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A cada ano em que nos detemos para escrever o editorial de mais um número da Jung
& Corpo, somos invadidas por uma grande alegria, acompanhada de um sentimento de
realização. O trabalho para se chegar até aqui é muito grande, tendo início com a formação
dos alunos, passando pela orientação de monografias e também pela organização dos
Encontros Jung & Corpo, que nos fornece matéria prima para a revista. Tudo isso, sem
falarmos da elaboração concreta da revista, que envolve inúmeros detalhes e tantas
minúcias, que tem nos ensinado a aceitar e encarar como inevitáveis os erros de revisão,
muitas vezes identificados no momento em que pegamos em nossas mãos um exemplar
recém-saído da gráfica e nosso olhar recai diretamente numa vírgula extra ou no vazio
deixado por uma letra que se ausentou do meio de uma palavra.
Mas este é o sétimo número da Jung & Corpo e, sendo ela junguiana, não
poderíamos deixar de mencionar o significado do número 7. Resultado da soma de 3 + 4,
simboliza a ligação entre espírito e matéria, entre aspectos dinâmicos e estáticos, e por isso
é associado a um ciclo que se completa. Temos, como analogia, as 7 cores do arco-íris, as
7 notas musicais, bem como os 7 chakras e os 7 dias da semana, dentre outras
amplificações. Para nós, editoras, este ciclo se faz sentir num desenrolar mais fácil das
atividades associadas à Revista, que começa a ter vida própria. Colegas começam as nos
procurar oferecendo sua participação no Encontro Jung & Corpo ou trazendo textos para
publicação.
Sincronicamente, os leitores encontrarão neste número quatro artigos sobre
espiritualidade, e quatro textos que envolvem dimensões corporais. Hermes, deus
mensageiro e tema de outro artigo, fará a ponte entre estes e os outros assuntos abordados:
a situação do brasileiro no momento histórico pelo qual passamos.
É preciso dizer, last, but not least, que nós, as editoras, somos extremamente gratas
aos autores pela competência, seriedade e dedicação na elaboração de seus textos, e pelo
afeto e disponibilidade com que discutem conosco detalhes editorias.
Convidamos os leitores a conhecer cada artigo e, aos colegas, alunos e ex-alunos,
lembramos que a revista é de todos nós, e que sua participação é fundamental.
Boa Leitura!
ESPÍRITO DA TERRA
A Religiosidade Popular da América-Latina1
1
Texto apresentado no IV Congresso Latino Americano de Psicologia Junguiana. Punta Del Este, Uruguai,
setembro de 2006.
2
Psicóloga, psicoterapeuta junguiana. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP,
professora no curso Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Abordagem Corporal, no Instituto Sedes
Sapientiae.
E-mail: mariahelenarmguerra@hotmail.com
bastante freqüência e que se enraíza na dificuldade de elaboração da Sombra dentro da
dominância do Arquétipo Patriarcal. Sabemos que, nesse padrão de Consciência, as
polaridades se excluem, formando incompatibilidades e criando uma tensão tal entre elas
que impede sua integração (Byington, 2004). Assim, naquela ocasião, recaiu sobre os donos
da terra a projeção maciça da Sombra cristã puritana dos colonizadores e catequizadores
(Gambini, 2000).
No entanto, apesar de terem sido associados ao mal e ao pecado, os povos nativos
estabeleceram culturas bastante desenvolvidas, sobretudo a inca, no Peru, e as civilizações
maia, mixteco-zapoteca e náhuatl (tolteca-asteca), no México.
Quando os espanhóis chegaram ao vale do México, os astecas dominavam a região.
Esse domínio, porém, era relativamente recente.
Segundo relatos feitos pelos informantes indígenas a Sahagún3, as raízes e os
moldes culturais da zona central do México, com sua organização social e política, sua
religiosidade e arte, sua arquitetura, pinturas em murais, escultura, cerâmica, calendário e as
pinturas em seus códices, têm início com os maias, no século IV, na cidade de Teotihuacán,
cujo esplendor perdurou até o século IX, quando sobreveio sua ruína. Nessa mesma época
Tula surge como um novo centro cerimonial, um segundo pólo cultural. Considerada a
capital tolteca, atribui-se a ela o centro criador de todo o conjunto das artes e ideais mais
elevados que os nahuas posteriores afirmavam ter recebido dos toltecas.
A palavra toltécalt significava o mesmo que artista. Estes eram grandes artífices, “que
colocavam seu coração endeusado em suas obras”, ceramistas que “ensinavam o barro a
mentir”, fazendo todo tipo de figuras, rostos e bonecos. Conheciam também a arte do canto,
da tapeçaria, da pintura, escultura e arquitetura, construindo grandes palácios. Seu deus
tutelar era Quetzalcóatl, divindade una, amante da paz, que condenava sacrifícios humanos
e impelia seus seguidores para uma vida de perfeição moral. Este deus foi representado,
num determinado momento, por um sacerdote de mesmo nome, que consagrou sua vida à
meditação e ao culto. A esse sacerdote atribui-se a formulação de uma doutrina teológica
sobre um supremo Deus dual – Ometéotl.
O domínio dos astecas tem início em 1427, quando eles se transformaram num “povo
com missão”, o que lhes conferia o sentido da vida (León-Portilla, 1961, p.92). Seu ideal de
conquista foi estimulado pela noção místico-guerreira de que o Sol necessitava sangue
3
Bernardino de Sahagún (1499-1590) foi um frade franciscano que chegou à Nova Espanha em 1529,
aprendeu a língua nahuátl e, por sessenta anos, dedicou-se a coletar informações sobre a vida dos índios
antes da colonização. Considerado o pai da Antropologia na América, sua grande obra foi Historia General de
las Cosas de Nueva España.
humano para ser alimentado e continuar sua existência. Cabia a eles, povo eleito, cumprir
esse desígnio, sob pena de o Sol deixar de existir. Uniram-se, dessa forma, a religiosidade e
o caráter belicoso desse povo. Mesmo assim, tentaram preservar alguns valores dos povos
submetidos, por exemplo, quando exigiram que fossem enviadas à capital asteca diferentes
flores, com jardineiros capazes de cultivá-las, e jovens donzelas, que pudessem cantar e
dançar. “Flores e cantos” era a expressão nahuátl que, metaforicamente, significava poesia,
arte e simbolismo, ou seja, aí estava contida a mensagem cultural dos povos não astecas do
Vale do México (idem, p. 90).
Os astecas atingiram uma organização social bem estabelecida, com comércio,
grandes edificações, literatura, poesia e livros de pintura, além de noções de história,
filosofia, teologia, moral, direito, medicina, botânica, dentre outras (León-Portilla, 1961).
Tinham também sistemas próprios de escrita, com representações numéricas, de datas,
pictográficas, ideográficas e, inclusive, fonéticas, estas sendo de extrema importância, uma
vez que se acredita que a invenção da primeira escrita parcialmente fonética, no Oriente
Próximo, deu origem a todos os sistemas do Velho Mundo, e que o sistema maia-asteca é
visto como tendo tido um desenvolvimento totalmente separado (Kroeber, in León-Portilla,
1961, p. 61).
Enquanto no México-Tenochtitlan os astecas insistiam em impor sua visão místico-
guerreira do mundo, que os fazia o povo eleito do Sol, em várias cidades vizinhas viviam
pensadores profundos que se empenhavam em encontrar o simbolismo oculto das coisas,
afastando-se da guerra para dar vida à mensagem do grande sacerdote Quetzalcóatl, que
falava num deus único, ao qual só se poderia chegar pelo caminho da poesia, do
simbolismo, ou seja, da arte. Havia, assim, um oculto antagonismo ideológico entre os
nahuas. Em 1490, o rei de uma dessas cidades organizou em seu palácio um diálogo entre
poetas e sábios para tentar esclarecer o que era a poesia. Um outro, obrigado a construir um
templo ao deus asteca, levantou, na frente deste, um templo dedicado ao deus
desconhecido dos toltecas. Esses sábios compuseram, entre 1430 e 1519, cantares e
poemas onde expressaram seus pensamentos mais profundos, inclusive reflexões sobre o
caráter da divindade e o anseio de buscar o sentido da existência humana 4. Diziam os
teólogos nahuas5 “é possível que ninguém possa dizer a verdade a não ser mediante a flor e
o canto” (León-Portilla, in Elizondo, p. 72). Julgavam que o discurso racional clarifica a
4
Estes textos fazem parte da Colección de cantares mexicanos, da Biblioteca Nacional do México (León-
Portilla, 1961, p.118).
5
Plural de náhuatl.
mente, mas a limita, e apenas as flores e os cantos fazem a imaginação refletir sobre o
infinito. Somente a comunicação poética e a beleza poderiam entrar em comunhão e
comunicação com o divino.
Deus, para os toltecas reflete também a duplicidade, com dois rostos, um masculino e
outro feminino, mas um só Deus, um Deus Dual (Ometéotl), Pai e Mãe dos deuses, Senhor
do tempo e do espaço, uma divindade concebida a um só tempo como doadora e
destruidora da vida, mas que, estando ao lado Dela, “ninguém vive em indigência” (idem,
p.139). “Seu rosto masculino é agente e gerador, seu rosto feminino é quem concebe e dá à
luz (idem, p. 143). Esta visão religiosa expressa-se no padrão de alteridade, capaz de lidar
com o paradoxo da dualidade na unidade (Byington, 1965), “para além do que vêem os
sentidos” (idem, p.34). Essa vocação para conviver com o diferente e abrir-se para absorver
a crença e os costumes do Outro fez com que o povo náhuatl, especialmente os das cidades
dominadas pelos astecas, seguisse um tipo de sincretismo religioso, com muitas divindades
e numerosos pares de deuses.
O próprio Montezuma II, o governante que estava no poder quando da chegada dos
espanhóis, e que era também um sacerdote, estudioso, dedicado à meditação e conhecedor
dos antigos códices, preocupou-se em conhecer e aproximar-se, de algum modo, do culto
religioso dos povos vencidos, mandando construir um oratório dentro de um grande templo
dedicado aos deuses Huitzilopochtli, o Sol, e Tláloc, o deus da chuva, que chamou de “casa
de diversos deuses”. Foi, inclusive, com base nas crenças dos toltecas, de que o sacerdote
Quetzalcóatl fugira por não aceitar os sacrifícios humanos, deixando a firme esperança de
que retornaria um dia para salvar seu povo e iniciar tempos melhores, que Montezuma
imaginou que os espanhóis poderiam ser esse deus que retornava.
Esta descrição da vida pré-hispânica dos habitantes do Novo Mundo faz-se
necessária para que possamos abordá-la de uma forma mais viva, emocional, e não apenas
abstrata e teórica. Ao penetrarmos nas nuanças desse mundo então descoberto, sentimos a
sensibilidade dos artistas, a sabedoria dos grandes mestres, a presença da poesia, e,
sobretudo, a busca muito intensa da relação com o sagrado, quer através das flores e
cantos, uma herança tolteca, quer pelas “guerras floridas”, dos astecas, que visavam
capturar pessoas que seriam transformadas em vítimas sacrificiais. A religiosidade ocupava
um espaço muito grande na vida desse povo, e era sentida na educação, na arte pictórica,
nos cantos, na estética e na belicosidade.
Suas guerras, entretanto, é bom que se diga, diferiam muito das dos europeus, pois o
que pretendiam era reproduzir na terra o conflito e o equilíbrio do céu, nunca destruir os
opositores. Não havia entre eles, por exemplo, a menor pressa para começarem a guerrear.
Era lei entre eles que antes da batalha se avisassem alguns anos antes, para
que de uma e outra parte estivessem avisados e prevenidos [...]o que se manteve até
o tempo em que vieram os espanhóis a estas terras. (IXTLILXOCHITL: "Sumaria
Relación de las Cosas de la Nueva España", cap. 5, p. 260.)
Também não tinham como objetivo ferir ou matar os inimigos, mas estes deveriam ser
desarmados, presos e convencidos de seu erro ao não aceitarem a supremacia mexica. Ao
se converterem em prisioneiros, passavam a ser “filhos” do seu captor, o que era
considerado uma honra. Se alguém morresse, sairia pessoalmente vitorioso; seu matador,
envergonhado de sua torpeza, pois acreditavam que a vida após a morte dependia mais do
tipo de morte do que dos feitos em vida, e quem morresse em batalha, num sacrifício ou de
parto seriam os verdadeiros afortunados.
Na ocasião da chegada dos espanhóis no México, os astecas constituíam uma
população de trezentas mil pessoas. Porém, como vimos, e ao contrário dos ibéricos, não
buscavam extinguir os costumes dos povos conquistados, mas incorporá-los aos seus,
inclusive suas crenças. Por serem abertos ao sincretismo e, por isso, manterem viva a
cultura dos conquistados, os astecas não os ameaçaram de aniquilamento, como fizeram os
espanhóis.
Estes, professando um cristianismo patriarcalizado, com grande intransigência e rigor,
atuaram com a intenção de extirpar as crenças indígenas. Assim, não almejavam integrar
sua cultura, sentida como inferior, nem acreditavam que poderiam aprender com os povos
recém descobertos, mas, além de ambicionarem suas riquezas, estavam sequiosos por
civilizá-los, o que equivalia a destruir as tradições religiosas de seus antepassados e, com
elas, seus sistemas de valores, seus costumes, suas raízes, sua alma, projetando neles tudo
o que julgavam negativo. Houve algumas poucas exceções nessa abordagem do índio e de
sua cultura, como é o caso, por exemplo, do Frei Bernardino de Sahagún e Bartolomé de las
Casas.
Bartolomé de las Casas (1472 - 1566) é tido como o primeiro sacerdote ordenado na
América. Inicialmente a favor do aprisionamento e escravidão dos índios, isto é, das
encomiendas, sofre uma transformação moral e passa a lutar fortemente contra elas. É ele
quem escreve, em 1552, uma longa carta ao monarca Felipe II, a qual chamou de Brevisima
Relación de la Destruicción de las Indias, e onde se lê, dentre outras descrições terríveis, a
seguinte passagem:
Foi nesse cenário de desolação, numa paz marcada pelo desânimo e subordinação,
que, em 1531, em Tepeyac, o primeiro lugar conquistado pelos espanhóis, o índio Juan
Diego teve a visão daquela que viria a ser conhecida como a Virgem de Guadalupe.
a sempre Virgem Santa Maria, a Mãe do Deus da única verdade, Téotl. Sou a Mãe
daquele por quem vivemos, do Criador dos homens, do Soberano de tudo que está
próximo e está junto, do Senhor dos céus e da terra. (par. 22)
Esses nomes são os mesmos usados pelos teólogos nahuas para falar sobre Deus, o
que acentua sua acolhida às crenças indígenas. Ela é não apenas a Mãe do Deus dos
cristãos, mas do Deus náhuatl. Ela pediu, então, que o índio fosse até o bispo e dissesse a
ele para construir ali uma capela, de onde mostraria à humanidade todo seu amor,
misericórdia, ajuda e proteção, escutaria seus lamentos e aliviaria e curaria suas desgraças,
dores e sofrimentos. O bispo é, do ponto de vista dos colonizadores, a expressão máxima da
autoridade religiosa, o centro da nova evangelização, que busca “ensinar as verdades” aos
índios. A solicitação para que Juan Diego fosse até o bispo e lhe falasse da vontade de
Deus aponta para uma grande inversão da lógica civilizadora, com sua ordem sócio-religiosa
imposta.
Juan Diego relatou sua visão ao bispo, D. Juan Zumárraga (1468-1548), que lhe disse
para voltar um outro dia, pois iria pensar no que ouvira. Esse bispo, caçador de bruxas na
Espanha, foi um dos maiores evangelizadores e defensores dos índios, mas, ao mesmo
tempo, um feroz destruidor de tudo o que soasse paganismo, pois acreditava que só depois
poderia ser construída a Nova Igreja. Numa carta, de 12 de junho de 1531, escreveu que
havia destruído mais de quinhentos templos e vinte mil ídolos (Ricard, in Elizondo, 1999, p.
100).
Juan Diego encontrou-se novamente com a Virgem, relatou o que havia acontecido, e
ela insistiu para que ele levasse seu pedido outra vez ao bispo. Pela segunda vez Juan
Zumárraga não acreditou nele, dizendo sentir falta de uma prova de que o índio dizia a
verdade. Legitima-se, através do representante eclesiástico, a falta de valor atribuída aos
povos nativos. A Igreja, teoricamente aberta para acolher em seu seio e em igualdade de
condições todos os humanos, referendou e reforçou a segregação racial ao impedir, em
1539, a ordenação de índios, africanos, mestiços e mulatos (idem, p.103).
No dia seguinte, Juan Diego deveria buscar a prova que convenceria o bispo da
veracidade de suas palavras, mas seu tio, Juan Bernardino, estava muito mal, com varíola, e
pediu que fosse chamado um padre para que lhe ouvisse em confissão, porque sentia que
sua vida estava se esgotando. Juan Diego saiu à noite, buscando satisfazer o desejo do tio,
quando encontrou novamente a Senhora e lhe falou sobre o que estava ocorrendo com o tio
e sua pressa em levar até ele um sacerdote. A Senhora ouviu-o pacientemente e,
reafirmando que o índio estava sobre sua proteção, disse-lhe que naquele instante seu tio já
estava curado. Juan Diego sentiu um profundo consolo e seu coração tranqüilizou-se. Pediu
a ela, então, que lhe desse o sinal, para que pudesse regressar até o bispo.
A Senhora do Céu mandou-o subir ao cume do morro, ao local onde ele a havia visto
por primeira vez, e onde encontraria diversas flores, que deveria colher. Ele ficou atônito,
porque havia ali flores magníficas, perfumadas, e aquele era um lugar árido – além disso,
era tempo de geadas. Obedecendo-a, Juan Diego levou até ela as flores, e ela colocou-as
em sua capa. Uma vez mais o índio foi ao encontro do bispo, a quem relatou o sucedido; em
seguida, abriu sua capa, e as flores caíram no chão. Neste mesmo instante, apareceu
pintada na capa a imagem da Virgem Mãe do Deus Téotl. A conversão do bispo foi imediata,
arrependendo-se de não haver acolhido antes o apelo da Senhora do Céu.
Depois de permanecer no palácio do bispo mais um dia, Juan Diego voltou para casa
e encontrou o tio curado. Este relatou haver visto a Senhora aparecer ao sobrinho e que ela
lhe dissera para contar como havia sido curado de maneira milagrosa, acrescentando que
essa imagem da Virgem deveria ser chamada de Nossa Senhora de Guadalupe. Sua
imagem, na capa de Juan Diego, que ninguém havia pintado, foi colocada na capela que foi
construída em homenagem à Virgem Mãe, à Tonantzin Guadalupe.
Um Encontro na Alteridade
Conclusão
Quando alargamos nosso olhar e o lançamos sobre outros territórios ameríndios,
vemos a aparição da Virgem relatada também na Venezuela e no Equador, tendo em
comum com sua manifestação mexicana o fato de ter aparecido para os nativos como uma
visão. Na Venezuela, Ela aparece, em 1652, ao Cacique Coromoto e à sua família, e
posteriormente será conhecida como Nossa Senhora de Coromoto. Há relatos de Sua
aparição a vários índios também no Equador, onde a devoção à Nossa Senhora del Quinche
é bem popular e foi introduzida em 1585.
Houve ainda outras maneiras de a Virgem se fazer presente na América Latina, como
no Brasil, onde a imagem de uma Virgem Negra, Nossa Senhora Aparecida, foi encontrada
por pescadores (1716), ou em Cuba, em que a padroeira Nossa Senhora da Caridade do
Cobre foi achada boiando no mar, em 1628, por dois índios e um negro. Há ainda a história
de uma índia que, em Costa Rica, no ano de 1635, ao recolher lenha, encontrou num morro
uma imagem de Maria com o Menino Jesus e a levou para casa. No dia seguinte, ao voltar
ao mesmo lugar, encontrou novamente a imagem, e isso se repetiu mais uma vez. Relatou o
ocorrido ao padre, que pediu a imagem, mas de novo ela desapareceu da casa do sacerdote
e voltou a ser encontrada no morro. E a imagem, chamada de Nossa Senhora dos Anjos, só
parou de “fugir” quando fizeram um templo no local onde ela desejava ficar.
Podemos ainda lembrar a história da padroeira de Honduras, Nossa Senhora de
Suyapa. No final do século XVIII, um jovem e um menino de oito anos tinham trabalhado no
campo, na colheita de milho, e voltavam para sua casa, em Suyapa. Percebendo que não
chegariam a tempo, decidiram dormir no meio do caminho. Quando se deitaram, o jovem
Alejandro sentiu um objeto incomodando seu corpo. No escuro, voltou-se e o pegou.
Pensando tratar-se de uma pedra, jogou-o para longe e voltou a deitar-se, mas sentiu aquele
mesmo incômodo no mesmo local. Tendo julgado esquisito o fato, guardou consigo o objeto.
Pela manhã, descobriu que era uma pequena imagem de Nossa Senhora, talhada em
madeira, de apenas seis centímetros e meio de altura. Tal imagem é a atual Padroeira de
Honduras.6
Essas aparições, quer através de visões ou de encontros de estátuas, ou ainda
acontecimentos extraordinários, têm em comum o fato de acontecerem sempre com índios
ou negros, com os povos oprimidos e necessitados de consolo. Também envolvem todas
essas manifestações da Virgem o relato de inúmeros milagres.
Diante de um predomínio do dinamismo patriarcal, a Virgem representa, com sua
ligação com a natureza, a maternidade, a compaixão, a doçura, a acolhida, enfim, o outro
lado dos dominadores. A posição da mulher, diante dos conquistadores, era a de um troféu,
ou de um objeto que podia ser violentado, agredido, maltratado. Por intermédio da Virgem
Mãe de Deus a imagem da mulher índia pôde ser redimida e elevada a um papel de
importância, a humanidade das mulheres violentadas, dos homens emocionalmente
castrados e das crianças abandonadas pelos colonizadores começou a ser resgatada, e lhes
foi dado esteio e consolo para que pudessem seguir vivendo.
Através das primeiras manifestações da religiosidade popular sincrética envolvendo o
cristianismo na América Latina, o lugar do povo indígena principiou a ser recuperado, suas
6
É importante mencionar que, ao lado de cultos incorporados oficialmente pela tradição religiosa
cristã/católica, temos aqueles que permanecem à margem da religião institucionalizada. Nem por isso, no
entanto, atraem menos fiéis e são menos importantes. É o caso, por exemplo, do culto à Defunta Correa, na
Argentina, ao Padre Cícero, no Nordeste do Brasil e à Maria Lionza, na Venezuela.
crenças incorporadas e seus deuses e deusas não precisaram mais morrer e arrastar seus
devotos com eles. Abriu-se uma brecha nos desmandos e humilhações, e os indíos
encontraram motivo e maneira para celebrar a vida que parecia destinada a lhes abandonar.
Infelizmente, as feridas geradas pela patologia de nossa colonização são profundas e de
difícil cicatrização e expressam-se ainda hoje no Self Cultural latino-americano, pela imensa
desigualdade social, péssima distribuição de renda, violência crescente, corrupção e
populismo, presentes em muitos dos nossos países.
Encerro este texto apresentando um breve sonho de uma paciente, para ilustrar a
presença viva de Maria nos dias de hoje: “via Nossa Senhora em meio a uma floresta
bastante densa. Era noite e sua vestimenta era um manto formado pelos raios da lua cheia”.
Segundo a sonhadora, este sonho foi tão impressionante que ela despertou, mas mesmo
assim manteve ainda por algum tempo a sensação de estar diante de Maria e o estado de
graça que Ela lhe trouxe.
A imagem de Maria, em meio à vegetação, imersa na natureza, uma Maria banhada e
vestida pela luz da Lua, tão próxima que encheu de graça a alma da sonhadora, revela que
no encontro entre Maria e a natureza não é só o espírito que toma forma e se materializa,
mas a natureza que se reveste do espírito. A aparição da Virgem de Guadalupe a Juan
Diego também revestiu-se de natureza, que para a cultura náhuatl era espiritualizada, como
revela a idéia de flores e canto, e como o é para aqueles abertos para a dominância do
Arquétipo Matriarcal, sem o qual não se implanta o Arquétipo da Alteridade.
O quadro Dragão7, obra de 1927 do artista argentino Xul Solar (1887 – 1963), ilustra
maravilhosamente a presença da grande deusa que permeia, pelo sincretismo, a
religiosidade popular latino-americana e aponta, com ela, para uma sociedade mais justa e
fraterna.
7
A aquarela, em espanhol Drago, pode ser vista no endereço eletrônico do Museu Xul Solar -
www.xulsolar.org.ar/obras/20-01.html (julho, 2007).
Referências Bibliográficas
Byington, Carlos Amadeu Botelho (1965). Autenticidade como Dualidade na Unidade. Tese
de conclusão do curso de formação de analistas no Instituto C.G.Jung, de Zurique.
Elizondo, Virgil (1997). Guadalupe, Madre de la Nueva Creación. Estella, Espanha: Editoria
Verbo Divino, 1999.
Gambini, Roberto (2000). Espelho Índio – A Formação da Alma Brasileira. São Paulo: Axis
Mundi: Terceiro Nome, 2000.
León-Portilla, Miguel (1961). Los Antiguos Mexicanos a través de sus crónicas y cantares.
México: Fondo de Cultura Economica, 1997.
Sahagún, Fray Bernardino de (1829). Historia General de las Cosas de Nueva España.
México: Alianza Editorial Mexicana, 1989.
O UNIVERSAL E O INDIVIDUAL NOS SÍMBOLOS DA UMBANDA1
Brígida Malandrino2
Introdução
A mutabilidade umbandista
1
Este texto foi apresentado originalmente no IX Simpósio Anual da ABHR "Religiões e
Religiosidades; entre a tradição e a modernidade", realizado entre os dias 01 a 04 de maio de 2007
em Viçosa.
2
Psicóloga pela PUC/SP, especialista em Psicologia Clínica com Orientação Junguiana Coligada a
Técnicas Corporais pelo Sedes Sapientiae, Mestra e Doutoranda em Ciências da Religião pela
PUC/SP, autora do livro - Umbanda: mudanças e permanências. E-mail:
brigidamalandrino@terra.com.br
A umbanda, como uma religião sincrética, afro-brasileira, mediúnica e, na sua
expressão, um fenômeno de cultura popular, constantemente mescla elementos de
diversas tradições, não tendo a intenção de encontrar e de se firmar como um todo
acabado. O seu funcionamento é mutável, buscando responder às demandas daqueles
que a procuram, no momento em que isso ocorre. Quando falamos a respeito de
demandas, observamos que elas são diversificadas e dependem, sobremaneira, da
posição que cada indivíduo ocupa dentro do terreiro de umbanda 3. O inusitado é parte
desta religião.
A umbanda, ao ser formada por alguns eixos fundamentais, presentes nos
diversos terreiros, e ao mesmo tempo possibilitar criações em cima destes eixos,
permite ao indivíduo, adepto ou não, escolher o terreiro que vá de encontro àquilo que
ele está buscando ou precisando4. A autonomia5 dos terreiros é um dos pontos centrais
da permeabilidade à variação que se encontra na umbanda. Devido às suas
particularidades, assiste-se a um processo de refazer e de reordenar o sentido dos
produtos culturais diversos. As variações interpretativas, a invenção, a recriação na
umbanda são produtos de um processo dinâmico e constante. “Através da
representação das diferenças religiosas como linhas possíveis e legítimas comandadas
pelos espíritos e orixás, torna-se sempre possível para o umbandista compor, somar,
articular princípios diversos na sua prática” (Ortiz, 1980, p.90).
Esta flexibilidade permite que a construção da religiosidade de cada um possa
ser feita de forma mais individualizada, a partir dos diversos processos culturais. O
indivíduo não precisa abdicar de preceitos e de crenças, que lhe são simbolicamente
3
Quando nos deparamos com um terreiro de umbanda, constatamos que há diferenças daquilo que
procuram, fundamentalmente, a assistência, os médiuns e os guias. A assistência, em linhas gerais,
procura a umbanda por motivos de doenças, conjugais, financeiros, amorosos, familiares e, também,
espirituais; já os médiuns estão na umbanda para trabalhar “mediunicamente”, como forma de evoluírem
espiritual e pessoalmente, ao ajudarem outros indivíduos; e os guias optam por estar ali também com o
intuito de evolução espiritual, através da prática da caridade, mas de um jeito diferente: trabalham como
espíritos não encarnados.
4
Vale citar a fala de um pai-de-santo, a respeito da constituição religiosa individual dentro da umbanda:
“Porque da crença de que a religião é uma forma só. É a manifestação de uma forma pro caminho
espiritual. E cada um vai encontrar, o coração vai bater forte, num tipo de coisa. Então, assim, por
exemplo, tem uma formação de Xamã, eu coloco coisas, faço trabalhos de xamanismo junto com a
umbanda e sai tudo muito bem, encaixa legal. Se o outro quiser vir trabalhar com cristais, ótimo... É esse
o grande charme da umbanda, porque cada terreiro é um culto diferente. E aí, busca uma codificação,
porque não tem tradição. A tradição é ser diferente. É você responder, é você criar um culto, uma forma
de trabalho que vai reverberar em quem for necessário, em quem se encontrar com aquilo. O outro não é
aqui, vai ser ali que é completamente diferente. Cada um tem que tá onde tem que tá. E eu acho que
isso é o charme da umbanda”. A. M., entrevista realizada pela autora, gravação em fita de áudio, São
Paulo, 07/03/03.
5
Historicamente, é possível constatar tentativas das associações e das federações umbandistas em
instituir um poder central e ditar algumas diretrizes de ação para os terreiros. Porém, o que se observou
foi uma ação pouco eficaz, que, muitas vezes, se inicia com a não participação nestas associações e
federações. Cf. Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada.
significativos, e constantemente pode fazer e refazer a sua prática religiosa. Conforme
coloca Malandrino (2006):
6
A visita a terreiros de umbanda em momentos diferentes, historicamente diferentes, mostra a
possibilidade de se observar modificações que vão desde os rituais às rezas, dos dirigentes à
organização material, passando pelos símbolos, que a nosso ver dizem respeito às necessidades
espirituais e psicológicas dos adeptos.
7
Cabe citar novamente a fala do pai-de-santo: “A umbanda não se restringe a uma tradição kardecista,
ou candomblecista, ou católica. Ela é uma mescla. Eu acho que é a única religião no mundo que é
ecumênica, que todo o mundo se sente em casa, porque vai encontrar algum símbolo que vai fazer
referência a sua educação religiosa, seja qual tenha sido a sua religião. Em determinados terreiros
alguns vão ser mais predominantes do que outros. Em determinados terreiros não. Terreiro, pra terreiro
vai ter símbolos mais determinantes que outros. E esse é o axé, o axé do conhecimento. É o acúmulo do
saber, o que não dá choque, claro. Eu digo que a umbanda é uma esponja, ela vai absorvendo tudo que
vai aparecendo, enquanto dá liga, enquanto dá mescla, vai inserindo dentro do culto dela”. A. M.,
entrevistado pela autora, gravação em fita de áudio, São Paulo, 07/03/03.
agora, perguntar, o que estamos entendo por símbolos e, mais do que isso,
compreender de que maneira tais símbolos conectam o indivíduo, que se encontra na
umbanda, a uma realidade transcendente, que se mostra, ao mesmo tempo, individual
e coletiva.
Símbolos
8
Cf. Edward WHITMONT, A busca do símbolo.
9
De maneira sucinta, arquétipos são possibilidades herdadas para representar imagens similares, isto é,
formas instintivas de imaginar. Pode-se dizer que são matrizes arcaicas, onde configurações análogas
ou semelhantes tomam forma. Resultam do depósito das impressões superpostas deixadas por certas
vivências fundamentais, comuns a todos os humanos, repetidas incontavelmente através de milênios.
Podem ser chamadas de vivências típicas, características, próprias da humanidade.
da psique com certa autonomia e energia psíquica aglomerada. As relações, as
situações e as idéias mais abstratas de natureza arquetípica são traduzidas na forma
de processos retratáveis ou de eventos expressos em imagens.
O símbolo sempre oculta um sentido invisível e mais profundo do que o seu
sentido objetivo e visível, portanto não é imediatamente solucionável, compreensível ou
determinado anteriormente, tendo um caráter duplo e bipolar. Sua bipolaridade é dada
pelo fato de o símbolo ter a qualidade de unificar os pares opostos, por exemplo, o
consciente e o inconsciente, em um resgate imagético do arquétipo.
Um símbolo carregado de sentido nunca pode ser criado a partir de relações
conhecidas, já que pertencem a dois níveis diferentes de realidade: a imagem e um
conteúdo que transcendente à consciência, com a qual é necessária a comunicação.
Como unificador de antagonismos, o símbolo sempre solicita a totalidade do humano,
afetando o homem por inteiro. Um símbolo é a melhor expressão de algo e se encontra
carregado de sentido. Segundo Jacobi (1952):
Símbolos Umbandistas
Trabalhando com a idéia de inconsciente cultural, podemos supor que os
símbolos da umbanda se referem a um inconsciente umbandista, em contraposição a
um inconsciente coletivo.
A linguagem simbólica da umbanda se assemelha à linguagem do inconsciente,
mas não de um inconsciente qualquer, mas de um inconsciente que poderíamos
chamar umbandista. A umbanda é a expressão desta cultura e deste inconsciente, na
medida em que seus símbolos podem exprimir aspectos inconscientes presentes nos
indivíduos que freqüentam a umbanda.
Um inconsciente religioso umbandista, como colocado anteriormente, possui
determinados temas míticos ou arquetípicos, que são carregados de energia dentro
deste núcleo, sendo perpetuado continuamente como um modelo que tende a se
reproduzir. Com isso, há conteúdos pertencentes a determinado grupo religioso, no
caso a umbanda, que estão ativados, existindo como uma tradição dentro desse grupo,
dessa coletividade, que se manifestam em seus componentes.
Podemos supor que há um inconsciente que poderíamos chamar de
umbandista, isto é, há símbolos que só fazem sentido para o adepto da umbanda.
Como estamos falando de umbanda, que carrega em si diversidades que variam de
terreiro para terreiro, podemos trabalhar com a idéia de que há um conjunto simbólico
que ressoa para os indivíduos que pertencem à umbanda. Frente a isso, a seguir,
estaremos apresentando, de maneira breve, alguns símbolos fundamentais da
umbanda, no caso: a tronqueira, o quartinho dos Exus, a roupa branca e os apetrechos
dos guias.
Tronqueira
10
Há uma relação mais estreita entre Ogum e Exu Guardião que remonta à mitologia dos orixás.
Conforme coloca CAMPBELL, os mitos não são criações irresponsáveis da psique, mas criações
autênticas do inconsciente coletivo. Aquilo que os seres humanos têm em comum se revela nos
mitos. Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos
tempos. Precisamos contar e compreender nossa história. Precisamos que a vida tenha significação,
precisamos tocar o eterno, compreender o misterioso, descobrir o que somos. Mitos são pistas para
as potencialidades espirituais da vida humana. Os mitos ensinam que você pode se voltar para dentro
e captar a mensagem dos símbolos. O mito ajuda a colocar a mente em contato com essa
experiência de estar vivo. Cf. Joseph CAMPBELL, O poder do mito. Vale citar um mito presente em
Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixás, p. 55: “Sua mãe então chamou Ogum e disse a ele para
ficar junto com Bará e dele tomar conta. Ogum era responsável e trabalhador. Ogum Avanagã
capacidade de enfrentar e vencer todos os tipos de males, e Exu guardião, como
aquele que guarda os limiares e, se bem assistido, não prejudica aquele terreiro, mas o
protege.
A tronqueira encontra-se no limiar, no limiar do que poderíamos chamar de dois
mundos ou dois espaços, isto é, o espaço profano e o espaço sagrado. Como há uma
proximidade entre estes dois espaços, que, muitas vezes, se misturam, como no caso
de incorporações espontâneas na assistência, há a necessidade de segregação
concreta destes dois espaços, sendo que a tronqueira faz parte desta concretude. Nos
dizeres de Brumana:
Tal qual a relação entre consciência e inconsciente, o limite entre eles é bastante
tênue e, freqüentemente, há a passagem de conteúdos psíquicos entre estas duas
instâncias. Simbolicamente, a tronqueira pode estar relacionada à necessidade de
limites entre estas duas instâncias psíquicas, sendo que a esfera do sagrado associa-
se ao inconsciente, onde há um funcionamento atemporal, a-espacial, tal como o
divino, e não se faz mediante uma lógica racional.
sempre ficou morando com Bará. Juntos eles moram na porta da casa e se dão bem. Bará continuou
um menino danado, mas com Ogum aprendeu a trabalhar”.
11
Vale a pena citar Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixás, p. 67, quando o autor resgata um mito
que fala a respeito de Exu: “E Orunmilá decretou que dovorante todos os humanos viveriam em
casas. De repente, Orunmilá se dirigiu a Exu: “E tu, Exu? Dentro ou fora?”. Exu levou um susto ao ser
chamado repentinamente, ocupado que estava em pensar sobre como passar a perna em Orunmilá.
E rápido respondeu: “Ora! Fora, é claro”. Mas logo se corrigiu: “Não, pelo contrário, dentro”. Orunmilá
entendeu que Exu estava querendo criar confusão. Falou pois que agiria conforme a primeira
resposta de Exu. Disse: “Dovorante vais viver fora e não dentro de casa”. E assim tem sido desde
então. Exu vive a céu aberto, na passagem, ou na trilha, ou nos campos. Diferentemente das
sempre o primeiro a ser saudado e não fica dentro da casa, já que o seu lugar é o
espaço externo, ou melhor, as encruzilhadas.
Um dos aspectos sincréticos da umbanda é revelado através de Exu. Ele é ao
mesmo tempo guia e orixá. Nas próprias saudações e oferendas, podemos observar
esta mistura: para não atrapalhar, para colocar a gira em movimento. Na umbanda, a
presença de Exu e Pomba-Gira como guias é mais freqüente e, por que não dizer,
relevante. As giras “de esquerda” sempre têm a presença dos Exus e das Pombas-
Gira. “O único caso em que o “espécime” feminino tem nome diferente do masculino;
de qualquer modo, a homogeneidade é evidente em todo discurso que se refere à
Pomba-Gira como mulher do Exu ou até como um Exu feminino” (Brumana, 1991,
pp.242-243). E ainda, no que diz respeito à representação de Exu e Pomba-Gira: “A
figura do delinqüente – e da prostituta para seu correlato feminino – serviu como a
máscara que o sistema subjacente à umbanda necessitava para dar vida ao pólo de
desordem alheia” (idem, p. 372).
Simbolicamente, associa-se Exu e Pomba-Gira aos aspectos sombrios que
possuímos coletiva e individualmente. Podemos falar de uma sombra coletiva
(universal) ou pessoal (individual), aspectos da psique que carregam tudo aquilo que é
negado ou não aceito em nós, na nossa consciência. Trabalhar com estas entidades
significa entrar em contato com estes conteúdos que negamos (pessoal e socialmente).
É interessante apontar também que o fato de existir uma entidade masculina e outra
feminina, diferenciadas, facilita a identificação, uma vez que a sombra tende a repetir
aquilo que vivemos tendencialmente na consciência, seja masculino, seja feminino.
Roupa branca
imagens dos outros orixás, que são mantidas dentro das casas e dos templos, toda vez que os
humanos fazem uma imagem de Exu ela é mantida fora”.
durante as giras. Um dos motivos pelo qual se usa o branco na umbanda, segundo
Gomes (1989):
Os apetrechos dos guias são objetos colocados pelos médiuns ou pelos próprios
guias no momento seguinte da incorporação. São elementos que caracterizam os guias
e tornam apreensível, para aquele que assiste à gira, a existência e a presença
daquele guia e, mais do que isso, a sua personalidade, a sua identidade. Esses
aspectos vão desde a maneira de falar, de se posicionar, até os objetos e os elementos
utilizados por eles, tais como um cocar, um lenço, um cigarro, uma bebida, uma faixa,
uma guia de proteção. Os apetrechos que caracterizam os guias são retirados ao
serem cantados os pontos de subida. Isto ocorre, pois, neste momento, a unidade
existente entre guia e médium, que dividem o mesmo corpo, é rompida e, assim, o
médium retoma a sua identidade e retorna ao espaço cotidiano.
Todos os indivíduos possuem a persona, como o arquétipo que faz a mediação
entre o ego, ou a identidade, e o mundo externo. A persona é simbolizada,
normalmente, por roupas e objetos, “máscaras”, que permitem que identifiquemos uma
pessoa. O guia, ao fazer uso desses apetrechos, revela a sua identidade, uma vez que
persona e ego também se relacionam, o que, de certa forma, estabelece o padrão de
comportamento que se deve ter com aquele guia.
Os símbolos, aqui apresentados, se configuram como um elemento de ligação
com o mundo sagrado. Através destes símbolos, é possível, àquelas pessoas que se
encontram dentro da umbanda, a criação de uma ponte, de um contato com o mundo
transcendente, que não está presente no decorrer das atividades cotidianas. Se
entendermos o divino como o mundo do inconsciente, do misterioso, do inefável, os
símbolos umbandistas se configuram como símbolos, já que permanecem carregados
de sentido e permitem que a relação com o inconsciente mantenha-se ativa,
promovendo a vida, não perceptível pela experiência imediata.
Ao entendermos os símbolos como provenientes do inconsciente coletivo,
sabemos que eles possuem uma intencionalidade. O símbolo, como forma de
expressão de aspectos inconscientes ou da forma como se encontra a psique,
comporta em si uma mensagem para o indivíduo que o contempla. O mesmo pode ser
dito em relação a um grupo. Os símbolos são mutáveis no decorrer do tempo, já que
uma mudança na consciência implica no aparecimento de novos símbolos, que
correspondem a novas demandas. Tais símbolos e a possibilidade de modificá-los
concretamente e no seu significado afetam os indivíduos pertencentes a cada terreiro,
já que permitem que cada indivíduo opte pelo seu caminho religioso, mesmo estando
na umbanda, isto é, ele pode viver a sua religiosidade de maneira individual, conectado
com um aspecto universal, atemporal e coletivo da vida humana.
Considerações finais
CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill (1988). O poder do mito. São Paulo: Palas Athena,
1990.
JUNG, Carl Gustav (1916). A Natureza da Psique. 4a ed. Petrópolis: Vozes, 1998,
Obras Completas, volume VIII/2.
MAGNANI, José Guilherme Cantor (1986). Umbanda. São Paulo: Editora Ática, 1986.
ORTIZ, Renato (1980). A consciência fragmentada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
PRANDI, Reginaldo (2201). Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
Originária do grego Kállos ou Kalos, que quer dizer belo; de Eidos, que significa forma
ou imagem, e de Skopein, que significa ver, o caleidoscópio é um instrumento construído por
três espelhos dispostos em ângulos, de forma que multiplicam simetricamente a imagem dos
objetos colocados entre eles.
Um caleidoscópio com vinte pedrinhas, sendo virado de forma a obter dez novos
desenhos a cada minuto, necessitaria quinhentos bilhões de anos para que todas as
imagens pudessem ser vistas!
Uma lenda conta que os antigos egípcios teriam colocado, juntas, duas ou três lascas
de pedra muito polidas em diferentes ângulos, e então observado, fascinados, as mandalas
que se formavam pelas imagens refletidas de dançarinos humanos.
O caleidoscópio foi re-inventado por Sir Scott Brewsterme em 1816, enquanto
realizava experimentos sobre a luz.
Uma vivência interessante usando os princípios da reflexão da luz ocorreu numa feira
em Paris, em 1990. Uma atração chamada “Palácio das Ilusões” fora construída à
semelhança de um caleidoscópio. Era um vestíbulo hexagonal, no qual cinco das seis
paredes eram formadas por espelhos bem polidos. Em cada canto havia enfeites
arquitetônicos, colunas, cornijas, que se harmonizavam com os adornos esculpidos no teto e
criavam ilusões de óptica. O visitante então vivia uma realidade nunca antes imaginada, pois
via a si mesmo em diferentes espaços (mandalas), cercado por uma multidão de cópias dele
mesmo!
1
Este texto é fruto de um diálogo realizado entre as autoras no XIX Boitatá, Sítio da Grande Paineira, de 26 a 28 de Janeiro
de 2007. São José dos Campos.
2
Psicoterapeuta, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC SP. Professora do curso de Psicoterapia Junguiana Coligada a
Abordagem Corporal, no Instituto Sedes Sapientiae. Formação no Método Feldenkrais de Educação Somática por
Somathematics. Formação com Marion Woodman em Body Soul Rythms. E-mail: mtbit@terra.com.br
3.
Biomédica pela UniFesp. Mestre e Doutora em Fisiologia pelo ICB-USP. Terapeuta Corporal pela SOVESP- São Paulo.
E-mail: malu.teixeira@uol.com.br
Toda mandala (do sânscrito, círculo) é uma representação geométrica que pode ser
vista como símbolo da dinâmica entre o homem e o cosmos; é uma exposição plástica e
visual do retorno à unidade pela delimitação de um espaço sagrado e atualização de um
tempo divino .
Nesse espaço simbólico criativo a espiritualidade pode se manifestar, tendo-se como
princípio que todo ser humano possui um potencial criativo que se manifesta num espaço e
num tempo determinados e que se atualiza por toda a sua vida.
O artista não é uma pessoa dotada de seu próprio desejo, que procura seu
próprio fim, mas alguém que permite que a arte realize seu propósito através dele.
Como ser humano ele pode ter estados de humor, um desejo e metas pessoais,
mas como artista ele é “homem” no sentido mais elevado da palavra- ele é o
“homem coletivo”um meio e modelador da vida psíquica do ser humano. (Jung,
1930, par. 158)
Lúcia – A questão da espiritualidade nos coloca diante de uma das mais fascinantes
inquietações humanas. Como olhar a esperança constante de crenças, religiões e suas
intrincadas conexões culturais, presente em diferentes épocas e conjunturas sociais, e
recolocá-la frente aos saberes científicos contemporâneos?
Márcia – O corpo é a casa da alma, se prende a ela, mas é naquele ponto aonde os
pólos opostos espírito e matéria se tocam e não se tocam, é nesse espaço virtual que ela se
origina .
A alma é o feminino, a emoção. O espírito é a centelha divina.
Márcia - Este momento fértil e especial, no qual o ego se retira do domínio onipotente
e passa a perceber a presença constante da energia arquetípica do Self, pode ser um
momento de entrega e paixão, criatividade, expansão do universo pessoal e coletivo, talvez
um momento em que a alma encorpada se liga à alma da terra.
Márcia – Philippe Comar (1999) em Images of the Body, diz “Quanto mais
aprendemos sobre o corpo, mais misteriosa e exótica se torna a alma. À morte pertence o
conter invisível da verdade humana”
Podemos pensar no inconsciente como esse container da verdade humana? Se
exercemos uma atitude positiva em relação ao inconsciente ele será nosso aliado e nos
manterá conectados com nossas origens e nossos instintos.
Há uma vitalidade, uma força vital, um lampejo, que é traduzido por você em
ação, e porque há somente um de você em todo Tempo, esta expressão é única.
E se você o bloqueia, ele nunca existirá através de nenhum outro meio e será
perdido. O mundo não o terá.
Não cabe a você determinar se ele é bom, nem qual é o seu valor, nem
compará-lo com outras expressões. Seu papel é mantê-lo seu, claramente e
diretamente, para manter o canal aberto. Você nem mesmo tem que acreditar em
você ou no seu trabalho.
Você deve se manter diretamente consciente das urgências que o motivaram.
Mantenha o canal aberto, nenhum artista fica satisfeito!
Não há qualquer satisfação em tempo algum. Há somente uma estranha,
divina dis-satisfação, uma benção sem descanso que nos mantém em marcha e nos
torna mais vivos que os outros. (p.264)
Comar,Philippe (1993). Images of the Body. New York: Harry N. Abrams Inc., 1999.
DeMille, Agnes (1969). Martha: The Life and Work of Martha Graham. New York:
Random House, 1991.
Garaudy, Roger (1973). Dançar a Vida. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,1980.
Filme:
Jung, C. G (1956). Matter of heart – The extraordinary journey of C. G. Jung into the
soul of man. New York: Kino International Corp., 2001.
ASPECTOS SIMBÓLICOS DO CULTO POPULAR
DO ESPÍRITO SANTO
Permanece vivo em muitas regiões de nosso país o culto popular do Espírito Santo,
também referido como culto do Divino. Algumas vezes um pouco modificado em relação à
sua origem portuguesa, às vezes reinterpretado, em outros momentos disfarçadamente
celebrado e talvez inconscientemente evocado para a maioria de nós, a sua influência
permanece ativa e talvez mais abrangente do que imaginamos em nossa cultura. Por este
motivo é que estamos alinhavando a seguir alguns aspectos do simbolismo de seu culto e
de como esta sua influência se mantém presente entre nós.
Tratando-se de um ritual do catolicismo popular que veio para o Brasil através de
Portugal no século XVI, centrado na celebração de Pentecostes e de um dos aspectos da
Trindade Divina, o seu culto possivelmente permanece mais vivo em nosso país do que
em nossa terra-mãe. Entendo que este fato adquire uma importância especial, ao
considerarmos de que modo a idéia do Espírito Santo tem relação com o modelo de
colonização que os portugueses conduziram nos locais onde eles estiveram e o que isto
significou, por exemplo, nesta então colônia que se emancipou. Mas para tornar mais
compreensível esta proposição, vamos verificar inicialmente a história de seu culto e fazer
as considerações simbólicas possíveis.
O Império do Divino Espírito Santo inicia-se e termina em Pentecostes,
correspondendo, portanto, a um ciclo de um ano e faz parte do calendário católico. O
início de seu culto foi instituído por um decreto da Rainha Isabel de Aragão (1271-1336),
casada com Dom Diniz, em 1323, momento assinalado pela fundação da Igreja do
Espírito Santo, na Vila de Alenquer. Mas, conforme fontes consultadas (Paulo Loução,
2004, Moisés Espírito Santo, 1998, Jaime Cortesão, 1993 e Câmara Cascudo, 1954), o
seu culto já existiria de forma sincrética em várias regiões portuguesas, e a Rainha, ao
1
Psiquiatra e Psicoterapeuta Junguiano, Mestre em Ciências Sociais pela USP. Professor do Curso Jung e Corpo –
Formação em Psicologia Analítica e Abordagem Corporal – Instituto Sedes Sapientiae.
E-mail: ptmachadof@uol.com.br
instituí-lo, na realidade teria se identificado com a causa dos judeus 2 e assim legitimado o
culto junto à Igreja Católica. Ela também teria sido influenciada pelas idéias de Joaquim
de Flora3, pensador cristão cujas idéias foram consideradas heréticas, na época em que
viveu, sendo que, em seu pensamento, a história seria dividida em três fases: a de Deus
Pai, o Criador (“O primeiro estado foi colocado sob os auspícios da dependência servil”; é
relacionado por Flora como sendo a época do temor, o estado de escravos, dos velhos, o
Inverno, as urtigas etc.); a de Deus Filho, o Redentor (“...o segundo sob os da
dependência filial”; relacionado com a época da fé, com o estado dos homens livres, dos
adultos, a Primavera, as rosas etc.); e a do Espírito Santo (“...o terceiro sob os da
liberdade”; relacionado com a contemplação, a caridade, o estado de amigos, as crianças,
o Verão, os lírios etc.). A Era do Espírito Santo seria, então, a Era da abundância, da
fraternidade e solidariedade, momento em que os cristãos se comunicariam com Deus
diretamente, sem a interferência da Igreja.
A referência a Pentecostes deriva do grego Pentekoste, que é cinqüenta, e
corresponde ao fato de a sua celebração dar-se cinqüenta dias depois da Páscoa (na
realidade, sete semanas: 7x7 dias = 49+1 dia = 50). Relaciona-se com os antigos rituais
agrícolas, quando as sete semanas após a lua cheia de Carneiro (efeméride que assinala
a Páscoa; a cristã comemora-se no domingo seguinte à lua cheia de Carneiro) eram
fundamentais para que o Espírito de Deus fizesse com que as sementes (que eram
lançadas na seara na ocasião da Páscoa, sob o influxo energético da lua) germinassem.
As comemorações realizadas nesse período foram conhecidas como Festa das Ceifas ou
da Colheita. Na referência de Moisés Espírito Santo (1998), na tradição hebraica antiga o
Espírito Santo se relacionaria com a água, elemento fecundador da terra e através do
qual o espírito se faria presente, como força vital, junto às sementes (“o Espírito de Deus
se movia sobre a face das águas”, Gên., 1,2). Na tradição hebraica, existe ainda afinidade
entre espírito e vento (ou sopro ou alento), utilizando-se para ambos a mesma palavra:
rouah. Rouah Elohim é o “Espírito de Deus”. Na versão cristã, o Espírito Santo é ígneo,
sendo que, na forma de línguas de fogo e por ocasião de Pentecostes, desceu do céu
2
Ou talvez a rainha tenha procedido à cristianização de um culto arcaico que, conforme referimos, se realizava de
forma sincrética; Espírito Santo (1988) informa-nos que o Culto do Divino relacionava-se com a Festa das Ceifas ou
das Colheitas, tendo vindo para Portugal através dos judeus e fenícios e sincretizado-se com a temática cristã relativa a
Pentecostes. Mais referências adiante no texto.
3
Além dos autores acima citados, encontramos referências sobre a origem do culto do Espírito Santo na obra de
Agostinho da Silva, a quem Borges (2006) considera “entre outras coisas e com toda sua originalidade, um dos mais
recentes neo-joaquimistas”.
2
sobre os apóstolos, no Cenáculo, atribuindo a eles um poder especial, o dom da
glossolalia, que os fez saírem pelo mundo para pregar o Evangelho de Cristo para outros
povos (“E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar em outras línguas,
conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem”, Atos, 2,4). Tal acontecimento
teria assinalado o início da comunidade cristã, estabelecendo-se uma nova aliança entre
Deus e os seres humanos.
Por tratar-se de um culto da religiosidade popular (que se desenvolve
espontaneamente, independente das instituições) e das tradições ancestrais (ligando-se
aos ritos agrários), o culto do Espírito Santo é multifacetado e engloba muitas funções
religiosas (“um espaço de criatividade no âmbito do sagrado – um espaço de liberdade
imaginal”, Loução, 2004, p. 197). O autor referido observa relações do culto em Portugal
com “ritos de fertilidade, propiciatórios, culto ao fogo, fraternidade, pão, sacrifício do touro,
vinho, rosas como alimento espiritual, criança símbolo do renascido, libertação de
prisioneiros, galo, casamenteiro etc.” (p. 197); verificamos ainda como elementos
importantes no culto português a (santa) coroa, a pomba (com quem o Espírito Santo é
identificado), o cetro, o estandarte, a espada e o jantar. Os personagens mais importantes
são o Imperador (os adultos são titulares do cargo, mas as crianças é que ocupam o trono
do império), o alferes, o mordomo e os mordomos auxiliares. No Brasil, os principais
elementos do culto, conforme Câmara Cascudo (1954), são a festa (ou a folia), a missa
cantada, a procissão, os leilões de prendas, a exibição de autos tradicionais, cavalhadas
com lutas entre mouros e cristãos, ocorrendo variações conforme o interesse de cada
região. Mas a maior parte dos elementos dos festejos portugueses foi transposta para
nosso país e tornou-se também constituinte das nossas celebrações.
A Trindade Divina
4
A Festa do Divino
4
Agostinho da Silva (2003) afirma que em Açores o culto sobrevive tratando-se mesmo de uma verdadeira religião.
5
personagem do imperador reside no fato também de que ele é identificado com o Rei-
Messias prometido, sugerindo a vinda do Messias na figura de um grande rei,
perpetuando-se, a cada ano, em sua representatividade, a esperança messiânica. As
insígnias do imperador são a coroa, geralmente de prata, o cetro e uma toalha ou faixa de
linho que é colocada sobre seus ombros. É importante citar também que em nosso país a
existência de um imperador e não de um rei, após a proclamação da independência,
deveu-se ao prestígio e à popularidade do Imperador da Festa do Divino. Sobre o
imperador em seu aspecto criança, faremos outras menções a seguir.
O principal objeto do culto, durante a festa, é o pendão do Divino, uma bandeira com
uma faixa vermelha contendo o desenho em branco de uma pomba e uma coroa,
colocada no alto de um mastro ou estandarte, e que é conduzido pelo Imperador ou seus
mordomos na frente da procissão. Durante o seu transporte, o pendão é adorado e até
beijado pelo público, confirmando tratar-se, segundo Espírito Santo, de um sinal de
adesão coletiva. Este autor refere que o seu simbolismo nos remete às antigas tradições
hebraicas, quando o Espírito Santo era a força vivificadora do trigo e a saída da bandeira
representava a renovação de uma “antiga promessa”. Quando tal não ocorria, poderiam
advir doenças, pragas, fome, peste e guerras. A marcha com o estandarte à frente
também representava a afirmação do império, reino ou Deus com o qual, nas guerras ou
nas cruzadas, o exército ou o povo se identificava. Na iconografia cristã, é o emblema do
culto ao Divino.
A pomba desenhada na bandeira simboliza o espírito ou a alma e é a mensageira do
Espírito Divino ou o Espírito de Deus:
O que faz a verdadeira existência das crianças é que nelas o fulcro da vida é
o amor que tem o corpo pela alma e a alma pelo corpo. O que é a
correspondência na Terra, do Amor que une o Pai e o Filho. (pp. 195-6)
7
invariavelmente em separar a alma (ou a mente) do corpo, quando então o indivíduo é
considerado “educado” ou adulto. A criança também simboliza o futuro e a esperança,
remetendo o nosso olhar ao novo, às novas configurações que substituem os arcaísmos,
expressando ainda a inesgotável criatividade do Ser Uno, na passagem do imanifesto ao
manifesto.
Espera-se, também, no reino do Espírito Santo (Joaquim de Flora) o início de uma
Era de absoluta liberdade, que pressupõe o ecumenismo, a tolerância, a igualdade entre
as pessoas que passam a compartilhar a Era dos amigos. É neste contexto que o
Imperador-criança pede (ou ordena) a libertação dos presos, ato que simboliza a
liberação também de nossas culpas, com a conseqüente integração psicológica da
sombra. O gesto do perdão representa ainda a possibilidade de um novo princípio ou o
estabelecimento de um novo pacto, condição dada, por exemplo, aos muitos degredados
para o Brasil embarcados na ocasião do Descobrimento.
O culto completa-se com um jantar, que em muitas localidades do Brasil é coletivo,
distribuindo-se comida para toda a comunidade presente. O banquete gratuito para todos
afirma o ecumenismo da festa da religiosidade popular, que aproxima indistintamente os
diversos setores da sociedade. Além de ser um ato onde comungam todas as categorias
sociais, o bodo representa a fartura ou a abundância; a generosidade do ato é um gesto
de reconhecimento e gratidão a Deus por tudo que recebemos: a terra, os alimentos, a
própria vida. O jantar remete também às alusões existentes nos Evangelhos sobre os
alimentos sacramentais: o milagre dos peixes, a multiplicação dos pães, as núpcias de
Caná etc., e todo o simbolismo subjacente a cada uma das referências. Entende-se que a
primeira fome é a do espírito; estando este nutrido pela fé, o alimento do corpo surge em
profusão. Encontra-se implícita ainda a idéia de que no Reino do Divino não haverá
miséria, distribuindo-se suas dádivas igualitariamente para todos.
Agostinho da Silva (2003) refere-se ao culto popular do Espírito Santo como “um
projeto do povo português”, projeto este que transportou para os povos que colonizou na
época dos Descobrimentos. Ao recebermos, aqui no Brasil, este culto, podemos entender
que recebemos também a influência arquetípica do terceiro aspecto da Trindade Divina,
influência esta que nos permite compreender certas características da cultura que entre
8
nós se desenvolveu. O processo de colonização das outras nações da América não
seguiu o mesmo modelo do processo de colonização acontecido no Brasil. A Inglaterra,
por exemplo, legou aos povos que colonizou, de forma bem clara, as idéias da Reforma,
que do ponto de vista simbólico consagram o arquétipo do Pai. Deste modo, foram
importantes, na relação com este modelo, o princípio organizador, a Lei (a Carta Magna
foi fundamental na organização dos Estados Unidos), a ordem e a disciplina, a
hierarquização política e religiosa, como também a discriminação (entre norte e sul,
brancos e indígenas etc.). A colonização espanhola deu-se sob a égide dos Reis
Católicos e a influência próxima da Igreja Romana, aqui situada no papel de Filho. O Filho
aparece na relação trinitária como o Outro, a encarnação através da qual Deus se vê. No
drama divino, Jung (1940) refere que a condição do Filho é transitória, assim
permanecendo enquanto a herança paraclética, através de seu sacrifício, não for
distribuída para os discípulos. Mas, na hipótese da ausência da presença paraclética,
temos a separação do Filho do Pai, sendo importante lembrarmos ainda que, nos
modelos mais arcaicos, o tema do parricídio envolvia a sucessão do pai pelo filho. Neste
momento, a Igreja vivia seu grande Cisma, era a época da Reforma e da Contra Reforma.
Não é ilógico conjeturarmos que a existência desta cisão poderia ter influenciado a
maneira como se deu a colonização espanhola, que ao se estabelecer, impôs-se
unilateralmente, não se integrando às culturas anteriormente presentes nos territórios
ocupados, sendo que muitas delas, inclusive, foram totalmente aniquiladas.
Os descobrimentos portugueses e a colonização de seus territórios, no princípio,
conforme verificamos nos estudos de Cortesão (1990), foram financiados pela Companhia
de Jesus, que herdou em Portugal a missão templária. Os Templários cumpriram um
importante papel na proteção aos peregrinos cristãos que se dirigiam a Jerusalém,
durante as Cruzadas, e foram talvez o único elo de ligação entre Ocidente e Oriente, mas
posteriormente foram perseguidos pela Igreja, que se sentiu ameaçada pelo seu
crescente poder. A busca de um caminho “para as Índias” e o restabelecimento da ligação
com o Oriente foi uma espécie de prosseguimento, através dos navegadores
portugueses, daquela referida missão. Evidentemente, os interesses mercantilistas da
Coroa viriam, posteriormente, a interferir nesta intenção.
Foi neste contexto que Portugal tomou posse do Brasil, de cuja existência já tinha
conhecimento, conforme os acordos já estabelecidos com a Espanha e com quem
dividiram este novo mundo. Devido à sua posição geográfica, margeando a saída do
9
Mediterrâneo e projetando-se para o Atlântico, a presença do mar no imaginário
português era muito forte, fazendo circular entre eles histórias ou mitos de Terras
Desconhecidas, da Ilha dos Amores (Camões), idéias que nos remetem ao tema mítico do
paraíso, ou como, entre os navegadores, da existência de uma Terra Brazilis, que seria
um local de transformações espirituais. Em torno destes sonhos, imaginava-se a
existência de um lugar idílico, onde as pessoas poderiam viver fraternalmente e onde
também imperaria a tolerância e a possibilidade de uma nova vida. Assim, e com o
acréscimo dos ideais templários, os portugueses inventaram as caravelas, montaram
suas esquadras onde coabitariam com os degredados, mouros e cristão novos e depois
de juntarem a bandeira do Espírito Santo5, lançaram-se ao mar. A vinda ao Brasil, que
inicialmente pensava-se ser uma Ilha, com todas as indagações históricas e a presença
da inspiração divina é poeticamente sintetizada por Fernando Pessoa:
5
Sobre este tema, encontramos em Camões (Canto Segundo, verso 11):
“Ali tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a pintura,
A cândida Pombinha, debuxada
Sobre a única Fênix, Virgem pura.
A companhia santa está pintada,
Dos doze, tão torvados na figura
Como os que, só das línguas que caíram
De fogo, várias línguas referiram.”
10
em cada parte do país define as suas próprias músicas e danças, nas cores de nossas
artes plásticas, na criatividade e imprevisibilidade de nossos esportistas campeões
(muitas vezes heróis tricksters), no “jogo de cintura”, só para falarmos por cima de alguns
aspectos.
Reportemos-nos, mais uma vez a Agostinho (2003), que afirmou que o Pai e o Filho
são lógicos, mas o Espírito Santo é imprevisível, “nunca se sabendo para onde ele vai
voar”; nesse sentido, ele considera que Portugal “foi muito mais do Espírito Santo do que
de um Deus regendo ou de um Deus morrendo”. Transportado para nosso país, este
mesmo Espírito livre e criativo parece estar tecendo, através de sua imprevisibilidade e
aparente ilogismo, as páginas de nosso destino e de nossa história, cuja assertividade o
futuro constatará. É este Espírito imprevisível, que sabota todo e qualquer planejamento
que se faça, mas que acaba por encontrar um caminho inusitado e criativo, que na
atualização do tempo geralmente demonstra ser o correto.
O Espírito Santo representa também, conforme já foi dado a entender, o amor do Pai
pelo Filho e do Filho pelo Pai, sendo ainda o amor que, de acordo com Agostinho, “fez
com que cada um deles seja Deus ao mesmo tempo”. A Trindade seria, então, ainda em
suas palavras, “o símbolo, posto no eterno, daquilo que os homens gostariam que fosse o
amor na Terra”. Esta condição afetiva, transposta para o coletivo nacional, certamente
ainda está longe de ser totalmente compreendida, apesar de observarmos nesta instância
uma peculiar receptividade não discriminada aos ícones populares, às novidades, aos
modelos ou idéias originais. Mas, enquanto mensagem simbólica e expressão possível de
um arquétipo, aponta-nos ao menos a esperança de dias melhores, onde o convívio
tolerante, a distribuição mais eqüitativa das riquezas e a superação da miséria, a
promoção da criança e da mulher, do negro e do índio, juntamente com a emancipação
do homem, possam configurar-se como as marcas de uma grande nação.
O culto do Espírito Santo, portanto, enquanto manifestação espontânea e também
ecumênica da religiosidade popular, torna-se o grande exercício que mantém vivas as
expectativas de que o homem e a mulher, ao reencontrarem-se em sua essência divina,
possam concretizar a sua individuação. Ou como quer Agostinho, simbolizando “o pleno
cumprimento do Espírito pelo pleno cumprimento do homem”.
11
Referências Bibliográficas
LOUÇÃO, Paulo Alexandre (2002). A Alma Secreta de Portugal. Lisboa: Ésquilo, 2002.
PESSOA, Fernando. Mensagem, e Outros Poemas Afins. Lisboa: Livros de Bolso Europa-
América, s/data.
SILVA, Agostinho da. Textos e Ensaios Filosóficos I e II. Lisboa: Âncora, 1999.
12
A PARCERIA HÉSTIA-HERMES NO FENÔMENO DA RESILIÊNCIA
O Conceito de Resiliência
Os Arquétipos e os Divinos
Os enfocados aqui serão Héstia e Hermes, por nos parecerem, a partir das
características que trazem em suas histórias, divinos que nos ensinam algo precioso a
respeito da resiliência, ou seja, da nossa capacidade em lidar criativamente com a dor
e com as adversidades.
A partir da noção de que os divinos são expressões arquetípicas, e, como afirma
Bolen (1990, p.48), “todas as deusas estão potencialmente presentes em cada mulher”
– idéia que traz seu equivalente para os deuses e os homens -, passaremos a explorar
as qualidades de Héstia e Hermes, e a parceria que neles vislumbramos.
Héstia é filha de Réia e Cronos. Foi a primeira filha a ser engolida por este pai
primordial, e a última a ser libertada por Zeus, tendo, portanto, ficado mais tempo,
dentre todos os filhos de Réia, na condição do devoramento a que Cronos submeteu
seus rebentos. Este fato será de extrema importância para a constituição de Héstia,
uma deusa discreta, introvertida, que cede seu lugar no Olimpo para Dioniso,
demonstrando assim uma capacidade de desapego, bem como um foco maior nas
questões do mundo interno. É a deusa da lareira, aquela reverenciada em primeiro
lugar em todas as casas ou abrigos, a quem se pede proteção e calor. A forma redonda
circular lhe é associada, à semelhança da lareira no centro da casa que a simboliza,
bem como do agrupamento em torno de um fogo, em roda. A presença de Héstia é
silenciosa e quase invisível. Segundo Brandão (2000, p.557), “assim como o fogo
doméstico é o centro religioso do lar dos homens, Héstia é o centro religioso do lar dos
deuses”. É a deusa da hospitalidade, do sentimento de pertença, da permanência, da
constância, aquela que acolhe, abriga e nutre, que congrega, a guardiã da criança,
contemplativa e organizadora. Por se diferenciar dos outros deuses olímpicos pela
ausência de feitos heróicos ou destacáveis, ela simplesmente é, caracterizando-se
assim mais como um princípio abstrato, uma qualidade.
Hermes é o deus do movimento. Dotado de asas nos pés e do caduceu -
imponente bastão dourado, circundado por duas serpentes, símbolo do axis mundi que
equilibra as polaridades -, faz ponte com os três mundos: Olimpo, Ínferos e Súperos, na
condição de porta-voz de Zeus, o grande regente. Filho deste com Maia, nasce numa
caverna e é colocado no oco de um salgueiro, árvore sagrada, símbolo da fecundidade
e da imortalidade. Traz em si a capacidade de atar e desatar, de desvencilhar-se de
amarras, sejam elas físicas, concretas – os cueiros que o envolvem enquanto bebê -,
bem como psíquicas – os nós neuróticos ligados à parentalidade e aos complexos. É o
inventor, entre outras coisas, da lira, do alfabeto e do fogo, três elementos poderosos
de transformação. É a imagem do desapego, do contato com a fonte criativa, do
funcionamento azeitado dos mecanismos, do trânsito entre os mundos, entre os
deuses e os homens. É também o divino traquinas, ladrão, ardiloso e comerciante.
Hermes não lamenta; age. É o extrovertido por excelência, e seu símbolo é a coluna,
ou pilha de pedras – hermas. Colocada do lado de fora das casas, nas estradas, nos
caminhos, sinaliza sua função de guia e senhor dos percursos, protetor dos viajantes. É
muitos em um só, e de forma semelhante a Héstia, passa pelas histórias de inúmeros
deuses e heróis, constituindo-se como um atributo, um princípio, uma enérgueia.
Complementaridade
3
O termo “sombrio” está sendo empregado como relacionado àqueles conteúdos psíquicos
inconscientes não criativos, e não estruturantes, mas que se conscientizados podem ser revertidos como
recursos construtivos e integrados ao ego.
Do mesmo modo, os aspectos sombrios em Hermes podem fazer com que
aquilo que antes foi visto como movimento e fluxo, seja atualizado como mania. O
excesso de extroversão da psique e a habilidade em transitar para todas as direções
em constantes conexões, quando atuados podem desembocar num movimento
maníaco. A sombra da associação Héstia-Hermes teria, assim, muito a nos revelar a
respeito do transtorno bipolar, uma vez que metaforicamente Héstia sem Hermes é o
ensimesmamento sem a perspectiva e a conexão com o mundo – cores de um quadro
depressivo; enquanto um Hermes sem Héstia é o movimento sem sentido, sem um
ponto de referência, um vir-a ser ao “deus-dará”, localizado no pólo maníaco.
Conclusão
Através de uma leitura simbólica dos mitos desses dois divinos, Héstia e
Hermes, é possível observar o quanto eles nos apontam questões passíveis de ser
transportadas para a compreensão da nossa psique. As qualidades desses divinos,
entendidas como expressões arquetípicas, podem ser associadas à noção de
resiliência presente nas pessoas quando em contato com situações adversas. Héstia, a
deusa do fogo doméstico, protetora dos lares, deusa da lareira representada por um
círculo, simboliza o abrigo das imagens internas, além da inteireza e do acolhimento, e
de inúmeros atributos voltados para a manutenção da integridade do “eu”. Hermes,
deus do movimento, viajante, ladrão e trickster, cuida para que as conexões entre
mundo externo e interno se dêem, que consciente e inconsciente dialoguem, e para
que o criativo flua sem obstáculos, atando e desatando os nós de alma. Ambos,
quando associados e presentes enquanto expressões arquetípicas passíveis de
acesso, representam uma possibilidade interna de saída do aprisionamento que o fato
ou vivência traumática acarreta. Essa saída vislumbrada nada mais é do que a
resiliência ativada; aquele fator intrínseco a cada indivíduo, presente em diferentes
graus.
O analista tem um importante papel ao trabalhar com a dor do seu paciente, seja
ela advinda de um trauma concreto, ou abstrato (imaginado, fantasiado), qual seja, de
avaliar e incentivar naquele que sofre à sua frente, o fator resiliente. Para isso, a
identificação de atributos de Héstia e de Hermes em seu cliente trarão preciosos
instrumentos para o campo simbólico que se constela na análise. O trabalho com
imagens pode ser fundamental para abrir caminho para a reconstrução do ego atingido,
onde o foco na conexão entre consciente e inconsciente se fará necessário, aliado ao
respeito e cuidado com “a casa” interna e “os percursos” no mundo.
Referências Bibliográficas
SAUAIA, N. M. L., & ARAÚJO, C. A. (2004) Resiliência e Psicologia Analítica, Jung &
Corpo. São Paulo, no. 4, pp. 37-44.
Introdução
1
Médica e psicoterapeuta Junguiana com especialização em Psicoterapia Junguiana Coligada a Abordagem Corporal pelo
Instituto Sedes Sapientiae/SP.
Email: c.g.angare@uol.com.br
2
Psicóloga e psicoterapeuta Junguiana com especialização em Psicoterapia Junguiana Coligada a Abordagem Corporal
pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP, pós-graduanda em Transtornos Alimentares pelo Instituto de Psiquiatria - AMBULIM –
HCFMUSP.
Email: mlpescedias@hotmail.com
internas e externas. Além disto, viver em uma grande metrópole gera muita ansiedade e
estresse, sendo ainda mais acelerado devido ao processo de globalização em que vivemos.
Objetivo
Se as raízes são sadias, toda árvore é sadia. Algumas vezes somos jardineiros,
muito atentos à flor e ao fruto, mas esquecemos as raízes, esquecemos os pés. E,
portanto, é por lá, talvez, que deveremos começar os nossos cuidados. (Leloup, 2005)
Quando estamos em contato com nossos pés podemos estar nos indagando: De onde
venho? Quais são minhas raízes? Será que sou demais no mundo? Sinto-me desejado,
amado pela vida? Quais foram as expectativas de meus pais a meu respeito? Ficaram
felizes ou decepcionados de me ver chegar a esta terra? Como me sinto carregado por esta
terra?
Segundo Leloup (2005), a relação com nossos pés está associada à nossa capacidade
ou não de sentir prazer nesta vida. Assim, uma pessoa que não foi desejada, não foi
esperada ou que trouxe decepção por ter vindo a esta terra, dificilmente terá prazer de viver
e poderá ter dificuldades em dar um passo a mais, avançar, andar e se desenvolver na vida.
Assim, o terapeuta pode ajudar esta pessoa a reencontrar as suas raízes e o prazer pela
vida através do trabalho com seus pés.
Um belo presente que se pode dar a uma pessoa que está morrendo é o de
acariciar e tocar seus pés. Porque, no último instante de sua existência, a pessoa vive
momentos de regressão e reencontra a criança que está nela. Algumas vezes, é
imediatamente antes de morrer que a criança ferida pode ser curada em nós mesmos.
Este tema é muito belo para a meditação e para a prática. (Leloup, 2005)
3a. Sessão: Trabalhos e vivências relacionados com as articulações.
As pernas representam um vínculo social, pois com elas podemos nos aproximar,
facilitando o contato.
Na Cabala, representam a firmeza e a glória.
A coxa, por sua vez, representa a firmeza, a elevação e a força, tendo analogia com
uma coluna e evocando a adolescência e, no processo de amadurecimento, as passagens
iniciáticas. No mito grego, Dioniso teve sua segunda gestação na coxa de Zeus.
Coxear simboliza, em inúmeras mitologias, um defeito espiritual, uma fraqueza da
alma.
As pernas podem ser vistas como força de realização humana, assemelhando-se às
pernas do cavalo. A domesticação do cavalo representou a ampliação da capacidade de
exploração do mundo exterior pelo homem.
Esta associação do cavalo com as pernas do homem lembra a impetuosidade do
desejo humano, contida no psiquismo inconsciente.
Porém a libido investida apenas nessa dinâmica escraviza e esvazia o homem das
energias ascensionais, isto é, o destino da impetuosidade do desejo irracional e da libido
descontrolada é a morte.
Essa associação deveria ensinar ao homem montar seu próprio cavalo, segurar e
controlar seus impulsos para que a libido se reoriente para a realização, a fim de caminhar
com as próprias pernas e identificar sua necessidade de crescimento interior.
A coluna pode simbolizar o palácio e templo de Salomão com suas colunas de cedro,
relacionadas a Deus enquanto centro, eixo, força e solidez.
Na maçonaria existem duas colunas simbolizando o masculino (lado direito, vontade,
positivo, fogo, vermelho, vinho e sol), e o feminino (esquerdo, intuição, negativo, ar, branco,
água e lua).
Na tradição judaico-cristã a coluna simboliza as relações entre o céu e a terra,
evocando o reconhecimento do homem para com a divindade. Manifesta o poder de Deus
no homem e o poder do homem sob a influência de Deus.
Da mesma forma a Kundalini, na tradição oriental, simboliza uma serpente que repousa
na base da coluna, e ascende por ela quando acordada, passando pelos diversos chakras,
evoluindo do estado primitivo, inconsciente, terreno, para um estado espiritualizado,
cósmico.
Nossa relação com a coluna pode representar a evolução ou a recusa em evoluir,
expressa através de tensões, sofrimentos e bloqueios.
Nesta última sessão houve uma vivência de integração corporal, através de toques
realizados no corpo todo. As psicoterapeutas efetuaram o trabalho tocando, individualmente,
cada integrante do grupo.
A pele é o limite do eu e do não-eu, ou seja, separa o mundo interior do exterior. Por
outro lado a pele apresenta a mesma origem embrionária com o sistema nervoso e, assim,
está intimamente ligada a este.
Desta forma, tocar a pele é muito importante para o desenvolvimento, pois estimula
vários sistemas corporais: gastrointestinal, genitourinário, respiratório, digestivo, circulatório,
neuroendócrino, imunológico.
Para finalizar, em formação de mandala, foi solicitado que cada integrante verbalizasse
uma palavra para presentear o grupo, as quais foram:
“Paz, harmonia, amor, confraternização, amizade, toque, abraços, força, semente,
solidariedade, tranqüilidade, saudades, sorriso, leveza, calma, recordação, alegria, luz”.
Instrumentos de Avaliação
Questionário
Abaixo enumeramos as questões do questionário, seguidas de tabulação das
respostas obtidas:
1) Quando você fez a inscrição para participar deste grupo, o que você esperava/imaginava
adquirir nestes encontros terapêuticos?
Autoconhecimento (4/8)
Aprender a relaxar (3/8)
Ter harmonia (1/8)
Diminuir estresse (1/8)
Conhecer pessoas (1/8)
Curiosidade (1/8)
Abordagem apenas mental (1/8)
6) Qual a percepção que você tinha do seu corpo antes de iniciarmos o trabalho?
Houve mudanças nesta percepção após o grupo? Se sim, como?
8) Críticas e sugestões.
Melhorar infra-estrutura: trancar sala, diminuir barulho ao redor, sala fria, sala
apertada (3/8).
Aumentar o número de sessões/semana (1/8)
Continuidade das vivências (2/8)
Música de fundo nas vivências (1/8)
Apostilas das técnicas (1/8)
Extensão a todos os profissionais (1/8)
1º 2º
O desenho final ocupa um maior espaço na página. O rosto aparece melhor delineado
comparando-se ao desenho inicial. O pescoço aparece em destaque no 2 o. desenho, o que
é interessante devido ao fato de a integrante do grupo, em várias ocasiões durante as
vivências, ter feito referência à sensação de um “nó na garganta”.
1º 2º
Ambos os desenhos têm a presença do chão, mas no segundo desenho este não está
tortuoso como no primeiro. Há o surgimento de flores, que podem representar novos
recursos. Presença das mãos mais bem definidas no segundo desenho, no qual o corpo
está mais presente e visível.
Integrante 3: 40 anos, sexo masculino, casado.
1º 2º
No 1o. desenho, observamos uma linha separando a cabeça do corpo. Esta linha
desaparece no 2o. desenho, o que pode indicar um melhor fluxo entre aspectos racionais e
os aspectos instintivos do indivíduo. No desenho final os ombros aparecem bem menos
tensionados. No 2o. desenho, as mãos estão mais bem definidas, o chão mais delineado e
firme. Assim como o nariz disforme melhora a sua apresentação no desenho final.
O rosto aparece de frente, melhor posicionado que no primeiro, que está de perfil. No
1o. desenho, a figura ocupa quase todo o papel, apresentando-se mais proporcional no 2o.
desenho.
Integrante 4: 41 anos, sexo feminino, casada.
1º 2º
1º 2º
A pobre definição do esquema corporal em ambos os desenhos pode sugerir uma
dificuldade de contato com seu corpo. No entanto, o 2 o. desenho apresenta uma melhor
definição comparando-se ao primeiro.
1º 2º
1º 2º
A linha que desaparece, no desenho final, entre o pescoço e o corpo pode representar
um certo desbloqueio e um melhor intercâmbio entre os aspectos racionais e os instintivos.
Nota-se a presença de óculos no 2o. desenho, o que pode significar uma possibilidade
de enxergar o mundo de outra forma.
1º 2º
No segundo desenho, o chão apresenta-se mais firme sob os pés da figura; as mãos
estão escondidas. Fato interessante é que esta pessoa apresentou, durante o período da
realização do grupo, uma tendinite no braço e mão direita, que determinaram o seu
afastamento de seu local de trabalho por dois meses. O 2 o. desenho está mais elaborado,
com a pessoa de boné e, inclusive, com sol e nuvens.
Considerações Finais
A maior tolerância, que foi percebida através destas vivências, poderá repercutir em
uma melhora de qualidade de atendimento e interação profissional dentro da instituição,
ampliando a abrangência deste trabalho.
Esta predisposição de acolher e atender aos elementos do grupo possibilitou que duas
pessoas procurassem as psicoterapeutas, após o final do grupo, para iniciar um processo de
psicoterapia individual.
O reconhecimento deste trabalho pela instituição e pelos próprios integrantes culminou
com o reconhecimento e a continuidade do mesmo. Atualmente este trabalho terapêutico
está sendo vivenciado por um 4o. grupo para funcionários do INRAD-HCFMUSP e a
ampliação do mesmo, reverberou para um outro segmento dentro da instituição, com o início
de um grupo terapêutico para acompanhantes de pacientes oncológicos.
Referências Bibliográficas
LELOUP, J.Y. O Corpo e seus Símbolos. Uma antropologia essencial. Petrópolis: Editora
Vozes, 2005.
ROBELL, S. A Mulher Escondida: A Anorexia Nervosa em nossa Cultura. São Paulo: Editora
Summus, 1997.
SUTCLIFFE, J. O livro Completo de Técnicas de Relaxamento. São Paulo: Ed. Manole Ltda,
1998.
Tânia Pessoa1
Este artigo pretende relatar de que maneira a visão de ser humano da Psicologia
Analítica de Carl Gustav Jung forneceu fundamentação teórica para os primeiros passos
do trabalho que venho fazendo como psicóloga, na tarefa de dar apoio ao ensino, à
pesquisa e à extensão do conhecimento dessa abordagem no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo. Pretende, além disso, colaborar com a discussão sobre
alguns princípios que podem sustentar e embasar o trabalho junguiano com abordagem
corporal, onde quer que ele se realize.
A pergunta que talvez precise ser feita para desencadear o assunto em questão é: o
que há em comum no método de trabalho do psicoterapeuta junguiano, do docente que
ensina psicologia junguiana, do coordenador de grupos de estudos junguianos e do
profissional junguiano na gestão de pessoas nas organizações (só para citar alguns
campos)? Para sermos congruentes com a visão de ser humano dessa psicologia, deve
haver pontos em comum; caso contrário, corremos o perigo da desarticulação ou
desintegração entre os pressupostos aplicados à psicoterapia e aqueles utilizados em
outros contextos de trabalho. Desarticulação entre o que ensinamos nas aulas, o que
escrevemos como fundamentação teórica nas pesquisas e o modo de agir como professor
e como pesquisador. A pergunta é: o método de trabalho de um psicólogo junguiano, em
contextos não clínicos, está assentado sobre princípios coerentes com a teoria? Sobre a
importância dessa congruência, escreve Jung (1935):
Você tem que ser a pessoa com a qual você quer influir sobre o seu paciente.
A palavra, a mera palavra, sempre foi considerada vã. Simplesmente não existe
estratagema, por mais engenhoso que seja, capaz de burlar sistematicamente esta
verdade. Não é o objeto da convicção que importa; o que sempre foi eficaz é o fato
de se ter uma convicção. (§167 – grifo do autor)
1
Psicóloga do Laboratório de Estudos da Personalidade – LEP do IPUSP. Psicoterapeuta. Docente da Universidade
Bandeirante de São Paulo. Especialista em Psicoterapia Junguiana Coligada a Abordagem Corporal e em Cinesiologia pelo
Inst. Sedes Sapientiae. Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP. E-mail: tania@usp.br
transformação. Conclui o capítulo usando a expressão “auto-educação do educador”
(§172), referindo-se ao psicoterapeuta, para explicar uma reação fundamental que precisa
se dar na quarta etapa: a transformação deste. Com isso ele mesmo reconhece que o
horizonte da psicologia se abre para o imprevisível.
Mas Jung nos deixa a tarefa de construir a “ponte” que separa essa reivindicação da
Psicologia Analítica e a realidade do mundo, dizendo: “Esta ponte ainda tem que ser
construída pedra sobre pedra” (idem, ibidem).
A “auto-educação do educador”, aqui entendida não somente como do
psicoterapeuta, mas como do educador de fato, passa pela identificação dos princípios
que sustentam sua prática. Isso é o que Jung chama de cosmovisão: consciência dos
motivos e das intenções, a qual tende sempre a se desenvolver com o aumento da
experiência e do conhecimento, formando um passo a mais no desenvolvimento da
cosmovisão inicial. Sobre a importância dessa identificação Jung (1947) explica que:
E, ao nos modificarmos, esta imagem modifica nossa percepção do que são desafios,
do que precisa ser realizado, da prioridade das tarefas... Assim modifica nossa disposição,
nossas ações e nossos motivos, nossa maneira de exercer, cuidar ou apoiar o ensino. Ao
observar o desenvolvimento dessa cosmovisão é possível perceber posturas, decisões e
escolhas por ela determinadas.
Nos contextos em que fui trabalhar como psicóloga encontrei singularidades. Nos
primeiros 10 anos de formada o desafio proposto era ser psicóloga na organização. Desde
1990 meu desafio foi ser psicóloga clínica e, desde 2004, ser também psicóloga no
ambiente acadêmico.
Nos primeiros anos princípios junguianos orientavam meu desenvolvimento pessoal
(paciente em psicoterapia, fazia leituras, cursos, escrevia diários de sonhos) e a busca de
recursos e de habilidades humanas que fizessem com que a organização cumprisse sua
meta. Meu cliente era o negócio da empresa. Após algum tempo passei a ser psicóloga
bioenergética na empresa, mas continuava seguindo os mesmos parâmetros junguianos
em meu próprio processo de vida. Meus clientes eram as pessoas encouraçadas nas suas
relações humanas na empresa2. Nesta época permeava uma impressão de estar
“disfarçada” no ambiente de trabalho e de ser eu mesma apenas em outros lugares.
Pensava que só era possível ser junguiana com abordagem corporal quando fosse atender
no consultório.
Hoje penso que era e sempre foi possível trabalhar de maneira junguiana em
contextos diversos, embora tendo cuidado e respeito para com as particularidades de cada
um deles. Arrisco dizer que, em algum nível, minha prática já estava imbuída, desde os
primeiros anos de trabalho, pela visão de ser humano que abracei assim que a ela fui
apresentada (no terceiro ano da graduação, em 1983). Essa visão permaneceu a mesma,
tendo sido acrescida e fortalecida com novos dados (especialização, grupos de estudos,
supervisão e psicoterapia, dentro da abordagem analítica) e a experiência da vida diária.
Este trabalho tem procurado, portanto, construir uma “passarela” que possa colaborar
com aqueles que estão edificando pontes na direção da ampliação dos horizontes da
Psicologia Analítica para além dos consultórios.
O ambiente universitário
2
Nesta época eu havia feito cursos e supervisão com Maria Vilma Chiorlin Velloso e Gilberto Velloso, que criaram uma
metodologia para trabalhar com “Terapia Organizacional” através da abordagem Bioenergética em grupo nas empresas.
7. Execução somente de propostas que estejam dentro de um projeto
(com objetivo, justificativa, metodologia e demais itens relativos a essa forma de
apresentação) discutido e aprovado por comissões de “pareceristas” de outras
áreas e abordagens, coerente com o plano da sub-área de estudo e contando
com a espera de todos os trâmites burocráticos envolvidos.
Estamos num momento histórico em que a informação pode ser obtida com
facilidade. Resta a tarefa de transformarmos, juntos, a informação em conhecimento, e isto
não parece possível apenas pelo pensamento dirigido, racional e objetivo, requerendo
nesse processo as outras funções da consciência: sentimento, sensação e intuição.
Podemos nos valer aqui do modelo de obtenção de descobertas ( insight) da
psicoterapia junguiana como um caminho para o ensino e a busca de conhecimento na
universidade. Mas para tanto será necessário rever o que se entende por obtenção e
criação de conhecimento neste contexto.
Na Psicologia Analítica entendemos que para construir e incorporar conhecimento é
necessário estar acompanhado. Como explica a própria palavra conhecimento, gnôsis, do
não se centraliza nem no sujeito que aprende nem no objeto aprendido. Ambos são
relativos e secundários nesse saber. Primordial e absoluta é a relação do Ego com o
Outro dentro do Self. (Byington, 2004, p.21)
Byington (2004) nos leva a refletir que essa mudança de enfoque necessariamente
passa pela vivência, quando diz:
Inc. Inc.
A transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica, diz respeito àquilo que está
ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de
qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual
um dos imperativos é a unidade do conhecimento. (Nicolescu, 2001, p.51- grifos do
autor)
Ars reqirit totum hominem (A arte requer o homem inteiro), lê-se num tratado
alquímico. O mesmo se aplica plenamente ao trabalho psicoterapêutico”. (Jung, 1946,
§400)
3
Fernando Pessoa, por Ricardo Reis.
O conhecimento adquirido junto, num ambiente de transformação, numa relação
pedagógica em que acontecem e são percebidos diferentes níveis de comunicação, cria
uma espécie de campo singular de vinculação, que só pode ser mantido, e continuar
gerando frutos em termos de mais conhecimento para ambos, se for cuidado.
Essa vivência simbólica no ensino serve de canal para a inteireza do Ser vir
acompanhada do aprendizado.
De fato, a qualidade positiva de um trabalho corporal pode ser intensificada com a
ajuda da nossa intenção. Experimentamos a diferença de receber um toque com e sem
intenção de trabalho conjunto com o Self, através da imagem de um terceiro ponto e fomos
capazes de “perceber” qual era um e qual era outro.
Como transportar esse treinamento para o trabalho acadêmico? A resposta possível
segue na direção de que essa parceria entre Selves é possível não somente na relação
com o paciente, mas também em outras relações duais ou com um grupo de pessoas, em
especial quando entra em jogo alguma tarefa conjunta, que neste caso é a de criar
conhecimento. Conforme explica Jung (1942),
O Si-Mesmo não é o eu, mas uma totalidade superior a este que abrange a
consciência e o inconsciente; como porém este último não possui limites
determináveis e, além do mais, é de natureza coletiva em suas camadas mais
profundas, não é possível distingui-lo de um outro indivíduo. Por isso, constitui a
participation mystique que encontramos sempre e por toda parte, ou seja, a unidade
da multiplicidade, um único homem em todos. (§419)
Esse terceiro ponto, que forma um triângulo entre duas pessoas, tem a função de
criar um plano, indo além de uma reta entre dois pontos, que assim ficariam presos por
polaridades, portanto por oposições, comparações e contrastes. Um plano, a partir do
triângulo, é a primeira possibilidade de manifestação de um espaço, de criação. Criação e
desenvolvimento da ciência além da formação de alunos e de pesquisadores é o que visa
o trabalho na academia. Portanto, não apenas distinção entre conhecimentos.
A validade dessa intenção de conexão com o terceiro ponto pode ser confirmada na
medida em que trabalhamos com o princípio subjacente de que a consciência está se
desenvolvendo desde o nascimento até o final da vida, podendo atingir condição na qual
seja dirigida não somente pela vontade, que é fruto da decisão focada na consciência e
que elabora os objetivos, mas também pela função que faz contato, que toca o
inconsciente, ou seja, da intenção que imagina, que dialoga, canaliza e permite a
penetração do “espírito na brasa” ou na matéria. Matéria de estudo, matéria de pesquisa,
matéria humana,...
O que se desenvolve com esta finalidade é a função transcendente, que também
pode ser entendida como resultado da unificação dos opostos eu-outro num terceiro ponto,
provocando uma nova atitude em ambos. Essa função é transcendente porque conjuga as
polaridades presentes nos conteúdos ou estruturas da psique, proporcionando diálogo, o
qual não elimina a distinção dos pólos iniciais, mas que, através dela, gera nova
orientação em ambos (Dicionário Junguiano).
A esse respeito, Jung (1947) nos ensina que, diferente do “homem da massa”, uma
consciência que está caminhando na assimilação do inconsciente se percebe responsável
pelo próprio desenvolvimento e pelo desenvolvimento do Estado e da Sociedade. O
privilégio do “homem da massa“ é poder não se sentir responsável por si e pelo que o
rodeia, mas o privilégio da consciência em ampliação é “... a possibilidade de encontrar um
ponto espiritual fixo, um reino que ‘não é deste mundo’” (§410).
Digamos que a tarefa de ter consciência da possibilidade de trabalho pedagógico
nesse nível do Self cabe inicialmente ao professor. Em seu trabalho ele se coloca a
serviço do Self, reconhecendo nele o potencial de atrair a educação para a completude 4.
Quando vamos para o encontro, vamos também com o nosso corpo. Isso parece
óbvio, mas talvez não o seja quando cuidar da própria saúde significa também cuidado
para estar com o outro. Trata-se do afinar constante de nós mesmos já que, diferente do
dentista, por exemplo, que usa diversos aparelhos e ferramentas, nosso principal
instrumento de trabalho é a nossa presença, que também é corporal. Nosso corpo exerce
influência no ambiente da psicoterapia, mas também no ambiente do ensino. Falando da
psicoterapia, Jung (1946) nos instrui assim: (PENSO QUE PODERIA SER RETIRADA
ESSA CITAÇÃO)
... as exigências da análise são a meu ver muito maiores em relação à postura
espiritual e moral do médico do que à mera aplicação de uma técnica de rotina. Penso
que ficou claro também que a influência terapêutica do médico depende, antes de
mais nada, desta sua postura mais pessoal. Contudo, se o leitor concluir de tudo isso,
que o método tem pouca ou nenhuma importância, é sinal de que não entendeu bem
o meu ponto de vista. (§291)
4
Esta expressão, “educação para a completude”, utilizei na minha dissertação de mestrado para me referir ao trabalho
que os contos de fadas, como símbolos e educadores, podem fazer pela psique.
Com relação ao olhar, embora o trabalho corporal da Cinesiologia envolva, em sua
maioria, as mãos do psicoterapeuta, também aprendemos toques que envolvem o sopro,
toques sem toque e toques apenas com o olhar.
Na academia seria possível um olhar que percorre os lugares e olha nos olhos das
pessoas que encontra na intenção não só do trabalho de ver, deixando de ser um órgão
apenas receptor de um dos sentidos humanos, a visão, para ser, também, um órgão
transmissor de uma intenção, um órgão que “toca”. Esse ofício é explicado pelo Prof. Dr.
Marcos Ferreira Santos de maneira poética ou com uma linguagem que propõe a inclusão
do encanto, assim: ... Que os sentidos todos socorram os nossos olhos na fome de
enxergar para além de ver. A alma, em seu leito de uma íris breve, agradece.5 A alma do
mestre e do aprendiz agradecem.
O olhar como um toque e seu potencial de causar mudança aparecem na letra da
seguinte música composta por Paulo Tatit e Arnaldo Antunes, e cantada pelos Tribalistas:
O seu olhar lá fora,
O seu olhar no céu,
O seu olhar demora,
O seu olhar no meu,
O seu olhar, seu olhar melhora,
melhora o meu.
... educar é uma questão, basicamente, de olhar. A Arte de educar é uma arte do
olhar. É arte de dar luz. Temos perdido a mestria nesta arte, ao considerar o olho
como coletor de informações, um caçador de imagens, um órgão sugador de
realidade. Apenas. Ficamos cegos ao fato de que temos a capacidade de construir
mundos do tamanho e à imagem do nosso olhar estreitos e maldosos ou vastos e
belos (Lorthiois, 1996, p.40).
5
Fragmento de poema de autoria do Prof Dr Marcos Ferreira Santos – não publicado.
Com o objetivo de propor uma educação de sensibilidade que associe à dimensão
cognitiva a dimensão simbólica, onde interagem razão e imaginação, Ferreira Santos
(2004) coloca a fala do corpo e a conversação (como corpo da fala) como elementos
importantíssimos da intersubjetividade.
Uma postura tão usada na psicoterapia analítica é aquela que amplia o “território” e a
profundidade da consciência a fim de captar sentido e finalidade: disposição para receber
os fatos e dados do contexto da análise a partir, também, da visão simbólica. Essa visão
solicitada no contexto clínico pode ser lembrada como possibilidade de compreensão do
contexto acadêmico.
Whitmont (1969) explica a possibilidade da compreensão simbólica da vida como um
estágio a ser alcançado pela consciência, que se utiliza de um novo meio de percepção,
ou seja, da intuição do significado interior. O autor deixa margem para o questionamento
daquilo que é percebido apenas como exterior.
A esta intuição do significado, além do que o objeto externo (cuja forma a
imagem usa) per se representa, chamamos de modo simbólico de compreensão.
Quando este modo está ausente ou não está suficientemente disponível para o
consciente, as imagens psíquicas são, à medida que surgem, ingenuamente
classificadas como concernentes apenas à realidade externa. (p.28)
Para ter acesso a estas informações a mente consciente precisa abdicar da sua
intensidade puramente racional e, além disso, precisa permitir-se relaxar e respirar mais
do que superficialmente, clareando a percepção das, sempre presentes6 relações
simbólicas.
Assim sendo, as informações obtidas com a visão simbólica auxiliam a consciência a
se manter dentro da finalidade do trabalho, corrigindo desvios desnecessários. Conforme
explica Jefrey Raff:
Como uma visão possível para acessar conteúdos interiores deveria ser considerada
pela ciência como uma visão possível para complementar a compreensão e significado
dos fatos exteriores, por exemplo, dos assuntos estudados e das relações humanas
estabelecidas durantes esses estudos, já que essa divisão em interior e exterior bem pode
ser fruto apenas da necessidade da limitação da consciência.
Convido, então, o leitor a formar dois quadrados sobrepostos, numa estrela de oito
pontas, que pode representar graficamente os itens acima dispostos.
6
É mais comum entendermos os eventos sincronísticos e as relações simbólicas como raridades, e assim passamos a
esperar por eles como que por um milagre. Jung relata, em suas obras, sobre o estado da consciência ou da disposição da
mente nos quais esses eventos ocorreram. Provavelmente cabe a nós a tarefa de conquistar a sintonia com esse estado e,
assim, ter acesso mais freqüente a ele.
Princípios da Prática Junguiana Corporal para Contextos Diversos
Intenção no terceiro
ponto
Cuidado amoroso das
O corpo e psique relações internas e
sagrados externas
Espaço
Contato e sagrado do
dinamização conhecimento
energética
Conhecimento como
transformação
Tudo isso em seu conjunto poderia ser considerado como princípios do “Toque Sutil“
numa abordagem Junguiana? Seria o “Toque Sutil” uma maneira de estar no mundo,
consigo e com os outros? Então seriam os elementos que compõem e sustentam também
o “tocar” na universidade?
Entendo que os diferentes toques aprendidos na formação (calatonia, descompressão
fracionada, toque sem toque, por exemplo) são a extensão visível do trabalho sutil, dentro
dessa abordagem.
Para a palavra sutil, no dicionário Aurélio, há os sinônimos: tênue, grácil, penetrante,
quase impalpável, feito com delicadeza, que anda sem fazer rumor, perspicaz, hábil,
engenhoso. Lembrando que “calatonia significa, além de relaxação, o afastar-se do estado
de fúria, abrir a porta, retirar os véus dos olhos. Tudo com suavidade” 7. Então, usar
calatonia pode ser, na extensão invisível do toque, apenas olhar, abrir, centrar.
Esses pontos acima poderiam fazer parte dos princípios da Psicologia Analítica de
Jung para a Educação? Tenho percebido que a resposta é afirmativa. É com esse
entendimento, e transpondo-o para esse novo ambiente, que tenho trabalhado. Embora
minhas ações iniciais sejam bastante óbvias ou simples, através delas tenho preparado o
fundamento para que progridam para ações mais complexas. Desta maneira espero
contribuir para a inclusão de eventos, estágios, estudos e demais atividades que se
7 www.calatonia.net
utilizem do potencial que a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung tem para o contexto
do ensino e da pesquisa na universidade.
Essas ações iniciais se resumem em:
a) Cuidar da respiração: Antes de ir para o bloco de aulas ou para alguma
reunião, ainda na minha sala, sento-me bem ajustada e com a coluna ereta, fico algum
tempo cuidando da consciência da minha respiração. Não procuro torná-la profunda
forçadamente, mas tenho a intenção de aquietar-me para que ela se torne mais profunda.
Trata-se aqui da procura de uma harmonização geral com o estabelecimento de um ritmo
respiratório mais benéfico.
b) Concentração: Após alguns minutos desse “aquietar-me” e da consciência
colocada na respiração, percebendo a desaceleração, foco minha intenção no intuito de
trabalhar em parceria com o meu Self e com o Self das pessoas que vou encontrar. Inicio
aqui a visualização do terceiro ponto e procuro mantê-lo presente durante todo o tempo
em que durar a atividade.
c) Atenção ao próprio eixo: Procuro manter a consciência da minha coluna. Isso
tem sido de importância particular neste ambiente, uma vez que o convite mais freqüente é
para envolver-se na confusão e agitação de questões levantadas que querem ocupar um
espaço grande demais, já que o foco deve ser o processo conjunto de aquisição de
conhecimento.
d) Preparação do espaço físico: O embaralhar caótico de cadeiras é trocado,
preferencialmente, por um semicírculo. Os que estão presentes acabam auxiliando na
tarefa. A princípio eles têm um pouco de dificuldade de vencer a inércia por já terem
acomodado seus pertences em outro local da sala, mas depois os que vão chegando vão
aderindo à proposta e, com o passar das semanas, eles mesmos começam a preparar o
ambiente. Outras medidas simples como iniciar com a lousa apagada também ajuda a
focar os alunos no assunto do momento. Isso significa a preparação física da sala onde se
trabalha, seja ela a sala de aulas, a sala individual, a sala de reuniões, bem como a
preparação do próprio corpo e do material que será apresentado. Criar e cuidar do espaço
sagrado de encontro e de transformação é fundamental.
e) Dialogar com o outro: Nos trabalhos dos alunos: escrevo comentários em
cada um, conversando com o aluno, levantando outras possibilidades e colocando-me à
disposição. Faço isso imaginando real diálogo com eles. Procuro responder dúvidas por e-
mail e pelos corredores. Onde quer que algum aluno peça auxílio ele é o mais importante
naquele instante. Olho nos olhos dos alunos que me olham na intenção de fazer contato.
f) Atenção aos sinais: Procuro me manter atenta às oportunidades,
circunstâncias ou “coincidências” positivas para o trabalho, abrindo-me para ele a partir do
Self. Isso parece aumentar a possibilidade de ocorrer contato. Semelhante atrai
semelhante.
g) Evitar confronto: Não entro em debate sobre pontos de vista diferentes com
os alunos. Existem momentos onde é melhor não entrar em ação, ou a ação certa é não
atuar.
h) Perpetuar os contatos: Após o término do semestre letivo e, portanto, do meu
trabalho de apoio em sala de aula, meu olhar, minha postura, permanece a mesma com as
pessoas que terminaram a disciplina. Cuido de cada conexão criada, mostrando que as
reconheço no meio das outras, mesmo após o término de atividades semestrais. Entendo
que as pessoas (funcionários, alunos de graduação, de pós-graduação, professores,
pessoal da limpeza,...) são únicas, para além da função que elas ali desempenham, pois
tem em si um Self e que participam da composição do Self da instituição.
Dessa maneira entendo que estou realizando “toques sutis” na universidade e espero
que, assim como na homeopatia, na qual quanto mais sutil é o remédio, mais profunda é
sua ação, esse trabalho esteja criando “raízes” bem fundas e saudáveis para crescer.
a ronda solene tem por objetivo fixar a imagem do círculo e do centro na mente, e
marcar a relação de cada ponto da periferia com o meio do círculo.
Psicologicamente, essa disposição significa uma mandala, conseqüentemente, um
símbolo do Si-Mesmo, para o qual se acham orientados não somente o eu
individual mas, juntamente com ele, muitas outras pessoas que estão ligadas a ele
pelos sentimentos ou pelo destino. (§419)
Assim pois estuda/ medita/ sua/ trabalha, cozinha... abrir-se-á então para ti
uma torrente salutar, a qual nasce do coração do filho do grande mundo, uma água
que nos é dada pelo próprio filho do grande mundo e que jorra de seu corpo e
coração, tornando-se uma verdadeira Aqua Vitae natural... (§390).
Referências Bibliográficas
Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Versão
Eletrônica – Lexikon Informática LTDA Versão 3.0, Ed. Nova Fronteira, 1999.
LIMA, Tania Pessoa de. Alquimia dos Contos de Fadas: Educação para a Completude.
Dissertação. FEUSP, 2004.
__________ (1944) Psicologia e Alquimia. 2ª ed., C.W. Vol. XII, Petrópolis: Vozes, 1994.
__________ (1946). Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência . 2ª ed., C.W. Vol.
XVI/2, Petrópolis: Vozes, 1990.
__________ (1947) A Natureza da Psique. 1ª ed., C.W. Vol. VIII/2, Petrópolis: Vozes,
1984.
RAFF, Jefrey (2000). Jung e a Imaginação Alquímica. São Paulo: Mandarim, 2002.
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O PODER DO TOQUE COMO INSTRUMENTO TERAPÊUTICO
Uma Proposta de Trabalho com Crianças Abandonadas1
Kazue Suguimoto2
Revisão da Literatura
1.1. Histórico
Conta-se que Friederich II (1194-1250), imperador da Alemanha, chamado em seu
tempo de “maravilha do mundo”, embora seus inimigos usassem termos menos elogiosos,
queria saber que tipo de verbalização as crianças apresentariam ao nascer, se não tivessem
falado com ninguém antes. Mães substitutas e amas foram orientadas para que aleitassem
as crianças, lhes dessem banho, mas, de maneira alguma falassem com elas, pois ele
queria saber se conseguiriam aprender a falar o hebraico, a mais antiga das línguas, ou
talvez o grego, o latim, o árabe, ou talvez a língua falada pelos próprios pais. Mas seus
1
Agradeço à Maria Ângela Lasalvia por sua valiosa contribuição para a realização deste trabalho.
2
Psicóloga, especialização em Psicoterapia Junguiana Coligada a Abordagem Corporal, pelo Instituto Sedes
Sapientiae, São Paulo; bióloga e pedagoga. E-mail: kazue@directnet.com.br
esforços foram em vão, porque todas as crianças morreram. Elas não conseguiram viver
sem os afagos, as faces sorridentes e as palavras amorosas de suas mães substitutas.
“Pois não conseguiram viver sem os afagos...”. Esta observação, de um historiador do
século XIII, constitui o mais antigo pronunciamento a respeito da importância da estimulação
cutânea para o desenvolvimento da criança, embora a percepção do valor das carícias para
a criança seja muito anterior a este período.
No século XIX, mais da metade dos bebês morriam durante o primeiro ano de vida,
geralmente de uma doença chamada marasmus, palavra grega que significa “definhar”.
Doença também conhecida como atrofia ou debilidade infantil. Também na década de 20, a
taxa de mortalidade para bebês com menos de um ano, em diversas instituições e orfanatos
nos Estados Unidos, rondava perto dos 100%. Através de estudos desses casos, constatou-
se que mais importante do que ser amamentada, a criança deve ser tocada, acariciada e
aninhada nos braços, para que se desenvolva bem. O ser humano pode sobreviver a
privações sensoriais extremas de ordem visual ou sonora, desde que a experiência sensorial
da pele seja mantida (Montagu, 1905).
1.2. O Tocar
Em inglês, derivada do francês antigo touche, a palavra touch é definida pelo Oxford
English Dictionary (1999) como “a ação ou um ato de tocar (com a mão, dedo ou outra parte
do corpo); exercício da faculdade de sentir um objeto material”. Tocar é definido como “a
ação, ou um ato de sentir alguma coisa com a mão”. O termo operacional é sentir. Embora o
tato não seja em si uma emoção, seus elementos sensoriais induzem alterações neuronais,
glandulares, musculares e mentais que, combinadas, denominamos emoção. Desta forma, o
tato não é tido como uma simples modalidade física, como sensação, mas também,
efetivamente, como emoção (Montagu, 1905). Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa (1975), “tocar” tem, entre suas 42 definições, as seguintes: pôr a mão em,
palpar, ter contato com, fazer ouvir, agitar, chegar a, estar junto de, confinar com, comover,
emocionar, sensibilizar, tomar sentido ou consciência de,...; confirmando a extensão e
importância do Tocar em culturas que atravessam oceanos.
2
1.3. Pele, toque e comportamento
A privação tátil, que normalmente está relacionada à privação do amor materno, com
todos seus comprometimentos emocionais, tem efeitos profundos sobre o organismo, tanto
fisiológicos quanto comportamentais.
Fica evidente, pelas muitas expressões verbais encontradas em que se faz referência
às funções da pele, a importância da mesma para o comportamento humano: “dar um
toque”, querendo dizer “conscientizar amorosamente”; fala-se de uma pessoa que tem um
“toque feliz”, de alguém que tem um “toque mágico”, de um terceiro dotado de “um toque
humano”. É um elevado elogio para um homem ter “um toque feminino”, ou ainda “um toque
delicado”. A busca constante de interação humana leva a pessoa a entrar “em contato”, ou a
“dar um toque” (telefonar) para alguém. Há os que conseguem penetrar “pele adentro”,
enquanto outros ficam “ao nível da pele” (superficiais). Existem também os “intocáveis”.
Fala-se de uma pessoa “insensível” e impiedosa usando o adjetivo “duro”,
“empedernido” (callous), que é o equivalente em inglês ao latim callum, que significa “pele
dura”; as palavras que descrevem a insensibilidade emocional e a calosidade da epiderme
derivam ambas da mesma raiz. Fala-se que alguém ficou tão “calejado” que terminou por
insensibilizar-se diante das questões humanas.
Quando se diz que a pessoa está afastada da realidade, se diz que “perdeu o contato
com a mesma”; quando a pessoa não está exatamente “presente” se diz que está “um
pouco tocada”. Quando se descreve a atual ausência de vínculos entre as pessoas, se fala
de “desunião”, “falta de contato”, “pessoas intocáveis”.
A expressão francesa un ours mal léché, “boi mal-lambido”, é geralmente empregada
para descrever uma pessoa com modos inconvenientes, um “grosseirão”, alguém
“atravessado”, desajeitado em suas relações com os outros; embora a frase se refira à
crença original de que os filhotes de alguns animais nasceram tão subdesenvolvidos que
tinham de ser lambidos pela mãe para que adquirissem a forma apropriada, o uso posterior
da expressão dotou-a de um significado em que se reconhece a importância das delicadas
manobras e interferências da mãe no desenvolvimento do que se pode denominar
“capacidade de relacionamento”. Existe uma relação muito clara entre a falta de toque nos
primeiros anos de vida e a falta de jeito e a aspereza nas “brincadeiras” que caracterizam
algumas pessoas enquanto são crianças e também mais tarde; são pessoas incapazes de
entrar em contato sem causar colisões (Montagu, 1905).
3
1.4. Pele e Ego
Jung diz que
4
Lowen (apud Montagu 1905, p. 252) diz que o sentimento de identidade do indivíduo
é fruto da sensação do contato com seu corpo. Para a pessoa saber quem ela é, é preciso
que ela esteja consciente de seus sentimentos e suas sensações. Isso é o que falta ao
esquizofrênico: embora ele esteja ciente de que tem um corpo e dessa forma se orienta no
tempo e no espaço, a perda do contato corporal faz com que ele perca o contato com a
realidade, isto é, seu ego não está identificado com seu corpo e, assim, ele se sente
desvinculado do mundo e das coisas. Concluindo, segundo o autor, a estrutura da
identidade pessoal tem sua base na realidade da sensação corporal.
A ausência de um contato físico agradável entre a mãe e a criança é o trauma
fundamental da personalidade esquizóide, segundo Lowen (apud Montagu 1905, p.252).
Esta ausência de contato corporal é sentida pela criança como abandono e, para se
proteger e se esquivar desses sentimentos e sensações desagradáveis, a criança retém a
respiração, imobiliza o diafragma chupando a barriga para dentro e fica imóvel,
“amortecendo” o corpo a fim de não sentir dor, e assim, se distancia da realidade. Quando o
medo se torna insuportável, o ego se dissocia do corpo, dividindo a personalidade em duas
identidades: uma baseada no corpo e a outra na imagem do ego.
Problemas táteis durante o primeiro ano de vida resultam freqüentemente em
alheamento, não-envolvimento, falta de identidade, distanciamento, superficialidade
emocional e indiferença (Montagu, 1905).
5
efeitos devastadores no psiquismo infantil. Segundo Azevedo, E.C. (2001), a ambivalência
afetiva, natural nesta fase do desenvolvimento, assume proporções que o ego do pequeno,
ainda bastante fragilizado, não tem condições de suportar. Nos casos mais graves, existe a
possibilidade da perda de limites entre o corpo da vítima e o corpo do outro, sendo
necessária uma intervenção das mais drásticas por parte do terapeuta, para que seu ego
não se desestruture totalmente. A criança que passou pela experiência da violência física ou
emocional, freqüentemente apresenta uma aversão ao toque, uma defesa à aproximação,
bloqueando seu contato com outras pessoas. Montagu (1905) também acrescenta que a
pele dos que foram submetidos a carências táteis está “desligada” para as mesmas
experiências que agradam aos que tiveram satisfação tátil; que o indivíduo “desligado” pode
estar tão tenso a nível cutâneo que ele realmente chega a recuar ao mais leve toque.
Entretanto, o corpo fornece o ambiente onde tudo se processa tanto a nível biológico
quanto psíquico, não podendo se falar em mente e corpo separadamente, sendo que um
não existe sem o outro, e o que acontece com um trará reflexos ao outro. Nas palavras de
Jung: “A alma humana vive unida ao corpo, numa unidade indissolúvel, por isto só
artificialmente é que se pode separar a psicologia dos pressupostos básicos da biologia”
(1935, p.232).
O trabalho corporal com um enfoque simbólico é a possibilidade de ampliação da
consciência e de fortalecimento egóico, já que a própria formação do ego, centro da
consciência, é posterior à formação do que se denomina ego corporal. Embora a maioria
dos trabalhos propostos para a criança vítima de violência não englobe a abordagem
corporal, sabe-se que é do veneno que se fabrica o antídoto e é só tocando esse “corpo
ferido” que se alcançará a possibilidade de fazer renascer um corpo saudável e criativo
(Kato, 2001). Segundo Bertherat (1976), o trabalho da tomada de consciência através do
trabalho corporal pode ser longo e penoso, e embora seja um primeiro passo para o bem-
estar, não confere de imediato, conforto. “O prazer e a alegria de viver são impensáveis sem
luta, sem experiência dolorosa e sem conflitos desagradáveis consigo mesmo”, dizia Reich
(apud Bertherat 1976, p.89).
Sauaia (2003) utilizou vivências corporais no trabalho com crianças vítimas de
violência, e obteve índices de melhora quanto à percepção da imagem corporal e do
esquema corporal – aspectos importantes no processo de construção da identidade. A
autora também observou sensíveis melhoras na área a que chamou competência social, que
6
engloba comportamentos sociais que levam a criança a se aproximar e se relacionar com
outras pessoas e que podem facilitar seu crescimento.
Pensando em uma paciente que não reconhecia seu próprio corpo por quase toda
uma vida, como se fosse uma longa morte, Bertherat (1976) diz que embora nunca seja
cedo demais para se ter medo do próprio corpo – um medo paralisante e suicida, nunca é
tarde demais para se tomar consciência do corpo, para descobrir sua coragem
combatividade e potência vital.
7
A imposição das mãos com o objetivo de cura tem sido entendida há séculos como
uma comunhão religiosa. Seria muito proveitoso que também fosse similarmente
compreendida dentro da comunidade dos curadores. É interessante que um dos ramos da
comunidade curativa que tenha reconhecido a importância do toque seja a enfermagem.
Muitos artigos importantes a respeito dos benefícios terapêuticos do toque podem ser
encontrados nos periódicos da classe, enquanto que pouco ou quase nada é encontrado na
área da psicoterapia.
Bertherat (1976) fala do trabalho do russo Kirlian, que dá a prova visual da existência
de uma força energética que anima todo corpo vivo. São halos de cores vivas na superfície
do corpo, que fazem lembrar a auréola que se costumava pintar em volta da cabeça dos
Santos. Esse halo, chamado “aura”, perde intensidade e muda de cor quando o organismo
está doente. Segundo o autor, também há lugares do corpo humano que emitem uma luz
mais brilhante. Essa luminosidade emana da superfície do organismo, da pele.
A pele, além de envolver os órgãos internos, lhes oferece uma superfície contínua na
qual circula a energia que os anima, conferindo uma unidade corporal que não se limita à
consciência da interdependência da parte anterior/posterior, superior/inferior, mas também a
relação entre o interior e o exterior do corpo.
É essa fronteira que nos une ou separa do cosmos – a pele – aonde circula a energia,
e é na superfície da pele que se “projetam” nossos órgãos internos (coração, pulmões, rins,
fígado,...). Assim, todo o corpo (interno e externo) pode ser tratado através da pele,
realinhando meridianos energéticos, restabelecendo a circulação energética interrompida ou
desviada, por meio de técnicas como a acupuntura, acupressure, toques,... ou pela simples
imposição das mãos, como no caso do Reiki. Stein (1995) fala da utilização do Sei-He-Ki,
símbolo utilizado na prática Reiki, em criança que sofreu uma cirurgia ou um trauma físico
ou emocional. De acordo com ele, o símbolo aplicado com a imposição das mãos pode
reparar os danos produzidos na aura pelos anestésicos, pela dor ou pelo medo.
O tabu psicanalítico com relação ao tocar remete-se a suas origens. Mas, como disse
Dr. Forer (apud Montagu 1905, p.268): “o contato verbal apenas deixa a pessoa num limbo
de isolamento em relação ao próprio corpo e às outras pessoas”. O autor, enquanto
psicoterapeuta que acredita na necessidade de contato cutâneo como psicologicamente
mais crucial do que a fome de alimento, sugere enfaticamente que se use o tato na situação
psicoterapêutica através de mãos habilidosas e informadas, pois o toque do terapeuta é
8
reconfortante e, ao mesmo tempo, pode ajudar na dissolução de temores e expectativas
infelizes do cliente.
E o Dr. Forer (apud Montagu 1905, p.268) conclui: “Tocar promove a reciprocidade e
faz parte do processo de testar se a pessoa ousará tornar-se ou terá permissão para tornar-
se igual”.
9
reconhecimento do outro. As condições da luta-jogo auxiliam a compensar a frustração
gerada pelos dolorosos esforços de integração social.
Ainda segundo Olivier (2000), é necessário manter a alegria das crianças em
confrontar-se, em “carregar-se” uma às outras e ao mesmo tempo conter a violência e a
emotividade. “... dominar suas frustrações, bem como seus ímpetos de alegria, é justamente
progredir dos estágios inferiores de desenvolvimento aos estágios superiores, começar a
vencer um pouco de sua herança arcaica, é socializar-se no sentido de Nietzsche” (Olivier
2000, p. 15).
Estas crianças se defendem das investidas do mundo externo que assediam seu ego,
se “encouraçando”, e essa impressão de invulnerabilidade começa na pele. Esta proposta
de trabalho apresenta a elas novas possibilidades de sensações e de sentimentos.
Felizmente, dentro de cada uma delas, há potencialmente uma criatura calorosa, amorosa,
esforçando-se por sair da casca.
Segundo MacNeely (1987), a memória, principalmente a afetiva, também está no
corpo, daí a importância das terapias analíticas que se voltam para o movimento e para o
corpo. O desencouraçamento consiste na atuação direta do terapeuta no corpo do cliente,
através de leves toques ou massagens, indo diretamente contra o sistema de defesa
somática do paciente. O contacto físico faz emergir lembranças que talvez nunca
aparecessem no atendimento analítico verbal.
No caso de pessoas que sofrem de carências táteis profundas e antigas, uma saída
seria interagir, para a liberação desse potencial, para viver algo que se assemelhe às
experiências humanizadoras que deveriam ter tido durante a infância e a meninice. E a
maior plasticidade do sistema nervoso das crianças permite-lhes alcançar recuperações
muito melhores do que os adultos (Montagu, 1905).
Reviver as experiências emocionalmente, num setting terapêutico, desperta as
energias associadas ao complexo. A ativação do complexo em níveis emocionais profundos,
expande o campo do consciente e fortalece o ego e assim, através da função transcendente,
novas soluções e adaptações para aquelas experiências sofridas se abrem para o paciente
(Mc Neely, 1987).
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Método
“O caminho pavimentado da crença, pelo toque e pela visão, conduz o mais diretamente até o coração
humano e ao recinto da mente”.
Lucretius (c.60 a.C.), De Rerum Natura – V, 105-107
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Resultados e análises
Nos primeiros encontros havia alguma resistência por parte de alguns integrantes,
mas ao final acabavam realizando a tarefa. Já nessa ocasião observou-se o
comprometimento e a expectativa dos participantes em relação ao trabalho, por exemplo:
questionando quanto à troca do dia do encontro, comparecendo prontamente,
principalmente quando o horário poderia ser comprometido etc.
Todas as crianças apresentaram muita dificuldade em falar de si, tanto em relação às
sensações quanto em relação aos sentimentos. Como o grupo precisava falar dos
sentimentos como parte do ritual de abertura e encerramento, eles apareciam como meros
“chavões”: “bem, alegre, feliz” e eventualmente, “cansado”.
De início, o contacto com o outro era muito difícil, mesmo na situação da brincadeira.
O contacto envolvendo a questão da confiança era ainda mais difícil. Outras questões
adjacentes dificultaram a execução das tarefas, tais como: se sentir incapaz, tônus baixo,
necessidade de ser o melhor X não ser capaz de, dispersão, paralisação, medo de falhar e
de críticas, confiar e ser confiável. Estas questões podiam ser observadas nas queixas de
dores, na rigidez dos movimentos, na falta de tônus nas pernas, na dificuldade em realizar
movimentos simples, quando em duplas ou em grupo, falta de coordenação. No entanto, os
integrantes empenharam-se e, na maior parte das vezes, com sucesso.
Na situação de jogos coletivos, o contacto foi natural, promovido pelo caráter lúdico,
com bastante interesse e participação de todos.
Observou-se ao longo de todo o trabalho que as crianças se agregavam por gênero,
com pouquíssimas exceções em que uma das irmãs ficou com o irmão, mas a dupla
precisou ser desfeita, porque a outra dupla acabou ficando mista, e não aceitou.
Nas atividades de aquecimento: caminhar de modos diferentes, soltar articulações, as
meninas eram mais “redondas” nos movimentos, executando com mais harmonia e soltura.
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Os meninos, com algumas exceções, num misto de inibição e brincadeira, realizavam os
exercícios a seu modo, porém mais desajeitados.
As meninas, com uma exceção, esculpiram estátuas com criatividade e bastante
expressivas; elas também foram capazes de exprimir sentimentos no rosto das estátuas. Já
os meninos buscavam temas, como luta, e foram incapazes de esculpir sentimentos no rosto
da estátua.
Todos receberam muito bem o toque aplicado pelas terapeutas.
Entre o 4º e o 5º encontro, houve um intervalo de quinze dias, por causa de
atividades desenvolvidas no Lar. As crianças ficaram muito agitadas na atividade proposta –
conduzir e ser conduzido – e, de forma geral, encontraram muita dificuldade para seguir os
comandos e entendê-los. Até mesmo comandar foi difícil. Novamente foi suscitada a
questão de confiar e ser confiável. A experiência foi tão marcante que gerou certo incômodo,
que inclusive se refletiu no exercício seguinte.
Novamente, tivemos um intervalo de quinze dias do 5º para o 6º encontro, também
por causa da agenda de eventos do Lar. A partir deste encontro, certa resistência ao
trabalho parece que começou a aparecer. Eles começaram a ficar inquietos e questionar
quanto ao horário de término do encontro; algumas crianças não quiseram receber o toque
das terapeutas.
No 7º encontro, embora o trabalho envolvesse massagens diversas em si mesmo e
no parceiro, todos realizaram muito bem as atividades, inclusive as que envolviam o toque
nos colegas e, ao término do encontro, o grupo estava tranqüilo e sereno. Pela primeira vez
os sentimentos finais exprimidos (bem, feliz, tranqüilo) pareciam sinceros e condiziam com a
realidade observada.
A partir do 8º encontro, as meninas realizavam o aquecimento inicial muito bem e
soltas, atentas aos comandos, enquanto que os meninos ficavam muito dispersos. Nestes
últimos encontros foram desenvolvidas atividades para promover o Toque e preparar para o
encerramento do trabalho, tais como: Toque do Acolhimento feito pelas terapeutas e em
duplas; massagem coletiva; tapotagem em duplas; danças circulares; “mandala humana” e
outras. No encerramento, T. pediu observações sobre o trabalho como um todo. 3
3
OBS. A descrição detalhada de cada encontro, os relatórios individuais e os desenhos podem ser
encontrados na monografia que originou este artigo: O Toque Mágico.
13
RESUMO DOS RESULTADOS QUANTO ÀS AQUISIÇÕES PESSOAIS E EM RELAÇÃO
AO GRUPO
Resumo dos resultados obtidos através da observação direta ao longo dos encontros, dos relatórios
individuais e do grupo e através dos desenhos aplicados no início e final do trabalho.
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Discussão
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de “não se envolver”, pois em diversas ocasiões eles sinalizavam, de alguma forma, que
gostariam de participar. As crianças que participaram desse trabalho passaram pela
situação de abandono e rejeição de forma a deixar marcas profundas em sua psique. A
reação delas frente a esse tremendo complexo foi a de sufocar suas emoções e sentimentos
e jogá-los para algum compartimento profundo do inconsciente para que não corressem o
risco de entrar em contacto com eles novamente e acessar a dor inerente à vivência desse
abandono e dessa rejeição. Aliado a essa questão, o ambiente de abrigo tem um caráter
normativo e grupal, que não possibilita que a criança se desenvolva como uma pessoa com
características e vontade próprias. O que talvez explicasse os baixos índices de melhora
quanto ao desenvolvimento de uma atitude mais introspectiva e quanto ao desenvolvimento
de perspectiva de futuro. Entretanto, concomitantemente à proposta para desenvolver o
toque, o trabalho corporal possibilitou que as crianças entrassem mais profundamente em
contacto com elas mesmas, com o corpo, com os sentimentos e com a emoção e isso os
incomodou, deixando-os bravos, emburrados. Nas palavras de Zé Ramalho: “Quanto tempo
leva o coração para saber, que o sinônimo de amar é sofrer?...” (da música “Sinônimos”).
Outra questão foi a de entrar em contacto com suas dificuldades: falta de força, equilíbrio,
confiança, o próprio toque, falar sobre seus sentimentos,...
Von Franz (1988) diz que quando as pessoas conectam a cabeça ao corpo através
de exercícios, as primeiras emoções que afloram são emoções reprimidas e algum
ressentimento violento contra o pai ou mãe, o que explicaria as reações de raiva e irritação
das crianças. A possibilidade de deixar extravasar essas emoções, de deixá-las vir à tona e
não suprimi-las racionalmente, permitiu dar vazão a reações físicas que as crianças talvez
nem conseguissem compreender ou localizar muito bem. Em geral, após essas reações,
surge um estado de relaxamento, e a partir disso, ocorre uma melhor ligação com o corpo.
Este caminho foi percorrido por várias crianças que puderam se conectar novamente
com seu corpo e, assim, entrar em contacto com sentimentos que estavam reprimidos. VA
mostra muito bem esse caminho: participava do trabalho corporal com interesse e empenho.
Assim, emoções muito fortes de raiva e ressentimento vieram à tona e ela pôde expressá-
las, pois estava em ambiente propício para tal. O resultado final foi uma melhor conexão
com o próprio corpo e de se sentir mais segura para interagir com o meio. VA também se
abriu para se relacionar com as outras pessoas, e de forma mais afetiva.
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Segundo Woodman (1999), quando o bebê não é bem-vindo ou é rejeitado, há uma
cisão do corpo com a psique, como se a alma não entrasse no corpo e permanecesse
exilada. O trabalho corporal permite a aceleração do processo de conscientização desse
corpo, dando continente para o desenvolvimento do ego.
Uma questão muito forte que veio à tona, logo nos primeiros encontros, é a da
confiança. As crianças tinham uma dificuldade muito grande em confiar nos colegas, fato
observado no momento da execução de algumas tarefas. Por outro lado, algumas delas
também não se sentiam capazes de fornecer o suporte ou apoio necessário. Assim,
dissimulavam com brincadeiras ou boicotavam de antemão, as tarefas propostas para não
enfrentar esse complexo: confiar e ser confiável.
Embora o trabalho não objetivasse especificamente a questão da confiança, são
grandes as implicações dessa relação “confiança x toque”. O desenvolvimento dos
encontros parece ter trazido resultados favoráveis quanto ao desenvolvimento da confiança
em si mesmo, principalmente entre as meninas; no entanto, o confiar no outro não obteve
bons índices (Tabela).
A confiança ou falta dela terá repercussões na vida futura das crianças quanto à
socialização, contacto com o outro, desenvolvimento social e cognitivo, relações afetivas,
profissionais,... Embora nestas sessões a confiança também tenha sido abordada, seria
interessante que se desenvolvesse um trabalho que focasse essa importante questão.
A consciência se amplia com o desenvolvimento do ego e este é decorrente da
percepção do si mesmo corporal, e o que a pessoa sente e conhece de seu próprio corpo
ocorre através da pele, do contacto (Jung, 1935); (Neumann, 1970); (Montagu, 1905).
A proposta de promover o toque como instrumento terapêutico num contexto de
trabalho corporal na linha junguiana alcançou bons resultados, conforme a Tabela. O toque
passou a ser aceito e a fazer parte do repertório das vivências das crianças. Elas puderam
perceber que também existe o toque “bom”, que acolhe e que pode proporcionar bem-estar.
Dessa forma, com o desenvolvimento do toque, outras aquisições importantes foram
incorporadas, tais como:
- melhora da imagem corporal
- desenvolvimento de melhor estrutura e segurança em caminhar
- maior confiança em si mesmo
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O toque envolve o outro, é composto por “coisas” que são corpos, envolve a presença
imediata e incontestável do corpo que toca e do que é tocado (Montagu, 1988). Estas
questões se refletem na relação da criança com o grupo. Observou-se, assim, que o
trabalho teve repercussões positivas, adquiridas através da promoção do toque, como:
- melhora da qualidade da relação com o grupo
- maior integração com o grupo
- maior integração com o sexo oposto
Possibilitou-se assim, o desenvolvimento de uma maior capacidade de
relacionamento e maior afetividade com o grupo, pois, embora o caminho para entender que
o sinônimo para amar é sofrer, ele também leva à compreensão maior de que “o sinônimo
para amor... é amar” (Zé Ramalho, “Sinônimos”).
Conclusões
Um toque da natureza
Faz o mundo todo se unir.
Shakespeare
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Esse tipo de trabalho seria uma alternativa para lidar com essas questões adjacentes
também, já que houve resultados positivos em outros itens, além da proposta do “tocar”.
Entretanto, percebeu-se que seria necessário um maior número de sessões, pois se acaba
mexendo em grandes complexos, decorrentes do trauma vivenciado.
Fica-se então, como proposta, desenvolver um trabalho com um maior número de
encontros, com a introdução de mais sessões lúdicas e a introdução do toque de forma mais
lenta e gradativa. Um ponto importante a se explorar é a utilização de mais atividades do
tipo “jogos de lutas”, pois elas envolvem o grupo como um todo. As crianças gostavam deste
tipo de atividade e tinham uma boa participação e a aquisição de novas habilidades podia
ser observada a cada exercício realizado, além de se promover uma maior integração do
grupo.
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consciência de si. São Paulo: Martins Fontes, 1999, 18ªed.
Feldenkrais, Moshe (1904). Consciência pelo Movimento. 4ªed. São Paulo: Summus,
1972.
19
Guimarães, Márcia Taques Bittencourt. Novos Caminhos no Processo Educacional para
Alunos de Graduação em Psicologia: o Método Feldenkrais. São Paulo, 1990. 231p.
Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade Católica de São
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Jung, Carl Gustav (1935). Fundamentos de Psicologia Analítica. In: Obras Completas de
Carl Gustav Jung, vol. XVIII/1. 11ªed. Petrópolis: Vozes, 2003.
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(coord). Temas Básicos de Psicologia, v.5. São Paulo: EPU, 1984.
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
20
Stein, Diane. Reiki essencial. São Paulo: Pensamento, 1995.
Von Franz, Marie-Louise (1988). O caminho dos sonhos. 14ªed. São Paulo: Cultrix, 2001.
21
CORPO E ALMA DE NOSSO PACIENTE BRASILEIRO
Algumas Reflexões na Perspectiva Junguiana
1. Introdução
1
Psicólogo Clínico com especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana e Técnicas Corporais no
Instituto Sedes Sapientiae, colaborador do site www.palcoetv.com.br com artigos sobre filmes na
abordagem junguiana. E-mail: aguenaca@yahoo.com.br
Esse artigo é uma tentativa de trazer algumas reflexões na perspectiva da
psicologia analítica, da história e da sociologia para uma compreensão da complexidade
dessas questões. Nesse sentido, faremos referência às raízes históricas de uma cultura
de colonização ainda muito presente e atuante no inconsciente coletivo do povo brasileiro.
E, fundamentalmente, buscaremos compreender um pouco melhor o sofrimento e as
dificuldades de nosso paciente e de nós mesmos, que somos descendentes de negros,
índios e europeus, bastante distintos daqueles que freqüentaram os consultórios dos
principais teóricos da psicologia.
2. O povo brasileiro
Muito foi escrito sobre os sérios problemas sócio-econômicos dos países latino
americanos e particularmente houve uma grande produção de ensaios e estudos sobre o
tema na ocasião das comemorações dos 500 anos do descobrimento das Américas.
Em meio a essa vasta produção, o presente artigo se deterá mais no livro clássico
Raízes do Brasil, escrito por Sérgio Buarque de Holanda, em 1936.
Antônio Cândido, um dos mais importantes ensaístas brasileiros, escreve no
prefácio desse livro que há três grandes obras que foram em profundidade nesse tema.
Cronologicamente temos Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre; Raízes do
Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil Contemporâneo
(1942), de Caio Prado Júnior. São obras clássicas lançadas nas décadas de 30 e 40, que
marcaram profundamente sua geração e permanecem muito atuais até os dias de hoje.
Casa Grande e Senzala traz pela primeira vez, de uma maneira muito livre e
informal, a vida sexual do brasileiro e a força da estrutura patriarcal nos núcleos familiares
e na sociedade como um todo. Resgata corajosamente o valor do escravo africano em
sua enorme contribuição na formação da cultura brasileira e faz um elogio
declaradamente pessoal ao povo brasileiro. Descreve a enorme capacidade amorosa e
criativa de escravos e indivíduos de camadas menos privilegiadas de se confraternizarem
com os mais ricos e poderosos, em uma genuína vocação para a sobrevivência e
amizade. Fala das amas de leite negras, que deixavam de amamentar seus próprios filhos
para se dedicarem aos filhos das senhoras brancas e, ao longo do desenvolvimento
dessas crianças, tornarem-se verdadeiramente uma segunda mãe para elas. O autor, em
sua admiração por essas mulheres negras, no entanto, não refletiu sobre o preço que foi
pago por elas quando foram na verdade obrigadas a cumprir essas funções familiares,
com a pesada pena de serem fisicamente castigadas ou mesmo mortas, no caso de
desobediência. Talvez o alto preço pago por esses primeiros brasileiros homenageados
por Gilberto Freyre em sua amizade e obediência aos colonizadores portugueses tenha
formado uma triste sombra no coletivo nacional. Uma sombra que desconsiderou muita
humilhação, carência, sofrimentos físicos e emocionais para manter uma máscara de
cordialidade, concordância e felicidade, como um eficiente recurso de sobrevivência e
conquista de alguma vantagem perante os senhores estrangeiros. Hoje ainda é possível
identificar nitidamente esse tipo de comportamento quando recebemos turistas
estrangeiros.
Em pleno Estado Novo repressivo, Formação do Brasil Contemporâneo é
publicado e traça, na perspectiva do materialismo histórico, um percurso bastante objetivo
e factual da economia de nosso país em uma tentativa de compreensão do
subdesenvolvimento. Caio Prado Junior realiza essa empreitada sem estilizações
literárias, como os dois autores anteriores.
Raízes do Brasil refletiu sobre os pólos contrários que dinamicamente foram
tecendo e constituindo a história do brasileiro: trabalho e aventura, método e capricho,
rural e urbano, burocracia e caudilhismo, norma impessoal e impulso afetivo. Dessas
polaridades, a inclinação natural foi para a valorização das qualidades da aventura, do
risco e do arrojamento, muito mais do que a capacidade da labuta paciente, lenta e diária.
O brasileiro preferiu mais a liberdade desregrada, o afeto de compadres e a flexibilidade
de contornar e até ignorar leis e organizações, do que a adoção de normas e regras
impessoais estruturantes de um sistema nacional em formação.
Os três grandes autores, no entanto, possuem dois pontos em comum.
Eles estão de acordo com a idéia de que até hoje mantemos muito forte os traços
do Brasil Colônia, que são determinantes para os problemas sociais contemporâneos.
A colonização no Brasil foi marcada basicamente pelos latifúndios, pela mão-de-
obra escrava e pela produção econômica voltada por completo para o mercado externo. O
Brasil existia em função de Portugal e mais tarde, indiretamente, da Inglaterra. Nunca
houve políticas efetivas ou algum interesse no bem-estar e desenvolvimento social. Nesse
sentido, excetuando a mão-de-obra escrava, que hoje se transformou em processos mais
sofisticados e algumas vezes acobertada de exploração de mão-de-obra barata, parece
que os fatos não estão muito diferentes.
Os latifúndios permanecem e a questão da reforma agrária continua sem solução
satisfatória. A economia interna continua fundamentalmente voltada para o mercado
externo. No momento em que esse artigo está sendo escrito há uma expansão
desenfreada do plantio de cana-de-açúcar para a produção de etanol, como uma
alternativa de combustível não poluente. Dessa forma, outros produtos básicos da
alimentação do brasileiro não são produzidos; além disso, temos notícias de
trabalhadores em situação de sub-emprego, que estão morrendo pela jornada de trabalho
de mais de 10 horas e condições inadequadas nos canaviais.
Os mecanismos de dominação na atualidade não são mais tão ostensivos e
grosseiros como na época do Brasil Colônia. Eles estão mais sofisticados. Com as
políticas educacionais e sociais de inclusão, as camadas mais populares hoje são
bombardeadas por uma produção da indústria cultural de baixíssima qualidade e
mantidas em sua miséria econômica e social. Uma garota negra estuprada e morta na
periferia de São Paulo continua com exatamente o mesmo tratamento que se dava a uma
escrava da senzala que era obrigada a atender os desejos sexuais do seu proprietário.
Ou seja, uma total impunidade e descaso. O mesmo não aconteceria com uma
adolescente de classe média ou com a sinhazinha da casa grande.
O segundo ponto em comum dessas obras é que foram vigorosos e originais na
tentativa de entender melhor nosso país. Foram, na época, obras que remaram
ousadamente contra a maré do conservadorismo e da tradição, que acabou
desembocando no Estado Novo.
4. O colonizador Portugal
5. A colonização
6. A sombra
7. A individuação
Referências Bibliográficas
CHAUÍ, Marilena. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perceu Abramo,
2000.
FREYRE, Gilberto (1933). Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935.
GAMBINI, Roberto (2000). Espelho índio: a formação da alma brasileira. 2a. ed. São
Paulo: Axis Mundi: Terceiro Nome, 2000.
JUNG, Carl Gustav; WILHELM, Richard (1929, 1938). O segredo da flor de ouro: um livro
de vida chinês. 5a. ed.Petrópolis: Vozes, 1988.
HOLANDA, Sérgio Buarque (1936). Raízes do Brasil. 11a. ed. Rio de Janeiro: Livraria
José Oympio, 1977.
PRADO JÚNIOR, Caio (1942). Formação do Brasil Contemporâneo. 23ed. São Paulo:
Brasiliense, 1996.
SANTOS, Gislene Aparecida dos. Mulher negra homem branco: um breve estudo do
feminino negro. Rio de Janeiro: Pallas, 2004
1
Psicólogo e psicanalista. Obteve os títulos de Mestre em Psicologia Clínica, Doutor em Ciências, Livre
Docente e Professor Titular pelo Instituto de Psicologia da USP. Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo e da International Psychoanalytical Association. Autor do Procedimento de
Desenhos-Estórias e dos livros Psicanálise e transfiguração: a etérea leveza, A arte interior do psicanalista e
Fobia e pânico em psicanálise, dentre outros.
contribuir para esse descaminho, assinalando que “as deficiências de contato [com o ser
interior] podem conduzir à estagnação, à paralisação, à mumificação e à morte mental.”
Walter propõe ainda um eixo em que insere os diferentes graus de psicopatologia, de
acordo com o maior ou menor contato consciente com o ser interior, para em seguida
oferecer ao leitor uma aproximação da vivência da consciência expandida, aquela mais
próxima da realização do ser que somos única e intrinsecamente.
Nas palavras do autor, “abaixo dessa condição, ninguém consegue ser feliz”.
Quem ler, verá!