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Rosanna Pavese1
Sempre que me sentia bloqueado, eu pintava ou esculpia uma pedra: tratava-se sempre de
um rite d´entrée que trazia pensamentos e trabalhos... (Jung, MSR, 1961, p.155)
Cada pessoa tem uma singularidade que pede para ser vivida e que já está presente antes de
poder ser vivida. (Hillman,, 1997, p.16)
1
Psicóloga Clínica, especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo
Instituto Sedes Sapientiae.
a resgatar, mas não sabem nem como nem por onde começar ou, ainda, porque nada mais faz
sentido, a vida tornou-se árida. Não sabem o que fazer; buscam uma saída e pintam...
Quando, na metanóia, a pintura entra de repente em nossa vida, só pintar não basta.
Precisamos descobrir para que a pintura veio e o que a psique quer comunicar. Levanto a
hipótese de que, talvez, a psique esteja buscando expressar-se e dar forma ao potencial ainda
inconsciente do indivíduo.
Metanóia e Vocação
Sobre a Pintura
Pintar é uma tentativa de reconciliar estes dois mundos. Temos uma tela em branco que
pede para ser preenchida e somos confrontados com o desafio de dar substância a um impulso, a
uma imagem interna, dentro dos limites de um espaço demarcado: tem que caber ali, assim como
o impulso criativo tem que caber na vida cotidiana, assumir uma forma, encontrar seu caminho,
ser colocado em prática.
Se olharmos para as imagens pintadas como uma série, assim como fazemos com os
sonhos, podemos observar que freqüentemente elas se modificam ao longo do processo, podendo
desdobrar-se em diversos quadros, cada qual enfocando um dado aspecto de um mesmo tema,
facilitando sua compreensão e o escoamento da emoção ligada à imagem. As imagens parecem
possuir sua própria intencionalidade, finalidade e um significado específico dirigido a quem as
produziu.
Isto parece confirmar o fato de que a energia sempre sabe quais os caminhos a percorrer,
qual o gradiente correto para cada momento. A imagética da alma parece possuir seus próprios
caminhos e propósitos, trazendo à tona os conteúdos da psique em seu próprio ritmo e tempo,
estruturando-os em imagens, evocando reflexões sobre o momento de vida específico de quem as
pinta e isso sempre, a nosso ver, com o intuito de esclarecer, guiar, iluminar os recantos escuros
de nossa psique, tornando-os acessíveis à nossa consciência.
Uma vez que a energia dificilmente troca de meta se não se transforma, a função das
imagens é justamente promover tais transformações. As imagens pintadas não precisam
necessariamente ser simbólicas no sentido coletivo ou universal; elas podem tornar-se símbolos
pessoais, possuindo um conteúdo simbólico para quem as pinta. Os símbolos são os dínamos que
transformam uma modalidade de energia em outra. Ao pintar, os anseios internos ganham forma,
contornos, cor, limites, expressão, eles comunicam, eles dizem, simbolizam. A qualidade da
pintura é importante mas, mais importante ainda, é o impulso transbordante de vida que está por
detrás delas.
Jung valorizou de forma especial o processo criativo como manifestação de saúde mental
e restauração do equilíbrio psíquico, tanto no indivíduo quanto na cultura. Ele considerava a
criatividade como uma função psíquica natural, que se realizaria por intermédio de símbolos,
presentes em todas as expressões artísticas, bem como nos sonhos e nas fantasias. As duas
linguagens, a expressão artística e a verbal, podem ocorrer concomitantemente, uma auxiliando,
esclarecendo e enriquecendo a outra.
Em toda a obra de Jung encontramos inúmeras leituras de imagens, seja de sonhos,
visões, desenhos, pinturas, sempre estudadas em série. Jung compreendia essas imagens como
auto-representações de transformações energéticas que obedecem a leis específicas e seguem
uma direção definida.
Resumindo, podemos dizer que, em nosso contexto, a pintura pode ser pensada
essencialmente como um espaço de proteção do novo, até que uma idéia, um projeto de vida ou
uma nova atitude ou relação com a vida alcance um certo ponto de maturidade e consiga efetivar
mudanças eficazes e integradas na dimensão existencial da vida do indivíduo. Com esta função, a
pintura apresenta algumas características especificas, a saber:
- Vem de repente (não é um dom). Como o anjo da “Anunciação”, ela traz uma mensagem
relativa ao futuro. Simplesmente chega e quer ser ouvida.
- É premente e compulsiva. Ela se impõe.
- Atua como Função Transcendente, facilitando o diálogo entre consciente e inconsciente e
reconciliando os opostos em nós.
Sobre o Processo
Tudo parece começar com um certo mal-estar, uma falta de sentido; a vida perde a graça,
há um vazio, um vazio que resiste. Talvez mais do que um vazio, seja um vácuo: uma parte de
nós mesmos está ausente, ou não nasceu ainda. Para conter este mal-estar, buscamos um canal
criativo, algo novo que nunca fizemos antes, uma atividade expressiva. No nosso caso, a pintura.
Iniciamos um grande caso de amor com a pintura: pintamos com paixão, com uma “fúria
divina”, extasiados com as possibilidades desta nova linguagem. Pintamos esquecendo-nos do
tempo, totalmente imersos no ato criativo. Lutamos para dar forma e cor a anseios invisíveis e,
no limite, indisíveis. Algo quer vir à tona; não sabemos bem o quê, mas deixamos as imagens
aflorar. Sentimo-nos preenchidos novamente, revitalizados, voltamos a ter contato com nosso
mundo interno através da pintura e isto por algum tempo nos basta.
O espaço do pintar torna-se um espaço sagrado, nosso temenos, que tanto pode servir de
refúgio, de parêntese para um cotidiano insatisfatório, como de espaço de construção e/ou
transformação, um útero psicológico onde entramos em busca de renovação, onde ousamos
penetrar no criativo e na imaginação.
Encontramos um canal onde a energia criativa, para a qual não temos ainda outro espaço
em nossa vida, pode fluir. Mas, após algum tempo, pintar também já não resolve... Não sabemos
o que fazer, “travamos”... Em geral, é neste momento que buscamos a terapia , quando só pintar
já não basta.
O que acontece? Acontece que a energia quer voltar a progredir e o impulso criativo quer
expressar-se no mundo externo. Após o mergulho no mundo interno, o impulso para a ação e a
atividade torna-se dominante novamente. Para que, então, a pintura surgiu em nossa vida? Qual
seu telos, sua intencionalidade?
Freqüentemente descobrimos que ela veio para nos sacudir, para deixar o criativo, o novo,
penetrar em nossa vida. Após pintar, após criarmos algo que não existia, torna-se intolerável não
resgatarmos a nós mesmos, ao “sonho” que deixamos para trás ou à vocação, cujo chamado é ao
mesmo tempo fascinante e assustador. Compreendemos dolorosamente que a escolha anterior já
se esgotou ou que, de alguma forma, ela não faz mais sentido para nós e não vai mais nos
preencher daqui para frente. E há muita vida ainda para ser vivida...
A pintura veio como instrumento para mergulharmos em nosso mundo interno e libertarmos
nossa criatividade encapsulada. A criatividade possui uma peculiaridade: uma vez libertada, ela
se espalha e, aos poucos, abrange as mais diversas áreas de nossa vida, em geral de forma
bastante benéfica. Tudo muda. E assim ganhamos força e coragem para mudar aquilo que deve
ser mudado, reconquistando a capacidade de avançar em curso modificado.
Compreendemos que a pintura não é a meta, mas o instrumento tão só. É o dedo que aponta
para a lua, mas não é a lua. A nossa “lua” é o chamado daquilo que deve ser acolhido em nossa
vida; no nosso caso, é o chamado da vocação. Encontramos recursos internos e força para
abrirmos mão, muitas vezes, de conforto, segurança, status social, e lançarmo-nos ao resgate de
uma parte de nós mesmos que pede para nascer psicologicamente. Nossa vocação pede para ser
vivida.
Neste momento, o que fazemos na terapia? Acolhemos as imagens pintadas. Não há
interpretações, mas sim diálogo, relação com as mesmas, amplificação da temática que elas
propõem. A terapia torna-se um lugar seguro para ensaiar, analisar, descartar, imaginar a
mudança antes de colocá-la em prática. Acreditamos, incentivamos, mas também testamos,
questionamos, contrariamos, avaliamos possibilidades, perdas e efeitos colaterais.
Isto parece mobilizar outros conteúdos internos, tanto criativos quanto curativos. Através
deste estar frente a frente com o material produzido e consigo mesmo, tendo o terapeuta como
companheiro de viagem, o indivíduo pode ir se apossando de seus conteúdos mais profundos.
Sonhos começam a surgir, oportunidades nunca percebidas antes passam a se apresentar,
buscam-se dados e informações concretas lá fora. Pintamos menos, ou não só...
Assim como um dia tivemos a ousadia de pegar um pincel e começar a pintar, agora ousamos
pensar como possível o que era tido como impossível. Na terapia, tenta-se “enraizar”, passar da
intenção para a ação planejada, transformar um “sonho” prenhe de significado em projeto de
vida, percorrendo os caminhos do excesso de entusiasmo, do desânimo, dos medos e das
dúvidas. Nunca é fácil, mas descobrimos que não há outra saída a não ser tentar.
Sobre os Casos
R., 34 anos, sexo masculino, casado; trabalha como gerente financeiro numa grande empresa.
Acha seu trabalho árido e pouco estimulante, mas ganha bem. Busca terapia porque gostaria de
ser mais arrojado. Há mais ou menos um ano começou a pintar aos fins de semana, o que “me
gratifica e alivia a tensão” (sic). Faz terapia durante dois anos, sempre pintando paralelamente e
trazendo fotos dos trabalhos para o consultório. São estruturas articuladas de madeira, serradas e
parafusadas como que “juntando os pedaços”. Começa a trabalhar também com luminárias,
inscreve-se em concursos, ganha prêmios e ânimo também. Começa a acreditar em si. Também
vende alguns de seus quadros e começa a desenhar e executar biombos, estantes, divisórias,
pequenos móveis para o interior. Após dois anos, faz um acordo com a empresa onde está, passa
a trabalhar só no período da manhã pela metade de seu salário para ter um ganho fixo, matricula-
se em um curso de pós-graduação em design, monta seu atelier/showroom e decide tornar-se
designer. Comenta: “antes, eu não acreditava que eu pudesse ser criativo; agora eu sei que posso
e, com certeza, a pintura e a terapia foram decisivas nisto”. Como ele diz: “ainda não ganho o
suficiente, mas sou feliz fazendo aquilo que eu gosto”.
R., 42 anos, sexo feminino, divorciada; trabalha como secretária executiva numa
multinacional. Não gosta de seu trabalho, mas precisa do salário. Já pinta há vários anos, aos fins
de semana, porque “me faz bem...” (sic). Busca terapia porque não está satisfeita com sua vida,
mas não sabe muito bem o que fazer. Sente que falta algo. Sua pintura é intimista, poética, indo
desde reminiscências do passado até uma busca espiritual, refletida na temática, formas e cores
de sua pintura. Faz terapia durante dois anos e meio e decide então prestar vestibular de
Psicologia e é aprovada. Durante os primeiros dois anos de faculdade trabalha de dia e estuda à
noite. No terceiro ano, perde seu emprego e passa a estudar de manhã e a dar aulas de idiomas
para se sustentar. Termina a faculdade. Hoje exerce a profissão.
Comenta que o que lhe deu coragem foram a pintura e a terapia. Tinha medo, achava-se
velha para recomeçar.
O que estes dois casos têm em comum quanto à relação entre pintura e vocação?
Conclusões
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Apresentação
O interesse pela experiência de doença e hospitalização infantil através da
observação diária da rotina de uma enfermaria pediátrica resultou na elaboração de minha
dissertação de mestrado intitulada “Saúde e doença: o que pensam e sentem as crianças
hospitalizadas e suas mães acompanhantes. Uma investigação dos conceitos de saúde e
doença a da experiência de hospitalização em uma enfermaria pediátrica” concluída em
2001.
No presente artigo, os resultados desta pesquisa foram relacionados com os
diferentes modelos explicativos da saúde, da doença e com as formas de lidar com elas
presentes em cada momento histórico. Assim, pretendi associar os conceitos de saúde,
doença e enfrentamento da doença de crianças hospitalizadas e suas mães acompanhantes
com aquelas concepções, que na história do homem nortearam as visões e as ações no
campo da saúde.
Introdução
Resultados da pesquisa
Participaram da pesquisa 66 sujeitos, 33 crianças e 33 mães. Foram realizados 425
do total de 448 desenhos previstos. A análise dos desenhos e das verbalizações das crianças
e das mães foi organizada segundo os temas saúde e doença. Os desenhos foram analisados
segundo os critérios mais significativos e comparou-se os dois grupos – crianças e mães.
Esta análise baseou-se nos critérios do estudo de Fávero e Salim (1995) – cor, tamanho
relativo dos desenhos, traçado, expressão facial, presença ou ausência dos elementos
constitutivos, forma; e de Kolch (1984) – tamanho em relação à folha, tipo de linha e
correções e retoques. Para o desenho que trata do que a pessoa faz quando está doente, os
critérios escolhidos foram cor, tamanho em relação à folha, tipo de linha e traçado,
expressão facial, presença de elementos constitutivos. Foi acrescentado o registro de
elementos indicativos nos desenhos de atividade física e/ou de restrição de atividade.
O quadro a seguir sintetiza os dados para análise dos desenhos das crianças e mães.
Os critérios de análise (forma, cor, expressão facial, tamanho e elementos indicativo de
presença/restrição de atividade física) foram ordenados do mais ao menos freqüente para os
dois grupos estudados. Eles apareceram com frequência diferente nas três espécies vivas e
assim foram ordenadas.
Crianças Mães
Forma (pessoa, flor, animal) Forma (flor, pessoa, animal)
Cor (pessoa, animal) Tamanho (flor, animal)
Expressão facial (pessoa, animal) Expressão facial (pessoa, animal)
Tamanho (flor, pessoa) Cor (animal)
Elementos: presença/restrição de atividade Elementos: presença/restrição de atividade
física física
Como pudemos observar, o critério forma diferenciou saúde e doença nos desenhos
de crianças e mães. Ele foi o único que permitiu discriminar saúde e doença nas três
espécies vivas (flor, animal, pessoa). Os critérios cor, expressão facial, tamanho, e
elementos indicativos de presença/restrição de atividade física possibilitaram estabelecer
diferenças entre saúde e doença em uma ou duas espécies vivas. Os outros critérios não
apresentaram indicações significativas.
O critério forma, como já foi dito, diferenciou saúde e doença para os dois grupos
estudados. Observe na Figura 1 a mudança na postura e na Figura 2, o corpo mais magro.
Figura 1 – Desenho de uma criança de 6 anos do animal com saúde e do animal doente.
Figura 2 – Desenho de uma mãe de 31 anos da pessoa com saúde e da pessoa doente.
Figura 3 – Desenho de uma mãe de 31 anos do animal com saúde e do animal doente.
Figura 4 – Desenho de uma criança de 9 anos da pessoa com saúde e da pessoa doente.
Figura 5 – Desenho de uma criança de 12 anos da flor com saúde e da flor doente.
Figura 6 – Desenho de uma mãe de 30 anos da flor com saúde e da flor doente.
Figura 7 – desenho de uma criança de 9 anos da pessoa doente e da pessoa com saúde.
Figura 8 – Desenho de uma mãe de 37 anos do animal com saúde e do animal doente.
Figura 10 – Desenho de uma mãe de 31 anos da pessoa com saúde e da pessoa doente.
A análise das expressões verbais de crianças e mães no que diz respeito ao tema
saúde demonstrou que ela esteve associada aos cuidados, às sensações agradáveis, às boas
condições físicas, à realização de atividades aos comportamentos que visam a saúde.
“Ela tá bem tratada”; “Fica bem quentinho”; “Ela é saudável e gosta de brincar muito”;
“Por causa que ele não ficou na friagem”.
“Porque não regaram ela, e ela ficou doente”; “Aí estourou a catapora. Aí começou a
sangrar...”; “Ele está com o braço quebrado, chorando, triste”; “Tomando banho de chuva e
não se alimentava”.
A análise do desenho e expressões verbais sobre o que se faz quando se está doente
mostrou que as crianças e mães representaram a prática dos cuidados médicos –
consultórios, hospitais, médicos, remédios e casa. As crianças utilizaram cores vivas,
expressão facial indicativa de sentimento de felicidade e elementos indicativos de restrição
de atividade. Já a análise dos desenhos das mães apontou para a presença de cores
empalidecidas ou ausência de cor, expressões faciais indicando sentimentos de felicidade e
de tristeza e elementos associados à restrição de atividade física.
Figura 11 – Desenho de uma criança de 10 anos sobre o que se faz quando se está doente.
Figura 12 – Desenho de uma criança de 11 anos sobre o que se faz quando se está doente.
Figura 13 - Desenho de uma mãe de 32 anos sobre o que se faz quando se está doente.
“A mãe dela foi levar ela no hospital e ele disse que podia causar pneumonia. E passou um
remédio para ela. Ela foi embora e disse se ele piorar, levar ela lá” (criança de 9 anos).
“Não adianta você passar no médico se você não pede a Deus” (mãe)
“A gente procura um médico para falar o que a gente está sentindo. Aí ele vai e fala o que
a gente tem que fazer...aí fica com saúde. A gente passa a ter paz, harmonia. É o que a
gente quer” (mãe)
Discussão
Pudemos observar uma visão diferente da relação entre o corpo e a mente, a qual se
faz através de uma interdependência, revelando uma nova maneira de abordar a saúde e a
doença. Este modelo explicativo de doença e cura é chamado de holístico e, como foi
apontado naquela citação, não seria possível separar as causas em exclusivamente
fisiológicas ou exclusivamente psicológicas.
Conclusão
Neste estudo desenhos e verbalizações foram os instrumentos que permitiram o
acesso a sentimentos e idéias de crianças hospitalizadas e suas mães a respeito de saúde e
doença. As condições físicas relativas especialmente à forma foram as principais
referências observadas nas concepções de saúde e doença. Verificou-se que foram
expressos sentimentos opostos como alegria e tristeza associados às idéias de saúde e
doença. A situação de doença foi enfrentada com a ajuda profissional do médico, que
fornece as informações necessárias. No entanto, as crianças e as mães encontraram outras
formas de realizar os cuidados quando estão doentes. O médico e o hospital não
representaram, para alguns, o único recurso de cuidado na doença.
O modelo biomédico é o modelo preponderante nas concepções de saúde e doença
do grupo estudado. Foram apontadas nos desenhos e nas falas as indicações de
anormalidades biológicas, indicadas, por sua vez, pela alteração na forma e no tamanho do
elemento doente. O estabelecimento de normas fisiológicas resultou na desconsideração das
características psicológicas e sociais. Pudemos perceber isto quando o grupo estudado
estabelece uma causa única para a doença – “não se tratou”, “não se alimentou”, sem levar
em conta, por exemplo, as condições ambientais.
No entanto, estas concepções de saúde e doença ligadas ao modelo biomédico
combinam características do modelo romântico de explicação da doença. Além dos fatores
biológicos evidenciados nos desenhos e expressões verbais, o grupo estudado acrescenta
aspectos psicológicos e espirituais nos seus conceitos de saúde e doença. Isto pode ser
observado no uso de critérios de expressão facial indicando aspectos psicológicos como os
sentimentos de alegria e tristeza, e de cor oferecendo uma “tonalidade” viva ou
empalidecida para a saúde e a doença. Devemos considerar que esta pesquisa envolve os
sentimentos da criança doente. Ou seja, mesmo que as informações sejam adequadas para o
atendimento infantil sobre as questões relativas à saúde física, ela só serão integradas se
levarmos em conta os sentimentos da criança.
Assim o modelo biomédico, preponderante nas concepções sobre saúde e doença de
crianças e mães revela o nível psicológico da cultura na qual se insere. Aspectos do modelo
anterior estão presentes; ao mesmo tempo há indicações, mesmo que raras, de um outro
modelo – o holístico - que procura superar a visão unilateral do atual e que colabora para
uma compreensão mais completa do ser humano.
Referências Bibliográficas
BOWLBY, J. (1969) Apego. Vol 1. Trilogia Apego e perda. São Paulo: Martins Fontes,
1984.
FÁVERO, M. H. e SALIM, C. M. (1995). Relação entre conceitos de saúde, doença e
morte: utilização do desenho na coleta de dados. Psicologia: Teoria e Prática, 1995, 11 (3):
181-191.
KOLCK, O. L. (1968). Testes Projetivos Gráficos no Diagnóstico Psicológico. São Paulo:
EPU, 1984.
RAMOS, D. (1994) A Psique do Corpo: uma compreensão simbólica da doença. São
Paulo: Summus Editorial, 1994.
RAÑNA, W. (1987). Aspectos Psicossociais da assistência à criança hospitalizada:
vivência com grupo de crianças e pais. Dissertação de Mestrado. FMUSP, 1987.
SPITZ, R. (1965). O primeiro ano de vida: um estudo psicanalítico do desenvolvimento
normal e anômalo das relações objetais. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
ZANNON, C. M. (1981). O comportamento de crianças hospitalizadas e a rotina
hospitalar: subsídios para atuação do psicólogo junto à equipe de Pediatria. Tese de
Doutorado. IPUSP, 1981.
FERIDAS INVISÍVEIS
O papel do câncer ginecológico na individuação feminina
Regina Liberato
Ao refletir sobre a minha prática clínica, percebo com muito carinho que durante
todos esses anos tenho acompanhado muitas mulheres em seus processos de
desenvolvimento global. Talvez por conta disto, tenho me interessado, e também
observado atentamente, demandas que são próprias deste nosso estágio de evolução
social.
Pensando na bipolaridade do mundo das coisas, das pessoas e das relações,
percebo que temos gratificações que emergem do nosso crescimento, mas encontramos
muitos percalços em nosso caminho. Percebo que a violência psicológica que restringe a
experiência de vida, infiltrando e contaminando nosso cotidiano, incutindo a imagem da
incapacidade e da nulidade, gera laços de apego e dependência e caracteriza-se como
fruto de uma forma de relacionamento específico de uma sociedade que não se preocupa
com o processo qualitativo da vida; transbordante de princípios predominantemente
masculinos, é uma ocorrência muito comum na vida de mulheres impedidas de viverem
livremente sua condição genuína de existência. Acontecimentos do interior dos lares,
mas que também aparecem nos bastidores do palco da vida.
Com mulheres portadoras de câncer, uma doença multifatorial que compromete
significativamente a vida de pessoas que se relacionam direta ou indiretamente com ela
– o paciente oncológico, sua família, seus amigos e profissionais de saúde envolvidos
no tratamento – essa combinação adquire um contorno dramático.
Refletindo a respeito de um trabalho a ser apresentado no II Congresso Paulista
de Psicossomática, sobre a importância dos aspectos psicológicos envolvidos no
processo de individuação de mulheres que enfrentam suas jornadas mobilizadas pela
presença do câncer ginecológico em suas vidas, e percebendo os preconceitos
relacionados à mulher e ao câncer, resolvi pesquisar sobre a evolução histórica dessa
combinação câncer e feminino numa sociedade organizada dominantemente sob os
preceitos do patriarcado.
Comecei a me preocupar com o espaço de intersecção existente nesse
levantamento, e elegi algumas premissas que me pareciam importantes, e que brotaram
desse estudo de uma maneira intensa e muito clara para mim: era mais do que
necessário e urgente considerar os recursos internos (os desejos, a intuição, os
interesses, as escolhas) como componentes ativos do tratamento integral de quem sofre
a problemática do câncer; assim como a retomada da responsabilidade da condição de
cuidado para a paciente, que pode então participar ativamente da equipe de decisões
como integrante central, coordenadora do seu processo de saúde.
Acompanhando o sofrimento de mulheres com câncer, participantes de um
Grupo de Ajuda Mútua, dispositivo dos Serviços de Psicologia do I.B.C.C., Instituto
Brasileiro de Controle do Câncer, um hospital especializado em Oncologia com ênfase
no cuidado compartilhado da equipe de Saúde, assim como no processo de
Humanização, fiquei atenta às questões específicas que foram levantadas nas várias
sessões que o grupo viveu ao longo de um ano e seis meses.
Os temas mais presentes tocam em áreas de suma importância, como imagem
corporal, sensualidade e sexualidade, relacionamentos interpessoais, relações de amor,
reinserção social etc... Muitos desses temas têm raízes profundas nos lugares pequenos
que foram reservados às mulheres durante esses muitos anos e que, de alguma maneira,
aceitamos.
Reconheço que, atualmente, mulheres afirmam cada vez mais sua existência na
independência, na autonomia e na participação ativa do desempenho produtivo,
econômico e financeiro de grupos sociais, tais como a família, o que altera
significativamente mitos relacionados à condição feminina. Porém, são diversas as
dificuldades que encontramos para viver nossa condição humana em plenitude.
Sob a égide da institucionalização e patriarcalização do cristianismo, e
sustentado pelo mito de criação do Mundo, na Gênesis, denunciado pela figura de Eva,
uma mulher criada a partir da costela de Adão, a Humanidade é entendida como
masculina e a mulher é definida não em si, mas em relação ao homem. Esta ainda é a
concepção que fundamenta as práticas sociais entre os gêneros.
No Brasil, a dominância patriarcal foi assegurada por meio da igreja e do estado,
confinando a mulher dentro das paredes de sua casa, onde se cria a expectativa que ela
desempenhe principalmente o papel do materno, com a tarefa quase que exclusiva de
gerar filhos e criá-los. A prevalência do dinamismo patriarcal, que se efetiva através da
prática da interação dos gêneros, mantém o predomínio masculino.
A questão de identidade dos gêneros masculino e feminino, tratada durante
muito tempo sob os mesmos preconceitos discriminatórios contra a mulher, influi
diretamente nas descrições das atividades e dos interesses do homem e da mulher.
A influência da teoria evolucionista, insistindo no conceito de evolução e do
determinismo biológico, não só apontou para características “inatas” na natureza
feminina, como por exemplo, o conceito de “instinto maternal” e justificou o estudo das
diferenças sexuais em termos de habilidades sensório-motoras e intelectuais, como
equiparou o feminino à mulher. O conceito de instinto maternal foi reduzido ao destino
biológico e considerado próprio da mulher. Ou seja, a “natureza da mulher” era (e é)
vista como conseqüência direta de sua fisiologia reprodutiva, que canaliza suas energias
para a preparação da gravidez e amamentação, e reduz, assim, sua energia para o
desenvolvimento de outras qualidades.
Muito próximo de nós, em 1824, Voltaire apregoava a natureza frágil e delicada
da mulher, justificando, na proposta da divisão de tarefas, que as mulheres ficassem
responsáveis pelos trabalhos mais “leves” no interior do lar, em especial, o cuidado das
crianças. Cuidar de crianças, educar, acompanhar, participar, envolver-se com o
crescimento e ser responsável por ele. Tarefa fácil? Vejam, que ironia!!
No final do século XVIII, a mulher ainda era considerada inferior
intelectualmente por determinação biológica, mas possuía em compensação um leve
tom acentuado em suas habilidades instintivas e perceptuais, o que parecia estabelecer
uma certa superioridade em alguma área, porém ao mesmo tempo colocava-a vulnerável
em relação a sua emotividade, sempre necessitando de um condutor, acompanhante,
guia e protetor masculino. Este estereótipo da emocionalidade é bastante presente e
determinante em na nossa cultura até hoje, sendo utilizado muitas vezes de forma
pejorativa.
Na Psicologia, na primeira metade do século XX e nos últimos 20 anos, a
condição feminina passou a ser questionada, sobretudo por influência do movimento
que defende igualdade de direitos entre os seres humanos.
Em decorrência dos movimentos culturais dos anos 60, os estudos dos anos 70
caracterizaram-se por uma certa ousadia sob vários aspectos. De um lado, a rejeição da
dimensão bipolar masculinidade/feminilidade e o interesse no desenvolvimento das
igualdades; do outro lado, a preocupação com a compreensão das diferenças atreladas às
interações situacionais, quando a natureza da tarefa desempenhava um papel
fundamental.
Os anos 70 sinalizaram para a negação de que as diferenças entre homens e
mulheres tivessem um significado único e fixo, seja nas diferentes culturas, ou nos
diferentes períodos históricos, ou mesmo nos diferentes grupos sociais e diferentes
períodos na vida dos indivíduos, e para a defesa de que o gênero não podia ser estudado
independentemente de outras variáveis sociais.
Com relação ao enfrentamento da doença física, isto varia não apenas entre os
grupos de pessoas segundo classe social, gênero, raça, mas também segundo o tipo de
situação a ser enfrentada. Ao longo dos séculos, o enfrentamento do câncer tendeu a
exigir que, aquele que adoecesse, deveria lutar contra uma série de constrangimentos. O
significado particular para as mulheres, no que diz respeito ao câncer, está relacionado
tanto com a iminência da morte dolorosa e implacável, como ao risco da mutilação de
um símbolo da feminilidade.
Visto como um dos maiores flagelos do mundo contemporâneo, o câncer possui
uma história repleta de imagens de vergonha. Para mulheres, confinadas num pequeno
lugar no mundo, com desvantagens evidentes frente aos homens, estar em uma condição
associada a esta vergonha dissimulada, repercute num efeito bombástico na existência.
Vergonha por ter sido atingida por uma doença complexa, por abrigar um mal marcado
pela imagem de corrosão, do descontrole orgânico por ser a única responsável por seu
sofrimento, merecedora de um castigo divino. A vergonha era agravada pela ameaça da
mutilação de uma parte do corpo considerada um dos principais símbolos da identidade
feminina.
A eficácia do processo de enfrentamento desenvolvido pela mulher diante do
câncer dependerá dos recursos psicológicos que ela tem à sua disposição.
Sua condição de inferioridade, agravada pela ameaça da perda da identidade
feminina, faz com que os estereótipos apareçam com nitidez. A compreensão a respeito
dos estereótipos que permeiam as interações interpessoais, o funcionamento destas
interações, assim como os significados relacionados aos papéis sociais de homens e
mulheres na nossa sociedade são imprescindíveis para que possamos proceder à
avaliação diagnóstica mais precisa e também escolher a intervenção psicológica mais
apropriada.
Durante as três primeiras décadas do século XX, um dos constrangimentos se
devia à associação entre câncer e falta de limpeza, do corpo e da alma. A imagem do
câncer, nesse contexto, não se distinguia muito daquela ligada a outros terrores da
época, tais como sífilis, associada a atitudes viciosas e de sujeira, tanto física quanto
moral. Enfrentá-las significava, sobretudo no caso da mulher, deparar-se com o peso
dos supostos pecados cometidos e poder, por meio da resignação perante a dor e o
sofrimento, redimir-se de atitudes consideradas anti-higiênicas e viciosas.
O câncer parecia um castigo; mas, ao mesmo tempo, ele foi considerado, um mal
redentor. Proibida de falar do próprio corpo, o seu silêncio era a condição de sua
purificação, a única alternativa admissível socialmente.
À medida que os exames preventivos começaram a contribuir para evitar os
procedimentos mais radicais, o câncer deixou de ser considerado algo que devia ser
escondido. O lugar de vítima, purificada e resignada, quase que santificada, começou a
ser perigoso. Falar da própria experiência antes que fosse tarde demais, passou a ser o
lema. A vergonha foi dissipada, os preconceitos foram reavaliados e as pessoas
começaram a sobreviver ao câncer. O foco da preocupação não é colocado mais no
tempo da sobrevivência depois do diagnóstico de câncer, e sim em como se vive o
tempo de vida que se tem. A ênfase não é mais no resultado da tarefa, e sim no
desenvolvimento da tarefa, no processo do viver. A doença ganha uma certa
complexidade; a Medicina passa a admitir a existência de causas externas e internas, de
natureza fisiológica e psíquica, que influenciam no processo de adoecimento.
Durante a década de 30, ponderou-se que a vida moderna nas grandes cidades
brasileiras parecia perigosa devido a inúmeros fatores que podiam favorecer o
aparecimento do câncer. Deu-se menor atenção à ociosidade, às práticas viciosas e à
falta de higiene, e valorizou-se alguns fatores que participam de um mundo social novo:
produtos químicos presentes nos alimentos, o hábito de fumar , os desdobramentos do
estresse etc, considerados agentes importantes no aparecimento do câncer.
Enfrentar o câncer implica na necessidade de refletir sobre a qualidade da vida
urbana e, em particular, sobre as condições de trabalho, de moradia e de alimentação.
Porém, os aspectos morais não desapareceram por completo, eles se atualizaram através
de uma nova sexualidade e a sua implicação na vida psíquica. Agora, se o indivíduo tem
uma interferência na eclosão da doença , não se limitando a uma questão de higiene e se
desvencilhando de qualquer relação com o mundo divino, é este indivíduo que será
compelido a ser o grande responsável pelo próprio processo de cura, o que lhe incita a
ocupar o lugar de agente promotor de sua reabilitação.
O espírito da época em relação às práticas médicas e às concepções de saúde
resulta da necessidade de centralização das informações sobre aqueles que sofrem a
doença e seus tratamentos , da constituição de um saber específico sobre o câncer,
possibilitando, assim, acelerar a troca de experiências e o enriquecimento do
conhecimento sobre o assunto, entre as diversas áreas envolvidas na equipe de cuidados.
A partir da década de 40, o câncer começou a ganhar espaço público e a ser
considerado uma doença que, se tratada a tempo, poderia ser curada. Vencer a vergonha
e falar sobre o câncer tornaram-se experiências imprescindíveis.
Inicialmente, apenas os homens expunham sua condição de doente; somente em
1946 com a criação da Rede Feminina de Combate ao Câncer é que o câncer feminino
começa a ganhar espaço público e a ser desbravado com critérios.
A solidão da doente isolada em seu quarto sombrio, calada e distante do exame
médico, hoje existe de uma maneira especial; uma forma singular de solidão, preenchida
pelo vínculo ininterrupto e eterno com a doença através dos estigmas relacionados ao
câncer, pelo suceder desgastante dos exames clínicos, pelas recomendações prolixas
sobre os medicamentos etc ...
A história do câncer implica em segredos, aponta para a dificuldade do
compartilhamento, compelindo à detecção tardia, às dolorosas falas e escutas sobre a
doença.
Nessa pesquisa sobre o câncer ginecológico, que tinha como objetivo refletir a
respeito da implicação da intersecção das histórias da mulher e do câncer dentro de uma
sociedade organizada no sistema de dominância patriarcal, por uma vertente de
compreensão simbólica do câncer, ainda hoje uma importante causa de morte entre
mulheres, alguns tópicos são passíveis de atenção:
Bibliografia
Boff, L. Saber cuidar - Ética do Humano - Compaixão pela Terra. Rio de Janeiro,
Editora Vozes, 1999.
Estés, C.P. Mulheres correm com os lobos – Mitos e histórias do arquétipo da mulher
selvagem. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1992.
Le Shan, L. O câncer como ponto de mutação. São Paulo, Summus Editorial, 1989.
Remen, R.N. O paciente como ser humano. São Paulo, Summus Editorial, 1992.
Introdução
O trabalho de Orientação Sexual veio ao encontro de uma inquietação vivida por mim há
algum tempo. Não parecia justo que todo o conhecimento que eu havia acumulado em cursos de
especialização, grupos de estudos, palestras, análise e em anos a fio atendendo em consultório
estivesse a serviço apenas de uma parcela da população - justamente aquela que tem acesso aos
consultórios de psicologia e que consegue perceber sozinha a necessidade de um trabalho analítico
quando enfrenta momentos críticos na vida. Eu sentia que minha experiência podia ser utilizada
fora da clínica e até mesmo como uma forma de prevenção, em um trabalho psicoprofilático.
A discussão a respeito da sexualidade, no entanto, deveria ter um caráter mais amplo. Não
bastaria falar sobre a importância do uso da camisinha para evitar DST, AIDS e gravidez
inoportuna. Mesmo porque eles já sabem disso. A mídia e a própria escola, durante as aulas de
ciências, oferecem uma quantidade imensa de informações sobre o assunto. Entretanto, apesar de
serem bem informados e saberem se cuidar, as taxas de contaminação, gravidez inoportuna e
comportamento delinqüente não diminuem. Muito pelo contrário. Então passei a me perguntar o
1
Psicoterapeuta Junguiana, com especialização em Terapia Psicomotora e Cinesiologia no Instituto Sedes Sapientiae.
Trainee do curso de Formação de Analistas Junguianos da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. (SBPA)
que faltava. Essa busca se tornou o foco do meu trabalho. Cheguei à conclusão que meus objetivos
seriam:
Tudo isso, visando bem-estar físico, psíquico e social. A Orientação Sexual é um processo
educativo ético. Não busca induzir comportamentos, mas ampliar a capacidade de reflexão,
avaliação e compreensão, possibilitando um posicionamento próprio em relação ao exercício da
sexualidade e da vida. Bem informado e sujeito de sua própria vida, o adolescente aprende a se
posicionar considerando seus direitos e deveres de cidadão. Usando como base, portanto, um
compromisso ético.
Metodologia
Tópicos abordados:
1. Contrato de trabalho
Estabelecimento de regras para o bom desenvolvimento dos encontros.
2. Túnel do Tempo
Situar o jovem no desenvolvimento
Para que mãe e pai? A importância das figuras parentais. O que se apreende no relacionamento com
cada figura específica.
A função do brincar
Serve como o exercício do “vir a ser”. Aprender a vida de modo lúdico, estruturando a
personalidade.
Para que servem as histórias?
Para mostrar que a vida tem motivos comuns a todos nós. Trabalhar as emoções e os
afetos estruturando a consciência.
Mitos e ritos de passagem
Os ritos foram desenvolvidos nas sociedades primitivas para ajudar o indivíduo a atravessar
momentos importantes. Eles marcam a transição de uma fase do desenvolvimento para outra. Da
infância para a vida adulta, por exemplo. Têm como objetivo o engajamento na coletividade,
trazendo para o grupo novas aquisições, inclusive espirituais, a serem compartilhadas. Em algumas
tribos, a iniciação das mulheres é marcada pela chegada da menstruação – a marca corporal da
passagem. Já os homens têm que enfrentar algum tipo de ritual que configure sua saída do domínio
matriarcal Em geral, deve empreender uma “batalha” solitária, em que pode correr risco de vida,
enfrentando não só medos e perigos reais na noite da floresta, por exemplo, como também seus
próprios medos, que habitam seu imaginário. Volta à tribo como homem, adulto, e traz as marcas
corporais dessa passagem.
Discussão sobre a falta de rituais pré-estabelecidos em nossa cultura e a busca de rituais próprios
(pichações, risco de destruição). Vivência de onipotência e inflação.
3. Puberdade e Adolescência
5. Violência
• Aquela que aparece de forma sutil e incorporada ao dia-a-dia (como desrespeito, pobreza,
fome) até as que mais nos assustam (como assaltos, seqüestros, violências sexuais) e
decorrem das primeiras.
• Legitimar o lugar do desejo, de se verem como seres que desejam, num sentido mais amplo,
acompanhado de fantasias e, nesse momento específico, poder validar a libido, que está
voltada para a sexualidade, para as fantasias sexuais e o desejo pelo outro.
• Esse desejo busca vivências de prazer e num primeiro momento encontra seu lugar na
masturbação como forma de atividade exploratória.
• Discussão sobre tabus e crenças em relação à masturbação.
Ficar: a possibilidade de experimentar, de ensaiar um relacionamento. Por que eles ficam? Com
quem ficam? A pressão do grupo. Ficar sem a responsabilidade de compromisso.
Namorar: a forma de relacionamento com maior maturidade afetivo-emocional. Exige
compromisso e fidelidade. Pode ocorrer um pouco mais tarde.
Virgindade: o que significa? É física? É uma atitude comportamental? Por que mantê-la? Para que
perdê-la?
8. Primeira vez
11. Aborto
14. Drogas
• Informações básicas sobre drogas lícitas e ilícitas. Seu efeito no sistema nervoso central e os
comportamentos advindos de seu uso.
• O que leva uma pessoa a experimentar e fazer uso de drogas?
• Questões fisiológicas e psicológicas que podem levar à dependência.
• O uso de drogas como amálgama na tentativa de “juntar pedaços” e criar vislumbres de
identidade pessoal. Essa tentativa é infrutífera, uma vez que não cria possibilidade de
reflexão e o uso da droga se mantém.
Essas citações foram retiradas não de suas fontes originais, mas do livro de Richard Frankel
(1998), no qual pude encontrar semelhanças e mesmo explicações para o entendimento da
individuação na adolescência e o trabalho de orientação sexual. O pensamento de Frankel
assemelha-se ao pensamento da Escola Arquetípica:
Nos primeiros meses de vida, o arquétipo que se configura é o da Grande Mãe, marcado
pelos cuidados com o bebê, sua alimentação, a higiene, o toque, o colo e o amparo. O que é de
muita importância nessa fase é a “atitude” de quem exerce os cuidados maternos na relação com a
criança:
Enquanto a mãe dá forma à individualidade do filho por meio de seus cuidados e tem uma
qualidade mais pessoal e relacional, o pai traz com suas leis e ordem a possibilidade de o filho
inserir-se na sociedade, com seus códigos de direito e deveres. Esses dois arquétipos vão exercendo
sua função estruturante da consciência até a adolescência, quando um novo arquétipo surge
trazendo “desacomodação e desarrumação na ordem anterior das coisas, para que uma nova ordem
seja buscada” (Galiás, 1988, p. 158).
Segundo alguns autores, ritos de passagem e iniciação são demandas arquetípicas. O que
vemos hoje em nossa cultura é a falta de rituais que assegurem essa passagem. Como esses
impulsos iniciatórios são arquetípicos e ativados na adolescência, o que ocorre quando eles não são
propiciados, validados e freqüentemente nem considerados pela cultura? Os adolescentes criam,
eles mesmos, esses rituais.
A Orientação Sexual ocorrendo nesses poucos encontros semanais não tem a pretensão de
ser o vaso que contenha essa iniciação, mas é encarada aqui como o espaço possível para a reflexão
dessa passagem que, bem ou mal, os adolescentes estão vivendo. O objetivo é situá-los em seu
processo de crescimento, fazendo com que revisem suas ações com o outro e o mundo externo e
relacionando-as com seu mundo interno. É uma oportunidade para refletir sobre o senso de
finalidade de seus comportamentos e emoções.
Esses períodos de regressão da libido são vividos como falta de energia. O adolescente pode
manifestar essa vivência dormindo muito, ficando muito tempo trancado no quarto e assistindo TV
horas a fio. Esses momentos podem ser interpretados pelos pais como preguiça ou alheamento. Puro
engano. Na maioria das vezes, são momentos de recuo durante o qual o adolescente adquire forças
para um novo e grande salto.
A libido, que era endogâmica, isto é, voltada para a família, para os modelos parentais,
estabelecendo assim relações assimétricas, sofre um impulso para mudar de direção e se tornar
exogâmica, que é a grande marca dessa fase de desenvolvimento. É esse impulso que “tira o
adolescente do quarto”. Ele vai para fora buscar seu novo grupo (tribos, piercings, tatuagens etc.),
experimentar-se no mundo, procurar parceiros sexuais (ficar, namorar, transar). Para desespero de
alguns pais, que se esqueceram da importância desse movimento... Expressões do tipo “Você só
quer ficar na rua com seus amigos”, “se você quer ficar com a gente é porque nenhum amigo seu
quer sair hoje” são bem comuns nessa fase. Trata-se, na verdade, da libido ora exogâmica ora
endogâmica em ação, causando certa confusão para pais e filhos.
Cria-se, então, um conflito. Se eles ficarem só em casa não vão desenvolver as habilidades
necessárias para aprender a cuidar de si próprios e se confrontarem com os novos valores que foram
buscados e encontrados. Se ficarem muito tempo fora podem perder ou esquecer os laços com os
princípios e valores que os pais acham importantes. É justamente então que um processo curioso
começa a ocorrer com os adultos:
Nesse sentido, é imprescindível estar aberto para ouvir seus desejos – e não necessariamente
realizá-los. Um exemplo claro disso é a discussão sobre a gravidez. O desejo de ter filhos não
implica em realizá-lo na adolescência, quando as condições são pouco favoráveis. Seus desejos (de
transar, ter filhos, dirigir carros e motos) devem ser ouvidos e valorizados, mas alguns limites
devem ser assegurados para que eles possam refletir e perceber que certos desejos não precisam ser
prontamente atendidos, mas sim postergados.
Seguindo essa linha de pensamento que fala de paradoxos, de pais e filhos, torna-se
necessário ampliar algumas questões. Seria por demais redutivo pensar no processo da adolescência
baseado apenas no Arquétipo do Herói. Outros arquétipos são ativados nessa fase de
desenvolvimento, que não se propõe a ser linear, muito pelo contrário, pois surge com uma
multiplicidade de imagens.
Quando o aspecto puer do arquétipo está desconectado de seu oposto, o senex, essas
características tornam-se negativas. Ocorre quando o adolescente passa a viver de uma maneira
passiva, esperando acontecer, levado por devaneios ineficazes. Ou se torna hiperativo e na medida
em que lhe faltam reflexão e envolvimento, algumas ações podem ser auto-destrutivas e levá-lo a
correr risco de morte. Embora seja marcante em adolescentes, é possível ver esse mecanismo
algumas vezes agindo em indivíduos adultos.
Por isso, não é de se estranhar que, em contato com adolescentes, seja no consultório, na
escola ou com nossos próprios filhos, possamos perceber que freqüentemente eles se identificam
com o aspecto puer e projetem em nós, adultos, o aspecto senex. E o quanto é fácil nos
identificarmos com esse aspecto e inconscientemente transitarmos por suas características positivas,
tanto quanto pelas negativas.
Nesse processo tão intenso em que a relação com os pais se modifica para a vida adulta
germinar, outros arquétipos entram em cena. São os arquétipos da Anima e do Animus, que agora
surgem separadamente: Animus para a menina e Anima para o menino. Anima e Animus são
arquétipos de relação e interação com o mundo e com o outro. São importantes porque ajudam a
estabelecer relações simétricas com o grupo em que se sentem acolhidos. Todo adolescente tem
propostas de renovação na tentativa de se tornar ímpar, singular, mas ao mesmo tempo tem como
objetivo se sentir reconhecido por seus pares. Por serem arquétipos de relação estabelecem a
importância do “outro” para si próprio. Nesse sentido, são esses arquétipos que guiam a busca de
parceiros sexuais na adolescência e na vida adulta.
Conclusão
Espaços como este, que dêem ouvido às suas questões e que, pelo estabelecimento do
compromisso ético que vai se fortalecendo a cada encontro, os adolescentes possam dar contornos
mais fortes e mais adequados à sua identidade pessoal em construção.
Foi um trabalho muito dinâmico e divertido. Eles são muito engraçados e interessados, ainda
mais quando o assunto é sexualidade.
Referências Bibliográficas
FRANKEL, R. - The Adolescent Psyche - Junguian and Winnicotian Perspectives. New York:
Routledge & Kegan Paul, 1998.
GALIÁS, I. - Reflexões sobre o Triângulo Edípico. Junguiana, Revista da Sociedade Brasileira de
Psicologia Analítica , n. 6, São Paulo, 1988, pág. Xxx.
LIMA, A. - Brincadeiras Selvagens: Problema Nosso: Diálogo com pais de adolescentes. São
Paulo: Oficina de Textos, 1997.
FEMINILIDADE E ESTERILIDADE FEMININA 1
Introdução
1
Texto extraído da Dissertação de Mestrado “Um estudo sobre a relação entre feminilidade e esterilidade
primária feminina, sob o enfoque da psicologia analítica” – PUC-SP.
2
Psicoterapeuta Junguiana, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, e Especialista em Psicoterapia de
Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo Instituto Sedes Sapientiae.
Embora a tendência dos estudos encontrados seja a de se denominar de esterilidade
psicogênica aquela em que não é possível a identificação de fator fisiológico, alguns
mencionam a necessidade de se abordar a esterilidade como um sintoma que aponta para a
possibilidade de um conflito psíquico a ser identificado e investigado.
Uma apreciação mais abrangente do organismo deve, no entanto, ser inclusiva e não
exclusiva, onde ambos os fatores mereçam igual atenção; pois, numa abordagem Junguiana da
psicossomática, a esterilidade pode ser a expressão física de um símbolo que também
encontra expressão no psíquico.
3
Para a World Health Organization (1997), esterilidade primária é definida como a inabilidade em conceber
após um ano de intercurso sexual desprotegido. No entanto, foi aqui aceito o período conforme estabelecido
pelo Hospital Pérola Byington, de no mínimo seis meses, no caso de mulheres com idades mais avançadas.
O que os resultados evidenciaram
4
Refere-se à resignação; é o desejo ou tendência de submeter-se passivamente à força externa, de aceitar culpa,
de admitir inferioridade, erro e fracasso, de ser merecedora de dor, castigo, doença e desgraça.
5
Respostas dadas tentam mais satisfazer as expectativas alheias do que as necessidades do sujeito.
6
Indica atitude de admirar, elogiar e obedecer os que são considerados como autoridade.
apreciação de si mesma enquanto mulher (Whitmont, 1969), e bons relacionamentos com
figuras femininas e masculinas durante sua vida (Ulanov, 1971), apresentando uma
personalidade que expresse as características do feminino, complementadas pelas do
masculino (Jung, 1951; Whitmont, 1969).
No Instrumento 1, “Pesquisa sobre Esterilidade Feminina”, não houve,
estatisticamente, diferença significativa entre os dois grupos, para qualquer das categorias
pesquisadas. Isto sugere maior semelhança, entre estes grupos, do que se supunha no início
da pesquisa, no que se refere aos vínculos com o princípio feminino e também com o
princípio masculino, no decorrer do desenvolvimento psicológico feminino.
Segundo Neumann (1953), o vínculo com o princípio feminino é necessário para que a
mulher seja fértil e se torne mãe; e, afastar-se deste vínculo devido à fixação no segundo
estágio do desenvolvimento psicológico feminino, uroboro patriarcal, poderia levá-la à
esterilidade, pois a psique tem uma relação de identidade com o corpo, uma vez que é nele
que os processos psíquicos ocorrem.
Para Ulanov (1971), tal situação, de perda de vínculo com o princípio feminino e o não
estabelecimento de bom vínculo com princípio masculino, se evidenciaria através das
respostas comportamentais e emocionais, que podem ser observadas nos relacionamentos com
figuras femininas e masculinas.
No primeiro item avaliado, (a) “Autopercepção”, ambos os grupos reportaram
substancialmente mais características positivas do que negativas; tendo as mulheres férteis
apresentado maior tendência a se associarem a características positivas quando comparadas
com mulheres com esterilidade primária. Este resultado não indica tendência a dificuldades
nos relacionamentos iniciais para quaisquer dos grupos. Poderia estar mais relacionado a
ocorrências posteriores, e mesmo atuais, talvez decorrente da condição de esterilidade.
O segundo item, (b) “Qualidade de Relacionamento com Mãe e com outra Figura
Materna”, mostrou que ambos os grupos indicaram significativamente mais relacionamentos
positivos do que negativos, e que as mulheres com esterilidade primária apresentaram maior
tendência a se associarem a relacionamentos positivos do que as mulheres férteis. Isto indica
que o relacionamento inicial com o materno, relacionamento primal, vivenciado na relação
com a mãe, ou quem cumpriu a função, foi suficientemente bom para ambos os grupos, tendo
sido inclusive melhor para as mulheres com esterilidade primária do que para as mulheres
férteis.
O terceiro item, (c) “Qualidade de Relacionamento com Pai e com outra Figura
Paterna”, também mostrou que ambos os grupos indicaram significativamente mais
relacionamentos positivos do que negativos; e, assim como no anterior, indicou que as
mulheres com esterilidade primária apresentaram maior tendência a se associarem a
relacionamentos positivos do que as mulheres férteis. Isto indica que o relacionamento com o
paterno, uroboro patriarcal, próximo estágio no desenvolvimento psicológico, vivenciado na
relação com o pai, ou quem cumpriu a função, foi suficientemente bom para ambos os grupos,
tendo sido melhor para as mulheres com esterilidade primária do que para as mulheres férteis.
Estes resultados permitem supor não ter havido fixação neste estágio, para quaisquer
dos grupos, uma vez que tal fixação seria caracterizada pela não assimilação na consciência
dos conteúdos inconscientes, o que faria com que o princípio masculino permanecesse, para
as mulheres, como algo fora delas. Esta situação promoveria relacionamentos conflituosos
tanto com o princípio masculino quanto com o princípio feminino internamente, conforme
descrito por Neumann (1953); assim como seria evidenciada pelas dificuldades de
relacionamento com homens e com mulheres, conforme apontado por Ulanov (1971). Isto,
porém, não se configurou nesta pesquisa.
O quarto item, (d) “Interações com Figuras do Sexo Feminino”, ou seja, a qualidade
destas interações além dos relacionamentos iniciais, mostrou que ambos os grupos indicaram
substancialmente mais interações positivas do que negativas nos três períodos considerados:
infância, adolescência e vida adulta; e que as mulheres férteis apresentaram maior tendência a
se associarem a interações positivas do que as mulheres com esterilidade primária. Este
resultado, no entanto, não indica dificuldades nestas interações.
Estes dados, se observados isoladamente, poderiam significar fixação na primeira fase
do desenvolvimento psicológico, para ambos os grupos, caracterizada pelo bom
relacionamento tanto com a mãe quanto com as demais mulheres. Isto porque a boa
“Interação com Figuras do Sexo Feminino” é entendida por Neumann (1953), assim como por
Ulanov (1971) e Whitmont (1969), como decorrente de um bom relacionamento interno
inicial com o princípio feminino, relacionamento primal, vivenciado externamente através do
relacionamento inicial com a mãe, ou quem cumpriu a função.
No entanto, esta fixação não se configurou para as mulheres desta pesquisa, uma vez
que, além da boa “Interação com Figuras do Sexo Feminino” deste item, evidenciou-se
também um bom “Relacionamento com Pai e com outra Figura Paterna” no item anterior; o
que descaracterizou a fixação descrita por Neumann (1953). Tal situação será, ainda,
complementada pela análise do próximo item.
O quinto item, (e) “Interações com Figuras do Sexo Masculino”, ou seja, a qualidade
destas interações além dos relacionamentos iniciais, mostrou que ambos os grupos indicaram
substancialmente mais interações positivas do que negativas nos três períodos considerados:
infância, adolescência e vida adulta; e que as mulheres férteis apresentaram maior tendência a
se associarem a interações positivas do que as mulheres com esterilidade primária, assim
como no item anterior. Este resultado, no entanto, não indica dificuldades nestas interações.
Estes dados, mesmo se observados isoladamente, para qualquer dos grupos, não
indicam fixação na primeira fase do desenvolvimento psicológico, que se caracterizaria pela
dificuldade na interação com pessoas do sexo oposto; assim como não indicam fixação na
segunda fase deste desenvolvimento, que se caracterizaria pela dificuldade na interação com
pessoas do mesmo sexo e também do sexo oposto; conforme descrito por Neumann (1953).
Isto porque, a boa “Interação com Figuras do Sexo Masculino” é entendida por
Neumann (1953), assim como por Ulanov (1971) e Whitmont (1969), como decorrente tanto
de um bom relacionamento interno com o princípio feminino, que começou na primeira fase
do desenvolvimento psicológico, relacionamento primal, vivenciado externamente através do
relacionamento inicial com a mãe, ou quem cumpriu a função, assim como de um bom
relacionamento interno com o princípio masculino, que começou na segunda fase do
desenvolvimento psicológico, uroboro patriarcal, vivenciado externamente através do
relacionamento inicial e subseqüente com o pai, ou quem cumpriu a função.
Portanto, as razões para as mulheres com esterilidade primária tenderem a apresentar
resultados discretamente inferiores aos das mulheres férteis, nos itens referentes às
“Interações com Figuras do Sexo Feminino” e “Interações com Figuras do Sexo Masculino”,
parecem não estar baseadas nos relacionamentos iniciais, mas talvez apontem para uma
situação que se configurou devido a outras questões não abordadas por esta pesquisa, como
por exemplo, os sentimentos associados à impossibilidade de maternidade, e às possíveis
dificuldades no relacionamento com o parceiro.
Os resultados deste Instrumento 1, “Pesquisa sobre Esterilidade Feminina”, para os
dois grupos, não evidenciaram as fixações possíveis de ocorrer, descritas em Neumann
(1953).
No Instrumento 2, “Inventário Fatorial de Personalidade” (Pasquali, Azevedo e Ghesti,
1997), a análise estatística que abarcou todas as 15 Necessidades Básicas, evidenciou
diferença significativa apenas para o fator Denegação, no qual as mulheres com esterilidade
primária obtiveram escore significativamente mais elevado que as mulheres férteis. Embora
este fator não pertença aos nove itens que caracterizam o sexo feminino ou o masculino, ele
traz uma informação complementar importante para a análise, pois, segundo sua definição,
seu escore elevado leva a supor que mulheres com esterilidade primária podem estar
entendendo a situação de incapacidade de procriar como relacionada a algum erro que
cometeram, pelo qual sentem-se culpadas, inferiores e merecedoras de tal castigo.
Ainda de acordo com Neumann (1959b), tal sentimento pode ter como base o
sentimento de culpa eliciado na mulher no início de seu desenvolvimento psicológico, quando
da progressão do primeiro para o segundo estágio. Esta passagem implica em um afastamento
do relacionamento primal e uma aproximação do uroboro patriarcal, o que é bastante difícil,
pois o aspecto negativo do arquétipo materno tentará impedi-la, promovendo um sentimento
de culpa por este afastamento, que é entendido como uma traição ao Feminino e uma rendição
ao Masculino. Este sentimento talvez esteja sendo reativado na consciência pela
impossibilidade de ser mãe, uma vez que o materno, embora não seja a única forma de
expressão e realização do feminino, é um aspecto central (Neumann, 1959a; Whitmont,
1969).
Este fator, Denegação, parece, ainda, ter correspondência com o item
“Autopercepção” do Instrumento 1, “Pesquisa sobre Esterilidade Feminina”, uma vez que o
sentimento de inferioridade descrito neste fator condiz com a tendência das mulheres com
esterilidade primária a uma pior apreciação de si mesma, quando comparadas com mulheres
férteis, talvez devido à impossibilidade de realização deste aspecto do feminino.
Outro dado interessante a ser observado, é que ambos os grupos obtiveram escores
elevados, e praticamente iguais, para o fator extra Desejabilidade Social. Isto parece indicar,
conforme definição do fator, que as pessoas, em geral, procuram aprovação social; e, embora
este estudo traga informações apenas sobre o sexo feminino, esta parece ser uma tônica para
ambos os sexos, em muitas sociedades ocidentais como a nossa.
Os resultados deste estudo estão também de acordo com o proposto por Bolen (1984),
de que muitas vezes os papéis impostos pelas sociedades não correspondem à expressão
externa da necessidade interna de todas as mulheres indistintamente. Mencionando ainda que,
se a mulher receber aprovação social para expressar aquele que é o seu padrão interno
prioritário, alimentará sentimentos de aceitação; caso contrário poderá sentir rejeição e até
mesmo exclusão social.
Pode-se supor, portanto, que, enquanto para a mulher fértil, a opção de não ser mãe, e
assim não corresponder à expectativa social, poderia significar rejeição social, para a mulher
com esterilidade, caso o padrão materno seja sua necessidade interna prioritária, ela poderia
enfrentar, além da discriminação social, um conflito interno devido à impossibilidade de
realização desta sua necessidade.
Merece destaque também, embora não tenha apresentado diferença estatisticamente
significativa, o fator Deferência, no qual mulheres com esterilidade primária obtiveram escore
tendendo a alto, enquanto que as mulheres férteis se localizaram no escore médio. Este
resultado parece indicar, conforme definição do fator, que as mulheres com esterilidade
primária tendem mais a uma atitude de submissão do que as férteis, o que aponta para uma
correspondência entre este fator e o anterior.
Para os demais fatores, os resultados não evidenciaram diferenças significativas entre
os dois grupos, quer para as características relacionadas ao feminino, quer para as
relacionadas ao masculino.
Os resultados deste estudo não puderam confirmar a formulação teórica de Neumann
(1959a) que diz que a fixação no segundo estágio do desenvolvimento psicológico, uroboro
patriarcal, poderia tornar a mulher vítima da situação, superdesenvolvendo o lado masculino
de sua personalidade de forma não elaborada e estereotipada, e alienando-a de sua natureza
feminina; como também não confirmaram outra formulação teórica de Neumann (1953), que
diz que tal fixação poderia levar a mulher à condição de esterilidade.
A análise destes resultados indica que a presença da esterilidade primária em mulheres
parece não estar relacionada à fixação no estágio urobórico patriarcal. (Neumann, 1953). A
impossibilidade de expressão do feminino através da maternidade provavelmente não
significa que a feminilidade ficou comprometida como um todo, pois, de acordo com o
próprio Neumann (1959a), Bolen (1984), Ulanov (1971) e Wolff (apud Whitmont, 1969), o
papel de mãe é uma forma extremamente importante de expressão do feminino, mas não é o
todo, nem a única.
Conclui-se que a hipótese inicial de que o princípio feminino não tenha sido
adequadamente introjetado na personalidade de mulheres com esterilidade primária não pode
ser comprovada, pelo menos para esta população e para os itens relacionados ao feminino
aqui estudados. Portanto, não foi possível se verificar, nesta pesquisa, que a perda do vínculo
com o princípio feminino leve a mulher à incapacidade de desenvolver suas qualidades
maternais e de fertilidade.
As tendências indicam que mulheres com esterilidade primária expressam uma
apreciação de si mesmas discretamente inferior às mulheres férteis. Porém, os
relacionamentos com mãe e com pai, ou quem cumpriu tais funções, tenderam a ser melhores
para as mulheres com esterilidade primária do que para as mulheres férteis. A observação
destes resultados não indica que o princípio feminino, feminilidade, foi bloqueado em sua
manifestação e desenvolvimento, mas talvez que uma de suas formas de expressão, a
maternidade, não esteja ativada.
Esta condição de esterilidade parece estar interferindo também nos relacionamentos
com mulheres e homens, uma vez que mulheres com esterilidade primária indicaram
interações com pessoas do sexo feminino e também do sexo masculino, que tenderam a ser
inferiores às de mulheres férteis. Talvez esta tendência dependa do maior ou menor
significado interno que esta forma de expressão, a maternidade, tenha para as mulheres com
esterilidade primária.
Estas conclusões são complementadas e corroboradas pela não evidencia de diferenças
significativas entre mulheres com esterilidade primária e mulheres férteis, nos itens que se
referem às características de personalidade mais relacionadas ao sexo feminino (Afago,
Afiliação, Assistência, Deferência, Intracepção e Mudança), e também nas relacionadas ao
sexo masculino (Dominância, Exibição e Heterossexualidade), uma vez que os dois grupos
obtiveram escores dentro do esperado para a população feminina.
Os resultados permitem deduzir que as características de personalidade, tanto no que
se refere ao feminino, quanto ao masculino, têm sua formação baseada em diversos outros
fenômenos psíquicos que não apenas os abordados por este estudo.
Pode-se supor que a condição de esterilidade, ou seja, a impossibilidade da expressão
do feminino através da maternidade, esteja causando dificuldades secundárias nas mulheres,
como uma apreciação de si mesmas prejudicada por sentimentos de culpa e de inferioridade,
quando comparadas com mulheres férteis; o que pode estar também dificultando seus
relacionamentos com mulheres e homens em seu meio social.
Estas informações somam-se à verificação de que tanto mulheres com esterilidade
primária, como mulheres férteis, buscam aprovação e aceitação social. Este dado permite
concluir que, em geral, as pessoas tentam corresponder ao que é socialmente esperado delas;
e, um dos papéis mais desejados, apoiados e estimulados para a mulher é a maternidade.
Complementando estes dados, há a observação de que mulheres com esterilidade
primária mostram uma tênue tendência a uma atitude de submissão, quando comparadas com
mulheres férteis. Isto possibilita deduzir que mulheres com esterilidade primária tendem mais
a acatar as decisões e orientações de pessoas que considere como autoridade, podendo muitas
vezes buscar a maternidade por motivos outros que não os seus próprios.
Portanto, é provável que, para muitas mulheres, a presença da esterilidade signifique
uma frustração na expressão externa de uma necessidade interna; ou até um conflito por não
ser capaz de corresponder ao que é delas esperado. Qualquer das duas posições pode estar na
base da ansiedade gerada pela, muitas vezes, estressante busca da maternidade, e do possível
sofrimento psicológico ocasionado pelo estigma social imputado a muitos casais sem filhos.
Esta situação pode acabar prejudicando ainda mais a fertilidade, uma vez que o
estresse gerado pode afetar, via elos neuroendócrinos, o sistema reprodutor.
Referências Bibliográficas
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infertile couple. Rowe, P. J. et al. United Kingdom: Cambridge University Press, 1997.
Luke Skywalker e a Saga do Herói
Um Enfoque Religioso
Brígida Carla Malandrino1
I – Introdução
O presente estudo versará sobre a saga Guerra nas Estrelas, composta por nove
filmes, mas aqui abordado mais precisamente nos episódios IV – Uma Nova Esperança
(1977), V – O Império Contra Ataca (1980) e VI – O Retorno de Jedi (1983), os quais são
conhecidos como Trilogia. Na Trilogia, resumida abaixo, abordar-se-á a história de Luke
Skywalker. Fica claro ao se assistir a Trilogia, que cada uma das personagens é um herói, ou
uma heroína, além de Luke. Temos Han Solo, a princesa Leia, Lando cada um com a própria
jornada a cumprir e com certos desafios a enfrentar. A escolha por trabalhar com a
personagem Luke Skywalker deu-se por uma questão puramente subjetiva e talvez,
nostálgica.
Desde já, é importante que se diga que foi necessário fazer algumas opções. A Trilogia
é repleta de pequenos detalhes que poderiam ser amplificados, porém para este trabalho
escolhi alguns aspectos relacionados às etapas da jornada do herói e outros que, dentro do
meu entender, seria importante abordar por possuírem um cunho religioso. Assim sendo, o
presente trabalho tem como objetivo buscar fazer uma análise dos aspectos presentes do filme
à luz da Psicologia Analítica, utilizando-se principalmente dos trabalhos escritos por Joseph
Campbell a respeito do mito do herói, para buscar responder por que estes filmes fazem
sucesso, ou melhor, por que encanta pessoas tão diferentes? É apenas um ótimo marketing?
1
Psicoterapeuta junguiana, especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais,
mestranda em Ciências da Religião pela PUC/SP.
II – A Trilogia
Há muito tempo, em uma galáxia muito distante, ocorre uma guerra civil. Durante a
batalha espiões rebeldes conseguem roubar os planos secretos de uma arma do Império – a
Estrela da Morte –, uma estação espacial blindada. Perseguida pelos agentes do Império, a
nave em que está a princesa Léia é atingida, capturada e invadida por Darth Vader. Léia antes
de ser capturada consegue gravar uma mensagem em um andróide, R2-D2, e enviá-lo junto
com um outro andróide, C-3PO, para o planeta Tollise com a missão de encontrar Obi-Wan
Kenobi.
Os dois andróides são capturados por um vendedor de andróides e comprados pelo tio
de Luke Skywalker. Luke tem acesso a uma parte da mensagem enviada por Léia e, durante
um jantar, comenta com os tios a respeito da mensagem que ouviu e insiste em fazer a prova
da Academia para se tornar piloto, mas o tio pede para ele ficar por mais um ano.
Durante a noite R2-D2 vai em busca de Obi Wan Kenobi, vulgo Ben. Luke sai atrás
dele junto com C-3PO. Depois de achar R2-D2, Luke é atacado pelo povo da areia, mas é
salvo por Obi-Wan Kenobi. Obi-Wan entrega para Luke uma espada de luz deixada pelo seu
pai, explica que ele foi um Cavaleiro Jedi, guardião da paz e da justiça, tendo sido morto por
Darth Vader. R2-D2 mostra a mensagem a Obi-Wan, que decide ajudar Léia e pede para Luke
levá-lo a Alderaan, mas ele diz que não pode se envolver, mas se compromete a levá-lo até
Anchorhead.
Tropas do Imperador, enviadas para buscar os andróides a Tollise, acabam por matar
os tios de Luke. Com isso, Luke resolve ir junto com Obi-Wan até Alderaan. Providenciam
uma nave para transportá-los, dirigida por Chewbacca e Han Solo, um mercenário. Na nave
Luke faz exercícios. Ben pede para ele deixar o raciocínio e agir pelo instinto. A nave
Millenium acaba sugada por um raio trator, caindo em uma base do Império. Os soldados
entram na nave e são rendidos. Tanto Solo quanto Luke saem vestidos de soldados, fingindo
ter capturado Chewbacca para salvar Léia. Enquanto isso, Obi-Wan tem uma outra missão:
desligar o raio trator e confrontar-se com Darth Vader.
R2-D2 consegue saber a localização de Léia. Após encontrá-la, numa tentativa de
fuga, caem no compactador de lixo. Dentro do compactador há um monstro que captura Luke
e o leva para dentro da água por duas vezes. Após ele submergir, as paredes começam a se
fechar e, numa tentativa desesperada, Luke consegue contatar os andróides, que desligam o
compactador. Enquanto isso, Ben consegue desligar o raio trator e segue para o seu encontro
com Darth Vader. Durante o combate Ben faz com que todos os soldados deixem de tomar
conta da nave, o que possibilita que Luke e seus companheiros corram para a nave. Quando
Ben percebe que todos estão bem, ele se deixa vencer por Darth Vader.
A nave chega a uma base dos rebeldes – Yavin. Lá, são recuperadas as informações
contidas em R2-D2, que revela que há um ponto fraco na Estrela da Morte e como os pilotos
devem proceder para atingir o alvo. Começa a batalha. Quando Luke está entrando no
corredor da Estrela da Morte para atingir o alvo e Darth Vader está atrás dele, ouve a voz de
Ben e Solo surge para ajudá-lo. Com isso, Luke consegue entrar no sistema, atingir o alvo e
destruir a Estrela da Morte. Retornam todos à base e, como recompensa pela ação
desenvolvida, Luke, Solo e Chebacca ganham medalhas e congratulações.
Embora a Estrela da Morte tenha sido destruída, as tropas imperiais conseguem
expulsar os rebeldes de sua base secreta e os perseguem por toda galáxia. Fugindo da terrível
frota imperial, um grupo de rebeldes chefiados por Luke Skywalker monta uma base secreta
no mundo gelado de Hoth. Darth Vader, obcecado pela idéia de encontrar o jovem Skywalker,
enviou milhares de sondas remotas para os pontos mais distantes do espaço.
Uma das sondas estrelares cai no país gelado de Hoth. Quando Luke vai averiguar o
ocorrido, é atacado por um grande animal. Solo resolve ir atrás de Luke com um Tonton (um
animal de montaria). Quando Luke acorda, encontra-se pendurado pelos pés, de cabeça para
baixo e vê um grande animal comendo o Tonton no qual estava montado. Utiliza seus poderes
e consegue trazer sua espada de luz para suas mãos, solta-se e o grande animal vem para
atacá-lo, mas ele lhe corta os braços e consegue fugir. Luke, semiconsciente, ouve Ben
chamar por ele e pedir para ir ao sistema Dagoba aprender com Yoda, um mestre Jedi. Solo
aparece e o Tonton que montava cai morto. Solo corta a barriga da Tonton e coloca Luke lá
dentro para mantê-lo aquecido. Ao amanhecer, pilotos da base rebelde conseguem encontrar
Solo e Luke e os resgatam. Na base Luke é colocado dentro de um grande recipiente com
água, no qual fica imerso.
Luke vai ao encontro de R2-D2 em sua nave e de lá decolam para o sistema Dagoba.
Enquanto isso, a Millenium Falcon, com Solo, Léia, Chewwie e CP3-O, está sendo
perseguida por naves do Império. Luke chega ao sistema Dagoba. É surpreendido por uma
criatura estranha, que diz que não lhe fará mal, mas que quer saber porque ele está ali. Luke
comenta que procura por um Mestre Jedi, ao que a criatura cita o nome de Yoda e diz que irá
levá-lo até ele. Luke e a criatura conversam e descobre que a criatura é Yoda. Luke inicia o
seu treinamento Jedi. Precisa entrar em um lugar que é dominado pelo lado negro. Yoda diz
que, neste lugar, Luke encontrará apenas o que tiver levado consigo. Luke entra em uma
caverna. Lá encontra Darth Vader, com quem trava uma batalha, cortando sua cabeça.
Quando ela explode, vê a si mesmo, vê sua face, dentro da máscara.
Enquanto isso, Solo, que esteve com a nave escondida na própria nave do Império, a
solta junto com o lixo. Resolve procurar Lando em uma estação de mineração para pousarem
lá. Têm permissão para pousarem, mas Darth Vader os aguarda. Lando justifica-se dizendo
que o Império chegou antes deles. Darth Vader resolve entregar Solo a Jabba, o Hutt, um
desprezível bandido, e diz que Léia e Chewwie nunca mais devem sair do posto de mineração.
Solo é torturado. Lando diz para eles que Darth Vader está atrás de Luke Skywalker. Luke faz
outros exercícios e vê Han e Léia sofrendo. Luke vai ajudá-los.
Solo é congelado em carbonite e sobrevive; fica em estado de hibernação e é entregue
a um caçador de recompensas. Vader quer fazer o mesmo com Luke. Vader leva a princesa
Léia e Chewwie para sua nave. Léia vê Luke e o avisa que é uma armadilha para pegá-lo.
Luke encontra com Vader e eles começam a lutar. Lando rebela-se contra o Império e tenta
levar Léia e Chewwie para a torre de segurança para irem embora. C-P3O encontra com R2-
D2, que vai junto com eles. Lando, Léia, C-P3O, R2-D2 e Chewwie fogem na nave.
Enquanto isso, Luke segue para uma ponte. Novamente luta com Darth Vader. Vader
corta o braço de Luke. Durante a luta, Darth Vader confessa a Luke que é seu pai e pede para
ele passar para o lado do Império. Ele se nega e se joga no infinito, ficando preso em uma
haste. Léia pressente a presença de Luke, dizendo que sabe onde ele está e volta para socorrê-
lo, apesar da oposição de Lando. Após chegarem a uma base rebelde, Lando parte para salvar
Solo. Luke recebe um braço biônico.
Na tentativa de salvar Solo, Luke retorna a Tattoine, que está preso por Jabba, o Hutt.
O Império iniciou secretamente a construção de uma nova estação espacial bélica mais
poderosa que a Estrela da Morte. Em Tattoine, Luke envia R2-D2 e C-P3O para entregar uma
mensagem para Jabba. Chewbacca também é capturado e levado para Jabba. Lando também
se encontra nos domínios de Jabba, mas disfarçado. No cair da noite Solo é descongelado por
Léia. Ao se levantar são surpreendidos por Jabba. Na prisão Solo encontra com Chewwie, que
lhe conta que Luke virá salvá-lo e que ele se tornou um Cavaleiro Jedi.
Luke chega aos domínios de Jabba e pede que ele traga Chewwie e Solo, mas cai
numa armadilha e também é preso. Jabba decreta que os dois serão executados
imediatamente. No momento da execução, inicia-se uma grande luta para salvar a todos. No
espaço eles se separam, Luke dirige-se ao sistema Dagoba para cumprir sua promessa,
acompanhado de Yoda e Solo; Léia e Lando voam para a base rebelde.
Luke chega a Dagoba e vê que Yoda está muito velho e doente. Yoda se deita e apenas
afirma que logo descansará para sempre. Yoda diz a Luke que ele precisa enfrentar Darth
Vader para se tornar um Jedi. Também comenta que existe um outro Skywalker. Depois da
morte de Yoda, conversando com Ben, Luke descobre que Léia é a sua irmã.
Luke parte para a base rebelde, onde são trazidas as informações que dão a localização
exata da nova Estação Bélica do Império, protegida por um escudo de energia que é gerado
nas proximidades da lua florestal de Endor. O escudo deve ser desativado para se tentar um
ataque. Quando ele estiver desligado os cruzados criarão um perímetro, enquanto os caças
voam dentro da superestrutura e tentam destruir o reator principal. Uma equipe utilizando
uma nave imperial roubada pousará na lua de Endor para desativar o reator. Para a missão
terrestre é escolhido Solo. Para o ataque aéreo, Lando.
Solo, Léia, Chewwie, Luke e os andróides dirigem-se para a lua de Endor. Na lua de
Endor, enquanto tentam encontrar o reator, o grupo é surpreendido por soldados do Império.
Léia se perde na floresta e é encontrada por um habitante de uma tribo da lua de Endor, com
quem faz amizade. O grupo formado por Solo, Luke, Chewwie e os andróides é capturado
pela mesma tribo que levou Léia. Os integrantes da tribo acham que C-P3O é um deus,
comunicando-se com eles em um dialeto primitivo. Os membros da tribo aceitam o grupo de
rebeldes e se comprometem a mostrar o caminho que leva ao reator. Após conversar com Léia
e lhe dizer toda a verdade, Luke vai ao encontro de Darth Vader.
Darth Vader chega à base imperial e Luke já está lá esperando por ele. Darth Vader diz
a Luke que o Imperador está esperando por ele. Luke responde que já sabe e que já aceita a
verdade de Anakin Skywalker ter sido o seu verdadeiro pai. Enquanto isso, Solo, Léia,
Chewwie e os combatentes rebeldes iniciam o ataque ao gerador, ao mesmo tempo em que a
nave com Luke e Darth Vader parte para a Estrela da Morte. No espaço, Lando e os caças
estão prontos para o ataque no hiperespaço.
Na Estrela da Morte Luke é levado por Darth Vader para o Imperador, que solta as
algemas de Luke. Apesar da insistência do Imperador, Luke diz que ele jamais o converterá
como fez com o pai. A espada de luz de Luke é dada para o Imperador, que tenta Luke a
pegar a arma Jedi, satisfazer sua raiva e o matar, já que ele está indefeso. Enquanto isso, a
tropa que se encontra no hiperespaço está em apuros. Apesar da ordem de evacuar, Lando
ainda confia que Solo desligará o escudo defletor. Na lua de Endor, para a surpresa de todos,
os rebeldes são ajudados pelo povo primitivo, que prepara uma armadilha para as tropas
imperiais. O povo primitivo e Chewwie conseguem tomar um dos tanques com pernas e
assim, junto com Solo e Léia, destroem a base imperial e desativam o escudo defletor.
Luke não resiste às provocações do Imperador e pega a sua arma para matá-lo.
Armado e com muito ódio, começa a lutar com o pai, chegando a derrotá-lo. Antes disso,
corta-lhe o braço, o mesmo braço que perdeu quando lutou com Darth Vader. O Imperador ri
e o elogia, ordenando que ele mate o pai. Luke olha para a sua mão biônica, olha para a do
pai, que também é biônica, respira, abaixa a sua cabeça e se nega a matar o pai. Com isso o
Imperador começa a lançar raios em cima de Luke. O pai se levanta. Luke clama pela ajuda
do pai. O pai vendo isso se redime, pega o Imperador e o atira no infinito. No mesmo
momento há uma explosão, Anakin se enfraquece e sua respiração fica difícil. Luke o ampara.
Luke carrega o pai para uma nave, pedindo para que o filho lhe tire sua máscara. Luke
retira a máscara de Anakin e vê uma face desfigurada. Anakin fecha os olhos e morre. Luke
carrega o pai para dentro da nave e ela decola. No hiperespaço é recebido o sinal de que o
escudo defletor foi desligado e começa um novo combate. Uma pequena nave rebelde entra
no corredor da Estrela da Morte e consegue atingir o gerador e destruir a estação bélica, que
explode. Luke queima o corpo de Anakin. Todos começam a festejar em todos os lugares da
galáxia, uma vez que com o fim do Império a liberdade foi reconstituída. Na lua de Endor o
povo primitivo e as tropas rebeldes comemoram. Luke, ao olhar no horizonte, vê a imagem de
Ben, Yoda e Anakin Skywalker.
O termo “Era uma vez, em uma galáxia muito distante” nos remete à Eliade
(1945/1947). Segundo ele, o tempo concreto em que se passa a ação é projetado no tempo
mítico, in illo tempore, em que decorreu a criação do mundo. Fala-se de um tempo cíclico e
não de um tempo linear guiado pela história. Assim, ficam asseguradas a realidade e a
duração de uma construção, não só pela transformação de um espaço profano num espaço
transcendente (o Centro), mas também pela transformação do tempo concreto em tempo
mítico. Os atos se desenvolvem não só num espaço consagrado, num espaço essencialmente
distinto do espaço profano, mas também num tempo sagrado, naquele tempo (in illo tempore,
ab origine) em que o ritual foi realizado pela primeira vez por um deus, um antepassado ou
um herói.
Antes de a aventura se iniciar é interessante notar que ao conversar com C-P3O Luke
diz que “se há um centro luminoso na galáxia, eles estão no ponto mais distante”. Isso nos
sugere o quanto Luke se encontra distante daquilo que nasceu potencialmente para ser, o
quanto ele se encontra distante da própria essência, do próprio Centro.
Importante ressaltar que os dois andróides, tanto C-P3O quanto R2-D2, acompanham
Luke durante toda a aventura. Em momentos cruciais a ajuda dos dois andrógenos, seus
auxiliares, torna-se fundamental, uma vez que enquanto C-P3O possui a habilidade de
comunicação e de tradução de várias línguas, R2-D2 possui a capacidade de comunicação e
decodificação de qualquer tipo de computador. Pode-se fazer referência ao deus Hermes e ao
orixá Exu, que analogamente, são mensageiros, responsáveis pela comunicação com os
deuses, o que os torna indispensáveis para que haja uma relação e interação entre todos os
elementos.
Luke dirige-se à floresta, onde habita o povo de areia, perseguindo R2-D2, também
um tema recorrente em mitos de heróis. Segundo Campbell (1949), essa região pode ser
representada por uma terra distante, uma floresta, um reino subterrâneo, a parte inferior das
ondas, a parte superior do céu, uma ilha secreta, o topo de uma elevada montanha ou um
profundo estado onírico. É sempre um lugar habitado por seres estranhamente fluidos e
polimorfos. O herói pode agir por vontade própria na realização da aventura ou pode ser
levado ou enviado para longe por algum agente benigno ou maligno; no caso de Luke isso
ocorre ao ele ir atrás de R2-D2.
Na floresta, Luke encontra-se com aquele que será a sua figura protetora e aquele que
lhe dará a sua espada de luz – Obi Wan Kenobi, ou simplesmente Ben. Conforme diz
Campbell: “Para aqueles que não recusaram o chamado, o primeiro encontro da jornada do
herói se dá com uma figura protetora (uma anciã ou um ancião), que fornece ao aventureiro,
amuletos, que o protege contra as forças com que ele está preste a se deparar.” (Campbell,
1949, pg. 74) Essa figura representa o poder benigno e protetor do destino. Não é incomum
que o ajudante sobrenatural assuma a forma masculina. Aparece para fornecer os amuletos e o
conselho que o herói precisará. Ele é o condutor do espírito inocente para os reinos da
provação. Segundo Campbell, significa o apoio dado à personalidade consciente por parte
deste sistema mais amplo.
Ben aparece como conselheiro, que para Campbell (1988) lembra um mestre japonês
da arte da espada. Esse conselheiro lhe dá um instrumento, uma espada ou um feixe de luz,
mas também um compromisso psicológico e um centro emocional. A espada é dotada de
sabedoria e de poderes sobrenaturais, que tornam aquele que a possui invencível. A espada
como símbolo de atributos do princípio masculino ativo, dá àquele que a maneja a capacidade
de cortar, dividir, separar discriminar e também possibilita a decisão, a separação entre o bem
e o mal, e conseqüentemente, a justiça.
Neste momento, Luke, pela primeira vez, fica sabendo a respeito da Força, que é um
campo de energia criado por todas as coisas vivas, que as circunda, as penetra e mantém a
galáxia unida. Pode ser visto como o umbigo do mundo, o lugar sagrado e o poder que irradia
no momento da criação. Ao contrário da Força que brota de dentro, a força do Império se
baseia na intenção de conquistar e comandar. Neste sentido, o filme relaciona-se com os
poderes da vida, sejam eles plenamente realizados ou cerceados e suprimidos pela ação do
homem. Está se falando da questão do livre arbítrio e da liberdade de escolha do homem.
Luke é então convidado por Ben para participar da aventura, ao que se mostra
reticente. Então, uma série de indicações de força crescente se tornará visível, até que a
convocação não possa mais ser recusada. Vemos o ataque das tropas imperiais a casa dos tios
de Luke, bem como a morte dos dois. Assim sendo, a façanha convencional do herói começa
com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou sente estar faltando algo entre as
experiências normais ou permitidas aos membros da sociedade, e parte numa série de
aventuras que ultrapassam o usual, tentando recuperar o que tinha sido perdido. Há um
desconhecimento de Luke em relação à sua própria origem, em especial à história de seu pai.
Representa o primeiro estágio dessa espécie de aventura; o herói abandona o ambiente
familiar, sobre o qual tem algum controle e chega a um limiar.
Além desses limites, estão as trevas, o desconhecido e o perigo. Neste momento, Luke
se depara pela primeira vez com os aspectos provenientes do inconsciente. A aventura é
sempre e em todos os lugares, uma passagem pelo véu que separa o conhecido do
desconhecido: Luke sai, abandona o espaço protegido e parte para um mundo a ser
desbravado. Interessante notar que o umbral, dentro da leitura do Kardecismo ou mesmo da
umbanda, é o local onde vivem os espíritos de menos desenvolvimento espiritual – eguns
(espíritos de mortos), exus, pombas-gira e espíritos sofredores – ao mesmo tempo em que é o
local por onde todos que desencarnam, passam, antes de partirem para outros planos
espirituais. O umbral é o espaço intermediário entre o conhecido (a terra, lugar de expiação) e
o totalmente desconhecido (os planos espirituais).
Tendo cruzado o limiar, o herói deve sobreviver a uma sucessão de provas. Luke é
auxiliado pelo conselheiro, Ben, e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural, os
andróides, que havia encontrado antes de penetrar nessa região. Talvez ele descubra que há
um poder benigno, que o ajuda em sua trajetória – novamente, uma referência à Força.
Durante seu treinamento, Ben auxilia Luke no desenvolvimento de sua função inferior.
Quando Ben pede para que ele deixe o raciocínio de lado e seja guiado por seus fellings, que
pode ser lido como sentimentos e não intuição, como se encontra na tradução do filme.
Conforme coloca Campbell:
No confronto de Ben com Darth Vader, vemos que aquele que cumpriu ser herói um
dia, Darth Vader desvinculou-se das bênçãos que recebeu de uma forma transcendente. Sendo
assim, ele deixou de ser o mediador entre os dois mundos, deixou de ser herói. Sua
perspectiva se estreitou, incluindo apenas o termo humano da equação, a parte do ego e se
esqueceu de integrar os conteúdos inconscientes. A força e o poder é aquilo que mantém e
tudo aquilo que se busca, não havendo mais um sentido transcendente para cada uma de suas
ações. Darth Vader torna-se o tirano, o usurpador de quem o mundo agora é salvo. Como ele
mesmo coloca, de aprendiz agora é o mestre, ou seja, agora apenas a sua consciência
encontra-se no comando.
Há de se dar destaque às cores das espadas presentes neste momento. Ben utiliza uma
espada de luz azul, que “representa a cor do céu, da longínqua distância, da água, pura,
imaterial e fresca; cor do divino, da verdade e, no sentido de perseverança na verdade e com
referência ao firmamento fixo do céu, cor da fidelidade.” (Becker, 1992, pg. 38). Darth Vader
possui um feixe de luz vermelho, “cor do fogo e do sangue, como estes, simbolicamente
ambivalentes. Negativamente cor da guerra, do poder destrutivo do fogo, do derramamento do
ódio.” (Becker, 1992, págs. 294/295). Talvez retrato da personalidade complexa de Darth
Vader.
A destruição da Estrela da Morte pode ser vista como uma grande vitória, o apogeu
deste primeiro momento, no qual Luke conta com todas as ajudas possíveis e inesperadas,
como a orientação de Ben e o aparecimento de Solo no último momento. A Estrela da Morte
possui um pequeno ponto de suscetibilidade, que nos lembra o chamado calcanhar de Aquiles.
“Aquiles era vulnerável no calcanhar. Geralmente, o escorpião e a serpente mordem no
calcanhar. O calcanhar é como que a base do ser humano, caracterizado pela posição do pé.
Quando atingido, o homem cai.” (Chevalier, 1982, pg. 163). Esta vitória é comemorada com
uma redenção, mesmo que temporária, mas aquela que possibilita a continuidade da jornada.
O herói cujo apego ao ego já foi aniquilado vai e volta pelos horizontes do mundo;
nisto reside o seu poder de salvar, pois sua passagem e retorno demonstram que nada há a
temer. Tal situação pode ser observada quando Luke, mais uma vez, entra no ventre da baleia
ao ser atacado por um monstro, colocado de cabeça para baixo, acolhido por Solo, posto
dentro do ventre de um animal e submergido, novamente, em um recipiente com água, que em
muito lembra um útero e o cordão umbilical. A entrada num templo e o mergulho do herói
pelas mandíbulas da baleia são aventuras idênticas; as duas denotam, em linguagem figurada,
o ato de concentração e de renovação da vida. Conforme destaca Campbell:
Em lugar de passar para fora, para além dos limites do mundo visível, o herói vai
para dentro, para nascer de novo. O desaparecimento corresponde à entrada do
fiel no templo, onde ele será revivificado pela lembrança de quem e do que é, pó
e cinzas, exceto se for imortal. O interior do templo, ou ventre da baleia e a terra
celeste, que se encontra além, acima e abaixo dos limites do mundo são uma só e
mesma coisa. O devoto ao entrar num templo passa por uma metamorfose. Pode-
se dizer que ele morreu para a temporalidade e retornou ao Útero do Mundo,
Centro do Mundo, Paraíso Terrestre. (Campbell, 1949, págs. 92/93)
A jornada de Luke, a partir desse momento, não diz mais respeito à ação, mais muito
mais a um desenvolvimento espiritual e de confronto consigo mesmo. As etapas se repetem,
porém o que se nota é um nível de profundidade e de expansão da consciência diferente. Tal
situação pode indicar a transformação da identidade pessoal depois de uma experiência que
transforma os valores até então adotados pelo indivíduo; ocorre uma inversão radical de
todos os valores sobre os quais está fundada a existência de Luke.
Luke, após ter uma visão, precisa ir ao encontro de um Mestre Jedi – Yoda. Yoda
também cumpre a função de ancião e conselheiro, porém é representativo de um aspecto
arquetípico da psique, o velho sábio, aquele que serviu de modelo a todos os Jedis. O
treinamento de Luke não se refere mais ao desenvolvimento de suas capacidades físicas
somente, mas também ao seu desenvolvimento moral e espiritual, de utilização da “Força” e
de confronto com si mesmo. Há uma ampliação da consciência de Luke, no sentido de se
vincular à Força, ao Centro, fato mostrado através de habilidades sobre-humanas e do seu
relacionamento com a qualidade representada por Ben, no fundo uma parte dele mesmo. Se
em um primeiro momento Ben só pode ser ouvido, agora ele já pode ser visto também e cada
vez mais com maior nitidez.
Durante o treinamento de Luke, ele entra em uma caverna na qual enfrenta Darth
Vader, mas, como ressalta Yoda, Luke só levou para a caverna aquilo que possui. Neste
sentido, ao se ver dentro da máscara de Darth Vader, Luke viu o aspecto ogro do pai, que é
um reflexo de si próprio, ou melhor, um aspecto da sua sombra. Para ele obter aquilo que
Campbell chama da sintonia com o pai é necessário levar a efeito o abandono do monstro
auto-gerado, ou seja, ele precisa entrar em contato com a própria sombra e a integrar. Essa
ação requer o abandono do apego ao próprio ego e nisto reside a dificuldade. Deve-se ter fé
em um pai misericordioso e confiar nesta misericórdia. Luke segue para um confronto com
Darth Vader, no qual fica sabendo que é filho dele. Segundo Campbell:
É o que ocorre com Luke ao não sucumbir e refutar as solicitações de Darth Vader de
se unir a ele, preferindo jogar-se no infinito. Agindo assim, Luke não deixa que Darth Vader
leve suas pretensões a termo.
Ao retornar ao sistema Dagoba, Luke cumpre a promessa feita a Yoda de revê-lo, mas
o encontra muito doente e a beira da morte. Diz que ainda necessita de treinamento, ao que
Yoda diz que não é treinamento, mas o que falta para ele se tornar um Jedi e cumprir sua meta
é se confrontar com Darth Vader, ou melhor, com seu pai. Quando o alvo do herói é a
descoberta do pai desconhecido, o simbolismo básico permanece sendo o dos testes e do
caminho auto-revelador. Já que aquilo que atua fortemente em Luke é a vida que seu pai
viveu.
Após a morte de Yoda, Luke conversa com Ben, descobrindo coisas a respeito de sua
infância e de sua origem. A criança do destino tem de enfrentar um longo período de
obscuridade. A infância trata-se de uma época de perigo, de impedimento ou desgraça
extremos. Normalmente, a gravidez, o nascimento, a concepção e a primeira infância do herói
são vividas de forma muito perigosa e arriscada. Os mitos concordam com o fato de ser
necessária uma capacidade extraordinária para enfrentar e sobreviver a essa experiência. São
abundantes histórias sobre infância marcadas pela força, pela inteligência e pela sabedoria
precoce. Não é incomum, como no caso de Luke, que o herói seja criado por pais substitutos –
tia Beru e tio Owen.
Também lhe é dito que possui uma irmã gêmea do qual foi separado ao nascer para
estar protegido de Darth Vader, do pai. Segundo Eliade (1960), o tema do casal de gêmeos é
bastante comum em muitas mitologias, o qual, em alguns casos, substitui o ancestral mítico
andrógino. O ancestral mítico andrógino é a idéia da bissexualidade universal, conseqüência
da idéia da bissexualidade divina, enquanto modelo e princípio de toda a existência. Nesta
concepção está contida a idéia de que a perfeição, o Ser consiste numa unidade-totalidade. A
bissexualidade ordena-se entre os prestígios da divindade por ser uma expressão exemplar da
potência criadora. A androginia é um sinal distintivo de uma totalidade originária na qual
todas as possibilidades se encontram reunidas, o Homem Primordial, ancestral mítico da
humanidade, é concebido em numerosas tradições como andrógino.
Ao se encontrar com Darth Vader, Luke afirma que aceitou a verdade de Anakin
Skywalker ser seu verdadeiro pai, além de dizer que ele não foi totalmente morto por Darth
Vader. Estamos lidando com processos de conversão. Vera Marques (2000), ao se referir aos
autores contemporâneos que trabalham com a questão da conversão religiosa, cita Saliba, para
o qual existem dois modelos de conversão: o ativo e o passivo. O ativo ocorre quando o
convertido é um indivíduo que procura ou é confrontando com uma nova fé, comprometendo-
se com ela por escolha própria, o que ocorre com Luke Skywalker. Já o passivo se dá quando
o indivíduo é persuadido a uma nova fé, sendo forçado a aderir a uma nova crença e fica
exposto a uma lavagem cerebral, podendo tornar-se uma patologia em alguns casos, o que se
dá com Anakin Skywalker ou Darth Vader. Os dois modelos de conversão implicam em uma
mudança de identidade.
O grande apogeu se dá quando Luke confronta-se não só com o pai, como também
com o Imperador. Durante esse último confronto, o problema do herói que vai ao encontro do
pai consiste em abrir sua alma além do terror, em penetrar em si mesmo, num grau que o
torne pronto a compreender de que forma as tragédias são completamente validadas pela
própria existência. O herói transcende a vida por um momento, contempla a face do pai e
compreende – fato que se deu quando Luke percebe que, como ele, o pai também perdeu a
mão e parte do braço. Segundo Leloup (1998), a mão está ligada ao conhecimento; através
dela é comunicado a energia do indivíduo, o seu coração e até algo maior que ele e que não
lhe pertence.
Assim, os dois entram em sintonia. Para o filho que cresceu o suficiente para conhecer
o pai, as agonias da provação são prontamente suportadas, o que faz com que Luke abdique
da luta com o pai e não cede ao Mal. Esta é a provação suprema: perder-se, doar-se a algum
objetivo mais elevado, a outrem, quando se deixa de pensar prioritariamente em si mesmo e
em sua autopreservação, optando por morrer a sucumbir ao mal. Passa-se por uma
transformação da consciência verdadeiramente heróica. A consciência se transforma pelas
próprias provações ou por revelações iluminadas. Isso se dá não só com Luke, mas também
com Anakin, que neste momento comete o seu grande ato heróico e pode ser redimido.
René Girard (1998), ao falar sobre Jesus Cristo, diz que ao se recusar a revidar a
violência, o Cristo mostra a crise sacrificial pelos olhos da vítima, mostra a impossibilidade
desse assassinato trazer a paz para o grupo. Os sacrificadores são perdoados e a humanidade
recebe um modelo, que ao ser seguido trará a verdadeira paz. O dar de si é também receber.
Quando Jesus se oferece, Ele se oferece como exemplo, exemplo de que todos devem se dar a
Deus, para que possam receber, em amor, a verdadeira vida. Luke segue o modelo inaugurado
por Jesus Cristo de se doar a um outro.
No momento final ocorre o que Eliade (1960) chama de coincidência dos opostos ou o
mistério da totalidade: moderno e primitivo, branco e negro, céu e terra, pai e filho, trabalham
em harmonia formando uma só unidade, na qual os opostos são abolidos e convivem em uma
sintonia harmônica. Segundo ele, numerosas crenças que implicam a coincidentia
oppositorum trazem a nostalgia de um Paraíso perdido, a nostalgia de um estado paradoxal no
qual os contrários coexistem sem se confrontar e onde as multiplicidades compõem os
aspectos de uma misteriosa Unidade. Todos estão interligados e dependentes e apenas a união
dos opostos, apenas esta misteriosa Unidade, retratada no filme, foi capaz de combater e
destruir o Mal.
O que é preciso aprender é viver no tempo que nos coube viver, como verdadeiros
seres humanos; faz-se isso mantendo-se fiel aos seus próprios ideais, como Luke Skywalker,
rejeitando as exigências com que o sistema o pressiona. O Ego é uma das partes da psique e
não a totalidade da personalidade.
Luke não abandona o pai, mais do que isso, ele ritualisticamente queima Darth Vader.
Segundo Edinger, toda a imagem que contém fogo está relacionada à calcinatio, um processo
alquímico que envolve um intenso aquecimento de um sólido, para com isso retirar a água e
todos os demais elementos passíveis de volatização, restando apenas um fino pó seco. “O
fogo da calcinatio é um fogo purgador, embranquecedor. Atua sobre a matéria negra, a
nigredo, tornando-a branca.” (Edinger, 1985, pg. 45). Referindo-se ao texto The Twelve Keys,
de Basil Valentine, que aborda a morte e calcinação do rei que, após uma descida ao inferno,
renasce num estado purificado. Edinger afirma que a morte do rei é um tempo de crise e de
transição, significando a morte do princípio que rege a consciência.
Após a batalha ganha, observa-se uma festa de comemoração, que atinge todos os
lugares, e na qual todos alegremente comemoram e se abraçam, representando que o mal foi
vencido. Em um dos lugares é derrubada uma estátua de Darth Vader, que como um totem,
não necessita mais ser cultuado. Há liberdade para que cada um possa realizar a sua própria
jornada, reverenciando a deuses que lhe são próprios. Por fim, segundo Campbell (1949),
descobre-se que o próprio herói é aquele que o herói veio encontrar, ou seja, percorrida a
jornada do herói, ele encontra a si mesmo. Tendo ultrapassado as desilusões do seu antigo ego
auto-afirmativo, auto-defensivo e voltado para si mesmo, ele conhece dentro e fora a mesma
tranqüilidade.
O confronto com o pai trouxe a ele a libertação da idealização infantil, para que ele
mesmo se tornasse homem e quem sabe, pai. A cada passo da jornada Luke vai se
confrontando com aspectos da sua própria personalidade e incorporando à sua consciência
aspectos anteriormente projetados em outras figuras masculinas como Ben, Yoda e Anakin.
Com o cumprimento da jornada esses aspectos apresentam-se disponíveis para a consciência
de Luke.
IV – Conclusão
Ao buscar responder a pergunta feita inicialmente do motivo pelo qual a saga Guerra
nas Estrelas faz tanto sucesso, utilizo uma frase dita por Joseph Campbell no vídeo O Poder
do Mito:
O filme Guerra nas Estrelas, em especial a trilogia é uma história velha com uma
roupagem nova. A história do jovem chamado à aventura, o herói que parte em
expedição para enfrentar tormentos e provações, e retorna, após a vitória, com
uma benção para a comunidade. Os filmes estão relacionados com os poderes da
vida e como eles se alteram pela ação dos homens. George Lucas serviu-se de
padrões mitológicos ao fazer os filmes. Pode-se dizer que Guerra nas Estrelas
corresponde à necessidade que os indivíduos possuem de um modelo de herói.
Isso pode ser traduzido pela necessidade que as pessoas tem de ver, em imagens
assimiláveis, o embate entre o bem e o mal. O fato de o poder do mal não estar
identificado com nenhuma nação específica, nesta terra, significa que você tem
um poder abstrato, que representa um princípio, não uma situação histórica
específica. (Campbell, 1997)
Para ele, este fato é que explica em parte o seu grande sucesso. A necessidade, ou
melhor, o modelo do herói que nos remete aos arquétipos do inconsciente coletivo. Segundo a
Psicologia Analítica, um arquétipo determina a forma das imagens transmitidas e duplicadas
ao longo das gerações sem uma variação substancial, servindo como uma espécie de modelo,
por isso chamados de idéias herdadas ou predisposição ou tendência inata da psique, no
sentido de criar uma imagem de caráter universal e uniforme. Algo vazio e puramente formal,
uma possibilidade de representação que é dada a priori. Tem-se o herói, que como um
arquétipo presente em todos nós, precisa empreender uma jornada, a qual será preenchida com
material pessoal de cada um:
Neste sentido específico, a figura do herói que se evidencia por intermédio do
simbolismo do processo de individuação. Jung a interpreta como imagem (talvez
a primeira imagem) do Si-mesmo, ou seja, como aquilo que com que o Eu deve
em primeiro lugar entrar em relação dialógica para constituir-se como indivíduo:
O herói representa o Si-mesmo inconsciente do homem, e este se revela
empiricamente como a soma e o conteúdo de todos os arquétipos, incluindo
também o arquétipo do pai e do velho sábio. (Pieri, 1998, pp. 221/222)
Segundo Campbell (1988), pode-se até afirmar que não existe senão um herói mítico,
arquetípico, cuja vida se multiplicou em réplicas. Se uma história representa o que se pode
chamar de uma aventura arquetípica, ela sempre ajuda a fornecer um modelo para
acompanhar o desenvolvimento do ser humano. Um herói lendário é normalmente o fundador
de algo, o fundador de uma nova era, de uma nova religião, de uma nova cidade, de uma nova
modalidade de vida. Para fundar algo novo, ele deve abandonar o velho e partir em busca da
idéia semente, a idéia germinal que tenha a potencialidade de aflorar algo novo.
Para tanto, ele saiu da proteção materna, identificou-se com o pai e assim pôde se
apropriar dos aspectos do princípio masculino, representados pela espada. Num primeiro
momento esses atributos lhe são entregues quando a espada de luz é dada a ele por Ben; num
segundo momento, após o cumprimento de algumas etapas da jornada, do desenvolvimento
pessoal e espiritual, e da integração de alguns conteúdos até então inconscientes. Luke pôde,
então, construir a sua própria espada de luz, uma vez que alguns desses atributos já lhe
pertenciam e estavam disponíveis para a sua consciência.
Luke deixa o mundo onde está e se encaminha na direção de algo mais profundo, mais
distante ou mais alto; então atinge aquilo que faltava à sua consciência, no mundo
anteriormente habitado. Luke deu a própria vida por algo maior que ele mesmo, sacrificando
suas próprias necessidades em benefício dos outros. Na sua jornada de herói, Luke executa os
dois tipos de proeza: a proeza física, em que pratica um ato de coragem durante a batalha e
salva uma vida; e a proeza espiritual, na qual aprende a lidar com o nível superior da vida
espiritual humana e retorna com uma mensagem.
V – Referências Bibliográficas
Livros:
BECKER, Udo (1992). Dicionário de Símbolos. Tradução Edwino Royer. São Paulo: Editora
Paulus, 1999.
CAMPBELL, Joseph com Moyers, Bill (1988). O poder do mito. Tradução Carlos Felipe
Moisés. São Paulo: Editora Palas Atenas, 1990.
________________ (1949). O Herói de Mil Faces. Tradução Adail Ubirajara Sobral. São
Paulo: Editora Cultrix - Pensamento, 1997.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain (1982). Dicionário dos símbolos – mitos,
sonhos, costumes, gestos, formas, cores, números. Tradução Cristina Rodrigues e Artur
Guerra. Lisboa: Editora Teorema, 2002.
EDINGER, Edward (1985). Anatomia da Psique – O simbolismo alquímico na psicoterapia.
Tradução Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Editora Cultrix, 1999.
ELIADE, Mircea (1945/47). O Mito do Eterno Retorno. Tradução Manuela Torres. Lisboa:
Edições 70, 1985.
______________ (1960). Mefistófeles e o Andrógino. Tradução Ivone Castilho Benedetti. 2a
edição, São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999.
GAMBINI, Roberto. Espelho Índio – A formação da alma brasileira. 2a edição, São Paulo:
Editora Axis Mundi / Terceiro Nome, 2000.
GIRARD, René. A violência e o sagrado, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
JUNG, Carl Gustav (1945). O Desenvolvimento da Personalidade. Tradução Frei Valdemar
do Amaral. 5a edição, Petrópolis: Editora Vozes, 1986.
LELOUP, Jean-Yves. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. Organização
Lise Mary Alves de Lima. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
MARQUES, Vera Lúcia Maia (2000). Conversão ao Islam: o olhar brasileiro, a construção
de novas identidades e o retorno à tradição. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica,
2000, (Departamento de Ciências Sociais, Dissertação de Mestrado).
MULLER, Lutz (1987). O Herói: todos nascemos para ser Heróis. São Paulo: Editora
Cultrix, 1992, Coleção “A magia dos mitos”.
PALMER, Michael (1997). Freud e Jung – Sobre a religião. São Paulo: Edições Loyola,
2001.
PIERI, Paolo Francesco (1998). Dicionário Junguiano. Tradução Ivo Storniolo. São Paulo:
Editora Paulus, 2000.
Vídeos:
O Poder do Mito – Entrevista de Bill Moyers com Joseph Campbell. TV Cultura. São Paulo,
1997.
Star Wars – Episódio I – A Ameaça Fantasma. Dir. George Lucas. Lucas Filme Ltd. EUA,
2000.
Star Wars – Episódio IV – Uma Nova Esperança. Dir. George Lucas. Lucas Filme Ltd. EUA,
2000.
Star Wars – Episódio V – O Império Contra-ataca. Dir. George Lucas. Lucas Filme Ltd.
EUA, 2000.
Star Wars – Episódio VI – O Retorno de Jedi. Dir. George Lucas. Lucas Filme Ltd. EUA,
2000.
Sites:
- http://www.starwars.com
- http://www.theforce.net
- http://www.novarepublica.com.br/jedisampa
O SONO PARADOXAL E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO
Carlos Bein1
Sonhar é um fenômeno que sempre fascinou o ser humano. Durante a noite, somos
transportados para outro mundo, onde podem acontecer as coisas mais maravilhosas. Podemos
realizar façanhas inimagináveis, ser transportados a lugares extraordinários, subir aos céus ou
descer aos infernos, interagir com deuses ou diabos, nos encontrar com pessoas que já
morreram… Todo esse mundo de experiências fantásticas contrasta com a imobilidade da pessoa
que dorme. Aparentemente, aquele que está sonhando deixou de viver. Não resulta difícil
entender que na Antigüidade se pensasse que o sonho permitia enxergar além da morte e entrar
em contato com os antepassados e os deuses. Assim também na mitologia grega, Hypnos, deus
do sono, era irmão gêmeo de Tânatos, a morte.
O descanso foi outra experiência logo associada ao sono e, certamente, hoje em dia
ninguém questiona que este seja uma das suas principais funções. Mas é também um fato da
experiência comum que, em noites nas quais se sonha muito, a pessoa acorda cansada.
Acordamos cansados quando dormimos em excesso e a sabedoria popular aconselha a não
dormir mais do que o necessário. Hoje sabemos que isso é porque nas últimas horas do sono é
quando se produzem mais sonhos, e que sonhar cansa.
Em parte devido a isso, em parte também pela própria experiência do sonhar ter muito em
comum com a consciência da vigília, com freqüência tem se entendido o sonho como um estágio
intermediário entre o sono e a vigília. Assim, por exemplo, Alfred Maury (1817-1892)
considerava o sonho como uma semi-vigília. A própria concepção freudiana do sonho como
guarda do sono encaixa-se dentro dessa idéia, já que um guarda precisa estar vigilante.
Eletrofisiologia do sono
Ao longo do século XX estas idéias foram se modificando. Em meados dos anos 30, graças
à novidade que representou a eletrencefalografia, Alfred Loomis, fisiologista na Universidade de
Princeton, estudou o eletrencefalograma (EEG) de uma pessoa dormindo e descobriu que,
1
Psicólogo clínico, especialista em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo
Instituto Sedes Sapientiae.
quando dormimos, o cérebro não descansa; pelo contrário, permanece ativo, portanto em nada
semelhante a um cérebro morto.
Um segundo grande passo no conhecimento da fisiologia do sono foi dado por Aserinsky e
Kleitman, da Universidade de Chicago. Há muito tempo se sabia que durante o sono produzem-
se movimentos dos olhos. Nos anos 50, esses pesquisadores registraram graficamente os
movimentos oculares e comprovaram que correspondiam a uma pauta de ondas rápidas no EEG.
William Dement, assistente de Kleitman naquela época, chamou a esse estágio em que se
produziam esses movimentos oculares como sono REM ou dos movimentos oculares rápidos
(rapid eye movements), para distinguí-lo do outro estágio, o não-REM.
Nos seres humanos, uma noite de sono costuma-se dividir em ciclos de 90 a 110 minutos,
cada um deles formado por quatro fases ou estágios, que correspondem a atividades elétricas
cada vez mais lentas (por isso lhe é dado também o nome de sono lento) e de maior voltagem do
cérebro. Essas diferentes fases não são acompanhadas de movimentos oculares. Quando se
desperta uma pessoa durante o sono lento ou não-REM, raras vezes ela lembra de estar
sonhando, ou pelo menos os sonhos que lembra têm um caráter menos vívido. O estágio 1 é o
curto e leve adormecimento que tem lugar ao se iniciar o sono; os níveis 3 e 4 são os de sono
profundo ou sono Delta, por ser este o nome das altas e amplas ondas que nele se registram, e o
nível 2 é um sono médio, ainda pouco conhecido que ocupa a metade ou mais de todo o período
de sono noturno.
As fases de sono lento estão entrecortadas pelo surgimento da já mencionada fase REM,
caracterizada por uma atividade cortical rápida, idêntica à da vigília, acompanhada de
movimentos oculares rápidos. Aproximadamente 20% do sono dos humanos é de tipo REM. O
primeiro período REM que se produz durante o sono é o mais breve e dura aproximadamente 10
minutos; os seguintes duram entre 20 e 40 minutos.
O sonhar não-REM
Destes primeiros estudos foi concluído que o sonhar só acontecia na fase REM, sendo o
não-REM um "sono sem sonhos". Fizeram-se estudos nos quais eram registrados os EEGs de
pessoas dormindo, às quais se despertava em diferentes fases do sono e se lhes perguntava se
estavam sonhando. Foram muito freqüentes os relatos de sonhos quando as pessoas eram
despertadas durante a fase REM, enquanto o despertar no período não-REM usualmente não era
acompanhado de lembranças de sonhos. Este fato parecia confirmar a idéia do sono REM como
próximo à vigília, sendo os sonhos as primeiras manifestações da consciência num estágio
intermediário entre esta e o sono. De todo modo, estudos posteriores mostraram que durante o
sono lento também se sonha, só que os sonhos desta fase têm características diferentes dos que se
produzem durante a fase REM. Comparadas com as lembranças dos períodos REM, as do sono
lento são geralmente menos ricas, menos vívidas, menos visuais, sujeitas a um maior controle da
vontade, mais semelhantes com os pensamentos da vigília e mais ligadas ao cotidiano. Isso foi
descoberto quando, em lugar de perguntar às pessoas acordadas durante o sono lento: "você
estava sonhando?", perguntava-se: "você estava pensando em alguma coisa?". Obtiveram-se
deste modo um número muito maior de "lembranças oníricas" do que em pesquisas precedentes.
Aclarado isso, quando neste artigo falarmos em sonhar, estaremos nos referindo ao sono REM.
Ao ver que as ondas cerebrais do sono REM eram iguais às da vigília, Kleitman, Aserinsky
e Dement o equipararam à fase 1 do sono lento. Pensaram assim: a fase 1 é a primeira fase do
adormecimento, as ondas cerebrais são mais rápidas do que as das fases 2 a 4, portanto é uma
fase que conduz da vigília ao sono (descending stage one ou primeiro estágio descendente). Se
entre a vigília e o sono há uma fase intermediária, a descending stage one, o sono REM, de
ondas cerebrais rápidas, deve ser o estágio intermediário correspondente entre o sono e a vigília.
O sono REM passou assim a ser chamado emerging stage one, ou primeiro estágio emergente.
Em outras palavras, continuavam achando que o sono REM era um sono superficial,
próximo ao despertar, pois, de fato, a atividade elétrica do cérebro durante esta fase é idêntica à
da vigília.
O sono paradoxal
Individuação
Jouvet propõe uma hipótese sobre a função do sonhar, segundo suas próprias palavras
"pessoal e rebatível e, portanto, não científica" (Jouvet, 1992, p.47).
Segundo essa hipótese, durante o sono paradoxal entraríamos em contato com as nossas
raízes instintivas e as treinaríamos nesse cenário fictício que é o sonho para tê-las disponíveis
caso precisássemos delas, mesmo em ausência de uma solicitação ambiental para se produzirem.
O organismo precisa saber como fazer tudo o que é essencial para sobreviver antes mesmo de
produzir esses atos. A necessidade desses treinos, para o organismo, estaria em que o sistema
nervoso é sumamente plástico e as conexões neuronais facilmente são modificadas pelas
influências do ambiente. Sonhar reforçaria periodicamente conexões neuronais responsáveis pela
herança psicológica para mantê-las funcionais. Deste modo, poderiam se restabelecer
determinados circuitos que teriam sido alterados por acontecimentos epigenéticos.
Mas esses comportamentos geneticamente pré-programados não se limitam, nos animais
superiores e mais ainda nos seres humanos, àqueles estereotipados, compartilhados por toda uma
espécie, que normalmente são chamados de instintos. Pelo contrário, a variabilidade individual é
vantajosa para os animais superiores e está contida no seu programa genético: que existam
indivíduos com qualidades individuais diferentes, predispostos a reagir de um modo
diferenciado, permite uma maior possibilidade de dar resposta a diferentes características do
ambiente, assim como às mudanças que dele possam sobrevir. Portanto, abre-se uma maior
possibilidade de sobrevivência para a espécie. Jouvet chama de individuação a essa diferenciação
individual e, segundo ele, os sonhos teriam a função de desenvolvê-la. Assim, durante o sonho
poder-se-ia efetuar um infinito jogo combinatório entre a herança psicológica e os aprendizados
adquiridos durante a vigília, disponibilizando novas estruturas de pensamento, que permitiriam
enfrentar novos problemas.
Para apoiar esta hipótese, Jouvet cita, entre outros exemplos, o fato de que, nos gulag da
antiga União Soviética, administravam-se, aos dissidentes políticos, psicofármacos que
suprimiam o sono REM. Certamente, as pessoas que não sonham esquecem da sua
individualidade e se adaptam melhor ao ambiente ideológico. O fracasso histórico em mudar o
ser humano mudando o ambiente que o envolve deve-se, segundo Jouvet, ao fato de que as
pessoas nunca deixaram de sonhar. Muita propaganda tem sido vertida, muitos foram fuzilados
para convencer outros a "pensarem bem", mas as pessoas seguem sonhando e sustentando
opiniões diferentes.
Referências Bibliográficas
BOLA
Sua forma é perfeita, qualquer que seja o seu tamanho. Todos os pontos de sua
superfície convergem para o centro, sempre a uma mesma distância. A primeira experiência
com uma bola é um extraordinário aprendizado, é uma experiência quase numinosa. A bola
apresenta-se como algo em si, que só pode ser descrito como... uma bola. O menino, então,
ao segurá-la, percebe através das mãos a sua superfície harmoniosa, homogênea,
arredondada, mede o seu tamanho e sente o seu peso. Pode ser completamente lisa ou ter
desenhos, ou ainda, quando é de couro, possuir gomos justapostos. O menino também sente
o seu cheiro, que pode ser peculiar, como o da borracha ou do couro, ou ainda inodoro,
como as bolas de plástico. Mas o momento perceptivo culminante é o de movimentá-la e
fazê-la girar ou rolar, atirá-la ao chão e vê-la saltar ou correr. E lançar-se atrás dela e
segurá-la novamente com as mãos.
Existem muitos jogos que se fazem com a bola, utilizando-se as mãos, os pés e até
a cabeça. Jogos que se fazem de modo cooperativo ou solidário, como o simples exercício
no qual um grupo de meninos jogam a bola um para o outro sem deixá-la cair, ou jogos
competitivos, que se fazem com os pés ou com as mãos, com contato corporal ou não,
movimentando-se e correndo pelo campo, pela quadra ou guardando posições, existindo
assim um grande número de possibilidades.
O futebol é o esporte com bola mais praticado pelo menino brasileiro, por isso
falaremos um pouco sobre este. Com bem pouca idade, o menino geralmente já sabe chutar
a bola e tenta sozinho mandá-la com os pés o mais longe possível; conforme se completa o
seu desenvolvimento neuromotor, acresce aos exercícios de força outros de habilidade,
através dos quais tenta acertar a bola em locais específicos ou equilibrá-la com os pés sem
deixá-la cair ao chão (fazer “embaixadas”). Quando inicia-se a fase de socialização, os
meninos brincam ou jogam entre si com bola. Mas nem sempre as primeiras bolas são as
ideais: quando não se tem estas, os meninos inventam e utilizam-se de substitutos para
jogar futebol, como tampinhas de garrafa de refrigerante (aquelas antigas, de lata), bolas de
meia, bolas de papel; já vi meninos jogarem, inclusive fazendo rolar e equilibrar nos pés,
batatas, frutas, côco seco e outros objetos, perecíveis ou não-perecíveis.
Ver o menino brasileiro jogar futebol pode ser um espetáculo bastante gratificante.
Este esporte, que ele aprende bem cedo, é praticado em todos os terrenos, como na areia,
em campos gramados, na rua ou nas calçadas, em terrenos baldios (“terrões” ou “areiões”),
em quadras esportivas, no quintal (às vezes até na sala – os bibelôs!) de casa. Em nosso
país, a habilidade no manejo da bola é valorizado, em detrimento da velocidade ou da força
física, e os meninos já pequenos aprender a “gingar” o corpo, a aplicar dribles
desconcertantes (jeito malicioso de ludibriar o adversário com a bola nos pés), a controlar a
bola com as pernas, peito e cabeça, elevando a sua auto-estima e afirmando-se junto aos
companheiros. O domínio da bola com os pés chega a ser mais importante até do que
marcar gols. Mas, embora nem sempre o gol seja o fator mais destacado, aqueles que são
mais habilidosos geralmente jogam na frente (no ataque) e os “grossos” vão para a defesa
ou vão ser goleiros (quase sempre os “bodes expiatórios”: são os culpados quando o time
perde). Infelizmente, toda alegria e criatividade de nossos pequenos tricksters moleques
acaba por ser sufocada, se efetivamente o menino tornar-se um jogador de futebol, pelos
interesses políticos e econômicos dos responsáveis pela organização desse esporte
(geralmente, aqueles que na infância eram tão “grossos” que nem lugar no time tinham e
foram tornar-se dirigentes...).
BOLINHAS DE GUDE
CAVALINHO DE PAU
Pode ser somente uma haste de madeira, ou um cabo de vassoura: o cavalo reside
na imaginação do menino. Mas fazem-se também belos cavalinhos, acoplando-se à haste
uma cabeça de cavalo esculpida em madeira, às vezes com crina e tudo. Nos mais
elaborados, prende-se a cabeça do cavalinho com um par de rédeas e está pronto o
veículo/brinquedo/animal com o qual o menino sai trotando, explorando os espaços,
trepando ou pulando os obstáculos e enfrentando os dragões. Algumas vezes, a brincadeira
completa-se com uma espada na mão direita (o cavalinho é seguro pelas rédeas com a mão
esquerda) e um exército de terríveis inimigos é completamente abatido.
Já vi cavalinhos de pau com uma ou duas rodinhas na parte traseira, parece que
representando a metamorfose do cavalo num automóvel. Os cavalinhos podem passar por
ônibus, também, mas no passado foram bois, como o boi-bumbá da Amazônia ou o bumba-
meu-boi de quase todo o Brasil. Como boi, ele participa ou participou de muitos folguedos
populares, e é reverenciado quase como uma divindade. Houve uma época em que
efetivamente o boi foi um deus, que rugia no céu como um trovão. Mas o bumba-meu-boi é
uma figura simpática, também feita com pau e panos, que avançava divertidamente para
cima dos brincantes que se espalhavam pelas ruas do passado até ser dominado pelo Pai
Francisco e oferecido para a Mãe Catirina nos ciclos de festas de Natal do nordeste
brasileiro.
A brincadeira do menino com o cavalinho de pau também remete à época em que
os seres humanos e os animais muitas vezes eram uma coisa só, como os centauros da
antiga Grécia. Neste caso, o animal emprestava toda sua energia e vitalidade (e a força das
coxas) à inteligência do homem. Um destes centauros, o bondoso Quíron, foi o primeiro
médico de que se tem conhecimento.
CORDA
Menino também gosta de pular corda! Duas pessoas, uma de cada lado, "batem”
ritmadamente a corda, e o menino entra no meio e exibe todo o seu extraordinário potencial
neuromotor, saltando e enfrentando as dificuldades que lhe são impostas através da
aceleração do movimento. Às vezes este jogo é coletivo, entrando para saltar vários
brincantes, que devem ter seus movimentos perfeitamente sincronizados para que nada saia
errado. Neste caso, é válido e até divertido brincar com as meninas, principalmente pelos
gritos e risadas que elas dão quando elas mesmas erram.
São associadas a esta brincadeira várias cantigas, ladainhas ou chulas que ajudam
a organizar os movimentos, a descrever o nível de dificuldades que os participantes devem
enfrentar ou a definir a punição a ser dada àqueles que tropeçam na corda. Entre as
meninas, tem a brincadeira das letras, pronunciando-se uma letra do abecedário a cada
salto, sendo que a correspondente ao salto errado denunciará qual é a inicial do nome do
namorado.
Mas os moleques utilizam-se da corda também para outras finalidades, mais
masculinas, inclusive, como o cabo-de-guerra. Brincadeira tipicamente de meninos, de
medição de força, que afirmará o grupo que conseguir arrastar o outro até um ponto
previamente determinado, que é assinalado no chão. Algumas vezes, quando os grupos
oponentes se equivalem, a brincadeira pode arrastar-se por longos momentos, prevalecendo
o grupo com maior capacidade de concentração ou de definir uma estratégia. A brincadeira
torna-se divertida quando um dos grupos cai no chão, um participante em cima do outro...
No cabo-de-guerra, cada menino realiza o seu trabalho de Hércules, somando a sua
força à da turma, com as mãos firmemente presas à corda, que paradoxalmente une ambos
os grupos em disputa que a puxa para lados opostos.
Com a corda também se faz o laço, prende-se a balança (que inclusive pode ser a
própria corda), amarra-se o bandido, ata-se e desata-se como fazia Hefesto quando os seres
humanos conviviam com os deuses.
ESPIGA DE MILHO
Talvez pareça estranho ao leitor a inclusão deste cereal no rol dos brinquedos, mas
na realidade ele já foi muito importante e popular em nosso país. A espiga ou sabugo de
milho foi utilizado como brinquedo (e objeto de projeções lúdicas) pelas três principais
etnias formadoras de nossa cultura. Os curumins ameríndios, os filhos de escravos negros e
os dos brancos socializavam as brincadeiras com as espigas de milho, caracterizada pela
justaposição seqüencial e organizada dos grãos amarelos ou claros, envoltos pela palha que
recobre a espiga e o “cabelo” do milho, que projetava-se de uma de suas extremidades.
Estas características eram exploradas pelas crianças, que procuravam descobrir a parte
oculta (os grãos) abrindo a palha, trançar os seus cabelos e debulhar o milho. Mas o sabugo
prestava-se a muitas outras projeções do imaginário infantil, que variavam de acordo com a
origem étnica e cultural do menino, conforme se pode observar através das lendas, do
folclore e de contos infantis.
O uso do sabugo de milho como brinquedo mais conhecido que se tem talvez seja
aquele que fez dele um boneco, situação que foi imortalizada por Monteiro Lobato através
de um dos personagens mais importantes de sua literatura, o Visconde de Sabugosa. O
cabelo do milho aparecia na cabeça de sua protagonista mais popular, a boneca de pano
Emília. Esses personagens humanizados compartilhavam ainda a sua essência através dos
quitutes de fubá que eram feitos por Tia Nastácia. Ainda hoje, se oferecermos uma espiga
de milho para um menino, certamente ele irá mergulhar num rico e inesgotável universo de
imagens e sensações, percepção de texturas e construção de realidades internas, que
fomentarão a sua capacidade criativa e inventiva.
MINIATURAS
Através deste brinquedo o menino domina o ar. Os mais comuns são feitos com
papel de seda, afixado em taquaras amarradas com linhas e completado com uma cauda na
parte posterior, também feita de papel ou de pano. O papagaio é preso a um cordel, que o
liga à mão do menino. Seu formato e suas cores variam, conforme a imaginação e
criatividade do seu construtor.
As crianças chinesas (e adultos também) já empinavam papagaios ou pipas pelo
menos dois séculos antes do nascimento de Cristo. Seu uso era comum em outros lugares
da Ásia, até que os portugueses o trouxeram para o Brasil, onde encontrou uma extensa
área e agradáveis alísios para se manter no ar.
Para empinar o papagaio, o menino corre um pouco, com a cabeça voltada para
trás, soltando gradativamente a linha ou o cordel, que sustenta com a mão dominante. Se
encontrar uma boa corrente de ar, o papagaio sobe rapidamente, e a sua sustentação no ar
dependerá da capacidade ou da arte do menino manejar a linha. Eu já vi, em bairros
periféricos de São Paulo, moleques empinando pipas em pequenas áreas situadas na laje
que serve de telhado para a casa onde moram. Ou no canteiro central de avenidas de tráfego
intenso dos dois lados. A constrição do espaço urbano abre-se para a vastidão celeste.
Lembro-me que, quando tive papagaios nas mãos, os meus pensamentos os
acompanhavam, voando juntos. Eu via o mundo de cima, divisava espaços que meus olhos
não atingiam, lugares que eu gostaria de conhecer. Chegava a sentir vertigem da altura,
imaginava poder conversar com os pássaros, tentava chegar próximo das nuvens. Sentia no
rosto o frescor da brisa que batia no papagaio lá em cima. Era frustrante quando o carretel
já tinha desenrolado completamente. Certa vez, aprendi a enviar “telegramas” através de
um pequeno pedaço de papel amarrado à linha. O cordel formava uma grande barriga, e o
papelzinho subia através dele levado pelo vento, até chegar no corpo do papagaio. Quando
ventava muito, aliás, o papagaio dava “cabeçadas”, que também podiam ser
intencionalmente provocadas, fazendo movimentos em oito no ar.
Existem situações em que os papagaios transformam-se em verdadeiros guerreiros,
lutando entre si até que o último prevaleça e domine os ares: o menino passa cerol (uma
massa feita com cola de madeira e vidro moído) na linha e habilidosamente corta as que
sustentam os outros papagaios-guerreiros. Em outra vertente destas batalhas, o menino
prende uma lâmina na cauda do seu papagaio, com a qual tentará cortar a linha que sustém
os outros. Mas qualquer das duas versões tornam-se muito perigosas nos meios urbanos ou
nas mãos de meninos que não conhecem as regras das batalhas aéreas, pelos acidentes que
podem causar.
Observamos acima que os papagaios correspondem aos pensamentos e tornam-se
guerreiros. No mundo hispânico eles também são cometas. Na China foram espiões. Com
um deles, especialmente preparado, Benjamin Franklin dominou os raios. Mas eles são
também interlocutores dos anjos, conversam com os pássaros, aproximam-se dos deuses.
Podem ser ricamente trajados de seda ou humildes como o capucheta, que é feito de jornal.
Nas praias do Brasil, vaidosamente, desfilam suas cores, formatos e desenhos criativos.
Tornaram-se até garotos-propaganda.
PIÃO
RODA
Quem já viu algo mais moleque do que o menino descalço correndo pelo mundo,
segurando uma haste de arame com a extremidade torta em “u”, empurrando uma roda?
Para onde se dirige este menino? Será que é ele mesmo que conduz habilidosamente a roda
ou é por alguma força extraordinária condicionada a esta, conduzido?
A roda pode ser um pneu, ou uma roda de bicicleta, às vezes é só um aro de arame.
É suficiente para definir o veículo com o qual o menino conquista o mundo, passa por cima
de obstáculos, faz curvas, aposta corridas, torna-se seguro para penetrar em locais
desconhecidos. Infelizmente, com tantos carros nas ruas, tornou-se raro encontrarmos o
menino com a roda, sobrevivendo alguns nos morros ou na periferia das cidades.
Mas existem outras rodas que atraem os meninos: as rodinhas dos brinquedos,
aquelas das engrenagens do relógio de corda ou qualquer outra que possa simplesmente ser
girada, girada. O menino gosta mesmo é de rodar.
OUTROS BRINQUEDOS
Na falta de mais espaço, não posso deixar de citar alguns outros brinquedos que
também foram importantes em minha vida; seria impossível arrolar todos, o que dizer sobre
os brinquedos de todos os meninos do mundo, em todos os tempos... mas é agradável falar
sobre possibilidades infinitas!
No mês de junho, nas festas de final de ano e nas épocas de jogos do Brasil em
Copa do Mundo, o céu de São Paulo enchia-se de BALÕES. Eles eram multiformes e
multicoloridos e conduziam mensagens, sonhos e ideais, iluminando os céus. De noite,
somavam-se às estrelas. A sua leveza tornava-nos igualmente leves, e (e)levava-nos a
acompanhá-los por também querer saber coisas sobre o destino. Para onde vão os balões?
Também era de bom agouro quando eles caíam perto de nós. Mas, em contrapartida, muita
mata foi queimada, e à medida que a cidade cresceu, muitos incêndios foram provocados,
por isso eles desapareceram dos céus. Mas continuam acesos nos nossos sonhos de menino.
Também não posso deixar de falar sobre alguns veículos que transportavam o
menino de algum lugar qualquer para não sei onde: o regozijo que era (e ainda é) quando
ele equilibrava-se pela primeira vez pedalando a sua BICICLETA; a alegria de deslizar
suavemente pelas ruas ou salões calçando PATINS; a intensidade sensorial que é estar
deitado sobre um CARRINHO DE ROLEMÃ, ouvindo o som áspero de suas rodas
metálicas (feitas com rolamentos de automóveis), percebendo o chão passar velozmente a
um palmo abaixo do nariz e desviando o rosto das fagulhas que o atrito das rodas com o
chão provocavam nas curvas. O PATINETE dava muito trabalho nas subidas, mas a
vertigem que provocava na hora da descida compensava o esforço.
No pátio ou imediações das escolas, nos horários livres ou gazeteando,
encontravam-se outras confrarias de meninos trocando FIGURINHAS ou “batendo bafo”.
Figurinhas de jogadores de futebol eram as prediletas dos meninos, mas existiam também
figurinhas de animais, de filmes da Disney, de automóveis do mundo. As de artistas eram
preferidas pelas meninas. Se não se tomasse cuidado, podia ser que um diabinho passasse
correndo e...cata-deixa! Era uma vez um bolo de figurinhas!
O menino também brincava com DADOS (que levava no bolso da calça), matava
passarinhos com ESTILINGUE (quando não era politicamente incorreto – argh! - viver-se
“o Caçador”), soltava ROJÕES, BUSCAPÉS e outros fogos nas festas juninas, usava
MÁSCARAS e guerreava com água e farinha nos Carnavais, e às vezes até consentia-se em
jogar PETECA com as meninas.
Alguns brinquedos aparecem ou apareciam em temporadas e depois sumiam,
perdendo-se no armário de brinquedos ou em alguma gaveta de trecos. Era o caso do IÔIÔ,
do BAMBOLÊ; alguém já ouviu falar do PULA-PULA? E as ARGOLINHAS?
Tendo referido sobre os brinquedos de menino na terceira pessoa, este menino, na
realidade, simboliza todos OS MENINOS, inclusive aquele que está ora adormecido, ora
desperto, mas que também compartilha da mesma essência, a ser referido na primeira
pessoa. E que este possa assim ter estabelecido um diálogo singelo e sincero com aqueles,
enfatizando a importância dos brinquedos na construção do corpo, na estruturação da
psique e na passagem de uma infância feliz.
A CEGUEIRA DE GANDHARI 1
Maria Helena R. Mandacarú Guerra2
1
Agradeço ao Dr. Carlos Byington o convite para participar de suas aulas sobre Cultura Indiana ministradas pelo
Dr. Mário Ferreira. Este artigo é fruto de nossas discussões.
2
Psicoterapeuta junguiana, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, coordenadora do
curso de especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Abordagem Corporal, no Instituto
Sedes Sapientiae.
Alteridade. Este arquétipo nos coloca diante de um novo paradigma ao propor a
coexistência e a interação dialética entre os dois pólos de uma mesma polaridade,
abrindo espaço para que se dê direitos iguais para a expressão das diferenças
(Byington, 1996).
Hoje, para muitos já é natural considerar que homens e mulheres, negros e
brancos, ricos e pobres, tenham os mesmos direitos. A constatação de que a nossa
Consciência, como espécie, vem se ampliando, nos enche de esperança quanto à
possibilidade de uma maior implantação do padrão de alteridade. É preciso reconhecer,
porém, que grande parte destas mudanças permanece ainda mais no âmbito das idéias
do que no das ações, mais virtuais que reais.
Para funcionarmos dentro da alteridade, que é o padrão de Consciência que
propicia uma relação dialética entre as polaridades, temos que nos deparar com
nossos valores, regras, convicções e revê-los a cada desafio, pois, ao contrário do que
ocorre freqüentemente no padrão patriarcal, não temos aqui uma resposta pré-
estabelecida e aceita como de validade universal. Aquilo que é considerado bom em
uma situação, pode não sê-lo em outra. Este fluxo constante entre certo-errado, bem-
mal, sim-não, para mencionar apenas alguns pares de opostos, faz com que sejamos
constantemente obrigados a nos rever e a considerar cuidadosamente cada resposta,
cada escolha, cada encruzilhada com que nos deparamos. Isto demanda um maior
exercício de nossa responsabilidade ética, ao mesmo tempo em que nos desafia
permanentemente.
O fato de não se conhecer de antemão a resposta para uma dada situação, e de
se perceber que, muitas vezes, não existe apenas um caminho único e correto a ser
seguido, nos desafia permanentemente a lidar dialeticamente com os paradoxos
inerentes à condição humana no caminho para o desenvolvimento e transformação da
Consciência e exige uma dedicação constante ao processo de elaboração simbólica.
No entanto, para caminharmos em direção a nós mesmos, temos que enfrentar
o paradoxo de sermos diferentes dos outros, embora profundamente iguais na nossa
humanidade arquetípica. Assim, na relação conjugal, por exemplo, ao mesmo tempo
em que devemos considerar o Outro, devemos nos levar em conta como indivíduos
únicos e singulares. A presença de polaridades opostas na Consciência, isto é, a
percepção não apenas da nossa luz, mas também da nossa Sombra, costuma gerar
grande tensão, e o resultado é que, muitas vezes, tombamos no meio do caminho,
desistimos de lutar, e tomamos partido de um dos pólos. Por exemplo, aceitamos os
valores coletivos porque dizer “sim” pode ser mais fácil, porque menos conflituoso.
Patriarcalmente, escolhemos uma polaridade, ficamos de um só lado, e assim nos
livramos do conflito, da tensão que é estar entre opostos; podemos até mesmo criar
uma Persona adaptativa que venha a favorecer a relação com o mundo externo, mas
certamente ficaremos mais empobrecidos, afastados de nossa verdade. A busca de
alteridade, de uma relação simétrica entre as polaridades, implica, portanto, no
confronto com a Sombra, no suportar paradoxos, na busca de valores próprios, e,
sempre também, na coragem de transgredir a tradição.
Como ocorre em qualquer vivência humana, a transgressão é uma função
psicológica que em si mesma não é boa nem má, criativa ou defensiva, mas capaz
tanto de estruturar a Consciência como de formar a Sombra (Byington, 2002). Quando
defensiva, a transgressão surgirá de modo sombrio, e o transgressor buscará levar
vantagem desrespeitando limites, sejam estes individuais ou coletivos. A transgressão
criativa, no entanto, fruto de reflexão e vivência, é baseada no sentimento e convicções
profundos de que este é o caminho que nos fará crescer, mesmo que seja mais difícil e
mais doloroso. A consideração cuidadosa consigo e com o outro é, portanto, elemento
fundamental para a transgressão criativa, que vem, portanto, impreterivelmente
acompanhada da ética. A função da ética, quando exercida dentro do padrão de
alteridade, coloca o Ego e o Outro lado a lado no que se refere à importância e ao
cuidado. Esta ética, denominada por Jung de Ética da Individuação, torna-se
inseparável da vivência de compaixão, do sentir com o Outro, ao mesmo tempo em que
é norteada pela fidelidade aos símbolos e ao processo de desenvolvimento. Por isso a
energia gerada pela tensão decorrente da transgressão é muito intensa quando
acompanhada da ética de alteridade.
Um psicoterapeuta experiente certamente está familiarizado com situações em
que o desenvolvimento do indivíduo está intimamente ligado a uma vivência
transgressora: um amor proibido, uma idéia que abala uma estrutura convencional, um
gesto que desafia a ordem estabelecida. O mesmo ocorre com os mitos que
expressam a vida cultural. Atos transgressores e revolucionários, simbolizados pelo
comer do fruto proibido, pelo roubo do fogo por Prometeu ou pelas pregações de Cristo
são apenas alguns exemplos de transgressões que marcaram um profundo
desenvolvimento da Consciência, ao mesmo tempo em que revelam as punições
destinadas àqueles que ousam transgredir: a exclusão, a tortura e até mesmo a morte.
Jung (1951) afirmava que o processo de individuação geralmente tem início com
um conflito moral, ou seja, a partir de uma vivência transgressora. Nesse caso, a
repressão do elemento transgressor nos deixa normatizados, dentro dos limites pré-
estabelecidos, convencionais, e, muitas vezes, aquém da capacidade criativa do
indivíduo. O desenvolvimento da Consciência rumo à realização da identidade mais
profunda, que nos impulsiona em direção à descoberta do sentido da vida através do
significado das experiências, é possivelmente o maior dos atos transgressores, e por
isso mesmo, requer o desenvolvimento da função ética.
Ao lado do imenso desenvolvimento tecnológico, aliado ao apelo para um
consumismo exacerbado, nossa Cultura fomenta o distanciamento de um contato mais
íntimo e profundo com nossa natureza e necessidades mais essenciais. Dentre nossas
grandes perdas está a dessacralização da vida. O sagrado foi sendo paulatinamente
confinado a templos que, mesmo assim, estão cada vez mais alijados da experiência
do numinoso e abertos para cultuarem valores materiais. O resultado é que a vida
passa a ser imediatista, dissociada do sagrado e da transcendência, pois cada vez
temos menos espaços que ofereçam às pessoas o contato com essa dimensão. Os
lugares numinosos, nos quais a presença de Deus se faz viva, estão cada vez mais
distantes da experiência cotidiana das pessoas, especialmente daquelas que vivem em
grandes cidades e que, com freqüência, não vêem o nascer nem o pôr-do-sol, nem as
estrelas, nem a lua, escondidos pela poluição.
Sem um espaço preservado no qual os ritos de passagem tenham lugar, onde
as iniciações possam ser levadas a cabo, em que um guia acompanhe a vivência de
crescimento e transformação na qual o sagrado se manifesta, o ser humano se aliena
de sua alma, de seu espírito, e, ao viver uma existência dominantemente profana,
perde o contato com seu próprio centro e com o significado essencial e redentor de
suas experiências.
A profanação da vida traz a falta de sentido, a sensação de vazio, de perda de
conexão com o significado da existência, e com isso, aniquila a alma. A sacralidade da
vida opõe-se à sua banalização, assim como a transgressão transcende a
normatização. Nossa Cultura, cada vez mais encurralada pelo consumismo e
materialismo, oferece ao indivíduo cada vez menos espaço para ele experimentar o
sagrado e elaborar o significado das vivências transgressoras criativas. Assim, cada
vez mais os consultórios dos analistas surgem como espaços para a vivência dos
símbolos confinados, que não encontram um lugar na sociedade.
Sacralidade e transgressão têm em comum o elemento de ruptura com o status
quo. Na verdade, como funções estruturantes criativas, o sagrado pode ser
profundamente transgressor, assim como a transgressão pode vir acompanhada de
uma vivência do sagrado, que conduz a uma experiência de totalidade e, portanto, não
subordinada ao Ego e a valores construídos aleatoriamente.
Nossa capacidade de elaboração simbólica, que Jung (1916) denominou Função
Transcendente, é a condição fundamental para a realização do nosso potencial
humano. É através dela que as experiências podem ser vividas com profundidade e
significado. Algumas dessas vivências, como o amor e a criatividade, são funções
estruturantes que podem ser extremamente transgressoras e sagradas, e que, ao
mobilizarem grande quantidade de energia, contribuem imensamente para a
estruturação, desenvolvimento e transformação da Consciência.
São inúmeras as vezes em que a vida nos coloca diante do binômio amor e
transgressão. Como psicoterapeuta, tive oportunidade de acompanhar vários
processos em que a pessoa é desafiada por vivências amorosas transgressoras
criativas que, ao lado do germe de uma nova Consciência, trazem também muita dor e
sofrimento. Com freqüência são as vivências amorosas as grandes fontes de estímulo,
de entusiasmo, de vida. Mas são também portadoras de angústias terríveis,
frustrações, medos e, em alguns casos, tornam-se inseparáveis da vivência do
sacrifício. Casos de amores proibidos são incontáveis, não apenas nos mitos e na
literatura, mas, sobretudo, nas vidas de cada um. Convém lembrar, no entanto, que
transgredir as interdições nem sempre equivale a realizar concretamente determinado
ato, podendo ser vividos como transgressores o sentimento ou pensamento, ainda que
não atuados. Isto quer dizer que a vivência da transgressão pode ocorrer de maneira
predominantemente subjetiva.
Por trazer geralmente um desafio ao coletivo e, portanto, ser associada ao erro,
e este à punição, a transgressão criativa pode vir acompanhada de medo, o que tolhe a
criatividade e o desenvolvimento da pessoa que, por isso, permanece aquém das suas
possibilidades.
Gostaria de ilustrar este tema com uma história retirada do épico hindu
Mahābhārata, um poema quinze vezes maior que a Bíblia, e composto por volta de 400
a 200 A.C. O título desta obra, A Grande História de Bhārata, pode ser traduzido
também como A Grande História da Humanidade. A estrutura deste poema é em
gavetas, ou seja, compõe-se de inúmeras histórias que vão entrando uma dentro da
outra, sendo que seu tema central é a grande batalha de Kurukshetra, travada entre
dois grupos de primos, para a sucessão ao reino, mas que afetará todo o Universo.
Dentre as personagens encontramos a princesa Gandhari, dada em casamento a
Dhritarashtra. Pouco antes de conhecê-lo, e também do casamento, ela fica sabendo
que seu futuro marido é cego. Gandhari decide então vendar seus olhos para sempre,
o que faz antes de conhecê-lo pessoalmente. Após o casamento, ela engravida e sua
gestação dura dois anos. Só consegue dar à luz depois que uma criada, a seu pedido,
bate com uma barra de ferro em seu ventre, de onde sai uma bola de carne,
indiferenciada. É instruída para dividir essa massa em cem, colocar cada parte em um
jarro e jogar um pouco de água fresca. É daí que nascem seus cem filhos.
Sua cegueira voluntária irá acompanhá-la até pouco antes da morte, quando
Dhritarashtra diz que ela havia se casado com ele sem saber de sua cegueira e que,
por isso, havia destruído sua vida. Ela responde que ele, a princípio, não acreditara que
ela pudesse não retirar a venda, e que também nunca lhe ordenara que o fizesse, nem
para ver seus filhos. Seu marido responde que sempre havia notado nela uma raiva, e,
nesse instante, manda que ela retire a venda. Ela reluta, mas obedece. Vê então a
paisagem, um rio, uma floresta e pássaros. Percebe que a floresta está incendiando.
Dhritarashtra diz a ela que fuja pelo rio, mas ela prefere dirigir-se à floresta e, juntos,
entram no fogo. Kunti, sua concunhada e mãe dos Pandavas, que guerrearam com
seus filhos, a acompanha. É o fim.
Está fora da proposta deste breve artigo uma abordagem mais extensa e
profunda de símbolo tão rico. Gostaria, no entanto, de chamar atenção para alguns
aspectos. O primeiro é o fato de Gandhari decidir vendar os olhos ao saber da cegueira
de Dhritarashtra. Se considerarmos este gesto em sua dimensão criativa, podemos ver
nele um ato de solidariedade, compaixão, desprendimento, abnegação e sacrifício. A
cegueira para o mundo externo pode simbolizar a abertura de horizontes internos, o
irromper de intuições frutos da introspecção, como é ilustrado pelos cegos videntes,
como, por exemplo, Tirésias. Temos também o símbolo da justiça, cega porque a todos
julga com equanimidade, sem qualquer distinção.
Porém, quando percebemos que a decisão de vendar os olhos vem depois de
Gandhari pensar que seu marido nunca a verá, nem suas vestes, seus cabelos, seus
lábios pintados, insere-se aqui um aspecto defensivo: ao se descobrir impossibilitada
de ser vista, decide, reativamente, não ver mais. Renuncia para sempre a um dom que
possui para igualar-se, passivamente, a uma condição mais limitada que a sua. A
cegueira de Gandhari expressa o cerceamento autoimposto quando nos nivelamos
com o Outro pelas restrições, em função da nossa dificuldade de transgredir
criativamente os limites determinados pela tradição, pela família, pelo parceiro ou por
nós mesmos. A cegueira de Gandhari simboliza também nossa alienação, nosso fechar
os olhos para a realidade da vida.
Gandhari é uma princesa indiana, proveniente de uma cultura na qual, ainda
hoje, predominam os casamentos arranjados, sobretudo nas castas mais altas. A
escolha é feita pelas famílias, e acontece de os noivos só virem a se conhecer pouco
antes do casamento. Faz também parte da tradição que o pai da noiva ofereça um dote
à família do noivo. Acrescenta-se a isso o papel cultural dado à mulher, que é o de
submissão total ao homem: primeiro ao pai, depois ao marido e, na falta deste, ao filho
ou ao irmão do marido. Assim, depois do casamento, a mulher passa a pertencer à
família do marido, freqüentemente morando junto com ela. Vemos, portanto, que dizer
“não” a um noivo prometido dentro de um contexto no qual o Self Cultural e o Self
Familiar interferem maciçamente no Self Individual deve ser tarefa inadmissível. A
submissão defensiva de Gandhari se revela quando ela recrimina Dhritarashtra por não
tê-la obrigado a tirar a venda. Ainda que junto com essa postura haja também uma boa
dose de agressividade que, projetada no Outro, irá responsabilizá-lo pela restrição e
limitação que se autoimpôs, Gandhari continua, porém, na mesma posição passiva,
pois reafirma sua falta de liberdade, iniciativa e autonomia ao mostrar que só teria
agido em obediência ao marido.
Possivelmente devido à tradição patriarcal, que ensina a mulher a se sacrificar
pelo Outro, por exemplo, na maternidade e no casamento, também no Ocidente esse
sacrifício defensivo é mais comum nas mulheres, que muitas vezes deixam de
desenvolver seu potencial criativo, de liberdade, autonomia, expressividade e
participação cultural ou social. A conseqüência de se escolher ficar aquém do próprio
potencial é estar permanentemente em débito consigo mesmo, gerando uma
insatisfação que se expressará das mais diferentes maneiras, como, por exemplo, pela
depressão, perda do sentido da própria vida ou sintomas físicos. Ao preferir o
conformismo à ousadia, a paralisia ao movimento, a acomodação à transformação, a
adaptação, submissão e obediência à transgressão, o desenvolvimento fica estagnado
ou bastante limitado. Isto é também simbolizado em Gandhari, cuja gravidez tem a
duração de dois anos e que só consegue dar à luz utilizando-se de violência. A
gestação prolongada revela a dificuldade em transcender-se e dar à luz algo criativo,
diferenciado. Quando estamos presos numa fixação, isso impede a transgressão
criativa, pois restringe a atuação do Ego a repetições de padrões já conhecidos. Essa
interpretação é confirmada quando seus cem filhos nascem indiferenciados e precisam
ser separados. Noventa e nove são homens e só a última é mulher. Isto ilustra o fato
de a mãe patriarcalmente reprimida resistir a criar e, quando o faz, tende a manter sua
criatividade indiferenciada e, em sua maior parte, dentro da hegemonia predominante
do homem.
Quando a pessoa não desenvolve seu potencial, ela prejudica não apenas a si
própria, mas também aos filhos e às pessoas que estão à sua volta, além de restringir
sua participação criativa no âmbito da sociedade e da cultura. Numa família, esta
dificuldade pode ser transmitida às gerações futuras. Ao escolher não enxergar,
Ganhari deixa de ver seus filhos, que crescem sem serem vistos pelo casal parental.
Esse estado indiferenciado com o qual nascem os filhos de Gandhari prolonga-se por
todo o épico e estão amalgamados na irritação, na infelicidade e no destempero de seu
primogênito, Duryodhana.
Não ser visto em suas necessidades produz, no ser humano, um efeito
profundamente deletério, pois o olhar do outro sobre nós é fundamental para o
estabelecimento da nossa identidade. Sabemos que a luz, elemento indispensável à
visão, é associada à Consciência. É também a visão o órgão dos sentidos que
possivelmente mais expresse um encontro de alteridade, pois permite que o Ego e o
Outro interajam de modo simétrico e simultâneo. Ao olhar o olhar do Outro, vejo e sou
visto, vou em direção ao Outro e também o acolho. Decidir não ver é privar-se desta
interação direta.
Ao escolher vendar os olhos e não se diferenciar do marido, Gandhari fecha os
olhos para o significado da cegueira dele dentro do Self Cultural da Índia antiga. Assim,
não pode se dar conta e contribuir para a elaboração do profundo drama que se
estende por todo o reino de Bhārata, condenando-se à alienação frente à história.
Vendando seus olhos concreta e metaforicamente, torna-se incapaz de perceber a
cegueira da civilização patriarcal, ficando passivamente aprisionada na escuridão do
Self Cultural e impedida de contribuir para quaisquer mudanças no âmbito coletivo. Dá
mostras disso quando projeta a sua Sombra em outra princesa e diz: “Draupadi, como
todas as mulheres, não se distingue de seu esposo”. Esta indiferenciação marcou sua
história, bem como a história das mulheres que se submetem cegamente à dominância
histórica patriarcal da cultura. A alienação, a cegueira, a impossibilidade de transgredir
a tradição, tudo isso contribui para a manutenção do status quo. Gandhari simboliza a
perpetuação da posição submissa da mulher, incapaz de revelar sua alma e de
expressar livre e plenamente sua criatividade.
Ao retirarmos a venda dos olhos de Gandhari e olharmos simbolicamente para a
cegueira do rei Dhritarashtra, aprofundamo-nos no enredo dramático do Mahābhārata.
O rei nasce cego porque sua mãe (Ambika), no momento da sua concepção, fechara
os olhos por não aceitar seu relacionamento com Vyasa. Seu marido falecera sem
consumar o casamento e, portanto, sem deixar herdeiros, e por isso Vyasa, meio-irmão
do marido, foi incumbido de substituí-lo. Embora tivessem a mesma mãe, o pai do
marido pertencia a uma linhagem nobre, um pai épico que remonta aos primórdios da
humanidade, enquanto que Vyasa é filho de um eremita andarilho e artista, sendo ele
mesmo um poeta e fruto de um casamento fora das regras. A cegueira de Dhritarasthra
expressa, portanto, um significado muito importante na relação conjugal entre o homem
e a mulher, pois é fruto do repúdio de sua mãe pelo seu pai. Nesse sentido, repudiar a
união com Vyasa simboliza a resistência de Ambika a transcender a tradição patriarcal
em direção à alteridade. De fato, Vyasa, o poeta que dita o Mahābhārata para que seja
escrito por Ganesha, o deus com cabeça de elefante, é a expressão, pela poesia e sua
dimensão metafórica, da criatividade da alteridade, da mesma forma que o poeta
Valmiki o fora ao ditar o Ramāyana, o outro grande poema épico da literatura indiana, o
qual abordei anteriormente (Guerra, 1988).
Gandhari, com seus olhos vendados aos significados de Dhritarashtra,
representa a incapacidade de uma mulher participar, junto com o homem, como agente
do drama cultural. A cegueira voluntária de Gandhari revela, assim, uma arrogância
masoquista inconsciente, que aparenta a compaixão da alteridade, mas é, na
realidade, a sua Sombra, dando continuidade aos olhos fechados de Ambika e
complementando a cegueira de Dhritarashtra. Numa espécie de acordo tácito, a mãe
produz um filho cego que encontra uma mulher disposta a não enxergar, e ambos
perpetuam esta cegueira metafórica gerando filhos indiferenciados, inflados,
arrogantes, guerreiros e com um potencial imensamente destrutivo. A cegueira da
mulher, dentro da sociedade patriarcal, interessou e foi usada pelo homem que, ao
mesmo tempo em que usufruía de sua submissão e alienação, a criticava e
racionalizava a opressão por ele praticada com a teoria de que a mulher não tinha
inteligência, nem espírito e até mesmo prescindia de alma. Esta atitude foi
simbolicamente expressa na Idade Média da Cultura Ocidental pela noção de que as
mulheres não tinham alma e por isso não podiam ministrar os sacramentos nem fazer
parte do poder institucional da Igreja. Ao furtar-se à responsabilidade de contribuir
ativamente, com sua alma, sua visão de mundo, sua sensibilidade, para a construção
de relacionamentos mais simétricos, a mulher complementa a cegueira do homem
patriarcal e faz dele um bode expiatório por não incentivá-la a ser ou fazer o que ela
própria não se permite. Talvez por isso Dhritarashtra nunca tenha pedido a Gandhari
para retirar a sua venda, e ela, por sua vez, não a tenha retirado esperando,
amargurada, que um dia ele ordenasse que ela o fizesse. Essa atitude de Gandhari, no
âmbito individual, pode ser vista como uma defesa masoquista histérica. Atua sua dor
impondo ao rei e ao reino uma rainha cega, como que para ostentar o “castigo” que lhe
havia sido infligido e a humilhação a que se submetera. Nesse sentido, é como se
dissesse, expressando histericamente sua agressividade: vocês me deram um marido
cego, então terão que conviver com uma rainha ainda mais cega. Ao recusar-se a ver,
Gandhari faz jus ao ditado “o pior cego é aquele que não quer ver”. No Self Social e
Cultural, vemos como ela, ao negar a plenitude de seu potencial, se furta à
responsabilidade de contribuir e participar ativamente para o desenvolvimento e
transformação do reino e dos valores nele vigentes.
Os hindus costumam dizer que não há experiência humana que não esteja
presente no Mahabharata, o que nos permite estudá-lo como expressão do processo
de desenvolvimento da Consciência. Esta moldura mitológica do Self Cultural nos
permite abordar arquetipicamente a cegueira voluntária de Gandhari em toda sua
extensão pessoal e coletiva. Nesse sentido, este símbolo reflete uma pequena
manifestação da luta entre as diferentes polaridades, no caminho para uma convivência
mais criativa e integrada, que, devidamente ampliada, nos permite uma percepção
aguda e profunda deste poema épico. Tendo o símbolo de Gandhari como centro de
nossa abordagem, vemos que dentro do desenvolvimento da cultura ela representa a
manutenção do status quo pela negação de uma mulher da sua inserção no mundo.
Gandhari não percebe que se submeter passivamente a uma limitação deste porte
significa continuá-la, gerando, cada vez mais, situações destrutivas. A dificuldade em
lidar com a deficiência não apenas impede ultrapassá-la, mas tende a perpetuá-la na
medida em que não é elaborada. Sua cegueira se alastra, para se tornar o enredo do
próprio épico na grande carnificina da batalha de Kurukshetra, que expressa a cegueira
defensiva da sabedoria. De fato, a mensagem criativa central desta obra poética do
hinduísmo revela-se pela cegueira dos seus personagens. Podemos, deste modo,
perceber aí um alerta, perguntando-nos quais as saídas para a espécie humana se
optarmos pela alienação, se fecharmos os olhos para aquilo que existe em nós e
naqueles que nos circundam.
Referências Bibliográficas
JUNG, Carl G. (1916). The Transcendent Function. CW 8. London: Routledge & Kegan
Paul, 1960, pars. 131-219.
______________ (1951). Aion. CW 9, part 1. London: Routledge & Kegan Paul, 1953.
Apresentação
O interesse pela experiência de doença e hospitalização infantil através da
observação diária da rotina de uma enfermaria pediátrica resultou na elaboração de minha
dissertação de mestrado intitulada “Saúde e doença: o que pensam e sentem as crianças
hospitalizadas e suas mães acompanhantes. Uma investigação dos conceitos de saúde e
doença a da experiência de hospitalização em uma enfermaria pediátrica” concluída em
2001.
No presente artigo, os resultados desta pesquisa foram relacionados com os
diferentes modelos explicativos da saúde, da doença e com as formas de lidar com elas
presentes em cada momento histórico. Assim, pretendi associar os conceitos de saúde,
doença e enfrentamento da doença de crianças hospitalizadas e suas mães acompanhantes
com aquelas concepções, que na história do homem nortearam as visões e as ações no
campo da saúde.
Introdução
Resultados da pesquisa
Participaram da pesquisa 66 sujeitos, 33 crianças e 33 mães. Foram realizados 425
do total de 448 desenhos previstos. A análise dos desenhos e das verbalizações das crianças
e das mães foi organizada segundo os temas saúde e doença. Os desenhos foram analisados
segundo os critérios mais significativos e comparou-se os dois grupos – crianças e mães.
Esta análise baseou-se nos critérios do estudo de Fávero e Salim (1995) – cor, tamanho
relativo dos desenhos, traçado, expressão facial, presença ou ausência dos elementos
constitutivos, forma; e de Kolch (1984) – tamanho em relação à folha, tipo de linha e
correções e retoques. Para o desenho que trata do que a pessoa faz quando está doente, os
critérios escolhidos foram cor, tamanho em relação à folha, tipo de linha e traçado,
expressão facial, presença de elementos constitutivos. Foi acrescentado o registro de
elementos indicativos nos desenhos de atividade física e/ou de restrição de atividade.
O quadro a seguir sintetiza os dados para análise dos desenhos das crianças e mães.
Os critérios de análise (forma, cor, expressão facial, tamanho e elementos indicativo de
presença/restrição de atividade física) foram ordenados do mais ao menos freqüente para os
dois grupos estudados. Eles apareceram com frequência diferente nas três espécies vivas e
assim foram ordenadas.
Crianças Mães
Forma (pessoa, flor, animal) Forma (flor, pessoa, animal)
Cor (pessoa, animal) Tamanho (flor, animal)
Expressão facial (pessoa, animal) Expressão facial (pessoa, animal)
Tamanho (flor, pessoa) Cor (animal)
Elementos: presença/restrição de atividade Elementos: presença/restrição de atividade
física física
Como pudemos observar, o critério forma diferenciou saúde e doença nos desenhos
de crianças e mães. Ele foi o único que permitiu discriminar saúde e doença nas três
espécies vivas (flor, animal, pessoa). Os critérios cor, expressão facial, tamanho, e
elementos indicativos de presença/restrição de atividade física possibilitaram estabelecer
diferenças entre saúde e doença em uma ou duas espécies vivas. Os outros critérios não
apresentaram indicações significativas.
O critério forma, como já foi dito, diferenciou saúde e doença para os dois grupos
estudados. Observe na Figura 1 a mudança na postura e na Figura 2, o corpo mais magro.
Figura 1 – Desenho de uma criança de 6 anos do animal com saúde e do animal doente.
Figura 2 – Desenho de uma mãe de 31 anos da pessoa com saúde e da pessoa doente.
Figura 3 – Desenho de uma mãe de 31 anos do animal com saúde e do animal doente.
Figura 4 – Desenho de uma criança de 9 anos da pessoa com saúde e da pessoa doente.
Figura 5 – Desenho de uma criança de 12 anos da flor com saúde e da flor doente.
Figura 6 – Desenho de uma mãe de 30 anos da flor com saúde e da flor doente.
Figura 7 – desenho de uma criança de 9 anos da pessoa doente e da pessoa com saúde.
Figura 8 – Desenho de uma mãe de 37 anos do animal com saúde e do animal doente.
Figura 10 – Desenho de uma mãe de 31 anos da pessoa com saúde e da pessoa doente.
A análise das expressões verbais de crianças e mães no que diz respeito ao tema
saúde demonstrou que ela esteve associada aos cuidados, às sensações agradáveis, às boas
condições físicas, à realização de atividades aos comportamentos que visam a saúde.
“Ela tá bem tratada”; “Fica bem quentinho”; “Ela é saudável e gosta de brincar muito”;
“Por causa que ele não ficou na friagem”.
“Porque não regaram ela, e ela ficou doente”; “Aí estourou a catapora. Aí começou a
sangrar...”; “Ele está com o braço quebrado, chorando, triste”; “Tomando banho de chuva e
não se alimentava”.
A análise do desenho e expressões verbais sobre o que se faz quando se está doente
mostrou que as crianças e mães representaram a prática dos cuidados médicos –
consultórios, hospitais, médicos, remédios e casa. As crianças utilizaram cores vivas,
expressão facial indicativa de sentimento de felicidade e elementos indicativos de restrição
de atividade. Já a análise dos desenhos das mães apontou para a presença de cores
empalidecidas ou ausência de cor, expressões faciais indicando sentimentos de felicidade e
de tristeza e elementos associados à restrição de atividade física.
Figura 11 – Desenho de uma criança de 10 anos sobre o que se faz quando se está doente.
Figura 12 – Desenho de uma criança de 11 anos sobre o que se faz quando se está doente.
Figura 13 - Desenho de uma mãe de 32 anos sobre o que se faz quando se está doente.
“A mãe dela foi levar ela no hospital e ele disse que podia causar pneumonia. E passou um
remédio para ela. Ela foi embora e disse se ele piorar, levar ela lá” (criança de 9 anos).
“Não adianta você passar no médico se você não pede a Deus” (mãe)
“A gente procura um médico para falar o que a gente está sentindo. Aí ele vai e fala o que
a gente tem que fazer...aí fica com saúde. A gente passa a ter paz, harmonia. É o que a
gente quer” (mãe)
Discussão
Pudemos observar uma visão diferente da relação entre o corpo e a mente, a qual se
faz através de uma interdependência, revelando uma nova maneira de abordar a saúde e a
doença. Este modelo explicativo de doença e cura é chamado de holístico e, como foi
apontado naquela citação, não seria possível separar as causas em exclusivamente
fisiológicas ou exclusivamente psicológicas.
Conclusão
Neste estudo desenhos e verbalizações foram os instrumentos que permitiram o
acesso a sentimentos e idéias de crianças hospitalizadas e suas mães a respeito de saúde e
doença. As condições físicas relativas especialmente à forma foram as principais
referências observadas nas concepções de saúde e doença. Verificou-se que foram
expressos sentimentos opostos como alegria e tristeza associados às idéias de saúde e
doença. A situação de doença foi enfrentada com a ajuda profissional do médico, que
fornece as informações necessárias. No entanto, as crianças e as mães encontraram outras
formas de realizar os cuidados quando estão doentes. O médico e o hospital não
representaram, para alguns, o único recurso de cuidado na doença.
O modelo biomédico é o modelo preponderante nas concepções de saúde e doença
do grupo estudado. Foram apontadas nos desenhos e nas falas as indicações de
anormalidades biológicas, indicadas, por sua vez, pela alteração na forma e no tamanho do
elemento doente. O estabelecimento de normas fisiológicas resultou na desconsideração das
características psicológicas e sociais. Pudemos perceber isto quando o grupo estudado
estabelece uma causa única para a doença – “não se tratou”, “não se alimentou”, sem levar
em conta, por exemplo, as condições ambientais.
No entanto, estas concepções de saúde e doença ligadas ao modelo biomédico
combinam características do modelo romântico de explicação da doença. Além dos fatores
biológicos evidenciados nos desenhos e expressões verbais, o grupo estudado acrescenta
aspectos psicológicos e espirituais nos seus conceitos de saúde e doença. Isto pode ser
observado no uso de critérios de expressão facial indicando aspectos psicológicos como os
sentimentos de alegria e tristeza, e de cor oferecendo uma “tonalidade” viva ou
empalidecida para a saúde e a doença. Devemos considerar que esta pesquisa envolve os
sentimentos da criança doente. Ou seja, mesmo que as informações sejam adequadas para o
atendimento infantil sobre as questões relativas à saúde física, ela só serão integradas se
levarmos em conta os sentimentos da criança.
Assim o modelo biomédico, preponderante nas concepções sobre saúde e doença de
crianças e mães revela o nível psicológico da cultura na qual se insere. Aspectos do modelo
anterior estão presentes; ao mesmo tempo há indicações, mesmo que raras, de um outro
modelo – o holístico - que procura superar a visão unilateral do atual e que colabora para
uma compreensão mais completa do ser humano.
Referências Bibliográficas
BOWLBY, J. (1969) Apego. Vol 1. Trilogia Apego e perda. São Paulo: Martins Fontes,
1984.
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Paulo: Summus Editorial, 1994.
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SPITZ, R. (1965). O primeiro ano de vida: um estudo psicanalítico do desenvolvimento
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ZANNON, C. M. (1981). O comportamento de crianças hospitalizadas e a rotina
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Doutorado. IPUSP, 1981.