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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES


ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

JULIO MERLINO

PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE SENTIDO MUSICAL NA IMPROVISAÇÃO


JAZZÍSTICA

RIO DE JANEIRO
2019
Julio Merlino

PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE SENTIDO MUSICAL NA IMPROVISAÇÃO


JAZZÍSTICA

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação


em Música (PPGM), Escola de Música,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do Título de Doutor
em Música.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Nogueira

Rio de Janeiro
2019
Dedico este trabalho a Jesus, o autor e consumador da minha fé.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu dedicado e extremamente competente orientador, Professor


Doutor Marcos Nogueira, por sua paciência e generosidade sem as quais duvido que este
trabalho tivesse o desfecho que teve. Aos Professores Pedro Bittencourt e José Rua pelo
companheirismo e compreesão vitais a realização deste trabalho, bem como a todos os meus
colegas professores do departamento de instrumentos de sopro da Escola de Músia da UFRJ
pela prontidão e voluntariedade com que procederam em relação ao meu afastamento para o
curso do doutorado. Também aos professores Liduíno Pitombeira, Carlos Almada e Ana Paula
da Matta pelas aulas ministradas com todo esmero e dadivosidade. Agradeço a todos na
secretaria do PPGM da Escola de Música da UFRJ, especialmente à Beth Villela por toda sua
prestatividade e simpatia. Agradeço profundamente à minha família por todo tipo de suporte
durante o doutorado e sempre.
RESUMO

MERLINO, Julio. Processos de formação de sentido musical na improvisação jazzística.


Tese (Doutorado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2019.

O objetivo da presente pesquisa é investigar o conceito de sentido musical no processo


de improvisação jazzística. Partindo da discussão do sentido musical como tradicionalmente
entendido pela Academia—associado às bases conceituais do formalismo oitocentista
consolidado na célebre publicação de Eduard Hanslick (1854)—, discuto as particularidades do
repertório originalmente alvo desta corrente teórica (a música chamada “absoluta”). Assim
procuro elucidar as diferenças entre o que entendo como “improvisação jazzística” e o
paradigma tradicional de composição. Justifico então a busca por um novo ferramental teórico-
metodológico mais adequado à abordagem do objeto do presente trabalho. Baseando-me no
conceito de escritura de Jacques Derrida, procurei superar a limitação da recorrente oposição
“música escrita/ música improvisada”, que orienta muitos trabalhos da área, e realinhar o debate
das divergências situacionais entre improvisação e composição. Assim, entendendo as reais
diferenças entre uma prática criativa atrelada à situação notacional (a composição) e outra,
intrinsecamente ligada à performance musical de partes solistas melódicas por meio de
improvisação, segui para a discussão do conceito de sentido musical à luz das ciências
cognitivas incorporadas. Com base neste quadro teórico desenvolvi e testei um método de
observação que possibilitasse a coleta de dados para a fundamentação de minha hipótese,
realizando um estudo de caso (entrevistas, análise de transcrições de solos improvisados e
observações de performances ao vivo). Os dados obtidos foram analisados e discutidos,
permitindo avaliações do próprio método e da possível confirmação da hipótese inicial, qual
seja, a de que os processos de formação de sentido musical na improvisação jazzística são
predominantemente baseados no uso de recursos geradores de coerência de acordo com a
escriturabilidade—a cultura—, de cada artista. No caso do presente estudo o artista escolhido
para a realização de um primeiro teste do modelo de coleta e tratamento de dados proposto foi
o saxofonista francês Idriss Boudrioua, cuja a influência predominante se mostrou como a
pedagogia jazzística oriunda do bebop e consolidada nos anos 1960, baseada, principalmente,
nas relações entre melodias e acordes.
Palavras-chave: Improvisação Jazzística. Cognição Musical. Enacionismo. Sentido Musical.
ABSTRACT

MERLINO, Julio. Processes of musical meaning formation in jazz improvisation. Thesis


(Ph.D. in Music). Language and Arts Center, Graduate Program in Music, Music School,
Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

The present research’s main objective is to inquiry the concept of musical


meaning formation in the scope of jazz improvisation. Starting with the debate of musical
meaning as traditionally understood by academia—associated to the theoretical foundations of
the formalism of the 19th century consolidated with the famous publication Eduard Hanslick
(1854)—, I debate the particularities of the repertoire originally targeted by this theoretical
stream (so-called “absolute music”). By doing so, my intent is to illuminate the differences
between jazz improvisation and composition’s traditional paradigm. Them I justify the search
for new theoretical and methodological tools, ones that are more suitable to approach the subject
of this work. Thanks to Derrida’s concept of scripture it was possible to propose a way out of
the all too often cited opposition between written and improvised music that seems to orient
many other’s scholars works and realign the debate of the situational divergences between
improvisation and composition. Understanding that the real differences between a creative
practice embedded in the notational situation (composition) and another intrinsically tied to the
performance of soloist lines through improvisation, I turned myself to the concept of musical
meaning in the light of the embodied cognitive sciences. From this theoretical framework here
proposed, I developed and tested an observation method in order to collect data that might
uphold my hypothesis by means of a case study (interviews, the transcriptions and analysis of
solos and observations of live performances). The data that emerged from this method
underwent analysis and discussion allowing the method itself to be tested and also my initial
hypothesis—that the processes of musical meaning formation in jazz improvisation are mainly
based upon the use of coherence generating devices according to each artist’s scripturability—
their culture—. In this case the chosen artist for the realization of the first test of the model for
collection and processing data proposed here was the french saxophonist Idriss Boudrioua
whose major influence turned out to be the jazz improvisation pedagogy from the bebop that
has been consolidated around the 1960s, mainly based on the coherence between melodies and
chords.
Keywords: Jazz Improvisation. Musical Cognition. Enactionism. Musical Meaning.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Ilustração da forma musical como resultante das unidades estruturais básicas. ...... 32
Figura 2: Semelhanças e diferenças processuais entre a composição tradicional e a
improvisação jazzística. .................................................................................................... 42
Figura 3: Criação de sentido como ato criativo, “completando” o círculo mesmo na ausência
de algumas partes da figura (LARSON, 2012, p. 34). ...................................................... 50
Figura 4: Concepções de swing segundo Niehaus (1964). ...................................................... 71
Figura 5: Progressão harmônica tradicional de twelve-bar blues. ........................................... 81
Figura 6: Comparação entre as progressões harmônicas do blues de 12 compassos e da música
Billie’s Bounce. ................................................................................................................. 82
Figura 7: Contínuo de graus de improvisação da performance jazzística. .............................. 85
Figura 8: Exemplo de uso de escalas diferentes para o acorde de ré menor com sétima de acordo
com a tonalidade. .............................................................................................................. 88
Figura 9: Estudo de possibilidades melódicas sobre o acorde de dó menor (VIOLA, 1986, p.
3). ...................................................................................................................................... 89
Figura 10: Progressão harmônica conhecida como II-V-I. ..................................................... 90
Figura 11: Exemplo de links encadeados com trechos de escala bebop (NEFF, 2007, p. 10).
........................................................................................................................................... 93
Figura 12: Trecho com destaque da transcrição do solo de Charlie Parker na música Scrapple
from the Apple (PARKER, 1978, p. 17)............................................................................ 93
Figura 13: Análise da escala alterada. ..................................................................................... 94
Figura 14: Possível uso da escala alterada por C. Parker na transcrição do solo em Scrapple
from the Apple. .................................................................................................................. 94
Figura 15: Transposição da frase original de C. Parker em Scrapple from the Apple. ........... 95
Figura 16: Exemplo de relações tonais locais divergentes das relações tonais globais de um
determinado trecho musical. ........................................................................................... 103
Figura 17: Percentual de ocorrências de RGC nos solos improvisados de I. Boudrioua
transcritos. ....................................................................................................................... 136
Figura 18: Fórmula para o cálculo do desvio padrão da média. ............................................ 138
Figura 19: Esquema resumido dos processos de memória na prática improvisatória de I.
Boudrioua. ....................................................................................................................... 147
LISTA DE EXEMPLOS

Exemplo 1: Indicação de como executar as colcheias com swing (MURTHA, 1999)............ 70


Exemplo 2: Indicação de execução de colcheias sem swing (GALE, 1954). .......................... 70
Exemplo 3: Exemplo de escrita de progressão harmônica com o uso da cifragem alfanumérica.
........................................................................................................................................... 79
Exemplo 4: Partitura da música Billie’s Bounce de Charlie Parker (PARKER, 1978, p. 80) com
o tema e o chorus destacados pelas linhas pontilhadas. .................................................... 81
Exemplo 5: “Tema” da música Now’s The Time de Charlie Parker (PARKER, 1978, p. 76)
destacado pelas linhas pontilhadas. ................................................................................... 82
Exemplo 6: Partitura de Arrocho na Boca de Ion Muniz......................................................... 84
Exemplo 7: Exemplo de uma escala de blues. ......................................................................... 87
Exemplo 8: Trecho inicial da música Stella by Starlight de Victor Young. ............................ 91
Exemplo 9: Análise harmônica dos sete primeiros compassos da música Stella by Starlight. 91
Exemplo 10: Escala bebop sobre o acorde de sol com sétima (NEFF, 2007, p. 4). ................ 92
Exemplo 11: Trecho reescrito do solo de C. Parker na música Scrapple from the Apple. ...... 93
Exemplo 12: Escrita e execução de trecho melódico com swing. ........................................... 98
Exemplo 13: Trecho do segundo solo de I. Boudrioua na música For T, do CD Laura (2011),
exemplificando o uso da indicação swing aplicada em quiálteras. ................................. 113
Exemplo 14: Trecho do solo de I. Boudrioua na música Alone Together, da performance ao
vivo gravada para este trabalho, exemplificando o uso da indicação swing em divisões
rítmicas mais complexas. ................................................................................................ 114
Exemplo 15: Citação do tema no solo da música For Wes, do LP Esperança (1986). ......... 120
Exemplo 16: Citação do tema no solo da música My Secret Love, do CD Joy Spring (1998).
......................................................................................................................................... 120
Exemplo 17: Sobreposição de um arpejo de lá menor sobre um acorde de mi com sétima na
música Sternamente, do LP Jamal (1987). ..................................................................... 120
Exemplo 18: Sobreposição de uma escala diminuta sobre um acorde de sétima dominante na
música For T, do CD Laura (2011). ............................................................................... 121
Exemplo 19: Sobreposição de frase sugerindo substituição harmônica. ............................... 121
Exemplo 20: Uso de frase semelhante à do exemplo 19 sobre progressão harmônica II-V7 na
música First Strike, do CD Central Park West (1996). .................................................. 122
Exemplo 21: Análise harmônica da frase do exemplo 19 com a substituição harmônica
implicada pela frase melódica improvisada por I. Boudriuoa. ........................................ 122
Exemplo 22: Comparação entre frases utilizadas por I. Boudrioua e C. Parker. ................... 123
Exemplo 23: Repetição de frases no solo da música Alone Together realizado na performance
gravada ao vivo especificamente para este trabalho. ...................................................... 124
Exemplo 24: Repetição de frases no solo da música Samba de l’amitié, do CD Laura (2011).
......................................................................................................................................... 124
Exemplo 25: Trecho do solo de I. Boudrioua na música Com Categoria, do CD Laura (2011).
......................................................................................................................................... 125
Exemplo 26: Exemplo de frase baseada em arpejo e sobreposição na música Camaleão, do CD
Central Park West (1996, comp. 34). ............................................................................. 125
Exemplo 27: Frase pré-composta baseada em arpejo na música Tema da Tarde do CD Adriano
Giffoni (1992). ................................................................................................................. 125
Exemplo 28: Desenvolvimento motívico no solo da música West Coast do LP Esperança
(1986, comp.127, 128). ................................................................................................... 126
Exemplo 29: Múltiplas ocorrências de categorias em um mesmo compasso do solo na música
Lazy Bird do CD Central Park West (1996, comp. 54). ................................................. 128
Exemplo 30: Final do tema e início do solo de Boudrioua na música Alone Together gravada
especialmente para este trabalho (Apêndice 3, p.393). ................................................... 151
LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Resumo dos 11 tipos de improvisação como propostos por Benson (2003).......... 61
Quadro 2: Estruturação da entrevista I. ................................................................................. 109
Quadro 3: Estruturação da entrevista 2. ................................................................................ 111
Quadro 4: Proposta de categorização dos RGC utilizados por I. Boudrioua em seus solos
improvisados. .................................................................................................................. 119
Quadro 5: Contagem total dos compassos improvisados e dos compassos com ocorrência de
categorias de RGC........................................................................................................... 129
Quadro 6: Quadro 5 expresso em percentuais. ...................................................................... 129
Quadro 7: Percentuais totais de ocorrências das categorias de RGC. ................................... 130
Quadro 8: Dados percentuais do CD Laura (2011). ............................................................. 132
Quadro 9: Dados percentuais do CD Paris-Rio (2004)......................................................... 132
Quadro 10: Dados percentuais do CD Joy Spring (1998). .................................................... 133
Quadro 11: Dados percentuais do CD Central Park West (1996). ....................................... 133
Quadro 12: Dados percentuais do LP Jamal (1987). ............................................................ 134
Quadro 13: Dados percentuais do LP Esperança (1986). ..................................................... 134
Quadro 14: Dados percentuais das músicas Alone Together (performance ao vivo), Tema da
Tarde, e Bonne Chate. ..................................................................................................... 135
Quadro 15: Relação entre andamento e ocorrências de RGC. .............................................. 137
Quadro 16: Comparação entre os tópicos da entrevista I relativos à escritura e as respostas do
I. Boudrioua..................................................................................................................... 143
Quadro 17: Comparação entre os tópicos da entrevista I relativos à memória e as respostas do
I. Boudrioua..................................................................................................................... 146
Quadro 18: Comparação entre os tópicos da entrevista I relativos à coerência e as respostas do
I. Boudrioua..................................................................................................................... 149
Quadro 19: Comparação entre os tópicos da entrevista II e as repostas de I. Boudrioua. .... 150
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 12
2 IMPROVISAÇÃO JAZZÍSTICA E COERÊNCIA ......................................... 17
2.1. MÚSICA ESCRITA E IMPROVISAÇÃO JAZZÍSTICA .................................... 17
2.2. A TEORIA FORMALISTA E O SENTIDO DA MÚSICA ................................. 22
2.3. ESCRITA E COERÊNCIA ................................................................................... 31
2.4. COMPOSIÇÃO E IMPROVISAÇÃO .................................................................. 40
2.5. COERÊNCIA COMO PROPRIEDADE EMERGENTE DA EXPERIÊNCIA DE
SENTIDO ............................................................................................................. 48
3 AS PRÁTICAS JAZZÍSTICAS E SUAS PARTICULARIDADES ................ 55
3.1. IMPROVISAÇÃO EM MÚSICA ......................................................................... 56
3.2. O JAZZ COMO GÊNERO MUSICAL ................................................................. 66
3.3. AS INFLUÊNCIAS JAZZÍSTICA EM OUTROS GÊNEROS MUSICAIS ....... 75
4 MODELO COGNITIVAMENTE INFORMADO DE ABORDAGEM DA
IMPROVISAÇÃO JAZZÍSTICA ..................................................................... 97
4.1. TRANSCRIÇÕES ................................................................................................ 97
4.2. ENTREVISTA I ................................................................................................. 104
4.3. OBSERVAÇÃO DE PERFORMANCE AO VIVO ........................................... 110
4.4. ENTREVISTA II ................................................................................................ 110
4.5. CONCLUSÃO DO CAPÍTULO ......................................................................... 111
5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS ....................................................... 118
5.1. TRASNCRIÇÕES DOS SOLOS IMPROVISADOS DE I. BOUDRIOUA ....... 118
5.2. ANÁLISE DA ENTREVISTA I ......................................................................... 140
5.3. ANÁLISE DA ENTREVISTA II ....................................................................... 149
5.4. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS .................................................................. 152
5.5. CONCLUSÃO DO CAPÍTULO ......................................................................... 155
6 CONCLUSÃO ................................................................................................... 157
7 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 165
8 APÊNDICE A – TRANSCRIÇÕES ................................................................ 175
A.1. TRANSCRIÇÕES DOS SOLOS GRAVADOS DE I. BOUDRIOUA ............... 175
A.1.1. Laura (2011) ...................................................................................................... 175
A.1.2. Paris Rio (2004) ................................................................................................. 208
A.1.3. Joy Spring (1998) .............................................................................................. 231
A.1.4. Central Park West (1996) ................................................................................. 269
A.1.5. Jamal (1987) ...................................................................................................... 300
A.1.6. Esperança (1986) ............................................................................................... 329
A.1.7. Tema da Tarde (1992) ....................................................................................... 353
A.1.8. Bonne Chate (2014) ........................................................................................... 356
A.2. TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA I COM I. BOUDRIOUA ........................ 359
A.3. TRANSCRIÇÃO DA PERFORMANCE AO VIVO DE I. BOUDRIOUA ........ 393
A.4. TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA II COM I. BOUDRIOUA ....................... 399
1 INTRODUÇÃO

A temática do sentido musical tem sido objeto constante na literatura especializada


ao longo de toda a Modernidade. No entanto, em 1854, Eduard Hanslick publica seu famoso
livro—O Belo Musical (1981, 1854)— que, de tamanha repercussão, pode ser considerado
como inauguração de uma nova tradição teórica sobre o assunto. Não mais uma literatura com
fundamentação retórica ou filosófica, mas de cunho mais genuinamente musicológico; uma
corrente voltada para a investigação dos procedimentos técnicos de composição e de seu
entendimento como formação de estruturas: um formalismo musical. Desde então, muitos anos
se passaram e os pressupostos do formalismo oitocentista ainda estão presentes nos currículos
acadêmicos. Essa tradição viva propõe o entendimento de que uma obra musical faz ou deve
fazer sentido enquanto uma propriedade emergente da própria estrutura musical, resultando
assim em formas arquetípicas propostas pela própria academia. O próprio conceito de obra
musical já traz consigo outras tantas discussões que extrapolam o escopo desta pesquisa. Dentre
elas, podemos destacar as que diferenciam obra musical de objeto musical (BUTTERFIELD,
2002), outras que defendem uma visão mais etérea, colocando a peça musical entre a partitura
e suas performances (ROSENWALD, 1993). Há também os que consideram obra musical e
suas performances como parte de um todo processual indissociável (COOK, 2001), sendo estes
contestados por argumentações a favor da “objetificação” da obra musical separada dos
aspectos processuais do evento-performance (INGARDEN, 1986). Qualquer que seja o caso,
meu propósito aqui não é o de criticar nenhuma tradição nem muito menos o de realizar juízos
de valor entre uma tradição e outra. Pretendo apenas discutir como a academia tem abordado o
tema do sentido musical com o objetivo de avaliar a aplicabilidade de suas práticas ao objeto
do presente estudo: a improvisação jazzística.
No capítulo inicial, discuto como a tradição musical ocidental europeia tem
entendido o conceito de sentido musical e como esta mesma tradição tem buscado aferir tal
concepção de sentido em itens particulares do seu repertório. Em segundo lugar, discuto as
dessemelhanças entre o paradigma tradicional de composição, como atividade criativa por
excelência neste contexto, e a prática criativa da improvisação jazzística—aqui entendida como
uma prática improvisatória específica, que já esteve aninhada no âmbito da música chamada
“popular”, mas que, na atualidade, divide com outros gêneros, como o “acadêmico”, os mesmos
espaços físicos e midiáticos. Tendo como objetivo a investigação dos processos cognitivos
envolvidos na formação do sentido musical na improvisação jazzística—sobretudo pelo próprio
improvisador-compositor—, argumentei que, ao contrário da oposição recorrente entre “música
13

escrita” e “música improvisada” como diferença entre a composição tradicional e a


improvisação, a condição escrita não pode ser considerada como a principal divergência entre
estes dois processos criativos musicais. De acordo com a teoria da desconstrução de Jacques
Derrida, pretendo mostrar que o conceito de escrita pode ir muito além das técnicas notacionais
e que a improvisação não está de maneira nenhuma livre deste. Quero, portanto, argumentar
que a divergência entre a composição tradicional e a improvisação decorre, de fato, das
condições de criação de cada processo. As interações com o ambiente e as particularidades de
cada situação criativa têm um papel fundamental em seus produtos artísticos: a composição
convencional ocorre em meio a uma situação de escrita, e a improvisação está
indissociavelmente atrelada à performance musical. Sendo assim, intenciono justificar, por
meio da apresentação de divergências cruciais entre a composição convencional e a
improvisação jazzística, a necessidade de um ferramental teórico-metodológico específico para
a investigação do sentido musical na improvisação jazzística. Entendo que nesta situação o
sentido que gera a música e com o qual o improvisador dialoga não é baseado na acepção
tradicional de propriedade emergente da forma musical—autonomamente—, mas, ao invés,
uma experiência particular de cada ouvinte/performer no encontro com a própria música. Assim
sendo,o sentido não é uma escolha ou opção, mas um processo inerente à condição humana e
seus processos cognitivos, e, consequentemente, uma condição da criatividade que não se
localiza na obra, na mente do ouvinte ou em qualquer outro lugar, mas é intrínseca da
experiência, da interação entre a mente do ouvinte e aquilo que este percebe no ato da escuta,
conforme propõem as teorias das ciências cognitivas incorporadas (enacionistas) que discutirei
adiante.
No terceiro capítulo prossigo para a especificação do que entendo como
“improvisação jazzística.” Dada a generalidade do termo “improvisação”, mesmo no contexto
musical, bem como a conotação estigmatizada do termo “jazz” como gênero musical norte-
americano, entendo ser imprescindível a discussão da apropriação da conjugação de ambos os
termos para precisar o objeto do presente estudo como uma prática improvisatória que
transcende e independe de gêneros musicais. Partindo da argumentação elaborada no segundo
capítulo, que propõe serem a composição (como entendida pela tradição musical ocidental
europeia) e a improvisação não mais divergentes exclusivamente na processualidade da criação
musical, propus uma abordagem da improvisação como um processo criativo integralmente
atrelado à performance musical. Não desprezando que a performance musical, de qualquer que
seja o gênero ou estilo musical, é um processo criativo que envolve diversas decisões por parte
do intérprete, inclusive no próprio ato da performance, ressalto que o tipo específico de
14

performance musical que tenho como objeto neste estudo envolve, além destes processos
criativos mencionados, a composição de partes solistas em tempo real. Em consequência disso,
discuti as especificidades deste tipo de prática com o intuito de direcionar a investigação dos
processos cognitivos específicos desta atividade. Isto posto, prossegui então, no quarto capítulo,
à condução da discussão para uma proposta de modelo cognitivamente informado de protocolo
de coleta e análise de dados para a investigação do sentido musical (como proposto no segundo
capítulo) na improvisação jazzística.
Após toda a elaboração teórica do trabalho até aqui, entendo ser válido e até mesmo
indispensável seguir para um estudo de caso com o intuito de enriquecer os resultados da
presente pesquisa, realizar um primeiro teste do modelo de coleta e análise de dados que estou
propondo, e fundamentar a minha hipótese de trabalho. Por meio da experimentação dos
conceitos propostos nos capítulos iniciais, organizada num conjunto de instrumentos de coleta
de dados empíricos, enfoquei solos improvisados do saxofonista francês Idriss Boudrioua.
Radicado no Brasil há quase 40 anos, Boudrioua tem uma carreira consagrada em apresentações
ao vivo e gravações com diversos músicos referenciais da música brasileira e internacional. Ele
é também conceituado professor de saxofone, tendo orientado diversos expoentes da
performance no instrumento no cenário musical brasileiro. Dentre os diversos artistas
atualmente em atuação no Brasil, Boudrioua é provavelmente o saxofonista improvisador mais
notadamente jazzista de todos com um estilo de improvisação notoriamente calcado nas práticas
improvisatórias sedimentadas pelo bebop. Além disso, Boudrioua possui uma sólida carreira
solo, com seis discos lançados e uma vasta experiência como solista improvisador. Optei por
estudar a produção de um saxofonista por ser o saxofone o meu instrumento de especialidade
maior. Eu mesmo estudei com Boudrioua por cerca de seis anos, o que além de facilitar meu
acesso ao artista para a realização dos experimentos, me proporcionou uma experiência
privilegiada com seu estilo e suas ideias. Além disso, minha própria experiência com o gênero
jazzístico se deve, inicialmente, à forte influência do bebop na prática improvisatória de
Boudrioua, o que, como discuto no capítulo 3 deste trabalho, configura o cerne da pedagogia
jazzística para improvisação. Outras propostas pedagógicas e práticas improvisatórias
jazzísticas se seguiram desde os anos 1960 até os dias de hoje, no entanto, dada a minha escolha
de realizar este primeiro teste do modelo de coleta e tratamento de dados que estou propondo
se tratar de um artista declarada e notoriamente dedicado às práticas do bebop, não faria sentido,
para o experimento realizado neste trabalho, me basear em qualquer outra corrente jazzística.
Acreditei assim que Boudrioua seria a melhor e mais acessível alternativa para o estudo de caso
que proponho aqui. A coleta dos dados consistiu em quatro etapas: (1) a transcrição de todos
15

os solos improvisados gravados de I. Boudrioua em seus 6 discos solo, que representam toda
sua discografia solo; (2) uma primeira entrevista na qual tive por objetivo compreender os
conceitos de coerência, o papel da memória e da escritura 1 na experiência improvisatória
específica de Boudrioua; (3) a gravação de uma performance ao vivo realizada especificamente
para o presente estudo por Boudrioua; e, por fim, (4) a realização de uma segunda entrevista na
qual os mesmos tópicos da primeira entrevista foram abordados, fazendo referência
especificamente ao solo gravado na performance ao vivo com o objetivo de investigar os
mesmos aspectos só que com um solo recentemente gravado e mais presente na memória do
entrevistado. Por meio de entrevistas, observações de performances e abordagem cognitiva de
transcrições de seus solos gravados, pretendi obter dados significativos para elucidar ainda mais
as questões aqui propostas sobre a experiência do sentido musical e da coerência na prática da
improvisação jazzística.
No capítulo final do trabalho, apresentei o tratamento dos dados obtidos, por meio
de uma proposta que denomino categorização de recursos geradores de coerência (RGC)
aplicada à observação dos recursos utilizados por Boudrioua em seus solos improvisados
contabilizados pelo número de ocorrências por compasso. Ao todo foram seis categorias
propostas: (1) citações do tema, (2) sobreposições, (3) frases pré-compostas, (4) frases
repetidas, (5) frases baseadas em arpejos, e (6) desenvolvimentos motívicos. Foram
contabilizados os compassos nos quais foram constatadas as ocorrências de ao menos uma
destas categorias para uma contagem geral de compassos com RGC. Também foram
contabilizados separadamente os compassos com ocorrências de cada uma das seis categorias
para que fosse possível calcular o percentual de ocorrência de cada uma das categorias
propostas. As transcrições das entrevistas foram analisadas por meio da análise de discurso
(SAYAGO, 2015; SHANTHI, LEE e LAJIUM, 2015): os tópicos de entrevistas propostos no
capítulo 4 foram comparados com categorias que emergiram nas leituras das transcrições das
entrevistas para discussão dos pontos de interesse desta pesquisa na experiência do I.
Boudrioua. Por fim, realizei uma discussão comparativa entre os resultados das análises das
transcrições dos solos e das entrevistas apresentando os resultados finais deste trabalho, a
princípio na experiência de Boudrioua, mas principalmente como um teste do modelo de coleta
de tratamento de dados aqui proposto.

1
O conceito de escritura se baseia nas propostas teóricas de J. Derrida que serão apresentadas e discutidas no
próximo capítulo.
16

Nos Apêndices encontram-se disponíveis as transcrições das entrevistas na íntegra,


bem como todas as transcrições dos solos improvisados de Boudrioua—um dos produtos
imediatamente consequentes deste trabalho— tendo sido realizados com base nos critérios de
transcrição propostos nesta pesquisa.
2 IMPROVISAÇÃO JAZZÍSTICA E COERÊNCIA

Sentido, de um modo geral, é algo que está diretamente associado à ideia de


coerência—a conformidade entre partes de um todo, conferindo a este, alguma unidade.
Tradicionalmente, a ideia de coerência em música esta associada às práticas acadêmicas de
validar uma determinada obra musical de acordo com sua conformidade com algum esquema
formal ou sintático, como proposto pelas teorias empregadas ou mesmo produzidas no contexto
da análise musical acadêmica. No entanto, quando se fala de sentido musical em improvisações
jazzísticas, surgem algumas questões importantes a serem elaboradas, e possivelmente
respondidas, antes mesmo de se pensar na abordagem deste tema. Em primeiro lugar, é preciso
entender o grau de semelhança/diferença entre, de um lado, práticas de produção de um
repertório tradicionalmente calcado em processual criativo intrinsecamente ligado às
ferramentas notacionais e, de outro, práticas de criação de obras, ou partes de obras, sujeita às
condições de performance musical por improvisação. Em segundo lugar, discutirei o que vem
a ser a visão tradicional acadêmica de sentido musical, apresentando uma breve discussão
panorâmica das teorias que, de um modo geral, têm permeado o discurso acadêmico sobre a
ideia de sentido em música. Pretendo argumentar que as divergências são muito mais do que
suficientes para a proposição de um referencial teórico-metodológico distinto, que se adeque à
investigação do sentido musical na improvisação jazzística. Proponho colocar o problema por
meio de um aprofundamento do conceito de escrita, com o objetivo de clarificar as diferenças
entre o conceito tradicional de composição e a improvisação jazzística. Destaco também visões
comumente abordadas em outros trabalhos, calcadas na oposição música escrita vs. música
improvisada, para, por fim, apresentar a acepção de sentido, de modo geral, e a de sentido
musical que pretendo adotar no presente trabalho—enquanto “experiência”, aos moldes do que
propõem as teorias enacionistas (a corrente das ciências cognitivas incorporadas).
Isto posto, seguirei então para o questionamento do sentido musical como entendido
tradicionalmente, justificando sua inaplicabilidade ao estudo do jazz e da improvisação
jazzística.

2.1 Música escrita e improvisação jazzística

Pode ser que se alguém perguntasse à sua professora de teoria qual o “sentido” de
algum acorde (digamos) em uma peça, ela poderia entender que ele estava pedindo
que ela lhe explicasse como este acorde é coerente com o resto da peça.2 (KIVY, 2007,

2
Now it may very well be that if someone were to ask his theory teacher what the “meaning” some chord (say)
18

p. 144)

O que é sentido musical? Qual é o sentido de uma obra musical? Como uma obra
musical faz sentido? Se estivermos falando de uma obra musical com letra, estas questões
poderiam ser respondidas, a princípio, por meio do significado percebido do texto verbal
contido na letra da música. No entanto, se o caso for a música chamada “absoluta” no contexto
da tradição ocidental europeia, ou o que na música popular, atualmente, tem se chamado de
“música instrumental”3, a relevância das questões se torna notavelmente mais explícita, devido
à ausência de um discurso proposicional incluído na expressão musical, afastando a experiência
musical do domínio de entendimento predominantemente conceitual. As perguntas poderiam
ser assim refeitas: O que uma obra musical sem texto verbal significa? Que sentido pode ter
uma obra musical sem letra?
O sentido de uma obra musical tem sido o alvo de diversos estudos por meio de
diversas abordagens diferentes. Tradicionalmente, explica-se o sentido de uma obra musical
“absoluta” pela análise de seus “componentes estruturais” e suas relações entre si e com um
esquema formal determinado; a música “faz sentido” quando é coerente com estes esquemas e
não depende de nenhum elemento extramusical para tal—é o que defendem os adeptos das
teorias formalistas. Tais teorias acumularam, nas últimas décadas, detratores que, de modo
geral, se opõem à admissão de um sentido musical independente de fatores extramusicais. Essas
correntes teóricas mais recentes argumentam que as relações entre as “estruturas” internas da
música não são suficientes ou até mesmo inadequadas para a explicação do que venha a ser o
sentido musical. De qualquer forma, fato é que, desde os teóricos iluministas, a tradição
analítica musical tem se baseado em teorias que estão muito mais afinadas com visões
formalistas do que com outras propostas. E, como discutirei mais adiante, o formalismo musical
propôs-se a explicar e compreender um repertório muito específico: o da tradição musical
ocidental europeia—em grande parte de música escrita. Assim sendo, com o objetivo de
entender “sentido musical” como “coerência musical” no âmbito da improvisação jazzística—
objeto do presente trabalho— ou em qualquer outro contexto estilístico e operacional, faz-se
necessário entender os fundamentos da chamada teoria formalista e a tradição musical que esta

was in a piece, she would understand him to be asking her to explain how it coheres with the rest of the piece.
3
Apesar de controverso, este termo é muito frequente nas falas de músicos profissionais por todo o Brasil, e é
utilizado para se referir à práticas musicais no âmbito da música popular que podem até contar com cantores(as),
mas não incluem palavras.
19

pretende explicar. Com isso podemos revelar até que ponto este paradigma da semântica
musical se apresenta ou não como ferramenta adequada para tal empreitada.
Como pretendo discutir mais detidamente no terceiro capítulo deste trabalho, o jazz,
a princípio, surge como uma manifestação cultural urbana que acabou configurando um
representativo gênero musical norte-americano. Assim como a MPB, por exemplo, este gênero
musical (o jazz) resultou de uma mistura de influências culturais diversas, incluindo,
principalmente, africanas e também alguns estilos consagrados de música europeia. Desta
última, dentre outros elementos, o jazz herdou as práticas notacionais que muitas vezes são
utilizadas como elemento diferenciador entre “música de arte europeia” e “música popular”
(TAGG, 2000, p. 7-9). De fato, o jazz foi pioneiro em uma das principais ferramentas
notacionais em uso até os dias de hoje na música profissional de larga difusão (ou popular): a
cifragem alfanumérica. Apesar de não ter sido a primeira prática notacional ocidental a utilizar
cifras, os jazzistas tornaram a cifragem a ferramenta notacional mais utilizada para escrever
suas ideias musicais, incluindo progressões harmônicas (tanto para o acompanhamento quanto
como roteiro para improvisação) estranhas ao contexto da tradição musical ocidental europeia
(MERLINO, 2016). Quando oponho o jazz à tradição musical europeia, não significa, de
maneira nenhuma, que estou afirmando que o primeiro não teve nenhuma influência da
segunda, mas que se desenvolveu e se configurou como prática distinta da tradição ocidental
europeia, como pretendo discutir adiante. Além disso, o jazz como gênero é muito mais
associado ao universo da música profissional funcional 4, uma produção de larga difusão (ainda
denominada por alguns autores “música popular”) e funcionalizada num contexto
contemporâneo, do que associado ao repertório tradicional europeu. Categorizar o jazz como
“música popular” pode ser equivocado, dependendo do período histórico ao qual nos referimos.
De acordo com Tagg, o tipo de música que ele próprio chama de “popular” é de difícil definição
(2000, p. 5), mas é possível encontrar tentativas de fazê-lo que compartilham alguns pontos em
comum. Em um trabalho anterior, o próprio Tagg propôs definir a “música popular”:

(1) É aquela que é concebida para distribuição em massa para grandes grupos de
ouvintes muitas vezes socioculturalmente heterogêneos, (2) é armazenada e distribuída
de forma não-escrita, (3) só é possível em uma economia industrial monetária na qual

4
O termo: música profissional funcional, foi utilizado aqui com o objetivo de especificar um tipo de música
profissional que não é focada no repertório e nas práticas da tradição europeia. O termo “funcional” aqui pretende
colocar em evidência que esta prática musical é, particularmente, caracterizada pelo compromisso com dado uso,
marcado pelo fim prático e por sua função na sociedade. Mesmo ciente de que o uso dessa nomenclatura abarca
uma discussão que extrapola o escopo do presente trabalho, entendo ser necessário referir esta música profissional
de modo a evitar a dualidade frequentemente adotada, e ainda mais problemática, entre música “clássica” e música
“popular”.
20

se torna uma mercadoria, e (4) em sociedades capitalistas, sujeitas às leis do ‘livre’


mercado, segundo as quais deveria idealmente vender o máximo possível do mínimo
possível para o máximo de público possível.5 (TAGG, 1982, p. 41)

Segundo esta definição de música popular, o jazz como gênero musical


provavelmente só se enquadraria num período curto de sua história—cerca de uma década, em
torno dos anos 1930 e 1940, correspondente ao surgimento e declínio do subgênero jazzístico
denominado Swing Era—“nunca mais a música popular seria tão jazzística, nem o jazz tão
popular”6 (GIOIA, 1997, p. 145). Isto posto, as oposições referidas no presente trabalho entre
os modos de produção da música de tradição europeia—essencialmente escrita— e a
improvisação jazzística não representam uma desconsideração com possíveis influências da
tradição musical sobre o jazz, e nem mesmo afirmam que a improvisação é uma prática
exclusiva do jazz. Muitos estudiosos já abordaram o tópico da improvisação musical, inclusive
como uma prática comum entre artistas da tradição europeia, mas que caiu em desuso ao longo
do século XIX (COOK, 2013; RÓNAI, 2003; BENSON, 2003; BAILEY, 1993; MOORE,
1992). O fato, que será aqui melhor esclarecido no terceiro capítulo, é que o termo
“improvisação jazzística” não refere uma prática pertinente ao jazz como gênero musical, mas
a uma forma de produzir música em diversos gêneros da chamada “música popular”. E quanto
a isto, incluo não somente a criação de partes solistas improvisadas, mas também a prática de
execução das partes de acompanhamento (como a leitura de progressões harmônicas a partir da
cifragem alfanumérica, por exemplo).
Como pretendo salientar mais adiante, a tradição musical europeia, sobretudo em
seu período clássico-romântico, constituiu-se a partir de um paradigma muito específico da
relação obra–compositor–intérprete (ou performer). Tal paradigma implica necessariamente o
uso da notação musical como código de mediação entre os agentes envolvidos na realização
musical, compositores e os performers que irão executar seus textos (partituras), conferindo-
lhes uma dimensão sonora ou restituindo-as à sua dimensão sonora. As práticas musicais em
questão no presente trabalho—as da improvisação jazzística— diferem essencialmente do
paradigma tradicional de composição em sua relação com o uso das ferramentas de notação
musical. Tradicionalmente, a escrita musical por meio de partituras caracteriza um meio
indispensável e determinante do processo composicional, ao passo que, na música

5
(1) conceived for mass distribution to large and often socioculturally heterogeneous groups of listeners, (2) stored
and distributed in non-written form, (3) only possible in an industrial monetary economy where it becomes a
commodity and (4) in capitalist societies, subject to the laws of 'free' enterprise, according to which it should
ideally sell as much as possible of as little as possible to as many as possible.
6
Never again would popular music be so jazzy, or jazz music so popular.
21

jazzisticamente improvisada as partituras são muito mais um ponto de partida, um roteiro “em
aberto”, que depende intrinsecamente de práticas de improvisação para a realização da versão
final, ou de uma possibilidade de uma versão final, de uma determinada obra musical no próprio
ato da performance da mesma. De um lado temos a figura do compositor que produz um texto
musical (uma partitura) que funciona tanto como uma espécie de registro da obra, como um
“meio de comunicação” desta com seus intérpretes. Digo “comunicação” porque, de acordo
com o paradigma tradicional, a partitura é a forma como o compositor registra graficamente as
instruções do que o intérprete ou performer deverá fazer para que a obra musical seja realizada.
Sem ela nada do que o compositor cria como obra musical teria como chegar ao intérprete para
que este “restituísse” ou mesmo recriasse sua dimensão sonora e apreciável pelo público. Do
outro lado, temos obras musicais que são produto de práticas de improvisação no ato da
performance, com as partituras servindo como roteiros de performance, “provocadores” de
improvisações. Mesmo em contextos jazzísticos em que exite a figura do compositor ou do
arranjador, diversos elementos da performance musical jazzística dependem de improvisação
para serem realizados: desde ornamentações de linhas melódicas pré-compostas, partes de
acompanhamento (incluindo progressões harmônicas e “levadas” 7 ), até as linhas solistas
melódicas improvisadas, propriamente ditas. Resumidamente falando, a divergência crucial
entre a composição tradicional e a improvisação jazzística que justifica a busca por um
ferramental teórico-metodológico específico, como discutirei melhor mais adiante, está na
oposição “música escrita” e “improvisação jazzística”. Por meio de uma breve discussão do
próprio conceito de escrita, e do papel desta, tanto na tradição musical europeia quanto na
improvisação jazzística, discuto as semelhanças e diferenças mais significativas entre ambas,
no contexto da presente investigação, no intuito de esclarecer a aplicabilidade ou não do
paradigma tradicional de sentido musical, possibilitando assim os primeiros passos em direção
ao estudo dos processos cognitivos envolvidos na construção de solos improvisados jazzísticos.
Nos tópicos seguintes buscarei responder às questões propostas no início deste
tópico sobre o sentido musical, primeiramente segundo a tradição chamada de “formalista”,
que tem suas bases numa publicação de Eduard Hanslick, que data de meados do século XIX
(1981, 1854), para depois seguir para argumentos de autores que podem ser entendidos como
representantes do formalismo contemporâneo. Da mesma forma, pretendo expor um breve
panorama das principais ideias apontadas como opositoras ao formalismo musical com o

7
Padrões de acompanhamento rítmicos.
22

objetivo de clarificar ainda mais o cerne da argumentação da “música por ela mesma” contida
no âmago da tradição formalista. Feito isso, discutirei ainda o conceito de escrita segundo
Derrida (1973) com o objetivo de propor uma distinção mais apurada entre a composição
tradicional e a improvisação jazzística, além de tratar de questões frequentemente apontadas
sobre as diferenças processuais. Meu intuito é esclarecer a real diferença entre o conceito e a
prática tradicionais de composição e a improvisação jazzística, justificando assim a busca por
novos recursos teórico-metodológicos para abordar este dualismo.

2.2 A teoria formalista e o sentido da música

Peter Kivy argumenta que as dificuldades oriundas dos questionamentos sobre o


sentido musical são, na verdade, um problema terminológico. Para ele, o uso do termo “sentido”
para se referir à música, ou mais especificamente à experiência musical, é completamente
equivocado.

Quando alguém “não entende nada”, ouvindo uma peça musical—por exemplo, uma
nova obra contemporânea, ou uma música de uma outra cultura—esta pessoa
provavelmente dirá, “isso não faz sentido”, ou “isso não se encaixa”, ou, de fato, “eu
não entendo”. Mas seria tanto não idiomático quanto confuso dizer, “eu não entendo
o que isto significa”, ou “qual o significado disto?”8 (KIVY, 2007, p. 146)

Kivy aponta que existe uma diferença, tanto sutil quanto crucial, entre entender
uma obra musical—significando dizer que ouvir esta obra proporcionou uma experiência
agradável—, e dizer que esta faz sentido, referindo-se ao conceito literário ou linguístico da
expressão. Alguém poderia argumentar que se trata apenas de uma sutileza terminológica sem
maiores consequências, mas, segundo Stephen Davies, “existe o perigo, no entanto, de
equivocadamente se assimilar o sentido musical ao paradigma dominante do sentido
linguístico”9 (DAVIES, 2011). Ou seja, na concepção de Davies e Kivy, sentido significando
sentido proposicional ou conceitual é algo que não se aplica à música.
Kivy segue na elaboração do seu argumento para uma distinção ainda mais sutil
entre fazer sentido (para alguém) e ter significado.

“Fazer sentido” não abrange em conotação o mesmo que “ter significado”, nem
mesmo no sentido mais amplo de “sentido”; testemunhe o fato de que é perfeitamente
idiomático dizer de uma peça de mecanismo complicado cujo funcionamento e
propósito não se compreende, “isso não faz sentido (para mim)”, ao passo que não é

8
When someone “doesn’t get it”, listening to a piece of music—for example, a new contemporary work, or music
from another culture—she may say, “It doesn’t make sense”, or “It doesn’t hang together”, or, indeed, “I don’t get
it”. But it is both unidiomatic and puzzling to say, “I don’t understand what it means”, or “What does it means?”
9
There is a danger, though, of wrongly assimilating musical meaning to the dominant paradigm of linguistic
meaning.
23

idiomático dizer, “eu não sei o que isto significa”. Em outras palavras, “fazer sentido”
é uma descrição feita em numerosos contextos que não têm nada a ver com
significado, seja em seus usos semânticos ou não-semânticos.10 (Kivy, 2007, p. 146)

Para Kivy, ao nos referirmos a uma obra musical, no lugar de sentido devemos utilizar o termo
função, o que nos remete à citação do início deste capítulo na qual o autor enfatiza que,
metaforicamente, quando inquirimos sobre o sentido musical estamos, na verdade, procurando
entender como uma determinada estrutura musical—no caso da citação em questão, um
acorde— se relaciona com as demais estruturas que compõem a mesma—como esta é coerente
com o restante da obra. Semanticamente falando, uma obra musical absoluta (ou instrumental)
não significa nada, mas pode ser entendida do ponto de vista da coerência entre seus elementos
musicais formadores—fala-se em sentido e/ou significado querendo dizer, de fato, coerência
sintática.
O conceito de coerência em música, em geral, está associado à maneira de entender
coerência em relação à forma musical e às estruturas que a geram. Este paradigma de coerência
musical tem suas raízes na tradição da música escrita europeia, e está diretamente relacionado
à repetição, à reiteração de ideias (SCHOENBERG, 1950, p. 147). Uma obra musical faz
sentido quando esta é coerente em sua forma—a organização estrutural desta (KIRBY, 2017).
Esta visão formalista da música parte da premissa de que o sentido musical é fornecido por um
tipo de lógica que relaciona elementos estruturais da música de maneira coerente.

Em música que é composta (em oposição à música de operações aleatórias ou


consequências aleatórias), ações (mudanças, eventos) envolvendo vários elementos
(linhas de mudanças de alturas, sucessões harmônicas e tonais, ritmo e métrica,
textura e timbragem) são concebidas e controladas de tal maneira que funcionam em
níveis ordenados hierarquicamente por processos pelos quais intensidades se
desenvolvem e declinam, e pelos quais sentimentos análogos são induzidos 11 .
(BERRY, 1987, p. 4).

A coerência musical é então percebida no ato da escuta, e não constatada por meio
da análise de uma partitura. Esta última certamente abrangeria ainda a possibilidade de diversos
tipos de sentidos musicais sintáticos, de níveis de coerência verificados por meio do suporte
notacional da música, possibilitando assim, a construção de lógicas musicais internas que

10
“Making sense” is not coextensive with “having meaning”, even in the broad sense of “meaning”; witness the
fact that it is perfectly idiomatic to say of a piece of complicated machinery whose workings or purpose one doesn’t
understand, “It doesn’t make sense (to me),” whereas it is not idiomatic to say, “I don’t know what it means.” In
other words, “making sense” is a description made in numerous contexts that have nothing to do with meaning,
either in its semantic or non-semantic uses.
11
In music that is composed (as opposed to music of random operations or random consequences), actions
(changes, events) involving various elements (lines of pitch change, tonal and harmonic succession, rhythm and
meter, texture, and coloration) are so conceived and controlled that they function at hierarchically ordered levels
in processes by which intensities develop and decline, and by which analogous feeling is induced.
24

dificilmente são percebidas pelos ouvintes (LERDAHL, 1992). Albert Bregman (1994),
analisando aspectos do que chamou de “segregação primitiva”—a forma como os seres
humanos escutam e retiram informação do meio ambiente por meio do som, independentemente
de questões culturais (BREGMAN, 1994, p. 38)—, argumenta que, devido a forma como o
aparelho auditivo humano processa informação em geral, “a progressão dos sons pode ter uma
estrutura sequencial na mente do compositor, que uma partitura pode também apresentar uma
estrutura sequencial, mas que pode não haver tal coerência na mente do ouvinte” 12
(BREGMAN, 1994, p. 458). Ou seja, o que Bregman está afirmando é que, quaisquer que sejam
as possibilidades de sentidos musicais sintáticos, estes são secundários, dizem respeito a como
entendemos a música teoricamente, mas não necessariamente como a ouvimos. E é justamente
no sentido musical, na coerência musical como percebida na escuta, que estou interessado em
discutir, primeiramente na ótica da teoria formalista, em seguida a partir das recentes
contribuições das ciências cognitivas incorporadas, e, por fim, no âmbito da improvisação
jazzística.
De acordo com Bowman (1998, p. 133), o termo “formalista” tem uma conotação
um tanto pejorativa e tem sido mais empregada por aqueles que criticam a visão da música
“autônoma” do que por seus defensores. Não obstante, o grande marco para o surgimento desta
corrente é tido como a publicação da tese Do belo musical (HANSLICK, 1981, 1854). Com
uma extensa carreira de crítico musical—cerca de sessenta anos de atividade— Hanslick
chegou a ocupar a posição de Professor de Música e Estética da Universidade de Viena
(GOOLEY, 2011, p. 291). Na visão de Hanslick, não há lugar para a compreensão da música
como a arte evocadora de emoções por excelência, ou como expressiva destas. Segundo ele, a
beleza da música pode até evocar emoções, assim como qualquer outra forma de beleza, mas
não está, de forma alguma, condicionada a isso. Hanslick defende um entendimeno do “belo”
como algo independente de seus efeitos emotivos evocados naqueles que o contemplam.

O belo, estritamente falando, não visa nada, já que não é nada senão uma forma que,
apesar de disponível para muitos propósitos de acordo com sua natureza não possui,
como tal, nenhum objetivo além de si mesmo. Se a contemplação de algo belo
desperta sentimentos prazerosos, este efeito é distinto do belo como tal 13 .
(HANSLICK, 1981, 1854, p. 18).

12
[…] the progression of sounds may have a sequential structure in the mind of the composer, that a written score
may also show a sequential structure, but that there may be no such coherence in the mind of the listener.
13
The beautiful, strictly speaking, aims at nothing, since it is nothing but a form which, tough available for many
purposes according to its nature has, as such, no aim beyond itself. If the contemplation of something beautiful
arouses pleasurable feelings, this effect is distinct from the beautiful as such.
25

Hanslick desenvolve seu argumento muito mais por apontar aquilo que considera
falso do que propriamente aquilo que pretende defender. Logo nas primeiras linhas de seu
famoso livro, transparece seu tom duramente crítico:

O curso até então perseguido na estética musical tem sido quase sempre dificultado
pela falsa suposição de que seu objeto não deveria se tratar tanto de investigar o que
é belo em música, quanto o de descrever os sentimentos que a música desperta14.
(HANSLICK, 1981, 1854, p. 15)

O livro de Hanslick (1981, 1854) e as ideias que o autor apresenta em seu texto são
consideradas como “a defesa clássica do valor puramente musical da música”15 (BOWMAN,
1998, p. 134), um marco histórico da consolidação de uma linha de pensamento que defende
que a música deve ser entendida e apreciada exclusivamente “por meio do estudo de seus limites
técnicos e sua natureza inerente” 16 (HANSLICK, 1981, 1854, p. 16). Ou seja, para o
pensamento que se inaugura historicamente com Hanslick e que ficou conhecido como
“formalismo musical”, a experiência do ouvinte não é mais do que uma consequência
inevitável, porém irrelevante, da apreciação de uma beleza que é puramente musical e que não
se encontra em “lugar” nenhum que não seja nos próprios elementos estruturais constituintes
da obra musical.
Desse modo, o valor de uma obra musical, para a corrente formalista da tradição
teórica—da qual Kivy pode ser considerado um representante contemporâneo—, estaria nos
atributos estruturais da própria obra, independente de qualquer associação com qualquer coisa
extramusical: “o sentido corretamente chamado musical reside em um sistema fechado, um
domínio que é total e exclusivamente musical”17 (BOWMAN, 1998, p. 194). A ideia é de que
a forma musical, com a qual a obra se faz coerente, resulta das relações entre algum tipo de
unidade básica estrutural da música (COOK, 1997, p. 118-119). De acordo com Marcos
Nogueira (2010), o formalismo musical pode ser considerado uma consequência da apropriação
conceitual de uma incipiente psicologia da forma, emergente na segunda metade dos oitocentos,
segundo a qual “forma é uma configuração que distingue um objeto—ou um complexo de
objetos—ao separá-lo de um fundo indiferenciado” (2010, p. 113). O conceito de “forma” em
música, de acordo com a linha de pensamento que poderíamos chamar de “pré-formalista” (que

14
The course hitherto pursued in musical aesthetics has nearly always been hampered by the false assumption that
the object was not so much to enquire into what is beautiful in music, as to describe the feelings which music
awakens.
15
[…] the classic defense of music’s purely musical value.
16
[…] by studying its technical limits and its inherent nature.
17
Properly musical meaning resides in a closed system, a domain that is wholly and exclusively musical.
26

vai do classicismo musical até meados do século XIX), teria então partido de metáforas
espaciais e outras destas derivadas:

A forma musical exigia assim ser pensada não em relação à matéria, mas em relação
ao sentido. Mas se toda forma é apreendida no espaço visual, permitindo-nos vê-la,
deveria haver um espaço musical, mesmo que invisível, que seria preenchido por
“materiais” musicais, isto é, por objetos sonoros com sentido musical. (NOGUEIRA,
2010, p. 113)

Na visão formalista o sentido musical não se encontra senão na própria música; não
deve ser comparado a nada extramusical, mas é uma resultante da escuta de elementos
estritamente musicais, da própria música. Wayne D. Bowman (1998, p. 135) cita como exemplo
deste pensamento a visão de Leonard B. Meyer de que, para ouvintes ideais, determinados
elementos musicais sugerem continuações e/ou desenvolvimentos possíveis dentro de um
conjunto de possibilidades inerentes ao estilo musical em questão, e que estas possibilidades
são elas próprias o sentido musical (MEYER, 1956, p. 35). Ou seja, motivos, frases, temas,
dentre outros elementos (estruturas geradoras de forma musical) possuem probabilidades de
continuações e desenvolvimentos que possibilitam a construção de expectativas na experiência
da escuta musical que, por meio de um processo constante e dinâmico no qual estas expectativas
são satisfeitas ou frustradas, geram o interesse no ouvinte (HURON, 2006)—fazem a música
ter sentido. A coerência musical se daria então na relação de estruturas musicais codificadas
como unidades estruturais cujas inter-relações produzem o efeito da forma musical (COOK,
1997, p. 116).
O argumento formalista—“[d]aqueles que desejam caracterizar a música absoluta
unicamente em termos de suas estruturas musicais”18 (KIVY, 2009, p. 179)—, no entanto, tem
como principais críticos os chamados “anti-formalistas” ou “narrativistas”—“que acreditam
que não podemos fazer justiça ao significado e à natureza desta música sem discutir [...] seu
conteúdo narrativo: [...] qual “estória” ela “conta”” 19 (KIVY, 2009, p. 179), fazendo clara
alusão a fatores externos à música como necessários para a significação desta. Para Bowman
(1998), o formalismo musical tem seus maiores opositores representados em quatro linhas
gerais: (1) o simbolismo musical; (2) a fenomenologia musical, (3) a visão da música como
uma força sócio-política; e (4) a visão feminista e pós-moderna da música. Na primeira linha,
os principais nomes citados são: Susanne Langer, Nelson Goodman e Jean-Jacques Nattiez. De

18
[…] who wish to characterize absolute music solely in terms of its musical structure, […].
19
[…] who believe we cannot do full justice to the significance and nature of this music without discussing […]
its narrative content: […] what “story” it “tells”.
27

um modo geral, Bowman descreve a argumentação destes autores contrários ao formalismo


musical como sendo baseada em uma visão de que a música seria uma espécie de veículo de
representações da realidade, não uma estrutura autônoma e autosuficiente. Para os adeptos do
que Bowman chama de “simbolismo musical”, a música é um conjunto de signos cujos
significados são representações de coisas externas à música e que, este processo de
representação da música toma parte na construção do mundo de cada indivíduo. Logo, o
significado ou sentido musical segundo esta visão, diferente do que é proposto pelo formalismo,
implica na representação de elementos extramusicais—a música por si só não é suficiente
(BOWMAN, 1998, p. 250).
Seguindo adiante, o campo da fenomenologia musical estaria representado,
segundo Bowman, no discurso de autores como Merleau-Ponty, Mikel Dufrenne, Thomas
Clifton, David L. Burrows. Está claro que esta literatura, apoiada, mesmo que ocultamente, pela
filosofia da ciência em Heidegger (1967, 1962) e Gadamer (2008), inspirou, significativamente,
as teorias desenvolvidas no âmbito da ciência cognitiva incorporada (LAKOFF & JOHNSON,
1980, 1999; LAKOFF, 1987; JOHNSON, 1987) e seus desdobramentos musicológicos. Em
linhas gerais, estes autores e as ideias que suportam seus trabalhos divergem da visão formalista
musical, dentre outras razões, por defenderem que a importância e o sentido da música se devem
ao seu entendimento “como de fato ela é vivida ou experienciada”20 (BOWMAN, 1998, p. 300),
dando ênfase à “experiência” musical.
Dentre os defensores da música como uma força social e política, Bowman
considera Theodor Adorno e Jacques Atalli como os principais representantes. Resumindo o
debate entre as ideias de ambos os autores, Bowman conclui da seguinte maneira suas principais
contribuições à crítica ao formalismo musical:

Ao colocar a música decididamente dentro da matriz das atividades humanas


socioculturais, teorias de orientação social apresentam sérios desafios à visão da
natureza e do valor estritamente musicais da música, estritatmente seus, e confere à
atividade musical uma siginificação que frequentemente se mostra bastante elusiva
em outros relatos.21 (BOWMAN, 1998, p. 351).

Segundo esta visão, portanto, a música não escapa de maneira nenhuma de relações políticas e
de poder, e não há como negar seus desdobramentos sociais. Desta forma, seu significado
transcende completamente suas estruturas internas e seu valor está atrelado ao “papel crucial

20
[…] as it is actually lived or experienced.
21
By placing music squarely within the matrix of human sociocultural activity, socially oriented theories pose
serious challenges to the view that music's nature and value are strictly musical, all its own, and confer upon
musical activity significance that often proves quite elusive to other accounts.
28

de moldar as consciências individuais e coletivas das pessoas e assegurar progresso social”22.


(BOWMAN, 1998, p. 350).
Sob a alcunha de “Perspectivas Pluralistas Contemporâneas”23 Bowman enquadra
as visões que ele próprio denominou de feminista e pós-moderna, que entenderiam que a
“música é uma influência social com potente força política, uma importante parte da tecnologia
com a qual as sociedades humanas geram e alocam privilégio e poder”24 (BOWMAN, 1998, p.
407). Podemos dizer que o que Bowman chama aqui de feminismo e pós-modernismo é um
tipo particular de especificação das visões sociais da música, como fora antes estudada. Esta
visão, assim como as de fundo fenomenológico, não admite a música como “puramente
música”, mas também alerta para a inevitável esfera social de significação musical. No entanto,
nas ideias feministas e pós-modernistas o significado e o impacto social da música devem ser
pensados como algo pluralístico, apontando assertiva e especificamente para o uso de termos
como “absoluto” e “universal” como subterfúgios de dominação do discurso, como algo
disfarçadamente excludente: “limites disciplinares são construções arbitrárias, cuidadosamente
elaboradas para servir a interesses particulares pelo exercício de controle rígido sobre a gama
de diálogo admissível”25 (BOWMAN, 1998, p. 392).
Apesar da existência de paradigmas teóricos alternativos ao formalismo musical,
por razões pelas quais não cabe aqui discutir, a tradição analítica musical ainda é, entretanto,
predominantemente formalista. Baseia-se ainda em descrições de música como as enumeradas
por Nicholas Cook: “‘análise formal’ significa qualquer tipo de análise que envolva a
codificação da música em símbolos e a dedução da estrutura musical a partir dos padrões que
estes símbolos formam”26 (1997, p. 116). Existem no entanto, teorias que se debruçam sobre a
tarefa de compreender como as estruturas musicais atuam na percepção da coerência musical
e, consequentemente, da forma. Podemos dizer que pesquisas que seguem esta linha se focam
não nos elementos estruturais em si, mas em como e por que os percebemos da maneira que o
fazemos, possibilitanto ou não, a experiência da coerência e do sentido musical.

22
[…] crucial role in shaping people’s individual and collective consciousness and assure social progress.
23
Contemporary Pluralists Perspectives.
24
Music is a socializing influence with potent political force, an important part of the technology with which
human societies generate and allocate privilege and power.
25
Disciplinary boundaries are arbitrary constructs, carefully crafted to serve particular interests by exercising tight
control over the range of admissible dialogue.
26
[…] “formal analysis” means any kind of analysis that involves coding music into symbols and deducing the
musical structure from the patterns these symbols make.
29

Uma considerável parcela dos esforços voltados para a compreensão da experiência


musical, baseada nos últimos 30 anos de descobertas em ciências cognitivas, segue uma linha
que, apesar de se voltar para a música como percebida, tem muito em comum com o formalismo
musical. A principal diferença está no foco dado aos processos cognitivos envolvidos na
percepção dos elementos geradores da forma. Lawrence Zbikowski, ao se incluir neste grupo,
denomina-o “musicologia cognitiva” e afirma que seu objetivo é “utilizar a pesquisa em
ciências cognitivas para informar os estudos na área de música”27 (ZBIKOWSKI, 2009, p. 84).
O uso do termo “musicologia”, no caso de Zbikowski, tem grande aplicabilidade, tendo em
vista sua produção em geral na área. Em seu Conceptualizing Music: cognitive structure, theory
and analysis (ZBIKOWSKI, 2002), o autor discute três importantes tópicos das ciências
cognitivas—categorização, mapeamento entre domínios e modelos conceituais, com o intuito
de propor uma teoria do sentido musical a partir destes. Como o próprio título do livro já sugere,
análises musicais se seguem como exemplos das propostas do autor para aplicação da teoria
cognitiva em música, que por sua vez, só diferem de uma análise musical formalista na
apropriação das ferramentas das ciências cognitivas na realização das análises, com vistas ao
entendimento dos processos envolvidos na percepção das estruturas musicais. Como observado
por Ian Cross em sua resenha sobre a teoria de Zbikowski, “apesar de este ser um trabalho bem
fundamentado na relevante (e muito extensa) literatura cognitiva, suas preocupações são muito
mais as da musicologia do que as das ciências cognitivas”28 (CROSS, 2006, p. 224), ressaltando
a forte presença da abordagem analítica tradicional (formalista) nas análises apresentadas no
livro. Desta forma, percebe-se que, apesar da variação metodológica, o objeto de estudo
permanece o mesmo: a música por ela mesma, absoluta.
Enfim, a abordagem formalista discutida até aqui, mesmo em trabalhos
fundamentados pela cognição musical (ou musicologia cognitiva, segundo Zbikowski, 2009),
naturalmente, devido às suas origens e o tipo de música que almejou descrever desde então,
parece de fato estar completamente adaptada à chamada música absoluta, mais especificamente
aquela dos séculos XVIII, XIX e, em grande parte, do século XX. Logo, não se admira que o
paradigma tradicional de coerência musical esteja calcado em conceitos de estruturas musicais
da tradição da música escrita europeia. Podemos, de forma resumida, entender o paradigma
tradicional de coerência musical como aquele no qual toda obra musical é escrita por um

27
[…] to use research in cognitive science to inform music scholarship.
28
[…] while this is a work that is well grounded in the (very extensive) relevant cognitive literature, its concerns
are very much those of musicology rather than those of cognitive sciences.
30

compositor que idealiza e “materializa” a obra numa partitura—um roteiro de procedimentos


executivos para concretizá-la sonoramente—, tendo como referência de coerência e sentido
musical os esquemas formais tradicionais e suas estruturas geradoras. Consequentemente, é
natural que a maneira tradicional de “avaliar” as obras musicais e aferir seu valor musical e
grau de coerência esteja em direto acordo com esse paradigma. Segundo Bowman, esta relação
é evidente no discurso formalista:

As teorias de Meyer são mais adequadas para explicar a música “absoluta” da tradição
de “arte” ocidental do que outros tipos de música. Isso, no entanto, não é nem uma
coincidência nem uma surpresa, já que a criação de música “predominantemente
como música”, música mais “puramente musical”, é o que esta tradição há muito se
propõe a fazer. Tal música é precisamente o que a perspectiva formalista busca mais
frequentemente explicar e descrever.29 (BOWMAN, 1998, p. 135)

Dada esta “especialização” do paradigma tradicional na produção de ferramentas


para compreender e explicar determinado repertório—assim como as condições de sua criação
e performance—, sua aplicabilidade sobre qualquer outro tipo de música fica, inevitavelmente,
condicionada à avaliação de um possível grau de semelhança entre o repertório que se deseja
estudar e a música para a qual as teorias formalistas tradicionais foram pensadas.
Especificamente no caso da improvisação jazzística, objeto da presente pesquisa, há
argumentos variados, tanto sobre suas semelhanças com o paradigma tradicional quanto sobre
suas divergências. Partindo inicialmente de uma visão mais ampla do que venha a ser
improvisação em música, pretendo mostrar alguns dos pontos que mais desafiam o paradigma
tradicional. Para tanto, faz-se necessária a compreensão da prática musical improvisatória
específica que aqui refiro como improvisação jazzística, e das diferenças principais entre esta
e o paradigma tradicional de composição-interpretação.
Vimos que o sentido musical, segundo a tradição, diz respeito às inter-relações de
elementos musicais entendidos como “unidades estruturais”. Estas inter-relações resultam na
experiência de uma estrutura maior que entendemos metaforicamente por forma—a forma
musical. O sentido musical então, não teria a ver, simplesmente, com o que a música
“significa”, mas com a coerência entre seus elementos constituintes. Para a tradição formalista,
este sentido (ou a coerência musical) explica-se por meio de elementos estritamente musicais
presentes única e exclusivamente na música “ela mesma”, prescindindo de quaisquer que sejam

29
In the end, Meyer’s theories are better suited to explaining ‘absolute’ music in the Western ‘art’ tradition than
other musics. That, however, is neither coincidental nor surprising, since creating music ‘most itself’, music most
‘purely musical’, is what that tradition has long presumed to do. Such music is precisely what the formalist
perspective seeks most often to explain and describe.
31

os elementos extramusicais para o seu entendimento. Mesmo no âmbito teórico proposto por
parte dos autores alinhados à recente musicologia cognitiva, apesar de o foco das investigações
ser a experiência dos ouvintes, não verificamos senão uma expansão metodológica da prática
formalista (a explicação do sentido musical por meio da coerência entre os elementos musicais
que constituem a obra): os ouvintes experimentam o sentido musical a partir da escuta dos
elementos geradores da forma musical. Sendo assim, o sentido musical permanece restrito ao
grau de coerência entre os elementos constituintes da forma musical em uma determinada obra.
Esta coerência, por sua vez, está necessariamente atrelada aos esquemas formais tradicionais
da música ocidental europeia que, como descrito anteriormente na citação de Bowman (1998,
p. 135), não é de maneira nenhuma obra do acaso. A tradição formalista debruça-se sobre a
tarefa de explicar um repertório que almeja exatamente aquilo que o formalismo mais defende:
a música por ela mesma, sem referências extramusicais. Independente de qualquer que seja a
ideologia por trás da visão do que venha a ser o sentido musical, não é absurdo admitir que não
há nada mais apropriado para se investigar o sentido musical de um repertório pensado para ser
exclusivamente musical, do que uma teoria que busca fazê-lo lançando mão de elementos
exclusivamente musicais.
Entretanto, a questão que pretendo aqui ressaltar é que, dada a especialização da
tradição formalista no repertório de música “absoluta”, qual seria o grau de aplicabilidade deste
paradigma na abordagem de qualquer outro repertório? Parece claro, a princípio, que a resposta
a esta questão depende diretamente do grau de semelhança e diferença de qualquer que seja o
repertório estudado em relação à tradição escrita europeia. Desta forma, tendo discutido até
aqui o que é “sentido musical”, segundo o paradigma tradicional—a coerência entre elementos
musicais segundo esquemas formais musicais da tradição—, sigo para a problematização do
objeto do presente trabalho: a improvisação jazzística no contexto do paradigma composicional
da tradição musical europeia. Com isso pretendo avaliar a aplicabilidade do paradigma
formalista no âmbito desta prática musical e mesmo a possibilidade de constituição de
paradigmas alternativos para elucidar a discussão da coerência musical na improvisação
jazzística. Mas antes, dada a relação intrínseca do método tradicional com a escrita musical,
entendo ser necessário esclarecer melhor a relação entre um conceito mais amplo de escrita e a
coerência, o que pretendo fazer a seguir.

2.3 Escrita e coerência

Seguindo a linha de raciocínio da tradição formalista, segundo a qual o sentido


musical é resultante da coerência entre os elementos geradores da forma musical, este sentido
32

é uma espécie de extremo final de uma linearidade que parte de unidades estruturais musicais
básicas (como os motivos para Schoenberg, por exemplo), passa por uma organização tal que
os arranja de modo coerente—de acordo com esquemas formais—e resulta inevitavelmente em
uma obra musical que faz sentido. Ou seja, segundo esta tradição, como já discutido
anteriormente, o sentido musical é a coerência entre suas unidades estruturais básicas geradoras
da forma (figura 1). A forma musical, esta configuração estrutural, é o sentido da música, é o
que a música “significa”. E, se o significado da música é sua coerência formal, então entende-
se que a forma musical, como resultante coerente da junção de unidades estruturais básicas da
música, representa algo. Este algo é o sentido musical propriamente dito. A forma musical então
seria aquilo que representa o sentido, o seu representante—aquilo que se apresenta em lugar do
sentido significando-o.

Figura 1: Ilustração da forma musical como resultante das unidades estruturais básicas.

No caso específico da tradição musical europeia, o processo criativo do compositor


resulta em uma partitura—um suporte gráfico por meio do qual ele “transmite” ou “comunica”
a obra musical àqueles que irão executá-la para o ouvinte: “no pensamento tradicional a notação
musical serve como um registro da obra, mas também como um suporte para sua comunicação”
(ZAMPRONHA, 2000, p. 26). Assim sendo, a partitura assume um caráter de mero
intermediário entre compositores e performers; ela deve servir como meio de comunicação
entre aquele que escreve a música e aquele que a executa para o público. Segundo este
paradigma, da mesma maneira que a forma musical representa o sentido da obra, a partitura
representa a obra musical em si. Em ambos os casos, temos um “objeto original” que é
representado por um intermediário numa relação hierárquica de importâncias na qual o
33

“original” é o que importa, seu representante apenas cumpre a função secundária de representá-
lo.
Essa dicotomia representado/representante com graus de importância diferenciados
é perfeitamente compatível com a visão tradicional de “escrita” em relação à “fala”. De acordo
com a tradição filosófica ocidental, a fala seria já ela mesma um representante de um
significado. No entanto, esta ocuparia uma relação privilegiada por se tratar da expressão
primeira das ideias, que mantém com estas uma “proximidade” maior, ao passo que a escrita
seria um representante derivado, pois representaria a fala que representa as ideias.
Em todo o pensamento ocidental, os sons emitidos pela voz são os símbolos dos
estados da alma, e as palavras escritas, os símbolos das palavras emitidas pela voz,
porque a voz, produtora dos primeiros símbolos, teria com a alma, com o pensamento
ou o entendimento, uma relação de proximidade essencial e imediata. A voz seria o
significante primeiro, e não um significante entre outros, porque a sua relação com a
alma e as coisas seria direta. Ao passo que os outros significantes seriam de segunda
ordem, porque remeteriam primeiramente à voz, e só secundariamente, às coisas.
(MOTA, 1997, p. 293)

Por meio de um não pequeno debate com autores como Aristóteles, Platão, Hegel,
Condillac, Rousseau e Saussure, Jacques Derrida questiona essa visão da escrita como
representação, mais notadamente em seu livro Gramatologia (1973). Na tradição filosófica
ocidental, representada pelos autores citados anteriormente, a escrita é algo secundário, uma
técnica de representação de algo sublime e transcendente a ela. A escrita é assim considerada
algo maléfico, um empobrecimento da grandeza da fala: “à escritura é atribuída a exterioridade
que tem um utensílio, uma ferramenta, uma técnica, sempre imperfeitos, se comparados à
phoné” (MOTA, 1997, p. 294). Segundo Derrida, “a escritura no sentido corrente é letra morta,
portadora de morte. Ela asfixia a vida” (DERRIDA, 1973, p. 20). O objetivo do autor com sua
discussão sobre a escrita está diretamente relacionado com seu objetivo maior de desconstrução
da metafísica: “questionando o par fala/escrita, Derrida se propõe a questionar a metafísica
ocidental, a metafísica da presença” (ZAMPRONHA, 2000, p. 33). Para Zampronha, é
justamente a ideia platônica de “pares de opostos”—objeto verdadeiro/representações, que
inaugura e possibilita a ideia de uma superioridade do primeiro elemento em relação ao
segundo: “metafísica da presença, portanto, é o apagamento do segundo termo do par, o
apagamento das representações, de modo a tornar presente algo que lhe é transcendente”
(ZAMPRONHA, 2000, p. 33). Esta descrição reproduziu, na tradição teórica musical, o
paradigma representacional: a notação musical como representação da obra musical em si, algo
que está além da partitura e que é representado graficamente por esta, uma visão que Zampronha
afirma ser, ainda hoje, a predominante entre os compositores (2000, p. 37).
34

Em sua discussão crítica ao padrão de escrita como representação secundária, Mota


(1997, p. 292) afirma que Derrida parte do conceito de língua como proposto por Ferdinand de
Saussure:
Para nós ela não se confunde com a linguagem; ela é apenas uma parte determinada,
essencial, é verdade. É tanto um produto social da faculdade da linguagem quanto um
conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o
exercício desta faculdade nos indivíduos. Tomada como um todo, a linguagem é
multiforme e heteróclita; abrangendo diversos domínios, tanto físico como psicológico
e psíquico, pertence ainda ao domínio individual e ao social; não se deixa classificar em
nenhuma categoria de fatos humanos, porque não se sabe como precisar sua unidade.30
(SAUSSURE, 1995, 1916, p. 25)

Na visão de Saussure encontramos o par significado/significante: o representado e


seu representante, transparecendo claramente a ideia ainda de uma representação, como
existindo alguma coisa que ocupa o lugar de origem dos significados e à qual seus
representantes (significantes) fazem referência. Nas palavras de Zampronha, a divergência
entre Derrida e Saussure está na visão saussuriana de que significantes e significados

[...] são entidades originalmente distintas que estão indissociavelmente unidas tal
como duas faces de uma folha de papel. [...] para Derrida não se trata de duas coisas
realmente distintas, mas sim de uma só coisa que, no jogo das remissões sígnicas,
parece como se fossem duas. (Zampronha, 2000, p. 34)

Para Derrida não existe tal coisa como uma origem das representações, o objeto ou
a coisa original que significa aquilo a que todos os seus representantes fazem referência, e sim
um eterno jogo de representações que ele chamou de rastro: “não há símbolo e signo e sim um
vir-a-ser-signo do símbolo” (DERRIDA, 1973, p. 58), evidenciando sua ideia de que o que
poderíamos chamar, na terminologia de Saussure, de significado, é apenas um significante que
está na condição de significado neste momento, mas que nada mais é do que um outro
significante.
Paradoxalmente, Mota conclui que “é com Saussure, no Curso de Linguística
Geral, que a libertação da escrita, ou a liberação de uma teoria da escrita vai ter lugar (1997, p.
297), pois é justamente a partir do modelo da escrita como algo secundário, uma ferramenta,
que Derrida “inverte a relação hierárquica ao dizer que toda fala é um tipo de escrita”

30
Pour nous elle ne se confond pas avec le langage; elle n'en est qu'une partie déterminée, essentielle, il est vrai.
C'est à la fois un produit social de la faculté du langage et un ensemble de conventions nécessaires, adoptées par
le corps social pour permettre l'exercice de cette faculté chez les individus. Pris dans son tout, le langage est
multiforme et hétéroclite; à cheval sur plusieurs domaines, à la fois physique, physiologique et psychique, il
appartient encore au domaine individuel et au domaine social; il ne se laisse classer dans aucune catégorie des faits
humains, parce qu'on ne sait comment dégager son unité.
35

(ZAMPRONHA, 2000, p. 34), possibilitando sua proposta da escrita como uma transcendência
do conceito tradicional de linguagem:

Então percebe-se que o que havia sido desterrado, o errante proscrito da linguística,
nunca deixou de perseguir a linguagem como sua primeira e mais íntima
possibilidade. Então, algo se inscreve no discurso saussuriano, que nunca foi dito e
que não é senão a própria escritura como origem da linguagem. (DERRIDA, 1973, p.
53)

Desta forma, a escrita ou, propriamente, a escritura deixa de significar uma


ferramenta técnica de representação de alguma coisa ideal que lhe é transcendente, e é retirada
de sua condição secundária ou perversa em relação à fala. Na concepção de Derrida, a escrita
não diz respeito exclusivamente a uma representação gráfica das ideias, mas passa a configurar
uma espécie de filtro ou condicionador das ideias que possibilita a própria linguagem e,
consequentemente, a língua na acepção saussuriana. Por meio do que Derrida chamou de rastro,
ou marcas (na terminologia de Zampronha), um eterno jogo de remissões que faz com que tudo
seja signo de alguma outra coisa (não existe uma origem, tudo é representação de algo), a
escrita, que era tida como uma representação da fala, passa a configurar a própria condição para
existência da linguagem:

Tudo não passa de um jogo de marcas, traços, que se ligam através de representações
e re-presentações. Esse processo de geração de marcas, de escrita no sentido geral,
Derrida chama de arqui-escrita (para diferenciar de escrita no sentido estrito de
grafia). Assim Derrida anula a diferença entre fala e escrita e desconstrói as
hierarquias que colocam a escrita como um código secundário, tal como no
pensamento tradicional. A fala é um tipo de escrita. (Zampronha, 2000, p. 35, grifo
meu)

Assim sendo, se entendermos a própria fala—“a produtora dos primeiros símbolos”


(MOTA, 1997, p. 293)—como um tipo de escrita, subvertendo assim a ideia de representantes
e representados, como fica a situação da partitura como uma representação da obra musical? E
de igual forma, como entenderemos a forma musical, como resultante coerente de unidades
estruturais básicas, representando o sentido musical? Não estou ignorando aqui o fato de que,
apesar de serem frequentes as comparações entre a música e a linguagem, estas servem, no
máximo, como uma analogia, visto que a música não compartilha com a linguagem uma
característica crucial, o conteúdo semântico das palavras, o que torna aquelas comparações úteis
apenas até certo ponto. Mesmo tendo em mente esta limitação da comparação entre linguagem
e música, a discussão de Derrida sobre sua acepção de escritura ainda é válida para um debate
sobre o sentido musical, tendo em vista que, como discutido anteriormente, para Derrida, a
escrita transcende a própria linguagem, atuando como um filtro organizador das ideias
configurando assim, a própria condição para existência da linguagem. Logo, do mesmo modo
36

que nas discussões linguísticas sobre o conceito de escritura, que segundo Derrida a coloca em
uma condição anterior e necessária ao surgimento da linguagem, a partitura, como
representação gráfica, também é reposicionada como uma representação de uma representação,
extinguindo a ideia de um “original” ideário na mente do compositor. Assim como a concepção
de escritura em Derrida nos leva ao entendimento de algo anterior à linguagem e à escrita, como
uma espécie de condicionador e filtro das ideias, o mesmo podemos admitir que ocorre na
mente do compositor, tendo este suas ideias condicionadas e filtradas pela escritura. E isto
justifica aqui a discussão deste conceito na esfera da linguística, sem desconsiderarmos as
limitações do cotejo de linguagem e música.
Se tudo o que há são representações, se não existe um original e seus representantes,
a partitura—representação gráfica da música—não representa uma obra musical “original” que
lhe é transcendente, pois mesmo esta é apenas uma representação de alguma outra coisa. A
forma musical não tem no sentido musical seu “objeto original a ser representado”, visto que
este também é um representante ele mesmo. O sentido, segundo Derrida, no jogo contínuo das
representações, sofre contínuas atualizações produzindo o rastro—não existe original. Desta
forma, no paradigma tradicional, ao representar suas ideias em uma partitura, o compositor o
faz a partir da escrita, que condiciona e filtra suas ideias. E, quando estas ideias são
representadas graficamente por meio da notação musical, representa-se uma representação: “a
partitura é o resultado da escrita realizando uma volta sobre si mesma” (ZAMPRONHA, 2000,
p. 163). Da mesma forma, os intérpretes que tradicionalmente teriam na partitura a obra musical
“comunicada” pelo compositor, ao executar a obra, produzem mais uma representação
(performance) de uma representação (partitura) de uma representação (ideias do compositor):
“as próprias imagens mentais do compositor, assim como do intérprete, também são signos,
representações” (ZAMPRONHA, 2000, p. 139).
O que é, então, o sentido musical? Se tudo é um eterno jogo de remissões, de
representações, o sentido musical só pode ser uma resultante de um processo dinâmico de
remetimentos; ele não pode estar estaticamente “localizado” em lugar algum, caso contrário,
teríamos exatamente o que Derrida argumentou categoricamente que não existe: um ponto de
origem.
Por outro lado, de acordo com o paradigma teórico das ciências cognitivas
contemporâneas, o sentido musical não “está localizado” em um ponto de origem, nem tão
pouco é um objeto ou ideia original a ser representada por significantes secundários. O sentido
musical não é uma “coisa” ou nem mesmo uma ideia, mas um processo cognitivo dinâmico que
ocorre na experiência de cada ouvinte. No caso específico da tradição formalista aqui discutida,
37

no qual o sentido musical é entendido como a própria coerência percebida a partir da


identificação dos esquemas formais da tradição, se recorrermos à musicologia cognitiva de
Lawrence Zbikowski, e mais especificamente ao que o autor discute em seu Conceptualizing
Music: cognitive structure, theory and analysis (2002), constatamos que ele propõe uma
explicação para a coerência musical por meio da apropriação do conceito de “motivo”, segundo
Schoenberg: “a menor parte de uma peça ou seção de uma peça que, a qualquer momento,
apesar de mudança ou variação, é reconhecível como presente por toda a peça”31 (2006, p. 129).
Estes motivos poderiam ser entendidos como as unidades estruturais básicas geradoras da forma
musical, que, por meio de procedimentos de variação proporcionariam a unidade entre os
elementos constituintes da forma musical. No entanto, a repetição integral e continuada de
pequenos fragmentos musicais, cognitivamente falando, resultaria em uma experiência musical
pouco interessante: “um motivo aparece constantemente por toda a peça: ele é repetido.
Repetição geralmente gera monotonia. E monotonia só pode ser evitada pela variação” 32
(SCHOENBERG, 1967, p. 8). É sobre este conceito de motivo que Zbikowski contrói sua teoria
sobre a coerência musical, partindo, primeiramente, de sua própria definição do termo:
“[c]oerência ocorre quando as várias partes que constituem uma entidade musical estão
conectadas de tal maneira que estas partes similares a outras entidades se tornam
proeminentes.”33 (ZBIKOWSKI, 2002, p. 27).
Essa proeminência a que o autor se refere é justamente o ponto crucial de sua
proposta. Para ele, os motivos de Schoenberg são o perfeito correlato musical daquilo que a
teoria cognitiva chamou de nível básico de categorização—uma espécie de processo
otimizador do processamento de memória no cérebro, por meio do qual, obtemos o máximo de
informação com o mínimo de processamento necessário. A categorização em geral pode ser
definida como agrupamentos taxonômicos baseados em atributos comuns (ROSCH, 1976, p.
385). Como por exemplo: todo animal que possui bicos e asas pertence à categoria“pássaros.”
Ou: todo animal cujo filhote é amamentado por sua genitora pertence à categoria“mamíferos.”
Ou ainda, numa classificassão mais generalizante: aviões, automóveis e barcos pertencem à
categoria “meios de transporte.” Ainda assim, os exemplos citados são todos relacionados a

31
Motive is at any one time the smallest part of a piece or section of a piece that, despite change and variation, is
recognizable as present throughout.
32
A motive appears constantly throughout a piece: it is repeated. Repetition alone often gives rise to monotony.
Monotony can only be overcome by variation.
33
Coherence comes about when the various parts that make up a musical entity are connected in such a way that
those parts similar to other entities become prominent.
38

categorizações feitas intelectualmente pela espécie humana enculturada, mas a categorização é


um processo muito mais básico e natural do que isso. Numa definição mais completa, Bob
Snyder aponta que:

Para sobreviver, todos os organismos precisam reduzir a enorme quantidade de


informação que captam do mundo exterior, decidindo qual informação é relevante
para sua sobrevivência. Um dos mecanismos primários por meio do qual isso é feito
é a categorização. Um mecanismo central da percepção e da memória semântica, a
categorização talvez seja a base primária da memória [...]. É aqui definida como a
habilidade (1) de agrupar atributos e assim diferenciar objetos, eventos, ou qualidades;
e (2) de ver alguns destes como equivalentes, e associá-los e lembrar destes juntos em
uma categoria.34 (SNYDER, 2000, p. 81)

O nível básico de categorização pode ser entendido como uma especialização do


processo de categorização em geral, um dispositivo específico de categorização de máxima
eficiência sem sobrecarga do processamento cognitivo: “[n]o nível básico, as categorias
possuem muitos atributos e relativamente poucas categorias de contraste, o que o torna
informativo a um relativo baixo custo” 35 (TVERSKY, 1991, p. 439). Enfim, os motivos
schoenberguianos são, para Zbikowski, o correspondente musical do nível básico de
categorização (2002, p. 34); são os elementos que se conectam a outras partes similares se
tornando proeminentes na escuta e proporcionando a experiência da coerência musical. Assim,
retornando à minha questão sobre o sentido, a coerência ou o sentido musical, mesmo num
contexto estruturalista contemporâneo, ao qual estão alinhados alguns autores relacionados ao
campo das ciências cognitivas, consiste num processo cognitivo que é realizado
individualmente por cada ouvinte ao experimentar música. Não é algo que existe
transcendentemente em algum lugar ou plano e é de alguma forma transmitido por qualquer
que seja o meio. Desse modo, podemos aceitar que, tomando como base a proposta de
Zbikowski aqui apresentada, o sentido musical é uma experiência. Este é o pressuposto basilar
de toda a argumentação acerca do sentido e da coerência musical, segundo a corrente
enacionista36 das ciências cognitivas contemporâneas, que discutirei mais especificamente em

34
If they are to survive, all organisms must reduce the huge amount of information that comes in from the outside
world, deciding which information is relevant to their survival. One of the primary mechanisms through which
this is accomplished is categorization. A central mechanism of perception and semantic memory, categorization
may be the primary basis of memory […]. It is here defined as the ability (1) to group features together and thereby
differentiate objects, events, or qualities; and (2) to see some of these as equivalent, and associate and remember
them together in a category.
35
At the basic level, categories have lots of attributes while having relatively few contrast categories, which makes
them informative at a relative low cost.
36
Vertente das ciências cognitivas originalmente proposta por Varela, Thompson e Rosch (2017, 1991). A
proposta enacionista “coloca uma forte ênfase na ideia de que o mundo experienciado é representado e determinado
por interações mútuas entre a fisiologia do organismo, seu circuito sensório-motor e o ambiente.” (WILSON e
FOGLIA , 2017, p. 4). ([...] places strong emphasis on the idea that the experienced world is portrayed and
39

momento posterior. E ao substituir o método de investigação da coerência, da “busca de um


objeto que revela a coerência que representa sentido” para “o entendimento de um processo
mental que possibilita a emergência da coerência que é sentido” estamos diante de uma
alternativa plausível à concepção formalista do sentido musical. Uma alternativa mais
condizente com a argumentação a que pretendo chegar mais adiante sobre a inadequação do
paradigma tradicional para a abordagem da produção de sentido na improvisação jazzística.
Até aqui discuti a visão formalista do sentido musical como resultante coerente de
unidades estruturais básicas de uma determinada obra musical sob a ótica do que Derrida
chamou de desconstrução: a subversão do conceito platônico de “pares de opostos”—objeto
verdadeiro/representações. No âmbito mais específico da linguística, Derrida questiona o par
significante/significado como proposto por Sausurre, segundo o qual existiriam diversos
significantes que representariam um único significado—seu “objeto original”. Na concepção
de Derrida, este último—o “original”—não existe, pois também é um representante de algum
outro representado ele mesmo, compondo assim um processo infinito de remetimentos no qual
não há origem: um significado nada mais é do que um significante que num dado momento está
na condição de significado, mas que também representa alguma outra coisa. Como resultado
desta discussão, Derrida conclui com a proposta do termo escritura (ou arqui-escritura, para
fazer diferenciação com uma escritura, ou escrita, como representação gráfica): uma
transcendência do conceito tradicional de escrita, não mais como algo secundário e inferior,
mas como a própria condição para o surgimento da linguagem, uma espécie de filtro ou
condicionador das próprias ideias. Desta forma, quando alguém escreve alguma coisa no estrito
senso gráfico do termo, pensava-se estar representando ideias como se estas fossem a origem.
No entanto, as próprias ideias que estão sendo representadas por meio de algum tipo de grafia
são, por sua vez, também representantes.
Sob esta ótica, o conceito da partitura como representante das ideias musicais de
um compositor segundo a tradição, é completamente subvertido, assim como a noção de que o
sentido musical é representado pela coerência dos elementos estruturais básicos de uma
determinada obra musical com esquemas formais cristalizados. Resta então averiguar o
reconhecimento de coerência musical quando a música que o ouvinte experimenta não é
elaborada a partir da produção de um texto escrito ou da leitura desse texto, a partir do que a
tradição afirmou depreender-se a estrutura que revela a coerência musical. Desta forma, o

determined by mutual interactions between the physiology of the organism, its sensorimotor circuit and the
environment).
40

sentido da música, segundo a tradição moderna, é, na verdade, a coerência sintática entre os


elementos estruturais básicos que resultam na forma musical—um tipo de propriedade
emergente das relações coerentes entre estes elementos. No entanto, segundo a teoria da
desconstrução de Derrida, foi visto que não há como existir um original que é representado por
secundários, “localizando” assim o sentido musical em um eterno jogo dinâmico de remissões.
Este dinamismo requer uma ampliação do entendimento da coerência como uma experiência,
englobando também o entendimento de categoria como proposto por Zbikowski em sua
apropriação da teoria enacionista (2002). Isto posto, sigo para a discussão das divergências
entre a composição segundo a tradição e a improvisação jazzística no intuito de evidenciar a
inaplicabilidade do modelo teórico-analítico tradicional na abordagem do objeto da presente
pesquisa.

2.4 Composição e improvisação

Em 1968, eu encontrei com Steve Lacy na rua, em Roma. Eu tirei um gravador do


meu bolso e pedi a ele que descrevesse em quinze segundos a diferença entre
composição e improvisação. Ele respondeu: “Em quinze segundos a diferença entre
composição e improvisação é que para a composição você tem todo o tempo que você
quiser para decidir o que vai dizer em quinze segundos, enquanto que na improvisação
você tem quinze segundos.”37 (RZEWSKI, 1968 apud BAILEY, 1993, p. 141)

Apesar do simplismo da explicação dada por Steve Lacy 38 , ela evidencia uma
diferença crucial entre a composição (que podemos entender como aquela do paradigma
tradicional europeu, discutido anteriormente) e a improvisação musical (que no contexto da
citação anterior se referia especificamente à improvisação jazzística). Esta diferença,
provavelmente a mais óbvia, é a do processo de produção da obra musical. No primeiro caso
(composição) a obra musical é produzida anteriormente à sua execução; o compositor tem o
tempo que determinar para planejar e escrever sua composição até decidir que sua obra está
finalizada. Ao passo que na improvisação jazzística, ao menos parte da obra é produzida ou tem
sua versão final definida no ato da performance musical; o improvisador não dispõe da

37
In 1968 I ran into Steve Lacy on the street in Rome. I took out of my pocket a tape recorder and asked him to
describe in fifteen seconds the difference between composition and improvisation. He answered: ‘In fifteen
seconds the difference between composition and improvisation is that in composition you have all the time you
want to decide what to say in fifteen seconds, while in improvisation you have fifteen seconds.
38
Steven Norman Lackritz (23/07/1934—04/06/2004) saxofonista e compositor de Nova Iorque, de família russa.
Foi responsável pela difusão, no meio jazzístico, do saxofone soprano. Sua carreira foi marcada por tributos a
Thelonious Monk, sua grande inspiração, e colaborações com diversos artistas e grupos voltados para o free jazz
e a música contemporânea (Fordham, 2004).
41

possibilidade de voltar atrás e realizar quaisquer que sejam as alterações. Deste modo, nas
condições propostas por Rzewski—quinze segundos—, o compositor teria o tempo que
quisesse para planejar e escrever de antemão o que desejaria que fosse sua peça musical de
quinze segundos, ao passo que o improvisador, mesmo tendo também todo o tempo que
quisesse para se preparar para improvisar, teria que, no próprio ato da performance musical,
criar, seja lá o que quisesse, em quinze segundos.
Ambos os procedimentos requerem de seus agentes—compositor ou
improvisador—uma quantidade significativa de tempo de preparação anterior à “criação
executiva” ou da “criação compositiva” da obra musical. O compositor, além dos anos de
estudo necessários para se capacitar ao desempenho de seu ofício (segundo os parâmetros da
tradição musical europeia), ainda leva um tempo para compor, propriamente, uma obra. Seja
qual for o processo específico de composição de cada compositor, na tradição europeia da
composição escrita, ele acabará por representar os procedimentos executivos da obra por meio
de notação musical, constituindo uma partitura (embora, hoje, haja outros processos análogos).
No caso do improvisador jazzista, apesar de a criação se dar no ato da performance musical,
também são necessários anos de preparação e estudo para se chegar a um nível de performance
musical considerada aceitável pela comunidade jazzística (BERLINER, 1994, p. 243-288). Ou
seja, tanto o compositor quanto o improvisador jazzista passam por um longo e contínuo
processo de formação, representado pela seta “formação” na figura 2, que resulta na construção
da escriturabilidade de cada um, na qual estão imersos: suas culturas (representado pelo
quadrado no qual estão inseridos o compositor e o improvisador jazzista). Ambos têm suas
ideias que são condicionadas e filtradas pela escritura—segundo entendimento de Derrida—,
representadas pelas setas tracejadas, passando pelo filtro da escritura (representado na figura 2
pelas setas de pontos mais espaçados que “saem” do compositor e do improvisador jazzista e
atravessam a linha fronteiriça da caixa que representa o filtro da escritura). Após este filtro, as
linhas pontilhadas de pontos menos espaçados representam as ideias já um pouco mais
lapidadas pela filtragem da escritura, e “indo em direção” a outros filtros e condicionadores de
ideias. Só que agora, enquanto o compositor, segundo a tradição, dialoga com as ferramentas
notacionais (ele tem suas ideias condicionadas pela “situação de escrita”) para chegar ao seu
“produto final”—uma partitura—, o improvisador jazzista tem suas ideias condicionadas por
suas interações e interferências sofridas em tempo real do que chamei de “situação de
performance”: um estúdio, um palco ao ar livre, uma casa noturna, etc. Naturalmente, o
compositor também sofre influências do ambiente onde trabalha, mas dada a dimensão temporal
em que sua atividade é desempenhada (um espaço de tempo que usualmente é muito maior do
42

que o de uma performance musical ao vivo, por exemplo, bem como a possibilidade de trabalhar
suas ideias, voltar atrás, recriá-las e editá-las) é plausível assumir que essas interferências do
ambiente não desempenhem papel tão marcante quanto na improvisação jazzística.

Figura 2: Semelhanças e diferenças processuais entre a composição tradicional e a improvisação jazzística.

Podemos afirmar, de uma forma resumida e simplista, que apesar de ser um


processo contínuo e sem fim (BERLINER, 1994, p. 243) a formação do músico jazzista,
independente do momento de sua carreira, “resulta” em performances musicais improvisadas.
Além de todo o trabalho interpretativo das partes da obra que este executa, previamente escritas
em partitura—como faria um pianista que interpreta Beethoven, por exemplo—, no âmbito do
jazz, sem dúvida alguma o produto que mais se destaca numa performance musical e que vai
contribuir para a consagração de um músico jazzista, é aquilo que este cria, no ato da
performance, na forma de partes solistas originais improvisadas. Esta improvisação se
desenvolve sobre uma progressão harmônica qualquer, ou, em contextos mais específicos,
sobre um acompanhamento também improvisado por outros músicos no ato da performance,
caracterizados por progressão harmônica ou não. Já no caso do compositor que produz música
com base na tradição escrita europeia, mesmo o contemporâneo, seu produto final é sempre
uma partitura por meio da qual “comunica” (ZAMPRONHA, 2000, p. 26) ao performer suas
ideias formais, texturais e suas instruções executivas.
Posto desta forma, alguém poderia argumentar que a principal diferença entre as
duas práticas estaria no “resultado” do trabalho de cada artista: uma partitura, enquanto texto
escrito, ou uma performance, enquanto texto sonoro—implicando, portanto, o uso ou não da
escrita (grafia, notação musical). No entanto, meu objetivo não é o de simplesmente apontar
semelhanças e diferenças entre uma e outra práticas. É importante ressaltar a diferenciação
43

processual devido à sua relevância como evidências de distinções entre compor segundo a
tradição e improvisar no contexto jazzístico, visando justificar a busca por novas ferramentas
teóricas para a abordagem do objeto da presente pesquisa. Minha intenção com esta comparação
inicial é tomar ocasião desta para apontar para o foco do presente trabalho: os processos
cognitivos envolvidos na improvisação jazzística. Dada a dessemelhança processual entre as
práticas em questão, parece também claro que os processos cognitivos envolvidos em cada uma
delas também possuem semelhanças e especificidades. Acredito que a discussão destes aspectos
servirá tanto para inaugurar a discussão sobre os processos cognitivos envolvidos na
improvisação jazzística quanto evidenciar as dificuldades de abordar tal investigação segundo
o paradigma tradicional.
Nos tópicos anteriores argumentei que o sentido musical, segundo a tradição, está
relacionado ao grau de coerência de uma determinada obra musical com os esquemas formais
consagrados e conhecidos pelos usuários da obra, e que, de acordo com o conceito de escrita
de Derrida, o sentido não é um ponto ou coisa fixa em algum lugar que é representado por
qualquer que seja o meio. O sentido é uma construção que se dá na experiência de cada ouvinte
e que passa necessariamente por sua escriturabilidade, sua cultura. Do mesmo modo, tanto
compositores, da tradição e contemporâneos, quanto improvisadores jazzistas produzem seus
textos (gráficos ou sonoros) a partir de uma escritura, de um filtro condicionador daquilo que é
criado. Um produz uma partitura (ou um script como alguns têm cogitado recentemente), um
roteiro para uma performance, o outro produz a própria performance. A composição escrita não
está atrelada a uma relação de dependência ou condicionada por situações específicas da
performance musical como ocorre com a improvisação jazzística. Ambos são processos
criativos, mas cada um deles se manifesta em uma esfera distinta do processo musical. Na
composição escrita o agente criativo (compositor) cria escrevendo, já o improvisador jazzista
cria tocando. E ainda, no caso da improvisação jazzística, não se pode ignorar o fato de que por
mais que este esteja talvez compondo em tempo real, ele está inevitavelmente também na
condição de executante da performance de sua improvisação. Não se trata de uma dicotomia
compositor/improvisador, mas sim de uma tríade de atuações que envolve: (1) aquele que
planeja previamente o que será executado—e para isso realiza virtual ou imaginativamente a
performance que dá sentido à representação notacional por ele produzida—, (2) aquele que
executa o que fora previamente composto na forma de representação notacional, e (3) aquele
que executa a sua parte sem que esta tenha sido previamente representada notacionalmente—e
para isso se apoia numa escritura mais e menos cristalizada na forma de padrões estilísticos
virtualizados na memória.
44

O improvisador jazzista, no ato da performance musical, é o intérprete de uma obra


musical que ele mesmo está “compondo” concomitantemente à sua performance. O ponto aqui
é entender que a improvisação jazzística difere primordialmente da composição escrita
tradicional por se tratar de um processo criativo intrinsicamente ligado à performance musical
e, portanto, implica processos cognitivos distintos.

Improvisação, portanto, é considerada como uma arte de performance por excelência,


demandando não somente uma vida inteira de preparação numa ampla variedade de
experiências de formação musical e extramusical, mas também uma eclética e
sofisticada base de habilidades.39 (KENNY, 2002, p. 117).

No tópico seguinte discutirei mais especificamente o que significa esta “base de habilidades”
descrita na citação de Kenny. Baseado em teorias e relatos de experimentos recentes das
ciências cognitivas incorporadas buscarei aprofundar o debate especificamente sobre o que são,
cognitivamente falando, estas habilidades necessárias ao jazzista improvisador: qual o papel do
processamento da memória no ato da improvisação jazzística, quanto que a preparação técnica
dos improvisadores jazzistas influencia, por meio de condicionamentos motores, suas
performances, como os estados afetivos e emocionais do músico, interagindo com as situações
inerentes à performance musical e ao seu espaço, podem influenciar e até determinar o que será
criado, dentre outros aspectos.
A discussão da improvisação como “composição em tempo real”, evidenciada na
citação de Steve Lacy do início deste tópico, apesar de frequente em diversos textos sobre a
improvisação, parece focar excessivamente na distinção temporal e processual: a composição
tradicional acontecendo em seu próprio tempo (de ordem determinada pela volição ou
necessidade do compositor), envolvendo necessariamente a notação musical, tanto como
registro, como na condição de meio de “comunicar” sua expressão aos intérpretes que irão
restituí-la à condição sonora—ou, mais propriamente, concretizar o projeto sonoro-musical
compartilhado por compositor e performer—, tornando-a acessível ao público; e a
improvisação jazzística como uma composição em tempo real, gerada no próprio ato da
performance musical. Segundo esta visão, o improvisador jazzista é um compositor que cria e
executa sua obra “ao mesmo tempo”. Pensando desta forma, se a divergência entre compor
tradicionalmente e improvisar é apenas processual, o método de aferição qualitativo tradicional
da coerência e do sentido musical do produto de uma improvisação jazzística deveria ser o

39
Improvisation is therefore considered to be a performance art par excellence, requiring not only a lifetime of
preparation across a broad range of musical and nonmusical formative experiences, but also a sophisticated and
eclectic skills base.
45

mesmo que a tradição vem aplicando aos itens específicos do seu repertório. E talvez justamente
por pensar desta forma é que vários estudiosos consideraram a improvisação jazzística como
uma produção de valor aquém do repertório tradicional, levando alguns, como Gunther
Schuller 40 (1958), a realizarem esforços monumentais para tentar encontrar em solos
41
improvisados de Sonny Rollins (no caso específico de Schuller) procedimentos
composicionais que se apresentem de acordo com a tradição musical ocidental—com isso
atribuindo à improvisação jazzística o mesmo status de “música séria” ou “música de arte”
tradicional. Tal empreitada, segundo DeVeaux (1998), tipifica uma tentativa de afirmar o
gênero musical em questão como prática artística em pé de igualdade com a tradição musical
europeia, levando pesquisadores e críticos a dissertarem sobre o jazz com base em suas
referências eurocêntricas. Isto resultou em grande insatisfação por parte da comunidade
jazzística “cujos pensamentos e opiniões são disseminados rotineiramente em periódicos,
resenhas e autobiografias”, produzindo nestes músicos a sensação de estarem sendo
“representados por discursos que não são os seus próprios” 42 (DEVEAUX, 1998, p. 392).
Thomas Owen aponta que existe uma grande lacuna entre os pontos de vista dos músicos
jazzistas e dos pesquisadores do jazz e de suas práticas características. Segundo ele, “Paul
Berliner, realizou um esforço monumental para preencher esta lacuna. [...] Seu livro é
atualmente o monte Everest da análise e etnomusicologia do jazz”43 (OWENS, 2004, p. 292).
O próprio Berliner afirma que, na maioria dos casos, os esforços acadêmicos dedicados ao
estudo do jazz e da improvisação jazzística deixam muito a desejar, e que estes retratam como
“suas habilidades (dos artistas do jazz) são mal compreendidas, até mesmo incompreendidas, e
seus conhecimentos desvalorizados por estranhos”44 (1994, p. 5). O desconforto dos jazzistas
com os escritos acadêmicos sobre suas práticas é tal que mesmo para Ingrid Monson—
pesquisadora com grande experiência passada como instrumentista—foi difícil, a princípio, se
aproximar destes artistas para realização de um de seus trabalhos:

40
Gunther Alexander Schuller (22/11/1925 – 21/06/2015) foi trompista, compositor, regente, pesquisador e
educador musical de Nova Iorque. Foi o cunhador do termo “third stream”— que utilizou para se referir às práticas
musicais híbridas da tradição ocidental europeia e o jazz, do qual ele próprio foi um dos principais expoentes.
(Kozinn, 2015).
41
Theodore Walter Rollins (07/09/1930- ), é um famoso saxofonista norte americano, natural de Nova Iorque. É
considerado como um dos últimos remanescentes do bebop. (Rollins, 2017).
42
[…] that while thoughts and opinions of jazz musicians are routinely disseminated in periodicals, reviews, and
autobiographies, these same musicians often feel that they are represented by a discourse not of their own making.
43
[…] has gone to monumental lengths to close that gap. (…) Berliner’s book is presently the Mount Everest of
jazz ethnomusicology and analysis.
44
[…] their skills are poorly understood, even downright misunderstood, and their knowledge undervalued by
outsiders.
46

Eu estava, a princípio, extremamente desconfortável em me apresentar como


acadêmica já que dificilmente qualquer músico que eu tinha conhecido em meus
muitos anos como performer tinha muito respeito pelo que tinha sido escrito sobre
improvisação jazzística, inclusive eu mesma.45 (MONSON, 1996, p. 11)

Num trabalho mais recente, publicado em 2014, Benjamin Givan se dedicou


exclusivamente a questionar a famosa tentativa de Schuller (1958) de aplicar conceitos
acadêmicos tradicionais na análise de solos improvisados de Sonny Rollins, criticando-a
duramente por seu “erro cardinal de avaliar a música de Rollins por critérios eurocêntricos que
intencionalmente anulam ou distorcem os significados que esta teria tido para o próprio
saxofonista como um músico afro-americano do pós-guerra”46 (GIVAN, 2014, p. 167). Apesar
da gravidade da crítica de Givan ao trabalho de Schuller, e considerando todo o debate aqui
proposto, entendo que toda esta argumentação contrária à abordagem da improvisação
jazzística por meio do uso do ferramental teórico-metodológico tradicional só corrobora ainda
mais a necessidade da busca por abordagens alternativas. Não somente devido às diferenças
estéticas ou estilísticas, mas também por causa das divergências processuais entre a composição
escrita tradicional e a improvisação jazzística: a primeira intrinsecamente ligada à produção
textual, ao passo que a segunda se funde fundamentalmente à performance.
Entendo que as diferenças entre a composição tradicional e a improvisação
jazzística vão muito além de particularidades processuais, não sendo possível enquadrar ambas
as práticas em polos opostos de um contínuo de “composição musical”, mas sim como duas
práticas criativas distintas: uma baseada na notação musical e a outra intrinsecamente atrelada
às circunstâncias da performance. Assim sendo, creio que isto implica divergências cruciais
quanto aos processos cognitivos envolvidos em ambas as práticas. Nos tópicos anteriores
procurei descrever os traços característicos do paradigma tradicional do sentido musical, como
resultante da coerência entre unidades estruturais de dada obra musical. Quais dificuldades
então se afiguram para a aplicabilidade desse modelo no estudo da improvisação jazzística,
especialmente do ponto de vista dos processos cognitivos envolvidos nesta prática?
No intuito de investigar o conceito de coerência musical no âmbito da improvisação
jazzística e os processos cognitivos nela envolvidos, iniciei este capítulo indagando sobre o

45
I was, at first, extremely uncomfortable about presenting myself as an academic since hardly any musician I had
encountered in my many years as a performer had very much respect for what had been written about jazz
improvisation, including me.
46
[…] the cardinal error of evaluating Rollins’s music by Eurocentric criteria that efface or distort the meanings
it would have held for the saxophonist himself as a postwar African-American musician.
47

sentido musical: o que queremos dizer quando afirmamos que uma determinada obra musical
faz sentido, e como a tradição musical ocidental europeia define e afere o sentido musical dos
itens particulares de seu repertório. Por meio do debate das ideias defendidas por autores que
podemos entender como representantes contemporâneos desta tradição, explicitei que o sentido
musical tradicional é a resultante formal da coerência entre os elementos estruturais básicos de
uma determinada obra, conforme os esquemas formais já consagrados por determinada tradição
estilística. O modelo tradicional se baseia no “signo musical”—em eventos sonoros traduzidos
como símbolos e organizados semanticamente segundo uma teoria. Esta teoria dedica-se a
demonstrar a existência e inter-relações entre as estruturas musicais que propõe, que por sua
vez legitima a apreensão desta mesma estrutura fechando uma espécie de círculo no qual a
música se explica pela teoria que se baseia na própria música. Desta forma, creio ter ficado
claro que todo o aparato teórico-analítico tradicional, pensado para explicar e descrever a
chamada música “absoluta”, debruça-se exclusivamente sobre a tarefa de conferir sentido às
peças compostas segundo o mesmo aparato teórico-analítico. Já a improvisação jazzística,
constitui essencialmente uma experiência e é condicionada pelos elementos da experiência da
performance musical. De um lado, temos uma tradição que se concentra na produção de teorias
e discursos sobre o emprego de conceitos para validar interpretações musicais e que exclui a
experiência musical. Do outro, temos a improvisação jazzística totalmente atrelada à
experiência musical do performer, concomitantemente na condição de agente criativo e ouvinte.
Argumentei ainda que a concepção tradicional do sentido musical implica necessariamente
estruturas musicais coerentes como sua origem, uma espécie de “lugar” determinado que é
representado pelo sentido musical. Baseando-me principalmente na chamada teoria da
“desconstrução” de Jacques Derrida (1973), propus que, assim como a ideia de um “original”
que é representado por representantes secundários é inconcebível na visão de Derrida, o sentido
musical e a coerência formal tradicional não podem ser senão um jogo eterno de representações
no qual não existe um “original” e seus representantes, mas que o sentido musical é, de fato,
uma experiência construída por cada ouvinte, como discutirei melhor adiante.
Assim sendo, o paradigma tradicional de análise, calcado na dicotomia compositor/
intérprete intermediado por uma partitura escrita previamente à performance musical, está
focado numa concepção de sentido musical a partir de uma interpretação das estruturas
musicais, os “signos musicais” propostos por suas teorias. Ao passo que a improvisação
jazzística constitui uma prática performática musical totalmente atrelada à experiência, tanto
do agente quanto dos ouvintes. O improvisador jazzista não está livre ou alheio à sua
escriturabilidade, sua cultura, mas esta filtra e condiciona suas ideias no próprio ato da
48

performance musical, na experiência da performance. Consequentemente, dada a exclusão da


experiência do objeto musical constatada nas teorias formalistas, numa prática essencialmente
experiencial como a improvisação jazzística, o modelo tradicional não tem finalidade, fazendo-
se necessários modelos teórico-analíticos outros que não sejam os tradicionais, e que
contemplem o papel fundamental da experiência musical na construção do sentido e da
coerência.

2.5 Coerência como propriedade emergente da experiência de sentido

Como já ressaltei, Kivy aponta que quando alguém afirma que uma determinada
obra musical “faz sentido”, está na verdade se referindo ao fato de ter tido uma experiência
agradável ao ouvi-la (2007). A dimensão que Kivy dá ao termo “experiência” é, entretanto,
diferente da que pretendo reconhecer no presente trabalho: não apenas como uma sensação
agradável ou não ao ouvir uma música, mas como uma parte essencial do processo de
construção do sentido musical. Esta concepção de experiência foi primeiramente proposta por
John Dewey em suas ideias sobre a filosofia da experiência. De acordo com Dewey, a
experiência é um processo de interação entre o agente e a natureza por meio do qual ambos se
influenciam mutuamente, constituindo uma ferramenta imprescindível à produção de
conhecimento (DEWEY, 1929, p. 4a). Dewey ainda propõe dois princípios segundo os quais é
possível categorizar as experiências: continuidade e interação. O primeiro diz respeito à
capacidade de determinadas experiências de expandir as possibilidades para novas
experiências: “o princípio de continuidade de experiências significa que cada experiência tanto
toma algo de experiências anteriores como de alguma forma modifica a qualidade das que vêm
depois”47 (DEWEY, 1997, p. 35). Já o segundo—o princípio da interação— “atribui direitos
iguais a ambos os fatores da experiência—condições objetivas e internas”48 (DEWEY, 1997,
p. 42). Para ilustrar este último princípio, Dewey cita um exemplo da relação entre uma mãe e
um bebê:

As necessidades de um bebê de alimentação, descanso e atividades são certamente


primárias e decisivas em um aspecto. A nutrição deve ser fornecida; é preciso prover
condições para o sono confortável, e assim por diante. Mas estes fatos não significam
que um pai ou uma mãe deve alimentar o bebê toda vez que este estiver contrariado
ou irritado, ou que não deverá haver um programa de como alimentar e pôr o bebê
para dormir, etc. A mãe sábia leva em consideração as necessidades do bebê, mas não
de forma que a exima de sua responsabilidade de regular as condições objetivas de

47
[…] the principle of continuity of experience means that every experience both takes up something from those
which have gone before and modifies in some way the quality of those which come after.
48
[…] assigns equal rights to both factors in experience—objective and internal conditions.
49

acordo com as quais estas necessidades serão satisfeitas. [...] ela recorre a experiências
passadas de especialistas assim como suas próprias experiências para lançar luz sobre
quais experiências são, em geral, mais propícias ao desenvolvimento normal de bebês.
Ao invés destas condições estarem subordinadas às condições internas imediatas do
bebê, elas definitivamente são ordenadas para que um tipo particular de interação
com estes estados internos imediatos possa ocorrer.49 (DEWEY, 1997, p. 41-42)

O conceito de experiência, segundo Dewey, coloca a interação entre agente e meio


no cerne da produção de conhecimento, da construção de sentido por parte deste agente.
Argumentei anteriormente que o sentido musical é construído por meio de um processo
dinâmico entre ouvinte e música, e que este é fruto de uma experiência musical: da interação
entre aquele que escuta e o que é escutado, e não de alguma propriedade inerente à música
como uma coisa independente e autônoma. De acordo com Larson, o sentido musical é uma
construção mental que ocorre quando nossas mentes conseguem agrupar o que estamos
escutando em padrões, e que este impulso da mente humana em buscar padrões é um atributo
inerente que opera além do foco da consciência, independente de nossa vontade (LARSON,
2012, p. 33). Mesmo sem saber ou perceber, estamos o tempo todo agrupando os estímulos
recebidos em padrões reconhecíveis e formando sentidos. Na maior parte do tempo, em nossas
experiências com o mundo (nossas interações com este), formamos sentidos de maneira
inconsciente e sentidos anteriores e distintos do sentido proposicional como proposto pela
linguística. Restringir o conceito de sentido apenas à acepção linguística do termo cria diversas
limitações, podendo até mesmo configurar um equívoco (JOHNSON, 2007). Como ilustrado
na figura 3, Larson argumenta também que encontrar padrões construindo sentidos é um ato
criativo—a mente humana tem a capacidade de atribuir sentidos a percepções “incompletas”,
construindo o todo a partir de suas partes:

49
The needs of a baby for food, rest, and activity are certainly primary and decisive in one respect. Nourishment
must be provided; provision must be made for comfortable sleep, and so on. But these facts do not mean that a
parent shall feed the baby at any time when the baby is cross or irritable, that there shall not be a program of regular
hows of feeding and sleeping, etc. The wise mother takes account of the needs of the infant but not in a way which
dispenses with her own responsibility for regulating the objective conditions under which the needs are satisfied.
[...], she draws upon past experiences of experts as well as her own for the light that these shed upon what
experiences are in general most conducive to the normal development of infants. Instead of these conditions being
subordinated to the immediate internal condition of the baby, they are definitely ordered so that a particular kind
of interaction with these immediate internal states may be brought about.
50

Figura 3: Criação de sentido como ato criativo, “completando” o círculo mesmo na ausência de algumas partes
da figura (LARSON, 2012, p. 34).

Ainda de acordo com Larson, o “impulso” mental de agrupar percepções em


padrões atuando juntamente com um outro “impulso” mental proposto pela Gestalt de que a
mente humana tende a agrupar percepções em formas simples e completas (como
exemplificado na figura 3) “sugerem que nossas mentes “criam” significados encontrando
formas de completar as coisas da maneira mais simples possível”50 (LARSON, 2012, p. 35).
“Sentido Expressivo”51 é o termo que Larson utiliza para se referir ao sentido de uma forma
geral, mais ampla, e que contemple também o sentido como entendido tradicionalmente: o
sentido proposicional.

Quando ouvimos eventos musicais como reflexos de padrões de nossas vidas


intelectuais, emocionais, imaginativas, e cinética, podemos falar daquele sentido
musical como “sentido expressivo”—aquela qualidade que permite que a música
sugira (por exemplo) sentimentos, imagens ou ações (ou até mesmo o ato de estar
parado, um tipo especial de ação).52 (LARSON, 2012, p. 36)

Estes reflexos a que Larson se refere, estão diretamente ligados ao que a ciência
cognitiva enacionista chama de mente incorporada—modelo de mente e corpo como partes
indissociáveis de um todo que condiciona e determina as experiências de um indivíduo
(LAKOFF e JOHNSON, 1999, p. 17; VARELA, 1993, p. 205; JOHNSON, 1987). De acordo
com este modelo, todo sentido que experimentamos em nossas experiências estão calcados em
nossas interações corpóreas com o meio ambiente de forma direta ou indireta. No caso de

50
[…] imply that our minds “create” meanings by finding ways of completing things in the simplest possible way.
51
Expressive Meaning.
52
When we hear musical events as reflecting the patterns of our intellectual, emotional, imaginative, and
kinesthetic lives, we may speak of that musical meaning as “expressive meaning”—that quality that allows music
to suggest (for example) feelings, images, or actions (or even stillness, a special kind of action).
51

sentidos formados por meio de relações indiretas com nossa corporeidade, interagindo com o
mundo, estamos importando sentidos que já produzimos fisicamente para outros domínios mais
abstratos por meio de projeções metafóricas.
Ao contrário do que muitos possam ainda acreditar, as metáforas são muito mais
do que meras construções poéticas; são fundamentais na estruturação do pensamento humano.
As “metáforas pervadem a vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também em
pensamentos e ações. Nosso sistema conceitual ordinário, tanto em termos do que pensamos
como do que agimos, é fundamentalmente metafórico em sua natureza” 53 (LAKOFF e
JOHNSON, 2003, p. 3). É por meio das metáforas que formamos sentidos em uma determinada
experiência em termos de outras (LAKOFF e JOHNSON, 2003, p. 5), e os sentidos mais
fundamentais que podemos construir são justamente aqueles que emergem de nossas interações
físicas com o ambiente, por meio de nossos corpos (LAKOFF e JOHNSON, 2003, p. 56-57).
A partir de nossas experiências mais básicas com o meio ambiente emergem os sentidos que
formamos em sua maior parte inconscientemente—uma pequena parcela da nossa produção
semântica é de fato conceituada no nível consciente da memória de trabalho54— e projetamos
metaforicamente para entender experiências “concretas” com coisas “abstratas”.

Por exemplo, os conceitos OBJETO, SUBSTÂNCIA e CONTÊINER emergem


diretamente. Nós nos experimentamos como entidades separadas do resto do
mundo—como contêineres possuindo parte de dentro e de fora. Também
experimentamos coisas externas a nós como entidades—frequentemente também
como contêineres com partes interiores e exteriores. Nós nos experimentamos como
sendo feitos de substâncias—por exemplo, carne e osso—e objetos externos como
sendo feitos de vários tipos de substâncias—madeira, pedra, metal, e outros. Nós
experimentamos muitas coisas, por meio da visão e do tato, como possuindo limites
definidos, e, quando as coisas não possuem limites definidos, frequentemente
projetamos limites nelas—conceituando-as como entidades e frequentemente como
contêineres (por exemplo, florestas, clareiras, nuvens, etc.). 55 (LAKOFF e

53
[…] metaphor is pervasive in everyday life, not just in language but in thought and action. Our ordinary
conceptual system, in terms of which we both think and act, is fundamentally metaphorical in nature.
54
“Memória de trabalho” (working memory), e “memória de curto prazo” (short-term memory) são dois termos
utilizados por muitos autores como sinônimos, apesar de alguns já fazerem distinções entre ambos, utilizando
“memória de curto prazo” para se referir a uma das funções da memória que serve como um armazenamento de
informação temporária, e “memória de trabalho” para se referir a um processo da memória que conjuga o
armazenamento temporário com a manipulação desta informação (BADDELEY, 2012, p. 4). Em geral os autores
definem a memória de trabalho como o principal processo da memória humana responsável pelo planejamento,
solução de problemas e o raciocínio (SCHULZE e KOELSCH, 2012, p. 229; REULAND, 2010, p. S99;
BADDELEY, 2010).
55
For example, the concepts OBJECT, SUBSTANCE, and CONTAINER emerge directly. We experience ourselves as
entities, separate from the rest of the world—as containers with an inside and an outside. We also experience
things external to us as entities—often also as containers with insides and outsides. We experience ourselves as
being made up of substances—e.g., flesh and bone—and external objects as made up of various kinds of
substance—wood, stone, metal, etc. We experience many things, through sight and touch, as having distinct
boundaries, and, when things have no distinct boundaries, we often project boundaries upon them—
conceptualizing them as entities and often as containers (for example, forests, clearings, clouds, etc.).
52

JOHNSON, 2003, p. 58)

Imagine por um momento que você está observando uma borboleta sobrevoando
um canteiro de flores em um jardim. Seria comum dizer que “a borboleta está no jardim”, apesar
de não estar propriamente em repouso sobre o jardim. Projetamos metaforicamente o conceito
de CONTÊINER ao jardim atribuindo-lhe limites em três dimensões como se fosse uma grande
caixa, apesar não ser literalmente este o caso. Se, por exemplo, tivéssemos um modelo de
foguete pequeno neste mesmo jardim em repouso sobre o chão e este fosse lançado, em algum
momento, conforme o foguete fosse ganhando mais e mais altitude, não descreveríamos mais
o foguete como estando “no jardim”, mas como estando “no céu” ou indo para o céu. Isso
ocorre, porque mesmo sem notarmos, atribuímos tanto ao jardim quanto ao céu o conceito de
CONTÊINER, com delimitações tridimensionais definidas. Logo, a partir de certa altura, dizemos

que o foguete não está mais no jardim como estava a borboleta inicialmente, mesmo que sem
contato com o solo, mas sobrevoando o jardim. Em algum momento entendemos que uma
fronteira foi cruzada entre o jardim e o céu, mesmo estas não existindo objetivamente no mundo
físico. De acordo com o trabalho de Lakoff e Johnson (2003) as projeções metafóricas não são
uma opção, não as utilizamos meramente por retórica ou poética de linguagem, mas ao
contrário, elas constituem um princípio estrutural da construção do pensamento humano e
emergem do fato de nossas mentes não serem dissociáveis de nossos corpos.
Quando falamos em sentido musical, referimo-nos a uma experiência musical por
meio da qual foi possível agrupar percepções em padrões reconhecíveis pelo cérebro. Estes
padrões fazem sentido para nós por meio de projeções metafóricas oriundas de nossas
experiências corpóreas em nossas interações com o mundo em que vivemos, bem como por
meio também de convenções culturais que aprendemos ao longo da vida.

Música “existe” na interseção de sons organizados com nosso aparato sensório-motor,


nossos corpos, nossos cérebros, nossos valores e práticas culturais, nossas convenções
histórico-musicais, nossas experiências anteriores, e uma série de outros fatores
sociais e culturais.56 (LARSON, 2012, p. 78)

Desta forma, não há como dissociar sentido musical e experiência musical como se
o primeiro fosse algo que decorresse do segundo, como um processo seccionado em etapas do
tipo: primeiramente temos uma experiência musical e, a partir desta, formamos o sentido. O
sentido musical, na verdade, é a experiência da música:

56
Music “exists” at the intersection of organized sounds with our sensory-motor apparatus, our bodies, our brains,
our cultural values and practices, our music-historical conventions, our prior experiences, and a host of other social
and cultural factors.
53

Nós não experimentamos meramente uma obra musical e depois a entendemos. Não
há primeiro uma experiência, seguida pela nossa compreensão do significado. Em vez
disso, nossa compreensão é entrelaçada no tecido de nossa experiência. Nossa
compreensão é a nossa forma de ser e de fazer sentido em nossa experiência. Assim a
forma como experimentamos uma peça musical tem uma dependência importante em
como a entendemos, e o nosso entendimento está intimamente ligado à nossa mente
incorporada—isto é, às nossas capacidades sensorio-motoras e às nossas combinações
emocionais.57 (LARSON, 2012, p. 78)

Ao ouvirmos música, atribuímos automaticamente à nossa experiência musical


sentidos oriundos de nossas experiências corporais com o mundo em que vivemos. Falamos em
melodias que “sobem” ou “descem” como se as notas musicais fossem objetos em um espaço
com orientação definida para “cima” ou para “baixo” quando, na verdade, não há nada que
realmente suba ou desça, mas importamos para a experiência musical, por meio de projeções
metafóricas—nossas experiências como seres humanos no planeta Terra, que estão sujeitos à
gravidade e, portanto, experimentam coporalmente o tempo todo os conceitos de “cima” e
“baixo” (ZBIKOWSKI, 2000, p. 5). Da mesma forma podemos tomar como exemplo notas ou
acordes que “querem” ou “precisam” ser “resolvidos”, notas ou acordes aos quais atribuímos
características de “tensão” e “repouso”. Novamente, trata-se de uma projeção metafórica que
importamos de nossas experiências como seres dotados de músculos: quando tensionados, em
algum momento, terão de relaxar inevitavelmente, proporcionando uma sensação de alívio
diretamente proporcional ao tempo de tensionamento. Toda tensão, em algum momento,
resultará em um relaxamento, um repouso (LARSON, 2012, p. 50). Sempre que nos referimos
à música fazemos uso de alguma projeção metafórica que tem sua origem em nossas
experiências concretas com o mundo por meio de nossos corpos. Se não esperimentássemos
corporeamente os efeitos da gravidade que nos levam ao entendimento de verticalidade—e,
consequentemente, à memorização de um esquema de orientação vertical—, por exemplo,
(cima e baixo) não teríamos como saber o que isso significa.
Enfim, todo acontecimento em nossa “experiência” tem uma dimensão concreta
(material, vinculada a materialidades) e uma abstrata (que é uma particularização do
acontecimento, que fazemos para entendê-lo). Assim só há “existência” (abstrato), porque
experimentamos o objeto (concreto) que “existe”. O sentido experimentado com este objeto nos
é real, porque é experiência corporal. Então tudo que é abstrato e precisamos entender,

57
We do not merely experience a musical work and then understand it. There is not experience first, followed by
our grasp of the meaning of that experience. Rather, our understanding is woven into the fabric of that experience.
Our understanding is our way of being in and making sense of our experience. Thus the way we experience a piece
of music will depend importantly on how we understand it, and our understanding is intimately tied to our
embodiment—that is, to our sensory-motor capacities and to our emotional makeup.
54

entendemos a partir do concreto—em termos do concreto. A música é algo essencialmente


abstrato que tratamos como objeto. Por isso transferimos o sentido que já produzimos com os
objetos para entender a música. A teoria enacionista chama este dispositivo cognitivo de
projeção metafórica e é regida por esquemas compartilhados pela experiência de algo concreto
e a experiência musical. Sendo assim, a coerência em música, seu sentido, pode ser entendida
como uma experiência que se origina em projeções metafóricas decorrentes da interação entre
ouvinte e música. Esta explosão de “forma” em música é indício da manifestação de ordenação
mental do fluxo musical em padrões. E assim atribuímos a esta experiência sentidos coerentes
com aqueles previamente constituídos em nossas experiências sensório-motoras.
3 AS PRÁTICAS JAZZÍSTICAS E SUAS PARTICULARIDADES

O termo “improvisação jazzística”, que tenho utilizado aqui para me referir à prática
musical específica estudada nesta pesquisa, delimita suficientemente meu objeto de estudo no
âmbito das práticas musicais, tendo em vista que o segundo termo da expressão—“jazzística”—
faz clara referência a uma prática estritamente musical. Ao me referir à uma prática “jazzística”
fica claro que não estou falando de improvisação como um termo genérico e suas associações
a diversas atividades fora do campo da música como, por exemplo: 1) dizer ou fazer de repente,
sem premeditação ou com elementos precisos; 2) arranjar à pressa; 3) fingir; 4) citar falsamente
(AURÉLIO, 2016). Da mesma forma, é certo que não me refiro à improvisação como entendida
pela antropologia linguística—como “um termo relativo, [...] sempre numa dialética com as
estruturas pré-existentes da performance verbal” (SAWYER, 2000, p. 121), que faz referência
ao ato de improvisar inerente à fala: utilizando estruturas pré-estabelecidas da linguagem
verbal, porém de forma improvisada dado que o discurso é construído na mesma dimensão
temporal em que é proferido, não há um texto pré-concebido. No teatro, improvisar, em geral,
tem conotação associada à correção de erros. Um improviso ocorre quando, por exemplo, algum
ator se esquece de um trecho de sua fala e improvisa uma alternativa no ato da performance
teatral (GESELL, 2006, p. 15). No entanto, conforme relato de Conceição (2010, p. 163), a
improvisação passou a ter destaque no teatro contemporâneo como uma “nova estética teatral
com base na criação do espetáculo ao vivo e com coautoria do público.” Permitindo e até
incentivando a interação do público com os atores, a improvisação se torna indispensável, uma
vez que aqueles que estão no palco terão que se ajustar, o tempo todo, aos elementos
imprevisíveis introduzidos pelo público no momento do espetáculo. Sendo assim, o termo
“improvisação jazzística”, por fazer alusão a uma prática majoritariamente associada à música,
serve, a princípio, para delimitar o objeto do presente estudo ao âmbito das práticas musicais.
No entanto, mesmo no campo das artes musicais, existem práticas e concepções de
improvisação distintas, que tornam imperativa a delimitação da prática improvisatória a qual
me refiro. No trecho que se segue, discutirei de maneira genérica as principais conotações do
termo “improvisação”. Primeiramente discutirei concepções abrangentes de improvisação
musical no intuito de esclarecer como estas práticas têm sido entendidas nesta área e como
algumas delas são classificadas, para em seguida, baseado em algumas destas classificações
que serão discutidas, especificar e esclarecer minha escolha pelo termo “jazzístico” para referir
o tipo de improvisação musical que estou investigando. Enfim, meu objetivo neste capítulo é o
56

de esclarecer as questões terminológicas referentes à prática de improvisação musical específica


que estou designando como “improvisação jazzística”.

3.1 Improvisação em música

De acordo com Bruno Nettl (2016), improvisação em música significa “criação de


uma obra musical, ou à forma final de uma obra musical, enquanto esta está sendo executada”.
Desta forma, podemos concluir que, segundo Nettl, a improvisação musical se dá em diversos
níveis da criação musical e não exclusivamente na produção de uma obra em sua totalidade no
ato da performance—em tempo real. Na “criação de uma obra musical, [...] enquanto está sendo
tocada”, tem-se a ideia de uma obra musical totalmente criada por meio de improvisação, ao
passo que, quando Nettl se refere “à forma final de uma obra musical”, fica claro que não
necessariamente toda a obra é criada por meio da improvisação, mas ao menos parte dela é
assim produzida: uma parte da obra é criada anteriormente à sua performance, enquanto que a
sua “forma final” só é produzida por meio da improvisação, no momento em que o agente
criativo realiza parte da obra concomitamente à performance desta. A partir desta definição de
improvisação dada por Nettl já se pode perceber que a improvisação musical pode variar no
tocante ao grau de criatividade de uma obra musical alcançado por meio desta. Isto explicita
qual o papel da improvisação no processo criativo de uma obra musical. Pensando desta forma
alguém poderia propor classificar os processos criativos musicais com base no grau de
improvisação empregado, ou, consequentemente, na importância dos atos improvisatórios em
determinada prática—o quanto de improvisação é necessário para a realização de obras
musicais em uma ou outra prática musical.
Começando pelo próprio Nettl (1974) como uma referência mais antiga e até
mesmo pioneira no estudo acadêmico da improvisação musical, é possível constatar uma visão
interessante do assunto, que caracteriza muito bem a generalidade do termo, mesmo no âmbito
das práticas musicais. Em primeiro lugar, Nettl não questiona a ideia da improvisação como
uma prática composicional oposta à composição tradicional, como um par de opostos no qual
a “improvisação termina onde a notação começa” (NETTL, 1974, p. 4). Em vez disto, Nettl
critica a ideia de que a improvisação esteja somente ligada a culturas musicais de tradição oral,
mas defende que, mesmo na ausência do uso de técnicas notacionais, o conceito de composição
como algo distindo da improvisação também está presente.

Esta abordagem é nova apenas na medida em que nos permite pensar em todo tipo de
música como tendo entidades musicais básicas que existem e são executadas, ao invés
57

de dividir a música entre as do tipo “fixadas” e as “improvisadas”58. (NETTL, 1974,


p. 9)

Nettl observa que mesmo nas práticas musicais consideradas improvisadas (em seu
trabalho principalmente aquelas encontradas no oriente médio) constata-se o uso de diversos
procedimentos que chamaríamos de composicionais, e por este motivo propõe sua visão de dois
grupos distintos de processo criativos:

Um desses seria o do tipo de música que é cuidadosamente pensada, talvez até mesmo
trabalhada com uma visão consciente de introduzir inovação de peça a peça e até
mesmo de frase a frase; o outro, o que é espontâneo mas ligado a um modelo,
rapidamente criado e simplesmente concebida.59 (NETTL, 1974, p. 11)

Assim sendo, Nettl argumenta que, comparado ao de Beethoven, o processo


composicional de Schubert poderia ser entendido como improvisação, visto que o primeiro seria
extremamente pensado e trabalhado, e o segundo mais espontâneo, ressaltando que este tipo de
diferenciação traz consigo uma concepção específica de improvisação em música.

O fato de que Schubert escreveu algumas das suas obras rapidamente e, se quisermos
acreditar em algumas descrições, sem as trabalhar e retrabalhar muito, pode levar-nos
a considerar seu pensamento musical como basicamente improvisatório.60 (NETTL,
1974, p. 10-11)

Desta forma, Nettl argumenta que, se improvisação em música for considerada


como algo relacionado exclusivamente à espontaneidade, ou melhor, a um relativo baixo grau
de cuidado com a revisão e acabamento de uma obra, o termo “improvisação” em música
assume uma conotação muito abrangente que engloba até mesmo a composição tradicional,
dependendo do processo composicional de cada compositor. Assim sendo, a improvisação
passa a ser vista como uma espécie de extremo oposto de uma atividade composicional
extremamente pensada e elaborada num contínuo de subdivisões infinitas.
O segundo e último ponto sobre improvisação que gostaria de destacar aqui,
segundo a visão de Nettl, é o de que qualquer intérprete, de qualquer que seja a tradição musical,
é um improvisador. De acordo com Nettl (1974, p. 20), a diferença entre um pianista executando
uma sonata de Beethoven e uma performance qualquer de um jazzista como Bill Evans ou

58
This approach is novel only insofar as it allows us to think of all musics as having basic musical entities which
exist and are performed, rather than dividing music into “fixed” and “improvised” types.
59
One of these would be the music which is carefully thought out, perhaps even worked over with a conscious
view to introducing innovation from piece to piece and even from phrase to phrase; the other, that which is
spontaneous but model-bound, rapidly created, and simply conceived.
60
The fact that Schubert wrote down certain of his works rapidly and, if we are to believe some descriptions,
without working and reworking them very much, could lead us to regard his musical thinking as basically
improvisatory.
58

Chick Corea é apenas uma questão de gradação, de o quanto o intérprete tem de liberdade em
sua performance. A tradição musical na qual o intérprete está inserido funciona como um
conjunto de parâmetros a serem seguidos, um modelo. O quanto que a performance musical se
atém ou se desvia destes parâmetros, segundo Nettl, é improvisação. Por mais rígidos que sejam
os parâmetros aceitáveis em uma determinada tradição, ainda assim o intérprete deverá tomar
decisões, por vezes no ato da performance, sobre diversos parâmetros musicais que constam ou
não constam na partitura, ou que estão implícitos nesta com variados graus de imprecisão. Em
todas as situações o performer estará sempre improvisando, uns mais, outros menos.
Em suma, Nettl conduz sua argumentação sobre a improvisação musical a partir de
uma ampliação do conceito de improvisação, primeiro dissociando-o das ideias dicotômicas
que colocam a improvisação como o oposto da composição, apontando que mesmo em
processos composicionais tradicionais podemos constatar procedimentos que, dado seu grau
espontaneidade (comparado a processos mais meticulosos como o de Beethoven, por exemplo),
poderiam ser categorizados como improvisação. Depois, apontando que os próprios intérpretes,
mesmo em situações nas quais espera-se que a partitura seja estritamente obedecida, sempre
têm participação no processo criativo da obra pelo fato de tomarem decisões diversas, algumas
mesmo em tempo real, sobre variados aspectos interpretativos de sua performance musical que
influenciam a versão final da obra. Em outras palavras, Nettl propõe que improvisar é criar
alguma coisa, neste caso uma obra musical ou parte dela, compondo ou interpretando uma obra
musical, de maneira espontânea, com pouca ou nenhuma influência de processos meticulosos
de revisão daquilo que se está criando.
O papel de “criador” musical, tradicionalmente, sempre foi atribuído ao
compositor. A visão descrita anteriormente de Bruno Nettl sobre improvisação não contradiz
essa ideia, apenas inclui a improvisação no âmbito da composição como uma maneira mais
espontânea de compor. Permanece o binarismo composição/performance e a improvisação é
vista como uma prática de ambos os polos como um fator quantitativo de espontaneidade. O
papel da improvisação na música e a oposição entre composição e performance são o alvo
principal de Bruce E. Benson em sua proposta de um novo modelo de compreensão das práticas
musicais em geral:
O que está claro para mim, no entanto, é que o esquema binário de “compor” e
“executar”, que vem junto com a construção do fazer musical como sendo
primariamente sobre a produção e reprodução de obras musicais, não descreve muito
bem o que os músicos realmente fazem. Em seu lugar, eu gostaria de sugerir um
modelo improvisatório da música, um que descreve compositores, intérpretes e
59

ouvintes como parceiros num diálogo.61 (BENSON, 2003, p. X)

Na visão de Benson, a improvisação assume um caráter ainda mais abrangente. Ao


propor 11 formas distintas de improvisação (apesar de ressaltar que algumas delas se
intermeiam na prática, e que de fato esta é apenas uma categorização sumarizada), o autor chega
a afirmar, ao final da descrição do último tipo de improvisação, que “qualquer prática ou
discurso envolve tal tipo de improvisação” 62 (BENSON, 2003, p. 30). O primeiro tipo de
improvisação proposto diz respeito às decisões que um intérprete toma e que são
imprescindíveis à execução de uma obra musical escrita. São decisões sobre parâmetros
musicais que, ou não constam na partitura, ou constam de forma meramente sugestiva. “Tais
detalhes incluem (mas não estão por estes limitados) andamentos, timbre, ataque, dinâmicas, e
(em certo grau) instrumentação”63 (BENSON, 2003, p. 26). O segundo tipo é uma espécie de
expansão do primeiro que engloba a necessidade de o intérprete acrescentar notas que não
constam na partitura, com ornamentações melódicas. Quando o acréscimo de notas não contidas
na partitura extrapola a ornamentação ao ponto de “o intérprete adicionar compassos ou até
seções inteiras”64 (BENSON, 2003, p. 26), configura-se assim o terceiro tipo de improvisação
proposto pelo autor. O quarto tipo de improvisação é o das transcrições, que “geralmente tentam
reproduzir a peça o mais parecido com o original possível, fazendo alterações somente quando
necessário (para acomodar às vozes ou instrumentos diferentes)”65 (BENSON, 2003, p. 27). Da
mesma forma com que o segundo e o terceiro tipos de improvisação diferem apenas
quantitativamente, o quinto tipo de improvisação, segundo o autor, também representa uma
forma de transcrição ampliada, na qual não há necessariamente o objetivo de preservação do
original. O sexto tipo é categorizado como um arranjo, e este é definido como alterações no
original que podem chegar ao ponto de pôr em dúvida se ainda se trata da mesma música. A
diferença entre o arranjo e o quarto tipo de improvisação, segundo Benson, reside simplesmente
no fato de que o arranjo pode ser feito respeitando-se a instrumentação original, e a transcrição
envolve necessariamente uma mudança nesta: “Alguém pode, por exemplo, pegar uma peça

61
What is clear to me, though, is that the binary schema of “composing” and “performing,” which goes along with
the construal of music making as being primarily about the production and reproduction of musical works, doesn’t
describe very well what musicians actually do. In its place, I wish to suggest an improvisational model of music,
one that depicts composers, performers, and listeners as partners in dialogue.
62
Any practice or discourse involves such improvisation.
63
Such details include (but are not limited to) tempi, timbre, attack, dynamics, and (to some degree)
instrumentation.
64
The performer adds measures or even whole sections.
65
Generally, attempt to render the piece as close to the original as possible, making changes only when necessary
(to accommodate different instruments or voices).
60

para piano e rearranjá-la para piano” 66 (BENSON, 2003, p. 28). A sétima forma de
improvisação consiste em alterações de trechos melódicos e/ou progressões harmônicas de
maneira que a peça ainda seja reconhecível. Benson descreve cinco subtipos diferentes desta
forma de improvisação que culmina no tipo “7e”, no qual “a melodia original é simplesmente
desconsiderada e uma melodia alternativa (ou simplesmente nenhuma melodia discernível) é
colocada em seu lugar”67 (BENSON, 2003, p. 28). Neste último tipo de improvisação existe
ainda uma conexão com a obra original (melódica e/ou harmonicamente), e é justamente esta
conexão que é abandonada quando se chega ao oitavo tipo de improvisação—o improvisador
se baseia em alguma estrutura formal tradicional (como os 12 compassos da progressão
harmônica de um blues, por exemplo), mas não há nenhuma conexão discernível com uma obra
original (além, talvez, da progressão harmônica). A improvisação do tipo de número 9, proposta
por Benson, se dá quando um compositor se propõe a compor uma peça musical e o faz dentro
de um paradigma específico. O grau de variação do paradigma que será empregado pelo
compositor é considerado uma forma de improvisação. Benson cita como exemplo a ópera Così
fan tutte de Mozart, que se enquadra no modelo da opera buffa e as restrições impostas por este
modelo, “o quanto que as restrições são seguidas, no entanto, está sujeito à improvisação”68
(BENSON, 2003, p. 29). Seguindo para o penúltimo tipo de improvisação, Benson o descreve
como aquele em que um compositor se baseia em outra obra já existente para criação de uma
nova, e, por último, aquela forma de improvisação que o autor designou como a mais sutil de
todas:

Tanto o compositor quanto o intérprete são parte de uma tradição musical (talvez
clássica, blues ou música folclórica) e eles trabalham dentro desta tradição. Mas
trabalhar dentro de uma tradição requer inevitavelmente modificar esta tradição por
aumentação e transformação. Regras de composição e performance são seguidas; mas
compositores e intérpretes—particularmente aqueles que são considerados
exemplares—também modificam as regras e as expectativas. Portanto, improvisa-se
sobre a própria tradição69. (BENSON, 2003, p. 29-30)

No quadro 1, estão resumidos os 11 tipos de improvisação conforme propostos por


Benson (2003, p. 26-30):

66
One may, for instance, take a piece for piano and rearrange it for piano.
67
The melody is completely disregarded and an alternative melody (or simply no discernible melody) is put in its
place.
68
How far requirements are followed, though, is subject to improvisation.
69
Both composer and performer are part of a musical tradition (perhaps classical, blues, or folk music) and they
work within that tradition. But working within a tradition inevitably requires modifying that tradition by
augmentation and transformation. One follows the rules of composition and performance; but composers and
performers – particularly those we consider to be exemplary – also modify those rules and expectations. Therefore,
the tradition is itself improvised upon.
61

Quadro 1: Resumo dos 11 tipos de improvisação como propostos por Benson (BENSON, 2003).
62

Na visão de Benson, a improvisação é uma prática imprescindível a qualquer


atividade musical, mesmo aquelas relacionadas às tradições que consideramos as mais rígidas,
com pouca ou nenhuma abertura para criação além da do compositor. Qualquer que seja a
situação, como se percebe pela descrição dos 11 tipos de improvisação que o autor propõe, bem
como as elisões destes tipos de improvisação, de acordo com a forma como Benson entende e
propõe o que venha a ser improvisação em música, esta prática é inerente e imprescindível à
realização musical como um todo. Enquanto Nettl entende improvisação musical como o grau
de espontaneidade com que uma obra ou parte dela é criada, inclusive pelo compositor, e
também como a forma particular com que cada intérprete constrói sua performance de uma
determinada obra musical, Benson extrapola o conceito de improvisação musical englobando
neste virtualmente qualquer que seja a prática musical: “Improvisar é retrabalhar alguma coisa
que já existe (isto é, “convenientemente à mão”) e então transformá-la em algo que tanto está
conectado com o que era anteriormente quanto possui uma nova identidade” 70 (BENSON,
2003, p. 45).
Para Benson, mesmo um compositor criando uma nova peça musical dentro de uma
tradição de práticas altamente estereotipadas, com padrões claros e rígidos de categorização dos
itens do seu repertório, terá que, necessariamente, tomar diversas decisões em diversos níveis
e sobre diversos aspectos da composição. Ou seja, terá que “retrabalhar alguma coisa que já
existe”, desenvolvê-la, conjugá-la às suas preferências impondo à obra musical características
únicas suas, apesar de estar em conformidade com uma determinada tradição e seus
estereótipos, que fará com que esta obra tenha ligações claras com a tradição, mas também
possua sua identidade única como uma nova obra musical. E, de acordo com Benson, isto é
improvisação.
Para exemplificar sua concepção de improvisação, Benson faz uso de um caso
famoso de composição no jazz—o da música Scrapple from the Apple71, do saxofonista norte-
americano Charlie Parker. Assim como praticamente todas as composições de Parker, Scrapple
from the Apple foi composta sobre a progressão harmônica de outra música. Neste caso, sobre
a harmonia da música Honeysuckle Rose de Fats Waller72. Criar uma nova melodia sobre uma

70
To improvise is to rework something that already exists (that is, “conveniently on hand”) and thus transform it
into something that both has connections to what it once was but now has a new identity.
71
Gravada pela primeira vez em 4 de novembro de 1947 pela Dial Records com o próprio Charlie Parker (saxofone
alto), Miles Davis (trompete), Duke Jordan (piano), Tommy Potter (baixo acústico) e Max Roach (bateria) (Gioia,
1997, p. 227).
72
Thomas “Fats” Waller (21/05/1904 – 15/12/1943) —pianista e compositor norte-americano (Gioia, 1997, p. 99-
100).
63

progressão harmônica de uma outra música foi uma prática comum no jazz, da qual Parker fazia
uso constante e com isso agradava muito aos produtores, que, graças a este procedimento, se
livravam de altos custos com direitos autorais.

Um improvisador espontâneo, Charlie tecia novas melodias a partir das progressões


harmônicas de standards73 populares ou do blues, normalmente apenas esboçando os
primeiros oito compassos. [...] O método de criação de novas composições de Charlie
a partir de standards populares servia a Lubinsky, que não aceitava pagar diretos sobre
músicas protegidas por direitos autorais.74 (HADDIX, 2013, p. 81)

A composição de Parker foi feita sobre um modelo ou uma forma musical já


existente, neste caso uma progressão harmônica de outra música. Algo que já existia foi
retrabalhado e transformado em uma nova composição, que ao mesmo tempo em que está
conectada ao que já existia pelo uso da mesma progressão harmônica, possui uma nova
identidade própria de um novo item do repertório da tradição da qual Parker fazia parte. Para
Benson, “precisamente este aspecto da “improvisação” é algo que nossas teorias de criação
artística tendem a menosprezar—ou simplesmente ignorar” 75 (2003, p. 48). Ao incluir
processos como o de Charlie Parker no âmbito da criação musical em equivalência a qualquer
outro processo de composição em sua teoria, Benson acaba expandindo tanto a noção de
improvisação quanto a de composição. Para Benson, compor é improvisar sobre algum modelo
ou tradição, retrabalhando suas ideias e expandindo-as no processo de criação de novas obras
musicais e, improvisar é realizar qualquer atividade criativa.
Com definições de improvisação musical tão amplas como as aqui discutidas parece
ser difícil delimitar uma tradição ou um conjunto específico de práticas improvisatórias
musicais que se queira investigar. Fortuitamente, parece ser exatamente isso que Bailey (1993)
se propôs a fazer logo na introdução de seu livro ao separar a improvisação musical em dois
grandes grupos, porém precisos: “eu tenho utilizado os termos ‘idiomática’ e ‘não-idiomática’
para descrever as duas principais formas de improvisação.”76 (BAILEY, 1993, p. xi). Segundo
o autor, a principal diferença entre ambas as formas de improvisação se dá na expressividade
idiomática de cada uma, na existência ou não da objetivação de cada prática em expressar
características típicas do idioma a que estão ou não atreladas. Bailey afirma que a improvisação

73
Itens mais executados do repertório jazzístico ou “material frequentemente tocado (standards)”. (Ake, 2004, p.
260).
74
A spontaneous improviser, Charlie spun new melodies off the changes of popular standards or the blues, usually
only sketching out the first eight bars. […] Charlie’s method of creating new compositions from popular standards
suited Lubinsky, who balked at paying mechanical rights for recording copyrighted songs.
75
Precisely this aspect of “improvising” is something that our theories of artistic creation tend to downplay – or
simply ignore.
76
I have used the terms ‘idiomatic’ and ‘non-idiomatic’ to describe the two main forms of improvisation.
64

idiomática é a mais praticada, ao passo que a não-idiomática está mais ligada à improvisação
livre. Esta última, segundo Campos (2013), consiste numa prática improvisatória cujos
praticantes buscam improvisar livres de quaisquer idiomatismos:

A improvisação livre ou não idiomática é uma prática que proporciona total liberdade
criativa, gestual/instrumental e musical, onde não são essencialmente obrigatórias
regras ou normas da teoria musical como forma, tonalidade ou campo harmônico.
(CAMPOS, 2013, p. 132)

Apesar de do autor mencionar apenas as regras da teoria musical tonal como


possíveis elementos restringentes da improvisação na citação anterior, Costa (2012, p. 64)
afirma que a improvisação livre pode ser entendida como algo mais abrangente do que isto:
“como avesso da improvisação idiomática”, buscando liberdade não somente das regras da
teoria musical mas de virtualmente tudo:

[...] podemos dizer que a livre improvisação só é possível no contexto de uma busca
de superação do idiomático, do simbólico, da representação, do gestual, do
sistematizado, do controlado, do previsível, do estático, do identificado do
hierarquizado, do dualista e do linearizado em proveito múltiplo, do instável, do
heterogêneo, do movimento, do processo, do relacionamento, do vivo, da energia e
do material em si. (COSTA, 2012, p. 64)

De qualquer maneira, na categorização da improvisação segundo Bailey (1993), a


prática que chamo aqui de “jazzística” não se enquadra no grupo das não-idiomáticas. O uso
do termo “jazzístico” possui alguns estigmas frequentes e todos são inevitavelmente
idiomáticos. Como o próprio Bailey bem descreve, “a palavra improvisação é na verdade muito
pouco utilizada por músicos improvisadores. Improvisadores idiomáticos, ao descreverem o
que fazem, utilizam o nome do idioma”77 (BAILEY, 1993, p. xii). Assim sendo, o próprio nome
do gênero musical chamado jazz é frequentemente utilizado pelos músicos jazzistas para se
referir às suas práticas como um todo. Dificilmente um deles dirá: “eu improviso
jazzisticamente”, mas é normal dizerem “eu toco jazz”, querendo dizer com isso que toca jazz
e, consequentemente (para esta pessoa), improvisa.
Apesar da grande diversidade de práticas improvisatórias idiomáticas ao longo da
história, nos dias de hoje no ocidente, o termo “improvisação” ainda é constantemente
confundido com o gênero musical norte-americano conhecido como jazz (BECKSTEAD, 2013,
p. 69). Para alguns autores, “improvisação” e “jazz” são até mesmo sinônimos: “o termo ‘jazz’
pode se referir a comportamentos improvisatórios muito variados e pode ser apropriado de

77
The word improvisation is actually very little used by improvising musicians. Idiomatic improvisors, in
describing what they do, use the name of the idiom.
65

diversas formas diferentes, dependendo de a que gênero se refere”78 (ZACK, 2000, p. 228). Ao
associar o termo “jazz” com “comportamentos improvisatórios variados” e ainda afirmar que
que sua apropriação depende de “a que gênero se refere”, Zack transparece um entendimento
deste termo que vai além do gênero musical, um dado extremamente importante para a presente
discussão ao qual voltarei mais adiante. Se os termos “jazz” e “improvisação” são
frequentemente entendidos como a mesma coisa, o que quer dizer “improvisação jazzística”?
A despeito do aparente abuso de linguagem, o uso deste termo é frequente no Brasil e em
diversas publicações fora do país como: Jazz Improvisation (BAKER, 1988), Jazz
Improvisation 1: Tonal and Rhythmic Principles (MEHEGAN, 1992), Jazz Improvisation: A
Pocket Guide (HAERLE, 2010), Jazz Improvisation Fundamentals: Black and White Edition
(O'GORMAN, 2013), dentre outras.
No Brasil dentre as publicações didáticas sobre a improvisação jazzística, as mais
conhecidas são A Arte da Improvisação (FARIA, 1991), e Harmonia & Improvisação
(CHEDIAK, 2009). No meio acadêmico o termo “improvisação jazzística” tem sido empregado
em alguns trabalhos—Dauelsberg (2001), Figueiredo (2005), Berton (2005), Maurity (2006),
Santiago (2006), Valente (2014), Paes (2014), Leite (2015), e Ganc (2017)—, no entanto, a
expressão “improvisação jazzística” ainda aparece com conotações que carregam um alto grau
de associação com o gênero musical norte-americano surgido em torno da segunda metade do
século XIX.
Neste ponto do presente estudo, tomei como base as concepções de improvisação
de três autores principais: Nettl (1974), Benson (2003) e Bailey (1993). Meu objetivo foi o de
compreender as possibilidades de acepção do termo “improvisação” no campo dos processos
criativos musicais. Partindo de definições muito genéricas, como as de Nettl (1974) e Benson
(2003), procurei mostrar que quando se fala em improvisação em música, as possibilidades são
muitas e assim torna-se imprescindível definir, com o máximo de clareza possível, a que tipo
de prática musical improvisatória estou me referindo. Fazendo uso da categorização proposta
por Bailey (1993) das práticas de improvisação em música como idiomáticas e não-idiomáticas,
acredito ter dado um passo importante na especificação do tipo de improvisação que me
proponho a estudar. Mesmo antes de discutir questões particulares de uma prática jazzística, o

78
The term “jazz” can refer to a wide range of improvisational behaviors and can be appropriated in many different
ways, depending on the genre being referred to.
66

uso do termo “jazzístico” enquadra suficientemente a prática improvisatória em questão no


universo da improvisação musical e, segundo Bailey, idiomática. Por este motivo, apesar de
parecer pleonástica a escolha do termo “improvisação jazzística”—dada a associação recorrente
do jazz, como gênero musical, e a improvisação—, considerando as classificações de Bailey
(1993) e sendo ainda necessária uma discussão sobre as práticas jazzísticas, o termo escolhido
para referir o tipo específico de improvisação a que me proponho analisar—improvisação
idiomática—já se mostra útil como delimitador dentre a vasta gama de possibilidades de
práticas de improvisação musical.
No intuito de tentar esclarecer a causa desta associação da improvisação com o
gênero musical norte-americano conhecido como jazz, bem como justificar minha escolha de
me referir à prática alvo desta pesquisa como “improvisação jazzística”, seguirei para uma
breve discussão do jazz como gênero musical, sua expansão para diversas partes do mundo e a
apropriação de algumas de suas práticas mais características por diversas culturas musicais
diferentes encontradas em partes distintas do mundo ocidental. Desta forma pretendo esclarecer
suficientemente minha opção pelo termo “improvisação jazzística” por meio da discussão do
transbordamento do termo “jazz” para além de um gênero musical, configurando uma prática,
uma abordagem de performance passível de ser aplicada virtualmente em qualquer gênero
musical que se queira.

3.2 O jazz como gênero musical

Determinar o início e/ou o fim de um período histórico é essencialmente uma


escolha arbitrária, por meio da qual se elege uma demarcação de limites entre um determinado
momento histórico e outro, com o objetivo de criar uma sistematização que facilite a
comparação e a análise de determinadas tendências e fatos históricos: “Períodos são delimitados
por eventos importantes, mudanças ou pontos decisivos que podem ser conceituados como
79
marcadores de variação de uma variável explicativa potencialmente importante”
(LIEBERMAN, 2001). Desta forma, entender uma determinada periodização histórica como
precisa configura um equívoco ingênuo que reflete a acepção de uma simplificação útil como
uma verdade absoluta. Naturalmente, o mesmo pode ser dito quanto ao jazz como gênero
musical norte-americano: o consenso a respeito de uma data para o seu surgimento é em torno

79
Periods are bounded by important events, changes, or turning points that can be conceptualized as markers of
variation in a potentially important explanatory variable.
67

da primeira década do século XX (JAMES, 2007), no entanto, isto significa que algum tempo
antes disso os elementos que corroboraram para o surgimento do jazz como um gênero musical
já estavam em cena e, retrospectivamente, a história denominou como “jazz” este gênero
musical apontando como seu “início” ou “surgimento” o período entre meados do século XIX
e início do XX. O fato é que, ao contrário do que talvez ocorra com outros gêneros musicais,
sobre os quais se consegue apontar com relativa facilidade um conjunto de características
comuns que agregue um grupo de artistas como representantes deste determinado gênero, o
jazz, desde seus primórdios, tem desafiado categorizações, e o que hoje talvez se chame de jazz
tem mais pontos divergentes do que concordantes com o que os estudiosos consideram como
as primeiras práticas jazzísticas: “Se hoje chamamos alguma coisa de jazz, isso tem muito mais
a ver com declarações de críticos, jornalistas, gravadoras e donos de estabelecimentos do que
com a música em si”80 (GABBARD, 2008, p. 1).
Mesmo assim, dada a hegemonia afrodescendente original do jazz, o
reconhecimento deste como gênero musical certamente não foi concomitante com o seu
surgimento. Estima-se que décadas se passaram até que o jazz tenha transcendido as barreiras
sociais e tenha sido aceito como uma manifestação cultural legítima pelo grande público: “a
resistência racista inicial ao jazz eventualmente deu lugar à sua aceitação, popularização,
adoção, e finalmente sua internalização pelos brancos mais populares, em ondas de entusiasmo
deste os anos 1920”81 (POND, 2008, p. 6). Muitos dos artistas que hoje são considerados pilares
do jazz como gênero musical podem ser divididos em dois principais grupos: os que em seus
tempos se viam como artistas de blues ou ragtime, como o próprio Louis Armstrong, por
exemplo, e os que, posteriormente a estes, tiveram seus trabalhos rotulados como “anti-jazz”
ou “não-jazz”. Dentre estes últimos, destacam-se artistas como Ornette Coleman, John Coltrane
e Eric Dolphy (GABBARD, 2008, p. 4-5). Curiosamente, entre os pioneiros que não se
consideravam jazzistas e os pilares que foram rotulados, a princípio, como negações do gênero,
o jazz teve um período de um pouco mais de uma década, em torno dos anos 1950, em que “se
tornou um tipo de música elitizada policiada por grupos de fãs devotos e críticos” 82
(GABBARD, 2008, p. 5), e o termo jazz para designar um gênero musical parecia estar aceito
e estabelecido. Este período coincide com o período de tempo atribuído ao surgimento do bebop

80
If today we call something jazz, it has much more to do with utterances of critics, journalists, record companies
and club owners than with the music itself.
81
Racist resistance to jazz early on has eventually given way to acceptance, popularization, adoption, and finally
internalization by mainstream whites, in waves of enthusiasm since the 1920s.
82
[…] become an elite music policed by devoted groups of fans and critics.
68

— um subgênero do jazz caracterizado pelo virtuosismo de seus praticantes, preferência por


formações instrumentais mais simples comparado à vertente anterior (passou de big bands83 a
formações variando de trios: piano, baixo acústico e bateria; a quintetos: trios com saxofone e
trompete), progressões harmônicas mais elaboradas em comparação às práticas jazzísticas
anteriores e improvisações solistas mais proeminentes (GIOIA, 1997, p. 199-234). De qualquer
forma, mesmo no âmbito da música norte-americana, o jazz como gênero musical, nunca foi
um consenso—sempre foi difícil determinar o que é e o que não é jazz—e, mesmo quando
alguma prática é entendida como jazz, as características que fazem com que esta determinada
prática seja identificada como jazz são o motivo de muitos debates. Alguns se referem ao jazz
como música afro-americana, dada a influência de elementos da cultura africana que fazem
parte intrínseca daquilo que entendem como jazz. Esta classificação, no entanto, não é de muita
ajuda, dado que o jazz, seja lá o que ele for, não é a única prática musical, nem mesmo nos
EUA, com herança cultural africana (RALPH, 1970; PERETTI, 2009). E, mesmo assim, esta
herança cultural no jazz não é exclusivamente africana. No capítulo intitulado “A pré-história
do jazz”84 Gioia (1997, p. 3-28) aponta para a importância do sincretismo cultural em Nova
Orleans no final do século XIX para o surgimento do jazz e as diversas influências presentes
no processo:

Os antropólogos chamam este processo de “sincretismo”—a mistura de elementos


culturais que existiam anteriormente de forma separada. Esta dinâmica, tão essencial
à história do jazz, permanece poderosa ainda nos dias de hoje, quando estilos de
performance afro-americanos se misturam perfeitamente com outras músicas de
outras culturas, europeia, asiática, latina, e, fechando o ciclo completo, africana. 85
(GIOIA, 1997, p. 5)

Dada esta diversidade de culturas distintas envolvidas no processo que culminou


no surgimento do jazz, mas ainda entendendo como predominante a ascendência cultural
africana, alguns (como Duke Ellington, por exemplo) preferiram expressões como “Negro Folk
Music”—música folclórica negra (GABBARD, 2008, p. 6). É curioso notar que, tendo em vista
esta ascendência cultural, mas devido ao ambiente sincrético tanto em épocas anteriores à
consolidação do jazz, como em momentos nos quais o termo já estava fortemente associado a

83
Formação instrumental característica do subgênero do jazz conhecido como Swing ou Swing Era (décadas de
1930 e 1940). Esta formação era tradicionalmente composta de 3 trompetes, 3 trombones, 3 ou 4 saxofones, e base
(seção ritmo-harmônica: guitarra, piano, baixo acústico e bateria). (Collier, 2017; Gioia, 1997, pp. 145-157).
84
The Prehistory of Jazz.
85
Anthropologists call this process “syncretism”—the blending together of cultural elements that previously
existed separately. This dynamic, so essential to the history of jazz, remains powerful even in the present day,
when African-American styles of performance blend seamlessly with other musics of other cultures, European,
Asian, Latin, and, coming full circle, African.
69

um gênero musical, muitos dos artistas que hoje são cotejados como representantes da tradição
jazzística não eram afrodescendentes. Fato este que levou alguns a afirmações como a de que
o “jazz é essencialmente americano e intimamente ligado à democracia e à integração racial”86
(JACKSON, 2008, p. 93). De qualquer forma, o que fica claro em meio a todos estes
argumentos é que definir quando ou como surgiu, e o que é o jazz como gênero musical norte-
americano está longe de ser uma tarefa trivial, o que torna ainda mais imperativo explicitar o
objetivo, ou qual a vantagem terminológica haveria, em designar alguma prática como
jazzística.
De um ponto de vista estritamente musical, deixando de lado questões importantes
como as sociais e etnomusicológicas, é possível identificar algumas características que
conferem ao termo jazz conotações de suma importância para o presente estudo. Musicalmente
falando, o jazz tem sido relacionado a aspectos que desafiam as fronteiras dos gêneros musicais
e, consequentemente, também transcendem as nacionalidades. Algumas características
principais têm sido apontadas como determinantes de práticas jazzísticas, dentre estas se
destacam, nos discursos da maioria dos autores estudados, o swing, a improvisação
(BERLINER, 1994, p. 244-247), e a interação entre os músicos durante a performance musical:
a “comunicação musical” entre eles (MONSON, 1996). Esta última, como veremos mais
adiante, está intimamente ligada à liberdade de improvisação constante que os músicos jazzistas
têm em suas performances musicais, mesmo os que são tidos como “acompanhadores”.
O termo “swing”, no contexto do jazz, aparece no trabalho de alguns autores com
significados distintos. Para se referir ao período da história do jazz situado entre o início dos
anos 1930 e meados dos anos 1940, o termo utilizado é Swing Era (GIOIA, 1997; SCHULLER,
1991). Esta porção da história do gênero musical jazzístico recebe este nome devido à
características musicais específicas que predominaram e se estabeleceram a partir desta época.
Dentre elas, a mais significativa, que permanece até hoje como uma das principais
características do jazz, é justamente a forma alterada de execução das subdivisões rítmicas,
como exemplificado a seguir (exemplo 1):

86
[…] jazz is essentially American and intimately tied to democracy and racial integration.
70

Exemplo 1: Indicação de como executar as colcheias com swing (MURTHA, 1999).

Esta indicação87 aparece em diversas partituras exatamente como exemplificado


anteriormente (exemplo 1) ou apenas com a indicação do termo “swing”. Em alguns casos, a
indicação “straight” é anotada assinalando que as colcheias devem ser tocadas de forma regular,
sem swing (exemplo 2):

Exemplo 2: Indicação de execução de colcheias sem swing (GALE, 1954).

O swing, do ponto de vista dos educadores musicais da área, é imprescindível em


qualquer performance jazzista (JACKSON, 2008, p. 85), e muitos textos pedagógicos sobre o
jazz enfatizam sua importância. Dentre os exemplares mais famosos desta literatura
especializada destaco aqui o livro de Jamey Aebersold, no qual o autor afirma que “para
“suingar” as colcheias ou insinuar o swing, estas devem ser tocadas como uma quiáltera de
colcheias com as duas primeiras ligadas”88 (2000, p. 15), e os três livros de Lennie Niehaus
para saxofone, por exemplo (1981, p. 1; 1964, p. 1; 1964b, p. 1). Em um destes, Niehaus chama
a atenção dos leitores para o que entende ser de suma importância: observar que as colcheias
devem ser tocadas de forma correta—com swing—e que, no passado, usou-se escrever o swing
como colcheias pontuadas seguidas de semicolcheias, mas que “a concepção moderna demanda
que um compasso de colcheias seja tocado como semínimas seguidas de colcheias em uma
quiáltera” (NIEHAUS, 1964, p. 1), conforme ilustrado na figura 4:

87
O termo “bright” diz respeito ao andamento: “brilhante” —um pouco mais rápido do que o moderado e não tão
movido quanto o rápido (“fast” swing).
88
In order to make eight-notes “swing” or to imply swing, they must be played like an eight-note triplet with the
first two eights tied together.
71

Figura 4: Concepções de swing segundo Niehaus (1964).

Apesar da concepção chamada de “moderna” por Niehaus ser largamente utilizada


e aceita na prática dos músicos jazzistas, alguns trabalhos têm questionado essa concepção com
base em resultados experimentais realizados por meio de medições em computador: “A
sensação de quiáltera comumente mencionada, isto é, a proporção de 2 do swing, não foi
favorecida pelas medições. No lugar disso a proporção do swing variou linearmente com o
andamento 89 ” (FRIBERG, 2002, p. 348). Os autores argumentam que a “realidade física”
revelada por suas medições apresenta uma variedade de proporções rítmicas praticadas e que a
maioria delas não é, de fato, a das colcheias tocadas como quiálteras. Já o trabalho de Busse
(2002) aponta que, dada grande variação nos resultados das medições, “parece que cada um dos
três performers exibe o seu próprio sentido individual, ou “groove”, do estilo de swing de
jazz”90 (2002, p. 457), não sendo unânime entre os participantes do seu experimento uma forma
específica de executar o swing. Neste último trabalho transparece também uma visão do swing
como mais do que a forma como os jazzistas executam as colcheias (ou qualquer subdivisão do
pulso). Ao mencionar diversas vezes comparações entre o swing e o “groove” jazzístico, Busse
explicita um entendimento do termo “swing” como também uma resultante rítmica coletiva de
todos os músicos tocando juntos em um determinado grupo musical, por isso o uso da palavra
“groove”.
Num groove musical, um músico, dançarino, ou um ouvinte engajado têm uma sensação
similar de serem puxados para um “sulco” musical, guiados a um caminho ou trilho
musical, impulsionados por um ritmo, sendo suspensos e carregados. Bateristas, demais
músicos, assim como vocalistas, não medem esforços não apenas para executarem um
padrão rítmico ou outro com precisão mas para executar ritmos de tal maneira que estes
adquirem várias qualidades de groove, qualidades específicas de “empurrar”, “puxar”,
“se inclinar para frente”, estar “atrás do tempo”, estar no groove, e assim por diante. Os
músicos conseguem isso tocando certas notas sempre um pouco adiantadas ou um pouco
atrasadas (juntamente com sutilezas de dinâmicas, timbre, etc.). Em outras palavras, um
groove é o sentido de um ritmo.91 (ROHOLT, 2014, p. 1)

89
The commonly mentioned “triple-feel”, that is, the swing ratio of 2, was not favored in the measurements. Rather
the swing ratio varied linearly with the tempo.
90
It appears that each of the three performers exhibits his or her own individual “feel”, or “groove”, of the jazz
swing style.
91
In a musical groove, a musician, dancer, or an engaged listener has a similar feeling of being pulled-into a
musical “notch,” guided- onto a musical “track,” buoyed by a rhythm, being lifted up and carried along. Drummers,
other musicians, vocalists as well, go to great lengths not only to accurately perform one rhythmic pattern or
another but to perform rhythms in such a way that they acquire various qualities of groove, specific qualities of
“pushing,” “pulling,” “leaning forward,” being “laid-back,” being “in the pocket,” and so on. Musicians achieve
72

Em um outro estudo, Prögler conclui que o swing jazzístico, em sua dimensão


coletiva em uma formação musical qualquer que inclua mais de um músico tocando jazz ao
mesmo tempo, possui características intricadas de “entrar e sair” do tempo como uma espécie
de pêndulo: “assim, ao invés de tocar no tempo, alguns performers estavam tocando com o
tempo”92 (PRÖGLER, 1995, p. 48), enfatizando a importância da interação musical em tempo
real entre os músicos jazzistas, inclusive na “negociação” do tempo musical.
O interessante nestes trabalhos todos e suas indagações sobre o swing está
justamente naquilo que parece ser a questão central de todos eles: o swing consiste de fato ou
não em tocar as colcheias como quiálteras? Na busca por responder a esta questão, todos eles
recorrem a medições computadorizadas de performances jazzísticas, seja do ponto de vista do
swing como forma de execução individual das colcheias ou como o groove de uma performance
musical em conjunto. Naturalmente, os resultados todos mostram, de um modo geral, que o
swing está sujeito ao andamento, e que cada músico acaba tocando diferente de outros músicos
e diferente das quiálteras, conforme recomendadas por Niehaus (1981) e indicações de diversas
partituras. Prögler menciona em seu trabalho, por exemplo, que em um determinado
experimento a margem de “imprecisão” de um baixista numa gravação analisada ficou entre 30
e 70 ms (1995, p. 35), ou seja, uma variação de cerca de 40ms. Nessa escala de tempo será que
um pianista tocando Bach ou Mozart também não seria impreciso assim, mesmo executando
colcheias ou qualquer outra configuração rítmica sem swing?
Relatos de pesquisas mais recentes apontam que mesmo em situações nas quais o
objetivo é a execução rítmica sem qualquer alteração duracional como as praticadas no swing,
como, por exemplo, simplesmente bater as mãos em sincronia com um pulso regular, nenhum
dos participantes dos experimentos reportados conseguiu sincronizar perfeitamente suas batidas
de mão com o metrônomo. De fato, os resultados mostram que seres humanos antecipam as
batidas em cerca de 50ms, e que o menor índice de imprecisão ocorre em andamentos em torno
de 85 a 120 bpm (entre 500ms e 700ms de intervalo entre os pulsos), com a imprecisão
aumentando tanto para andamentos mais rápidos quanto para andamentos mais lentos do que
estes (LEOW e GRAHN, 2014, p. 327, 329). Num outro experimento, cujo objetivo era
justamente o de medir, entre outras coisas, a média desta imprecisão humana em sincronizar
batidas com um pulso rítmico, os valores para os andamentos de menor imprecisão encontrados

this by playing certain notes ever-so-slightly early or ever-so-slightly late (in addition to subtleties of dynamics,
timbre, etc.). Loosely speaking, a groove is the feel of a rhythm.
92
So, instead of playing with the beat, some performers were playing with the beat.
73

são muito similares com os de Leow & Grahn (2014), mas a assincronia média dos participantes
deste experimento foi ainda maior: 80ms (PATEL, IVERSEN, et al., 2005, p. 232). Se
compararmos estes resultados com as medições feitas com músicos jazzistas tocando com
swing, veremos que as imprecisões relatadas entre 30 e 70ms por Prögler (1995) é ainda menor
do que os 50ms (LEOW e GRAHN, 2014) e 80ms (PATEL, IVERSEN, et al., 2005) reportados
anteriormente. De acordo com estes resultados, um músico tocando colcheias como quiálteras
(com swing) é menos impreciso do que um outro músico tocando semínimas num compasso
quaternário simples no mesmo andamento. As pesquisas mostram que, qualquer que seja o
padrão rítmico que um músico se proponha a tocar, as imprecisões da ordem de 30 a 80ms são
partes inevitáveis da realidade humana.
Creio que a questão aqui não é invalidar ou não o aspecto sintático do swing (de
colcheias tocadas como quiálteras), mas o de fazer medições com precisão digital para outros
fins que não são os dos músicos que irão tocar jazz. No caso de Prögler (1995), ele próprio
declara logo no início de seu artigo que seu objetivo é o de “explorar o conceito de
“discrepâncias participatórias” (KEIL, 1987), com foco na seção rítmico-harmônica do jazz.”93
Este conceito de “discrepâncias participatórias”, como proposto por Keil (1987), basicamente
argumenta que são exatamente as “imprecisões” relatadas anteriormente, tanto para músicos
jazzistas, como para qualquer outro ser humano, que fazem da música uma atividade tão
atrativa, que o swing entendido como groove se dá pela negociação em tempo real entre as
imprecisões de todos os músicos envolvidos na performance. De acordo com Keil (1995, p. 9),
foram as medições apresentadas em um trabalho anterior de Prögler que ofereceram as
principais evidências comprovando a existência das discrepâncias participatórias (PRÖGLER,
1989). Keil e Prögler chegaram a publicar um artigo em conjunto justamente sobre o cenário
atual da pesquisa em discrepâncias participatórias (KEIL e PRÖGLER, 1995). Meu intuito aqui
não é o de argumentar contrariamente às teorias de Keil e os experimentos de Prögler, nem
muito menos de ignorar seus resultados, meu foco é entender o que é o swing para os músicos
jazzistas em sua prática musical cotidiana. Tendo em vista que meu objetivo é investigar os
processos de formação de sentido musical, e tendo já argumentado no capítulo 2 que o sentido
se dá na experiência musical de cada ouvinte, o importante para o presente estudo é entender
como um improvisador entende e pratica o swing, não como este é medido em um computador,
principalmente porque, como já argumentei anteriormente, as imprecisões encontradas estão

93
[…] explore the concept of “participatory discrepancies” (Keil, 1987), focusing in the jazz rhythm section, […].
74

todas fora do escopo da capacidade humana, tanto de execução quanto de percepção (se não
fosse assim não seriam necessárias medições computadorizadas). Para um músico jazzista, que
certamente não possui um cérebro com precisão rítmica digital, assim como para um pianista
especializado em música de tradição escrita europeia, essa imprecisão é de todo irrelevante.
Ninguém vai a um concerto de uma orquestra sinfônica e se frustra porque o solista “tocou
algumas semicolcheias com 47ms de atraso” em relação ao regente ou aos demais músicos. Da
mesma forma, basta ouvir qualquer gravação de uma big band profissional, por exemplo, para
ver que, em naipes, os instrumentistas tocam juntos, “sincronizados”, e o que se percebe são
colcheias tocadas como quiálteras. É claro que conforme o andamento varia para mais ou para
menos, as durações das notas e a capacidade humana de fazer diferenciação entre as durações
também varia. Do mesmo modo, em situações em que um jazzista executa uma parte solista,
sua liberdade para alterar inclusive os ritmos é gigantesca, se comparada com a realidade do
mesmo músico tocando em um naipe. Esta liberdade característica de uma situação de
performance solista acaba inevitavelmente resultando em ritmos ainda mais variados, mais
“imprecisos”. Sendo assim, para todos os efeitos práticos musicais, relacionados à performance
musical do jazz, segue-se sem problemas ou sombra de dúvidas a indicação do swing como
colcheias tocadas como quiálteras. Consequentemente, entende-se o swing, em sua dimensão
coletiva entre os músicos numa dada performance musical, como a resultante das “negociações”
temporais entre cada um destes: uma espécie de somatório do swing individual de cada
performer (colcheias tocadas como quiálteras), com suas “imprecisões” e variações estilísticas,
que compõem coletivamente o groove jazzístico. O importante aqui é entender o que é o swing,
de acordo com a comunidade jazzística, devido a importância já relatada que este recebe como
uma das principais características do gênero musical jazzístico. Como discutirei adiante, quero
compreender o que foi herdado do gênero musical jazzístico, naquilo que entendo ser uma
prática musical homônima, aplicada a diversos gêneros musicais, e é isto que justifica minha
opção pelo termo “improvisação jazzística” neste trabalho. Tendo isso em mente, sigo agora
para o segundo elemento citado pelos jazzistas como importante caracterizador do gênero
jazzístico: a improvisação.
Juntamente com o swing, a improvisação tem sido apontada como uma
característica fundamental do jazz. Para muitas pessoas, quando se fala em improvisação, a
associação desta prática musical com o jazz é instantânea (BECKSTEAD, 2013, p. 69, 71). De
fato, segundo alguns autores, “jazz” e “improvisação” podem ser tratados praticamente como
sinônimos: “o termo “jazz” pode se referir a comportamentos improvisatórios muito variados e
pode ser apropriado de diversas formas diferentes, dependendo de a que gênero se refere”
75

(ZACK, 2000, p. 228). É interessante notar, nesta citação anterior, que o autor se refere ao jazz
como uma prática musical, não como um gênero. Esta noção do jazz como transcendente ao
gênero musical não é nova e vem sendo bastante debatida. Descrever o que significa
“improvisação” no contexto do gênero musical jazzístico e entender este transbordamento do
significado da palavra “jazz” para além de um gênero musical designando uma prática são duas
empreitadas muito próximas cujos resultados são mutuamente explicativos. A seguir, discutirei
como as hibridizações do gênero musical jazzístico com diversos outros gêneros contribuiu
para o surgimento do “jazz” como um “jeito de tocar”, uma abordagem de performance, e não
necessariamente mais um gênero musical, por meio da “exportação” de algumas de suas
práticas mais características.

3.3 As influências jazzísticas em outros gêneros musicais

A ideia do jazz como um gênero musical exclusivamente norte-americano, no


discurso de vários autores, parece configurar, de fato, uma concepção passada, algo que não se
verifica mais nas práticas musicais observadas em diversas partes do mundo: “o jazz dos anos
1980 e 1990 não podia mais ser descrito restritivamente como ‘afro-americano’, [...] tinha se
tornado uma parte inextricável da cultura musical mundial 94 ” (GIOIA, 1997, p. 376). Em
diversos festivais de música realizados em vários países diferentes, todos os anos, sob a alcunha
de “festivais de jazz”, artistas das mais variadas nacionalidades se apresentam tocando
repertórios que fazem com que muitas pessoas não entendam ao certo como é que gêneros
musicais como rock, bossa nova, salsa, hip-hop, funk e samba (para citar alguns), são facilmente
reconhecidos como tais. Porém, tais práticas não causam nenhum estranhamento com sua
presença em um festival “de jazz” (The New Orleans Jazz & Heritage Festival and Foundation,
2018; The Project Music Company, 2018)95. O que haveria em comum entre os trabalhos de
todos estes artistas que justificaria sua inclusão em um mesmo festival de música intitulado
festival “de jazz”? Dada a enorme variedade de gêneros musicais envolvidos, parece não haver
dúvidas de que não se trata de uma questão de gênero musical. E se existe algo característico
na prática de todos estes artistas que vai além do gênero musical, podemos concluir também
que o “jazz” ao qual os festivais se referem não é, necessariamente, um gênero musical. O que
levaria um artista de música cubana, por exemplo, a ser visto como um jazzista? Que aspectos

94
[…] jazz in the 1980s and 1990s could no longer be restrictively described as “African-American”, […] it was
now an inextricable part of the world’s musical culture.
95
Para mais exemplos de festivais de jazz ver: https://www.smoothjazz.com/festivals?combine=&page=0.
76

do trabalho de um determinado artista estariam tão associados ao jazz, a ponto destes traços
serem identificados mesmo em outros gêneros musicais? Em meio às discussões sobre a
globalização do jazz e sua apropriação por diversas culturas musicais distintas, é possível
perceber que tais práticas musicais são associadas com o jazz mas, paradoxalmente, são
passíveis de apropriação por outros gêneros musicais a ponto de fazer com que o termo “jazz”
extrapole as classificações de gênero.
John Conyers, principal proponente da resolução nº57 do Congresso Nacional dos
EUA (que declarou o jazz—gênero musical—como “tesouro nacional”), relatou ter encontrado
o gênero em diversas regiões do mundo, dentre elas Moscou, Japão, Caribe e países da Europa,
“nos quais as pessoas pensavam que a forma de manifestação artística (o jazz) era própria
delas96” (CONYERS, 1987). Na verdade, hibridizações do jazz com outros gêneros musicais já
eram comuns muito antes da proposição da resolução nº57, mesmo nos EUA. Por volta de 1966,
diversos discos foram lançados nos quais músicos jazzistas já estavam fazendo experiências
com hibridizações entre o rock e o funk, apesar do marco histórico para o surgimento do
subgênero jazzista que ficou conhecido como fusion jazz ser o ano de 1970—lançamento do
disco Bitches Brew de Miles Davies97— (POND, 2008b, p. 4). Diversos termos foram utilizados
para se referir a estas práticas, alguns inclusive com conotações raciais como, por exemplo,
“jazz-rock” (ou “jazz-rock fusion”, dentre outros termos compostos similares) para se referir à
produção musical de grupos que continham músicos brancos em sua formação, e “jazz funk”
para se referir à música produzida por músicos afrodescendentes. No entanto, o rock e o funk
não foram os únicos gêneros musicais a permear as práticas de hibridização musical dos
jazzistas norte-americanos. Nos anos 1970 elementos da música hindu, por exemplo, também
estavam muito presentes nas gravações de artistas do jazz, mas notoriamente em grupos como
Mwandishi Band, e a Mahavishnu Orchestra. Tamanha foi a diversidade de hibridizações que
termos excludentes de outros gêneros musicais como jazz-rock ou jazz-funk e seus similares
deram lugar ao termo fusion jazz, por fazer referência ao processo mais abrangente de fusão do
jazz com diversos outros gêneros musicais (POND, 2008, p. 10-18).
Desde os primeiros anos do século XX, músicos norte-americanos, como o pianista
Jelly Roll Morton, por exemplo, já experimentavam hibridizações entre o jazz e a música latina
(GIOIA, 1997, p. 223), prática esta que culminou, no início dos anos 1940, no estabelecimento
da orquestra Machito and the Afro-Cubans, em Nova Iorque, e o sucesso da música Tanga do

96
[…] in which many people thought that the art form (jazz) was their art form.
97
Gravado em 1969 e lançado em 1970 pela Columbia Records.
77

trompetista e diretor da orquestra Mario Bauzá. Estes fatos são tidos como o surgimento oficial
do latin jazz — também chamado de afro-cuban jazz, “um estilo musical que mistura ritmos e
instrumentos de percussão de Cuba e da região do Caribe espanhol com jazz e suas fusões de
elementos musicais europeus e africanos” 98 (FERNANDEZ, 2018). As hibridizações, ou
fusões, do jazz com música brasileira recebem uma categorização a parte—brazilian jazz—
provavelmente devido às características distintas da música produzida no Brasil, em relação
aos demais países da America Latina, mas também dado ao período histórico aceito como o de
maior ocorrência dos processos de hibridização serem diferentes. Os fatores que corroboraram
para o surgimento do latin jazz provavelmente estiveram presentes desde o surgimento do jazz
como gênero musical, já as influências mútuas entre o jazz e a música brasiliera ocorreram mais
notadamente por volta dos anos 1950 e 1960 com o samba jazz e a bossa nova (MCCANN,
2007).
Em meio a todos estes processos citados de fusão do jazz com outros gêneros
musicais: jazz-rock, jazz-funk, latin jazz, samba jazz, ou, de uma forma mais generalizada,
fusion jazz, quais seriam os elementos originariamente jazzísticos e os elementos dos demais
gêneros herdados pela resultante final da fusão? O que permaneceria de cada gênero musical
que justificaria a identificação de uma música híbrida ou uma fusão de gêneros musicais com
o jazz? Para responder a estas questões e, consequentemente, elucidar também a questão
principal deste capítulo—o que é improvisação jazzística?—não é necessário nenhum requinte
teórico-analítico, a própria definição, por exemplo, do latin jazz já é indicativa de que elementos
da fusão entre um gênero musical com o jazz é originalmente jazzístico: “[...] estilo musical
que mistura ritmos e instrumentos de percussão de Cuba e da região do Caribe espanhol com
jazz” 99 (FERNANDEZ, 2018). Dada esta definição, basta ouvir algumas gravações do
repertório específico do latin jazz100 para perceber que os ritmos e instrumentos latinos, assim
como o repertório em muitos casos, são empregados juntamente com as práticas improvisatórias
do jazz resultando numa música que é notadamente latina, mas com uma abordagem jazzística.
O mesmo pode ser reconhecido também no chamado jazz brasileiro (brazilian jazz). Músicas,

98
[…] a style of music that blends rhythms and percussion instruments of Cuba and the Spanish Caribbean with
jazz and its fusion of European and African musical elements.
99
[…] a style of music that blends rhythms and percussion instruments of Cuba and the Spanish Caribbean with
jazz.
100
Entre os artistas mais representativos do gênero encontram-se o pianista dominicano Michel Camilo, os cubanos
Paquito D’rivera (saxofone), Arturo Sandoval (trompete), Horacio “El Negro” Hernández (baterista) e Gonzalo
Rubalcaba (piano), o percussionista Tito Puente, o saxofonista de Porto Rico David Sánchez, e o pianista Danilo
Perez do Panamá.
78

ritmos, instrumentos, e até mesmo gêneros musicais tradicionalmente brasileiros (como o


samba, por exemplo) são tocados com a mesma abordagem improvisatória do jazz. Em alguns
casos até mesmo com progressões harmônicas tipicamente jazzísticas. De fato, como já citado
anteriormente, a associação da improvisação musical com o jazz é tão grande que para alguns
é como se ambos os termos significassem a mesma coisa (BECKSTEAD, 2013). Esta ligação
entre o jazz e a improvisação, de acordo com Bailey, pode estar relacionada diretamente com o
fato de que, no século XX, nenhum outro gênero ou prática musical teve tanta importância na
revitalização da improvisação na música ocidental (BAILEY, 1993, p. 48). Improvisação e jazz
podem muito bem ser mais um caso de associação metonímica de termos como ocorre
frequentemente entre produtos e marcas (a marca Xerox que passou a figurar também um
sinônimo de fotocópia, ou o Durex e a fita adesiva, o Bombril e a lã de aço, o Band-aid e o
curativo adesivo, etc.).
Obviamente, o jazz não foi e não é a única prática musical a adotar procedimentos
de improvisação, mas no âmbito da música ocidental do século XX, foi sem dúvida a mais
importante. O jazz, como gênero musical norte-americano, incorporou em suas práticas
diversos procedimentos de improvisação de maneira tão bem sucedida que se espalhou pelo
mundo e transcedeu suas fronteiras como tal, sendo absorvido e incorporado às práticas
musicais de diversos países e culturas diferentes. De acordo com o professor de musicologia da
universidade do Michigan, Travis A. Jackson, o “jazz poderia ser melhor definido não com base
em suas formas características, harmonias e ritmos, mas baseado naquilo que os músicos do
jazz fazem com variados elementos da performance”101 (2008, p. 90). Não se trata mais somente
de um gênero musical, mas de como os músicos lidam com os elementos da performance em
questão, uma maneira de se tocar qualquer que seja o tipo de música. Enquanto gênero musical,
o jazz possui características bem definidas de levadas, progressões harmônicas, melodias,
estruturas formais e texturas, mesmo que com uma considerável margem de variação entre seus
sub-gêneros (dixieland, swing, bebop, cool jazz, etc.). Em alguns casos, mesmo estes elementos
relativos ao gênero musical jazzístico são também apropriados nos processos já citados de
hibridizações ou fusões com outros gêneros musicais 102 , mas o elemento jazzístico mais
apropriado de todos, que justifica o uso de termos como jazz brasileiro, ou latin jazz, dentre

101
[…] jazz might best be defined not on the basis of its characteristic forms, harmonies or rhythms, but based on
what jazz musicians do with various performative elements.
102
Um bom exemplo deste fenômeno é o uso da big band—formação instrumental típica e originária do gênero
musical jazzístico, mas que passou ser utilizada em diversos países e gêneros musicais diferentes, inclusive no
Brasil (CARVALHO, 2014).
79

outros, é a abordagem adotada pelos músicos na performance musical, por meio da qual boa
parte, se não a maior parte, da forma final de uma obra musical fica dependente de decisões
interpretativas tomadas no próprio ato da performance. Seria simplista demais chamar esta
abordagem de improvisação, já que este termo além de transcender as práticas jazzísticas
também dá a ideia de uma parte solista melódica criada no ato da performance, quando, na
verdade, o que herdou-se do jazz com essa abordagem não foi exclusivamente a abertura de
seções de uma obra musical para criação de solos improvisados, mas sim uma atitude de
permear diversos aspectos da performance de uma obra musical com procedimentos de
improvisação.
Um bom exemplo desta prática, dada a facilidade de exemplificação, é o uso da
cifragem alfanumérica para a escrita das progressões harmônicas (seja para os
acompanhamentos ou como roteiro de improvisação). Ao fazer a opção de representar as
progressões harmônicas por meio do uso da cifragem alfanumérica, a improvisação torna-se
indispensável à performance musical, visto que esta técnica de representação gráfica de acordes
deixa a critério do performer diversos aspectos da execução como: a levada, a distribuição das
notas dentro dos acordes, o uso de complementos (notas não especificadas nas cifras), etc.
Observe o exemplo a seguir (exemplo 3):

Exemplo 3: Exemplo de escrita de progressão harmônica com o uso da cifragem alfanumérica.

A partitura do exemplo 3 fornece ao performer informações sobre que acordes serão


tocados, em que parte de cada compasso (neste caso, dois acordes por compasso), e o gênero
musical em questão—samba. Como estes acordes serão montados (configurados texturalmente)
e os padrões rítmicos com que serão executados são decisões a cargo do intérprete, a partir de
seus conhecimentos de levadas típicas do seu instrumento no gênero samba, que podem ainda
variar, dependendo da formação instrumental em questão. Neste caso, devido ao uso de pauta
dupla, trata-se, provavelmente, de uma partitura para piano; mas, é claro, poderia ser lida por
qualquer outro instrumentista, inclusive solistas improvisadores, que utilizariam as cifras como
guia para improvisação. No caso do piano, a maneira como este trecho será tocado/improvisado
vai depender, inclusive, da situação de performance: o pianista estará tocando sozinho ou com
80

um baixista e/ou com outro instrumento harmônico? (como violão, guitarra, cavaquinho, banjo,
etc.). Em suma, a própria escrita de acordes empregada originalmente pelos músicos de
jazz103—a cifragem alfanumérica—já implica, obrigatoriamente, algum grau de improvisação
por parte de cada intérprete participante, não somente na criação de partes solistas
improvisadas, mas também nos acompanhamentos destas104.
De uma forma resumida, podemos dizer que a abordagem jazzista implica na
execução de obras musicais com o emprego imprescindível de práticas improvisatórias em
vários níveis diferentes. Percussionistas e bateristas têm liberdade para variação das levadas e
realização de viradas105. Ambas dificilmente aparecem escritas na forma de partituras, ficando
a cargo destes instrumentistas, mesmo dentro do universo de um único gênero musical, qual
tipo de levada será executada (estas também costumam sofrer algumas variações entre as seções
da música com o objetivo de proporcionar diferenças dinâmicas na construção da forma
musical). Os baixistas e demais instrumentistas acompanhadores também improvisam suas
partes a partir de progressões harmônicas cifradas, podendo também variar suas levadas pelo
mesmo motivo dos bateristas e percussionistas. E, por fim, em determinados momentos da
performance, são abertas seções de improvisações solistas para qualquer integrante da formação
musical em questão, nas quais os instrumentistas improvisam suas partes solistas usualmente
tendo como guia as progressões harmônicas e suas estruturas métricas—o esquema formal da
música que está sendo executada. Uma prática jazzística muito comum é tomar um item
qualquer de um repertório específico e, após uma ou duas execuções do “tema” (melodia pré-
composta original da música), dar início a improvisações solistas sobre o chorus, ou seja, a
progressão harmônica correspondente à melodia original da música. Vejamos um exemplo a
seguir (exemplo 4).

103
Para maiores informações sobre as possíveis origens e aspectos conceituais da cifragem alfanumérica ver
Merlino, 2016.
104
Para maiores informações sobre técnicas de acompanhamento jazzísticas ver McNeely, 1992.
105
Uma “virada” de bateria é uma quebra momentânea improvisada de uma levada. Usualmente executada antes
do início de uma nova seção da música tocada.
81

Exemplo 4: Partitura da música Billie’s Bounce de Charlie Parker (PARKER, 1978, p. 80) com o tema e o
chorus destacados pelas linhas pontilhadas.

No exemplo 4 temos parte da primeira página da transcrição da música Billie’s


Bounce de Charlie Parker. O trecho destacado é a parte pré-composta—o tema da música—,
que é baseado numa forma jazzística muito característica: o twelve-bar blues, ou blues de doze
compassos (ALPER, 2005, p. 3). Originalmente o blues de doze compassos consistia na
seguinte progressão harmônica (figura 5):

Figura 5: Progressão harmônica tradicional de twelve-bar blues.

Na parte superior temos a progressão harmônica representada de forma analítica,


na inferior um exemplo da progressão na tonalidade de fá maior—a mesma tonalidade da
música Billie’s Bounce para facilitar a comparação. A diferença entre o blues de doze
compassos tradicional e a música exemplificada no exemplo 4 consiste apenas em algumas
substituições harmônicas (figura 6).
82

Figura 6: Comparação entre as progressões harmônicas do blues de 12 compassos e da música Billie’s Bounce.

Como já comentado, é muito comum entre os jazzistas o uso de progressões


harmônicas de outras músicas já existentes para a criação de novos itens do repertório. No caso
do blues de doze compassos, este acabou se tornando uma das formas mais tradicionais do jazz.
O próprio Charlie Parker a utilizou algumas vezes para criação de novos “temas”. Os exemplos
mais famosos são o Billie’s Bounce, já citado anteriormente, e a música Now’s The Time. Nesta
última, exemplificada no exemplo 6, as substituições harmônicas sobre a forma tradicional são
um pouco diferentes da primeira:

Exemplo 5: “Tema” da música Now’s The Time de Charlie Parker (PARKER, 1978, p. 76) destacado pelas
linhas pontilhadas.
83

Para um grupo de jazzistas realizarem uma performance de qualquer uma das duas
músicas exemplificadas anteriormente, ou qualquer item do repertório que escolherem, só o
que precisam é do que está destacado nas partituras como mostram os exemplos 4 e 5: uma
progressão harmônica (um chorus) e um “tema” ou head 106 (a melodia pré-composta da
música). A introdução, se houver, repetições do tema, seções de improvisações solistas, as
levadas e variações na progressão harmônica, bem como o final da música podem ser todas
decididas no ato da performance, de maneira improvisada. A mesma abordagem pode ser
aplicada a qualquer item do repertório de qualquer tradição ou gênero musical, desde que seja
possível se identificar um tema e um chorus (uma progressão harmônica que acompanhe o
tema). Vejamos o exemplo 6 a seguir:

106
O termo head (cabeça) se refere ao início propriamente do tema da música. Em português faz-se diferenciação
entre “tema” e “cabeça”, o primeiro se referindo à melodia pré-composta da música, e o segundo ao início da
partitura, seja este uma introdução ou o início do tema.
84

Exemplo 6: Partitura de Arrocho na Boca de Ion Muniz.

A partitura apresentada no exemplo 6 é um samba de autoria de Ion Muniz 107 .


Mesmo tratando-se de um samba—gênero musical genuinamente brasileiro—, a música possui

107
Ion de Porto Alegre Muniz (19/06/1946 – 30/08/2009) foi saxofonista, flautista, professor e escritor de livros
didáticos de música (ALBIN, 2018).
85

um tema e um chorus bem definido e que pode e é constantemente executada de forma


jazzística: com as levadas, variações harmônicas, forma, seções de improviso e final decididos
no ato da performance por meio de improvisação, pela interação espontânea entre os músicos
participantes da performance condicionando suas decisões em tempo real que moldam e
resultam no “produto final” da performance musical. É importante, contudo, ressaltar que esse
modus operandi descrito aqui não é a única possibilidade para uma performance jazzística. É a
maneira de se tocar qualquer música que transparece o modus operandi jazzístico de forma
mais explícita, mais fácil de identificar. Se imaginarmos um contínuo jazzístico com dois polos
extremos: um “completamente” improvisado, significando dizer que não há nenhum tipo de
partitura servindo como base para a performance, não há nenhuma progressão harmônica pré-
estabelecida, nenhum tema, nenhuma levada, nenhum esquema formal, apenas o que acontecer
no momento da performance; e o outro extremo com um arranjo elaborado escrito previamente,
com forma determinada, progressões harmônicas especificadas (ou até mesmo a especificação
da ausência de uma progressão harmônica em uma seção da música ou em toda ela), levadas
detalhadamente escritas para os instrumentos acompanhadores e seções de improvisações
solistas especificadas pelo arranjo, inclusive no tocante às suas durações (quantos chorus cada
solista terá para improvisar e quantos solistas improvisarão, por exemplo); o caso exemplificado
anteriormente da partitura contendo somente um tema e seu chorus poderia ser entendido como
um meio termo entre os polos opostos (figura 7).

Figura 7: Contínuo de graus de improvisação da performance jazzística.

Quando observamos artistas cujos trabalhos se baseiam principalmente em gêneros


musicais não norte-americanos se apresentando em festivais “de jazz”, ou músicos de diversas
partes do mundo que, como citado anteriormente (CONYERS, 1987), tocam músicas
específicas de suas culturas e são vistos como jazzistas e entendem que a música que estão
tocando não é jazz no sentido do gênero musical, o que ocorre de fato é o emprego do termo
“jazz” não mais como um gênero musical, mas como o procedimento estilístico-formal de se
realizar qualquer música que acabo de descrever. Esse modus operandi pode variar em “grau
86

jazzístico” de acordo com o exemplo do contínuo de improvisação jazzística exemplificado


anteriormente (figura 6). Mesmo que o gênero musical seja outro qualquer que não o gênero
jazzístico e a performance seja realizada aos moldes do extremo direito do contínuo de
improvisação, com grande parte dos elementos musicais pré-determinados por um arranjo,
ainda poderíamos categorizar tal performance como jazzística pela eventual presença de
elementos como timbres característicos do jazz (surdinas em trompetes e trombones, por
exemplo), formações instrumentais (uma big band ou um trio: piano, baixo acústico e bateria,
dentre outras) e, acima de tudo, pela prática da improvisação solista sobre um chorus. Esta
última, provavelmente, é que é descrita como “a maior contribuição para a revitalização da
improvisação na música ocidental do século XX” 108 (BAILEY, 1993, p. 48), a ponto de
confundir os termos “jazz” e “improvisação” como uma espécie de sinônimos (BECKSTEAD,
2013, p. 69-71). Esta improvisação solista sobre um chorus (seja este com progressões
harmônicas ou qualquer outra delimitação formal, ou até mesmo “aberta”, indeterminada) é o
que entendo no presente trabalho como improvisação jazzística. Para ser jazzística, não precisa
ser realizada no contexto do gênero musical norte-americano denominado jazz, basta seguir o
modus operandi jazzístico já descrito—neste caso, a criação no ato da performance de uma
parte solista melódica sobre um acompanhamento. Sendo assim, mesmo que o improvisador
esteja realizando sua improvisação solista sobre uma levada—e esquema formal— de xaxado,
rock, funk, salsa, toada, frevo, etc., se for uma improvisação de parte solista sobre uma seção
da música aberta para isso, podemos dizer se tratar de improvisação jazzística.
Esta prática de criação de partes solistas no ato da performance, que refiro aqui
como improvisação jazzística, começou a se desenvolver gradativamente, desde os primórdios
do jazz (gênero musical) nos EUA. A princípio, consistia somente em breaks e stop-time—
“dispositivos utilizados pelas primeiras seções rítmico-harmônicas de jazz como provedores de
contrastes e emoção”109 (MONSON, 2008, p. 117-119), nos quais a seção rítmico-harmônica
parava de tocar por cerca de dois compassos para que o solista então fizesse um curto solo ao
estilo “pergunta-e-resposta” entre o solista e a base. Este era todo baseado em break patterns:
pequenos clichês melódicos utilizados especificamente nestes momentos e que mais tarde
ficaram conhecidos como riffs (MONSON, 2008, p. 117). Por volta dos anos 1940, já era uma
prática comum entre os jazzistas a abertura de uma seção específica durante uma perfomance

108
[...] the single most important contribution to the revitalization of improvisation in the Western music in the
20th century […].
109
[…] devices used by early jazz rhythm section to provide contrast and excitement.
87

musical para o desenvolvimento de improvisações solistas, nas quais eram predominantes o uso
de acordes arpejados e basicamente escalas maiores, menores, o modo mixolídio e uma escala
de blues110 (exemplo 7). Não havia ainda, de forma predominante, a concepção de improvisação
sobre acordes específicos, mas sim de uma noção tonal global da música, ou pelo menos, sobre
trechos de uma música. Com o tempo e a prática, os solistas de jazz foram ampliando seu
repertório harmônico e melódico, o qual pode-se dizer que teve sua expressão mais
amadurecida no período do bebop (a partir dos anos 1940 até meados da década subsequente).

Exemplo 7: Exemplo de uma escala de blues.

A partir do bebop estabeleceram-se as práticas de improvisação que ficaram


cristalizadas como a improvisação jazzística por excelência: a abordagem pedagógica de
improvisação com base em relações entre escalas e acordes (MONSON, 2008, p. 123). Segundo
esta abordagem, o aspirante a improvisador deve estudar exaustivamente diversas escalas em
todas as tonalidades possíveis com vistas para ser capaz usá-las como matéria prima para
criação de solos improvisados, bem como ter conhecimento de harmonia para, dentre outras
coisas, saber escolher a melhor opção escalar em qualquer situação harmônica que se apresente.
Um bom exemplo deste estudo é a aplicação das adaptações de modos gregos ao sistema
temperado (figura 8):

110
A maioria dos autores prefere escrever a escala de blues como exemplificada no exemplo 7 (LEVINE, 1995, p.
219; AEBERSOLD, 2000), no entanto, é possível encontrar exemplos de autores que optam por uma escrita
baseada na escala cromática, substituindo a terça menor (mi bemol) por uma nona aumentada (ré sustenido) na
forma ascendente, e preferindo a terça menor (mi bemol) na forma descendente (DE COSMO, 2015, p. 85). Dada
a forte ascendência africana do blues e do jazz, penso que autores com propostas menos eurocêntricas de análise
musical têm mais a contribuir sobre o entendimento desta escala (PERETTI, 2009; PORTER, 2002; RALPH,
1970).
88

Figura 8: Exemplo de uso de escalas diferentes para o acorde de ré menor com sétima de acordo com a
tonalidade.

No exemplo da figura 8 podemos observar que para um mesmo acorde—ré menor


com sétima—utilizam-se três escalas diferentes de acordo com a tonalidade em questão. Nestes
casos, o improvisador jazzista escolherá a escala de ré menor mais apropriada à situação em
que estiver improvisando, e utilizará a escala escolhida como um grupo de notas disponíveis
naquele contexto para serem utilizadas como matéria prima de sua criação melódica
espontânea. Não são raros os livros didáticos de improvisação jazzística que propõem
exercícios específicos de escalas e exemplos melódicos baseados em escalas específicas para
cada tipo de acorde. Um exemplo muito conhecido pelos saxofonistas é o livro The Technique
of The Saxophone Volume 2 — Chord Studies, de Joseph Viola (1986), do qual foi extraído o
exemplo da figura 9:
89

Figura 9: Estudo de possibilidades melódicas sobre o acorde de dó menor (VIOLA, 1986, p. 3).
90

Também é muito comum memorizar exemplos de frases melódicas em todas as


tonalidades e possibilidades específicas para cada instrumento 111 como uma forma de
apreensão de vocabulário e também como uma forma de aprendizado de possibilidades de
construções melódicas. Estes exemplos, chamados de patterns112, são também pensados, na
maioria dos casos, com base na relação entre melodia e acorde. Um dos exemplos mais famosos
desta prática é o estudo da progressão harmônica II-V-I, comumente chamada de “dois-cinco-
um”, ou simplesmente “dois-cinco” (figura 10).

Figura 10: Progressão harmônica conhecida como II-V-I.

Esta progressão é estudada exaustivamente pelos jazzistas por ser entendida como
a mais recorrente: “as progressões II-V7-I, V7-I, e o II-V7 são três das mais importantes peças
fundamentais do jazz e da música pop”113 (AEBERSOLD, 2000b, p. ii). Estas progressões,
assim como diversos exemplos de frases melódicas nelas baseadas, são praticadas em todas as
tonalidades possíveis, no intuito de se obter fluência para criação melódica improvisada nas
mais variadas situações que o improvisador jazzista possa encontrar. Os exemplos de frases
melódicas muitas vezes são transcritos de solos improvisados de outros artistas e então
incorporados ao vocabulário a ser aprendido pelos aspirantes a improvisadores jazzistas, dando
origem a uma dinâmica de retroalimentação entre os materiais pré-compostos e os
improvisados: “há um ciclo perpétuo entre os componentes improvisados e pré-compostos do
conhecimento do artista que pertence ao corpo inteiro de materiais de construção em todo e
qualquer nível de inventividade do solo”114 (BERLINER, 1994, p. 222). Tanto o II-V7 quanto

111
Como, por exemplo, estudar uma frase melódica no piano pode ser feito com as duas mãos em oitavas, ou em
algum outro intervalo, ou com acompanhamento harmônico realizado na mão esquerda. O objetivo sempre é
explorar o máximo das possibilidades do instrumento.
112
A palavra inglesa pattern, apesar de ter sua tradução correta como padrão (CAMBRIDGE DICTIONARY,
2018), quando se trata de uma frase pré-composta para o estudo de improvisação, é frequentemente traduzida
como clichê. Este último, no entanto, pode carregar uma conotação pejorativa no sentido de entender a
improvisação como uma repetição mecanizada de frases pré-compostas sem qualquer espontaneidade.
113
The II-V7-I, V7-I, and the II-V7 progressions are three of the most important building blocks of jazz and pop
music.
114
There is a perpetual cycle between improvised and precomposed components of the artist’s knowledge as it
pertains to the entire body of construction materials on any and every level of solo invention.
91

os patterns de improvisação são frequentemente utilizados como verdadeiras “peças de


encaixe”, transcendendo seus usos vinculados à teoria do tonalismo ocidental. No caso das
progressões harmônicas, observa-se em diversos itens do repertório jazzístico, por exemplo, o
uso do II-V7 sem qualquer preocupação em satisfazer quaisquer regras teóricas, mas como uma
espécie de “colagem harmônica” (exemplo 8):

Exemplo 8: Trecho inicial da música Stella by Starlight de Victor Young.

Note que nos dois primeiros compassos do exemplo do exemplo 8 a progressão


harmônica é exatamente II-V7 que, tradicionalmente, seria seguido por seu respectivo I (neste
caso um acorde de ré menor). No entanto, o que se observa é um outro II-V7 nos dois compassos
subsequentes, que por sua vez deveria ser seguido pelo acorde de si bemol maior, mas também
é sucedido por outro II-V7 (compassos 5-6 do exemplo 8) que finalmente é seguido por seu
respectivo I —mi bemol maior115 (ver exemplo 9 a seguir).

Exemplo 9: Análise harmônica dos sete primeiros compassos da música Stella by Starlight.

Desta forma, o II-V7 é frequentemente utilizado como uma espécie de unidade


harmônica básica, uma peça que pode ser encaixada em outras sem necessariamente estar
restrita às relações tonais de encadeamentos harmônicos tradicionais. De maneira semelhante,
os patterns, ou exemplos de frases melódicas, também podem estar relacionados à alguma
progressão harmônica, como o próprio II-V7, por exemplo, mas também podem ser encadeados
uns nos outros gerando linhas melódicas mais extensas. Para exemplificar esta prática, cito aqui
o livro Mastering the Dominant Bebop Scale de Steve Neff (2007). Neste trabalho o autor se
foca numa escala conhecida como escala bebop:

115
Esta prática de encadeamentos harmônicos deceptivos, apesar de exemplificar muito bem a questão aqui
proposta do uso do II-V7 pelos jazzistas, não é um pioneirismo destes artistas norte-americanos, mas uma prática
muito comum de estilos românticos, muito frequente em Wagner, por exemplo.
92

A escala dominante bebop é uma escala que pode ser usada sobre um acorde de
dominante. Ela tem tanto a sétima maior quanto a menor. A razão pela qual esta escala
soa tão bem é que quando iniciada em qualquer uma das notas do acorde de dominante
[...] os tempos fortes serão todos notas do acorde. [...]. Não importa em que direção
você percorra a escala, desde que você não pule nenhuma nota os tempos fortes
sempre serão notas do acorde e soarão bem.116 (NEFF, 2007, p. 4)

Nota-se que a escala bebop tem uma forte orientação pedagógica. Pode ser
entendida como uma escala maior começando no quinto grau da escala (modo mixolídio) com
uma nota cromática entre o sétimo e o primeiro grau da escala (exemplo 10) para assim resultar
numa configuração que dispense os iniciantes da preocupação de em qual nota a frase musical
deverá ser terminada para que o evento não soe como erro117.

Exemplo 10: Escala bebop sobre o acorde de sol com sétima (NEFF, 2007, p. 4).

Após propor uma série de exercícios sobre esta escala, Neff segue com pequenos
exemplos de frases melódicas construídas sobre a escala bebop, chamados de links (NEFF,
2007, p. 10), para que sejam memorizadas e incorporadas ao vocabulário do improvisador.
Após alguns exemplos, o autor propõe uma forma de juntar todos os links melódicos
encaixando-os uns nos outros para formar um trecho mais extenso (figura 11):

116
The Dominant bebop Scale is a scale that can be used over a dominant chord. It has both the major 7th and the
flat 7th in the scale. The reason that this scale sounds so great is that when it is started on any of the dominant
chord tones […] the downbeats are all chord tones. […]. No matter which direction you go with the scale, as long
as you don't skip notes the downbeats will always be chord tones and will sound good.
117
Num contexto jazzístico, as notas “corretas” para término de frases são sempre as notas pertencentes ao acorde
em questão. No caso de um acorde da dominante, estas seriam a fundamental, a terça, a quinta e a sétima. No
entanto, é comum também utilizar como notas de “apoio” em acordes da dominante (notas “corretas”) a nona e a
décima terceira, sendo a décima primeira aumentada considerada uma nota de relativa tensão, e a décima primeira
justa uma nota de muita tensão, até “incorreta” em alguns contextos harmônicos mais tradicionais.
93

Figura 11: Exemplo de links encadeados com trechos de escala bebop (NEFF, 2007, p. 10).

Em todo caso, o uso dos patterns não fica restrito exclusivamente às progressões
harmônicas para as quais foram idealizados inicialmente. Na prática, os improvisadores
jazzistas acabam utilizando as mesmas frases melódicas em diversas situações harmônicas
diferentes, inclusive “transgredindo” relações harmônicas tonais tradicionais em alguns casos.
Observe o exemplo a seguir extraído de uma transcrição de um solo improvisado de Charlie
Parker (figura 12):

Figura 12: Trecho com destaque da transcrição do solo de Charlie Parker na música Scrapple from the Apple
(PARKER, 1978, p. 17).

No trecho destacado do exemplo acima (figura 12) verifica-se que as notas tocadas
por Parker sobre o acorde de sol menor com sétima dificilmente se enquadram numa relação
tonal tradicional com o acorde em questão e, no compasso seguinte, nos dois primeiros tempos
do compasso, algo semelhante também ocorre. Isto pode ser observado no trecho em questão,
reescrito com o uso de enarmonia para facilitação da compreensão (exemplo 11):

Exemplo 11: Trecho reescrito do solo de C. Parker na música Scrapple from the Apple.
94

Falando inicialmente dos primeiros dois tempos do segundo compasso do exemplo


acima, podemos interpretar o uso das notas “estranhas” à harmonia pelo uso da escala alterada,
como mostra a análise proposta a seguir na figura 13 (LEVINE, 2011):

Figura 13: Análise da escala alterada.

Esta escala é tradicionalmente utilizada sobre os acordes chamados pelo mesmo


nome—“acordes alterados”—, que são acordes dominantes com alteração nas nonas e/ou
quintas (que passam a ser alteradas para aumentadas ou diminutas). A escala alterada conserva
a fundamental, a terça e a sétima do acorde por serem consideradas as notas estruturais que
definem o efeito do acorde, que então são intercaladas pela nona menor, nona aumentada, quinta
diminuta e quinta aumentada. Esta escala também pode ser entendida como uma escala menor
melódica118 soando meio tom acima, começando pelo sétimo grau: escala menor melódica de
ré bemol ou dó sustenido, começando pela nota dó ou si sustenido. Se tomarmos como base o
conjunto de notas da chamada escala alterada veremos que as notas estranhas à harmonia nos
dois primeiros tempos do segundo compasso do exemplo 11 podem ser entendidas como
pertencentes à escala alterada, como analisado a seguir na figura 14:

Figura 14: Possível uso da escala alterada por C. Parker na transcrição do solo em Scrapple from the Apple.

No entanto, se observarmos o compasso anterior deste mesmo trecho, veremos que


estas notas podem ser entendidas ainda de uma outra forma (figura 15):

118
No contexto jazzístico entende-se como escala menor melódica a escala conhecida como bachiana.
95

Figura 15: Transposição da frase original de C. Parker em Scrapple from the Apple.

Ao transpor a frase de C. Parker meio tom abaixo, todas as notas que pareciam
estranhas à harmonia em questão passam a ter uma relação óbvia com a progressão harmônica,
inclusive as notas dos primeiros dois tempos do segundo compasso. O que se observa então é
uma espécie de substituição harmônica por parte exclusiva do solista improvisador. No lugar
de tocar uma frase sobre a progressão harmônica em questão Parker opta por improvisar
momentaneamente meio tom acima—prática conhecida como outside ou literalmente “tocar
fora da harmonia” (BERLINER, 1994, p. 225-226).
Outros estilos de improvisação jazzística foram sendo desenvolvidos a partir dos
anos 1960, principalmente em correntes alternativas como o “free jazz”, por exemplo. No
entanto, mesmo no free jazz, um dos principais elementos inovadores da improvisação
jazzística consistia justamente numa negação da abordagem mais característica, a da “escala-
acorde” presente no bebop, evidenciando ainda mais o grau de importância desta abordagem
na improvisação jazzística.
Dentro do amplo universo de práticas improvisatórias, a prática que denomino no
presente trabalho como improvisação jazzística é facilmente entendida como uma prática
estritamente musical, no sentido de não ser uma prática de improvisação em outros âmbitos
fora da música. Argumentei aqui que tanto na visão de Nettl (1974) quanto na visão de Benson
(2003), a improvisação musical assume desdobramentos amplos a ponto de caracterizar
processos criativos que põem em xeque a recorrente polarização discutida no capítulo 2 entre
composição e improvisação como uma questão meramente processual, mas expande o conceito
de improvisação, entendendo-o como o grau de liberdade de escolhas que se tem em qualquer
que seja o processo criativo musical. Seguindo para a classificação proposta por Bailey (1993),
dada a forte conexão original desta prática a um gênero musical: o jazz, e, posteriormente, a
diversos gêneros musicais distintos, considero útil o entendimento daquilo que denomino de
improvisação jazzística, para os propósitos da presente pesquisa, como uma prática de
96

improvisação idiomática, deixando de lado quaisquer confusões com as práticas conhecidas


como improvisação livre, por exemplo. A partir do entendimento do jazz como um gênero
musical e suas particularidades, foi possível visualizar quais as contribuições deste gênero que
transcenderam as barreiras nacionais e genéricas para configurar a consolidação de um modus
operandi de performance musical, abrindo caminho para o uso do termo jazz além das fronteiras
do gênero musical norte-americano. Em meio a estas contribuições, destaquei aqui a prática da
abertura de uma seção da performance musical para a construção de partes solistas melódicas
improvisadas, que atingiram seu ápice de cristalização nas práticas do gênero musical jazzístico
concomitantemente ao surgimento de um de seus subgêneros, conhecido como bebop. Este tipo
de improvisação acabou por caracterizar a principal corrente pedagógica da improvisação
jazzística baseada na relação melodia-acorde, que perdura até os dias de hoje como a
improvisação jazzística por excelência, independente de gêneros musicais, justificando assim,
o emprego deste termo adotado no presente trabalho. O termo “jazz”, para todos os efeitos da
presente pesquisa, passa a ser entendido como uma abordagem específica com base na
improvisação (exceto quando for feita referência específica ao gênero jazzístico) como descrito
neste capítulo, aplicável a qualquer gênero musical que se queira, e a improvisação jazzística
fica definida como a criação de partes solistas melódicas improvisadas no ato da performance,
em qualquer gênero musical.
Como discutido no capítulo 2, dada a distinção da improvisação jazzística com o
paradigma tradicional de composição musical, juntamente com a expansão do conceito de
improvisação proposto neste capítulo, busquei justificar a improcedência do emprego das
teorias tradicionais na abordagem dos processos de formação de sentido musical na
improvisação jazzística com base nas propostas teóricas da corrente enacionista das ciências
cognitivas. No próximo capítulo, proporei um método observação que possibilite a coleta de
dados para uma fundamentação da hipótese da busca de coerência no ato da improvisação
jazzística, conforme definida neste capítulo, como a criação de partes solistas melódicas no ato
da performance musical. Este método será aplicado num estudo de caso descrito no capítulo 4
cujos dados serão analisados e discutidos posteriormente (capítulo 5).
4 MODELO COGNITIVAMENTE INFORMADO DE ABORDAGEM DA
IMPROVISAÇÃO JAZZÍSTICA

Apresentei e debati no capítulo 2 as questões tradicionais relativas ao sentido


musical e sua aplicabilidade a solos jazzísticos improvisados, bem como o modelo de escritura
adotado na presente pesquisa e o conceito de sentido musical como advindo de uma experiência,
de acordo com a corrente enacionista das ciências cognitivas. Em seguida, no capítulo 3,
busquei apresentar um pouco do que vem sendo discutido acerca do que é improvisação em
música e explicitar o que são práticas que entendo como jazzísticas, com o objetivo de justificar
o meu uso do termo “improvisação jazzística”, deixando claras as diferenças entre o jazz como
um gênero musical norte-americano e o jazz como um estilo de tocar qualquer que seja a
música. Desta forma acredito ter esclarecido de forma suficiente minhas hipóteses teóricas
quanto ao conceito de sentido musical e coerência na improvisação jazzística. No presente
capítulo discutirei e descreverei quatro etapas de um experimento que busquei realizar com o
objetivo de enriquecer a presente discussão e elucidar as questões relativas ao sentido musical
na improvisação jazzística.
A primeira etapa consistiu na transcrição de todos os solos improvisados de I.
Boudrioua em sua discografia solo com o objetivo de coletar dados analisáveis que possibilitem
identificar na prática de um músico jazzista consagrado possíveis elementos ou ferramentas
geradoras de sentido. Na segunda etapa realizei uma entrevista com Boudrioua com o objetivo
de colher relatos de sua própria experiência com a coerência musical, a escritura da música e o
papel da memória na improvisação jazzística. Em seguida gravei e transcrevi uma performance
ao vivo de Boudrioua realizada exclusivamente para este trabalho com o objetivo de obter um
solo gravado mais recente para entrevistá-lo, em seguida, sobre os mesmos aspectos da primeira
entrevista, só que agora focados em um solo que ele tenha acabado de improvisar, com o fim
de obter de Boudrioua a revelação de novas informações ou de informações mais objetivas, por
se tratar de uma experiência de criação e performance que esteja ainda recente em sua memória.
Ao final do capítulo avalio brevemente o que os dados coletados pareceram, de
início, apontar, para, posteriormente, no capítulo 5, prosseguir com a análise e a discussão mais
aprofundadas dos resultados.

4.1 Transcrições

O que é transcrição? O que significa transcrever um solo jazzístico improvisado?


Que tipo de dados se espera obter por meio de uma transcrição? Para as finalidades do presente
98

estudo, entendo a transcrição de um solo jazzístico improvisado como uma representação


notacional para análise, principalmente, de informações tonais (considerando todos os aspectos
do emprego de sons “tonais”, ou seja, com altura determinada) e rítmicas. Com respeito aos
dados de ordem rítmica, devo considerar (1) as durações e (2) os pontos de ataque dos eventos
tonais simples (notas), (3) a variação dos modos de articulação sonora (legato, staccato,
acentuações), e (4) as relações de funcionalidade dos movimentos melódicos com a construção
de coerência formal. O exemplo 12 mostra a representação notacional de um trecho melódico
e sua execução instrumental, envolvendo alguns desses elementos, como padrão rítmico de
subdivisão de tempo (em quiálteras), acentuação rítmica da última nota de cada tempo, e
articulação em legato desta nota com a nota de ataque do tempo seguinte, conforme a prática
predominantemente encontrada nas transcrições dos solos de Boudrioua:

Exemplo 12: Escrita e execução de trecho melódico com swing.

A transcrição, no entanto, está longe de ser uma prática unânime academicamente


falando, apesar de ser ainda considerada como uma das principais, senão a principal ferramenta
em pesquisas etomusicológicas e musicológicas (MARIAN-BALASA, 2005, p. 5, 23). Não são
poucos os argumentos encontrados em trabalhos de diversos autores contra o uso de
transcrições em pesquisas acadêmicas. Dentre eles destaca-se, por exemplo, a ideia de que, com
o advento das mídias digitais de gravação, as transcrições teriam se tornado obsoletas, já que o
áudio gravado de uma performance musical seria muito mais informativo do que uma
transcrição, o que teria levado a uma considerável diminuição do uso desta ferramenta em
pesquisas acadêmicas (NETTL, 2005, p. 85). Em todo caso, estudos mais recentes parecem
apontar para uma realidade um tanto diferente:

É bastante aparente, por exemplo, que, ao longo de um período de cinquenta anos na


Ethnomusicology e num período de trinta e dois anos na Popular Music, o
compromisso de cada revista em publicar textos contendo transcrições parece ter
permanecido intacto.119 (STANYEK, 2014, p. 105-108)

119
It's fairly apparent, for instance, that, over a fifty-year period in Ethnomusicology and in a thirty-two-years
99

Um dos motivos pelos quais a transcrição não desapareceu das pesquisas pode ter
sido justamente mais um ponto duramente criticado: o uso das transcrições, que a princípio
deveria funcionar como uma espécie de registro preservador, teria passado a configurar um
exercício de poder e de propriedade, com o objetivo de aumento de status do pesquisador que
as realiza:

Portanto, a transcrição não é apenas feita com o objetivo de garantir o processo de


preservação por meio do provimento de uma mídia adicional (notação em papel), mas
também para comunicar os pertences de um arquivo, tornando conhecidos os
materiais neste mantidos. [...] a transcrição trouxe a ilusão de que uma canção, uma
vez posta no papel, é conquistada, possuída, domada, domesticada, sujeita e
dominada.120 (MARIAN-BALASA, 2005, p. 17)

É possível que, no âmbito da etnomusicologia, tanto a questão da ineficiência mais


acentuada de uma partitura para representar uma performance musical, quanto o uso desta como
uma espécie de troféu a ser colecionado pelos pesquisadores, esteja diretamente relacionado
com a modalidade musical mais recorrente como objeto de pesquisa nesta área: a “música de
tradição popular”. Esse tipo de música não se baseia, em geral, nas práticas da tradição musical
europeia (escala temperada, notação musical, padrões rítmicos metrificados, etc.), tornando a
tarefa da transcrição ainda mais difícil do que seria em um contexto eurocêntrico ou com
influências eurocêntricas mais decisivas. E tanto gravar este tipo de repertório quanto
memorizá-lo para uma transcrição futura requer que o pesquisador vá a campo para realização
do trabalho. Estes fatores, provavelmente, acabam conferindo ao transcritor algum prestígio
acadêmico independente de quaisquer objetivos que este venha a ter além da realização da
transcrição. Não obstante, mesmo entre os etnomusicólogos, há aqueles que optam por
transcrever somente características de maior interesse para cada pesquisa, tornando o processo
muito menos penoso e mais viável. Desta forma, acaba-se criando uma polarização entre (1)
puristas que acreditam que as transcrições devam ser realizadas como uma espécie de
representação fiel da obra transcrita, (2) aqueles que realizam transcrições simplificadas ou
aproximações notacionais, e (3) pesquisadores que optam pela realização de transcrições
focadas nos objetivos de seus trabalhos (MARIAN-BALASA, 2005, p. 14). De qualquer forma,
muitos ainda concordam que a transcrição pode ser uma ferramenta muito útil às pesquisas. De

period in Popular Music, each journal's commitment to publishing texts containing transcriptions seems to have
remained intact.
120
Thus, transcription is not only meant to secure the preservation process by providing an additional medium
(notation on paper), but also to communicate the belongings of an archive, making known the materials held. […]
transcription brought in the illusion that a song, once put down on paper, is conquered, possessed, tamed,
domesticated, subjected, and mastered.
100

acordo com Solis, a “transcrição foi, e é, um passo comum para a obtenção de um texto fixo
para análise” 121 (2012, p. 543), possibilitando a observação de elementos que podem ser
extremamente elusivos à escuta, mas que são facilmente observados quando transcritos em uma
partitura (RUSCH, SALLEY e STOVER, 2016, p. 4). Isso sem mencionar a imersão na escuta
que a realização de uma transcrição demanda do transcritor, proporcionando a este um grau de
intimidade diferenciado com o conteúdo musical em questão (WRINKLER, 1997, p. 188).
Concordo com Rusch, Salley e Stover (2016) que este processo deve ser entendido
como uma interpretação da obra em si mesmo, como uma releitura do objeto sonoro que passa
pela escritura do próprio transcritor. Não há como existir, como alguns argumentam, algo como
uma transcrição “fiel”: “transcrição é um processo fenomenológico que envolve uma relação
em processo, em desenvolvimento entre aquele que a experiencia (o transcritor) e aquilo que é
experienciado [...]” 122 (RUSCH, SALLEY e STOVER, 2016, p. 2). Quanto a isto também
pergunto se poderíamos de fato considerar a existência de uma ideia musical “original” à qual
uma transcrição deveria manter fidelidade, considerando a discussão acerca da origem do
sentido, que propus no capítulo 2 do presente trabalho. Porém alguém ainda poderia questionar
que não se trata de visarmos a um sentido musical que haveria por trás do efeito sonoro da
música—este proporcionado pela performance de um intérprete ou de um improvisador—, mas
de visarmos ao próprio efeito da performance, que não poderia ser apreendido pelas técnicas
notacionais. Contudo, devo advertir que as transcrições empregadas na presente pesquisa não
visam substituir a performance, não visam representá-las, assim como o texto escrito da música
de tradição europeia não visa proporcionar uma única “reprodução” em performance da obra
idealizada por seu compositor—como alguns teóricos quiseram (ADORNO, 2002, 1970, p.
100). Como já adverti, o transcritor realiza seu trabalho regulado por sua escritura e visando a
uma finalidade. Pretendo aqui fazer uso de transcrições de solos improvisados para discutir
relações de funcionalidade formal, de coerência dos recursos rítmicos e tonais empregados pelo
improvisador na construção de sua expressão musical. Esta ferramenta de coleta e observação
da prática da improvisação jazzística será sempre situada e especializada, colocando em cena,
tanto padrões de ação do improvisador analisado quanto os meus padrões de percepção e focos
de interesse metodológico.

121
[…] transcription was, and is, a common step in coming to a fixed text for analysis.
122
[...] transcription is a phenomenological process that involves an ongoing, developing relation between the
experiencer (the transcriber) and that which is experienced […].
101

Seja como for, para os jazzistas as transcrições sempre constituíram uma poderosa
ferramenta no aprendizado da improvisação—assim como também fora para os músicos
europeus dos séculos XVII e XVIII, com respeito ao aprendizado da composição. Transcrever
solos improvisados de outros músicos e memorizá-los, imitando o máximo o artista cujo solo
foi transcrito, representa até os dias de hoje uma prática padrão entre os estudantes de
improvisação jazzística, por meio da qual o transcritor se familiariza com o estilo de outros
artistas mais experientes, e também serve como um suporte gráfico para a realização de análises
(RUSCH, SALLEY e STOVER, 2016, p. 2). No que diz respeito à análise de transcrições de
solos jazzísticos improvisados, desde que começaram a ser publicadas as primeiras
transcrições, por volta dos anos 1920 (BERLINER, 1994, p. 97), o foco das transcrições parece
ter sido sempre as relações nota-acorde, com o objetivo de entender as escolhas feitas pelos
improvisadores em seus solos (AKE, 2008, p. 261). Esta importância dada a relação escala-
acorde apenas confirma a orientação pedagógica jazzística (discutida no capítulo 3) que se
cristalizou como prática por volta do início dos anos 1960 e que perdura até os dias de hoje
(MONSON, 2008, p. 123).
Minha proposta aqui é investigar a coerência formal, os processos de formação de
sentido musical na improvisação jazzística. Ou seja, realizar um estudo destes processos numa
prática improvisatória que, como discutido no capítulo 3 e aqui retomado, consolidou-se como
prática de criação de partes melódicas solistas sobre progressões harmônicas—com o advento
do bebop, por volta dos anos 1950. Isto acabou configurando a prática pedagógica mais
estabelecida, a partir da década seguinte, entre os improvisadores jazzistas. Assim sendo e dada
a ênfase que os próprios jazzistas sempre deram a esta forma de criação de melodias
improvisadas, estou convencido de que realizar transcrições de solos jazzísticos improvisados
focadas em recursos expressivos tais como aspectos texturais ou variações timbrísticas, por
exemplo, além de demandar um esforço notacional muito complexo—dada a dificuldade de
representação destes aspectos com os padrões notacionais tradicionais—, não forneceria dados
condizentes com o objetivo deste trabalho. Uma vez que a pedagogia básica da improvisação
no jazz sempre esteve comprometida, primordialmente, com as relações escala-acorde, é
plausível assumir que o foco de investigação da produção de sentido musical neste contexto se
baseie nestes recursos como principais meios expressivos de construção de coerência.
Fiz a opção por transcrever os solos improvisados gravados de Idriss Boudrioua
como uma forma de produção de um material passível de análise dos aspectos já mencionados
anteriormente: das durações e das notas, da variação dos modos de articulação sonora (legato,
staccato, acentuações), nos casos em que esta apresente uma divergência relevante do swing
102

como praticado tradicionalmente, e das relações de funcionalidade dos movimentos melódicos


com a construção de coerência formal. Pretendi com isso, observar possíveis indícios de
recursos recorrentes de construção de coerência que corroborem minhas hipóteses iniciais de
que o sentido musical se dá na experiência da escuta individualmente, mesmo para o
improvisador que está criando parte da obra musical no ato da performance, congregando os
papéis de compositor, intérprete e ouvinte—que recursos I. Boudrioua emprega em suas
improvisações com o intuito de produzir um discurso musical coerente. As transcrições foram
realizadas por meio de notação tradicional. Dada a ênfase já discutida da pedagogia
predominante na improvisação jazzística da relação escala-acorde, meu foco metodológico foi
justamente de registrar construções melódicas que têm por base este tipo de pensamento
criativo. Do mesmo modo, de acordo com o que Järvinen chamou de hierarquias do nível dos
acordes 123 (JÄRVINEN, 1995, p. 428), improvisadores jazzistas muitas vezes preterem a
tonalidade global de uma música em função de relações tonais locais. Observe na figura 16 que,
apesar da tonalidade do trecho musical em questão ser a de Si bemol Maior, em alguns
momentos a progressão harmônica possibilita relações tonais locais, diferentes das relações
tonais globais da música, como, por exemplo, no terceiro compasso da figura 16, com a
possibilidade da nota fá sustenido (que não pertence à tonalidade de Si bemol Maior)—terça
maior do acorde de ré com sétima e nona menor, dominante do sexto grau de Si bemol Maior—
, também no quinto compasso com a nota mi bequadro—terça maior do acorde de dó com
sétima e nona—, dominante do quinto grau de Si bemol Maior, e no dois últimos compassos
cujas relações tonais locais permitem outra nota que não pertence à tonalidade global do
trecho—a nota lá bemol: terça menor do acorde de fá menor com sétima, e sétima menor do
acorde de si bemol com sétima, acordes que configuram o II-V7 para o IV de Si bemol Maior:

123
Chord-level hierarchies.
103

Figura 16: Exemplo de relações tonais locais divergentes das relações tonais globais de um determinado trecho
musical.

Dada a grande ocorrência deste tipo de relações tonais locais no contexto do


repertório transcrito, optei por não utilizar armaduras de clave, mas anotei as alterações no
decorrer das transcrições conforme estas foram surgindo no intuito de minimizar confusões na
leitura. Mesmo em contextos nos quais as relações tonais foram as mais tradicionais, é
totalmente esperado, e de fato ocorrem relações tonais locais e também substituições
harmônicas por parte do solista (como exemplificado no capítulo 3, nas figura 14 e 15), o que
pode ficar confuso com o uso de uma armadura de clave e diversas alterações no decorrer da
transcrição, ou diversas mudanças de armaduras. Em quase todas as gravações de Boudrioua
em sua discigrafia solo, o instrumento utilizado pelo artista é o saxofone alto, exceto pela
música Blues, do disco Esperança (1986), no qual Boudrioua utilizou o saxofone soprano, e as
músicas Gula Blues e Lazy Bird, do disco Central Park West (1996), no qual o instrumento
utilizado foi o saxofone tenor. Em todos os casos optei por transcrever os solos na tonalidade
em que Boudrioua executou as músicas em seus instrumentos, sem transpor para as tonalidades
de efeito. Desta forma esperava me aproximar o máximo possível da experiência real de
Boudrioua durante as performances de seus solos improvisados, analisando as transcrições com
base nas mesmas tonalidades e alturas experimentadas pelo artista durante suas improvisações.
O uso da notação tradicional para transcrição de solos jazzísticos improvisados,
apesar de parecer uma tarefa impraticável dada a complexidade de uma performance musical
comparada ao cartesianismo de uma partitura, é muito menos problemática do que possa
parecer. O gênero musical jazzístico teve muita influência da música europeia ocidental e
muitos de seus precursores eram versados em suas técnicas de notação musical, o que torna
muito plausível assumir que a improvisação jazzística, em suas origens no gênero jazzístico,
tenha sido muito influenciada por estas práticas (RUSCH, SALLEY e STOVER, 2016, p. 2).
104

Sendo assim, transcrever solos jazzísticos improvisados, além de todos os propósitos já


mencionados, pode servir ainda como um bom exame do grau de influência da notação musical
tradicional na prática de cada solista. No entanto, deve-se levar em consideração que uma
performance musical, em qualquer que seja a tradição, envolve aspectos que põe à prova a
humanidade de seus agentes como: alterações de estado psicológico e afetivo oriundas de uma
apresentação em público, a impossibilidade de uma execução digitalmente perfeita inerente a
qualquer ser humano, etc. Num contexto de uma performance improvisada, acrescenta-se ainda
o fator da criação em tempo real que acarreta em uma demanda ainda maior do aparato
cognitivo do artista, logo, é de se esperar que ocorram diversas “imprecisões” que representam
desafios às ferramentas notacionais tradicionais requerendo do transcritor diversas tomadas de
decisões de como melhor representar o que foi executado. Transcrever um solo improvisado é
uma atividade interpretativa e analítica em si mesma (BERLINER, 1994, p. 507-511), em
muitas ocasiões, devido à imprecisões ou liberdades interpretativas do solista improvisador,
transcrever um trecho de um solo implicará em interpretar o que se ouve e optar por uma dentre
várias formas possíveis de notação. No caso do presente estudo, segundo os aspectos que acabo
de discutir da influência da notação tradicional no gênero jazzístico, bem como a concepção
predominante das relações tonais entre escalas e acordes, optei sempre pela representação
notacional que melhor explicite as decisões do improvisador no tocante a estes fatores. Nos
casos em que ocorreram divisões rítmicas demasiadamente complexas, por exemplo, que
extrapolem a capacidade de representação da notação musical tradicional, entendi sempre como
uma liberdade expressiva baseada em alguma figura rítmica comum, ou alguma imprecisão
mecânica. Desta forma, escolhi alguma aproximação que, mesmo não sendo exatamente o que
foi tocado, registra um gesto melódico passível de análise dos aspectos de interesse desta
pesquisa.
Por fim, com as transcrições pretendi observar práticas recorrentes de escolhas
melódicas e rítmicas por parte do I. Boudrioua que configurem possíveis recursos de construção
de coerência em seus solos improvisados.

4.2 Entrevista I

Argumentei no capítulo 2 que o sentido musical é uma experiência vivida por cada
ouvinte individualmente, algo que se dá pela interação entre ouvinte e obra musical, segundo o
conceito de experiência adotado no âmbito das ciências cognitivas incorporadas. Sendo assim,
entendo como fundamental para a presente investigação elaborar um instrumento de coleta de
dados que permita explorar a experiência do improvisador no ato da performance. Como obter
105

dados sobre a experiência de um improvisador jazzista, sobre os processos cognitivos deste


artista envolvidos no ato da performance musical jazzística improvisada? De acordo com
Seidman (2006, p. 10), a entrevista funciona justamente como um acesso ao sentido que o
entrevistado dá à sua experiência por meio de dada contextualização desta experiência. Esta
contextualização, por sua vez, ocorre quando, no curso de uma entrevista, o entrevistado tem a
liberdade de relatar sua experiência em uma determinada atividade e o entrevistador pode
averiguar seu entendimento deste relato por meio de perguntas subsequentes, confirmando com
o entrevistado se o que está sendo entendido pelo entrevistador está de acordo com aquilo que
o entrevistado de fato acredita ser a sua experiência (FRASER e GONDIM, 2004, p. 140). Esta
dinâmica entre pesquisador e entrevistado requer um tipo de interação entre ambos que,
obviamente, não é possível pelo uso de questionários rígidos, mas demanda um tipo de
entrevista mais flexível, por meio da qual o entrevistado tenha liberdade para relatar suas
experiências e o entrevistador possa interagir com ele, sem se prender a uma lista de perguntas
pré-estabelecidas. Por estes motivos, optei pela realização de entrevistas semiestruturadas, ou
qualitativas (SEIDMAN, 2006): defini alguns tópicos como um roteiro das ideias centrais de
acordo com que tipo de dados o presente trabalho demanda que sejam colhidos, para serem
utilizados como norteadores da entrevista—mas não como um questionário rígido. Isto deve
permitir inclusive que a entrevista siga outros rumos de acordo com aquilo que venha a surgir
na fala do entrevistado, proporcionando autonomia ao pesquisador para formular suas perguntas
em interação com o entrevistado.

Escolhi a entrevista semiestruturada porque consegui refinar alguns tópicos que eu


gostaria de perguntar [...]. Uma entrevista completamente não estruturada corre o
risco de não suscitar [...] os tópicos ou temas mais estreitamente relacionados às
questões da pesquisa em consideração. Existem alguns tópicos específicos que eu
gostaria de abordar, mas ao mesmo tampo quero ouvir suas histórias.
Consequentemente, utilizarei o formato de uma declaração inicial e algumas questões
gerais para iniciar a conversa. Terei algumas perguntas adicionais para investigar
informações que não surgirem na conversa.124 (RABIONET, 2011, p. 564)

Este tipo de entrevista permite um bom equilíbrio entre não tolher o entrevistado
com um questionário objetivo, permitindo que este relate suas experiências com suas palavras,
e manter o foco nas informações mais importantes para a pesquisa. Ainda segundo Rabionet,

124
I selected semi-structured interview because I was able to narrow down some areas or topics that I want to ask
[…]. A completely un-structured interview has the risk of not eliciting […] the topics or themes more closely
related to the research questions under consideration. There are some specific topics I would like to cover, but at
the same time I want to hear their stories. Consequently, I will use the format of an opening statement and a few
general questions to elicit conversation. I will have some additional questions to probe for information if it does
not come up.
106

“não há dúvidas de que a entrevista qualitativa é uma ferramenta poderosa para capturar as
vozes e as formas como as pessoas constroem sentidos a partir de suas experiências”125 (2011,
p. 563).
Em pesquisas com um viés mais quantitativo o grupo de entrevistados tem um papel
fundamental: quanto maior o grupo, de um modo geral, do ponto de vista da estatística, melhor.
No caso deste trabalho, no entanto, além do caráter notadamente qualitativo, me baseio em dois
pontos principais para justificar minha opção por entrevistar um único participante. Em
primeiro lugar, meu objetivo é tentar compreender um processo específico—o da formação de
sentido musical—, que, como discutido anteriormente, se dá no próprio cerne da experiência
individual da escuta musical, na interação entre o estímulo (neste caso a escuta musical) e a
mente de um indivíduo. Não é possível “localizar”, de acordo com o referencial teórico adotado
neste trabalho, o sentido musical, nem na obra musical em si, nem na mente do ouvinte, mas
este ocorre intrinsecamente à própria experiência musical da escuta. Sendo assim, acredito que
entrevistar um artista somente, num primeiro momento, dado o tempo e os recursos disponíveis
para a presente pesquisa, já tem potencial de revelação de dados cruciais para verificação, ou
não, das hipóteses propostas no capítulo 2, tendo em vista que, em se tratando o sentido musical
de uma experiência entre ouvinte e obra, cada indivíduo já pode ser considerado como o mais
representativo possível do grupo a ser estudado.
Em segundo lugar, podemos entender os experts como “‘pontos de cristalização’
do conhecimento prático interno e são entrevistados como substitutos de um círculo mais amplo
de representantes”126 (BOGNER, LITTIG e MENZ, 2009, p. 2). De acordo com Goldman
(2018), definir o que é ou quem é um expert são duas tarefas igualmente difíceis, no entanto,
de um modo geral, entende-se um expert como aquele que “adquiriu habilidades ou
conhecimentos especiais que representam proficiência em uma determinada área por meio de
experiência e instrução”127 (ERICSSON, 2014, p. R508). Isto posto, acredito que um artista
como I. Boudrioua pode configurar para o presente estudo o expert que representa bem seus
pares e capaz de fornecer dados suficientes para realização deste trabalho como proposto.

125
There is no doubt that qualitative interviewing is a powerful tool to capture the voices and the ways people
make meaning of their experiences.
126
[…] “crystallizations points” for practical insiders knowledge and are interviewed as surrogates for a wider
circle of players.
127
[…] gained special skills or knowledge representing mastery of a particular subject through experience and
instruction, […].
107

Nesta Entrevista I o foco é a abordagem de três grandes áreas de entendimento da


atuação musical: (1) o papel que o entrevistado atribui à sua formação musical em sua
improvisação: qual o papel que sua escritura desempenha em sua improvisação, qual a
relevância e a influência que os padrões notacionais aprendidos têm em sua performance
improvisada; (2) o papel que o entrevistado atribui aos processos da memória em sua
improvisação: qual seria o percentual de conteúdos pré-compostos (planejados) e espontâneos
empregados no ato da performance musical, e como as escolhas são processadas em tempo real
na improvisação; e (3) que sentidos o entrevistado espera expressar em uma improvisação, o
que seria para ele um solo jazzístico improvisado coerente e como ele procede para alcançar tal
coerência.
No intuito de compreender o papel da escritura de I. Boudrioua em suas decisões
no ato da improvisação, iniciei esta primeira entrevista solicitando que ele descrevesse como
foi sua experiência durante sua formação musical. Com isso esperava explorar a visão do
entrevistado sobre a coerência e o sentido musical, e sobre suas próprias reflexões de como sua
formação contribuiu ou contribui ainda para a construção de seu entendimento destes conceitos.
Em seguida, pretendi colher relatos de Boudrioua que revelassem um pouco sobre sua
experiência com suas decisões em tempo real na improvisação. Solicitei ao entrevistado que
descrevesse suas preferências e experiências com o planejamento ou não de seus solos, se há
um intuito ou não de evitar materiais pré-compostos, e se há, se ele entendia que estes devem
ser completamente evitados ou se há alguma espécie de equilíbrio entre o que se pretende criar
no ato da performance e estes matérias previamente estudados. Também busquei colher relatos
que poderiam vir a elucidar questões como o grau de coerência que um solo jazzístico
improvisado tem com o material pré-composto da música em questão, se Boudrioua constrói
seus solos com algum intento formal mais globalizado ou se o processo criativo vai se
desenvolvendo frase após frase. Neste ponto meu objetivo é o de tentar compreender como
atuam os processos da memória no ato da improvisação jazzística. Para finalizar esta primeira
entrevista solicitei a Boudrioua que descrevesse o que ele espera realizar com cada solo
improvisado, quais seriam suas expectativas e como ele descreveria o que considera ser um
solo bem-sucedido. Neste ponto o objetivo foi o de colher dados que complementem as análises
das transcrições na busca por recursos de construção de coerência utilizados por I. Boudrioua
em seus solos improvisados. Naturalmente também busquei colher dados nas duas etapas
anteriores desta primeira entrevista (sobre a formação musical e sobre o papel da memória) que
serão importantes para complementar a análise das transcrições descritas no item 4.1 deste
capítulo. Contudo, nesta última etapa desta entrevista (sobre as expectativas e objetivos de I.
108

Boudrioua) acredito que os dados têm um grande potencial de fornecer material tanto para
construção de um panorama do que se deve esperar de um solo improvisado de I. Boudrioua,
quanto para avaliar o grau de congruência entre seu discurso e sua prática improvisatória.
Pretendi explorar as questões relativas a este último ponto por meio da realização da observação
descrita no tópico seguinte e a coleta de dados da entrevista 2 (tópico 4.4 deste capítulo), com
a qual busquei obter relatos de I. Boudrioua com um curto intervalo de tempo relativo após uma
performance improvisada, se comparada com a de alguns de seus discos que foram gravados a
cerca de 30 anos atrás.
Esta primeira entrevista foi planejada com duração aproximada de 90 minutos
(cerca de 30 minutos para cada tópico). As perguntas foram formuladas em dois tipos: as
perguntas teóricas e as perguntas de entrevista. As perguntas teóricas são relativas as questões
centrais da pesquisa e são redigidas em linguajar acadêmico, já as perguntas de entrevista são
redigidas em linguajar mais de acordo com o entrevistado e com o objetivo clarifica-las o
máximo possível, evitando assim possíveis falhas na comunicação que possam vir a prejudicar
os dados colhidos na entrevista. As perguntas de entrevista também são formuladas de maneira
a propiciar mais liberdade para as respostas do entrevistado com o intuito de explorar o melhor
possível suas experiências com as questões apresentadas (WENGRAF, 2001, p. 51-59). A
entrevista teve início com uma primeira questão sobre a formação do entrevistado, conforme
exemplificado no quadro 2, e perguntas subsequentes poderiam ser feitas caso algum ponto não
ficasse claro o suficiente ou surgisse algum assunto nas respostas que valhessem a pena serem
mais explorados. No quadro 2, as perguntas de entrevistas são exemplos de uma linha geral de
perguntas que pretendi seguir, não foram utilizadas como roteiros a ser obedecidos como ocorre
em abordagens mais estruturadas.
109

Quadro 2: Estruturação da entrevista I.


110

4.3 Observação de performance ao vivo

Após todo o trabalho das transcrições dos solos improvisados do I. Boudrioua e a


primeira entrevista, julguei ainda necessário a realização de uma pequena atividade com o
objetivo de complementar os dados coletados. O foco desta atividade foi o de obter dados sobre
os mesmos aspectos da relatados nas transcrições e na primeira entrevista, só que com menos
tempo decorrido entre realização do solo improvisado e a coleta de dados. As gravações dos
discos do I. Boudrioua transcritos para realização deste trabalho ocorreram num intervalo de
mais de 20 anos (1986-2011), com o disco mais recente aqui transcrito tendo sido gravado a
cerca de sete anos. Com a realização da atividade proposta nesta etapa do trabalho, pretendi
colher dados referentes a um solo improvisado realizado o mais próximo possível da segunda
entrevista.
Esta atividade consistiu na gravação de um solo improvisado do I. Boudrioua sobre
um acompanhamento (piano, baixo e bateria) pré-gravado de uma música de sua própria
escolha (acessível pelo QR Code a seguir). Após a gravação, realizei uma transcrição deste solo
que foi analisada pelos mesmos procedimentos relatados para as demais transcrições que serviu
de base para a realização da segunda entrevista (discutida a seguir no tópico 4.4).

4.4 Entrevista II

Esta segunda entrevista teve como objetivo principal colher relatos do I. Boudrioua
sobre a atividade anterior (tópico 4.3). A estrutura da entrevista, seguindo os moldes propostos
para a primeira entrevista, consistiu de tópicos principais a serem investigados que foram
planejados para serem distribuídos igualmente ao longo de cerca de 90 minutos de entrevista.
No entanto, esta segunda entrevista teve duração de aproximadamente 18 minutos. Conforme
as perguntas foram sendo propostas ao entrevistado, suas respostas voltavam sempre ao mesmo
conteúdo respondido na primeira entrevista. Desta forma, após tentar com algumas perguntas
complementares extrair algo mais do entrevistado, decidi por encerrar a entrevista. Em primeiro
lugar meu interesse foi o de colher uma descrição do próprio entrevistado do que este realizou
no solo improvisado do tópico anterior. Assim como na primeira entrevista fiz uma pergunta
inicial para provocar a fala do entrevistado e, conforme se mostrou necessário, questões
secundárias para clarificar melhor pontos de interesse que poderiam surgir no curso das
111

respostas ou até mesmo para manter o foco da entrevista. Em segundo lugar busquei inquirir
do entrevistado a razão por trás de suas ações descritas por ele próprio na primeira parte desta
segunda entrevista, a motivação de suas escolhas no ato da realização do solo improvisado. Por
último, busquei explorar que elementos moldaram as escolhas feitas durante a performance do
solo improvisado.
No quadro 3 a seguir, estão descritas as perguntas teóricas e as perguntas de
entrevista desta segunda entrevista. Iniciei esta entrevista solicitando ao entrevistado que
descrevesse em suas próprias palavras o que foi feito no solo do tópico 4.3. A partir de suas
respostas busquei seguir com perguntas secundárias com o mesmo objetivo descrito na primeira
entrevista (tópico 4.2): explorar pontos de interesse para a pesquisa que viessem a surgir na fala
do entrevistado, e, se necessário, buscar manter o foco da entrevista. As perguntas de entrevista
de número 2 e 3 foram baseadas nas respostas fornecidas pelo entrevistado para a primeira
pergunta.

Quadro 3: Estruturação da entrevista 2.

4.5 Conclusão do capítulo

Ao todo foram transcritas 42 músicas entre janeiro e dezembro de 2018: todas as


que continham solos improvisados do I. Boudrioua em sua discografia solo, composta pelos
seguintes álbuns de fonogramas:

1) Laura. Montreux: Groovin’high, 2011;


2) Paris Rio. Rio de Janeiro: independente, 2004;
3) Joy Spring. Rio de Janeiro: independente, 1998;
112

4) Central Park West. Rio de Janeiro: independente, 1996;


5) Jamal. Rio de Janeiro: Visom Digital, 1987;
6) Esperança. Rio de Janeiro: Visom, 1986;

E ainda as duas gravações citadas na entrevista I: Tema da Tarde (GIFFONI, 1992) e Bonne
Chate (ARAÚJO, 2014), bem com a performance ao vivo de I. Boudrioua da música Alone
Together, feita exclusivamente para este trabalho. As transcrições foram realizadas utilizando
o software Audacity (versão 2.2.2), para reprodução do áudio, por ser um aplicativo gratuito e
permitir o manuseio fácil do áudio, tanto para repetição de pequenos trechos, equalização,
alteração de andamento sem alteração das alturas, quanto para visualização e seleção rápida de
trechos específicos do áudio. Este aplicativo foi utilizado em meu computador pessoal: um
Macbook Air 2017, OSX (versão 10.13.6), com uma caixa de som JBL Flip 4 alimentada por
um cabo p2 estéreo na saída de fones de ouvido do computador. Durante o procedimento eu fui
ouvindo trecho a trecho, e identificando as passagens melódicas em meus próprios
instrumentos. A maior parte das gravações de I. Boudrioua foram feitas com o sax alto, para as
quais utilizei o meu saxofone alto Selmer Super Action II, minha boquilha de massa Jody Jazz
6M, abraçadeira do tipo ring de massa da marca Drake, com palhetas de marcas variadas e
numerações em torno de 2 ½. Para as músicas gravadas com o saxofone tenor, utilizei meu
saxofone tenor da marca Shelter, com uma boquilha Otto Link New Vintage 7, abraçadeira de
metal Selmer, e palhetas de marcas variadas e numerações em torno de 2 ½. Para a única música
em que I. Boudrioua gravou com o saxofone soprano, utilizei meu instrumento de marca
Yanagisawa Prima, com uma boquilha Bari 68, abraçadeira Bois de massa e palhetas Vandoren
ZZ nº 2. Após a identificação de um determinado trecho, este era imediatamente escrito no
software Finale (versão 2014.5.7098), até que toda a parte executada por I. Boudrioua estivesse
escrita. Ao término da escrita da parte do saxofone de todas as músicas passei então à escrita
das progressões harmônicas utilizando o mesmo equipamento (os aplicativos Audacity e o
Finale em meu Macbook Air), e um piano digital Casio Stereo Sampling CDP-100.
Não foram utilizadas nas transcrições nenhum tipo de armadura de clave. Dado o
caráter extremamente modulante das músicas transcritas, optei por grafar alterações conforme
estas fossem ocorrendo nas músicas para evitar dificuldades desnecessárias à leitura. Os
compassos utilizados na grande maioria das transcrições foi o 2/2, ou . Quando o gênero era
o jazz, simplesmente optei por este compasso por ser uma prática comum do gênero: o 2/2 se
escreve da mesma forma que o 4/4 mas se lê na metade da velocidade por sua unidade de tempo
(a mínima) ter uma relação de dobro com a unidade de tempo do compasso 4/4 (semínima),
113

facilitando assim tanto a leitura quanto a escrita. Quando o gênero musical em questão era o
samba, ou a bossa nova, dado seu caráter binário, utilizei o 2/2 do mesmo jeito para evitar
subdivisões demasiadamente complexas na escrita (com fusas e semifusas, etc.). Em outros
casos, optei pelo compasso mais condizente com a minha escuta da música em questão. Os
solos de I. Boudrioua, de um modo geral, não são ritmicamente complexos, o que facilitou
muito a escrita. Os casos em que as divisões eram duvidosas não representaram uma recorrência
nas transcrições, e, quando ocorreram, optei pela grafia que considerei como a melhor
representante possível do que foi tocado, sem extrapolar as ferramentas da notação musical
tradicional. Na maior parte do tempo I. Boudrioua toca conforme o swing descrito no capítulo
anterior, respeitando inclusive os ataques e sons ligados anteriormente descritos. Quando houve
desvios quanto ao swing, foram utilizadas indicações straight (quando a variação era o uso do
ritmo tradicional), e staccatos (quando a variação era no tocante aos ataques, quebrando o
padrão do swing). Em duas músicas: For T (do CD Laura, 2011) e Alone Together (da
performance gravada ao vivo exclusivamente para este trabalho), I. Boudrioua fez uso de um
recurso rítmico-interpretativo que desafia as ferramentas notacionais tradicionais. Este recurso
foi escrito como quiálteras com ligaduras a cada duas notas e com a indicação swing, como
exemplificado abaixo no exemplo 13:

Exemplo 13: Trecho do segundo solo de I. Boudrioua na música For T, do CD Laura (2011), exemplificando o
uso da indicação swing aplicada em quiálteras.

Essa grafia tem como objetivo representar a execução de trechos melódicos


conforme o swing que não são realizados nem com colcheias, nem com semicolcheias. Ou seja,
é a aplicação do swing em divisões compostas do tempo—o swing é aplicado sobre divisões
ternárias. No caso do solo realizado na performance ao vivo gravada exclusivamente para este
trabalho, houve um momento em que o swing foi aplicado por I. Boudrioua em uma divisão tão
diferente que optei por grafar uma quiáltera de compasso inteiro com ligaduras conforme o
swing e a indicação do mesmo (exemplo 14).
114

Exemplo 14: Trecho do solo de I. Boudrioua na música Alone Together, da performance ao vivo gravada para
este trabalho, exemplificando o uso da indicação swing em divisões rítmicas mais complexas.

Quanto à escrita das progressões harmônicas, optei pelo uso de cifragens que se
limitassem às unidades harmônicas básicas jazzísticas: as tétrades. Conforme discutido no
capítulo 3, é comum entre os jazzistas, tanto solistas quanto acompanhadores, a realização de
substituições harmônicas improvisadas, no ato da performance. A forma mais comum de
realização dessas substituições é a inclusão de notas que não estão especificadas nas cifras. O
uso, por exemplo, da cifra C — representando o acorde de Dó Maior, em um contexto jazzístico
implicaria inevitavelmente no emprego de outras notas além das da tríade de Dó Maior como
sétima maior, nona, décima-primeira, e décima terceira, tanto pelos solistas, quanto pelos
acompanhadores. É extremamente raro o uso de tríades em progressões harmônicas jazzísticas,
exceto em obras do repertório do Latin Jazz, e mesmo neste, estas não são a prática
predominante. Uma cifra de uma tríade, como a de Dó Maior já citada, certamente seria
executada como um acorde de quatro sons ou mais, com a inclusão da sétima maior, sexta,
nona, e até mesmo da quarta aumentada, dependendo do contexto. Desta forma, seria irrelevante
buscar grafar exatamente os acordes utilizados nas gravações porque os mesmos podem e
variam a cada execução, a cada chorus. E no caso mais específico do solista, conforme já
exemplificado na figura 8, no capítulo 3 deste trabalho, este tem total liberdade para acrescentar
notas em qualquer acorde. O que faz realmente diferença para o solista é se o acorde é maior,
menor, aumentado, dominante, meio-diminuto ou diminuto. As demais notas são acrescentadas
de acordo com essas características. Por exemplo, o uso de nonas é livre, mas a nona será menor
ou maior dependendo do acorde: sobre acordes de tônica, maiores ou menores, em geral, os
solistas optam por nonas maiores; sobre acordes dominantes de acorde menores são utilizadas
nonas menores e aumentadas, ao passo que sobre acordes dominantes de acordes maiores
utiliza-se estas e ainda a nona maior. Sobre acordes meio-diminuto são utilizadas nonas maiores
e menores, as nonas aumentadas são raras. Isto posto, optei por escrever as progressões
harmônicas me limitando às tétrades, conforme muito praticado em textos jazzísticos como o
Real Book, por exemplo.
115

A primeira entrevista foi realizada no dia 21 de novembro de 2018, por volta das
21hs, em minha residência no bairro Valparaíso em Petrópolis (RJ). A gravação foi realizada
em um iPhone 6 (modelo MG3A2BR/A) OS versão 12.1, por meio do uso do aplicativo
“Gravador”. Simultaneamente, por medida de segurança, esta entrevista também foi gravada
em meu computador, já descrito anteriormente, por meio do aplicativo Audacity (2.2.2). A
entrevista teve duração de cerca de 1 hora e 10 minutos e foram seguidos os tópicos descritos
no quadro 2. A maioria das perguntas foram propostas ao entrevistado de forma indireta com o
objetivo de proporcionar um ambiente amigável ao entrevistado, em forma de uma conversa,
para que este se sentisse o mais a vontade possível para fornecer seus relatos sobre os tópicos
propostos. Em alguns casos, surgiram questões na fala do entrevistado que não ficaram claras
ou que entendi no momento que seriam interessantes de serem mais exploradas, então questões
subsequentes foram formuladas no decorrer da entrevista. Depois de finalizada a entrevista
exportei o arquivo m4a gerado pelo iPhone via internet para o meu Dropbox pessoal. As
transcrições foram realizadas entre 5 e 10 dias após a entrevista por meio do aplicativo Audacity
para reprodução e manipulação do arquivo de áudio no computador, e transcritas diretamente
no editor de texto Microsoft Word for Mac (16.19, 181109). A entrevista foi transcrita
literalmente como falada, com pequenas correções realizadas somente em casos em que o
entrevistado, cuja língua nativa não é o português, falava alguma coisa gramaticalmente
incorreta, ou traduções em alguns momentos em que o entrevistado mesclava o português com
sua língua materna (francês).
A performance ao vivo foi gravada no dia 22 de novembro de 2018, em torno das
10hs, em minha residência no bairro Valparaíso em Petrópolis (RJ) pelo mesmo procedimento
e equipamentos descritos para a primeira entrevista. A música foi escolhida pelo próprio I.
Boudrioua — Alone Together, após receber instrução que escolhesse a música que ele quisesse,
que ele se sentisse mais confortável para improvisar. Tendo escolhido a música, I. Boudrioua
me sugeriu que utilizasse um vídeo de um play-a-long128 do Youtube (SAXSOLOS, 2013) para
o acompanhamento de sua performance. I. Boudrioua utilizou sua boquilha, abraçadeira e
palheta, mas me pediu para usar o meu instrumento (um saxofone alto da marca Selmer, modelo
Super Action II) porque a gravação foi realizada em minha casa e assim ele não precisaria trazer
o instrumento dele. A gravação consistiu em, por escolha espontânea de I. Boudrioua, uma vez

128
Um play-a-long é uma gravação de um acompanhamento de uma determinada música tocada por músicos de
verdade. O nome é um trocadilho com as palavras long e alone, sugerindo que podemos tocar muito (a long) com
uma banda gravada mesmo estando sozinhos (alone).
116

o tema da música já com diversas variações, depois 2 choruses de improviso mais 8 compassos
correspondentes a parte final do tema. A gravação ficou com um total de 4 minutos e 1 segundo,
incluído a contagem antes do início da música.
A segunda entrevista foi realizada no dia 22 de novembro de 2018, por volta das
11hs, também em minha residência. Os equipamentos e procedimentos de gravação foram
exatamente os mesmos da primeira entrevista. O objetivo original era que esta entrevista se
focasse no solo realizado na performance gravada ao vivo para que o entrevistado pudesse falar
sobre as mesmas questões da primeira entrevista sobre um solo recente. No entanto, apesar de
todos os meus esforços em focar a entrevista no solo que o entrevistado acabara de fazer, suas
respostas sempre voltavam ao conteúdo da primeira entrevista, com muito pouca coisa nova ou
diferente. Desta forma não vi razão para prolongar a entrevista além dos cerca de 18 minutos e
10 segundos que resultaram da gravação. Os processos de transcrição desta entrevista foram
também os mesmos relatados acima para a primeira entrevista.
Os dados coletados com as transcrições dos solos improvisados parecem apontar
para o uso constante de frases pré-compostas e estudadas em coerência harmônica com a
progressão, seja reafirmando a progressão, expandindo-a (pelo uso de notas além das que o
acompanhamento está tocando) ou substituindo acordes. No entanto, o uso das frases não é o
que poderíamos chamar de literal—as mesmas frases utilizadas do mesmo jeito sempre, mas
trechos de frases que se encadeiam com outros trechos de outras frases ou trechos “novos”,
transposições destas frases, desenvolvimento delas, etc. Raramente, em uma ou duas músicas,
é possível observar alguma referência ao tema da música no solo improvisado. A manipulação
de motivos melódicos, como as variações motívicas de compositores da tradição europeia
ocidental, também é rara, senão completamente inexistente. De um modo geral, a princípio, a
coerência parece girar e torno das relações entre harmonia e melodia, desde que o solo esteja
de acordo com as progressões harmônicas, de forma tradicional tonal ou expandida (por meio
de cromatismos, substituições harmônicas, ou frases construídas em intervalos simétricos que
“retornam” em algum momento, etc.), este parece fazer sentido.
Nas entrevistas, tanto na primeira quanto na segunda, os relatos de I. Boudrioua
parecem corroborar os dados encontrados nas transcrições. De acordo com o entrevistado, o
que importa é que as frases sejam coerentes com a progressão harmônica e que isso é realizado
intencionalmente, pensando nessas relações e/ou intuitivamente, “de ouvido” (imaginando
melodias e reproduzindo-as no instrumento). Boudrioua afirmou algumas vezes que o solo não
precisa ter nenhuma relação com o tema, mas que isso não é “proibido”. Da mesma forma as
frases podem ter relações umas com as outras ou não, mas que ele próprio não se preocupa com
117

isso. Segundo Boudrioua, o mais importante na construção de um solo improvisado é a


coerência harmônica das frases com o acompanhamento harmônico.
5 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Neste capítulo passarei ao tratamento dos dados coletados por meio das transcrições
dos solos improvisados de I. Boudrioua, e da análise das duas entrevistas concedidas por ele
para este trabalho. Como ficará evidente conforme o leitor prossiga na leitura dos relatos de
pesquisa que se seguem, a análise das transcrições dos solos improvisados de Boudrioua, que
tiveram como objetivo principal revelar possíveis recursos geradores de coerência (RGC)
recorrentes em sua prática improvisatória, acabaram possibilitando um tratamento muito mais
quantitativo do que o esperado. Dada a dificuldade de precisar o conceito de “frase musical” e
das discussões que este suscitaria, preferi propor uma forma mais simplificada de identificar os
possíveis usos de RGC por Boudrioua em seus solos que servisse melhor aos objetivos desta
pesquisa. Optei por contabilizar os compassos que continham solos improvisados, e em quais
deles se observava a ocorrência de uma ou mais dentre as seis categorias de RGC que propûs
após o estudo das transcrições. Deste modo foi possível contabilizar e analisar por meio de
recursos estatísticos os dados de interesse para a presente pesquisa nas transcrições dos
referidos solos, revelando dados importantes sobre suas práticas improvisatórias geradoras.
Estes dados também foram comparados com os resultados das análises das entrevistas. Estas,
por sua vez, foram abordadas com base em teorias de análise de discurso. Tomando como base
os tópicos propostos para as entrevistas no capítulo anterior, foram elaboradas categorias a
partir das respostas de Boudrioua em cada um dos tópicos. Por meio da comparação dos tópicos
das entrevistas e as categorias extraídas dos relatos do entrevistado, seguiu-se a discussão dos
resultados do tratamento dos dados das entrevistas e a contraposição destes, quando cabível,
com as informações advindas das análises das transcrições de seus solos improvisados.
Os resultados das análises das entrevistas concedidas por Boudrioua e das
transcrições de seus solos improvisados foram então discutidos com vistas à fundamentação da
validação das hipóteses propostas pela presente pesquisa, gerando ainda novos questionamentos.

5.1 Transcrições dos solos improvisados de I. Boudrioua

Como discutido anteriormente (Capítulo 4), o objetivo de transcrever os solos


improvisados de I. Boudrioua foi o de produzir um material passível de análise em busca de
recursos recorrentes de construção de coerência pela identificação dos recursos que o
improvisador jazzista, aqui I. Boudrioua, emprega em seus solos com este intuito. Também
ressaltei no Capítulo 3 que a pedagogia de improvisação predominante no universo tanto do
jazz—gênero musical— quanto do estilo jazzista está baseada na relação entre melodia e acorde
119

de acompanhamento, e que esta relação é apontada pelo próprio I. Boudrioua, nas entrevistas
realizadas para este trabalho, como o aspecto mais importante na construção de seus solos
improvisados. Durante o curso das análises das transcrições estes aspectos ficaram evidentes.
No entanto, a forma como I. Boudrioua manipula a coerência entre as melodias e as progressões
harmônicas ocorre de formas variadas. Após detida observação das transcrições, a estrutura de
alguns destes processos criativos começou a emergir de forma recorrente possibilitando a
proposta de categorização que desenvolvi para este estudo. Naturalmente, a categorização dos
recursos geradores de coerência (RGC) proposta aqui não é e nem pretende ser exaustiva, mas
foi fruto de variadas observações das transcrições, priorizando-se trechos específicos que
despertavam maior interesse para a análise em questão. A partir disso, determinados recursos
começaram a sobressair como práticas recorrentes e tornaram-se cada vez mais compatíveis
com o perfil daquilo que eu estava buscando inicialmente, ou seja, os recursos utilizados pelo
improvisador para a produção de um discurso musical coerente. Cumpre salientar que os demais
conteúdos dos solos, que não se enquadram em nenhuma das categorias de RGC propostas aqui,
simplesmente obedecem às relações melodia/acorde ou ao uso de alguma escala como uma
espécie de unidade coerente. No quadro 4, apresento minha proposta de categorização dos RGC
empregados por I. Boudrioua em seus solos improvisados:

Quadro 4: Proposta de categorização dos RGC utilizados por I. Boudrioua em seus solos improvisados.

Considerei como citação do tema pequenos trechos melódicos que fazem alusão
clara ao tema—ideia musical completa (no caso, sempre melódica) a partir da qual a obra é
identificada—da música em questão. Algumas destas citações são fácil e imediatamente
identificadas na análise das transcrições, outras só se tornam aparentes por meio da escuta. Nos
exemplos que se seguem observa-se respectivamente uma citação do tema perceptível pela
120

observação das transcrições (exemplo 15) e uma outra mais saliente à escuta do que à leitura
da transcrição (exemplo 16).

Exemplo 15: Citação do tema no solo da música For Wes, do LP Esperança (1986).

Trecho do tema Citação

Exemplo 16: Citação do tema no solo da música My Secret Love, do CD Joy Spring (1998).

Entendo como sobreposição o uso de elementos melódicos (arpejos, escalas ou


frases pré-compostas) que não possuem uma ligação direta com a harmonia em questão. Os
exemplos mais óbvios ocorrem quando um arpejo de outro acorde é tocado, como
exemplificado abaixo (exemplo 17):

Exemplo 17: Sobreposição de um arpejo de lá menor sobre um acorde de mi com sétima na música
Sternamente, do LP Jamal (1987).
121

Um outro exemplo muito comum é a sobreposição de escalas diminutas e alteradas sobre


acordes de sétima dominante (exemplo 18):

Exemplo 18: Sobreposição de uma escala diminuta sobre um acorde de sétima dominante na música For T, do
CD Laura (2011).

Um exemplo comum de ocorrência de uma sobreposição se dá por meio do uso de


uma outra categoria que estou propondo aqui, e que será melhor discutida adiante, a das frases
pré-compostas. Observe no exemplo 19 um trecho melódico que originalmente se inicia com
dois compassos com a mesma harmonia—Dó com sétima maior—mas a frase improvisada
sobre este acorde sugere a substituição pelo II-V7 (entre parênteses) do acorde seguinte—Si
com sétima maior:

Exemplo 19: Sobreposição de frase sugerindo substituição harmônica.


122

Corroborando o depoimento de I. Boudrioua em entrevista concedida para este


trabalho sobre o uso de frases e trechos de frases como “peças de encaixe” a serem utilizadas
na construção de seus solos, ele emprega esta mesma frase com pequenas alterações em outro
solo, num contexto harmônico que elucida bem a ideia da substituição harmônica sugerida no
exemplo anterior (19). Observe o exemplo 20 a seguir:

Exemplo 20: Uso de frase semelhante à do exemplo 19 sobre progressão harmônica II-V7 na música First
Strike, do CD Central Park West (1996).

Se analisarmos as relações entre a melodia e os acordes do exemplo 19 veremos que,


comparados com o exemplo anterior (20), a frase utilizada por I. Boudrioua sugere, de fato,
uma substituição harmônica (exemplo 21):

Exemplo 21: Análise harmônica da frase do exemplo 19 com a substituição harmônica implicada pela frase
melódica improvisada por I. Boudriuoa.

Observa-se que, de qualquer forma, a coerência entre melodia e acorde de acompanhamento é


mantida, mas o improvisador toca como se estivesse substituindo a harmonia vigente no ato da
improvisação—a coerência entre melodia e acordes não se dá necessariamente baseada nos
acordes da progressão harmônica que efetivamente soam, mas podem ocorrer entre o que o
123

solista está improvisando e uma progressão harmônica que este imagina no ato da
improvisação, gerando dualismos momentâneos que são exatamente o que estou chamando aqui
de sobreposição.
De fato, a frase do exemplo anterior é muito conhecida pelos improvisadores
jazzistas e serve como ilustração da próxima categoria aqui proposta como frases pré-
compostas ou patterns (como é conhecida tradicionalmente entre os jazzistas). No exemplo 22
podemos verificar as frases dos exemplos 19 e 20, extraídas das transcrições dos solos de I.
Boudrioua, e as mesmas frases extraídas das transcrições da música Confirmation de C. Parker
(1978, p. 2):

Exemplo 22: Comparação entre frases utilizadas por I. Boudrioua e C. Parker.

Algumas frases são facilmente reconhecidas, como é o caso das exemplificadas no exemplo 22,
outras não são tão conhecidas e acabaram sendo identificadas pelo uso recorrente feito pelo
improvisador aqui estudado.
O que categorizo aqui como frases repetidas não são necessariamente frases pré-
compostas como acabei de apresentar. Estas últimas, quando observadas em alguma transcrição
pela primeira vez em uma determinada música, são imediatamente identificadas como frases
pré-compostas. Em vez disso, para que uma frase seja considerada “repetida”, esta deve
aparecer duas ou mais vezes no mesmo solo, e não necessariamente ser reconhecida como um
pattern. Observe o exemplo 23 a seguir:
124

Exemplo 23: Repetição de frases no solo da música Alone Together realizado na performance gravada ao vivo
especificamente para este trabalho.

Neste caso em específico, a frase que foi repetida é também uma frase pré-composta,
encontrada, inclusive, num famoso livro de frases para improvisação (NELSON, 1966, p. 5).
No exemplo a seguir (exemplo 24), observamos propriamente um caso de repetição de frase
que não envolve um pattern:

Exemplo 24: Repetição de frases no solo da música Samba de l’amitié, do CD Laura (2011).

A próxima categoria proposta é a de frases baseadas em arpejos. Estas são trechos


melódicos totalmente construídos a partir dos arpejos dos acordes da progressão harmônica de
acompanhamento. Naturalmente, podem ocorrer situações em que o improvisador constrói
frases baseadas em arpejos de outra progressão harmônica que não a que está soando no
acompanhamento do solo improvisado. Sendo assim esta frase seria categorizada como
baseada em arpejo e como uma sobreposição também. Assim como as frases repetidas, as
frases baseadas em arpejos podem ser frases pré-compostas ou não. Vejamos no exemplo 25 a
125

seguir um caso de frase baseada em arpejo, mas que não é uma frase pré-composta nem uma
sobreposição:

Exemplo 25: Trecho do solo de I. Boudrioua na música Com Categoria, do CD Laura (2011).

Nos casos em que as frases são compostas por arpejos de outros acordes diferentes dos que
estão sendo executados no momento, estas também são categorizadas, como já discuti, como
sobreposições (exemplo 26):

Exemplo 26: Exemplo de frase baseada em arpejo e sobreposição na música Camaleão, do CD Central Park
West (1996, comp. 34).

Porém, também é possível que uma frase pré-composta seja baseada em arpejos, como ilustrado
abaixo no exemplo 27:

Exemplo 27: Frase pré-composta baseada em arpejo na música Tema da Tarde do CD Adriano Giffoni (1992).
126

Por último proponho a categoria de desenvolvimentos motívicos, pequenos trechos


melódicos que são desenvolvidos logo após serem executados pela primeira vez. A princípio,
apesar de este RGC não ocorrer com muita frequência na prática improvisatória do artista
estudado aqui, como será mostrado mais adiante, é possível que o desenvolvimento motívico
ocorra conjugado às categorias anteriores: citação do tema, sobreposição, frases pré-compostas
ou baseadas em arpejo. Na maioria das vezes o desenvolvimento da ideia original é basicamente
a reprodução desta, adaptada para uma nova harmonia, como ilustrado a seguir no exemplo 28:

Exemplo 28: Desenvolvimento motívico no solo da música West Coast do LP Esperança (1986, comp.127,
128).

Todas as categorizações propostas estão baseadas na noção de “frase musical”:


frases pré-compostas, frases repetidas, frases baseadas em arpejo, desenvolvimento motívico—
elaboração de uma frase ou trecho de frase, citações do tema—uso de frases oriundas do tema
da música em questão. No entanto, “frases” como aqui referidas são simplesmente trechos
melódicos conectados a progressões de acordes, nos quais podemos identificar algum grau de
semelhança com outros trechos melódicos que me servem como referência. Não estou, de
maneira nenhuma, retomando nenhum modelo frásico tradicional associado à sintaxe
estruturalista da composição escrita tradicional. Pois, como discutido no capítulo 2, não penso
ser este o modelo ideal para abordagem da construção de sentido em solos jazzísticos
improvisados. Uma frase pré-composta, por exemplo, tem sua unidade definida ou pela forma
como esta se encontra escrita nos métodos de improvisação mais conhecidos, ou como ela está
cristalizada no vocabulário jazzístico por meio do uso ostensivo da mesma por diversos artistas.
Uma frase baseada em arpejos é identificada como um trecho melódico no qual se verifica o
127

uso de arpejos; não é necessário que a frase inteira seja composta de arpejos, uma parte dela já
é o suficiente para que aqui seja categorizada como uma frase baseada em arpejos, por exemplo.

O termo ‘frase musical’ [...] se refere a entidades musicais que podem ter uma gama
de características musicais. Essa gama é tão ampla e a variedade de ênfases dadas a
diferentes parâmetros musicais por diversos autores com seus pontos de vista
diferentes é tão grande, que parece não existir uma definição consistente do termo.129
(SPIRO, 2007, p. 1)

Dada a complexidade do termo “frase musical”, optei, portanto, por utilizar outro
tipo de unidade para contabilizar as ocorrências dos RGC empregados por I. Boudrioua em seus
solos, uma unidade cuja a contagem pudesse ser refeita por qualquer pesquisador interessado
na reprodutibilidade desta pesquisa com o mínimo de variação interpretativa no contexto de
uma pesquisa qualitativa. De acordo com Santana-Perez e Pérez-Hernández:

Reprodutibilidade é um objetivo que todo cientista desenvolvendo uma pesquisa deve


levar em consideração durante os processos experimentais e de publicação. [...] a
comunidade científica está encorajando autores e editores a publicar suas
contribuições de uma forma verificável e compreensível.130 (SANTANA-PEREZ e
PÉREZ-HERNÁNDEZ, 2015, p. 1, grifo meu)

Pensando desta forma escolhi o compasso como unidade reguladora. Foram


contados todos os compassos das transcrições nos quais ao menos metade do compasso
continha transcrição de um trecho de solo improvisado. Ou seja, com menos da metade do
compasso ocupado por um trecho de um solo improvisado, eu o considerei ou como uma
anacruse ou como uma terminação, este não foi considerado na contabilização. Compassos na
mesma situação ou completamente compostos por pausas dentro de uma sessão de improviso
foram contabilizados como sendo parte do solo, porém, obviamente, não houve nenhuma
ocorrência contabilizada neste compasso dentre as categorias aqui propostas. Desta forma, cada
compasso no qual foi verificada a ocorrência de uma ou mais categorias propostas foi contado
em cada categoria. Por exemplo, se num compasso contém uma frase pré-composta que também
é baseada em arpejos, o mesmo compasso é contabilizado nas duas categorias, mas não é
contado duas vezes no total de compassos de solos improvisados, conforme exemplificado
abaixo no exemplo 29.

129
The term ‘musical phrase’ […] refers to musical entities that can have a range of musical characteristics. This
range is so broad and the variety of emphasis placed on different musical parameters by different writers having
their distinct standpoints is so great, that there does not seems to be a consistent definition of the term.
130
Reproducibility is a goal that every scientist developing a research work should take into account during the
experimental and publication process. […] the scientific community is encouraging authors and editors to publish
their contributions in a verifiable and understandable way.
128

Exemplo 29: Múltiplas ocorrências de categorias em um mesmo compasso do solo na música Lazy Bird do CD
Central Park West (1996, comp. 54).

Note que no exemplo anterior o trecho melódico apresentado pode ser entendido
como composto de duas frases pré-compostas: (1) de John Coltrane (1999, p. 2), e (2) de Oliver
Nelson (1966, p. 5)131. No entanto, podemos notar ainda que as últimas quatro colcheias do
compasso formam uma frase pré-composta em tonalidade diferente da harmonia em questão.
Logo, de acordo com as categorizações aqui propostas, também configura uma sobreposição.
O compasso em questão foi contabilizado uma vez como parte de um solo improvisado, mas
também contabilizou uma ocorrência para o uso de frases pré-compostas e uma para
sobreposição. Logo, na contagem dos compassos de solos improvisados este compasso
contabilizou apenas um, mas foi contado como um compasso com ocorrência de frases pré-
compostas e de sobreposição. O importante aqui é a contagem comparativa de quantos
compassos dentre os que contêm solos improvisados I. Boudrioua estava utilizando algum ou
mais de um dos RGC. Isto possibilita uma visão geral, no universo dos solos transcritos para
este trabalho, de quão representativos são estes recursos na prática improvisatória do
improvisador estudado. No quadro 5, estão os dados referentes à contagem geral de todos os
compassos de solos improvisados nas 42 músicas transcritas para o presente estudo.

131
O fato de eu ter apresentado como referência para as frases pré-compostas os livros que citei aqui não significa
de maneira nenhuma que I. Boudrioua aprendeu essas frases necessariamente nestes livros. Estes são compilações
de frases que seus editores consideraram idiomáticas para o jazz a ponto de “merecerem” estar em um livro de
frases para improvisação. Mas, como discutido no capítulo 3, transcrever e memorizar solos de outros artistas é
uma prática comum entre os jazzistas. Sendo assim, os livros citados servem para ilustrar que determinados trechos
melódicos são facilmente reconhecidos como itens do vocabulário de frases jazzísticas.
129

Quadro 5: Contagem total dos compassos improvisados e dos compassos com ocorrência de categorias de RGC.

No quadro 6, a seguir, constam os mesmos dados expressos em porcentagens para


comparação facilitada.

Quadro 6: Quadro 5 expresso em percentuais.

Os dados apresentados anteriormente no quadro 6 apontam para um fato


interessante sobre as práticas improvisatórias de I. Boudrioua. Observa-se que em todos os
álbuns e nas demais três músicas transcritas o percentual de compassos nos quais foram
130

utilizados ao menos uma das categorias de RGC fica em torno da metade de todos os compassos
dos solos improvisados. Se tomarmos o total de compassos de improviso de todas as 42 músicas
e o total de compassos com ocorrência de ao menos uma das categorias, chegaremos a um
percentual muito próximo de fato da metade—53,92%— conforme apresentado no quadro 7:

Quadro 7: Percentuais totais de ocorrências das categorias de RGC.

Isso significa que mais da metade do que I. Boudrioua fez em todos os solos
improvisados transcritos para este trabalho pode ser enquadrado em pelo menos uma das seis
categorias de RGC aqui propostas. Os demais compassos, apesar de não conterem nenhuma
ocorrência de RGC, obedecem simplesmente aos princípios de coerência melodia/acorde132
(JÄRVINEN, 1995, p. 428), ou de uso de escalas133 (JÄRVINEN, 1995, p. 425). E também,
como apresentado no quadro 7, podemos ver que dentre as categorias propostas a mais
ocorrente é das frases baseadas em arpejos, representando quase metade das ocorrências de
RGC (47,65%). Se levarmos em consideração que a coerência entre melodia e acorde tem sido
o pilar da pedagogia jazzística de improvisação, e que o próprio I. Boudrioua afirmou em
entrevista concedida para esta pesquisa que este tipo de coerência também é para ele a mais
importante, faz sentido que as frases baseadas em arpejo sejam tão constantes. Este
procedimento representa a forma mais explícita do solista improvisador executar os acordes da
progressão harmônica de forma melódica, garantindo assim, o que poderíamos chamar de “um
máximo de coerência possível entre melodia e harmonia”. Em segundo lugar, quase tão

132
Chord-Level Hierarchies.
133
Chorus-Level Hierarchies.
131

frequentes quanto as frases baseadas em arpejos, estão as frases pré-compostas, ou os patterns,


com 40,09% de ocorrência. Além de serem ostensivamente praticadas pelos improvisadores
jazzistas, muitas destas frases também são baseadas em arpejos, o que também poderia garantir
um alto grau de coerência com a progressão harmônica. Em terceiro lugar, com uma diferença
percentual de menos de 1% entre elas, estão as sobreposições e os desenvolvimentos motívicos.
Ambas as categorias podem estar também relacionadas às frases pré-compostas e aos arpejos,
visto que geralmente quando uma sobreposição ocorre ela se dá pelo uso frases pré-compostas
em outra tonalidade, ou escalas diferentes das que usualmente seriam utilizadas sobre os
acordes em questão. No caso do desenvolvimento motívico, este também pode ter relação com
trechos melódicos praticados exaustivamente em diversas tonalidades diferentes para
justamente serem utilizados desta forma: adaptando-os às mudanças de efeito harmônico da
progressão, o que gera um efeito de um desenvolvimento de material temático. Em último lugar,
com menos de 1% (0,66%), estão as citações do tema. Segundo relato do próprio I. Boudrioua
nas entrevistas concedidas, as citações do tema da música em questão deveriam ser raras
mesmo. Neste caso os números apenas confirmam o que Boudrioua já havia afirmado
anteriormente.
A seguir estão todos os dados percentuais das transcrições de cada um dos seis
álbuns de I. Boudrioua, mais os dados percentuais da performance gravada ao vivo para esta
pesquisa e as duas músicas citadas nas entrevistas (Tema da Tarde e Bonne Chate). Estas três
últimas serão apresentadas num único quadro por motivos de praticidade.
132

Quadro 8: Dados percentuais do CD Laura (2011).

Quadro 9: Dados percentuais do CD Paris-Rio (2004).


133

Quadro 10: Dados percentuais do CD Joy Spring (1998).

Quadro 11: Dados percentuais do CD Central Park West (1996).


134

Quadro 12: Dados percentuais do LP Jamal (1987).

Quadro 13: Dados percentuais do LP Esperança (1986).


135

Quadro 14: Dados percentuais das músicas Alone Together (performance ao vivo), Tema da Tarde, e Bonne
Chate.

Minha hipótese inicial—de que seria possível encontrar RGC nas transcrições dos
solos improvisados de I. Boudrioua—parece confirmada pelos dados (figura 17). A média de
ocorrência de ao menos uma das 6 categorias de RGC aqui propostas foi superior a 50%
(55,46%), com o mínimo de ocorrência registrado na marca de 41,38%—na música Alone
Together do CD Joy Spring (1998)—, com apenas 13 dentre as 42 músicas registrando menos
de 50% de ocorrências de RGCs (30,95% das músicas). A máxima chegou a 94,12%—na
música Pensa que me amou do CD Laura (2011)—, com 28134 dentre as 42 músicas registrando
mais de 50% de ocorrências de RGC (66,67%). Tendo em vista os dados relatados, é seguro
afirmar que o uso de RGC por I. Boudrioua em seus solos improvisados não só se verifica, mas
configura uma prática recorrente e fundamental na construção de sentido.

134
Somando-se as 13 músicas com ocorrências de RGC abaixo de 50% mais as 28 com ocorrências acima de 50%
temos um total de 41. A música que falta para completar as 42 é a Central Park West do disco de mesmo nome
(1996) que, apesar de ter sido transcrita, não contém uma sessão exclusiva de improvisação a qual pudesse ser
analisada conforme porpûs nesta pesquisa.
136

Figura 17: Percentual de ocorrências de RGC nos solos improvisados de I. Boudrioua transcritos.

No entanto, esta prática recorrente do uso dos RGC pode estar ligada a questões de
processamento cognitivo. É possível que quanto mais rápido for o andamento da música, mais
frases pré-compostas, por exemplo, sejam utilizadas por já fazerem parte da memória do
improvisador, exigindo menos do aparato cognitivo. Como discutido no capítulo 3, os
improvisadores jazzistas praticam exaustivamente diversas frases em diversas tonalidades com
o objetivo de, dentre outras coisas, adquirir “vocabulário” para improvisação. Este tipo de
prática está diretamente ligado a um dos processos da memória de longo prazo conhecido como
memória motora:

Quando repetimos movimentos diversas vezes, mesmo que eles sejam altamente
intrincados e demandem toda nossa atenção, então estes movimentos vão se tornando
mais e mais fuentes e precisos, e eventualmente somos capazes de executá-los sem
prestar atenção aos detalhes. [...] somos capazes de recombinar e modular
continuamente os movimentos aprendidos de uma maneira flexível, de forma que eles
sirvam às nossas intenções e às demandas do ambiente.135 (BOSTRÖM, WAGNER,
et al., 2013, p. 881)

É, portanto, plausível considerar que conforme o andamento da música for


aumentando, também aumente a quantidade de de incidências de frases pré-compostas no solo
improvisado, dada a dificuldade cada vez maior de o improvisador ser criativo; assim, nesta

135
When we repeat movments over and over even if they are highly complicated and initially attract all of our
attention, then the movments will become more and more fluent and precise, and eventually we are able to perform
them without paying attention to the details. […] we are able to continuously recombine and modulate the learned
movments in a flexible manner, so that they fit to our intentions and to the demands of the environment.
137

situação, o uso frases armazenadas na memória motora se torne cada vez mais frequente. Em
músicas de andamento mais lento, talvez seja possível recrutar mais dos recursos de
processamento de memória para a criação de frases originais ou menos baseadas em patterns.
Se isso fosse constatado nos dados das transcrições dos solos de I. Boudrioua, veríamos essas
relações em um gráfico relacionando os andamentos com a ocorrência dos RGC. No entanto,
como observado no quadro 15, tais relações não se verificaram.

Quadro 15: Relação entre andamento e ocorrências de RGC.

Podemos observar os andamentos em “bpm” das músicas transcritas para este trabalho no eixo
das abiscissas (horizontal), desde o menor andamento encontrado—50 bpm na música Pensa
que me amou do disco Laura (2011) —, até o maior deles—324 bpm na música First Strike do
disco Central Park West (1996). No eixo das ordenadas (vertical) encontram-se os valores
percentuais de ocorrência de RGC. A média de ocorrências de RGC: 55,46%, está representada
pela linha horizontal escura que corta o gráfico de uma extremidade à outra. Os círculos
fechados nas linhas do gráfico são os 41 andamentos diferentes e suas respecticas porcentagens
de ocorrências de RGC, desde o menor andamento: 50 bpm com 94,12% de ocorrências, até o
maior andamento: 324 bpm com 54,17% de ocorrências de RGC. As pequenas linhas verticais
cortadas pela linha da média percentual representam o desvio padrão da média de 10,16%,
calculado pela fórmula da figura 18, onde s é o desvio padrão da média; 𝑥 é uma das 41
porcentagens de ocorrência dos RGC; 𝑥̅ é o valor da média das porcentagens; e 𝑛 é o número
de porcentagens calculadas (41). Este dado—o desvio padrão da média— nos revela a variação
média dos valores contabilizados em torno da média principal.
138

Figura 18: Fórmula para o cálculo do desvio padrão da média.

Observamos no quadro 15 que os dados coletados não revelam nenhuma tendência


das ocorrências de RGC acompanhando os andamentos das músicas, direta ou inversamente.
Isso indica, por exemplo, que as frases pré-compostas não são mais utilizadas por I. Boudrioua
em músicas com andamentos rápidos do que em músicas com andamentos lentos. Nem tão
pouco em músicas de andamento lento ocorram mais citações do tema ou desenvolvimentos
motívicos. Há inclusive um exemplo interessante da música Pensa que me amou do disco Laura
(2011) que tem o menor andamento registrado (50 bpm) e a maior taxa de ocorrência de RGC—
94,12%. Neste caso, se observarmos a transcrição desta música em questão no Apêndice 1.1,
páginas 179-181, veremos que, apesar do andamento lento, o solo improvisado é praticamente
todo tocado em tempo dobrado, gerando o mesmo efeito prático para o improvisador de um
solo improvisado no dobro do andamento, o que também não é raro entre os jazzistas.
Todos os dados apresentados até aqui, oriundos das análises das transcrições dos
solos improvisados de I. Boudrioua, apontam, em primeiro lugar, para uma prática
predominante de coerência melodia/harmonia. Conforme apresentado no capítulo 3, este tipo
de coerência é o cerne da pedagogia de improvisação jazzística que se estabeleceu por volta
dos anos 1960 entre músicos do gênero jazzístico, e mais tarde, entre os artistas adeptos do
modus operandi jazzístico apresentado também no capítulo 3 como música de “improvisação
jazzística”. Boudrioua, além de ser um artista predominantemente praticante do gênero
jazzístico, possui uma longa carreira também como solista improvisador em contextos onde o
jazz como estilo, como prática improvisatória, é praticado independentemente do gênero. Isto
ocorre, inclusive, em sua própria discografia solo, com músicas notadamente carregadas de
elementos de música brasileira e/ou latina como, por exemplo: na música Badette em suas duas
gravações, tanto no disco Esperança (1986) quanto no disco Paris-Rio (2004); Chanson pour
Jasmine também do disco Paris-Rio (2004); Com Categoria do disco Laura (2011); Estate do
disco Joy Spring (1998); For T do disco Laura (2011); a música Les Feuilles Mortes, composta
originalmente na França em 1945 por Joseph Kosma e Jacques Prévert, sendo adaptada para o
inglês em 1949 por Johnny Mercer com o título Autumn Leaves, para se tornar um dos mais
famosos standards de jazz, e que na versão de I. Boudrioua, do disco Laura (2004), é tocada
como bossa nova, tem uma seção de improviso de guitarra em jazz (gênero), e termina com o
139

solo de Boudrioua sobre um ostinado de baixo, piano e guitarra, e a bateria livre; a música
Minas, que apesar do nome, é uma bossa nova de composição do próprio I. Boudrioua gravada
no disco Central Park West (1996); Pour Hermeto, do disco Paris-Rio (2004), com uma
introdução iniciando ao estilo rhythm & blues, passando à bossa nova, para seguir no tema e
solos com levadas de samba canção; o samba Roditiando, também gravado para o disco Paris-
Rio (2004); Samba de l’amitié, do disco Laura (2011), que em alguns momentos se aproxima
do choro em algumas passagens da progressão harmônica e do solo do I. Boudrioua; Solidão,
outra música ao estilo bossa nova composta por Boudrioua presente no disco Paris-Rio (2004);
Seguindo o exemplo da música Les Feuilles Mortes, temos, no disco Joy Spring (1998), um
outro famoso standard de jazz tocado como bossa nova—The Shadow of Your Smile; e o samba
Virtual Jeff, do disco Laura (2011). Desta forma, a ênfase dada por Boudrioua em seus solos
improvisados às relações de coerência entre as melodias e progressões harmônicas confirmam
amplamente uma orientação herdada da tradicional pedagogia de improvisação jazzística já
citada.
Em segundo lugar, os dados apontam para uma confirmação do uso ostensivo de
RGC por I. Boudrioua em seus solos improvisados. Em média, mais da metade de seus solos
são compostos por pelo menos um tipo de RGC dentre as categorias propostas aqui, com as
frases baseadas em arpejos e as frases pré-compostas—as mais frequentes com larga margem
de diferença das demais categorias, como apresentado anteriormente no quadro 7. Frases
repetidas, desenvolvimentos motívicos e sobreposições foram pouco observadas, e as citações
do tema, confirmando o depoimento de I. Boudrioua nas entrevistas, são ocorrências muito
raras.
O uso de frases baseadas em arpejos é condizente com a importância já observada
das relações de coerência entre as melodias e os acordes. Se esta última é tão importante, nada
melhor do que trechos melódicos que “soletram” os acordes no curso de um solo improvisado
para conferir coerência a este. Frequentemente, as frases pré-compostas são também baseadas
em arpejos, o que além de conferir a estas a coerência já mencionada com a progressão
harmônica, ainda aponta para uma ligação entre estas e a memória motora. Esta ligação se
constitui devido as frases pré-compostas serem armazenadas na memória de longo prazo por
meio de prática deliberada diária do improvisador jazzista baseada em repetição. E isto poderia
também explicar o alto percentual destas categorias obervado nas análises das transcrições:
dada a alta demanda do aparato cognitivo durante o ato de criação de partes solistas melódicas
em performance, é de se esperar que trechos melódicos disponíveis a partir da ativação dos
processos de memória de longo prazo (como a memória motora) representem uma alternativa
140

extremamente viável devido à relativa baixa demanda de processamento em tempo real. Desta
forma, o alto percentual de ocorrência de frases baseadas em arpejos pode ser explicado por sua
ligação com as frases pré-compostas e a memória motora, confirmado ainda pela ausência de
evidências de correlações entre o andamento das músicas e o percentual do uso de RGC. Ou
seja, os dados não apontam para um recrutamento significativo de processos de memória de
trabalho no ato da improvisação, mas sim uma dependência predominante nos processos de
memória de longo prazo. Consequentemente, podemos inferir que a escritura tem um papel
fundamental na prática improvisatória de Boudrioua, tanto na esfera da grafia musical
tradicional, por ser esta a prática notacional por excelência entre os jazzistas, quanto na esfera
de sua escriturabilidade, sua cultura, dada a importância do uso de materiais pré-compostos e
enraizados nas tradições musicais nas quais Boudrioua confessadamente se inspira.
A seguir passarei á análise e discussão dos dados colhidos nas entrevistas realizadas
com I. Boudrioua para a presente pesquisa.

5.2 Análise da entrevista I

No capítulo 4 justifiquei minha opção pelo uso de entrevistas semi-estruradas com


base na acepção de sentido musical como uma experiência individual de cada ouvinte, de
acordo com o referencial teórico aqui proposto—o das ciências cognitivas incorporadas. Desta
forma, argumentei ser necessário um método de coleta de dados que me permitisse adentrar no
universo da experiência individual do improvisador jazzista no ato da performance musical,
situando este trabalho no âmbito da pesquisa qualitativa (ALVES e DA SILVA, 1992, p. 1).
Segue-se então, que a análise dos dados coletados nas entrevistas semi-estruturadas realizadas
aqui, do mesmo modo, deva atentar para os aspectos qualitativos com vista para à obtenção de
resultados que revelem a experiência de construção de sentido musical de I. Boudrioua em seus
solos improvisados. Neste caso, em se tratando de gravações de entrevistas que foram
transformadas em transcrições, ou seja, diante da tarefa de analisar qualitativamente
depoimentos convertidos em textos verbais:

A transformação de dados coletados [...] em resultados de pesquisa envolve a


utilização de determinados procedimentos para sistematizar, categorizar e tornar
possível sua análise por parte do pesquisador. [...] Entre esses mecanismos, inserem-
se a análise de conteúdo e a análise de discurso como propostas teórico-
metodológicas, [...]. (CAPPELLE, MELO e GONÇALVES, 2011, p. 2)

A análise de conteúdo “trabalha com [...] a materialidade linguística através das


condições empíricas do texto” (CAREGNATO e MUTTI, 2006, p. 683), ou seja, o que é
analisado é o texto em si e espera-se que o conteúdo da mensagem do texto se faça acessível
141

por meio deste procedimento. Já a análise de discurso busca revelar justamente o sentido como
uma propriedade emergente da interpretação do texto por meio da contextualização do agente
do discurso: “[...] o enunciado ‘é dando que se recebe’ permite uma multiplicidade de sentidos.
Este pode ser pronunciado tanto por um padre franciscano, quanto por um político ou por uma
prostituta, com sentidos diferentes para cada sujeito” (CAREGNATO e MUTTI, 2006, p. 681).
Na análise de discurso os sentidos estão atrelados aos contextos, são únicos para cada indivíduo
e, portanto, se afinam muito mais com a investigação do sentido musical—de acordo com os
fundamentos das ciências cognitivas incorporadas—do que os dados obtidos por meio de uma
análise de conteúdo. Apesar de frequentemente aplicada à análise de transcrições de entrevistas
com diversos participantes como representantes de um determinado grupo, dado o caráter
contextualizado de apreensão de sentido intrínseco deste tipo de análise, trabalhar com
entrevistas realizadas com um único participante não representa nenhum impedimento à
obtenção dos resultados pretendidos. Além da questão da representatividade atribuída ao expert
(ERICSSON, 2014, p. R508) já mencionada no capítulo anterior:

A análise qualitativa se caracteriza por buscar uma apreensão de significados na fala


dos sujeitos, interligada ao contexto em que eles se inserem e delimitada pela
abordagem conceitual (teoria) do pesquisador, trazendo à tona, na redação, uma
sistematização baseada na qualidade, mesmo porque um trabalho desta natureza não
tem a pretensão de atingir o limiar da representatividade. (ALVES e DA SILVA,
1992, p. 62)

De acordo com Shanthi et al. (2015, p. 159), a análise de discurso, como uma
prática inserida no âmbito da pesquisa qualitativa, abrange diversas vertentes com referenciais
teóricos variados que proporcionam ao pesquisador a possibilidade de uma análise
interpretativa complexa dos dados. A análise de discurso “é um um campo de conhecimento
plural e interdisciplinar, e também uma ferramenta metodológica”136 (SAYAGO, 2015, p. 729).
Provavelmente por este motivo—tamanha pluralidade de referenciais teóricos e
metodológicos— a análise de discurso sofra com a falta de descrição dos procedimentos
adotados, deixando aqueles que desejam aplicá-la em suas pesquisas a mercê de diversos
exemplos com uma ampla gama de variação metodológica (HODGES, KUPER e REEVES,
2008, p. a883). No entanto, é possível sumarizar algumas práticas centrais da análise de
discurso que, por mais que os métodos variem, de área para área, sempre poderemos identificar
etapas recorrentes e fundamentais à realização deste tipo de abordagem: (1) coleta de dados,
(2) codificação e (3) categorização (SHANTHI, LEE e LAJIUM, 2015). Segundo Sayago, as

136
[…] it is a multi and interdisciplinary field of knowlwdge, and it is also a methodological tool.
142

etapas da codificação e da categorização se permeiam no processo de análise e podem ainda


serem subdivididas em outras etapas:

A análise começaria com o estágio da codificação que envolve a marcação e a


desegregação das passagens do texto de acordo com suas categorias específicas.
Marcar ou rotular é identificar uma passagem como uma realização de uma certa
categoria. Desegregar é extrair esta passagem.137 (SAYAGO, 2015, p. 732)

Os procedimentos referentes à realização das entrevistas (coleta de dados) foram


descritos e justificados no capítulo 4. Quanto à codificação, deu-se, em primeiro lugar, pela
marcação de trechos das transcricões das entrevistas como pertencentes às categorias de
interesse do presente estudo. Estas categorias não foram, no entanto, “criadas” como categorias
“novas”, mas foram sendo abstraídas do texto como uma espécie de “reflexo” dos tópicos de
entrevista nas falas do entrevistado. No quadro 2 (capítulo 4) estão descritos os tópicos que
foram investigados nas entrevistas: (1) escritura, (2) memória, e (3) coerência, que, por sua vez,
retornaram na fala de Boudrioua da forma como este os entende e como considera que foram
suas experiências com os mesmos. Acredito que a melhor forma de contextualizar a fala de
Boudrioua, conforme as teorias de análise de discurso propõem (CAREGNATO e MUTTI,
2006), no caso da presente pesquisa, é justamente buscar compreender como os tópicos de
entrevista aqui propostos, baseados no referencial teórico metodológico adotado para este
trabalho, “ecoam” na mente e na experiência do entrevistado. Sendo assim, as etapas de
codificação e categorização descritas por Shanti et al. (2015), foram realizadas com base em
minhas hipóteses originais de pesquisa, que deram origem aos tópicos de entrevista, e
contemplaram a contextualização da fala do entrevistado por meio de uma categorização
baseada na leitura e nos relatos das experiências que o entrevistado teve com cada um dos
pontos que foram investigados no curso das entrevistas. Em seguida, passei à comparação entre
os tópicos de entrevista e como estes emergiram nas respostas do entrevistado com o objetivo
de elucidar justamente quais sejam as experiências de Boudrioua com o sentido musical na
improvisação jazzística.
Para organizar melhor os dados e facilitar a discussão dos resultados, os tópicos das
entrevistas e suas comparações com as categorias emergentes nas falas do entrevistado foram

137
The analysis would begin with a stage of coding which involves the tagging and the desegregation of passages
in the texts according to the specific category. Tagging or labeling is the identification of a passage as a realization
of a certain category. Desegregation is the extraction of these passages.
143

separados em quadros diferentes. No quadro 16, temos a comparação do primeiro tópico


proposto para as entrevistas—a escritura.

Quadro 16: Comparação entre os tópicos da entrevista I relativos à escritura e as respostas do I. Boudrioua.

A proposta deste tópico sobre a escritura teve por objetivo investigar o papel desta
na prática improvisatória do participante. Com este objetivo em mente foi solicitado ao
entrevistado que descrevesse suas experiências com sua formação inicial: como e quando
começou a estudar música, primeiro(s) professor(es) e sobre sua educação musical formal.
Desta forma busquei obter relatos que expusessem o grau de influência de técnicas notacionais
na prática musical do participante, bem como suas influências musicais estilísticas. No entanto,
como observa-se no quadro 16, quando solicitei ao entrevistado que me contasse suas
experiências com sua formação musical, o primeiro relato fornecido foi sobre um episódio em
sua infância (a idade exata não foi especificada) no qual sua mãe lhe teria ensinado a cantar a
música Les feuilles mortes (Autumn Leaves) que, segundo Boudrioua, foi quando começou o
seu interesse pela música. A partir deste episódio, Boudrioua conta que passou a se interessar
144

muito pelas músicas que ouvia em programas de televisão e filmes. Seu primeiro contato com
um professor de saxofone, segundo ele próprio, foi com um músico amador que em cerca de
um ano já recomendou que ele procurasse alguém com quem pudesse seguir adiante com seus
estudos musicais. O próximo passo marcante de sua formação musical foi seu ingresso no
Conservatoire de Musique, Théâtre et Danse na cidade de Arpajon, que fica a cerca de 35 km
ao sul de Paris. Segundo Boudrioua, foi neste conservatório que ele conheceu o professor
Maurice de l’Arbre, que considera como seu grande mestre de saxofone. Durante seus estudos
neste conservatório, Boudrioua conta que se dedicou quase que exclusivamente ao instrumento
e não assistia às aulas de percepção musical. Sua leitura, de acordo com ele mesmo, era muito
ruim e só foi atingir um nível proficiente em seu tempo de serviço obrigatório como saxofonista
da banda do exército, quando foi forçado a se dedicar à leitura musical devido à sua prática na
banda militar como saxofonista barítono. Boudrioua relatou que paralelamente aos seus estudos
no conservatório já praticava improvisação com o auxílio de play-a-longs por várias horas por
dia, além de tocar com alguns grupos de amigos e orquestras na França. De um modo geral
Boudrioua afirmou que sua relação com a notação musical durante sua formação foi algo
funcional—apenas o suficiente para dar conta de suas obrigações no exército e o básico que
aprendeu no conservatório estudando saxofone. Seu foco sempre esteve na improvisação.
Quanto às questões estilísticas, Boudrioua afirmou não ter nenhum compromisso com qualquer
que seja o estilo ou tradição musical. Apesar de sempre se interessar muito por jazz e música
brasileira, seu objetivo quando está improvisando é o de criar melodias que lhe agradem. Seu
procedimento ao improvisar, segundo ele próprio, sempre foi o de imaginar trechos melódicos
e reproduzí-los no instrumento. O estudo de escalas, arpejos, frases pré-compostas, transcrição
de solos, etc. ocorreu de maneira mais esparsa posteriormente em sua vida, principalmente a
partir de 1982, quando veio para o Brasil.
Do ponto de vista da escritura, podemos dizer que Boudrioua teve muita influência
de canções populares e do gênero musical jazzístico como formadores de sua cultura musical.
A música clássica esteve presente durante os anos de conservatório mas nunca mais configurou
uma prática recorrente em sua vida. Apesar de seus relatos colocarem a leitura musical como
algo secundário em sua formação, Boudrioua é um leitor de partituras proficiente e também
compositor e arranjador. A partir disso podemos entender que apesar de em seus depoimentos
sempre parecer preterir as técnicas de notação musical em favor da espontaneidade criativa que
ele próprio afirma buscar na improvisação, a notação musical tem um papel em sua formação.
E a consequente escriturabilidade é muito significativa, algo que podemos inclusive verificar
nas trasncrições de seus solos improvisados que, como já discutido, raramente contêm algo que
145

desafie as possibilidades das ferramentas notacionais tradicionais. Do mesmo modo, a despeito


de suas afirmações de não ter compromisso com nenhuma escola ou estilo musical, o jazz
(gênero musical), a música brasileira (mais especificamente a bossa nova) e em menor escala a
música clássica, têm uma contribuição massiva em sua cultura musical também facilmente
reconhecível em sua discografia solo. As “belas melodias” que Boudrioua afirma buscar sempre
em seus solos improvisados, de acordo com seu próprio testemunho, são baseadas em trechos
melódicos que ouviu e/ou transcreveu de outros artistas famosos, principalmente jazzistas.
Dentre eles, Boudrioua cita como uma de suas maiores influências o saxofonista
norteamericano Phill Woods—um dos maiores representantes do bebop. Sendo assim, por mais
que não seja este o seu objetivo, ou não seja uma atividade consciente, Boudrioua transparece
claramente suas influências tanto jazzistas, quanto, em menor grau, da música brasileira, em
suas práticas improvisatórias.
Minha intenção em propor questões de entrevista sobre os processos da memória a
I. Boudrioua foi o de tentar colher relatos que fornecessem alguma pista sobre a operação e
capacidade dos diversos processos da memória no ato da improvisação. Tendo em vista que, de
acordo com o referencial teórico aqui adotado, o sentido musical, assim como a experiência de
sentido de um modo geral, está ligado à capacidade humana de processar dados de maneira
coerente—o que faz sentido para nós é aquele estímulo passível de ser ordenado em padrões
pela mente humana (LARSON, 2012)—, a capacidade e os diferentes processos da memória
envolvidos na improvisação jazzística são fundamentais na compreensão dos processos de
formação de sentido musical neste contexto. A seguir, no quadro 17, estão os tópicos de
entrevista relacionados aos processos da memória e o que foi colhido nos relatos do entrevistado
quanto à sua experiência com estes processos.
146

Quadro 17: Comparação entre os tópicos da entrevista I relativos à memória e as respostas do I. Boudrioua.

De uma forma didática podemos resumir o funcionamento da memória em três


processos principais: memória ecóica, memória de trabalho (ou de curto prazo) e memória de
longo prazo (BADDELEY, 2014). Ao questionar o entrevistado sobre a possibilidade de seus
solos improvisados terem alguma relação com o tema principal da música meu intuito era o de
compreender melhor como atuam e qual a demanda imposta sobre os processos da memória no
ato da improvisação jazzística. Como apresentado no quadro 17, as respostas de Boudrioua
foram todas no sentido de que sua prática improvisatória não tem qualquer relação com esse
tipo de coerência. Seus solos, segundo ele, são “completamente livres”, mas ele afirma utilizar
as frases pré-compostas como peças de encaixe para construção das melodias que imagina,
como itens do seu vocabulário para criação de solos. Do ponto de vista dos processos da
memória, essas afirmações apontam para uma grande demanda da memória de longo prazo e
da memória motora (um processo de memória de longo prazo), por meio das quais Boudrioua
“recupera” as frases pré-compostas no ato da improvisação. A manipulação destas frases se dá
pelo uso da memória de trabalho, responsável pelo processamento das informações em tempo
real, aliada à memória ecóica que funciona, de acordo com os relatos de Boudrioua, como o
estímulo principal: ele ouve a música e “responde” com as melodias que imagina no momento.
A seguir, na figura 19, temos um esquema ilustrativo de como se dá o processo de improvisação
de I. Boudrioua baseado em seus próprios relatos.
147

Figura 19: Esquema resumido dos processos de memória na prática improvisatória de I. Boudrioua.

É importante ressaltar que o esquema apresentado na figura 19 não representa


exatamente o funcionamento dos processos da memória descritos. Observando a figura 19
alguém poderia pensar que os processos exemplificados se dão em uma linearidade temporal
que não corresponde ao que de fato acontece. Todos os processos da memória exemplificados
interagem simultaneamente numa espécie de “retro-alimentação” chamada por alguns de feed
back loops (SNYDER, 2000, p. 7), especialmente no caso do improvisador que, como já
discutido no capítulo 2, está ao mesmo tempo na condição de ouvinte e agente criativo no ato
da performance musical. A partir do momento em que o solista improvisador começa a executar
seu solo improvisado, este também passa a fazer parte daquilo que ele mesmo ouve como
estímulo à memória ecóica, que por sua vez, também vai influenciar as próximas escolhas de
frases a serem executadas, que também se tornarão parte do estímulo e assim por diante. O
objetivo do esquema proposto na figura 19 foi o de ilustrar os processos discutidos de forma
148

simplificada como auxílio ao leitor na compreensão do assunto em questão. Caso fosse feita a
opção por uma representação mais realista receio que a figura se tornasse demasiadamente
complexa e geraria mais confusões do que esclarecimentos.
Curiosamente, todas as questões propostas ao entrevistado sobre possíveis
limitações do processamento da memória em tempo real no ato da improvisação foram tratadas
como uma questão de preparo técnico. Mesmo após questionamentos subsequentes com o
objetivo de me certificar que Boudrioua estava entendendo do que se tratavam minhas
perguntas e o que eu estava querendo investigar, suas falas persistiram na ideia do preparo
técnico e em afirmações como “tudo é possível”. Essa insistência parece indicar que, para
Boudrioua, a improvisação jazzística é uma questão de quantas frases o improvisador decorou
e estudou exaustivamente para serem armazenadas na memória de longo prazo e recuperáveis
inclusive por processos de memória motora. Além disso, ele também considera como base do
aperfeiçoamento do improvisador a escuta dos demais músicos no ato da performance
interagindo com eles numa espécie de “conversa musical” na qual o improvisador é também
alguém respondendo aos estímulos, e não necessariamente como o proponente dos caminhos
que a performance deverá seguir. Em suma, de acordo com Boudriuoa, se há alguma limitação
da memória no ato da improvisação, esta se trata de uma limitação imposta pela quantidade de
informação que o improvisador armazenou na memória de longo prazo. No entanto, quando
questionado se o andamento da música tinha alguma influência em seus improvisos, Boudrioua
afirmou que quanto mais rápido mais difícil de improvisar porque os solos vão se tornando cada
vez menos criativos e mais repetitivos, o que poderia ser uma pista de limitações da memória
de trabalho, por exemplo. Uma espécie de limite de informação por espaço de tempo que a
memória de trabalho poderia processar. Boudrioua também afirmou que a vontade de tocar é
uma questão a ser considerada em ocasiões em que, por motivos de trabalho, um solista é
obrigado a realizar solos improvisados por várias horas consecutivas, várias vezes numa
semana, etc. Nestes casos, segundo o entrevistado, a vontade de tocar é diretamente
proporcional à criatividade, fazendo com que os solos também se tornem mais repetitivos
conforme diminua a vontade de tocar.
O próximo tópico, conforme a estruturação da entrevista proposta no quadro 2 no
capítulo 4, foi o da coerência. Nesta parte da entrevista busquei colher dados (1) que
fornecessem informações sobre a coerência como um objetivo do improvisador, (2) o que este
entende como coerente em um solo improvisado e (3) quais seriam os RGC empregados no
intuito de atingir o objetivo de realizar um solo improvisado coerente. No quadro 18, verificam-
149

se os tópicos propostos para a entrevista e as categorias que emergiram nas respostas de


Boudrioua.

Quadro 18: Comparação entre os tópicos da entrevista I relativos à coerência e as respostas do I. Boudrioua.

As respostas de Boudrioua sobre a coerência como um objetivo na atividade de


realizar solos improvisados a princípio pareceram completamente inconclusivas. O entrevistado
parece ignorar qualquer preocupação com coerência em seus solos improvisados, como exceção
da coerência entre melodia e acordes já discutida. Seu objetivo a cada solo foi descrito como
uma questão de evolução, de aprimoramento a cada performance, mas sem especificar o que
exatamente se espera que seja aprimorado, mesmo quando questionado sobre isso. Apesar
disso, Boudrioua afirma que existem solos que são bem-sucedidos e outros que não são e aqui,
novamente, a diferença entre um e outro é uma questão particular sua, de ter conseguido ou não
fazer tudo que ele quis durante um determinado solo. Mas isso não significa que quando ele
não consegue o solo soe mal, ou seja incoerente, apesar de Boudrioua considerar este tipo de
solo como mal-sucedido. Estar completamente seguro da progressão harmônica e bem
preparado tecnicamente para que consiga realizar aquilo que imagina no ato da performance é
o que Boudrioua aponta como recursos utilizados com o objetivo de produzir solos
improvisados bem-sucedidos.
De um modo geral, a coerência, que Boudrioua entende como as relações entre
melodia e acordes, parece ser algo que ele considera tão primordial e básico que não é motivo
de preocupação no ato da improvisação. Mesmo num solo que considera como mal-sucedido
esta coerência não é burlada, é apenas uma questão de o solo sair ou não como ele imaginou no
momento da performance. Seu objetivo é sempre de “criar belas melodias”, e para isso,
Boudrioua acredita tudo que é necessário é o preparo técnico como instrumentista para que seja
capaz de realizar as frases melódicas que lhe vem à mente no ato da improvisação.

5.3 Análise da entrevista II

O objetivo desta segunda entrevista, conforme explicitado no capítulo 4, foi o de


recolher relatos do entrevistado sobre uma performance musical o mais recente possível no
intuito de talvez obter alguma informação oriunda da memória mais recente do improvisador
150

sobre um solo improvisado. Os tópicos de interesse da presente pesquisa foram reformulados


para a segunda entrevista com o objetivo de melhor apdaptá-los a esta situação de depoimento
logo após uma performance. Então solicitei ao entrevistado que descrevesse (1) o que ele tinha
acabado de realizar no solo improvisado da performance ao vivo gravada especialmente para
este trabalho, (2) o porquê de tê-lo feito da maneira descrita em suas respostas à questão
anterior, e (3) o que teria determinado suas escolhas feitas durante este solo. A seguir, no quadro
19, estão os tópicos da entrevista 2 e seus correlatos categóricos extraídos da análise da
entrevista em questão.

Quadro 19: Comparação entre os tópicos da entrevista II e as repostas de I. Boudrioua.

Os relatos de Boudrioua nesta segunda entrevista sobre o solo improvisado da


performance ao vivo gravada para este trabalho foram basicamente repetições de tudo que foi
dito na primeira entrevista. Poucas diferenças apareceram em suas falas nesta segunda
entrevista. Na primeira entrevista as questões foram feitas com respeito às suas práticas em
geral, ao passo que na segunda entrevista, as questões foram direcionadas especificamente à
sua performance imediatamente anterior à entrevista concedida. Quando solicitado que
descrevesse o que acabara de fazer em seu solo, Boudrioua descreveu um processual que nada
mais é do que uma síntese de suas respostas na primeira entrevista. Segundo ele, o que foi feito
neste solo em questão foi: (1) “esperar” por ideias enquanto ouve o acompanhamento, (2)
“responder” aos músicos acompanhadores, (3) manipular as frases que já conhece de acordo
com as melodias que imagina no ato da performance e, (4) prezar pela qualidade de sua emissão
sonora. Naturalmente que este processual não é linearmente sucessivo como apresentado aqui,
mas todas estas etapas ocorrem simultaneamente no ato da improvisação. No caso específico
deste solo realizado para este trabalho, se observarmos os compassos 42, 43, 44 e 45 da
transcrição da performance ao vivo a seguir no exemplo 30, respectivamente os três últimos
compassos antes do solo (final do tema) e o primeiro compasso do solo, veremos que de fato
151

parece que a primeira coisa que Boudrioua fez foi esperar por uma ideia de como começar o
solo.

Exemplo 30: Final do tema e início do solo de Boudrioua na música Alone Together gravada especialmente para
este trabalho (Apêndice 3, p.393).

Isto não significa de maneira nenhuma que Boudrioua sempre começa seus solos
improvisados desta maneira, até porque ele pode perfeitamente já estar imaginando um “início
anacrústico” para seu solo enquanto termina de tocar o tema. No caso específico deste solo,
Boudrioua relatou que os trechos melódicos improvisados geralmente têm alguma relação com
aqueles que os precederam fazendo uma analogia da improvisação com contar uma história,
mas, segundo ele próprio, isso também não é uma regra podendo ocorrer ou não.
Quanto ao porquê de ter realizado este solo desta maneira, Boudrioua novamente
fez menção de um processo intuitivo, de não pensar no que está fazendo. Para explicar esse
processo ele forneceu uma analogia interessante que acredito valer a pena ser citada aqui:

[...] quando toco é como se eu estivesse no meu carro e, mesmo nesse solo inclusive,
e... o meu carro eu conheço perfeitamente, né? Nem penso na hora passar a marcha,
ou frear... assim... Só que a curva que vai vir lá na frente eu não conheço. Aí... é mais
ou menos o que eu... a coisa mais próxima de uma resposta que eu poderia dar agora.
(BOUDRIOUA, 2018)

Nesta analogia proposta pelo entrevistado podemos identificar novamente os processos de


memória motora em operação, e podemos entender o uso do termo “intuitivo” de uma outra
forma. Da mesma maneira que temos que aprender a dirigir um automóvel até chegarmos ao
ponto de não precisarmos mais pensar nas operações básicas do carro no foco de nossa
atenção—tendo já estas operações sido armazenadas na memória motora—, Boudrioua também
afirma que, como todo improvisador jazzista, passou muito tempo se preparando tecnicamente
para que escalas, arpejos, frases, e etc. fossem automatizadas e não necessitassem mais de
processamento consciente no ato da performance musical, deixando livre a memória de trabalho
para imaginar trechos melódicos, manipular frases pré-compostas para criação de novas frases,
dentre outras coisas.
Do mesmo modo que depois de aprender a operação de um automóvel nunca
saberemos de antemão todas as curvas que existem em todas as estradas e/ou ruas e avenidas
152

pelas quais passaremos, mas necessitaremos reagir à estas nuances do caminho no próprio ato
de estar passando por ele, Boudrioua declara que improvisar “intuitivamente” significa não ter
mais que pensar em uma série de fatores e elementos que já foram previamente estudados, mas
que a cada solo novas “curvas” sempre surgem e ele deve imaginar o que fazer no ato da
performance. E o que vai determinar as escolhas que serão feitas neste momento, de acordo
com ele, são basicamente três elementos: (1) sua escritura: sua cultura, suas influências, suas
experiências prévias, etc. (2) seu estado emocional: seu humor, sua vontade de tocar, seu
condicionamento físico e mental para suportar longas performances musicais, dentre outros
fatores, e (3) a situação em que a performance é realizada: a interação do público, os demais
artistas participando da performance, o local da performance, etc. Quanto mais propício for seu
estado emocional, quanto mais disposto estiver se sentindo, quanto mais vontade de tocar,
quanto melhor for a plateia (que está atenta à performance musical, não conversa ou faz barulho
demais durante a música, etc.), quanto maior for sua afinidade com os demais artistas
participantes da performance, quanto mais agradável for o ambiente em que se está tocando, de
acordo com Boudrioua, mais criativo, mais concentrado, mais “mergulhado” na performance
ele estará.

5.4 Discussão dos resultados

De um modo geral, Boudrioua transparece uma certa transcendência dos quesitos


técnicos instrumentais e teóricos básicos nas descrições de seus processos de performance da
improvisação jazzística. Apesar de conhecer todas as escalas e arpejos em seu instrumento, ter
um conhecimento proficiente das teorias harmônicas empregadas nos contextos musicais em
que atua, não são estas coisas que ocupam sua atenção no ato da improvisação. Na primeira
entrevista, por exemplo, quando solicitado a descrever suas experiências com sua formação
musical, seu primeiro relato não foi sobre seu primeiro professor, ou a primeira vez que teve
uma aula de saxofone ou de qualquer outro instrumento musical, mas sim uma experiência de
uma enorme carga afetiva em sua infância: com sua mãe lhe ensinando a cantar uma música.
Mesmo sua formação no conservatório de Arpajon, de acordo com seus depoimentos, foi um
tanto atípica: com seu foco voltado exclusivamente para o instrumento, sem qualquer menção
de qualquer outra disciplina e evitanto propositalmente as aulas de percepção musical. As obras
do repertório que aprendia a tocar durante o curso eram gravadas por seu professor com as
partituras funcionando mais como guias do que como fonte primária para suas performances.
Seu aperfeiçoamento como leitor profissional de partituras, segundo seu próprio relato, ocorreu
153

por uma situação de urgência em sua vida: quanto teve que cumprir o serviço militar obrigatório
e se viu forçado a ler música numa banda militar.
Em outro ponto da primeira entrevista afirmou abertamente que em muitas ocasiões
tem a sensação de não estar preparado o suficiente e por isso acabam ocorrendo os solos
improvisados que ele considera como mal-sucedidos: por não ter conseguido realizar no solo
aquilo que imaginou, mas que mesmo assim são tidos como solos dignos de um artista
experiente por muitos de seus pares. Se o seu foco fosse não cometer erros da ordem dos
fundamentos técnicos do seu instrumento e da improvisação jazzística, os solos considerados
pelo entrevistado como mau-sucedidos provavelmente não soariam bem e não seriam
admirados como grandes solos—ele próprio afirma isso nas entrevistas. Dado o exposto até
aqui, as evidências apontam que as declarações de Boudrioua—de não saber descrever
exatamente o que faz quando improvisa, ou a sua insistência em dizer que seus processos
improvisatórios são intuitivos— não parecem caracterizar uma mistificação por parte do artista
quanto sua prática, mas possivelmente uma transcendência dos rudimentos técnicos
instrumentais e improvisatórios para uma esfera de pensamento criativo focado no próprio
discurso melódico, em criar “belas melodias.”
De acordo com os depoimentos de Boudrioua, o conceito de coerência em sua
prática improvisatória está ligado às relações entre melodias e acordes, muito parecido com que
Järvinen chamou de hierarquia local ou de acordes (1995). Nas transcrições de seus solos
improvisados, quando esta hierarquia local é transgredida ela é paradoxalmente reafirmada por
se tratar de uma substituição harmônica—o uso de uma outra progressão ou um outro tipo de
acorde sobre o que está sendo tocado pela base. Ou seja, Boudrioua substitui a harmonia, mas
continua coerente com as relações melodia/acorde, só que com a progressão que imaginou no
momento para substituir a progressão que está sendo executada de fato pelos demais artistas
participantes da performance musical. Para um artista declaradamente jazzista—que admite ter
estudado e ouvido o gênero musical jazzístico a vida toda, e tem como suas maiores referências
no instrumento músicos como Phil Woods, Art Peper e Dexter Gordon, todos ligados ao bebop
de alguma forma ou ao cool jazz, estilos jazzísticos predominantemente enraizados às relações
tradicionais entre melodia e acordes— é natural que sua ideia de coerência em música seja de
fato aquela predominante na pedagogia da improvisação jazzística já mencionada no capítulo
3.
Sua escriturabilidade, apesar da música tradicional europeia ter sido quase que
completamente ausente de sua prática profissional após sua passagem pelo conservatório,
carrega muito do gênero musical jazzista, tanto pela escuta quanto pela prática e muito mais
154

ainda pelo estudo. O fato de Boudrioua afirmar que utiliza frases pré-compostas como itens de
um vocabulário que emprega em seu discurso melódico, fato este comprovado pelas análises
das transcrições de seus solos improvisados, já é um forte indício da presença dos padrões
notacionais tradicionais em sua cultura, bem como a relativa facilidade de representar seus solos
improvisados por meio das técnicas notacionais tradicionais.
No tocante ao processamento da memória, com base nas falas de Boudrioua e nas
análises das transcrições de seus solos improvisados, as evidências sugerem uma alta demanda
de processos da memória de longo prazo, principalmente do armazenamento de informações
(frases, arpejos, escalas, acordes e progressões harmônicas) e da memória motora como um
preparo prévio indispensável para sua prática improvisatória. No ato da performance musical,
Boudrioua relata uma grande ênfase na memória ecóica (nos estímulos recebidos por meio da
escuta do acompanhamento) como o provocador principal de suas respostas musicais
proporcionadas pelos processos de categorização da memória de curto prazo ou de trabalho,
que também é responsável por manipular e desenvolver as frases armazenadas na memória de
longo prazo e “devolvê-las” em forma de um discurso melódico que, como já discutido, passa
a retroalimentar a memória ecóica como um novo estímulo, possibilitando inclusive, eventuais
continuações melódicas inspiradas por trechos que o próprio Boudrioua acabou de executar,
apesar de ele afirmar que essas continuações não são tão frequentes nem muito menos uma
regra. De acordo com os dados colhidos nas transcrições de seus solos improvisados, estas
continuações ou desenvolvimentos motívicos (como propus chama-las nas análises das
transcrições dos solos) são raras ou quase inexistentes (como é o caso das citações do tema).
Ou seja, os dados das transcrições dos solos improvisados parecem não corroborar a ênfase
dada à interação com os demais participantes da performance musical, ou Boudrioua
“responde” aos estímulos sonoros recebidos sem compromisso algum com qualquer
semelhança perceptível na maioria dos casos, o que de fato foi afirmado por ele nas entrevistas:
não ter nenhum compromisso com citações do tema, desenvolvimento motívicos, estilos ou
tradições. Quanto a este aspecto do compromisso com estilos e/ou tradições, apesar da
afirmação do entrevistado, o swing jazzístico está presente o tempo todo em suas performances,
mesmo quando o contexto é de uma música de estilo brasileiro ou latino, e suas frases, como
ele mesmo afirma e se verifica nas análises das transcrições de seus solos, são
predominantemente baseadas no ideário melódico dos improvisadores do bebop.
Em suma, para Boudrioua, um solo improvisado coerente é o mínimo que um
improvisador jazzista pode fazer, por entender a coerência como aquela entre as melodias e
progressões harmônicas. O verdadeiro objetivo perseguido por Boudrioua com em seus solos
155

improvisados está um passo além do que ele entende como coerência. Seu alvo é criar discursos
melódicos improvisados que correspondam às suas demandas estético-musicais. Para atingir
essa meta, Boudrioua aposta no preparo técnico instrumental e na construção de um extenso
vocabulário melódico como matéria prima para criação de suas linhas improvisadas. A situação
da performance, em sua opinião, surte os mesmos efeitos que seu estado físico e emocional
pode causar: afetar sua vontade e/ou sua disposição para improvisar, limitando sua capacidade
criativa ou incentivando-a.

5.5 Conclusão do capítulo

Se entendermos, como tenho proposto até aqui, o sentido musical como uma
experiência, por meio da qual o estímulo musical recebido por cada ouvinte é passível de ser
ordenado pelo cérebro em padrões, resultando em uma experiência coerente individual, não
resta dúvida de que qualquer investigação sobre sentido musical deve ocorrer na esfera do
estudo da experiência humana e particular de cada indivíduo. Quando o sentido musical que se
pretende estudar é aquele experimentado pelo próprio agente criativo no ato da performance
musical, como ocorre na improvisação jazzística, nos deparamos com uma empreitada que
implica duplamente na exploração do universo da experiência individual de um artista—o
improvisador jazzista. Com o objetivo de sondar este universo da experiência individual de um
solista improvisador surgiu, em primeiro lugar, a ideia de realizar entrevistas semi-estruturadas
com um expert, alguém que representasse de alguma forma a categoria de performers da qual
faz parte. A ideia foi a de investigar o que é e como um improvisador jazzista expert, aqui I.
Boudrioua, entende, experimenta e busca criar solos jazzísticos coerentes, que façam sentido.
Com isto em mente e me baseando nas teorias cognitivas aqui descritas formulei a primeira
entrevista, cujos dados obtidos foram analisados neste capítulo, visando obter informações
sobre as experiências de I. Boudrioua com sua escriturabilidade, coerência e os processos da
memória envolvidos em sua prática improvisatória. Levando-se em consideração que seu álbum
mais recente foi gravado em 2011, e pretendendo colher informações que estivessem mais
recentes na memória do entrevistado, decidi também gravar uma performance ao vivo de
Boudrioua para que fosse possível entrevistá-lo uma segunda vez, imediatamente após a
performance, reorientando as questões da entrevista para que estas contemplassem os tópicos
já descritos referentes à escritura, coerência e os processos da memória, porém focados
especificamente em uma performance que Boudrioua acabara de realizar. Além das entrevistas,
decidi transcrever todos os solos improvisados de Boudrioua em seus 6 álbuns solo, na
expectativa de produzir textos musicais que me permitissem analisar possíveis recorrências de
156

RGC de forma mais minuciosa, num conjunto de fonogramas que tivessem alguma
representatividade quanto as práticas improvisatórias de Boudrioua. Estas transcrições ainda
forneceram dados que pude comparar com os depoimentos de Boudrioua a respeito de suas
práticas enriquecendo ainda mais a discussão dos processos de formação de sentido musical na
improvisação jazzística, tanto na prática específica de Boudrioua, quanto, até certo ponto, deste
processo criativo no âmbito geral.
De uma forma resumida, o estudo de caso realizado neste trabalho teve por objetivo
buscar possíveis corroborações experimentais dos pressupostos teóricos apresentados. A ideia
do sentido musical como uma experiência individual e condicionada pela faculdade mental de
organização em padrões dos estímulos recebidos, obteve sua “ressonância” nas teorias de
análise de discurso que pretende justamente investigar as experiências dos entrevistados por
meio da contextualização de suas falas. A opção pela realização dos experimentos com apenas
um participante—I. Boudrioua—, se justifica pela própria premissa teórica da individualidade
da experiência do sentido musical, bem como pela representatividade do expert. Transcrever os
solos improvisados de Boudrioua foi uma opção baseada na necessidade de produção de um
texto musical que possibilitasse a busca por RGC na prática do entrevistado, bem como uma
espécie de “verificação” de seus depoimentos em sua prática improvisatória, que ainda
resultaram na produção de um álbum completo das transcrições dos solos improvisados de
Boudrioua, um material com finalidades didáticas e muito comum entre os jazzistas desde os
primórdios da história do gênero musical norte-americano, e um dos pilares da produção
pedagógica jazzística contemporânea desde suas bases oriundas do final dos anos 1950.
6 CONCLUSÃO

Esta pesquisa surgiu de uma curiosidade inicial sobre os processos cognitivos


envolvidos na improvisação jazzística; sobre como o aparato cognitivo humano lida com as
diversas atividades concomitantes no ato da performance de um solo improvisado. E, mais
especificamente, o estudo pergunta como um solista improvisador experimenta o sentido
musical, sendo ele mesmo o agente criativo, o performer e também o ouvinte da obra musical
em questão. Dentre todas estas questões, a principal motivadora deste trabalho foi sem dúvida
a questão do sentido musical: de como um solo jazzístico improvisado faria sentido, e de como
o solista improvisador entenderia e atuaria com vistas a realizar um solo improvisado coerente.
Coerente com o que?
Ao refletir sobre estas questões me vi, inevitavelmente, diante da tarefa de buscar
entender o conceito de sentido musical em primeiro lugar, para posteriormente seguir para a
compreensão deste conceito no âmbito da improvisação jazzística. Esta jornada em busca do
entendimento do sentido musical acabou produzindo uma investigação preliminar sobre este
conceito, conforme entendido tradicionalmente no meio acadêmico. Partindo das ideias
propostas por Hanslick (1981, 1854) e de suas reverberações em diversos outros autores, até o
discurso de alguns contemporâneos, foi necessário compreender a visão do chamado
formalismo musical sobre o sentido musical. De acordo com essa corrente teórica, o sentido
musical seria uma propriedade emergente de relações entendidas como coerentes entre
elementos “puramente” musicais que, em conjunto, gerariam uma “estrutura” ou a chamada
forma musical, atingindo assim, o objetivo de encontrarmos o sentido, musicalmente falando.
Qualquer outra corrente teórica que defenda a necessidade de qualquer que seja a ligação da
música com algo extra-musical para conferir sentido a esta, está se opondo ao principal ponto
da teoria formalista—o sentido musical como estritamente musical, inerente à música e sem
quaisquer elementos determinantes além dos elementos musicais, sendo necessários para que
esta faça sentido. Tradicionalmente, observa-se um tipo de círculo fechado no qual a teoria
busca descrever e explicar um tipo de música (a chamada absoluta, no caso da teoria formalista)
que é pensada e composta com base na própria teoria. Neste ponto se fez necessário entender
até que medida esta visão do sentido musical se aplicaria a uma prática totalmente atrelada à
performance musical e, portanto, de um processual tão distindo, enquanto ato criativo
(composicional), da composição tradicional.
O principal diferencial encontrado entre a composição tradicional e a improvisação
jazzística na literatura especializada ainda se revolve sobre o dualismo música escrita/música
158

improvisada. Este dualismo, além de ser problemático, não contempla, como procurei
esclarecer, os aspectos diferenciadores entre as duas práticas que são de suma importância para
o presente estudo. É fato que a composição tradicional e a improvisação jazzística diferem mais
notadamente, a princípio, no processual de cada um destes processos criativos: a composição
tradicional sendo atrelada ao uso das ferramentas notacionais, e a improvisação jazzística
comprometida com a performance musical e suas condições situacionais. Como discutido no
capítulo 2, a composição tradicional certamente também envolve uma dimensão situacional em
seu processual. No entanto, dada a esfera temporal de ocorrência entre esta prática e uma outra
ligada à volatibilidade de uma performance musical ao vivo, parece não haver dúvidas de que
no caso da improvisação jazzística as interferências ambientais e intrínsecas à performance
musical no ato da improvisação desempenham um papel muito mais determinante. Soma-se a
isto o fato de que a diferenciação calcada no uso da escrita já mencionada—música
escrita/música improvisada— também se mostrou problemática quando vista à luz do conceito
de escrita conforme discutido por teorias contemporâneas do conhecimento (DERRIDA,
(1973), segundo as quais, a grafia propriamente dita, passa a configurar uma representação de
ideias que também são representações num eterno ciclo de remetimentos no qual não existe um
original a ser representado por qualquer que seja o meio. A escrita (ou escritura), segundo esta
visão, passa a configurar algo muito maior e anterior a qualquer grafia, ela é a própria condição
para a emergência da linguagem e suas grafias, é o filtro que organiza e condiciona as ideias.
Sendo assim, quando um compositor tradicional faz uso da escrita e de suas técnicas
tradicionais—qualquer que seja o produto de seus atos criativos—, estas ideias musicais
representadas já passaram pelo filtro condicionante da sua própria escritura, sua cultura, sua
história, muito antes de chegar à forma notacional, no papel ou na tela do computador. E do
mesmo modo, quando o improvisador jazzista expressa seu discurso musical em um solo
improvisado, também está, segundo Derrida, escrevendo, pois tudo o que ele cria no ato da
performance também passa por sua escriturabilidade. Analisando desta forma, e do ponto de
vista dos objetivos desta pesquisa, a diferença mais significativa entre ambas as práticas não
está necessariamente na escrita, mas na situação de cada evento criativo: um focado na situação
notacional (composição tradicional) e o outro intrinsecamente ligado à situação de performance
(improvisação jazzística).
O fator decisivo na construção da linha argumentativa do presente estudo foi sua
fundamentação teórico-metodológica das ciências cognitivas incorporadas, partindo do
conceito de experiência de John Dewey (1997, 1929) como interação entre agente e meio
ambiente que se influenciam mutuamente. Este campo de investigação da produção de
159

conhecimento entende o sentido em geral como uma experiência por meio da qual o cérebro
humano recebe algum estímulo do ambiente, passível de ser categorizado em padrões. Logo, o
sentido musical, segundo esta corrente teórica, não estaria localizado nem na obra musical, nem
na mente do ouvinte, mas seria intrínseco à experiência musical de cada ouvinte. Deste modo,
uma teoria totalmente focada na abstração de “estruturas” em um fluxo musical, alheia à
experiência do ouvinte, como o formalismo tradicional, definitivamente não teria aplicabilidade
numa pesquisa cujo objetivo é compreender justamente a experiência do sentido musical por
parte de um solista improvisador jazzista no ato da performance.
Com base no referencial teórico das ciências cognitivas incorporadas, adotei na
presente pesquisa a concepção do sentido musical como uma experiência individual de cada
ouvinte condicionada pela capacidade cerebral humana de organização dos estímulos musicais
em padrões, proporcionando a experiência de uma escuta coerente. Tal definição de sentido
musical pode explicar como a música faz sentido para o ouvinte, mas deixa ainda uma lacuna
quanto ao entendimento dos processos formadores de sentido musical em situações nas quais o
primeiro ouvinte é também o performer e o agente criativo de ao menos parte da obra musical
em tempo real. Em busca de elucidar estas questões no âmbito da improvisação jazzística, segui
para a discussão terminológica que justificasse minha opção por este termo. Debatendo o
conceito de improvisação no universo musical e também as origens e práticas características do
gênero musical jazzístico, identifiquei a prática objeto deste trabalho como um tipo de
improvisação idiomática por meio da qual partes solistas melódicas são improvisadas no ato da
performance de qualquer que seja o gênero musical. Este processo conjuga os idiomatismos do
gênero musical em contexto no momento com práticas improvisatórias ligadas à criação de
linhas melódicas improvisadas sobre progressões harmônicas de acompanhamento.
Tendo em vista o caráter individual da experiência de sentido, conforme proposto
pelas linhas teóricas adotadas, considerei fundamental para a investigação dos pressupostos
teóricos do presente estudo, bem como um primeiro teste fundamental para o modelo de coleta
e tratamento de dados, a realização de entrevistas com um solista improvisador que, dado seu
status profissional que o identifica como um expert, representasse legitimamente os
improvisadores jazzistas de um modo geral. A escolha por entrevistas se deu por entender que
dada a individualidade da experiência de sentido musical, a coleta de depoimentos de um artista
é a melhor forma de penetrar no universo de suas experiências. Decidi entrevistar I. Boudrioua,
porque além de se tratar de um artista de renome no Brasil e no exterior como improvisador
jazzista, e possuir discografia consistente—com 6 álbuns solo gravados ao longo de cerca de
25 anos de carreira—, é também saxofonista como eu, o que me facilita a compreensão de
160

diversas especificidades instrumentais. Além disso, Boudrioua foi meu professor de saxofone
e improvisação por cerca de 6 anos, durante os quais também criamos laços de amizade que
perduram até o presente. Estes fatos, além de facilitarem meu acesso ao referido artista para a
realização do estudo de caso realizado, me levaram a crer que poderiam acrescentar ainda mais
à minha compreensão de suas experiências, reveladas em seus depoimentos e práticas
improvisatórias. Além de uma primeira entrevista formulada com base em minhas hipóteses
conceituais e assim averiguar o entendimento e as experiências de Boudrioua com a ideia de
coerência, sua escriturabilidade e os processos de memória envolvidos na improvisação
jazzística, julguei também necessária a realização de uma segunda entrevista tomada
imediatamente após a gravação de uma performance ao vivo do participante realizada
especificamente para este trabalho. O objetivo desta segunda entrevista foi o de inquirir sobre
os mesmo tópicos da primeira entrevista, porém voltados especificamente para uma
performance recente, cujos processos de construção estariam muito mais acessíveis à memória
do entrevistado. As entrevistas foram transcritas e analisadas com base nas teorias de análise
de discurso. Decidi por me basear nestas teorias, dada a afinidade que apresentam em suas
premissas com o referencial teórico que adotei na pesquisa. Como já discuti, de acordo com as
ciências cognitivas incorporadas, o sentido musical é uma experiência individual atrelada às
faculdades mentais de processamento de padrões. Logo, o foco das teorias de análise de
discurso, que pretendem revelar a experiência do entrevistado por meio da contextualização de
suas falas, me pareceu a escolha ideal. Em linhas gerais, a análise das entrevistas revelaram que
Boudrioua entende coerência como as relações entre as melodias e as progressões harmônicas
de acompanhamento, conforme a pedagogia de improvisação jazzística discutida no capítulo 3.
Seu discurso revelou uma transcendência dos aspectos técnicos básicos da improvisação e da
técnica instrumental, em favor da busca pela criação de melodias que atendam às suas
expectativas estético-musicais. Boudrioua entende que a prática cotidiana de patterns de
improvisação é fundamental para a construção de um vocabulário, e que estes patterns são
utilizados como “peças de encaixe” no ato da performance. Em sua visão, os RGC consistem
em estar preparado tecnicamente para improvisar e ter completa consciência da forma do chorus
sobre o qual irá criar seu discurso melódico. Seu discurso indica uma grande dependência em
processos de memória de longo prazo, mais especificamente na memória motora. A memória
ecóica e a memória de trabalho, na fala de Boudrioua, também têm uma atuação importante no
ato da improvisação por possibilitarem uma espécie de retro-alimentação do discurso melódico.
Isto se dá quando as frases executadas pelo solista são “inspiradas” pelo acompanhamento e
também passam a fazer parte do estímulo auditivo no qual o improvisador se baseia para seguir
161

criando novos trechos melódicos. Boudrioua entende este processo como “intuitivo”, por se
basear na escuta e na imaginação de melodias para a criação de seus solos. No entanto, segundo
podemos depreender de suas declarações, os processos de memória de longo prazo, de
armazenamento de frases pré-compostas e condicionamentos motores, são a base de todo
preparo que um improvisador deve ter para a realização de solos improvisados que façam
sentido.
Além das entrevistas, entendi ainda ser necessário transcrever solos improvisados
de I. Boudrioua como uma forma de produzir textos musicais passíveis de análises que
complementassem os dados obtidos por meio das entrevistas, e talvez revelassem algum uso
recorrente de RGC. Assim, optei por transcrever todos os solos improvisados contidos na
discografia solo de Boudrioua como uma forma de obter um conjunto de transcrições que
tivessem alguma representatividade em sua carreira. Além dos seus 6 álbuns gravados entre
1986 e 2011, também transcrevi a performance ao vivo gravada especialmente para este
trabalho e as duas músicas citadas no curso das entrevistas: Tema da Tarde, do CD Adriano
Giffoni (1992), e Bonne Chate, do álbum Deboche (2014) da cantora Helô Tenório. No total,
42 músicas foram transcritas, fornecendo dados importantes sobre o uso de RGC e também
como complemento às informações advindas das entrevistas, tendo ainda como subproduto um
álbum com todos os solos improvisados de Boudrioua em toda a sua discografia solo. Advirto
que esta contribuição é inédita, tanto na carreira de Boudrioua quanto na de qualquer outro
artista brasileiro ou estrangeiro atuante no Brasil (como é o caso do próprio Boudrioua).
As análises destas transcrições assumiram um viés muito mais quantitativo do que
eu imaginava inicialmente. Quando aprofundei a elaboração do processo de tratamento dos
dados das transcrições para a obtenção das informações de interesse deste trabalho, acabei
decidindo por analisar comparativamente o grau de ocorrência das categorias de RGC que
propus. Desta forma entendi que uma abordagem estatística seria a melhor maneira de proceder.
Tomando o compasso como unidade a ser contabilizada, tanto pela facilidade de contagem
quanto pela reprodutibilidade que isto proporcionou ao experimento, calculei as porcentagens
de compassos com ocorrência de uma ou mais dentre as categorias de RGC propostas, bem
como também a porcentagem de ocorrência de cada uma destas categorias. Estes procedimentos
revelaram que Boudrioua utilizou RGC em mais da metade de todos os solos transcritos. No
entanto, apesar de seus depoimentos nas entrevistas darem enorme ênfase no emprego de frases
pré-compostas, estas não foram as mais frequentes em seus solos analisados. Ao invés disso, as
frases baseadas em arpejos tiveram maior ocorrência, fato que pode ser entendido como
corroborador do entendimento de coerência em música por parte de Boudrioua. Se para ele
162

coerência é somente aquela entre as melodias e os acordes, faz sentido que frases baseadas em
arpejos—acordes “soletrados”—sejam as mais frequentes por garantirem um alto grau de
coerência com a progressão harmônica de acompanhamento. Não obstante, as frases baseadas
em arpejos e as frases pré-compostas obtiveram percentuais relativamente próximos, se
comparados com os das demais categorias de RGC, fato este que pode estar relacionado à não
rara conjugação entre ambas as categorias: de frases pré-compostas que são baseadas em
arpejos, por exemplo.
Outro dado interessante que emergiu das análises das transcrições foi a não
correlação entre os andamentos das músicas e o percentual de ocorrência dos RGC. A princípio
imaginei que conforme o andamento fosse aumentando, a sobrecarga no aparato cognitivo
resultasse em menor grau de produção criativa por parte do solista e, consequentemente, num
maior uso de frases pré-compostas. Apesar disso, os dados não revelaram qualquer relação entre
uma coisa e outra. Isto pode significar que Boudrioua tem razão, quando afirma que o que faz
diferença de fato é o preparo técnico do improvisador, e que quanto maior for este preparo,
mais irrelevante são os demais parâmetros técnicos e situacionais que poderiam interferir no
desempenho do improvisador. Curiosamente, uma das transcrições na qual registrei o maior
índice percentual de RGC foi justamente a da música com o andamento mais lento de todas
(50bpm): Pensa que me amou, do álbum Laura (2011), com 94,12% de ocorrência de RGC.
Contudo, cumpre assinalar que apesar do andamento lento, Boudrioua tocou esta música, todo
o tempo, em subdivisões do pulso, o que dá a impressão de estar tocando no dobro do
andamento—prática comum entre os jazzistas quando improvisando sobre músicas lentas.
Mesmo assim, o andamento desta música, se for dobrado, fica em 100bpm, bem abaixo da
média de andamentos das músicas transcritas (169bpm) e também bem abaixo da música com
o menor índice percentual de ocorrência de RGC: Alone Together, do CD Joy Spring (1998),
executada em andamento em torno de 140bpm e um percentual de ocorrência de RGC de
41,38%. Por fim, o tratamento mais quantitivo aplicado às análises das transcrições dos solos
de Boudrioua possibilitaram diversas comparações entre as ocorrências de RGC e também
proporcionaram complementações fundamentais às declarações concedidas nas entrevistas.
Após a realização e análise de entrevistas e diversas transcrições parece estar claro
que, no contexto da improvisação jazzística, o sentido musical, para o solista improvisador,
ocorre, a princípio, da mesma forma que para qualquer ouvinte: por meio de uma escuta musical
passível de ser processada pelo aparato cognitivo, originando uma experiência coerente, que
faz sentido. A situação de performance influencia o agente improvisador de diversas maneiras,
mas seu intento em criar partes solistas melódicas que façam sentido permanece apenas
163

variando o grau de espontaneidade deste ato, que pode ocorrer de maneira muito concentrada,
doada e criativa, ou representar para o artista um frio e árido “cumprimento do dever de
improvisar profissionalmente”. Neste caso, os RGC empregados não se alteram. São eles:
melodias coerentes com a harmonia, interação com os acompanhadores, busca pela realização
de melodias que atendam às expectativas estéticas do performer. Para atingir estes objetivos, o
improvisador jazzista vale-se de muitos anos de uma rotina constante de estudos técnicos e de
memorização/assimilação de patterns e progressões harmônicas que comporão o seu
vocabulário.
No presente estudo, Idriss Boudrioua foi escolhido como o expert que representa
uma classe de artistas e, até certo ponto, “fala” por eles. Em seus depoimentos e nas transcrições
de seus solos podemos verificar a formação do sentido musical como uma consequência
inevitável de seu empenho “intuitivo” em criar “belas melodias” que transcedem os aspectos
rudimentares da técnica instrumental e da improvisação, mesmo confirmando a coerência
conforme a pedagogia melodia/acorde do jazz a partir dos 1960, o estudo dedicado e o uso de
patterns: a influência marcante de sua cultura musical baseada principalmente no bebop e na
bossa nova. Neste caso parece que se confirma a hipótese de que o sentido musical é uma
experiência individual condicionada pelas faculdades mentais. No caso de Boudrioua, o sentido
musical se revelou como sua experiência própria de, no âmbito dos padrões de coerência que
ele entende, criar discursos melódicos improvisados, por meio dos padrões que sua mente é
capaz de processar e de acordo com o universo de escolhas que ele próprio elegeu como
cabíveis. Pode-se dizer que, de acordo com Boudrioua, improvisar faz sentido.
Apesar da representatividade que Boudrioua possa de fato ter como expert, o que
será que a reprodução dos experimentos aqui propostos ou outros similares revelariam quando
aplicados a outro artista de estilos e influências diferentes, ou até mesmo a um grupo de artistas
do mesmo meio? O modelo proposto de coleta e tratamento de dados se mostrou eficaz em
revelar as experiências e práticas improvisatórias de Boudrioua, mas seus resultados nestes
trabalhos revelaram a comprovação dos pressupostos teóricos da pesquisa na particularidade
deste único artista. A realização destes experimentos com um improvisador jazzista menos
atrelado ao bebop, com influências mais marcantes de outros estilos musicais, não
necessariamente norte-americanos inclusive, certamente produziriam outros dados que
conduziriam a outras conclusões. Mesmo entendendo o sentido como uma experiência pessoal,
haveria algo nesta experiência que uma pesquisa aplicada a um grupo de participantes muito
maior e/ou diferente poderia revelar ser comum a todos? Ou talvez perfis de improvisadores
com características semelhantes emergissem de tal estudo? Mesmo com os resultados aqui
164

apresentados, a partir de trabalho realizado com um único artista, e tendo em vista os métodos
de improvisação jazzística que vêm sendo publicados desde o surgimento dos títulos
pioneiros—com base nas discussões conduzidas nesta pesquisa—, haveria uma forma mais
eficaz, mais cognitivamente instruída de se ensinar improvisação? Haveria algo mais a ser dito
sobre a pedagogia de improvisação, além dos rudimentos técnicos das progressões harmônicas
e estudos de patterns? Seria possível a realização de experimentos com vieses mais
neurocientíficos que pudessem instruir a discussão sobre os processos de memória envolvidos
na improvisação jazzística? Espero que o presente estudo também sirva como uma porta de
entrada para futuras investigações, que continuem a propor respostas e novos questionamentos,
fomentando a curiosidade e o interesse nesta prática criativa musical que tem movido tantos
artistas e admiradores da arte por todo o mundo há mais de um século.
165

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8 APÊNDICE A – TRANSCRIÇÕES

A.1 Transcrições dos solos gravados de I. Boudrioua


A.1.1 Laura (2011)
176
177
178
179
180
181
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198
199
200
201
202
203
204
205
206
207
208

A.1.2 Paris Rio (2004)


209
210
211
212
213
214
215
216
217
218
219
220
221
222
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225
226
227
228
229
230
231

A.1.3 Joy Spring (1998)


232
233
234
235
236
237
238
239
240
241
242
243
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260
261
262
263
264
265
266
267
268
269

A.1.4 Central Park West (1996)


270
271
272
273
274
275
276
277
278
279
280
281
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290
291
292
293
294
295
296
297
298
299
300

A.1.5 Jamal (1987)


301
302
303
304
305
306
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308
309
310
311
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317
318
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320
321
322
323
324
325
326
327
328
329

A.1.6 Esperança (1986)


330
331
332
333
334
335
336
337
338
339
340
341
342
343
344
345
346
347
348
349
350
351
352
353

A.1.7 Tema da Tarde (1992)


354
355
356

A.1.8 Bonne Chate (2014)


357
358
359

A.2 Transcrição da entrevista I com I. Boudrioua

Julio Merlino (JM): A primeira parte desta entrevista, tem a ver com sua formação: como você
chegou a ser o músico que você é hoje.
Idriss Boudrioua (IB): Hum-rum.
JM: Então eu queria que você falasse pra mim, sem pressa, tranquilo...
IB: Sim, sim.
JM: No seu tempo...
IB: Hum-rum.
JM: Do seu jeito, como você experimentou mesmo...
IB: Hum-rum.
JM: E como você entende essa experiência de como foi a sua formação...
IB: Certo.
JM: Né? Como é que você... quais foram as etapas da sua formação...
IB: Hum-rum.
JM: Né?... é isso.
IB: Perfeito! Então, o que me veio na cabeça agora, nesse exato momento, é: quando eu era
muito pequenininho, e que minha mãe me mostrou pela primeira vez na minha vida, é... Les
Feuilles Mortes—Autumn Leaves...
JM: Autumn Leaves.
IB: Ela cantou em francês, eu aprendi na hora assim... e já... e foi ali que ela descobriu que eu
tinha um ouvido bom e que... né?.. Então ela me... me ensinou a música... e...mas engraçado
que eu só fui lembrar quando eu estava no Brasil que foi ela que me ensinou essa música, no
meio de um show... e foi surreal que... caiu a ficha assim, eu falei no microfone: “Ah foi minha
mãe que me ensinou essa música quando era muito pequenininho!” As pessoas... A plateia veio
a baixo, né?
JM: É!...
IB: E... e eu falei: “por isso que eu gosto tanto dessa música e quando eu toco tem uma força
né?”...
JM: Han-ram...
IB: Lembrei no nada! Assim! Depois de velho! Então é... ela gostava muito de música e ouvia
música de boa qualidade assim, né? Tinha até um cantor francês chamado Claude Pascale...
JM: Sim...
360

IB: E ela tinha até o quadro do... o retrato do cara na cômoda de casa assim é... ele bonitão
assim né? Playboy, aquela coisa de cantor famoso... e cantava bem também, um grande cantor
francês: Claude Pascale!
JM: Claude Pascale!
IB: Que quase ninguém conhece... hoje em dia... e é... ela me ensinou essa música e algumas
outras, Tea for Two também... e eu aprendi... tanto que quando vinham umas amigas dela em
casa, ela me pedia pra can... as amigas queriam me ouvir cantando, e eu não queria porque eu
era tímido, né?.. e... era um drama pra eu cantar, mas quando eu cantava já cantava a música
certa, afinadinho e etc. Então minha formação musical eu diria que começou ali. Daí, na
televisão passavam aquelas músicas do Legrand... é... que era... que fazia... desenhos animados
pra França, quero dizer... música de desenhos animados, tinha uma que se chamava “Oum le
dauphin blanc”... [cantando o tema de abertura do desenho] On l'appelle Oum le Dauphin,
Dans son royaume aquatique, etc... é bem jazzístico! Desde pequenininho eu ouvia essas
melodias, né? Com nonas bemóis, décimas-primeiras aumentadas!... já pequeninho já me
cativavam. Daí, fui ouvindo... é... muito... tudo quanto é tipo de música... e a música francesa
também é... a mais conhecida, né? Ela é bem... ela é bem rica também. Não é como aqui no
Brasil que tem milhões de estilos e de... ritmos e... ela é uma coisa bem pouc... é pouquinha
coisa mas... mas quando é, é muito bom. Então é... é... eu fui vendo essas coisas na televisão e
já foi... essa é minha primeira influência mesmo, musical e que me... que me marcou e que me
fez ter um... gosto, o gosto que eu tenho até hoje, assim um... né?.. Daí depois eu fui é... eu tive
uma formação clássica... e... eu conheci o mundo do clássico, assim é... no conservatório... eu
me formei, com meu mestre... Daí eu comecei a... descobrir música brasileira, bossa nova... e...
adorava aqueles filmes, que é tipo... vamos dizer é... é... “Ao som do seu sorriso”, “Sound
Piper”, “Deus das ilusões” é... [cantando] the shadow of your smile... Isso tudo me falava,
assim... Eu diria que minha educação musical foi...música de filme: Nino Rota, é... mesmo
pequenininho já ficava ligado... tinha cinco anos de idade, eu já tinha escutado o filme “Orfeu
Negro” né?... eu já tinha assistido na televisão, tanto que eu estou aqui por causa desse filme
também...
JM: [risos]
IB: E tinha todas as bossas novas que a gente conhece, é... e aqueles sambas também, é... Então
era Jobim, Vinicius, Baden Powell, é Powéll que fala, né?
JM: Powell.
IB: Pauwéll.
JM: Pauwéll, tanto faz...
361

IB: Então eu já pequenininho já... já estava sabendo dessas coisas. Daí no meio do... do meu...
caminho, eu... conheci um monte de brasileiros, aí me mostraram um monte de coisas, assim,
eu ia na... eu vivia com eles, na casa deles, então, conheci é... Toninho Horta... é... Chico
Buarque, é... Gal Costa... esse pessoal todo já.... já ouvi já bem jovem assim... Então é... Daí
vim pra cá depois e... diria que a minha... pra realmente... de fato a pergunta... é... todas essas
músicas deram um... eu achei que eram parecidas... é... quando eu vi o Luiz Eça também, eu
achei que era... que era muito parecido com o Michel Legrand, é... pra mim, o Luiz Eça era o
Michel Legrand brasileiro... sem querer rotular, mas... a importância era tanto quanto, né? e...
continua me influenciando do mesmo jeito, assim... tudo fez uma...é, somou e... é... tudo que
aque... aquecia o meu coração, me fez evoluir e me fez é... ter certeza do que eu gostava...
mas... é.... mais ou menos isso.
JM: Então... assim... só pra ver se eu entendi direito. Você... você teve um primeiro contato
com a música com a sua mãe...
IB: Exatamente!
JM: E foi um contato marcante...
IB: Muito, muito.
JM: Um contato que... que foi importante pra você...
IB: Hum-rum.
JM: E... você... é... a partir disso, você continuou tendo contato com a música, através de
filmes...
IB: Exatamente!
JM: Né?... televisão... e aí... você teve esse despertamento para música...que não era para
música clássica, era para música mais jazzística?
IB: É porque na realidade, é... eu sou uma pessoa um pouco... minha mãe me chamava de
colibri... colibri é... igual aqui: colibri, né? É beija-flor, acho que é... né?... a tradução, mais
ou menos... Porque ela dizia, ela dizia assim é... talvez tenha coisas na sua... na gravação,
depois você... você faz uns cortes... ou...
JM: Não...
IB: Você que vai decidir...
JM: Isso aí é tranquilo...
IB: Mas eu quero falar mais e você cortar do que deixar de falar coisas que podem ser
importantes.
JM: Nada vai ser cortado [risos].
362

IB: Porque ela dizia que era... que ninguém ia me... me... me adestrar... nunca! Ela já sabia
desde que eu era pequeno que ninguém ia me adestrar. Ela não estava errada não. Porque que
eu estou falando isso?...
JM: Eu perguntei pra você...
IB: Isso, isso!
JM: Eu falei... eu perguntei para você se... se eu tinha razão em dizer que, pelo que você acabou
de me falar, a sua fo... a sua... o seu despertamento para música foi com músicas... que, por
exemplo, a gente pode dizer que são mais jazzísticas do que clássicas.
IB: Ah, isso! Exatamente, agora me fez lembrar. Exatamente. Então, aí eu... eu tive uma
formação clássica... é... só que antes do clássico eu até, eu estudei com particular, é que... do
vilarejo onde eu morava, que a fanfarra não tinha me aceitado como... o... na banda... do
vilarejo... porque como eu era de outra família, eles achavam que meus país me recuperariam
lá na frente, que eu iria voltar para os meus pais, e outra cidade...
JM: Ham-ram...
IB: E perderiam um membro do... da fanfarra do vilarejo... então me aceit... não me aceitaram.
JM: Entendi.
IB: Daí eu fui estudar com particular quer era amador, assim e... com pouco tempo, e um ano
e pouco já... já tinha adquirido um nível tão bom quanto o dele e... ele falou para o meu... pai
adotivo lá... pai de criação: “Olha, esse menino é... tem que... agora colocar numa pess... com
alguém mais é... mais... é uma formação...” Então aí eu me formei no... eu fiz conservatório
né?... E daí é... meu mestre falou: “Olha, você...” (depois você pode cortar também), ele falou
que eu tinha dedos de ouro. É... ele quis falar do dom que eu tinha, de ser... ser fácil para mim,
né?... Aí, ele me encaminhou para um mestre, quer era... prêmio de Genève, que se chama...
Nuout... agora, o primeiro nome dele... esqueci o primeiro nome, mas era Nuout que era da
guarda republicana de Paris, assim como meu professor também era, eles faziam... eles tinham
um quarteto: un quatuor, também da guarda republicana, um troço muito importante... e o
Nuout quando me ouviu... num exame lá... ele falou: “eu quero esse cara. Na minha sala, que
eu vou botar ele para ser um virtuoso, para tocar concertos e...” Aí eu cheguei para o meu
professor e falei...: é... o que ele vai me ensinar é... a mais do que o senhor? É... o meu mestre,
que era um mestre de verdade, já te falei muito dele...
JM: Ham-ram.
IB: Ele falou: “ele vai te ensinar coisas diferentes.” Mas eu sabia também que às vezes ele
dava uns tabefes nuns caras lá que... que não levavam muito a sério [risos], eu falei: não! Eu
não quero não! Eu sei, eu me lembro que meu mestre... o... eu lembro do olhar dele... é...
363

brilhar, ele gostou do meu... de eu não querer ir lá, de eu querer ficar com ele. Eu sabia que a
minha... meu caminho não era ser um virtuoso. Primeiro que eu sou preguiçoso...também,
talvez, não sei se eu tinha essa capacidade toda que o... o Nuout tinha visto em mim, não sei...
eu... tinha medo também... Aí eu resolvi ficar com meu mestre e... fui conhecendo os meus
amigos brasileiros ouvindo... é... bossa nova pra caramba, jazz... Aí eu... eu gosto muito de
ouvir música clássica mas eu não... eu não quis continuar nesse ramo porque... não sou
disciplinado a ponto de... sabe? Eu gosto da liberdade do colibri, voltando para o colibri...
improvisar, ser livre pra fazer... pra fazer o que eu quero... Então é... é... eu acho que eu
respondi mais ou menos o que você perguntou agora, né?
JM: É... eu estava só tentando... é pra eu me certificar...
IB: Sim, certamente.
JM: Do que você está falando.
IB: Exatamente. Exatamente.
JM: Você teve... o que eu... o que eu... o que eu estava, o que eu estava me referindo, assim,
você teve um... um despertamento pra música, que não foi com a música clássica...
IB: Não.
JM: Você teve uma formação clássica...
IB: Sim, sim, sim.
JM: E essa formação começou depois que você já estava interessado...
IB: Exatamente.
JM: Em música...
IB: Sim, sim...
JM: De outras formas... você...
IB: Sim...
JM: Quando você se interessou... quando você começou a estudar clássico, você já estava
estudando música... popular, ou o clássico foi a primeira escola formal que você teve? digamos
assim.
IB: Não, eu... eu... é... eu... quando eu comecei a estudar clássico, para o conservatório, eu já
ouvia aquelas músicas todas...
JM: Mas você já tocava?
IB: A... não, não porque, é... sim, não... eu tocava sim. É... algumas coisas conhecidas assim,
mas poucos, poucos... é... sucessos... Me lembro até hoje da primeira música que eu aprendi
com o... com meu professor particular que se chamava “Ratatá”. Que era do Antoine, que até
foi famoso no mundo inteiro, e me falaram aqui: “Não, eu conheço essa música!” Eu lembro
364

até hoje. Eu sei tocar até hoje. Que era assim, o sax... é... a primeira música que eu aprendi...
e que... era fácil de tocar, assim... era... a letra é feia... que é só ratatá... [I.B. canta a música].
Essa foi a primeira música que eu aprendi na minha vida e eu tocava... é... nunca errava,
porque era muito simples e... Mas eu gostava porque... era... a primeira coisa que eu aprendi
na vida... no saxofone. Então quando eu... entrei no conservatório, é... já tocava essas coisas
que eu aprendi com o primeiro professor isso aí, é...
JM: Entendi.
IB: Particular, né?...
JM: Mas aí também, né? Você diria que... foi só no conservatório que você começou a estudar
saxofone...
IB: Sim, seriamente, a vera, com mestre...
JM: Entendi.
IB: Que foi igual a um pai, inclusive...
JM: O conservatório... de Arpajon?
IB: Arpajon.
JM: Foi onde você se formou?
IB: Sim, foi onde eu me formei.
JM: E aí... assim... é... você se formou então saxofonista clássico?
IB: Sim.
JM: Formalmente falando...
IB: Sim, sim, sim.
JM: Apesar de toda a influência da música popular...
IB: Claro, claro.
JM: É... e aí... durante o conservatório, você... manteve contato com a música popular, com o
jazz?
IB: Ah... sim, sim... mantive... e... até mesmo... é... depois de já bem adiantado no conservatório
eu, eu larguei um ano é... de... com o meu mestre... porque eu também fazi... eu praticava judô
e era a minha vida também, eu levava tanto a sério a música quanto o judô, né? Até mais o
judô do que a música. A música para mim era um... dile... dilettante? Diletante? Não, não existe
essa palavra. Isso é em francês: dilettante.
JM: Diletante existe...
IB: Não, era... era...
JM: Em português é o substantivo.
IB: É...
365

JM: [risos]
IB: É.. então. É então. Eu... eu... levava mais a sério uma época, no... no final assim, é... do
conservatório, o judô do que os meus estudos no conservatório. Aí eu... mas eu continuava
tocando, só que eu não ia mais para o conservatório. Aí meu... um amigo meu pianista chamado
Jean-Pierre Mas que é um cara que faz muita música de filme... ele falou: “Idriss porque você
deixou seu professor que tanto gostava de você, que era como um pai pra você, e você como
um filho pra ele?” Eu estava no exército, é... servindo na... na música, né?... aquele ano
obrigatório... Aí eu pensei assim: ele tem razão, porque que eu... eu vou ligar pra ele... só
porque ele me falou eu liguei. Eu era muito ingênuo, inocente... não esquentava com nada. Daí
eu liguei, ele... eu me lembro que ele ficou muito feliz, aí ele falou é...: “Idriss, tem um... vai
ter um concurso agora para... premiação do... para o prêmio de superior é... para finalizar
tudo... É agora, se quiser você faz!” Eu me lembro que eu... falei: caramba! Faltava um mês,
nem um mês, três semanas! Era um concerto difícil. Vários movimentos... E meus colegas do
exército que eram todos prêmio de Paris, e tudo... altíssimo nível, falaram: “Idriss, esquece
isso aí! Não vai dar certo não...” Aí eu sei que eu... eu era muito ruim de... de leitura porque
eu nunca praticava, nunca ia para o... na aula de solfejo. Só ia na aula de saxofone, o solfejo
não me interessava não [risos]. Aí meu professor me gravava o concerto, e daí eu aprendia
ouvindo, e aí eu decorava... eu me saía bem... eu lia, mas não tinha uma... leitura péssima! No
exército que eu aprendi a ler... melhor. Daí eu sei que o... eu fui fazer o exame e... eu... fiquei
nervoso demais... eu tremi, eu toquei mais rápido do que devia. Eu não errei... por sorte! Não
é porque eu sou bom não, por sorte eu não errei... Foi alí que o Nuout me viu lá, que me falou:
“Eu quero esse cara na minha sala.” E aí eu passei, eu... recebi meu diploma e... deu tudo
certo.
JM: [risos]
IB: Sorte!
JM: Bacana. Bom, depois do conservatório... né?
IB: Sim.
JM: Você saiu do conservatório, você... voc.. assim... que tipo de... de... de... de atividades
você... começou a... a fazer de maneira mais recorrente depois do conservatório? Você tocava
mais jazz, você não tocou mais clássico, como é que foi isso?
IB: Sim, é... não eu realmente eu... larguei o clássico. Eu... tocava muito é... com aqueles play-
a-longs assim o dia inteiro. Não praticava muito escalas, é... arpejo, essas coisas. Foi no tempo
do conservatório e mesmo assim não... nunca... é... me... é... Nunca peguei pesado com isso
não. Porque... bom, tinha facilidade, mas... Mas o jazz eu... tinha... tinha dia que era o dia
366

inteiro tocando a mesma música e... parava um pouquinho e voltava, e... mas algumas horas,
é...
JM: Praticando improvisação?
IB: Praticando improvisação. Repetindo um milhão de vezes a mesma coisa. Isso foi depois e
me... durante o conservatório também o... eu, a...
JM: Fazia isso?
IB: Bem ligado. É...
JM: Você falou que você aprendeu a ler um pouco melhor no exército...
IB: Sim, sim.
JM: Né?... Então assim, você... De um modo geral, você diria que a... a notação musical, a
escrita da música... ela, ela... ela... nunca foi uma coisa crucial pra você, importantíssima
assim, de primeira ordem? Né?... Ela esteve presente, claro, porque você é músico, você
escreve, você lê, mas... ela não era não era uma coisa assim de suma importância?
IB: É uma excelente pergunta! Mas na realidade é muito... ah, ah... o, o... do jeito que foi, foi
muito... muita bobagem. Porque? Muita infantilidade. Porque quando eu encontrei meu mestre,
é... que eu tanto gostava, que eu já falei muito pra você, o Maurice de l’Arbre... que era aluno
do Marcel Mule e do, do... de Lacou... do, do... Deffayet! Eu fui fazer minha primeira aula de
sax ele e o... eu adorei! Ele me tratou... muito bem, ele foi delicado, gentil comigo. Eu era...
tinha um jeitinho meio selvagem, ele entendeu e me... nunca me bruscou. Daí a segunda aula
era... com um monte de gente numa sala que era solfejo. Eu não sabia eu tinha solfejo também
para fazer. Aí aquilo ali me assustou e eu acabei não, não... frequentando essas aulas, aí ele
me cobrava, ele falava: “... pois eu não te vi na sala lá... você tem que ir lá, isso é importante.
Senão você não vai passar de ano!” Aquela coisa... Então isso me, me afastou. O fato de que
tinha um monte de gente na mesma sala eu... coisa de criança assim... Isso foi o último, o único
motivo... por isso eu não aprendi a ler bem no... no conservatório porque... era... era, eu não
gostava de ter muita gente junta, eu queria estar sozinho com o mestre... coisa de criança...
Mas eu digo que eu aprendi a ler no exército porque lá era obrigado, porque tinha as partituras
lá, tinha que ter... eu tocava barítono... então foi ali que eu me desenvolvi mais, eu fui obrigado
a ler, e a prática, não tem nada melhor.
JM: Hum-rum...
IB: E... eu era o pior leitor que tinha lá no... no... dos que eram, é... não os engajados, os ap...
o... os... que passavam só um ano. Não dos profissionais mesmo...
JM: Sim, sim...
IB: Que em francês é “engagé”... engajado, não é? Que...
367

JM: Hum-rum...
IB: Que recebe do exército... e o cara que é a...
JM: Só o serviço obrigatório?
IB: Isso! Aí eu era o mais fraquinho. Os... os profissionais do... eram, eram fracos, então eu
não... era, era mais ou menos igual a eles...
JM: [risos]
IB: Depois... é... depois que eu, que eu melho... melhorei muito, que aí eu aprendi mesmo, tive,
tinha que ler e...
JM: Entendi. E... e vo... e você... assim... a questão que eu estou tentando entender é a
seguinte...
IB: Sim...
JM: É... você, você... você acha que depois que você se formou, né? Quando você... digamos
assim, começou sua carreira profissional, a...
IB: Ah sim...
JM: A... a escrita musical, a notação, a leitura... a escrita de um modo geral, ela... ela... ela...
ela tinha uma... um, um... um, um... uma relevância secundária na sua atividade, ou era, ou era
muito importante?
IB: Não. Ela tinha uma relevância secundária. Para mim o negócio era criação, né? E...
improvisar, é... saber bem tocar um tema, eu decorava bem... Mas eu sofri por não ler bem,
porque quando eu... me chamavam para um trabalho que tinha leitura, demorava o dobro,
eu...via todo mundo resolver e eu arrastando... essas coisas... Então, tinha... pra mim era
secundário, mas... talvez porque eu não levei a sério, e... me assustava, eu falei: “caramba!”...
As vezes até recusava algum trabalho porque eu sabia que tinha muita leitura e eu não me
achava à altura, né? E... Então eu diria que era secundário, mas por...
JM: Você se focou sempre mais... na performance instrumental, na improvisação?...
IB: No meu caso, sim. É...
JM: Entendi.
IB: Me foquei muito nisso.
JM: E assim, o que que você diria que você... é... bom, você... você veio pro Brasil... quanto
tempo depois de ter se formado lá no conservatório, você lembra?
IB: Vou lembrar. Porque... é fácil, porque eu estava no exército quando eu peguei o diploma...
é... eu entrei lá com dezoito anos até os dezenove... dezenove anos, devia ter mais ou menos
dezenove anos... quando eu recebi o diploma...
JM: Ham-ram...
368

IB: Daí eu saí do exército... voltei um pouquinho na Selmer, trabalhei um pouquinho, mais uns
meses... poucos! Eu já quis ir embora... Aí eu montei uma oficina em Paris com um amigo, com
um amigo que você conheceu: o Étienne...
JM: Sim.
IB: E aí eles ficavam... ficamos um ano e meio e aí eu... aí eu fui, eu vim pra cá. Vim pro Brasil.
JM: Então...
IB: Continuando tocando ao mesmo tempo sempre, assim... com um grupinho ali...
JM: Você... é... eu me perdi aí nessa história...
IB: Hum...
JM: Você... você veio pro Brasil... cerca de... de que? Uns três anos depois que você se formou?
IB: É por aí... eu me formei com dezenove... vinte, vinte e um, vinte... exatamente três anos!
JM: Três anos?
IB: Três anos. É.
JM: Durante esses três anos, você trabalhou na Selmer... você tocava no exército...
IB: É... antes daqueles três anos eu...
JM: Já trabalhava na Selmer?
IB: Sim, sim. Eu entrei com quatorze anos.
JM: Hum... Então assim... é... Na França, fora a questão do... do conservatório...
IB: Hum-rum...
JM: O que que você... o que que você... fez em termos de... de... de música profissional, assim...
IB: Muito pouca coisa! Eu... gravei alguns discos de amigos, assim, né? ... Tudo sempre com
gente assim bem conhecida e... por sorte. E... eu... tocava em alguns big bands... a... fazia...
tocava como... músico de orquestra assim, um pouquinho... eu montei um grupinho, né? Que
eu tinha... um... quinteto... que era: guitarra, sax, piano, bateria, ... contrabaixo... e... depois...
é isso aí, quinteto. No começo era um quarteto, sem piano, depois entrou uma pianista: a
Françoise Pujol... Aí tocávamos aos pouquinhos assim... e... convivi... dava canja... assistia...
Mas a... minha vida... é... profissional mesmo, a vera, começou no Brasil.
JM: Sim.
IB: De fato.
JM: Entendi.
IB: Mas quando eu cheguei eu já tocava direitinho, já tinha uma formação boa...
JM: Entendi.
IB: Porque eu tocava em alguns lugares lá também, né? Mas...
JM: Então você... você... você tocou predominantemente música popular, né?
369

IB: Sim. Sim. Sim.


JM: Clássico?
IB: Não, clássico... Toquei quando eu estava no conservatório assim, né?...
JM: Depois nunca mais?
IB: Com orquestra... o... é... depois nunca mais.
JM: Entendi. E... era sempre, e era sempre voltado para improvisação, sempre tinha...
IB: Ah... basicamente, é. Na França eu fazia baile, eu fazia alguns bailes também, né? Que lá
o francês ele diz assim, que o bom músico é... que seja de jazz e... ele tem que ter passado pelo
baile...
JM: Entendi.
IB: Eu passei pelo baile, mas pouco... é... tocava... com alguns ciganos as vezes, me chamavam
para um trabalho pra andar trezentos quilômetros pra tocar com acordeom, é... é... sax, é...
caixa, sabe? Coisas simples... Mas que... todo mundo tocando muito bem assim...
JM: Entendi.
IB: Né?
JM: Maneiro.
IB: Mas sempre com improvisação no meio sim.
JM: E aí você chegou no Brasil em oitenta e...
IB: Dois.
JM: Dois, né? Exato. E aí, quando você chegou, de lá para cá, você... o que você mais fez foi
tocar, né?
IB: Tocar...
JM: Música...
IB: Tudo quanto é lugar...
JM: Sim...
IB: Começar do zero... comecei do zero aqui...
JM: Entendi.
IB: Fui tocar em botequim, barzinho... qualquer lugar eu tocava.
JM: Entendi. Sempre música popular?
IB: Sempre música popular.
JM: Sempre improvisando? Sempre tinha improvisação?
IB: Basicamente. Quase sempre.
JM: A improvisação estava sempre presente?
IB: Quase sempre.
370

JM: Sempre presente.


IB: Em noventa e... oito por cento tinha improvisação.
JM: E assim... Então, assim... a gente pode, de uma forma resumida, dizer que a improvisação
fez parte praticamente da sua carreira toda.
IB: Sim. Sim. Sim.
JM: Foi, foi... a gente pode dizer que foi um foco da sua carreira?
IB: Ah... deixa eu pensar um pouquinho... foco... na verdade não, e... quando eu era novo eu
não pensava em nada, eu... fazia, e... a coisa vinha, abria a porta, se abria e eu... entrava e...
não pens... nunca falei assim, eu acho que eu já te falei uma vez... eu serei músico! Farei isso!
JM: [risos]
IB: Não! É... eu acho que eu fui escolhido e... aonde eu... eu me deixei levar onde tinha que ir...
JM: Entendi. Eu acho que eu perguntei mal. O que eu... o que quero dizer é o seguinte: olhando
para trás agora, tudo que você fez até hoje, você diria que a improvisação foi uma das coisas
que você mais fez trabalhando?
IB: Sim. Com certeza.
JM: Né?
IB: Com certeza!
JM: Então ela sempre foi...
IB: Sim, sim.
JM: Pode dizer que era um foco, não é?
IB: Total.
JM: Estava sempre em evidência...
IB: Total. Total.
JM: Era sempre isso.
IB: Total.
JM: Né? E assim... Você... você, você... em todos esses anos improvisando... né?... é... eu sei
que, pô, vou fazer uma pergunta agora, você acabou de dizer que quando você era mais novo
você... não tinha muito objetivo definido...
IB: Hum-rum. Sim.
JM: Você não se propunha a isso. Né?
IB: Hum-rum.
JM: É uma coisa retrospectiva. A gente vai olhar para trás, e...
IB: Claro, claro.
JM: Hoje você vai me responder, né?...
371

IB: Claro, claro.


JM: É só uma questão de...
IB: Hum-rum.
JM: De... de... de tentar entender alguns aspectos da sua atividade. Né?... Você... você
quando... você, na, na sua improvisação, você diria... é... que você... você está... você está
sempre buscando criar alguma coisa original... ou você... tem algum compromisso com algum
estilo, com algum padrão, com alguma coisa já...
IB: É...
JM: Ou é uma coisa...
IB: Eu adoro essa pergunta. Não, não tenho compromisso com nada. A melhor crítica que eu
tive, que vai automaticamente responder a sua pergunta...
JM: Hum...
IB: Foi do Vanderlei Pereira... e... a gente estava tocando e ele olhou para mim um dia, aqui
no Ouviram do Ipiranga, não tinha ninguém ainda, a gente estava tocando só nós dois... e ele
falou: “Idriss, quando eu te ouço... eu sinto alguém preocupado em fazer belas melodias, e isso
é muito bom!” E... e exatamente. E quando ele falou isso eu falei: “caramba! Ele colocou em
palavras o que eu faço!” Exatamente. Eu acho que foi a melhor crítica que eu já recebi na
minha vida. Porque eu penso só em... criar belas melodias e... e mais nada. Acontece que depois
você pode encaixar isso em algum lugar... analisar... racionalizar... Mas eu penso nisso aí. Eu
não penso em mais nada assim...
JM: É... era exatamente isso que eu estava querendo saber... é óbvio que a gente pode pegar
um solo seu e...
IB: Sim! É lógico, lógico...
JM: Pô...
IB: Dá... da pra encaixar é... “não, ele usou tal técnica...”
JM: Dizer que é isso, dizer aquilo, dizer que aquilo é... Eu digo assim: do ss... da seu ponto de
vista...
IB: Do meu ponto de vista, é... não.
JM: Você... você não tem a menor preocupação... em ser fiel a nenhuma tradição...
IB: Não... não...
JM: Em ser fiel... não? Você...
IB: Volta aquele colibri lá na frente...
JM: Você simplesmente quer fazer música...
IB: Exatamente.
372

JM: Perfeito.
IB: Por isso eu não gosto quando me rotulam... acho que ninguém deve ser... deve gostar de
ser rotulado, mas... é... porque eu... eu sou, eu me considero um músico... eu não sou jazzista...
posso tocar bem jazz talvez, por isso as pessoas acham, acham que de repente me destaco um
pouquinho mais... mas pra mim não... pra mim...pra mim tudo é igual. Eu faço... eu tento fazer
o meu melhor e...
JM: Entendi. Bacana. Bom, é... Agora eu vou falar um pouco mais especificamente da
improvisação, né?
IB: Sim.
JM: Alguns aspectos... mais... mais pontuais, assim, né?
IB: Hum-rum, hum-rum.
JM: É... Você quando... quando você vai, numa situação de improviso assim, você vai... você
vai fazer um... criar... você... vai tocar agora. Você está tocando, você vai fazer um improviso
seu agora.
IB: Hum-rum.
JM: Né?... Você...você acha que esse solo tem que ter alguma referência... ao tema da música
que você está tocando, ou a alguma frase que você mesmo já propôs durante o... o solo... ou
ele... não precisa nada disso, é totalmente livre?
IB: Totalmente livre.
JM: Totalmente livre.
IB: Totalmente livre.
JM: Não tem essa preocupação, né?
IB: Eu tenho muitos amigos que pensam... é... analisam, calculam um pouquinho antes... usam
aquela frase, desenvolvem racionalmente... Eu uso só o intuitivo e é completamente livre. Eu
posso desenvolver uma frase que me... que, que me... apeteceu, que me, que eu gostei... falo:
não, agora eu vou usar ela de novo... posso, o meu cérebro funciona também, mas... eu... é
mais livre do que qualquer outra coisa.
JM: Entendi. Então assim... pode acontecer...
IB: Sim... total.
JM: Pode acontecer, né?
IB: Claro!
JM: Não é uma coisa proibitiva?
IB: Não! Ah, não. Não. Pelo contrário. E... inclusive, é... talvez eu vá adiantar alguma próxima
pergunta, eu descobri, não faz tanto tempo, talvez um... uns cinco anos, talvez um pouco mais,
373

sete anos... que, quando eu... fecho, minha tendência... por timidez também, quando a plateia
está na minha frente eu não gosto de ver a plateia, eu olho meu olho fecha automaticamente.
E aí eu vou direto para o intuitivo. Se eu consigo deixar meu olho aberto, que é bom também...
já uso também meu racional... mais o meu cérebro. E quando eu consigo usar os... as duas
coisas: o cérebro e o racional... é maravilhoso! O solo fica muito bom. Ele é, ele é... ele é, como
se fosse quase perfeito. E... automaticamente, no final, pro apogeu, o olho fecha e... não
aguenta e aí vem a explosão e aí... esfria.
JM: Quando você fala “usar o cérebro”, você está se referindo a... a... a pensar assim,
calculisticamente o que você vai tocar, é isso?
IB: Sim, exatamente. Pensar mais assim é... analisar ao mesmo tempo que eu estou tocando,
me ana... me autoanalisar, mantendo as melodias que eu gosto, e... mesclar. É... dividir um
pouco as coisas. Não ser só no... no, é... na... na intuição, sabe? No...
JM: E quando você fala da intuição? Por exemplo, você fez um... você fez uma comparação
bacana: quando você fecha o olho, a coisa fica mais intuitiva. Quando você abre o olho, você
fica mais racional.
IB: Sim, sim.
JM: Então, quando está... quando a coisa está intuitiva, isso significa que você não pensa em
graus, em escalas, em arpejos, você simplesmente imagina som e tenta reproduzí-lo?
IB: Exatamente!
JM: É isso?
IB: É... massa sonora... e... melodia na massa sonora, a mais bonita possível...
JM: A massa sonora seria o acompanhamento?
IB: Acompanhamento, é...
JM: E você criar uma melodia...
IB: Isso, isso. Eu me fundir na massa e...
JM: Então é mais som, não tem...
IB: Isso! Exatamente.
JM: Não tem grau de escala...
IB: Não, não.
JM: Não tem arpejo...
IB: Eu nunca pensei assim.
JM: Não pensa assim?
IB: Tanto que quando eu comecei, e certamente que você deve ter esse tipo de pergunta também
lá na frente...
374

JM: [risos]
IB: E pode perguntar de novo, mesmo se eu já respondi... É... quando eu improvisava no
começo eu não sabia nada do que eu fazia... porque eu tinha um bom ouvido, então eu sabia
que estava certo, eu sabia que encaixava, eu sabia que estava... ruim não estava. Só que eu
não tinha o controle total, porque eu... o racional faz parte pra você dominar, né? É lógico...
A técnica é importante, é... Então, é... depois que eu passei... é... passei a saber o que eu estava
fazendo, mas no começo eu improvisava sem saber nada. Só de ouvido.
JM: E quando... até quando você acha que durou esse começo assim?
IB: Durou até eu vir para o Brasil.
JM: Até oitenta e dois, mais ou menos?
IB: É... oitenta e dois, oitenta e três talvez... que aí... foi por ali que eu... nesse comecinho do
Brasil que eu comecei a falar: Ah bom! Eu estou fazendo isso. Na verdade esse acorde é esse,
e...
JM: Entendi.
IB: No começo eu não sabia nada.
JM: Você começou a estudar mais harmonia voltado para improvisação?
IB: Isso! Isso, isso. Me envolvi mais com o piano também...
JM: Entendi.
IB: Conheci pessoas que me falavam também...
JM: Bacana. É... assim... Então, falando dessa coisa que você... dessa coisa que você disse aí
do intuitivo, do racional... né? É... Você... vo... como é que você acha que... que... como é que
eu vou... deixa eu pensar um jeito mais simples de perguntar isso...
IB: Hum-rum.
JM: Assim... quando você... quando você vai tocar... é... você já disse para mim que você prefere
o intuitivo...
IB: Sim.
JM: Né? Que... você acha... mas que você acha também que o equilíbrio entre o intuitivo e o
racional seria uma coisa...
IB: Hum-rum.
JM: Seria uma coisa perfeita, quase que uma utopia, né?
IB: Sim, sim.
JM: Um negócio...
IB: Eu te disse que eu gostava mais do intuitivo já faz muito tempo, não faz? Digo, quero, eu
quero dizer que hoje em dia eu já... gosto também de usar o racional também...
375

JM: Não, sim, sim...


IB: Mas a dose princi... a injeção principal é o intuitivo...
JM: É o intuitivo.
IB: Continua o intuitivo.
JM: Entendi. Não, quando eu disse que você disse eu estava me referindo à própria entrevista,
agora...
IB: Ah, bom! Ah, bom, ah bom...ah é essa, tá.. tá... tá...
JM: Entendeu? Eu estou... eu estou me atendo...
IB: Eu, como a gente já se conhece há muitos anos, eu já... viajei na maionese aqui.
JM: Claro...
IB: Aí pensei...
JM: Claro...
IB: Talvez falei isso em um...
JM: Assim, é... quando você... então... quando você está no ato... você está no próprio ato da
improvisação, assim... você... você tem algum cuidado em... em... em... em tocar ou não frases
prontas... criar essas... você quer criar frases novas? Você quer aplicar frases que você já
conhece? Existe algum equilíbrio entre essas duas coisas? Como é que você lida com isso?
IB: É... isso é uma boa, ou também uma ótima pergunta... porque, na realidade... tudo, na
minha opinião, já foi dito. Tudo já foi feito, todas as frases mais bonitas já foram tocadas... e...
já ouvi todas elas, eu acho... de tanto ouvir música. Teve uma época que era dia e noite, ouvia
sem parar... tirava todas as frases do mundo... Então, é... é o voca... é o que eu chamo de
vocabulário, né? Quando a gente fala, por exemplo, é... agen... quando agente fala, agente não
pensa no que está falando, pensa no... no... no assunto, mas não como está falando. Por
exemplo, eu vou falar: e-u... eu... vou: v-o-u, vou... eu vou... f-a-l-a-r... eu vou... eu vou falar!
Olha, olha a volta ao mundo que eu dei para poder falar: eu vou falar! Então, as frases, para
mim é isso aí, é... é eu poder dizer o que eu quero... graças às frases que já estão...
preestabelecidas, porque... porque que elas se tornaram licks, né? Ou clichê, cada um chama...
porque eram tão bonitas, quando o cara fez e, ele não pensou tanto assim não, mas saiu tão
bonito que ficou e... estudamos aquela frase. Então é... pra mim não é importante, eu não quero,
pra responder a pergunta mais precisamente, eu... eu... não penso em aplicar a frase que...
não! É... por saber tantas frases, elas vão se interligando... e... eu me sinto mais livre, e... não
quer dizer que porque eu sei a frase, aquela frase, que eu vou usar. Mas um pedacinho dela
vai me ajudar pra chegar aonde eu queria, talvez... e... e... e... é assim que eu... que eu diria
376

que as frases me ajudaram, e... e por isso eu tirei um milhão delas, e... isso não acaba nunca,
né?...
JM: Então... você... você diria que... quando você está improvisando, existe um equilíbrio...
um... um balanço entre... é... é... criar coisas novas, espontâneas, e usar pedaços ou frases
inteiras?
IB: Exatamente. Exatamente.
JM: Como uma espécie de meio pra atingir o seu objetivo...
IB: Exatamente.
JM: Que é tocar, como você já falou aquilo da intuição, aquilo que você está imaginando.
IB: Perfeito.
JM: É isso, né?
IB: Exatamente isso.
JM: Bacana.
IB: E eu não tenho problema em tocar clichês. Por exemplo, o que eu ouvia muito
antigamente... acho que o radicalismo ele, ele... ele acaba estragando algumas coisas... Eu...
as vezes eu só usava clichês porque eu achava que estava... cabia perfeitamente naquele
contexto e não me incomodava, entende. “Ah o cara está tocando só clichês?” Eu não penso
assim. Porque cada... quando é você que toca, ou você, ou... ou eu, ou o nosso amigo... é o
coração dele, a alma dele, o momento dele naquele.... então vai, não vai ser o mesmo, não vai
ser igual. Igual não existe, eu acho... Agora... é... eles não podem rotular também, tem que se,
que... tem que ouvir o que acontece, tem que sentir, né? Vou dizer, só porque foi um clichê?
Não! Justamente um clichê eu vou ter que tentar fazer ele mais bonito ainda, do meu jeito. É?
JM: Entendi.
IB: É mais isso.
JM: Você acha que... assim, também dentro desse assunto ainda, a gente está falando... da
intuição, do racional...
IB: Hum-rum.
JM: Do balanço entre as... entre o clichê e as...
IB: Sim.
JM: E as... e as coisas espontâneas... não é... você... falou... que... por exemplo, que a... o
objetivo, a intuição, é... é... pela intuição... imaginar um... uma melodia e tentar tocar essa
melodia, né? Criar uma... uma... uma... uma coisa... interessante, musicalmente falando...
né?... você... assim... no ato da improvisação... você acha que tem alguma coisa, assim... que é
377

impossível de ser feita? Que não tem como... a... você tem, você acha que tem alguma coisa
que não dá pra fazer?
IB: Não, eu acho que tudo é possível. É... depende do seu envolvimento, do seu estudo, da sua
seriedade, da sua... da sua... meta... da sua... eu acho que tudo é possível sim. Eu acho que as
vezes... em não tocar... é... ou muito pouco... você já... atinge um nível assim... é... pode... pode
chegar num lugar aonde você nem mesmo esperava, e você vai ouvir depois e você vai ver,
caramba! Ali foi forte, foi... diferente... até... até o próprio erro as vezes te leva para um lugar
maravilhoso... mas acho que não tem limite não... é... acho que não tem limite. Essa pergunta
que você fez é... complexa, porque... nunca me fizeram, inclusive.
JM: É... eu acho, eu tenho a impressão que você está respondendo de um modo geral, não é?
Para qualquer músico.
IB: Sim.
JM: Então... vamos... focalizar, assim...
IB: Sim.
JM: Pra você...
IB: Sim, sim.
JM: Se você fosse fazer um improvisa agora, por exemplo...
IB: Sim, sim.
JM: Você acha que existiria alguma coisa que seria impossível de você tocar, que você não...
que não... que não seria viável... que não... não... não funcionaria. Que estaria além da sua
capacidade...
IB: Ah tem, claro!
JM: De criar no ato, ali... espontaneamente.
IB: Ah, agora melhorou, eu entendi melhor. Não, lógico. Lógico porque eu não tenho... não
estou, não sou muito preparado pra certas coisas... Eu me acomodei... em coisas que me... que
me agradavam... Então não... me dediquei muito em outras coisas, certas outras coisas.
Então... Eu, eu vou dar um exemplo: se você me... colocar do lado de um Baptiste Herbin, por
exemplo... que é um monstro tecnicamente, ele faz o que ele quiser, em qualquer lugar, em
qualquer tonalidade... eu não chego nem aos pés, mas isso não é tudo não... isso não me frustra
não... mas eu sei o quanto eu poderia... Agora eu não digo que eu não tenho capacidade de
chegar lá, só que eu não decidi fazer isso. Pode ser que se tivesse feito mais cedo, mais novo,
seria mais fácil... o tempo vai passando a gente vai ficando meio enferrujando, enferrujado,
e... realmente o meu foco é outro... mas... sim, sim. Eu diria que eu tenho limites sim. Tem
coisas que eu não conseguiria fazer. Com certeza.
378

JM: Entendi. Você usou o exemplo do Baptiste Herbin, depois falou sobre você... só a título de
comparação, assim...
IB: Sim. Ham-ram.
JM: É... você acha que tem coisas que o Baptiste Herbin não poderia fazer?
IB: Acho sim.
JM: [risos]
IB: E... acho sim.
JM: Não seria impossível?
IB: Tem coisas... tanto que eu vou falar uma coisa que... espero que fique entre a gente, vai
estar gravado, mas... muita gente falou pra mim que gostava mais do meu jeito de tocar do que
do Baptiste. Porque não se trata de velocidade ou de... de técnica absurda, é... total controle,
é... não é só isso, música é muito amplo, é... profundidade, é... aquela... aquela flecha que
entrou no teu coração naquele momento, é... é... é aliviar teu coração também... então é uma
série de coisas. Eu não gosto quando as pessoas porque... eu não gosto de comparar...
JM: Comparação...
IB: Não!... Esse tipo de comparação já acho que não é... não... não é muito... mas como, é... eu
estou explicando uma coisa, por isso estou falando agora. E porque eu gosto muito dele e...
não... né?... não me sinto mal. Mas é... eu acho que... sim, sim... é... foi excelente inverter a...
Eu acho que sim. Tem coisas que ele não vai saber fazer porque... Primeiro que eu tenho mais
trinta anos, a mais do que ele, né... Ele é a metade da minha idade. Então ele não tem esses
trinta anos de vida que eu tenho, que eu dei a volta ao mundo... digo é... é... simbolicamente.
E... sensações que eu tenho... ele ainda não chegou nessas sensações...
JM: Ham-ram...
IB: Então é normal que não... mas... isso também não é importante... eu acho...
JM: Sim. A... a impressão que eu tenho... quando você responde essas perguntas... é que tudo
está girando em torno da técnica... né?...
IB: Sim, sim.
JM: Você concorda com isso?
IB: Sim, sim. Não... a técnica é fundamental!... é fundamental... mas técnica, por exemplo: você
pode ter uma técnica animal... digo... tecnicamente fazer o que você quiser... mas para mim,
técnica é poder fazer o que você quiser... tipo assim: [canta uma melodia simples com
intervalos muito grandes]... não é: [canta várias notas emboladas como se fossem passagens
instrumentais muito rápidas] o tempo todo... para mim, técnica é... é... é amplo... Isso não é
só... saber tocar a mil por hora... Técnica é um monte de coisas, né?...
379

JM: Sim...
IB: É dominar... como se você falasse... como se você... né?...
JM: Entendi. Agora, em termos de... de... Porque, assim... nós estamos falando de
improvisação...
IB: Hum-rum...
JM: Né?... Improvisação... é uma atividade que a gente realiza na hora, né?... não dá tempo
de corrigir, de voltar atrás...
IB: Eu posso falar uma coisa?
JM: Claro!
IB: É... é... para mim, improvisação é compor em velocidade ultra rápida...
JM: É...
IB: É isso.
JM: Então. Nesse... Usando essa definição que você propôs... é... você já... a gente já conversou
aqui sobre a técnica. Que do ponto de vista técnico, tem coisas que são possíveis e tem coisas
que não são possíveis...
IB: Certo.
JM: Né?... Agora, do ponto de vista do raciocínio... né?... você acabou de fal... propor uma
definição...
IB: Sim.
JM: Composição ultra rápida.
IB: Sim, sim.
JM: Você acha que tem algum limite, tem... tem certos tipos de coisa... por exemplo: você é
compositor também. Você escreve arranjo...
IB: Claro, claro.
JM: Né? Você... você... você acha que tem alguma coisa, por exemplo: que você compõe... que
você jamais conseguiria fazer em tempo real, improvisando?
IB: Sim, eu acho que... tem coisas que eu não poderia fazer, é... que é porque... não estou
preparado... não digo que é impossível fazer, mas, no meu caso, que não estou preparado...
claro! Tem muitas coisas que eu nunca... conseguiria fazer...
JM: Entendi. É... esse... esse é um assunto realmente... complicado, né? Da...
IB: E isso depende das músicas, da complexidade harmônica...
JM: Da velocidade, é?...
IB: Velocidade? Exatamente!
JM: Exatamente.
380

IB: É igual, vou dar, vou fazer uma analogia: por exemplo, você, como eu, né? Toca saxofone
alto bem... e está acostumado com o alto pra caramba, você toca tenor também, soprano, mas...
alto eu sei que você toca bem também... Então... é... quando você vai ler uma partitura de
piano... você consegue ler... mas, dependendo da velocidade, vai... vai bloquear ou não, né? Se
for um troço “up”... a... então: “espere aí! Deixe eu dar uma olhada primeiro!” Mas se for
uma balada, ou um swing médio... Middle... você vai ler, e vai tocar... é mais ou menos a...
JM: É...
IB: Nesse sentido, assim..
JM: Nesse ponto aí a gente volta pra técnica, né?
IB: Sim, volta novamente pra a técnica.
JM: É, porque...
IB: Pro preparo, não é?
JM: No saxofone eu tenho uma técnica que eu não tenho o piano...
IB: Sim, sim...
JM: Mas a música eu tenho, digamos assim...
IB: Sim, sim. Claro, claro, claro...
JM: Né? Porque... eu consigo ler aquilo em um instrumento mas em outro não...
IB: Sim, sim...
JM: Então... novamente a gente volta pro assunto da técnica... e a gente pode, você acha que
eu posso definir a técnica como... o domínio... de uso do instrumento como um meio de
expressão?
IB: Sim, sim...
JM: Seria isso?
IB: Sim, sim, sim, sim.
JM: Que você entende?
IB: Totalmente. Claro.
JM: Bacana. É... assim... você acha que tem alguma coisa ainda sobre esse assunto que... você
gostaria de... acrescentar...
IB: Eu diria que... tudo depende do... do... do “l’état d’âme”... o estado da alma... A gente fala
em francês “l’état d’âme”... As vezes, eu saio para tocar, e... não digo nada. Eu não... eu toco
uma música e as vezes já também, já disse tudo e eu já não tenho mais vontade de continuar,
mas como somos profissionais, a gente está aqui trabalhando, amor até o fim...
JM: Ham-ram...
381

IB: É... esse fazer o melhor possível e até achar um prazer, não é? Mas as vezes já... eu não
quero mais tocar... já toquei uma... e já... já... já dei a volta... naquilo que eu estava pensando,
a busca, a profundidade... Então, isso tudo também faz parte desse... desse processo de... de...
de... de... é... é outro tipo de... não nada... não é mais técnica, é... eu estou falando de alma, de
coração, de profundidade, mas não deixa... mas não deixa de... de é... ter a ver com técnica
também, um outro tipo de técnica... tudo pode ser chamado de técnica, eu digo, de alguma
maneira... Não técnica mecânica, mas técnica de... de expressão, ou técnica de... não sei se eu
consegui me... me expressar falando expressão... É... e... eu diria que tem muitas coisas
envolvidas que as vezes não aparecem que não... parece que não... que não estão mas... estão.
É...
JM: Você falou uma coisa interessante, a coisa da... da vontade de tocar, não é? As vezes...
muitas vezes a gente tem que tocar três sets de uma hora, né?...
IB: Exatamente.
JM: Aí o primeiro set a gente toca com a maior vontade...
IB: Sim... aí vai esfriando...
JM: Super empolgado... aí a criatividade diminui também, né?
IB: Claro! Porque vai ser... vai ser muito repetitivo depois, é...
JM: Você cansa, né? Você perde... perde a vontade... Então isso também é um ponto
importantíssimo, né?
IB: É... fundamental!
JM: Fundamental...
IB: Fundamental... Isso eu aprendi muito no baile, aqui, com o Ed Lincoln. Que eram cinco
sets, eu acho... Não era mole não... começava às dez e acabava às quatro... todos os dias, menos
um dia na semana, que eu acho que era... domingo ou segunda que não tinha... acho que era
segunda que não tinha. Então eu me lembro que eu me preparava mentalmente, e... no meu
coração falava: não!... eu vou... eu vou sair daqui feliz... e foi difícil, foi uma aprendizagem...
porque... eram todos os dias a mesma coisa... as mesmas músicas... mas eu falei... eu... eu dava
meu sangue, do mesmo jeito... assim, para mim, não tem... ou toca, ou não toca...
JM: Bacana... Bom... É... eu vou... eu vou mudar um pouco agora...
IB: Sim...
JM: o foco da...
IB: Hum-rum...
JM: Da conversa, né?... é... o... queria... queria te perguntar o seguinte, né? A gente falou
sobre... um monte de coisas aqui, né? E agora que queria falar sobre... sobre... a sua relação
382

específica com a sua improvisação... né? Quando... Você acabou de falar uma coisa super
interessante, né? A coisa da vontade, da disposição... né? Do frescor, digamos assim, para...
IB: Eu gosto muito dessa palavra...
JM: É... do frescor, né? Vai para o... quadragésimo improviso, as coisas começam a ficar mais
difíceis...
IB: Sim, sim, sim...
JM: É... quando... vamos supor que você... você está assim no... é... é... numa situação dessas
que você citou do Ed Lincoln, né?... é... Quando você está... fresco ainda... no trabalho... é mais
fácil ser criativo, é mais fácil se doar para o solo...
IB: Sim, sim...
JM: Como e conforme o tempo vai passando vai ficando mais difícil, né? Mas aí... assim...
quando está super difícil, que não tem mais aquele frescor, você está cansado, você já não
queria mais tocar... você está ali profissionalmente... seguindo com o trabalho... é... é... o que
que você... entende... o que que você busca fazer no seu improviso... para que ele continue
acontecendo, né? Qual seria... digamos assim... é... quando você está fresco você não precisa
se preocupar com isso... você vai fazer o improviso, e o improviso...
IB: Sim, claro, claro...
JM: Vai fluir...
IB: Claro.
JM: Agora, quando não está... o que... qual é o seu empenho... assim... o que que você espera...
resumindo: qual é o seu objetivo...
IB: Sim... entendi..
JM: Com o... [espirro] com o improviso...
IB: Bom...
JM: Entendeu?
IB: Na realidade, fluir... sempre vai fluir... porque o teu domínio sobre qualquer coisa... na...
na altura... dessa altura do campeonato... pode ser o... quinquegi... quinquequagi... sei lá como
é que fala, não é?
JM: [risos]
IB: Você entendeu o que eu quis dizer, né?
JM: O número cinquenta...
IB: O número cinquenta, é...
JM: É mais fácil...
IB: Quinquagésimo...
383

JM: Quinquagésimo.
IB: Quinquagésimo, é... porque... eu posso fazer perfeito... perfeito! É... tudo encaixado onde...
onde se deve... aí se trata mais é de... coração, de profundidade, é de vontade de continuar
fazendo... Agora... eu vou fazer tão bem feito quanto o começo, só que menos... vontade...
porque eu sei que eu estou repetindo um monte de coisas que eu já fiz antes... porque... também
não sou... é... não tenho tantas ideias não... eu tenho muitas ideias, eu posso fazer um improviso
que nunca vai ser repetido, você também pode fazer isso... isso aí é... com vocabulário, da...
da... da famosa técnica... né? Das frases... e... então... mas... o difícil é manter é... aí o que que
eu faço? É... pra ter assunto... assunto eu sempre vou ter... só que... eu vou enjoar de... de...
de... de fazer... de mim mesmo...
JM: Sim.
IB: Vou enjoar de mim mesmo porque eu já sei que eu já... eu já sei o que eu vou fazer antes,
né?... é ultrarrápido, mas a gente sabe antes. Então eu vou buscar ali o... eu vou me focar no
som... eu vou... ah bom... já que eu estou... repetindo tudo aqui, eu vou... vou... concentrar na
sonoridade, sobrou espaço pra isso agora. Eu vou buscar um caminho novo para... melhorar
e deixar a coisa... com... com beleza e... e força.
JM: Bacana! Você... eu acho, assim, você descreveu, pô, super bem... o que você faz, né? Agora,
eu queria saber pra que você faz, qual o seu objetivo? O que você espera... é... é... é... ating...
é... qual o objetivo você espera atingir toda vez que você vai fazer um solo?
IB: Ah... eu acho que é... é evolutivo. Eu acho que toda vez que você se supera, em qualquer
coisa, você vai crescer e aprender alguma coisa que as vezes você nem sabe que existe, mas
lá... na hora que você menos esperar: pum! Você fala: “caramba!” E quem vai te ouvir vai
falar: “esse cara tem alguma coisa que eu não sei o que que é, mas que me... tem uma coisa!”
É exatamente isso: essa busca. Por isso eu acho... não... eu acho porque eu estou sendo
modesto, mas... eu nunca parei de evoluir na música. Mesmo não tocando sax mais... uma vez
por mês... é... não, eu não... não quero me vangloriar... é... é vergonhoso até, porque, se eu
estudasse ao invés de não ter sax, eu tocaria muito mais. Mas não é meu... meu objetivo mais,
eu... eu estou feliz do jeito que está... minha oficina... estando aqui contigo... eu... eu estou em
outra! É difícil as pessoas entenderem isso, mas isso é real. Eu não estou sofrendo, nem triste,
nem amargurado, nem nada disso. Agora... eu me sinto evoluir sempre! Em compensação, em
casa, todos os dias eu sento no piano e toco. Porque eu gosto. O que me incomoda no saxofone
também é o... a palheta que não é boa... aquela sensação... é... sabe? É... é... física também...
é... é... essa é outra também que certamente você tem perguntas nesse sentido também, não
sei... Então é... eu diria que é... o lado evolutivo me... é muito bom, porque... Quando você faz
384

o que eu acabei de falar, agora há pouco, você não para. E sempre vai ter uma portinha, uma
janelinha que vai se abrir. Quando você menos esperar, estava no caminho certo. Aí continue
assim.
JM: Você diria então, resumindo, que...
IB: Hum-rum.
JM: É... a cada solo o seu objetivo é... melhorar?
IB: Exatamente. Perfeito.
JM: Melhorar, como?
IB: Melhorar, é... ah... melhorar como é complicado... é... melhorar... é... melhorar não é... é
porque eu gosto, simplesmente... pronto! Já sei! Porque eu acho muito bom melhorar. É... é
uma superação de você mesmo, e que pode ser bom para os outros também. Então, tem a ver
com... generosidade. Tem a ver com uma série de... adjetivos... não estou lembrando agora,
mas... é isso! Melhorar... é porque também eu aprendi, quando era novo, que melhorar era
bom. Entendeu? É claro que tem essa formatação... desde pequenininho, não é?... que... a gente
acredita no que... que... nós... nós... nós... é que falado, seja na música, na vida... Então você
segue aquele caminho, e depois... realmente a sua pergunta agora me derrubou!
JM: [risos]
IB: Melhorar porque? É... claro! É... para que, não é? E realmente... É, porque... porque
falaram que tinha que era, que tinha que melhorar, e também porque eu sinto que... é...
melhorar é bom. Você vai aprendendo outras coisas, é... evoluindo é...
JM: É...
IB: Eu penso mais em... eu gosto mais da palavra evolução.
JM: Interessante. É... você já fez algum solo, alguma vez, em que você pensou assim: “putz!
Não funcionou.”?
IB: Vários.
JM: E como você descreveria esse solo? Porque que não funcionou?
IB: Ah, é... Porque eu sei dizer muito bem. Porque eu sou um vagabundo, não levei a sério,
cheguei com a palheta... o sax não era meu, a palheta não era minha, a boquilha não era
minha... é... a música... não estudei a harmonia antes de sair de casa, porque era uma harmonia
que eu não estava muito acostumado... Pronto! Eu posso te citar assim uma tonelada de
motivos, mas sempre foi culpa minha!
JM: Sim...
IB: Não é que eu não conseguiria, é que... e como eu... eu... como eu tenho um bom ouvido e
que não sou um mau músico... eu consegui me encaixar. Mas muitas vezes eu falei: caramba!
385

Fiz a... um quarto do que eu poderia ter feito ali, mas tudo bem, tá... não... não estragou a
música...
JM: Esse... tudo isso que você descreveu assim, é... é interessante, é... e eles, assim... são a
causa de porque deu errado, não é?
IB: Sim, sim.
JM: Agora... o que que deu errado?
IB: O que que deu...
JM: Não a causa, está entendendo?
IB: Sim, sim, sim. Entendi.
JM: Tudo isso gerou alguma coisa...
IB: Sim, sim.
JM: O seu solo saiu de um jeito que você disse que deu errado. Que solo é esse? Como é que é
esse solo que dá errado?
IB: Hum... deixa eu pensar um pouquinho aqui... Primeiro que... já não estava à vontade
tocando, porque eu... sem preparo nenhum... então na hora que eu queria aplicar alguma coisa
não vinha... o dedo ia pro lugar errado... não... eu deixava de fazer porque sabia que não iria
dar certo, me entregava antes da hora... É... é mais ou menos nesse... nesse patamar assim...
por isso deu errado assim.. é...
JM: Então... então a gente pode dizer que... se você concordaria se eu dissesse que quando dá
errado é porque não aconteceu o que você queria que acontecesse?
IB: Sim. Sim, sim.
JM: É basicamente isso?
IB: É. Isso.
JM: Né?
IB: Mas isso aí eu... isso aí pode ser é... o que você está falando é... por exemplo... eu vou lhe...
eu vou lhe falar duas coisas que talvez já tinha... te falei: quando, antigamente, eu tocava tudo
que eu queria, dominando tudo, racionalmente e intuitivamente, eu ia ouvir depois o solo e eu
falava: não sei não hein... não... não me... não foi o que eu achava que tinha sido. Quando eu
não conseguia tocar direito, e eu ia ouvir o solo, eu falava: hum! Interessante esse solo, eu até
gostei. Porque justamente o desafio, quebrar, consertar na hora, encaixar... Então eu acho que
quando eu quebro a cara, que eu tenho certeza que eu quebrei a cara, ou em gravação, ou...
talvez quem está ouvindo lá, esteja achando bom... porque o nosso padrão é um, e o das pessoas
é outro. Cada um escuta do jeito que quiser! Como... como tem aquele negócio que fala assim:
“a beleza está nos olhos de quem a vê”, né? Eu digo a... a beleza... a beleza está nos ouvidos
386

de quem está ouvindo, né? Eu traduzo para a música. Então é... interessante, entendeu? Pra
mim, né? Porque você falou pra mim, então realmente pra mim quebrei a cara, não... não
consegui fazer o que eu queria porque eu não... não encaixava o que eu queria na hora, não
tinha aquele reflexo... por isso que eu citei o Baptiste Herbin naquela hora. Poderia citar o...
o... o Chris Potter, o Michael Brecker, esses caras que realmente se destacaram na técnica,
absurdamente... que não tem... qualquer tom parece que é o mesmo tom para eles, quero dizer,
eles estudaram tanto o instrumento que... não tem é... o vocabulário está... está perfeito.
JM: Entendi. Eu vou colocar um negócio aqui...
IB: Hum-rum
JM: Pra você ouvir...
IB: Sim...
JM: Rapidinho...
IB: Hum-rum...
JM: Pra a gente falar sobre isso...
IB: Sim, claro...
JM: Tá?
IB: Claro...
JM: É... obviamente você já vai lembrar da música... né? O solo que você fez no disco do
Giffoni...
[tocando a gravação do solo de I. Boudrioua na música “Tema da Tarde de A. Giffoni]
IB: Ah... sim, sim... Você pegou exatamente um daqueles solos que eu não fiz o que eu queria.
Embora o solo seja bonito, porque tem algumas coisas que eu acho que eu domino mesmo,
porque eu sei onde eu estou, aí eu mando ver, mas em outros lugares eu freio porque... mas aí
sai bom também... é... tem o som do... na época... do Jamal também, do disco Jamal... é o
mesmo som... uma Meyer... Esse cromatismo aí... é porque eu não estava bem... aí, cromatismo
sempre encaixa... você vai... e não tem como errar aí... aí já estou em casa... resta saber qual
vai ser a pergunta... [risos]... caramba, nunca mais ouvi isso... é “A tarde”?...
JM: “Tema da Tarde.”
IB: “Tema da Tarde!”
JM: Foi por isso que eu coloquei para você ouvir, porque eu sabia que você já não devia estar...
ouve isso há muito tempo...
IB: Não, não... há muito tempo... é...
JM: E você já respondeu no meio do solo.
IB: É... exatamente...
387

JM: Você já falou. Esse foi um dos solos que não deu certo.
IB: Exatamente. Então tá!
JM: Então, não dar certo, não é o solo... é... soar mal...
IB: Não...
JM: Não é...
IB: Não, não...
JM: Porque esse solo soou muito bem!
IB: Soou muito bem... tanto que muita gente elogiou... é... foi... foi um marco até, né?
JM: Ham-ram...
IB: Pra você ver como as coisas são relativas. Mas é porque eu não fiz o... nada do que eu...
poderia fazer porque eu não me preparei, porque eu... talvez eu... não é nem as vezes porque
eu não me preparei porque é mais difícil para mim eu... Me chamaram, eu estou ali... estou
fazendo o meu trabalho e... eu faço... fazer o melhor possível. Mas eu estou longe estar bom ali
é... e não é porque eu era mais novo não, é porque eu não estava dominando tudo ali...
entendeu?
JM: Entendi. É... a questão era essa mesmo... entendeu? Eu até te falei já uma vez... esse solo
para mim foi um dos mais bonitos que você fez na vida!
IB: Você falou!
JM: Na minha opinião, assim...
IB: Então, olha só como é interessante, porque... enquanto você está me falando isso eu lembro
que eu não estava dominando, mas eu não vou falar: ah... mas eu não estava dominando!
Porque aí pode... soar: “Ah, mas o cara está falando isso porque?” Né?
JM: Por arrogância...
IB: Por você... não... é...
JM: Eu sei que não é...
IB: Por você não porque a gente é amigo, mas...
JM: É...
IB: Se eu falasse para um cara que está me dizendo isso, Ah... mas eu não estava... “Ih, o cara
ó... está dizendo que poderia ter feito melhor...”
JM: É...
IB: Não! Eu não... não ligo para isso, mas... estou nem um... um décimo do que... hoje em dia
eu faria... eu contaria... eu posso te mostrar um solo, está até no Youtube, depois, se você
quiser, da Heloísa, a... a... a filha... a filha... a enteada do Marcelo, meu compadre, que ela me
chamou, é... pra fazer no disco dela, é uma música meio bobinha assim.. se chama é... “La
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Belle Chate”... não sei porque que ela se chama “La Belle Chate”... e aí está... perfeito do
começo até o fim, mas é um troço mais comercial. Mas aí eu... chegou aquele cara que domina
e que faz... aí eu... é o oposto. É o oposto do que a gente acabou de ouvir. Mas não é mais
bonito não.
JM: É o da Helô?
IB: É da... da Helô. Está no Youtube, se chama “La Belle Chate”. Você vai achar na hora,
porque está no Youtube.
JM: [digitando] La Bel-le...
IB: Chate.
JM: Chate. Chate com ‘e’ no final?
IB: É... ‘t-t-e’.
JM: ‘t-t-e’.
IB: ‘c-h-a-t-t-e”.
JM: Assim?
IB: Va aparecer rápido, eu acho. Já achou? La Belle Chatte.
JM: Deixa eu colocar aqui [digitando] Heloísa...
IB: É... Heloísa Tenório.
JM: [digitando] Tenório.
IB: Ela mostrou pro Baptiste, sem falar que era eu. E quando a gente se conheceu, no começo,
ele falou: “o cara é profissional, você chamou um cara profissional.” Ele não sabia que era
eu. [risos] Porque ali eu fiz o que... eu dominei tudo do começo até o fim. Mas a música é fácil
também, né? É mais fácil do que a do... do “Tema da Tarde”...
JM: Não é “Bonne Chate”?
IB: “La Bonne Chate!”
JM: Ah...
IB: Eu falei La Belle Chatte... La Bonne Chate...
JM: Bonne Chate...
IB: Desculpe o meu... aí eu... exatamente o contrário do que a gente falou agora.
JM: O solo está o que? No meio da música, assim?
IB: É, é... é no meio da música, é...
JM: Vamos lá...
IB: E você vai entender o que eu estou falando. Você vai ver, parece até... não é o que... não
gosto de falar essas coisas, mas... parece que foi gravado lá fora, nos EUA, o cara que...
389

aqueles americanos que estudaram para caramba, que sabem exatamente o que tem que fazer
na hora...
JM: Então esse solo que a gente vai ouvir agora é um que de certo?
IB: Que deu certo. Que deu certo no contexto...
JM: Pra você...
IB: O contexto...
[tocando a música “Bonne Chate” do disco da cantora Heloísa Tenório no Youtube]
IB: Se quiser pular, por pular... é lá mais para frente... é aí... ah não é uma frasesinha isso aí...
[procurando o solo na gravação]
IB: Deve ser por agora... está pertinho... Será que já passou? Parece que está muito pro fim,
né? Não, é antes... deve ser bem... é que você deve ter passado... mais perto do começo então...
é por aí... acho que... é depois disso aí... é... está chegando já... é que... não é longo não...
JM: É pequeno?
IB: É... mas engraçado, você... deveria estar... será que é agora?... estranho...
JM: Eu acho que é por aqui...
IB: Ah, então era mais... era depois, né?... Mas é acho que... começou antes disso aí, não? Ah,
está certo, está certo. É aí mesmo.
[ouvindo o solo de I. Boudrioua na gravação de “Bonne Chate” de Heloísa Tenório]
IB: É só isso. Mas está exatamente é... e também a música é mais fácil e eu tenho muitos anos
a mais do que aquele disco do Adriano, né? Tem isso também.
JM: Entendi.
IB: Tem coisas que você vai adquirindo ao longo da vida, do... do... da... profissão... do...
JM: Então. Assim, em termos de... de... vamos... assim...
IB: Hum-rum.
JM: Extrapolar... Em termos de beleza musical, os dois são muito bonitos...
IB: Sim, sim, sim.
JM: Né?
IB: Claro.
JM: Mas um, pra você, deu errado.
IB: É...
JM: E o outro deu certo!
IB: É... é. Exatamente.
JM: Na sua... no seu... na sua experiência... né?
IB: É, é...
390

JM: Foi um solo...


IB: Mas é... é... é delicado, porque na realidade o problema... o primeiro... Não é que... não é
que deu errado. Ele deu errado para mim, porque eu não fiz o que eu queria.
JM: Sim...
IB: Mas eu sei que deu certo para muita gente e... e... vamos dizer que quando eu ouço, eu sei
exatamente onde eu não fiz o que eu queria. É isso.
JM: Entendi.
IB: É fácil! Eu já sei até... na primeira nota que vai vir... que vem a frase: ih... ali não vai rolar
porque eu... não estava preparado.
JM: Entendi. E assim... é... é... Falando de um solo que, para você, deu certo...
IB: Hum-rum...
JM: Não é?... é.... como que... assim, que tipo... que tipo de ferramenta, de recurso, você... você
diria que você usa para construir esse solo?
IB: Ferramenta?... Recurso? Para construir... qual, qual? O que deu certo?
JM: O que dá certo.
IB: Ah, que dá certo. Ah é quando eu... na realidade... na realidade a ferramenta é quando eu
sei exatamente onde vai: onde eu estou, de onde eu vim... e aonde eu vou. As três coisas: de
onde eu vim, aonde eu estou e aonde eu vou. Daí é fácil é... você já... é como se... saber o
caminho para ir para... a padaria ali...
JM: Você está se referindo à forma do solo?
IB: É... a forma, é a forma harmônica... o caminho harmônico...
JM: Sim...
IB: É mais isso. É... o ritmo, para mim é pouco importante, dependendo da... do estilo, mas...
é mais harmonia, assim...
JM: Entendi. Né? Então... você diria que... é importante para você estar muito ciente da
progressão harmônica...
IB: Total, total...
JM: Para poder criar em cima dessa progressão?
IB: Sim. Sim, sim...
JM: E aí... esse é um recurso principal, assim...
IB: Para mim é principal.
JM: O conhecimento da harmonia...
IB: Embora minha fraqueza musical... dentro da música toda, é o ritmo. É... o meu ponto mais
fraco é o ritmo. Mas não me... não me atrapalha muito para fazer o que eu quero... em qualquer
391

circunstância, porque... a não ser uma música cubana, eu vou ter que... né? Estudar a clave
ali, ou, sei lá! Aqueles estilos um pouco diferentes, né? Isso é coisa de praticar também, nada
demais.
JM: Entendi...
IB: Mas harmonia para mim, se eu não estiver dominando a harmonia... Tanto que, às vezes,
para dar uma canja, assim... hoje em dia não porque eu não saio muito de casa, mas no
começo... Ia dar uma canja e... o cara não te esperava nem... não te perguntava que música
você queria tocar, saia tocando uma música que você não sabia... Já quebrei a cara várias
vezes, porque pô... eu... era novo e tinha que tocar... Tocar hoje em dia? Não, vai na tal...
espera a próxima. Quem sabe eu sei a próxima? Mas o que que eu fazia? Eu deixava todo
mundo passar na minha frente, e aprendia na hora a harmonia e daí eu já falava alguma coisa
interessante... Mas sair tocando... sem saber... hoje em dia eu... não... não sou adivinho, não
estou...
JM: Todos nós passamos por isso...
IB: Todo mundo!
JM: [risos]
IB: Com certeza... é... o bom de envelhecer é isso, né? Amadurecer, né? Porque você sabe o
que você quer, e o que você não quer mais, né?
JM: Então, assim, voltando ao assunto, né? Você falou da... da forma, da... da progressão
harmônica... Então... é... pelo que eu estou entendendo, o que há de mais importante pra você
na construção de um solo, é essa coerência entre a melodia e a harmonia...
IB: Total. Total.
JM: Entendeu?
IB: Exatamente...
JM: Você... isso... você cria o seu solo pensando nessa coerência, certo?
IB: Exatamente.
JM: Mas... é só isso que você usa? Isso é um recurso, né?
IB: Sim, sim.
JM: Ou... ou tem mais alguma coisa que você...
IB: Tem uma coisa mais profunda que é difícil entender... é... se você não passou por isso... eu
inclusive estou estudando muito isso em casa agora com o piano... é... não tocar quando não
vem nada... e deixar vir lá de outro lugar... e tem uma hora... que a pausa nunca... atrapalha...
e a cada dia que você se conscientiza disso você sola muito mais bonito... é... eu acho melhor
não tocar, quando você não tem a certeza, ou não tem inspiração, ou não tem sei-lá-o-que...
392

do que... ficar preenchendo. Pode ser que dê certo também! Naquela hora pintou alguma coisa
diferente... pô foi bom!... Mas hoje em dia não. Por exemplo: eu estudo, não vem ideia, não!
Deixo em branco. Porque o menos é sempre mais. Daí, quando vem depois, pode ter certeza
de que vai para um lugar bom, e vai ser bom. É como se tivesse recarregado as baterias... não
sei se deu pra... para entender o que eu estou falando...
JM: Isso... você acha que isso... estaria certo se eu dissesse que isso que você acabou de relatar
aí, é... é uma... é uma preocupação com a construção das frases?
IB: Construção... é... Não só...
JM: Das frases melódicas, assim...
IB: Sim, sim. Exatamente. Assim... perfeito, perfeito! Construção das frases melódicas, e do
geral assim, né?
JM: Da forma do solo?
IB: Da forma do solo, e... da forma rítmica, melódica... e... eu sei... eu... eu estou aprendendo
mais do que nunca agora... quase sessenta anos daqui a pouquinho... que é melhor não tocar
quanto... quando não precisa... [risos] e é uma coisa óbvia. Na gente... a gente já sabe isso
desde o começo. Mas é difícil aplicar. Então... estou tocando. Gravo uma base no piano, faço
a harmonia... aí falei: espera aí... não veio nada aqui... Então deixa! Eu acompanho um
pouquinho aqui... ah... é isso... Parece que tem uma conexão para algum... sei lá... dimensão?...
sei lá o que que é aquilo... a gente pode chamar... uns chamariam de Deus, outros chamariam
de... dimensão, outros chamariam de não-sei-o-que... eu não sei o que que é isso, mas eu sei
que foi... que é real... Daí vem um negócio e você fala: “Não, claro!” E... ah... né? E aí isso é
maravilhoso, e estou... estou trabalhando muito isso...
JM: Bacana...
IB: Hum-rum...
JM: Bom... é... eu acho que é isso... [risos] por hoje...
IB: Bom... maravilhoso! E...
JM: A ideia...
IB: Você me... você me... você me encurralou às vezes que eu... que é... são perguntas
pertinentes... muito pertinentes... então... Você queria precisão ali, né?
JM: Eu... eu preciso tentar ter o máximo de certeza possível de que estou entendendo tudo o
que você está falando...
IB: Sim... sim... exatamente. Não, mas eu tenho certeza de que você entendeu tudo que eu falei,
com certeza.
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A.3 Transcrição da performance ao vivo de I. Boudrioua


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A.4 Transcrição da entrevista II com I. Boudrioua

Julio Merlino (JM): Em primeiro lugar, eu gostaria de te pedir... é... assim, é... que você me
descrevesse, mesmo que por alto, eu sei que é difícil lembrar minúcias, né?... me descrevesse
o que que você fez nesse solo.
Idriss Boudrioua (IB): O que eu fiz?...
JM: É...
IB: Ah... eu... primeiro eu esperei... é... vir a inspiração, né? Tem muito espaço, porque aí...
ali... como eu falei na outra, na outra entrevista, é... eu gosto de deixar o... alguma coisa vir
em mim pra poder... é... atuar. E às vezes não vem, então... tão rápido. Então, por isso os
espaços maiores. Mas... Eu usei... é... basicamente, no geral, frases que eu gosto de... de tocar,
mesclando... uma com a outra, não... não necessariamente, exatamente igual como eu já
conheço, mas tentando sempre... trazer uma novidade, assim, né?... Mas muito... de um modo
geral, quase... quase tudo que foi feito ali foi... foram... frases já... que eu já conheço há muito
tempo, que eu gosto de tocar... e... pensei na sonoridade enquanto eu tocava também, né?... na
consistência, num som mais gordo, mais cheio. E... e... interagir com o que eu estava ouvindo,
que era um... ritmo de bossa nova, num... standard de jazz, mas em ritmo de bossa nova: Alone
Together... e... que me estimula bastante, na realidade. Por ser bossa nova me estimula até, às
vezes, mais do que jazz. Não sei porque. Coisa de feeling... de sensação... Agora, para
responder a pergunta mais precisamente, o que eu mais usei mesmo foram frases bem
jazzísticas, que eu... cansei de saber... e... aplicando e... brincando de... de... de... apresentar
uma coisinha inédita, e... enquanto eu fazia... até onde ia... o que que eu podia botar a mais...
sabe? Mais ou menos assim.
JM: Entendi. Você... você... então, de um modo geral, você fez aquilo que você comentou na
primeira entrevista de mesclar frases prontas com... partes delas... emendando uma na outra...
IB: Isso! Exatamente isso.
JM: Com conexões entre uma e outra que você...
IB: Hum-rum... hum-rum.
JM: ... cria na hora, não é?
IB: Hum-rum.
JM: E... sempre... e... e o seu objetivo era sempre que isso fosse coerente com a... com a
harmonia...
IB: Com a harmonia e que fosse... e que seja... que fosse musical, né?
JM: Entendi.
400

IB: O máximo possível, né?


JM: E inclusive a questão das pausas, né? Você falou...
IB: Sim, sim...
JM: ... dar espaço para pensar, imaginar o que vem a seguir...
IB: Isso! Exatamente. Exatamente.
JM: Entendi. Essa imaginação do que vem a seguir, ela não necessariamente foi influenciada
pelo que você acabou de fazer? Ou é?
IB: Também, é...
JM: Também?
IB: Pode ser e pode não ser. Isso aí é uma... novamente uma ótima pergunta, porque...
geralmente é sim, porque... quando a gente sola, é... você sabe dizer, a gente está tentando
contar uma história, né?
JM: Hum-rum...
IB: É uma história que não tem palavras, é... tudo em som... em... com sonoridade. Então... é
claro que o que vem depois tem a ver com o que eu fiz antes, é... tem uma... tipo uma resposta.
Mas isso não é... não quer dizer que seja sempre assim, e... e pode não acontecer também,
assim. Isso é... não é ciência exata, assim, vamos dizer...
JM: Entendi. É... você saberia... explicar... é... porque que você... você fez o solo dessa maneira
que você acabou de descrever, com essa coerência com a harmonia, com essas pausas... talvez
você já tenha respondido isso na outra entrevista, é bem possível, mas... você saberia explicar
agora com... especificamente sobre esse solo...
IB: Sobre esse, né?
JM: Que você acabou de fazer, né? Porque que você tomou as atitudes que você acabou de
dizer que você tomou?
IB: Sim... é difícil responder essa pergunta... Porque, na realidade, eu não penso em nada,
assim... então... não sou eu que decido, na realidade. É aquela... aquela energia que vem de
outro lugar que eu falei ontem, e... Não sou eu que decido. Inclusive os melhores solos que eu
já fiz até hoje, foram solos que eu não... sabia que... que iam ser daquele jeito. É... correndo
risco de errar, me aproximando muito do erro... e às vezes errava, até mesmo, mas o erro nem...
chegava a entrar em... em conta, porque acabava sendo bom, é... porque... Mas agora... não,
eu... é... na realidade é o meu jeito de tocar... é um. Então, eu... eu fui eu mesmo, é... como
sempre faço, quando eu faço um solo... então, dizer exatamente porque que eu fiz aquilo ali...
é... é difícil responder essa pergunta. Acho que eu não saberia...
401

JM: Entendi. Então você... você concorda que... boa parte das decisões que você toma enquanto
você está improvisando são inconscientes? Assim...
IB: Ah sim! Sim...
JM: Pelo menos boa parte, né?
IB: Sim, claro! É... é... pois é... é... quando toco é como se eu estivesse no meu carro e mesmo
nesse solo inclusive, e... o meu carro eu conheço perfeitamente, né? Nem penso na hora passar
a marcha, ou frear... assim... Só que a curva que vai vir lá na frente eu não conheço. Aí... é
mais ou menos o que eu... a coisa mais próxima de uma resposta que eu poderia dar agora...
JM: E isso tem a ver com o que você falou... isso tem a ver com o que você disse sobre a base,
né? Em você responder a eles?
IB: Sim. Sim, sim. E isso aí deveria... inclusive, mais uma vez é muito bom o que você está
falando, porque... depende muito de como é conduzido, como as pessoas te colocam, ali é... é...
não é mecânico, são pessoas tocando, mas é... não deixa de ser mecânico porque é... uma coisa
que é repetitiva, que é a mesma. Se eu fosse fazer de novo seria a mesma base exatamente igual.
Mas, é... quando você toca com pessoas que estão interagindo com você já dá outra... ênfase,
não é? Que fala?
JM: Ênfase.
IB: Ênfase. Você já... já... o cara já te... te empurra para aquele lado e você... então você vai
interagindo e... pode ser completamente diferente. Depende muito do... Como é um som
gravado num... num computador, eu... são pessoas tocando, mas gravado, então é... estou sendo
estimulado até um certo ponto... né? Para ter... é... é... inovar, para... criar mais... se eu tocasse
com pessoas... de verdade, seria um pouco diferente. Eu acho que... eu teria mais informação,
ou até mesmo menos informação, dependendo do...
JM: Entendi. Bom. E... o... assim... você... descreveu o que você fez, você... respondeu porque
você fez, né? E... o que que você acha que... assim... mais uma vez você pode já ter respondido
isso na outra entrevista, mas... sobre esse solo específico, né? O que que... o que você... qual...
qual era a motivação que você acha que você teve por trás dessas escolhas que você já citou
de... de... de ser coerente com a progressão harmônica, de usar frases que você gosta, né? E...
brincar com elas, encadear aqui e ali, fazer pausas...
IB: Hum-rum...
JM: Esperar...
IB: Hum-rum.
JM: É... o que que... o que te levou a fazer essas escolhas, né? O que te motiva a fazer essas
escolhas?
402

IB: ... o meu passado... o que eu estudei antes, o que eu vivi antes, é... e tem mais coisas assim,
não é só isso não. Por exemplo, eu... eu como estou interagindo com você no seu trabalho eu
tentei ser... fazer... fazer o melhor possível. Eu sempre quero fazer o melhor possível, mas ali
eu tentei ser mais explicativo um pouco na hora de tocar, eu não parti... num... às vezes eu
gosto de fazer umas loucuras, assim, é... até sonoramente falando... é... aí hoje eu me contive
um pouco para ser mais explícito. Para poder falar sobre isso depois. Mas é... em primeiro
lugar, inspiração. Isso aí é tudo. Vem... aquela coisa que a gente não sabe de onde vem, mas
vem e... dai... essa eu diria que é a minha motivação real, né?
JM: Entendi. Essa inspiração, ela... ela... quando ela vem, não é? Você... ela... como você acha
que ela vem? Ela vem em forma de uma melodia que você imagina, ou de... apenas um... sei lá!
Uma emoção?...
IB: Eu acho que são várias coisas ao mesmo tempo...
JM: É?...
IB: É... a melodia... emoção tanto quanto a melodia, assim...
JJM: Hum-rum...
IB: Se... tem dias que eu vou tocar e não... não tem a menor vontade porque eu sei que não vai
ter aquele... pode ser que insistindo acabe vindo, mas é... hoje eu diria que é um dia morno pra
mim, né? Não... não me preparei para... e... e também só tenho um ouvinte aqui, que é um
ouvinte de qualidade...
JM: [risos]
IB: Mas... é que você vai fazer show num... num Carnegie Hall, sei lá aonde... na... na Baden
Powell, não é? Isso é outra coisa, as pessoas estão te olhando... um monte de gente que... não
faz um... um barulho... Tudo isso e... é... faz parte, não é? Vai te... te colocar no...
JM: O ambiente no qual você está tocando, não é? Ele... ele... você acha que ele... ele influi
muito...
IB: Sim, sim. Com certeza.
JM: ... na sua postura?
IB: Se eu vou tocar num lugar que é muito barulhento, que eu sei que as pessoas não estão
interessadas já perco a vontade na hora, porque eu acho que eu estou perdendo o meu tempo
também eu... porque que eu estou tocando e... preenchendo vazio... aí não faz sentido pra mim.
Eu prefiro não tocar e continuar feliz do mesmo jeito.
JM: Entendi. Então... é importante... é... na hora de criar o solo... é importante pra você que
tenha... alguém pra receber o solo que você está criando, não é?
IB: Sim, sim. É... ultimamente sim. Antigamente não. Quando eu era mais novo...
403

JM: Hum-rum..
IB: ... como eu estava estudando muito, é... o dia inteiro tocando a mesma música, aí eu...
imaginava que tinha uma plateia gigante, mas hoje em dia eu não estou muito preocupado com
a imaginação de... de... porque eu já passei por isso, já vivi isso, então já...é como se já tivesse
conquistado uma coisa, e que não precisasse mais... né?
JM: Entendi. Bom... essa... essa situação... eu achei interessante você falar assim, né? Quando
tem uma plateia, pode ser uma situação boa ou ruim, né? Pra você improvisar...
IB: Exatamente.
JM: ... né? Pode... pode atrapalhar ou pode ajudar...
IB: Hum-rum.
JM: E isso tem... você acha que isso tem a ver com... não sei se você vai lembrar do que você
falou na primeira entrevista... sobre... é... é... a sua disposição pra improvisar... né? Lembra
que você... a gente conversou, você disse que às vezes... você... quando a gente conversou sobre
trabalhos que a gente tem que tocar vários solos, um atrás do outro, chega um momento em
que...
IB: Sim, sim. Claro.
JM: Parece que seca, não é?
IB: Sim. Sim, sim.
JM: Então, quando... quando... quando a plateia é boa, está ali prestando atenção, recebendo
o que você está fazendo, ela ajuda...
IB: Muito!
JM: A... a você ter disposição pra improvisar...
IB: Com certeza. Porque ali eu sei que as pessoas estão na expectativa de uma coisa... se já foi
bom, eles vão querer... o quanto mais melhor. Então eu já vou... eu vou me... me... me rebuscar
mais coisas e... ou buscar, sei lá... mais coisas, mais profundidade e... aí vou... vou cavar até
aonde... onde... a gente sempre tem um lugarzinho pra cavar.
JM: Entendi.
IB: Né? É mais... é... exatamente. Muito bom isso aí que você perguntou agora também.
JM: É... a gente falou na outra entrevista sobre o solo que deu certo e o solo que deu errado.
IB: Hum-rum.
JM: É... você... esse que você fez agora, o último...
IB: Eu esperava essa pergunta... [risos]
JM: É... você diria que ele deu certo ou que ele deu errado?
404

IB: Não, ele deu certo, só que... a gente... a gente... sempre pode fazer melhor. Você sabe disso,
né?
JM: Ham-ram...
IB: Mas eu não estava é... preocupado com perfeição.
JM: Ham-ram...
IB: Estava preocupado em ser eu mesmo tocando, é... descontraidamente... pra você. Então,
eu acho que deu certo, mas, é... podia... poderia dar muito mais certo ainda, se eu... se eu
realmente me concentrasse mais... é... sabe? É aquele contexto que a gente acabou de falar...
JM: Entendi.
IB: Mas... mas esse deu certo sim.
JM: Essa... essa coisa da... da... da concentração, tem a ver, você acha, com... com aquilo que
você descreveu na outra entrevista sobre improvisar de forma intuitiva e improvisar de forma
racional?
IB: Sim. Exatamente. Mas também depende do estado espiritual da gente, né? Isso é muito
importante. Às vezes eu não tenho vontade de tocar, aí, se eu for tocar naquela hora, é... vai
rolar porque a gente tem um mínimo. Muitas vezes a gente não gosta do que a gente fez, mas
quem está ouvindo fala: “Pô, foi ótimo! Não-sei-o-que...” Mas a gente é exigente com a gente
mesmo, então... todos os caras que... que vão até o fim do... de um estudo, né? Aprofunda...
sempre vai querer... vão querer... mas... ser melhor, melhor... Agora... é... eu... é isso. É o que
eu falei, o... esse solo, eu achei bom. Agora... podia estar muito melhor, sem dúvida. E podia
estar pior também! É questão de... [risos] é tudo relativo, né? [mais risos]
JM: Quando você diz... assim... que o solo poderia estar muito melhor ou muito pior, só pra eu
me certificar...
IB: Sei! Sim, sim, sim, sim.
JM: Assim... é... você está se referindo à sua disposição de fazer o solo, a sua... ou...
IB: Ah... minha disposição não que eu... eu... sempre toco de um jeito e eu faço meu melhor,
mas é... vamos dizer que eu poderia me preparar mais... meu reflexo poderia estar mais
aguçado, mais preciso... mas eu não me preocupei porque eu tentei ser mais intuitivo do que...
racional, como a gente falou. Tem uma hora que eu deixei o olho aberto de propósito para que
você tenha os dois... os dois... é... é... mesmo não olhando, mas... vai... taí... tá lá... a música
taí, ela... a música não mente, então... é um outro caminho, entendeu?
JM: Nesse momento racional aí do olho aberto que você descreveu já também...
IB: Hum-rum. Hum-rum.
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JM: Né? Nesse momento você acha que você começa a pensar em... em... em estruturas
musicais? Tipo... harmonias, melodias...
IB: É... não... é... é... eu...
JM: Intervalos...
IB: Isso, isso. Inclusive ontem eu esqueci de falar uma coisa para você.
JM: Hum...
IB: É... um amigo nosso ele... me falava: “Idriss!” Não sei... tem muito tempo atrás... e ele
realmente não tinha isso na época, hoje.... hoje em dia ele tem. Ele falava: “Idriss, quando
você toca eu... você tem uma coisa que eu não tenho. Não sei explicar o que que é.” É porque
ele pensava só em aplicar tal escala em tal harmonia é... tal grau, era somente...
JM: Só estrutura?
IB: Só estrutura. E... ele sentia falta de alguma coisa e ele não sabia o que que era. É a vi... a
vivência, o tocar, quebrar a cara... decorar e depois se soltar... é... hoje em dia ele tem, agora...
é... me perdi agora, o que eu ia falar mesmo?... é... Ah, sim! Quando eu... quando eu falo em...
em abri o olho e racional, é... é isso! Eu... é como se entrasse é... como se... meu cérebro
entrasse mais em funcionamento, só. Tem alguém que falou, é... “Os olhos são a janela da
alma”, né? Mas engraçado porque a alma é intuitiva, a princípio é assim que a gente percebe
a alma. No caso, pra mim, é ao contrário: quando eu abro o meu olho é... não sei se porque
eu... entra uma... um conhecimento diferente e aí me faz ser mais racional... mais... é... pensar
mais um pouco, organizar mais... é... e o intuitivo às vezes parte para tudo quanto é lado, pode
até... quebrar a cara, errar, fazer um som esquisito... o racional, ele: “não, você vai fazer isso
assim, assim ó... tá vindo esse acorde aí! Ali você pode encaixar...” É mais ou menos isso que
eu chamo de racional e...
JM: Você diria que... você diria que esse racional... nesse... quando... quando o racional
predomina na improvisação...
IB: Hum...
JM: É... você pensa em termos de... de... de... escrita, de notação?
IB: E... um pouquinho, talvez, é... mas... não é muito não, é... eu acho que passa sim, porque o
nosso cérebro é incrível, né? Ah... eu vou... eu vou lhe dar um... um exemplo que vai... que vai
fazer uma grande diferença pra... pra sua pesquisa... é... quando eu... quando eu faço um solo
que é meio racional, meio intuitivo, os dois juntos, eu poderia durar muito mais tempo tocando.
Porque quando é só intuitivo, é o que eu falei ontem: eu toco uma música... tá bom pra mim, já
não... eu... eu posso tocar vinte horas sem parar... eu vou fazer coisas bonitas, eu vou... não
vou errar nada... mas não vai ser aquela coisa... aquele solo... que... sabe? Que te leva...
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Entendeu? Agora quando eu uso as duas coisas, eu aguento e ainda fica bom. Aí eu falo: “Não.
Tá bom! Podemos fazer assim.” É como se organizasse mais e... estruturasse mais também.
Não sei, né?
JM: Você fica com duas possibilidades...
IB: É... isso. Exatamente. Exatamente.
JM: Entendi. Bom... é... sobre esse solo em específico tem alguma coisa ainda que você acha
que valeria a pena explicar, ou...
IB: Em alguns momentos, só pra brincar...
JM: É...
IB: Eu gosto que a nota... como se tivesse um revérbio no fim da nota: [cantando] sabe?
JM: Ham-ram...
IB: Não rolou porque estava falhando aquele si bemol ali... [risos]
JM: [risos]
IB: Aí não tava aquele... aquele docinho final, sabe? Às vezes...
JM: Mas mesmo assim foi bom que me... me... oh... pra você ver como é interessante, mesmo
você tocando você pode pensar em fazer uma equação matemática...
JM: [risos]
IB: Você sabe disso! Você pode estar na China e viajando com tua namorada, tua esposa, tua
filha... e você está tocando... você já pode... entendeu? Não tem é... limites, o que é incrível. A
gente pode fazer um solo complexo, Giant Steps, sei lá... e você está pensando em outra coisa,
e... mas eu... tá tocando, continua tocando...
JM: [risos]
IB: Isso é interessante, né?
JM: É, porque... muita coisa já está automatizada, né?
IB: É... exatamente. Exatamente.
JM: Já tá... é... já são coisas que já estão na mão, né? Você diria isso?
IB: É isso, exatamente. É.
JM: A mão já faz direitinho...
IB: Exatamente.
JM: Esse seria o lugar seguro, né? Quando você fala, por exemplo, que se arrisca... que corre
o risco de errar, seria quando você tenta fazer alguma coisa que não “tá na mão”, seria isso?
IB: Quando eu arrisco... É, isso! Isso mesmo. Isso mesmo. Pegar um caminho é... diferente
assim... muito tempo... é muito... eu já te falei isso, muito tempo atrás... eu peguei muita carona
com muita gente... Phill Woods especialmente, Art Peper, Dexter Gordon, Chat (Baker)...
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Então, é... até que um dia o Cacau, né?... o Cacau Queiroz que mora na França, falou: “Idriss,
só estou ouvindo o Phill Woods quando você toca. Cadê você?” Aí que... pra mim foi um baita
de um elogio, porque se eu parecia com o Phill Woods era porque eu já estava tocando
direitinho, né?
JM: É...
IB: Mas eu pensei: ele tem razão. Cadê eu? Daí eu comecei a não fazer as coisas perfeitinhas,
aquela frase perfeita, encaixadinho... eu comecei a... foi ali que eu realmente desenvolvi mais
coisas.
JM: Entendi. Bacana. Bom, eu acho que é isso!
IB: Perfeito!

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