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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL 

INSTITUTO DE ARTES 

DEPARTAMENTO DE MÚSICA 

Bê Saboya de Albuquerque Smidt 


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Vivendo Viridiana:  
Experimentos Não-binários em Composição e Performance 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Porto Alegre 
2019 

1
Vivendo Viridiana:  

Experimentos Não-binários em Composição e Performance 

 
 
 
Projeto de Graduação em Música Popular apresentada ao 
Departamento  de  Música  do  Instituto  de  Artes  da 
Universidade  Federal  do Rio Grande do Sul como requisito 
para a obtenção do título de Bacharel em Música. 
 
Orientadora: Profa. Dra. Isabel Porto Nogueira 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Porto Alegre 
2019 


   


Agradecimentos 
Aos meus pais, por me apoiarem e incentivarem desde o violão, desde a guitarra de plástico, até aqui 
e muito mais. Meus primeiros e eternos professores. 
 
À Flor, por conseguir sempre olhar lá dentro de mim e enxergar até o que escapa meus próprios 
olhos. Minha irmã. 
 
À Isabel, por me ensinar a voar com minhas asas, cantar com minha voz, criar com meu sentimento. 
Minha guia. 
 
Aos meus amigos e amigas de longa data. Larissa, Bruno, Fialho, Carlos, Pietro, Rafael, Henrique e 
tantos outros. Espero ser tão presentes nas conquistas de vocês como vocês são nas minhas, há 
tantos anos. Meus protetores. 
 
À família que encontrei no curso de Música da UFRGS. Chico, Cris, Gabo e Nina. Que precioso, 
afetuoso e importante esse encontro. Minhas inspirações, sempre. 
 
Aos membros e membras da Medula com quem convivi criativa e afetuosamente: André, Chico, 
Carlos, Isabel, Luciano, Nik, Ricardo, Zazá, Kevin. Grata por terem criado comigo, por terem 
começado a cultivar algo que faz tanto sentido agora. Meus colaboradores. 
 
Aos membros e membras do Sônicas: Gênero, Corpo e Música. Que manhãs lindas de troca, de 
con ança, de aprendizado. Vamos sempre juntas. Minhas colegas. 
 
A todos e todas envolvidos e envolvidas em Ao Filho Torpe, minha família teatral. Miguel, Cissa, 
Vicente, Alexandre, Lu, Luiz, Jéssica, Gabi, Gustavo. Minhas segundas e quartas feiras. 
 
A todas e todos que zeram parte de Androgênia e Anatômica: Bruna, Cassiano, Flor, Luiza, Vini, 
Ricardo, Joice, Rafa, André, Regina, Sarah, Lu, Isabel, Alexandre, Cissa, Miguel, Luiz e Vicente. 
Obrigada por con arem nessa criação. Meus apoiadores.  
 
Aos professores que tive nesse trajeto todo, mesmo antes da faculdade. Marcos, Margot, Luciano, 
Luciana e tantos mais. Minhas referências. 
 
Ao Rodrigo, por me ensinar tanto, há tanto tempo.  
 
À Sandra, por ouvir e me fazer ouvir. 
 
À Zazá e ao Nik, por estarem sempre perto pra ouvir, pra falar, pra emprestar microfone, pra me 
dizer que vai dar sim, que tá bem assim, que eu posso e que eu devo. O brilho de vocês atravessa o 
oceano. 
 
Ao meu bem. Tua importância pra mim transborda as palavras, então tento dar conta pelos sons. 
Por sempre estar aqui, até nos momentos de maior dúvida, não existe gratidão o su ciente que eu 
possa te expressar. Por ser mão, abraço, carinho e afeito. Meu melhor amigo.  
 


   


Resumo 

 
Este  trabalho relata o desenvolvimento, a criação e a execução de dois projetos artísticos: um 
disco,  chamado  "Androgênia"  e  uma  performance  chamada  "Anatômica",  ambos  os  processos 
ocorrendo  de  fevereiro  a  novembro  de  2019.  A  partir  dos  procedimentos  da  pesquisa  artística 
relacionados  com  os  estudos  de  gênero  em  música,  procuro  narrar  os  momentos  de  tomadas  de 
decisões  e  os  cruzamentos  que  ocorrem  entre  as  diferentes  etapas  do  processo,  borrando  as 
fronteiras  entre  elas,  relacionando  também  com  os  conceitos  da  teoria  queer  sobre  identidades  de 
gênero  não-binárias,  com  o qual me identi co.  Ao mesmo tempo, o trabalho analisa como a minha 
trajetória  afeta  esses  processos,  tanto  por  sua  convivência  com  diferentes  grupos,  como  pelas 
práticas que foram realizadas dentro do currículo do curso de Música Popular da UFRGS.  
 
 
Palavras-Chave: Pesquisa Artística, Estudos de Gênero e Música, Teoria Queer, Música Eletrônica, 
Performance 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


Abstract 

 
This  paper  narrates  the  development,  creation  and  execution  of  two  artistic  projects:  An  EP, 
entitled  "Androgênia"  and a performance entitled "Anatômica", with both of these processes taking 
place  from  February  to  November  of  2019.  Utilizing  procedures  from  Artistic  Research,  and 
relating  with  Gender  Studies  in  Music,  I  intend  to  describe  the  processes  and  decision  making 
strategies  that  occur  during  my  creative  practices,  as  well  as  how  both  creation's  processes 
intertwine,  blurring  the  frontiers  between  them,  which  relates  to  queer  theory  and  non-binary 
gender  identities,  with  which  I  identify.  Simultaneously,  this  paper  analyzes  how  my  trajectory 
a ects  these  processes,  be  it  through  my  experiences  with di erent ensembles, or through practices 
that were executed as a part of the Popular Music degree at UFRGS.  
 
Keywords: Artistic Research, Gender and Music Studies, Queer Theory, Electronic Music, 
Performance 

   


Lista de Imagens 
 
 
1. Apresentação da Medula, no Projeto Concha, 9 de Julho de 2018 14 
2. Ciclo de interação e retroalimentação entre prática artística e re exão   20 
3. Imagens produzidas como identidade visual do EP Androgênia 30 
4. Software Serum, com o preset de baixo utilizado em Venus 34 
5. Interface do plugin iZotope Vocalsynth.  35 
6. Excerto do diário de bordo, rascunho da estrutura de Invencível  38 
7. Uma das cadeias de efeito de send em Invencível  39 
8. Sintetizador Korg Volca Fm, na con guração Glasspad 42 
9. Plug-in Valhalla Vintage Verb com a con guração utilizada em Torpe   42  
10. Efeito de Delay utilizado nas guitarras de Miragem de Vidro    45 
11. Exemplo de compressão sidechain em um dos canais de sintetizadores de Androgênia    49 
12. Visão do Adobe Premiere Pro, onde montei e editei os vídeos 52 
13. Arquivo de lmagem de Venus, antes da aplicação do Chroma Key 53 
14. Uma das molduras de mãos de Venus  54 
15. Visão do software HexFiend 55 
16. Sequência do procedimento de Datamoshing em Invencível    56  
17. Uma comparação de uma das imagens capturadas para Miragem de Vidro    58 
18. Imagem do vídeo de Amor Verdade  60 
19. Duas con gurações diferentes do gerador de linhas "Linescape" no Resolume Arena  61 
20. Registro da apresentação, na canção Miragem de Vidro. Foto por Vinicius Angeli 66 
21. Comparação entre as interfaces do Ableton Live e Resolume Arena  68 
22. Disposição dos equipamentos na performance  70 
23. Foto com destaque do gurino utilizado na performance "Anatômica". Foto de Luiza Padilha 74 
24. Retrato com destaque da maquiagem utilizada em Anatômica. Foto de Vinicius Angeli  75  
25. Still do vídeo utilizado como uma das peças de divulgação    77 
26. Cartaz desenvolvido para divulgação da performance  78 


 

 
Eu quero saber quem é que foi o grande otário 
que saiu aí falando 
que o mundo é binário. 
(Linn da Quebrada)  

 
 


 

Sumário 
 
 
 

Introdução 10 
1. Referencial Teórico 17 
1.1 Pesquisa Artística: Ações e Métodos 17 
1.2 Gênero: Identidades, Diálogos e Cruzamentos 23 
1.3 Voz: Atritos e Respiros 26 
2. Composições: Processos e Narrativas 31 
2.1 O Ambiente da Criação 32 
2.2 Catedral 33 
2.3 Venus 34 
2.4 Invencível 38 
2.5 Torpe 40 
2.6 Amor Verdade 43 
2.7 Degradê 44 
2.8 Miragem de Vidro 44 
2.9 Androgênia 48 
3. Vídeos: Produções e Projeções 51 
4. A Performance: Anatômica 63 
4.1 Narrativa 63 
4.2 Arsenal 67 
4.3 Rede 72 
4.4 Relato 78 
Referências 82 
Apêndices 84 
Diário de Campo 84 
Registro da Performance em Áudio e Vídeo 106 

10 
 
 
 

Introdução 
 
Acho  seguro  dizer  que  a primeira vez que pensei nesse TCC é bem longe de hoje, bem mais 
pra  trás.  Particularmente,  na  primeira  semana  de  aula  do  meu  primeiro  semestre  no  curso  de 
Bacharelado  em  Música  Popular  (ingressei  em  2016),  na  aula  de  Prática  Musical  Coletiva,  a 
professora falou de maneira simples e certeira: “O TCC é logo ali, depois de amanhã”.  
Antes  do  ingresso  na  Universidade,  o  estudo  de  música  que  eu  havia  realizado  era  situado 
ao  redor  do  violão,  o  instrumento  que  eu  mais  tocava.  Comecei  a  tocar  com  meus  10  anos, 
largamente  impulsionada  por  um  outro  passatempo  meu,  que  era  os  videogames.  Passava  tardes 
jogando  Guitar  Hero,  um jogo que se baseia em tocar músicas (uma seleção predominantemente de 
Rock)  com  o  controle  do  videogame.  As notas das músicas eram distribuídas em cinco cores, como 
cordas  de  um  instrumento.  Meu  primeiro  instrumento  era  de  plástico  e  tinha  cinco  botões,  o 
controle  que  era  vendido  junto  do  jogo.  O  repertório  desses  jogos  acabou  sendo  o  que  habitou 
meus  ouvidos  essa  época,  e  me  levou  a  ter vontade de conseguir tocar as músicas fora dos botões de 
plástico. Comecei aulas em grupo de violão, onde aprendi alguns acordes.  
Eventualmente  me  separei  dessas  aulas  e  comecei  um  período  bem  comum  às  minhas 
práticas,  que  é  o  de  aprender sozinha, olhando as cifras e tablaturas das músicas que eu queria tocar 
na  internet  e  aprendendo  o  que  seria  necessário  para  tocá-las.  Passei  muito  tempo  assim,  fazendo 
música  no  quarto,  violão,  voz  e  computador.  Ainda  tenho  nesse  navegador  uma  pasta  de  favoritos 
chamada  “Cifras/Tabs”,  onde  mantinha  as  que  eu  mais  gostava  de  tocar  em  fácil  acesso.  Pouco 
tempo  depois,  ganhei  uma  guitarra  de  aniversário  e  encontrei  uma  motivação  para  voltar  a  fazer 
aulas,  dessa  voz  no  instrumento  elétrico.  O  professor  que  me  foi  recomendado  fazia  aulas 
individuais  e  em  grupo,  de  maneira  parecida  com  o  que  vivi  nas  disciplinas  de  Prática  Musical 
Coletiva  na  UFRGS.  Após  menos  de  um  ano,  meus  horários  individuais  com  o  professor  foram 
sendo preenchidos por aulas de teoria musical, escalas, formação de acordes e improvisação. Não era 
o  que eu queria aprender naquele momento, e minha última aula foi selada por eu dizendo que “Eu 
não  preciso  saber  isso,  a nal  quem  sabe  disso  é músico, e eu nunca vou trabalhar com música!”. Eu 
tinha 13 anos. 
Mesmo  sem  aulas,  não  parei  de  tocar  violão  e  cantar.  Por mais que as músicas que eu ouvia 
mudassem, e a maneira como eu descobria elas se diversi cassem, tocar e cantar continuava ali. Uma 
grande  mudança  desse  período  que  seguiu  foi  em  relação a mim e a meu autodescobrimento. Com 
14  anos,  lembro  de  falar  para  meus  amigos  que  eu  era  gay,  conclusão  que  cheguei  de  maneira 
resistida,  sofrida.  Era  algo  que,  quando  comecei  a  re etir  a  respeito,  era  fonte  de  angústia  e 
estranhamento.  Parecia  uma  quebra  de  regras,  uma  opção  que  não  havia  sido  dada  a  mim,  foi 
catalisador  de  um  momento  conturbado  na  minha  família,  e  encontrei  muito  refúgio  na  música 
nessa época. Foi, para mim, um lugar de desenvolver uma identidade, um discurso.  

11 
Não  foi  muito  tempo  depois  em  que  minha  identidade  passou  por  mais  um  processo  de 
elaboração  dentro  de  mim,  quando  aos  15  anos  eu  manifestei  pela  primeira  vez  que  não  me sentia 
um  homem,  como  eu  havia  passado  minha  vida  inteira  sendo  tratada1.  Ao contrário da questão da 
sexualidade,  mencionada  anteriormente,  essa  é  uma  que  foi  externalizada  de  maneira  muito  mais 
cautelosa  e  lenta,  visto  que  nem  eu  mesma  tinha  um  entendimento  completo  sobre  o  que  isso 
signi cava. Eu só sabia que, sicamente, meu corpo me desagradava, eu sofria de disforia de gênero. 
Foi  conciliando  essas  questões  internas  que  cheguei  no  último  ano  da  escola,  tendo  que 
decidir  o  curso  para  o  qual  eu  prestaria  o  vestibular.  No  último  dia  de  inscrição  escolhi  música. 
Escolhi  entender  porque  esse  negócio  estava  sempre  habitando  meus  ouvidos.  Como  o  prazo  era 
curto,  recorri  a  uma  meia  dúzia  de  aulas  com  um  professor  particular,  para  entender  o  que  seria 
exigido  de  mim  na  prova  de  habilitação  especí ca.  A  prova  possuía  dois  momentos:  um  prático  e 
um  teórico.  No  prático,  o  repertório  era  de  escolha  livre,  desde  que  se  tratasse  de  duas  peças 
contrastantes.  Após  tocadas  as  peças,  era  realizado  um  solfejo  e  uma  leitura  à  primeira  vista  no 
instrumento  escolhido  no  momento  da  inscrição.  Em  outro  dia  na  mesma  semana,  era  realizada  a 
prova  teórica,  que  contava  com  conhecimentos  de  percepção  musical,  harmonia,  reconhecimento 
dos  modos,  tons  e  escalas.  A  primeira  questão  que  encontrei  di culdade  nas  aulas  era  a escolha do 
repertório.  Nesse  momento,  minha  prática  no  violão  era, majoritariamente de arranjos que eu fazia 
baseados  em  trilhas  sonoras  dos  videogames  que  eu  jogava.  Quando  mostrei para o professor, senti 
um  estranhamento,  como  se  esse  repertório  não  estivesse  em  um  lugar  comum,  o  que  para  mim 
evidentemente  estava,  mas  havia  dois  territórios  claramente  diferentes  em  jogo  ali.  Buscamos 
pesquisar  no  que  poderia  haver  de  comum  entre  o  meu  território  e  o  dele,  e  chegamos  em  duas 
canções, uma de Chico Buarque e outra de Stevie Wonder.   
Obtive  sucesso  tanto  no  processo  da  habilitação  especí ca  quanto  no  vestibular,  e,  em 
2016,  estaria  começando  meu  primeiro  semestre  da  faculdade.  Lembro  de  um  encontro  que  foi 
feito  entre  calouros/as  e  veteranos/as  antes  do  início  do  semestre.  Quando  fui  me  apresentar  lá, 
disse  que  meu  nome  era  “Bê”,  e  recebi  expressões  confusas  em  resposta.  Rapidamente  corrigi, 
dizendo  que  era  apenas  um  apelido,  e  que  meu  nome  inteiro  seria  “Be____”.  Minha  trajetória 
dentro  da  faculdade  foi  abundante  em  momentos  similares  a  esse,  de  uma  confusão  pronominal, 
uma  constante  necessidade  de  estar  explicado  meu  nome,  minha  identidade,  meus  pronomes.  Foi 
no  meu  terceiro  semestre  que  comecei  a inserir mais incisivamente que sou não-binária quando me 
apresentava. 
Foi  no  terceiro  semestre,  também,  que  parei  de  levar  meu  violão  para  as  disciplinas  de 
Prática  Musical  Coletiva,  e  comecei  a  assumir  o  papel  de  cantora  e  “tocadora  -  de  -  computador”, 
impulsionada  por  vivências  que  tive  em  2016,  conhecendo  o  grupo  Medula2  e  tendo  minhas 
primeiras  experiências  com músicas que lançavam mão do computador como instrumento musical. 
No  segundo  semestre  da  Prática  Coletiva,  a  professora  Isabel  nos  levou  alguns  equipamentos  para 
experimentarmos:  um  looper,  um  pedal  de  voz, dois sintetizadores. Sugeri que  zéssemos algo com 
loops ou trilha (Era “Angolana”, do grupo Metá Metá que tocávamos) e Isabel disse pra eu trabalhar 

1
Uma discussão mais extensa sobre identidades e performatividades de gênero estará presente nos capítulos posteriores.  
2
Coletivo de experimentos sonoros situado dentro do Instituto de Artes da UFRGS, formado por professoras/es, 
bolsistas e membros externos à Universidade. O grupo servia tanto de espaço de criação artística quanto acadêmica, com 
orientações dos/das professores/professoras.

12 
nisso  em  casa.  Só  que  eu  não  tinha  nada  disso!  Tratei  de  conseguir  uma  placa  de  som  e  um 
microfone,  os  mesmos  que  me  acompanham  até  hoje.  Procurei no google qual era o programa que 
as  pessoas  usavam,  e  vários  links  me levaram em direção ao Ableton Live, que hoje é o centralizador 
da minha realização de música no computador.  
Aí  que  comecei  a formar a coleção de equipamentos que até hoje me ajudam a fazer música, 
montei  o  homestudio  onde  desenvolvo  as  músicas que falarei aqui. Ao meu computador, está ligada 
uma  placa  de  som  (marca Focusrite), na qual possuo duas entradas, uma das quais está estragada. O 
utensílio  que  mais  ligo  nela  é  um  microfone  condensador, da mesma marca. No meu computador, 
esses  sinais  são  processados  pelo  software  Ableton  Live,  e  monitoro  as  saídas  de  som  por  caixas  de 
som  da  marca  KRK.3  De  certa  forma, o violão, voz e computador que praticava há anos ainda estão 
presente, mas com uma ressigni cação desses elementos. 
As  práticas  que  desenvolvi  a  partir de 2017, então, estavam ancoradas fortemente no uso de 
eletrônicos,  tanto  em  minhas  práticas  de  composição sozinha, quanto as experiências em grupo (na 
Medula,  nas  Elatrônicas4,  nas  ReVolcadas5),  e  ao  nal  desse  ano,  já estava  cando mais clara dentro 
de  mim  a  ideia  de  que  eu  gostaria  de compor músicas no meu TCC, coisa que eu nunca tinha feito 
antes.  Meu  estudo  de  voz  começou  em  2017  também,  com  aulas  particulares  e  uma  experiência 
cantando  em  um  Coro,  de  repertório  primariamente  erudito.  Esse  momento  foi  de  uma  urgência 
muito  grande,  uma  busca  identitária  muito  forte,  similar  aos  anos  anteriores  que  narrei,  como  o 
descobrimento de uma sexualidade, de um gênero.  
Meus  questionamentos  sobre  as  relações  de  gênero  foram  fomentadas  amplamente  pelo 
meu  convívio  com  o  grupo  Sônicas  -  Gênero,  Corpo e Música, grupo de pesquisa coordenado pela 
professora  Isabel  Nogueira,  no  Instituto  de  Artes  da  UFRGS.  Comecei a ter contato direto com as 
ações  do  grupo  na  segunda  metade  de  2017,  e  foi  aí  que  me  aprofundei  nos  estudos  de  gênero, 
questões  essenciais  para  minha  formação  acadêmica.  Em  2018,  junto  ao  grupo,  desenvolvemos  a 
ação  de  extensão  Ciclo  Sônicas  -  Músicas  de  Mulheres,  onde  promovemos  concertos  mensais  que 
visibilizassem  a  obra  de  mulheres  compositoras.  Os  nove  concertos  ocorreram  dentro  dos  espaços 
da UFRGS, entre os meses de março e dezembro. 
A  segunda  metade  do  meu  curso  foi  com  esse  rmamento  maior  na  questão  da  minha 
identidade,  tanto  pessoal  quanto  musical.  Tive  a  oportunidade  de  trabalhar  e  tocar  com  grupos, 
mas  nunca  havia  constituído um projeto meu, algo que re etisse esses movimentos, principalmente 
de  gênero,  em  uma  identidade  artística.  No  m  de  2018,  dei  o  nome  Viridiana  a  algo  que  eu  não 
sabia  direito  o  que  seria,  mas  que,  na  minha  cabeça,  já  existia.  Um  projeto  de  canções,  de 
performance,  de  audiovisual, de materiais meus, que seria onde eu faria minhas experimentações no 
TCC.  Abaixo,  um  registro  de  um  momento  que  sinto  que  representa  uma  culminação  desse 
processo de descobrimento e elaboração de uma persona artística, uma foto de uma apresentação da 
Medula, em formato de trio, em uma apresentação em julho de 2018: 
 

3
Os procedimentos que utilizam esses equipamentos, a maneira como eu emprego cada um deles e mais exemplos de 
equipamentos são detalhados no capítulo 3. 
4
Grupo formado por Alessandra Bocchio, Bê Smidt, Isabel Nogueira e Isadora Nocchi Martins. O coletivo realizou 
performances interdisciplinares, dialogando com a arte sonora, a improvisação e as artes visuais.  
5
Duo formado por Bê Smidt e Isadora Nocchi Martins que realizou performances improvisadas utilizando 
sintetizadores da linha Volca, produzidos pela empresa Korg.  

13 
 

 
fig  1.  Apresentação  da  Medula,  no  Projeto  Concha6  de  Julho  de  2018.  Na  foto,  Isadora  Martins  (Guitarra, 
esquerda), Isabel Nogueira (Voz e Synths, Centro) e eu (Voz, Synths e Guitarra, direita) 
 
Fazendo  esse  movimento  de  olhar  para  trás,  explicitar  minha  trajetória,  que  consigo  ter 
dimensão  do  que  quero  fazer  com  essa  pesquisa  baseada na prática artística, partindo do meu lugar 
de  fala  de  pessoa  não-binária,  branca  de  classe  média.  Trago  isso  para  a  escrita  pensando  no  que 
López-Cano e Cristóbal comentam sobre a prática de pesquisa artística:  
 
[...]caracterizada  por  uma  re exão  constante  sobre  sua  própria 
prática  artística  e  a  problematização  dos  aspectos  da  sua  atividade  artística 
pessoal  junto  dos  seus  arredores,  para  elaborar  diagnósticos,  análises, 
re exões  e  soluções. Junto disso, a construção de um discurso próprio sobre 
a  sua  proposta  artística,  que  ponha  em  primeiro  plano  uma  argumentação 
e caz  sobre  seu  aporte  pessoal  à música de nossos dias [...]7 (CANO e SAN 
CRISTÓBAL, 2014, p.82). 
 
 

6
Ciclo de shows de mulheres compositoras, que ocorreu em Porto Alegre em 2018 e 2019, no espaço do bar Agulha.  
7
Original: “La re exión continúa sobre su propia práctica artística. La problematización de aspectos de su actividad 
artística personal y de su entorno para ofrecer diagnósticos, análisis, re exiones y soluciones. La construcción de un 
discurso propio sobre su propuesta artística que ponga en primer plano una argumentación e caz sobre su aporte 
personal a la música de nuestros días.” (Tradução da autora)  

14 
Minhas  re exões,  antes  de  começar  a  desenvolver  esse  projeto,  estavam  muito  preocupadas 
com  o  formato.  Eu  sabia  que  queria  compor  músicas, e que também queria desenvolver o processo 
de  gravação  e  produção  em  homestudio,  como  vinha  fazendo.  Ao  mesmo  tempo,  queria  trazer  essa 
produção  para  fora,  visibilizando  um  trabalho  que  falaria  do  meu  gênero  e  de  minha  narrativa 
pessoal e artística. Pelas minhas vivências anteriores com grupos que se apropriavam da metodologia 
do  diário  de  bordo,  como  a  Medula  e  os  pesquisadores  e  pesquisadoras  do  Sônicas,  decidi  iniciar 
um  que  documentasse  meu  processo, minhas decisões, meu sentimentos acerca desse trabalho. Esse 
dispositivo  de  metodologia  se  faz  presente  em  algumas  práticas  de  pesquisa  artística,  e, 
resumidamente,  propõe-se  a  ser  um  registro  constante  das  ações  tomadas  dentro  da  pesquisa.8 
Escrevi, no dia 11 de janeiro de 2019: 
 
"[...]  Quero que eu me escute. Penso que no fim do ano eu esteja fazendo uma performance com 
as  minhas  músicas.  Não sei quais, quantas, como. Não sei mesmo, mas não saber me traz um pouco de 
conforto, me instiga." (11/01) 
 
Vejo  essas  duas  possibilidades,  o  lançamento  da  coletânea  de  músicas  em  um  EP9  e  a 
performance,  como  complementares,  e  ambas  como  focos  de  discussão  aqui. De um lado, a análise 
do  processo  de  composição  -  gravação  -  produção  em homestudio, e, de outro, a transposição desse 
material  para  o  ambiente  da  performance  pública,  analisando  como/se  esses  materiais  se 
transformaram,  se  houve  a  adição  de  materiais  novos,  se  há  uma  possível  re-contextualização  do 
material  aí.  Ao  invés  de  confrontar  esse  binarismo,  decidi  assimilá-lo  ao  projeto,  compreendendo 
esses  dois  momentos  como  etapas  de  um  processo,  que  se  in uenciam,  retroalimentam  e 
atravessam.  Uma  discussão  prolongada  dessas  questões  será  desenvolvida  nos  capítulos  2,  3  e  4, 
quando se tratar da composição das músicas, criação de vídeos e elaboração da performance.  
 
 
Com  essa  re exão  em  mente,  tenho  em  mente  que o objetivo do trabalho é a elaboração de 
uma  performance  audiovisual  com  músicas  e  vídeos10  criados  por  mim.  Esse  processo está cruzado 
pela  criação  de  um  EP,  que será lançado anteriormente à realização da performance, e cujas músicas 
estarão  presentes  na  performance  também. As re exões que traçarei aqui, no escrito, partirão desses 
processos  de  criação  relacionados  com  a  Pesquisa  Artística  e  os  Estudos  de  Gênero,  com  os  quais 
tive  amplo  contato  durante  minha  graduação.  Também  estarão  marcadas,  inevitavelmente,  pelos 
marcadores que carrego comigo, como branca, de classe média e do Sul do Brasil.  
Relacionando  essa  visão  atravessada  da  produção  do  material  musical  do  projeto, 
relembro-me  dos  estudos  de  gênero  e  penso  “não  é  assim  que  eu  vejo  a  minha  identidade?  Como 
um  entre-lugar?  Não  seria  um  projeto  que  se debruçasse sobre as diferentes formas que um mesmo 
material  pode  tomar  um  projeto  não-binário?  Há  outros  entre-lugares  nesse  projeto?  Como 

8
Uma descrição e discussão acerca do diário está presente em 1.1 
9
Sigla, em inglês, de Extended Play. Formato de lançamento de músicas situado, em termos de duração, entre o single e 
o LP (Long Play).
10
Originalmente, o primeiro contato que eu tive com esse tipo de performance foi com Luciano Zanatta e Chico 
Machado na residência artística que a Medula realizou em 2016. Descrevo esse momento e essas referências com maior 
detalhe no capítulo 3. 

15 
investigá-los?”.  Fica  nítida  a  relação  que  a  minha  prática  musical  tem  com  minha  identidade 
não-binária,  e  como  quero  articular  essa  discussão  nas  páginas  que  preencho  nesse  trabalho, 
articular  minha  performatividade  com  minha  performance,  minha  teoria  com  minha  prática, 
minha pessoa com minha música. 
Iniciarei  a  discussão,  no  capítulo  1,  com  um  apanhado  teórico  sobre  as  áreas  de 
conhecimento  que  julgo  essenciais  para  o  entendimento  dos  processos  da  criação  das  músicas  e  da 
performance.  No  segundo  capítulo,  tratarei  dos  processos  de  criação  das  músicas,  realizando, 
também,  uma análise dos processos de gravação, edição e mixagem das obras. No capítulo 3, tratarei 
de  outro  eixo  de  criação  da  performance:  do  eixo  visual,  por  meio  dos  vídeos.  Na  quarta  seção, 
relatarei  os  aspectos  da  performance  como  local,  montagem,  gurino,  um  relato  de  sua  realização, 
entre  outros.  Por  m,  um  apanhado  de  todos  esses  processos  e  cruzamentos  encerra  essa  parte 
escrita  da  pesquisa.  O que segue, agora, são os fundamentos teóricos que lanço mão para discutir os 
diversos processos e momentos do trabalho. 
 
  

   

16 
 

1. Referencial Teórico 
A Risada sem Riso 
O Riso sem Risada 
A Risada Chorada 
A Risada da Ignorância 
A Risada substituindo a Fala 
A Risada Substituindo a Resposta 
(Walter Smetak, adaptado) 
 
Em  vista  das  perguntas  sobre  as  quais  eu  me  propus a re etir, parto a analisar a bibliogra a 
que  me  ampara  na  re exão  sobre  esses  tópicos.  Como  mencionei  na  introdução,  meus  estudos 
durante  a  graduação  foram  mediados,  e  amplamente  moldados,  pelo  envolvimento  com  dois 
grupos,  a  Medula  e  o  Sônicas  -  Gênero,  Corpo  e  Música.  Em  ambos,  tive  contato  com  a 
metodologia  de  Pesquisa  Artística,  e  com  o  campo  de  estudos  de  gênero  em  música.  É  partindo 
deles que me equipo teoricamente neste trabalho, iniciando pela pesquisa artística.  
 

1.1 Pesquisa Artística: Ações e Métodos 


Inicio  a  análise  bibliográ ca  do  projeto  re etindo  acerca  dos  métodos  utilizados  para 
desenvolvê-lo,  que  nesse  caso  é  a  Pesquisa  Artística.  A  Pesquisa  Artística  existe  dentro  de  um 
“território”  como  modo  de  re etir  e  pesquisar  dentro  das  artes,  contraposta  à  pesquisa  cientí ca, 
que  também  teria  seu  próprio  território  de  funcionamento  (COESSENS,  CRISPIN, DOUGLAS 
2009:  p.22).  O  campo  da  Pesquisa  Artística,  de  acordo com as autoras, não é novo, mas remonta às 
origens  das  civilizações  (“desde  que  seres  humanos  possuem  a  capacidade  de  observar  e  avaliar 
artefatos  humanos”11),  e  é  inserido  na  academia desde o século XX. Apesar disso, a maneira como a 
arte  era  tratada,  em  termos  de  pesquisa,  era  sendo  vista  de  forma  “externa”,  ou  seja,  com  o  objeto 
artístico  e o/a artista sendo observados de fora, fazendo sempre o uso de outras disciplinas e áreas do 
saber,  negligenciando  a  visão  de  “dentro”  do  processo,  já  que  o  processo  criativo  seria  visto  como 
“oculto”  e  “inacessível  ao  discurso  cientí co”.  Propondo-se  a  uma  possível  sistematização  das 
maneiras  de  se  pesquisar  em  artes,  Frayling  propõe  um  modelo  triádico  de  Pesquisa  Artística:  A 
Pesquisa  em  Artes,  Pesquisa  para  as  Artes  e  Pesquisa  através  das  Artes  (FRAYLING,  1993  apud 
COESSENS, CRISPIN, DOUGLAS 2009: p.26).  
A  Pesquisa  em Artes é talvez a mais assimilada dentro de universidades e conservatórios, e se 
destina  a  realização de re exão a partir do material artístico de forma externa, muito parecido com o 
que  foi  evidenciado  em  COESSENS  (2009), como se realizam nos campos da etno/musicologia, da 

11
Original: research about art has been part of human society ever since human beings had the capacity to evaluate and 
criticise human artefacts. 

17 
pedagogia,  psicologia  e  etc.  A  Pesquisa  para  as  Artes  é  a  que  se  propõe  na  criação  de  ferramentas 
que  informem  ou  auxiliem  a  prática  artística,  como  a  criação  de  métodos  pedagógicos,  ou  a 
pesquisa  em  recursos  tecnológicos  aplicados  às  artes.  Por  m,  a  Pesquisa  através  das  Artes  (ou 
simplesmente  Pesquisa  Artística),  a  modalidade  que  empregarei  amplamente  aqui,  é  a de de nição 
mais  esguia  e  complexa  (LÓPEZ,  SAN  CRISTÓBAL,  2014),  e  dedico  alguns  momentos  à 
elaboração desse pensamento.  
  Em  COESSENS  et  al.  (2009),  as  autoras  enumeram  algumas  diferenças entre os processos 
da  pesquisa  cientí ca  tradicional  e  a  pesquisa artística, a primeira das quais se situando no domínio 
de  atuação:  “No  caso  da  ciência,  o  objetivo  dos  esforços  está  limitado  pelas  fronteiras  de  situações 
do  mundo  real;  no  caso  das  artes,  esse  objetivo  é  limitado  apenas  pelas  fronteiras  impostas  pela 
imaginação  humana”  (COESSENS,  CRISPIN,  DOUGLAS  2009:  p.24)12.  Observando  esse 
aspecto  de  diferentes  domínios,  Velardi  explicita  o  que  poderia  ser  visto  como  uma  de nição 
auto-contida  da  Pesquisa  Artística  como  um  “modo  de  pesquisar  que  centraliza  suas  re exões  nos 
processos  e  objetos  artísticos,  sem  necessariamente  se  basear  nos  princípios  de  reprodutibilidade  e 
observação,  privilegiados  por  pesquisas  quantitativas  e  qualitativas,  por  exemplo”  (VELARDI, 
2018).  Gostaria  de  re etir  um  pouco  sobre  essa  de nição.  Pensando  nos  objetos  artísticos  que 
estariam  em  jogo  aqui  nessa  pesquisa,  podemos  enumerar  alguns:  as  canções  compostas,  os  vídeos 
construídos  com  as  canções  e  a  performance  em  mente,  e  até  a  própria performance. É a partir dos 
processos  de  criação  desses  elementos  que  surgirão  os  problemas  e  suas  (possíveis)  soluções.  Isso, 
contudo,  contraria  o  que  Nicholas  Cook  descreve  como  o  paradigma  tradicional  da  musicologia, 
que  vê  o  “processo  como  sendo  subordinado  ao  produto”  (COOK,  2001  p.  7).  Para  Cook,  que 
elabora  em  seu  trabalho uma crítica e uma reformulação desse paradigma, a ideia do objeto artístico 
(nesse  caso,  a  música)  ser  analisado  somente  em  seu  estado  nal  vem  da  lologia  e  do  estudo  de 
textos  literários,  onde  há  um suporte físico, escrito e  xo da obra, que é interpretada e contemplada 
em  silêncio.  Contudo,  em  se  tratando  de  música,  principalmente  de  música  popular,  o  suporte 
escrito  não  é  uma  entidade  sempre  presente,  e  quando  presente,  ele  necessariamente  passará  pela 
gura  do/da  performer,  que  serve  de um “intermediário” nessa comunicação, podendo modi cá-la, 
com níveis variados de liberdade. 
A  partir  disso,  Cook  defende  o  que  seria  uma  musicologia  da  performance,  baseada  nesse 
borramento  de  territórios  (mais  sobre  esse  conceito  será  apresentado  neste  capítulo)  entre  o 
processo  e  o  produto,  havendo  uma  construção  de  sentido  no  próprio  ato  da  performance  e 
fazendo dela um fenômeno irredutivelmente social (COOK, 2001 p. 11).  Para incorporar essa visão 
social  e  que  privilegia  o  processo  na  pesquisa, encontro na Pesquisa Baseada em Artes uma  loso a 
de  pesquisa  que  me  parece  contemplar  essas  questões.  Relembrando  a  distinção  em  três  tipos  de 
pesquisa  artística  de  Frayling,  Pentassuglia  (2017)  pensa  na  Pesquisa  Baseada  em  Artes  como  uma 
metodologia  que  parte  dos  próprios  processos  como  elaboradores  de  problemas  e  soluções,  de 
forma  semelhante  à  musicologia  proposta  por Cook.  Questiono então, como esse sentido social da 
análise  da  performance  se relaciona com as análises de processo da Pesquisa Baseada em Artes?  Para 

12
Original: In the case of science the goal of the endeavour is limited by the constraints of real-world situations; in the 
case of art this goal is limited only by the constraints of human imagination. (tradução da autora) 

18 
responder  esse  questionamento,  procuro  me  debruçar  mais  especi camente  sobre  a  elaboração  da 
metodologia que empreguei aqui. 
A  elaboração  da  metodologia  na  Pesquisa  Baseada  em  Artes  é  um  território  difícil  de 
mapear,  por  se  dar  um  processo  que  é  imprevisível  e  sincrético  (como  descrito  em  COESSENS 
2009),  além  de  ser  uma  proposta  do  trabalho  a  re-avaliação  de  que  fatores  estão  em  jogo  nos 
processos de composição e performance. Hannula (2005) ressalta:  
 
Comumente,  o  tópico  de  pesquisa  é  algo  que  se  relaciona  à  experiência 
artística,  ao  trabalho  artístico  ou  ao  olhar  do  artista  em  si. Entretanto, para 
o  artista,  esse  ponto  de  partida  pode  ser  tão  auto-evidente,  que  ele/ela 
encontra  di culdade  para  considerar  uma  metodologia  para  abordá-lo. 
(HANNULA et al., 2005) 
 
O  autor  vê  que  é  nesse  ponto  em que talvez a pesquisa artística mais encontre diferenças da 
pesquisa  cientí ca,  da  mesma  maneira  que  as citadas anteriormente, e ele relaciona a metodologia a 
um mecanismo de poder:  
 
Desse  ponto  de  vista,  a  função  sistemática  de uma metodologia é fazer com 
que  a  pesquisa  seja  o  mais  transparente  e  aberta  o  possível.  Em  outras  palavras,  o 
método  está  lá  para  que  se  tenha  um  jeito  fácil de criticar a pesquisa, tendo ela sido 
feita  por  uma/um  “mestra/mestre”  ou  uma/um  “iniciante”.  Isso  quer  dizer  que  a 
avaliação  do  conhecimento  cientí co  é,  em  princípio,  intersubjetiva  (o  que  alguns 
chamariam de “objetiva”) e pública. (HANNULA et al., 2005 p. 57)13 
 
Como  conciliar,  então,  a  elaboração  de  uma  metodologia  condizente  com  o  (meu)  modo  de 
produção  artística que não ponha em xeque o processo criativo, e que ao mesmo tempo seja passível 
de  argumentações  e  diálogos  com  o  campo  de  estudo?  Em COESSENS (2009), a questão é tratada 
da seguinte forma:  
 
De  um  ponto  de  vista  metodológico  [...]  nós  podemos  oferecer  alguns  conceitos 
que  podem  ajudar  a  trajetória  da  Pesquisa  Artística  para  de nir  sua  trajetória  e 
possíveis  relações  com  outras  áreas de pesquisa. Os três conceitos apresentados aqui 
não  exaurem  o  potencial  desse  domínio,  mas  oferecem  um  início.  Primeiro,  a 
Pesquisa  Artística  deve  frisar  a  sua  localização,  sua  relação  com  um  contexto 
especí co.  Isso  pode  ser  articulado  em  termos  de referencial, meio ou material, essa 
diversidade  adiciona,  e  não  subtrai,  valor  à  pesquisa.  Segundo,  a  Pesquisa  Artística 
deve  estimular  uma  forma  de  auto-re exão,  característica  da  modernidade,  que  se 

13
Original:  From  this  point  of view, the systematic work that a research methodology has to do is to make the research 
as  transparent and open as possible. In other words, the method is there in order to make it easy to criticise the research, 
whether  the  research  is  produced  by  a  “master”  or  by  a  “novice.”  This  means that the evaluation of scienti c skill and 
knowledge is, in principle, intersubjective (some would like to say “objective”) and public. Consequently, science has an 
internal process for “error correction” or change. (tradução da autora) 

19 
permita  gerar  relações  entre  o  objeto  e  o  sujeito  da  pesquisa.  Terceiro,  ambas  as 
posições  podem,  juntas,  levar  a  uma  pesquisa  que  combine  tanto  visões  críticas 
quanto  analíticas  sobre  arte,  gerando  maneiras  conscientes  de  analisar  o  objeto 
artístico. (COESSENS, CRISPIN, DOUGLAS 2009 p. 41)14 
 
 
Com  esses  dois  pontos  de  vista  em  mente,  introduzo,  agora,  os  dois  mecanismos  principais  que 
balizam  o processo da pesquisa, apresentados em López e San Cristóbal, 2014: O Ciclo de interação 
e  retroalimentação  entre  prática  artística  e  re exão  e  o  Diário  de  Bordo.  O  primeiro  consta  na 
imagem  abaixo,  reproduzido  de  LÓPEZ  e  SAN  CRISTÓBAL,  2014  p.169:

 
Essa  imagem  dialoga  com o que foi elencado pelas autoras em COESSENS (2009), uma vez 
que  lida  com  o  problema  da  situação  de  localização  e  diálogo  com  seus  contextos 

14
Original:  From  a  methodological  point  of  view,  and  drawing  on  the  examples  above, we might o er some concepts 
that  could  help  the  trajectory  of  artistic  research  to  de ne  further  its  relations  and  possible  interactions  with  other 
forms  of  research.  The  three  concepts  developed  here  do  not  exhaust the potential of this domain but o er a tentative 
beginning.  First,  artistic  research  should  stress  its  ecological  situatedness,  its  relation  to  the  speci c  context.  Whether 
this  is  articulated  in  terms of the intellectual framework, the medium or the material, it is of added value, as opposed to 
nuisance  value,  in  the  research.  Secondly,  artistic  research  should  stimulate  a  form  of  self-  re ection  that  is  a 
characteristic  of  modernity  and  which,  through  re exive  emancipation,  can  open  up  new  possibilities  for 
subject/object  relations  in  research.  Thirdly  both  positions  could,  together,  lead  to  research  that  combines  art-critical 
and  art-analytical  points  of  view, moving towards forms of interpretation that are 'semiotically conscient'. (tradução da 
autora)

20 
(“Re exão-Conceitualização”),  ao mesmo tempo em que estabelece uma relação próxima do sujeito 
com  o  objeto  (“Registro”),  e  promove  ações  artísticas  embasadas  a  partir  dessa  experiência 
(“Planejamento  de  novas  ações  criativas”). Recordo-me dos momentos iniciais da concepção de um 
projeto  desse  trabalho,  e  na  eventual  elaboração  de  uma  metodologia  para  sua  execução,  na  qual 
estaria prevista a composição das canções e dos vídeos, e onde tive grande di culdade para conseguir 
sistematizar  esses  momentos  e processos em uma sequência que não fosse prescritiva ou impeditiva. 
Pensando  no  raciocínio  apresentado  na  imagem,  e  comparando  com  a  metodologia  que  eu  havia 
traçado,  há  uma  inversão  do  que  é  proposto  por  López  Cano  e  San  Cristóbal.  O  uxo  está,  de 
acordo  com  o  autor  e  a  autora,  no  movimento  circular  entre  as  etapas  do  trabalho,  e  não  em  uma 
hierarquização de processos e métodos. Esse constante movimento foi um dos motivos pelos quais a 
elaboração  de uma metodologia  xa e prescritiva, no momentos iniciais da elaboração desse projeto, 
mostraram-se  muito  difíceis  para  mim,  e  decidi,  portanto,  elencar  diferentes  ações  que  tivessem 
relação  com  meus  processos,  e  dividi-las  em  protocolos  de  ação.  No  caso,  a  partir  de  uma  prática 
que  já  estava  “em movimento”, procurei identi car que ações se faziam presentes corriqueiramente: 
15
 
 
● A composição das minhas músicas parte de gatilhos, que podem ser/foram 
○ Beats ou melodias elaboradas em momentos de improviso; 
○ Textos que produzi em outros momentos da minha trajetória 
○ Pedaços de poesias que surgem em improvisos 
● A  partir  desses  materiais  iniciais,  busco  expandi-los,  ora  pela  improvisação  em  cima  deles, 
ou  pela  busca  de  outros,  que  eu  julgo  que  posso  combinar,  a  m  de  formar 
seções/ambientes  diversos.  A  busca  por  esses  materiais  diversos  pode  se  dar  em  ambientes 
fora da música, como a busca por samples de vozes faladas 
● Trabalho  muito  com  a  escuta  repetida  dos  materiais  que já tenho, deixando as partes que já 
possuo em loop muitas vezes 
● Os  processos  de  composição-gravação-mixagem  se  confundem  e  se entrelaçam, e noto uma 
preferência minha por deixar cada seção mixada antes de seguir para a próxima 
● A  busca  nas  referências  musicais  que  tenho  como  um  caminho  de  tomada  de  decisões  na 
composição 
● A  busca,  também,  nos  procedimentos  improvisatórios  tanto  no  meio  digital  (como  no 
processamento  de  efeitos  em  clipes  de  áudio)  quanto  nos  físicos  (como  o  improviso  com 
voz) como uma possível resolução de problemas na composição 
 
Visto  que  elaborei  esses  protocolos  após  o  início  da  imersão  no  processo,  um  mecanismo  muito 
importante  para  sua  elaboração  foi  o  Diário  de  Campo  (ou Diário de Bordo), mecanismo presente 
em  diversas  abordagens  da  pesquisa  artística,  tido  como  um  registro  dos  processos,  dados  e 
descobertas  do  trabalho,  aliados  também  ao  registro  das  impressões  subjetivas  por  parte  da/do 
pesquisadora/pesquisador  (LOPEZ-CANO,  SAN  CRISTÓBAL  2014  p.110).  Esse  registro 
recorrente  do  “agora”  na  pesquisa,  que  está  sempre  em  andamento,  fornece  um  olhar  para  dentro 

15
Uma exploração maior dos processos e do ambiente da criação das músicas está presente no segundo capítulo do 
trabalho. Aqui procuro apenas introduzir os protocolos de ação como descritivos do processo, e não prescritivos. 

21 
do  processo,  como  se  eu  estivesse  dando  acesso  ao  banco  de  dados  que  fomenta  toda  essa pesquisa 
(HANNULA et al., 2005 p.16). 
Em  momentos  iniciais  dessa  produção,  preocupei-me  com  a delimitação de momentos nos 
quais  escreveria  no  diário,  a  m  de  manter  uma  periodicidade  nos  registros  das  ações  da  pesquisa. 
Notei  que  os  mais  recorrentes  na  escrita  eram os momentos pós-sessão de composição. Notei que a 
tomada  de  decisões  durante  esse  processo  era  um  elemento  do  qual  eu  me  esquecia  dos  detalhes 
com  certa  rapidez,  procurei  registrar  esses  momentos,  então,  no  próprio  dia.  Além  desses,  há 
momentos  de  escrita  (contudo,  mais  esporádicos)  em  dias  no  qual  me  debruço  sobre  a  elaboração 
deste  texto.  Mesmo  com  esses  dois  gatilhos  iniciais, não me proíbo de escrever no diário momentos 
de  dúvida,  de  angústia  ou  nervosismo  com  o  trabalho/com  as  composições,  pois  sinto  que  elas 
integram a pesquisa de maneira tão efetiva quanto decisões mais concretas.  
Os  protocolos  de  ação  e  o  diário  de  bordo  vêm,  então,  tentando  dar  conta  de  uma 
sistematização  do  processo  composicional,  mas  demonstrando que no próprio ambiente da criação 
do  material  há  uxos  e  diferentes  territórios  que  se  con guram.  Esse  movimento de redesenhar os 
territórios  do  trabalho  pode  ser  entendido  sob  a  loso a  de  Deleuze  e  Guattari,  no  que  remete  a 
desterritorialização.  
Desterritorializar  é  entendido  como  um  processo  no  qual  um  território  é  desvinculado  de 
seus  contextos  e  entidades  prévias,  abrindo  fronteiras  e  permitindo  que  novas  relações  ali  se 
formem.  É  se  expor  a  novos  modos  de  agir,  reagir,  (trans)formar  (COESSENS,  CRISPIN, 
DOUGLAS,  2009).  Vejo  esse  pensamento  presente  especialmente  na  observação dos registros e no 
processo  de  re exão  e  conceitualização  do  processo.  Para  falar  sobre  desterritorializar,  contudo,  é 
preciso ter dimensão de qual/quais território/s estou falando.  
Os  territórios  com  os  quais  lidarei  no  projeto  são  diversos  e  vastos,  mas  elenco  alguns:  o 
território  no  qual  a  prática  musical  desenvolvida aqui está situada (criação musical em homestudio, 
seguida  de  uma  performance pública); do território que eu ocupo como artista branca, não-binária, 
dialogando  tanto  com  o  material  que  estou  construindo  quanto  com  a  realidade  na  qual  estou 
inserida,  pensando  que  toda  a  minha  produção  está atravessada pelas minhas vivências e narrativas, 
ocupando  também,  um  espaço  em  uma  universidade  federal,  em  um  curso  de  música  popular  no 
sul do Brasil que foi criado há 7 anos.  
Penso  que  essa  pesquisa,  então,  possui  essa  característica  do  diálogo  com  os  espaços  que 
ocupo  (semelhante  ao  que  foi  comentado  por  COESSENS  et  al.  2009),  tratando  de  uma  imersão 
não  só  nos  processos  e  produtos  decorrentes  dele,  mas  também  com  como  a  Universidade 
proporcionou  e  construiu  esses  diálogos  dentro  de  mim.  Como  artista-pesquisadora,  aqui,  quero 
contribuir  também  para  que  esse  trabalho  se  some  à crescente de pesquisas que se propõe a falar de 
gênero  e  música  que  é  observada  desde  os  anos  2000,  mas  intensi cada  a partir da década de 2010, 
analisada  por  Zerbinatti,  Nogueira  e  Pedro  (2018),  estabelecendo,  então,  uma  ligação  entre  a 
pesquisa  artística,  como  loso a  de  pesquisa  que  se  propõe  a  dialogar  com  as  histórias  pessoais  e 
plurais,  e  os  estudos  de  gênero,  sob  uma  ótica  interseccional  e  performativa,  que  dialoga  com  as 
minhas vivências. 
 

22 
 

1.2 Gênero: Identidades, Diálogos e Cruzamentos 


 
Inicio  a  análise  dos  territórios  de  minha  prática  musical  pelo  que  acredito  ser  o  primeiro 
que  me  marca,  o  gênero.  Mencionei  anteriormente  no  texto,  mas  reforço  que  me  identi co  como 
não-binária,  e  dedicarei  essa  seção  a  elucidar  esse  termo  também.  De  início,  por  “Gênero” 
entende-se  uma  categoria  a  qual  pode  ser  (inicialmente)  de nida  como  uma  interpretação  da 
categoria  “Sexo”  de  cada  um/uma  (BUTLER,  1990).  Reformulando:  Gênero  pode  ser entendido 
como  as  “características  comportamentais,  culturais  e  psicológicas  que  são  comumente  associadas 
com a construção identitária do sexo” (MORROW, MESSINGER 2006: p. 8).  
Ambas  as  de nições  apresentadas  enquadram  a  discussão  e  de nição  de  gênero  em  um 
aspecto  sociológico,  porém, a discussão nem sempre se pautou por essas linhas. A medicina tendia a 
ser  o  maior  balizador  dessa  discussão,  com  trabalhos  tratando  sobre  “variância  de  gênero”  datados 
ao  início  do século XIX (STEWART, 2017). Contudo, só a partir da segunda metade do século XX 
que os estudos de gênero passam a existir como categoria inserida em outras áreas do saber, como na 
sociologia  (STEWART,  2017).  As  categorias  e  vivências  de gênero que serão discutidas aqui, então, 
partirão  desse  ponto  de  vista,  de  gênero  como  construção  e,  mais  especi camente, 
performatividade.  
Butler  (1993)  explica  por  meio  da  performatividade,  as  maneiras  como  as  quais  os gêneros 
individuais são materializados:  
 
a  performatividade  deve  ser  compreendida  não  como  um  “ato”  singular  ou 
deliberado,  mas,  ao  invés  disso,  como  a  prática  reiterativa  e  citacional  pela  qual  o 
discurso produz os efeitos que ele nomeia. O que, eu espero, se tornará claro no que 
vem  a  seguir  é  que  as  normas  regulatórias  do  “sexo”  trabalham  de  uma  forma 
performativa  para  constituir  a  materialidade  dos  corpos  e,  mais  especi camente, 
para  materializar  o  sexo  do  corpo,  para  materializar  a  diferença  sexual  a  serviço  da 
consolidação do imperativo heterossexual. (BUTLER, 1993 p. 60)  
 
Saliento  especialmente  o  último  trecho  da  citação,  onde  há  ênfase  no que seria de regulatório nessa 
materialização,  a  serviço  de  uma  normatividade,  nesse  caso  expressa  pela  heterossexualidade,  mas 
que pode ser entendida também como uma normatividade cisgênera.   
Cisgênero  é  uma  das  categorias  que  surge  ao  enunciar  o  gênero como uma construção que 
se  dá  a  partir  dos  atos  performativos,  e  corresponde  a  uma  pessoa  que  se  identi ca  com  o  gênero 
que  lhe  foi  designado  ao  nascer  (comumente  correspondente  ao  sexo  do  recém-nascido).  Uma 

23 
possível  oposição  a  categoria  “cis-”  seria  a  categoria  “trans”.  Transgênero,  portanto,  refere-se  à 
identidade  que  não  possuiria  um  acordo  com  o  gênero  designado  ao  nascer  (LESSLEY,  2017). 
Mantenho  em  mente  que  as  categorias  aqui  ainda  permanecem  binárias,  reforçando  uma 
normatividade ainda, mas uma discussão mais ampla disso seguirá.  
Para  entender  o  funcionamento  dessas  normatividades,  é  importante  analisar  o  que  seria 
(ou  seriam)  o  mecanismo  regulador  delas.  Butler  (1993)  aponta que é por meio da identi cação do 
corpo  com  o  constructo  “sexo”  que  se  viabiliza  a  própria  formação  do  sujeito,  que  caso  não  se 
possibilite,  resulta  em  um sujeito “abjeto”, ou seja, um sujeito que é invisível, que não se materializa 
frente  às  normatividades  cis-heterossexuais.  Para  Butler  (1993),  a  abjeção  é  o  repúdio  que nasce da 
resistência  às  práticas  identi catórias,  que,  evidentemente,  variam  de  acordo  com  o  local  e  época 
que  se  está  analisando.  A  partir  do  estabelecimento  dessas  categorias  e  dessa  regulação,  procuro 
re etir,  então,  o  que  podem ser consideradas categorias desviantes do modelo cis-hétero normativo, 
tanto  porque  me  identi co  como  uma  identidade  que  não  é  contemplada nisso, mas também para 
explorar  ainda  mais  uma  desterritorialização  que  há  na  fundação  deste  trabalho:  a  das  identidades 
de gênero. 
Tendo  as  considerações de Butler sobre performatividade como a base para o entendimento 
das  identidades,  o  entendimento  de  gênero  como  binarismo  ca  muito  fraco,  visto  que  esse 
inicialmente  era  baseado  apenas  sob  a  ótica  do  dimor smo  sexual  (análise  biológica/médica)  ao 
invés  da ótica do fenômeno e da construção social (análise sociológica/interdisciplinar). Essa divisão 
epistemológica,  analisada  por  Stewart  (2017),  é  uma  das  bases  do  que  seria  uma  análise  queer  do 
gênero.  
Queer  é  uma  palavra  em  inglês,  que  pode  ser  traduzida  como  “excêntrico”,  “esquisito”, 
“diferente”,  que  era  usada  como  insultos  homofóbicos  nos  países  de  língua  inglesa.  Os  grupos 
atacados  pela  palavra  zeram  um  movimento  de  reapropriação  do  termo,  indo  contra  as 
(hétero)normatividades  impostas  pelos  ataques,  enaltecendo  a  diferença  e  criticando  a  matriz 
heteronormativa  dominante  (LOURO,  2001).  Uma  mesma  perspectiva  teórica  estava  sendo 
presente  nos  trabalhos  de  um  conjunto  de  intelectuais  da  época,  e  esses  se  nomearam  da  mesma 
forma,  Queer.  Uma  perspectiva  queer  sobre  os  temas  de  gênero  e  das  identidades  em  geral  é 
apresentada em Lopes 2001:  
 
A  construção  discursiva  das  sexualidades,  exposta  por  Foucault,  vai  se 
mostrar  fundamental  para  a  teoria  queer.  Da  mesma  forma,  a  operação  de 
desconstrução,  proposta  por  Jacques  Derrida,  parecerá,  para  muitos  teóricos  e 
teóricas,  o  procedimento  metodológico  mais  produtivo.  Conforme  Derrida,  a 
lógica  ocidental  opera,  tradicionalmente,  através  de  binarismos:  este  é  um 
pensamento  que  elege  e  xa  como  fundante  ou  como  central  uma  idéia,  uma 
entidade  ou  um  sujeito,  determinando,  a  partir  desse  lugar,  a  posição  do  ‘outro’,  o 
seu  oposto  subordinado.  O  termo  inicial  é  compreendido  sempre  como  superior, 
enquanto  que  o  outro  é  o  seu  derivado,  inferior.  Derrida  a rma  que  essa  lógica 
poderia  ser  abalada  através  de  um  processo  desconstrutivo  que  estrategicamente 
revertesse, desestabilizasse e desordenasse esses pares. (LOURO, 2001 p.8) 
 

24 
 
Onde  estariam,  então,  esses  processos  que  desordenam  e  desestabilizam  os  pares,  descritos  por 
Derrida?  Papoulias  (2006)  defende  que  as  identidades  trans16  seriam  centrais  nesse  processo  de 
re-ordenação (ou desordenação?) identitária:  
 
No  contexto  da  crítica  pós-moderna  da  identidade,  o  ativismo  transgênero  criou 
um  desa o  às  hegemonias  binárias  de  gênero  e  a  sua  força  naturalizada,  além  de 
invocar a possibilidade da existência de gêneros uidos e móveis. 17 
 
Esse  entendimento  de  gênero,  como  uido,  construído  e  re-construído  através  das  ações 
performativas  é  o  que  baliza  não  só  o  entendimento  que  emprego  aqui  neste  trabalho,  mas  como 
re ito  sobre  mim  e  minha  própria  identidade.  É  essa identidade que trago para jogo quando penso 
em  compor,  em  tocar,  ou  até  quando  não  penso,  quando  saio  de  casa  e  caminho  pela  rua.  Possuo 
essa  identi cação  como  não  binária  desde  meus  17  anos,  e,  buscando  a  bibliogra a  para  escrever, 
noto  que  realmente  não  é algo sobre o qual se escreva há muito tempo. Não há uma difusão grande 
sequer  de  que  identidades  não-binárias  existem  (RICHARDS,  BOUMAN,  BARKER,  2017), 
menor  ainda  são  os  trabalhos  acadêmicos  que  relatem  essas  vivências.  No  meu  caso,  quero  relatar 
essa  vivência  corpori cada  na  minha  música,  na  minha  performatividade.  Não  quero  que  essa 
análise  de  gênero  siga  uma  ótica  de  ser  um  trabalho  sobre uma pessoa não-binária, mas sim que seja 
um  trabalho  de  uma  pessoa  não-binária  (STRYKER  e  WHITTLE  apud  STEWART,  2017),  que 
entende  essa  identidade  como  um  marcador  de  diferença que provém uma riqueza e diversidade ao 
campo de estudo de música e gênero. 
  Nota-se,  então,  que  queer  não  está  exclusivamente  ligado  a  uma concepção de gênero, mas 
sim  a  uma  exibilização,  a  um  borramento  de  fronteiras  entre  identidades  (um  des-território?). 
Penso  em  como  deixar  uma  prática  musical  queer,  como  fazer  dela  um  entre-lugar,  marcada  pelas 
diferenças,  pelas  pluralidades  e  pela  uidez.  Um  lugar  que  eu  sinto  que  é  muito  marcado  por  essa 
uidez,  dentro  dos  processos  que descrevo aqui, é o da voz. Proponho-me a re etir sobre isso, sobre 
esse instrumento, esse marcador. 
   

16
Como mencionado anteriormente, “trans” nesse sentido signi caria identidades que não correspondem ao gênero 
designado ao nascimento, o que por um olhar queer não se restringe apenas às categorias masculino e feminino, mas sim 
quaisquer identidades que podem se situar entre/fora/através dessas. 
17
Original: “In the context of postmodern critiques of identity, transgender activism forged a challenge to hegemonic 
gender binaries and their naturalising force and invoked the possibility of uid mobile and provisional enactments of 
gender.” (tradução da autora) 

25 
1.3 Voz: Atritos e Respiros 
 
A  voz  vem  de  dentro.  Vem  do  atrito entre estruturas que residem na laringe. Como que, de 
um  atrito,  surgem  canções,  músicas,  ideias?  É  na  voz  não-binária  que  reside  uma  das  inquietações 
do trabalho? Soar não-binária, soar queer.  
Quando  comecei  a  cantar  e  assumir  essa  identi cação  de  "cantora",  passei  por  alguns 
momentos  de  aprendizado  vocal  que  considero  bem  contrastantes.  Iniciei  (em  2016)  com  aulas 
particulares,  onde  trabalhava  aspectos  básicos  do  canto:  Respiração,  Fonação,  Articulação  etc. 
(LESSLEY,  2017  p.  72).  Notei  rapidamente que o registro que minha voz mais facilmente soava era 
muito  mais  grave  do  que  eu gostaria, tendo em vista minhas referências da época, que eram, em sua 
maioria,  mulheres  com vozes mais agudas que a minha (principalmente, cantoras de pop como Lady 
Gaga,  Ariana  Grande,  Liniker  e  outras).  Recordo  de  expressar  essa  angústia  em  uma aula e receber 
em troca que essa era a minha voz, e eu tinha que me conformar, porque era a única que eu teria.  
No  ano  seguinte,  2017,  z  audição  e  fui  aceita  em  um  Coro,  de  repertório  e  técnica 
majoritariamente  eruditos.  Lá,  era  do  naipe  dos  baixos ("o naipe dos machos", como era apelido no 
coro),  e  minha  voz  foi treinada e moldada, naquele contexto, para privilegiar as características que o 
repertório  erudito  exigia. Não necessariamente propondo a criação de novos termos, mas lá conheci 
o  sentimento  de disforia vocal. Quando ouvi uma gravação pela primeira vez, senti as mesmas coisas 
que  antes  só  me  acessavam  pelo  espelho,  o  desconforto  e  sensação  de  não-pertencimento  naquela 
voz,  como  antes  sentia  o  não-pertencimento  em  meu  corpo.  No  m do ano, decidi sair do grupo, e 
comecei  a  focar  em  entender  como  que  eu  chegaria  em  um  resultado  que  me  agradasse 
sonoramente na minha voz.  
Um  dos  caminhos  que  encontrei  para  realizar  esse  descobrimento  foi  por  meio  da 
improvisação  e  da  composição,  ao  invés  da  prática  focada  em  cantar  músicas  de  outras  pessoas. 
Comecei  a  experimentar  com  o pedal VE-20, da Boss, principalmente com a função de Loop18. Fiz 
várias  sessões  de  loops  vocais,  re-aprendendo  e  re-conhecendo  minha  voz,  processando  com  os 
efeitos  do  pedal  e  dos  programas  de  computador.  Quando  comecei a compor com voz, vi que esses 
processos  de manipulação e lapidação do timbre da minha voz era algo que me trazia felicidade e me 
estimulava  a  criar.  Da  mesma  forma  que  há  roupas  que  fazem  eu  me  sentir  pertencente  ao  meu 
corpo,  há  jeitos  de  usar  a  voz  que  me  proporcionam  a  mesma  sensação,  e  não  teria  porque  eu  não 
trazer  esse  sentimento  de  bem  estar  para  a minha produção artística também. Uma grande parte do 
processo  de  produção  e  composição  das  músicas  foi  encontrar  esses  lugares  de conforto com a voz, 
conforto com o que vem de dentro.  
Trago  esse  breve  histórico  do  meu  relacionamento  com  minha  voz  procurando  identi car 
como  que  os  conceitos  que  apresentei  antes  nos  capítulos  1.1  e  1.2  dialogam  com  minha 
experiência.  Retorno,  então,  às  questões  que  trouxe no primeiro parágrafo, pensando inicialmente, 
nesse  "atrito"  do  qual  vem  a  voz,  e  de  como  e  por  que  eu  a  transformo  nas  músicas  do  EP  e  da 
performance.  

18
Fragmentos (musicais) que se repetem, tratados mais a fundo no capítulo 2.  

26 
Noto  que  na  trajetória  que  narrei  anteriormente,  um  dos  aspectos  que  está  em  jogo  em 
diversos  momentos  é  a  relação  da  materialidade  do  corpo com a voz que ele produz. Nesse caso, do 
meu  corpo  e  minha  voz,  relacionados  com  os  conceitos  de  performatividade  de  gênero  discutidos 
no  capítulo  anterior.  A  voz  se  tornava,  então,  uma  extensão  do  corpo  disfórico.  Em  MOREIRA 
(2013),  a  autora  analisa  as  relações  entre  a  materialidade  dos  corpos  com  as  músicas  que  os corpos 
produzem,  buscando  "abordar  a  música  em  uma  relação  antes  de  metonímia  do  que  de  metáfora" 
(MOREIRA,  2013  p.  111);  ou  seja, levando em consideração o meio pelo qual se propaga o som, o 
meio  do  qual  se propaga o som. Se eu pretendia fazer um disco com canções que viessem desse lugar 
não-binário,  penso  que  gostaria  de  explorar  como  que  essas  relações  se  estabeleciam  na  minha voz. 
A autora continua, citando Tomlison:  
 
Dessa  forma,  reporto-me  a  uma  noção  de  contiguidade  entre  música  e 
materialidade,  numa  relação  não  de  causalidade  mas  sim  de  participação, 
numa  interação  metonímica  entre  partes  adjacentes  de  um  mesmo  todo 
(TOMLINSON apud MOREIRA, 2013 p. 111)  
 
Quero  explorar  as  diferentes  interpretações  que  podem  surgir  a  respeito  de  materialidade,  no 
contexto  dos  trabalhos  artísticos  que  trago  aqui:  o  uso  da  voz  tanto  no  disco  quanto  da 
performance.  
Emerald  Lessley,  em  sua dissertação de mestrado, dedicou-se a estudar a pedagogia vocal em 
pessoas  trans,  e  argumenta  que  a  voz  assume  papel  central  na  formação  identitária  de  seu/sua 
portador/a  (LESSLEY,  2017  p.28).  A  autora  recorre  a  estudos  da  área  da  fonoaudiologia  para 
exempli car sua tese: 
 
Estudos  mostram  que  mesmo  quando  a  aparência  física  de  uma  pessoa  é 
alinhada  com  sua  identidade  de  gênero,  se  a  sua  voz  não  possui  a  mesma 
correspondência,  a  pessoa  não  será  reconhecida  como  seu  gênero  desejado  [...]. 
Diversos  fatores  estão  envolvidos  nessa  correspondência,  como  altura,  presença  de 
ar,  ressonância  e  variações  na  intensidade,  altura,  duração  e  contornos  de 
entonação.19 (LESSLEY, 2017) 
 
A  análise  e  re exão  que  pretendo  fazer  aqui  não  segue  o  mesmo  referencial  da 
fonoaudiologia,  mas  trago  as  conclusões  da  autora  para re etir sobre a abjeção (descrita por Butler) 
que  se  apresenta  nesse  contexto.  Seria  uma  pessoa  não-binária  que  se  identi ca  mais  com  o gênero 
feminino,  mas  com  uma  voz  tipicamente  percebida  como  masculina,  vítima  de  abjeção  quando 
canta  ou  fala?  Estaria  nos registros graves a denúncia de suas pregas mais grossas? São nos 180Hz da 
"fala  tipicamente  feminina"  (BROWN  apud  LESSLEY,  2017  p.60)  que  reside  a  voz  Queer  que 

19
Original: Studies have shown that even when a person’s physical appearance is aligned with their gender identity, if their 
voice does not align with their gender identity, other people will not perceive them as their target gender. Studies have also 
shown that there is considerable correlation between the quality of life for transgender individuals and other people’s 
perception of their voices.Many factors are involved in voice matching the target gender including but not limited to pitch, 
breathiness, resonance, and vocal variability in regard to pitch, loudness, duration, and intonation contours (tradução da 
autora) 

27 
busco  nas  minhas  canções?  Sinto  que  uma  de nição  por  aqui  poderia  recair  em  ser  essencialista, 
procurando  catalogar  regiões  do  espectro  da  fala.  Ainda  mais  por tais parâmetros serem facilmente 
modi cados  pela  manipulação  digital,  mas  me aprofundarei nas manipulações depois.  Voltando às 
metonímias,  e  se  procurássemos  interpretar  a  performatividade  da  voz  pelo  conteúdo  da  fala,  ao 
invés  de  pela  fala  em  si?  Hannah Bosma observa uma tendência nos trabalhos de música eletrônica, 
quando vem a se tratar do uso da voz: 
 
Há  uma  tendência  em  música  eletrônica  de  se  usar  a  voz masculina e a feminina de 
maneiras  diferentes:  a  voz feminina é associada com o canto (nesse caso, treinado de 
forma  tradicional),  geralmente  sem  palavras  e  executado  ao  vivo,  enquanto  a  voz 
masculina é mais associada com a língua falada. (BOSMA apud LANE, 2016)   
 
Lane  observa  também  as  signi cações  históricas  da  voz  "feminina"  (aqui  entre  aspas  por  já  termos 
identi cado  que  esse é um território em disputa e não- xo), desde o silêncio exigido nas igrejas até o 
famoso  timbre  aerado  da  voz  de  Marilyn  Monroe,  e  hoje  em  dia  das  inteligências  arti ciais  dos 
celulares  (LANE,  2016).  Em  um  primeiro  momento,  a  voz  que  não  há,  depois  a  voz  que  seduz,  e 
por  m,  a  voz  que  obedece.  A  autora  aponta,  então,  que  a  performatividade  da  voz  não  está 
necessariamente  na  sua  altura,  contornos  melódicos  e  etc,  mas  sim  nos  seus  contextos,  sejam  de 
exeução,  performance  ou  audição.  Jacobs  (2015)  argumenta  que  o  que  ocorre  nesse  fenômeno  é 
uma  "engendração  da  vocalidade",  uma  impressão,  replicação  e  perpetuação  dos  papéis  de  gênero 
(tradicionalmente binários) nos usos da voz (JACOBS, 2015 p. 18). 
Entendemos,  então,  que  não  é  apenas  o  quê  e  como  se  fala  (visão  fonoaudiológica),  mas 
quem  e  quando  se  fala  (visão  performativa).  Daiane  Jacobs (2015), em seu trabalho artístico, pensa 
em  "propor  a  voz  em  cena  como  produção  de  corporeidade  afectiva,  e  não  apenas  um  meio  para a 
linguagem  (palavra)"  (JACOBS,  2015  p.23).  A  autora  salienta  essa  diferença  (e  ruptura)  que  há 
entre  o  corpo  e  a  voz,  negando  que  esse  primeiro  seria  apenas  um  veículo  para  que  a  segunda 
expresse  a  mensagem  (o  "intelectual",  de  acordo  com  a  autora).  Quando  re ito,  agora  a  posteriori, 
mas  retomando  as  anotações  que  fazia  no  diário  de  bordo,  noto  que  tive  uma preocupação grande 
com  isso  ao  longo  dos  processos  de composição narrados aqui. Desde os mecanismos que criei para 
amenizar  as  sensações  disfóricas  da  voz,  como  as  manipulações  eletrônicas,  até  as  palavras  que 
escrevi  e  cantei,  sinto  que  uma  preocupação  grande desse processo foi narrar o meu corpo por essas 
linhas. Penso, então, que há um diálogo, no meu caso, da voz com o texto também.  
Como  que  podem  se  expressar  (ou  se  evitam  expressar)  esses  marcadores  de  gênero  no 
texto?  Evidencio  que,  até  agora,  z  um  esforço  consciente  para  desvincular  essa  ideia  da  voz com a 
palavra,  mas  revisitando  meu  processo,  noto  que  isso  foi  uma  preocupação  grande  das  canções. 
Isabel  Nogueira  nota  que,  por meio das manipulações eletrônicas, pode-se fazer com que o texto na 
voz  se  torne  indecifrável,  onde  "a  semanticidade  da  palavra  deixa  de  ser  seu  sentido  primordial" 
(NOGUEIRA  ,  2017  p.12),  pois  quando  se  trata  de  música  que  está  sendo  ouvida/gravada  com 
mediação eletrônica, o que se ouve não são mais os atritos das pregas vocais, mas sim os movimentos 
dos  alto-falantes,  e  entre  essas  duas  coisas  pode  haver  uma  série  de  processamentos,  modi cações e 

28 
"marcas"20  no  som.  Em  "Androgênia",  busquei  explorar  essas  manipulações  nos  formantes  da  voz, 
por  meio  do  software  Melodyne,  por  exemplo.  A  ressigni cação  da  voz  nesse sentido pode apontar 
também  para  uma  ressigni cação  de  seus  outros  marcadores  também:  quem  fala,  da  onde  fala,  o 
quê  fala. Há, aí, uma desconstrução da "unicidade da voz e suas associações com gêneros e contextos 
sociais",  como  escreve  Nogueira  (NOGUEIRA,  2017  p.  13).  A  autora  traça,  então,  uma  relação 
íntima  entre  a  voz  não  só  como  sonoridade,  mas  como  expressão  do  lugar  de  fala  e  do  corpo  de 
quem a produz:  

Pensando  que  este  corpo, produtor da voz, ocupa um lugar no espaço e que 


este  lugar  será  atravessado  por  leituras,  signi cações  e  considerações 
performativas,  observo  a  importância  da  compreensão  dos  marcadores  da 
diferença, como gênero, raça, classe e etnia. (NOGUEIRA 2017, p. 8) 

Esse  lugar  de  fala  é  o  que procurei explicitar nos capítulos anteriores, por meio de minha escrita em 


primeira  pessoa,  a  explicitação  de  minha  identidade  de  gênero  e  trajetória.  É  por  esses  lugares  que 
passa a minha voz, é daí que vem os atritos.  
Em  HOLDERBAUM  (2014),  a  autora  argumenta  em  uma  direção  similar,  considerando 
que  a  oralidade  (nesse  sentido  no  âmbito  da  voz  como  objeto posto em jogo na peça artística) "põe 
em  jogo  paradigmas  entre  o  escrito  e  o sonoro, entre o som e o signi cado, entre o corpo e a poesia, 
entre  a  linguagem  e  o  contexto social, apontando a voz como agente mediador destas instâncias, em 
pleno  trânsito  de  aspectos  concretos  e  metafóricos  do  enunciado  poético."  (HOLDERBAUM, 
2014  p.15).  Chamo  atenção  para  esses  "aspectos  concretos  e  metafóricos  do  enunciado  poético", 
pensando  sobre  como  é  possível  que  do  texto  (e  da  maneira  como  esse  texto  é  enunciado), 
construam-se  novas  camadas  de  sentido.  Na canção "Venus'’, por exemplo, trouxe  samples de outra 
pessoa  falando  (nesse  caso,  Venus  Xtravaganza,  cuja  fala  foi  retirada  do  documentário  Paris  is 
Burning),  explorando essas relações do material e imaterial, por ser uma voz que não foi gravada por 
mim,  e  nem  foi  gravada  em  tempos  atuais  e  do  inteligível  e  ininteligível,  por  se  tratar  de  um áudio 
com  diversos  ruídos,  dado sua captação, e ser em um outro idioma do resto da canção. O sample, aí, 
traz consigo outras narrativas, outra voz, outro lugar.  
Analisando  tudo  isso,  percebe-se  que  a  voz  e  o  corpo  estabelecem  um  número  grande  de 
relações,  principalmente  no  que  tangem  as  relações  de  gênero.  O  diálogo  que  estabeleci  com  as 
autoras  aqui  visa a uma possível queer-ização do uso da voz no disco e na performance, uma re exão 
sobre  como  não  me  limitar  a  possíveis  papéis  e  imposições  de  gênero,  e  uma  busca  por  um  espaço 
não-binário  na  voz,  visto  que  é  possível  observar  que  há  uma  atribuição  de  performatividade  de 
gênero  à  voz.  Moreira  (2013)  traz  que  "gênero e música interpenetram-se, ao ponto de atuarem um 
sobre  o  outro,  o  que  traz  mais  evidências  de  que  trata-se  de  uma  relação  entre  instâncias de ordem 
semelhante,  capazes  de  uma  in uência  mútua"  (MOREIRA,  2013  p.  115).  Penso,  então,  que  o 
lugar  da  voz  não-binária  é  o  de  uma  pluralidade,  de  uma  apropriação  do  entre-lugar  e  do 
desterritório,  a  voz  que  "vem  como  fala,  canto,  se  alonga  em  outros  tempos,  se  retorce  como 

20
As "marcas" aqui mencionadas são as marcas tecnográ cas, elaboradas por CAESAR (2014). Uma descrição mais 
profunda delas se encontra em 2.1 

29 
conjuro."  (NOGUEIRA,  2017  p.  15).  A  m  de  investigar  as  falas  e  as  escutas,  parto  aos  sons, 
analisando as músicas que compus ao longo dos processos de Androgênia e Anatômica. 
 
 

   

30 
2. Composições: Processos e Narrativas 
Escrevam com seus olhos como pintoras, com seus ouvidos como músicas, com seus pés 
como dançarinas. Escrevam com suas línguas de fogo. Não deixem que a caneta lhes 
afugente de vocês mesmas. Não deixem a tinta coagular em suas canetas. Ponham 
suas tripas no papel. 

(Gloria Anzaldúa) 

Dedicarei  este  capítulo  à  apresentação  dos  processos  de  criação  das  músicas  que  compõe 
tanto  o  disco  que  me  propus  a  gravar  ("Androgênia")  ,  quanto  a  performance  que  realizei 
("Anatômica").  Uma  das  minhas  prioridades  para  esses  dois  projetos  era  que  todo  o  material  fosse 
novo,  composto  durante  esse  ano  que  passei  imersa  nas  criações,  por  um  lado,  para  tentar  ser  um 
retrato  el  de  quem  sou  como  artista  hoje,  e  por  outro,  para  que  eu  pudesse  ter  a  narração  desses 
processos no Diário de Campo.  
"Androgênia"  foi  lançado  no  dia  22  de  agosto  de  2019,  com  5  faixas  compostas  entre 
fevereiro  e  julho  do  mesmo  ano.  Um  dos  processos  de  maior  colaboração  dentro  do  disco, foi o de 
criação  das  artes  e  do  projeto  grá co,  no  qual contei com ajuda da minha irmã, Flor, que é designer 
grá ca,  e  se  pronti cou  a  ajudar.  A  partir  de  fotos  que  tiramos,  ela  produziu  5  imagens,  uma  para 
cada  faixa  do  disco.  Essas  mesmas  imagens  foram  integradas,  também,  no  processo  de  criação  de 
alguns dos vídeos da performance. 
 

 
fig 3. Imagens produzidas como identidade visual do EP Androgênia 

31 
 

2.1 O Ambiente da Criação 


Antes  de  descrever  e  relatar  os  processos  e  elementos  de  cada  música,  penso  em  uma 
descrição do espaço no qual elas estão situadas, tanto físico (meu homestudio, os equipamentos que 
estão  sendo  empregados),  quanto  digital  (o  uso  de softwares de produção musical), a nal, esse locus 
serve  de  primeira  tomada  de  decisão,  imprimindo  sobre  as  faixas  vestígios  próprios  de  seus 
dispositivos. A esses vestígios, Caesar dá o nome “marca tecnográ ca” (CAESAR, 2014).  
De  início,  essas  músicas  todas  passam  pelo  espaço  do  digital,  sendo  gravadas,  editadas  e 
processadas  em  meu  computador,  e  o  software  onde  eu  realizo  todos  esses  processos  é  o  Ableton 
Live,  na  sua  décima  versão.  O  Ableton  Live  (daqui  pra  frente  “Live”)  é  um  software  de  produção 
musical que teve seu primeiro lançamento em 2001, pela empresa Ableton. Esse programa tem uma 
característica  única  no  seu  design  por  possuir  duas  interface:  uma  horizontal  (Arrangement  View, 
ou  Visão  do  Arranjo)  e  uma  vertical  (Session  View,  ou  Visão da Sessão) (CALADO, 2017). A visão 
vertical  é  baseada  em  disparar  clipes  (dispostos  na  vertical)  ou  “cenas”, que são conjuntos de clipes, 
geralmente  correspondentes  a  uma  seção  da  peça  que  está  sendo  executada  (dispostas  na 
horizontal).  De  resto,  o  Live  funciona  de  maneira  muito  semelhante  a  outras  Digital  Audio 
Workstations (termo usado para designar softwares de gravação, edição e produção musical).  
Para  enviar  sinais  de  áudio  de  instrumentos  ou  microfones  que  eu  gravo  para  o  Live,  faço 
uso  de  uma  interface  de  áudio,  cuja  função  é  converter  os  sinais  elétricos  mandados  pelos 
instrumentos  em sinais digitais, interpretáveis pelo software (HUBER e RUNSTEIN, 2014 p.209). 
Com  o  sinal  já enviado e gravado pelo Live, aquele clipe de áudio pode ser submetido a um número 
imenso  de  processamentos  e  edições,  que  vão  de  acordo  com  o  que  procuro  realizar  em  cada 
música,  e  que  estarão  descritos  na  parte  seguinte  do  texto. Durante o processo, em Agosto, troquei 
alguns  equipamentos  para  serem  de  modelos  que  comportem  melhor  as  necessidades  que  senti, 
principalmente  quanto  ao  número  de  entradas  e  saídas  da  interface  de  áudio.  Mesmo  assim,  os 
caminhos dos sinais de áudio e meus procedimentos permaneceram os mesmos.  
Além  de  áudio,  o  outro  tipo  de  informação  que  gravo  na  composição  das  peças  é  a 
informação  MIDI.  MIDI  é  um  protocolo  de  comunicação  adotado  por  uma  maioria  dos 
fabricantes  de  equipamentos  que  trabalhem  com  áudio  que  possibilita  transmitir  diversos  tipos de 
informação,  como  altura,  intensidade,  duração  etc.  É  uma  espécie  de  idioma  em  comum,  falado 
pelos  equipamentos  e  softwares  que  utilizo.  Uma  grande  parte  dos  sintetizadores  que  gravei  nas 
canções  foram  na  verdade  clipes  em  MIDI  (que  não  possuem  som  por  si  sós,  mas  que  possuem  as 
informações  de que alturas foram tocadas com quais intensidades e por quanto tempo) aos quais eu 
atribuí  timbres digitais, disponíveis nas bibliotecas dos softwares que usei (tanto no Live quanto em 
outros,  que  explicarei  nas canções em que se aplicarem). Os meios que uso para controlar MIDI são 
duas  controladoras  da  marca  Novation:  uma  possui  25  teclas  como  as  de  um  piano,  16  pads  e  8 
knobs  (esses  dois  últimos  podem  ser  mapeados  para  controlar  quaisquer  parâmetros  dentro  da 
DAW),  a  outra  possui  24 knobs e 8 faders (também mapeáveis). Essas duas controladoras assumem 

32 
papéis  tanto  de  enviar  informações  de  notas,  sendo  tocadas  como  instrumentos  musicais,  ou  de 
editar  parâmetros  dentro  do  software  (volume,  controles  especí cos  dentro  de  cada  efeito,  entre 
outros). 
São  por  esses  dois  meios  que  eu  gravo  informações  que  formam  as  composições, 
informações  essas  que  são editadas e ressigni cadas no meio digital, mas que voltam para mim pelos 
alto  falantes,  podendo ser ainda mais mudadas se assim for o meu desejo. Os processos das peças são 
marcados  por  essa  escuta  recorrente  e  essa  união  do  processo  de  compor  com  o  de  gravar  e  o  de 
processar  no  meio  digital,  como se o instrumento maior que desse conta de todo esse processo fosse 
o  próprio  estúdio,  nesse  caso  homestudio  (MOOREFIELD,  2005).  Iazzetta  (1996)  nota  que  essa  é 
uma  característica  da  informação  digital,  o  fato  de  ela  ser  ressigni cada,  convertida  e  utilizada  de 
formas  diferentes  (IAZZETTA,  1996).  De  qualquer  forma,  passo  agora  a  analisar  a  gênese de cada 
uma  das  peças  apresentadas  ao  longo  da  constituição  desse  processo,  usando  meu  diário  de campo 
como  âncora  no  passado,  mas  tentando  traçar  relações  entre  cada  uma delas, agora que possuo elas 
prontas.  
 
 

2.2 Catedral 
Cronologicamente,  Catedral  é  o  material  mais  antigo  que  produzi  que  veio  a  integrar 
Anatômica,  o  arquivo  que  tenho  data  de  7  de  abril  de  2018.  Também  é  um  dos  poucos  materiais 
que está apenas na performance, e não no disco.  
Quando  a  compus,  estava  em  um  período  ainda  de  mapear  todas  as  funções  do  Live,  em 
um  contexto  no  qual  eu  nunca  tinha  escrito  uma  canção,  mas  que  essa  era  uma  vontade  que  eu 
tinha.  Na  época,  também,  tinha  adquirido  há  pouco  tempo  o  pedal  VE-20  da  Boss,  que  me  dava 
possibilidades  de  manipulação  vocal  e  Loops.  Na  versão  que  z nessa época e declarei a mim mesma 
como  pronta,  eu  cantava  o  mesmo  fragmento  melódico  inicial  que  canto  na  performance  (a 
sequeência  Dó  -  Sol  -  Dó).  A  partir  disso,  iniciava  a  loopar  e  testar  harmonizações  fornecidas  pelo 
pedal,  em  geral  pelos  graus  de  quinta  e  oitava  acima.  Acho  interessante  como  há  procedimentos 
comuns  nas  outras  músicas,  como  o  uso  de  plug-ins  externos  ao  Live  para sintetizadores, ou o fato 
de  que  a  batida  não  é  quantizada21.  São  como  marcas  que  deixei  na  música  que  sinalizam o tempo 
no  qual  ela  foi  composta,  no  qual  eu  não  tinha  inteiramente  me  familiarizado  com  a  interface  do 
programa.  
Em  Anatômica,  prossigo  de  forma  parecida,  contudo  realizei  uma  fragmentação  da 
estrutura  da  música.  Na primeira parte, há apenas o beat, sobre o qual canto sem harmonizações ou 
loops,  apenas  com  minha  voz.  E  na  segunda,  o  arranjo  é  incrementado  do  sintetizador,  e  inicio  o 
processo de construção de camadas via loops e harmonias.  

21
Quantizar é um termo usado em diversos softwares de diferentes áreas, contudo, em softwares de áudio, refere-se à 
locação de informações (como notas) a posições ou divisões xas (como o início de um compasso, ou a divisão de 
colcheias). Aqui, referia-me a quantizar a percussão, para que todas as notas atacassem precisamente na subdivisão de 
semicolcheias (MANZO, VJ. e KUHN, W., 2015 p.25) 

33 
Uma  das  motivações  por  trás  de  incluir uma música que não foi pensada nesse contexto foi 
a  de  criar  um  momento  inicial  de  "aquecimento"  na  performance,  um  início  mais  guiado  pela 
improvisação, e que pudesse ter seu tempo decidido por mim.  
 

2.3 Venus 
Venus  foi  uma  das  duas  músicas  dessa  coletânea  que  compus  pensando  em  apresentar  na 
disciplina  de  “Composição  de  Canção”,  ministrada  no  primeiro  semestre  de  2019  pelo  professor 
Luciano  Zanatta.  A  tarefa  da  disciplina  era  apresentar  alguma  composição  que  o/a  aluno/a 
classi casse  como  canção  em  duas  datas  separadas:  uma  no  início  do  semestre,  e  outra  no  nal. 
Quando recebi essa tarefa, decidi que iria compor duas canções do EP com essas datas em mente. 
O primeiro registro que eu tenho do processo dela é de 31/03. No diário de campo, escrevi:  
 
“Tô  escrevendo  uma  canção,  por  enquanto  o  nome  dela  é  “Vênus”,  em  referência  a  Venus 
Xtravaganza.  Começou  com  uns  acordes  e  um  beat  que  postei  um  vídeo  no  twitter,  e 
responderam:  “Ointenteira!”.  Na  hora  minha  ficha  caiu.  Logo  me  lembrei  dela  [Venus],  e 
escrevi  versos  falando  sobre violência em situações de intimidade e vulnerabilidade que pessoas 
não-cis passam. Leve né? hehe”  
 
Venus  foi  uma mulher trans que viveu em Nova York na década de 1980. Ela era uma  gura 
da  vida  noturna,  dos  bailes  que  serviam  de  refúgio  para  a  comunidade  LGBTQIA+  da  época. 
Venus  trabalhava,  também,  como  prostituta,  e  no  documentário  Paris  is  Burning,  relata  episódios 
de  transfobia  que  sofria  durante  seu  serviço.  Em  1988  ela  foi  encontrada  morta,  na  casa  de  um 
cliente  (BUTLER,  1993  p.84).  Tenho re etido sobre essas situações de vulnerabilidade que pessoas 
não-cis  passam,  principalmente  em  situações  de  intimidade.  Eu  já  sofri  com  isso,  em  proporções 
menores, e senti que era um assunto que eu queria abordar musicalmente. Mantive isso em mente.  
A  opção  por  ter  essa  referência  de  uma  pessoa  que  existiu,  e  da  qual  se  possui  registros em 
áudio  e  vídeo  acabou  me  levando  a  lançar  mão  de  samples  para  que  eu  “trouxesse”  essa  gura  de 
Venus  à  canção.  Sample  é  um  termo  em  inglês  (cuja  tradução  poderia  ser  “amostra”)  e  que,  nesse 
caso,  refere-se  a  um  pedaço  de  informação  (que,  relembrando  Iazzetta,  por  ser  digital, está sujeita à 
manipulação  intensa)  musical  que  está  sendo  “citada”,  ou  reapropriada.  O  material  que  trato  com 
mais  profundidade  nesse caso são os samples de Venus falando, mas há diversas outras instâncias nas 
outras músicas que descrevo aqui.  
A  primeira  coisa  que  compus  foi  o  beat.  Usei minha controladora MIDI para fazer ele com 
nger  drumming.  uma  "peça"  da  bateria  de cada vez, nesse caso, porque usei o bumbo de um kit de 
samples,  sintetizei  o  hat  e  o  snare  com  geradores  de  ruído,  e  sampleei  percussões  graves  também. 
Como  tudo  isso  está  em  tracks  diferentes,  preferi  fazer  uma  de  cada  vez.  Improvisando,  porque  a 
essa  altura  eu  não  tinha  muito  referencial  de  para  onde  queria ir, lembro de pensar que queria algo 
que  desse  pra  dançar.  Gravo,  toco  com  os  dedos  e  quantizo,  para  tudo  car  na  grade  dos 
compassos.  Mesmo  gravando  com  o  metrônomo  ligado,  às  vezes  dou  uma  escapada  no  tempo,  e 
queria  deixar tudo na grade,  uma coisa que associo com percussões de música dançante da época de 

34 
Venus.  Junto  disso,  criei  uma  melodia  com  um  synth  bass  e  um  arpejador22  disponível  no  próprio 
Live.  O  timbre  do  baixo  veio  do  Serum,  contudo,  o  modi quei  pelo  meu  gosto  com  um 
equalizador e um saturador. 
Serum  é  um  software  de  síntese  wavetable,  da  desenvolvedora  xFer.  Síntese  wavetable 
funciona,  primeiro,  com  um  banco  de  dados  de  samples  digitalmente  armazenados.  No  caso  do 
Serum,  existem  diversas  categorias,  desde  formas  que  o  programa  chama  de  mais  “básicas” 
(senoides,  dentes-de-serra,  etc.)  a  conjuntos  de  formas  mais  elaborados.  A  essas  formas,  são 
aplicadas  transformações  e  processamentos,  a  m  de  moldar  o  som  ao  desejo  de  quem  está 
operando  (HUBER  e  RUNSTEIN,  2014).  O  programa conta com dois osciladores, cada um deles 
podendo estar sintetizando formas diferentes, dentre as opções do programa 

 
fig 4. Ssoftware Serum, com o preset de baixo utilizado em Venus. 
 
Eu  gostei  do  movimento  que  o  arpejador  deu,  e  a  sequência  de acordes que eu improvisei também 
me  agradou.  Preferi  já  equalizar  os  bumbos  e  caixas,  fazer  um  panorama  pros  hats  carem  se 
mexendo  de  um  ouvido  pro  outro,  pre ro  ir  deixando  cada  partezinha  o  mais  pronta  o  possível, 
sinto  que  mantenho  meu  interesse  por  mais  tempo  assim.  Foi  essa  sequência  de  percussão  e  baixo 
que formou o vídeo que mencionei anteriormente, que postei no meu Twitter. 
Nessa  música,  iniciei  o  uso  de  um  plug-in  que  veio  a  ser  de  grande  utilidade  nas  outras 
músicas  do  EP,  que  se  chama  Vocalsynth,  da  desenvolvedora  iZotope.  O  software   sobrepõe  sons 
sintetizados  que  aproximam  a  voz  humana  e  que  seguem  a  melodia  do  áudio  que  ele  está 
processando.  No  caso  dessa  música,  eu  o  usei  para  o  efeito  de  vocoder  no  refrão  e  para  dobrar  as 

22
Classi cado como Efeito MIDI no Live, o arpejador detecta as notas sendo transmitidas por MIDI e as executa em 
um padrão rítmico determinado pela/pelo usuária/usuário.  

35 
vozes  na  estrofe  inicial.  O  software  pode  receber  informações  MIDI,  que  indicam  quais  alturas 
sintetizar, caso se queira uma melodia diferente do que a gravação de voz realiza.  

fig  5.  Plugin  Vocalsynth.  Acima,  os  diferentes  tipos  de  sintetizadores  que  podem  ser  selecionados.  No 
centro,  um  mixer,  onde  a  intensidade  de  cada  sintetizador  pode  ser  ajustada.  Abaixo,  uma  lista  de 
efeitos que podem ser adicionados.  
 
 
A  essa  altura,  a  música  era  toda  em  90  BPM,  e  eu  encontrava  bastante  di culdade  para 
escrever outras seções nela. Poucos dias depois (04/04), escrevi no dário:  
 
“Joguei  tudo  pro  alto!  menos  o  refrão  com  o  vocoder  bonito.  Aumentei  o  BPM  (90  -> 
110)  e  troquei  as  estrofes,  porque  ontem  tinha  escrito  e  gravado  uma  letra que não resistiu ao 
travesseiro.  Inventei  uma  melodia  que  é  meio  aguda  demais  para  ser  fácil,  mas  persisto.“ 
(04/04) 
 
Ressalto  que  essa  tomada  de  decisão  é  amplamente  facilitada  pelo  ambiente  digital,  por  ser 
executada  apenas  com  um  clique do mouse. Ao mesmo tempo, esse processo de “acelerar” a música, 
distorceu  alguns  clipes  de  voz,  principalmente,  o  que  resultou  na  gravação  de  tomadas  novas.  Os 
clipes  MIDI,  por  se  tratarem  apenas  de  informação  digital,  e  não  áudio,  permaneceram  com  a 
reprodução sem marcas ou distorções. 

36 
Foi  nesse  momento,  também,  em  que  eu  introduzi  samples  da  própria  Venus,  retirados  do 
documentário  Paris  Is  Burning.  Os  samples  aparecem  antes  da  primeira  estrofe,  antes  do  refrão,  e 
na  seção  que  segue  o  refrão.  A  equalização  e  mixagem  deles  foi  difícil,  visto  que  as  cenas  que 
selecionei  possuem  bastantes  marcas  tecnográ cas,  por  serem gravadas de longe com sons da rua ao 
fundo,  o  que  di culta  a  compreensão  do  texto  que  ela  fala,  mas  mesmo  assim,  o  efeito  de  ter  uma 
outra  voz  junto  da  música  me  agradou  bastante.  Os  textos  que  selecionei  são  bem  agressivos,  mas 
busquei  falas que possuíssem relação com o texto da música. Aqui seguem as traduções das falas dos 
samples:  
 
0:34 - “Toque nessa pele!” 
1:15 - “Seu viadinho de merda, você é uma bicha, eu devia lhe matar” 
2:02 - “Aterrorizada!” 
2:05  -  “Eu  sou  pequena….  O  cabelo  loiro….  Ele  me  tocou  lá  embaixo,  ele  sentiu  aquilo,  ele  viu 
aquilo, e ele se apavorou e disse: seu viadinho de merda, você é uma bicha, eu devia lhe matar”  
2:30 - “Eu pulei pela janela” 
3:20 - mesma sequênca de 2:05.  
 
As  três  seções  que  seguem  o  refrão  foram  compostas  depois  da  estrofe  inicial,  a  primeira 
delas sendo a instrumental imediatamente após o refrão.  
 
“Fiz  a  seção  “instrumental”,  explorando  mais  samples  da  própria  Venus,  e  inventei  uma 
modulação” (08/04) 
 
Além  de  samples  da  voz  falada,  usei  samples  meus  de  outras  seções  da  música  também,  como  as 
vozes  do  início.  As  melodias  dos  sintetizadores  foram  improvisadas.  A  parte  que segue é um coro a 
capella, cujo texto é igual ao do refrão, porém já um tom acima (Si menor).  
 
“Gravei  um  coro  de  vozes a capella. O processo foi no improviso. Gravei uma voz -> nova track 
-> gravei outra voz, com texto ou vocalize improvisado -> nova track etc…  
Me  impressionei  com  o  quanto  foi  rápido,  e  até  fácil.  Em  uns  10min  devo  ter  gravado  tudo. 
Passei o melodyne e brinquei com reverbs e delays.” (08/ 04) 
 
Uma  última  volta  do  refrão  com  todo  o  instrumental  é  o  que  termina  a música. Com a adição dos 
samples  da  voz  falada  e  de  um  efeito  de  beat  repeat23  que  entra  no  nal,  o  que  pra  mim  dava  a 
impressão  que  tudo  estava  desmoronando  e  entrando  em  caos,  e  que  eu  gostava  muito. Esse efeito 
de  repetições  curtas  nos  instrumentos  gerou  um  padrão  que  é  o  que  origina a próxima música que 
eu escrevi, “Invencível”. 
Quando  comecei  a  elaborar  como  tocaria  Venus ao vivo, ocorreu que talvez o início só com 
a  voz  com glitch não seria algo que me agradasse, por eu não saber como que o plugin de beat repeat 

23
Efeito que gera repetições de um fragmento de áudio em uma frequência determinada, podendo essa repetição se 
mesclar ao áudio, ouvindo-se o restante do áudio junto da repetição, ou “cortar” o sinal original, deixando soar apenas 
as repetições. (Manual do fabricante do software) 

37 
funcionaria  ao vivo, ou por eu não  car tão confortável cantando ao vivo sem nenhum instrumento 
no  arranjo.  Pensei,  então,  em  fazer  um  arranjo  com  instrumentos  nessa  primeira  seção,  com  um 
baixo  synth  e  um  bumbo.  O  timbre  e  a  linha  de  baixo,  com  as  notas  repetidas  no  ritmo  da 
semicolcheia,  são  os mesmos que estão no refrão, porém mais saturado com o efeito de distorção do 
Serum.  Optei  por  incluir  as  mesmas  paradas  no  instrumental  que  tem  no  refrão,  no  m  de  cada 
frase  do  texto.  Gostei  bastante  de  como  cou  o  efeito  de  sair  de  uma  "introdução"  do  show  mais 
calma, mais vazia, e desembocar em algo contrastante e distorcido.    

38 
2.4 Invencível  
Compus Invencível logo após ter terminado Venus, sem ter a intenção que elas teriam 
intertextualidade entre si, por meio do sample que conecta ambas, mas logo cou claro para mim 
que elas teriam essa comunicação. Escrevi, nos dias 17 e 19 de abril no diário: 
 
“Tive um tempo livre hoje na rua. fui tentar escrever alguma letra/poesia. é incrível o quanto 
é difícil, pra mim, não partir de nenhuma música antes. Igual, mapeando um território 
lírico novo”. -17/04, Rua 
 
“Comecei a fazer em som o que tentei escrever em poesia. nos últimos dias me ocorreu: 
“Invencível”. Quero cantar essa palavra. Rabisquei várias micro-poesias ao redor disso. Vi que 
era pelo som que viria [algum resultado sonoro]. Pelo visto, vai ser uma que emenda com 
Venus.  
 

 
fig 6. Excerto do diário de bordo, rascunho da estrutura de “Invencível” 
 
Quero barulho!! Bumbos fortes e vozes fortes.” (19/04) 
 
Pelo  início,  decidi  encarar  o  sample  formado  pela  repetição  do  m  de  “Venus”  como 
de nidor  de  alguns  parâmetros,  como  andamento  e centro tonal. O sample, em “Venus”, estava em 
um  ritmo  de  semicolcheias  a 110 bpm, contudo, decidi explorar pensar nesse ritmo como tercinas a 
140  bpm  em  Invencível,  o  que  levou  a  decisão  de  já  iniciar  a  música  com  o  bumbo,  procurando 
explorar essa mudança de subdivisão.  
A  partir  dessa  primeira  “região”,  com  a  cama  rítmico-harmônica  do  sample  e  de elementos 
percussivos,  iniciei  a  investigar  o  texto.  Por  mais  que  eu  soubesse  que  queria  a  sonoridade  de 
“invencível”,  eu  não  havia  achado  um  jeito de fazer uma letra ao redor disso. Experimentei também 
com  uma  combinação  de  efeitos em um dos sends que não havia experimentado antes, e que li num 
fórum  da  internet.  A  combinação  consistia  em  um  efeito  de  reverb24,  seguido  por  um  saturador25, 

24
Efeito que simula espaços (salas pequenas, câmaras de re exão etc) onde o som soaria. (Manual do fabricante do 
software) 
25
Efeito de modelação de onda, no qual ao sinal de áudio é adicionado ruído. (Manual do fabricante do software) 

39 
dois grain delays26 e um compressor27.  Essa cadeia gera repetições do som em alturas diferentes, mas 
com  alterações  bem marcante no timbre também. Os instrumentos que enviei para esse send foram: 
o  Hihat,  o  sintetizador  FM,  um sintetizador com arpejador (muito presente em 1:56), e um sample 
de voz do início da música (o suspiro em 0:33). 
 

 
fig 7. Uma das cadeias de efeito de send em “Invencível” 
 
 
Outro  elemento  que  explorei  e  que,  para  mim,  vem  com  uma  carga  referencial  grande  são  os 
ataques  de  sopros  de  metal  que  pontuam  as frases. Pensei em algumas faixas da Björk, do disco Post 
(1995),  e  como  ela  insere  elementos de instrumentos orquestrais nos arranjos dela. Aqui, usei duas 
camadas  de  sopros,  uma  com  uma  equalização  que  privilegia  os  graves,  e  outra  que  privilegia  os 
agudos.  A  construção  da  melodia  também  partiu,  conscientemente  de  uma  referência  que  estava 
nos  meus  ouvidos  na  época,  a  faixa  “Fear  the  Future”,  da  artista  estadunidense  St.  Vincent  (Disco 
Masseduction de 2018). Na escuta dessa canção, a melodia e a combinação de muitos timbres, quase 
que  numa  estrutura  caótica,  agradaram-me  bastante,  e  quis  tentar  experimentar  uma  estrutura 
parecida. 
A  seção  seguinte,  sem  letra,  é  preenchida  por  um  sintetizador  grave,  feito  no  software 
Serum. Sobre a seção, escrevi no diário o seguinte:  
 
“Ontem, segui jogando ideias em Invencível. Tentei construir uma parte que constrói tensão, um 
pré-refrão. Não z um desses nas outras e queria tentar.” (23/04) 
 
Foquei,  então,  em  fazer  essa  parte  que  iniciasse  com  poucos  elementos, mas que fosse aumentando 
em  intensidade  de  volume  e  de informação. Além do baixo, um sintetizador agudo, percussões com 
delay,  clipes  de  voz  invertidos  (tomadas de voz que eu havia feito e não utilizado em outras seções) e 
um  sintetizador  com  ataque  lento  que  entra  logo  no  m  dessa  parte,  dando  uma  última  “in ada” 
no  arranjo,  antes  de  iniciar  a  próxima  seção.  Além  do  Serum,  os  sintetizadores  usados  aqui  são  do 
próprio Live, chamado Operator28. 

26
Um efeito semelhante ao delay (gerador de repetições no som), mas que possui parâmetros que também modulam 
transposições de altura, adição de frequências e mudanças aleatórias no tempo de repetição na amostra de áudio. Nesse 
caso, um deles possuía um ajuste de transposição para -12 semitons e outro para +12. (Manual do fabricante do 
software) 
27
Efeito que visa à uniformização de dinâmica do áudio, automaticamente reduzindo a intensidade de sons que 
ultrapassam um valor de limite (“threshold”). Uma explicação maior e mais minuciosa sobre compressão está presente 
em HUBER e RUNSTEIN 2014. 
28
  Operator  é  descrito  pelo  fabricante  como um sintetizador FM fácil de usar e versátil. Resumidamente, na síntese FM, 
trabalha-se  com  geradores  de  sinal  (ou  “operadores”),  que  podem  ser  “portadores”  (carriers)  ou  “moduladores” 
(modulators),  no qual esse segundo atua sobre o primeiro, modulando suas características sonoras. O Operator, no Live, 

40 
A parte que segue adiciona vários timbres novos à música, aspecto que me chamou atenção 
na escrita do processo.  
 
“Emprestei  a  caixa  que  usei  em  Venus  pra  Invencível.  Já  que  no  EP  as  duas  vão  ser 
emendadas,  acho  legal  misturar  esses  timbres.  Usei  meu  Volca  FM  também,  para  fazer uma 
cama  harmônica  no  refrão.  APAIXONADA  pelo  timbre!!  Ele  tem  uns  glitches  de  bateria 
fraca  e  um  LFO  muito  interessante.  Usei  o  preset  “distorted”  e  mexi  um  pouco  no  ataque.”  - 
(24/04) 
 
O  Volca  FM  citado  aqui  se  refere  a  um sintetizador FM e sequenciador da fabricante Korg. A linha 
de  sequenciadores  Volca  é  um  conjunto  de  pequenos  instrumentos,  que  podem  ser  conectados 
entre  si  para  funcionarem  em  sincronia.  Aqui,  usei  apenas  o  Volca  FM,  cujos  timbres,  de  acordo 
com o fabricante, emulam os dos sintetizadores FM da década de 1980.  
Outro  timbre  de  sintetizador  que  uso  na  música  (o  mesmo  mencionado  no  send  com  os 
delays),  presente  no  primeiro  plano  em  1:53  foi  apelidado por mim, no projeto, de “moedinha”. O 
timbre  me  remetia  aos  efeitos  sonoros  da  série  de  videogames  Mario  Brothers,  quando  o 
personagem  ganhava  uma  moeda.  Para  Chaves  (2012),  essa  escolha  de  diálogo  com  diferentes 
repertórios  é  chamada,  dentro  da  tomada  de  decisão  composicional,  de  uma  escolha  ideológica. 
Evidentemente,  o  repertório  do  restante  do  trabalho  não  se  trata  de  uma  trilha  sonora  de 
videogame,  contudo,  busquei  nessa  referência  do  meu  passado  uma  opção  por  dialogar  com  um 
repertório  com  o  qual  tenho  familiaridade.  Vejo,  nessa  música,  um  diálogo  entre  essas  referências 
passadas,  como  os  videogames,  com  experiências  e  práticas  que  vim  a  ter  na  graduação,  como  a 
experimentação com os sintetizadores, e a exploração de timbres ruidosos e distorcidos.  
 

2.5 Torpe 
 
Torpe  tem  uma  parte  de  seu  corpo  no  início  do ano, quando  z um planejamento do EP, e 
outra  parte  em  uma  experiência  que  eu  não  sabia  que  teria  quando  iniciei  esse  processo:  a  de 
compor  uma  trilha  para  peça  de  teatro.  Eu  recebi  o  convite  de  Gustavo  Cavalheiro,  colega  da 
Música  Popular,  para  integrar,  junto  dele,  a  peça  Ao  Filho  Torpe,  que  foi  produzida  no  DAD 
(Departamento  de  Artes  Dramáticas  da  UFRGS),  e que é o Estágio de Atuação de Miguel Ribeiro, 
aluno da instituição.  
A  peça  tem,  resumidamente,  como  objeto  central  de  pesquisa  a  violência,  explorando 
diferentes  manifestações  e  expressões  da  agressividade  em  três  eixos:  A  violência  social,  a  violência 
sacra  e  o  “Eu  violento”.  A  proposta  é  de uma criação coletiva de cenas, textos e trilha sonora. Junto 
de  Gustavo,  integrei  os  ensaios  da  peça,  criando/improvisando  em  momentos  de  alongamento, 
exercícios  e  improviso  do  elenco.  As  imersões  nos  ensaios,  que ocorreram, em média, três vezes por 
semana, marcaram-me tanto que quis criar um momento no disco dedicado a isso.  

possui  4  osciladores,  podendo  estabelecer  essas  relações  de  portadores  e  moduladores  entre  si.  (Manual  do fabricante 
do software) 

41 
Digo  que  uma  parte  de  Torpe  já  existia  no  início  do  ano  pois  sabia  que  queria  uma  faixa 
“não  cantada”  integrando  o  disco,  e  queria  também  uma  faixa  composta  inteiramente  por 
improvisos,  prática  que  tive  amplo  contato  durante  a  graduação,  tanto  na  Medula  quanto  nas 
Elatrônicas,  por  exemplo.  Nesse  caso,  o  objeto  sobre  o  qual  improvisei  foram  falas  do  elenco  que 
gravei  em  um  dos  ensaios,  com  meu  gravador  Zoom  H1,  e  o  sintetizador  FM  da  marca  Korg 
chamado Volca FM, o mesmo que usei em Invencível. 
Parti  das  gravações.  Escutei  o arquivo longo que tinha gravado (cerca de 10min do gravador 
parado  no  Estúdio  4  do  prédio  do  DAD)  e  selecionei  alguns  trechos.  Três  das  falas  respondiam  a 
um  estímulo  do  ensaio  (a  escrita  de  uma  carta-testamento  que  partiria  das  vivências  violentas  de 
cada  ator  e  atriz),  e  outras  três eram parte de um outro diálogo, que respondia a uma pergunta feita 
por  mim:  “No  que  tu  é  bom/boa?”.  Nesse  segundo  caso,  mesmo  esse  assunto  estando  presente,  o 
diálogo  não  era  uma  entrevista  ou  algum  outro  ambiente  muito  controlado,  o  diálogo  corria 
livremente. As frases que selecionei foram (em ordem de aparição na música): 
 
0:08 e 0:28 - Miguel Ribeiro: “Eu minto bem.” 
0:14 - Gabriela Chaves. “Cada violência é uma parte que se quebra dentro de nós.” 
0:34 - Luciana Tondo: “Pode ser muito bom.” 
0:40 - Cissa Madalozzo: “Não quero ser ele, e luto todos os dias para não ser.” 
0:50 - Luiz Manuel: “Meu bolo de laranja é maravilhoso.” 
1:08 - Vicente Vargas: “Fui eu que lustrei os trilhos e pus o carvão na máquina.”  
 
Antes  de  decidir  como  distribuir  as  falas  no  decorrer  de  música,  e  como/se  processá-las, 
escolhi  criar  a  base  instrumental da música, que nesse caso é composta pelo Volca FM (instrumento 
que  levei  para quase todos os ensaios) e por samples da minha voz, provenientes de uma peça minha 
de 2017, chamada “sussurro”.  
Comecei  gravando  uma  linha  do  sintetizador  no preset “Glasspad”, um timbre com ataque 
lento  e  decaimento  longo.  Gravei  quase  sempre  uma  nota  por  vez,  privilegiando  movimentos  de 
ritmo  lento,  e  saltos  melódicos  pequenos.  Após  a  gravação,  anotei  no  Live  que  nota  que  eu  estava 
tocando  a  cada  momento,  pois  queria  gravar  as  outras  linhas  sem  ouvir  esta.  Improvisei  outras  4, 
procurando  diversi car  as  regiões  e  oitavas  onde  tocava,  e  olhando  no  programa  que  nota  que  a 
primeira  linha  estava  tocando.  Dessa  forma,  meu único referencial era a primeira gravação. Busquei 
aqui  relacionar  os  estudos  e  re exões  de  Rogério  Costa  acerca  da  memória  na  improvisação.  O 
autor  relaciona  os  recursos  utilizados  na  improvisação com a memória curta e a longa. A curta seria 
uma  reconstrução  e  reestruturação  do  tempo  presente,  agindo  sobre  ele  e  moldando  as  decisões  e 
gestos  da  improvisação,  enquanto  a  longa  dialoga  com  as  referências  de  estilo,  de  gênero  e  os 
conhecimentos  técnicos  de  quem  improvisa  (COSTA,  2018  p.  8).  A  minha  memória,  aqui,  estava 
condicionada  não  pelo  som  de  “outros/as  improvisadores/as”,  mas  sim  das  anotações  de notas que 
eu havia feito no Live.  
 

42 
 
fig. Sintetizador Korg Volca FM, no preset Glasspad, utilizado em Torpe. 
 
A  distribuição  dos  samples  das  vozes  foi  feita  de  maneira  improvisada  também,  a  m  de 
manter  uma  uniformidade  ao  longo  da  faixa.  Às  vozes,  com  exceção  ao  sample  de  Luiz,  foi 
adicionado  um  delay,  porém  com  con gurações  diferentes,  em  termos  de  duração  e  panorama.  A 
voz de Luciana, por exemplo, está distribuída de forma bem ampla no panorama Direita - Esquerda, 
enquanto  a  de  Vicente,  por  exemplo,  não  possui  este  movimento.  Todos  os  samples  estão  sendo 
enviados  a  um  canal  de  Reverb,  com  um  decaimento  de  10  segundos  e  uma  ênfase  maior  em 
difusões  tardias,  que  aumentam  a  espacialização  do  som  à  medida que ele soa. A escolha de plug-in 
de reverb foi a mesma que z nas outras faixas do EP, o Valhalla VintageVerb.  
 

 
fig 9. Plug-in Valhalla Vintage Verb com a configuração utilizada em Torpe.  
 
 

43 
A  essas  camadas  de  vozes,  adicionei,  em  um  volume  reduzido,  gravações  da  minha  voz que 
havia  feito  em  2017, para uma música chamada “sussuro”. A música foi parte de um projeto dentro 
da  Medula,  na  qual  cada  integrante  iria  estreiar  uma  música na Sala dos Sons. Na época, eu passava 
por  um  momento  inicial  de  exploração da voz com os processamentos digitais, e queria desenvolver 
uma  peça  que  re etisse isso, então gravei várias tomadas de voz, em alturas e registros bem diferntes, 
e  por  meio  de  delays  e  alguns  cortes,  os loops de cada faixa era imperceptível, formando uma grande 
textura  de  vozes  que  não  pareceria  ter  m.  Escolhi  três  dessas vozes antigas para preencher, de certa 
forma, a música, tentando combinar essas alturas com as que eu havia tocado no sintetizador.  
Os  materiais  que  formam  Torpe  englobam  uma  grande parte do meu tempo na graduação, 
com  vozes  que  gravei  em  2017,  um  sintetizador  que  adquiri  em  2018  e  uma  experiência  com  um 
grupo  de  teatro  que  conheci  em  2019.  Mesmo  sendo  a  faixa  mais  curta  do  EP,  noto  que  possui 
diversas  referências  que  só  foram  sendo  agregadas  a  mim  ao  longo  desses  anos  que  citei.  Os 
movimentos  contrastantes  de  gravar  algo  novo  e  buscar  em materiais antigos, o uso da voz que tem 
altura de nida e a voz que não tem, a voz com texto e a voz sem, com ritmo ou sem (ou com o ritmo 
gerado  a  partir  de  um  processamento  de  efeitos).  Torpe  é  fronteira  borrada,  é  caminhar  no 
entre-lugar. É o meio do EP que tentei fazer ser um respiro (“respiro” inclusive é o nome do arquivo 
do projeto) mas que foi introspecção, descoberta e investigação.  
 

2.6 Amor Verdade 


A  única  presente  no  repertório  da  performance  que  não  é  uma  composição  minha,  Amor 
Verdade  foi  composta  por  Maria  Beraldo,  compositora  e  intérprete  catarinense  baseada  em  São 
Paulo,  que  está  presente  no  disco  lançado  em  2018,  "Cavala".  A  primeira  vez  em  que  toquei  a 
canção  foi  em  março  de 2019, no Festival Eva Diva. Quando recebi o convite para integrar o festival 
com  minhas  composições,  eu  havia  escrito  apenas  Androgênia,  e  precisava  de  alguma  forma 
conseguir  mais  material  para  preencher  os  20  minutos  que  eu  iria  tocar.  Então,  parti  à  procura  de 
músicas para fazer uma versão que dialogasse com os outros materiais que eu apresentaria.  
 
"No  Festival  Eva  Diva,  que  celebra  trabalhos  que  se  consideram  feministas,  para  o  Dia 
Internacional  da  Mulher.  Lígia  me  convidou  e  eu  na  hora  disse  que  sim,  mesmo  não  tendo 
nenhuma música pronta, eu sabia que isso me colocaria para trabalhar." (09/03) 
 
Quando  iniciei  o  processo  de  criar  um  arranjo  próprio  para  a  canção,  busquei  no  próprio 
Cavala  referências  que  poderiam  me  ajudar.  Notei  que  o  disco  faz  bastante  uso  de  instrumentos 
virtuais,  sintetizadores  e  samples,  mas  essa  faixa  especí ca,  não.  Busquei  trazer  essa  linguagem  no 
arranjo,  por  meio  de  um  baixo  synth  (com  um  timbre  do  Serum),  uma  bateria  programada  e  um 
sintetizador  com  notas  longas,  na  parte  B  da  canção.  Incorporei,  também,  a  guitarra,  que  não  está 
presente pontualmente nessa faixa do disco, mas que é um elemento de outras canções do disco.  
Uma  das  possibilidades  que  abri  para  mim  mesma  na  performance  ao  vivo  de  Amor 
Verdade  é  a  manipulação  dos  delays  que  atuam  sobre  a  parte  da  percussão.  Deixei  um  plugin  de 
delay  assinalado  a  uma  das  controladoras  MIDI,  então  poderia usar isso como elemento expressivo 

44 
também.  O  efeito  estava  defasado  entre  o  lado  direito  e  o  esquerdo  do  panorama,  parecia  que  os 
bumbos  "pulavam"  de  um  ouvido  pro  outro,  e  isso  me  agradou.  Quando  apresentei  a  canção  pela 
primeira  vez,  em  março,  não  toquei  guitarra  ao  vivo,  optei  por  deixar  somente  a  trilha  com  os 
ataques  na  segunda  estrofe,  porém,  em  Anatômica,  toco  guitarra  na  música  toda,  dobrando  a 
melodia  da  voz  no  instrumento.  Desde  a  primeira  vez  que  toquei,  subi  a  tonalidade  da  música 
também, pois havia uma frase que estava bem grave e era um pouco desconfortável para mim. 
A  incorporação  de  um  cover  ao  repertório  do  show  me  causou  dúvida  em  um  primeiro 
momento,  inclusive  conversei  com  Isabel  a  respeito  disso  em  um  determinado  momento,  mas  no 
nal  optei  pela  inclusão  da  canção  no  repertório.  Olhando  esse  recorte  de  minha  trajetória  que 
traço  aqui  no  trabalho,  é  nítido  que  tanto antes da universidade quanto durante, uma grande parte 
da  minha  prática  envolvia  re-arranjar  canções  que  eu  gostava,  de  outras  compositoras  e 
compositores.  
 

2.7 Degradê 
 
Não  sabia  direito  o  que  eu  pretendia  quando  disse  para Luciana e Ricardo (iluminadora e 
videógrafo  da  performance),  dois  dias  antes  da  performance,  que  faria  um  segundo  momento  de 
improviso,  para  o  qual  havia  feito um vídeo com um conceito bem simples: no começo, cores claras 
e  pouco  saturadas,  que  ao  longo  de  4  minutos  e  meio,  se  tornam  intensas,  saturadas  e  densas.  Eu 
havia  de  fato  feito  esse  vídeo,  mas  não  tinha  uma  música  para  ele,  então  aceitei  que  seria  um 
momento  de  improviso.  Não  sabia  com  o  que  estaria  improvisando,  mas  a  julgar  pela  posição  da 
música no setlist, guitarra e voz foram meus companheiros.  
 
"Degradê  foi  uma  escolha  estranha. Era uma ideia de vídeo que eu tinha, mas não tinha música para 
acompanhar,  "um  improviso", isso que disse para Lu e Ric quando passei o Setlist. "Lu, pega a luz azul 
e  faz  em  4min  ela  virar  densa, vermelha, agressiva". Acabou que não usei vídeo, só luz. Um improviso 
que  nunca  tinha  feito  antes.  Logo  me  saltou  aos  ouvidos  uma  linha  que  toquei.  Fá  Mi  Mib,  ou  Mib 
Ré  Reb,  porque  a  guitarra  estava  um  tom  abaixo.  Imitei  na  voz,  loopei,  harmonizei.  Textura. 
Contraste. E o azul logo era vermelho. Junto dele, o nervosismo virava vontade." (08/11) 
 

2.8 Miragem de Vidro 


Também  composta  no contexto de ser apresentada na disciplina de Composição de Canção 
de  2019/1,  essa  foi  a  última  canção  que  compus  para  o  EP.  Comecei  a  pensar  nela  em  16/05, 
conforme o diário:  
 
“Penso  que  a  canção  possa  ser  meu  trabalho  final,  então  vou  trabalhar  nela.  Hoje  já  busquei samples 
da  primeira  coisa  que  gravei  no  Live,  um  projeto  que  chamei  de  “Coisinha”,  que  era  várias  tracks  de 
violão e voz sobrepostas. Vou tentar começar em cima disso” (16/05)  

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Eu  comecei  esse  processo  pela  procura  de  materiais  em  coisas  que  eu  já  havia  composto  e  não 
terminado,  parcialmente  porque  foi  um  período  no  qual  eu  estava  doente  e  sem  voz.  Essa 
impossibilidade  de  iniciar  o  processo pelo canto foi um obstáculo bem grande que confrontei nesse 
processo, e tive que contornar das maneiras que pude.  
Ressalto  que  esse material que busquei em “coisinha” não veio a ser Miragem de Vidro, mas 
foi  um  período  de  tentativa  dentro  de sua criação. Também tentei outra aproximação, que envolvia 
uma  poesia  que  havia  escrito  umas  semanas  antes,  junto  de  beats  picotados que havia improvisado 
nos  pads da controladora MIDI. Essas duas ideias acabaram não sendo esta canção, mas podem vir a 
ser outras coisas. Miragem de Vidro, em sua forma mais reconhecível, começa dia 31 de maio:  
 
“Comecei  (mais)  uma  ideia,  mas  confesso  que  essa  é  a  que  mais  me  mexeu  dessas  últimas. 
Peguei  a  guitarra  e  fiz  uns  padrões  dedilhados com uns acordes abertos, um dedo no grave e outros nos 
agudos. Pensei em dois ambientes: um escuro, [em tom] menor, mais instável, e outro [em tom] maior. 
Busquei  melodias  na  voz  improvisando.  Em  algum momento, cantei na baboseira a palavra ‘reflexo’. 
Há  dias  eu  vinha  pensando  em  um  texto  que  escrevi  na  Medula  em  abril  do  ano  passado  chamado 
‘Espelho’.  Busquei  re-interpretar  ele, que era poesia em verso livre, em uma canção. Escrevi uma estrofe 
e gravei.  
Me  esqueci  de  falar  antes!  Só  gostei  mesmo  da  guitarra  passando  pelo FreqEcho, da Valhalla, que dá 
um delay sincopado muito chique. Aí sim fiquei feliz.” (31/05) 
 

 
fig 10. Efeito de Delay utilizado nas guitarras de “Miragem de Vidro” 
 
Esse  esqueleto  que  eu  previa  acabou  se  concretizando,  e  acabei  buscando  em  diversos 
momentos  o  que  havia  escrito  um  ano  antes,  na  Medula.  O  texto  em questão, “Espelho”, foi parte 
de  uma  tarefa  proposta  pelo  grupo,  na  qual  cada  pessoa  escolheria  uma  palavra,  e,  sobre  ela, 
escreveria  dois  textos,  um  literal,  e  outro com maiores liberdade poéticas. Colo aqui o meu, de abril 
de 2018: 
 

46 
 
Espelho (01)   
Re ete os raios de luz. Pode ser plano, curvo.  Dali eu saio  
É onde a gente se olha. No espelho plano, se  que nem tu continua andando depois de 
tu olha pra alguém, esse alguém pode te olhar  encontrar alguém na rua 
também.   como bebo visto digito arrumo limpo evito 
O espelho é vaidade quando não é decepção.  evito outros encontros com a gura esquisita 
Existem espelhos há 8 mil anos. Existem  que me observa 
espelhos, de outras formas, desde que existem  a gura nao emite som mas fala alto 
pessoas.  a gura que imita sem questionar 
Os designers de interiores dizem que eles   
abrem as salas. Não sei, nunca adentrei.   ela é simpática, quando não é a ita 
Os físicos a rmam que todo espelho  prismática estática 
apresenta deformações na imagem.  é resenha de embalagem, crítica de cinema, 
Transgêneros concordam.   coluna de fofoca,  
  horóscopo, biscoito da sorte 
Espelho (02)   Saio 
Eu olho e depois me olho me olhando  Caminho  
Tem uma pessoa dentro do vidro. Cresce um  Ouço 
bigode no rosto dela  “não fez o bigode hoje?” 
Tem sinais de uma noite mal dormida na   
cara.   05042018 
pode ser uma bem dormida também   
Tem um sorriso de dentes que eu juro que   
parecem mais amarelos do que ontem   
 
Ainda  doente,  só  pude  gravar  vozes  um  dia  antes  de  apresentar  a  música  na  aula.  Pela 
primeira  vez,  então,  gravei  e  compus  todas  as  partes  instrumentais  antes  de  escrever  o  restante  da 
letra  e  da  melodia.  A  guitarra  parecia  ser  o  que  balizava  as  ideias  ao  longo  desse  processo.  Depois 
dela, a seção rítmica e o baixo: 
 
“Gravei  um  baixo  que  gostei  bastante.  Não  tava  afim  de  fazer  um  beat  intrincado,  então 
gravei  um  loop  e  coloquei  um  beat repeat com ‘Variation’ bem alto, assim ele vai agindo em intervalos 
de tempo irregulares.” (08/06) 
 
Um  elemento  do  arranjo  que  remonta  a  algumas  das  primeiras  experiências  que  tive  com 
produção  musical  é  o  de  um  sample  de  prato  de  bateria  presente  ao  longo  de  quase  toda  a  música 
(mais  notavelmente  no  início,  junto  da  guitarra).  Minha  estratégia  para adicionar esse elemento foi 
a  de  estender  o  sample  no  tempo  (“esticar”),  para  que  ele  adquira  uma  característica  mais  textural 
do  que  rítmica.  A  primeira  vez  que  vi isso foi na residência artística da Medula em 2016, na Galeria 
La  Photo.  Lá,  conversei  com  Isabel Nogueira sobre gravações de campo e paisagem sonora, e ela me 

47 
comentou  que  isso  era  uma  técnica  que  ela  empregava  eventualmente,  para  manipular  os  sons 
gravados.  
O  outro  elemento  recorrente  do  arranjo  é  um  sintetizador  com  um  LFO29  que  surge,  na 
maioria  das  vezes,  entre  versos  da  segunda  metade  da  música.  A  ideia  de  pontuar  esses  momentos 
com  um  timbre  que  fosse  de  sintetizador,  mas  mesmo  assim  rítmico,  veio de uma canção da artista 
FKA  Twigs,  que,  na  canção  Two  Weeks  (2014),  utiliza  como  elemento  rítmico  muito  presente  no 
arranjo sintetizadores com LFOs.  
Com  todo  o  arranjo  já  gravado,  dia  11  de  junho  gravei  as  versões  de nitivas  das  vozes. 
Contudo,  a  proposta  de  interpretação  que  eu  havia  pensado  (“leve  e  aerada”,  como  descrevi  no 
diário),  não  seria  possível  no  tom  no  qual  eu  havia  composto  (Sol  menor).  Então,  selecionei todos 
os  clipes  de  áudio  no  Live  e  utilizei  a  ferramenta  de  transpor  para  um  tom  abaixo  (Fá  menor).  Eu 
esperava  que  o  áudio  se  distorcesse  de  alguma  forma,  pelo  processamento  digital,  mas  o  resultado 
me  agradou  bastante,  e  as  versões  de nitivas  dos  instrumentos  acabaram  sendo  essas.  Enfatizei  na 
escrita  do  diário  que  queria  que  as  gravações  de  vozes  priorizassem  o  caráter  da  música,  pois  a 
a nação poderia ser facilmente ajustada posteriormente com plug-ins.   
Fiz  gravações  da  estrutura  da música inteira, parando na seção  nal (3’56”). A ideia que tive 
para  o  m  foi  o  de  buscar  replicar  as  experiências  de  improvisação  vocal  que  tive  na  música 
experimental.  Com  vocalizes  cheios  de  reverbs  e  delays, como fazia na Medula e Elatrônicas. Gravei 
5  passadas  dessa  estrutura  nal,  improvisando,  e  selecionei  alguns  trechos,  mixei  de  acordo  com  o 
que  queria  que  soasse  mais  evidente.  Experimentei  também  com  ruídos  na  voz,  e  não  só  com 
vocalizes. Em uma das passadas, utilizei o efeito de flanger30 do pedal de voz Boss VE-20.  
Quando  comecei  a  preparar  a  canção  para  executar  ao  vivo,  pensei  em  jeitos  de  criar  uma 
nova  introdução,  visto  que  a  versão  do  EP  não  apresenta  nenhuma  marcação  de tempo facilmente 
discernível  para  mim,  o  que  me  dava  di culdades  para  começar  a  tocar  junto  da  trilha.  Revisitei  o 
projeto  da  mix  original  e  vi  que  havia  uma  linha  de  baixo  em  uma  das  partes  da  música que estava 
sem  volume.  Não  me  lembro o porquê de eu ter silenciado essa parte, mas acabei aproveitando para 
criar  um  pequeno  prelúdio.  Utilizei  uma  parte  dessa  faixa  que  gravei  para  a  música  e  gravei  uma 
nova,  criando,  então,  uma  introdução,  só  com  baixo,  e  uma  linha  que  marca as trocas de acorde da 
primeira estrofe.  
Incorporei  a  essa  linha  do  início  um  efeito  de  delay com mudança de frequência, causando 
que  a  todas  as  repetições  fosse  adicionado  um  determinado valor que altera sua altura e timbre. Na 
execução  na  performance,  improviso  alterando  esses  valores,  por  meio de um knob na controladora 
MIDI. O trecho de baixo  ca em loop, e quando estou pronta para iniciar a música de fato, disparo a 
próxima sessão do projeto, que corresponde a todas as outras partes da canção. 
Como  a  instrumentação  nas  partes  iniciais  da  música  é  escassa,  a  execução  em  sincronia 
com  a  trilha  se  prova  um  desa o  em  alguns  momentos.  Por  mais  que  eu  cante  e  toque  guitarra  ao 
vivo,  optei  por  fazer  a  primeira  metade  (antes  da  entrada  da  percussão  que  segue  até  o  m)  com 

29
Do inglês Low Frequency Oscillator (oscilador de baixa frequência), funciona como um controlador de quaisquer 
parâmetros de um sintetizador, por exemplo. Nesse caso, o LFO fazia o volume do sintetizador oscilar, dando o efeito 
de que o som “ligava” e “desligava” alternando entre o inaudível e o volume da mix.  
30
Efeito que, por meio de delays muito curtos, distorce o som. O Flanger que utilizei aqui opera com dois LFOs que 
causam os delays concomitantemente, podendo ser controlados individualmente. 

48 
trilha,  pois  há  alguns  efeitos  que  gosto  bastante  (como  o  synth  LFO).  O  que  me  guia é o ritmo do 
próprio  delay  da  guitarra,  que  na  versão  ao  vivo  está  passando  pelo  mesmo  efeito  de  delay  de 
quando  gravei,  e  os  ataques  de  baixo  na  primeira  estrofe.  Tenho  a  opção  também,  de  adicionar  à 
trilha  a  guitarra  original  da  gravação,  em  um  volume  mais  baixo  do  que a toco ao vivo, assim posso 
ouvir quando as duas linhas se afastam e tentar compensar.  
 
 

2.9 Androgênia 
Androgênia foi a primeira música que compus consciente de que faria parte de um processo 
maior  de  composições  e  performances.  Seu  processo  começou  na  última  semana  de  janeiro,  e  foi 
durante  essa  fase  inicial  da  composição  que  decidi  que  o  que  iniciaria  ali  seria  uma  coletânea  de 
músicas.  Em  17  de fevereiro, escrevi em um papel o que seria um “planejamento” do EP, com datas, 
referências  musicais  e  ideias  acerca  do  processo.  Entre  elas,  a  ideia de compor uma música por mês, 
resultando  em  5  no  meio  do  ano  (fevereiro,  março,  abril,  maio,  junho).  Um  fator  importante  na 
escrita  sobre  essa canção é o fato de que eu não havia iniciado os registros no diário de campo ainda, 
deixando-me  dependente da memória e de versões anteriores do arquivo do projeto para escrever. O 
arquivo  que  abriga  essa  música  se  chama  “Segura”,  presumo  que  por  eu  ainda  não  ter  o  nome  da 
música  quando  comecei  a  compor.  Talvez  re ita  um  sentimento  que  sentia,  ou  que  gostaria  de 
sentir. 
Quando  iniciei  o  processo  dessa  música,  não  sabia  a  sua  direção, mas garimpava os timbres 
que  sintetizadores  que  o  Live  dispunha  e  me  deparei  com  um  chamado  “Marina”.  O  nome  me 
remeteu  a  uma  artista  que  eu  gosto  muito,  que  na  época usava o nome Marina and the Diamonds. 
Busquei  nas  canções  de  Marina  elementos  estéticos  que  gostaria  de  aplicar  aqui,  que,  para  mim, 
seria  algo  dançante,  com  arranjo  protagonizado  por  sintetizadores,  batidas  e  a  voz,  além  de  seções 
bem de nidas na estrutura da canção.  
A  introdução  em  5/4  foi  um  resultado  do  arpejador  que  utilizei  no  acorde  do  início.  O 
arpejador  disparava  no  ritmo  de  colcheias  e  repetia  o  acorde  uma  vez uma oitava acima, resultando 
em  10  notas  no  total.  Gostei  da  ideia  de  fazer  uma  seção  em  5/4,  e  outras  em  4/4  (como  era  mais 
comum  na  minha  prática).  A  batida  que  acompanha  esse  arpejo  não  foi  tocada  por  mim,  mas 
programada  diretamente  no  piano  roll  do  Live,  diferentemente  de  outros  processos  que  escreverei 
aqui,  e  todos  os  sons  percussivos  se  encontram  no  mesmo  conjunto  de  bateria,  chamado  Quark, e 
que acompanha o software.  
Não  sabendo  direito  como  seguir  a  seção  em  5,  tentei  compor  alguma  parte  que  não  fosse 
imediatamente  depois  dessa,  e  acabei  escrevendo  o  que  veio  a  ser  a  última  parte  da  canção.  A 
sequência  de  acordes  surgiu  de  um  improviso  que  z  no  piano  que  tenho  em  casa.  Não  tenho 
muita  uência  no  instrumento,  então  me  lembro  de  tentar  mover  o  mínimo  de  dedos  o  possível, 
gerando  esse  padrão  de  acordes  onde  um  dedo  se  mexe de cada vez. Queria muita energia em todos 
os  instrumentos  do  arranjo  nessa  parte.  Um  dos  recursos  que  utilizei  aqui,  especialmente  quando 
mixei  os  elementos  do  arranjo,  foi  o  de  compressão  sidechain.  Sidechain  é  um  termo  usado  na 
produção  musical  quando  um  sinal  de  áudio  age  como um controle em um efeito aplicado a outro 

49 
sinal  (HUBER;  RUNSTEIN,  2014).  Nesse  caso,  um  dos  bumbos  graves  está  agindo  sobre  a 
compressão  de  vários  outros  canais,  fazendo  com  que  quando  ele  soa,  todos  esses  outros  áudios 
soem mais fracos, “abrindo o caminho” na mixagem.  
 

 
fig  11.  Exemplo  de  compressão  sidechain  em  um  dos  canais  de  sintetizadores  de  Androgênia.  Neste 
exemplo,  o  bumbo  (“kick  noise”)  atua  sobre  o  sintetizador  “Marina”,  do  plugin  Serum.  Cada ataque 
do bumbo interfere no volume do sintetizador. 
 
Com  essas  duas  seções  estabelecidas,  eu  reconhecia  que  tinha  um  início  e  um  m,  e  me 
restava  traçar  o  caminho  entre  os  dois.  O  resto  do  processo  de  composição  foi  “linear”,  nesse 
sentido:  a  ordem  na  qual  se  ouve,  é  a  ordem  na  qual  eu  compus/realizei  as  decisões  que  lá  estão. 
Uma das coisas que tentei manter em mente foi a divisão entre as seções, procurando elementos que 
fossem  únicos  de  cada  uma,  como  a  diminuição  da  seção  de  percussão,  ou  as  células  rítmicas  mais 
marcadas, a exploração de dinâmicas/silêncios, etc. 
A  escrita  do  texto  da  canção  veio  vinculada,  para  mim,  à  ideia de relacionar o corpo trans à 
gura  do  androide,  como  um  corpo  que  é  modi cado/criado  arti cialmente.  Há  momentos,  no 
texto,  de  uma  con ança  e  uma  certeza  muito  grande  (“De  perfeita  genética”),  contrapostos  a 
momentos  de  uma  autocrítica  muito  forte  (“Confusão  estética”  ),  que  relaciono  com  o  sentimento 
de  disforia  (“Esses  braços,  esses  ombros,  essa  pele  não  é  minha”).  A  menção,  na  última  estrofe,  da 
“carne  hormonizada”  seria  essa  união  entre  a  modi cação  corporal  presente  nos  tratamentos  de 
transição de gênero com a construção do robô, do androide.  
Em  16/05,  após  ter  nalizado  “Invencível”,  retornei  a  Androgênia,  buscando ver o que me 
agradava ainda. Escrevi:  
 
“O  beat  me  parecia  muito  “reto”,  não  tinha  o  movimento  que  eu  queria.  Refiz  todos  os  beats 
da música.  
● Troquei a caixa por uma mais “estourada”, com um saturador; 
● Mudei as claves dos agogôs para serem menos repetitivas” (16/05) 
 
Em  termos  de  gravação  e  processamento  da  voz,  várias  tentativas  foram  feitas  por  mim  de 
chegar  em  um  resultado  que  me  remetesse  à  “voz  androide”  que  dialogasse  com  o  texto.  Uma 
primeira  versão  da  música,  nalizada  em  6  de  março,  contava  com  3  camadas  de  voz:  Uma  sem 

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efeitos  e  outras  duas  que  combinavam  efeitos  de  phaser  e  chorus.  O  resultado  aqui  ainda  não  me 
agradava  por completo, e audições posteriores  zeram eu perceber que as gravações de voz possuíam 
vários  artefatos  e  glitches  que  eu  não  desejava,  e  por  mais  que  eu  experimentasse,  ao  longo  dos 
meses,  outras  cadeias  de  efeitos,  eu  notava  que  o  material  das  gravações  em  si  era  o  que  não  me 
agradava.  A  gravação  que  está  presente  na  versão  nal  é  do  dia  23  de  junho.  Fiz  uso  de  plugins 
presentes  nas  outras  músicas,  como  o  Melodyne,  para  a nação,  e  o  Vocalsynth, para efeitos na voz, 
mas  o  maior  uso  de  faixas  simultâneas  de  voz  no  EP  foi  nessa  canção,  o  que  gerou timbres que me 
agradaram bastante. Ao todo, utilizei 9 pistas diferentes para as vozes.  
A  seção  instrumental  que  termina  a  canção  é  composta  de  fragmentos  MIDI  de  diversas 
outras  partes  da  música.  Ao  longo do processo da composição de cada seção, eu arrastava clipes não 
utilizados  ou  repetições  que  excediam  o  tempo  que  eu  queria  “para  longe”,  e  acabei  criando  um 
pequeno  cemitério  de  segmentos  musicais.  Em  uma  das  sessões  de  composição,  não  pausei  o 
playback  e  o  Live  começou  a  tocar  essas  várias  peças  que  antes  só  existiam  separadas,  juntas, 
formando um último momento da música.    

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3. Vídeos: Produções e Projeções 
Enquanto eu não ouço sua voz  
não sei dizer se é um homem ou uma mulher 
(Maria Beraldo)  
 
Tento revirar a cabeça pra me lembrar como que me envolvi, inicialmente, com a produção 
de  vídeo  como  meio  criativo.  A  resposta  que  tenho  até  agora  é  que  foi  nos  anos  nais  do  ensino 
fundamental e do ensino médio, então entre 2012 e 2015. Era comum que os trabalhos de literatura 
da  minha  escola  fossem  centrados  em  alguma  produção criativa, algum jeito de contar a história do 
livro  que  era  tópico  da  aula  sem  ser  pelas  palavras  no  papel.  Eu  e  meus  amigos  tomávamos  isso 
como  estímulo  para  nossas  produções  mirabolantes  que  costumavam  exceder  o  tempo  limite 
designado pelos professores.  
Penso  que  a  prática  do  vídeo  nesses  momentos  era similar à da música, no sentido de eu ser 
a  encarregada  da  edição e pós-produção, e acabar me ancorando na internet como fonte de tutoriais 
e  resolução  de  problemas,  muito  como  as  cifras  que  usava  para  tocar  as  músicas  que  eu  gostava. 
Íamos  para  o  jardim  da  casa,  para  a  sala  de  estar,  o  quarto  grande,  com a câmera (a mesma que uso 
em  alguns  vídeos  deste  trabalho  também)  e  criávamos  as  imagens  que  depois  viravam  nossas 
recontagens  de Machado de Assis.  Nunca encarei esses momentos, que para mim pareciam ser mais 
lúdicos  do  que  qualquer  coisa,  como  práticas  que  fomentassem  a  uma  sede  criativa  minha,  mas 
pensando bem, nem com a música achei que seria assim. 
A  criação  de  vídeos  retornou  na  faculdade,  a partir do meu segundo semestre, na disciplina 
de  Prática  Musical  Coletiva  2  (na  turma  ministrada  pela  professora  Isabel  Nogueira),  quando  a 
professora  sugeriu  que  apresentássemos,  junto  a  uma  das  músicas  do  repertório  que  criamos,  um 
vídeo.  Respondemos  com  dúvida  àquela  sugestão,  a nal,  a  linguagem  com  a  qual  estávamos 
trabalhando  ali  "não  era  essa",  como  se  parecesse  algo  tão  distante e impenetrável que teríamos que 
nos  debruçar  apenas  sobre  essa  criação.  Isabel  sugeriu  que  gravássemos  coisas  que  já  estavam 
presentes  nos  nossos  dias,  o  caminho  até  em  casa,  o  quarto  que  dormíamos,  a  sala  onde 
trabalhávamos,  gestos  que  fazíamos  todos  os  dias.  Eu  me  ofereci  para  montar  esses  arquivos,  e 
reproduzimos o vídeo junto de uma das músicas na nossa banca nal. 
Paralelo  a  isso,  eu  estava  criando  familiaridade  com  o  coletivo  Medula,  durante a ocupação 
que  o grupo fez na Galeria La Photo, no  nal da qual, os/as integrantes apresentaram seus trabalhos 
desenvolvidos  no  espaço.  Uma  das  pessoas,  Chico  Machado,  professor  do  Departamento  de  Artes 
Dramáticas  da  UFRGS,  possuía  um  trabalho que lançava mão do vídeo como veículo de expressão. 
Luciano  Zanatta,  na  mesma  ocasião,  apresentou  um  trabalho  que  manipulava vídeo e som ao vivo, 
em conjunto. Talvez as linguagens não precisassem ser tão diferentes assim.  
Em  shows  da  Medula  que  participei,  em  2017,  e  em  apresentações  do coletivo Elatrônicas, 
em  2018,  foram  as  vezes  que  toquei  acompanhada  de  vídeo-projeções,  feitas  por  outras  pessoas 
nesses  casos.  Conversava  com  as  pessoas  responsáveis pelos vídeos sobre como era o processo delas, 
que  programas  usavam,  como  que  tentavam  estabelecer  esse  diálogo  entre  a música que tocávamos 
com os vídeos. 

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A  decisão  de  integrar  vídeos  em  Anatômica  veio  desses  encontros  que  tive  com  o  meio 
dentro da Universidade, mas também fora dela. Fui a shows nesse meio tempo que faziam uso deles, 
e que me deixaram muito a m de experimentar: É preciso estar a m.  
A  ferramenta  com  a  qual  trabalhei  para  fazer  a  maior  parte  do  processo  dos  vídeos  foi  o 
Adobe  Premiere  (versão  CC  2019).  O  programa  foi  desenvolvido  para  englobar  todas  as  etapas  da 
edição  de  vídeo,  desde  a  montagem  dos  arquivos  até  os  processos  de  manipulação  (de  maneira 
semelhante  ao  Live,  é  o  centralizador  desse  processo, mesmo que em alguns momentos eu recorra a 
outros softwares).   

 
fig  12.  Visão  do  Adobe  Premiere  Pro,  onde  montei  e  editei  os  vídeos.  Na  maior  parte  do  tempo,  utilizei  dois 
monitores.  Acima,  a  visão  do  monitor  primário,  com  as  informações  dos  clipes,  a  linha  do  tempo  onde  eles são 

53 
montados, os controles de efeitos e o explorador de arquivos. Abaixo, a visão do segundo monitor, onde é exibido o 
vídeo "resultado", chamado no software de "Program".  
 
Esse é o mesmo software que utilizava na época das vídeos da escola, então retornar a ele não foi um 
tanto um aprendizado do zero, mas uma re-lembrança. 
Dando  uma  breve  explicação  de  com  uso  o  software:  inicio  importando  todos  os  arquivos 
de  vídeo  que  tenho  gravados  para  o  projeto.  No  vídeo  da  imagem  de  exemplo  (o  que  acompanha 
"Invencível"),  havia  arquivos  gravados  com  uma  câmera  de  vídeo  portátil.  Após  importados,  de 
maneira  semelhante  ao  meu processo no Live, começo a improvisar. No caso de "Venus", a primeira 
experimentação se deu da seguinte forma: 
 
"A  ideia  que  vinha  matutando  era  de  uma  moldura  de  mãos.  Queria  experimentar 
com  chroma  key,  para  conseguir  só  as  mãos,  com  transparência.  [...]  Com  dificuldades  para 
fazer  o  chroma  funcionar,  as  condições  de  iluminação  ideais  são  bem  difíceis,  quanto  menos 
sombras  melhor.  Descobri  que  diminuindo  a  saturação  do  vídeo,  funciona  melhor,  e  por  elas 
ficarem  com  menos  cores,  devido  à  diminuição,  parece  que  tão  envoltas  em  uma  escuridão, 
achei  bem  dark,  bem  chique.  Vou  tentar  pegar  mais  gravações,  ontem  foi  tudo  de  primeira"  
(11/09) 
 
A  técnica  que  menciono  aqui,  Chroma  Key,  refere-se  a  "seletivamente  diminuir  a  opacidade  de 
alguns  pixels,  baseado  na  cor de cada um" ( JAGO, 2019 p. 439). Nesse caso, posicionei a câmera de 
frente  para  um  edredom  azul  que  tenho  em  casa  e  gravei  as  mãos  ali.  Em  seguida,  no  Premiere, 
tentei  ao  máximo  eliminar  todo  o  fundo  azul,  utilizando  o  efeito  de  Chroma  Key  disponibilizado 
no  programa.  Como  mencionei  no  diário,  surgiram  artefatos  e  ruídos  ao  tentar  remover  o  fundo, 
por  não  se  tratar  de  uma  iluminação  tão  plena,  como  é  recomendado  para  utilizar  a  técnica, mas o 
recurso  que  encontrei  foi diminuir a saturação do vídeo, para que as cores se "uniformizassem", e eu 
pudesse mais facilmente seleiconar o tom de azul que removeria todo o fundo.  
 

 
fig 13 Arquivo de filmagem de Venus, antes da aplicação do Chroma Key 

54 
 
A utilização da técnica possibilitou que eu compusesse uma imagem com vários elementos 
repetidos e sobrepostos, pois estavam todos sem o fundo, um dos resultados foi o seguinte:  
 

 
fig 14. Uma das molduras de mãos de Venus 
 
 
Outro  procedimento  que  utilizei  para  a  criação  dos  vídeos  foi  o  da  manipulação  do  vídeo 
por  meio  do  corrompimento  do  código  do  arquivo,  o  nome  comumente  dado  a  essa  técnica  é 
Datamoshing  (BROWN  e  MUTTY,  2012).  A  referência  que  tinha  em  mente  quando  pensei  em 
utilizar  a  técnica  era  um  clipe  da  banda  estadunidense  Ok  Go, da canção WTF?  (2009). Embora o 
resultado  visual  que  eu  tenha  conseguido  não  é  o  mesmo,  o  gatilho  que  originou  a  busca  por  essa 
técnica  foi  o  clipe.  A  partir  da  vontade  que  senti, parti a pesquisar tutoriais na internet, e encontrei 
um site que se provou uma das maiores fontes a respeito do assunto: datamoshing.com.  
 
"[...]  Comecei  a  explorar  datamoshing.  A  ideia  surgiu  de  algumas  referências  de  vídeos  com 
glitch  (tipo  o  WTF?!  do  Ok  Go),  e  uma curiosidade de ver como se fazia. Procurei na internet 
e  encontrei  métodos  que  se  baseiam  em  abrir  o  arquivo  de  vídeo  em  um  editor hex e mudar o 
próprio  código  do  arquivo.  Os  resultados  acabam sendo muito na base da tentativa e erro, por 
eu  não  conseguir  interpretar  todas  aquelas  letras  e  números  (acho  que  só  máquinas  tem  esse 
privilégio).  [...]  Surgiram  texturas  bem  legais  que  penso  em  usar  em  alguns  momentos.  Acho 
que pegar essa prática vai ser um mecanismo bem bom pro resto do trabalho" (15/09) 
 
Em  minhas  pesquisas,  encontrei  dois  possíveis  caminhos  para  executar a técnica: em um, o arquivo 
de  vídeo  é  aberto  em  formato  de  texto,  em  um  software  que  consegue  manipular  as  informações 

55 
brutas  do  arquivo.31  Quando  aberto,  o  arquivo  se  mostra  em  linhas  e  mais linhas de caracteres que 
para  meu  olho  pareciam  aleatórios,  não  haveria  como  eu  desvendar  qual  parte  do  vídeo  eu 
necessariamente  estava  editando,  então  o  processo  se  desenvolveu  por  tentativas  diversas,  até  que 
algum resultado me agradasse.   

 
fig 15. Visão do software HexFiend, com um dos vídeos de Invencível aberto e um exemplo do vídeo 
modificado por meio da técnica de datamoshing  
 

31
Nessa ocasião, utilizei o software livre HexFiend.  

56 
O  outro  procedimento  de  datamoshing  que  utilizei  é possível por meio do aproveitamento 
dos  algoritmos  de  compressão  de  vídeo  comumente  usados  atualmente.  Para  diminuir  o  tamanho 
dos  arquivos  digitais,  é  comum  que  os  softwares  possuam  algoritmos  que  deixem os arquivos mais 
compactos,  e  em  vídeo  há  um  tipo  especí co  de  compressão,  que  classi ca  diferentemente  os 
quadros  que  formam  a  imagem em movimento. Existem quadros que possuem a imagem completa 
(i-frames)  e  quadros  que  possuem  apenas  a  informação  de  quais  pixels  mudaram  em  relação  ao 
quadro  anterior  (p-frames)  (BROWN  and  MUTTY,  2012  p.168).  Por  meio da edição de vídeo em 
software,  é  possível  que  se  mantenha  uma  mesma  imagem  estática (um i-frame) e a ela se "some" as 
mudanças  que  ocorreriam  na  imagem  subsequentemente  (todas  as  p-frames  que  surgem  depois 
dessa). Visualmente, o processo toma este aspecto:  

 
fig  16.  Na  imagem  mais  acima,  se  tem  apenas  a  imagem  (i-frame),  na  segunda,  sobrepõe-se  a  ela  a 
informação  de  movimento  do  pé  dos  próximos  quadros  (p-frames),  e na terceira o mesmo, porém com mais 
camadas sobrepostas.  

57 
 
Acho  interessante  re etir  sobre  como  esse  processo  dialoga  com  o  que  discuti  em  alguns 
momentos  quando  falei  sobre as composições musicais, no que diz respeito às marcas tecnográ cas. 
O  resultado desses vídeos só é possível, dessa forma, pela implementação das técnicas de compressão 
de  arquivo,  mas  que  por  sua  vez,  são  subvertidos  a  m  de  criar  um  resultado  artístico,  que 
ressigni ca o vídeo original.  
De  forma  similar  a quando se estende um arquivo de áudio, em que o resultado sonoro vira 
progressivamente  uma  textura  densa,  aqui  o  vídeo  que  retrata  a  caminhada  vira,  também,  uma 
textura.  A  soma  de  cores  do lugar onde gravei, as falhas do asfalto, as  ores no chão, os dedos do pé. 
O  que  vira  marcas  aqui  é  o  meu  corpo, corpo que se torna ininteligível no meio do ruído digital do 
vídeo,  que  se  perde  no  mar  que  se  forma.  Pouco  a  pouco,  borram-se  os  territórios,  na  imagem,  do 
que  é  humano  e  o  que  é  paisagem,  ao  ponto  de  que  no  nal  as  camadas  se  somam  com  os  vídeos 
anteriores,  e  na  inquietação  dos  passos  da  música  e  dos  passos  do  vídeo,  o  que  se  resulta  é  uma 
complexa  textura.  De  forma  similar  a  como  me  uno  à  tecnologia  para  tocar,  quis,  em  Invencível, 
fundir-me ao vídeo. 
Acho  interessante  relacionar  isso  com  o  que Paul Preciado (PRECIADO, 2018) considera, 
acerca da importância da fotogra a na construção das imagens performativas de gênero:  

A  invenção  da  fotogra a,  no  começo  do  século  XIX,  antes  do  surgimento  e 
aperfeiçoamento  das  técnicas  hormonais  e  cirúrgicas,  assinala  uma  etapa  crucial 
para  a  produção  do  novo  sujeito  sexual  e  de  sua  verdade  visual.  Obviamente,  este 
processo  de  representação  do  corpo  já  havia  começado  no  século  XVII  com  o 
desenho  anatômico  e  pornográ co,  mas  é  a  fotogra a  que  vai  conferir  a  essa 
produção  técnica  da  materialidade  do  corpo  o  valor  de  realismo  visual. 
(PRECIADO, 2018 p.121) 

Essa  conformação/construção  da  imagem de gênero é algo que permeou os processos de criação dos 


vídeos,  de  forma  muito  similar  a  como  a  preocupação  com  como  performo  gênero  em  outras 
instâncias,  na  minha  vida  cotidiana,  nas  minhas  interações  com  outras  pessoas.  As  partes  de  mim 
que  eu  estava  disposta  a  lmar,  o  jeito  como  eu  mostrava  essas  partes  de  mim,  os  gestos.  O  " ltro" 
que  o  sentimento  de  disforia estabelece.  Chamo atenção, também, para o fato de que o autor relata 
que  o  "realismo  visual" é um aspecto importante nesse processo de distinção/construção da imagem 
de  gênero.  Como  se  para  regulamentar  certo  corpo  por  meio  das  ações  performativas,  fosse 
necessário,  antes,  reconhecer  este  corpo.  Talvez  um  dos  recursos  que  eu  empregue  aqui  seja 
justamente  controlar  esse  reconhecimento,  subvertê-lo,  para  ter  a  liberdade  de  construir esse corpo 
da forma que eu quiser.  

Essa  construção  de  imagem  é  algo  que  eu  trago,  inclusive,  no  texto  de  uma  das  canções, 
Miragem  de Vidro, na qual eu trato justamente de como meu corpo foi construído e do quanto isso 
me  incomoda,  me  traz  desconforto.  Quando  comecei  a re etir sobre a criação dos vídeos, sabia que 
o  que  correspondesse  a  essa  canção tentaria trazer essa mensagem de alguma forma. O foco que tive 
na  captura  de  imagens  nesse  caso  foi  o  rosto.  Posicionei-me  bem  à  frente  da  câmera,  tentando não 
enquadrar  nada  além  de  mim  e  um  pouco  do  plano  de  fundo,  a  parede  de  um  quarto  vazio  da 

58 
minha  casa.  Pensando  que  no contexto da performance eu não conseguiria intervir muito no vídeo, 
sabia  que  faria  um  longo  arquivo,  que  durasse  todo  o  tempo  da  execução,  e  então  queria  captar 
material o su ciente de vídeo para eu explorar no Premiere. 

fig  17.  Uma  comparação  de  uma  das  imagens  capturadas  para  Miragem  de  Vidro  sem  edição 
(acima) e uma imagem com as sobreposições e colorizações (abaixo). 

Dado  o material relativamente similar entre si (a maioria das tomadas que captei continham 
poucos  gestos  meus,  alguns  muito lentos e outros muito rápidos), explorei diversos recursos dentro 
do  programa  de  edição  de  vídeo.  Em  um  primeiro  momento,  as  sobreposições,  recurso  que  usei 
bastante  nos  outros  vídeos também. Empilhei dois vídeos em camadas diferentes, mas deixei apenas 
algumas  partes  do  vídeo  superior  "transparentes",  por  meio  da  ferramenta  de  Máscara.  Assim,  os 
olhos,  por  exemplo,  são  duplicados,  com  seus  movimentos  fora  de  sincronia.  Utilizei,  também, 
procedimentos  de  manipulação  da  velocidade  de  reprodução  do  vídeo,  o  que  faz  com que quando 

59 
estou  mais  estática,  o  vídeo  pareça  inalterado,  mas  alguns  gestos,  como  piscadas  ou  o  movimento 
das mãos, geram uma quebra nisso:  

"No  vídeo,  experimentei  acelerar  e  desacelerar  a  velocidade  de  reprodução,  brincar  com  os 
efeitos  que  surgem.  Fiz  datamosh  em  um  deles  também.  Na  parte  final da canção, pensei em 
me  riscar  toda  com  essas  cores  [primárias, que utilizei na maquiagem]. Achei que o resultado 
do  vídeo  ficou  lindo,  mas…  esqueci  de  apertar  pra  gravar!  Perdi  essa  tentativa,  mas  terei 
outras." (08/10) 

 
Experimentei  algumas  relações  com  o  arranjo  musical  também,  como  as  modi cações  nas 
cores  do vídeo simultâneas aos ataques da percussão, a troca de tomadas no início de novas frases do 
texto,  e  a  suspensão  em  preto  antes  do  início do primeiro refrão. No refrão, o procedimento se deu 
em  duas  partes:  Na  primeira,  criei  um  arranjo  de  dois  vídeos  sobrepostos,  em  loop,  de  maneira 
parecida  a  como  descrevi  anteriormente,  porém  o  resultado  ainda  não  me  parecia  muito  legal.  O 
loop  deles  parecia  muito  discernível,  e  achei  que  por  ser  uma  seção  grande  da  música,  queria  um 
pouco  mais  de  variação.  Juntei,  então,  esses  arquivos  e  exportei  esse  trecho  do  refrão,  e  a  esse 
arquivo, apliquei os procedimentos de datamoshing pelo HexFiend, similar a Invencível. Assim, por 
mais  que  fossem  dois  vídeos  "iguais",  os  efeitos  do  datamoshing  atuavam  não  sobre  essas  partes 
separadas,  mas  sobre  sua  união.  No  m  do refrão, utilizo a imagem estática com as cores invertidas, 
que ca mais saturada à medida que o instrumental cresce no feedback do delay.  
Na  segunda  metade  da  canção,  vi  que  já  tinha  usado  grande  parte  do  material  que  gravei 
com  a  câmera,  e  não  queria  fazer  outra  sessão  de  gravações  porque  achei  que  seria  aparente  que  a 
maquiagem,  cabelo  e  iluminação  estariam  diferentes.  Fiz  um exercício no reaproveitamento: iniciei 
por  pegar  toda a primeira seção da música e copiar na segunda, e iniciaria uma "segunda camada" de 
manipulações  a  partir  daí.  O que me surgiu como recurso foi o de borrar a fronteira de Miragem de 
Vidro,  e  buscar  os  materiais  dos  outros  vídeos  da  performance,  gerando  nessa  canção,  a penúltima 
do  show,  um  momento  de  recapitular,  de  recontextualizar  os  outros  momentos  nos  quais descrevi 
esse  corpo  despedaçado.  Utilizei,  primariamente,  as  sobreposições,  com  os  diferentes  algoritmos 
que  o  Premiere  proporciona,  ora  gerando  mais  contrastes,  ora  gerando  cores  novas,  iluminações 
diferentes,  com  o  momento  nal,  com  os vocalises e a maior pressão sonora, sendo a soma de todos 
esses  momentos  do  corpo  que  criei  nos  vídeos.  A  sensação  que eu tinha ao escrever a música era de 
um  desabamento  dentro  de  mim,  um  sentimento  de  não  pertencimento  em  mim  mesma  muito 
forte,  e  queria  tentar imaginar como que isso se mostra. As mãos, os pés, os olhos, todas as partes de 
mim  que  trouxe  antes  se  confundem  e  se  misturam,  como  os  nós  que  existem  dentro  de  mim 
quando tento visualizar o meu corpo.  
Outra  aproximação  que  tive  na  criação  dos  vídeos  foi  pela  síntese  de  formas  e  texturas que 
não  partissem  necessariamente  de  material  gravado  e depois processado. Para isso, recorri a recursos 
tanto  do  Adobe  Premiere  quanto  do  Resolume  Arena32,  programa  que  utilizei  para  a  projeção  ao 
vivo e manipulação dos vídeos na performance.  

32
Um detalhamento maior sobre o programa está presente no Capítulo 4.  

60 
Em  Amor  Verdade,  por  exemplo,  z  bastante  uso  de  formas  circulares  que  interagem  com 
elementos  do  arranjo  musical,  principalmente  o  bumbo.  A  escolha  da  paleta  de  cores  para  o  vídeo 
foi feita com a bandeira do orgulho não-binário em mente, priorizando o roxo, amarelo e preto.  

fig 18. Imagem do vídeo de Amor Verdade 

Os  círculos  coloridos  estão  presentes  ao  longo  de  todo  o  vídeo,  mas  em  seções  como  a  segunda 
estrofe  e  o  refrão,  realizei  uma  intervenção  com  o  efeito  "Roughen  Edges" (do inglês "Deteriorar as 
extremidades"),  que  distorce  o  exterior dos círculos, gerando mais texturas do que formas. Na seção 
nal  da  música  criei  vários  círculos  em  movimento,  visando  à  exploração  da projeção nesse caso. Já 
que  as  únicas  fontes  luminosas  são  os  círculos  coloridos,  todos  os  elementos  do  ambiente  sofrem 
rápidas mudanças de luz e cor.  

Catedral  também  consiste  apenas  de  elementos  gerados  inteiramente  no  computador, sem 
imagens  capturadas  por  câmera.  Nesse  caso,  o  gerador  utilizado  foi  o  Resolume  Arena, que possui 
uma  biblioteca  de  diferentes  texturas  e  formas.  Utilizei  "Linescape"  e  modi quei  os  parâmetros  a 
meu gosto. Segue uma comparação entre a con guração padrão e a que utilizei:  

61 
 

  fig  19.  Acima,  a  configuração  padrão  do  gerador  de  linhas  "Linescape",  e abaixo, a configuração que 
utilizei para Catedral.  

O  mergulho  na  criação  de  vídeos  para  a  performance  foi,  no  geral,  um  processo  muito 
frutífero  para  mim.  Pude  voltar  a  uma  linguagem  que,  de  certa  forma,  não  dedicava  muito  tempo 
desde  o  ensino  médio,  e  mesmo  naquela  época,  exercitava  de  uma  maneira  completamente 
diferente.  A  escuta  que  eu  fazia  das  músicas  durante  a  criação  visual parecia diferente do que a que 
eu  fazia  quando  mixava,  quando  compunha  as  músicas. Eu pude perceber meus próprios materiais 
de outro ponto de vista, e considero isso muito rico para minha criação.  

Essa  opção  de  dialogar  com  a  linguagem  visual  foi  interessante,  também,  como  elemento 
que  interage  com  outras  partes da performance: com o  gurino, a maquiagem, a própria concepção 
do  lugar  onde  apresentei  a  performance.  A nal,  as  projeções  inundariam o ambiente, seriam o que 
me  iluminaria  ao  longo  do  espetáculo.  Mesmo  sendo  um  um  conjunto  diferente  de  ferramentas  e 
recursos  quando  comparados  as  músicas,  os  vídeos  aqui  não  estão  agindo  separados  dos  sons,  mas 

62 
agindo  sobre  eles  e  com  eles.  Em  momentos  onde  os  elementos  visuais  interagem com o arranjo, ou 
até  pela  maneira  como  posso manipular eles ao vivo junto de algum efeito na trilha musical, ressalta 
as  relações  de  borramento  de  territórios  que  queria  construir  desde  o  início  do  projeto. Em alguns 
momentos  dessa  criação  especí ca,  sentia  que  devia  estar  fazendo  as  coisas  da  maneira  "errada", 
porque, diferentemente da música, eu não passei os últimos anos estudando artes visuais e edição de 
vídeo.  Em  determinados  momentos,  tive  que  pensar  que  talvez  a  estratégia  a  adotar  fosse  a  de 
encarar  isso  como  uma  improvisação  musical  livre,  uma  linguagem  que  tenho  bastante 
familiaridade.  Sobre  a  improvisação  livre,  parafraseando  Derrek  Bailey  (1993),  Rogério  Costa 
(2013) escreve:  

"[...]  Há  duas  formas  básicas  de  improvisação:  de  um  lado  a  improvisação 
idiomática  [...],  e  de  outro,  a  livre  improvisação.  Esta-  apesar  de,  obviamente  também 
ocorrer  dentro  de  contextos  históricos  e  geográ cos  determinados  -  assume  como  uma das 
suas  propostas  fundamentais  a  superação  dos  idiomas. Assim, na livre improvisação não há 
um  sistema  ou  linguagem  [musical]  previamente  estabelecida  [...].  Nesse  contexto,  os 
territórios  se  interpenetram  e  os  sistemas  interagem  cada  vez  mais,  de  maneira  que  os 
idiomas tornam-se mais permeáveis" (COSTA, 2013 p. 35)  

Evidentemente,  o  trecho  trata  de  uma  prática  que  se  situa  dentro  da  música,  mas  procuro  traçar 
uma  analogia  entre  esse  sistema  aparentemente  "livre",  que  visa  ao  não-estabelecimento  de  uma 
linguagem  própria,  mas  sim  de  uma  reapropriação  das  linguagens  já  adquiridas  pela 
intérprete/criadora,  e  que  acabam  por  criar  algo  que  está  não  totalmente  pertencente  ao  seus 
territórios  de  origem,  mas  sim  em  um  território  borrado  entre  todos  os  outros.  A  criação  das 
projeções  partiu  de  diversas  linguagens  que  eu  possuía,  como  referências  e  minhas  práticas 
anteriores  com  edição  de  vídeo,  mas  que  não  estavam  xadas  por  algum  sistema  de  ensino  ou 
prática  recorrente.  Eu  me  via  improvisando  constantemente  com  os  efeitos  e  técnicas 
disponibilizadas  pelos  softwares,  tentando  entender  esse  papel  de  "musicista  que  faz  vídeos"  não 
como  um  escape  do  território  no  qual  atuo  com  mais  segurança  (música),  mas  como  uma 
exploração em um novo território, no qual posso utilizar minhas linguagens de outra forma.  

   

63 
4. A Performance: Anatômica 
As pessoas estão longe de serem assim tão uidas, 
pois elas são, ao mesmo tempo, materiais e opacas. 
Os ciborgues, em troca, são éter, quintessência. 

(Donna Haraway) 

 
"Penso que no fim do ano eu esteja fazendo uma performance com as minhas músicas. Não sei quais, quantas, 
como. Não sei mesmo". (11/01)  
 
Visto  os  mecanismos,  materiais  e  motivações  que  me  trouxeram  até  a  realização  da 
performance,  sinto  que  de  preâmbulos  estou  bem  equipada.  Neste  capítulo  narrarei  o  processo de 
idealização  e  criação  de  Anatômica,  o  processo  de  escolha  do  local  e  colaboradores,  o  conjunto  de 
equipamentos que utilizei e minhas impressões pessoais sobre sua execução.  

4.1 Narrativa 
Quando  iniciei  a  elaboração  do  projeto,  já  sabia  que  tinha  vontade  de  envolver  vídeos  na 
performance,  com  base  nas  vivências  que  havia  tido  recentemente  e  ao  longo  da  universidade, 
elencadas  no  capítulo  3.  Contudo,  a  partir  disso,  diversas  dúvidas  surgiram  para  mim  no  quesito 
temático  da  performance:  eu  procurava  criar  uma  narração?  Um  arco  que  contasse  uma  história? 
Ou  preferia  encarar  cada  música  como  um  momento  diferente,  em  uma  proposta  mais  episódica? 
Eventualmente,  o  mote  que  surgiu  para  mim  foi  o  de  situar  todos  os  vídeos  e  momentos  da 
performance  no  lugar  do  corpo,  visto  que  esse  era  um  tema  que  é  presente  nas  canções  do EP. Ou 
seja,  de  alguma  forma,  a  criação  dos  materiais  visuais  e  a  tomada  de  decisões  para  a  criação  da 
performance  foi  balizada  por  essa  proposta:  salientar  as  diferentes  partes  do  corpo  (materialmente 
pensando:  pés,  mãos,  rosto),  mas  também  os  diferentes  momentos,  sensações  e  formas  que  o  meu 
corpo  evoca  para  mim  (os  momentos  de  disforia,  a  sensação  fragmentada,  a  conciliação  com  o 
próprio corpo). A esse processo de envolvimento íntimo com a produção, trazendo os experimentos 
de  criação  para  esse  território  íntimo, Luciana Lyra nomeia "Mitodologia" (LYRA, 2014. p.175). A 
autora  explora  como,  na  elaboração  das  mitodologias,  as  "forças  pessoais  que  movem  o  atuante  na 
relação  consigo  mesmo  e  com  o  campo,  num  processo  constante  de  retroalimentação"  (LYRA, 
2010  p.  177).  Penso  nesse  processo  como  central  na criação da performance, principalmente por se 
tratar  de  um  show no qual pretendo falar sobre um conjunto de experiências que são minhas, e que 
exigem, então, esse caráter de envolvimento íntimo com a criação e seus processos.  
Penso  muito  como  o processo todo de criação de Androgênia e Anatômica se desenrolaram 
dessa  forma,  lidando  com  as  forças  que  se  moviam  e  movem  em  mim  há  muito  tempo,  das 
inquietações com o corpo e a identidade. A autora continua: 
 

64 
A  Mitodologia  em  Arte  permite  ao  artista viver na pluralidade, fomentando o indivíduo na 
sua  abertura  para  o  imaginário  e  para  a  performance  que,  por  si,  são  espaços  políticos,  de 
transgressão  e  de  ruptura.  Abrir-se  para  esses  espaços é abrir-se aos espaços da invenção e da 
criação. (LYRA, 2010 p. 177-178) 
 
Com  esse  propósito  em  mente,  o  de  narrar  essas  diferentes formas e estados do corpo, que comecei 
a  elaborar  os  vídeos,  começando  por Venus e Invencível, pois sabia que esses seriam os retratos mais 
concretos  e  imagéticos  do  corpo,  lidando  com  as  mãos  e  os  pés,  respectivamente.  Nesse sentido, as 
duas  canções  apresentam  menções  a  esses  membros  em  seus  textos,  mesmo  que  não  sendo  os 
motivos  principais  que  eu  tinha  em  mente  quando  compus  elas.  Mesmo  assim,  os  vídeos  ilustram 
os  pés  e  as  mãos  ora  de  forma direta, com as imagens capturadas pela câmera, ora distorcidas, como 
abordei no capítulo acerca da criação visual.  
A  partir  de  "Torpe",  o  quarto  momento  da  performance,  tento  iniciar  uma  ruptura,  agora 
olhando  para  o  corpo  como  veículo,  como  carregador  de  memórias,  sensações,  de  marcas,  de 
cicatrizes.  Um  dos  desa os  que  encarei  para  executar  a  música  ao  vivo  foi  tentar  transpor a mesma 
atmosfera  da  versão  do  EP,  com  a  paisagem  sonora  e  vozes,  mas  com  um  material  novo.  Decidi 
chamar  as  mesmas  pessoas  presentes  na  gravação  do  disco  para me acompanharem na performance 
ao  vivo,  o  elenco  de  Ao  Filho  Torpe.  A  partir  dessa  vontade,  quis  criar  um  texto  diferente  do  da 
versão do disco. O texto que elaborei foi o seguinte:  
 
 
Se  eu  fizesse um corte, bem, lá de cima. Do topo  Mais  em  cima,  os  outros  cortes,  menores, 
da  minha  cabeça  até  a  sola  do  meu  pé,  O  que  recentes. 
sairia de dentro de mim? 
As alergias,  
Daqui,  o  CD  da  Madonna  que  eu  ouvia 
As cicatrizes,  
quando era criança  
As insônias,  
Aqui, as vezes que tentei jogar bola 

As saudades 
Aqui  ,  eu  ainda  sinto...  a  primeira  vez que me 
empurraram na rua  Memories Musculares   

Na  ponta  dos  dedos,  a  impressão  digital  das  Memórias Anatômicas 


armas que empunhei contra mim. 
Se  eu  fizesse  um  corte,  bem lá de cima. Do topo 
Nos pés, as vezes que quis fugir  da  minha  cabeça  até  a  sola  dos  meus  pés,  E 
saísse tudo, tudinho. O que sobraria? 
Acima, as casquinhas de quando ralei o joelho 

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Um  dos  motes  para  a  criação  do  texto  também  foi  uma  pesquisa  que  z  sobre  a  etimologia  de 
"Anatômica"  e  "Anatomia",  que  me  revelaram  que,  do grego, a palavra signi caria "incisão de alto a 
baixo".  Se  tal  origem  é  verdadeira  não  é  a  discussão  que  queria  trazer,  mas  serviu  como  estímulo 
para  que  eu  pensasse  no  texto.  Durante  a  performance,  posicionei-me  na  contraluz,  com  um 
holofote  atrás  de  mim.  Não  queria  aparecer,  como  se  cada  uma  das  pessoas  que  falava  naquele 
momento  fossem  diferentes  partes  de  mim.  Os  pensamentos  fragmentados  que  se  manifestam 
dentro de mim.  
Em  Amor  Verdade,  mantenho  a  ideia  dos círculos no vídeo, agora com a guitarra em mãos. 
O  mesmo  escudo  que  me  protegia  desde  o  início  da  minha  prática  musical  me  acompanha nessa e 
em  mais  duas músicas. É a única canção que organizei em apenas uma cena no Live, principalmente 
por  eu  estar  com  a  guitarra  em  mãos,  o  que  di culta  o  manuseio  das  controladoras  MIDI.  Amor 
Verdade  inicia  a  segunda  metade  do  setlist.  Em  minha  interpretação,  se  a primeira metade do show 
delineia  os  aspectos  materiais  do  corpo,  a  segunda  trata  das  coisas  que  passam  despercebidas  pelos 
olhos.  São  as  músicas  que  tentam  dar  conta  do  que  há  por  dentro  de  mim.  Amor,  Nervosismo, 
Disforia, Entrega, Aceitação.  
Degradê  é  o  segundo  momento  de  improviso  mais  intenso  do  show,  junto  de  Catedral. 
Guitarra  e  voz,  momento  de  tentar  acessar  o  que  virá  em  Miragem  de  Vidro.  Sem  vídeos,  sem 
bumbos,  tempo  de  recolher,  de  entender,  de  improvisar.  Volto  para  as  terças  à tarde improvisando 
com  a  Medula,  as  quartas  de  manhã  na  Prática  Coletiva  4,  ao  meu  espaço,  meu  quarto.  Talvez  eu 
esteja  respondendo  a  última  pergunta  de  Torpe,  o  que  sobraria?  Se  tudo  fosse  embora,  se  tudo 
jorrasse de dentro de mim.   
Miragem  de  Vidro,  dentro  do  mito  que  criei  para  a  performance,  representa  o  corpo  se 
despedaçando,  as  sensações  de  insu ciência,  de  tristeza,  de  angústia  dentro  de mim mesma que me 
acompanham  desde  que  me entendo como não-cisgênera. É a única projeção que envolve, de forma 
reconhecível,  a  imagem  do  meu  rosto,  e  pela  maioria  do  vídeo,  é  a  única  imagem  que  compõe  o 
vídeo.  Os  glitches  que  atravessam  o  vídeo  me  descon guram,  desestabilizam,  como  o  olhar  do 
espelho  é  capaz  de  fazer.  Todos  os  elementos  que  trouxe  antes  retornam  no  nal,  os  materiais  e  os 
não-materiais, a nal, eles que me compõem.  
Androgênia  é  a  aceitação  de  todas  essas  peças  que  me compõem, as que já me machucaram 
e  as  que  me  deixam  mais  forte.  A  primeira  música  que  escrevi  é  a  que  escolho  para  nalizar  esse 
ciclo,  essa  história,  esse  mito.  Gosto  do  contraste  gerado  por  tocar  uma  música  atrás  da  outra, 
Miragem  de  Vidro  acaba  com  uma  nota  sustentada  de  sintetizador,  como  se  estivesse  passando  o 
bastão  do  revezamento  à  Androgênia.  Essa,  canto  com  alegria,  com  plenitude.  Tentando  achar 
sentido  em  todos  os  momentos  que  trouxe  aqui,  de  sentimentos  ruins,  de  desilusão.  No  vídeo, 
trago  poucas  imagens  facilmente  reconhecíveis,  mas  há  fotos  minhas,  coisas  que  achei  pela  minha 
casa,  como  um  grande  apanhado não só de quem sou, mas também de onde eu estou. As memórias 
não são só do corpo, mas do ambiente também.  
Olho  para  essa  linha  que  tento  traçar  entre  as  músicas  que  escolhi  apresentar  e  vejo 
elementos  em  comum  entre  elas,  não  só  do  corpo,  mas  também  de  memória,  de  a ição  buscando 
virar  tranquilidade.  Não  que não haja uma relação entre esses elementos, porque em mim creio que 

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há,  mas  me  parece  que  me  propus  a  falar  de  um  assunto,  e  vários  outros  vieram  junto,  como  os 
vídeos  que  vieram  junto  das  músicas,  as  vozes  que decidi agregar ao show, ou as pessoas que vieram 
junto  integrar  isso  comigo.  Mesmo  tendo  planejado  um show solo, não teria como eu ter calculado 
quantas  pessoas  eu  traria  comigo  nisso,  ou  como  isso  teria  virado  por  si  só  uma  parte  do processo. 
Tendo  introduzido  a  performance  pela  minha  versão  dela,  quero  partir  a  apresentar  como  que 
concretizei  (ou  não)  essas  ideias,  e  a  equipe  que  construi  para  possibilitar  isso.  Inicio  pelos  comos  e 
depois partirei aos quems.  

 
fig 20. Registro da apresentação, na canção Miragem de Vidro. Foto por Vinicius Angeli.  
 
 

   

67 
4.2 Arsenal 
A  maneira  como  ia  executar  todo  esse  plano  que  havia bolado em minha cabeça foi motivo 
de  bastante  pensamento  também:  com  que  equipamentos  eu  me  muniria  para  trazer  essas  visões 
para  o  show?  Utilizei  dois  computadores:  um  possuía  as  trilhas,  processava  a  voz,  a  guitarra  e  o 
sequenciador,  e  também  mandava  mensagens  MIDI  que correspondiam a cada um dos vídeos para 
outro  computador.  O  programa  que  utilizei  nesse  primeiro  foi  o  Ableton  Live,  o  mesmo  no  qual 
compus  e  gravei  as  canções.  O  segundo  computador  rodava  o  software  Resolume  Arena,  do  qual 
eram disparados os vídeos e efeitos. 
Resolume  Arena  é  um  programa  feito  especi camente  para  a  projeção  e  performance  com 
vídeos,  possuindo  a  organização  dos  arquivos em camadas (nas quais simultâneos vídeos podem ser 
sobrepostos)  e  colunas  (que  podem  ser  vistas  como  "momentos"  diferentes  da  performance,  como 
z  em  Anatômica).  Sobre  cada  clipe  podem  agir  diferentes  efeitos,  como  distorções  nas cores e nas 
formas  dos  vídeos.  A  interface  do  programa  dialoga  bastante  com  a  do  Live,  o  que  de  certa  forma 
facilitou  a  organização  dos  materiais  do  show  para  mim,  por  ambos  trabalharem  com  as  divisões 
bem claras dos momentos da apresentação.  

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fig  21.  Acima,  a interface do projeto que utilizei para a performance no programa Resoluma Arena 6, 
e  abaixo  a  tela  do  Ableton  Live,  também  no  projeto  que  utilizei  no  show.  Chamo  a  atenção  para  a 
maneira  como  ambos  os  programas  de  orientam  por  linhas  e  colunas.  No  caso  do  primeiro,  as  linhas 
são  as  camadas  de  vídeo,  e  as  colunas,  os  momentos  da  performance.  No  segundo,  as  colunas 
representam  cama  macro-seção  (como  cada  música)  ou instrumentos (como as primeiras três colunas), 
e as linhas representam divisões menores de tempo (como estrofes e refrões) 
 
Em  um  primeiro  momento,  desejei  fazer  a  performance  inteira  apenas  com  um 
computador,  pois  pensei  que  facilitaria  tanto  a  disposição  dos  elementos  no  espaço,  quanto  a 

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destreza  que  eu  poderia  ter,  por trabalhar em apenas um equipamento. Contudo, no meu primeiro 
ensaio na Galeria La Photo33, enfrentei bastante di culdade com isso: 
 
"Talvez  o  maior  problema  seja  que  o  computador  trava  ao  executar  as  coisas.  O  CPU  vai pro 
espaço,  e  o  som  começa  a  sair  com  glitch,  e  para  de  tocar.  Não sei se é a temperatura, ou azar, ou se em 
casa eu tava com sorte. Pensarei em soluções." - (11/10) 
 
Em  virtude  disso,  pesquisei  alternativas  para  dividir  a  carga  de  trabalho  do  áudio  e  do  vídeo,  pois 
realmente excedia a capacidade de um computador só. Descobri, no próprio site da Ableton34, que a 
prática  recomendada  é  a  de  enviar  mensagens  MIDI  por  rede  sem  o,  como  o  Wi-Fi.  O  notebook 
do  sistema  Mac  que  uso  já  possui  uma  ferramenta  de  transmissão  de  dados  MIDI  por  rede, 
contudo,  no  segundo  computador  que  eu  usei,  que  opera  com  o  sistema  Windows,  tive  usar  uma 
ferramenta  gratuita  chamada  rtpMidi,  que  possibilita  esse  tipo  de  comunicação.  Passei  alguns  dias 
tentando  fazer  as  duas  máquinas  se  comunicarem,  e  a  con guração  que  encontrei  que  mais  fazia 
sentido  foi  a  seguinte:  Para  cada  cena  do  Live,  que  representa  seções  diferentes  das  músicas  ou  até 
músicas  inteiras,  além  de  disparar  as  trilhas  com  os  instrumentos  e  efeitos,  eu  disparei  junto  uma 
nota  MIDI,  que  é  enviada  para  a  rede  que  estabeleci  entre  os  dois  computadores.  A  nota,  então,  é 
recebida  pelo  Resolume  no  segundo  computador,  o qual eu preparei de forma similar ao Live, com 
cenas de diferentes vídeos, cada um com suas notas, apenas esperando serem disparados.  
A  maioria  dos  outros  equipamentos  que  levei  são os mesmos que  zeram parte da gravação 
das  músicas,  desde  o  pedal  de  voz  às  controladoras  MIDI,  meu  estúdio  exposto  no  palco,  minha 
bolha  de  criação  compartilhada  ali,  naquele  momento. Uma das exceções que abri foi o da interface 
de  áudio,  a  qual  peguei  emprestada  com  André  Brasil35,  o  técnico  de  áudio  que  chamei.  Quando 
organizávamos  a  performance, vimos que, para gravar o áudio, necessitaríamos de um aparelho com 
mais  saídas  (no  mínimo  6,  enquanto  o  equipamento  que  uso  dispunha  apenas  de  4)  de  áudio.  O 
microfone  e  a  guitarra  estavam  conectados  ao computador, pois havia efeitos (como o Voclasynth e 
o  delay  da  guitarra  em  Miragem  de  Vidro),  que  eu  não  tinha  outras maneiras de produzir, além de 
pelo  Live.  Ao  todo,  eu  possuia  três  controladoras, para que o máximo possível do show estivesse na 
ponta  dos  meus  dedos,  sem  eu  precisar  me  reclinar  em  direção  ao  computador:  Duas  estavam 
conectadas  ao  Live.  A  primeira  controlava efeitos de reverb e delay mapeados a cada uma das trilhas 
e  das  vozes,  para  que  eu  pudesse  improvisar  com  a  sonoridade  de  cada  momento,  além  de  efeitos 
especí cos  para algumas músicas36. A segunda dispunha, além dos controles de disparo de cada cena 
do  Live,  ltros  de  frequência  para  cada  uma  das  trilhas.  A  terceira  controladora  que  utilizei  era 
conectada  ao  segundo computador, pois enviava informações ao Resolume. Nela, atribui aos knobs 
diferentes  efeitos  para  cada  um  dos  vídeos,  para  que  pudesse  manipular  essa  face  da  performance 
33
Espaço onde realizei a performance, localizado em Porto Alegre, na Travessa da Paz, número 44. Explicito mais 
minha relação com a galeria em 4.3 
34
Usei o seguinte artigo de suporte do site do fabricante: 
https://help.ableton.com/hc/en-us/articles/209071169-How-to-setup-a-virtual-MIDI-network 
35
Egresso do curso de Música Popular da UFRGS, que conheci durante minha experiência na Medula. André foi o 
técnico de som e de gravação de Anatômica, descrevo seu papel mais a fundo em 4.3. 
36
Os efeitos eram: Um delay com feedback alto apenas nas percussões de Venus, delay e anger nas vozes do coro de 
Venus, delay na percussão de Amor Verdade, delay e pitch shift na introdução de Miragem de Vidro e beat repeat na 
trilha de Androgênia.

70 
quando  tivesse  vontade.  Os faders da controladora estavam atuando sobre a opacidade de cada uma 
das  camadas  de  vídeo,  para  que  eu  pudesse  mesclar  ou  não  diferentes  vídeos  em  um  determinado 
momento.  
O  preparo  que  realizei  para  a  performance,  por  meio  de  ensaios  foi  variado.  Realizei  5 
ensaios  no  Estúdio  Soma,  com  as  horas  disponibilizadas  pela  Universidade,  no período de agosto a 
outubro,  e  também  dispus  de  tempo  para  ensaio  na  Galeria  La  Photo,  por  sugestão  de  Regina 
Protskof,  a  proprietária  do  espaço.  Lá,  tive  dois dias ao longo do mês de outubro para ensaiar, além 
de  um  período  de  ocupação  da Galeria que se iniciou na semana da performance, dos dias 4 ao 7 de 
novembro. 
Uma  das  últimas  questões  que  tive  de  resolver  antes  da  performance  foi  como  executar  os 
samples  de  voz  que  dispararia  em  Torpe,  e  a  saída  que  utilizei  foi  usar  um  equipamento  que  me 
acompanhou  em  alguns  momentos  de  criações  recentes,  o  aparelho  Volca  Sample,  da  marca  Korg. 
Da  mesma  linha  do  Volca  FM,  que  citei  no  capítulo  2.4,  o  aparelho  possui  uma  interface  similar: 
compacta,  com  um visor de LED com informações sobre o funcionamento, e com uma interface de 
sequenciamento  abaixo.  A  diferença,  contudo,  é  que  enquanto  o  Volca  FM  possui  capacidades  de 
síntese  sonora,  o  Volca  Sample  não  produz  som,  apenas  reproduz  arquivos  de  áudio  que  são 
carregados em sua memória.  
Em  um  dos  ensaios  que  tive  com  os  atores  na  Galeria,  gravei  as  falas  de  cada  um  com meu 
microfone,  e  transferi  esses  arquivos  para  o  Volca,  podendo  dispará-los  na  hora  da  performance, 
com  os  efeitos  e  distorções  proporcionados  pelo  próprio  aparelho  (que  variam  entre  velocidade de 
reprodução, mudança de altura, Reverb, reprodução ao contrário, entre outros).  
 

 
fig  22.  Disposição  dos  equipamentos  na  performance,  com  as  controladoras  e  computadores 
enquadrados. 

71 
 
Tal  con guração  foi  apelidada  por  mim  de  "nave  espacial",  por  eu  estar  constantemente 
circundada  desses  objetos,  todos  com  suas  funções,  podendo  agir  sobre  as  músicas.  Ao  longo  dos 
ensaios  que  realizei,  um  dos  maiores  trabalhos  que  tive  de  fazer foi incorporar essa con guração na 
minha  performance  como  algo  que  não  fosse  um  impedimento  ou  di culdade,  mas  sim  como 
extensões  do  meu  corpo,  como  movimentos  uidos  dentro  da  performance.  Penso  em  como 
Donna Haraway descreve as tecnologias que são incorporadas em nosso cotidiano: 
 
As  tecnologias  e  os  discursos  cientí cos  podem  ser  parcialmente  compreendidos  como 
formalizações,  isto  é,  como  momentos  congelados  das  uidas  interações  sociais  que  as 
constituem,  mas  eles  devem  ser  vistos  também  como  instrumentos  para  a  imposição  de 
signi cados. (HARAWAY, 2000 . p.64) 
 
Enxergo  a  minha  decisão  por  fazer  a  performance  rodeada  e  engajada  com  os  equipamentos 
eletrônicos  não  só  como  uma  escolha  por  replicar  com  delidade  as  gravações  do  disco,  mas  por 
buscar  trazer  uma  nova  oportunidade  de  ressigni cação  para  o  trabalho  fonográ co.  Por  mais  que 
os  registros  do  EP  estejam  "congelados"  naquele  formato,  em  Anatômica  eu tenho a oportunidade 
de  adaptá-los  e  trazê-los  para  este  outro  momento,  este  outro  lugar,  que  é  a  performance  nesse 
formato  especí co.  A  utilização  desses  equipamentos,  na verdade, possibilitou a exploração de uma 
outra dimensão nas performances e nas músicas, Haraway continua:   
 
A  fronteira  entre  ferramenta  e  mito,  instrumento e conceito, sistemas históricos de relações 
sociais  e  anatomias  históricas  dos  corpos  possíveis  (incluindo  objetos  de  conhecimento)  é 
permeável.  Na  verdade,  o  mito  e a ferramenta são mutuamente constituídos. (HARAWAY, 
2000 p. 64)  
 
O  que  se  con gura,  então,  não  é  uma  relação estrita de "meus equipamentos determinam o tipo de 
performance  que  realizarei",  e  também não "a performance determinará os equipamentos", mas um 
constante  jogo  entre  esses  dois  territórios,  entendendo  como  se  con guram  as  relações  entre  os 
meios  que  pus  para  jogo  no  show,  e  não  tentando  con gurar  o  show  a  partir  desses  meios. 
Recordo-me de quando comentei sobre a pesquisa artística, em seu caráter cíclico de reavaliação dos 
processos e decisões, como esses movimentos são imprevisíveis e mutáveis.  
Como  me  comportar  dentro  dessa  meia-lua  de  equipamentos  foi  um  processo  de 
descobrimento,  principalmente  durante  os  ensaios.  Já  tinha  noção  de  que  a  performance  seria 
realizada  toda  de  pé,  dialogando com as ideias de  gurino que tive, por exemplo. Sabia também que 
não  desejava  falar  com  o  público  durante  o  arco  das  canções,  por  tentar  manter  um  estado  de 
potência  e  de interrupção mínima entre cada um dos números. Parecia para mim que tentar engajar 
pelo diálogo direto durante as canções seria quase como um "mudar de assunto". Ao mesmo tempo, 
tive  que  me  concentrar  para  tentar  dar  conta  das  coisas  que  queria  expressar  por  meio  dos  gestos 
com  meu  corpo,  gestos  na  voz  e  gestos  operando  as  controladoras.  Um  artifício  que  usei  foi  o  de 
tentar  combiná-los:  a  minha  mão  que  sobe  em  uma  nota  aguda,  combinada  com  a  outra  mão 
aumentando  o  reverb  na  controladora  à  minha  direita.  O  vídeo  que  se  escurece  pelos  meus  dedos 

72 
enquanto  o  delay  da  minha  voz  soa  em  um  momento  mais  silencioso.  Tentar  dar  vida a esse corpo 
de plástico e metal que eu havia criado. Tentar me sentir ciborgue, potente, presente. 
 
 
 
 

4.3 Rede 
 
Se  o  processo  de  criação  do  disco  foi  (quase)  todo  centralizado  em  mim,  exceto  pelas 
colaborações  das  vozes  em  Torpe  e  das  artes  com  minha  irmã,  Anatômica  teve  sua  realização 
possibilitada  por  uma  rede  de  colaboradoras  e  colaboradores  que  formei  junto  de  mim.  Essa 
mudança  no  jeito  como  eu  estava  encarando  o  processo  foi  bastante  sentida  por mim, por ser uma 
troca  bem  intensa  de  como  eu procedia até aqui. Deparei-me com diversas vulnerabilidades minhas 
ao  abrir  o  processo  com  outras  pessoas,  cava  nervosa  para  mostrar  os  vídeos  que  já  havia 
produzido,  tinha  receio  em  xar  de nitivamente  a  ordem  das  músicas,  pensando  que  devia  ter 
algum  jeito  melhor  que  eu  não  havia  pensado,  e  que  seria  rechaçada  por  causa  disso.  Talvez  os 
momentos  de  maior  angústia  em  me  abrir  tenha  sido  em  relação  ao  gurino  e  ao  texto que escrevi 
para os atores:  
 
"Tive  reunião  hoje  com  as  meninas  do  figurino  e lá tive que fazer algo que é bem difícil pra mim, que 
é  dizer  o  que  não  me  agradou,  e  que  prefiro  mudar.  É  difícil  não  me  sentir  autoritária  nesses 
momentos,  como  se  estivesse  podando  a  criatividade  de  alguém.  Por  mais que elas tenham dito que tá 
tudo  bem.  De  noite,  tive  outra coisa parecida, mandei o texto pros atores que vão participar de Torpe, e 
fiquei  muito nervosa. Parece mostrar uma música para alguém, até pior. Fico nervosa, por mais que eu 
saiba  que  são  pessoas  com  as  quais eu tenho uma relação muito boa. Acho que trabalhar em grupo tem 
muito disso, confiar nas pessoas com as quais tu trabalha e isso é algo que no EP eu não tive de dialogar 
muito, porque era eu sozinha." (24/10) 
 
Contudo,  penso  nas  epistemologias e práticas feministas com as quais tive contato ao longo 
dos  estudos  de  gênero  e  música.  Falávamos  muito  sobre  redes,  a  formação  de  redes  como  um 
mecanismo  de  resistência  e  apoio  na  criação  artística.  Sobre  a  formação  de  coletivos  e  teias  como 
abordagem feminista , Isabel Nogueira (2017) escreve:  
 
Congregando  as  pessoas  e  seus  diferentes  estágios  de  participação,  as  malhas/teias  se 
alimentam  dos  tempos,  das  iniciativas,  das  capacidades,  dos  desejos  e  das  possibilidades 
diferentes  de  cada  uma,  de  acordo com seu processo, sua etapa, seu conhecimento empírico 
ou  teórico  e  sua  disponibilidade  em  cada  momento,  potencializando,  através  da  rede  o 
trabalho de cada uma. (NOGUEIRA, 2017) 
 

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A  autora  defende que, dessa forma, por movimentos não hierárquicos e horizontais na organização, 
há  uma  incorporação  das  particularidades  e  identidades  de  cada  pessoa  no  processo.  Para  mim, 
reconheço  que  é  esse  tipo  de  interação  que  eu  estava  buscando  ao  organizar  a  performance.  Eu  já 
havia  (e  continuava,  na  verdade)  tratando  da  minha  narrativa  e  performatividade  no processo, mas 
sinto  que,  agora,  buscava  entender  como  que  isso  ressoava  em  outras  pessoas,  próximas,  de  minha 
con ança,  para  construir  esse  show.  Um  show  que  pudesse  trazer  algo  que  é  fundamentalmente 
meu,  formativo  meu,  mas  que  pudesse  ser  assimilado  por  cada  um  e  cada  uma  que  assistisse,  de 
acordo  com  suas  próprias  vivências.  Eu  criei  uma  equipe,  mas  também  um  grupo  de  pessoas  que 
pudessem  me  apoiar,  que  pudesse  dialogar  do  seu  jeito  com  a  performance também, para que suas 
contribuições fossem o mais frutíferas o possível.  
Cronologicamente,  as  primeiras  pessoas  com  as  quais  z  contato  foram  as  gurinistas, 
Rafaela  da  Rocha  e  Joice  Monticelli.  Nos  conhecemos  em  agosto  desse  ano,  na  gravação  de  um 
videoclipe  no  qual  eu  trabalhei como maquiadora, e ambas como departamento de  gurino. Como 
na  época  já  sabia  que  criaria  uma  performance,  conversei  com  ambas  sobre  a  possibilidade  de 
construirmos  um  gurino  juntas,  especialmente  para  isso.  Rapidamente,  vi que compartilhávamos 
referências  muito  parecidas,  e  fomos  ao  longo  dos  meses  seguintes  criando  um  conceito  e, 
eventualmente, a peça que usei.  
Desde  o  início  conversávamos  sobre  uma  peça  longa,  que  tivesse  bastante movimento, mas 
que  ao  mesmo  tempo, não fosse de uma cor muito saturada, para que as projeções conseguissem ser 
vistas  e  assimiladas  mesmo  por  cima  do  tecido.  Dialogamos  também  sobre  como  trilhar  um 
caminho  que  não  fosse  normativo,  e  respeitasse  minhas  preferências  de  roupa,  em  vista  da  disforia 
de  gênero  que  sinto  em  relação  a certos tipos de peça (excluímos, por exemplo, a possibilidade de as 
pernas  ou  o  peito  carem  expostos).  Rafa  introduziu  a  ideia  de  utilizarmos  o  tecido  plástico  e  os 
bordados,  que  fazem  parte  de  sua  prática  artística  própria,  então  estudamos  as  possibilidades  de 
inclusão  desses  elementos  também,  enquanto  Joice  foi  de  grande  apoio  em  pensar  o  que  eu  usaria 
por  baixo  da  peça,  por  ela  não  cobrir  totalmente  meu  corpo.  A  ideia  por  contrastar  o  lado  de  fora 
claro, de uma cor neutra, com uma parte de dentro saturada agradou a todas nós, e busquei em meu 
guarda roupa por peças que cumpririam essa função.  

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fig 23. Foto com destaque do figurino. Foto: Luiza Padilha 
 
Paralelo  a  isso  que  desenvolvi  a  maquiagem  que  utilizaria  no  show.  Por  não  ter  a  peça 
pronta  até  poucos  dias  antes  da  apresentação,  pensei  em  algo  que  dialogaria  com  o  conceito  geral 
que  tínhamos.  Ao  mesmo  tempo,  já  havia  elaborado  que  o  vídeo  de  Miragem  de  Vidro  teria  a 
mesma  maquiagem  que  eu,  então  não  havia  muito  tempo  de  elaborar  algo  com  tão  pouca 
antecedência.  Optei  por  cores  primárias  (azul,  amarelo  e  vermelho)  porque  imaginei  que 
independente do que usaria, elas de alguma forma dialogariam com isso.  

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fig 24. Retrato com destaque para a maquiagem. Foto: Vinícius Angeli 
 
Pensando  que  o  show  teria  grande  enfoque  nas  projeções, chamei alguém que soube que já 
tinha  realizado  iluminação  cênica  em  espetáculos  com  projeções.  Conheci  Luciana  Tondo  no 
processo  da  peça  Ao  Filho  Torpe,  na  qual  ela  atua  como  diretora.  Dada  minha  proximidade  com  o 
grupo  ao  longo  do  ano,  e  pelas  outras  colaborações  que  o  grupo  fez  na  performance,  achei que ela 
seria  uma  escolha  bem  apropriada  para  a  função.  Reunimo-nos  no  espaço  do  show  poucos  dias 
antes  da  apresentação  para  veri car  as  questões  técnicas  e  elaborar  as  orientações para cada música. 
Mesmo  nos  momentos  onde  a  maior  parte  da  minha  iluminação viria do projetor, Lu demonstrou 
interesse  em  fazer  luzes  em  níveis  mais  baixos,  ou  para  fora  do  palco,  de  forma  que  não 
perturbassem  a  projeção.  O  entusiasmo  que  ela  apresentou  foi  um  dos  motivos  para  que  eu 
decidisse  por  incluir  Degradê  no  conjunto  de  músicas  da  apresentação,  mesmo  sendo  um  número 
que não havia ensaiado ou testado antes.  
O  local  onde  realizei  a  performance,  a  Galeria La Photo, surgiu em minha trajetória no ano 
de  2016,  quando  a  Medula  realizou  uma  residência artística de um mês no local. Foi essa residência 
que  marcou  o  início  do  meu  diálogo  com  o  grupo,  onde  aprendi  sobre  gravações  de  campo  e 
comecei  a  investigar  alguns  territórios  da  música  experimental,  alinhada  com  as  práticas 
desenvolvidas  pelo  coletivo.  Julguei  o  lugar  apropriado  por  se  tratar de um ambiente relativamente 
versátil,  o  lugar  não  possui  muitas  paredes,  se  comporta  como  uma  grande  sala  branca,  a  qual  eu 
poderia ocupar da maneira que julgasse mais adequada:  
 

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"Acabei  de  sair  de  uma  reunião  com  a  Regina,  proprietária  da  La  Photo,  espaço  onde  quero 
fazer  a  performance  do  TCC  [...].  Regina  amou  muito  a  ideia.  Penso  em  fazer  ensaios  lá  pra  me 
ambientar  no  espaço,  começando  em  outubro.  Uns  3  dias.  E  começar  a  ocupar  pra performance uns 3 
dias antes também. [...] Ah sim, acertamos dia 7 de novembro, uma quinta feira. veremos." (04/09) 
 
Regina,  proprietária  e  uma  das  curadoras  do  espaço,  foi  de  tremendo  apoio  para  Anatômcia, 
abrindo  não  só  seu  espaço,  mas  ajudando  em  diversos  momentos  na  produção/desprodução  do 
espaço e na divulgação do show.  
Uma  equipe  para  a  realização  dos  registros  da  performance  também  foi  de  extrema 
importância  para  mim.  Decidi  não  só  fotografar  a  performance,  mas  também  registrar  em  vídeo  e 
áudio.  Para  as  fotos,  optei  por  duas  pessoas  que  conheci  recentemente  em  outros  eventos  que 
participei,  Luiza  Padilha  e  Vinicius  Angeli. Ambos são fotógrafos que circulam por shows de Porto 
Alegre e estão acostumados com esse tipo de prática. Optei por dois porque, ao dialogar com ambos 
sobre  seus  próprios  projetos  e  estéticas,  Luiza  me  comentou  que  estava  se  interessando  mais  por 
retratos,  e  registros  que  ela  chama  de  "o  que  está  fora  do  palco",  além  de  momentos  da 
pré-produção  do  espetáculo.  Vinícius,  por  outro  lado,  havia  recentemente  fotografado  outros 
shows  que  lidavam  com  projeções  de  vídeo,  e  estava  gostando  de  trabalhar  com  essa  linguagem. 
Quanto  ao  vídeo,  chamei  Ricardo  de  Carli, ex-aluno da graduação em Música Popular da UFRGS, 
que  conheci  na  Medula,  no  mesmo  dia  em  que  conheci  a  Galeria.  De  maneira  similar  aos 
fotógrafos,  Ricardo  demonstrou  muita  afeição  pelo  projeto,  dando  uma  série  de  ideias  e  sugestões 
sobre  como  poderíamos  fazer  o  vídeo.  Comentamos  sobre  fazer  algo  que  não  fosse  apenas  um 
"registro"  da  performance,  mas  sim  um  vídeo  que  incorporasse  sobreposições  e  outras  liberdades 
criativas.  Quanto  ao  áudio,  tanto  para realizar a captação quando a operação do PA ao vivo, chamei 
outra  pessoa  que  conheci  pela  Medula,  André  Brasil,  também  graduado  em  Música  Popular  pela 
UFRGS.  André  foi  de  extrema  ajuda  para  organizar  como  executaríamos  a  gravação  junto  da 
execução  da  performance, e inclusive me emprestou a interface de áudio que utilizei no show, pois a 
minha não teria saídas de áudio o su ciente para tocar e gravar ao mesmo tempo.  
E,  por  m,  não  na  cronologia  de  organização,  mas  talvez  pela  proximidade  que  teve  do 
processo,  a  última  colaboradora  com  a  qual  contei  para a performance foi minha irmã, que assinou 
as  artes  de  divulgação. Quando terminávamos de fazer as artes do EP já perguntei se Flor gostaria de 
participar  da  performance,  de  maneira  parecida,  e  ela  disse  que  aceitava.  Realizamos  alguns 
encontros  tentando  encontrar  um  jeito  de  transmitir  pela  arte  que  a  performance  seria  com 
projeções,  e  que  de  alguma  forma  traria  uma  narrativa  junto  do  disco.  A  minha  ideia original era a 
de  criar  peças  de  divulgação  digital  que  seriam  vídeos  para  postar  nas  redes  sociais,  porém 
incorremos  na  vontade  de  criar  um  cartaz  impresso,  que  evidentemente  não  poderia  ser  em  vídeo. 
Então,  duas  peças  foram  criadas,  um  vídeo  e  uma  imagem  estática,  para  usarmos  de  cartaz.  O 
material base para isso foi uma tomada do vídeo de Miragem de Vidro:  

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fig 25. Still do vídeo utilizado como uma das peças de divulgação de Anatômica.  
 
 
A  partir  desse  vídeo,  que  foi  corrompido  por  datamosh  da  mesma  maneira  como  os  outros  do 
trabalho,  tentamos  chegar  em um efeito parecido, com o corrompimento da imagem, mas de forma 
estática. O cartaz que Flor desenvolveu foi o seguinte:  

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fig 26. Cartaz desenvolvido para divulgação da performance  

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Vejo  todas  essas  parcerias  como  um  mecanismo  de  fortalecimento  bem  grande  nesse 
processo.  Enquanto  organizava  a  performance,  o  sentimento  que  habitava  em  mim  era  de  grande 
nervosismo,  por  ser  algo  que  estava  em  andamento  na  minha  cabeça  há  meses  já,  desde o início do 
ano.  Contudo,  por  estender  a  outras  pessoas  pedindo  ajuda,  amparo,  opiniões,  era  como  se  o peso 
se  aliviasse  um  pouco.  Claro,  como  comentei  anteriormente,  houve  momentos  de  angústia 
também,  por  eu  car  nervosa  com  a  maneira  como  outras  pessoas  receberão  esse  trabalho.  Mesmo 
assim,  essa  abertura  serviu  como grande aprendizado para mim, por poder entender quais partes do 
processo  não  são  especialidades  minhas,  e  delegá-las  a  pessoas  que  se  sentem  capazes,  e  gostam  de 
desempenhá-las.  Como  se  o  corpo  de  androide  que  criei  não  fosse  só  o  meu  junto  dos  meus 
equipamentos,  mas  também  das  pessoas  que  trouxe  junto,  que  aceitaram  embarcar  nisso  comigo. 
São  relações  que  criei,  com  exceção  de  minha  irmã,  nos  últimos  quatro  anos  ou menos, que foram 
proporcionadas  em  parte  pelo  ambiente  que vivi na Universidade, mas que transbordam as paredes 
dessa  e  vão  para  as  casas  de  show  que  frequentei,  os  bares,  as  ruas, os projetos, toda essa cartogra a 
dos últimos quatro anos de certa forma culminou na formação da equipe técnica do show.  
 
 
 
 

   

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4.4 Relato 
 
"Foi  ontem.  Começou  há  uns  meses,  mas  foi  ontem.  Meu  silêncio  aqui  nessa  semana  não  foi  de 
negligência, mas parte exaustão e parte nervosismo. [...] 
Aí  chegou  a  quinta.  Acordei  sem  nervosismo,  fui  pra  La  Photo  às  14h,  e  se  instaurou  o  trubilhão. 
Primeiro,  o  som  com  André.  [...]  Lu  chega,  e  com  um  número  surpreendente  de  T'’s,  faz  as  luzes 
funcionarem.  Vini  chega,  meus  pais  chegam,  minha  irmã,  Luiza,  Joice,  Isabel,  elenco,  e  logo  me  dou 
conta  que é de verdade. A tarde foi na velocidade da luz. Mal tive tempo de tirar umas fotos com a Lu 
e  Vini,  e  logo  vi  que  o  relógio  avisava  20h.  Eu,  os  atores,  Isabel,  Luciana  e  André  e  Ricardo  tiramos 
todes  de  dentro  do  espaço  e  fomos  concentrar.  A  máquina  de  fumaça  preenchia  o  ambiente,  deixava 
tudo  denso,  borrado, como um sonho. Testo o Wi-Fi entre os computadores. O barulho dos meus sapatos 
no  chão me certificam que isso não é um sonho. Joice me alcança o figurino. Batom vermelho. Relembro 
a ordem das luzes que aciono em Torpe. "Pode abrir".  
A  galeria-nuvem  se  preenche  de  rostos  que já conheço. Meus amigos, colegas, apoiadores, todes ali. Peço 
pro  Vini  (Medeiros)  fechar  a  porta.  A  ponta  dos  meus  dedos  vão  aos  pés.  Três  respirações  profundas. 
"Pensa no que tu vai fazer lá em cima", minha ex-professora de canto dizia.  
 
Catedral 
Venus 
Invencível 
Torpe 
Amor Verdade 
Degradê 
Miragem de Vidro 
Androgênia 
 
Fiquei  nervosa,  mas  logo  passou.  Parecia que algo maior me possuía. No fundo da lente do projetor foi 
onde  foquei  meus  olhos  a  maior  parte  do  tempo. Degradê foi uma escolha estranha. Era uma ideia de 
vídeo  que  eu  tinha,  mas  não tinha música para acompanhar, "um improviso", isso que disse para Lu e 
Ric  quando  passei  o  Setlist.  "Lu,  pega  a  luz  azul  e faz em 4min ela virar densa, vermelha, agressiva". 
Acabou  que  não  usei  vídeo,  só  luz.  Um  improviso  que  nunca  tinha  feito  antes.  Logo  me  saltou  aos 
ouvidos  uma  linha  que  toquei.  Fá-Mi-Mib,  ou  Mib-Ré-Reb,  porque  a  guitarra  estava  um  tom 
abaixo.  Imitei  na voz, loopei, harmonizei. Textura. Contraste. E o azul logo era vermelho. Junto dele, o 
nervosismo virava vontade. 
 
No  fim,  os  aplausos.  Sorri.  Agradeci.  Tudo  que  construí  aqui  sinto que é digno de agradecimento. Aos 
amigos,  amigas,  parceiras,  apoiadores.  Doeu  em  vários  momentos,  o  parto  dói,  mas  o que eu criei não 
vai  embora.  Alguns  vídeos  estavam  travados  pelo  visto  (um  aprendizado  contínuo  no  Resolume), 
minha  voz  e  dedos  escaparam  de  mim  também. Tentando não deixar isso me abalar, por mais difícil 
que  seja.  Fazer  dói.  Mas  é  bem  bom.  Agradeci  por  terem  ouvido,  e  outras  por  terem  me  ajudado  a 

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criar,  mesmo  que  tenha  sido  difícil,  pra  mim,  abrir  esse  processo.  Ainda  me  sinto  sentindo. 
Entendendo.  Foram  meses,  afinal,  condensados  em  minutos,  mas  meses.  Não  posso  dizer  que  via  a 
junção  de  tudo,  porque  do  palco  eu  realmente  não  via.  Apenas  sentia,  em  cada  poro da pele, em cada 
fio  de  cabelo,  os  sons  e  as  imagens.  Minhas  ideias,  sentimentos,  pesares,  angústias  e  vontades  bem ali. 
Para quaisquer ouvidos e olhos.  
Dói se abrir mas é bom. 
Sinto que me abri 
Sinto que criei 
Sinto que fiz 
Sinto. 
E se sinto, é porque, pra mim, valeu a pena."  
 
 
Diário de Campo, oito de novembro de 2019.  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
   

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Considerações nais  
 
Chego  no  m  dessa  sequência  de  trabalhos,  de  ideias,  de  criação,  movida.  Movida  não  só 
pelas  coisas  que  criei  musicalmente,  mas  também  pelas  relações  que  me  gestei,  e  que  deixaram  a 
jornada  até  aqui mais tranquila. Iniciei o trabalho constatando que esse texto tratava do processo de 
criação  de  um  EP  e  de  uma  performance,  com  ambos  em  constante  diálogo  não  só  entre  si,  mas 
comigo,  a  criadora,  e  com  as  áreas  de  conhecimento com as quais me familiarizei ao longo do curso 
de  Música  Popular,  e  por  mais  que  espero  ter  realmente  analisado  isso,  vejo  que  há  muitas  outras 
coisas que se criaram em meio a isso, algumas das quais narrei por essas páginas. 
  Uma  das  minhas preocupações ao longo do projeto foi a de conseguir criar livremente, sem 
me  sentir  restringida  dentro  do  universo  que  construí,  mas  que  ao  mesmo  tempo  eu  conseguisse 
justi car  minhas  escolhas  e  criações,  mantendo  notas  em  meu  diário.  Em  retrospecto,  sinto  que 
alguns  momentos  que  eu  poderia  ter  registrado  passaram  sem  escrita,  às  vezes  por  eu  estar  me 
sentindo  mal  ao  ponto  de  não  querer  escrever  sobre  isso,  ou  até  por  pleno  cansaço  em  alguns 
momentos  do  projeto  (como  na  semana  da  realização  do  show).  Considero  isso  não  como  algo 
negativo,  mas  como  uma  descoberta  que  tive,  não  só  da  maneira  como  a  metodologia  que  escolhi 
funciona,  mas  de  como  eu  como  artista  funciono.  Esse  projeto  não  foi  só  criação,  mas  também 
descobrimento, experimentação. 
Experimentei,  inclusive,  lançar  um  disco,  mesmo  tendo  iniciado  o  ano sem composições, e 
sem  ter  feito  isso  antes.  A  exploração  que  z,  dentro  do  meu  estúdio  caseiro,  com  as  ferramentas 
que  tenho  à  minha  disposição,  revelou  angústias  que  tenho  na  minha  criação,  mas  também 
capacidades  que  nunca  tinha  visto  em  mim  mesma.  O  processo  é  muito  parecido  com  as 
descobertas  que  tive  ao  longo  do  curso  de  música  popular.  Os  instrumentos  que  nunca  tinha 
tocado,  as  linguagens  com  as  quais  dialoguei  musicalmente.  Foi  um  projeto  com  várias 
"primeiras-vezes".  
Ao mesmo tempo, uma das re exões que me propus a traçar desde o início era a de propor e 
investigar  relações  entre  o  processo,  essa  maneira  de  criar,  com  a  maneira  como  via  e  vejo  minha 
identidade  de  gênero  não-binária.  Desde  as  composições,  quando  me  via  ressigni cando  as  coisas 
que  construía,  propondo-me  a  cantar  meu gênero, sentia que estava fazendo algo honesto, algo que 
realmente  extrapolava  as  páginas  que  eu  digitei  aqui.  Queria  fazer  algo  que  fosse  sincero, 
principalmente,  quando  quis  falar  de  gênero.  Esse  é  um  território  no  qual  não  sinto  espaço  para 
omitir,  tanto  academicamente  quanto  artisticamente.  Queria  que  esse mote tomasse vida nos sons, 
imagens  e  também  aqui,  nesse  texto.  Sinto  que  minha  documentação  dos  processos  foi  bem 
abrangente e condizente com isso. 
Documentar  os  processos,  para  mim,  signi ca  reviver  em  cada  palavra  as  sensações que me 
atravessaram  naqueles  momentos.  Talvez  um  dos  mais difíceis tenha sido há poucos dias, depois da 
performance,  quando  sentia  na  escrita  os  momentos,  ainda  frescos,  onde  senti  que  errei,  que  não 
atingi  as  expectativas que tinha criado para mim. Houve momento de vídeos que não reproduziram 
como  imaginei,  canais  de  áudio que não estavam com o volume acionado, e essas coisas pesaram em 
mim.  Depois  de  meses  criando  algo,  era  fácil  esquecer  que  algumas  coisas  inevitavelmente 
escapariam  do  controle.  De  qualquer  forma, as pessoas que me assistiram, a rede que criei, estava lá. 
O  público  de rostos conhecidos que foi essencial para que eu entendesse que as coisas que na minha 

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cabeça  eram  erros, nada mais foram do que partes da performance. Paralelos aos registros do Diário, 
noto  também  que  há coisas que deixei transbordar pelas minhas redes sociais, por exemplo. Espaços 
na  internet  onde  busquei  inspirações  (como  em  Venus),  porque  não  eram  como  o  monólogo  da 
caneta  no  papel.  Talvez  em  meu  twitter  que  estivessem  as  primeiras aberturas do processo, quando 
postava  um  áudio  curto  de  um  beat  e  recebia comentários em troca. Sem contar a divulgação tanto 
do  EP  quanto da performance, feita muito por veículos de redes sociais, especialmente o Instagram. 
Buscava, nessas plataformas, pequenos incentivos de continuar nessa maratona que me propus. 
O  exercício  que  tentei  fazer  a  partir  dos  sentimentos  negativos  que  por  vezes  surgiram  é 
transformá-los  em  vigor  para  criar  mais.  Não  é  minha  intenção  que  as  coisas  que  criei  aqui 
desapareçam  depois  da  defesa  do trabalho. Viridiana é uma coisa que procurei dar vida, compondo, 
cantando,  performando,  mas  que  eu  possa  seguir transformando em futuros projetos. Projetos que 
podem  ser  visuais  ou  não,  podem  seguir  as  mesmas  referências  musicais  ou  não.  Minha  intenção 
nunca  foi  a  de  traçar  prescrições  criativas.  Quis  tirar  uma  foto  de  quem  sou  hoje,  como  artista, 
como pessoa. 
O  depois  de  amanhã chegou. Isabel avisou na primeira quinta feira do primeiro semestre de 
2016  que  chegaria.  O  caminho  que  tracei  até  aqui  me  deixa  satisfeita,  artística  e  pessoalmente. 
Artisticamente  pelo  corpo  de  trabalho  que  desenvolvi,  e  pessoalmente  pelas  relações  e  redes  que 
formei.  Desde  anos  passados,  como  a  Medula  e  o Sônicas, os amigos que trouxe da época da escola, 
até  às  pessoas  que  trouxe  para  integrarem  Anatômica  junto  de  mim.  Se  foi  em  um  piscar  de  olhos 
que  o  depois  de  amanhã  virou  hoje,  digo  que  estou  ansiosa  para  os  outros  amanhãs  que  viverei 
como  Viridiana,  como  Bê.  Não  tenho  intenções  de  parar  de  criar,  de  cantar,  de  buscar  em  mim 
coisas  que  façam  sentido  para  outros  e  outras,  pois  é  com  muitas  outras  que  consegui  chegar  até 
aqui. A elas, a todas elas, só tenho a agradecer.  
 
 
   

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Referências 
 
ABLETON  LIVE.  Manual  de  Referência,  versão  10.  Disponível  em: 
<https://www.ableton.com/en/manual/welcome-to-live/>. Acesso em: 24/06/19; 
 
BUTLER, Judith. Bodies that Matter. Nova York: Routledge, 1993; 
 
_____________. Problemas de Gênero. São Paulo: Civilização Brasileira, 1990; 
 
CAESAR,  Rodolfo.  Sujeito  e  objeto  em  loop:  escutar  nas  entrelinhas.  In:  III  SIMPÓSIO 
BRASILEIRO DE PÓS-GRADUANDOS EM MÚSICA. Rio de Janeiro, 2014; 
 
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Apêndices 
 

1. Diário de Campo 

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2. Registro da Performance em Áudio e Vídeo 

A  performance  está  disponível  na  íntegra,  com  edições mínimas, com  nalidade de registro 


no  link:  https://youtu.be/t4IKwWCbRs4.  A  captação,  edição  do  vídeo  e  montagem  foi  feita  por 
Ricardo de Carli. A captação do áudio ao vivo por André Brasil, e a mix e edição do áudio por mim.  

 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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