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Jung & Corpo

ISSN 1676-0387

JUNG & CORPO

“Em princípio, não há diferença entre


formações orgânicas e psíquicas. Como uma
planta produz suas flores, assim a psique cria
seus símbolos.”
(C. G. Jung, 1964, CW 18, par. 64)

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Jung & Corpo

EDITORAS RESPONSÁVEIS
Maria Helena R. Mandacarú Guerra
Neusa Maria Lopes Sauaia

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Wellington Leardini - Secretaria - Instituto Sedes Sapientiae

Revista JUNG & CORPO


ISSN 1676-0387

Site: http://www.sedes.org.br
E-mail: sedes@sedes.org.br

Fotolito e Impressão: JK Gráfica e Editora

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EDITORIAL

É com muita alegria que comemoramos, neste ano, o lançamento da revista Jung &
Corpo nº. 10. Ao longo desta década, procuramos ser um espaço de divulgação da criatividade
de colegas que conciliam a psicologia analítica e o trabalho corporal.
Desde o lançamento da revista, nosso propósito tem sido o de oferecer, sobretudo àque-
les que tiveram parte de sua formação no curso Jung & Corpo, do Instituto Sedes Sapientiae,
oportunidade para expor seus trabalhos e suas ideias. Somam-se a eles profissionais convi-
dados a participar do nosso projeto e que, generosamente, contribuíram com seus textos.
Em seus 10 anos, a Jung & Corpo publicou mais de 80 artigos sobre temas que vão desde
reflexões teóricas inspiradoras até relatos de experiências práticas relevantes.
O número 10 é tradicionalmente associado à totalidade e é nesta direção que Sylvia
Baptista nos faz refletir sobre diferentes padrões de apego e suas inter-relações mitológicas.
Valéria Sanchez Silva revela como uma intensa experiência pessoal com a cultura cigana
cria caminhos que vão tecendo o processo de individuação.
Uma verdadeira dança entre os gêneros, com suas particularidades e semelhanças, é dis-
cutida por Maria Helena Guerra, quando aborda as intenções de adotar-se a persona do
sexo oposto em determinadas situações. Mergulhamos então no artigo de Karla Rapaport,
que fala da mais característica particularidade do feminino: a menstruação, que atualmente
corre o risco de perder seu significado simbólico e sagrado.
De fundamental importância é reconhecermos que o uso de mediações terapêuticas pode
beneficiar idosas institucionalizadas, como discutido no artigo de Ana Luísa Penteado que
descreve a TAA - Terapia Assistida por Animais.
Fato inédito em nossa revista, publicamos nesta edição textos de pai e filha, Paulo e Amana
Toledo Machado. Paulo nos traz uma reflexão sobre o estresse pós-traumático, problema
crescente na contemporaneidade. Amana, por sua vez, em seu estudo sobre a moda, propõe
que esta não se transforme em tortura, mas que seja uma maneira de as mulheres expressarem
sua essência.
Que o leitor usufrua dos temas desta edição especial, a qual para nós reitera a confiança
no trabalho de profissionais que investem no desenvolvimento humano.
Desejamos a todos uma boa leitura.

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SUMÁRIO

APEGOS, MEDO E SIMBIOSE....................................................................................... 07


Sylvia Mello Silva Baptista

DEVIR CIGANO, CORPO E IMAGEM......................................................................... 17


Valéria Sanchez Silva

HOMEM DISFARÇADO DE MULHER


MULHER DISFARÇADA DE HOMEM - Persona e Gênero....................................... 29
Maria Helena R. Mandacarú Guerra

MENSTRUAÇÃO: EXPRESSÃO DA FEMINILIDADE................................................. 39


Karla Rapaport

A INFLUÊNCIA DA TERAPIA ASSISTIDA POR ANIMAIS NA


PERCEPÇÃO CORPORAL DE IDOSAS INSTITUCIONALIZADAS.......................... 53
Ana Luísa C. A. Penteado

ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO: UMA VISÃO INTEGRATIVA................................. 63


Paulo Toledo Machado Filho

A MODA COMO EXPRESSÃO SIMBÓLICA DO FEMININO................................... 71


Amana Perrucci Toledo Machado

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APEGOS, MEDO E SIMBIOSE

Sylvia Mello Silva Baptista1

Introdução

Em trabalho apresentado em um congresso de terapia familiar recente2, procurei discor-


rer sobre mitologia grega e possíveis ligações desta com as diferentes formas de apegos,
segundo os padrões de apego descritos por John Bowlby ([1982] 2006) e enriquecidos pelo
olhar da psicologia analítica que Gilda Montoro (1994) emprestou para esse autor. A mim,
interessou-me o quanto essa tipologia pode nos ajudar a compreender melhor os meandros
da psique e, em especial, seu funcionamento em nossos pacientes clínicos. Faço agora algu-
mas aproximações a partir do que pude observar em minha prática, reflexões traduzidas nas
ideias que se seguem.

Padrões de apego

Bowlby ([1982] 2006) descreve dois grandes tipos de apegos que estariam presentes
desde o nascimento, a depender da relação que o bebê estabelece com os pais: o apego
seguro e o apego inseguro. Segundo o autor, o modelo mental de relação é construído a
partir da relação real. A criança internaliza a maneira como foi tratada, o que viveu. Os
padrões estabelecidos vão se exercer nas relações como um todo, não só nas parentais, mas
também na conjugalidade, e quando o “outro” é o mundo - externo e interno. A forma como
foi elaborado o vivido, juntamente com a revisão dos modelos, podem fazer com que se

1
Psicóloga, Analista Junguiana, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e International
Association for Analytical Psychology (IAAP), Especialista e Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
Autora do livros: Maternidade e profissão: oportunidades de desenvolvimento; Arquétipo do Caminho -
Guilgamesh e Parsifal de mãos dadas; e coautora de Mitologia simbólica - estruturas da psique e regências
míticas, todos editados pela Editora Casa do Psicólogo.
E-mail: sylviamellobaptista@gmail.com
2
Juntamente com Ana Célia R. de Souza e Elza Maria Lopes.

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desenvolva um apego seguro, mesmo em situações adversas. Certamente, a capacidade de


resiliência do indivíduo será fator de capital importância. E cada vez fica mais claro que
esta possibilidade humana de reação construtiva às violências da vida é, por assim dizer,
“filha” do apego seguro. Compreendo resiliência como “uma capacidade do indivíduo de,
frente a adversidades e exposição a situações de dor e sofrimento, lidar de forma criativa
com os fatos e situações agressoras, de modo a ultrapassar a crise, conservando sua integri-
dade psíquica” (Baptista e Lima, 2007).
No setting analítico vemos como é possível, embora trabalhoso e sofrido, rever nos-
sas matrizes e descobrirmos como nos constituímos. A partir desse olhar para dentro de
nós mesmos, a constatação de que desenvolvemos um apego inseguro nos dá a chance
de reformularmos nossos padrões de relações, estabelecendo novos vínculos em outras
bases. A análise é uma das vias possíveis para esse trabalho, não a única, mas sobre a
qual poderemos melhor falar por ser este o nosso campo de ação. A relação transferencial,
um terreno fértil.
Mary Ainsworth e Mary Main são pesquisadoras que classificaram os diferentes pa-
drões de apego a partir de observações das relações mãe-criança. Viram ser fundamental
para o desenvolvimento adequado, a sensação de confiança na disponibilidade do adulto
nos primeiros laços afetivos. No chamado “apego seguro” a criança interage bem com
uma mãe sensível e capaz de oferecer respostas emocionais organizadas e estruturantes.
Explora o meio, e confia que a ausência do adulto cuidador é passageira. O apego seguro
é aquele promovido por famílias com um desenvolvimento saudável, embasado na comu-
nicação clara e livre. A criança se sente segura para fazer suas pesquisas no mundo, des-
cobrir o novo, errar e recomeçar, exercitar sua curiosidade com liberdade. Neste artigo,
meu foco estará no apego inseguro e em como ele se apresenta, em especial no padrão
evitador de apego. (Além deste, o apego inseguro inclui apego ansioso-ambivalente e
apego desorganizado.)

Apego Evitador

Como o nome diz, o indivíduo que apresenta o padrão apego evitador evita o contato. Há
o apego ao outro, mas a estratégia para não sofrer, ou para sofrer o menos possível, é ficar
distante e não abrir a intimidade. A criança teve, ou entendeu o ambiente em que foi
“maternada”, como pouco acolhedor, ou mesmo ameaçador. O indivíduo espera ser rejeita-
do e tenta, a partir dessa hipótese interna, ser emocionalmente autossuficiente. A dor é a
grande ameaça ao desenvolvimento. Ao pressentir sua presença, seja de ordem física ou
psíquica, o indivíduo se fecha e escapa das situações que julga perigosas. Esse processo se
dá, na sua maioria, de modo inconsciente.

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O dano para o desenvolvimento de uma pessoa com esse tipo de apego é sua atitude de
parar de buscar. Isso anestesia o sistema exploratório, promotor de crescimento. Os com-
portamentos de apego e de exploração são excludentes. O sistema exploratório é acionado
com situações novas, com novidades, e se desativa com a familiaridade. Esse é um padrão
mais assintomático que os outros, pois a criança (ou o adulto) não reclama; ele simplesmen-
te vive, julgando ser suficiente o que sente e percebe do mundo. Quem não se lembra da
famosa frase da grande atriz Marlene Dietrich: “I want to be alone!”. Ela traduz esse espírito.
É também possível observar esse padrão em crianças que invertem o papel na relação parental,
e tornam-se cuidadoras dos pais. Numa atitude contrafóbica, geralmente com pais narcisis-
tas e pouco sensíveis à identidade e às necessidades do filho, este se torna cuidador daque-
les, numa tentativa desesperada de dar ao outro aquilo de que foi privado.
A tipologia tem um papel bastante importante nesse modelo. Jung nos legou uma grande
contribuição, ao observar nas pessoas diferenças típicas, através das quais foi possível
categorizar algumas formas de atitudes e de funcionamentos. Assim, como sabemos, há
duas atitudes opostas que determinam o modo de relação entre o sujeito e o objeto, ou o
meio: a atitude extrovertida, na qual o sujeito tem no meio seu maior estímulo, e a atitude
introvertida, em que a subjetividade é o foco, sendo o meio, fonte de impressões. A essas se
somam quatro funções organizadas em pares de opostos, a saber: pensamento e sentimento,
e sensação e intuição. Discorrer com vagar sobre as combinações que se desdobram daí
requereria todo um livro.
Depois de Jung, outros estudiosos fizeram importantes acréscimos que enriqueceram o
enfoque tipológico, o que ainda aumenta o volume de conhecimento nessa área. Entre eles
destaco Myers & Myers (1997) - que adicionaram importantes percepções para a atitude
introvertida e desenvolveram um método de verificação amplamente usado na atualidade,
o MBTI -, e Maria Zélia de Alvarenga e colaboradores (2007) - nós desenvolvemos uma
possibilidade de olhar os tipos conjugados com figuras míticas, construindo um universo
tipológico que chamamos de Regências Míticas. Por ora, no entanto, basta-nos saber que
certas formas típicas de funcionamento se opõem entre si e podem trazer diversos conflitos
inter-relacionais.
Uma mãe extrovertida, por exemplo, pode ser sentida por uma criança introvertida como
extremamente invasiva, e colaborar para a construção de um padrão de apego evitador, no
qual esta vai se protegendo do que vem do ambiente e encapsulando cada vez mais tudo o
que diga respeito à intimidade e ao mundo interno. Este quadro pode ser potencializado
com o contraste de funções da consciência - pensamento, sentimento, sensação e intuição -
e suas oposições. Ou, dentro do raciocínio mítico-tipológico, regências antagônicas como
Afrodite e Atená, ou Ares e Apolo. Podemos pensar, por exemplo, que a ironia e o sarcasmo
são sinais na linguagem que denunciam um possível padrão evitador de apego, uma vez que
o indivíduo responde, mas se esquivando de uma comunicação mais aberta e direta.

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Apego Ansioso-ambivalente

O apego ansioso-ambivalente se estabelece através de uma relação ambivalente e pouco


clara da criança com o adulto cuidador. A criança sente a necessidade de se assegurar o
tempo todo do vínculo que ela vive como frágil; o indivíduo adulto quer “discutir a rela-
ção”. Ao contrário do que ocorre no apego evitador, o sistema de busca fica hiperativado. A
ansiedade é característica deste tipo de vínculo, e está presente todo tempo, bem como a
sensação de abandono, o medo da separação e a necessidade premente de conquistar uma
segurança em relação à ligação com o outro, uma vez que sente sua disponibilidade como
incerta.
A questão tipológica também aqui se apresentará, fazendo com que as diferenças e difi-
culdades de entendimento agravem a ansiedade já característica do vínculo. Assim, imagi-
nando uma criança do tipo pensamento extrovertido, esta pode sentir-se totalmente
incompreendida e pouco estimulada por pais introvertidos, que valorizam o silêncio e a
reflexão. A necessidade de ação desse pequeno indivíduo, voltada para o pensar o mundo,
sem que haja um eco no seu ambiente mais próximo, pode causar-lhe a impressão de total
abandono e fazer com que cheque inúmeras vezes se sua percepção está correta, buscando
no contato com os pais uma segurança aparentemente inexistente.

Apego Desorganizado

O apego desorganizado se destaca dos dois anteriores, pois não conta com uma estraté-
gia organizada para lidar com a frustração, com o trauma ou com qualquer adversidade. A
criança não consegue construir um apego. Muitas vezes são crianças ansiosas e sistematica-
mente rechaçadas, que não alcançam compreender que modelo seguir e acabam por apre-
sentar comportamentos bizarros. A confusão e a apreensão estão marcadamente presentes.
Nos transtornos borderline nós podemos identificar o padrão de apego desorganizado, num
quadro de oscilações radicais de humor, de comportamentos autodestrutivos importantes e
uma dificuldade marcante de estabelecimento de vínculos seguros e duradouros. Muitas
vezes, esses indivíduos sofreram abusos sexuais ou de outra ordem, violências que deixa-
ram marcas indeléveis e que prejudicaram sua capacidade de crescimento saudável.
Levando em conta esse modelo, busco pensar como se constituíram os padrões de apego
em divindades míticas gregas, e como poderíamos entender a forma de elaboração desses
padrões, a partir de uma leitura simbólica desses personagens e suas histórias.
Por que pensar esses padrões em personagens míticos?

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Os deuses e os apegos

A ideia é que possamos considerar os deuses gregos como metáforas do humano e de seu
funcionamento, uma vez que podemos constatar no desenrolar de suas histórias aquilo que
Alvarenga (2007) chamou de “caminhos de humanização”. Trata-se de feitos, casamentos,
filhos e batalhas vividas pelas divindades, que indicam um modo peculiar de manejo das
situações e emoções, e que traduzem possíveis formas de humanização dos arquétipos que
os deuses representam. Cada deus grego é descrito como tendo nascido em determinado
contexto, tendo realizado tais ou quais tarefas, e se relacionado com certas figuras de uma
ou outra forma específica. Quando unimos a caracterização de determinado deus com um
ser humano de carne e osso, que possui uma determinada tipologia mítica tal qual a descre-
vemos em Mitologia Simbólica, obtemos dados preciosos a respeito do seu padrão de funci-
onamento, tendo a mítica a nos ampliar as formas de compreensão dos caminhos que se
deslindam para aquele indivíduo, ao mesmo tempo tão singular e tão coletivo.
Ao lado da compreensão do estabelecimento de vínculos desde a tenra infância, descrita
por Bowlby ([1982] 2006), caracterizando a forma de apego da criança, que marcará sua
relação com o mundo, encontrei em James Hollis ([1998] 2002) ideias sintônicas, que me
levaram a refletir mais além. Afirma Hollis que “a qualidade de todos os nossos relaciona-
mentos depende diretamente da qualidade da relação que mantemos com nós mesmos”.
Faz tal colocação depois de sublinhar que:
Precisamos aceitar que a natureza de todos os nossos relacionamentos
resulta das nossas primeiras relações, que internalizamos e experimenta-
mos como relacionamento inconsciente e fenomenológico também com
nós mesmos. Desse relacionamento advém a profundidade, a substância e
o conteúdo de todos os outros. (p.14)
E, ainda, Hollis diz que:
A leitura fenomenológica do mundo cria a sensibilidade da criança;
dessa sensibilidade decorrem a estrutura da personalidade e as estratégias
de sobrevivência. (p.19)
Na minha observação dos padrões de apego em meus pacientes no consultório, pude
identificar que quando se trata da qualidade do padrão de apego com a mãe, as característi-
cas daquele padrão são levadas para as relações e vínculos, enquanto que o padrão de
apego com o pai tende a definir um tipo de relação com a ação no mundo. Na mítica é
possível destacar o papel do feminino de gestar as ideias na promoção do cuidado, enquanto
a ação é executada pela mão do masculino, desde Geia, Urano e Crono. Podemos considerar
que tradicionalmente coube à mãe o cuidado com seu rebento, e ao pai prover o seu susten-
to através da sua ida ao mundo. A discussão de papéis, suas raízes arquetípicas e suas

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manifestações no coletivo de forma humanizada são extensas e mereceriam uma atenção


especial. Peço licença ao leitor para contentar-se, por hora, com algumas observações
clínicas. Assim, se a pessoa traz um padrão evitador com a mãe, tende a desenvolver
relações amorosas, por exemplo, marcadas pela desconfiança, pelo distanciamento, mui-
tas vezes pela timidez e repressão de iniciativas que a façam sentir-se exposta, coisa que
provocaria uma sensação de ameaça não suportável. São pessoas que têm dificuldades de
se vincular e buscam garantias de amor em seus contatos, estando constantemente
ameaçadas com a ideia de abandono ou não compreensão por parte do outro. Preferem às
vezes não se relacionar, e sofrem em silêncio.
Hades pode ser apontado como fazendo parte desse tipo de apego. Sua mãe, Reia,
obedeceu Crono quando este exigiu engoli-lo, sem demonstrar nenhuma rebeldia contra
ato tão terrível. O pintor espanhol do século XVIII, Francisco José de Goya y Lucientes,
tem deste episódio uma figuração magnífica, que nos transmite o horror do devoramento.
Hades só foi devolvido à luz por seu irmão caçula, Zeus, este sim, protegido pela mãe,
que lhe proporcionou um apego seguro ao, entre outras coisas, intervir contra seu
aprisionamento no interior do pai. Reia estrategicamente deu a ele uma pedra no lugar da
criança e criou Zeus à distância, até que ele pudesse pôr fim àquela cruel situação.
Hades vive recluso nos Ínferos, território a ele destinado na parte do inventário dos
mundos que lhe coube (tendo Zeus ficado com a Terra e o Olimpo, e Posídon com os
mares). Dali, só sai à superfície por duas vezes: uma, por causa de uma dor insuportável,
depois de ser ferido por Héracles, e outra para raptar Coré (por quem se encantou quando
de sua emersão para ser curado pelo deus médico Peã-Apolo). O homem regido por Hades
apresenta muitas vezes padrão evitador de apego com a mãe, e revela uma grande dificul-
dade em estabelecer relações. Como Hades, pode realizar um esforço “hercúleo” de sair
de seu recato e emergir na superfície do mundo visível num único e derradeiro ato, para
buscar um amor possível. Mas há que ter, como o deus, a sorte de um encontro fértil.
Caso contrário, é capaz de permanecer recluso por toda a vida, recolhido em sua
interioridade, vítima de seus complexos.
O mesmo padrão de apego na relação com o pai influenciará a forma também assustadi-
ça e desconfiada com que se lançará no mundo do trabalho, da ação prática. Esses indivídu-
os buscam profissões em lugares onde não necessitem confronto com outros, onde a expe-
riência concreta se faça em silêncio, longe de desafios extrovertidos, com o mínimo de
provas possíveis. Hefesto é um bom exemplo disto. Rejeitado pelo pai - além da mãe -, é o
deus faber, que se recolhe no interior da terra, em suas forjas, depois de ser recolhido por
Tétis no fundo do mar. Tem toda uma atividade retirada, nos meandros dos vulcões, onde
confecciona armas e joias de forma absolutamente introvertida.

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Medo

Por trás de toda a experiência parental primária existe um sentimento básico que é o
medo do abandono. A estratégia para lidar com a dor e a frustração detectável no padrão
ansioso-ambivalente é o controle, que em demasia traz um enrijecimento patológico na
psique. Quando falha, deixa vazar a ansiedade - que dá o tom nessa forma de vínculo - e faz
da neurose um alerta para uma possível cura. Já apontei acima que no apego desorganizado
a pessoa não encontra tais estratégias disponíveis. As que lançam mão se caracterizam como
bizarras, desadaptadas, caóticas, muitas vezes trazendo riscos significativos ao próprio in-
divíduo.
Gostaria de discorrer um pouco mais detalhadamente sobre o padrão evitador, no qual é
possível identificar a estratégia da fuga como expectação de enfrentamento da exclusão
vivenciada Aí está instalada a crença na autossuficiência. Ao mesmo tempo, pude observar
que o contraponto dessa atitude de evitação e fuga é a simbiose - entendida como uma
busca de interdependência marcada por uma indiscriminação e inconsciência.
Pode parecer contraditório, mas o indivíduo que no mundo das relações afetivas as evita,
quando numa situação de vínculo - também afetivo - pode desenvolver, igualmente, uma
simbiose com seu pretenso objeto de amor. É como se enantiodromicamente houvesse uma
busca desesperada de encontro com um amor do qual carece. O outro, antes evitado para
que não houvesse a repetição da frustração primária, vira depositário das projeções. O que
muitas vezes ocorre é que a relação simbiótica, por suas características de sufocamento e
impedimento da existência da pessoa na sua individualidade, acaba gerando um novo afas-
tamento e “comprovando” a tese inicial da pessoa de que o melhor a fazer é mesmo evitar
o contato. Quando o padrão de apego é absoluto, também o são as regras a que o indivíduo
submete seu mundo. Toda relação, portanto, deve ser evitada. Inconsciente do que se pas-
sa, ele não se dá conta de que oscila entre o excesso e a ausência, polos de uma mesma
gangorra relacional.
Hollis ([1998] 2002) afirma, consoante essa ideia, que há duas categorias de trauma na
vida: a ferida do excesso e a ferida da insuficiência.
No exemplo escolhido, de Hades como um deus com apego evitador nas relações, vemos
no mito uma possibilidade de resolução interessante. Apesar da dificuldade do deus em se
relacionar, o enfrentamento da situação e o encontro com Coré - que por sua vez teve um
apego evitador de características simbióticas com a mãe Deméter -, deu a ele, como tam-
bém a ela, uma oportunidade de re-significação dos vínculos. Como sabemos, tanto Hades
como Coré - mais tarde denominada Perséfone -, aprenderam uma nova forma de relaciona-

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mento e saíram da condição de simbiose e indiscriminação. Ele, capaz de abrir mão de sua
presença durante um terço do ano, e ela de fazer sua viagem à superfície sem a presença
dele, ambos inteiros, constituindo o casal mais representante de um amor maduro no Olimpo,
- e, segundo Kerényi (2002, p.209), pais do quarto regente, Dioniso. É importante acrescen-
tar que as histórias de Hades e de Perséfone têm características diversas. Hades, é um
devorado pelo pai e somente com o nascimento de seu irmão Zeus viu acontecer a iniciati-
va da mãe em reverter a situação causada por Crono. Perséfone, por sua vez, viveu um
engolimento simbólico da mãe Deméter, tendo a simbiose entre as duas passado de um
limite esperado na relação mãe-filha, tornando necessário um afastamento concreto para
que a pequena Coré se transformasse na adulta Perséfone. O encontro de ambos, com suas
feridas relacionais e dificuldades vinculares, no entanto, fez-se profícuo e fértil.
Cabe concluir que a consciência dos padrões que nos constituem é de importância fun-
damental. A isso, soma-se a sabedoria dos mitos e deuses enquanto expressões arquetípicas,
cuja compreensão simbólica só vem nos enriquecer e instrumentalizar.
Encontro em Drummond, nosso poeta maior, sintonia nas “helênicas” palavras escolhi-
das para descrever a busca, o encontro, a paixão que todos desejamos, apego seguro, porto
almejado:

A Paixão Medida

Trocaica te amei, com ternura dáctila


e gesto espondeu.
Teus iambos aos meus com força entrelacei.
Em dia alcmânico, o instinto ropálico
rompeu, leonino,
a porta pentâmetra.
Gemido trilongo entre breves murmúrios.
E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico,
senão a quebrada lembrança
de latina, de grega, inumerável delícia?

Referências Bibliográficas

ANDRADE, C. D. A paixão medida in Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,


p. 1189-1190, 2003.
ALVARENGA, M. Z. Caminhos da humanização. Junguiana, Revista da Sociedade Brasileira
de Psicologia Analítica. São Paulo, 22: 69-77, 2004.

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ALVARENGA, M. Z. e colaboradores. Mitologia simbólica - Estruturas da psique e regências


míticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
BAPTISTA, S.M.S.; LIMA, G. A parceria Héstia-Hermes no fenômeno da resiliência. Jung
& Corpo, 7: 49-56, 2007.
BOWLBY, J. (1982). Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
HOLLIS, J. (1998). O projeto Éden - a busca do outro mágico. São Paulo: Paulus, 2002.
KERÉNYI, K. Dioniso. São Paulo: Odysseus, 2002.
MONTORO, G.M.C.F. Aplicações clínicas e diálogo com a psicologia analítica. Monografia
para SBPA, 1994.
MYERS, I. & MYERS, P. (1980). Ser humano é ser diferente. São Paulo: Editora Gente, 1997.

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DEVIR CIGANO, CORPO E IMAGEM

Valéria Sanchez Silva1

Este artigo é fruto da minha dissertação de mestrado em Psicologia Clínica, apresentada


no núcleo de Psicanálise e Formações de Cultura na PUC-SP, 2006. Seu embrião, no entan-
to, nasceu 20 anos antes, em 1986, a partir de um episódio advindo de uma vivência espon-
tânea de imaginação passiva. Este episódio autônomo teve a duração de cerca de uma hora.
Nele se desenrolou uma história de vida cigana, com começo, meio e fim. Esta vivência foi
relatada no livro Ao passar das Caravanas... Ciganas (Contrucci, 1995), no qual foram registradas
imagens constituídas de elementos simbólicos, culturais e míticos referentes ao Povo Ciga-
no. Na época eu cursava o segundo semestre do curso de Cinesiologia no Instituto Sedes
Sapientiae, sob a orientação do inesquecível Prof. Pethö Sándor. Para este artigo optei por
privilegiar o recorte das “origens” deste trabalho, ou seja, o episódio de imaginação passiva,
suas matrizes e fundamentais desdobramentos.
Antes do episódio espontâneo de imaginação passiva, em 1986, não conhecia nem tive
qualquer tipo de informação sobre o povo cigano. No entanto, fui atravessada por episódios
significativos, que a meu ver, prepararam o caminho.

Episódio primeiro: a brincadeira

Como tudo começa na infância, esta captura também começou por lá. Por volta dos
meus 5 anos, os adultos que me cercavam - minha mãe, tias etc - diziam que eu e minhas
primas não devíamos brincar na rua, senão “os ciganos poderiam nos roubar”.

1
Valéria Sanchez Silva é Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, especialista em Cinesiologia e
Psicoterapia de Orientação Junguiana pelo Instituto Sedes Sapientiae, Professora e fundadora dos Encon-
tros de Mitos, Símbolos & Arquétipos do Instituto Sedes Sapientiae.
E-mail: valesanchez1@gmail.com

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- Mas para que os ciganos iriam nos pegar? - perguntávamos.


- Os ciganos roubam criancinhas para depois ir com elas pedir esmolas
pelas ruas.
- Que horror... precisamos fazer alguma coisa!

Assim, construímos esta brincadeira:

Uma cigana roubara um bebê não-cigano. Precisávamos pegar o bebê


de volta! Passávamos tardes inteiras planejando e tentando executar nosso
plano. Deixávamos armadilhas na calçada... por exemplo, um copo com
leite misturado com produtos de limpeza e muito açúcar. O copo era
deixado em um canto da calçada. A cigana passaria com o bebê roubado
no colo, beberia o leite envenenado e desmaiaria; nós pegaríamos o bebê,
avisaríamos os adultos e, enquanto eles fossem procurar a mãe, cuidaría-
mos da criança. A última parte da brincadeira consistia em preparar o
berço, as roupinhas e tudo o mais que o suposto bebê, roubado pela
cigana, iria precisar... (Sanchez, 2006, p. 13)

Episódio segundo: o sonho

Aos 20 anos, cursando o terceiro ano de psicologia, durante a minha primeira experiência
de análise, os ciganos voltaram a visitar a minha interioridade - desta vez por meio de um
sonho recorrente, que batizei de “A velha cigana da montanha”.

Estava montada num cavalo branco e galopava curiosa e alegre por


uma floresta montanhosa. No meio do caminho, avistava a cabana de
uma velha cigana; ela aparecia e eu fugia galopando, ofegante de medo.
(Sanchez, 2006, p. 14)

Minha terapeuta convidou-me a refletir sobre quem era ou o que poderia representar
aquela velha cigana do sonho. Respondi que ela me aterrorizava e eu não queria tratar do
tema. Ela argumentou que eu era corajosa para tantas coisas e que, sendo este um sonho
recorrente, precisava ser examinado. A resistência era evidente. - “Você está fugindo de
você mesma, Valéria!”. Nem este nem outro argumento me convenceu a enfrentar o desafio
do sonho. Hoje penso que talvez a velha cigana fosse aquela a quem um dia ofereci o copo
de veneno. Talvez ela quisesse tirar satisfações...

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Entre o segundo e terceiro episódios, passaram-se onze anos. No início da década de 80,
iniciei um grupo de estudos de Psicologia Analítica com o Dr. Pethö Sándor. Tanto a minha
primeira psicanalista como o professor Sándor sugeriram que eu fizesse algum trabalho
corporal, visto que eu era muito racional. No final de 1985 o professor Sándor fez-me um
convite irrecusável: - “Valéria, venha para o seu corpo! Estou abrindo um curso de integração
psicofísica batizado de Cinesiologia, no Instituto Sedes Sapientiae; seria muito bom você
participar”. Iniciei o curso em 1986 e mergulhei no processo de experimentação corporal
com intensidade e dedicação. Ficava mobilizada e surpreendida com a repercussão do tra-
balho, refletida na minha subjetividade, mesmo após horas ou dias do término das vivências.
Meu corpo respondia intensamente às propostas de toques sutis e exercícios grupais. Al-
guns meses se passaram e apareceram algumas feridas no meu braço direito e no pé esquer-
do. Orientada pelo professor a receber com naturalidade os sinais corporais, e a não inter-
romper os sintomas com medicação, fui aprendendo a “me receber”. Aliás, uma das coisas
que ocorreu durante este trabalho foi a remissão de um sintoma alérgico de eczema que me
acompanhava desde os dez anos de idade. Absorta e confiante na alquimia corporal, não
podia supor que a vivência mais intensa ainda estaria para acontecer.

Episódio terceiro: Imaginação passiva

As Caravanas Ciganas me chegaram em uma noite chuvosa de domin-


go, sem pedir licença ou dar avisos. Foi em outubro de 1986; por volta das
19 horas, desenrolou-se diante de mim a história da vida da cigana Luzcia:
começo, meio e fim. Voltávamos de carro de Vargem Grande Paulista, a
45 km de São Paulo. Meu marido na direção, nossos três filhos no banco
de trás (dormindo), e eu, no banco de passageiro... Com os olhos abertos
assistia ao desenrolar dos acontecimentos como num filme, com precisão,
clareza e naturalidade. Fui literalmente visitada por emoções, sentimentos
e sensações inéditas e estrangeiras, atravessada por um processo que se fez
autônomo, adentrada por inaugurais e estranhos caminhos. Conheci os
ciganos que habitavam as cuevas do meu próprio ser. Este povo nômade
e errante, que percorre toda a Terra, também fez de mim sua estrada. (...)
Atônita, eu os recebia como partes de minha vida e consciência. Como
estrangeiros de meu próprio ser, os ciganos buscavam abrigo, acolhimen-
to e guarida; um espaço vazio, uma clareira por entre pensamentos e pre-
ocupações, para que pudessem chegar e ser recebidos sem julgamentos
nem conceitos prévios, como se deve fazer com um novo amigo. (...)
Foram me envolvendo e revelando seus 'porquês', suas histórias e senti-
dos. Povoaram meus pensamentos, despertaram sentimentos. Chegaram e
acamparam bem no centro do meu coração... (Contrucci, 1995, p. 9)

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A naturalidade com que recebi esta história foi a mesma com que costumo receber os
meus sonhos. Neste caso, desenrolou-se um processo autônomo de “sonhar com os olhos
abertos”. Assistia com clareza aos conteúdos e às peripécias que se apresentavam como o
desenrolar de um filme. A palavra imaginação pode ser literalmente decomposta: imagem-
ação, ou dito de outro modo, da libido ao ato, do desejo à realização, como a matriz que dá
forma à realidade. A psicologia analítica, de Carl Gustav Jung, referenda esta matriz viva e
complexa como o manancial arquetípico que rege a humanidade. Entendo o fenômeno que
ocorreu naquela noite como um episódio de imaginação passiva. Jung (1921) nos fala em
imaginação; entendida no sentido semântico da palavra, “imagem-ação”, designa o próprio
processo de fantasiar.

Aparece mais ou menos abruptamente na consciência, como espécie


de visão, ou alucinação, mas sem o caráter patológico desta (...), isto é, a
imagem nunca toma o lugar da realidade e sempre se distingue das ima-
gens dos sentidos por ser uma imagem "interna". (p. 418)

A imaginação pode ser ativa ou passiva. Quando ativa, ela deve a sua existência a um
processo semi-dirigido e intuitivo, ou seja, que apresenta tanto a participação do consciente
quanto do inconsciente. Já a imaginação passiva prescinde da colaboração do consciente no
que se refere à sua produção. Neste estado, o inconsciente se impõe de modo autônomo e a
consciência adquire uma função passiva, receptiva, não lhe cabendo qualquer interferência
na produção dos conteúdos. Estas fantasias integram os automatismos psíquicos, tendo
força e intenção próprias.

É provável que a fantasia passiva tenha sua origem no processo in-


consciente e oposto à consciência, mas que reúne em si quase tanta energia
quanto a atitude consciente e, por isso, é capaz de quebrar a resistência
desta. (Jung, 1921, p. 407)

Em estado de vigília (...) a fantasia precisa dispor de considerável ener-


gia para superar a inibição resultante da atitude consciente. A oposição
inconsciente deve, pois, ser muito importante para penetrar na consciên-
cia. (Idem, ib., p. 408).

A história cigana no episódio espontâneo de imaginação passiva aconteceu em estado de


vigília relaxada e teve a duração de aproximadamente uma hora. Em casa, após acomodar-
mos as crianças, dividi com Celso, meu marido na época, a intensa e recém-vinda experiên-
cia. Ele então me pediu: “Registre esta história, ela veio a você e você não pode deixar que

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ela se perca”. O ato de ter partilhado a experiência e recebido o reconhecimento e valoriza-


ção desta vivência foi de grande importância para que esse material não se perdesse. O
manuscrito ficou guardado por quase quatro anos na estante do meu quarto; ele havia des-
pertado intensas emoções, evocado inéditos sentires, necessitava agora de descanso e
aquietação. Foi um tempo necessário para que os conteúdos simbólicos pudessem se aco-
modar, como o processo de decantação dos experimentos químicos - quem sabe esperando
o momento de retomar sua nômade caminhada.
A respeito da elaboração dos conteúdos de imaginação passiva, Jung (1921) comenta: “A
fantasia passiva precisa sempre de uma crítica consciente” (p. 301). Nesta etapa, o meu
processo de análise foi fundamental para que eu aprendesse a me receber; deu-me também
sustentação e preparo para as etapas que se seguiriam; caminhos inaugurais por meio de
encontros, relações e realizações.
Em 1991, o tempo de acomodação e elaboração emocional primeira havia passado. Foi
então que uma amiga, a jornalista Vitória Ang, após ter lido e digitado o manuscrito, incen-
tivou-me a publicá-lo. Eu não podia pensar em fazê-lo sem antes consultar um “especialis-
ta” - ou seja, um representante do povo cigano que pudesse eventualmente reconhecer, ou
não, elementos fidedignos da vida cigana no contexto daquela história. Percebi que era hora
de sair das instâncias subjetivas e procurar na vida eventuais amigos ciganos que pudessem
me ajudar a decifrar o “enigma”: haveria correspondências daqueles conteúdos espontâne-
os de imaginação passiva com aspectos da realidade cigana? Estariam os conteúdos coeren-
tes com o contexto étnico-cultural cigano? Seriam apenas frutos descabidos, desencontrados
e desconectados de qualquer objetividade? Só havia um caminho para a composição destas
respostas: eu precisava conhecer este povo. Assim, foi se instalando mais que um desejo,
uma necessidade. Mas onde encontrá-los? Confiei, assim, na magnitude do fenômeno de
sincronicidade, o qual nos liga e coliga a todos os seres, em medidas precisas, no tempo e no
espaço. Algumas semanas depois recebi por meio da amiga Cecília Strazieri um convite para
o lançamento do livro Povo cigano, da autora carioca Cristina da Costa Pereira, promovido
por Valter Vetilo.

Encontros

A noite de lançamento foi muito agradável; havia também exposição e venda de peças de
artesanato cigano. - “Cigano?”, perguntei. - “Artesanato em cobre e bronze, tudo feito a martelo,
legítima tradição cigana, sim senhora, Zurka Sbano a seu dispor.” Havia intensidade e vigor
naquele homem de cerca de 70 anos, cuja aparência era ao mesmo tempo franzina e grandiosa...
Fiquei bastante impressionada com seu trabalho, inteligência e humor. Escolhi e comprei, entre
suas peças, uma bandeja de parede. Combinamos a visita para dali a quinze dias. Uma nova
etapa desta história iniciou-se naquela noite, em meio a muita conversa e alegria.

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Quinze dias depois, ao sair da Marginal Tietê e entrar na travessa indicada, descortinou-
se um novo e velho mundo, cheio de barracas coloridas e traillers: ciganos de carne e osso,
artistas de circo, músicos, artesãos, acrobatas, palhaços, poetas rapsodos de uma cultura
milenar. A paisagem exótica em aparente desordem revelava outra ordem das coisas. Di-
mensões e possibilidades novas abriam-se aos meus olhos, trazendo cor e forma, som e
realidade às dimensões que antes havia imaginado. Naquele primeiro encontro no acampa-
mento, levei uma cópia da história cigana. Queria saber se havia sentido naqueles conteú-
dos, ou se eram apenas frutos descabidos da minha fantasia e imaginação.

- Trouxe uma coisa sobre a qual gostaria muito de ter a opinião do


senhor.
- Eu também tenho uma coisa para a senhora. Ele entrou por alguns
instantes em meio às cortinas que dividiam os ambientes da barraca, vol-
tando em seguida com o meu cheque, o da compra da bandeja.
- Não tinha fundo? - perguntei, constrangida.
- Cigano não recebe dinheiro de cigano.
- Como assim?
- Assim... (e devolveu-me o cheque com uma sonora risada.) (Sanchez,
2006, p.24)

Ao chegar em casa, contei à família esta minha primeira visita ao acampamento cigano.
O meu filho André, que na época tinha onze anos, comentou espantado: - “Mãe, eu já tinha
ouvido falar que cigano leva dinheiro das pessoas, mas nunca que devolve...”

Quem são os ciganos?

Esta observação aparentemente inocente levantou uma questão fundamental no tocante


à temática central: quem são os ciganos, afinal? Eles são o que nós pensamos deles, sendo
que nem ao menos os conhecemos? Eles se posicionaram neste lugar oculto, ou somos nós,
os não-ciganos, quem os torna invisíveis, por não querer enxergá-los? Os estudos, compên-
dios e livros de História raramente fazem menção à existência deste povo milenar. Nas
discussões sobre discriminação e racismo também não os encontramos. Não estão presen-
tes nem mesmo entre os excluídos! Que lugar ocupam? No imaginário ocidental encontra-
mos referências quase sempre depreciativas, como a lendária ameaça de que “ciganos rou-
bam criancinhas”, sinalizando um alerta para o perigo da aproximação.
Os ciganos representam o estrangeiro por excelência. A atual definição internacional
defendida pela ONU - Organização das Nações Unidas - coloca-os como “um povo de
origem única, disperso por vontade própria por entre as nações” (Martinez, 1989, p. 42).

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Optam pelo título de “cidadãos do mundo”, mas assumem a identidade do país de origem.
Refletem o outro lado do homem ocidental, encarnam a sombra, sob o olhar da psicologia
analítica, no exercício de ser diferente. Incomodam, intimidam, enfeitiçam e fascinam; tam-
bém questionam, complicam e intimam a integração de opostos dentro e fora de nós. Para a
cultura ocidental, estes eternos estrangeiros, nômades apátridas por opção, errantes por
toda a Terra, não fazem parte: são e estão à parte. A rejeição quase que institucionalizada
do diferente é característica das sociedades hegemônicas majoritárias. Na contramão do
pensamento capitalista, os ciganos não pleiteiam a posse das terras, mas exigem, como
povo originalmente nômade, o direito de transitar, a liberdade de ir e vir, de ser e estar. A
sociedade brasileira é caracterizada por um grande caldeirão étnico-cultural; embora não
conste em compêndios e estatísticas, o povo cigano também contribuiu e ainda contribui
para essa miscigenação. Ajudaram a constituição e formação da identidade social brasileira.

Rendição
Renda-se como eu me rendi, mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei,
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa todo entendimento. (Clarice Lispector)

Proponho agora, voltar para a primeira visita ao acampamento cigano. Logo após o epi-
sódio em que o Capitão Zurka me devolveu o cheque da compra da bandeja de cobre,
entreguei-lhe o texto com a história cigana advinda do episódio de imaginação passiva.
Pedi-lhe o favor que lesse e me desse a sua apreciação. Após três dias, recebi seu telefone-
ma: - “Minha filha, não pude parar de ler o seu livro, como você sabe os segredos e os
costumes do nosso povo?” Emocionada, parti para o acampamento. Compartilhamos per-
plexos esse conhecimento desconhecido e a “familiaridade” que se impunha. - “Mistérios
da vida...”, repetia o Capitão. Recebi das mãos do Sr. Zurka a literal “autorização cigana”
para que as caravanas pudessem seguir o próprio curso; além disso, senti que foi reconheci-
da a minha porção estrangeira, ou seja, a configuração arquetípica do “outro” em mim. A
estranha parcela que me havia habitado era agora partilhada e afirmada por um “especialis-
ta”, um barô, velho sábio cigano. Fui arrebatada, senti o meu ser, corpo e psique, se esfor-
çando por ampliar as possibilidades conhecidas, configuradas por esta troca de inconscien-
tes e conscientes compartidos. Percebia que precisava aprender a abrir mão do que eu não
podia de forma racional compreender; e, ao mesmo tempo, aceitar estar sendo compreendi-
da. Ao pensar, a cabeça doía, tinha enjôo e vômitos me vinham. Quando eu aquietava o
burburinho mental, e apenas recebia as sensações que me atravessavam, me sentia melhor.
Era preciso acolher sensos e sentidos, eles encontrariam caminhos e formas por si mesmos,
precisava aprender que o processo da vida é maior, e muito mais sábio, do que a minha
pretensa capacidade de compreensão. Os saberes se constituiriam ao seu tempo, se eu não
atrapalhasse com minhas multi-racionalizações. Era como se meu ego estivesse aprendendo

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algo sobre limites e modos outros e estrangeiros de aprender a aprender... Lembrei-me das
aulas de pós-graduação em Cinesiologia, quando o prof. Sándor, antes de cada exercício de
integração psicofísica, simplesmente dizia: - “Deixar acontecer...” Eu podia insistir em com-
preender, ou simplesmente me entregar ao processo de aprendizagem “deixando aconte-
cer...” Em inglês, a palavra surrender parece imantar força e sentido a esta necessária apren-
dizagem, por meio da rendição.

Experimentação

A partir de então, teve início o processo de experimentação. Acredito que um dos fatores
fundamentais que permitiu a construção deste trabalho singular tenha sido a disponibilida-
de, minha e de Zurka, para a criação de um tempo e um espaço relacional, uma espécie de
setting que respondeu às nossas necessidades. Para ele, abriu-se a possibilidade de contar mil
e uma histórias; quanto a mim, tive o prazer de escutar todas as que pude. A minha escuta
atenta e interessada permitia que ele re-visitasse a sua vida e ativasse projetos que ressurgi-
am com facilidade, artes mal adormecidas despertavam nele com a magia, o vigor e a viva-
cidade de um menino. Os encontros no acampamento cigano aconteceram semanal ou quin-
zenalmente, pelo período de cinco anos, de 1992 a 1997, e de modo menos regular, até a
mudança de Zurka para Franca, no ano de 2000. Mas o nosso relacionamento e amizade
perduraram até a sua morte, em dezembro de 2003. No acampamento, os encontros eram
quase sempre regados a tchaio; o chá cigano, preparado pessoalmente por Zurka, trazia
aroma e sabor a cada encontro. A música tocada na velha vitrola dava o tom, criava um
clima intimista e familiar com canções ciganas e não-ciganas. A permanência naquela tchera
(barraca cigana) era muitas vezes compartilhada com minha família, filhos e marido, além
dos filhos e netos, irmão, sobrinhos e sobrinhos-netos de Zurka. Construímos assim um
trabalho singular, que por muitas vezes nos fazia perder alguns contornos conhecidos. As
vivências no acampamento permitiram integrar novas formas de ser, sentir, intuir e pensar,
reveladas no episódio de imaginação passiva. Na convivência, os sentidos se ampliavam,
refletidos na alteridade estrangeira, a identidade cigana brasileira. Assim fundamos a ONG
Centro de Tradição Cigana, fizemos o Globo Repórter, apresentações Teatrais e Circenses,
além de inúmeras atividades socioculturais.

Mito e realidade

Uma das primeiras descobertas que fiz foi a de que os sonhos e o universo mítico são
partes integrantes da realidade diária deste povo. Zurka era um sonhador inveterado e dizia
sempre: - “O cigano não existe sem sonhar...”. A linguagem simbólica e poética, as músicas,

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os contos, lendas e mitos ciganos entremeavam esta realidade, trazendo um clima lendário
aos fatos diários - as façanhas e mazelas trágicas ou cômicas do dia-a-dia misturavam-se e
davam sentido às coisas: - “Somos um mito vivo”, dizia com propriedade. Mito e a realida-
de são vividos de modo integrado e unívoco, condizente com a dimensão simbólica e animista
que lhes dá referência. A vida cigana é vivida como fruto da natureza que carrega em si
mesma a sabedoria do reino mítico; misterioso e real.

Dimensões corporais
O corpo é a nossa escola, a nossa lição, o nosso intérprete,
o nosso inimigo bem-amado, a nossa plataforma de lançamentos
para domínios mais elevados. (John P. Conge)

Quando o Dr. Pethö Sándor me convidou a “vir para o corpo, no trabalho de Cinesiologia”,
eu não podia imaginar que o encontro, comigo mesma, seria um convite extensivo a inúme-
ros outros encontros.

Em certos casos, experiências visionárias ocorrem durante o trabalho


com o corpo, sendo os primeiros estágios para adquirir realmente um
corpo. (...) Para estas, a experiência com o corpo onírico são 'para-sensa-
ções' da realidade física e predições do surgimento do corpo por vir.
(Mindell, 1989, p. 36)

Os processos do corpo espelharão sonhos, se este for estimulado a amplificar e a expres-


sar seus sinais involuntários, tais como pressões, dores, espasmos, inquietação, excitação,
exaustão ou nervosismo. Segundo Mindell, na enfermidade o corpo sofre de um sonhar
incompleto. Este corpo que sonha e se expressa é o mesmo que, quando contido ou bloque-
ado, pode criar sintomas. “Deixar que os sintomas do corpo falem por si, através de uma
auto-amplificação, parece-me particularmente útil como instrumento de investigação
empírica” (von Franz, 1993, p. 230).
Pude também constatar o mundo invertido no espelho do outro: “O estranho abriga
nosso eu mais secreto e permite reconquistar nosso eu mais alheio” (Paula de Carvalho,
1992, p. 50). Esta é a dimensão da alteridade (Byington, 2002), do encontro com esse outro
que me instiga a ir além e desempenha uma função estruturante no processo de individuação.
Posso dizer que meu desejo alheio (desconhecido) estava alavancado aos movimentos
cartográficos dessa alteridade nômade, que evoca aventuras e mudanças, errantes: “O nômade,
o cigano, por onde passa, resume a totalidade da aventura. Invisível... Somente acessível
pelos caminhos do imaginário, dos símbolos” (Martinez, 1994, p.24).

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Assim expandiram-se mundos e sentidos... Considero as afetações mútuas que sofremos


como molas propulsoras à individuação. Podemos analisar os caminhos da vida como um
movimento conjunto e espiralado, assim como relacionar cada volta dessa espiral com a
realização de mais um ciclo de nossas vidas.

Palavras finais

Sobre o mito “ciganos roubam crianças”, Zurka contava que, assim como todo mito, este
também carrega a sua "verdade":

Os ciganos roubam sim, mas é a “alma” das crianças não-ciganas, fas-


cinadas ao admirar nossos acampamentos coloridos, com a vida pulsan-
do e as crianças correndo livremente. Ficam como que “capturadas” e
querem seguir conosco, ao menos em pensamentos... (2006, p.216).

Se é verdade que fui roubada no que se refere ao efeito numinoso que o povo cigano
exerce na relação com os não ciganos, pude constatar que, a partir do momento.em que a
projeção é retirada, “se estabelece uma espécie de paz (...), a pessoa torna-se tranquila e é
capaz de observar as coisas de um ângulo mais objetivo” (von Franz, 1992, p. 207). Não
fujo mais das questões ciganas, assustada pelo aspecto terrificus do arquétipo, nem me lanço
a essas mesmas questões, atraída pela dimensão do fascínio e da idealização. Esses senti-
mentos foram fundamentais nas etapas iniciais deste processo e funcionaram como uma
espécie de motor que me impulsionou a seguir adiante. Ainda hoje me sinto atraída e emo-
cionada quando escuto uma música cigana, e ainda me incomodo com situações de precon-
ceito, mas o que predomina é a relação de amor sereno e responsável às diferenças, assim
como às semelhanças que nos coligam.
Reconheço, como disse Heráclito, que “o conflito é o pai de todas as coisas”, e que foi
ele (o conflito) quem me iniciou nas brincadeiras de infância no jogo lúdico de “envenenar
a cigana” e nos sonhos recorrentes, compensatórios e ameaçadores da “cigana da monta-
nha”. Descobri que a única forma de transcender o conflito para além da dualidade de tese
e antítese é ampliar os horizontes para além das questões racionais. Quando ele, o conflito,
deixou a instância racional e partiu para o corpo, que, desperto, provocou a vivência de

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imaginação passiva, e daí me conduziu para o campo do experimento, da experiência


intercultural, foi então possível ampliar os limites do paradoxo.
Individuação carrega a intenção da totalidade; inclui, nesse sentido, identidade e diferen-
ça, o singular e o plural, o individual e o coletivo. Somos ao mesmo tempo indivíduos, in-
divisos, únicos, e ao mesmo tempo múltiplos, uma vez que somos o resultado de milhões de
relações que estabelecemos no decorrer de nossas vidas. No recorte deste trabalho, foi e
tem sido um constante oscilar do devir, que, antes de ser cigano, é fundamentalmente hu-
mano. Finalizo, aqui, apenas em parte este trabalho, pois o processo de individuação - tal
qual o caminhar nômade das caravanas - é uma aventura que não se encerra...

Referências Bibligráficas

BYINGTON, C.A.B. O arquétipo da vida e da morte - Um estudo da psicologia simbólica. São


Paulo: C.A Botelho Byington, 2002.
CONTRUCCI, V.S.S. Ao passar das caravanas ...ciganas. São Paulo: Zenda, 1995.
JUNG, C.G. (1921). Tipos psicológicos. Obras Completas, Vol. VI. Petrópolis: Vozes, 1991.
MARTINEZ, N. Os ciganos. Campinas: Papirus, 1989.
MINDELL, A. (1982). O corpo onírico - O papel do corpo, no revelar de si mesmo. São Paulo:
Summus, 1989.
PAULA CARVALHO, J.C. Ima(r)ginalidade cigana: o imaginário das margens e a mitocrítica de
uma estória de vida. Recife: Departamento de Antropologia da FJNPS, 1989.
SANCHEZ SILVA, V. Devir cigano, o encontro cigano-não cigano como elemento facilitador do
processo de individuação. Dissertação de Mestrado, PUC-SP, 2006.
VON FRANZ, M.L. (1980) Alquimia - Introdução ao simbolismo e à psicologia. São Paulo:
Cultrix, 1993.
Site
LISPECTOR, C. http:// www.pensador.info/autor/clarice_linspector Acessado em 06 de
junho de 2010.

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HOMEM DISFARÇADO DE MULHER


MULHER DISFARÇADA DE HOMEM
Persona e Gênero

Maria Helena R. Mandacarú Guerra1

Introdução

O objetivo deste artigo é trazer uma reflexão sobre a persona e sua associação com o
gênero, nos casos específicos em que ela se expressa por meio de homens que se disfarçam
de mulheres e de mulheres que se disfarçam de homens. A palavra disfarce visa estabelecer
uma distinção entre a experiência de travestis e transexuais, que sentem e vivenciam sua
identidade como dissonante de seu sexo biológico, e a pessoa que se disfarça de outra do
sexo oposto sem se identificar com ela, mas preservando sua identidade associada ao pró-
prio sexo e buscando no disfarce alguma utilidade.
O texto apresenta alguns exemplos de pessoas ou personagens que lançaram mão des-
ta estratégia, levantando algumas hipóteses sobre os motivos subjacentes à escolha deste
tipo de disfarce e por que, frequentemente, este disfarce é funcional, isto é, cumpre seu
propósito; aborda ainda os possíveis efeitos desta conduta na personalidade do indivíduo
que se disfarçou.

1
Psicóloga, psicoterapeuta junguiana. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP,
professora no curso Jung e Corpo - Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal, no
Instituto Sedes Sapientiae.
E-mail: mariahelenarmguerra@hotmail.com

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Sobre a Persona

Uma jovem paciente relatou que gostava de reescrever estórias invertendo os sexos dos
personagens. Disse que eles ficavam mais interessantes, porque agiam de modo inesperado.
Essa observação, que certamente contém elementos da personalidade da jovem, me fez
refletir sobre o sentido da troca de papéis entre os gêneros e o efeito produzido pelo exercí-
cio contrassexual da persona.
O termo persona é associado ao teatro grego. Equiparada frequentemente às máscaras
utilizadas então para caracterizar os personagens, a persona é tida também como uma espé-
cie de tubo que havia nessas máscaras para que o som saísse amplificado, isto é, per sonare
(Hopcke, 1995).
Jung (1928) denominou persona o meio pelo qual a pessoa se relaciona com o mundo
externo, os papéis que ela desempenha e por meio dos quais se expressa na dimensão social.
Escreve ele que a persona é

uma simples máscara da psique coletiva, máscara que aparenta uma indivi-
dualidade, procurando convencer aos outros e a si mesma que é uma
individualidade, quando, na realidade, não passa de um papel, no qual fala
a psique coletiva. (...) Ela representa um compromisso entre o indivíduo e
a sociedade, acerca daquilo que alguém parece ser: nome, título, ocupação,
isto ou aquilo. (par. 245-246, grifo do autor)

Talvez por veicular a conexão do indivíduo com o mundo exterior, o que lhe dá mais
visibilidade, e ter sido considerada pelo próprio Jung “uma simples máscara”, a persona
parece não ser muito cara aos junguianos. De acordo com Blomeyer (1974), no índice da
obra Origem e História da Consciência, de Neumann, na qual a persona poderia ser bastante
importante, este conceito aparece apenas 4 vezes, ao passo que há 65 itens sobre anima e
animus e 17 sobre a sombra. Hopcke (1995) atribui o pouco interesse dado à persona pela
comunidade junguiana ao fato de ela ter um caráter mais extrovertido, atitude oposta à da
maioria dos junguianos, considerados introvertidos.
Embora à primeira vista se pudesse pensar na persona como algo superficial, apenas um
papel a ser desempenhado, sabemos que ela é mais do que isso, pois envolve a vocação, a
criatividade, a natureza profunda da pessoa. Apesar da aparente pouca importância atribuída
à persona, Jung (1928) afirmou também que “subjaz algo de individual na escolha e na defini-
ção de persona” (par. 247), e estabeleceu uma conexão entre a persona e a/o anima/animus -
a persona faz a intermediação entre a personalidade egóica e o mundo externo, ao passo que a
anima e o animus o fazem entre o ego e o mundo interno, a individualidade mais profunda.

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Não podemos deixar de salientar que a intermediação feita pela persona entre a pessoa e
a sociedade é um processo que pode se dar de modo mais criativo ou mais defensivo
(Byington, 2008), ou seja, ela pode tanto revelar a essência mais profunda da pessoa, como
ocultá-la. Assim, dependendo de sua maior ou menor integração na personalidade do indi-
víduo, a persona pode ser simbolizada por um revestimento semelhante à pele, que permite
uma troca constante entre dentro e fora, ao mesmo tempo em que protege a pessoa, ou por
uma armadura, que, se por um lado serve de proteção, por outro isola e impede que a pessoa
se revele e seja vista.
A maneira como a persona é veiculada dependerá também da estrutura de personalidade
de cada um, sendo mais rígida quando o ego for mais frágil e, ao contrário, flexível quando o
ego é fortalecido e apto a lidar com a vida de maneira mais criativa, saudável e espontânea.
Com bastante frequência, a persona surge nos sonhos representada pelas roupas ou pela
ausência delas. Isto porque a maneira como nos vestimos, falamos, gesticulamos ou nos com-
portamos é a expressão mais visível de nossa persona. Nossa apresentação explicita traços de
nossa personalidade e por isso, quando queremos estar em sintonia com a sociedade em que
vivemos, buscamos uma persona que promova em nós sentimentos de adequação e aceitação e
nos dê a segurança de que estamos dentro do que consideramos apropriado. Evidentemente, há
exceções, que podem ir desde a pessoa criativa, que ousa mais, sendo aceita e admirada por sua
extravagância e originalidade, até aquela que quer chocar e, deliberadamente, veste-se ou se com-
porta de modo a representar uma afronta aos costumes e às tradições.
A vestimenta tem o propósito de proteger o corpo, mas também de exibi-lo e adorná-lo.
Além disso, a roupa ou adereços podem caracterizar uma organização (uniforme), identifi-
car uma profissão (bombeiro, policial) ou exercício profissional (a toga dos magistrados ou
a roupa branca dos médicos), uma equipe esportiva, uma cultura (sári, quimono), uma reli-
gião (hábito, burca, kipá), revelar um estado emocional (luto), assinalar uma condição (pre-
sidiário). Ela confere status, delimita um grupo, sendo parte importante de determinados
rituais (vestido de noiva, beca) e ocasiões (usar branco na passagem do ano, certa cor para
protestar ou a cor da bandeira nacional para demonstrar patriotismo). A expressão “vestir a
camisa” indica o compartilhar dos mesmos ideais ou propósitos de um grupo. A roupa ou
adereços podem também mobilizar a sombra, e foi isto que vimos recentemente com o uso
por adolescentes de pulseiras coloridas significando etapas de relacionamento e intimidade
entre eles. Conhecidas como “pulseiras do sexo”, acabaram sendo proibidas depois de pro-
vocarem assédios e estupros. Outro exemplo amplamente explorado pela imprensa foi o
caso da estudante universitária que compareceu à aula usando um vestido curto e acabou
sendo ameaçada e provocando tamanha mobilização entre os estudantes que foi obrigada a
deixar a faculdade sob escolta policial.
Durante a infância e a adolescência, época em que ocorre a estruturação da personalidade,
a persona desempenha um papel fundamental, pois é através dela que as crianças e jovens irão

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se identificar com esta ou aquela pessoa, ou irão repudiar esta ou aquela forma de ser. Nestas
fases da vida, mudanças na persona podem gerar profunda ansiedade, acompanhada do medo
de rejeição - conhecemos a importância que tem para o adolescente se vestir, usar as mesmas
expressões, e, nos casos das meninas, se maquiar como o grupo de referência.
Uma adolescente entrou em crise profunda de identidade quando a cabeleireira, à sua
revelia, cortou seus cabelos mais do que ela esperava. Olhava-se no espelho e não se encon-
trava na imagem que via.
Em qualquer idade, características que atinjam marcadamente nossa persona - engordar
ou emagrecer excessivamente, ficar careca, envelhecer, ou até mesmo ir a uma festa com
uma roupa que nos dê um sentimento de inadequação - podem produzir efeitos bastante
desagradáveis, duradouros ou transitórios, sobre a personalidade. Incluem-se aqui as cirur-
gias plásticas com modificação do corpo como fontes produtoras de desestabilização e alte-
ração da identidade do indivíduo.

Persona e Gênero

Ao introduzirmos este tema, entramos em terreno movediço, pois devemos enfrentar a


complicada questão que envolve os gêneros. Afinal, como indaga Samuels (1989), “existem
tais coisas como a psicologia ‘masculina’ inata e a psicologia ‘feminina’ inata?” (p.94). Na
atualidade, muito do que se considerava próprio do homem ou típico da mulher caiu por terra.
Se cuidar de criança era coisa de mulher, hoje vemos inúmeros pais que participam da vida de
seus filhos desde a gestação, conversando com o feto e até brincando com ele, para vê-lo
chutar a barriga da mãe. Por outro lado, se era coisa de homem pensar em administrar o
dinheiro da família, atualmente inúmeras mulheres investem no mercado financeiro com mais
desenvoltura e interesse do que muitos homens. Estes são exemplos pontuais que ilustram a
grande mudança pelas quais passam hoje os papéis de homens e mulheres, e que exerce enor-
me influência no relacionamento entre eles e introduz importantes modificações em sua visão
de mundo, refletindo-se na família, no trabalho e na sociedade como um todo.
Samuels, na obra já mencionada, esclarece que, enquanto o sexo (homem e mulher) se
refere à anatomia e ao substrato biológico do comportamento, o gênero (masculino e femi-
nino) diz respeito ao cultural e ao psicológico, sendo construído em parte por observações
e identificações dentro da família, e sendo por isso flexível, relativo e passível de ser modi-
ficado. Às diferenças entre os sexos agregam-se, assim, as semelhanças entre os gêneros,
pois constatamos cada vez mais não haver diferença significativa entre a possibilidade de o
homem ou a mulher desempenhar papéis sociais, culturais e tampouco expressar seus afetos
e emoções. Disto decorre que os conceitos de anima e animus, criados por Jung para se
referir respectivamente ao aspecto feminino inconsciente do homem e à dinâmica masculi-

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na inconsciente da mulher, ficaram, com o tempo, difíceis de serem circunscritos. O que se


considerava atributo da mulher - capacidade de conter, cuidar, acolher, relacionar - pode
hoje ser vivido por muitos homens. Por outro lado, características atribuídas ao homem,
como objetividade, razão, assertividade, força e eficiência, formam parte da consciência de
inúmeras mulheres. Assim, as tentativas de delimitar o que é masculino e o que é feminino
revelam-se mais anacrônicas a cada dia.
Não obstante, é inegável que a identidade do homem e da mulher é estruturada, dentre
outros fatores, pela persona correspondente a cada sexo, pois a mudança cultural em anda-
mento é lenta e continua ainda, em certa medida e em determinados contextos, associando
o gênero ao sexo. Um menino de 6 anos disse à mãe que preferia ir à escola com a camisa do
seu time de futebol e não com a roupa de seu super-herói predileto, porque a roupa é cor-de-
rosa e os amigos iriam “mexer” com ele. O que ele está estruturando? Sua identidade,
através da persona ligada ao sexo. Na nossa tradição cultural, cor-de-rosa é cor de mulher, e
não de homem!
Hopcke (1995) nos lembra que, para Jung,

a persona é o lugar na psique onde os papéis sexuais tradicionais para


homens e mulheres estão localizados; as personas dos homens devem
ser masculinas, as das mulheres, femininas, e quaisquer variações neste
esquema são vistas como uma dificuldade com o relacionamento ani-
ma/persona. (p.11)

Com algumas exceções, como homens que agem de modo efeminado e exagerado, com
gestos e expressões afetadas; mulheres que se comportam de maneira socialmente conside-
rada masculina; travestis e transexuais, que buscam uma identidade associada ao sexo não
biológico, cada vez mais, de modo geral, independentemente de a pessoa ser hétero, homo
ou bissexual, a persona é condizente com o próprio sexo.
Assim, o que motiva alguém a ocultar sua verdadeira natureza a ponto de se apresentar
publicamente como se pertencesse ao sexo oposto? Como podemos compreender as
incontáveis passagens encontradas em mitos, contos, filmes, obras literárias, óperas e até na
vida real, em que homens e mulheres se vestem como se fossem do outro sexo, escolhendo
propositalmente uma persona do sexo oposto para se relacionar com o mundo externo?
Quais os significados desta inversão?
Para ilustrar este tema, abordarei alguns exemplos nos quais os homens se vestiram de
mulher e mulheres, de homem. Ao leitor interessado, sugiro o livro The Bedtrick, no qual
Doniger (2000) apresenta inúmeras outras ilustrações do que denominou cross-dressing.

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Homens vestidos de Mulher

1. Arjuna

O Mahabharata é um dos dois grandes épicos da Índia - o outro é o Ramayana. Estima-se


que sua forma escrita tenha surgido entre os séculos IV a.C. e IV d.C., mas sua tradição oral
é anterior. Quinze vezes maior que a Bíblia, esta obra relata uma guerra entre primos: de um
lado, os cinco Pandavas; de outro, os Kauravas. Embora desta guerra ninguém saia vitorio-
so, os heróis são os Pandavas, filhos de Kunti com diferentes deuses.
Certamente, desta obra monumental há muito a ser dito. O que nos interessa, no entanto,
é um recorte bastante específico. Para tentar evitar a guerra, os Pandavas se submetem a 14
anos de exílio, sendo que o último ano seria passado na corte do rei Virata e os cinco
deveriam permanecer incógnitos. Dentre eles, está Arjuna.
Filho de Indra, rei dos deuses, é o mais corajoso dos Pandavas. Recebe do pai armas
celestiais e braços sobre-humanos para manuseá-las. É o melhor dos guerreiros, invencível
na luta, capaz de vencer os raksasas (um tipo de demônio). Arjuna, o herói da batalha que irá
ser retratada naquele que é considerado um livro sagrado para o hinduísmo, o Bhagavat Gita,
escolhe permanecer durante todo um ano vestido de mulher. Na seção 2 do Virata Parva, o
livro 4 do Mahabharata, diz ele:

Vou declarar-me alguém do sexo neutro. É difícil esconder as marcas do


arco em meus braços. No entanto, cobrirei minhas cicatrizes com pulseiras.
Usando brincos brilhantes e braceletes nos meus pulsos e deixando uma
trança pender de minha cabeça, parecerei alguém do terceiro sexo, chamada
Brihannala. E vivendo como mulher, devo (sempre) entreter o rei e os mo-
radores dos apartamentos íntimos contando estórias. Deverei também ins-
truir as mulheres da corte de Virata no canto, nas delicadas modalidades de
dança e nos instrumentos musicais de diversos tipos. Recitarei atos excelentes
dos homens e assim me ocultarei por meio de meu disfarce enganoso. (…)
Ocultando-me desta maneira, como o fogo é oculto pelas cinzas, passarei
meus dias agradavelmente no palácio de Virata. (in Ganguli, p.3).

2. Dioniso

Dentre as várias versões do mito de Dioniso, encontra-se aquela em que ele foi destroça-
do pelos Titãs, a mando de Hera. Zeus lhe salva o coração, entregando-o a Semele para que

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fosse gestado. No entanto, Semele, por influência de Hera, pede que Zeus apareça diante
dela em sua verdadeira natureza, o que fez com que ela fosse carbonizada. Zeus salva
Dioniso e o coloca em sua coxa, para ser gestado. Quando ele nasce, Zeus o entrega aos
cuidados de Hermes, que por sua vez o deixa com Ino e seu esposo, o rei Átamas, que para
protegê-lo da fúria de Hera, cria Dioniso como se fosse uma menina (Brandão, 1989). Atri-
bui-se a seu convívio com as mulheres sua capacidade de transitar pelo universo de ambos
os gêneros, visto por isso como um deus andrógino, no sentido de ser capaz de integrar em
sua personalidade elementos masculinos e femininos. O duplo nascimento deu a ele a capa-
cidade de articular vida e morte.
A história de Aaron Mokoena, capitão da seleção de futebol da África do Sul em 2010,
guarda interessante semelhança com o mito de Dioniso. Ela foi amplamente divulgada
pela imprensa, e os dados que transcrevo estão baseados em matéria publicada no The
Sunday Times, jornal de grande circulação no Reino Unido, em 22 de abril de 2010. Em
1992, aos 11 anos de idade, ele vivia em Boipatong, sua cidade natal. Nessa ocasião, duas
facções negras travaram lutas assassinas, e na noite de 17 de junho homens do Inkatha
Freedom Party (IFP) vieram dispostos a matar todos os meninos da cidade. Mokoena so-
breviveu porque sua mãe lhe vestiu de mulher. Nesta noite, 46 pessoas foram mortas por
este grupo.
Lembremos ainda Aquiles, o grande herói da Guerra de Troia, que viveu como moça
entre as filhas do rei na corte de Licomedes, para tentar fugir ao destino de morrer jovem
(Brandão, 1989).

3. Tootsie

Michael Dorsey, personagem protagonizado por Dustin Hoffman no filme Tootsie, dirigi-
do por Sydney Pollack, representa um ator que, desempregado, concorre a uma vaga desti-
nada a uma mulher. Fazendo-se passar por uma, consegue o emprego em um seriado de
televisão e seu personagem, Dorothy Michaels, faz muito sucesso como uma mulher firme,
capaz de lidar com os homens como nenhuma outra mulher do seriado. Ao desempenhar o
papel de mulher e ser visto e tratado pelos colegas como tal, passa a desenvolver um olhar
mais cuidadoso em relação à mulher.
Dentre muitos outros exemplos, não quero deixar de mencionar a transformação do deus
hindu Vishnu em uma mulher, Mohini, para seduzir os asuras (um tipo de demônio) e evitar
que eles bebessem amrta, o elixir da imortalidade produzido por meio da batedura do ocea-
no (Kinsley, 1979). Cito ainda o disfarce em mulher de Bhima, outro dos cinco Pandavas,
para se fazer passar por Draupadi, sua esposa, e ir para a cama com Kicaka, a fim de seduzi-
lo e matá-lo (Mahabharata, in Doniger, 2000).

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Mulheres vestidas de Homem

A noção de que mulher não pode lutar mostra-se equivocada quando Diadorim, persona-
gem de Grande Sertão: Veredas, romance de Guimarães Rosas, veste-se de homem, entra para
o cangaço e trava uma luta mortal com o assassino de seu pai.
Foi vestida de homem que Joana D'Arc comandou o exército francês. Vestiu-se de ho-
mem para realizar uma missão que competia ao outro sexo, mas também para preservar sua
castidade e evitar assédio e estupro, e assim liderou seu país inspirada por Deus.
Outro exemplo vem de Amandine Aurore Lucile Dupin, que vestiu calças compridas e
adotou o pseudônimo de George Sand para impor à sua época seus escritos, sua liberdade,
autonomia, determinação e capacidade intelectual.
A personagem Yentl, representada por Barbra Streisand, em filme dirigido e produzido
por ela própria, busca adquirir ensinamentos apenas franqueados aos homens, e aos quais
ela não teria acesso se não “fosse” homem.
Walters (1994), a respeito da persona, escreve que ela “se desenvolve como uma respos-
ta do indivíduo às solicitações dos pais, professores e sociedade, (...) refletindo a habilidade
[de o indivíduo] se comportar apropriadamente conforme a demanda da situação social”
(p.298). Vemos que, em determinadas circunstâncias, a situação social “demanda” que a
pessoa seja alguém de outro sexo para poder exercer habilidades autorizadas apenas às
pessoas do sexo oposto - para se adaptar, ela se “transforma”.

Discussão

Talvez nenhuma outra situação ilustre tão bem a afirmação de Hudson (1978) - “A persona
age, por um lado, para causar impressões definidas sobre os outros e, por outro, para ocultar
a verdadeira natureza do indivíduo” (p.54) - como aquela na qual alguém se disfarça como
sendo do sexo oposto.
Do meu ponto de vista, o disfarçar-se de outro sexo está diretamente associado à ques-
tão de gênero. O que propicia e favorece este tipo de disfarce é a existência, em determina-
das épocas e situações, de uma nítida delimitação dos papéis atribuídos aos homens e às
mulheres, uma separação rígida e muitas vezes preconceituosa, que se revela indevida quando
a pessoa, vestida como se fosse do outro sexo, consegue realizações e obtém resultados que
lhe seriam negados se estivesse vestida em consonância com o que a sociedade estabelece
como pertinente ao seu sexo. O sexo oposto, nesse contexto, é visto como o totalmente
outro, pois só faz sentido disfarçar-se naquele que é diferente.

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O motivo do disfarce explicita as diferenças e os estereótipos atribuídos aos gêneros.


Disfarçar-se do outro é obter aquilo cujo acesso é restringido pela cultura. Assim, mulheres
se vestem de homens para lutar (Diadorim, Joana D'Arc), adquirir conhecimento, respeito,
afirmação social (George Sand, Yentl).
Os homens, por sua vez, vestem-se de mulheres para se proteger (Dioniso, Mokoena),
seduzir (Mohini, Bhima) ou expressar emoções tradicionalmente atribuídas às mulheres
2
(Arjuna, Tootsie) .
Como consequência do cross-dressing, para utilizar a expressão de Doniger (2000), ho-
mens e mulheres têm a oportunidade de exercitar o colocar-se no lugar do outro. Como a
exibição da persona do sexo oposto é acompanhada pela permanência da própria identida-
de, um homem que se vista de mulher pode construir uma personalidade até certo ponto
fictícia para dar sustentação a esta “nova mulher”, mas expressando traços de sua persona-
lidade que talvez não tenham podido se manifestar de outro modo. Com isto, o homem é
chamado por si próprio a pensar, agir, sentir e reagir como se fosse uma mulher, ficando
também exposto à realidade dela, aos olhares que ela suscita, às provocações, cuidados,
enfim, aos estímulos do ambiente. Literalmente, ele se coloca no lugar do outro. O mesmo
acontece com a mulher.
Embora a sombra possa se apresentar em toda e qualquer situação, este tipo de disfarce
pode proporcionar um efeito construtivo, de elaboração e desenvolvimento da consciência.
Um exemplo é oferecido por Jostein Gaarder, em seu livro Vita Brevis. Há alguns anos, assisti
a uma entrevista concedida por ele, na qual explicou que criou o subterfúgio de dizer que
encontrara um manuscrito na Feira de San Telmo, em Buenos Aires - para o escritor norue-
guês, possivelmente uma representação do fim do mundo - para que o leitor acreditasse que
o texto teria sido escrito por uma mulher. Com suas palavras, ele deu vida a Flória Emília,
nome fictício da mulher que, na realidade, foi mãe do filho de Aurélio Agostinho. Este,
posteriormente, entrou para um convento e foi considerado santo pela Igreja Católica. Ao
mostrar-se capaz de se fazer passar pelo outro sexo de modo tão criativo e convincente,
Gaarder, na verdade, reafirma a semelhança entre os gêneros.
Em todas as culturas há diferenças entre os papéis atribuídos ao homem e à mulher. No
entanto, quanto mais estas diferenças forem rígidas, cerceadoras, e até impeditivas para o
exercício pleno da personalidade, maior a necessidade de se concretizar, na persona, o sexo
oposto. Se meninos forem mortos apenas por serem meninos, a salvação advém de sua
“transformação” em menina. Hoje, uma parcela significativa do mundo permite um trânsi-
to maior entre os papéis de homens e de mulheres, e por isso roupas unisex passaram a
ocupar boa parte do nosso guarda-roupa.

2
Ainda hoje, muitos homens se vestem de mulher durante o carnaval, sentindo-se livres para dançar, cantar,
rebolar, seduzir, deixando a gravata de lado e vivenciando o arquétipo matriarcal, com sua exuberância,
espontaneidade e até inconsequência, ainda que por alguns dias.

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Ao vestir-se como o outro sexo, a pessoa exibe ao mundo aquilo que aparentemente não
é. Entretanto, este exercício concreto de alteridade lhe dá a possibilidade de se aproximar
de sua natureza mais profunda ao reconhecer-se no Outro, que agora é si próprio.

Referências Bibliográficas

BLOMEYER, Rudolf. Os aspectos da persona. Analytische Psychologie. v.5, n.1, p.17-19, 1974.
BRANDÃO, Junito de S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1989.
BYINGTON, Carlos A. B. Psicologia simbólica junguiana - Viagem de humanização do cosmos
em busca da iluminação. São Paulo: Linear B, 2008.
DONIGER, Wendy. The Bedtrick - Tales of Sex & Masquerades. Chicago: The University of
Chicago Press, 2000.
GAARDER, Jostein. Vita Brevis - A carta de Flória Emília para Aurélio Agostinho. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
HOPCKE, Robert H. Persona: Where Sacred Meets Profane. London: Shambhala, 1995.
HUDSON, Wayne C. Persona and Defence Mechanisms. Journal of Analytical Psychology.
23 (1): 54-62, 1978.
JUNG, Carl G. (1928). O eu e o inconsciente. O.C. vol.7. Petrópolis: Vozes, 1978.
KINSLEY, David R. The Divine Player - A Study of Krishna Lila. Delhi: Motilal Banarsidas, 1979.
SAMUELS, Andrew. Beyond the Feminine Principle. In: The Plural Psyche: Personality, Morality,
and the Father. London: Routledge, 1989.
THE MAHABHARATA OF KRISHNA-DWAIPAYANA VYASA. Traduzido para o inglês por Kisari
Mohan Ganguli. Bharata Press, Calcutta: Bharata Press, 1883-1896.
WALTERS, Sally. Algorithms and Archetypes: Evolutionary Psychology and Carl
Jung's Theory of the Collective Uncounscious. Journal of Social and Evolutionary
Systems . 17 (3): 287-306, 1994.
Filmes
TOOTSIE (1982). Direção: Sydney Pollack. Atores: Dustin Hoffman, Jessica Lange e outros.
YENTL (1983). Produzido, dirigido e estrelado por Barbra Streisand. Baseado na peça
teatral escrita por Leah Napolin e Isaac Bashevis Singer.
Site
http://www.timesonline.co.uk/tol/sport/columnists/owen_slot/article7104242.ece
acessado em 18 de junho de 2010.

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MENSTRUAÇÃO: EXPRESSÃO
DA FEMINILIDADE

Karla Rapaport1

Quando encontramos os lugares em que a cultura se separa de uma verdade natural,


encontramos uma chave - um caminho - para o interior das doenças da cultura. (Owen, 1994)

Introdução

Este artigo aborda a experiência da menstruação como uma vivência arquetípica, carre-
gada de símbolos, significados e aspectos inconscientes, e a retrata nos dias de hoje, vista
muitas vezes como um peso, algo a ser suportado, isento de sentido.
Chama a atenção o fato de a menstruação ser algo tão pouco falado nos dias de hoje,
mesmo sendo vivenciada por todas as mulheres em fase reprodutiva, todos os meses, por
cerca de uma semana. Levando isso ao extremo, percebe-se que as mulheres passam ¼ da
vida reprodutiva menstruada. E sempre que este assunto vem à tona, em rodas femininas, é
para falar sobre o desconforto dos dias menstruais, o descontrole emocional na tensão pré-
menstrual (TPM), cólicas, incômodos etc...
Na clínica isto fica bastante evidente. Grande parte das mulheres reclama mensalmente
do desconforto de suas menstruações e justifica atos impensados, brigas com a família ou
namorado e descontroles no trabalho pela menstruação. Estranhamente nunca ouvi nada
de positivo sobre o período menstrual dentro da minha clínica.

1
Psicóloga, formada pela PUC-SP, com especializações em Psicologia Clínica pelo Hospital do Servidor Público
Estadual e em Jung e Corpo - Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal pelo Instituto
Sedes Sapientiae. Atualmente atende em consultório particular adolescentes e adultos e coordena grupos
terapêuticos.
E-mail: karlarapa@hotmail.com

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Além disso, com a inserção da mulher no mercado de trabalho, a menstruação passou a


ser vista como uma inimiga à eficiência que é cobrada. Nos períodos menstruais a mulher
não pode trabalhar “como um homem” e isso a desvaloriza.
Atualmente, encontra-se um exagero dessa desvalorização com médicos ginecologistas
defendendo a interrupção dos ciclos menstruais através de remédios e ingestão de hormônios
artificiais. Esses médicos consideram a menstruação algo não saudável, um desperdício de
sangue que fará mal à saúde da mulher.
Concomitantemente, o nível de infertilidade cresce abruptamente, bem como doenças
relacionadas ao aparelho reprodutor feminino, como endometriose e câncer de colo do úte-
ro, por exemplo. Que sentido pode ser atribuído a tudo isso?
Para compreender melhor e traçar um panorama atual desta vivência, foi feita uma pes-
quisa teórica baseada em pressupostos da Psicologia Analítica de C. G. Jung, buscando
abarcar o tema da vivência da menstruação em seus diversos aspectos, já que a concepção
de mundo e de ser humano para a Psicologia Analítica é a de um ser simbólico, que vive
numa dimensão simbólica. Esta dimensão abrange aspectos biológicos, ambientais, históri-
cos, culturais e psicológicos do ser humano.

1-Aspectos Físicos

Resumidamente, a menstruação é a eliminação do revestimento interno do útero quando


não há fecundação em um ciclo. Ela é percebida através de um sangramento pela vagina
que dura em média de três a cinco dias e se repete a cada quatro semanas regularmente.
Ela ocorre devido à ação dos hormônios ovarianos sobre o revestimento interno da pare-
de do útero, o endométrio. Estes hormônios multiplicam as células do endométrio, fazendo
com que ele aumente de tamanho e se torne mais espesso, preparando-o para receber o
óvulo fecundado.
Quando a fecundação não ocorre e o ovo não se fixa no endométrio, este processo de
ação dos hormônios femininos é interrompido e a produção deles cai. O endométrio, que
está maior, perde seus mecanismos de sustentação e desprende-se do útero. Este tecido é
então eliminado pela vagina, junto a uma pequena quantidade de sangue, que é o fluxo
menstrual.
Diferentemente do sistema reprodutor masculino, o feminino tem modificações cíclicas
regulares, que seriam como uma preparação periódica para a fertilização e a gravidez.

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2- Aspectos Simbólicos

Por trás de nossas atitudes e crenças sobre a menstruação, cultural e historicamente


determinadas, há uma rede de símbolos e mitos que constituem uma parte mais permanente
do padrão da experiência humana. O conhecimento desses símbolos está arraigado em nós
até os ossos; é um legado transmitido em nossos genes por todas as mães que nos geraram e
por nossas antepassadas que há milhões de anos vêm menstruando (Owen. 1994, p. 37).

O Sangue

O sangue é o símbolo primário da força da vida e causa grande impacto. O que se sente
quando vemos sangue sair do nosso corpo? Instintivamente sabe-se que o sangue deve ficar
contido dentro de nós, senão podemos morrer. A exceção disso é a menstruação e o parto.
Em Espelho de Vênus (Grupo Ceres, 1981), as autoras classificam os ciclos biológicos
femininos como: infância, adolescência (marcada pela menarca), defloramento (marcando a
vida sexual), maternidade (marcada pelo parto) e menopausa (marcada pelo término da
menstruação). A partir da infância, todas as mudanças entre esses ciclos seriam iniciadas
literalmente pelo sangue.
Dentre as funções exclusivamente femininas envolvendo ou não o sangue visível (mens-
truar, gerar, parir e aleitar), a menstruação pode ser considerada uma das mais controversas:
ao mesmo tempo em que encerra significados como saúde, juventude, fertilidade e femini-
lidade, e garante um reconhecimento positivo à “menstruante”, é considerada suja, vergo-
nhosa, antiestética, restritiva, um verdadeiro empecilho ao ritmo de vida da mulher e ao
desempenho de suas atividades de trabalho e lazer.
Em meio aos atributos conferidos ao sangue feminino, Diniz (1996) destaca a esfera do
sagrado “ou religiosa, ritual, metafísica, simbólica etc. Esta dimensão, difícil de nomear, está
presente hoje, como sempre esteve, religando, integrando e conferindo os mais diferentes
sentidos à experiência do parto” (p.183) e, por extensão, também à menstruação. Esse “poder
sobrenatural” atribuído ao sangue tanto pode ser reverenciado como temido e evitado.
O sangue menstrual era considerado sagrado em muitas culturas. Na tradição tântrica, os
homens tornavam-se espiritualmente poderosos ingerindo o sangue menstrual (Koltuv, 1992).
Ainda hoje, nos rituais grupais da corrente tântrica não ortodoxa, o sangue menstrual é
tomado com vinho tinto como bebida ritual (Sardenberg, 1994).

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A literatura antropológica é pródiga na investigação do caráter simbólico atribuído à mens-


truação e aos rituais e tabus dela decorrentes. Estudos feitos nas Ilhas Trobriandesas, com os
Dobu, com os Manu (Nova Guiné), com os esquimós do Alasca, e outras culturas tribais,
sugerem uma grande frequência da existência de proibições sexuais, isolamento das mulheres
menstruadas, prática de tabus alimentares e rituais de purificação (Chahon, 1982). Essas prá-
ticas refletem os significados de poluição, impureza, poderes mágicos, geralmente maléficos,
atribuídos ao sangue menstrual que, juntamente com o do parto, é tido como pertencente a
uma categoria diferente do que corre pelas veias, despertando geralmente, sentimentos de
aversão ou nojo e, consequentemente, de vergonha para a mulher menstruada.
Sardenberg (1994), Owen (1994) e Koltuv (1992) referem-se a antigas ou distantes cultu-
ras onde a mulher menstruada ficava isolada de seu grupo, sozinha ou junto a outras no
mesmo estado. De diversas formas, nessas culturas era esperado que a mulher não ficasse
exposta. Esse isolamento foi interpretado como uma imposição masculina à mulher julgada
impura e poluente ou como forma de protegê-la por se encontrar num período onde poderes
sobrenaturais positivos (“o corpo aberto”) a circundariam. Isso varia de acordo com o conjun-
to de simbolismos e as visões sobre a mulher em cada sistema cultural (Sardenberg, 1994).
Nas culturas ocidentais, ainda hoje as proibições sexuais durante a menstruação são bas-
tante claras e regradas, por exemplo, na cultura judaica (Chahon, 1982). O termo Nidá signi-
fica mulher menstruada, e também separação. Essa mulher é considerada impura durante a
duração de seu fluxo. Após esse período, a mulher deve submeter-se a um banho ritual de
purificação e aí ter relações com seu marido. A noção de impureza vigente no judaísmo vem
desde o Velho Testamento, onde se considera impuro tanto o sangue menstrual quanto o do
parto, estendendo-se a impureza desses sangues à mulher que os manifesta.
No Gênesis há a sugestão da existência de uma mulher anterior a Eva: Lilith, a misterio-
sa primeira mulher de Adão, recusada por ele por ser cheia de sangue e saliva. Associada aos
demônios, Lilith representa o atrelamento da imagem feminina ao lascivo desejo sexual
figurado pelo sangue e pela saliva. O sangue menstrual está associado nesse mito ao desper-
tar do desejo que corrompe e perturba a ordem hierárquica entre os gêneros: Lilith foi expul-
sa do paraíso ao descontentar Adão por querer ficar sobre ele no ato sexual, ao buscar
igualdade (Sicuteri, 1985).

A Lua

Muitas culturas veneravam a lua. No antigo Egito ela era chamada de “Mãe do Univer-
so”, atribuindo-se a ela poderes de fecundidade e fertilidade.

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Não é preciso ir muito longe para encontrar evidências do relacionamento crucial entre
as fases da lua e a agricultura e a criação de animais. Até hoje, em algumas regiões da Índia,
é comum a prática da agricultura segundo o ciclo lunar.
A raiz das palavras moon (lua) e mind (mente) é a palavra indo-europeia manas, mana ou
men, que significa mente e um atributo de Ma, a mãe suprema. O maná do céu era o “alimen-
to” divino, o sangramento espiritual que fluía do corpo e nutria não somente a alma, mas
também o ser físico. Maná também está relacionado à palavra latina mens, que significa tanto
mente e lua, quanto uma misteriosa qualidade do poder espiritual nu-men. A palavra grega
menos significa tanto luz quanto poder. Men, que significa mês (month) em grego, é a raiz das
palavras measurement (medida) e menstruation (menstruação).
Lua sempre foi associada a fortes emoções e as mulheres sempre relataram sentir fortes
influências com o poder da lua. Expressões como “sob o feitiço da lua” ou “lunático” (lunacy
- loucura) mostram claramente a associação que se tem feito da lua com o medo da noite, da
escuridão e dos fortes sentimentos surgidos em uma cultura que teme a figura feminina.
Houve um tempo em que a lua era uma inspiração, uma ajuda, uma deusa. Na cultura
patriarcal, a lua tornou-se mais associada à demência e à instabilidade.
A lua possui uma beleza luminosa que nos impulsiona a um estado diferente de consciência.
Enquanto o sol ilumina o dia para o trabalho, para as atividades cotidianas, para o logos, a lua
ilumina um aspecto diferente: a vida interior, a imaginação, os sonhos, os domínios fluidos e
difusos do inconsciente. É uma luz que tanto pode distorcer quanto iluminar. E ela é variável -
na lua cheia ilumina tudo, na lua nova há uma escuridão total; algo facilmente associado à
emoção sensível, frágil e variável que as mulheres sentem nos seus ciclos menstruais.
Na astrologia, a lua está relacionada ao feminino, à memória e à mente, ao comporta-
mento emocional, à casa, à maternidade e ao ciclo da vida.
Uma das divindades femininas mais adoradas no mundo ocidental, Maria - Mãe de Jesus
- é tradicionalmente retratada com uma lua crescente aos seus pés, demonstrando a persis-
tência do relacionamento simbólico entre a lua e a mulher. A antiga deusa Ísis sempre foi
retratada junto à lua crescente e Diana/Ártemis é a deusa greco-romana da lua, da caça, das
mulheres e do parto.
A lua afeta o fluxo da água, regendo as marés. Os fluídos corporais também se relacionam
com a lua. O próprio ciclo menstrual é fluido; está constantemente mudando, como a lua.
Os índios norte-americanos chamavam a menstruação de “período da lua” e as mulheres
iam para a tenda da lua para descansar e meditar durante seus períodos menstruais. A dura-
ção média do ciclo menstrual é exatamente a mesma que a lua demora para circundar a
órbita da terra.

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Atualmente, devido à criação das cidades, iluminação elétrica e também devido ao


distanciamento dos próprios ritmos, as mulheres não estão mais conscientemente conectadas
aos ritmos lunares. Em grandes metrópoles temos que fazer um esforço para olhar para a lua
e nos conectarmos com ela. O ritmo universal regido pela lua fica então a cargo do incons-
ciente, pois a consciência não faz mais essa conexão. Hoje em dia isso requer um esforço e
uma vontade da mulher, algo que na Antiguidade era absolutamente natural.

3- Aspectos Históricos

Feminino Sagrado

Segundo Claudiney Priento (2002), a primeira religião do mundo foi o culto à Deusa.
Existem muitas evidencias que comprovam isto, inclusive arqueológicas. Muitas estátuas
e esculturas foram encontradas datando de uma época muito anterior ao estabelecimento
do patriarcado. Nessa época, o nascimento, a menstruação, a maternidade e a sexualidade
feminina eram considerados sagrados. O ato sexual ainda não estava vinculado à gravidez
e essas culturas não tinham conhecimento sobre o papel reprodutor do homem; acredita-
va-se que as mulheres geravam a partir delas mesmas e por isso eram consideradas as
“doadoras da vida”.
No livro O Corpo da Deusa no Mito, Raquel Pollack (1998) caracteriza a vivência da femi-
nilidade nestes tempos arcaicos como profundamente instintiva, ligada à vivência mais pro-
funda da anima, que atualmente perdura inconscientemente. As mulheres eram as sacerdo-
tisas da Deusa tinham grande poder espiritual, eram parteiras, adivinhas, transmissoras da
cultura e guardiãs dos mistérios. A partir do seu conhecimento mais instintivo, construíram
calendários lunares a partir da observação de seu próprio ciclo menstrual. Desenvolveram a
linguagem e a cultura, pois passavam a maior parte do tempo na tribo, enquanto os homens
saíam em busca de alimento.
Por volta do ano 6500 a.C. começam a se estabelecer a agricultura, bem como a
domesticação de animais. A crença de que a mulher tinha influência direta na fecundidade
e fertilidade dos campos fez com que ela alcançasse um prestígio nunca antes experimenta-
do. A mulher, assim com a Deusa, tornava-se poderosa no imaginário da época. Presume-se
então que todas as vivências femininas, como cuidar da terra, cultivar, e cuidar da prole
eram também muito valorizadas. A menstruação era o fato, ou marco físico, que tornava a
mulher pronta para utilizar seus poderes, e, portanto, algo a ser valorizado (Owen, 1994).
Relatos ancestrais mostram que a mulher primitiva reverenciava o período menstrual. As
mulheres das tribos se reuniam, faziam rituais de beleza e fertilidade, eram poupadas do

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trabalho árduo, pois estavam mais próximas da divindade no período menstrual. Era um
período festejado e sagrado (Harding, 1955).
A partir do neolítico médio (inteiramente agrícola), as condições de vida e de nutrição
vão suscitar importantes avanços demográficos. É a era da edificação de aldeias e do cres-
cimento da produção. A superpopulação favorecida pelo acúmulo de recursos cria por sua
vez a necessidade de novas terras e as comunidades começam a combater pela posse de
territórios. Tem assim início outro tipo de funcionamento (consciência patriarcal), que fa-
vorece o funcionamento polarizado e, por isso, produziu sombriamente uma vasta e pode-
rosa tradição de guerra na humanidade.
Ideias como o bem e mal, superioridade e inferioridade, força e fraqueza e poder e sub-
missão ganham força no período patriarcal. Como tradicionalmente o arquétipo patriarcal
foi identificado com o homem, eles passam a deter todos os importantes poderes e a reinar
soberanos sobre suas famílias e a sociedade.

A Repressão do Feminino pelo Patriarcado

Com o advento do patriarcado e a construção da instituição família, o homem, identifi-


cado tradicionalmente com o patriarcal, passa a ter papel centralizador na cultura.
Whitmont (1982) considera que a desvalorização do feminino é um aspecto intrínseco
na vigência do desenvolvimento do ego patriarcal, resultado da necessidade de separar o
ego nascente de uma consciência de campo indiferenciada, típica do mundo mágico-mitoló-
gico onde imperavam as necessidades e os instintos e suas dinâmicas transformadoras.
A valorização da feminilidade devia-se principalmente aos poderes associados ao corpo
feminino, como a menstruação, fertilidade, gravidez, amamentação etc. Com o advento do
patriarcado e a desvalorização desses aspectos, a mulher passou a vivenciar certa “vergo-
nha do corpo” e passou a ficar “dependente da mente”, que era o aspecto mais valorizado.
As tendências religiosas patriarcais, como o cristianismo e o judaísmo, retratam bem essa
desvalorização feminina ao reprimirem a parte natural, mundana e do corpo.
A vergonha do corpo e a vergonha de ser mulher rapidamente se acrescentam à vergonha
da menstruação, que passou a ser considerada feia, suja e perigosa.
A Inquisição trouxe um período de inacreditável violência contra os hereges, e cerca de
nove milhões de supostos “bruxos” foram mortos com a maior selvageria. Cerca de 85%
deles eram mulheres. Com isso, morreram os remanescentes da religião da Deusa e grande
parte do conhecimento humano sobre a obstetrícia, o herbalismo, a agricultura e a prática
espiritual baseados nas leis naturais.

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A Revolução Industrial e o crescimento da classe média criaram uma separação cada vez
maior entre o mundo do trabalho e o mundo doméstico. Ocorreu assim uma ruptura entre o
mundo do homem e o mundo da mulher, normas foram criadas para “oficializar” esta distin-
ção e para que cada sexo executasse a tarefa que condizia com a sua “natureza essencial”. A
mulher era vista como uma pessoa do lar, que deve à sociedade seu casamento, filhos e um lar
bem estruturado e, portanto, excluída de outros papéis na sociedade.
As duas grandes guerras que ocorreram no século XX fizeram com que a mulher entrasse
novamente no mercado de trabalho, porém sem as vincular à ideia de competência e identi-
dade, e sim como preenchimento do homem que faltava.
Para as mulheres operárias, a menstruação era um incômodo que baixava sua produtivi-
dade. Se ganhassem um salário por hora ou peça produzida, o descanso ou relaxamento sob
qualquer forma durante seu período menstrual era um luxo ao qual não podiam se permitir.
Entretanto, na vida rural pré-industrial, a carga de trabalho estava relacionada ao fluxo
sazonal. Na época da colheita, todos trabalhavam arduamente, mas no auge do inverno, na
Europa e na América do Norte, existia um período de hibernação, já que a terra ficava sob
o gelo e a neve. Em questão de décadas, os trabalhadores deixaram de viver em uma cultura
que respondia ao ritmo da lua e do sol, para viver em uma cultura onde o trabalho era
determinado pelo relógio e pelas máquinas.
Isso teve um efeito particular sobre as mulheres, que não podiam mais adaptar a carga de
trabalho aos seus ritmos e necessidades internos.

Ao contrário dos seres humanos, as máquinas não são sujeitas a


flutuações sazonais e mensais. A ideologia da era industrial adaptou a rea-
lidade humana àquela das máquinas, em vez de fazer com que as máquinas
se ajustassem às necessidades dos seres humanos. (Owen, 1994, p. 34)

Umas das consequências mais óbvias destes anos de repressão e desvalorização dos as-
pectos corporais em virtude de novas formas de trabalho é a evidente cisão mente-corpo
que se instaurou na cultura ocidental. O corpo tornou-se apenas um meio para o homem
conquistar seus bens, trabalhar e se desenvolver. O aspecto sagrado do corpo, tão exaltado
na era pré-patriarcal, perdeu completamente seu significado, além de obter caráter de peca-
do pela Igreja Católica.
A vivência da menstruação passou então a não ter conexão com a natureza. A menstru-
ação tornou-se um incômodo, algo a ser superado, algo que a colocava em desvantagem em
relação aos homens.

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Owen (1994) afirma que as mudanças ocorridas nas vidas das mulheres durante os últi-
mos cinquenta anos podem parecer uma revolução, mas de muitas maneiras o que tem
ocorrido é uma “assimilação”. Para a autora, o feminismo desempenhou um papel impor-
tante na desconsideração da menstruação, fixando-se a ideia da menstruação como incon-
veniência, pois as mulheres se adaptaram cada vez mais aos horários de trabalho determina-
dos pelos homens e a uma atmosfera de trabalho que se desenvolveu dentro de um contexto
de uma sociedade patriarcal.
“É mais fácil ser uma mulher bem sucedida em um mundo masculino caso se consiga
abstrair o fato de menstruar” (Owen, 1994p. 36).

O resgate do feminino arquetípico e a menstruação

A mulher atual identifica-se com os valores patriarcais, ou seja, bem adaptada a


uma sociedade de orientação masculina, e acaba por repudiar seus próprios instintos
e energias mais integralmente femininos, rebaixando-os e deformando-os da mesma
forma que a sociedade o fez.
Segundo Clarissa Pinkola Estés (1997), quando perdemos o contato com a psique instin-
tiva, vivemos num estado de destruição parcial, e as imagens e poderes que são naturais à
mulher não têm condições de pleno desenvolvimento. Quando são cortados os vínculos de
uma mulher com sua fonte de origem, seus instintos e ciclos naturais são perdidos em virtu-
de de uma subordinação à cultura.
Ainda segundo Estés (1997), quando compreendemos a natureza da mulher primitiva,
que anima e da forma à vida mais profunda de uma mulher, uma nova vivência de feminili-
dade se torna possível. Uma psicologia que ignore esse ser espiritual e extremamente instin-
tivo, tão central à psique feminina, trai as mulheres, não permitindo a realização de sua
maior faceta, a vivência de sua feminilidade instintiva.
Segundo autores que se embasam nas teorias de Jung (Harding, 1955; Koltuv, 1992), no
período menstrual, representado e associado à lua nova, haveria uma introjeção da energia
psíquica para o inconsciente arquetípico e a diminuição da atenção para o mundo externo.
A aproximação entre a consciência e os conteúdos simbólicos intensificaria, assim, a
criatividade da mulher nessas fases. A flutuação psíquica corresponderia à flutuação hormonal
do ciclo menstrual.
O que foi preconizado no passado é tomado no presente como sintoma de uma síndrome,
a tensão pré-menstrual. Koltuv (1992) associa o velamento ou o isolamento da menstruada

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à necessidade de introspecção da própria mulher. Assim como a lua nova deixa de brilhar, a
retirada da energia psíquica da consciência geraria na mulher o desejo de velar-se.

Questões Contemporâneas

Influência da Mídia
A tecnologia da desconsideração - com absorventes descartáveis, tampões, desodoran-
tes vaginais, analgésicos e antidepressivos específicos para o período menstrual - tem atuado
em conjunto com o mito da “supermulher” para criar uma atitude cultural predominante,
segundo a qual a mulher menstruada não é diferente daquela que não está menstruada e,
portanto, deve se comportar igualmente.
O problema é que isso simplesmente não pode ser verdade. Qualquer mulher que esteja
remotamente em contato com seu corpo sabe, quando está menstruada, como suas emo-
ções e sensibilidade se alteram nesse período, e como sua disposição física sofre modifica-
ções. Cabe a cada mulher dar um sentido único a essa vivência, e claro que não podemos
descartar a influência da história coletiva nisso.
Muitas campanhas publicitárias são feitas atualmente com mensagens que reforçam esse
distanciamento da mulher e seu ciclo menstrual, desvalorizando qualquer aspecto positivo.
Como lembrou Sardenberg (1994), os produtores de absorventes higiênicos e laboratórios
de fármacos disputam o poder simbólico sobre a menstruação, visando o aspecto econômico
e a venda de seus produtos. Utilizam a mídia para divulgar valores relativos à menstruação
numa crença subjacente de que menstruar é um desconforto a ser sanado pelos produtos
que fabricam. Ressaltam a associação entre menstruação e incômodo - “incomodada ficava
sua avó”, versava uma antiga propaganda de absorventes - e enfatizam a noção de que a
mulher deve manter suas atividades, seu ritmo de produção, sua rotina intensa ou seu lazer,
em seus diversos papéis, sempre de forma plenamente eficiente. A menstruação aparece
como uma ameaça a essa eficiência, devendo, portanto, ser neutralizada, absorvida por um
ritmo de vida producente.

Rituais de Passagem
Outra característica importante da contemporaneidade é a falta dos rituais de passagem. Jung
em diversos trechos de sua obra afirma a importância dos rituais de iniciação. Rito seria desde
tempos imemoriais um caminho seguro de lidar com as forças imprevisíveis do inconsciente.

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A palavra ritual vem de rtu, termo do sânscrito que significa menstruação. Os primeiros
rituais estavam relacionados ao sangramento mensal das mulheres.
A menarca, mais do que resultado de um conjunto de mudanças físicas, é um acontecimen-
to que, em muitas culturas, demarcava uma passagem, fazendo com que a jovem, a partir de
então, tivesse outro status social dentro de sua comunidade. Nessas culturas eram comuns os
ritos de passagem, nos quais a jovem, se por um lado adquiria novas responsabilidades, muitas
vezes já sendo considerada apta a casar e formar uma família tinha, por outro, um modelo
claro de comportamento pelo qual se pautar. Essa designação de um papel e status novos
oferecia à adolescente uma auto-imagem definida e vinculada ao grupo.
Atualmente, porém, não há nenhum ritual de passagem coletivo no que se refere à
menarca, o que deixa as adolescentes extremamente solitárias, assustadas e inseguras frente
à sua primeira menstruação Além da solidão, a menarca chega antes de ser aguardada como
sinal de feminilidade, e, talvez principalmente por isso, desperta constrangimento e incômodo.
Consequentemente, nem perante o grupo nem perante si mesma ela tem, para a maioria, o
significado de ritual de passagem.
O início traumático da menarca ou um bonito ritual que marque essa passagem pode
determinar a forma de a mulher estar no mundo; vivenciar seu feminino pode fazê-la ter
orgulho ou vergonha de menstruar.

4- Integração Psicofísica e Menstruação

O ciclo menstrual é em si um processo alquímico, durante o qual toda mulher quando


sangra passa por uma transformação interna. Menstruar significa viver através de uma
transmutação cíclica, em que o passado é derramado e o novo é recolhido.
Porém, para que a mulher possa enxergar e respeitar seu ciclo dessa maneira, é funda-
mental que ela esteja em contato consciente com seu corpo e com seu Self. Uma das possi-
bilidades para o restabelecimento dessa conexão, perdida na história coletiva das mulheres,
é um trabalho de integração psicofísica.
Quando o útero e a menstruação são vistos apenas como uma necessidade biológica
desconfortável, a auto-estima da mulher é correspondentemente baixa. Como aprendemos
com Jung e Sándor, nós somos nossos corpos, e não é possível se amar profundamente se
não amarmos profundamente nossos corpos. E nenhuma mulher pode amar profundamente
seu corpo se não lidar dignamente com sua menstruação, pois ela faz parte desse corpo.

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Neste ponto, acredito que a calatonia e os toques sutis, bem como um trabalho
psicoterapêutico, podem ajudar as mulheres a reencontrar seu feminino, fazer as pazes com
ele e então lidar melhor com seus ciclos menstruais.
No trabalho clínico tenho solicitado que as mulheres façam anotações em suas agendas
sobre seus ciclos. Isso tem tido um efeito bastante positivo, já que ao longo do mês a mulher
vai se conscientizando e acompanhando o que está acontecendo com seu corpo e com suas
emoções. Isso traz autoconhecimento, proximidade e consciência de seus ciclos.
Os resultados têm sido satisfatórios, porém não tenho como mensurá-los objetivamente.
Estes processos costumam ser longos, pontuados por sonhos e situações de vida das mulhe-
res, como trabalho, questões amorosas e familiares.
O que posso observar é uma melhora na relação que estas mulheres têm consigo mes-
mas, bem como uma maior aceitação de seus aspectos biológicos, tais como a menstruação,
a gravidez e também a menopausa. A auto-estima também costuma melhorar, já que pas-
sam a se aceitar e a gostar de sua condição de mulher. Acompanhar seu ciclo diariamente
faz com que a mulher esteja sempre em contato com si mesma, traz consciência e impede
que a força arquetípica da menstruação volte para o inconsciente.

Conclusão

A partir de todo o trajeto percorrido neste trabalho, algumas conclusões se apresentam


de forma a ilustrar a influência do modo como a mulher vivência sua menstruação em
outros aspectos de sua vida.
É possível concluir que quanto maior a aceitação, o respeito e o sentido dados pela
mulher ao seu ciclo menstrual, mais ela está conectada à consciência de seu corpo e de sua
feminilidade, o que possibilita às mulheres lidarem melhor com questões de gênero, de
trabalho, familiares e amorosas.
Em outras tradições culturais, geralmente se encontram rituais que possibilitam lidar de
alguma forma com os sentimentos despertados pelos atributos simbólicos associados ao
sangramento. À primeira vista, nossa sociedade parece ter eliminado esses rituais. Numa
reflexão mais profunda, entretanto, seria possível questionar se os conhecimentos e práticas
médicas, a imensa divulgação das categorias sintomatológicas que acompanham a tensão
pré-menstrual (TPM), a possibilidade dos controles hormonais, a atenção dispensada às
queixas relativas à menstruação entre as mulheres, os modernos absorventes higiênicos que
tanto se empenham em garantir o velamento do sangramento menstrual, não estariam justa-
mente ocupando o lugar dos antigos tabus e seus rituais?

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Concluo então que algo ainda grita dentro das mulheres. Elas não podem ignorar a mens-
truação. Reclamar mensalmente do desconforto menstrual seria uma maneira de passar por
cima, de não olhar direito para tudo que a menstruação representa. Para uma mulher total-
mente desconectada de seus aspectos corporais, de sua ligação com a Grande Mãe e de seu
mundo inconsciente, pode ser muito assustador se aproximar do significado da grande e
poderosa manifestação arquetípica que é a menstruação.
Foi a perda de contato com esta sabedoria que levou à distorção do poder menstrual em
sintomas menstruais. Entendo a TPM então com um grito de socorro daquela mulher
arquetípica sufocada dentro das mulheres contemporâneas.
A Integração Psicofísica mostrou ser uma tentativa terapêutica extremamente eficaz para
refazer esse elo de conexão da mulher com seu inconsciente, seu corpo, seus arquétipos e para
que a mulher volte a se conhecer como mulher, com suas características próprias, tão diferen-
tes das dos homens e sobre as quais a mulher vem tentando passar por cima há tanto tempo.
A mulher ainda luta para encontrar um equilíbrio saudável entre todas as conquistas obti-
das - como a inserção no mercado de trabalho e mais igualdade de direitos entre os gêneros -
e a natureza feminina, cheia de mistérios, belezas e inconstâncias - a natureza lunar.
O valor que se atribui à menstruação tem uma relação direta com o valor que a mulher
atribui a si mesma enquanto mulher. Voltar ao corpo e vivenciar o ritmo menstrual com sabe-
doria, tentando equilibrar estímulos externos e internos, é uma grande missão para a mulher.

Referências Bibliográficas

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A INFLUÊNCIA DA TERAPIA ASSISTIDA


POR ANIMAIS NA PERCEPÇÃO
CORPORAL DE IDOSAS
INSTITUCIONALIZADAS1

Ana Luísa C.A. Penteado2

Introdução

Este estudo tem por objetivo a análise dos efeitos na percepção corporal de idosas
institucionalizadas, através da Terapia Assistida por Animais (TAA).
O processo de envelhecimento, segundo Oliveira, Pasian e Jacquemin (2001), tem sido
considerado historicamente por meio de duas perspectivas: uma o reconhece como fase de
declínio que culmina em morte; outra o concebe como fase de sabedoria, maturidade e
serenidade. A perspectiva positiva se dá somente por meio da desconstrução da ligação
direta entre idoso e invalidez, velhice e morte.
Ao idoso institucionalizado, algumas dificuldades emergem neste processo de envelheci-
mento saudável, como: perda da privacidade e independência; afastamento da família, ami-
gos e do próprio lar; ajuste às regras da instituição; sentimentos de inutilidade. Isto, além
das mudanças corporais provenientes do envelhecer, como a impossibilidade da maternida-
de, cansaço físico, perda da juventude.

1
Este artigo é uma síntese da monografia apresentada ao curso Jung e Corpo do Instituto Sedes Sapientiae, 2008.
2
Psicóloga, psicoterapeuta junguiana. Especialista em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal pelo
Instituto Sedes Sapientiae.
E-mail: a.l.crepaldi@hotmail.com

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Jung & Corpo

A Terapia Assistida por Animais tem como propósito a introdução do animal junto ao
grupo de pacientes com finalidades terapêuticas. Dentro da instituição asilar seu objetivo é
resgatar a identidade, promover a interação e socialização do grupo de idoso, evitar ou
amenizar o surgimento de depressão e outros transtornos, apaziguar o idoso frente ao declínio
físico e cognitivo. A possibilidade de se obter estes resultados se deve ao fato de o animal,
por si só, produzir um efeito terapêutico junto ao grupo de trabalho e introduzir na institui-
ção atividades e lazer.

Corpo, Identidade e Feminino na Terceira Idade

Com o envelhecimento, as perdas dos referenciais identificatórios ocorrem a todo instan-


te. O idoso lida com a perda da beleza física, da juventude e da saúde plena, do trabalho, de
amigos e parentes, muitas vezes com a perda do bem-estar físico e também econômico
(Anacleto et al., 2005).
Boclin (2003) explica que estas mudanças físicas, cognitiva, corporal e econômica, pro-
venientes do processo de envelhecimento, são ameaçadoras porque agridem a integridade e
identidade do sujeito e a fantasia de desintegração é reforçada pela morte real.
Para a mulher, o processo de envelhecimento traz ainda outras perdas de referenciais
identificatórios, como a impossibilidade de maternidade e a mudança do papel de cuidadora,
para cuidada. Para os autores Jorge (2005) e Oliveira, Pasian e Jacquemin (2001), estas
mudanças fazem emergir novas emoções, que podem oferecer a possibilidade de uma nova
identificação e perspectiva de vida. Para isto, porém, é necessário que a mulher elabore
estas perdas e se reafirme no novo papel desempenhado. Para que este remodelamento não
traga consequências psicológicas sérias no processo de envelhecimento, é preciso que o
idoso seja valorizado pelos seus familiares e pessoas de seu convívio (Mori e Coelho, 2004).

O Idoso Institucionalizado

O idoso institucionalizado caracteriza-se como parte de um grupo privado de seus


projetos, afastado da família, casa, amigos e de toda a história em que sua vida foi construída.
Por estes fatores, a institucionalização gera perda da identidade, baixa auto-estima, dimi-
nuição das atividades físicas até completa inatividade, perda da capacidade laborativa, per-
da do controle de suas próprias finanças, distanciamento do mundo externo, poucas oportu-
nidades de lazer e atividade (Anacleto, Souza, Agelis e Pereira, 2004).
Para os autores acima citados, a vida dos idosos institucionalizados está associada à
regra do “lar” onde residem. Eles apresentam sentimentos de abandono, dificuldade em

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lidar com a sexualidade e com a proximidade da morte, o que favorece a “mortificação do


eu” e a ausência de contato com o mundo externo. A experiência do envelhecimento e da
institucionalização obriga aos idosos atos de renúncia diante de novas situações vividas, o
que acarreta falta de confiança e esperança, tornando-os alienados e desmotivados perante
a vida. A institucionalização faz com que o idoso não se sinta útil, capaz de grandes realiza-
ções, capaz de desempenhar um papel perante a sociedade como membro de uma família,
amigo, trabalhador, levando à perda do propósito de vida, sobrando apenas o papel de idoso
debilitado (idem, ib.).
A capacidade cognitiva, por raramente ser estimulada, acarreta o aceleramento de pro-
blemas de memória e inércia cognitiva. A memória está muito ligada à afetividade, e um
idoso institucionalizado geralmente tem dificuldade em estabelecer novos vínculos afetivos.
Por esse motivo e pelo enfraquecimento natural dos neurônios, há um grande declínio
cognitivo (Dotti, 2005).
Assim, a Terapia Assistida por Animais surge na instituição asilar como uma proposta de
atividade frente às dificuldades do processo de institucionalização e do envelhecimento.

A Terapia Assistida por Animais: pesquisas atuais

Chandler (2005) descreve a Terapia Assistida por Animais (TAA) como uma interven-
ção dirigida, com propósito e objetivos definidos, dentro do processo terapêutico. Ainda
para a autora, a interação homem-animal promove no paciente motivação para aderir ao
tratamento, sentimentos de aceitação e cumplicidade pelo contato afetivo com o animal,
contato positivo entre médico e paciente, melhora em quadros depressivos, aumento da
socialização, estimulação à prática de atividade física, estimulação à responsabilidade pelo
outro (cuidado), aumento da auto-estima, benefícios nos quadros fisiológicos.
Além disto, o contato corporal com o animal é um rico estímulo às áreas sensoriais, em
especial ao tato. Segundo Pethö Sándor (1974), a sensibilidade cutânea é provedora de vivências
afetivas através da estimulação feita pelo contato. Entretanto, este contato é muitas vezes
perdido pelo idoso institucionalizado e, com isso, a estimulação sensorial e afetiva também se
perde. Assim, a introdução de um animal no ambiente da institucionalização estimula novos
contatos físicos e, consequentemente, novas vivencias afetivas.
Apesar de Sigmund Freud, pai da psicanálise, ter sido acompanhado por seu cão Jo-Fi nas
sessões de terapia que conduzia, há muito pouco escrito sobre a sua utilização e a eficácia de
Jo-Fi na prática terapêutica (Blender, 2009). Os primeiros registros da utilização acidental da
TAA como técnica psicoterápica começaram a surgir com o trabalho de Boris Levinson, por
volta de 1950 (Blender, 2009 e Dawn, 2008). O psiquiatra descreveu o uso e os benefícios
que a presença de um animal promovia nas sessões terapêuticas, ao observar os efeitos da

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interação entre seu cão e um paciente com grande dificuldade de interação verbal e comunica-
ção. Em uma instituição para idosos, aplicou-se a Patient Social Behavior Scale (Escala de
comportamento social do paciente) antes, durante e depois da implementação da terapia as-
sistida por animais (Fick, 1993). O estudo mostrou um resultado positivo no comportamento
dos idosos após a 5º semana. Na Universidade de Medicina de Saint Louis foi realizado um
estudo aplicando o University of California at Los Angeles Loneliness Scale (UCLA-LS), escala
que visa mensurar o grau de solidão em idosos institucionalizados; o resultado mostrou uma
melhora do sentimento de solidão destes idosos após a introdução de contato com animais
(Banks e Banks, 2002; Fick, 1992; Perelle e Granville, 1993).
Após o contato com animais, estudiosos deste tema constataram as alterações no quadro
fisiológico dos pacientes hospitalizados. Esses benefícios ocorrem por ação fisiológica, le-
vando à liberação de B-endorfina, prolactina, oxicitocina, dopamina, feniletalamina e a re-
dução do hormônio cortisol, gerando diminuição da pressão arterial e dos níveis de estresse,
depressão e problemas respiratórios, além do aumento da auto-estima e da sobrevida após
infarto do miocárdio (Odendal, 2000; Becker, 2003).
Brickiel (1984) (apud Fick, 1993) relata que pacientes que tiveram acesso a animais de
estimação durante as sessões de terapia demonstraram uma significativa redução no quadro
de depressão, quando comparado ao grupo controle, que não teve a presença de animais nas
sessões (Banks e Banks, 2002; Zarebski et al., 2000; Fick, 1993; Becker, 2003).
Muitos estudos envolvem idosos com demência e Alzheimer, institucionalizados ou não.
Os resultados apresentados são: redução fisiológica na resposta ao estresse por parte do
cuidador e dos pacientes após interação com o animal; redução nos problemas do compor-
tamento de pacientes com Alzheimer; melhora na motivação e na auto-estima dos idosos
institucionalizados, resultando em melhores cuidados com eles próprios; aumento significa-
tivo nas relações sociais de idosos com demência e diminuição dos comportamentos agita-
dos destes mesmos pacientes (Blender, 2009).

A Pesquisa: Metodologia e Coleta de Dados

Este estudo teve como finalidade observar se a prática da Terapia Assistida por Animais
influencia na percepção corporal de idosas institucionalizadas. Nossa atenção voltou-se
para a percepção corporal associada à percepção de dores no corpo. Para isto, exercícios
específicos de fisioterapia e terapia corporal foram desenvolvidos, utilizando-se o cão como
ferramenta para a realização do exercício. Estes exercícios visaram estimular o contato cor-
poral do idoso com o cão e com seu próprio corpo, ensinar ao paciente melhores posturas
para realização da atividade a ser desenvolvida com o cão, manutenção da independência.
O cão foi o facilitador deste processo.

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O trabalho foi realizado com cães da raça poodle, cães sem raça definida e bernese
montanhês. Todos os cães apresentaram comportamento adequado para o estabelecimen-
to de vínculo com os idosos e todos possuíam treinamento avançado de comandos e
controle de zoonoses.
Os exercícios eram passados de forma a conduzir a idosa a pensar que estava ajudando a
adestrar e cuidar do animal, recuperando o sentimento de utilidade, geralmente perdido no
idoso institucionalizado, como descrito anteriormente.
A pesquisa ocorreu na instituição asilar Recanto da Vovó, localizada no município de Embu
das Artes, em São Paulo. Foram utilizadas para amostra três idosas com idade entre 80 e 85
anos, residentes da instituição.
A coleta de dados foi realizada entre o mês de janeiro e fevereiro de 2009, tendo sido
realizadas oito sessões no total. A primeira e última sessão foram utilizadas para aplicação de
uma entrevista semi-dirigida e desenho do corpo humano. Nas demais sessões foram realiza-
das a Terapia Assistida por Animais com exercícios específicos, fisioterápicos e cognitivos.
Na análise dos dados foram comparados os materiais obtidos no primeiro e no último
encontro. A finalidade desta comparação foi verificar se houve modificações na percepção
subjetiva de dores associadas ao movimento do corpo e se houve modificações no desenho
do corpo humano.

As sessões de TAA: Procedimento

A sessão iniciava com uma apresentação dos comandos realizados pelos cães (sentar,
deitar, rolar, dar tchau, girar, dançar, cumprimentar etc.). Posteriormente, cada idosa esco-
lhia um cão e um comando a ser realizado. O cão era então recompensado pela idosa, com
um petisco.
O segundo passo da Terapia ocorria com a prática dos exercícios físicos. Inicialmente
com alongamento corporal e caminhada, seguida dos exercícios de fisioterapia assistida.
Apresento aqui alguns dos principais exercícios realizados:

a) Passa Ração
Posição inicial: O idoso, em pé, deve passar o vergalho (petisco) para o idoso à sua frente
ou atrás de si. Este movimento exige alongamento de braços e costas, equilíbrio na postura
em pé e movimento de antebraço quando passado para trás. Função do cão: tentar pegar o
vergalho (petisco) segurado pelas idosas, estimulando a prática da atividade.

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Passa ração com rotação: Para este movimento exige-se uma rotação (torção) de tronco,
para entregar o vergalho (petisco) ao idoso atrás dele. Os benefícios do exercício são alon-
gamento e torção de tronco, estimulação dos rins e órgãos abdominais.
b) Venda
Posição inicial: Idoso sentado, com olhos vendados. Movimento: O condutor da sessão
leva um dos cães ao idoso e este deverá tocar na parte do corpo do cão aonde o terapeuta
colocar sua mão e descobrir qual é o cão e qual parte do corpo está tocando. O objetivo é a
estimulação tátil e sensorial e a conscientização das partes do corpo do cão.
c) Lançamento Posterior e/ou Anterior
Posição inicial: paciente em pé, em posição neutra do membro superior (membros ao
longo do corpo e relaxados) e objeto a ser lançado em sua mão. Cão posicionado ao seu lado
ou à sua frente. Movimento: idoso lança o objeto para frente ou para trás) fazendo a flexão
de ombro. Foi associado ou não, dependendo do equilíbrio dinâmico do paciente, um passo
para trás durante o lançamento, alternando os membros inferiores a cada lançamento, esti-
mulando a lateralidade.
d) Lançamento com os pés
Posição inicial: idoso sentado com apoio ou não das mãos, as pernas estendidas e uma
bola de borracha entre seus pés, cão ao seu lado ou à sua frente. Movimento: idoso pren-
de a bola entre seus pés com o movimento de adução dos membros inferiores, flexiona os
joelhos e em seguida estende, jogando a bola para frente, o cão busca a bola e a entrega
para o idoso.
e) Escovação com as mãos
Posição inicial: idoso sentado com o cão à sua frente (de grande porte) ou no colo (de
pequeno porte), com as mãos sobre o cão. Movimento: o idoso escova o cão com as mãos,
deslizando a mão por todo o corpo do cão. O exercício foi repetido com o idoso de olhos
fechados, deslizando as mãos por todo cão e descrevendo cada parte tocada.
f) Massagem com os pés
Posição inicial: idoso sentado com o cão à sua frente, de preferência deitado ou sentado
próximo ao idoso. Movimento: o idoso passa os pés no cão, como se estivesse escovando o
cão com os pés. O exercício foi repetido com o idoso de olhos fechados e descrevendo a
parte do corpo do cão onde está com os pés. Os exercícios de escovação proporcionam ao
idoso estimulação tátil e sensorial.
g) Argola
Posição inicial: idoso sentado, com pernas esticadas e elevadas, formando um ângulo
reto em relação ao chão. Uma argola é introduzida entre os pés do idoso e este deve manter

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o maior tempo possível a argola sem deixar que o cão retire. Função do cão: Incentivar o
idoso à realização da atividade de força e contração dos músculos da coxa.
h) Túnel
Posição inicial: Idoso sentado deve elevar as pernas, esticadas, formando um ângulo de 90º
em relação ao chão. O cão então passará por baixo do túnel e só então o idoso poderá baixar
a perna. O objetivo é a movimentação e fortalecimento das pernas e a função do cão é fazer
com que o idoso sinta vontade de manter a perna elevada até que ele (cão) passe por baixo.
i) Panturrilha
Posição inicial: idoso sentado com um cão de pequeno porte no colo. O idoso deverá
retirar o calcanhar do solo, enquanto segura o cão em seu colo. O objetivo do movimento é
fortalecer a panturrilha e conscientizar o idoso da parte posterior das pernas, do calcanhar e
ponta dos pés. A função do cão é motivar a prática do exercício e proporcionar um encontro
afetivo com o idoso, através do toque.

Discussão e Conclusão

As idosas apresentavam pouca afinidade social entre si e integravam-se pouco, mesmo


algumas dividindo o próprio quarto. Notou-se após a realização do trabalho de TAA em
grupo, uma maior proximidade entre as pacientes e, consequentemente, maior interação
entre elas, dentro e fora das sessões.
Duas das idosas participantes da pesquisa relataram que se sentem mais ativas e dispos-
tas após o início da prática de atividade física com a TAA. Pela análise dos desenhos iniciais
e finais, pode-se sugerir que as idosas tiveram uma ampliação da percepção corporal.
Notou-se uma maior ampliação do contato verbal e interação social entre as idosas, o
que vai de encontro aos estudos de Corson e Corson (1981), apresentados neste trabalho. O
animal dentro da instituição facilita o vínculo e a interação entre os participantes, favore-
cendo uma aproximação entre estes. Pode-se notar também, através deste estudo, o que
Cynthia Chandler (2005) relata sobre a interação homem-animal: os pacientes demonstra-
ram sentimentos de aceitação e cumplicidade pelo contato afetivo com o animal, houve um
contato positivo entre médico e paciente, aumento da socialização do grupo e estimulação
à prática de atividade física. Como relata a idosa M.: “sinto mais vontade de fazer minhas
caminhadas todos os dias, estou mais forte (sic)”.
Fick (1992), Perelle e Granville (1993), Zarebski et el., (2000), Banks e Banks (2002)
relatam o efeito de catalisador social proporcionado pelo cão. O cão, no presente estudo,
tornou-se alvo de conversas entre as pacientes. Além disto, as idosas passaram a contar,

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umas para a outras, suas histórias de vida, as quais sempre se iniciam pela história de sua
vivência com um cão.
A partir deste trabalho, pouca modificação pôde ser notada pelas idosas quanto à percep-
ção da influência da terapia assistida no condicionamento. As idosas perceberam-se apenas
mais bem dispostas para a prática de atividades físicas.
Percebe-se a necessidade de reaplicação da pesquisa, porém com maior tempo de coleta
de dados, uma vez que o número de sessões realizadas foi insuficiente para um maior
aprofundamento da pesquisa.
Acredita-se ser necessário o desenvolvimento de novos trabalhos na área de Terapia
Assistida. No Brasil, ainda há pouco trabalho científico sobre o tema, dificultando a pesqui-
sa e o desenvolvimento de técnicas de análise da influência da terapia assistida no processo
terapêutico do paciente.

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ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO:
UMA VISÃO INTEGRATIVA

Paulo Toledo Machado Filho1

Quando nos debruçamos sobre a história da civilização, observamos que de tempos em


tempos repetem-se ciclos, cumprindo-se num outro nível etapas que até certo ponto já
foram percorridas. Mas em relação à época contemporânea, observamos certos aspectos ou
situações que aparentemente nunca foram experienciadas anteriormente pela humanidade,
pelo menos na intensidade como atualmente se percebe: a organização da vida em gigantes-
cas concentrações urbanas, com todas as consequências daí decorrentes (poluição, trânsito,
acúmulo de lixo, desequilíbrio ecológico, violência em todo seu espectro etc.); a circulação
de informações através dos inúmeros canais que criamos e a protagonização imediata por
todos de qualquer acontecimento mundial, no momento em que este ocorre; a extensão ao
período noturno da atividade produtiva, intelectual e psíquica consciente; a autonomia no
consumo de bens, nas satisfações volitivas e na produção e consumo de cultura por todas as
categorias sociais. Observamos, simultaneamente, o desenvolvimento rápido do universo
virtual, que preenche as necessidades de informações e comunicação, de consumo, de lazer,
como também as necessidades afetivas e interações profissionais.
Evidentemente, todas estas mudanças assinalam o progresso de nossa civilização, mas,
por outro lado, produzem igualmente um grande impacto sobre a vida psíquica e as funções
corporais; com certeza, resulta em importantes modificações fisiológicas e alterações nos
ritmos biológicos vitais. Nas áreas médica e psicológica, verificamos que, sob efeito deste
impacto e do desequilíbrio provocado pelas grandes mudanças coletivas, aumentou a inci-
dência de patologias que expressam as condições referidas. Por isso, a ansiedade (relaciona-

1
Paulo Toledo Machado Filho. Médico Psiquiatra, Psicoterapeuta Junguiano especializado em técnicas
de abordagem corporal, Mestre em Antropologia Social pela USP e Professor dos Cursos de Cinesiologia
e de Jung e Corpo - Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal do Instituto Sedes
Sapientiae, São Paulo.
E-mail: ptmachadof@uol.com.br

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da com a experiência psíquica de um tempo expectante, orientado compulsivamente para


um devir que nunca se alcança), as fobias (principalmente as que expressam alterações na
elaboração psíquica do espaço), o transtorno do pânico (como um complexo onde a neurose
transborda do psíquico para o somático, através da inervação autonômica), as compulsões,
o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), as diversas configurações do
estresse e o trauma das manifestações da violência crescem epidemicamente nas estatísti-
cas dos serviços de atenção médica e psicológica da atualidade.
Verificado inicialmente entre as populações vitimizadas e traumatizadas pelas
consequências das guerras ou das grandes catástrofes naturais, conforme apontaremos abaixo,
na atualidade o transtorno do estresse pós-traumático tem sido observado também, e com
incidência muito elevada, principalmente nos grandes conglomerados urbanos, certamente
como efeito da condição caótica como se desenvolvem estas cidades e do desequilíbrio
social proveniente das grandes concentrações de riqueza cercadas pelos cinturões de pobre-
za que perpassam as cidades e esparramam-se pela periferia. Vinculado, neste caso, às mui-
tas expressões do espectro da violência, como a violência do trânsito, da criminalidade, do
tráfico de drogas, da intolerância e seus múltiplos aspectos, além daquelas formas de vio-
lência que são produtos da exacerbação das questões psicossociais que acompanham a his-
tória da humanidade há muito tempo, como o comportamento sexual desequilibrado, o
comportamento afetivo exageradamente passional, a gravidez precoce, os pais que maltra-
tam os filhos, o fenômeno referido é um importante indicador acerca do quanto temos que
elaborar as propostas que escolhemos, se assim pudermos nos referir, para o desenvolvi-
mento de nossa civilização.
Os sintomas que caracterizam o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), na reali-
dade, sempre foram observados, existindo inclusive descrições precisas dos mesmos em
muitas narrativas épicas dos feitos dos heróis míticos, mas esta condição passou a consti-
tuir-se em uma categoria diagnóstica somente em 1980, no DSM-III. Encontramos no se-
guinte DSM-IV o estabelecimento de critérios diagnósticos onde é enfatizada a situação de
exposição a um evento traumático que tenha sido vivenciado, testemunhado ou ao qual o
indivíduo tenha sido confrontado e que tenha envolvido um medo intenso ou horror em sua
resposta. O transtorno caracteriza-se ainda pela recordação posterior do trauma, geralmen-
te independente da vontade da pessoa (o que pode ocorrer até meses ou anos após o acon-
tecimento), através de lembranças e com a evocação de imagens ou sonhos que acabam por
produzir uma resposta fisiológica correspondente à da experiência do trauma em si e des-
pertando novamente a sensação constante de perigo iminente. A ocorrência inesperada do
evento traumático, que colhe subitamente o indivíduo, despreparado para o acontecimento
e produzindo uma descarga de catecolaminas, é outro aspecto importante da manifestação.
Encontramos referências à prevalência do transtorno em ambientes ou situações de
guerra, principalmente entre refugiados e combatentes, quando a taxa de ocorrência che-
ga a 86%, conforme indicação de Carlsson & Rosser-Hogan (1991) em trabalho com

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refugiados cambojanos nos Estados Unidos, enquanto entre a população em geral chega
a afetar de 1 a 9% das pessoas (Lambert & Kinsley, 2005). Parece-nos que esta variação
decorre do meio onde se realiza a pesquisa, sendo que, embora até então não tenhamos
referências sobre estudos sistemáticos realizados em nosso país, tudo indica que nas regi-
ões periféricas de nossos grandes centros urbanos e junto às favelas, principalmente em
momentos de disputa entre traficantes ou confrontos entre estes e a polícia, que simulam
localmente uma condição de guerra, o índice certamente é maior. Outras condições pró-
prias da vida moderna, conforme já assinalamos, como o trânsito, a criminalidade urbana,
os sequestros, o alcoolismo e o tráfico de drogas, as tragédias familiares etc. elevam os
indicativos de prevalência do TEPT.
Fisiologicamente, o estresse agudo produz no indivíduo uma resposta autonômica, atra-
vés do simpático, do tipo lutar ou fugir (descrito por Cannon já em 1920), e através do eixo
HPA (eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal), descrito posteriormente por Selye (conforme
referência de Lambert & Kinsley, 2005). O estímulo estressor produz um efeito emocional
(medo, horror, pânico) que envolverá áreas cerebrais como o locus ceruleos, a amígdala e o
hipotálamo, constituintes do sistema límbico e que concentram fibras nervosas que regulam
o comportamento emocional, levando principalmente o hipotálamo a secretar uma substân-
cia (CRH) que ativa a hipófise e faz esta liberar o hormônio do estresse (ACTH). Este,
agindo sobre a glândula suprarrenal (adrenal), estimulará esta, por sua vez, a liberar o cortisol,
que por sua vez influenciará as células imunes, o nervo vago e o próprio hipotálamo. Após
a elevação de seus níveis plasmáticos e da detecção deste efeito por sensores específicos
localizados nos vasos sanguíneos e sistema nervoso, desencadeia-se um ciclo retroativo
(biofeedback), que culminará com sua posterior inibição. O conjunto completo de respostas
fisiológicas à condição estressora revela de maneira expressiva como convergem os siste-
mas psicológicos, imune, neural e endocrinológico em defesa da vida e como funciona a
unidade corpo-mente. No transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), a recorrência dos
estímulos reativa os efeitos descritos, mas parece que tornando o indivíduo mais sensível ao
cortisol, pois os níveis encontrados deste no plasma geralmente são abaixo do normal.
Observa-se também que as respostas ao estresse variam de indivíduo para indivíduo,
sendo que, para o mesmo tipo de estímulo, não são todos que desenvolvem a sintomatologia
do TEPT. Quando os estímulos são muitas vezes repetidos, pode ocorrer2a Síndrome Geral
de Adaptação, também descrita por Selye, que pode incorrer em resistência , que corresponde
à adaptação total do indivíduo ao –elemento estressor, ou exaustão, quando ocorre perda
importante de energia, que pode conduzir à morte. Esta observação certamente fragiliza as

2
Empregando a expressão resiliência, Anthony & Cohler estudaram a adaptação ao agente estressor,
observando uma aparente psicoimunidade desenvolvendo-se em certos indivíduos diante das adversi-
dades, conforme citação de Sauaia e Araújo, 2004.

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visões deterministas ou redutivas que veem as respostas emocionais exclusivamente como


um fenômeno neuroquímico; podemos aqui observar que são também importantes outros
aspectos que envolvem o condicionamento deste (do fenômeno neuroquímico), como a
história de vida, a condição psíquica do próprio indivíduo, a relação com o meio ambiente e
cultural, entre vários outros fatores, para compreendermos a manifestação dos sintomas.
Encontramos exemplificado nos estudos antropológicos, através da descrição dos ritos de
iniciação ou de passagem dos povos com tradições míticas, a exigência que se fazia ao
neófito, através de provas específicas, para que se desenvolvesse um domínio ou controle
psicofísico sobre as emoções (medo), sobre os estímulos volitivos (fome, sede, interesse
sexual) ou ainda sobre determinadas sensações (como a dor). Tratavam-se certamente de
sistemas coletivos de educação e condicionamento, que também tinham a função de prepa-
rar o iniciado para melhor suportar as condições de estresse e assinalar a transição para um
novo papel social.
Embora o TEPT caracterize-se pela sua ocorrência súbita e imprevisível para o indiví-
duo, a possibilidade de os fatores desencadeantes desta experiência acontecerem não deixa-
ram de ser culturalmente previstos e considerados. Os mitos que evocam o arquétipo do
herói, por exemplo, também parecem traduzir a fragilidade da condição humana e seu em-
penho fantástico de superação e sobrevivência. Quando consideramos os grandes temas
épicos, como o mito cosmogônico acadiano Enuma elish ou a Epopeia de Gilgamesh, a
Odisseia ou a descrição dos trabalhos de Héracles, deparamo-nos com o exercício heroico
do enfrentamento de situações igualmente súbitas e inusitadas, em que o personagem mítico
é constantemente colocado em situações limites que ameaçam a sua vida e é submetido a
provações e sessões contínuas de estresse. Encontramos exemplificadas algumas descri-
ções dramáticas acerca de nossa temática quando um herói enfrenta as terríveis conjunções
arquetípicas que amedrontaram e inibiram o desenvolvimento da consciência humana, como
os aspectos negativos da Grande Mãe descritos em Enuma elish, conforme referidos por
Kluger (1954) e projetados na deusa-mãe babilônica Tiamat, quando esta se preparava para
enfrentar Marduk:

Ela construiu a Víbora, o Dragão e a Esfinge,


O Grande Leão, o Cão Furioso e o Homem-Escorpião,
(...)
Com veneno em lugar de sangue ela encheu o seu corpo,
Dragões rugidores ela revestiu de terror,
Coroou-os com auréolas, fazendo-os iguais a deuses,
Para que aquele que os contempla
pereça de forma abjeta.

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Mais adiante, a autora faz a citação de outro mito sumério-acadiano, a Epopeia de


Gilgamesh, onde o herói protagonista da história enfrenta o povo escorpião e sua expressão
aterrorizada, conforme a descrição, evidencia a sintomatologia do estresse:

Quando Gilgamesh os avistou,


Seu semblante se tornou sombrio de terror e ele desmaiou.
Mas retomou a coragem e aproximou-se deles.
O homem escorpião apela para a sua esposa:
"Aquele que veio até nós, o seu corpo é a carne dos deuses!"
A esposa do homem escorpião lhe responde:
"Dois terços dele são deus, um terço dele é homem".

Posteriormente, na Grécia clássica, as narrativas de Hesíodo e Homero nos revelam uma


constelação de heróis submetidos a sucessivas provas e que, por meio de sequências às
vezes frenéticas de lutas contra os perigos mais diversos, como monstros, feiticeiras, fenô-
menos da natureza, animais selvagens, titãs, exércitos inimigos e até mesmo os próprios
deuses, promoveram a elevação da consciência humana através da superação de seus temo-
res inconscientes e contribuíram para que a humanidade realizasse a passagem do mithos
para o logos.
A condição que permite ao herói sobrepor-se aos semelhantes, enfrentar os perigos e
melhorar a condição humana é sua origem semidivina. Mas as correspondências arquetípicas
evocadas nos grandes temas épicos dos heróis míticos não desapareceram; aprendemos
com Jung que eles são os mesmos, apenas surgindo com denominações diferentes em outros
lugares e em épocas diversas. Atualmente, vivemos o tempo dos super-heróis dos cartoons
ou dos heróis cinematográficos, como Indiana Jones e Avatar, personagens igualmente dife-
renciados e que preenchem a necessidade psíquica da humanidade de superar a angústia
produzida por suas limitações e seus temores. A constelação psíquica da imagem do herói,
correspondendo à constelação de um arquétipo do inconsciente coletivo, certamente tem
relação com todo o sucedâneo de respostas fisiológicas e a referência instintiva orientada
para a conservação da vida humana que se observam nas condições do estresse. O fato de
existirem respostas fisiológicas de proteção à vida assinala justamente que os riscos que
corremos e que ameaçam nossa integridade são previstos tanto em nível biológico (é rele-
vante o fato de Jung ter apontado uma possível base biológica dos arquétipos, apesar das
muitas contestações que tal afirmativa provocou) como através de configurações psíquicas
ou imaginárias, conforme observamos acima, e funcionam sinergicamente coordenados.
Em um de seus últimos artigos sobre a sincronicidade (1952), Jung (apoiado no físico W.

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Pauli) observa, na disposição de um quatérnio, as correspondências entre tempo e espaço e


entre estes e a noção de Energia e numa outra direção, a da causalidade e sincronicidade,
correspondências que podemos também tentar considerar e estender, onde estes últimos
aparecem, à relação entre as fenomenologias do somático (matéria) e do psíquico (espírito,
pulsão), apontando assim em direção à unidade funcional corpo-mente. Outras considera-
ções mais imediatas e próprias sobre as suas ideias acerca da relação entre mente e corpo
3
foram ampla e sistematicamente arroladas por Farah (2008).
A época atual propõe ao ser humano uma experiência de vida inusitada, em relação ao
que foi vivido em toda a sua história. Através de um processo que foi principalmente
potencializado pela Revolução Industrial, observa-se uma grande concentração populacional
nos meios urbanos, conforme já referimos acima, situação que interfere profundamente nos
ritmos biológicos naturais. A iluminação das cidades, o desenvolvimento tecnológico, os
estímulos dos sistemas de comunicação aumentaram o tempo de vigília; os sistemas de
transporte prejudicaram definitivamente a qualidade de vida das populações urbanas, alte-
rando a qualidade do ar e transformando os espaços públicos em corredores de circulação
extremamente perigosos, principalmente para as faixas etárias extremas; as desigualdades
econômicas e sociais contribuíram para fazer surgir áreas de atrito, responsáveis pela cres-
cente violência urbana. Todos estes fatores, além de outros não assinalados, predispõem o
homem ou a mulher de hoje a protagonizar diariamente o mito do herói e, deste modo, a
condição do estresse parece que passou a fazer parte da rotina de todos nós.
Considerando a compreensão do fenômeno do estresse como ocorrência que evidencia a
unidade corpo-mente, temos proposto na condução de seu tratamento o emprego de técni-
cas de abordagem corporal juntamente com o acompanhamento psicológico e
medicamentoso. A estimulação do paciente a praticar exercícios psicofísicos, como medita-
ção, yoga, tai-chi-chuan, paralelamente às outras modalidades de tratamento, tem se revelado
bastante eficiente, existindo, inclusive, muitos trabalhos publicados a respeito, nos quais é
assinalada a importância das modalidades referidas no processo de dissipação da memória
recorrente do trauma, na diminuição dos níveis de cortisol e na reorientação prática da vida.
Em minha experiência pessoal, a Calatonia, técnica de toques sutis criada por Sándor (1974)
e aplicada simetricamente nos membros inferiores (dedos dos pés, área plantar, pernas) e na
cabeça, tem se revelado bastante eficaz. Conduzindo, conforme seu autor, a um
recondicionamento fisiopsíquico, esta técnica foi inclusive intuída e desenvolvida em épo-
ca e ambiente relacionados com o trauma e experiências limites de dor e sofrimento, em um
Hospital da Cruz Vermelha, durante a Segunda Grande Guerra Mundial. Sándor refere ter

3
Prefaciando os comentários da autora sobre as Conferências de Tavistock (Fundamentos da Psicologia
Analítica), está assinalado "A individualidade espiritual baseia-se no corpo e jamais poderá realizar-se se os
direitos do corpo não forem reconhecidos. Inversamente, o corpo não pode desenvolver-se se a singularida-
de espiritual não for reconhecida" (C.G. Jung).

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iniciado suas observações no período da grande retirada da Rússia, quando uma grande
quantidade de feridos e congelados que tiveram seus membros amputados e queixavam-se
de dor, muitas vezes referindo-se ao membro já não existente (dor do membro fantasma),
melhoravam quando eram tocados (observando-se, segundo seu comentário, uma grande
carência de recursos nestes locais, onde geralmente faltavam morfina e outros analgésicos
que pudessem ser utilizados). Em nosso caso, a utilização da Calatonia ou outras técnicas
afins, juntamente com a abordagem psicoterapêutica através do enfoque junguiano e às
vezes recorrendo-se a medicamentos, tem sido de grande valia, observando-se, igualmente,
a diminuição dos sintomas neurovegetativos, diminuição das respostas adrenérgicas associ-
adas à ansiedade, diminuição nos níveis de cortisol e favorecendo a dissipação psíquica da
memória do trauma. Geralmente os pacientes referem sentir-se confortáveis e confortados,
apresentando reações positivas no processo de recuperação e ressocialização, o que nos
permite enfatizar a importância da integração fisiopsíquica através de técnicas corporais e
da abordagem simbólica junguiana na assistência à vítima do trauma.

Referências Bibliográficas

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dissociation, and depression in Cambodian refugees. American Journal of Psychiatry. 148:
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_________ (1952) Sincronicidade: um princípio de conexões acausais. O.C. vol 8. Petrópolis:
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_________ (1917/1926/1943). Psicologia do inconsciente. O.C. vol.7. Petrópolis, Vozes, 1989.
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A MODA COMO EXPRESSÃO


SIMBÓLICA DO FEMININO

Amana Perrucci Toledo Machado1

O fenômeno da moda mostra-se como um campo capaz de encantar, seduzir e mobilizar


diferentes culturas, instigando estudiosos. Em consultório, observei que algumas pacientes
chegavam, quando estavam muito tristes, vestidas como se estivessem fantasiadas; a partir
disso, procurei traçar relações entre os seus trajes e estados emocionais. O uso de adornos e
das roupas parecia evidenciar, em seus processos, a relação com a própria feminilidade.
Assim, neste trabalho, síntese da monografia de conclusão do curso Jung e Corpo, serão
exploradas algumas das relações entre o feminino e a moda, buscando abrir-se um caminho
para que as mulheres modernas se relacionem com os adornos como meio de expressar a sua
essência e não como utensílios de tortura.

Moda

Originalmente, moda vem do latim modus, o que quer dizer “modo” ou “maneira” - o
mesmo que o francês façon, palavra que deu origem ao termo fashion, que significa moda em
inglês. De acordo com o dicionário Aurélio (1986), a moda define-se como:

1. Uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo, e resul-


tante de determinado gosto, ideia, capricho, e das influências do meio:
conceitos em moda; a moda parnasiana; Uso passageiro que regula a forma

1
Psicóloga formada pela Universidade de São Paulo, Arteterapeuta, especialista em Psicoterapia Analítica e
Abordagem Corporal pelo Instituto Sedes Sapientiae e atualmente coordenadora do Programa de Estudos da
Violência do Núcleo Espiral.
Email: amanaperrucci@gmail.com

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de vestir, calçar, pentear, etc. (...) 8. Fenômeno social ou cultural, de caráter


mais ou menos coercitivo, que consiste na mudança periódica de estilo, e
cuja vitalidade provém da necessidade de conquistar ou manter uma de-
terminada posição social. (p. 1146)

Em constante mutação, a moda é capaz de captar os anseios psíquicos subterrâneos sob


a rígida construção da sociedade, deixando evidente mudanças sociais, transformações de
códigos culturais e as trocas comerciais (Souza, 1987). É apontada, assim, como um siste-
ma capaz de integrar o uso das roupas no dia-a-dia a um contexto maior, político, social e
econômico. Ao acompanhar essas transformações, torna-se possível compreender um gru-
po, um país ou uma sociedade em um determinado período.
Dentre as infinitas finalidades atribuídas às vestimentas, diferentes estudiosos concor-
dam quanto a três principais: proteção, pudor e adorno. Proteger-se das intempéries e es-
conder as partes íntimas são práticas encontradas em quase todas as sociedades, bem como
o uso de enfeites, o que foi observado desde a pré-história, quando o homem começa a
delinear a sua condição de humano. A utilização do adorno é também comentada por Cidreira
(2005): “A ornamentação, elemento de diferenciação demográfica, social e sexual das apa-
rências, atrai o olhar, fortifica o amor-próprio, em suma, distingue, mas de maneira variável,
segundo motivações e impulsões.” (p. 40).
É possível perceber ainda as modificações que o vestuário provoca no corpo em diferen-
tes sociedades, desde o início das civilizações: é como se o corpo fosse algo manipulável,
que serve como suporte para registrar informações de uma época. Conforme observa Cidreira
(2005), determinados movimentos são impostos ou propostos pelo traje vestido, ditando
alguns padrões de funcionamento e oferecendo a quem o usa uma máscara, permitindo a
incorporação de personagens.
Fronteira íntima entre o indivíduo e o mundo, a moda é vista como um escudo que
protege o indivíduo e, ao mesmo tempo, lhe permite seduzir, sonhar e “voar”, identifican-
do-o a um grupo ou favorecendo a individualização. De acordo com Souza (1987),

A moda é um todo harmonioso e mais ou menos indissolúvel. Serve à


estrutura social, acentuando a divisão em classe; reconcilia o conflito entre
o impulso individualizador de cada um de nós (necessidade de afirmação
como pessoa) e o socializador (necessidade de afirmação como membro
do grupo); exprime ideias e sentimentos, pois é uma linguagem que se
traduz em termos artísticos. (p. 29)

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Assim, satisfaz a vontade e evidencia o ato de aproximar-se ou diferenciar-se social-


mente dos demais; independente da época, o vestuário indica a forma pela qual as pesso-
as enxergam as suas posições nas estruturas sociais. Além de seu caráter estratificador, a
indumentária destaca a diferença dos gêneros como nenhuma outra instância consegue
fazê-lo. Em diferentes épocas, através da vestimenta os corpos masculinos e femininos se
fizeram notar com inúmeros adereços que os marcavam, destacando a sua função social e
servindo “como instrumento de sedução, uma maneira de agradar e de se fazer notar, e,
mais, enquanto elemento de revelação de um modo de ser e de atuar na vida coletiva.”
(Cidreira, 2005, p. 48).
Os estilos de roupa podem servir como camisas-de-força, limitando os movimentos e a
espontaneidade de quem as veste, tal como ocorreu com as mulheres na era vitoriana. Da
mesma forma, ao vestir-se com um uniforme, uma série de significados impõe-se ao com-
portamento de quem o traja. É uma fantasia que se apresenta pelo indivíduo, dizendo: “eu
sou isso”, identificando quem o estiver vestindo a um grupo. “Por outro lado, as roupas
podem ser vistas como um vasto reservatório de significados, passíveis de ser manipulados
ou reconstruídos de forma a acentuar o senso pessoal de influência.” (Crane, 2006, p. 22).
Ao mesmo tempo, a moda permite a manifestação de gostos particulares. Dessa forma, ela
une o “conformismo de conjunto (...) à liberdade nas pequenas escolhas e pequenas variantes
pessoais, o mimetismo global ao individualismo dos detalhes.” (Cidreira, 2005, p. 44).
Palomino (2002) aponta que

A moda se presta a ser seu primeiro cartão de visita: até ao acordar,


abrir o armário e vestir-se, mesmo que seja com uma camiseta e um jeans,
você está fazendo manifesto de moda. Seu look é o modo com que você
se apresenta para o mundo e diz: este sou eu; eu sou assim. (p. 17)

Muitas vezes, as roupas são utilizadas por carregarem um “poder especial” atribuídos a
elas, que as tornam mágicas. Elas servem quase como um amuleto, sem o qual um jogador
não irá fazer uma boa partida, um cantor não conseguirá se apresentar, uma bailarina não
dançará bem ou uma menina não se sentirá bem na festa. As vestimentas também podem
receber significados especiais, como as usadas em rituais: o preto do luto, o branco do
casamento, a mudança da toga curta para túnica varonil na antiga sociedade romana ou
ainda a aquisição de acessórios novos em tribos primitivas, representando a iniciação na
masculinidade ou na feminilidade.

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O feminino

Ao longo dos tempos, a mulher ocupou diferentes espaços, sendo valorizada ou massa-
crada, de acordo com os valores predominantes. Nas sociedades mais antigas, chamadas
matriarcais, a natureza era reconhecida como sagrada e recebia um significado maior. A
grande Deusa-Mãe, como Mãe-Lua, Mãe-Terra ou Mãe-Natureza era adorada, sendo vista
como mãe de tudo existente. O universo, sob essa concepção, era visto como “uma mulher
dando à luz todas as formas de vida” (Gallbach, 1995, p. 57) e a mulher, como responsável
pela gestação e nutrição de seus filhos, era muito valorizada. Consideradas sacerdotisas das
Deusas, as mulheres detinham grande poder espiritual nas sociedades orientais e desempe-
nhavam papel de adivinhas, parteiras, transmissoras da cultura e guardiãs dos mistérios, o
que lhes conferia um status social privilegiado.
Não havia, nesta cultura, submissão ao masculino. Os poderes femininos eram diferen-
tes dos masculinos e cada gênero ocupava o seu espaço. A sociedade era igualitária e uma
das hipóteses para isso é que os valores cultuados na época não incluíam força, dominação
ou guerra (Goldenberg, 2009). Contudo, os avanços demográficos da sociedade trazem a
necessidade de busca por novas terras e, a partir disso, iniciam-se os combates pelas posses
de terra, instaurando a tradição de guerra na história. A polaridade masculina passa a impe-
rar e a sociedade mostra-se cada vez mais unilateral, valorizando o campo exterior, associ-
ado à força física, em detrimento do campo mais subjetivo e obscuro; os homens passam a
deter os poderes, reinando soberanos [Perera, (1985) 2009].
De acordo com Gallbach (1995), “O feminino é impelido a um ser feminino, porém os
valores da cultura patriarcal são masculinos” (p. 34) e assim, a mulher fica limitada a um
papel desvalorizado pela sociedade. Perera [(1985) 2009] afirma que “Os valores tipica-
mente femininos, tais como a intuição, sentimento, sensibilidade, criatividade, receptividade
e esforço paciente para elaborar o mundo subjetivo” (p. 9) são rejeitados, dando espaço
para a constituição de uma sociedade em que os valores são afirmados na base da percep-
ção, pensamento, pesquisa e iniciativa para a elaboração do mundo externo.
Até o início da Idade Média, as mulheres trabalham em casa enquanto seus maridos
estão na guerra. Elas recebem melhor educação e cultura, além de desenvolverem-se nos
ofícios do lar. Havia ainda o culto de práticas pagãs, baseadas na sabedoria antiga, o que
dava às mulheres certos direitos e liberdades; entretanto, a Inquisição acabou por reprimi-
las por completo (Goldenberg, 2009). Assim, os séculos seguintes caracterizaram-se por
colocá-las cada vez mais no papel de submissa aos homens, que saía para trabalhar e ganhar
dinheiro enquanto às mulheres cabia esperá-los em casa, administrando o lar.
O século XIX, com o crescimento industrial, faz com que muitas mulheres partam para o
mercado de trabalho e, com isso, passem a ter uma dupla jornada. Porém, as condições de
trabalho às quais eram submetidas mostravam-se desumanas e o salário era muito menor do

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que o dos homens. A mulher passou a reivindicar novos direitos, mais espaço e novas possibi-
lidades, mas a sua natureza foi cada vez mais desconsiderada; o seu ritmo de trabalho não
pode acompanhar o seu ritmo interno e o aspecto sagrado do corpo perdeu seu significado.
Os aspectos físicos e psíquicos da alma feminina eram tidos como inconveniências por
elas próprias, que buscavam se assemelhar aos homens na tentativa de conquistar os seus
direitos. O lado masculino da natureza feminina permaneceu inconsciente por um longo
período e, ao retomar o contato com ele, a mulher mostra uma grande ansiedade, expressa
pela vontade de trabalhar tal qual um homem, esquecendo que ela não funciona física nem
emocionalmente igual a ele (Harding, [1971] 1985). A mesma autora complementa que
muitas mulheres têm se convencido de que não há diferença essencial entre homens e mu-
lheres, a não ser biológica, sentindo-se contentes em serem “homens de saia”. Ao mesmo
tempo em que não podem resumir os valores femininos aos padrões antigos e inconscientes,
há a necessidade de adaptarem-se à força da natureza feminina, associada ao campo das
relações e da integração.

Corpo simbólico

A partir dos estudos de Jung, Nise da Silveira (2001) afirma que o símbolo impulsiona
para um destino distante, que não pode ser captado e que não poderia ser expresso verbal-
mente de forma satisfatória. Ele não é nem consciente, nem inconsciente, mas uma aproxi-
mação dos dois polos. Assim, o símbolo mostra-se como “uma linguagem universal infinita-
mente rica, capaz de exprimir por meio de imagens muitas coisas que transcendem as pro-
blemáticas específicas dos indivíduos” (Silveira, idem, p. 72).
De acordo com Byington (1988), “O corpo participa da psique através de símbolos
estruturantes que expressam as suas particularidades” (p. 24). Seguindo essa concepção, o
corpo simbólico pode ser vivido passiva ou ativamente. Segundo Ramos (1994), na primei-
ra opção, pode ocorrer a formação de sintomas e o surgimento de fantasias; no segundo
caso, estabelece-se uma relação com o símbolo emergente, integrando-o na consciência. A
mesma autora complementa ainda que o símbolo serviria como “a expressão da percepção
do fenômeno psique-corpo, feita através da percepção das alterações fisiológicas e das ima-
gens referentes, sincronicamente” (p. 51).
Segundo Keleman (2001), o corpo apresenta-se como um processo cuja estrutura, inata,
não necessariamente é compatível às expectativas existentes, e os padrões de corporificação
podem entrar em conflito com os padrões sociais. Quando, ao invés de viver a própria
experiência corporal, se idealiza uma imagem, a relação se dá com uma imagem do corpo, e
não com ele propriamente dito. “Assim, começamos a praticar a corporificação daquela
imagem externa, negando a nossa própria imaginação somática” (p.62).

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Jung [(1935) 2004] já antevia que

(...) os processos do corpo e os processos mentais desenrolam-se simulta-


neamente e de maneira totalmente misteriosa para nós. É por causa de
nossa cabeça lamentável que não podemos conceber o corpo e psique
como sendo uma única coisa. (p.16)

A imagem corporal fica, muitas vezes, distanciada da imagem real e as modificações


estéticas feitas na aparência trazem efeitos limitados; assim, o trabalho de conscientização
corporal por meio de técnicas sutis serve como auxiliar à integração mente-corpo. Armando
e Oliveira (2002) complementam que

A visão do corpo como envoltório da alma, ou seja, essa unidade que


aqui está sendo chamada de corpo sagrado, será então revelada, trazendo,
em oposição, a consciência do quão profanado ele tem sido em virtude de
um ideal hedonista de beleza, totalmente exteriorizado e estereotipado, bus-
cado exaustivamente em academias de ginástica e em cirurgiões plásticos,
mostrando uma falta de identificação com o próprio corpo. (p. 20-21)

A ausência dos antigos ritos de iniciação nos tempos atuais tem prejudicado o caminho
natural até a maturidade feminina (Woodman, 2002). A iniciação na feminilidade se dava
com o auxílio de mulheres mais velhas, que ajudavam o processo em que a garota passava
ao reconhecer o seu corpo como “parte do cosmo feminino - um veículo para a fertilidade,
o continente que a tornava uma com a Deusa, por meio do qual a vida mantinha-se eterna-
mente em movimento” (Idem, Ib., p. 168). Ao realizar-se de acordo com o que a sociedade
exigiu e com o que anos de relação com o patriarcado fizeram-na a aceitar como correto, a
mulher desconsidera que

está, pois, misticamente solidarizada com a Terra; o dar à luz apresenta-se


como uma variante, à escala humana, da fertilidade telúrica. Todas as ex-
periências religiosas relacionadas com a fecundidade e o nascimento, têm
uma estrutura cósmica. A sacralidade da mulher depende da santidade da
Terra. A fecundidade feminina tem um modelo cósmico: o da Terra Mater,
a Mãe Universal. (Eliade, s/d, p. 153)

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A mulher e a moda: algumas relações

Os primeiros registros sobre as vestimentas datam de 3000 a.C., atendo-se prioritariamente


aos detalhes técnicos da indumentária. De um modo geral, as roupas dos povos primitivos
categorizavam cada grupo de acordo com a sua função e a mudança de status era evidencia-
da pela roupa. Em rituais sagrados, exigiam-se trajes especiais. Laver (1989) afirma que as
grandes civilizações antigas vestiam peles de animais, mesmo vivendo em regiões quentes,
evidenciando o uso da roupa como enfeite desde os primórdios. De um modo geral, os
povos da antiguidade apresentavam pouca distinção entre roupas de homens e de mulheres,
embora as vestes femininas fossem um pouco maiores, com tecidos melhores e um feitio
mais gracioso. Adoradas como deusas, as mulheres dessa época, predominantemente
matriarcal, utilizavam adornos que as enfeitavam e as valorizavam em sua feminilidade.
Um pouco adiante, entretanto, o culto às deusas foi perdendo a sua força e as mulheres,
cada vez mais passivas, passaram a se embelezar para satisfazer seus homens. Além disso,
elas, que antes usavam uma capa igual à dos homens para sair de casa, passaram a utilizar
uma mais fechada e pesada, indícios de o quanto a mulher precisou ser escondida e desva-
lorizada no início das sociedades patriarcais.
Durante a Idade Média, é possível observar que o vestuário feminino é, na maior parte
do tempo, desenhado de forma a sugerir a maternidade. “A mulher atraente e sedutora é
suspeita de exercer bruxaria e manter relações carnais com o diabo” (Seixas, 1998, p.54), e
são vistas como

fracas, frágeis, lentas de entendimento, emocionalmente instáveis, fúteis,


hipócritas e indignas de confiança no que diz respeito às questões públicas.
São Pedro diz que as mulheres devem se ornamentar com a riqueza de um
espírito sossegado e gentil, e não com roupas finas, cabelos trançados,
braceletes de ouro. (Idem, Ib.,p. 48)

A função da mulher, ao longo desse período, é basicamente a de esposa e mãe, impossi-


bilitada de desempenhar outros papéis. De um modo geral, a roupa enfatizava “os contor-
nos redondos e generosos, os materiais macios, e tendia a centrar o interesse nos seios e no
estômago” (Lurie, 1997, p. 228). O robe permanecia cobrindo o que quer que estivesse por
baixo, sustentando o pudor defendido pela Igreja Católica.

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Nos próximos séculos, a moda torna-se cada vez mais objeto de desejo, transformando
as mulheres em produtos a serem ostentados e exibidos: vistas como pertences dos homens,
elas deveriam enfeitar-se de acordo com suas vontades, fazendo uso de anquinhas, que
aumentavam o tamanho dos vestidos, e espartilhos, que enrijeciam os corpos. No começo
do século XIX, a moda exigia que as mulheres aparentassem fragilidade e "quanto mais
inútil e impotente uma mulher parecesse, mais elevado seu suposto status social, e mais
elegante e bela seria considerada." (Idem, ib., p. 229).
Freyre (2009) complementa que a mulher, passiva ante o marido ou pai, era colocada
como “uma espécie de objeto quase religiosamente ornamental dentro da cultura de que
fazia parte” (p. 69). Assim, as suas condições especificamente femininas, os seus encantos
naturais, receberiam o máximo de aperfeiçoamento por meio dos artifícios disponíveis que
os enfatizassem artisticamente, e elas, que não podiam dedicar-se aos estudos, pois era
como se “o exercício da inteligência tornasse duros os seus traços e lhe empanasse o brilho
da virtude” (Souza, 1987, p. 99), aplicavam toda a sua “curiosidade desassossegada de se
encontrar, que o ócio acentuava, no interesse pela moda” (Idem, ib., p. 99).
As mudanças no vestuário acompanham a onda de inovações no mercado de trabalho,
influenciada pela descoberta de novas formas de energia elétrica. Com o desenvolvimento
da indústria, as mulheres encontram mais oportunidades de trabalho e facilidades para a
realização dos ofícios do lar, mas são obrigadas a se desinteressar do adorno: os trajes mais
práticos tornam-se obrigatórios. A partir de então, as mudanças no vestuário surgem em
uma frequência cada vez maior, acompanhando as adaptações sociais pelas quais a mulher
passa. Nesse sentido, Freyre (2009) afirma que:

Daí saias, sapatos, adornos de mulher de hoje já não poderem ser o


que foram para sua bisavó, sua avó e mesmo sua mãe. Quem diz moda
de mulher não diz - como há quem suponha - invenções arbitrárias e até
caprichosas de novidades, por criadores absolutos de novos estilos de
vestido, de calçado, de adorno. (p. 37)

Aqui vale um adendo à figura do estilista. Como se pode observar, ele é o responsável
por materializar os anseios de uma sociedade. É como se este criador transformasse em
símbolo as imagens arquetípicas inconscientes e, por isso, a moda lançada por ele faz senti-
do para todos. “O estilista é visto e reconhecido no meio da moda como um criador (...)
que, diante de várias ideias e propostas, antevê, pressente o que poderá ir ao encontro dos
anseios e desejos do consumidor em geral.” (Cidreira, 2005, p. 136).
O século XX traz, década após década, inovações fundamentais no mundo da moda que
acompanham as transformações sociais pelas quais a mulher passa. Com mais espaço na

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sociedade e exercendo funções variadas, os trajes deveriam ser mais inovadores e, ao mes-
mo tempo, mais simples, para facilitar os movimentos. É interessante observar que, apesar
de já haver movimentos feministas, médicos e historiadores que defendessem a abolição do
espartilho, foi através da criação de roupas que atendessem ao novo estilo da mulher que ela
ganha a sua liberdade.
A praticidade na indumentária feminina é reforçada pela Primeira Guerra, que conta com
mulheres exercendo funções para as quais os trajes decorativos e complicados não se mostram
adequados. Também na Segunda Guerra há modificações, na medida em que os recursos se
tornam novamente escassos e a austeridade era exigida em todos os campos. Porém, em mea-
dos dos anos 40, a alta costura se restabelece, trazendo com ela o New Look: Christian Dior,
um dos maiores estilistas da época, diz que as mulheres estão cansadas das agruras da guerra
e querem de volta o glamour e a feminilidade de outrora, passando a criar trajes inspirados na
segunda metade do século XIX, com cintura marcada e saia volumosa (Palomino, 2002).
A partir dos anos 50, o espaço da mulher na sociedade tornou-se gradualmente maior e a
sua participação da conta de praticamente todos os setores. A moda feminina ganha bastan-
te destaque e o corpo da mulher é valorizado tanto nos quadris como nos seios. Destacam-
se, nesse período, dois movimentos: o hippie e o feminista. O primeiro marcou profunda-
mente a história da moda, na medida em que explorou novos tecidos, mais naturais, e carac-
terizou as mulheres de um modo mais delicado e menos artificial. Quanto ao feminismo,
defendendo a inserção da mulher em ambientes até então destinados unicamente aos ho-
mens, trouxe como resultados, na moda, roupas práticas e, de preferência, masculinas, con-
testando o uso de todos os instrumentos de tortura que favoreciam o estereótipo da mulher
como objeto sexual (Crane, 2006). Por outro lado, ao negarem os adornos, as curvas e
tantos outros adereços exclusivos do vestuário feminino, as feministas estavam simbolica-
mente excluindo as diferenças anatômicas e comportamentais entre os gêneros, desvalori-
zando a essência feminina ao tornarem-na equivalente ao masculino.
Por fim, os anos 2000, que inicialmente pregaram a delicadeza, os trajes leves e o corpo
saudável, assistiram a uma grande crise mundial que afetou todos os setores. As indústrias
têxteis foram abaladas e o mercado da moda sofreu com a queda do público. Contrariando
as expectativas e atendendo à real, porém inconsciente, necessidade da sociedade, as últi-
mas coleções da década trouxeram imagens de mulheres fortes, portando uma feminilidade
dramática e impositiva (Neto, 2009). Os signos de segurança, força e poder faziam apologia
às mulheres guerreiras e destemidas, que, simbolicamente, representariam a necessidade da
época de enfrentar a dura situação com a garra alcançada. Só as próximas décadas poderão
afirmar, mas é possível dizer que o espaço tão procurado pelas mulheres fica bastante evi-
dente ao serem colocadas como pilares de sustentação de uma sociedade fragilizada econo-
micamente, por conta de sua força e, ao mesmo tempo, delicadeza. É como se a essência
feminina arquetípica estivesse, finalmente, vindo de encontro ao mundo contemporâneo.

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A moda como expressão simbólica do feminino

Observando a relação estabelecida entre a moda e o feminino ao longo dos tempos, é


possível perceber que, muitas vezes, a indumentária serviu como forma de expressar sim-
bolicamente o estado de alma das mulheres, que estabeleceram por muito tempo relações
prioritariamente passivas com seu corpo simbólico. Assim, a moda se apresenta como um
símbolo, mediador entre o consciente e o inconsciente, entre o que se mostra e o que está
oculto, revelando a forma pela qual o feminino é abordado nas diferentes sociedades e
expressando como as mulheres se veem e se sentem. Crane (2006) afirma que:

As roupas, em seu papel de comunicação simbólica, tiveram funda-


mental importância no século XIX como meio de transmitir informações
tanto sobre o papel e a posição social daqueles que as vestiam quanto
sobre sua natureza pessoal. (p. 199)

Durante muito tempo, a moda serviu como único meio lícito de expressão para a mulher,
que saiu em busca de sua individualidade manipulando o próprio corpo,

aumentando exageradamente os quadris, comprimindo a cintura, violen-


tando o movimento natural dos cabelos. Procurou em si - já que não lhe
sobrava outro recurso - a busca de seu ser, a pesquisa atenta de sua alma.
(Souza, 1987, p. 100)

Cada um desses modismos, além do desconforto e mal-estar provocados pelo uso contínuo
de algumas peças, podia provocar danos graves ao corpo feminino, transformando-o e alteran-
do as suas dimensões de maneira artificial e prejudicial. Souza compara as mãos deformadas
pelas luvas extraordinariamente justas da era vitoriana com os pés comprimidos das mulheres
chinesas e os espartilhos apertados violentamente de forma a dificultar a respiração. Desem-
penhando uma função aparentemente estética, todos eles representavam verdadeiros empeci-
lhos vitais utilizados para demarcar o status social e a submissão ao homem.
Cidreira (2005) escreve que as mulheres, buscando ter um corpo que corresponda ao
modelo imposto pela moda, sofrem em um nível muito difícil de exprimir. É um sofrimento
incorporado gerações após gerações, o que torna o hábito algo quase que como natural, sem
remorsos. Sua própria saúde é colocada em risco a fim de se agradar ou seduzir o outro, e a
roupa parece, na realidade, esconder a dificuldade de entrar em contato com a própria femi-
nilidade, servindo como uma fantasia através da qual a apresentação é feita socialmente.

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É interessante observar que, muitas vezes, as mulheres procuram esconder um sofrimen-


to por meio de maquiagens, adornos e roupas mais extravagantes; dessa forma, elas apre-
sentam-se esteticamente bem e chegam a sentir-se, externamente, bonitas. No entanto, em
consultório é possível perceber que, quando chegam vestidas desse modo, as mulheres es-
tão em contato apenas com a sua persona, escondendo aspectos essenciais de sua pessoa.
Quando entram em contato com a sombra, a parte da personalidade reprimida em benefício
do ego ideal, isto é, da mulher esteticamente perfeita, as mulheres podem descobrir a sua
verdadeira feminilidade e expressá-la de acordo com as suas próprias vontades.
Freyre (2009) afirma que a moda feminina é característica por representar a feminilidade
“(...) embora, por vezes, com interpretações diferentes do que seja feminino em oposição ao
masculino” (p. 31). É muito interessante perceber o quão bela uma mulher se mostra quan-
do está em contato com ela mesma, fazendo uso, ao seu modo, dos recursos de que a moda
dispõe. Os enfeites, os tecidos, os cortes podem, e muito, valorizar a beleza que cada mu-
lher possui, em detrimento de padrões impostos. Sendo assim, é preciso saber conciliar as
exigências coletivas com as pessoais, de forma a permitir que a moda expresse simbolica-
mente não só o feminino, como a feminilidade.

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