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EDITORIAL

A cada ano em que nos detemos para escrever o editorial de mais um número da Jung
& Corpo, somos invadidas por uma grande alegria, acompanhada de um sentimento de
realização. O trabalho para se chegar até aqui é muito grande, tendo início com a formação
dos alunos, passando pela orientação de monografias e também pela organização dos
Encontros Jung & Corpo, que nos fornece matéria prima para a revista. Tudo isso, sem
falarmos da elaboração concreta da revista, que envolve inúmeros detalhes e tantas
minúcias, que tem nos ensinado a aceitar e encarar como inevitáveis os erros de revisão,
muitas vezes identificados no momento em que pegamos em nossas mãos um exemplar
recém-saído da gráfica e nosso olhar recai diretamente numa vírgula extra ou no vazio
deixado por uma letra que se ausentou do meio de uma palavra.
Mas este é o sétimo número da Jung & Corpo e, sendo ela junguiana, não
poderíamos deixar de mencionar o significado do número 7. Resultado da soma de 3 + 4,
simboliza a ligação entre espírito e matéria, entre aspectos dinâmicos e estáticos, e por isso
é associado a um ciclo que se completa. Temos, como analogia, as 7 cores do arco-íris, as
7 notas musicais, bem como os 7 chakras e os 7 dias da semana, dentre outras
amplificações. Para nós, editoras, este ciclo se faz sentir num desenrolar mais fácil das
atividades associadas à Revista, que começa a ter vida própria. Colegas começam as nos
procurar oferecendo sua participação no Encontro Jung & Corpo ou trazendo textos para
publicação.
Sincronicamente, os leitores encontrarão neste número quatro artigos sobre
espiritualidade, e quatro textos que envolvem dimensões corporais. Hermes, deus
mensageiro e tema de outro artigo, fará a ponte entre estes e os outros assuntos abordados:
a situação do brasileiro no momento histórico pelo qual passamos.
É preciso dizer, last, but not least, que nós, as editoras, somos extremamente gratas
aos autores pela competência, seriedade e dedicação na elaboração de seus textos, e pelo
afeto e disponibilidade com que discutem conosco detalhes editorias.
Convidamos os leitores a conhecer cada artigo e, aos colegas, alunos e ex-alunos,
lembramos que a revista é de todos nós, e que sua participação é fundamental.

Boa Leitura!
ESPÍRITO DA TERRA
A Religiosidade Popular da América-Latina1

Maria Helena R. Mandacarú Guerra2

Em muitas tradições religiosas, acredita-se que, quando a humanidade se encontra


numa condição desesperadora – seja pelas guerras, pragas, catástrofes naturais etc –, um
ser especial se manifesta com o intuito de transmitir coragem, força e esperança para
aqueles que estão exauridos, desvitalizados, sem rumo e sem um significado na vida,
auxiliando na recuperação de um sentido maior pelo qual seguir vivendo. Quer individual ou
coletivamente, o surgimento de símbolos dessa magnitude vem preencher emocionalmente
o vazio existencial e apontar para o futuro.
A busca de transcendência, presente desde sempre na humanidade, mas acirrada
nos momentos de sofrimento e ameaça terríveis, revela-se sobejamente na religiosidade
popular, a qual nos coloca diante de símbolos vivos, plenos de significado e encarnados em
gestos, rituais e práticas devocionais cheios de emoção e que, por mais distintos que sejam,
têm em comum a fé em uma instância superior, capaz de acolher, dar suporte, confortar e
prover de esperança nos momentos de desespero e aflição. Podemos considerar a
colonização da América Latina uma dessas ocasiões, vivenciadas, com razão, pelos povos
que aqui habitavam como um período de dissolução e de trevas.
O ano de 1492 trouxe simultaneamente a conquista de Granada, levando os cristãos
a uma grande euforia, e a descoberta das terras novas, encaradas pela Igreja como a
oportunidade de estender o cristianismo a todo o mundo não cristão e o ensejo de destruir
tudo o que fosse diferente dos seus valores.
Os povos recém descobertos tinham costumes que diferiam tremendamente daqueles
dos conquistadores, chocando e sendo incompatíveis com a cultura intolerante, repressiva e
opressora dos ibéricos. Temos nesse encontro de culturas um exemplo terrível da projeção
coletiva maciça de um povo sobre outro, processo que, infelizmente, é repetido com

1
Texto apresentado no IV Congresso Latino Americano de Psicologia Junguiana. Punta Del Este, Uruguai,
setembro de 2006.
2
Psicóloga, psicoterapeuta junguiana. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP,
professora no curso Psicoterapia de Orientação Junguiana Coligada a Abordagem Corporal, no Instituto Sedes
Sapientiae.
E-mail: mariahelenarmguerra@hotmail.com
bastante freqüência e que se enraíza na dificuldade de elaboração da Sombra dentro da
dominância do Arquétipo Patriarcal. Sabemos que, nesse padrão de Consciência, as
polaridades se excluem, formando incompatibilidades e criando uma tensão tal entre elas
que impede sua integração (Byington, 2004). Assim, naquela ocasião, recaiu sobre os donos
da terra a projeção maciça da Sombra cristã puritana dos colonizadores e catequizadores
(Gambini, 2000).
No entanto, apesar de terem sido associados ao mal e ao pecado, os povos nativos
estabeleceram culturas bastante desenvolvidas, sobretudo a inca, no Peru, e as civilizações
maia, mixteco-zapoteca e náhuatl (tolteca-asteca), no México.
Quando os espanhóis chegaram ao vale do México, os astecas dominavam a região.
Esse domínio, porém, era relativamente recente.
Segundo relatos feitos pelos informantes indígenas a Sahagún3, as raízes e os
moldes culturais da zona central do México, com sua organização social e política, sua
religiosidade e arte, sua arquitetura, pinturas em murais, escultura, cerâmica, calendário e as
pinturas em seus códices, têm início com os maias, no século IV, na cidade de Teotihuacán,
cujo esplendor perdurou até o século IX, quando sobreveio sua ruína. Nessa mesma época
Tula surge como um novo centro cerimonial, um segundo pólo cultural. Considerada a
capital tolteca, atribui-se a ela o centro criador de todo o conjunto das artes e ideais mais
elevados que os nahuas posteriores afirmavam ter recebido dos toltecas.
A palavra toltécalt significava o mesmo que artista. Estes eram grandes artífices, “que
colocavam seu coração endeusado em suas obras”, ceramistas que “ensinavam o barro a
mentir”, fazendo todo tipo de figuras, rostos e bonecos. Conheciam também a arte do canto,
da tapeçaria, da pintura, escultura e arquitetura, construindo grandes palácios. Seu deus
tutelar era Quetzalcóatl, divindade una, amante da paz, que condenava sacrifícios humanos
e impelia seus seguidores para uma vida de perfeição moral. Este deus foi representado,
num determinado momento, por um sacerdote de mesmo nome, que consagrou sua vida à
meditação e ao culto. A esse sacerdote atribui-se a formulação de uma doutrina teológica
sobre um supremo Deus dual – Ometéotl.
O domínio dos astecas tem início em 1427, quando eles se transformaram num “povo
com missão”, o que lhes conferia o sentido da vida (León-Portilla, 1961, p.92). Seu ideal de
conquista foi estimulado pela noção místico-guerreira de que o Sol necessitava sangue

3
Bernardino de Sahagún (1499-1590) foi um frade franciscano que chegou à Nova Espanha em 1529,
aprendeu a língua nahuátl e, por sessenta anos, dedicou-se a coletar informações sobre a vida dos índios
antes da colonização. Considerado o pai da Antropologia na América, sua grande obra foi Historia General de
las Cosas de Nueva España.
humano para ser alimentado e continuar sua existência. Cabia a eles, povo eleito, cumprir
esse desígnio, sob pena de o Sol deixar de existir. Uniram-se, dessa forma, a religiosidade e
o caráter belicoso desse povo. Mesmo assim, tentaram preservar alguns valores dos povos
submetidos, por exemplo, quando exigiram que fossem enviadas à capital asteca diferentes
flores, com jardineiros capazes de cultivá-las, e jovens donzelas, que pudessem cantar e
dançar. “Flores e cantos” era a expressão nahuátl que, metaforicamente, significava poesia,
arte e simbolismo, ou seja, aí estava contida a mensagem cultural dos povos não astecas do
Vale do México (idem, p. 90).
Os astecas atingiram uma organização social bem estabelecida, com comércio,
grandes edificações, literatura, poesia e livros de pintura, além de noções de história,
filosofia, teologia, moral, direito, medicina, botânica, dentre outras (León-Portilla, 1961).
Tinham também sistemas próprios de escrita, com representações numéricas, de datas,
pictográficas, ideográficas e, inclusive, fonéticas, estas sendo de extrema importância, uma
vez que se acredita que a invenção da primeira escrita parcialmente fonética, no Oriente
Próximo, deu origem a todos os sistemas do Velho Mundo, e que o sistema maia-asteca é
visto como tendo tido um desenvolvimento totalmente separado (Kroeber, in León-Portilla,
1961, p. 61).
Enquanto no México-Tenochtitlan os astecas insistiam em impor sua visão místico-
guerreira do mundo, que os fazia o povo eleito do Sol, em várias cidades vizinhas viviam
pensadores profundos que se empenhavam em encontrar o simbolismo oculto das coisas,
afastando-se da guerra para dar vida à mensagem do grande sacerdote Quetzalcóatl, que
falava num deus único, ao qual só se poderia chegar pelo caminho da poesia, do
simbolismo, ou seja, da arte. Havia, assim, um oculto antagonismo ideológico entre os
nahuas. Em 1490, o rei de uma dessas cidades organizou em seu palácio um diálogo entre
poetas e sábios para tentar esclarecer o que era a poesia. Um outro, obrigado a construir um
templo ao deus asteca, levantou, na frente deste, um templo dedicado ao deus
desconhecido dos toltecas. Esses sábios compuseram, entre 1430 e 1519, cantares e
poemas onde expressaram seus pensamentos mais profundos, inclusive reflexões sobre o
caráter da divindade e o anseio de buscar o sentido da existência humana 4. Diziam os
teólogos nahuas5 “é possível que ninguém possa dizer a verdade a não ser mediante a flor e
o canto” (León-Portilla, in Elizondo, p. 72). Julgavam que o discurso racional clarifica a

4
Estes textos fazem parte da Colección de cantares mexicanos, da Biblioteca Nacional do México (León-
Portilla, 1961, p.118).
5
Plural de náhuatl.
mente, mas a limita, e apenas as flores e os cantos fazem a imaginação refletir sobre o
infinito. Somente a comunicação poética e a beleza poderiam entrar em comunhão e
comunicação com o divino.
Deus, para os toltecas reflete também a duplicidade, com dois rostos, um masculino e
outro feminino, mas um só Deus, um Deus Dual (Ometéotl), Pai e Mãe dos deuses, Senhor
do tempo e do espaço, uma divindade concebida a um só tempo como doadora e
destruidora da vida, mas que, estando ao lado Dela, “ninguém vive em indigência” (idem,
p.139). “Seu rosto masculino é agente e gerador, seu rosto feminino é quem concebe e dá à
luz (idem, p. 143). Esta visão religiosa expressa-se no padrão de alteridade, capaz de lidar
com o paradoxo da dualidade na unidade (Byington, 1965), “para além do que vêem os
sentidos” (idem, p.34). Essa vocação para conviver com o diferente e abrir-se para absorver
a crença e os costumes do Outro fez com que o povo náhuatl, especialmente os das cidades
dominadas pelos astecas, seguisse um tipo de sincretismo religioso, com muitas divindades
e numerosos pares de deuses.
O próprio Montezuma II, o governante que estava no poder quando da chegada dos
espanhóis, e que era também um sacerdote, estudioso, dedicado à meditação e conhecedor
dos antigos códices, preocupou-se em conhecer e aproximar-se, de algum modo, do culto
religioso dos povos vencidos, mandando construir um oratório dentro de um grande templo
dedicado aos deuses Huitzilopochtli, o Sol, e Tláloc, o deus da chuva, que chamou de “casa
de diversos deuses”. Foi, inclusive, com base nas crenças dos toltecas, de que o sacerdote
Quetzalcóatl fugira por não aceitar os sacrifícios humanos, deixando a firme esperança de
que retornaria um dia para salvar seu povo e iniciar tempos melhores, que Montezuma
imaginou que os espanhóis poderiam ser esse deus que retornava.
Esta descrição da vida pré-hispânica dos habitantes do Novo Mundo faz-se
necessária para que possamos abordá-la de uma forma mais viva, emocional, e não apenas
abstrata e teórica. Ao penetrarmos nas nuanças desse mundo então descoberto, sentimos a
sensibilidade dos artistas, a sabedoria dos grandes mestres, a presença da poesia, e,
sobretudo, a busca muito intensa da relação com o sagrado, quer através das flores e
cantos, uma herança tolteca, quer pelas “guerras floridas”, dos astecas, que visavam
capturar pessoas que seriam transformadas em vítimas sacrificiais. A religiosidade ocupava
um espaço muito grande na vida desse povo, e era sentida na educação, na arte pictórica,
nos cantos, na estética e na belicosidade.
Suas guerras, entretanto, é bom que se diga, diferiam muito das dos europeus, pois o
que pretendiam era reproduzir na terra o conflito e o equilíbrio do céu, nunca destruir os
opositores. Não havia entre eles, por exemplo, a menor pressa para começarem a guerrear.

Era lei entre eles que antes da batalha se avisassem alguns anos antes, para
que de uma e outra parte estivessem avisados e prevenidos [...]o que se manteve até
o tempo em que vieram os espanhóis a estas terras. (IXTLILXOCHITL: "Sumaria
Relación de las Cosas de la Nueva España", cap. 5, p. 260.)

Também não tinham como objetivo ferir ou matar os inimigos, mas estes deveriam ser
desarmados, presos e convencidos de seu erro ao não aceitarem a supremacia mexica. Ao
se converterem em prisioneiros, passavam a ser “filhos” do seu captor, o que era
considerado uma honra. Se alguém morresse, sairia pessoalmente vitorioso; seu matador,
envergonhado de sua torpeza, pois acreditavam que a vida após a morte dependia mais do
tipo de morte do que dos feitos em vida, e quem morresse em batalha, num sacrifício ou de
parto seriam os verdadeiros afortunados.
Na ocasião da chegada dos espanhóis no México, os astecas constituíam uma
população de trezentas mil pessoas. Porém, como vimos, e ao contrário dos ibéricos, não
buscavam extinguir os costumes dos povos conquistados, mas incorporá-los aos seus,
inclusive suas crenças. Por serem abertos ao sincretismo e, por isso, manterem viva a
cultura dos conquistados, os astecas não os ameaçaram de aniquilamento, como fizeram os
espanhóis.
Estes, professando um cristianismo patriarcalizado, com grande intransigência e rigor,
atuaram com a intenção de extirpar as crenças indígenas. Assim, não almejavam integrar
sua cultura, sentida como inferior, nem acreditavam que poderiam aprender com os povos
recém descobertos, mas, além de ambicionarem suas riquezas, estavam sequiosos por
civilizá-los, o que equivalia a destruir as tradições religiosas de seus antepassados e, com
elas, seus sistemas de valores, seus costumes, suas raízes, sua alma, projetando neles tudo
o que julgavam negativo. Houve algumas poucas exceções nessa abordagem do índio e de
sua cultura, como é o caso, por exemplo, do Frei Bernardino de Sahagún e Bartolomé de las
Casas.
Bartolomé de las Casas (1472 - 1566) é tido como o primeiro sacerdote ordenado na
América. Inicialmente a favor do aprisionamento e escravidão dos índios, isto é, das
encomiendas, sofre uma transformação moral e passa a lutar fortemente contra elas. É ele
quem escreve, em 1552, uma longa carta ao monarca Felipe II, a qual chamou de Brevisima
Relación de la Destruicción de las Indias, e onde se lê, dentre outras descrições terríveis, a
seguinte passagem:

Geralmente matavam aos senhores e nobres (indígenas) desta maneira:


faziam uma grelhas de paus sobre forquilhas e os atavam nelas e colocavam fogo
brando, para que pouco a pouco, dando gritos naqueles tormentos, desesperados,
lhes saíssem as almas.
Uma vez vi que, tendo nas grelhas queimando-se quatro ou cinco principais
e senhores (e ainda penso que havia dois ou três pares de grelhas onde
queimavam outros), e porque davam gritos muito grandes e davam pena ao
capitão o lhe impediam o sono, mando que os afogassem, e o alguacil, que era
pior que o carrasco que os queimava, (e sei como se chamava e ainda conheci
seus parentes em Sevilla), não os quis afogar, mas meteu-lhes com suas mãos
paus nas bocas para que não fizessem barulho e atiçou-lhe o fogo até que
assaram devagar como ele queria. E porque toda a gente que podia fugir se
fechava nos montes e subia as montanhas fugindo de homens tão inumanos, tão
sem piedade e tão ferozes bestas, extirpadores e inimigos capitais da linhagem
humana, ensinaram e amestraram cães bravíssimos que, ao ver um índio, o
faziam em pedaços num instante, e melhor se arremessavam a ele e o comiam do
que se fosse um porco. Estes cães fizeram grandes estragos e carnificinas. E
porque algumas vezes, raras e poucas, matavam os índios alguns cristãos com
justa razão e santa justiça, fizeram lei entre si, que por um cristão que os índios
matassem, haveriam os cristãos de matar cem índios.

Com seu universo de significados arrasado e desacreditado, frente a invasores com


um poder de destruição e uma insensibilidade enormes, que não podiam compreender, e
dizimados por doenças trazidas pelos colonizadores, especialmente a varíola, os índios
passaram pela noite escura da alma coletiva. As alternativas que lhes foram dadas eram a
morte ou a submissão, a condenação a trabalhos forçados, a humilhação, a enfermidade e a
escravidão. A maioria dos astecas sucumbiu.
A tomada da capital asteca culminou em 1519. A maior parte de seus templos foi
destruída e seus ritos religiosos, que contavam com sacrifícios humanos, mas também com
cantos, danças, música, foram proibidos. A catequização dos indíos foi uma violência a mais
dentro do furor escravagista, predador e genocida. O cristianismo, contradizendo o próprio
Cristo, impôs-se através de sua forma mais virulenta e odiosa: pela destruição, pela força e
pelo poder, e não pelo amor.
Um documento indígena, conhecido como A Visão dos Vencidos, escrito em náhuatl
por autores anônimos, de 1519 a 1528, nos diz:

E tudo isso se passou conosco.


Nós o vimos,
nós o admiramos.
Com esta lamentosa e triste sorte
nos vimos angustiados.
Nos caminhos jazem dardos rotos,
os cabelos estão espalhados.
Destelhadas estão as casas,
ensangüentados ficaram seus muros.

Vermes pululam pelas ruas e praças,


e as paredes estão salpicadas de miolos.
Vermelhas estão as águas, estão como que tingidas,
e quando as bebemos,
é como se bebêssemos água de salitre. (in Léon-Portilla, 1998, p.137)

Foi nesse cenário de desolação, numa paz marcada pelo desânimo e subordinação,
que, em 1531, em Tepeyac, o primeiro lugar conquistado pelos espanhóis, o índio Juan
Diego teve a visão daquela que viria a ser conhecida como a Virgem de Guadalupe.

A Visão de Juan Diego

O relato da aparição da Virgem de Guadalupe é feito em náhuatl, no texto Nican


Mopohua, que significa Aqui se narra. Através dos comentários e explicações feitas por
Elizondo, em seu livro Guadalupe, Madre de la nueva creación, o sincretismo religioso
aparece claramente. Logo no primeiro parágrafo ficamos sabendo que o monte Tepeyac,
onde se deu a aparição, era o lugar sagrado em que a deusa Tonantzin havia sido cultuada
desde tempos imemoriais. Pouco depois temos uma expressão sincrética explícita: “Dez
anos após a conquista da cidade do México, (...) a fé começou a produzir flores e lançar
brotos no conhecimento daquele por quem vivemos: o Deus verdadeiro Téotl” (par. 4).
“Téotl” era o deus náhualt, enquanto “Deus verdadeiro” era como os espanhóis cristãos se
referiam a Deus. A seguir, é dito que tudo ocorreu em Tlatelolco, que era um antigo centro
de cerimônias e que passou a ser usado como centro de evangelização e dominação
espiritual espanhola (p. 30).
Juan Diego, um índio, ocupava-se das coisas de Deus. Era um sábado à noite e,
quando chegou a Tepeyac, o dia amanhecia. Ouviu, então um canto maravilhoso, mais
melodioso que os cantos das aves, que vinha do alto do morro, da direção do nascer do sol.
Perguntou-se se merecia escutar algo assim magnífico, se estaria no céu, no país das flores,
dos antepassados. Quando o silêncio se fez, escutou que lhe chamavam pelo nome.
Sereno, seguiu em direção à voz e viu uma senhora distinta, em pé.

Suas vestimentas eram como o sol e desprendiam raios. E as rochas e as


pedras do lugar onde estava o pé da Senhora brilhavam com vivo resplendor ao
serem feridas pelos raios como que por flechas, e pareciam ser como esmeraldas
belíssimas; mais ainda, assemelhavam-se a autênticas jóias. A terra resplandecia
com as cores brilhantes do arco-íris; os arbustos, os cactos e as ervas que ali
cresciam pareciam estar revestidos das vivas cores verdes das plumas do quetzal, e
suas gemas pareciam de turquesa; os ramos, as folhas e os espinhos brilhavam
como o ouro. (pars.17 e 18)

O sol era o símbolo náhuatl da divindade.


A imagem da Senhora dirigiu-se a Juan Diego como “o menor dos meus filhos,
respeitável Juan”, e se apresentou como

a sempre Virgem Santa Maria, a Mãe do Deus da única verdade, Téotl. Sou a Mãe
daquele por quem vivemos, do Criador dos homens, do Soberano de tudo que está
próximo e está junto, do Senhor dos céus e da terra. (par. 22)

Esses nomes são os mesmos usados pelos teólogos nahuas para falar sobre Deus, o
que acentua sua acolhida às crenças indígenas. Ela é não apenas a Mãe do Deus dos
cristãos, mas do Deus náhuatl. Ela pediu, então, que o índio fosse até o bispo e dissesse a
ele para construir ali uma capela, de onde mostraria à humanidade todo seu amor,
misericórdia, ajuda e proteção, escutaria seus lamentos e aliviaria e curaria suas desgraças,
dores e sofrimentos. O bispo é, do ponto de vista dos colonizadores, a expressão máxima da
autoridade religiosa, o centro da nova evangelização, que busca “ensinar as verdades” aos
índios. A solicitação para que Juan Diego fosse até o bispo e lhe falasse da vontade de
Deus aponta para uma grande inversão da lógica civilizadora, com sua ordem sócio-religiosa
imposta.
Juan Diego relatou sua visão ao bispo, D. Juan Zumárraga (1468-1548), que lhe disse
para voltar um outro dia, pois iria pensar no que ouvira. Esse bispo, caçador de bruxas na
Espanha, foi um dos maiores evangelizadores e defensores dos índios, mas, ao mesmo
tempo, um feroz destruidor de tudo o que soasse paganismo, pois acreditava que só depois
poderia ser construída a Nova Igreja. Numa carta, de 12 de junho de 1531, escreveu que
havia destruído mais de quinhentos templos e vinte mil ídolos (Ricard, in Elizondo, 1999, p.
100).
Juan Diego encontrou-se novamente com a Virgem, relatou o que havia acontecido, e
ela insistiu para que ele levasse seu pedido outra vez ao bispo. Pela segunda vez Juan
Zumárraga não acreditou nele, dizendo sentir falta de uma prova de que o índio dizia a
verdade. Legitima-se, através do representante eclesiástico, a falta de valor atribuída aos
povos nativos. A Igreja, teoricamente aberta para acolher em seu seio e em igualdade de
condições todos os humanos, referendou e reforçou a segregação racial ao impedir, em
1539, a ordenação de índios, africanos, mestiços e mulatos (idem, p.103).
No dia seguinte, Juan Diego deveria buscar a prova que convenceria o bispo da
veracidade de suas palavras, mas seu tio, Juan Bernardino, estava muito mal, com varíola, e
pediu que fosse chamado um padre para que lhe ouvisse em confissão, porque sentia que
sua vida estava se esgotando. Juan Diego saiu à noite, buscando satisfazer o desejo do tio,
quando encontrou novamente a Senhora e lhe falou sobre o que estava ocorrendo com o tio
e sua pressa em levar até ele um sacerdote. A Senhora ouviu-o pacientemente e,
reafirmando que o índio estava sobre sua proteção, disse-lhe que naquele instante seu tio já
estava curado. Juan Diego sentiu um profundo consolo e seu coração tranqüilizou-se. Pediu
a ela, então, que lhe desse o sinal, para que pudesse regressar até o bispo.
A Senhora do Céu mandou-o subir ao cume do morro, ao local onde ele a havia visto
por primeira vez, e onde encontraria diversas flores, que deveria colher. Ele ficou atônito,
porque havia ali flores magníficas, perfumadas, e aquele era um lugar árido – além disso,
era tempo de geadas. Obedecendo-a, Juan Diego levou até ela as flores, e ela colocou-as
em sua capa. Uma vez mais o índio foi ao encontro do bispo, a quem relatou o sucedido; em
seguida, abriu sua capa, e as flores caíram no chão. Neste mesmo instante, apareceu
pintada na capa a imagem da Virgem Mãe do Deus Téotl. A conversão do bispo foi imediata,
arrependendo-se de não haver acolhido antes o apelo da Senhora do Céu.
Depois de permanecer no palácio do bispo mais um dia, Juan Diego voltou para casa
e encontrou o tio curado. Este relatou haver visto a Senhora aparecer ao sobrinho e que ela
lhe dissera para contar como havia sido curado de maneira milagrosa, acrescentando que
essa imagem da Virgem deveria ser chamada de Nossa Senhora de Guadalupe. Sua
imagem, na capa de Juan Diego, que ninguém havia pintado, foi colocada na capela que foi
construída em homenagem à Virgem Mãe, à Tonantzin Guadalupe.

Um Encontro na Alteridade

Vimos que a concepção tolteca da divindade possuía fortes traços do padrão de


alteridade – a imagem de um deus a um só tempo Feminino e Masculino, Senhor e Senhora.
A patriarcalização do cristianismo trazido pelos europeus chocou-se com a possibilidade da
inclusão do padrão matriarcal na religião e nos cultos religiosos. Isto se refletiu pela
proibição dos sacrifícios humanos, mas também da espontaneidade, das danças e cantos
nos cultos, bem como na limitação da multiplicidade de deuses e deusas a serem louvados.
Ao extirpar o aspecto matriarcal presente na alteridade, esta fica impedida de ser exercida, e
todo o Self se enrijece, gerando uma patologização do Self Cultural, à qual os indígenas não
puderam se adaptar.
A visão de Juan Diego é a primeira manifestação sincrética envolvendo o cristianismo
na América Latina, e a que pela primeira vez possibilitou a incorporação nele dos elementos
da terra, da natureza, da música, das flores e dos cantos, abrindo caminho para a síntese
entre as culturas ibéricas e nativas às quais, mais tarde, se somariam as africanas. A
imagem da Virgem traz a Mãe da Terra para complementar o Pai do Céu, no encontro entre
o divino e o humano. Sem a presença da polaridade, sem masculino e feminino lado a lado,
os indígenas não concebiam um Deus completo.
O pedido da Virgem para que uma capela fosse levantada em sua homenagem
deveria ter sua realização no esforço conjunto do bispo e de Juan Diego, representantes de
dois universos distintos, de valores divergentes, de visões de mundo opostas, mas que
encontram, na imagem da Virgem, a possibilidade de se unir e converterem-se em aliados
frente a uma causa comum: a construção de um templo capaz de ultrapassar as fronteiras
étnicas e falar à alma desses dois povos.
A imagem dessa mulher, com voz terna e acolhedora, falando a mesma língua que
Juan Diego, chamando-o pelo nome, inspirando intimidade e afeto, traz com ela o resgate da
dignidade indígena e o respeito por ela. Radicalmente diferente das divindades locais, por
sua proximidade e humanidade, traz elementos desses deuses: o sol e a lua. Também não é
uma imagem puramente cristã: no próprio aspecto físico da Virgem, chamada
carinhosamente de A Moreninha, revela-se o encontro entre as raças: tem traços mestiços, é
morena, tem os cabelos negros como os povos nativos, fala a sua língua e em seu vestido
traz desenhos florais típicos da decoração indígena, bem como um motivo do calendário
asteca bem em cima do seu ventre, como a indicar que é a mãe do bebê Sol, da nova vida
que está por vir. Sintetiza, assim, as imagens cristãs com as indígenas. Simultaneamente,
passa a representar a Mãe do Deus verdadeiro dos cristãos espanhóis e a Mãe do Deus do
povo náhuatl, ou seja, a mãe da mestiçagem e dos novos filhos das Américas (Elizondo,
1999).
A religião cristã era vivenciada pelos nativos como sem felicidade e alegria, e os
missionários vistos como pessoas que se opunham a toda felicidade e prazer. A Virgem
oferece amor e compaixão em lugar de regras e doutrinas; consolo e proteção, ao invés do
inferno e condenação. Com ela surge uma igreja festiva, com flores e cantos, com
participação emocional, com a possibilidade de se perceber o sagrado presente na matéria e
vinculado à vida cotidiana, à vida prática, sem que o espírito implique em imaterialidade. Dá
aos nativos, assim, a possibilidade de celebrar, à sua maneira, com grande liberdade,
dançando e cantando, a comunhão com a divindade e, com isso, a esperança de vir a
recuperar sua alma coletiva e sua dignidade como povo.
A esse respeito observa Sahagún, no hoje conhecido como Codice Florentino (escrito
entre 1564-65 e 1576-77), revelando o seu desagrado ao culto guadalupano, o qual
considerou “invenção satânica para mascarar a idolatria”:

Próximo dos montes há três ou quatro lugares onde costumavam fazer


sacrifícios muito solenes, e para onde vinham de terras muito distantes. Um destes é
aqui no México,onde está um morrinho que se chama Tepeyácac (...), e agora se
chama Nossa Senhora de Guadalupe; neste lugar tinham um templo dedicado à mãe
dos deuses, que chamavam Tonantzin, que quer dizer Nossa Mãe; ali faziam muitos
sacrifícios em honra desta deusa, e vinham de terras muito longínqüas, de mais de vinte
léguas (...), e traziam muitas oferendas; vinham homens e mulheres, e moços e moças
a essas festas; era grande o afluxo de pessoas nestes dias, e todos diziam vamos à
festa de Tonantzin; e agora que ali está edificada a Igreja de Nossa Senhora de
Guadalupe, também a chamam Tonantzin...” (Lib. XI, cap. XII, § 6, fols. 234 r.-v.)

Esta visão é, pois, a expressão da criatividade e pujança da cultura indígena, que


encontrou no sincretismo uma forma de compensar a patologia do Self Cultural, cujas
fixações e defesas foram geradas pela brutalidade da colonização, que converteu os índios
em estrangeiros em sua própria terra, fazendo deles um povo humilhado, oprimido e, pior,
considerado não humano. Sua aparição representa, deste modo, a passagem da noite
escura para o alvorecer, a ressurreição e o surgimento de uma nova humanidade, uma nova
Consciência, a Consciência de Alteridade, a ser desenvolvida na América Latina.

Conclusão
Quando alargamos nosso olhar e o lançamos sobre outros territórios ameríndios,
vemos a aparição da Virgem relatada também na Venezuela e no Equador, tendo em
comum com sua manifestação mexicana o fato de ter aparecido para os nativos como uma
visão. Na Venezuela, Ela aparece, em 1652, ao Cacique Coromoto e à sua família, e
posteriormente será conhecida como Nossa Senhora de Coromoto. Há relatos de Sua
aparição a vários índios também no Equador, onde a devoção à Nossa Senhora del Quinche
é bem popular e foi introduzida em 1585.
Houve ainda outras maneiras de a Virgem se fazer presente na América Latina, como
no Brasil, onde a imagem de uma Virgem Negra, Nossa Senhora Aparecida, foi encontrada
por pescadores (1716), ou em Cuba, em que a padroeira Nossa Senhora da Caridade do
Cobre foi achada boiando no mar, em 1628, por dois índios e um negro. Há ainda a história
de uma índia que, em Costa Rica, no ano de 1635, ao recolher lenha, encontrou num morro
uma imagem de Maria com o Menino Jesus e a levou para casa. No dia seguinte, ao voltar
ao mesmo lugar, encontrou novamente a imagem, e isso se repetiu mais uma vez. Relatou o
ocorrido ao padre, que pediu a imagem, mas de novo ela desapareceu da casa do sacerdote
e voltou a ser encontrada no morro. E a imagem, chamada de Nossa Senhora dos Anjos, só
parou de “fugir” quando fizeram um templo no local onde ela desejava ficar.
Podemos ainda lembrar a história da padroeira de Honduras, Nossa Senhora de
Suyapa. No final do século XVIII, um jovem e um menino de oito anos tinham trabalhado no
campo, na colheita de milho, e voltavam para sua casa, em Suyapa. Percebendo que não
chegariam a tempo, decidiram dormir no meio do caminho. Quando se deitaram, o jovem
Alejandro sentiu um objeto incomodando seu corpo. No escuro, voltou-se e o pegou.
Pensando tratar-se de uma pedra, jogou-o para longe e voltou a deitar-se, mas sentiu aquele
mesmo incômodo no mesmo local. Tendo julgado esquisito o fato, guardou consigo o objeto.
Pela manhã, descobriu que era uma pequena imagem de Nossa Senhora, talhada em
madeira, de apenas seis centímetros e meio de altura. Tal imagem é a atual Padroeira de
Honduras.6
Essas aparições, quer através de visões ou de encontros de estátuas, ou ainda
acontecimentos extraordinários, têm em comum o fato de acontecerem sempre com índios
ou negros, com os povos oprimidos e necessitados de consolo. Também envolvem todas
essas manifestações da Virgem o relato de inúmeros milagres.
Diante de um predomínio do dinamismo patriarcal, a Virgem representa, com sua
ligação com a natureza, a maternidade, a compaixão, a doçura, a acolhida, enfim, o outro
lado dos dominadores. A posição da mulher, diante dos conquistadores, era a de um troféu,
ou de um objeto que podia ser violentado, agredido, maltratado. Por intermédio da Virgem
Mãe de Deus a imagem da mulher índia pôde ser redimida e elevada a um papel de
importância, a humanidade das mulheres violentadas, dos homens emocionalmente
castrados e das crianças abandonadas pelos colonizadores começou a ser resgatada, e lhes
foi dado esteio e consolo para que pudessem seguir vivendo.
Através das primeiras manifestações da religiosidade popular sincrética envolvendo o
cristianismo na América Latina, o lugar do povo indígena principiou a ser recuperado, suas

6
É importante mencionar que, ao lado de cultos incorporados oficialmente pela tradição religiosa
cristã/católica, temos aqueles que permanecem à margem da religião institucionalizada. Nem por isso, no
entanto, atraem menos fiéis e são menos importantes. É o caso, por exemplo, do culto à Defunta Correa, na
Argentina, ao Padre Cícero, no Nordeste do Brasil e à Maria Lionza, na Venezuela.
crenças incorporadas e seus deuses e deusas não precisaram mais morrer e arrastar seus
devotos com eles. Abriu-se uma brecha nos desmandos e humilhações, e os indíos
encontraram motivo e maneira para celebrar a vida que parecia destinada a lhes abandonar.
Infelizmente, as feridas geradas pela patologia de nossa colonização são profundas e de
difícil cicatrização e expressam-se ainda hoje no Self Cultural latino-americano, pela imensa
desigualdade social, péssima distribuição de renda, violência crescente, corrupção e
populismo, presentes em muitos dos nossos países.
Encerro este texto apresentando um breve sonho de uma paciente, para ilustrar a
presença viva de Maria nos dias de hoje: “via Nossa Senhora em meio a uma floresta
bastante densa. Era noite e sua vestimenta era um manto formado pelos raios da lua cheia”.
Segundo a sonhadora, este sonho foi tão impressionante que ela despertou, mas mesmo
assim manteve ainda por algum tempo a sensação de estar diante de Maria e o estado de
graça que Ela lhe trouxe.
A imagem de Maria, em meio à vegetação, imersa na natureza, uma Maria banhada e
vestida pela luz da Lua, tão próxima que encheu de graça a alma da sonhadora, revela que
no encontro entre Maria e a natureza não é só o espírito que toma forma e se materializa,
mas a natureza que se reveste do espírito. A aparição da Virgem de Guadalupe a Juan
Diego também revestiu-se de natureza, que para a cultura náhuatl era espiritualizada, como
revela a idéia de flores e canto, e como o é para aqueles abertos para a dominância do
Arquétipo Matriarcal, sem o qual não se implanta o Arquétipo da Alteridade.
O quadro Dragão7, obra de 1927 do artista argentino Xul Solar (1887 – 1963), ilustra
maravilhosamente a presença da grande deusa que permeia, pelo sincretismo, a
religiosidade popular latino-americana e aponta, com ela, para uma sociedade mais justa e
fraterna.

7
A aquarela, em espanhol Drago, pode ser vista no endereço eletrônico do Museu Xul Solar -
www.xulsolar.org.ar/obras/20-01.html (julho, 2007).
Referências Bibliográficas

Byington, Carlos Amadeu Botelho (1965). Autenticidade como Dualidade na Unidade. Tese
de conclusão do curso de formação de analistas no Instituto C.G.Jung, de Zurique.

___________ (2004). A Construção Amorosa do Saber – Fundamento e Finalidade da


Pedagogia Simbólica Junguiana. São Paulo: W11 Editores, 2004.

Elizondo, Virgil (1997). Guadalupe, Madre de la Nueva Creación. Estella, Espanha: Editoria
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Gambini, Roberto (2000). Espelho Índio – A Formação da Alma Brasileira. São Paulo: Axis
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León-Portilla, Miguel (1961). Los Antiguos Mexicanos a través de sus crónicas y cantares.
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__________ (1988). A Visão dos Vencidos – A Tragédia da Conquista Narrada pelos


Astecas. São Paulo: L&PM Editores S/A, 1998.

Sahagún, Fray Bernardino de (1829). Historia General de las Cosas de Nueva España.
México: Alianza Editorial Mexicana, 1989.
O UNIVERSAL E O INDIVIDUAL NOS SÍMBOLOS DA UMBANDA1

Brígida Malandrino2

Introdução

A versatilidade encontrada na umbanda é conseqüência da mescla de tradições


que ocorreram na sua formação e continuam a existir até hoje. Podemos citar as
culturas africanas, dentre elas a cultura banto e a ioruba, o catolicismo popular, o
kardecismo, as tradições indígenas e as linhas orientais, que contribuíram para uma de
suas características mais marcantes, o sincretismo religioso (Ferreti, 1995). Porém,
mais do que sincrética, a umbanda é mutável simbólica e ritualística, fato advindo da
influência da cultura banto na sua formação, do fato de ser um fenômeno de
religiosidade popular e de estar inserida dentro de um continuum mediúnico
(Malandrino, 2006b). Os símbolos umbandistas possuem uma mutabilidade constante,
seja comparando terreiros de umbanda, seja observando um mesmo terreiro ao longo
do tempo. Os símbolos são interpretados, substituídos e transformados de acordo com
as necessidades dos componentes e das entidades pertencentes a cada terreiro,
levando em conta, dialeticamente, o individual e o coletivo.
O que esta mutabilidade simbólica e o caráter “individual” de cada terreiro, na
sua constituição, pode nos dizer a respeito da vivência da religiosidade de seus
adeptos? Buscando responder a esta pergunta, abordaremos, inicialmente, a
mutabilidade umbandista, o conceito de símbolos e sua atuação na vida humana, para,
em seguida, destacarmos alguns símbolos fundamentais dentro da umbanda, tais
como: a tronqueira, o quartinho dos Exus, os apetrechos dos guias e a roupa branca.

A mutabilidade umbandista

1
Este texto foi apresentado originalmente no IX Simpósio Anual da ABHR "Religiões e
Religiosidades; entre a tradição e a modernidade", realizado entre os dias 01 a 04 de maio de 2007
em Viçosa.
2
Psicóloga pela PUC/SP, especialista em Psicologia Clínica com Orientação Junguiana Coligada a
Técnicas Corporais pelo Sedes Sapientiae, Mestra e Doutoranda em Ciências da Religião pela
PUC/SP, autora do livro - Umbanda: mudanças e permanências. E-mail:
brigidamalandrino@terra.com.br
A umbanda, como uma religião sincrética, afro-brasileira, mediúnica e, na sua
expressão, um fenômeno de cultura popular, constantemente mescla elementos de
diversas tradições, não tendo a intenção de encontrar e de se firmar como um todo
acabado. O seu funcionamento é mutável, buscando responder às demandas daqueles
que a procuram, no momento em que isso ocorre. Quando falamos a respeito de
demandas, observamos que elas são diversificadas e dependem, sobremaneira, da
posição que cada indivíduo ocupa dentro do terreiro de umbanda 3. O inusitado é parte
desta religião.
A umbanda, ao ser formada por alguns eixos fundamentais, presentes nos
diversos terreiros, e ao mesmo tempo possibilitar criações em cima destes eixos,
permite ao indivíduo, adepto ou não, escolher o terreiro que vá de encontro àquilo que
ele está buscando ou precisando4. A autonomia5 dos terreiros é um dos pontos centrais
da permeabilidade à variação que se encontra na umbanda. Devido às suas
particularidades, assiste-se a um processo de refazer e de reordenar o sentido dos
produtos culturais diversos. As variações interpretativas, a invenção, a recriação na
umbanda são produtos de um processo dinâmico e constante. “Através da
representação das diferenças religiosas como linhas possíveis e legítimas comandadas
pelos espíritos e orixás, torna-se sempre possível para o umbandista compor, somar,
articular princípios diversos na sua prática” (Ortiz, 1980, p.90).
Esta flexibilidade permite que a construção da religiosidade de cada um possa
ser feita de forma mais individualizada, a partir dos diversos processos culturais. O
indivíduo não precisa abdicar de preceitos e de crenças, que lhe são simbolicamente
3
Quando nos deparamos com um terreiro de umbanda, constatamos que há diferenças daquilo que
procuram, fundamentalmente, a assistência, os médiuns e os guias. A assistência, em linhas gerais,
procura a umbanda por motivos de doenças, conjugais, financeiros, amorosos, familiares e, também,
espirituais; já os médiuns estão na umbanda para trabalhar “mediunicamente”, como forma de evoluírem
espiritual e pessoalmente, ao ajudarem outros indivíduos; e os guias optam por estar ali também com o
intuito de evolução espiritual, através da prática da caridade, mas de um jeito diferente: trabalham como
espíritos não encarnados.
4
Vale citar a fala de um pai-de-santo, a respeito da constituição religiosa individual dentro da umbanda:
“Porque da crença de que a religião é uma forma só. É a manifestação de uma forma pro caminho
espiritual. E cada um vai encontrar, o coração vai bater forte, num tipo de coisa. Então, assim, por
exemplo, tem uma formação de Xamã, eu coloco coisas, faço trabalhos de xamanismo junto com a
umbanda e sai tudo muito bem, encaixa legal. Se o outro quiser vir trabalhar com cristais, ótimo... É esse
o grande charme da umbanda, porque cada terreiro é um culto diferente. E aí, busca uma codificação,
porque não tem tradição. A tradição é ser diferente. É você responder, é você criar um culto, uma forma
de trabalho que vai reverberar em quem for necessário, em quem se encontrar com aquilo. O outro não é
aqui, vai ser ali que é completamente diferente. Cada um tem que tá onde tem que tá. E eu acho que
isso é o charme da umbanda”. A. M., entrevista realizada pela autora, gravação em fita de áudio, São
Paulo, 07/03/03.
5
Historicamente, é possível constatar tentativas das associações e das federações umbandistas em
instituir um poder central e ditar algumas diretrizes de ação para os terreiros. Porém, o que se observou
foi uma ação pouco eficaz, que, muitas vezes, se inicia com a não participação nestas associações e
federações. Cf. Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada.
significativos, e constantemente pode fazer e refazer a sua prática religiosa. Conforme
coloca Malandrino (2006):

Novas entidades, novas características, novos tipos estão


permanentemente em elaboração a partir da mesma matriz. Isso ocorre, pois os
sistemas culturais são regulados por uma lógica que transcende a possibilidade de
controle absoluto dos processos culturais pelos indivíduos. O sentido dos símbolos
muda junto com a comunidade que os utiliza e conforme as suas necessidades.
(p.173)

Para responder a essas necessidades, há modificações constantes no decorrer


do tempo. Os terreiros se modificam para se adequar às necessidades e aos desejos
de seus componentes e dos guias espirituais. Observa-se uma religião que se constrói
a partir das necessidades religiosas6 dos seus componentes7, fato que já se encontra
inscrito na umbanda desde a sua formação:

A umbanda certamente não é uma espécie de degeneração de antigos


cultos africanos ou do espiritismo kardecista. É, sim, o resultado de um processo
de reelaboração, em determinada conjuntura histórica (...) de ritos, mitos e
símbolos que, no interior de uma nova estrutura adquirem novos significados.
(Magnani, 1986, p.13)

A organização simbólica criada pela umbanda no início do século XX serviu


como uma forma de leitura de mundo, bem como de expressão de anseios, de desejos
e de aspectos daqueles que formavam essa religião. A utilização da lógica popular, na
qual há uma bricolagem constante, na qual se utiliza a lógica instrumental (da
oportunidade e da necessidade), serve para resolver os problemas que surgem em
determinado momento com os elementos que se encontram disponíveis.
A umbanda, como uma religião mutável, permite que novos símbolos sejam
incorporados a determinado terreiro, ao mesmo tempo em que símbolos que não
promovem mais um sentido para aquele grupo de pessoas sejam suprimidos. Cabe,

6
A visita a terreiros de umbanda em momentos diferentes, historicamente diferentes, mostra a
possibilidade de se observar modificações que vão desde os rituais às rezas, dos dirigentes à
organização material, passando pelos símbolos, que a nosso ver dizem respeito às necessidades
espirituais e psicológicas dos adeptos.
7
Cabe citar novamente a fala do pai-de-santo: “A umbanda não se restringe a uma tradição kardecista,
ou candomblecista, ou católica. Ela é uma mescla. Eu acho que é a única religião no mundo que é
ecumênica, que todo o mundo se sente em casa, porque vai encontrar algum símbolo que vai fazer
referência a sua educação religiosa, seja qual tenha sido a sua religião. Em determinados terreiros
alguns vão ser mais predominantes do que outros. Em determinados terreiros não. Terreiro, pra terreiro
vai ter símbolos mais determinantes que outros. E esse é o axé, o axé do conhecimento. É o acúmulo do
saber, o que não dá choque, claro. Eu digo que a umbanda é uma esponja, ela vai absorvendo tudo que
vai aparecendo, enquanto dá liga, enquanto dá mescla, vai inserindo dentro do culto dela”. A. M.,
entrevistado pela autora, gravação em fita de áudio, São Paulo, 07/03/03.
agora, perguntar, o que estamos entendo por símbolos e, mais do que isso,
compreender de que maneira tais símbolos conectam o indivíduo, que se encontra na
umbanda, a uma realidade transcendente, que se mostra, ao mesmo tempo, individual
e coletiva.
Símbolos

Buscando responder às perguntas colocadas acima, elegemos uma definição de


símbolo, proveniente da Psicologia Analítica8, que nos auxilia nesta trajetória. É fato
que tal definição não contempla a infinidade de idéias a respeito do que é o símbolo,
mas, para o presente artigo, faremos este recorte.
A palavra símbolo, em si mesma, implica, primeiramente, em uma dualidade e
uma unificação, já que o símbolo junta duas coisas, formando uma só. O símbolo
sempre é constituído por duas partes: o simbolizante e o simbolizado. O símbolo
sempre designa conjuntamente o simbolizante e o simbolizado, exprimindo uma
totalidade que passou por experiências de ruptura e, agora, é uma realidade
reconstituída.
O simbolizado é o pedaço a reconstituir, é a parte ausente, impossível de se
perceber. Esse pedaço vai ser do domínio do invisível, do imperceptível, do
inobservável, do inexprimível; em suma, o não-sensível em todas as suas formas (o
inconsciente, o metafísico, o sobrenatural e o surreal). O simbolizante é a parte visível,
o pedaço presente acessível à nossa experiência imediata, a partir do qual se tende a
reconstituir a realidade total.
Apesar desta divisão, o símbolo é uma criação total, que não se situa nem no
simbolizante nem no simbolizado e, no nosso caso, nem no consciente nem no
inconsciente. Um símbolo, por menos universal que seja, brota das camadas mais
profundas do ser humano, nas quais se acumulam e se enraízam as recordações e os
gestos mais marcantes que foram acumulados durante a história da humanidade e, por
isso, têm sempre a função de transcender os opostos.
O símbolo é a manifestação indireta do arquétipo9 tornando-o constatável, já que
esse nunca pode se manifestar diretamente, pois é um elemento estrutural numinoso

8
Cf. Edward WHITMONT, A busca do símbolo.
9
De maneira sucinta, arquétipos são possibilidades herdadas para representar imagens similares, isto é,
formas instintivas de imaginar. Pode-se dizer que são matrizes arcaicas, onde configurações análogas
ou semelhantes tomam forma. Resultam do depósito das impressões superpostas deixadas por certas
vivências fundamentais, comuns a todos os humanos, repetidas incontavelmente através de milênios.
Podem ser chamadas de vivências típicas, características, próprias da humanidade.
da psique com certa autonomia e energia psíquica aglomerada. As relações, as
situações e as idéias mais abstratas de natureza arquetípica são traduzidas na forma
de processos retratáveis ou de eventos expressos em imagens.
O símbolo sempre oculta um sentido invisível e mais profundo do que o seu
sentido objetivo e visível, portanto não é imediatamente solucionável, compreensível ou
determinado anteriormente, tendo um caráter duplo e bipolar. Sua bipolaridade é dada
pelo fato de o símbolo ter a qualidade de unificar os pares opostos, por exemplo, o
consciente e o inconsciente, em um resgate imagético do arquétipo.
Um símbolo carregado de sentido nunca pode ser criado a partir de relações
conhecidas, já que pertencem a dois níveis diferentes de realidade: a imagem e um
conteúdo que transcendente à consciência, com a qual é necessária a comunicação.
Como unificador de antagonismos, o símbolo sempre solicita a totalidade do humano,
afetando o homem por inteiro. Um símbolo é a melhor expressão de algo e se encontra
carregado de sentido. Segundo Jacobi (1952):

O símbolo é, então, uma espécie de instância mediadora entre a


incompatibilidade do consciente com o inconsciente, um autêntico mediador entre
o oculto e o revelado. Pertence à esfera intermediária da realidade sutil, que só se
pode expressar, de modo suficiente, através do símbolo. (p.90)

Já um símbolo religioso pode proporcionar uma série de experiências psíquicas,


mas isso só ocorre se o indivíduo se encontra envolvido emocionalmente com ele, pois,
apenas dessa forma, a energia contida no símbolo pode ser liberada. Quando
assimilado pela consciência, gera transformações que modificam a personalidade do
indivíduo, já que são tentativas para a reconciliação e união dos elementos antagônicos
da psique. À função de união de pares opostos, Jung (1998) nomeou de função
transcendente, já que através da criação dos símbolos cria-se uma passagem de um
lado para o outro, uma comunicação entre consciente e inconsciente.
Os símbolos são mutáveis através dos tempos; seu sentido e seu desvelamento
são alterados na medida em que há modificações nos reconhecimentos e nas
experiências de cada um; o conteúdo do sentido e a forma do próprio símbolo são
postos em novas relações e transformados de maneira correspondente. Portanto, cada
homem e cada época traduzem o símbolo para a linguagem atual, munindo-o com uma
nova roupagem, para que a essência e o significado dele possam permanecer e, com
isso, resgatar o sentido da vida.
As idéias religiosas têm um conteúdo simbólico, não só porque ele possui um
significado, mas porque aponta para várias direções e deve significar algo que é
inconsciente ou que, ao menos, não é consciente em todos os seus aspectos, pois os
símbolos religiosos são realidades vivas, existenciais, que dão sentido à vida dos
homens, e não simples sinais de algo já conhecido.
Os símbolos religiosos são expressões do mundo arquetípico, sendo que as
religiões exprimem simbolicamente os arquétipos do inconsciente coletivo, buscando
tornar certos aspectos conscientes. A história de muitas religiões é a história do
inconsciente daquele grupo cultural, explicitando a ancestralidade de determinado
povo, buscando atingir equilíbrio e maior abrangência, para que essa consciência
perceba melhor o objetivo da inconsciência nela. A religião manifesta a compensação
necessária para as exigências culturais que evocam.
Podemos sugerir que quando se pensa em religiões, há o arquétipo em si
(universal) e o arquétipo manifestado (preenchido conforme dita aquela religião), com
um caráter individual. As religiões possuem, em sua origem, a possibilidade da vivência
de determinado arquétipo, porém a forma como esse arquétipo se manifesta ou é
preenchido, ocorre dentro das categorias de tempo e espaço de cada religião, que
difere de uma para a outra. Os arquétipos, quando perceptíveis, podem ter um caráter
cultural ou individual. A umbanda manifesta determinado arquétipo, que em si é
universal, a sua maneira, tornando-o único, individual.
Araújo(2003, pp. 27-31) trabalha com a idéia de que existem duas dimensões do
coletivo. A primeira é arquetípica, natural, transhistórica, transcultural, transétnica, que
se assemelha ao conceito de inconsciente coletivo. A segunda estereotipada, histórica,
cultural e étnica, para a qual ele propõe o conceito de inconsciente cultural. O indivíduo
realiza aquisições tanto pela via inconsciente, hereditariamente, quanto pela
consciência cultural, através da história, da cultura e da etnicidade. Portanto, as
imagens do inconsciente podem ser tanto arquetípicas, quanto adquiridas pela cultura,
mas as duas são sempre vivenciadas pela consciência através dos símbolos.

Símbolos Umbandistas
Trabalhando com a idéia de inconsciente cultural, podemos supor que os
símbolos da umbanda se referem a um inconsciente umbandista, em contraposição a
um inconsciente coletivo.
A linguagem simbólica da umbanda se assemelha à linguagem do inconsciente,
mas não de um inconsciente qualquer, mas de um inconsciente que poderíamos
chamar umbandista. A umbanda é a expressão desta cultura e deste inconsciente, na
medida em que seus símbolos podem exprimir aspectos inconscientes presentes nos
indivíduos que freqüentam a umbanda.
Um inconsciente religioso umbandista, como colocado anteriormente, possui
determinados temas míticos ou arquetípicos, que são carregados de energia dentro
deste núcleo, sendo perpetuado continuamente como um modelo que tende a se
reproduzir. Com isso, há conteúdos pertencentes a determinado grupo religioso, no
caso a umbanda, que estão ativados, existindo como uma tradição dentro desse grupo,
dessa coletividade, que se manifestam em seus componentes.
Podemos supor que há um inconsciente que poderíamos chamar de
umbandista, isto é, há símbolos que só fazem sentido para o adepto da umbanda.
Como estamos falando de umbanda, que carrega em si diversidades que variam de
terreiro para terreiro, podemos trabalhar com a idéia de que há um conjunto simbólico
que ressoa para os indivíduos que pertencem à umbanda. Frente a isso, a seguir,
estaremos apresentando, de maneira breve, alguns símbolos fundamentais da
umbanda, no caso: a tronqueira, o quartinho dos Exus, a roupa branca e os apetrechos
dos guias.

Tronqueira

A tronqueira normalmente situa-se atrás da porta de entrada e tem a função de


guardar ou de proteger a porta do terreiro, ou seja, não permitir a entrada de energias
negativas. Ela é formada por uma espada de São Jorge e por um copo com água ou
pinga, dentro qual há um carvão. Assim que a tronqueira é feita, o carvão fica boiando
no líquido. Quando o carvão afunda, é sinal de que é preciso trocar o líquido e o
carvão, pois este tem a função de segurar as energias negativas e quando ele está
muito “pesado”, é porque está “carregado”. Tais objetos, ou melhor, símbolos, apontam
para uma realidade que naquele momento se encontra imperceptível, qual seja, a
presença de Ogum e de Exu guardião10. Ogum como o vencedor de demandas, com

10
Há uma relação mais estreita entre Ogum e Exu Guardião que remonta à mitologia dos orixás.
Conforme coloca CAMPBELL, os mitos não são criações irresponsáveis da psique, mas criações
autênticas do inconsciente coletivo. Aquilo que os seres humanos têm em comum se revela nos
mitos. Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos
tempos. Precisamos contar e compreender nossa história. Precisamos que a vida tenha significação,
precisamos tocar o eterno, compreender o misterioso, descobrir o que somos. Mitos são pistas para
as potencialidades espirituais da vida humana. Os mitos ensinam que você pode se voltar para dentro
e captar a mensagem dos símbolos. O mito ajuda a colocar a mente em contato com essa
experiência de estar vivo. Cf. Joseph CAMPBELL, O poder do mito. Vale citar um mito presente em
Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixás, p. 55: “Sua mãe então chamou Ogum e disse a ele para
ficar junto com Bará e dele tomar conta. Ogum era responsável e trabalhador. Ogum Avanagã
capacidade de enfrentar e vencer todos os tipos de males, e Exu guardião, como
aquele que guarda os limiares e, se bem assistido, não prejudica aquele terreiro, mas o
protege.
A tronqueira encontra-se no limiar, no limiar do que poderíamos chamar de dois
mundos ou dois espaços, isto é, o espaço profano e o espaço sagrado. Como há uma
proximidade entre estes dois espaços, que, muitas vezes, se misturam, como no caso
de incorporações espontâneas na assistência, há a necessidade de segregação
concreta destes dois espaços, sendo que a tronqueira faz parte desta concretude. Nos
dizeres de Brumana:

A topologia do terreiro, assim como as práticas que nele se desenvolvem,


se destinam a manter fora ou a expulsar algo que ameaça invadir ou que invadiu
um espaço, seja ele físico, ritual ou pessoal. Esta dinâmica entre um interior
ameaçado e um exterior ameaçador é a chave de todo o sistema umbandista.
(1991, p.124)

Tal qual a relação entre consciência e inconsciente, o limite entre eles é bastante
tênue e, freqüentemente, há a passagem de conteúdos psíquicos entre estas duas
instâncias. Simbolicamente, a tronqueira pode estar relacionada à necessidade de
limites entre estas duas instâncias psíquicas, sendo que a esfera do sagrado associa-
se ao inconsciente, onde há um funcionamento atemporal, a-espacial, tal como o
divino, e não se faz mediante uma lógica racional.

O quartinho dos Exus

O Quartinho dos Exus também pode ser chamado de tronqueira. Normalmente,


há um deles logo na entrada do terreiro e um outro que fica nos fundos, em um espaço
externo. É o local da morada dos Exus e das Pombas-gira. O Quartinho dos Exus é
composto por velas (pretas e vermelhas) e por objetos que se relacionam aos Exus e
às Pombas-gira, tais como: tridentes, baralhos, cigarros, lanças, dentre outros. Exu 11 é

sempre ficou morando com Bará. Juntos eles moram na porta da casa e se dão bem. Bará continuou
um menino danado, mas com Ogum aprendeu a trabalhar”.
11
Vale a pena citar Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixás, p. 67, quando o autor resgata um mito
que fala a respeito de Exu: “E Orunmilá decretou que dovorante todos os humanos viveriam em
casas. De repente, Orunmilá se dirigiu a Exu: “E tu, Exu? Dentro ou fora?”. Exu levou um susto ao ser
chamado repentinamente, ocupado que estava em pensar sobre como passar a perna em Orunmilá.
E rápido respondeu: “Ora! Fora, é claro”. Mas logo se corrigiu: “Não, pelo contrário, dentro”. Orunmilá
entendeu que Exu estava querendo criar confusão. Falou pois que agiria conforme a primeira
resposta de Exu. Disse: “Dovorante vais viver fora e não dentro de casa”. E assim tem sido desde
então. Exu vive a céu aberto, na passagem, ou na trilha, ou nos campos. Diferentemente das
sempre o primeiro a ser saudado e não fica dentro da casa, já que o seu lugar é o
espaço externo, ou melhor, as encruzilhadas.
Um dos aspectos sincréticos da umbanda é revelado através de Exu. Ele é ao
mesmo tempo guia e orixá. Nas próprias saudações e oferendas, podemos observar
esta mistura: para não atrapalhar, para colocar a gira em movimento. Na umbanda, a
presença de Exu e Pomba-Gira como guias é mais freqüente e, por que não dizer,
relevante. As giras “de esquerda” sempre têm a presença dos Exus e das Pombas-
Gira. “O único caso em que o “espécime” feminino tem nome diferente do masculino;
de qualquer modo, a homogeneidade é evidente em todo discurso que se refere à
Pomba-Gira como mulher do Exu ou até como um Exu feminino” (Brumana, 1991,
pp.242-243). E ainda, no que diz respeito à representação de Exu e Pomba-Gira: “A
figura do delinqüente – e da prostituta para seu correlato feminino – serviu como a
máscara que o sistema subjacente à umbanda necessitava para dar vida ao pólo de
desordem alheia” (idem, p. 372).
Simbolicamente, associa-se Exu e Pomba-Gira aos aspectos sombrios que
possuímos coletiva e individualmente. Podemos falar de uma sombra coletiva
(universal) ou pessoal (individual), aspectos da psique que carregam tudo aquilo que é
negado ou não aceito em nós, na nossa consciência. Trabalhar com estas entidades
significa entrar em contato com estes conteúdos que negamos (pessoal e socialmente).
É interessante apontar também que o fato de existir uma entidade masculina e outra
feminina, diferenciadas, facilita a identificação, uma vez que a sombra tende a repetir
aquilo que vivemos tendencialmente na consciência, seja masculino, seja feminino.

Roupa branca

A roupa branca é uma vestimenta que se encontra nos terreiros de umbanda.


Constata-se que a roupa em si contém variações que vão de uma bata, sem distinção
de sexo, à saia rodada e blusa para mulheres ou calça e camiseta para os homens. É
possível afirmar que o tipo de roupa branca utilizada relaciona-se com o lugar que cada
terreiro se encontra no continuum mediúnico. A roupa branca é o final de um processo
que se iniciou horas antes, no qual o adepto passa por restrições sexuais e alimentares
e toma banhos preparados com ervas especiais. Vestir o branco não está circunscrito
apenas à roupa, mas também aos panos brancos que todo umbandista leva consigo

imagens dos outros orixás, que são mantidas dentro das casas e dos templos, toda vez que os
humanos fazem uma imagem de Exu ela é mantida fora”.
durante as giras. Um dos motivos pelo qual se usa o branco na umbanda, segundo
Gomes (1989):

Constitui medida higiênica, tanto física quanto psíquica e homenagem


especial aos seres espirituais com quem entram em comunicação. Consideradas
com sentido de uniforme, favorecem um visual mais agradável e fazem parte da
disciplina, imprescindível também em qualquer religião. Foi adotado o branco por
ser o símbolo da pureza e absorver melhor os fluídos positivos. (p.122)

Simbolicamente, o branco significa mais do que uma medida higiênica,


paradoxalmente, ausência e/ou soma das cores. Situa-se no início e no término da vida
diurna e do mundo manifesto. Porém, o término da vida, o momento da morte, também
é transitório, estando no limite entre o visível e o invisível, no ponto de junção,
representando um outro início. O que observamos durante as giras de umbanda é a
união, mesmo que temporária, entre dois mundos, como dissemos anteriormente,
revelada a união pela presença de divindades (guias) no espaço material. Os médiuns,
de certa forma, abdicam temporariamente de sua identidade, para que uma nova
identidade faça uso de seu corpo. O branco, portanto, nas palavras de Chevalier;
Gheerbrant (2002): “É uma cor de passagem, no sentido a que nos referimos ao falar
dos ritos de passagem: e é justamente a cor privilegiada desses ritos, através dos
quais se operam as mutações do ser, segundo o esquema clássico de toda iniciação:
morte e renascimento” (p.141).

Apetrechos dos guias

Os apetrechos dos guias são objetos colocados pelos médiuns ou pelos próprios
guias no momento seguinte da incorporação. São elementos que caracterizam os guias
e tornam apreensível, para aquele que assiste à gira, a existência e a presença
daquele guia e, mais do que isso, a sua personalidade, a sua identidade. Esses
aspectos vão desde a maneira de falar, de se posicionar, até os objetos e os elementos
utilizados por eles, tais como um cocar, um lenço, um cigarro, uma bebida, uma faixa,
uma guia de proteção. Os apetrechos que caracterizam os guias são retirados ao
serem cantados os pontos de subida. Isto ocorre, pois, neste momento, a unidade
existente entre guia e médium, que dividem o mesmo corpo, é rompida e, assim, o
médium retoma a sua identidade e retorna ao espaço cotidiano.
Todos os indivíduos possuem a persona, como o arquétipo que faz a mediação
entre o ego, ou a identidade, e o mundo externo. A persona é simbolizada,
normalmente, por roupas e objetos, “máscaras”, que permitem que identifiquemos uma
pessoa. O guia, ao fazer uso desses apetrechos, revela a sua identidade, uma vez que
persona e ego também se relacionam, o que, de certa forma, estabelece o padrão de
comportamento que se deve ter com aquele guia.
Os símbolos, aqui apresentados, se configuram como um elemento de ligação
com o mundo sagrado. Através destes símbolos, é possível, àquelas pessoas que se
encontram dentro da umbanda, a criação de uma ponte, de um contato com o mundo
transcendente, que não está presente no decorrer das atividades cotidianas. Se
entendermos o divino como o mundo do inconsciente, do misterioso, do inefável, os
símbolos umbandistas se configuram como símbolos, já que permanecem carregados
de sentido e permitem que a relação com o inconsciente mantenha-se ativa,
promovendo a vida, não perceptível pela experiência imediata.
Ao entendermos os símbolos como provenientes do inconsciente coletivo,
sabemos que eles possuem uma intencionalidade. O símbolo, como forma de
expressão de aspectos inconscientes ou da forma como se encontra a psique,
comporta em si uma mensagem para o indivíduo que o contempla. O mesmo pode ser
dito em relação a um grupo. Os símbolos são mutáveis no decorrer do tempo, já que
uma mudança na consciência implica no aparecimento de novos símbolos, que
correspondem a novas demandas. Tais símbolos e a possibilidade de modificá-los
concretamente e no seu significado afetam os indivíduos pertencentes a cada terreiro,
já que permitem que cada indivíduo opte pelo seu caminho religioso, mesmo estando
na umbanda, isto é, ele pode viver a sua religiosidade de maneira individual, conectado
com um aspecto universal, atemporal e coletivo da vida humana.

Considerações finais

A mutabilidade simbólica da umbanda está relacionada com as necessidades


individuais dos membros do grupo. A umbanda muda para satisfazer as necessidades
de seus componentes. Por outro lado, existem alguns eixos comuns, que fazem com
que reconheçamos aquele terreiro como um terreiro de umbanda. Tais eixos, presentes
nos terreiros, doam um sentido universal para os mesmo, ao mesmo tempo em que as
criações e as ressignificações feitas, a partir destes eixos, dão uma forma
individualizada a cada terreiro, que se foca nas necessidades espirituais e psicológicas
dos seus componentes.
Podemos perceber a coexistência do individual e do universal nos terreiros de
umbanda e também podemos observá-los na vivência religiosa de cada adepto,
quando a umbanda entende o caminho espiritual como um caminho individual. Cada
um tem um modo de viver a sua religiosidade, já que a mesma possui um caráter
individual, sendo uma máxima aceita na umbanda. É possível estabelecer uma relação
com o processo de individuação, proposto por Jung, que também é um processo
individual, no qual cada indivíduo desenvolve o seu próprio potencial, mas, ao mesmo
tempo em que se individua, mais se percebe ligado a um aspecto universal.
O processo de individuação é uma vivência arquetípica, que garante uma
compreensão da manifestação de fatores idênticos (intra-subjetivos, transpessoais) se
configurando de forma única (subjetiva, pessoal), quando visto de modo particular e
individualizante. Esse processo engloba tanto a diferenciação em relação ao outro,
como a diferenciação em relação ao Si Mesmo, concomitantemente. A individuação é o
tornar-se um consigo próprio e ao mesmo tempo com a humanidade, em que também
nos incluímos, isto é, não há apenas o desenvolvimento de autonomia, que ocorre
juntamente com o desenvolvimento da capacidade de se relacionar.
Podemos afirmar que há uma relação dialética entre a umbanda e os seus
integrantes. A umbanda é uma religião que possui uma visão individual da
religiosidade, ou melhor, da vivência da religiosidade, entendida como uma
necessidade individual, permite a cada terreiro ser composto por uma diversidade de
crenças que interagem, formando um todo. Além disso, apesar da proposta institucional
de cada terreiro, não é impedido aos seus integrantes que levem as suas crenças
individuais, nem tão pouco que as vivam. Existindo desta maneira, a umbanda promove
a vivência da universalidade e da individualidade tanto no nível coletivo quanto pessoal,
isto é, universal e individual.
Referências Bibliográficas

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diversidade étnica no Brasil contemporâneo. Psicologia – Ciência e Profissão, Brasília,
v. 22, n. 4, p. 24-33, 2003.

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CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain (1982). Dicionário dos símbolos – mitos,


sonhos, costumes, gestos, formas, cores, números. 17ª ed. Rio de Janeiro: José
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FERRETTI, Sérgio Figueiredo (1985). Repensando o sincretismo. São Paulo: Edusp -


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JUNG, Carl Gustav (1916). A Natureza da Psique. 4a ed. Petrópolis: Vozes, 1998,
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WHITMONT, Edward C. (1969). A busca do símbolo. Conceitos básicos de Psicologia


Analítica. São Paulo: Cultrix, 1995.
ESPIRITUALIDADE – Caleidoscópio da Alma1

Márcia Taques Bittencourt2


Maria Lúcia Teixeira3

Originária do grego Kállos ou Kalos, que quer dizer belo; de Eidos, que significa forma
ou imagem, e de Skopein, que significa ver, o caleidoscópio é um instrumento construído por
três espelhos dispostos em ângulos, de forma que multiplicam simetricamente a imagem dos
objetos colocados entre eles.
Um caleidoscópio com vinte pedrinhas, sendo virado de forma a obter dez novos
desenhos a cada minuto, necessitaria quinhentos bilhões de anos para que todas as
imagens pudessem ser vistas!
Uma lenda conta que os antigos egípcios teriam colocado, juntas, duas ou três lascas
de pedra muito polidas em diferentes ângulos, e então observado, fascinados, as mandalas
que se formavam pelas imagens refletidas de dançarinos humanos.
O caleidoscópio foi re-inventado por Sir Scott Brewsterme em 1816, enquanto
realizava experimentos sobre a luz.
Uma vivência interessante usando os princípios da reflexão da luz ocorreu numa feira
em Paris, em 1990. Uma atração chamada “Palácio das Ilusões” fora construída à
semelhança de um caleidoscópio. Era um vestíbulo hexagonal, no qual cinco das seis
paredes eram formadas por espelhos bem polidos. Em cada canto havia enfeites
arquitetônicos, colunas, cornijas, que se harmonizavam com os adornos esculpidos no teto e
criavam ilusões de óptica. O visitante então vivia uma realidade nunca antes imaginada, pois
via a si mesmo em diferentes espaços (mandalas), cercado por uma multidão de cópias dele
mesmo!

1
Este texto é fruto de um diálogo realizado entre as autoras no XIX Boitatá, Sítio da Grande Paineira, de 26 a 28 de Janeiro
de 2007. São José dos Campos.
2
Psicoterapeuta, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC SP. Professora do curso de Psicoterapia Junguiana Coligada a
Abordagem Corporal, no Instituto Sedes Sapientiae. Formação no Método Feldenkrais de Educação Somática por
Somathematics. Formação com Marion Woodman em Body Soul Rythms. E-mail: mtbit@terra.com.br
3.
Biomédica pela UniFesp. Mestre e Doutora em Fisiologia pelo ICB-USP. Terapeuta Corporal pela SOVESP- São Paulo.
E-mail: malu.teixeira@uol.com.br
Toda mandala (do sânscrito, círculo) é uma representação geométrica que pode ser
vista como símbolo da dinâmica entre o homem e o cosmos; é uma exposição plástica e
visual do retorno à unidade pela delimitação de um espaço sagrado e atualização de um
tempo divino .
Nesse espaço simbólico criativo a espiritualidade pode se manifestar, tendo-se como
princípio que todo ser humano possui um potencial criativo que se manifesta num espaço e
num tempo determinados e que se atualiza por toda a sua vida.

O artista não é uma pessoa dotada de seu próprio desejo, que procura seu
próprio fim, mas alguém que permite que a arte realize seu propósito através dele.
Como ser humano ele pode ter estados de humor, um desejo e metas pessoais,
mas como artista ele é “homem” no sentido mais elevado da palavra- ele é o
“homem coletivo”um meio e modelador da vida psíquica do ser humano. (Jung,
1930, par. 158)

Nesse momento de transição, de desconstrução de valores e referências, abre-se um


espaço para a reflexão, cuja maior importância não está na obtenção das respostas, mas na
sabedoria das questões.
Tendo em mente essas premissas, reproduzimos aqui um diálogo em que
estabelecemos nossos pontos e contrapontos frente à seguinte questão: O que é
espiritualidade?

Márcia – Fazendo aqui uma analogia, a espiritualidade seria como um caleidoscópio!


São estados da alma, cada um diferente do outro, que necessitam de um olhar, de uma
realidade, do movimento, do espaço e do tempo da emoção...
Memória da criança fascinada por aquele brinquedo, um tubo cheio de pedrinhas
coloridas e que, conforme eu o girava, novos e lindos desenhos simétricos apareciam com a
ajuda da luminosidade do sol, que também vinha para brincar! E assim contemplando, em
ação, o tempo deixava de existir e o espaço era aquele das imagens em transformação, da
quietude interna, do ponto de silencio.
É essa energia que, se permitirmos, nos leva a momentos de infinitas possibilidades,
que transcendem a realidade dos sentidos e nos transporta ao espaço da escuta das
mensagens do inconsciente.
Em os Quatro Quartetos, T.S. Eliot (1944) nos fala desse ponto de silencio assim:
Eu disse a minha alma, está quieta e aguarda sem esperança
Pois a esperança seria esperança na coisa errada; aguarda sem amor
Pois amor seria amor pela coisa errada; há ainda fé
Mas a fé e o amor e a esperança encontram-se todos no ato de aguardar.
Aguarda sem pensar, pois não estás pronta para pensar:
Assim a treva será a luz, e a quietacão a dança. (p. 47)

Lúcia – A questão da espiritualidade nos coloca diante de uma das mais fascinantes
inquietações humanas. Como olhar a esperança constante de crenças, religiões e suas
intrincadas conexões culturais, presente em diferentes épocas e conjunturas sociais, e
recolocá-la frente aos saberes científicos contemporâneos?

Márcia – A curiosidade do homem, sempre questionadora de nossa existência e


origem, vem ampliando nossa consciência desde os tempos primordiais. O respeito e o
medo pelas forças da natureza, as relações entre elas e o sistema solar, nos colocam na
humilde posição de observador participante. As buscas nesse sentido nos levam ao divino, à
nossa relação com Deus.
A cada mudança de paradigma nos deparamos com o fato de que não há explicações
nem respostas completas e nem definitivas. E que há, sim, um profundo mistério!
Podemos aceitar, ou melhor, temos a capacidade de aceitar este pensamento?
A mente humana odeia o vácuo. Se uma visão de mundo coerente está ausente, a
mente funciona baseada numa visão tácita – o nosso conjunto tácito de crenças sobre a
natureza da realidade é feita de contradições. Nossa condição atual é a de uma cultura que
está agonizando, favorecendo uma mudança de paradigma.
Assim, também a relação do homem com Deus

provavelmente deverá passar por uma importante mudança. Ao invés de


preces a um rei imprevisível ou preces infantis ao pai amado, o viver
responsável e repleto do desejo divino em nós será nossa forma de adorar e
negociar com Deus. Sua bondade significa graça e luz, e seu lado escuro, a
terrível tentação do poder. O homem já recebeu tanto conhecimento que pode
destruir seu próprio planeta. Esperemos que o espírito bom de Deus o guie em
suas decisões, porque dependerá da decisão do homem se a criação divina
continuará. Essa possibilidade mostra drasticamente o quanto do poder divino
está ao alcance do homem. (Jung, 1956)
Acredito que essa relação é um dos estados de alma alcançados na espiritualidade.
Ainda pergunto: aonde mais podemos encontrar esse estado da “alma no cio”, aonde
a centelha divina da criatividade se realiza num tempo sem tempo e espaço?
Acredito que seja nas artes; na dança, na música, pintura, literatura, poesia, cinema,
teatro. E também na sexualidade, como energia criativa, não apenas como expressão do
instinto.

Lúcia – Revelada por uma série de reflexões de imagens, a espiritualidade no


humano se manifesta através de projeções de significados, centrada no sagrado,
interferindo diretamente na lente através da qual percebemos a realidade.
Para mim, elejo a espiritualidade como uma experiência subjetiva que emerge da
interação do corpo com o campo ao qual pertence. Inscrita no mundo físico e simbólico, com
o qual estabelece uma relação de afetação recíproca e permanente.
Penso que é essa dinâmica espiritual permanente que move o humano. Penso que
acessamos a espiritualidade quando estabelecemos no corpo, o humano como ícone do
cosmos, como um corpo-lar habitado pela alma que realiza sua jornada mítica em direção
ao prazer de viver no centro de nós mesmos. O indivíduo não dividido sacraliza o corpo.

Márcia – O corpo é a casa da alma, se prende a ela, mas é naquele ponto aonde os
pólos opostos espírito e matéria se tocam e não se tocam, é nesse espaço virtual que ela se
origina .
A alma é o feminino, a emoção. O espírito é a centelha divina.

Lúcia – Uma vez “fundado o corpo”, funda-se um lugar como um campo de


acontecimentos e de experiências do sagrado. Funda-se a si mesmo como corpo fértil de
possibilidades criadoras e criativas

Márcia - Este momento fértil e especial, no qual o ego se retira do domínio onipotente
e passa a perceber a presença constante da energia arquetípica do Self, pode ser um
momento de entrega e paixão, criatividade, expansão do universo pessoal e coletivo, talvez
um momento em que a alma encorpada se liga à alma da terra.

Lúcia – A espiritualidade fez sua estréia científica nas investigações contemporâneas


sobre cognição, percepção, e nas pesquisas sobre a plasticidade neuronal e as diferentes
funções da psique humana.
Cientistas já confirmam a presença de neurônios responsáveis pela sintonia e
ressonância emocional, que determinam experiências intuitivas, permitindo a comunicação
em múltiplos níveis entre humanos. Os chamados neurônios espelhos especializados em
executar e compreender as intenções comuns, nos permitem captar a mente dos outros,
pela simulação direta, nos colocando em comunhão com as leis da vida, reconhecendo e
expressando essas mesmas leis em nós.
Essas descobertas começam a validar o saber pelo sentir, confirmando o saber
perceptivo e intuitivo.

Márcia – Philippe Comar (1999) em Images of the Body, diz “Quanto mais
aprendemos sobre o corpo, mais misteriosa e exótica se torna a alma. À morte pertence o
conter invisível da verdade humana”
Podemos pensar no inconsciente como esse container da verdade humana? Se
exercemos uma atitude positiva em relação ao inconsciente ele será nosso aliado e nos
manterá conectados com nossas origens e nossos instintos.

Lúcia – Nossas emoções definem campos de interações, organizam a percepção, o


pensamento, a memória, a fisiologia, e o comportamento, e esse corpo integrado, forma a
essência do sentimento que nos une, realizando o divino humano.
A ampliação da cognição, leva o estado de corpo em êxtase, é esse corpo em êxtase
que permite a intuição do corpo espiritual, entrelaçando o sagrado e o profano,
desenvolvendo o indivíduo que experimenta . Revela as leis da vida em nós.

Márcia – Na dança encontramos esses momentos especiais e sabemos que quanto


mais conhecemos sobre nosso corpo, mais conhecemos sobre nossa alma e sua relação
com o universo, sua beleza , expressividade, criatividade. Contatamos com o mistério da
vida divina e mundana, com tensões e descontrações!
Tive a oportunidade de conhecer e experimentar a técnica de uma grande bailarina
americana, Martha Grahan. Estudiosa, conhecia os ensinamentos junguianos e em suas
coreografias buscava mostrar as origens ritualísticas da dança e “tornar visíveis as
realidades interiores escondidas nos símbolos” (Garaudy, 1973). Para ela, os espectadores,
ao assistir um espetáculo de dança, tinham a oportunidade de tomar consciência de si
mesmos e buscar também algo ligado ao milagre que é o “ser humano motivado,
disciplinado e concentrado.”

Lúcia – No cerne do humano está o universo e seu potencial de realizações. Nossas


experiências simbolizadas, sacralizadas, permitem vivenciar simultaneamente o mundo em
que vivemos e o mundo ao qual pertencemos pelas sensações, que nos contam os
movimentos do mundo dentro de nós.
Assim, considero que espiritualidade não abstrai a vida, mas é a integração do vivo
em nós.

Márcia – Sem dúvida! É na expressão desses momentos sagrados de nossas


sensações e vivências pessoais e coletivas que rendemos nossa homenagem ao universo.
São momentos de êxtase, de presença e de consciência, que é o estado da alma quando as
energias arquetípicas tomam conta do bailarino e sua dança leva o coletivo a identificar-se
com ele. O momento dentro e fora do tempo. Veja como Grahan traduz este estado, numa
entrevista para Agnes DeMille (1969).

Há uma vitalidade, uma força vital, um lampejo, que é traduzido por você em
ação, e porque há somente um de você em todo Tempo, esta expressão é única.
E se você o bloqueia, ele nunca existirá através de nenhum outro meio e será
perdido. O mundo não o terá.
Não cabe a você determinar se ele é bom, nem qual é o seu valor, nem
compará-lo com outras expressões. Seu papel é mantê-lo seu, claramente e
diretamente, para manter o canal aberto. Você nem mesmo tem que acreditar em
você ou no seu trabalho.
Você deve se manter diretamente consciente das urgências que o motivaram.
Mantenha o canal aberto, nenhum artista fica satisfeito!
Não há qualquer satisfação em tempo algum. Há somente uma estranha,
divina dis-satisfação, uma benção sem descanso que nos mantém em marcha e nos
torna mais vivos que os outros. (p.264)

Lúcia – O viver humano acontece no corpo e a espiritualidade é a experiência


revelada pela integração dos nossos centros perceptivos e intuitivos com nosso universo de
relação. O mundo que reconhecemos e no qual nos experimentamos.
O caleidoscópio reflete sempre o próprio interior, mas necessita da luz para que seja
visto, assim como o humano se revela à luz da sua composição estrutural mais profunda.

Márcia – O que é a realidade? Está em nós? O que é o tempo? Neste momento


muito especial a redescoberta dos deuses seria um caminho ... para mais questões!
Referências Bibliográficas

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DeMille, Agnes (1969). Martha: The Life and Work of Martha Graham. New York:
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Jung, C. G. (1930). O Espírito na Arte e na Ciência. CW vol. XV. Petrópolis: Editora


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Filme:

Jung, C. G (1956). Matter of heart – The extraordinary journey of C. G. Jung into the
soul of man. New York: Kino International Corp., 2001.
ASPECTOS SIMBÓLICOS DO CULTO POPULAR
DO ESPÍRITO SANTO

Paulo Toledo Machado Filho1

Permanece vivo em muitas regiões de nosso país o culto popular do Espírito Santo,
também referido como culto do Divino. Algumas vezes um pouco modificado em relação à
sua origem portuguesa, às vezes reinterpretado, em outros momentos disfarçadamente
celebrado e talvez inconscientemente evocado para a maioria de nós, a sua influência
permanece ativa e talvez mais abrangente do que imaginamos em nossa cultura. Por este
motivo é que estamos alinhavando a seguir alguns aspectos do simbolismo de seu culto e
de como esta sua influência se mantém presente entre nós.
Tratando-se de um ritual do catolicismo popular que veio para o Brasil através de
Portugal no século XVI, centrado na celebração de Pentecostes e de um dos aspectos da
Trindade Divina, o seu culto possivelmente permanece mais vivo em nosso país do que
em nossa terra-mãe. Entendo que este fato adquire uma importância especial, ao
considerarmos de que modo a idéia do Espírito Santo tem relação com o modelo de
colonização que os portugueses conduziram nos locais onde eles estiveram e o que isto
significou, por exemplo, nesta então colônia que se emancipou. Mas para tornar mais
compreensível esta proposição, vamos verificar inicialmente a história de seu culto e fazer
as considerações simbólicas possíveis.
O Império do Divino Espírito Santo inicia-se e termina em Pentecostes,
correspondendo, portanto, a um ciclo de um ano e faz parte do calendário católico. O
início de seu culto foi instituído por um decreto da Rainha Isabel de Aragão (1271-1336),
casada com Dom Diniz, em 1323, momento assinalado pela fundação da Igreja do
Espírito Santo, na Vila de Alenquer. Mas, conforme fontes consultadas (Paulo Loução,
2004, Moisés Espírito Santo, 1998, Jaime Cortesão, 1993 e Câmara Cascudo, 1954), o
seu culto já existiria de forma sincrética em várias regiões portuguesas, e a Rainha, ao

1
Psiquiatra e Psicoterapeuta Junguiano, Mestre em Ciências Sociais pela USP. Professor do Curso Jung e Corpo –
Formação em Psicologia Analítica e Abordagem Corporal – Instituto Sedes Sapientiae.
E-mail: ptmachadof@uol.com.br
instituí-lo, na realidade teria se identificado com a causa dos judeus 2 e assim legitimado o
culto junto à Igreja Católica. Ela também teria sido influenciada pelas idéias de Joaquim
de Flora3, pensador cristão cujas idéias foram consideradas heréticas, na época em que
viveu, sendo que, em seu pensamento, a história seria dividida em três fases: a de Deus
Pai, o Criador (“O primeiro estado foi colocado sob os auspícios da dependência servil”; é
relacionado por Flora como sendo a época do temor, o estado de escravos, dos velhos, o
Inverno, as urtigas etc.); a de Deus Filho, o Redentor (“...o segundo sob os da
dependência filial”; relacionado com a época da fé, com o estado dos homens livres, dos
adultos, a Primavera, as rosas etc.); e a do Espírito Santo (“...o terceiro sob os da
liberdade”; relacionado com a contemplação, a caridade, o estado de amigos, as crianças,
o Verão, os lírios etc.). A Era do Espírito Santo seria, então, a Era da abundância, da
fraternidade e solidariedade, momento em que os cristãos se comunicariam com Deus
diretamente, sem a interferência da Igreja.
A referência a Pentecostes deriva do grego Pentekoste, que é cinqüenta, e
corresponde ao fato de a sua celebração dar-se cinqüenta dias depois da Páscoa (na
realidade, sete semanas: 7x7 dias = 49+1 dia = 50). Relaciona-se com os antigos rituais
agrícolas, quando as sete semanas após a lua cheia de Carneiro (efeméride que assinala
a Páscoa; a cristã comemora-se no domingo seguinte à lua cheia de Carneiro) eram
fundamentais para que o Espírito de Deus fizesse com que as sementes (que eram
lançadas na seara na ocasião da Páscoa, sob o influxo energético da lua) germinassem.
As comemorações realizadas nesse período foram conhecidas como Festa das Ceifas ou
da Colheita. Na referência de Moisés Espírito Santo (1998), na tradição hebraica antiga o
Espírito Santo se relacionaria com a água, elemento fecundador da terra e através do
qual o espírito se faria presente, como força vital, junto às sementes (“o Espírito de Deus
se movia sobre a face das águas”, Gên., 1,2). Na tradição hebraica, existe ainda afinidade
entre espírito e vento (ou sopro ou alento), utilizando-se para ambos a mesma palavra:
rouah. Rouah Elohim é o “Espírito de Deus”. Na versão cristã, o Espírito Santo é ígneo,
sendo que, na forma de línguas de fogo e por ocasião de Pentecostes, desceu do céu

2
Ou talvez a rainha tenha procedido à cristianização de um culto arcaico que, conforme referimos, se realizava de
forma sincrética; Espírito Santo (1988) informa-nos que o Culto do Divino relacionava-se com a Festa das Ceifas ou
das Colheitas, tendo vindo para Portugal através dos judeus e fenícios e sincretizado-se com a temática cristã relativa a
Pentecostes. Mais referências adiante no texto.
3
Além dos autores acima citados, encontramos referências sobre a origem do culto do Espírito Santo na obra de
Agostinho da Silva, a quem Borges (2006) considera “entre outras coisas e com toda sua originalidade, um dos mais
recentes neo-joaquimistas”.
2
sobre os apóstolos, no Cenáculo, atribuindo a eles um poder especial, o dom da
glossolalia, que os fez saírem pelo mundo para pregar o Evangelho de Cristo para outros
povos (“E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar em outras línguas,
conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem”, Atos, 2,4). Tal acontecimento
teria assinalado o início da comunidade cristã, estabelecendo-se uma nova aliança entre
Deus e os seres humanos.
Por tratar-se de um culto da religiosidade popular (que se desenvolve
espontaneamente, independente das instituições) e das tradições ancestrais (ligando-se
aos ritos agrários), o culto do Espírito Santo é multifacetado e engloba muitas funções
religiosas (“um espaço de criatividade no âmbito do sagrado – um espaço de liberdade
imaginal”, Loução, 2004, p. 197). O autor referido observa relações do culto em Portugal
com “ritos de fertilidade, propiciatórios, culto ao fogo, fraternidade, pão, sacrifício do touro,
vinho, rosas como alimento espiritual, criança símbolo do renascido, libertação de
prisioneiros, galo, casamenteiro etc.” (p. 197); verificamos ainda como elementos
importantes no culto português a (santa) coroa, a pomba (com quem o Espírito Santo é
identificado), o cetro, o estandarte, a espada e o jantar. Os personagens mais importantes
são o Imperador (os adultos são titulares do cargo, mas as crianças é que ocupam o trono
do império), o alferes, o mordomo e os mordomos auxiliares. No Brasil, os principais
elementos do culto, conforme Câmara Cascudo (1954), são a festa (ou a folia), a missa
cantada, a procissão, os leilões de prendas, a exibição de autos tradicionais, cavalhadas
com lutas entre mouros e cristãos, ocorrendo variações conforme o interesse de cada
região. Mas a maior parte dos elementos dos festejos portugueses foi transposta para
nosso país e tornou-se também constituinte das nossas celebrações.

A Trindade Divina

Antes de prosseguirmos discorrendo sobre os aspectos simbólicos da Festa do


Divino em si, torna-se importante considerarmos a própria idéia da Trindade divina, que
Jung (1940) sugere possuir uma base arquetípica. Em seus estudos sobre o tema em
questão, ele ressalta a legitimação arquetípica da idéia trinitária transformada em dogma
católico. Refere-se à existência anterior de tríades divinas, como a tríade babilônica Anu,
Bel e Ea, sucedida posteriormente por Sin (a Lua), Shamash (o Sol) e Adad (a
Tempestade), onde Adad é “filho do Altíssimo Anu”, estabelecendo-se aqui uma relação
3
entre pai e filho. No Egito, Jung cita a existência de uma relação entre pai e filho (Osíris –
Hórus) estabelecida segundo uma “certa unidade de essência” (homoousia) através de
um terceiro elemento, Ka-mutef (o ”touro de sua mãe”), onde Ka é a força procriadora do
deus, sendo que nesta configuração divina já encontramos uma trindade. Jung afirma
existir uma correspondência bastante significativa entre Ka-mutef e o Espírito Santo,
inclusive pelo fato de a geração divina do faraó “ter lugar no seio da mãe humana do rei,
por obra de Ka-mutef”, mas ficando esta, assim como Maria, excluída da trindade. Mais
adiante, Jung examina as especulações gregas acerca da idéia da trindade, onde a
escola pitagórica ocupa uma posição relevante. Nesta, o três surge como um número
perfeito porque nele aparece pela primeira vez um começo, meio e fim. Na Filosofia
natural da Idade Média, o três é “o uno que se torna cognoscível (o um surge do dois e
não do uno, que não é numerável, e o dois pressupõe ainda o outro, que forma com o uno
um par de contrários). Segundo Jung, o terceiro termo surge aqui como uma evolução da
tensão antitética entre o Uno e o Outro.
É importante não deixarmos de citar ainda a trindade divina hinduísta constituída por
Brahman, Shiva e Vishnu, assim como certos aspectos de sua teologia, que influenciaria
outros sistemas de crença e que considera a relação triádica existente entre corpo, alma e
espírito. Outras trindades poderiam ser assinaladas examinando-se as diversas
mitologias, constituindo-se o terceiro elemento, em geral, naquele que alivia ou resolve a
tensão entre as várias oposições existentes, como céu e terra, dia e noite, inverno e verão
etc. O pensador português Agostinho da Silva, cuja idéia do Espírito Santo foi um de seus
principais objetos de estudo, refere, na citação de Borges (2006), que a trinitarização do
absoluto é a sua cosmicização. Afirma que Deus, ao conhecer-se, “se vê, ou é, sujeito e
objeto, Pai e Filho, com um intervalo imediato de tempo e espaço” (p. 147). O Espírito
Santo torna-se a identidade que coliga a cisão estabelecida entre Deus “sujeito” e sua
imagem enquanto filho “objeto”. Ao deixar de existir como Absoluto, Deus passa a
constituir-se como “Trindade”, correspondendo esta passagem ao “mesmo ato pelo qual
se constitui o mundo”. Para um maior aprofundamento sobre a idéia trinitária e o
paracletismo, remeto a Jung (1940), ao próprio Agostinho (1999) e a Borges (2006).

4
A Festa do Divino

Retornando ao tema do culto do Divino, Espírito Santo (1998) o considera uma


religião popular4, referindo-se a esta como aquela que se desenvolve espontaneamente,
independente das instituições religiosas, possuindo uma estrutura fundamental que
mantém-se durante milênios, como um arquétipo. Acerca da referência “Divino” atribuída
ao Espírito Santo, o mesmo autor informa-nos tratar-se de uma das maneiras como os
judeus reportavam-se ao Ente Superior, “cujo nome era inefável”. O nome do Deus judeu
nunca podia ser pronunciado, apenas soletrado: “YHWH”. Examinaremos a seguir
algumas correspondências simbólicas aos principais elementos dos festejos vinculados
ao culto popular.
A festa também é referida como folia, expressão que Espírito Santo (1988) nos
informa derivar de saco ou fole, e que representa um balão cheio de ar que saltita de um
lado para outro como um louco. Este era o modo como se comportavam os adeptos, em
êxtase, dos antigos cultos de mistério que celebravam Cibele ou Dionisos, ou os
dançarinos extáticos, os dervishes, que na Anatólia giravam possuídos por um Deus.
Entre nós, consta que D. Pedro I teria sido um praticante da folia, aqui se tratando de uma
dança rápida.
O momento mais importante da festa (ou folia) é a coroação do imperador.
Personagem central do culto, cujo mandato se inicia imediatamente ao término do festejo
anterior, ele se apresenta de duas maneiras: é o adulto, encarregado de buscar recursos
ou até mesmo o próprio financiador da maior parte da festa, sendo também, em geral,
uma pessoa de destaque junto à comunidade, ou a criança, que é aquela a quem é
permitido, por seus pressupostos atributos de espontaneidade e ingenuidade, ostentar a
santa coroa. Nos dois modos este personagem assume uma conotação reverencial e
quase sagrada: durante o ano, quando o prestígio do imperador-adulto se sobrepõe até
ao do pároco, fazendo visitas e participando de muitos jantares solenes, ocasiões em que
também angaria fundos para a sua festa e muitas vezes benefícios para a própria igreja; e
por ocasião da festa, quando é a criança que desfila na procissão com a coroa do
imperador, porque somente ela pode simbolizar a inocência e pureza espiritual necessária
ao mandatário do Império do Divino. Espírito Santo (1998) afirma que a sacralidade do

4
Agostinho da Silva (2003) afirma que em Açores o culto sobrevive tratando-se mesmo de uma verdadeira religião.

5
personagem do imperador reside no fato também de que ele é identificado com o Rei-
Messias prometido, sugerindo a vinda do Messias na figura de um grande rei,
perpetuando-se, a cada ano, em sua representatividade, a esperança messiânica. As
insígnias do imperador são a coroa, geralmente de prata, o cetro e uma toalha ou faixa de
linho que é colocada sobre seus ombros. É importante citar também que em nosso país a
existência de um imperador e não de um rei, após a proclamação da independência,
deveu-se ao prestígio e à popularidade do Imperador da Festa do Divino. Sobre o
imperador em seu aspecto criança, faremos outras menções a seguir.
O principal objeto do culto, durante a festa, é o pendão do Divino, uma bandeira com
uma faixa vermelha contendo o desenho em branco de uma pomba e uma coroa,
colocada no alto de um mastro ou estandarte, e que é conduzido pelo Imperador ou seus
mordomos na frente da procissão. Durante o seu transporte, o pendão é adorado e até
beijado pelo público, confirmando tratar-se, segundo Espírito Santo, de um sinal de
adesão coletiva. Este autor refere que o seu simbolismo nos remete às antigas tradições
hebraicas, quando o Espírito Santo era a força vivificadora do trigo e a saída da bandeira
representava a renovação de uma “antiga promessa”. Quando tal não ocorria, poderiam
advir doenças, pragas, fome, peste e guerras. A marcha com o estandarte à frente
também representava a afirmação do império, reino ou Deus com o qual, nas guerras ou
nas cruzadas, o exército ou o povo se identificava. Na iconografia cristã, é o emblema do
culto ao Divino.
A pomba desenhada na bandeira simboliza o espírito ou a alma e é a mensageira do
Espírito Divino ou o Espírito de Deus:

Batizado, Jesus subiu imediatamente da água e logo os céus se abriram e ele


viu o Espírito de Deus descendo como uma pomba e vindo sobre ele. Ao mesmo
tempo, uma voz vinda dos céus dizia: - Este é o meu Filho amado, em quem me
comprazo. (Mat, 3:16)

Ela também simboliza a pureza, a virgindade, a harmonia e a simplicidade. Mas


outras divindades, no passado, foram representadas pela pomba, como a Deusa Síria,
uma das denominações de Astarté, referida pelos romanos como a Santa Columba Síria,
tendo sido também a ave de Afrodite. A pomba foi o emblema dos fenícios e um dos
emblemas mais freqüentes de Israel (Espírito Santo, 1998). Ela foi ainda Schekiná, a
polaridade feminina de Yahweh. No livro da Gênesis, foi a pomba quem trouxe a Noé o
ramo de oliveira anunciando o fim das inundações e identificando-se com a esperança. Já
6
na Idade Média, os alquimistas referiam-se à pomba branca como o “spiritus encerrado
dentro da matéria” (Jung, 1940). Contemporaneamente, a pomba branca, além das
representações de pureza e suavidade, é um símbolo de felicidade e da paz.
A coroa atesta a qualidade diferenciada ou sagrada (Chevalier e Gheerbrant, 1982);
é com ela que será reconhecido o Messias. É colocada no alto da cabeça, no lugar por
onde entra o espírito e unindo simbolicamente “o que está embaixo com o que está em
cima”. Este local, chamado de centro coronário, é referido na Kundalini Yoga como o
chakra Sahashara ou Lotus das Mil Pétalas e na Kabalah como a sephirah Kether; em
ambas as referências, é o local através do qual a energia ou força vital ascendente
(Espírito de Deus?), sutilizada pela passagem através dos diversos centros ou portais, é
devolvida para o depositário cósmico de energia. Por isso, a coroa também é um símbolo
da elevação espiritual. A coroa de espinhos colocada em Cristo e com a qual aparecem
as suas imagens na cruz, representa a abertura deste canal, necessária para o posterior
milagre da transubstanciação. Enquanto atributo do rei, a coroa o identifica com as
divindades solares ou com o próprio Sol, em torno do qual transladam os planetas. Mas
usar esta insígnia implica também em abolir as referências do ego; aquele que carrega a
coroa na cabeça torna-se um canal das forças divinas ou espirituais, passando a mediar,
como pontífice (o que faz a ponte), a relação entre o Céu e a Terra.
Podemos ainda observar, no culto do Divino, a criança coroada pedir a soltura dos
presos. Conforme já referimos acima, o uso da coroa na procissão pela criança deve-se a
esta ser um símbolo da inocência e da pureza, qualidades imprescindíveis a quem a
ostenta no referido culto. Agostinho da Silva (2003) fala que esta inocência “é a
capacidade que elas possuem de não separar seu corpo de sua alma, mas de os viverem
num conjunto de espírito” (p. 195). O autor citado chama a nossa atenção para a
importância do ser Uno, aquele cujo corpo perfeito não se desvincula de sua alma,
condição esta também procurada pelo místico ou esperada no santo. Mais adiante,
escreve Agostinho:

O que faz a verdadeira existência das crianças é que nelas o fulcro da vida é
o amor que tem o corpo pela alma e a alma pelo corpo. O que é a
correspondência na Terra, do Amor que une o Pai e o Filho. (pp. 195-6)

Reflexões que sugerem a natureza cindida do homem depois de adulto, cujo


processo educativo, em observações posteriores do próprio pensador, consiste

7
invariavelmente em separar a alma (ou a mente) do corpo, quando então o indivíduo é
considerado “educado” ou adulto. A criança também simboliza o futuro e a esperança,
remetendo o nosso olhar ao novo, às novas configurações que substituem os arcaísmos,
expressando ainda a inesgotável criatividade do Ser Uno, na passagem do imanifesto ao
manifesto.
Espera-se, também, no reino do Espírito Santo (Joaquim de Flora) o início de uma
Era de absoluta liberdade, que pressupõe o ecumenismo, a tolerância, a igualdade entre
as pessoas que passam a compartilhar a Era dos amigos. É neste contexto que o
Imperador-criança pede (ou ordena) a libertação dos presos, ato que simboliza a
liberação também de nossas culpas, com a conseqüente integração psicológica da
sombra. O gesto do perdão representa ainda a possibilidade de um novo princípio ou o
estabelecimento de um novo pacto, condição dada, por exemplo, aos muitos degredados
para o Brasil embarcados na ocasião do Descobrimento.
O culto completa-se com um jantar, que em muitas localidades do Brasil é coletivo,
distribuindo-se comida para toda a comunidade presente. O banquete gratuito para todos
afirma o ecumenismo da festa da religiosidade popular, que aproxima indistintamente os
diversos setores da sociedade. Além de ser um ato onde comungam todas as categorias
sociais, o bodo representa a fartura ou a abundância; a generosidade do ato é um gesto
de reconhecimento e gratidão a Deus por tudo que recebemos: a terra, os alimentos, a
própria vida. O jantar remete também às alusões existentes nos Evangelhos sobre os
alimentos sacramentais: o milagre dos peixes, a multiplicação dos pães, as núpcias de
Caná etc., e todo o simbolismo subjacente a cada uma das referências. Entende-se que a
primeira fome é a do espírito; estando este nutrido pela fé, o alimento do corpo surge em
profusão. Encontra-se implícita ainda a idéia de que no Reino do Divino não haverá
miséria, distribuindo-se suas dádivas igualitariamente para todos.

O Culto Popular do Espírito Santo e o Brasil

Agostinho da Silva (2003) refere-se ao culto popular do Espírito Santo como “um
projeto do povo português”, projeto este que transportou para os povos que colonizou na
época dos Descobrimentos. Ao recebermos, aqui no Brasil, este culto, podemos entender
que recebemos também a influência arquetípica do terceiro aspecto da Trindade Divina,
influência esta que nos permite compreender certas características da cultura que entre
8
nós se desenvolveu. O processo de colonização das outras nações da América não
seguiu o mesmo modelo do processo de colonização acontecido no Brasil. A Inglaterra,
por exemplo, legou aos povos que colonizou, de forma bem clara, as idéias da Reforma,
que do ponto de vista simbólico consagram o arquétipo do Pai. Deste modo, foram
importantes, na relação com este modelo, o princípio organizador, a Lei (a Carta Magna
foi fundamental na organização dos Estados Unidos), a ordem e a disciplina, a
hierarquização política e religiosa, como também a discriminação (entre norte e sul,
brancos e indígenas etc.). A colonização espanhola deu-se sob a égide dos Reis
Católicos e a influência próxima da Igreja Romana, aqui situada no papel de Filho. O Filho
aparece na relação trinitária como o Outro, a encarnação através da qual Deus se vê. No
drama divino, Jung (1940) refere que a condição do Filho é transitória, assim
permanecendo enquanto a herança paraclética, através de seu sacrifício, não for
distribuída para os discípulos. Mas, na hipótese da ausência da presença paraclética,
temos a separação do Filho do Pai, sendo importante lembrarmos ainda que, nos
modelos mais arcaicos, o tema do parricídio envolvia a sucessão do pai pelo filho. Neste
momento, a Igreja vivia seu grande Cisma, era a época da Reforma e da Contra Reforma.
Não é ilógico conjeturarmos que a existência desta cisão poderia ter influenciado a
maneira como se deu a colonização espanhola, que ao se estabelecer, impôs-se
unilateralmente, não se integrando às culturas anteriormente presentes nos territórios
ocupados, sendo que muitas delas, inclusive, foram totalmente aniquiladas.
Os descobrimentos portugueses e a colonização de seus territórios, no princípio,
conforme verificamos nos estudos de Cortesão (1990), foram financiados pela Companhia
de Jesus, que herdou em Portugal a missão templária. Os Templários cumpriram um
importante papel na proteção aos peregrinos cristãos que se dirigiam a Jerusalém,
durante as Cruzadas, e foram talvez o único elo de ligação entre Ocidente e Oriente, mas
posteriormente foram perseguidos pela Igreja, que se sentiu ameaçada pelo seu
crescente poder. A busca de um caminho “para as Índias” e o restabelecimento da ligação
com o Oriente foi uma espécie de prosseguimento, através dos navegadores
portugueses, daquela referida missão. Evidentemente, os interesses mercantilistas da
Coroa viriam, posteriormente, a interferir nesta intenção.
Foi neste contexto que Portugal tomou posse do Brasil, de cuja existência já tinha
conhecimento, conforme os acordos já estabelecidos com a Espanha e com quem
dividiram este novo mundo. Devido à sua posição geográfica, margeando a saída do
9
Mediterrâneo e projetando-se para o Atlântico, a presença do mar no imaginário
português era muito forte, fazendo circular entre eles histórias ou mitos de Terras
Desconhecidas, da Ilha dos Amores (Camões), idéias que nos remetem ao tema mítico do
paraíso, ou como, entre os navegadores, da existência de uma Terra Brazilis, que seria
um local de transformações espirituais. Em torno destes sonhos, imaginava-se a
existência de um lugar idílico, onde as pessoas poderiam viver fraternalmente e onde
também imperaria a tolerância e a possibilidade de uma nova vida. Assim, e com o
acréscimo dos ideais templários, os portugueses inventaram as caravelas, montaram
suas esquadras onde coabitariam com os degredados, mouros e cristão novos e depois
de juntarem a bandeira do Espírito Santo5, lançaram-se ao mar. A vinda ao Brasil, que
inicialmente pensava-se ser uma Ilha, com todas as indagações históricas e a presença
da inspiração divina é poeticamente sintetizada por Fernando Pessoa:

Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal


A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.

A colonização posterior do Brasil, segundo a influência arquetípica do Espírito Santo


(conforme o “projeto português” na fala de Agostinho que referimos), não significou tratar-
se de um processo onde aspectos dos outros arquétipos, inclusive de suas partes
sombrias, não estivessem (bem) presentes. Mas fica evidente que o fogo criador do
Divino derramou-se aqui desde o Descobrimento, como está demonstrado na carta de
Caminha, ao descrever a relação amigável e afável que neste princípio se estabeleceu
entre os portugueses e os índios. Posteriormente, encontramos a presença da influência
do arquétipo na miscigenação racial, no sincretismo religioso, na participação da
polaridade feminina através de Yemanjá e Nossa Senhora (entre outras) no plano da
religiosidade popular, no acolhimento e integração de outras raças e culturas que aqui
chegaram, na expressão criativa do corpo através de uma multiplicidade de ritmos, que

5
Sobre este tema, encontramos em Camões (Canto Segundo, verso 11):
“Ali tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a pintura,
A cândida Pombinha, debuxada
Sobre a única Fênix, Virgem pura.
A companhia santa está pintada,
Dos doze, tão torvados na figura
Como os que, só das línguas que caíram
De fogo, várias línguas referiram.”
10
em cada parte do país define as suas próprias músicas e danças, nas cores de nossas
artes plásticas, na criatividade e imprevisibilidade de nossos esportistas campeões
(muitas vezes heróis tricksters), no “jogo de cintura”, só para falarmos por cima de alguns
aspectos.
Reportemos-nos, mais uma vez a Agostinho (2003), que afirmou que o Pai e o Filho
são lógicos, mas o Espírito Santo é imprevisível, “nunca se sabendo para onde ele vai
voar”; nesse sentido, ele considera que Portugal “foi muito mais do Espírito Santo do que
de um Deus regendo ou de um Deus morrendo”. Transportado para nosso país, este
mesmo Espírito livre e criativo parece estar tecendo, através de sua imprevisibilidade e
aparente ilogismo, as páginas de nosso destino e de nossa história, cuja assertividade o
futuro constatará. É este Espírito imprevisível, que sabota todo e qualquer planejamento
que se faça, mas que acaba por encontrar um caminho inusitado e criativo, que na
atualização do tempo geralmente demonstra ser o correto.
O Espírito Santo representa também, conforme já foi dado a entender, o amor do Pai
pelo Filho e do Filho pelo Pai, sendo ainda o amor que, de acordo com Agostinho, “fez
com que cada um deles seja Deus ao mesmo tempo”. A Trindade seria, então, ainda em
suas palavras, “o símbolo, posto no eterno, daquilo que os homens gostariam que fosse o
amor na Terra”. Esta condição afetiva, transposta para o coletivo nacional, certamente
ainda está longe de ser totalmente compreendida, apesar de observarmos nesta instância
uma peculiar receptividade não discriminada aos ícones populares, às novidades, aos
modelos ou idéias originais. Mas, enquanto mensagem simbólica e expressão possível de
um arquétipo, aponta-nos ao menos a esperança de dias melhores, onde o convívio
tolerante, a distribuição mais eqüitativa das riquezas e a superação da miséria, a
promoção da criança e da mulher, do negro e do índio, juntamente com a emancipação
do homem, possam configurar-se como as marcas de uma grande nação.
O culto do Espírito Santo, portanto, enquanto manifestação espontânea e também
ecumênica da religiosidade popular, torna-se o grande exercício que mantém vivas as
expectativas de que o homem e a mulher, ao reencontrarem-se em sua essência divina,
possam concretizar a sua individuação. Ou como quer Agostinho, simbolizando “o pleno
cumprimento do Espírito pelo pleno cumprimento do homem”.

11
Referências Bibliográficas

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BORGES, Paulo (2006). Tempos de Ser Deus; A Espiritualidade Ecumênica de Agostinho


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CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain (1982). Dicionário de Símbolos. Rio de


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CORTESÃO, Jaime. Os Descobrimentos Portugueses, III Vols. Lisboa: INCM, 1990.

__________ Influência dos Descobrimentos Portugueses na História da Civilização.


Lisboa: INCM, 1993.

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LOUÇÃO, Paulo Alexandre (2002). A Alma Secreta de Portugal. Lisboa: Ésquilo, 2002.

PESSOA, Fernando. Mensagem, e Outros Poemas Afins. Lisboa: Livros de Bolso Europa-
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SILVA, Agostinho da. Textos e Ensaios Filosóficos I e II. Lisboa: Âncora, 1999.

__________ Textos Vários. Dispersos. Lisboa: Âncora, 2003.

12
A PARCERIA HÉSTIA-HERMES NO FENÔMENO DA RESILIÊNCIA

Giselda de Lima1 e Sylvia Mello Silva Baptista2

O Conceito de Resiliência

A palavra “resiliência” passou a fazer parte do vocabulário dos psicólogos e


psiquiatras recentemente, apesar de seu significado já nos ser tão conhecido. Nomear
essa característica humana nos dá chance de observá-la com maior nitidez, e assim
nos auxilia a lidar com as questões ligadas às adversidades, traumas e inúmeras
dificuldades que constituem o nosso caminhar em busca de nós mesmos.
O termo é oriundo da Física e da Engenharia, e relaciona-se às resistências dos
materiais frente a pressões e forças deformadoras. O material resiliente é aquele capaz
de absorver a energia sem sofrer deformações permanentes, e de certa forma
recuperar as suas qualidades originais. Segundo o Novo Dicionário da Língua
Portuguesa -“Aurélio”-, resiliência é “Propriedade pela qual a energia armazenada em
um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora da deformação
elástica“; resiliente é o adjetivo definido como elástico (p.1223).
Certamente, uma idéia interessante para ser incorporada pelo estudo da psique.
No entanto, é importante frisar que nessa passagem há questões a serem levadas em
consideração. Não faremos aqui uma explanação extensiva do conceito, mas faz-se
necessário explicitar qual a nossa abordagem no presente texto, uma vez que mesmo
dentro da seara da psicologia, ele será compreendido de diversas formas.
Cognitivistas, terapeutas familiares de abordagem sistêmica, terapeutas da psicologia
profunda, cada qual dará um recorte e um colorido específico ao tema. Uma questão
que se coloca inicialmente é: somos naturalmente providos de resiliência, e com ela
lidamos com nossas dificuldades? Ou, a resiliência é algo que nasce do encontro do
indivíduo com a experiência crítica? Ou ainda, esse fenômeno é algo incipiente até a
ocorrência de um trauma e seu desencadeamento?
1
Psicóloga e Psicoterapeuta; e-mail: anamacor@uol.com.br
2
Analista Junguiana, Membro da SBPA-IAAP, Especialista e Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
e-mail: sylviamellobaptista@ig.com.br
Muitas são as questões que se desenrolam a partir dessas reflexões, e
gostaríamos de registrar qual é a nossa visão. Compreendemos “resiliência” como uma
capacidade de o indivíduo, frente a adversidades e exposição a situações de dor e
sofrimento, lidar de forma criativa com os fatos e situações agressoras, de modo a
ultrapassar a crise, conservando sua integridade psíquica. Há graus variados de
resiliência nos diferentes indivíduos, e ela pode ser desenvolvida, estimulada e
ampliada.
Ao nos aprofundarmos nos estudos das divindades míticas, em especial dos
deuses gregos olímpicos Héstia e Hermes, percebemos que há algumas pontes
possíveis entre seus mitologemas e o conceito nascente de resiliência. É preciso
apenas empreender uma leitura simbólica capaz de trazer à luz algumas características
comuns. É a esse respeito que passaremos a discorrer.

Os Arquétipos e os Divinos

Quando falamos em deuses da mitologia grega, é possível observar em seus


feitos, seus casamentos, seus filhos, aquilo que chamamos de “caminhos de
humanização do arquétipo”. Se tomamos o deus grego como expressão de um
arquétipo, ou de arquétipos, é possível apreender ali, no seu discurso mitológico,
alguns modelos de humanização das estruturas arquetípicas. Segundo Alvarenga,

cada criatura divina expressa a possibilidade de transformação da psique


através dos processos que compõem a sua história (...) nas suas
características criativas ou defensivas. (2004, p.69)

Os enfocados aqui serão Héstia e Hermes, por nos parecerem, a partir das
características que trazem em suas histórias, divinos que nos ensinam algo precioso a
respeito da resiliência, ou seja, da nossa capacidade em lidar criativamente com a dor
e com as adversidades.
A partir da noção de que os divinos são expressões arquetípicas, e, como afirma
Bolen (1990, p.48), “todas as deusas estão potencialmente presentes em cada mulher”
– idéia que traz seu equivalente para os deuses e os homens -, passaremos a explorar
as qualidades de Héstia e Hermes, e a parceria que neles vislumbramos.
Héstia é filha de Réia e Cronos. Foi a primeira filha a ser engolida por este pai
primordial, e a última a ser libertada por Zeus, tendo, portanto, ficado mais tempo,
dentre todos os filhos de Réia, na condição do devoramento a que Cronos submeteu
seus rebentos. Este fato será de extrema importância para a constituição de Héstia,
uma deusa discreta, introvertida, que cede seu lugar no Olimpo para Dioniso,
demonstrando assim uma capacidade de desapego, bem como um foco maior nas
questões do mundo interno. É a deusa da lareira, aquela reverenciada em primeiro
lugar em todas as casas ou abrigos, a quem se pede proteção e calor. A forma redonda
circular lhe é associada, à semelhança da lareira no centro da casa que a simboliza,
bem como do agrupamento em torno de um fogo, em roda. A presença de Héstia é
silenciosa e quase invisível. Segundo Brandão (2000, p.557), “assim como o fogo
doméstico é o centro religioso do lar dos homens, Héstia é o centro religioso do lar dos
deuses”. É a deusa da hospitalidade, do sentimento de pertença, da permanência, da
constância, aquela que acolhe, abriga e nutre, que congrega, a guardiã da criança,
contemplativa e organizadora. Por se diferenciar dos outros deuses olímpicos pela
ausência de feitos heróicos ou destacáveis, ela simplesmente é, caracterizando-se
assim mais como um princípio abstrato, uma qualidade.
Hermes é o deus do movimento. Dotado de asas nos pés e do caduceu -
imponente bastão dourado, circundado por duas serpentes, símbolo do axis mundi que
equilibra as polaridades -, faz ponte com os três mundos: Olimpo, Ínferos e Súperos, na
condição de porta-voz de Zeus, o grande regente. Filho deste com Maia, nasce numa
caverna e é colocado no oco de um salgueiro, árvore sagrada, símbolo da fecundidade
e da imortalidade. Traz em si a capacidade de atar e desatar, de desvencilhar-se de
amarras, sejam elas físicas, concretas – os cueiros que o envolvem enquanto bebê -,
bem como psíquicas – os nós neuróticos ligados à parentalidade e aos complexos. É o
inventor, entre outras coisas, da lira, do alfabeto e do fogo, três elementos poderosos
de transformação. É a imagem do desapego, do contato com a fonte criativa, do
funcionamento azeitado dos mecanismos, do trânsito entre os mundos, entre os
deuses e os homens. É também o divino traquinas, ladrão, ardiloso e comerciante.
Hermes não lamenta; age. É o extrovertido por excelência, e seu símbolo é a coluna,
ou pilha de pedras – hermas. Colocada do lado de fora das casas, nas estradas, nos
caminhos, sinaliza sua função de guia e senhor dos percursos, protetor dos viajantes. É
muitos em um só, e de forma semelhante a Héstia, passa pelas histórias de inúmeros
deuses e heróis, constituindo-se como um atributo, um princípio, uma enérgueia.

Complementaridade

Quando analisamos de perto esses dois divinos, fica clara a complementaridade


de ambos. Enquanto Héstia cuida da parte interna da casa, Hermes cuida da externa;
Héstia é reflexiva, ao lado de um Hermes ativo e empreendedor; ela é a quietude e o
deslizar sobre pés de lã, enquanto ele é o movimento ágil e rápido, por vezes ruidoso;
ela é contemplativa, ele, relacional; ela liga-se à estabilidade, ele, à mudança. O
convite é para que possamos olhar esse “par” como expressão de uma possibilidade
em nós de um movimento transformador, aliado à manutenção de uma identidade.
Talvez Héstia e Hermes em nós nos dêem essa capacidade divina e maravilhosa de,
apesar de inúmeros acontecimentos e mudanças ocorridos diariamente, sabermos que
continuamos sendo nós mesmos, guardando a nossa pessoalidade. A idéia é que
possamos ver nesses dois divinos, enquanto caminhos de humanização que são, algo
além de uma simples ilustração do que se passa nas nossas psiques humanas, mas
uma proposta de olhar, uma proposta de trabalho.
Vale ressaltar que a própria configuração de Héstia como deusa da lareira traz
algo interessante para nós psicólogos junguianos: em torno da lareira, da fogueira, do
fogo, ocorre um fenômeno universal, pois que humano, que é a concentração do olhar
no movimento das chamas, desencadeando um universo de imagens. É ali, em círculo,
que sonhamos e contamos histórias. Héstia invocada hospeda imagens. Propõe um
foco que abre espaço para a hospitalidade imagética. Enquanto ela prepara esse
“ninho”, Hermes, com seu caduceu, constrói pontes de ligação entre os mundos do
consciente e do inconsciente.
Os Deuses e a Resiliência

Quando falamos em resiliência, falamos em adversidades. Não existe resiliência


sem adversidade. Mais do que sobrevivência, simples passagem, ela nos fala de
ultrapassagem. Os sobreviventes não são, necessariamente, resilientes. Podem se
recuperar das crises ou traumas, mas permanecer enredados na dor, na culpa, na
neurose. A atenção aqui é para essa idéia do “enredamento”. Nos parece que o tema
da resiliência traz a reboque a questão do devoramento, do aprisionamento. O
indivíduo que sofreu um revés importante da vida, como uma perda de um membro, de
um parente, de toda uma família, de uma pátria, uma violência marcante, ele é um
indivíduo aprisionado. Encontra-se como presa das emoções, dos medos, da
depressão infinita, do derrotismo, da ausência de sentido, das imagens que lhe povoam
a mente. Ser resiliente implica passar por essas situações de sofrimento atroz, e ainda
assim ser capaz de seguir em frente, amar, trabalhar e lidar de forma criativa e
construtiva com as próprias dores. O fato traumático desconstrói a identidade em
algum grau; a capacidade de resiliência dá ao indivíduo a possibilidade de sua
reconstrução. A expressão mítica arquetípica de dar casa interna a si mesmo nos é
ofertada por Héstia, enquanto Hermes ensina o caminho de volta, “des-dá” os nós, e
reconstitui o fluxo da vida.
No mito de Hermes, este sai da caverna em que nasceu e na qual Maia vaticinou
seu fim. O divino, candidato a olímpico, não se faz de rogado, e ambiciona o mesmo
tratamento de seu irmão Apolo. Sair da caverna simbolicamente representa, entre
outras coisas, sair da condição de devorado por uma mãe aprisionadora. Hermes sabia
que sairia dali de qualquer forma, mesmo que fosse para se tornar o rei dos ladrões;
portanto, para viver e atuar o seu lado sombrio. Isso nos indica a importância do
ambiente que acolhe ou rejeita.
O indivíduo resiliente não tem esse acolhimento pelo meio, e isso o faz ganhar
esse “título”. Ele é capaz de ser criativo e sair do aprisionamento neurótico, pois,
possivelmente, carrega em si representações arquetípicas de Hermes e Héstia que o
auxiliam a dar abrigo à dor e transformá-la. Para que a transformação e a criatividade
hermética se ativem e a resiliência se dê, é preciso da casa psíquica de Héstia, que
acolhe, nutre e guarda a possibilidade do novo. O humor, que é peculiar ao deus
alquímico, pode também desempenhar importante papel.
Se considerarmos que esse casamento sagrado entre Héstia e Hermes de fato
traduz a possibilidade de ativação de um núcleo psíquico de resiliência, vemos que
também daí se desprende uma proposta de trabalho através de imagens curativas.
Para curar uma ferida interna causada por uma adversidade, as imagens podem
desempenhar um papel importantíssimo. Se, como diz Hillman, imagem é psique, e
psique é imagem, o campo da psique é território de Héstia e do inconsciente fecundo
agregado ao pé do fogo, e de Hermes como a expressão arquetípica da união das
polaridades, do consciente e do inconsciente, da alegria e da dor, da vida e da morte.

O Homem e o Herói Resilientes

Um exemplo de resiliência pode ser encontrado na vivência do emigrante,


obrigado a deixar seu lar, sua pátria, sua terra mãe, em função de uma guerra, de um
desastre climático, ou alguma outra circunstância provocadora de exílio. Diz-se que a
pior dor do mundo é a advinda da perda da própria terra, do seu chão. O emigrante
chega em um território desconhecido, com tudo novo a seu redor: povo, hábitos,
geografia, clima, gostos, cheiros, rotinas, modos de organização, valores, crenças, um
lugar que guarda estranheza e indefinição em uma infinidade de detalhes. O recurso
psíquico com que conta para reconstruir a sua vida ordinária, bem como a sua saúde
psíquica, é a resiliência. Será preciso cultivar a figura arquetípica de Héstia através da
valorização e atualização constante dos costumes, das comidas típicas, da dança, da
música, dos rituais, para dar abrigo a essas imagens – visuais, táteis, olfativas,
cinestésicas, gustativas, emocionais –, e assim promover a manutenção da identidade
coletiva dentro do indivíduo. Não é à toa que se formam colônias de emigrantes
quando estes se vêem em terras estrangeiras. A busca do igual fortalece e alimenta o
sentimento de pertença, absolutamente necessário para suportar a dor da expatriação
e suas conseqüentes perdas. No ritualizar dessas experiências, vive-se como na
primeira vez a emoção da experiência primordial na terra mãe, e essa energia é
canalizada para o enfrentamento do dia-a-dia.
Hermes entra neste cenário como o representante da flexibilidade e da iniciativa
para incorporar o novo. Seu mito e mitologemas ali contidos propõem um modelo de
reação às adversidades, o que se traduz como ativação do fator resiliente. Este
emigrante que rememora em hábitos e ritos a terra abandonada, precisa de Hermes
para relacionar-se com o diferente, fazer trocas, abrir-se ao comércio com o outro,
“roubar” da nova cultura aspectos revificantes, ativar a criatividade. Ao somar a sua
vivência original à atual no país desconhecido, pode obter uma terceira experiência
distinta das outras duas e que lhe transforma a identidade. Não é incomum algumas
pessoas migrantes mudarem de nome, demonstrando assim que algo de bastante
essencial foi incorporado, dando origem a uma nova identidade. Nessa atitude vemos
Héstia e Hermes conjugados na resiliência.
O Professor e médico Pethö Sándor é um exemplo vivo dessa associação divina
interna. Tendo que fugir da Hungria com a chegada das tropas russas em 1945, veio
para o Brasil trazendo um método de trabalho corporal desenvolvido por ele e
denominado calatonia, onde, através de manipulações suaves em determinadas partes
do corpo dos pacientes produzia um relaxamento ao qual se associavam imagens.

A existência da calatonia enquanto método caracterizado por “toques sutis”


é a prova de que Sándor pôde constituir um espaço para continuar a exercer a sua
sensibilidade mesmo em situações desfavoráveis. (Motta, 2005, p. 80)

O professor Sándor, ele próprio um resiliente, usando dessa sabedoria faz


nascer toda uma metodologia de abordagem da dor e do sofrimento, centrada na
associação da nossa primeira casa – o corpo – com a produção de imagens. De posse
desses conhecimentos vivenciais, promoveu uma enorme e extensa troca com
profissionais de saúde e instituições até a sua morte, em 1992. Héstia e Hermes
certamente se encontravam nesse homem.
Outro exemplo de resiliência é a escritora Isabel Allende, que soube transformar
as grandes perdas que sofreu – o tio, a pátria, uma filha –, recorrendo a imagens
curativas. Dessas vivências dolorosas nasceram dois belíssimos livros: Casa dos
Espíritos e Paula.
Onde poderíamos ver a resiliência nos heróis da mitologia? Pensamos ser
Ulisses um exemplo de herói mítico que traz em si essa qualidade elástica de absorção
do impacto, e faz uso disso ao longo de seu caminho de partida e volta a Ítaca. Guarda
consigo a memória do lar, não foge às aventuras que lhe são propostas, às vezes
mesmo impostas, e lança mão, em muitos momentos, da criatividade para realizar seus
feitos. A passagem em que ele se amarra ao mastro de seu navio para não ceder à
tentação do canto das sereias é um exemplo dessa habilidade em usar recursos
criativos para enfrentar seduções e tempestades que ameaçam seu retorno. A
manutenção de sua integridade e atividade ao ultrapassar todos os obstáculos
encontrados é sinalizadora de sua resiliência. A sua ligação permanente com Ítaca, seu
lar e abrigo de origem e chegada, conduz-nos à figura de Héstia, e à fidelidade, marca
tanto do herói quanto da deusa. Ao lado disso, vale lembrar a genealogia de Ulisses
tendo Hermes como seu bisavô. Brandão o define assim:

Filho de Sísifo, o mais astuto e atrevido dos mortais, neto de Autólico, o


maior e mais sabido dos ladrões e ainda bisneto de Hermes, o deus também dos
ardis e trapaças, o trickster por excelência, Ulisses só poderia ser mesmo, ao
lado da inteligência exuberante, da coragem e da determinação, um herói
polýmetis, cheio de malícia e de habilidade e um polýtropos, um solerte e
manhoso em grau superlativo. (2005, p.291)

Ainda refletindo sobre o encontro Héstia-Hermes, e no que eles nos oferecem


enquanto imagem e modelo arquetípo, podemos olhar um momento para o lado
sombrio3 também presente em cada divino, bem como na dissociação desse par.
Assim, se Héstia representa uma quietude e retira-se de cena para dar lugar a Dioniso
no Olimpo, do ponto de vista sombrio essa atitude poderia se traduzir como uma
anulação da sua personalidade. Como se sabe, esta deusa é associada à religiosidade
por todas as suas características já apontadas anteriormente. No entanto, esta mesma
religiosidade e capacidade de conexão com o sagrado, quando vividos de modo
defensivo, podem levar à clausura e à indiscriminação. O fechamento em si e o
afastamento do mundo e da vida ativa são riscos que os indivíduos regidos por uma
Héstia sombria correm. Estes são sintomas passíveis de serem associados à
depressão, quadro que também se constitui num aprisionamento nas cavernas escuras
da alma.

3
O termo “sombrio” está sendo empregado como relacionado àqueles conteúdos psíquicos
inconscientes não criativos, e não estruturantes, mas que se conscientizados podem ser revertidos como
recursos construtivos e integrados ao ego.
Do mesmo modo, os aspectos sombrios em Hermes podem fazer com que
aquilo que antes foi visto como movimento e fluxo, seja atualizado como mania. O
excesso de extroversão da psique e a habilidade em transitar para todas as direções
em constantes conexões, quando atuados podem desembocar num movimento
maníaco. A sombra da associação Héstia-Hermes teria, assim, muito a nos revelar a
respeito do transtorno bipolar, uma vez que metaforicamente Héstia sem Hermes é o
ensimesmamento sem a perspectiva e a conexão com o mundo – cores de um quadro
depressivo; enquanto um Hermes sem Héstia é o movimento sem sentido, sem um
ponto de referência, um vir-a ser ao “deus-dará”, localizado no pólo maníaco.

Conclusão

Através de uma leitura simbólica dos mitos desses dois divinos, Héstia e
Hermes, é possível observar o quanto eles nos apontam questões passíveis de ser
transportadas para a compreensão da nossa psique. As qualidades desses divinos,
entendidas como expressões arquetípicas, podem ser associadas à noção de
resiliência presente nas pessoas quando em contato com situações adversas. Héstia, a
deusa do fogo doméstico, protetora dos lares, deusa da lareira representada por um
círculo, simboliza o abrigo das imagens internas, além da inteireza e do acolhimento, e
de inúmeros atributos voltados para a manutenção da integridade do “eu”. Hermes,
deus do movimento, viajante, ladrão e trickster, cuida para que as conexões entre
mundo externo e interno se dêem, que consciente e inconsciente dialoguem, e para
que o criativo flua sem obstáculos, atando e desatando os nós de alma. Ambos,
quando associados e presentes enquanto expressões arquetípicas passíveis de
acesso, representam uma possibilidade interna de saída do aprisionamento que o fato
ou vivência traumática acarreta. Essa saída vislumbrada nada mais é do que a
resiliência ativada; aquele fator intrínseco a cada indivíduo, presente em diferentes
graus.
O analista tem um importante papel ao trabalhar com a dor do seu paciente, seja
ela advinda de um trauma concreto, ou abstrato (imaginado, fantasiado), qual seja, de
avaliar e incentivar naquele que sofre à sua frente, o fator resiliente. Para isso, a
identificação de atributos de Héstia e de Hermes em seu cliente trarão preciosos
instrumentos para o campo simbólico que se constela na análise. O trabalho com
imagens pode ser fundamental para abrir caminho para a reconstrução do ego atingido,
onde o foco na conexão entre consciente e inconsciente se fará necessário, aliado ao
respeito e cuidado com “a casa” interna e “os percursos” no mundo.

Referências Bibliográficas

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Família. Psicolgia em Estudo. Maringá, vol.8, pp.75-84.
GRUPO TERAPÊUTICO PARA FUNCIONÁRIOS
DO INRAD-HC FMUSP: Uma Abordagem Corporal

Claudia Guertzenstein Angare Pereira1


Maria Lúcia Mendes Pesce Dias2

Introdução

Há milênios a humanidade procura dominar e controlar o mundo predominantemente


pela razão. Este comportamento começou na antiga Grécia, quando o homem passou a
desenvolver um pensamento racional (logos) e assim distanciando-se do seu mundo mítico.
Esta atitude propiciou um desenvolvimento intelectual acentuado. Desta forma, o homem
procurou dominar e controlar as variáveis de sua vida. No entanto o nosso corpo concreto
está constantemente nos lembrando de nossa mortalidade, de que não conseguimos e não
conseguiremos controlar tudo, ou seja, continuamos a ser mortais. É por este motivo que,
segundo Zoja, (1993), negamos tanto o nosso corpo.
Atualmente, em nossa cultura o poder patriarcal é o que há de mais importante, ou
seja, uma masculinidade movida a poder, a qual deixa pouco espaço para o feminino. Esta
negação do feminino chega, às vezes, a ser tão exacerbada a ponto de ocasionar a
distorção de sua percepção, tal como ocorre na anorexia nervosa (Woodman, 2003).
Por outro lado, a sociedade está dando uma importância extrema ao corpo. Assim
sendo, o corpo deve corresponder à imagem ideal do consciente coletivo. Um corpo perfeito
com seu funcionamento também perfeito. Não se aceita um corpo fragilizado ou doente, ou
mesmo um corpo que não se encaixe dentro das medidas e parâmetros fixados pelo coletivo
(Robell, 1997).
Esta exigência para com o corpo é sentida também em outras esferas na vida das
pessoas. Assim, nos dias de hoje, está havendo um nível de exigência pessoal, profissional
e familiar muito intenso devido ao ritmo de vida acelerado e às incessantes exigências

1
Médica e psicoterapeuta Junguiana com especialização em Psicoterapia Junguiana Coligada a Abordagem Corporal pelo
Instituto Sedes Sapientiae/SP.
Email: c.g.angare@uol.com.br
2
Psicóloga e psicoterapeuta Junguiana com especialização em Psicoterapia Junguiana Coligada a Abordagem Corporal
pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP, pós-graduanda em Transtornos Alimentares pelo Instituto de Psiquiatria - AMBULIM –
HCFMUSP.
Email: mlpescedias@hotmail.com
internas e externas. Além disto, viver em uma grande metrópole gera muita ansiedade e
estresse, sendo ainda mais acelerado devido ao processo de globalização em que vivemos.

Para corresponder a estas exigências e expectativas, o ser humano se esmera para


cumprir tais solicitações internas e externas. Conseqüentemente, a humanidade torna-se
vulnerável a adoecer física e psiquicamente.
O profissional da área da saúde confronta-se diariamente com o sofrimento e, com
freqüência, com a perspectiva de morte do ser humano. Este confronto torna-se mais um
fator agravante das tensões e estresse, que podem culminar em tensões e bloqueios
impressos no corpo (Sutcliffe, J,1998).

Objetivo

Com o intuito de dar atenção à qualidade de vida, e possibilitar viver as situações


cotidianas de maneira mais harmoniosa possível, propusemos formalmente um grupo
terapêutico para funcionários do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (INRAD-HCFMUSP ).
Foi proposto um trabalho a ser realizado em grupo, utilizando-se as técnicas
psicofísicas, aprendidas e vivenciadas por nós, no curso de especialização “Psicoterapia
Junguiana Coligada a Técnicas Corporais” (2003 a 2005), no Instituto Sedes Sapientiae –
São Paulo.
As técnicas psicofísicas nos proporcionam a vivência e o contato com os símbolos.
Num processo terapêutico, quando os símbolos se tornam experienciáveis, passamos a nos
sentir vivos, mais emocionais, ou seja, realiza-se o diálogo do consciente com o
inconsciente (Kast, 1997). E assim, a possibilidade de elaborar e transformar as dificuldades
em possibilidades através do desenvolvimento criativo.
Para a realização da proposta utilizamos técnicas de relaxamento, respiração e toques
(ora individual, ora em dupla e ora em grupo), seguidos de um tempo e espaço para
colocações pessoais.
As técnicas de relaxamento foram inseridas no contexto com o intuito de atingir
aspectos físicos e psicológicos, podendo ter um efeito terapêutico, tanto como ferramenta
central como uma ferramenta coadjuvante. Funciona como um “distensor” do estresse vivido
no dia a dia, a polaridade oposta àquilo que atualmente oprime o indivíduo, propiciando
contatos com seus aspectos afetivos, que geralmente encontram-se negligenciados. Desta
maneira, o relaxamento pode auxiliar a pessoa a re-estruturar aspectos de sua
personalidade. O resultado, além do descanso, pode suscitar o desatar interno, uma vez
que possibilita uma introspecção e reconstrução de antigas vivências traumáticas (Sandor,
1982).
O marco inicial da nossa respiração ocorre a partir do corte do cordão umbilical
finalizando-se no último suspiro (morte), desta forma o ato de respirar está intimamente
ligado aos nossos estados emocionais. Uma alteração na nossa respiração pode influir na
alteração de nosso estado emocional. Os exercícios voltados à respiração possibilitam uma
modificação no estado emocional, visto que ocorre uma interiorização, uma introspecção e
uma escuta de si mesmo. Ao prestar atenção à nossa respiração possibilitamos que
aspectos inconscientes se tornem consciente ampliando, assim, a nossa consciência (Arcuri,
2004).
Embriologicamente, a origem do sistema nervoso e da pele é a mesma: o ectoderma.
Sendo assim, ao trabalharmos com o toque estamos atingindo, também, o sistema nervoso
central. E, como o saudoso Dr Pétho Sandor já dizia: “os toques se utilizam do alto potencial
da sensibilidade cutânea, proporcionando uma vivência multi-sensorial, uma síntese de
várias particularidades perceptivas e aperceptivas, sintonizadas e sincronizadas numa
configuração singular em cada indivíduo” (Sandor, 1982).
Assim, a utilização de toques pode suscitar as memórias corporais trazendo conteúdos
inconsciente para serem elaborados (Sobreiro, 2005).

O Grupo e sua Estrutura


A proposta foi a realização de um grupo terapêutico piloto, composto de oito pessoas,
com sessões semanais de uma hora e meia de duração, durante oito semanas. Este
trabalho seria realizado conjuntamente por duas psicoterapeutas junguianas especializadas
na área.

As inscrições foram abertas a todos os funcionários do INRAD-HCFMUSP, tendo nove


inscritos. Foi realizado entre os meses de maio, junho e julho de 2006. No decorrer das
sessões ocorreu uma desistência; sendo assim, o trabalho foi concluído com oito
integrantes.

Em todas as sessões houve comentários voltados aos exercícios da semana anterior,


vivências específicas da semana, comentários e observações no final das vivências.
A seguir descrevemos as áreas do corpo e seus aspectos simbólicos correspondentes,
trabalhados e vivenciados nas respectivas sessões. Símbolo é o que liga, vincula e restaura
a inteireza original. Para a psicologia profunda o símbolo é um elemento superficial que se
encontra no lugar do elemento situado em profundidade na psique, ou seja, é um termo,
uma imagem que apesar de poder ser conhecida na vida diária, devido a seu significado
aparente e convencional, aponta para algo além, oculto e desconhecido. A palavra símbolo
origina-se do grego symbolon, sinal de reconhecimento. Na Grécia antiga quando dois
amigos se separavam quebravam uma moeda. Quando o amigo ou alguém da família
voltava, tinha de apresentar essa metade. A combinação das duas metades revelaria a
identidade de amigo recebendo o direito à hospitalidade. O símbolo pode revelar algo visível
em invisível. O ser humano procura a realidade invisível por trás de algo visível e sua
conexão. Simbolizar significa descobrir o sentido oculto na situação concreta, questionar a
realidade superficial em vista de uma realidade oculta desconhecida para nós. Segundo
Leloup (2005), ao entrar em contato e vivenciar partes concretas de nosso corpo, podemos
perceber como estas estruturas acolhem o “sopro da vida”, como estão relacionadas aos
nossos aspectos mental, afetivo e espiritual. Kast (1997) diz que para vivenciar os símbolos
realmente como tais, temos que vivenciá-los, e não apenas vê-los como sinais, devemos
nos deixar tocar emocionalmente por eles.

1a. Sessão: Apresentações, explicação da proposta terapêutica e vivência do Eixo


Corporal.

O eixo corporal faz referência à maneira em que estamos postados no mundo, à


medida em que vivenciamos a forma como nos ancoramos, e à flexibilidade que temos com
nosso eixo. Possibilita refletir a respeito da maneira como nos ancoramos e nos
posicionamos diante da vida, tanto em relação aos momentos prazerosos como em
momentos de conflitos e desarmonia.
A terapia corporal, com exercícios de grounding, enraizamento, auxilia na reconciliação
com “a mãe terra”.
Segundo Chevalier et col (2003), o eixo liga entre si os estados hierarquizados em seu
respectivo centro, podendo representar a ligação do céu com a terra, ou seja,
metaforicamente refletindo a ligação, integração de nossos aspectos mentais com os
aspectos corporais.
2a. Sessão: Trabalho e vivências relacionados com os pés.
Os pés representam o nosso começo e estão ligados às raízes e à nossa identidade.
Por ter um formato que lembra uma semente, pode evocar o potencial do indivíduo. Por
outro lado eles representam também a finalidade, a meta e o destino pessoal.
Sendo o local de contato entre o homem e a terra, encontram-se relacionados ao
universo material sendo, também, um ponto de partida para sua verticalização, elevação e
ascensão, representando a força da alma, o suporte da postura ereta e a base de nossa
estrutura.
A reflexologia, bem como a medicina chinesa e a acupuntura fazem referência a que,
nos pés, há pontos que estão ligados a outras estruturas corporais, tendo eles, portanto,
uma representação de totalidade do corpo.
Os pés, representantes de nosso enraizamento, podem estar associados ao nosso
equilíbrio físico, psíquico e espiritual.

Se as raízes são sadias, toda árvore é sadia. Algumas vezes somos jardineiros,
muito atentos à flor e ao fruto, mas esquecemos as raízes, esquecemos os pés. E,
portanto, é por lá, talvez, que deveremos começar os nossos cuidados. (Leloup, 2005)

Quando estamos em contato com nossos pés podemos estar nos indagando: De onde
venho? Quais são minhas raízes? Será que sou demais no mundo? Sinto-me desejado,
amado pela vida? Quais foram as expectativas de meus pais a meu respeito? Ficaram
felizes ou decepcionados de me ver chegar a esta terra? Como me sinto carregado por esta
terra?
Segundo Leloup (2005), a relação com nossos pés está associada à nossa capacidade
ou não de sentir prazer nesta vida. Assim, uma pessoa que não foi desejada, não foi
esperada ou que trouxe decepção por ter vindo a esta terra, dificilmente terá prazer de viver
e poderá ter dificuldades em dar um passo a mais, avançar, andar e se desenvolver na vida.
Assim, o terapeuta pode ajudar esta pessoa a reencontrar as suas raízes e o prazer pela
vida através do trabalho com seus pés.

Um belo presente que se pode dar a uma pessoa que está morrendo é o de
acariciar e tocar seus pés. Porque, no último instante de sua existência, a pessoa vive
momentos de regressão e reencontra a criança que está nela. Algumas vezes, é
imediatamente antes de morrer que a criança ferida pode ser curada em nós mesmos.
Este tema é muito belo para a meditação e para a prática. (Leloup, 2005)
3a. Sessão: Trabalhos e vivências relacionados com as articulações.

As articulações são responsáveis pelo movimento, pela ação e pelo trabalho


desempenhado pelo homem. Simbolizam a passagem da vida à sua ação.
É também um símbolo de comunicação. Assim, podemos refletir em como estamos
articulados internamente e externamente, e como estamos articulados com nossa família,
nossa sociedade e com o mundo ao nosso redor.
Os tornozelos simbolizam a articulação do céu e da terra, da articulação do ser material
com o ser espiritual. Por ser o local onde as asas se prendem, no mito de Hermes,
permitindo que este possa voar, simbolizam a possibilidade de transformação e
individuação.
Quanto à articulação do joelho, há, em várias línguas, a associação da palavra joelho
com a palavra filho, gerar, força, união e bênção. Assim, na civilização romana, tocar o
joelho de alguém pode representar a solicitação de proteção, de ser aceito como filho.
Da mesma forma, ao receber um colo, sobre os joelhos, recebemos também uma
benção e aqueles que não tiveram esta ligação através de seus pais podem receber este
colo, esta energia vital, de si ou de outros aprendendo a integrar esta afetividade.

4a. Sessão: Trabalho e vivências relacionados com os membros inferiores (pernas).

As pernas representam um vínculo social, pois com elas podemos nos aproximar,
facilitando o contato.
Na Cabala, representam a firmeza e a glória.
A coxa, por sua vez, representa a firmeza, a elevação e a força, tendo analogia com
uma coluna e evocando a adolescência e, no processo de amadurecimento, as passagens
iniciáticas. No mito grego, Dioniso teve sua segunda gestação na coxa de Zeus.
Coxear simboliza, em inúmeras mitologias, um defeito espiritual, uma fraqueza da
alma.
As pernas podem ser vistas como força de realização humana, assemelhando-se às
pernas do cavalo. A domesticação do cavalo representou a ampliação da capacidade de
exploração do mundo exterior pelo homem.
Esta associação do cavalo com as pernas do homem lembra a impetuosidade do
desejo humano, contida no psiquismo inconsciente.
Porém a libido investida apenas nessa dinâmica escraviza e esvazia o homem das
energias ascensionais, isto é, o destino da impetuosidade do desejo irracional e da libido
descontrolada é a morte.
Essa associação deveria ensinar ao homem montar seu próprio cavalo, segurar e
controlar seus impulsos para que a libido se reoriente para a realização, a fim de caminhar
com as próprias pernas e identificar sua necessidade de crescimento interior.

5a. Sessão: Trabalho e vivências relacionados com a coluna vertebral.

A coluna pode simbolizar o palácio e templo de Salomão com suas colunas de cedro,
relacionadas a Deus enquanto centro, eixo, força e solidez.
Na maçonaria existem duas colunas simbolizando o masculino (lado direito, vontade,
positivo, fogo, vermelho, vinho e sol), e o feminino (esquerdo, intuição, negativo, ar, branco,
água e lua).
Na tradição judaico-cristã a coluna simboliza as relações entre o céu e a terra,
evocando o reconhecimento do homem para com a divindade. Manifesta o poder de Deus
no homem e o poder do homem sob a influência de Deus.
Da mesma forma a Kundalini, na tradição oriental, simboliza uma serpente que repousa
na base da coluna, e ascende por ela quando acordada, passando pelos diversos chakras,
evoluindo do estado primitivo, inconsciente, terreno, para um estado espiritualizado,
cósmico.
Nossa relação com a coluna pode representar a evolução ou a recusa em evoluir,
expressa através de tensões, sofrimentos e bloqueios.

6a. Sessão: Trabalho e vivências relacionados com os membros superiores (braços).

O ombro simboliza o mediador entre a emoção do tronco e a expressão dos braços e


das mãos.
A postura pode revelar aspectos emocionais, tais como: quando o ombro está curvado
pode simbolizar carregar mais responsabilidades do que se pode assumir; quando está
erguido, pode representar o medo. Elevado e num formato quadrado associa-se a poder e
segurança, quando está estreito simboliza fraqueza e falta de força, e caído pode indicar
submissão.
Carregar algo sobre os ombros pode representar a capacidade de carregar o peso da
vida e da responsabilidade, como vemos em textos bíblicos e mitológicos. Assim, também
se relaciona com forças psíquicas e físicas capazes de suportar as exigências do
inconsciente ou da vida.
Os braços, por sua vez, podem simbolizar a força, o poder e proteção. Suas ações
podem ser traduzidas como instrumentos de justiça.
A mão é o símbolo do divino, segundo a tradição judaica. Simboliza também a
apreensão de conhecimento e a transcendência de uma sabedoria maior que a nossa como
ilustrado pela frase “guiado pela mão de Deus”.
Mudras são gesticulações com as mãos e dedos que têm poder de cura.
Finalmente há uma associação das mãos com a mente de tal forma que, quando
realizamos um trabalho manual, conseguimos apaziguar a nossa mente.

7a. Sessão: Trabalho e vivências relacionados com a cabeça e pescoço.

A cabeça representa a ordem, a autoridade de governar, a regra e o controle.


É o lugar da força vital, da alma e de seu poder, bem como da inteligência. Simboliza a
sede do pensamento, a razão, a vontade, a memória, a consciência e o equilíbrio.
Os alquimistas imaginavam o crânio como símbolo de transformação por abrigar o
cérebro, que é a “parte divina”, sede do pensamento e do mistério.
A cabeça corresponde ainda à função pensamento, em oposição aos sentimentos e
aos instintos, cujas correspondências são, respectivamente, o peito e a região abaixo da
cintura.
É na cabeça que encontramos nossos órgãos de sentido, como a boca, o nariz, os
ouvidos e olhos, que são os meios através do qual nos relacionamos com o mundo ao
nosso redor.
8a. Sessão: Encerramento e trabalho voltado para a Integração Corporal.

Nesta última sessão houve uma vivência de integração corporal, através de toques
realizados no corpo todo. As psicoterapeutas efetuaram o trabalho tocando, individualmente,
cada integrante do grupo.
A pele é o limite do eu e do não-eu, ou seja, separa o mundo interior do exterior. Por
outro lado a pele apresenta a mesma origem embrionária com o sistema nervoso e, assim,
está intimamente ligada a este.
Desta forma, tocar a pele é muito importante para o desenvolvimento, pois estimula
vários sistemas corporais: gastrointestinal, genitourinário, respiratório, digestivo, circulatório,
neuroendócrino, imunológico.
Para finalizar, em formação de mandala, foi solicitado que cada integrante verbalizasse
uma palavra para presentear o grupo, as quais foram:
“Paz, harmonia, amor, confraternização, amizade, toque, abraços, força, semente,
solidariedade, tranqüilidade, saudades, sorriso, leveza, calma, recordação, alegria, luz”.

Instrumentos de Avaliação

Como instrumentos de avaliação e aferição do trabalho foram utilizadas duas


ferramentas: o desenho da figura humana (um inicial e outro no final) e um questionário de
caráter aberto, com perguntas abrangentes que permitiram aos integrantes discorrer
individualmente da melhor forma possível.

Questionário
Abaixo enumeramos as questões do questionário, seguidas de tabulação das
respostas obtidas:
1) Quando você fez a inscrição para participar deste grupo, o que você esperava/imaginava
adquirir nestes encontros terapêuticos?

Autoconhecimento (4/8)
Aprender a relaxar (3/8)
Ter harmonia (1/8)
Diminuir estresse (1/8)
Conhecer pessoas (1/8)
Curiosidade (1/8)
Abordagem apenas mental (1/8)

2) O que significou essas sessões após o término da proposta?

Ampliação de consciência (insight) (3/8)


Tranqüilidade e diminuição da ansiedade (4/8)
Aprendizagem de técnicas de relaxamento (3/8)
Convívio melhor com pessoas (3/8)
Despertar do corpo/desbloqueio mente-corpo (1/8)

3) Essas vivências contribuíram/acrescentaram no aspecto pessoal? Como?

Diminuição do estresse/ansiedade (3/8)


Ampliação de consciência (2/8)
Ser mais paciente (1/8)
Aumento da auto-estima (3/8)
Se expor sem medo (2/8)
Diminuição de dores (1/8)
Valorização do corpo (1/8)
Prática das vivências (1/8)

4) Essas vivências contribuíram/acrescentaram no aspecto familiar? Como?

Compartilhar exercícios de relaxamento com familiares (5/8)


Maior tolerância/compreensão, ser mais paciente (4/8).
Dividir/delegar responsabilidades (1/8)

5) Essas vivências contribuíram/acrescentaram no aspecto profissional? Como?

Ser mais paciente/tolerante (3/8)


Diminuição do estresse (2/8)
Aumento da autoconfiança (1/8)
Respeitar e aceitar próprias limitações físicas e emocionais (2/8)
Melhora da interação profissional (1/8)
Diminuição da auto-exigência (1/8)

6) Qual a percepção que você tinha do seu corpo antes de iniciarmos o trabalho?
Houve mudanças nesta percepção após o grupo? Se sim, como?

Ouvir/perceber o corpo (4/8)


Diminuição das dores ou maior tolerância às dores (2/8)
Respeitar o corpo (2/8)
Respeitar os próprios limites (2/8)
Corpo e mente estão relacionados (1/8)
Continua tendo dificuldade para relaxar (1/8)

7) Resuma em uma frase o que você sentiu nestes encontros.

Tranqüilidade, paz, bem-estar, satisfação, felicidade (6/8).


Novos amigos (1/8)
Conhecimento de nossos limites (1/8)
“Me sentir e sentir os outros” (1/8)
“Me senti bem” (1/8)

8) Críticas e sugestões.

Melhorar infra-estrutura: trancar sala, diminuir barulho ao redor, sala fria, sala
apertada (3/8).
Aumentar o número de sessões/semana (1/8)
Continuidade das vivências (2/8)
Música de fundo nas vivências (1/8)
Apostilas das técnicas (1/8)
Extensão a todos os profissionais (1/8)

Desenho da Figura Humana


Integrante 1: 27 anos, sexo feminino, solteira.

1º 2º

O desenho final ocupa um maior espaço na página. O rosto aparece melhor delineado
comparando-se ao desenho inicial. O pescoço aparece em destaque no 2 o. desenho, o que
é interessante devido ao fato de a integrante do grupo, em várias ocasiões durante as
vivências, ter feito referência à sensação de um “nó na garganta”.

Integrante 2: 36 anos, sexo feminino, solteira.

1º 2º

Ambos os desenhos têm a presença do chão, mas no segundo desenho este não está
tortuoso como no primeiro. Há o surgimento de flores, que podem representar novos
recursos. Presença das mãos mais bem definidas no segundo desenho, no qual o corpo
está mais presente e visível.
Integrante 3: 40 anos, sexo masculino, casado.

1º 2º

No 1o. desenho, observamos uma linha separando a cabeça do corpo. Esta linha
desaparece no 2o. desenho, o que pode indicar um melhor fluxo entre aspectos racionais e
os aspectos instintivos do indivíduo. No desenho final os ombros aparecem bem menos
tensionados. No 2o. desenho, as mãos estão mais bem definidas, o chão mais delineado e
firme. Assim como o nariz disforme melhora a sua apresentação no desenho final.
O rosto aparece de frente, melhor posicionado que no primeiro, que está de perfil. No
1o. desenho, a figura ocupa quase todo o papel, apresentando-se mais proporcional no 2o.
desenho.
Integrante 4: 41 anos, sexo feminino, casada.

1º 2º

No 2o. desenho a figura aparece em tamanho maior e mais centralizada, com um


traçado mais forte.

Integrante 5: 49 anos, sexo feminino, separada.

1º 2º
A pobre definição do esquema corporal em ambos os desenhos pode sugerir uma
dificuldade de contato com seu corpo. No entanto, o 2 o. desenho apresenta uma melhor
definição comparando-se ao primeiro.

Integrante 6: sexo feminino, 23 anos, solteira.

1º 2º

Embora a diferença entre os dois desenhos não seja significativa, o aparecimento da


bolsa no desenho final pode representar uma aquisição de recursos, uma bagagem a mais.
Integrante 7: 48 anos,sexo feminino, casada.

1º 2º

A linha que desaparece, no desenho final, entre o pescoço e o corpo pode representar
um certo desbloqueio e um melhor intercâmbio entre os aspectos racionais e os instintivos.
Nota-se a presença de óculos no 2o. desenho, o que pode significar uma possibilidade
de enxergar o mundo de outra forma.

Integrante 8: 27 anos, sexo feminino, casada.

1º 2º
No segundo desenho, o chão apresenta-se mais firme sob os pés da figura; as mãos
estão escondidas. Fato interessante é que esta pessoa apresentou, durante o período da
realização do grupo, uma tendinite no braço e mão direita, que determinaram o seu
afastamento de seu local de trabalho por dois meses. O 2 o. desenho está mais elaborado,
com a pessoa de boné e, inclusive, com sol e nuvens.

Considerações Finais

Nosso corpo é a nossa manifestação concreta de nossa existência neste espaço-


tempo. Mas cabe a pergunta, sempre presente: por que tanta negação do nosso corpo, de
como ele se apresenta, de algo que é um templo, uma morada para nossa alma?
Nossa sociedade ocidental, a qual se desenvolveu hipertrofiando o arquétipo patriarcal
se tornou muito rígida e impositiva. A corrida para ser o melhor elimina do páreo os
indesejados, os fracos e aqueles que não correspondem ao ideal da sociedade. Assim,
mutila-se o corpo, exigindo-se deste um funcionamento e uma estética que nem sempre
correspondem à sua natureza, à sua essência. É assim que as indústrias de cosméticos, de
botox, clínicas de estética e cirurgias plásticas proliferam em meio a este paradigma.
Damos ouvido para nosso corpo somente quando ele está funcionando de acordo com
os preceitos da sociedade (corpo magro, musculoso e com suas proporções
hollywoodianas) ou quando ele está gritando para ser ouvido, através de mal-estar,
desconforto, dores e doenças.
Não há espaço para acolher o nosso corpo como ele é, único e com suas limitações.
Não há espaço para acolher e amar o nosso corpo da forma como ele se apresenta; gordo,
magro, alto, baixo, grande, pequeno etc.
Por outro lado, sabendo-se que nosso corpo raramente corresponderá a este ideal, e
continuamente sentimos a pressão da sociedade ditando nosso comportamento através da
mídia e de nossa educação, tendemos a negar este corpo concreto e presente, o que
contribui para uma dissociação corpo/mente.
Diante destas percepções distorcidas da nossa atualidade, e com o propósito de
acolher o nosso corpo e atenuar esta dissociação corpo/mente, decidimos desenvolver e
realizar este trabalho visando a possibilidade da integração psicofísica. As ferramentas de
aferição mostraram que o resultado foi muito satisfatório para todos os elementos do grupo,
atingindo uma ampliação de suas consciências e favorecendo uma maior integração
corpo/mente.

O trabalho com o corpo possibilitou que emergisse um sentimento de acolhimento no


grupo, por parte dos integrantes entre si e destes para com as psicoterapeutas.

A maior tolerância, que foi percebida através destas vivências, poderá repercutir em
uma melhora de qualidade de atendimento e interação profissional dentro da instituição,
ampliando a abrangência deste trabalho.

Esta maior tolerância, dentro da esfera familiar, associada ao compartilhar dos


exercícios trouxe, para os integrantes do grupo e seus familiares, um aprofundamento de
sua intimidade e uma melhor qualidade nas relações interfamiliares através do contato
emocional. Este maior acolhimento dentro do núcleo familiar também refletiu a amplitude
que estas vivências adquiriram.

No transcorrer dos trabalhos corporais individuais e em duplas houve uma melhor


percepção dos limites, das tensões e bloqueios de cada participante, com associações entre
seus aspectos físicos e emocionais, pois estes suscitaram uma maior possibilidade de
percepção do próprio corpo (de si) e do corpo do colega (do outro). Isto já denota que houve
uma maior integração psicofísica.

Ao mesmo tempo, o toque possibilitou e facilitou uma vinculação maior entre os


integrantes que, no final do grupo, foi sentida como um espaço sagrado onde estes puderam
falar de si e se colocar para o outro sem receios. Este vínculo maior traduz também uma
maior abertura para o outro e para novas experiências.

As imagens que emergiram em alguns integrantes, no transcorrer das vivências, não


foram analisadas, mas sim estimuladas e acolhidas. Sempre houve a disponibilidade de
contato entre os elementos do grupo com as psicoterapeutas para que, caso quisessem e
necessitassem falar sobre as sensações e percepções vivenciadas, e assim num outro
momento e espaço, aprofundar e elaborar individualmente.

Esta predisposição de acolher e atender aos elementos do grupo possibilitou que duas
pessoas procurassem as psicoterapeutas, após o final do grupo, para iniciar um processo de
psicoterapia individual.
O reconhecimento deste trabalho pela instituição e pelos próprios integrantes culminou
com o reconhecimento e a continuidade do mesmo. Atualmente este trabalho terapêutico
está sendo vivenciado por um 4o. grupo para funcionários do INRAD-HCFMUSP e a
ampliação do mesmo, reverberou para um outro segmento dentro da instituição, com o início
de um grupo terapêutico para acompanhantes de pacientes oncológicos.

Referências Bibliográficas

ARCURI, I; “Técnicas Expressivas Coligadas a Trabalho Corporal”. Revista Hermes. São


Paulo: Instituto Sedes Sapientiae, 2004, no 9.

CHEVALIER, J. GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: Ed. José


Olympio Ltda, 2003.

KAST, V. A Dinâmica dos Símbolos: Fundamentos da Psicoterapia Junguiana. São Paulo:


Edições Loyola, 1997.

LELOUP, J.Y. O Corpo e seus Símbolos. Uma antropologia essencial. Petrópolis: Editora
Vozes, 2005.

ROBELL, S. A Mulher Escondida: A Anorexia Nervosa em nossa Cultura. São Paulo: Editora
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SÁNDOR, P. Técnicas de Relaxamento. São Paulo: Vetor Editora Psicopedagógica, 1982.

SOBREIRO, A. C.C. “O Uso de Técnicas de Integração Psicofísicas no Hospital”. Jung &


Corpo. São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae, Ano V, nº 5, 2005.

SUTCLIFFE, J. O livro Completo de Técnicas de Relaxamento. São Paulo: Ed. Manole Ltda,
1998.

WOODMAN, M. A Feminilidade Consciente. São Paulo: Editora Paulus, 2003.

ZOJA, L. A História da Arrogância. São Paulo: Ed. Axis Mundi, 1993.


ALGUNS CAMINHOS JUNGUIANOS
PARA “TOCAR” NA UNIVERSIDADE

Tânia Pessoa1

Este artigo pretende relatar de que maneira a visão de ser humano da Psicologia
Analítica de Carl Gustav Jung forneceu fundamentação teórica para os primeiros passos
do trabalho que venho fazendo como psicóloga, na tarefa de dar apoio ao ensino, à
pesquisa e à extensão do conhecimento dessa abordagem no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo. Pretende, além disso, colaborar com a discussão sobre
alguns princípios que podem sustentar e embasar o trabalho junguiano com abordagem
corporal, onde quer que ele se realize.
A pergunta que talvez precise ser feita para desencadear o assunto em questão é: o
que há em comum no método de trabalho do psicoterapeuta junguiano, do docente que
ensina psicologia junguiana, do coordenador de grupos de estudos junguianos e do
profissional junguiano na gestão de pessoas nas organizações (só para citar alguns
campos)? Para sermos congruentes com a visão de ser humano dessa psicologia, deve
haver pontos em comum; caso contrário, corremos o perigo da desarticulação ou
desintegração entre os pressupostos aplicados à psicoterapia e aqueles utilizados em
outros contextos de trabalho. Desarticulação entre o que ensinamos nas aulas, o que
escrevemos como fundamentação teórica nas pesquisas e o modo de agir como professor
e como pesquisador. A pergunta é: o método de trabalho de um psicólogo junguiano, em
contextos não clínicos, está assentado sobre princípios coerentes com a teoria? Sobre a
importância dessa congruência, escreve Jung (1935):

Você tem que ser a pessoa com a qual você quer influir sobre o seu paciente.
A palavra, a mera palavra, sempre foi considerada vã. Simplesmente não existe
estratagema, por mais engenhoso que seja, capaz de burlar sistematicamente esta
verdade. Não é o objeto da convicção que importa; o que sempre foi eficaz é o fato
de se ter uma convicção. (§167 – grifo do autor)

No texto anteriormente citado, Jung discorre sobre a possibilidade de identificarmos


quatro etapas nos atendimentos clínicos: a confissão, o esclarecimento, a educação e a

1
Psicóloga do Laboratório de Estudos da Personalidade – LEP do IPUSP. Psicoterapeuta. Docente da Universidade
Bandeirante de São Paulo. Especialista em Psicoterapia Junguiana Coligada a Abordagem Corporal e em Cinesiologia pelo
Inst. Sedes Sapientiae. Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP. E-mail: tania@usp.br
transformação. Conclui o capítulo usando a expressão “auto-educação do educador”
(§172), referindo-se ao psicoterapeuta, para explicar uma reação fundamental que precisa
se dar na quarta etapa: a transformação deste. Com isso ele mesmo reconhece que o
horizonte da psicologia se abre para o imprevisível.

Assim a psicologia analítica rompe os grilhões que a prendiam ao consultório


médico. (...) ela deixa de ser um simples método de tratar doentes. Ela passa a tratar
de homens sãos... (1935, §174).

Mas Jung nos deixa a tarefa de construir a “ponte” que separa essa reivindicação da
Psicologia Analítica e a realidade do mundo, dizendo: “Esta ponte ainda tem que ser
construída pedra sobre pedra” (idem, ibidem).
A “auto-educação do educador”, aqui entendida não somente como do
psicoterapeuta, mas como do educador de fato, passa pela identificação dos princípios
que sustentam sua prática. Isso é o que Jung chama de cosmovisão: consciência dos
motivos e das intenções, a qual tende sempre a se desenvolver com o aumento da
experiência e do conhecimento, formando um passo a mais no desenvolvimento da
cosmovisão inicial. Sobre a importância dessa identificação Jung (1947) explica que:

Não é indiferente saber que espécie de cosmovisão possuímos, porque não


formamos apenas uma imagem do mundo; esta imagem modifica-nos também
retroativamente (§ 696).

E, ao nos modificarmos, esta imagem modifica nossa percepção do que são desafios,
do que precisa ser realizado, da prioridade das tarefas... Assim modifica nossa disposição,
nossas ações e nossos motivos, nossa maneira de exercer, cuidar ou apoiar o ensino. Ao
observar o desenvolvimento dessa cosmovisão é possível perceber posturas, decisões e
escolhas por ela determinadas.
Nos contextos em que fui trabalhar como psicóloga encontrei singularidades. Nos
primeiros 10 anos de formada o desafio proposto era ser psicóloga na organização. Desde
1990 meu desafio foi ser psicóloga clínica e, desde 2004, ser também psicóloga no
ambiente acadêmico.
Nos primeiros anos princípios junguianos orientavam meu desenvolvimento pessoal
(paciente em psicoterapia, fazia leituras, cursos, escrevia diários de sonhos) e a busca de
recursos e de habilidades humanas que fizessem com que a organização cumprisse sua
meta. Meu cliente era o negócio da empresa. Após algum tempo passei a ser psicóloga
bioenergética na empresa, mas continuava seguindo os mesmos parâmetros junguianos
em meu próprio processo de vida. Meus clientes eram as pessoas encouraçadas nas suas
relações humanas na empresa2. Nesta época permeava uma impressão de estar
“disfarçada” no ambiente de trabalho e de ser eu mesma apenas em outros lugares.
Pensava que só era possível ser junguiana com abordagem corporal quando fosse atender
no consultório.
Hoje penso que era e sempre foi possível trabalhar de maneira junguiana em
contextos diversos, embora tendo cuidado e respeito para com as particularidades de cada
um deles. Arrisco dizer que, em algum nível, minha prática já estava imbuída, desde os
primeiros anos de trabalho, pela visão de ser humano que abracei assim que a ela fui
apresentada (no terceiro ano da graduação, em 1983). Essa visão permaneceu a mesma,
tendo sido acrescida e fortalecida com novos dados (especialização, grupos de estudos,
supervisão e psicoterapia, dentro da abordagem analítica) e a experiência da vida diária.
Este trabalho tem procurado, portanto, construir uma “passarela” que possa colaborar
com aqueles que estão edificando pontes na direção da ampliação dos horizontes da
Psicologia Analítica para além dos consultórios.

O ambiente universitário

Quanto às especificidades do ambiente da Universidade de São Paulo, foram


observadas:

1. Valorização grande da crítica; levando ao questionamento,


particularmente de novos assuntos.

2. Necessidade de argumentar e encontrar possíveis pontos falhos na


teoria como sinal de reflexão, interesse, profundidade e competência.

3. Exigência da apresentação da contextualização histórica, política e


filosófica de idéias e conceitos para poderem ser assimilados.

4. Preocupação com a delimitação exata de conceitos.

5. Comparação freqüente com outras abordagens, em especial com a


Psicanálise.

6. Necessidade de distanciar a Psicologia Analítica de abordagens


místicas ou “não científicas”, para poder ser ensinada ou considerada válida.

2
Nesta época eu havia feito cursos e supervisão com Maria Vilma Chiorlin Velloso e Gilberto Velloso, que criaram uma
metodologia para trabalhar com “Terapia Organizacional” através da abordagem Bioenergética em grupo nas empresas.
7. Execução somente de propostas que estejam dentro de um projeto
(com objetivo, justificativa, metodologia e demais itens relativos a essa forma de
apresentação) discutido e aprovado por comissões de “pareceristas” de outras
áreas e abordagens, coerente com o plano da sub-área de estudo e contando
com a espera de todos os trâmites burocráticos envolvidos.

Como eu poderia contribuir nesse ambiente? Como não me distanciar de um trabalho


junguiano com abordagem corporal na academia?
Talvez o paradigma a ser vencido tenha sido considerar os princípios que orientavam
minha prática no consultório como passíveis de orientar também este novo trabalho e –
por que não sugerir? -, passíveis de guiar este ofício nos diversos contextos nos quais
estejamos imbuídos da tarefa de psicólogos.
Introduzo-os abaixo em forma de tópicos que poderão ser mais desenvolvidos em um
trabalho de maior extensão. Cabe lembrar que é uma lista aberta a inclusões e
aperfeiçoamentos.

1 - Conhecimento como transformação

Estamos num momento histórico em que a informação pode ser obtida com
facilidade. Resta a tarefa de transformarmos, juntos, a informação em conhecimento, e isto
não parece possível apenas pelo pensamento dirigido, racional e objetivo, requerendo
nesse processo as outras funções da consciência: sentimento, sensação e intuição.
Podemos nos valer aqui do modelo de obtenção de descobertas ( insight) da
psicoterapia junguiana como um caminho para o ensino e a busca de conhecimento na
universidade. Mas para tanto será necessário rever o que se entende por obtenção e
criação de conhecimento neste contexto.
Na Psicologia Analítica entendemos que para construir e incorporar conhecimento é
necessário estar acompanhado. Como explica a própria palavra conhecimento, gnôsis, do

grego, acrescida de co, que é a contração de com mais o, ou de cognoscere do latim.


Portanto para conhecer é necessário estar junto do Self e do outro. O conhecimento,
assim entendido como ensino transformador, convoca a inteireza das pessoas, pois
implica no processo de contato consigo (Self) e com o outro.
O ensino assim entendido

não se centraliza nem no sujeito que aprende nem no objeto aprendido. Ambos são
relativos e secundários nesse saber. Primordial e absoluta é a relação do Ego com o
Outro dentro do Self. (Byington, 2004, p.21)

Byington (2004) nos leva a refletir que essa mudança de enfoque necessariamente
passa pela vivência, quando diz:

Devido à nossa tradição pedagógica, tendemos a repetir o que ouvimos ou o que


lemos buscando a verdade pela lógica. (...) Foi para mim um marco quando percebi
que o principal fator que separa a erudição da sabedoria é a vivência e a
compreensão da sua função no processo existencial. (p.19 – grifo do autor)

2 - Ambiência do ensino como lugar de transmutação

Para a apropriação do conhecimento entendido como transformação, que solicita a


vivência conjunta, se faz necessário um ambiente (físico, psíquico e alguns arriscariam
dizer, espiritual) propício.
Falamos, na Psicologia Analítica, de todo o cuidado que temos com o espaço clínico,
como um lugar sagrado. Agora precisamos falar desse cuidado no espaço da educação,
da necessidade de revitalizá-lo, investindo na constituição de um “vaso alquímico”, de um
“lugar” sagrado para a transformação da informação em conhecimento.
Esse espaço sagrado desperta na consciência humana a ação do numinosum,
gerando uma mudança de atitude psíquica que, assim conseguida, vem acompanhada da
qualidade de inteireza, de abertura e consideração para com o diferente, o outro e o novo
no ensino.

3 - Diferentes níveis de comunicação na relação pedagógica

Na Psicologia Analítica consideramos que a comunicação também se dá para além


do nível consciente. Assim como indicam as flechas do gráfico abaixo, a consciência pode
estar em contato com o próprio inconsciente, mas também com o inconsciente do outro. O
inconsciente, por sua vez, pode se comunicar com a própria consciência, com a
consciência e com a inconsciência do outro. Disso deduzimos que, para além da conversa
que se dá entre consciências, há a conversa que se dá entre inconsciências e há também
aquela percepção de dados vindos do outro os quais são inconscientes para ele.
Eu Outro
Cons Cons

Inc. Inc.

Como em geral o aspecto desenvolvido na consciência guarda sua polaridade não


desenvolvida no inconsciente, em se tratando de ensino a consciência daquele que sabe
(professor) guarda em seu inconsciente a ignorância. No caso do aluno que
conscientemente é ignorante, encontramos no seu inconsciente aquele que sabe. Da
comunicação fluida nos diferentes sentidos das flechas depende uma relação pedagógica
não engessadora em uma única polaridade consciente.
A devida consideração do outro ignorante dentro da psique do professor auxilia
enormemente a consideração do outro sábio dentro do aluno. Justamente na relação entre
ambos: professor e aluno, sábio e ignorante, é que se torna mais efetivo o conhecimento.
Explicando sobre essa relação e falando a respeito da importância da não cisão dessas
polaridades arquetípicas, mestre e aprendiz, a Profª Drª Laura Villares de Freitas (1990),
Professora no Instituto de Psicologia da USP, aproxima o quadro dos fenômenos da
consciência em relação com o inconsciente da relação pedagógica, tendo como
conseqüência colocar o processo de individuação do educador e do aluno em foco.
Esta comunicação que se dá além das consciências envolvidas corrobora a
percepção de que vivemos também num Unus Mundus, ou seja, existe um substrato no
qual psique e corpo estão unidos e descobertas recentes da ciência vêm confirmar que até
mesmo psiques diferentes e corpos diferentes não estão tão separados como estamos
habituados a pensar. Jung fundamenta esta idéia basicamente no seu conceito de
inconsciente coletivo, mas desenvolve sua dinâmica de funcionamento nos conceitos de
participation mystique e sincronicidade.
Caminhando também nesse sentido, o movimento da transdisciplinaridade se refere a
diferentes níveis de comunicação. Para ele não estamos todos tão separados uns dos
outros como julgamos, e o conhecimento não é nem exterior, nem interior. Por ser ambos
ao mesmo tempo, é possível o estudo do universo pelo estudo do ser humano e vice-
versa, pois eles se sustentam mutuamente.

A transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica, diz respeito àquilo que está
ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de
qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual
um dos imperativos é a unidade do conhecimento. (Nicolescu, 2001, p.51- grifos do
autor)

Provavelmente formamos uma grande constelação humana, inter-relacionada e inter-


dependente, assim como a cósmica.

4 - A relação pedagógica criada exige cuidado amoroso

Parece que a recíproca de que o inconsciente tratará a consciência levando em


consideração como é tratado por ela, também é válida para as relações de parcerias, tais
como as que engendram ensino e pesquisa na universidade. Estamos falando do outro em
nós e fora de nós. A mesma postura comprometida da nossa consciência para com os
conteúdos de origem inconsciente, que requerem consideração e possibilidade de diálogo
honesto com a consciência, precisa ser usada para com os conteúdos de origem das
relações criadas no ambiente. Essas relações de parcerias nessa abordagem da
Psicologia Analítica com o fim de construir conhecimento exigem um trabalho artesanal e
requintado.

Ars reqirit totum hominem (A arte requer o homem inteiro), lê-se num tratado
alquímico. O mesmo se aplica plenamente ao trabalho psicoterapêutico”. (Jung, 1946,
§400)

Eu diria que se aplica também ao trabalho no ensino (ensinar e aprender). Trabalho


de temperança:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive. 3

3
Fernando Pessoa, por Ricardo Reis.
O conhecimento adquirido junto, num ambiente de transformação, numa relação
pedagógica em que acontecem e são percebidos diferentes níveis de comunicação, cria
uma espécie de campo singular de vinculação, que só pode ser mantido, e continuar
gerando frutos em termos de mais conhecimento para ambos, se for cuidado.

O importante para a transmissão do ensino simbólico é a autenticidade e a


inteireza existencial do educador, que emanam da sua entrega intelectual e emocional
à sua profissão, a qual inclui, além do material ensinado, a formação da personalidade
dos seus alunos e a sua própria. (Byington, 2004, p. 72)

Essa vivência simbólica no ensino serve de canal para a inteireza do Ser vir
acompanhada do aprendizado.

5 – A relação pedagógica criada dinamiza a energia psíquica dos envolvidos

Nessa relação pedagógica repleta de vivência simbólica há mistura de substâncias,


transformando os que nela estão envolvidos. A possibilidade de estar junto, de ser incluído
nesse processo de busca e transformação do conhecimento e sair dele da mesma maneira
em que se entrou torna-se improvável na ótica da Psicologia Analítica. É um caminho sem
retorno ao estado de consciência anterior.
Digamos que a proposta do ensino e pesquisa assim praticados auxilia o processo
energético a caminhar a favor da realização do potencial singular de cada um. Ao invés de
criar sombra, ele criará mais consciência e completude.
Pode ser elucidativo explicar este ponto com uma história de tradição oral, A
Importância do Bosque:

—Todos os mestres dizem que o tesouro espiritual é uma descoberta solitária.


Então por que estamos juntos? — perguntou um dos discípulos ao mestre sufi
Nasrudin.
— Vocês estão juntos porque um bosque é sempre mais forte que uma árvore
solitária — respondeu Nasrudin e continuou — O bosque mantém a umidade do ar,
resiste melhor a um furacão, ajuda o solo a ser fértil. Mas o que faz uma árvore ser
resistente, é a sua raiz. E a raiz de uma planta não pode ajudar outra a crescer. Estar
juntos no mesmo propósito, e deixar que cada um evolua à sua maneira, este é o
caminho dos que desejam comungar com Deus.

O processo de transformação da informação em conhecimento, pelo trabalho junto


nesse “bosque”, com o auxílio de psiques imbuídas da intenção de ampliação da própria
consciência e da ampliação da herança humana da ciência caminha rumo à inteireza do
conhecedor e do conhecimento. Essa aproximação e mistura de substâncias, portanto, de
pessoas e suas idéias, seus conhecimentos prévios, sua subjetividade e tudo o mais que
cada uma delas comportar, possibilita o surgimento do poder de multiplicatio, tanto
naquele que passa a conhecer, quanto no conhecimento assim materializado, poder que
paradoxalmente deveria estar presente desde o princípio, como potencial.
No caso do ensino, esta aproximação dificulta a produção de conhecimento quando
estamos separados de nós mesmos, quando estamos separados ou do nosso lado
aprendiz ou do nosso lado mestre. Igualmente, quando estamos separados do mestre ou
do aprendiz exterior. Ser regido pelo arquétipo mestre-aprendiz, conforme postulado por
Freitas (1990) e acima citado, procurando não cindi-lo na consciência, deveria ser a meta
de todo educador, como um mestre que trabalha para além de apenas fornecer
informações, mas para ajudar na busca e vivência das mesmas, que assim passam a fazer
parte de cada membro do bosque de Nasrudin.

6 – O trabalho pedagógico como atribuição do Self do educador e do Self do


educando em diálogo num terceiro ponto acima de ambos

No treinamento de psicoterapeutas, no referencial da Psicologia Junguiana


aprendemos a ter intenção de trabalho conjunto com o Self. Valer-se do contato com a
inteireza do próprio Self para poder trabalhar auxiliado pela inteireza do Self do paciente.
O “lugar” em que é possível imaginar isso acontecendo seria aquele de intersecção entre
essas duas instâncias (o Self de ambos). Estaria acima ou além da consciência do
psicoterapeuta e do paciente, mas relativamente consciente para o primeiro. Esse lugar é
como um terceiro ponto.
Uso a imagem mental desse terceiro ponto acima entre o paciente e mim, numa clara
referência a algo maior que a consciência a trabalhar pelo processo que ali estava
ocorrendo na psicoterapia.

 
De fato, a qualidade positiva de um trabalho corporal pode ser intensificada com a
ajuda da nossa intenção. Experimentamos a diferença de receber um toque com e sem
intenção de trabalho conjunto com o Self, através da imagem de um terceiro ponto e fomos
capazes de “perceber” qual era um e qual era outro.
Como transportar esse treinamento para o trabalho acadêmico? A resposta possível
segue na direção de que essa parceria entre Selves é possível não somente na relação
com o paciente, mas também em outras relações duais ou com um grupo de pessoas, em
especial quando entra em jogo alguma tarefa conjunta, que neste caso é a de criar
conhecimento. Conforme explica Jung (1942),

O Si-Mesmo não é o eu, mas uma totalidade superior a este que abrange a
consciência e o inconsciente; como porém este último não possui limites
determináveis e, além do mais, é de natureza coletiva em suas camadas mais
profundas, não é possível distingui-lo de um outro indivíduo. Por isso, constitui a
participation mystique que encontramos sempre e por toda parte, ou seja, a unidade
da multiplicidade, um único homem em todos. (§419)

Esse terceiro ponto, que forma um triângulo entre duas pessoas, tem a função de
criar um plano, indo além de uma reta entre dois pontos, que assim ficariam presos por
polaridades, portanto por oposições, comparações e contrastes. Um plano, a partir do
triângulo, é a primeira possibilidade de manifestação de um espaço, de criação. Criação e
desenvolvimento da ciência além da formação de alunos e de pesquisadores é o que visa
o trabalho na academia. Portanto, não apenas distinção entre conhecimentos.
A validade dessa intenção de conexão com o terceiro ponto pode ser confirmada na
medida em que trabalhamos com o princípio subjacente de que a consciência está se
desenvolvendo desde o nascimento até o final da vida, podendo atingir condição na qual
seja dirigida não somente pela vontade, que é fruto da decisão focada na consciência e
que elabora os objetivos, mas também pela função que faz contato, que toca o
inconsciente, ou seja, da intenção que imagina, que dialoga, canaliza e permite a
penetração do “espírito na brasa” ou na matéria. Matéria de estudo, matéria de pesquisa,
matéria humana,...
O que se desenvolve com esta finalidade é a função transcendente, que também
pode ser entendida como resultado da unificação dos opostos eu-outro num terceiro ponto,
provocando uma nova atitude em ambos. Essa função é transcendente porque conjuga as
polaridades presentes nos conteúdos ou estruturas da psique, proporcionando diálogo, o
qual não elimina a distinção dos pólos iniciais, mas que, através dela, gera nova
orientação em ambos (Dicionário Junguiano).
A esse respeito, Jung (1947) nos ensina que, diferente do “homem da massa”, uma
consciência que está caminhando na assimilação do inconsciente se percebe responsável
pelo próprio desenvolvimento e pelo desenvolvimento do Estado e da Sociedade. O
privilégio do “homem da massa“ é poder não se sentir responsável por si e pelo que o
rodeia, mas o privilégio da consciência em ampliação é “... a possibilidade de encontrar um
ponto espiritual fixo, um reino que ‘não é deste mundo’” (§410).
Digamos que a tarefa de ter consciência da possibilidade de trabalho pedagógico
nesse nível do Self cabe inicialmente ao professor. Em seu trabalho ele se coloca a
serviço do Self, reconhecendo nele o potencial de atrair a educação para a completude 4.

7 - O corpo e a psique são sagrados

Quando vamos para o encontro, vamos também com o nosso corpo. Isso parece
óbvio, mas talvez não o seja quando cuidar da própria saúde significa também cuidado
para estar com o outro. Trata-se do afinar constante de nós mesmos já que, diferente do
dentista, por exemplo, que usa diversos aparelhos e ferramentas, nosso principal
instrumento de trabalho é a nossa presença, que também é corporal. Nosso corpo exerce
influência no ambiente da psicoterapia, mas também no ambiente do ensino. Falando da
psicoterapia, Jung (1946) nos instrui assim: (PENSO QUE PODERIA SER RETIRADA
ESSA CITAÇÃO)

... as exigências da análise são a meu ver muito maiores em relação à postura
espiritual e moral do médico do que à mera aplicação de uma técnica de rotina. Penso
que ficou claro também que a influência terapêutica do médico depende, antes de
mais nada, desta sua postura mais pessoal. Contudo, se o leitor concluir de tudo isso,
que o método tem pouca ou nenhuma importância, é sinal de que não entendeu bem
o meu ponto de vista. (§291)

Nós realizamos ligações psicossomáticas com as pessoas que nos cercam.


Fenômenos contratransferenciais podem ser observados no próprio corpo na sala de
psicoterapia, mas penso que também na sala de aulas. A postura corporal do paciente na
cadeira, e acrescento também a postura corporal dos alunos, a localização das cadeiras
na sala, a movimentação ou não, as saídas durante a aula, a fisionomia, o olhar etc., são
preocupações importantes quando visamos “tocar” o outro no processo de conhecer.

4
Esta expressão, “educação para a completude”, utilizei na minha dissertação de mestrado para me referir ao trabalho
que os contos de fadas, como símbolos e educadores, podem fazer pela psique.
Com relação ao olhar, embora o trabalho corporal da Cinesiologia envolva, em sua
maioria, as mãos do psicoterapeuta, também aprendemos toques que envolvem o sopro,
toques sem toque e toques apenas com o olhar.
Na academia seria possível um olhar que percorre os lugares e olha nos olhos das
pessoas que encontra na intenção não só do trabalho de ver, deixando de ser um órgão
apenas receptor de um dos sentidos humanos, a visão, para ser, também, um órgão
transmissor de uma intenção, um órgão que “toca”. Esse ofício é explicado pelo Prof. Dr.
Marcos Ferreira Santos de maneira poética ou com uma linguagem que propõe a inclusão
do encanto, assim: ... Que os sentidos todos socorram os nossos olhos na fome de
enxergar para além de ver. A alma, em seu leito de uma íris breve, agradece.5 A alma do
mestre e do aprendiz agradecem.
O olhar como um toque e seu potencial de causar mudança aparecem na letra da
seguinte música composta por Paulo Tatit e Arnaldo Antunes, e cantada pelos Tribalistas:
O seu olhar lá fora,
O seu olhar no céu,
O seu olhar demora,
O seu olhar no meu,
O seu olhar, seu olhar melhora,
melhora o meu.

Onde a brasa mora e devora o breu


Como a chuva molha o que se escondeu.

O seu olhar, seu olhar melhora,


melhora o meu.

O seu olhar agora,


O seu olhar nasceu,
O seu olhar me olha,
O seu olhar é seu.
O seu olhar, seu olhar melhora,
melhora o meu.

Dando força às possibilidades do olhar, Céline Lorthiois diz que

... educar é uma questão, basicamente, de olhar. A Arte de educar é uma arte do
olhar. É arte de dar luz. Temos perdido a mestria nesta arte, ao considerar o olho
como coletor de informações, um caçador de imagens, um órgão sugador de
realidade. Apenas. Ficamos cegos ao fato de que temos a capacidade de construir
mundos do tamanho e à imagem do nosso olhar estreitos e maldosos ou vastos e
belos (Lorthiois, 1996, p.40).

5
Fragmento de poema de autoria do Prof Dr Marcos Ferreira Santos – não publicado.
Com o objetivo de propor uma educação de sensibilidade que associe à dimensão
cognitiva a dimensão simbólica, onde interagem razão e imaginação, Ferreira Santos
(2004) coloca a fala do corpo e a conversação (como corpo da fala) como elementos
importantíssimos da intersubjetividade.

Um pólo exprime no outro sua complementaridade: o corpo como substanciação


da linguagem dizendo de seu lugar no mundo e a conversação como corpo fluído na
linguagem, corporificando palavras, tocando significações e animando encontros.
(p.71)

O corpo no ensino expressa mais do que sentimentos e sensações, o corpo pensa.

A ambiência vai se preenchendo de gestos, olhares, fisionomias, sons, silêncios,


interjeições, toques, posturas que vão se compondo e rompendo o círculo restrito do
mundo privado para acolher o Outro e preparar este fundo denso (e imperceptível
para uma análise rápida e superficial) de onde emergirá a primeira palavra (....) (idem,
p.68).

Estar consigo e com as pessoas com o propósito de formação acadêmica requer


atenção ao próprio corpo e ao corpo do outro de uma maneira sagrada. Este ponto me
parece bastante desconsiderado quando vemos corpos mal acomodados nas cadeiras
universitárias, enfileiradas de maneira a ter uma nuca atrás de outra nuca. O corpo que
também pensa e quer falar se mexe e remexe em manifestações que buscam o assegurar
de sua presença. Elementos como o sanduíche ainda não digerido e a calça apertada da
moda cravam no corpo as estacas que o prendem num lugar no qual é solicitado que fique
quieto e calado.

8 – A atenção aos sinais/visão simbólica

Uma postura tão usada na psicoterapia analítica é aquela que amplia o “território” e a
profundidade da consciência a fim de captar sentido e finalidade: disposição para receber
os fatos e dados do contexto da análise a partir, também, da visão simbólica. Essa visão
solicitada no contexto clínico pode ser lembrada como possibilidade de compreensão do
contexto acadêmico.
Whitmont (1969) explica a possibilidade da compreensão simbólica da vida como um
estágio a ser alcançado pela consciência, que se utiliza de um novo meio de percepção,
ou seja, da intuição do significado interior. O autor deixa margem para o questionamento
daquilo que é percebido apenas como exterior.
A esta intuição do significado, além do que o objeto externo (cuja forma a
imagem usa) per se representa, chamamos de modo simbólico de compreensão.
Quando este modo está ausente ou não está suficientemente disponível para o
consciente, as imagens psíquicas são, à medida que surgem, ingenuamente
classificadas como concernentes apenas à realidade externa. (p.28)

Para ter acesso a estas informações a mente consciente precisa abdicar da sua
intensidade puramente racional e, além disso, precisa permitir-se relaxar e respirar mais
do que superficialmente, clareando a percepção das, sempre presentes6 relações
simbólicas.
Assim sendo, as informações obtidas com a visão simbólica auxiliam a consciência a
se manter dentro da finalidade do trabalho, corrigindo desvios desnecessários. Conforme
explica Jefrey Raff:

Podemos alegar que qualquer situação `mundana` ou exterior proporciona


pistas a respeito de algo que é significativo. Muitas situações exteriores apontam
para uma imagem interior que pode ser vivenciada diretamente por meio da
imaginação ativa. (...) Um conflito com o chefe, um acidente de carro, uma dor de
cabeça, um bicho de estimação doente; todos estes eventos podem ser vistos com
os olhos da imaginação (...) permitindo-nos buscar seu significado. Trabalhar com o
significado abre possibilidades que antes estavam ocultas. É possível contemplar
uma situação exterior como se fosse um sonho (2002, p. 76).

Como uma visão possível para acessar conteúdos interiores deveria ser considerada
pela ciência como uma visão possível para complementar a compreensão e significado
dos fatos exteriores, por exemplo, dos assuntos estudados e das relações humanas
estabelecidas durantes esses estudos, já que essa divisão em interior e exterior bem pode
ser fruto apenas da necessidade da limitação da consciência.
Convido, então, o leitor a formar dois quadrados sobrepostos, numa estrela de oito
pontas, que pode representar graficamente os itens acima dispostos.

6
É mais comum entendermos os eventos sincronísticos e as relações simbólicas como raridades, e assim passamos a
esperar por eles como que por um milagre. Jung relata, em suas obras, sobre o estado da consciência ou da disposição da
mente nos quais esses eventos ocorreram. Provavelmente cabe a nós a tarefa de conquistar a sintonia com esse estado e,
assim, ter acesso mais freqüente a ele.
Princípios da Prática Junguiana Corporal para Contextos Diversos

Intenção no terceiro
ponto
Cuidado amoroso das
O corpo e psique relações internas e
sagrados externas

Diferentes Atenção aos


níveis de sinais/percepção
comunicação simbólica

Espaço
Contato e sagrado do
dinamização conhecimento
energética
Conhecimento como
transformação

Tudo isso em seu conjunto poderia ser considerado como princípios do “Toque Sutil“
numa abordagem Junguiana? Seria o “Toque Sutil” uma maneira de estar no mundo,
consigo e com os outros? Então seriam os elementos que compõem e sustentam também
o “tocar” na universidade?
Entendo que os diferentes toques aprendidos na formação (calatonia, descompressão
fracionada, toque sem toque, por exemplo) são a extensão visível do trabalho sutil, dentro
dessa abordagem.
Para a palavra sutil, no dicionário Aurélio, há os sinônimos: tênue, grácil, penetrante,
quase impalpável, feito com delicadeza, que anda sem fazer rumor, perspicaz, hábil,
engenhoso. Lembrando que “calatonia significa, além de relaxação, o afastar-se do estado
de fúria, abrir a porta, retirar os véus dos olhos. Tudo com suavidade” 7. Então, usar
calatonia pode ser, na extensão invisível do toque, apenas olhar, abrir, centrar.
Esses pontos acima poderiam fazer parte dos princípios da Psicologia Analítica de
Jung para a Educação? Tenho percebido que a resposta é afirmativa. É com esse
entendimento, e transpondo-o para esse novo ambiente, que tenho trabalhado. Embora
minhas ações iniciais sejam bastante óbvias ou simples, através delas tenho preparado o
fundamento para que progridam para ações mais complexas. Desta maneira espero
contribuir para a inclusão de eventos, estágios, estudos e demais atividades que se

7 www.calatonia.net
utilizem do potencial que a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung tem para o contexto
do ensino e da pesquisa na universidade.
Essas ações iniciais se resumem em:
a) Cuidar da respiração: Antes de ir para o bloco de aulas ou para alguma
reunião, ainda na minha sala, sento-me bem ajustada e com a coluna ereta, fico algum
tempo cuidando da consciência da minha respiração. Não procuro torná-la profunda
forçadamente, mas tenho a intenção de aquietar-me para que ela se torne mais profunda.
Trata-se aqui da procura de uma harmonização geral com o estabelecimento de um ritmo
respiratório mais benéfico.
b) Concentração: Após alguns minutos desse “aquietar-me” e da consciência
colocada na respiração, percebendo a desaceleração, foco minha intenção no intuito de
trabalhar em parceria com o meu Self e com o Self das pessoas que vou encontrar. Inicio
aqui a visualização do terceiro ponto e procuro mantê-lo presente durante todo o tempo
em que durar a atividade.
c) Atenção ao próprio eixo: Procuro manter a consciência da minha coluna. Isso
tem sido de importância particular neste ambiente, uma vez que o convite mais freqüente é
para envolver-se na confusão e agitação de questões levantadas que querem ocupar um
espaço grande demais, já que o foco deve ser o processo conjunto de aquisição de
conhecimento.
d) Preparação do espaço físico: O embaralhar caótico de cadeiras é trocado,
preferencialmente, por um semicírculo. Os que estão presentes acabam auxiliando na
tarefa. A princípio eles têm um pouco de dificuldade de vencer a inércia por já terem
acomodado seus pertences em outro local da sala, mas depois os que vão chegando vão
aderindo à proposta e, com o passar das semanas, eles mesmos começam a preparar o
ambiente. Outras medidas simples como iniciar com a lousa apagada também ajuda a
focar os alunos no assunto do momento. Isso significa a preparação física da sala onde se
trabalha, seja ela a sala de aulas, a sala individual, a sala de reuniões, bem como a
preparação do próprio corpo e do material que será apresentado. Criar e cuidar do espaço
sagrado de encontro e de transformação é fundamental.
e) Dialogar com o outro: Nos trabalhos dos alunos: escrevo comentários em
cada um, conversando com o aluno, levantando outras possibilidades e colocando-me à
disposição. Faço isso imaginando real diálogo com eles. Procuro responder dúvidas por e-
mail e pelos corredores. Onde quer que algum aluno peça auxílio ele é o mais importante
naquele instante. Olho nos olhos dos alunos que me olham na intenção de fazer contato.
f) Atenção aos sinais: Procuro me manter atenta às oportunidades,
circunstâncias ou “coincidências” positivas para o trabalho, abrindo-me para ele a partir do
Self. Isso parece aumentar a possibilidade de ocorrer contato. Semelhante atrai
semelhante.
g) Evitar confronto: Não entro em debate sobre pontos de vista diferentes com
os alunos. Existem momentos onde é melhor não entrar em ação, ou a ação certa é não
atuar.
h) Perpetuar os contatos: Após o término do semestre letivo e, portanto, do meu
trabalho de apoio em sala de aula, meu olhar, minha postura, permanece a mesma com as
pessoas que terminaram a disciplina. Cuido de cada conexão criada, mostrando que as
reconheço no meio das outras, mesmo após o término de atividades semestrais. Entendo
que as pessoas (funcionários, alunos de graduação, de pós-graduação, professores,
pessoal da limpeza,...) são únicas, para além da função que elas ali desempenham, pois
tem em si um Self e que participam da composição do Self da instituição.
Dessa maneira entendo que estou realizando “toques sutis” na universidade e espero
que, assim como na homeopatia, na qual quanto mais sutil é o remédio, mais profunda é
sua ação, esse trabalho esteja criando “raízes” bem fundas e saudáveis para crescer.

Observando possíveis resultados:

Considero, como possíveis conseqüências deste trabalho, os seguintes indicadores:


1- O aumento do número de alunos interessados em disciplinas optativas de
Psicologia Analítica.

2- A introdução de Danças Circulares dos Povos (como atividade corporal) em


algumas aulas de uma disciplina optativa de Psicologia Analítica ministrada pela Profª. Drª.
Laura Villares de Freitas. Foi uma tentativa de auxiliar o desenvolvimento de uma
disposição nos alunos para lidar com uma teoria que exige, muitas vezes, um pensamento
mais circular e paradoxal do que linear. Essa tentativa encontrou poucas datas para
realização, levantando resistências. Aconteceu apenas em um semestre letivo (em 2005)
como parte do currículum, mas foi criado um grupo de Danças Circulares dos Povos,
aberto à comunidade USP, funcionários e demais pessoas. Em 2007 ele entrou no seu
terceiro semestre de existência e terá a inclusão dos Contos de Tradição Oral. Junto aos
alunos, como disciplina optativa, esta seria uma atividade que provavelmente ajudaria na
compreensão vivenciada do que a Psicologia Analítica chama de Self, como centro e
totalidade da circunferência total da psique, além de auxiliar no estabelecimento do Self
Pedagógico, postulado por Byington (2004).
Conforme explica Jung (1942),

a ronda solene tem por objetivo fixar a imagem do círculo e do centro na mente, e
marcar a relação de cada ponto da periferia com o meio do círculo.
Psicologicamente, essa disposição significa uma mandala, conseqüentemente, um
símbolo do Si-Mesmo, para o qual se acham orientados não somente o eu
individual mas, juntamente com ele, muitas outras pessoas que estão ligadas a ele
pelos sentimentos ou pelo destino. (§419)

3- A participação de uma professora que ministra Técnicas de Relaxamento no Instituto


nesse grupo de Danças Circulares dos Povos.

4- A entrada da Psicologia Analítica no rol das disciplinas que oferecem Práticas de


Pesquisa em Psicologia (PPP I e II), na qual duplas de alunos da graduação iniciaram
pesquisas tendo a abordagem analítica como referencial.

5- A realização de Danças Circulares na SIPAT (Semana Interna de Prevenção de


Acidentes) dos funcionários do Instituto de Psicologia.

6- A organização, em parceria com a Profª DRª Laura Villares de Freitas, do “I


Simpósio de Psicologia Analítica do IPUSP” e do “Encontro de Psicologia Junguiana –
Trabalhos Brasileiros Apresentados na II International Academic Conference of Analytical
8
Estamos dançando, durante a SIPAT, em frente ao prédio da administração do IPUSP.
Psychology & Junguian Studies – Texas 2005”, dentro do “espírito” dos princípios aqui
trazidos.

Essas ações iniciais e esses indicadores de crescimento nem sempre aconteceram


em condições fáceis. Em todos os ambientes e nesse ambiente acadêmico não seria
diferente, encontramos as dificuldades por demais humanas de todos nós. A necessidade
de definir quem será mais reconhecido e tantas outras tendências enraizadas na nossa
sombra, que são tão mais presentes quanto mais acreditamos ter iluminado áreas escuras
de nós mesmos.
Enquanto a consciência individual e geral não se amplia para podermos lidar melhor
com essas dificuldades, ninguém quer ficar “fora do jogo” na instituição. Precisamos fazer,
enquanto isso, como aconselha o alquimista Khunrath, citado por Jung (1944):

Assim pois estuda/ medita/ sua/ trabalha, cozinha... abrir-se-á então para ti
uma torrente salutar, a qual nasce do coração do filho do grande mundo, uma água
que nos é dada pelo próprio filho do grande mundo e que jorra de seu corpo e
coração, tornando-se uma verdadeira Aqua Vitae natural... (§390).

Referências Bibliográficas

Byington, Carlos A.B. A Construção Amorosa do Saber – Fundamento e Finalidade da


Pedagogia Simbólica Junguiana. São Paulo: W11, 2004.

Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Versão
Eletrônica – Lexikon Informática LTDA Versão 3.0, Ed. Nova Fronteira, 1999.

FERREIRA SANTOS, Marcos. Crepusculário: Conferências Sobre Mitohermenêutica e


Educação em Euskadi. São Paulo: Zouk, 2004.

FREITAS, L.V. (1990). O Arquétipo do Mestre-Aprendiz: considerações sobre a vivência.


In Rev. Junguiana. São Paulo, Vol. 8, 1990.

LIMA, Tania Pessoa de. Alquimia dos Contos de Fadas: Educação para a Completude.
Dissertação. FEUSP, 2004.

LORTHIOIS, Marie-Céline (1996). Educação: Um Exercício do Olhar. In Rev. Hermes, nº 1,


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Nicolescu, Basarab (1994). O Manifesto da Transdisciplinariedade, São Paulo: TRIOM,


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PIERI, Paolo Francesco. Dicionário Junguiano. São Paulo: Paulus, 2002.


JUNG, C. G. (1935) A Prática da Psicoterapia. 1ª ed., C.W. Vol. XVI/1, Petrópolis:
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__________ (1942). O Símbolo da Transformação na Missa. 2ª ed., C.W. Vol. XI /3,


Petrópolis: Vozes, 1985.

__________ (1944) Psicologia e Alquimia. 2ª ed., C.W. Vol. XII, Petrópolis: Vozes, 1994.

__________ (1946). Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência . 2ª ed., C.W. Vol.
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__________ (1947) A Natureza da Psique. 1ª ed., C.W. Vol. VIII/2, Petrópolis: Vozes,
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RAFF, Jefrey (2000). Jung e a Imaginação Alquímica. São Paulo: Mandarim, 2002.

WHITMONT, Edward C. (1969). A Busca do Símbolo: Conceitos Básicos de Psicologia


Analítica. São Paulo: Cultrix, 2006.

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O PODER DO TOQUE COMO INSTRUMENTO TERAPÊUTICO
Uma Proposta de Trabalho com Crianças Abandonadas1

Kazue Suguimoto2

À beira do penhasco, de braços abertos, contemplando a grandeza do mar


e sentindo a brisa acariciar meu corpo, minha alma se alimenta.
É assim, o abraço de corações entre amigos, o acalento da mãe carinhosa,
o toque suave e sincero daquele que te ama. (Kazue Suguimoto)

A escolha do toque como tema da minha monografia para o curso de especialização


“Jung e Corpo” foi decorrente de um trabalho voluntário que eu vinha desenvolvendo em um
abrigo para crianças, além das minhas próprias experiências, vivências corporais e
elaborações pelas quais passei ao longo desses anos de formação. Vivências nas quais um
“simples” toque era capaz de modificar posturas, desestruturar antigas couraças e levar a
profundas reflexões e questionamentos, como num “passe de mágica”. Um “toque mágico”
que descerrava as cortinas de um passado mal compreendido, abrindo para uma nova
forma de ver o mundo e de Ser. E assim, por acreditar que o toque é uma possibilidade
muito forte de ajudar a resolver questões relativas à carência afetiva, à rejeição e a outros
complexos que se agregam a estes núcleos, organizei uma proposta de trabalho a ser
desenvolvida com crianças abrigadas, visando promover o toque.

Revisão da Literatura

1.1. Histórico
Conta-se que Friederich II (1194-1250), imperador da Alemanha, chamado em seu
tempo de “maravilha do mundo”, embora seus inimigos usassem termos menos elogiosos,
queria saber que tipo de verbalização as crianças apresentariam ao nascer, se não tivessem
falado com ninguém antes. Mães substitutas e amas foram orientadas para que aleitassem
as crianças, lhes dessem banho, mas, de maneira alguma falassem com elas, pois ele
queria saber se conseguiriam aprender a falar o hebraico, a mais antiga das línguas, ou
talvez o grego, o latim, o árabe, ou talvez a língua falada pelos próprios pais. Mas seus

1
Agradeço à Maria Ângela Lasalvia por sua valiosa contribuição para a realização deste trabalho.
2
Psicóloga, especialização em Psicoterapia Junguiana Coligada a Abordagem Corporal, pelo Instituto Sedes
Sapientiae, São Paulo; bióloga e pedagoga. E-mail: kazue@directnet.com.br
esforços foram em vão, porque todas as crianças morreram. Elas não conseguiram viver
sem os afagos, as faces sorridentes e as palavras amorosas de suas mães substitutas.
“Pois não conseguiram viver sem os afagos...”. Esta observação, de um historiador do
século XIII, constitui o mais antigo pronunciamento a respeito da importância da estimulação
cutânea para o desenvolvimento da criança, embora a percepção do valor das carícias para
a criança seja muito anterior a este período.
No século XIX, mais da metade dos bebês morriam durante o primeiro ano de vida,
geralmente de uma doença chamada marasmus, palavra grega que significa “definhar”.
Doença também conhecida como atrofia ou debilidade infantil. Também na década de 20, a
taxa de mortalidade para bebês com menos de um ano, em diversas instituições e orfanatos
nos Estados Unidos, rondava perto dos 100%. Através de estudos desses casos, constatou-
se que mais importante do que ser amamentada, a criança deve ser tocada, acariciada e
aninhada nos braços, para que se desenvolva bem. O ser humano pode sobreviver a
privações sensoriais extremas de ordem visual ou sonora, desde que a experiência sensorial
da pele seja mantida (Montagu, 1905).

1.2. O Tocar
Em inglês, derivada do francês antigo touche, a palavra touch é definida pelo Oxford
English Dictionary (1999) como “a ação ou um ato de tocar (com a mão, dedo ou outra parte
do corpo); exercício da faculdade de sentir um objeto material”. Tocar é definido como “a
ação, ou um ato de sentir alguma coisa com a mão”. O termo operacional é sentir. Embora o
tato não seja em si uma emoção, seus elementos sensoriais induzem alterações neuronais,
glandulares, musculares e mentais que, combinadas, denominamos emoção. Desta forma, o
tato não é tido como uma simples modalidade física, como sensação, mas também,
efetivamente, como emoção (Montagu, 1905). Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa (1975), “tocar” tem, entre suas 42 definições, as seguintes: pôr a mão em,
palpar, ter contato com, fazer ouvir, agitar, chegar a, estar junto de, confinar com, comover,
emocionar, sensibilizar, tomar sentido ou consciência de,...; confirmando a extensão e
importância do Tocar em culturas que atravessam oceanos.

2
1.3. Pele, toque e comportamento
A privação tátil, que normalmente está relacionada à privação do amor materno, com
todos seus comprometimentos emocionais, tem efeitos profundos sobre o organismo, tanto
fisiológicos quanto comportamentais.
Fica evidente, pelas muitas expressões verbais encontradas em que se faz referência
às funções da pele, a importância da mesma para o comportamento humano: “dar um
toque”, querendo dizer “conscientizar amorosamente”; fala-se de uma pessoa que tem um
“toque feliz”, de alguém que tem um “toque mágico”, de um terceiro dotado de “um toque
humano”. É um elevado elogio para um homem ter “um toque feminino”, ou ainda “um toque
delicado”. A busca constante de interação humana leva a pessoa a entrar “em contato”, ou a
“dar um toque” (telefonar) para alguém. Há os que conseguem penetrar “pele adentro”,
enquanto outros ficam “ao nível da pele” (superficiais). Existem também os “intocáveis”.
Fala-se de uma pessoa “insensível” e impiedosa usando o adjetivo “duro”,
“empedernido” (callous), que é o equivalente em inglês ao latim callum, que significa “pele
dura”; as palavras que descrevem a insensibilidade emocional e a calosidade da epiderme
derivam ambas da mesma raiz. Fala-se que alguém ficou tão “calejado” que terminou por
insensibilizar-se diante das questões humanas.
Quando se diz que a pessoa está afastada da realidade, se diz que “perdeu o contato
com a mesma”; quando a pessoa não está exatamente “presente” se diz que está “um
pouco tocada”. Quando se descreve a atual ausência de vínculos entre as pessoas, se fala
de “desunião”, “falta de contato”, “pessoas intocáveis”.
A expressão francesa un ours mal léché, “boi mal-lambido”, é geralmente empregada
para descrever uma pessoa com modos inconvenientes, um “grosseirão”, alguém
“atravessado”, desajeitado em suas relações com os outros; embora a frase se refira à
crença original de que os filhotes de alguns animais nasceram tão subdesenvolvidos que
tinham de ser lambidos pela mãe para que adquirissem a forma apropriada, o uso posterior
da expressão dotou-a de um significado em que se reconhece a importância das delicadas
manobras e interferências da mãe no desenvolvimento do que se pode denominar
“capacidade de relacionamento”. Existe uma relação muito clara entre a falta de toque nos
primeiros anos de vida e a falta de jeito e a aspereza nas “brincadeiras” que caracterizam
algumas pessoas enquanto são crianças e também mais tarde; são pessoas incapazes de
entrar em contato sem causar colisões (Montagu, 1905).

3
1.4. Pele e Ego
Jung diz que

A consciência é sobretudo o produto da percepção e orientação no mundo


externo, que provavelmente se localiza no cérebro e sua origem seria ectodérmica.
No tempo de nossos ancestrais essa mesma consciência derivaria de um
relacionamento sensorial da pele com o mundo exterior. (1935, p.5)

“O ego”, diz Lacombe (apud Montagu, 1905, p. 114), “é a percepção do si mesmo


corporal, e o que a pessoa sente e conhece de seu corpo é a pele”.

No início da vida, ser tocado de leve, aconchegado no colo e tranqüilizado pelo


tato libidiniza várias partes do corpo da criança, ajuda a consolidar uma imagem
corporal e um ego corporal saudáveis, aumenta sua catexis com libido narcisista e,
simultaneamente, promove o desenvolvimento do objeto de amor ao cimentar o
vínculo que existe entre criança e mãe. Não há dúvidas de que nesse período a
superfície de pele em seu papel como zona erotogênica cumpre uma função múltipla
em termos do crescimento da criança. (Anna Freud, 1954, p.199).

Para Neumann (1970), o ego se desenvolve a partir de experiências corporais,


destacando a importância da pele:

A superfície do corpo, com suas zonas erógenas, é o palco principal da


experiência da criança consigo mesma e com os outros; quer dizer, a criança vivencia
tudo na própria pele. A pele, pela qual a criança entra em contato com o mundo
externo, é o campo de sua experiência do mundo. (p. 26).

Observam Ortega e Gasset que

Está claro que a forma decisiva de nossa interação com as coisas é,


efetivamente, o tato. E, sendo assim, tato e contato são necessariamente os fatores
mais conclusivos na determinação da estrutura de nosso mundo. (apud Montagu
1905, pp.128-129)

Ortega pontua também que

O tato difere de todos os demais sentidos porque sempre envolve a presença


imediata e inseparável do corpo que toca e do que é tocado. Diversamente da visão e
da audição, no contato sente-se “as coisas” dentro de si, dentro dos próprios corpos.
Deste modo, o mundo particular é composto por presenças, coisas que são corpos. E
são isto porque entram em contato com as mais próximas de todas as coisas que
existem para o ser humano, o “eu” que cada ser humano é: o próprio corpo. (p.129)

4
Lowen (apud Montagu 1905, p. 252) diz que o sentimento de identidade do indivíduo
é fruto da sensação do contato com seu corpo. Para a pessoa saber quem ela é, é preciso
que ela esteja consciente de seus sentimentos e suas sensações. Isso é o que falta ao
esquizofrênico: embora ele esteja ciente de que tem um corpo e dessa forma se orienta no
tempo e no espaço, a perda do contato corporal faz com que ele perca o contato com a
realidade, isto é, seu ego não está identificado com seu corpo e, assim, ele se sente
desvinculado do mundo e das coisas. Concluindo, segundo o autor, a estrutura da
identidade pessoal tem sua base na realidade da sensação corporal.
A ausência de um contato físico agradável entre a mãe e a criança é o trauma
fundamental da personalidade esquizóide, segundo Lowen (apud Montagu 1905, p.252).
Esta ausência de contato corporal é sentida pela criança como abandono e, para se
proteger e se esquivar desses sentimentos e sensações desagradáveis, a criança retém a
respiração, imobiliza o diafragma chupando a barriga para dentro e fica imóvel,
“amortecendo” o corpo a fim de não sentir dor, e assim, se distancia da realidade. Quando o
medo se torna insuportável, o ego se dissocia do corpo, dividindo a personalidade em duas
identidades: uma baseada no corpo e a outra na imagem do ego.
Problemas táteis durante o primeiro ano de vida resultam freqüentemente em
alheamento, não-envolvimento, falta de identidade, distanciamento, superficialidade
emocional e indiferença (Montagu, 1905).

1.5. A Criança Vítima de Violência e o Trabalho Corporal


Os dados de crianças que são sexualmente molestadas antes de completarem
dezoito anos são alarmantes, e os relatos freqüentes desses casos, divulgados pelos meios
de comunicação em massa, fazem muitos pais questionarem se estão agindo errado quando
acariciam seus filhos, ou se deveriam ou não abraçá-los, beijá-los ou tocá-los de qualquer
modo. Este estado de alarme é compreensível numa sociedade que tanto confundiu amor,
sexo, afeto e toque. É preciso diferenciar o “toque bom” do “toque ruim”, se é que se pode
chamá-los dessa forma. De qualquer modo, os pais genuinamente amorosos nada têm a
temer com seus atos de demonstração de afeto pelos seus filhos ou por qualquer outra
pessoa.
A criança que foi vítima de violência, quer seja por abuso sexual, agressão física ou
por abandono, passa por um intenso sofrimento e a situação pela qual passou produz

5
efeitos devastadores no psiquismo infantil. Segundo Azevedo, E.C. (2001), a ambivalência
afetiva, natural nesta fase do desenvolvimento, assume proporções que o ego do pequeno,
ainda bastante fragilizado, não tem condições de suportar. Nos casos mais graves, existe a
possibilidade da perda de limites entre o corpo da vítima e o corpo do outro, sendo
necessária uma intervenção das mais drásticas por parte do terapeuta, para que seu ego
não se desestruture totalmente. A criança que passou pela experiência da violência física ou
emocional, freqüentemente apresenta uma aversão ao toque, uma defesa à aproximação,
bloqueando seu contato com outras pessoas. Montagu (1905) também acrescenta que a
pele dos que foram submetidos a carências táteis está “desligada” para as mesmas
experiências que agradam aos que tiveram satisfação tátil; que o indivíduo “desligado” pode
estar tão tenso a nível cutâneo que ele realmente chega a recuar ao mais leve toque.
Entretanto, o corpo fornece o ambiente onde tudo se processa tanto a nível biológico
quanto psíquico, não podendo se falar em mente e corpo separadamente, sendo que um
não existe sem o outro, e o que acontece com um trará reflexos ao outro. Nas palavras de
Jung: “A alma humana vive unida ao corpo, numa unidade indissolúvel, por isto só
artificialmente é que se pode separar a psicologia dos pressupostos básicos da biologia”
(1935, p.232).
O trabalho corporal com um enfoque simbólico é a possibilidade de ampliação da
consciência e de fortalecimento egóico, já que a própria formação do ego, centro da
consciência, é posterior à formação do que se denomina ego corporal. Embora a maioria
dos trabalhos propostos para a criança vítima de violência não englobe a abordagem
corporal, sabe-se que é do veneno que se fabrica o antídoto e é só tocando esse “corpo
ferido” que se alcançará a possibilidade de fazer renascer um corpo saudável e criativo
(Kato, 2001). Segundo Bertherat (1976), o trabalho da tomada de consciência através do
trabalho corporal pode ser longo e penoso, e embora seja um primeiro passo para o bem-
estar, não confere de imediato, conforto. “O prazer e a alegria de viver são impensáveis sem
luta, sem experiência dolorosa e sem conflitos desagradáveis consigo mesmo”, dizia Reich
(apud Bertherat 1976, p.89).
Sauaia (2003) utilizou vivências corporais no trabalho com crianças vítimas de
violência, e obteve índices de melhora quanto à percepção da imagem corporal e do
esquema corporal – aspectos importantes no processo de construção da identidade. A
autora também observou sensíveis melhoras na área a que chamou competência social, que

6
engloba comportamentos sociais que levam a criança a se aproximar e se relacionar com
outras pessoas e que podem facilitar seu crescimento.
Pensando em uma paciente que não reconhecia seu próprio corpo por quase toda
uma vida, como se fosse uma longa morte, Bertherat (1976) diz que embora nunca seja
cedo demais para se ter medo do próprio corpo – um medo paralisante e suicida, nunca é
tarde demais para se tomar consciência do corpo, para descobrir sua coragem
combatividade e potência vital.

1.6. O toque no Trabalho Corporal


Segundo Montagu (1905), o vínculo com o próprio corpo é a base dos vínculos com
as outras pessoas e daquilo que denominamos sociabilidade. Durante o primeiro ano de
vida, o relacionamento corporal íntimo entre mãe e filho promove a formação da base das
sensações positivas a respeito de si mesmo e a sensação desse vínculo corporal permite a
formação de uma auto-estima positiva. Já a falta de toques é vivida como ansiedade de
separação, como falta de contato e de ligação. Embora a pele, como outros órgãos dos
sentidos, adoeça quando o contato com os pais e com o mundo externo for perturbado no
início da vida, a impressão é que muitas dessas desordens da pele podem ser resolvidas
quando o contato emocional com o mundo externo melhora. Carl Rogers (apud Montagu,
1905, pp.342-343) acrescenta que nos seus grupos de encontro aonde o contato físico
desempenhava um papel significativo, alcançou benefícios terapêuticos apreciáveis, com
mudanças construtivas em muitos sentidos.
Montagu (1905) completa dizendo que as conseqüências da estimulação cutânea
inadequada em uma pessoa podem ser revertidas dando-lhe todo o cuidado terno e
amoroso de que necessita, principalmente do jeito que ela possa compreender melhor e
mais rapidamente: o contato caloroso, carinhoso e envolvente.
O “tocar” é parte indispensável entre profissionais da área da saúde. Segundo
Montagu (1905), o profissional deve saber o que o toque humano é capaz de alcançar na
amenização de sentimentos agitados, no alívio da dor e da perturbação emocional, na
tranqüilização, na promoção, em resumo, de uma sensível diferença para melhor. O
paciente espera do profissional: médico, enfermeira, psicoterapeuta,... Um toque humano e
um efeito curativo; dessa forma, o toque sempre intensifica as habilidades terapêuticas do
profissional e a potencialidade de recuperação do paciente.

7
A imposição das mãos com o objetivo de cura tem sido entendida há séculos como
uma comunhão religiosa. Seria muito proveitoso que também fosse similarmente
compreendida dentro da comunidade dos curadores. É interessante que um dos ramos da
comunidade curativa que tenha reconhecido a importância do toque seja a enfermagem.
Muitos artigos importantes a respeito dos benefícios terapêuticos do toque podem ser
encontrados nos periódicos da classe, enquanto que pouco ou quase nada é encontrado na
área da psicoterapia.
Bertherat (1976) fala do trabalho do russo Kirlian, que dá a prova visual da existência
de uma força energética que anima todo corpo vivo. São halos de cores vivas na superfície
do corpo, que fazem lembrar a auréola que se costumava pintar em volta da cabeça dos
Santos. Esse halo, chamado “aura”, perde intensidade e muda de cor quando o organismo
está doente. Segundo o autor, também há lugares do corpo humano que emitem uma luz
mais brilhante. Essa luminosidade emana da superfície do organismo, da pele.
A pele, além de envolver os órgãos internos, lhes oferece uma superfície contínua na
qual circula a energia que os anima, conferindo uma unidade corporal que não se limita à
consciência da interdependência da parte anterior/posterior, superior/inferior, mas também a
relação entre o interior e o exterior do corpo.
É essa fronteira que nos une ou separa do cosmos – a pele – aonde circula a energia,
e é na superfície da pele que se “projetam” nossos órgãos internos (coração, pulmões, rins,
fígado,...). Assim, todo o corpo (interno e externo) pode ser tratado através da pele,
realinhando meridianos energéticos, restabelecendo a circulação energética interrompida ou
desviada, por meio de técnicas como a acupuntura, acupressure, toques,... ou pela simples
imposição das mãos, como no caso do Reiki. Stein (1995) fala da utilização do Sei-He-Ki,
símbolo utilizado na prática Reiki, em criança que sofreu uma cirurgia ou um trauma físico
ou emocional. De acordo com ele, o símbolo aplicado com a imposição das mãos pode
reparar os danos produzidos na aura pelos anestésicos, pela dor ou pelo medo.
O tabu psicanalítico com relação ao tocar remete-se a suas origens. Mas, como disse
Dr. Forer (apud Montagu 1905, p.268): “o contato verbal apenas deixa a pessoa num limbo
de isolamento em relação ao próprio corpo e às outras pessoas”. O autor, enquanto
psicoterapeuta que acredita na necessidade de contato cutâneo como psicologicamente
mais crucial do que a fome de alimento, sugere enfaticamente que se use o tato na situação
psicoterapêutica através de mãos habilidosas e informadas, pois o toque do terapeuta é

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reconfortante e, ao mesmo tempo, pode ajudar na dissolução de temores e expectativas
infelizes do cliente.

O deixar-se penetrar através do toque é um antídoto aos resíduos destrutivos


dos primeiros relacionamentos e abre o sistema fechado da pessoa a novas
experiências interpessoais. A reação primitiva de ser tocado com suavidade em
momentos críticos é uma sensação de relaxamento e tranqüilização corporais que
informam que a pessoa não está só, que as antigas sensações de desvalia são
injustificadas. (idem, ibidem)

E o Dr. Forer (apud Montagu 1905, p.268) conclui: “Tocar promove a reciprocidade e
faz parte do processo de testar se a pessoa ousará tornar-se ou terá permissão para tornar-
se igual”.

Proposta de Trabalho para Promover o Toque e seus Objetivos

Reconhecendo a importância do toque e todas as suas implicações, este artigo


propõe um trabalho com crianças que sofreram o abandono. Seu objetivo é promover o
toque e, através dele, fornecer recursos a essas crianças para que possam vencer algumas
barreiras que as impedem de “se sentirem mais vivas”, ampliar sua consciência corporal,
fortalecer o ego e desenvolver a resiliência.
A aproximação das crianças será através do lúdico: brincadeiras que têm como
objetivo desenvolver coordenação, habilidade, força, equilíbrio, flexibilidade, agilidade.
Entretanto, muito mais que isso, elas possibilitam o contato com os outros, tocando e sendo
tocado. Num primeiro momento, serão as atividades envolvendo jogos e brincadeiras,
depois as lutas e, finalmente, exercícios envolvendo o toque e autotoque, propriamente
ditos, e o toque sutil.
Segundo Axline (1984), os jogos são o meio natural de expressão da criança. A
brincadeira propicia à criança a oportunidade de expandir seus sentimentos acumulados de
tensão, frustração, insegurança, agressividade, medo e confusão. Através dos jogos, a
criança transforma esses sentimentos, se conscientiza deles, esclarece-os, aprende a
controlá-los ou os esquece.
Olivier (2000, p.13) diz que “lutar é ter prazer em encontrar o outro fisicamente. É
tocar e ser tocado e controlar as emoções do contato”. O autor propõe transformar a briga
em jogo, mas em um jogo com regras que permitam liberar a agressividade e desenvolver o

9
reconhecimento do outro. As condições da luta-jogo auxiliam a compensar a frustração
gerada pelos dolorosos esforços de integração social.
Ainda segundo Olivier (2000), é necessário manter a alegria das crianças em
confrontar-se, em “carregar-se” uma às outras e ao mesmo tempo conter a violência e a
emotividade. “... dominar suas frustrações, bem como seus ímpetos de alegria, é justamente
progredir dos estágios inferiores de desenvolvimento aos estágios superiores, começar a
vencer um pouco de sua herança arcaica, é socializar-se no sentido de Nietzsche” (Olivier
2000, p. 15).
Estas crianças se defendem das investidas do mundo externo que assediam seu ego,
se “encouraçando”, e essa impressão de invulnerabilidade começa na pele. Esta proposta
de trabalho apresenta a elas novas possibilidades de sensações e de sentimentos.
Felizmente, dentro de cada uma delas, há potencialmente uma criatura calorosa, amorosa,
esforçando-se por sair da casca.
Segundo MacNeely (1987), a memória, principalmente a afetiva, também está no
corpo, daí a importância das terapias analíticas que se voltam para o movimento e para o
corpo. O desencouraçamento consiste na atuação direta do terapeuta no corpo do cliente,
através de leves toques ou massagens, indo diretamente contra o sistema de defesa
somática do paciente. O contacto físico faz emergir lembranças que talvez nunca
aparecessem no atendimento analítico verbal.
No caso de pessoas que sofrem de carências táteis profundas e antigas, uma saída
seria interagir, para a liberação desse potencial, para viver algo que se assemelhe às
experiências humanizadoras que deveriam ter tido durante a infância e a meninice. E a
maior plasticidade do sistema nervoso das crianças permite-lhes alcançar recuperações
muito melhores do que os adultos (Montagu, 1905).
Reviver as experiências emocionalmente, num setting terapêutico, desperta as
energias associadas ao complexo. A ativação do complexo em níveis emocionais profundos,
expande o campo do consciente e fortalece o ego e assim, através da função transcendente,
novas soluções e adaptações para aquelas experiências sofridas se abrem para o paciente
(Mc Neely, 1987).

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Método

“O caminho pavimentado da crença, pelo toque e pela visão, conduz o mais diretamente até o coração
humano e ao recinto da mente”.
Lucretius (c.60 a.C.), De Rerum Natura – V, 105-107

A proposta de trabalho psicoterápico para desenvolver o toque consistiu de 10


encontros semanais, com duração aproximada de 1 hora. Os encontros foram realizados por
uma psicoterapeuta e uma terapeuta assistente.
O Local consistia de uma sala espaçosa, arejada e iluminada; munida com
colchonetes.
A População: oito crianças, selecionadas segundo a faixa etária (de 10 a 13 anos e
um menino de 16 anos), de um Lar Escola, localizado em São Caetano do Sul.
As crianças que se encontravam no Lar foram afastadas dos pais pelo Conselho
Tutelar ou deixadas pelos próprios pais. As crianças não retornavam para casa em nenhuma
ocasião (férias, festas de final de ano etc.) e as visitas permitidas eram semanais.
Os Encontros eram compostos por exercícios e brincadeiras utilizados em aulas de
educação física, técnicas de aquecimento aplicadas em aulas de teatro e exercícios de
sensibilização, com ênfase nas técnicas corporais e toques sutis ministrados no curso de
Psicoterapia Junguiana Coligada a Técnicas Corporais, do Instituto Sedes Sapientiae.
A Avaliação foi realizada a partir de relatórios de grupo e individual: ao término de
cada encontro foi feito um relatório de grupo e individual das observações feitas pelas
terapeutas acerca da participação e considerações levantadas pelas crianças, durante as
atividades. Também foram utilizados desenhos: no primeiro e no último encontro foi pedido
às crianças que fizessem o desenho da figura humana e o desenho dela mesma com o
grupo para se avaliar a imagem corporal e a qualidade de sua relação com o grupo.
Procurou-se descrever o processo de cada sujeito dentro da proposta de promover o
toque e o autotoque e avaliar se houve alguma alteração na imagem corporal e na
integração com o grupo, utilizando-se os desenhos da figura humana e os desenhos de
cada criança com o grupo: inicial e final e o desenvolvimento observado e registrado nos
relatórios gerais e individuais.

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Resultados e análises

Amor exige toque,


Amor exige corporeidade.
Esdras Vasconcelos (no V Congresso Internacional de Transpessoal. Campinas, 2005)

RELATÓRIO DOS ENCONTROS – RESUMO

Nos primeiros encontros havia alguma resistência por parte de alguns integrantes,
mas ao final acabavam realizando a tarefa. Já nessa ocasião observou-se o
comprometimento e a expectativa dos participantes em relação ao trabalho, por exemplo:
questionando quanto à troca do dia do encontro, comparecendo prontamente,
principalmente quando o horário poderia ser comprometido etc.
Todas as crianças apresentaram muita dificuldade em falar de si, tanto em relação às
sensações quanto em relação aos sentimentos. Como o grupo precisava falar dos
sentimentos como parte do ritual de abertura e encerramento, eles apareciam como meros
“chavões”: “bem, alegre, feliz” e eventualmente, “cansado”.
De início, o contacto com o outro era muito difícil, mesmo na situação da brincadeira.
O contacto envolvendo a questão da confiança era ainda mais difícil. Outras questões
adjacentes dificultaram a execução das tarefas, tais como: se sentir incapaz, tônus baixo,
necessidade de ser o melhor X não ser capaz de, dispersão, paralisação, medo de falhar e
de críticas, confiar e ser confiável. Estas questões podiam ser observadas nas queixas de
dores, na rigidez dos movimentos, na falta de tônus nas pernas, na dificuldade em realizar
movimentos simples, quando em duplas ou em grupo, falta de coordenação. No entanto, os
integrantes empenharam-se e, na maior parte das vezes, com sucesso.
Na situação de jogos coletivos, o contacto foi natural, promovido pelo caráter lúdico,
com bastante interesse e participação de todos.
Observou-se ao longo de todo o trabalho que as crianças se agregavam por gênero,
com pouquíssimas exceções em que uma das irmãs ficou com o irmão, mas a dupla
precisou ser desfeita, porque a outra dupla acabou ficando mista, e não aceitou.
Nas atividades de aquecimento: caminhar de modos diferentes, soltar articulações, as
meninas eram mais “redondas” nos movimentos, executando com mais harmonia e soltura.

12
Os meninos, com algumas exceções, num misto de inibição e brincadeira, realizavam os
exercícios a seu modo, porém mais desajeitados.
As meninas, com uma exceção, esculpiram estátuas com criatividade e bastante
expressivas; elas também foram capazes de exprimir sentimentos no rosto das estátuas. Já
os meninos buscavam temas, como luta, e foram incapazes de esculpir sentimentos no rosto
da estátua.
Todos receberam muito bem o toque aplicado pelas terapeutas.
Entre o 4º e o 5º encontro, houve um intervalo de quinze dias, por causa de
atividades desenvolvidas no Lar. As crianças ficaram muito agitadas na atividade proposta –
conduzir e ser conduzido – e, de forma geral, encontraram muita dificuldade para seguir os
comandos e entendê-los. Até mesmo comandar foi difícil. Novamente foi suscitada a
questão de confiar e ser confiável. A experiência foi tão marcante que gerou certo incômodo,
que inclusive se refletiu no exercício seguinte.
Novamente, tivemos um intervalo de quinze dias do 5º para o 6º encontro, também
por causa da agenda de eventos do Lar. A partir deste encontro, certa resistência ao
trabalho parece que começou a aparecer. Eles começaram a ficar inquietos e questionar
quanto ao horário de término do encontro; algumas crianças não quiseram receber o toque
das terapeutas.
No 7º encontro, embora o trabalho envolvesse massagens diversas em si mesmo e
no parceiro, todos realizaram muito bem as atividades, inclusive as que envolviam o toque
nos colegas e, ao término do encontro, o grupo estava tranqüilo e sereno. Pela primeira vez
os sentimentos finais exprimidos (bem, feliz, tranqüilo) pareciam sinceros e condiziam com a
realidade observada.
A partir do 8º encontro, as meninas realizavam o aquecimento inicial muito bem e
soltas, atentas aos comandos, enquanto que os meninos ficavam muito dispersos. Nestes
últimos encontros foram desenvolvidas atividades para promover o Toque e preparar para o
encerramento do trabalho, tais como: Toque do Acolhimento feito pelas terapeutas e em
duplas; massagem coletiva; tapotagem em duplas; danças circulares; “mandala humana” e
outras. No encerramento, T. pediu observações sobre o trabalho como um todo. 3

3
OBS. A descrição detalhada de cada encontro, os relatórios individuais e os desenhos podem ser
encontrados na monografia que originou este artigo: O Toque Mágico.

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RESUMO DOS RESULTADOS QUANTO ÀS AQUISIÇÕES PESSOAIS E EM RELAÇÃO
AO GRUPO

Grupo de meninas Grupo de meninos

VA DBS LBS PBS Sub CEBS MCS AR VAS Sub Total


Total Total
Imagem corporal + + + + 4/4 + 0 0 + 2/4 6/8
Afetividade + + + + 4/4 + 0 0 0 1/4 5/8
Senso de realidade 0 0 + + 2/4 0 0 0 + 1/4 3/8
Desenvolvimento de estrutura + + + + 4/4 + 0 0 + 2/4 6/8
e segurança em caminhar
Desenvolvimento perspectiva + 0 0 0 1/4 + 0 0 0 1/4 2/8
de futuro
Desenvolvimento tônus e agilidade + + + + 4/4 + 0 0 0 1/4 5/8
Desenvolvimento da confiança + + + + 4/4 + 0 0 0 1/4 5/8
em si mesma
Desenvolvimento da atitude + 0 0 0 1/4 + 0 0 0 1/4 2/8
mais introspectiva
Desenvolvimento da percepção de + + 0 0 2/4 + + 0 0 2/4 4/8
sena e seus próprios sentimentos
Desenvolvimento do toque + + + + 4/4 + + + 0 3/4 7/8
Desenvolvimento da própria + + 0 + 3/4 0 0 0 0 0/4 3/8
sexualidade
Desenvolvimento da criatividade + + + + 4/4 0 0 0 0 0/4 4/8
Subtotal 9/12 8/12 7/12 9/12 9/12 2/12 1/12 3/12
Qualidade da relação com o grupo + + + + 4/4 + 0 0 0 1/4 5/8
Maior afetividade com o grupo + + + 0 3/4 + 0 0 0 1/4 4/8
Maior integração com o grupo + + + 0 3/4 + 0 0 0 1/4 4/8
Maior integração com sexo oposto + + + + 4/4 0 0 0 + 1/4 5/8
Confiança no outro 0 + + 0 4/4 + 0 0 0 1/4 3/8
Subtotal 3/5 5/5 4/5 2/5 4/5 0 0 1/5

0 = Não houve melhora ou não pôde ser avaliado + = Melhora - = Piora

Resumo dos resultados obtidos através da observação direta ao longo dos encontros, dos relatórios
individuais e do grupo e através dos desenhos aplicados no início e final do trabalho.

14
Discussão

“Somente com o coração podemos ver com clareza.


O essencial é invisível aos olhos.”
Fernando Pessoa

O trabalho com psicoterapia corporal possibilita ao terapeuta a observação de


comportamentos que sinalizam o que a criança está experimentando. Também lhe permite
captar os bloqueios que surgem na estrutura do corpo desta criança. E, assim, esta
observação sinaliza ao profissional como e por onde esses bloqueios podem ser retirados.
(Antunes, 1986).
Nesta proposta de psicoterapia corporal para desenvolver o toque, os complexos e
bloqueios apareceram nas próprias verbalizações das crianças: “Não consigo, não consigo”;
“Não quero”; “É difícil”; “Dói”;... Também se mostraram através da rigidez em executar
alguns exercícios; na falta de tônus; na dificuldade em fazer; na frustração; na insatisfação;
no movimento desajeitado; na necessidade de repetir várias vezes o mesmo exercício e até
mesmo na expressão facial de satisfação ou no olhar de bem-estar, após receber o toque do
acolhimento. Como diz Woodman (1999), o corpo conta a verdade e o faz através dos
movimentos e da falta deles.
A dificuldade do grupo em executar as tarefas propostas com uma criança do sexo
oposto foi muito grande, quase inviável, tanto entre os meninos como entre as meninas. Eles
sempre se agrupavam em duplas femininas ou masculinas ou quatro meninas e 4 meninos.
Isso poderia ser decorrente da vergonha inerente a crianças da faixa de idade deles, como
também poderia ser fruto do conceito do “proibido”, que faz parte do pensamento do Lar,
que é largamente difundido e imposto. Estas questões explicariam o baixo índice de melhora
alcançado no item de desenvolvimento da própria sexualidade. Entretanto, a possibilidade
de participar de atividades que envolveram o grupo como um todo resultou em índices
positivos quanto à qualidade da relação com o grupo; quanto à maior afetividade com o
grupo; quanto à maior integração com o grupo e maior integração com o sexo oposto
(Tabela).
A maior participação por parte das meninas levou a resultados positivos muito mais
expressivos entre o grupo feminino em praticamente todos os aspectos (Tabela). No grupo
de meninos quase não houve constatação de melhoras porque eles praticamente não
participaram ativamente, talvez pela vergonha ou para manter a imagem do grupo masculino

15
de “não se envolver”, pois em diversas ocasiões eles sinalizavam, de alguma forma, que
gostariam de participar. As crianças que participaram desse trabalho passaram pela
situação de abandono e rejeição de forma a deixar marcas profundas em sua psique. A
reação delas frente a esse tremendo complexo foi a de sufocar suas emoções e sentimentos
e jogá-los para algum compartimento profundo do inconsciente para que não corressem o
risco de entrar em contacto com eles novamente e acessar a dor inerente à vivência desse
abandono e dessa rejeição. Aliado a essa questão, o ambiente de abrigo tem um caráter
normativo e grupal, que não possibilita que a criança se desenvolva como uma pessoa com
características e vontade próprias. O que talvez explicasse os baixos índices de melhora
quanto ao desenvolvimento de uma atitude mais introspectiva e quanto ao desenvolvimento
de perspectiva de futuro. Entretanto, concomitantemente à proposta para desenvolver o
toque, o trabalho corporal possibilitou que as crianças entrassem mais profundamente em
contacto com elas mesmas, com o corpo, com os sentimentos e com a emoção e isso os
incomodou, deixando-os bravos, emburrados. Nas palavras de Zé Ramalho: “Quanto tempo
leva o coração para saber, que o sinônimo de amar é sofrer?...” (da música “Sinônimos”).
Outra questão foi a de entrar em contacto com suas dificuldades: falta de força, equilíbrio,
confiança, o próprio toque, falar sobre seus sentimentos,...
Von Franz (1988) diz que quando as pessoas conectam a cabeça ao corpo através
de exercícios, as primeiras emoções que afloram são emoções reprimidas e algum
ressentimento violento contra o pai ou mãe, o que explicaria as reações de raiva e irritação
das crianças. A possibilidade de deixar extravasar essas emoções, de deixá-las vir à tona e
não suprimi-las racionalmente, permitiu dar vazão a reações físicas que as crianças talvez
nem conseguissem compreender ou localizar muito bem. Em geral, após essas reações,
surge um estado de relaxamento, e a partir disso, ocorre uma melhor ligação com o corpo.
Este caminho foi percorrido por várias crianças que puderam se conectar novamente
com seu corpo e, assim, entrar em contacto com sentimentos que estavam reprimidos. VA
mostra muito bem esse caminho: participava do trabalho corporal com interesse e empenho.
Assim, emoções muito fortes de raiva e ressentimento vieram à tona e ela pôde expressá-
las, pois estava em ambiente propício para tal. O resultado final foi uma melhor conexão
com o próprio corpo e de se sentir mais segura para interagir com o meio. VA também se
abriu para se relacionar com as outras pessoas, e de forma mais afetiva.

16
Segundo Woodman (1999), quando o bebê não é bem-vindo ou é rejeitado, há uma
cisão do corpo com a psique, como se a alma não entrasse no corpo e permanecesse
exilada. O trabalho corporal permite a aceleração do processo de conscientização desse
corpo, dando continente para o desenvolvimento do ego.
Uma questão muito forte que veio à tona, logo nos primeiros encontros, é a da
confiança. As crianças tinham uma dificuldade muito grande em confiar nos colegas, fato
observado no momento da execução de algumas tarefas. Por outro lado, algumas delas
também não se sentiam capazes de fornecer o suporte ou apoio necessário. Assim,
dissimulavam com brincadeiras ou boicotavam de antemão, as tarefas propostas para não
enfrentar esse complexo: confiar e ser confiável.
Embora o trabalho não objetivasse especificamente a questão da confiança, são
grandes as implicações dessa relação “confiança x toque”. O desenvolvimento dos
encontros parece ter trazido resultados favoráveis quanto ao desenvolvimento da confiança
em si mesmo, principalmente entre as meninas; no entanto, o confiar no outro não obteve
bons índices (Tabela).
A confiança ou falta dela terá repercussões na vida futura das crianças quanto à
socialização, contacto com o outro, desenvolvimento social e cognitivo, relações afetivas,
profissionais,... Embora nestas sessões a confiança também tenha sido abordada, seria
interessante que se desenvolvesse um trabalho que focasse essa importante questão.
A consciência se amplia com o desenvolvimento do ego e este é decorrente da
percepção do si mesmo corporal, e o que a pessoa sente e conhece de seu próprio corpo
ocorre através da pele, do contacto (Jung, 1935); (Neumann, 1970); (Montagu, 1905).
A proposta de promover o toque como instrumento terapêutico num contexto de
trabalho corporal na linha junguiana alcançou bons resultados, conforme a Tabela. O toque
passou a ser aceito e a fazer parte do repertório das vivências das crianças. Elas puderam
perceber que também existe o toque “bom”, que acolhe e que pode proporcionar bem-estar.
Dessa forma, com o desenvolvimento do toque, outras aquisições importantes foram
incorporadas, tais como:
- melhora da imagem corporal
- desenvolvimento de melhor estrutura e segurança em caminhar
- maior confiança em si mesmo

17
O toque envolve o outro, é composto por “coisas” que são corpos, envolve a presença
imediata e incontestável do corpo que toca e do que é tocado (Montagu, 1988). Estas
questões se refletem na relação da criança com o grupo. Observou-se, assim, que o
trabalho teve repercussões positivas, adquiridas através da promoção do toque, como:
- melhora da qualidade da relação com o grupo
- maior integração com o grupo
- maior integração com o sexo oposto
Possibilitou-se assim, o desenvolvimento de uma maior capacidade de
relacionamento e maior afetividade com o grupo, pois, embora o caminho para entender que
o sinônimo para amar é sofrer, ele também leva à compreensão maior de que “o sinônimo
para amor... é amar” (Zé Ramalho, “Sinônimos”).

Conclusões
Um toque da natureza
Faz o mundo todo se unir.
Shakespeare

A proposta de desenvolver um trabalho que promovesse o Tocar tinha como objetivo


alcançar os diversos benefícios subjacentes à promoção do tocar e ser tocado com amor e
respeito, tais como: aumento de percepção corporal e, assim, do Si-Mesmo;
desenvolvimento do ego, conseqüentemente da consciência; benefícios derivados da
estimulação tátil (aumento do funcionamento imunológico, produção do hormônio do
crescimento, desenvolvimento sexual adequado,...); amenização de sentimentos agitados,...
No entanto, Tocar envolve “corpos”, e o trabalho corporal na linha junguiana
empregado nestes encontros acabou suscitando outras questões que são relativas aos
complexos muito fortes agregados à condição do abandono e da rejeição dessas crianças,
como foi o caso da confiança. Outro dado inusitado é a dificuldade de relacionamento de
cada criança com o grupo, com dificuldade de contacto e não havendo integração. Tal
constatação surpreendeu, já que aparentemente eles funcionam como um grupo: refeições,
quarto, atividades comuns,... Seria esperada, inclusive, uma empatia entre as crianças, por
estarem todos vivendo o mesmo drama, mas não há esta consciência, talvez porque
estejam fechados em seu próprio sofrimento ou justamente estejam fechados a esse tipo de
consciência, para não sofrer.

18
Esse tipo de trabalho seria uma alternativa para lidar com essas questões adjacentes
também, já que houve resultados positivos em outros itens, além da proposta do “tocar”.
Entretanto, percebeu-se que seria necessário um maior número de sessões, pois se acaba
mexendo em grandes complexos, decorrentes do trauma vivenciado.
Fica-se então, como proposta, desenvolver um trabalho com um maior número de
encontros, com a introdução de mais sessões lúdicas e a introdução do toque de forma mais
lenta e gradativa. Um ponto importante a se explorar é a utilização de mais atividades do
tipo “jogos de lutas”, pois elas envolvem o grupo como um todo. As crianças gostavam deste
tipo de atividade e tinham uma boa participação e a aquisição de novas habilidades podia
ser observada a cada exercício realizado, além de se promover uma maior integração do
grupo.

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Woodman, Marion. A Virgem Grávida. Um processo de transformação psicológica. São


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21
CORPO E ALMA DE NOSSO PACIENTE BRASILEIRO
Algumas Reflexões na Perspectiva Junguiana

Carlos Artur Aguena1

1. Introdução

Não há pudores, escrúpulos ou qualquer espécie de cuidado quando o assunto é


povo brasileiro. Todos temos algum comentário ou opinião sobre as características e
temperamento de nossa brasilidade. E não há conversa em que se diz mais inverdades.
Ora o povo brasileiro é idealizado pela sua natureza fraterna e cordial, que nos faz sentir
enorme saudade quando passamos longos períodos longe daqui. Ou enaltecido pela
sensualidade exótica de suas mulheres, que tanto encanta os estrangeiros. Ora o povo
brasileiro é vagabundo, malandro e incapaz de promover o desenvolvimento da nação,
quando nos queixamos do subdesenvolvimento de nosso país. É o mal da raça mestiça,
diriam os mais conservadores. Ou então não sabe lutar pelos seus direitos e elege
sempre muito mal seus representantes. Muito à vontade, conversamos com grande
desenvoltura e total inconseqüência, sem percebermos o quanto simplificamos,
distorcermos e desrespeitamos nossa própria nacionalidade.
Além disso, como toda a América Latina, desde sempre o povo brasileiro vive o
grave problema da desigualdade social, em que uma minoria da população detém as
riquezas e as oportunidades de melhores empregos, cultura e poder político e econômico,
enquanto que a grande maioria padece de carências fundamentais de alimentação,
saúde, educação e moradia.
E, finalmente, no momento em que esse artigo foi escrito, nunca em toda a
história do Brasil a mídia foi tão avassaladoramente ocupada por notícias de corrupção de
nossos governantes. A falta de ética e escrúpulos é um traço de nossa cultura?
Tais considerações procuram ilustrar que há algo de único e específico na
condição de ser brasileiro, que de alguma forma é importante ser considerado na
psicoterapia desse povo. Há comportamentos, crenças e valores culturais que dizem
respeito a uma coletividade que historicamente tem se mantido em uma ideologia de
colônia e de terceiro mundo, afirmativa de autoria de alguns importantes estudiosos que
serão abordados ao longo desse trabalho.

1
Psicólogo Clínico com especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana e Técnicas Corporais no
Instituto Sedes Sapientiae, colaborador do site www.palcoetv.com.br com artigos sobre filmes na
abordagem junguiana. E-mail: aguenaca@yahoo.com.br
Esse artigo é uma tentativa de trazer algumas reflexões na perspectiva da
psicologia analítica, da história e da sociologia para uma compreensão da complexidade
dessas questões. Nesse sentido, faremos referência às raízes históricas de uma cultura
de colonização ainda muito presente e atuante no inconsciente coletivo do povo brasileiro.
E, fundamentalmente, buscaremos compreender um pouco melhor o sofrimento e as
dificuldades de nosso paciente e de nós mesmos, que somos descendentes de negros,
índios e europeus, bastante distintos daqueles que freqüentaram os consultórios dos
principais teóricos da psicologia.

2. O povo brasileiro

Muitos brasileiros lutaram bravamente contra a ditadura e suspensão dos direitos


civis nas décadas de 60 e 70, sofrendo perseguições políticas, prisões, torturas e mortes.
Nesses primeiros anos de 2000 testemunhamos a emergência de uma vigorosa produção
cinematográfica retratando esses duros tempos, em uma tentativa de reflexão histórica,
reverência a nossos heróis e expurgo de nossos terríveis traumas históricos do valoroso
sangue inocente derramado de nosso gente. Hoje assistimos a filmes como “O ano em
que meus pais saíram de férias”, “Zuzu Angel”, “Batismo de Sangue”, “Hércules 56”, entre
muitos outros.
Outros brasileiros mais jovens participaram de manifestações civis pela
aprovação da emenda por eleições diretas para presidente na década de 80, repudiaram
o presidente Collor de Mello saindo às ruas vestidos de preto ou ainda foram cabos
eleitorais voluntários do Lula, então candidato à presidência da República, na esperança
de poderem participar na construção de um país mais justo e democrático. Todos que de
alguma forma buscaram promover mudanças coletivas, ao longo de nosso percurso
histórico de lutas sociais e aprimoramento da cidadania, foram heróis.
Nesse princípio de milênio todos os brasileiros se deparam com uma realidade de
derrubada de ilusões, romantismos ou mesmo ideais e utopias. Ela está se mostrando
muito mais complexa e desafiante do que sonhavam todos os valentes heróis de nossa
história. Hoje, boa parte dos países da América do Sul vive uma inédita experiência de ter
eleito governos de esquerda com líderes representantes de camadas populares,
acontecimento que expressa que a falta de ética na política não era característica
exclusiva de governos indiretamente eleitos. A democratização do país não nos trouxe a
integridade na política.
As contradições da desigual distribuição da renda se mantém. Ajudas
governamentais de uma administração de esquerda parecem ainda pouco eficientes para
a questão da fome e da pobreza, na medida em que oferecer subsídios essenciais para
sobrevivência não é suficiente para a constituição de uma autonomia econômica e
cidadania dos que são favorecidos por esse auxílio. Muitos ainda não conseguem
conquistar a devida independência e dignidade. Uma outra parcela das camadas menos
favorecidas se rebelou, trazendo à tona a sombra das desigualdades sociais e de
concentração de renda através de uma criminalidade que parece estar hoje fora do
controle. São os heróis negativos, que cada vez mais apavoram a classe média, bandidos
que se organizam para a promoção de atos de extrema violência e que não se
conformaram com a sua condenação para um destino de miséria, exclusão social e
subserviência.
A configuração político-econômica do Brasil, resultado de um percurso histórico
de desigualdades, estabelece marcas profundas na psique de seu povo, que foi obrigado
a sobreviver a tantas adversidades da maneira que foi possível. Alguns lutaram
bravamente por transformações em muitas rebeliões esquecidas pelos livros didáticos de
história. A grande maioria sucumbiu ou ficou reduzida a uma existência marginal e
miserável, sem nenhuma dignidade e direitos civis. São os ex-escravos e seus
descendentes, os operários de fábrica, os bóias-frias sem terra, os favelados e os atuais
trabalhadores de canaviais.

3. Estudos sobre o Brasil

Muito foi escrito sobre os sérios problemas sócio-econômicos dos países latino
americanos e particularmente houve uma grande produção de ensaios e estudos sobre o
tema na ocasião das comemorações dos 500 anos do descobrimento das Américas.
Em meio a essa vasta produção, o presente artigo se deterá mais no livro clássico
Raízes do Brasil, escrito por Sérgio Buarque de Holanda, em 1936.
Antônio Cândido, um dos mais importantes ensaístas brasileiros, escreve no
prefácio desse livro que há três grandes obras que foram em profundidade nesse tema.
Cronologicamente temos Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre; Raízes do
Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil Contemporâneo
(1942), de Caio Prado Júnior. São obras clássicas lançadas nas décadas de 30 e 40, que
marcaram profundamente sua geração e permanecem muito atuais até os dias de hoje.
Casa Grande e Senzala traz pela primeira vez, de uma maneira muito livre e
informal, a vida sexual do brasileiro e a força da estrutura patriarcal nos núcleos familiares
e na sociedade como um todo. Resgata corajosamente o valor do escravo africano em
sua enorme contribuição na formação da cultura brasileira e faz um elogio
declaradamente pessoal ao povo brasileiro. Descreve a enorme capacidade amorosa e
criativa de escravos e indivíduos de camadas menos privilegiadas de se confraternizarem
com os mais ricos e poderosos, em uma genuína vocação para a sobrevivência e
amizade. Fala das amas de leite negras, que deixavam de amamentar seus próprios filhos
para se dedicarem aos filhos das senhoras brancas e, ao longo do desenvolvimento
dessas crianças, tornarem-se verdadeiramente uma segunda mãe para elas. O autor, em
sua admiração por essas mulheres negras, no entanto, não refletiu sobre o preço que foi
pago por elas quando foram na verdade obrigadas a cumprir essas funções familiares,
com a pesada pena de serem fisicamente castigadas ou mesmo mortas, no caso de
desobediência. Talvez o alto preço pago por esses primeiros brasileiros homenageados
por Gilberto Freyre em sua amizade e obediência aos colonizadores portugueses tenha
formado uma triste sombra no coletivo nacional. Uma sombra que desconsiderou muita
humilhação, carência, sofrimentos físicos e emocionais para manter uma máscara de
cordialidade, concordância e felicidade, como um eficiente recurso de sobrevivência e
conquista de alguma vantagem perante os senhores estrangeiros. Hoje ainda é possível
identificar nitidamente esse tipo de comportamento quando recebemos turistas
estrangeiros.
Em pleno Estado Novo repressivo, Formação do Brasil Contemporâneo é
publicado e traça, na perspectiva do materialismo histórico, um percurso bastante objetivo
e factual da economia de nosso país em uma tentativa de compreensão do
subdesenvolvimento. Caio Prado Junior realiza essa empreitada sem estilizações
literárias, como os dois autores anteriores.
Raízes do Brasil refletiu sobre os pólos contrários que dinamicamente foram
tecendo e constituindo a história do brasileiro: trabalho e aventura, método e capricho,
rural e urbano, burocracia e caudilhismo, norma impessoal e impulso afetivo. Dessas
polaridades, a inclinação natural foi para a valorização das qualidades da aventura, do
risco e do arrojamento, muito mais do que a capacidade da labuta paciente, lenta e diária.
O brasileiro preferiu mais a liberdade desregrada, o afeto de compadres e a flexibilidade
de contornar e até ignorar leis e organizações, do que a adoção de normas e regras
impessoais estruturantes de um sistema nacional em formação.
Os três grandes autores, no entanto, possuem dois pontos em comum.
Eles estão de acordo com a idéia de que até hoje mantemos muito forte os traços
do Brasil Colônia, que são determinantes para os problemas sociais contemporâneos.
A colonização no Brasil foi marcada basicamente pelos latifúndios, pela mão-de-
obra escrava e pela produção econômica voltada por completo para o mercado externo. O
Brasil existia em função de Portugal e mais tarde, indiretamente, da Inglaterra. Nunca
houve políticas efetivas ou algum interesse no bem-estar e desenvolvimento social. Nesse
sentido, excetuando a mão-de-obra escrava, que hoje se transformou em processos mais
sofisticados e algumas vezes acobertada de exploração de mão-de-obra barata, parece
que os fatos não estão muito diferentes.
Os latifúndios permanecem e a questão da reforma agrária continua sem solução
satisfatória. A economia interna continua fundamentalmente voltada para o mercado
externo. No momento em que esse artigo está sendo escrito há uma expansão
desenfreada do plantio de cana-de-açúcar para a produção de etanol, como uma
alternativa de combustível não poluente. Dessa forma, outros produtos básicos da
alimentação do brasileiro não são produzidos; além disso, temos notícias de
trabalhadores em situação de sub-emprego, que estão morrendo pela jornada de trabalho
de mais de 10 horas e condições inadequadas nos canaviais.
Os mecanismos de dominação na atualidade não são mais tão ostensivos e
grosseiros como na época do Brasil Colônia. Eles estão mais sofisticados. Com as
políticas educacionais e sociais de inclusão, as camadas mais populares hoje são
bombardeadas por uma produção da indústria cultural de baixíssima qualidade e
mantidas em sua miséria econômica e social. Uma garota negra estuprada e morta na
periferia de São Paulo continua com exatamente o mesmo tratamento que se dava a uma
escrava da senzala que era obrigada a atender os desejos sexuais do seu proprietário.
Ou seja, uma total impunidade e descaso. O mesmo não aconteceria com uma
adolescente de classe média ou com a sinhazinha da casa grande.
O segundo ponto em comum dessas obras é que foram vigorosos e originais na
tentativa de entender melhor nosso país. Foram, na época, obras que remaram
ousadamente contra a maré do conservadorismo e da tradição, que acabou
desembocando no Estado Novo.

4. O colonizador Portugal

Na descrição de Sérgio Buarque de Holanda, Portugal foi o primeiro país europeu


a conquistar uma centralização política no século XV, enquanto que os demais países
ainda se debatiam em feudos dispersos e desestruturados. Essa foi sua condição de se
lançar em grande vantagem para o processo de urbanização, que foi fundamental para o
desenvolvimento do mercantilismo e o aprimoramento de técnicas de navegação para as
descobertas marítimas. Essa antecipação, no entanto, faz com que a burguesia mercantil
emergente não constitua valores culturais e sociais próprios mais consistentes,
prevalecendo, dessa forma, em muitos aspectos, a cultura da nobreza. Nobres
portugueses obtinham muito facilmente seus títulos através de seus crescentes recursos
financeiros. Há, em essência, para o português, a valorização dos atributos pessoais
como o mais importante recurso para se atingir os próprios interesses, nem sempre
coincidentes com os interesses coletivos.
O povo português privilegia a informalidade cordial em suas relações sociais, há
um desejo implícito em se estabelecer contatos mais íntimos e afetivos, mesmo com
autoridades. Dessa forma, a hierarquia e formas de organizações mais impessoais,
inevitáveis em grupos maiores e mais complexos, como empresas e o próprio Estado, é
evitado e não é visto com simpatia.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, o português, ao contrário dos ingleses em
seu estilo de colonização, era principalmente o aventureiro. O português valoriza as
conquistas através de lutas e aventuras, ao invés do trabalho árduo e constante, como
fizeram os ingleses. Há merecimento em desfrutar os prazeres da vida sem trabalhar para
aqueles que souberam enriquecer às custas de seu arrojamento e visão empreendedora.
O português, dessa forma, é bastante semelhante aos gregos, que tinham o trabalho
como algo depreciativo para quem o exerce.
A colonização portuguesa no Brasil objetivava em essência a pura exploração
econômica e o domínio de suas novas terras. Esse foi o traço mais marcante da
ocupação das terras brasileiras. A agricultura aqui praticada no começo da colonização
era grosseiramente predatória, sem qualquer preocupação em planejar a produção
econômica a longo prazo. Cultivava-se até o desgaste total da terra, para em seguida
transferir-se as plantações para outras terras. A sustentabilidade da economia, dessa
forma, é historicamente ignorada.
Não há fundamentalmente, para o português, qualquer impedimento em se
relacionar sexualmente e procriar com mulheres de outras etnias e, então, muito
rapidamente se juntaram com as índias e depois com as negras escravas, para daí
nascerem os primeiros brasileiros. Esse era também um dos objetivos de Portugal, ou
seja, a ocupação das terras por gente brasileira subordinada a ele.
Segundo o autor, o brasileiro herda do português essas características culturais
muito marcantes e centrais. Todas as demais culturas, entre as quais índios, negros
escravos e, mais posteriormente, de imigrantes de outras nacionalidades, puderam se
integrar à formação da cultura brasileira na medida em que conseguiram se encaixar
nesse formato original.
Sombriamente, a herança lusitana da não valorização do trabalho laborioso, da
inclinação para a informalidade cordial e da exaltação dos atributos pessoais em
detrimento de interesses coletivos, além do mais importante, que foi seu papel de
colonizador predatório, favoreceram a expansão da falta de ética e da corrupção.

5. A colonização

Os portugueses viam as terras recém-descorbertas como um lugar paradisíaco,


onde havia apenas o desfrute e nenhuma obrigação. Segundo o analista junguiano
Roberto Gambini (2000), tal vislumbre constituiu-se em um verdadeiro mito do paraíso,
projeção de seus melhores sonhos e fantasias, em uma época em que provavelmente o
mundo real estava muito longe de se apresentar dessa forma.
Marilena Chauí (2000) coloca que o mito do paraíso está na matriz da formação
brasileira, e o brasileiro corresponde a essa fantasia européia falseadora buscando
transformar seu país de fato em um paraíso. Para tanto, as desigualdades sociais que
não atendem à construção dessa imagem são naturalizadas, como diz a autora. É natural
ser inferior e trabalhadores, negros, índios, imigrantes ou idosos se encontrarem em
condições menos favoráveis.
Os brasileiros são filhos de um pai europeu e de mães índias e negras escravas.
Seu pai, negativo e explorador, renegou a legitimidade de sua paternidade e
simplesmente gerou muitos filhos para povoar suas novas terras e para se deleitar com as
belas e exóticas mulheres que encontrou na recém-descoberta região tropical. Há estudos
que identificam o desejo do brasileiro em ter um presidente com características patriarcais
positivas, quando se avaliam comportamentos no momento da eleição. Muitos irão votar
naquele candidato que apresenta um discurso do bom pai salvador, que, parece, terá
força e capacidade de resolver os problemas de todos aqueles que sofrem.
E os brasileiros são filhos de mães índias e negras que não tinham sequer a
dignidade de ser humano, pois estavam mais próximas a objetos utilitários.
Os primeiros brasileiros órfãos tiveram que aprender a sobreviver por sua própria
conta e risco. E fizeram da ferida de sua orfandade e das adversidades de sua condição
social a sua grande escola de sobrevivência, adaptação e flexibilidade. Reconheceram o
pouco apreço que o pai português tinha à labuta, preferindo passar a maior parte do
tempo no deleite do bom ócio e aprenderam seus valores, inaugurando a versão brasileira
da malandragem. Perceberam que trabalhar o menos possível era condição de maior
sobrevivência para o escravo negro, que se consumia até a morte no labor extremamente
árduo de servir ao seu proprietário. E viram que o índio tinha no trabalho um valor
completamente diverso do europeu. Trabalho não tinha horário, obrigação e
sistematização. Trabalhava-se para poder comer, morar, vestir e celebrar, com um
sentido muito mais próximo da vida na natureza.
E daí também incorporaram inconscientemente na cultura que estava criando a
profunda dor da sua condição de ser inferior, como uma tentativa de ajuste a expectativa
do paraíso para o europeu.
Gislene Aparecida dos Santos, estudiosa da discriminação racial, em seu livro
Mulher Negra Homem Branco (2004) coloca que hoje se torna muito difícil o
reconhecimento do autoritarismo e das desigualdades sociais, tal o grau de naturalização
dessas injustiças sociais para a manutenção do mito do paraíso.
Alguns acreditaram nisso por completo e, impotentes, engrossaram a massa de
trabalhadores explorados e geradores da riqueza produzida enviada para a Europa.
Outros se revoltaram e lutaram pelos seus direitos. Houve Zumbi de Quilombo de
Palmares, que conseguiu constituir uma comunidade de escravos negros fugidos que
sobreviveu por cem anos. Houve Antonio Conselheiro que, com seu fanatismo religioso,
conseguiu reunir uma grande população de empobrecidos em uma cidade organizada e
vencer inúmeros ataques de militares do Estado, até ser tragicamente massacrado.
Outros tantos aprenderam a burlar as regras do jogo social e, através de uma
série de artimanhas e desonestidades, se juntaram às classes mais favorecidas.
Muitos morreram na luta pela justiça social ao longo da história do Brasil, mais
recentemente nos governos ditatoriais de Getúlio Vargas e das décadas de 60 e 70, em
que o cinema brasileiro, como uma forma de elaboração e exorcismo coletivo desses
trágicos períodos, vem se esmerando em trazer à memória através de belos filmes.
O brasileiro é um povo com uma rica herança européia, africana e índia, que
desde sempre vem sucumbindo à exploração de seu valor ou lutando pela sua autonomia
e dignidade.

6. A sombra

O materialismo dialético de Sérgio Buarque de Holanda em muito se assemelha


às idéias de Jung, em seu estudo das polaridades contrárias em busca da unidade (Jung,
Wilhelm, 1929, 1938), na medida em que ele destaca em muitos pontos do percurso
histórico do Brasil o desenvolvimento de um traço, enquanto outro é abandonado.
A partir da herança portuguesa, o brasileiro primou em sua cordialidade afetuosa
e informal e sempre teve muitas dificuldades quando se fizeram necessárias a hierarquia
e a impessoalidade. O autor deixa claro o quanto não é verdadeira a idéia de que o
Estado é um desenvolvimento da família, crença em vigor na época. Laços familiares e
relacionamentos de trabalho são de natureza completamente distintas.
O desenvolvimento das qualidades do aventureiro em sua coragem de se lançar a
descobertas e conquistas deixou raquítico o trabalhador que tem seu valor na constância,
na paciência de colher frutos em trabalhos a muito longo prazo e em sua enorme
capacidade de estruturação e consolidação lentas de bases sólidas.
Nas mais variadas situações em que brasileiros de camadas mais populares se
confraternizaram com seus exploradores e opressores na tentativa de algum lucro ou
privilégio e consideraram esses procedimentos naturais, algo tiveram que engolir a seco.
Por detrás da persona de festa permanente, cordialidade e prontidão para o sexo do
brasileiro, fica a indignação, a humilhação e o abandono entalados na garganta, por maior
que tenha sido o esforço de negá-los. Ficou naturalizado o que não é absolutamente
natural. Não é natural que muitos nasçam com um destino muito provável de pobreza e
exclusão social, enquanto uma outra minoria privilegiada encontra todas as melhores
condições econômicas e culturais de desenvolvimento.
Há dados alarmantes apresentados no Seminário da Juventude Negra realizado
pela Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo em 2007 sobre a mortandade dos
jovens negros, muito superior à da população branca. A principal causa da mortalidade de
jovens negros entre 14 e 24 anos, descendentes de escravos libertos e excluídos da vida
econômica, é o homicídio. Eles são mortos fundamentalmente por policiais corruptos e
pela criminalidade ligada ao tráfico de drogas.
Tudo o que foi negligenciado ou negado ficou na sombra e clama por expansão,
visibilidade e cuidados. Só assim é possível tornar-se inteiro.

7. A individuação

A individuação é um dos conceitos centrais da obra de Carl Gustav Jung. É a


ação de tornar-se si mesmo. É conseguir finalmente vestir e despir as máscaras sociais,
conforme as diversas situações da vida e portá-la com adequação e leveza. É a conquista
da mais profunda autenticidade e originalidade, pois finalmente conseguimos ser
simplesmente o que somos. Podemos ter em um ponto da individuação, não mais uma
pesada máscara, mas apenas uma pele que nos protege e permite entrever o que
realmente somos.
É preciso integrar o que em nós está indiferenciado, polarizado e desigual. Quem
desenvolveu muito o pensamento precisa cuidar melhor de seus sentimentos. Quem é
muito intuitivo precisa perceber melhor e objetivamente os fatos em sua vida. Chega a
hora em que não dá mais para adiar o contato com dores antigas que tentamos esquecer
e que, negligenciadas, nos pregam peças e nos impedem de seguir o caminho.
E isso demanda muita coragem e rendição a algo maior em nós mesmos. É um
ato heróico, pois muitas vezes o que sabemos que precisamos realizar, a partir do fundo
de nossos corações, não é muito valorizado ou aceito socialmente. É o casamento que
devemos renunciar, é ir contra as idéias do grupo ao qual pertencemos, é a escolha de
abandonar o emprego em uma multinacional e virar um artista plástico.
Começa então nossa jornada do herói, quando passamos a ser extremamente
humanos, ao mesmo tempo em que reconhecemos algo em nós que está além de nossa
mera humanidade, preocupados unicamente com nossa sobrevivência e aceitação social,
para viver algo acima dessas necessidades individuais e objetivas, mais próximo do
domínio dos deuses. É quando colocamos um ideal ou uma realização em primeiro plano
e mais importante que nossa própria existência.
O que faz com que um ser humano abra mão de sua própria vida?
Em um certo ponto de nossas vidas, podemos descobrir algo em nós que é maior
que nós mesmos. Se isso acontecer, podemos atingir e transformar o grupo que está ao
nosso redor, nossa família, nossa comunidade, nosso país ou toda a humanidade. É o
caso dos heróis nacionais como Chico Mendes, Gandhi, Che Guevara, Cristo, Buda. Ou
podemos em total anonimato conquistar nossa felicidade mais genuína, sem ninguém
perceber ou valorizar. Ou podemos continuar do mesmo jeito que estamos e, assim, nos
esvaziamos cada vez mais de nós mesmos. Há um preço muito alto a ser pago também
para aqueles que escolhem não seguir seus destinos mais recônditos.
A participação na coletividade de alguém que é fiel ao seu caminho de
individuação pode ter um enorme potencial de transformação.
8. O herói brasileiro

Alguns brasileiros, ao longo da história, perceberam nitidamente que o jeito que


as coisas aconteciam não estavam certas. Não eram naturais e justas. Muitos se
rebelaram contra esse sistema e morreram, foram além de seus interesses
exclusivamente individuais ou de seu restrito meio familiar e lutaram, muitas vezes
abrindo mão de suas próprias vidas. Deixaram o valioso legado da convicção de que não
era correto a exploração de sua mão-de-obra, a ilegitimidade de seus direitos e a sua não
cidadania, e passaram o bastão das lutas sociais para as gerações seguintes.
No entanto, há ainda fortemente uma cultura de privilégios, apadrinhamentos e
vantagens injustificadas que hoje engrossam a corrupção. Há ainda a dor vinda de muitas
gerações do genocídio de negros e índios, da exclusão e da miséria, por mais que
culturalmente isso seja negado em benefício de uma imagem feliz e fraterna.
Está para surgir, dessa vez, não mais o herói revolucionário suicida ou o
malandro “adaptado”, mas o herói que consiga dar os primeiros passos para uma cultura
da ética e do mérito legítimo, conquista de integração das polaridades do povo brasileiro.
E que consiga finalmente chorar e lamentar todo o sofrimento passado e presente ou
expressar sua raiva acumulada e engolida por séculos, com justiça e legitimidade.
Há uma indignação crescente perante tanta corrupção e impunidade de nossos
despudorados governantes, talvez expressão de uma consciência coletiva que começa a
alcançar o entendimento de seus direitos e de seu real valor enquanto povo. É possível
enxergar nesses novos sentimentos emergentes alguns traços desse herói embrionário
em cada um de nossos pacientes brasileiros. E em nós mesmos.

Referências Bibliográficas

CHAUÍ, Marilena. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perceu Abramo,
2000.

FREYRE, Gilberto (1933). Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935.

GAMBINI, Roberto (2000). Espelho índio: a formação da alma brasileira. 2a. ed. São
Paulo: Axis Mundi: Terceiro Nome, 2000.

JUNG, Carl Gustav; WILHELM, Richard (1929, 1938). O segredo da flor de ouro: um livro
de vida chinês. 5a. ed.Petrópolis: Vozes, 1988.

HOLANDA, Sérgio Buarque (1936). Raízes do Brasil. 11a. ed. Rio de Janeiro: Livraria
José Oympio, 1977.
PRADO JÚNIOR, Caio (1942). Formação do Brasil Contemporâneo. 23ed. São Paulo:
Brasiliense, 1996.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:


Companhia das Letras, 1995.

SANTOS, Gislene Aparecida dos. Mulher negra homem branco: um breve estudo do
feminino negro. Rio de Janeiro: Pallas, 2004

SEMINÁRIO JUVENTUDE NEGRA. http://200.144.0.9/popNegra/2007/juventudeNegra/#


O SER INTERIOR NA PSICANÁLISE - fundamentos, modelos e processos
Autor: Walter Trinca1
São Paulo: Vetor, 2007

Maria Helena R. Mandacarú Guerra

Quando, em 1981, conheci o psicanalista Walter Trinca, ele era professor e


supervisor no Instituto de Psicologia da USP, onde eu iniciava o mestrado em Psicologia
Clínica. A partir daí, durante todo o curso, procurei sempre participar das supervisões com
Walter, pois sentia que seu olhar e modo de abordar os fenômenos mentais era muito
compatível com a visão junguiana, a qual já embasava meu trabalho clínico e a minha
compreensão dos processos psíquicos.
A leitura de seu último livro, O Ser Interior na Psicanálise, veio reafirmar essa
impressão, ainda que ele, à página 29, discorde explicitamente sobre a equivalência entre
sua noção de ser interior e a de Si-Mesmo (Self), de Jung. No meu entender, esta
divergência repousa mais na ambigüidade do conceito de Self proposto por Jung do que
numa diferença fenomenológica entre a experiência tanto do ser interior como do Self
enquanto centro unificador e regulador da psique, o qual, justamente para evitar confusão,
Byington insiste em chamar de Arquétipo Central.
De forma bastante clara e sensível, Walter discorre sobre a fenomenologia da
vivência do ser interior, desse “núcleo de verdade existencial”, aquele ser que “está na base
de nossas experiências de existência própria e das vivências de sermos nós próprios em
nosso existir pessoal”, e que “corresponde àquilo que a pessoa é desde o começo de sua
vida”, “fator universal presente em cada pessoa”, “o ser com o qual nascemos, fazendo parte
da bagagem congênita”, “cujos alicerces mergulham nas próprias características da espécie
humana.”
Mas nem sempre o potencial para sermos quem somos é realizado, e Walter nos
apresenta de forma muito profunda e didática a fenomenologia de alguns fatores que podem

1
Psicólogo e psicanalista. Obteve os títulos de Mestre em Psicologia Clínica, Doutor em Ciências, Livre
Docente e Professor Titular pelo Instituto de Psicologia da USP. Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo e da International Psychoanalytical Association. Autor do Procedimento de
Desenhos-Estórias e dos livros Psicanálise e transfiguração: a etérea leveza, A arte interior do psicanalista e
Fobia e pânico em psicanálise, dentre outros.
contribuir para esse descaminho, assinalando que “as deficiências de contato [com o ser
interior] podem conduzir à estagnação, à paralisação, à mumificação e à morte mental.”
Walter propõe ainda um eixo em que insere os diferentes graus de psicopatologia, de
acordo com o maior ou menor contato consciente com o ser interior, para em seguida
oferecer ao leitor uma aproximação da vivência da consciência expandida, aquela mais
próxima da realização do ser que somos única e intrinsecamente.
Nas palavras do autor, “abaixo dessa condição, ninguém consegue ser feliz”.
Quem ler, verá!

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