (um aprendizado contínuo no Resolume),
minha voz e dedos escaparam de mim também. Tentando não deixar isso me abalar, por mais difícil
que seja. Fazer dói. Mas é bem bom. Agradeci por terem ouvido, e outras por terem me ajudado a
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criar, mesmo que tenha sido difícil, pra mim, abrir esse processo. Ainda me sinto sentindo.
Entendendo. Foram meses, afinal, condensados em minutos, mas meses. Não posso dizer que via a
junção de tudo, porque do palco eu realmente não via. Apenas sentia, em cada poro da pele, em cada
fio de cabelo, os sons e as imagens. Minhas ideias, sentimentos, pesares, angústias e vontades bem ali.
Para quaisquer ouvidos e olhos.
Dói se abrir mas é bom.
Sinto que me abri
Sinto que criei
Sinto que fiz
Sinto.
E se sinto, é porque, pra mim, valeu a pena."
Diário de Campo, oito de novembro de 2019.
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Considerações nais
Chego no m dessa sequência de trabalhos, de ideias, de criação, movida. Movida não só
pelas coisas que criei musicalmente, mas também pelas relações que me gestei, e que deixaram a
jornada até aqui mais tranquila. Iniciei o trabalho constatando que esse texto tratava do processo de
criação de um EP e de uma performance, com ambos em constante diálogo não só entre si, mas
comigo, a criadora, e com as áreas de conhecimento com as quais me familiarizei ao longo do curso
de Música Popular, e por mais que espero ter realmente analisado isso, vejo que há muitas outras
coisas que se criaram em meio a isso, algumas das quais narrei por essas páginas.
Uma das minhas preocupações ao longo do projeto foi a de conseguir criar livremente, sem
me sentir restringida dentro do universo que construí, mas que ao mesmo tempo eu conseguisse
justi car minhas escolhas e criações, mantendo notas em meu diário. Em retrospecto, sinto que
alguns momentos que eu poderia ter registrado passaram sem escrita, às vezes por eu estar me
sentindo mal ao ponto de não querer escrever sobre isso, ou até por pleno cansaço em alguns
momentos do projeto (como na semana da realização do show). Considero isso não como algo
negativo, mas como uma descoberta que tive, não só da maneira como a metodologia que escolhi
funciona, mas de como eu como artista funciono. Esse projeto não foi só criação, mas também
descobrimento, experimentação.
Experimentei, inclusive, lançar um disco, mesmo tendo iniciado o ano sem composições, e
sem ter feito isso antes. A exploração que z, dentro do meu estúdio caseiro, com as ferramentas
que tenho à minha disposição, revelou angústias que tenho na minha criação, mas também
capacidades que nunca tinha visto em mim mesma. O processo é muito parecido com as
descobertas que tive ao longo do curso de música popular. Os instrumentos que nunca tinha
tocado, as linguagens com as quais dialoguei musicalmente. Foi um projeto com várias
"primeiras-vezes".
Ao mesmo tempo, uma das re exões que me propus a traçar desde o início era a de propor e
investigar relações entre o processo, essa maneira de criar, com a maneira como via e vejo minha
identidade de gênero não-binária. Desde as composições, quando me via ressigni cando as coisas
que construía, propondo-me a cantar meu gênero, sentia que estava fazendo algo honesto, algo que
realmente extrapolava as páginas que eu digitei aqui. Queria fazer algo que fosse sincero,
principalmente, quando quis falar de gênero. Esse é um território no qual não sinto espaço para
omitir, tanto academicamente quanto artisticamente. Queria que esse mote tomasse vida nos sons,
imagens e também aqui, nesse texto. Sinto que minha documentação dos processos foi bem
abrangente e condizente com isso.
Documentar os processos, para mim, signi ca reviver em cada palavra as sensações que me
atravessaram naqueles momentos. Talvez um dos mais difíceis tenha sido há poucos dias, depois da
performance, quando sentia na escrita os momentos, ainda frescos, onde senti que errei, que não
atingi as expectativas que tinha criado para mim. Houve momento de vídeos que não reproduziram
como imaginei, canais de áudio que não estavam com o volume acionado, e essas coisas pesaram em
mim. Depois de meses criando algo, era fácil esquecer que algumas coisas inevitavelmente
escapariam do controle. De qualquer forma, as pessoas que me assistiram, a rede que criei, estava lá.
O público de rostos conhecidos que foi essencial para que eu entendesse que as coisas que na minha
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cabeça eram erros, nada mais foram do que partes da performance. Paralelos aos registros do Diário,
noto também que há coisas que deixei transbordar pelas minhas redes sociais, por exemplo. Espaços
na internet onde busquei inspirações (como em Venus), porque não eram como o monólogo da
caneta no papel. Talvez em meu twitter que estivessem as primeiras aberturas do processo, quando
postava um áudio curto de um beat e recebia comentários em troca. Sem contar a divulgação tanto
do EP quanto da performance, feita muito por veículos de redes sociais, especialmente o Instagram.
Buscava, nessas plataformas, pequenos incentivos de continuar nessa maratona que me propus.
O exercício que tentei fazer a partir dos sentimentos negativos que por vezes surgiram é
transformá-los em vigor para criar mais. Não é minha intenção que as coisas que criei aqui
desapareçam depois da defesa do trabalho. Viridiana é uma coisa que procurei dar vida, compondo,
cantando, performando, mas que eu possa seguir transformando em futuros projetos. Projetos que
podem ser visuais ou não, podem seguir as mesmas referências musicais ou não. Minha intenção
nunca foi a de traçar prescrições criativas. Quis tirar uma foto de quem sou hoje, como artista,
como pessoa.
O depois de amanhã chegou. Isabel avisou na primeira quinta feira do primeiro semestre de
2016 que chegaria. O caminho que tracei até aqui me deixa satisfeita, artística e pessoalmente.
Artisticamente pelo corpo de trabalho que desenvolvi, e pessoalmente pelas relações e redes que
formei. Desde anos passados, como a Medula e o Sônicas, os amigos que trouxe da época da escola,
até às pessoas que trouxe para integrarem Anatômica junto de mim. Se foi em um piscar de olhos
que o depois de amanhã virou hoje, digo que estou ansiosa para os outros amanhãs que viverei
como Viridiana, como Bê. Não tenho intenções de parar de criar, de cantar, de buscar em mim
coisas que façam sentido para outros e outras, pois é com muitas outras que consegui chegar até
aqui. A elas, a todas elas, só tenho a agradecer.
84
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Apêndices
1. Diário de Campo
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2. Registro da Performance em Áudio e Vídeo
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