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XAMANISMO
ORG: FABIANE M. BORGES
REDE
TECNO
XAMANISMO
REDE
TECNO
XAMANISMO
CONCEPÇÃO E ORGANIZAÇÃO: FABIANE M BORGES.
COM COLABORAÇÃO DE GEORGE SANDER, CARSTEN AGGER, GISELI VASCONCELOS.
PROJETO GRÁFICO: DANIEL LIMA. TRADUÇÃO: GLERM SOARES E SIMONE BITTENCOURT.
REVISÃO: FERNANDA LOMBA. REALIZAÇÃO: REDE TECNOXAMANISMO, GOETHE
INSTITUT SÃO PAULO E INVISÍVEIS PRODUÇÕES. COM TEXTOS E IMAGENS DE ADRIANO
BELISÁRIO + AKELARRE CYBORG + AZAEL VALDERRAMA + CARLA LYRA + CARLOS
EDUARDO SOUZA AGUIAR + CARSTEN AGGER + CLAUDIA LOPES BORIO + DANIEL LIMA
+ DANILO LIMA + DOGMA COLETIVO CENTRAL + EDGAR FRANCO + EDUNOISE +
ELEONORA OREGGIA + FABIANE M. BORGES + FABIANO FONSECA + FERNANDO
GREGÓRIO + HENRIQUE MASERA LOPES + HILAN BENSUSAN + INGRID TARTAKOWSKY
LÓPEZ + ISAAC FILHO E JULIANA DE MORAES + JOANNA FOSTER + JOESER ALVAREZ +
JONATAN SOLA + JONATHAN KEMP + KADIJA DE PAULA + KALOAN + LAURA SOUBENES +
LAURA PLANA GRACIA + LEANDRO NEREFUH + LECHEDEVIRGEN + LUÍSA HERVÉ +
LUIZA SOH + MAÍRA DAS NEVES + MANDRÁGORA + MARCELO BRAZ +
MARCELO GHANDI + MARCIO JUNQUEIRA + MARTIN HOWSE + MORGANA GOMES +
NUBIA ABE + PABLO DE SOTO + PALOMA KLISYS + PAOLA BARRETO + PEDRO DIAZ +
PEDRO VITOR BRANDÃO + PEETSSA + PHILIPPE WOLNEY + PIERRE HERVE LAMBERT +
PILANTRÖPÓV + PILAS MACHINE + QUIMERA ROSA + RAFAEL FRAZÃO +
RAISA INOCÊNCIO + RYAN JORDAN + SONJA VAN KERKHOFF + SUE NHAMANDU +
TIAGO FIORAVANTE + TRANSNOISE + UNMONASTERY +
VALENTINA MONTERO PEÑA + VINCENZO TOZZI + VICTOR VENAS +
WLAX DYNE + WONJUNG SHIN + YASODARA CORDOVA
ISB N 978-85-66129-23-6
INVISÍVEIS PRODUÇÕES É UM CENTRO DE CRIAÇÃO, AÇÃO E REFLEXÃO QUE TRABALHA NA INTERSECÇÃO ENTRE ARTE
E POLÍTICA. A INVISÍVEIS PRODUÇÕES OPERA DE FORMA AUTÔNOMA, TRANSVERSAL E HORIZONTAL. AUTÔNOMA NA
MANEIRA DE MOVIMENTAR-SE, CRIANDO DIFERENTES DIAGRAMAS E VÍNCULOS INSTITUCIONAIS SUSTENTANDO SUA
INDEPENDÊNCIA DE PENSAMENTO. TRANSVERSAL NA MANEIRA DE COLETAR E REUNIR UMA RESERVA CRÍTICA DE
VOZES DISSONANTES. HORIZONTAL NA FORMA DE PRODUZIR E COMPARTILHAR LIVREMENTE O CONHECIMENTO EM
LIVROS, FILMES E PROJETOS CULTURAIS.
CONHEÇA E BAIXE NOSSAS PUBLICAÇÕES EM ISS UU.COM/INVISIVEIS PROD UCOES
PARA CONTATO ESCREVA PARA INVIS IVEISP RODUCOES@GMAIL.COM
Realização:
REDE
TECNO
XAMANISMO
ÍNDICE
TECNOXAMANISMO 09 A TÉCNICA COMO DIPLOMACIA 131
Fabiane M. Borges COM NÃO HUMANOS
Hilan Bensusan
TECNOXAMANISMO 14
Kaloan
#EXCERTO3 141
ANTROPOCENO, CAPITALOCENO, 21 mbraz
CHTHULUCENO, VIVENDO COM O EROSÃO 145
PROBLEMA EM FUKUSHIMA & RESTAURO
Pablo de Soto philippe wollney
AGROFLORESTA E 265
TECNOXAMANISMO
Jonatan Sola
WARSCAPE 273
SONATA
vlax dyne
CONECT 277
RADIX
paloma klisys
LUZ-CORPO: 293
TRANSCENDÊNCIAS POÉTICAS
DO MOVIMEMTO
Victor Venas
8
TECNOXAMANISMO
Fabiane M. Borges
1. PORQUE PARTE DAS PESSOAS DA REDE TECNOXAMANISMO PERTENCE A OUTRAS REDES COMO
METARECICLAGEM E SUBMIDIALOGIA, QUE DESDE 2008 ORGANIZAM ENCONTROS EM ARRAIAL
D'AJUDA VIA O ESPORO DE METARECICLAGEM BAILUX. A APROXIMAÇÃO COM OS PATAXÓS VEIO
DESSES ENCONTROS REALIZADOS NO ESPORO BAILUX QUE CONECTAVA-SE COM A ALDEIA PATAXÓ
VIA PONTO DE CULTURA DA ALDEIA VELHA PATAXÓ E A ESCOLA ALDEIA VELHA PATAXÓ. ISSO
QUER DIZER QUE AO LONGO DESSES QUASE 10 ANOS OS PATAXÓS FORAM TENDO ACESSO A ESSAS
DISCUSSÕES SOBRE SOFTWARE LIVRE, TECNOLOGIAS LIVRES, MÍDIA E AUTONOMIA E POR OUTRO
LADO, NOSSAS REDES FORAM TENDO ACESSO À CULTURA PATAXÓ. POR ISSO QUANDO DECIDIMOS
FAZER O I FESTIVAL DE TECNOXAMANISMO, NÃO TIVEMOS DÚVIDA DE QUE SERIA A CONTINUAÇÃO
DOS TRABALHOS REALIZADOS POR NOSSAS OUTRAS REDES, NA TENTATIVA DE APROFUNDAR
PROCESSOS JÁ INICIADOS.
9
DURANTE 7 DIAS OS PARTICIPANTES SE DISTRIBUÍRAM ENTRE PONTOS BASES, QUE SE DEU ENTRE
O SÍTIO ITAPECO E A ALDEIA VELHA PATAXÓ. SÃO ELES:
• A RÁDIO LIVRE - FUNCIONOU DURANTE TODO O FESTIVAL E ALI FORAM FEITOS MUITOS
DOS DEBATES, QUE FOI TRANSMITIDO AO VIVO ATRAVÉS DE UM CANAL DA WEB – AQUI PODE-SE
VER O ARQUIVO4.
• RITUAIS COLETIVOS – COSMOGONIA LIVRE – RITUAIS FAÇA VOCÊ MESMO (DIY) - (PER-
FORMANCE, DANÇAS, MEDITAÇÃO, ENCONTROS NA FOGUEIRA) SÃO PRÁTICAS QUE TEM SE FORT-
ALECIDO NOS ENCONTROS DE TECNOXAMANISMO, JÁ QUE A IDEIA É CRIAR COSMOGONIAS
PRÓPRIAS, CRIAR MEIOS DE CONEXÃO ANCETROFUTURISTAS, AMPLIANDO A PERCEPÇÃO, POTEN-
CIALIZANDO O IMAGINÁRIO, INVENTANDO NOVAS PRODUÇÕES ESTÉTICAS, E IMERGINDO EM
PROCESSOS COLETIVOS DE CARÁTER ANCESTROFUTURISTA.10
A MAIORIA DAS PESSOAS QUE PARTICIPARAM DO FESTIVAL ERAM JOVENS, TANTO OS PARTICI-
PANTES DAS REDES DE INTERNET QUANTO DAS ALDEIAS PATAXÓS. ISSO COLABOROU PARA FOR-
TALECIMENTO E POTENCIALIZAÇÃO DE AMBOS GRUPOS, JÁ QUE A TROCA DE PERSPECTIVA E O
CLIMA RITUALÍSTICO TECNOXAMÂNICO PROMOVEU UM AMBIENTE DE ABERTURA E CRIAÇÃO, E
10
COLOCOU A SUBJETIVIDADE EM MOVIMENTO, QUE É UM DOS PRINCIPAIS OBJETIVOS DESSE FESTI-
VAL.
OS RITUAIS FAÇA VOCÊ MESMO ENTRAM NESSA CENA COMO MODO DE AMPLIAR O ESTADO DE CON-
SCIÊNCIA ATUAL, POTENCIALIZAR HABILIDADES QUE ESTÃO ESQUECIDAS DEVIDO AO RACIONAL-
ISMO EXACERBADO NO QUAL VIVEMOS HOJE EM DIA, QUE DISPUTA O PENSAMENTO DE ÍNDIOS E
NÃO ÍNDIOS. SEM FALAR QUE O TECNOXAMANISMO É UMA OPÇÃO PARA OS INDÍGENAS TAMBÉM,
QUE NA SUA MAIORIA TÊM SIDO ASSEDIADOS PELAS IGREJAS EVANGÉLICAS, QUE DEMONIZAM O
XAMANISMO E IMPEDEM O FORTALECIMENTO DA CULTURA INDÍGENA.
MAS NÃO SE TRATA SOMENTE DE FAZER RITUAIS TECNOXAMÂNICOS, MAS TAMBÉM POTENCIALIZAR
OS ESTADOS DO CORPO, DA VIDA COMUNITÁRIA, DE REPENSAR OS MODOS DE PRODUÇÃO DE TEC-
NOLOGIA E DE REATIVAR OS CONHECIMENTOS ANCESTROFUTURISTAS. PARA MAIORES INFOR-
MAÇÕES VER A PUBLICAÇÃO DE UM TEXTO EXPLICATIVO NA REVISTA GENI.11
PRETENDEMOS QUE ESSE LIVRO SEJA UM DEFLAGRADOR DAS EMERGÊNCIAS ATUAIS QUE ESTÃO
ACONTECENDO EM VÁRIOS CAMPOS DO CONHECIMENTO, QUE ELE SEJA UM MOSTRUÁRIO DAS
IDEIAS E AÇÕES DE PESSOAS QUE ESTÃO QUERENDO PRODUZIR UM NOVO TIPO DE HUMANIDADE,
MAIS CRÍTICA E PROPOSITIVA EM RELAÇÃO ÀS MÁQUINAS, MAIS IMBUÍDA DO SEU PAPEL CÓSMICO,
MAIS CONECTADA COM O PLANETA TERRA, MAIS SENSÍVEL A OUTROS ESTADOS DE EXISTÊNCIA,
MENOS ANTROPOCÊNTRICA E MAIS TERRÁQUEA.
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ENTRE OUTROS EFEITOS. NESSE CONTEXTO, SURGE A NECESSIDADE DE SE CRIAR NOVAS AGREMI-
AÇÕES, NOVAS REDES DE AÇÃO E PENSAMENTO, QUE COLABOREM NA CONSTRUÇÃO DESSE NOVO
HUMANO MAIS CONECTADO À NATUREZA, QUE CRIE ALTERNATIVAS PARA A CIÊNCIA E A TECNOLO-
GIA E QUE SEJA CAPAZ DE COMPREENDER A IMPORTÂNCIA DE SE PRODUZIR EXPERIÊNCIAS
MENOS NOCIVAS PARA O HUMANO E PARA A PRÓPRIA TERRA.
OS RITUAIS ENTRAM NESSA CENA COMO MODO DE AMPLIAR O ESTADO DE CONSCIÊNCIA ATUAL,
POTENCIALIZAR HABILIDADES QUE ESTÃO ESQUECIDAS DEVIDO AO RACIONALISMO EXACERBADO
NO QUAL VIVEMOS HOJE EM DIA. É PRECISO INVENTAR OUTRAS FORMAS DE FAZER RITUAIS, DE
ESTAR JUNTOS, DE SE COLOCAR EM ESTADOS DE INTENSIFICAÇÃO DE CONSCIÊNCIA E DE PER-
CEPÇÃO. NESSE SENTIDO É QUE O TECNOXAMANISMO APARECE ENQUANTO PROPOSTA, BASEADO
NAS SEGUINTES PERGUNTAS: QUE NOVOS RITUAIS NOS AJUDARIAM A NOS DESVINCULAR DO
ANTROPOCENTRISMO EXAGERADO E PERCEBER OUTRAS FORMAS DE INTELIGÊNCIAS CONTIDAS
EM NOSSO PLANETA? QUE TECNOLOGIAS O XAMANISMO PODE PROMOVER EM NOSSAS JUVEN-
TUDES URBANAS? COMO APROXIMAR A CIÊNCIA, A TECNOLOGIA E O XAMANISMO, DE MODO QUE
POSSAM ACHAR LINHAS DE CONVERGÊNCIAS?
DADA A COMPLEXIDADE DO TEMA, A CHAMADA PÚBLICA PARA ENVIO DE MATERIAIS PARA PUBLI-
CAÇÃO SURGIU COMO UMA CARTOGRAFIA DE DIFERENTES PERSPECTIVAS E PRÁTICAS QUE SE
CRUZAM SOB ESTA NOÇÃO. A PUBLICAÇÃO VISA DISCUTIR O TEMA DOS CONHECIMENTOS ANCES-
TRAIS E DAS TECNOLOGIAS NOVAS E OBSOLETAS, BUSCANDO ALTERNATIVAS ECOLÓGICAS, TEC-
NOLÓGICAS E IMAGINÁRIAS PARA A CONSTRUÇÃO DE NOVOS PARÂMETROS DE AÇÃO NO MUNDO,
EM UMA ÉPOCA EM QUE A LUTA PELA ÁGUA, A EXAUSTÃO DOS RECURSOS NATURAIS, O FIM DAS
FLORESTAS E SEUS POVOS ESTÃO EM PAUTA. ENTRA AQUI TODA A RETOMADA DO QUE CHAMAMOS
DE “ESPÍRITO DOS HACKLABS”, DO “DO IT YOURSELF”, DA ENGENHARIA APLICADA PARA RESO-
LUÇÕES LOCAIS E COM INTERESSES ECOLÓGICOS. ENTRA AQUI TAMBÉM O APOIO NA REESTRUTU-
RAÇÃO DE SABERES, PRÁTICAS, LÍNGUAS, ENTRE OUTRAS COISAS, DOS POVOS INDÍGENAS, NOSSOS
PARCEIROS.
DE MAIO A DEZEMBRO DE 2014, FORAM RECEBIDOS MAIS DE 80 TRABALHOS, A MAIORIA DELES INÉ-
DITOS, DE DIFERENTES PESQUISADORES, ARTISTAS, ATIVISTAS E CIENTISTAS DE TODO O MUNDO,
MAS COM GRANDE REFERÊNCIA NAS PRODUÇÕES BRASILEIRAS. ENTRE OS QUE ATENDERAM AO
CHAMADO PARA A PUBLICAÇÃO, ALGUNS NÃO PARTICIPARAM DIRETAMENTE DO FESTIVAL, EN-
TRETANTO SE MOBILIZARAM A PARTIR DA CHAMADA ABERTA NA INTERNET A FIM DE CONTRIBUIR
COM SUAS REFLEXÕES SOBRE O TEMA. OS FORMATOS VARIAM DE ABORDAGENS, COM TEXTOS
ACADÊMICOS, ENSAIOS, POESIAS, FICÇÕES, TECNOFICÇÕES, HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, FOTO-
NOVELAS, PASSANDO POR UM VASTO E RICO UNIVERSO DE IMAGENS SOBRE O ASSUNTO.
AGRADECIMENTOS:
REDE DE TECNOXAMANISMO
ALDEIAS PATAXÓ
INSTITUTO GOETHE
INVISÍVEIS PRODUÇÕES
Notas:
1. https://tecnoxamanismo.wordpress.com/2016/02/16/primeiro-festival-internacional-de-tecnoxamanismo /
2. https://www.catarse.me/tecnoxamanismo
3. http://tecnoxamanismo.metareciclagem.org/
4. https://archive.org/details/radio-tecnoxamanismo
5. https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14158657472/in/dateposted/
6. https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14181528253/in/dateposted/
7. https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14137178856/
8. https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/page6
9. https://tecnoxamanismo.wordpress.com/2016/03/15/projeto-renascente-da-aldeia-para/
10.
https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14181328393/in/dateposted/
https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14138071686/in/dateposted/
https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14216813266/in/dateposted/
11. http://revistageni.org/10/tecnoxamanismos-etc/
12
Foto:
Nubia Abe
TCHNXMNSM cultivar kaloan
συναισθησία)
Sinestesia (do grego descondicionadores e
expansores da consciência.
14
a mudança
Singularidade tecnológica é a denominação
dada a um evento histórico previsto para
o futuro, no qual a humanidade atravessará
um estágio de colossal avanço tecnológico
em um curtíssimo espaço de tempo, em que
a tecnologia criará um novo paradigma que
torne o atual obsoleto, alterando radicalmente
a civilização e a natureza humana.
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Glossolalia - criação de um vocabulário constituído por
neologismos, balbuciares, impulsos musculares e que utiliza uma
sintaxe deformada. Fenômeno extático, se origina num êxtase de
comunhão com o cosmos, no qual um indivíduo emite uma série
de sons ou palavras sem sentido, num processo automático
e improvisado em conexão com o agora.
KAMPING EXPERIMËNTAL
between cosmic ritual and public space
PACAMÃE- Alteração de estados
MULTIVERSO de consciência é um
dispositivo muito
ATÉ HOJE, NENHUM importante. Voltar
ÍNDIO OU à ideia de lucidez,
COMUNIDADE e transgredi-la, criar
INDÍGENA FOI novos parâmetros para
pensá-la, atingir
INDENIZADO PELOS
o estado Nagual,
CRIMES DE DIREITOS considerado por Don
HUMANOS OCORRIDOS Juan de Castaneda
NESSES LOCAIS. o lugar da criação,
NUNCA HOUVE que se debate contra
o estado tonal, que é
QUALQUER o estado de guarda,
MANIFESTAÇÃO de consciência
FORMAL DO ESTADO e lucidez fabricada
BRASILEIRO ininterruptamente pelos
estados de controle,
RECONHECENDO A
pelo processo
EXISTÊNCIA DE TAIS civilizatório, pela
CRIMES. educação das crianças.
16
Com o anômalo, a relação é de
aliança. O feiticeiro está numa
relação de aliança com Yupana como
potência do anômalo.
tenda nômade, encontro,
trocas, experimentações sonoras,
descanso, prazer, alegria.
Free folk: descoberta de uma
ancestralidade que pode ser
recriada, invenção de folclore
pessoal, primitividade-concreta.
Ritual- ARROUBO EXPERIMENTAL DO CORPO
À DERIVA. ATINGIR O CORAÇÃO DAS COISAS.
code is
conseguimos
de espaços acesso
Autônomos gratuito.
e Nomadismos Livre acesso a
Espaço de Práticas não verbais tecnologias.
Criação de Espaços de Práticas não verbais
Invenção de Práticas não verbais Espaço
Outros modos de nos comunicar nômade
Gostamos das ocupações livres, dos transes,
do experimental, de colaborar com outros e
da possibilidade de outras formas de vida.
poetry
desenvolvimento de novas tecnologias rurais; organismo nômade
em interação e intercâmbio cultural com outras redes, ecovilas,
espaços de arte, aldeias, tribos, zonas autônomas e sustentáveis.
Horizontalidade. Cultivo. Humor. Tecnocaldeirão. Amor.
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Sob a ameaça nuclear, instalação artística de Luz Interruptus. Foto: Gustavio Sanabria.
20
ANTROPOCENO, CAPITALOCENO,
CHTHULUCENO, VIVENDO COM O
PROBLEMA EM FUKUSHIMA
Pablo de Soto
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tureza já não é mais o que a ciência con- questão, assim se formulará as respostas
vencional imaginou que era. A natureza se a essas crises do século 21.
converte em uma Zona onde o tempo e o A respeito do desastre nuclear, a
espaço são alterados pela ação humana descrição e a qualificação do aconteci-
e, a contrário senso, nossa sensorialidade mento como problema está em disputa:
não evolui na mesma medida para perce- está acontecendo algo em Fukushima ou
ber essas transformações. Como conse- o desastre foi solucionado?
quência, se produz um estado de A posição hegemônica mantida
desorientação e a necessidade de recali- pelo governo e pela indústria é que o de-
brar nossos sentidos. sastre teria sido superado. Nesse sentido,
Um dos primeiros pensadores a ad- o acidente é apresentado pelas autori-
vertir sobre essas transformações pro- dades como “está tudo sobre controle”,
duzidas na escala dos fenômenos conforme encenado pelas afirmações do
tecnológicos foi Günther Anders. Ele se primeiro ministro Shinzo Abe durante a
preocupou com os desafios éticos que os cerimônia onde Tóquio foi eleita cidade-
avanços técnicos desenvolvidos a partir sede dos Jogos Olímpicos de 2020. “Se
da Segunda Guerra Mundial suportavam, sorrires a radiação não te afetará”, afir-
tendo sido pioneiro da filosofia da técnica mava o experto em saúde do Governo de
e um dos grandes pensadores contra a Fukushima, o Doctor Shunichi Yamashita.
bomba atômica. Viveiros de Castro lem- Esse plano em curso assegura que é pos-
bra-nos, com Anders, a ideia presente na sível descontaminar a terra e voltar a re-
biologia a respeito dos fenômenos subli- popular as áreas evacuadas. É a eterna
minares à percepção: aquela coisa que é reconstrução do mito da segurança dos
tão baixinha, que você ouve mas não reatores nucleares, como no filme Jellyfish
sabe que ouviu; você vê, mas não sabe Eyes de Takeshi Murakami. Nas afir-
que viu; como pequenas distinções de mações dos físicos vinculados à indústria
cores. São fenômenos literalmente subli- nuclear, os acidentes atuais, inclusive
minares, abaixo do limite da nossa per- aqueles de nível máximo como Chernobyl
cepção. Segundo Anders, estamos criando ou Fukushima, são comparáveis aos in-
agora um algo a mais que não existia, a cêndios resultados da domesticação do
“supraliminaridade”. Quer dizer, há algo fogo, inevitáveis para passar a outro está-
tão grande que não se pode nem ver, nem gio da evolução humana.
imaginar. A crise climática ou uma Por outro lado, cientistas indepen-
catástrofe nuclear como a de Fukushima dentes e uma parte substancial da so-
são uma dessas coisas. Como vamos ciedade enxergam o desastre como algo
imaginar algo que depende de milhares ainda não solucionado, um Chernobyl em
de parâmetros, um transatlântico invisível câmera lenta (Gundersen 2012), cujas
movendo-se com enorme massa inercial? consequências vem sendo, desde o início,
As pessoas se paralisam. Se dá uma es- subestimadas pelas autoridades. Essa
pécie de paralisia cognitiva. Ou, como pauta repercutiu nos maiores movimentos
Paul Virilio escreveu a respeito de Cher- sociais de protesto ocorridos no Japão
nobyl, um acidente do conhecimento. nos últimos 40 anos, em que a população
Como dois problemas que atraves- denunciava a ocultação de informação a
sam as esferas intelectuais, sociais e respeito do acidente por parte do Governo
políticas, as duas formulações, a do e TEPCO, demandava medidas ade-
Antropoceno e a de Fukushima, estão em quadas para a proteção da saúde da po-
discussão. Conforme se enunciará a pulação, especialmente a das crianças, e
25
Retrato de uma familia no acampamento de refugiados da radiação em Aizuwakamatsu,
prefeitura de Fukushima, 2012. Foto: Pablo de Soto.
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exigiam o fim da energia nuclear no ar- minismo tecnológico, ou estamos vivendo
quipélago. Apontavam, ainda, o empo- no Capitaloceno, uma época formada por
brecimento da democracia tendo em vista relações que privilegiam a acumulação in-
medidas regressivas, como a promul- terminável de capital? Moore parte da
gação da Lei dos Segredos. Na esfera perspectiva da crise do binômio eco-
internacional, organizações científicas in- logia/economia até uma teoria unificada
dependentes, como a Fairewinds Energy do capitalismo como ecologia-mundo,
Education e a IPPNW (Congregação In- sumando a acumulação de capital, a
ternacional de Médicos para a Prevenção busca do poder e a produção da natureza
da Guerra Nuclear), criticam as infor- em uma unidade dialética. A ideia do Ca-
mações das agências internacionais como pitaloceno define nossa época como
a UNSCEAR (Comitê Científico de aquela em que a natureza não pode tra-
Nações Unidas para os Efeitos da Ener- balhar por muito mais tempo para manter
gia Atômica), indicando seu menosprezo o ritmo de extração e produção da
quanto às consequências do acidente máquina industrial contemporânea, pois a
para a saúde pública. maior parte das reservas da Terra foram
O Antropoceno, como narrativa em drenadas, envenenadas, exterminadas,
ascensão meteórica, não está, contudo, ou simplesmente, exauridas.
imune à questionamentos e proposições Argumentando que Antropoceno e
alternativas. Capitaloceno são histórias grandes, mas
Uma das principais contra-formu- não suficientemente grandes, Donna Har-
lações parte da crítica que o Antropoceno away nos propõe voltarmos à ficção cien-
naturaliza uma formação histórica e tífica, especulação fabulativa e feminismo
política específica, o capitalismo, como o especulativo como mecanismos como
único modo de produção e reprodução da mecanismos para visualizar um futuro
vida humana. O argumento põe foco no mais vivível. Como uma figuração com-
poder das corporações, no neoliberal- pletamente diferente que serpenteie por
ismo, no neocolonialismo e no extra- dentro e através da Era de Antropos e a
tivismo, e defende que não foi Antropos, Era do Capital, a autora propõe o nome
como espécie humana indiferenciada, Chthuluceno para resgatar as criaturas
quem causou a destruição que o An- tentaculares que a modernidade relegou
tropoceno assinala. A sexta extinção em como algo do passado, como aquilo que
massa de espécies ou o aumento de qua- já foi derrotado, mas que não o está de
tro graus da temperatura média do plan- verdade. O Chthuluceno como um tempo
eta pela queima de combustíveis fósseis, heterocrônico em que o limite entre o
por exemplo, foram e continuam sendo antigo e o contemporâneo se fundem, que
causadas, sobretudo, por uma pequena nomeia as forças sim-chtônicas em mar-
fração da humanidade, um grupo de cha, às quais todos nós pertencemos. A
países e umas centenas de grandes cor- potência da figura oferece um ponto de
porações – o denominado 1%. Um de partida onde os atores não são apenas
seus principais impulsores é Jason Moore, “nós”: uma saída metodológica ao excep-
sociólogo do Centro Fernand Braudel, cionalismo humano. Ante a compreensão
cujo questionamento pode ser traduzido de um mundo que enfrenta desastres am-
na seguinte pergunta: estamos realmente bientais sem precedentes induzidos pela
vivendo no Antropoceno, retrocedendo a humanidade, o Chthuluceno convida a
um ponto de vista curiosamente eurocên- uma exploração da co-dependência e co-
trico da humanidade e na sua fé no deter- produção das espécies e dos sistemas da
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terra, que Haraway denomina como viver
com o problema”.
Com seus diferentes repertórios
teóricos, aparatos analíticos e metafóri-
cos, Antropoceno, Capitaloceno e Chthu-
luceno são maneiras de ver que iluminam
e obscurecem umas e outras lutas situ-
adas. São formas de nomear o que esta
acontecendo ao nosso ar, água, terras, ro-
chas e oceanos, aos animales, plantas e a
nos mesmos. Seja denominada de uma
ou outra maneira, nossa época marca
descontinuidades graves. Como em
Fukushima, o que vem depois não será
como o que era.
Notas:
1. A Alemanha foi o primeiro país a anunciar o abandono
total de energia nuclear em 2022.
2. Este texto integra a introdução da Tese de Doutorado
"Antropoceno, Capitaloceno, Chthuluceno; vivendo com o
problema em Fukushima", desenvolvida dentro do
Programa de Posgraduação em Cultura e Comunicação
da Escola de Comunicação da Universidade Federal de
Rio de Janeiro, sob a orientação da Ivana Bentes e
Antonio Lafuente.
28
Protesto antinuclear "Os tambores da furia” nas ruas de Shinjuku, Tokyo, 2012. Foto: Pablo de Soto.
29
30
TRANSCENDENDO TECNOLOGIA:
COMPUTAÇÃO UBÍQUA OU
TECNOMAGIA?
Eleonora Oreggia
31
piritualidade e tecnologia (sem qualquer talação interativa de arte sonora, que
forte orientação ideológica como back- ofereceria a possibilidade de ouvir o som
ground), por outro lado, a re-apropriação da vibração ao invés da percepção au-
tribal da subjetividade e do direito de ex- dível, de repente viu-se diante de uma
plorar mundos exteriores e estados alte- obra de arte que pode jogar instantanea-
rados de consciência têm surgido no mente o usuário em um profundo estado
contexto da música techno, xamanismo de meditação.
pós-moderno2 e outras formas reeditadas O artista de ruído eletrônico Ryan
de magia, onde a reinvenção do uso da Jordan, em resposta à difusão generali-
tecnologia auxilia a criação desses meta- zada de máquinas de sonho e outros dis-
espaços de experimentação que a Ca- positivos estroboscópicos caros para a
poeira3 define como textura sagrada – criação de um nirvana faça você mesmo
onde jogo e ritual são alocados naquele (DIY), desenvolveu seus óculos de rolos
espaço específico expandido por dança de papel higiênico: o paraíso não está tão
e música. longe se todos podem fazer, usando com-
O applicativo "Buddify4" de Rohan ponentes eletrônicos baratos fáceis de
Gunatillake é uma tentativa de propor uma encontrar e alguns descarte de eletrôni-
forma de meditação, direcionada para hip- cos, o seu pequeno dispositivo para trans-
sters ao invés de hippies, como alega o cender visões e alcançar transformação
autor: o alvo, suas personalidades, são espiritual; a democratização do direito de
usuários em harmonia com a correria da sermos xamãs nas sociedades contem-
civilização que os rodeia, permitindo a porâneas que prejudicam tanto o mundo
otimização de seu tempo de transição – do conhecimento enigmático e o mundo
todos aqueles momentos quando se está dos engenheiros do éter, enquanto na
viajando diariamente, esperando na es- verdade todos com um pouco de esforço
tação de correios ou travado numa fila de poderiam ser ensinados a construir o seu
ingressos – preenchendo esse vazio es- próprio... oráculo midiático. Mas este é
pecífico com meditação de fácil digestão; apenas o começo da história porque, se
meditação torna-se, então, um método de por um lado todas estas diferentes apli-
preenchimento dos intervalos da sua rotina cações baseiam-se no uso da música
para manter-se como multitarefa, e, em como auxílio para espiritualidade, por
vez de assumir a forma de um tempo-es- outro lado as questões levantadas mere-
paço dedicado e uma técnica onde a pes- cem uma análise mais aprofundada.
soa procura uma alternativa para um estilo
de vida frenético, amalgama plenamente COMPUTAÇÃO CALMA
com a metodologia moderna de produtivi- Em computação, tecnologia calma
dade, propagando a ideia de que de al- visa reduzir o sofrimento potencial de so-
guma maneira o tempo vale dinheiro e que brecarga de informação, permitindo que
deve sempre ser usado com uma espécie o usuário selecione quais informações
de atitude empreendedora, obtendo o estão no centro da sua atenção e o que
máximo resultado com o mínimo esforço. pode ser periférico. O termo foi inventado
Kaffe Matthews, a artista e com- no final dos anos 80 por Mark Weiser, di-
positora de "Sonic Bed5", atingiu um efeito retor de tecnologia, e John Seeley Brown,
muito mais profundo ao buscar um obje- diretor do laboratório de pesquisa da
tivo diferente: disposta a criar uma cama Xerox de Palo Alto, prevendo a necessi-
apoiada em alto-falantes, a fim de desen- dade de princípios de design e métodos
volver um sistema na forma de uma ins- que permitem aos usuários detectar e
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controlar o que imediatamente lhes inte- da computação calma, aplicados em am-
ressa enquanto retendo consciência bientes comerciais, têm distorcido a visão
periférica de outras possibilidades de in- de Wieser de um mundo tecnológico que
formação que eles podem, a qualquer se dissolve na indistinção, indefinindo
momento, optar por focar. Enquanto os ultra-espaço do potencial interativo, cri-
dispositivos de programação embarca- ando uma espécie de realidade em múlti-
dos tornaram-se uma parte onipresente plas camadas que nos lembra da
de nosso meio ambiente, a capacidade multiplicidade de Bergson, a multiplici-
de projetar ambientes e dispositivos tran- dade de fenômenos unificadas pela sin-
quilizantes está se tornando cada dia gularidade da consciência. Tentando
mais importante. responder a ideia centro / periferia de
E esta é a computação ubíqua, um Wiener em um tecnologia calma, ele olha
modelo pós-desktop de interação hu- para a fenomenologia com os olhos bu-
mano-computador em que o processa- distas e sugere que, na computação es-
mento de informações foi completamente piritual o mundo espiritual em geral
integrado às atividades quotidianas e ob- refere-se ao cultivo de informações, sa-
jetos. Definida como a terceira onda na bedoria, consciência, e um estado cons-
computação, de mainframes à computa- ciente na qual a linha dividindo pensamento
dores pessoais, com a computação e tecnologia está ficando mais fraca a cada
ubíqua, ou a era da tecnologia calma, a dia. Nesta vigília espiritual, humanos e
"tecnologia que retira-se para os basti- máquinas podem ser unidos em um
dores de nossas vidas"6. "crescimento espiritual" mútuo; a consciên-
A ideia é um tipo de mundo desen- cia humana pode ser melhorada, mas, ao
rolado e sobrecarregado com microtec- mesmo tempo, a espiritualidade, como ele
nologia inteligente que começa a reagir e declarou recentemente, está ameaçada
interagir conosco sob nosso critério, ou pela tecnologia: "A tecnologia não é intrin-
seja, quando nós prestamos atenção secamente espiritual, é uma ferramenta
nele, ou quando ele decide que é opor- para a experiência de imersão e experiên-
tuno interagir. Este tipo de design multi- cia imersiva que pode absorver você e a
verso, ou projeto para universos paralelos absorção pode viciar você e o vício é o
trazido à existência pela atenção e a pre- oposto do desenvolvimento espiritual "8.
sença do observador pode ter herdado CW Smith, por 30 anos professor
um pouco da consciência que os ensina- budista, hoje parece mais cauteloso em
mentos de Werner Heisenberg e os prin- relação à tecnologia e seus efeitos sobre
cípios da física quântica trouxeram, mas a os seres humanos – após definir a Com-
computação ubíqua é ainda mais assus- putação Espiritual como: "as idéias, méto-
tadora do que isso, já que princípios não dos e práticas necessárias para trazer"
são desenvolvidos com a intenção de espiritualidade ", na concepção de tec-
respeitar o indivíduo, nem de maneira que nologias de próxima geração"9, em 2001,
os direitos pessoais não sejam violados e afirmar que a tecnologia poderia final-
por uma queixa intrusiva da tecnologia. mente embarcar até construções espiri-
tuais que tiveram milhares de anos para
COMPUTAÇÃO ESPIRITUAL se desenvolver.
Craig Warren Smith, ex-professor Envolvido como um dos fun-
da Universidade de Harvard e agora con- dadores do movimento global para fechar
selheiro sênior do HITLab, declarou em o abismo digital, sua pesquisa abordou os
uma entrevista recente7 que os princípios impactos culturais e espirituais das tec-
33
34
nologias digitais em mercados emer- mente em várias partes do mundo sob
gentes. O conceito de abismo digital re- uma variedade de nomes, tecnobeduí-
fere-se a quaisquer desigualdades entre nos, tecnoxamanismo, etc.
os grupos em termos de acesso, utiliza- Tecnomagia não é outro nome
ção, ou conhecimento de tecnologias de para a realidade aumentada, nem identi-
informação e comunicação. Em uma es- fica qualquer das ilusões que a tecnolo-
cala internacional os países se tornam as gia pode desencadear; ao contrário, é a
unidades de uma análise que examina a integração, e a reinvenção, de práticas
divisão entre países em desenvolvimento espirituais locais (ou seja, o candomblé)
e desenvolvidos. Conectividade está em e rituais antigos (ou seja, a ayahuasca),
estreita relação com a produtividade e o com as possibilidades de expansão da
acesso torna-se uma condição nece- subjetividade que a tecnologia oferece.
ssária para superar o abismo digital. Hoje Se a tecnologia torna-se, em certo sen-
em dia a transformação de eventos tido, um acessório da experiência pessoal
acelerou seu ritmo, e o saldo (un) / individual, oferecendo, por exemplo, a
econômico global está mudando à me- possibilidade de gravar e amplificar o
dida que escreve. som, em outro sentido, é o substituto de
Outra divisão conceitual e histórica uma forma de privação: xamanismo tradi-
está a mudar e mudou nos tempos mo- cional é, de fato, fortemente ligado ao ter-
dernos: a do conflito entre a massificação ritório e os espíritos que se acredita que
do consumo ocidental e espiritualidade nele habitam; no entanto, várias ondas de
oriental. Os países em desenvolvimento migração e a onipresença que a Internet
não estão se tornando a nova força de e a tecnologia moderna geram, estimula-
trabalho de produção capitalista contem- ram uma total nova relação com o eu in-
porânea fetichista de objetos e serviços? dividual e da comunidade em torno dele.
A espiritualidade oriental não foi Além disso, tecnomagia preenche a dico-
lentamente devoradas pela tendência tomia presente nas gerações jovens entre
antropofágica ocidental de assimilar for- tendências contemporâneas e vanguar-
mas culturais heterogêneas em um su- distas sobre a tecnologia, música e cultura,
permercado total unificado? que hoje em dia são, por vezes comuns
Como o budista Vidyadaka afirmou, para um tecido de gerações em todo o
"estamos nos tornando uma economia de mundo, mas também para as tradições lo-
consumo global do mundo e a espirituali- cais antigas. Tecnomagia é sobre o nosso
dade impulsionada não está fortemente presente, não faz acreditar em um futuro
associada mais com o Oriente, e há um maravilhoso onde tudo vai ser melhor, tec-
forte surgimento do estilo de vida espiri- nomagia não acredita na evolução ou de-
tualizado em todo o mundo ..."10. senvolvimento, os olhares tecnomágicos,
ao invés disso, estão estendidos pela tex-
TECNOMAGIA tura constituída pela multiplicidade e
Fabi Borges, uma psicóloga bra- unicidade da percepção simultânea do
sileira que utiliza rituais que integram tec- presente que passa por toda parte, e se
nologia no processo de terapia individual conecta aos nossos corpos.
e coletiva, narra a história peculiar do
Brasil, onde as práticas de software de CONCLUSÃO
fonte aberta e hackers encontraram o xa- Raciocinar sobre a tecnologia em
manismo, dando à luz a tecnomagia11, relação à espiritualidade, e vice-versa, é
uma tendência que emergiu simultanea- um passo difícil e necessário que precisa
35
ser perpetrado no mundo contemporâ-
neo. O tema é crucial e particularmente
denso, e pode merecer um maior desen-
volvimento e análise. A música tem sido
identificada como um fator que promove o
desenvolvimento espiritual. Tecnologia e
espiritualidade não parecem estar em
oposição; eles podem, sim, ser comple-
mentares, ou becos sem saída, como
Fabi Borges sugere12.
Gary Lachman13 propõe ao olhar
para trás e inspirar-se pela etimologia
grega: enquanto techne refere-se a um
know how, ou uma técnica, e é geral-
mente colocado em oposição a episteme,
que é o conhecimento no sentido da ciên-
cia, ou o que é verdadeiro – gnose, a
palavra comum para conhecimento, veio
para indicar, ao longo dos séculos, uma
forma de conhecimento espiritual.
Tecnologia e espiritualidade são, no
final, nada mais do que a expressão de
duas formas diferentes de conhecimento.
Notas:
1. n.t. http://buddhify.com/
2. https://vimeo.com/49406849
3. Erik Davies, TechGnosis: Myth, Magic and Mysticism in
the Age of Information (Nevada City, U.S.A.: Harmony
Books, 1998).
4. A good reference on this theme is: Daniel Pinchbeck,
Breaking open the head (New York, U.S.A.: Broadway
Books, 2002).
5. Capoeira é uma arte marcial brasileira que combina
elementos de dança e música.
6. Mark Weiser, 1986.
http://www.ubiq.com/hypertext/weiser/UbiHome.html
7. Spiritech: transcending technology. London, 2003, 147.
8. ibid.
9. Craig Warren Smith, 2001.
www.stc.arts.chula.ac.th/.../PPT-files/Craig-
SC%20Chula%20pres.ppt
10. Spiritech: transcending technology. London, 2012.
11. A primeira reunião oficial de tecnomagia terá lugar na
localidade Visconde de Mauá (Itatiaia, Brasil) entre os
dias 10 a 13 de Maio de 2012.
http://nuvem.tk/?tecnomagias
12. Spiritech: transcending technology. London,2012.
13. ibid.
36
PLEX
Leandro Nerefuh
37
Profere Umbelina: ou o que. Ou, em outra dimensão
mítica, beyond caverna, Curupira
O humano beyond-caverna
transvia aventureiros dentro da
é o sentido da terra
floresta, com assobios e sinais falsos.
Exorto-vos a permanecerem
fiéis à terra O surgimento do humano implica na
e a não acreditar em quem vos possibilidade de um novo humano,
fala de esperanças que também é uma questão de
supraterrestres. gênero, de moda e de culinária.
O humano beyond-caverna Quem vai parir, o que vai vestir
só poderá existir na terra e o que vai comer esse novo humano?
e com a terra. Para além do mocó de pedra,
a floresta brota como ambiente
Do ponto de vista do ocidente,
propício para o surgimento do além
a caverna é o berço da humanidade.
do humano. Análoga à caverna
A caixa-preta da civilização. O grito,
e ao deserto, a floresta é fronteira
o grunhido, o mugido e os rabiscos
temática de nossa língua.
na parede antecedem a fala, a voz
e a escrita. O sentido existia antes Ao mesmo tempo, o “Brasil” anda
mesmo do humano, e permanece tão machista que hoje em dia a
escondido em traços ininteligíveis floresta só pode ser concebida 100%
e materiais quebrados. Arqueofósseis. raspadinha. Brazilian Wax a Amazônia,
O filósofo retorna vez e outra à conforme piada de noticiário
caverna. Poetas e ladrões erguem internacional. Nesse sentido,
templos incrustrados na caverna. o recente movimento de mulheres
O profeta vive por 30 anos na caverna pelo direito ao suvaco cabeludo e
adorando o sol e sibilando com(o) colorido de verde, azul, rosa… e pela
as serpentes. A virgem santa procura xoxota cabeluda (vide texto da Morena
a caverna pra dar a luz, e o povo Socialista) é paralelo a uma chamada
nascer de novo. As antigas cidades contra a cultura do boi, da bala
muradas replicam o mocó de pedra, e da bíblia.
de medo do que se esconde nas
Penso, de qualquer forma, que se
montanhas e nas selvas - índios,
deve insistir na ideia de que o Brasil
espíritos, bruacas, guerreiras,
tem – ou, a essa altura, teria –
matilhas desordeiras,
as condições ecológicas, geográficas,
subcomandantes, entidades e
culturais de desenvolver um novo
criaturas aos milhares, milhões…
estilo de civilização, um que não seja
A besta bruta, prenúncio do humano, uma cópia empobrecida do modelo
puxa sua comida pelo rabo pra dentro americano e norte-europeu.
da caverna, criando assim o senso Poderíamos começar a experimentar,
e o contra-senso da história. timidamente que fosse, algum tipo
As pegadas apontam pra um lado de alternativa aos paradigmas tecno-
enquanto o mugido ecoa de outro. econômicos dos capitalismos
Traço e som, senso e contrassenso. informacional, cognitivo, tardio,
Etnomusicólogos ensaiam a flauta desértico, solar, etc… Enfim,
pré-histórica na esperança de O COMPLEXO CIVILIZATÓRIO
descobrir se o som é festivo, funerário REVISTO E REVISITADO
38
POR UM NOVO SED PLEX de desejos do conquistador colonial
MULTIVERSAL e do poeta moderno. Ambos viam no
novo mundo a possibilidade de se
Imaginava o poeta moderno que
redimirem e se reinventarem como
as sociedades primitivas seriam
“homens civilizados”. A arrogância
capazes de oferecer modelos de
do conquistador colonial, e, por outras
comportamento social mais adequado
vias, a anarquia do poeta moderno,
à reintegração do “homem” no pleno
desencadeiam na transfiguração
gozo do ócio a ser propiciado pela
da paisagem em mistério-fêmea –
civilização tecnológica. O “homem”,
Iracema, Jurema, Norma, Valéria, Eva,
assim mesmo, no masculino genérico,
Umbelina, Deusa, Amazona - robusta
conforme eles dizem. Portanto aqui
paridora que instiga desejo e ameaça.
entra uma questão de gênero
Lábios de miel. Vulva caníbal.
complicada e largamente ignorada nas
propostas de utopia brasileira. Para O. A paisagem transfigurada
de A., o ócio a que todo “homem” teria em índices econômicos
direito fora desapropriado pelos
Ceci, a portuguesinha casta que
poderosos e se perdera entre o
por fim se entrega ao índio converso
sacerdócio (ócio sagrado) e o negócio
e vira mãe
(negação do ócio). Para recuperá-lo,
propunha a incorporação do “homem Iracema, a índia virgem, solícita
natural”, livre das repressões da ao nobre herói português OU
sociedade civilizada. A formulação a prostituta da transamazônica
essencial do “homem” como Norma, a história mal contada
problema e como realidade era da mulher branca moqueada
capsulada neste esquema dialético: na tribo arara
1.º termo: tese – o “homem” natural;
2.º termo: antítese – o “homem Amazona, a mulher que dá de mamá
civilizado”; 3.º termo: síntese – aos macacos pra fazer fluir o primeiro
o “homem” natural tecnizado. leite materno, depois corta a teta
A humanidade teria estagnado e vira guerreira – o inverso da ama
no segundo estágio, que constitui de leite negra de Tarsila do Amaral
a negação do próprio ser humano, E mais tarde, Umbelina Valeria - um
e no qual fora precipitada pela cultura dos mistérios mais fascinantes da
messiânica. Contra a cultura selva amazônica – tem 23 anos,
messiânica, repressiva, fundada na é viúva, professora e nascida em
autoridade paterna, na propriedade Belém do Pará, raptada pelos araras –
privada e no Estado, advogava a de prisioneira a cacique. Uma história
cultura antropofágica, correspondente da arte brasileira em capítulos,
à sociedade matriarcal e sem classes, 1, romance indigenista; 2,
ou sem Estado, que deveria surgir, fotojornalismo de invenção;
com o progresso tecnológico, para 3, experiência midiática; 4, literatura
a devolução do homem à liberdade moderna e kinema. Distinta dos
original. Ressurge ai o mito do profetas bíblicos perambulando pelo
continente fêmea e o surgimento do deserto com suas longas túnicas
novo “homem” amerykano. E, nesse empoeiradas. Distinta do profeta
plano, existe uma estranha simetria de montanha que mora na caverna
39
com suas fiéis companhias, a águia
e a serpente. Umbelina é guia sem
voz (aparição) e amante dos homens
que se desgraçam pelos
emaranhados da selva, e que, quando
saem vivos, inventam seus relatos
e reclamam sua “vantagem literal”.
A imagem de prodigiosa exuberância
da selva, a exuberância vulvânica,
a exu-berânica vulva da selva alimenta
um legado de projeções utópicas
(do homem branco) sobre o novo
mundo - “Lá, as condições favorecem
a consumação dos destinos do
homem do Ocidente. Ou mesmo o
surgimento do novo homem.”
No momento em que a história ganha
contornos coloniais, a representação
de um continente fêmea à mercê da
penetração, dominação e conquista
do homem reforça o pensamento
abissal que separa natureza (fêmea)
e sociedade (macho). Enquanto
mantidas distintas e irreconciliáveis,
natureza e sociedade servem como
os pilotos modernos para uma
história oficial de profecia e
conquista. Ou, o advento de Brasília
conforme a lábia do progresso
e desconforme o avanço do ruído
frente à melodia litorânea. Sendo
que o poder da elite brasileira se
configurou historicamente no litoral.
Ao mesmo tempo, o novo humano
ou além do humano também surge
na ameryka como outro. Utopistas,
colonos pobres, desiludidos em geral,
esperançosos, anarquistas,
antropólogos, artistas, xamãs,
biólogos, que se alimentam
largamente do vislumbre dialético
e sincrético: a síntese dos mundos
natural, misterioso e tecnizado,
em solo amerykano.
Ou um unexpected congress
with technology.
40
fotos: Daniel Lima
protestos de 7 de
Setembro de 2015
Organizados pelos
Tupinambá na Av.
Paulista, São Paulo.
41
Ritual de Carolina Barreiro no Encontro de
Tecnoxamanismo em Brasília
(deCurators). Foto: Mathew Weeb.
COSMOGONIA LIVRE – RITUAIS
FAÇA VOCÊ MESMO (DIY)
Fabiane M. Borges
47
dilema, produz conjecturas, constrói nar- trata de ficção, fabulação, narrativa e es-
rativas e desenvolve práticas que endos- peculação, mas com um peso capaz de
sam a provocação contra a ordem das interferir na história do mundo, ou na
relações ainda vigentes entre cultura e história do futuro e do passado. Hipers-
natureza, e ainda propõe alternativas en- tição7 é um neologismo que combina as
quanto experimenta processos novos e palavras “hiper” e “superstição”, para
remixados, sendo um deles, o ancestro- descrever a ação de ideias que acabam
futurismo, com suas cosmogonias livres por se transformar em realidade. En-
e seus rituais do it yourself. quanto superstição é considerada um
Ao contrário de se perceber na con- mecanismo de produção de ideas falsas
junção das palavras ancestro + futurismo a e crenças infundadas, a hiperstição sig-
tentativa de criar um monismo5, ou uma nifica ideia potente, mobilizadora, capaz
unidade, o que se pretende aqui é ativar de materialização na realidade em algum
seus sentidos, de modo que se per- ponto do tempo. “Só porque algo não é
passem, se conectem, se entremeiem, “real” agora, isso não quer dizer que isso
que gerem outros conceitos e práticas e não será real em algum ponto do futuro. E
não paralisem numa divisão ou numa uma vez que isso é real, de algum modo,
união irresponsável, em que só uma das isso sempre foi.8” Uma forma de registrar
partes sobreviveria. Para compreender a a influência do futuro sobre o passado. Al-
magnitude do ancestrofuturismo é neces- guns exemplos de hiperstição segundo
sário constituir uma rede de conceitos que Land podem ser “a economia capitalista,
lhe dê suporte, para que ele consiga as- onde atos confiantes agem como tônico
sumir-se em seu caráter criativo, para que efetivo de sua própria produção (auto
funcione como um dispositivo de ruptura ajuda sabe disso), ou a ficcional ideia
com os sistemas viciados de interpretação sobre ciberspace que contribuiu para o
metafísica (teologia/religião) e para torná- fluxo de investimento real e se transfor-
lo um gerador de imaginários livres. mou rapidamente em uma tecnologia so-
Nesse sentido a ficção entra como cial da internet, ou ainda o monoteísmo
aliança fundamental, pois como diz Dona abrâmico (Abraão) que tratou Jerusalém
Haraway é preciso acionar a ficção cien- como a cidade escolhida de Deus e com
tífica, a fabulação especulativa para de- um destino histórico judaico, e isso entrou
sestabilizar nossas próprias histórias com na produção imaginária, cultural e política
outras histórias, com séries de desnorma- e tornou-se uma realidade, ou ainda o
tização do pensamento, desestabilizar Apocalipse, que mais cedo ou mais tarde
mundos de pensamento com outros mun- há de acontecer ou provavelmente já te-
dos de pensamentos, destruir mundos nha acontecido outras vezes”9.
para conseguirmos visualizar outros mun- Delphi Carsten10 pontua quatro carac-
dos, ou quando ela cita Virgínia Woolf no terísticas da hiperstição que Nick Land
“Think we Must” que diz: “importa qual descreve no Catacomic (1995): 1- ca-
histórias contam histórias, importa quais pacidade de torna-se a si mesmo real; 2-
pensamentos pensam pensamentos? Im- um elemento ficcional capaz de promover
porta quais mundos mundeiam mundos”6. viagem no tempo; 3- um intensificador de
coincidências; 4- uma chamada aos anti-
HIPERSTIÇÃO gos. Ele alerta que essas características
É aqui que conceitos como hipers- tem poder de produzir influências diretas
tição de Nick Land vão fazendo sentido na arena cultural e portanto histórica, mas
para o ancestrofuturismo, pois também que sobretudo a hiperstição sinaliza o
48
retorno do irracional ou do monstruoso sobre a natureza em geral, levando em
“outro” (alteridade radical), que influencia conta aqui as críticas que dizem que
a história porvir. Nos importa aqui pensar nunca foi e nunca será uma generaliza-
na hiperstição como um dispositivo funda- ção já que existiram, existem e existirão
mental para o ancestrofuturismo em sua comunidades humanas que não concor-
capacidade de gerar uma realidade a par- dam com tal postulado. Nesse momento
tir de uma qualidade ficcional, que nos em que a Terra se mostra como uma
ajuda a pensar a quebra da estrutura linear força em “devir monstruoso” capaz de
do tempo, enquanto nos dá dicas sobre auto-aniquilação, é preciso desenvolver
como operacionalizar a intensificação de outras relações com esse planeta que es-
acontecimentos convergentes (o que Land capem dos ideais civilizatórios promovi-
chama de intensificador de coincidências), dos pelo antropocentrismo. Se há um
já que o ancestrofuturismo é mais do que tempo atrás, como no existencialismo
uma relação com os ancestrais, mas um francês e alemão, a angústia foi conside-
gerador de atualização de imaginários e rada uma tonalidade de fundo (sen-
temporalidades. sação) devido a falta de sentido da
O retorno do “irracional ou mons- existência ou as impossibilidades de trans-
truoso” dialoga enormemente com o formações verdadeiras através da mili-
mundo espectral que volta a povoar o tância política, hoje em dia o horror
pensamento no contemporaneo, exata- aparece como tonalidade contempo-
mente porque diante das catástrofes rânea, não suprimindo a angústia mas
ambientais, o “horror” aparece como sen- fazendo-lhe frente diante de um estado
sação de fundo e o horror é povoado por de ameaça planetária permanente.
existências espectrais que foram retiradas As catástrofes ambientais geram
a duros golpes da arena cultural através um estado de horror permanente, ao
da inquisição católica no ocidente, e logo mesmo tempo que se conjuram os
depois através do projeto de desenvolvi- poderes que tentam manejar o horror e o
mento científico/tecnológico que aparece medo, o medo inclusive do horror, isso é
fortemente a partir do renascimento. Mas notório em campanhas políticas e capita-
essa limpeza generalizada teve sua listas que tentam manejar esse horror de
grande conquista nos últimos 70 anos, im- fundo para seus interesses ideológicos e
pregnados de conquistas espaciais, nano- mercadológicos, como durante o período
tecnologias e robôs inteligentes, quando da Guerra Fria em que a ameaça cons-
realmente pensou-se que estaríamos a tante do lançamento de bombas nu-
caminho de uma sociedade moderna, e a cleares, que causariam a destruição do
industria farmacêutica e psiquiátrica co- mundo foram aproveitadas por emprei-
laboraram muito para criar a adaptação a teiras e construtoras para alastrar cons-
um mundo que pressupunha a superação truções de bunkers milionários, ou a atual
definitiva da animalidade constitutiva da guerra ao terror que é utilizada para fun-
humanidade. damentar projetos de extermínio de
povos que afrontam a ideologia dos
HORROR países soberanos e sobretudo para man-
Sobre o “horror” Fabián Ludueña ter 'o horror' sob controle.
Romandini11 fala que ele é necessário Mas Ludueña alerta que se pen-
para despertar a humanidade para o sarmos bem nunca estivemos em uma
equívoco do envólucro antropológico situação diferente, mesmo que nunca
Kantiano, que é a soberania humana tenhamos estado numa situação igual.
49
Encontro de
Tecnoxamanism
o em Berlim
(Schillerpalais).
Foto: Mario
Cordeiro.
50
Encontro de Tecnoxamanismo
no Rio de Janeiro (Casa
Nuvem). Fotos: Rafael Frazão.
51
De certa forma sempre soubemos que a nutrir sua existência, mais cedo ou mais
mais cedo ou mais tarde a vida na Terra tarde ela se materializará 'de alguma
poderia vir a acabar, seja por catástrofe forma' no campo da realidade, e isso tem
induzida pelo sistema civilizatório ou pelo poder de reconstituir tanto o futuro quanto
apagamento do sol. Só que isso já não é o passado. Já a comunidade dos espec-
somente um conjunto de crenças pro- tros são essas entidades ficcionais que
duzidas pelas superstições, pois hoje em povoam o inconsciente coletivo e ma-
dia temos essa consciência através dos quínico, que estão no plano do insólito
inúmeros aparatos tecnológicos que nos mas que existem. Ela é feita de criaturas
permitem ver para além das capacidades incorpóreas, entes que sobrevivem à sua
dos nossos sentidos, através de telescó- própria morte (mesmo que através de um
pios, satélites, instrumentos de medição postulado como alguns personagens mi-
e análise, que o planeta realmente está tológicos: Oxum, Helena, Aquiles, Jesus
passando por processos de transfor- Cristo, Buda), seres que habitam um ponto
mações radicais, e isso desperta es- indistinto entre vida e morte (ciborgues, an-
pasmo e horror em seus habitantes. dróides na ficção científica e nos projetos
Essa tonalidade de fundo, ainda científicos), coisas imateriais que podem
segundo Ludueña, pode servir para trans- vir a adquirir diferentes consistências, que
formar radicalmente alguns traços consti- pode vir a se materializar, como por exem-
tuintes da civilização humana (ou parte plo, os ressuscitados da Cristianópolis que
dela), já que pode acionar nossas ca- aos poucos ganham materialidade nos
pacidades hipersticionais, nossa fabu- projetos transhumanistas12.
lação especulativa, nossa ontologia No caso dos transhumanistas, o
cria tiva capaz de inventar mundos e espectro se atualiza na realidade através
estabelecer outras relações com esse da influência implacável de um legado
planeta, ao invés de sucumbirmos aos sofisticadíssimo da teologia cristã sobre
geradores do medo e da paranóia. O hor- os modernos, que são os corpos dos
ror em última instância pode ser utilizado ressuscitados em Jesus Cristo. Os cor-
como um mecanismo de fuga da rota de pos dos ressuscitados são pensados
colisão apocalíptica, uma potência contra como 'corpos de luz' que tem como
os ideais modernos, contra o antropocen- função a purificação e o abandono pro-
trismo e a favor da criação de novos hu- gressivo da animalidade humana. Na
manos e novos mundos. Cristianópolis os corpos de luz tem as
funções do aparelho digestivo mini-
HIPERSTIÇÃO E COMUNIDADE mizadas, já que comer, fazer digestão e
DOS ESPECTROS depois cagar demonstra uma animali-
Há uma correspondência eloquen- dade sem sentido para o reino dos céus,
te entre a hiperstição de Nick Land e as onde o grande objetivo é louvar a glória
comunidades dos espectros de Ludueña. de Deus. E são esses mesmos corpos
Essa correspondência se dá na medida caracterizados como passíveis, sutis,
em que a hiperstição é compreendida ágeis e claros, os corpos ressuscitados,
como um “operador” ou uma “metodolo- que se tornam o parâmetro para o pro-
gia” implícita na constituição social. É jeto dos corpos transhumanistas, os cor-
como se descobríssemos um modo de pos da realidade virtual, da matrix, que
operação maquínico que habita as diver- terão nanorobôs em seus glóbulos san-
sas culturas humanas que diz: se um guíneos para contabilizar, entre outras
grupo de pessoas cria uma ficção e passa coisas, a medida exata dos nutrientes
52
necessários para manutenção dos cor- O perspectivismo de Eduardo Vi-
pos vivos. O projeto prevê que esses veiros de Castro14 nos ajuda a compreen-
nanorobôs são os responsáveis pela re- der a natureza desses espectros não
dução da operacionalidade do sistema humanos. Quando fala do animismo
digestivo, cuja função é descaracterizar ameríndio ele aponta para a presença do
a animalidade grotesca pregressa, e aos que poderia ser entendido como comu-
poucos aproximar os transhumanistas nidades espectrais, quando qualifica o
do ideal dos corpos ressuscitados: subli- xamã como um diplomata interespécie
mes e angelicais13. Eis aqui como pro- que se relaciona com o espírito da água,
cessualmente vai se materializando uma da árvore, das abelhas, da onça, quando
ficção teológica na concretude de proje- fala na incorporação que o xamã faz no
tos científicos e tecnológicos. corpo de outras espécies ou quando
Podemos falar que a hiperstição essas incorporam no corpo do xamã.
é um dos operadores da constituição Davi Kopenawa no livro “A Queda do
das comunidades dos espectros, sejam Céu”15 confirma essa ideia quando conta
eles quais forem e quais ideologias sua iniciação xamânica, sua relação com
guardam. Nem a hiperstição nem a co- os xapiris que pre-existiam sua própria
munidade dos espectros são estrutura- existência, chamando-os de xapiris dos
dos a partir de uma referência antepassados. Em uma das cenas ele
específica de ética ou moral. Ambos op- descreve como os xapiris deixaram seu
eram um sistema potente de concretiza- corpo, depois de o iniciar:
ção real de fabulações, especulações e
narrativas ficcionais, que podem ser li- “Mais tarde, os xapiri vieram juntar
bertárias ou fascistas, angelicais ou de- novamente os pedaços de meu
moníacas. O que importa aqui é corpo que haviam desmembrado.
entender que a ficção não é só um dado Porém recolocaram meu torso e a
imaginário, mas material, ou pelo minha cabeça na parte de baixo de
menos, um dado que existe ou pode vir meu corpo, e ao inverso, minha
a existir de fato, e mesmo não existindo, barriga e minhas pernas na parte
já existe. de cima. É verdade! Reconstruíram-
me às avessas, colocando meu
COMUNIDADES ESPECTRAIS posterior onde era meu rosto e
NÃO HUMANAS minha boca onde era meu ânus!
Para complexificar a questão, Depois, na junção das duas partes
quando falamos das comunidades dos de meu corpo recolado, puseram
espectros é bom que fujamos do antro- um largo cinturão de penas multi-
pocentrismo falado acima, para não coloridas de pássaros hima si e wi-
pensarmos nelas a partir de um para- sawisama si. Também trocaram
digma só imaterial ou só fruto da imagi- minhas entranhas por vísceras de
nação humana, já que a ideia aqui é espíritos, menores e de um branco
exatamente destituir o “humano” do cen- deslumbrante, enroladas com deli-
tro do mundo, para que se torne pos- cadeza e cobertas de penugem lu-
sível perceber os espectros produzidos minosa. Depois substituíram minha
por imaginários não humanos, pois vive- língua pela que tinham consertado,
mos em um planeta vivo, produtor de re- e fixaram em minha boca dentes
des espectrais e inserido em um cosmos tão belos quanto os deles, colo-
vivo e espectral. ridos como a plumagem dos pás-
53
saros sei si. Também trocaram mi- afunila toda uma conexão da experiência
nha garganta por um tubo, que com a espectralidade quando transforma
chamamos purunaki para eu poder o delírio, a associação de matilha, o
aprender a cantar seus cantos e a homem dos lobos em um problema fami-
falar com clareza. Esse tubo é a liaresco, nuclear, interrompendo o fluxo
laringe dos espíritos. É dele que entre outras formas de comunicabilidade.
vem o sopro de suas vozes. É uma O exercício de desantropocentrizar deve
porta pela qual nossas palavras levar em conta relações não factuais, in-
podem sair belas e direitas". vestindo na criação de conexões espec-
trais, ou pelo menos dignificando as
Essa descrição parece demonstrar narrativas ficcionais. Isso provavelmente
que um pajé depois de iniciado jamais traria um novo manancial conceitual e ex-
será dono de seu próprio corpo, já que perimental para se pensar e se relacionar
para ser “diplomata” entre espécies, é pre- com a loucura, por exemplo, ou implicaria
ciso ter um corpo destituído da sua indi- em uma subjetividade estendida, menos
vidualidade para poder ser povoado de manipulável pelos sistemas de doma, que
espectros multi-espécies. crescem avassaladoramente conforme se
Nesse sentido Ludueña fala que desenvolvem as tecnologias exponenciais.
para pensar em espectrologia é preciso
pensar também naquilo que nos pré-existe ANCESTROFUTURISMO
enquanto humanidade, e que nos sobre- Então quando falamos em ances-
viverá. Ele não está falando necessaria- trofuturismo é importante levar em conta
mente de Deus Jeová o criador, ou numa os seguintes dados: 1) a comunidade dos
metafísica comprometida com um mono- espectros é feita de ficções humanas que
teísmo ou politeísmo qualquer, mas da podem ser atualizadas na realidade com
espectrologia enquanto povoamento, en- recursos hipersticionais; 2) a comunidade
quanto olhares multiplicados humanizados dos espectros pode ser constituída de a-
e não humanizados que assistem a pas- tualizações de ficções não humanas; 3) a
sagem da humanidade sobre a Terra. Não terra como parte de um movimento cós-
só podemos estar sendo avistados por mico pode absorver espectros não hu-
esses espectros não humanos, como tam- manos e não terrestres que pré-existem
bém indo mais longe podemos nós mes- a humanidade e que pode lhes sobre-
mos sermos espectros criados por algum viver; 4) o universo anímico ameríndio
tipo de comunidade não humana. não se reduz ao animismo terrestre, mas
Perceber isso no caso do ances- universal e cósmico, e opera com incor-
trofuturismo deve funcionar mais como poração e possessão multiespectral; 5) a
um exercício profundo de rompimento hiperstição é um dispositivo de atualiza-
com o antropocentrismo do que um pre- ção da comunidade espectral humana e
ceito religioso ou um fundamento de fé não humana, terrestre e extraterrestre; 6)
doutrinária. Como exercício é válido para o ancestrofuturismo é um navegador que
ativar o gerador imaginário, intensificar os atualiza diferentes temporalidades entre
sentimentos, potencializar os afetos e va- o ancestral e o fututro a um só tempo, a-
lidar experiências não factuais mas sub- tualizando as comunidades espectrais
jetivas, sentidas. Dignificar e ampliar o humanas e não humanas, terrestres e
escopo do que se considera realidade. não terrestres, existentes e as não exis-
Nesses sentido o Anti-édipo em sua tentes ainda, que se criam por con-
crítica à psicanálise mostra como esta vergências ficcionais e se concretizam
54
por dispositivos hipersticionais no pre- nológica que agora inclui a autonomia
sente interferindo diretamente sobre o cosmogônica. Liberar a cosmogonia da
passado e o futuro de forma não linear. 7) tradição e colocá-la no espaço da criação
o ancestrofuturismo é uma fabulação (da espectrologia livre) é uma das ações
(ficção) especulativa que se empenha em que o tecnoxamanismo tem produzido nos
potencializar geradores imaginários e am- encontros da rede, e os rituais do it your-
pliar os espaços para afeto, sensação e self servem como mecanismos práticos
experiência a fim de conferir-lhes dig- que fomentam esse aspecto inventivo e
nidade, para que isso colabore na criação também propiciam vivência de experiên-
de outros humanos e outros mundos, em cias em níveis mais superficiais ou mais
um momento em que o planeta passa ele profundos, conforme o caso.
próprio por mudanças estruturais. Podemos, para efeito de com-
Repetindo: ancestrofuturismo se preensão, citar algumas das característi-
utiliza de dispositivos como hiperstição e cas dos rituais faça você mesmo que
criação de comunidades espectrais para estamos produzindo: 1) criação de comu-
construir seu plano de organização. É a nidade; 2) sensação de pertencimento; 3)
partir dessa base que se fundamenta as terapias espontâneas individuais e gru-
experiências imersivas propostas nos ritu- pais; 4) ideia de comprometimento; 5)
ais do it yourself, que tem como objetivo construção dos espectros mitológicos e
produzir a sensação de pertencimento cosmogônicos (espectrologia livre); 6)
(communitas), gerar um espaço/tempo de elaboração estética dos 'entes' 7) consti-
produção criativa (de cosmogonias e mi- tuição de transnarrativas fabulativas co-
tologias livres – mesmo que remixadas nectando os 'entes' entre si; 8) elaboração
com as tradicionais) e potencializar e dig- estética das transnarrativas; 9) cons-
nificar a experiência (incitando novos de- trução da cena (do espaço) a partir dos
vires, afetos e percepções). Ao mesmo elementos criados; 10) produção da ex-
tempo em que se desgarra das tradições periência imersiva (com público ou sem
teológicas, cosmológicas e religiosas em nenhum público).
vigor em nossa sociedade, desmistifi- Obs: Pensar na utilização dos re-
cando seus estatutos de verdade, jogando gistros mídicos e atentar para a possibili-
a ancestralidade para a espectralidade, e dade de fazer um segundo episódio de
o futuro para a ficção especulativa, cujo ficcionalização a partir deles, e assim su-
poder é vir a atualizar-se. cessivamente.
Mesmo que as características te-
COSMOGONIA LIVRE nham sido enumeradas, não as utilizamos
E RITUAIS FAÇA VOCÊ MESMO sempre nessa mesma ordem, nem neces-
O tecnoxamanismo se estrutura a sariamente do mesmo jeito. Cada lugar,
partir de redes relacionadas ao movi- cidade ou país ou ainda cada conjunção
mento do software livre, do open source e de pessoas que se forma por intermédio
da cultura faça você mesmo, que reivin- do tecnoxamanismo desperta uma aura
dicam liberdade, colaboração e autonomia particular, uma equação cosmogônica que
em relação a ciência e tecnologia. Isso ex- se constrói somente naquele lugar com
plica a utilização por parte do tecnoxam- aquelas pessoas. As construções narrati-
anismo de termos como Livre, Aberto e vas (ou transnarrativas) que surgem a par-
DIY (autonomia). Cosmogonia livre, então, tir dessas conjunções são singulares, o
entra aqui como desdobramento desses que não impede que ressurjam em outros
movimentos de autonomia científica e tec- lugares ou que sejam transladadas para
55
outros espaços, continuando sua existên- CASA NUVEM – RIO DE JANEIRO17.
cia em diferentes contextos e por vezes TEMA DO RITUAL: CINEMA AO VIVO
imiscuindo-se com outras construções SCIFI - FICÇÃO E RUIDOCRACIA.
transnarrativas, vindo a fazer parte de (31/06 E 01/07/2015) –
uma espectrologia sempre em processo, ORGANIZAÇÃO: FABIANE M.
do tecnoxamanismo e redes afins. BORGES E LÍVIA DINIZ
É importante salientar que o tec-
noxamanismo é estruturado não só por O ritual foi montado como um set-
movimentos de autonomia em ciência e ting de cinema ao vivo de ficção cientí-
tecnologia mas também por redes rela- fica ancestrofuturista. Os participantes
cionadas à clínica, a arte contemporânea, foram convidados a embarcar em uma
à filosofia, à ecologia, às ciências da terra espaçonave do it yourself para fazer
e às comunidades tradicionais. Isso serve uma viagem no tempo. O processo foi
para demonstrar que o tecnoxamanismo é organizado a partir de três laboratórios:
uma plataforma que funciona como ponto 1) mini-robôs que emitiam ruído através
de aglutinação e produção de múltiplos de luz nas placas solares18; 2) Iniciação
saberes, que é um espaço aberto para à tecnomagia/tecnoxamanismo com ri-
proposição e experimentação e que existe tual performático, tecno-transe, corpo
uma enorme diversidade de propostas que alegórico/fantasia e iluminação para
atravessam seus domínios, que vai desde transes (técnicas de luz – diy)19 e 3)
a agrofloresta e salvação de nascentes de construção de traquitanas sonoras e cir-
água até desenvolvimento de softwares, cuit bending20.
desde criação de comunidades presenci- A partir desses laboratórios foram
ais ou virtuais até arte de galeria, desde sendo criadas as narrativas do ritual sci-fi
imersões clínicas até festivais interna- ancestrofuturista que contou com a cri-
cionais. Cada um desses encontros con- ação de 7 personagens – os coiotes – res-
tam com inúmeros projetos como criação ponsáveis pelo rito de iniciação na nave-
de robôs pintores, ou operações alquími- -mãe. Eles foram iniciados pelo indígena
cas, rádios livres ou web rádio e propostas tupinambá Anapuaka, que com banhos
educacionais. Mas nesse texto específico de erva e maracá introduziu os coiotes no
estamos tratando de demarcar um desses universo ritual, e logo eles passaram a
campos experimentais cujo tema é ances- fazer o mesmo com o público, que eram
trofuturismo, cosmogonias livres e rituais vendados e levados para dentro da nave-
faça você mesmo. -mãe. Outros personagens também foram
Aqui passo a dar alguns exemplos aparecendo como a maga da entrada da
de rituais faça você mesmo que dialogam nave21, o drone que passava incenso pela
diretamente com os conceitos convoca- casa e no corpo das pessoas22, o quarto
dos acima. Lembrando que minha área das luzes diy e das traquitanas onde as
de pesquisa se dá na conexão entre a pessoas faziam os sons experimentais,
clínica (psicologia), arte (contemporânea), além disso teve projeções ritualísticas em
tecnologia (livre) e é a partir dessa tríade video mapping23 e as performances es-
que elaboro e organizo esses processos pontâneas na rua e dentro da casa24.
imersivos16. Sempre com um olhar espe- Sobre os 7 coiotes há que se dizer
cial para a produção de subjetividade. que cumpriram um papel importantíssimo
Espero que esses exemplos sirvam para dentro de todo processo, já que foram
ilustrar o teor dessas experiências: eles que fizeram a iniciação do público. O
público entrava na nave com os olhos
56
vendados e era convidado a imergir no trouxeram barcos de papel e começaram
cenário ruidoso e a se relacionar com a criar uma performance de navegação de
todas essas salas ocupadas por persona- sobreviventes entre os desastres, o resto
gens ficctícios, ruídos, banhos de ervas, dos participantes receberam máscaras de
robôs sonoros, drones de incenso, entre proteção e ficaram sentados em volta das
outros. Quando o público tirava a venda, fogueiras digitais (som e projeções) as-
estava diante de um processo do qual já sistindo à narrativa, que começou com as
fazia parte, e escolhia seu lugar na nave- duas mulheres mas foi mudando de pro-
-mãe. No final de tudo, pessoas falando tagonistas. A maioria das pessoas que
que algo aconteceu ali. Foi uma expe- construíram o ritual performático foram
riência catártica, o transe aconteceu, hou- mulheres, e isso trouxe à tona uma série
veram comunicabilidades diversas que de associações: rituais de bruxas, mater-
prescindiram da palavra. A cegueira do nidade, enterro dos mortos, lamentação
público produziu estados de medo e de coletiva, danças de possessão, cantos de
confiança. E as filmagens25 talvez não evocação. Em um momento começou a
tenham dado conta da narrativa feita ali, acontecer improvisações improváveis co-
mas possivelmente serve como uma de- mo o batuque de um sírio, cujo barco
rivação narrativa do acontecimento, o que naufragou e veio parar na Europa à nado,
torna esses eventos multinarrativos. com uma israelense que arrastava seus
cabelos no chão e passava uma vela em
SCHILLERPALAIS – BERLIN26. torno do corpo. Levando em conta os
TEMA DO RITUAL: INTERSECÇÃO problemas políticos e de fronteira entre
ENTRE TECNOLOGIAS DIY E Síria e Israel, a aproximação de ambos
CONHECIMENTOS protagonistas no ritual, um deles sobre-
ANCESTROFUTURISTAS (19- vivente de um navio naufragado, foi muito
20/02/2016). ORGANIZADO POR sensível. Uma argentina que fazia uma
FABIANE M. BORGES dança de incorporação com os cantos de
O Ritual foi montado a partir de uma inglesa. Um robô com inteligência ar-
uma chamada aberta na internet convi- tificial feito por Bruno Gola que emitia in-
dando o público para a participação do ri- formações sobre Fukushima e Mariana ao
tual, com uma pequena explicação e um mesmo tempo em que Deva Station jo-
documento aberto para os interessados gava com objetos eletrônicos diy. E ainda
escreverem o que poderiam fazer no ri- Fernanda Sanchez performando a mater-
tual, com quais recursos. Nos dias do en- nidade perdida enquando Laura Sou-
contro de tecnoxamanismo foi feita uma bennes fazia o papel da bruxa diabólica
reunião (um dia antes do ritual) com cerca aos sons de baixo de Mariana Faé. Aqui
de 30 pessoas no porão da casa de cul- estou deixando de citar inúmeras outras
tura, onde começamos a conversar sobre pessoas e personagens que interagiram
o assunto do encontro. Duas pessoas, com a questão dos desastres, de forma
uma do Brasil (Vanessa Velasquez) e performática e ritualística.
outra do Japão (Kaya Hanasaki) trouxe- Esse sem dúvida foi o ritual mais
ram à tona questões relativas a “Lama de eclético, cujos participantes pareciam ter
Mariana” e o “Acidente Nuclear de vindo de todos os lugares do mundo para
Fukushima”. Essa relação entre ambos se encontrararem exatamente ali, e juntos,
desastres ataram dois pontos do mapa, e em um porão de Berlim, constituiram um
tornou-se o assunto fundamental do ritual. ritual de abertura dos portos e dos entraves
Durante o ritual ambas mulheres burocráticos que impedem a comunhão
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Ficção e Ruidocracia. Tecnoxamanismo Hacker em Medellin (Platohedro). Foto: Platohedro.
entre os povos. Algo aconteceu ali. Foi uma dia o que estávamos propondo, mas ficou
experiência profunda, ao mesmo tempo muito sensibilizado com tudo o que viu.
que uma espécie de terapia de sanação, e Isso demonstra que o público nesses ri-
sem dúvida um encontro performático, tuais ancestrofuturistas podem ser um
artístico e contemporâneo. Só acabou, acaso mas não são uma necessidade. O
duas horas depois, porque a polícia man- ritual aconteceu na hora marcada como
dou encerrar, pois já era a segunda vez se acontecesse sempre, como se as pes-
que chegava no espaço. Ao acabar o som soas sempre agissem daquele modo, com
as pessoas ficaram em silêncio naquele suas invocações, suas liturgias, suas cor-
mesmo local com a cabeça baixa ou relações naquele espaço e tempo mítico
o lhando uns para os outros, como se não – profano, ancestral e futurista. A expe-
tivessem outro lugar para ir. riência aconteceu. Depois de algumas
horas, aos poucos os participantes foram
DECURATORS - BRASÍLIA27. saindo dos seus transes e voltando a nor-
TEMA DO RITUAL: SOBREVIVÊNCIA - malidade. Todos quietos, alguns mais sen-
INDIGENISMO, CATÁSTROFES sibilizados que outros, mas quase todos
AMBIENTAIS E INDUSTRIAIS falando que algo aconteceu ali.
(01-02-03/04/2016). ORGANIZAÇÃO: Trago esses três exemplos de
FABIANE M. BORGES E GISEL forma rápida e até superficial, porque cada
CARRICONDE AZEVEDO um deles exigiria um texto próprio, que
O ritual foi montado a partir de dois atentasse para cada uma das minúscias
laboratórios: 1) Preparatória para o ritual I28 que suscitam. Porém, para efeito de en-
– sobre interescritura e transnarrativas scifi tendimento, espero que esses exemplos
– onde os participantes foram convidados a funcionem de forma a gerar curiosidade e
entrar em uma viagem de criação de fu- replicação. Talvez a parte mais radical
turos utópicos e distópicos trazendo à tona dessas experiências seja a indicação de
a questão da sobrevivência e das catástro- um caminho mais livre em relação à “es-
fes e 2) Preparatória para o ritual II29 – que piritualidade”, “religiosidade”, “transe”,
foi a criação de totens eletrônicos diy, onde “catarse” aos “processos imersivos”, à “in-
os participantes mexeram com eletrônica, tensificação de consciência”, “singulari-
montaram pequenos circuitos de luz e e- dade da conexões” e ao “processo criativo
nergia e criaram o totem eletrônico. coletivo”. Quando um grupo de pessoas se
A partir do laboratório de transnar- juntam de forma a deixar emergir proces-
rativa, que passou pelos métodos de sos de imanentização, inconscientização
ruidocracia e produção imaginária coletiva e singularização, coisas acontecem, e é
se criaram alguns personagens míticos preciso analisar e perceber essas coisas,
(ancestrofuturistas) como os lobos perdi- de forma que não fujam de um certo con-
dos radioativos, as pajés enterradas do trole, nem despertem radicalismos ou fa-
século XVII, de novo apareceu a guardiã natismos ou até mesmo uma formação
da porta e mais alguns personagens que já psicótica. O que quero dizer aqui é que é
existem, como o ciberpajé e o amante da preciso cuidado e atenção para os en-
heresia. Esses personagens interagiram tornos produzidos durante esses rituais. O
entre si e produziu-se um rito ruidocrático cuidado é prioridade. Porém, enquanto
onde o tema da sobrevivência e das acontecimento, esses rituais têm sido
catástrofes vieram à tona com muita força. muito potentes e inovadores, assim como
Teve uma única pessoa de público um ponto chave da produção da rede de
– que eu chamei na rua – que não enten- tecnoxamanismo.
60
Notas: 12. Cfe. Wikipedia: “transhumanism is a international and
1. Para saber mais sobre o tecnoxamanismo, sugiro dois intellectual movement that aims ot transform the human
textos da minha autoria: 1) Tecnoxamanismos, etc. Revista condition by developing and creating widely available
virtual Geni. Nº 26 Acessado 05/05/2016 sophisticated tehnologies to greatlye enhance human
http://revistageni.org/10/tecnoxamanismos-etc/ e 2) intellectual, physical, and psychological capacities.
Prolegômenos para um Possível Tecnoxamanismo - Transhumanist thinkers study hte potential benefits and
Publicado na Revista Cadernos de subjetividade - 2013 – dangers of emerging technologies that could overcome
Vol 10, nº15 Acessado em 05/05/2015 fundamental human beings may eventually be able to
https://catahistorias.files.wordpress.com/2014/03/prolegc3b transform themselves into different beings with abilities só
4menos-para-um-possc3advel-tecnoxamanismo.pdf greatly expanded from the natural condition as to merit the
2. Por exemplo o pensamento de J. W. Dunne - “An label of posthuman beings.
Experiment with Time”. Publisher: A. & C. Black Faber & https://en.wikipedia.org/wiki/Transhumanism (visto
Faber. England. 1927. 04/05/2016) – Para saber mais do projeto ver: Ray
3. Cfe. Svetlana Alexievich - “Vozes de Chernobyl – Kurzweil - The Singularity Is Near: When Humans
Crônica del Futuro” Ed. Elsinore. Reimpressão. 2016. “Han Transcend Biology. Ed. Viking Penguin. 2006.
pasado veinte años de la catástrofe, pero hasta hoy me 13. Cfe. Fabian Ludueña Romandini - “Comunidade dos
persigue la misma pregunta: ¿de qué dar testimonio, del Espectros” - Ed. Cutltura e Barbárie – SC -2012.
pasado o del futuro? Es tan fácil deslizarse a la banalidad. 14. Cfe. Eduardo Viveiros de Castro. Metafísica caníbales.
A la banalidad del horror… Pero yo miro a Chernóbil como Katz Editores. Madrid 2010.
al inicio de una nueva historia; Chernóbil no solo significa 15. Cfe. Davi Kopenawa e Bruce Albertt - “A Queda do Céu
conocimiento, sino también preconocimiento, porque el – Palavras de um xamã Yanomami” Ed. Companhia das
hombre se ha puesto en cuestión con su anterior Letras. São Paulo/SP 2015.
concepción de sí mismo y del mundo. Cuando hablamos 16. Cfe. Fabiane M. Borges e Marc Etlin – Imersões,
del pasado o del futuro, introducimos en estas palabras Reciclagens e Singularidades – Multitudes Magazine.
nuestra concepción del tiempo, pero Chernóbil es ante todo 2008/2 (nº33). Ed. Associ. Multitudes. Paris.
una catástrofe del tiempo. Los radionúclidos diseminados https://catahistorias.files.wordpress.com/2011/03/imersc3b5
por nuestra Tierra vivirán cincuenta, cien, doscientos mil es-reciclagens-e-singularidades.pdf
años. Y más. Desde el punto de vista de la vida humana, 17.
son eternos. Entonces, ¿qué somos capaces de entender? https://tecnoxamanismo.wordpress.com/2016/02/17/tecnox
¿Está dentro de nuestras capacidades alcanzar y amanismo-ficcao-e-ruidocracia-na-casa-nuvem-3001-e-
reconocer un sentido en este horror del que seguimos 0102-de-2015/
ignorándolo casi todo?” 18. BEAM - Mini Criaturas Autônomas que produzem sons
4. Cfe. Isabelle Stengers - “No Tempo das Catástrofes” com placas solares - Malu Fragoso e Marco Aurélio
(pag.41) - Ed. COSACNAIFY – São Paulo/2015 Damasceno. - Oficina criada pelo NANO - Núcleo de Arte e
5. Eduardo Viveiros de castro faz uma crítica a algumas Novos Organismos - Mais informações aqui:
correntes contemporâneas que tentam juntar o antigo com organismos_solares_tecnochama_.pdf
o ultramoderno (neoprimitivismo e tecnofilia), como no caso 19. Iniciação à tecnomagia/tecnoxamanismo - ritual
dos transhumanistas ou ciberpunks que na maioria das performance, tecno-transe (Fabiane M. Borges), corpo
vezes caem na equação da unidade, pensando que está alegórico e fantasia (Lívia Diniz), Iluminação para transes
fazendo sobreviver os dois enquanto que está somente (Isis Passos).
fazendo um deles desaparecer. Não considero ser o 20. Traquitanas Sonoras e circuit bending com NuvemHub.
mesmo caso do tecnoxamanismo, ou ancestrofuturismo, já 21. A líder do movimento trans e do ENEN -Indianara Alves
que esse busca a multitplicidade e não a unidade. Cfe. Siqueira.
Entrevista de Eduardo Viveiros de Castro para Marc Kirsch 22. Drone pilotado por Lot Elx- Construtor de drones diy.
– La Lettre du Collège de France, para o número especial 23. Responsáveis: Rafael Frazão e Victor Guerra.
da publicação comemorativa do centésimo aniversário de 24. Conduzidas principalmente por Marcela Lucatelli e
Claude Lévi-Strauss. São Paulo/2009 – Acessado Paloma Klisys.
24/04/2016 - 25.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010 https://tecnoxamanismo.wordpress.com/2016/02/17/techno
3-40142009000300023 shamanism-meeting-in-berlin-19-202016
6. Cfe. Palestra de Donna Haraway “Anthropocene, 26. Responsáveis pelas filmagens: 1- Amanda FloU, 2-
Capitalocene, Chthulucene: Staying with the Trouble”, Bruno Vianna, 3- Victor Guerra, 4- Rafael Frazão, 5- Angela
05/09/14 – Acessado 24/04/2016 – (vídeo) Donini.
https://vimeo.com/97663518 27.
7. Cfe. HYPERSTITION – Delphi Carstens – 2010 - https://tecnoxamanismo.wordpress.com/2016/03/29/tecnox
Acessado em 16/04/2016 amanismo-no-decurators-em-brasilia/
http://merliquify.com/blog/articles/hyperstition/#.VxLWz- 28. Com Léo Pimentel, Fabiane M. Borges e Carol
Rplfb Barreiro.
8. Iden. 29. Com Phil Jones, Krishna Passos e Gisel Carriconde
9. Cfe. Hyperstition an introdution – Delphi Carstens Azevedo (deCurators).
enterview Nick Land – 2009 – (tradução livre). Acessado
24/04/2016 http://merliquify.com/blog/articles/hyperstition-
an-introduction/#.Vx2GfeRplfY
10. Iden.
11. Cfe. Fabián Ludueña Romandini – Entrevista – Vídeo -
https://www.youtube.com/watch?v=7kQCQf8R98A – Visto
em 16/04/2016
61
TECNOXAMANISMO
ANTROPOFAGIA DA TÉCNICA
Adriano Belisário
63
Em 2007, Medialab Prado5 traba- nesta investigação, iremos nos ater so-
lhou no tema de magia e tecnolo- mente ao último plano, a fim de com-
gia a partir deste ponto de vista. preendê-lo em sua relação com uma
Não só eles fizeram uma série de possível antropofagia da técnica, influen-
obras de arte, em particular usando ciada por Oswald de Andrade. Pelo
realidade aumentada, incluindo o mesmo motivo, dada a extensão do tra-
trabalho com um mágico profis- balho de Oswald, neste momento, anali-
sional, mas também um seminário. saremos especialmente as considerações
Um dos palestrantes do simpósio sobre a técnica em sua tese 'A Crise da
salientou que a magia do século 18 Filosofia Messiânica', ainda que recor-
e 19 e a ciência não eram sepa- ramos pontualmente a outros trabalhos
radas, bem como parte de um do autor.
ramo independente do show busi-
ness. […] O encontro Tecnomagias I
em maio de 2012 na Nuvem, um No texto mencionado, Oswald
espaço ecotech de pesquisa nas identifica o Matriarcado e o Patriarcado
montanhas a 2 horas do Rio de como duas tendências históricas funda-
Janeiro, nasceu com um foco difer- mentais. A primeira corresponderia a um
ente. A reunião foi convocada para estado de natureza, caracterizado pelo
explorar as interseções entre tec- ócio, o direito materno e a propriedade
nologia e magia a partir de uma comunal. A segunda, ao homem civi-
visão mais ampla, ecológica, mís- lizado, trazendo consigo o trabalho, o di-
tica e política (SOLER, 2014, p. 35) reito paterno e a propriedade privada. Ao
invés de afirmar a supressão de uma pela
Nessa emergência de conceitos e outra, ele defende que estes dois hemis-
práticas, temos abordagens bastante di- férios coabitam, alternando-se e articu-
versas entre si. Em linhas gerais, lando-se. Mais que isto, Oswald anuncia
podemos traçar alguns dos planos nos o surgimento de uma síntese ou, em suas
quais as reflexões sobre tais noções se palavras, um novo Matriarcado, uma nova
desenvolvem. Observamos desde aque- cultura antropofágica.
las mais superficiais ou espetaculares – No mesmo texto, Oswald aproxima
como as que confundem magia com má- a técnica do esquema civilizacional do
gica – a outras mais complexas e interes- Patriarcado, a partir da relação entre tra-
santes, como as reflexões a partir das balho e messianismo. Produzidas “quan-
chamadas técnicas do êxtase e a cultura do o homem deixou de devorar o homem
das raves6; a convivência de relações tec- para fazê-lo seu escravo”, as doutrinas
nológicas ditas pré-modernas em so- messiânicas e convicções imortalistas
ciedades modernas (JENSEN; BLOK, trazidas pelo Patriarcado guardariam ín-
2013); aquelas que enfatizam o caráter tima relação com a “marcha técnica do
eminentemente afetivo da apropriação homem”, sustentada pela escravidão.
das novas tecnologias de comunicação “Primitiva, caótica e desordenada, numa
(MAFESSOLI, 2009; SUSCA, 2008); ou civilização sem relógio, a técnica só podia
ainda as que operam a partir da revalo- ser eficiente, apoiada no braço escravo.
rização dos saberes tradicionais e da O escravo só podia existir na condição
apropriação tecnológica, em especial no miserável a que estava reduzido, com a
sentido das 'baixas tecnologias”. esperança messiânica da outra via”. (AN-
Dada tal complexidade do assunto, DRADE, 1972, p. 97) Ou seja: sem vida
64
após a morte, não haveria escravidão. mula se inverteu: sem progresso técnico,
Sem escravidão, não haveria progresso haverá escravos. Mas sem escravidão,
técnico. não há progresso técnico.
Mas Oswald não limita-se a de- De certa maneira, a solução en-
nunciar a técnica7. Trata-se antes de contrada por Oswald para sair deste
reaproximá-la da cultura antropofágica. “dilema da escravidão” foi escravizar as
O novo Matriarcado anunciado caracte- máquinas. A nova Era do Matriarcado era
riza-se justamente pela apropriação das também a Era da Máquina. Curiosa-
conquistas técnicas do Patriarcado, a par- mente, a análise de Oswald sobre a crise
tir de valores e práticas do Matriarcado. da filosofia messiânica encerra-se com
“Só a restauração tecnizada duma cultura uma anunciação de uma nova era por vir:
antropofágica, resolveria os problemas a “Idade de Ouro” ou o “matriarcado de
atuais do homem e da Filosofia”, diz. Pindorama”, como retornos antropofági-
(Idem, p. 128). Neste sentido, no Mani- cos, totemizações dos tabus da so-
festo Antropofágico, ele mesmo reapro- ciedade moderna – porém amparadas no
pria-se positivamente da noção de potencial de automação das máquinas
“bárbaro tecnizado” da obra 'O Mundo Que que se desenvolviam no século XX.8 De
Nasce', do filósofo alemão Hermann Graf fato, como o próprio Oswald afirma, “o so-
Keyserling, para concebê-lo como esta brenatural não está longe do milagre
síntese do encontro entre o homem natu- físico que a técnica cria”. (Idem, p. 95).
ral, nu, e o “homem civilizado”: eis então o Sua constatação parece-nos possível de
homem natural tecnizado – não mais o ser aplicada à sua própria teoria.
bom selvagem de Rousseau, mas o cani-
bal, um mau selvagem nietzscheano. II
Para Oswald, a reconquista do Mas – a bem da verdade, vale
ócio do novo Matriarcado seria possível destacar – o atravessamento de imagi-
graças ao avanço da técnica. “A fase nários não científicos no desenvolvimento
atual do progresso humano prenuncia o das máquinas modernas do século XX
que Aristóteles procurava exprimir não era exclusivo de Oswald, sendo tam-
dizendo que, quando os fusos trabalhas- bém notado por um dos criadores da
sem sozinhos, desapareceria o escravo” cibernética.9 Em 1962, o matemático
(Idem, p. 128), afirma a quinta tese cen- norte-americano Norbert Wiener es-
tral do texto 'A Crise da Filosofia Mes- creveu o livro 'God & Golem Inc – A Com-
siânica'. É notável a repetição desta ment on Certain Points Where Cybernetics
imagem aristotélica da automação técnica Impinges on Religions', em que traça
como emancipadora do homem na obra paralelos entre os computadores (“má-
de Oswald. Em outro momento, o autor quinas pensantes”) e a figura do Golem
afirma: “É em torno do Robô que se está na magia judaica: um ser animado
construindo a civilização de nossos dias. antropomórfico, criado a partir de matéria
O escravo só desaparecerá quando a sem vida. Quando um dos primeiros com-
mecânica o substituir, isto é, quando os putadores israelenses foi inaugurado, em
fusos trabalharem sozinhos”. (Idem, p. Tel Aviv no dia 17 de junho de 1965, o his-
208) A escravidão aparece aqui não como toriador judaico Gersom Scholem tentou
uma questão social, mas como um pro- tirar a ideia do papel, solicitando a for-
blema técnico. Nesta lógica, só há es- malização das pesquisas sobre magia e
cravos, pois o desenvolvimento tecnológico computação, amparado em alguns dos
não progrediu o suficiente. Ou seja, a fór- desdobramentos da cibernética de
65
Wiener: "Todos os meus dias tenho me ao lidar com questões outrora conside-
queixado de que o Instituto Weizmann radas da ordem do sobrenatural, como a
não mobilizou os fundos para construir o vida eterna, a criação de vida artificial ou
Instituto de Demonologia Experimental e a restauração de um equilíbrio com as
Magia que tenho há muito tempo pro- forças da Natureza.
posto. Eles preferiram o que eles Ao contrário de Wiener, o filósofo
chamam de Matemática Aplicada e suas francês Gilbert Simondon não considera
possibilidades sinistras à minha abor- as máquinas completamente autônomas
dagem mais direta e mágica"10. como o último resultado de uma longa
Ao longo da segunda metade do evolução teleológica da técnica. Muito
século XX, a esperança de uma nova era pelo contrário, na sua compreensão da
cibernética também ressoou em movi- natureza sociotécnica dos objetos, um
mentos contraculturais norte-americanos, autômata possui funcionalidades reduzi-
como entre os hippies californianos, que das. Para Simondon, mais do que
enfatizaram o caráter emancipador das máquinas que independem do ser hu-
(então) novas tecnologias de informação mano, interessam os objetos abertos com
e comunicação. Richard Barbrook e Mat- margens de indeterminação, que não
teo Pasquinelli mobilizam respectiva- estão submetidos a uma separação entre
mente os conceitos de “ideologia sua construção e sua utilização, entre
californiana” e “digitalismo”11 para identi- produtor e consumidor.
ficar o surgimento e a persistência destas Segundo Simondon, a cibernética
tecnoutopias. Tais abordagens também havia sido mal compreendida, pois “esta
encontram eco em certos discursos influ- tentativa eminentemente nova foi re-
enciados pela cibernética de Wiener, duzida, julgada em função de noções ou
como as teorias transumanistas a re- tendências antigas”. (Idem, p. 165). Seu
speito das tecnologias, como o tecnoga- propósito maior é então desfazer aquilo
ianismo, os defensores da “singularidade que chama de alienação pré-capitalista
tecnológica” e do extropianismo. De essencial, por meio de elucidações sobre
modo geral, estas correntes partilham a natureza dos objetos técnicos e dos
uma fé inabalável na racionalidade do de- seres humanos. E aqui reencontramos
senvolvimento tecnológico: entusiastas criticamente a solução para o “dilema da
do tecnogaianismo defendem o desen- escravidão” de Oswald de Andrade: “É
volvimento e uso das tecnologias de geo- difícil tornar-se livre transferindo a es-
engenharia e biotecnologias como cravidão a outros seres, sejam homens,
remédio para as crises ambientais do animais ou máquinas; reinar sobre um
antropoceno; adeptos da singularidade povo de máquinas que converte em servo
tecnológica (como Ray Kurzweil, atual di- o mundo inteiro segue sendo reinar, e
retor de engenharia do Google) postulam todo reino supõe a aceitação de esque-
que a inteligência das máquinas irá su- mas de servidão”. (Idem, p. 21).
perar a humana em um futuro breve, al- Em sua crítica à cibernética e ao
terando radicalmente toda nossa evolucionismo tecnológico da época, Si-
realidade social e, por fim, defensores do mondon também reaproxima tecnicidade
extropianismo acreditam que a ciência e e religiosidade, porém de maneira radi-
tecnologia um dia poderão tornar as pes- calmente distinta. Para ele, técnica e re-
soas imortais. Todas elas disputam dire- ligião são dois fenômenos simétricos,
tamente um certo imaginário mágico da desdobramentos do pensamento mágico,
tecnologia a partir das altas tecnologias, anterior à “Grande Divisão” da moder-
66
nidade, como definiria posteriormente xamãs. Antes, eles parecem evi-
Bruno Latour. denciar a existência de uma reali-
dade pré-individual, anterior à
Tecnicidade e religiosidade não distinção entre sujeito e objeto,
são formas degradadas da magia, entre o homem e a máquina, na
nem sobrevivências da magia; são qual um devir xamã-rádio (ou ou-
provenientes do desdobramento tros devires homem-máquina) se
do complexo mágico primitivo, forma e passa a funcionar en-
reticulação do meio humano origi- quanto máquina desejante mítico-
nal, em figura e fundo. […] A re- ritual. Talvez os Araweté não
ligião não é mais mágica que a estejam sendo tão metafóricos afi-
técnica; é a fase subjetiva do re- nal, quando dizem que "o xamã é
sultado do desdobramento, en- um rádio", visto que o próprio rádio
quanto a técnica é a fase objetiva não parece ser mais do que um as-
destes mesmo desdobramento. pecto da virtualidade tecnológica
Técnica e religião são contem- do corpo do xamã que foi externa-
porâneas uma da outra e, tomadas lizado e tornado objeto atual
cada uma em separado, são mais (PEIXOTO, 2006, p. 191).
pobres que a magia da qual
emergem (SIMONDON, p. 191). Formulado por Viveiros de Castro
e Tânia Stolze, o perspectivismo amerín-
Através de uma série de relatos dio apresenta-se como uma formulação
antropológicos da relação entre tecnolo- da mesma família da antropofagia oswal-
gia e xamanismo em diferentes so- diana12, associando-se especificamente a
ciedades, como os Barasana, Macus, os duas importantes características das so-
xamãs tamus (Nepal) e os Araweté, o ciedades da Amazônia: “a valorização
antropólogo Pedro Peixoto também tece simbólica da caça, e a importância do xa-
considerações semelhantes sobre a re- manismo” (VIVEIROS, 2002, p. 357). A
lação entre os xamãs e as máquinas. caça envolve sempre uma perspectiva,
Sobre aquele último povo, o pesquisador ou seja, posições relacionais de predador
retoma uma descrição do antropólogo e presa – que podem se inverter a qual-
Eduardo Viveiros de Castro, que relata quer momento. Já o xamanismo consiste
uma associação direta entre potenciali- na elaboração de “correlações ou
dades xamânicas e tecnológicas: "’O traduções entre os mundos respectivos
xamã é um rádio’, dizem. Com isto [os de cada espécie natural, isto é, na busca
Araweté] querem dizer que ele é um de homologias e equivalências entre os
veículo, e que o corpo-sujeito da voz está diferentes pontos de vista em confronto”
alhures, que não está dentro do xamã.". (Idem, idem), ou seja, em uma espécie de
(VIVEIROS, 1986, p. 543; sublinhado no tradução diplomática de perspectivas. “O
original) Em seguida, Pedro Peixoto xamanismo é a continuação da guerra
afirma que: por outros meios: mas isso nada tem a
ver com a violência em si mesma, e sim
Poderíamos perguntar: qual é o com a comunicação” (Idem, p. 469).
limite entre o xamã enquanto ser Neste sentido, em consonância com as
humano e o rádio enquanto objeto observações sobre o pensamento mágico
técnico? Ora, tal não parece ser a e a tecnologia em Simondon, o xamã
questão colocada pelos próprios pode ser considerado como o primeiro
67
técnico. No entanto, se a tecnociência participação de Gilberto Gil, John Perry
opera pela objetificação das máquinas e Barlow, Richard Barbrook, Peter Pál Pe-
do mundo, o tecnoxamanismo necessaria- bart, Suely Rolnik, entre outros. Tal en-
mente deveria proceder segundo o princí- contro foi decisivo para a futura
pio de subjetivação do mundo, como a formulação das políticas públicas dos
arte. Pontos de Cultura e do Programa Cultura
Viva, em especial no que tange ao con-
III ceito de cultura digital13, baseado no uso
Como veremos mais adiante, a re- de softwares livres e de código-aberto,
abilitação ontológica proposta pelo pers- durante a gestão de Gilberto Gil no Minis-
pectivismo ameríndio em relação aos tério da Cultura. Em 2004, a partir dos
modos de vida e saberes tradicionais é de acúmulos das práticas e debates acerca
grande relevância para a compreensão da mídia tática no Brasil, a antropofagia
de formulações recentes do tecnoxama- da técnica consolida-se em um novo con-
nismo para além da questão da apropri- ceito: digitofagia.
ação tecnológica. Antes disto, porém,
cabe observar que já no final do século “A concepção de Digitofagia foi
XX, a questão da técnica começou a ga- pensar uma prática antropofágica
nhar novos contornos teóricos e estéticos que reatualizasse esse ideário [da
com os movimentos e pensadores influ- antropofagia] no contexto da cul-
enciados pelo movimento antropofágico. tura digital, reabastecendo seu viés
Diretamente abordada na figura do “bár- libertário. Para tanto, abraçar práti-
baro tecnizado”, a relação da técnica com cas espontâneas na cultura con-
uma não-modernidade ou uma alter-mo- temporânea brasileira, como a
dernidade também foi posteriormente vis- pirataria, os camelôs e a gam-
lumbrada por movimentos influenciados biarra, seria, quem sabe, uma
pela antropofagia oswaldiana. forma de trazer a mídia tática para
Em 1974, Jorge Mautner havia de- um campo mais familiar e mais co-
cidido fundar o Kaos, uma publicação tidiano aos praticantes, teóricos e
“cósmico-democrata”, como o jornalista e ativistas brasileiros” (VASCONCE-
roteirista Luiz Carlos Maciel definiu. Du- LOS, ROSAS, 2006, p.11)
rante “a primeira sessão da Kaos”, a re-
união preparatória do jornal com Luiz e Em 2006, Ricardo Rosas aprofun-
Mautner, Caetano Veloso usou o termo dou suas reflexões sobre a relevância da
“tecnomagia” em referência às possibili- gambiarra em um contexto de uma
dades de convergências entre as ciências antropofagia da técnica – ou de uma digi-
exatas e os movimentos artísticos e cul- tofagia. “Não será novidade nenhuma
turais ligados ao tropicalismo. (MACIEL, afirmar que no Brasil a gambiarra é uma
1996, p. 259). Mais recentemente, na dé- prática “endêmica”. Mesmo assim, por
cada de 1990, a Big Science devorada que até hoje não há uma teoria que lhe
por Chico Science e outros artistas per- contemple a práxis?”14. No texto 'Gam-
nambucanos pôs ainda mais em relevo biarra – Alguns pontos para se pensar
esta antropofagia da técnica com a em- uma tecnologia recombinante', o cibera-
blemática imagem-síntese do satélite en- tivista brasileiro enumerou algumas
fiado na lama. características desta prática:
Já em 2003, foi realizado o Festi-
val Mídia Tática Brasil, que contou com a
68
Acima de tudo, para entender a porém de uma ordem muito sim-
gambiarra não apenas como ples. É um jogo ambígüo e cheio
prática, criação popular, mas tam- de humor, que a bricolagem salien-
bém como arte ou intervenção na tada por Lévi-Strauss na "ciência
esfera social, é preciso ter em do concreto" sequer pretendeu.
mente alguns elementos quase […] Gambiarra não se faz sem no-
sempre presentes. Alguns deles madismo nem inteligência coletiva”
seriam: a precariedade dos meios; (LAGNADO).
a improvisação; a inventividade; o
diálogo com a realidade circun- Como devoração de alteridades, a
dante local, com a comunidade; a gambiarra surge aqui como um arranjo
possibilidade de sustentabilidade; técnico que parece corresponder de al-
o flerte com a ilegalidade; a recom- guma maneira à filosofia oswaldiana. A
binação tecnológica pelo reúso ou devoração nunca é uma mera assimi-
novo uso de uma dada tecnologia, lação daquilo que vem de fora, a incorpo-
entre outros. Tais elementos não ração de um objeto fixo por um sujeito
necessariamente aparecerão jun- delimitado. A aceitação passiva de um
tos ou estarão sempre presentes. produto acabado. Ao contrário, neces-
De qualquer modo, alguns deles sariamente implica em uma descodifi-
sempre aparecem por uma circuns- cação e uma recodificação, ou seja, uma
tância ou por outra (ROSAS, 2006, reterritorialização que modifica simul-
p.3). taneamente objeto e sujeito. Produção e
consumo se mesclam, confluem. A gam-
Rosas aproxima a gambiarra do biarra é um “prodossumo”, poderia dizer
conceito de bricolagem, formulado por Décio Pignatari. Antes dos hackers, já
Lévi-Strauss. Ao contrário da enge- tínhamos a gambiarra – parece-nos dizer
nharia, a relação estabelecida pela Rosas, ao estilo de Oswald.
prática da gambiarra com os objetos téc- Porém, agora, não se trata da
nicos não se submete a um projeto pré- anunciação de um futuro utópico, onde as
definido transcendente à prática. Ao máquinas de alta tecnologia trarão
contrário, ela opera pela imanência em abundância e livrarão os humanos da ex-
uma recombinação constante, caracteri- ploração por meio do trabalho. Marcante
zando-se mais como um processo do na afirmação positiva da gambiarra, na
que como produto final. A gambiarra é noção de digitofagia e em diversas redes
uma prática aberta. Há nela sempre algo da cultura digital brasileira do início do
a se terminar, ajustar ou acrescentar. século XX, como a MetaReciclagem15,
Rosas cita a reflexão de Lisette Lagnado Movimento dos Sem Satélites16 e o Sub-
acerca do tema, onde esta destaca a dis- midialogia17, tais experiências (antropo-
tância que separa a prática da gambiarra fágicas?) com a técnica enfatizam a
da bricolagem: apropriação crítica das tecnologias no
presente, em geral em um contexto de
“Este é um dos sentidos da gam- escassez – e não excesso – de recursos.
biarra que mereceria um desen- Ao invés do culto à nova alta tecnologia
volvimento: gambiarra, tomado dos robôs automatizados, a baixa tec-
como conceito, envolve trans- nologia da gambiarra.
gressão, fraude, tunga – sem ja- A alta tecnologia está sempre por
mais abdicar de uma ordem, vir, opera pela promessa de futuros imagi-
69
nários. Não por acaso é descrita como hegemônica à efetiva função de ruptura
“tecnologia de ponta”: situa-se como na histórico-social” (Idem, idem).
ponta da flecha imaginária de um desen- “Neste sentido, a tecnomagia se
volvimento tecnológico, tido como linear vale de um outro entendimento da téc-
e progressivo. Lidera-a os investimentos nica, que não o mero uso instrumental
do exército e as grandes corporações, in- com relação a fins, mas gerando um
teressadas em manter girando as en- campo problemático objetivo cuja pro-
grenagens de produção competitiva, dução de soluções parte do desejo e da
consumo e descarte de bens e serviços e sensibilidade compartilhados, construí-
prontas para cercear seus produtos por dos, e cuja potência é sua atualização
meio de patentes ou segredos industriais. permanente [...] O papel da tecnomagia
Ao contrário, a noção de baixa tecnologia na comunicação social é, portanto, um
aponta para o presente, para uma tec- ataque à apropriação representativa de
nologia das pontas, que está nas mar- qualquer espécie e refundadora da ação
gens do sistema capitalista de produção e comunicativa interpessoal, direta e de in-
consumo de tecnologia e baseia-se no teresse coletivo, público” (Idem, p. 52).
compartilhamento e na cooperação. Em Em sentido semelhante, Ícaro Fer-
termos deleuzianos, poderíamos com- raz também relaciona tecnoxamanismo
preender a baixa tecnologia ou o tec- com a cultura hacker e a reapropriação
noxamanismo como uma tecnologia menor. tecnológica, já a partir de uma leitura os-
Refletindo sobre a noção de tecno- waldiana: “Os tecnoxamãs do presente
magia como uma guerra ontológica entre parecem encarnar o homem natural tec-
humanos e máquinas, Thiago Novaes nizado de Oswald, são sua imagem mais
traça um paralelo entre a MetaReci- bem acabada. Os novos alquimistas do
clagem e o movimento de rádios livres, século XXI restituem à brincadeira e ao
baseando-se na ruptura entre a distinção encantamento sua prioridade, a um só
produtor-consumidor e na utilização de tempo, ontológica e epistemológica. A téc-
equipamentos de baixo custo (low tech) nica [...] é agora hackeada, desmontada e
para garantia de autonomia comunica- remontada em um contexto no qual os
cional. Assim, a metareciclagem per- valores patriarcais de eficácia, produtivi-
tenceria a um domínio estético e dade e competitividade são constante-
tecnológico com íntima relação com a tec- mente colocados sob suspeita”
nomagia, por ser “pedagogicamente (FERRAZ)
construído na relação de montagem e Por fim, além da dimensão de
desmontagem de elementos e conjuntos reapropriação tecnológica, parece-nos
técnicos que compõem a reciclagem e o fundamental destacar a dimensão daquilo
funcionamento de computadores” (NO- que poderíamos chamar de reconside-
VAES, 2014, p. 50). Retomando a supra- ração tecnológica. Pensar hoje o tec-
citada noção de bricoleur em Lévi-Strauss, noxamanismo no Brasil implica também
bem como a tecnoestética em Simondon, voltar-se para o reconhecimento de
como conceitos úteis aos pensamentos e saberes e técnicas antes desconsidera-
práticas tecnomágicas, Novaes o define dos ou apropriados indevidamente de
como um “campo de desvio que se cons- maneira privada, como aqueles das popu-
trói intuitiva e coletivamente, a partir do lações afro-indígenas. Ou seja, reavaliar
manuseio cotidiano e refletido de objetos justamente aquilo que usualmente con-
técnicos que passam de um destino pre- cebemos como técnica ou tecnologia:
definido pela indústria ou cultura será a indústria farmacêutica mais tecno-
70
logicamente avançada do que a erveira? antropofagia oswaldiana, bem como al-
Será o índio a mais avançada das mais gumas de suas repercussões posteriores,
avançadas das tecnologias? Este ponto para contextualizar certas abordagens a-
parece-nos central na emergência con- tuais acerca dos conceitos de tecnoxa-
ceitual e prática dos trabalhos e eventos manismo e tecnomagia. Em algumas
envolvendo tecnoxamanismo e tecnoma- passagens, as reflexões de Oswald soam
gia, no contexto latino-americano. Neste hoje como um tecnoutopismo insusten-
sentido, Fabiane Borges e Camilo Melo tável. Em 2015, sabemos que o desen-
concebem o tecnoxamanismo como volvimento e a proliferação das máquinas
metodologia estética.18 cibernéticas e robôs “inteligentes” não
nos livrou da exploração do trabalho,
[O tecnoxamanismo possui] indí- antes parece tê-lo tornado ubíquo e não-
cios de uma nova ética, uma ética remunerado.
ecológica, ou ainda uma ética Hoje, trabalhamos quase sempre,
transformadora que conceba a tec- mesmo quando nos divertimos ou tro-
nologia não como um projeto camos mensagens com amigos e conhe-
evolucionário mas como um or- cidos utilizando celulares conectados à
ganismo vivo, interdependente do Internet. A era das máquinas já chegou
seu meio e, assim como o próprio sem trazer consigo o Matriarcado de Pin-
planeta Terra, capaz de auto-regu- dorama. Porém, levando em conta as
lação. É uma tentativa de juntar práticas e reflexões antropofágicas pós-
duas formas de conhecimentos oswaldianas sobre a tecnologia no Brasil,
que são constantemente sepa- em especial na noção de tecnoxama-
radas. A bruxa e o cientista. O cu- nismo, sabemos que, se há uma
randeiro e o médico. A feiticeira e o antropofagia da técnica hoje, ela certa-
robô. A convergência entre técnica mente ultrapassa em muito as reflexões
e xamanismo é um investimento de originais de Oswald de Andrade.
reparação de erros antigos de má
distribuição de saberes e julga-
mentos deterministas precipitados
Notas:
1. http://nuvem.tk/wiki/index.php/Tecnomagia
a respeito das formas de conheci- 2. O projeto foi realizado por financiamento colaborativo
mento. O tecnoxamanismo apela (crowdfunding), contando com a contribuição de 95
apoiadores. http://catarse.me/pt/tecnoxamanismo
ao animismo, às religiões da na- 3.
tureza, às visões de mundo mais https://tecnoshamanismoynuevasnarrativas.wordpress.com
4. http://osaa.dk/2014/11/open-call-technoshamanism-
tradicionais, ou ainda ancestrais, a encounter-in-aarhus/
fim de trazer à tona suas sincroni- 5. Laboratório de mídia baseado em Madrid, na Espanha.
71
8. Em outra ocasião, no texto “Ordem e Progresso”, 14. Anos antes, Oswald afirmava: “Será preciso criar uma
publicado em O Homem do Povo 1, em 1931, Oswald Errática, uma ciência do vestígio errático”. (ANDRADE, p.)
afirma “queremos a revolução nacional como etapa da 15. MetaReciclagem é uma rede auto-organizada que
harmonia planetária que nos promete a era da máquina”. propõe a desconstrução da tecnologia para a
9. A respeito das 'técnicas do encantamento' na cultura transformação social. Mais informações em:
moderna, o antropólogo Alfred Gell observa: "O que http://rede.metareciclagem.org/
aconteceu com a magia? Ela não desapareceu, mas 16. Manifesto do Movimento dos Sem Satélites:
tornou-se mais diversificada e difícil de identificar. Uma http://devolts.org/msst/?page_id=2
forma que ela leva, como o próprio Malinowski sugeriu, é a 17. “Há alguns anos, os elementos (idéias, concepções,
publicidade. [...] Assim como o pensamento mágico fornece práticas, pessoas) que compõem a hoje difundida Cultura
o estímulo ao desenvolvimento tecnológico, a publicidade Livre, foram apropriados tanto pelo burocrata quanto pelo
também, através da inserção de produtos em um universo capitalista. Os que antes fizeram uso das tecnologias e
mitificado, em que todos os tipos de possibilidades estão meios disponíveis para criação de ações que
abertas, proporciona a inspiração para a invenção de proporcionassem o debate sobre novas perspectivas de
novos itens de consumo. arranjos sociais possíveis (conseguidas por ferramentas
A publicidade não serve só para atrair os consumidores como licenças livres, redes de comunicação, softwares de
para comprar itens especiais; com efeito, orienta todo o código aberto), hoje são digeridos pelos velhos aparatos
processo de concepção e fabricação do início ao fim, uma e mecanismos sociais que uma vez utilizavam e
vez que fornece a imagem idealizada com a qual o produto questionavam, participando, muitas vezes
final deve estar de acordo. [...] Os propagandistas, inconscientemente, apenas de um "treinamento sócio-
criadores de imagens e ideólogos da cultura tecnológica profissional" para que venham a ocupar as mesmas
são seus magos, e se eles não reivindicam ter poderes funções estabelecidas pelos até então mantenedores
sobrenaturais, é só porque a própria tecnologia tornou-se de um sistema que está distante do que imaginamos como
tão poderosa que não há necessidade de fazer isso. E se um agrupamento humano possível, muito menos livre”. A
nós já não reconhecemos explicitamente magia, é porque a convocatória completa do Festival Submidialogia pode ser
tecnologia e a magia, para nós, são uma e a mesma coisa" acessada em:
(GELL, 1988) http://dev.midiatatica.info/wikka/SubMidialogia
10. Discurso transcrito em: 18. Ao que nos parece, em sentido próximo a este,
http://www.commentarymagazine.com/article/the-golem-of- Beatriz Preciado formula a noção de tecnoxamanismo
prague-the-golem-of-rehovoth/ como um “sistema de comunicação interespécies”
11. “Economicamente, o digitalismo acredita que quase (PRECIADO, 2014)
toda a reprodução de dados digitais livre de gasto de
energia pode emular a produção de material de alto
dispêndio energético. Certamente, o digital pode
desmaterializar qualquer tipo de comunicação, mas não
pode afetar a produção de biomassa. Politicamente, o
digitalismo acredita em uma economia de troca (dádiva)
mútua. A Internet seria, supostamente, livre de qualquer
exploração e tende naturalmente a um equilíbrio social.
Nesse contexto,
o digitalismo funciona como uma política desencarnada
sem reconhecimento do trabalho off-line que está
sustentando o mundo on-line (a divisão de classes que
precede qualquer exclusão digital). Ecologicamente, o
digitalismo se autopromove como ambientalmente
amigável e uma maquinaria de emissão nula contra a
poluição do antigo fordismo” (PASQUINELLI, 2012, 54).
12. “Vejo o perspectivismo como um conceito da mesma
família política e poética que
a antropofagia de Oswald de Andrade, isto é, como uma
arma de combate contra
a sujeição cultural da América Latina, índios e não-índios
confundidos, aos paradigmas europeus e cristãos. O
perspectivismo é a retomada da antropofagia oswaldiana
em novos termos (VIVEIROS, 2007, p.129)”
13. Analisando a relação da Ação Cultura Digital com os
Pontos de Cultura, a pesquisadora Adriana Veloso chega à
seguinte conclusão: “A Cultura Digital não é somente a
troca de conhecimentos brutos e inadaptáveis, mas um
absurdo antropofágico, uma deglutição de conhecimentos,
de um país que está mais do que acostumado à
mestiçagem. Das oficinas, contatos e trocas ideias nascem
elementos híbridos, como computadores grafitados,
computambores (tambores digitais) e projetos de linux em
linguagens indígenas. A perspectiva é sempre da troca, não
da inclusão ou salvamento” (VELOSO, 2008, p.39)
72
TECNOXAMANISMO E A ESTRANHA
CIRCULARIDADE DO MUNDO
Carlos Eduardo Souza Aguiar1
73
ser oposto ao objeto. Eis, então, os ele- deste antropocentrismo que exauriu a na-
mentos principais da própria gênese da tureza, perante o qual o cenário é cada
tecnologia moderna, ferramenta da lógica, vez mais catastrófico. Mas há um outro
instrumento humano de dominação desse efeito, este nem um pouco perverso, um
grande obstáculo a ser conquistado e ad- sinal fraco que aponta para um retorno à
ministrado: a natureza. ancestralidade, justamente graças a estas
Grande era a pretensão humana e novas técnicas disponíveis. Celulares e
grande foi seu fracasso. Acreditava-se, tabletes não são, apenas, meros instru-
pretensiosamente, que o mundo, de fato, mentos de comunicação, mas nos conec-
desencantara-se e que estávamos cada tam com a alteridade, seja o outro social,
vez mais próximos da perfeição, no cami- o outro natural ou, até, o outro sobrena-
nho reto da razão. Mas, como diz Niet- tural.
zsche numa famosa página do crepúsculo Talvez isto não esteja absoluta-
dos ídolos, o mundo verdadeiro, enfim, mente claro para nós, o que vemos é o
tornou-se fábula. Isto é, a modernidade sinal forte, acostumados que estamos à
nada foi além do que uma narrativa entre dimensão instrumental dos aparelhos.
tantas, e o progresso um mito entre tan- Mas o sinal fraco está aí, visível na cres-
tos cujas raízes estavam fincadas na cul- cente tomada de consciência da falência
tura monoteísta. do modelo moderno pelas novas gera-
Cansamos de esperar o mundo ções, na preocupação com a diversidade
perfeito. O que alcançamos, ao contrário e cultural, social e ambiental, entre outros
ironicamente, foi a devastação do mundo. pequenos sinais. Não quero dizer que
A crise ambiental na qual nos encon- tudo isso é consequência lógica das
tramos é testemunha. Invariavelmente, novas tecnologias. Antes, gostaria de su-
não titubeamos em responsabilizar a tec- gerir que essas tecnologias desvelam
nologia: a eminência do fim do mundo essa dimensão que durante toda a moder-
seria o fruto de sua proliferação que in- nidade estava ali, no subterrâneo. Inspiro-
festara a superfície do planeta e a órbita me, aqui, nas ideias de um controverso
espacial e dominara nossas vidas, es- filósofo chamado Martin Heidegger, que
gotando os recursos da natureza e tor- num famoso texto intitulado “A questão da
nando o ecossistema planetário inabitável Técnica2” afirmou que sua essência não
para muitos de seus seres. A tecnologia, é, em si, algo de técnico, é, antes, uma
como instrumento do homem, seria a forma de desvelamento, de revelação de
grande responsável pela insurgência de um mundo.
uma nova era geológica, a antropoceno. Seguindo esta argumentação, po-
Isto significa que a espécie humana demos considerar que se de um lado
deixará suas marcas físico-químicas no temos as técnicas industriais e as
planeta por milhares de anos, mesmo com máquinas que revelam um mundo linear e
o seu desaparecimento. uma natureza a ser explorada, as novas
Diagnóstico justo, mas não abso- tecnologias digitais revelam um mundo
luto, afinal, como avisava o poeta alemão mais circular e uma natureza perante a
Friedrich Hölderlin: “Ali onde mora o qual devemos entrar em sintonia. Aqui,
perigo, cresce também a salvação.” Pois podemos fazer referência a outro pen-
vejamos: a tecnologia seria o instrumento sador alemão, Walter Benjamin, que
de aceleração do progresso, e o efeito numa célebre passagem de seu texto “A
perverso foi a devastação do mundo. Este obra de arte da era de sua reprodutibi-
é o sinal forte do nosso tempo, resultado lidade técnica3”, dizia que a natureza que
74
fala para o olho da câmera fotográfica é Pois bem, nesse caso ancestral,
distinta daquela que fala para o olho hu- não se trata de um uso instrumental, de
mano nu. Podemos extrapolar essa ideia uma ferramenta que deliberadamente
para todas as técnicas com as quais os emprega-se para alcançar determinados
homens estabelecem relações. Cada téc- fins. Trata-se, antes, de atravessamentos,
nica revela uma distinta natureza, pois, fundamentais para a constituição do
como dizia Marshall Mcluhan4, o meio é a próprio ser no mundo. Há, nessas popu-
mensagem. lações, uma sinergia mística entre a téc-
Trata-se, no caso contemporâneo, nica e a magia, absolutamente visível nas
de uma natureza revelada próxima aquela práticas xamânicas, nas quais antes de
da oralidade, isto é, há uma outra possuir os objetos, os envolvidos são por
afinidade com nossos artefatos que nos eles possuídos. Diferente do mundo mo-
remetem à relação ancestral com as téc- derno, como bem sublinha o filósofo
nicas, por exemplo, aquelas estabelecidas francês Gilberto Simondon6, nessas so-
no xamanismo originário. Os estudos ciedades há uma indistinção entre a dita
etnográficos ou o contato direto com os ín- realidade humana e a dita realidade obje-
dios revelam-nos que as técnicas não são tiva, o que existe, segundo o pensador e
uma exclusividade do homem branco, ci- como podemos também constatar obser-
vilizado e moderno, revela ainda que o vando tais sociedades, é uma rede na
tipo de relação estabelecida é qualitativa- qual não existe uma distinção entre o na-
mente distinta, o que, evidentemente, tural e o artificial.
pode ensinar-nos muito acerca da con- Nesse sentido, o xamanismo origi-
temporaneidade. Eis dois pontos funda- nário é, porque não, também tecnoxa-
mentais a serem observados. manismo. O xamã, a partir das técnicas –
Primeiramente, trata-se de um pre- seu corpo e certos artefatos naturais sub-
conceito etnocêntrico brutal a ideia de que vertidos de sua função originária, como
a tecnológica é a sociedade moderna in- pedras – acessa um mundo invisível, ma-
dustrial ou, no melhor das hipóteses, as so- nipulando-o. Esses objetos e o próprio
ciedades que conhecem a escritura. Não! xamã tornam-se, ritualisticamente, mé-
Toda cultura é uma tecnocultura. Não há dium a partir dos quais os coletivos aces-
qualquer notícia de que houve civilizações sam o sagrado. Essas mídias sacralizadas
que prescindiram da técnica, pois ela é não são meros instrumentos ou inter-
nosso acesso único ao real, empregamo- mediários neutros, mas participam ativa-
las a fim de alcançar resultados em um am- mente na hierofania, isto é, na
biente. Hipoteticamente, somente numa manifestação do sagrado.
atmosfera isolada – um jardim protegido e Um pensador importante das
estável, o jardim do Éden – poderíamos histórias das religiões, Mircea Eliade7,
viver sem técnicas. Não escolhemos uti- fornece-nos interessantes elementos para
lizá-las, pois, já estamos imersos, e sem- pensar essa relação. Para ele, existe três
pre estivemos, num mundo técnico. Por elementos em uma dada hierofania: um
isso naturalmente somos ciborgues, assim objeto natural no qual o sagrado se mani-
como também os índios são naturalmente festa; a realidade invisível ou mundo so-
ciborgues5. Somos seres híbridos por ex- brenatural; e o elemento mediador, aquele
celência! Logo, nota-se que mesmo uma mesmo que confere ao objeto uma nova
pedra, manipulada, subvertida de sua dimensão no momento da manifestação
função dita natural, torna-se uma técnica, ou do sagrado, no caso do xamanismo, o
até nosso próprio corpo, torna-se técnica. corpo do xamã ou os artefatos por ele
75
utilizado, como raízes e pedras. Um ob- presariais e jornalísticas para constatar-
jeto sacraliza-se quando se torna outra mos a validade dessa desesperadora as-
coisa que ele mesmo. O sagrado, pois, sertiva, os Guarani Kaiowa que o digam: o
encontra-se na própria gênese do objeto mito do progresso perdura e o lugar dos
técnico. outros é à beira das estradas, agonizando,
Não seria estranho, portanto, con- ou, quando muito, nas periféricas das ci-
siderar nossos aparatos digitais – celu- dades, convertidos em pobres, uma ver-
lares, tabletes, etc. – também como são diminuída do homem branco.
objetos mágicos e sagrados. Entretanto, Mas veja que curioso, se hoje
essa dimensão das técnicas perdeu-se no sabemos do drama desses coletivos que
decorrer na dita modernidade, tornaram- não se encaixam no projeto progressista
se ferramentas de ação do homem e a oficial é graças a certas tecnologias de co-
tecnomagia converteu-se em tecnologia, municação como a Internet, o mundo
instrumento da lógica. Por isso, parece tão torna-se, enfim, uma aldeia global. Surge,
estranho essa concepção mágica das téc- assim, uma oportunidade a todos nós, ter-
nicas digitais aos olhos mais conser- ráqueos, de darmos um passo atrás, em
vadores. Mas, apesar de enfraquecida, a direção a nossa ancestralidade, rom-
dimensão estava lá, escondida e, agora, pendo, deste modo, não a marcha do pro-
parece que emerge à superfície com toda gresso, mas o nosso declínio.
sua potência. Os aparatos técnicos surgem, é im-
Vale a pena insistir sobre esse fato: portante destacar, como fármacos, ora
o homem, imagem e semelhança do Deus como remédios, ora como veneno. De-
único criador, empregou das técnicas para pende da dose e da posologia. Preferi-
converter a natureza selvagem em mundo mos, até por uma questão de so-
perfeito. Eis o cerne do humanismo mo- brevivência, destacar os efeitos de cura da
derno que resultou na devastação do técnica, tal qual o xamã que emprega uma
planeta e na eminência da desaparição de dada raiz, em uma dimensão holística do
muitos de seus habitantes. mundo, para reequilibrar um corpo desar-
Gaia está doente! mônico. Logo, essas técnicas digitais
A saturação do projeto moderno podem revelar-nos essa ancestralidade
significa, portanto, a saturação do huma- que nos pertence, reencantando o mundo.
nismo e a emergência de uma nova situa- Em efeito, são diversos os modos
ção que alguns denominam de pós- que o reencatamento, ou, por que não, a
-humanismo. Independente do nome aparição de gaia, se dá a partir das téc-
dado, o importante é a desestabilização nicas e acredito que é oportuno destacar
de certas fronteiras que essa nova situa- alguns. Conforme já brevemente apon-
ção aporta ao dar ênfase aos terráqueos, tado e como todos nós podemos cons-
isto é, a todos os seres, humanos ou não, tatar, é notório que a disseminação da
que habitam nosso ambiente. internet e seus aparatos diminuem as
O projeto moderno saturou-se, mas distâncias e aproxima os povos e os co-
certa elite conservadora não o compreen- letivos, sejam eles humanos ou não.
deu, agem, ainda, guiados por essa luz Tomamos conhecimento, por exemplo,
que dizem enxergar no final da história. O das atrocidades que os povos do baixo
fato é que essa dissonância causa uma Xingu são submetidos sem a intermedia-
aceleração, ainda mais contundente, na ção dos jornalistas, a partir do relato dos
devastação. Basta lançarmos o olhar nas próprios índios via web. Eis ai um efeito
práticas governamentais, intelectuais, em- comunicativo mais imediato.
76
Outro efeito mais sutil ocorre analítica entre ocidente e o mundo sel-
graças à digitalização de territórios, vagem, mas do declínio do humanismo e
processo que introduz no interior da dita a aceitação de que todos somos ter-
natureza novos elementos, como chips, ráqueos ou terranos que compartilham
GPS, satélites, etc. Evidentemente, se Gaia, o lugar dos lugares, e que as técni-
pensarmos dentro de uma concepção cas participam de novos agenciamentos
ecológica ou ecossistêmica, essa intro- que apontam os limites da modernidade
dução não é neutra, antes, é capaz de ocidental.
metamorfosear a natureza em códigos al- O fim de um mundo não é o fim do
fanuméricos, permitindo, assim, a inter- mundo. Quando cessa a evidência de
conexão de todos seres terrenos e uma ideia na qual se baseava determi-
extraterrenos8. Tais atravessamentos de- nada época, outra constelação aparece
sestabiliza as sólidas barreiras erguidas e novas imagens fazem-se necessárias
na modernidade, nós e eles, sujeito e ob- para ilustrar as novas dinâmicas. Eis a
jeto, sociedade e natureza. Não se trata potência criativa da noção de tecnoxa-
de uma fantasia fusional, isto é, na elimi- manismo.
nação absoluta das fronteiras, mas de Uma imagem que traz em si essa
atenuá-las, complexificá-las, chegando ao aparente coincidência de oposições que é
ponto, por que não, de destruí-las. A des- o técnico e o xamanismo, retrato deste
estabilização, se potente, pode arruinar as nosso período de crise e de transição de
dicotomias, o que, diferente de uma mundos, a época da sinergia entre o ar-
aniquilação, deixa traços, entulhos, em caico e o digital9. Trata-se de uma noção
cima dos quais se construirá, necessaria- aberta e em constante reelaboração,
mente, novos agenciamentos, novas di- usada para agregar vários métodos de in-
nâmicas que recuperarão aquela imensa tegração das técnicas eletrônicas e digitais
teia a qual Simondon fazia referência. no interior de práticas xamânicas. O tec-
Contudo, é na própria relação que noxamanismo busca tecer laços numa teia
estabelecemos com estes aparatos digi- mágica que muitos adeptos identificam
tais que, talvez, reside o aspecto mais in- com Gaia, buscando inspiração na arte, na
teressante. Olhemos ao nosso redor, na natureza, na cultura e na técnica. Nesse
nossa vida cotidiana, e não teremos difi- sentido, o próprio ambiente das redes é,
culdade em reconhecer que todos esses antes de tudo, um espaço sagrado.
objetos que fazem parte de nossa experi- As leituras são inúmeras ao redor
ência do mundo, não são instrumentos do planeta. Destacamos a leitura bra-
que empregamos para determinados sileira, em particular a realizada pelo
fins, mas, são eles que definem nosso grupo que organizou o primeiro festival de
modo de estar no mundo. Conectados às tecnoxamanismo10 em abril de 2014 em
redes digitais, conectamos, também, a Arraial d'Ajuda, sul da Bahia. A forma “fes-
um todo mais vasto, que inclui a na- tival11” colabora para essa visibilidade que
tureza, todas as alteridades orgânicas, diversos atores e movimentos praticam no
inorgânicas e invisíveis. cotidiano, pois permite agregar num con-
Esta outra relação com as novas texto de nostalgia comunitária o imagi-
técnicas e a eminência de nossa desa- nário ancestral, dos pequenos gestos
parição aproxima-nos, enfim, a essas ou- ritualizados, e formas sociais festivas e al-
tras alteridades que tanto desprezamos: tamente tecnológicas, que tendem a efer-
uma questão de sobrevivência. Por isso vescência, isto é, às festas, orgias e
não se trata mais de uma oposição fetiches. A mística em jogo é o acesso ao
77
Fotos: Luiza Soh.
Intervenção de Laura
Sobenes do Laboratório
de Práticas Rituais e
Tecnoxamanismo
realizado por Fabiane M.
Borges no Instituto
Goethe, São Paulo, 2014.
sagrado a partir das técnicas: das ances- quando o mundo acaba, sobretudo, é
trais, como os utensílios indígenas, as necessário agir, ou melhor, colaborar. Para
eletrônicas e digitais. Os objetos não são os índios da América o mundo acabou há
percebidos como algo externo, como um séculos e, ainda assim, resistem.
mero instrumento, mas como elementos Resistamos todos, então, às trevas
portadores de dignidade ontológica, fun- sem fim. Os limites perante os quais nos
damentais para determinar nossa forma deparamos nesse fim de um mundo não
de habitar o mundo, ao lado dos elemen- será o ponto no qual tudo acaba, mas o
tos naturais, espirituais, etc. ponto a partir do qual outro mundo passa
Há um desejo compartilhado de a ser: o homem torna-se terreno e o pla-
subverter a lógica da técnica, atribuindo- neta torna-se Gaia. Daí, repito, o tecno-
lhe dimensões mágicas. Neste sentido, o xamanismo!
xamanismo, em si uma técnica ancestral,
pode colaborar a aprofundar nossa re- Um dos tantos nos da rede. Paris,
lação com a técnica, em dimensões mais outono de 2014
profundas e mágicas, no limite, trata-se de
um resgate, um novo religare com a na-
tureza e com as dimensões espirituais, a
partir das novas tecnologias, que, ao
gosto da ética hacker, pode ser usado
para manipular a natureza, para entrar em
sintonia com seus mistérios. O próprio
xamã é tido como um hacker da natureza,
um mediador, um decodificador de códi-
gos. Nessa leitura brasileira a técnica é o
próprio espaço de reflexão, o ponto a par-
tir do qual as tradicionais dicotomias bina-
rias do humanismo, como entre natureza
e tecnologia, ciência e religião e humano
Notas:
1. cadu.s.aguiar@gmail.com
e não humano, podem ser superadas. 2. HEIDEGGER, M. La question de la technique. In:
Trata-se de uma imagem forte que
Essais et conférences. [Paris]: Gallimard, 1980.
3. BENJAMIN, W. A obra de arte na época de sua
simboliza, dentro de uma perspectiva reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Ed. Zouk, 2012.
holística, um outro pacto com a alteridade 4. MCLUHAN, M. Os meios de comunicação como
extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1995.
no qual os objetos técnicos devem ser le- 5. PEREIRA, E. DA S. Ciborgues indígen@as.br: a
vados em conta na busca da harmonia presença nativa no ciberespaço. 1a. ed. São Paulo, SP,
83
representações, distanciando a experiên- mos com eles, fiquei emocionado e lem-
cia dela mesma e conduzindo para a ma- bro de ter empossado meus óculos.
nipulação de sistemas de crenças. Um Fiquei comovido com a luta e força de re-
dos principais pontos de meu interesse na sistência do povo Pataxó. No dia
vivência xamânica é de como o sagrado seguinte o pessoal foi ate a tribo con-
se constrói e como se desconstrói. hecer todos e oferecer oficinas.
Onde o xamã é um artista do Pudemos presenciar a celebração de um
sagrado, onde a criatividade inspirada casamento pataxó, a festa estava linda,
pela natureza e conectada com o cosmos conhecemos a Pagé da tribo, um mo-
pode escolher plantas para experimentar, mento super auspicioso, era o quarto
fumando, comendo, banhando-se, etc. Ex- casamento tradicional em dez anos.
perimentar faz parte dos ritos de iniciação. Durante a tarde começamos os
Outra qualidade do xamã é a preparos para o ritual à noite. Mace-
transmutação, o poder do caos primordial rando Wactchuma, um cactos sagrado
que tudo muda. Impermanência, devir que a Tissa trouxe da Patagônia.
eterno, fonte de renovação, vazio pleno. Ayahuasca. E também experimentamos
Transformar-se em luz, em animal, em algo sintético, PCP, um dissociativo mis-
mulher, em diversas outras entidades e turado em um chá de hibisco. O Kaloan
seres que lhe habitam, deixar-se incor- havia construído junto com o pessoal
porar, ritos de passagem, raios cósmicos uma geodésica usando paus de beribas,
holográficos, mirações de paterns frac- para abrigar os rituais, que tinham a pro-
tais. Visões, premonições vindas do in- posta de acontecerem em um espaço
consciente galático. Ser arrebatado por não verbal. Este setor acabou se tor-
forças enigmáticas. Não se assustar nando um dos três espaços propositivos
diante do sublime. do festival no sitio, junto com a cozinha e
Demos um duro danado para o Hacklab Space. No outro dia fomos à
chegar até a Bahia. Antes fizemos uma praia, alguns lugares eram desérticos e
festa no teatro oficina, em São Paulo, maravilhosos, outros cheios de turistas
para arrecadar parte do dinheiro que nos nada a ver. E ao cair da noite um outro
levaria ate lá. Pois a vaquinha feita na in- ritual para queimar a geodésica, ficamos
ternet não havia alcançado o montante lá a noite inteira alimentando a fogueira
necessário para partirmos, e a Fabi com a estrutura. Foi incrível sentir a ener-
Borges que estava coordenando os movi- gia de todos os santos que é muito espe-
mentos para o festival acontecer ainda cial na Bahia, e ajudar a criar e participar
teve que ajudar com grana. No caminho de rituais tão únicos. Esta foi a primeira
fomos como hippies doidos em uma tour edição do festival. Tinha um clima mais
cheia de liberdade romântica, dentro do intimista. De lá um núcleo de pesquisa se
Ônibus Hacker todo grafitado e paloso, formou, com pessoas que tem o interes-
ouvindo um som, etc. Ansiosos para se no xamanismo sujo, a mistura típica
chegar ate o encontro com a tribo Pataxó do Brasil de crenças ecumênicas. Que
e com todos os outros que participaram venham as outras edições!
do festival e não viajaram com a gente.
O ônibus quebrou varias vezes durante o
caminho e tivemos de dormir alguns dias
a mais na estrada. No dia seguinte, a
chegada ao cair da noite, fomos rece-
bidos pelos índios. Dançamos e canta-
85
Ritual na Geodésica e
Ritual de abertura com
a juventude do povo
Pataxó no I Festival
Internacional de
Tecnoxamanismo.
Fotos: Nubia Abe, 2014.
88
QUE MEMÓRIAS
SÃO ESSAS?
Danilo Lima
91
Viagem do Ônibus Hacker
para o I Festival Internacional
de Tecnoxamanismo, 2014.
Fotos: Nubia Abe.
Despedida do I Festival
Internacional de Tecnoxamanismo
na Aldeia Velha Pataxó, 2014.
Olimpíadas Inter
Aldeias Pataxós.
Fotos: Nubia Abe.
94
TECNO
XAMANISMO
Luiza Soh
95
tro dela. Quando me levantei, fui para São
Paulo visitar meus amigos, em busca de
amor, de estímulos que eu sabia que eles
poderiam me dar. Nesse momento entrei
em contato com a possibilidade de tomar
ayahuasca, e fui. Duas semanas antes do
festival tive minha primeira experiência
com essa bebida xamânica, e depois
dessa experiência se abriu em mim uma
vibração nova, uma percepção muito sutil,
de que em outra vibração se encontravam
essas coisas que eu procurava no estí-
mulo tão intenso da morte – e não sabia o
que eram, só sabia que elas existiam, em
algum lugar.
No festival toda essa inquietação
fez sentido, me aproximei de uma rede de
pessoas maravilhosas, que já haviam sen-
tido as mesmas dores que eu, e com
AÇÃO transmutaram e transmutam a cul-
tura limitadora em que estamos inseridos.
Foram alguns dias de transborde,
contato real e humano, através de tec-
nologia atual e ancestral. Minha vida
mudou ali, vi caminhos possíveis e resolvi
também me embrenhar nessa mata, bus-
cando com mais afinco, mais determi-
nação e consciência pôr em prática a
mudança que eu percebia sutilmente.
Não há respostas para o que é tec-
noxamanismo, e percebo que não bus-
camos respostas, essa coisa de explicar
não faz mais sentido pra mim. Vejo uma
rede cada vez maior de compartilhamento Fotos:
se formando, e me sinto parte dela. Parti- Nubia Abe
lhando descobertas, incentivando em mim Tamara Gigliotti
97
condição metodológica, atuávamos de o Festival, relevando a autonomia de cada
forma caótica e dispersa. corpo e suas singularidades expressivas.
A Rede Social foi executada em um Esses processos se multiplicam em cada
fluxo instantâneo, após o jantar, na quinta produção posterior: cartografias sobre ou
noite de imersão. Trata-se de uma rede de a partir das experiências individuais que
nálion 13x5m, sustentada por um corpo constituem nossa (des)organização cole-
coletivo, em uma dança improvisada, tiva. A produção do LCCPI estava, tam-
aberta para participação do público. A bém, diluída na arte e ciência da culinária
Rede Social produz um ambiente rela- à qual recorremos para a invenção do co-
cional e interativo, um espaço-tempo de al- tidiano como prática de resistência e cul-
teridade através da relação dos corpos em tura ordinária. Multiplicamos nossas
movimento com a estrutura da rede e a pinturas corporais com as sementes de
dinâmica do espaço. O jogo produzido urucum colhidas no caminho da viagem, à
pela disposição dos corpos na rede e da maneira dos Pataxós, nossos parentes.
rede no espaço corresponde a uma subje- Durante o Festival, experimenta-
tividade compartilhada pela experiência da mos um modo de nos organizar coletiva-
alteridade como resistência ao modelo in- mente e admitir uma convivência com
dividualista do sistema dominante, além da novos laços sociais, que nos levaram a
ressignificação dos espaços e seus usos. choques de hábitos e valores. A intolerân-
Iniciamos a performance na geodésica da cia à diferença se sobressaía aos discur-
comunicação não verbal, onde estava a sos proféticos de um falso paraíso,
rede que fora levada por um dos nossos contaminado pelos ruídos da nossa subje-
colaboradores, em uma performance an- tividade superdotada de informações
terior, Nus que aqui estamos, por vós es- (in)dispensáveis, e necessidades produzi-
peramos. Abrimos nosso ritual com sons das pela cultura da cidade e consumo.
produzidos com os instrumentos dispo- As novas tecnologias estariam es-
níveis no local, os nossos corpos em movi- timulando processos de individuação
mentos e grunhidos. Deixamos a geodésica através de equipamentos para uso pes-
imersos na Rede, atravessamos o cam- soal e comunicação indireta, no tempo-es-
pping onde estavam algumas pessoas paço virtual? A internet seria responsável
que nos auxiliaram a desprendê-la dos pela crise global das estruturas vigentes,
pedaços de troncos e pedras pelo chão, mediando articulações sociais descentrali-
nos aproximamos do terreiro eletrônico, zadas, seja para contatos interpessoais ou
onde-quando começamos a interagir com movimentos de maior dimensão, como
uma sonoridade suave e projeções de luz ocupações de rua, festivais e encontros? A
em movimento, coloridas imagens sobre diversidade das expressões virtuais es-
os nossos corpos em rede. Os registros tariam condicionadas à diversidade dos
audiovisuais da Rede Social foram proje- usuários da rede? O acesso às novas tec-
tados nas performances subsequentes nologias da informação e comunicação de-
dos artistas do LCCPI, como As travecas terminariam, em alguma medida, o uso
da floresta, em um ciclo (des)contínuo de desses instrumentos? A apropriação téc-
produção. A Rede Social já havia sido ex- nica poderia nos levar a níveis mais ela-
perimentada na noite anterior, e estivera borados de magia? Estaríamos
instalada entre as árvores, durante os dias experimentando novos meios e ritmos de
do Festival. O Perfil sugerido pelo LCCPI produção, através de uma outra relação
referia-se ao desempenho individual de com o espaço-tempo e com as condições
cada colaborador do Laboratório durante tradicionais do trabalho? A técnica, não
98
seria, em si, apenas uma ferramenta po- como referência a nossa experiência co-
tencial à serviço das forças em jogo, no tidiana e imersiva, sem pretensões
qual observamos a reprodução da lógica racionalistas. O conceito Tecnoxama-
sócio-política-econômica hegemônica, di- nismo nos parece, ainda, obscuro, não
ga-se, capitalista, com novos monopólios e sabíamos, ao certo, por que estávamos
mecanismos de controle? Elas não seriam ali, havia um entrelaçamento de desejos
impassíveis qualificações, a priori, para e linguagens. Aliás, estamos fartos de
além do bem e do mal? As novas tecnolo- tanto conhecimento acumulado, não
gias estariam colaborando para a pro- queremos mais saber. Somos, ainda,
dução de uma subjetividade fragmentada aprendizes de feiticeiros, observamos os
e polifônica, em uma realidade concreta? astros, nossa alquimia é misturar imagi-
O espaço-tempo virtual seria a experiên- nários afro indígenas, budistas, cristãos,
cia do paradoxo, por excelência, na me- entre outras tradições, com as novas tec-
dida em que suporta um jogo de nologias digitais, buscamos o investi-
presença-ausência em uma esfera pú- mento do corpo em estados de presença,
blico-privada? A cultura digital alteraria, fi- a alteração dos estados da percepção e
nalmente, o comportamento das pessoas da consciência, somos a crise da hu-
ou as características elementares de uma manidade que grita junto com a natureza,
determinada cultura ou revelaria apenas remanescentes medievais.
uma expansão desses modos, como a
brasilidade emergente nas redes, estimu-
lada pelas políticas públicas federais im-
plementadas na primeira década deste
século, com uma apropriação relativa-
mente veloz da população brasileira? Vive-
mos tempos difusos, (des)construindo
conceitos, estruturas, modelos de organi-
zação social, relações espaço-temporais.
Essas rupturas, intensificadas pelas tec-
nologias digitais, nos levam a experimen-
tar novos modos de produção e difusão de
conhecimento, bem como experiências so-
ciais. A diluição das fronteiras nas imer-
sões produzidas por festivais como o
Tecnoxamanismo, seria uma boa tática
para a presentificação de nossos afetos
virtuais e o encontro das nossas aspi-
rações micropolíticas? A resposta é uma
grande dúvida: andamos em busca des-
ses pretextos. Curiosamente, as conver-
sas sobre a cultura digital no Brasil, na
rádio livre Itapeco, nos levaram à atualiza-
ção das nossas questões históricas, es-
cravocratas e coloniais.
A partir das provocações do Festi- Casamento de dois casais pataxós na Aldeia Velha
val, deixamos e levamos essas dúvidas, Pataxó, durante o I Festival Internacional de
Tecnoxamanismo na Aldeia Velha Pataxó, 2014.
a respeito do xamanismo digital, tomando Fotos: Nubia Abe.
99
Pajé Jaçanã na Aldeia Velha Pataxó. Foto: Nubia Abe.
100
XAMONAS:
XAMÃS + MONAS
Tiago Fioravante
Alguns seres que antes só eram Tudo vivido de maneira tão intensa. Isso
vistos em meus sonhos, de repente se foi apenas o início das XAMONAS, foi tão
tornaram imagens mais nítidas em minha especial, um momento de entrega.
cabeça. Eram seres da floresta, que no Eu me sentia quase numa experi-
meu dia a dia acabavam passando des- ência dos Radical Faeries (comunidade
percebidos, mas que agora poderiam 'não heteronormativa' que emergiu da con-
conviver comigo sempre que se sentis- tracultura norte-americana do final da dé-
sem à vontade. cada de 60). A identidade e cultura queer
A experiência do Tecnoxamanismo podendo ser vividas livremente no meio da
despertou um lado que antes eu temia mata. Toda esta energia concentrada cul-
explorar. Finalmente eu consegui aceitar minou em algo intenso relacionado ao meu
e desfrutar da companhia destes seres. corpo, à minha experiência espiritual e
Com eles eu me tornava mais forte. física neste cosmo.
Havia um sentimento de pertencimento, Retornando à São Paulo, continua-
de comunidade no ar. Era tão forte que mos a pesquisar sobre as relações entre
eu não sentia medo, apenas as vibrações o xamanismo e cultura queer, e também
e energia que emanavam das pessoas e explorando essa energia que havíamos
do lugar. experienciado durante o festival. Foi
Já durante o caminho São Paulo > então que o projeto ritualístico/perfor-
Arraial D'Ajuda, a identidade queer era mático XAMONAS começou a ganhar
compartilhada por alguns indivíduos. forma entre algumas pessoas que es-
Rodas de esmalte durante as paradas tiveram no Tecnoxamanismo e que es-
em postos de gasolina, conversas sobre tavam convivendo quase diariamente.
sexualidade e gênero eram muito co- A celebração do encontro da iden-
muns, afinal já fazia parte das vivências tidade queer com a cultura indígena.
de alguns de nós. A proposta é coletiva e acontece
Durante o festival, pessoas de de forma orgânica. Busca-se explorar
diferentes lugares acabaram se aproxi- momentos ritualísticos/performáticos que
mando, a identidade queer era um fator envolvam práticas xamânicas tradi-
comum. A minha aproximação se deu na cionais, relacionando-as com o ato de
varanda do sítio ITAPECO, quando acon- pintar as unhas, cantos de outras dimen-
tecia uma roda de esmalte. Esta primeira sões, aplicação de purpurina, celebração
vivência aconteceu de forma orgânica, do corpo e da montação como práticas
assim como todas as outras que surgiriam terapêuticas e de cura.
daí, sempre se desdobrando em associa- O projeto também faz uma relação
ções com o xamanismo e cultura queer. com a indumentária do xamã e a montaria
Era algo tão verdadeiro, pratica- das travestis e drag queens/drag kings - a
mente impossível de não sentir. Os preparação e processo de identificação
abraços, os afetos, os estranhamentos. com o que vai ser usado no ritual/apre-
101
sentação, como uma incorporação dessa DEFINIÇÕES:
energia presente no corpo que posterior- QUEER: A Teoria Queer se utiliza
mente se manifesta no xamã vestido e a de um termo (o queer) como forma de
travesti/drag montada. positivar um xingamento, ressignificando
O encontro entre o xamanismo e a e colocando o mesmo como uma prática
sexualidades não normativas não é algo de vida que se opõe às normas social-
recente. Há relatos de xamãs siberianos e mente aceitas.
da Ásia Central que durante rituais se MONA: Tem origem na língua
vestem com trajes do sexo oposto. Sem Nagô (Yorubá) e significa "mulher". Os
falar nos beardaches, ou two-spirits ('dois homossexuais adotaram a expressão
espíritos' em tradução livre), em comu- (que é usada na Umbanda e no Can-
nidades nativas da América do Norte. Ape- domblé) para se referir tanto a mulheres
nas para citar alguns exemplos, pois em quanto a outros homossexuais.
diversas culturas, a figura do xamã circula PAJUBÁ: Linguagem popular con-
entre os universos masculino e feminino. struída com palavras de vários dialetos
Alguns termos começaram a se africanos misturadas com palavras em
espalhar entre este grupo: 'na força da português, usada por travestis, homos-
peruca', 'rapecita', 'manicura', 'cerimona', sexuais e povo do santo.
'cujuntinho'... Surgindo inclusive um
glossário, similar à linguagem do Pajubá,
amplamente utilizada entre integrantes
da comunidade gay e afrobrasileira.
Foi algo que reverberou durante o
I FESTIVAL QUEER, que aconteceu de
maneira independente na ocupação Ou-
vidor 63, no centro de São Paulo. Além
do festival, XAMONAS continuaram no
SP NA RUA, reunião de coletivos que
acontece também na capital paulista, no
palco TENDADOQUEER + RG_Faleiros,
promovido pela prefeitura da cidade. No
inicio desta primavera, outra reunião 'xa-
monica', durante o ENCONTRO AUSPI-
CIOSO DE PRIMAVERA, festival
ritualístico que aconteceu em Ibiúna, no
Centro de Budismo Tibetano Maitreya,
conduzido pela monja/xamã Ani Sherabi.
É uma construção que acredito que
não tem um final, é apenas o processo em
si. Onde vamos conseguir chegar não im-
porta, afinal, a delícia mesmo é poder ex-
perimentar. Não nos definimos como
xamãs, mas sim xamonas. Somos XAMO-
NAS, em busca da cura dos corpos e do
mundo através da sexualidade.
Afinal, o processo de cura e liber-
tação do corpo envolve a sexualidade.
102
TECNOXAMANISMO
EM AARHUS
Carsten Agger
103
tivas muito desanimadoras apresentadas No final, as pessoas responderam
pelo pico do petróleo, mudanças climáticas e enviaram uma série de propostas, e a
e destruição dos recursos naturais. maioria delas foram adotadas pelo
Depois de voltar à Dinamarca, con- evento. O evento aconteceu no fim de se-
tinuei a trabalhar com permacultura no mana 22-23 de novembro de 2014, e foi
meu próprio jardim, para começar a viver um sucesso - com cerca de 30 partici-
as ideias tecnoxamânicas de sustentabi- pantes no sábado e 20 no domingo. O
lidade e equilíbrio com a natureza na evento foi organizado com nenhum orça-
prática. Eu também comecei a olhar para mento de fato.
fora, para os potenciais parceiros com os No sábado, o workshop de perma-
quais poderia formar redes de pessoas cultura começou às 10 horas, e pas-
que trabalhem com as mesmas ideias. samos o dia plantando árvores fixadoras
Então quando eu, por sorte, soube de nitrogênio e trabalhando com jardi-
que Fabiane Borges, organizadora do nagem de canteiro elevado. Na parte da
festival no Brasil, em colaboração com tarde, a localização do evento mudou-se
George Sander, iria a Bruxelas para par- para o hackerspace e nós trabalhamos
ticipar de uma conferência lá, nós rapida- com o seguinte programa:
mente concordamos que seria perfeito se
ela pudesse ajudar a organizar um evento ● Uma introdução ao tecnoxama-
tecnoxamânico aqui na Dinamarca du- nismo por Fabiane M. Borges, tocando na
rante a sua estadia. O evento aconteceria noção Yanomami de Xawara, o fim do
no Open Space Aarhus, maior hacker- mundo, a destruição de recursos naturais
space da Dinamarca, onde eu fui um e do uso da tecnologia para reverter
membro ativo por anos. esses processos como exemplificado
Na Europa, um problema enorme pela noção de descristalização, do artista
para estilos de vida alternativos é a uni- britânico Jonathan Kemp.
formidade devastadora da sociedade, o
controle estatal exagerado na vida cotidi- ● Falei sobre o estrangulamento
ana e a destruição quase completa da na- agrícola da natureza dinamarquesa e
tureza e da vida selvagem em favor da apontei que muitos sítios aparentemente
agroindústria. Como resposta a esta situ- idílicos neste país são, de fato, menos do
ação, decidimos que o tema do encontro que parecem, já que são fortemente
seria "autodeterminação, liberdade e sus- poluídos pelos campos de cereais planta-
tentabilidade no Antropoceno". dos à sua volta.
Decidimos também que desde que
um dos propósitos do encontro era o de ● Esben Hardenberg deu uma intro-
construir e fortalecer redes de pessoas dução ao afrofuturismo e explicou como
trabalhando em conjunto, ao invés de or- ele começa com o fato de que os escravos
ganizar uma conferência com "alto- americanos são vítimas de um genocídio
falantes" endereçados a uma "audiência", cultural: sua cultura africana foi roubada, e
enviamos um convite aberto para que sua história simplesmente começa com a
todos pudessem propor atividades que escravidão. Afrofuturismo é a tentativa de
achamos relevantes e distribuí-las tão am- criar um futuro glorioso para os afro-ameri-
plamente quanto podíamos. Decidimos, canos por meio de narrativas de uma
ainda, combinar o evento com uma ofici- ficção científica onde pessoas e tecnolo-
na de permacultura, que teve lugar no gia afro-americanas são parte importantes
jardim da minha própria casa em Randers. da exploração de tempo e espaço.
104
● A artista romena Ramona Au- ● Benjamin Christensen apresen-
gusta realizou uma dança do fogo xamâ- tou seu projeto para uma aplicação An-
nica com inspiração indiana. droid para ajudar os consumidores a fazer
as escolhas certas, sustentáveis. Sob
● A artista e compositora brasileira- condições ideais, você deve ser capaz de
dinamarquesa Marcela Lucatelli realizou digitalizar um código de barras em um su-
um ritual musical de cura com base em permercado e ter exibida na tela uma luz
tons únicos cantados em uníssono como vermelha se o produto tem problemas
um "ajuste dos chakras" e conexão com a ambientais ou éticos.
Terra e Universo.
● Dr. Birger Schroll fez uma apre-
Entre os convidados de fora na sentação completa de seu método para
noite de sábado estava o marinheiro e trabalhar com viciados e pessoas
médico Birger Schroll que passou muitos desabrigadas e sua esperança de ser
anos trabalhando com pessoas desabri- capaz de construir comunidades susten-
gadas na Dinamarca e na Noruega. Entre táveis, autossuficientes de ex-moradores
outras coisas, ele foi um dos iniciadores de rua através da construção de seu con-
do "Hjemløseteltet", um acampamento ceito de convivência, bem como sobre
temporário e ocupação de uma ferrovia uma prática que ele denomina medicina
abandonada no centro de Aarhus. Dr. antropológica.
Schroll passou algum tempo a explicar
seu método, que é uma mistura de auto- ● Uma vez que nenhum desses
confiança e entendimento da dinâmica da eventos é completo sem música, a banda
comunidade e do grupo. de ruído anarquista Gravhund apresen-
No domingo, o workshop de per- tou-nos uma dose pesada de ruído
macultura continuou em Randers - arbus- mágico tecnoxamã - uma experiência
tos foram limpos e cerca de 50 árvores e fascinante que também provocou uma
arbustos foram plantados. Mais uma vez, longa discussão sobre arte e música e
o evento no hackerspace começou às seu papel no xamanismo, assim como
04:00, e tópicos do dia incluíram: nas sociedades tradicionais e modernas.
106
a sensação de que o sujeito, o objeto e o “Mais isso. Mais isso. Mais isso.
processo no evento foram todos tão Para Aarhus”!
conectados, entende? Tudo emergiu em E talvez isto ilustre perfeitamente o
sua plena concretização em conjunto”. que o tecnoxamanismo pode ser no seu
Frequentemente me envolvo em melhor: Sementes que semeiam à me-
eventos que tendem a ser muito "profis- dida que avançamos, as sementes que
sionais" e, muitas vezes, tenho dificul- podem cair em solo fértil e crescer e for-
dade de achar isso inspirador: Não mar redes e, no final, ajudar as pessoas a
consigo sentir nada. Em sua configuração fazerem do mundo um lugar melhor para
de "não-profissional" – entendendo o os que querem preservar o conhecimento
termo de maneira não pejorativa – en- e tecnologia ancestral e viver com a
contrei a energia, as mãos quentes, pes- própria Terra em seus corações.
soas curiosas (não só no discurso, mas
também na intenção e ação).
109
Performance de Fernando Gregório
(AngaMaion) no Ocupa Cine Marrocos junto
a Mamba Negra/2014. Foto: Luisa Hervé.
110
todos produtores de conteúdo consciente para acontecer. Esse espaço deve ser
que altere a realidade de forma positiva. criado para que sigamos expandindo.
Já possuímos instrumentos para construir Esse importante movimento de
essa nova realidade, através do uso de acesso ao virtual para simultaneamente
softwares livres aliados à internet. atualizar o software-corpo e incorporar,
Acredito na potência do jogo tec- animar – trazer para a realidade material
nológico interativo e educativo, que pode através de ações corporais é vista tam-
levar informação corporal e virtual de bém em práticas contemporâneas como
forma lúdica. Isso me faz pensar no en- a de Anime, geralmente baseada em
contro que está ocorrendo entre a so- games de RPG ou desenhos animados,
ciedade tecnológica e comunidades na qual os jovens jogadores/especta-
tradicionais indígenas, que realizam o dores reproduzem a indumentária dos
acesso a esse mundo virtual através de personagens e recriam as práticas vistas
outros procedimentos. Também tecno- nas telas em situações de embate corpo
lógicos, alquímicos, mas naturais, em a corpo. Da mesma forma que o xamã,
contato com o ambiente em que vivem, a esses jovens diminuem o espaço entre
floresta. O uso de enteógenos orgânicos virtualidade e realidade, promovendo ex-
como a Ayahuasca, por exemplo, possi- pansão e mudança de padrões nos dois
bilitam esse acesso. tipos de espaço.
Minhas maiores experiências de Se há esse fluxo que parte do pro-
acesso ao virtual foram com o uso dessa tótipo virtual para o hábito da vida, fica
bebida de poder. Pude experiênciar a clara a importância de gerar espaços vir-
sensação de estar inserido em um ambi- tuais onde conceitos importantes a viven-
ente completamente virtual com o qual eu cia em sociedade estejam alojados, como
interagia ativamente, de forma que um autogestão, horizontalidade e convivên-
domínio sobre o meu corpo e suas potên- cia com a diferença. Também penso na
cias era absolutamente necessário para possibilidade de experimentarmos novas
ampliar as capacidades da experiência. formas de interação primeiramente no vir-
Estava imerso em um jogo abstrato de in- tual, testando sua viabilidade e funciona-
teração entre mim e outras formas de lidade, para depois materializarmos a
energia ou manifestações geralmente in- estrutura. Talvez assim, menos erros se-
visíveis, que podem e desejam interagir jam cometidos. Muitos erros estão sendo
com o ser-humano, que deveria a meu cometidos e a incapacidade de consciên-
ver estar constantemente reaprendendo cia sobre a necessidade de incorporar
a manter esse diálogo. A bebida fez com novas descobertas ao nosso código
que eu ampliasse minha noção espacial genético, talvez tornem a vivência nesse
e de integração com o todo. planeta cada vez mais indesejada.
Outra intersecção importante entre Um novo ser-humano quer se a-
o game interativo e práticas xamânicas, presentar. Ele não é dependente da tec-
também presente em religiões afro- nologia, mas aliado a ela. Não é
brasileiras, é a da incorporação de seres dependente ou vítima do consumo, mas
ou entidades, que, em religiões mais con- consumidor consciente que modifica o
temporâneas, como a Ayaumbanda, mercado e ruma para a autonomia. Esse
estão constantemente variando e se atu- caminho virtual-material já existe e educa-
alizando. Como se novos seres es- tivos que envolvam a expansão da
tivessem tentando contato e novos tipos consciência sobre as tecnologias da co-
de manifestações buscassem espaço municação e da informação aliados à
111
uma maior consciência da tecnologia pri- que fazer, apenas ouvindo a...........
mordial e mais avançada, que é a na- O Sol se pondo e partimos.
tureza, da qual brota e faz parte o nosso Mãe Coruja me lembrou minha avó
corpo é uma das soluções viáveis. Lourdes, o abraço de quando chego para
visita-la no interior de São Paulo, onde
SOBRE O GRANDE ABRAÇO-MÃE nasci. “Como você aprendeu a ser ben-
Após o fim do I Festival, algo me zedeira?”, perguntei outro dia. Ela: era
disse para prolongar a estadia na Bahia. tudo o que fazíamos...
Não voltei com o Ônibus Hacker, em que Outra sensação em comum: quan-
tinha vindo, e rumei para Caraíva, cidade do vamos sempre ao seu quintal olhar as
próxima à do encontro. Depois de um dia plantas e sinto que toda a magia ne-
inteiro de caminhada na beira da praia, cessária nesse planeta está contida ali,
só, silêncio, vazio2 e na volta um reen- no ninho do passarinho apoiado na árvore
contro à beira do rio. que dá a flor e faz sombra pra crescer
Nesse reencontro Fabi, George, melhor o alimento.
Sérgio, Doug e David, tecnoxamãs pros- Porque criamos tanta coisa? Como
seguindo o Festival em conversas. “Não é possível estarmos chegando no espaço
acaba nunca”, comentamos... e ainda é e não conseguirmos alimentar todos ou
verdade. Da mesma forma que não co- respirar ar puro? Nem aprendemos a in-
meçou exatamente com o festival, ainda teragir com toda a magia que já existe de
reverbera em mim em diversos planos. forma harmônica e seguimos complican-
Desse momento, surgiu o combi- do nossa convivência.
nado de irmos, no outro dia, conhecer Junto a isso pulsa uma urgência. E
Akurinã, filho da Pajé, morador da Aldeia penso que não fosse a expansão do pen-
Mãe Barra Velha, outra comunidade Pata- samento proporcionado pelo uso de tec-
xó, próxima de onde estávamos. nologias que permitiram o acesso à
Foi um dia de muita caminhada e internet, dali do quarto em Laranjal Paulista,
passagens até chegarmos no Pará, um talvez eu não estivesse aberto para toda
braço da comunidade, o mais longe que essa percepção muito ancestral que tento
pudemos ir naquele dia. colocar em palavras. Uma volta está
Lá morava Mãe Coruja. sendo dada. Um círculo-abraço que gira
Ela nos abraçou, um por um. E o corrente de braços.
pequeno-gigante ápice dessa viagem para Em um pequeno ramo do círculo
o Festival foi o abraço de Mãe Coruja. espiral, minha avó, descendente de eu-
Eu só queria falar sobre os abraços ropeus, que cresceu no campo, em
dela, os nossos abraços. Isso é tudo sobre contato direto com a terra: plantando, co-
um grande abraço feminino.3 lhendo, sem indústria, sem esgoto,
Éramos um tentaculinho de um or- nadando no rio que hoje fede. Minha mãe
ganismo que chegou ali, e ela, o centro também nadou nesse rio, cresceu ali, tra-
de outro, a grande mãe nos recebendo. balhando na plantação para poder comer.
Ficamos ali conversando. Também benze, como fazia seu avô cu-
Mãe Coruja contou sobre o que randeiro. Trabalhavam muito, me contam,
costumavam fazer, sobre como era ser a não era fácil e nem sabiam o que era
curandeira (não gostava de ser chamada utopia. Nem distopia. Eram autossusten-
de Pajé) da comunidade. Disse do conhe- táveis, mas exploradas em algum ponto.
cimento que chegava até ela de forma in- Minha mãe iniciou o processo de ir
tuitiva, como se de repente soubesse o à cidade, junto a meu pai, aliaram-se à in-
112
Dona Lourdes, avó de Fernando Gregório.
Foto: Fernando Gregório.
113
dústria. Eu saí da cidade pequena e levei Notas:
114
Mãe Coruja da Aldeia Pará Caraíva.
Foto: Fernando Gregório.
115
Ritual de Banho,
Raísa Inocêncio.
Fotos: Pierre
Emmanuel Urcun.
116
DO RITO À PRÁTICA, DO OCIO À
TÉCNICA, DO AMOR AO DELÍRIO,
DA FOME AO FIM.
Raisa Inocêncio
124
XAMANISMO:
CORPO E PLANTAS DE PODER
Carla Lyra
125
nifica que não é possível fazer caráter formador de homens e so-
uma distinção entre processos ciedades em sua íntegra (Tucker,
fisiológicos e processos soci- 2010, p.85).
ológicos; transformações do
corpo, das relações sociais e Por sua vez, a Teoria da Relativi-
dos estatutos que as conden- dade revelou uma estrutura espaço/tempo
sam são uma coisa só. Assim, a diversa daquela até então admitida pelo
natureza humana é literalmente pensamento baseado nas leis de Newton.
fabricada ou configurada pela cul- O espaço e o tempo apresentam-se inti-
tura. O corpo é imaginado, em mamente conectados sob a forma de um
todos as sentidos possíveis da continuum espaço/tempo quadrimen-
palavra, pela sociedade (Castro, sional. Para alguns autores como Capra
2002, p. 72). (1995), a nova física é uma parte inte-
grante da nova visão de mundo que agora
A imagem da opressão da nudez está emergindo em todas as ciências e na
de uma índia descrita na Carta de Pero sociedade. Esta nova visão é ecológica e
Vaz de Caminha - em contraste com a baseia-se, fundamentalmente, na cons-
explanação de Viveiros de Castro do ciência espiritual (CAPRA, 1995, p.242).
corpo imaginado pela sociedade - apre- Um dos primeiros teóricos que abordaram
senta o primeiro choque de visões exis- a questão do corpo e memória foi Berg-
tenciais e que permeará todo o processo son - contemporâneo de Einstein e de sua
de colonização e catequização no Brasil. teoria da relatividade:
O céu dos xamãs era o mesmo céu dos
portugueses, mas é a cruz e os rituais Chega um momento em que a lem-
católicos que orientam até os nossos brança assim reduzida se encaixa
dias a jornada civilizatória no Brasil. Os tão bem na percepção presente
caminhos e rituais para essas visões de que não se saberia dizer onde ter-
futuro são abordados através dos enfo- mina a percepção e onde começa
ques da Ciência e da Religião (Latour, a lembrança. Nesse momento
2004) sendo que, a construção da preciso, a memória, em vez de
memória cristã já está intensamente do- fazer aparecer e desaparecer
cumentada e enraizada nas nossas célu- caprichosamente suas represen-
las como podemos ver no exemplo de tações, regula-se pelos detalhes
Tucker (2010): dos movimentos corporais
(Bergson, 2006, p.59).
O cristianismo precisou bem de um
século até que a excitação nervosa Cosmologias indígenas em que as
que o originou fosse convertida em células revivem os tempos dos ancestrais
profissões de fé, dogmas e doutri- e nos remontam a teorias Darwinianas
nas razoavelmente fixas. Porém foi em suas metamorfoses ritualísticas. A
necessário um milênio até que travessia dos limites do corpo na viagem
esses coágulos mentais afun- xamânica: células, átomos, energia. Co-
dassem, por assim dizer, da cabeça mo coloca Viveiros de Castro: “a inici-
até às vísceras, até que se con- ação xamanística talvez possa ser
cretizassem finalmente, por meio de pensada como capacidade de restau-
símbolos, imagens, cantos, cons- rar ou proteger a vida” (2002, p.74). O
truções, rituais e hábitos, num xamã não se deixa intimidar pela linha
126
divisória entre o pensamento científico e o respeitados métodos para adentrar no
pensamento tradicional. O ponto de par- transe necessário para o trabalho xamâ-
tida do seu pensamento é a experiência nico, ou seja, um trabalho focado no
intelectual advinda de diversas viagens corpo e nas suas sensações. São nes-
para outros contextos geográficos ou cos- tas experiências visionárias para contatar
mológicos. O fenômeno do “êxtase” sen- o mundo espiritual e obter conhecimento
do, pois, como uma comunicação com os mágico e sabedoria ancestral onde estão
espíritos através de uma “viagem” pela fundamentados os costumes e valores
cartografia imaginária dos céus e infernos das culturas xamânicas.
(Eliade, 1976).
No animismo, a ideia de aparên- CORPO, XAMANISMO
cia é uma questão de perspectiva: a iden- E A CONSTRUÇÃO
tidade do corpo percebido depende da DA MEMÓRIA INDÍGENA
natureza do corpo da “pessoa” na origem A partir da metade do século XX,
do olhar. O corpo pode ser analisado fora estudiosos como Lévi-Strauss, Mircea
da sua relação necessária com um su- Eliade, Joseph Campbel, Richard E.
jeito- testemunha, mas nenhum sujeito Schultes, Robert G. Wasson, Darcy Ri-
pode ser concebido sem uma inscrição beiro, Roberto da Matta, Michael Harner
corporal determinada. A binacionalidade e outros abordaram estas culturas e con-
ontológica do xamã pode igualmente tribuíram para mudanças do paradigma
provir de uma adoção pelo animal espírito pelo qual os povos xamânicos eram até
e compaixão pelo humano que ele en- então vistos, passando-se a uma va -
contra em sonho ou na solidão da floresta lorização de suas formas de relações so-
(Castro, 2006, p.42). ciais e práticas espirituais2. Em uma
Uma das práticas comuns para retrospectiva nietzschiana (Szabón, 2010),
este contato é a introdução no orga- a implantação da memória através de ri-
nismo de substâncias provocando sen- tuais seria responsável pela construção
sações mais ou menos fortes de mal de uma identidade tribal.
estar que permite modelar a percepção A Antropologia Estrutural e Si-
simétrica. Os psicotrópicos tais como o métrica oferecem um método para a
Yagé ou Ayahuasca1 também conheci- (re)descoberta da ancestralidade em um
dos como “plantas de poder” simbolizam contexto em que o saber tradicional e a
uma metamorfose corporal paralela à al- biodiversidade do universo indígena são
teração de consciência. Estes processos incorporados por vários grupos que prati-
nos apontam para uma reflexão sobre cam o (neo)xamanismo e utilizam a
espacialidade/temporalidade, a manu- Ayahuasca (Goulart, 2004; Labate, 2000;
tenção da identidade cultural e ances- Luz,1996). A Ciência, a Física e a agora
tralidade/simbologia. Tradução de viagens a Medicina buscam também os segredos
e mundos – metamorfoses - processos da ancestralidade indígena e o seu
biológicos e sociais. poder de cura. O trajeto de resgate da
Nem todos os xamãs usam intoxi- memória indígena e seus conceitos é
cação com plantas para obter êxtase, fundamental para a reflexão sobre os ri-
mas toda prática xamânica visa ganhar tuais religiosos e a cura do corpo no
ascensão ao êxtase. As batidas do tam- século XXI. As narrativas dos partici-
bor, a manipulação da respiração, peni- pantes como a de Blanca Pinto3 do Peru
tências, jejuns, ilusões teatrais, abstinência sobre Ayahuasca e xamanismo são um
sexual - todos são, desde muito tempo, exemplo:
127
do convívio familiar e social, ou seja, o
Enquanto que a Ayahuasca produz uso da planta está relacionado a uma
no aspecto bioquímico uma di- perda do corpo, tanto no seu aspecto
namização neuronal (durante a ex- físico como social.
posição a seus efeitos), para o Transe – uma navegação circular
aspecto psicológico constitui uma em torno dos caminhos da memória. O
imersão da mente nas áreas do vídeo também é utilizado por muitas tri-
mito, dos símbolos transpessoais e bos como um instrumento para a
os arquétipos, formando, assim, manutenção da sua memória. Como
algo equivalente ao que é a essên- coloca Damas, o vídeo etnográfico faz
cia das iniciações em muitas cul- uma representação porque ele faz uma
turas antigas. tradução, uma interpretação de outra cos-
mogonia, algo que só o xamã sabe e
Para ilustrar a conexão entre estes pode fazer. O vídeo, ao captar as ima-
conceitos, Luz (1996) coloca o exemplo gens das narrativas e performances mi-
dos Barasana e da ingestão da bebida tológicas, estabelece uma comunicação
feita a partir da Banisteriopsis caapi. A de alteridade na tradução do que está
função da bebida neste grupo é trans- sendo filmado e na comunicação com
portar os indivíduos até o estado ances- outros seres mitológicos (Pellegrino,
tral, devido à sua habilidade de fluir 2003). O xamanismo e o vídeo se in-
através das linhas de descendência, serem num mundo onde tudo são
conectando o passado e o presente e palavras e imagens.
possibilitando a viagem até o passado an-
cestral. Assim, a bebida representa a pos- O xamã narra o que viu durante a
sibilidade de voltar ao início. Quanto mais viagem, ou melhor, ele torna visível
sagrado o ritual, mais forte é a bebida e e compreensível as imagens que
mais próximo o contato com os ancestrais viu nos sonhos e viagens real-
originais. A bebida ensinaria aos homens a izadas a outros mundos cos-
dançar e cantar, os cantos descrevem os mológicos. Todas as narrativas
pontos significativos na jornada dos an- orais e visuais estão submetidas à
cestrais. A experiência corporal (vômito, autoridade do narrador. No caso
diarreia, tonteira) é pensada como central das sociedades indígenas, o xamã
e as visões são tidas como parte do es- cumpre essa função e agora tam-
tado físico que advém a quem ingere a bém o videasta indígena. Se o
Banisteriopsis caapi (Gow 1991, p.19 xamã nos apresenta o que viu e
apud Luz 1996). ouviu em suas viagens a lugares
O aspecto mais relevante da distantes, através de uma narrativa
questão de acordo com os autores seria a oral, a câmera e a televisão tam-
separação corpo/alma e as implicações bém nos apresentam o que viram
desta para os grupos que a experimen- e ouviram em suas viagens a lu-
tam através da bebida. O que está em gares distantes (2011, p.4).
jogo é a imortalidade vivenciada durante
o transe; esta é entendida como uma Xamanismo: um método trilhado
transcendência da condição humana que por vários grupos na atualidade para
se dá no desligamento dos vínculos afe- acesso a sua ancestralidade e para o de-
tivos e sociais. Isto porque exige uma senvolvimento da pesquisa sobre rituais,
preparação que implica num afastamento performance e estudos interdisciplinares
128
na área do corpo, memória e imagens. Notas:
129
130
A TÉCNICA COMO DIPLOMACIA
COM NÃO HUMANOS
Hilan Bensusan
131
desenvolvimentos de técnicas já que elas (do baixo Amazonas, mas também da
estão presentes sempre que algum em- Sibéria, de partes do Canadá e outras
pecilho é superado. Os entes da técnica partes do mundo), com os totemistas
são permissores, são aqueles que tornam (presentes na Austrália, mas também em
possíveis passagens, transições. As téc- regiões dos EUA) e com os analogistas
nicas humanas afetam o meio circun- (presentes na maior parte das popu-
dante de humanos e não-humanos – são lações antes do advento dos Modernos,
técnicas que produzem nichos onde a marcadamente no México, Perú, China,
pressão do ambiente sobre os organis- Japão e Índia), os Modernos são natura-
mos se transforma e podem ser contro- listas. O naturalismo se caracteriza pela
lada: cidades, estradas, túneis mas postulação de uma fisicalidade comum
também florestas manejadas, terras fertili- entre humanos e não-humanos associa-
zadas, combustível fóssil extraído. As téc- da a uma interioridade diferente – hu-
nicas tem também suas consequências manos possuem interioridade e em
imprevistas, negligenciadas e descon- variedades, assim a um mononaturalismo
sideradas e também elas – como enfati- se ajunta um multiculturalismo. A natureza
zam as tradições tecnófobas – dão forma aparece como um conjunto de puras fisi-
ao mundo. calidades que engloba o solo, as ca-
E no entanto, ainda que íntimos da madas geológicas, o espaço sideral, os
técnica, os Modernos não se sentem à animais e as plantas. A natureza res-
vontade para pensá-la. Para entender a ponde a uma fisicalidade comum que é
dificuldade que espanta a etnografia, é frequentemente entendida como um
preciso entender alguns elementos das domínio de leis – não leis politicas discu-
disposições ontológicas e políticas dos tidas em assembleias, mas leis cujo es-
Modernos. São estas disposições que tatuto ontológico é semelhante ao daquilo
estão sempre à beira de jogar os objetos que está sob o jugo de um soberano es-
técnicos em direção ao escopo do im- trangeiro com o qual não se pode nego-
pensado. Elas tornam os objetos técnicos ciar. Todo não-humano, portanto,
frequentemente excessivamente híbridos compartilha com os humanos uma fisica-
e arredios, muitas vezes submissos mas lidade que obedece a leis fixas pré-esta-
nunca inteiramente cidadãos, muitas belecidas e pode ser acessado apenas se
vezes domesticados mas nunca inteira- for possível alguma medida do conheci-
mente vizinhos, muitas vezes antropo- mento objetivo que os modernos prezam,
mórficos mas nunca inteiramente culturais. pensam ter elementos suficientes para
Eles habitam os territórios das bordas pensar e vislumbram sempre os perigos
entre o puramente humano e o natural – de por em questão. O não-humano é ob-
e são incômodos porque transitam de jeto de conhecimento – tratar com ele
uma maneira particular entre as vicissi- deve ser sempre mediado por verdades
tudes das fronteiras através das quais os que são pensadas como construções que
Modernos se reconhecem. precisam do auxílio de partes do mundo
mas como uma adequação do intelecto à
2. Para começar, consideremos a coisa. Para o naturalismo, o não-humano
disposição ontológica atribuída aos não é um polo de negociação, mas um re-
Modernos por Descola2 em seu esforço curso disponível.
por comparar as diferentes formas de re- O naturalismo, neste ponto, con-
lação entre humanos e não-humanos no trasta diretamente com o animismo que
planeta. Em contraste com os animistas postula que humanos e não-humanos
132
têm uma fisicalidade distinta e uma interio- de enviar humanos de seu coletivo à
ridade em comum. Assim, no animismo, caça. Esta negociação requer que o
corpos são dissemelhantes de modo que xamã conheça como funciona a so-
um pode se camuflar no outro, mas uma ciedade dos porcos selvagens; porém isto
transformação de um humano em uma não é suficiente, é preciso saber apre-
onça, por exemplo, corporal só é possível sentar suas demandas e saber abrir mão
se a identidade da interioridade se man- de algumas delas escutando a demanda
tém. O animismo associa a um monocul- que surge do outro lado da mesa. Como
turalismo – a cultura comum a humanos e na prática da diplomacia entre países, ne-
a não-humanos centrada em uma interio- gociadores tem que estar presentes na
ridade comum que se revela na capaci- mesa – e tem que ter poderes para refor-
dade de ter uma perspectiva – um mular demandas, reinterpretar requisitos,
multinaturalismo que postula que os cor- abrir mão do que começar a parecer, du-
pos são intrinsecamente diferentes. rante a negociação, menos importante.
Como o não-humano tem uma interiori- Davi Kopenawa4, um xamã yanomami,
dade, ele pode se engajar em uma nego- insiste na importância da presença dos
ciação já que é um agente capaz de ter xamãs para a preservação da floresta: a
relações sociais de todo tipo. A interiori- palavra deles tem que estar sempre por
dade não-humana pode, para o animista, perto, eles não podem registrar por es-
ser acessada pela mesma teia de nego- crito o que sabem porque suas palavras
ciações e acordos que se estende pelo in- são relevantes onde elas são pronuncia-
terior das sociedades humanas – o das.5 A presença dos xamãs é importante
não-humano aparece como uma so- porque as negociações não obedecem
ciedade estrangeira, mas do que um ele- simplesmente a manuais ou a instruções
mento externo à qualquer sociedade, prontas, elas tem que ser repensadas a
como o naturalista o entende por meio da cada circunstância, a cada vicissitude.
postulação de uma natureza. Assim, é As relações com os não-humanos,
possível no animismo acessar o não-hu- para naturalistas e animistas, tem por-
mano não através do conhecimento das tanto uma forma muito distinta. Descola
leis que objetivamente o rege, e que não cataloga diversas relações ecológicas
podem ser negociadas com o poder que que são possíveis entre um humano e
as constituiu, mas através de uma nego- seus outros. Entre as relações (potencial-
ciação já que podemos nos relacionar mente) reversíveis, ele considera a
com ele, por assim dizer, de interioridade predação, a troca e a dádiva – as três pre-
para interioridade. O trabalho do conheci- sentes entre coletivos animistas na re-
mento não versa sobre substâncias pré- lação entre humanos e não-humanos. Os
existentes, como enfatiza Descola3. O Jivaros – os Achuar, os Huambisa, os
não-humano pode estar fora do nosso co- Aguarunas – primam por uma relação
letivo, mas não está fora do escopo da predatória com o não-humano, eles
negociação, e portanto não está fora do tomam o que lhes interessa e esperam
âmbito de qualquer diplomacia. É interes- hostilidade da parte prejudicada. E con-
sante notar que então o xamã animista traste, os Tukanos do Rio Negro se es-
atua como um diplomata, mais do que forçam por um balanço e um equilíbrio
como um sábio conhecedor dos segredos nas relações de troca enquanto os
prontos do domínio dos não-humanos. O Campa – Ashaninka, Matsiguenga, No-
xamã negocia em sonhos, por exemplo, matsiguenga – acreditam que sua relação
com o xamã dos porcos selvagens antes com os não-humanos devem envolver
133
relações de dádivas. Importante que em Quando elas lidam com o não-humano,
todos estes casos, há uma disposição on- elas são eficientes se elas estão correta-
tológica animista; ou seja, a ontologia não mente informadas pelas leis que regem o
determina nenhuma relação ecológica es- domínio da natureza – elas são não mais
pecífica com o não-humano. Mais impor- do que aplicações. Os objetos técnicos só
tante é que nos três casos trata-se de podem então ser entendidos dentro de
relações que podem ser descritas como uma ontologia em que eles são sub-
diplomáticas pois a predação, assim sidiários dos postulados da ciência e súdi-
como a troca e a dádiva, pode ser enten- tos de um domínio de leis. As técnicas (de
dida como uma forma de negociação na saúde, de construção, de agricultura) que
medida em que a hostilidade é esperada: são recalcitrantes a esta submissão ao
há que se proteger da parte que foi conhecimento objetivo ficam impensadas
predada. O roubo e o saque são, em e assim, a tecnologia, como estudo das
certo sentido, ainda formas de negoci- técnicas, ou é impossível ou é um exercí-
ação. Em contraste, os naturalistas não cio trivial de tirar consequências de teo-
mantém relações ecológicas diplomáticas rias científicas estabelecidas (ou futuras).
com o não-humano – eles nem sequer Gilbert Simondon se esforçou por
predam, já que quando saqueiam flo- problematizar e apresentar uma alterna-
restas ou mananciais esperam hostilidade tiva a esta ontologia das técnicas como
apenas da parte dos humanos que são meros corolários das especificações cien-
donos ou tem alguma forma de soberania tíficas.6 Ele entende que um objeto só é
sobre estes não-humanos. As negoci- entendido como forma e matéria fora da
ações se dão sempre entre humanos e oficina onde ele é produzido – de um
humanos – até porque só eles possuem ponto de vista de dentro da oficina, a in-
interioridade para que seja possível uma dividuação nunca perde seu caráter rela-
relação diplomática. O não-humano é cional. Ele privilegia o ponto de vista da
posto na vala comum da natureza, que produção de um objeto, que é o ponto de
não está aberta a negociações de nenhum vista das operações que fazem ele ter
tipo e da qual só podemos nos aproximar lugar – a relação de um pedaço de
com conhecimento (objetivo) de causa. madeira singular com um equipamento
Para os Modernos, naturalistas, a em um estado singular, inseridos em um
técnica, portanto, pode ser pensada – de espaço de trabalho específico. Este ponto
soslaio e sempre de passagem – como de vista faz com que a individuação seja
uma aplicação prática das teorias (cientí- não uma questão de substancialidade,
ficas) que fazemos sobre os não-hu- mas antes de alagmática – ou seja, um
manos: boa a teoria, eficaz a técnica. Os assunto de vicissitudes. Alagmática vem
Modernos pensam pouco sobre os pon- do grego “allagma”, que é traduzida como
tos em que as aplicações e a teoria ficam “custo” ou “preço”. Ou seja, um objeto é
incompatíveis – a técnica não tem au- sempre o resultado das operações das
tonomia em relação à formulação e ao quais ele resultou – operações que são
teste de um conhecimento sobre o não- sempre negociações onde se paga um
humano. As técnicas são um apêndice custo. Como em qualquer tradução, al-
bem considerado e apreciado, porém guma coisa é perdida e alguma coisa é
menor das ciências. Tudo o que se pode ganha no processo, mas o transporte por
dizer sobre elas parece ser que elas são um duto, frequentemente, tem um custo.
fruto de uma aplicação bem-sucedida de Enxergar a individuação como um con-
uma porção de conhecimento objetivo. junto de operações permite a Simondon
134
não entendê-la como consequência de certos impasses possam ser transitados.
uma substância, como consequência de É por isso que as técnicas podem caber
um conjunto singular de operações. em um manual ou em uma caixa de fer-
Simondon então considera os ob- ramenta, mas os genuínos e eficazes ob-
jetos técnicos nesta perspectiva: eles são jetos técnicos se encontram no meio das
produtos de um conjunto singular de ope- coisas, não são só palavra escrita ou
rações. Cada um deles traz as marcas da repositório, mas são presença em uma
sua alagmática: as circunstâncias que específica vicissitude.
lhes deram específicas capacidades e po- É claro o que parece emergir: há
tencialidades. Menos que elementos de um elemento dos objetos técnicos que é
uma ordem técnica que obedece princí- um elemento diplomático, um elemento
pios técnicos de pensamento, os objetos de negociação com os não humanos. É
técnicos são entendidos como emaranha- por meio da presença da técnica que
dos de bricolages, como sucessivas acu- alianças com não-humanos são construí-
mulações de gambiarras pelo qual o das; as técnicas oferecem uma capaci-
acoplamento a uma circunstância não dade de firmar acordos que afetam as
está jamais garantida e sempre surgem ações dos não-humanos. As técnicas são
variáveis custos de transporte na sua apli- instrumentos de negociação, mas como
cação a uma outra vicissitude. Os objetos em qualquer diplomacia, não basta que
técnicos não tem uma substância que elas sejam repetidas, elas tem que ser
condensa um grupo relevante de leis da reimplementadas em casos específicos,
natureza e nem tem um escopo de apli- diante de negociações com demandas
cação demarcável de uma vez por todas. singulares. Os engenheiros, tal como os
Eles são antes condensações singulares attachés das embaixadas, tem que estar
de operações de mediação a serem usa- muitas vezes presentes no lugar onde se
das em outras vicissitudes onde algum desenrolam os toma lá dá cá. A presença
impasse requer uma intervenção. Assim, dos técnicos permite que a alagmática
as técnicas para cortar galhos de árvores, seja conduzida de modo favorável, que se
manter uma roça de mandioca, construir reduza ao máximo o custo de uma insta-
dutos ou preservar nascentes são ele- lação ou de um equipamento de modo
mentos que podem ser usados em situ- que se possa contornar vicissitudes des-
ações específicas em que algum impasse favoráveis. No entanto os objetos técni-
tem lugar – uma planta que não cresce cos eles mesmos fazem o trabalho de
por falta de sol, uma população que não mediação – nos casos mais expressivos
tem como se alimentar, uma falta regional entre humanos e não-humanos. Eles pro-
de água ou uma exposição a variações movem a mediação dos consumidores de
climáticas. Diante destes elementos não- água e dos mananciais, das comedores
humanos, as técnicas são artifícios no de carne e dos animais vivos, dos mate-
processo de negociação. Sim, elas apare- riais anônimos e dos usuários de mobília.
cem como artifícios a serem utilizados em A técnica é uma diplomacia especial, ela
particular no contato com o não-humano. vem de uma era pré-naturalista e se es-
Não são conhecimento da natureza – tende pelos coletivos dos Modernos. Para
conhecimento de como substancialmente os naturalistas, é a sombra de uma nego-
funcionam ou são compostos os não-hu- ciação com o não-humano que eles não
manos – mas são antes elementos medi- sabem mais como articular. Eles fazem
adores, dispositivos de interação, em uso dos objetos técnicos, eles fabricam,
particular, artifícios diplomáticos para que mas como ergue suas mãos para o céu a
135
etnógrafa, perdoai-os, eles não sabem o que sua estrutura societária não permitiria
que fazem. uma maior população. Aqui é interessante
especular se o preço pago pelo aumento
3. Consideremos agora a dis- da população humana nestes coletivos é
posição política dos Modernos em con- a exclusão, por meio de um ostracismo
traste àquela dos chamados povos de qualquer participação política ou, nos
primitivos na discussão inaugurada pelos termos que uso aqui, de qualquer partici-
trabalhos de antropologia política de pação diplomática dos não-humanos. O
Pierre Castres. Clastres entende que a Estado é, entre outras coisas, um dispo-
civilização com estado estão em irrever- sitivo de ostracismo político (diplomático)
sível descontinuidade com as sociedades dos não-humanos; esses últimos passam
que são sem estado (e sem poder político a ser alijados da sua condição de agentes
e sem produção de excedente). Tais so- com os quais se negocia.
ciedades são entendidas por ele como Deleuze e Guattari consideram
sendo sociedades contra o estado pois que sociedades com Estado coabitam
elas articulam todo um arsenal de dis- com sociedades contra o Estado – e as
positivos de diferentes naturezas para im- últimas estão presentes na forma de
pedir que instituições de poder político se muitas associações e bandos que encon-
instaurem e se estabilizem. Os chefes tram forma de exorcizar a chefia política
guerreiros emergem eventualmente e há estruturada em seu seio. Eles insistem
mecanismos que garantem que eles não também que tais agrupamentos são o
se perpetuem ou estabilizem uma estru- fora do Estado, do qual ele precisa e do
tura de poder político. Há uma proteção qual se nutre. São repositórios de acor-
contra a emergência de poder político e dos negociados em forma bruta sem a
os chefes guerreiros, em busca de prestí- mediação do poder político instituído.
gio, tem que negociar com outros ele- Esta ordem às vezes combate, às vezes
mentos dos coletivos sua autoridade em incorpora e às vezes convive pacifica-
começar ou terminar um episódio de mente com tais associações. Há portanto
guerra. Não há nada de estável no poder negociações que se dão a margem do
político – há uma insistente resistência à poder político e, se é assim, há negocia-
estabilidade do Estado. Clastres compara ções que se dão à margem de uma es-
os dois tipos de sociedades e insiste que fera que se limita a propiciar negociações
as sociedades com Estado não são ape- entre humanos. Aqui talvez possamos en-
nas um produto de sedentarismo ou da contrar outra vez os objetos técnicos: com
presença de dispositivos neolíticos – é eles formamos sempre sociedades anti-
preciso uma revolução política para ins- Estado. São associações que não estão à
taurá-lo. E quando isso é feito, uma teia disposição – como recursos à disposição
de poder político paira sobre o que antes do soberano – de nenhum elemento de
era negociado caso a caso; o poder poder político estabelecido -, há um sen-
político se imiscui na alagmática das re- tido em que tais associações não estão
lações. Mas o poder político oferece uma sob a égide do poder político ainda que
plataforma – e um roteiro – de negocia- ele procure não ser atacado por elas e
ção que paira apenas sobre os agentes muitas vezes intente incorporá-las para
humanos. Clastres pensa que uma expli- seus objetivos. Os não-humanos, assim
cação para a emergência do Estado pode como os mediadores que nos permitem
estar na demografia: sociedades contra o fazer alianças com eles, estão fora do es-
Estado se fragmentam constantemente já copo desse poder e só são afetados por
136
ele através de uma mediação humana manos disponíveis para serviços estatais
(como o dono da floresta a quem os Mo- de inteligência.
dernos sim podem saquear). O funciona- Objetos técnicos aparecem muitas
mento de um drone, por exemplo, vezes como instrumentos de controle.
envolve uma associação de não-hu- Tecnologias são usualmente desenvolvi-
manos e objetos técnicos que se acoplam das como dispositivos de destruição –
a interesses humanos e que não podem para fins de acoplamentos com corpos
ser cooptados para sempre pelos militares – e vigilância – como câmeras
poderes do estado. A negociação com os automáticas e drones – ou como equipa-
elementos não-humanos que fazem os mentos de aumento de produção. Em
drones funcionarem em uma circunstân- todos estes casos, mais do que negocia-
cia qualquer depende dos objetos técni- dores com o não-humano, os objetos téc-
cos que, por sua vez, estão fora do nicos parecem, antes, elementos
escopo do poder político. As associações gra dativamente incluídos no convívio
que envolvem objetos técnicos são dos humanos. E, mais do que isso, ele-
assim: passam ao largo dos poderes mentos que se acoplam aos humanos, os
políticos que tentam capturá-las de al- transformam em cyborgs, tornando-os
guma maneira. Em todos os casos, o que mais controláveis, menos flexíveis e,
está à disposição dessa ordem de poder talvez menos não-humanos. Os soldados
são os elementos humanos envolvidos que controlam armas remotas sentado
nestas associações – os objetos técnicos em um painel de controle ficam menos
não são cidadãos. sujeitos às vicissitudes trazidas pelos ele-
C V. Gheorghiu escreveu um con- mentos não-humanos no terreno, mais
troverso romance sobre a tecnicização da vigiáveis e, ao mesmo tempo, menos
Europa nos anos que se seguiram à Se- sensíveis ao que ocorre do outro lado do
gunda Guerra Mundial.9 Nele, os chama- campo de batalha. A guerra é a continua-
dos escravos técnicos são apresentados ção da diplomacia por outros meios – e
como uma população de submissos os dispositivos de mecanizar a guerra
agentes postos à nosso serviço e que es- continuam a diplomacia do humano com
tariam gradativamente tomando o con- o não-humano tornando o humano ele
trole da sociedade humana em um mesmo acoplado ao não-humano com o
episódio de escravos que se tornam qual ele negocia. Nos casos de equipa-
mestres. Os escravos estariam então mentos de guerra, como nos de equipa-
tomando conta do Estado e fazendo uso mentos de vigilância e de produção, os
dele para seus próprios propósitos. A objetos técnicos se acoplam aos corpos
posição de Gheorghiu parece fazer eco a humanos que passam a ser parcialmente
muitas outras de sua época: os objetos dirigidos pelas necessidades da máquina.
técnicos se mesclarão com o poder As máquinas influenciantes de
político e confabularão gradativamente Victor Tausk10 – ancestrais das máquinas
uma tecno-dominação em que os hu- desejantes de Deleuze e Guattari no Anti-
manos estarão inteiramente enredados. Oedipe – mostram-nos como os corpos
Esta distopia se instância, por exemplo, podem ser concebidos como sob a in-
nos equipamentos de guerra monopoliza- fluência de uma máquina. Tausk estuda o
dos pelo Estado, nos dispositivos de con- caso, por exemplo, da paciente Natalija A.
trole à serviço da ordem política que acredita que seu corpo está sendo
espalhados por toda parte, nos mecanis- controlado por uma máquina operada por
mos de coleta de informação sobre hu- seu ex-noivo. Ela concebia a mecânica da
137
máquina como tendo aparatos eletrônicos armam o bote para o capitalismo e que,
capazes de determinar seus movimentos portanto, há que se conceber o futuro
e que, ao mesmo tempo, substitui seu como sendo maquínico, em que os cor-
corpo. Aqui o acoplamento do objeto téc- pos humanos estarão mais e mais
nico ao corpo está em função de um con- acoplados a dispositivos técnicos e o me-
trole humano, mas o resultado é que o lhor a fazer é erotizar o acoplamento –
desejo deixa de ser um elemento não-hu- mesmo que se tenha que trilhar os rastros
mano com o qual há que negociar – um do (aparente) masoquismo do capital. A
assunto de hormônios, genes, microbiota promessa então parece ser a de romper o
e fisiologia do corpo – e passa a ser ori- confinamento do humano estabelecido
entado à subserviência a um poder ex- pelas instituições modernas – entre elas o
terno. Natalija atribui à máquina Estado e o Capital – por meio de uma
influenciante tanto seus movimentos livre entrada de não-humanos em forma
quanto seus desejos. A máquina é parte de diplomatas técnicos pela porta dos
de um dispositivo que acopla ela e seus fundos. Em uma interessante seção de
controladores externos. Aqui também a seu recente livro de crítica ao acelera-
mesa de negociação posta para Natalija é cionismo, Benjamim Noys12 considera a
reveladora: ela negocia com o não-hu- máquina de trabalho e de sexo. O ace-
mano entregando a ele seu corpo. Os leracionismo propõe, ele diz, uma síntese
corpos adaptados ao acoplamento com a entre o trabalho humano e o desejo hu-
máquina inserem no seu interior as de- mano. Mas com isso, ele paga o preço de
mandas técnicas que tornam o não-hu- trazer erotismo humano para o aborrecido
mano tratável – a alagmática do humano campo do trabalho – e da produção. Noys
acoplado à técnica é a do não-humano entende que quando o aceleracionismo
trazido para o seu interior, no qual é pos- pretende encontrar uma forma de erotizar
sível faire corps com os objetos técnicos o maquínico, ele mecaniza o erótico. Não
que estabelecem as ententes. se trata, na agenda aceleracionista, de
O tema do acoplamento com as procurar uma outra técnica, uma outra
máquinas é parte do debate recente, que diplomacia com o não-humano, mas de
tem muitas dimensões, acerca de um an- tratar de gostar de um sexo fordista ou,
ticapitalismo aceleracionista.11 O acopla- talvez, de uma prática libidinal pautada na
mento margeia também a questão do vida pós-fordista do cognitariado. O
incremento técnico da produção capita- acoplamento com a técnica aqui não fica
lista por meio da mecanização da pro- posto à serviço senão de um esquema de
dução que localmente diminui a demanda diplomacia onde os elementos não-hu-
por força de trabalho mas, segundo uma manos já estão alistados antes do início
célebre tese marxista aponta para o de- de qualquer episódio de negociação.
clínio das taxas de lucro – o problema Ainda assim, o acoplamento,
chamado muitas vezes de tendência. De porém, não faz dos objetos técnicos
fato, os casos de acoplamento estudados cidadãos – ou consumidores. O estado –
por Tausk são um produto da revolução ou o capital - tem sempre seu poder limi-
industrial que colocou as máquinas no tado às associações humanas e os obje-
cerne do convívio de trabalho. O prole- tos técnicos são diplomatas dos
tariado foi quem primeiro experimentou o não-humanos contrabandeados para o
estado de acoplamento. O acelera- meandro das sociedades com estado dos
cionismo defende que são os instrumen- Modernos. Estes objetos não podem ser
tos do capital – e sua velocidade – que alistados a causa alguma de uma só vez,
138
eles resistem ao poder político porque elementos não-humanos de seus ambi-
eles habitam na alagmática da diploma- entes são diplomáticas. Já os Modernos
cia. É o outro lado do acoplamento – entendem o não-humano como fora do
aquilo que responde às associações hu- escopo de qualquer articulação
manas – é que é transformado com o diplomática – e entendem mesmo os hu-
convívio com as máquinas de produção, manos como parcialmente desprovidos
destruição e vigilância. O poder político – de soberania diplomática uma vez que
como o poder econômico - não atua eles são restringidos pelo poder político
sobre os objetos técnicos, mas atua sobre instituído (supostamente de uma vez por
aqueles que se acoplam a eles. São os todas). Os Modernos criaram o disposi-
humanos tecnicizados que continuam tivo do recurso: recurso é o não-humano
parte de uma sociedade com estado – que está à nossa disposição, res-
ainda que os objetos técnicos sejam al- guardada a distribuição das propriedades
heios ao poder político. O que está à dis- humanas, e recurso é o que está à dis-
posição do Estado são os elementos posição do Estado, que tem o monopólio
humanos acoplados – é sobre eles que da coerção para fazer com que sua pop-
pesa o impacto das instituições humanas. ulação possa servir aos seus interesses
Os acoplamentos talvez sejam a aposta (econômicos, militares ou demográficos).
dos poderes econômicos e políticos em A criação do dispositivo do recurso é tam-
condicionar os humanos a algumas re- bém a invenção da biopolítica: recursos
lações diplomáticas com o não-humano, da fisicalidade, em grande parte indepen-
em detrimento de outras. dente de qualquer interioridade, estão à
4. Seja como for, podemos agora disposição do poder político.
pensar no mesmo fôlego nos coletivos Podemos então entender um
aglomerados sem a presença de poder pouco da dificuldade moderna em pensar
político tal como aparecem nas dis- as técnicas fora dos marcos das cons-
cussões iniciadas com Clastres de um truções teóricas da ciência. As teorias
lado, e nos coletivos animistas estudados científicas são elas mesmas resultado de
por Descola de outro. Afinal, ambos os construções negociadas com os não-hu-
diagnósticos apontam para os mesmos manos das quais elas tratam – e essas
coletivos e em ambos os casos há um negociação cada vez mais depende da
contraste ilustrativo que nos permite pen- colaboração dos objetos técnicos dos la-
sar em disposições ontológicas e políticas boratórios. Os Modernos não conseguem
dos modernos que constituem so- desatrelar a técnica da ciência porque
ciedades com estado e pressupõem for- não conseguem pensar na ciência senão
mas de naturalismo. Os animistas, que como um acesso não-mediado a uma na-
atribuem interioridade ao não-humano ao tureza pré-moldada. As negociações que
invés de postular uma natureza que se envolvem a construção das teorias – e
presta a um conhecimento de substân- dos experimentos que provêm sua
cias pré-existentes, são os mesmos que aceitação – são opacas e só transparece
resistem ao estado e insistem que todo à face das teorias como espelhos de uma
poder de chefia tem que ser negociado natureza subsistente. Esta opacidade faz
caso a caso e que as instituições não com que as técnicas, elas mesmas, se
podem retirar a força e a soberania das tornem invisíveis mediadores das re-
negociações. Suas práticas e suas técni- lações dos Modernos com os não-hu-
cas de subsistência, incluindo o xama- manos – talvez um dos poucos canais de
nismo que articula acordos com os negociação que lhes restou, ainda que
139
eles não sabem o que fazem. O modelo
do xamanismo, onde os não-humanos
são convocados e protagonizam acordos
que pautam a ação humana, não está no
horizonte dos Modernos. Eles usam téc-
nicas, mas as usam cegos pela natureza
inegociável e pelo estado que pode inserir
poder político em qualquer genuína arti-
culação diplomática. Através das técni-
cas, os não-humanos seguem falando –
e em certa medida seguem sendo escu-
tados – mas sua voz é ouvida como se
viesse de parte alguma.
Notas:
1. Tradução do autor do seguinte trecho de Enquête sur les na fricção entre as máquinas territoriais primitivas e as
modes d’existence (Paris: La Decouverte, 2012), p. 214: máquinas territoriais despóticas tal como ela é descrita
“[...] pour mille ouvrages sur le bienfaits de la connaissance por Deleuze e Guattari no Anti-Oedipe (Paris: Minuit,
objective – et les risques mortels que ferait courir sa mise 1972). Ver também H. Bensusan, “O cartório e a caixa
en cause – il n’y en a pas dix sur les techniques – et pas registradora”, in: Trans/form/ação, 35, 3, 97-112.
trois pour signaler le danger mortel que l’on courrait a ne 6. Cf., em particular, Du mode d’existence des objets
pas les aimer. [...] Que ferions-nous de [ la philosophie de la techniques (Paris: Aubier, 1958) e L’individu et sa genèse
technologie ]? Tout le monde le sait que la technique n’est physico-biologique (Grenoble: Jerôme Millon, 1995).
rien qu’un tas de moyens commodes et compliques. Il n’y a 7. Cf. Societé contre l’état (Paris: Minuit, 1974).
rien à penser. [L’ethnologue] continue de s’étonner qu’il 8. Cf. Mille Plateaux (Paris: Minuit, 1980), 441-446. Na
n’existe pas plus d’institution legitime pour accueillir les edição brasileira, Mil Platôs, v. 5, tradução de Peter Pál
techniques que pour aprendre à transiger avec les êtres Pelbert e Janice Caiafa, 18-24 (São Paulo: editor 34,
psychogènes. Comment les Modernes ont-ils pu rater 1997).
l‘étrangeté, l’ubiquité, oui, la spiritualité des techniques? 9. Cf. La vingt-cinquième heure (Paris: Plon, 1965).
Manquer leur somptueuse opacité? Elle se met à noter: << 10. “On the origin of the “influencing machine in
On ne sait vraiment pas ce qu’ils fabriquent. Père, schizophrenia”, J Psychother Pract Res. 1992 Spring;
pardonnez-leur, ils ne savent même pas ce qu’ils font. >>”. 1(2): 184–206.
2. Cf. Par delà nature et culture, Paris: Gallimard, 2005. 11. Cf. por exemplo, Robin Mackay & Armen Avanessian,
3. Op. Cit. 390. #Accelerate – The Accelerationist Reader, Falmouth:
4. Cf. La chute du ciel: paroles d’un chaman yanomami, Urbanomic, 2014.
Kopenawa, D & B. Albert (Paris: Plon). 12. Malign velocities: Accelerationism and Capitalism
5. A palavra escrita é muitas vezes associada a presença (Hants: Zero, 2014), pp. 46-48. As discussões sobre o
de um déspota, a presença de um elemento em que aceleracionismo e sobre a “tendência” são pontos de
possa haver éditos. Os coletivos animistas, como partida para pensar a técnica como diplomacia. Deixo o
veremos, são muitas vezes não-despóticos. Sobre isso, é caminho aqui apenas indicado.
interessante considerar a importância da palavra escrita
140
#EXCERTO3
mbraz
141
"Há os conceitos, que são a in-
#EXCERTO7 venção da Filosofia, e há o que podemos
chamar de perceptos. Os perceptos
[...] fazem parte do mundo da arte. O que são
Que você conheça manguezais os perceptos? O artista é uma pessoa
& realidades não-humanas que cria perceptos. Por que usar esta
Que são a essência da Poesia palavra estranha em vez de percepção?
Que você conheça o sussurro do Sol Porque perceptos não são percepções.
Na água ferruginosa dos seus olhos. …
(RP, 2008)
É Thomas Wolfe. Ele descreve o
Natura | Caos | MetaReal ¿Na- seguinte: "Alguém sai de manhã, sente o
tureza é até onde percebes! ¡Pejiroquý ar fresco, o cheiro de alguma coisa, de
que, ivaíta ma yvý! | ¿Aépy ojiói jevy, pão torrado, etc, um passarinho passa
mamória ojirói ápy? voando... Há um complexo de sen-
A civilização ocidental [isso é sações. O que acontece quando morre
grande demais, não?], naquilo que se aquele que sentiu tudo isso? Ou quando
origina na filosofia grega [como se hou- ele faz outra coisa? O que acontece?"
vesse somente a Grécia em determinado …
momento da história…] ainda guarda em
seu cerne algo de aristotélico, ou melhor, Para mim, os afetos são os de-
de lógica aristotélica. Por sua vez isso se vires. São devires que transbordam
mistura a uma espécie de platonismo daquele que passa por eles, que exce-
cristão que não consegue ver as diversas dem as forças daquele que passa por
camadas [instâncias] da realidade. Preso eles. O afeto é isso. Será que a música
ainda em dogmas de verdade [seja lá o não seria a grande [uma das] criadora de
que isso signifique]. afetos? Será que ela não nos arrasta
Usarei aqui o conceito de Reali- para potências acima de nossa com-
dade na sua acepção mais simples: preensão? É possível.
daquilo que é compreendido profun- …
damente como extensão de todas as
possibilidades de Existência. Pois Eu sonho com uma espécie de cir-
desse modo Existência vai além da ca- culação entre uns e outros, entre os con-
pacidade de compreensão do humano, ceitos filosóficos, os perceptos pictóricos,
compreende o Animismo como exten- os afetos musicais. E não é de se espan-
são da Ciência. Concebe a Existência tar que existam repercussões. Por mais
como o além do limite humano, como independentes que sejam estes traba-
aquilo que ultrapassa a si mesmo [self]. lhos, eles se penetram constantemente."
Não vou me alongar nisso, alguns pode-
riam chamar de metafísica, magia, xa- Além dessas potências [possibili-
manismo e pajelança. dades] acima de nossa compreensão
Para se ater a uma referência mais temos a Paradoxa, aquilo que sabemos
conhecida e próxima no tempo, apelo a existir mas não queremos aceitar como
excertos da fala de Deleuze [mais interes- Realidade. Campo vasto, amplo e com-
sante que seus textos, pois remete a plexo. Para essa jornada, a bússola da
tradição oral], trata-se de uma entrevista: lógica clássica não serve mais. Essa jor-
nada é a dXs misticXs, o lugar onde se
142
ultrapassa tanto o Real quanto a si limitação] e uma possível tabela a partir
mesmo… a característica que define tanto de lógicas paraconsistentes [metaconsis-
o Xamã quanto o Pajé: ir aos locais do tentes, lá onde a verdade não é o limite já
desconhecido e voltar para relatá-los. Não que essa mesma não pode ser definida].
importa muito qual é o Oráculo ou qual a Dessa triste lógica binária [na real,
técnica utilizada, há tantas quantos corpos monoteísta, pois conserva a verdade
existirem. Pois no limite dos corpos, essa como referência única]. Tudo que não é
técnica é encontrada. Por isso chamare- verdadeiro [???] ou em oposição é falso
mos esse modo de compreender profun- ou desconhecido. Coloca-se o descon-
damente as diversas camadas do Real de hecido como o lugar em que não pode
Extâse. A Poesia do Êxtase. haver realidade [!?].
A seguir uma tabela onde se com- Onde houver X desconhecidX, lá
para a lógica clássica [e sua profunda caminharemos [Magia].
A B A ou B AeB Não A
A B A ou B AeB Não A
143
Ali onde o gavião do Norte resplandece
sua sombra
do vodu da aurora
na investida louca
Almofadas de floresta
Focinho silencioso da suçuarana com
passos de sabotagem
(RP, 2008)
144
EROSÃO
& RESTAURO
philippe wollney
145
pernambucanalha : uma história de con- & a morte & depois-da-morte voltam &
tradição-sobreposição-não-linear de sé- matam & bebem & fumam & falam &
culos & sacaroses & celuloses & celulites calam sentados velhos-pretos de pelos
& sanatórios : um escritor louco & sem brancos & tragam fumo & sonhos em
“bom-gosto & bom-senso” entre a crise tamborete & num canto de parede & no
do econômico & do ecológico : entre os balcão do bar : num só trago envenenar
microestados do narcotráfico & os micro- as várzeas do sirijí & capibaribe mirim : os
processadores da microsoft & maris- fantasmas e fantoches destas terras de
queiras : entre iphan & i-phones & cidadelas & engenhocas : memória de
impostos & importados & china & chique uma pororoca de opressão
& chico & chopp & champignon & char-
que : o rural urbanizado & deteriorado &
homogeneizado em plantations & agro- RESTAURO:
tóxicos & vinhoto sobre o solo lixiviado : “no universo existem inúmeros compas-
compartimentado : salinizado : águarrim : sos, dês/compassos, ritmos simultâneos,
controles artificiais de comportamentos sem contradição, direções distintas ao
sociais que já não condizem mais ao mesmo tempo do mesmo corpo, sem a-
idílico hectare da lavoura familiar : apesar nulação e tudo mantido pelo tempo. o
destas levarem o alimento a mesa : b- tempo passa por nós, e sentimos seus
boys & boias frias & bumba-meu-bois & efeitos, do passado e do futuro”
black birds escoam na magahertz banda Jorge Mautner
larga via satélite de tradição & tradução :
pop-pobre-puta mpbunda num muro “ao dizer a palavra, expressamos também
moralista classe-médiocentrista – quem a existência. se edificarmos um viver
aparece mais num trio midioelétrico? : a mais amplo e integrado, também assim
zona da mata pernambucana mata expressaremos a nossa palavra”
mesmo : mulheres pretas de floresta in- Roberto Crema
fantis em seus esforços de mães-viúvas-
videntes & sobreviventes de holandesas “o mundo real não se manifesta através
batalhas a ferro & fogo & pau & pica & da álgebra, geometria ou física, mas
pus & pesca & palha : marisco-muqueca mostra-se no seu todo. Do mesmo modo
frutos da maré que salga a carne como se o homem e sua ação não se manifestam
se preocupasse em conservar mesmo independente de seu entorno natural, so-
que a seco o couro de um céu crespo em cial, cultural e emocional”
mamas murchas magras : crianças sem Ubiratam Ambrósio
calço e cabaço imaginam nuvens na es-
puma de bar na ira da boca no infecto rio pendões floriram no verde silêncio : pás-
na fenda ferida na fria forquilha na fome saros – meus filhos legítimos com a ave
falange avante nas ruas tortas & lama- óvni virgem : degustam a brisa & o pôr-
centas & lamuriosas & iluminadas por do-sol & várzeas & vertigens & cogume-
postes de mercúrio que não cicatrizam & los & lírios & chás & chãs : ao longe pés
nem envenenam apenas nos alumia num de ipês flocam os restos da mata com o
tom de dor & fim de tarde & de luas ao al- seu próprio sol : irmãos de fluxo & flúido o
cance das mãos : homens que cortam & capibaribe-mirim & o tracunhaém na sim-
cantam & comem & cospem & dançam & biose das águas : jovens foragidos do
doem & dormem & adoecem & adocicam concreto : fugidos do asfalto cortam bam-
& domesticam a fome & a sede & o medo bus & jangadeiam no açude imitando
146
jacarés de papo amianto num dia de sol & declama no megafone o poema que virou
de nuvens também sobre seixos & segre- prece & a jurema sagrada abre os braços
dos & sexos & schitosomas : miragens de & sacia minha sede com a seiva dos as-
monstros guaiamus arrasando sob as tros & o yorubá tatua no peito o símbolo
patas igrejas de calcário sinistros do tao caça um mantra na mata no silên-
calvários de negros sisudos: mas o cio do sol & uma procissão em confetes &
perdão por essas terras unem os desejos serpentinas reza dançando para cristo-
de viver : verdes vergéis de angico & va- tupã & alfaias despertam brahma & este
jucá & jurema preta & branca assom- passeia num bumba-meu-boi & um xamã
brações do jaraguá : oxum exu axé xangó traga o arco-íris & dilata a pupila de osíris
xamã : pretos antiquíssimos deuses ainda & na dança circular com pachamama &
mais : luas & loas caboclo de urorubá elús iemanjá tocam rabeca & pandeiro alá &
& ebós: astronautas baixam num ponto- jah
ponte canto-iluminado num toré profano
colérico esperanto : a tecnoumbanda soa AUM-OM-UM
nas periferias & nos seus terreiros-ter-
raços de pouso & download de mistérios
:
simultaneidades antropófagas num pre-
sente tempo líquido onde um otimismo
embutido chora & delira em nosso car-
naval shivaísta dionisíaco brasileirificando
o mundo : um buraco negro no centro do
caminho de leite brinca de babá de su-
pernovas & pesadas senhoras anãs ver-
melhas imaginam nebulosas sedentas &
brilhantes & brincantes & bacantes & sen-
suais produtoras de sóis que inutilmente
iluminam a matéria escura porque a alma
não tem cor : um novo modo de olhar &
buscar & decifrar é através das fissuras &
rasuras & brechas & fendas do pensa-
mento : & nós em mosaico & replugados
no umbigo de gaia & na mente de maia &
no samba de shiva & no pão de cristo &
yin-yang-jung-engenho cumbe & harebol-
beleza-de boa-a toda-cantando loa & axé-
odara & kaos com k & quilombo de catucá
negro malungo nas bandas de cá & negro
zumbi de palmares nas bandas de lá &
todos os anjos & demônios & deuses &
eu tocando & cantando & dançando numa
espiral de luz & poesia é vida seja falada
ou escrita & escrever é um ato sagrado &
recitar é imitar deus & estar aqui é ser o
diabo & krishina dança maracatu & vi a
calunga nas mãos de omoluru & exu
147
Ciber Pajé,
Edgar Franco
(nesta página, 152 e 160).
148
ENTREVISTA
AO CIBERPAJÉ
Edgar franco
149
abraçava e tornava-nos unos, outra foi publicada na sua revista Artlectos e
planta me tocou e me falou que eu Pós-humanos # 7 (Editora Marca de Fan-
jamais havia olhado para ela. Ela tasia, 2013), mas essa foi a primeira vez
disse a verdade, sempre ali imper- que realizou parcerias criativas durante a
ceptível para o meu olhar cotidiano experiência.
enviesado e viciado pela percepção Edgar Franco, no dia seguinte à ex-
embotada daquilo que passei a periência, foi contatado por mim, Danielle
acreditar ser a realidade ordinária. Barros - IV Sacerdotisa da Aurora Pós-hu-
Chorei de tristeza por mim, não por mana, pesquisadora e entusiasta de sua
elas, de descobrir estupefato como obra – e ele estava ávido por relatá-la. En-
sou um mistério, e chorei de alegria tusiasmado em falar, o pensamento e as
por finalmente conhecer um pouco lembranças viajavam mais rápido do que
o que são esses seres mágicos, os Franco conseguia escrever. Esta entre-
vegetais. Ah como a linguagem é vista, realizada pelo chat de uma rede so-
limitada, estou relendo isso aqui e cial, mantém o formato de conversa
não consegui expressar nem um informal. Ela permitirá ao leitor viajar e
milésimo do que senti. Ontem visitei mergulhar um pouco nessa experiência in-
tantos lugares, vi galáxias perdidas, crível do Ciberpajé, suas percepções,
vi seres maravilhosos e aterrori- criações e visões, de outros mundos e di-
zantes. Quem sou eu?” mensões que visitou.
(Ciberpajé)
DANIELLE BARROS (DB): Como surgiu
Edgar Franco é artista transmídia, a ideia de realizar essa “viagem psi-
professor doutor que se declarou Ciber- conáutica”? Qual era a busca de vo-
pajé em seu aniversário de 40 anos, cês? Como foram os preparativos?
através de um método de transmutação e Conte-nos o começo dessa experiência
renascimento inventados por ele tendo para nos situar.
como base seu universo ficcional da “Au-
rora Pós-humana”. Na perspectiva de suas EDGAR FRANCO (EF): A ideia era criar
concepções poéticas, Franco é um ser uma HQ durante a experiência, ou seja,
pós-humano e esta experiência integra experimentar processos criativos sob o
uma pesquisa independente sua e de efeito da substância psilocibina encontrada
Matheus Moura sobre processos criativos nos cogumelos Psilocybe Cubensis. A
de histórias em quadrinhos sob efeito de princípio, Matheus Moura, desejou criar
enteógenos, as chamadas “plantas de ambiências mais complexas e dar um di-
poder”, vulgarmente conhecidas como recionamento à experiência, como por e-
plantas psicoativas, ou alucinógenas. A ex- xemplo, propondo um tema “básico” para
periência foi previamente combinada e es- as criações. No entanto, discordei e pro-
truturada entre Matheus Moura e Edgar pus que essa primeira experiência fosse o
Franco, visando à criação de uma história mais livre possível. Então organizamos o
em quadrinhos em parceria criativa entre espaço, selecionamos belas músicas li-
os dois durante a viagem psiconáutica, gadas para nós a esse universo do transe:
realizada com a ingestão de 14 cogume- Anathema, Faun, Omnia, Phuture Primi-
los Psilocybe Cubensis. Franco já havia tive, Shigurui, The Moon & Night Spirit e
realizado outras experiências utilizando Merkaba, entre outras. Separei canetas
esse cogumelo, na verdade um fungo e que uso para desenho, lápis de cor, uma
não uma planta, e criado HQs, uma delas prancheta de mão e papel. Colocamos
150
dois colchões no chão da área de serviço se em muitas criaturas: macaco, cão, um
da oca do Ciberpajé, posicionados para a louva-a-deus e então um rato, um coelho.
visão do quintal da casa com muitas ár- No teto, que tem telhas onduladas e com
vores. Curiosamente, minha esposa Rose manchas, eu vi inicialmente a pele de
– a I Sacerdotisa da Aurora Pós-humana múltiplas serpentes que começaram a
– sugeriu a Matheus para se acomodar na dançar e a enroscarem-se! Detalhe:
rede que temos na área de serviço e ele Matheus também viu serpentes ao olhar
gostou da ideia e passou 90% do tempo para o teto em um momento! Mas depois
da experiência dentro dela. Bem, depois das serpentes, as imagens do teto for-
desses preparativos iniciais, Rose nos maram uma espécie de “cosmos de luz
deixou a sós e saiu de casa. Então azulada” e o teto em si sumiu, e aí vi mi-
tomamos a “mistura mágica”, ela foi feita lhões, talvez bilhões de criaturas cami-
utilizando 13 cogumelos desidratados que nhando por uma longa estrada, por uma
tinham sido cultivados por Matheus Moura, paisagem psicodélica, colorida viva e pul-
e 1 cogumelo desidratado cultivado por sante. Era como um grande “êxodo” e elas
meus pais e por Anésio Neto, e suco de seguiam em direção ao horizonte, o céu
uva integral - tudo batido no liquidificador e era azul brilhante, e tinha dezenas de
dividido em duas porções iguais. Por volta planetas coloridos de alaranjado, vermelho
de 3 horas da tarde bebemos a poção, que e cinza.
pela cor lembrou Matheus Moura da poção Mas as visões mais impressio-
mágica de Asterix. Deixamos a música li- nantes das duas primeiras horas da ex-
gada no random com todas as bandas es- periência aconteceram na parede do fundo
colhidas - o que foi uma ideia sensacional, da área de serviço, que tem umas man-
pois os climas sonoros mudavam a todo chas de carvão deixadas pela chur-
instante auxiliando a produzir novas per- rasqueira do antigo dono dessa casa. Ali
cepções e visões. Matheus colocou um in- foi um êxtase! A parede é escura com
censo pra queimar. E nos deitamos, ele na essas manchas, então eu vi o universo,
rede eu no colchão no chão - eu sempre muitas galáxias e supernovas, mas a visão
de olhos abertos, vislumbrando o quintal mais impressionante foi de uma exube-
em parte do tempo, a parede do fundo em rante e grande mãe cósmica!
outros momentos e também o teto. Em Essa mãe cósmica parecia feita de
todos esses pontos focais tive visões estrelas, seu corpo tridimensional brilhava
transcendentes inexplicáveis! com muitos pontos luminosos e ela era es-
cura como o negro do cosmos. Ela tinha
DB: Como eram essas visões/sen- uma cabeça altiva, olhos grandes e cente-
sações? nas ou milhares de grandes seios que iam
descendo por seu corpo “serpentálico”, até
EF: Vivenciei visões intensas durante toda sumir em perspectiva no universo. Num
a experiência, vou relatar algumas delas: momento vislumbrei algo que pareceu
Inicialmente vi nas folhas do abacateiro do uma vagina enorme entre os seios, mas
quintal formar-se uma espécie de velho sumiu, e tinham coisas que pareciam pe-
sábio ancestral com longa barba que se quenas NAVES espaciais, em formato de
movia ao vento, olhar nervoso e fixo em charutos, que ficavam circulando a mãe e
mim. Depois essa imagem transformou- tocando o bico de seus seios. Vislumbrei
se na de um LOBO enorme, só a cabeça essa imagem pelo que me pareceram
do lobo na verdade, com orelhas pontudas horas! Mas penso que na realidade foram
e muito longas, e de lobo ele foi mutando- uns 15 minutos. Até tirei fotos da MANCHA
151
que se tornou essa mãe cósmica! (Nota comecei a desenhar o meu pé e joelho, e
durante a revisão: Dias depois me deparei surgiu um desenho infinito, pois represen-
com a figura da deusa pagã “Diana de tei “desenho desenhando desenho” e
Éfeso” e fiquei estupefato com a sua assim por diante. Mais tarde, ao fim da ex-
semelhança com o ser que vi durante a ex- periência, ao reverem o desenho, minha
periência). esposa e Matheus disseram que o de-
Nesse momento, Matheus levan- senho não parecia ser meu! Em volta do
tou-se da rede e veio me falar da sen- pé maior eu desenhei um circulo induzido
sação intensa de calor que sentia e que por uma imagem que pareceu vir do fundo
estava experinciando dentro da rede, ele do papel. Pedi a Matheus que dissesse
suava muito e sentia algo como se es- algo para o texto da página, ele se sentiu
tivesse passando por uma “pajelança”, pressionado, e incomodado, e a única
com aura de cura. Ele relatou que parecia coisa que disse foi: "Ao Sol". Então escrevi
que a rede sugava toda a luz e energia do “AO SOL” na página e mostrei para
sol. Eu falei da visão da mãe cósmica para ele. Ele viu, me entregou e começou a
ele, então as duas imagens se chocaram: falar sobre o sol, o sol como deus, como
ele falando do sol (princípio masculino) e grande fonte da vida, aproveitei a deixa e
eu da mãe universal (princípio feminino). escrevi uma frase solta das que ele disse
Peguei o papel e comecei a desen- em outra página: "O Sol como a real Di-
har. Faço aqui um parêntesis: o primeiro vindade".
exercício criativo da viagem não foi este, E a partir dessa frase lembrei-me
foi o de desenhar após ler uma poesia es- dele falar da rede como “atratora de luz”, e
crita por você, Danielle Barros, a IV Sacer- comecei a desenhar a rede que virou uma
dotisa, mas pelo fluxo de lembranças irei VAGEM com um sol ao fundo, a rede
continuar a relatar este, e depois relato vagem viva, um desenho simples, mas
esse da sua poesia. com certa força poética. Matheus viu o de-
Continuando, desviei o olhar de senho, se desinteressou do processo cria-
novo para a mancha na parede e a “mãe tivo, absorto pela experiência, continuou
cósmica” estava lá! Do mesmo jeito, me- de pé e foi olhar o quintal mais de perto.
xendo-se lentamente e sensualmente! Então eu comecei outro desenho. Esse
Pensei que a imagem sumiria, mas não! quarto desenho, Rose e Matheus, dis-
Mesmo com toda a dificuldade do impacto seram mais tarde não ser meu, e nem eu
da experiência naquele momento, come- reconheci-me nele! Matheus assistiu o
cei a desenhá-la como podia, sem me pre- começo de seu surgimento no papel. Em
ocupar com a qualidade plástica do minha visão apareciam linhas brilhantes
desenho. Matheus ficou de pé, me obser- no fundo da folha branca e eu simples-
vando. Ele viu o desenho nascendo e lhe mente seguia essas linhas e desenhava
pedi que dissesse algo, e então recitou a sobre elas. Matheus viu o começo do de-
frase: “Lágrimas, lágrimas por todos os senho e falou: “- Um Dragão!”, depois ele
poros”. Essa frase abriu a parte textual da saiu e foi deitar-se na rede, não se impor-
HQ. Matheus observou que o desenho da tava mais com arte ou processo criativo, a
mãe criava uma conexão com minha experiência estava impactante demais.
perna no ângulo que ele estava e brincou Terminei o desenho como pude e escrevi a
com isso, para ele o desenho e meu corpo partir do que Matheus disse: "O Sol é um
eram uma coisa só, ele tentou fotografar, dragão, um dragão, um dr...". Coloquei as
mas disse que a máquina não captou quatro páginas da HQ à minha frente no
nada! (risos). Então tirei a primeira folha e colchão (Figura 2), tirei uma foto e voltei a
153
me deitar para incrivelmente viver mo- nesse ambiente que a HQ nasceu. Mais
mentos ainda mais intensos. Mas nessa tarde eu fui para o jardim e fiquei lá por um
fase, entre as 17h30min (acho) e às longo tempo. Matheus ficou quase todo o
19h30min seria impossível desenhar algo! tempo na rede e se levantou algumas
vezes pra falarmos, mas ele ficou de olhos
DB: DR é o que? Neste desenho você fechados a maior parte do tempo, e eu de
utilizou pincel? olhos abertos.
163
elas? De que formas este aprendizado “O olho vê, a lembrança revê, e a
aproxima a tarefa do trabalho do Xamã em imaginação transvê. É preciso trans-
sua escuta da floresta? Estamos a praticar ver o mundo.”
uma espécie de tecnoxamanismo? (Manoel de Barros in: Livro sobre
Se considerarmos as imagens pro- nada. Ed. Record, p. 75)
duzidas pelo CinePlanta como vivas, na
projeção sobre as folhas, a montagem Quando eu não estou olhando, as
seria como uma pulsação? Onde está o coisas são? Quando eu olho as coisas
pulso das imagens? O que a arte genera- mudam? A planta sabe que eu cheguei,
tiva pode nos dizer sobre a vida, com a sua que eu estou aqui? O filme sabe que eu
incorporação de estímulos do entorno, dos estou olhando? O filme vai mudar, para
observadores, dos componentes? me agradar, para me afastar, para me se-
A partir de uma compreensão duzir, para me enganar? Há produção de
sistêmica, torna-se altamente proble- subjetividade no cinema, na minha ativi-
mático o pensamento sobre a neutrali- dade espectatorial? Esta produção de
dade do espaço de arte – seja o cubo subjetividade pode virar imagem, pode se
branco da galeria, seja a caixa preta do materializar, para além da minha expe-
cinema. É toda uma semântica dos meios riência psíquica?
que é posta em causa, e neste sentido É possível pensar o cinema radi-
convém pensar não somente o diálogo calizando a heterotopia? Não mais como
com as plantas, vegetais, mas o diálogo um espaço disciplinador da imagem, não
entre reinos: Mineralia, Vegetalia, Ani- mais como economia definidora de pa-
malia, uma vez que no trabalho há pes- péis, reguladora de corpos, normati-
soas, máquinas e plantas envolvidas. Este zadora de comportamentos: silêncio,
é um campo fascinante e quem vem postura sentada, olhar unívoco, perspec-
sendo pesquisado por alguns artistas- tiva central: mas um pré-cinema, um ci-
alquimistas, notadamente o britânico Mar- nema antes do cinema, um cinema pré-
tin Howse, que procura demonstrar, que individual feito de eletricidade pura, ima-
com seu Computer Earth Project e o con- gens formuladas na foto-síntese, como
ceito de Psychogeophysics7, como os ele- sonhou Moholy-Nagy nos anos 20?
mentos da terra rodam um programa que Respondemos com este cinema de
produz uma narrativa – ou uma ficção. É a planta, construímos esta câmera adap-
terra dizendo coisas, criando histórias, in- tada para operação vegetal: o que está
ventando modos de existência tangíveis. vendo a planta?
E aqui no nosso caso com as plan- O que eu vejo do que a planta vê?
tas, fazendo cinema. A planta VJ Vee- Como seria a experiência audiovisual me-
jaytable Vegetable. Vegetar seria não diada pela sensibilidade da planta? É
mais a expressão de uma inoperância hu- possível compreender o que seja a sen-
mana, mas antes a expressão de uma sibilidade em termos de variação de
subjetividade vegetal. Ou talvez uma potencial elétrico? Sensibilidade de su-
transsubjetividade, uma subjetividade co- perfície, sensibilidade sem interioridade,
criada entre a planta, com a planta, sensibilidade puro impulso? O que sabe-
através da planta. Potência de planta ex- mos, ou melhor, o que não sabemos
pressa na imagem, que se transforma, a disto? Como fazer filmes a partir do que
partir do toque, da presença, da respi- não se sabe?
ração do espectador. O cinema, aparato modulado ao
longo do século XX, seja no fazer, seja no
164
Cinema de planta.
Fotos cedidas por Paola Barreto.
165
166
assistir, por regimes de controle: controle Notas:
167
Garrafeiros, Rio de Janeiro.
Foto: Marc Ferrez (acervo público,
cerca de 1900).
COMPOSTAGEM
Claudia Lopes Borio
169
e até hoje ainda não se descobriu uma emanação de chorume (líquido altamente
maneira ideal de reciclar os pneus. Após a poluente) que contamina os lençóis freáti-
borracha, surgiu a baquelite, o primeiro cos, vetores de doenças (moscas, mosqui-
plástico (também não é biodegradável e tos, baratas, ratos). O mais preocupante,
não é reciclável). no momento, é a dengue, doença que
Até 1970 não se usavam sacos surge com facilidade em locais de clima
plásticos para embalar o lixo no Brasil. Ele quente onde possa haver recipientes com
era simplesmente disposto dentro de latas água parada.
e coletado pelos lixeiros. As latas eram Os resíduos acumulados nos
sujas, geravam mal cheiro e barulho ao lixões sofrem um processo anaeróbio, ou
serem jogadas pelos lixeiros de qualquer seja, sem oxigênio, o que resulta do fato
jeito. O uso dos sacos plásticos foi intro- do lixo ser comprimido, e isso impede a
duzido nos anos 70 como um grande pro- decomposição: o lixo fica prensado, fer-
gresso e uma medida higiênica. Mal se menta, gera gases e líquidos, mas não
sabia que o plástico ia se tornar um dos apodrece ou se decompõe de uma
maiores problemas ambientais do mundo. maneira natural. Além disso, os lixões
E depois disso, seguimos em uma eram (e ainda são, em muitos lugares),
infindável sequência de produtos baratos e cenários de uma triste exploração hu-
atraentes: plásticos de todos os tipos e mana, pessoas que procuram catar coisas
cores, tecidos sintéticos , papéis coloridos, para vender, garrafas, plásticos, e até
papelões, produtos químicos como tintas e mesmo animais que vivem sobre eles e se
inseticidas, novos tipos de ligas metálicas, alimentam de restos. A nova Política Na-
aparelhos elétricos e eletrônicos, milhares cional de Resíduos Sólidos tem como ob-
de automóveis, enfim, bens de toda a na- jetivo acabar com os lixões, instituindo a
tureza pelos quais a humanidade ansiava e coleta seletiva, aumentando ao máximo a
ainda anseia. Tudo isso inflou os “lixões” reciclagem e o reaproveitamento, e
até um nível que beira o insuportável. criando aterros sanitários em condições
rigidamente controladas.
LIXO, PANORAMA ATUAL
De acordo com estimativas re- LEGISLAÇÃO: A POLÍTICA
centes, diariamente, na América Latina, NACIONAL DOS RESÍDUOS SÓLIDOS
são produzidas cerca de 369.000 to- A legislação a respeito de Sanea-
neladas de resíduos sólidos: lixo. Aproxi- mento Básico, datada da década de 60, foi
madamente 295.000 toneladas são o primeiro esforço que tivemos no Brasil
coletadas. Somente 67.896 toneladas têm para disciplinar a questão da coleta e do
uma destinação adequada. destino do lixo. No entanto, os problemas
Ano a ano, no Brasil, vem aumen- tomaram uma tal dimensão, que o país se
tando a quantidade de municípios que conscientizou da necessidade de um novo
têm coleta de lixo, e aumenta também a conjunto de regras para tratar da questão
coleta de lixo seletiva. No entanto, nota- dos resíduos. Surge assim, em 2010, a
se que tal coleta seletiva ocorre prefe- Política Nacional dos Resíduos Sólidos,
rencialmente nos estados do Sul e lei 12.305/2010. Lei criada com uma pre-
Sudeste. visao de quatro anos para entrar plena-
O lixo, até 2010, era acumulado em mente em vigor e, ao ser editada, começa
“lixões”: depósitos gigantescos, que pro- imediatamente a ser discutida a questão
duziam uma série de problemas gravíssi- da separação do lixo, especialmente dos
mos: mau cheiro, gases inflamáveis, pneus, eletroeletrônicos, resíduos tóxicos,
170
pilhas e lâmpadas. Grupos de trabalho se- tais e privados, procuram difundir e ensi-
toriais se reúnem em nível federal, procu- nar a compostagem em nosso país. Como
rando disciplinar a prática da logística exemplos, temos projetos de com-
reversa, pela qual os grandes produtores postagem no Estado do Rio de Janeiro, no
deverão ser parte ativa na coleta e desti- Estado de São Paulo, no Estado do Rio
nação correta dos resíduos gerados a par- Grande do Sul, no Estado do Paraná, e
tir dos seus processos industriais. em diversos municípios. Merece destaque
A separação do lixo e a coleta sele- a compostagem de lodo (resíduos de es-
tiva são as diretrizes principais desta lei. goto) no Estado de São Paulo, realizada
No que diz respeito à compostagem, pela Sabesp.
ela é considerada um dos pilares da nova Há também diversas cartilhas e
lei, sendo prevista especificamente como publicações do governo federal com res-
destinação correta para os resíduos orgâni- peito à compostagem de pequena ou
cos e incluída entre os instrumentos legais grande escala..
para diminuição da quantidade final de resí- No entanto, essas iniciativas ainda
duos (artigo 3º, inciso VII). se ressentem de um certo amadorismo e
nota-se que há um índice bastante grande
COMPOSTAGEM: MÉTODO QUE de desistências. Os projetos públicos,
TRATA RESÍDUOS ORGÂNICOS mesmo aqueles que foram implantados na
A compostagem é um método que década de 70, não mostram grandes pro-
trata os resíduos orgânicos e os trans- gressos. Parece que a ideia “não pegou”.
forma em terra de primeira qualidade.
Esse método já é alvo de inúmeros tra- COMPOSTAGEM DOMÉSTICA:
balhos científicos, e tem papel importante POR QUE AS PESSOAS DESISTEM?
na destinação dos resíduos de vários Diversos projetos ensinam a fazer
países. No entanto, em nosso país, a compostagem em casa. No entanto, o
vemos que a prática ainda engatinha, e índice de desistência é bastante alto.
vamos analisar as causas e possíveis Alguns problemas bastante co-
soluções para que ela seja efetivamente muns que podem causar desistência da
implementada. compostagem doméstica são:
• Surgimento de ratos, baratas, moscas;
VANTAGENS DA COMPOSTAGEM • Odores estranhos;
Entre as vantagens da com- • Emissão de líquidos com cheiro muito
postagem podemos citar: diminui notavel- desagradável;
mente a quantidade de resíduos gerados; • Conteúdo que não “composta”, ou seja,
aumenta a vida útil dos aterros; pode pro- não se transforma em húmus.
duzir adubo de alta qualidade; é instru- Após algumas experiências frus-
mento pedagógico interessante para tradas deste tipo, é comum as pessoas
escolas; evita emissão de gases do efeito desistirem, pois ninguém gosta de ter uma
estufa (especialmente o metano) e traz caixa com cheiros estranhos ou cheia de
uma separação mais adequada dos resí- moscas dentro de sua própria casa, espe-
duos, especialmente plásticos. cialmente se morar em um apartamento.
Mas por que a compostagem ainda
não está implementada de maneira gene- SUGESTÕES PARA MELHORAR A
ralizada em nosso país? COMPOSTAGEM DOMÉSTICA:
PROGRAMAS E INICIATIVAS Talvez as pessoas não tivessem
Diversos programas, governamen- desistido se fizessem parte de uma rede
171
de apoio à compostagem, que as aju- posição dos resíduos orgânicos, inclusive
dasse a lidar com os problemas e de jardinagem: as prefeituras, empresas
fornecesse alguns materiais que poderiam de saneamento e coleta de resíduos não
ajudar. Como exemplo de algumas se importam em recolher toneladas de lixo
providências temos: orgânico, misturado ou não a outros tipos
• Aumentar o conteúdo de material seco e de resíduos.
fibroso. A falta de material fibroso para Estima-se que, atualmente, cada
misturar em uma composteira doméstica pessoa produz de 100 a 250 g de resí-
pode ser um problema muito sério, pois o duos orgânicos por dia, o que dá de 700g
lixo de cozinha é muito úmido e resulta a 1.750g de resíduos por semana. Tal
em um resíduo molhado, que fermenta, quantidade representa cerca de 60% do
libera líquidos e não leva a uma decom- peso dos resíduos gerados nas residên-
posição sem odores. Misturando folhas cias comuns!
secas, grama cortada ou serragem, Em diversos países onde a com-
obtém-se um “mix” mais favorável a uma postagem é uma experiência de sucesso,
compostagem saudável. foi proibido jogar fora os resíduos de jar-
Para que isso se torne possível, é preciso dinagem. Ou seja, as pessoas tiveram
ter acesso a uma fonte barata, de prefe- que aprender, por bem ou por mal, o que
rência gratuita, de material fibroso seco. fazer com seus resíduos - grama, folhas
• Utilizar mais as minhocas. As minhocas secas, galhos, varrição, o que, em sua
talvez sejam o “ingrediente” mais fabuloso grande maioria, pode ser compostado
que permite uma excelente compostagem com muita facilidade. Em alguns lugares,
doméstica, em tempo acelerado, e da os lixões começaram a cobrar uma taxa
mesma forma poderiam ser vendidas, para receber resíduos de jardinagem. Em
dadas ou trocadas, em pontos de troca outros, os caminhões das empresas de
para compostagem, clubes urbanos, as- coleta começaram a cobrar pelo serviço.
sociações de moradores, escolas. Todas essas iniciativas ocorreram devido
• Melhorar a qualidade da educação ambi- ao acúmulo excessivo de resíduos em
ental. Apesar da matéria ser obrigatória, lixões ou aterros sanitários, e foi verificado
prevista na nossa Constituição Federal, e que os resíduos orgânicos podem sig-
haver forte recomendação para que seja nificar mais da metade do volume de resí-
lecionada em todos os níveis de escolari- duos coletados em uma cidade.
dade (o que significa do Jardim de Infância Quando isso acontece, as pessoas
até as pós graduações), o ensino de edu- têm que aprender como dispor de seus
cação ambiental ainda é amadorístico, resíduos orgânicos, de uma maneira ou
deixa a desejar, e é praticamente inexistente de outra, e o interesse pela compostagem
no nível universitário e pós graduando. O surge imediatamente.
ensino responsável e participativo desta Afinal, compostar não custa quase
matéria poderia servir como multiplicador nada.
da técnica de compostagem para milhares E ALIÁS... PARA QUE SERVE MESMO
de famílias brasileiras. A COMPOSTAGEM?
Outro fator que não estimula em
MAS... PARA QUE COMPOSTAR SE nada as pessoas a fazerem a com-
POSSO JOGAR TUDO NO LIXO? postagem é a falta de conhecimento de
Um fator muito importante que não suas qualidades. Muitas pessoas gostam
estimula as pessoas a realizarem a com- de fazer jardinagem, gostam de ter flores
postagem é a absoluta liberalidade de dis- em casa, temperos, e a maioria dos
172
brasileiros têm orgulho de ter “um belo um incentivo e uma forte vontade política
gramado”. Mas poucas sabem que o re- de realizar esta disposição dos resíduos
sultado da compostagem é o composto: o orgânicos, os projetos de compostagem
melhor adubo natural que existe. não sairão do papel.
Mais uma vez, nota-se que a falta
de educação ambiental e de cultura geral AUSÊNCIA DE COLETA SELETIVA
dificulta qualquer programa neste sentido! PARA LIXO ORGÂNICO: O PRINCIPAL
Em alguns poucos locais, as DESAFIO.
prefeituras e empresas de limpeza Um dos problemas mais sérios que
pública distribuíram material didático e impedem a compostagem de boa quali-
pequenos manuais para que as pessoas dade é o fato de que, em vários locais
aprendessem como fazer sua com- onde há coleta seletiva e projetos de com-
postagem doméstica, em pilhas, buracos, postagem municipal, o lixo orgânico está
caixas ou recipientes de plástico. São ini- completamente contaminado com resí-
ciativas importantes. duos. Isto acontece porque não há uma
coleta específica para lixo orgânico, os
ENTIDADES PÚBLICAS X PROJETOS resíduos são coletados todos juntos por
DE COMPOSTAGEM: POR QUE um caminhão nos moldes do programa
TANTA TIMIDEZ? “Lixo que Não é Lixo”(do PARANÁ), e ao
No caso dos entes públicos (mu- serem separados, o que sobra é o resíduo
nicípios, empresas, entidades governa- orgânico, infelizmente misturado com
mentais, grandes geradores), a única restos de plástico, metais e sabe-se lá
explicação possível para a pequena quan- mais o que.
tidade de projetos de compostagem é a Novamente, esbarramos na ques-
falta de conhecimento. tão da coleta seletiva, que é indispensável
Municípios que dispõem de uma para que o processo tenha sucesso.
boa coleta de resíduos e já praticam a co- Sem resíduos orgânicos “limpos”
leta seletiva ainda não manifestam a in- não há compostagem!
tenção de realizar compostagem.
Programas governamentais já REQUISITOS FUNDAMENTAIS PARA
mostram o caminho das pedras, como é O CORRETO TRATAMENTO DOS
o caso do “Manual de Compostagem” do RESÍDUOS ORGÂNICOS
Ibama, um caderno extremamente bem A coleta seletiva depende, basica-
explicado que traz todas as diretrizes mente, de um processo de educação da
para a realização de compostagem em comunidade. E que tenha recipientes
grande escala. adequados para o lixo orgânico: sacos
Um fator que leva a um grande des- biodegradáveis, latas ou containers.
prezo pelos projetos de compostagem é No entanto, na maior parte dos mu-
que os projetos de separação de resíduos nicípios brasileiros onde há coleta sele-
sólidos recicláveis geram lucros, ou seja, tiva, ainda não há coleta específica para
os resíduos plásticos, papel, latas e outros os resíduos orgânicos!
podem ser vendidos imediatamente e Portanto, para que se possa criar o
geram renda para os participantes. Já a sistema de compostagem, é preciso que
compostagem requer tecnologia, espaço, os resíduos orgânicos sejam separados
e preparo para que o húmus resultante corretamente e coletados, o que pode
seja vendido ou distribuído.) ocorrer de várias maneiras:
Nota-se assim que, se não houver • Latas de lixo especiais – lixo orgânico –
173
para cada casa (vendidas ou doadas); presas que destinam outros tipos de resí-
• Containers especiais para grupos de duo ao recolhimento correto.
residências ou empresas; Na Itália, apesar de ser um país de-
• Sacos de lixo especiais, biodegradáveis, sigual em termos de coleta seletiva (há
vendidos ou doados aos consumidores; melhor coleta nos estados mais ao Norte
• Programas de pontos e incentivos para e a situação piora à medida em que se vai
trocar lixo por prêmios ou vantagens; para o Sul), os processos de com-
• Datas e horários especiais de coleta; postagem também estão recebendo forte
• Folhetos, campanhas e material didático impulso. Em 252 usinas ativas em todo o
para sensibilização da população. país, 206 delas tratam mais de 1.000
Ao mesmo tempo, a empresa de toneladas por ano, sendo cerca de 60%
saneamento deve escolher o local e o dos projetos situados na região Norte do
método que serão aplicados para a com- país. Os projetos de compostagem au-
postagem, seguindo as regras ditadas mentam ano a ano.
pelo Ministério do Meio Ambiente. O composto obtido, de altíssima
qualidade, recebe embalagens diferenci-
CASOS DE SUCESSO: EUROPA adas e é distribuído gratuitamente como
Na Europa a compostagem al- terra de jardinagem, sendo importante
cança um grande sucesso. Nesse conti- fator de adesão e de sensibilização da
nente, a geração e destinação dos população para participar dos programas.
resíduos sólidos vem sendo quantificada Na Alemanha há uma longa
e controlada há anos, com a interessante tradição de compostagem, desde que os
característica de que há três anos vem seus aterros sanitários ficaram lotados,
diminuindo a quantidade de resíduos. Tal nos anos 70. Atualmente, a maioria das
fato se deve ao sucesso da política de residências recebe uma lata marrom, a
logística reversa, pela qual os fabricantes Biotonne (um nome que significa algo
e distribuidores estão recolhendo e desti- como BioLata) e a utiliza para os resíduos
nando uma grande parte dos resíduos orgânicos. A Alemanha chegou a um
gerados por eles mesmos. Da mesma índice impressionante de coleta de 80%
forma, nota-se que a compostagem vem dos resíduos orgânicos, e criou uma as-
tendo um aumento significativo, ao sociação que controla a qualidade e evita
mesmo tempo em que diminui o uso de a contaminação do húmus gerado. A
sistemas mais antiquados como a inciner- meta final da Alemanha é chegar ao ponto
ação. (os dados podem ser consultados em que os aterros sanitários tenham no
no relatório europeu sobre resíduos sóli- máximo 5% de resíduos orgânicos. Essa
dos3. A seguir, analisaremos alguns casos meta, para nós brasileiros, é praticamente
interessantes. inacreditável, uma vez que ainda temos
Na cidade de Belfast, na Irlanda, as muitos municípios que nem sequer têm
pessoas recebem de graça, da Prefeitura coleta de lixo. Mas não custa sonhar.
municipal, uma lata de lixo especial para
os resíduos orgânicos. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
As pessoas que cumprem os requi- E A CAMPEÃ MUNDIAL
sitos e separam seu lixo corretamente DE COMPOSTAGEM: CIDADE
também recebem um “Certificate of Recy- DE SEATTLE
cling” e ganham pontos em um programa Para terminar esta singela ex-
que pode render prêmios. Esse certificado posição, não poderíamos deixar de falar
também é usado para moradores e em- da maior usina de compostagem do
174
mundo, que se situa na cidade de Seattle, A compostagem, nos Estados
estado de Washington, Estados Unidos Unidos, segue as normas federais de
da América. A usina de Cedar Grove reci- qualidade: WAC 173-350, que também
cla cerca de 350.000 toneladas de resí- são aplicadas como padrão no Brasil.
duos orgânicos por ano. Isso equivale a
24 piscinas olímpicas cheias de resí- CONCLUSÕES
duos... por mês. Em nosso desprezo cultural e
Nas impressionantes usinas de atávico pelo lixo, sentimos também uma
compostagem de Cedar Grove, os resíduos estranheza pela compostagem, e dessa
que chegam de caminhão passam por uma forma estamos jogando ouro no lixo.
esteira de separação, onde se retira basi- Nosso solo, que ano a ano se torna mais
camente materiais metálicos (os resíduos empobrecido, está perdendo nutrientes.
são extremamente limpos). Após essa se- Nas grandes cidades, o terreno é cada
paração, são moídos em uma máquina es- vez mais duro, estéril e impermeabilizado.
pecial. Resíduos de grande porte, como A compostagem é uma técnica
troncos, são separados e recebem desti- barata e extremamente amiga do meio
nação especial (por exemplo, podem ser ambiente. Cabe a nós darmos o exemplo,
transformados em aparas de madeira que aprendermos o máximo que pudermos e,
são utilizadas em jardinagem). com paciência e compaixão por nosso
Um caminhão com um tubo dis- planeta, começar cada vez a compostar.
tribui os resíduos em um pátio, formando O sucesso depende de nós, cidadãos, e
pilhas piramidais enormes, que são re- de políticas públicas claras e eficientes.
cobertas por lonas e ficam curtindo por
cerca de oito meses até um ano, o que ex-
plica também o grande espaço que é
tomado por essas pilhas gigantescas.
Notas:
CELEBRANDO A COMPOSTAGEM:
1. http://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,como-era-
sao-paulo-sem-sacos-de-lixo,9036,0.htm
O COMPOSTIVAL 2.
Complementando todo o impres- http://www.cema.pr.gov.br/arquivos/File/Doc/IAP_GT_Co
mpostagem_parte1.pdf
sionante trabalho de separação, coleta e 3.
destinação dos resíduos orgânicos, na http://www.compost.it/materiali/ISPRA_Rapporto_Rifiuti_
Urbani_2013/07).
região de Seattle existe um festival muito
popular que celebra o sucesso das inicia-
tivas de compostagem.
É o Compostival. Nessa grande
festa comparecem muitos agricultores
orgânicos, barraquinhas de produtos
orgânicos e agroecológicos, aficionados
da jardinagem, escolas, enfim, pessoas
que estão interessadas em um estilo de
vida mais natural e que querem saber
mais e consumir produtos ambientalmente
corretos. Muitos comerciantes também
oferecem tickets para o festival e brindes,
tais como um saco de composto grátis na
compra de dois outros.
175
Foto:
Pedro Victor
Brandão
“A LENDA DE THYTH, O GIGANTE”,
OU “O QUE JAZ SOB THE ÞIT”
Kadija de Paula
Maíra das Neves
Pedro Victor Brandão
dizia:
de vestígios e relatos coletados com
moradores e no Arquivo da Cidade.
181
*Os efeitos, em condições normais, SILVA,César Augusto Venâncio da,
duram de 05 a 15 minutos, com sintomas SÉRIE FARMACOLOGIA APLICADA -
que podem incluir alucinações visuais, Volume V - TOMO II - Anatomia e Fisi-
queda ou aumento de pressão, taquicar- ologia, Pag. 1560; disponível na internet
dia, enjoo, etc. Nos rituais indígenas, tem- em:
se notícia de que o yopo ou cohoba é http://pt.scribd.com/doc/193915967/Pro-
utilizado próximo ao fim do ritual para po- fessor-Cesar-Augusto-Venancio-da-
tencializar o efeito de outras beberagens. Silva-FARMACOLOGIA-V-TOMO-II-ANA
*O yopo pode de ser misturado ao TOMIA-E-FISIOLOGIA-HUMANA
rapé feito de tabaco para suavizar seus
efeitos. Yopo (DMT) y chamanismo de los Pi-
*O hidróxido de cálcio pode ser aroa, disponível na internet em:
comprado em sua forma pura em casas http://www.onirogenia.com/multimedia/y
de produtos dentários, ou obtido com cin- opo-dmt-y-chamanismo-de-los-piaroa/
zas de conchas na forma tradicional (os
indígenas costumam pilar as conchas e Aviso:
torrar o pó das mesmas, as quais, mudam A EDITORA E AS INSTITUIÇÕES
de cor, ao ficar calcinadas). LIGADAS À ESTA PUBLICAÇÃO
NÃO SE RESPONSABILIZAM PELO
OUTRAS REFERÊNCIAS: USO DA RECEITA E SUGEREM
COPPENS, Walter y Cato-David, Jorge SUA REALIZAÇÃO APENAS POR
Aspectos Etnograficos y farmacologi- PESSOAS EXPERIENTES EM
cos, El Yopo entre los cuiva-guajibo, EXPERIMENTOS QUÍMICOS
disponível na internet em:
http://www.samorini.it/doc1/alt_aut/ad/co
ppens.pdf
184
tecnologia. Este trabalho manifesta-se principalmente http://akelarreyaku.tumblr.com/
através de performances interdisciplinares que esboçam Teaser Aklr: https://vimeo.com/61753605
novas linhas de relações entre humanos, plantas e Transnoise: http://transnoise.tumblr.com/
máquinas, entre os órgãos, próteses e dados. Quimera Rosa: http://quimerarosa.net/
Performances que procuram gerar um espaço-tempo http://akelarrecyborg.tumblr.com/
onde desaparecem os limites entre ficção e realidade,
entre arte e vida.
3. AKLR Cyborg teve início durante uma residência no
mARTadero, Cochabamba, Bolívia, em Outubro de 2012.
Caderno de viagem e residência de investigação:
185
186
COSMOGONIA
SONORA
Pedro Dias
187
à circularidade e ao rodízio das precedên- investida de um poder (mágico,
cias, ameaçado por qualquer fissura, ou terapêutico e destrutivo) que faz
ainda, ruído deslizante da ruína do sis- com que a sua prática seja cer-
tema. Como o mundo modal não se ba- cada de interdições e cuidados ri-
seia na ordem da representação (estética tuais. Os mitos que falam da
e política), e sim na ordem do sacrifício, a música estão centrados no sím-
descrição sócioeconômica e cosmológica bolo sacrificial, assim como os ins-
não se faz como uma simples metáfora da trumentos mais primitivos trazem a
sociedade, e sim como instrumento ritual sua marca visível: as flautas são
de manutenção da ordem contra as con- feitas de ossos, as cordas de in-
tradições que a dissolveriam. testinos, tambores são feitos de
Segundo Deleuze e Guattari em pele, as trompas e as cornetas de
Anti-Édipo, nas sociedades tribais esse chifres. Todos os instrumentos
todo é virtualmente a terra, a unidade-in- são, na sua origem, testemunhos
divisa que se inscreve no corpo pelos rit- sangretos da vida e da morte. O
uais (circuncisão, tatuagens e outras animal é sacrificado para que se
inscrições) e que se escuta como música. produza o instrumento, assim
Nas sociedades despóticas, esse todo é como o ruído é sacrificado para
apropriado simbolicamente em alguma que seja convertido em som, para
medida pelo centro, que passa a ser em- que possa sobrevr o som.”
anador e receptor dos sons da terra e do (Wisnik, 1989).
grupo social (ritornelo dominante).
Nas sociedades pré-capitalistas a A fonte de onde emana o mundo é
musica é vivida como experiência do sempre uma fonte acústica. A voz cria-
sagrado, no campo da luta cósmica e dora surge como um som que vem do
caótica entre o som e o ruído. Na luta dos nada, que aflora do vazio: “O abismo pri-
dons entre a vida e a morte, os deuses e mordial, a garganta aberta, a caverna re-
os homens, o rito sacrificial. Assim como verberante”. Esse som saído do Vazio é o
o sacrifício de uma vítima (pharmakós produto de um pensamento que faz vi-
entre os gregos), quer canalizar essa vio- brar o Nada e, ao se propagar, cria o es-
lência destruidora, ritualizada para sua paço. O abismo primordial é um fundo de
superação simbólica, o som é o bode ressonância e o som que dele emana, a
expiatório que a música sacrifica, con- força criadora (deuses-cantores, Brama,
vertendo o ruído mortífero em pulso or- palavra sagrada, hino, mantra, o sopro
denado e harmônico. Assim como o sagrado de Atman, OUM (ou AUM), o
pharmakós tem valor ambivalente, ve- poder de ressoar a gênese do mundo).
neno e remédio, o som também tem a Articular o som e o silencio é querer
ambivalência de produzir ordem e desor- romper o continuum da natureza que é ao
dem, vida e morte, na economia sacrifi- mesmo tempo silêncio ruidoso como o
cial de base, o ruído está sempre no mar, em suas ondulações e no seu rumor
limite de invadir o som. Ritornelo comu- branco, frequência difusa de todas as fre-
nicante entre mundo material e o espiri- quências – pinknoise, movimento browni-
tual sensível. ano1. Fundar um sentido de ordenação do
som, produzir um contexto de pulsações
“A música modal é a ruidosa, bri- articuladas, produzir a sociedade significa
lhante ritualização da trama sim- atentar contra o universo, recortar o que é
bólica em qua a música está uno, articular o que é contínuo. Experiên-
188
cia ondulatória e pulsante no próprio des- desenvolvimentista, disparado ainda
contínuo da cultura, estabelecendo o cir- pelas relações capitalistas, foi formulado
cuito sacrifical em que se trocam dons difusamente pelo imaginário coletivo.
entre homens e deuses, vivos e mortos, Goethe, em seu imperativo fáustico, as-
harmoniosa e desforme. socia a vontade de saber e a vontade de
poder, o conhecimento e a ação ilimita-
DIACRONIA E CIVILIZAÇÃO dos, à colonização do futuro movida por
A passagem modal ao tonal acom- “forças obscuras’’ que são desentra-
panha aquela transição secular do mun- nhadas de um fundo escondido, ainda
do feudal ao capitalista, participando da inconsciente, medievo na figura do Mefis-
própria constituição da ideia moderna de tófeles.
história como progresso. Nesse período Na metade do século XX atingem-
Clássico, a linguagem musical atinge seu se os confins da serie harmônica, a
auge erudito e em seguida passa por própria ideia de progresso ilimitado deixa
uma espécie de saturação e adensa- de exibir, como linha de força ideológica,
mento, que o levam à desagregação no aquela mesma autossuficiência dialética.
século XX. Nesse arco histórico, inclui a O principio evolutivo aplicado às alturas
afirmação e a negação do próprio sistema, enfrenta dificuldades cada vez mais acen-
formando as bases para o processo da tuadas para produzir diferenciação, já que
modernidade. suas formas mais extremas de organiza-
A música tonal expande o universo ção progressiva estão consumadas.
modal fixo e repetitivo em uma economia Onde o silêncio dos espaços infinitos vem
de trocas em que a transição pelas acompanhado da ruidagem absoluta,
funções, através de um encadeamento impõe-se uma espécie de consciência
que tem seu núcleo no próprio movi- sincrônica, uma escuta capaz de fazer
mento oscilante de tensões, também se silêncio, de se colocar no ponto zero dos
transformam em repouso. Fundamento códigos e da multiplicidade dos pulsos.
dinâmico, progressivo, teleológico, pers- Além do ruído ser o elemento que
pectivístico da tonalidade, panoramica- renova a linguagem do habitat moder-
mente, o tonal é o mundo no qual se no, a vida urbano–industrial é marcada
prepara, se constitui a problemática e a pela estridência e pelo choque. O alas-
dissolução diacrônica. É o mundo da tramento do mundo mecânico, artificial
d i alética, da história, do romance, e agora, virtual, cria paisagens sonoras
progressivo, narrativo na expansão do onde o ruído é a base para as texturas
movimento e seus desdobramentos se- musicais. Proliferam os meios de pro-
quenciais, no principio do desenvolvi- dução e reprodução sonora, não é mais
mento. Exibe sua crise interna ao sistema simplesmente acústico, e sim, eletro-
mostrando possibilidades de resolução acústico.
dentro do próprio código. O sampler registra, analisa, trans-
Vemos ai esse perfil macrocultural, forma e reproduz ondas sonoras de todo
a vocação para o desenvolvimento su- tipo, e superou de vez a já velha po-
cessivo, evolutivo, subordinante, movido lêmica inicial entre a música concreta e a
por uma necessidade dialetizadora ine- eletrônica. Em um estado de produção
rente à linha conflitiva diacrônica, neces- de simulacros, dilui-se a oposição entre
sidade que envolve em seus passos o gravado e o sintetizado, o som real e o
tanto a dinâmica social quanto a estrutura inventado. As máquinas de produção e
da linguagem. Esse ímpeto positivista, reprodução sonora, além de terem seus
189
terminais disseminados em rede por todo trato fáustico. Nele a alma e ou sentido
o tecido social (com sonorizadores fixos e parecem estar perdidos de saída. O
ambulantes nos espaços mais públicos homúnculo retorna na esperança tec-
aos mais privados), implantaram um nológica da salvação, na forma do com-
modo de tratamento do som totalmente putador, a arte, alma e o sentido figuram
relativístico, em que nenhum dos seus já como lendas do passado.
componentes inscreve-se em nenhuma
ordem de hierarquia ritualística. O objeto HACKEANDO O SISTEMA
sonoro é o ruído que se reproduz em Na análise dos efeitos do LSD-255
toda parte, além de passar por um sobre a mente humana, uma hipótese ra-
processo sem precedentes de rastrea- zoável afirma que o efeito dessas subs-
mento e manipulação laboratorial das tâncias no computador humano é introduzir
suas mais ínfimas texturas (gravado, de- ruído branco (energia variante e aleatória
composto, distorcido, filtrado, invertido, que não contém sinais de si mesmo em
construído, mixado, etc). si mesmo). Este componente ruidoso adi-
Enquanto isso, a estratégia política cionado aos sinais normais dos circuitos
do som deixou de se dar pela clivagem geram incertezas suficientes nos signifi-
ideológica entra a música oficial, apro- cados para que novas interpretações
priada enquanto música elevada e har- sejam possíveis. O que LSD, mescalina e
moniosa, e as músicas divergentes, psicodélicos semelhantes tendem a
consideradas baixas e ruidosas, a indus- fazer, especialmente depois de várias
trialização tornou-se uma processadora viagens, é abrir a pessoa a que o
de toda forma de ruído repetitivo, dis- Dr.Lilly chama de “ruído”.
seminado em faixas de consumo diversi- O grande princípio operativo
ficadas. Não se trata mais de tocar o som parece ser que o computador humano
do privilegio contra o ruído dos explo- opera de tal forma a tornar os sinais de
rados, mas operar industrialmente sobre ruído, criando informações onde não
todo o ruído, dando-lhe um padrão de havia sinal. A informação “criada” a partir
repetitividade e fetichismo. do ruído pode ser demonstrada por
O mercado pós-moderno é análise cuidadosa e ter sido trazida de
baseado em ciclos rápidos de posição e dentro do próprio sistema de armazena-
reposição da história dos gêneros, a li- mento do computador, recriação sobre
quidação dos estoques da loja ocidental, elementos inerentes. Isto é, precisa-
queima de estilos. Se a linguagem perde mente, o que ocorre em uma viagem de
a tônica, a moda dá o tom. No conjunto LSD. O diferente é que o ruído e as infor-
da repetição serializada, toda história mações recém-criados estão chegando
torna-se sucata para uso publicitário, ao receptor não apenas em palavras lidas
remete todo som ao ruído, ruidifica o em uma página, mas através de todos os
ruído. O tempo integral da mídia não faz, sentidos ao mesmo tempo. Muitas vezes
não conhece e não aceita o silêncio. levam meses para investigar e descobrir
Ao mesmo tempo, as expansões todos os signos e relações experimenta-
tecnológicas oferecem vivas perspecti- dos durante uma expansão mental ou
vas para a leitura e uso das construções sensorial.
humanas. No Fausto de Goethe, há um Esse delírio traz uma necessidade
momento em que os poderes já precoces vital à espécie, a confabulação de técni-
da produção de simulacros gerada pelo cas e mecanismo da vida se inserem no
pacto com Mefisto gera um terceiro con- mundo para serem reais, delirar o mundo,
190
projetar nele esboços de personalidades, o ser, constituem em um porvir e um
forças superiores, seres transcendentes, eterno retorno das construções e possi-
potência imaginativa. Se precisamos vio- bilidades humanas. O simulacro de Ni-
lentar a natureza para chegar a esse de- etzsche, iconoclasta, onde as ondas
sapego (um corpo sem órgãos), é porque reverberantes criam seus próprios ecos
o apego à vida (ou confiança) muda de degenerados e tresloucados.
natureza. O místico é justamente aquele A criação de imagens e sons ab-
que pula fora do plano da Natureza, ou stratos por meio de procedimentos de
seja, fora dos círculos de pertencimento distorção nas linhas e nos pontos de sua
da espécie. Ele chega até a constituir trama reticulada, podem ser conheci-
uma própria espécie, não um aumento dos também por anamorfoses cronotópi-
extensivo nem de um crescimento quali- cas – "As técnicas clássicas de
tativo, mas de um salto intensivo que se anamorfose consistem no deslocamento
confunde com um movimento de conver- do ponto de vista a partir do qual a im-
são e transformação. A verdade é que agem é visualizada, sem eliminar, entre-
compreenderemos sem dificuldades es- tanto, a posição anterior, decorrendo ai
ses estados anormais, sua semelhança e, um desarranjo das relações perspectivas
às vezes, talvez também sua participação originas [...]. Se referem ás deformações
nos estados mórbidos, se pensarmos na resultantes de uma inscrição do tempo”.
reviravolta que é a passagem do fechado
para o aberto, da vida habitual para a vida DEGENERAÇÕES AUTOPOÉTICAS
mística. Figuras extremas como o barulho
Quando as profundidades obs- e o silêncio, esgotamento ideológico,
curas da alma são agitadas, o que sobe catástrofe e mesmo caosmose, tangen-
à superfície e chega até a consciência, ciam pontos onde aparecem, para-
se a intensidade for suficiente, pode ex- doxalmente e ao mesmo tempo, os
primir a reviravolta como uma rearru- contramovimentos do presente. Nesses
mação sistemática em vista de um pontos de inflexão que se insinuam, de
equilíbrio superior. Só podemos sair da maneira às vezes imperceptível, os con-
neurose própria da espécie humana por tragolpes minúsculos, mas também as
uma espécie de experiência psicótica explosões multitudinárias que denunciam
(êxtases, alucinações, encantamentos), o que definha (valores, estilos, proble-
um episódio esquizofrênico que nos con- mas), ao mesmo tempo em que deixam
duza a uma saúde para além do normal, entrever novos desejos e necessidades,
um novo estágio de sobrevida. a compassar a presença com a palpi-
Essa expansão da percepção das tação do corpo que vibra e reverbera.
frequências, dos “ruídos”, leva a uma O fato é que o colapso do sentido,
desterritorialização por conhecimento. O em geral, promove discursividades a-sig-
ruído provocado pelas multidões con- nifantes, gerando mutações ontológi-
trasta junto ao noise experimental como cas, sendo a própria subjetividade pensada
quebra da repetitividade do entreteni- a partir desse ponto de mutação.
mento, aprofunda um campo de disputa e
criação de subjetividades. A realização “O mundo só se constitui com a
da capacidade de perceber fenômenos condição de ser habitado por um
onde influências e interferências, internas ponto umbilical de desconstrução,
ou externas, das frequências e linhas de de destotalização e de desterritoria-
intensidade que atravessam e constituem lização, a partir do qual se encarna
191
uma posicionalidade subjetiva… desterritorialização incessante, na qual
Esse vacúolo de descompressão é se passa do “sentimento de catástrofe de
ao mesmo tempo núcleo de au- fim do mundo” ao pressentimento pertur-
topoiese sobre o qual se reafirmam bador de “uma redenção iminente de
constantemente e se formam, insis- todos os possíveis”. A esquizoanálise
tem e tomam consistência os Ter- mergulha na imanência homogenética e
ritórios existenciais e os Universos dali liberar coeficientes heterogenéticos,
incorporais. É no fundo, assim que mesmo que esteja fora de qualquer per-
nasce um mundo, a partir desse formance oral, familialista ou analítica.
fundo sem fundo e sem funda- Confrontamo-nos com ela na vida de
mento. Trata-se de um foco de cria- grupo, nas relações econômicas, no
cionismo ontológico.” (In. Guatarri, maquinismo, por exemplo, informático, e
Caosmose, op. cit., p.99.) mesmo no interior de Universos incorpo-
rais da arte ou da religião.
[Essa] caosmose não oscila Apreender o movimento da
mecanicamente entre zero e o infinito, música, independentemente da sua
entre o ser e o nada, a ordem e a desor- melodia; apreender o movimento do mís-
dem: ela ressurge e germina nos estados tico, independentemente das vozes, ima-
das coisas, nos corpos, nos focos au- gens e emoções que o acompanham;
topoiéticos de desterritorialização. Trata- apreender a corrente da vida, indepen-
se aqui de um infinito de entidades dentemente das formas criadas que ela
virtuais infinitamente ricos de possível, in- atravessa; enfim; apreender um todo vir-
finitamente enriquecível a partir de pro- tual independentemente da sua atualiza-
cessos criadores. As velocidades infinitas ção sempre parcial. Será o jogo apenas
estão grávidas de velocidades finitas, de um dos enigmas do mundo, ou o mundo
uma conversão do virtual em atual, do re- é uma das figuras do jogo? Em todo
versível em irreversível, do diferido em caso, ao perguntar se nesse universo
diferença. plano e liso, abstrato ou reduzido, no
Como se dá a tomada de con- planeta em que vive o ser do homem, ele
sistência de tais focos autopoiéticos, poderá algum dia encontrar seu lugar e
como ocorrem essas “escolhas de fini- hora? O filósofo responde que, com o nii-
tude”, como se dá a inscrição numa lismo superado, talvez se possa ouvir
“memória de ser”, como se gera uma tal uma vez mais a voz de heráclito:
ordenação intensiva na pré-subjetivação?
Vozes de auto-referência, isto é, na sub- “Será que de vez em quando
jetividade processual autofundadora, que saberemos nos tornar como as cri-
inventa suas próprias coordenadas, auto- anças que constroem na praia o
consistencial. Produzir novos infinitos a dia inteiro castelos de areia, e com
partir de um mergulho na finitude do sen- a mesma alegre excitação, veem
sível, infinitos não apenas carregados de a maré da tarde destruí-los?”
virtualidade, mas também de potenciali- K. Axelos, horizontes do Mundo,
dades atualizáveis, devires intensivos e po. cit., p.21.
processuais, um novo amor pelo descon-
hecido. (Ibidem, p. 147)
O que a caracteriza é uma combi-
nação singular de homogêneses e hete-
rogênese, de repetição congelada e de
192
Notas:
1. O movimento browniano é o movimento aleatório de
partículas num fluído, como consequência dos choques
entre todas as moléculas ou átomos presentes no fluído.
Há um padrão pouco explícito em alguns casos em um
movimento fractal, esse movimento está diretamente
ligado a reações em nível celular, como a difusão, a
formação de proteínas, a síntese de ATP e o transporte
intracelular de moléculas. Hoje em dia, o movimento
browniano serve também de modelo na descrição de
flutuações que ocorrem os mais diversos e inesperados
tipos de sistemas. Por exemplo, para descrever
flutuações de preços de mercadorias, a condutividade
elétrica em metais e a ocorrência de cheias nos rios.
Físicos atualmente estudam tal movimento em relação
à Teoria do Caos.
193
Cristal World.
Foto: Fabiane
M. Borges.
O MUNDO
CRISTALIZADO
Jonathan Kemp
195
INTRODUÇÃO: Foi proposto com contextualização
Se a própria vida tem início em a relação entre NMA e as suas bases ma-
cristais aperiódicos que codificam futuros teriais, e este artigo desenvolve uma
infinitos dentro de um pequeno número metodologia de difração com os quais
de átomos, então a cristalização digital do pretende caracterizar investigações práti-
geobiológico pelo Capital limita esses fu- cas do projeto para essas materialidades.
turos até o ponto de exaustão. Uma vez Isto sugere ainda um meio para a flexibi-
que os computadores e os minerais de lização da prática e da teoria a partir de
que são feitos são considerados como qualquer posição consciente com objetos
igualmente cristalinos, sua descristaliza- padronizados dentro de domínios e
ção só é possível através da introdução modos de conhecimento prontamente
de loops de realimentação vigorosos e disponíveis, mediante a apresentação de
positivamente ruidosos. (Kemp, 2012a) um conjunto de investigações sutis,
Ao percorrer as camadas de abs- aleatórias, atentos e aventurados em
tração inerentes a um computador, a par- dinâmica material da computação onde,
tir de protocolos de rede e através de fundamentalmente, são baseadas em
linguagens de programação de alto nível, uma questão protéica.
intérpretes, código de máquina – des- Como tal, uma iminência exigente e
cendo até as próprias placas de circuitos rigorosa da estética é premeditada em
– há sempre uma disjunção entre o que é suas descrições das várias operações
materializado e o que a teoria demanda, naqueles químicos, lógicas e contingências
da mesma forma como ninguém jamais eletromagnéticas dobrada por dentro da
poderá construir uma verdadeira máquina computação, e não só, para concatenar
de Turing Universal. Mas o que é cons- com condições antropogênicas e ecológi-
truído, escalado e distribuído em todo o cos, criadas por economias capitalistas.
mundo é o produto de vários processos Por exemplo, e como maneira de
materiais que envolvem ações massivas introdução, em algumas primeiras oficinas
de pessoas, coisas e a terra e sua matéria antes de o projeto, uma série de experi-
- o que por sua vez significa que há uma mentos foram executados e tentaram
política e filosofia da materialidade que difratar alguns dos minerais provenientes
precisam a ser levados em conta. de computadores usando técnicas e ex-
Uma suposição no trabalho aqui a- periências transcritas, de diferentes
presentado é que, enquanto inovações tradições e práticas. 1) O ouro foi configu-
tecnológicas e estéticas da arte dos novos rado em muitas combinações com coisas
meios ("New Media Arts" - NMA) depen- como ácidos, calor, eletricidade, eletrônica
dem da reconfigurações de materiais e economia, a alquimia, crença, possibili-
aparentemente inesgotáveis, uma conta dade, e ciência, e assim por diante, todos
de essa materialidade geralmente tem sido atuando em um inquérito que não foi pro-
deixado de fora de suas convenções. jetado para perguntar como compreender
Através do detalhamento do projeto cola- ouro de apenas uma perspectiva teórica,
borativo, "The Crystal World" [n.t. "Mundo mas para mostrar que o ouro só pode ser
Cristalizado"], este artigo fornece uma entendido como uma coisa para ser ma-
idéia de como essa conta pode ser feita, nipulado na prática.
evitando a falácia epistemológica de prio- Assim, em vez de destacar um
rizar teoria, uma vez que "situar a prática conjunto de práticas e seu discurso, os
na teoria, uma vez que a ignorar a prática sistemas políticos em que tais materiais
é obter a teoria errada" (Barad 2007, 166). são distribuídos, o "Crystal World" tenta
196
multiplicá-los. A ideia é que se qualquer "ser", como configurações específicas de
uma dessas práticas discursivas for colo- possibilidades materiais que contribuem
cada em primeiro plano, como conse- para a "diferente materialização no
quência haverá apenas uma visão mundo" (Barad 2007, 178). Eles também
simplória e padronizada desse material são performativos na medida em que
apresentado, mas se elementos de múlti- "inter-agem" com as formas em que, por
plas práticas são introduzidos então exemplo, os seres humanos temporaria-
objetos multivalenciados aparecem e de- mente "recortam" o mundo em seções
saparecem [n.t. valência em inglês pode para revelar (simultaneamente ocultando)
ser usado tanto para carga atômica detalhes sobre ele. Utilizando os exem-
quanto no sentido linguístico de possíveis plos de "onda" e "partícula", Barad argu-
argumentos de um predicado] , com a in- menta que nem mesmo refere-se a
certeza ontológica inerente manifestada. qualquer propriedade inerente da luz, ao
Esta, então, é a unidade geral a ser de- invés disso refere-se a diferentes conjun-
talhado neste artigo, que as coisas são tos de aparelhos que afetam diferentes
trazidos para existência, usadas, multipli- cortes para delinear o objeto medido –
cadas, e por isso são sempre de grande "em outras palavras, eles diferem em
atualidade, formalizada e política. suas resoluções locais materiais da inde-
terminação ontológica inerente" (Barad
DIFRAÇÃO 2003, 831).
A metodologia do projeto ecoa Inspirado por Barad, o arqueólogo
exegese de uma "ético-onto-epistemo- de mídias Jussi Parikka sugeriu que esta
logia" de Karen Barad em que a realidade sacada é uma "maneira muito boa e ma-
é considerada inerentemente indetermi- terialmente dinâmica para entender a on-
nada até que seja medida por alguns tologia das tecnologias da mídia" e os
"aparelhos", necessariamente co-consti- motivos de uma "nova teoria do disposi-
tuitivos ônticos, implicando exclusões, e tivo" dos meios de comunicação, e das
foraclusões do determinismo. Ao mesmo "Novas Artes da Midia" (Parikka 2009 ).
tempo, como qualquer ato de observação Tal abordagem ajudaria, sem
faz um "corte" que faz com que algumas dúvida, a expor o quanto as "Artes das
"coisas" estejam mais visíveis do que ou- Novas Mídias" operam sob a suposição
tras, então é sempre uma questão de sig- limitada que por se envolverem com os
nificado ético-político, como estes cortes elementos formais da sua prática, por e-
sempre necessariamente são lembretes xemplo - sobre os níveis de código e soft-
de um domínio paralelo e oculto do abjeto ware, hardware ou interface - de alguma
não-ser. Além disso, os materiais não são forma fazem com que uma espécie de en-
ontologicamente independentes das ma- gajamento político ou crítica seja validado
neiras pelas quais outras coisas os me- simplesmente porque as coisas são usa-
diam, mas nem a mediação por outra dos de maneira que não tenham a in-
entidade esgota explicações ou define de tenção de revelar os seus próprios
forma abrangente esse material. Por- parâmetros regulatórios. Não apenas
tanto, devemos assumir que qualquer im- estes recortes tornam invisíveis certos e-
perativo epistemológico para representar lementos do mundo, mas também al-
com precisão um objeto de estudo é fun- cançam para si próprios certos elementos
damentalmente falho (e circular). do mundo invisível, por apresentar a dis-
Neste sentido, "aparelhos" são tinção que opera como dada. O chamado
agencias no sentido de um "fazer" ou de Parikka para uma "nova teoria do dis-
197
positivo" parece particularmente perti- através de sucessivas descristalizações
nente quando essa recursão é vista como do digital, e ao fazê-lo muitas vezes imita
um recorte que pode distorcer fortemente esses processos perigosos empreendi-
a relação das "Artes das Novas Mídias" dos na recuperação de metais raros e
com sua materialidade. preciosos disponíveis aos despossuídos.
Uma resposta a tal chamada pode O projeto é proposto para expandir essas
ser encontrada em investigação prática intervenções mundiais através de experi-
do "Crystal World" em níveis subterrâ- mentação destinadas a gravar distorções
neos de cálculo de materialidade, como psicofísicas e contingências inesperadas
apresentado neste artigo, como a sua em ciclos cristalinos contemporâneos. Em
forte ressalva que deve, argumenta-se seguida, experimentos em torno dos
aqui, modular qualquer discussão teórica processos aleatórios e, portanto, a inde-
sobre, por exemplo, o potencial emanci- terminação formando um imperativo dis-
patório frequentemente assumido ine - tinto em jogo por trás do "Crystal World",
rente em vários níveis de abstração da realimenta a premissa de que os com-
placa de circuito. putadores e os minerais dos quais são
2) Uma pilha de placas-mãe de feitos podem ser considerados igual-
sucata pode apresentar algumas das mente cristalinos.
complexidades formais envolvidas que O "Crystal World" v.01 (CWv.01) foi
contém lógica computacional em mate- convocado como um laboratório aberto
riais através do arranjo, padronização e por seis dias com uma subsequente ex-
relação entre seus componentes con- posição de duas semanas de produtos de
hecidos. No entanto, nada demais é rev- laboratório e resíduos do procedimento.
elado sobre as matérias-primas, nem, por Uma chamada aberta para participantes
sua vez, sobre sua extração e produção, propôs uma série de explorações que
especialmente encarando as contra- ofereciam atividades, incluindo: precipi-
dições inerentes aos valores monetários, tação mineral, geologia sintética de altas
onde qualquer ideologia de porções de temperaturas e cristalografia indutiva, fos-
capital emancipatório instantaneamente silização antropocêntrica, criptografia de
estará relacionada com, por exemplo, as água cristalina, fotografia Kirlian1, cons-
cadeias muitas vezes ocultas de mão de trução de fulgurites com alta-voltagem,
obra barata utilizada na sua produção. difrações ódicas, e a ingestão de colóides2
O que se segue no restante deste para "conter a praga contemporânea".
artigo são descrições impressionistas da 3) Com a promessa de apresen-
prática onde "Crystal World" é modulada tação pública e performances, "com o
pela discussão em torno das duas ver- processo de laboratório para ser ex-
sões executadas: O "Crystal World"v.01, posto", os entrevistados ofereceram uma
com mais de seis dias em fevereiro de variedade de origens, e as investigações
2012 como parte do Clube Transmediale potenciais, que incluiu artistas plásticos,
New Media Festival , Berlim (CTM12); e artistas sonoros, novos artistas de mídia,
O "Crystal World" v.02 , realizado em Lon- um escritor, um fotógrafo, um neurocien-
dres, de 17 de julho até 01 de setembro tista, e um cientista da computação.
de 2012. Cinco quartos em Kunstraum Kreuzberg,
Bethanien e Berlim foram equipados e
O "CRYSTAL WORLD" V.01 vagamente designados para tipos es-
O "Crystal World" (“Mundo Cristali- pecíficos de atividade, incluindo limpeza
zado”) é posto em cheque ao trabalhar e análise, trabalho com altas tempera-
198
turas, química, construção, armazena- imagética de lixiviados e cristais de água
mento e exibição. contaminada foram feitas através da sua
A partir de várias pilhas de lixo de injeção no recipiente de filme de câmeras
computadores ("c-waste") e uma vitrine pinhole carregadas com pedaços de
de minérios brutos derivados de com- papel fotográfico, e congelado antes da
putadores, os participantes peneiraram exposição.
suas seleções. Muitas vezes imitando os No final do laboratório, um verni-
processos perigosos realizados na sua ssage de manifestações continuou com
extração industrializada, processamento breves discursos feitos pelos partici-
e disposição, intervenções e conjunções pantes para apresentar o projeto ao
dos participantes do laboratório tentaram público. Experimentos ao vivo incluíram
distorcer o valor desses circuitos lógicos uma bateria de terra feita com um balde
através da preparação de várias difrações de terra, chumbo e eletrodos de cobre,
dos seus materiais. com a adição lenta de ácido sulfúrico para
4) Assim, as experiências reali- aumentar a tensão e registrar diferenças
zadas incluíram: Cogumelos de ostra cul- não calibradas através de uma exposição
tivada em um substrato de componentes do laser difratado; construções de fulgu-
de um computador esmagado, galena, rita mais artificiais feitas descarregando
magnetita, terra local, e palha em um arcos de alta- tensão entre conjuntos de
projeto de micélios semicondutores; bio- circuitos integrados esmagados, silício
sintéticos que utilizam diferentes fossili- em pó e areia; as tentativas de produzir
zações lixiviados de computador e uma outra formação geológica sintética
soluções de silicato injetado no material detonando termite gambiarra ( faça-você-
celular eucariótica (a estrutura de todas mesmo) incorporado em um monte de
as células animais, incluindo o ser hu- lixo de computador e minérios; a soni-
mano); alta de calor várias experiências cação de uma variedade de resíduos de
metalúrgicas usando pequenos fornos e parede de cristalização; e, finalmente,
fornos de micro-ondas modificados, com três performances de ruído improvisado
as tentativas posteriores para incentivar o utilizando matrizes de minérios reconsti-
crescimento biológico sobre derreter tuídos, cristais e "resíduos c" (lixo
produtos de ferro-gusa e de silício sinter- eletrônico). A exposição de duas sem-
izado. Outras atividades envolvidas pre- anas então apresentou os restos de todas
cipitando matrizes cristalinas a partir de as demonstrações e experiências, equi-
soluções supersaturadas e saturados de pamentos de laboratório e produtos do
sulfato de alumínio, fosfato de mono- laboratório, deixados da maneira em que
amônio, sulfato ferroso, e seu sal, em foram encontrados para apreciação nas
conjunto com o cobre, o alumínio, ou de cinco salas, com cada quarto anotado
magnetite para posterior excitação in- com uma breve etiqueta para indicar os
cluindo processamento de sinal sonoro e tipos de atividades aconteceram lá (por
amplificação através de pirite e antenas exemplo "área de atividade com altas
de bigode de gato de galena[n.t. minério temperaturas", "área química").
de chumbo]. Um transformador de 4kV e
0.5A foi usado fazer fulguritos artificiais O CRYSTAL WORLD V.02
(vidro como estruturas feitas com as Na primavera de 2012 O projeto
descargas de alta tensão em misturas de "Crystal World" foi premiado com a
pó c-resíduosestá correto: c-resíduos? e residência de permacultura do estúdios
areia); e tentativas de ódico (força vital) SPACE. "London. 5) "CWv.02" foi pro-
199
posto pelo autor como um laboratório de sódio misturado em susceptância. 7) Pó
cinco dias, aberto com acesso público, de silício (a partir de areia de quartzo
um evento de salão, um evento de aber- quente vermelha e magnésio despejado
tura da exposição, e uma instalação-ex- com ácido clorídrico) foram misturados
posição de um mês, no novo local com um fluxo de óxido de boro, revertidos
SPACE, "O edifício branco" em Hackney novamente para os cadinhos e isolados
Wick, e imediatamente adjacente a even- com outro tijolo e lã cerâmica, antes de
tos nos Jogos Olímpicos de Londres 2012 embalar e fundir em forno de microondas
no principal estádio. por 45 minutos, até que, em mais de
A implicação de Londres no projeto 1410°C, formassem flocos de silício. 8)
foi incorporado em sua localização. Gra- Uma gusa3 também foi produzida a partir
ças a mordaz obra "The White Hotel" de de hematita crua em cerca de 1200 ° C,
Ballard, uma pausa estranha e ilusória da juntamente com outras pastas de quartzo,
selva cristalina, justaposição do excên- circuitos integrados, pratos do disco
trico do Edifício Branco ao lado do sofisti- rígido, e anéis de ferrite. Em seguida
cado complexo olímpico do interior foram despejadas diretamente sobre cha-
Hackney Wick Bow permitiu uma es- pas de aço ou em moldes, de maneira
cavação elaborada de máquinas com- que todos foram posteriormente utilizados
putacionais sobre elementos de um em eletro-cristalizações e sonificações4,
transformado substrato lama de Hackney, parte de um experimento "minerando no
o Grand Union Canal, e os restos de in- cadinho", ou como componentes de um
dustrialismo vitoriano de Hackney Wick. "Computador Terráqueo".
Depois de uma chamada aberta, Experimentos diversos – ener-
uma variada seleção de 12 colaboradores gizados por fontes de alimentação de
foram abastecidos com materiais pré- computador recicladas, jogava-se com
laboratoriais, incluindo o "v.01 Crystal 5 e 12 volts através sopas eletrolíticas
World Reader" e colaboraram de maneira de sulfatos, ácidos, água do canal e
diversa em várias experiências ao longo lama de Hackney Wick para provocar
dos cinco dias seguintes. acréscimos cristalinos e corrosão de
Arcos de plasma, descargas elet- resíduos sobre vários eletrodos deriva-
rostáticas colossais criados usando um dos de computadores incluindo cobre,
transformador faça você mesmo de 5 kV zinco e chumbo, ou em lápis de grafite,
e 3A feito de dois transformadores de fitas cassete, discos de goma-laca, e
forno de micro-ondas, foram elaboradas souvenirs das Olimpíadas. Outro trabalho
através de misturas do lodo e lama de promoveu a precipitação de soluções
Hackney, silício, magnetita, para formar mais saturadas e supersaturadas por
estruturas cristalinas frágeis, ou ao longo evaporação (por vezes acelerada pela
de trilhas de nitrato de prata, recuperadas adição de vasilhas pyrex contendo
do lixo de computadores, mais pedaços soluções em panelas de água ferven-
de madeira e tijolos de argila de Londres, do). Estes foram produzidos para mais
marcando-os com figuras de árvores ao excitação incluindo explorar efeitos
estilo Lichtenberg. piezoeléctricos dos cristais Rochelle,
Em experimentos de alta tempera- com atuadores de disco rígido, ou
tura, cadinhos faça-você-mesmo molda- cristalizados diretamente em diversos
dos em tijolos de forno para pizza em suportes, entre eles papel, tecidos, os-
forma de bolha de alumínio foram pinta- so, discos rígidos, fitas cassete, outros
dos com carboneto de silício e silicato de cristais e minerais.
200
Sinais sonoros foram feitos usando sobre uma pilha de memória do velho
uma versão bruta do circuito do cone a- servidor; um rendimento de cogumelos de
xonal - um circuito que capta o princípio ostra sobre um molho de palha e de
básico de funcionamento dos neurônios. micélio; ouro e cobre sortidos flutuaram
Sensores de cobre tipo bigode de gato filamentos sobre soluções verdes, com
foram colocados em contato com dife- um amarelo sujo misto com azul-celeste;
rentes minérios brutos, incluindo calcopir- um óxido enegrecido emaranhado fri-
itas, um sulfeto de cobre e ferro; piritas de tando um eletrodo de alumínio, outros de
ferro e limonita; e variações de sinal in- aspecto grafite ferrugem e dendrítica i-
cluíram dopar os minérios com soluções mersa em chorume. Perto de outro banho
de sulfato, ou o uso de ventiladores de eletrolítico, um G5 da Apple banhado em
computador para girar os minerais. Ou- ácido sulfúrico, lentamente recristalizando
tros processos sonoros incluíam o turn- seus metais de base lixiviados dentro de
tabling, em HDs, de discos de goma-laca outros cogumelos em forma de ostra.
e circuitos integrados sob bigodesdegato. Dois circuitos geradores de sinal
Em meio aos restos do aparato foram construídos e inseridos no lixo
laboratorial e dos seus produtos, a ex- computacional da instalação. Usando cal-
posição foi preparada: uma construção de copirita como um semicondutor, o pri-
Hackney Wick foi projetada e instalada: meiro era o circuito em forma de um
dois containers brancos de plástico trans- axônio protuberante com tubos de
parente cheios de água do Grand Union soluções minerais (nitrato de potássio,
Canal, um deles misturado com sulfato de cloreto de sódio e ácido cítrico) que subs-
cobre azul, o outro com ácido sulfúrico in- tituem as ligações dos fios. O segundo foi
color; foram dispostas pequenas bombas uma versão bastarda de um amplificador
em tubos transparentes com suprimento de cristal de Adams(1933) que usou três
líquido durante um mês, permeavelmente fios improvisados para fechar o contato
reciclados primeiro sobre uma pilha de com a calcopirita. Os circuitos terminados
minérios rochosos selecionados suspen- foram agrupadas e ligados à resíduos
sos em uma grade de aço, em seguida, computacionais através dos tubos para
tramados sobre um apanhado de peças então agir como sinal sonoro interrom-
de lixo eletrônico em outra grade, para pendo o fluxo de som da tubulação de
então seguirem à recaptação, de volta líquidos por baixo e ao redor da instalação.
aos containers. 9) Este ciclo de fluxos in- Tabelas utilizadas no laboratório
crementou a construção com locais de enquadrado nas paredes da sala, à es-
precipitação e dissolução, cripto-vege- querda penduricalhos com minerais,
tações pobres em nutrientes, e perfor- peças de computador, cacarecos, produ-
mances intempestivas de pontuação do tos experimentais, utensílios de vidro,
cone axonal. fornos de micro-ondas, um forno indus-
O mesmo sulfato e água do canal trial, cristalizações, moldes, misturas, tijo-
carregada de acidez seguia também para los, diagramas, pedaços de fita. No piso
seis containers de polietileno divididos em de pedra e madeira queimadas figurava
um sub-banho antes que ocorresse a per- uma salsicha eletrocutada com lama de
colação e a reciclagem de volta ao ciclo Hackney; desenhos cristalinos delicados
de alimentação do tanque-mãe. Combi- próximos estavam pregados em uma
nações de componentes e soluções áci- parede, e um tubo de papel de cristais, o
das foram deixados para gravar, agregar, resultado da ação de uma solução capilar,
aglutinar e descolorir: piritas de ferro marcando outro canto. Em uma outra
201
mesa estavam espalhados livros de refer- DISCUSSÃO:
ência para uso no projeto. O projeto executa distintas configu-
Em outro lado da sala, uma simu- rações de aparatos-de-material-humano
lação de "computador da terra"5 era tes- em uma variedade de configurações,
tada. Imitando o fluxo potencial de caracterizadas por tentativas de induzir
correntes telúricas com uma antena dipolo processos que ajudam a tornar explícitos
de cobre bruto, a simulação incorpora um os muitos tipos de materialidades e suas
recipiente de cerâmica porosa dentro de diferentes intra-ações que superam con-
lama / terra dragando do canal das prox- figurações que as formalizações tornam
imidades. Solução de nitrato de prata foi obscuras. Conscientes de que suas ativi-
utilizado como um eletrólito para reconfig- dades também pode ser usadas para
uração do cobre (dos dissipadores de consolidar capital, essas mise-en-scènes
calor), reconfiguração da ferrite (a partir de foram acusados de evitar o circuito ci-
filtros de energia) e zinco foram coloca- bernético recursivo de valorização7, onde
dos. Descrito como um "computador da os resultados se tornam insumos de
terra" e para ser enterrado no interior da acordo com um toda a lógica difusa de
terra em Hackney Wick, ao longo do feedback (n.t. de valorização destes sim-
tempo, prevê-se que ambos os fluxos bolismos numa cadeia de valores), com-
telúricos subterrâneas e minerais / água portamento que, sem dúvida, caracteriza
da chuva lixiviam através do solo podendo o capitalismo tardio (Seymour 2011 ).
re-formar esses componentes de base O projeto foi acusado de encerrar
para um funcionamento de "computador um infinidade de intra-ações para escapar
da terra"; uma máquina descrita como de algumas intervenções macroscópicas
sem fios, sem componentes e sem ab- clássicas utilizadas na inscrição do sim-
strações, operando por dentro terra e pro- bolismo computacional sobre os seus
pondo uma ecologia negativa. substratos de materiais, ainda que de
Minerais da terra em eletrocristali- repúdio quase-vitalista de quantificação
zações foram ainda examinadas em uma em que não há nenhuma sobrecodifi-
versão ancestral da obra (Crosse 1857). cação da matéria por algo retirado do
Colocado dentro de um grande pote éter a partir de um mundo material em
poroso de água do canal Grand Union, constante mudança. Atendendo a essas
soluções contemporâneas utilizadas na dinâmicas materiais, sugere-se, contornar
fabricação de processadores e reci- cristalizando em torno de uma lógica sin-
clagem (água régia, cloreto de prata gular ou uma necessidade de auto-
nítrico, carbonato de potássio) foram aterramento. A análise é que tal
vazando lentamente para fora através de auto-aterramento caracteriza a lógica do
seus sub-vasos com conectores ban- mundo da vida contemporâneo, e esta-
hados a ouro e circuitos integrados es- belece-se com sua própria força sobre-
magados, em uma ilha lamacenta no declarada, mas uma lógica que não deixa
vaso de limo de Hackney Wick, cachimbo de ser voluntarista precisamente por
de argila, areia extraterrestre de Rendle- causa da sua falta de aterramento em
sham6, e silício em pó, carregadas entre outra coisa senão em si mesma.
um eletrodo de banda cobre (+) ao redor O "fazer" ou "ser" da intra-ação
da panela, e wafers de silício (-) presos dentro das configurações do projeto su-
na lama, para provocar deformações de gere que uma distribuição maior e menos
qualquer semi-condutor natural emer- resoluta de indeterminações agenciais e
gente de dentro de suas profundezas. performativas estão sempre no trabalho
202
em qualquer nível de formalização. Isso re- AGRADECIMENTOS:
força a ideia de que qualquer teoria ou Muito obrigado a todas as institu-
prática que se baseia em torno das limi- ições de apoio: CTM12, SPACE e partic-
tações de abstrações particulares é ne- ipantes integrais para o projeto: Leon
cessariamente instrumentalista, assim Barnett; Sabrina Basten; Jenna Bliss;
como sempre vai trocar algumas coisas Fabianne Borges; Kat Borges; Felix de
por outras. O que fica de fora é toda uma Bousies; Heath Bunting; Katrin Caspar;
série de práticas materiais muito com- Stuart Childs; Amanda Couch; Jay
plexas que contribuem para um tipo de Cousins; Darsavini; Graham Dunning;
epidemia que não é apenas atribuído a, Richard Elliot; Pete Evans; Eve Fainke;
digamos, parâmetros de plataforma, nem Alejandro Fernandez; Diego Ferri; Fiona
aos tipos de coisas que as pessoas fazem. Flynn; Kathrin Günther; Derek Holzer;
Uma ressalva para o trabalho des- Brendan Howell; Hye Joo Jun; Ewa
crito é que, por mais incertezas materiais Justka; Kasia Justka; Joon Kim; Martin
que são reconhecidos ali, e no entanto Kuentz; Victor Mazon; Cinthia Mendonça;
ideologicamente eles aparecem (no que Anna Norlander; Mariko Ogawa; Lorah
diz respeito ao conceito de "polities" de Pierre; Marco Phillips; Andrea Marco
Jane Bennett), não foi executado como Ricci; Kate Rich; Adrian Scrivener; Mario
uma reivindicação de estar "represen- de Vega; Bruno Vianna; Anna Vo;
tando" estados ontologicamente indeter- Rachael Ward; Nihal Yesil.
minados onde há um "não determinado
fato da questão relativa à propriedade em
Notas:
1.https://pt.wikipedia.org/wiki/Fotografia_Kirlian
questão," nem tampouco para introduzir 2. https://en.wikipedia.org/wiki/Colloid
incerteza como apenas uma questão 3. https://pt.wikipedia.org/wiki/Gusa
4. Exploração da sonoridade dos procedimentos em
epistemológica - a falta de conhecimento performance musical.
(Barad 2007, 265). Em vez disso, e no 5. Ver o texto de Martim Howse nesta mesma coletânea.
6.
que diz respeito ao chamado de Jussi https://en.wikipedia.org/wiki/Rendlesham_Forest_incident
Parrika, o argumento ensaiado é que 7. De seus simbolismos.
203
Cristal World.
Foto: Jonathan Kemp.
PARA REFLETIR O CONHECIMENTO
LIVRE E PROPRIETÁRIO:
DO CÓDIGO ÀS SEMENTES
Isaac Ferreira Filho e
Juliana de Moraes
205
tado pela adesão massiva às tecnologias camponesa. O monopólio das técnicas de
de informação e comunicação, com des- reprodução de sementes destrói as
taque a internet. práticas históricas tradicionais do campe-
A biotecnologia serve de instru- sinato. Ao produzir suas próprias se-
mento para ampliar essa dominação mentes, os agricultores utilizam os
através do monopólio do conhecimento. recursos endógenos à sua terra, o que
A introdução de novas biotecnologias da lhe permite certa autonomia em relação
engenharia genética na produção agro- às empresas fornecedoras de insumos
pecuária representa o aprofundamento agrícolas. A adesão dos agricultores a
de um sistema de modernização da agri- essas tecnologias se dá entre outros fa-
cultura conhecido como Revolução tores ao histórico modelo difusionista das
Verde, o qual culminou na defesa in- EMATERs1 no período da Revolução
condicional da liberação da transgenia. O Verde, agressividade de marketing das
marco institucional desta instrumentação empresas de biotecnologia, garantia de
foi entre os anos de 2003 e 2004 quando preço e mercado, agilidade e facilidade
o governo federal liberou, em escala co- no manejo das lavouras e no combate às
mercial, os organismos geneticamente pragas, além do aumento na produtivi-
modificados (OGMs), mais especifica- dade. O “milagre” das novas sementes
mente variedades de soja, algodão e tem sido comunicado pela sigla VAR
milho resistentes ao herbicida glifosato, (Variedade de Alto Rendimento), crucial
todos produtos de patente da empresa no paradigma da Revolução Verde. Os
Monsanto. A aprovação da lei de Biosse- sistemas tradicionais de cultivo deman-
gurança (lei n 11.105, de 24 de março de dam uma interação sistêmica entre solo,
2005), ampliou as possibilidades de pro- água, recursos genéticos das plantas e
dução comercial dos OGMs, ainda em animais domésticos. Na agricultura que
vigor pela Comissão Técnica Nacional de chamaremos aqui de proprietária, substi-
Biossegurança CTNbio, desde a sua cria- tui essa relação pela incorporação de in-
ção em 2005. Assim, o mercado de pro- sumos como as sementes modificadas e
dução agrícola, especialmente o domínio os produtos químicos, estabelecendo
sobre a produção e comercialização de uma interação particular e reducionista
sementes estão altamente concentrados entre o sistema de água, solo e planta.
nas mãos das corporações. A lucratividade no uso da tecnolo-
De Acordo com Sauer (2010) já gia de ponta está justamente no domínio
no final da década de 1990, a Cargill, a e proteção do conhecimento obtido. Essa
ASM e a Bunge respondiam por mais de proteção se dá pela lógica legal, ou seja,
60% da comercialização mundial de soja é legitimada pelas leis de propriedade in-
e derivados. Ainda, todas as pesquisas de telectual e cultivares, mas também pelo
OGMs concentradas pela Monsanto, monopólio do conhecimento e eliminação
processos esses que vem crescendo até da concorrência. Esse monopólio do co-
então. A Monsanto produz sementes es- nhecimento não só desencadeia a perda
téreis o que obriga o agricultor a depen- da autonomia dos agricultores como tam-
der da sua oferta para manter o cultivo, e bém significa a destruição da segurança e
o impede de manter a prática secular de soberania alimentar por parte dos con-
guardar sementes. sumidores. Por isso, Shiva (2003) pon-
O aumento do poder das empresas dera que:
significa redução e destruição completa
da racionalidade da agricultura de base
206
a democratização do saber transfor- como o aquecimento de discussões sobre
mou-se num pré-requisito essencial a propriedade intelectual. Lembremos que
para a liberação humana porque o o software, assim como as sementes,
sistema de saber contemporâneo nasceu livre. Era comum programadores
exclui o humano por sua própria es- compartilharem seus códigos-fontes (seus
trutura. Um processo desse tipo de conhecimentos) para a criação de novos
democratização envolveria uma tal programas, evitando-se então “reinventar
redefinição do saber que o local e o a roda”, acumulando e compartilhando
diversificado viria a ser considerado conhecimento. Empresas e indivíduos
legítimo e visto como um saber in- (que na atualidade são donos de corpo-
dispensável porque a concretude é rações) lançaram-se em manifestos a
a realidade, a globalização e a uni- favor da propriedade intelectual. Segundo
versalização são meras abstrações eles, esse tipo de propriedade deveria ser
que violam o concreto, e por con- protegida e mercantilizada, gerando ga-
seguinte, o real. (p. 81) nhos e – principalmente – aquecendo um
mercado de busca de inovações tec-
Como forma de luta pela demo- nológicas. O software livre surge como
cratização do saber em detrimento do uma alternativa à prática de dominação
monopólio do conhecimento a Agroecolo- através dos programas de computador e
gia vem sendo a estratégia mais incorpo- uma espécie de retorno às práticas de de-
rada pelos movimentos sociais. Além de senvolvimento de software.
se tratar de um conjunto de modelos de Uma grande deficiência que há nos
agriculturas sustentáveis, é um movi- movimentos sociais é falta de diálogo
mento social de combate à agricultura entre si e o entendimento da pluralidade
proprietária e recentemente foi incorpo- em torno de um comum: a emancipação
rada como modelo científico interdiscipli- humana. Uma miopia está presente em
nar. Nesse contexto, foi criada em 2012, uma boa parcela do movimento do soft-
no Vale Sagrado dos Incas no Peru, uma ware livre2 que não consegue enxergar
rede para a defesa das sementes livres no além dos detalhes técnicos dos progra-
continente americano. Representantes de mas de computador. Todo questiona-
organizações camponesas, educacionais, mento e prática em torno do “faça você
coletivos autônomos e diversos outros mesmo”3 limita-se ao mero uso da ferra-
movimentos estavam presentes às re- menta X ou Y, ou ainda na participação de
uniões de formação da rede. Em âmbito um seleto grupo detentor de um certo
nacional, foi criada em 2002, a ANA – Ar- conhecimento específico. Alguns indiví-
ticulação Nacional de Agroecologia, onde duos, grupos e instituições afirmam que o
movimentos sociais articulam-se em de- mundo está passando por uma nova re-
fesa do saber local e das sementes livres. volução industrial, a revolução maker.
Ainda, representada pela ABA – Associ- Nela os indivíduos produzirão sua própria
ação Brasileira de Agroecologia, criada tecnologia através da prática do “faça
em 2007, reúnem-se profissionais e estu- você mesmo”. O ensaio desta revolução
dantes das mais diversas áreas do conhe- se dá por práticas com o hardware livre,
cimento trabalhando na construção do que envolve controladores lógicos, mo-
conhecimento agroecológico e em análises tores, cabos, sensores, placas e etc pro-
e proposições de políticas públicas. duzidos por trabalhadores precarizados
O nascimento do software livre em países com – para não dizer sem –
também trouxe importantes contribuições direitos trabalhistas maleáveis (termo
207
usado pelo mercado). Além das relações movimentos emancipatórios. A nossa pro-
trabalhistas esses países são conhecidos posta é trazer uma discussão maior no
pelos altos índices de poluição. Talvez campo das possibilidades entre as parce-
esta revolução esteja prevista pelo mer- rias que podem ser feitas com a apro-
cado que fará esforço para produzir in- priação crítica de tecnologias livres como
sumos mais que suficientes para alternativa ao sistema posto, pois este
alimentar as produções individuais. sistema, nas palavras de Vandana Shiva
Em um desabafo nas redes sociais (2003):
um desenvolvedor4 de software livre la-
menta que sua palestra, que falaria sobre além de tornar o saber local in-
desenvolvimento de ferramentas e pa- visível ao declarar que (…) não é
drões livres para pesquisa, coleta e trata- legítimo, o sistema dominante tam-
mento de dados do bioma brasileiro, não bém faz as alternativas desapare-
foi aceita no FISL – Fórum Internacional cerem, apagando ou destruindo a
de Software Livre de 2014, e que outras realidade que elas tentam repre-
palestras de empresas como a Globo.com sentar (...). O saber dominante (…)
e o Facebook tiveram o espaço no evento. destrói as próprias condições para
Este caso ilustra um pouco da falta do existência de alternativas, de forma
diálogo da militância com outras vertentes muito semelhante à introdução de
e áreas do conhecimento, assim como a monoculturas, que destroem as pró-
adoção do software livre como um mero prias condições de existências de
modelo de negócio. Através desta reali- diversas espécies (p. 25)
dade muitos militantes estão adotando
uma visão sistêmica onde o software livre Portanto, é preciso descobrir o
torna-se um instrumento, importante, mas que existe no código dos nossos sistemas
apenas uma instrumento que lhes propi- operacionais mas é preciso também, fun-
cia suporte em propósitos mais plurais e damental até, saber o que existe no
interdisciplinares, migrando para outras processo da chegada do alimento até as
vertentes como mídias livres, saber popu- nossas mesas.
lar, ciência aberta e meio ambiente.
Uma destas iniciativas é a Casa das
Sementes Livres, idealizada pela Escola da Notas:
Mata Atlântica. A iniciativa busca fomentar 1. As Empresas Brasileiras de Assistência Técnica
o diálogo entre agricultores, ambientalistas, e Extensão Rural, criadas por volta da década de 70,
eram responsáveis em disseminar, o conhecimento
hackers, educadores. Promovem o resgate técnico mecanicista da produção moderna, em
à autonomia de produção de um banco de substituição das formas empíricas de produção, em prol
de emancipação.
ou reparar sem depender de empresas ou indivíduos
especializados.
Como mencionado acima, este 4. Apesar de o desabafo ter sido postado como “público”,
texto é apenas um apanhado inicial de preferimos não revelar a identidade do autor por não
termos o avisado que seria publicado fora da rede
ideias sobre práticas livres no que tangem de origem.
208
O ÉTER
E SEU DUPLO
Martin Howse
abstração.
Amanhã será enviada.” 1
209
O ÉTER É EXTIRPADO Dentro desta mudança refrativa de
PELA NAVALHA DE OCCAM “composição”7, James Clerk Maxwell o-
cupa uma posição-chave em que seu tra-
"Éteres foram inventados para os balho abraça mudanças radicais na
planetas nadarem dentro, para analogia e metodologia científicas; uma
constituir a rede fluvial de atmos- mudança a partir da construção de, ainda
feras elétricas e magnéticas, para que bastante mentais de modelos mecâ-
transmitir sensações de uma parte nicos para uma "abstrata, formal e
do nosso corpo para outros, e matemática modelagem por equações
assim por diante, até que todo o diferenciais"8.
espaço foi preenchido três ou qua- Em termos simples do biógrafo
tro vezes com éteres... A único éter Martin Goldman, "Sua teoria foi nova e to-
que sobreviveu é o que foi inven- talmente perturbadora, na qual ele falou
tado por Huygens para explicar a de ondas, mas não importou-se com o
propagação da luz." 5 que estava fazendo as ondulações."9
Era exatamente o tipo de teoria
Esta transformação da ideia do que, portanto, perturbava seu colega
éter, e de uma transformação paralela da William Thomson (Lord Kelvin):
ciência e da tecnologia como uma "ar-
mação" ou "composição" (como na tra- "Eu nunca me satisfiz até que eu
dução do conceito de "Ge-stell" após pudesse fazer um modelo mecânico
Heidegger), pode ser facilmente rastreada da coisa. Se eu posso fazer um
na obra literária e experimental de Huy- modelo mecânico, eu posso enten-
gens, Newton e Descartes através de que der ... e é por isso que eu não posso
Maxwell, Thomson, Faraday, Michaelson, começar a teoria eletromagnética da
Morley, Lodge e mais tarde para Einstein luz." 10
e Eddington, vão chegando assim:
O meio de descrição é transfor-
"Recapitulando, podemos dizer que mado a partir do particular ou corpuscu-
de acordo com a teoria geral da re- lar, através da mecânica, por dentro das
latividade espaço é dotado de matemáticas formais, informações, um
qualidades físicas; neste sentido, software finalmente, que detém tal (pa-
portanto, existe um éter. De acordo cote quântico de) (in)certeza de como
com a teoria geral da relatividade aquilo é, um software que é o éter, como
espaço sem éter é impensável; que permitindo-se tanto para marcação
para tal espaço não só não haveria quanto que para medição. E essa história
propagação da luz, mas também é legível e não apenas na ciência (ou
não há possibilidade de existência ficção cientifica), mas igualmente na pai-
de padrões de espaço e tempo sagem ambígua entre atividade tecnoló-
(réguas e relógios), nem, por con- gica e militar; uma chegada na história de
seguinte, quaisquer intervalos es- um laboratório planetário.11
paço-tempo no sentido físico. Mas Pois, afinal:
este éter não pode ser considerado
como dotado com a característica "... O éter é pouco mais que um
dos meios ponderáveis, como con- caso nominativo do verbo ondu-
sistindo de partes que podem ser lar..." 12
rastreadas através do tempo." 6
210
Sob tal desatada analogia, a ciên- científico cotidiano relacionado exata-
cia torna-se uma questão de abstração mente com a violação da localidade es-
puramente funcional, pouco carinhosa paço-temporal qual Maxwell, sob o signo
para responder à pergunta infantil e mara- do éter e no contexto da unificação de
vilhada do que exatamente está fazendo eletricidade, magnetismo e luz, e mais
a ondulação. tarde Einstein, se encrencaram. Uma
E ainda para pensar o contrário, é linha clara nos guia para o lado espectral
que não há algum tipo de confusão entre da mecânica quântica, a "ação fantas-
o mapa e seu território famoso, a respeito magórica à distância" de entrelaçamento
destes modelos premonitórios (da ciên- quântico, uma ciência futura da incerteza.
cia) que não professam fazer outra coisa Por meio de uma relação muito es-
senão manter a paródia da citação que pecífica ao "fazer sentido", o fragmento de
abre este ensaio, existindo apenas den- William de um poema nonsense obs-
tro de uma terra de personagens de faz curece sua ciência contemporânea e
de conta "sem profundidade."13 zomba de uma ciência do futuro, essa
A história do éter como um fenô- mensagem que ainda não foi enviada,
meno literário, como um pensamento mas que já chegou. A porta está aberta
sobre o mundo é, portanto, exatamente a para todos os tipos de ghost-writers, mon-
viagem desde o subterrâneo através do tando esta tempestade eletromagnética
espelho, para o incorpóreo duplo (de (EM), uma TEMPESTADE tardia, a de-
Alice); um circuito fechado de espe- bater um planetário, deslizando pelo éter.15
lhamento de construção científica e Precisamente o que está empe-
construtivismo, descrevendo o mundo e nhado neste jogo de tempo e espaço,
tornando o mundo como ele é e será: este índice de refração luz dobrada, é
uma questão de substância, da materiali-
"Em um campanário comum, cada dade, do que é isto, em relação aos fan-
sino tem uma corda que desce tasmas, e em relação ao futuro.
através de um buraco no chão do Isto parece a princípio como uma
quarto do tocador de sino. Mas questão para a ciência, para a física, uma
suponhamos que cada um dos pergunta enjambrada em metafísica, um
cabos, em vez de atuar sobre um quase modismo de parapsicologia, e uma
sino, contribui para o movimento ontologia fantasmagórica sombria; EM
de muitas peças de maquinário, e (eletromagnetismo) como racionalismo
que o movimento de cada peça é espectral, como uma onírica (Descartes)
determinada não pelo movimento sinalização do endofísico.16 E é assim que
de uma corda só, mas por várias, nós sempre só poderemos falar de fenô-
e suponhamos ainda, que toda menos EM, se entendemos o quão difícil
esta maquinaria é silenciosa e to- é usar esses termos emprestados, sem-
talmente desconhecida para o to- pre tarde demais.
cador de sinos, que só pode ver, No entanto, nenhuma surpresa
tanto quanto os buracos no piso nisso, mais uma vez, a porta (sempre) es-
acima dele permitem." 14 teve aberta.
Ciência Jabberwocky17 já tinha re-
REVERSÃO conhecido seus próprios fantasmas fu-
A correspondência chega antes de turos da incerteza. A história ambígua e
ser enviada (no futuro); a citada paródia espectral da ciência vitoriana, assom-
de Eddington é um exemplo de humor brado tanto por um meio de refracção, o
211
éter, quanto por seu irmão gêmeo, pura edição inicial de Scientific American
abstração, é fácil de contar nestes termos. (1921) é reconhecido como um precursor
Figuras notáveis neste caso, com da prática moderna de EVP (fenômeno
excelente pedigree no gênero literário do de voz eletrônica) e ITC (Transcomuni-
fato científico, incluem William Crookes18 cação instrumental), ampliando e esten-
e Oliver Lodge, na cobertura de uma dendo o fantasmagórico EM, ou etéreo,
sintonia etérea no sinal com uma trans- linhagem. Metodologias EVP e dicas es-
missão de um programa pontuando, o tra- pecializadas em uma prática éter, que
balho de Tesla (um ano antes) e Marconi oferece um outro lado mais próximo da
(um ano após).19 era do rádio; um barulho etéreo que não
Ao mesmo tempo Lodge aparece é nem a transmissão, nem recepção, mas
como um espiritualista notável, investi- que, em vez disso permanece na
gador dos fenômenos psíquicos e colega (nublada) intersecção da definição destes
de Sir Arthur Conan Doyle no famoso dois termos. EVP ou ITC pode também
SPR (Sociedade de Pesquisas Psíqui- ser visto como um moderno aparelho tec-
cas). O físico Lord Rayleigh, o sucessor nológico tanto para o espiritualismo, como
de Maxwell como chefe dos Laboratórios para o ruído branco (Ressonância Es-
Cavendish em Cambridge figuraria como tocástica21) impulsionada pela tecnologia
presidente da SPR tempos depois. O e gravação como apoio ou "mídia" (para
sinal ou assinatura para o tema da rever- mensagens do além ou do agora), e um
são é fornecido pelo teste de identidade fenômeno de codificação e decodificação,
póstumo de Lodge: uma série de en- de TEMPESTADE e criptografia.
velopes lacrados (depositados junto ao Os termos de comunicação de
SPR) com instruções que poderiam ser sinal e ruído são assim chamados em
usados para corroborar mensagens ao uma relação diferente sob a famosa (teo-
(futuro) espírito do próprio Lodge. ria da) Ressonância Estocástica EVP /
E como matemático Augustus de ITC – ruído branco; a um nível mi-
Morgan (outro fantasma, desta vez as- croscópico, o ruído térmico interno de um
sombrando o futuro lógico de computa- circuito físico (uma cidade) ou fenômenos
dores) é citado em uma introdução ao naturais eléctricos na atmosfera – ambos
trabalho de Crookes sobre espiritismo: rodeados por rádio. O ruído branco por
vezes destaca um sinal (voz) outrora in-
"Estou perfeitamente convencido audito, e torna-o evidente.
de que eu tendo visto e ouvido coi- EVP e fenômenos associados
sa que se torna impossível a des- (prova de vida após a morte) proliferam
crença, coisas espirituais que não como prática e como anedota em toda a
podem ser tomadas por um ser Internet global – técnicas compartilhados
racional capaz de explicação por e suporte histórico. A história é traçada
impostura, coincidência ou erro ... através de figuras brilhantes, como o
As explicações físicas que tenho sueco Friedrich Jurgenson que notou pela
visto são fáceis, mas miseravel- primeira vez essas vozes durante as
mente insuficientes. A hipótese gravações do canto dos pássaros,
espiritual é suficiente, mas pesa- atraindo a atenção de Konstantin Raudive
damente difícil." 20 (Letónia) no final dos anos 1950 e 6022.
Hans Bender e Hans Otto Koenig
Finalmente, o aparelho imaginário fazem uma aparição numa TV experi-
ou paródico de Edson, esboçado em uma mental no início dos anos 80 em que
212
uma voz claramente ouvida a dizer: "... Ela deve ser enviada como uma
"Otto Koenig faz comunicação sem fio mensagem por telégrafo ..." 23
com os mortos."
As vozes espirituais (tendem), A mensagem (adiantada) torna-se
assim, a tornar-se vozes de uma dimen- mais fácil de descodificar, por dentro das
são paralela, um mundo através do es- vindouras ciências paranoicas de (outra)
pelho. Além disso, e de acordo com a criptografia. Tal jogo conceptual antecede
nova presença de tais mensagens nas mí- a citação de abertura deste ensaio por
dias de armazenamento magnético do mais de 50 anos, igualmente adivinhando
computador, no monitor CRT ou im- os termos posteriores do teletransporte
pressão de logs (mesmo negando o soft- quântico; Alice não é apenas o desti-
ware como mídia), as mensagens podem natário de uma mensagem no estilo de
ser vistas como originárias de um "arquivo um cabeçalho de criptografia tradicional,
de dados universal," unindo também os mas a mensagem em si mesma.
mortos por dentro dessa acumulação. E a No entanto, a seta de atribuição
possibilidade de um futuro – um retorno ainda está firmemente inclinada para di-
aos tabuleiros de adivinhação com o cére- reção correta; texto científico que torna-
bro como "interface", ou intermediário. Os se igualmente uma (auto) paródia. De
termos simples do computador assom- acordo com Martin Gardner, Eddington
brado nos permitem ver que tudo isso é era um grande fã do poema Jabberwocky
puramente uma questão de interface (no- de Carroll, mesmo indo tão longe a ponto
vamente após a endofísica). de comparar certos aspectos do discurso
Contudo, o que também é eviden- científico com o poema:
ciado na citação de abertura é, que den-
tro do contexto de uma inversão de causa “Na natureza do mundo físico ele
e efeito, de original e cópia ou paródia, aponta que a descrição que o físico
que não só Carroll serve como modelo faz de uma partícula elementar é
estilístico, ao mesmo tempo é marco con- realmente uma espécie de Jabber-
ceitual pré-datando uma ciência "assus- wocky; palavras aplicadas a ‘algo
tadora" e cheia de (in) certezas onde desconhecido’ que está fazendo
podemos citar como Jabberwocky. Tem- ‘sabe lá o quê’” 24
poral, linguística, causal e suas inversões
espaciais, para categorizar só um pouco, TEMPESTADE:
assombram o mundo "Através do Es- O QUE CODIFICA AQUILO QUE É
pelho" de Alice, como, por exemplo, e de
forma paranoica, a punição anterior ao "Toda vez que uma máquina é
julgamento, e, finalmente, o crime vindo usada para processar informações
por último. Dentro da cosmologia que classificadas eletricamente, os vá-
move peças de xadrez da aventura rios interruptores, contatos, relés e
"Através do Espelho", durante uma via- outros componentes em que a
gem de comboio em que Alice é obser- máquina pode emitir frequências
vada por todos os tipos de dispositivos, e de rádio ou energia acústica.
julgada como "viajando pelo caminho er- ...A este problema de radiação
rado", um simples jogo de palavras con- comprometida que temos dado o
ceitual, com a cabeça como gíria Victorian epíteto de TEMPESTADE." 25
para selo postal, permite a aparentemente
fortuita conclusão seguinte:
213
Nesta alegórica história dupla, os lógica do sentido e linguagem que resulta
fenômenos sempre já codificados da na formação de uma (rádio) novela de de-
TEMPESTADE fornecem uma entrada tecção de código exemplificado por
fácil para (teorias de) paranoia e conspir- "Cidades da Noite Vermelha" de William
ação em uma relação existencial essen- S. Burroughs.26
cial para o assunto, que fornece uma Tanto esta nova forma de literatura
lente decente para observar uma (con- endofísica, quanto um retorno a Edding-
temporânea) paisagem paralela de mo- ton, novamente por meio da citação de
dulação e desmodulação, todo tipo de abertura, faz-se claro aqui:
coerência e detecção emprestado de ter-
mos técnicos retirados da era do rádio. "Nossa conta do mundo externo
De um lado de um espelho de (quando expurgado das invenções
sinal/ruído, estando entre aqueles sem- do contador de histórias da nossa
pre comprometidos, e prenunciando a consciência) deve, necessariamen-
nossa mensagem suspeita de encerra- te, ser um" Jabberwocky "de atores
mento, TEMPESTADE é precisamente desconhecidos executando ações
um codinome referindo-se à "investigação desconhecidas... Devemos buscar
e estudo das emanações comprometedo- um conhecimento que não é nem
ras" com os últimos termos definidos de atores, nem de ações, mas do
como "Dados de relação não intencional qual os atores e ações são um
ou sinais de inteligência maquiada que, veículo. O conhecimento que é pos-
se interceptados e analisados, podem sível adquirir é o conhecimento de
dispor de informação sendo transmitida, uma estrutura ou padrão contido
recebida, manipulada e de alguma forma nas ações". 27
filtrada por algum equipamento de pro-
cessamento informacional "de acordo LUZ
com a informação do Manual de Segu- Luz, se é que podemos falar em
rança da Informação Automatizada da termos tão simples, é chave; projetada
NASA [1993]. TEMPEST refere-se tam- pelas equações de Maxwell, impondo
bém ao controle de tais comprometedo- uma referência clara, como a informação
ras (mesmo etéreas ou ectoplásmicas) clara (portadora) como um esclareci-
emanações, dentro da recursão mento, igualmente como um termo den-
cabeçuda de sua própria sigla inde- tro de uma dualidade gnóstica, a luz e as
cifrável, com estes fatos relativos ao título trevas em par, o teatro e a praga. Este
sugerindo um estado militar ideal de sigi- índice de refração avança um duplo igual
lo, de contenção. TEMPESTADE é assim de sinal e ruído, uma pergunta ousada
exatamente um codinome para o que é sobre a intencionalidade da própria trans-
sempre codificado com antecedência – a missão, a criação de significado de qual-
mensagem depois de gnosticismo. quer sinal que subscreve o estudo de
TEMPESTADE, como uma forma fenômenos eletromagnéticos contem-
paranoica de construir sentido, torna-se porâneos.
parte da equação invertida de men- Já há (dentro das equações de
sagem-tempo, o que é sempre algo ainda TEMPESTADE) uma relação com a para-
a ser enviado para chegar somente noia, a entrada da luz rosa de Philip K.
agora, puramente como um fenômeno Dick - as modulações de VALIS ("Sistema
literário, algum tipo de gênero confuso de Inteligência Ativa e Vasta"[n.t.] ) trans-
entre ficção de detetive e um jogo com a mitidos dentro desta propagação eletro-
214
magnética; modulações que ele clamava A tão chamada dualidade (entre
anteriormente terem sido produzidas por onda e partícula) nos termos de ciência
um experimento de controle mental So- descreve um mundo que se realiza ou en-
viético e mais tarde apropriado pelo sis- quadrada em (in) certeza - o colapso da
tema benevolente que orbitava a Terra. função de onda como a descrição de um
Igualmente paranoico é o trabalho saber é exatamente descriptografia den-
de Thomas Pynchon, o dia e a luz dentro tro dos termos da TEMPESTADE; de
do "Contra o Dia". Vindo à luz, revelação, Maxwell para muitos mundos.29
exposição, uma transparência ou trazer Ainda dentro do barulho que sus-
visibilidade por este "Espato da Is- tenta que não há nada fora o sonho, qual
lândia"[n.t.], cristalino que serve como diz que “o nome da canção é ‘Olhos de
uma dobra, - a decomposição da luz em Haddock’”30, mas onde “o nome na ver-
dois raios (as ordinárias e as extra- dade é ‘O idoso, bem velho’”, mas na ver-
ordinárias, o real e o componente imagi- dade a música é chamada geralmente de
nário) que passa através do cristal de “Modos e Maneiras”...31
calcita. A ciência como um "trazer para a Dentro do ruído zumbido da caixa
luz", a luz do dia, ao contrário da es- preta do campanário de Maxwell, a ficção
curidão do espiritismo. Trabalho (e colo- paralela do tocador-de-sino puxando as
cando o espectro de trabalho, trabalho e cordas, continua a haver um único sinal
energia e entropia, leve como recurso e acróstico, o nome de Alice Pleasance
como potência) e o dia e a luz. Liddell.32
215
3. Descartes a Mersenne, em correspondência, editado 29. A interpretação de muitos mundos seguindo o
por Adam e Tannery (1893) p. 396. trabalho de Hugh Everett III.
4. Veja também o experimento sobre deslize no éter de 30. Canção de um poema de "Alice Através do Espelho"
Michelson e Morley nos anos 1880, e o trabalho onde há um relato sobre sua confusa nomenclatura que
experimental contemporânea de Oliver Lodge, em relação varia.
ao detecção de movimento da Terra através do éter. 31. "The name of the song is called 'Haddock's Eyes.'
5. James Clerk Maxwell, "Aether, Encyclopaedia "Oh, that's the name of the song, is it?" Alice said, trying
Britannica 9. 1875-1889", artigos de James Clerk to feel interested. "No, you don't understand," the Knight
Maxwell, New York, 1960, 763-775. said, looking a little vexed. "That's what the name is
6. Albert Einstein, "Palestra na Universidade de Leyden, called. The name really is 'The Aged, Aged Man.' " "Then
1920", Adendos em Relatividade, Dover, New York, 1952, Iought to have said 'That's what the song is called'?" Alice
15,16, 23. corrected herself. "No, you oughtn't: that's quite another
7. “Composição” como tradução do termo heideggeriano thing! The song is called 'Ways and Means': but that's
“Ge-Stell”. only what it's called, you know!" "Well, what is the song,
8. Martin Goldman, Demon in the Aether. The Life of then?" said Alice, who was by this time completely
James Clerk Maxwell, Paul Harris Publishing, Edinburgh, bewildered. "I was coming to that," the Knight said. "The
1983, 196. song really is 'A-sitting On A Gate': and the tune's my own
9. ibid. 196. invention."" Lewis Carroll, Alice's Adventures in
10. William Thomson Kelvin, notas de palestras sobre a Wonderland and Through the Looking-Glass, Penguin,
Dinâmica Molecular e da teoria de Ondulaçao da Luz London, 2003, 213-4.
Baltimore, 1884, 270. 32. The acrostic within the closing poem, A Boat Beneath
11. cf. o trabalho do "Bureau d'Etudes". A Sunny Sky, on the last page of Through the Looking-
12. Oliver Lodge citando Lord Salisbury. Oliver Joseph Glass, ibid, 241.
Lodge. "The Ether of Space". Harper & Brothers, 1909. 33. Lewis Carroll, "The Walrus and the Carpenter", Alice's
13. Gilles Deleuze, "Logic of Sense", Continuum Adventures in Wonderland and Through the Looking-
Impactos, Londres, 2005, 11. Glass, Penguin, London, 2003, 163.
14. James Clerk Maxwell, artigos científicos de James
Clerk Maxwell, Vol 2, Dover Publications, 1965, 783-4.
15. cf. o trabalho experimental de Maxwell, Michelson e
Morley.
16. A conexão endofísica sendo que apenas fora esse
sonho existe algo chamado pelo nome de Certeza.
17. Personagem de Lewis Carrol, “monstro semiótico”
que embaralha palavras.
18. Radiômetro de Crookes, seu trabalho com os raios
catódicos, e seus experimentos bem documentados
por Florence Cook.
19. Oliver Lodge primeiros sinais de transmissão de rádio
em 14 de agosto de 1894.
20. William Crookes, Estudos de Fenômenos do
Espiritismo, 1874.
21. Ressonância estocástica refere-se a um fenômeno
pelo qual a adição de ruído (branco ou colorido) a um
sinal aumenta o nível do sinal combinado, para permitir a
detecção e extrair sentido de sinais outrora
imperceptíveis.
22. cf. Konstantin Raudive, Break-Through: An Amazing
Experiment in Electronic Communication with the Dead,
Mass Market Paperback, 1971.
23. Lewis Carroll, Alice's Adventures in Wonderland and
Through the Looking-Glass, Penguin, London, 2003, 147.
24. Martin Gardner, The Annotated Alice, Penguin,
London ,1970, 192.
25. TEMPEST: A Signal Problem, NSA, 1972.
26. Construtivismo de cabeça de fita eletromagnética de
Burroughs: "Eu gravei alguns minutos em todos os três
quartos. Eu gravei a descarga do banheiro e o chuveiro
ligado. Gravei a água corrente da pia da cozinha,
o barulho de pratos e a abertura e fechamento e zumbido
do frigorífico. Eu gravei da varanda. Agora eu me deitei
na cama a ler algumas seleções de "The Magus into the
recorder". William S. Burroughs, Cities of the Red Night,
Picador, 2001, 43.
27. Sir Arthur Stanley Eddington. New Pathways in
Science, Read Books, 2007, 256.
28. Thomas Pynchon, Against the Day, Penguin, London,
2006, 566.
216
BRUXARIA DIY:
UM DECÁLOGO SOBRE MAGIA E
ARTE DE PERFORMANCE
Lechedevirgen Trimegisto
224
A TERRA COMO XAMÃ
E NOVAS MÍDIAS
Sonja van Kerkhoff
225
Imagem do vídeo: Heart of the Land - Te Ngākau o te whenua2.
226
pramos ou negociamos na rua, em uma Em 2003 fiz conexão com artistas
área de etnia cigana. de novas mídias da Nova Zelândia
Na sequencia, em 2013, produzi- através da rede Aotearoa Digital Artists4.
mos uma terceira versão para a ex- Foi por isso que acabei participando do
posição "Third Nature", em que dessa vez projeto SLOW FLOW e, mais importante
construímos uma forma espiral como en- ainda, por isso posso trocar ideias e
trada para o museu Puke Ariki em New tomar parte na discussão através da lista
Plymouth, Aotearoa (Nova Zelândia). E de e-mails.
mais uma vez reciclamos materiais locais, A wakahuia é um recipiente para
usando madeira e papelão de um can- objetos de valor, mas isso também sig-
teiro de obras. nifica "barco de pena", em Maori da Nova
Em todas as vezes que montamos Zelândia. Nosso 'navio' feito a partir do
este trabalho buscamos envolver pes- scan de uma pena do extinto pássaro
soas de fora dos mundos da arte e tec- neozelandês, o Huia (Heterralocha acu-
nologia, como moradores de rua (com o tirostris), é combinado com desenhos de
papelão), de modo que a cada edição um Sonja. O último pássaro huia foi avistado
pouco da “terra” local também se tornava na década de 1920, mas suas penas e
parte do processo. corpo viajaram o mundo, seguindo as
rotas comerciais do colonialismo.
Ka pū te ruha,
ka hao te rangatahi.
Enquanto uma velha
rede se desfaz,
uma nova está pronta.
234
RUÍDO, SILÊNCIO E
TECNOXAMANISMO (NO IGAPÓ
DAS ALMAS SINTETIZADAS)
Henrique Masera Lopes
246
A CANÇÃO
DA VELA
Wonjung Shin
249
Perfomance Limpeza
Azteca com Xamã Ce
Quiahuit. Fotos cedidas
por Marcelo Gandhi, 2014
PERFOMANCE
LIMPEZA AZTECA
XAMÃ CE QUIAHUIT
marcelo Gandhi
Desde que fui morar em São Paulo TEDRAL INFORMA UMA ESPÉCIE DE
comecei a me mascarar PARA FAZER RESISTÊNCIA AO PODERIO ESPA-
PER FORMANCE, BLINDAGEM, AS- NHOL QUE MASSACROU A CULTURA
SUNÇÃO DE IDENTIDADES OUTRAS, AZTECA E OUTROS POR TODO O
CRISE DE IDENTIDADE... saindo do meu MÉXICO, PROPONHO MASCARADO,
próprio umbigo e vendo o contexto social, UNIDADE MAC ( MICKEY CAVEIRA ADI-
político econômico, comportamental do DAS ) SER LIMPADO E DEFUMADO
qual sou fruto, agente e reagente, a más- PELO XAMÃ AZTECA, ESTE OPRIMI-
cara é uma forma de denúncia e proble- DO, DESTRUÍDO E SOBREVIVENTE
matização das profundas crises de DO ETNOCÍDIO E GENOCÍDIO ESPA-
representação que vivemos hoje e seus NHOL, PAGO 50 PESOS PARA O XAMÃ
efeitos num coletivo, eu negro, árabe, ME LIMPAR , A RELAÇÃO DE PODER
índio, veado, nordestino morando numa PRESENTE NO SISTEMA FINANCEIRO
grande metrópole imensa de uma plebe EU PAGO VC FAZ AINDA IMPERA NA
italiana, espanhola, portuguesa em busca RELAÇÃO, MAS ACHO PONTUAL A
de uma recriação de seu status e do seu UNIDADE MAC SE SUBMETER À UMA
reino perdido... eu margem, invisível pe- LIMPEZA E RECONHECER NO XAMÃ
rante a coroa européia e seu eurocen- AZTECA UMA PRESENÇA E UMA COR-
trismo enferrujado e morto.... eu colonizado POREIDADE NÃO MAIS TAO INVISÍ-
Nova Iorque, Paris, México... MÉXICO VEL ASSIM... o XAMÃ CE QUIAHUIT ME
ANO DE 2013 ESTOU NUM FESTIVAL PERGUNTA PORQUE USO A MÁSCARA
DE PERFORMANCE EXTRA NÚMERO E AS ROUPAS E DIGO QUE É UM TRA-
5, ORGANIZADO POR PANCHO LOPEZ, BALHO SOBRE RELAÇÃO DE PODER
JÁ FAZ 20 DIAS QUE ESTOU EM DF E OPRESSÃO E QUE O OBJETIVO É
MEXICO E ACHO MUITO FORTE VER ELE ME LIMPAR DE TUDO ISSO .....
XAMÃS AZTECAS REALIZANDO DEFU-
MAÇOES NAS PESSOAS EM FRENTE
À CATEDRAL CRISTA DE ZOCALO,
ZOCALO CENTRO DA CIDADE DO
MEXICO, O QUE ANTES ERA UMA COM-
PLEXA ARQUITETURA DE PIRÂMIDES,
HOJE É UMA COMPLEXA ARQUITE-
TURA NEOCOLONIAL ESPANHOLA,
AQUELES XAMÃS EM FRENTE À CA-
251
252
Atividades da Rede Mocambos. Pajelança
Quilombólica Digital - Territórios Digitais
Livres, 2015. Fotos: Robson B. Sampaio.
A VIAGEM
DE MANA
Vincenzo Tozzi
255
dos movimentos e conquista de mais in- Os quilombolas marcavam encon-
vestimentos públicos, como o programa tro todos os dias nas estações rádio base
Cultura Viva e os Pontos de Cultura. A das comunidades para receber e reen-
ideia do compartilhar trazida pelo movi- caminhar as mensagens, ate chegar as
mento do software livre se encontra natu- comunidades mais distantes. Baobáxia
ralmente com as praticas tradicionais de nasce dessas experiencias e pesquisas
vida comunitárias e cria novos territórios propondo uma tecnologia que dialogue
culturais de experimentação e produção. com as culturas e praticas tradicionais e
Os elementos simbólicos e transcenden- aproxime de forma respeitosa ás possi-
tais são fortemente presentes nesses ter- bilidades do mundo digital. Baobáxia é
ritórios onde outras dimensões são um neologismo derivante da "Galaxia de
cul tuadas e preservadas, com a dedi- Baobás" já que a tecnologia propõe in-
cação das/os pajés, curandeiras/os, terligar as memórias de diferentes comu-
babas e ialorixás. As comunidades da nidades. Os nós da rede Baobáxia, são
Rede vem se juntando também de forma chamados Mucuas, nome do fruto do
transcendental pela Rota do Baobás, Baobá, no lugar de "server", nome co-
plantando, com rituais próprios de cada mum usado nas redes de computadores.
lugar e evocando a luta por um território Esses frutos mantém as sementes, as
livre, mudas da árvore africana que re- memorias digitais. A simbologia além de
presenta um elo com o passado e o fu- respeitar e dialogar com o contexto ajuda
turo. Na Rota, tecnologias xamânicas a definir o tipo de relação que buscamos.
tradicionais, como tambores e maracas, Plantar mucuas no lugar de instalar
são usados para transcender para outras server, ou seja entender a relação com a
dimensões. Com a chegada da dimensão maquina da mesma forma que as comu-
digital, cientes das novas possibilidades, nidades tradicionais se relacionam as
buscamos criar uma relação cultural e plantas. Cuidar para colher os frutos e
tecnológica que nos respeite e repre- compartilhar as sementes, no lugar de
sente. A Rede Mocambos, desde seus escravizar para obter lucros.
primórdios, tem promovido oficinas de
tecnologia livre com foco na produção
audiovisual. Veio se delinear a necessi-
dade de melhorar a preservação e o
compartilhamento das memorias digitais
produzidos já a um tempo pelas comu-
nidades e em conversas, durante os
encontros da Rede, chegamos a apro-
fundar este argumento, esboçando um
projeto chamado Tambores, Acervos e
Comunicação. Por outro lado começava
a experimentação de uma solução téc-
nica que casasse com o requisitos co-
muns, quais a possibilidade de funcionar
sem conexão e/ou com infraestruturas
precária. Neste sentido foi inspirador o
sistema de pontes rádios usados por al-
gumas comunidades quilombolas de
Oriximiná.
256
POSSESÃO
TRANCE
Ryan Jordan
257
mais potente do que aquelas máquinas de lhantes flashes brancos de relâmpagos e
sonhos opiáceas Burroughesas. Esta é a fogo aparecem em rápida sucessão ema-
apoteose dos becos dos clãs Núcleo nando a radiação ultravioleta.
contemporâneos; turbo anfeta-psico-tripi- Capnomancia; adivinhação através
taminas splittercore; poções químicas al- das ajudas do fumo em visões. Partículas
tamente potentes liberando a ansiedade, de palo santo através dos receptores ol-
sabotada viagem no tempo. Vivemos nas fativos ligam-se com centros táticos da
periferias do nosso próprio ser. estrutura muscular interior levando-os a
De abril a junho de 2009, o sistema soltar-se e relaxar.
foi reorganizado para além do sinal... Discos separados. Formas fluídas
Os estroboscópios viraram-se e preenchem o ar e engolem tudo. Esto-
olharam para as cabeças da congre- cadas sub graves e explosões de ruído
gação. As tecnologias CMOS de Nicked branco gritam um canto obliterante ui-
Collins começaram a ser empenhadas na vando por dentro e causando ondulações
captura da luz e transformação desta em na fumaça. A grade fluorescente sobre-
um HEX noise sincronizado. Idéias de posta fixa a mente como milhares de
capnomancia infiltraram-se no ar. A dança dedos afundando-se profundamente den-
do tecnoxamã começou no Núcleo, atrás tro do cérebro e puxando para fora vias
das barras da prisão amorfa. neurais em todas as direções. O caminho
2010 viu o chocalho da psicose an- se divide em dois cilindros rotativos do-
fetamínica durante toda a noite com uma bráveis em direções opostas revelando
broca em 500bpm no hypno-crânio. natureza recursiva.
Crises cardíacas e palpitações são abun-
dantes. A água é essencial. Nós sempre O HOLOFLUX ESTÁ EMPENHADO
voltamos para os elementos básicos; o Descendo para o núcleo a tecnolo-
Núcleo. Recombinações com Z'EVian gia move-se em formações de cristal
rhythmajik causada por lâmpadas haló- bruto; bancos de dados minerais vazios.
genas explodem ricocheteando pelas Partículas nadam e cozinham no
paredes das 9 Câmaras. Possessão pântano, agrupando-se e logo em se-
Trance também foi usada em combinação guida estilhaçando-se pra fora em estru-
com experimentos de visão remota que turas dissipativas. Não há nenhum ponto
tentou visitar Tau Sagittarii, com sucesso real na retenção de qualquer informação,
limitado. As coisas começaram chacoa- a informação é constante e real e é ape-
lhar e meter pontapés na porta. nas esta informação que nós percebe-
O Estranho chega finalmente à pes- mos. É viver. O véu é removido. Portais
soa via 2500watts em 2011. Você deve são abertos. Encontro-me agora no
conhecer ele por sua forma de Xenon, tempo atual, fragmentos de memória re-
mas ele é muitos. Xenon, o "estrangeiro", mendam lentamente os pedaços do cére-
o "estranho", ou "convidado" é bem-vindo bro. A viagem pelo portal não é suave.
aqui. O Estranho, se inalado pode ser uti- Pregabs fudeu o circuito e uma fenda
lizado como um anestésico, uma vez que temporal induzindo portais de viagens no
é um antagonista da NDMA. Ao contrário tempo em um dia adiante e um dia ante-
do óxido nitroso, cetamina ou PCP, o Es- rior. Se você pode controlar o fluxo do
tranho tem uma falta de neurotoxicidade e tempo...
é relativamente caro para se reproduzir.
Quando o Estranho é animado por uma
descarga eletrônica de alta potência, bri-
258
Ryan Jordan vestindo seu protótipo de óculos
psicodélico em seu estúdio em Londres, 2012.
Foto cedida por Ryan Jordan.
259
1 2
3 4
7 8
260
GERADOR
QUILOMBOLA
Peetssa
5 6
261
10 11
14 15
18
262
12 13
16 17
263
20 21
22 23
264
AGROFLORESTA E
TECNOXAMANISMO
Jonatan Sola
265
nossa mesa. Um trator não tira o trabalho não se come, ou que para extrair a raiz
de 40 pessoas, mas facilita a vida de 40 do gengibre não se necessita matar a
pessoas. Vivamos em abundância. planta, que segue se produzindo.
Não necessitamos trabalho, neces- Como é possível que vivamos em
sitamos de água, alimento e tecnologia esta miséria absoluta quando moramos
basicamente, depois muitas outras coisas em um lugar tão rico e abundante?
mais como saúde, mobilidade e fibra óp- Cada dia, cada minuto, cada se-
tica, mas deixemos de pedir trabalho. O gundo morre uma criança desnutrida, der-
trabalho é um meio necessário mas com rubamos uma árvore e começamos uma
organização anárquica, coerência e tec- guerra. Menos mal que usamos luzes de
nologia se pode reduzir a umas simples e baixo consumo, de mercúrio, e comemos
frutíferas horas por dia. comida orgânica que necessita de enor-
Dito isso, quanto ao uso da tec- mes extensões de pasto para que as
nologia atual, ainda que não pertença vacas nos outorguem seu valioso e politi-
exatamente a esse artigo, devo esclare- camente correto excremento orgânico.
cer que esta tecnologia é fruto de um Nada tenho contra o cultivo orgânico, mas
mundo em desequilíbrio e que novas tec- simplesmente não é a panaceia. Se por
nologias, algumas já inclusive inventadas razões de mercado ou pessoais se de-
ainda que esquecidas no ostracismo, cide a fazer cultivo orgânico, adiante há
devem evoluir para adaptar-se a nova soluções, mas não se pode esquecer de
ressonância do universo. Interessados no equilibrar bem o solo para não ter defi-
tema podem ler Viktor Schauwerger. ciências de nutrientes.
Abundância é outra das palavras- Outro valioso ensinamento que nos
-chave. traz a agrofloresta é que para implantá-
Observemos o comportamento da la há que se derrubar e podar tudo o que
natureza, alguém já parou para contar as existe no entorno para com seus restos
sementes que tem dentro de um tomate, acelerar o processo da vida.
um pepino ou um pimentão? Nem eu, mas Bonita analogia para nosso sis-
sei que são muitas e a planta não dá so- tema atual.
mente um tomate porque ele contém 50 a Os maiores problemas que temos
100 sementes e já assegura a sobre- podem se quer consertar com estas técni-
vivência. Ela dá muitos tomates porque cas, erosão, desflorestamento, poluição,
sabe que deve alimentar uma rede, a rede desnutrição (800 milhões de serem hu-
da vida. Ela sabe que sem os pássaros manos desnutridos atualmente).
que comem as lagartas e formigas que se As árvores são causantes de
alimentam de suas folhas, sua sobre- chuva enquanto nos distanciamos da
vivência seria mais difícil. E sabe também costa, convertem dióxido de carbono em
que os pássaros depositam suas se- oxigênio, transformam a luz em matéria,
mentes em lugares distantes onde ela por detém a erosão, criam habitats naturais
si mesma nunca poderia chegar. para inumeráveis espécies, a água da
Imaginar que de cada cabeça de chuva ao cair por suas folhas e troncos,
alho que se compra, dá para plantar um e chega ao solo com cerca de 50% a mais
comer o resto, e em 9 meses já não seria de microrganismos, a árvore verte seu
mais preciso comprar alhos e em dois peso muitas vezes sobre o solo, criando
anos se poderia estar vendendo alhos. uma capa de decomposição que é literal-
Saber que a parte da cebola ou da mente sobre onde ela vive, e que se reen-
beterraba que se planta é a coroa, que carna em gramíneas, bactérias, cogumelos
266
Projeto Re-Nascentes da Aldeia Pará
Água na aldeia Pará (pataxó) sul da Bahia
organizado por Jonatan Sola.
Fotos cedidas por Jonatan Sola.
267
e pequenos insetos que por sua vez ali- amam e querem salvar a raça humana,
mentam a árvore. E árvores em abundân- máximo expoente atual da vida cons-
cia criam uma floresta a qual multiplica ciente, que se dediquem, por exemplo, à
seus benefícios e modera os agentes ex- agrofloresta.
ternos como vento, calor e umidade. Amo os humanos e amo a vida.
Agrofloresta é uma técnica que
pode suprir nossas necessidades ali- AGROFLORESTA NO ITAPECO
mentícias, madeira pra a construção, Não há receita para a agrofloresta
papel, etc, ao mesmo tempo que se está porque tudo muda segundo a altitude,
criando florestas que melhoram a saúde clima, tipo de solo e nosso próprio objetivo.
do nosso planeta em geral. Devería-se Tudo se baseia na observação,
trabalhar com agrofloresta com o mesmo sensibilidade e experiência. Mas que isso
afinco que se trabalha nas monoculturas não assuste ninguém. Há uma máxima
devastadoras. que meu mestre João do Sítio Semente
Agrofloresta é vida, porque a vida me contou: “a melhor coisa que se pode
necessita de todos e cada um dos seres fazer na vida é um agrofloresta bem feita,
vivos que consigam se adaptar e evoluir a segunda melhor é uma mal feita, e isso
com o fim de criar níveis de consciência nos tira qualquer peso que poderíamos
mais complexos e seres com maior inter- carregar. Cada semente plantada, cada
conexão, os que não conseguem, ali- canteiro manejado, cada fruto colhido é
mentam o resto. um aprendizado e este aprendizado não
Agrofloresta é poesia, porque da para nunca. Não devemos nos equivocar
maneira mais sutil, harmônica e bela nos porque é com os erros que aprendemos e
nutre e educa. além disso, esses erros servem de ali-
Agrofloresta é política, porque mento para o resto, já que ao cortá-los os
com ela a revolução acaba antes de depositaremos em um canteiro, devol-
começar, que mande quem queira, mas vendo assim a energia consumida, mas a
o poder é teu. criada através da fotossíntese, alimen-
Agrofloresta é espiritualidade, por- tando por sua vez a rede de microrganis-
que conecta-nos com a natureza e com mos necessários em nossa terra.
nós mesmos, com nossa essência. É aconselhável, em primeira ins-
Mas sobretudo, agrofloresta é res- tância, analisar a terra para poder res-
ponsabilidade, porque não somos ou não sarci-la de todos e cada um dos nutrientes
deveríamos ser os últimos habitantes hu- e macronutrientes necessários, equili-
manos desse planeta e não podemos brar o ph e melhorar seu nível de fixação
deixar aos nossos filhos uma lixeira de dos nutrientes. Cortamos todas as
herança. gramíneas e podamos as árvores que
O ser humano rompe o equilíbrio existem no lugar.
necessário para a vida, mas a vidá é im- Toda a matéria orgânica obtida da
parável e seguirá com ou sem nós. Por limpeza, a organizamos no solo ao lado
isso todos aqueles que amam a Terra dos canteiros e nos corredores, se ne-
com suas plantas, seus animais, seus rios cessitamos mais, coisa muito provável, a
e suas florestas acima de tudo, devem importaremos de um lugar próximo e esta
continuar com sua vida como tem sido até será a única vez que deveremos fazer
agora, porque assim podemos desapare- isso, já que plantamos algumas plantas
cer como espécie, e o planeta voltará ra- com o único objetivo de criar matéria
pidamente ao seu equilíbrio. Mas aos que orgânica que abasteça nosso sistema.
269
Toa essa matéria orgânica organi- Quando falamos de espaço nos
zada no solo será a casa de lagartos que referimos ao longo e ao largo do canteiro,
comem grilos, servirá de refúgio para nos- mas também a seus extratos, rasteiras,
sas jovens plantas, alimentará no futuro baixo, médio, alto, super alto ou extasis.
as nossas árvores e deterá a erosão nos Depois da semeadura vem o
primeiros estágios, que as raízes das manejo, primeiro a ralação deixando só
nossas árvores ainda não conseguem. as plantas de cada espécie que se desta-
Quando trabalhamos com desnível, cam do resto por seu crescimento vigo-
não organizamos a matéria orgânica roso, recordando que os cadáveres serão
em linhas de contorno, sempre traba - depositados aos pés das sobreviventes e
lhamos de baixo para cima, ou seja, que este raleio se efetua com a maioria
subindo a ladeira, nossos canteiros as- das plantas que semeamos, por exemplo
sim terão uma visão vertical e não hori- as bananas se plantam normalmente de
zontal da ladeira. 5m x 5m, nós as plantamos a cada 3m
Se semeia tudo com sementes em com o objetivo de derrubar partes delas, o
abundância, só se faz mudas quando por mesmo com as árvores que plantamos
alguma razão as sementes dessa espé- sementes a cada 4cm de árvores de
cie são escassas. Se a espécie se se- grande porte. Esta abundância é confun-
meia com estaca como a cana de açúcar, dida com desperdício mas não esqueça
ou mudas como a banana, será esse o que é a base da nossa agrofloresta por-
modo natural de cultivá-las. que isso nos permite que nossos nutri-
Se semeia tudo junto, mas não re- entes estejam sempre disponíveis para
volto, pois deve-se respeitar as distâncias nossas plantas campeãs e não sejam le-
mínimas entre as plantas da mesma es- vadas solo abaixo, num fenômeno de lixi-
pécie que já vem especificadas no próprio viação, muito comum em áreas tropicais,
pacote de sementes, ou perguntaremos como onde eu vivo.
aos agricultores da zona, por exemplo, se A seguinte parte do manejo é a
se planta os abacaxis de um metro em poda da nossas árvores já crescidas, uma
um metro. Se sim respeitamos essas dis- das principais árvores da nossa cultura
tâncias. O objetivo é ocupar no tempo e são os odiados eucaliptos. O eucalipto é
no espaço todos os nichos da vida, para uma árvores vigorosa de crescimento
que outras espécies não desejadas, não rápido que busca os minerais mais pro-
tenham lugar. fundos e que permite 3 podas anuais,
Ao falar de tempo nos referimos a oferecendo assim os minerais ao resto,
que se pode plantar entre esses aba- depois de 7 anos nos oferece uma exce-
caxis, rúcula, alface, repolhos, tomates, lente madeira para a venda ou construção
beringelas, etc. Porque quando se colhe em nosso sítio, deixando assim passo
a rúcula, o abacaxi nem sequer enraizou livre para o resto das árvores nativas ou
ainda, e quando o abacaxi aparece, o frutíferas que nos convenham.
colve já haverá dado tanta colheita que Nunca usaremos nenhum tipo de
já se pode sacrificá-la aos pés do can- agrotóxico, a biodiversidade se encar-
teiro tomados por abacaxi quase em sua regará de regular as pragas e usando-os
totalidade. As sementes de árvore que acabaríamos com a intrincada rede de
plantamos a cada 4cm se abriram entre fungos, micro e macrorganismos que for-
suas espinhosas folhas, as plantas mam parte de nosso sistema e são tão ou
crescem melhor juntas do que se pode- mais importantes que qualquer planta de
ria imaginar. nossa cultura. Por muito natural que
270
pareça por exemplo, fazer remédio com BIOCONSTRUÇÃO E SALVAÇÃO
tabaco, a nicotina é poderosa e acaba DE NASCENTES NA “COSTA DO
matando as joaninhas necessárias para DESCOBRIMENTO”.
equilibrar o sistema, o único que uso é
Nim como repelente. No I Festival Internacional de Tec-
Esquecer dos canteiros redondos. noxamanismo em Arraial dAjuda, durante
Temos que primar a produção e facilitar uma açao na Aldeia Velha, Ubiratã, cacique
nosso trabalho e em grandes extensões de uma aldeia vizinha, a Aldeia Pará, que
ajudar-nos com máquinas. Os canteiros conta com um pouco mais de 50 famílias e
redondos só nos causam problemas, que vive aos pés do Monte Pascoal, na
estes sistemas estão pensados para a Costa do descobrimento (descoberta dos
agricultura familiar produtiva e em um portugueses, porque já era descoberta e
ano devem pagar o investimento reali- povoada), me informou o estado atual que
zado. Se não é assim, nosso sistema se encontravam as nascentes de sua
não funciona. aldeia e nos pediu ajuda.
O trabalho a princípio é muito Em fevereiro de 2015 começamos
maior que em uma horta convencional, a estabelecer a agrofloresta em uma das
mas os frutos são imediatos. No primeiro tantas nascentes desprotegidas da al-
mês já estaremos recorrendo e vendendo deia. Tanto a técnica como a forma de cul-
rúcula e rabanete e em três ou quatro tivo levantou grande interesse entre os
meses colheremos esses mesmos pro- integrantes da comunidade. Recebemos
dutos de nossos últimos canteiros planta- crianças de escolas da própria aldeia
dos. Mas dos primeiros já teremos assim como de aldeias vizinhas.
tomates, nos médios quiabo e assim em Em agosto e setembro de 2015
um ano teremos tudo em abundância. como forma de integrar toda a comunidade
Nunca voltaremos a semear nosso pri- no nosso trabalho, e a pedido expresso da
meiro canteiro só se nossa terra acabar e comunidade Pataxó, começamos a bio-
quisermos voltar a começar. Daí der- construir com adobes um ponto de cultura
rubaremos madeira, a venderemos e no centro da aldeia, culminando com um
começaremos de novo. Por tanto, a agro- curso de bioconstrução que atraiu alguns
floresta necessita de grandes extensões participantes de diversos pontos do Bra-
de terra mas por desgraça o que hoje em sil. Realizamos um curso apresentando
dia sobra é terra para recuperar e em um as técnicas de bioconstrução para pro-
lugar onde já passou o gado a terra se fessores indígenas e indigis (nome dado
torna improdutiva e poderemos comprar aos não indígenas em patxôhã, língua
grandes lotes a um preço reduzido, se dos pataxós).
não tem terra, busca quem a tenha, sem- Com a realização em novembro de
pre faz falta braços para cultivar. 2016 do II Festival Internacional de
Meu mestre de permacultura, Cris- Tecnoxamanismo na Aldeia Pará, pre-
tian Shearer me disse: “o melhor mo- tendemos reforçar ainda mais nosso vín-
mento para plantar uma árvore foi 25 culo e compromisso com os povos da
anos atrás. Já plantou sua árvore hoje? “Costa do Descobrimento” as primeiras
terras e gentes a “entender” o que seria o
novo Brasil.
271
WARSCAPE
SONATA
vlax dyne
273
274
AZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_
CONECT
RADIX
paloma klisys
277
278
há linguagem nas raízes
em sua profunda
conexão com a terra.
imersas à revelia,
fincadas nos cárceres
apelidados de canteiros
quiçá aflitas
pelo nosso retorno
ao desejo ancestral
de ouvi-las com o corpo
conectar corpo
conectar dorso
fundir-se às texturas
embrenhar-se nas rugosidades
raízes urbanas
sepultadas em vida, rodeadas de concreto
são, em si
expressões da mais altiva Arte
279
contornam as adversidades,
transpõem obstáculos
seguem como podem,
em expansão
diante da expansão,
imponentes enfrentam
ameaças de poda
nas raízes
das árvores
que crescem
apesar das vicissitudes
moram - talhados na madeira -
espíritos das mais diversas
criaturas
estão lá
o tempo todo
num espetáculo
de estética velada
a olhares desatentos
o conteúdo
de suas mensagens
ultrapassa a esfera racional
280
nos desafia
a elevar a sabe-se lá
quantas
quantum
oitavas acima
re-invenções
coletivas, colaborativas
processos criativos
para outras configurações
civilizatórias
afinadas
com cosmogonias
do por vir...
upload de utopias
retrofuturistas
da fonte, no “magma”
dos registros akáshicos
281
xamã conect gaia - conect κόσμος
tudo é instrumento
ludus logias
até onde vento brota
chama xamã
rompendo fronteiras
inexistentes,
ilusórias
entre
tecnoxamanismo e xamanismo “orgânico”
Fotos:
Paloma Klisys
282
Fotos: Joanna Foster
1. Trout Lake, NWT 2014.
2. Trout Lake, NWT de 2014.
3. Chefe Dolphus Jumbo, Trout Lake, TNM de 2014.
4. Voando sobre o rio Mackenzie, uma linha de corte através do rio, 2014.
5. 'Portrait of Elder Mary Deneron', bloco de quebra-cabeças em gravura de linóleo, Joanna Foster,
Trout Lake, TNM de 2014.
6. "Pickerel", Gyotaku, Scott Hudson, Trout Lake, NWT 2011.
7. Carielyn Jumbo e Madeline Mackay trabalhando no estúdio de impressão, com um atenção
especial no projeto de gravura dos vegetais comunitários, Trout Lake, TNM de 2014.
8. Trout Lake, NWT de 2014.
9. Chão da Floresta Boreal, Trout Lake, NWT 2014.
284
SAMBAA KʼE
PRINT STUDIO
Joanna Foster
285
A floresta também é rica em mus- com o ambiente e uma rica tradição de
gos e vegetação, como mirtilos, frogber- contar histórias, a tecnologia e equipa-
ries e chá-bagas que fornecem vitaminas mentos no estúdio de impressão foi uti-
essenciais e ingredientes para a medicina. lizada para desenvolver narrativas visuais
Com tal conhecimento extensivo e que poderiam refletir, sustentar e subli-
conexão íntima com a sua terra, o chefe nhar a importância de habilidades de
também é muito consciente das pressões caça tradicionais, a prática de artesanato
que sua comunidade enfrenta diaria- e as relações familiares.
mente cada vez em cada abuso do gover- A residência do estúdio de im-
no ou cobiça de companhias privadas pressão também continuou um processo
sobre as terras como se seus preciosos de impressão de uma gravura de um
recursos fossem passe livre para explo- peixe japonês chamado "Gyotaku" inici-
ração. Desde que uma empresa de gás ada por Scott Hudson e Paul Harrison,
começou suas atividades a 60 km de em que pigmentos naturais transferidos
Trout Lake, o Dene tem notado um de- para peixes capturados do lago produzi-
créscimo no número da população de ram uma impressão visual dos tipos de
alces e preocupado-se com mudanças peixes peculiares ao Trout Lake. Pickerel
ecológicas em áreas de floresta. (lúcios), trutas e outras espécies foram
Passar o tempo juntos com a comu- impressos antes de serem comidos, do-
nidade em Trout Lake me ajudou a enten- cumentando o ecosistema do lago.
der a relação que Dene têm desenvolvido Esta informação também pode ser
com o meio ambiente, e as maneiras em usado para controlar os efeitos ambien-
que a comunidade presente hoje em dia tais sobre o número e tamanho dos
continua a aprender com o conhecimento peixes, como o aumento dos níveis de
das gerações passadas para trabalhar em mercúrio que se suspeita ser o resultado
harmonia com o lago e o terra. da poluição proveniente da atividade da
Foi, portanto, profundamente per- empresa de gás nas proximidades.
turbador olhar para baixo a partir de O estúdio de impressão tornou-se
nosso ponto de vista do avião fretado e um veículo para a expressão visual das
testemunhar numerosas linhas de corte relações com a terra, as plantas, os ani-
que as empresas de gás tinham cortado mais e o lago. A crescente presença on-
através da floresta sem cuidados posterio- line do estúdio de impressão ainda
res de como essas trincheiras poderiam organizou um acervo de desenvolvimento
ter impacto sobre os seres humanos, an- do material visual, focando uma men-
imais e a vida vegetal em particular nesse sagem de unidade comunitária forte e va-
ambiente. lores ambientais ao resto do mundo,
Voando sobre o rio Mackenzie, protegendo e sustentando o modo de
uma linha de corte através do rio, 2014. vida no Trout Lake, e esperamos que tor-
Como poderia um estúdio de im- nando mais difícil para as empresas de
pressão abordar as questões fundamen- gás para ganhar terreno.
tais de direitos de terra e sustentabilidade Na época que eu estava lá a co-
dos valores comunitários tradicionais? munidade tinha recentemente iniciado um
E no entanto é exatamente isso projeto de horta comunitária, para di-
que o processo de impressão está aju- minuir a dependência de vegetais de fora
dando a fazer. sendo levados a Trout Lake a um custo
Desenhando a partir da relação es- elevado. O estúdio de impressão de-
pecial entre integrantes das comunidades sempenhou um papel importante em
286
Chefe Dolphus Jumbo,
Trout Lake, TNM de 2014
visualizar o desenvolvimento deste pro- mais velhos que vieram para esculpir e
jeto, envolvendo vários membros da co- imprimir pela primeira vez. O estúdio de
munidade, incluindo a artista e o gerente impressão tornou-se uma adição valiosa
do estúdio de impressão Sambaa K'e, para as instalações comuns disponíveis
Carielyn Jumbo. para a comunidade para usar em uma
Os processos e materialidades base diária.
envolvidos no desenvolvimento de uma
impressão desempenham um papel-
Notas:
1. https://en.wikipedia.org/wiki/Collagraphy
chave na sustentabilidade dos valores 2. https://en.wikipedia.org/wiki/Chine-coll%C3%A9
tradicionais. Como com as habilidades
necessárias para aprender a caça e arte-
sanato, a gravura leva tempo e paciên-
cia e é um processo de aprendizagem
com todos os sentidos trabalhando jun-
tos. Uma cópia desenvolve-se em parte
intuitivamente, em outra parte através da
prática de conhecer o processo e as fer-
ramentas envolvidas, e finalmente atra-
vés da habilidade de permitir o movimento
do próprio processo para guiar o resul-
tado. Desta forma, o estúdio de im-
pressão tornou-se uma metáfora para a
sustentabilidade das relações, entre as
pessoas, o lago e a terra.
Processos de impressão de gravura
exploradas durante a residência incluem
bloco de quebra-cabeça tradicional e
linóleo, "collagraph"1, monótipo, xilogra-
vura, colle chine2, e métodos de colagem.
A impressão de gravuras foi construída
para atender pela Takach Press Corpora-
tion, em Albuquerque, Novo México, e a
operação da impressão poderia facil-
mente adaptar-se a todos os processos
de gravura, incluindo o desenvolvimento
de uma série de edições para a evolução
do arquivo do Sambaa K'e Print Studio.
Juntamente com a imagem digital e uma
unidade de exposição fotográfica que
pode ser usado para desenvolver seri-
grafia e do imprime com a luz do sol, este
equipamento tecnológico fornecia um re-
curso pelo qual narrativas visuais pode-
riam se desenvolver. O estúdio de
impressão foi abraçado por todos os
membros da comunidade: desde crianças
pequenas acompanhadas pelos pais aos
290
Pulsar, 2015.
Performance de Victor Venas.
Performer: Amilton Santana.
Foto: Victor Venas.
292
LUZ-CORPO:
TRANSCENDÊNCIAS POÉTICAS
DO MOVIMEMTO
Victor Venas
297
abstração, usam zero e um (por con- permitam observar o núcleo, sentir fenô-
veniência humana), o ácido desoxirribonu- menos e entrar em estados de dor, prazer
cleico utiliza sequências de nucleotídeos: e meditação. Dividir experiências entre
desenvolvimento de código humano e ob-
dATP: desoxiadenosina trifosfato servação do nosso próprio modelo de
dGTP: desoxiguanosina difosfato dados pode nos ajudar a situar os pontos
dTTP: desoxitimidina difosfato de conexão entre os vários níveis de
dCTP: desoxicitidina trifosfato abstração dos seres humanos e recons-
truí-los – no sentido de nos salvar de nós
Esses pequenos blocos são a fun- mesmos.
dação do nosso núcleo de informações.
Porém, diferentemente do que aconteceu
em nosso relacionamento com as má-
quinas de ferro, na biologia começamos a
engenharia reversa a partir do nível su-
perior de abstração. Nossa pele é a inter-
face entre seres humanos e tudo o que
nos rodeia. É o último nível de abstração
em nosso padrão de modelagem. Antes
de descer ao esquema zero-e-um, pre-
cisamos situar nossa própria natureza
através de antigas técnicas que apon-
tavam também para a compreensão de
nossas especificidades.
Técnicas antigas buscavam reve-
lar essas camadas de abstração a fim de
obter poder sobre o corpo, a mente e,
principalmente, para obter o controle de
outras pessoas. Felizmente, havia então
as ferramentas adequadas para encarar
a carga tecnológica envolvida: ciência.
Esses processos levaram a humanidade
à religião e ao sofrimento. Disseminaram
ignorância e concentraram poder e sa-
bedoria em instituições que cresceram às
custas de rituais sem sentido – simulados
sobre reminiscências do que foi visto.
A engenharia reversa de mode-
lagem humana precisa ser abstrata e so-
brevoar as características do próprio
corpo físico. Para reconstituir nossa
própria base de apropriação de capaci-
dades de reprodução, longevidade e co-
municação adequada (entre si e com
outras espécies), a ciência precisa trans-
humanizar a própria a ciência. E aplicar,
sobre o corpo humano, metodologias que
298
ESCUTANDO AS PAREDES:
O UNMONASTERY
unMonastery
299
muitas vezes uma atitude sábia, contribui para a evolução dos nossos ver-
seria desejável para o nosso de- dadeiros projetos; podemos começar a
sign do cotidiano que seu projeto interagir com a realidade.
fosse guiado por algo além de um Listar as virtudes que compõem
imperativo de sobrevivência. Nos- nossos projetos pode parecer de-
sas escolhas conscientes orien- sagradável. Esse "virtuosismo" deve ser
tam-se melhor através de um enredado discretamente em todas as
desejo de elegância do que por nossas atividades mundanas, ou então a
considerações puramente práticas; articulação do desejo por esses atributos
esboçar a matriz de um progettino pode parecer pretenciosa de sua pre-
atraente pode ser uma estratégia sença. Ainda que os projetos não obje-
luminosa ... " tivem ser humildes, nós, seus autores,
somos.
I VIRTÙ DI PROGETTINI O caminho para sairmos disso é
O grandioso projeto Mission State- seguir para os círculos [de reunião], des-
ment destina-se a ser um desejo irreali- tilar os vetores desejáveis através de um
zável – uma estrela de navegação processo coletivo capaz de mascarar
posicionada tão convenientemente dis- nossa ambição pessoal e elevar a visão
tante da realidade que não importa o subjetiva ao funcionamento do grupo.
quão convincentemente batemos a ca- Para sugerir humildemente umas vir-
beça contra a parede, ela está lá brilhando tudes experimentais para projetar – ca-
nos céus assim que recuperamos a pazes de facilitar nosso trabalho
consciência. Isso, é claro, se pudermos cotidiano no unMonastery – eu listaria
identificar rapidamente a orientação e brevemente o seguinte:
ajustar nossa direção.
No entanto, quando a linha-guia participativa - desprende-se da
para um grande projeto é colocada a dis- experiência de fazer todo o trabalho;
tância tal que desafie uma perspectiva visceral - incorpora a alegria do esforço
ponderada, é hora de recorrer a nossas físico ao núcleo das trocas;
interações práticas do cotidiano, a fim de coabita um espaço linguisticamente
pelo menos estimar algum avanço. Se equitativo;
podemos então ajustar os termos de elegante - na realização e na ideia;
nossa análise a uma precisão de graus demonstrativo da criação de mais-
ainda menores de ampliação, o progresso valia.
torna-se rapidamente impressionante.
Para facilitar nosso crescimento Essa simples lista de "i virtù di
diário e mais prosaico, é desejável des- progettini" pode ser facilmente estendida
construir O Projeto Em Caixa Alta em através tarefa do ator em articular seu
componentes 'progettini'. Progettini são subtexto. O que fazemos quando desem-
nossos passos positivos conscientes vis- penhamos nosso verdadeiro trabalho?
tos de perto. Eles são as aberturas aber- Ou como o irmão Siri uma vez colocou
tas, nosso desejável cotidiano. O foco para o grupo: Quais experiências de UAU
nesses subprodutos naturais de uma te fizeram sentir que era disso que se
descrição de projeto pode nos informar tratava ser uma unMonasteriana? Quais
quando estamos realmente fazendo o são os nossos objetivos diários? Quando
que pretendemos fazer. Identificar as fa- nos expressamos muito superficialmente
cetas refinadas de nossa interface viva como, digamos, "Eu gostaria de fazer
300
algo de bom", continuamos genéricos e passe de nos curvarmos a nós mesmos
impotentes. Ao desmembrar nossos obje- em primeiro lugar. Trabalhar junto ajuda.
tivos em suas partes componentes, al- 7) Para promover a co-consciência -
cançamos a precisão produtiva... Além e aquém da documentação, nosso
trabalho precisa de definição. Coinciden-
O SUBTEXTO DAS BOAS OBRAS temente, a criação de uma pode dar fluxo
à outra; no entanto, a falha de ambos – a
1) Para Fazer Amizades - isso é o mais pena no pergaminho e o comentário obs-
fácil. Cada sociedade tem suas linhas de curo do blog – é que as melhores
fratura social, a cisma entre aqueles que palavras entre tantas outras podem ser
rotineiramente incorporam valores sub- consignadas a um prazo de validade ridi-
conscientes e aqueles que questionam culamente curto, sob uma enorme mon-
ativamente esses mesmos valores. Ao tanha de poeira virtual. Propõe-se então
longo desta divisão estendem-se células que toda a documentação seja incubada
humanas de curiosidade que se abrem em pares. Tais textos equilibradamente
rapidamente para conexões com nossos entravados e enriquecidos entre si têm
receptores de amizade disponíveis. Pes- um valor agregado de ajuste da visão
soas procuram pessoas. As pessoas convergente.
procuram mentes afins. Dificultado por 8) Para Valorizar o crescimento Emo-
uma imProficiência linguística (que alguns cional - Isso segue sem precisar dizer
resolvem um pouco no Duolingo), o cul- que, ao investir nossa humanidade, bus-
tivo de calor humano torna-se moeda-cor- camos estimular a ocupação do novo ter-
rente da nossa troca, que segue adiante, ritório entre nós e nossos colaboradores.
aos trancos e barrancos, com graça e hu- 9) Para Procriar - assim como gerentes
mildade. Formar amizades continua de projetos de qualquer lugar concor-
sendo nossos primeiros cinco objetivos. dariam, o prenúncio de um bom projeto é
Variações podem nos fornecer reescritas quando ele assume a sua própria direção.
sensíveis em torno do tema tais como: Gerar outros projetos faz parte da na-
2) Expandir sua rede ou tureza dos projetos. Pode-se debater a
3) Reunir cidadãos interessados, sabedoria absoluta, mas em certas fases
4) Localizar aliadas estratégicas, de vida do projeto: quanto mais, melhor.*
5) Estruturar apoio emocional entre Afogar-se em ideias brilhantes é um sin-
mentes afins. toma familiar até mesmo de uma iniciativa
A verdadeira ação de base em todos saudável. Nem todo mundo deve encon-
estes objetivos é o fomento de potenciais trar solo fértil e um sistema eficaz curto e
amizades. rápido de filtragem para registro, reci-
e outros subtextos podem entrar em clagem, arquivo, distribuição e descarte
pauta ... de esquemas e sonhos. No sentido de
6) Promover a coesão / Cultivar o Nós uma progressão tática e nítida de ativos,
- O funcionamento interno de prioridades essa seria uma ferramenta vital. (* Ob-
da iniciativa deve ser sólido. Dar espaço serva-se que toda pessoa que adentra as
uns aos outros para todo tipo de manias portas no unMo tende a se envolver em
pessoais, não é necessariamente a mel- pelo menos mais dois projetos subse-
hor política. A Arte do Auto-Sacrifício pode quentes...)
ser algo difícil de se introduzir, mas sem
ela nós simplesmente reproduzimos os
ambientes que nos conduziram a este im-
301
OS STAKEHOLDERS INVISÍVEIS (IN- UMA CARTA PARA O ENCONTRO
TERVENIENTES) DESSE DOMINGO - BEMBO DAVIES
Os Pedreiros: unMonasteries de-
mandam casas. Mudar-se para um edifí- Um Tempo de Círculos Fortes
cio com história prévia exige estudo
dessa história: alguém esteve aqui antes. "O fascínio sem fim do humano
Devemos honrar seu trabalho, espe- moderno consigo mesmo constitui
ranças e ausência. uma força centrípeta: a atenção
O Lençol Freático: Causamos im- recai sobre minúcias, a visão se
pacto tanto a montante como a jusante da contrai."
vida de um unMonastery. Através de ou-
tros processos tais como unMonastery O lençol freático ficou difuso;
Analytics procuramos manter uma pos- podemos ressoar para chegar em ope-
tura radical em relação aos nossos ração e não prometer mais que um res-
padrões de consumo. pingo para a ainda impecável torneira.
O Futuro: Entre as pessoas de Pensamento estratégico pode ser nece-
papel fundamental em nosso sucesso ssário. Celebramos pelo menos uma crise
estão as ainda não nascidas. Não impor- insignificante, agora a crise é que não
tando como unMonasteries possam se temos um Nós.
configurar no futuro, é certo que a for- As verdades são reais. Em nossa
mação de grupos para servir ao bem terra natal Matera, enquanto o nosso
comum em construções abandonadas mais inTransigente espírito livre pega um
pode caracterizar uma força positiva em medalhão de prata por algo que ainda
qualquer renegociação de civilização. tem que funcionar, uma mulher segura
O Atingido: Nossa tentativa piloto um livro sem capa. A escola encontra-se
de testar a ideia unMonastery em Matera quebrada. Na imaginação do público a
produziu uma grande surpresa. Recebe- mídia reduziu o unMonastery a escom-
mos atenção verdadeiramente global. A bros; nosso amontoado deComposto
força latente no imaginário quando se descartado como extraordinário porém
trata de revitalizar um estilo de vida carente de substância.
monástico causou uma enxurrada de pe- Com a adição do Atlas proposto, a
didos de informações para estudar, visi- BIOS se aproxima de algo. Enquanto não
tar, emular. Nosso nome apareceu em há pistas para um protocolo, o unMonastery
uma carta aberta de um ativista católico permanece impossível de se jogar.
romano proeminente com base no Nottingham entrou rapidamente em para-
Equador ao Papa recém-eleito. E nós, hu- fuso – nos forneceram um mapa que es-
mildemente conscientes de que, assim tava todo bagunçado e quem sabe
como os primeiros passos de uma cri- superpovoado – nós emergimos sem di-
ança, nossa primeira caminhada não reção. Berlin gerava calor, mas entre cer-
garantia equilíbrio constante. Ficamos es- cas de correntes de ar e tela erguidas
pantados, mas levamos adiante o entusi- principalmente para o controle da multi-
asmo produzido para refletir o poder dão, nossa capacidade de reter calor
puramente contagioso da ideia de recons- ficou para trás. Não prestamos atenção
truir uma instituição demasiada e intuiti- aos Maçons de Moabit e as paredes de
vamente humana sobre o fundamento de nosso charmoso bed’n’breakfast produzi-
uma realidade contemporânea. ram mais falatório do que audiência; re-
cebemos a polícia duas vezes em nossa
302
algazarra. Na longínqua Atenas, uma tribo Nós não reconhecemos imediata-
em estado de choque parece que se auto- mente a sua percepção de tempo. 3
flagela diante do ritualístico prato quente meses e 2 anos parecem similarmente
dos modernos precários. A Imperatriz da breves a partir de nosso ponto de vista.
Cozinha raramente se aborrece. Na maio- Uma vez que a permanência não é coisa
ria das vezes, ela fica com fome. pra eles, consideramos com atenção o
Está escrito que o unMonastery que fazem com seu tempo. Eles lamentam
deve escutar suas paredes. Também está nossa ausência, confundindo sua própria
escrito que o unMonastery não é nem seu falta de clareza – o seu próprio despropósito
pessoal nem um edifício. Quem não com- – com a nossa invisibilidade.
preende essa negociação sutil, não pode Nós Stakeholders Invisíveis pode-
se tornar unMonastery. Um unMonastery mos cuidar deles somente na medida em
reside em cada um de nós - é a nossa ob- que cuidam de nós. Estamos sempre
sessão de fazer algo tão difuso como aqui. Em defesa de nós mesmos, e não
"bom". No entanto, esta é uma mercado- por eles. Eles podem ou não ser o futuro.
ria alusiva. Muitos de nós não praticam o Nós somos.
coletivismo; entre dependentes do culto Nós conferimos dignidade a cada
ao individualismo, o que afirma valor são protótipo que elas testam, gravidade a
as diferenças - enquanto que áreas imen- cada refeição que eles comem. Habita-
sas de sobreposição parecem profunda- mos suas ideias e sua maneira de
mente menos interessantes. É muito fácil limpar a cozinha. Nós não percebemos
alguém se identificar com suas próprias a diferença.
paredes.
Nosso trabalho procura quebrar a
regra de auto-gestão – os procedimentos
necessários para trilhar adiante o nosso
caminho ainda não foram revelados. A fé
pode te levar até certo ponto; ficamos
mais uma vez com a opção de Pensar
Estrategicamente.
305
307
308
311
312
314
1
316
EDUNOISE
PATRICIA RAIJENSTEIN
JORGE BARCO
Selu Herraiz
"Nessa época de
hiperdesenvolvimento da imagem,
Aliança
transatlântica de quiçá seja mais conveniente
escutar do que ver.
Temos que nos escutar mais”.
ações sonoras e
pensamento coletivo Edunoise
317
4
318
2
326
ATA DA REUNIÃO
TRANSESPECÍFICA
DELIBERATIVA
Rafael frazão
327
Desejo V
328
329
Terras II
quando as últimas
cinzas se alojarem na
brancura histérica da mente vazia
desacontecida nos corações
e esquecida pela inteireza das percepções
preenchida nesta fase pela
invenção do pictórico
até o Pós-Logos da Vertigem
sangues elétricos reviverão
o sonho político da reformulação
totêmica da Mãe
a voz granulada que abre as rochas e os
mares comunicando para nossos
deuses parapocalíticos
o fim de um abismo integrador
anuncia-se, então,
a falência das decisões
a partir da não descentralização dos
existires terrenos
para, talvez, chegar
a uma organização
assistêmica do delírio
330
esfera multifacetada
dos corpos sutis
em que moram
os pré-deuses da mata
ali onde a terra ronca
agora no bio-espaço do Sol
elíptico
onde o presente mitológico
retorna ao respeito
das raízes com suas veias
musicais
e suas canções do fogo enfiadas na cruz da
linguagem
organizamos a dança circular onde os olhos
se tocam
e crianças cantam
em uníssono o fim do início
anotamos em tábuas
por hora trágicas
as fórmulas dos códigos para que junto da
leveza do xamã
transumano
ao menos, agora, festejar
para ressituar os Tempos
renaturalizar os chamados
reler pra trás
POEMA DE LEO BR SOBRE O FILME TERRA RONCA
DE RAFAEL FRAZÃO E VITOR GUERRA, REALIZADO
NO I FESTIVAL DE TECNOXAMANISMO
331
Ópera Amateur, the social robot. Foto cedida por Fabiano Fonseca.
332
AMATEUR,
THE SOCIAL ROBOT
Fabiano Fonseca
333
audiovisual em estado puro. Construímos sustador, dócil e melancólico. A estreia
nossos próprios instrumentos com arduino, desta performance aconteceu em 14 de
tocamos sintetizadores, programamos se- novembro de 2014.
quencers, processamos instrumentos e
vozes em ipads, hackeamos sensores AMATEUR
(como kinetic xbox) e brincamos de fazer Surpreendente em sua atitude,
um disco por semana. Ainda não Amateur tem consciência de sua con-
lançamos nenhum trabalho... não esta- dição: um autômato construído nos anos
mos muito preocupados com o fono- 80, programado para aprender e definir
grama neste momento. seu próprio comportamento a partir da ex-
O palco sempre foi um lugar ritu- periência. Foi o primeiro robô a possuir
alístico para mim. Quando estou nele me um sistema emocional sintético, que em-
transformo completamente. Meu corpo se bora rudimentar pôde influenciar comple-
energiza, meus sentidos se aguçam, ajo mentarmente suas ações e decisões.
de maneira estranha, descontrolada e Idealizado inicialmente para fins mi-
tenho impulsos autodestrutivos. Nunca litares, foi mantido sob sigilo no laboratório
sei exatamente como tudo vai acabar. de seu criador até recentemente, quando
Desta miríade de possibilidades, os primeiros episódios de fúria acontece-
naturalmente a vida me levou a um tra- ram, culminando com destruição e fuga.
balho que abrangesse elementos per- Vive agora no submundo alimen-
formáticos, cênicos e ritualísticos em tando sua obssessão pelo comporta-
um show que tem a música eletrônica mento humano. Coleciona dentes e cabelos.
como motor. Assim nasceu a performan- Estuda os movimentos dos répteis e feli-
ce Amateur. nos. Adora o altar de Khali enquanto testa
A vida cotidiana, superficial me in- próteses caseiras em si mesmo. Mas é
teressa muito pouco. Procuro viver gran- em seu apreço pelo vício que apresenta
des experiências sensoriais, emoções de sua face mais assustadoramente humana.
fato, e assim procuro estar sempre atento Em suas aparições ao vivo, ASR
às noticias da comunidade cientifica, as se tranca em uma jaula, pois acha que
novas formas de vida inteligente, e busco nunca soube ser livre. Nessa jaula – uma
trilhar caminhos de grandes yoguis que extensão de seu próprio corpo – apre-
experimentaram em si mesmos momen- senta seu repertório usando trajes confusos
tos de transcendência e experiências e identidades falsas. A cada apresen-
extra-sensoriais. Coleciono também es- tação, seu encontro com a plateia gera
tórias de candomblé, relatos de universos novas sensações e riscos.
paralelos e contos indígenas. Assim, en- Ao vivo, a performance consiste na
contrei na ficção cientifica uma forma de jaula cenográfica quadrada medindo 210
me expressar alternativa pois percebi que x 210 x 210 centímetros. Essa jaula é
a minha vida pessoal, meus dilemas exis- equipada com fitas de led brancas insta-
tenciais e amorosos são muito pouco ladas em todas as suas barras e contro-
interessantes. Desta forma, criei o perso- ladas por um sistema áudio reativo.
nagem Amateur, um experimento cientí- FFabiano toca e canta de dentro da
fico que falhou, se rebelou e escapou das jaula, usando um figurino desenhado espe-
mãos dos militares que o criaram. Uma cialmente para a performance. Opera um
literatura caseira, um pretexto, uma linha sistema com diversos hardwares e contro-
conceitual em que eu pudesse encarnar ladores (Electribe, Lauchpad, Mikcrokorg,
um personagem radical, extremo e as- etc) além dos softwares de áudio e vídeo.
334
Uma retroprojeção em vídeo con- Som: A música "Square Pixel" é
textualiza elementos do roteiro com ima- um poema sobre um pixel que viveu
gens distorcidas, glitches e um astral solitário em sistemas audiovisuais ar-
mecânico-futurista. caicos. Agora é obrigado a se mover fre-
Objetos cenográficos (refugos in- neticamente, de um canto a outro,
dustriais, correntes de ferro e sucatas) oscilando entre zeros e uns, sim e não. A
estão suspensos estrategicamente no es- voz, metalizada e monotonal, entoa o
paço da jaula e se configuram como uma poema com um astral sombrio.
extensão do corpo do personagem. Ama- Vídeo: Tela repleta de elementos
teur utiliza estes objetos como percussão, replicando a ideia de bits 0-1. Luzes es-
além de controlar, em tempo real, som, troboscópicas e quadrados se movendo
vídeo e luzes. O espetáculo tem um final freneticamente de um canto a outro. Es-
cênico, imprevisível e catártico. tética 8 bits digital. Chiados de TV e sin-
tetizadores analógicos de vídeo criam
A CENA texturas. Luzes de led se ascendem es-
poradicamente.
ATO I
ROBOT THOUGHTS PORNETIK
Com a jaula totalmente escura, o Amateur contracena com imagens
público enxerga Amateur ajoelhado de filmadas dele mesmo em silhueta preta,
costas, em posição de meditação. Uti- sugerindo a idéia de vários personagens
lizando uma capa de referencia xamâ- em cena, vários alter egos.
nica, somente sua silhueta é vista entre Som: A música "Pornetik" aborda
uma nuvem de fumaça. temas como apego, vícios e rotina. Ritmo
Som: mantra eletrônico, repetitivo repetitivo e dançante, estética digital e
e com frequências subgraves. A música robótica.
“Social Robot” introduz o personagem Vídeo: Edição de cenas filmadas
com frases de seu cotidiano e o refrão em silhueta alternando de acordo com a
'robot thoughts'. música com edição estroboscópica de
Vídeo: Representando a criação, filmes obscuros, imagens científicas de
uma linha de energia se forma aos enciclopédia, corpo humano,e etc.
poucos na retroprojeção. Essa linha se in-
tensifica e vários focos de energia tesla TOBBACOMAN
se multiplicam até encherem a tela. Surge Amateur age estranhamente, repe-
então uma cena com elementos mecâni- tindo padrões corporais. Anda de um lado
cos. Parafusos, placas, motores sim- para o outro de forma dura, como numa
bolizam o laboratório de criação. Depois linha de montagem de uma fábrica. En-
tudo se fecha abruptamente e uma porta caixota, empacota, se oferece ao publico.
se abre... uma cena filmada em um longo Se aproxima das grades com olhar de-
corredor com várias portas. A câmera samparado, como se pedisse ajuda.
caminha lentamente. Som: A música "Tobbaco Man"
aborda temas: comportamento passivo,
SQUARE PIXEL tédio e consumo de cigarros.
Amateur se levanta, tira a capa e Vídeo: uma linha de cigarros atra-
se aproxima da cabine de controle. Seu vessam a tela rolando. Se multiplicam em
rosto vai sendo sutilmente revelado por vários, milhões, milhares (utilizando o
luzes strobo acidentais. software VVVV). Cena filmada em close
335
de um ator colocando diversos objetos na ATO III
boca, tentando comer, cuspindo sangue, Amateur solta o piano impro-
e insistindo em comer tudo vorazmente. visadamente e, virando-se, caminha em
Luzes de led se ascendem no refrão da direção ao público executando uma cami-
música de forma intensa iluminando toda nhada típica do teatro butô: passos hiper-
a plateia. lentos, olhar fixo no infinito e postura
corporal controlada. Como um robô em
DEVOUR, DESTROY câmera lenta, caminha aos poucos... e,
Amateur sofre um ataque de fúria. de repente, corre por entre as pessoas,
Tenta destruir a si mesmo, a jaula e saindo pela porta do teatro.
equipamentos. O palco se enche de fu- FIM
maça enquanto Amateur usa os objetos
de percussão de forma intensa, gritando. ELEMENTOS CÊNICOS
Som: A música "Devour, Destroy" A jaula em si é apresentada como
é um hardtechno agressivo. Os sons dos uma metáfora para a condição humana
metais percutindo na jaula se confundem nos dias de hoje. Existem diversas
com a dureza dos sons eletrônicos e dos maneiras de se sentir preso, de se prote-
gritos distorcidos. ger, de não conhecer os próprios limites,
Vídeo: um vídeo-homenagem à de se isolar. Desta forma, não se sabe ao
deusa Khali, como se Amateur precisasse certo se é Amateur que está preso ou a
romper com seu mundo atual e construir própria plateia. Não se sabe ao certo
um novo. Luzes de led se ascendem fre- quem está se protegendo de quem.
neticamente representando o surto do A situação do enjaulado incita di-
personagem. versas questões acerca da existência hu-
Ao final do primeiro ato, blackout mana, suas prisões mentais, máscaras
na sala e um tecido preto cai, cobrindo sociais, medos e angústias.
toda a jaula. Ouve-se sons de objetos se Amateur observa, coleciona e es-
partindo, explosões, sirenes. tuda friamente o ser humano de dentro de
uma jaula atemporal que remonta a um
ATO II universo pós apocalíptico, como se o
O público permanece por alguns mundo já não fosse mais este que co-
instantes com o palco todo escuro, enfu- nhecemos, como se as regras hou-
maçado, ouvindo apenas um ruído con- vessem mudado e os paradigmas sociais
tínuo. Amateur surge pela lateral vestindo vigentes já estivessem ultrapassados. É
um traje ajustado ao corpo, quase como hora de reinventar um novo mundo e,
uma segunda pele. O tecido tem uma im- assim como no mito de Khali, destruir
pressão digital especial fazendo alusão a para construir novamente.
radiografias, exames de ressonância
magnética, etc. De costas para o púbico ANIMAÇÕES E VÍDEOS
senta ao piano e executa uma música. Predominantemente em preto e
Esse piano, na verdade um controlador branco e em alto contraste, os vídeos são
midi, foi previamente colocado por um como um filme que acontece em tempo
roadie da equipe. A música começa lenta real. Cada parte musical tem sua corres-
e dramática e vai se intensificando aos pondência visual. Cada nota, um motivo
poucos, ficando dissonante e percussiva. imagético. Animações gráficas serão uti-
lizadas para dar ênfase a aspectos sen-
soriais do roteiro.
336
Cultura cyberpunk, erros de im- A escolha por uma linguagem mul-
pressão, osciloscópios, ressonâncias timídia tem inspiração nos happenings e
magnéticas, frases de protesto, ex- performances do Grupo Fluxus e Joseph
plosões, sinapses, relógios, parafusos, Beuys.
cifrões, coturnos, corredores, bits e bytes,
sinais de antena, equipamentos mecâni-
cos, poeira, enciclopédias antigas, ener-
gia tesla, máquinas obsoletas... tudo isso
faz parte do conjunto de imagens que
pretende-se usar para construir o imagi-
nário estético do personagem.
Retroalimentação, videomapping,
sintetizadores de vídeo, mesas de luz,
câmeras de segurança, jogo de sombra,
vídeos gerados por códigos de progra-
mação... são algumas técnicas que
pretende-se usar para conceber a perfor-
mance.
PERFORMANCE
A inspiração principal desta per-
formance é a obra literária “O artista da
fome”, de Franz Kafka. (Ein Hungerkün-
stler, 1924). A ideia de se ter uma pre-
sença física de uma figura humanóide no
espaço, um corpo que sofre um duplo
trauma de nascimento e morte, que car-
rega um passado e busca reinventar seu
futuro.
A proposta centraliza todas as
ações cênicas em um único personagem,
criando assim uma miríade de possibili-
dades de identificação direta do público
com o personagem.
O formato de “teatro imersivo” de-
riva de escolas de teatro físico que tem o
inglês Jerzy Grotowski como principal ex-
poente, além é claro, do dramaturgo
francês Antonin Artaud.
337
Ekopornoxamanismo, uma obra de Azael
Valderrama em colaboração com o teatro
Le Petit Justine e Jeison Castillo, reflexão
de nossa sacralidade no corpo e território.
Imagem cedida por Azael Valderrama.
338
EKOPORNOXAMANISMO
Azael Valderrama
Adriano Belisário
Pesquisador interessado nas relações entre comunicação, cultura e tecnologia.
Desde 2003, participa e desenvolve ações e projetos ligados a tecnologias livres
e mídia independente.
Carla Lyra
Antropóloga e documentarista, nascida em terras potiguaras e militante da cultura
da paz.
Carsten Agger
É um desenvolvedor de software, ativista e escritor que tem sido ativo em movimentos
sociais pelo software livre, direitos civis, contra o racismo e guerras coloniais por 20
anos. Treinado como físico teórico ele trabalha como desenvolvedor de software livre,
contribui com o projeto Baobáxia e co-organiza o LibreOffice Conferences.
Ele organizou o encontro de tecnoxamanismo em Aarhus, Dinamarca em 2014
e é co-organizador do II Festival Internacional de Tecnoxamanismo (Bahia- 2016).
Daniel Lima
Bacharel em Artes Plásticas pela Escola de Comunicação e Artes da USP e Mestre
pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC/SP, desde 2001 cria intervenções
e interferências no espaço urbano. Próximo de trabalhos coletivos, desenvolve
pesquisas relacionadas à mídia, questões raciais e processos educacionais. Dirige
a produtora e editora Invisíveis Produções. https://issuu.com/invisiveisproducoes
www.danielcflima.com
345
Danilo Lima
Danilo Lima é natural de Barreiras/BA, bacharelando em Interpretação na Escola
de Teatro da UFBA, membro dos coletivos COATO e Pleorama, e em ambos,
investiga a cinestesia corporal para a cena. http://pleorama.tumblr.com/
Fabiane M. Borges
Doutora em psicologia clínica, pesquisadora de arte, tecnologia e subjetividade,
articuladora da rede de tecnoxamanismo.
http://catahistorias.wordpress.com
Fabiano Fonseca
É músico e performer, nascido no interior de Minas Gerais numa cidade sem nome.
Aos 12 anos saiu para comprar um picolé e voltou para casa amuado. Não sabia usar
o dinheiro. Só conhecia caminhos de rio, canto de pássaro e rastro de cobra. Aos 16
anos, após ver o vilarejo ser destruído pela mineração, mudou-se para Belo Horizonte
onde imediatamente encontrou a cena punk e experimental que fervia por ali. Em 2006
lançou seu primeiro disco pela gravadora electroclash alemã Gigolo Records. Anos se
passaram em tournês, estudos, viagens, residências artísticas e colaboração com
diversos artistas. Atualmente, seu trabalho esta focado no cruzamento entre o corpo,
o som e a tecnologia, criando obras imersivas, performances audiovisuais densas,
sonoridades brutas e atitudes extremas.
Fernando Gregório
É artista do corpo, das novas mídias, dos rituais e produtor cultural. Graduou-se em
Comunicação Social – Habilitação em Midialogia na Unicamp. Trabalha e mora em
São Paulo, onde atualmente integra o projeto Terreyro Coreográfico ~ Coisa
Coreográfica, com apoio do Fomento à Dança. Está conectado e auxilia na articulação
de eventos da Rede do Tecnoxamanismo.
346
Henrique Masera Lopes
Atua como historiador, músico e produtor cultural na cidade de Natal-RN. Atualmente
desenvolve pesquisa de Mestrado em história intitulada “A caminho do planetário:
uma história das paisagens sonoras de um nordeste psicodélico ( 1972-1976)”. Integra
os projetos musicais Igapó de Almas e Esquizophanque.
Hilan Bensusan
Filósofo. Escritor. Professor de filosofia na UNB (Universidade Nacional de Brasilia).
Pesquisa ontologia, metafísica, animismo e materialidades, especializado em filosofia
contemporânea. Atua como performer e faz instalações.
http://anarchai.blogspot.com.br/
Joana Foster
É uma artista, musicista e doutora pesquisadora no DJCAD, Univesity of Dundee,
Escócia. Explora performances sonoras e desenha práticas como processos
transformadores que pode inicar conexões entre pessoas, lugares, adaptando em
tempo real provocando deslocamento, múltiplas camadas de condições de encontros.
www.dundee.ac.uk/djcad/
Joeser Alvarez
Joeser Alvarez, Rio de Janeiro, 1962. Vive na região fronteiriça da Amazônia e atua
pelo desterritório da web ceramista, artivista & technoshamano.
347
Jonatan Sola
Espanhol que vive no Brasil, em Arraial d'Ajuda. Permacultor, trabalha com
agrofloresta, desenvolve programas de salvamento de nascentes de água
e desenvolve projetos de bioconstrução com indígenas e comunidades ribeirinhas.
https://casadebarropermacultura.wordpress.com/
Jonathan Kemp
Tem uma longa história de hackerismo especulativo e situacional, eventos elaborados
a partir da cultura maker e diy. Seus projetos colaborativos incluem performances
de processos de materiais, instalações ambientais, simpósios especulativos, eventos
de software social executados na Europa e Estados Unidos. Projetos atuais
e performances são criadas pelo interesse aleatorio e reconfigurações de códigos
da terra, e substratos de materiais computacionais. http://xxn.org.uk/
Kadija de Paula
É artista, cozinheira e digestora de colaborações autônomas e trabalhos invisíveis.
Bacharel em Artes Visuais pelo Ontario College of Arts and Design e Mestre em
Gestão Cultural e Relações Internacionais pela Schulich School of Business da York
University. Foi gestora e mediadora das residencias_en_red [iberoamérica],
cofundadora da Agência Transitiva, consultora de Artes Visuais da UNESCO/MinC,
e masseira do Ferro & Farinha. Atualmente é chef residente da Cozinha CAPACETE
onde faz ativismo alimentar, fermentação natural, e economia informal em colaboração
com artistas e organizações locais e internacionais.
Kaloan Meenochite
Artista visual, trabalha com instalação, performance, intervenção urbana, música
(ruído). Faz parte de grupos como Keroøàcidu Suäväk, voodoohop, tecnoxamanismo.
Faz produções visuais, sonoras e performáticas em vários países.
Laura Sobenes
É fotógrafa, entusiasta da pintura corporal, tatuadora, feminista, toca flauta, tem uma
pequena empresa em sua cidade natal São Paulo, gosta de rituais de qualquer tipo.
348
Leandro Nerefuh (Libidiunga Cardoso)
Artista construtivista tabaréu, petit directeur da Escola Capacete (Rio de Janeiro)
e fundador do PPUB - Partido Pela Utopia Brasileira, partido político ativo no Brasil,
Paraguay e Uruguay. Através de instalações e exposições, oficinas e performances,
esculturas públicas e experiências de agitprop, muitas vezes concebidas para
contextos específicos, Libidiunga cria um território ambíguo entre o discurso acadêmico
e criação artística. Desde 2009, apresenta trabalhos internacionalmente,
em instituições como: 12 Bienal de Havana, Cuba; KunstenFestivaldesArts, Bruxelas;
Museu de Arte Moderna, São Paulo; Zacheta Galeria Nacional, Varsóvia; W139,
Amsterdam; 30 Bienal de São Paulo; Museu Reina Sofia, Madrid; ICA , Londres.
O artista é comercialmente representado pela galeria SOLO SHOWS.
Luisa Hervé
Atua no Design como uma ferramenta de transformação e transmissão de
conhecimento. Como Artista Visual busca canalizar imagens recebidas em conexões
espirituais e estágios alterados de consciência.
Luiza Só
Natural de Porto Alegre, nômade estradeira pesquisadora proseadora amadora
xamona lésbica. Articuladora de tecnologias de conhecimento livre, passeando
por autonomia, autodidatismo, auto gestão e redes de florescimentos mútuos.
Marcelo Gandhi
1975, Natal \ RN Vive e trabalha em São Paulo. Graduado em artes plásticas pela
Universidade Federal do Rio Grande, UFM. Atua nas aéreas de performance, desenho
e música experimental, participou do projeto Rumos Itaú Cultural, do Viewprogram
Drawing Center, USA \ Bienal Deformes (corpo colonizado) Chile \ Festival Zona de
Arte Nacciom, Argentina\ Jogos de Guerra, Rio de Janeiro \ Landscape Body, Suécia \
Encontro Internacional de Performance, Chile \ Festival Extra, Cidade do México \
Acciones AL Margem, Colômbia.
Marcio Junqueira
Professor de literatura na UNEB, escritor, poeta, vive em Arraial d'Ajuda, Sul da Bahia.
Martin Howse
Programador, escritor, performer e explorador, Martin Howse fundou o AP Project em
1998 para implementar uma verdadeira operação sistêmica artística no seu mais
expansivo senso. De 2007 a 2009 organizou oficinas regulares, micro-residências,
e séries de salão em Berlim, mais recentemente organiza as micro-pesquisas.
As micro-pesquisas são plataformas móveis de pesquisas psicogeofísicas que ocorrem
em Berlim, Londres, Pennemunde e Kiruna.
www.1010.co.uk
Morgana Gomes
Morgana Poiesis, mulher, taurina com ascendente em virgem, lua em peixes
e vênus em gêmeos, comunicóloca, artista, gestora cultural e pesquisadora nômade,
sonhadora do sertão infinito. http://escritasemarte.blogspot.com /
http://www2.uesb.br/cultura/ / http://www2.uesb.br/cultura/?page_id=32
350
Nubia Abe
Possui graduação em Publicidade e Propaganda pela Universidade do Vale do Itajaí
(2008) e pós-graduação em Fotografia pela mesma universidade (2010). Possui
experiência em planejamento e criação publicitária, design gráfico, webdesign,
fotografia e artes visuais, prestando serviços como autônoma nessas áreas.
Pablo de Soto
Pablo de Soto é mestre em arquitetura pela Real Instituto de Tecnologia de Estocolmo
e doutorando no programa Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
da Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Editor dos livros
Fadaiat: libertad de movimiento, libertad de conocimiento, e Situation Room: diseñando
un prototipo de sala de situación ciudadana. Coordena os projetos
dronehackademy.net e mappingthecommons.net. Na primera década dos 2000
foi cofundador de hackitectura.net.
Paloma Klisys
É escritora, poeta, ser criativo translinguagens, pesquisadora transdisciplinar.
Livre-pensadora, Inter_inventora INTERDEPENDENTE Art-comunicadora.
Intercessora cultural... seja onde for.
Paola Barreto
(Rio de Janeiro, 1971) Artista audiovisual e pesquisadora. Graduada em Cinema (UFF)
e Mestre em Tecnologia e Estéticas (PPGCOM/ UFRJ), atualmente Doutoranda em
Poéticas Interdisciplinares (PPGAV/ UFRJ). Através de uma produção prática e teórica
que transita por circuitos de vídeo eletrônicos e digitais, sistemas híbridos e processos
de autoria coletiva, seus trabalhos desdobram- se entre filmes, instalações
e performances, explorando através da materialidade dos suportes as relações
entre corpo, cidade e imagem. http://paoleb.net
Pedro Diaz
Entre pesquisas na área de Ciência da Informação, geopolítica e vigilância, o artista-
pesquisador vem trabalhando performances experimentais sonoras e instalações
visuais a partir de culturas minoritárias e imagens de arquivo. A potência molecular
perante os delírios explosivos da modernidade.
Peetssa
Bioconstrutor, pesquisador de energias sustentáveis, artista visual. Membro do coletivo
Contra-filé. Desenvolve projetos de criação de escolas de bambu em vários localidades
como Amazônia e África.
351
Philippe Wollney
Philippe Wollney é um poeta contemporâneo brasileiro, nascido na cidade de Goiana,
Pernambuco, em 1987. Tem poemas publicados em antologias como Antologia Poética
Goiana Revisitada (Silêncio Interrompido, 2012) e Cem Poetas Sem Livros (2009),
assim como na revista Musa Rara.
Pilas Machine
É livre artista, formou-se em artes cênica e filosofia. Performer e vídeo-artista.
Atualmente se dedica à pesquisa do xamanismo e questões do queer. Ciberativista.
Ativista. Pesquisador.
Quimera Rosa
ES-FR-AR. Nosso trabalho é baseado na desconstrução de identidades de
sexo/gênero e também na interação de corpo/máquina/meio ambiente. Fundado
na metáfora do ciborgue elaborado por Donna Haraway, nossas performances
apresentam seres híbridos, quimeras, onde a produção da subjetividade é o resultado
da incorporação protética. Cientes das práticas feministas e queers, nós fazemos dos
corpos uma intervenção públcia, quebrando os limites entre o público e o privado.
Nos últimos três anos temos ampliado esse trabalho, fazendo design de próteses
eletrônicas que tem interesse sensorial e questiona nossos mecanismos perceptivos.
http://quimerarosa.net/
Rafael Frazão
É graduado em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos, desenvolve
conteúdos audiovisuais em múltiplas linguagens atuando principalmente na prática
e formação em cinema expandido e live cinema. Sua pesquisa gira em torno
do cinema de ficção cosmopolítico e da desprogramação do imaginário colonial.
http://filmesparabailar.com/
Raisa Inocêncio
É cearense, estudou Filosofia na UFRJ e artes visuais na escola Parque Lage. Seus
trabalhos envolvem performance e ocupação cultural, com foco no ativismo político
e no engajamento erótico (redes como o pós-pornô e o tecnoxamanismo). Atualmente
se prepara para a realização do mestrado Europhilosophie Erasmus Mundus.
Ryan Jordan
Trabalha com a exploração potente de processos e sistemas funcionais em tecnologia,
mecanismos de percepção humana e fenômenos ambientais afim de torná-los
conscientes na realidade. http://ryanjordan.org/
Tiago Fioravante
É jornalista, pesquisa sobre infância, gênero, sexualidade e mais recentemente,
práticas xamânicas e indigenismo relacionados à Teoria Queer. Está interessado
em pensar o mundo através da desconstrução e em novas formas de existir.
Wonjung Shin
Diana Band é uma dupla de artistas interdisciplinares, estabelecida em 2010
e atualmente baseada em Seul. Elas exploram o campo do do design de objetos
e a media art, afim de encontrar o momento imaginário da situação cotidiana.
Acreditam que “objetos sensíveis” (seu trabalho autoral) criam narrativas ambientais ou
eventos e convidam as pessoas a encontrar o senso comum e universal da linguagem.
Diana Band participou de trabalhos internacionais na Alemanha, Holanda, Espanha,
Turquia e Coréia do Sul. Seus projetos teve suporte do Museu Nacional de Arte
Moderna e Contemporânea, Coréia - 2015; Arco Performing Arts Center (2015); Korea
Craft & Design Foundation (2014); Zuiderzee Museum (2012); MEM Experimental Arts
International Festival (2011). http://www.dianaband.info/
Yasodara Cordova
Designer Industrial e desenvolve intersecção entre design, política, ciência e internet.
Gosta de imaginar soluções para problemas que são consequências de ilusões da
concentração do poder. Ela cofundou o Calango Hackerspace, é membra do Coding
Rights Collaborative Concil e membra do Open Knoledge Brazil Advesory Council.
354
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