Você está na página 1de 360

TECNO

XAMANISMO
ORG: FABIANE M. BORGES

REDE
TECNO
XAMANISMO
REDE
TECNO
XAMANISMO
CONCEPÇÃO E ORGANIZAÇÃO: FABIANE M BORGES.
COM COLABORAÇÃO DE GEORGE SANDER, CARSTEN AGGER, GISELI VASCONCELOS.
PROJETO GRÁFICO: DANIEL LIMA. TRADUÇÃO: GLERM SOARES E SIMONE BITTENCOURT.
REVISÃO: FERNANDA LOMBA. REALIZAÇÃO: REDE TECNOXAMANISMO, GOETHE
INSTITUT SÃO PAULO E INVISÍVEIS PRODUÇÕES. COM TEXTOS E IMAGENS DE ADRIANO
BELISÁRIO + AKELARRE CYBORG + AZAEL VALDERRAMA + CARLA LYRA + CARLOS
EDUARDO SOUZA AGUIAR + CARSTEN AGGER + CLAUDIA LOPES BORIO + DANIEL LIMA
+ DANILO LIMA + DOGMA COLETIVO CENTRAL + EDGAR FRANCO + EDUNOISE +
ELEONORA OREGGIA + FABIANE M. BORGES + FABIANO FONSECA + FERNANDO
GREGÓRIO + HENRIQUE MASERA LOPES + HILAN BENSUSAN + INGRID TARTAKOWSKY
LÓPEZ + ISAAC FILHO E JULIANA DE MORAES + JOANNA FOSTER + JOESER ALVAREZ +
JONATAN SOLA + JONATHAN KEMP + KADIJA DE PAULA + KALOAN + LAURA SOUBENES +
LAURA PLANA GRACIA + LEANDRO NEREFUH + LECHEDEVIRGEN + LUÍSA HERVÉ +
LUIZA SOH + MAÍRA DAS NEVES + MANDRÁGORA + MARCELO BRAZ +
MARCELO GHANDI + MARCIO JUNQUEIRA + MARTIN HOWSE + MORGANA GOMES +
NUBIA ABE + PABLO DE SOTO + PALOMA KLISYS + PAOLA BARRETO + PEDRO DIAZ +
PEDRO VITOR BRANDÃO + PEETSSA + PHILIPPE WOLNEY + PIERRE HERVE LAMBERT +
PILANTRÖPÓV + PILAS MACHINE + QUIMERA ROSA + RAFAEL FRAZÃO +
RAISA INOCÊNCIO + RYAN JORDAN + SONJA VAN KERKHOFF + SUE NHAMANDU +
TIAGO FIORAVANTE + TRANSNOISE + UNMONASTERY +
VALENTINA MONTERO PEÑA + VINCENZO TOZZI + VICTOR VENAS +
WLAX DYNE + WONJUNG SHIN + YASODARA CORDOVA
ISB N 978-85-66129-23-6

CONCEPÇÃO E ORGANIZAÇÃO: FABIANE M. BORGES


COM APOIO DE GEORGE SANDER, CARSTEN AGGER E GISELI VASCONCELOS
ED IÇÃO DE T EXTO: FABIANE M. BORGES
ED ITORAÇÃO E PROJ ETO GRÁFICO: DANIEL LIMA
TRADUTORES: GLERM SOARES E SIMONE BITTENCOURT
REV IS ÃO: FERNANDA LOMBA
PROD UÇÃO: INVISÍVEIS PRODUÇÕES
REALIZAÇÃO: REDE TECNOXAMANISMO, GOETHE-INSTITUT SÃO PAULO E INVISÍVEIS PRODUÇÕES

INVISÍVEIS PRODUÇÕES É UM CENTRO DE CRIAÇÃO, AÇÃO E REFLEXÃO QUE TRABALHA NA INTERSECÇÃO ENTRE ARTE
E POLÍTICA. A INVISÍVEIS PRODUÇÕES OPERA DE FORMA AUTÔNOMA, TRANSVERSAL E HORIZONTAL. AUTÔNOMA NA
MANEIRA DE MOVIMENTAR-SE, CRIANDO DIFERENTES DIAGRAMAS E VÍNCULOS INSTITUCIONAIS SUSTENTANDO SUA
INDEPENDÊNCIA DE PENSAMENTO. TRANSVERSAL NA MANEIRA DE COLETAR E REUNIR UMA RESERVA CRÍTICA DE
VOZES DISSONANTES. HORIZONTAL NA FORMA DE PRODUZIR E COMPARTILHAR LIVREMENTE O CONHECIMENTO EM
LIVROS, FILMES E PROJETOS CULTURAIS.
CONHEÇA E BAIXE NOSSAS PUBLICAÇÕES EM ISS UU.COM/INVISIVEIS PROD UCOES
PARA CONTATO ESCREVA PARA INVIS IVEISP RODUCOES@GMAIL.COM

CREAT IVE COMMONS


ATRIBUIÇÃO-USO NÃO-COMERCIAL 3.0 BRASIL WWW.CREATIVECOMMONS.ORG/LICENSES/BY-NC-ND/3.0/BR/
ESTE LIVRO PODE SER UTILIZADO, COPIADO, DISTRIBUÍDO, EXIBIDO OU REPRODUZIDO EM QUALQUER MEIO OU FORMA,
SEJA MECÂNICO OU ELETRÔNICO, INCLUINDO FOTOCÓPIA, DESDE QUE NÃO TENHA OBJETIVO COMERCIAL E SEJAM
CITADOS OS AUTORES E A FONTE.

Realização:

REDE
TECNO
XAMANISMO
ÍNDICE
TECNOXAMANISMO 09 A TÉCNICA COMO DIPLOMACIA 131
Fabiane M. Borges COM NÃO HUMANOS
Hilan Bensusan
TECNOXAMANISMO 14
Kaloan
#EXCERTO3 141
ANTROPOCENO, CAPITALOCENO, 21 mbraz
CHTHULUCENO, VIVENDO COM O EROSÃO 145
PROBLEMA EM FUKUSHIMA & RESTAURO
Pablo de Soto philippe wollney

TRANSCENDENDO TECNOLOGIA: 31 ENTREVISTA 149


COMPUTAÇÃO UBÍQUA OU AO CIBERPAJÉ
TECNOMAGIA? Edgar franco
Eleonora Oreggia

PLEX 37 CINEMA 163


Leandro Nerefuh DE PLANTA
Paola Barreto
COSMOGONIA LIVRE – RITUAIS 47
FAÇA VOCÊ MESMO (DIY) COMPOSTAGEM 169
Fabiane M. Borges Claudia Lopes Borio

TECNOXAMANISMO 69 “A LENDA DE THYTH, O GIGANTE”, 177


ANTROPOFAGIA DA TÉCNICA OU “O QUE JAZ SOB THE ÞIT”
Adriano Belisário Kadija de Paula
Maíra das Neves
TECNOXAMANISMO E A ESTRANHA 73 Pedro Victor Brandão
CIRCULARIDADE DO MUNDO RECEITA DE YOPO OU COHOBA 181
Carlos Eduardo Souza Aguiar1
(RAPÉ XAMÂNICO)
TECNOXAMANISMO 83 Joesér Alvarez
Pilantröpóv
O QUE É 183
QUE MEMÓRIAS 91 AKELARRE CYBORG?
SÃO ESSAS? Akelarre Cyborg: Quimera
Danilo Lima Rosa + Transnoise

TECNO 95 COSMOGONIA 187


XAMANISMO SONORA
Luiza Soh Pedro Dias

REFLEXOS 97 O MUNDO 195


TRANS.LÚCIDOS CRISTALIZADO
Morgana Gomes Jonathan Kemp

XAMONAS: 101 PARA REFLETIR O CONHECIMENTO 205


XAMÃS + MONAS LIVRE E PROPRIETÁRIO:
Tiago Fiaronte DO CÓDIGO ÀS SEMENTES
Isaac Ferreira Filho e
TECNOXAMANISMO 103 Juliana de Moraes
EM AARHUS
Carsten Agger O ÉTER 209
E SEU DUPLO
JOGO, CORPO, TECNOLOGIA E 109 Martin Howse

SOBRE O GRANDE ABRAÇO-MÃE BRUXARIA DIY: 217


Fernando Gregório
UM DECÁLOGO SOBRE MAGIA E
DO RITO À PRÁTICA, DO OCIO À 117 ARTE DE PERFORMANCE
Lechedevirgen Trimegisto
TÉCNICA, DO AMOR AO DELÍRIO,
DA FOME AO FIM. A TERRA COMO XAMÃ 225
Raisa Inocêncio E NOVAS MÍDIAS
XAMANISMO: 125 Sonja van Kerkhoff

CORPO E PLANTAS DE PODER


Carla Lyra
NOTAS VISÍVEIS 291 MANDRAGORA 305
SOBRE O INVISÍVEL dogma coletivo central
Sue Nhamandu
EDUNOISE 317
RUÍDO, SILÊNCIO E 295 PATRICIA RAIJENSTEIN
JORGE BARCO
TECNOXAMANISMO (NO IGAPÓ Selu Herraiz
DAS ALMAS SINTETIZADAS)
Henrique Masera Lopes FRAGMENTOS PARA A 321
DESESTABILIZAÇÃO DOS
SOBRE ENTEÓGENOS, 239 CORPOS: MEDIAL AGES
A QUÍMICA DA CONSCIÊNCIA E Laura Plana Gracia
DISPOSITIVO RACIONAL
Valentina Montero P. ATA DA REUNIÃO 327
Ingrid Tartakowsky L. TRANSESPECÍFICA
A CANÇÃO 247 DELIBERATIVA
Rafael frazão
DA VELA
Wonjung Shin AMATEUR, 333
PERFOMANCE 251 THE SOCIAL ROBOT
Fabiano Fonseca
LIMPEZA AZTECA
XAMÃ CE QUIAHUIT EKOPORNOXAMANISMO 339
marcelo Gandhi
Azael Valderrama

A VIAGEM 255 MINIDICIONÁRIO 341


DE MANA ILUSTRADO DE PATXÔHÃ
Vincenzo Tozzi marcio Junqueira
Firmino
POSSESÃO 257
TRANCE PARTICIPANTES 345
Ryan Jordan
BIBLIOGRAFIA 355
GERADOR 261
QUILOMBOLA
Peetssa

AGROFLORESTA E 265
TECNOXAMANISMO
Jonatan Sola

WARSCAPE 273
SONATA
vlax dyne

CONECT 277
RADIX
paloma klisys

SAMBAA KʼE 285


PRINT STUDIO
Joanna Foster

LUZ-CORPO: 293
TRANSCENDÊNCIAS POÉTICAS
DO MOVIMEMTO
Victor Venas

MÁQUINAS COMPLEXAS 297


E PERDIDAS
Yasodara Cordova

ESCUTANDO AS PAREDES: 299


O UNMONASTERY
unMonastery
desenhos por
LuÍsa HervÉ
Capa e páginas 5, 32, 62, 124 e 130

"Ser nascente em movimento


serpente, dança de energias
e consciência desperta.
A kundalini brilhante.
empoderar-se e expressar-se:
xamona ser de força sexual que
permeia e absorve, impulsiona
e acolhe, funde e separa.
Xamona guerreirx que ascende
e processa dificuldades
e emoções que se apresentam.
O encontro da identidade finita
do agora com as infinitas
identidades cósmicas."
por LuÍsa HervÉ

8
TECNOXAMANISMO
Fabiane M. Borges

A PROPOSTA PARA A PRODUÇÃO DO LIVRO


TECNOXAMANISMO SURGIU LOGO APÓS A REALIZAÇÃO DO
I FESTIVAL INTERNACIONAL DE TECNOXAMANISMO REALIZADO
NA COSTA DO DESCOBRIMENTO, MAIS ESPECIFICAMENTE EM
ARRAIAL D'AJUDA, SUL DA BAHIA, NO SÍTIO DE PERMACULTURA
ITAPECO, EM ABRIL DE 2014.1

CONSTRUÍDO PRIORITARIAMENTE NA INTERNET, O FESTIVAL MOBILIZOU UMA REDE DE PES-


QUISADORES, PROGRAMADORES, ATIVISTAS, ARTISTAS, CIENTISTAS DE VÁRIOS LUGARES DO
BRASIL E OUTROS PAÍSES. FOI BANCADO ATRAVÉS DE UMA CAMPANHA (CROWNFUNDING) FEITA NO
CATARSE2, ONDE CONSEGUIMOS ARRECADAR R$ 15.502,00. FOI FUNDAMENTAL A AJUDA DE TODOS
OS APOIADORES, E PRINCIPALMENTE O APOIO DA VOODOOHOP QUE ORGANIZOU EM SÃO PAULO,
JUNTO COM PARTICIPANTES DA REDE TECNOXAMANISMO, UMA FESTA NO TEATRO OFICINA QUE CO-
BRIU QUASE INTEIRAMENTE A IDA DO ÔNIBUS HACKER, QUE LEVOU PESSOAS DO ESTADO DE SÃO
PAULO E RIO DE JANEIRO. O RESTO DO DINHEIRO SERVIU PARA CONSTRUIR A ESTRUTURA DO FES-
TIVAL (ÁREA DE CAMPING, BANHEIROS SECOS, ALIMENTAÇÃO, RECICLAGEM DE LIXO, ETC). OUTRAS
VÃS E ÔNIBUS TROUXERAM OUTROS GRUPOS (AUTONOMAMENTE) DO ESTADO DA BAHIA, COMO O
GRUPO LCCPI (LABORATÓRIO DE CORPO-CRIAÇÃO-PERFORMANCE-INTERFERÊNCIA) DE VITÓRIA
DA CONQUISTA

A ESCOLHA PELA TERRA DO DESCOBRIMENTO SE DEU A PARTIR DE 2 PONTOS:

1. PORQUE PARTE DAS PESSOAS DA REDE TECNOXAMANISMO PERTENCE A OUTRAS REDES COMO
METARECICLAGEM E SUBMIDIALOGIA, QUE DESDE 2008 ORGANIZAM ENCONTROS EM ARRAIAL
D'AJUDA VIA O ESPORO DE METARECICLAGEM BAILUX. A APROXIMAÇÃO COM OS PATAXÓS VEIO
DESSES ENCONTROS REALIZADOS NO ESPORO BAILUX QUE CONECTAVA-SE COM A ALDEIA PATAXÓ
VIA PONTO DE CULTURA DA ALDEIA VELHA PATAXÓ E A ESCOLA ALDEIA VELHA PATAXÓ. ISSO
QUER DIZER QUE AO LONGO DESSES QUASE 10 ANOS OS PATAXÓS FORAM TENDO ACESSO A ESSAS
DISCUSSÕES SOBRE SOFTWARE LIVRE, TECNOLOGIAS LIVRES, MÍDIA E AUTONOMIA E POR OUTRO
LADO, NOSSAS REDES FORAM TENDO ACESSO À CULTURA PATAXÓ. POR ISSO QUANDO DECIDIMOS
FAZER O I FESTIVAL DE TECNOXAMANISMO, NÃO TIVEMOS DÚVIDA DE QUE SERIA A CONTINUAÇÃO
DOS TRABALHOS REALIZADOS POR NOSSAS OUTRAS REDES, NA TENTATIVA DE APROFUNDAR
PROCESSOS JÁ INICIADOS.

2. PELO FATO SIMBÓLICO, JÁ QUE OS PATAXÓS SÃO CONSIDERADOS, ENTRE OUTROS, OS


PRIMEIROS INDÍGENAS BRASILEIROS A SE DEPARAREM COM AS CARAVELAS DE PORTUGAL E EN-
FRENTAREM OS PROJETOS DE COLONIZAÇÃO. DESSE MODO FAZER OS FESTIVAIS ALI TEM ESSE
CARÁTER DE INVERSÃO HISTÓRICA, DE RETORNAR A ALGUM PONTO HISTÓRICO PARA TRANSFOR-
MAR A HISTÓRIA.

DURANTE O FESTIVAL CONVIVERAM CERCA DE 100 PESSOAS VINDAS VOLUNTARIAMENTE DE


VÁRIOS LUGARES DO BRASIL E DE OUTROS PAÍSES. A MAIORIA SE INSCREVEU NO FESTIVAL
ATRAVÉS DO WIKI DO TECNOXAMANISMO CUJA CONVOCATÓRIA ABERTA FOI FEITA EM 4 LÍNGUAS
(PORTUGUÊS, ESPANHOL, INGLÊS E FRANCÊS).

9
DURANTE 7 DIAS OS PARTICIPANTES SE DISTRIBUÍRAM ENTRE PONTOS BASES, QUE SE DEU ENTRE
O SÍTIO ITAPECO E A ALDEIA VELHA PATAXÓ. SÃO ELES:

• A RÁDIO LIVRE - FUNCIONOU DURANTE TODO O FESTIVAL E ALI FORAM FEITOS MUITOS
DOS DEBATES, QUE FOI TRANSMITIDO AO VIVO ATRAVÉS DE UM CANAL DA WEB – AQUI PODE-SE
VER O ARQUIVO4.

• O TERREIRO ELETRÔNICO - FOI O LOCAL DAS OFICINAS DE ELETRÔNICA E MÍDIA (CON-


SERTOS DE ELETRÔNICOS, VIDEOMAPPING, MÚSICA, CIRCUITOS ELETRÔNICOS, PROGRAMAÇÃO
DIGITAL) ASSIM COMO PALCO DAS FESTAS EXPERIMENTAIS QUE ACONTECIAM COMO VIVÊNCIAS E
OFICINAS AUDIOVISUAIS5.

• O DOMO GEODÉSICO - FOI O ESPAÇO DO SILÊNCIO, ONDE SE ESTABELECEU QUE SERIA


USADO COMO O ESPAÇO NÃO VERBAL, DE IMERSÃO PROFUNDA, RESERVADO PARA EXPLORAR A
COMUNICAÇÃO SEM PALAVRAS. ORGANIZADO PRINCIPALMENTE POR KEROØÀCIDU SUÄVÄK, COM
APOIO DO GRUPO OVNEY E GRUPO XAMONAS, SURGIDOS DURANTE O FESTIVAL6.

• A COZINHA - FOI O ESPAÇO DE PREPARAR AS REFEIÇÕES COLETIVAS DIARIAMENTE, TOR-


NANDO-SE PALCO DAS DISCUSSÕES, CONVERSAS DE RODA, DEBATES DURANTES A MAIOR PARTE
DO TEMPO7.

• O CONVÍVIO E OFICINAS NA ALDEIA VELHA - ONDE OS PARTICIPANTES (A PEDIDO DOS


PATAXÓS) OFERECERAM OFICINAS AUDIOVISUAIS PARA ALUNOS DO PONTO DE CULTURA ALDEIA
VELHA PATAXÓ E DA ESCOLA INDÍGENA PATAXÓ ALDEIA VELHA .8

• AS PRÁTICAS DE PERMACULTURA, AGROFLORESTA E REAPROVEITAMENTO DE LIXO -


ACONTECEU DE MODO COTIDIANO, NÃO EM FORMATO DE OFICINAS OU EVENTO, MAS DE PRÁTICA
COTIDIANA POR PESSOAS ENGAJADAS NO PROCESSO, E COM PARTICIPANTES DO FESTIVAL ACOM-
PANHANDO. LOGO DEPOIS DO FESTIVAL FOI DESENVOLVIDA POR JONATAN SOLA O PROJETO DE
REVITALIZAÇÃO DE NASCENTES EM TERRA PATAXÓ APLICANDO SISTEMAS AGROFLORESTAIS
(SAF’S) .9

• RITUAIS COLETIVOS – COSMOGONIA LIVRE – RITUAIS FAÇA VOCÊ MESMO (DIY) - (PER-
FORMANCE, DANÇAS, MEDITAÇÃO, ENCONTROS NA FOGUEIRA) SÃO PRÁTICAS QUE TEM SE FORT-
ALECIDO NOS ENCONTROS DE TECNOXAMANISMO, JÁ QUE A IDEIA É CRIAR COSMOGONIAS
PRÓPRIAS, CRIAR MEIOS DE CONEXÃO ANCETROFUTURISTAS, AMPLIANDO A PERCEPÇÃO, POTEN-
CIALIZANDO O IMAGINÁRIO, INVENTANDO NOVAS PRODUÇÕES ESTÉTICAS, E IMERGINDO EM
PROCESSOS COLETIVOS DE CARÁTER ANCESTROFUTURISTA.10

O FESTIVAL PROPORCIONOU QUE GRANDE PARTE DA REDE SE CONHECESSE PRESENCIALMENTE,


E TAMBÉM CONHECESSE A COMUNIDADE INDÍGENA PATAXÓ, TUDO FEITO ATRAVÉS DE DANÇAS,
OFICINAS, INTEGRAÇÃO AOS PROCESSOS QUE ESTAVAM SENDO DESENVOLVIDOS NA ALDEIA
VELHA EM ABRIL DE 2014, COMO AS OLIMPÍADAS INTER ALDEIAS PATAXÓS E O CASAMENTO TRADI-
CIONAL DE DOIS CASAIS PATAXÓS, AS VISITAS CONSTANTES NA HORTA DA PAJÉ JAÇANÃ, AFORA AS
VISITAS DOS PATAXÓS AO SÍTIO ITAPECO, UMA DELAS SENDO PARA A CERIMÔNIA DE ABERTURA
DO FESTIVAL, EM QUE OS PATAXÓS FIZERAM UM AWÊ (RITUAL).

O FESTIVAL PROMOVEU O PENSAR/PRODUZIR CONEXÕES ENTRE TECNOLOGIA E MAGIA, TEN-


TANDO TRAZER AS POSSÍVEIS CONVERGÊNCIAS ENTRE AS TECNOLOGIAS PRODUZIDAS PELOS
MEIOS ELETRÔNICOS E DIGITAIS E AS PRODUZIDAS PELOS CONHECIMENTOS ANCESTRAIS E FU-
TURISTAS ATRAVÉS DE RITUAIS TECNOXAMÂNICOS, SENDO QUE OS RITUAIS TRADICIONAIS MISTU-
RAVAM-SE AO RUÍDO ELETRÔNICO, AOS VIDEOMAPPINGS PROJETADOS NA FLORESTA E ISSO CRIOU
UMA CONVERGÊNCIA DE SENTIDOS E PERCEPÇÃO, QUE CONTAVA COM A SENSIBILIDADE DE TODOS.

A MAIORIA DAS PESSOAS QUE PARTICIPARAM DO FESTIVAL ERAM JOVENS, TANTO OS PARTICI-
PANTES DAS REDES DE INTERNET QUANTO DAS ALDEIAS PATAXÓS. ISSO COLABOROU PARA FOR-
TALECIMENTO E POTENCIALIZAÇÃO DE AMBOS GRUPOS, JÁ QUE A TROCA DE PERSPECTIVA E O
CLIMA RITUALÍSTICO TECNOXAMÂNICO PROMOVEU UM AMBIENTE DE ABERTURA E CRIAÇÃO, E

10
COLOCOU A SUBJETIVIDADE EM MOVIMENTO, QUE É UM DOS PRINCIPAIS OBJETIVOS DESSE FESTI-
VAL.

OS RITUAIS FAÇA VOCÊ MESMO ENTRAM NESSA CENA COMO MODO DE AMPLIAR O ESTADO DE CON-
SCIÊNCIA ATUAL, POTENCIALIZAR HABILIDADES QUE ESTÃO ESQUECIDAS DEVIDO AO RACIONAL-
ISMO EXACERBADO NO QUAL VIVEMOS HOJE EM DIA, QUE DISPUTA O PENSAMENTO DE ÍNDIOS E
NÃO ÍNDIOS. SEM FALAR QUE O TECNOXAMANISMO É UMA OPÇÃO PARA OS INDÍGENAS TAMBÉM,
QUE NA SUA MAIORIA TÊM SIDO ASSEDIADOS PELAS IGREJAS EVANGÉLICAS, QUE DEMONIZAM O
XAMANISMO E IMPEDEM O FORTALECIMENTO DA CULTURA INDÍGENA.

MAS NÃO SE TRATA SOMENTE DE FAZER RITUAIS TECNOXAMÂNICOS, MAS TAMBÉM POTENCIALIZAR
OS ESTADOS DO CORPO, DA VIDA COMUNITÁRIA, DE REPENSAR OS MODOS DE PRODUÇÃO DE TEC-
NOLOGIA E DE REATIVAR OS CONHECIMENTOS ANCESTROFUTURISTAS. PARA MAIORES INFOR-
MAÇÕES VER A PUBLICAÇÃO DE UM TEXTO EXPLICATIVO NA REVISTA GENI.11

DEPOIS DO I FESTIVAL DE TECNOXAMANISMO DECIDIMOS FAZER UMA CONVOCATÓRIA PARA PUB-


LICAÇÃO, FEITO EM TRÊS LÍNGUAS (INGLÊS, PORTUGUÊS E ESPANHOL), QUE FICOU ABERTO POR 8
MESES. FORAM RECEBIDOS CERCA DE 80 PUBLICAÇÕES, E O LIVRO FOI ORGANIZADO COM APOIO
DO INSTITUTO GOETHE COM A EDITORA INVISÍVEIS PRODUÇÕES, ORGANIZADO POR MIM, COM
AJUDA DE CARSTEN AGGER, GISELI VASCONCELOS, GEORGE SANDER E OUTROS APOIOS PONTUAIS.

ESSA PUBLICAÇÃO EXTRAPOLOU O FESTIVAL EM SI, POIS TROUXE A CONTRIBUIÇÃO DE PESSOAS


DE VÁRIOS LUGARES DO BRASIL, AMÉRICA LATINA E OUTROS PAÍSES DANDO UM PANORAMA
MAIOR SOBRE O TEMA DO FESTIVAL AGRUPANDO TEXTOS TEÓRICOS, PRÁTICOS, NARRATIVAS
SOBRE O FIM DO MUNDO, ANTROPOCENO, TECNOMAGIA, ALQUIMIA, ANIMISMO, PROCESSOS ES-
TÉTICOS, ARTE CONTEMPORÂNEA, ARTE E TECNOLOGIA, DA PERFORMANCE, DO RUÍDO, DA
ELETRÔNICA, DA PERMACULTURA, DOS SONHOS, DAS EXPERIÊNCIAS COM LISÉRGICOS, DAS NAR-
RATIVAS COSMOGÔNICAS, DOS PROJETOS DE CONEXÃO ENTRE HUMANOS E GAIA, DA ANTROPOFA-
GIA, DO PERSPECTIVISMO, DO PAPEL DA TECNOLOGIA SUBVERSIVA, DOS HACKERSPACES, DA
SINGULARIDADE TECNOLÓGICA, DO ASTROFUTURISMO E TAMBÉM DEPOIMENTOS SOBRE O FESTI-
VAL DE TECNOXAMANISMO.

PRETENDEMOS QUE ESSE LIVRO SEJA UM DEFLAGRADOR DAS EMERGÊNCIAS ATUAIS QUE ESTÃO
ACONTECENDO EM VÁRIOS CAMPOS DO CONHECIMENTO, QUE ELE SEJA UM MOSTRUÁRIO DAS
IDEIAS E AÇÕES DE PESSOAS QUE ESTÃO QUERENDO PRODUZIR UM NOVO TIPO DE HUMANIDADE,
MAIS CRÍTICA E PROPOSITIVA EM RELAÇÃO ÀS MÁQUINAS, MAIS IMBUÍDA DO SEU PAPEL CÓSMICO,
MAIS CONECTADA COM O PLANETA TERRA, MAIS SENSÍVEL A OUTROS ESTADOS DE EXISTÊNCIA,
MENOS ANTROPOCÊNTRICA E MAIS TERRÁQUEA.

JUNTOS OS PARTICIPANTES PENSARAM A CONEXÃO ENTRE TECNOLOGIA E MAGIA, TENTANDO


TRAZER AS POSSÍVEIS CONVERGÊNCIAS ENTRE AS TECNOLOGIAS PRODUZIDAS PELOS MEIOS
ELETRÔNICOS E DIGITAIS E AS PRODUZIDAS PELOS CONHECIMENTOS ANCESTRAIS.
CONSTRUÍDO PRIORITARIAMENTE NA INTERNET, O FESTIVAL MOBILIZOU UMA REDE DE COLABO-
RAÇÃO COM DIFERENTES PESQUISADORES, ARTISTAS, CIENTISTAS NACIONAIS E INTERNACIONAIS,
BEM COMO IMPORTANTES APOIOS LOCAIS ENTRE INDÍGENAS E NÃO-INDÍGENAS. O FESTIVAL FOI FI-
NANCIADO ATRAVÉS DO SISTEMA CROWDFUNDING, ATRAVÉS DO CATARSE APOIADO POR INÚMERAS
PESSOAS DOS MAIS DIFERENTES LUGARES.

A IDEIA DE FAZER O FESTIVAL DE TECNOXAMANISMO PARTIU DA NECESSIDADE DE SE BUSCAR


RESPOSTAS PARA QUESTÕES DO NOSSO TEMPO, COMO O INGRESSO DA HUMANIDADE NO
ANTROPOCENO. A ADOÇÃO OFICIAL DESTE TERMO PARA DESIGNAR A ERA EM QUE VIVEMOS É UM
DOS TEMAS CENTRAIS DO CONGRESSO INTERNACIONAL DE GEOLOGIA, A SER REALIZADO EM 2016
NA ÁFRICA DO SUL. ANTROPOCENO DESIGNA A ATUAL IDADE DA TERRA, ONDE A TECNOLOGIA, IN-
DUSTRIALIZAÇÃO E MEIOS DE PRODUÇÃO DOS HUMANOS SÃO QUALIFICADOS COMO FORÇAS GEO-
LÓGICAS, CAPAZES DE INTERFERIR SIGNIFICATIVAMENTE NOS CICLOS NATURAIS, TENDO COMO
POSSÍVEL CONSEQUÊNCIA O FIM DO MUNDO, TAL COMO O CONHECEMOS - OU CONHECÍAMOS. OU
SEJA, O FIM DAS FLORESTAS, O EXTERMÍNIO CONSTANTE DOS MODOS DE EXISTÊNCIA INDÍGENAS,
A DETERIORAÇÃO DOS RIOS, ACIDIFICAÇÃO DOS OCEANOS, O DECLÍNIO DA BIODIVERSIDADE,

11
ENTRE OUTROS EFEITOS. NESSE CONTEXTO, SURGE A NECESSIDADE DE SE CRIAR NOVAS AGREMI-
AÇÕES, NOVAS REDES DE AÇÃO E PENSAMENTO, QUE COLABOREM NA CONSTRUÇÃO DESSE NOVO
HUMANO MAIS CONECTADO À NATUREZA, QUE CRIE ALTERNATIVAS PARA A CIÊNCIA E A TECNOLO-
GIA E QUE SEJA CAPAZ DE COMPREENDER A IMPORTÂNCIA DE SE PRODUZIR EXPERIÊNCIAS
MENOS NOCIVAS PARA O HUMANO E PARA A PRÓPRIA TERRA.

OS RITUAIS ENTRAM NESSA CENA COMO MODO DE AMPLIAR O ESTADO DE CONSCIÊNCIA ATUAL,
POTENCIALIZAR HABILIDADES QUE ESTÃO ESQUECIDAS DEVIDO AO RACIONALISMO EXACERBADO
NO QUAL VIVEMOS HOJE EM DIA. É PRECISO INVENTAR OUTRAS FORMAS DE FAZER RITUAIS, DE
ESTAR JUNTOS, DE SE COLOCAR EM ESTADOS DE INTENSIFICAÇÃO DE CONSCIÊNCIA E DE PER-
CEPÇÃO. NESSE SENTIDO É QUE O TECNOXAMANISMO APARECE ENQUANTO PROPOSTA, BASEADO
NAS SEGUINTES PERGUNTAS: QUE NOVOS RITUAIS NOS AJUDARIAM A NOS DESVINCULAR DO
ANTROPOCENTRISMO EXAGERADO E PERCEBER OUTRAS FORMAS DE INTELIGÊNCIAS CONTIDAS
EM NOSSO PLANETA? QUE TECNOLOGIAS O XAMANISMO PODE PROMOVER EM NOSSAS JUVEN-
TUDES URBANAS? COMO APROXIMAR A CIÊNCIA, A TECNOLOGIA E O XAMANISMO, DE MODO QUE
POSSAM ACHAR LINHAS DE CONVERGÊNCIAS?

DADA A COMPLEXIDADE DO TEMA, A CHAMADA PÚBLICA PARA ENVIO DE MATERIAIS PARA PUBLI-
CAÇÃO SURGIU COMO UMA CARTOGRAFIA DE DIFERENTES PERSPECTIVAS E PRÁTICAS QUE SE
CRUZAM SOB ESTA NOÇÃO. A PUBLICAÇÃO VISA DISCUTIR O TEMA DOS CONHECIMENTOS ANCES-
TRAIS E DAS TECNOLOGIAS NOVAS E OBSOLETAS, BUSCANDO ALTERNATIVAS ECOLÓGICAS, TEC-
NOLÓGICAS E IMAGINÁRIAS PARA A CONSTRUÇÃO DE NOVOS PARÂMETROS DE AÇÃO NO MUNDO,
EM UMA ÉPOCA EM QUE A LUTA PELA ÁGUA, A EXAUSTÃO DOS RECURSOS NATURAIS, O FIM DAS
FLORESTAS E SEUS POVOS ESTÃO EM PAUTA. ENTRA AQUI TODA A RETOMADA DO QUE CHAMAMOS
DE “ESPÍRITO DOS HACKLABS”, DO “DO IT YOURSELF”, DA ENGENHARIA APLICADA PARA RESO-
LUÇÕES LOCAIS E COM INTERESSES ECOLÓGICOS. ENTRA AQUI TAMBÉM O APOIO NA REESTRUTU-
RAÇÃO DE SABERES, PRÁTICAS, LÍNGUAS, ENTRE OUTRAS COISAS, DOS POVOS INDÍGENAS, NOSSOS
PARCEIROS.

DE MAIO A DEZEMBRO DE 2014, FORAM RECEBIDOS MAIS DE 80 TRABALHOS, A MAIORIA DELES INÉ-
DITOS, DE DIFERENTES PESQUISADORES, ARTISTAS, ATIVISTAS E CIENTISTAS DE TODO O MUNDO,
MAS COM GRANDE REFERÊNCIA NAS PRODUÇÕES BRASILEIRAS. ENTRE OS QUE ATENDERAM AO
CHAMADO PARA A PUBLICAÇÃO, ALGUNS NÃO PARTICIPARAM DIRETAMENTE DO FESTIVAL, EN-
TRETANTO SE MOBILIZARAM A PARTIR DA CHAMADA ABERTA NA INTERNET A FIM DE CONTRIBUIR
COM SUAS REFLEXÕES SOBRE O TEMA. OS FORMATOS VARIAM DE ABORDAGENS, COM TEXTOS
ACADÊMICOS, ENSAIOS, POESIAS, FICÇÕES, TECNOFICÇÕES, HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, FOTO-
NOVELAS, PASSANDO POR UM VASTO E RICO UNIVERSO DE IMAGENS SOBRE O ASSUNTO.

AGRADECIMENTOS:
REDE DE TECNOXAMANISMO
ALDEIAS PATAXÓ
INSTITUTO GOETHE
INVISÍVEIS PRODUÇÕES

Notas:
1. https://tecnoxamanismo.wordpress.com/2016/02/16/primeiro-festival-internacional-de-tecnoxamanismo /
2. https://www.catarse.me/tecnoxamanismo
3. http://tecnoxamanismo.metareciclagem.org/
4. https://archive.org/details/radio-tecnoxamanismo
5. https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14158657472/in/dateposted/
6. https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14181528253/in/dateposted/
7. https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14137178856/
8. https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/page6
9. https://tecnoxamanismo.wordpress.com/2016/03/15/projeto-renascente-da-aldeia-para/
10.
https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14181328393/in/dateposted/
https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14138071686/in/dateposted/
https://www.flickr.com/photos/123679049@N08/14216813266/in/dateposted/
11. http://revistageni.org/10/tecnoxamanismos-etc/

12
Foto:
Nubia Abe
TCHNXMNSM cultivar kaloan

A palavra experimental pode convir,


desde que a compreendamos como Os humanos podem
designando não um ato destinado a
ser julgado em termos de sucesso ou
moldar seu caminho.
fracasso, mas um ato de que não se A partir do momento
conhecem as consequências.
Modos de colaboração autonomia
em que você ver o
rede de compartilhamento e caminho em tudo o
desenvolvimento de autonomia
compartilhamento de fontes de que fizer, você se
renda autonomia finaceira
(estrategias de fluxo de grana) tornará o caminho.
compartilhamento de espaço Nossas crenças se tornaram
(casas, terrenos, praças, ocupações, obsoletas e deveríam ser
parques, florestas, cachoeiras, rios, colocadas de lado. Uma
mares, planetas) autonomia de sociedade psicodélica
espaço (casas, terrenos, praças, abandonaria os sistemas de
ocupações, parques, florestas, crenças pela experiência
cachoeiras, rios, mares, planetas)
direta. A experiência direta
compartilhamento de dispositivos
foi posta de lado, e no seu
tecnológicos autonomia em
lugar todos os tipos de
dispositivos tecnológicos
compartilhamento de transporte sistemas de crença foram
autonomia em transporte criados. A crença aparece
compartilhamento de práticas como algo autolimitante,
estéticas autonomia em práticas uma restrição da
estéticas celebrações e encontros. consciência. Os psicodélicos
aparecem como agentes

συναισθησία)
Sinestesia (do grego descondicionadores e
expansores da consciência.
14
a mudança
Singularidade tecnológica é a denominação
dada a um evento histórico previsto para
o futuro, no qual a humanidade atravessará
um estágio de colossal avanço tecnológico
em um curtíssimo espaço de tempo, em que
a tecnologia criará um novo paradigma que
torne o atual obsoleto, alterando radicalmente
a civilização e a natureza humana.

Psicodelia é uma manifestação da mente que produz


efeitos profundos sobre a experiência consciente.
O termo "psicodelia" origina-se da composição das
palavras gregas psique (ψυχή- alma) e delein
(δηλειν - manifestação). A experiência psicodélica
é caracterizada pela percepção de aspectos da mente
anteriormente desconhecidos, inusitados ou pela
exuberância criativa livre de obstáculos.

Enteógeno é o estado xamânico ou de êxtase induzida pela ingestão de


substâncias alteradoras da consciência. A palavra enteógeno, que significa
literalmente "manifestação interior do divino", deriva de uma palavra
grega obsoleta, da mesma raiz da palavra "entusiasmo", que refere
à comunhão com a natureza e o universo. experiências visionárias, abertura
de portais interdimensionais, aumento de consciência.

15
Glossolalia - criação de um vocabulário constituído por
neologismos, balbuciares, impulsos musculares e que utiliza uma
sintaxe deformada. Fenômeno extático, se origina num êxtase de
comunhão com o cosmos, no qual um indivíduo emite uma série
de sons ou palavras sem sentido, num processo automático
e improvisado em conexão com o agora.

KAMPING EXPERIMËNTAL
between cosmic ritual and public space
PACAMÃE- Alteração de estados
MULTIVERSO de consciência é um
dispositivo muito
ATÉ HOJE, NENHUM importante. Voltar
ÍNDIO OU à ideia de lucidez,
COMUNIDADE e transgredi-la, criar
INDÍGENA FOI novos parâmetros para
pensá-la, atingir
INDENIZADO PELOS
o estado Nagual,
CRIMES DE DIREITOS considerado por Don
HUMANOS OCORRIDOS Juan de Castaneda
NESSES LOCAIS. o lugar da criação,
NUNCA HOUVE que se debate contra
o estado tonal, que é
QUALQUER o estado de guarda,
MANIFESTAÇÃO de consciência
FORMAL DO ESTADO e lucidez fabricada
BRASILEIRO ininterruptamente pelos
estados de controle,
RECONHECENDO A
pelo processo
EXISTÊNCIA DE TAIS civilizatório, pela
CRIMES. educação das crianças.
16
Com o anômalo, a relação é de
aliança. O feiticeiro está numa
relação de aliança com Yupana como
potência do anômalo.
tenda nômade, encontro,
trocas, experimentações sonoras,
descanso, prazer, alegria.
Free folk: descoberta de uma
ancestralidade que pode ser
recriada, invenção de folclore
pessoal, primitividade-concreta.
Ritual- ARROUBO EXPERIMENTAL DO CORPO
À DERIVA. ATINGIR O CORAÇÃO DAS COISAS.

acontecimento EXPERIMENTO RADICAL. TUDO PODE SER


FEITO. VIVA OS RECORTES, CONGLOMERADOS.
aberto, que POSIÇÕES RADICAIS NÃO SIGNIFICAM
POSIÇÕES ESTÉTICAS, MAS POSIÇÕES
assimila todos os GLOBAIS VIDA-MUNDO. UMA REVOLTA

gritos e sussurros INDIVIDUAL CONTRA CADA TIPO DE


CONDICIONAMENTO SOCIAL. PORQUE CORREM

ao seu redor. RISCOS. A DROGA (MEDICINA) ESCANCARA


PARA NOVAS PERCEPÇÕES, NOVAS
DIMENSÕES, NOVAS ESTRUTURAÇÕES.
A quebra dos condicionamentos e a tentativa de
"não formular" conceitos rígidos, direções ou programas;
surfar. Afim de mudar um paradigma existente, de nada
adianta lutar ou ir contra. A única coisa a se fazer é
criar um novo paradigma que torne o atual obsoleto.
17
Domos geodésicos,
Naves geodésicas
A permacultura, uma filosofia de trabalhar com,
e não contra a natureza; de observação prolongada
e pensativa em vez de trabalho prolongado
e impensado, e de olhar para plantas e animais
em todas as suas funções.
botar pra rodar os
Banheiro seco imaginários indígenas e
Pajés Evangélicos plantar sementes neles.
O que fazer com super fluxo de
sua merda? imaginários
Jogar na agua
e apertar a da
descarga? experimentação
Budistas com aparatos
Ayahuasqueiros que não
Rede Planetária

code is
conseguimos
de espaços acesso
Autônomos gratuito.
e Nomadismos Livre acesso a
Espaço de Práticas não verbais tecnologias.
Criação de Espaços de Práticas não verbais
Invenção de Práticas não verbais Espaço
Outros modos de nos comunicar nômade
Gostamos das ocupações livres, dos transes,
do experimental, de colaborar com outros e
da possibilidade de outras formas de vida.

18 Organismo de Vivência Nômade Experimental Y e suas contradições mágicas.


Faça você mesmo (em inglês do it yourself, sigla DIY) refere-se
à prática de fabricar ou reparar algo por conta própria em vez
de comprar ou pagar por um trabalho profissional. A prática,
atualmente, engloba qualquer área de atividade, dos cuidados
médicos ao design de interiores, da publicação à eletrônica.
A partir do final da década de 1970 o princípio faça você mesmo
se tornou profundamente associado ao anarquismo e vários outros
movimentos anticonsumistas, principalmente nos casos de grande
e evidente rejeição à idéia de que um indivíduo deve sempre
comprar de outras pessoas as coisas que deseja ou necessita.
Faça você mesmo, concebido como princípio ou ética, questiona o
suposto monopólio das técnicas por especialistas e estimula a
capacidade de pessoas não especializadas aprenderem a realizar
coisas além do que tradicionalmente julgam capazes.
quer experimentar, descobrir novas possibilidades de vida

redes de fazeres interconectados,


uns mandando satélites, outros
produzindo medicinas sagradas.
Um bando que cria na esfera da arte-vida, experimenta o cotidiano
como dispositivo de constante reinvenção da autonomia, liberdade,
transdiciplinaridade, alquimia: influência de diferentes culturas,

poetry
desenvolvimento de novas tecnologias rurais; organismo nômade
em interação e intercâmbio cultural com outras redes, ecovilas,
espaços de arte, aldeias, tribos, zonas autônomas e sustentáveis.
Horizontalidade. Cultivo. Humor. Tecnocaldeirão. Amor.

A essência da festa: cara a cara, um grupo de seres


humanos coloca seus esforços em sinergia para realizar
desejos mútuos, seja por boa comida e alegria, por
dança, conversa, pelas artes da vida. Talvez até mesmo
por prazer erótico ou para criar uma obra de arte
comunal, ou para alcançar o arroubamento do êxtase.

19
Sob a ameaça nuclear, instalação artística de Luz Interruptus. Foto: Gustavio Sanabria.

20
ANTROPOCENO, CAPITALOCENO,
CHTHULUCENO, VIVENDO COM O
PROBLEMA EM FUKUSHIMA
Pablo de Soto

Um misterioso exército de cem figu- Em 11 de março de 2011, um terre-


ras humanas iluminadas apareceram em moto de magnitude 9 na escala Richter, o
um bosque nas redondezas de uma quinto mais intenso registrado na história,
cidade alemã em agosto de 2011. Era fez tremer a terra durante seis minutos, ao
como uma estranha procissão de almas redor de seu epicentro no Oceano Pací-
penadas avançando na metade da noite. fico, em frente à cidade de Sendai. Em
De qual ameaça fugiam? Para onde seguida, um tsunami gigantesco varreu
seguiam? Trajadas com macacões bran- 300 kilômetros da costa de Tōhoku,
cos com o símbolo radiativo, qual era a levando consigo a vida de mais de 16 mil
origem das luzes interiores que ema- pessoas. O choque das ondas sísmicas e
navam? Qual a mensagem de suas ca- das águas com a central de Fukushima
beças baixas e bocas tapadas? Sobre que Daiichi provocou a falha, um atrás do
pesadelos ecológicos nos estavam aler- outro, de todos os sistemas de segurança.
tando? O que nos diziam sobre o pre- Sem refrigeração, os núcleos dos reatores
sente? E sobre o futuro? se aqueceram até a fusão, e as subse-
A enigmática instalação, intitulada quentes explosões de hidrogênio ar-
Sob a ameaça nuclear, foi realizada pelo rebentaram os edifícios de contenção que
coletivo anônimo Luz Interruptus, um os abrigavam. A radiação ionizante se
grupo de artistas cuja proposta consiste propagou em todas as direções. Mais de
em intervenções efêmeras por meio de 160.000 pessoas foram evacuadas de
elementos luminosos, capazes de resig- suas casas. Enquanto os efeitos destru-
nificar os espaços públicos com sua- tivos do terremoto e do tsunami são
vidade e sutileza, usando a luz como patentes, quantificáveis e podem ser
matéria prima e a noite como tela. Nas reparados, ao menos fisicamente, as con-
palavras dos artistas, tratava-se de simu- sequências do acidente radiológico são
lar uma vida sob a ameaça constante de imperceptíveis, difíceis de compreender e
um vazamento radioativo. A instalação foi perduraram no tempo.
criada para pôr em evidência a paranoia Ao responder com a potência visual
que sofremos desde que o acidente nu- e poética da arte a um evento originado a
clear do Japão teve início; evento que milhares de quilômetros de distância, a in-
demonstrou, pela enésima vez, a falibili- tervenção de Luz Interruptus evidenciava
dade dos sistemas de segurança das cen- como um acidente em uma única insta-
trais nucleares. O trabalho convidava à lação industrial tem a formidável e dra-
reflexão sobre o uso e abuso da energia mática capacidade de converter um
nuclear, que pode chegar a ocasionar topônimo regional em um acontecimento
graves sequelas ao meio ambiente e à de significação e alcance planetário. O
saúde, irreversíveis até a eternidade. evento que se enuncia pelo solitário nome
21
de Fukushima, como antes Chernobyl, é e pequenas cidades totalmente abando-
ao mesmo tempo uma catástrofe social e nadas evocando o imaginário apocalíptico
ambiental, uma metáfora vivente do devir da extinção humana; robôs biônicos de-
da modernidade industrial, que se une ao senhados ad hoc para acessar e poder
futuro Museu de Acidentes – a exposição filmar o coração mortífero da usina devas-
para ampliar a consciência sobre os riscos tada; raios cósmicos empregados para
ao nosso planeta proposta por Paul Virilio detectar o combustível nuclear derretido;
no começo do século 21. milhares de dosímetros de radiação com a
No entanto, separados por 25 anos forma de droides espalhados pelo ter-
e contextos geográfico, social e econô- ritório como novo equipamento urbano;
mico diferentes, sobre Fukushima supõe crianças das áreas afetadas portando me-
uma discontinuidade cultural a respeito da didores Geiger no pescoço durante o dia e
anterior catástrofe nuclear na extinta à noite e naturalizando a radioatividade
União Soviética. Como exclamado por nas suas conversas; manifestações inin-
Svetlana Alexeivich, Chernobyl foi por terruptas com tambores frente aos centros
muitos anos um “espaço em branco”, um de poder do Governo e de TEPCO; ação
mito fantasmagórico mais que um feito de protesto de um drone insurgente no
técnico-cultural (Bürkner 2013). Para essa prédio do primeiro ministro em Tokyo; ope-
interpretação contribuiu a escassa exis- ração de descontaminação sem prece-
tência de imagens, livros ou de filmes de dentes, produzindo montanhas artificiais
ficção sobre a catástrofe, com exceção formadas por milhões de sacos de terra
daqueles feitos pelos cinegrafistas Igor radioativa empilhadas por todos lugares;
Kostin e Vladimir Shevchenko – este não trabalhadores precários vestidos como es-
viveu para contar a história e morreu por tranhos astronautas limpando a invisível
envenenamento radiológico. contaminação em casas, ruas e bosques;
O desastre nuclear de Fukushima, juízes em trajes de proteção radiológica
ao contrário de Chernobyl, produziu uma em missiva para avaliação dos danos, no
ampla resposta artística e cultural desde contexto de inspeções judiciais requeridas
os primeiros momentos e vem sendo exa- pela população desalojada. Essas são
ustivamente interpretado de múltiplas for- cenas do mundo criado em Fukushima,
mas. Apesar dessa produção literária e onde o limite entre a realidade e a ficção é
visual não ecoe nos meios hegemônicos uma ilusão de ótica.
de comunicação e sua presença em Essa relação perigosa entre a reali-
museus e centro culturais ter sido até dade material e a ficção científica é o
agora discreta, muitos desses conteúdos marco a partir do qual interpretamos a in-
estão disponíveis na Internet para quem tervenção espectral de Luz Interruptus e
tenha o interesse, a paixão e o tempo su- sua estética visual fora dos cânones de
ficientes para investigar sobre o assunto. imagens naturalizadas e facilmente di-
Estos trabalhos artistitcos abordam geríveis. Como uma cápsula do tempo
uma realidade que parez propia da ficção vinda do futuro, a enigmática intervenção
científica. As paisagens da zona contami- nos alerta, no agora, sobre um porvir dis-
nada, assim como as da instalação da Luz tópico, salpicando sua mensagem de fa-
Interruptus, parecem próprias de uma talidade do meio ambiente e da condição
história desse subgênero. Múltiplos rea- humana. A arte, segundo Marshall Mc-
tores nucleares explodindo um atrás do Luhan, pode ser compreendida como um
outro; edifícios de concreto de alta re- sistema de alerta prévio para monitorar
sistência reduzindo-se a escombros; vilas sinais do futuro, como um radar capaz de
22
detectar as transformações que se aprox- formação do Sistema Terra equivalentes
imam, sinalizadas pelos avanços das tec- aos das forças geológicas. Essa Época é
nologias. o aqui e agora em que vivemos; a Terra
A intervenção anuncia uma catás- cuja atmosfera vem sendo irreversivel-
trofe ambiental e um drama de refugiados mente maculada pelos 1.500 bilhões de
em que o acidente radiológico se soma à toneladas de dióxido de carbono emitidas
longa lista de causas que forçam os movi- pela queima de combustíveis fósseis. É o
mentos migratórios. Esse cenário hoje é empobrecimento do tecido vivo terrestre,
difícil de imaginar, à exceção dos que se radicalmente transformado pelas novas
converteram nos deslocados internos de moléculas químicas e partículas radioati-
um dia para outro em Chernobyl, Fukushima, vas que afetarão de forma trágica a nos-
Ilhas Marshalls ou Kysthym nos Urais. sos descendentes. É um planeta com
Pode-se especular, ainda, que a causa biodiversidade decrescente, mais alto
dessa catástrofe futura teria sido o co- risco de catástrofes naturais, desertifi-
lapso da capacidade dos estados em cação acelerada, redução das massas de
gerenciar, indefinidamente e com segu- gelo, elevação dos níveis dos mares e um
rança, a energia nuclear; como se fosse clima mais quente e extremo.
crível administrar, de maneira assintótica, A ideia do Antropoceno vem tendo
o impossível. Os resíduos nucleares de uma destacada e poderosa presença nos
centenas de centrais operadas por dé- últimos anos, movendo-se rapidamente
cadas emergem como pesadelos ecológi- de uma proposta sobre a periodização
cos desse sistema de controle total, geológica do planeta a uma conversação
escancarando a falibilidade da técnociên- transdisciplinar de amplo alcance, ge-
cia hegemônica e de toda sua logística rando novos projetos de investigação,
fundada na crença de poder dominar e livros, periódicos acadêmicos, seminários,
neutralizar os efeitos da radiação. As mis- oficinas, exposições de arte e programas
teriosas figuras podem ser vistas, dessa culturais ao redor do mundo. Capturando
forma, como um bando de humanos em a imaginação dos âmbitos da Ciência Na-
apuros, distanciando-se a duras penas do turais, Sociais e da Arte, o Antropoceno é,
foco de um incidente nuclear; deslocados hoje, um mega-conceito do qual é difícil
forçosos que perderam tudo, sem um escapar, um choque nas palavras dos
lugar para onde regressar tampouco um historiadores Christophe Bonneuill e Jean-
lugar para onde ir. Baptiste Fressoz. O importante não é o
Ao situar no centro do problema fi- anúncio da catástrofe, pois todos a
guras humanas desorientadas e uma na- sabem, mas sim o sentido que damos a
tureza danificada, Sob a ameaça nuclear ela e a maneira que novas sensibilidades
desafia-nos a pensar como os humanos podem emergir, como pontuam Isabelle
são, ao mesmo tempo, os algozes e as ví- Stengers (2009) e Deborah Danowski e
timas de suas próprias atividades sobre a Eduardo Viveiros de Castro (2014).
Terra. Essa provocação tem a capacidade Nesse panorama cultural e
de estabelecer um diálogo com um dos acadêmico em formação que pensa o fu-
grandes relatos científicos e culturais do turo desde o presente, a arte de Sob a
nosso presente. Essa é a ideia denomi- ameaça nuclear, bem como a ideia do
nada pelos geofísicos de Antropoceno, se- Antropoceno, nos desafiam a repensar,
gundo a qual teríamos entrado numa nova radicalmente, a relação entre a natureza
era geológica no planeta onde a atividade e os seres humanos. Isso porque em
humana teria alcançado efeitos de trans- Fukushima, tal qual no Antropoceno, a na-
23
Duas mulheres consultando na internet um mapa da radiação, Nagano, 2012. Foto: Pablo de Soto.

24
tureza já não é mais o que a ciência con- questão, assim se formulará as respostas
vencional imaginou que era. A natureza se a essas crises do século 21.
converte em uma Zona onde o tempo e o A respeito do desastre nuclear, a
espaço são alterados pela ação humana descrição e a qualificação do aconteci-
e, a contrário senso, nossa sensorialidade mento como problema está em disputa:
não evolui na mesma medida para perce- está acontecendo algo em Fukushima ou
ber essas transformações. Como conse- o desastre foi solucionado?
quência, se produz um estado de A posição hegemônica mantida
desorientação e a necessidade de recali- pelo governo e pela indústria é que o de-
brar nossos sentidos. sastre teria sido superado. Nesse sentido,
Um dos primeiros pensadores a ad- o acidente é apresentado pelas autori-
vertir sobre essas transformações pro- dades como “está tudo sobre controle”,
duzidas na escala dos fenômenos conforme encenado pelas afirmações do
tecnológicos foi Günther Anders. Ele se primeiro ministro Shinzo Abe durante a
preocupou com os desafios éticos que os cerimônia onde Tóquio foi eleita cidade-
avanços técnicos desenvolvidos a partir sede dos Jogos Olímpicos de 2020. “Se
da Segunda Guerra Mundial suportavam, sorrires a radiação não te afetará”, afir-
tendo sido pioneiro da filosofia da técnica mava o experto em saúde do Governo de
e um dos grandes pensadores contra a Fukushima, o Doctor Shunichi Yamashita.
bomba atômica. Viveiros de Castro lem- Esse plano em curso assegura que é pos-
bra-nos, com Anders, a ideia presente na sível descontaminar a terra e voltar a re-
biologia a respeito dos fenômenos subli- popular as áreas evacuadas. É a eterna
minares à percepção: aquela coisa que é reconstrução do mito da segurança dos
tão baixinha, que você ouve mas não reatores nucleares, como no filme Jellyfish
sabe que ouviu; você vê, mas não sabe Eyes de Takeshi Murakami. Nas afir-
que viu; como pequenas distinções de mações dos físicos vinculados à indústria
cores. São fenômenos literalmente subli- nuclear, os acidentes atuais, inclusive
minares, abaixo do limite da nossa per- aqueles de nível máximo como Chernobyl
cepção. Segundo Anders, estamos criando ou Fukushima, são comparáveis aos in-
agora um algo a mais que não existia, a cêndios resultados da domesticação do
“supraliminaridade”. Quer dizer, há algo fogo, inevitáveis para passar a outro está-
tão grande que não se pode nem ver, nem gio da evolução humana.
imaginar. A crise climática ou uma Por outro lado, cientistas indepen-
catástrofe nuclear como a de Fukushima dentes e uma parte substancial da so-
são uma dessas coisas. Como vamos ciedade enxergam o desastre como algo
imaginar algo que depende de milhares ainda não solucionado, um Chernobyl em
de parâmetros, um transatlântico invisível câmera lenta (Gundersen 2012), cujas
movendo-se com enorme massa inercial? consequências vem sendo, desde o início,
As pessoas se paralisam. Se dá uma es- subestimadas pelas autoridades. Essa
pécie de paralisia cognitiva. Ou, como pauta repercutiu nos maiores movimentos
Paul Virilio escreveu a respeito de Cher- sociais de protesto ocorridos no Japão
nobyl, um acidente do conhecimento. nos últimos 40 anos, em que a população
Como dois problemas que atraves- denunciava a ocultação de informação a
sam as esferas intelectuais, sociais e respeito do acidente por parte do Governo
políticas, as duas formulações, a do e TEPCO, demandava medidas ade-
Antropoceno e a de Fukushima, estão em quadas para a proteção da saúde da po-
discussão. Conforme se enunciará a pulação, especialmente a das crianças, e
25
Retrato de uma familia no acampamento de refugiados da radiação em Aizuwakamatsu,
prefeitura de Fukushima, 2012. Foto: Pablo de Soto.

26
exigiam o fim da energia nuclear no ar- minismo tecnológico, ou estamos vivendo
quipélago. Apontavam, ainda, o empo- no Capitaloceno, uma época formada por
brecimento da democracia tendo em vista relações que privilegiam a acumulação in-
medidas regressivas, como a promul- terminável de capital? Moore parte da
gação da Lei dos Segredos. Na esfera perspectiva da crise do binômio eco-
internacional, organizações científicas in- logia/economia até uma teoria unificada
dependentes, como a Fairewinds Energy do capitalismo como ecologia-mundo,
Education e a IPPNW (Congregação In- sumando a acumulação de capital, a
ternacional de Médicos para a Prevenção busca do poder e a produção da natureza
da Guerra Nuclear), criticam as infor- em uma unidade dialética. A ideia do Ca-
mações das agências internacionais como pitaloceno define nossa época como
a UNSCEAR (Comitê Científico de aquela em que a natureza não pode tra-
Nações Unidas para os Efeitos da Ener- balhar por muito mais tempo para manter
gia Atômica), indicando seu menosprezo o ritmo de extração e produção da
quanto às consequências do acidente máquina industrial contemporânea, pois a
para a saúde pública. maior parte das reservas da Terra foram
O Antropoceno, como narrativa em drenadas, envenenadas, exterminadas,
ascensão meteórica, não está, contudo, ou simplesmente, exauridas.
imune à questionamentos e proposições Argumentando que Antropoceno e
alternativas. Capitaloceno são histórias grandes, mas
Uma das principais contra-formu- não suficientemente grandes, Donna Har-
lações parte da crítica que o Antropoceno away nos propõe voltarmos à ficção cien-
naturaliza uma formação histórica e tífica, especulação fabulativa e feminismo
política específica, o capitalismo, como o especulativo como mecanismos como
único modo de produção e reprodução da mecanismos para visualizar um futuro
vida humana. O argumento põe foco no mais vivível. Como uma figuração com-
poder das corporações, no neoliberal- pletamente diferente que serpenteie por
ismo, no neocolonialismo e no extra- dentro e através da Era de Antropos e a
tivismo, e defende que não foi Antropos, Era do Capital, a autora propõe o nome
como espécie humana indiferenciada, Chthuluceno para resgatar as criaturas
quem causou a destruição que o An- tentaculares que a modernidade relegou
tropoceno assinala. A sexta extinção em como algo do passado, como aquilo que
massa de espécies ou o aumento de qua- já foi derrotado, mas que não o está de
tro graus da temperatura média do plan- verdade. O Chthuluceno como um tempo
eta pela queima de combustíveis fósseis, heterocrônico em que o limite entre o
por exemplo, foram e continuam sendo antigo e o contemporâneo se fundem, que
causadas, sobretudo, por uma pequena nomeia as forças sim-chtônicas em mar-
fração da humanidade, um grupo de cha, às quais todos nós pertencemos. A
países e umas centenas de grandes cor- potência da figura oferece um ponto de
porações – o denominado 1%. Um de partida onde os atores não são apenas
seus principais impulsores é Jason Moore, “nós”: uma saída metodológica ao excep-
sociólogo do Centro Fernand Braudel, cionalismo humano. Ante a compreensão
cujo questionamento pode ser traduzido de um mundo que enfrenta desastres am-
na seguinte pergunta: estamos realmente bientais sem precedentes induzidos pela
vivendo no Antropoceno, retrocedendo a humanidade, o Chthuluceno convida a
um ponto de vista curiosamente eurocên- uma exploração da co-dependência e co-
trico da humanidade e na sua fé no deter- produção das espécies e dos sistemas da
27
terra, que Haraway denomina como viver
com o problema”.
Com seus diferentes repertórios
teóricos, aparatos analíticos e metafóri-
cos, Antropoceno, Capitaloceno e Chthu-
luceno são maneiras de ver que iluminam
e obscurecem umas e outras lutas situ-
adas. São formas de nomear o que esta
acontecendo ao nosso ar, água, terras, ro-
chas e oceanos, aos animales, plantas e a
nos mesmos. Seja denominada de uma
ou outra maneira, nossa época marca
descontinuidades graves. Como em
Fukushima, o que vem depois não será
como o que era.

Notas:
1. A Alemanha foi o primeiro país a anunciar o abandono
total de energia nuclear em 2022.
2. Este texto integra a introdução da Tese de Doutorado
"Antropoceno, Capitaloceno, Chthuluceno; vivendo com o
problema em Fukushima", desenvolvida dentro do
Programa de Posgraduação em Cultura e Comunicação
da Escola de Comunicação da Universidade Federal de
Rio de Janeiro, sob a orientação da Ivana Bentes e
Antonio Lafuente.

28
Protesto antinuclear "Os tambores da furia” nas ruas de Shinjuku, Tokyo, 2012. Foto: Pablo de Soto.

29
30
TRANSCENDENDO TECNOLOGIA:
COMPUTAÇÃO UBÍQUA OU
TECNOMAGIA?
Eleonora Oreggia

com a vitalidade dos órgãos, o desejo


de espiritualizar a forma material, e a
Como podemos transcender a tecnologia?

vontade milenar de transmutar as ener-


Como a tecnologia nos transcende?
Tecnologia pode ser usada como um

gias da Terra para a realização divina


instrumento de expansão da

de sonhos humanos "1.


subjetividade e criar outra

Se a tecnologia, por um lado,


realidade? O uso difundido da tecnologia

percebe parcialmente alguns dos sonhos


nos dias de hoje levanta uma série de
questões e perspectivas relativas à

de magia natural tradicional, como ação a


espiritualidade: a pesquisa foi realizada

distância, a comunicação remota e a pos-


através de entrevistas e literatura

sibilidade de criar e manipular uma reali-


selecionada; diferentes maneiras de

dade alternativa (virtual) – onde a ação


incorporar aspectos da espiritualidade
em nossas interações com tecnologia são

humana pode ser comparada com a ação


descritas neste artigo.

do sobrenatural – por outro lado, ela es-


Como podemos imaginar, e, even- timula o desenvolvimento de diferentes
tualmente planejar, sistemas que integram dispositivos e aplicativos que podem for-
tecnologia contemporânea e as formas mar a estrutura de uma nova prática es-
tradicionais de espiritualidade em nossa piritual contemporânea. A conexão entre a
vida cotidiana? Tecnologia e espirituali- tecnologia e o sobrenatural é instintiva-
dade influenciam-se mutuamente e defor- mente presente em nossa mente, mas em
mam-se entre si e com o mundo que nos que consiste atualmente a espiritualidade?
rodeia, e a percepção da realidade está Desde o século XIX, tendências
passando por uma metamorfose cons- em formas emergentes de espiritualidade
tante. Erik Davies, em seu livro "TechG- combinaram o apelo da magia popular
nosis", investiga como a linguagem e as com o pensamento místico, tradição her-
ideias da sociedade da informação têm mética europeia com o pensamento me-
moldado e até transformado muitos as- tafísico do Oriente, às vezes misturando e
pectos da espiritualidade contemporânea. combinando as novas visões de mundo
No capítulo "O fogo alquímico", ele intro- evolutivas e eletromagnéticas da ciência
duz o conceito de inconsciente tec- com as novas políticas globais de frater-
nológico, um inconsciente que emana do nidade universal. Em anos mais recentes,
imaginário eletromagnético: agora que a o Ocidente tem visto por um lado uma es-
corrente elétrica, energia, foi transformada tranha difusão do budismo e do nasci-
em informação, "a eletricidade levaria três mento da cultura de uma nova era
aspectos diferentes da imaginação alquí- agnóstica, alimentados por uma fusão
mica para o mundo moderno: o fascínio doce, feliz e politicamente correta de es-

31
piritualidade e tecnologia (sem qualquer talação interativa de arte sonora, que
forte orientação ideológica como back- ofereceria a possibilidade de ouvir o som
ground), por outro lado, a re-apropriação da vibração ao invés da percepção au-
tribal da subjetividade e do direito de ex- dível, de repente viu-se diante de uma
plorar mundos exteriores e estados alte- obra de arte que pode jogar instantanea-
rados de consciência têm surgido no mente o usuário em um profundo estado
contexto da música techno, xamanismo de meditação.
pós-moderno2 e outras formas reeditadas O artista de ruído eletrônico Ryan
de magia, onde a reinvenção do uso da Jordan, em resposta à difusão generali-
tecnologia auxilia a criação desses meta- zada de máquinas de sonho e outros dis-
espaços de experimentação que a Ca- positivos estroboscópicos caros para a
poeira3 define como textura sagrada – criação de um nirvana faça você mesmo
onde jogo e ritual são alocados naquele (DIY), desenvolveu seus óculos de rolos
espaço específico expandido por dança de papel higiênico: o paraíso não está tão
e música. longe se todos podem fazer, usando com-
O applicativo "Buddify4" de Rohan ponentes eletrônicos baratos fáceis de
Gunatillake é uma tentativa de propor uma encontrar e alguns descarte de eletrôni-
forma de meditação, direcionada para hip- cos, o seu pequeno dispositivo para trans-
sters ao invés de hippies, como alega o cender visões e alcançar transformação
autor: o alvo, suas personalidades, são espiritual; a democratização do direito de
usuários em harmonia com a correria da sermos xamãs nas sociedades contem-
civilização que os rodeia, permitindo a porâneas que prejudicam tanto o mundo
otimização de seu tempo de transição – do conhecimento enigmático e o mundo
todos aqueles momentos quando se está dos engenheiros do éter, enquanto na
viajando diariamente, esperando na es- verdade todos com um pouco de esforço
tação de correios ou travado numa fila de poderiam ser ensinados a construir o seu
ingressos – preenchendo esse vazio es- próprio... oráculo midiático. Mas este é
pecífico com meditação de fácil digestão; apenas o começo da história porque, se
meditação torna-se, então, um método de por um lado todas estas diferentes apli-
preenchimento dos intervalos da sua rotina cações baseiam-se no uso da música
para manter-se como multitarefa, e, em como auxílio para espiritualidade, por
vez de assumir a forma de um tempo-es- outro lado as questões levantadas mere-
paço dedicado e uma técnica onde a pes- cem uma análise mais aprofundada.
soa procura uma alternativa para um estilo
de vida frenético, amalgama plenamente COMPUTAÇÃO CALMA
com a metodologia moderna de produtivi- Em computação, tecnologia calma
dade, propagando a ideia de que de al- visa reduzir o sofrimento potencial de so-
guma maneira o tempo vale dinheiro e que brecarga de informação, permitindo que
deve sempre ser usado com uma espécie o usuário selecione quais informações
de atitude empreendedora, obtendo o estão no centro da sua atenção e o que
máximo resultado com o mínimo esforço. pode ser periférico. O termo foi inventado
Kaffe Matthews, a artista e com- no final dos anos 80 por Mark Weiser, di-
positora de "Sonic Bed5", atingiu um efeito retor de tecnologia, e John Seeley Brown,
muito mais profundo ao buscar um obje- diretor do laboratório de pesquisa da
tivo diferente: disposta a criar uma cama Xerox de Palo Alto, prevendo a necessi-
apoiada em alto-falantes, a fim de desen- dade de princípios de design e métodos
volver um sistema na forma de uma ins- que permitem aos usuários detectar e
32
controlar o que imediatamente lhes inte- da computação calma, aplicados em am-
ressa enquanto retendo consciência bientes comerciais, têm distorcido a visão
periférica de outras possibilidades de in- de Wieser de um mundo tecnológico que
formação que eles podem, a qualquer se dissolve na indistinção, indefinindo
momento, optar por focar. Enquanto os ultra-espaço do potencial interativo, cri-
dispositivos de programação embarca- ando uma espécie de realidade em múlti-
dos tornaram-se uma parte onipresente plas camadas que nos lembra da
de nosso meio ambiente, a capacidade multiplicidade de Bergson, a multiplici-
de projetar ambientes e dispositivos tran- dade de fenômenos unificadas pela sin-
quilizantes está se tornando cada dia gularidade da consciência. Tentando
mais importante. responder a ideia centro / periferia de
E esta é a computação ubíqua, um Wiener em um tecnologia calma, ele olha
modelo pós-desktop de interação hu- para a fenomenologia com os olhos bu-
mano-computador em que o processa- distas e sugere que, na computação es-
mento de informações foi completamente piritual o mundo espiritual em geral
integrado às atividades quotidianas e ob- refere-se ao cultivo de informações, sa-
jetos. Definida como a terceira onda na bedoria, consciência, e um estado cons-
computação, de mainframes à computa- ciente na qual a linha dividindo pensamento
dores pessoais, com a computação e tecnologia está ficando mais fraca a cada
ubíqua, ou a era da tecnologia calma, a dia. Nesta vigília espiritual, humanos e
"tecnologia que retira-se para os basti- máquinas podem ser unidos em um
dores de nossas vidas"6. "crescimento espiritual" mútuo; a consciên-
A ideia é um tipo de mundo desen- cia humana pode ser melhorada, mas, ao
rolado e sobrecarregado com microtec- mesmo tempo, a espiritualidade, como ele
nologia inteligente que começa a reagir e declarou recentemente, está ameaçada
interagir conosco sob nosso critério, ou pela tecnologia: "A tecnologia não é intrin-
seja, quando nós prestamos atenção secamente espiritual, é uma ferramenta
nele, ou quando ele decide que é opor- para a experiência de imersão e experiên-
tuno interagir. Este tipo de design multi- cia imersiva que pode absorver você e a
verso, ou projeto para universos paralelos absorção pode viciar você e o vício é o
trazido à existência pela atenção e a pre- oposto do desenvolvimento espiritual "8.
sença do observador pode ter herdado CW Smith, por 30 anos professor
um pouco da consciência que os ensina- budista, hoje parece mais cauteloso em
mentos de Werner Heisenberg e os prin- relação à tecnologia e seus efeitos sobre
cípios da física quântica trouxeram, mas a os seres humanos – após definir a Com-
computação ubíqua é ainda mais assus- putação Espiritual como: "as idéias, méto-
tadora do que isso, já que princípios não dos e práticas necessárias para trazer"
são desenvolvidos com a intenção de espiritualidade ", na concepção de tec-
respeitar o indivíduo, nem de maneira que nologias de próxima geração"9, em 2001,
os direitos pessoais não sejam violados e afirmar que a tecnologia poderia final-
por uma queixa intrusiva da tecnologia. mente embarcar até construções espiri-
tuais que tiveram milhares de anos para
COMPUTAÇÃO ESPIRITUAL se desenvolver.
Craig Warren Smith, ex-professor Envolvido como um dos fun-
da Universidade de Harvard e agora con- dadores do movimento global para fechar
selheiro sênior do HITLab, declarou em o abismo digital, sua pesquisa abordou os
uma entrevista recente7 que os princípios impactos culturais e espirituais das tec-
33
34
nologias digitais em mercados emer- mente em várias partes do mundo sob
gentes. O conceito de abismo digital re- uma variedade de nomes, tecnobeduí-
fere-se a quaisquer desigualdades entre nos, tecnoxamanismo, etc.
os grupos em termos de acesso, utiliza- Tecnomagia não é outro nome
ção, ou conhecimento de tecnologias de para a realidade aumentada, nem identi-
informação e comunicação. Em uma es- fica qualquer das ilusões que a tecnolo-
cala internacional os países se tornam as gia pode desencadear; ao contrário, é a
unidades de uma análise que examina a integração, e a reinvenção, de práticas
divisão entre países em desenvolvimento espirituais locais (ou seja, o candomblé)
e desenvolvidos. Conectividade está em e rituais antigos (ou seja, a ayahuasca),
estreita relação com a produtividade e o com as possibilidades de expansão da
acesso torna-se uma condição nece- subjetividade que a tecnologia oferece.
ssária para superar o abismo digital. Hoje Se a tecnologia torna-se, em certo sen-
em dia a transformação de eventos tido, um acessório da experiência pessoal
acelerou seu ritmo, e o saldo (un) / individual, oferecendo, por exemplo, a
econômico global está mudando à me- possibilidade de gravar e amplificar o
dida que escreve. som, em outro sentido, é o substituto de
Outra divisão conceitual e histórica uma forma de privação: xamanismo tradi-
está a mudar e mudou nos tempos mo- cional é, de fato, fortemente ligado ao ter-
dernos: a do conflito entre a massificação ritório e os espíritos que se acredita que
do consumo ocidental e espiritualidade nele habitam; no entanto, várias ondas de
oriental. Os países em desenvolvimento migração e a onipresença que a Internet
não estão se tornando a nova força de e a tecnologia moderna geram, estimula-
trabalho de produção capitalista contem- ram uma total nova relação com o eu in-
porânea fetichista de objetos e serviços? dividual e da comunidade em torno dele.
A espiritualidade oriental não foi Além disso, tecnomagia preenche a dico-
lentamente devoradas pela tendência tomia presente nas gerações jovens entre
antropofágica ocidental de assimilar for- tendências contemporâneas e vanguar-
mas culturais heterogêneas em um su- distas sobre a tecnologia, música e cultura,
permercado total unificado? que hoje em dia são, por vezes comuns
Como o budista Vidyadaka afirmou, para um tecido de gerações em todo o
"estamos nos tornando uma economia de mundo, mas também para as tradições lo-
consumo global do mundo e a espirituali- cais antigas. Tecnomagia é sobre o nosso
dade impulsionada não está fortemente presente, não faz acreditar em um futuro
associada mais com o Oriente, e há um maravilhoso onde tudo vai ser melhor, tec-
forte surgimento do estilo de vida espiri- nomagia não acredita na evolução ou de-
tualizado em todo o mundo ..."10. senvolvimento, os olhares tecnomágicos,
ao invés disso, estão estendidos pela tex-
TECNOMAGIA tura constituída pela multiplicidade e
Fabi Borges, uma psicóloga bra- unicidade da percepção simultânea do
sileira que utiliza rituais que integram tec- presente que passa por toda parte, e se
nologia no processo de terapia individual conecta aos nossos corpos.
e coletiva, narra a história peculiar do
Brasil, onde as práticas de software de CONCLUSÃO
fonte aberta e hackers encontraram o xa- Raciocinar sobre a tecnologia em
manismo, dando à luz a tecnomagia11, relação à espiritualidade, e vice-versa, é
uma tendência que emergiu simultanea- um passo difícil e necessário que precisa
35
ser perpetrado no mundo contemporâ-
neo. O tema é crucial e particularmente
denso, e pode merecer um maior desen-
volvimento e análise. A música tem sido
identificada como um fator que promove o
desenvolvimento espiritual. Tecnologia e
espiritualidade não parecem estar em
oposição; eles podem, sim, ser comple-
mentares, ou becos sem saída, como
Fabi Borges sugere12.
Gary Lachman13 propõe ao olhar
para trás e inspirar-se pela etimologia
grega: enquanto techne refere-se a um
know how, ou uma técnica, e é geral-
mente colocado em oposição a episteme,
que é o conhecimento no sentido da ciên-
cia, ou o que é verdadeiro – gnose, a
palavra comum para conhecimento, veio
para indicar, ao longo dos séculos, uma
forma de conhecimento espiritual.
Tecnologia e espiritualidade são, no
final, nada mais do que a expressão de
duas formas diferentes de conhecimento.

Notas:

1. n.t. http://buddhify.com/
2. https://vimeo.com/49406849
3. Erik Davies, TechGnosis: Myth, Magic and Mysticism in
the Age of Information (Nevada City, U.S.A.: Harmony
Books, 1998).
4. A good reference on this theme is: Daniel Pinchbeck,
Breaking open the head (New York, U.S.A.: Broadway
Books, 2002).
5. Capoeira é uma arte marcial brasileira que combina
elementos de dança e música.
6. Mark Weiser, 1986.
http://www.ubiq.com/hypertext/weiser/UbiHome.html
7. Spiritech: transcending technology. London, 2003, 147.
8. ibid.
9. Craig Warren Smith, 2001.
www.stc.arts.chula.ac.th/.../PPT-files/Craig-
SC%20Chula%20pres.ppt
10. Spiritech: transcending technology. London, 2012.
11. A primeira reunião oficial de tecnomagia terá lugar na
localidade Visconde de Mauá (Itatiaia, Brasil) entre os
dias 10 a 13 de Maio de 2012.
http://nuvem.tk/?tecnomagias
12. Spiritech: transcending technology. London,2012.
13. ibid.

36
PLEX
Leandro Nerefuh

A questão é apropriação-violência abrem


O PLEX E O SED PLEX CIVILIZATÓRIO passagem à força a territórios
CIVILIZATIONAL PLICAS colonizados. Enquanto que,
CIVILIZATIONAL EX-PLICA simultanea e interdependentemente,
os pilares regulação-emancipação
E a resposta CI, MÃE DO MATO,
abrem (e fecham) a passagem para
ME AJUDA!
o ocidente. Plus ultra. Ultrapassar
A coisa anda tão braba bíblia boi bala as fronteiras do mar, terra e ar.
no BR 2010’s que é preciso Arrancar as riquezas da terra.
argumentar a capacidade de recorrer Qual é a senha?
à imaginação para sair por tangentes
Enquanto as feitiçarias e encantarias
renovadoras, e às tecnologias de
abrem outros portais encantados
gênero. Recorramos mais uma vez
e passagens. Atalhos tecno.
às mulheres-entidades míticas da terra
Ou backdoors. Deserção ou mesmo
e do mato
escapismo aberrante. The passage
Jurema
vodum reatua e resolve traumas
Supupema
e dores causadas durante a middle
Janaina
passage, o entre-meios do tráfico
Juçara
negreiro no atlântico.
Iracema
Umbelina Com o propósito de contribuir para
Amazona a evolução social e humana no
Malinali continente americano, empreendemos
a expedição telepática ou psicocênica
Ci, mãe do mato
da tribo perdida, que somos nós.
O mato é o caminho, inclusive para
Nós que habitamos os trópicos
perder a si mesmo, que significa
e fomos enganados pela promessa
perder o pronome reflexivo.
de progresso e crescimento anual.
AJUREMAR como estratégia de Começamos nossa jornada beyond
re-enraizamento. Paradójicamente, caverna. Nosso sentido evolucionário
en todas partes es visible la noción não principia no mocó de pedra,
de re-enraizamiento, en un sentido em volta da fogueira, e na imitação
diferente al concepto antiguo de da caça animal nos chapadões.
identidad. Creo que es un movimiento Tampouco na grande descida
muy poderoso y que está relacionado da árvore nas florestas, que aparenta
con la ecología, por supuesto, aunque la o humano ao macaco em busca
ecología tiene sus propios problemas. do missing link. Seguimos a deusa
Conforme o paradigma de boa-minha- branca da selva, que vem pregar
ventura, os pilares uma nova insurgência telúrica.

37
Profere Umbelina: ou o que. Ou, em outra dimensão
mítica, beyond caverna, Curupira
O humano beyond-caverna
transvia aventureiros dentro da
é o sentido da terra
floresta, com assobios e sinais falsos.
Exorto-vos a permanecerem
fiéis à terra O surgimento do humano implica na
e a não acreditar em quem vos possibilidade de um novo humano,
fala de esperanças que também é uma questão de
supraterrestres. gênero, de moda e de culinária.
O humano beyond-caverna Quem vai parir, o que vai vestir
só poderá existir na terra e o que vai comer esse novo humano?
e com a terra. Para além do mocó de pedra,
a floresta brota como ambiente
Do ponto de vista do ocidente,
propício para o surgimento do além
a caverna é o berço da humanidade.
do humano. Análoga à caverna
A caixa-preta da civilização. O grito,
e ao deserto, a floresta é fronteira
o grunhido, o mugido e os rabiscos
temática de nossa língua.
na parede antecedem a fala, a voz
e a escrita. O sentido existia antes Ao mesmo tempo, o “Brasil” anda
mesmo do humano, e permanece tão machista que hoje em dia a
escondido em traços ininteligíveis floresta só pode ser concebida 100%
e materiais quebrados. Arqueofósseis. raspadinha. Brazilian Wax a Amazônia,
O filósofo retorna vez e outra à conforme piada de noticiário
caverna. Poetas e ladrões erguem internacional. Nesse sentido,
templos incrustrados na caverna. o recente movimento de mulheres
O profeta vive por 30 anos na caverna pelo direito ao suvaco cabeludo e
adorando o sol e sibilando com(o) colorido de verde, azul, rosa… e pela
as serpentes. A virgem santa procura xoxota cabeluda (vide texto da Morena
a caverna pra dar a luz, e o povo Socialista) é paralelo a uma chamada
nascer de novo. As antigas cidades contra a cultura do boi, da bala
muradas replicam o mocó de pedra, e da bíblia.
de medo do que se esconde nas
Penso, de qualquer forma, que se
montanhas e nas selvas - índios,
deve insistir na ideia de que o Brasil
espíritos, bruacas, guerreiras,
tem – ou, a essa altura, teria –
matilhas desordeiras,
as condições ecológicas, geográficas,
subcomandantes, entidades e
culturais de desenvolver um novo
criaturas aos milhares, milhões…
estilo de civilização, um que não seja
A besta bruta, prenúncio do humano, uma cópia empobrecida do modelo
puxa sua comida pelo rabo pra dentro americano e norte-europeu.
da caverna, criando assim o senso Poderíamos começar a experimentar,
e o contra-senso da história. timidamente que fosse, algum tipo
As pegadas apontam pra um lado de alternativa aos paradigmas tecno-
enquanto o mugido ecoa de outro. econômicos dos capitalismos
Traço e som, senso e contrassenso. informacional, cognitivo, tardio,
Etnomusicólogos ensaiam a flauta desértico, solar, etc… Enfim,
pré-histórica na esperança de O COMPLEXO CIVILIZATÓRIO
descobrir se o som é festivo, funerário REVISTO E REVISITADO

38
POR UM NOVO SED PLEX de desejos do conquistador colonial
MULTIVERSAL e do poeta moderno. Ambos viam no
novo mundo a possibilidade de se
Imaginava o poeta moderno que
redimirem e se reinventarem como
as sociedades primitivas seriam
“homens civilizados”. A arrogância
capazes de oferecer modelos de
do conquistador colonial, e, por outras
comportamento social mais adequado
vias, a anarquia do poeta moderno,
à reintegração do “homem” no pleno
desencadeiam na transfiguração
gozo do ócio a ser propiciado pela
da paisagem em mistério-fêmea –
civilização tecnológica. O “homem”,
Iracema, Jurema, Norma, Valéria, Eva,
assim mesmo, no masculino genérico,
Umbelina, Deusa, Amazona - robusta
conforme eles dizem. Portanto aqui
paridora que instiga desejo e ameaça.
entra uma questão de gênero
Lábios de miel. Vulva caníbal.
complicada e largamente ignorada nas
propostas de utopia brasileira. Para O. A paisagem transfigurada
de A., o ócio a que todo “homem” teria em índices econômicos
direito fora desapropriado pelos
Ceci, a portuguesinha casta que
poderosos e se perdera entre o
por fim se entrega ao índio converso
sacerdócio (ócio sagrado) e o negócio
e vira mãe
(negação do ócio). Para recuperá-lo,
propunha a incorporação do “homem Iracema, a índia virgem, solícita
natural”, livre das repressões da ao nobre herói português OU
sociedade civilizada. A formulação a prostituta da transamazônica
essencial do “homem” como Norma, a história mal contada
problema e como realidade era da mulher branca moqueada
capsulada neste esquema dialético: na tribo arara
1.º termo: tese – o “homem” natural;
2.º termo: antítese – o “homem Amazona, a mulher que dá de mamá
civilizado”; 3.º termo: síntese – aos macacos pra fazer fluir o primeiro
o “homem” natural tecnizado. leite materno, depois corta a teta
A humanidade teria estagnado e vira guerreira – o inverso da ama
no segundo estágio, que constitui de leite negra de Tarsila do Amaral
a negação do próprio ser humano, E mais tarde, Umbelina Valeria - um
e no qual fora precipitada pela cultura dos mistérios mais fascinantes da
messiânica. Contra a cultura selva amazônica – tem 23 anos,
messiânica, repressiva, fundada na é viúva, professora e nascida em
autoridade paterna, na propriedade Belém do Pará, raptada pelos araras –
privada e no Estado, advogava a de prisioneira a cacique. Uma história
cultura antropofágica, correspondente da arte brasileira em capítulos,
à sociedade matriarcal e sem classes, 1, romance indigenista; 2,
ou sem Estado, que deveria surgir, fotojornalismo de invenção;
com o progresso tecnológico, para 3, experiência midiática; 4, literatura
a devolução do homem à liberdade moderna e kinema. Distinta dos
original. Ressurge ai o mito do profetas bíblicos perambulando pelo
continente fêmea e o surgimento do deserto com suas longas túnicas
novo “homem” amerykano. E, nesse empoeiradas. Distinta do profeta
plano, existe uma estranha simetria de montanha que mora na caverna

39
com suas fiéis companhias, a águia
e a serpente. Umbelina é guia sem
voz (aparição) e amante dos homens
que se desgraçam pelos
emaranhados da selva, e que, quando
saem vivos, inventam seus relatos
e reclamam sua “vantagem literal”.
A imagem de prodigiosa exuberância
da selva, a exuberância vulvânica,
a exu-berânica vulva da selva alimenta
um legado de projeções utópicas
(do homem branco) sobre o novo
mundo - “Lá, as condições favorecem
a consumação dos destinos do
homem do Ocidente. Ou mesmo o
surgimento do novo homem.”
No momento em que a história ganha
contornos coloniais, a representação
de um continente fêmea à mercê da
penetração, dominação e conquista
do homem reforça o pensamento
abissal que separa natureza (fêmea)
e sociedade (macho). Enquanto
mantidas distintas e irreconciliáveis,
natureza e sociedade servem como
os pilotos modernos para uma
história oficial de profecia e
conquista. Ou, o advento de Brasília
conforme a lábia do progresso
e desconforme o avanço do ruído
frente à melodia litorânea. Sendo
que o poder da elite brasileira se
configurou historicamente no litoral.
Ao mesmo tempo, o novo humano
ou além do humano também surge
na ameryka como outro. Utopistas,
colonos pobres, desiludidos em geral,
esperançosos, anarquistas,
antropólogos, artistas, xamãs,
biólogos, que se alimentam
largamente do vislumbre dialético
e sincrético: a síntese dos mundos
natural, misterioso e tecnizado,
em solo amerykano.
Ou um unexpected congress
with technology.
40
fotos: Daniel Lima
protestos de 7 de
Setembro de 2015
Organizados pelos
Tupinambá na Av.
Paulista, São Paulo.

41
Ritual de Carolina Barreiro no Encontro de
Tecnoxamanismo em Brasília
(deCurators). Foto: Mathew Weeb.
COSMOGONIA LIVRE – RITUAIS
FAÇA VOCÊ MESMO (DIY)
Fabiane M. Borges

SOBRE ESSE TEXTO turo”. Em um momento de câmbios


Esse texto se propôe a fazer uma climáticos em que o antropoceno (e seus
dupla articulação: 1) Elaborar o conceito paralelos capitoloceno, Chthulucene , etc)
de Ancestrofuturismo que temos utilizado se torna a idade da terra, o futuro que se
na rede de tecnoxamanismo1 e 2) Com- anuncia é o da modernidade chafurdando
partilhar pesquisas e experimentações no lamaçal de Mariana, ou no desastre
que temos feito no campo da Cosmogo- nuclear de Fukushima e Chernobil3. Esta-
nia Livre e Rituais faça você mesmo (diy) mos diante do que Isabelle Stengers
por acreditar que isso tem sido um ponto chama de “intrusão de Gaia”, quando diz
chave dos encontros dessa rede. que não será dado aos humanos a liber-
dade de ignorar Gaia como têm feito até
ANCESTROFUTURISMO agora: “A intrusão do tipo de trans-
Ancestro + Futurismo são dois ter- cendência que nomeio Gaia instaura, no
mos que aparentemente surgem de uma seio das nossas vidas, um desconhecido
impossibilidade, da ambivalência de dois maior, e que veio para ficar. E, aliás,
mundos em disparada que é o arcaísmo talvez seja isso o mais difícil de conceber:
e o futuro. O futuro, a grosso modo, é não existe um futuro previsível em que ela
atrelado à idade moderna, entendida nos restituirá a liberdade de ignorá-la, não
geralmente como a era que retira(ria) a se trata de “um momento ruim que vai
humanidade do obscurantismo, do uni- passar”, seguido de uma forma qualquer
verso de crenças e superstições e a de happy end no sentido pobre de “pro-
coloca(ria) no progresso, no desenvolvi- blema resolvido”. Não seremos mais
mento evolutivo dominado pela ciência e autorizados a esquecê-la. Teremos que
pela tecnologia. A ancestralidade, sob responder incessantemente pelo que faze-
esse ponto de vista é considerada um mos diante de um ser implacável, surdo às
conjunto de valores tradicionais que rege nossas justificativas. Um ser que não tem
as sociedades arcaicas, ignorantes da porta-voz, ou, antes, cujos porta-vozes
verdade científica, que cultivam saberes estão expostos a um devir monstruoso4”.
obsoletos desprovidos de comprovação. Essa incompatibilidade entre o fu-
No entanto interessa ao ancestrofutu- turo apresentado pela modernidade e o
rismo conceitos que trabalham com futuro verificável na contemporaneidade
outras noções de tempo e história e que tem servido de palco para as mais vari-
ressignifiquem a suposta linearidade adas especulações, desde o campo
entre passado e futuro, ou seja, descons- econômico até o filosófico, desde o cam-
truam a ideia de tempo e de história ver- po científico até o metafísico, e nessa
tical que vai do arcaísmo em direção ao conjuntura o tecnoxamanismo se apre-
futuro e horizontalizem essa perspectiva2. senta como mais uma rede de especu-
A modernidade gera cada vez mais lação, que tal como inúmeros outros
suspeitas sobre sua promessa de “fu- movimentos sociais implicados nesse

47
dilema, produz conjecturas, constrói nar- trata de ficção, fabulação, narrativa e es-
rativas e desenvolve práticas que endos- peculação, mas com um peso capaz de
sam a provocação contra a ordem das interferir na história do mundo, ou na
relações ainda vigentes entre cultura e história do futuro e do passado. Hipers-
natureza, e ainda propõe alternativas en- tição7 é um neologismo que combina as
quanto experimenta processos novos e palavras “hiper” e “superstição”, para
remixados, sendo um deles, o ancestro- descrever a ação de ideias que acabam
futurismo, com suas cosmogonias livres por se transformar em realidade. En-
e seus rituais do it yourself. quanto superstição é considerada um
Ao contrário de se perceber na con- mecanismo de produção de ideas falsas
junção das palavras ancestro + futurismo a e crenças infundadas, a hiperstição sig-
tentativa de criar um monismo5, ou uma nifica ideia potente, mobilizadora, capaz
unidade, o que se pretende aqui é ativar de materialização na realidade em algum
seus sentidos, de modo que se per- ponto do tempo. “Só porque algo não é
passem, se conectem, se entremeiem, “real” agora, isso não quer dizer que isso
que gerem outros conceitos e práticas e não será real em algum ponto do futuro. E
não paralisem numa divisão ou numa uma vez que isso é real, de algum modo,
união irresponsável, em que só uma das isso sempre foi.8” Uma forma de registrar
partes sobreviveria. Para compreender a a influência do futuro sobre o passado. Al-
magnitude do ancestrofuturismo é neces- guns exemplos de hiperstição segundo
sário constituir uma rede de conceitos que Land podem ser “a economia capitalista,
lhe dê suporte, para que ele consiga as- onde atos confiantes agem como tônico
sumir-se em seu caráter criativo, para que efetivo de sua própria produção (auto
funcione como um dispositivo de ruptura ajuda sabe disso), ou a ficcional ideia
com os sistemas viciados de interpretação sobre ciberspace que contribuiu para o
metafísica (teologia/religião) e para torná- fluxo de investimento real e se transfor-
lo um gerador de imaginários livres. mou rapidamente em uma tecnologia so-
Nesse sentido a ficção entra como cial da internet, ou ainda o monoteísmo
aliança fundamental, pois como diz Dona abrâmico (Abraão) que tratou Jerusalém
Haraway é preciso acionar a ficção cien- como a cidade escolhida de Deus e com
tífica, a fabulação especulativa para de- um destino histórico judaico, e isso entrou
sestabilizar nossas próprias histórias com na produção imaginária, cultural e política
outras histórias, com séries de desnorma- e tornou-se uma realidade, ou ainda o
tização do pensamento, desestabilizar Apocalipse, que mais cedo ou mais tarde
mundos de pensamento com outros mun- há de acontecer ou provavelmente já te-
dos de pensamentos, destruir mundos nha acontecido outras vezes”9.
para conseguirmos visualizar outros mun- Delphi Carsten10 pontua quatro carac-
dos, ou quando ela cita Virgínia Woolf no terísticas da hiperstição que Nick Land
“Think we Must” que diz: “importa qual descreve no Catacomic (1995): 1- ca-
histórias contam histórias, importa quais pacidade de torna-se a si mesmo real; 2-
pensamentos pensam pensamentos? Im- um elemento ficcional capaz de promover
porta quais mundos mundeiam mundos”6. viagem no tempo; 3- um intensificador de
coincidências; 4- uma chamada aos anti-
HIPERSTIÇÃO gos. Ele alerta que essas características
É aqui que conceitos como hipers- tem poder de produzir influências diretas
tição de Nick Land vão fazendo sentido na arena cultural e portanto histórica, mas
para o ancestrofuturismo, pois também que sobretudo a hiperstição sinaliza o
48
retorno do irracional ou do monstruoso sobre a natureza em geral, levando em
“outro” (alteridade radical), que influencia conta aqui as críticas que dizem que
a história porvir. Nos importa aqui pensar nunca foi e nunca será uma generaliza-
na hiperstição como um dispositivo funda- ção já que existiram, existem e existirão
mental para o ancestrofuturismo em sua comunidades humanas que não concor-
capacidade de gerar uma realidade a par- dam com tal postulado. Nesse momento
tir de uma qualidade ficcional, que nos em que a Terra se mostra como uma
ajuda a pensar a quebra da estrutura linear força em “devir monstruoso” capaz de
do tempo, enquanto nos dá dicas sobre auto-aniquilação, é preciso desenvolver
como operacionalizar a intensificação de outras relações com esse planeta que es-
acontecimentos convergentes (o que Land capem dos ideais civilizatórios promovi-
chama de intensificador de coincidências), dos pelo antropocentrismo. Se há um
já que o ancestrofuturismo é mais do que tempo atrás, como no existencialismo
uma relação com os ancestrais, mas um francês e alemão, a angústia foi conside-
gerador de atualização de imaginários e rada uma tonalidade de fundo (sen-
temporalidades. sação) devido a falta de sentido da
O retorno do “irracional ou mons- existência ou as impossibilidades de trans-
truoso” dialoga enormemente com o formações verdadeiras através da mili-
mundo espectral que volta a povoar o tância política, hoje em dia o horror
pensamento no contemporaneo, exata- aparece como tonalidade contempo-
mente porque diante das catástrofes rânea, não suprimindo a angústia mas
ambientais, o “horror” aparece como sen- fazendo-lhe frente diante de um estado
sação de fundo e o horror é povoado por de ameaça planetária permanente.
existências espectrais que foram retiradas As catástrofes ambientais geram
a duros golpes da arena cultural através um estado de horror permanente, ao
da inquisição católica no ocidente, e logo mesmo tempo que se conjuram os
depois através do projeto de desenvolvi- poderes que tentam manejar o horror e o
mento científico/tecnológico que aparece medo, o medo inclusive do horror, isso é
fortemente a partir do renascimento. Mas notório em campanhas políticas e capita-
essa limpeza generalizada teve sua listas que tentam manejar esse horror de
grande conquista nos últimos 70 anos, im- fundo para seus interesses ideológicos e
pregnados de conquistas espaciais, nano- mercadológicos, como durante o período
tecnologias e robôs inteligentes, quando da Guerra Fria em que a ameaça cons-
realmente pensou-se que estaríamos a tante do lançamento de bombas nu-
caminho de uma sociedade moderna, e a cleares, que causariam a destruição do
industria farmacêutica e psiquiátrica co- mundo foram aproveitadas por emprei-
laboraram muito para criar a adaptação a teiras e construtoras para alastrar cons-
um mundo que pressupunha a superação truções de bunkers milionários, ou a atual
definitiva da animalidade constitutiva da guerra ao terror que é utilizada para fun-
humanidade. damentar projetos de extermínio de
povos que afrontam a ideologia dos
HORROR países soberanos e sobretudo para man-
Sobre o “horror” Fabián Ludueña ter 'o horror' sob controle.
Romandini11 fala que ele é necessário Mas Ludueña alerta que se pen-
para despertar a humanidade para o sarmos bem nunca estivemos em uma
equívoco do envólucro antropológico situação diferente, mesmo que nunca
Kantiano, que é a soberania humana tenhamos estado numa situação igual.
49
Encontro de
Tecnoxamanism
o em Berlim
(Schillerpalais).
Foto: Mario
Cordeiro.

50
Encontro de Tecnoxamanismo
no Rio de Janeiro (Casa
Nuvem). Fotos: Rafael Frazão.

51
De certa forma sempre soubemos que a nutrir sua existência, mais cedo ou mais
mais cedo ou mais tarde a vida na Terra tarde ela se materializará 'de alguma
poderia vir a acabar, seja por catástrofe forma' no campo da realidade, e isso tem
induzida pelo sistema civilizatório ou pelo poder de reconstituir tanto o futuro quanto
apagamento do sol. Só que isso já não é o passado. Já a comunidade dos espec-
somente um conjunto de crenças pro- tros são essas entidades ficcionais que
duzidas pelas superstições, pois hoje em povoam o inconsciente coletivo e ma-
dia temos essa consciência através dos quínico, que estão no plano do insólito
inúmeros aparatos tecnológicos que nos mas que existem. Ela é feita de criaturas
permitem ver para além das capacidades incorpóreas, entes que sobrevivem à sua
dos nossos sentidos, através de telescó- própria morte (mesmo que através de um
pios, satélites, instrumentos de medição postulado como alguns personagens mi-
e análise, que o planeta realmente está tológicos: Oxum, Helena, Aquiles, Jesus
passando por processos de transfor- Cristo, Buda), seres que habitam um ponto
mações radicais, e isso desperta es- indistinto entre vida e morte (ciborgues, an-
pasmo e horror em seus habitantes. dróides na ficção científica e nos projetos
Essa tonalidade de fundo, ainda científicos), coisas imateriais que podem
segundo Ludueña, pode servir para trans- vir a adquirir diferentes consistências, que
formar radicalmente alguns traços consti- pode vir a se materializar, como por exem-
tuintes da civilização humana (ou parte plo, os ressuscitados da Cristianópolis que
dela), já que pode acionar nossas ca- aos poucos ganham materialidade nos
pacidades hipersticionais, nossa fabu- projetos transhumanistas12.
lação especulativa, nossa ontologia No caso dos transhumanistas, o
cria tiva capaz de inventar mundos e espectro se atualiza na realidade através
estabelecer outras relações com esse da influência implacável de um legado
planeta, ao invés de sucumbirmos aos sofisticadíssimo da teologia cristã sobre
geradores do medo e da paranóia. O hor- os modernos, que são os corpos dos
ror em última instância pode ser utilizado ressuscitados em Jesus Cristo. Os cor-
como um mecanismo de fuga da rota de pos dos ressuscitados são pensados
colisão apocalíptica, uma potência contra como 'corpos de luz' que tem como
os ideais modernos, contra o antropocen- função a purificação e o abandono pro-
trismo e a favor da criação de novos hu- gressivo da animalidade humana. Na
manos e novos mundos. Cristianópolis os corpos de luz tem as
funções do aparelho digestivo mini-
HIPERSTIÇÃO E COMUNIDADE mizadas, já que comer, fazer digestão e
DOS ESPECTROS depois cagar demonstra uma animali-
Há uma correspondência eloquen- dade sem sentido para o reino dos céus,
te entre a hiperstição de Nick Land e as onde o grande objetivo é louvar a glória
comunidades dos espectros de Ludueña. de Deus. E são esses mesmos corpos
Essa correspondência se dá na medida caracterizados como passíveis, sutis,
em que a hiperstição é compreendida ágeis e claros, os corpos ressuscitados,
como um “operador” ou uma “metodolo- que se tornam o parâmetro para o pro-
gia” implícita na constituição social. É jeto dos corpos transhumanistas, os cor-
como se descobríssemos um modo de pos da realidade virtual, da matrix, que
operação maquínico que habita as diver- terão nanorobôs em seus glóbulos san-
sas culturas humanas que diz: se um guíneos para contabilizar, entre outras
grupo de pessoas cria uma ficção e passa coisas, a medida exata dos nutrientes
52
necessários para manutenção dos cor- O perspectivismo de Eduardo Vi-
pos vivos. O projeto prevê que esses veiros de Castro14 nos ajuda a compreen-
nanorobôs são os responsáveis pela re- der a natureza desses espectros não
dução da operacionalidade do sistema humanos. Quando fala do animismo
digestivo, cuja função é descaracterizar ameríndio ele aponta para a presença do
a animalidade grotesca pregressa, e aos que poderia ser entendido como comu-
poucos aproximar os transhumanistas nidades espectrais, quando qualifica o
do ideal dos corpos ressuscitados: subli- xamã como um diplomata interespécie
mes e angelicais13. Eis aqui como pro- que se relaciona com o espírito da água,
cessualmente vai se materializando uma da árvore, das abelhas, da onça, quando
ficção teológica na concretude de proje- fala na incorporação que o xamã faz no
tos científicos e tecnológicos. corpo de outras espécies ou quando
Podemos falar que a hiperstição essas incorporam no corpo do xamã.
é um dos operadores da constituição Davi Kopenawa no livro “A Queda do
das comunidades dos espectros, sejam Céu”15 confirma essa ideia quando conta
eles quais forem e quais ideologias sua iniciação xamânica, sua relação com
guardam. Nem a hiperstição nem a co- os xapiris que pre-existiam sua própria
munidade dos espectros são estrutura- existência, chamando-os de xapiris dos
dos a partir de uma referência antepassados. Em uma das cenas ele
específica de ética ou moral. Ambos op- descreve como os xapiris deixaram seu
eram um sistema potente de concretiza- corpo, depois de o iniciar:
ção real de fabulações, especulações e
narrativas ficcionais, que podem ser li- “Mais tarde, os xapiri vieram juntar
bertárias ou fascistas, angelicais ou de- novamente os pedaços de meu
moníacas. O que importa aqui é corpo que haviam desmembrado.
entender que a ficção não é só um dado Porém recolocaram meu torso e a
imaginário, mas material, ou pelo minha cabeça na parte de baixo de
menos, um dado que existe ou pode vir meu corpo, e ao inverso, minha
a existir de fato, e mesmo não existindo, barriga e minhas pernas na parte
já existe. de cima. É verdade! Reconstruíram-
me às avessas, colocando meu
COMUNIDADES ESPECTRAIS posterior onde era meu rosto e
NÃO HUMANAS minha boca onde era meu ânus!
Para complexificar a questão, Depois, na junção das duas partes
quando falamos das comunidades dos de meu corpo recolado, puseram
espectros é bom que fujamos do antro- um largo cinturão de penas multi-
pocentrismo falado acima, para não coloridas de pássaros hima si e wi-
pensarmos nelas a partir de um para- sawisama si. Também trocaram
digma só imaterial ou só fruto da imagi- minhas entranhas por vísceras de
nação humana, já que a ideia aqui é espíritos, menores e de um branco
exatamente destituir o “humano” do cen- deslumbrante, enroladas com deli-
tro do mundo, para que se torne pos- cadeza e cobertas de penugem lu-
sível perceber os espectros produzidos minosa. Depois substituíram minha
por imaginários não humanos, pois vive- língua pela que tinham consertado,
mos em um planeta vivo, produtor de re- e fixaram em minha boca dentes
des espectrais e inserido em um cosmos tão belos quanto os deles, colo-
vivo e espectral. ridos como a plumagem dos pás-
53
saros sei si. Também trocaram mi- afunila toda uma conexão da experiência
nha garganta por um tubo, que com a espectralidade quando transforma
chamamos purunaki para eu poder o delírio, a associação de matilha, o
aprender a cantar seus cantos e a homem dos lobos em um problema fami-
falar com clareza. Esse tubo é a liaresco, nuclear, interrompendo o fluxo
laringe dos espíritos. É dele que entre outras formas de comunicabilidade.
vem o sopro de suas vozes. É uma O exercício de desantropocentrizar deve
porta pela qual nossas palavras levar em conta relações não factuais, in-
podem sair belas e direitas". vestindo na criação de conexões espec-
trais, ou pelo menos dignificando as
Essa descrição parece demonstrar narrativas ficcionais. Isso provavelmente
que um pajé depois de iniciado jamais traria um novo manancial conceitual e ex-
será dono de seu próprio corpo, já que perimental para se pensar e se relacionar
para ser “diplomata” entre espécies, é pre- com a loucura, por exemplo, ou implicaria
ciso ter um corpo destituído da sua indi- em uma subjetividade estendida, menos
vidualidade para poder ser povoado de manipulável pelos sistemas de doma, que
espectros multi-espécies. crescem avassaladoramente conforme se
Nesse sentido Ludueña fala que desenvolvem as tecnologias exponenciais.
para pensar em espectrologia é preciso
pensar também naquilo que nos pré-existe ANCESTROFUTURISMO
enquanto humanidade, e que nos sobre- Então quando falamos em ances-
viverá. Ele não está falando necessaria- trofuturismo é importante levar em conta
mente de Deus Jeová o criador, ou numa os seguintes dados: 1) a comunidade dos
metafísica comprometida com um mono- espectros é feita de ficções humanas que
teísmo ou politeísmo qualquer, mas da podem ser atualizadas na realidade com
espectrologia enquanto povoamento, en- recursos hipersticionais; 2) a comunidade
quanto olhares multiplicados humanizados dos espectros pode ser constituída de a-
e não humanizados que assistem a pas- tualizações de ficções não humanas; 3) a
sagem da humanidade sobre a Terra. Não terra como parte de um movimento cós-
só podemos estar sendo avistados por mico pode absorver espectros não hu-
esses espectros não humanos, como tam- manos e não terrestres que pré-existem
bém indo mais longe podemos nós mes- a humanidade e que pode lhes sobre-
mos sermos espectros criados por algum viver; 4) o universo anímico ameríndio
tipo de comunidade não humana. não se reduz ao animismo terrestre, mas
Perceber isso no caso do ances- universal e cósmico, e opera com incor-
trofuturismo deve funcionar mais como poração e possessão multiespectral; 5) a
um exercício profundo de rompimento hiperstição é um dispositivo de atualiza-
com o antropocentrismo do que um pre- ção da comunidade espectral humana e
ceito religioso ou um fundamento de fé não humana, terrestre e extraterrestre; 6)
doutrinária. Como exercício é válido para o ancestrofuturismo é um navegador que
ativar o gerador imaginário, intensificar os atualiza diferentes temporalidades entre
sentimentos, potencializar os afetos e va- o ancestral e o fututro a um só tempo, a-
lidar experiências não factuais mas sub- tualizando as comunidades espectrais
jetivas, sentidas. Dignificar e ampliar o humanas e não humanas, terrestres e
escopo do que se considera realidade. não terrestres, existentes e as não exis-
Nesses sentido o Anti-édipo em sua tentes ainda, que se criam por con-
crítica à psicanálise mostra como esta vergências ficcionais e se concretizam
54
por dispositivos hipersticionais no pre- nológica que agora inclui a autonomia
sente interferindo diretamente sobre o cosmogônica. Liberar a cosmogonia da
passado e o futuro de forma não linear. 7) tradição e colocá-la no espaço da criação
o ancestrofuturismo é uma fabulação (da espectrologia livre) é uma das ações
(ficção) especulativa que se empenha em que o tecnoxamanismo tem produzido nos
potencializar geradores imaginários e am- encontros da rede, e os rituais do it your-
pliar os espaços para afeto, sensação e self servem como mecanismos práticos
experiência a fim de conferir-lhes dig- que fomentam esse aspecto inventivo e
nidade, para que isso colabore na criação também propiciam vivência de experiên-
de outros humanos e outros mundos, em cias em níveis mais superficiais ou mais
um momento em que o planeta passa ele profundos, conforme o caso.
próprio por mudanças estruturais. Podemos, para efeito de com-
Repetindo: ancestrofuturismo se preensão, citar algumas das característi-
utiliza de dispositivos como hiperstição e cas dos rituais faça você mesmo que
criação de comunidades espectrais para estamos produzindo: 1) criação de comu-
construir seu plano de organização. É a nidade; 2) sensação de pertencimento; 3)
partir dessa base que se fundamenta as terapias espontâneas individuais e gru-
experiências imersivas propostas nos ritu- pais; 4) ideia de comprometimento; 5)
ais do it yourself, que tem como objetivo construção dos espectros mitológicos e
produzir a sensação de pertencimento cosmogônicos (espectrologia livre); 6)
(communitas), gerar um espaço/tempo de elaboração estética dos 'entes' 7) consti-
produção criativa (de cosmogonias e mi- tuição de transnarrativas fabulativas co-
tologias livres – mesmo que remixadas nectando os 'entes' entre si; 8) elaboração
com as tradicionais) e potencializar e dig- estética das transnarrativas; 9) cons-
nificar a experiência (incitando novos de- trução da cena (do espaço) a partir dos
vires, afetos e percepções). Ao mesmo elementos criados; 10) produção da ex-
tempo em que se desgarra das tradições periência imersiva (com público ou sem
teológicas, cosmológicas e religiosas em nenhum público).
vigor em nossa sociedade, desmistifi- Obs: Pensar na utilização dos re-
cando seus estatutos de verdade, jogando gistros mídicos e atentar para a possibili-
a ancestralidade para a espectralidade, e dade de fazer um segundo episódio de
o futuro para a ficção especulativa, cujo ficcionalização a partir deles, e assim su-
poder é vir a atualizar-se. cessivamente.
Mesmo que as características te-
COSMOGONIA LIVRE nham sido enumeradas, não as utilizamos
E RITUAIS FAÇA VOCÊ MESMO sempre nessa mesma ordem, nem neces-
O tecnoxamanismo se estrutura a sariamente do mesmo jeito. Cada lugar,
partir de redes relacionadas ao movi- cidade ou país ou ainda cada conjunção
mento do software livre, do open source e de pessoas que se forma por intermédio
da cultura faça você mesmo, que reivin- do tecnoxamanismo desperta uma aura
dicam liberdade, colaboração e autonomia particular, uma equação cosmogônica que
em relação a ciência e tecnologia. Isso ex- se constrói somente naquele lugar com
plica a utilização por parte do tecnoxam- aquelas pessoas. As construções narrati-
anismo de termos como Livre, Aberto e vas (ou transnarrativas) que surgem a par-
DIY (autonomia). Cosmogonia livre, então, tir dessas conjunções são singulares, o
entra aqui como desdobramento desses que não impede que ressurjam em outros
movimentos de autonomia científica e tec- lugares ou que sejam transladadas para
55
outros espaços, continuando sua existên- CASA NUVEM – RIO DE JANEIRO17.
cia em diferentes contextos e por vezes TEMA DO RITUAL: CINEMA AO VIVO
imiscuindo-se com outras construções SCIFI - FICÇÃO E RUIDOCRACIA.
transnarrativas, vindo a fazer parte de (31/06 E 01/07/2015) –
uma espectrologia sempre em processo, ORGANIZAÇÃO: FABIANE M.
do tecnoxamanismo e redes afins. BORGES E LÍVIA DINIZ
É importante salientar que o tec-
noxamanismo é estruturado não só por O ritual foi montado como um set-
movimentos de autonomia em ciência e ting de cinema ao vivo de ficção cientí-
tecnologia mas também por redes rela- fica ancestrofuturista. Os participantes
cionadas à clínica, a arte contemporânea, foram convidados a embarcar em uma
à filosofia, à ecologia, às ciências da terra espaçonave do it yourself para fazer
e às comunidades tradicionais. Isso serve uma viagem no tempo. O processo foi
para demonstrar que o tecnoxamanismo é organizado a partir de três laboratórios:
uma plataforma que funciona como ponto 1) mini-robôs que emitiam ruído através
de aglutinação e produção de múltiplos de luz nas placas solares18; 2) Iniciação
saberes, que é um espaço aberto para à tecnomagia/tecnoxamanismo com ri-
proposição e experimentação e que existe tual performático, tecno-transe, corpo
uma enorme diversidade de propostas que alegórico/fantasia e iluminação para
atravessam seus domínios, que vai desde transes (técnicas de luz – diy)19 e 3)
a agrofloresta e salvação de nascentes de construção de traquitanas sonoras e cir-
água até desenvolvimento de softwares, cuit bending20.
desde criação de comunidades presenci- A partir desses laboratórios foram
ais ou virtuais até arte de galeria, desde sendo criadas as narrativas do ritual sci-fi
imersões clínicas até festivais interna- ancestrofuturista que contou com a cri-
cionais. Cada um desses encontros con- ação de 7 personagens – os coiotes – res-
tam com inúmeros projetos como criação ponsáveis pelo rito de iniciação na nave-
de robôs pintores, ou operações alquími- -mãe. Eles foram iniciados pelo indígena
cas, rádios livres ou web rádio e propostas tupinambá Anapuaka, que com banhos
educacionais. Mas nesse texto específico de erva e maracá introduziu os coiotes no
estamos tratando de demarcar um desses universo ritual, e logo eles passaram a
campos experimentais cujo tema é ances- fazer o mesmo com o público, que eram
trofuturismo, cosmogonias livres e rituais vendados e levados para dentro da nave-
faça você mesmo. -mãe. Outros personagens também foram
Aqui passo a dar alguns exemplos aparecendo como a maga da entrada da
de rituais faça você mesmo que dialogam nave21, o drone que passava incenso pela
diretamente com os conceitos convoca- casa e no corpo das pessoas22, o quarto
dos acima. Lembrando que minha área das luzes diy e das traquitanas onde as
de pesquisa se dá na conexão entre a pessoas faziam os sons experimentais,
clínica (psicologia), arte (contemporânea), além disso teve projeções ritualísticas em
tecnologia (livre) e é a partir dessa tríade video mapping23 e as performances es-
que elaboro e organizo esses processos pontâneas na rua e dentro da casa24.
imersivos16. Sempre com um olhar espe- Sobre os 7 coiotes há que se dizer
cial para a produção de subjetividade. que cumpriram um papel importantíssimo
Espero que esses exemplos sirvam para dentro de todo processo, já que foram
ilustrar o teor dessas experiências: eles que fizeram a iniciação do público. O
público entrava na nave com os olhos
56
vendados e era convidado a imergir no trouxeram barcos de papel e começaram
cenário ruidoso e a se relacionar com a criar uma performance de navegação de
todas essas salas ocupadas por persona- sobreviventes entre os desastres, o resto
gens ficctícios, ruídos, banhos de ervas, dos participantes receberam máscaras de
robôs sonoros, drones de incenso, entre proteção e ficaram sentados em volta das
outros. Quando o público tirava a venda, fogueiras digitais (som e projeções) as-
estava diante de um processo do qual já sistindo à narrativa, que começou com as
fazia parte, e escolhia seu lugar na nave- duas mulheres mas foi mudando de pro-
-mãe. No final de tudo, pessoas falando tagonistas. A maioria das pessoas que
que algo aconteceu ali. Foi uma expe- construíram o ritual performático foram
riência catártica, o transe aconteceu, hou- mulheres, e isso trouxe à tona uma série
veram comunicabilidades diversas que de associações: rituais de bruxas, mater-
prescindiram da palavra. A cegueira do nidade, enterro dos mortos, lamentação
público produziu estados de medo e de coletiva, danças de possessão, cantos de
confiança. E as filmagens25 talvez não evocação. Em um momento começou a
tenham dado conta da narrativa feita ali, acontecer improvisações improváveis co-
mas possivelmente serve como uma de- mo o batuque de um sírio, cujo barco
rivação narrativa do acontecimento, o que naufragou e veio parar na Europa à nado,
torna esses eventos multinarrativos. com uma israelense que arrastava seus
cabelos no chão e passava uma vela em
SCHILLERPALAIS – BERLIN26. torno do corpo. Levando em conta os
TEMA DO RITUAL: INTERSECÇÃO problemas políticos e de fronteira entre
ENTRE TECNOLOGIAS DIY E Síria e Israel, a aproximação de ambos
CONHECIMENTOS protagonistas no ritual, um deles sobre-
ANCESTROFUTURISTAS (19- vivente de um navio naufragado, foi muito
20/02/2016). ORGANIZADO POR sensível. Uma argentina que fazia uma
FABIANE M. BORGES dança de incorporação com os cantos de
O Ritual foi montado a partir de uma inglesa. Um robô com inteligência ar-
uma chamada aberta na internet convi- tificial feito por Bruno Gola que emitia in-
dando o público para a participação do ri- formações sobre Fukushima e Mariana ao
tual, com uma pequena explicação e um mesmo tempo em que Deva Station jo-
documento aberto para os interessados gava com objetos eletrônicos diy. E ainda
escreverem o que poderiam fazer no ri- Fernanda Sanchez performando a mater-
tual, com quais recursos. Nos dias do en- nidade perdida enquando Laura Sou-
contro de tecnoxamanismo foi feita uma bennes fazia o papel da bruxa diabólica
reunião (um dia antes do ritual) com cerca aos sons de baixo de Mariana Faé. Aqui
de 30 pessoas no porão da casa de cul- estou deixando de citar inúmeras outras
tura, onde começamos a conversar sobre pessoas e personagens que interagiram
o assunto do encontro. Duas pessoas, com a questão dos desastres, de forma
uma do Brasil (Vanessa Velasquez) e performática e ritualística.
outra do Japão (Kaya Hanasaki) trouxe- Esse sem dúvida foi o ritual mais
ram à tona questões relativas a “Lama de eclético, cujos participantes pareciam ter
Mariana” e o “Acidente Nuclear de vindo de todos os lugares do mundo para
Fukushima”. Essa relação entre ambos se encontrararem exatamente ali, e juntos,
desastres ataram dois pontos do mapa, e em um porão de Berlim, constituiram um
tornou-se o assunto fundamental do ritual. ritual de abertura dos portos e dos entraves
Durante o ritual ambas mulheres burocráticos que impedem a comunhão
57
Ficção e Ruidocracia. Tecnoxamanismo Hacker em Medellin (Platohedro). Foto: Platohedro.
entre os povos. Algo aconteceu ali. Foi uma dia o que estávamos propondo, mas ficou
experiência profunda, ao mesmo tempo muito sensibilizado com tudo o que viu.
que uma espécie de terapia de sanação, e Isso demonstra que o público nesses ri-
sem dúvida um encontro performático, tuais ancestrofuturistas podem ser um
artístico e contemporâneo. Só acabou, acaso mas não são uma necessidade. O
duas horas depois, porque a polícia man- ritual aconteceu na hora marcada como
dou encerrar, pois já era a segunda vez se acontecesse sempre, como se as pes-
que chegava no espaço. Ao acabar o som soas sempre agissem daquele modo, com
as pessoas ficaram em silêncio naquele suas invocações, suas liturgias, suas cor-
mesmo local com a cabeça baixa ou relações naquele espaço e tempo mítico
o lhando uns para os outros, como se não – profano, ancestral e futurista. A expe-
tivessem outro lugar para ir. riência aconteceu. Depois de algumas
horas, aos poucos os participantes foram
DECURATORS - BRASÍLIA27. saindo dos seus transes e voltando a nor-
TEMA DO RITUAL: SOBREVIVÊNCIA - malidade. Todos quietos, alguns mais sen-
INDIGENISMO, CATÁSTROFES sibilizados que outros, mas quase todos
AMBIENTAIS E INDUSTRIAIS falando que algo aconteceu ali.
(01-02-03/04/2016). ORGANIZAÇÃO: Trago esses três exemplos de
FABIANE M. BORGES E GISEL forma rápida e até superficial, porque cada
CARRICONDE AZEVEDO um deles exigiria um texto próprio, que
O ritual foi montado a partir de dois atentasse para cada uma das minúscias
laboratórios: 1) Preparatória para o ritual I28 que suscitam. Porém, para efeito de en-
– sobre interescritura e transnarrativas scifi tendimento, espero que esses exemplos
– onde os participantes foram convidados a funcionem de forma a gerar curiosidade e
entrar em uma viagem de criação de fu- replicação. Talvez a parte mais radical
turos utópicos e distópicos trazendo à tona dessas experiências seja a indicação de
a questão da sobrevivência e das catástro- um caminho mais livre em relação à “es-
fes e 2) Preparatória para o ritual II29 – que piritualidade”, “religiosidade”, “transe”,
foi a criação de totens eletrônicos diy, onde “catarse” aos “processos imersivos”, à “in-
os participantes mexeram com eletrônica, tensificação de consciência”, “singulari-
montaram pequenos circuitos de luz e e- dade da conexões” e ao “processo criativo
nergia e criaram o totem eletrônico. coletivo”. Quando um grupo de pessoas se
A partir do laboratório de transnar- juntam de forma a deixar emergir proces-
rativa, que passou pelos métodos de sos de imanentização, inconscientização
ruidocracia e produção imaginária coletiva e singularização, coisas acontecem, e é
se criaram alguns personagens míticos preciso analisar e perceber essas coisas,
(ancestrofuturistas) como os lobos perdi- de forma que não fujam de um certo con-
dos radioativos, as pajés enterradas do trole, nem despertem radicalismos ou fa-
século XVII, de novo apareceu a guardiã natismos ou até mesmo uma formação
da porta e mais alguns personagens que já psicótica. O que quero dizer aqui é que é
existem, como o ciberpajé e o amante da preciso cuidado e atenção para os en-
heresia. Esses personagens interagiram tornos produzidos durante esses rituais. O
entre si e produziu-se um rito ruidocrático cuidado é prioridade. Porém, enquanto
onde o tema da sobrevivência e das acontecimento, esses rituais têm sido
catástrofes vieram à tona com muita força. muito potentes e inovadores, assim como
Teve uma única pessoa de público um ponto chave da produção da rede de
– que eu chamei na rua – que não enten- tecnoxamanismo.
60
Notas: 12. Cfe. Wikipedia: “transhumanism is a international and
1. Para saber mais sobre o tecnoxamanismo, sugiro dois intellectual movement that aims ot transform the human
textos da minha autoria: 1) Tecnoxamanismos, etc. Revista condition by developing and creating widely available
virtual Geni. Nº 26 Acessado 05/05/2016 sophisticated tehnologies to greatlye enhance human
http://revistageni.org/10/tecnoxamanismos-etc/ e 2) intellectual, physical, and psychological capacities.
Prolegômenos para um Possível Tecnoxamanismo - Transhumanist thinkers study hte potential benefits and
Publicado na Revista Cadernos de subjetividade - 2013 – dangers of emerging technologies that could overcome
Vol 10, nº15 Acessado em 05/05/2015 fundamental human beings may eventually be able to
https://catahistorias.files.wordpress.com/2014/03/prolegc3b transform themselves into different beings with abilities só
4menos-para-um-possc3advel-tecnoxamanismo.pdf greatly expanded from the natural condition as to merit the
2. Por exemplo o pensamento de J. W. Dunne - “An label of posthuman beings.
Experiment with Time”. Publisher: A. & C. Black Faber & https://en.wikipedia.org/wiki/Transhumanism (visto
Faber. England. 1927. 04/05/2016) – Para saber mais do projeto ver: Ray
3. Cfe. Svetlana Alexievich - “Vozes de Chernobyl – Kurzweil - The Singularity Is Near: When Humans
Crônica del Futuro” Ed. Elsinore. Reimpressão. 2016. “Han Transcend Biology. Ed. Viking Penguin. 2006.
pasado veinte años de la catástrofe, pero hasta hoy me 13. Cfe. Fabian Ludueña Romandini - “Comunidade dos
persigue la misma pregunta: ¿de qué dar testimonio, del Espectros” - Ed. Cutltura e Barbárie – SC -2012.
pasado o del futuro? Es tan fácil deslizarse a la banalidad. 14. Cfe. Eduardo Viveiros de Castro. Metafísica caníbales.
A la banalidad del horror… Pero yo miro a Chernóbil como Katz Editores. Madrid 2010.
al inicio de una nueva historia; Chernóbil no solo significa 15. Cfe. Davi Kopenawa e Bruce Albertt - “A Queda do Céu
conocimiento, sino también preconocimiento, porque el – Palavras de um xamã Yanomami” Ed. Companhia das
hombre se ha puesto en cuestión con su anterior Letras. São Paulo/SP 2015.
concepción de sí mismo y del mundo. Cuando hablamos 16. Cfe. Fabiane M. Borges e Marc Etlin – Imersões,
del pasado o del futuro, introducimos en estas palabras Reciclagens e Singularidades – Multitudes Magazine.
nuestra concepción del tiempo, pero Chernóbil es ante todo 2008/2 (nº33). Ed. Associ. Multitudes. Paris.
una catástrofe del tiempo. Los radionúclidos diseminados https://catahistorias.files.wordpress.com/2011/03/imersc3b5
por nuestra Tierra vivirán cincuenta, cien, doscientos mil es-reciclagens-e-singularidades.pdf
años. Y más. Desde el punto de vista de la vida humana, 17.
son eternos. Entonces, ¿qué somos capaces de entender? https://tecnoxamanismo.wordpress.com/2016/02/17/tecnox
¿Está dentro de nuestras capacidades alcanzar y amanismo-ficcao-e-ruidocracia-na-casa-nuvem-3001-e-
reconocer un sentido en este horror del que seguimos 0102-de-2015/
ignorándolo casi todo?” 18. BEAM - Mini Criaturas Autônomas que produzem sons
4. Cfe. Isabelle Stengers - “No Tempo das Catástrofes” com placas solares - Malu Fragoso e Marco Aurélio
(pag.41) - Ed. COSACNAIFY – São Paulo/2015 Damasceno. - Oficina criada pelo NANO - Núcleo de Arte e
5. Eduardo Viveiros de castro faz uma crítica a algumas Novos Organismos - Mais informações aqui:
correntes contemporâneas que tentam juntar o antigo com organismos_solares_tecnochama_.pdf
o ultramoderno (neoprimitivismo e tecnofilia), como no caso 19. Iniciação à tecnomagia/tecnoxamanismo - ritual
dos transhumanistas ou ciberpunks que na maioria das performance, tecno-transe (Fabiane M. Borges), corpo
vezes caem na equação da unidade, pensando que está alegórico e fantasia (Lívia Diniz), Iluminação para transes
fazendo sobreviver os dois enquanto que está somente (Isis Passos).
fazendo um deles desaparecer. Não considero ser o 20. Traquitanas Sonoras e circuit bending com NuvemHub.
mesmo caso do tecnoxamanismo, ou ancestrofuturismo, já 21. A líder do movimento trans e do ENEN -Indianara Alves
que esse busca a multitplicidade e não a unidade. Cfe. Siqueira.
Entrevista de Eduardo Viveiros de Castro para Marc Kirsch 22. Drone pilotado por Lot Elx- Construtor de drones diy.
– La Lettre du Collège de France, para o número especial 23. Responsáveis: Rafael Frazão e Victor Guerra.
da publicação comemorativa do centésimo aniversário de 24. Conduzidas principalmente por Marcela Lucatelli e
Claude Lévi-Strauss. São Paulo/2009 – Acessado Paloma Klisys.
24/04/2016 - 25.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010 https://tecnoxamanismo.wordpress.com/2016/02/17/techno
3-40142009000300023 shamanism-meeting-in-berlin-19-202016
6. Cfe. Palestra de Donna Haraway “Anthropocene, 26. Responsáveis pelas filmagens: 1- Amanda FloU, 2-
Capitalocene, Chthulucene: Staying with the Trouble”, Bruno Vianna, 3- Victor Guerra, 4- Rafael Frazão, 5- Angela
05/09/14 – Acessado 24/04/2016 – (vídeo) Donini.
https://vimeo.com/97663518 27.
7. Cfe. HYPERSTITION – Delphi Carstens – 2010 - https://tecnoxamanismo.wordpress.com/2016/03/29/tecnox
Acessado em 16/04/2016 amanismo-no-decurators-em-brasilia/
http://merliquify.com/blog/articles/hyperstition/#.VxLWz- 28. Com Léo Pimentel, Fabiane M. Borges e Carol
Rplfb Barreiro.
8. Iden. 29. Com Phil Jones, Krishna Passos e Gisel Carriconde
9. Cfe. Hyperstition an introdution – Delphi Carstens Azevedo (deCurators).
enterview Nick Land – 2009 – (tradução livre). Acessado
24/04/2016 http://merliquify.com/blog/articles/hyperstition-
an-introduction/#.Vx2GfeRplfY
10. Iden.
11. Cfe. Fabián Ludueña Romandini – Entrevista – Vídeo -
https://www.youtube.com/watch?v=7kQCQf8R98A – Visto
em 16/04/2016

61
TECNOXAMANISMO
ANTROPOFAGIA DA TÉCNICA
Adriano Belisário

Para alguns, conceitos como tec- como tecnoxamanismo, tecnomagia, tec-


noxamanismo ou tecnomagia parecem noanimismo, ciberxamanismo, entre ou-
realizar uma aliança improvável entre tros. A despeito de suas diferenças, em
domínios distintos ou mesmo inconci- geral, tais ideias conjugam a técnica (in-
liáveis. De um lado, a técnica, concebida dicada pelo prefixo tecno ou ciber) com
usualmente a partir dos paradigmas obje- noções rejeitadas na modernidade (magia,
tivos do conhecimento cientificista da na- xamanismo ou animismo).
tureza; de outro, o xamanismo ou a Essa emergência prático-conceitual
magia, entendidos como crenças irra- é visível na proliferação de eventos e pro-
cionais ou esoterismos meramente sub- duções acerca destes temas. Para citar
jetivos. Tal esquematismo é marcado pelo apenas alguns encontros recentes, foi rea-
emprego de velhas dicotomias, como a lizado em 2012, na cidade de Mauá (RJ),
oposição entre conhecimento (episteme) o Encontro Internacional de Tecnomagia1,
e crença (doxa); sujeito e objeto; cultura e reunindo diversos pesquisadores, artistas
natureza. Nesta perspectiva, as tecnolo- e ativistas para uma série de debates,
gias são intervenções humanas cultural- oficinas e intervenções. Em abril de 2014,
mente diversas em uma natureza única e Arraial d'Ajuda (BA) recebeu o I Festival
objetiva. Para o xamanismo, animismo ou Internacional de Tecnoxamanismo2. Fora
a magia, até admite-se o emprego de téc- do Brasil, temos o exemplo do 'Festival de
nicas ou mesmo de tecnologias. Porém, Oratória Ancestral - Tecnoxamanismo e
estas encontram-se reduzidas a uma es- Novas Narrativas'3, realizado em Guaya-
pécie de “prática natural” pré-científica. quil, no Equador, em outubro de 2014, e
São pobres em objetividade. Seriam práti- do encontro 'Tecnoxamanismo - autode-
cas pré-modernas: parte de nosso pas- terminação, liberdade e sustentabilidade
sado, não do futuro. Ou seja, em última no antropoceno'4, feito no município de
análise, tecnoxamanismo ou tecnomagia Aarhus, na Dinamarca, em novembro de
seriam nada mais que oxímoros, con- 2014.
ceitos carentes de lógica e embasamento A este respeito das diferenças de
concreto. abordagens entre os encontros, parece-
No entanto, nos últimos anos, ob- nos oportuno citar o relato do hacktivista
servamos a emergência de uma série de espanhol Pedro Soler sobre suas im-
conceitos e práticas que operam um pressões acerca de dois eventos distintos
deslocamento dos sentidos tradicional- sobre o tema:
mente atribuídos à técnica na moder-
nidade. Ao mesmo tempo em que a A linha entre magia e ilusão é
noção de tecnociência ganha espaço nos muitas vezes confusa. O que en-
debates sobre tecnologia e sociedade, tendemos por magia é, geral-
proliferam-se também trabalhos, teorias e mente, hoje, prestidigitação ou a
ações artísticas que recorrem a conceitos capacidade de enganar o público.

63
Em 2007, Medialab Prado5 traba- nesta investigação, iremos nos ater so-
lhou no tema de magia e tecnolo- mente ao último plano, a fim de com-
gia a partir deste ponto de vista. preendê-lo em sua relação com uma
Não só eles fizeram uma série de possível antropofagia da técnica, influen-
obras de arte, em particular usando ciada por Oswald de Andrade. Pelo
realidade aumentada, incluindo o mesmo motivo, dada a extensão do tra-
trabalho com um mágico profis- balho de Oswald, neste momento, anali-
sional, mas também um seminário. saremos especialmente as considerações
Um dos palestrantes do simpósio sobre a técnica em sua tese 'A Crise da
salientou que a magia do século 18 Filosofia Messiânica', ainda que recor-
e 19 e a ciência não eram sepa- ramos pontualmente a outros trabalhos
radas, bem como parte de um do autor.
ramo independente do show busi-
ness. […] O encontro Tecnomagias I
em maio de 2012 na Nuvem, um No texto mencionado, Oswald
espaço ecotech de pesquisa nas identifica o Matriarcado e o Patriarcado
montanhas a 2 horas do Rio de como duas tendências históricas funda-
Janeiro, nasceu com um foco difer- mentais. A primeira corresponderia a um
ente. A reunião foi convocada para estado de natureza, caracterizado pelo
explorar as interseções entre tec- ócio, o direito materno e a propriedade
nologia e magia a partir de uma comunal. A segunda, ao homem civi-
visão mais ampla, ecológica, mís- lizado, trazendo consigo o trabalho, o di-
tica e política (SOLER, 2014, p. 35) reito paterno e a propriedade privada. Ao
invés de afirmar a supressão de uma pela
Nessa emergência de conceitos e outra, ele defende que estes dois hemis-
práticas, temos abordagens bastante di- férios coabitam, alternando-se e articu-
versas entre si. Em linhas gerais, lando-se. Mais que isto, Oswald anuncia
podemos traçar alguns dos planos nos o surgimento de uma síntese ou, em suas
quais as reflexões sobre tais noções se palavras, um novo Matriarcado, uma nova
desenvolvem. Observamos desde aque- cultura antropofágica.
las mais superficiais ou espetaculares – No mesmo texto, Oswald aproxima
como as que confundem magia com má- a técnica do esquema civilizacional do
gica – a outras mais complexas e interes- Patriarcado, a partir da relação entre tra-
santes, como as reflexões a partir das balho e messianismo. Produzidas “quan-
chamadas técnicas do êxtase e a cultura do o homem deixou de devorar o homem
das raves6; a convivência de relações tec- para fazê-lo seu escravo”, as doutrinas
nológicas ditas pré-modernas em so- messiânicas e convicções imortalistas
ciedades modernas (JENSEN; BLOK, trazidas pelo Patriarcado guardariam ín-
2013); aquelas que enfatizam o caráter tima relação com a “marcha técnica do
eminentemente afetivo da apropriação homem”, sustentada pela escravidão.
das novas tecnologias de comunicação “Primitiva, caótica e desordenada, numa
(MAFESSOLI, 2009; SUSCA, 2008); ou civilização sem relógio, a técnica só podia
ainda as que operam a partir da revalo- ser eficiente, apoiada no braço escravo.
rização dos saberes tradicionais e da O escravo só podia existir na condição
apropriação tecnológica, em especial no miserável a que estava reduzido, com a
sentido das 'baixas tecnologias”. esperança messiânica da outra via”. (AN-
Dada tal complexidade do assunto, DRADE, 1972, p. 97) Ou seja: sem vida
64
após a morte, não haveria escravidão. mula se inverteu: sem progresso técnico,
Sem escravidão, não haveria progresso haverá escravos. Mas sem escravidão,
técnico. não há progresso técnico.
Mas Oswald não limita-se a de- De certa maneira, a solução en-
nunciar a técnica7. Trata-se antes de contrada por Oswald para sair deste
reaproximá-la da cultura antropofágica. “dilema da escravidão” foi escravizar as
O novo Matriarcado anunciado caracte- máquinas. A nova Era do Matriarcado era
riza-se justamente pela apropriação das também a Era da Máquina. Curiosa-
conquistas técnicas do Patriarcado, a par- mente, a análise de Oswald sobre a crise
tir de valores e práticas do Matriarcado. da filosofia messiânica encerra-se com
“Só a restauração tecnizada duma cultura uma anunciação de uma nova era por vir:
antropofágica, resolveria os problemas a “Idade de Ouro” ou o “matriarcado de
atuais do homem e da Filosofia”, diz. Pindorama”, como retornos antropofági-
(Idem, p. 128). Neste sentido, no Mani- cos, totemizações dos tabus da so-
festo Antropofágico, ele mesmo reapro- ciedade moderna – porém amparadas no
pria-se positivamente da noção de potencial de automação das máquinas
“bárbaro tecnizado” da obra 'O Mundo Que que se desenvolviam no século XX.8 De
Nasce', do filósofo alemão Hermann Graf fato, como o próprio Oswald afirma, “o so-
Keyserling, para concebê-lo como esta brenatural não está longe do milagre
síntese do encontro entre o homem natu- físico que a técnica cria”. (Idem, p. 95).
ral, nu, e o “homem civilizado”: eis então o Sua constatação parece-nos possível de
homem natural tecnizado – não mais o ser aplicada à sua própria teoria.
bom selvagem de Rousseau, mas o cani-
bal, um mau selvagem nietzscheano. II
Para Oswald, a reconquista do Mas – a bem da verdade, vale
ócio do novo Matriarcado seria possível destacar – o atravessamento de imagi-
graças ao avanço da técnica. “A fase nários não científicos no desenvolvimento
atual do progresso humano prenuncia o das máquinas modernas do século XX
que Aristóteles procurava exprimir não era exclusivo de Oswald, sendo tam-
dizendo que, quando os fusos trabalhas- bém notado por um dos criadores da
sem sozinhos, desapareceria o escravo” cibernética.9 Em 1962, o matemático
(Idem, p. 128), afirma a quinta tese cen- norte-americano Norbert Wiener es-
tral do texto 'A Crise da Filosofia Mes- creveu o livro 'God & Golem Inc – A Com-
siânica'. É notável a repetição desta ment on Certain Points Where Cybernetics
imagem aristotélica da automação técnica Impinges on Religions', em que traça
como emancipadora do homem na obra paralelos entre os computadores (“má-
de Oswald. Em outro momento, o autor quinas pensantes”) e a figura do Golem
afirma: “É em torno do Robô que se está na magia judaica: um ser animado
construindo a civilização de nossos dias. antropomórfico, criado a partir de matéria
O escravo só desaparecerá quando a sem vida. Quando um dos primeiros com-
mecânica o substituir, isto é, quando os putadores israelenses foi inaugurado, em
fusos trabalharem sozinhos”. (Idem, p. Tel Aviv no dia 17 de junho de 1965, o his-
208) A escravidão aparece aqui não como toriador judaico Gersom Scholem tentou
uma questão social, mas como um pro- tirar a ideia do papel, solicitando a for-
blema técnico. Nesta lógica, só há es- malização das pesquisas sobre magia e
cravos, pois o desenvolvimento tecnológico computação, amparado em alguns dos
não progrediu o suficiente. Ou seja, a fór- desdobramentos da cibernética de
65
Wiener: "Todos os meus dias tenho me ao lidar com questões outrora conside-
queixado de que o Instituto Weizmann radas da ordem do sobrenatural, como a
não mobilizou os fundos para construir o vida eterna, a criação de vida artificial ou
Instituto de Demonologia Experimental e a restauração de um equilíbrio com as
Magia que tenho há muito tempo pro- forças da Natureza.
posto. Eles preferiram o que eles Ao contrário de Wiener, o filósofo
chamam de Matemática Aplicada e suas francês Gilbert Simondon não considera
possibilidades sinistras à minha abor- as máquinas completamente autônomas
dagem mais direta e mágica"10. como o último resultado de uma longa
Ao longo da segunda metade do evolução teleológica da técnica. Muito
século XX, a esperança de uma nova era pelo contrário, na sua compreensão da
cibernética também ressoou em movi- natureza sociotécnica dos objetos, um
mentos contraculturais norte-americanos, autômata possui funcionalidades reduzi-
como entre os hippies californianos, que das. Para Simondon, mais do que
enfatizaram o caráter emancipador das máquinas que independem do ser hu-
(então) novas tecnologias de informação mano, interessam os objetos abertos com
e comunicação. Richard Barbrook e Mat- margens de indeterminação, que não
teo Pasquinelli mobilizam respectiva- estão submetidos a uma separação entre
mente os conceitos de “ideologia sua construção e sua utilização, entre
californiana” e “digitalismo”11 para identi- produtor e consumidor.
ficar o surgimento e a persistência destas Segundo Simondon, a cibernética
tecnoutopias. Tais abordagens também havia sido mal compreendida, pois “esta
encontram eco em certos discursos influ- tentativa eminentemente nova foi re-
enciados pela cibernética de Wiener, duzida, julgada em função de noções ou
como as teorias transumanistas a re- tendências antigas”. (Idem, p. 165). Seu
speito das tecnologias, como o tecnoga- propósito maior é então desfazer aquilo
ianismo, os defensores da “singularidade que chama de alienação pré-capitalista
tecnológica” e do extropianismo. De essencial, por meio de elucidações sobre
modo geral, estas correntes partilham a natureza dos objetos técnicos e dos
uma fé inabalável na racionalidade do de- seres humanos. E aqui reencontramos
senvolvimento tecnológico: entusiastas criticamente a solução para o “dilema da
do tecnogaianismo defendem o desen- escravidão” de Oswald de Andrade: “É
volvimento e uso das tecnologias de geo- difícil tornar-se livre transferindo a es-
engenharia e biotecnologias como cravidão a outros seres, sejam homens,
remédio para as crises ambientais do animais ou máquinas; reinar sobre um
antropoceno; adeptos da singularidade povo de máquinas que converte em servo
tecnológica (como Ray Kurzweil, atual di- o mundo inteiro segue sendo reinar, e
retor de engenharia do Google) postulam todo reino supõe a aceitação de esque-
que a inteligência das máquinas irá su- mas de servidão”. (Idem, p. 21).
perar a humana em um futuro breve, al- Em sua crítica à cibernética e ao
terando radicalmente toda nossa evolucionismo tecnológico da época, Si-
realidade social e, por fim, defensores do mondon também reaproxima tecnicidade
extropianismo acreditam que a ciência e e religiosidade, porém de maneira radi-
tecnologia um dia poderão tornar as pes- calmente distinta. Para ele, técnica e re-
soas imortais. Todas elas disputam dire- ligião são dois fenômenos simétricos,
tamente um certo imaginário mágico da desdobramentos do pensamento mágico,
tecnologia a partir das altas tecnologias, anterior à “Grande Divisão” da moder-
66
nidade, como definiria posteriormente xamãs. Antes, eles parecem evi-
Bruno Latour. denciar a existência de uma reali-
dade pré-individual, anterior à
Tecnicidade e religiosidade não distinção entre sujeito e objeto,
são formas degradadas da magia, entre o homem e a máquina, na
nem sobrevivências da magia; são qual um devir xamã-rádio (ou ou-
provenientes do desdobramento tros devires homem-máquina) se
do complexo mágico primitivo, forma e passa a funcionar en-
reticulação do meio humano origi- quanto máquina desejante mítico-
nal, em figura e fundo. […] A re- ritual. Talvez os Araweté não
ligião não é mais mágica que a estejam sendo tão metafóricos afi-
técnica; é a fase subjetiva do re- nal, quando dizem que "o xamã é
sultado do desdobramento, en- um rádio", visto que o próprio rádio
quanto a técnica é a fase objetiva não parece ser mais do que um as-
destes mesmo desdobramento. pecto da virtualidade tecnológica
Técnica e religião são contem- do corpo do xamã que foi externa-
porâneas uma da outra e, tomadas lizado e tornado objeto atual
cada uma em separado, são mais (PEIXOTO, 2006, p. 191).
pobres que a magia da qual
emergem (SIMONDON, p. 191). Formulado por Viveiros de Castro
e Tânia Stolze, o perspectivismo amerín-
Através de uma série de relatos dio apresenta-se como uma formulação
antropológicos da relação entre tecnolo- da mesma família da antropofagia oswal-
gia e xamanismo em diferentes so- diana12, associando-se especificamente a
ciedades, como os Barasana, Macus, os duas importantes características das so-
xamãs tamus (Nepal) e os Araweté, o ciedades da Amazônia: “a valorização
antropólogo Pedro Peixoto também tece simbólica da caça, e a importância do xa-
considerações semelhantes sobre a re- manismo” (VIVEIROS, 2002, p. 357). A
lação entre os xamãs e as máquinas. caça envolve sempre uma perspectiva,
Sobre aquele último povo, o pesquisador ou seja, posições relacionais de predador
retoma uma descrição do antropólogo e presa – que podem se inverter a qual-
Eduardo Viveiros de Castro, que relata quer momento. Já o xamanismo consiste
uma associação direta entre potenciali- na elaboração de “correlações ou
dades xamânicas e tecnológicas: "’O traduções entre os mundos respectivos
xamã é um rádio’, dizem. Com isto [os de cada espécie natural, isto é, na busca
Araweté] querem dizer que ele é um de homologias e equivalências entre os
veículo, e que o corpo-sujeito da voz está diferentes pontos de vista em confronto”
alhures, que não está dentro do xamã.". (Idem, idem), ou seja, em uma espécie de
(VIVEIROS, 1986, p. 543; sublinhado no tradução diplomática de perspectivas. “O
original) Em seguida, Pedro Peixoto xamanismo é a continuação da guerra
afirma que: por outros meios: mas isso nada tem a
ver com a violência em si mesma, e sim
Poderíamos perguntar: qual é o com a comunicação” (Idem, p. 469).
limite entre o xamã enquanto ser Neste sentido, em consonância com as
humano e o rádio enquanto objeto observações sobre o pensamento mágico
técnico? Ora, tal não parece ser a e a tecnologia em Simondon, o xamã
questão colocada pelos próprios pode ser considerado como o primeiro
67
técnico. No entanto, se a tecnociência participação de Gilberto Gil, John Perry
opera pela objetificação das máquinas e Barlow, Richard Barbrook, Peter Pál Pe-
do mundo, o tecnoxamanismo necessaria- bart, Suely Rolnik, entre outros. Tal en-
mente deveria proceder segundo o princí- contro foi decisivo para a futura
pio de subjetivação do mundo, como a formulação das políticas públicas dos
arte. Pontos de Cultura e do Programa Cultura
Viva, em especial no que tange ao con-
III ceito de cultura digital13, baseado no uso
Como veremos mais adiante, a re- de softwares livres e de código-aberto,
abilitação ontológica proposta pelo pers- durante a gestão de Gilberto Gil no Minis-
pectivismo ameríndio em relação aos tério da Cultura. Em 2004, a partir dos
modos de vida e saberes tradicionais é de acúmulos das práticas e debates acerca
grande relevância para a compreensão da mídia tática no Brasil, a antropofagia
de formulações recentes do tecnoxama- da técnica consolida-se em um novo con-
nismo para além da questão da apropri- ceito: digitofagia.
ação tecnológica. Antes disto, porém,
cabe observar que já no final do século “A concepção de Digitofagia foi
XX, a questão da técnica começou a ga- pensar uma prática antropofágica
nhar novos contornos teóricos e estéticos que reatualizasse esse ideário [da
com os movimentos e pensadores influ- antropofagia] no contexto da cul-
enciados pelo movimento antropofágico. tura digital, reabastecendo seu viés
Diretamente abordada na figura do “bár- libertário. Para tanto, abraçar práti-
baro tecnizado”, a relação da técnica com cas espontâneas na cultura con-
uma não-modernidade ou uma alter-mo- temporânea brasileira, como a
dernidade também foi posteriormente vis- pirataria, os camelôs e a gam-
lumbrada por movimentos influenciados biarra, seria, quem sabe, uma
pela antropofagia oswaldiana. forma de trazer a mídia tática para
Em 1974, Jorge Mautner havia de- um campo mais familiar e mais co-
cidido fundar o Kaos, uma publicação tidiano aos praticantes, teóricos e
“cósmico-democrata”, como o jornalista e ativistas brasileiros” (VASCONCE-
roteirista Luiz Carlos Maciel definiu. Du- LOS, ROSAS, 2006, p.11)
rante “a primeira sessão da Kaos”, a re-
união preparatória do jornal com Luiz e Em 2006, Ricardo Rosas aprofun-
Mautner, Caetano Veloso usou o termo dou suas reflexões sobre a relevância da
“tecnomagia” em referência às possibili- gambiarra em um contexto de uma
dades de convergências entre as ciências antropofagia da técnica – ou de uma digi-
exatas e os movimentos artísticos e cul- tofagia. “Não será novidade nenhuma
turais ligados ao tropicalismo. (MACIEL, afirmar que no Brasil a gambiarra é uma
1996, p. 259). Mais recentemente, na dé- prática “endêmica”. Mesmo assim, por
cada de 1990, a Big Science devorada que até hoje não há uma teoria que lhe
por Chico Science e outros artistas per- contemple a práxis?”14. No texto 'Gam-
nambucanos pôs ainda mais em relevo biarra – Alguns pontos para se pensar
esta antropofagia da técnica com a em- uma tecnologia recombinante', o cibera-
blemática imagem-síntese do satélite en- tivista brasileiro enumerou algumas
fiado na lama. características desta prática:
Já em 2003, foi realizado o Festi-
val Mídia Tática Brasil, que contou com a
68
Acima de tudo, para entender a porém de uma ordem muito sim-
gambiarra não apenas como ples. É um jogo ambígüo e cheio
prática, criação popular, mas tam- de humor, que a bricolagem salien-
bém como arte ou intervenção na tada por Lévi-Strauss na "ciência
esfera social, é preciso ter em do concreto" sequer pretendeu.
mente alguns elementos quase […] Gambiarra não se faz sem no-
sempre presentes. Alguns deles madismo nem inteligência coletiva”
seriam: a precariedade dos meios; (LAGNADO).
a improvisação; a inventividade; o
diálogo com a realidade circun- Como devoração de alteridades, a
dante local, com a comunidade; a gambiarra surge aqui como um arranjo
possibilidade de sustentabilidade; técnico que parece corresponder de al-
o flerte com a ilegalidade; a recom- guma maneira à filosofia oswaldiana. A
binação tecnológica pelo reúso ou devoração nunca é uma mera assimi-
novo uso de uma dada tecnologia, lação daquilo que vem de fora, a incorpo-
entre outros. Tais elementos não ração de um objeto fixo por um sujeito
necessariamente aparecerão jun- delimitado. A aceitação passiva de um
tos ou estarão sempre presentes. produto acabado. Ao contrário, neces-
De qualquer modo, alguns deles sariamente implica em uma descodifi-
sempre aparecem por uma circuns- cação e uma recodificação, ou seja, uma
tância ou por outra (ROSAS, 2006, reterritorialização que modifica simul-
p.3). taneamente objeto e sujeito. Produção e
consumo se mesclam, confluem. A gam-
Rosas aproxima a gambiarra do biarra é um “prodossumo”, poderia dizer
conceito de bricolagem, formulado por Décio Pignatari. Antes dos hackers, já
Lévi-Strauss. Ao contrário da enge- tínhamos a gambiarra – parece-nos dizer
nharia, a relação estabelecida pela Rosas, ao estilo de Oswald.
prática da gambiarra com os objetos téc- Porém, agora, não se trata da
nicos não se submete a um projeto pré- anunciação de um futuro utópico, onde as
definido transcendente à prática. Ao máquinas de alta tecnologia trarão
contrário, ela opera pela imanência em abundância e livrarão os humanos da ex-
uma recombinação constante, caracteri- ploração por meio do trabalho. Marcante
zando-se mais como um processo do na afirmação positiva da gambiarra, na
que como produto final. A gambiarra é noção de digitofagia e em diversas redes
uma prática aberta. Há nela sempre algo da cultura digital brasileira do início do
a se terminar, ajustar ou acrescentar. século XX, como a MetaReciclagem15,
Rosas cita a reflexão de Lisette Lagnado Movimento dos Sem Satélites16 e o Sub-
acerca do tema, onde esta destaca a dis- midialogia17, tais experiências (antropo-
tância que separa a prática da gambiarra fágicas?) com a técnica enfatizam a
da bricolagem: apropriação crítica das tecnologias no
presente, em geral em um contexto de
“Este é um dos sentidos da gam- escassez – e não excesso – de recursos.
biarra que mereceria um desen- Ao invés do culto à nova alta tecnologia
volvimento: gambiarra, tomado dos robôs automatizados, a baixa tec-
como conceito, envolve trans- nologia da gambiarra.
gressão, fraude, tunga – sem ja- A alta tecnologia está sempre por
mais abdicar de uma ordem, vir, opera pela promessa de futuros imagi-
69
nários. Não por acaso é descrita como hegemônica à efetiva função de ruptura
“tecnologia de ponta”: situa-se como na histórico-social” (Idem, idem).
ponta da flecha imaginária de um desen- “Neste sentido, a tecnomagia se
volvimento tecnológico, tido como linear vale de um outro entendimento da téc-
e progressivo. Lidera-a os investimentos nica, que não o mero uso instrumental
do exército e as grandes corporações, in- com relação a fins, mas gerando um
teressadas em manter girando as en- campo problemático objetivo cuja pro-
grenagens de produção competitiva, dução de soluções parte do desejo e da
consumo e descarte de bens e serviços e sensibilidade compartilhados, construí-
prontas para cercear seus produtos por dos, e cuja potência é sua atualização
meio de patentes ou segredos industriais. permanente [...] O papel da tecnomagia
Ao contrário, a noção de baixa tecnologia na comunicação social é, portanto, um
aponta para o presente, para uma tec- ataque à apropriação representativa de
nologia das pontas, que está nas mar- qualquer espécie e refundadora da ação
gens do sistema capitalista de produção e comunicativa interpessoal, direta e de in-
consumo de tecnologia e baseia-se no teresse coletivo, público” (Idem, p. 52).
compartilhamento e na cooperação. Em Em sentido semelhante, Ícaro Fer-
termos deleuzianos, poderíamos com- raz também relaciona tecnoxamanismo
preender a baixa tecnologia ou o tec- com a cultura hacker e a reapropriação
noxamanismo como uma tecnologia menor. tecnológica, já a partir de uma leitura os-
Refletindo sobre a noção de tecno- waldiana: “Os tecnoxamãs do presente
magia como uma guerra ontológica entre parecem encarnar o homem natural tec-
humanos e máquinas, Thiago Novaes nizado de Oswald, são sua imagem mais
traça um paralelo entre a MetaReci- bem acabada. Os novos alquimistas do
clagem e o movimento de rádios livres, século XXI restituem à brincadeira e ao
baseando-se na ruptura entre a distinção encantamento sua prioridade, a um só
produtor-consumidor e na utilização de tempo, ontológica e epistemológica. A téc-
equipamentos de baixo custo (low tech) nica [...] é agora hackeada, desmontada e
para garantia de autonomia comunica- remontada em um contexto no qual os
cional. Assim, a metareciclagem per- valores patriarcais de eficácia, produtivi-
tenceria a um domínio estético e dade e competitividade são constante-
tecnológico com íntima relação com a tec- mente colocados sob suspeita”
nomagia, por ser “pedagogicamente (FERRAZ)
construído na relação de montagem e Por fim, além da dimensão de
desmontagem de elementos e conjuntos reapropriação tecnológica, parece-nos
técnicos que compõem a reciclagem e o fundamental destacar a dimensão daquilo
funcionamento de computadores” (NO- que poderíamos chamar de reconside-
VAES, 2014, p. 50). Retomando a supra- ração tecnológica. Pensar hoje o tec-
citada noção de bricoleur em Lévi-Strauss, noxamanismo no Brasil implica também
bem como a tecnoestética em Simondon, voltar-se para o reconhecimento de
como conceitos úteis aos pensamentos e saberes e técnicas antes desconsidera-
práticas tecnomágicas, Novaes o define dos ou apropriados indevidamente de
como um “campo de desvio que se cons- maneira privada, como aqueles das popu-
trói intuitiva e coletivamente, a partir do lações afro-indígenas. Ou seja, reavaliar
manuseio cotidiano e refletido de objetos justamente aquilo que usualmente con-
técnicos que passam de um destino pre- cebemos como técnica ou tecnologia:
definido pela indústria ou cultura será a indústria farmacêutica mais tecno-
70
logicamente avançada do que a erveira? antropofagia oswaldiana, bem como al-
Será o índio a mais avançada das mais gumas de suas repercussões posteriores,
avançadas das tecnologias? Este ponto para contextualizar certas abordagens a-
parece-nos central na emergência con- tuais acerca dos conceitos de tecnoxa-
ceitual e prática dos trabalhos e eventos manismo e tecnomagia. Em algumas
envolvendo tecnoxamanismo e tecnoma- passagens, as reflexões de Oswald soam
gia, no contexto latino-americano. Neste hoje como um tecnoutopismo insusten-
sentido, Fabiane Borges e Camilo Melo tável. Em 2015, sabemos que o desen-
concebem o tecnoxamanismo como volvimento e a proliferação das máquinas
metodologia estética.18 cibernéticas e robôs “inteligentes” não
nos livrou da exploração do trabalho,
[O tecnoxamanismo possui] indí- antes parece tê-lo tornado ubíquo e não-
cios de uma nova ética, uma ética remunerado.
ecológica, ou ainda uma ética Hoje, trabalhamos quase sempre,
transformadora que conceba a tec- mesmo quando nos divertimos ou tro-
nologia não como um projeto camos mensagens com amigos e conhe-
evolucionário mas como um or- cidos utilizando celulares conectados à
ganismo vivo, interdependente do Internet. A era das máquinas já chegou
seu meio e, assim como o próprio sem trazer consigo o Matriarcado de Pin-
planeta Terra, capaz de auto-regu- dorama. Porém, levando em conta as
lação. É uma tentativa de juntar práticas e reflexões antropofágicas pós-
duas formas de conhecimentos oswaldianas sobre a tecnologia no Brasil,
que são constantemente sepa- em especial na noção de tecnoxama-
radas. A bruxa e o cientista. O cu- nismo, sabemos que, se há uma
randeiro e o médico. A feiticeira e o antropofagia da técnica hoje, ela certa-
robô. A convergência entre técnica mente ultrapassa em muito as reflexões
e xamanismo é um investimento de originais de Oswald de Andrade.
reparação de erros antigos de má
distribuição de saberes e julga-
mentos deterministas precipitados
Notas:
1. http://nuvem.tk/wiki/index.php/Tecnomagia
a respeito das formas de conheci- 2. O projeto foi realizado por financiamento colaborativo
mento. O tecnoxamanismo apela (crowdfunding), contando com a contribuição de 95
apoiadores. http://catarse.me/pt/tecnoxamanismo
ao animismo, às religiões da na- 3.
tureza, às visões de mundo mais https://tecnoshamanismoynuevasnarrativas.wordpress.com
4. http://osaa.dk/2014/11/open-call-technoshamanism-
tradicionais, ou ainda ancestrais, a encounter-in-aarhus/
fim de trazer à tona suas sincroni- 5. Laboratório de mídia baseado em Madrid, na Espanha.

cidades, fazê-las interpenetrarem-


Mais informações em: http://medialab-prado.es/
6. A contracultura anglófona exerceu uma grande influência
se (BORGES; MELO, 2012). nesta concepção de tecnoxamanismo ou tecnomagia.
Na segunda metade do século XX, Timothy Leary
vislumbrava o potencial da comunicação em rede para
IV expandir consciências, concebendo os cyberpunks como
Longe de esgotar os assuntos aqui “alquimistas modernos”. Posteriormente, Fraser Clark
usava o termo “tecnoshamanism” para referir-se ao papel
abordados, esta investigação deve ser do DJ nas raves. Vale lembrar que Clark foi um dos
encarada como um esboço de uma re- criadores do movimento zippie (que buscava abraçar

flexão acerca do tecnoxamanismo no


tecnófilos e hippies) e do tecnogaianismo.
7. “Mas, poder-se-ão, por acaso, negar os prodígios
Brasil, a partir de uma antropofagia da conseguidos através de guerras sangrentas, de sacrifícios
técnica. Buscamos assim considerar al- trágicos, de entregas absolutas, que começam a dourar
os dias ao século presente? Tudo isso é o produto da
guns aspectos da questão da técnica na técnica.” (p. 209)

71
8. Em outra ocasião, no texto “Ordem e Progresso”, 14. Anos antes, Oswald afirmava: “Será preciso criar uma
publicado em O Homem do Povo 1, em 1931, Oswald Errática, uma ciência do vestígio errático”. (ANDRADE, p.)
afirma “queremos a revolução nacional como etapa da 15. MetaReciclagem é uma rede auto-organizada que
harmonia planetária que nos promete a era da máquina”. propõe a desconstrução da tecnologia para a
9. A respeito das 'técnicas do encantamento' na cultura transformação social. Mais informações em:
moderna, o antropólogo Alfred Gell observa: "O que http://rede.metareciclagem.org/
aconteceu com a magia? Ela não desapareceu, mas 16. Manifesto do Movimento dos Sem Satélites:
tornou-se mais diversificada e difícil de identificar. Uma http://devolts.org/msst/?page_id=2
forma que ela leva, como o próprio Malinowski sugeriu, é a 17. “Há alguns anos, os elementos (idéias, concepções,
publicidade. [...] Assim como o pensamento mágico fornece práticas, pessoas) que compõem a hoje difundida Cultura
o estímulo ao desenvolvimento tecnológico, a publicidade Livre, foram apropriados tanto pelo burocrata quanto pelo
também, através da inserção de produtos em um universo capitalista. Os que antes fizeram uso das tecnologias e
mitificado, em que todos os tipos de possibilidades estão meios disponíveis para criação de ações que
abertas, proporciona a inspiração para a invenção de proporcionassem o debate sobre novas perspectivas de
novos itens de consumo. arranjos sociais possíveis (conseguidas por ferramentas
A publicidade não serve só para atrair os consumidores como licenças livres, redes de comunicação, softwares de
para comprar itens especiais; com efeito, orienta todo o código aberto), hoje são digeridos pelos velhos aparatos
processo de concepção e fabricação do início ao fim, uma e mecanismos sociais que uma vez utilizavam e
vez que fornece a imagem idealizada com a qual o produto questionavam, participando, muitas vezes
final deve estar de acordo. [...] Os propagandistas, inconscientemente, apenas de um "treinamento sócio-
criadores de imagens e ideólogos da cultura tecnológica profissional" para que venham a ocupar as mesmas
são seus magos, e se eles não reivindicam ter poderes funções estabelecidas pelos até então mantenedores
sobrenaturais, é só porque a própria tecnologia tornou-se de um sistema que está distante do que imaginamos como
tão poderosa que não há necessidade de fazer isso. E se um agrupamento humano possível, muito menos livre”. A
nós já não reconhecemos explicitamente magia, é porque a convocatória completa do Festival Submidialogia pode ser
tecnologia e a magia, para nós, são uma e a mesma coisa" acessada em:
(GELL, 1988) http://dev.midiatatica.info/wikka/SubMidialogia
10. Discurso transcrito em: 18. Ao que nos parece, em sentido próximo a este,
http://www.commentarymagazine.com/article/the-golem-of- Beatriz Preciado formula a noção de tecnoxamanismo
prague-the-golem-of-rehovoth/ como um “sistema de comunicação interespécies”
11. “Economicamente, o digitalismo acredita que quase (PRECIADO, 2014)
toda a reprodução de dados digitais livre de gasto de
energia pode emular a produção de material de alto
dispêndio energético. Certamente, o digital pode
desmaterializar qualquer tipo de comunicação, mas não
pode afetar a produção de biomassa. Politicamente, o
digitalismo acredita em uma economia de troca (dádiva)
mútua. A Internet seria, supostamente, livre de qualquer
exploração e tende naturalmente a um equilíbrio social.
Nesse contexto,
o digitalismo funciona como uma política desencarnada
sem reconhecimento do trabalho off-line que está
sustentando o mundo on-line (a divisão de classes que
precede qualquer exclusão digital). Ecologicamente, o
digitalismo se autopromove como ambientalmente
amigável e uma maquinaria de emissão nula contra a
poluição do antigo fordismo” (PASQUINELLI, 2012, 54).
12. “Vejo o perspectivismo como um conceito da mesma
família política e poética que
a antropofagia de Oswald de Andrade, isto é, como uma
arma de combate contra
a sujeição cultural da América Latina, índios e não-índios
confundidos, aos paradigmas europeus e cristãos. O
perspectivismo é a retomada da antropofagia oswaldiana
em novos termos (VIVEIROS, 2007, p.129)”
13. Analisando a relação da Ação Cultura Digital com os
Pontos de Cultura, a pesquisadora Adriana Veloso chega à
seguinte conclusão: “A Cultura Digital não é somente a
troca de conhecimentos brutos e inadaptáveis, mas um
absurdo antropofágico, uma deglutição de conhecimentos,
de um país que está mais do que acostumado à
mestiçagem. Das oficinas, contatos e trocas ideias nascem
elementos híbridos, como computadores grafitados,
computambores (tambores digitais) e projetos de linux em
linguagens indígenas. A perspectiva é sempre da troca, não
da inclusão ou salvamento” (VELOSO, 2008, p.39)

72
TECNOXAMANISMO E A ESTRANHA
CIRCULARIDADE DO MUNDO
Carlos Eduardo Souza Aguiar1

Terráqueos! a novidade pressupõe o avanço. Mas,


Fala-se muito de algo novo no ar, desencantados estamos com essa ideia,
numa inédita atmosfera que nos engloba, quase totalitária, segundo a qual a dita hu-
fascinando-nos e aterrorizando-nos. De manidade avança, numa marcha ine-
fato, alguma coisa diferente existe neste xorável, rumo ao progresso, ao mundo
nosso mundo contemporâneo. Mas, tal- perfeito. As máquinas e as tecnologias
vez, diferente não signifique, necessaria- seriam, nessa moderna perspectiva,
mente, novo. Antes, o diferente pode meros instrumentos humanos para acele-
significar o retorno. ração deste objetivo final: o paraíso ter-
Daí, o tecnoxamanismo. restre.
Dessa curiosa junção entre o ar- Ora terráqueos, a modernidade dos
caico e o técnico que o constituem, en- humanos se levantara contra todos os
fraquece-se a tese do devir linear do misticismos e superstições, alijando-os ao
mundo, o que não significa, tampouco, um museu dos arcaísmos selvagens. Porém,
retorno ao mesmo. Trata-se do devir espi- curiosamente, esse ímpeto racionalista
ralesco e não simplesmente cíclico. É a baseava-se também em uma narrativa,
partir das técnicas de ponta, sobretudo aquela judaico-cristã.
digitais, que se recupera essas dimensões E não é, então, que a sociedade
que soberbamente acreditávamos já ul- ideal, projetada por capitalistas, comu-
trapassadas, neste nosso caso, o xama- nistas, iluministas, nada mais foi que uma
nismo. tosca retradução profana da nova
Permitam-me, assim, endereçar- Jerusalém? A razão e a ciência moderna
vos esta mensagem que tem como único por mais que buscassem expurgar todos
e singelo objetivo traçar algumas pistas in- os mistérios do mundo, estavam fincados,
terpretativas deste nosso tempo a partir ou mesmo enraizados, na narrativa reli-
da imagem forte do tecnoxamanismo. giosa, de mãos dadas na aparente con-
Valer-me-ei, aqui ou acolá, de certos pen- tradição das teses e absoluta identidade
sadores para endossar a perspectiva que dos fins. A modernidade, perversamente,
traçarei, mas, sobretudo, relatarei uma buscou concluir, com mais eficiência, um
percepção de mundo que, embora pes- processo iniciado anteriormente pelas re-
soal e subjetiva, é compartilhada por ligiões do livro, religiões da verdade reve-
muitos de nós, atentos que estamos à sa- lada, do Deus único. Este processo é
turação de um certo mundo e a emergên- aquele de desencantamento do mundo,
cia de outro, acompanhado do barulho da eliminação das diferenças e dos po-
das efervescências e da dor dos partos liteísmos.
difíceis. Para tanto, há que sublinhar,
Dizia que uma das características grandes rupturas foram operadas ou in-
mais evidentes do mundo contemporâ- tensificadas, cultura e natureza passaram
neo, portanto, não é o novo, o inédito, pois a ser distintas esferas e o sujeito passa

73
ser oposto ao objeto. Eis, então, os ele- deste antropocentrismo que exauriu a na-
mentos principais da própria gênese da tureza, perante o qual o cenário é cada
tecnologia moderna, ferramenta da lógica, vez mais catastrófico. Mas há um outro
instrumento humano de dominação desse efeito, este nem um pouco perverso, um
grande obstáculo a ser conquistado e ad- sinal fraco que aponta para um retorno à
ministrado: a natureza. ancestralidade, justamente graças a estas
Grande era a pretensão humana e novas técnicas disponíveis. Celulares e
grande foi seu fracasso. Acreditava-se, tabletes não são, apenas, meros instru-
pretensiosamente, que o mundo, de fato, mentos de comunicação, mas nos conec-
desencantara-se e que estávamos cada tam com a alteridade, seja o outro social,
vez mais próximos da perfeição, no cami- o outro natural ou, até, o outro sobrena-
nho reto da razão. Mas, como diz Niet- tural.
zsche numa famosa página do crepúsculo Talvez isto não esteja absoluta-
dos ídolos, o mundo verdadeiro, enfim, mente claro para nós, o que vemos é o
tornou-se fábula. Isto é, a modernidade sinal forte, acostumados que estamos à
nada foi além do que uma narrativa entre dimensão instrumental dos aparelhos.
tantas, e o progresso um mito entre tan- Mas o sinal fraco está aí, visível na cres-
tos cujas raízes estavam fincadas na cul- cente tomada de consciência da falência
tura monoteísta. do modelo moderno pelas novas gera-
Cansamos de esperar o mundo ções, na preocupação com a diversidade
perfeito. O que alcançamos, ao contrário e cultural, social e ambiental, entre outros
ironicamente, foi a devastação do mundo. pequenos sinais. Não quero dizer que
A crise ambiental na qual nos encon- tudo isso é consequência lógica das
tramos é testemunha. Invariavelmente, novas tecnologias. Antes, gostaria de su-
não titubeamos em responsabilizar a tec- gerir que essas tecnologias desvelam
nologia: a eminência do fim do mundo essa dimensão que durante toda a moder-
seria o fruto de sua proliferação que in- nidade estava ali, no subterrâneo. Inspiro-
festara a superfície do planeta e a órbita me, aqui, nas ideias de um controverso
espacial e dominara nossas vidas, es- filósofo chamado Martin Heidegger, que
gotando os recursos da natureza e tor- num famoso texto intitulado “A questão da
nando o ecossistema planetário inabitável Técnica2” afirmou que sua essência não
para muitos de seus seres. A tecnologia, é, em si, algo de técnico, é, antes, uma
como instrumento do homem, seria a forma de desvelamento, de revelação de
grande responsável pela insurgência de um mundo.
uma nova era geológica, a antropoceno. Seguindo esta argumentação, po-
Isto significa que a espécie humana demos considerar que se de um lado
deixará suas marcas físico-químicas no temos as técnicas industriais e as
planeta por milhares de anos, mesmo com máquinas que revelam um mundo linear e
o seu desaparecimento. uma natureza a ser explorada, as novas
Diagnóstico justo, mas não abso- tecnologias digitais revelam um mundo
luto, afinal, como avisava o poeta alemão mais circular e uma natureza perante a
Friedrich Hölderlin: “Ali onde mora o qual devemos entrar em sintonia. Aqui,
perigo, cresce também a salvação.” Pois podemos fazer referência a outro pen-
vejamos: a tecnologia seria o instrumento sador alemão, Walter Benjamin, que
de aceleração do progresso, e o efeito numa célebre passagem de seu texto “A
perverso foi a devastação do mundo. Este obra de arte da era de sua reprodutibi-
é o sinal forte do nosso tempo, resultado lidade técnica3”, dizia que a natureza que
74
fala para o olho da câmera fotográfica é Pois bem, nesse caso ancestral,
distinta daquela que fala para o olho hu- não se trata de um uso instrumental, de
mano nu. Podemos extrapolar essa ideia uma ferramenta que deliberadamente
para todas as técnicas com as quais os emprega-se para alcançar determinados
homens estabelecem relações. Cada téc- fins. Trata-se, antes, de atravessamentos,
nica revela uma distinta natureza, pois, fundamentais para a constituição do
como dizia Marshall Mcluhan4, o meio é a próprio ser no mundo. Há, nessas popu-
mensagem. lações, uma sinergia mística entre a téc-
Trata-se, no caso contemporâneo, nica e a magia, absolutamente visível nas
de uma natureza revelada próxima aquela práticas xamânicas, nas quais antes de
da oralidade, isto é, há uma outra possuir os objetos, os envolvidos são por
afinidade com nossos artefatos que nos eles possuídos. Diferente do mundo mo-
remetem à relação ancestral com as téc- derno, como bem sublinha o filósofo
nicas, por exemplo, aquelas estabelecidas francês Gilberto Simondon6, nessas so-
no xamanismo originário. Os estudos ciedades há uma indistinção entre a dita
etnográficos ou o contato direto com os ín- realidade humana e a dita realidade obje-
dios revelam-nos que as técnicas não são tiva, o que existe, segundo o pensador e
uma exclusividade do homem branco, ci- como podemos também constatar obser-
vilizado e moderno, revela ainda que o vando tais sociedades, é uma rede na
tipo de relação estabelecida é qualitativa- qual não existe uma distinção entre o na-
mente distinta, o que, evidentemente, tural e o artificial.
pode ensinar-nos muito acerca da con- Nesse sentido, o xamanismo origi-
temporaneidade. Eis dois pontos funda- nário é, porque não, também tecnoxa-
mentais a serem observados. manismo. O xamã, a partir das técnicas –
Primeiramente, trata-se de um pre- seu corpo e certos artefatos naturais sub-
conceito etnocêntrico brutal a ideia de que vertidos de sua função originária, como
a tecnológica é a sociedade moderna in- pedras – acessa um mundo invisível, ma-
dustrial ou, no melhor das hipóteses, as so- nipulando-o. Esses objetos e o próprio
ciedades que conhecem a escritura. Não! xamã tornam-se, ritualisticamente, mé-
Toda cultura é uma tecnocultura. Não há dium a partir dos quais os coletivos aces-
qualquer notícia de que houve civilizações sam o sagrado. Essas mídias sacralizadas
que prescindiram da técnica, pois ela é não são meros instrumentos ou inter-
nosso acesso único ao real, empregamo- mediários neutros, mas participam ativa-
las a fim de alcançar resultados em um am- mente na hierofania, isto é, na
biente. Hipoteticamente, somente numa manifestação do sagrado.
atmosfera isolada – um jardim protegido e Um pensador importante das
estável, o jardim do Éden – poderíamos histórias das religiões, Mircea Eliade7,
viver sem técnicas. Não escolhemos uti- fornece-nos interessantes elementos para
lizá-las, pois, já estamos imersos, e sem- pensar essa relação. Para ele, existe três
pre estivemos, num mundo técnico. Por elementos em uma dada hierofania: um
isso naturalmente somos ciborgues, assim objeto natural no qual o sagrado se mani-
como também os índios são naturalmente festa; a realidade invisível ou mundo so-
ciborgues5. Somos seres híbridos por ex- brenatural; e o elemento mediador, aquele
celência! Logo, nota-se que mesmo uma mesmo que confere ao objeto uma nova
pedra, manipulada, subvertida de sua dimensão no momento da manifestação
função dita natural, torna-se uma técnica, ou do sagrado, no caso do xamanismo, o
até nosso próprio corpo, torna-se técnica. corpo do xamã ou os artefatos por ele
75
utilizado, como raízes e pedras. Um ob- presariais e jornalísticas para constatar-
jeto sacraliza-se quando se torna outra mos a validade dessa desesperadora as-
coisa que ele mesmo. O sagrado, pois, sertiva, os Guarani Kaiowa que o digam: o
encontra-se na própria gênese do objeto mito do progresso perdura e o lugar dos
técnico. outros é à beira das estradas, agonizando,
Não seria estranho, portanto, con- ou, quando muito, nas periféricas das ci-
siderar nossos aparatos digitais – celu- dades, convertidos em pobres, uma ver-
lares, tabletes, etc. – também como são diminuída do homem branco.
objetos mágicos e sagrados. Entretanto, Mas veja que curioso, se hoje
essa dimensão das técnicas perdeu-se no sabemos do drama desses coletivos que
decorrer na dita modernidade, tornaram- não se encaixam no projeto progressista
se ferramentas de ação do homem e a oficial é graças a certas tecnologias de co-
tecnomagia converteu-se em tecnologia, municação como a Internet, o mundo
instrumento da lógica. Por isso, parece tão torna-se, enfim, uma aldeia global. Surge,
estranho essa concepção mágica das téc- assim, uma oportunidade a todos nós, ter-
nicas digitais aos olhos mais conser- ráqueos, de darmos um passo atrás, em
vadores. Mas, apesar de enfraquecida, a direção a nossa ancestralidade, rom-
dimensão estava lá, escondida e, agora, pendo, deste modo, não a marcha do pro-
parece que emerge à superfície com toda gresso, mas o nosso declínio.
sua potência. Os aparatos técnicos surgem, é im-
Vale a pena insistir sobre esse fato: portante destacar, como fármacos, ora
o homem, imagem e semelhança do Deus como remédios, ora como veneno. De-
único criador, empregou das técnicas para pende da dose e da posologia. Preferi-
converter a natureza selvagem em mundo mos, até por uma questão de so-
perfeito. Eis o cerne do humanismo mo- brevivência, destacar os efeitos de cura da
derno que resultou na devastação do técnica, tal qual o xamã que emprega uma
planeta e na eminência da desaparição de dada raiz, em uma dimensão holística do
muitos de seus habitantes. mundo, para reequilibrar um corpo desar-
Gaia está doente! mônico. Logo, essas técnicas digitais
A saturação do projeto moderno podem revelar-nos essa ancestralidade
significa, portanto, a saturação do huma- que nos pertence, reencantando o mundo.
nismo e a emergência de uma nova situa- Em efeito, são diversos os modos
ção que alguns denominam de pós- que o reencatamento, ou, por que não, a
-humanismo. Independente do nome aparição de gaia, se dá a partir das téc-
dado, o importante é a desestabilização nicas e acredito que é oportuno destacar
de certas fronteiras que essa nova situa- alguns. Conforme já brevemente apon-
ção aporta ao dar ênfase aos terráqueos, tado e como todos nós podemos cons-
isto é, a todos os seres, humanos ou não, tatar, é notório que a disseminação da
que habitam nosso ambiente. internet e seus aparatos diminuem as
O projeto moderno saturou-se, mas distâncias e aproxima os povos e os co-
certa elite conservadora não o compreen- letivos, sejam eles humanos ou não.
deu, agem, ainda, guiados por essa luz Tomamos conhecimento, por exemplo,
que dizem enxergar no final da história. O das atrocidades que os povos do baixo
fato é que essa dissonância causa uma Xingu são submetidos sem a intermedia-
aceleração, ainda mais contundente, na ção dos jornalistas, a partir do relato dos
devastação. Basta lançarmos o olhar nas próprios índios via web. Eis ai um efeito
práticas governamentais, intelectuais, em- comunicativo mais imediato.
76
Outro efeito mais sutil ocorre analítica entre ocidente e o mundo sel-
graças à digitalização de territórios, vagem, mas do declínio do humanismo e
processo que introduz no interior da dita a aceitação de que todos somos ter-
natureza novos elementos, como chips, ráqueos ou terranos que compartilham
GPS, satélites, etc. Evidentemente, se Gaia, o lugar dos lugares, e que as técni-
pensarmos dentro de uma concepção cas participam de novos agenciamentos
ecológica ou ecossistêmica, essa intro- que apontam os limites da modernidade
dução não é neutra, antes, é capaz de ocidental.
metamorfosear a natureza em códigos al- O fim de um mundo não é o fim do
fanuméricos, permitindo, assim, a inter- mundo. Quando cessa a evidência de
conexão de todos seres terrenos e uma ideia na qual se baseava determi-
extraterrenos8. Tais atravessamentos de- nada época, outra constelação aparece
sestabiliza as sólidas barreiras erguidas e novas imagens fazem-se necessárias
na modernidade, nós e eles, sujeito e ob- para ilustrar as novas dinâmicas. Eis a
jeto, sociedade e natureza. Não se trata potência criativa da noção de tecnoxa-
de uma fantasia fusional, isto é, na elimi- manismo.
nação absoluta das fronteiras, mas de Uma imagem que traz em si essa
atenuá-las, complexificá-las, chegando ao aparente coincidência de oposições que é
ponto, por que não, de destruí-las. A des- o técnico e o xamanismo, retrato deste
estabilização, se potente, pode arruinar as nosso período de crise e de transição de
dicotomias, o que, diferente de uma mundos, a época da sinergia entre o ar-
aniquilação, deixa traços, entulhos, em caico e o digital9. Trata-se de uma noção
cima dos quais se construirá, necessaria- aberta e em constante reelaboração,
mente, novos agenciamentos, novas di- usada para agregar vários métodos de in-
nâmicas que recuperarão aquela imensa tegração das técnicas eletrônicas e digitais
teia a qual Simondon fazia referência. no interior de práticas xamânicas. O tec-
Contudo, é na própria relação que noxamanismo busca tecer laços numa teia
estabelecemos com estes aparatos digi- mágica que muitos adeptos identificam
tais que, talvez, reside o aspecto mais in- com Gaia, buscando inspiração na arte, na
teressante. Olhemos ao nosso redor, na natureza, na cultura e na técnica. Nesse
nossa vida cotidiana, e não teremos difi- sentido, o próprio ambiente das redes é,
culdade em reconhecer que todos esses antes de tudo, um espaço sagrado.
objetos que fazem parte de nossa experi- As leituras são inúmeras ao redor
ência do mundo, não são instrumentos do planeta. Destacamos a leitura bra-
que empregamos para determinados sileira, em particular a realizada pelo
fins, mas, são eles que definem nosso grupo que organizou o primeiro festival de
modo de estar no mundo. Conectados às tecnoxamanismo10 em abril de 2014 em
redes digitais, conectamos, também, a Arraial d'Ajuda, sul da Bahia. A forma “fes-
um todo mais vasto, que inclui a na- tival11” colabora para essa visibilidade que
tureza, todas as alteridades orgânicas, diversos atores e movimentos praticam no
inorgânicas e invisíveis. cotidiano, pois permite agregar num con-
Esta outra relação com as novas texto de nostalgia comunitária o imagi-
técnicas e a eminência de nossa desa- nário ancestral, dos pequenos gestos
parição aproxima-nos, enfim, a essas ou- ritualizados, e formas sociais festivas e al-
tras alteridades que tanto desprezamos: tamente tecnológicas, que tendem a efer-
uma questão de sobrevivência. Por isso vescência, isto é, às festas, orgias e
não se trata mais de uma oposição fetiches. A mística em jogo é o acesso ao
77
Fotos: Luiza Soh.
Intervenção de Laura
Sobenes do Laboratório
de Práticas Rituais e
Tecnoxamanismo
realizado por Fabiane M.
Borges no Instituto
Goethe, São Paulo, 2014.
sagrado a partir das técnicas: das ances- quando o mundo acaba, sobretudo, é
trais, como os utensílios indígenas, as necessário agir, ou melhor, colaborar. Para
eletrônicas e digitais. Os objetos não são os índios da América o mundo acabou há
percebidos como algo externo, como um séculos e, ainda assim, resistem.
mero instrumento, mas como elementos Resistamos todos, então, às trevas
portadores de dignidade ontológica, fun- sem fim. Os limites perante os quais nos
damentais para determinar nossa forma deparamos nesse fim de um mundo não
de habitar o mundo, ao lado dos elemen- será o ponto no qual tudo acaba, mas o
tos naturais, espirituais, etc. ponto a partir do qual outro mundo passa
Há um desejo compartilhado de a ser: o homem torna-se terreno e o pla-
subverter a lógica da técnica, atribuindo- neta torna-se Gaia. Daí, repito, o tecno-
lhe dimensões mágicas. Neste sentido, o xamanismo!
xamanismo, em si uma técnica ancestral,
pode colaborar a aprofundar nossa re- Um dos tantos nos da rede. Paris,
lação com a técnica, em dimensões mais outono de 2014
profundas e mágicas, no limite, trata-se de
um resgate, um novo religare com a na-
tureza e com as dimensões espirituais, a
partir das novas tecnologias, que, ao
gosto da ética hacker, pode ser usado
para manipular a natureza, para entrar em
sintonia com seus mistérios. O próprio
xamã é tido como um hacker da natureza,
um mediador, um decodificador de códi-
gos. Nessa leitura brasileira a técnica é o
próprio espaço de reflexão, o ponto a par-
tir do qual as tradicionais dicotomias bina-
rias do humanismo, como entre natureza
e tecnologia, ciência e religião e humano
Notas:
1. cadu.s.aguiar@gmail.com
e não humano, podem ser superadas. 2. HEIDEGGER, M. La question de la technique. In:
Trata-se de uma imagem forte que
Essais et conférences. [Paris]: Gallimard, 1980.
3. BENJAMIN, W. A obra de arte na época de sua
simboliza, dentro de uma perspectiva reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Ed. Zouk, 2012.
holística, um outro pacto com a alteridade 4. MCLUHAN, M. Os meios de comunicação como
extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1995.
no qual os objetos técnicos devem ser le- 5. PEREIRA, E. DA S. Ciborgues indígen@as.br: a
vados em conta na busca da harmonia presença nativa no ciberespaço. 1a. ed. São Paulo, SP,

com o todo. Assim, neste retorno do pa-


Brasil: Annablume, 2012.
6. SIMONDON, G. Du mode d’existence des objets
ganismo, subverter o mero caráter instru- techniques. [Paris]: Aubier, 2012.
mental e utilitário das técnicas é condição
7. ELIADE, M. O sagrado e o profano a essência das
religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
fundamental para o equilíbrio com o cos- 8. DI FELICE, M.; TORRES, J. C.; YANAZE, L. K. H.
mos e para a harmonia com Gaia. Redes digitais e sustentabilidade - as interações com
o meio ambiente na era da informação. São Paulo:
Falo na condição excepcional de Annablume, 2012.
quem é somente um membro dessa rede 9. MAFFESOLI, M. Saturação. São Paulo: Iluminuras,

que, como muitos, ao ingressar nessa


2010.
10. http://tecnoxamanismo.hotglue.me
trama mística, digital e ecológica percebe, 11. GONZALEZ, C. Três mil Km - O ônibus, o
humildemente, que novos parâmetros
tecnoxamanismo e os Pataxós (Documentário), 4
maio 2014. Disponível em: < http://goo.gl/dRuoSf >.
de ação são necessários nessa época de Acesso em: 24 maio. 2014
fim de um mundo. Sim, porque mesmo
82
TECNOXAMANISMO
Pilantröpóv

A figura do xamã sempre me in- educação da respiração e danças inten-


trigou muito. Demorou um tempo para sas. A educação em técnicas de êxtase é
que ela ficasse um pouco mais clara em a principal função do xamã. Esse êxtase
minha mente e ainda guarda muitos mis- pode ir do puro hedonismo sexual ou artís-
térios. A magia tem muitos mistérios. O tico até os mais “elevados” estados men-
xamã tem o poder de adentrar em mun- tais de “iluminação”. A pessoa comum
dos paralelos que vibram em padrões encontra sentido numa crença, num ideal
mais sutis do que a já complexa – O Xamã só encontra sentido na expe-
chamada “realidade” acordada pela lin- riência direta.” (livro Cyberxamanismo).
guagem. Uma experiência que começa Vários estudos apontam, diversas
com a coragem e a curiosidade, passa vezes, para a questão da experiência di-
pelas forças do fenômeno e bebe do reta. Só assim o xamã poderá saber com
tempo presente, para depois organizar a sinceridade, em seu coração, a verdade
experiência vivida de maneira racional contida na experiência. Esse método in-
através da linguagem, da memória vestigativo é uma técnica que ajudaria DE-
sensível. E outros mecanismos de im- SEXTRATIFICAR pessoas da ilusão
pressão. Assim, um ciclo pode se com- criada por simulacros que visam manter
pletar para que uma nova viagem seja tudo sob controle extremo. Vejo neste
feita. O xamã regressa à sua tribo para caminho um sentido profundo de liberdade.
compartilhar sua sabedoria. Em seu re- Aceitar a ambiguidade das coisas.
torno ele deve demonstrar humildade e Encarar a polissemia de sentidos, signos
gratidão oferecendo seus ensinamentos. e símbolos. Enfrentar a dualidade de
O xamã bebe diretamente do arquétipo opostos que se alterna, se completam e
do herói, por sua coragem em enfrentar se repelem para poder superar as duali-
espíritos maus, por exemplo. Nesta opor- dades. Nenhuma dualidade deve ser
tunidade o xamã encontrará mais um de- negada, assim assumiria uma carga ne-
safio, dissolver sua vaidade, sua sombra gativa desequilibrando forças. Tanto a ca-
egóica. E mostrar respeito pelos demais bala quanto o zen acreditam que toda
seres e seus caminhos e vivências de dualidade seja uma ilusão. Assumo por
sabor particular. Esta é uma tarefa dura ora essa premissa como uma hipótese e
que demandará paciência para lidar com sigo a luz do mistério.
tamanha responsabilidade que é ser um A pós-modernidade marcada pelas
guia espiritual. De outra maneira o xamã poéticas individuais, incorporou dentre
não poderá acreditar em si mesmo. Ser suas habilidades o desconstruir, ado-
sincero consigo mesmo é fundamental. tando como símbolo de seu inicio as
“O principal objetivo era a media- bombas atômicas. Nota-se que o sa-
ção do terreno com o espiritual, do real grado esconde sua origem, a linguagem
com o ideal. As técnicas de transe varia- que traduz a experiência trai a própria ex-
vam muito, de drogas diversas ate a periência, usando a narrativa de símbolos,

83
representações, distanciando a experiên- mos com eles, fiquei emocionado e lem-
cia dela mesma e conduzindo para a ma- bro de ter empossado meus óculos.
nipulação de sistemas de crenças. Um Fiquei comovido com a luta e força de re-
dos principais pontos de meu interesse na sistência do povo Pataxó. No dia
vivência xamânica é de como o sagrado seguinte o pessoal foi ate a tribo con-
se constrói e como se desconstrói. hecer todos e oferecer oficinas.
Onde o xamã é um artista do Pudemos presenciar a celebração de um
sagrado, onde a criatividade inspirada casamento pataxó, a festa estava linda,
pela natureza e conectada com o cosmos conhecemos a Pagé da tribo, um mo-
pode escolher plantas para experimentar, mento super auspicioso, era o quarto
fumando, comendo, banhando-se, etc. Ex- casamento tradicional em dez anos.
perimentar faz parte dos ritos de iniciação. Durante a tarde começamos os
Outra qualidade do xamã é a preparos para o ritual à noite. Mace-
transmutação, o poder do caos primordial rando Wactchuma, um cactos sagrado
que tudo muda. Impermanência, devir que a Tissa trouxe da Patagônia.
eterno, fonte de renovação, vazio pleno. Ayahuasca. E também experimentamos
Transformar-se em luz, em animal, em algo sintético, PCP, um dissociativo mis-
mulher, em diversas outras entidades e turado em um chá de hibisco. O Kaloan
seres que lhe habitam, deixar-se incor- havia construído junto com o pessoal
porar, ritos de passagem, raios cósmicos uma geodésica usando paus de beribas,
holográficos, mirações de paterns frac- para abrigar os rituais, que tinham a pro-
tais. Visões, premonições vindas do in- posta de acontecerem em um espaço
consciente galático. Ser arrebatado por não verbal. Este setor acabou se tor-
forças enigmáticas. Não se assustar nando um dos três espaços propositivos
diante do sublime. do festival no sitio, junto com a cozinha e
Demos um duro danado para o Hacklab Space. No outro dia fomos à
chegar até a Bahia. Antes fizemos uma praia, alguns lugares eram desérticos e
festa no teatro oficina, em São Paulo, maravilhosos, outros cheios de turistas
para arrecadar parte do dinheiro que nos nada a ver. E ao cair da noite um outro
levaria ate lá. Pois a vaquinha feita na in- ritual para queimar a geodésica, ficamos
ternet não havia alcançado o montante lá a noite inteira alimentando a fogueira
necessário para partirmos, e a Fabi com a estrutura. Foi incrível sentir a ener-
Borges que estava coordenando os movi- gia de todos os santos que é muito espe-
mentos para o festival acontecer ainda cial na Bahia, e ajudar a criar e participar
teve que ajudar com grana. No caminho de rituais tão únicos. Esta foi a primeira
fomos como hippies doidos em uma tour edição do festival. Tinha um clima mais
cheia de liberdade romântica, dentro do intimista. De lá um núcleo de pesquisa se
Ônibus Hacker todo grafitado e paloso, formou, com pessoas que tem o interes-
ouvindo um som, etc. Ansiosos para se no xamanismo sujo, a mistura típica
chegar ate o encontro com a tribo Pataxó do Brasil de crenças ecumênicas. Que
e com todos os outros que participaram venham as outras edições!
do festival e não viajaram com a gente.
O ônibus quebrou varias vezes durante o
caminho e tivemos de dormir alguns dias
a mais na estrada. No dia seguinte, a
chegada ao cair da noite, fomos rece-
bidos pelos índios. Dançamos e canta-
85
Ritual na Geodésica e
Ritual de abertura com
a juventude do povo
Pataxó no I Festival
Internacional de
Tecnoxamanismo.
Fotos: Nubia Abe, 2014.
88
QUE MEMÓRIAS
SÃO ESSAS?
Danilo Lima

Do efeito que causa um efeito corremos, utopia, verdades,


que repercute até nessa vida modificada por outras
minha escrita, ou, que vidas. Não sou/somos mais os
memórias são essas? mesmos. NÃO. Como resultado
O Coletivo Pleorama saiu de artístico de um ano de
Salvador – BA para Arraial pesquisa do Pleorama, nasceu
D’ajuda-BA com nenhuma o TECNOSACRIPIXEL, o nosso
certeza, apenas vontades de rito de passagem, o nosso
encontros, somos feitos de diálogo, a nossa coexistência
encontros. Em nossa bagagem acreditada. Foi necessário,
tinha também figurinos para foi modificador entender a
as performances e que, por alquimia levantada por
fim, se transformaram em aqueles que vinham de antes
deliciosos momentos e daqueles que vinham de bem
compartilhados naquele mais antes de todos aqueles
espaço/tempo de pessoas com de antes. Reverbera. Engoli.
brilhos naturais. A cada Agora é saudade e com desejos
momento uma estrela no céu de retorno perto do Rio São
limpo e infinito brilhava Francisco ou de então dentro
como faísca vindo da fogueira da Amazônia junto com os
daquela tribo urbana xamã. povos originários. a alquimia
xamãs. urbanos. que foi dada tomei, respirei,
Estavámos em processo, o suei, me apaixonei e está
Pleorama, o Bernardo Santos, mais bonito cada passo que
o Irlan Tripolli, o Heron Sena, dou ao encontro de algum
o Eduardo Machado, juntos em outro e das palavras que
finalização de nossas falo sobre estas memórias,
imersões, indo de encontro elas vem direto do coração.
com rituais de diferentes Festival de Tecnoxamanismo
regiões. Chegamos ao em Arraial D’Ajuda – BA, 2014
TECNOXAMANISMO. O ambiente
transporta você para outros
segundos de tempo, entramos
nele. Vivemos!
Dançamos, sorrimos,

91
Viagem do Ônibus Hacker
para o I Festival Internacional
de Tecnoxamanismo, 2014.
Fotos: Nubia Abe.
Despedida do I Festival
Internacional de Tecnoxamanismo
na Aldeia Velha Pataxó, 2014.

Olimpíadas Inter
Aldeias Pataxós.
Fotos: Nubia Abe.

94
TECNO
XAMANISMO
Luiza Soh

Meu envolvimento com o tecnoxa-


manismo começøu na internet. Entrei em
um grupo de facebook sem saber direito o
que era, e até hoje não sei direito dizer o
que é, porque fui percebendo que os cami-
nhos que nos levam a esse encontro de
tecnologia e xamanismo são infinitos e atu-
ais em qualquer tempo. Percebo através
disso tudo a vida como um enorme pre-
sente ( essa perspectiva ganhei da cultura
indígena, corroborando com intuições que
eu já tinha a respeito do Tempo), me sinto
menos cobrada por mim mesma em re-
lação à resultados úteis dos meus insights,
vejo que é possível reprogramar a mente –
menos caricatural do que no filme Matrix e
mais palpável do que eu jamais supus.
Acabei fazendo o vídeo de cha-
mada pro I Festival que foi realizado na
Bahia e isso me colocou em contato com
expressões das mais diversas, que se
identificavam com esse termo novo. Para a
edição do vídeo, recebi materiais online e
me apaixonei por cores, imagens e sons
de pessoas desconhecidas. Fiquei ansiosa
por conhecer essas pessoas, tocada, vir-
tual e imageticamente, pela magia delas e
desde esse momento eu já me senti no
festival, já me senti próxima desses outros
seres, já me senti à vontade e com von-
tade pra sentar e conversar e saber mais
desses universos.
No período de concepção do vídeo
eu não estava legal, evoquei a morte nos
meus processos mentais e ela veio até
mim numa queda de bicicleta que me
deixou janeiro e fevereiro de cama, num
calor insuportável em Porto Alegre, imóvel,
questionando a vida e meus impulsos den-

95
tro dela. Quando me levantei, fui para São
Paulo visitar meus amigos, em busca de
amor, de estímulos que eu sabia que eles
poderiam me dar. Nesse momento entrei
em contato com a possibilidade de tomar
ayahuasca, e fui. Duas semanas antes do
festival tive minha primeira experiência
com essa bebida xamânica, e depois
dessa experiência se abriu em mim uma
vibração nova, uma percepção muito sutil,
de que em outra vibração se encontravam
essas coisas que eu procurava no estí-
mulo tão intenso da morte – e não sabia o
que eram, só sabia que elas existiam, em
algum lugar.
No festival toda essa inquietação
fez sentido, me aproximei de uma rede de
pessoas maravilhosas, que já haviam sen-
tido as mesmas dores que eu, e com
AÇÃO transmutaram e transmutam a cul-
tura limitadora em que estamos inseridos.
Foram alguns dias de transborde,
contato real e humano, através de tec-
nologia atual e ancestral. Minha vida
mudou ali, vi caminhos possíveis e resolvi
também me embrenhar nessa mata, bus-
cando com mais afinco, mais determi-
nação e consciência pôr em prática a
mudança que eu percebia sutilmente.
Não há respostas para o que é tec-
noxamanismo, e percebo que não bus-
camos respostas, essa coisa de explicar
não faz mais sentido pra mim. Vejo uma
rede cada vez maior de compartilhamento Fotos:
se formando, e me sinto parte dela. Parti- Nubia Abe
lhando descobertas, incentivando em mim Tamara Gigliotti

e nos meus queridos a curiosidade sobre


as perguntas sem respostas do universo,
o prazer da busca, as possibilidades in-
finitas do cosmos. Agradeço imensamente
estar vivendo tempos interessantes,
agradeço imensamente me sentir parte de
um todo sem limites, sempre mutante e
impermanente, curioso e intenso, ad-
mirável e admirante que é esse espaço de
vibração que divido com meus amigos
tecnoxamânicos.
96
REFLEXOS
TRANS.LÚCIDOS
Morgana Gomes

QUEREMOS SABER Dos dias 23 a 30 de abril de 2014, o


(Gilberto Gil) Laboratório de Corpo-Criação-Performan-
ce-Interferência participou do I Festival In-
queremos saber ternacional de Tecnoxamanismo, em
o que vão fazer Arraial D'Ajuda-BA. Durante esse período,
com as novas invenções ficamos imersos em uma floresta, entre o
queremos notícia mais séria sítio do Instituto de Tecnologia Alternativa,
sobre a descoberta da antimatéria Permacultura e Ecologia- ITAPECO, e a
e suas implicações Casa de Barro, que ficavam a 1,5 km de
na emancipação do homem distância entre si, e a alguns quilômetros
das grandes populações da Vila. Vivemos 8 dias de intensa experi-
homens pobres das cidades mentação sinestésica nessas habitações
das estepes, dos sertões coletivas, com produções diversificadas,
como culinária, rádio livre, geodésica para
queremos saber comunicação não verbal, terreiro eletrô-
quando vamos ter nico com projeções de imagens e sons,
raio laser mais barato videomapping nas árvores, performances
queremos de fato um relato individuais e coletivas, cena queer, foguei-
retrato mais sério ra, rituais alucinógenos e produção de co-
do mistério da luz nhecimento oral.
luz do disco-voador Viajamos cerca de 8 horas, em
pra iluminação do homem uma van da Universidade Estadual do
tão carente e sofredor Sudoeste da Bahia, a qual o LCCPI está
tão perdido na distância vinculado. Desde a nossa chegada, per-
da morada do Senhor cebemos a mudança climática e ambien-
tal, do frio seco do sertão urbano à
queremos saber atmosfera quente e úmida da floresta
queremos viver litoral. O deslocamento espacial favorecia
confiantes no futuro a imersão e implicava uma nova tempo-
por isso de faz necessário ralidade, Áion, o tempo da experiência e
prever qual o itinerário da ilusão da criação. A expansão das dimensões
a ilusão do poder espaço-temporais haveria de nos levar a
pois se foi permitido ao homem problematizações quanto ao ritmo de pro-
tantas coisas conhecer dução industrial ao qual estamos condi-
é melhor que todos saibam cionados, diante dos processos criativos
o que pode acontecer simultâneos proporcionados por um mé-
todo rizomático de produção. O LCCPI
estava diluído no processo do Festival,
compartilhávamos de uma mesma

97
condição metodológica, atuávamos de o Festival, relevando a autonomia de cada
forma caótica e dispersa. corpo e suas singularidades expressivas.
A Rede Social foi executada em um Esses processos se multiplicam em cada
fluxo instantâneo, após o jantar, na quinta produção posterior: cartografias sobre ou
noite de imersão. Trata-se de uma rede de a partir das experiências individuais que
nálion 13x5m, sustentada por um corpo constituem nossa (des)organização cole-
coletivo, em uma dança improvisada, tiva. A produção do LCCPI estava, tam-
aberta para participação do público. A bém, diluída na arte e ciência da culinária
Rede Social produz um ambiente rela- à qual recorremos para a invenção do co-
cional e interativo, um espaço-tempo de al- tidiano como prática de resistência e cul-
teridade através da relação dos corpos em tura ordinária. Multiplicamos nossas
movimento com a estrutura da rede e a pinturas corporais com as sementes de
dinâmica do espaço. O jogo produzido urucum colhidas no caminho da viagem, à
pela disposição dos corpos na rede e da maneira dos Pataxós, nossos parentes.
rede no espaço corresponde a uma subje- Durante o Festival, experimenta-
tividade compartilhada pela experiência da mos um modo de nos organizar coletiva-
alteridade como resistência ao modelo in- mente e admitir uma convivência com
dividualista do sistema dominante, além da novos laços sociais, que nos levaram a
ressignificação dos espaços e seus usos. choques de hábitos e valores. A intolerân-
Iniciamos a performance na geodésica da cia à diferença se sobressaía aos discur-
comunicação não verbal, onde estava a sos proféticos de um falso paraíso,
rede que fora levada por um dos nossos contaminado pelos ruídos da nossa subje-
colaboradores, em uma performance an- tividade superdotada de informações
terior, Nus que aqui estamos, por vós es- (in)dispensáveis, e necessidades produzi-
peramos. Abrimos nosso ritual com sons das pela cultura da cidade e consumo.
produzidos com os instrumentos dispo- As novas tecnologias estariam es-
níveis no local, os nossos corpos em movi- timulando processos de individuação
mentos e grunhidos. Deixamos a geodésica através de equipamentos para uso pes-
imersos na Rede, atravessamos o cam- soal e comunicação indireta, no tempo-es-
pping onde estavam algumas pessoas paço virtual? A internet seria responsável
que nos auxiliaram a desprendê-la dos pela crise global das estruturas vigentes,
pedaços de troncos e pedras pelo chão, mediando articulações sociais descentrali-
nos aproximamos do terreiro eletrônico, zadas, seja para contatos interpessoais ou
onde-quando começamos a interagir com movimentos de maior dimensão, como
uma sonoridade suave e projeções de luz ocupações de rua, festivais e encontros? A
em movimento, coloridas imagens sobre diversidade das expressões virtuais es-
os nossos corpos em rede. Os registros tariam condicionadas à diversidade dos
audiovisuais da Rede Social foram proje- usuários da rede? O acesso às novas tec-
tados nas performances subsequentes nologias da informação e comunicação de-
dos artistas do LCCPI, como As travecas terminariam, em alguma medida, o uso
da floresta, em um ciclo (des)contínuo de desses instrumentos? A apropriação téc-
produção. A Rede Social já havia sido ex- nica poderia nos levar a níveis mais ela-
perimentada na noite anterior, e estivera borados de magia? Estaríamos
instalada entre as árvores, durante os dias experimentando novos meios e ritmos de
do Festival. O Perfil sugerido pelo LCCPI produção, através de uma outra relação
referia-se ao desempenho individual de com o espaço-tempo e com as condições
cada colaborador do Laboratório durante tradicionais do trabalho? A técnica, não
98
seria, em si, apenas uma ferramenta po- como referência a nossa experiência co-
tencial à serviço das forças em jogo, no tidiana e imersiva, sem pretensões
qual observamos a reprodução da lógica racionalistas. O conceito Tecnoxama-
sócio-política-econômica hegemônica, di- nismo nos parece, ainda, obscuro, não
ga-se, capitalista, com novos monopólios e sabíamos, ao certo, por que estávamos
mecanismos de controle? Elas não seriam ali, havia um entrelaçamento de desejos
impassíveis qualificações, a priori, para e linguagens. Aliás, estamos fartos de
além do bem e do mal? As novas tecnolo- tanto conhecimento acumulado, não
gias estariam colaborando para a pro- queremos mais saber. Somos, ainda,
dução de uma subjetividade fragmentada aprendizes de feiticeiros, observamos os
e polifônica, em uma realidade concreta? astros, nossa alquimia é misturar imagi-
O espaço-tempo virtual seria a experiên- nários afro indígenas, budistas, cristãos,
cia do paradoxo, por excelência, na me- entre outras tradições, com as novas tec-
dida em que suporta um jogo de nologias digitais, buscamos o investi-
presença-ausência em uma esfera pú- mento do corpo em estados de presença,
blico-privada? A cultura digital alteraria, fi- a alteração dos estados da percepção e
nalmente, o comportamento das pessoas da consciência, somos a crise da hu-
ou as características elementares de uma manidade que grita junto com a natureza,
determinada cultura ou revelaria apenas remanescentes medievais.
uma expansão desses modos, como a
brasilidade emergente nas redes, estimu-
lada pelas políticas públicas federais im-
plementadas na primeira década deste
século, com uma apropriação relativa-
mente veloz da população brasileira? Vive-
mos tempos difusos, (des)construindo
conceitos, estruturas, modelos de organi-
zação social, relações espaço-temporais.
Essas rupturas, intensificadas pelas tec-
nologias digitais, nos levam a experimen-
tar novos modos de produção e difusão de
conhecimento, bem como experiências so-
ciais. A diluição das fronteiras nas imer-
sões produzidas por festivais como o
Tecnoxamanismo, seria uma boa tática
para a presentificação de nossos afetos
virtuais e o encontro das nossas aspi-
rações micropolíticas? A resposta é uma
grande dúvida: andamos em busca des-
ses pretextos. Curiosamente, as conver-
sas sobre a cultura digital no Brasil, na
rádio livre Itapeco, nos levaram à atualiza-
ção das nossas questões históricas, es-
cravocratas e coloniais.
A partir das provocações do Festi- Casamento de dois casais pataxós na Aldeia Velha
val, deixamos e levamos essas dúvidas, Pataxó, durante o I Festival Internacional de
Tecnoxamanismo na Aldeia Velha Pataxó, 2014.
a respeito do xamanismo digital, tomando Fotos: Nubia Abe.

99
Pajé Jaçanã na Aldeia Velha Pataxó. Foto: Nubia Abe.

100
XAMONAS:
XAMÃS + MONAS
Tiago Fioravante

Alguns seres que antes só eram Tudo vivido de maneira tão intensa. Isso
vistos em meus sonhos, de repente se foi apenas o início das XAMONAS, foi tão
tornaram imagens mais nítidas em minha especial, um momento de entrega.
cabeça. Eram seres da floresta, que no Eu me sentia quase numa experi-
meu dia a dia acabavam passando des- ência dos Radical Faeries (comunidade
percebidos, mas que agora poderiam 'não heteronormativa' que emergiu da con-
conviver comigo sempre que se sentis- tracultura norte-americana do final da dé-
sem à vontade. cada de 60). A identidade e cultura queer
A experiência do Tecnoxamanismo podendo ser vividas livremente no meio da
despertou um lado que antes eu temia mata. Toda esta energia concentrada cul-
explorar. Finalmente eu consegui aceitar minou em algo intenso relacionado ao meu
e desfrutar da companhia destes seres. corpo, à minha experiência espiritual e
Com eles eu me tornava mais forte. física neste cosmo.
Havia um sentimento de pertencimento, Retornando à São Paulo, continua-
de comunidade no ar. Era tão forte que mos a pesquisar sobre as relações entre
eu não sentia medo, apenas as vibrações o xamanismo e cultura queer, e também
e energia que emanavam das pessoas e explorando essa energia que havíamos
do lugar. experienciado durante o festival. Foi
Já durante o caminho São Paulo > então que o projeto ritualístico/perfor-
Arraial D'Ajuda, a identidade queer era mático XAMONAS começou a ganhar
compartilhada por alguns indivíduos. forma entre algumas pessoas que es-
Rodas de esmalte durante as paradas tiveram no Tecnoxamanismo e que es-
em postos de gasolina, conversas sobre tavam convivendo quase diariamente.
sexualidade e gênero eram muito co- A celebração do encontro da iden-
muns, afinal já fazia parte das vivências tidade queer com a cultura indígena.
de alguns de nós. A proposta é coletiva e acontece
Durante o festival, pessoas de de forma orgânica. Busca-se explorar
diferentes lugares acabaram se aproxi- momentos ritualísticos/performáticos que
mando, a identidade queer era um fator envolvam práticas xamânicas tradi-
comum. A minha aproximação se deu na cionais, relacionando-as com o ato de
varanda do sítio ITAPECO, quando acon- pintar as unhas, cantos de outras dimen-
tecia uma roda de esmalte. Esta primeira sões, aplicação de purpurina, celebração
vivência aconteceu de forma orgânica, do corpo e da montação como práticas
assim como todas as outras que surgiriam terapêuticas e de cura.
daí, sempre se desdobrando em associa- O projeto também faz uma relação
ções com o xamanismo e cultura queer. com a indumentária do xamã e a montaria
Era algo tão verdadeiro, pratica- das travestis e drag queens/drag kings - a
mente impossível de não sentir. Os preparação e processo de identificação
abraços, os afetos, os estranhamentos. com o que vai ser usado no ritual/apre-

101
sentação, como uma incorporação dessa DEFINIÇÕES:
energia presente no corpo que posterior- QUEER: A Teoria Queer se utiliza
mente se manifesta no xamã vestido e a de um termo (o queer) como forma de
travesti/drag montada. positivar um xingamento, ressignificando
O encontro entre o xamanismo e a e colocando o mesmo como uma prática
sexualidades não normativas não é algo de vida que se opõe às normas social-
recente. Há relatos de xamãs siberianos e mente aceitas.
da Ásia Central que durante rituais se MONA: Tem origem na língua
vestem com trajes do sexo oposto. Sem Nagô (Yorubá) e significa "mulher". Os
falar nos beardaches, ou two-spirits ('dois homossexuais adotaram a expressão
espíritos' em tradução livre), em comu- (que é usada na Umbanda e no Can-
nidades nativas da América do Norte. Ape- domblé) para se referir tanto a mulheres
nas para citar alguns exemplos, pois em quanto a outros homossexuais.
diversas culturas, a figura do xamã circula PAJUBÁ: Linguagem popular con-
entre os universos masculino e feminino. struída com palavras de vários dialetos
Alguns termos começaram a se africanos misturadas com palavras em
espalhar entre este grupo: 'na força da português, usada por travestis, homos-
peruca', 'rapecita', 'manicura', 'cerimona', sexuais e povo do santo.
'cujuntinho'... Surgindo inclusive um
glossário, similar à linguagem do Pajubá,
amplamente utilizada entre integrantes
da comunidade gay e afrobrasileira.
Foi algo que reverberou durante o
I FESTIVAL QUEER, que aconteceu de
maneira independente na ocupação Ou-
vidor 63, no centro de São Paulo. Além
do festival, XAMONAS continuaram no
SP NA RUA, reunião de coletivos que
acontece também na capital paulista, no
palco TENDADOQUEER + RG_Faleiros,
promovido pela prefeitura da cidade. No
inicio desta primavera, outra reunião 'xa-
monica', durante o ENCONTRO AUSPI-
CIOSO DE PRIMAVERA, festival
ritualístico que aconteceu em Ibiúna, no
Centro de Budismo Tibetano Maitreya,
conduzido pela monja/xamã Ani Sherabi.
É uma construção que acredito que
não tem um final, é apenas o processo em
si. Onde vamos conseguir chegar não im-
porta, afinal, a delícia mesmo é poder ex-
perimentar. Não nos definimos como
xamãs, mas sim xamonas. Somos XAMO-
NAS, em busca da cura dos corpos e do
mundo através da sexualidade.
Afinal, o processo de cura e liber-
tação do corpo envolve a sexualidade.
102
TECNOXAMANISMO
EM AARHUS
Carsten Agger

Quando eu vi o convite para o I é que normalmente (pelo menos aqui na


Festival Internacional de Tecnoxaman- Europa), os movimentos são fragmenta-
ismo em março 2014, eu imediatamente dos. Se você estiver interessado na popu-
achei que era algo especial e importante. lação sem-teto e nos direitos dos
Por que? Principalmente, porque a imigrantes, você não está necessaria-
chamada para a participação parecia ex- mente interessado em tecnologia e
pressar a união de nada menos que qua- hackers de comunidades livres. Se você
tro correntes intelectuais da qual eu me estiver interessado em liberdade e justiça
considero parte: social e, portanto, tenderia a apoiar os
movimentos Occupy e antiglobalização,
● O movimento de tecnologia livre você não é necessariamente muito inte-
e software livre - incluindo comunidades ressado em assuntos espirituais e o cor-
colaborativas e organizadas de baixo pra respondente sentimento de pertencimento
cima como hackerspaces, e projetos com à Terra. E se a luta é a biodiversidade e
desenvolvimento de código aberto e livre. contra a agricultura industrial e o consumo
excessivo geral que esta arruinando habi-
● O movimento para uma so- tats da vida selvagem da Terra e cau-
ciedade livre e aberta, juntamente com sando estragos no clima, você não está
um verdadeiro reconhecimento do valor necessariamente interessado em qual-
da diversidade cultural e contra a invasão quer um dos assuntos já citados.
de nossos direitos civis, como se proteger E isso é uma pena, porque por não
de políticas de vigilância almejadas por se perceber esses problemas inter-rela-
muitos governos ocidentais. cionados, cai-se facilmente na afirmação:
"não é com isso que estamos trabalhando
● O movimento para encontrar um aqui". Tecnoxamanismo, em outras pala-
caminho para nós seres humanos viver- vras, parece representar uma integração
mos em equilíbrio com a Terra, para res- extremamente necessária destas áreas
peitá-la e cuidar dela, e para evitar, se problemáticas num único movimento.
possível, as mudanças climáticas que Estas considerações são o que me moti-
ameaçam o nosso futuro. varam a participar do festival na Bahia, e
são suficientes pra afirmar que eu não
● A luta para dar sentido a experi- fiquei desapontado. A seleção de arte, cul-
ência espiritual da humanidade, incluindo tura, tecnologia e pessoas que eu conheci
religiões, magia, xamanismo, conhe- ali me deu uma esperança para uma nova
cimentos ancestrais e a necessidade de maneira de trabalhar com os movimentos
expressão artística. sociais e uma maneira de construir algo
que pode realmente afetar o futuro de mi-
O problema que eu encontrei na lhares ou, esperançosamente, milhões de
minha experiência com estes movimentos pessoas para melhor, apesar das perspec-

103
tivas muito desanimadoras apresentadas No final, as pessoas responderam
pelo pico do petróleo, mudanças climáticas e enviaram uma série de propostas, e a
e destruição dos recursos naturais. maioria delas foram adotadas pelo
Depois de voltar à Dinamarca, con- evento. O evento aconteceu no fim de se-
tinuei a trabalhar com permacultura no mana 22-23 de novembro de 2014, e foi
meu próprio jardim, para começar a viver um sucesso - com cerca de 30 partici-
as ideias tecnoxamânicas de sustentabi- pantes no sábado e 20 no domingo. O
lidade e equilíbrio com a natureza na evento foi organizado com nenhum orça-
prática. Eu também comecei a olhar para mento de fato.
fora, para os potenciais parceiros com os No sábado, o workshop de perma-
quais poderia formar redes de pessoas cultura começou às 10 horas, e pas-
que trabalhem com as mesmas ideias. samos o dia plantando árvores fixadoras
Então quando eu, por sorte, soube de nitrogênio e trabalhando com jardi-
que Fabiane Borges, organizadora do nagem de canteiro elevado. Na parte da
festival no Brasil, em colaboração com tarde, a localização do evento mudou-se
George Sander, iria a Bruxelas para par- para o hackerspace e nós trabalhamos
ticipar de uma conferência lá, nós rapida- com o seguinte programa:
mente concordamos que seria perfeito se
ela pudesse ajudar a organizar um evento ● Uma introdução ao tecnoxama-
tecnoxamânico aqui na Dinamarca du- nismo por Fabiane M. Borges, tocando na
rante a sua estadia. O evento aconteceria noção Yanomami de Xawara, o fim do
no Open Space Aarhus, maior hacker- mundo, a destruição de recursos naturais
space da Dinamarca, onde eu fui um e do uso da tecnologia para reverter
membro ativo por anos. esses processos como exemplificado
Na Europa, um problema enorme pela noção de descristalização, do artista
para estilos de vida alternativos é a uni- britânico Jonathan Kemp.
formidade devastadora da sociedade, o
controle estatal exagerado na vida cotidi- ● Falei sobre o estrangulamento
ana e a destruição quase completa da na- agrícola da natureza dinamarquesa e
tureza e da vida selvagem em favor da apontei que muitos sítios aparentemente
agroindústria. Como resposta a esta situ- idílicos neste país são, de fato, menos do
ação, decidimos que o tema do encontro que parecem, já que são fortemente
seria "autodeterminação, liberdade e sus- poluídos pelos campos de cereais planta-
tentabilidade no Antropoceno". dos à sua volta.
Decidimos também que desde que
um dos propósitos do encontro era o de ● Esben Hardenberg deu uma intro-
construir e fortalecer redes de pessoas dução ao afrofuturismo e explicou como
trabalhando em conjunto, ao invés de or- ele começa com o fato de que os escravos
ganizar uma conferência com "alto- americanos são vítimas de um genocídio
falantes" endereçados a uma "audiência", cultural: sua cultura africana foi roubada, e
enviamos um convite aberto para que sua história simplesmente começa com a
todos pudessem propor atividades que escravidão. Afrofuturismo é a tentativa de
achamos relevantes e distribuí-las tão am- criar um futuro glorioso para os afro-ameri-
plamente quanto podíamos. Decidimos, canos por meio de narrativas de uma
ainda, combinar o evento com uma ofici- ficção científica onde pessoas e tecnolo-
na de permacultura, que teve lugar no gia afro-americanas são parte importantes
jardim da minha própria casa em Randers. da exploração de tempo e espaço.
104
● A artista romena Ramona Au- ● Benjamin Christensen apresen-
gusta realizou uma dança do fogo xamâ- tou seu projeto para uma aplicação An-
nica com inspiração indiana. droid para ajudar os consumidores a fazer
as escolhas certas, sustentáveis. Sob
● A artista e compositora brasileira- condições ideais, você deve ser capaz de
dinamarquesa Marcela Lucatelli realizou digitalizar um código de barras em um su-
um ritual musical de cura com base em permercado e ter exibida na tela uma luz
tons únicos cantados em uníssono como vermelha se o produto tem problemas
um "ajuste dos chakras" e conexão com a ambientais ou éticos.
Terra e Universo.
● Dr. Birger Schroll fez uma apre-
Entre os convidados de fora na sentação completa de seu método para
noite de sábado estava o marinheiro e trabalhar com viciados e pessoas
médico Birger Schroll que passou muitos desabrigadas e sua esperança de ser
anos trabalhando com pessoas desabri- capaz de construir comunidades susten-
gadas na Dinamarca e na Noruega. Entre táveis, autossuficientes de ex-moradores
outras coisas, ele foi um dos iniciadores de rua através da construção de seu con-
do "Hjemløseteltet", um acampamento ceito de convivência, bem como sobre
temporário e ocupação de uma ferrovia uma prática que ele denomina medicina
abandonada no centro de Aarhus. Dr. antropológica.
Schroll passou algum tempo a explicar
seu método, que é uma mistura de auto- ● Uma vez que nenhum desses
confiança e entendimento da dinâmica da eventos é completo sem música, a banda
comunidade e do grupo. de ruído anarquista Gravhund apresen-
No domingo, o workshop de per- tou-nos uma dose pesada de ruído
macultura continuou em Randers - arbus- mágico tecnoxamã - uma experiência
tos foram limpos e cerca de 50 árvores e fascinante que também provocou uma
arbustos foram plantados. Mais uma vez, longa discussão sobre arte e música e
o evento no hackerspace começou às seu papel no xamanismo, assim como
04:00, e tópicos do dia incluíram: nas sociedades tradicionais e modernas.

● Uma discussão sobre a milita- Grosso modo, pode-se dizer que,


rização e racialização da mentalidade por no sábado, as ideias básicas filosóficas e
trás da tecnologia moderna na sociedade práticas por trás do tecnoxamanismo
capitalista. Na sequência a apresentação foram apresentadas e as mentes das
de Ole Nielsby, que abordou o interesse pessoas estavam em sintonia coletiva
militar por trás do pouso na Lua e suas através do ritual, e no domingo estas
próprias experiências com a militarização ideias foram replicadas em uma série de
da ciência da computação, na década de discussões interessantes e necessárias
1980 como o seu ponto de partida. na atual corrente mundial.
Mas o resultado mais importante
● Juan Antonio Søren E. Pedersen do encontro foi a criação de novas redes,
apresentou seu projeto de estufa, que uti- de reunir pessoas que tinham coisas im-
liza sensores controlados por Arduíno portantes a dizer uns aos outros, mas
para medir e regular a temperatura e o ainda não sabiam como. Um dos partici-
teor de Co2 de plantas de estufa. pantes do evento, uma mulher de origem
marroquina, colocou desta forma: “Tenho
105
Encontro de
Tecnoxamanismo
em Aarhus,
Dinamarca, 2014.
Fotos cedidas por
Carsten Agger.

106
a sensação de que o sujeito, o objeto e o “Mais isso. Mais isso. Mais isso.
processo no evento foram todos tão Para Aarhus”!
conectados, entende? Tudo emergiu em E talvez isto ilustre perfeitamente o
sua plena concretização em conjunto”. que o tecnoxamanismo pode ser no seu
Frequentemente me envolvo em melhor: Sementes que semeiam à me-
eventos que tendem a ser muito "profis- dida que avançamos, as sementes que
sionais" e, muitas vezes, tenho dificul- podem cair em solo fértil e crescer e for-
dade de achar isso inspirador: Não mar redes e, no final, ajudar as pessoas a
consigo sentir nada. Em sua configuração fazerem do mundo um lugar melhor para
de "não-profissional" – entendendo o os que querem preservar o conhecimento
termo de maneira não pejorativa – en- e tecnologia ancestral e viver com a
contrei a energia, as mãos quentes, pes- própria Terra em seus corações.
soas curiosas (não só no discurso, mas
também na intenção e ação).

Reunião dos participantes no Encontro de


Tecnoxamanismo em Aarhus, Dinamarca, 2014.
Fotos cedidas por Carsten Agger.
JOGO CORPO TECNOLOGIA E
SOBRE O GRANDE ABRAÇO-MÃE
Fernando GRegório

Durante o I Festival Internacional é verdade absoluta. E sim, realidade que


de Tecnoxamanismo, realizamos um dia é construída a partir de um sistema de
de troca de conhecimento com moradores produção e um ponto de vista específico,
da Aldeia Velha, uma reserva Pataxó, lo- limitado e nunca ausente de intenção.
calizada em Arraial d’ajuda. Segundo, porque serve como pro-
Realizei, junto a colegas, uma tótipo de ações lúdicas que utilizam a tec-
brincadeira-oficina com as crianças da nologia da informação para ampliar a
comunidade, em uma sala de aula da es- consciência corporal. Um dos riscos da
cola local. sociedade tecnológica industrial é a alie-
Através do uso de uma webcam, as nação sobre a escuta do próprio corpo, o
crianças podiam ver-se na tela do com- qual tem a capacidade natural de apontar
putador, sob o efeito de espelhamento, padrões negativos ou não-saudáveis de
propiciando um efeito de simetria horizon- comportamento.
tal somada a distorções de cor. Usamos Essa surdez pode resultar em um
música e algumas guias de movimento instrumento base de dominação e explo-
para organização do jogo, para que todas ração humana, para servir ao interesse
as crianças pudessem interagir harmo- mesquinho e cego de pequenos grupos
niosamente com a proposta e cocriar em por acumular capital. Por isso, dá-se a ne-
grupo. Uma estrutura era proposta para cessidade do desenvolvimento de ambi-
que dentro dela elas pudessem experi- entes virtuais onde o corpo e a mente
mentar movimentos corporais livremente interajam de forma ativa e construtiva,
de forma lúdica. Depois, elas podiam ver- como faz o xamã. Isso torna obsoleto de
se projetadas sobre a parede da sala.1 uma vez por todas a ilusão de controle
Fiquei emocionado com a experi- sobre o conteúdo através do gesto de
ência. A empolgação e capacidade de mudar o canal da televisão e expande a
fruição delas com um aparato tão sim- percepção de que o alimento que
ples foi inspiradora. Nunca havia traba- comemos ou o ar que respiramos está em
lhado com crianças. A experiência era, condições quase inaceitáveis.
de certa forma, precária e improvisada, A tecnologia pode servir para am-
mas muito potente. pliar noções básicas de vivência cons-
Agora percebo como essa experi- ciente, amplia-se a consciência sobre a
ência reflete o pensamento que venho realidade e espaço real em que é aces-
desenvolvendo sobre corpo-tecnologia. sada. Penso sobre a necessidade de
Primeiro, porque atende a uma necessi- pequenos produtores de conteúdo espa-
dade didática básica para a sociedade da lhados por todas comunidades, pro-
comunicação: experiênciar qualquer tipo duzindo de acordo com o ambiente em
de processo de criação audiovisual para que vivem, com uma estética própria, sem
gerar a consciência de que aquilo que importação ou colonização de conteúdo.
chega como produto midiático pronto não Também sobre a possibilidade de sermos

109
Performance de Fernando Gregório
(AngaMaion) no Ocupa Cine Marrocos junto
a Mamba Negra/2014. Foto: Luisa Hervé.

110
todos produtores de conteúdo consciente para acontecer. Esse espaço deve ser
que altere a realidade de forma positiva. criado para que sigamos expandindo.
Já possuímos instrumentos para construir Esse importante movimento de
essa nova realidade, através do uso de acesso ao virtual para simultaneamente
softwares livres aliados à internet. atualizar o software-corpo e incorporar,
Acredito na potência do jogo tec- animar – trazer para a realidade material
nológico interativo e educativo, que pode através de ações corporais é vista tam-
levar informação corporal e virtual de bém em práticas contemporâneas como
forma lúdica. Isso me faz pensar no en- a de Anime, geralmente baseada em
contro que está ocorrendo entre a so- games de RPG ou desenhos animados,
ciedade tecnológica e comunidades na qual os jovens jogadores/especta-
tradicionais indígenas, que realizam o dores reproduzem a indumentária dos
acesso a esse mundo virtual através de personagens e recriam as práticas vistas
outros procedimentos. Também tecno- nas telas em situações de embate corpo
lógicos, alquímicos, mas naturais, em a corpo. Da mesma forma que o xamã,
contato com o ambiente em que vivem, a esses jovens diminuem o espaço entre
floresta. O uso de enteógenos orgânicos virtualidade e realidade, promovendo ex-
como a Ayahuasca, por exemplo, possi- pansão e mudança de padrões nos dois
bilitam esse acesso. tipos de espaço.
Minhas maiores experiências de Se há esse fluxo que parte do pro-
acesso ao virtual foram com o uso dessa tótipo virtual para o hábito da vida, fica
bebida de poder. Pude experiênciar a clara a importância de gerar espaços vir-
sensação de estar inserido em um ambi- tuais onde conceitos importantes a viven-
ente completamente virtual com o qual eu cia em sociedade estejam alojados, como
interagia ativamente, de forma que um autogestão, horizontalidade e convivên-
domínio sobre o meu corpo e suas potên- cia com a diferença. Também penso na
cias era absolutamente necessário para possibilidade de experimentarmos novas
ampliar as capacidades da experiência. formas de interação primeiramente no vir-
Estava imerso em um jogo abstrato de in- tual, testando sua viabilidade e funciona-
teração entre mim e outras formas de lidade, para depois materializarmos a
energia ou manifestações geralmente in- estrutura. Talvez assim, menos erros se-
visíveis, que podem e desejam interagir jam cometidos. Muitos erros estão sendo
com o ser-humano, que deveria a meu cometidos e a incapacidade de consciên-
ver estar constantemente reaprendendo cia sobre a necessidade de incorporar
a manter esse diálogo. A bebida fez com novas descobertas ao nosso código
que eu ampliasse minha noção espacial genético, talvez tornem a vivência nesse
e de integração com o todo. planeta cada vez mais indesejada.
Outra intersecção importante entre Um novo ser-humano quer se a-
o game interativo e práticas xamânicas, presentar. Ele não é dependente da tec-
também presente em religiões afro- nologia, mas aliado a ela. Não é
brasileiras, é a da incorporação de seres dependente ou vítima do consumo, mas
ou entidades, que, em religiões mais con- consumidor consciente que modifica o
temporâneas, como a Ayaumbanda, mercado e ruma para a autonomia. Esse
estão constantemente variando e se atu- caminho virtual-material já existe e educa-
alizando. Como se novos seres es- tivos que envolvam a expansão da
tivessem tentando contato e novos tipos consciência sobre as tecnologias da co-
de manifestações buscassem espaço municação e da informação aliados à
111
uma maior consciência da tecnologia pri- que fazer, apenas ouvindo a...........
mordial e mais avançada, que é a na- O Sol se pondo e partimos.
tureza, da qual brota e faz parte o nosso Mãe Coruja me lembrou minha avó
corpo é uma das soluções viáveis. Lourdes, o abraço de quando chego para
visita-la no interior de São Paulo, onde
SOBRE O GRANDE ABRAÇO-MÃE nasci. “Como você aprendeu a ser ben-
Após o fim do I Festival, algo me zedeira?”, perguntei outro dia. Ela: era
disse para prolongar a estadia na Bahia. tudo o que fazíamos...
Não voltei com o Ônibus Hacker, em que Outra sensação em comum: quan-
tinha vindo, e rumei para Caraíva, cidade do vamos sempre ao seu quintal olhar as
próxima à do encontro. Depois de um dia plantas e sinto que toda a magia ne-
inteiro de caminhada na beira da praia, cessária nesse planeta está contida ali,
só, silêncio, vazio2 e na volta um reen- no ninho do passarinho apoiado na árvore
contro à beira do rio. que dá a flor e faz sombra pra crescer
Nesse reencontro Fabi, George, melhor o alimento.
Sérgio, Doug e David, tecnoxamãs pros- Porque criamos tanta coisa? Como
seguindo o Festival em conversas. “Não é possível estarmos chegando no espaço
acaba nunca”, comentamos... e ainda é e não conseguirmos alimentar todos ou
verdade. Da mesma forma que não co- respirar ar puro? Nem aprendemos a in-
meçou exatamente com o festival, ainda teragir com toda a magia que já existe de
reverbera em mim em diversos planos. forma harmônica e seguimos complican-
Desse momento, surgiu o combi- do nossa convivência.
nado de irmos, no outro dia, conhecer Junto a isso pulsa uma urgência. E
Akurinã, filho da Pajé, morador da Aldeia penso que não fosse a expansão do pen-
Mãe Barra Velha, outra comunidade Pata- samento proporcionado pelo uso de tec-
xó, próxima de onde estávamos. nologias que permitiram o acesso à
Foi um dia de muita caminhada e internet, dali do quarto em Laranjal Paulista,
passagens até chegarmos no Pará, um talvez eu não estivesse aberto para toda
braço da comunidade, o mais longe que essa percepção muito ancestral que tento
pudemos ir naquele dia. colocar em palavras. Uma volta está
Lá morava Mãe Coruja. sendo dada. Um círculo-abraço que gira
Ela nos abraçou, um por um. E o corrente de braços.
pequeno-gigante ápice dessa viagem para Em um pequeno ramo do círculo
o Festival foi o abraço de Mãe Coruja. espiral, minha avó, descendente de eu-
Eu só queria falar sobre os abraços ropeus, que cresceu no campo, em
dela, os nossos abraços. Isso é tudo sobre contato direto com a terra: plantando, co-
um grande abraço feminino.3 lhendo, sem indústria, sem esgoto,
Éramos um tentaculinho de um or- nadando no rio que hoje fede. Minha mãe
ganismo que chegou ali, e ela, o centro também nadou nesse rio, cresceu ali, tra-
de outro, a grande mãe nos recebendo. balhando na plantação para poder comer.
Ficamos ali conversando. Também benze, como fazia seu avô cu-
Mãe Coruja contou sobre o que randeiro. Trabalhavam muito, me contam,
costumavam fazer, sobre como era ser a não era fácil e nem sabiam o que era
curandeira (não gostava de ser chamada utopia. Nem distopia. Eram autossusten-
de Pajé) da comunidade. Disse do conhe- táveis, mas exploradas em algum ponto.
cimento que chegava até ela de forma in- Minha mãe iniciou o processo de ir
tuitiva, como se de repente soubesse o à cidade, junto a meu pai, aliaram-se à in-
112
Dona Lourdes, avó de Fernando Gregório.
Foto: Fernando Gregório.

113
dústria. Eu saí da cidade pequena e levei Notas:

ao extremo o movimento, agora experen-


1. Os vídeos podem ser visualizados no link:
http://youtu.be/5YJBPbneQfc.
ciado, o movimento babilônico de São 2.
Paulo capital. Movimento já iniciado por https://www.youtube.com/watch?v=Ce75ilwLFdo&index=
16&list=PLrN_Z-sjEJdln0Biwqbzv8PUeWPT4obll
meu pai durante algum tempo, artista, 3.
comerciante pseudo-nômade que vai e https://www.youtube.com/watch?v=RduMDzoMw1E&inde
x=14&list=PLrN_Z-sjEJdln0Biwqbzv8PUeWPT4obll
volta, como era seu pai. 4. http://ovney.tumblr.com
O urbano ao extremo e um início
de retorno, o mesmo que fez com que eu
me aproximasse de práticas xamânicas e
que me levou ao encontro de Mãe Coruja.
Resgate intensificado pelo Organismo
de Vivência Nômade Experimental –
O.V.N.E.Y, que retorna à cultura rural au-
tossustentável, aliado a uma pulsão pelo
trânsito constante em bando. Ação que
ramifica do I Festival, mas concretizou-
se meses depois, após habitar e agregar
outros espaços, como uma Ocupação no
centro de São Paulo e uma fazenda com
práticas xamânicas e budistas.
Um retorno nada nostálgico, algo
que faz a volta na grande espiral e aproxi-
ma-se do passado, mas trans-passado,
com novos conceitos e mais consciência.
Não fosse a experimentação artística abs-
trata ligada ao conhecimento tecnocientí-
fico, a colheita seria outra. Não fosse a
possibilidade de movimento, dança da
realidade entre espaços geográficos, vir-
tuais e corporais, as desconstruções e
construções de novos ligamentos afetivos
entre muitas esferas orgânicas não estaria
nessa forma de constante transformação.
E constante expansão da consciência
sobre o presente e desapego de hábitos
do passado que não somam. Seguimos gi-
rando e atualizando.

114
Mãe Coruja da Aldeia Pará Caraíva.
Foto: Fernando Gregório.

115
Ritual de Banho,
Raísa Inocêncio.
Fotos: Pierre
Emmanuel Urcun.

116
DO RITO À PRÁTICA, DO OCIO À
TÉCNICA, DO AMOR AO DELÍRIO,
DA FOME AO FIM.
Raisa Inocêncio

Resumo: discurso distante do festi- cansado), o levei a um congresso indí-


val de tecnoxamanismo, porém um relato gena, experimentamos ayahuasca, dor-
da viagem empreendida por um casal à mimos no mato, tomei argireia nervosa,
Arrayal d'Ajuda (BA). Historia de um rolê ele me fiz rir no onibus, domando como
que culminou em Caraíva e uma dor de um pajé, orientando as minhas viagens
barriga que fez com que meu discurso em uma viagem de olhar, suas caretas
(amoroso) também se chamasse Imedia- engraçadas e me fazer gozar só de tocar
tamente Manga, sobre esse processo de no meu ouvido.
transformação em rezadeira. Ele me pede cinema, eu dou escrita.
Um pouco para na escrita, pensar E agora escrevo, escrevo, dizendo o quão
que nossa formação de vida tecnoxamã natural-espontâneo-orgânico foi a intensi-
torna-se um livro-feiticeiro e uma vez dade de um amor – mesmo que ele repre-
tendo uma lupa para enxergar os mean- sentando a ingenuidade perdida do
dros da feitiçaria-resistência o espelho de romantismo europeu, que amava e decla-
ação e poesia. mava seu amor, que destinava sua criativi-
O amor emagrece. O amor en- dade e potência ao Eros e ao seu oposto
louquece. O amor é a perda de senso, de delirium tremens melancolia – sonhado.
rumo, de prosa, de equilíbrio – é férias Sonhei com ele, me imaginei com
para um operário, é desconto para um ele, mesmo sem saber que ele viria a exi-
capitalista, é gozo para a mulher vaidosa, stir realmente. Ele é o homem dos meus
é delírio para o louco, é promoção e emul- sonhos (portal de abertura de vida e ma-
são de realidade – é cata, é queda, três turidade, renascimento, por si, por outrem,
linhas não sabem nada do que eu senti discurso político amoroso, dizendo sim é
por aquele homem, que em mil situações possível sonhar, sonhar com o mundo
já escrevi, que sonhei em sonho-pre- amoroso do outro lado do atlântico, revela
monição-presságio – ia para uma festa e também meu lado mais cafona, mais er-
aquele sorriso me lembrava o amigo rado, somos ou não somos erroristas?).
Yumê (não por acaso um nome que se Em português isso logo vira um
traduz em japonês por sonho). clichê barato (e que bom que seja, assim
Da cantada mais rápida do faroeste, ao menos popularizamos a nossa escrita
daquele olhar que me indagou o por quê mágica). Tomei o amor que sinto e recebo
entregaste teu coração se sabia que ia par- de Pierre-Emmanuel como uma presença
tir? Por( )que tu, pirata, me entregas esta garantida e amorosa de Afrodite, a deusa
alma, assim como quem sabe do futuro? do amor da mitologia grega, estudo que
Conheci-o numa festa, dias depois, dedico há três anos.
sexos depois, trocas culturais (antropofa- Para tornar mais sério tal crença,
gia amorosa desbrava, des-ritmia, des- dediquei minha monografia, na filosofia, ao
117
estudo do mito amoroso de Afrodite e sua cheiro afrodisíaco e ele diz: esse é o nosso
função como ficção moralizante – estética perfume, me emociono, choro e apresento
que normatiza e torna o espetáculo uma pra ele, em troca, o mel de caju bruto da
terapia, uma dança de renovação espiritual minha terra icapuí no CE.
– show da Madonna é o templo da dança Voltarei para Bahia com a certeza
dos tecnocratas estéticos e é ali que en- de que encontro amigos e uma força an-
contramos a libertação moral, mesmo que cestral tranquila e comovente por sua
seja enquanto ficção ou entretenimento. beleza. Deu também uma folha para pro-
A descrição que faço não pretende teger do mal-olhado e ensinou alguns
fazer jus à realidade, ou ao que senti e banhos, comentou como é a luta diária
vivenciei, aqueles tempos. Aquelas me- para manutenção da independência
mórias são boas de sentirem como ima- daquele canto, da criação dos seus filhos,
gens distantes, em realidades possíveis das festas, do amor, fumávamos um
de se mudar – a memória é uma ilha de baseadinho solto mítico (mito demais
edição – imaginários imaginários. fumar um solto em Sapiranga) e nossa
Mas aqui está uma crença da qual conversa percorria os caminhos de volta
minha infância (ou a memória fantasiada da gruta onde índios e brancos encon-
daqueles tempos) intuitivamente dedicou travam negros praticando seu batuque,
rituais e banhos de mar na madrugada, en- encontramos no meio do caminho uma
trega de corpo nu no mar solitário e mágico turma fumando um, a maioria negra.
de Parajuru (CE), nas luas cheias de de- Outro ritual, outro baseado, outra con-
dicar amor e infinito. Flaubert e sua deusa versa, imagine, me enchi toda, divaguei,
da lua Tânita em Cartago (Salambô). levei até Sócrates, a viagem ao tempo
Dedico aqui o amor que sinto a perdido, pirata desbrave comigo uma ilha
este instante inexprimível de sagrado mis- desconhecida, um tempo, uma imagem,
tério da existência, do tempo que passa e a mesma luta. Uma noite só em Sapi-
atordoa em não parar – mesmo que nos- ranga e me rende meio livro de imagi-
sos pensamentos e textos lineares insis- nação e surpresa. Obrigada, Adauto e
tam em ser fotográficos, que parem toda comunidade de Sapiranga.
imagens – instantes salvos em download. Em Caraíva tive uma dor de barriga
Um primeiro instante – impossível (manga verde + cachaça + fome + medo)
de não ser comentado – experiência que que me levou à uma febre uma noite in-
tivemos anteriormente no litoral norte com teira: no quarto em que ficamos – hóspe-
o poeta Adauto e sua esposa, na comu- des de um carioca e um italiano gente boa
nidade chamada Sapiranga, incrível – havia um quadro de um rosto indígena:
conexão com a natureza, com um rio e aquele rosto me marcou como um olhar
uma floresta emocionantes e ainda a atravessamento uma viagem ao tempo que
conexão histórica sendo ali uma antiga rota não reconhecerei mais: o dos índios.
de fuga e também quilombola. Com Adauto Ao mesmo tempo que reconheço
fiz entrevistas e inserções na sua horta, na em meus familiares – mesmo catequisados
sua trilha, na maneira como cria os doze e de influência franciscana da teologia da
filhos e na relação independente com a libertação e politizados – encontro traços
mulher, é lindo demais! Aqui me reservo ao índio, mouro, árabe em minha família, ín-
direito de dizer sim, podemos encontrar dios que em seu oficio de vender colares e
“beleza” como força-fé para nossa magia, outras lembranças me recordavam a mim
Adauto nos ensina muito sobre isso, tira da mesma e a minha avó (referência mais an-
casca da árvore um pó cinza que tem um cestral de uma identidade indígena). Com-
118
prei um para mim e outro para PE – os ou- aquilo um fechar o corpo (mais um dos
tros clichês como a fita da baía de todos os que tantos fazemos diariamente). Acen-
santos e esses colares praticamente nos der velas, orar em silêncio, fazer passes e
casaram em afetos (mesmo q ele tão dis- massagens passou a ser cotidiano, um
tante, me sente quando toca seu colar e cotidiano mágico. Encontro com a perife-
sua pulseira) lembranças que piratas ria paulistana, jogo do Brasil e Alemanha.
criam, mesmo em mares diferentes se sen- Sinestesia com a quantidade de
tem, se presentificam. bombas quase efeito de guerra.
A noite se passou em sonhos pre- No Rio a primeira coisa que fiz foi
monitórios: eu em SP com todas as dro- defumar a casa e fazer xarope caseiro
gas do mundo, a mão e eu dizendo não. para minha bronquite alérgica (que piora
no inverno). O estudo xamânico é da
RENASCIMENTO ordem do corpo e vida dedicados, aos
Aqui deixo Pierre de lado em so- poucos a força que me fez autocurar
nhos e passo efetivamente a escrever provoca autocura em outros – historias
sobre o tecnoxamanismo. emocionais pululam quando espiritual-
N'outro dia passei de cama, com- mente você tá tranquilo, de boa, as pes-
pletamente imersa, em descansar do furor soas angustiadas, tomadas pela pulsão
que foi os últimos meses: Buenos Aires – de morte, competitividade, impotência (o
Léo – Pierre Emmanuel. À noite tive febre velho autoajuda que vira autoboicote). Afi-
e para curá-la a provoquei maior com uns nal, no mundo ocidental você não permite
cobertores, suei, suei, suei entre delírios e supersticiosidades e entope sua so-
constatações racionais de superação, ciedade com doenças e ansiedade. Ou
suei, ria, delirava, suei, suei, até que meu melhor, como Borges, nós respondemos:
corpo frio me banhou e senti aos poucos a “o amor que provoca magias inúteis”.
energia voltar e por boldo à cura, fiz um Resposta: o mundo oriental xamâ-
banho em agradecimento – ai a operação nico que incorpora o tecno ocidental: o
deixou de tornar-se puramente estética - amor tranquilo da vida que é mistério e
como há anos faço em performance e apre- produção de realidade-afeto.
sentações acadêmicas – e passou a ser Não posso deixar de terminar este
ritualistica-mágica, um processo de fei- texto sem antes avisar aos navegantes-
tiçaria, que começou na praia de Picos leitores-piratas-magos que a realidade é a
(CE), como exercícios de meditação e máxima magia que podemos controlar,
transe, tendo em Caraíva como o mo- que demanda um processo e um processo
mento da cura, o banho não de embeleza- e um outro processo... Assim começa uma
mento, mas proteção e comunicação com (viagem) quando já está acabando a outra.
o si mesmo animalesco (daìmon). Outro detalhe é que os magos que
A mudança foi visível (racional) auxiliaram na criação desta persona-
como na Bahia e em São Paulo o cafuçu feitiçeira que vos fala são tão importantes
que é a mistura do negro com o índio tam- quanto a vida em si. Magos amigos com
bém se mostrou forte. Na casa de amigo pequenos toques, doses, brindes, salvam,
Berimba de Jesus achei uma guia, secre- salvam do nosso próprio autoboicote.
tamente roubei e coloquei no pescoço, no Saber dar atenção e carinho ao outro.
pequeno altar (com umas velas e uma Questão de alteridade. Dizem que
imagem com um homem de terno e gra- é porque sou peixes com lua em câncer,
vata vermelha e preta) dediquei minhas mas é o ascendente em capricórnio que
homenagens venusianas e considerei aqui escreve.
119
120
Xamanismo tecnológico é viver sem Third Ear Band
a lei de Gerson (da vantagem), sem uma Mutantes
hierarquia do humano com a natureza, é Todo processo é um rito de cons-
viver com a escuta do indizível, do mistério trução da sua ficção amorosa, da sua
e da intuição do acaso, aqueles aponta- magia de força energética, desde a minha
mentos que Sócrates chamava de daìmon macumba grega ao gesto da cruz, só fun-
(voz) que indicavam somente o que não ciona se tiver conexão.
fazer. É respeitar, enquanto xamã, que Existe na filosofia um caminho de
tudo é sagrado, que mesmo sendo tudo libertação do mundo ocidental para que o
sagrado tem seu tempo (e sua pro- corpo possa efetivamente conectar com
fanação) próprio(a), o casaco que se perde a natureza como, por exemplo, a supe-
leva ao mundo um pouco da tua energia, o ração da culpa cristã, da hierarquia entre
amigo que se encontra por acaso naquela o diferente e o igual, entre o de cima e o
esquina é o resultado de um desejo já in- de baixo, entre luta de classes, entre im-
vocado, o lixo que se recicla se home- pulso de prazer instantâneo do corpo e
nageia, se oferta, se amplifica o amor dado desejo intelectual, do humano demasiado
à deusa, etc. é o ciclo, modo de ver/sentir humano, da pólis, entre experiência de
o tempo oriental, movimento, devir. mistério e de consciência da participação
Por isso aqui me autodenomino singular, que é a existência no universo.
rezadeira. Porque da reza se invoca o de-
sejo, da reza se amplifica o que se quer ÚLTIMO RITO
enquanto mundo idealizado: se amplifica A vassoura, o headphone, roupas
a voz da política singularista, ou como Bo- para doar, as ervas utilizadas no xarope,
laño diria: real-visceralista! Sou rezadeira, algumas embalagens de chocolate. Dei-
pratico banhos, falo de mito e desejo em xado numa árvore que costuma ter al-
grego no teu ouvido, até catarsiar, em guns trabalhos – uma arvore é sinal de
queda você vai sentir uma vibração e esta conexão com o mundo indígena. Deixei lá
vibração é que Lygia Clark e Espinoza e agradeci, olhei para árvore e concordei
trabalharam: vibração por uma potência que o que acredito me emociona e vice-
de vida, por uma coordenação da nossa versa (asseguro esse espaço aqui como
relação com outro e com o mundo funcional para os coxinhas de plantão
(natura). E Espinoza fala tudo é deus e também entenderem que isso, na pers-
deus é um, somos todos parte dessa pectiva , é “terapêutico”, tecnocratas não
mesma energia que se manifesta por entendem as ações e os gestos senão for
vezes em singulares telepatias...este por esse viés pragmático).
texto no limite do erro acadêmico, em sua Fiz a confissão dos caminhos, pen-
sincera confissão. sei, regulei meu delírio em sentir em sen-
Acompanhantes do mundo imagi- tir, prever mais um tempo o instante do
nário da Raísa-rezadeira: Jodorowsky, agora, prever, prever, relaxar, respirar,
Moebius, Marcel Mauss (esboço de uma agradeci mais uma vez conseguir sem a
teoria da magia), Giordano Bruno, Platão halopatia. Agradecer o retorno da na-
(Fedro e o Banquete), Espinoza, Flaubert, tureza e, como diria Aristóteles, o clima
Arturo Belano e Ulysses lima. afortunado que a deusa que acredito se
apresenta: Afrodite ou Attana (Moebius –
DESCRIÇÃO DOS RITOS Jardim de Edena).
Trilhas sonoras recentes: Tirei uma foto e continuei meu
Velvet Underground caminho até o trabalho.
122
Ações de purificação – NÃO SÃO pendendo da índole, do jeito, do estilo...
RECEITAS, SÃO DESCRIÇÕES DO se quer conquistar dê preferência a pi-
RITO, até porque eu não levo receitas à menta! Vinho porque em vino veritas. Pi-
risca, vou criando e recriando situações menta com doce é estilo. Cozinhar é um
de real e reza: defumar a casa com a fu- ato revolucionário por sua natureza
maça das ervas – hortelã, eucalipto, entre (ousia, essência, onto). Conversar é
outras bronquiodilatadoras. maneiro. Converser, conhecer, contribuir,
camaradear, entre outras imersões, ser
BANHOS DE PROTEÇÃO: pirata, gostar do efeito subversivo que
Do pescoço pra baixo passando provoca, que geme, o ponto alto é
pelo corpo todo Arruda; quando as pessoas experimentam e
Se tiver com alguma dor (de qual- ficam nossa raísa... que tesão! Enfim...
quer natureza) acrescentar sal grosso cozinhar é mais realista ao ponto q nem
Embelezamento: sei o que dizer, só comendo do meu
Esquentar o corpo com as palmas risotto (assegurando uma realidade ainda
da mão; passar um hidratante por todo o mais concreta à palavra), coisa que só a
corpo, invocando nas palavras o que de- magia consegue com a linguagem (levar
seja fazer: agradecer, pedir, homenagear ao extase, catarse, gozo).
(sabendo que todas ações tem suas ba- Exemplo magnífico de magia
lanças próprias e o nome pessoal carrega culinária foi em Salvador, na casa de um
um peso), por isso rancor, ódio e vingança amigo Santiago Cao. Fiz uma moqueca
só podem ter um efeito contrário – desejar de arraia com carne de caju decorado
o mal, receber o mal – prefiro acreditar em com mel bruto. Pire aí companheiros!
outras ficções, mais harmoniosas e tran- Choro só de lembrar.
quilas, tendência para o mundo oriental: Se quer acalmar, se quer agitar
prática da ginástica chinesa 1 como tudo isso, é um conhecimento de tempo e
ba lanceamento das emoções e da circu- muitos segredos: minha especialidade:
lação de energia pelo corpo. Sinto cada risotto de camarão, mas faço de tudo,
vez mais a necessidade de fazer todo dia, suco, sopa, carne, vegetariana (prefiro
pelo simples tempo que demanda para até mais hoje em dia comida vegana, foi
cuidar do corpo, sentir ele estalando, suas natural de repente me senti meio enjoada
articulações, músculos esticando e de com o peso da massa, do excesso de
novo realidade que me espanta, ossos carboidrato que a sociedade acredita ser
que estalam e me dão uma onda... (hehe o saudável, muita energia e pouco bom
prática junkie de sentir onda em tudo). senso, pouco jejum).
Também ao realizar atos do cotidi- Jejum é uma prática que limpa e
ano se pode invocar as palavras que são purifica, importante passar por um jejum
importantes pela pessoa: ao lavar a louça, de vez em quando...
agradecer a água que não finda, a limpeza Dar um significado mágico aos ob-
que te permite não adoecer, proteger a jetos do cotidiano: a chave que tem uma
quem tu ama, rezar, meu amigo, rezar. pulseira dada por uma amiga argentina
Cozinharevolucionar: usar uma no congresso indígena, o rapé com sálvia
cobaia aqui é permitido, quando vais que limpa o pulmão antes de começar a
fazer uma receita, dedica aqui máxima estudar junto com a amiga Cássia em
importância, porque a comida que vais sua casa, onde podemos dançar e ficar
passar ao amigo-acompanhante que ex- nuas (sabbath).
perimentará poderá te efeitos opostos de- Olhar a lua e se deixar perder pela
123
contemplação... Se masturbar (até que o queridas, é nosso meio de nos libertar da
gozo torne-se uma ligação entre vc e culpa cristã (sem medo).
aquilo que vc homenageia, no caso aqui, Sinto que falo o óbvio, mas invoco
afrodite), a arte do grito2 sodade3 MIA!!!!!!!! aqui o poder da dança como um dos ele-
Se o discurso pode caminhar para mentos criadores de vida.
uma interlocução entre o pensamento A arte do grito.
racional e o político, com a sua ação A arte do coro.
prática, cotidiana, por sua vez, mesmo A arte do gozo.
que ainda dissociada de sua emoção
patética, o discurso também pode ser ori-
undo das manías que levam ao delírio
poético, baquico, erótico e filosófico com
sua realidade divina em êxtase. ( as qua-
tro loucuras – fedro).
Sobre a dança, uma última e in-
gênua descoberta: estudo a influencia da
mitologia grega no cotidiano e o mais visível
que me aparece agora – que se manifesta
tal qual seus deuses – é que o ocidente
trata suas dores dançando. O que é a mú-
sica pop senão uma esquizoterapia?
Onde as pessoas dançam, dan-
cem seus macacos, dancem!
O ocidente trata suas ansiedades
dançando e foi dançando que senti um es-
talo conceitual – xamânico aqui – dan-
çando MIA, uma gata poderosa, cheguei a
essa interpretação de como as pessoas
conseguem sobreviver sem magia –
dançando musica pop e cinema choroso
dramático, novela – dançando música pop,
ritual dos mais tribais – aqui tomo a palavra
primitivo como ancestral, com o todo seu
poder, a influência de nossos antepassa-
dos é importante; minha bisavó tatuada,
minha avó – católica sem saber: índia – e
minha mãe que estudou filosofia e nutre
uma técnica de vida que permite um tempo
dedicado à putaria, ao amor e a pólis (pro-
fessora de escola pública).
Pois bem, nação de mulheres (aqui
me refiro a outros textos mais na linha
analise de desejo feminino, analisando
personas femininas atuais, MIA aqui no Notas:

caso), a dança é uma terapia, técnica de


1. http://www.youtube.com/playlist?list=PLIm-
P2rXBQrr31hBkEpdkcowYyCBZxjL6
exorcismo da impotência, choro de suor, 2. http://youtu.be/dNVrdYGiULM
grito de gemido, a dança, minhas gurias 3. http://grooveshark.com/s/Bucky+Done+Gun/2pzeWr?src=5

124
XAMANISMO:
CORPO E PLANTAS DE PODER
Carla Lyra

Século XXI - a revolução tecnológi- Para a perspectiva ocidental, seria


ca e científica nos conduz ao diálogo com uma alma, um espírito racional, a dis-
o campo da memória e do corpo para posição moral, ou seja, um tipo especí-
pesquisa sobre a memória indígena. Em- fico de interioridade que definiria o
preenderemos uma outra jornada sendo humano. Enquanto que para os europeus
que, desta vez, a busca é sobre a cons- a diversidade dos seres se situaria na
trução da memória e dos segredos dos alma, para os ameríndios ela se situa no
primeiros habitantes destas terras. Como corpo. Vivenciamos séculos de cons-
se daria então a construção da memória trução de uma memória do “esqueci-
indígena no século XXI? Como esta mento” corporal. A negação do corpo é o
memória se concretizaria por meio de caminho da salvação. Para os índios,
símbolos, imagens, cantos e rituais? Co- não é a dimensão subjetiva que forma a
mo os estudos no campo da memória e rede da humanidade. O humano seria
do corpo podem contribuir para a cons- uma coisa coletiva em que a pessoa re-
trução teórica neste campo de pesquisa? presenta um pedaço da sociedade antes
Qual a relação entre plantas de poder, de ser um indivíduo com um destino e um
corpo e memória? caráter individual. Na perspectiva indí-
A imagem, o corpo e oralidade gena, a memória dos saberes ancestrais
são dimensões fundamentais do xama- é fundamental para a manutenção da
nismo indígena – um caminho para a co- identidade coletiva, o que implica uma re-
municação com os espíritos ancestrais lação com a espiritualidade. O xama-
e manutenção da memória. Pensar a nismo é um canal para o equilíbrio da
memória indígena e o corpo é também sociedade, um conhecimento dos sa-
refletir sobre as perspectivas de futuro beres mais esotéricos sobre a relação
ou como coloca Farias: “Enfim, que des- dos aspectos do mundo não aparente, a
tino dar a um corpo que é um arquivo princípio, a todos. Por sua vez, o ani-
vivo de marcas de memória, decorrentes mismo seria um meio de realizar a iden-
do encontro com o Mundo, com o repre- tidade corporal - corpo de águia, jaguar
sentante da espécie e consigo mesmo?” entre outros - presa ou predador con-
(2008, p.42). O estudo da memória indí- forme sua posição na cadeia alimentar.
gena nos remete à noção de “alma” sel-
vagem da corporalidade, automutilação, As mudanças corporais não po-
metamorfoses e incorporação nos ritu- dem ser tomadas apenas como
ais – uma travessia espiritual. Os au- signos das mudanças de identi-
tores europeus explicam que: “c´est que dade social, mas como seus corre-
pour les Amérindiens la diversité des latos necessários, e mesmo mais:
êtres se situe au niveau du corps et pour elas são ao mesmo tempo a causa
les Européens au plan de l´âme” (Cas- e o instrumento de transformação
tro, 2006, p. 50). das relações sociais. Isso sig-

125
nifica que não é possível fazer caráter formador de homens e so-
uma distinção entre processos ciedades em sua íntegra (Tucker,
fisiológicos e processos soci- 2010, p.85).
ológicos; transformações do
corpo, das relações sociais e Por sua vez, a Teoria da Relativi-
dos estatutos que as conden- dade revelou uma estrutura espaço/tempo
sam são uma coisa só. Assim, a diversa daquela até então admitida pelo
natureza humana é literalmente pensamento baseado nas leis de Newton.
fabricada ou configurada pela cul- O espaço e o tempo apresentam-se inti-
tura. O corpo é imaginado, em mamente conectados sob a forma de um
todos as sentidos possíveis da continuum espaço/tempo quadrimen-
palavra, pela sociedade (Castro, sional. Para alguns autores como Capra
2002, p. 72). (1995), a nova física é uma parte inte-
grante da nova visão de mundo que agora
A imagem da opressão da nudez está emergindo em todas as ciências e na
de uma índia descrita na Carta de Pero sociedade. Esta nova visão é ecológica e
Vaz de Caminha - em contraste com a baseia-se, fundamentalmente, na cons-
explanação de Viveiros de Castro do ciência espiritual (CAPRA, 1995, p.242).
corpo imaginado pela sociedade - apre- Um dos primeiros teóricos que abordaram
senta o primeiro choque de visões exis- a questão do corpo e memória foi Berg-
tenciais e que permeará todo o processo son - contemporâneo de Einstein e de sua
de colonização e catequização no Brasil. teoria da relatividade:
O céu dos xamãs era o mesmo céu dos
portugueses, mas é a cruz e os rituais Chega um momento em que a lem-
católicos que orientam até os nossos brança assim reduzida se encaixa
dias a jornada civilizatória no Brasil. Os tão bem na percepção presente
caminhos e rituais para essas visões de que não se saberia dizer onde ter-
futuro são abordados através dos enfo- mina a percepção e onde começa
ques da Ciência e da Religião (Latour, a lembrança. Nesse momento
2004) sendo que, a construção da preciso, a memória, em vez de
memória cristã já está intensamente do- fazer aparecer e desaparecer
cumentada e enraizada nas nossas célu- caprichosamente suas represen-
las como podemos ver no exemplo de tações, regula-se pelos detalhes
Tucker (2010): dos movimentos corporais
(Bergson, 2006, p.59).
O cristianismo precisou bem de um
século até que a excitação nervosa Cosmologias indígenas em que as
que o originou fosse convertida em células revivem os tempos dos ancestrais
profissões de fé, dogmas e doutri- e nos remontam a teorias Darwinianas
nas razoavelmente fixas. Porém foi em suas metamorfoses ritualísticas. A
necessário um milênio até que travessia dos limites do corpo na viagem
esses coágulos mentais afun- xamânica: células, átomos, energia. Co-
dassem, por assim dizer, da cabeça mo coloca Viveiros de Castro: “a inici-
até às vísceras, até que se con- ação xamanística talvez possa ser
cretizassem finalmente, por meio de pensada como capacidade de restau-
símbolos, imagens, cantos, cons- rar ou proteger a vida” (2002, p.74). O
truções, rituais e hábitos, num xamã não se deixa intimidar pela linha
126
divisória entre o pensamento científico e o respeitados métodos para adentrar no
pensamento tradicional. O ponto de par- transe necessário para o trabalho xamâ-
tida do seu pensamento é a experiência nico, ou seja, um trabalho focado no
intelectual advinda de diversas viagens corpo e nas suas sensações. São nes-
para outros contextos geográficos ou cos- tas experiências visionárias para contatar
mológicos. O fenômeno do “êxtase” sen- o mundo espiritual e obter conhecimento
do, pois, como uma comunicação com os mágico e sabedoria ancestral onde estão
espíritos através de uma “viagem” pela fundamentados os costumes e valores
cartografia imaginária dos céus e infernos das culturas xamânicas.
(Eliade, 1976).
No animismo, a ideia de aparên- CORPO, XAMANISMO
cia é uma questão de perspectiva: a iden- E A CONSTRUÇÃO
tidade do corpo percebido depende da DA MEMÓRIA INDÍGENA
natureza do corpo da “pessoa” na origem A partir da metade do século XX,
do olhar. O corpo pode ser analisado fora estudiosos como Lévi-Strauss, Mircea
da sua relação necessária com um su- Eliade, Joseph Campbel, Richard E.
jeito- testemunha, mas nenhum sujeito Schultes, Robert G. Wasson, Darcy Ri-
pode ser concebido sem uma inscrição beiro, Roberto da Matta, Michael Harner
corporal determinada. A binacionalidade e outros abordaram estas culturas e con-
ontológica do xamã pode igualmente tribuíram para mudanças do paradigma
provir de uma adoção pelo animal espírito pelo qual os povos xamânicos eram até
e compaixão pelo humano que ele en- então vistos, passando-se a uma va -
contra em sonho ou na solidão da floresta lorização de suas formas de relações so-
(Castro, 2006, p.42). ciais e práticas espirituais2. Em uma
Uma das práticas comuns para retrospectiva nietzschiana (Szabón, 2010),
este contato é a introdução no orga- a implantação da memória através de ri-
nismo de substâncias provocando sen- tuais seria responsável pela construção
sações mais ou menos fortes de mal de uma identidade tribal.
estar que permite modelar a percepção A Antropologia Estrutural e Si-
simétrica. Os psicotrópicos tais como o métrica oferecem um método para a
Yagé ou Ayahuasca1 também conheci- (re)descoberta da ancestralidade em um
dos como “plantas de poder” simbolizam contexto em que o saber tradicional e a
uma metamorfose corporal paralela à al- biodiversidade do universo indígena são
teração de consciência. Estes processos incorporados por vários grupos que prati-
nos apontam para uma reflexão sobre cam o (neo)xamanismo e utilizam a
espacialidade/temporalidade, a manu- Ayahuasca (Goulart, 2004; Labate, 2000;
tenção da identidade cultural e ances- Luz,1996). A Ciência, a Física e a agora
tralidade/simbologia. Tradução de viagens a Medicina buscam também os segredos
e mundos – metamorfoses - processos da ancestralidade indígena e o seu
biológicos e sociais. poder de cura. O trajeto de resgate da
Nem todos os xamãs usam intoxi- memória indígena e seus conceitos é
cação com plantas para obter êxtase, fundamental para a reflexão sobre os ri-
mas toda prática xamânica visa ganhar tuais religiosos e a cura do corpo no
ascensão ao êxtase. As batidas do tam- século XXI. As narrativas dos partici-
bor, a manipulação da respiração, peni- pantes como a de Blanca Pinto3 do Peru
tências, jejuns, ilusões teatrais, abstinência sobre Ayahuasca e xamanismo são um
sexual - todos são, desde muito tempo, exemplo:
127
do convívio familiar e social, ou seja, o
Enquanto que a Ayahuasca produz uso da planta está relacionado a uma
no aspecto bioquímico uma di- perda do corpo, tanto no seu aspecto
namização neuronal (durante a ex- físico como social.
posição a seus efeitos), para o Transe – uma navegação circular
aspecto psicológico constitui uma em torno dos caminhos da memória. O
imersão da mente nas áreas do vídeo também é utilizado por muitas tri-
mito, dos símbolos transpessoais e bos como um instrumento para a
os arquétipos, formando, assim, manutenção da sua memória. Como
algo equivalente ao que é a essên- coloca Damas, o vídeo etnográfico faz
cia das iniciações em muitas cul- uma representação porque ele faz uma
turas antigas. tradução, uma interpretação de outra cos-
mogonia, algo que só o xamã sabe e
Para ilustrar a conexão entre estes pode fazer. O vídeo, ao captar as ima-
conceitos, Luz (1996) coloca o exemplo gens das narrativas e performances mi-
dos Barasana e da ingestão da bebida tológicas, estabelece uma comunicação
feita a partir da Banisteriopsis caapi. A de alteridade na tradução do que está
função da bebida neste grupo é trans- sendo filmado e na comunicação com
portar os indivíduos até o estado ances- outros seres mitológicos (Pellegrino,
tral, devido à sua habilidade de fluir 2003). O xamanismo e o vídeo se in-
através das linhas de descendência, serem num mundo onde tudo são
conectando o passado e o presente e palavras e imagens.
possibilitando a viagem até o passado an-
cestral. Assim, a bebida representa a pos- O xamã narra o que viu durante a
sibilidade de voltar ao início. Quanto mais viagem, ou melhor, ele torna visível
sagrado o ritual, mais forte é a bebida e e compreensível as imagens que
mais próximo o contato com os ancestrais viu nos sonhos e viagens real-
originais. A bebida ensinaria aos homens a izadas a outros mundos cos-
dançar e cantar, os cantos descrevem os mológicos. Todas as narrativas
pontos significativos na jornada dos an- orais e visuais estão submetidas à
cestrais. A experiência corporal (vômito, autoridade do narrador. No caso
diarreia, tonteira) é pensada como central das sociedades indígenas, o xamã
e as visões são tidas como parte do es- cumpre essa função e agora tam-
tado físico que advém a quem ingere a bém o videasta indígena. Se o
Banisteriopsis caapi (Gow 1991, p.19 xamã nos apresenta o que viu e
apud Luz 1996). ouviu em suas viagens a lugares
O aspecto mais relevante da distantes, através de uma narrativa
questão de acordo com os autores seria a oral, a câmera e a televisão tam-
separação corpo/alma e as implicações bém nos apresentam o que viram
desta para os grupos que a experimen- e ouviram em suas viagens a lu-
tam através da bebida. O que está em gares distantes (2011, p.4).
jogo é a imortalidade vivenciada durante
o transe; esta é entendida como uma Xamanismo: um método trilhado
transcendência da condição humana que por vários grupos na atualidade para
se dá no desligamento dos vínculos afe- acesso a sua ancestralidade e para o de-
tivos e sociais. Isto porque exige uma senvolvimento da pesquisa sobre rituais,
preparação que implica num afastamento performance e estudos interdisciplinares
128
na área do corpo, memória e imagens. Notas:

Enveredamos pelo caminho do corpo


1. A Ayahuasca era empregada pelos habitantes das
comunidades amazônicas, para os rituais da puberdade
como um “lugar da memória” e construí- e para a iniciação dos xamãs. As técnicas da medicina
mos com o auxílio da Ciência e da Espiri- tradicional e sua cosmovisão mágico-religiosa davam a
suas práticas um sentido sagrado.
tualidade indígena um processo para 2. É neste ambiente que surge, de forma gradual e firme,
compreensão da construção da memória o neo-xamanismo. Nos grandes centros urbanos, durante
o movimento contracultural dos anos 60, ele aparece
audiovisual. Um método de construção como um movimento espiritual oriundo do universo
conceitual que engloba várias dimensões terapêutico alternativo, devido à proximidade “ideológica”,

do conhecimento para compreensão dos


por assim dizer, já que também baseado no conceito
holístico de cura segundo o qual corpo, emoções, mente
mecanismos de percepção e construção e espírito articulam-se num só sistema interligado
da memória a partir da utilização de plan- (hólon), onde o espírito afeta o físico e o individual se
integra ao grupal. Texto - Cultura xamânica e sabedoria
tas de poder. ancestral – Rogério Favilla
3. http://www.amparodivino.com.br/ayahuasca.html

129
130
A TÉCNICA COMO DIPLOMACIA
COM NÃO HUMANOS
Hilan Bensusan

[...] para milhares de obras sobre de habitats, técnicas de comunicação. E


as maravilhas do conhecimento objetivo no entanto, Latour, na epígrafe acima, en-
– e os riscos mortais que se corre ao tende que as técnicas repousam em um
coloca-lo em questão – não há senão mundo impensado para eles. Latour relata
dez sobre as técnicas – e nem mesmo o espanto da etnógrafa dos Modernos com
três por assinalar o perigo mortal que se o silêncio do pensamento de seus nativos
corre ao não amá-las. [...] O que faríamos sobre as técnicas. A saga da etnógrafa
de [uma filosofia da tecnologia]? Todo o entre os recônditos é parte do seu esforço
mundo sabe que a técnica não é nada por encontrar os modos de existência que
senão um amontoado de meios cômodos são caros aos Modernos – assim, já que
e complicados. Não há nada para pensar vão precisar, eles podem entrar em nego-
sobre ela. [A etnóloga dos Modernos] ciações com outros coletivos sabendo o
continua se admirando que não exista in- que é realmente importante para eles,
stituição legítima que abrigue as técnicas mesmo entre aquilo que lhes passa des-
tal como não há instituição legítima para percebido. Entre os modos de existência
aprendera transigir com os seres que lhes são caros está aquele dos obje-
psicogênicos. Como os Modernos pud- tos técnicos: eles, que amam esconder-
eram perder de vista o caráter estranho, se e que extraem os segredos que
ubíquo e, sim, espiritual das técnicas? permitem que as coisas se reproduzam e
Perder sua opacidade suntuosa? Ela se transformam. O modo de existência dos
começa a anotar: “Não sabemos de fato objetos técnicos, uma existência opaca e
o que eles fabricam. Pai, perdoai-os, eles suntuosa, é algo que compactua e transita
nem sequer sabem o que fazem”. no coletivo dos modernos – ainda que não
Bruno Latour1 caiba facilmente na maneira como eles es-
quadrinham seu mundo.
1. Técnicas estão por toda parte. A técnica não é privilégio dos Mo-
Elas são, claro, todas cômodas e compli- dernos e nem sequer dos humanos.
cadas. Os Modernos, este povo de Latour entende que os humanoides se
geometria variável e que acredita que tornaram humanos por frequentarem os
pode separar, sem precisar de arame entes da ficção, da referência e da téc-
farpado, a natureza – domínio que eles nica. A técnica é, portanto, uma das
compartem com tudo o que é não-hu- coisas que os humanos compartilham
mano – e a cultura – parte em que ocorre com seus ancestrais e que tem uma
o que é propriamente político -, são prodi- longa história na transformação das pai-
giosos em produzir, armazenar e apri- sagens da Terra. Nós somos, assim como
morar técnicas. Elas intermediam quase nossos contemporâneos não-humanos,
todos os passos que os Modernos dão no descendentes da técnica. É possível des-
planeta: técnicas de produção de alimen- crever a geografia e a biologia da trans-
tos, técnicas de construção e manutenção formação das espécies em termos de

131
desenvolvimentos de técnicas já que elas (do baixo Amazonas, mas também da
estão presentes sempre que algum em- Sibéria, de partes do Canadá e outras
pecilho é superado. Os entes da técnica partes do mundo), com os totemistas
são permissores, são aqueles que tornam (presentes na Austrália, mas também em
possíveis passagens, transições. As téc- regiões dos EUA) e com os analogistas
nicas humanas afetam o meio circun- (presentes na maior parte das popu-
dante de humanos e não-humanos – são lações antes do advento dos Modernos,
técnicas que produzem nichos onde a marcadamente no México, Perú, China,
pressão do ambiente sobre os organis- Japão e Índia), os Modernos são natura-
mos se transforma e podem ser contro- listas. O naturalismo se caracteriza pela
lada: cidades, estradas, túneis mas postulação de uma fisicalidade comum
também florestas manejadas, terras fertili- entre humanos e não-humanos associa-
zadas, combustível fóssil extraído. As téc- da a uma interioridade diferente – hu-
nicas tem também suas consequências manos possuem interioridade e em
imprevistas, negligenciadas e descon- variedades, assim a um mononaturalismo
sideradas e também elas – como enfati- se ajunta um multiculturalismo. A natureza
zam as tradições tecnófobas – dão forma aparece como um conjunto de puras fisi-
ao mundo. calidades que engloba o solo, as ca-
E no entanto, ainda que íntimos da madas geológicas, o espaço sideral, os
técnica, os Modernos não se sentem à animais e as plantas. A natureza res-
vontade para pensá-la. Para entender a ponde a uma fisicalidade comum que é
dificuldade que espanta a etnografia, é frequentemente entendida como um
preciso entender alguns elementos das domínio de leis – não leis politicas discu-
disposições ontológicas e políticas dos tidas em assembleias, mas leis cujo es-
Modernos. São estas disposições que tatuto ontológico é semelhante ao daquilo
estão sempre à beira de jogar os objetos que está sob o jugo de um soberano es-
técnicos em direção ao escopo do im- trangeiro com o qual não se pode nego-
pensado. Elas tornam os objetos técnicos ciar. Todo não-humano, portanto,
frequentemente excessivamente híbridos compartilha com os humanos uma fisica-
e arredios, muitas vezes submissos mas lidade que obedece a leis fixas pré-esta-
nunca inteiramente cidadãos, muitas belecidas e pode ser acessado apenas se
vezes domesticados mas nunca inteira- for possível alguma medida do conheci-
mente vizinhos, muitas vezes antropo- mento objetivo que os modernos prezam,
mórficos mas nunca inteiramente culturais. pensam ter elementos suficientes para
Eles habitam os territórios das bordas pensar e vislumbram sempre os perigos
entre o puramente humano e o natural – de por em questão. O não-humano é ob-
e são incômodos porque transitam de jeto de conhecimento – tratar com ele
uma maneira particular entre as vicissi- deve ser sempre mediado por verdades
tudes das fronteiras através das quais os que são pensadas como construções que
Modernos se reconhecem. precisam do auxílio de partes do mundo
mas como uma adequação do intelecto à
2. Para começar, consideremos a coisa. Para o naturalismo, o não-humano
disposição ontológica atribuída aos não é um polo de negociação, mas um re-
Modernos por Descola2 em seu esforço curso disponível.
por comparar as diferentes formas de re- O naturalismo, neste ponto, con-
lação entre humanos e não-humanos no trasta diretamente com o animismo que
planeta. Em contraste com os animistas postula que humanos e não-humanos
132
têm uma fisicalidade distinta e uma interio- de enviar humanos de seu coletivo à
ridade em comum. Assim, no animismo, caça. Esta negociação requer que o
corpos são dissemelhantes de modo que xamã conheça como funciona a so-
um pode se camuflar no outro, mas uma ciedade dos porcos selvagens; porém isto
transformação de um humano em uma não é suficiente, é preciso saber apre-
onça, por exemplo, corporal só é possível sentar suas demandas e saber abrir mão
se a identidade da interioridade se man- de algumas delas escutando a demanda
tém. O animismo associa a um monocul- que surge do outro lado da mesa. Como
turalismo – a cultura comum a humanos e na prática da diplomacia entre países, ne-
a não-humanos centrada em uma interio- gociadores tem que estar presentes na
ridade comum que se revela na capaci- mesa – e tem que ter poderes para refor-
dade de ter uma perspectiva – um mular demandas, reinterpretar requisitos,
multinaturalismo que postula que os cor- abrir mão do que começar a parecer, du-
pos são intrinsecamente diferentes. rante a negociação, menos importante.
Como o não-humano tem uma interiori- Davi Kopenawa4, um xamã yanomami,
dade, ele pode se engajar em uma nego- insiste na importância da presença dos
ciação já que é um agente capaz de ter xamãs para a preservação da floresta: a
relações sociais de todo tipo. A interiori- palavra deles tem que estar sempre por
dade não-humana pode, para o animista, perto, eles não podem registrar por es-
ser acessada pela mesma teia de nego- crito o que sabem porque suas palavras
ciações e acordos que se estende pelo in- são relevantes onde elas são pronuncia-
terior das sociedades humanas – o das.5 A presença dos xamãs é importante
não-humano aparece como uma so- porque as negociações não obedecem
ciedade estrangeira, mas do que um ele- simplesmente a manuais ou a instruções
mento externo à qualquer sociedade, prontas, elas tem que ser repensadas a
como o naturalista o entende por meio da cada circunstância, a cada vicissitude.
postulação de uma natureza. Assim, é As relações com os não-humanos,
possível no animismo acessar o não-hu- para naturalistas e animistas, tem por-
mano não através do conhecimento das tanto uma forma muito distinta. Descola
leis que objetivamente o rege, e que não cataloga diversas relações ecológicas
podem ser negociadas com o poder que que são possíveis entre um humano e
as constituiu, mas através de uma nego- seus outros. Entre as relações (potencial-
ciação já que podemos nos relacionar mente) reversíveis, ele considera a
com ele, por assim dizer, de interioridade predação, a troca e a dádiva – as três pre-
para interioridade. O trabalho do conheci- sentes entre coletivos animistas na re-
mento não versa sobre substâncias pré- lação entre humanos e não-humanos. Os
existentes, como enfatiza Descola3. O Jivaros – os Achuar, os Huambisa, os
não-humano pode estar fora do nosso co- Aguarunas – primam por uma relação
letivo, mas não está fora do escopo da predatória com o não-humano, eles
negociação, e portanto não está fora do tomam o que lhes interessa e esperam
âmbito de qualquer diplomacia. É interes- hostilidade da parte prejudicada. E con-
sante notar que então o xamã animista traste, os Tukanos do Rio Negro se es-
atua como um diplomata, mais do que forçam por um balanço e um equilíbrio
como um sábio conhecedor dos segredos nas relações de troca enquanto os
prontos do domínio dos não-humanos. O Campa – Ashaninka, Matsiguenga, No-
xamã negocia em sonhos, por exemplo, matsiguenga – acreditam que sua relação
com o xamã dos porcos selvagens antes com os não-humanos devem envolver
133
relações de dádivas. Importante que em Quando elas lidam com o não-humano,
todos estes casos, há uma disposição on- elas são eficientes se elas estão correta-
tológica animista; ou seja, a ontologia não mente informadas pelas leis que regem o
determina nenhuma relação ecológica es- domínio da natureza – elas são não mais
pecífica com o não-humano. Mais impor- do que aplicações. Os objetos técnicos só
tante é que nos três casos trata-se de podem então ser entendidos dentro de
relações que podem ser descritas como uma ontologia em que eles são sub-
diplomáticas pois a predação, assim sidiários dos postulados da ciência e súdi-
como a troca e a dádiva, pode ser enten- tos de um domínio de leis. As técnicas (de
dida como uma forma de negociação na saúde, de construção, de agricultura) que
medida em que a hostilidade é esperada: são recalcitrantes a esta submissão ao
há que se proteger da parte que foi conhecimento objetivo ficam impensadas
predada. O roubo e o saque são, em e assim, a tecnologia, como estudo das
certo sentido, ainda formas de negoci- técnicas, ou é impossível ou é um exercí-
ação. Em contraste, os naturalistas não cio trivial de tirar consequências de teo-
mantém relações ecológicas diplomáticas rias científicas estabelecidas (ou futuras).
com o não-humano – eles nem sequer Gilbert Simondon se esforçou por
predam, já que quando saqueiam flo- problematizar e apresentar uma alterna-
restas ou mananciais esperam hostilidade tiva a esta ontologia das técnicas como
apenas da parte dos humanos que são meros corolários das especificações cien-
donos ou tem alguma forma de soberania tíficas.6 Ele entende que um objeto só é
sobre estes não-humanos. As negoci- entendido como forma e matéria fora da
ações se dão sempre entre humanos e oficina onde ele é produzido – de um
humanos – até porque só eles possuem ponto de vista de dentro da oficina, a in-
interioridade para que seja possível uma dividuação nunca perde seu caráter rela-
relação diplomática. O não-humano é cional. Ele privilegia o ponto de vista da
posto na vala comum da natureza, que produção de um objeto, que é o ponto de
não está aberta a negociações de nenhum vista das operações que fazem ele ter
tipo e da qual só podemos nos aproximar lugar – a relação de um pedaço de
com conhecimento (objetivo) de causa. madeira singular com um equipamento
Para os Modernos, naturalistas, a em um estado singular, inseridos em um
técnica, portanto, pode ser pensada – de espaço de trabalho específico. Este ponto
soslaio e sempre de passagem – como de vista faz com que a individuação seja
uma aplicação prática das teorias (cientí- não uma questão de substancialidade,
ficas) que fazemos sobre os não-hu- mas antes de alagmática – ou seja, um
manos: boa a teoria, eficaz a técnica. Os assunto de vicissitudes. Alagmática vem
Modernos pensam pouco sobre os pon- do grego “allagma”, que é traduzida como
tos em que as aplicações e a teoria ficam “custo” ou “preço”. Ou seja, um objeto é
incompatíveis – a técnica não tem au- sempre o resultado das operações das
tonomia em relação à formulação e ao quais ele resultou – operações que são
teste de um conhecimento sobre o não- sempre negociações onde se paga um
humano. As técnicas são um apêndice custo. Como em qualquer tradução, al-
bem considerado e apreciado, porém guma coisa é perdida e alguma coisa é
menor das ciências. Tudo o que se pode ganha no processo, mas o transporte por
dizer sobre elas parece ser que elas são um duto, frequentemente, tem um custo.
fruto de uma aplicação bem-sucedida de Enxergar a individuação como um con-
uma porção de conhecimento objetivo. junto de operações permite a Simondon
134
não entendê-la como consequência de certos impasses possam ser transitados.
uma substância, como consequência de É por isso que as técnicas podem caber
um conjunto singular de operações. em um manual ou em uma caixa de fer-
Simondon então considera os ob- ramenta, mas os genuínos e eficazes ob-
jetos técnicos nesta perspectiva: eles são jetos técnicos se encontram no meio das
produtos de um conjunto singular de ope- coisas, não são só palavra escrita ou
rações. Cada um deles traz as marcas da repositório, mas são presença em uma
sua alagmática: as circunstâncias que específica vicissitude.
lhes deram específicas capacidades e po- É claro o que parece emergir: há
tencialidades. Menos que elementos de um elemento dos objetos técnicos que é
uma ordem técnica que obedece princí- um elemento diplomático, um elemento
pios técnicos de pensamento, os objetos de negociação com os não humanos. É
técnicos são entendidos como emaranha- por meio da presença da técnica que
dos de bricolages, como sucessivas acu- alianças com não-humanos são construí-
mulações de gambiarras pelo qual o das; as técnicas oferecem uma capaci-
acoplamento a uma circunstância não dade de firmar acordos que afetam as
está jamais garantida e sempre surgem ações dos não-humanos. As técnicas são
variáveis custos de transporte na sua apli- instrumentos de negociação, mas como
cação a uma outra vicissitude. Os objetos em qualquer diplomacia, não basta que
técnicos não tem uma substância que elas sejam repetidas, elas tem que ser
condensa um grupo relevante de leis da reimplementadas em casos específicos,
natureza e nem tem um escopo de apli- diante de negociações com demandas
cação demarcável de uma vez por todas. singulares. Os engenheiros, tal como os
Eles são antes condensações singulares attachés das embaixadas, tem que estar
de operações de mediação a serem usa- muitas vezes presentes no lugar onde se
das em outras vicissitudes onde algum desenrolam os toma lá dá cá. A presença
impasse requer uma intervenção. Assim, dos técnicos permite que a alagmática
as técnicas para cortar galhos de árvores, seja conduzida de modo favorável, que se
manter uma roça de mandioca, construir reduza ao máximo o custo de uma insta-
dutos ou preservar nascentes são ele- lação ou de um equipamento de modo
mentos que podem ser usados em situ- que se possa contornar vicissitudes des-
ações específicas em que algum impasse favoráveis. No entanto os objetos técni-
tem lugar – uma planta que não cresce cos eles mesmos fazem o trabalho de
por falta de sol, uma população que não mediação – nos casos mais expressivos
tem como se alimentar, uma falta regional entre humanos e não-humanos. Eles pro-
de água ou uma exposição a variações movem a mediação dos consumidores de
climáticas. Diante destes elementos não- água e dos mananciais, das comedores
humanos, as técnicas são artifícios no de carne e dos animais vivos, dos mate-
processo de negociação. Sim, elas apare- riais anônimos e dos usuários de mobília.
cem como artifícios a serem utilizados em A técnica é uma diplomacia especial, ela
particular no contato com o não-humano. vem de uma era pré-naturalista e se es-
Não são conhecimento da natureza – tende pelos coletivos dos Modernos. Para
conhecimento de como substancialmente os naturalistas, é a sombra de uma nego-
funcionam ou são compostos os não-hu- ciação com o não-humano que eles não
manos – mas são antes elementos medi- sabem mais como articular. Eles fazem
adores, dispositivos de interação, em uso dos objetos técnicos, eles fabricam,
particular, artifícios diplomáticos para que mas como ergue suas mãos para o céu a
135
etnógrafa, perdoai-os, eles não sabem o que sua estrutura societária não permitiria
que fazem. uma maior população. Aqui é interessante
especular se o preço pago pelo aumento
3. Consideremos agora a dis- da população humana nestes coletivos é
posição política dos Modernos em con- a exclusão, por meio de um ostracismo
traste àquela dos chamados povos de qualquer participação política ou, nos
primitivos na discussão inaugurada pelos termos que uso aqui, de qualquer partici-
trabalhos de antropologia política de pação diplomática dos não-humanos. O
Pierre Castres. Clastres entende que a Estado é, entre outras coisas, um dispo-
civilização com estado estão em irrever- sitivo de ostracismo político (diplomático)
sível descontinuidade com as sociedades dos não-humanos; esses últimos passam
que são sem estado (e sem poder político a ser alijados da sua condição de agentes
e sem produção de excedente). Tais so- com os quais se negocia.
ciedades são entendidas por ele como Deleuze e Guattari consideram
sendo sociedades contra o estado pois que sociedades com Estado coabitam
elas articulam todo um arsenal de dis- com sociedades contra o Estado – e as
positivos de diferentes naturezas para im- últimas estão presentes na forma de
pedir que instituições de poder político se muitas associações e bandos que encon-
instaurem e se estabilizem. Os chefes tram forma de exorcizar a chefia política
guerreiros emergem eventualmente e há estruturada em seu seio. Eles insistem
mecanismos que garantem que eles não também que tais agrupamentos são o
se perpetuem ou estabilizem uma estru- fora do Estado, do qual ele precisa e do
tura de poder político. Há uma proteção qual se nutre. São repositórios de acor-
contra a emergência de poder político e dos negociados em forma bruta sem a
os chefes guerreiros, em busca de prestí- mediação do poder político instituído.
gio, tem que negociar com outros ele- Esta ordem às vezes combate, às vezes
mentos dos coletivos sua autoridade em incorpora e às vezes convive pacifica-
começar ou terminar um episódio de mente com tais associações. Há portanto
guerra. Não há nada de estável no poder negociações que se dão a margem do
político – há uma insistente resistência à poder político e, se é assim, há negocia-
estabilidade do Estado. Clastres compara ções que se dão à margem de uma es-
os dois tipos de sociedades e insiste que fera que se limita a propiciar negociações
as sociedades com Estado não são ape- entre humanos. Aqui talvez possamos en-
nas um produto de sedentarismo ou da contrar outra vez os objetos técnicos: com
presença de dispositivos neolíticos – é eles formamos sempre sociedades anti-
preciso uma revolução política para ins- Estado. São associações que não estão à
taurá-lo. E quando isso é feito, uma teia disposição – como recursos à disposição
de poder político paira sobre o que antes do soberano – de nenhum elemento de
era negociado caso a caso; o poder poder político estabelecido -, há um sen-
político se imiscui na alagmática das re- tido em que tais associações não estão
lações. Mas o poder político oferece uma sob a égide do poder político ainda que
plataforma – e um roteiro – de negocia- ele procure não ser atacado por elas e
ção que paira apenas sobre os agentes muitas vezes intente incorporá-las para
humanos. Clastres pensa que uma expli- seus objetivos. Os não-humanos, assim
cação para a emergência do Estado pode como os mediadores que nos permitem
estar na demografia: sociedades contra o fazer alianças com eles, estão fora do es-
Estado se fragmentam constantemente já copo desse poder e só são afetados por
136
ele através de uma mediação humana manos disponíveis para serviços estatais
(como o dono da floresta a quem os Mo- de inteligência.
dernos sim podem saquear). O funciona- Objetos técnicos aparecem muitas
mento de um drone, por exemplo, vezes como instrumentos de controle.
envolve uma associação de não-hu- Tecnologias são usualmente desenvolvi-
manos e objetos técnicos que se acoplam das como dispositivos de destruição –
a interesses humanos e que não podem para fins de acoplamentos com corpos
ser cooptados para sempre pelos militares – e vigilância – como câmeras
poderes do estado. A negociação com os automáticas e drones – ou como equipa-
elementos não-humanos que fazem os mentos de aumento de produção. Em
drones funcionarem em uma circunstân- todos estes casos, mais do que negocia-
cia qualquer depende dos objetos técni- dores com o não-humano, os objetos téc-
cos que, por sua vez, estão fora do nicos parecem, antes, elementos
escopo do poder político. As associações gra dativamente incluídos no convívio
que envolvem objetos técnicos são dos humanos. E, mais do que isso, ele-
assim: passam ao largo dos poderes mentos que se acoplam aos humanos, os
políticos que tentam capturá-las de al- transformam em cyborgs, tornando-os
guma maneira. Em todos os casos, o que mais controláveis, menos flexíveis e,
está à disposição dessa ordem de poder talvez menos não-humanos. Os soldados
são os elementos humanos envolvidos que controlam armas remotas sentado
nestas associações – os objetos técnicos em um painel de controle ficam menos
não são cidadãos. sujeitos às vicissitudes trazidas pelos ele-
C V. Gheorghiu escreveu um con- mentos não-humanos no terreno, mais
troverso romance sobre a tecnicização da vigiáveis e, ao mesmo tempo, menos
Europa nos anos que se seguiram à Se- sensíveis ao que ocorre do outro lado do
gunda Guerra Mundial.9 Nele, os chama- campo de batalha. A guerra é a continua-
dos escravos técnicos são apresentados ção da diplomacia por outros meios – e
como uma população de submissos os dispositivos de mecanizar a guerra
agentes postos à nosso serviço e que es- continuam a diplomacia do humano com
tariam gradativamente tomando o con- o não-humano tornando o humano ele
trole da sociedade humana em um mesmo acoplado ao não-humano com o
episódio de escravos que se tornam qual ele negocia. Nos casos de equipa-
mestres. Os escravos estariam então mentos de guerra, como nos de equipa-
tomando conta do Estado e fazendo uso mentos de vigilância e de produção, os
dele para seus próprios propósitos. A objetos técnicos se acoplam aos corpos
posição de Gheorghiu parece fazer eco a humanos que passam a ser parcialmente
muitas outras de sua época: os objetos dirigidos pelas necessidades da máquina.
técnicos se mesclarão com o poder As máquinas influenciantes de
político e confabularão gradativamente Victor Tausk10 – ancestrais das máquinas
uma tecno-dominação em que os hu- desejantes de Deleuze e Guattari no Anti-
manos estarão inteiramente enredados. Oedipe – mostram-nos como os corpos
Esta distopia se instância, por exemplo, podem ser concebidos como sob a in-
nos equipamentos de guerra monopoliza- fluência de uma máquina. Tausk estuda o
dos pelo Estado, nos dispositivos de con- caso, por exemplo, da paciente Natalija A.
trole à serviço da ordem política que acredita que seu corpo está sendo
espalhados por toda parte, nos mecanis- controlado por uma máquina operada por
mos de coleta de informação sobre hu- seu ex-noivo. Ela concebia a mecânica da
137
máquina como tendo aparatos eletrônicos armam o bote para o capitalismo e que,
capazes de determinar seus movimentos portanto, há que se conceber o futuro
e que, ao mesmo tempo, substitui seu como sendo maquínico, em que os cor-
corpo. Aqui o acoplamento do objeto téc- pos humanos estarão mais e mais
nico ao corpo está em função de um con- acoplados a dispositivos técnicos e o me-
trole humano, mas o resultado é que o lhor a fazer é erotizar o acoplamento –
desejo deixa de ser um elemento não-hu- mesmo que se tenha que trilhar os rastros
mano com o qual há que negociar – um do (aparente) masoquismo do capital. A
assunto de hormônios, genes, microbiota promessa então parece ser a de romper o
e fisiologia do corpo – e passa a ser ori- confinamento do humano estabelecido
entado à subserviência a um poder ex- pelas instituições modernas – entre elas o
terno. Natalija atribui à máquina Estado e o Capital – por meio de uma
influenciante tanto seus movimentos livre entrada de não-humanos em forma
quanto seus desejos. A máquina é parte de diplomatas técnicos pela porta dos
de um dispositivo que acopla ela e seus fundos. Em uma interessante seção de
controladores externos. Aqui também a seu recente livro de crítica ao acelera-
mesa de negociação posta para Natalija é cionismo, Benjamim Noys12 considera a
reveladora: ela negocia com o não-hu- máquina de trabalho e de sexo. O ace-
mano entregando a ele seu corpo. Os leracionismo propõe, ele diz, uma síntese
corpos adaptados ao acoplamento com a entre o trabalho humano e o desejo hu-
máquina inserem no seu interior as de- mano. Mas com isso, ele paga o preço de
mandas técnicas que tornam o não-hu- trazer erotismo humano para o aborrecido
mano tratável – a alagmática do humano campo do trabalho – e da produção. Noys
acoplado à técnica é a do não-humano entende que quando o aceleracionismo
trazido para o seu interior, no qual é pos- pretende encontrar uma forma de erotizar
sível faire corps com os objetos técnicos o maquínico, ele mecaniza o erótico. Não
que estabelecem as ententes. se trata, na agenda aceleracionista, de
O tema do acoplamento com as procurar uma outra técnica, uma outra
máquinas é parte do debate recente, que diplomacia com o não-humano, mas de
tem muitas dimensões, acerca de um an- tratar de gostar de um sexo fordista ou,
ticapitalismo aceleracionista.11 O acopla- talvez, de uma prática libidinal pautada na
mento margeia também a questão do vida pós-fordista do cognitariado. O
incremento técnico da produção capita- acoplamento com a técnica aqui não fica
lista por meio da mecanização da pro- posto à serviço senão de um esquema de
dução que localmente diminui a demanda diplomacia onde os elementos não-hu-
por força de trabalho mas, segundo uma manos já estão alistados antes do início
célebre tese marxista aponta para o de- de qualquer episódio de negociação.
clínio das taxas de lucro – o problema Ainda assim, o acoplamento,
chamado muitas vezes de tendência. De porém, não faz dos objetos técnicos
fato, os casos de acoplamento estudados cidadãos – ou consumidores. O estado –
por Tausk são um produto da revolução ou o capital - tem sempre seu poder limi-
industrial que colocou as máquinas no tado às associações humanas e os obje-
cerne do convívio de trabalho. O prole- tos técnicos são diplomatas dos
tariado foi quem primeiro experimentou o não-humanos contrabandeados para o
estado de acoplamento. O acelera- meandro das sociedades com estado dos
cionismo defende que são os instrumen- Modernos. Estes objetos não podem ser
tos do capital – e sua velocidade – que alistados a causa alguma de uma só vez,
138
eles resistem ao poder político porque elementos não-humanos de seus ambi-
eles habitam na alagmática da diploma- entes são diplomáticas. Já os Modernos
cia. É o outro lado do acoplamento – entendem o não-humano como fora do
aquilo que responde às associações hu- escopo de qualquer articulação
manas – é que é transformado com o diplomática – e entendem mesmo os hu-
convívio com as máquinas de produção, manos como parcialmente desprovidos
destruição e vigilância. O poder político – de soberania diplomática uma vez que
como o poder econômico - não atua eles são restringidos pelo poder político
sobre os objetos técnicos, mas atua sobre instituído (supostamente de uma vez por
aqueles que se acoplam a eles. São os todas). Os Modernos criaram o disposi-
humanos tecnicizados que continuam tivo do recurso: recurso é o não-humano
parte de uma sociedade com estado – que está à nossa disposição, res-
ainda que os objetos técnicos sejam al- guardada a distribuição das propriedades
heios ao poder político. O que está à dis- humanas, e recurso é o que está à dis-
posição do Estado são os elementos posição do Estado, que tem o monopólio
humanos acoplados – é sobre eles que da coerção para fazer com que sua pop-
pesa o impacto das instituições humanas. ulação possa servir aos seus interesses
Os acoplamentos talvez sejam a aposta (econômicos, militares ou demográficos).
dos poderes econômicos e políticos em A criação do dispositivo do recurso é tam-
condicionar os humanos a algumas re- bém a invenção da biopolítica: recursos
lações diplomáticas com o não-humano, da fisicalidade, em grande parte indepen-
em detrimento de outras. dente de qualquer interioridade, estão à
4. Seja como for, podemos agora disposição do poder político.
pensar no mesmo fôlego nos coletivos Podemos então entender um
aglomerados sem a presença de poder pouco da dificuldade moderna em pensar
político tal como aparecem nas dis- as técnicas fora dos marcos das cons-
cussões iniciadas com Clastres de um truções teóricas da ciência. As teorias
lado, e nos coletivos animistas estudados científicas são elas mesmas resultado de
por Descola de outro. Afinal, ambos os construções negociadas com os não-hu-
diagnósticos apontam para os mesmos manos das quais elas tratam – e essas
coletivos e em ambos os casos há um negociação cada vez mais depende da
contraste ilustrativo que nos permite pen- colaboração dos objetos técnicos dos la-
sar em disposições ontológicas e políticas boratórios. Os Modernos não conseguem
dos modernos que constituem so- desatrelar a técnica da ciência porque
ciedades com estado e pressupõem for- não conseguem pensar na ciência senão
mas de naturalismo. Os animistas, que como um acesso não-mediado a uma na-
atribuem interioridade ao não-humano ao tureza pré-moldada. As negociações que
invés de postular uma natureza que se envolvem a construção das teorias – e
presta a um conhecimento de substân- dos experimentos que provêm sua
cias pré-existentes, são os mesmos que aceitação – são opacas e só transparece
resistem ao estado e insistem que todo à face das teorias como espelhos de uma
poder de chefia tem que ser negociado natureza subsistente. Esta opacidade faz
caso a caso e que as instituições não com que as técnicas, elas mesmas, se
podem retirar a força e a soberania das tornem invisíveis mediadores das re-
negociações. Suas práticas e suas técni- lações dos Modernos com os não-hu-
cas de subsistência, incluindo o xama- manos – talvez um dos poucos canais de
nismo que articula acordos com os negociação que lhes restou, ainda que
139
eles não sabem o que fazem. O modelo
do xamanismo, onde os não-humanos
são convocados e protagonizam acordos
que pautam a ação humana, não está no
horizonte dos Modernos. Eles usam téc-
nicas, mas as usam cegos pela natureza
inegociável e pelo estado que pode inserir
poder político em qualquer genuína arti-
culação diplomática. Através das técni-
cas, os não-humanos seguem falando –
e em certa medida seguem sendo escu-
tados – mas sua voz é ouvida como se
viesse de parte alguma.

Notas:
1. Tradução do autor do seguinte trecho de Enquête sur les na fricção entre as máquinas territoriais primitivas e as
modes d’existence (Paris: La Decouverte, 2012), p. 214: máquinas territoriais despóticas tal como ela é descrita
“[...] pour mille ouvrages sur le bienfaits de la connaissance por Deleuze e Guattari no Anti-Oedipe (Paris: Minuit,
objective – et les risques mortels que ferait courir sa mise 1972). Ver também H. Bensusan, “O cartório e a caixa
en cause – il n’y en a pas dix sur les techniques – et pas registradora”, in: Trans/form/ação, 35, 3, 97-112.
trois pour signaler le danger mortel que l’on courrait a ne 6. Cf., em particular, Du mode d’existence des objets
pas les aimer. [...] Que ferions-nous de [ la philosophie de la techniques (Paris: Aubier, 1958) e L’individu et sa genèse
technologie ]? Tout le monde le sait que la technique n’est physico-biologique (Grenoble: Jerôme Millon, 1995).
rien qu’un tas de moyens commodes et compliques. Il n’y a 7. Cf. Societé contre l’état (Paris: Minuit, 1974).
rien à penser. [L’ethnologue] continue de s’étonner qu’il 8. Cf. Mille Plateaux (Paris: Minuit, 1980), 441-446. Na
n’existe pas plus d’institution legitime pour accueillir les edição brasileira, Mil Platôs, v. 5, tradução de Peter Pál
techniques que pour aprendre à transiger avec les êtres Pelbert e Janice Caiafa, 18-24 (São Paulo: editor 34,
psychogènes. Comment les Modernes ont-ils pu rater 1997).
l‘étrangeté, l’ubiquité, oui, la spiritualité des techniques? 9. Cf. La vingt-cinquième heure (Paris: Plon, 1965).
Manquer leur somptueuse opacité? Elle se met à noter: << 10. “On the origin of the “influencing machine in
On ne sait vraiment pas ce qu’ils fabriquent. Père, schizophrenia”, J Psychother Pract Res. 1992 Spring;
pardonnez-leur, ils ne savent même pas ce qu’ils font. >>”. 1(2): 184–206.
2. Cf. Par delà nature et culture, Paris: Gallimard, 2005. 11. Cf. por exemplo, Robin Mackay & Armen Avanessian,
3. Op. Cit. 390. #Accelerate – The Accelerationist Reader, Falmouth:
4. Cf. La chute du ciel: paroles d’un chaman yanomami, Urbanomic, 2014.
Kopenawa, D & B. Albert (Paris: Plon). 12. Malign velocities: Accelerationism and Capitalism
5. A palavra escrita é muitas vezes associada a presença (Hants: Zero, 2014), pp. 46-48. As discussões sobre o
de um déspota, a presença de um elemento em que aceleracionismo e sobre a “tendência” são pontos de
possa haver éditos. Os coletivos animistas, como partida para pensar a técnica como diplomacia. Deixo o
veremos, são muitas vezes não-despóticos. Sobre isso, é caminho aqui apenas indicado.
interessante considerar a importância da palavra escrita

140
#EXCERTO3
mbraz

Nkwa y ap (w)b ne ap (w)sane


Mmom, monkae
Fa ahopakyi hw akyiri
Na kae
Vida é enlaces e desenlaces
Então, lembre-se
Veja novamente no tempo
E lembre-se
Y w nkwantanan bi so
W Nkwa ne owuo ntam(u)
Hwan na b kyer y n kwan no
Hwan na b bue kwan no
Estamos nos caminhos que se cruzam
Entre vida e morte
Quem nos mostrará a passagem?
Quem abrirá os caminhos?
Y n ara
B y n w’adwene
B y n wo tumi
Nkae ne ayaresa ntira
Nkae ne aweret ntira
Isto é
Prepare sua mente
Prepare sua alma
Pra lembrar e curar
Pra lembrar e decompor
Kae
W “so de so wo mu no mu” so
Mfa mma obi ad esator mu
Lembre-se
De sustentar a quem te sustenta
Não a afaste
Kentene wo ho
To dwom fofor bi
Desperte!
Cante uma nova canção
[libre transdução de um poema Ganês]

141
"Há os conceitos, que são a in-
#EXCERTO7 venção da Filosofia, e há o que podemos
chamar de perceptos. Os perceptos
[...] fazem parte do mundo da arte. O que são
Que você conheça manguezais os perceptos? O artista é uma pessoa
& realidades não-humanas que cria perceptos. Por que usar esta
Que são a essência da Poesia palavra estranha em vez de percepção?
Que você conheça o sussurro do Sol Porque perceptos não são percepções.
Na água ferruginosa dos seus olhos. …
(RP, 2008)
É Thomas Wolfe. Ele descreve o
Natura | Caos | MetaReal ¿Na- seguinte: "Alguém sai de manhã, sente o
tureza é até onde percebes! ¡Pejiroquý ar fresco, o cheiro de alguma coisa, de
que, ivaíta ma yvý! | ¿Aépy ojiói jevy, pão torrado, etc, um passarinho passa
mamória ojirói ápy? voando... Há um complexo de sen-
A civilização ocidental [isso é sações. O que acontece quando morre
grande demais, não?], naquilo que se aquele que sentiu tudo isso? Ou quando
origina na filosofia grega [como se hou- ele faz outra coisa? O que acontece?"
vesse somente a Grécia em determinado …
momento da história…] ainda guarda em
seu cerne algo de aristotélico, ou melhor, Para mim, os afetos são os de-
de lógica aristotélica. Por sua vez isso se vires. São devires que transbordam
mistura a uma espécie de platonismo daquele que passa por eles, que exce-
cristão que não consegue ver as diversas dem as forças daquele que passa por
camadas [instâncias] da realidade. Preso eles. O afeto é isso. Será que a música
ainda em dogmas de verdade [seja lá o não seria a grande [uma das] criadora de
que isso signifique]. afetos? Será que ela não nos arrasta
Usarei aqui o conceito de Reali- para potências acima de nossa com-
dade na sua acepção mais simples: preensão? É possível.
daquilo que é compreendido profun- …
damente como extensão de todas as
possibilidades de Existência. Pois Eu sonho com uma espécie de cir-
desse modo Existência vai além da ca- culação entre uns e outros, entre os con-
pacidade de compreensão do humano, ceitos filosóficos, os perceptos pictóricos,
compreende o Animismo como exten- os afetos musicais. E não é de se espan-
são da Ciência. Concebe a Existência tar que existam repercussões. Por mais
como o além do limite humano, como independentes que sejam estes traba-
aquilo que ultrapassa a si mesmo [self]. lhos, eles se penetram constantemente."
Não vou me alongar nisso, alguns pode-
riam chamar de metafísica, magia, xa- Além dessas potências [possibili-
manismo e pajelança. dades] acima de nossa compreensão
Para se ater a uma referência mais temos a Paradoxa, aquilo que sabemos
conhecida e próxima no tempo, apelo a existir mas não queremos aceitar como
excertos da fala de Deleuze [mais interes- Realidade. Campo vasto, amplo e com-
sante que seus textos, pois remete a plexo. Para essa jornada, a bússola da
tradição oral], trata-se de uma entrevista: lógica clássica não serve mais. Essa jor-
nada é a dXs misticXs, o lugar onde se
142
ultrapassa tanto o Real quanto a si limitação] e uma possível tabela a partir
mesmo… a característica que define tanto de lógicas paraconsistentes [metaconsis-
o Xamã quanto o Pajé: ir aos locais do tentes, lá onde a verdade não é o limite já
desconhecido e voltar para relatá-los. Não que essa mesma não pode ser definida].
importa muito qual é o Oráculo ou qual a Dessa triste lógica binária [na real,
técnica utilizada, há tantas quantos corpos monoteísta, pois conserva a verdade
existirem. Pois no limite dos corpos, essa como referência única]. Tudo que não é
técnica é encontrada. Por isso chamare- verdadeiro [???] ou em oposição é falso
mos esse modo de compreender profun- ou desconhecido. Coloca-se o descon-
damente as diversas camadas do Real de hecido como o lugar em que não pode
Extâse. A Poesia do Êxtase. haver realidade [!?].
A seguir uma tabela onde se com- Onde houver X desconhecidX, lá
para a lógica clássica [e sua profunda caminharemos [Magia].

Além do pensamento binário/trinário [lógica booleana dogmática]


X
Tabela das Camadas Mágicas [Meta|ConsCi(est)encia]

A B A ou B AeB Não A

Verdadeiro Verdadeiro Verdadeiro Verdadeiro Falso

Verdadeiro Desconhecido Verdadeiro Desconhecido Falso

Verdadeiro Falso Verdadeiro Falso Falso

Desconhecido Verdadeiro Verdadeiro Desconhecido Desconhecido

Desconhecido Desconhecido Desconhecido Desconhecido Desconhecido

Desconhecido Falso Desconhecido Falso Desconhecido

Falso Verdadeiro Verdadeiro Falso Verdadeiro

Falso Desconhecido Desconhecido Falso Verdadeiro

Falso Falso Falso Falso Verdadeiro

MBraz MBraz MBraz MBraz MBraz

A B A ou B AeB Não A

Percepto Percepto Percepto Percepto Paradoxa

Percepto Magia Percepto Magia Paradoxa

Percepto Paradoxa Percepto Paradoxa Paradoxa

Magia Percepto Percepto Magia Magia

Magia Magia Magia Magia Magia

Magia Paradoxa Magia Paradoxa Magia

Paradoxa Percepto Percepto Paradoxa Percepto

Paradoxa Magia Magia Paradoxa Percepto

Paradoxa Paradoxa Paradoxa Paradoxa Percepto

143
Ali onde o gavião do Norte resplandece

sua sombra

Ali onde a aventura conserva os cascos

do vodu da aurora

Ali onde o arco-íris da linguagem está


carregado de vinho subterrâneo

Ali onde os orixás dançam na velocidade


de puros vegetais

Revoada das pedras do rio


Olhos no circuito da Ursa Maior

na investida louca

Olhos de metabolismo floral

Almofadas de floresta
Focinho silencioso da suçuarana com
passos de sabotagem

Carne rica de Exu nas couraças da noite

Gavião-preto do oeste na tempestade


sagrada

Incendiando seu crânio no frenesi das açucenas.

(RP, 2008)

Ava ñe'ë mβrăʒ

144
EROSÃO
& RESTAURO
philippe wollney

“espiritualidade se manifesta na impossi- cia, guerra. tornaram-se antagônicos va-


bilidade da imanência de sustentar um lores como progresso e paz, direitos hu-
sentido para a vida, na coerência no pen- manos e desenvolvimentos”
sar, falar e agir, e se revela por processos Frei Aluizio
intuitivos, linguagem indireta, poética e
simbólica” “que esperar de mim? / não sou ninguém
Ferdinand Bohr / não me puxe pelo braço / sou revel / a
minha consciência é o verme / e eu sou o
“os profetas são encarnações de estados cria corvos”
da consciência” Sebastião Uchoa Leite
Roberto Crema
afasto a fuligem dos olhos com o sopro
“devemos colocar o pensamento contra o frio que anuncia as chuvas de verão :
pensamento (filosofia é o trabalho crítico limpo o mês de dezembro : o ar menos
sobre o próprio pensamento) – deverá ser denso por sedimentar todo o carbono
uma prática comum, para qualquer um, e cuspido pelo canavial sobre as válvulas &
não exclusivamente dos ‘filósofos’, a prá- caldeiras & destilados & cristo branco
tica o levará à ética como estética da cristalizado : esse demônio sucrolizado
existência (não há como negar, negligen- cânone econômico dos tropicais em de-
ciar a política). inventar a si mesmo como senvolvimento : ruas mudas o medo é
arte, a vida como obra de arte” uma musa diabólica que vicia pela publi-
Foucault cidade de sonhos parcelados : crediários
& crematórios : neons e velórios : letreiro
“hoje, a morte habita a justiça” eletrônico anunciando o nome do defunto:
Passetti o autoexílio não garante a eminência de
parricídios & suicídios & jogar a criança
junto com a água suja : passada a era da
EROSÃO: eletrodomesticação, a selvageria do
“transformações econômicas vão desar- sexo virtual em hiper-sub-mundo de bits
ticulando as comunidades – tanto no nível & clicks & erguem-se babilônias de simu-
rural como no nível urbano – o que pode lacros da vida não-privada em faces-
ser considerado como erosão cultural. flickrs-blogs-kuts - o cú or butt & da minha
perde-se as práticas culturais, os dados janela virtual ou não [ já que isso não
culturais acumulados histórica e tradi- mais importa ] assisto incinerar por mais
cionalmente por certos grupos sociais” uma noite lixo doméstico : sofá restos de
Whitaker almoço papel de banheiro rato morto de-
funto aviário panos de feridas : crianças
“não é possível atualmente o neolibera- entre as chamas & o esgoto em minha
lismo gerar riqueza sem provocar violên- sub-estação-reptiniana goianagonia em

145
pernambucanalha : uma história de con- & a morte & depois-da-morte voltam &
tradição-sobreposição-não-linear de sé- matam & bebem & fumam & falam &
culos & sacaroses & celuloses & celulites calam sentados velhos-pretos de pelos
& sanatórios : um escritor louco & sem brancos & tragam fumo & sonhos em
“bom-gosto & bom-senso” entre a crise tamborete & num canto de parede & no
do econômico & do ecológico : entre os balcão do bar : num só trago envenenar
microestados do narcotráfico & os micro- as várzeas do sirijí & capibaribe mirim : os
processadores da microsoft & maris- fantasmas e fantoches destas terras de
queiras : entre iphan & i-phones & cidadelas & engenhocas : memória de
impostos & importados & china & chique uma pororoca de opressão
& chico & chopp & champignon & char-
que : o rural urbanizado & deteriorado &
homogeneizado em plantations & agro- RESTAURO:
tóxicos & vinhoto sobre o solo lixiviado : “no universo existem inúmeros compas-
compartimentado : salinizado : águarrim : sos, dês/compassos, ritmos simultâneos,
controles artificiais de comportamentos sem contradição, direções distintas ao
sociais que já não condizem mais ao mesmo tempo do mesmo corpo, sem a-
idílico hectare da lavoura familiar : apesar nulação e tudo mantido pelo tempo. o
destas levarem o alimento a mesa : b- tempo passa por nós, e sentimos seus
boys & boias frias & bumba-meu-bois & efeitos, do passado e do futuro”
black birds escoam na magahertz banda Jorge Mautner
larga via satélite de tradição & tradução :
pop-pobre-puta mpbunda num muro “ao dizer a palavra, expressamos também
moralista classe-médiocentrista – quem a existência. se edificarmos um viver
aparece mais num trio midioelétrico? : a mais amplo e integrado, também assim
zona da mata pernambucana mata expressaremos a nossa palavra”
mesmo : mulheres pretas de floresta in- Roberto Crema
fantis em seus esforços de mães-viúvas-
videntes & sobreviventes de holandesas “o mundo real não se manifesta através
batalhas a ferro & fogo & pau & pica & da álgebra, geometria ou física, mas
pus & pesca & palha : marisco-muqueca mostra-se no seu todo. Do mesmo modo
frutos da maré que salga a carne como se o homem e sua ação não se manifestam
se preocupasse em conservar mesmo independente de seu entorno natural, so-
que a seco o couro de um céu crespo em cial, cultural e emocional”
mamas murchas magras : crianças sem Ubiratam Ambrósio
calço e cabaço imaginam nuvens na es-
puma de bar na ira da boca no infecto rio pendões floriram no verde silêncio : pás-
na fenda ferida na fria forquilha na fome saros – meus filhos legítimos com a ave
falange avante nas ruas tortas & lama- óvni virgem : degustam a brisa & o pôr-
centas & lamuriosas & iluminadas por do-sol & várzeas & vertigens & cogume-
postes de mercúrio que não cicatrizam & los & lírios & chás & chãs : ao longe pés
nem envenenam apenas nos alumia num de ipês flocam os restos da mata com o
tom de dor & fim de tarde & de luas ao al- seu próprio sol : irmãos de fluxo & flúido o
cance das mãos : homens que cortam & capibaribe-mirim & o tracunhaém na sim-
cantam & comem & cospem & dançam & biose das águas : jovens foragidos do
doem & dormem & adoecem & adocicam concreto : fugidos do asfalto cortam bam-
& domesticam a fome & a sede & o medo bus & jangadeiam no açude imitando
146
jacarés de papo amianto num dia de sol & declama no megafone o poema que virou
de nuvens também sobre seixos & segre- prece & a jurema sagrada abre os braços
dos & sexos & schitosomas : miragens de & sacia minha sede com a seiva dos as-
monstros guaiamus arrasando sob as tros & o yorubá tatua no peito o símbolo
patas igrejas de calcário sinistros do tao caça um mantra na mata no silên-
calvários de negros sisudos: mas o cio do sol & uma procissão em confetes &
perdão por essas terras unem os desejos serpentinas reza dançando para cristo-
de viver : verdes vergéis de angico & va- tupã & alfaias despertam brahma & este
jucá & jurema preta & branca assom- passeia num bumba-meu-boi & um xamã
brações do jaraguá : oxum exu axé xangó traga o arco-íris & dilata a pupila de osíris
xamã : pretos antiquíssimos deuses ainda & na dança circular com pachamama &
mais : luas & loas caboclo de urorubá elús iemanjá tocam rabeca & pandeiro alá &
& ebós: astronautas baixam num ponto- jah
ponte canto-iluminado num toré profano
colérico esperanto : a tecnoumbanda soa AUM-OM-UM
nas periferias & nos seus terreiros-ter-
raços de pouso & download de mistérios
:
simultaneidades antropófagas num pre-
sente tempo líquido onde um otimismo
embutido chora & delira em nosso car-
naval shivaísta dionisíaco brasileirificando
o mundo : um buraco negro no centro do
caminho de leite brinca de babá de su-
pernovas & pesadas senhoras anãs ver-
melhas imaginam nebulosas sedentas &
brilhantes & brincantes & bacantes & sen-
suais produtoras de sóis que inutilmente
iluminam a matéria escura porque a alma
não tem cor : um novo modo de olhar &
buscar & decifrar é através das fissuras &
rasuras & brechas & fendas do pensa-
mento : & nós em mosaico & replugados
no umbigo de gaia & na mente de maia &
no samba de shiva & no pão de cristo &
yin-yang-jung-engenho cumbe & harebol-
beleza-de boa-a toda-cantando loa & axé-
odara & kaos com k & quilombo de catucá
negro malungo nas bandas de cá & negro
zumbi de palmares nas bandas de lá &
todos os anjos & demônios & deuses &
eu tocando & cantando & dançando numa
espiral de luz & poesia é vida seja falada
ou escrita & escrever é um ato sagrado &
recitar é imitar deus & estar aqui é ser o
diabo & krishina dança maracatu & vi a
calunga nas mãos de omoluru & exu
147
Ciber Pajé,
Edgar Franco
(nesta página, 152 e 160).

148
ENTREVISTA
AO CIBERPAJÉ
Edgar franco

esperava que aconteceria algo assim. Foi


incrível e aterrador”; e postou o que segue:
Viagem Psiconáutica
com Utilização de
“Sou tão inocente em minha
petulância de achar que conheço
Cogumelos (Psilocybe
Cubensis) e Processos algo. Eu achava que conhecia as
plantas, sabia o que elas são. Eu
aprendi algo de biologia, plantei,
criativos de
Histórias em achei flores belas e frutos sabo-
rosos, mas até ontem eu não con-
hecia absolutamente nada de uma
Quadrinhos Poético
Filosóficas planta, era um completo ignorante
sobre elas. Angiospermas, gim-
Entrevista concedida à IV Sacerdotisa nospermas, esporos, sementes,
da Aurora Pós-humana Danielle Barros polinização, tudo isso me faz rir
(Pesquisadora doutoranda da Fiocruz - agora, as categorizações e as
RJ), no dia 12/02/2014. caixas. Mas ontem eu chorei, chorei
de tristeza e de êxtase. Ontem um
No dia 11 de fevereiro de 2014, velho e imponente coqueiro do
Edgar Franco – o Ciberpajé, artista trans- jardim conversou comigo, permitiu-
mídia, pós-doutor em arte e tecnociência me entrar em sua essência, vislum-
pela UnB, doutor em artes pela USP, brar as ranhuras e os ferimentos de
mestre em Multimeios pela Unicamp e ar- seu tronco, tão marcado. Eu senti
quiteto pela UnB - e Matheus Moura – dentro de mim toda a sua luta silen-
quadrinista, editor de quadrinhos e mestre ciosa e solitária para resistir ao
em Arte e Cultura Visual pela UFG – vento, em silêncio, eu senti o êxtase
realizaram um experimento de viagem psi- de sua conexão com a terra e a
conáutica, na oca do Ciberpajé, em Goiâ- história ancestral da vida contada
nia. O relato e desdobramentos desta em cada microssulco de sua casca
experiência serão abordados nesta en- - inscrições de uma escrita cósmica
trevista. que eu consegui desvendar na-
Antes de iniciar a entrevista, abro quele instante. Eu senti o vento e a
com um aforismo postado pelo Ciberpajé chuva abraçado ao coqueiro, ou
em sua rede social no dia seguinte à melhor, amalgamado ao coqueiro.
experiência, que traz uma tentativa de des- Eu sou o coqueiro, sua impetuosi-
crição dos sentimentos que transbordavam dade viril e fálica, seu silêncio uni-
visceralmente de seu ser. Antes de postar, versal que grita. Ao saber mais
Edgar Franco me disse: “Fortemente im- sobre o coqueiro, soube menos so-
pactado pela experiência de ontem. Não bre mim mesmo. E quando eu o

149
abraçava e tornava-nos unos, outra foi publicada na sua revista Artlectos e
planta me tocou e me falou que eu Pós-humanos # 7 (Editora Marca de Fan-
jamais havia olhado para ela. Ela tasia, 2013), mas essa foi a primeira vez
disse a verdade, sempre ali imper- que realizou parcerias criativas durante a
ceptível para o meu olhar cotidiano experiência.
enviesado e viciado pela percepção Edgar Franco, no dia seguinte à ex-
embotada daquilo que passei a periência, foi contatado por mim, Danielle
acreditar ser a realidade ordinária. Barros - IV Sacerdotisa da Aurora Pós-hu-
Chorei de tristeza por mim, não por mana, pesquisadora e entusiasta de sua
elas, de descobrir estupefato como obra – e ele estava ávido por relatá-la. En-
sou um mistério, e chorei de alegria tusiasmado em falar, o pensamento e as
por finalmente conhecer um pouco lembranças viajavam mais rápido do que
o que são esses seres mágicos, os Franco conseguia escrever. Esta entre-
vegetais. Ah como a linguagem é vista, realizada pelo chat de uma rede so-
limitada, estou relendo isso aqui e cial, mantém o formato de conversa
não consegui expressar nem um informal. Ela permitirá ao leitor viajar e
milésimo do que senti. Ontem visitei mergulhar um pouco nessa experiência in-
tantos lugares, vi galáxias perdidas, crível do Ciberpajé, suas percepções,
vi seres maravilhosos e aterrori- criações e visões, de outros mundos e di-
zantes. Quem sou eu?” mensões que visitou.
(Ciberpajé)
DANIELLE BARROS (DB): Como surgiu
Edgar Franco é artista transmídia, a ideia de realizar essa “viagem psi-
professor doutor que se declarou Ciber- conáutica”? Qual era a busca de vo-
pajé em seu aniversário de 40 anos, cês? Como foram os preparativos?
através de um método de transmutação e Conte-nos o começo dessa experiência
renascimento inventados por ele tendo para nos situar.
como base seu universo ficcional da “Au-
rora Pós-humana”. Na perspectiva de suas EDGAR FRANCO (EF): A ideia era criar
concepções poéticas, Franco é um ser uma HQ durante a experiência, ou seja,
pós-humano e esta experiência integra experimentar processos criativos sob o
uma pesquisa independente sua e de efeito da substância psilocibina encontrada
Matheus Moura sobre processos criativos nos cogumelos Psilocybe Cubensis. A
de histórias em quadrinhos sob efeito de princípio, Matheus Moura, desejou criar
enteógenos, as chamadas “plantas de ambiências mais complexas e dar um di-
poder”, vulgarmente conhecidas como recionamento à experiência, como por e-
plantas psicoativas, ou alucinógenas. A ex- xemplo, propondo um tema “básico” para
periência foi previamente combinada e es- as criações. No entanto, discordei e pro-
truturada entre Matheus Moura e Edgar pus que essa primeira experiência fosse o
Franco, visando à criação de uma história mais livre possível. Então organizamos o
em quadrinhos em parceria criativa entre espaço, selecionamos belas músicas li-
os dois durante a viagem psiconáutica, gadas para nós a esse universo do transe:
realizada com a ingestão de 14 cogume- Anathema, Faun, Omnia, Phuture Primi-
los Psilocybe Cubensis. Franco já havia tive, Shigurui, The Moon & Night Spirit e
realizado outras experiências utilizando Merkaba, entre outras. Separei canetas
esse cogumelo, na verdade um fungo e que uso para desenho, lápis de cor, uma
não uma planta, e criado HQs, uma delas prancheta de mão e papel. Colocamos
150
dois colchões no chão da área de serviço se em muitas criaturas: macaco, cão, um
da oca do Ciberpajé, posicionados para a louva-a-deus e então um rato, um coelho.
visão do quintal da casa com muitas ár- No teto, que tem telhas onduladas e com
vores. Curiosamente, minha esposa Rose manchas, eu vi inicialmente a pele de
– a I Sacerdotisa da Aurora Pós-humana múltiplas serpentes que começaram a
– sugeriu a Matheus para se acomodar na dançar e a enroscarem-se! Detalhe:
rede que temos na área de serviço e ele Matheus também viu serpentes ao olhar
gostou da ideia e passou 90% do tempo para o teto em um momento! Mas depois
da experiência dentro dela. Bem, depois das serpentes, as imagens do teto for-
desses preparativos iniciais, Rose nos maram uma espécie de “cosmos de luz
deixou a sós e saiu de casa. Então azulada” e o teto em si sumiu, e aí vi mi-
tomamos a “mistura mágica”, ela foi feita lhões, talvez bilhões de criaturas cami-
utilizando 13 cogumelos desidratados que nhando por uma longa estrada, por uma
tinham sido cultivados por Matheus Moura, paisagem psicodélica, colorida viva e pul-
e 1 cogumelo desidratado cultivado por sante. Era como um grande “êxodo” e elas
meus pais e por Anésio Neto, e suco de seguiam em direção ao horizonte, o céu
uva integral - tudo batido no liquidificador e era azul brilhante, e tinha dezenas de
dividido em duas porções iguais. Por volta planetas coloridos de alaranjado, vermelho
de 3 horas da tarde bebemos a poção, que e cinza.
pela cor lembrou Matheus Moura da poção Mas as visões mais impressio-
mágica de Asterix. Deixamos a música li- nantes das duas primeiras horas da ex-
gada no random com todas as bandas es- periência aconteceram na parede do fundo
colhidas - o que foi uma ideia sensacional, da área de serviço, que tem umas man-
pois os climas sonoros mudavam a todo chas de carvão deixadas pela chur-
instante auxiliando a produzir novas per- rasqueira do antigo dono dessa casa. Ali
cepções e visões. Matheus colocou um in- foi um êxtase! A parede é escura com
censo pra queimar. E nos deitamos, ele na essas manchas, então eu vi o universo,
rede eu no colchão no chão - eu sempre muitas galáxias e supernovas, mas a visão
de olhos abertos, vislumbrando o quintal mais impressionante foi de uma exube-
em parte do tempo, a parede do fundo em rante e grande mãe cósmica!
outros momentos e também o teto. Em Essa mãe cósmica parecia feita de
todos esses pontos focais tive visões estrelas, seu corpo tridimensional brilhava
transcendentes inexplicáveis! com muitos pontos luminosos e ela era es-
cura como o negro do cosmos. Ela tinha
DB: Como eram essas visões/sen- uma cabeça altiva, olhos grandes e cente-
sações? nas ou milhares de grandes seios que iam
descendo por seu corpo “serpentálico”, até
EF: Vivenciei visões intensas durante toda sumir em perspectiva no universo. Num
a experiência, vou relatar algumas delas: momento vislumbrei algo que pareceu
Inicialmente vi nas folhas do abacateiro do uma vagina enorme entre os seios, mas
quintal formar-se uma espécie de velho sumiu, e tinham coisas que pareciam pe-
sábio ancestral com longa barba que se quenas NAVES espaciais, em formato de
movia ao vento, olhar nervoso e fixo em charutos, que ficavam circulando a mãe e
mim. Depois essa imagem transformou- tocando o bico de seus seios. Vislumbrei
se na de um LOBO enorme, só a cabeça essa imagem pelo que me pareceram
do lobo na verdade, com orelhas pontudas horas! Mas penso que na realidade foram
e muito longas, e de lobo ele foi mutando- uns 15 minutos. Até tirei fotos da MANCHA
151
que se tornou essa mãe cósmica! (Nota comecei a desenhar o meu pé e joelho, e
durante a revisão: Dias depois me deparei surgiu um desenho infinito, pois represen-
com a figura da deusa pagã “Diana de tei “desenho desenhando desenho” e
Éfeso” e fiquei estupefato com a sua assim por diante. Mais tarde, ao fim da ex-
semelhança com o ser que vi durante a ex- periência, ao reverem o desenho, minha
periência). esposa e Matheus disseram que o de-
Nesse momento, Matheus levan- senho não parecia ser meu! Em volta do
tou-se da rede e veio me falar da sen- pé maior eu desenhei um circulo induzido
sação intensa de calor que sentia e que por uma imagem que pareceu vir do fundo
estava experinciando dentro da rede, ele do papel. Pedi a Matheus que dissesse
suava muito e sentia algo como se es- algo para o texto da página, ele se sentiu
tivesse passando por uma “pajelança”, pressionado, e incomodado, e a única
com aura de cura. Ele relatou que parecia coisa que disse foi: "Ao Sol". Então escrevi
que a rede sugava toda a luz e energia do “AO SOL” na página e mostrei para
sol. Eu falei da visão da mãe cósmica para ele. Ele viu, me entregou e começou a
ele, então as duas imagens se chocaram: falar sobre o sol, o sol como deus, como
ele falando do sol (princípio masculino) e grande fonte da vida, aproveitei a deixa e
eu da mãe universal (princípio feminino). escrevi uma frase solta das que ele disse
Peguei o papel e comecei a desen- em outra página: "O Sol como a real Di-
har. Faço aqui um parêntesis: o primeiro vindade".
exercício criativo da viagem não foi este, E a partir dessa frase lembrei-me
foi o de desenhar após ler uma poesia es- dele falar da rede como “atratora de luz”, e
crita por você, Danielle Barros, a IV Sacer- comecei a desenhar a rede que virou uma
dotisa, mas pelo fluxo de lembranças irei VAGEM com um sol ao fundo, a rede
continuar a relatar este, e depois relato vagem viva, um desenho simples, mas
esse da sua poesia. com certa força poética. Matheus viu o de-
Continuando, desviei o olhar de senho, se desinteressou do processo cria-
novo para a mancha na parede e a “mãe tivo, absorto pela experiência, continuou
cósmica” estava lá! Do mesmo jeito, me- de pé e foi olhar o quintal mais de perto.
xendo-se lentamente e sensualmente! Então eu comecei outro desenho. Esse
Pensei que a imagem sumiria, mas não! quarto desenho, Rose e Matheus, dis-
Mesmo com toda a dificuldade do impacto seram mais tarde não ser meu, e nem eu
da experiência naquele momento, come- reconheci-me nele! Matheus assistiu o
cei a desenhá-la como podia, sem me pre- começo de seu surgimento no papel. Em
ocupar com a qualidade plástica do minha visão apareciam linhas brilhantes
desenho. Matheus ficou de pé, me obser- no fundo da folha branca e eu simples-
vando. Ele viu o desenho nascendo e lhe mente seguia essas linhas e desenhava
pedi que dissesse algo, e então recitou a sobre elas. Matheus viu o começo do de-
frase: “Lágrimas, lágrimas por todos os senho e falou: “- Um Dragão!”, depois ele
poros”. Essa frase abriu a parte textual da saiu e foi deitar-se na rede, não se impor-
HQ. Matheus observou que o desenho da tava mais com arte ou processo criativo, a
mãe criava uma conexão com minha experiência estava impactante demais.
perna no ângulo que ele estava e brincou Terminei o desenho como pude e escrevi a
com isso, para ele o desenho e meu corpo partir do que Matheus disse: "O Sol é um
eram uma coisa só, ele tentou fotografar, dragão, um dragão, um dr...". Coloquei as
mas disse que a máquina não captou quatro páginas da HQ à minha frente no
nada! (risos). Então tirei a primeira folha e colchão (Figura 2), tirei uma foto e voltei a
153
me deitar para incrivelmente viver mo- nesse ambiente que a HQ nasceu. Mais
mentos ainda mais intensos. Mas nessa tarde eu fui para o jardim e fiquei lá por um
fase, entre as 17h30min (acho) e às longo tempo. Matheus ficou quase todo o
19h30min seria impossível desenhar algo! tempo na rede e se levantou algumas
vezes pra falarmos, mas ele ficou de olhos
DB: DR é o que? Neste desenho você fechados a maior parte do tempo, e eu de
utilizou pincel? olhos abertos.

EF: DR é o começo da palavra DB: Matheus também desenhou?


“DR”agão, eu fui aumentando a letra e
saiu da página! Não usei o pincel, eu ten- EF: Não, mal conseguiu balbuciar algu-
tei usá-lo no nosso desenho da poesia, mas palavras para o roteiro. A experiência
mas a coordenação com ele não estava foi deveras impactante para ele, no
boa, então optei pela caneta nanquim de começo sentiu forte emoção e vontade de
ponta fina. Usei-a no resto da experiên- chorar. Já eu, que nunca tinha chorado, no
cia, foi uma opção consciente para con- final chorei como uma criança. Minha es-
seguir melhores resultados. posa quando chegou se assustou; pois eu
estava chorando copiosamente e tentei
DB: Vi que vocês conseguiram criar explicá-la sobre minha vivência com o co-
a HQ nessa viagem psiconáutica. queiro do jardim, ela não entendeu nada.
Matheus tinha levado algum texto Ela preferiu estar fora durante o período da
previamente escrito? Conte-nos mais experiência para deixar-nos mais à von-
como pensaram esse processo “mé- tade. O final de minha viagem foi muito
todo-louco-intuito-criativo”? emocional, como o início da de Matheus.
Os fluxos dinâmicos enteogênicos
EF: Sim, como você percebeu, consegui deixaram-me em um estado hipersensível
realizar com Matheus uma HQ! Mas con- e me implodiram. Inicialmente tive medo,
fesso que foi complicado. Inclusive, como pois vi que conheço ainda pouco de mim,
já ressaltei Matheus e Rose acharam que mesmo diante de minha ancestralidade,
as páginas finais nem parecem que fui eu mas depois vivi um êxtase profundo.
quem desenhou. Fizemos algumas fotos, Chorei de medo, depois de tristeza pelo
tem uma em que apareço desenhando a desconhecimento de mim mesmo, depois
primeira página, tentando com pouquís- de ÊXTASE pelo maravilhamento. Chorei
sima coordenação desenhar a mãe cós- muito. Mas isso foi só no final, eram
mica que vi na parede, essa fêmea 20h00min.
descomunal de seios enormes, dezenas
de seios em que espaçonaves vinham DB: A HQ foi feita dentro da proposta
tocar os bicos. Ela se mexia lentamente e imaginada? Ou a intenção primeira não
sensualmente. O desenho, ele é um ar- era primordialmente a produção artís-
remedo, foi o que consegui fazer naquele tica em si e sim a experiência transcen-
momento. Mas foi importante como parte dente como um todo?
da experiência, como um registro atávico
do momento em que eu vivia aquilo. Eu EF: Bem, quando você se dispõe a realizar
desenhava e Matheus, com muito esforço, uma experiência dessa natureza, objeti-
- pois para ele foi mais difícil – ditava o vando CRIAR uma HQ, mas já tendo
texto. Ficamos na área que dá vista para o vivido experiências anteriores assim, você
quintal, Matheus na rede e eu no chão. Foi sabe que no final isso (criar uma HQ) terá
154
pouca importância dentro de todo o estar num acidente você também vis-
processo de mergulho no abismo. Mas lumbra que o corpo não é tanto, porque
fizemos a HQ! dentre as possibilidades de acidente
Depois de tudo que sentiu e viveu existe a de morrer, então você vislum-
na experiência, Matheus, altamente im- bra que a vida é mais do que isso!
pactado e confuso, disse-me: “- Deu von-
tade de desistir de tudo, do doutorado. Isso EF: Sim, essas experiências têm parale-
não faz sentido!” E eu o compreendi per- los. Naquele momento do acidente, você
feitamente! Após viver um drama cósmico, limpou instantaneamente seu coração de
ser obrigado a citar idiotas arcaicos e toda a idiotice que te cerca, e viu o que
travados para analisar algo que foge com- importa, acontece isso comumente tam-
pletamente ao inocente método científico bém durante uma experiência com en-
é como querer ensinar pedras a dan- teógeno, como a que tivemos. A diferença
çarem. O impacto é profundo. Uma expe- é que mesmo muitas coisas que parecem
riência assim pode ser perigosa para importantes e que você focaria ao ver um
aqueles que tiverem um coração duro, acidente, também perderão o sentido. Eu
maldoso, ou frustrado. No entanto conver- disse a Matheus: - A vida "ordinária" pode
sei com Matheus sobre a importância de ser mágica, ela é algo simples, e como
unirmos a realidade vegetal à realidade artistas, precisamos de canais para di-
validada, e como, na perspectiva da fundir o que fazemos. E no fundo, a frus-
pesquisa acadêmica, podemos legitimar a tração de Matheus foi a percepção da
importância e impacto dessas experiên- dificuldade de mudar o mundo que está
cias no mundo dito “real”. tão longe do que experienciamos. Mas
Matheus, como eu, é um revolucionário
DB: Que percepção grandiosa. Peço li- do espírito humano. E como todo revolu-
cença para compartilhar algo. Certa vez cionário da alma, temos crises de as-
passei por uma experiência de encarar cetismo. Quando desejamos deixar tudo
um acidente de perto, e ficar diante da e irmos pra montanha. Eu tive a coragem
morte, e pensei “o que estou fazendo de misturar tudo, e eu não tenho medo de
da minha vida? Estou perdendo tempo falar dessas experiências na academia,
com coisas, mestrado, vida acadêmica, pago alto preço por isso: sou tachado de
elas valem a pena?”. Quando Matheus louco, naif, hippie, inocente, e blá, blá,
disse isso eu o entendo, mas creio que blá. Mas cumpro certas regras neces-
a sabedoria está em transitar os mun- sárias ao túnel de realidade acadêmico e
dos. Se uma pessoa faz um doutorado com isso mantenho-me no meio e com a
para seguir a carreira acadêmica, pra liberdade devida.
ser um professor, por exemplo, ele
deve dançar essa música, - sem se DB: Sim, quantas vezes já quis aban-
vender ao sistema, - tendo a clareza de donar tudo... Você disse que “uma ex-
sua percepção da vida! Então, se por periência assim pode ser perigosa para
um lado o doutorado não tem sentido, aqueles que tiverem um coração duro,
por outro tem, pois além de buscarmos maldoso, ou frustrado”. Gostaria de
uma forma de ‘sustento’ e trabalho, nele aproveitar essa deixa para falarmos so-
encontramos um meio para disseminar bre o “ego”. Penso que uma viagem as-
nossas visões de mundo e influenciar sim – para a maior parte das pessoas
pessoas, realizar-nos. Além disso, assim que convive com sentimentos como
como em uma viagem psiconáutica, ao ciúmes, raiva e complexos – seria muito
155
forte. Pois, se por um lado, uma visão do rados ao suco de uva, absorção bem rápi-
cosmos poderia mostrar o quão ridículo da, em 15 minutos já começou o efeito.
é nutrir estes tipos de sentimentos, por Cogumelos desidratados e batidos com
outro, penso que para aqueles que não suco no liquidificador. Bem, ficou com o
estejam preparados, poderiam ver cres- gosto de SUCO DE UVA! (risos). O et-
cerem seus demônios interiores. Talvez, nobotânico Terence Mackenna dizia poe-
a percepção da experiência fique preju- ticamente que os esporos do Psilocybe
dicada por interferência do ego. Ao in- Cubensis são criaturas de outra galáxia,
vés de transcender, a pessoa pode ficar seres extraterrestres que vieram para nos
mais aterrorizada? Porque o ego nos contar histórias do cosmos! Uma bela ima-
machuca tanto? gem poética do cogumelo! Hoje me sinto
bem, o efeito da substância passou, mas o
EF: Porque acreditamos que somos o efeito que ela causou no meu self não, é
EGO, essa percepção de individualidade, PROFUNDO DEMAIS! Estou ainda alta-
de unicidade, diferenciação. O ego é o que mente impactado, sentindo-me estranho,
acreditamos que somos, o fantasma que mas alegre e sereno. Estou me sentindo
criamos para nós mesmos. Silenciar o ego leve e pesado agora, totalmente PARA-
é complicado. Como você vai silen- DOXAL, mas é isso. Sinto-me nesse ins-
ciar/matar aquilo que ACREDITA SER tante como uma pluma e como um saco
VOCÊ, aparentemente é um suicídio. Você com toneladas de chumbo!
não quer, você quer continuar sendo o que
acredita ser. Mas quando você tem expe- DB: Como é isso?
riências transcendentes, você percebe que
simplesmente o ego é uma fotografia des- EF: Vou tentar expressar, mas certamente
botada que mostra um ângulo seu apenas, será um arremedo. Meu coração está leve,
e você é HOLOGRÁFICO, você é multidi- pois vi que todos os complexos e besteiras
mensional, e o tamanho e complexidade que acho que fazem parte de mim, não
dessas múltiplas dimensões é o tamanho são nada, ele viu mais uma vez que o
do Universo! Mas não é nada fácil. Meu LOBO É O COSMOS! E ele teve certeza
ego está aqui, convivo com ele, e se sofro disso, está leve, dançando entre as galá-
ainda é só por causa dele. Tenho apren- xias que vislumbrei ontem. Mas certos pa-
dido lentamente a minimizá-lo, a torná-lo o radigmas anteriores que estão mortos com
que ele é, só uma parcela mínima de meu a experiência são difíceis de deixar ir em-
ser, de minha complexidade cósmica. O bora, sinto ainda o peso deles, uma melan-
final da jornada será fazê-lo apagar-se, colia estranha por estar deixando-os ir
mas não tenho pressa, sou um aprendiz. embora, livrando-me deles, esse é o peso.
Quanto a você, terá uma boa viagem psi- Por isso sou leve como uma pluma e pe-
conáutica ainda. Você tem um bom sado como um fardo de chumbo! Sinto até
coração. Vai doer, vai ser impactante, mas uma "leve dor de cabeça".
será mágico. Por isso quando chegar o
momento: MERGULHE! DB: Então esse Edgar que estou con-
versando hoje não é o mesmo de
DB: E agora, como se sente? Ainda há ontem?
vestígio da substância em você agindo?
E o sabor é como? Amargo, doce? EF: Sinceramente, não sei! Eu estou aqui,
pareço ser o mesmo. E as atividades trivi-
EF: Os cogumelos foram ingeridos mistu- ais como digitar no computador, estar
156
nesse estúdio aqui agora parecem induzir do ego se esvaírem. A dor da mudança.
certa normalidade que retorna à noção de Conte-nos mais dessa dor e desse
percepção ordinária. Isso é uma espécie choro profundo seu.
de vício uterino: a nossa percepção or-
dinária. Achar que enxergamos a realidade. EF: Sim, perfeito. Foi um choro por isso
Por isso uma experiência impactante como mesmo, de perceber minha grande ino-
a de ontem, com um enteógeno coloca- cência, petulância, pois por mais humil-
nos totalmente em xeque em relação à dade que eu tente cultivar, ainda guardo
realidade, ou ao que acreditamos ser a milhares de pseudo-verdades e pequenos
realidade. dogmas em meu íntimo. Vê-los des-
moronar é doloroso, dá medo, gera tris-
DB: Depois de tudo que você viveu teza. É difícil explicar, mas você se torna o
nessa viagem, como conseguir manter centro focal do Cosmos e vive eventos de
a visão do todo e dos detalhes, sempre, proporções universais naquele momento.
sem cair nesse vício ordinário? Quando eu chorei, a princípio era meu
ego, depois fui sumindo e no final eu
EF: Eu já experimentei algumas formas chorava e ria de êxtase, era como uma ex-
poderosas de deslocamento dessa per- plosão mágica, dolorida e maravilhosa.
cepção ordinária, cada uma tem sua es- Você se sente um estranho e depois se
trutura e causa aberturas diferentes, a sente bem por ser esse estranho, diverte-
magia sexual é um jogo poderoso de ener- se com isso, de se entregar. Eu tento
gias, pulsão criativa e equilíbrio interno. A praticar essa entrega no meu dia a dia,
psilocibina é uma implosão de todas as deixar a coisa ser o que “é”, mas não é
realidades internas, você continua ali, mas nada fácil, com a psilocibina isso se torna
toda e qualquer verdade se dilui no ins- mais efetivo. Durante a experiência eu não
tante. Se você acumulava verdades, elas resisto. Ontem, quando comecei a sentir a
vão implodir e se você tentar sustentá-las implosão de algo que pode parecer idiota:
poderá sofrer e será fatídico, acredito que do que eu entendia como plantas, eu re-
venha daí a chamada bad trip. McKenna sisti um pouco - meu ego no princípio quis
dizia que o Cogumelo é um formatador da dizer racionalmente: - O coqueiro não fala
consciência, você a limpa de todas as su- com você, é um alucinógeno agindo no
jeiras e vírus ordinários, você começa de seu cérebro, você está pirado. Minha
novo, de certa maneira. Se você se en- mente racional disse o que todos os "cien-
trega de verdade à experiência, certa- tistas” dirão. Então o choro veio no início
mente renasce, não é o mesmo, você por resistir a isso, por MEDO! Medo de ver
muda. Mas a mudança pode doer muito, que toda a realidade sobre plantas que eu
pois ao acordar, o ego ainda está ali e ele acreditava conhecer era lixo, lixo puro!
vai querer continuar a impor suas noções
de realidade e verdade, mesmo depois DB: Você disse que a linguagem é limi-
de vê-las dilaceradas pela experiência tada para expressar suas visões e o
transcendente. que sente nessas viagens. Você já sen-
tiu essa limitação antes, ao criar suas
DB: Esse choro que você relatou, imag- HQs, desenhos, músicas? A “limitação
ino que não seja nem 1% do que você da linguagem artística” para expressar
deve ter sentido, mas achei a "des- seu sentir ficou mais comprometida
crição" parecida com o que sinto várias sob o efeito do cogumelo? Fale-nos um
vezes quando provo na pele as ilusões pouco dessas percepções.
157
EF: Sim, o artista deve ser condescen- uma imagem de um pássaro, uma pom-
dente consigo mesmo, deve se amar. Ou binha/rolinha enorme, com uma mistura de
sofrerá muito, a transposição das imagens docilidade e inocência. Essa imagem mar-
cósmicas que vislumbro em meus transes cou-me muito, a vi na paisagem es-
artísticos para o papel é sempre um ar- verdeada do quintal, ela ficava de perfil
remedo, nunca tem a força daquilo que para mim e levantava as asas com graça,
imaginei, e nunca terá. Mas esse é o preço de repente ela tornou-se uma espécie de
pago por qualquer linguagem, a simplifi- leão alado, ou melhor, um felino ala-
cação da complexidade cósmica. Por isso do. Nessa hora decidi que tentaria dese-
sou muito amoroso comigo mesmo, nhar, virei-me para o lado e peguei a folha
aprendi a lidar com essa questão de trans- dobrada com o seu poema/aforismo.
posição das imagens transcendentes para Quando a abri foi um choque! Antes
minha arte e saber que a arte é só uma lin- de ler o texto impresso, ela brilhava com
guagem, só uma forma falha de tentar muita intensidade, cheguei a cerrar os
captar a realidade. Ela pode ajudar, e olhos, tamanha era a luz que vinha do
acredito na sua capacidade para despertar texto. Foi incrível, a poesia estava lumi-
as pessoas de seu sono do ego. Mas o nosa, saia LUZ dela, muita luz, até franzi
avançar, além disso, dependerá delas. Eu os olhos, quase me cegou! Depois de um
amo minha arte, eu amo o que faço, eu minuto observando-a sem decodificar o
aceito minhas limitações, por isso me amo. escrito, eu o li e me emocionei, tive uma
Gostaria de ressaltar que essa entrevista sensação boa, forte.
contigo é algo MUITO IMPORTANTE, pois Eis o poema:
ela captura minhas percepções gerais da
experiência ainda sob seu forte impacto! "Ao mergulharmos em nossa
unidade holográfica,
DB: Agora gostaria de saber como foi a vislumbramos que somos parte do
criação do primeiro HQforismo psi- todo univérsico,
conáutico!! (HQforismo é um tipo de Poderoso e integral.
HQ criado por Franco, o neologismo foi Nessa visão mágica e única,
conceituado por Franco e Danielle Bar- Macho e fêmea reinam unidos e
ros, que significa: histórias em quadri- inteiros, e compreendem que são
nhos + aforismos). Deuses."
(Danielle Barros)
EF: Vamos lá! Danielle Barros – a IV Sa-
cerdotisa (você!) – aceitou a proposta de Síntese de muitos dos meus pen-
escrever um poema e me enviar para eu samentos e aforismos, o escrito mexeu
criar uma arte inspirada nele durante a ex- fortemente comigo. Respirei fundo e
periência com o Cubensis. Danielle enviou peguei a prancheta com uma folha e o pin-
o texto poético que eu não li e imprimi em cel. Senti a conexão com a autora dos ver-
uma folha sulfite e dobrei em quatro partes sos e desenhei uma linha cortando quase
e deixei junto ao meu material de desenho que a folha ao meio. O pincel não respon-
do lado do colchão no chão. Decidi que ini- deu bem, a minha perícia estava obvia-
ciaria a tentativa de desenhar durante a mente prejudicada pela intensidade da
experiência com esse exercício criativo. viagem transcendente. Ainda desenhei
Cerca de 30 minutos depois de o com esforço a cabeça da pomba, figura
enteógeno fazer efeito, eu já estava tendo feminina que tinha visto antes na parte de
visões incríveis. Algo muito marcante foi baixo da folha. Então deixei o pincel e
158
peguei lápis de cor alaranjado e tracei al- voltei para dentro de casa, Matheus con-
gumas linhas circulares. Troquei para o tinuava na rede. Peguei a câmera fotográ-
lápis cor-de-rosa, essas cores brilhavam fica e fui para o jardim fotografar o
muito e me “chamaram” para usá-las. Fiz coqueiro, tentar capturar um ínfimo das
muitos traços com essa cor e deixei-a para imagens poderosas que vi, da força das
pegar a caneta nanquim de ponta fina. marcas de seu tronco que revelavam sua
Surgiu a imagem de algo que agora me vida grandiosa. A chuva parou, tirei as
parece um feto, na parte inferior junto da fotos ainda sob forte emoção, lágrimas es-
cabeça da pomba e um falo ereto e um corriam no meu rosto. Voltei novamente
peixe na parte superior. Peguei novamente para dentro. Tive o impulso de desenhar
o lápis alaranjado e fiz alguns detalhes. A algo, peguei a caneta nanquim de ponta
luminosidade fosforescente do amarelo fina, o papel e deixei a mão livre seguir o
“chamou-me” e conclui o desenho com papel, o resultado gráfico foi bom, eu já es-
ele. Na verdade tive que parar, pois a folha tava dominando melhor a perícia manual
começou a ficar transparente e apareciam do desenho e saiu um HQforismo, mais
imagens por trás dela, era impossível con- uma vez unindo os opostos comple-
tinuar. Dei o trabalho por encerrado, deixei mentares. Com um curto texto: "Atados ao
papel, prancheta e lápis ao lado do col- todo! Todos". Terminei o HQforismo e deite-
chão e voltei novamente meu olhar para o me no colchão, uma música do Anathema,
quintal, mergulhando na experiência. Esse muito emotiva tocava no som.
foi o primeiro exercício, feito antes da HQ A lembrança da experiência com o
com Matheus Moura, que foi criada por coqueiro se misturava a imagens vibrantes
volta das 17h30min, e também antes dos que via no teto da área de serviço. Come-
dois HQforismos, que desenhei ao final, cei a chorar novamente, um choro de êx-
ainda com o efeito da substância mais já tase, há anos não chorava tanto. Foi nessa
com domínio melhor de meu traço. Olhan- hora que minha esposa, Rose, chegou.
do agora para o desenho, vejo que ficou Eram 20h00min. Ela me pegou chorando e
interessante, criando uma conexão curiosa se assustou. Ao vê-la senti uma emoção
com o poema. muito boa e chorei mais ainda. Tentei ex-
plicar o que aconteceu e falei do coqueiro,
DB: Achei interessante você dizer que mas percebi que ela não entendeu nada,
saiu uma luz ofuscante do papel, pois mas abraçou-me com carinho. Não en-
quando escrevi a poesia, imaginei mui- tendendo as palavras, mas entendendo
ta luz. O desenho tem muita leveza, é meu sentimento. Rose ficou por uns min-
cheio de cores, vi tudo o que você viu utos abraçada a mim. Matheus sentou-
(o falo, o peixe, o feto, a pomba), e se na rede e começamos a conversar
ainda uma borboleta de perfil e a sobre tudo. O efeito da substância ainda
metade de um coração em torno da estava ali, mas já menor. Rose foi pre-
pomba. Extremamente simbólico! Um parar nosso jantar.
honra poder ter sido parte desta expe- Tive o impulso de pegar o papel de
riência com você. Já que entramos no novo e desenhei um HQforismo que gostei
assunto dos HQforismos, nos conte muito, ainda sentia o papel brilhar e certas
como os outros surgiram e como foi o gotas que aparecem no desenho, como lá-
processo criativo? grimas invertidas, surgiram brilhando no
papel e me FIZERAM desenhá-las! O HQ-
EF: Depois da experiência reveladora e forismo destaca um ser animal mítico mis-
assustadora com o coqueiro do jardim, terioso, com algo de lagarto, pássaro,
159
humano e planta. Eu gostei muito do re- contrários, o equilíbrio depende do choque
sultado visual e poético desse HQforismo. dessas partes aparentemente opostas.
E ao olhar para ele me emociono, pois ele Escuridão e luz tornaram-se para-
parece me trazer aquele momento e as doxais para os dogmas que pregam a ne-
sensações que eu sentia com força. Tem gação da sombra do ser em detrimento de
um sentido profundo para mim. Foi o único uma luz absoluta, uma bondade sem
trabalho que eu assinei. Os outros, o de- precedentes. E o final disso é sempre
senho feito para o texto de Danielle Bar- doença e perversão, todos os dogmas
ros, a HQ com Matheus Moura e o criam doentes espirituais, pois obrigam a
primeiro HQforismo, não tinha assinado. negarmos aspectos de nosso ser. Ao viver
Nesse eu assinei: Edgar Franco & o Es- a experiência, eu revi o LOBO, ele estava
poro. Esse último HQforismo desenhado ali, ele apareceu em imagens inclusive, o
durante a experiência teve o texto: "Sou o seu impacto simbólico para mim: o sel-
sonho do som de um sonho". Depois de vagem que deseja com força, mas controla
desenhá-lo, Matheus Moura o viu, e con- o desejo à sua vontade, o que é violento e
tinuamos a conversar sobre muitos aspec- justo, mas nunca cruel. Essa é a essência
tos de nossa viagem psiconáutica e do LOBO que assumi para mim, ela está
terminamos comendo um jantar preparado aqui, e eu a vislumbrei. Mas durante a via-
por Rose com patês orgânicos e pães in- gem psiconáutica, o LOBO se diluiu em
tegrais, além de alguns vegetais. No jan- inúmeras outras esferas, tornou-se clara-
tar ainda sentia os alimentos com um mente o que ele é: um aspecto ínfimo da
sabor especial, e até me deitar meus sen- complexidade de meu ser que se choca
tidos ainda estavam apurados. com outros aspectos paradoxais. Eu senti
em um momento certa compaixão tão pro-
DB: Para finalizar (temporariamente) funda, tão visceral, que ela me assustou e
essa entrevista-conversa, gostaria de foi uma compaixão estranha, pois ela se
perguntar algo que pensei quando reli misturava com admiração e êxtase, isso
aquele aforismo que abre esta entre- aconteceu quando experienciei em mim a
vista. Ao final do aforismo você per- vida do coqueiro do jardim, quando ele
gunta, aflitivamente: “quem sou eu?” falou comigo, quando sua hiperestrutura
Essa experiência de alguma forma cósmica cruzou e interconectou-se ao meu
diluiu ou afetou a ideia que você tem de eu interior e eu tornei-me o “Coqueiro” de
si, e sua visão de Lobo? Em outras meu jardim e vivi o drama cósmico dele, a
palavras: você escreveria um aforismo saga universal que ele vive. A beleza in-
sobre quem é você logo depois dessa comensurável de seu crescimento en-
experiência, uma vez que você vez ou frentando as intempéries, a força dos
outra escreve sobre sua senda, pensa- ventos, as agressões físicas dos animais,
mentos e visão de mundo? Você ainda incluindo o homem. E ele continua impo-
arriscaria descrever-se, depois de toda nente, tem orgulho de ser o que é e de estar
essa experiência? ali em silêncio representando o grande
drama cósmico da vida, gerando frutos.
EF: Cada vez que adentro mais o meu Quando eu vi em minha alma sua
mistério através de múltiplas experiências, luta, como ela tem sido muito mais difícil e
observo que a percepção de Rajneesh árdua do que a minha, a princípio eu me
sobre “a verdade existir nos paradoxos” é compadeci, tive pena, mas continuei ali
algo muito poderoso. Em certa medida o adentrando os seus mistérios. De repente
drama cósmico é cheio de paradoxos e senti uma admiração profunda e veio o
161
choro, um choro paradoxal, de compaixão cepções, já pensou em confrontar com
e admiração, de perceber como fui privile- anotações de um observador externo?
giado pelo universo, como tenho uma bela Precisando de uma ajuda, estou aqui!
vida, mais serena do que a dele. Agradeço imensamente a honra de te
Mas ao mesmo tempo eu vi que eu conhecer um pouco mais, pela cora-
também sou o coqueiro, mais um para- gem e generosidade em expor suas
doxo, eu percebendo meu ego individual, experiências de vida e de viajante psi-
mas olhando para ele e sendo o coqueiro, conáutico a todos/as os/as leitores/as!
e depois fui tocado por uma planta que me
falou que eu, meu ego, nunca tinha olhado EF: Eu que agradeço a oportunidade de
para ela. Mas ela não falou isso com tris- dividir contigo e com os que se interes-
teza, ela só me avisou que existia, sor- sarem essa experiência tão valiosa. Sim,
rindo, e eu chorei mais ainda, chorei com a ideia de um observador externo é exce-
a força de uma tempestade, pois chovia, lente, me fez lembrar os experimentos de
minhas lágrimas se misturava com a Aldous Huxley com a mescalina, vamos
chuva. Como indivíduo imaginei quantos conversar sobre isso. Abraço afetuoso do
seres devo ter ignorado, sem notar que Ciberpajé.
são partes de mim.
Senti uma emoção muito profunda
e no meu choro, enquanto indivíduo, pedi
perdão a todos os seres cósmicos que
eventualmente ignorei. Reconciliei-me
com eles. E recebi uma resposta, como se
fosse uma grande carícia universal. Senti
um toque que de repente fez meu corpo
flutuar, em breves instantes eu me vi no ar
ao lado do coqueiro. Estava flutuando de
verdade e chorei mais ainda, violenta-
mente, mas dessa vez um choro de êx-
tase, de liberdade, de sentir-me totalmente
acolhido pelo COSMOS! O universo que
sou eu teve compaixão infinita pelo meu
pequeno ego, parte ínfima de minha
grandeza! Então quando digo que O
LOBO É O COSMOS, sim ele é; mas
perceba que o LOBO em síntese é o Cos-
mos, pois apesar de ser uma das facetas
do Cosmos, ele também contém em si
todo o Cosmos, mesmo que eventual-
mente ignore isso. Então na verdade eu
não SEI QUEM EU SOU. SÓ SEI QUE
SOU.

DB: LINDO! Queria ter estado aí! Ob-


servando vocês durante a viagem, ano-
tando tudo, descrevendo o que vocês
faziam, pois você relata suas per-
162
CINEMA
DE PLANTA
Paola Barreto

CinePlanta é a um só tempo uma trabalho pioneiro do pesquisador ameri-


pesquisa tecnopoética, uma performance, cano Cleve Bakster4, que documentou,
um processo de hibridação e uma fábula. sistematicamente, a atividade de plantas
O que move o trabalho é o desejo de ex- em seu laboratório, chegando a con-
perimentar formas híbridas para o audio- clusões surpreendentes sobre biocomu-
visual, buscando regimes de imagem, nicação ao nível celular, sintetizadas em
som, espectação e autoria que nos colo- sua teoria sobre a percepção primária –
quem em contato com potências primary perception. Essa percepção pri-
transindividuais, produzindo subjetivi- mária oferece as condições de possibili-
dades interespécies – entre humanos e dade para um diálogo entre seres vivos -
não humanos, entre vivos e não vivos, humanos ou não – e, em nosso caso,
entre organismos e máquinas. máquinas de imagens, criando um con-
Basicamente o trabalho pode ser texto em que ciência e ficção se embara-
descrito a partir de um circuito eletrônico lham: science fiction. A partir de nossa
que mede a diferença de carga elétrica na perspectiva de bioarte, o impulso vital -
superfície das folhas de uma planta. Este impulso elétrico - é tomado como input
circuito, uma espécie de galvanômetro estético, e as diferenças de carga e po-
adaptado, o plantronic1, é conectado a um laridade dão tonalidade a imagens e
microcontrolador arduíno, que converte sons, criando uma forma peculiar de ci-
os impulsos elétricos do vegetal em infor- nema que se captura e projeta nas folhas
mação digital, que é incorporada a um do vegetal.
programa computacional que processa os Desenvolver plataformas híbridas
dados com a finalidade de modular um para comunicação com plantas é tarefa
sistema de projeção de imagens e sons. que vem interessando a uma série de
Uma câmera é incorporada ao sistema, pesquisadores no campo da arte ele-
captando imagens ao vivo que são remi- trônica ou digital, caso do brasileiro Ivan
xadas e projetadas nas folhas da planta, Henriques e seu Jurema Action Plant5, ou
em um circuito de feedback contínuo que, da mexicana Leslie Garcia, que desen-
aqui, podemos chamar de uma forma não volve há alguns anos consistente corpo
natural de foto-síntese: montagem de de trabalhos audiovisuais nos quais ex-
videogramas pelas interações entre plan- plora o conceito de biofeedback6. Estes
ta, ambiente, pessoas, imagens, sons e trabalhos ampliam e aquecem a dis-
mediação maquínica-hiperorgânica. cussão em torno do biopoder e dos
Este experimento foi desenvolvido modos de apreensão e commoditização
no contexto do projeto de pesquisa Hibri- das formas de vida. Como conviver com
dações Experimentais em Arte e Tecnolo- as plantas além do modelos propostos
gia, do Núcleo laboratorial NANO- pelo extrativismo, o paisagismo, a agri-
EBA/UFRJ2, coordenado pelo Professor cultura? Que tipo de aprendizado e co-
Guto Nóbrega3. A pesquisa baseia-se no municação podemos estabelecer com

163
elas? De que formas este aprendizado “O olho vê, a lembrança revê, e a
aproxima a tarefa do trabalho do Xamã em imaginação transvê. É preciso trans-
sua escuta da floresta? Estamos a praticar ver o mundo.”
uma espécie de tecnoxamanismo? (Manoel de Barros in: Livro sobre
Se considerarmos as imagens pro- nada. Ed. Record, p. 75)
duzidas pelo CinePlanta como vivas, na
projeção sobre as folhas, a montagem Quando eu não estou olhando, as
seria como uma pulsação? Onde está o coisas são? Quando eu olho as coisas
pulso das imagens? O que a arte genera- mudam? A planta sabe que eu cheguei,
tiva pode nos dizer sobre a vida, com a sua que eu estou aqui? O filme sabe que eu
incorporação de estímulos do entorno, dos estou olhando? O filme vai mudar, para
observadores, dos componentes? me agradar, para me afastar, para me se-
A partir de uma compreensão duzir, para me enganar? Há produção de
sistêmica, torna-se altamente proble- subjetividade no cinema, na minha ativi-
mático o pensamento sobre a neutrali- dade espectatorial? Esta produção de
dade do espaço de arte – seja o cubo subjetividade pode virar imagem, pode se
branco da galeria, seja a caixa preta do materializar, para além da minha expe-
cinema. É toda uma semântica dos meios riência psíquica?
que é posta em causa, e neste sentido É possível pensar o cinema radi-
convém pensar não somente o diálogo calizando a heterotopia? Não mais como
com as plantas, vegetais, mas o diálogo um espaço disciplinador da imagem, não
entre reinos: Mineralia, Vegetalia, Ani- mais como economia definidora de pa-
malia, uma vez que no trabalho há pes- péis, reguladora de corpos, normati-
soas, máquinas e plantas envolvidas. Este zadora de comportamentos: silêncio,
é um campo fascinante e quem vem postura sentada, olhar unívoco, perspec-
sendo pesquisado por alguns artistas- tiva central: mas um pré-cinema, um ci-
alquimistas, notadamente o britânico Mar- nema antes do cinema, um cinema pré-
tin Howse, que procura demonstrar, que individual feito de eletricidade pura, ima-
com seu Computer Earth Project e o con- gens formuladas na foto-síntese, como
ceito de Psychogeophysics7, como os ele- sonhou Moholy-Nagy nos anos 20?
mentos da terra rodam um programa que Respondemos com este cinema de
produz uma narrativa – ou uma ficção. É a planta, construímos esta câmera adap-
terra dizendo coisas, criando histórias, in- tada para operação vegetal: o que está
ventando modos de existência tangíveis. vendo a planta?
E aqui no nosso caso com as plan- O que eu vejo do que a planta vê?
tas, fazendo cinema. A planta VJ Vee- Como seria a experiência audiovisual me-
jaytable Vegetable. Vegetar seria não diada pela sensibilidade da planta? É
mais a expressão de uma inoperância hu- possível compreender o que seja a sen-
mana, mas antes a expressão de uma sibilidade em termos de variação de
subjetividade vegetal. Ou talvez uma potencial elétrico? Sensibilidade de su-
transsubjetividade, uma subjetividade co- perfície, sensibilidade sem interioridade,
criada entre a planta, com a planta, sensibilidade puro impulso? O que sabe-
através da planta. Potência de planta ex- mos, ou melhor, o que não sabemos
pressa na imagem, que se transforma, a disto? Como fazer filmes a partir do que
partir do toque, da presença, da respi- não se sabe?
ração do espectador. O cinema, aparato modulado ao
longo do século XX, seja no fazer, seja no
164
Cinema de planta.
Fotos cedidas por Paola Barreto.

165
166
assistir, por regimes de controle: controle Notas:

da câmera, controle do enquadramento,


1. Ver esquema anexo.
2. http://www.nano.eba.ufrj.br/
controle da luz, controle do espectador. 3. http://cargocollective.com/gutonobrega
Seja pela subordinação a uma gramática 4.
http://www.rebprotocol.net/clevebaxter/Evidence%20of%2
audiovisual já embutida em nossas men- 0a%20Primary%20Perception%20In%20Plant%20Life
tes educadas para certo tipo de en- %2023pp.pdf
5. http://ivanhenriques.com/2011/06/02/jurema-action-
cadeamento causal-linear (controle plant/
mental), seja pela imobilidade sugerida 6. http://lessnullvoid.cc/content/

pela situação da sala escura, corpos dó-


7. http://www.psychogeophysics.org/wiki/doku.php
8. http://sulram.github.io/
ceis, sentados diante da tela luminosa
(controle físico).
No entanto, antes da domesticação
do monstro hipnótico, para usar a ex-
pressão de Pasolini, o problema de como
fazer um outro corpo, uma outra mente,
uma outra gramática, uma outra lin-
guagem - a gagueira fundamental, da que
nos fala Deleuze – ocupa a humanidade
(humana e não humana, para pensar em
termos ameríndios), desde sempre.
Nos aproximamos do problema
com nosso cinema de ruído, cine-noise,
interferência; uma outra língua-imagem,
um cinema da floresta. Por meio deste
hiperorganismo vamos sendo engolidos
por uma mente vegetal, natureza tec-
nizada, bárbara tecnizada. E vamos
chegando a uma nova antropofagia: uma
antropofagia vegetal.
CinePlanta é um hiperorganismo
criado em colaboração com o progra-
mador Marlus Araújo8, e integra a pes-
quisa de doutorado de Paola Barreto
Leblanc, “Do Cine Fantasma ao Live Ci-
nema, cinema do além”, a ser concluída
em março de 2016. O circuito plantronic
foi desenhado pelo Professor Guto Nó-
brega, co-orientador da pesquisa.

167
Garrafeiros, Rio de Janeiro.
Foto: Marc Ferrez (acervo público,
cerca de 1900).
COMPOSTAGEM
Claudia Lopes Borio

A palavra lixo vem do latim “Lix”,


que quer dizer “cinzas”.
Projetos privados,
programas públicos: Na antiguidade, a maior parte do
lixo produzido era simplesmente ajuntado
e queimado.
Cenários e sugestões.
Uma grande parte do lixo era
INTRODUÇÃO reaproveitada: restos de comida eram
A compostagem é um dos requisi- dados aos animais domésticos, metais po-
tos da nova Política Nacional de Resíduos diam ser fundidos, vidros eram reutiliza-
Sólidos. Ela é fundamental para que dos, papéis e tecidos eram transformados
diminua o volume de lixo que é jogado em em outros tecidos ou em papéis especiais.
lixões e aterros sanitários. Entretanto, em Os materiais que não apodreciam
poucos municípios do país há projetos naturalmente, ou seja, que não eram
sérios de compostagem em funciona- biodegradáveis, eram valiosos. Recolhidos,
mento. Muitas pessoas também tentam serviam de fonte de renda para muitas pes-
fazer a compostagem em casa, mas en- soas, como é o exemplo a foto dos “gar-
contram dificuldades. rafeiros” no século XIX, no Rio de Janeiro.
Neste trabalho procuro analisar o No Brasil, em 1880, D. Pedro II
histórico desse método de tratamento de criou um decreto para a limpeza pública
resíduos e as razões de seu insucesso no da cidade de São Sebastião do Rio de
Brasil. Ao final, mostro vários casos de Janeiro. A família que ganhou a concor-
sucesso e exemplos de iniciativas simples rência para realizar esse serviço tinha o
que podem contribuir nos projetos e políti- sobrenome Gary, razão pela qual até hoje
cas que visam a estimular a compostagem os varredores de ruas são conhecidos por
em grande escala. esse nome.
A coleta era realizada de forma
HISTÓRICO muito primitiva, e o lixo era deixado em
A compostagem é um método que grandes “latas” de metal (folha de flan-
trata os resíduos sólidos orgânicos, trans- dres), e por isso até hoje chamamos os re-
formando-os em composto. A técnica não cipientes de latas, mesmo quando são
é nova, pois é conhecida desde a antigui- feitos de plástico ou de outro material.
dade. No entanto, em virtude do problema O lixo começou realmente a se
que os resíduos se tornaram para as tornar um problema a partir da industriali-
grandes cidades, agora adquire nova zação crescente do mundo, especial-
relevância. Mas, para entender melhor a mente após a descoberta da vulcanização
importância da compostagem, é interes- da borracha. Pode-se dizer que o pneu foi
sante analisar um pouco a origem dos o primeiro produto industrializado em larga
resíduos: o LIXO. escala. A borracha vulcanizada, invenção
genial de Goodyear, não é biodegradável,

169
e até hoje ainda não se descobriu uma emanação de chorume (líquido altamente
maneira ideal de reciclar os pneus. Após a poluente) que contamina os lençóis freáti-
borracha, surgiu a baquelite, o primeiro cos, vetores de doenças (moscas, mosqui-
plástico (também não é biodegradável e tos, baratas, ratos). O mais preocupante,
não é reciclável). no momento, é a dengue, doença que
Até 1970 não se usavam sacos surge com facilidade em locais de clima
plásticos para embalar o lixo no Brasil. Ele quente onde possa haver recipientes com
era simplesmente disposto dentro de latas água parada.
e coletado pelos lixeiros. As latas eram Os resíduos acumulados nos
sujas, geravam mal cheiro e barulho ao lixões sofrem um processo anaeróbio, ou
serem jogadas pelos lixeiros de qualquer seja, sem oxigênio, o que resulta do fato
jeito. O uso dos sacos plásticos foi intro- do lixo ser comprimido, e isso impede a
duzido nos anos 70 como um grande pro- decomposição: o lixo fica prensado, fer-
gresso e uma medida higiênica. Mal se menta, gera gases e líquidos, mas não
sabia que o plástico ia se tornar um dos apodrece ou se decompõe de uma
maiores problemas ambientais do mundo. maneira natural. Além disso, os lixões
E depois disso, seguimos em uma eram (e ainda são, em muitos lugares),
infindável sequência de produtos baratos e cenários de uma triste exploração hu-
atraentes: plásticos de todos os tipos e mana, pessoas que procuram catar coisas
cores, tecidos sintéticos , papéis coloridos, para vender, garrafas, plásticos, e até
papelões, produtos químicos como tintas e mesmo animais que vivem sobre eles e se
inseticidas, novos tipos de ligas metálicas, alimentam de restos. A nova Política Na-
aparelhos elétricos e eletrônicos, milhares cional de Resíduos Sólidos tem como ob-
de automóveis, enfim, bens de toda a na- jetivo acabar com os lixões, instituindo a
tureza pelos quais a humanidade ansiava e coleta seletiva, aumentando ao máximo a
ainda anseia. Tudo isso inflou os “lixões” reciclagem e o reaproveitamento, e
até um nível que beira o insuportável. criando aterros sanitários em condições
rigidamente controladas.
LIXO, PANORAMA ATUAL
De acordo com estimativas re- LEGISLAÇÃO: A POLÍTICA
centes, diariamente, na América Latina, NACIONAL DOS RESÍDUOS SÓLIDOS
são produzidas cerca de 369.000 to- A legislação a respeito de Sanea-
neladas de resíduos sólidos: lixo. Aproxi- mento Básico, datada da década de 60, foi
madamente 295.000 toneladas são o primeiro esforço que tivemos no Brasil
coletadas. Somente 67.896 toneladas têm para disciplinar a questão da coleta e do
uma destinação adequada. destino do lixo. No entanto, os problemas
Ano a ano, no Brasil, vem aumen- tomaram uma tal dimensão, que o país se
tando a quantidade de municípios que conscientizou da necessidade de um novo
têm coleta de lixo, e aumenta também a conjunto de regras para tratar da questão
coleta de lixo seletiva. No entanto, nota- dos resíduos. Surge assim, em 2010, a
se que tal coleta seletiva ocorre prefe- Política Nacional dos Resíduos Sólidos,
rencialmente nos estados do Sul e lei 12.305/2010. Lei criada com uma pre-
Sudeste. visao de quatro anos para entrar plena-
O lixo, até 2010, era acumulado em mente em vigor e, ao ser editada, começa
“lixões”: depósitos gigantescos, que pro- imediatamente a ser discutida a questão
duziam uma série de problemas gravíssi- da separação do lixo, especialmente dos
mos: mau cheiro, gases inflamáveis, pneus, eletroeletrônicos, resíduos tóxicos,
170
pilhas e lâmpadas. Grupos de trabalho se- tais e privados, procuram difundir e ensi-
toriais se reúnem em nível federal, procu- nar a compostagem em nosso país. Como
rando disciplinar a prática da logística exemplos, temos projetos de com-
reversa, pela qual os grandes produtores postagem no Estado do Rio de Janeiro, no
deverão ser parte ativa na coleta e desti- Estado de São Paulo, no Estado do Rio
nação correta dos resíduos gerados a par- Grande do Sul, no Estado do Paraná, e
tir dos seus processos industriais. em diversos municípios. Merece destaque
A separação do lixo e a coleta sele- a compostagem de lodo (resíduos de es-
tiva são as diretrizes principais desta lei. goto) no Estado de São Paulo, realizada
No que diz respeito à compostagem, pela Sabesp.
ela é considerada um dos pilares da nova Há também diversas cartilhas e
lei, sendo prevista especificamente como publicações do governo federal com res-
destinação correta para os resíduos orgâni- peito à compostagem de pequena ou
cos e incluída entre os instrumentos legais grande escala..
para diminuição da quantidade final de resí- No entanto, essas iniciativas ainda
duos (artigo 3º, inciso VII). se ressentem de um certo amadorismo e
nota-se que há um índice bastante grande
COMPOSTAGEM: MÉTODO QUE de desistências. Os projetos públicos,
TRATA RESÍDUOS ORGÂNICOS mesmo aqueles que foram implantados na
A compostagem é um método que década de 70, não mostram grandes pro-
trata os resíduos orgânicos e os trans- gressos. Parece que a ideia “não pegou”.
forma em terra de primeira qualidade.
Esse método já é alvo de inúmeros tra- COMPOSTAGEM DOMÉSTICA:
balhos científicos, e tem papel importante POR QUE AS PESSOAS DESISTEM?
na destinação dos resíduos de vários Diversos projetos ensinam a fazer
países. No entanto, em nosso país, a compostagem em casa. No entanto, o
vemos que a prática ainda engatinha, e índice de desistência é bastante alto.
vamos analisar as causas e possíveis Alguns problemas bastante co-
soluções para que ela seja efetivamente muns que podem causar desistência da
implementada. compostagem doméstica são:
• Surgimento de ratos, baratas, moscas;
VANTAGENS DA COMPOSTAGEM • Odores estranhos;
Entre as vantagens da com- • Emissão de líquidos com cheiro muito
postagem podemos citar: diminui notavel- desagradável;
mente a quantidade de resíduos gerados; • Conteúdo que não “composta”, ou seja,
aumenta a vida útil dos aterros; pode pro- não se transforma em húmus.
duzir adubo de alta qualidade; é instru- Após algumas experiências frus-
mento pedagógico interessante para tradas deste tipo, é comum as pessoas
escolas; evita emissão de gases do efeito desistirem, pois ninguém gosta de ter uma
estufa (especialmente o metano) e traz caixa com cheiros estranhos ou cheia de
uma separação mais adequada dos resí- moscas dentro de sua própria casa, espe-
duos, especialmente plásticos. cialmente se morar em um apartamento.
Mas por que a compostagem ainda
não está implementada de maneira gene- SUGESTÕES PARA MELHORAR A
ralizada em nosso país? COMPOSTAGEM DOMÉSTICA:
PROGRAMAS E INICIATIVAS Talvez as pessoas não tivessem
Diversos programas, governamen- desistido se fizessem parte de uma rede
171
de apoio à compostagem, que as aju- posição dos resíduos orgânicos, inclusive
dasse a lidar com os problemas e de jardinagem: as prefeituras, empresas
fornecesse alguns materiais que poderiam de saneamento e coleta de resíduos não
ajudar. Como exemplo de algumas se importam em recolher toneladas de lixo
providências temos: orgânico, misturado ou não a outros tipos
• Aumentar o conteúdo de material seco e de resíduos.
fibroso. A falta de material fibroso para Estima-se que, atualmente, cada
misturar em uma composteira doméstica pessoa produz de 100 a 250 g de resí-
pode ser um problema muito sério, pois o duos orgânicos por dia, o que dá de 700g
lixo de cozinha é muito úmido e resulta a 1.750g de resíduos por semana. Tal
em um resíduo molhado, que fermenta, quantidade representa cerca de 60% do
libera líquidos e não leva a uma decom- peso dos resíduos gerados nas residên-
posição sem odores. Misturando folhas cias comuns!
secas, grama cortada ou serragem, Em diversos países onde a com-
obtém-se um “mix” mais favorável a uma postagem é uma experiência de sucesso,
compostagem saudável. foi proibido jogar fora os resíduos de jar-
Para que isso se torne possível, é preciso dinagem. Ou seja, as pessoas tiveram
ter acesso a uma fonte barata, de prefe- que aprender, por bem ou por mal, o que
rência gratuita, de material fibroso seco. fazer com seus resíduos - grama, folhas
• Utilizar mais as minhocas. As minhocas secas, galhos, varrição, o que, em sua
talvez sejam o “ingrediente” mais fabuloso grande maioria, pode ser compostado
que permite uma excelente compostagem com muita facilidade. Em alguns lugares,
doméstica, em tempo acelerado, e da os lixões começaram a cobrar uma taxa
mesma forma poderiam ser vendidas, para receber resíduos de jardinagem. Em
dadas ou trocadas, em pontos de troca outros, os caminhões das empresas de
para compostagem, clubes urbanos, as- coleta começaram a cobrar pelo serviço.
sociações de moradores, escolas. Todas essas iniciativas ocorreram devido
• Melhorar a qualidade da educação ambi- ao acúmulo excessivo de resíduos em
ental. Apesar da matéria ser obrigatória, lixões ou aterros sanitários, e foi verificado
prevista na nossa Constituição Federal, e que os resíduos orgânicos podem sig-
haver forte recomendação para que seja nificar mais da metade do volume de resí-
lecionada em todos os níveis de escolari- duos coletados em uma cidade.
dade (o que significa do Jardim de Infância Quando isso acontece, as pessoas
até as pós graduações), o ensino de edu- têm que aprender como dispor de seus
cação ambiental ainda é amadorístico, resíduos orgânicos, de uma maneira ou
deixa a desejar, e é praticamente inexistente de outra, e o interesse pela compostagem
no nível universitário e pós graduando. O surge imediatamente.
ensino responsável e participativo desta Afinal, compostar não custa quase
matéria poderia servir como multiplicador nada.
da técnica de compostagem para milhares E ALIÁS... PARA QUE SERVE MESMO
de famílias brasileiras. A COMPOSTAGEM?
Outro fator que não estimula em
MAS... PARA QUE COMPOSTAR SE nada as pessoas a fazerem a com-
POSSO JOGAR TUDO NO LIXO? postagem é a falta de conhecimento de
Um fator muito importante que não suas qualidades. Muitas pessoas gostam
estimula as pessoas a realizarem a com- de fazer jardinagem, gostam de ter flores
postagem é a absoluta liberalidade de dis- em casa, temperos, e a maioria dos
172
brasileiros têm orgulho de ter “um belo um incentivo e uma forte vontade política
gramado”. Mas poucas sabem que o re- de realizar esta disposição dos resíduos
sultado da compostagem é o composto: o orgânicos, os projetos de compostagem
melhor adubo natural que existe. não sairão do papel.
Mais uma vez, nota-se que a falta
de educação ambiental e de cultura geral AUSÊNCIA DE COLETA SELETIVA
dificulta qualquer programa neste sentido! PARA LIXO ORGÂNICO: O PRINCIPAL
Em alguns poucos locais, as DESAFIO.
prefeituras e empresas de limpeza Um dos problemas mais sérios que
pública distribuíram material didático e impedem a compostagem de boa quali-
pequenos manuais para que as pessoas dade é o fato de que, em vários locais
aprendessem como fazer sua com- onde há coleta seletiva e projetos de com-
postagem doméstica, em pilhas, buracos, postagem municipal, o lixo orgânico está
caixas ou recipientes de plástico. São ini- completamente contaminado com resí-
ciativas importantes. duos. Isto acontece porque não há uma
coleta específica para lixo orgânico, os
ENTIDADES PÚBLICAS X PROJETOS resíduos são coletados todos juntos por
DE COMPOSTAGEM: POR QUE um caminhão nos moldes do programa
TANTA TIMIDEZ? “Lixo que Não é Lixo”(do PARANÁ), e ao
No caso dos entes públicos (mu- serem separados, o que sobra é o resíduo
nicípios, empresas, entidades governa- orgânico, infelizmente misturado com
mentais, grandes geradores), a única restos de plástico, metais e sabe-se lá
explicação possível para a pequena quan- mais o que.
tidade de projetos de compostagem é a Novamente, esbarramos na ques-
falta de conhecimento. tão da coleta seletiva, que é indispensável
Municípios que dispõem de uma para que o processo tenha sucesso.
boa coleta de resíduos e já praticam a co- Sem resíduos orgânicos “limpos”
leta seletiva ainda não manifestam a in- não há compostagem!
tenção de realizar compostagem.
Programas governamentais já REQUISITOS FUNDAMENTAIS PARA
mostram o caminho das pedras, como é O CORRETO TRATAMENTO DOS
o caso do “Manual de Compostagem” do RESÍDUOS ORGÂNICOS
Ibama, um caderno extremamente bem A coleta seletiva depende, basica-
explicado que traz todas as diretrizes mente, de um processo de educação da
para a realização de compostagem em comunidade. E que tenha recipientes
grande escala. adequados para o lixo orgânico: sacos
Um fator que leva a um grande des- biodegradáveis, latas ou containers.
prezo pelos projetos de compostagem é No entanto, na maior parte dos mu-
que os projetos de separação de resíduos nicípios brasileiros onde há coleta sele-
sólidos recicláveis geram lucros, ou seja, tiva, ainda não há coleta específica para
os resíduos plásticos, papel, latas e outros os resíduos orgânicos!
podem ser vendidos imediatamente e Portanto, para que se possa criar o
geram renda para os participantes. Já a sistema de compostagem, é preciso que
compostagem requer tecnologia, espaço, os resíduos orgânicos sejam separados
e preparo para que o húmus resultante corretamente e coletados, o que pode
seja vendido ou distribuído.) ocorrer de várias maneiras:
Nota-se assim que, se não houver • Latas de lixo especiais – lixo orgânico –
173
para cada casa (vendidas ou doadas); presas que destinam outros tipos de resí-
• Containers especiais para grupos de duo ao recolhimento correto.
residências ou empresas; Na Itália, apesar de ser um país de-
• Sacos de lixo especiais, biodegradáveis, sigual em termos de coleta seletiva (há
vendidos ou doados aos consumidores; melhor coleta nos estados mais ao Norte
• Programas de pontos e incentivos para e a situação piora à medida em que se vai
trocar lixo por prêmios ou vantagens; para o Sul), os processos de com-
• Datas e horários especiais de coleta; postagem também estão recebendo forte
• Folhetos, campanhas e material didático impulso. Em 252 usinas ativas em todo o
para sensibilização da população. país, 206 delas tratam mais de 1.000
Ao mesmo tempo, a empresa de toneladas por ano, sendo cerca de 60%
saneamento deve escolher o local e o dos projetos situados na região Norte do
método que serão aplicados para a com- país. Os projetos de compostagem au-
postagem, seguindo as regras ditadas mentam ano a ano.
pelo Ministério do Meio Ambiente. O composto obtido, de altíssima
qualidade, recebe embalagens diferenci-
CASOS DE SUCESSO: EUROPA adas e é distribuído gratuitamente como
Na Europa a compostagem al- terra de jardinagem, sendo importante
cança um grande sucesso. Nesse conti- fator de adesão e de sensibilização da
nente, a geração e destinação dos população para participar dos programas.
resíduos sólidos vem sendo quantificada Na Alemanha há uma longa
e controlada há anos, com a interessante tradição de compostagem, desde que os
característica de que há três anos vem seus aterros sanitários ficaram lotados,
diminuindo a quantidade de resíduos. Tal nos anos 70. Atualmente, a maioria das
fato se deve ao sucesso da política de residências recebe uma lata marrom, a
logística reversa, pela qual os fabricantes Biotonne (um nome que significa algo
e distribuidores estão recolhendo e desti- como BioLata) e a utiliza para os resíduos
nando uma grande parte dos resíduos orgânicos. A Alemanha chegou a um
gerados por eles mesmos. Da mesma índice impressionante de coleta de 80%
forma, nota-se que a compostagem vem dos resíduos orgânicos, e criou uma as-
tendo um aumento significativo, ao sociação que controla a qualidade e evita
mesmo tempo em que diminui o uso de a contaminação do húmus gerado. A
sistemas mais antiquados como a inciner- meta final da Alemanha é chegar ao ponto
ação. (os dados podem ser consultados em que os aterros sanitários tenham no
no relatório europeu sobre resíduos sóli- máximo 5% de resíduos orgânicos. Essa
dos3. A seguir, analisaremos alguns casos meta, para nós brasileiros, é praticamente
interessantes. inacreditável, uma vez que ainda temos
Na cidade de Belfast, na Irlanda, as muitos municípios que nem sequer têm
pessoas recebem de graça, da Prefeitura coleta de lixo. Mas não custa sonhar.
municipal, uma lata de lixo especial para
os resíduos orgânicos. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
As pessoas que cumprem os requi- E A CAMPEÃ MUNDIAL
sitos e separam seu lixo corretamente DE COMPOSTAGEM: CIDADE
também recebem um “Certificate of Recy- DE SEATTLE
cling” e ganham pontos em um programa Para terminar esta singela ex-
que pode render prêmios. Esse certificado posição, não poderíamos deixar de falar
também é usado para moradores e em- da maior usina de compostagem do
174
mundo, que se situa na cidade de Seattle, A compostagem, nos Estados
estado de Washington, Estados Unidos Unidos, segue as normas federais de
da América. A usina de Cedar Grove reci- qualidade: WAC 173-350, que também
cla cerca de 350.000 toneladas de resí- são aplicadas como padrão no Brasil.
duos orgânicos por ano. Isso equivale a
24 piscinas olímpicas cheias de resí- CONCLUSÕES
duos... por mês. Em nosso desprezo cultural e
Nas impressionantes usinas de atávico pelo lixo, sentimos também uma
compostagem de Cedar Grove, os resíduos estranheza pela compostagem, e dessa
que chegam de caminhão passam por uma forma estamos jogando ouro no lixo.
esteira de separação, onde se retira basi- Nosso solo, que ano a ano se torna mais
camente materiais metálicos (os resíduos empobrecido, está perdendo nutrientes.
são extremamente limpos). Após essa se- Nas grandes cidades, o terreno é cada
paração, são moídos em uma máquina es- vez mais duro, estéril e impermeabilizado.
pecial. Resíduos de grande porte, como A compostagem é uma técnica
troncos, são separados e recebem desti- barata e extremamente amiga do meio
nação especial (por exemplo, podem ser ambiente. Cabe a nós darmos o exemplo,
transformados em aparas de madeira que aprendermos o máximo que pudermos e,
são utilizadas em jardinagem). com paciência e compaixão por nosso
Um caminhão com um tubo dis- planeta, começar cada vez a compostar.
tribui os resíduos em um pátio, formando O sucesso depende de nós, cidadãos, e
pilhas piramidais enormes, que são re- de políticas públicas claras e eficientes.
cobertas por lonas e ficam curtindo por
cerca de oito meses até um ano, o que ex-
plica também o grande espaço que é
tomado por essas pilhas gigantescas.
Notas:

CELEBRANDO A COMPOSTAGEM:
1. http://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,como-era-
sao-paulo-sem-sacos-de-lixo,9036,0.htm
O COMPOSTIVAL 2.
Complementando todo o impres- http://www.cema.pr.gov.br/arquivos/File/Doc/IAP_GT_Co
mpostagem_parte1.pdf
sionante trabalho de separação, coleta e 3.
destinação dos resíduos orgânicos, na http://www.compost.it/materiali/ISPRA_Rapporto_Rifiuti_
Urbani_2013/07).
região de Seattle existe um festival muito
popular que celebra o sucesso das inicia-
tivas de compostagem.
É o Compostival. Nessa grande
festa comparecem muitos agricultores
orgânicos, barraquinhas de produtos
orgânicos e agroecológicos, aficionados
da jardinagem, escolas, enfim, pessoas
que estão interessadas em um estilo de
vida mais natural e que querem saber
mais e consumir produtos ambientalmente
corretos. Muitos comerciantes também
oferecem tickets para o festival e brindes,
tais como um saco de composto grátis na
compra de dois outros.
175
Foto:
Pedro Victor
Brandão
“A LENDA DE THYTH, O GIGANTE”,
OU “O QUE JAZ SOB THE ÞIT”
Kadija de Paula
Maíra das Neves
Pedro Victor Brandão

Em um tempo muito distante, quan-


do as árvores do Haard eram ainda into-
A lenda a seguir foi recuperada du-

cadas, viveu esta velha senhora. Com


rante o projeto the þit1, na cidade de

Geneviève, sua coruja de estimação, ela


Oer-Erkenshwick, Ruhrgebiet, Ale-

morava em uma modesta cabana de pe-


manha, no primeiro semestre de 2014.
Ela foi lida pela primeira vez ao
dras escondida por uma cerca de árvores
público por Nadine Molatta, atriz, e

espinhosas chamadas Schlehe.


Ralf Rieder, ator e diretor teatral,

Muitas gerações depois, no mes-


durante a celebração de abertura

mo bosque, viveu um jovem Förster2 que


do parque the þit em frente à

amava a sensação de ficar sozinho na flo-


prefeitura da cidade.

resta. Certo dia, após uma longa medi-


the þit foi reserva temporária

tação no Hochsitz3 ele ouviu um estrondo


privada de patrimônio natural em

vindo da direção do Teufelstein4·. Ele cor-


um terreno alugado de 1200m2. No

reu até lá o mais rápido que pôde e, ao


meio dela havia um trailer, onde
três minas operantes de
chegar, encontrou muita poeira no ar,
criptomoedas foram instaladas. Por

como se a pedra gigante tivesse se


quatro meses, the þit funcionou

movido! No meio da nuvem de poeira,


como um parque público para

pôde ver algo brilhante no chão. Con-


encontros, oficinas, e produção de

forme ele foi tirando a poeira do objeto,


recursos financeiros. O fundo

percebeu que aquilo era uma antiga caixa


gerado financiou o próprio aluguel

brilhante, feita da mais linda pedra. Den-


do espaço, aluguel de mobília e

tro dela encontrou alguns textos escritos


parte dos eventos realizados.

à mão em folhas bem finas e velhas. A


Durante os meses de
funcionamento do projeto, os
maior parte estava podre, mas alguns tre-
artistas Maíra das Neves e Pedro

chos eram legíveis.


Victor Brandão exploraram a

Ele olhou ao redor para se certificar


cidade e o bosque Haard, a poucos

de que estava sozinho. Desdobrou trê-


minutos dali. Com a consultoria

mulo os pedaços delicados. Com bas-


criativa de Kadija de Paula,

tante cuidado, ele puxou o primeiro, que


encontraram esse texto, a partir

dizia:
de vestígios e relatos coletados com
moradores e no Arquivo da Cidade.

“Tempestade de trovão. Nuvens se


enrolam no firmamento negro en-
quanto ventos tenebrosos torcem e
arrancam árvores. Raios explodem
em cores tantas. Eles são sua
177
lança. De tempos em tempos ele Lugar feliz agora é só aqui onde
descarrega o seu poder de caos. viverei, sozinha, com as plantas de
Geneviève está aqui dentro tran- proteção e cura, pra mim e pra
quila, graciosamente destroçando minha querida amiga, Geneviève.”
um rato. Eu também nunca temo
as tempestades. Nunca temo os “Oh gigante, gigante da floresta, gi-
trovões ou os raios. Tenho minhas gante dos ventos, gigante do céu e
Donnerbarte4 no telhado e uma das estrelas. Oh, gigante no rato,
cerca de Schlehe. Assim o gi- gigante no gato, gigante na mar-
gante me reconhece, ele nunca mota, gigante no touro, gigante no
nos esmagaria numa noite de urso e gigante na coruja! Cada
tempestade.” olho iluminará sua visão e cada
osso levantará seu corpo. Cada
O jovem Förster conhecia essas coração e cada espírito girando e
plantas. As Donnerbarte são as sempre- levantando pedras gigantes como
vivas, e a Schlehe é um arbusto espi- se fossem um punhado de areia.
nhento conhecido por produzir frutos para Novamente o gigante há de se le-
um tradicional licor. Mas ele nunca tinha vantar do subterrâneo, fortalecido
ouvido falar que um dia essas plantas por esses cantos e por essa carne
foram conhecidas por seus poderes es- que lhe ofereço (...)”
peciais de proteção, ou que por isso eram
encontradas em muitos telhados. “Supers- O jovem Förster sentiu um arrepio
tição. Esses textos devem ser mesmo gelado por toda a espinha. Não por causa
muito antigos”, pensou. do gigante, ou da velha que parecia ser
O segundo fragmento: uma bruxa, afinal ele conhecia esses per-
sonagens de histórias antigas. Ele se ar-
“(...) e assim, nesse dia, eu celebro repiou por Geneviève, pois sabia que as
meu novo teto. Aqui hei de me corujas não são o que parecem.
manter distante dos olhos dos ho- Mesmo assim, corajoso que só ele,
mens, dos olhos do poder. Aqui hei respirou fundo e continuou a leitura, ainda
de ser livre para viver como quiser, sentado ao lado da Teufelstein, sob o
e seguir com minha prática. O lusco-fusco de um fim de tarde de outono.
povoado onde vivi nos últimos O próximo trecho parecia descre-
cinquenta anos já não é mais se- ver uma luta feroz:
guro. Já estou muito velha, nin-
guém se importa comigo. Mas “(...) gritos, cabeças e desespero.
agora que a pobre Anna Spieker- Tal fera imensa, com a força de mil
mann6 morreu de forma tão trágica, homens e uma fome sem fundo.
não posso arriscar ser caçada tam- Com um rabo longo, úmido e en-
bém. Não faz muito tempo, ho- roscado com algas, seu corpo
mens como esses deixaram os coberto de pequenas criaturas fa-
corpos dos rebeldes apodrecendo mintas. Suas mãos monstruosas,
nas gaiolas de Münster7, lá no alto, cada uma maior que um homem
para todos verem. Não! Eu não grande, jogavam árvores e pedras
serei caçada. Vejo uma cortina de enormes para longe, para alcançar
desumanidade, maior que os ma- Thyth, o gigante. E então se movia,
res, cair por sobre todo o mundo. deixando pra trás grandes buracos
178
no chão, tão grandes como mon- “Eu lembro como se fosse ontem.
tanhas ao contrário. Pessoas cor- Pois quem poderia se esquecer de
riam em pânico, gritando e um evento tão aterrorizante? De-
suplicando por suas vidas. En- pois da briga, o solo e as pedras
quanto isso, os dois gigantes ati- estavam revirados, as árvores di-
ravam pedras do tamanho de laceradas. As nuvens pesadas em
igrejas um contra o outro. De uma luto, e nenhum som se ouvia. Nem
colina a outra, seus golpes (...essa de pássaro, nem mesmo o som
parte ele não era legível…) o mons- das folhas ao vento. A natureza
tro recém-nascido perseguiu Thyth parecia estupefata, enquanto as
por muitas terras, das ensolaradas pessoas celebravam. É que Thyth
às nevadas, ávido por seu sangue. sempre foi um ser difícil de con-
Suas pegadas eram tão profundas viver. Com esse novo governante
que a água da chuva juntava nelas, era mais fácil lidar, ou ao menos
traçando novas fronteiras. Thyth era no que eles pareciam acreditar.
estava machucado e fraco, doente Mas a natureza é sábia. Eles um
das feridas e do coração. Ele dia aprenderão.
nunca poderia viver sob um mes-
tre, jamais seria um escravo. “Por mais que o gigante tentasse
Assim, Thyth, o gigante de mil es- revidar, era difícil escapar dos ten-
píritos, lutaria até o fim. Duas táculos daquela colossal criatura
noites depois, sob um céu sem lua, marinha em forma de pirâmide,
as duas criaturas colossais se en- cuja cabeça coroada era susten-
contraram no Haard e travaram tada por incontáveis almas, uma
luta, golpeando-se com toda a por sobre as outras. Essa criatura
força. Thyth rugiu raivoso e acertou fora evocada, formada e alimen-
a mandíbula do outro gigante com tada por almas fracas. É um titã
seu último raio. Mas este último capturador de sonhos. Eu vejo que
golpe não derrotou seu oponente. ele andará por essa terra por
Ele estava fraco demais, seus mil muitos e muitos séculos.
espíritos já começavam a aban-
donar sua formação. Os poderes “Ele tem todo poder agora. Onde
do gigante evaporaram num movi- quer que haja homens, haverá o
mento centrípeto, transformando- seu poder. Agora ele decide e go-
o em um pedregulho e colocando-o verna tudo. Em princípio parece
para dormir nas profundezas sub- boa a promessa do fim da guerra
terrâneas.” de todos contra todos. Ele até con-
vence a natureza a ir contra ela
Então Thyth, o gigante do caos, mesma, é a evolução humana. Ele
aquele que carrega lanças e raios destru- se elevou por sobre tudo que vive.
idores, foi derrotado. O jovem Förster Pobres almas fracas, eu vejo pais
ainda não conseguia imaginar que tipo de e filhas, trabalhadores e mendigos,
criatura derrotou tal gigante. Quem, ou o jovens e velhos, todos abdicando
que, poderia ser poderoso e forte o bas- de sua liberdade por medo do
tante para derrotar Thyth? caos. Em todas as terras, até nas
Curioso e empolgado, continuou a terras mais remotas, todos se ren-
leitura: deram a este monstro cruel.”
179
‘E que monstro é esse?’, divagou o “O urso agarrará o touro pela
jovem Förster. ‘Poderia ser real? Será longa cauda.
que ainda vive e governa hoje?’. Outro A base tão fraca colapsará a
pedaço: pirâmide.
Fim da soberania do metal, uma
“No início dos tempos, no início da nova era de tempestades elétricas
natureza, nasceu Thyth. Ele era começará.
uma força gigantesca composta Milhões de toupeiras revelam uma
por uma miríade de forças indivi- primavera precoce através de
duais em harmonia. Certa feita, uma corrente em blocos que
um pequeno grão de areia se es- despertará o gigante.”
queceu de que era apenas uma
parte do gigante, esticou seu pes-
coço, olhou para baixo e ao seu
redor, e declarou a si mesmo um
gigante. Daquele dia em diante,
uma guerra sem fim começou,
todos lutando contra todos. Foi
quando o gigante adormeceu pela
primeira vez. Grande ignorante foi
aquele que primeiro serviu ao ou-
tro. Oh querido Thyth, gigante dos
ferrões! Reis, príncipes e padres
sempre temeram a vós! Eles sem-
pre temeram o poder dos mil es-
píritos livres em vós. Na sua
tirania, eles protegiam os ricos e
poderosos da fome insaciável do
gigante. Thyth, gigante da diversi-
dade, gigante por natureza, tantos
querem sua destruição!”

O último fragmento estava agora Notas:

em sua mão. Seu coração cheio de con-


1. http://thebpit.org
http://archipel-invest.eu/
fusão e sentimentos conflitantes. Seu 2. Guarda florestal.
espírito com uma sutil sensação de in- 3. Uma cadeira em um alto ponto de observação.
4. Pedra do diabo.
certeza. A luz do dia já tinha quase se dis- 5. Barbas do trovão.
sipado. Ele não conseguia enxergar bem, 6. A última bruxa morta pela inquisição na região de
Recklinghausen, em 1706.
e como a lanterna estava perto do 7. Cidade do noroeste da Alemanha onde, em 1533,
Hochsitz, ele voltou pra lá, mal podendo houve a rebelião dos Anabatistas, que viveram em

esperar para ler.


regime comunal por mais de um ano, até seus líderes
serem torturados e assassinados em praça pública, e
Assim que alcançou o topo da coli- seus corpos foram expostos e deixados para apodrecer
na do seu Hochsitz, ele acendeu a lan- em gaiolas no alto da Catedral de Münster como aviso
para outros possíveis rebeldes. As gaiolas permanecem
terna. Era o único feixe de luz visível na até hoje no mesmo local.
região. Era também uma noite sem lua.
Ao começar, ele notou: era um tipo de
profecia.
180
RECEITA DE YOPO OU COHOBA
(RAPÉ XAMÂNICO)
Joesér Alvarez

INGREDIENTES: e deixe secar ao sol, ou no microondas


• 03 porções de semente de angico (em baixa potência);
(Anandenathera Peregrina, • certifique-se de que a massa esteja
preferencialmente); seca antes de pilá-la novamente;
• 01 porção de hidróxido de cálcio • pile e coe com um pano de algodão
ou concha calcinada; (pode ser uma fralda) ou uma peneira
• conta-gotas; minúscula (p/ chá);
• água; • aplique uma pequena porção com tipiti
• balança (para medir a proporção em g). para testar;
• guarde o restante num potinho
MODO DE FAZER: ou latinha para uso futuro;
• coloque uma pequena porção de
sementes (6 a 7) numa vasilha ou CUIDADOS NECESSÁRIOS:
frigideira em fogo baixo, tampando-a *As sementes de Anandenathera
e mexendo-a para tostar; Peregrina (bem como, de quase todas as
• quando as sementes começarem espécies de Angico) contém bufotenina,
a pipocar (você vai ouvir o barulho) um alcaloide cuja estrutura molecular é
aguarde mais alguns segundos semelhante à bufotoxina, encontrada
(sem deixar queimar) e retire do fogo; principalmente em sapos do gênero
• espere esfriar e pile bem as sementes, Bufo, mas, em pequena quantidade nas
com a casca, reduzindo-as a um pó fino; referidas sementes, a qual, após serem
• em seguida, pese as sementes e o torradas e piladas, são misturadas com
hidróxido de cálcio na devida proporção: hidróxido de cálcio, e, na presença de
*sementes: 3 partes água, forma o cálcio bufotenato, au-
*hidróxido de cálcio: 1 parte; mentando através de reação química,
• acrescente o hidróxido de cálcio cerca de cinco vezes a quantidade de bu-
às sementes piladas e torne a pilar, fotenina contida nas sementes.
misturando bem; *Nem todas as espécies possuem
• retire do pilão, colocando a mistura a mesma quantidade do alcaloide, ou
num recipiente e acrescente a água mesmo, prestam-se eficientemente para
vagarosamente em gotas, e misture o mesmo fim, havendo preferência por
com a mão, umedecendo-a e formando sementes com bastante polpa (gordinhas
uma bolinha; e graúdas)recém colhidas ou frescas.
• guarde a massa em um pote fechado, *Não utilizar uma concentração su-
ou envolta-a em filme plástico para que perior à recomendada de hidróxido de
se processem as reações químicas por cálcio, pois, pode causar queimaduras de-
um período de 4 a 5 horas; vido à corrosão – a margem de segurança
• após esse período, caso a massa comumente empregada encontra-se na
ainda esteja úmida, espalhe-a num prato proporção 3:1 de hidróxido de cálcio.

181
*Os efeitos, em condições normais, SILVA,César Augusto Venâncio da,
duram de 05 a 15 minutos, com sintomas SÉRIE FARMACOLOGIA APLICADA -
que podem incluir alucinações visuais, Volume V - TOMO II - Anatomia e Fisi-
queda ou aumento de pressão, taquicar- ologia, Pag. 1560; disponível na internet
dia, enjoo, etc. Nos rituais indígenas, tem- em:
se notícia de que o yopo ou cohoba é http://pt.scribd.com/doc/193915967/Pro-
utilizado próximo ao fim do ritual para po- fessor-Cesar-Augusto-Venancio-da-
tencializar o efeito de outras beberagens. Silva-FARMACOLOGIA-V-TOMO-II-ANA
*O yopo pode de ser misturado ao TOMIA-E-FISIOLOGIA-HUMANA
rapé feito de tabaco para suavizar seus
efeitos. Yopo (DMT) y chamanismo de los Pi-
*O hidróxido de cálcio pode ser aroa, disponível na internet em:
comprado em sua forma pura em casas http://www.onirogenia.com/multimedia/y
de produtos dentários, ou obtido com cin- opo-dmt-y-chamanismo-de-los-piaroa/
zas de conchas na forma tradicional (os
indígenas costumam pilar as conchas e Aviso:
torrar o pó das mesmas, as quais, mudam A EDITORA E AS INSTITUIÇÕES
de cor, ao ficar calcinadas). LIGADAS À ESTA PUBLICAÇÃO
NÃO SE RESPONSABILIZAM PELO
OUTRAS REFERÊNCIAS: USO DA RECEITA E SUGEREM
COPPENS, Walter y Cato-David, Jorge SUA REALIZAÇÃO APENAS POR
Aspectos Etnograficos y farmacologi- PESSOAS EXPERIENTES EM
cos, El Yopo entre los cuiva-guajibo, EXPERIMENTOS QUÍMICOS
disponível na internet em:
http://www.samorini.it/doc1/alt_aut/ad/co
ppens.pdf

BLACKLEDGE, Robert D., PHELAN,


Clay P.,Technical Note, Identification of
Bufotenine in Yopo Seeds via GC/IRD,
disponível na internet em: http://foren-
dex.southernforensic.org/uploads/refer-
ences/MicrogramJournal/4.1-4.3.11.pdf

Erowid, disponível na internet em:


https://www.erowid.org/plants/anadenan-
thera/anadenanthera.shtml

Shamanic Retreat - Yopo, disponível


na internet em: http://www.heartoftheiniti-
ate.com/taxonomy/term/361

SILVA, Iram Reis e, Alucinógenos ou


Psicoativos? disponível na internet em:
http://desafiandooriomar.blogspot.com.br
/2012/06/alucinogenos-ou-
psicoativos.html
182
O QUE É
AKELARRE CYBORG?
Akelarre Cyborg:
Quimera Rosa +
Transnoise

Uma performance multidisciplinar? larre. A ideia de Akelarre aplicada a per-


Um encontro de bruxas? A desconstrução formance está dissociada de qualquer
das nossas identidades de sexo / gênero? noção de representação ou teatralidade.
Rituais coletivos? Uma conexão entre O Akelarre não é manifestação do que
arte, tecnologia e vida? Uma viagem de são as bruxas, e nem mesmo é o lugar
idas e voltas? É um pouco de tudo isso… onde participantes fingem ser bruxas. O
E ainda mais... Akelarre é o devir bruxa.
Akelarres1 eram reuniões entre bru- O projeto se baseia tanto na docu-
xas. Se nos afastamos das definições re- mentação do processo de experimen-
ligiosas de bruxaria, assim como das tação e investigação como na realização
leituras sócio-históricas, encontramos um da performance. Juntando as experiên-
conjunto de práticas que, através da ma- cias e inquietudes de Transnoise e
nipulação de símbolos, corpos, objetos, Quimera Rosa, desenvolvemos uma per-
sinais e seu entorno, têm como finalidade formance com base na desconstrução de
a criação / modificação do mundo, o que identidades de sexo e gênero, na intera-
nos aproxima da definição de cyborg de ção entre corpo e tecnologia, entre as
Donna Haraway2. máquinas e as plantas, e no ruído faça
Se consideramos, a partir de uma você mesmo (DIY) como meio para alte-
perspectiva feminista / queer, as preten- ração da construção identitária, uma
sões das últimas vanguardas artísticas de fusão de realidade e ficção. Uma per-
suprimir a fronteira entre arte e vida, formance que estuda o potencial das
podemos considerar os akelarres como artes de bruxaria era do biopodernão
performances coletivas de arte total. O compreendi o tempo verbal. Era ou é
conjunto de práticas das bruxas, no- umas performance?. Uma ficção científica
meado por elas como "as artes" ou a onde as plantas cantam, corpos transmu-
"arte", necessita hoje de uma infinidade tam e máquinas trepam.
de categorias para ser abordado, como
arte, política, filosofia, técnica, ciência, DETALHES TÉCNICOS
sexualidade. Construímos sob medida todas as
AKLR cyborg é um projeto de próteses, sensores e dispositivos sonoros,
pesquisa e performance que busca como parte do processo artístico. Toda a
reapropriar-se dessa visão de bruxaria, parte de tecnologia é criada usando
examinando possibilidades de dar a uma tecnologia livre, de código aberto e faça
performance características de um Ake- você mesmo / faça com os outros (DIY /
183
DIT). O ciborgue não é apresentado como 2. “Entidades germinais implodidas, condensações

um super-homem fabricado por empresas,


densas de palavras, que surgem da implosão de natural
e artificial, sujeito e objeto, máquina e organismo,
mas através de subjetividades e encontros dinheiro e vidas, narrativa e realidade, natureza e
criativos. cultura”. Consulte o “Manifesto Cyborg”, Donna Haraway.
Quimera Rosa & Transnoise são laboratórios artísticos de
sensibilidades aliadas que investigam e experimentam
Notas: em torno dos processos que constroem e produzem
1. A Palavra em língua basca para Sabbath. Reunião identidades, particularmente as de sexo / gênero /
noturna de bruxas. http://es.wikipedia.org/wiki/Aquelarre sexualidade, e a relação destas com as artes e

Akelarre Cyborg: Quimera Rosa + Transnoise".


Fotos: @sight&sound festival, montreal, CA, 2014.

184
tecnologia. Este trabalho manifesta-se principalmente http://akelarreyaku.tumblr.com/
através de performances interdisciplinares que esboçam Teaser Aklr: https://vimeo.com/61753605
novas linhas de relações entre humanos, plantas e Transnoise: http://transnoise.tumblr.com/
máquinas, entre os órgãos, próteses e dados. Quimera Rosa: http://quimerarosa.net/
Performances que procuram gerar um espaço-tempo http://akelarrecyborg.tumblr.com/
onde desaparecem os limites entre ficção e realidade,
entre arte e vida.
3. AKLR Cyborg teve início durante uma residência no
mARTadero, Cochabamba, Bolívia, em Outubro de 2012.
Caderno de viagem e residência de investigação:

185
186
COSMOGONIA
SONORA
Pedro Dias

se combinam e se interpretam porque se


interpenetram.
“O movimento de uma
corrente é distinto Um som afinado, cantado em unís-
sono por um grupo humano tem o poder
mágico de evocar uma fundação cós-
daquilo que
atravessa, mica: insemina-se coletivamente, no meio
dos ruídos do mundo, um principio orde-
nador. Sobre uma frequência invisível,
ainda que
necessariamente ele trava-se um acordo que projeta não só o
fundamento de um cosmos sonoro, mas
também do universo social. As so-
adote suas
sinuosidades”. ciedades existem na medida em que
podem fazer música, ou seja, travar um
acordo mínimo sobre a constituição de
Bergson, Evolução
Criadora uma ordem entre as violências que pos-
sam atingi-las do exterior e as violências
O ruído sonoro pode ser entendido que as dividem a partir do seu interior.
como interferência na comunicação, des- Assim a musica oferece tradicionalmente
organizador que desmancha a men- como o mais intenso modelo utópico da
sagem, bloqueia o canal ou desloca o sociedade harmonizada e ao mesmo
código, mais relacional do que natural. tempo a mais bem acabada represen-
Essa definição, porém, como desorde- tação ideológica (simulacro interessado)
nação interferente, ganha um caráter de que ela não tem conflitos.
mais complexo em se tratando de arte No crescimento das sociedades,
como um elemento virtualmente criativo, formam-se centros despóticos para os
de afronta à códigos cristalizados e pro- quais se dirige o produto excedente
vocador de novas linguagens. (serviços religiosos, custeio da guerra, a
O som natural é o ruído que se manutenção da comunicação ou dis-
apresenta a nós a todo o momento atra- tribuição). Enquanto esse excedente
vés de frequências irregulares e caóti- econômico se destina serviços de inter-
cas, com as quais a música trabalha esse coletivo, o excedente simbólico se
para extrair-lhes uma ordenação que por realiza como trabalho comum para a glória
sua vez também contém margens de da unidade, nas figuras espelhadas do
instabilidade, com certos padrões sono- déspota e da divindade tribal. A ordem
ros interferindo sobre outros. Emissões sacrificial da música envolve todos seus
pulsantes que são por sua vez interpre- elementos em um tributo ao centro, um
tadas segundo os pulsos corporais, caráter estático da musica modal, ante
somáticos e psíquicos, se fazem nesse evolutivo, ocupa o espaço de autossufi-
ligamento em que diferentes frequências ciência e referência ainda que permeável

187
à circularidade e ao rodízio das precedên- investida de um poder (mágico,
cias, ameaçado por qualquer fissura, ou terapêutico e destrutivo) que faz
ainda, ruído deslizante da ruína do sis- com que a sua prática seja cer-
tema. Como o mundo modal não se ba- cada de interdições e cuidados ri-
seia na ordem da representação (estética tuais. Os mitos que falam da
e política), e sim na ordem do sacrifício, a música estão centrados no sím-
descrição sócioeconômica e cosmológica bolo sacrificial, assim como os ins-
não se faz como uma simples metáfora da trumentos mais primitivos trazem a
sociedade, e sim como instrumento ritual sua marca visível: as flautas são
de manutenção da ordem contra as con- feitas de ossos, as cordas de in-
tradições que a dissolveriam. testinos, tambores são feitos de
Segundo Deleuze e Guattari em pele, as trompas e as cornetas de
Anti-Édipo, nas sociedades tribais esse chifres. Todos os instrumentos
todo é virtualmente a terra, a unidade-in- são, na sua origem, testemunhos
divisa que se inscreve no corpo pelos rit- sangretos da vida e da morte. O
uais (circuncisão, tatuagens e outras animal é sacrificado para que se
inscrições) e que se escuta como música. produza o instrumento, assim
Nas sociedades despóticas, esse todo é como o ruído é sacrificado para
apropriado simbolicamente em alguma que seja convertido em som, para
medida pelo centro, que passa a ser em- que possa sobrevr o som.”
anador e receptor dos sons da terra e do (Wisnik, 1989).
grupo social (ritornelo dominante).
Nas sociedades pré-capitalistas a A fonte de onde emana o mundo é
musica é vivida como experiência do sempre uma fonte acústica. A voz cria-
sagrado, no campo da luta cósmica e dora surge como um som que vem do
caótica entre o som e o ruído. Na luta dos nada, que aflora do vazio: “O abismo pri-
dons entre a vida e a morte, os deuses e mordial, a garganta aberta, a caverna re-
os homens, o rito sacrificial. Assim como verberante”. Esse som saído do Vazio é o
o sacrifício de uma vítima (pharmakós produto de um pensamento que faz vi-
entre os gregos), quer canalizar essa vio- brar o Nada e, ao se propagar, cria o es-
lência destruidora, ritualizada para sua paço. O abismo primordial é um fundo de
superação simbólica, o som é o bode ressonância e o som que dele emana, a
expiatório que a música sacrifica, con- força criadora (deuses-cantores, Brama,
vertendo o ruído mortífero em pulso or- palavra sagrada, hino, mantra, o sopro
denado e harmônico. Assim como o sagrado de Atman, OUM (ou AUM), o
pharmakós tem valor ambivalente, ve- poder de ressoar a gênese do mundo).
neno e remédio, o som também tem a Articular o som e o silencio é querer
ambivalência de produzir ordem e desor- romper o continuum da natureza que é ao
dem, vida e morte, na economia sacrifi- mesmo tempo silêncio ruidoso como o
cial de base, o ruído está sempre no mar, em suas ondulações e no seu rumor
limite de invadir o som. Ritornelo comu- branco, frequência difusa de todas as fre-
nicante entre mundo material e o espiri- quências – pinknoise, movimento browni-
tual sensível. ano1. Fundar um sentido de ordenação do
som, produzir um contexto de pulsações
“A música modal é a ruidosa, bri- articuladas, produzir a sociedade significa
lhante ritualização da trama sim- atentar contra o universo, recortar o que é
bólica em qua a música está uno, articular o que é contínuo. Experiên-
188
cia ondulatória e pulsante no próprio des- desenvolvimentista, disparado ainda
contínuo da cultura, estabelecendo o cir- pelas relações capitalistas, foi formulado
cuito sacrifical em que se trocam dons difusamente pelo imaginário coletivo.
entre homens e deuses, vivos e mortos, Goethe, em seu imperativo fáustico, as-
harmoniosa e desforme. socia a vontade de saber e a vontade de
poder, o conhecimento e a ação ilimita-
DIACRONIA E CIVILIZAÇÃO dos, à colonização do futuro movida por
A passagem modal ao tonal acom- “forças obscuras’’ que são desentra-
panha aquela transição secular do mun- nhadas de um fundo escondido, ainda
do feudal ao capitalista, participando da inconsciente, medievo na figura do Mefis-
própria constituição da ideia moderna de tófeles.
história como progresso. Nesse período Na metade do século XX atingem-
Clássico, a linguagem musical atinge seu se os confins da serie harmônica, a
auge erudito e em seguida passa por própria ideia de progresso ilimitado deixa
uma espécie de saturação e adensa- de exibir, como linha de força ideológica,
mento, que o levam à desagregação no aquela mesma autossuficiência dialética.
século XX. Nesse arco histórico, inclui a O principio evolutivo aplicado às alturas
afirmação e a negação do próprio sistema, enfrenta dificuldades cada vez mais acen-
formando as bases para o processo da tuadas para produzir diferenciação, já que
modernidade. suas formas mais extremas de organiza-
A música tonal expande o universo ção progressiva estão consumadas.
modal fixo e repetitivo em uma economia Onde o silêncio dos espaços infinitos vem
de trocas em que a transição pelas acompanhado da ruidagem absoluta,
funções, através de um encadeamento impõe-se uma espécie de consciência
que tem seu núcleo no próprio movi- sincrônica, uma escuta capaz de fazer
mento oscilante de tensões, também se silêncio, de se colocar no ponto zero dos
transformam em repouso. Fundamento códigos e da multiplicidade dos pulsos.
dinâmico, progressivo, teleológico, pers- Além do ruído ser o elemento que
pectivístico da tonalidade, panoramica- renova a linguagem do habitat moder-
mente, o tonal é o mundo no qual se no, a vida urbano–industrial é marcada
prepara, se constitui a problemática e a pela estridência e pelo choque. O alas-
dissolução diacrônica. É o mundo da tramento do mundo mecânico, artificial
d i alética, da história, do romance, e agora, virtual, cria paisagens sonoras
progressivo, narrativo na expansão do onde o ruído é a base para as texturas
movimento e seus desdobramentos se- musicais. Proliferam os meios de pro-
quenciais, no principio do desenvolvi- dução e reprodução sonora, não é mais
mento. Exibe sua crise interna ao sistema simplesmente acústico, e sim, eletro-
mostrando possibilidades de resolução acústico.
dentro do próprio código. O sampler registra, analisa, trans-
Vemos ai esse perfil macrocultural, forma e reproduz ondas sonoras de todo
a vocação para o desenvolvimento su- tipo, e superou de vez a já velha po-
cessivo, evolutivo, subordinante, movido lêmica inicial entre a música concreta e a
por uma necessidade dialetizadora ine- eletrônica. Em um estado de produção
rente à linha conflitiva diacrônica, neces- de simulacros, dilui-se a oposição entre
sidade que envolve em seus passos o gravado e o sintetizado, o som real e o
tanto a dinâmica social quanto a estrutura inventado. As máquinas de produção e
da linguagem. Esse ímpeto positivista, reprodução sonora, além de terem seus
189
terminais disseminados em rede por todo trato fáustico. Nele a alma e ou sentido
o tecido social (com sonorizadores fixos e parecem estar perdidos de saída. O
ambulantes nos espaços mais públicos homúnculo retorna na esperança tec-
aos mais privados), implantaram um nológica da salvação, na forma do com-
modo de tratamento do som totalmente putador, a arte, alma e o sentido figuram
relativístico, em que nenhum dos seus já como lendas do passado.
componentes inscreve-se em nenhuma
ordem de hierarquia ritualística. O objeto HACKEANDO O SISTEMA
sonoro é o ruído que se reproduz em Na análise dos efeitos do LSD-255
toda parte, além de passar por um sobre a mente humana, uma hipótese ra-
processo sem precedentes de rastrea- zoável afirma que o efeito dessas subs-
mento e manipulação laboratorial das tâncias no computador humano é introduzir
suas mais ínfimas texturas (gravado, de- ruído branco (energia variante e aleatória
composto, distorcido, filtrado, invertido, que não contém sinais de si mesmo em
construído, mixado, etc). si mesmo). Este componente ruidoso adi-
Enquanto isso, a estratégia política cionado aos sinais normais dos circuitos
do som deixou de se dar pela clivagem geram incertezas suficientes nos signifi-
ideológica entra a música oficial, apro- cados para que novas interpretações
priada enquanto música elevada e har- sejam possíveis. O que LSD, mescalina e
moniosa, e as músicas divergentes, psicodélicos semelhantes tendem a
consideradas baixas e ruidosas, a indus- fazer, especialmente depois de várias
trialização tornou-se uma processadora viagens, é abrir a pessoa a que o
de toda forma de ruído repetitivo, dis- Dr.Lilly chama de “ruído”.
seminado em faixas de consumo diversi- O grande princípio operativo
ficadas. Não se trata mais de tocar o som parece ser que o computador humano
do privilegio contra o ruído dos explo- opera de tal forma a tornar os sinais de
rados, mas operar industrialmente sobre ruído, criando informações onde não
todo o ruído, dando-lhe um padrão de havia sinal. A informação “criada” a partir
repetitividade e fetichismo. do ruído pode ser demonstrada por
O mercado pós-moderno é análise cuidadosa e ter sido trazida de
baseado em ciclos rápidos de posição e dentro do próprio sistema de armazena-
reposição da história dos gêneros, a li- mento do computador, recriação sobre
quidação dos estoques da loja ocidental, elementos inerentes. Isto é, precisa-
queima de estilos. Se a linguagem perde mente, o que ocorre em uma viagem de
a tônica, a moda dá o tom. No conjunto LSD. O diferente é que o ruído e as infor-
da repetição serializada, toda história mações recém-criados estão chegando
torna-se sucata para uso publicitário, ao receptor não apenas em palavras lidas
remete todo som ao ruído, ruidifica o em uma página, mas através de todos os
ruído. O tempo integral da mídia não faz, sentidos ao mesmo tempo. Muitas vezes
não conhece e não aceita o silêncio. levam meses para investigar e descobrir
Ao mesmo tempo, as expansões todos os signos e relações experimenta-
tecnológicas oferecem vivas perspecti- dos durante uma expansão mental ou
vas para a leitura e uso das construções sensorial.
humanas. No Fausto de Goethe, há um Esse delírio traz uma necessidade
momento em que os poderes já precoces vital à espécie, a confabulação de técni-
da produção de simulacros gerada pelo cas e mecanismo da vida se inserem no
pacto com Mefisto gera um terceiro con- mundo para serem reais, delirar o mundo,
190
projetar nele esboços de personalidades, o ser, constituem em um porvir e um
forças superiores, seres transcendentes, eterno retorno das construções e possi-
potência imaginativa. Se precisamos vio- bilidades humanas. O simulacro de Ni-
lentar a natureza para chegar a esse de- etzsche, iconoclasta, onde as ondas
sapego (um corpo sem órgãos), é porque reverberantes criam seus próprios ecos
o apego à vida (ou confiança) muda de degenerados e tresloucados.
natureza. O místico é justamente aquele A criação de imagens e sons ab-
que pula fora do plano da Natureza, ou stratos por meio de procedimentos de
seja, fora dos círculos de pertencimento distorção nas linhas e nos pontos de sua
da espécie. Ele chega até a constituir trama reticulada, podem ser conheci-
uma própria espécie, não um aumento dos também por anamorfoses cronotópi-
extensivo nem de um crescimento quali- cas – "As técnicas clássicas de
tativo, mas de um salto intensivo que se anamorfose consistem no deslocamento
confunde com um movimento de conver- do ponto de vista a partir do qual a im-
são e transformação. A verdade é que agem é visualizada, sem eliminar, entre-
compreenderemos sem dificuldades es- tanto, a posição anterior, decorrendo ai
ses estados anormais, sua semelhança e, um desarranjo das relações perspectivas
às vezes, talvez também sua participação originas [...]. Se referem ás deformações
nos estados mórbidos, se pensarmos na resultantes de uma inscrição do tempo”.
reviravolta que é a passagem do fechado
para o aberto, da vida habitual para a vida DEGENERAÇÕES AUTOPOÉTICAS
mística. Figuras extremas como o barulho
Quando as profundidades obs- e o silêncio, esgotamento ideológico,
curas da alma são agitadas, o que sobe catástrofe e mesmo caosmose, tangen-
à superfície e chega até a consciência, ciam pontos onde aparecem, para-
se a intensidade for suficiente, pode ex- doxalmente e ao mesmo tempo, os
primir a reviravolta como uma rearru- contramovimentos do presente. Nesses
mação sistemática em vista de um pontos de inflexão que se insinuam, de
equilíbrio superior. Só podemos sair da maneira às vezes imperceptível, os con-
neurose própria da espécie humana por tragolpes minúsculos, mas também as
uma espécie de experiência psicótica explosões multitudinárias que denunciam
(êxtases, alucinações, encantamentos), o que definha (valores, estilos, proble-
um episódio esquizofrênico que nos con- mas), ao mesmo tempo em que deixam
duza a uma saúde para além do normal, entrever novos desejos e necessidades,
um novo estágio de sobrevida. a compassar a presença com a palpi-
Essa expansão da percepção das tação do corpo que vibra e reverbera.
frequências, dos “ruídos”, leva a uma O fato é que o colapso do sentido,
desterritorialização por conhecimento. O em geral, promove discursividades a-sig-
ruído provocado pelas multidões con- nifantes, gerando mutações ontológi-
trasta junto ao noise experimental como cas, sendo a própria subjetividade pensada
quebra da repetitividade do entreteni- a partir desse ponto de mutação.
mento, aprofunda um campo de disputa e
criação de subjetividades. A realização “O mundo só se constitui com a
da capacidade de perceber fenômenos condição de ser habitado por um
onde influências e interferências, internas ponto umbilical de desconstrução,
ou externas, das frequências e linhas de de destotalização e de desterritoria-
intensidade que atravessam e constituem lização, a partir do qual se encarna
191
uma posicionalidade subjetiva… desterritorialização incessante, na qual
Esse vacúolo de descompressão é se passa do “sentimento de catástrofe de
ao mesmo tempo núcleo de au- fim do mundo” ao pressentimento pertur-
topoiese sobre o qual se reafirmam bador de “uma redenção iminente de
constantemente e se formam, insis- todos os possíveis”. A esquizoanálise
tem e tomam consistência os Ter- mergulha na imanência homogenética e
ritórios existenciais e os Universos dali liberar coeficientes heterogenéticos,
incorporais. É no fundo, assim que mesmo que esteja fora de qualquer per-
nasce um mundo, a partir desse formance oral, familialista ou analítica.
fundo sem fundo e sem funda- Confrontamo-nos com ela na vida de
mento. Trata-se de um foco de cria- grupo, nas relações econômicas, no
cionismo ontológico.” (In. Guatarri, maquinismo, por exemplo, informático, e
Caosmose, op. cit., p.99.) mesmo no interior de Universos incorpo-
rais da arte ou da religião.
[Essa] caosmose não oscila Apreender o movimento da
mecanicamente entre zero e o infinito, música, independentemente da sua
entre o ser e o nada, a ordem e a desor- melodia; apreender o movimento do mís-
dem: ela ressurge e germina nos estados tico, independentemente das vozes, ima-
das coisas, nos corpos, nos focos au- gens e emoções que o acompanham;
topoiéticos de desterritorialização. Trata- apreender a corrente da vida, indepen-
se aqui de um infinito de entidades dentemente das formas criadas que ela
virtuais infinitamente ricos de possível, in- atravessa; enfim; apreender um todo vir-
finitamente enriquecível a partir de pro- tual independentemente da sua atualiza-
cessos criadores. As velocidades infinitas ção sempre parcial. Será o jogo apenas
estão grávidas de velocidades finitas, de um dos enigmas do mundo, ou o mundo
uma conversão do virtual em atual, do re- é uma das figuras do jogo? Em todo
versível em irreversível, do diferido em caso, ao perguntar se nesse universo
diferença. plano e liso, abstrato ou reduzido, no
Como se dá a tomada de con- planeta em que vive o ser do homem, ele
sistência de tais focos autopoiéticos, poderá algum dia encontrar seu lugar e
como ocorrem essas “escolhas de fini- hora? O filósofo responde que, com o nii-
tude”, como se dá a inscrição numa lismo superado, talvez se possa ouvir
“memória de ser”, como se gera uma tal uma vez mais a voz de heráclito:
ordenação intensiva na pré-subjetivação?
Vozes de auto-referência, isto é, na sub- “Será que de vez em quando
jetividade processual autofundadora, que saberemos nos tornar como as cri-
inventa suas próprias coordenadas, auto- anças que constroem na praia o
consistencial. Produzir novos infinitos a dia inteiro castelos de areia, e com
partir de um mergulho na finitude do sen- a mesma alegre excitação, veem
sível, infinitos não apenas carregados de a maré da tarde destruí-los?”
virtualidade, mas também de potenciali- K. Axelos, horizontes do Mundo,
dades atualizáveis, devires intensivos e po. cit., p.21.
processuais, um novo amor pelo descon-
hecido. (Ibidem, p. 147)
O que a caracteriza é uma combi-
nação singular de homogêneses e hete-
rogênese, de repetição congelada e de
192
Notas:
1. O movimento browniano é o movimento aleatório de
partículas num fluído, como consequência dos choques
entre todas as moléculas ou átomos presentes no fluído.
Há um padrão pouco explícito em alguns casos em um
movimento fractal, esse movimento está diretamente
ligado a reações em nível celular, como a difusão, a
formação de proteínas, a síntese de ATP e o transporte
intracelular de moléculas. Hoje em dia, o movimento
browniano serve também de modelo na descrição de
flutuações que ocorrem os mais diversos e inesperados
tipos de sistemas. Por exemplo, para descrever
flutuações de preços de mercadorias, a condutividade
elétrica em metais e a ocorrência de cheias nos rios.
Físicos atualmente estudam tal movimento em relação
à Teoria do Caos.

Bricolagem inspirada nos textos referentes:

Axelos, Kostas. “Horizontes do Mundo”, 1983. Tradução


de Lígia Maria Pondé Vassalo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro; Fortaleza: Ed. UFC, 1983.

Deleuze, Gilles. “Diferença e Repetição”. Tradução


revista de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 2006.

Guatarri, Feliz. “Caosmose”. Ed. 34, Rio de Janeiro,


1992.

Lapoujade, David. “Potências do Tempo”. São Paulo, Ed.


N-1, 2013.

Lilly, Jon C. “Programming and Metoprogramming in the


Human Biocoomputer”, 1968.

PARENTE, André (org); “Imagem-Máquina: a era das


tecnologias do virtual”. Rio de Janeiro: Editora 34; 1993

PELBART, Peter Pál. “O Avesso do Niilismo: Cartografias


do Esgotamento”. São Paulo, N-1 Edições, 2013.

Simondon, Gilbert. “L’Individu et sa Genèse


Physicobiologique”. Paris: PUF, 1964.
Bailly, A. Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette,
1950.

Wilson, Robert Anton. “Sex, Drugs & Magic”. Nevada,


USA, New Falcon Publications. 1987.

Wisnik, José Miguel. “O som e o Sentido”. São Paulo, Cia


das Letras, 1989.

193
Cristal World.
Foto: Fabiane
M. Borges.
O MUNDO
CRISTALIZADO
Jonathan Kemp

O universo é um gigantesco cristal, No romance, situado em um des-


cuja totalidade de átomos e lâminas des- conhecido país africano, as pessoas
cansa em uma ordem ininterrupta e de sucumbem e cristalizam-se em uma pai-
unidade inquebrável, porém fria e es- sagem abrilhantada, fundindo-se com sua
tática. O que parece um indivíduo e uma flora e fauna. O tempo é curto: escapar da
vontade, é nada. Há uma imensa cadeia cristalização é impossível. Apenas um
de intermediação, que se estende do cen- militar, Radek, é encontrado semi-joiado
tro aos extremos, e que destitui cada e arrastado para um córrego, na tentativa
agenciamento de toda sua liberdade e desesperada de dissolver os cristais que
caráter. O universo [...] sofre sob um sono o trancafiam. Mais tarde ele é visto trans-
magnético, e apenas reflete a mente do figurado, rasgado, meio-vivo, ferido de
magnetizador. (Emerson, 133) morte. Não há saída no livro de Ballard.
O silêncio absoluto da vegetação ao O mundo de cristal se expande, torna-se
longo das margens e o brilho prismático planetário; enquanto sua cristalização
profundo quase o convenceram de que cresce, a vida torna-se patologicamente
toda a terra fora transformada, e que qual- circunscrita à sua rigidez gelada.
quer progresso através deste mundo de A questão que Ballard coloca é se
cristal havia se tornado inútil. (Ballard, 35) é possível escapar da propagação de tais
A disposição da Terra proposta em forças neguentrópicas por toda natureza
"The Crystal World" - a distopia “dos sem- e psique. Em um contexto contemporâ-
futuro” de J. G. Ballard - é tal que magne- neo isso pode ser re-roteado pela análise
tiza a psique em sua superfície como de que, sob o capital, o tempo geológico
sujeito limitado, despojando-se de suas e as especificidades espaciais são colap-
faíscas de vida, aprisionando-o em uma sados e dragados para um buraco de
série de materializações fractais. Vida e minhoca de suas narrativas tecnológicas,
terra são imobilizadas, congeladas no aquelas repetições de um ruído branco
brilho de uma beleza distorcida, a super- reproduzidas pelo pântano de materiais
fície é brutalmente cristalizada em sua ex- planetários, subtendendo tudo ao chau-
pansão mundana. vinismo de uma espécie. Assim o que
Por difratar a décollage em curto-cir- está em jogo aqui sugere essa saída na
cuito de uma imobilidade contemporânea - criação de algo mais próximo às mar-
enquanto subscrita por motores computa- cações e matriciações da terra (computa-
cionais demiúrgicos, desumanamente dor de Stonehenge), para distorcer a
complexos e altamente ordenados – pode- periodicidade na qual arestas são in-
se entender que o romance de Ballard definidamente cortadas e afiadas, e evi-
cristaliza sua psicopatologia sobre uma tar a agregação de erros destrutivos
terra lacerada – lugar sempre usualmente sobre um cataclismo subterrâneo de
difundido como depósito indefinido sob um metafísica, onde tudo é incerto, local e
versionamento de soberania qualquer. promíscuo.

195
INTRODUÇÃO: Foi proposto com contextualização
Se a própria vida tem início em a relação entre NMA e as suas bases ma-
cristais aperiódicos que codificam futuros teriais, e este artigo desenvolve uma
infinitos dentro de um pequeno número metodologia de difração com os quais
de átomos, então a cristalização digital do pretende caracterizar investigações práti-
geobiológico pelo Capital limita esses fu- cas do projeto para essas materialidades.
turos até o ponto de exaustão. Uma vez Isto sugere ainda um meio para a flexibi-
que os computadores e os minerais de lização da prática e da teoria a partir de
que são feitos são considerados como qualquer posição consciente com objetos
igualmente cristalinos, sua descristaliza- padronizados dentro de domínios e
ção só é possível através da introdução modos de conhecimento prontamente
de loops de realimentação vigorosos e disponíveis, mediante a apresentação de
positivamente ruidosos. (Kemp, 2012a) um conjunto de investigações sutis,
Ao percorrer as camadas de abs- aleatórias, atentos e aventurados em
tração inerentes a um computador, a par- dinâmica material da computação onde,
tir de protocolos de rede e através de fundamentalmente, são baseadas em
linguagens de programação de alto nível, uma questão protéica.
intérpretes, código de máquina – des- Como tal, uma iminência exigente e
cendo até as próprias placas de circuitos rigorosa da estética é premeditada em
– há sempre uma disjunção entre o que é suas descrições das várias operações
materializado e o que a teoria demanda, naqueles químicos, lógicas e contingências
da mesma forma como ninguém jamais eletromagnéticas dobrada por dentro da
poderá construir uma verdadeira máquina computação, e não só, para concatenar
de Turing Universal. Mas o que é cons- com condições antropogênicas e ecológi-
truído, escalado e distribuído em todo o cos, criadas por economias capitalistas.
mundo é o produto de vários processos Por exemplo, e como maneira de
materiais que envolvem ações massivas introdução, em algumas primeiras oficinas
de pessoas, coisas e a terra e sua matéria antes de o projeto, uma série de experi-
- o que por sua vez significa que há uma mentos foram executados e tentaram
política e filosofia da materialidade que difratar alguns dos minerais provenientes
precisam a ser levados em conta. de computadores usando técnicas e ex-
Uma suposição no trabalho aqui a- periências transcritas, de diferentes
presentado é que, enquanto inovações tradições e práticas. 1) O ouro foi configu-
tecnológicas e estéticas da arte dos novos rado em muitas combinações com coisas
meios ("New Media Arts" - NMA) depen- como ácidos, calor, eletricidade, eletrônica
dem da reconfigurações de materiais e economia, a alquimia, crença, possibili-
aparentemente inesgotáveis, uma conta dade, e ciência, e assim por diante, todos
de essa materialidade geralmente tem sido atuando em um inquérito que não foi pro-
deixado de fora de suas convenções. jetado para perguntar como compreender
Através do detalhamento do projeto cola- ouro de apenas uma perspectiva teórica,
borativo, "The Crystal World" [n.t. "Mundo mas para mostrar que o ouro só pode ser
Cristalizado"], este artigo fornece uma entendido como uma coisa para ser ma-
idéia de como essa conta pode ser feita, nipulado na prática.
evitando a falácia epistemológica de prio- Assim, em vez de destacar um
rizar teoria, uma vez que "situar a prática conjunto de práticas e seu discurso, os
na teoria, uma vez que a ignorar a prática sistemas políticos em que tais materiais
é obter a teoria errada" (Barad 2007, 166). são distribuídos, o "Crystal World" tenta
196
multiplicá-los. A ideia é que se qualquer "ser", como configurações específicas de
uma dessas práticas discursivas for colo- possibilidades materiais que contribuem
cada em primeiro plano, como conse- para a "diferente materialização no
quência haverá apenas uma visão mundo" (Barad 2007, 178). Eles também
simplória e padronizada desse material são performativos na medida em que
apresentado, mas se elementos de múlti- "inter-agem" com as formas em que, por
plas práticas são introduzidos então exemplo, os seres humanos temporaria-
objetos multivalenciados aparecem e de- mente "recortam" o mundo em seções
saparecem [n.t. valência em inglês pode para revelar (simultaneamente ocultando)
ser usado tanto para carga atômica detalhes sobre ele. Utilizando os exem-
quanto no sentido linguístico de possíveis plos de "onda" e "partícula", Barad argu-
argumentos de um predicado] , com a in- menta que nem mesmo refere-se a
certeza ontológica inerente manifestada. qualquer propriedade inerente da luz, ao
Esta, então, é a unidade geral a ser de- invés disso refere-se a diferentes conjun-
talhado neste artigo, que as coisas são tos de aparelhos que afetam diferentes
trazidos para existência, usadas, multipli- cortes para delinear o objeto medido –
cadas, e por isso são sempre de grande "em outras palavras, eles diferem em
atualidade, formalizada e política. suas resoluções locais materiais da inde-
terminação ontológica inerente" (Barad
DIFRAÇÃO 2003, 831).
A metodologia do projeto ecoa Inspirado por Barad, o arqueólogo
exegese de uma "ético-onto-epistemo- de mídias Jussi Parikka sugeriu que esta
logia" de Karen Barad em que a realidade sacada é uma "maneira muito boa e ma-
é considerada inerentemente indetermi- terialmente dinâmica para entender a on-
nada até que seja medida por alguns tologia das tecnologias da mídia" e os
"aparelhos", necessariamente co-consti- motivos de uma "nova teoria do disposi-
tuitivos ônticos, implicando exclusões, e tivo" dos meios de comunicação, e das
foraclusões do determinismo. Ao mesmo "Novas Artes da Midia" (Parikka 2009 ).
tempo, como qualquer ato de observação Tal abordagem ajudaria, sem
faz um "corte" que faz com que algumas dúvida, a expor o quanto as "Artes das
"coisas" estejam mais visíveis do que ou- Novas Mídias" operam sob a suposição
tras, então é sempre uma questão de sig- limitada que por se envolverem com os
nificado ético-político, como estes cortes elementos formais da sua prática, por e-
sempre necessariamente são lembretes xemplo - sobre os níveis de código e soft-
de um domínio paralelo e oculto do abjeto ware, hardware ou interface - de alguma
não-ser. Além disso, os materiais não são forma fazem com que uma espécie de en-
ontologicamente independentes das ma- gajamento político ou crítica seja validado
neiras pelas quais outras coisas os me- simplesmente porque as coisas são usa-
diam, mas nem a mediação por outra dos de maneira que não tenham a in-
entidade esgota explicações ou define de tenção de revelar os seus próprios
forma abrangente esse material. Por- parâmetros regulatórios. Não apenas
tanto, devemos assumir que qualquer im- estes recortes tornam invisíveis certos e-
perativo epistemológico para representar lementos do mundo, mas também al-
com precisão um objeto de estudo é fun- cançam para si próprios certos elementos
damentalmente falho (e circular). do mundo invisível, por apresentar a dis-
Neste sentido, "aparelhos" são tinção que opera como dada. O chamado
agencias no sentido de um "fazer" ou de Parikka para uma "nova teoria do dis-
197
positivo" parece particularmente perti- através de sucessivas descristalizações
nente quando essa recursão é vista como do digital, e ao fazê-lo muitas vezes imita
um recorte que pode distorcer fortemente esses processos perigosos empreendi-
a relação das "Artes das Novas Mídias" dos na recuperação de metais raros e
com sua materialidade. preciosos disponíveis aos despossuídos.
Uma resposta a tal chamada pode O projeto é proposto para expandir essas
ser encontrada em investigação prática intervenções mundiais através de experi-
do "Crystal World" em níveis subterrâ- mentação destinadas a gravar distorções
neos de cálculo de materialidade, como psicofísicas e contingências inesperadas
apresentado neste artigo, como a sua em ciclos cristalinos contemporâneos. Em
forte ressalva que deve, argumenta-se seguida, experimentos em torno dos
aqui, modular qualquer discussão teórica processos aleatórios e, portanto, a inde-
sobre, por exemplo, o potencial emanci- terminação formando um imperativo dis-
patório frequentemente assumido ine - tinto em jogo por trás do "Crystal World",
rente em vários níveis de abstração da realimenta a premissa de que os com-
placa de circuito. putadores e os minerais dos quais são
2) Uma pilha de placas-mãe de feitos podem ser considerados igual-
sucata pode apresentar algumas das mente cristalinos.
complexidades formais envolvidas que O "Crystal World" v.01 (CWv.01) foi
contém lógica computacional em mate- convocado como um laboratório aberto
riais através do arranjo, padronização e por seis dias com uma subsequente ex-
relação entre seus componentes con- posição de duas semanas de produtos de
hecidos. No entanto, nada demais é rev- laboratório e resíduos do procedimento.
elado sobre as matérias-primas, nem, por Uma chamada aberta para participantes
sua vez, sobre sua extração e produção, propôs uma série de explorações que
especialmente encarando as contra- ofereciam atividades, incluindo: precipi-
dições inerentes aos valores monetários, tação mineral, geologia sintética de altas
onde qualquer ideologia de porções de temperaturas e cristalografia indutiva, fos-
capital emancipatório instantaneamente silização antropocêntrica, criptografia de
estará relacionada com, por exemplo, as água cristalina, fotografia Kirlian1, cons-
cadeias muitas vezes ocultas de mão de trução de fulgurites com alta-voltagem,
obra barata utilizada na sua produção. difrações ódicas, e a ingestão de colóides2
O que se segue no restante deste para "conter a praga contemporânea".
artigo são descrições impressionistas da 3) Com a promessa de apresen-
prática onde "Crystal World" é modulada tação pública e performances, "com o
pela discussão em torno das duas ver- processo de laboratório para ser ex-
sões executadas: O "Crystal World"v.01, posto", os entrevistados ofereceram uma
com mais de seis dias em fevereiro de variedade de origens, e as investigações
2012 como parte do Clube Transmediale potenciais, que incluiu artistas plásticos,
New Media Festival , Berlim (CTM12); e artistas sonoros, novos artistas de mídia,
O "Crystal World" v.02 , realizado em Lon- um escritor, um fotógrafo, um neurocien-
dres, de 17 de julho até 01 de setembro tista, e um cientista da computação.
de 2012. Cinco quartos em Kunstraum Kreuzberg,
Bethanien e Berlim foram equipados e
O "CRYSTAL WORLD" V.01 vagamente designados para tipos es-
O "Crystal World" (“Mundo Cristali- pecíficos de atividade, incluindo limpeza
zado”) é posto em cheque ao trabalhar e análise, trabalho com altas tempera-
198
turas, química, construção, armazena- imagética de lixiviados e cristais de água
mento e exibição. contaminada foram feitas através da sua
A partir de várias pilhas de lixo de injeção no recipiente de filme de câmeras
computadores ("c-waste") e uma vitrine pinhole carregadas com pedaços de
de minérios brutos derivados de com- papel fotográfico, e congelado antes da
putadores, os participantes peneiraram exposição.
suas seleções. Muitas vezes imitando os No final do laboratório, um verni-
processos perigosos realizados na sua ssage de manifestações continuou com
extração industrializada, processamento breves discursos feitos pelos partici-
e disposição, intervenções e conjunções pantes para apresentar o projeto ao
dos participantes do laboratório tentaram público. Experimentos ao vivo incluíram
distorcer o valor desses circuitos lógicos uma bateria de terra feita com um balde
através da preparação de várias difrações de terra, chumbo e eletrodos de cobre,
dos seus materiais. com a adição lenta de ácido sulfúrico para
4) Assim, as experiências reali- aumentar a tensão e registrar diferenças
zadas incluíram: Cogumelos de ostra cul- não calibradas através de uma exposição
tivada em um substrato de componentes do laser difratado; construções de fulgu-
de um computador esmagado, galena, rita mais artificiais feitas descarregando
magnetita, terra local, e palha em um arcos de alta- tensão entre conjuntos de
projeto de micélios semicondutores; bio- circuitos integrados esmagados, silício
sintéticos que utilizam diferentes fossili- em pó e areia; as tentativas de produzir
zações lixiviados de computador e uma outra formação geológica sintética
soluções de silicato injetado no material detonando termite gambiarra ( faça-você-
celular eucariótica (a estrutura de todas mesmo) incorporado em um monte de
as células animais, incluindo o ser hu- lixo de computador e minérios; a soni-
mano); alta de calor várias experiências cação de uma variedade de resíduos de
metalúrgicas usando pequenos fornos e parede de cristalização; e, finalmente,
fornos de micro-ondas modificados, com três performances de ruído improvisado
as tentativas posteriores para incentivar o utilizando matrizes de minérios reconsti-
crescimento biológico sobre derreter tuídos, cristais e "resíduos c" (lixo
produtos de ferro-gusa e de silício sinter- eletrônico). A exposição de duas sem-
izado. Outras atividades envolvidas pre- anas então apresentou os restos de todas
cipitando matrizes cristalinas a partir de as demonstrações e experiências, equi-
soluções supersaturadas e saturados de pamentos de laboratório e produtos do
sulfato de alumínio, fosfato de mono- laboratório, deixados da maneira em que
amônio, sulfato ferroso, e seu sal, em foram encontrados para apreciação nas
conjunto com o cobre, o alumínio, ou de cinco salas, com cada quarto anotado
magnetite para posterior excitação in- com uma breve etiqueta para indicar os
cluindo processamento de sinal sonoro e tipos de atividades aconteceram lá (por
amplificação através de pirite e antenas exemplo "área de atividade com altas
de bigode de gato de galena[n.t. minério temperaturas", "área química").
de chumbo]. Um transformador de 4kV e
0.5A foi usado fazer fulguritos artificiais O CRYSTAL WORLD V.02
(vidro como estruturas feitas com as Na primavera de 2012 O projeto
descargas de alta tensão em misturas de "Crystal World" foi premiado com a
pó c-resíduosestá correto: c-resíduos? e residência de permacultura do estúdios
areia); e tentativas de ódico (força vital) SPACE. "London. 5) "CWv.02" foi pro-
199
posto pelo autor como um laboratório de sódio misturado em susceptância. 7) Pó
cinco dias, aberto com acesso público, de silício (a partir de areia de quartzo
um evento de salão, um evento de aber- quente vermelha e magnésio despejado
tura da exposição, e uma instalação-ex- com ácido clorídrico) foram misturados
posição de um mês, no novo local com um fluxo de óxido de boro, revertidos
SPACE, "O edifício branco" em Hackney novamente para os cadinhos e isolados
Wick, e imediatamente adjacente a even- com outro tijolo e lã cerâmica, antes de
tos nos Jogos Olímpicos de Londres 2012 embalar e fundir em forno de microondas
no principal estádio. por 45 minutos, até que, em mais de
A implicação de Londres no projeto 1410°C, formassem flocos de silício. 8)
foi incorporado em sua localização. Gra- Uma gusa3 também foi produzida a partir
ças a mordaz obra "The White Hotel" de de hematita crua em cerca de 1200 ° C,
Ballard, uma pausa estranha e ilusória da juntamente com outras pastas de quartzo,
selva cristalina, justaposição do excên- circuitos integrados, pratos do disco
trico do Edifício Branco ao lado do sofisti- rígido, e anéis de ferrite. Em seguida
cado complexo olímpico do interior foram despejadas diretamente sobre cha-
Hackney Wick Bow permitiu uma es- pas de aço ou em moldes, de maneira
cavação elaborada de máquinas com- que todos foram posteriormente utilizados
putacionais sobre elementos de um em eletro-cristalizações e sonificações4,
transformado substrato lama de Hackney, parte de um experimento "minerando no
o Grand Union Canal, e os restos de in- cadinho", ou como componentes de um
dustrialismo vitoriano de Hackney Wick. "Computador Terráqueo".
Depois de uma chamada aberta, Experimentos diversos – ener-
uma variada seleção de 12 colaboradores gizados por fontes de alimentação de
foram abastecidos com materiais pré- computador recicladas, jogava-se com
laboratoriais, incluindo o "v.01 Crystal 5 e 12 volts através sopas eletrolíticas
World Reader" e colaboraram de maneira de sulfatos, ácidos, água do canal e
diversa em várias experiências ao longo lama de Hackney Wick para provocar
dos cinco dias seguintes. acréscimos cristalinos e corrosão de
Arcos de plasma, descargas elet- resíduos sobre vários eletrodos deriva-
rostáticas colossais criados usando um dos de computadores incluindo cobre,
transformador faça você mesmo de 5 kV zinco e chumbo, ou em lápis de grafite,
e 3A feito de dois transformadores de fitas cassete, discos de goma-laca, e
forno de micro-ondas, foram elaboradas souvenirs das Olimpíadas. Outro trabalho
através de misturas do lodo e lama de promoveu a precipitação de soluções
Hackney, silício, magnetita, para formar mais saturadas e supersaturadas por
estruturas cristalinas frágeis, ou ao longo evaporação (por vezes acelerada pela
de trilhas de nitrato de prata, recuperadas adição de vasilhas pyrex contendo
do lixo de computadores, mais pedaços soluções em panelas de água ferven-
de madeira e tijolos de argila de Londres, do). Estes foram produzidos para mais
marcando-os com figuras de árvores ao excitação incluindo explorar efeitos
estilo Lichtenberg. piezoeléctricos dos cristais Rochelle,
Em experimentos de alta tempera- com atuadores de disco rígido, ou
tura, cadinhos faça-você-mesmo molda- cristalizados diretamente em diversos
dos em tijolos de forno para pizza em suportes, entre eles papel, tecidos, os-
forma de bolha de alumínio foram pinta- so, discos rígidos, fitas cassete, outros
dos com carboneto de silício e silicato de cristais e minerais.
200
Sinais sonoros foram feitos usando sobre uma pilha de memória do velho
uma versão bruta do circuito do cone a- servidor; um rendimento de cogumelos de
xonal - um circuito que capta o princípio ostra sobre um molho de palha e de
básico de funcionamento dos neurônios. micélio; ouro e cobre sortidos flutuaram
Sensores de cobre tipo bigode de gato filamentos sobre soluções verdes, com
foram colocados em contato com dife- um amarelo sujo misto com azul-celeste;
rentes minérios brutos, incluindo calcopir- um óxido enegrecido emaranhado fri-
itas, um sulfeto de cobre e ferro; piritas de tando um eletrodo de alumínio, outros de
ferro e limonita; e variações de sinal in- aspecto grafite ferrugem e dendrítica i-
cluíram dopar os minérios com soluções mersa em chorume. Perto de outro banho
de sulfato, ou o uso de ventiladores de eletrolítico, um G5 da Apple banhado em
computador para girar os minerais. Ou- ácido sulfúrico, lentamente recristalizando
tros processos sonoros incluíam o turn- seus metais de base lixiviados dentro de
tabling, em HDs, de discos de goma-laca outros cogumelos em forma de ostra.
e circuitos integrados sob bigodesdegato. Dois circuitos geradores de sinal
Em meio aos restos do aparato foram construídos e inseridos no lixo
laboratorial e dos seus produtos, a ex- computacional da instalação. Usando cal-
posição foi preparada: uma construção de copirita como um semicondutor, o pri-
Hackney Wick foi projetada e instalada: meiro era o circuito em forma de um
dois containers brancos de plástico trans- axônio protuberante com tubos de
parente cheios de água do Grand Union soluções minerais (nitrato de potássio,
Canal, um deles misturado com sulfato de cloreto de sódio e ácido cítrico) que subs-
cobre azul, o outro com ácido sulfúrico in- tituem as ligações dos fios. O segundo foi
color; foram dispostas pequenas bombas uma versão bastarda de um amplificador
em tubos transparentes com suprimento de cristal de Adams(1933) que usou três
líquido durante um mês, permeavelmente fios improvisados para fechar o contato
reciclados primeiro sobre uma pilha de com a calcopirita. Os circuitos terminados
minérios rochosos selecionados suspen- foram agrupadas e ligados à resíduos
sos em uma grade de aço, em seguida, computacionais através dos tubos para
tramados sobre um apanhado de peças então agir como sinal sonoro interrom-
de lixo eletrônico em outra grade, para pendo o fluxo de som da tubulação de
então seguirem à recaptação, de volta líquidos por baixo e ao redor da instalação.
aos containers. 9) Este ciclo de fluxos in- Tabelas utilizadas no laboratório
crementou a construção com locais de enquadrado nas paredes da sala, à es-
precipitação e dissolução, cripto-vege- querda penduricalhos com minerais,
tações pobres em nutrientes, e perfor- peças de computador, cacarecos, produ-
mances intempestivas de pontuação do tos experimentais, utensílios de vidro,
cone axonal. fornos de micro-ondas, um forno indus-
O mesmo sulfato e água do canal trial, cristalizações, moldes, misturas, tijo-
carregada de acidez seguia também para los, diagramas, pedaços de fita. No piso
seis containers de polietileno divididos em de pedra e madeira queimadas figurava
um sub-banho antes que ocorresse a per- uma salsicha eletrocutada com lama de
colação e a reciclagem de volta ao ciclo Hackney; desenhos cristalinos delicados
de alimentação do tanque-mãe. Combi- próximos estavam pregados em uma
nações de componentes e soluções áci- parede, e um tubo de papel de cristais, o
das foram deixados para gravar, agregar, resultado da ação de uma solução capilar,
aglutinar e descolorir: piritas de ferro marcando outro canto. Em uma outra
201
mesa estavam espalhados livros de refer- DISCUSSÃO:
ência para uso no projeto. O projeto executa distintas configu-
Em outro lado da sala, uma simu- rações de aparatos-de-material-humano
lação de "computador da terra"5 era tes- em uma variedade de configurações,
tada. Imitando o fluxo potencial de caracterizadas por tentativas de induzir
correntes telúricas com uma antena dipolo processos que ajudam a tornar explícitos
de cobre bruto, a simulação incorpora um os muitos tipos de materialidades e suas
recipiente de cerâmica porosa dentro de diferentes intra-ações que superam con-
lama / terra dragando do canal das prox- figurações que as formalizações tornam
imidades. Solução de nitrato de prata foi obscuras. Conscientes de que suas ativi-
utilizado como um eletrólito para reconfig- dades também pode ser usadas para
uração do cobre (dos dissipadores de consolidar capital, essas mise-en-scènes
calor), reconfiguração da ferrite (a partir de foram acusados de evitar o circuito ci-
filtros de energia) e zinco foram coloca- bernético recursivo de valorização7, onde
dos. Descrito como um "computador da os resultados se tornam insumos de
terra" e para ser enterrado no interior da acordo com um toda a lógica difusa de
terra em Hackney Wick, ao longo do feedback (n.t. de valorização destes sim-
tempo, prevê-se que ambos os fluxos bolismos numa cadeia de valores), com-
telúricos subterrâneas e minerais / água portamento que, sem dúvida, caracteriza
da chuva lixiviam através do solo podendo o capitalismo tardio (Seymour 2011 ).
re-formar esses componentes de base O projeto foi acusado de encerrar
para um funcionamento de "computador um infinidade de intra-ações para escapar
da terra"; uma máquina descrita como de algumas intervenções macroscópicas
sem fios, sem componentes e sem ab- clássicas utilizadas na inscrição do sim-
strações, operando por dentro terra e pro- bolismo computacional sobre os seus
pondo uma ecologia negativa. substratos de materiais, ainda que de
Minerais da terra em eletrocristali- repúdio quase-vitalista de quantificação
zações foram ainda examinadas em uma em que não há nenhuma sobrecodifi-
versão ancestral da obra (Crosse 1857). cação da matéria por algo retirado do
Colocado dentro de um grande pote éter a partir de um mundo material em
poroso de água do canal Grand Union, constante mudança. Atendendo a essas
soluções contemporâneas utilizadas na dinâmicas materiais, sugere-se, contornar
fabricação de processadores e reci- cristalizando em torno de uma lógica sin-
clagem (água régia, cloreto de prata gular ou uma necessidade de auto-
nítrico, carbonato de potássio) foram aterramento. A análise é que tal
vazando lentamente para fora através de auto-aterramento caracteriza a lógica do
seus sub-vasos com conectores ban- mundo da vida contemporâneo, e esta-
hados a ouro e circuitos integrados es- belece-se com sua própria força sobre-
magados, em uma ilha lamacenta no declarada, mas uma lógica que não deixa
vaso de limo de Hackney Wick, cachimbo de ser voluntarista precisamente por
de argila, areia extraterrestre de Rendle- causa da sua falta de aterramento em
sham6, e silício em pó, carregadas entre outra coisa senão em si mesma.
um eletrodo de banda cobre (+) ao redor O "fazer" ou "ser" da intra-ação
da panela, e wafers de silício (-) presos dentro das configurações do projeto su-
na lama, para provocar deformações de gere que uma distribuição maior e menos
qualquer semi-condutor natural emer- resoluta de indeterminações agenciais e
gente de dentro de suas profundezas. performativas estão sempre no trabalho
202
em qualquer nível de formalização. Isso re- AGRADECIMENTOS:
força a ideia de que qualquer teoria ou Muito obrigado a todas as institu-
prática que se baseia em torno das limi- ições de apoio: CTM12, SPACE e partic-
tações de abstrações particulares é ne- ipantes integrais para o projeto: Leon
cessariamente instrumentalista, assim Barnett; Sabrina Basten; Jenna Bliss;
como sempre vai trocar algumas coisas Fabianne Borges; Kat Borges; Felix de
por outras. O que fica de fora é toda uma Bousies; Heath Bunting; Katrin Caspar;
série de práticas materiais muito com- Stuart Childs; Amanda Couch; Jay
plexas que contribuem para um tipo de Cousins; Darsavini; Graham Dunning;
epidemia que não é apenas atribuído a, Richard Elliot; Pete Evans; Eve Fainke;
digamos, parâmetros de plataforma, nem Alejandro Fernandez; Diego Ferri; Fiona
aos tipos de coisas que as pessoas fazem. Flynn; Kathrin Günther; Derek Holzer;
Uma ressalva para o trabalho des- Brendan Howell; Hye Joo Jun; Ewa
crito é que, por mais incertezas materiais Justka; Kasia Justka; Joon Kim; Martin
que são reconhecidos ali, e no entanto Kuentz; Victor Mazon; Cinthia Mendonça;
ideologicamente eles aparecem (no que Anna Norlander; Mariko Ogawa; Lorah
diz respeito ao conceito de "polities" de Pierre; Marco Phillips; Andrea Marco
Jane Bennett), não foi executado como Ricci; Kate Rich; Adrian Scrivener; Mario
uma reivindicação de estar "represen- de Vega; Bruno Vianna; Anna Vo;
tando" estados ontologicamente indeter- Rachael Ward; Nihal Yesil.
minados onde há um "não determinado
fato da questão relativa à propriedade em
Notas:
1.https://pt.wikipedia.org/wiki/Fotografia_Kirlian
questão," nem tampouco para introduzir 2. https://en.wikipedia.org/wiki/Colloid
incerteza como apenas uma questão 3. https://pt.wikipedia.org/wiki/Gusa
4. Exploração da sonoridade dos procedimentos em
epistemológica - a falta de conhecimento performance musical.
(Barad 2007, 265). Em vez disso, e no 5. Ver o texto de Martim Howse nesta mesma coletânea.
6.
que diz respeito ao chamado de Jussi https://en.wikipedia.org/wiki/Rendlesham_Forest_incident
Parrika, o argumento ensaiado é que 7. De seus simbolismos.

qualquer "nova teoria do dispositivo" pu-


tativo de NMA ("New Media Arts" - Artes
das Novas Mídias) precisa não apenas
tentar atender algo muito particular levado
em conta por seus sujeitos, mas também
renunciar solenemente apelos de qual-
quer nível específico de abstração. É
quando este "levar em conta (o subje-
tivo)" faz o corte metodológico do hori-
zonte afetivo da teoria elegante para
estender sua inclusão constitutiva para
coisas como lama, minas, metalurgia e
minerais, que faz a mudança para uma
relação mais performativa com a estética,
epistemologia e indeterminação.

203
Cristal World.
Foto: Jonathan Kemp.
PARA REFLETIR O CONHECIMENTO
LIVRE E PROPRIETÁRIO:
DO CÓDIGO ÀS SEMENTES
Isaac Ferreira Filho e
Juliana de Moraes

Este ensaio é um conjunto de patentes, negando a existência dessa


ideias surgidas em conversas sobre como liberdade ou do rompimento das fronteiras.
alguns movimentos que reivindicam direi- De um modo geral, a técnica pode
tos à liberdade do conhecimento con- ser definida como um projeto material,
vergem em diversos pontos mas não se sócio-histórico projetado naquilo que a so-
conhecem, apesar de haver alguns pe- ciedade tenciona fazer com as coisas e
quenos focos de integração entre as com as pessoas. Nesse sentido, o acú-
frentes aqui abordadas. Os pontos con- mulo do conhecimento gerado por pes-
vergentes apresentados são oriundos de soas trabalhando livremente, deveria
dois movimentos: software livre e se- conduzir à emancipação humana e ao en-
mentes livre. Ambos enfrentam um ini- riquecimento da vida diária. No entanto, a
migo comum: o domínio proprietário das intelectualização e a racionalização cres-
tecnologias. centes não equivalem a um conhecimento
Os investimentos científicos e tec- geral acerca das condições em que vive-
nológicos das últimas décadas, têm sido mos. A ciência e a tecnologia são as for-
caracterizados pela terceira revolução in- mas de dominação política dentro do
dustrial, denominada de globalização. A desenvolvimento capitalista, pois introduz
globalização, ou mundialização, implicou o seu caráter explorador e opressor, tor-
entre outros fatores na modificação do nando-o racional. A racionalização cientí-
tempo e espaço e das racionalidades da fica tornou-se o único caminho possível de
sociedade. Na tentativa de homogeneizar conhecimento e domínio da natureza,
as culturas hegemônicas, autores como além do entendimento da realidade, como
Giddens (1995) analisam a globalização reflexo natural da inevitabilidade das in-
como a tentativa de aproximar o local e o venções tecnológicas. A tecnologia tor-
global, uma vez que as mudanças tec- nou-se então, um instrumento de controle
nológicas seriam acompanhadas pela su- e dominação, e essa racionalização é
peração das fronteiras nacionais e pela uma forma de dominação política, uma
livre circulação de mercadorias. Em con- vez que a institucionalização do progresso
trapartida, apesar do discurso da livre cir- científico e técnico diz respeito aos intere-
culação, o mesmo autor explica que os sses de grandes corporações multina-
países criaram novas barreiras e condicio- cionais, combinados à expansão do
nantes que tem impedido a entrada e mercado capitalista. O imaginário de um
saída de produtos, ou a criação de mundo sem fronteiras é, ainda, alimen-

205
tado pela adesão massiva às tecnologias camponesa. O monopólio das técnicas de
de informação e comunicação, com des- reprodução de sementes destrói as
taque a internet. práticas históricas tradicionais do campe-
A biotecnologia serve de instru- sinato. Ao produzir suas próprias se-
mento para ampliar essa dominação mentes, os agricultores utilizam os
através do monopólio do conhecimento. recursos endógenos à sua terra, o que
A introdução de novas biotecnologias da lhe permite certa autonomia em relação
engenharia genética na produção agro- às empresas fornecedoras de insumos
pecuária representa o aprofundamento agrícolas. A adesão dos agricultores a
de um sistema de modernização da agri- essas tecnologias se dá entre outros fa-
cultura conhecido como Revolução tores ao histórico modelo difusionista das
Verde, o qual culminou na defesa in- EMATERs1 no período da Revolução
condicional da liberação da transgenia. O Verde, agressividade de marketing das
marco institucional desta instrumentação empresas de biotecnologia, garantia de
foi entre os anos de 2003 e 2004 quando preço e mercado, agilidade e facilidade
o governo federal liberou, em escala co- no manejo das lavouras e no combate às
mercial, os organismos geneticamente pragas, além do aumento na produtivi-
modificados (OGMs), mais especifica- dade. O “milagre” das novas sementes
mente variedades de soja, algodão e tem sido comunicado pela sigla VAR
milho resistentes ao herbicida glifosato, (Variedade de Alto Rendimento), crucial
todos produtos de patente da empresa no paradigma da Revolução Verde. Os
Monsanto. A aprovação da lei de Biosse- sistemas tradicionais de cultivo deman-
gurança (lei n 11.105, de 24 de março de dam uma interação sistêmica entre solo,
2005), ampliou as possibilidades de pro- água, recursos genéticos das plantas e
dução comercial dos OGMs, ainda em animais domésticos. Na agricultura que
vigor pela Comissão Técnica Nacional de chamaremos aqui de proprietária, substi-
Biossegurança CTNbio, desde a sua cria- tui essa relação pela incorporação de in-
ção em 2005. Assim, o mercado de pro- sumos como as sementes modificadas e
dução agrícola, especialmente o domínio os produtos químicos, estabelecendo
sobre a produção e comercialização de uma interação particular e reducionista
sementes estão altamente concentrados entre o sistema de água, solo e planta.
nas mãos das corporações. A lucratividade no uso da tecnolo-
De Acordo com Sauer (2010) já gia de ponta está justamente no domínio
no final da década de 1990, a Cargill, a e proteção do conhecimento obtido. Essa
ASM e a Bunge respondiam por mais de proteção se dá pela lógica legal, ou seja,
60% da comercialização mundial de soja é legitimada pelas leis de propriedade in-
e derivados. Ainda, todas as pesquisas de telectual e cultivares, mas também pelo
OGMs concentradas pela Monsanto, monopólio do conhecimento e eliminação
processos esses que vem crescendo até da concorrência. Esse monopólio do co-
então. A Monsanto produz sementes es- nhecimento não só desencadeia a perda
téreis o que obriga o agricultor a depen- da autonomia dos agricultores como tam-
der da sua oferta para manter o cultivo, e bém significa a destruição da segurança e
o impede de manter a prática secular de soberania alimentar por parte dos con-
guardar sementes. sumidores. Por isso, Shiva (2003) pon-
O aumento do poder das empresas dera que:
significa redução e destruição completa
da racionalidade da agricultura de base
206
a democratização do saber transfor- como o aquecimento de discussões sobre
mou-se num pré-requisito essencial a propriedade intelectual. Lembremos que
para a liberação humana porque o o software, assim como as sementes,
sistema de saber contemporâneo nasceu livre. Era comum programadores
exclui o humano por sua própria es- compartilharem seus códigos-fontes (seus
trutura. Um processo desse tipo de conhecimentos) para a criação de novos
democratização envolveria uma tal programas, evitando-se então “reinventar
redefinição do saber que o local e o a roda”, acumulando e compartilhando
diversificado viria a ser considerado conhecimento. Empresas e indivíduos
legítimo e visto como um saber in- (que na atualidade são donos de corpo-
dispensável porque a concretude é rações) lançaram-se em manifestos a
a realidade, a globalização e a uni- favor da propriedade intelectual. Segundo
versalização são meras abstrações eles, esse tipo de propriedade deveria ser
que violam o concreto, e por con- protegida e mercantilizada, gerando ga-
seguinte, o real. (p. 81) nhos e – principalmente – aquecendo um
mercado de busca de inovações tec-
Como forma de luta pela demo- nológicas. O software livre surge como
cratização do saber em detrimento do uma alternativa à prática de dominação
monopólio do conhecimento a Agroecolo- através dos programas de computador e
gia vem sendo a estratégia mais incorpo- uma espécie de retorno às práticas de de-
rada pelos movimentos sociais. Além de senvolvimento de software.
se tratar de um conjunto de modelos de Uma grande deficiência que há nos
agriculturas sustentáveis, é um movi- movimentos sociais é falta de diálogo
mento social de combate à agricultura entre si e o entendimento da pluralidade
proprietária e recentemente foi incorpo- em torno de um comum: a emancipação
rada como modelo científico interdiscipli- humana. Uma miopia está presente em
nar. Nesse contexto, foi criada em 2012, uma boa parcela do movimento do soft-
no Vale Sagrado dos Incas no Peru, uma ware livre2 que não consegue enxergar
rede para a defesa das sementes livres no além dos detalhes técnicos dos progra-
continente americano. Representantes de mas de computador. Todo questiona-
organizações camponesas, educacionais, mento e prática em torno do “faça você
coletivos autônomos e diversos outros mesmo”3 limita-se ao mero uso da ferra-
movimentos estavam presentes às re- menta X ou Y, ou ainda na participação de
uniões de formação da rede. Em âmbito um seleto grupo detentor de um certo
nacional, foi criada em 2002, a ANA – Ar- conhecimento específico. Alguns indiví-
ticulação Nacional de Agroecologia, onde duos, grupos e instituições afirmam que o
movimentos sociais articulam-se em de- mundo está passando por uma nova re-
fesa do saber local e das sementes livres. volução industrial, a revolução maker.
Ainda, representada pela ABA – Associ- Nela os indivíduos produzirão sua própria
ação Brasileira de Agroecologia, criada tecnologia através da prática do “faça
em 2007, reúnem-se profissionais e estu- você mesmo”. O ensaio desta revolução
dantes das mais diversas áreas do conhe- se dá por práticas com o hardware livre,
cimento trabalhando na construção do que envolve controladores lógicos, mo-
conhecimento agroecológico e em análises tores, cabos, sensores, placas e etc pro-
e proposições de políticas públicas. duzidos por trabalhadores precarizados
O nascimento do software livre em países com – para não dizer sem –
também trouxe importantes contribuições direitos trabalhistas maleáveis (termo
207
usado pelo mercado). Além das relações movimentos emancipatórios. A nossa pro-
trabalhistas esses países são conhecidos posta é trazer uma discussão maior no
pelos altos índices de poluição. Talvez campo das possibilidades entre as parce-
esta revolução esteja prevista pelo mer- rias que podem ser feitas com a apro-
cado que fará esforço para produzir in- priação crítica de tecnologias livres como
sumos mais que suficientes para alternativa ao sistema posto, pois este
alimentar as produções individuais. sistema, nas palavras de Vandana Shiva
Em um desabafo nas redes sociais (2003):
um desenvolvedor4 de software livre la-
menta que sua palestra, que falaria sobre além de tornar o saber local in-
desenvolvimento de ferramentas e pa- visível ao declarar que (…) não é
drões livres para pesquisa, coleta e trata- legítimo, o sistema dominante tam-
mento de dados do bioma brasileiro, não bém faz as alternativas desapare-
foi aceita no FISL – Fórum Internacional cerem, apagando ou destruindo a
de Software Livre de 2014, e que outras realidade que elas tentam repre-
palestras de empresas como a Globo.com sentar (...). O saber dominante (…)
e o Facebook tiveram o espaço no evento. destrói as próprias condições para
Este caso ilustra um pouco da falta do existência de alternativas, de forma
diálogo da militância com outras vertentes muito semelhante à introdução de
e áreas do conhecimento, assim como a monoculturas, que destroem as pró-
adoção do software livre como um mero prias condições de existências de
modelo de negócio. Através desta reali- diversas espécies (p. 25)
dade muitos militantes estão adotando
uma visão sistêmica onde o software livre Portanto, é preciso descobrir o
torna-se um instrumento, importante, mas que existe no código dos nossos sistemas
apenas uma instrumento que lhes propi- operacionais mas é preciso também, fun-
cia suporte em propósitos mais plurais e damental até, saber o que existe no
interdisciplinares, migrando para outras processo da chegada do alimento até as
vertentes como mídias livres, saber popu- nossas mesas.
lar, ciência aberta e meio ambiente.
Uma destas iniciativas é a Casa das
Sementes Livres, idealizada pela Escola da Notas:
Mata Atlântica. A iniciativa busca fomentar 1. As Empresas Brasileiras de Assistência Técnica
o diálogo entre agricultores, ambientalistas, e Extensão Rural, criadas por volta da década de 70,
eram responsáveis em disseminar, o conhecimento
hackers, educadores. Promovem o resgate técnico mecanicista da produção moderna, em
à autonomia de produção de um banco de substituição das formas empíricas de produção, em prol

sementes livres (também conhecidas como


da modernização do campo. Os chamados pacotes
tecnológicos da revolução verde foram as ferramentas
crioulas, ou caipiras), além de dispor de um de substituição da racionalidade camponesa de uso
telecentro comunitário e uma rádio livre. de recursos internos pela racionalidade da agricultura
moderna e dependência aos pacotes tecnológicos.
Mesmo com iniciativas como as da Se- 2. Conceituamos movimento do software livre como
mentes Livres, é preciso superar a miopia um conjunto de coletivos, indivíduos e instituições que
trabalham na perspectiva das tecnologias livres,
da boa parte dos desenvolvedores para ética hacker e etc.
haver uma maior adesão em outras frentes 3. Do inglês “do it yourself”(DIY), prática de produzir

de emancipação.
ou reparar sem depender de empresas ou indivíduos
especializados.
Como mencionado acima, este 4. Apesar de o desabafo ter sido postado como “público”,
texto é apenas um apanhado inicial de preferimos não revelar a identidade do autor por não
termos o avisado que seria publicado fora da rede
ideias sobre práticas livres no que tangem de origem.

208
O ÉTER
E SEU DUPLO
Martin Howse

“Você sustenta que o tempo é


completamente distorcido,
Que mesmo a luz está dobrada:

A trajetória, esse caminho de luz


Eu acho que pegarei essa ideia

dobrada, pode ser colocado sob o signo


mais lá adiante,

do éter; a história de uma relação com a


Se é que é isso que você quis dizer

substância e para o mundo que pode ser


(neste instante):

chamado de ciência, ou linguagem; uma


A correspondência que o

questão de emergência de modelos, e de


carteiro vem hoje entregar,

abstração.
Amanhã será enviada.” 1

Esta é a uma citação de abertura É uma história do menos miste-


virtuosa, aspas que marcam a entrada de rioso, da ação diária à distância, de
dois personagens-chave no nosso jocoso atração e repulsão, de linhas de força,
elenco etéreo, e a compreensão de múlti- dentro de fenômenos denominados como
plas trajetórias que este breve ensaio ex- gravidade, eletricidade e magnetismo.
plora. De maneira vertiginosa, o Dr. WH
Williams adota um importante traço es- "... que estas almas de partículas
tilístico do autor que o inspirou - Lewis materiais são dotados de um co-
Carroll (Charles Dodgson) - para parodiar nhecimento verdadeiramente divino,
seu poema "nonsense": "A Morsa e o para que eles possam conhecer
Carpinteiro".2 sem qualquer meio aquilo que
Esta paródia da paródia pode ser acontece em distâncias bem gran-
contextualizada como um tributo a Sir des e agir em conformidade." 3
Arthur Stanley Eddington, na véspera da
sua saída da UC Berkeley em 1924. O tí- A ideia do éter é transformada a
tulo faz também evidente referência a partir de uma noção vaga que poderia
Einstein, com Eddington observado his- levar em conta todos os fenômenos, den-
toricamente como um dos principais con- tro de seu meio (o éter luminífero) e refe-
tribuintes para o conceito de relatividade. rência universal para a propagação da luz
Por um lado, uma trajetória histórica é (como a onda onipresente, como o que
marcada, uma história da ciência moder- está fazendo a ondulação), e, finalmente,
na, com referência a duas figuras-chave, a analogia pura, para esvaziar o espaço
e um conjunto de teorias que tem raízes e tempo, apenas um marcador. O éter
muito claras no trabalho de James Clerk desmorona, ironicamente, como aquilo
Maxwell; por outro lado, uma peça com o que é invisível para observação experi-
tempo e o espaço é sinalizada, dentro de mental4, e como simplesmente desneces-
um reino precisamente da mensagem, sário dentro de teorias da relatividade
das informações. após Einstein.

209
O ÉTER É EXTIRPADO Dentro desta mudança refrativa de
PELA NAVALHA DE OCCAM “composição”7, James Clerk Maxwell o-
cupa uma posição-chave em que seu tra-
"Éteres foram inventados para os balho abraça mudanças radicais na
planetas nadarem dentro, para analogia e metodologia científicas; uma
constituir a rede fluvial de atmos- mudança a partir da construção de, ainda
feras elétricas e magnéticas, para que bastante mentais de modelos mecâ-
transmitir sensações de uma parte nicos para uma "abstrata, formal e
do nosso corpo para outros, e matemática modelagem por equações
assim por diante, até que todo o diferenciais"8.
espaço foi preenchido três ou qua- Em termos simples do biógrafo
tro vezes com éteres... A único éter Martin Goldman, "Sua teoria foi nova e to-
que sobreviveu é o que foi inven- talmente perturbadora, na qual ele falou
tado por Huygens para explicar a de ondas, mas não importou-se com o
propagação da luz." 5 que estava fazendo as ondulações."9
Era exatamente o tipo de teoria
Esta transformação da ideia do que, portanto, perturbava seu colega
éter, e de uma transformação paralela da William Thomson (Lord Kelvin):
ciência e da tecnologia como uma "ar-
mação" ou "composição" (como na tra- "Eu nunca me satisfiz até que eu
dução do conceito de "Ge-stell" após pudesse fazer um modelo mecânico
Heidegger), pode ser facilmente rastreada da coisa. Se eu posso fazer um
na obra literária e experimental de Huy- modelo mecânico, eu posso enten-
gens, Newton e Descartes através de que der ... e é por isso que eu não posso
Maxwell, Thomson, Faraday, Michaelson, começar a teoria eletromagnética da
Morley, Lodge e mais tarde para Einstein luz." 10
e Eddington, vão chegando assim:
O meio de descrição é transfor-
"Recapitulando, podemos dizer que mado a partir do particular ou corpuscu-
de acordo com a teoria geral da re- lar, através da mecânica, por dentro das
latividade espaço é dotado de matemáticas formais, informações, um
qualidades físicas; neste sentido, software finalmente, que detém tal (pa-
portanto, existe um éter. De acordo cote quântico de) (in)certeza de como
com a teoria geral da relatividade aquilo é, um software que é o éter, como
espaço sem éter é impensável; que permitindo-se tanto para marcação
para tal espaço não só não haveria quanto que para medição. E essa história
propagação da luz, mas também é legível e não apenas na ciência (ou
não há possibilidade de existência ficção cientifica), mas igualmente na pai-
de padrões de espaço e tempo sagem ambígua entre atividade tecnoló-
(réguas e relógios), nem, por con- gica e militar; uma chegada na história de
seguinte, quaisquer intervalos es- um laboratório planetário.11
paço-tempo no sentido físico. Mas Pois, afinal:
este éter não pode ser considerado
como dotado com a característica "... O éter é pouco mais que um
dos meios ponderáveis, como con- caso nominativo do verbo ondu-
sistindo de partes que podem ser lar..." 12
rastreadas através do tempo." 6
210
Sob tal desatada analogia, a ciên- científico cotidiano relacionado exata-
cia torna-se uma questão de abstração mente com a violação da localidade es-
puramente funcional, pouco carinhosa paço-temporal qual Maxwell, sob o signo
para responder à pergunta infantil e mara- do éter e no contexto da unificação de
vilhada do que exatamente está fazendo eletricidade, magnetismo e luz, e mais
a ondulação. tarde Einstein, se encrencaram. Uma
E ainda para pensar o contrário, é linha clara nos guia para o lado espectral
que não há algum tipo de confusão entre da mecânica quântica, a "ação fantas-
o mapa e seu território famoso, a respeito magórica à distância" de entrelaçamento
destes modelos premonitórios (da ciên- quântico, uma ciência futura da incerteza.
cia) que não professam fazer outra coisa Por meio de uma relação muito es-
senão manter a paródia da citação que pecífica ao "fazer sentido", o fragmento de
abre este ensaio, existindo apenas den- William de um poema nonsense obs-
tro de uma terra de personagens de faz curece sua ciência contemporânea e
de conta "sem profundidade."13 zomba de uma ciência do futuro, essa
A história do éter como um fenô- mensagem que ainda não foi enviada,
meno literário, como um pensamento mas que já chegou. A porta está aberta
sobre o mundo é, portanto, exatamente a para todos os tipos de ghost-writers, mon-
viagem desde o subterrâneo através do tando esta tempestade eletromagnética
espelho, para o incorpóreo duplo (de (EM), uma TEMPESTADE tardia, a de-
Alice); um circuito fechado de espe- bater um planetário, deslizando pelo éter.15
lhamento de construção científica e Precisamente o que está empe-
construtivismo, descrevendo o mundo e nhado neste jogo de tempo e espaço,
tornando o mundo como ele é e será: este índice de refração luz dobrada, é
uma questão de substância, da materiali-
"Em um campanário comum, cada dade, do que é isto, em relação aos fan-
sino tem uma corda que desce tasmas, e em relação ao futuro.
através de um buraco no chão do Isto parece a princípio como uma
quarto do tocador de sino. Mas questão para a ciência, para a física, uma
suponhamos que cada um dos pergunta enjambrada em metafísica, um
cabos, em vez de atuar sobre um quase modismo de parapsicologia, e uma
sino, contribui para o movimento ontologia fantasmagórica sombria; EM
de muitas peças de maquinário, e (eletromagnetismo) como racionalismo
que o movimento de cada peça é espectral, como uma onírica (Descartes)
determinada não pelo movimento sinalização do endofísico.16 E é assim que
de uma corda só, mas por várias, nós sempre só poderemos falar de fenô-
e suponhamos ainda, que toda menos EM, se entendemos o quão difícil
esta maquinaria é silenciosa e to- é usar esses termos emprestados, sem-
talmente desconhecida para o to- pre tarde demais.
cador de sinos, que só pode ver, No entanto, nenhuma surpresa
tanto quanto os buracos no piso nisso, mais uma vez, a porta (sempre) es-
acima dele permitem." 14 teve aberta.
Ciência Jabberwocky17 já tinha re-
REVERSÃO conhecido seus próprios fantasmas fu-
A correspondência chega antes de turos da incerteza. A história ambígua e
ser enviada (no futuro); a citada paródia espectral da ciência vitoriana, assom-
de Eddington é um exemplo de humor brado tanto por um meio de refracção, o
211
éter, quanto por seu irmão gêmeo, pura edição inicial de Scientific American
abstração, é fácil de contar nestes termos. (1921) é reconhecido como um precursor
Figuras notáveis neste caso, com da prática moderna de EVP (fenômeno
excelente pedigree no gênero literário do de voz eletrônica) e ITC (Transcomuni-
fato científico, incluem William Crookes18 cação instrumental), ampliando e esten-
e Oliver Lodge, na cobertura de uma dendo o fantasmagórico EM, ou etéreo,
sintonia etérea no sinal com uma trans- linhagem. Metodologias EVP e dicas es-
missão de um programa pontuando, o tra- pecializadas em uma prática éter, que
balho de Tesla (um ano antes) e Marconi oferece um outro lado mais próximo da
(um ano após).19 era do rádio; um barulho etéreo que não
Ao mesmo tempo Lodge aparece é nem a transmissão, nem recepção, mas
como um espiritualista notável, investi- que, em vez disso permanece na
gador dos fenômenos psíquicos e colega (nublada) intersecção da definição destes
de Sir Arthur Conan Doyle no famoso dois termos. EVP ou ITC pode também
SPR (Sociedade de Pesquisas Psíqui- ser visto como um moderno aparelho tec-
cas). O físico Lord Rayleigh, o sucessor nológico tanto para o espiritualismo, como
de Maxwell como chefe dos Laboratórios para o ruído branco (Ressonância Es-
Cavendish em Cambridge figuraria como tocástica21) impulsionada pela tecnologia
presidente da SPR tempos depois. O e gravação como apoio ou "mídia" (para
sinal ou assinatura para o tema da rever- mensagens do além ou do agora), e um
são é fornecido pelo teste de identidade fenômeno de codificação e decodificação,
póstumo de Lodge: uma série de en- de TEMPESTADE e criptografia.
velopes lacrados (depositados junto ao Os termos de comunicação de
SPR) com instruções que poderiam ser sinal e ruído são assim chamados em
usados para corroborar mensagens ao uma relação diferente sob a famosa (teo-
(futuro) espírito do próprio Lodge. ria da) Ressonância Estocástica EVP /
E como matemático Augustus de ITC – ruído branco; a um nível mi-
Morgan (outro fantasma, desta vez as- croscópico, o ruído térmico interno de um
sombrando o futuro lógico de computa- circuito físico (uma cidade) ou fenômenos
dores) é citado em uma introdução ao naturais eléctricos na atmosfera – ambos
trabalho de Crookes sobre espiritismo: rodeados por rádio. O ruído branco por
vezes destaca um sinal (voz) outrora in-
"Estou perfeitamente convencido audito, e torna-o evidente.
de que eu tendo visto e ouvido coi- EVP e fenômenos associados
sa que se torna impossível a des- (prova de vida após a morte) proliferam
crença, coisas espirituais que não como prática e como anedota em toda a
podem ser tomadas por um ser Internet global – técnicas compartilhados
racional capaz de explicação por e suporte histórico. A história é traçada
impostura, coincidência ou erro ... através de figuras brilhantes, como o
As explicações físicas que tenho sueco Friedrich Jurgenson que notou pela
visto são fáceis, mas miseravel- primeira vez essas vozes durante as
mente insuficientes. A hipótese gravações do canto dos pássaros,
espiritual é suficiente, mas pesa- atraindo a atenção de Konstantin Raudive
damente difícil." 20 (Letónia) no final dos anos 1950 e 6022.
Hans Bender e Hans Otto Koenig
Finalmente, o aparelho imaginário fazem uma aparição numa TV experi-
ou paródico de Edson, esboçado em uma mental no início dos anos 80 em que
212
uma voz claramente ouvida a dizer: "... Ela deve ser enviada como uma
"Otto Koenig faz comunicação sem fio mensagem por telégrafo ..." 23
com os mortos."
As vozes espirituais (tendem), A mensagem (adiantada) torna-se
assim, a tornar-se vozes de uma dimen- mais fácil de descodificar, por dentro das
são paralela, um mundo através do es- vindouras ciências paranoicas de (outra)
pelho. Além disso, e de acordo com a criptografia. Tal jogo conceptual antecede
nova presença de tais mensagens nas mí- a citação de abertura deste ensaio por
dias de armazenamento magnético do mais de 50 anos, igualmente adivinhando
computador, no monitor CRT ou im- os termos posteriores do teletransporte
pressão de logs (mesmo negando o soft- quântico; Alice não é apenas o desti-
ware como mídia), as mensagens podem natário de uma mensagem no estilo de
ser vistas como originárias de um "arquivo um cabeçalho de criptografia tradicional,
de dados universal," unindo também os mas a mensagem em si mesma.
mortos por dentro dessa acumulação. E a No entanto, a seta de atribuição
possibilidade de um futuro – um retorno ainda está firmemente inclinada para di-
aos tabuleiros de adivinhação com o cére- reção correta; texto científico que torna-
bro como "interface", ou intermediário. Os se igualmente uma (auto) paródia. De
termos simples do computador assom- acordo com Martin Gardner, Eddington
brado nos permitem ver que tudo isso é era um grande fã do poema Jabberwocky
puramente uma questão de interface (no- de Carroll, mesmo indo tão longe a ponto
vamente após a endofísica). de comparar certos aspectos do discurso
Contudo, o que também é eviden- científico com o poema:
ciado na citação de abertura é, que den-
tro do contexto de uma inversão de causa “Na natureza do mundo físico ele
e efeito, de original e cópia ou paródia, aponta que a descrição que o físico
que não só Carroll serve como modelo faz de uma partícula elementar é
estilístico, ao mesmo tempo é marco con- realmente uma espécie de Jabber-
ceitual pré-datando uma ciência "assus- wocky; palavras aplicadas a ‘algo
tadora" e cheia de (in) certezas onde desconhecido’ que está fazendo
podemos citar como Jabberwocky. Tem- ‘sabe lá o quê’” 24
poral, linguística, causal e suas inversões
espaciais, para categorizar só um pouco, TEMPESTADE:
assombram o mundo "Através do Es- O QUE CODIFICA AQUILO QUE É
pelho" de Alice, como, por exemplo, e de
forma paranoica, a punição anterior ao "Toda vez que uma máquina é
julgamento, e, finalmente, o crime vindo usada para processar informações
por último. Dentro da cosmologia que classificadas eletricamente, os vá-
move peças de xadrez da aventura rios interruptores, contatos, relés e
"Através do Espelho", durante uma via- outros componentes em que a
gem de comboio em que Alice é obser- máquina pode emitir frequências
vada por todos os tipos de dispositivos, e de rádio ou energia acústica.
julgada como "viajando pelo caminho er- ...A este problema de radiação
rado", um simples jogo de palavras con- comprometida que temos dado o
ceitual, com a cabeça como gíria Victorian epíteto de TEMPESTADE." 25
para selo postal, permite a aparentemente
fortuita conclusão seguinte:
213
Nesta alegórica história dupla, os lógica do sentido e linguagem que resulta
fenômenos sempre já codificados da na formação de uma (rádio) novela de de-
TEMPESTADE fornecem uma entrada tecção de código exemplificado por
fácil para (teorias de) paranoia e conspir- "Cidades da Noite Vermelha" de William
ação em uma relação existencial essen- S. Burroughs.26
cial para o assunto, que fornece uma Tanto esta nova forma de literatura
lente decente para observar uma (con- endofísica, quanto um retorno a Edding-
temporânea) paisagem paralela de mo- ton, novamente por meio da citação de
dulação e desmodulação, todo tipo de abertura, faz-se claro aqui:
coerência e detecção emprestado de ter-
mos técnicos retirados da era do rádio. "Nossa conta do mundo externo
De um lado de um espelho de (quando expurgado das invenções
sinal/ruído, estando entre aqueles sem- do contador de histórias da nossa
pre comprometidos, e prenunciando a consciência) deve, necessariamen-
nossa mensagem suspeita de encerra- te, ser um" Jabberwocky "de atores
mento, TEMPESTADE é precisamente desconhecidos executando ações
um codinome referindo-se à "investigação desconhecidas... Devemos buscar
e estudo das emanações comprometedo- um conhecimento que não é nem
ras" com os últimos termos definidos de atores, nem de ações, mas do
como "Dados de relação não intencional qual os atores e ações são um
ou sinais de inteligência maquiada que, veículo. O conhecimento que é pos-
se interceptados e analisados, podem sível adquirir é o conhecimento de
dispor de informação sendo transmitida, uma estrutura ou padrão contido
recebida, manipulada e de alguma forma nas ações". 27
filtrada por algum equipamento de pro-
cessamento informacional "de acordo LUZ
com a informação do Manual de Segu- Luz, se é que podemos falar em
rança da Informação Automatizada da termos tão simples, é chave; projetada
NASA [1993]. TEMPEST refere-se tam- pelas equações de Maxwell, impondo
bém ao controle de tais comprometedo- uma referência clara, como a informação
ras (mesmo etéreas ou ectoplásmicas) clara (portadora) como um esclareci-
emanações, dentro da recursão mento, igualmente como um termo den-
cabeçuda de sua própria sigla inde- tro de uma dualidade gnóstica, a luz e as
cifrável, com estes fatos relativos ao título trevas em par, o teatro e a praga. Este
sugerindo um estado militar ideal de sigi- índice de refração avança um duplo igual
lo, de contenção. TEMPESTADE é assim de sinal e ruído, uma pergunta ousada
exatamente um codinome para o que é sobre a intencionalidade da própria trans-
sempre codificado com antecedência – a missão, a criação de significado de qual-
mensagem depois de gnosticismo. quer sinal que subscreve o estudo de
TEMPESTADE, como uma forma fenômenos eletromagnéticos contem-
paranoica de construir sentido, torna-se porâneos.
parte da equação invertida de men- Já há (dentro das equações de
sagem-tempo, o que é sempre algo ainda TEMPESTADE) uma relação com a para-
a ser enviado para chegar somente noia, a entrada da luz rosa de Philip K.
agora, puramente como um fenômeno Dick - as modulações de VALIS ("Sistema
literário, algum tipo de gênero confuso de Inteligência Ativa e Vasta"[n.t.] ) trans-
entre ficção de detetive e um jogo com a mitidos dentro desta propagação eletro-
214
magnética; modulações que ele clamava A tão chamada dualidade (entre
anteriormente terem sido produzidas por onda e partícula) nos termos de ciência
um experimento de controle mental So- descreve um mundo que se realiza ou en-
viético e mais tarde apropriado pelo sis- quadrada em (in) certeza - o colapso da
tema benevolente que orbitava a Terra. função de onda como a descrição de um
Igualmente paranoico é o trabalho saber é exatamente descriptografia den-
de Thomas Pynchon, o dia e a luz dentro tro dos termos da TEMPESTADE; de
do "Contra o Dia". Vindo à luz, revelação, Maxwell para muitos mundos.29
exposição, uma transparência ou trazer Ainda dentro do barulho que sus-
visibilidade por este "Espato da Is- tenta que não há nada fora o sonho, qual
lândia"[n.t.], cristalino que serve como diz que “o nome da canção é ‘Olhos de
uma dobra, - a decomposição da luz em Haddock’”30, mas onde “o nome na ver-
dois raios (as ordinárias e as extra- dade é ‘O idoso, bem velho’”, mas na ver-
ordinárias, o real e o componente imagi- dade a música é chamada geralmente de
nário) que passa através do cristal de “Modos e Maneiras”...31
calcita. A ciência como um "trazer para a Dentro do ruído zumbido da caixa
luz", a luz do dia, ao contrário da es- preta do campanário de Maxwell, a ficção
curidão do espiritismo. Trabalho (e colo- paralela do tocador-de-sino puxando as
cando o espectro de trabalho, trabalho e cordas, continua a haver um único sinal
energia e entropia, leve como recurso e acróstico, o nome de Alice Pleasance
como potência) e o dia e a luz. Liddell.32

"Profundamente por entre as equa- Não, mas ao invés disso, com


ções que descrevem o comporta- uma suave, apetitosa referência
mento da luz, equações de campo, a equação de Schroedinger:
álgebra vetorial e equações de Mas a resposta que lá havia era
quatérnios, encontra-se um con- nenhuma
junto de instruções, um itinerário, E isso era um pouco estranho,
um mapa para um espaço escon- porque
dido. Refração dupla aparece nova- Eles haviam comido um por um.33
mente como um elemento-chave,
permitindo um ponto de vista sobre
uma criação definida apenas para
estar ao lado desta mesma, tão
perto quanto a se sobrepor, onde a
membrana entre dois mundos, em
muitos lugares, tornou-se muito Notas:

frágil, muito permeável , por segu-


1. Extraído do poema "Einstein e Eddington". Dr. WH
Williams, 1924.
rança... Dentro do espelho, o termo 2. O poema “A Morsa e o Carpinteiro” está no livro “Alice
escalar, com o lumiar do dia óbvia através dos Espelhos” e parece ter a conotação de uma
curiosidade que leva o curioso a ser devorado - no caso
e supostamente sempre esteve são ostras que atraídas pelas histórias da Morsa, viram
posicionado, como se em espera, seu banquete. No entanto a Morsa “chora” de culpa (ou

o itinerário escuro, guia do pere-


cinismo?) na cena final:
“- Choro por vocês , a Morsa disse.
grino corrompido, a Estação sem - Tenho o coração contristado.

nome antes do primeiro, no cre-


E entre soluços e lágrimas, foi
Puxando as graúdas p'ro seu lado.
púsculo incriado, onde salvação Depois, levou um lenço aos olhos,
ainda não existe." 28 Que ainda estavam marejados.”(Lewis Carrol)

215
3. Descartes a Mersenne, em correspondência, editado 29. A interpretação de muitos mundos seguindo o
por Adam e Tannery (1893) p. 396. trabalho de Hugh Everett III.
4. Veja também o experimento sobre deslize no éter de 30. Canção de um poema de "Alice Através do Espelho"
Michelson e Morley nos anos 1880, e o trabalho onde há um relato sobre sua confusa nomenclatura que
experimental contemporânea de Oliver Lodge, em relação varia.
ao detecção de movimento da Terra através do éter. 31. "The name of the song is called 'Haddock's Eyes.'
5. James Clerk Maxwell, "Aether, Encyclopaedia "Oh, that's the name of the song, is it?" Alice said, trying
Britannica 9. 1875-1889", artigos de James Clerk to feel interested. "No, you don't understand," the Knight
Maxwell, New York, 1960, 763-775. said, looking a little vexed. "That's what the name is
6. Albert Einstein, "Palestra na Universidade de Leyden, called. The name really is 'The Aged, Aged Man.' " "Then
1920", Adendos em Relatividade, Dover, New York, 1952, Iought to have said 'That's what the song is called'?" Alice
15,16, 23. corrected herself. "No, you oughtn't: that's quite another
7. “Composição” como tradução do termo heideggeriano thing! The song is called 'Ways and Means': but that's
“Ge-Stell”. only what it's called, you know!" "Well, what is the song,
8. Martin Goldman, Demon in the Aether. The Life of then?" said Alice, who was by this time completely
James Clerk Maxwell, Paul Harris Publishing, Edinburgh, bewildered. "I was coming to that," the Knight said. "The
1983, 196. song really is 'A-sitting On A Gate': and the tune's my own
9. ibid. 196. invention."" Lewis Carroll, Alice's Adventures in
10. William Thomson Kelvin, notas de palestras sobre a Wonderland and Through the Looking-Glass, Penguin,
Dinâmica Molecular e da teoria de Ondulaçao da Luz London, 2003, 213-4.
Baltimore, 1884, 270. 32. The acrostic within the closing poem, A Boat Beneath
11. cf. o trabalho do "Bureau d'Etudes". A Sunny Sky, on the last page of Through the Looking-
12. Oliver Lodge citando Lord Salisbury. Oliver Joseph Glass, ibid, 241.
Lodge. "The Ether of Space". Harper & Brothers, 1909. 33. Lewis Carroll, "The Walrus and the Carpenter", Alice's
13. Gilles Deleuze, "Logic of Sense", Continuum Adventures in Wonderland and Through the Looking-
Impactos, Londres, 2005, 11. Glass, Penguin, London, 2003, 163.
14. James Clerk Maxwell, artigos científicos de James
Clerk Maxwell, Vol 2, Dover Publications, 1965, 783-4.
15. cf. o trabalho experimental de Maxwell, Michelson e
Morley.
16. A conexão endofísica sendo que apenas fora esse
sonho existe algo chamado pelo nome de Certeza.
17. Personagem de Lewis Carrol, “monstro semiótico”
que embaralha palavras.
18. Radiômetro de Crookes, seu trabalho com os raios
catódicos, e seus experimentos bem documentados
por Florence Cook.
19. Oliver Lodge primeiros sinais de transmissão de rádio
em 14 de agosto de 1894.
20. William Crookes, Estudos de Fenômenos do
Espiritismo, 1874.
21. Ressonância estocástica refere-se a um fenômeno
pelo qual a adição de ruído (branco ou colorido) a um
sinal aumenta o nível do sinal combinado, para permitir a
detecção e extrair sentido de sinais outrora
imperceptíveis.
22. cf. Konstantin Raudive, Break-Through: An Amazing
Experiment in Electronic Communication with the Dead,
Mass Market Paperback, 1971.
23. Lewis Carroll, Alice's Adventures in Wonderland and
Through the Looking-Glass, Penguin, London, 2003, 147.
24. Martin Gardner, The Annotated Alice, Penguin,
London ,1970, 192.
25. TEMPEST: A Signal Problem, NSA, 1972.
26. Construtivismo de cabeça de fita eletromagnética de
Burroughs: "Eu gravei alguns minutos em todos os três
quartos. Eu gravei a descarga do banheiro e o chuveiro
ligado. Gravei a água corrente da pia da cozinha,
o barulho de pratos e a abertura e fechamento e zumbido
do frigorífico. Eu gravei da varanda. Agora eu me deitei
na cama a ler algumas seleções de "The Magus into the
recorder". William S. Burroughs, Cities of the Red Night,
Picador, 2001, 43.
27. Sir Arthur Stanley Eddington. New Pathways in
Science, Read Books, 2007, 256.
28. Thomas Pynchon, Against the Day, Penguin, London,
2006, 566.

216
BRUXARIA DIY:
UM DECÁLOGO SOBRE MAGIA E
ARTE DE PERFORMANCE
Lechedevirgen Trimegisto

Dedicado a Pé de J. Pauner, tou Picasso a pintar Guernica, ou qual-


escritor e estrategista quer obra de arte ou processo artístico
de vertigem. que lhes venha à mente. Antes de um pin-
cel, de uma câmera, de uma técnica ou
Eu já sabia. Lembro-me de ter lido um instrumento, por trás de tudo isso está
anos atrás no livro "Danza de la Reali- o ato criativo. O ato criativo nos surge
dad", de Alejandro Jodorowsky, a ideia de desnudo, emerge do corpo. O corpo con-
que "a raiz da arte no México é a brujeria verte-se então em espaço para realização
(...)" Esta simples frase ecoou em minha do ato primal por excelência. No princípio
cabeça por um bom tempo. Com o pas- era o corpo. Minhas preparações na pin-
sar do tempo e dentro das minhas práti- tura me levaram a explorar a plástica em
cas corporais e artísticas, percebi que na vídeo, instalação, desenho, arte-objeto,
verdade é assim mesmo – eu não sei se escultura e até arte conceitual enquanto
é apenas o caso do México, e eu me que, paradoxalmente, essa busca me
atreveria a dizer que não, que é assim em levou ao princípio de tudo, ao meu próprio
todo o mundo. corpo. Por isso escolhi a performance
Isso me ocorreu ao desenvolver a como meio de expressão e também como
oficina "Alquimia del Cuerpo", como um algo muito mais profundo.
esforço próprio para reunir e atar os Por que, afinal, assimilar a arte da
cabos soltos entre magia e arte, onde performance como bruxaria contempo-
em que pude perceber a relação estre- rânea ou como um espiritismo pós-mo-
ita entre essas duas dimensões do ato derno? Meu trabalho alimenta-se de
criativo. diferentes fontes: a teoria queer, o des-
Em várias entrevistas ao longo de colonialismo, pós-pornografia, a dissidên-
minha trajetória como suposto "artista" e cia sexual, a magia do caos, o xamanismo,
performer fui interrogado sobre os mo- o tarot, a alquimia e até mesmo a psico-
tivos da preferência pela performance em magia. Foi o que aconteceu, sem preme-
relação a outros meios de expressão. A ditação. Nos almoços em família, minha
minha resposta tem sido sempre a mãe sempre gosta de lembrar, como ane-
mesma: toda expressão artística carrega dota, que eu queria ser um mago quando
um exercício criativo, este exercício con- crescesse. Minha desilusão foi grande ao
siste no ato primal – o ato criativo por ex- saber que isso que eu entendia como
celência – o mesmo que leva uma criança magia não existia e pertencia a um mundo
a riscar as paredes e o mesmo que inci- de ficção. Não sei se agora com o passar
217
do tempo a magia para mim tornou-se real pós-dramático e paganismo pós-moderno
ou se acabei, por conta própria, tornando- é o que chamo de Bruxaria DIY (Do It
me parte desse mundo ficcional. Talvez eu Yourself ou Bruxaria Faça-Você-Mesmx):
viva em um mundo híbrido entre a crueza
violenta do cotidiano e a poética de um es- 1. EXISTE? NÃO EXISTE?
paço habitado pelo milagre contínuo. Al- NÃO IMPORTA! EXISTE!
guns simplesmente acham que eu sou Nunca duvide – pouco importa ser
louco, e isso não é novidade; não importa cientificamente provável que um curan-
ser apenas um a mais. deiro possa curar, o que importa é que
Antes de continuar, devo confessar funciona. O ceticismo e a razão serão
e esclarecer que não me considero san- seus piores inimigos. Uma performance
tero, xamã, curandeiro ou místico, no en- terá efeito para aqueles que acreditam
tanto eu os emulo. Muita gente pode nela. Pode-se imaginar que a perfor-
pensar que sou um charlatão que se mance é realizada em nome de uma
aproveita de temas transgressores e con- "outra" - algo como uma figura abstrata ou
troversos – e eu aprendi que o engano é histórica, outra artista ou personagem
necessário, é preciso enganar a mente ou com características únicas, que guardem
o corpo para conseguir coisas extra- uma relação contigo. Em algumas situ-
ordinárias. Você pode mentir para dizer a ações realizei performance em nome de
verdade, ou dizer a verdade para des- Mago Melchor Zortybrandt de Java ou
mascarar uma mentira coletiva. E todavia Niño Fidencio.
é certo que não sou e não pretendo
usurpar o lugar de um guru, um messias 2. ENFRENTE O MEDO
ou um deus. De qualquer modo, sou ape- O medo paralisa. Para superá-lo é
nas um canal. Deve haver um motivo preciso ter coragem de enfrentar o que
quando minha astróloga de cabeceira in- tememos diretamente, sem proteções e
forma que tenho habilidades de médium. sem limitações. De vez em quando você
Meu campo é a arte, não tenho poderes pode executar ações que envolvam des-
mágicos, não posso curar ninguém. Mas gaste físico, resistência corporal ou men-
sou capaz de funcionar como guia – para tal, que ponham à prova seus próprios
que aqueles que decidem empreender o limites. Mergulhe no que você teme tanto.
caminho aprendam a curar a si mesmos, Realize isso de uma vez, em uma per-
assim como me encontro em processo. formance.
Para mim a arte é isso, um fenômeno que
ocorre, que cura, que transforma e dina- 3. SEJA PRUDENTE
mita tudo. Um incêndio. Eu sabia disso o Há coisas que não estamos pre-
tempo todo. parados para fazer, ainda que tenhamos
Este texto se disfarça, se trans- vontade. Superar nossos limites envolve
veste como um decálogo para magos um risco. Para correr esses riscos você
/bruxos/artistas em potencial, mas é na precisa estar preparado. A prudência é a
verdade uma compilação dos pontos peça-chave entre uma ação bem-suce-
mais importantes, na minha experiência, dida e desastres de proporções clínicas.
que devem ser levados em conta ao rea-
lizar performance – ou, pelo menos, para 4. QUEBRE LIMITES
a minha ideia de performance. Esta Não se defina. Tudo o que se de-
prática pós-disciplinar entre magia, arte fine limita, estagna, tumoriza e morre.
de performance, física quântica, teatro Identifique as limitações que te cons-
218
Performance de
Lechedevirgen
Trimegisto.
Fotos: Herani
Enríquez Amaya
"HacHe".
220
tringem no registro particular – emocional, em forma de cavalo de papelão, que uso
material, espiritual ou sexual – e no regis- como bastão de comando. Uma curan-
tro universal – o mal-estar social, as deira pode curar com o que ela mais ama,
múltiplas formas de violência, racismo, sejam ervas medicinais ou uma bola de
sexismo, etc. Pergunte-se sobre que li- futebol. O artista de performance também.
nhas te atravessam o corpo, o que te faz
desfigurar-se desde que nasceu, encon- 7. SIGA SUA INTUIÇÃO
tre e livre-se disso, use a performance Há coisas que não sabemos que
como o espaço ritual ideal para destruir sabemos. Desenvolva sua intuição, você
essas barreiras tanto em seu corpo e não erra nunca. Livre-se de preconceitos
mente como no espaço público. Expanda e de ideias nocivas ou tóxicas, confie em
seus sentidos, o corpo todo é uma má- si mesmo, pense com o coração, crie com
quina experimental, experimente todas as o estômago, revele com a glândula
sensações, use-o! pineal. Torne-se devir puro e você irá se
amalgamar com a natureza - vai saber o
5. PRINCÍPIO DA SUBSTITUIÇÃO que acontece antes que isso aconteça.
Uma das regras de magia é que Quando faz performance, você se torna
todas as regras são modificáveis, cada premonição pura, a visão surge. Deixe-se
mago tem seu próprio método, da mesma levar, as coisas vão se acomodar em
forma que cada artista de performance como devem ser.
tem sua própria maneira de conceber e
realizar a arte de performance. Se não 8. TRANSE: APRENDA A ESCUTAR
tem os elementos ideais para levar a cabo Se você não acredita nisso, imite –
seu ritual-performance, substitua-os por de maneira respeitosa e consciente. Os
outros, transforme os objetos: um aba- magos meditam e entram em transe, con-
nador em um sol, uma vara de madeira vertem-se em canal. Elimine a supremacia
em uma arma de fogo, etc. Transforme do ego, deixe de pensar que é você a es-
espaços: uma rua em uma passarela de colhida, a que cria; coloque-se na posição
moda, um bar em um templo, um museu de uma ponte, deixe que o fenômeno lhe
em um mercado. atravesse e aconteça a partir de seu corpo.
Ouça a si mesmo, profundamente, reava-
6. OBJETO SAGRADO lie o que lhe ocorre, aquelas ideias que
Na performance, assim como na vêm à sua mente sem uma razão lógica –
magia, trabalhamos com metáforas pode- é ali que o segredo se esconde. Você é um
rosas. O curandeiro usa um ovo para cap- filtro do arquetípico que constrói imagens
turar as más vibrações. Ao quebrá-lo a mutantes entre um ontem histórico e um
metáfora toma vida, revelando um líquido futuro cósmico, em um presente total.
escuro no lugar da gema e da clara. Deixe que fale seu inconsciente, mergulhe.
Assim como artistas de performance es- Na performance, assim como na magia,
colhem seus objetos com base em metá- não importa se é possível entender ou ex-
foras e símbolos, pense no que te rodeia, plicar racionalmente, o que importa é a ex-
qual o contexto, que objetos pertencem a periência e a sensação.
ele, tome o que parece mais próximo e ín-
timo, aquilo ao qual tenha uma devoção 9. CRIE UMA EGRÉGORA
infinita (não material, mas espiritual- Uma egrégora é um pensamento
mente) – esse será seu objeto sagrado. coletivo. Tanto a magia como a perfor-
No meu caso é um brinquedo tradicional mance funcionam através de coletivi-
222
dades. Criar uma egrégora significa criar
uma mente coletiva. É seu trabalho colo-
car os elementos corretos para sintonizar
o público na frequência correta, pulsar
juntos e tornar-se um. Se a egrégora cria-
da é suficientemente poderosa, toda a ener-
gia descarregada pelo público será
canalizada pela artista e a performance
surtirá efeito.

10. CURE-SE DE MANEIRA


CONSCIENTE
Enquanto ajuda a curar, você cura
a si mesmo. Pense grande, pense que
seu objetivo é curar este mundo – um
mundo que nos legaram ferido e perdido.
Toda cura implica uma transformação
radical, fulminante mas definitiva. A per-
formance, como a magia, proporciona a
oportunidade de curar aqueles aspectos
que parecem irreconciliáveis ou perdidos.
Seja sua própria cura, use sua imagi-
nação e prepare sua estratégia. Então, e
só então, talvez seja possível curar o
mundo de tantas atrocidades.

224
A TERRA COMO XAMÃ
E NOVAS MÍDIAS
Sonja van Kerkhoff

Toitū ele Kainga, mente perder o contato com a terra -


whatungarongaro ele tangata. então Julian projetou este evento no sen-
A terra permanece, tido de desacelerar tudo. Todas as coisas
depois que os povos se vão. consideradas necessárias nós teríamos
que conseguir transportar. E não haveria
Uma pessoa nativa de Aotearoa eletricidade, nem conexão à Internet. Meu
(conhecida como Nova Zelândia, em Por- projeto era filmar e mais tarde as cenas
tuguês) é uma tangata whenua; alguém produzidas tornaram-se elementos es-
cujo cordão umbilical é simbolicamente senciais para a vídeo-instalação "Kāinga
ligado à terra. No mundo Maori, o mundo a roto (Home within)". Então eu criei para
natural é personificado – é nossa mãe, a exposição uma casa interior ou espiri-
irmão, irmã – e esse sentido de estar na tual na "terra indesejada".
natureza é forte, ainda que a maioria da A casa era um sistema de arte –
população neozelandesa viva em cida- consistia em cinco diferentes vídeos,
des. É dessa conectividade Maori com a paisagens sonoras, música, iluminação e
terra que senti mais falta quando fui morar sombras, e um espaço físico onde visi-
na Holanda, em 1989. tantes sentavam-se no chão. Esse sis-
Em 2008 fui convidada a criar um tema de arte foi usado para representar o
novo trabalho para uma exposição em sistema complexo de uma biografia par-
Haia, Países Baixos, intitulada "A Terra In- ticular (uma infância em Taranaki), usan-
desejada". Inicialmente eu estava con- do uma linguagem visual composta de
fusa, porque para mim não há terra referências ao mundo natural – especial-
indesejada, assim como não pode haver mente a água, mas também terra, vento e
uma mãe não-desejada. A gente não se vida dos pássaros – influenciada por valo-
desfaz do cordão umbilical. Recebi, em res culturais Maoris e Coloniais da Nova
seguida, um convite para participar de Zelândia.
uma jornada de waka (uma canoa de Ao acomodar-se nessa tecnolo-
casco duplo) ao longo de um rio sagrado gia "caseira” (os vídeos, a iluminação e
para as tribos Whanganui, coordenada os sons), as pessoas puderam sentir
por Julian Priest – um artista de novas mí- um pouco da natureza-cultura da Nova
dias e ativista – com Maoris locais. Zelândia.
Chamava-se SLOW FLOW – Te Ia Em 2011 fizemos uma outra versão
Kōrero1. Dez artistas ou teóricas das para a exposição na Nova Zelândia: 'Sec-
novas mídias de cinco países, e cinco ond Nature'. Chegamos em Istambul três
Maoris locais viajaram de barco, a pé e de semanas mais cedo para construir a parte
bicicleta, por um percurso de 200 km, dor- física da instalação a partir de materiais
mindo em marae (assentamentos Maori). locais para a exposição ISEA. Esta tam-
Ao trabalhar com computadores ou bém foi construída com papelão e
com novas tecnologias, pode-se facil- madeira reciclados. Em Istambul, com-

225
Imagem do vídeo: Heart of the Land - Te Ngākau o te whenua2.

226
pramos ou negociamos na rua, em uma Em 2003 fiz conexão com artistas
área de etnia cigana. de novas mídias da Nova Zelândia
Na sequencia, em 2013, produzi- através da rede Aotearoa Digital Artists4.
mos uma terceira versão para a ex- Foi por isso que acabei participando do
posição "Third Nature", em que dessa vez projeto SLOW FLOW e, mais importante
construímos uma forma espiral como en- ainda, por isso posso trocar ideias e
trada para o museu Puke Ariki em New tomar parte na discussão através da lista
Plymouth, Aotearoa (Nova Zelândia). E de e-mails.
mais uma vez reciclamos materiais locais, A wakahuia é um recipiente para
usando madeira e papelão de um can- objetos de valor, mas isso também sig-
teiro de obras. nifica "barco de pena", em Maori da Nova
Em todas as vezes que montamos Zelândia. Nosso 'navio' feito a partir do
este trabalho buscamos envolver pes- scan de uma pena do extinto pássaro
soas de fora dos mundos da arte e tec- neozelandês, o Huia (Heterralocha acu-
nologia, como moradores de rua (com o tirostris), é combinado com desenhos de
papelão), de modo que a cada edição um Sonja. O último pássaro huia foi avistado
pouco da “terra” local também se tornava na década de 1920, mas suas penas e
parte do processo. corpo viajaram o mundo, seguindo as
rotas comerciais do colonialismo.
Ka pū te ruha,
ka hao te rangatahi.
Enquanto uma velha
rede se desfaz,
uma nova está pronta.

Enquanto a terra é mãe é inspi-


ração para uma pessoa Maori, adaptação
e mudança – como expresso no provér-
bio acima – isso significa que não temos
nada a temer com as novas tecnologias
e novos materiais. O que importa é man-
ter um equilíbrio ou uma conexão balan-
ceada entre os vários mundos. Assim, a
velha rede pode ser descartada com a Notas:

chegada da nova rede, mas uma nova


1. http://greenbench.org/project/slowflow
2. http://sonjavank.com/kaingadvd.htm
que derive, ao que se sabe, da velha 3. Consulte a seguinte referência por Sally Jane Norman
rede. Então, por exemplo, uma das para saber mais sobre visões de mundo Maori em The
Aotearoa Digital Arts Reader, 2008.
palavras Maori para a internet é ipurangi, https://docs.google.com/document/d/1cHmhIYB9gaIutnSv
que significa literalmente o navio de GIhWcYr50np3NWsZxB5F2oZHxas/edithttp://www.ada.n
et.nz/wp-
Rangi (o pai do céu)3 Uma nova tecnolo- content/uploads/2008/08/ADA_reader_full_text.pdf
gia é ativada por uma velha rede – o céu. 4. www.ada.net.nz

Ehara taku toa,


he takitahi, he toa takitini
Meu sucesso não
se deve apenas a mim,
é o sucesso por conta do coletivo.
227
Vistas interior e exterior de um
dos oito projetos na exposição
Aotearoa / Nova Zelândia:
Untitled: {second nature}
Te Kore Rongo Hungaora para
ISEA 2011 Istambul.
Cumhuriyet Gallery, Praça
Taksim, Istambul, Turquia.
Kāinga a roto | Home within | Innerlijk Huis
na exposição The Unwanted Land Museu
Beelden aan Zee, Haia, 2011.
A madeira é reciclada e a forma da casa é
como a de uma casa de reunião Maori.
230
NOTAS VISÍVEIS
SOBRE O INVISÍVEL
Sue Nhamandu

consumidores se comporta, e foi


apenas o início para entender como
Da ciência sem dogmas ao Templo

essa relação complexa se dá. Mas


do Tecnnoxamanismo

é certo dizer que tudo que apren-


Sobre a confusão foucaultiana

demos da neurociência vai ser


entre o que pertence aos domínios

usado na publicidade” e ainda mais


do empírico e o que pertence ao

“ falo de um experimento que colo-


transcendental

cou 200 pessoas andando a esmo


Desde o séc XIX que a ciência es-
numa sala. Então, cinco foram se-
palha com sucesso a crença no materia-
lecionadas cuidadosamente para,
lismo. Dado que os cientistas, como
sem alarde, começar a caminhar
evidência Kuhn-Sheldrake, como qual-
em sentido horário. Em sete minu-
quer outro conglomerado social cons-
tos, toda a sala estava andando em
troem também “redes de apoio”, pois
sentido horário. Quando questiona-
estão vulneráveis às normas sociais
dos por que estavam andando em
como “desejo de prestígio” isso é no mí-
sentido horário, simplesmente dis-
nimo um sucesso a ser questionado.
seram que haviam decidido a andar
Latour (1987 - Science in Action)
daquele modo – embora, na reali-
observou que os cientistas, tradicional-
dade, tivessem apenas seguindo.”
mente fazem distinção entre conheci-
mento e crença, sendo que crença O sentimento de pertença da re-
distorcida é aquele resultado de para- ligião nos domina epistemologicamente
digma + pesquisa científica que pertence no sentido transcendental em grupos so-
as pessoas de fora de seu círculo cientí- ciais: vizinhos, redes sociais, marcas e
fico. Enfim, não é novidade aos pen- seus lobystas, colecionadores são alguns
sadores da ciência a existência de uma dos principais causadores ocultos do por-
“Igreja da Ciência” como chama Shel- que as pessoas consomem. O Google e o
drake, que ignora e manipula resultados Facebook segundo Lindstron, normal-
de acordo com financiamentos, estraté- mente se apropriam do conhecimento das
gias e sentimento de pertença. 200 pessoas mais influentes da rede,
Agora eu me pergunto, se religião para disseminar através deles aquilo
é religare e isso implica necessaria- deve receber popularidade (a bancada
mente a ideia de desconexão, bem evangélica também).
como as noções de sentimento de per- Mas e os esquisitos? A que cole-
tença – o lobysta dinamarques Martin tivo pertencemos? “Não basta ser es-
Lindstron ao desenvolver pesquisas quisita para pertencer ao nosso coletivo,
neurológicas diz: tem que ser incompreendida também – e
não ter tato algum para se desenvolver
“Fiz um estudo que custou US$ 7 como capitalista vencedora – tem que ter
milhões sobre como o cérebro dos uma dose de intolerância com os winners
231
e ser hedonista por natureza.” (Borges- forma se engaja em problemas que
Bensusan, 2010). nosso contemporâneo tem levan-
Seria hackeamento do conceito tado (…). Vejo o desejo de des-
de religião uma movimento artístico conexão (mesmo que temporária)
Avant-Garde? Quanto os grupos em situ- com um mundo de velocidade
ação de vulnerabilidade social tem a mental, e a reconexão com o corpo.
ganhar com um Templo de Tecnoxama- O que ele está dizendo? Que movi-
nismo Esquizotrans? Sobretudo na me- mentos é capaz de produzir? A
dida em que agrega, e confere pertença potência do corpo fica geralmente
ao acolher os grupos “do avesso”? Ando atrofiada por causa dos nossos es-
pensando em quanto essa nova ciência, tilos existenciais sedentarizados
que apregoa a relação da mente ex- nas cidades, no trabalho, nos estu-
pandida, ressonância mórfica, vai ser dos, na frente do computador, na
apropriada pelo poder, dentro de uma sobrevivência em geral. São muitas
perspectiva onde não saberemos dizer o as formas de se acionar as potên-
que é metafísica e o que é epistemologia. cias de um corpo. No nosso caso
Segundo Foucault no capítulo IX usamos, entre outras coisas, a lin-
de As palavras e as coisas – a confusão guagem da performance..."
do duplo-empírico-transcendental guia
todo o pensamento ocidental contem- Nessa perspectiva da performan-
porâneo, pois reside justamente na ce, ou ainda da escritura performativa
ausência de clareza sobre aquilo que per- seria interessante comentar o trabalho do
tence ao transcendental ou ao empírico. professor Artur Matuck em sua série de
Quem vai controlar a ideia de deus e re- ficção, onde seu personagem, uma espé-
ligião quando a religião passa ser ciência cie de alter-ego – Ataris Vort – denuncia
e a ciência religião? a ciência meceânica parafraseando o pro-
A psicológa e esquizoanalista fessor, “essa ciência hedionda reduz o
Fabiane M. Borges comenta sobre o tec- seres humanos à sujeitos de experimen-
noxamanismo e as noções de movimento tação que tortura para extrair um suposto
de rede coisas muito interessantes a conhecimento científico1”. Seja lá o que
repeito dessa sonância de sentimento de for que “científico” signifique, já que a
pertença, bem como reconexão com o ciência é dogmática - sua narrativa fic-
corpo vibrátil. Os movimentos e expe- cional é também um pressuposto ativo
riências que ela vivenciou com tecnoxa- que atua sobre nosso contemporâneo.
manismo em geral, de acordo com minha Em nome da ciência, e isso é uma ficção,
visão dos relatos, mostram uma per- o cientistas são capazes de produzir as
cepção da ressonância mórfica em ação. maiores torturas, em animais, em coba-
Acredito que a experiência do corpo vi- ias, mas não vemos os cientistas muito
brátil que Borges citando Rolnik fala dispostos a discutir esse conteúdo fic-
esteja muito próxima da ideia de episte- cional de suas crenças.
mologia de Rupert Sheldrake: Mas retornando ao tecnoxamanis-
mo como religião neste texto Borges vai
"Eu vejo o tecnoxamanismo assim: ainda propor outros fortes aspectos que
como a expressão da potência de poderiam identificar um tecnoxamanismo
um movimento. Para deixar mais e etc, aspectos que muito possuem em
claro, o tecnoxamanismo é um comum com a religião: vivências comu-
movimento de rede, que de certa nitárias e conhecimento ancestrofuturista.
232
A vivência comunitária é um dos pilares sico encerra a representação às suas
do sentimento de pertença, isso já dis- ciências, e o moderno já não opera mais
pensa a necessidade de continuar a di- no vivido atual, a abertura para a “in-
vagar sobre ela, embora, seja de suma venção” do estado contemporâneo é uma
importância. O conhecimento ancestrofu- nova liberdade. Isso implica também
turista, é justamente a apropriação con- numa operação política, na medida em
temporânea de organização a longo que garante a produção de bens imate-
prazo dos conhecimentos outrora meta- riais num momento de mudança paradig-
físicos agora transcendentais, outrora mática da economia (mas isso exigiria um
empíricos, agora metafísicos realistas. outro artigo).
Latour aparecer nos textos de Sheldrake Marcel Vogel da IBM foi desafiado
e Borges não é ao acaso, se for talvez a dar um curso sobre criatividade, se-
seja um acaso objetivo surrealista, esse gundo Peter Tompkins e Christopher Bird
mesmo acaso que causa curiosidade em – no capítulo intitulado As plantas podem
Simone de Beauvoir no início de seu Ba- ler sua mente no livro A vida secreta das
lanço Final, quando fala do “acaso” em plantas – seu curso tomou um novo rumo
sua história pessoal. ao entrar em contato com os trabalhos de
Na mesma medida que o Backster (fazia experiência com plantas).
kopimismo, do grupo Piratebay, movi- Vogel trabalha com a ideia de “energia
mento que foi reconhecido como religião psíquica”, ele sugere que essa energia é
pelo governo da Suécia e pode ter direito armazenável, enquanto a noção de
aos benefícios que a Suécia dá às re- mente expandida de Sheldrake sugere
ligiões, como subsídios do governo; ou as que acessamos uma mente que não está
igrejas neopentecostais, que através do no cérebro. Vogel afirma que o ser hu-
estatuto de religião não apenas lavam mano de fato se comunica com seres
dinheiro do tráfico de drogas, como fi- vegetais, dado que está convencido que a
nanciam campanhas políticas, o não “energia psíquica” dos humanos pode
hackeamento do conceito de Igreja pelo exercer uma força sobre as plantas. A
tecnoxamanismo deixaria então um imen- partir disso começou a imaginar essa
so nicho não explorado pelas práticas de força exercida obre cristais líquidos, e de-
si como liberdade. senvolver pesquisas nessa área.
Quais as possibilidades concretas Na minha opinião o tecnoxama-
de o tecnoxamanismo se desenvolver nismo ganharia muito ao se apropriar das
como ciência através desse capital hack- posturas e experimentações de Vogel,
eado pela mídia da religião? Quantas dado que para ele as plantas são nossos
novas pesquisas interessantes geradas ancestrais na Terra, e guardam grande
no cerne da multiplicidade paradigmática parte das informações que a ciência tenta
do tecnoxamanismo nos libertariam de acessar. Nesse caso, Voguel é puro an-
certa forma das estratégias de massifi- cetrofuturismo radical!
cação, se vinculado ao resgate do conheci- O filósofo da ciência Gaston Ba-
mento dos povos fundantes e acolhendo chelard acusa – em sua análise do “es-
grupos subjugados? paço” na física contemporânea – a física
O tecnoxamanismo é um campo tradicional de ser uma ciência da “locali-
de conhecimento que muito tem a ganhar dade”. A fé da metafísica realista segundo
com a abertura do contemporâneo, como ele reside na certeza de que nada se en-
propõe Foucault em O homem e seus du- contra fora da célula de localização. To-
plos; se a imagem do pensamento clás- davia a larguidão e portanto a imprecisão
233
da célula de localização garante a fun- dular o comportamento do cérebro em sua
cionalidade deste método paradigmático. fisiologia e patologia com implantes gerou
Para ele a metafísica realista é um estudo uma reação de repúdio fomentada sobre-
topológico dos objetos que povoam o es- tudo pelo medo. O cenário da Guerra Fria
paço, sendo que na frente de qualquer suscitava desconfiança de artefatos ca-
faculdade está o “lugar”. pazes de controlar a mente humana. Ao
Bachelard ainda sugere que as procurar por seu polêmico e clássico livro
similitudes dos comportamentos do senso “O controle físico da mente: rumo a uma
comum são aquilo que convencionamos sociedade psicocivilizada” na bibilioteca
chamar de realidade. Mais uma vez temos da Universidade de Duke, Nicolelis conta
a confirmação da polêmica afirmação fou- que só encontrou um único volume em-
caultiana de que não sabemos o que per- poeirado e por longo tempo não locado;
tence aos domínios do empírico nem tão mais uma prova de que paradigmas inco-
pouco aos domínios do transcendental. muns são em geral muito mal aceitos pela
Miguel Nicolelis o respeitado neu- comunidade científica.
rocientista brasileiro no seu “Muito além Neste contexto de confusão entre o
do nosso Eu” comenta seus próprios en- empírico e o transcendental, Preciado mos-
frentamentos – e de seus precursores – tra que as dicotomias metafísicas binárias
com a noção mainstream de ciência, as são sustentadas submetendo à deriva se-
concepções ideológicas por exemplo de xualidades não heteronormativas padrão,
encarar o funcionamento cerebral como como “brincadeiras ontológicas” que sub-
hierático, um problema curiosamente vertem um contrato social baseado em
também datado do século XIX, somado a “um código sexual transcendental falso”.
limitações de linguagem, e obviamente o Como nota Butler as práticas de identifi-
evidente prestígio que era para um cien- cação são excludentes, ou seja se dão por
tista desse período poder nomear com exclusão, assim como Bachelard demons-
seu próprio nome um pequeno pedaço de tra que são as práticas científicas. Butler
tecido neural. também nota que ao buscar o feminino e o
Nicolelis observa ainda um caso masculino no “ Terceiro Mundo” e “Oriente”
curioso do neurocientista Manuel Rodri- os contextos também são consultados
gues Delgado, que foi esquecido nos pelas teorias para neles encontrar exem-
livros didáticos contemporâneos, embora plos e ilustrações de um princípio universal
tenha sido muito importante e pioneiro na pressuposto.
utilização experimental da estimulação Dado que não são as respostas,
elétrica do sistema nervoso central e de mas as perguntas que são importantes na
implantes cerebrais em animais desper- filosofia eu proponho a repetição enfática
tos. Com carreira em Yale na década de ao exercício reflexivo: Seria hackeamento
60 previu que num futuro não muito dis- do conceito de religião uma movimento
tante seria possível conectar cérebros de artístico Avant-Garde? Como e onde ciên-
pacientes com máquinas para tratar dis- cia, metafísica, religião, lobby, gênero e
túrbios psíquicos, coisa que foi realizada performance dialogam? Para polemizar,
inclusive pelo próprio Nicolelis este ano não é esse sentimento de pertença que
(2015), como relatado na Nature em artigo sequestra jovens para o ISIS?
recente. As pesquisas de Delgado foram
relegadas ao ostracismo pois suas ideias Notas:

enfrentaram forte oposição, antagonismo


1. O que o homem sofre na ficção nessa alter-ciência não
é distinto do mesmo hediondo que ele prática na não-
e repulsa. A ideia da possibilidade de mo- ficção.

234
RUÍDO, SILÊNCIO E
TECNOXAMANISMO (NO IGAPÓ
DAS ALMAS SINTETIZADAS)
Henrique Masera Lopes

Os corpos silenciam, mas o silên- descargas abruptas de catarses extrapo-


cio é condição de possibilidade para os ladas, com os chiados que estão pre-
deslocamentos da escuta, o silêncio sus- sentes na dispersão cotidiana da
cita permitir ouvir a si próprio, aos outros natureza e transportar isso para a física
e ao mundo, num estado de vulnerabili- das máquinas, numa espécie de modu-
dade singular. Ali onde não há ser para lação sintética/orgânica da existência.
dizer, as frequências se rearranjam e o Cartografar frequências de si. Queremos
corpo transforma-se em zona de capta- nos conectar aos caramujos, esse seres
ção e emissão de ondas, esse corpo com que lambem o mundo com o próprio
um milhão de buracos, poros negros, de- corpo e carregam nas costas seu micro-
seja involuir, trazer à superfície seu cosmo, sua caixa acústica, devir-cara-
próprio horizonte submerso, do silêncio mujo-antena, seu ruído estimula nossa
para o ruídos timbrados pela experiência modulação. Ouvir, aceitar a desafinação
da escuta dos universos que um corpo dos corpos e torná-la fonte de novas for-
capta, o chiado da escrita como expre- mas de pensar, sentir e afinar as subje-
ssão dessa escuta. Mas não se esqueçam: tividades, não para que elas vibrem numa
as frequências que nos atravessam não rítmica orquestrada, falo a partir de um
são todo o universo. Talvez seja nossa corpo que para afinar-se não precisa soar
impressão digital expandida ao campo do consonante ao hegemônico, penso em
som, impressão que no silêncio encontra corpos dissonantes que transmitem seus
meios de deixar de ser, como um rio que ruídos para respirar, mas que nem por
transborda encharcando terras vizinhas. isso deixarão de musicar a experiência
A dimensão ruidocrática dessa pela modulação das diferenças de cap-
prática parte de uma miração fundamen- tação das frequências que vibram nos ter-
tal: estar atento aos sinais tem a ver com ritórios existenciais.
buscar na experimentação do som o ar- Tomemos o igapó como território
ranjo fora do tempo homogêneo, deixar de onde emana uma prática ruidocrática.
se conduzir a uma série de trajetórias que Vejam que o próprio território de experi-
não formam um caminho, mas sim um mentação já parte de uma premissa
território possível de escuta, com possi- básica: Num igapó as raízes estão sub-
bilidades outras de conexão e comuni- mersas na água, as plantas crescem,
cação. Mas comunicar-se a que? Com o mas se desenvolvem sob a instabilidade
ruído dos relâmpagos, com rajadas sono- da inundação, do excesso de fluxo, tem
ras dos insetos, das folhas, do mar, de lidar desde sua germinação com essa
235
variabilidade, ser vivo num igapó é estar músicas são esses pequenos universos,
sendo circulante, transitório e trans- ritornelos de ruídos, sints, vozes reversas,
mutável. É de onde partimos, de uma inun- duplicadas, triplicadas, tambores, progra-
dação de ruídos da natureza que falam mações virtuais e rituais.. Travar uma co-
pelas máquinas e softwares transmuta- municação pelo silenciamento, estimular a
dos em porções dessa natureza falante. escuta como processo de perda de si
Subjetividade alagadiça, fincada numa próprio. Entrar num caminho onde não se
terra encharcada demais pelas forças da sabe o endereço, mas um caminho ver-
água para virar estrutura. Nos igapós as dadeiro, paupável, latente. Os índios Huni
matérias orgânicas se fundem e se trans- Kuin nos fazem pensar no colonizador
formam. Não-lugar das raízes água e das como as gentes assustadas, povo que
almas sintetizadas. Um igapó é um ter- pela força só demonstra seu terror em re-
ritório alagadiço de floresta tropical, de lação à vida, seu temor em relação às in-
conexões submersas nas profundezas certezas do por vir, sua ganância pela
que dialoga com a superfície pelo vento. exploração da terra carrega um desejo de
Nas folhas das plantas cigarras emitem silenciar os ruídos que ela emite. Os povos
sons agudos, estridentes, penetrantes, verdadeiros estão num outro movimento,
fazem chiar toda a floresta. O Igapó de criados na floresta, tem outra relação com
Almas1 foi criando seu território sonoro de a vida, o colonizador os chama de kaxi-
dentro do estúdio cigarra e, como elas, nawa, mas eles se dizem huni kuin, essa é
nosso alimento é a seiva das raízes, que- sua verdade, sua força vem da floresta e
remos a seiva, o fluxo da planta, o fluxo da verdade que a ali experimentam. E es-
dos corpos, o fluxo dos sons das má- sa potência da floresta no igapó é a força
quinas emitidos numa variação experi- das águas, de um som que escorra e inun-
mental tecnoxamânica. Tudo natureza, de almas alagadiças, sintetizadas num uni-
saber se relacionar com a subjetividade verso tecnológico-ancestral.
da máquina, seja um circuito de com- Nesse processo acabei me re-
putador seja uma árvore. criando dentro dessa dimensão de uma
Nossa referência, a floresta ama- subjetividade alagada, muitas almas fa-
zônica, vem da vivência do Pedras no lando por dentro e por fora, trocando fre-
norte do país, mas foi preciso estar na quências, criando formas de sintonização
brisa de Natal para filiar-se às antenas das captações dos outros, trocando afe-
computadorizadas de Walter Nazário tações pela multiplicação das almas que
para se dar as primeiras fusões. Ritmos me habitam, em estado fluído, mas en-
dos índios da floresta, células musicais vi- raizado, corpo - raíz - água. E isso está
bráteis , aceleradores de partículas dos enviesado pelo momento que estamos
povos da floresta saindo de dentro dos vivendo, num mundo em que o excesso
computadores, numa atmosfera sinteti- de informação solicita constantes rear-
zada, eletrônica. Essa amalgama eu a ranjos, numa desarticulação que pode
concebo como uma etnopsicodelia, uma levar à interdição da loucura, mas ao
espécie de prática tecnoxamânica de mesmo tempo pode criar correntezas
composição das frequências situada novas. Tome o igapó como metáfora para
entre as variações rítmicas concebidas os territórios existenciais da contempo-
pelas subjetividades de grupos indígenas raneidade, a criação passa a estar conec-
e afro-brasileiros com as possibilidades tado com gerar ondulação.
das variações maquínicas contemporâ- Uma abertura da experiência que
neas, experimentais e psicodélicas. As busque incorporar as potências dos ruí-
236
dos de si e do mundo como zona in- terar e modular a frequência do mundo
visível, propulsora de deslocamentos per- através do deslocamento da forma de
ceptivos que acaba por estimular, nessa emissão e captação dos ruídos. Quería-
prática, uma alteração considerável do mos exemplificar isso colocando knobs
eixo de gravidade, que equilibra as giratórios no corpo, terceiro olho modu-
sondagens da subjetividade e conse- lável. É todo o corpo que participa desse
quentemente as linhas de afetação atuam processo. Essa miração vem dos antigos,
noutro campo que não os das linhas que vem do ancestral, tem a ver com o apa-
traçam um corpo rarefeito na atmosfera relhamento da percepção. Saber deslo-
do capital. Corpos anestesiados, criados car-se para ver e ouvir novas imagens e
num universo de negação da experiência sons, trazê-las do próprio silêncio, silen-
do silêncio. Trata-se de rangir o mundo, ciar para escutar, isso é uma coisa muito
rachar as placas tectônicas de si, desco- antiga, como extrair potências do maquí-
lonizar-se e alterar as trajetórias da per- nico? Interiorizando-o até tornar-se or-
cepção, caçar, buscar, sondar cacofonias, ganismo? Subvertê-lo, regurgitando
expressar a gagueira do mundo pela que- natureza? Praticar coletivamente é fun-
bra do silêncio, romper o uníssono dos damental, dinâmicas para esquecer a
corpos. Corpoficar a dissonância em atos, ideia de um sujeito encapsulado num
por uma livre associação orgânica da corpo com uma subjetividade encapsu-
matéria. Então nossa prática é atraves- lada no mundo. Confiar no outro, deixar-
sada e emerge de um corpo que se se afetar pelos seus ruídos, pelo som que
pensa e se sente como um pequeno sin- emite e compor algo junto, para o corpo
tetizador do real, essa comunicação nos instrumento tudo está vivo.
interessa, reconhecer-se pelo som que
emitem os corpos e caminhar para o
aprofundamento da busca singular dos
ruídos alheios. Os corpos captam, cap-
turam, transformam, se inundam, expe-
lem, em suma: alteram as rotas da
matéria suas e dos outros, na impessoa-
lidade do mundo. Traço um igapó como
território de recriação da matéria que in-
corpora a vulnerabilidade do mundo e a
traduz em matéria audível pelo canto da
cigarra, o barulho das folhas, a correnteza
das águas e de toda correnteza virtual
que por ali circula. Tudo deve passar, mas
as marcas ficam e se tornam canais de
abertura para outros insetos, seres ante- Notas:

nados, moléculas vivas serem outros.


1. O álbum que lançamos em maio de 2014 está
disponível para download gratuito ou livre taxação e
Ruídos são fertilizantes sintéticos ou stream no seguinte endereço:
orgânicos, fazem crescer algo por dentro www.igapdealmas.bandcamp.com
Outras informações e contato pelo:
das máquinas-corpos, desmembram e www.igapodealmas.com
assim formam um corpo outro. Somos um projeto independente e adepto das
gambiarras.
Por um tempo começamos a pensar
que somos sintetizadores, na verdade,
biossintetizadores, talvez possamos al-
237
238
SOBRE ENTEÓGENOS,
A QUÍMICA DA CONSCIÊNCIA E
DISPOSITIVO RACIONAL
Valentina Montero P.
Ingrid Tartakowsky L.

Neste ensaio vamos tentar descre- onde surgem plantas da Rocha,


ver como o uso de enteógenos1 pode ser e enormes crustáceos
considerado uma prática orientada à des- eclodem do teu interior
construção ou hacking da noção de cons- e quebram a casca do corpo)
ciência que caracteriza o sujeito moderno. atravessando o Pacífico em uma
O texto explica como os estados altera- canoa ate a Ilha de Páscoa "
dos de consciência, mais do que um (10 de Julho 1953).
processo de expansão desta, têm a ver
com uma constrição ou inibição de certas Assim escreveu William Burrou-
áreas mentais ligadas à racionalidade e ghs, em uma carta a seu amigo Allen
ao pensamento lógico formal, que são Ginsberg, em uma das muitas experiên-
aqueles nos quais a cultura ocidental tem cias que ele tinha experimentando com
localizado como hegemônica, desvalo- diferentes substâncias em sua viagem
rizando, portanto, outros estados da para o México e Peru na década de 50.
exis tência, e, com isso, os sistemas Muito dessas visões se manifestaria mais
cosmológicos de outras culturas. tarde em seu famoso livro "Almoço Nu",
que à luz dessas cartas poderiam ser en-
Rumo a uma tecnologia do eu tendidas apenas como uma invenção
"A ayahuasca é uma viagem no literária, como um testemunho de possi-
espaço e no tempo. bilidades cognitivas e perceptivas atin-
O quarto parece tremer e vibrar. gíveis pelo consciente uso de certas
O sangue e a substância de tecnologias.
muitas raças – negra, polinésia, E dizemos aqui "tecnologia" como
montanhesa, mongol, nômades um conceito não só referente à utilização
do deserto, poliglotas, de dispositivos Técnicos que comportam-
Oriente Próximo Índia –, se com certas características e inventa-
de novas e inconcebidas raças dos a priori; mas em um sentido mais
ainda não nascidas, amplo como um processo de criação de
combinações ainda inexistentes, ferramentas para moldar e controlar o
passam por seu corpo. meio (Kurzweil 1999).
Migrações viagens incríveis A noção de tecnologia também
através de selvas e montanhas abrange questões de corte social: proto-
(Extâse e morte em vales colos, gestualidades, rotinas, que vão es-
montanhosos confinados, tabelecer padrões de comportamento
239
envolvidos na construção de entidades biente e as condições materiais e sociais
específicas. Esta abordagem pode ser em que nós aprendemos as técnicas do
rastreada em antropologia em pen- Eu que nos formaram. A imaginação nos
sadores como Marcel Mauss, que em permite avançar com esperança para um
suas "Técnicas e movimentos corporais" extremo polar do que somos, mas sem-
ensaio escrito em 1934 refletiu sobre pre dentro da mesma órbita.2
como a sociedade impõe aos corpos uma Foucault continuava: "Pode-se
série de práticas específicas que são o dizer, em conclusão, que o problema
que os constituirá culturalmente. Michel político, ético, social, filosófico de nossos
Foucault, retomando esta abordagem, dias não é tentar libertar o indivíduo das
traça um itinerário desconstrutivo, que instituições estatais e estaduais, mas
analisa os processos de formação do para nos libertar do Estado e do tipo de
conhecimento, poder, história e subjetivi- individualização ligadas a ele". Preci-
dade a partir desta noção de "tecnologia". samos promover novas formas de subje-
De acordo com sua análise, cada uma tividade por rejeitar o tipo de individualidade
dessas dimensões envolve o uso de uma que tem sido imposta há séculos" (Fou-
série de técnicas e procedimentos que cault, 1991: 234). Mas promover estas
operam de formas complexas sobre a so- novas formas de subjetividade que ape-
ciedade em geral e indivíduos em parti- lavam Foucault, ainda seguem girando
cular ao nível da biopolítica. Assim, bem nesta órbita cartesiana, humanista que
descrever o pensamento pós-estrutural- contempla-se a si mesma nas fronteiras
ista (Derrida, Kristeva, Deleuze) e femi- disciplinares que a linguagem, como uma
nista em particular (De Lauretis, Wittig, tecnologia de racionalidade parcial, outor-
Butler, Haraway), o sujeito moderno é gou-lhe.
construído pela soma de uma série de É neste sentido que hoje, apenas
tecnologias que vão traçando seus perfis num momento em que a sociedade
no conceito de identidade, seja de raça, "ocidentalizada" questiona premissas hi-
classe social e/ou sexo. erárquicas envolvendo a ideia do renas-
É assim que podemos tomar conta cimento do "humanismo"3 surge um
sobre o desenho e pauta do que somos, chamado para integrar práticas medici-
identificando claramente costuras que nais antigas como um meio de libertação
constrõem nossa identidade, o projeto e expansão de habilidades psíquicas dos
fundamental de nossa contemporanei- indivíduos, desmantelando ou, em termos
dade. Nas palavras de Foucault: "Sem tecnológicos atuais, hakeando o sistema
dúvida, o principal objetivo hoje não é racionalista em vigor, o que traria o lugar
para descobrir o que somos, mas de re- e o papel da subjetividade em outro para-
cusar o que somos. Temos de imaginar e digma, redefinindo a ordem política no
construir o que poderíamos ser para li- seu sentido mais amplo.
bertar-nos de tal política "dupla atadura", O xamanismo – uma prática an-
que é a individualização e simultânea to- cestral definida pelo historiador das re-
talização das estruturas do poder mo - ligiões Mircea Eliade como "técnicas
derno" (Foucault, 1991: 68-69). Mas arcaicas de êxtase" – torna-se o objeto de
provavelmente imaginar não é o sufi- estudo, experimentação e curiosidade
ciente, uma vez que o processo de proje- pelo sujeito moderno ocidentalizado, não
tar um eu diferente do que somos parte apenas como uma novidade antropológi-
de supostos delimitados por nosso conhe- ca para ser integrada no inventário das
cimento racional, confinado ao meio am- culturas periféricas à origem da Europa
240
central ocidental racionalista, mas tam- nificado ou o valor" (Hofmann 2006: 11).
bém abre as portas para uma possível Sobre formas induzidas, pesquisou o uso
mudança estrutural, de cura não só de de vários métodos de forma isolada ou
indivíduos, mas da sociedade em um combinada. Os seres humanos desen-
nível mais profundo, suturando a ferida volveram diferentes técnicas que vão
colonial cartesiana aberta no inicio da desde a "privação sensorial e de mortifi-
modernidade. cação física até as meditativas e as-
Exemplo desta mudança é encon- céticas, para aquelas utilizadas como
trado em muitas frentes; dos movimentos estados gatilho transe e possessão,
ecológicos, antiglobalização, pós-huma- dança e som de determinados instrumen-
nistas ou mesmo no campo das artes da tos musicais; finalmente (e certamente não
mídia. Roy Ascott, artista e pesquisador, em ordem de importância), técnicas que en-
iniciou nos anos 90 um trabalho inves- volvem a utilização de plantas com efeitos
tigativo sobre a questão da consciência e psicoativos, principalmente alucinógeno.
respostas que disciplinas aparentemente Este último é uma das mais antigas técni-
muito distantes entre si – de acordo com cas de modificação de consciência e re-
a cultura ocidental – como ciência, arte e monta quase certamente a extensa Idade
xamanismo, poderiam fornecer. Em suas da Pedra" (Samorini 2001: 12).
experiências com ayahuasca, a que ele O uso de substâncias encontradas
se referiu como "tecnologia de plantas" na natureza não é apenas uma das técni-
(Ascott 2003) – encontrou uma possível cas mais antigas, mas também um dos
ligação entre os procedimentos realiza- mais difundidos, rápidos e eficientes para
dos com o Santo Daime4 e investigações alcançar outros estados de consciência.
tecnológicas sobre realidade aumentada "Enquanto oferecemos nossas experiên-
contemporâneas. Da mesma maneira, o cias, mediante o uso de alguma substân-
artista Anahí Cáceres estabelece parale- cia ou método, apenas algum aspecto
los entre as cerimônias Mapuche- novo e adicional da realidade, certamente
Nguillatún – de súplica, e Machitún - de não será censurável para tais meios; pelo
sanação – e as instalações multimidia, contrário, deve-se sentir e conhecer mais
colocando as duas práticas como exem- facetas "da" realidade que torna-se mais
plos de criação de espaços para a experi- real para nós" (Hofmann 2006: 169-170).
mentação com base em estímulos No entanto, em nossa cultura ocidental, o
perceptivos e narrativas não-lineares. uso de plantas, animais e fungos para al-
cançar esses estados tem sido a escolha
TECNOLOGIA VEGETAL, mais incompreendida e polêmica.
ANIMAL E FÚNGICA. Uma droga é uma substância que,
A QUÍMICA DA CONSCIÊNCIA. independentemente do sua finalidade, é
A pesquisa para a expansão das possível alterar uma ou mais funções,
capacidades cognitivas e perceptivas dos assim que é introduzido no corpo. Os psi-
indivíduos tem uma longa história, gra- coativos correspondem aos que modifi-
vando seu surgimento na história de cam a consciência e o comportamento,
maneira tanto espontânea quanto in- ao entrar em contato com o sistema ner-
duzida. A respeito das aparições espon- voso central. Sua capacidade de alterar o
tâneas, "Uma pesquisa recente mostrou estado ordinário de consciência ocorre
que muitas pessoas tendem a ter expe- como um fenômeno natural, tal como
riências visionárias na vida cotidiana, mas emerge o estado consciente da mente
geralmente não reconhecem o seu sig- que governa nossa existência diária.
241
Isto, naturalmente, baseia-se nas possi- mudanças na dieta. Os primeiros homi-
bilidades inerentes em nosso corpo, e ao nídeos, com cérebros um pouco maior do
que acontece ao ingerir uma substância que os dos chimpanzés - andavam de pé,
psicoativa é parte do repertório de possi- se alimentavam de frutas e pequenos ani-
bilidades de nossa capacidade de viver mais. Ao longo do tempo, acrescentaram
experiências. Ou seja, surgem os dife- raízes e tubérculos para a sua dieta, e
rentes estados de consciência, porque seu cérebro foi aumentando de tamanho.
eles já estão em nós como uma habili- Este ritmo lento de crescimento do cére-
dade natural, e nunca como algo artificial. bro foi acelerado repentinamente. Homo
Aqui convém definir o seguinte habilis, com um cérebro que pesava 770
escopo: a distinção entre "natural" e "arti- gramas, depois de um milhão de anos
ficial" funciona como uma fronteira arbi- deu um passo ao Homo erectus com um
trária que tem tentado desvincular o cérebro 900-1100 gramas. A partir dele
potencial inerente dos seres com seu evoluíram os seres humanos modernos,
meio ambiente. Esta fronteira, herdeira do e depois de três milhões de anos o
pensamento dualista que separa a di- tamanho do cérebro triplicou. Esta mudança
mensão ideal ou conceitual do material - rápida sugere processos de seleção natu-
permanece como uma armadilha gerada ral extraordinários, que marcaram o início
pela modernidade. Isso começa no sécu- de grandes mudanças na organização
lo XIX, com o domínio da farmacologia social e incorporaram o uso da tecnolo-
das drogas, e no século XX, com a sín- gia, assim como as ferramentas e lin-
tese de substâncias com efeitos sobre a guagem de fogo que permitiram o
mente por psicofarmacologia. Na pro- surgimento de indivíduos de consciência
dução de ansiolíticos, antipsicóticos, e autoconhecimento (McKenna 1993).
estabilizadores de humor e produtos an- Em "2001 Odisseia no Espaço", di-
tidepressivos, eles tentaram neutralizar rigido por Kubrick, um grupo de macacos
os aspectos sutis de consciência, intro- presenciava atônito um misterioso mono-
metendo-se nos recessos mais profundos lito: metáfora do momento inicial em que
de nossa subjetividade. Esta é provavel- a consciência racionalista se instalava em
mente a perseguição mais violenta que nossos cérebros. Desde a etnobotânica,
tem sido feito no mundo moderno, ten- uma hipótese sobre a rápida mutação
tando governar não as drogas, mas sobre deste corpo é atribuída à introdução de
os estados mentais dos seres humanos. componentes psicoativos na alimentação,
No entanto, esta censura também signifi- o que teria influenciado rapidamente na
cou uma história paralela de resistência reorganização das suas capacidades de
expressa em experiências com outros es- processamento de informações, e, por-
tados de consciência. tanto, sobre a sensibilidade do ser hu-
Por mais que se recuse, os seres mano ligado ao meio ambiente e suas
humanos tendem a viver experiências formas de vínculo com o meio. A ingestão
com base em outros estados mentais, e de plantas, animais e fungos portadores
nosso corpo opera em sincronia com desses princípios poderia ser responsável
eles. Por exemplo, em termos evolutivos, pelo surgimento da consciência auto-
o desenvolvimento do cérebro humano reflexiva humana. Para McKenna "al-
passou através de diferentes fases, cada ca lóides de plantas, principalmente
uma das quais tem tomado cerca de dez compostos alucinógenos como a psilocib-
milhões de anos para desenvolver. Estes ina, dimetiltriptamina (DMT), e harmalina,
têm sido acontecimentos ligados a certas podem ser fatores químicos da dieta
242
proto-humana que catalisaram o surgi- tepassados répteis e animais marinhos
mento de auto-consciência" (1993: 49), (Snyder, 1999).
atuando "como catálise no desenvolvimento É nesta camada mais arcaica onde
da imaginação, alimentando a criação de se encontram a maioria dos receptores
estratagemas internos e possibilidades que opiáceos do nosso atual órgão cerebral,
talvez acordaram o surgimento da lingua- que, ao interagir com o ópio e seus de-
gem e da religião" (1993: 49-50). rivados nos permitem sentir os efeitos da
E estima-se que a própria ideia da analgesia e consequentes mudanças em
divindade aparece como resultado das nossa consciência. Uma explicação da
práticas de tomar substâncias, a aparição presença de tais receptores concentrados
da arte, o pensamento abstrato, a icono- no arquicérebro e sua menor existência
grafia, as concepções de outros mundos em outras camadas, em primeiro lugar,
e a noção da morte também foram con- percebe uma relação estreita e histórica
sequências dos efeitos do uso repetido com papoula. O uso recorrente desta
destas tecnologias disponíveis no ambi- planta foi então ligado a certas funções
ente natural. Com a sua psicoatividade, associadas com a sobrevivência com que
estas espécies ajudaram a determinar a os nossos antepassados répteis e animais
implantação da cultura, promovendo o marinhos lidavam. Além disso, esta forma
desenvolvimento de nossas sociedades de distribuição dos receptores mostra a
atuais (Furst 2002). arcaica produção de moléculas opiáceas
Esta relação de proximidade entre internas por parte de nosso organismo. As
os seres humanos e seu meio ambiente endorfinas, péptidios opiáceos endógenos
nos permite compreender como o nosso naturais tais, são um exemplo deles. Estes
cérebro vem se configurando um sis- são inseridos no mesmo sistema de anal-
tema composto de três cérebros distin- gesia a que se acoplam opiáceos exter-
tos, que surgiram como resultado de nos, mostrando resultados consistentes
diferentes estágios evolutivos. Cada uma para a sua existência.
destas camadas opera com diferentes Assim, podemos ver que o nosso
produtos químicos e mantém separadas cérebro e suas funções evoluíram junta-
suas funções, mesmo quando mantidos mente com a história da incorporação do
interligados e trabalhando em uníssono. que poderíamos chamar de "tecnologias
A última encontra-se formada na super- psicoativas". O acoplamento tecnológico
fície, e as funções de reprodução cria- estrutural que permitem os receptores
tiva, explicativas e de associação, de cerebrais tem favorecido ao longo da
modo que é chamado de "cérebro hu- história da integração de substâncias
mano" ou "neocórtex". O Homo sapiens tanto externas como internas ao nosso
foi o único a desenvolvê-lo. A camada organismo, o que permitiu a criação e ex-
media desprende funções relacionadas periência de novos estados de cons-
com a memória afetiva, que surgiram em ciência. Lentamente, ao longo de
mamíferos selvagens.. É conhecido co- milênios, nossos receptores evoluíram
mo "cérebro límbico" ou "paleoma- porque foram existindo essas substâncias
mífero". A camada mais profunda a serem integradas, e por sua vez, essas
corresponde à estrutura mais antiga da substâncias emergiram porque se foram
evolução, que é associado com o medo desenvolvendo receptores para integrá-
e a sobrevivência imediata. É chamado las. Um acordo mútuo de existência foi
de "arquicerebro" ou "cérebro reptiliano" moldado um ao outro em torno de um fun-
porque partilhamos com os nossos an- cionamento unívoco. O que veio primeiro
243
na evolução da consciência foi um en- os conhecimentos associados com for-
contro de reciprocidade, uma química mas de preparação, dosagem e ingestão
compartilhada entre o homem e seu am- de espécies psicoativas. A mistura conhe-
biente, entre substâncias externas e in- cida como "ayahuasca", que é um pro-
ternas que foram marcando os passos de duto derivado da cozinha de dois tipos de
seu desenvolvimento. plantas, surge apenas após o domínio do
Na química da consciência somos fogo pelos nossos ancestrais. Sabemos,
semelhantes ao reino vegetal, animal e além disso, que se devia misturar uma
fúngico. Tornamo-nos uma forma mútua planta portadora de Dimetiltriptamina
e coordenada, em um processo evolutivo (DMT) – sua molécula psicoativa – e outra
que tem sido bastante espontâneo e contendo IMAOS`s – inibidores enzimáti-
aleatório também tem tido muito de cons- cos que permitem a ativação de DMT
ciente. Os seres humanos têm sele- quando ingerido oralmente – este é um
cionado plantas, animais e fungos conhecimento que caminhou de mãos
precisamente pelas suas propriedades dadas com a evolução da consciência.
psicoativas. De forma intencional vêm
resguardando variedades que os permiti- ENTEÓGENOS. CONTRAÇÃO
ram experimentar distintos estados men- DOS MONSTROS DA RAZÃO
tais e outras realidades, ao mesmo tempo Ao longo da história e através das
que tem gerado conhecimento sobre os culturas, o saber sobre a transcendência
diversos modos de preparação destas es- da realidade ordinária tem sido admi-
pécies e suas mais adequadas formas de nistrado pelos xamãs, os especialistas
incorporação ao organismo. em trânsito pelos territórios sobrenaturais,
O resguardo consciente de varie- visitantes hábeis de outros mundos, luga-
dades vegetais – tendência que posteri- res multidimensionais. Seus poderes
ormente levou à agricultura é uma maravilhosos os posicionam como agen-
hipótese que explica a existência atual tes responsáveis por facilitar experiências
das plantas de cannabis com uma ele- com enteógenos, gerando estados altera-
vada percentagem de tricomas, glândulas dos de consciência em comunidades de
portadoras canabinóides. Estes últimos várias partes do mundo. Desde tempos
correspondem às moléculas de trans- imemoriais os rompantes de êxtase e
porte de propriedades medicinais e psi- transe tem sido considerados estados
coativas, as que pensa-se que com a mais elevados de consciência, e sido
passagem do tempo foram aumentando interpretados como fenômenos místicos,
em número. Isto significa que o seu po- como viagens a mundos espirituais
tencial psicoativo aumentou com o curso (Samorini, 2001).
da evolução. Embora até à presente data O termo "enteógeno" vem do "en-
não se compreenda a tarefa que estas theos" grego que significa "Deus gerado
glândulas e suas canabinóides desem- dentro" e declara a propriedade de tais
penham para o funcionamento da planta espécies "que revelam a divindade que
em si mesma, a única explicação susten- está dentro de você" (Samorini 2001)
tável é a seleção consciente do que tem como um acoplamento tecnológico no
realizado o ser humano, com a intenção tempo presente e imanente o ser hu-
de preservar as espécies desta planta mano. As descrições dadas pelos sujeitos
que tiveram o mais alto poder de modifi- modernos sobre essas experiências
cador da consciência. fazem referência a um sentido de unidade
Assim também foram protegidos com todas as coisas e interligação entre
244
as pessoas, a um sentido do sagrado "expandindo a mente", "aumentar as ca-
acompanhado de paz e felicidade, a trans- pacidades do Eu", gerando este "estado
cendência do tempo e espaço, junta- mental "particular. No entanto, durante
mente com uma certeza intuitiva sobre esta experiência a mente racional não
a experiência como fonte de verdade surge, já que o Eu cartesiano desa-
objetiva sobre a natureza da realidade. parece. Não se vivencia um excesso de
O poder destes estados promove mu- individualidade, nem um excesso do su-
danças profundas no assunto, a sua jeito cotidiano, tampouco se manifesta
personalidade e relações interpessoais, seu pensamento dualista-racional. O que
transformando o seu posicionamento antes da ingestão do enteógeno foi ex-
político e ética. perimentado como Eu, dilui-se na pre-
O sujeito moderno tentou entender sença unificada do meio ambiente e
estes estados de consciência diferentes alteridade. A consciência comum é su-
da cartesiana, utilizando os seus próprios primida, silenciada, desabitada, e outros
conhecimentos, tecnologias e racionali- estados entram no jogo com o que antes
dade. As últimas descobertas científicas era o dualismo / alteridade. O abismo
sobre os efeitos dos psicoativos da existencial que a consciência cotidiana in-
psilocibina – princípio psicoativo presente tuía diante da incompreensão de seu
nos fungos conhecidos coloquialmente próprio ser no mundo, desaparece. Mons-
como "cogumelos mágicos" – percebe tros que a razão sonha se transmutam.
uma diminuição da atividade e conectivi- Ele se torna sem sentido como tal (Ott,
dade entre áreas do cérebro respon- 1998). A razão confessa como um artifí-
sáveis pela realização de uma ligação cio dos poderes hegemônicos da moder-
central, de integrar a rota e a informação. nidade, não só como um mecanismo ou
Ativando áreas do tálamo, o giro do cín- dispositivo que opera governando nossas
gulo e o córtex pré-frontal medial geram formas de existência cotidiana e ins-
a experiência de si mesmo, a noção do crevendo a racionalidade como o lugar da
eu, e consciência individual como uma única verdade, senão também como arti-
instância separada da existência de ou- manha que amarra os enrolados do
tros substratos. O declínio desta atividade poder, com o objetivo de dominar os es-
põe em risco então o abismo interpessoal tados mentais.
que marca nossas relações sociais coti- A subversão lógica da racionalidade
dianas, já que suspende de forma tempo- nos abre para novas formas de consciência
ral a existência de cada eu cartesiano e subjetividade da qual emerge o "divino".
diferenciado de seu entorno e dos demais. Acontece o que sempre esteve presente
Quanto mais a atividade cerebral diminui, nas profundezas de nossa existência: o
quanto maior for a intensidade dos efeitos que experimentaram os nossos antepas-
subjetivos do enteógeno, aumenta a vivên- sados durante milhares de anos como a
cia de amplitude "sem limites" e da cons- revelação mais profunda da verdade, e
ciência experimentada como uma fusão também nós vivenciamos durante a nossa
com o meio e a eternidade espaço-tempo- infância, habitando-a como um contínuo
ral. (Carhart-Harris et al. 2012) presente "sem limites". Operações tec-
Este estado de transcendência nológicas de outras épocas são atualiza-
místico-espiritual é muitas vezes expli- dos em uma experiência natural que nos
cado por cientistas e pesquisadores como permite desvendar o mistério do eterno.
uma "amplitude de consciência" através É curioso e pode parecer para-
do prisma onde estas tecnologias atuam doxal notar que, se, em primeiro lugar, a
245
distinção de "humano", ou seja, esta cons- Notas:

ciência individualizada do ser a respeito


1. “A palavra enteógeno, que significa literalmente
"manifestação interior do divino", deriva de uma palavra
do mundo, conseguiu desenvolver o uso grega que refere à comunhão religiosa sob efeito de
das primeiras formas de enteógenos atu- substâncias visionárias.”(wikipedia)
2. Los imaginarios políticos que demarcaron el siglo XX
ais, hoje , estas substâncias – que têm son buen ejemplo de ello. Tanto las sociedades
mudado com os seres humanos através neoliberales como las socialistas partían de una misma
base productiva, de corte capitalista.
da história – estão trabalhando em nós, 3. Que situaba a los especímenes humanos blancos,
logo após uma aparente recuperação de europeos, en un lugar privilegiado en relación a otros

um estado de ser semelhante à arcaica,


humanos y a otras especies.
4. Ritual sincrético religioso practicado en la Amazonía.
mas que não despreza o caminho per-
corrido. Isso mostra que as espécies psi-
coativas foram sempre intervindo e
negociando em simbiose com a nossa
existência, em um processo dinâmico,
vital e inesperado. A nossa racionalidade
e consciência individual hoje pode viver
com a experiência de tudo, de ser en-
grenagem e sistema da eternidade. Mas
esse raciocínio, conquistado por nossa
espécie e hipertrofiado pela cultura oci-
dental a partir do seu exercício hege-
mônico, deixará de ser a única dimensão
possível.
Alguns anos atrás, participei de
uma cura com ayahuasca nos pés do
monte de Montserrat, na Catalunha, Es-
panha. Matsini Yawanawa, Yawanawa
vindo da tribo dos filhos de Mutum Ama-
zon, cantou suas canções para uma
longa noite de lua cheia, e deu-nos a
todos um pouco de medicina; eu estava
usando cocar de penas e vestindo jeans.
Na manhã seguinte, lhe perguntamos
qual era o significado de seu trabalho lá,
dando este medicamento a um grupo de
classe média europeia e sul-americana.
Ele nos disse que a Pajé de sua tribo, há
muitos anos, ele lhes havia contado sobre
uma visão: a salvação do planeta pas-
sava por encontrar um remédio para curar
o homem branco.

246
A CANÇÃO
DA VELA
Wonjung Shin

tensionam seus lábios e sopram suave-


mente a chama das velas, ou quando
Sobre obra
de Diana Band algum vento leve passa pelo lugar fazendo
com que as chamas se movimentem.
"Então, como um fogo esquecido, Assobios, vozes, sons tônicos que
a infância pode voltar a também lembram gotas de água, ruídos
faiscar dentro da gente." leves ou instáveis que soam como se
Gaston Bachelard algumas nuvens pesadas estivessem
passando. Esses sons são amostras
Enquanto ferramenta das ativi- selecionadas a partir do conjunto de
dades cotidianas e também como meio imaginações infinitas que poderiam ser
entre sujeito e objeto, o corpo existe concebidas a partir do ato de “tensionar
fundamentalmente para as comunica- os lábios e soprar as luzes da vela”.
ções. O corpo e o sentido nos trazem a Este trabalho é resultado de um
possibilidade de inter-relação e inter-co- esforço para compartilhar o prazer de se
municação. Em um mundo onde a comu- acender este conjunto de imaginações in-
nicação sem palavras foi expelida, o finitas que é evocado por objetos sutil-
relacionamento torna-se frágil a ponto de mente transmutados.
facilmente quebrar-se em pedaços. A
nostalgia somente será possível quando
eu, você e o mundo formos capazes de
nos entender – uns aos outros – sem usar
palavras.
{Candle Song}, uma instalação
sonora interativa, recupera a memória
das substâncias no mundo e transmuta a
percepção entre sujeitos e objetos, em
busca de uma comunicação universal.
Quando o público, inicialmente, entra
no lugar, espera-se que fique impressiona-
do com espetáculos de velas acesas e com
o espaço iluminado pela luz de velas. No
momento seguinte a ideia é descobrir uma
série de sons gerados quando as pessoas
247
Remember me my 30days, 2013
Instalação de Diana Band.
Vista da instalação nos dias abertos
do programa de residência em Seul.

249
Perfomance Limpeza
Azteca com Xamã Ce
Quiahuit. Fotos cedidas
por Marcelo Gandhi, 2014
PERFOMANCE
LIMPEZA AZTECA
XAMÃ CE QUIAHUIT
marcelo Gandhi

Desde que fui morar em São Paulo TEDRAL INFORMA UMA ESPÉCIE DE
comecei a me mascarar PARA FAZER RESISTÊNCIA AO PODERIO ESPA-
PER FORMANCE, BLINDAGEM, AS- NHOL QUE MASSACROU A CULTURA
SUNÇÃO DE IDENTIDADES OUTRAS, AZTECA E OUTROS POR TODO O
CRISE DE IDENTIDADE... saindo do meu MÉXICO, PROPONHO MASCARADO,
próprio umbigo e vendo o contexto social, UNIDADE MAC ( MICKEY CAVEIRA ADI-
político econômico, comportamental do DAS ) SER LIMPADO E DEFUMADO
qual sou fruto, agente e reagente, a más- PELO XAMÃ AZTECA, ESTE OPRIMI-
cara é uma forma de denúncia e proble- DO, DESTRUÍDO E SOBREVIVENTE
matização das profundas crises de DO ETNOCÍDIO E GENOCÍDIO ESPA-
representação que vivemos hoje e seus NHOL, PAGO 50 PESOS PARA O XAMÃ
efeitos num coletivo, eu negro, árabe, ME LIMPAR , A RELAÇÃO DE PODER
índio, veado, nordestino morando numa PRESENTE NO SISTEMA FINANCEIRO
grande metrópole imensa de uma plebe EU PAGO VC FAZ AINDA IMPERA NA
italiana, espanhola, portuguesa em busca RELAÇÃO, MAS ACHO PONTUAL A
de uma recriação de seu status e do seu UNIDADE MAC SE SUBMETER À UMA
reino perdido... eu margem, invisível pe- LIMPEZA E RECONHECER NO XAMÃ
rante a coroa européia e seu eurocen- AZTECA UMA PRESENÇA E UMA COR-
trismo enferrujado e morto.... eu colonizado POREIDADE NÃO MAIS TAO INVISÍ-
Nova Iorque, Paris, México... MÉXICO VEL ASSIM... o XAMÃ CE QUIAHUIT ME
ANO DE 2013 ESTOU NUM FESTIVAL PERGUNTA PORQUE USO A MÁSCARA
DE PERFORMANCE EXTRA NÚMERO E AS ROUPAS E DIGO QUE É UM TRA-
5, ORGANIZADO POR PANCHO LOPEZ, BALHO SOBRE RELAÇÃO DE PODER
JÁ FAZ 20 DIAS QUE ESTOU EM DF E OPRESSÃO E QUE O OBJETIVO É
MEXICO E ACHO MUITO FORTE VER ELE ME LIMPAR DE TUDO ISSO .....
XAMÃS AZTECAS REALIZANDO DEFU-
MAÇOES NAS PESSOAS EM FRENTE
À CATEDRAL CRISTA DE ZOCALO,
ZOCALO CENTRO DA CIDADE DO
MEXICO, O QUE ANTES ERA UMA COM-
PLEXA ARQUITETURA DE PIRÂMIDES,
HOJE É UMA COMPLEXA ARQUITE-
TURA NEOCOLONIAL ESPANHOLA,
AQUELES XAMÃS EM FRENTE À CA-
251
252
Atividades da Rede Mocambos. Pajelança
Quilombólica Digital - Territórios Digitais
Livres, 2015. Fotos: Robson B. Sampaio.
A VIAGEM
DE MANA
Vincenzo Tozzi

Mana chegou á pé do baobá e sen- "Recados para Mana: tem uma


tou numa raiz que saía e voltava na terra, sacola para você no Ateliê, se
formando um banquinho natural. Abriu a puder levar para o seu Mocambo.
saca de pano que sempre carregava Ah... Conseguiu trazer aqueles se-
procurando algo. Era o que Mana acostu- mentes e o tambor que estavam no
mava fazer sempre que visitava um Mo- Navio Mercado Sul? Qualquer
cambo. Enquanto as crianças, como coisas pode deixar no espaço de
costume, se juntavam em volta do Baobá, troca. Boa viagem, pela Rota dos
Mana arrumava no chão o que carregava Baobás, Asé!"
da sua ultima viagem.
As crianças começaram logo a Este conto, vem de um futuro pos-
ficar curiosas, "o que é isso?!", "pode sível. O Brasil, hoje potência econômica-
comer?", "É pro Mocambo?"... mundial, é também berço de povos
E Mana.. "Isso, se chama choco- tradicionais indígenas e afrodescen-
late, podem comer, é de cacau orgânico dentes que resistem a seculos a devas-
que resistiu aos vírus transgênicos.. "En- tação trazida antes pelo colonialismo e
quanto falava a Mucua que Mana tinha hoje pelo capitalismo global. Além do de-
encostado no Baobá, começava a proje- safio de enfrentar essa poderosa máquina,
tar imagens do Mocambo Terra Vista. esses povos compartilham cosmovisões
Uma criança que estava na roda pegou e culturas de pertencimento e manejo da
uma vareta de madeira e usou para inte- natureza, resguardando valores comu-
ragir com as imagens do Baobáxia. De re- nitários tão importantes e tão raros no
pente um vídeo apareceu contando a mundo colonizado de hoje. A luta e a re-
história das SOR - Sementes Organica- sistência, partindo da questão fundiária e
mente Resistentes: "quando começaram a de garantia da posse da terra, se enraíza
espalhar-se os vírus transgênicos, as úni- nas ancestralidades e identidades cultu-
cas plantas que sobreviveram foram nos rais que permitiram nos seculos, além de
Mocambos guardiões das SOR, onde as preservar a terra, manter e desenvolver
sementes orgânicas mais resistentes eram os próprios territórios culturais. A Rede
multiplicadas..." Mocambos nasce neste contexto com a
As crianças eram extasiadas pela proposta de juntar as comunidade forta-
descoberta do chocolate e registraram o lecendo a comunicação, através das
momento no Abdias, Mucua da Tainã. tecnologias ancestrais e as novas possi-
Mana seguiu contando histórias bilidades do mundo digital. Neste sentido,
por um tempo, com ajuda da sua Mucua a Casa de Cultura Tainã, promotora da
que enquanto isso sincronizava com a Rede, já vinha se aproximando do Soft-
Mucua Abdias e recebia as novas infor- ware Livre e do movimento FLOSS, que
mações do Mocambo: na ultima década conseguiu alcançar
novos espaços no Brasil, graças a lutas

255
dos movimentos e conquista de mais in- Os quilombolas marcavam encon-
vestimentos públicos, como o programa tro todos os dias nas estações rádio base
Cultura Viva e os Pontos de Cultura. A das comunidades para receber e reen-
ideia do compartilhar trazida pelo movi- caminhar as mensagens, ate chegar as
mento do software livre se encontra natu- comunidades mais distantes. Baobáxia
ralmente com as praticas tradicionais de nasce dessas experiencias e pesquisas
vida comunitárias e cria novos territórios propondo uma tecnologia que dialogue
culturais de experimentação e produção. com as culturas e praticas tradicionais e
Os elementos simbólicos e transcenden- aproxime de forma respeitosa ás possi-
tais são fortemente presentes nesses ter- bilidades do mundo digital. Baobáxia é
ritórios onde outras dimensões são um neologismo derivante da "Galaxia de
cul tuadas e preservadas, com a dedi- Baobás" já que a tecnologia propõe in-
cação das/os pajés, curandeiras/os, terligar as memórias de diferentes comu-
babas e ialorixás. As comunidades da nidades. Os nós da rede Baobáxia, são
Rede vem se juntando também de forma chamados Mucuas, nome do fruto do
transcendental pela Rota do Baobás, Baobá, no lugar de "server", nome co-
plantando, com rituais próprios de cada mum usado nas redes de computadores.
lugar e evocando a luta por um território Esses frutos mantém as sementes, as
livre, mudas da árvore africana que re- memorias digitais. A simbologia além de
presenta um elo com o passado e o fu- respeitar e dialogar com o contexto ajuda
turo. Na Rota, tecnologias xamânicas a definir o tipo de relação que buscamos.
tradicionais, como tambores e maracas, Plantar mucuas no lugar de instalar
são usados para transcender para outras server, ou seja entender a relação com a
dimensões. Com a chegada da dimensão maquina da mesma forma que as comu-
digital, cientes das novas possibilidades, nidades tradicionais se relacionam as
buscamos criar uma relação cultural e plantas. Cuidar para colher os frutos e
tecnológica que nos respeite e repre- compartilhar as sementes, no lugar de
sente. A Rede Mocambos, desde seus escravizar para obter lucros.
primórdios, tem promovido oficinas de
tecnologia livre com foco na produção
audiovisual. Veio se delinear a necessi-
dade de melhorar a preservação e o
compartilhamento das memorias digitais
produzidos já a um tempo pelas comu-
nidades e em conversas, durante os
encontros da Rede, chegamos a apro-
fundar este argumento, esboçando um
projeto chamado Tambores, Acervos e
Comunicação. Por outro lado começava
a experimentação de uma solução téc-
nica que casasse com o requisitos co-
muns, quais a possibilidade de funcionar
sem conexão e/ou com infraestruturas
precária. Neste sentido foi inspirador o
sistema de pontes rádios usados por al-
gumas comunidades quilombolas de
Oriximiná.
256
POSSESÃO
TRANCE
Ryan Jordan

"Estes iniciados praticam a em lugares diferentes do que eles real-


hipnose negra em clubes de mente estavam e isso causava confusão
hiperventilação psicoativa" de coordenação e uma sensação de de-
Setembro 2010 sencarnação; imagens muito nítidas de on-
dulações liquidas por todo teto; e quando
Esta forma de Possessão Trance é o sujeito colocou sua cabeça em frente à
diferente da dos cultos como o nigeriano luz, cerca de 10-15cm de distância, um
Hausa Bori, cujas divindades são chama- vórtice fluorescente verde-amarelo-ver-
dos para os rituais e guiam cavaleiros melho-azul espiral ultra-brilhante despen-
possuídos. Ela difere das famosas pos- cou gerado por dentro de um abismo
sessões espirituais demoníacas de Lou- psicodélico.
dun, França, onde espetáculos de massa A partir de aproximadamente início
de exorcismos públicos atraiu audiências de 2007 para meados de 2009 eu passei
na ordem dos milhares. muito tempo com a minha cabeça coberta
Esta possesão Trance não tem por um véu e sentado no chão com o es-
nenhum fundo cultural ou histórico de troboscópio na minha frente olhando di-
deuses, demônios, espíritos ou religiões. retamente para ele com um noise
Ela vem de uma educação experiencial barulhento escorrendo dos alto-falantes.
dentro de clãs de Núcleos contemporâ- Quando as performances Hausa Bori são
neos. Ela deriva em possessão por estar realizadas à noite elas possuem sobre-
viva dentro de sistemas de recursivade. carga sensorial e visual com a luz branca
A primeira experiência de algo brilhante de uma lâmpada de querosene
como o atual transe de possessão ocor- que é mantida perto dos participantes, a
reu no dia 23 de Janeiro de 2004 aproxi- maioria deles parece encarar a luz con-
madamente às 2:34. Uma grande dose de centrando-se em algum ponto bem além;
MDMA foi administrada e no escuro hard- assim é com os clãs do Núcleo ao olhar
core com luz estroboscópica envolta em diretamente para o de alta intensidade
uma fumaça de um canto apocalíptico que pisca-pisca do estroboscópio.
tomou conta do espaço enquanto chutes
epiléticos vibravam o ar e os ossos. Algo "O que está além?" ele pergunta
dentro do cérebro foi disparado. Algum em um sussurro seco, virando
treco se soltou. Não dormiu-se. a cabeça olhando por cima do
Experimentos começaram não mui- ombro. As sombras no canto
to depois de um estroboscópio de 60 respondem: "O Estranho faz".
watts. Embora a configuração tecnológica
estivessem com foco em tecnologias POSSESSÃO TRANCE
vestíveis, algumas experiências notáveis SE MANIFESTA
e memoráveis são dignos de nota. Havia É como uma porta para algum tipo
a ilusão dos membros do corpo estarem de matriz de realidade psicodélica. Muito

257
mais potente do que aquelas máquinas de lhantes flashes brancos de relâmpagos e
sonhos opiáceas Burroughesas. Esta é a fogo aparecem em rápida sucessão ema-
apoteose dos becos dos clãs Núcleo nando a radiação ultravioleta.
contemporâneos; turbo anfeta-psico-tripi- Capnomancia; adivinhação através
taminas splittercore; poções químicas al- das ajudas do fumo em visões. Partículas
tamente potentes liberando a ansiedade, de palo santo através dos receptores ol-
sabotada viagem no tempo. Vivemos nas fativos ligam-se com centros táticos da
periferias do nosso próprio ser. estrutura muscular interior levando-os a
De abril a junho de 2009, o sistema soltar-se e relaxar.
foi reorganizado para além do sinal... Discos separados. Formas fluídas
Os estroboscópios viraram-se e preenchem o ar e engolem tudo. Esto-
olharam para as cabeças da congre- cadas sub graves e explosões de ruído
gação. As tecnologias CMOS de Nicked branco gritam um canto obliterante ui-
Collins começaram a ser empenhadas na vando por dentro e causando ondulações
captura da luz e transformação desta em na fumaça. A grade fluorescente sobre-
um HEX noise sincronizado. Idéias de posta fixa a mente como milhares de
capnomancia infiltraram-se no ar. A dança dedos afundando-se profundamente den-
do tecnoxamã começou no Núcleo, atrás tro do cérebro e puxando para fora vias
das barras da prisão amorfa. neurais em todas as direções. O caminho
2010 viu o chocalho da psicose an- se divide em dois cilindros rotativos do-
fetamínica durante toda a noite com uma bráveis em direções opostas revelando
broca em 500bpm no hypno-crânio. natureza recursiva.
Crises cardíacas e palpitações são abun-
dantes. A água é essencial. Nós sempre O HOLOFLUX ESTÁ EMPENHADO
voltamos para os elementos básicos; o Descendo para o núcleo a tecnolo-
Núcleo. Recombinações com Z'EVian gia move-se em formações de cristal
rhythmajik causada por lâmpadas haló- bruto; bancos de dados minerais vazios.
genas explodem ricocheteando pelas Partículas nadam e cozinham no
paredes das 9 Câmaras. Possessão pântano, agrupando-se e logo em se-
Trance também foi usada em combinação guida estilhaçando-se pra fora em estru-
com experimentos de visão remota que turas dissipativas. Não há nenhum ponto
tentou visitar Tau Sagittarii, com sucesso real na retenção de qualquer informação,
limitado. As coisas começaram chacoa- a informação é constante e real e é ape-
lhar e meter pontapés na porta. nas esta informação que nós percebe-
O Estranho chega finalmente à pes- mos. É viver. O véu é removido. Portais
soa via 2500watts em 2011. Você deve são abertos. Encontro-me agora no
conhecer ele por sua forma de Xenon, tempo atual, fragmentos de memória re-
mas ele é muitos. Xenon, o "estrangeiro", mendam lentamente os pedaços do cére-
o "estranho", ou "convidado" é bem-vindo bro. A viagem pelo portal não é suave.
aqui. O Estranho, se inalado pode ser uti- Pregabs fudeu o circuito e uma fenda
lizado como um anestésico, uma vez que temporal induzindo portais de viagens no
é um antagonista da NDMA. Ao contrário tempo em um dia adiante e um dia ante-
do óxido nitroso, cetamina ou PCP, o Es- rior. Se você pode controlar o fluxo do
tranho tem uma falta de neurotoxicidade e tempo...
é relativamente caro para se reproduzir.
Quando o Estranho é animado por uma
descarga eletrônica de alta potência, bri-
258
Ryan Jordan vestindo seu protótipo de óculos
psicodélico em seu estúdio em Londres, 2012.
Foto cedida por Ryan Jordan.

259
1 2

3 4

7 8

260
GERADOR
QUILOMBOLA
Peetssa

5 6

9 1. Mata Atlântica primária do Vale do Ribeira.


2. Córrego do Salto, Barra do Turvo, Vale do Ribeira, SP.
3. Geometria dos geradores Suruwahá e Quilombola.
4. Indutor magnético dos geradores Suruwahá e Quilombola.
5. Induzido dos gerados Suruwahá e Quilombola.
6. Pinhão de bicicleta para multiplicação de velocidade.
7. Roda d'água.
8. Diversos indutores magnéticos.
9. Primeiro protótipo. Gerador P2RCA na Reserva
Canhambora, Iporanga, Vale do Ribeira, SP.
Fotos: Peetssa e Política do Impossível.

261
10 11

14 15

18

262
12 13

16 17

19 10. Rio Purus, Amazonas.


11. Construção de balsa hidroelétrica, Amazonas.
12. Construção de roda d'água para balsa hidrelétrica,
Amazonas.
13. Balsa hidrelétrica, Amazonas.
14. Coroa de bicicleta para multiplicação de velocidade.
15. Roda de bicicleta utilizada para indutor magnético do
gerador P2RCA.
16. Hard disk (HD) de computador quebrado.
17. Induzido do Gerador P2RCA.
18. Comunidade do Quilombo do Ribeirão Grande celebrando
a construção da Balsa Hidrelétrica, Barra do Turvo, SP.
19. Balsa hidrelétrica no Quilombo do Riberão Grande, Barra
do Turvo, SP.

263
20 21

22 23

24 20. Oficina de construção do Gerador Quilombola. Segunda


Pagelança Quilombólica Digital, Casa de Cultura Tainã,
Campinas, SP.
21. Oficina de construção de balsa hidrelétrica no Quilombo
do Ribeirão Grande, Barra do Turvo, SP.
22. Indutor magnético frontal do Gerador Catavento, CDC
Vento Leste, Cidade Patriarca, SP.
23. Indutor magnético traseiro do Gerador Catavento, CDC
Vento Leste, Cidade Patriarca, SP.
24. Maquinária do Gerador Catavento no CDC Vento Leste,
Cidade Patriarca, SP.

264
AGROFLORESTA E
TECNOXAMANISMO
Jonatan Sola

Falar de Agrofloresta é falar de Tec- OBSERVAR


noxamanismo, Ativo, Objetivo e Produtivo. A natureza, como ente, já passou
Os próprios termos manifestam por todos os problemas antes que nós, e
uma realidade que o antigo humano mo- os resolveu da maneira mais sensível e
derno não consegue conceber juntos, e magistral, convertendo os defeitos em vir-
nos abrem uma porta a outro modo de tudes e os problemas em soluções, ob-
pensar, onde é o equilíbrio e a abundân- servemos pois, comprendamos, copiemos
cia que nos traz a diversidade, o novo e enteratuemos.
paradigma que nos ilumina. Isso é o que um xamã faz, se
A diversidade, biodiversidade no entrelaça com a natureza, a respeita, a
caso da agrofloresta, é o elemento- admira com a potência dos seus conhe-
-chave que nos assegura o êxito, a pro- cimentos e seu trabalho.
dução, a abundância, a vida em maiús- Não há nada que inventar, não há
culo, mas, para ser levada a cabo, líderes que venham do céu ou da Terra a
precisa de uma mudança radical em salvar-nos ou castigar-nos.
nossa maneira de ver o mundo, e é aqui Não esperemos a intervenção de
que entra o xamanismo. ninguém, não passemos a responsabili-
Crescemos num mundo que teme dade a outros, somos nós os que pode-
a diversidade de sexo, de raça, de ideias, mos e devemos atuar.
de culturas… Um mundo masculino, Tampouco creiamos que o tempo
branco, cristão, consumista, depredador, foi perdido e que estávamos equivoca-
onde o diverso é depreciado. Nos fizeram dos. O caminho recorrido nos fez al-
crer que somos uma enfermidade para o cançar um nível tecnológico que nos
planeta e nos vendem comida orgânica e permite comunicar a nível planetário, que
luzes de baixo consumo para que pos- é a forma necessária para provocar mu-
samos limpar nossa consciência, nos danças rápidas no paradigma atual. Pois
fazem defender animais sem futuro como nos permite extrair e transportar, por
o urso panda, porque é bonito e nos toca exemplo, fósforo de minas longínquas
o coração, e por outro lado convertem as para equilibrar a terra danificada.
ervas, conhecidas como ervas daninhas Permite-nos, ainda, construir tra-
(más), em um problema a combater. tores que alimentam centenas de pessoas,
Estamos vivendo uma utopia que motosserras que facilitam enormemente
chegou ao fim. nosso trabalho, alimentados com petró-
E a resposta sempre esteve perto leo, um dos maiores bens do planeta, o
e sempre soubemos qual era, era preciso qual não queimaremos em congestiona-
tão só, chegar ao final do beco sem saída mentos estéreis, senão, que utilizaremos
para darmos a volta e ver que a luz es- sabiamente para contribuir com a acele-
tava atrás de nós, nos conhecimentos an- ração da sucessão natural de nossos
cestrais que levamos no nosso interior. bosques que por sua vez põe comida em

265
nossa mesa. Um trator não tira o trabalho não se come, ou que para extrair a raiz
de 40 pessoas, mas facilita a vida de 40 do gengibre não se necessita matar a
pessoas. Vivamos em abundância. planta, que segue se produzindo.
Não necessitamos trabalho, neces- Como é possível que vivamos em
sitamos de água, alimento e tecnologia esta miséria absoluta quando moramos
basicamente, depois muitas outras coisas em um lugar tão rico e abundante?
mais como saúde, mobilidade e fibra óp- Cada dia, cada minuto, cada se-
tica, mas deixemos de pedir trabalho. O gundo morre uma criança desnutrida, der-
trabalho é um meio necessário mas com rubamos uma árvore e começamos uma
organização anárquica, coerência e tec- guerra. Menos mal que usamos luzes de
nologia se pode reduzir a umas simples e baixo consumo, de mercúrio, e comemos
frutíferas horas por dia. comida orgânica que necessita de enor-
Dito isso, quanto ao uso da tec- mes extensões de pasto para que as
nologia atual, ainda que não pertença vacas nos outorguem seu valioso e politi-
exatamente a esse artigo, devo esclare- camente correto excremento orgânico.
cer que esta tecnologia é fruto de um Nada tenho contra o cultivo orgânico, mas
mundo em desequilíbrio e que novas tec- simplesmente não é a panaceia. Se por
nologias, algumas já inclusive inventadas razões de mercado ou pessoais se de-
ainda que esquecidas no ostracismo, cide a fazer cultivo orgânico, adiante há
devem evoluir para adaptar-se a nova soluções, mas não se pode esquecer de
ressonância do universo. Interessados no equilibrar bem o solo para não ter defi-
tema podem ler Viktor Schauwerger. ciências de nutrientes.
Abundância é outra das palavras- Outro valioso ensinamento que nos
-chave. traz a agrofloresta é que para implantá-
Observemos o comportamento da la há que se derrubar e podar tudo o que
natureza, alguém já parou para contar as existe no entorno para com seus restos
sementes que tem dentro de um tomate, acelerar o processo da vida.
um pepino ou um pimentão? Nem eu, mas Bonita analogia para nosso sis-
sei que são muitas e a planta não dá so- tema atual.
mente um tomate porque ele contém 50 a Os maiores problemas que temos
100 sementes e já assegura a sobre- podem se quer consertar com estas técni-
vivência. Ela dá muitos tomates porque cas, erosão, desflorestamento, poluição,
sabe que deve alimentar uma rede, a rede desnutrição (800 milhões de serem hu-
da vida. Ela sabe que sem os pássaros manos desnutridos atualmente).
que comem as lagartas e formigas que se As árvores são causantes de
alimentam de suas folhas, sua sobre- chuva enquanto nos distanciamos da
vivência seria mais difícil. E sabe também costa, convertem dióxido de carbono em
que os pássaros depositam suas se- oxigênio, transformam a luz em matéria,
mentes em lugares distantes onde ela por detém a erosão, criam habitats naturais
si mesma nunca poderia chegar. para inumeráveis espécies, a água da
Imaginar que de cada cabeça de chuva ao cair por suas folhas e troncos,
alho que se compra, dá para plantar um e chega ao solo com cerca de 50% a mais
comer o resto, e em 9 meses já não seria de microrganismos, a árvore verte seu
mais preciso comprar alhos e em dois peso muitas vezes sobre o solo, criando
anos se poderia estar vendendo alhos. uma capa de decomposição que é literal-
Saber que a parte da cebola ou da mente sobre onde ela vive, e que se reen-
beterraba que se planta é a coroa, que carna em gramíneas, bactérias, cogumelos
266
Projeto Re-Nascentes da Aldeia Pará
Água na aldeia Pará (pataxó) sul da Bahia
organizado por Jonatan Sola.
Fotos cedidas por Jonatan Sola.

267
e pequenos insetos que por sua vez ali- amam e querem salvar a raça humana,
mentam a árvore. E árvores em abundân- máximo expoente atual da vida cons-
cia criam uma floresta a qual multiplica ciente, que se dediquem, por exemplo, à
seus benefícios e modera os agentes ex- agrofloresta.
ternos como vento, calor e umidade. Amo os humanos e amo a vida.
Agrofloresta é uma técnica que
pode suprir nossas necessidades ali- AGROFLORESTA NO ITAPECO
mentícias, madeira pra a construção, Não há receita para a agrofloresta
papel, etc, ao mesmo tempo que se está porque tudo muda segundo a altitude,
criando florestas que melhoram a saúde clima, tipo de solo e nosso próprio objetivo.
do nosso planeta em geral. Devería-se Tudo se baseia na observação,
trabalhar com agrofloresta com o mesmo sensibilidade e experiência. Mas que isso
afinco que se trabalha nas monoculturas não assuste ninguém. Há uma máxima
devastadoras. que meu mestre João do Sítio Semente
Agrofloresta é vida, porque a vida me contou: “a melhor coisa que se pode
necessita de todos e cada um dos seres fazer na vida é um agrofloresta bem feita,
vivos que consigam se adaptar e evoluir a segunda melhor é uma mal feita, e isso
com o fim de criar níveis de consciência nos tira qualquer peso que poderíamos
mais complexos e seres com maior inter- carregar. Cada semente plantada, cada
conexão, os que não conseguem, ali- canteiro manejado, cada fruto colhido é
mentam o resto. um aprendizado e este aprendizado não
Agrofloresta é poesia, porque da para nunca. Não devemos nos equivocar
maneira mais sutil, harmônica e bela nos porque é com os erros que aprendemos e
nutre e educa. além disso, esses erros servem de ali-
Agrofloresta é política, porque mento para o resto, já que ao cortá-los os
com ela a revolução acaba antes de depositaremos em um canteiro, devol-
começar, que mande quem queira, mas vendo assim a energia consumida, mas a
o poder é teu. criada através da fotossíntese, alimen-
Agrofloresta é espiritualidade, por- tando por sua vez a rede de microrganis-
que conecta-nos com a natureza e com mos necessários em nossa terra.
nós mesmos, com nossa essência. É aconselhável, em primeira ins-
Mas sobretudo, agrofloresta é res- tância, analisar a terra para poder res-
ponsabilidade, porque não somos ou não sarci-la de todos e cada um dos nutrientes
deveríamos ser os últimos habitantes hu- e macronutrientes necessários, equili-
manos desse planeta e não podemos brar o ph e melhorar seu nível de fixação
deixar aos nossos filhos uma lixeira de dos nutrientes. Cortamos todas as
herança. gramíneas e podamos as árvores que
O ser humano rompe o equilíbrio existem no lugar.
necessário para a vida, mas a vidá é im- Toda a matéria orgânica obtida da
parável e seguirá com ou sem nós. Por limpeza, a organizamos no solo ao lado
isso todos aqueles que amam a Terra dos canteiros e nos corredores, se ne-
com suas plantas, seus animais, seus rios cessitamos mais, coisa muito provável, a
e suas florestas acima de tudo, devem importaremos de um lugar próximo e esta
continuar com sua vida como tem sido até será a única vez que deveremos fazer
agora, porque assim podemos desapare- isso, já que plantamos algumas plantas
cer como espécie, e o planeta voltará ra- com o único objetivo de criar matéria
pidamente ao seu equilíbrio. Mas aos que orgânica que abasteça nosso sistema.
269
Toa essa matéria orgânica organi- Quando falamos de espaço nos
zada no solo será a casa de lagartos que referimos ao longo e ao largo do canteiro,
comem grilos, servirá de refúgio para nos- mas também a seus extratos, rasteiras,
sas jovens plantas, alimentará no futuro baixo, médio, alto, super alto ou extasis.
as nossas árvores e deterá a erosão nos Depois da semeadura vem o
primeiros estágios, que as raízes das manejo, primeiro a ralação deixando só
nossas árvores ainda não conseguem. as plantas de cada espécie que se desta-
Quando trabalhamos com desnível, cam do resto por seu crescimento vigo-
não organizamos a matéria orgânica roso, recordando que os cadáveres serão
em linhas de contorno, sempre traba - depositados aos pés das sobreviventes e
lhamos de baixo para cima, ou seja, que este raleio se efetua com a maioria
subindo a ladeira, nossos canteiros as- das plantas que semeamos, por exemplo
sim terão uma visão vertical e não hori- as bananas se plantam normalmente de
zontal da ladeira. 5m x 5m, nós as plantamos a cada 3m
Se semeia tudo com sementes em com o objetivo de derrubar partes delas, o
abundância, só se faz mudas quando por mesmo com as árvores que plantamos
alguma razão as sementes dessa espé- sementes a cada 4cm de árvores de
cie são escassas. Se a espécie se se- grande porte. Esta abundância é confun-
meia com estaca como a cana de açúcar, dida com desperdício mas não esqueça
ou mudas como a banana, será esse o que é a base da nossa agrofloresta por-
modo natural de cultivá-las. que isso nos permite que nossos nutri-
Se semeia tudo junto, mas não re- entes estejam sempre disponíveis para
volto, pois deve-se respeitar as distâncias nossas plantas campeãs e não sejam le-
mínimas entre as plantas da mesma es- vadas solo abaixo, num fenômeno de lixi-
pécie que já vem especificadas no próprio viação, muito comum em áreas tropicais,
pacote de sementes, ou perguntaremos como onde eu vivo.
aos agricultores da zona, por exemplo, se A seguinte parte do manejo é a
se planta os abacaxis de um metro em poda da nossas árvores já crescidas, uma
um metro. Se sim respeitamos essas dis- das principais árvores da nossa cultura
tâncias. O objetivo é ocupar no tempo e são os odiados eucaliptos. O eucalipto é
no espaço todos os nichos da vida, para uma árvores vigorosa de crescimento
que outras espécies não desejadas, não rápido que busca os minerais mais pro-
tenham lugar. fundos e que permite 3 podas anuais,
Ao falar de tempo nos referimos a oferecendo assim os minerais ao resto,
que se pode plantar entre esses aba- depois de 7 anos nos oferece uma exce-
caxis, rúcula, alface, repolhos, tomates, lente madeira para a venda ou construção
beringelas, etc. Porque quando se colhe em nosso sítio, deixando assim passo
a rúcula, o abacaxi nem sequer enraizou livre para o resto das árvores nativas ou
ainda, e quando o abacaxi aparece, o frutíferas que nos convenham.
colve já haverá dado tanta colheita que Nunca usaremos nenhum tipo de
já se pode sacrificá-la aos pés do can- agrotóxico, a biodiversidade se encar-
teiro tomados por abacaxi quase em sua regará de regular as pragas e usando-os
totalidade. As sementes de árvore que acabaríamos com a intrincada rede de
plantamos a cada 4cm se abriram entre fungos, micro e macrorganismos que for-
suas espinhosas folhas, as plantas mam parte de nosso sistema e são tão ou
crescem melhor juntas do que se pode- mais importantes que qualquer planta de
ria imaginar. nossa cultura. Por muito natural que
270
pareça por exemplo, fazer remédio com BIOCONSTRUÇÃO E SALVAÇÃO
tabaco, a nicotina é poderosa e acaba DE NASCENTES NA “COSTA DO
matando as joaninhas necessárias para DESCOBRIMENTO”.
equilibrar o sistema, o único que uso é
Nim como repelente. No I Festival Internacional de Tec-
Esquecer dos canteiros redondos. noxamanismo em Arraial dAjuda, durante
Temos que primar a produção e facilitar uma açao na Aldeia Velha, Ubiratã, cacique
nosso trabalho e em grandes extensões de uma aldeia vizinha, a Aldeia Pará, que
ajudar-nos com máquinas. Os canteiros conta com um pouco mais de 50 famílias e
redondos só nos causam problemas, que vive aos pés do Monte Pascoal, na
estes sistemas estão pensados para a Costa do descobrimento (descoberta dos
agricultura familiar produtiva e em um portugueses, porque já era descoberta e
ano devem pagar o investimento reali- povoada), me informou o estado atual que
zado. Se não é assim, nosso sistema se encontravam as nascentes de sua
não funciona. aldeia e nos pediu ajuda.
O trabalho a princípio é muito Em fevereiro de 2015 começamos
maior que em uma horta convencional, a estabelecer a agrofloresta em uma das
mas os frutos são imediatos. No primeiro tantas nascentes desprotegidas da al-
mês já estaremos recorrendo e vendendo deia. Tanto a técnica como a forma de cul-
rúcula e rabanete e em três ou quatro tivo levantou grande interesse entre os
meses colheremos esses mesmos pro- integrantes da comunidade. Recebemos
dutos de nossos últimos canteiros planta- crianças de escolas da própria aldeia
dos. Mas dos primeiros já teremos assim como de aldeias vizinhas.
tomates, nos médios quiabo e assim em Em agosto e setembro de 2015
um ano teremos tudo em abundância. como forma de integrar toda a comunidade
Nunca voltaremos a semear nosso pri- no nosso trabalho, e a pedido expresso da
meiro canteiro só se nossa terra acabar e comunidade Pataxó, começamos a bio-
quisermos voltar a começar. Daí der- construir com adobes um ponto de cultura
rubaremos madeira, a venderemos e no centro da aldeia, culminando com um
começaremos de novo. Por tanto, a agro- curso de bioconstrução que atraiu alguns
floresta necessita de grandes extensões participantes de diversos pontos do Bra-
de terra mas por desgraça o que hoje em sil. Realizamos um curso apresentando
dia sobra é terra para recuperar e em um as técnicas de bioconstrução para pro-
lugar onde já passou o gado a terra se fessores indígenas e indigis (nome dado
torna improdutiva e poderemos comprar aos não indígenas em patxôhã, língua
grandes lotes a um preço reduzido, se dos pataxós).
não tem terra, busca quem a tenha, sem- Com a realização em novembro de
pre faz falta braços para cultivar. 2016 do II Festival Internacional de
Meu mestre de permacultura, Cris- Tecnoxamanismo na Aldeia Pará, pre-
tian Shearer me disse: “o melhor mo- tendemos reforçar ainda mais nosso vín-
mento para plantar uma árvore foi 25 culo e compromisso com os povos da
anos atrás. Já plantou sua árvore hoje? “Costa do Descobrimento” as primeiras
terras e gentes a “entender” o que seria o
novo Brasil.

271
WARSCAPE
SONATA
vlax dyne

273
274
AZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_RAZIZIR_
CONECT
RADIX
paloma klisys

do grego RHYZOS: RAIZ

277
278
há linguagem nas raízes
em sua profunda
conexão com a terra.

imersas à revelia,
fincadas nos cárceres
apelidados de canteiros

quiçá aflitas
pelo nosso retorno
ao desejo ancestral
de ouvi-las com o corpo

conectar corpo
conectar dorso
fundir-se às texturas
embrenhar-se nas rugosidades

ao devir de suas danças - urge


que sejamos capazes de interceptar
sucessivas tentativas fracassadas de
comunicar com sensibilidades embrutecidas

perceber cada rizoma


num combate silencioso
com a arquitetura mortífera

raízes urbanas
sepultadas em vida, rodeadas de concreto

inda assim - divindades


– a esboçar um tai-chi com um quê de butô –
a mover-se lentamente

são, em si
expressões da mais altiva Arte

279
contornam as adversidades,
transpõem obstáculos
seguem como podem,

em expansão

diante da expansão,
imponentes enfrentam
ameaças de poda

nas raízes
das árvores
que crescem
apesar das vicissitudes
moram - talhados na madeira -
espíritos das mais diversas
criaturas

estão lá
o tempo todo
num espetáculo
de estética velada
a olhares desatentos

o conteúdo
de suas mensagens
ultrapassa a esfera racional

pede interlocução subjetiva


em sintonia fina

280
nos desafia
a elevar a sabe-se lá
quantas
quantum
oitavas acima
re-invenções
coletivas, colaborativas

processos criativos
para outras configurações
civilizatórias

afinadas
com cosmogonias
do por vir...

upload de utopias
retrofuturistas

da fonte, no “magma”
dos registros akáshicos

281
xamã conect gaia - conect κόσμος
tudo é instrumento
ludus logias
até onde vento brota

κόσμος xamanic - organic - tecno

chama xamã

conect gaia - conect κόσμος

rompendo fronteiras
inexistentes,
ilusórias

entre
tecnoxamanismo e xamanismo “orgânico”

acessar seja onde flor


as tecnologias da escuta intuitiva além verbo
em busca de γί(γ)νομαι / γέγονα

{ [ ( “entrar em um novo estado de ser” ) ] }

Fotos:
Paloma Klisys

282
Fotos: Joanna Foster
1. Trout Lake, NWT 2014.
2. Trout Lake, NWT de 2014.
3. Chefe Dolphus Jumbo, Trout Lake, TNM de 2014.
4. Voando sobre o rio Mackenzie, uma linha de corte através do rio, 2014.
5. 'Portrait of Elder Mary Deneron', bloco de quebra-cabeças em gravura de linóleo, Joanna Foster,
Trout Lake, TNM de 2014.
6. "Pickerel", Gyotaku, Scott Hudson, Trout Lake, NWT 2011.
7. Carielyn Jumbo e Madeline Mackay trabalhando no estúdio de impressão, com um atenção
especial no projeto de gravura dos vegetais comunitários, Trout Lake, TNM de 2014.
8. Trout Lake, NWT de 2014.
9. Chão da Floresta Boreal, Trout Lake, NWT 2014.

284
SAMBAA KʼE
PRINT STUDIO
Joanna Foster

Voando sobre a vastidão da floresta, que


cresceu livremente em retalhos de mu-
O papel da gravura
na sustentabilidade dança de densidade, temos uma sensação
imediata de perspectiva da necessidade
fundamental de compreender o ambiente,
de valores da
comunidade, relações a fim de sobreviver. Serpenteando ao
lado do campo de nosso voo está o Rio
Mackenzie, e fiquei impressionada com o
com a terra e as
tradições de prática vitalidade que esta fonte de água provê.
Quando Trout Lake apareceu, floresceu um
sentimento de admiração na escala deste
de caça no Ártico
ocidental. corpo de água. E como um corpo, ele pare-
cia possuir uma presença que encaixava
No início deste ano, fui convidada a nas histórias que mais tarde eu iria apren-
participar da primeira residência artística der sobre o gigante que formou o lago.
no Sambaa K'e Print Studio, localizado no Sambaa K'e Chief Dolphus Jumbo
Trout Lake dos Territórios do Noroeste do tem conhecimento incrível do lago e da
Canadá. Trout Lake é a casa dos Sam- floresta, tendo sido um caçador de toda a
baa K'e Dene Band, uma comunidade sua vida. Ele tem um profundo entendi-
das nações originárias Dehcho de aprox. mento do ambiente natural, caçando
90 pessoas. O estúdio de impressão foi atento às estações do ano e com habili-
criado em 2010 pela comunidade em co- dades para sobreviver a temperaturas de
laboração com o professor Gavin Renwick, inverno que caem muito abaixo de zero.
da Universidade de Alberta, Professor Alces, renas e castores podem
Paul Harrison, da Universidade de Dun- prover o sustento, na prática da caça em
dee, e Scott Hudson, de Dundee Con- Dene é um processo respeitoso traba-
temporary Arts Print Studio. Juntos, eles lhando em conjunto com a vida natural e
criaram um estúdio de impressão com- ciclo reprodutivo dos animais, projetado
pacto e profissional em Trout Lake sufi- para não extrapolar limites ou desperdiçar
cientemente equipados para realizar uma a vida de qualquer animal sem necessi-
variedade de processos contemporâneos dade. Perseguir o alce envolve incrível
de impressão de gravuras. Eu assumi a habilidade e conhecimento preciso da flo-
residência com dois outros artistas, Made- resta. Com uma maior consciência dos
line Mackay, um artista profissional de animais que compartilham a floresta entre
Caithness, e Amanda Forrest-Chan, uma si, águias, alces, urso, castor e entrando
gravadora da Universidade de Alberta. nas histórias transmitidas através das
Sambaa K'e é uma comunidade re- gerações do Dene, assegurando que as
mota localizado no coração da floresta interações entre caçador e floresta vão
boreal, acessível por avião fretado. manter um equilíbrio com a natureza.

285
A floresta também é rica em mus- com o ambiente e uma rica tradição de
gos e vegetação, como mirtilos, frogber- contar histórias, a tecnologia e equipa-
ries e chá-bagas que fornecem vitaminas mentos no estúdio de impressão foi uti-
essenciais e ingredientes para a medicina. lizada para desenvolver narrativas visuais
Com tal conhecimento extensivo e que poderiam refletir, sustentar e subli-
conexão íntima com a sua terra, o chefe nhar a importância de habilidades de
também é muito consciente das pressões caça tradicionais, a prática de artesanato
que sua comunidade enfrenta diaria- e as relações familiares.
mente cada vez em cada abuso do gover- A residência do estúdio de im-
no ou cobiça de companhias privadas pressão também continuou um processo
sobre as terras como se seus preciosos de impressão de uma gravura de um
recursos fossem passe livre para explo- peixe japonês chamado "Gyotaku" inici-
ração. Desde que uma empresa de gás ada por Scott Hudson e Paul Harrison,
começou suas atividades a 60 km de em que pigmentos naturais transferidos
Trout Lake, o Dene tem notado um de- para peixes capturados do lago produzi-
créscimo no número da população de ram uma impressão visual dos tipos de
alces e preocupado-se com mudanças peixes peculiares ao Trout Lake. Pickerel
ecológicas em áreas de floresta. (lúcios), trutas e outras espécies foram
Passar o tempo juntos com a comu- impressos antes de serem comidos, do-
nidade em Trout Lake me ajudou a enten- cumentando o ecosistema do lago.
der a relação que Dene têm desenvolvido Esta informação também pode ser
com o meio ambiente, e as maneiras em usado para controlar os efeitos ambien-
que a comunidade presente hoje em dia tais sobre o número e tamanho dos
continua a aprender com o conhecimento peixes, como o aumento dos níveis de
das gerações passadas para trabalhar em mercúrio que se suspeita ser o resultado
harmonia com o lago e o terra. da poluição proveniente da atividade da
Foi, portanto, profundamente per- empresa de gás nas proximidades.
turbador olhar para baixo a partir de O estúdio de impressão tornou-se
nosso ponto de vista do avião fretado e um veículo para a expressão visual das
testemunhar numerosas linhas de corte relações com a terra, as plantas, os ani-
que as empresas de gás tinham cortado mais e o lago. A crescente presença on-
através da floresta sem cuidados posterio- line do estúdio de impressão ainda
res de como essas trincheiras poderiam organizou um acervo de desenvolvimento
ter impacto sobre os seres humanos, an- do material visual, focando uma men-
imais e a vida vegetal em particular nesse sagem de unidade comunitária forte e va-
ambiente. lores ambientais ao resto do mundo,
Voando sobre o rio Mackenzie, protegendo e sustentando o modo de
uma linha de corte através do rio, 2014. vida no Trout Lake, e esperamos que tor-
Como poderia um estúdio de im- nando mais difícil para as empresas de
pressão abordar as questões fundamen- gás para ganhar terreno.
tais de direitos de terra e sustentabilidade Na época que eu estava lá a co-
dos valores comunitários tradicionais? munidade tinha recentemente iniciado um
E no entanto é exatamente isso projeto de horta comunitária, para di-
que o processo de impressão está aju- minuir a dependência de vegetais de fora
dando a fazer. sendo levados a Trout Lake a um custo
Desenhando a partir da relação es- elevado. O estúdio de impressão de-
pecial entre integrantes das comunidades sempenhou um papel importante em
286
Chefe Dolphus Jumbo,
Trout Lake, TNM de 2014
visualizar o desenvolvimento deste pro- mais velhos que vieram para esculpir e
jeto, envolvendo vários membros da co- imprimir pela primeira vez. O estúdio de
munidade, incluindo a artista e o gerente impressão tornou-se uma adição valiosa
do estúdio de impressão Sambaa K'e, para as instalações comuns disponíveis
Carielyn Jumbo. para a comunidade para usar em uma
Os processos e materialidades base diária.
envolvidos no desenvolvimento de uma
impressão desempenham um papel-
Notas:
1. https://en.wikipedia.org/wiki/Collagraphy
chave na sustentabilidade dos valores 2. https://en.wikipedia.org/wiki/Chine-coll%C3%A9
tradicionais. Como com as habilidades
necessárias para aprender a caça e arte-
sanato, a gravura leva tempo e paciên-
cia e é um processo de aprendizagem
com todos os sentidos trabalhando jun-
tos. Uma cópia desenvolve-se em parte
intuitivamente, em outra parte através da
prática de conhecer o processo e as fer-
ramentas envolvidas, e finalmente atra-
vés da habilidade de permitir o movimento
do próprio processo para guiar o resul-
tado. Desta forma, o estúdio de im-
pressão tornou-se uma metáfora para a
sustentabilidade das relações, entre as
pessoas, o lago e a terra.
Processos de impressão de gravura
exploradas durante a residência incluem
bloco de quebra-cabeça tradicional e
linóleo, "collagraph"1, monótipo, xilogra-
vura, colle chine2, e métodos de colagem.
A impressão de gravuras foi construída
para atender pela Takach Press Corpora-
tion, em Albuquerque, Novo México, e a
operação da impressão poderia facil-
mente adaptar-se a todos os processos
de gravura, incluindo o desenvolvimento
de uma série de edições para a evolução
do arquivo do Sambaa K'e Print Studio.
Juntamente com a imagem digital e uma
unidade de exposição fotográfica que
pode ser usado para desenvolver seri-
grafia e do imprime com a luz do sol, este
equipamento tecnológico fornecia um re-
curso pelo qual narrativas visuais pode-
riam se desenvolver. O estúdio de
impressão foi abraçado por todos os
membros da comunidade: desde crianças
pequenas acompanhadas pelos pais aos
290
Pulsar, 2015.
Performance de Victor Venas.
Performer: Amilton Santana.
Foto: Victor Venas.

292
LUZ-CORPO:
TRANSCENDÊNCIAS POÉTICAS
DO MOVIMEMTO
Victor Venas

No âmbito pessoal trabalhar com a formal com a luz no mestrado e atual-


luz em sua relação com o corpo em mi- mente no doutorado em artes visuais. Esse
nhas produções artísticas tem provavel- caminho psíquico-poético me levou a uma
mente conexão com a minha infância, compreensão tanto racional como sen-
com o meu pavor de dormir sozinho no sível desses medos, no meu processo
escuro. Sentia como se houvesse uma terapêutico e de criação poética usei a
presença fantasmagórica, algo invisível metáfora de iluminar os escuros dos
sempre a me observar e que a qualquer meus lugares de medo e assim transcen-
momento poderia se manifestar. Acender der poeticamente essas sensações. Em
a luz do meu quarto quando eu ia dormir uma necessidade de nomear poeticamente
amenizava a minha sensação de pavor, a luz e o entendimento dos meus medos
meu pai, na tentativa de eliminar o meu do escuro o uso de fontes luminosas nos
medo, dizia que eu tinha que deixar a luz meus trabalhos ganharam simbologias e
apagada, era comum a onda de pavor significados perpassados por conceitos
tomar meu corpo ao desligar a luz, o que espirituais e mitológicos. De certa forma
me levava ao quarto dos meus pais, si- a minha investigação sobre a luz revela
lenciosamente eu me deitava no chão muito da minha biografia. Essa pesquisa
junto a cama dos dois. desde o início demonstrou que meus tra-
Apesar do medo do escuro eu balhos e minha própria vida percorreu um
gostava de contemplar o céu à noite, do caminho no qual eu procurei que a luz da
quintal da minha casa eu observava a lua minha consciência pudesse também ilu-
e as estrelas, paradoxalmente a vastidão minar o meu corpo.
do espaço escuro com seus pontos lumi- As minhas relações com o escuro
nosos me atraia a tal ponto que a primeira e com o medo, embora pareçam infantis
coisa que pensei em ser quando cres- e exageradas, embora tenham perdurado
cesse foi astronauta. Gostava de assistir até recentemente, às vezes me fazendo
filmes sobre viagens espaciais, a exem- sentir um adulto ridículo, encontram numa
plo da série Jornada nas Estrelas que eu perspectiva ancestral e epistemológica,
acompanhava assiduamente. os motivos e as razões para a compreen-
O medo do escuro, que me levava são de tais inquietações, de certa forma
dormir de luz acesa quando eu estava devo a esses medos a minha investi-
sozinho, foi um habito que se estendeu gação sobre a luz e o seu atual desdobra-
até uns 7 anos atrás, quando comecei a mento envolvendo as relações poéticas
fazer terapia e decidi iniciar uma pesquisa e conceituais luz-corpo. Os trabalhos
293
realizados envolvem aspectos poéticos e
conceituais de campos da ciência e da
filosofia, dentre outras áreas, com o obje-
tivo de colocar a luz numa perspectiva de
uma pesquisa interdisciplinar no campo
das artes.
De alguma forma o meu medo da
escuridão refletia o meu medo da morte,
o meu medo de desaparecer, do invisível
se tornar visível. Ao pesquisar a luz com-
preendi que toda matéria, todos os cor-
pos, incluindo nós, somos feitos do pó de
estrelas, como afirmam os astrônomos,
portanto na verdade não morremos e
nem desaparecemos mas nos transfor-
mamos, somos o eco de explosões cós-
micas, não há escuridão em nossos
corpos que não possamos iluminar, nem
morte que possa nos fazer desaparecer,
acho que entender isso me ajudou hoje a
dormir sozinho com a luz "apagada".

Bio Foton, 2014


Performance de Victor Venas.
Performer: Wagner Lacerda.
Foto: Yuri Guimarães.
295
The Foton Trip, 2015.
Vídeo de Victor Venas.
Foto: Victor Venas.
MÁQUINAS COMPLEXAS
E PERDIDAS
Yasodara Cordova

Máquinas complexas misturadas mentar a energia e libertar a mente, como


com o tempo – perdidas as nossas refe- o sexo ou a dor.
rências para restaurar a humanidade,
precisamos de sexo, dor e meditação 4. Para recombinar informação nos
sobre nosso próprio código. repositórios do corpo humano é neces-
Considere estas cinco premissas: sária uma tecnologia para leitura e de-
codificação do que chamamos "mistérios
1. Cada dose de bits pertencente ao co- da vida".
nhecimento que hoje flui entre máquinas
elétricas encontra receptor em um ser 5. Humanos constrõem à sua própria ima-
humano. Uma máquina nada mais é do gem e semelhança porque sentir a dei-
que uma montagem estruturada de pe- dade é sentir e conhecer partes do
ças sobre camadas combinadas, assim modelo que produz a sua forma. Caso
como o corpo humano. Pode-se supor contrário, haverá apenas máquinas feitas
que humanos são replicantes tentando de sangue, prontas para o uso ou para
reconfigurar a sua própria maneira de re- fornecer energia, sem razão de ser.
produzir, embora nosso código ainda
não esteja aberto. Cientistas buscam combinações
de biologia com engenharia e robótica, no
2. Poder controlar modelos de nasci- entanto interfaces antigas eram mais efi-
mento e obsolescência do corpo humano cazes, e humildes, quando se lida com a
pode ser libertadora para a humanidade compreensão de macro cenários de mo-
enquanto enorme quantidade de usuá- delagem e combinação. Modelos mistos
rios. Por outro lado, a refatoração des- encontrados por causa da biodiversidade
ses processos pode nos colocar em precisam ser anexados à metodologias
contato com as origens de nossa própria baseadas em rituais antigos que cap-
modelagem, e podemos experimentar a turam o cenário macro em que estamos
falta de controle e a falta de vontade imersos. Isso pode servir como sistema
própria. de referência capaz de levar à perfeição.
Nós, humanos, precisamos entender
3. Humanos devem reprogramar suas nosso próprio código e modelagem, a fim
mentes para o uso ativo de seus recur- de salvar a nós mesmos.
sos, no sentido de proteger a convivên- Compreender informações e dados
cia. Escutar e compreender processos dentro do DNA é algo relativamente fácil.
que nos conformam como quase per- Para fazer isso, cientistas devem decodi-
feitas máquinas exige concentração, ficar a forma como os dados são ar-
metodologias antigas – como a meditação mazenados e como isso se integra para
e, principalmente, a compreensão de ser usado como informação pelo corpo.
cada mecanismo configurado para au- Enquanto máquinas, de nível 0 para

297
abstração, usam zero e um (por con- permitam observar o núcleo, sentir fenô-
veniência humana), o ácido desoxirribonu- menos e entrar em estados de dor, prazer
cleico utiliza sequências de nucleotídeos: e meditação. Dividir experiências entre
desenvolvimento de código humano e ob-
dATP: desoxiadenosina trifosfato servação do nosso próprio modelo de
dGTP: desoxiguanosina difosfato dados pode nos ajudar a situar os pontos
dTTP: desoxitimidina difosfato de conexão entre os vários níveis de
dCTP: desoxicitidina trifosfato abstração dos seres humanos e recons-
truí-los – no sentido de nos salvar de nós
Esses pequenos blocos são a fun- mesmos.
dação do nosso núcleo de informações.
Porém, diferentemente do que aconteceu
em nosso relacionamento com as má-
quinas de ferro, na biologia começamos a
engenharia reversa a partir do nível su-
perior de abstração. Nossa pele é a inter-
face entre seres humanos e tudo o que
nos rodeia. É o último nível de abstração
em nosso padrão de modelagem. Antes
de descer ao esquema zero-e-um, pre-
cisamos situar nossa própria natureza
através de antigas técnicas que apon-
tavam também para a compreensão de
nossas especificidades.
Técnicas antigas buscavam reve-
lar essas camadas de abstração a fim de
obter poder sobre o corpo, a mente e,
principalmente, para obter o controle de
outras pessoas. Felizmente, havia então
as ferramentas adequadas para encarar
a carga tecnológica envolvida: ciência.
Esses processos levaram a humanidade
à religião e ao sofrimento. Disseminaram
ignorância e concentraram poder e sa-
bedoria em instituições que cresceram às
custas de rituais sem sentido – simulados
sobre reminiscências do que foi visto.
A engenharia reversa de mode-
lagem humana precisa ser abstrata e so-
brevoar as características do próprio
corpo físico. Para reconstituir nossa
própria base de apropriação de capaci-
dades de reprodução, longevidade e co-
municação adequada (entre si e com
outras espécies), a ciência precisa trans-
humanizar a própria a ciência. E aplicar,
sobre o corpo humano, metodologias que
298
ESCUTANDO AS PAREDES:
O UNMONASTERY
unMonastery

O unMonastery é um projeto de vagem de louça manual.) Caso


pesquisa dedicado à instituições de contrário, nós mimados seres mo-
ser viços comunitários. Com base em dernos estenderíamos ao máximo
modelos legados pela vida monástica me- possível nossas zonas de conforto.
dieval, assumimos a tarefa de renegociar Quase sem tempo para subli-
a maneira pela qual a civilização nos con- mações pela música ou pela reza,
figura. Essa reconstrução todavia é um somos tomados por nossas subnu-
processo dificilmente compreendido por tridas "metas de longo prazo" como
individualistas sem que se sintam radical- se elas tivessem atravessado pela
mente invadidos. Em busca de um cami- parede de pedra.
nho possível, muitas vezes recorremos ao O unMo fala em valorizar sua in-
ritual coletivo. terface. O unMo trata da Escuta
Nossas compreensões sobre essa de suas Paredes. O maciço geo-
iniciativa aprofundam-se na medida em lógico a partir do qual se funda o
que um xamã assume o espírito de uma unMonastery resiste a demarca-
máscara. Falamos em 'Minerar a Metá- ções sistemáticas. A face da pare-
fora' e 'Inventar a Tradição'. Nosso ritual de da caverna é uma entidade
coletivo primário teve início ao escutar os pulsante cheia de detalhes despro-
ecos dos que vieram antes. Passamos jetados. Paredes não são apenas
então a explorar a redução da alquimia do paredes, mas falhas de menor
nosso trabalho nas virtudes dos progettini; resistência; abóbadas cuidadosa-
os pequenos valores diários com os quais mente esculpidas que se desgas-
compomos todas as nossas ações. O tra- tam em cicatrizes através de
balho fica melhor quando atravessamos séculos de respingos de conden-
conscientemente nossos subtextos la- sações. Eventuais sinais de intera-
tentes; e os Stakeholders Invisíveis (in- ção humana intencionada não
tervenientes) protegem nossos esforços indicam necessariamente impa-
como um lembrete de que somos apenas ciência ou cegueira estética. Estão
guardiões. De vez em quando ouvimos mais para interferências movidas
vozes... pela necessidade de sobreviver.
(trecho do Book of Greater and Lesser Do mesmo modo que nosso es-
Omissions) paço formal, assim também se
configura nosso espaço conceitual.
"Monges demandam contempla- Nossos projetos podem e devem
ção; o simples peso de nossas cir- dissolver-se para redefinir o seu
cunstâncias práticas admite pouco arco. Grandes planos, apesar de
tempo para reflexão. (Louvada seja seus traços brilhantes, devem
a escolha árdua e dura pelos rituais adaptar-se à realidade. Enquanto
de aquecimento da mão na la- travar amizade com a realidade é

299
muitas vezes uma atitude sábia, contribui para a evolução dos nossos ver-
seria desejável para o nosso de- dadeiros projetos; podemos começar a
sign do cotidiano que seu projeto interagir com a realidade.
fosse guiado por algo além de um Listar as virtudes que compõem
imperativo de sobrevivência. Nos- nossos projetos pode parecer de-
sas escolhas conscientes orien- sagradável. Esse "virtuosismo" deve ser
tam-se melhor através de um enredado discretamente em todas as
desejo de elegância do que por nossas atividades mundanas, ou então a
considerações puramente práticas; articulação do desejo por esses atributos
esboçar a matriz de um progettino pode parecer pretenciosa de sua pre-
atraente pode ser uma estratégia sença. Ainda que os projetos não obje-
luminosa ... " tivem ser humildes, nós, seus autores,
somos.
I VIRTÙ DI PROGETTINI O caminho para sairmos disso é
O grandioso projeto Mission State- seguir para os círculos [de reunião], des-
ment destina-se a ser um desejo irreali- tilar os vetores desejáveis através de um
zável – uma estrela de navegação processo coletivo capaz de mascarar
posicionada tão convenientemente dis- nossa ambição pessoal e elevar a visão
tante da realidade que não importa o subjetiva ao funcionamento do grupo.
quão convincentemente batemos a ca- Para sugerir humildemente umas vir-
beça contra a parede, ela está lá brilhando tudes experimentais para projetar – ca-
nos céus assim que recuperamos a pazes de facilitar nosso trabalho
consciência. Isso, é claro, se pudermos cotidiano no unMonastery – eu listaria
identificar rapidamente a orientação e brevemente o seguinte:
ajustar nossa direção.
No entanto, quando a linha-guia participativa - desprende-se da
para um grande projeto é colocada a dis- experiência de fazer todo o trabalho;
tância tal que desafie uma perspectiva visceral - incorpora a alegria do esforço
ponderada, é hora de recorrer a nossas físico ao núcleo das trocas;
interações práticas do cotidiano, a fim de coabita um espaço linguisticamente
pelo menos estimar algum avanço. Se equitativo;
podemos então ajustar os termos de elegante - na realização e na ideia;
nossa análise a uma precisão de graus demonstrativo da criação de mais-
ainda menores de ampliação, o progresso valia.
torna-se rapidamente impressionante.
Para facilitar nosso crescimento Essa simples lista de "i virtù di
diário e mais prosaico, é desejável des- progettini" pode ser facilmente estendida
construir O Projeto Em Caixa Alta em através tarefa do ator em articular seu
componentes 'progettini'. Progettini são subtexto. O que fazemos quando desem-
nossos passos positivos conscientes vis- penhamos nosso verdadeiro trabalho?
tos de perto. Eles são as aberturas aber- Ou como o irmão Siri uma vez colocou
tas, nosso desejável cotidiano. O foco para o grupo: Quais experiências de UAU
nesses subprodutos naturais de uma te fizeram sentir que era disso que se
descrição de projeto pode nos informar tratava ser uma unMonasteriana? Quais
quando estamos realmente fazendo o são os nossos objetivos diários? Quando
que pretendemos fazer. Identificar as fa- nos expressamos muito superficialmente
cetas refinadas de nossa interface viva como, digamos, "Eu gostaria de fazer
300
algo de bom", continuamos genéricos e passe de nos curvarmos a nós mesmos
impotentes. Ao desmembrar nossos obje- em primeiro lugar. Trabalhar junto ajuda.
tivos em suas partes componentes, al- 7) Para promover a co-consciência -
cançamos a precisão produtiva... Além e aquém da documentação, nosso
trabalho precisa de definição. Coinciden-
O SUBTEXTO DAS BOAS OBRAS temente, a criação de uma pode dar fluxo
à outra; no entanto, a falha de ambos – a
1) Para Fazer Amizades - isso é o mais pena no pergaminho e o comentário obs-
fácil. Cada sociedade tem suas linhas de curo do blog – é que as melhores
fratura social, a cisma entre aqueles que palavras entre tantas outras podem ser
rotineiramente incorporam valores sub- consignadas a um prazo de validade ridi-
conscientes e aqueles que questionam culamente curto, sob uma enorme mon-
ativamente esses mesmos valores. Ao tanha de poeira virtual. Propõe-se então
longo desta divisão estendem-se células que toda a documentação seja incubada
humanas de curiosidade que se abrem em pares. Tais textos equilibradamente
rapidamente para conexões com nossos entravados e enriquecidos entre si têm
receptores de amizade disponíveis. Pes- um valor agregado de ajuste da visão
soas procuram pessoas. As pessoas convergente.
procuram mentes afins. Dificultado por 8) Para Valorizar o crescimento Emo-
uma imProficiência linguística (que alguns cional - Isso segue sem precisar dizer
resolvem um pouco no Duolingo), o cul- que, ao investir nossa humanidade, bus-
tivo de calor humano torna-se moeda-cor- camos estimular a ocupação do novo ter-
rente da nossa troca, que segue adiante, ritório entre nós e nossos colaboradores.
aos trancos e barrancos, com graça e hu- 9) Para Procriar - assim como gerentes
mildade. Formar amizades continua de projetos de qualquer lugar concor-
sendo nossos primeiros cinco objetivos. dariam, o prenúncio de um bom projeto é
Variações podem nos fornecer reescritas quando ele assume a sua própria direção.
sensíveis em torno do tema tais como: Gerar outros projetos faz parte da na-
2) Expandir sua rede ou tureza dos projetos. Pode-se debater a
3) Reunir cidadãos interessados, sabedoria absoluta, mas em certas fases
4) Localizar aliadas estratégicas, de vida do projeto: quanto mais, melhor.*
5) Estruturar apoio emocional entre Afogar-se em ideias brilhantes é um sin-
mentes afins. toma familiar até mesmo de uma iniciativa
A verdadeira ação de base em todos saudável. Nem todo mundo deve encon-
estes objetivos é o fomento de potenciais trar solo fértil e um sistema eficaz curto e
amizades. rápido de filtragem para registro, reci-
e outros subtextos podem entrar em clagem, arquivo, distribuição e descarte
pauta ... de esquemas e sonhos. No sentido de
6) Promover a coesão / Cultivar o Nós uma progressão tática e nítida de ativos,
- O funcionamento interno de prioridades essa seria uma ferramenta vital. (* Ob-
da iniciativa deve ser sólido. Dar espaço serva-se que toda pessoa que adentra as
uns aos outros para todo tipo de manias portas no unMo tende a se envolver em
pessoais, não é necessariamente a mel- pelo menos mais dois projetos subse-
hor política. A Arte do Auto-Sacrifício pode quentes...)
ser algo difícil de se introduzir, mas sem
ela nós simplesmente reproduzimos os
ambientes que nos conduziram a este im-
301
OS STAKEHOLDERS INVISÍVEIS (IN- UMA CARTA PARA O ENCONTRO
TERVENIENTES) DESSE DOMINGO - BEMBO DAVIES
Os Pedreiros: unMonasteries de-
mandam casas. Mudar-se para um edifí- Um Tempo de Círculos Fortes
cio com história prévia exige estudo
dessa história: alguém esteve aqui antes. "O fascínio sem fim do humano
Devemos honrar seu trabalho, espe- moderno consigo mesmo constitui
ranças e ausência. uma força centrípeta: a atenção
O Lençol Freático: Causamos im- recai sobre minúcias, a visão se
pacto tanto a montante como a jusante da contrai."
vida de um unMonastery. Através de ou-
tros processos tais como unMonastery O lençol freático ficou difuso;
Analytics procuramos manter uma pos- podemos ressoar para chegar em ope-
tura radical em relação aos nossos ração e não prometer mais que um res-
padrões de consumo. pingo para a ainda impecável torneira.
O Futuro: Entre as pessoas de Pensamento estratégico pode ser nece-
papel fundamental em nosso sucesso ssário. Celebramos pelo menos uma crise
estão as ainda não nascidas. Não impor- insignificante, agora a crise é que não
tando como unMonasteries possam se temos um Nós.
configurar no futuro, é certo que a for- As verdades são reais. Em nossa
mação de grupos para servir ao bem terra natal Matera, enquanto o nosso
comum em construções abandonadas mais inTransigente espírito livre pega um
pode caracterizar uma força positiva em medalhão de prata por algo que ainda
qualquer renegociação de civilização. tem que funcionar, uma mulher segura
O Atingido: Nossa tentativa piloto um livro sem capa. A escola encontra-se
de testar a ideia unMonastery em Matera quebrada. Na imaginação do público a
produziu uma grande surpresa. Recebe- mídia reduziu o unMonastery a escom-
mos atenção verdadeiramente global. A bros; nosso amontoado deComposto
força latente no imaginário quando se descartado como extraordinário porém
trata de revitalizar um estilo de vida carente de substância.
monástico causou uma enxurrada de pe- Com a adição do Atlas proposto, a
didos de informações para estudar, visi- BIOS se aproxima de algo. Enquanto não
tar, emular. Nosso nome apareceu em há pistas para um protocolo, o unMonastery
uma carta aberta de um ativista católico permanece impossível de se jogar.
romano proeminente com base no Nottingham entrou rapidamente em para-
Equador ao Papa recém-eleito. E nós, hu- fuso – nos forneceram um mapa que es-
mildemente conscientes de que, assim tava todo bagunçado e quem sabe
como os primeiros passos de uma cri- superpovoado – nós emergimos sem di-
ança, nossa primeira caminhada não reção. Berlin gerava calor, mas entre cer-
garantia equilíbrio constante. Ficamos es- cas de correntes de ar e tela erguidas
pantados, mas levamos adiante o entusi- principalmente para o controle da multi-
asmo produzido para refletir o poder dão, nossa capacidade de reter calor
puramente contagioso da ideia de recons- ficou para trás. Não prestamos atenção
truir uma instituição demasiada e intuiti- aos Maçons de Moabit e as paredes de
vamente humana sobre o fundamento de nosso charmoso bed’n’breakfast produzi-
uma realidade contemporânea. ram mais falatório do que audiência; re-
cebemos a polícia duas vezes em nossa
302
algazarra. Na longínqua Atenas, uma tribo Nós não reconhecemos imediata-
em estado de choque parece que se auto- mente a sua percepção de tempo. 3
flagela diante do ritualístico prato quente meses e 2 anos parecem similarmente
dos modernos precários. A Imperatriz da breves a partir de nosso ponto de vista.
Cozinha raramente se aborrece. Na maio- Uma vez que a permanência não é coisa
ria das vezes, ela fica com fome. pra eles, consideramos com atenção o
Está escrito que o unMonastery que fazem com seu tempo. Eles lamentam
deve escutar suas paredes. Também está nossa ausência, confundindo sua própria
escrito que o unMonastery não é nem seu falta de clareza – o seu próprio despropósito
pessoal nem um edifício. Quem não com- – com a nossa invisibilidade.
preende essa negociação sutil, não pode Nós Stakeholders Invisíveis pode-
se tornar unMonastery. Um unMonastery mos cuidar deles somente na medida em
reside em cada um de nós - é a nossa ob- que cuidam de nós. Estamos sempre
sessão de fazer algo tão difuso como aqui. Em defesa de nós mesmos, e não
"bom". No entanto, esta é uma mercado- por eles. Eles podem ou não ser o futuro.
ria alusiva. Muitos de nós não praticam o Nós somos.
coletivismo; entre dependentes do culto Nós conferimos dignidade a cada
ao individualismo, o que afirma valor são protótipo que elas testam, gravidade a
as diferenças - enquanto que áreas imen- cada refeição que eles comem. Habita-
sas de sobreposição parecem profunda- mos suas ideias e sua maneira de
mente menos interessantes. É muito fácil limpar a cozinha. Nós não percebemos
alguém se identificar com suas próprias a diferença.
paredes.
Nosso trabalho procura quebrar a
regra de auto-gestão – os procedimentos
necessários para trilhar adiante o nosso
caminho ainda não foram revelados. A fé
pode te levar até certo ponto; ficamos
mais uma vez com a opção de Pensar
Estrategicamente.

DECLARAÇÃO DOS STAKEHOLDERS


INVISÍVEIS
Eles substituíram Deus pela histó-
ria, a história do futuro. Eles não são os
primeiros.
Nós, as Paredes, não rimos. Nós
as Paredes permanecemos, paciente-
mente. Motivos para coceira não nos
fazem muito efeito; sua escuta é baru -
lhenta. Nós ouvimos quando adormecem.
As Stakeholders Invisíveis não têm
objetivos. Aparecemos em suposições
ocultas, se é que aparecemos. Muitas
vezes nos desarticulamos. Eles conti-
nuam esquecendo que estamos lá, como
alguém que esquece a existência do ar.
303
MANDRAGORA
dogma coletivo central

305
307
308
311
312
314
1

316
EDUNOISE
PATRICIA RAIJENSTEIN
JORGE BARCO
Selu Herraiz
"Nessa época de
hiperdesenvolvimento da imagem,
Aliança
transatlântica de quiçá seja mais conveniente
escutar do que ver.
Temos que nos escutar mais”.
ações sonoras e
pensamento coletivo Edunoise

Após a longa aventura de nossos


para desenvolver e
investigar a escuta amigos para a Cidade Esmeralda, che-
gam ante o Grande e Maravilhoso Mago
de Oz, quem em troca de que realize
e os sons
seus sonhos (valor para o Leão covarde,
cérebro para o Espantalho, coração para
o Homem de latta e para Dorothy, voltar a
MANIFESTO EDUNOISE
casa.) pede-lhes que apresentem a vas-
1. O erro se ensaia como prática
sora da horrivel bruxa do Oeste como
estética e ética.
símbolo de sua derrota. Contra todo
2. Fazer é pensar.
prognóstico conseguem vencer a bruxa
3. Perder tempo é uma lei moral.
e ao trazer-lhe a oferenda o mago de
4. Os sons guturais, digitais e
Oz se nega a realizar sua promessa. Nos-
analógicos nos farão livres no devir
sos amigos não se dão por vencidos e o
antena.
enfrentam, exigindo que cumpra sua
5. Proclamamos a beleza do feito à
palavra; mas será Totó, o pequeno mas
mão, do jogo e do trastejamento.
inteligente cachorro de Dorothy, fiel com-
6. Transformamos o lixo, o roto e o
panheiro, quem descobre o segredo do
rompível em joguetes indomesticáveis.
grande Mago. Com o simples ato de abrir
7. A diferença entre magia e tecnologia
uma cortina, deixa todos verem como a
é somente uma variável histórica.
magia do poderoso Mago do país de Oz
8. O individual e a comunidade se
é na realidade um grande artefato tec-
organizam e se reorganizam de maneira
nológico que intermedia entre ele e o
orgânica, sã e natural.
mundo, que produz efeitos visuais e
9. O corpo não é um limite.
sonoros que atemoriza todos, ao mesmo
10. O processo como único valor.
tempo em que conseguiu manter à dis-
11. Compartilha, remescla, aproveita,
tância as maléficas bruxas do Leste e do
recicla.
Oeste. “Não mirem o homem que se es-
12. Estamos todos conectados.
conde atrás da cortina” diz o mago com
13. Passa do pensamento lógico ao
voz grave e sons de trovões, para tentar
mágico continuamente, sem medo.
dissuadir nossos amigos de que es-
14. joga, desfruta, cria.
tavam vendo um truque de mágica, de

317
4

que mordessem a maçã do conheci-


mento, de que seguissem desconhecendo
o funcionamento de seus aparatos e,
assim, pudesse continuar exercendo o
mesmo efeito sobre eles.
A grande farsa que descobrem
Dorothy e seus amigos não é um fra-
casso absoluto para seus planos. Ao abrir
a cortina verde-esmeralda, descobrem o
que nunca imaginaram… O humano que
há atrás das tecnologias, o modo de
fazer magia, de criar ilusões, de fazer de
seus sonhos uma realidade. “Sou um
impostor” reconhece o mago, que nesse
momento se converte em sábio e lhes
deixa ver que tudo que esperavam rece-
ber de outro, estava dentro deles mes-
mos, e quiçá, a única coisa que lhes fazia 6
falta, era possuir esse objeto simbólico,
esse fetiche que ativasse seu potencial,
que lhes fizesse confiar em si mesmos:
um relógio-coração para o Homem de
Lata, um diploma de esperto em conhe-
cimento para o Espantalho, e uma
medalha de valor para o Leão que ja não
era covarde.
O pensamento mágico, reconhe-
cer debilidades – recordar que elas
foram as que lhes impulsionaram a em-
preender a aventura até a Cidade Esme-
ralda – o amor, o valor de enfrentar
1

mundos inexplorados com a ajuda de


companheiros e não darem-se por venci-
dos até que consigam o que parecia im-
possível… matar a bruxa do Oeste e
descobrir que suas debilidades eram, na
realidade, suas fortalezas.

“A diferença entre magia e


tecnologia é só uma variável
histórica”
Walter Benjamin

318
2

Cidade Esmeralda, chegam ante


o Grande e Maravilhoso Mago de Oz.

ALQUIMIAS E AÇÕES TECNOMÁGICAS


1. Na oficina. Jorge Barco. 2013
2. Pedro Soler, Fabi Borges e Jorge Barco
Ação de tecnomagia en MUSAC [León Espanha] 2014
3. Deriva e ação tecnomágica na Corunha 2014. Jorge Barco
4. Tecnomagias. Sumerlab. A Corunha. 2014. Jorge Barco
5. Deriva Finisterrae, Jorge Barco 2014
6. Paula Pin, Jorge Barco, Lina Mejía. Noite de Ruído.
Medellín 2014
Fotos cedidas por Jorge Barco.
320
FRAGMENTOS PARA A
DESESTABILIZAÇÃO DOS
CORPOS: MEDIAL AGES
Laura Plana Gracia

O papel feminino na criação está um ambiente mais humanitário, mais


diretamente ligado a poéticas de origem, ético e equilibrado. o abuso de poder, as
práticas de carregar a vida, de descobrir o tendências de produção e os próprios lu-
lugar ou espaço da produção original. cros estão a provocar a consciência sobre
neste sentido, o colonialismo e o euro- os danos. fragilidades e extinções são
centrismo são opostos à "terra incognita", reprimidas e limitadas. a cultura aberta
a terra da liberdade pós-colonial e da re- oferece uma visão alternativa àqueles
volução social. compreende-se "mater que são elite.
naturans" como origem e definição da Artistas apresentam soluções para
criatividade, memória e sinal no espaço. situações constantemente obliteradas. o
portanto, a arte tem desenvolvido práticas projeto nasceu da experiência adquirida
capazes de trazer de volta a heterotopia na cooperação internacional em países
para a vida, a morte em vida. em relação pós-comunistas da África, onde a luta e
à tecnociência, tecnologia e feminismos e reivindicação socialista por necessidades
à participação das mulheres na tecnolo- básicas transformam as vozes nunca ou-
gia, existe uma série de práticas artísticas vidas em interfaces para fomentar a igual-
de gênero que se desdobraram em queer dade social. o trabalho com recursos
ou pornoterrorismo. beleza convulsiva e sonoros como discursos ou arquivos de
corpos decadentes, transgêneros, trans- som permite rever este processo his-
fronteiras, experiência prática como me- tórico. sua intenção é fazer história com
todologia vital. a maioria dos artistas e base em estratégias como o hacking, a
principais figuras desenvolvem disposi- copy-art e a apropriação. a queda do
tivos, utilizando eletrônica circuit bending regime soviético e o desmembramento do
faça-você-mesmo (DIY), código aberto e bloco comunista também são influências.
cultura livre. enquanto isso, na europa dos anos 80,
Medial Ages é uma performance explodem a cibernética e a tecnologia
influenciada pelas teorias do pós-mo- doméstica. mas o hemisfério sul ainda en-
dernismo, pós-colonialismo, baseia-se na frenta ditaduras pesadas corrosivas e mi-
estética do ruído, suportada pela ciber- litarizadas. processos de descolonização
nética e as relações entre arte, ciência e culminam ao final da guerra fria. mas não
tecnologia. influencia-se pela arte política, é a luta pelo escopo espacial, não é o
ativismo, hacktivismo, direitos humanos e avanço das tecnologias de comunicação,
políticas de património. oferece a possi- tampouco a instalação das redes de inter-
bilidade de transformar a realidade em net ou o pós-modernismo na direção do
321
fluxo e da conectividade. Medial Ages é ecossistemas que nos possibilitam uma
um ambiente experimental que busca re- experiência de conhecimento da reali-
configurar as ditaduras através do foto- dade.o sistema de som consiste em uma
jornalismo e da videoarte expandida. ele frequência de espectros. sua forma tem
gera uma sequência em vídeo a partir de sido descrita como circular, não-linear,
arquivos, revistas, jornais e imagens desorganizada, auto-organizada, caótica,
apropriadas da imprensa, agências como indeterminada, randômica. define-se co-
Reuters, e jornalistas de mídia livre. é pre- mo um sistema complexo e dinâmico. É
ciso criar material um video de conteúdo interativo, imprevisível e aleatório. é tam-
político de movimentos sociais, como bar- bém imanente e imaterial. segue teorias
ricadas, banlieus, motins, manifestações visuais e sonoras, estudos de neurociên-
de cidadania. a seleção das imagens gera cia e definições de ruído cibernético.
uma entidade iconoclasta para a popu- segue Norbert Wiener e Marshall Mcluhan
lação.ou seja, analisando forma e figura, como autores principais. influencia-se
o processo nunca mostra um herói, ou também pela definição do quiasma, o
uma figura por si só. isto corresponde a ponto em sistemas nervosos onde mais
uma ideia geral contra líderes, ícones ou de um nervo cruza sobre o outro. A estru-
mainstream. porque a cultura ocidental foi tura em forma de x que aparece nesse
erguida a partir da ideia de um ícone con- ponto antes do cérebro onde os dois ner-
tra as massas. aqui há influências como vos colidem. Na prática, será desen-
Gericault ou Delacroix. Medial Ages en- volvido como um dispositivo sonoro
frenta os problemas inerentes em se re- experimental emulando funções do cére-
presentar o ciclo canceroso de guerra, bro e seus sentidos, assim como as
lancinando as consequências materiais máquinas computacionais o fazem. Nesta
de traços do conflito na paisagem. Na ex- ocasião, reproduzimos um sistema bio-
ploração de minas e recursos materiais – lógico que remodela as funções sensori-
ouro, diamantes, coltan ou sensores de ais de audição.
fibra óptica – surgem estruturas proje- Medial Ages baseia-se nas teorias
tadas para a guerra e para territórios de campo mórfico por Alfred Rupert Shel-
vigiados de controle e punição. Docu- drake e falseabilidade da ciência por
mentam-se então imagens de rebeldes e Frank Popper. E também parapsicologia,
violações de direitos humanos na forma ressonância mórfica, biologia celular, tele-
de um realismo tradicional, na tentativa patia – tipos de interconexões, assuntos
de reverter e enxergar sob a superfície. paranormais, visão remota, precognição,
Utiliza-se uma abordagem estética que pseudociência, inconsistência em genética
considera um imaginário problemático. A e embriologia, o guru new age deepak
fotografia documental envolve-se com os chopra, medicina alternativa, fenômenos
aspectos invisíveis, ocultos e intangíveis. psíquicos, pensamento holístico, magia
Em um estilo de filmagem em travelling negra e arte maconde.
longo, resultando em um filme de olhar Durante a minha infância viajei por
espectral e desencarnado. A peça as- países africanos, onde os movimentos de
sombra uma paisagem sonora visceral libertação negra haviam ocorrido. Com o
em uma composição de noise diy. decorrer dos processos de libertação e in-
Medial Ages é uma incursão explo- dependência da década de 70, havia
ratória no som. Refere-se a fundamentos ainda em 1989 alguns conflitos de guerra
sonoros: frequências e espectro. examina pós perestroika russa. O apoio do comu-
conceitos e técnicas. O som é um dos nismo internacional da Rússia teve fim
322
com a queda do muro. Países que rece- libertário – utilizando técnicas de som,
biam suporte e ajuda foram abandonados música popular ou discurso político – é
e guerras civis eclodiram imediatamente uma resolução estética e ética que con-
por lá. Depois de ser uma cidadã de pas- fronta a figura unificada de um ícone do
sagem por Moçambique, Angola e África poder. Estas estratégias estão tentando
do Sul, eu me dediquei a estudar a sua demolir a cultura dominante unificada re-
história. Um exame do mapa complexo presentada por deus, rei ou ditaduras. E é
da áfrica pós-colonial me fez entender por isso utiliza-se apropriação em seu es-
como os papéis arquetípicos são funda- tilo. Trabalhar com sons e imagens já pro-
mentais para a construção da ideologia duzidas acaba com a ideia de autoria e,
do poder. Este é um motivo por que eu além disso, abre um processo para re-
configuro uma estética diferente a fim de presentar o grupo social ou a comunidade.
compreender o processo de construçlão Há uma grande satisfação de a-
do poder. Por esta perspectiva, procuro presentar Medial Ages. De um lado, está
apagar todas as figuras singulares nas o som. Eu trabalho com a fala e o dis-
imagens captadas, porque meu interes- curso. Eu uso ecos, reverbs e altas fre-
se não é a ideologia icônica, mas o con- quências – processos de manipulação
texto mais específico do seu entorno, o sonora que permitem sublinhar ideias ou
ambiente do humanos ou a paisagem da sons bastante particulares, aqueles pen-
materialidade. Nesses processos históri- samentos gritantes sobre a liberdade ou a
cos, eu também pesquiso sobre a his- luta, mas também amostras que criam
tória da aquisição material em minas, uma noção de olhar, espectro ou vida
terreno e território. mais profunda. Mas, por outro lado, exis-
Medial Ages trabalha usando ar- tem as imagens. A selecção das imagens
quivos sonoros históricos que têm sido cria uma figura iconoclasta para a popu-
fundamentais para a história. Na minha lação. Uma vez definida a leitura de forma
opinião, o que Medial Ages oferece como e figura, esta nunca exibe um herói ou
uma potencial "arte de apropriação" é figura única sozinha, mas uma comu-
uma tentativa de superar determinado nidade. Isto corresponde à ideia geral
"processo revisionista". Trabalhar com re- contra os líderes, ícones ou cultura domi-
cursos de som como discursos ou ar- nante. Afinal a cultura ocidental fundou-
quivos de som permitem que se avalie o se com base no ícone contra as massas.
processo histórico. Trabalhar com mídia O audiovisual live tem sido a mídia mais
aberta implica uma nova forma de pensar importante que encontrei em minha car-
a representação mainstream. Os proces- reira. Eu tenho minha base na arte
sos de reprodução da memória histórica eletrônica e não consigo entender uma
reforçam as estruturas de poder. as vozes obra de arte que responda às condições
obliteradas – aquelas que tem sido silen- sociais contemporâneas e não inclua uma
ciadas por processos de memória re- noção de movimento, transformação, mú-
forçados pela comunicação de massa – sica e imagem em movimento. Além
poderiam ser reinseridas no imaginário disso, tenho interesse em obras coletivas,
coletivo através de novas vozes. Este trabalho em grupo, em vez de apresentar
processo facilita a preservação de grupos somente artistas solo. Há um fato impor-
sociais marginalizados, aniquilados ou tante que é a utilização de instrumentos
exterminados, diferentes etnias e ideolo- de bricolage em performances ao vivo.
gias frequentemente oprimidas. O tra- Sobre referências, eu tenho experi-
balho pela reabilitação do pensamento ência em história, sociologia e antropolo-
323
gia. Minha arte é baseada no ativismo gia aparecem no ritual em que o som tem
político, naqueles movimentos dos anos uma importância central. A dimensão on-
60 e 70. Artistas envolvidos no processo tológica do som como uma mídia será
de descolonialismo. Arte da América do usada como um fenômeno antropológico
Sul ou América Central: guerrilla art action auditivo, som como meio de comunicação
group, group material e aqueles mais con- é utilizado também em práticas ambien-
temporâneos, como o ativismo de pussy tais, expressões artísticas e práticas da
riot. Dando uma resposta para a transfor- comunidade. Fenômenos sobrenaturais e
mação econômica e social, coletivos de mistérios das origens serão apresentados
artistas reativam processos locais com em práticas que usam som como meio de
manifestações apolíticas para melhorar comunicação, além de criações com ex-
as suas condições. Ao mesmo tempo, pressões de cerimônia ou ritual. Este ri-
emergem tendências na música under- tual mágico de origens é geralmente
ground e cultura anti-establishment, em composto por sons e expressões em que
conjunto com ações contrárias à guerra o som é usado como uma mídia e con-
do Vietnã. Nos Estados Unidos da tribui para a formação das expressões
América a história da cultura oprimida en- culturais, como primitivismo, exóticas, in-
contra expressão social através do blues, dígenas. Estas definições devem ser
folk e rock and roll. A produção industrial entendidas como uma característica posi-
no litoral sul substitui o discurso lógico tiva, mas não como uma condição racial,
dos novos cristãos, por causa do New pejorativa ou inferior em expressões de
Deal e da riqueza pós segunda guerra identidade dos fenômenos culturais. Es-
mundial. A música blues e o rock roll con- ses fenômenos sonoros relacionados ao
fluem em novas tendências, como noise ritual e origens também são submetidos
rock, psychobilly e os usos dos primeiros a políticas de preservação. Estas paisa-
sintetizadores. A história da música ele- gens sonoras, pelas quais o natural e ar-
trônica e techno introduz novos sons, tificial são diferenciados, examinam o
ritmos e modulações musicais que con- impacto sobre o ambiente. Salientando a
tribuem para a compreensão de fatores oposição à primazia do visual na cultura
tais como a indústria anti-mainstream e o ocidental, definida por Marshall Mcluhan,
poder da ideologia. Bandas e música dos Schafer define a expressão do artístico
anos 70 como Silver Apples, Velvet como metafísica e social. A cultura é uma
Underground, Neu!, Can, e a experimen- expressão de identidade, individual ou so-
tação com música eletrônica e cultura cialmente. O uso do som como uma mídia
techno são a influência central no meu na manifestação da vida cultural é com-
trabalho. preendido como a formação de uma iden-
Finalmente, Medial Ages propõe tidade de nível glocal (global - local).
uma ético-estética que pertence às on- assim, tornam-se narrativas universais,
tologias do som. A criação artística de- possíveis expressões de paisagens sono-
senvolve práticas e projetos que parecem ras culturais, a fim de preservar e cons-
um ritual. O ritual é uma fonte de conhe- truir um património. A cobertura cultural
cimento; protege e defende o desenvolvi- abre-se à expressão ritual e performativa
mento sustentável; liga-se a ideias de de identidades culturais, aceitando a di-
preservação e conservação, responde a versidade e a diferença. Ontologia e
políticas do patrimônio, com uma nova antropologia auditiva aparecem como
condição que implica magia e relativismo. uma expressão da práxis na performance.
Também práticas de patrimônio e ontolo- Políticas de preservação do patrimônio e
324
museus irão incluir obras nas quais o som cias perigosas e desagradáveis, perigos
aparece como uma mídia. Estas políticas iminentes e atenção para paisagens
serão baseadas na metodologia de sonoras lo-fi vulneráveis. Isso pode con-
antropologia auditiva, etnomusicologia e tribuir para uma ontologia baseada em
estudos de som. Em oposição à primazia sonoridades específicas de transe, para
visual ocidental, a interpretação de som que indígenas, xamãs, médicos ou
será definida como uma resposta em doutores comuniquem-se através de es-
processos ontológicos de conhecimento. píritos em rituais de magia, a fim de com-
Além disso, a etnografia poderá aproxi- preender o ser sônico. Este processo de
mar-se para estudar o som como um formação identitária em expressões cul-
processo sensorial. Esses estudos estão turais é uma forma de comunicação
incorporando mídias interdisciplinares, capaz de construir conhecimento, trans-
em que a simbiose de som com outras mitindo ontologia através da percepção.
categorias, tais como a teoria antropoló- Através da audição e do som, o ser é re-
gica, enriquece o campo de conheci- velado ontologicamente para formar
mento e experiência ontológica em mitos, narrativas e modos de expressão.
expressões culturais. Uma antropologia A antropologia auditiva considera como
auditiva aplicada a teoria e conceitua- parte dos fenômenos sonoros a per-
lismo será um campo de pesquisa em cepção de florestas tropicais, o natura-
políticas de preservação. E deverá tam- lismo e ambientes atmosféricos, práticas
bém considerar fenômenos como vozes seguindo o conceito de aurática (aural,
interiores, música imaginada ou aluci- aura) em walter benjamin e a ontologia do
nações auditivas. O pensamento ociden- som em Paracelsus, Tao Te Ching, John
tal é baseado na fisicalidade do visual, Cage ou o pensamento animista.
mas o animismo e as ontologias funda-
mentam-se na interioridade descontínua;
mente, alma e também a existência
monádica. Animismo e sistemas on-
tológicos baseiam-se na percepção da
interioridade. Corpos humanos são orga-
nizações perceptivas inerentes que pro-
duzem um comportamento cultural
diversificado. Festividades e rituais de-
rivam disso. Naturalismo e animismo são
construções culturais baseadas em fisi-
calidade do corpo e interioridade da alma,
e a maioria deles conecta-se através do
som. Um fenômeno estendido é a voz,
física ou interior. A ontologia é então for-
mada por estruturas sonoras de pensa-
mento, como a voz em rituais. Ontologias
sonoras devem opor a primazia visual ao
som. Os fenômenos auditivos são seu
foco de pesquisa. ontologias sonoras
farão uso de rituais, performances, mitos,
expressões de ouvir e não ver e etno-
grafia auditiva para evitarem consequên-
325
Imagens:
Rafael Frazão

326
ATA DA REUNIÃO
TRANSESPECÍFICA
DELIBERATIVA
Rafael frazão

Estão presentes um vidro com consciência assumida por um xamã


água do rio Tapajós, o espírito de um pesquisador de passagem, que circu-
quasar manifesto em um HD, 12 pás- lando entre as perspectivas das coisas
saros subterrâneos sindicalizados, al- caiu ali, naquela reunião de agência-
guns professores do reino fungi, um mentos. riu por dentro ao presenciar
coqueiro imperial no fim da vida, um hu- essa harmonia oculta e disse – com-
mano sem sapato, três povos de mi- panheiros, seres sonhados e seres não
croorganismos em guerra molecular. sonhados, sejamos o turbilhão barroco
Um pássaro de ocupação diz: — da linha. As teconologias para o trânsito
a máquina colonizadora segue arran- entre as cosmologias são fundamentais
cando o pensamento mágico do hori- para construírmos a máquina sensível
zonte e naturalizando seu regime capaz de disputar território com o incons-
miserável de sígnos, sua meia dúzia de ciente colonial. Levantem suas antenas
truísmos que separam tudo em seus e covoquem todo o espectro.
domínios. Abaixo as fronteiras das es- A rede interdimensional do reino
pécies! tudo emana e há de ter seu lugar fungi que possui a maior banda no mul-
de fala! Um grupo de microorganismos tiverso tratou de compilar e espalhar as
vibra, grita e se sente representado. O deliberações da reunião nos redutos da
quasar processa em pixels uma poesia esquerda cosmopolítica.
antiga acontecida no olho de um peixe,
em que um kosmo índio nascido em um
buraco negro cultiva imensa diversi-
dade de antimatéria. Nesse momento a
porção de água do Tapajós tem sua

327
Desejo V

visões dentro de chuvas multicores


que implementam na gente
um inconsciente ancestral
e delineiam nos corpos
uma desejação de acontecimentos
inaugurais
que se inclinam até uma pós-vida
mas que vai e volta e vibra
em torno da sublimação sutil
que é
adentrar
a era labiríntica de si

328
329
Terras II

quando as últimas
cinzas se alojarem na
brancura histérica da mente vazia
desacontecida nos corações
e esquecida pela inteireza das percepções
preenchida nesta fase pela
invenção do pictórico
até o Pós-Logos da Vertigem
sangues elétricos reviverão
o sonho político da reformulação
totêmica da Mãe
a voz granulada que abre as rochas e os
mares comunicando para nossos
deuses parapocalíticos
o fim de um abismo integrador
anuncia-se, então,
a falência das decisões
a partir da não descentralização dos
existires terrenos
para, talvez, chegar
a uma organização
assistêmica do delírio

330
esfera multifacetada
dos corpos sutis
em que moram
os pré-deuses da mata
ali onde a terra ronca
agora no bio-espaço do Sol
elíptico
onde o presente mitológico
retorna ao respeito
das raízes com suas veias
musicais
e suas canções do fogo enfiadas na cruz da
linguagem
organizamos a dança circular onde os olhos
se tocam
e crianças cantam
em uníssono o fim do início
anotamos em tábuas
por hora trágicas
as fórmulas dos códigos para que junto da
leveza do xamã
transumano
ao menos, agora, festejar
para ressituar os Tempos
renaturalizar os chamados
reler pra trás
POEMA DE LEO BR SOBRE O FILME TERRA RONCA
DE RAFAEL FRAZÃO E VITOR GUERRA, REALIZADO
NO I FESTIVAL DE TECNOXAMANISMO

331
Ópera Amateur, the social robot. Foto cedida por Fabiano Fonseca.

332
AMATEUR,
THE SOCIAL ROBOT
Fabiano Fonseca

a minha vida inteira para o som... imagine


analisar os espasmos involuntários que o
“Amateur, The Social Robot”

subgrave causa nos músculos do ser hu-


é uma opera sci-fi. Uma

mano... ou se a pele muda de cor se o ser


Performance Audiovisual

humano for submetido a níveis elevados


concebida pelo mineiro Fabiano

de ruído rosa... ou ainda esperar para ver


Fonseca (FFabiano). Converge

se nascerão garras ou caudas em meu


música eletrônica,

corpo suspenso por drones de áudio.


vídeoprojeções, dramaturgia,

Meu primeiro projeto oficialmente


cenografia, figurino e

publicado foi em 2006, em conjunto com o


interpretação teatral. Uma

grupo Digitaria. Tudo que sei e sou eu


obra que se apropria do conceito

devo àquelas pessoas especiais. Em 2009


de "live-cinema", ou seja, um

eu lancei o Ep "Death in Benares" com o


espetáculo que se dá no tempo e

L'esT, um trabalho mais autoral, com gui-


no espaço com o artista

tarra, bateria e baixo. Produzido por Ser-


executando música e imagem ao

gio Scliar, este disco foi feito após a minha


vivo, controlando luzes

viagem à Índia com o parceiro Eduardo


e se relacionando com o

Recife, que também resultou no livro My


ambiente EM geral.

Dear India, lançado no mesmo ano.


Este artigo ilustra aspectos

Depois fiquei flutuando por um


dessa obra, o enfoque

período... colaborando com amigos...


ritualístico, o conceito

ajudei o Arnaldo Baptista a gravar alguns


artístico e seu processo de

sons... toquei com o Ricardo Garcia no


produção e demais detalhes.

"Feijão Lunar", lancei o EP "Healing Hare"


AS ORIGENS produzido por Andre Thitcho, participei de
Enxergo o mundo de maneira sô- residências artísticas, etc.
nica, atonal e sem limites. Atualmente, me dedico ao projeto
Interessam-me sons graves, sub- Ligalingha, em parceria com Henrique
graves, distorcidos, eletrificados, distan- Roscoe (1mpar), aos sons acasionais que
tes, ultra suaves, infra finos... produzo para instalações e ao meu mais
Fecho os olhos e me entrego à mú- novo projeto Amateur.
sica que produz movimento... música pro- Com o Ligalingha, Henrique e eu
funda, que explora os sons sem pressa, podemos ficar dias improvisando, progra-
que vai fundo nos limites sem nenhuma mando, tocando, repassando, repensando...
barreira estética, que tenciona e relaxa... sem nos entediarmos por um instante...
que inspira e surpreende. pois para mudar para algo novo basta
Se houvesse algum experimento uma decisão e um clique... não existe di-
cientifico aberto, eu seria capaz de doar ficuldade técnica... ou situação insolúvel.
a minha alma, o meu corpo, o meu tempo, É programação eletrônica e psicodelia

333
audiovisual em estado puro. Construímos sustador, dócil e melancólico. A estreia
nossos próprios instrumentos com arduino, desta performance aconteceu em 14 de
tocamos sintetizadores, programamos se- novembro de 2014.
quencers, processamos instrumentos e
vozes em ipads, hackeamos sensores AMATEUR
(como kinetic xbox) e brincamos de fazer Surpreendente em sua atitude,
um disco por semana. Ainda não Amateur tem consciência de sua con-
lançamos nenhum trabalho... não esta- dição: um autômato construído nos anos
mos muito preocupados com o fono- 80, programado para aprender e definir
grama neste momento. seu próprio comportamento a partir da ex-
O palco sempre foi um lugar ritu- periência. Foi o primeiro robô a possuir
alístico para mim. Quando estou nele me um sistema emocional sintético, que em-
transformo completamente. Meu corpo se bora rudimentar pôde influenciar comple-
energiza, meus sentidos se aguçam, ajo mentarmente suas ações e decisões.
de maneira estranha, descontrolada e Idealizado inicialmente para fins mi-
tenho impulsos autodestrutivos. Nunca litares, foi mantido sob sigilo no laboratório
sei exatamente como tudo vai acabar. de seu criador até recentemente, quando
Desta miríade de possibilidades, os primeiros episódios de fúria acontece-
naturalmente a vida me levou a um tra- ram, culminando com destruição e fuga.
balho que abrangesse elementos per- Vive agora no submundo alimen-
formáticos, cênicos e ritualísticos em tando sua obssessão pelo comporta-
um show que tem a música eletrônica mento humano. Coleciona dentes e cabelos.
como motor. Assim nasceu a performan- Estuda os movimentos dos répteis e feli-
ce Amateur. nos. Adora o altar de Khali enquanto testa
A vida cotidiana, superficial me in- próteses caseiras em si mesmo. Mas é
teressa muito pouco. Procuro viver gran- em seu apreço pelo vício que apresenta
des experiências sensoriais, emoções de sua face mais assustadoramente humana.
fato, e assim procuro estar sempre atento Em suas aparições ao vivo, ASR
às noticias da comunidade cientifica, as se tranca em uma jaula, pois acha que
novas formas de vida inteligente, e busco nunca soube ser livre. Nessa jaula – uma
trilhar caminhos de grandes yoguis que extensão de seu próprio corpo – apre-
experimentaram em si mesmos momen- senta seu repertório usando trajes confusos
tos de transcendência e experiências e identidades falsas. A cada apresen-
extra-sensoriais. Coleciono também es- tação, seu encontro com a plateia gera
tórias de candomblé, relatos de universos novas sensações e riscos.
paralelos e contos indígenas. Assim, en- Ao vivo, a performance consiste na
contrei na ficção cientifica uma forma de jaula cenográfica quadrada medindo 210
me expressar alternativa pois percebi que x 210 x 210 centímetros. Essa jaula é
a minha vida pessoal, meus dilemas exis- equipada com fitas de led brancas insta-
tenciais e amorosos são muito pouco ladas em todas as suas barras e contro-
interessantes. Desta forma, criei o perso- ladas por um sistema áudio reativo.
nagem Amateur, um experimento cientí- FFabiano toca e canta de dentro da
fico que falhou, se rebelou e escapou das jaula, usando um figurino desenhado espe-
mãos dos militares que o criaram. Uma cialmente para a performance. Opera um
literatura caseira, um pretexto, uma linha sistema com diversos hardwares e contro-
conceitual em que eu pudesse encarnar ladores (Electribe, Lauchpad, Mikcrokorg,
um personagem radical, extremo e as- etc) além dos softwares de áudio e vídeo.
334
Uma retroprojeção em vídeo con- Som: A música "Square Pixel" é
textualiza elementos do roteiro com ima- um poema sobre um pixel que viveu
gens distorcidas, glitches e um astral solitário em sistemas audiovisuais ar-
mecânico-futurista. caicos. Agora é obrigado a se mover fre-
Objetos cenográficos (refugos in- neticamente, de um canto a outro,
dustriais, correntes de ferro e sucatas) oscilando entre zeros e uns, sim e não. A
estão suspensos estrategicamente no es- voz, metalizada e monotonal, entoa o
paço da jaula e se configuram como uma poema com um astral sombrio.
extensão do corpo do personagem. Ama- Vídeo: Tela repleta de elementos
teur utiliza estes objetos como percussão, replicando a ideia de bits 0-1. Luzes es-
além de controlar, em tempo real, som, troboscópicas e quadrados se movendo
vídeo e luzes. O espetáculo tem um final freneticamente de um canto a outro. Es-
cênico, imprevisível e catártico. tética 8 bits digital. Chiados de TV e sin-
tetizadores analógicos de vídeo criam
A CENA texturas. Luzes de led se ascendem es-
poradicamente.
ATO I
ROBOT THOUGHTS PORNETIK
Com a jaula totalmente escura, o Amateur contracena com imagens
público enxerga Amateur ajoelhado de filmadas dele mesmo em silhueta preta,
costas, em posição de meditação. Uti- sugerindo a idéia de vários personagens
lizando uma capa de referencia xamâ- em cena, vários alter egos.
nica, somente sua silhueta é vista entre Som: A música "Pornetik" aborda
uma nuvem de fumaça. temas como apego, vícios e rotina. Ritmo
Som: mantra eletrônico, repetitivo repetitivo e dançante, estética digital e
e com frequências subgraves. A música robótica.
“Social Robot” introduz o personagem Vídeo: Edição de cenas filmadas
com frases de seu cotidiano e o refrão em silhueta alternando de acordo com a
'robot thoughts'. música com edição estroboscópica de
Vídeo: Representando a criação, filmes obscuros, imagens científicas de
uma linha de energia se forma aos enciclopédia, corpo humano,e etc.
poucos na retroprojeção. Essa linha se in-
tensifica e vários focos de energia tesla TOBBACOMAN
se multiplicam até encherem a tela. Surge Amateur age estranhamente, repe-
então uma cena com elementos mecâni- tindo padrões corporais. Anda de um lado
cos. Parafusos, placas, motores sim- para o outro de forma dura, como numa
bolizam o laboratório de criação. Depois linha de montagem de uma fábrica. En-
tudo se fecha abruptamente e uma porta caixota, empacota, se oferece ao publico.
se abre... uma cena filmada em um longo Se aproxima das grades com olhar de-
corredor com várias portas. A câmera samparado, como se pedisse ajuda.
caminha lentamente. Som: A música "Tobbaco Man"
aborda temas: comportamento passivo,
SQUARE PIXEL tédio e consumo de cigarros.
Amateur se levanta, tira a capa e Vídeo: uma linha de cigarros atra-
se aproxima da cabine de controle. Seu vessam a tela rolando. Se multiplicam em
rosto vai sendo sutilmente revelado por vários, milhões, milhares (utilizando o
luzes strobo acidentais. software VVVV). Cena filmada em close
335
de um ator colocando diversos objetos na ATO III
boca, tentando comer, cuspindo sangue, Amateur solta o piano impro-
e insistindo em comer tudo vorazmente. visadamente e, virando-se, caminha em
Luzes de led se ascendem no refrão da direção ao público executando uma cami-
música de forma intensa iluminando toda nhada típica do teatro butô: passos hiper-
a plateia. lentos, olhar fixo no infinito e postura
corporal controlada. Como um robô em
DEVOUR, DESTROY câmera lenta, caminha aos poucos... e,
Amateur sofre um ataque de fúria. de repente, corre por entre as pessoas,
Tenta destruir a si mesmo, a jaula e saindo pela porta do teatro.
equipamentos. O palco se enche de fu- FIM
maça enquanto Amateur usa os objetos
de percussão de forma intensa, gritando. ELEMENTOS CÊNICOS
Som: A música "Devour, Destroy" A jaula em si é apresentada como
é um hardtechno agressivo. Os sons dos uma metáfora para a condição humana
metais percutindo na jaula se confundem nos dias de hoje. Existem diversas
com a dureza dos sons eletrônicos e dos maneiras de se sentir preso, de se prote-
gritos distorcidos. ger, de não conhecer os próprios limites,
Vídeo: um vídeo-homenagem à de se isolar. Desta forma, não se sabe ao
deusa Khali, como se Amateur precisasse certo se é Amateur que está preso ou a
romper com seu mundo atual e construir própria plateia. Não se sabe ao certo
um novo. Luzes de led se ascendem fre- quem está se protegendo de quem.
neticamente representando o surto do A situação do enjaulado incita di-
personagem. versas questões acerca da existência hu-
Ao final do primeiro ato, blackout mana, suas prisões mentais, máscaras
na sala e um tecido preto cai, cobrindo sociais, medos e angústias.
toda a jaula. Ouve-se sons de objetos se Amateur observa, coleciona e es-
partindo, explosões, sirenes. tuda friamente o ser humano de dentro de
uma jaula atemporal que remonta a um
ATO II universo pós apocalíptico, como se o
O público permanece por alguns mundo já não fosse mais este que co-
instantes com o palco todo escuro, enfu- nhecemos, como se as regras hou-
maçado, ouvindo apenas um ruído con- vessem mudado e os paradigmas sociais
tínuo. Amateur surge pela lateral vestindo vigentes já estivessem ultrapassados. É
um traje ajustado ao corpo, quase como hora de reinventar um novo mundo e,
uma segunda pele. O tecido tem uma im- assim como no mito de Khali, destruir
pressão digital especial fazendo alusão a para construir novamente.
radiografias, exames de ressonância
magnética, etc. De costas para o púbico ANIMAÇÕES E VÍDEOS
senta ao piano e executa uma música. Predominantemente em preto e
Esse piano, na verdade um controlador branco e em alto contraste, os vídeos são
midi, foi previamente colocado por um como um filme que acontece em tempo
roadie da equipe. A música começa lenta real. Cada parte musical tem sua corres-
e dramática e vai se intensificando aos pondência visual. Cada nota, um motivo
poucos, ficando dissonante e percussiva. imagético. Animações gráficas serão uti-
lizadas para dar ênfase a aspectos sen-
soriais do roteiro.
336
Cultura cyberpunk, erros de im- A escolha por uma linguagem mul-
pressão, osciloscópios, ressonâncias timídia tem inspiração nos happenings e
magnéticas, frases de protesto, ex- performances do Grupo Fluxus e Joseph
plosões, sinapses, relógios, parafusos, Beuys.
cifrões, coturnos, corredores, bits e bytes,
sinais de antena, equipamentos mecâni-
cos, poeira, enciclopédias antigas, ener-
gia tesla, máquinas obsoletas... tudo isso
faz parte do conjunto de imagens que
pretende-se usar para construir o imagi-
nário estético do personagem.
Retroalimentação, videomapping,
sintetizadores de vídeo, mesas de luz,
câmeras de segurança, jogo de sombra,
vídeos gerados por códigos de progra-
mação... são algumas técnicas que
pretende-se usar para conceber a perfor-
mance.

PERFORMANCE
A inspiração principal desta per-
formance é a obra literária “O artista da
fome”, de Franz Kafka. (Ein Hungerkün-
stler, 1924). A ideia de se ter uma pre-
sença física de uma figura humanóide no
espaço, um corpo que sofre um duplo
trauma de nascimento e morte, que car-
rega um passado e busca reinventar seu
futuro.
A proposta centraliza todas as
ações cênicas em um único personagem,
criando assim uma miríade de possibili-
dades de identificação direta do público
com o personagem.
O formato de “teatro imersivo” de-
riva de escolas de teatro físico que tem o
inglês Jerzy Grotowski como principal ex-
poente, além é claro, do dramaturgo
francês Antonin Artaud.

O “corpo sem órgãos” é o nome Notas:

deste corpo refeito e reorganizado


Video filmagem do ensaio. Set 2014.
https://www.youtube.com/watch?v=TeAlm3V47yA&list=U
que uma vez libertado de seus au- UVNTI6q5d Pw4h81gYiPzbdA
tomatismos se abre para “dançar Outros links. Soundcloud.com/fabianofonseca

ao inverso”. (Antonin Artaud)

337
Ekopornoxamanismo, uma obra de Azael
Valderrama em colaboração com o teatro
Le Petit Justine e Jeison Castillo, reflexão
de nossa sacralidade no corpo e território.
Imagem cedida por Azael Valderrama.

338
EKOPORNOXAMANISMO
Azael Valderrama

Desta maneira o ritual ekopornoxa-


manismo se utiliza também do espaço au-
AtividadE entorno
diovisual, pelo qual a energia do território
O misticismo, a espiritualidade e o
DE uMa vida ritual.
andino, do “erótico” e do pensamento
pensamento em coerência com o espaço moderno enlaça as raízes do corpo como
universal é o princípio essencial do ritual um pensamento e elemento da energia
de “Ekopornoxamanismo”, que atuando cósmica. Acreditamos neste ato como uma
com vídeo e fotografia pretende implantar reflexão construída a partir de saberes
a consciência do ancestral. Esse ato de conectados a uma forma de vida ritual.
fertilidade evidencia a visão do corpo Esta atividade se relacionou com
como instrumento de conexão com o um espaço criado na Casa Taller 27-72
sagrado. Através do fogo e das plantas chamada Projeto Centro, onde o pensa-
curativas, agregam-se os corpos nús em mento ancestral e contemporâneo con-
harmônica geometria. vive em perfeita harmonia trazendo uma
Ekopornoxamanismo vem de Eko responsabilidade pedagógica em torno de
– ecologia ou ecosofia – que se refere à áreas do conhecimento como arte e per-
relação com a vida. Porno – pornografia – macultura.
está condicionada à insistente morbidez
sensacionalista, efêmera e midiática que
rodeia o significado do corpo humano na
sociedade ocidental. E xamanismo – pen-
samento xamânico – que quer dizer, o
sábio que cura.
339
340
MINIDICIONÁRIO
ILUSTRADO DE PATXÔHÃ
marcio Junqueira
Firmino
Estudos para a
construção de uma
proposição: mini-
dicionário ilustrado de
Patxôhã.
Desenhos produzidos
pelos alunos de
Aldeia Velha
durante a oficina de
ilustração
ministrada por
Firmino e Marcio
Junqueira no I Festival
de Technoxamanismo.
343
Fotos cedidas por
Rede Tecnoxamanismo.
PARTICIPANTES

Adriano Belisário
Pesquisador interessado nas relações entre comunicação, cultura e tecnologia.
Desde 2003, participa e desenvolve ações e projetos ligados a tecnologias livres
e mídia independente.

Azael Valderrama (Oficina de Asuntos Extraterrestres)


É um artista que realiza sua proposta artística em torno do indispensável papel das
artes na geração de uma cosmovisão contemporânea. A proposta “ritual” envolve
elementos sonoros, audiovisuais, performáticos, coletivos, espirituais, entre outros, que
permitem pertencer a suas obras indagando em corpo, a mente, o espírito, a mística
e a magia do cosmos. www.hisca.org

Carla Lyra
Antropóloga e documentarista, nascida em terras potiguaras e militante da cultura
da paz.

Carlos Eduardo Souza Aguiar


É doutor em sociologia pela Université Sorbonne Paris Cité. Suas pesquisas abordam
as relações entre o misticismo e o tecnológico, assim como a sacralidade dos objetos
técnicos.

Carsten Agger
É um desenvolvedor de software, ativista e escritor que tem sido ativo em movimentos
sociais pelo software livre, direitos civis, contra o racismo e guerras coloniais por 20
anos. Treinado como físico teórico ele trabalha como desenvolvedor de software livre,
contribui com o projeto Baobáxia e co-organiza o LibreOffice Conferences.
Ele organizou o encontro de tecnoxamanismo em Aarhus, Dinamarca em 2014
e é co-organizador do II Festival Internacional de Tecnoxamanismo (Bahia- 2016).

Claudia Lopes Borio


Advogada, escritora, ambientalista e roteirista de filmes sobre ciência e meio ambiente.

Daniel Lima
Bacharel em Artes Plásticas pela Escola de Comunicação e Artes da USP e Mestre
pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC/SP, desde 2001 cria intervenções
e interferências no espaço urbano. Próximo de trabalhos coletivos, desenvolve
pesquisas relacionadas à mídia, questões raciais e processos educacionais. Dirige
a produtora e editora Invisíveis Produções. https://issuu.com/invisiveisproducoes
www.danielcflima.com

345
Danilo Lima
Danilo Lima é natural de Barreiras/BA, bacharelando em Interpretação na Escola
de Teatro da UFBA, membro dos coletivos COATO e Pleorama, e em ambos,
investiga a cinestesia corporal para a cena. http://pleorama.tumblr.com/

Edgar Franco (ciber-pajé)


Edgar Franco é Ciberpajé, artista transmídia, pós-doutor em arte e tecnociência pela
UnB, doutor em artes pela USP, mestre em multimeios pela UNICAMP e professor
permanente do Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade
Federal de Goiás.

Edunoise (Jorge Barco, Selu Herraiz e Patricia Raijenstein)


É uma rede de aprendizagem ativa em Madri, Medellin e Murcia que investiga
as conexões entre educação, experimentos sonoros, tecnomagia e escuta ativa.
accionesedunoise.tumblr.com

Eleonora Oreggia (X-Name)


Artista eletrônica conceitual de Milão, baseada em Londres, faz performance
e instalações interativas. Correntemente faz PHD em Arte, Mídia e Tecnologia
na Queen Mary University of London. http://xname.cc

Fabiane M. Borges
Doutora em psicologia clínica, pesquisadora de arte, tecnologia e subjetividade,
articuladora da rede de tecnoxamanismo.
http://catahistorias.wordpress.com

Fabiano Fonseca
É músico e performer, nascido no interior de Minas Gerais numa cidade sem nome.
Aos 12 anos saiu para comprar um picolé e voltou para casa amuado. Não sabia usar
o dinheiro. Só conhecia caminhos de rio, canto de pássaro e rastro de cobra. Aos 16
anos, após ver o vilarejo ser destruído pela mineração, mudou-se para Belo Horizonte
onde imediatamente encontrou a cena punk e experimental que fervia por ali. Em 2006
lançou seu primeiro disco pela gravadora electroclash alemã Gigolo Records. Anos se
passaram em tournês, estudos, viagens, residências artísticas e colaboração com
diversos artistas. Atualmente, seu trabalho esta focado no cruzamento entre o corpo,
o som e a tecnologia, criando obras imersivas, performances audiovisuais densas,
sonoridades brutas e atitudes extremas.

Fernando Gregório
É artista do corpo, das novas mídias, dos rituais e produtor cultural. Graduou-se em
Comunicação Social – Habilitação em Midialogia na Unicamp. Trabalha e mora em
São Paulo, onde atualmente integra o projeto Terreyro Coreográfico ~ Coisa
Coreográfica, com apoio do Fomento à Dança. Está conectado e auxilia na articulação
de eventos da Rede do Tecnoxamanismo.

346
Henrique Masera Lopes
Atua como historiador, músico e produtor cultural na cidade de Natal-RN. Atualmente
desenvolve pesquisa de Mestrado em história intitulada “A caminho do planetário:
uma história das paisagens sonoras de um nordeste psicodélico ( 1972-1976)”. Integra
os projetos musicais Igapó de Almas e Esquizophanque.

Hilan Bensusan
Filósofo. Escritor. Professor de filosofia na UNB (Universidade Nacional de Brasilia).
Pesquisa ontologia, metafísica, animismo e materialidades, especializado em filosofia
contemporânea. Atua como performer e faz instalações.
http://anarchai.blogspot.com.br/

Ingrid Tartakowsky López


(Chile) É psicóloga, mestre em psicologia clínica sob orientação analítica na
universidade do Chile. Conta com ampla trajetória em instituições hilenas públicas
e privadas que trabalham com usuários de drogas que apresentam adicção de alta
complexidade. Se especializou em temáticas ligadas a ttratamentos e saúde, com
especial ênfase nas linhas de redução de danos, psicoterapia assistida com
substancias psicoativas e cannabis medicinal, através de instâncias de formação
e conferências relaizadas na Argentina, Brasil, Espanha, Holanda, Alemanha,
Inglaterra e EStados Unidos. Tem conhecimento sobre uso ritual de Ayahuasca
e outras plantas da floresta através de diversos retiros na Amazônia Peruana.
Atualmente se desempenha como Psicóloga Clínica no centro terapêutico vegetalista
e de investigação Manto Wasi, e como investigadora associada do International
Center for Ethnobotanical Education Research & Service (ICEERS).

Isaac Filho e Juliana de Moraes


Juliana de Moraes é bacharel em Ciências Sociais e mestranda em Extensão Rural
e desenvolvimento Local pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Tem experiência com agricultura familiar, feira livre e agricultura urbana.
Isaac F. Ferreira Filho é mestrando em Antropologia pela UFPB. Já colaborou em
diversos coletivos técnicos e de inclusão digital. Possui interesse de pesquisa em
antropologia da técnica e apropriações de tecnologias.

Joana Foster
É uma artista, musicista e doutora pesquisadora no DJCAD, Univesity of Dundee,
Escócia. Explora performances sonoras e desenha práticas como processos
transformadores que pode inicar conexões entre pessoas, lugares, adaptando em
tempo real provocando deslocamento, múltiplas camadas de condições de encontros.
www.dundee.ac.uk/djcad/

Joeser Alvarez
Joeser Alvarez, Rio de Janeiro, 1962. Vive na região fronteiriça da Amazônia e atua
pelo desterritório da web ceramista, artivista & technoshamano.

347
Jonatan Sola
Espanhol que vive no Brasil, em Arraial d'Ajuda. Permacultor, trabalha com
agrofloresta, desenvolve programas de salvamento de nascentes de água
e desenvolve projetos de bioconstrução com indígenas e comunidades ribeirinhas.
https://casadebarropermacultura.wordpress.com/

Jonathan Kemp
Tem uma longa história de hackerismo especulativo e situacional, eventos elaborados
a partir da cultura maker e diy. Seus projetos colaborativos incluem performances
de processos de materiais, instalações ambientais, simpósios especulativos, eventos
de software social executados na Europa e Estados Unidos. Projetos atuais
e performances são criadas pelo interesse aleatorio e reconfigurações de códigos
da terra, e substratos de materiais computacionais. http://xxn.org.uk/

Kadija de Paula
É artista, cozinheira e digestora de colaborações autônomas e trabalhos invisíveis.
Bacharel em Artes Visuais pelo Ontario College of Arts and Design e Mestre em
Gestão Cultural e Relações Internacionais pela Schulich School of Business da York
University. Foi gestora e mediadora das residencias_en_red [iberoamérica],
cofundadora da Agência Transitiva, consultora de Artes Visuais da UNESCO/MinC,
e masseira do Ferro & Farinha. Atualmente é chef residente da Cozinha CAPACETE
onde faz ativismo alimentar, fermentação natural, e economia informal em colaboração
com artistas e organizações locais e internacionais.

Kaloan Meenochite
Artista visual, trabalha com instalação, performance, intervenção urbana, música
(ruído). Faz parte de grupos como Keroøàcidu Suäväk, voodoohop, tecnoxamanismo.
Faz produções visuais, sonoras e performáticas em vários países.

Laura Plana Gracia


(Barcelona, 1982). Curadora e pesquisadora. Estabelecida em Londres desde 2009.
Estudou história da arte e arte e mídia. Interessada em arte eletrônica, arte, ciência
e tecnologia e meios digitais. Participante do Hacking Culture, fez parte de muitos
eventos internacionais como exibições, oficinas, Fonoteca Nacional do México,
MACBA (Museu de Arte Contemporânea de Barcelona), CCBB (Centro de Cultura
Contemporânea de Barcelona), MOTA (Museu de Arte Transitória), ISEA (Simpósio
Internacional de Arte Eletrônica). Também desenvolveu trabalhos nos Festivais:
ArtFutura, Mutek, Alpha-Ville. Colaborou com os seguintes artistas, entre muitos
outros mais: Locus Sonus, Scanner, Roy Ascott, Konrad Becker, Fran Illich, Milo
Taylor, Arcangelo Constantini. Tem interesse em diferentes disciplinas como
hiighlighting, vídeo-arte, net arte, code arte, software arte e arte sonora.
http://netzzz.net/bio/

Laura Sobenes
É fotógrafa, entusiasta da pintura corporal, tatuadora, feminista, toca flauta, tem uma
pequena empresa em sua cidade natal São Paulo, gosta de rituais de qualquer tipo.

348
Leandro Nerefuh (Libidiunga Cardoso)
Artista construtivista tabaréu, petit directeur da Escola Capacete (Rio de Janeiro)
e fundador do PPUB - Partido Pela Utopia Brasileira, partido político ativo no Brasil,
Paraguay e Uruguay. Através de instalações e exposições, oficinas e performances,
esculturas públicas e experiências de agitprop, muitas vezes concebidas para
contextos específicos, Libidiunga cria um território ambíguo entre o discurso acadêmico
e criação artística. Desde 2009, apresenta trabalhos internacionalmente,
em instituições como: 12 Bienal de Havana, Cuba; KunstenFestivaldesArts, Bruxelas;
Museu de Arte Moderna, São Paulo; Zacheta Galeria Nacional, Varsóvia; W139,
Amsterdam; 30 Bienal de São Paulo; Museu Reina Sofia, Madrid; ICA , Londres.
O artista é comercialmente representado pela galeria SOLO SHOWS.

Lechedevirgen Trimegisto (Felipe Osorio)


(Querétaro, Qro.,1991) representante significativo da cena queer e pós-pôrno
latinoamericana, é um artista visual e de performance focado em temas como as
religiões populares, o corpo doente, violência e homofobia. É licenciado em Artes
Visuais pela FBA UAQ. Foi beneficiário como artista do Programa de Estímulos a la
Creación y Desarrollo Artístico PECDA 2014 e ganhador do Prémio a la Juventud
2015, atualmente cursa a Maestría en Arte Contemporáneo y Cultura Visual e é
membro do “Cuerpo en Red” do CONACYT. Suas obras mais relevantes incluem os
projetos "Inferno Varieté" e "Campos Del Dolor", apresentando-se na Espanha,
Inglaterra, Escócia, Itália, Estados Unidos e México.

Luisa Hervé
Atua no Design como uma ferramenta de transformação e transmissão de
conhecimento. Como Artista Visual busca canalizar imagens recebidas em conexões
espirituais e estágios alterados de consciência.

Luiza Só
Natural de Porto Alegre, nômade estradeira pesquisadora proseadora amadora
xamona lésbica. Articuladora de tecnologias de conhecimento livre, passeando
por autonomia, autodidatismo, auto gestão e redes de florescimentos mútuos.

Maíra das Neves


É artista e mestranda em Literatura, Cultura e Contemporaneidade - PUC-Rio. Cursou
o Aprofundamento na EAV/Parque Lage - RJ e Universidade de Verão – RJ. Participou
de diversas residências artísticas, tais como Bolsa Pampulha – BH, CAPACETE – RJ,
ZK/U – Berlim e Lastro – Guatemala, e realizou diversas exposições individuais
e coletivas.”

Mandrágora (José Luis Jácome Guerrero e Diego Morales Oñate)


José Luis Jácome Guerrero (Equador 1972). Músico e Artista Visual, tem feito oficinas,
falas e apresentado seus projetos em eventos profissionais como BAFIM (Boenos
Aires), Circulart (Medellín), Quito em Zaragoza, Renascimento Equatoriano (NYC),
Lablatino (Lapaz), LabSurlab (Quito), Rock al Parque (Bogotá, Altavoz (Medellín,
Quitofest (Quito e em várias instituições educativas e festivais. É o fundador e diretor
criativo do Central Dogma, uma organização de base equatoriana, de ação cultural
349
360 graus com mais de 10 anos de experiência. Membro fundador da Associação para
o Desenvolvimento da Música independente da Iberoamérica (ADMIMI). Membro
fundador da Rede de Coletivos Culturais de Tungurahua. Membro Fundador da Rede
de Festivais Independentes de Equador (REFMI). Correpsonsável da revista
espanhola “Zona de Obras”, Membro da Fundação Arte y Cultura. Assessor de vários
projetos culturais.
Diego Morales Oñate. Advogado, docente, investigador, assessor, consultor
independente, conta com estúdios de desenho, gestão e avaliação de projetos e é um
mestre em propriedade intelectual. Membro do Coletivo Central Dogma. Suas linhas de
interesses e investigação estão ligadas ao cohecimento livre, as redes, os saberes
ancestrais, a tecnologia, o desenvolvimento normativo e a construção de políticas
públicas.

Marcelo Braz (MBraz)


Aprendiz de pajelança. Fiel as avó/bisavó vindas de um aldeamento indígena existente
no passado no interior de São Paulo. Tecnólogo, deriva à Educação Libertária
e Comunitária. Ente, vivente, sobrevivente pela Terra; luta pela Vida, por Nhamandu
e Gaia dançando ativamente pelo Cosmos.

Marcelo Gandhi
1975, Natal \ RN Vive e trabalha em São Paulo. Graduado em artes plásticas pela
Universidade Federal do Rio Grande, UFM. Atua nas aéreas de performance, desenho
e música experimental, participou do projeto Rumos Itaú Cultural, do Viewprogram
Drawing Center, USA \ Bienal Deformes (corpo colonizado) Chile \ Festival Zona de
Arte Nacciom, Argentina\ Jogos de Guerra, Rio de Janeiro \ Landscape Body, Suécia \
Encontro Internacional de Performance, Chile \ Festival Extra, Cidade do México \
Acciones AL Margem, Colômbia.

Marcio Junqueira
Professor de literatura na UNEB, escritor, poeta, vive em Arraial d'Ajuda, Sul da Bahia.

Martin Howse
Programador, escritor, performer e explorador, Martin Howse fundou o AP Project em
1998 para implementar uma verdadeira operação sistêmica artística no seu mais
expansivo senso. De 2007 a 2009 organizou oficinas regulares, micro-residências,
e séries de salão em Berlim, mais recentemente organiza as micro-pesquisas.
As micro-pesquisas são plataformas móveis de pesquisas psicogeofísicas que ocorrem
em Berlim, Londres, Pennemunde e Kiruna.
www.1010.co.uk

Morgana Gomes
Morgana Poiesis, mulher, taurina com ascendente em virgem, lua em peixes
e vênus em gêmeos, comunicóloca, artista, gestora cultural e pesquisadora nômade,
sonhadora do sertão infinito. http://escritasemarte.blogspot.com /
http://www2.uesb.br/cultura/ / http://www2.uesb.br/cultura/?page_id=32

350
Nubia Abe
Possui graduação em Publicidade e Propaganda pela Universidade do Vale do Itajaí
(2008) e pós-graduação em Fotografia pela mesma universidade (2010). Possui
experiência em planejamento e criação publicitária, design gráfico, webdesign,
fotografia e artes visuais, prestando serviços como autônoma nessas áreas.

Pablo de Soto
Pablo de Soto é mestre em arquitetura pela Real Instituto de Tecnologia de Estocolmo
e doutorando no programa Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura
da Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Editor dos livros
Fadaiat: libertad de movimiento, libertad de conocimiento, e Situation Room: diseñando
un prototipo de sala de situación ciudadana. Coordena os projetos
dronehackademy.net e mappingthecommons.net. Na primera década dos 2000
foi cofundador de hackitectura.net.

Paloma Klisys
É escritora, poeta, ser criativo translinguagens, pesquisadora transdisciplinar.
Livre-pensadora, Inter_inventora INTERDEPENDENTE Art-comunicadora.
Intercessora cultural... seja onde for.

Paola Barreto
(Rio de Janeiro, 1971) Artista audiovisual e pesquisadora. Graduada em Cinema (UFF)
e Mestre em Tecnologia e Estéticas (PPGCOM/ UFRJ), atualmente Doutoranda em
Poéticas Interdisciplinares (PPGAV/ UFRJ). Através de uma produção prática e teórica
que transita por circuitos de vídeo eletrônicos e digitais, sistemas híbridos e processos
de autoria coletiva, seus trabalhos desdobram- se entre filmes, instalações
e performances, explorando através da materialidade dos suportes as relações
entre corpo, cidade e imagem. http://paoleb.net

Pedro Diaz
Entre pesquisas na área de Ciência da Informação, geopolítica e vigilância, o artista-
pesquisador vem trabalhando performances experimentais sonoras e instalações
visuais a partir de culturas minoritárias e imagens de arquivo. A potência molecular
perante os delírios explosivos da modernidade.

Pedro Victor Brandão


É artista visual formado na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e na Universidade
Estácio de Sá. Desenvolve séries de trabalhos considerando diferentes paisagens
políticas em pesquisas sobre economia, direito à cidade, cibernética social e a atual
natureza manipulável da imagem técnica. Vive e trabalha no Rio de Janeiro.

Peetssa
Bioconstrutor, pesquisador de energias sustentáveis, artista visual. Membro do coletivo
Contra-filé. Desenvolve projetos de criação de escolas de bambu em vários localidades
como Amazônia e África.

351
Philippe Wollney
Philippe Wollney é um poeta contemporâneo brasileiro, nascido na cidade de Goiana,
Pernambuco, em 1987. Tem poemas publicados em antologias como Antologia Poética
Goiana Revisitada (Silêncio Interrompido, 2012) e Cem Poetas Sem Livros (2009),
assim como na revista Musa Rara.

Pilas Machine
É livre artista, formou-se em artes cênica e filosofia. Performer e vídeo-artista.
Atualmente se dedica à pesquisa do xamanismo e questões do queer. Ciberativista.
Ativista. Pesquisador.

Quimera Rosa
ES-FR-AR. Nosso trabalho é baseado na desconstrução de identidades de
sexo/gênero e também na interação de corpo/máquina/meio ambiente. Fundado
na metáfora do ciborgue elaborado por Donna Haraway, nossas performances
apresentam seres híbridos, quimeras, onde a produção da subjetividade é o resultado
da incorporação protética. Cientes das práticas feministas e queers, nós fazemos dos
corpos uma intervenção públcia, quebrando os limites entre o público e o privado.
Nos últimos três anos temos ampliado esse trabalho, fazendo design de próteses
eletrônicas que tem interesse sensorial e questiona nossos mecanismos perceptivos.
http://quimerarosa.net/

Rafael Frazão
É graduado em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos, desenvolve
conteúdos audiovisuais em múltiplas linguagens atuando principalmente na prática
e formação em cinema expandido e live cinema. Sua pesquisa gira em torno
do cinema de ficção cosmopolítico e da desprogramação do imaginário colonial.
http://filmesparabailar.com/

Raisa Inocêncio
É cearense, estudou Filosofia na UFRJ e artes visuais na escola Parque Lage. Seus
trabalhos envolvem performance e ocupação cultural, com foco no ativismo político
e no engajamento erótico (redes como o pós-pornô e o tecnoxamanismo). Atualmente
se prepara para a realização do mestrado Europhilosophie Erasmus Mundus.

Ryan Jordan
Trabalha com a exploração potente de processos e sistemas funcionais em tecnologia,
mecanismos de percepção humana e fenômenos ambientais afim de torná-los
conscientes na realidade. http://ryanjordan.org/

Sonja Van Kerkhoff


Nasceu em Taranaki, Aotearoa / Nova Zelândia em 1960 de um pai imigrante
holandês e de uma mãe da 4º geração escocesa da nova zelândia. Mudou-se para
Holanda em 1989, depois de diplomar-se em Artes Plásticas (Dunedin). Completou
mestrado em Artes Visuais (Maastricht) em 1993 e mestrado em Ciência da
Computação (Leiden) em 2008. Trabalha em diversas mídias que vão desde projeções
interativas até performances. Veja: www.sonjavank.com
352
Sue Nhamandu
Pornôklasta é filósofa com estudos voltados para teatro , gênero, estruturalismo na
modernidade tardia, é pos pornotéorica e prática atuando como performer, pedagoga e
ativista; atualmente sua menina dos olhos é a rede do tecnoxamanismo onde chegou
pela orientação de Fabiane M. Borges. Foi aluna de Jaci Correia Maraschin, Gabriele
Cornele, Jose Celso Martinez Correia e Gerald Thomas e hoje é pesquisadora da rede
COLABOR do professor Artur Matuck e coloboradora da RIVISTA DI SCIENZE
SOCIALI a convite do professor Massimo Canevacci.

Tiago Fioravante
É jornalista, pesquisa sobre infância, gênero, sexualidade e mais recentemente,
práticas xamânicas e indigenismo relacionados à Teoria Queer. Está interessado
em pensar o mundo através da desconstrução e em novas formas de existir.

unMonastery (Kei Kreutler e Bembo Davies)


No seu atual estado envolve pesquisa e desenvolvimento dentro de modelos
monásticos. Procura transportar redes de ativistas especializados e catalisadores
dentro do modo de vida cooperativo e ambientes comuns, com comunidades locais.
Reconhece que para adquirir a resiliência necessaria para construir institutições de
longa duração capazes de bater de frente o tempo pela frente, muitos de nós parecem
requerer sistemáticos programas de incivilização http://unmonastery.org/
Bembo Davies é um artista de teatro itinerante que certa vez desembarcou na
Noruega. Seu trabalho de escrivão da casa no unMonastery envolve tentar criar
armadilhas para prender seus companheiros participantes nas ramificações mais
profundas do seu ser em conjunto; às vezes isso é chamado: Almas em um cenário.
Kei Kreutler é às vezes artista, a maioria das vezes desenvolvedora de web e
ocasionalmente escritora, nos momentos de transição. Ela está sempre a procura
de interruptores, e contribui com o unMonastery, tecnologias espaciais civis e iniciativas
de infroestruturas comunitárias.

Valentina Montero Peña


(Chile) Jornalista, graduada em estética, mestre em curadoria em novas mídias e
doutora pela universidade de Barcelona no programa de Estudos Avançados em
Produções Artísticas, linha: imagem digital. Trabalhou como investigadora e curadora
em arte contemporânea, especializada em mídia arte e fotografia pela MECAD (ES),
Beinal de Artes e Mídia de Santiago (CL), Museu Nacional de Belas Artes e seu projeto
“Museu sem Muros”, Bienal Internacional de Videoakt (ES), Drap-Art (ES), Loop (ES),
Mediateca Caixa Forum (ES), entre outros. Desempenha papel de docente em
diversas universidades. Suas investigações giram em torno de arte, tecnologia
e sociedade. Apresentou conferencias em congressos e simpósios como Media Art
Histories em Liverpool, File em São Paulo, Artech em Algarve, etc. É editora da revista
Atlas Imaginários Visuais e diretora do projeto PAM, Plataforma Arte e Medios.

Vicenzo Tozzi (Rede Mocambos)


Nartisan (network-artesão), pesquisador e articulador. Trabalha, há mais de uma
década com a Casa de Cultura Tainã e a Rede Mocambos no Núcleo de Pesquisa
e Desenvolvimento Digital, fundado no histórico Mercado Sul de Taguatinga onde
353
também participa da ocupação cultural, da Eco Feira e da Rádio Mercado Sul.
http://wiki.mocambos.net/wiki/NPDD.

Victor Venas (Genilson Silva)


Tem formação nas áreas de quimica, teologia e arte, fato que reflete sua prática de
vida onde a racionalidade, a mística e a sensibilidade formam um corpo único que
trasita entre imanências e transcendências tanto nos seus trabalhos artisticos, como
na sua prática enquanto arte-educador.

Vlax Dyne (Vladimir Flores-Garcia)


(México, 1974) É artista audiovisual e arquivista baseado em Oaxaca.
Colabora como produtor radiofônico e educador em tecnologias de informação.
Como membro da fundação Dyne.org promove o software livre e a liberdade de
expressão e pensamento crítico. http://vlax.dyne.org

Wonjung Shin
Diana Band é uma dupla de artistas interdisciplinares, estabelecida em 2010
e atualmente baseada em Seul. Elas exploram o campo do do design de objetos
e a media art, afim de encontrar o momento imaginário da situação cotidiana.
Acreditam que “objetos sensíveis” (seu trabalho autoral) criam narrativas ambientais ou
eventos e convidam as pessoas a encontrar o senso comum e universal da linguagem.
Diana Band participou de trabalhos internacionais na Alemanha, Holanda, Espanha,
Turquia e Coréia do Sul. Seus projetos teve suporte do Museu Nacional de Arte
Moderna e Contemporânea, Coréia - 2015; Arco Performing Arts Center (2015); Korea
Craft & Design Foundation (2014); Zuiderzee Museum (2012); MEM Experimental Arts
International Festival (2011). http://www.dianaband.info/

Yasodara Cordova
Designer Industrial e desenvolve intersecção entre design, política, ciência e internet.
Gosta de imaginar soluções para problemas que são consequências de ilusões da
concentração do poder. Ela cofundou o Calango Hackerspace, é membra do Coding
Rights Collaborative Concil e membra do Open Knoledge Brazil Advesory Council.

354
BIBLIOGRAFIA

ANTROPOCENO, CAPITALOCENO, CHTHULUCENO, VIVENDO COM O PROBLEMA EM FUKUSHIMA


BAVERSTOCK, Keith. “2013 UNSCEAR Report on Fukushima: A Critical Appraisal” [video]. Disponivel em:
<https://www.youtube.com/watch?v=VoBLa2K7_6Y>. Acesso em: 30 mar. 2016.
BIRD, Winifred; BRAXTON, Jane. A tale of two forests. Addressing Postnuclear Radiation at Chernobyl and Fukushima.
Enviromental Health Perspectives, v. 121, n. 3, 2013.
BONNEUIL, Christophe; FRESSOZ, Jean-Baptiste. The Shock of the Anthropocene: The Earth, History and Us. New York:
Verso, 2016.
BOROZDIN, Konstantin et al. Cosmic Ray Radiography of the Damaged Cores of the Fukushima Reactors. Physical Review
Letters, v. 109, n. 15, 2012.
BROWN, Kate. Plutopia: Nuclear Families, Atomic Cities, and the Great Soviet and American Plutonium Disasters. Oxford
University Press, 2015.
BÜRKNER, Daniel. Blanks: Visualizing Nuclear Catastrophes. Issue 02 : Dénoue...ment (on catastrophies). 2012.
CALDICOTT, Helen (Org.). Crisis Without End: The Medical and Ecological Consequences of the Fukushima Nuclear
Catastrophe. New York: The New Press, 2014.
CRUTZEN, Paul J. Geology of mankind. Nature, v. 415, n. 6867, p. 23–23. 2002.
DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir?: ensaio sobre os medos e o fins.
Florianópolis : São Paulo: Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental, 2014.
DAVIS, Heather; TURPIN, Etienne. Art in the Anthropocene: Encounters Among Aesthetics, Politics, Environments and
Epistemologies. London: Open Humanities Press, 2015.
FIELD, Norma. From Stagg Field to Fukushima: A History of Nuclear Power [video]. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=P4SkWJmISUk>. Acesso em: 17 dez. 2015.
FUKUSHIMA BOOKLET PUBLICATION COMMITTEE. 10 Lessons from Fukushima. Reducing risks Lessons. [Tokyo]:
Apollo-sha co., 2015. Disponível em: <http://fukushimalessons.jp>. Acesso em: 25 abr. 2016.
GUNDERSSEN, Arnie. The Fukushima Daiichi Disaster In Comparison To Chernobyl, Fairewinds Energy Education.
Disponível em: <http://www.fairewinds.org/nuclear-energy-education/arnie-gundersen-presents-the-fukushima-daiichi-
disaster-in-comparison-to-chernobyl-in-vancouver-canada>. Acesso em: 27 abr. 2016.
HARAWAY, Donna; ISHIKAWA, Noboru; SCOTT, Gilbert; OLWIG, Kenneth; TSING, Anna L.; BUBANDT, Nils.
Anthropologists Are Talking – About the Anthropocene. Ethnos, p. 1–30. 2015.
HARAWAY, Donna. Anthropocene, Capitalocene, Plantationocene, Chthulucene: Making Kin. Environmental Humanities, v.
6, 1. 2015.
HARAWAY, Donna. Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene: Staying with the Trouble, 5/9/14. [video]. Disponivel em:
<http://vimeo.com/97663518>. Acesso em: 15 jul. 2014.
HARAWAY, Donna. Staying with the Trouble: Sympoiesis, String Figures, Multispecies Muddles. Paper for Isabelle Stengers.
Cerisy 2013, Gestes Spéculatifs. 2014.
HARAWAY, Donna. SF, Speculative Fabulation and String Figures: 100 Notes, 100 Thoughts: Documenta Series 033.
Bilingual edition ed. Ostfildern: Hatje Cantz, 2012.
HARAWAY, Donna. Entrevista por Juliana Fausto, Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski para o Colóquio
Internacional Os Mil Nomes de Gaia [video]. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1x0oxUHOlA8>. Acesso
em: 27 abr. 2016.
HIROSE, Takashi. Fukushima Meltdown: The World’s First Earthquake-Tsunami-Nuclear Disaster. United States:
CreateSpace Independent Publishing Platform, 2012.
IPCC (INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE). Climate Change 2014 Synthesis Report Fifth Assessment
Report, 2014.
KOHSO, Sabu. Radiation and Revolution. Borderlands, v. 11, n. 2, 2012.
KOHSO, Sabu. Constellations of the Fukushima Problematic: Socialization, Capitalism, and Struggle. boundary 2, v. 42, n. 3,
p. 37–54, 2015.
LESER, Julia; SEIDEL, Clarissa. Radioactivists: Protest in Japan Since Fukushima [video]. 2011.
LISCUTIN. Indignez-Vous! “Fukushima” New Media and Anti-Nuclear Activism in Japan. The Asia-Pacific Journal, v. 9, n. 47,
2011.
TSING, Anna. HARAWAY, Donna. “Tunneling in the Chthulucene” [video]. Disponivel em:
<https://www.youtube.com/watch?v=FkZSh8Wb-t8>. Acesso em: 30 mar. 2016.
MADSEN, Michael. Into Eternity: A Film for the Future [video]. 2010.
MARDER, Michael; TONDEUR, Anaïs. The Chernobyl Herbarium: Fragments of an Exploded Consciousness. London:
Open Humanites Press, 2016.
MOORE, Jason W. Capitalism in the Web of Life: Ecology and the Accumulation of Capital. New York: Verso, 2015.
MURAKAMI, Takashi. Jellyfish Eyes [video]. 2014.

355
NANCY, Jean-Luc. After Fukushima: The Equivalence of Catastrophes. Tradução Charlotte Mandell. New York: Fordham
University Press, 2014.
ROULET, Daniel De et al. Fukushima mon amour. Brooklyn, NY: Autonomedia, 2011.
SCHUPPLI, Sussan. The Most Dangerous Film in the World. Tickle Your Catastrophe! Imagining Catastrophe in Art,
Architecture and Philosophy. 2011.
STENGERS, Isabelle. In Catastrophic Times. London, Lüneburg: Open Humanities Press / meson press, 2015.
SWANSON, Heather Anne; BUBANDT, Nils; TSING, Anna. Less Than One But More Than Many: Anthropocene as Science
Fiction and Scholarship-in-the-Making. Environment and Society: Advances in Research, v. 6, n. 1, p. 149–166. 2015.
TAKAHASHI, Satsuki et al. To See Once More the Stars, Living in a Post-Fukushima World. Santa Cruz, California: New
Pacific Press, 2014.
VIRILIO, Paul. Unknown Quantity. London ; New York : Paris: Thames & Hudson, 2003.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; FAUSTO, Juliana. Comentários a entrevista de Donna Haraway. Os Mil Nomes de Gaia
[video]. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Qg0oyW9-rA0>. Acesso em: 16 abr. 2016.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Diálogos sobre o fim do mundo. Entrevista de Eliane Braum em EL PAÍS, 29/04/2014.
Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/29/opinion/1412000283_365191.html>. Acesso em: 27 abr. 2016.
YABLOKOV, Alexey; NESTERENKO, Vassily; NESTERENKO, Alexei; SHERMAN, Janette (Org.). Chernobyl:
Consequences of the Catastrophe for People and the Environment. 1 edition ed. Boston, Mass: Wiley-Blackwell, 2010.
WATANABE, Kenichi. Le monde après Fukushima [video]: ARTE França. 2013.
ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: a new epoch of geological time? Philosophical Transactions of the Royal
Society A: Mathematical, Physical and Engineering Sciences, v. 369, n. 1938, p. 835–841, 2011.

TECNOXAMANISMO – ANTROPOFAGIA DA TÉCNICA


Artigos, entrevistas e dissertações
BLOK, Anders. JENSEN, Casper Bruun. Techno-animism in Japan: Shinto Cosmograms, Actor-network Theory, and the
Enabling Powers of Non-human Agencies. Paper apresentado no '4S Annual Meeting - Society for Social Studies of Science',
Universidade de Tokyo, Japão, 2013. Disponível em: <http://citation.allacademic.com/meta/p420934_index.html>
BORGES; Fabiane; MELO, Camila. Tecnoxamanismo. Junho de 2012. Disponível em:
<http://catahistorias.files.wordpress.com/2012/07/nanopolitics-texto23.pdf>
FERRAZ, Icaro. Encantamento é acaso descolonizado. Acessado em 1 de setembro de 2014. Disponível em:
<http://www.academia.edu/8974123/Encantamento_%C3%A9_acaso_descolonizado>
GELL, Alfred. Technology and Magic. Anthropology Today, Vol 4, No 2. Abril de 1988. Acessado em 1 de setembro de 2014.
Disponível em: <http://www.nyu.edu/classes/bkg/objects/gell1.pdf>
LAGNADO, Lisette. O malabarista e a gambiarra. Acessado em 1 de setembro de 2014. Disponível em:
<http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1693,1.shl>
MAFESSOLI, Michel. Maffesoli e a feminização do mundo. Jornal Zero Hora, 27 de junho de 2009. Disponível em:
<http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticia/2009/06/maffesoli-e-a-feminizacao-do-mundo-2559403.html >
PINHEIRO, Eduardo. Ciberxamanismo. Acessado em 10 de outubro de 2014. Disponível em:
<http://root.ps/download/tecnomagxs/Pinheiro_Ciberxamanismo.pdf>
PRECIADO, Beatriz. O feminismo não é um humanismo. Jornal O Povo, novembro de 2014. Acessado em 25 de novembro
de 2014. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/app/colunas/filosofiapop/2014/11/24/noticiasfilosofiapop,3352134/o-
feminismo-nao-e-um-humanismo.shtml>
SUSCA, Vincenzo. Technomagie: La nature de la mutation anthropologique. In: LOGOS 29 – Tecnologias e Sociedades, Ano
16, 2 semestro, 2008. Disponível em: <http://www.logos.uerj.br/PDFS/29/04%20VicenzoSusca.pdf>
Livros
ANDRADE, Oswald. Do Pau Brasil à antropofagia e às utopias – Manifestos, teses de concurso e ensaios. São Paulo:
Editora Civilização Brasileira, 1972.
BARBROOK, Richard. Futuros Imaginários – Das máquinas pensantes à aldeia global. São Paulo: Editora Peirópolis, 2009.
BELISÁRIO, Adriano (Org.) Tecnomagia. Rio de Janeiro: I-Motirõ, 2014. Acessado em: 10 de setembro de 2014. Disponível
em: http://copyfight.me/Acervo/livros/tecnomagia.pdf
DAVIS, Erik. Techgnosis – Myth, Magic and Mysticism in the age of information. New York: Harmony Books, 1999
MACIEL, Luiz Carlos. CHAVES, Angela. Geração em transe: memórias do tempo do tropicalismo. Editora Nova Fronteira:
Rio de Janeiro, 1996.
NOVAES, Thiago. Tecnomagia: metareciclagem e rádios livres no front de uma guerra ontológica. In: BELISÁRIO, Adriano
(Org.) Tecnomagia. Rio de Janeiro: I-Motirõ, 2014. Acessado em: 10 de setembro de 2014. Disponível em:
http://copyfight.me/Acervo/livros/tecnomagia.pdf
PASQUINELLI, Matteo. A ideologia da culutra livre e a gramática da sabotagem. In: BELISÁRIO, Adriano; TARIN, Bruno
(Org.) :(){ Copyfight :|: Pirataria & Cultura Livre };:. Editora Azougue, 2012
PEIXOTO, PEDRO. O Xamã e as máquinas: sobre algumas técnicas contemporâneas do êxtase. In: BELISÁRIO, Adriano
(Org.) Tecnomagia. Rio de Janeiro: I-Motirõ, 2014. Acessado em: 10 de setembro de 2014. Disponível em:
http://copyfight.me/Acervo/livros/tecnomagia.pdf
ROSAS, Ricardo; VASCONCELOS, Giseli. Net_cultura 1.0: digitofagia. São Paulo, Radical Livros, 2006. Disponível em:
http://publicacoes.midiatatica.info/netcultura_digitofagia.pdf
ROSAS, Ricardo. Gambiarra - ALGUNS PONTOS PARA SE PENSAR UMA TECNOLOGIA RECOMBINANTE. Acessado
em: 10 de setembro de 2014. Disponível em:
http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/up/arquivos/200611/20061117_160212_CadernoVB02_p.36-53_P.pdf
RUFINELLI, Jorge; ROCHA, João Cezar de Castro. Antropofagia hoje? - Oswald de Andrade em cena. Editora Realizações:
São Paulo, 2011.

356
VIVEIROS, Eduardo. ARAWETÉ: Os deuses canibais. Zahar: Rio de Janeiro, 1986.
_____________. A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. Editora Cosac Naify, 2002.

TECNOXAMANISMO - Pilantröpóv
Albums : https://kimusorecords.bandcamp.com/album/patax
https://kimusorecords.bandcamp.com/album/k-r- ska
https://kimusorecords.bandcamp.com/album/tcnxmnsm
Vídeo : https://vimeo.com/101580752

XAMANISMO: CORPO E PLANTAS DE PODER


BARBOSA, C. M. Corpo, arte e memória: os desígnios do tempo. In: FARIAS, F. R. (org.). Apontamentos em Memória
Social. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.
BERGSON, H. A memória ou os graus coexistentes da duração. In: ______. Memória e vida. São
Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 47-93.
CAMPOS, C. Corpo/memória Guarani: ambiente de afetos e afecções. In: FARIAS, F. R. (org.). Apontamentos em Memória
Social. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.
CAPRA, Fritjof. O Tao da física: um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental. São Paulo: Cultrix, 1995.
CASTRO, Eduardo Viveiros. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
CASTRO, Eduardo Viveiros. Un corps fait de regards. In: BRETON, S. (org.) Qu’est-ce qu’un corps? Paris: Flammarion,
2006.
CASTRO, E. V. e GOLDMAN, M. O que pretendemos é desenvolver conexões transversais. In: SZTUTMAN, R. (org.)
Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007.
CUNHA, Edgar Teodoro. “Índio imaginado: cinema, identidade e auto-imagem”. In: Cadernos de Antropologia e Imagem. Rio
de Janeiro. 12 (1): 39-50, 2001.
DAMAS, Vandimar Marques. “Eu já me tornei imagem”: Vídeo etnográfico e as múltiplas relações com o xamanismo - 10-15-
2011. Revista Universitária do Audiovisual - http://www.ufscar.br/rua/site/?p=7629 acessado em: 12/12/2011.
ELIADE, Mircea. El chamanismo y las técnicas arcaicas del éxtasis. México: FCE, 1976.
FARIAS, F. R. Carne, pele e corpo desencantado: o desvelar do objeto “a” na Body Art. Tempo Psicanalítico. v. 40, nº 1. P.48
– 51, 2008.
GALLOIS, Dominique T.; CARELLI, Vincent. “Vídeo nas aldeias: a experiência Waiãpi”. In: Revista Horizontes Antropológicos
– Antropologia Visual. Ano 1, Número 2, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, 1995.
GONDAR, Jô.: Quatro Proposições sobre Memória Social, in: GONDAR, Jô; DODEBEI, Vera. O que é memória social, Rio
de Janeiro: UNIRIO, 2005.
GOULART, Sandra Lucia. Contrastes e continuidades em uma tradição Amazônica: as religiões da Ayahuasca. Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, SP : [s. n.], 2004.
LABATE, Beatriz Caiuby. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Dissertação (Mestrado). Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, SP : [s. n.], 2000.
LATOUR, Bruno. “‘Não Congelarás a Imagem’, ou: Como Não Desentender o Debate Ciência- Religião”. Mana. Estudos de
Antropologia Social 10 (2): 349-376, 2004.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.
LUZ, Pedro Fernandes Leite da. Estudo Comparativo dos Complexos Ritual e Simbólico Associados ao Uso da Banisteripsis
Caapi e espécies congêneres em tribos de língua Pano, Arawak, Tucano e Maku do Noroeste Amazônico. Dissertação de
Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 1996.
MUSSA, Alberto. Meu destino é ser onça. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.
NARBY, Jeremy. The cosmic serpent; DNA and the origins of knowledge. New York: Penguin Putnam, 1998.
NOVAES, Sylvia Caiuby. Corpo, Imagem e Memória. In: Mammi, Lorenzo e Schwarcz, Lilia (Orgs).
8 X Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008: 113-131.
PINTO, Alejandra Aguilar. “A patrimonialização da memória social: uma forma de domesticação política das memórias
dissidentes ou indígenas?” In: Ciências Sociais Unisinos 47(3): 273-283, setembro/dezembro 2011.
SZABÓN, J. . Nietzsche en Francia y otros estudios de historia intelectual. Buenos Aires, Universidad de Quilmes, 2010.
TURCKE, C. Sociedade excitada. Campinas: Unicamp, 2010.
VILLAÇA, Aparecida. “O que significa tornar-se outro? Xamanismo e contato interétnico na Amazônia”. In. Revista Brasileira
de Ciências Sociais. 15, n° 44. 2000, p. 56-72.
Filmografia
DMT – La molécula espiritual http://www.youtube.com/watch?v=C0cCyYfYtlk&amp;feature=fvsr
Os Cantos do Cipó http://www.youtube.com/watch?v=1ATQlwzK3-I
Ayahuasca, La Serpiente y Yo http://www.youtube.com/watch?v=NkSed7gbJ4I&amp;feature=related
Artigos
Cultura xamânica e sabedoria ancestral – Rogério Favilla (pdf.). In: hhtp://www.aguiadourada.com

COSMOGONIA SONORA
Axelos, Kostas. “Horizontes do Mundo”, 1983. Tradução de Lígia Maria Pondé Vassalo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro;
Fortaleza: Ed. UFC, 1983.
Deleuze, Gilles. “Diferença e Repetição”. Tradução revista de Luiz Orlandi e RobertoMachado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
Guatarri, Feliz. “Caosmose”. Ed. 34, Rio de Janeiro, 1992.
Lapoujade, David. “Potências do Tempo”. São Paulo, Ed. N-1, 2013.

357
Lilly, Jon C. “Programming and Metoprogramming in the Human Biocoomputer”, 1968.
PARENTE, André (org); “Imagem-Máquina: a era das tecnologias do virtual”. Rio de Janeiro: Editora 34; 1993
PELBART, Peter Pál. “O Avesso do Niilismo: Cartografias do Esgotamento”. São Paulo, N-1 Edições, 2013.
Simondon, Gilbert. “L’Individu et sa Genèse Physicobiologique”. Paris: PUF, 1964.
Bailly, A. Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 1950.
Wilson, Robert Anton. “Sex, Drugs &amp; Magic”. Nevada, USA, New Falcon Publications, 1987.
Wisnik, José Miguel. “O som e o Sentido”. São Paulo, Cia das Letras, 1989.

O MUNDO CRISTALIZADO
Ballard, James, G. The Crystal World. London: Fourth Estate, (1966), 2011.
Barad, Karen. 2003. “Posthumanist Performativity: Toward an Understanding of How Matter Comes to Matter”, Signs: Journal
of Women in Culture and Society, 28, no. 3.
--- ---. 2007. Meeting the Universe Halfway: Quantum Physics and the Entanglement of Matter and Meaning. Durham: Duke
University Press.
Bennett, Jane. Vibrant Matter. Durham, NC: Duke University Press, 2010.
Crosse, Andrew and Caroline Crosse. 1857. Memorials, Scientific and Literary of Andrew Crosse, The Electrician. London:
Longman.
Emerson, Ralph Waldo. Swedenborg; or, the Mystic, Representative Men: Seven Lectures, Boston: Phillips, Sampson and
Company, 1850, p.133.
Feynman, Richard. Lectures on Computation. Edited by Anthony J.G. Hey & Robert W. Allen. London: Penguin, 1984.
Fuller, Matthew. 2003. Behind the Blip: Software as Culture. New York: Autonomedia.
Huhtamo Erkki and Jussi Parikka, eds. 2011. Media Archaeology: Approaches, Applications and Implications. University of
California Press, Berkeley.
Kemp, Jonathan, 2012a. The Crystal World project text http://crystal.xxn.org.uk/wiki/doku.php
--- ---. ed. 2012b. The Crystal World Reader v.01.
http://crystal.xxn.org.uk/wiki/doku.php?%20id=the_crystal_world:ctm12:reader
Parikka, Jussi. 2009. “Apparatus Theory of media à la (or in the wake of) Karen Barad”. Machinlology (blog),
http://jussiparikka.net/2009/07/16/apparatus-theory-of-media-a-la-or-in-the-wake-of-karen-barad/
Seymour, Benedict. 2011. “Short Circuits: Finance, Feedback and Culture”, Mute,
http://www.metamute.org/editorial/articles/short-circuits-finance-feedback-and-culture

PARA REFLETIR O CONHECIMENTO LIVRE E PROPRIETÁRIO: DO CÓDIGO ÀS SEMENTES


ESCOLA DA MATA ATLÂNTICA. Disponível em: <http://escoladamataatlant.wix.com/escoladamata#!proj-
agroecologia/c21u3>. Acesso: 23 nov. 2014.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade /Anthony Giddens; tradução de Raul Fiker. São Paulo, Editora
UNESP, 1995.
SHIVA, Vandana. Monoculturas da Mente: Perspectivas da Biodiversidade e da Biotecnologia. São Paulo, Ed. Gaia. 2003.
SAUER, Sergio. Terra e Modernidade: A reinvenção do campo brasileiro. São Paulo. Expressão Popular. 2010.

TECNOLOGIA E A PESTE
Artaud, A. (1970) The Theatre and its Double. (Victor Corti, Trans). London:John Calder
Baillie, M. G. L. (2006). New light on the Black Death: The cosmic connection. Stroud: Tempus.
Barthes, R., & Miller, R. (1976). Sade, Fourier, Loyola. New York: Hill and Wang.
Benedictow, O. J. (2004). The Black Death, 1346-1353: The complete history. Woodbridge, Suffolk, UK: Boydell Press.
Defoe, D., & In Secord, A. W. (1935). A journal of the plague year and other pieces. Garden City, N.Y: Doubleday, Doran &
Co.
Descartes, R., Cottingham, J., Stoothoff, R., & Murdoch, D. (1984). The philosophical writings of Descartes. Cambridge:
Cambridge University Press.
Dick, P. K., & Sutin, L. (1995). The shifting realities of Philip K. Dick: Selected literary and philosophical writings. New York:
Vintage Books.
Heidegger, M. (1977). The question concerning technology: And other essays. New York: Garland.
Hoyle, F., & Wickramasinghe, N. C. (1996). Our place in the cosmos: The unfinished revolution. London: Phoenix.
Horrox, R. (1994). The Black death. Manchester: Manchester University Press.
Kafka, F. (1969). The penal colony: Stories and short pieces. New York:Schocken Bks.
Kittler, F. (1993) Draculas Vermächtnis. Technische Schriften. Leipzig: Reclam.
Metzger, G. (1997). Gustav Metzger: Damaged nature, auto-destructive art. London: coracle @ workfortheeyetodo.
Persinger, M. A. (1974). The paranormal. New York: MSS Information Corp.
Pynchon, T. (1973). Gravity's rainbow. New York: Viking Press.
Stoker, B. (1993). Dracula. Ware: Wordsworth Editions.
Torvalds, L (2005). /usr/src/linux-source-2.6.26/fs/pipe.c. Linux kernel source code.
Ziegler, P. (1970). The Black Death. Harmondsworth: Penguin.

NOTAS VISÍVEIS SOBRE O INVISÍVEL


Ciência sem Dogmas - Sheldrake
Muito Além do Nosso eu - Nicolelis
A experiência do espaço na física contemporânea - Bachelard
Manifesto Contrassexual - Paul B. Preciado

358
Problemas de gênero - J Butler
A vida secreta das plantas - Peter Tompkins e Christopher Bird
Ataris Vort no Planeta Megga: Jornada Para Alpha Centauri - Artur Matuck
http://revistageni.org/10/tecnoxamanismos-etc/
Prolegômenos para um possível Tecnoxamanismo Por Fabiane M.Borges
As palavras e as Coisas – Foucault
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2011/11/martin-lindstrom-pessoas-ja-abriram-mao-da-privacidade.html
http://www.smithsonianmag.com/ist/?next=/science-nature/linking-multiple-minds-could-help-damaged-brains-heal-
180955965/
https://geraldthomasblog.wordpress.com/2015/11/21/deliriums-at-dawn/
A lógica do consumo: verdades e mentiras sobre por que compramos / Martin Lindstrom ; tradução Marcello Lino. — Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

SOBRE ENTEÓGENOS, A QUÍMICA DA CONSCIÊNCIA E DISPOSITIVO RACIONAL


Ascott, Roy. 2003 Telematic Embrace: Visionary Theories of Art, Technology, and Consciousness. Edward A Shanken, ed.
Berkeley: University of California Press.
Burroughs, William S, and Allen Ginsberg. 2006 Las cartas de la ayahuasca. Roger Wolfe, tran. Barcelona: Anagrama
Editorial.
Carhart-Harris, Robin, David Erritzoe, Tim Williams, et al.2012 Neural Correlates of the Psychedelic State as Determined by
fMRI Studies with Psilocybin. Proceedings of the National Academy of Sciences 109(6): 2138–2143.
Foucault, Michel. 1991 El Sujeto Y El Poder. María Cecilia Gómez and Juan Camilo Ochoa, trans. Bogotá: Carpe Diem.
Furst, Peter T. 2002 Los alucinógenos y la cultura. Madrid: Fondo de Cultura Económica.
Hofmann, Albert. 2006 La historia del LSD: cómo descubrí el ácido y qué pasó después en el mundo. Barcelona: Gedisa
Editorial.
Kurzweil, Ray. 1999 La Era de las máquinas espirituales. Marco Aurelio Galmarini, tran. Barcelona: Planeta.
McKenna, Terence K. 1993 El manjar de los dioses: la búsqueda del árbol de la ciencia del bien y del mal : una historia de las
plantas, las drogas y la evolución humana. Barcelona: Paidós.
Ott, Jonathan. 1998 Pharmacophilia o los paraísos naturales. Barcelona: Phantastica.
Samorini, Giorgio. 2001 Los alucinógenos en el mito: relatos sobre el origen de las plantas psicoactivas. Barcelona: The
March Hare.
Snyder, Solomon. 1999 Drugs and the Brain. Scientific American Library Series, no. New York: Scientific American Library.

359
para ler e baixar gratuitamente
https://issuu.com/invisiveisproducoes

ISB N 978-85-66129-23-6

CONCEPÇÃO E ORGANIZAÇÃO: FABIANE M. BORGES


COM APOIO DE GEORGE SANDER, CARSTEN AGGER E GISELI VASCONCELOS
ED IÇÃO DE T EXTO: FABIANE M. BORGES
ED ITORAÇÃO E PROJ ETO GRÁFICO: DANIEL LIMA
TRADUTORES: GLERM SOARES E SIMONE BITTENCOURT
REV IS ÃO: FERNANDA LOMBA
PROD UÇÃO: INVISÍVEIS PRODUÇÕES
REALIZAÇÃO: REDE TECNOXAMANISMO, GOETHE-INSTITUT SÃO PAULO E INVISÍVEIS PRODUÇÕES

INVISÍVEIS PRODUÇÕES É UM CENTRO DE CRIAÇÃO, AÇÃO E REFLEXÃO QUE TRABALHA NA INTERSECÇÃO ENTRE ARTE
E POLÍTICA. A INVISÍVEIS PRODUÇÕES OPERA DE FORMA AUTÔNOMA, TRANSVERSAL E HORIZONTAL. AUTÔNOMA NA
MANEIRA DE MOVIMENTAR-SE, CRIANDO DIFERENTES DIAGRAMAS E VÍNCULOS INSTITUCIONAIS SUSTENTANDO SUA
INDEPENDÊNCIA DE PENSAMENTO. TRANSVERSAL NA MANEIRA DE COLETAR E REUNIR UMA RESERVA CRÍTICA DE
VOZES DISSONANTES. HORIZONTAL NA FORMA DE PRODUZIR E COMPARTILHAR LIVREMENTE O CONHECIMENTO EM
LIVROS, FILMES E PROJETOS CULTURAIS.
CONHEÇA E BAIXE NOSSAS PUBLICAÇÕES EM ISS UU.COM/INVISIVEIS PROD UCOES
PARA CONTATO ESCREVA PARA INVIS IVEISP RODUCOES@GMAIL.COM

CREAT IVE COMMONS


ATRIBUIÇÃO-USO NÃO-COMERCIAL 3.0 BRASIL WWW.CREATIVECOMMONS.ORG/LICENSES/BY-NC-ND/3.0/BR/
ESTE LIVRO PODE SER UTILIZADO, COPIADO, DISTRIBUÍDO, EXIBIDO OU REPRODUZIDO EM QUALQUER MEIO OU FORMA,
SEJA MECÂNICO OU ELETRÔNICO, INCLUINDO FOTOCÓPIA, DESDE QUE NÃO TENHA OBJETIVO COMERCIAL E SEJAM
CITADOS OS AUTORES E A FONTE.

Realização:

REDE
TECNO
XAMANISMO

Você também pode gostar